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Full text of "Oracões sacras, : que ao M. excellente Principe o Ex.mo senhor D. Francisco de Lemos de Faria, Bispo Conde de Arganìl, dedicou"

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R.  B.  ROSENTHAL 

LIVROS 
Lisboa  2  — Portugal 


'Msxhxt  Cíarítr  Proitm 

^totait  )Smtísx:ítrbx 


/ 


ORAÇÕES 

SACRAS. 


ORAÇÕES  SACRAS, 

q  u  E 

AO  M.  EXCELLENTE  PRÍNCIPE 

O  EX.^^  SENHOR 

D.  FRANCISCO  DE  LEMOS 

DE    F  ARI  A, 

Bifpo  Conde  de  Arganil , 

Dedicou 

MANOEL  DE   MACEDO  PEREIRA 

DE VASCENCELLOS, 

Presbytero  Secular, 

LISBOA 

NaOf.Patr.  de  FRANCISCO  LUIZ  AMENO. 


M.  DCC.  LXXXV. 
Com  licença  da  Real  Meja  Cenfork, 

Vende-fe  na  loja  da  ImpreffaÕ  Regia  na  Pra^ 
ça  do  CommercJo. 


:ao  m.  excellente  príncipe 
o  EX/'«  SENHOR 

D.  FRANCISCO  DE  LEMOS 

DE  FARIA 


MANOEL  DE  MACEDO  PEREIRA 

DE  VASCONCELLQS 

S.    e    F. 


AFENDOeu  de  impru 
mir  o  primeiro  tomo  de  minhas  Ora^ 
ções  Sacras  ,  era  natural  que  por 
aQ^radecimento  ,  e  ainda  for  uaidade 

^"  me. 


* 


II 


me  íemhrap  âe  V.  EXCELLENCIA 
para  honrar  com  o  feu  nome  ofrontif- 
ftcto  de  minha  obra.  O  merecimento 
de  r.EXCELLENCU  todos  o  conhe^ 
cem.  Nem  eu  tenho  necejjidade  de  o  in- 
culcar, quando  faõ  públicos  es  monu- 
mentos, que  exaltada  gloria  deV.EX- 
CELLENCIA.  Nobreza  de  fangue  , 
copia  de /ciência ,  explendor  de  virtu- 

^-^'^ELLENCUo  caminho  por  onde 
«  jnjttfa ,  e  afortuna,  dando-fe  reci- 
procamente as  mãos,  o  conduzirão  pa- 
ra tao  Sublimes,  e  árduos  empregos,  fi-  ■ 
gurando-ojd  como  Prelado  de  huma 
JJtecefe  que  com  a  longa  ,  e  brilhante 
òeriedefeus  Bifpos  tem  immortaliza- 
do  afama  da  Igreja  Lufttana  ;>'  co- 
mo Reitor  de  huma  Univerfidade,  que 
najua  reforma  (  melhor  dijfera  crea- 
çao  )  nada  tinha  que  invejaras  mais 
florentes  Univerfidades  da  Europa  ! 

Agora  ,  Senhor,  que  matéria  Ce 
me  naõ  propunha  para  que  em  muitos 
eloztos  defafogajfe  a  minha  gratidão, 
refieBtndofizudamente  nos  feios,  e  en- 

í^Ji^iULA arrancou-^  para  que  facu- 

ài- 


dido  o  jugo  da  Jurtrprudenaa  Bart(f'. 
lha  ,  relgatapmos  a  mija  Naçao  da 
aífruntalque  todos  lhe  faziao  ,luppon- 
do-a  envolta  nas  trevas, que  ou  a  ma- 
licia,  ou  a  barbaridade  ejpalharao  jto 
tempo  ( infeliz  tempo)  de  feu  abjo/uto, 
e  quaít  tirânico  poder !  O  cofjeamen^ 
to  das  Linguas  Orientaes,  afolida  Uo* 
quencia  ,    a  Çua  Filofofia,   a  Geome- 
tria ,  a  AJlronomia  ,    o  Calculo  ^  a 
Tbeologia  naõ  ejlragada  com  metafy* 
ficas  abílraBas  ,  mas  bebida  na  fonte 
pura  dos  Çagrados  Códigos,  da  Tradi- 
ção ,  e  dos  Concilios  ,  a  Htftorta  Na-. 
tural,  a  Chimica  ,  ea  Medicina    qtie 
cuidados  naõ  levarão  a  V,  hXLí^l^'; 
LENCIApara  que  tivefe  ajulta  conj 
Mação  de  que  no  acanhado  elpaço^  de 
poucos  annos  confe(fafem  todos  o  rápi- 
do ,  emaravilhojf)  progrejfo  com  que 
a  Mocidade    ortugueza  fe  avançava  y 
pafuindo  Faculdades  de  que  nem  atnda 
o  nome  entre  muitos  talvez  fe [aberta.: 
.     Tudo  fe  deveo  ao  zelo   de  V.EX" 
CELLENCIA  :  tudo  dfua  vafla  com- 
prehenfaÕ .^velando  de  di^  ,  e  de  noite 
como  Agricultor  folicitojobre  as  ten- 
ras plantas  de  que  hum  Rd  interejjji' 


carregara    Aquém  naõ  fazia  ertecie 

i^lA  affijlta  a  todos  os  AóJos  ,  /em  aue 
comafua  afabilidade  arrijJJTofel 
decoro\Comque  agrado  .aõacflhíJZ 
tre  osjeus  braços  a  quem  mais  fe  dií-. 

'/"S^"^  ,  chamanão-o ,  louvando-oe 
Jegurando-lhe  a  fua  protecção  para  o 

adtantamento  de  feus  defpachos  \    Q 
Premtofe  falta,  falta  tudo. 

rots  m  meio  de  fuás  literárias  fa- 
digas,  repartindo  com  Deos  ,  e  com  o 

randofe  das  fantas  providencias ,  com 
^^'J"'.''/ '""^Prtmento  dejua  P aflorai 
Dtgmdade  acudta  aofeu  rehanho\  Que 

EXLELLEMCIA  nas  Homilias ,  aue 
l^^recuaval  Que  documentos  cJnfir- 
mados  comas  acções  de  rua  vidain. 
y^ente\Naõ  podendo  abranger  a  to. 

daeZ!/'?'"-'  f"'''  ^«earLdos 
^f  Jp^da  de  dois  gumes  dedarajfem 
eos  vícios  a  guerra  \  JJ    "■ 

'    Qtiem  mais  caritativo  que  V.  EX- 


Eg 


(HELLENCIJ  ?  Quem  mais  generofcy 
Como  tejiemunhaõ  as  ohras  magníficas ^ 
com  que  ennohrece  afuaCathedral^  as 
pingues  ej melas j  coyn  que  fubleva  a  in- 
digência de  [eus  fubditos  ?  As  mãos 
de  V,  EXCELLENCIA  nada  asfe^ 
cha^  ejlaôfempre  abertas ^e eftendtdas 
fará  felicitarem  a  quem  na  amável 
prefença  de  KEXCELLENCIJ  buf 
ca  o  remédio  de  que  precifa.  Eu  nao 
fieceffíto  depravas  eftranhas^Da gran- 
deza  de  V.  EXCELLENCIA  eu  te- 
nho a  demonftraçaÕ  no  que  pajja  por 
mim,  devendo'lhe  tudo:  devendo- lhe  ^ 
vida  ,  pela  piedade  ,  e  pela  profufao 
com  que  me  afjiftio  na  minha  doença , 
que  pçr  dilatada  me  conftituio  na  mef- 
quinhafituaçâõ  de  naÕ  poder  ganhar 
o  paõ  ^  que  me  mantenho  amaJ[ado 
com  o  fuor  de  meu  rofto.  Efta  confijfao^ 
faço-a  agora  publicamente  :  fa-la-het 
fempre ,  que  nao  f ou  ingrato. 

Quem  mais  ,  .  .  Porém  eu  conjier- 
m  aF.EXCELLENCIA,  dizendo-lhe 
que  nas  fuás  obrigações  he  o  mais 
exaBo ,  que  nos  [eus  cqftumes  he  o  ma- 
is religiofo  ,  que  nas  Juas  amizades 
he  o  mais  fino  ,  que  na  jujientaçaõ  de 


feu?  direitos  he  o  mais  confiante,  con^ 
Jervanão  perfeitamente  equilibrados  » 
Sacerdócio ,  e  o  Império.  Nejies  ter^ 
^oi  ,  di6U  a  prudência  que  me  impo^ 
fiha  inviolavelmente  filencio ,  Jupplt- 
candolhe,  cheio  de  ref peito  ,  quedei^ 
culpe  a  minha  oufadia ,  fe  por  ventura 

rrÍ?nT^''^^  "^'f^^^^^àeF.EXCEL^ 
j^hJSÍCIJ,  ferindo  afua  modeftia.  Se 
•Oeos  profperar  os  meus  defignios ,  eu 
J-arei  ver  algum  dia  em  mais  dilatado 
-volume  as  virtudes  ,  e  as  acções,  com 
queKEXCELLENClA.  efmahand, 
o  langue  dos  Azeredos ,  dos  Coutinhos^ 
dos  Farias  ,  dos  Cantos  ,  dos  Lemos  , 
dos  Pereiras  ,    dos  AlarcÕes  ,    e  dos 
i<<?^m ,  tlluflra  a  America  de  quem 
^f  niho  ,  a  Igreja  de  quem  he  Prin^ 
ctpe. 


■r^ 


Non   contradicas  verba  mca  - 
verba  venratis  ullo  modo. 

Eccii,  C  4» 


w 


PRO- 


PROLOGO 


U  naõ  efpero  agradar  a 
todos.  Contento-me  com 
J  a  approvaçao  daquelies 
que  amando  a  pureza  de  noíTa  lin- 
guagem defcubrirem  nos  meus 
taes  quaes  efcriptos  algum  mereci- 
mento, na  diligencia  com  que  pro- 
curei amoldar-me  ao  gofto  de  nof- 
fos  antigos  ,  nao  uzando  ,  nem  de 
palavra  ,  nem  de  fraze ,  que  nao 
feja  Portugueza  :  como  moftrarei , 
fe  precifofor,  trazendo  para  mi- 
nha defeza  os  exemplos  de  noíTos 
Clafficos. 

Se  efcaldando  a  minha  fanta- 
íia  ás  vezes  me  remonto  mais ,  nao 
lo  tenho  pela  minha  parte  os  pre- 
ceitos (  que  em  fim  os  Panegyricos 
fao  huma  Poeíia  mais  livre  )  mas  a 
authoridade  de  Oradores  profa- 
nos ,  igualmente  que  fagrados ,  de 

que 


qíie  polTo  tecer  diffufos ,  e  brllhan* 
tes  catálogos.  Todavia  quem  nao 
goftar,  naó  me  leia.  Naó  me  hei  de 
queixar. 

Quereria  porém  que  todos  imi- 
taíTeqi  as  virtudes, que  fornecem  a 
matéria  ás  Orações  Sacras  que  pu- 
blico agora.  Efte  fruto  me  adoçará 
qualquer  trabalho,  ainda  que  afpe- 
ro,  porque  tenha  palTado  no  proje- 
flo  que  concebi  ;  fendo  unicamen- 
te o  fim  que  me  proponho  inflam- 
mar  os  ânimos  na  devoção  daquel- 
les  Santos,  de  quem  teci  o  elogio  , 
que  he  o  que  cumpre  ao  minifteria 
que  exercito.  Deosofabe.  Deos, 
que  he  de  quem  pertendo  o  pre- 
mio.  Se  o  confeguir,  he  o  que  me 
baila. 


I 


IN- 


^ 


índice. 


ORaçaSpela  confervaçaÕ  ãa  murte 
Alta  ,  e  muito  Pederofa  Rainha 

Fideliffima  N.  S.  pag.  r. 
Oração  a  S.  Francifco  ,  1 7. 
Oração  primeira  a  S,  Margarida  de 

Cortona  y  35*. 
Oração  ao  SS,  Sacramento  ,  yj. 
Oração  a  S.  Barbara ,  74. 
Oraçaõ  a  S.  Miguel ,  88. 
Oração  a  S.  Natália  ,  loi. 
Oraçáõ  ao  SS,  Rafar io  ,   114. 
Oraçaõ  a  S,  Agojlinho ,  1 25. 
Oraçaõ  a  Santiago  ,   143. 
Oraçaõ  â  Conceição  ,   158. 
Oraçaõ  Jegunda  a  S,  Margarida  de 

Cor  to  na  y   175'. 
Oraçaõ  Fúnebre    do    Excellentifflmo 

Principal  D.  JoaÕ  de  Faro ,  1 84. 
Oraçaõ  Fúnebre  do  EmineHtJJtmoCar* 

de  ai  D.  JoaÕ  Co/me  da  Cunha  y  106* 


ORA- 


^^ 


ORAÇÕES  SACRAS ; 


O  R  A  Ç  A  Õ 

Pela  confervaçaÕ  da  muito  Alta  ,  4 

muito  Poderoza  Rainha  Fide- 

liffima  JV.  Senhora. 

'ÈS)?S9M.  O  R  Q  u  E  nao  terei  eu  as 
\k  p  k6  brilhantes  qualidades,  coiu 
2$6o<xx2  que  íahem  enriquecidos  da^ 
^^^^  niâos  da  natureza  aquelles 
génios  fublimes ,  que  com  a  força , 
nao  menos  que  com  a  belleza  dos 
difcuríos  que  produzem ,  da6  ás  ma-^ 
terias  de  que  trataõ,  o  precifo  valor  ; 
defempenhando  felizmente  as  diffi- 
culdades  ,  ainda  que  árduas,  dos  prd- 
jedlos  que  meditaô*?  Infíammado  na* 
.quelle  fogo  ,  que  efcaldando  a  ima- 
ginação fantamente  nos  arrebata  pa^^ 
A  "        ra 


íf 


2t  Oração  PELA  CONSERVAÇÃO 
ra  concebermos  idéas  grandes  ,  no 
meio  das  confideraçôes  que  me  af- 
fuflaó ,  porque  naô  me  'esforçarei , 
cnvolvendo-me  no  argumento  que /e 
me  propõem  naô  fá  como  tributo 
de  nofla  vaíTalagem  ,  mas  como  ob- 
fequio  de  nofla  gratidão  ? 

Amável  Soberana,  que  fentada 
no  ThronO)  que  o  primeiro  Affonfo 
erguendo  fobre  as  defpedaçadas  Luas 
Mahometanas  lavrou  com  a  fua  tri- 
wnfandora  efpada,  encheis  aos  nacio- 
fiaes  de  confolaçaô ,  aos  eílranhos  de 
inveja,  vós  medais  o  aíTumpto  ,  vós 
me  infpirais.  Attrahido  do  refphn- 
dor  das  virtudes,  que  embala ndo-vos 
o  berço  á  fimilbança  de  nítidas  Ef- 
trellas  ,  vos  guarnecem  o  Diadema 
que  cingis;  com  que  refoluçaô  naó 
devo  dos  preciofos  dotes  que  efmal- 
taõ  a  voíTâ  alma  ,  tecer  o  Panegyrico 
que  vos  confagro,  como  hum  Hjmno 
de  agradecimento  ,  cantado  a  Deos 
ante  os  Altares  pela  voíTa  confer- 
vaça6  ? 

Pois  quem  ha,  Senhores,  que 
refleítinda  lifudamente  nas   acções  j, 

ou 


rw 


DA  Rainha  íf.  senhora.         ^ 

ou  publicas,  ou  particulares,  com  que 
a  nõlTa  Rainha  cumpre  as  obriga* 
ções,  pofto  que  pezadas,  do  indepen- 
dente Sceptro  que  empunha,  naõ  te- 
nha de  que  matizar  dilatados  elo- 
gios ,  que  igualmente  íirvao  de  edi- 
ficação a  quem  os  ouve  ,  que  de  hon- 
ra a  hum  nome  ,  que  gravado,  mais 
que  em  laminas  de  ouro  fino,  nos 
noflbs  corações  ,  voa  de  Ceo  em 
Ceo  para  fer  íínceramente  adorada 
de  todos  ? 

Ao  menos  eu  ,  fem  que  ceda  9, 
hum  pezo  ,  que  curvando-me  me  in- 
timida, com  que  gofto  alçando  a  mi- 
nha débil  voz  nao  oufo  dizer-vos^ 
que  nada  ha  de  augufto ,  nada  de 
puro^  que  fe  nao  ache  já  na  fua  peC- 
íba  ,  já  na  fua  vida  :  para  que  fe 
conflitua  apar  das  Heroinas  Ch ri ílâsj 
que  immortalizarao  a  glori  a  de  feu 
fexo  digna  dosapplaufos,  com  qUe 
a  fama  engroíTando  o  brado  a  fará 
eternamente  lembrada  nas  idades  vin* 
douras. 

Mas  pára  illumínaf  ô  qUâdtfo 
que  traço  ,  neceffitarei  por  ventar^ 
AU  4a 


i 


4      Oração  pela  consehvaçao 

de  enfopar  o  pincel  nas  cores  que  a 
lifonja  prepara ,  para  mais  docemen- 
te nos  íurprender  ,  ufando  agora  do 

cítudado  artificio  de  huma  eloquên- 
cia totàimente  profana  ?  Nao  Se- 
nhores. As  feveras  Lçls  promulga- 
das fobre  a  Cadeira  da  verdade,  que 
occupo  ,  naó  foffreriaô  que  dentro 
doSaníluario  corrompeíTe  a  minha 
lingua  com  penfamentos  que  a  def- 
earada  ,  e  vil  adulação  me  infpiraf- 
fem.  Para  fatisfaçao  do  que  vos  pro* 
metto,  eu  tenho  guia  mais  fegura  a 
iquem^  figa  :  eu  teaho  as  Santas  Ef- 
cripturas. 

Grandes  Nafcimentos ,  fagradas 
Allianças  ,  Filhos ,  que  como  viçofas 
oliveiras  crefceis  5  inundando  de  ale- 
gria as  mezas  dos  Pais  que  vos  ge- 
rara 5  5  Regia  pofteridade  ,  vós  fois 
huma  dadiva  daquelle  Ente  fupremo, 
que  fegundo  a  economia  dos  de- 
cretos' eílabelecidos  governa  ao  feu 
arbitriò  o  deftino  dos  Impérios.  DI-^ 
ga-o  Abraham.  Naô  faz  Deos  fahir 
de-fua  família  os  Reis.de  Ifrael,  co- 
4ffi<^ fremia' da^  obediência  com  que 

^hr-  ':     .■•■  de* 


DA  Rainha  n.  senhora;  y 

dcfembainhando  o  affiado  cutelo  er- 
gueo  no  monte  do  Sacrifício  o  bra- 
ço para  vibrar  o  golpe  fobre  a  gar- 
ganta do  innocenteííaac,  crendo  lia 
fuaefperança  contra  a  efperança? 

Sem  que  corramos  o  véo  a  fe- 
gredos  recônditos,  nós  fabemos,  Se- 
nhores ,  que  Jesus  Chriílõ  funda- 
ra entre  os  Portuguezes  o  feu  Reino, 
para  qu€  os  noíTos  Princi  p es  fegu in- 
do os  movimentos  ãc  piedade  ,  que 
os  caradleriza,  depois  de  q;uebrado 
o  jugo  Sarraceno  ,  mandaíTem  fobre 
voadoras  quilhas  a  Orizontes,  além  de 
remotos  ,  deíconhecidos  ^  juntameU^ 
te  com  os  nofTos  vidtoriofos  Pavi> 
IhÔes  a  noticia  do  Chriílianifmo  pa»- 
Tâ  o  propagarmos. 

Que  proezas  nao  fizemos  ?  Nós 
fomos  os  primeiros ,  que  rafgando 
as  coitas  ao  íoberbo  ,  e  indómito 
Adamaftor,  cortámos  nas  margens  do 
Ganges  as  palmas  de  que  enramá- 
mos os  rezulentes  elmos*  Os  Cer- 
toes  da  America  ,6  os  rochedos  da 
Africa  gemerão  vergados  debaixo  do 
nolTo  ferro  ,  naõ  ha vend^^  parte  nos 


€  Ov^jIçaô  fêla  conservação 
Mundos  defçobertos  aonde  por  cima 
das  ruínas  de  eftragados  ídolos  na6 
arvoraflemos  a  Cruz  do  Redemptor; 
illuftrando  no  rápido  progreílo  de 
noíTas  Conquiftas  aquelles  Povos  , 
ainda  que  ferozes ,  com  as  luzes  do 
Evangelho. 

Mefclando-fe  com  a  gloria  das 
Armas  a  gloria  das  Sciencias,  como 
animados  da  protecção  de  noflos  Au^ 
guftos,  difputámos  ás  Naç6es  poli- 
das a  primazia,  Itália  ,  França  ,  e 
Hefpanha,  de  que  admiraçaá  fe  tranf* 
portára6 ,  ouvindo  nas  fuás  Univer^» 
lidades  a  huns  Homens ,  que  furgín^ 
do  do  ultimo  Occidente  derramarão 
das  Cadeiras,  que  regiaS,  os  thefou- 
ros  adquiridos  debaixo  da  difcipli- 
na  dos  Angelos  Poliçianos  ,  dos  Pi-, 
cos  de  la  Mirandula,  e  dosErmo- 
laos  Bárbaros,  Oráculos  daquelles 
tempos:  dourados  tempos! 

As  noífas  Mufas  enlourando  as 
teftas,  naô  adormecerão  muitas  ve- 
zes as  agoas  do  Tibre ,  e  do  Sena, 
fyavemente  attrahidas  da  confonancia 
dç  íuas  lyras  í   Vós  venerável  Con* 

grçífo 


DA  Rainha,  n.  senhora;  7 

greíTo  de  Trento  >  com  que  efpanto 
pendeis  da  boca  de  huns  Theolo- 
gos,  que  deteftando  as  abílradlas  ,   e  ;Jí 

impertinentes  metafyficas  da  Efcola  ^  ' 

he  nas  Efcrituras  ,   he  na  Tradição 
(  fontes  puras   de    puras  verdades  ) 
que  tinha6  unicamente  o  efcudo  pa- 
ra rebaterem  as  lanças ,  com  que  hu- 
ma  geraçââ  de  viboras  ,  ingrata  ao 
leite  com  que  fora  alimentada  ,  per- 
tendia  dilacerar  a  inconfutil    túnica 
da  Igreja!  Expliquemo-nos  fem  figu- 
ras :  a  Santa  Fé  que  profeíTamos,  ^^ 
De  que   prazer   nao  inundarão 
pois  os   noíTos  peitos  ,  naò  fò  con- 
templando  a  grandeza  a  que  fe  ele- 
va, mas  revolvendo  na  memoria  as 
maduras,  e   prévias  difpofiçoes  cora 
que  anofla  amabiliífima  Rainha  ,  her- 
dando de  tantos  excelfos  Afcenden- 
tes  com  o  fangue  as  virtudes,  fe  pre- 
vine para  o  eminente  cargo ,  a  que 
a  Providencia   amiga  de  noíTo  bem 
adeftinara    na  urna  de  feus  eternos 
confelhos  ?   Naó  faô  os  raios  ,  que 
cercaó  a  Mageftade ,  que  a  deslum- 
braó;  naó  faõ  os  applaufosi  incen- 


S  OrAÇAÕ  PELA  consehtâçaS 
fo  que  ao  redor  do  SoIio  quaíl  fem- 
pre^  com  prodigalidade  fe  queima. 
Mais  alto  põem  a  mira.  Exemplos 
de  feus  grandes  Pais,  como  orvalho, 
que  calando  brandamente  a  terra,  a 
fertiliza  ,  vós  vos  embebieis  no  feu 
animo  para  lhe  fervires  de  molde 
porque  fe  ajuftafle  na  efcabrofa  car- 
reira da  vida. 

Chamejando  nos  feus  olhos  bel- 
los  o  fervor   de  feu   efpirito  ,    que 
com   paíTos   de  gigante    corre  pelas 
varéd^as,  ainda  que  acanhadas,  da  per-^ 
feição,  vira6-na  nunca  que  naô  efti- 
veífe  efcudada  daquellas  máximas  de 
Religião  ,  que  a  largos   forvos  com 
fanta  fede  bebe  nos  livros  de  pieda^ 
de ;  fazendo  (  para  fallar  com  a  fra-. 
ze  do  Profeta )  cheios    os  feus  dias 
na  cultura  dos  talentos ,  que  da  gra- 
ça ,  e  da  natureza  folgadamente  re- 
cebera :  forvida  na  contemplação  da- 
quella  formofura  antiga,    daquella 
formofura  nova  :  na  Oração,  que  he 
a  fonhada  efcada  de  Jacob,  pela  qual 
fe   fobe   como  cândida    Pomba    de 
Edon  ao  Empyreo  !^ 

Pai- 


DA  Rainha  n.  senhora.         9 
Paixões  crgulhofas  :    appetíí-es  , 
que   rugindo    á  maneira    Ó2  pávidos 
leoés  do   berço   nos  efpreitaó    para 
defapercebidos  nos  devorarem,  eomo 
os    defcarna  1    Branqueando    os  feus 
veftidos  no  fangue  do  Cordeiro  fem 
mancha  ,  nutrida  com   aquelle  Paá., 
C]ue  gera  fortes:  vós  Anjos,  que  ihe 
affiílis  para   a  guardares  nos  íeus  ca- 
minhos, he  que  nos  haveis  informar 
da  pureza  com   que  frequenta  a  Me- 
za  Eucariilica!    Ferindo  com  humil^ 
dade   o    innocente    peito  ,    abaixanr 
do  aquella  cabeça  ,  a  quem  agora  to- 
do o  Univerfo  fc  inclina,  taô •arrai- 
gada nafua  fé,  como  o  Centuriaô  ! 
Que  argumento  ,  Senhores  ,   pa^ 
ra  envergonhar  a  noíía  foberba  !  Hu- 
ma  Princeza  legitima  herdeira  da  an- 
tiquiíTima  Cafa  de  Bragança  :  (  nada 
ha  de  Auguílo  ,  que  fe  nao  compre- 
henda  nefte  nome)  Bella  mais  que  as 
bellas :  na  aurora  de  feus  annos:  mais 
que  lifongeada  fervida   da  fortuna  : 
as  delicias  de   huma  Naçaô^    que  á 
coníiderava  como   a  arbitra  de  fuás 
futuras  felicidades ,  dobrados  os  ten- 
ros 


ílo     Oraçao  pela  COí^SEUVAÇAÕ 
ros  joelhos  ,    colida   com   a  terra  , 
<|ue  muitas  vezes  beija  ,  fazendo  a 
Deos  hum  grato  facrifício  de   todos 
os  titulos  de   fua   grandeza,  que  re- 

Íuta  por  huma  fombra  que  paíía  por 
um  nada  ,  ainda  que  brilhante  !  A 
fua  Alma  como  naó  fera  o  Thalamo 
florido  entre  cujos  brancos  Jirios  fe 
apafcenta  J  e  s  u  s  Chriílo  ,  a  quem 
de  fua  infância  fe  dedica  ? 

Mas  que  tochas  fe  accendem  ! 
Que  laços  fe  tecem  !  Vós  Graças  in- 
iiocentes  he  que  enfeitais  de  flores^ 
que  fe  nao  raurchaó ,  as  grinaldas  que 
hao  de  ornar  a  fronte  dos  caftos 
Efpofos.  Por  mais  ,  Senhores  ,  que 
poderofos  Principes  reforçando  as 
íiias  pertençôes,  afpirem  a  hum  Con- 
forcio  ,  fobre  que  a  Europa  com  as 
fuás  viftas  eílende  as  fuás  cfperan* 
ças ,  outra  he  a  eleição  de  hum  Rei  , 
que  amando-nos  finamente ,  naó  quer 
que  de  fora  nos  venha  quem  ao  la- 
do da  adorada  Filha  a  ajude  a  fu- 
ftentar  o  governo  de  huma  Monar- 
quia ,  que  efpalhada  pelas  quatro 
partes  da  Estéra,  fe  faz  taõ  invejada 

PC- 


wm 


DA  Rainha  n.  senhoba.  ii 
pelas  fuás  riquezas,  como  temida  pela 
íeu  esforqo,  Ditofo  Pedro ,  vós  íois 
o  preferido.  As  voíTas  virtudes  faó  as 
que  vos  grangearao  huma  ventura  de 
que  nós  çftamos  colhendo  os  frutos. 

Como  abençoa  Deos  eílas  Núp- 
cias 5  deferindo  com  benignidade  ás 
preces  que  mandamos  á  fua  prefen- 
ça  ,  envoltas  nas  lagrimas  que  ala- 
gavaó  os  noíTos  roftos  de  palidez 
cobertos  !  Os  Netos  de  D.  Jofepli  o 
Primeiro  multiplicaõ-fe ,  para  que  o 
medo  de  vermos  interrompida  a  Se- 
rie de  noíTos  Reis ,  nos  nao  coníler- 
ne.  Nós  temos  huns  apoz  outros  os 
fiadores  ,  que  fegurando-nos  a  defe- 
jada  fuçceífaõ  nos  defvanecem  com  a 
certeza  de  que  aquelle5que  olhou  pa- 
ra a  geração  attenuada,  velando  fo- 
bre  a  noíla  felicidade  ,  ainda  efpe- 
cialmente  nos  protege,  entornando 
fobre  Portugal  as  fuás  antigas  mife- 
ricordias. 

Porém  eu  que  faço?  Acafo  per- 
tendo  com  os   meus  curtos  braços , 
fondando  os  abyfmos  rcferir-vos  hu- 
ma  por  huma  as  noíTas  ditas  ,  deri- 
va 


12      ORAÇAo  PELA  CONSERVAÇAS 

Yadas  todas  de  huma  Rainha  ,  que 
emuia  das  Ifabeis,  e  das  Chriftinas  , 
une   tudo   o  que  ha   de   fublime  na 
fua  peíToa?    Dia  treze  de  Maio  ,  tu 
ine  chamas.  Para  fuavizar-mos  a  per-' 
da  de  hum  Monarca  ,   que  trilhando 
Jiuma  eftrada  quafi  defconhecida  en- 
tre nós ,  quiz  dar  á  Naçaõ ,  de  que 
era  Arbitro  abfoluto,  huma  nova  fa- 
ce,  arrancando  encarquilhados  abu- 
fos;  podia-mos  nós  ter  lenitivo  mais 
eíEcaz,  que  vermos  apar  de  feu  Con- 
forte caro  a  Primeira  Maria  ,  rece- 
bendo  com  a  noíTa  jurada  vaífalíagem 
os  noíTos   corações  ?    Que    maravi- 
Jhofos  tranfportes  de  contentamento 
naõ  forao  os  noíTos ,  diíFundindo-íe 
|3or  cima  das  aguas  do  Tejo  o  écco 
daquelles  vivas  ,  com  que  agradecía- 
mos ao  Todo  Poderofo  o  bem  que 
nos  comunicava?  Eu  nao  fou  encare- 
cido.  Abracando-nos  reçiprdcamen. 
te,  naõandaya-mos  como  alienados  ? 
Vós,  vósfoftes  fieis  teftimunhas» 

Como  começou  logo  a  refplande- 
cer  a  fua  innata  clemência  !  As  maf* 
morras  defaferrolhadas  :  os  ungidos 

do 


DA  Raina  n.  senhora.  ij 
do  Senhor  na  fua  liberdade :  as  gra- 
qas  correndo  perennemente  do  Thro- 
no  que  occupa  :  o  focego ,  a  paz,  e  a 
alegria  tornando  a  collocar  nos  nof- 
fos  ânimos  o  íeu  aflento;  da-fe  a  Ce- 
far  o  que  he  de  Cefar  ,  a  Deos  o 
que  he  de  Deos.  Sempre  que  a  Juj 
lliça  nao  grite,  ha  mercê  que  nos  na6 
liberalize  ?  Conhecendo  que  he  irre- 
parável a  perda  de  quaiquer  indivi- 
duo dos  que  compõem  ,  e  organi- 
zaó  o  corpo  doEílado ,  que  raras  ve- 
zes  vemos  enfopados  os  noíTos  ca- 
dafalfos  no  fangue  de  feus  vaílallos  l 
Melhor  lhe  compete  o  nome  cari- 
nhofo  de  filhos. 

Eu  nao  quero  que  os  delidlos 
fejaô  impunídos.  Releva  muito  qua 
fe  ponha  freio  á  maldade  dos  homés. 
Os  prémios  ,  e  os  caíligos  faó  os  ei- 
xos fobre  que  as  Republicas  fe  eíla- 
belecem.  Mas  fem  que  fe  mate,  nao 
ha  penas,  que  proporcionando-í^  aos 
crimes,  ainda  que  graves,  atalhem  os 
damnos  ,  que  dos  tranfgreíTores  das 
Leis  refultao ,  tirando  fempre  os  Ef- 
tados   dos  delinquentes  muitas  vaa- 


i 


M 

I       : 


í;hi; 


I  ^amÊmBÊmmmÊÊÊmmmmm 

14     ORAÇÃO  PELA  CONSERVADAS 

ragens  ^  condemnando-os  ao  ferviço 
publico  ?  Eis-aqui  como  fobre  os 
princípios  da  humanidade  penfa  a  si 
Filofofia  :  eis*aqui  como  penfa  a  nof* 
fa  adoradiífima  Soberana. 

Com  que  zelo  fe  applica  para 
que  a  Religião  floreça  entre  nós,  fem 
mefcla  de  novidades  fempre  perigo- 
fâs  ?  Efpiritos  chamados  illumina- 
dos,  buícai  outras  Regiões  aonde  ha- 
biteis para  vomitares  as  máximas  ve- 
nenofas ,  que  cevao  a  voíTa  liberda* 
de.  Portugal  he  hum  Reino  com 
quem  hum  Santo  Papa  dizia  que 
eftava  bem ,  porque  nunca  lhe  en-'' 
tendera  com  o  Credo.  He,  Senhores, 
he  contra  eftes  que  a  noíTã  Rainha , 
alterando  a  ferenidade  de  feu  fem- 
blante  bello,  unicamente  fe  enfure- 
ce ,  querendo  que  na  puniçaó  de  feus 
erros  ímpios  efcarmente  a  mocida- 
de incauta  para  fe  conter  nos  limi- 
tes da  fua  crença. 

Para  que  os  feus  fentimentos  de 
piedade  fejaô  mais  públicos  ,  que 
©bras  naõ  faz?  Já  erigindo  fagra- 
das  Bafilicas,  aonde  a  Religião  ,  e  a 

magni* 


11;'^ 


DA  Rainha  n.  senhoka.  ly 
magnificência  corti  generofa  emula- 
ção competem :  já  . . .  mas  eu  vou  le- 
vando além  do  jufto  o  meu  difcur- 
fo.  Que  vos  digo  eu ,  que  vós  naô 
faibais.  A  Hiftoriajuiz  incorrupto,  e 
imparcial  do  merecimento  dos  Rei- 
nantes 5  que  lugar  naÓ  vai  já  pre- 
parando nos  feus  faílos ,  para  j|ue 
cora  carafteres  indeléveis  fe  leiao  as 
acções ,  com  que  a  Grande  ,  a  Pia  ,  a 
Magnifica  Dona  Maria  Primeira  hon- 
ra o  feu  fexo  ,  honra  a  fua  naçaô  ! 

Ahi 5  Senhores,  com  que  gofto 
a  moftrará  á  poíleridade,  humas  ve- 
zes animando  úteis  Academias  ,  que 
cubertas  com  a  fua  protecção  faça6 
apparecer  entre  nós  illuílres  homês, 
que  com  as  delicadas  producçoes  de 
feus  talentos  refgatem  do  efqueci- 
mento  a  noíTa  fama  :  outras  vezes 
ordenando  fabios  Códigos,  com  que 
naô  lenhamos  que  invejar  ,  nem  aos 
antigos ,  nem  aos  modernos  Legif- 
iadores  :  confervando  entre  as  Poten- 
cias Belligerantes  com  a  fua  neutra- 
lidade o  feu  decoro  ,  para  que  no  re-^ 
gajo   da  paz  ,   eíTa  filha  do   Ceo , 

quç 


íd 


m\ 


16    Oraçaõ  pela  conservação 
que  nas    Tuas  brancas    azas  coíluma 
trazer    aos  Povos  a   abundância  ,    e 
a  felicidade  ,  plasidamente  deícanfem 
os  íeus   vaííallos. 

Tomara  íaber  agora  de  vós,  Se- 
nhores 5  le  haverá  Forruguez  ,  no 
qual  o  eípiriro  do  patriotifmo  eíte- 
ja  taó  apagado,  que  fe  nao  intereíTe 
vivamente  pela  confervaçao  de  hu- 
nia  Rainha  5  que  entre  os  refplando- 
res  doThroQO  naô  refpira  momento 
que  naô  feja  para  noíTa  utilidade  : 
que  nas  fuás  orações  ,  fervoroíiffimas 
orações 5  eílá  inceíTantemente  rogando 
ao  Deos,  aquém  feguindo  os  veíligios 
de  feus  progenitores,  ferve  defde  as 
mantilhas,  que  felicite  hum  Povo  de 
que  a  fez  Cabeça,  prefervando-o  dos 
imales  ,  que  podem  ameaçallo  ?  Eu 
naô  o  creio:  antes  no  meio  doTem- 
plo,  ao  fom  doé  órgãos,  cheios  de  fé, 
cheios  de  gratidão,  como  ao  Dador 
de  todos  os  bens  ,  reforçando  os  vo- 
tos pediremos ,  que  nos  dilate  huma 
vida  taó  preciofa  ,  rendendo-lhe  com 
os  noíTos  corações  as  devidas  graças. 
Te  ^Deum  lauclamus* 

ORA-. 


ti 


n 


ORAÇAÓ 

AS.FRANGISCO. 

.Ahfcondíjii  h£c   à  fapientihus  ,  cí?^^ 
reuelajii  ea  farvulls, 

Math.  c.  II. 

Uando  eu  leio  no  Santo  Evan- 
gelho ,  de  quem  fou  Miniílro  , 
ainda  que  indigno,  que  Deos 
revela  aos  pequenos  de  fu a  Ga- 
fa 5  o  que  efconde  muitas  vezes  aos 
Sábios  do  Mundo,  de  que  valor  me 
nao  encho  para  tecer  o  Panegjrico 
do  grande  Pai  dos  Pobres  ,  que  enno- 
brecendo  a  Aííiz  com  o  feu  nafcimen- 
to,  iiluítrou  a  Igreja  com  as  fuás  vir^ 
tudes  ,  fundando  huma  Ordem  ,  que 
em  todas  as  idades  tem  produzida 
dentro  e  fora  do  Chriilíanifmo  aba- 
Jifados  eípiritos  5  que  com  a  fuafci* 
encia^  igualmente  que  com  a  fua  fan- 
íidade,  cumprindo  os  deyeres  de  feu^ 
B  cita- 


^t  o  K  A  Ç  A  o 

eílado,  attrahiraó  a  publica  veneraçad 
de  quem  os  communicava ,  colhendo 
de  fuás  Apoítolicas  fadigas  copiofo 
fruto  :  abalizados  efpiritos  de  quem 
vós  5  ReligiofiíFimos  Padres  ,  fois  có- 
pias fiéis.  Nao  he  neceííario ,  que 
vos  diga  ,  que  he  do  voíTo  eílima- 
diíGmo  Francifco  que  vos  fallo. 

E  ainda  que  lançando  huma  vií- 
ta  íizuda  fcíbre  a  pobreza  de  meus 
talentos ,  eu  vejo  que  ^o  meu  animo 
aíFraca^  na  confideraçaõ  de  que  a  em- 
preza  de  que  me  quizeíles  por  bon- 
dade voíla  encarregar  ,  pedia  hom- 
bros  mais  robuftos,  que  os  meus  , 
para  nao  vergarem  com  o  pezo  da 
matéria ;  o  gofto ,  e  a  honra  de 
obedecer-vos  ,  de  miílura  com  a 
natural  complacência  ,  que  he  razad 
ique  eu  tenha,  havendo  de  alçar  no 
meio  do  Templo  a  minha  voz  para 
louvar  as  acções  fublimes  de  hum  Pa- 
triarcha,  que  com  hum  milagre  pe- 
renne  mantém  na  terra  a  Religião,  de- 
baixo de  CUJO  Inílituto  vós  vos  ali- 
ftaisj  que  brios  me  nao  infundem, 
para  que  remontando-me  por  cima 

de 


'<r^*^'^*r^r 


A   S.  F  R  A  N  GI  S  C  o:  19 

3e  minha  inhabilidade  nem  hum  mo- 
mento vacille  na  execução  do  precei- 
to j  que  me  impozeítes  :  lembran- 
do-me  que  ferei  eu  talvez  hum  da- 
quelles  pequenos  ,  que  na  urna  de 
feus  infcrutaveis  fegredos  terá  Deod 
deílinado  para  a  grande  obra^  a  que 
me  arrojo. 

Neítes  termos  ,  imitando  a  indu-» 
llria  das  abelhas  ,  que  das  flores  que 
efcolhem  ,  extrahem  o  fucco  de  que 
elaboraõ  o  mel ,  que  adoçando-nos 
os  lábios  com  a  lua  fuavidade  noá 
lifongea  :  eu  ,  fem  que  huma  por  hu* 
ma  vos  refira  as  fuás  brilhantes  qua* 
lidades  ,  me  cingirei  unicamente  á 
propofiçaõ,  que  eílabeleço  por  baze 
do  meu  difcurfo ;  a  qual  he,  moftrar^ 
vos  a  fua  elevação  derivada  toda  de 
fua  Iiumildade  :  virtude  que  caradle-' 
riza,  naó  fó  o  fagradoHeròe,  a  quem 
elogio ,  mas  a  toda  a  refpeitada  Fa-^ 
milia  dos  Menores  ,  qu€  exultando 
de  prazer  ,  e  contentamento  no  dia 
em  que  eílamos  5  nao  deixará  de  fer 
indulgente  comigo  ^  perdoando-me 
vós  os  graves  defeitos  >  de  que  irá 
B  i|  ma- 


%0  o  R  A  Ç  A  6 

maculada  a  minha  Oração  ,  que  o  me- 
recimento  que  tem,  lie  a  verdade  de 
<que  íe  anima.  Nem  eu  oufaria  quei- 
mar o  incenfo  da  iifonja  ante  a  Ara  , 
fobre  que  fe  coUoca  a  Imagem  de 
hum  Santo  ,  que  deíle  infame  vicio, 
como  de  todos  o.s  mais,  foi  declara- 
do inimigo,  E  fe  me  dais  licença, 
cntre-íe  a  traçar  o  quadro  prometti* 
do  5  que  para  fer  completo  ,  bafta- 
yá  que  vós  fobre  as  minhas  íombras 
derrameis  as  voíías  luzes.  Eu  come- 
ço. 

C^e  afpera  linguagem  para  os 
íilhos  do  Secuio  !  Quereis  íer  exal- 
tados ?  "Sede  humildes.  Ao  menos  a 
grandeza,  que  Deos  eftima  (a  única 
grandeza,  Senhores),  he  fobre  eíle 
fundamentp  ,  que  fe  ergue  :  como  da 
Cadeira  de  Hiponia  aflirraa  o  meu  ef- 
timadiííimo  Agoíiinho:  Cogitas  ma* 
gnum  fabricam  confiruere  celfitudi* 
Tih  ?  í)e  fundamento  prius  cogita  hu^. 
milita  tis} 

Quem  reBediíFe  na  brilhante,  e 
pompofa  genealogia  da  famoía  Don- 
zelia  de  Nazareth  ,  efcolhida,  e  pre- 

defti-; 


r^ri 


A  S.  F  R  A  N  c  I  s  c  o;       it 

'deftinada  na  mente  eterna  para  Mãi 
do  Incarnado  Verbo,  accommodan- 
do-fe  ao  coftume  do  Mundo  eílraga- 
do,  facilmente  entenderia,  que  a  íua 
elevação  fe  derivava  dos  Baíloes'',  dos 
Sceptros ,  e  das  Tiaras  ,  que  como 
dourados,  e  preciofos  frudlos  pen- 
diao  da  arvore,  de  que  era  florente, 
e  legitimo  ramo.  Todavia  nós  fa- 
bemos  por  confiíTao  fua  ,  que  nao  he 
á  nobreza  de  fcu  fangue  ,  que  deve 
a  íua  grandeza  ,  mas  à  íua  humil- 
dade: Q^na  refpexit  humilitatem  an-- 
cill£  fu£  ,  ecce  enim  ex  hoc  beatam 
me  âlcent  omnes  generationes. 

Eis-aqui  porque  Jesus  Chriílo,- 
què  tanto  fe  humilhou  na  vida,  tan- 
to na  morte  ,  nafce  em  hum  eílabu- 
Io  ,  arranca  em  huma  Cruz  :  como 
que  reprehende  á  Marcella,  quando 
levantando  a  voz  no  meio  das  admi- 
radas Turbas,  chama  bemaventurádo 
o  cafto  ventre  de  Maria ,  aonde  fo- 
ra concebido  ,  e  gerado  5  tendo  por 
mais  felizes  aqueíles  ,  que  ouvindo 
a  fua  palavra  cumprem  exaftamente 
03  fçus  preceitoS;  abatendo-fe  ,  e  en- 
tra- 


SI 


m : 


l'Íili 


m 


W::Õ\ 


^'í  o  R  A  Ç  A  ô 

tranhando-fe  no  baixo  principio  de 
que  procedem  ,  como  affirma  hurai 
refpeitavel  Interprete. 

Inciyto  Pai  dos  Pobres ,  fe  no 
Ceo^onde  eílais ,  podeíTe  haver  al- 
gum daquelks  baixos  affeélos  ,  que 
aíTomando-fe  ao  noíTo  rofto,  alteraõ  a 
paz  de  noíTo  coração  ;  qual  feria  o 
voíTo  pejo ,  fe  eu  agora  defenvolvef- 
fe  dos  chamados  dons  da  fortuna  as 
provas  da  grandeza,  a  que  vos  coníi* 
dero  remontado  ?  Por  iíTo  ,  Senho- 
res ,  naõ  efpereís  que  eu  vo-lo  piu'^ 
te  repoufando  no  feio  das  riquezas , 
e  das  delicias,  de  que  gozaria,  co- 
mo filho  de  huma  opulenta  Gafa ;  al- 
voroçando as  ruas,  por  onde  monta*^ 
do  em  foberbos  ,  e  briofos  ginetes, 
pafleava  ^  com  as  gallas  de  que  ,  á  íi^ 
milhança  de  vaidofo  pavão  ,  fe  def- 
vaneceria.  Nem  menos  torneado  da 
lifongeira  chufma  dos  aduladores; 
€u  vo-lo  reprefentarei ,  que  incen-» 
fando  os  feus  defeitos  ,  queriao  ga-? 
iihar-lhe  o  animo,  para  fe  aproveita- 
rem das  largas  ,  c  generofas  dadi- 
vas •  com  que  os  favorecia. 


I 


A  S.  Fã  AK  CTS  COf:         If 

Nao  fera  mais  acertado,  que  buf- 
que  na  fua  verdadeira  fonte   a   fua 
elevação  ,  lembrando-vos  ,    que  nao 
obftante  a  affluencia  dos  bens  de  feus 
Progenitores  ,    he   em  hum  fordida 
lugar  conílruido    para    habuaçao  de 
brutos ,  que  a  venturofa  Mãi  o  da  a 
luz  ;  enfmando-lhe  a  Providencia,  que 
tanto  velava  fobre  aquelle  Menino  , 
o  caminho  que  depois    nos  adultos 
annos   havia  trilhar  ,   para  fer  total- 
mente fimilhante  ao  Filho  de  Deos  ^ 
Nao  fera  roais  acertado ,  que  na  el- 
pantofa  abdicação  que  faz  da  pingue 
herança  ,  que  lhe   podia   pertencer  , 
eu  vos  mottre  o  feu  animo  deiaíter- 
rado  de  tudo  o  que  he  terreno,  pa- 
ra que  envolto  na  fua  pobreza   pre- 
cifalTe  de  mendigar    peias  portas   o 
paÓ  de  cinzas  ,  de  que  efcaíTamente 

fe  nutria.  ,  , 

Que  documento  para  vos  ,  be- 
nhores  !  Hum  moço  na  aurora  de 
fua  idade ,  quando  os  feus  a^p^etites 
eftavaô  mais  vivos,  a  fua  razão  me- 
nos illuminada  pela  falta  de  experi- 
ências,  amado  uni verfalmente  pelas 

boas 


li 


W     ,! 


^4  O  R  A  Ç  A  õ 

boas  qualidades ,  de  que  a  natureza  J 
parece    que  entornando   quaíi  todos 
os   feus     encantos,    liberalmente    o 
ornara  ,  foíFre   com  reíignaçaõ  ,  po- 
de fer  que    com   goílo,  os    afperos 
tratamentos  do  Pai,  ,  que  como  diíTi- 
pador  de  feu  património,  feveramen- 
te  o  caíligava,  já  retalhando-lhe  as 
carnes  com  pezadas  difciplinas  ;  já 
aíFerrolhando-o  em  efcuro    cárcere  ^ 
para    naô  poder   fazer  mais  ufo  de 
fua  liberdade  !  Sobretudo,  renunciar 
Todos  os  copiofos  haveres ,  que  por 
direito  lhe  competiaô,  nao  queren- 
do poíTuir  nada,  para  obedecer  com 
mais  ardor  á  voz  de  feu  Deos,  que 
pelas  fuás  infpiraçoes  o  chamava  ! 

Santo  Bifpo  deAíliz,  com  que 
edificação  o  nao  viíles  até  de  feus 
veílidos  defpojar-fe,  arremeíTando-os 
como  huma  carga  ,  que  lhe  embarga- 
va o  paíío  na  carreira  que  tinha  me- 
ditado ?  He  nu,  que  veyo  ao  Mun- 
do: he  nu,  que  ha  de  entrar  na  fe- 
pultura;  e  inundando  de  huma  ale- 
gria innocente,  como  aquelle  Princi- 
pe  da  Idumea  ^   de  quem  a  Efcritu- 

ra 


A    S.   F  R  A  N  C  I  S  CO.  1$ 

ta  faz  illuftre  memoria;  com  que  go- 
ílo  confeíTa  ,  que  o  feu  Pai  verdadei- 
ro eílá  no  Ceo ;  que  he  io  a  fua  von- 
tade, que  ha  de  feguir  ! 

Mas  nao  foraô  èftes  os  primei- 
ros traços  da  grande  obra,  que  em- 
prendia  ,  quando  lhe  foi  revelado,, 
que  havia  fer  o  Reparador  da  Igre- 
ja ?  NaÓ  ha  duvida,  Senhores,  que 
a  revelação  ao  principio  fora  mal  en- 
tendida, aíTeníando  que  da  pequena 
Ermida  de  S.  Damião  he  que  Decs  lhe 
fallava.  Mas  que  virtudes  na6  poerrt 
em  execução  para  livrar  aquelle Tem- 
plo material  da  ruina  que  o  ameaça  ? 
Rafcunho ,  ainda  que  baixo,  do  que 
havia  de  fazer  depois  pelo  Mundo 
todo  a  nova  prole,  de  que  fundaria 
a  caíla  Efpoía  de  J  esus  Chriílo  , 
inílituindo  a  voíía  fagrada  ,  e  peni- 
tente Religião, 

Naõ  he  aqui  que  fe  enfaia  pa- 
ra o  feu  Apoftoiado  ;  a  pé,  defcalço, 
envolto  em  hum  afpero,  e  grofíeiro 
facco;  pedindo,  naô  fó  o  precifo  pa- 
ra pagar  o  jornal  dos  operários  , 
que  em  poucos  mezes  rematarão  a 

obra 


\\ 


1-^ 


'M 


mi 


%G  Oração 

obra  começada  ,  mas  para  a  fua  mó* 
dica  fuílentaçao  ?  Nao  he  aqui ,  que 
curvados  na  dura  terra  os  tenros  joe- 
lhos ,  vela  a  mór  parte  das  noites 
forvido  na  contemplação  da  formo- 
fura  de  feu  Deos  ^  por  quem  pizara 
o  Mundo ,  as  fuás  pompas  ,  e  as  fuás 
enganadoras  vaidades  \  arrancando 
d^alma  ardentes  fufpiros,  como  quem 
ricfejava  voar  já  aos  montes ,  ainda 
que  empinados  5  da  bellaSiaô,  para 
dormir  defcançado  fobre  o  roto  pei- 
to de  feu  amado  ?  Naõ  he  aqui  que 
fe  faz  per/to  ,  e  confummado  Mef- 
tre  da  humildade,  foffrendo  que  co- 
brindo-o  de  injurias,  e  de  lodo,  o 
iHofaíTem  ,  tendo-o  por  louco  nas 
praças  publicas  de  AíTiz  :  Affiz  ,  que 
fora  o  íheatro  de  fua  va  oílentaçaô  , 
quando  na  primavera  de  feus  annos 
juvenis,  fó  dava  ouvidos  ás  agrada^ 
yeis  ,  e  iifonjeiras  viftas  ,  com  que  o 
Século  proílituido  pertendia  attra- 
Iiillo  ? 

Eu  nao  me  volvo  para  alguma 
das  fccnas  de  fua  vida,  que  me;  nao 
Ycja  quaíi    reduzido  a  emmudecer, 

for-» 


wm^ 


"^ 


A  S.   F  R  A  l<r  C  I  S  C  o:  ^2:7 

forprendido  de  minha  admiração,  naá 
fabendo  na  cópia  de  tantas  maravi- 
lhas a  qual  dê  a  preferencia.  Porciun- 
cuia,  pofto  que  pequeno  lugar ,  que 
novo  efpedlaculo  me  propões  ,  que 
deixando  me  como  arrebatado  elevas 
a  minha  conlideraçao  a  myílerios  tao 
ineíFaveis,  que  nao  devo  envolveilos 
emfilencio!  Havia  aqui  huma  Igre- 
ja  confagrada   á  Mai  de  Deos  5  co- 
nhecida era  outros  tempos   pela  Er- 
mida de  Santa  Maria  dos  Anjos.  Cora 
que  ardor  fenao  applica  Francilco  ao 
feu  ferviço  5  nao  íó   reedificando  as 
fuás  eftragadas  paredes  ,  mas  promo- 
vendo o  íeu  culto?    De  que   prodí- 
gios na6  he  atíonito,  e  pafmado  ex- 
pedador  ?    A  muíica   dos  Efpiritos 
Celeítes,  que  torneaó  a  Ara  de   fua 
Rainha:  os  fegredos  que  fe  lhe  re- 
yelaÔ  :  os  colioquios  com  que  o  en^ 
t retém  a  mor  parte  das  noites  o  íeu 
crucificado  Jesus,  que  defuzado  ef^ 
forço  lhe   nao  communicao  para  le- 
var ao  fim  a  grande  eoi preza  ,   que 
tem  já  meditado?  Como  fe  nao  co- 
roaria logo  de  fa:5onâdos,  frutos   a 


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iS  o  H  A  ç  A  6 

inimofa  planta  ,  fe  he  á  fombra  de 
Maria ,  que  agora  eftendendo  as  ra- 
ízes, e  engrofíando  o  tronco  come- 
ça a  crefcer  a  arvore,  que  dilata  os 
íeus  ramos  por  todo  o  Chriftianif- 
mo? 

As  obras  que  Deos  abenqoa,  vao 
com  felicidade  avante  :  que  feráo 
aquelias  que  de  Deos  deduzem  a  fua 
origem  ?  Se  eu  vos  affirmar,  que  do 
EfpiritG  Santo  he  que  dimanou  o  In- 
ftituro  de  que  Francifco  foi  denoda- 
do Chefe  ,  arraigando-fe  a  Regra 
que  efcreveo  5  nas  faudaveis  máximas 
do  Evangelho  ,  que  na6  fem  myíle- 
rio  lhe  foraô  participadas,  eu  na6 
temo  que  me  taxeis  de  encarecido  , 
repatando-me  por  Orador  apaixona- 
do ,  porque  he  huma  verdade  ,  que 
todos  fabem. 

Que  maravilha  he  pois ,  Senho* 
res,  que  huns  apoz  outros  correííeni 
de  diííerentes  partes  para  fe  aliílarem 
debaixo  de  feu  eílandarte  illuítres  ho- 
líiés  ,  que  já  pela  fua  qualidade,  já 
pelos  feus  empregos,  fe  faziao  tao 
refpeitaveis  no  Mundo  ,  defprezan- 

4q 


A   S.  F  R  A  N  C  I  S^C  o;  29' 

do  tudo  o  que  poíTuiaô  ,  para  le 
amoldarem  á  cabeça  de  que  erao 
membros  ?  Entre  rodos,  tu  juílamea- 
te  levantarás  a  viíloriofa  teíta,  Ber- 
nardo de  Quintaval ,  que  para  efmal- 
tares  mais  a  nobreza  de  teu  fangue , 
foíte  o  primeiro,  que  de  tua  eíclare- 
cida  Cafa  íizeíle  demiffao  ,  enthe- 
fourando  nas  mãos  dos  pobres  as 
groíTas  rendas ,  de  que  eras  legitimo 
ienhor. 

Que  maravilha  he  pois  ,  que  con- 
íeguida  a  approvacaô  do  Papa  ,  qiie 
por  entaô  governava  da  eminência 
do  Vaticano  a  Igreja  ,  crefceíTe  de 
forre  o  numero  da  Francífcana  Famí- 
lia ,  que  ainda  no  berço  dava  já 
idea  do  progreíTo  que  faria  depois  ^ 
confiando  que  faô  quarenta  mil  os 
Conventos  ,  que  fervem  de  quar- 
téis ,  aonde  os  Soldados  de  Jesus 
Chriílo  fe  recolhem  5  para  que  eípa- 
Ihando-^fe  por  toda  a  face  da  terra, 
com  o  feu  exemplo  ,  naó  menos  que 
com  a  fua  doutrina  ,  propagarem  a 
Religião,  de  que  fao  deftros  cultores ! 

Que  efpaçofo  campo,  de  que  def- 

pon- 


\ 


Itil 


§ò  Oração 

pontaá 3  como  a  competência,  ^s  flo- 
res ,  de  que  Francifco  matiza ,  e  en- 
feita a  grinalda  que  cinge  !  Levan- 
tando-fe  de  fua  humildade,  como 
Ánteo  do  chaó  com  que  íe  cofe  j 
com  mais  forças  para  as  árduas  em- 
prezas,  de  que  queria  fer  executor 
iníjgne  !  Naô  he  agora  que  o  defejo 
tíõ  mriftyrio  o  devora  ?  Que  figuran- 
do as  cruzes,  e  as  cataíías  ,  como 
theatros  de  fua  gloria,  determina  dar 
por  Deos  a  vida  ,  que  he  a  proya 
mais  qualificada  do  amor,  fegundo  o 
que  fe  acha  exprelTo  nas  Efcrituras  ? 
Com  tudo  no  Throno  da  Triade 
Santiífima  nao  he  approvado  o  fa- 
crificio  de  teu  fangue  ,  abrazado  Se- 
rafim* As  Chagas,  as  preciofiíTimas 
Chagas  do  Redemptor,  que  fe  te  im- 
primem ,  he  tormento  fobejo  para 
apagares  a  fede  que  tens  de  padecer. 
Rfíígouas  no  Corpo  de  Jesus  a  fo- 
berba  da  pérfida  ,  e  ingrata  gente: 
abrio-as  em  Franciíco  o  íeu  amor,  e 
a  fua  humildade. 

Com  eíFeito  ,  Senhores ,  fe  Deos 
queria  que  a  Cidade  fe  collocaííe  fo« 

bre 


A  S.F  R  A  N  c  isc  o:       ^i 

bre  o  monte,  para  que  todos  a  yiflem, 
como  confentiria ,  que  Frâncifco  íe 
aparcaíle  de  fua  Familia  ?  Se  queria 
que  de  feus  Clauílros  furgiffem  tan-- 
tos  luminofos  AítroB,  que  illuílraffem 
a  Igreja ,  já  governando  o  rebanho 
de  Pedro  ,  efpalhado  por  todas  as 
quatro  partes  do  Mundo  conhecido, 
já  cnnobrccendo  com  os  feus  raros 
talentos  o  Confiílorio  dos  Cardeaes: 
aqui  produzindo  famigerados  Douto- 
res 5  que  com  a  fua  Doutrina  fuften- 
taíTem  o  credito  das  Univerfidades  de 
que  eraõ  Meftres  :  alli  briofos  Athle- 
Tas  ,  que  com  a  fua  morte  arraigaf- 
fem  mais  a  Fé,  de  que  eraó  firmes,  e 
incontraílaveis  columnas  ,  como  nao 
confervaria  por  mais  tempo  ávida 
de  Frâncifco,  de  quem  dependia  o 
augmento,  e  o  luílre  daquelle  Cor- 
po? 

Eu  nao  fou  demafiado.  Refpeito 
todas  as  Ordens  Regulares  como  flo- 
rentes Seminários  de  virtudes  ,  e  de 
letras  :  mas  tem  havido  Religião  mais 
útil ,  que  a  Frsncifcana  ,  que  até  no 
meia  dos  Infiéis  faz  apparecer  o  Teu 

de- 


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3^  O  R  A  Ç  A  6  ^ 

decoro,  e  a  fua  importância,  fcnàó 
a  única  ,  que  entre  os  Sarracenos  íe 
mantém  ,  attrahindo  com  a  fuavidade 
de  Teu  trado,  e  com  a  humildade 
de  feu  exemplo  na  guarda  dos  Lu- 
gares íantos,  aonde  fomos  remidos, 
o  coração  daquelles  Bárbaros?  A  vi- 
da Apoíiolica  quem  a  pratica  mais 
que  vós ,  Padres  ReligiofiíTimos,  na5 
vos  forrando  a  trabalhos  ,  ainda  que 
sfperos ,  para  ferdes  de  proveito  ao 
próximo,  amando-o  ,  e  fervindo-o  , 
ora  nos  Púlpitos ,  ora  nos  Confeílio- 
narios  ?  Eu  naÓ  o  digo  :  o  receio 
de  ferir  a  voíTa  modeília  embargaria 
na  minha  garganta  a  minha  voz.  He 
o  publico  quem  o  confeíTa,  que  co- 
mo agradecido,  naõ  fó  vos  fuílen- 
ta,  mas  de  maneira  vos  provê,  que 
nas  voíTas  Portarias  faÕ  mais  de  qua- 
renta mil  cruzados  ,  que  todos  os 
dias  diftribuís  para  alimentardes  a 
pcbreza. ' 

Oh  fanta  humildade  de  Franclf-* 
CO  !  quem  vos  nao  imitta  ,  fendo  a 
fua  grandeza  toda  derivada  de  vós  ? 
Por   yentura  iiao   o  eftiraavao  maia 

quaa:^ 


Era 


ipi^ 


A   S.  F  R  A  N  C  I  S  C  o,  3^ 

tqunndo  na  meia  dos  Príncipes,  pa- 
ra que  era  convidado  ,  a  fua  iguaria 
mais  delicada,  e  faborofa,  era  o  paa 
de  que  mendigando  vinha  provido  ^ 
Quando  artcrrado  do  conhecimento 
de  feu  nada  ,  nunca  fe  quiz  remon- 
tar áqueila  dignidade  ,  qile  nem  os 
Anjos  defempenhariaÒ  bem  ?  Eu  que- 
ro dizer  :  o  Sacerdócio  ?  Tremendo 
como  convulfo  ,  na  confíderaçaô  de 
que  devia  fer  taó  puro  como  hum 
cryílal ,  para  que  fegunda  vez  incar- 
naíTe  nas  fuás  mãos  o  Verbo  do  Pai 
Eterno ,  obedecendo  ás  fuás  palavras 
com  mais  promptidao  ,  que  o  Sol  ás 
vozes  dejofué? 

Qiiando  . . .  mas  eu  vou  levan- 
xlo  além  do  jufto  a  minha  oração  , 
fem  advertir  ,  que  a  humildade  de 
Francifco  he  incomprèhenfivel  ;  que 
nem  em  diíFufos  volumes  fe  podem 
cfcrever  as  fuás  virtudes  todas  ,  de 
que  foi  coroa  i  preciofa  morte,  com 
que  dos  braqos  de  feus  Filhos  ,  dan-* 
do  a  hum  por  hum  a  fua  benção,  vo- 
ou da  terra  ao  Ceo  ,  clamando  cheio 
de  júbilos:  Os  Santos  rns  efperaõz 
C  Eu 


|4  O  íl  A  Ç  A  o 

Eu  mu,  eu  vou»  Grande  Pai ,  quem  te 
acompâi-hara  já  ! 

Agora  eíp^râis  vó?,  que  eu  entrâf- 
fe  no  .exame  dos  roíiagres  ,  que  íez, 
para  vos  oioílrar  ,  que  naõ  fó  na  íua 
vida  ,  mas  depois  de  íeu  tranfito  , 
lion^-a  ,  e  engrandece  Deos  a  humil-^ 
dade  de  Francifco?  Que  vos  pozef- 
fe  ,  e  arraniaíTe  como  em  huma  bri- 
lhante comparfa  ,  os  cegos  a  quem 
reílituio  eclipfada  viíla  ;  os^  mudos 
a  quem  deíatou  as  prezas  línguas  \ 
os  paraljticos  a  quem  defentorpeceo 
os  tolhidos  5  e  engelhados  membros; 
Oâ  mA-^rtos  a  quem  reftituio  a  vida  \. 
os  íucceííos  fururos  que  revelou  cor- 
rendo o  véo  a  recônditos  íegredos? 
Eu  de  nada  oeceffiro  ,  porque  tenho 
iTiilagre,  que  todos  vem.,  que  con- 
feito rodos  :  milagre  perenne  :  a 
confervsçió  da  voiJa  refpeitavei  Or- 
dem. ■  __  „  • 

Felizes  vós  ,  Pveligloíimmos  ra- 
rlres^  ,  que  n^o  deímereceis  a  honra 
de  Fdho5  de  Franciíco.  A  voíía  figu- 
r-i  penifenre,  e  huínilde  ,  mirrados 
de  iejaas  ,  laígados  de  difdplinas, 

dei- 


A  S.  M.\TtGA^TDA  DE  Conr.        ^f 

defprezando  as  honras,  e  as  riquezas, 
com  que  o  Mundoj  dourando  as  fuás 
cadeias,  prende  aos  filhos  do  fecu- 
lo;  eif-aqui  como  immitando  a  vof- 
ío  Pai  na  terra ,  o  ireis  depois  acom- 
panhar no  Ceo.  Eu  vo-lo  defejo  a 
todos.    Diíle, 


ORAÇÃO 

A  S.  MARGARíDâ 

DECO  R  TONA. 

Ego  dileãõ  meo  ,  ir  ãd  me  conver* 

fio  ejus. 

Palavras  que  a  Igreja  appika  a  San«* 

ta  Margarida  de  Cortona. 

E  Corno  he  bom  o  noíTo  Deos  I 
As  fontes  de  fua  mifericordia 
s^  nem  fe  efgotao,  nem  fe  fechao» 
rara  nos  purificarmos  de  culpas,  que 
manchaô,  e  desfigurao  a  belleza  de 
noíías  almas  ,  perennemente  correm. 
Como  a  noíTa  contrição  efprema,  e 
arranque  de  noíTos  corajoes  llnceras 
ca  la- 


Wr 


m  I 


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Iíii'i 


ÍVJ;:;^ 


g6  O  R  A  Ç  A  6 

lagrimas  ,  lie  o  que  nos  bafta.  Ern 
confirmação  da  verdade  qoe  vos  di- 
go ,  naõ  me  he  necelTario  engrazar 
huns  com  outros  os  exemplos.  Vós 
tendeã  a  prova  na  Santa  ,  de  quem 
a  Igreja,  promovendo  para  noíío^  do- 
cumento os  cultos  ,  honra  hoje  a 
memoria.    Margarida  de  Coitona. 

Qjem  a  obíervaíTe  na  aurora  de 
fuá  idade,  engroííando  cada  dia  mais 
a  cadeia  ,  que  como  cativa  do  pec- 
cado  ,  arraftou  pôr  eípaço  de  nove 
snnos  ,  vaidofa  de  fua  formoíura  , 
que  pena  na6  teria  de  íua  defgraça- 
da  ,  e  meíquinha  fituaçaó  ,  temendo 
que  na  ininrâfade  de  íeu  Deos  ,  re- 
^^araOTe  a  carreira  de  fua  vida  ?  InFe- 
liz  vida!  Prazeres  v€rgonhoros,am- 
' ,êã  que  uor  dourada  taça  vós  lhe  da- 
^es"a  g  )ílar  o  mortUero  veneno, 
ÊÍFanando-fe  unicamente  p^la  íatiífa- 
çaÓ  de  feus  appetite? !  inimigos,  Se- 
liores,  mais  perigoíbf,  quanto  mais 
dom.ellicos. 

Com  tudo  ,   huma  vez  que  delcn- 
ganadi    íe   refolve  a  deteftaros    ieus 
crimes,  pofto  Que  atrozes  ^  na5  acha 
*^  nas 


.!vfli^ 


A  S.  Mabqamda  deCoiit;  37 
nas  Chagas  de  Jesus,  como  os  do- 
entes na  Pifcina,  o  remédio  ,  prepa- 
rando de  feu  pranto,  e  daquelle  San- 
gue preciofi<rimo  o  balíamo  que  a 
cura?  Os  feus  delidos  naô  fao  iogo 
perdoados,  fazendo  o  feu  ninho,  co- 
mo cândida  pomba,  naquelle  rota 
peito,  aonde  a  largos  iorvos  bebe 
a  graça  que  a  juftitica  ?  E  como  he 
bom    o  noíTo  Díos ! 

Ora  eu  ,  que  no  Panegyrico  que 
lhe  confâgroj  mais  que  aos  íeus  lou- 
vores ,  devo  aítender  á  voíTa  utili- 
dade, para  que  tenhais  hum  exem- 
plar VQríViio  ,  porque  âmoideis  as 
voíTas  acções  ,  venho  determinado  a 
fazer-vos  duas  curtas  ,  mas  íolidas 
reíiexoes,  que  traçarão  o.  plano  do 
difcurfo  que  me  ouvireis.  Primeira  a 
converfao  de  Vargarida  de  Corrona 
para  Deos  :  Ego  dileão  meo.  S^^^gnn- 
da  a  converfao  de  Deos  para  Mar- 
garida de  Cortoha:  Et  aã  me^  con- 
•verfio  ejus*  Reputara-me  por  ditofo, 
fe  ao  zelo  com  que  efcolhi  â  maté- 
ria, refpondeííe  o  fruto. 
.      lliuítre  Penitente,  quem  fabe  fe 

da 


^58  O  R  A  q  A  6 

óo  lugar  qne  occupo ,  fera  eíla  a  ul*» 
tima  vez,  que  eu  tenha  a  complacên- 
cia de  fállar  de  Vós?  A  minha  íaude- 
totalmente  eílragada ,  e  o  meu  dtíli* 
jio  poucas  elperanqas  me  daô.  Com 
tudo  de  meu  coraçaÔ  nada  vos  ar-^ 
rançará.  Attendei  porém  ás  fuppli'» 
cas  que  vos  faço.  SaÔ  íincéras  ;  had 
de  agradar  vos:  eu  nao  quero  hojw 
ras  :  do  Mundo  eu  nada  quero.  Dí- 
go-o  na  prefença  daquelle  Sactamen- 
íoAuguílo,  que  profundamente  ado- 
ro: juro-o,  fe  precifo  for.  O  que' 
pertendo  he  falvarme.  N ao  me  de-' 
lampareis.  Depois  como  o  argumen-» 
to  a  que  me  cinjo  ,  por  todas  as 
circunílancias  vos  pertence,  do  Deos, 
que  tendes  nos  voíTos  braços  ,  alcan-» 
jai-me  a  luz  de  que  preciío  pvra  a 
defempenhar  como  deftjo.  Eu  co* 
meço,  Senhores, 


Primeira  Reflexão. 

E  Thcologia,  naôeftragada  comi 
as  merafyíiGas  da  Efcola  ,    mas 
revelada  nas  Efcrituras  Santas  y  que 

fem-' 


H 


A  S.Mabga:kida  be  Cort.  3^^ 
fempre  que  nós  commertemos  algum 
peccado  grave  ,  nó^  affronramos  feia- 
mente a  Deos  :  porque  ainda  que  de 
íua  bemaventurança  md^  lhe  tira- 
mos, he  por  íiarurez:í  Beato:  a  íua 
grandeza  ,  ainda  que  naô  a  diminuí- 
mos ,  defobedecendo-i^e,  e  transgre- 
dindo a  íua  Lei  ,  P^^  cedermu?  ver- 
gonhofamerue  aos  eílimulos  de  liiins 
appecires  ,  porque  nos  aíIimMhamos 
aos  brutos  ;  q'4e  injuria  lhe  ní5  fa- 
zemos, como  affirma  S,  Paulo  :  Pfr 
pravaricationem    kgis  -Deum    inho" 

noras,, 

EÍ5-aqui  porque  nao  balia  5  que 
pelo  Sacramento  da  reconciliação  nus 
fejaó  remiiíidas  as  noiías  culpas  , 
quando  com  huma  contrição  verda^ 
deira  as  ílajeltamos  ao  poder  das 
Chaves.  Releva,  conforme  o  Sagra- 
do Concilio  deTrento^  derramaímos 
muitas  lagrimas  ,  cobrindo-^nos  de 
cinza,  c  de  cilicio:  Releva  darmos 
a  Deos  toda  a  íatisfaçáo,  para  que  % 
fua  honra  fique  defaggravadá.  htm* 
brais-vos  do  que  fez  jVíoifés  no  De« 

ferto? 

Coa* 


mi 


íi.^!.ft 


^  O  R  A  Ç  A  g 

Confla-Ihe  que  o  Povo  de  que  er^ 
Chefe,  degenerando  vilmente  da  cren* 
ça  de  feus  maiores,  idolatrara.  iVfíli- 
ge-fe...  coníterna-fe»..  chora.  Com- 
padece-fe  de  fua  dcfgraça.  Para  apla* 
car  a  ira  de  Deos,  que  já  tinha  er- 
guido o  braço,  para  vibrar,  como 
raio  fulminado  da  nuvem,  o  ciíligo 
tner^cido  ,  ufa  da  única  arma  que 
temos:  è  Gurrados  os  joelhos,  e  le*^ 
Tantadas  as  mãos,  pede,  iníla ,  ora. 
As  fupplicas  dos  Juftos  faô  muito  po^ 
-dcrofas.  Forao  perdoados  os  deíin-» 
quentes. 

Mas  contentarfe-hia,  quebrando 
asTaboas  da  Lei?  arrazaiado  o  facri- 
Jego  altar  ?  e  reduzindo  a  cinzas  o 
tnentirofo  Numen ?  Nao,  Senhores; 
antes  para  fatisfazer  à  juftiça  de  Deos 
aggravâdo,  chamejando  nss  fuás  fa-» 
ces  o  feu  zelo,  convoca  os  Levitas. 
Manda-lhes  que  defembainhando  os 
aíEádos  cutelos  corrao  ao  campo:  e 
que  entrando  por  todas  as  Tendas  , 
íem  que  perdoem  ,  nem  ao  parentef- 
jCO  ,  nem  á  amizade  ,  íiraô  ♦ . .  de-» 
golíem,,,  matem  aquelles  rebeldes* 

Cum^ 


A  S.  Margarida  deCoíit.  41. 
Cumpre-fe  o  funefto  preceito.  Mais 
de  vinre  e  dois  niii  homens  fao  cor- 
tados do  ferro  vingador. 

Na  ara  de  íeu  coração  tivera  Mar- 
garida   de  Corcona    por    quaíi   dois 
Juílros  coliocado  .0  Ídolo  infame  de 
feus    prazeres   impuros.    Eícrava   de 
Lúcifer  ,  já   pelo  coftume  naó  feníia 
o  pezo  dos  grilhões,  que   arraílava. 
Dourava-os  o  amor  ,    dèílro  ,  e  en- 
genhofo  artifice  de  agradáveis  enga- 
nos.  Porém  Deos,  piedofiiUmo  Deos, 
que  fempre  quer  que  o   peccador  íe 
converta  ,  rafgando-lhe  a  venda  que 
a  cegava,  accomodarfehia  com   hu- 
nia  vida  commum  ,  pofto  que  juíb  ? 
Humas   poucas  de  lagrimas  entorna- 
das, parte  fobre  o  cadáver  do  aííaííi- 
nado   amante ,    parte  fobre    as  fuás 
culpas,  focegala-hiaó  para  nao  repa- 
rar cOm  afperas  penitencias   os  dam- 
nos  que  fizera  á  fua  alma  ,  e  o  atre- 
vimento com -que  facudindo  o  íjugo 
da  Lei ,  que  profeíTava  ,  affronrara  o 
feu  Deos  ,  principalmente  conhecen- 
do,  que  pouco  importa  melhorar  de 
coÚuínesi    deteítaado  os 'crimes  de 

que 


4i  Oração 

que  fomos  réos  ,  fe  com  o  facrificio 
de  hum  efpirito  humilhado  nos  nao 
fanrifícamos  cada  dia  mais  ,  como 
diz  Santo  Agoílinho? 

Eu  me  enterneço  ,  nao  menos 
que   me  confundo  ,    repaíTando  pe!a 
minha  lembrança  o  rigor,  com  que  fe 
trata  ,  para  que  purificando-fe  ,  co- 
mo o  ouro  na  frágoa  ,  nem  do  que 
foi  coníervaíTe  hum  pequeno,  e    ei- 
caílb  refto.    Peza.das    diíciplinas  que 
a  reralhaò  ,  . .  .  auíteros  jrjuns  que  a 
KUfraÔ.  . .  longas  vigilias  .  . .  (armas 
com  .que  fe  fopêa  o  orgulho  da  re- 
belde carne)  vós   como  que  a  efpi- 
ritoalizaftes,   podendo  affirniar  corrt^ 
o  Apoíloio  :  eu  na6  fou  o  que  vivo}' 
J  Esus  Chriílo  he  que  vive  em  mim: 
f^ivo  ego  5  jam  mn  ego  :  ijmt  vera 
in  me  Chríftus.  Para  que  a  fua  con^ 
verfao  para  Deos  fe  arraigaíTe  mais, 
nao  bufca  voluntariamente  os  defpre- 
gios,  apparecendo  na  fua  Pátria ,  que 
infamara  com  a  fua  diíToluçaó,  deícali^ 
ca 3  cnirolta  em  huma  remendada  tu- 
riica  ,  cingida  com  huma  corda,  oS 
olhos  alagados  de  lagrimas ,  tremu-^ 

ia 


A  S.  Margarida  dkCobt.  45 
lâ  como  convulía  ,  defgrenhados  ^  ^ 
cabidos  íobre  o  pállido  ,  mas  bello 
rí^fto;  aquelles  cabelios,  aonde  como 
em  redes  fiibtís,  fe  perderão  tantas 
liberdades  ? 

Podia  Margarida  de  Cortona  , 
feguindo  os  exeniplos  de  outras  pe- 
nitentes 5  embrenhar-fe  pelos  ermo?; 
e  nao  fei  fe  recolhida,  fe  enterrada 
em  liuma  gruta,  lavar  com  o  feu  pran- 
to as  manchas  de  feu  peccado  Alii , 
íem  que;  a  enyergonhaíTem  ,  arroitaii- 
do-íhe  os  feus  atrozes  deliélos  podia 
nao  fó  fubir  de  virtude  em  virtude, 
mas  diir  a  Deos  ,  para  quem  (q  con-^ 
vertia,  a  íatisfaçao  competehte.  Toda- 
via quer  Fazer  mais  que  Da-nd  ,  que 
pedia  que  afua  iniquidade  foíTe  apa- 
gada da  memoria  das  gentes  :  De/e 
iniquitãtem  7neam.  E  com  que  g oi- 
to? e  com  qne  paz  de  feu  coração 
nao  foíFre  ,  que  huns  lhe  chameai 
peccadora,  outros  embufteira,  vendo 
debaixo  'dê  feus  pés  bramirem-as  tem- 
peftades  ,  como  o  Olimpo,  fem  que 
a  fua   conftjRcia  fe  alteraíle  ? 

Crelo-hieis,  Senhores  ,  que  nc* 


it 


'44  O  R  A  Ç  A  Õ 

gando-Ihe  o  Pai,  que  a  gerara,  o  agai 
zalho  precifo  ,  andaria  de  porta  em 
porta  mendigando  o  paô  de  cincas, 
de  que  efcairâmente  fe  nutria  ,  íul^ 
tentando  das  eímolas ,  que  tira/a  ,  ^ 
muitos  deícârnados  mendigos  ,  que 
recorriaô  á  fua  piedade?  Crelo-hieis;^ 
que  para  mais  íe  amoldar  na  íua  con- 
verfaõ  com  o  feu  Deos ,  os  inimgos^ 
que  mais  a  perfeguiaô,  erao  os  que* 
tinhao  mór  parte  nas  fuás  orações  y 
iiao  íó  perdoando  lhes  5  mas  aman- 
do-os  finamente?  Crelo-hieis  ,  que^= 
horrorizada  cada  vez  majs  de  fuasi 
paíTadas  culpas,  com  huçna  fede  co^ 
xnò  a  do  hydropico,  que  nao  haagoa 
que  o  mitigue  ,  defejwa  padecer 
mais  ,  e  mais  ;  confelTando  ,  que  ain- 
da que  o  feu  corpo  tivefTe  a  vaíla^ 
extenfaó  deíle  Globo,  que  habitamos^: 
vertendo  todo  o  fangue  de  fuás  velas^^ 
nem  pelo  menor  de  feus  peccados 
íatisfaria  a  Deos  ? 

Porém  eu  pertendo  ,  fondando  osb 
abyímos,  e  contando  as  eítrellas ,  ài* 
zer-vos  por  ventura,  que  convertid% 
Margarida   de  Cortona   para  o   feu 

Deosj 


A  S.  Matiga-rtoa  de  CotíT.  ^^ 
Deos  ,  he  fó  de  ília  Cruz  que  fe  g!o- 
tÍj  ?  Naô  tendo  penfamento  que  IhQ 
naÔ  conlagre ,  a(fl-uada  fempre  na  ília 
prefença?  Qje  paffa  as  noites  todas 
lorvida  na  contemplação  dos  benefí- 
cios, de  que  lhe  he  devedora,  admi- 
rando-íe  de  que  a  terra  ,  que  piza  , 
poíTa  fuílentar  o  pezo  de  luas  mal- 
dades? Pertendo  dizer-vos  por  ven- 
tura 5  que  nem  o  Inferno  com  as  fuás 
fuggeítoes,  nem  o  Mundo  com  as  fuás 
lifongeiras  promeíías,  nem  â  carne 
com  os  feus  appetites  ,  afpides  que 
por  baixo  de  fiores,  que  com  o  feii 
cheiro  nos  atordoaÒ,  fe  efcondem  , 
para  que  merdendo-nos  a  feii  faWo, 
rios  envenenem  ^  poderão  já  mais 
defvialla  do  caminho,  que  trilhava? 
Caminho  talvez  coberto  de  abrolhos, 
mas  feguro.  Pertendo  por  ventura 
dizer-vos  ,  que  porque  a  vangloria 
quer  con>  os  feus  manhofos  ardis 
perfuadilla  ,  que  já  nao  tem  que  te- 
mer ;  que  o  íeu  nome  eílá  eícrito  já 
paquelle  Livro  fechado  com  (etc  Sei- 
los  ,  ff  bre  que*  repoufa  o  Cordeiro 
imaiaciíUdo  ;  Livro  da  vida:  aíTuf- 

ta* 


W'S'l\Í 


mi. 


Ill 


W'\ 


4^  O  R  A  Ç  A  8 

ta-fe. .,  treme. . .  iiurnilha-fe. . .  quaíi 
extaíiada  fóbe  ao  telhado  de  Tua  po- 
bre calinha  ,  e  reforçando  o  brado  | 
pede  no  íiiencio  da  noite  aos  mora* 
dores  de  Cortona ,  que  íe  levantem  : 
que  naoMabem  o  inimigo  que  tem 
deorro  de  íua  Cidade  :  que  ás  pe- 
dradas a  lancem  fora  de  fuás  porta?, 
fe  nao  querem  ,  qoe  huma  peccadora 
taô   grande  os  perverta. 

Frevertellos  Margarida  de  Cor- 
tona .0.  que  cora  o  leu  nafcimento 
os  honra  !  que  com  o  leu  exemplo  os 
edifica!  Margarida  deCortona,  que 
convertida  para  Deos  :  Ego  díkSío 
meo  -j  attrahe  todas  as  ^bencaos  do 
Ceo  ,  naò  íó°  para  os  feus  patriotas^ 
iTías  naô  ha  dom  ,  que  Deos  lhe  nao 
liberalize,  convertendo- fe  para  ella  : 
£f  a  d  me  conuerfio  ejus :  que  he  a 
legunda  reliexao,  que  prometti  fazer- 
vos  !  Renovai-me  a  voíía  attençaó 
benévola.  Entendo,  que  nao  a  de-» 
merecerei ,  abuzando  da  voiTa  paci- 
CDcia. 


Segun* 


A  S.  Margai^ida  de  Cort.      47 
Segunda  Reflexão» 

QUando  eu  me  lembro  ,  qut  O 
Deos,  que  temos,  nos  creou  de 
nada,  fazendo  transluzir,  e  re- 
verberar no  noíío  roílo  imm  raio  do 
jume  incircumfcripto  de  fua  Divinda- 
de; eu  naò  polTo  deixar  de  me  admi- 
rar nruiiro,  já  da  noíía  foblime  dig- 
nidade, já  do  amor  qu^  nos  tem  ^ 
dando  a  hum  pouco  de  barro  rati« 
to  valor.  Muito  mais  refiedlindo  , 
que  defirserecendo-lhe  nós  tantas  fine- 
zas com  a  transgreílljo  de  noílos  def- 
obedientes  Progenitores  ,  para  que 
naõ  tjcaííemos  excluídos  da  Gloria  ^ 
para  que  fomos  creados  ,  âííumioj, 
como  fe  explicaõ  osTheologos,  com 
a  noila  natureza,  a  forma  vil  de  fer- 
vo ,  abrindo-nos  com  a  ft! a  Cruz  as 
âíFerroUudas    portas  dô  Paraifo, 

E  como  que  fe  nao  délTe  por 
farlsfeito  morrendo  pelo  homem  , 
dar- nos  a  comer  a  fua  Carne  ,  e  a 
beber  o  feu  Sangue  naquelle  Sacrs- 
jnenío  Auguílo  ,  que  he  ,  como  diz 

SaE- 


'4^        ^  O  R  A  Ç  A  6 

Santo  Tlioniaz,  o  maior  de  feus  rv.i* 
Jrigres,  e  o  fi nete  ,  que  marca  toda 
a* grandeza  de  feu  amor;  para  que 
no  eíladõ  de  viadores  tiveíTemos  na 
fua  real  prefençá  todos  os  bens  de 
que  neceíIitaíTemos^nutríndo-nos  com 
aquelle  Paõ  dos  Anjos  ,  Paó  que  ge- 
ra virgens  ,  que  gera  fortes  ,  para 
vencermos  as  tentações  com  que  o 
inimigo  commom  pertende  reduzir- 
nos  ao  feu  infame  partido?  O^  Deos  !■ 
O'  amor  !  Ora  hum  Deos  ,  que  nos 
ama  ranto  ,  de  que  alegria  fe  nao  en- 
cherá, quando  qualquer  peccador  fe 
converte,  deteftando  deveras  os  feus 
crimes,  com  huma  contrição  ingénua? 
De  que  dons  nao  enriquecerá  a  fua 
alma?  Tal  foi  Margarida  de  Corto- 
na,  Senhores,  que  convertendo  fc 
Deos  para  ella :  Et  ad  me  connjev' 
fíoeJMS\  que  graças  nao  teve!  Que 
privilégios  !  Que  perrogativas  ,  já 
na  {\ià.  vida,  já  depois  de  fua  mor- 
te ! 

Eu  nao  poffo  àzt  ao  meu  difcur- 
ío  a  exftenfao  de  que  he  capaz  a  ma- 
teria ;   porém  ainda  que  vos  nao  di- 
ga > 


r.3PH 


A  S.  Maíigatiida  de  Cort.    49 

ga,  que  nos  colioquios,  com  que  Deos 
íe  eiuertinha  com  Margarida  de  Cor- 
tona,  por  muitas  vezes  a  honrara 
com  o  carinhofo,  e  doce  nome  de 
íilha,  abençoando  as  fuás  lagrimas,  e 
animando  as  fuás  defconfianças ;  que 
pela  fua  penitencia  a  purificara  de 
maneira  de  íeus  peccados  ,  que  a  fi- 
zera fimílhante. ás  Virgens:  ainda  que 
vos  nao  diga  ,  que  para  lhe  arrancar 
os  íuítos  5  que  a  deixavao  como  mor- 
ta 5  receofa  de  chegar  áquella  Meia 
de  prapiciaçao  íem  o  apparelho  devi- 
do 5  lhe  déíle  muitas  vezes  a  certeza, 
que  nada  tinha  que  temer  :  que  po- 
dia commungar  feguramente  ;  devo 
por  ventura  involver  agora  em  pro- 
fundo fílencio,  o  poder  que  lhe  com- 
munícou,  para  que  todos  convenci- 
dos de  fua  virtude  5  a  tiveíTem  por 
Santa? 

Terceira  Ordem  do  Serafim  de 
Aíliz  5  vos  fois  a  mais  intereíTada  nas 
fuás  glorias  :  competia  a  vós  infor« 
mar-nos  os  prodígios  que  obra^  quan- 
do governando  ao  feu  arbítrio  as 
conílantes  leis  da  natureza  ,  fazia 
D  Mar- 


I:; 


%i:!l'^ 


't'r 


5^0  O  R  A  Ç  A  6 

Margarida  deCortona  fugir  a  mor-í 
te,  que  já  com  as  fuás  negras  azas, 
parece  que  cobria  o  leito  dos  def- 
amparados  doentes.  Na6  reftitue  a 
muitos  a  faude  perdida  ?  Correndo  o 
véo  ,  que  cobre  futuros  fucceíTos  ^ 
naó  predizia  a  muitoá  o  que  lhes  ha- 
via acontecer,  naó  fe  enganando  já 
mais  nos  feus  vaticinios  ?  Huma  pa- 
lavra fua  nao  bailava  para  ferenar 
ânimos  perturbador,  efpalhando  pe- 
lo coração  de  tantos  afílidlos  ,  como 
huma  lífongeira  calma,  a  paz  de  que 
esí}uíhados  fe  viaô  ? 

Quem  he  aquella,  que  emula  da 
valerofa  Judith,  naô  fò  degolla  ao 
Dragão  Tartareo  ,  mas  arranca-lhe 
das  unhas  as  miferas  prezas?  Eu  nao 
fallo  dos  peccadores ,  aquém  con- 
verte: viílimas  defgraçadas  de  noíTa 
commum  inimigo.  Lembro-me  uni-í 
camente  dos  energúmenos  ,  a  quem 
defaflbmbrava  com  a  fua  prefença, 
refgatando  de  fuás  mãos  aquellas  al- 
mas infelizes.  Poderão  nunca  eítas 
fúrias  vomitadas  do  Averno  ,  ou  il- 
ludillajou  atterralla?  Nao  fe  desfa- 

ztaõj 


iKrsai 


A  S.  Margarida  deCort.      ^t 

2ia6  5  como  as  efcumas  do  mar  ,  as 
maquinas  que  levantavao,  ainda  quan- 
do por  algum  tempo,  permittindo-lho 
Deos  ,  por  fins,  que  nós  naõ  alcan- 
çamos ,  a  atormentavao  ? 

'  Quem  he  aquella ,  a  quem  Deos 
dá  tánra  eíEcacia  na  fua  oração,  que 
nada  lhe  pedirá,  que  naô  obtenha? 
Eu  nao  difcorro  como  Orador,  a  quem 
a  paixaô  efcalda  a  fantafia.  Trago 
á  memoria  as  promefTas,  que  Deos, 
convertendo-fe  para  Margarida  de 
Cortona,  por  muitas  vezes  lhe  fez.  E 
naó  fe  cumprirão  fempre  já  na  fuá 
vida,  já  depois  de  fua  morte  ?  DigaÕ- 
no  os  votos,  que  pendem  de  feu  fe- 
pulchro,  concorrendo  deClimas,além 
de  remotos  ,  eílranhos  ,  tantos  pere- 
grinos a  vifitarem  a  fua  fepultura  •, 
fobre  cujas  cinzas  entornando  muitas 
lagrimas,  tiverao  a  felicidade  de  con- 
feguirem  o  que  defejavao:  para  fe 
verificar  a  profecia  ,  que,  ainda  quan- 
do engolfada  no  Mundo,  fez  a  quem 
a  reprehendia  de  fua  vaidade  ! 

Agora,  colhendo  as  velas,  e  re- 
matando a    minha  Oração ,    tomara 
D  ii  que 


iSlí' 


^t  Oraça6 

que  me  diffeííeis  ,  f e  nao  feremos  nós 
reputados  por  infeníiveis  ,  nao  nos 
aproveitando  do  exemplo,  e  da  pro- 
tecção de  Margarida  de  CortO/na  ?  Se 
nao  nos  convertendo  para  Deos ,  te- 
remos alguma  defculpa ,  principal- 
mente devendo  lifongear-nos  com  a 
efperança  de  que  Deos  também  fe 
converterá  para  nós  ?  Ego  dileSío 
meo  :  &*  ad  me  converjlo  ejus,  Ha6- 
de  paíTar  os  annos  :  os  Janeiros  hao- 
de  cobrir  de  cans  as  noíTas  cabeças, 
de  rugas  as  noíTas  caras  ,  fem  que 
defenganados  nos  refolvamos  a  de- 
teílàr  as  noíTas  culpas  ?  Fiamo-nos 
na  mifericordia  de  Deos:  he  grande 
táboa  para  efcaparmos  do  naufrágio. 
Eu  o  coníeíTo.  Mal  de  mim  :  mal  de 
todos,  fe  Deos  nao  fora  mifericor- 
diofo  :  porém  releva  ,  que  a  tempo 
opportuno  nos  aproveitemos.  Sabeis 
vós  até  onde  fee Renderá  o  termo 
de  nòífa  vida  ?  Se  quando  mais  def- 
cuidados  eftiverdes,  defcarregará  fo- 
bre  vós  a  morte   a  fua  foice  ?  E.  en- 


tão 


e  então 


ri? 


liluítre  Penitente ,  com  a  fuppli- 

ca 


AO  Sá.  Sacbamento.  5'3 

ca  ,  com  que  comecei ,  acabo.  Eu  vos 
amo  :  ao  «nenos  defejo-o  muito.  O 
que  quero  h^  falvarine.  As  inclina- 
ções perverfas  de  meu  coração  ,  fru- 
tos amargofos  ,  frutos  de  meu  pec- 
cado  ,  arrancai-os.  Sobre  os  voíTos 
devotos  efpalhai  as  voflas  bênçãos. 
Merecem-no  pelo  fervor  ,  com  que 
promovem  o  voíTo  culto.  Convertao- 
fe  para  Deos :  para  que  Deos  fe  con- 
verta para  elles  :  Ego  dikSío  meo  : 
&"  a  d  me  converfio  ejus.    DiíTe. 


ORAÇÃO 

AO  SS.  SACRAMENTO. 

Vade  :  fiat  tihi  ,  ficut  credidiJlL 
Math.  C.8. 

A  Gradou  tanto  a  Jesus  Cíirifto 
a  fé  doCenturiao,  que  depois 
de  a  ex;altar  ,  preferindo-a    à 
fé  de  codo  o  Povo  de  Ifrael :  Non  in-- 
veni  tantam  fidem  in  Ifrael :  a  re- 
ma- 


w^ 


54  O  It  A  Ç  A  é 

inunerou  com  huma  dadiva  correr- 
pondente  á  fua  grandeza ,  abrindo 
com  mão  larga  o  íhefouro  de  fuás 
antigas  mifericordias ,  na  faude  que 
reftiruio  ao  Servo  valido  ,  que  toca- 
do da  páliida  doença,  quaíl  que  eítava 
pagando  o  commum  tributo  a  eíTa 
devoradora  implacável  da  efpecie  hu- 
mana :  a  morte  digo;  Fade:  fiat  ti- 
bi  ,  ficut  credidijli. 

Mas  íe  do  rápido  ,  e  baixo  pla- 
neta que  habitamos,  a  nós  nos  he  li- 
cito erguer  o  braço  para  correr  o 
véo  ,  que  cobre  as  acções  do  Filho 
de  Deos  ;  qual  fim  fe  proporia  ,  naó 
querendo  que  ficaíTe  envolta  em  pro- 
fundo íilencio  a  crença  daqueUe  bom 
homem  ? 

S.  João  Chryfoílomo ,  S.  Cypri- 
ano,  o  grande  Agoftinho  affentaõ  fe- 
bre fólidos  fundamentos  ,  que  para 
que  nós  foubeíTemos  ,  que  naô  he 
igual  a  graça  ,  que  nos  confere  aquel- 
le  Sacramento  Augufto,  de  quem  vós , 
feguindo  o  exemplo  de  voíTos  maio- 
res ,  promoveis  o  culto  ,  he  que  o 
Redemptor  tao  fanto  na   fua  peffoa , 

como 


wg::m 


AO  Ss.  Sacramento.  f? 
como  myfteriofo  nas  fuás  palavras,  a 
deixou  eternizada  nos  faílos  da  Igre- 
ja que  fundara  ;  deduzindo,  como  le- 
gitima concluíaó,  daquelle  fado,  que 
fegundo  o  merecimento  de  quetn  o 
recebe,  faó  os  maravilhofos  eíFeitos 
que  produz  nas  noíTas  almas, 

Eis-aqui ,  porque  ao  elevar-fe  da 
fagrada  Pyxide  aquella  Hoftia  pura, 
aquella  Hoftia  immaculada,  na  qual 
curvados  os  joelhos  adoramos  o  Cor- 
deiro 5  que  tira  os  peccados  do  Mun- 
do ;  o  Sacerdote  nos  faz  repetir  a 
proteftaçaó  generofa  ,  e  fubmiíía  do 
Centuriaô  ;  confeíTando  ,  cheios  de 
fé  ,  cheios  de  humildade  ,  que  nós 
nao  fomos  dignos ,  de  que  entre  pe- 
las noíTas  cafas  o  Deos  dos  Deofes, 
que  voando  na  plenitude  dos  tem- 
pos do  feio  do  Pai  á  terra  ,  fe  fez 
Homem  por  amor  dos  homens;  af- 
fumindo  ,  como  fe  explicaô  os  The- 
ologop,  juntamente  com  a  noífa  na- 
tureza a  forma  vil  de  fervo  :  Semet^ 
ipfum  exinanivit  formam  fervi  acci- 
piens. 

Ora  eu,  fem  que  efcaldando  a 

mi- 


ti; 


;í' 


m 


Ií:-Í 


1^  /jf 


$6  O  R  Àç  A  6 

niinha  imaginação  ,  refine  as  minhas 
idéas,  demorando-me  com  propoli- 
çoes  ,  ainda  que  brilhantes,  eftéreis; 
determino  hoje  tratar  de  huma  maté- 
ria, que  naõ  fendo  eftranha  do  aíTum- 
pto,  a  que  por  obedecer-vos  me  cin- 
jo 5  vos  inftrua ,  mais  que  vos  delei- 
te; moftrando-vos  da  Cadeira,  que 
occupo ,  quaes  fao  os  bens  ,  que  na 
Euchariiliâ  fe  communicao:  Matéria, 
que  pela  fua  preciofidade  fe  faz  cre- 
dora da  voíTa  attençao.  Deos ,  que 
me  conhece  o  animo,  Deos  me  aju- 
de. E  na  certeza  de  que  me  trata- 
reis com  a  voíTa  coílumada  benevo- 
lência ,  fem  mais  proemios ,  que  re- 
puto efcufados,  alçando  a  minha  dé- 
bil voz ,  eu  começo ,  Senhores. 


rj":-t 


ANtes  que  eu  me  involva  no  ar- 
gumento ,  que  para  voíTa  utili- 
dade me  propuz  :  alvo  a  que  fern- 
pre  em  cumprimento  do  miniílerio, 
que  exercito ,  aíTéílo  os  meus  tiros  , 
releva,  dizer-vos.  Senhores,  que  o  Sa- 
cramento da  Euchariiliâ,  aííim  como 
os  mais  Sacramentos ,    confere  duas 

Gra- 


4^ 


AO  Ss.  Sacramento.  ^j 
Graças  accidentalmente  diftlnftas. 
Huma  chama-fe  fanrifiGante  :  charaa- 
fe  a  outra  facramentaL  A.  Graça  fan- 
tificante  he  huma  qualidade  fobrena- 
tural  5  com  que  a  alma  ,  elevando-fe 
fobre-fi  mefma,  participa  da  belleza. 
divina.  A  Graça  facramentai  ^conli- 
íle  nò  concurfo  de  alguns  efpeciaes 
auxílios,  naó  fó  aptos,  mas  mui  ne- 
ceíTarios  para  confeguirmos  o  fim  , 
porque  Jesus  Chrifto  inílituio  o  Sa- 
cramento de  feu  Corpo  na  noite  da 
grande  Cea. 

Dada  efta  noticia  ,  ainda  que  em 
geral  ,  convém  que  eu  vos  pondere 
agora  ,  em  defempenho  da  minha 
propofíçaô  ,  qual  he  o  valor  de  hu- 
ma, e  outra  Graça  ,  para  conceber- 
des'a  fua  jufta,  e  devida  eílimaçao. 
Comecemos   pois  peia  Graça  fantiíi- 

cante. 

Já  vós  fabeis  ,  Senhores  ,  que 
para  chegar-mos  dignamente  áquella 
Mefa  de  propiciação:  Meia  ,  na  qual 
fe  nos  dá  a  comer  o  Paô,  que  contém 
todos  os  fabores  :  Pao  do  Ceo  :  fe 
eílamos  em  peccado,  he  precifo ,  que 

pre- 


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•íiJi: 


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í^m^ 


58  Oração 

preceda  o  Sacramento  da  Penitencia, 
para  que  com  a  graça,  que  nos  com- 
irunica  ,  nos  purifiquemos  das  feias 
ir.anchas  .  que  tinha-mos  contrahi- 
do^  reílitoindo-nos  a  perdida  amiza- 
de de  Deos :  fazendo  aos  feus  olhos 
(Divinos  olhos ,  que  até  nos  Anjos 
achao  defeitos)  grata,  e  bella  a  nof- 
la  alma. 

Ora  achando-nos  a  Euchariília 
limpos  da  culpa  ,  como  branquean* 
do  as  noíTas  eíloias  no  Sangue  do 
Cordeiro,  enriquecerá  mais  a  nolTa  al- 
ma !  Como  lhe  augmentará  a  belle- 
2a!  fendo  por  unanime  teftimunho 
dos  Doutores  ,  mais  copioía  a  graça 
de  que  a  adorna ,  e  de  que  a  efmal- 
la  !  Para  que  me  entendais  melhor  , 
eu  me  explico  com  hum  faíto  regif- 
tado  nos  Santos  Códigos. 

Quando  a  intrépida,  e  denoda* 
da  Judith,remontando-fe  fobre  a  fra- 
gilidade de  feu  fexo ,  fe  refolveo  a 
defaHombrar  do  furor  deHolofernes 
a  timida,  e  confternada  Bethulia,  diz 
o  Texto  ,  que  lavara  o  feu  corpo  ^ 
que  deícingira  o  afpero  cilicio;  que 

com 


AO  Ss.  Sacramento.  5*9 

com  fuavjffimos  aromas,  que  a  Pan- 
caya  cria  ,  fe  perfumara:  e  que  unin- 
•do  ,  e  enlaçando  com  os  encantos 
da  natureza  os  encantos  da  arte  , 
pompofamente  fe  veílira  ,  e  enfeita- 
ra pari  parecer  mais  bella.  Porem 
que  Deos,  abençoando  o  feu  deíignio, 
lhe  accreícentara  hum  novo  efplen- 
dor  de  formofura  ,  a  que  ninguém  , 
que  a  viííe,  podeíTe  refiftir:  Cui  etiam 
Dominus  contultt  fpkndorem,  &  ideo 
hanc  in  illa  pulchritudinem  amplia- 
vit^  tit  incomparábíli  decore  omnium 
o  cu  lis  appareret* 

Com  eíFeito ,  Senhores ,  apenas 
entra  pelo  acampamento  do  Exerci- 
to Affirio  ,  que  defufada  impreííao 
nao  faz  nos  ânimos,  ainda  que  du- 
ros ,  dos  guerreiros  Soldados  !  Com 
hum  ar  de  Conquiíladora  ,  que  tem 
ao  feu  ferviço  a  fortuna  ,  e  a  vido- 
ria,  leva  como  arrebatados  os  olhos 
de  todos  ;  leva  os  corações ,  tecendo 
das  ondeadas  madeixas  ,  que  pelos 
feus  hombros  alvos  feefpalhaô  as  ca- 
deas  com  que  os  prende.  He  juílamen- 
te  reputada  pela  mais  formofa  ma- 
^  tro- 


I 


H    ^ 


60  O  R  A  Ç  A  Ó 

trona  do  Mundo  :  Confiderabant  fa^ 
ciem  ejíís ,  é?^  erat  in  o  cu  lis  eorum 
fiupor :  quoniam  pulcbritudinem  ejus* 
mirahantur  omnes. 

Quanto  aconteceo  a  Judith  ,  tanto 
paíía  peia  alma  de  quem  dignamen- 
te communga.  Por  meio  do  Sacsra- 
menio  da  Penitencia  lava-fe  de  íuas 
manchas :  deípoja-fe  do  hórrido  ci- 
licio dos  feus  peccados  :  enfeita-íe 
com  a  vcíle  preciofa  da  graça.  As 
oraç6es5  que,  íubindo  como  vara  de 
odorifero  incenío,  manda  ao  Thro- 
no  do  Todo  Poderofo  :  os  ad:os  de 
fé, que  exercita:  a  caridade,  que,  fem 
que  a  confuma,  a  devora:  a  efperan- 
ça  fobre  que  fe  apoia  :  que  belleza 
ihenaodao!  Mas  nutrindo-fe  daquel- 
le  Maná  efcondido  :  Etiam  Domi- 
nus  conferi  pulcbritudinem :  he  mais 
formofa  ,  he  mais  belia  :  nada  ha 
com  que  fe  compare.  Os  Santos  ,  os 
Anjos  ficao  tranfportados  de  admi- 
ração, e  de  prazer,  vendo-a, contem- 
plando-a  :  Ita  no  firam  Deus  orna- 
'vit  animam  (He  S.  JoaÓ  Chryfofto- 
mo  quem  falia)  ita  pulchram  fe- 

cit 


w^mm 


AO  Ss.  Sacramento.  6i 

ctt ,  tít  eam  SaníVt ,  atque  AngeU  af- 
ficiendo  cupiant. 

Nem  cuideis  que  eíta  graça  ,  que 
fantificando  a  alma  a  faz   taô  bella  , 
fe   recebe  humâ  vez  fó  ;  fempre  que 
com  o  apparelho  devido  fe  commun- 
ga,  fe  augmenta.  De  maneira  ,  que 
fe    nós   coníervaOemos    a    grap    da 
primeira  comunhão ,  fem  que  o  pec- 
cado  (infame   peccado )   com  o  feu 
hálito  peçonhento  nos  corrompeíle, 
que   formofura  naõ  feria  a  da  noíTa 
alma  ?    Deos  a  preferiria  a  todas  as 
creadas  :  mais  que  a  todas  as  crea- 
turasDeos  a  amaria  :  nada  haveria  no 
Ceo  ,  nada  na  t^rra  ,  que   fe  compa- 
raUe  com  a  fua  belleza.  Na  fua  pre- 
fença  defapp^receriaó  todos  os  entef- 
creados,  como  ao  defpontar  no  ro- 
fado  Orizonte  fobredourado ,  e    re- 
fulgente carro  o  Sol,  fogem  ,    e  def- 
âpparecem    as    eftrelias.    Parece-vo5 
demafia  de  Orador  apaixonado  ?  Co- 
mo   vos   enganais  5    Senhores,    ten- 
do por  fiador  da   verdade,  que  vos 
digo  ,    o    meu    adoradiffimo    Santo 
Agoftinho;  Nonfolum  ojnniafydera, 

■      & 


f)%  Ora  ca  6 

&  omnes  Coelos ,  verum  etiam  omnes 
Angelos  Eucharifti£  gratia  fuper^ 
greditur, 

Eis-aqui  porque  Deos  com  huma 
fublime  hypocypoíis,  perfonalizando 
aquella  alma  ,  que  repetindo  as  com- 
munhões  fe  fantifíca  cada  vez  mais  , 
raô  acha  cores,  com  que  a  pinte,  can- 
tando debaixo  da  allegoria  de  enge- 
nhofas  imagens  a  fua  formofura.  O' 
como  he  beila  a  minha  amada  !  O' 
como  he  beila  !  He  nas  fuás  faces , 
que  amor  ,  eftendendo  o  feu  império 
refide  como  no  feu  throno.  O  feu 
peito,  como  fe  fora  hum  vafo  de  ri- 
quiílimas  faíiras  ,  de  que  gloria  nao 
eílá  adornado  I  Filhas  de  Sião ,  naó 
lhe  pertubeis  o  fomno.  Vós  Zeíiros 
facudí  brandamente  as  cândidas  azas 
para  a  naô  acordardes. 

Eis»aqui  porque  refledlindo  nas 
fuás  perfeiqoes  ,  confeíTa  que  o  feu 
coração  fe  derrete  como  huma  bran- 
da cera  :  que  eílá  ferido  huma  vez: 
que  eftá  ferido  muitas  vezes:  que  en- 
fraquece, que  defmaia,  que  repou- 
fando  no  feu  regaço,  como  em  hum 

thala- 


WÊ 


AO  Ss.  Sacramento.  6^ 

:halamo  de  mimofas  ,  e  matizadas 
iores,  moj-re,  mas  de  amor.  Ob  quam. 
wlchra  es  arnica  me  a  ! . .  .  .  vulne- 
rajii  cor  meum  fponfa  mea  :  foror 
mea  vulnerafli  cor  meum,,.  Stipa- 
te  mefioribus  ,  quia  avãore  langueo. 

Pode  chegar  a  mais  a   belieza 
da  alma  ,  que  commungando  digna- 
mente, cada  vez  mais   íe   fantifica  ? 
Attrahir  o  amor  todo  de  liumDeos  ? 
Naó  haver  formofura  ,  que  inferior 
lhe  nao  feja?  Pode  fer  mais  laílimo- 
fa  a  noíTa  cegueira,  que  nos  prive^ 
mos  de   hum  bem  taó  grande  ,  nao 
bufcando  com  frequência  aquella  Me- 
fa  Eachariftíca  ?    Efpiriros  ditofos  , 
que  vos  alimentais  daquelle  Corpo, 
e  daquelle  Sangue,  que    geraô  Vir- 
gens ;  eu  vos  invejo  a  forte  ,  quan- 
do banhando-vos  nas  fontes   do  Sal- 
vador,  voais  como  caílas  pombas  de 
Edon  aoEmpyreo  ,  fâzendo  o  voíTo 
ninho  no  feu  roto  Peito,  que  he  don- 
de dimandb  aquelle  Sacramento  Au- 
guíto  :  De  latere  Chrtjli  emerunt  Sa- 
cramenta, 

Mas  ponderemos  já  a  Graça  fa- 

cra- 


NI 


1 


!'|| 


II, '1 


Iff, 


64  Oração 

cramerital,  que  a  Euchariília  nos  con- 
fere: a  qual  5  íegundo  o  que  vos  dif- 
fe  ao  principio,  confifte  no  concur- 
fo  de  alguns  efpeciaes  auxilies  ,  na6 
fó  aptos,  mas  neceíTarios  para  con- 
feguirmos  o  fim  porque  Jesus  Chri- 
lio  inftituio  aquelle  Divino  Sacramen- 
to. 

Todos  fabemos,  que  Jesus  Chri- 
ílo  inftituio  na  noite  da  grande  Cea 
o  Sacramento  da  Euchariília,  debai- 
xo das  efpecies  de  pao  ,  e  vinho  , 
para  nos  íígnificar  ,  que  faz  n^alma 
os  mefmos  eíFeitos ,  que  o  alimento 
material  faz  nos  corpos.  Três  porém 
íao  os  principaes  eíleitos  ,  que  nos 
noííos  corpos  produz  o  alimento  ma- 
terial ,  de  que  ufamos.  Mantem-nos 
vivos :  maniem-nos  sãos :  e  augmen- 
tado-nos  as  forças ,  dilatamos  a  eíla- 
tura. 

Ora  quando  nós  dignamente  co- 
mungamos, como  fe  mantém  viva  a 
noíTa  alma  r  Como  fe  nKIntém  sâ  , 
romo  fe  vigora  ,  e  como  crefce  ? 
Manrem-fe  viva  ,  porque  fe  confer- 
va  na  graça  de  Deos ;   mantem-fe  sã  , 

por- 


AO  Ss.  Sacramento.  6$ 

porque  fe  livra  das  fuás  coftumadas 
enfermidades  :  vigora-fe  ,  e  crefce  , 
porque  fe  adianta  nos  exercícios  de 
piedade  ,  fubindo  de  virtude  em  vir- 
tude :  Ibunt  de  virtute  in  virtutem. 
Expliquemos  hum  por  hum  eftes  pro- 
digiofos  effeitos. 

Que  o  Sacramento  da  Euchari- 
ftia ,  conferve  a  vida  d^alma  ,  que  he 
a  graça  de  Deoá ,  he  hum  dogma^ 
que  eu  com  as  algemas  nos  púifos^ 
e  com  o  alfange  fobre  a  garganta,  fe 
precifo  for,  confeíTarei  publicamen- 
tena  face  do  Mundo  todo.  Confta 
cxpreíTamente  dos  Códigos  fagrados: 
Ego  fum  fanis  yivu^.  Siquis  ex 
ipfo  manducaverit  ,  mn  morietur. 
Qui  manducai  hum  fanem  uivet  in 
aternum. 

Pois  fe  iílo  he  huma  verdade  in- 
faliivcl,  que  todos  devemos  crer  ,  de 
que  procede ,  que  a  mór  parte  dos 
homens  eítá  fempre  tao  apartada  da- 
quelle  Sacramoíito  ?  Eíta  pergunta  , 
que  he  de  Santo  Ireneo  ,  a  única  reC- 
poíla  que  pôde  ter  he,  que  nós  talvez 
governando-nos  pelos  fentidos,  que 
JE  quaíi 


66  O  R  A  Ç  A  ô 

quafi  fempre  nos  enganaó ,  nao  fa* 
zemos  da  vida  d^alma  o  meímo  apre- 
ço ,  que   fazemos    da  vida  do  cor- 
po.   Se  a  noíTa  fé  fora  como  a  do 
Centuriaó:  fe  nós  naô  foffemos  huns 
homens  carnaes ;  com  que  anciã  nao 
frequentaríamos  aquellaMefa  Eucha# 
liítica  ?  Qiial  Cervo  ,  que  ferido  pe- 
lo dardo  do  aíluto  caçador  ,  corren- 
do bufca  a  viíinha  fonte  para  fe  ba- 
nhar nas  fuás  agoas ;  como   defejâ- 
riamos  mais  ,  e    mais  alimentar-nos 
daquelle  Corpo  ,  que  he  mais   doce 
que  o  mel,  mais  doce  que  o  favo?  Que 
obftaculos  nao  removeríamos,    para 
gozarmos  de  huma  vida  ,  que  fe  naô 
gaita  com  o  fluido  ,  e  rápido  curfo 
dos  ailnos;  huma  vida  fobre  feliz  , 
eterna  ? 

Leio  no  Capitulo  terceiro  do 
Geneíis,  que  para  que  nem  o  defter- 
rado  Adaõ ,  nem  a  íua  eriminofa  po- 
íteridade  tornafle  a  pôr  mais  o  pé 
no  Paraifo  terreftre  ,  hum  Anjo  com 
huma  efpada  de  fogo  por  cxpreífo 
comm.andamento  de  Deos  lhes  ve- 
dava o  ingreíTo.  Mas  para  que,  huma 

guar- 


AO  Ss.  Sacramento.  67 

guarda  tao  formidável  ?  Naó  baftava 
que  Deos  a  prohibiíTe  ?  Se  queria 
toiher-lhes  oaccéíTo,  faltavaõ  mon- 
tes inacceíTiveis  ?•  faltavaõ  vaíliífimos 
mares  ,  que  lhes  defendeffem  a  entra- 
da? Que  preceitos  ?  que  montes?  que 
ttiares  ?  Nada  deteria  os  homens  ,  na- 
da os  atterraria.  Ufariaõ  da  força: 
uíariao  da  manha.  Naô  haveria  meio, 
que  na6  applicaííem  ,  para  defafFcr- 
rolharem  as  portas  daquelle  feliz  ter- 
reno, nao  já  pela  amenidade  daquel- 
le Pâiz  de  delicias  :  naõ  já  pela  fer- 
tilidade de  feus  campos  :  nao  já  pe- 
la copia  de  luas  riquezas  :  mas  pa- 
ra que  colhendo  da  arvore  da  vida 
D  vedado  pomo,  diiataíTem  por  mui- 
tos feculos  a  fua  duração  :  Collocavit 
ante  Paradifum  Cherubim  ^  ^  gla-  ' 
diumjiammeum  ,  ad  cujlodiendam  vi' 
am  ligni  vita» 

Agora  argumento  ,  Senhores  : 
Se  tanto  pôde  com  os  homens  o  de- 
fejo  de  viver  muito  ,  que  naô  have- 
ria trabalho,  ainda  que  afpero  ,  que 
nao  arroftaíTem  ;  que  naò  haveria  def- 
peza  ,  poílo  que  exorbitante,  que 
-Oíl  E  ii  naô 


I 


1:1:1 


pi 


68  O  B  A  Ç  A  6 

naõ  fizeíTem  para  o  confeguirem  : 
porque  razão  nos  naõ  nutrimos  com 
frequência  de  hum  alimento  ,  que  te- 
mos íempre  prompto  nos  noíTos  ta- 
bernáculos ?  Alimento,  a  que  Santo 
Ignacio  Martyr  chama  Antidúto  da 
morte  :  Antidotum  mortis, 

O  fegundc  eíFeito,  que  o  Sacra- 
mento da  Euchariftia  produz  ,  he ,  co- 
mo já  vos  diíTe,  manter  com  o  feu 
ufo,  sã  a  noíTaalma,  prefervando-a 
do  peccado.  Naõ  cuideis^  que  eu  ago- 
ra me  firvo  de  opiniões,    que  a  Mo- 
ral relaxada  tem  introduzido.  Eu  de- 
téfto   a  liberdade  ,    que    na  Efcola 
graíTa  com  o  abuíb  ,  que  fe  faz  de 
Metafyficas  abílraclas  ,  e  perigofas  , 
que  a  igreja  nos  feu  dourados  tem- 
pos 5  nem  as  conheceo.  A  doutrina 
fobre  que  me  fundo  ,  bebo-a  na  fon- 
te pura  :  he   do  Concilio  de  Tren- 
to:  vede  como  he  clara  :  Sumi  vo- 
lult  hocSacramentumy  tanquam  an- 
tidotum ,  quo  prefervemur  à  pecca* 
tis. 

Mas  como  preferva  a  Euchari- 
ftia a  alma  do  peccado  ?  Como,  Se- 
nho- 


AO  Ss.  Sacramento;  69 

rhorcs  ?  Reprimindo  aquella  indómi- 
ta concupifcencia,  e  aquella  tyranna 
lei  da  carne  corrupta  ,  que  aíFerrada 
nos  noílos  oíTos  ,  declara  á  noíTa  ra- 
zão huma  fanguinofa  guerra :  lei  con- 
traria ,  e  repugnante  á  queDeos  gra- 
vara nos  noíTos  corações ,  como  at- 
teíla  S.  Paulo  :  Fideo  aliam  kgem  in 
membris  méis  repugnantem  legi  men- 
tis me  a. 

Por  tanto ,  ó  almas  devotas  da- 
quelle  Sacramento  Auguílo  ,  (excla- 
ma da  fua  gruta  o  grande  Abbade  de 
Claraval)  fabei,  que  fe  domado  o 
orgulho  de  voíTas  paixões,  vós  riveis 
tranquiilas  ,    e  focegadas  ,   como  o 
Olimpo,  aonde  as  tempeílades,  que 
da  terra  embravecidas  fe  defenfreaÓ, 
nunca  perturbaõ  a  ferenidade  do  ar, 
que   alli    brandamente    refpira   hum 
agradável,   e  lifongeiro  Zéfiro;  vós 
deveis  render  as  graças  áquelle  pre- 
ciofoManná,  de  que  vos  alimentais 
com  frequência. 

Porque  entendeis  vós  ,  Senho- 
res, que  os  Clauftros  brilhaõ  como 
hum  Ceo  recamado  de  nítidas  eftrel- 

las. 


fÔ  o  R  A  Ç  A  6 

las ,  fena6  porque  os  feus  dítofos  ha- 
bitadores nutridos  com  aquelle  Paá 
dos  Anjos  ,  defcarnao  os  feus  appe- 
tites  ,  fuíFocando  o  ímpeto  cego  ,  e 
defefperado  daquellesaffedlos,  que  co* 
mo  frutos  de  huma  raiz  envenenada 
efcurecem  o  ufo  de  noíTa  razaô  ,  fa- 
zendo-nos  iracundos  ,  incontinentes, 
invejofos,  (diga-fe  tudo)  apartan- 
do-nos  de  Deos ,  e  incorporando-nos 
ao  partido,  infame  partido,  de  Lú- 
cifer. O'  Sacramento  ,  quem  te  naô 
frequenta  ?  E  que  utilidades  nao  te- 
mos todos  naquella  Mefa  ,  na  qual 
fe  nos  dá  o  nolTo  Deos  ,  que  he  a 
noíTa  vitJa,  que  he  a  noíTa  faude,  nao 
íó  do  corpo  ,  mas  da  alma  ?  Que  vi^ 
gorando-nos  nos  faz  crefcer  ?  Ter- 
ceiro efFeito,  que  proJuz  aquelle  di- 
vino Alimento. 

Porém  crefcer  a  noíTa  alma,  que 
he  hum  puro  efpirito  ?  Naô  vos  pare- 
ce hum  paradoxo  ?  Crefce,  Senhores, 
do  mefmo  modo,  que  dizemos ,  que 
crefce  aquelle  foldado,  que  com  glo- 
riofas  façanhas  feaílignala  para  con- 
feguir  os  honoríficos  póftos  a  que  af- 

pi- 


AO  Ss.  Sackameííto.  7^^ 

pira,  já  efcalando  foberbos  muros, 
já  rompendo  por  nuvens  de  voado- 
ras  ,  e  accezas  balas  ,  aíFrontando 
os  perigos  ,  e  a  morte  para  colher 
os  louros,  que  rega  com  o  larigue 
das  fuás  veas ,  de  que  defpois  elpera 
guarnecer  a  vidorioía  téfta.    ^ 

Pois  he  aílim  ,  que  a  noíTa  alma 
crefce  com  o  ufo  daquelie  Sacramen- 
to: he  aíTim  que  fefaz  grande,  naó  na 
fubftancia,  mas  nas  virtudes,  nos  rne- 
recimentos,  no  amor  de  Deos.  A  fua 
grandeza,  diz  S.  Bernardo  ,  he  a  lua 
caridade  :  Quantitas  anim^e  chart- 

tas  ejl. 

Ora  huma  alma,  que  fe  alimenta 
daquelie  Manjar  divino :  huma  alma 
que   repetidas    vezes    chega   aquella 
Mefa  Euchariílica,  como,  augmentan- 
do  a  Graça  que  recebe,  fe  fará  gran- 
de?  Gomo  correrá  com    pálios   de 
cisante  pelos  efcabrofos ,  mas  fegu- 
fos  caminhos  dajuftiça?  Como  fof- 
frerá  com  paciência  as  injurias?  Co- 
mo   fera  humilde  ?   Como  fera  lot- 
fredora  dos  trabalhos?  As  perfegui- 
çoes,  que  nunca  faltaô,  como  asle- 
^     /  ^  vara 


■ílfe»  l 


;f!,«i 


72  O  R  A   Ç  À  ô 

vara  mais,  que  com  refignaçao,  com 
goílo  ,  puriíicando-fe  como  o  ouro 
na  frágoa  ?  Como  fe  adiantará  no  fer^ 
viço  de  feu  Deos  ,  igualmente  que 
de  feu  próximo  ,  que  fao  os  pólos  , 
fobre  que  fe  firma  a  Religião ,  que 
profeííamos  ? 

Agora  defejo  eu  faber  de  vós  , 
Senhores  ,  para  remate  do  meu  dif- 
curfo  ,  fe  encerrando  o  Sacramento 
Augufto  de  noíTos  Altares  tantos  bens, 
fereis  vós  de  indole,  que  os  nao  quei- 
rais aproveitar.,  frequentando  aquel- 
Ia  Mefa  Euchariftica  ?  Vós  tendes  fé. 
A  voíTa  Religião  eu  a  cohheqo.  Naô 
poílo  deixar  de  me  lifongear  com  a 
efperança,  de  què  no  meio  do  mun- 
do máo  5  que  habitamos  ,  naõ  per- 
dereis occafiao  de  vos  enriquecerdes 
das  graças,  de  que  he  perenne  fonte 
Jhum  Myfterio  de  amor:  Myílerio  in- 
ílituido  para  noíTa  utilidade. 

E)eos  chama-vos.  O  que  de  vós 
unicamente  quer  ,  he  o  voíTo  cora- 
ção :  Formou-o  para  o  amarmos:  que 
projedlo  mais  gíoriofo  podereis  vós 
conceber ,  que  conformarvos  com  0$ 

de- 


:|^.i,, 


AO  Ss.  Sacramento.  73 
defignlos  de  Deos  ?  Qiie  tem  o  Sécu- 
lo enganador,  que  mereça  a  noíía  ef- 
timaçao  ?  Attrahe-nos  a  fua  formo- 
fura  ?  Mas  que  comparação  tem  com 
a  belleza,  que  a  Euchariftia  communi- 
ca  á  noíTâ  alma  ?  Vençamos  as  nof- 
ias  paix6es:  defcarnando-as,  nós  co- 
nheceremos, que  fortalecidos  daquel- 
le  Pa6  Angélico,  nao  fó  triunfaremos 
do  Mundo  ,  mas  exultando  de^  ale- 
gria ,  iremos  a  gozar  da  prefença  do 
Deos,  que  debaixo  das  efpecies  Sa- 
cramentaes  adoramos  como  efcon- 
dido ,  por  huma  eternidade  de  glo- 
ria ,  que  eu  vos  defeja  a  todos. 


DiíTe. 


ORA- 


'Í,>t»: 


Hf 

1 

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1'  i'  i 

74 


O  R  A  Ç  A  Õ 

A  S.  BARBARA. 

Et  qu£  parati  erant ,  intraverunt 
cum  eo  ad  nuptias.  Math.ó,  ly. 

QUando  eu  de  lugar  eminente 
obfervo,  que  pequeno  baixel 
acoiTado  dos  mares  ,  e  dos 
ventos  íurge  ,  e  vara  felizmente  em 
terra;  de  que  louvores  naõ  julgo  be-» 
nenierito  o  Piloto ,  que  quaíi  por  bai* 
xo  das  ondas  ,  que  encapeiando-fe 
fe  ievanvavaò,  como  efcarpadas  fer- 
ras, o  guia  para  o  porto  defejado  : 
admirando-me  da  deílreza ,  naõ  me- 
nos que  do  valor,  com  que  arroftan- 
do  impávido  os  perigos,  falva  a  vida 
do  nauff^agio ,  que  o  ameaçava. 

Golfo  tempeftuofohe  o  Planeta 
que  habitamos:  e  fe  no  meio  das 
borraícas,  que  embravecidas  fe  def-- 
enfreiaó  para  nos  foçobrarem  ,  nós 
vemos  á  huma  Donzella  rica ,  e  il- 

lu- 


A   S  A  NTA  B  A^  B  ARA      ff 

luftre,  que  placidamente  reclinada  no 
regaço  da  opulência,  conduz  fegU" 
ramente  a  fua  alma  pelos  efcabroíos, 
mas  fantos  caminhos  da  virtude,  tri- 
unfando do  Mundo  ,  e  de  fuás  vaida- 
des, com  que  applaufos  naõ  he  razão, 
que  a  engrandeçamos?  Fazendo  foar 
em  torno-  da  ára  fobre  que  fe  coUo- 
ca  a  fua  Imagem  ,  os  Hymnos  de 
honra,  com  que  mandamos  á  pofteri- 
dade  a  fama  de  feu  nome. 

Tal  he  Barbara,  Senhores  ,  que 
cingindo  na  viftoriofa  téfta  a  grinalda, 
que  efmalta  do  fangue  ,  que  Diofco- 
ro  com  efcandalo  da  humanidade  , 
e  do  amor  lhe  efpreme  das  veias  , 
ennobrece  a  Nicomedia  ,  mais  que 
com  o  feu  nafcimento  ,  com  o  feu 
Martyrio;  facrificando-íe  .de  menina 
ao  ferviço  daquelle  Deos ,  com  quem 
fe  defpofajpara  engroíTar  noEmpyreo 
o  Coro  das  Virgens  ,  que  repoufao, 
como  caítas  pombas  no  feu  roto  feio. 

Copia  de -haveres  ,  que  tanto 
aíFanaõ  aos  miferos  mortaes  :  obfe- 
quios  :  efclarecida  profapia  :  mais 
que^tudo  pcrfeguições  do  Pai  iníquo, 

na- 


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mê 


h  ..'■''' 


76  O  R  A  Ç  A  6 

nada  a  obriga  a  aftracar  na  empre- 
za  que  começa.  E  engrazando  huns 
com  outros  os  merecimentos  ,  com 
que  ardor  fe  naõ  apparelha  para  as 
núpcias,  que  efpera  contrahir  com  o 
Cordeiro  immaculado  ,  a  quem  fe 
confagra  :  Et  qu^  parati^  erantyin- 
traverunt  cum  eo  ad  nuptias? 

Mas  como  entre  as  fuás  brilhan- 
tes qualidades  ,  he  a  fua  fé  a  que 
mais  refpíandece,  da  intrepidez,  cora 
que  foportaos  tormentos  porque  paf- 
fa  5  derivarei  o  Panegyrico  ,  que  me 
ouvireis  agora.  Naó  duvido,  que  com 
animo  benévolo  me  prefteis  a  voíTa 
attença6.  Entranhemo-nos  pois  no  af- 
fumpto  ,  que  a  matéria  naõ  precifa 
de  mais  longos  proemios.  Eu  co- 
meço ,  Senhores, 


c 


Orno  nós  vivemos  no  meio  de 
hum  Mundo  máo  torneados  de 
inimigos,  nao  fó  eftranhos  ,  mas  do- 
meíticos  ,  que  rugindo  â  maneira  de 
esfaimados  ,  e  roazes  leóes  do  beiy 
ço  nos  efpreitaõ,  para  defa  percebi- 
dos nos  devorarem  j  que  contradiz 

ções 


aSanta  Barbara.  77 
coes  na6  experimentamos  fempre  que 
com  animo  fizudo  5  e  apodado  nos 
queremos  applicar  á  grande  obra  de 
noíía  juftificaçaÕ  l  Raro  he  o  paíío 
que  damos  ,  que  naô  feja  perjgofoir 
E  a  nao  haver  huma  mâo  benéfica^, 
que  nosfuílente  ,  porque  damnos  naô 
paliaremos  envenenados  daquelles  alr 
pides  ,  que  embofcados  fe  enroícao 
por  baixo  das  flores  ,  de  que  fe  en-* 
feitao,  e  matizaô  os  laços  que  nos 
prendem ! 

Corramos  o  véo  á  alegria.  Ener- 
vadas as  noíTas  forças  com  o  pecca- 
do  da  origem  ,  que  todos  contrahij 
itios,   que  guerra  nos   naõ   declaraó 
as  noíTas  paixões  ,  reprefentando-nos 
como    infoportavel   o  jugo   da  Lei 
que  profeíTamos  ?  Leis,  que  com  af- 
peras ,    e  feveras  penas  nos   manda 
fopear   o    orgulho   da   carne,    para 
que  confpirada  contra  o  efpirito  nos 
nao  precipite  no  efcuro  abyfmo  de 
miferias,  a  que  nos  veremos  defgra- 
çadamente   reduzidos   naquelle  dia  , 
(  terrivel  dia  )  que   pela  fua  incerte- 
za nos  deve  trazer  fempre  aíTuílados, 


o  K  A  Ç  A  á^ 

e  prevenidos :  Qua  hora  mn  puta^ 
tis,  filius  hominis  veniet. 

Eis-aqui  porque  efcudadas  de  fua 
fé  j  nao  havia  obftaculo  que  naô  re- 
HioveíTem  aquellas  almas  generofas  , 
que,  conforinando-fe  com  o  confelho 
doApoítoIo,  pertendiaõ  fazer  certa 
a  fua  vocação  ,  còníiderando  a  vida 
como  hum  campo  de  peleja,  mais  ar- 
.rifcada,  quanto  mais  inteftina.  Amor 
de    riquezas  ,    eftreitos    vínculos  do 
fangue,  honras,  brandos  ,  e  mimo- 
fos    prazeres  ,    tudo    facrificavaõ   ao 
feu  Deos,  por  quem  arroftando  mui- 
tas vezes  a  morte  voluntárias  ,  e  ale- 
gres, fubmettiaô  os  hombros  á  fuâ 
cruz  ,  como  único  caminho   de    fua 
falvaqao:  naõ  havendo  trabalho  que 
fe  lhe  naò  tornaífe  fuave ,  perfegui- 
ça6  de  que  nao  fahiíTem  vencedoras,^ 
na  certeza  de  que  brevemente  repou- 
fariaò  no  Paraizo  *,  bebendo  da    tor- 
rente    daquellas    delicias  ,    com  as 
quaes  nem  efcaíTa  comparação  podem 
ter  todos  os  tormentos  do  Mundo: 
Non  funt  condigna  pajjiones  hujus 
mundi ,  ad  futuram  gloriam^  qua  rc* 
'velabitur  m  nohh.  Eu 


aSaístta  Barbara.       79 

Eu  nao  quizera  chamar  o  pejo  às 
voílas  faces,  confundindo-vos  com  o 
exemplo  de  huma  Donzella  ,  que  na 
aurora  da  fua  vida  rafga  varonilmen- 
te a  venda,  que  a  cega  ,  deieftando 
a  brilhante  ,  ainda  que  falfa  idola- 
tria com  que  fora  educada.  Porém 
cumprindo-me  tecer-lhe  agora  o  elo- 
gio, como  poíTo  forrar-me  ao  defgo- 
fto  de  vos  envergonhar  ,  fe  nafcidos 
no  grémio  da  Chriílandade  ,  e  ali- 
mentados com  os  Sacramentos ,  que 
a  Igeja,  como  Mai  carinhofa,  vos  ad- 
niiniftra  ,  cahindo  fobre  vós  peren- 
nemente  como  groíTos  chuveiros  as 
miíericordias  de  voíTo  Deos  ,  nos 
benefícios,  que  vos  liberaliza  ,  nada 
promoveis  a  vofla  fantifícaçao,  jufti- 
ficando-vos  cada  dia  mais  ,  que  he 
o  que  a  todos  nos  recoramenda  o 
Profeta:  Qui  fan^us  ejl^  jujiifica'^ 
tur  adhuc. 

Quando  Barbara  renunciando  to- 
das as  commodidades  do  Paganifmo 
em  huma  idade,  que  por  menos  ex- 
perimentada he  mais  perigofa,  fisbe 
unicamente   eílradada  de  fua  razaô 

voar 


«1 


?0  o   R  A  Ç  A  6 

voar  do  conhecimento  das  creaturas 
á  contemplação  fublime  do  Creador, 
com  quem  fe  enlaça  ,  e  une  por  hum 
conforcio  fobre  indiíToluvel  angéli- 
co ,  confagrando  lhe  os  feus  primei- 
ros annos  ,  como  Abel  as  primícias 
de  feus  frutos. 

Gom  eíFeito,  os  Ceos  ,  que  com 
huma  Jingua  muda,  mas  eloquente  , 
annunciaõ  à  terra  a  gloria  daquelle 
Ente  fupremo,  que  eftendendo-os  por 
cima  de  noíTas  cabeças  ,  como  hum 
azul ,  e  tranfparente  véo,  naô  fó  lhes 
dá  a  belleza  com  que  nos  arrebatao, 
mas  as  confiantes  leis  com  que  os 
Aftros ,  de  que  eílao  recamados ,  fe 
volvem  nas  fuás  orbitas  ;  que  defe- 
jos  naô  accendiao  na  fua  alma,  que- 
rendo já  remontar-fe  á  fimilhança  de 
Águia  generofa,  fobre  os  montes  da 
Santa  Siaó  ,  aonde  tinha  collocadas 
todas  as  fuás  efperanças  ?  Vigílias  , 
jejuns ,  orações  ,  eíles  eraò  os  feus 
exercícios  ordinários  ,  cubiçofa ,  de 
que  para  o  feu  efplrito  tranfmigraf- 
fem  todas  as  fuás  virtudes  ,  de  que 
pertendia  guarnecer  a  coroa,   a  que 

afpi- 


A  SANf  A  Barbara.  2t 
afpirava.  Confeguio-o,  Senhores :  que 
Deos  naó  fe  regatea  a  quem  O  buf- 
ca  com  finceridade. 
'^'^^  Era  Barbara,  além  de  illuílre  , 
fòrmofiíTima.  As  graças  enthroniza- 
das  nos  íeus  olhos  efpalhavao  por  feu 
ròíto  naôfei  que  poderofos  encantos, 
que  levavaô  aos  corações  de  quem  a 
via ,  com  o  amor  o  defejo  de  a  con- 
íeguirera  para'"Efpofa*  Muitos  mo- 
ços nobres  de  Nicomedia  a  requef- 
tavaô,  aíTentando  que  com  a  fua  pef- 
foa  entrava  de  companhia  pelas  Aias 
portas  a  felicidade.  Porém  Diofcorô 
naó  querendo  precipitar,  nem  a  re- 
íoluçaô  ,  nem  a  filha ,  encerrando-a 
na  Torre ,  que  para  fua  fegurança 
mandara  conítruir  ,  entreteve  manho- 
famente  os  pertenfores,  dizendo-lhes, 
que  como  de  neceílidade  tinha  deter- 
minado huma  jornada,  de  volta,  quan- 
do fe  reílituiíTe,  fe' trataria  de  maté- 
ria, que  pela  fua  importância  preci-. 
fava  de  mais  fazonada  refoluçaõ. 

Rogo-vos  por  quem  fois  ,  Se- 
nhores ,  que  naõ  injurieis  feiamente 
|k  ditofa  Menina,  entendendo  que  fof- 


W^iM¥ 


jSl  .   o  R  A  Ç  A  S  I 

freria  Gom  menos  rcíignaçaõ  o  facrj^-íi 
ficio  da  liberdade ,  a  que  o  ardilofp," 
mais  que  acaureljado  Pai  a  obrigava- 
Antes  achando-íe  defabafada  de  cui- 
dados terrenos  ,  com  que  fervor  naô 
.eathefourava;  hum  piingue  capital  de 
merecimentos  ,  fubindo  de  virtudiC 
em  virtude  ,  embebida  na  contem- 
plação de  myfterios,  que  Deos,  eícon- 
.dendp  aos  íabios  do  mundo  ^  revelia 
jnuitas  vezes  aos  peqy§nyi/)S:  de  ^faa 
■Caía?  ■  ,^   ;?...  ■a^:ív:iu...     '\:y^:; 

;         Pqís  que  devemos.  i>ós  julgar  dp;S 
vexerciíCios,  a  que  fe  ap plica,  ordenai^- 
d  o  qu  e  n  o  í  e  u  a  p  o  fe  n  í  o   íe  ra  fga  ííe  m 
três  janeilas ,  que  foííem  como  def- 
pertadoras  da  fé,  com  que  adorava 
a  Trindade  Saníiíllma?  Arcano  ,  que 
fendo  fupefior  á  noíTa  razaò,  arrebata^^ 
,e  inílãma  a  quem  com  efpirito  de  íin- 
xeridade  o.  confeíTa,    e   o  acredita, 
como  aíTevera  Agoftinho.  Que  deve7 
,mos  nós  julgar  da  Cruz,  que  nos  lá- 
bios do  banho  entalhara,  para  lhe  ex- 
citar a  lembrança  dos  tormentos  por- 
-que  no  Qolgota  paíTou  o  feu Jesus, 
parajiosabnr  as  portas  da  Sião  ce- 
ie- 


A  Santa  Barbara.        83 

lede,  que  a  tranígreflao  de  noíTos  def- 
obedientes  Progenitores  nos  tinha  fe- 
chado para  fempre  ? 

Por  ventura  naó  he  agora  ,  que 
reduzida  a  ellado  de  folidaó  defafo- 
ga  mais  afua  íaudade  ,  quando  emu- 
la das  innocentes  aveíinhas  ,  que  aa 
defpontar  no  horizonte  a  rofada  ma- 
nhã ,  convidaó  a  todos  para  que  lou- 
vem ao  feu  Creador  ,  naõ  céíTa  de 
cantar  as  antigas  mifericordias  de  fett 
Deos ,  de  que  a  terra  eftá  toda  como 
alagada:  Miferieordia  Dornini plena 
efl  omnis  terra  ?  Naô  he  agora  ,  que 
attenuando-fe  com  afperas  mortifica- 
ções, mais  que  a  bella  Judith  ao  alti- 
vo Holofernes  degolla  os  feus  appe-* 
tites,  para  que  transformando-fe  to- 
da noEfpofo,  á  quem  já  fe  tinha  de- 
dicado ,  reíiáa  mais  varonilmente  ao 
preceito  de  Diofcoro  ,  que  contra  a 
fua  vontade  a  queria  cafar  ^  iNaó  h^ 
agora... 

.  Mas  que  he  o  que  eu  vejo?  Mon«* 
ftrò  (  que  nem  homem  te  quero  cha-» 
mar ,  quanto  mais  Pai )  que  iras  cha- 
mei ao  nas  tuas  faces  ?  De  íçu  damna- 
F  i\  dot 


m. 


mV 


liri! 


p,ili''t 


n  í'!:: 


m 


''■ffS; 


g^  O  R  A  ç  A  6 

do  peito,  que  fur  r  trasborda,  qué  j 
cfcumando  pelos  lábios,  parece  que 
devorar  perrendes  a  cândida  ovelhi- 
uha,  que  já  fe  appareíha  para  o  mar- 
tyrio,  de  que  tu,  defarados  os  eítrei- 
tos  vínculos  da  natureza ,  e  iradas  as 
ternuras  do  carinho  ,  íerás  o  bárbaro  | 
verdugo?  Nem  às  vozes  da  humani-  ' 
dade  attendes  ,  nem  ao  teu  fangue 
perdoas ,  Gommettendo  huma  acçaô, 
que  deixará  na  pofteridade  denegri- 
do, e  envergonhado  o  leu  nome  ? 
Viíles  já  5  Senhores,  como  em 
tenebrofa  noite  ,  fohos  do  cárcere 
aonde  bramem  aíFerrolhados  ,  e  pre- 
20S  os  ventos,  hórrida  tempeítade, 
cavados  os  mares ,  e  erguidas  as  on- 
das, parece  que  quer  arrebatar  o  pe- 
queno vafo ,  que  fem  governo  abola 
por  cima  das  agoas ,  que  embrâve-» 
cidas  iotentaó  engulillo  nos  feus  fun- 
dos ,  e  largos  feios  ?  Tal.  he  Diofco- 
ro  :  Porque  fabendo  que  Barbara  de- 
leitara a  idolatria  com  que  fora  edu- 
cada 5  determina  precifamente  appla^ 
tar  com  a  fua  morte  a  fua  raiva :  e 
carregadas  fobre  os  olhos  as  fobran-» 

ce* 


íU: 


A*  S  A  h¥  A  Barbara.       if 

telhas,  pállido,  tremulo  como  con- 
vulfo,  apertando  na  enfurecida  mão 
o  affiado  cutelo  ,  corre  a  írafpaíral- 
la.  Porém  Deos  ,  que  véla  a  favror 
dos  feus  efcolhidos  ,  fazendo  que 
duro  rochedo  de  par  em  par  fe 
abriííe  para  lhe  dar  livre  paflagem  , 
eíquiva  o  golpe,  e  livra  a  caíla  Don- 
zella  do  perigo  ,  que  a  ameçara.  O' 
grande  Deos  ,  quem  naõ  adora  o  teu 
poder  ? 

•  Com  tudo  nao  quiz  o  dulciíli- 
mo  Efpofo  de  fua  alma  demorar-lhe 
por  muito  tempo  a  duplicada  palma , 
que  por  virgem  ,  e  por  marrjr  mere-> 
cia  :  porque  achando-a  Diofcoro  , 
de  repellaó  a  arroja  a  feus  pés  ,  pi- 
za-a  5  calca-a  ;  e  travando-lhe  dos  ca- 
hellos,  que  huns  pelos  hombros,  ou- 
tros pelo  ar  efparzidos  eílavaõ  ,  qua- 
fí  arraftada,  a  traz  pelas  praças  pú- 
blicas, para  a  entregar  a  Marciano,  a 
quem  competia  punir  aquella  apofta- 
fia.  Que  lhe  rafguem  as  tenras  car* 
nes  com  unhas  de  ferro  ;  que  com 
accezos  fachos  a  toílem  ,  e  a  torrem; 
que  com  pezados  martelios  lhe  que- 
brem , 


M      r     Or  aça  6 

ferem  ,  e  efmigalheni  o  craneo  ;  a  Iu2 
de  que  eílá  banhado  ,  naó  fó  o  íeii 
^fpirito  5  mas  aquelle  cárcere  ,  que- 
fortaleza  llie  naÓ  dá  para  refiftir  a 
taô  exquilitoç  tormentos  !  He  necef- 
fario  que  o  Pai  .  .  . 

Perdoai-me ,  Senhores  ,  que  eu 
manchei  agora  o  nome  mais  doce , 
e  mais  refpeiravel  que  temos.  Eu  me 
xeporto.  He  neceflario  que  o  Tigre^ 
mais  Tigre  5  defcarregando  o  alfan- 
je faça  voar  aqueila  alma  ao  Thro- 
no  ,  que  apar  da  Triade  Beatillima 
lhe  eftava  preparado  no  Empyreo  : 
teftemunhando  Deos  a  gloria  de  que 
gozava  Barbara  ,  com  o  caíligo  de 
DiofcoTO,  a  quem  hum  raio  de  re- 
pente reduz  a  foltas  cinzas.  O^  gran- 
de Deos  ,  quem  naò  adora  o  teu  po* 
der!  torno  a  repetir. 

Agora  efperaveis  vós  ,  que  eu 
me  detiveíTe ,  pondo-vos  á  vifta  os 
prodígios  que  obra  Barbara  ,  gover- 
nando ao  feu  arbítrio  as  confiantes 
]cis  da  natureza.  Nao  ,  Senhores  ,  eu 
t^aho  argumento  mais  efficaz  ,  que 
me  chama.   Todos  neceífitamos  de 

(juera 


A  Santa  Barbak  a.  íf 
ciuem  nos  aíTifta  naquelle  inftante^, 
que  decide  de  noíTa  felicidade.  De 
huraa  morte  feliz  depende  noíTa  glo- 
ria.  E  quem  naô  fabe  ,  que  Barbara 
tem  particular  poder  comunicado  pe- 
lo feu  Deos,  para  nos^confeguir  hum 
êxito   venturolo?  . 

He  a  Proteálora  das  mories  im- 
provifas.    Releva  que    a  honremos  , 
nao  fó  promovendo  o  feu  culto,  mas 
imitando  a  fiia  fé.   Huma  fraca  Don- 
zella  vence-íe,    para  que  íujeitandci 
a'  fua  vontade  á  fua  razaó  ,  oblerve 
exâdlamente  a  Lei  de  íeu  Jesus;  nos^ 
porque  nos  naÕ  venceremos  tambemí 
Nem  honras,  nem  amor  da  liberdade,; 
dem    riquezas  embargarão    a  Barba- 
rá na  carreira  o  pàíTo.    Defaferreroos 
os   noííos  corações  do  Mundo  ,  nos 
^  teremos   propicia  na  terra:  acom- 
pahhando-a   noCeo,  nós  celebrare- 
mos com  o  Cordeiro  fem  mancha  as 
niípcias,   para  que  todos  fomos  con- 
v?dados  no  Evangelho:  Et  qu.t  pa^ 
ratce  erant ,  intraverunt  cum  eo  ad 

nuptias» 
^  DiíTe. 


&B' 


II     I 


O  R  A  g  A  Ó 

A  S.  MIGU  EL. 

^íft  efficiamini  ficut  parvuli  ,    nojt 

intrabitis  in  Regmm  Ccelo- 

rum.    Marb.  c.  i8. 

■jtkT  Unca  o  fufto  de  na6   refpon- 
j^^   der  como  defejo  à  expedlaçaó 
~^       de  quem  me  ouve  ,  aíFronrou/ 
mais  o  meu  animo,  que  quando  vos, 
por  hum  esforqo  da  voíTa  bondade, 
quizeftes  que  eu  alçando  no  meio  do 
Templo  a  minha  voz,  receíTe^e  orga- 
nizaíle  oPanegyrico  daquelle  invic- 
to Guerreiro,  que  confundio  ,  e  pre- 
cipitou nos  abyfmos  aos  Anjos  pre- 
varicadores, que ,  feguindo  o  infame 
partido  de-Lucifer,  pertenderaô,  def- 
lumbrados  da  fua  foberba  ,   empare- 
lhar no  poder ,  e  na  mageftade  com  o 
Deosque  os  creára.  E  ainda  que  na6 
duvido  da  voíTa  benevolenciíj,  de  que 
por  muitas  vezes   me   tendes  dado 
h;  bri- 


I 


A   S.    MlGlT  E  L.  2^, 

)nlhantes  provas  ,  eu  nao  fel  como 
em-pere,  e  modifique  o  meu  receio, 
laô  fó  refledlindo  fizudamente  na  po- 
breza de  meus  talentos  ,  mas  na  fu- 
Dlimidade  da  matéria,  fobre  que  hei 
Je  difcorrer  agora,  ^'odavia,  como 
l  humildade  he  a  virtude,  que  carade- 
-iza  a  S.  Miguel  ,  a  quem  vós  mef- 
;lando-vos  com  a  Igreja,  confagrais 
>  prefente  culto  ,  verei ,  amoldando- 
pne  ao  Evangelho,  fe  defcubro  algum 
:aminho,  que  alhanando-me  as  difíi*^ 
^uldades  ,  me  conflitua  na  ditoia  ÍI- 
ruaçaó  de  vos  fer  útil,  que  he  o  que 
:umpre  ao  minifterio  que  exercito. 

Neftes  termos  ,  Senhores  ,  fem 
□ue  eu  efcalde  a  minha  imaginação  , 
demorando-me,  com  aíTumptos,  ain- 
da que  engenhofos  ,  eíléreis,  eu  naô 
vos  pintarei  a  fua  natureza ,  como 
Príncipe  dasjerarchias  celeftes ,  fe  fe 
naô  comprehende,  como  fe  explica- 
rá ?  A  íigniíicaçaô  de  feu  nome  ,  en- 
coftando-me  ao  que  diz  S.  Gregório,, 
he  quem  unicamente  me  dará  a  luz 
de  que  precifo  para  traçar  o  plano 
da  Oração,  que  fem  mais  proemios 

vou 


^Ô  o  R  A  Ç  A  6 

VOU  a  recitar-vos  :  Quem  como  Deos^ 
Eis-aqui  a  fonte  5  de  t]iie  S;  MiguéP 
deriva    todos    os    feus  louvores.    A^ 
confiíTaô  ingénua.,  que  faz  da  gran- 
deza do  Ente  Supremo,  que  lhe  dera 
O  fer  ;    arraigando-o   na  fua  humil- 
dade ,  que  merecimentos  lhe  naóco- 
Hiojiica  para  os  applaufos  ,  com  que 
êm  todas  as    idades   o   honrarão  os 
Fiéis  no  feyo  do  Chriftiaríifmo ,  ten^v 
do  por  muito  importante  a  íua  devóí^ 
^áô?  E  eudngindo-me  a  efte  penfa- 
ínento  ,  farei  quanto  couber  nas  mi-^ 
nhãs  forças  ,  poílo  que  débeis  ,    por 
vos  perfuadir ,  que  quem   fe  na6'  hu-^ 
itiilha  na  terra,  nunca  fera  exaltado 
no  Ceo  :  Nijl  efficiamini  : ..  Creio^' 
que  já  poíTo  entrar  na  em  preza   pro^ 
ittetcida.    Eu  começo.  Senhores. 

NAó  me  admirara  ,  que  á  fober-^ 
ba, refinando  a  fua  malícia, col-*' 
Iccaífe  na  terra  o  feu  throno  ,  apro-' 
veitandp-fé  da  ignorância  dos  ho- 
állucinados  de  feu  amor- 
próprio'  (  raiz  fecunda  de  que  def*^ 
pontão   qnaíi  todos  os  ima  [es  )  pre- 

fU' 


A   S.  M  I  G  XJ  È  L.  9t 

famem  de  fi  talvez  mais  do  quç  de- 
vem,  arrogando-fe  a  authoridade  de 
difputarem   aos    outros  a  primazia, 
fem  mais  direito,  que  o  que  lhes  da. 
a  fua  vaidade.    O  que  me  contunde 
he ,  que  entraíTe  também  no  Ceo  eíte 
monílro ,   corrompendo   com    o  feu 
hálito  peçonhento  aquella?  Subílancias 
Angélicas,  que  Deos  creára ,  já  para: 
lhe  fazerem  a  Corte  no  Empyreo ,  ja 
para  executarem  ,  como  feus  Minif- 
tros,  as  ordens   que  lhes  impozeíle 
nas  diferentes  mifsóes  de  que  os  en- 
cerre gaíTe. 
-      Com  tudo,  nós  fabemos  ,  fegun- 
do  a  opinião    de  refpeitaveis  Inter- 
pretes ,    que    efcaflamente   contariao 
dois    momentos    de  fua    exiftencia  , 
quando  Lúcifer  ,  infundindo  nos  feus 
feguidores  o  efpirito  de  rebelião,  ou- 
fou  hombrear  com  o  Todo  Poderofo, 
obrigando-o,  para  fuftentar  o  feu  de- 
coro ,  a  huma  guerra  ,  de  que  as  con- 
fequencias  foraô  funeíliffimas.  Sello- 
hao   fempre,  Senhores.    Que  atrevi- 
mento I    Parece-me   que  diíTera    me- 
lhor ,  que  infelicidade  ! 


m 


i 


III 


'Á  -\ 


%y^i':' 


9^  .     O  R  A  Ç  A  6 

Eu  na6  me  envolvo  no  exame  dò 
principio,  de  que  refulcou  ta6  exgcra- 
vel  defordem.  Deixo  aos  Theologos 
nos  fyílemas  ,  que  eílabelecem  a  fua 
averiguação.  Mas  a  quem  naô  efpan- 
ta  ,  que  fendo  Deos  peio  feu  poder 
tao  terriveí  ,  pela  fua  bondade  ra6 
amavei  ,  houveíTe  quem  pertendeíTe 
uzurpar-lhe  a  foberanía,  que  fó  á  fua 
independente  grandeza  compete ? 

Eu  fubirei  ao  mais  alto  dos  Ceos. 
(dizia  o  defgraçado  Chefe  daquella 
conjuração)  ;  calcando  com  pé  deno- 
dado, e  intrépido  o  caminho  das  tem- 
peftades,  e  dos  raiosj  e  apar  dos  Aqui- 
loes  col  loca  rei  fobre  o  monte  do  Te- 
ílamento  o  meu  folio.  Ao  Univerfo 
darei  hum  dia  as  leis.  Eu  terei  tam- 
bém Templos,  aonde  as  minhas  ima- 
gens fejaô  adoradas.  Diga-fe  de  hu- 
ira  vez  :  Eu  ferei  limilhante  ao  Al- 
tiffimo.    Que  horror  ! 

Podia  reíinarfe  mais  aquella  fo*- 
berba  ?  E  naõ  haverá  quem  face  a  fa- 
ce rebata  a  temeridade  do  rebelde  , 
punindo  a  oufadia  do  deteftavel  ,  e 
íacrilego  projedlo  ,  que  concebera  ? 

Ha, 


À  S.MlGtÍEL.  9í 

Ha,  Senhores:  porque  S.Miguel  in- 
flammado  de  fanro  zelo  ,  unindo  ,  e 
arranjando  em  hum  ordenado ,  e  lu- 
zido exercito  os  Anjos  fiéis  ,  ataca, 
derrota  ,  atterra  ,  abyíma  ,  e  infer- 
na ao  pérfido  Lúcifer,  reítituindo  ao$ 
Céos  a  paz,  a  Deos  a  gloria. 

Nem  imagineis  que  feria  aquel- 
]a  huma  guerra  fimilhante  ás  guer- 
ras, de  que  vós  tendes  idéa,  nas  quaes 
a  honra  da  vidloria  pende  as  mais 
das  vezes  do  numero  dos  Soldados  , 
e  da  força  das  armas  ,  devendo-fe  de 
ordinário  os  triunfos  á  vantagem  do 
lugar  ,  á  opportunidade  das  occa- 
fiôes  ,  aos  eílratagemas  ,  ás  aftucias, 
e  ao  engano i  fendo  o  vencer,  mais 
que  premio  da  virtude,  dadiva  da 
fortuna  ,  quafi  fempre,  ou  cega,  ou 
tonta  na  repartição  de  feus  favores. 

A  guerra  dos  Anjos  ,  foi  qual 
convinha  áquellas  puras  Intelligen- 
cias:  foi  guerra  de  penfamentos  ,  e 
de  vontade  ,  de  argumentos  ,  e  de 
raza6  ,  de  fentimentos  ,  e  de  afife-los, 
travando-fe ,  como  em  forinidavel , 
€  efpanjfofa  briga,  a  verdade  com  ^ 

inen*, 


m 
li 


I 


^í 


ir.  '^''íi 


f4  G  R  A  ç  A  6 

mentira,  a  humildade  com  a  altivez,' 
a  fé  cora  a  incredulidade  ,  a  graça 
com   o  peccado. 

Ora  neíla  peleja  quanto  fe  aílig- 
nala  S.  Miguel  ?  Sem  que  exalte  de- 
maíiadamente  a  minha  fantaíia ,  pa- 
rece-me ,  Senhores  ,  que  o  vejo,  pa- 
rece-me  que  o  ouço :  ora  vergado  to- 
do ante  o  feuDeos,os  olhos  baixos, 
a  cabeça  inclinada  ,  tremulo  como 
convulfo  ,  rendendo-lhe  na  fua  íub- 
rniíTaô  a  íua  vaíTallagem  :  ora  voan- 
do á  maneira  de  rápida  exhalaçaõ  de 
hum  para  outro  Coro  daquellas  bri- 
lhantes Jerarquias,  animando-as  com 
o  feu  exemplo  a  louvarem,  e  a  bem* 
dizerem  a  grandeza  ,  a  excellencia  , 
a  dignidade  ,  e  as  infinitas  perfei- 
ções de  feu  Creador  ;  fó  ,  único, 
fem  igual  ;  neceíTario  ,  e  eterno  no 
feu  fer  j  incircumfcripto,  e  immenfo 
na  fua  natureza  ;  fanto  ,  e  immu^ 
davel  na  fua  vontade. 

Depois:  com  que  eíEcacia  na6 
jnoílra  a  miferia ,  a  baixeza  ,  e  o  na- 
da da  creatura  ,  confundindo  o  or* 
gulho  de  Lúcifer ,  e  de  feus  parciaesg^ 


A   S.  M  I  G  U  E  L.  91 

.que  convencidos  da  foberana  ,  e  qua- 
fi  divina  força  de  fua  eloquência,  en- 
vergonhados lhe  cedem  o  campo., 
precípitando-fe  huns  apoz  outros  nos 
.eícuros  reinos  da  morte  ,  e  do  pec- 
xado  ,  aonde  efcumando  de  raiva ,  e 
devorados  de  inveja  arderáô  por  to- 
da a  eternidade,  como  proporciona- 
da pena  de  íeu  atrevimento.  O'  hu- 
.^lildade  de  S.  Miguel ,  quanto  o  en- 
grandeces! 

Pois  na  verdade  ,  Senhores  ,  de 
que  louvor  naó  he  agora  beneméri- 
to o  Santo  Archanjo  ,  refledindo  nós 
que  á  fua  humildade  he  que  devem 
todos  os  Efpiritos  Angelicps  a  glo- 
ria, de  que  placidamente  gozaó,  nao 
tendo  difficuidade  de  aíErmar  o  fa- 
xnoío  Areopagita,  que  a  preeminên- 
cia ,  que  tem  fobre  todas  as  Jerar- 
quias celeíles  ,  reíulta  do  zelo  com 
que  as  esforçou  para  perfeverarem 
confiantes  no  conhecimento  de  feu 
Deos,  confeíTando  cheios  de  refpei^ 
to  ,  cheios  de  fé  a  infinita  fuperip- 
xidade  que  lhes  leva. 

Refleítindo  nós ,  que  a  Synago^ 


1^ 


i 


m 


96  o  R  A  Ç  A  6 

ga,  e  a  Igreja  com  aqu^IIe  triunfa 
arraigarão  mais  a  fua  felicidade,  par- 
ticipando de  inumeráveis  bens  ,  que 
defta  raiz  broravaÕ,  como  precioíos 
frutos  j  apparecendo-lhes  muitas  ve- 
zes para  as  defaíTombrar  das  perfegui- 
çóes  injuftas  ,  que  expcrimentavao  r 
Por  ventura  naÓ  fabemos  nós  ,  que 
foi  S.  Miguel  quem  ferenando  o  ani- 
mo de  Abrahao  ,  concorrco  para  o 
pado  de  fidelidade,  que fe  celebrara 
com  Deos?  Que  removendo  os  impe- 
dimentos ,  que  huns  fobre  outros  fe 
accumulavaó  ,  foi  quem  introduzio 
na  poífe  da  terra  promettida  o  dií- 
perfo  ,  e  ííagellado  Povo  de  Ifrael  ? 
Vós,  cafta  Efpofa.do  Cordeiro 
Immacalado  ,  contai,  fe  podeis,  os 
benefícios ,  que  por  S.  Miguel  fe  vos 
tem  liberalizado.  Se  vemos  enfrea- 
da a  braveza  dos  Cefares,  que  á  fi« 
milhança  de  famintos  ,  ainda  que  co-^ 
Toados  Tigres  ,  traziaô  fempre  ef- 
correndo  os  braços,  em  fangue  Chri- 
ftáo  *:  fe  ao  carro  de  feu  triunfo  ve- 
mos vergonhosamente  atados  aquel- 
les  filhos  defobedientes  í  que  ingra-* 


A   S.  M  I  G  U  E  I..  97^ 

os^ao  leite,  com  que  forao  alimenta- 
ios ,  pertendiaõ  rafgar-llie  a  incon- 
futil  túnica  ,  negando  a  crença  à  mór 
parte  de  feus  dogmas  ,  nao  fao  tudo 
Favores ,  que  da  protecção  de  S.  Mi- 
guel dimanao? 

Quem  alTiíte  aos  noflbs  facrifíci- 
DS?  Qiiem  faz  que  puros  tncenfos  ar- 
daó  nos  noíTos  altares  ?  As  noíTas 
Orações  quem  as  dirige  ao  Throno 
doAlriíTimo?  Se  lhe  faô  gratas,  a  tãa 
efficaz  interceíTor  nao  devemos  re- 
ferir todo  o  valor  qàe  tem  ,  interef- 
fando-fe  por  nós  ,  para  que  applaca- 
da  a  ira  de  Deos  ,  configamos  o  pre- 
mio para  que  todos  fomos  creados  , 
naquelle  dia  (terrível  dia)  no  qual 
as  noíías  almas  feráó  aprefentadas 
pela  Tua  mâo  no  Tribunal  de  Jesus 
Chriíto  ?  Oh  três  quatro  vezes  bem- 
aventurado  S.  Miguel ,  quem  te  na6 
louva  ! 

Agora  dizei-me,  Senhores,  íe 
iiaõ  fao  juítos  todos  os  applauíos  conx 
que  no  Chriítianifmo  he  hoje  engran- 
decido o  nome  de  S.  Miguel ,  fenda 
taõ  antigo  o  feu  cultQ  ,  que  nafceo 
G  com 


11' 


A  á 


98  Ora  ç 

com  a  Igreja,  de  quem  foi  fempr» 
Protedtor  ;  fendo  tao  exceífivo,  que 
foi  neceííafio  moderallo  ,  para  que 
nao  degeneraíTe  feiamente  cm  huma 
fuperíliciofa  idolatria,  como  he  no- 
tório a  quem  revolve  os  faltos  da  Re- 
ligião que  profeíTamos? 

Dizei-me,  fe  nao  he  natural,  que 
vós  fazendo  reíToar  em  torno  da  ára 
fobre  que  fecollocaa  fua Imagem,  os 
Hymnos,   que  a  voíTa  gratidão  Jhe 
canta  ,  nunca  aífrouxeis    nos  louvo- 
res,   que  lhe  confagrais?    Nao  baílat 
porém  que  o  honreis  com  os  labios^^ 
fe  com  as  voíTas   vozes  nao  eftaó  de 
acordo  os  voíTos  corações  ,  nada  fa-^* 
zeisr    Para  que  os  voíTos  obfequio^i 
fejaó  bem  recebidos,  importa  imitai*© 
lo ,  já  na  humildade  ,  já  na  obediên- 
cia ao  feu  Deos. 

Conheço  que  eíía  linguagem  he 
afpera  para  os  filhos  do  Século.  Hu^i 
iT-ilhai-vos  na  terra,  fe  quereis  fer  ex- 
altados no  Ceo.  Ao  menos  o  Filho 
de  Deos  eíle  foi  o  caminho,  que» 
nos  traçou  com  a  fua  Cruz.  Forque: 
afffontas  nao  paíTa  ;   porque  oppro- 

briosj 


A   S*  M  I  G  U  E  L.  ,99 

brios,  porque  defprezos  primeiro  que 
entre  triunfante  na  fua  Gloria  ?  Naf- 
ce  entre  brutos ,  morre  entre  ladroes. 
Nós  porque  fetemos  de  diíFerente 
condição  ?  Nós  que  fomos  barro  na 
origem ,  e  pó  na  fepultura  ?  Nós  que 
fomos  nada  ? 

Pois  que  razão  podemos  ter  pa- 
ra nad  obedecermos  a  hum  Deos  de 
hum  poder  taô   illimitadò  ,  que  ef- 
tendendo  a  vara  do  íeu  furor  ,  nada 
lhe  refiíte  ,  desfazendo,  como  as  ef- 
cumas  do  mar,  o  exercito  ainda  que 
florente  deSenacherib  ?  que  olha  pa- 
ra a  rerra,  e  afaz  tremer?  que  toca 
os  m.ontes,  e  os  faz  fumegar?  O  Se- 
nhor d^  todos,  o  Senhor  de  tudo  ?  ^A 
hum  Deos  de  huma  mifericordia  tão 
grande  ,  que  livrou  a  Lot  do  incên- 
dio de  Sodoma  ,    a  Judith   do  furor 
de  Holofernes,  que  poftado  no  Cam- 
po fulminava  fobre  a  timida  ,  e  con- 
íternada  Bethulia  accezas  iras  ?    Que 
ouvio  a  Dimas  ,  que  perdoou  áMag- 
dalena  ,  que  converteo  a  Saulo  ,  fa- 
zendo-o  de  hum   perfcguidor  ,  hum    . 
Apoftoip  ?  A  hum  DeQ§  de  hum  amoc 
G  ii  taô 


Uu' 


^M' 


m^: 


'\  Vi': 


100  o   TL    A   Ç  A    6 

taó  fino,  que  além  de  nos  crear  á  fua 
imagem  bella  ,  cie  nos  remir  com  o 
íèu  Sangue  ,  íe  deixou  ficar  comigo  , 
e  comvoíco  ,  naquelle  Myílerio  ^  quê 
he  o  íinete  ,  que  marca  toda  a  gran- 
deza do  feu  amor,  para  nos  dar  com 
a  fua  Carne  ,  huma  vida  fobre  bem- 
aventurada  eterna  ?  Manda-nos  nada, 
que  para  noíía  utilidade  nada  feja  ? 
Humilhemo-nos  pois  ante  o  noíTo 
Deos  :  obedeçamos-Ihe  :  he  como 
agradaremos  a  S.  Miguel ;  fegurando 
a  fua  Protecção  j  he  como  paflaremos 
de  pequenos  na  terra  a  ferjnos  gran- 
des no  Ceo. 


DiíFe, 


O  R  A- 


\  ■ 

A- 

O  R  A  Ç  A  Õ 

A  S.  NATÁLIA. 

SimiJe  eft  Regnum  Ceelorum   the^ 
fauro.     Matth.  c,  13» 

COmo  podemos  tios  ,  fem  af- 
frontarmos  injuftamente  o  mun- 
do ,  queixar-nos  de  .feus  en- 
ganos? As  invedivas  ,  que  forma- 
mos fobre  a  falfidade  de  feus  bens, 
donde  derivao  a  fua  mor  força  fenao 
da  repetição  dos  exemplos,  que  fem* 
pre  nos  propõem;  nos  quaes  vemos 
muitas  vezes  confundido  o  orgulho 
de  fuás  pompas,  e  defprezadas  com 
as  fuás  riquezas  as  fuás  honras  ,  po* 
fto  que  brilhantes  ?  E  o  que  mais 
nos  deve  envergonhar  he  ,  que  do 
meio  do  íexo  ,  a  que  chamamos  frá- 
gil ,  furgem  de  tempos  a  tempos  jl- 
luftres  Matronas,  que  engrazando  hu- 
mas  com  outras  as  virtudes,  impávi- 
das arroftao  os  perigos,  triunfando 

da 


wm 


102  Ò   R   A   Ç  A   6 

da  morte  ,  com  huma  refoluçao  tao 
varonil  ,  que  para  as  imitarmos  , 
neceílitamos  de  particulares  auxílios 
daquelía  graça  ,  que  he  a  fonte  de 
que  dimanaõ  todas  as  noíTas  obras 
boas. 

~  Eu  nao  precifo  ,  revolvendo  os 
Annaes  da  Religião  ,  teçer-vos  hum 
luzido  catalogo  de  Heroinas  ,_  que 
enlaçando  nas  fuás  peííoas  tudo  o 
que  ha  de  fublime  no  Sacerdócio  , 
e  no  Império,  deixarão  nos  faftos  da 
Synagoga  ,  eda  Igreja,  immortaliza- 
dos  os  feus  nomes  ,  com  as  proezas 
que  obrarão.  Aquelle  Altar,  e  a  voífa 
generofa  gratidão  me  reprefentao  hu- 
ma mulher ,  que  na  freíca  primavera 
da  idade  piacidamente  reclinada  no 
regaço  da  opulência  transmittio  á, 
pofteridade  a  fuafama,  naô  fó  ani- 
mando para  o  martyrio  o  Conforte» 
caro,  mas  a  tantos  briofos  Atlantes, 
que  retalhados  do  ferro  ,  e  toílados 
do/pgo  evaporarão  as  vidas,  efmal- 
tando  com  o  fangue  de  fuás  veias 
as  palmas  de  que  enramarão  as  viClo- 
riofas  téfus.   Tal  he  Santa  Natália, 


A  S.  Natália;  105 
a  yoíTa  infigncProteflora  ,  que  enno-^ 
brecendp  com  as  fuás  Relíquias  às 
voíTos  Cíauftros  ,  entorna  fobre  vós 
peránnes  benefícios:  dadivas  exfrahi- 
das  do  rhefouro,  a  que  o  Reino  de 
Jesus  Crhifto  no  Evangelho  fe  com^ 
para  :  Simi/e  eji  Regnum  Coslorum 
thefauro. 

Mas  nao  pede  o  minifterio  que 
exercito,  que  no  Panegyrico,  que  por 
obedecer-vos  lhe  confagro  ,  vos  tra- 
ce huma  pintura  de  feus  nnerecimen* 
tos  ,  para  que  inflammando-vos  no 
zelo  conn  que  a  feftejais,  fe  atee  mais 
nos  voíTos  corações  o  voíTo  amor  ? 
Ávidas  5  e  cubiçofas  de  trasladardes 
para  o  voíTo  efpiritoas  fuás  quali- 
dades fublimes^que  ferviráô  de  plano 
ao  difcurfo  ,  i[ue  prefentemente  me 
ouvireis  ?  Pois  eis-aqui  o  alvo  a  que 
aíTeílarei  os  tiros.  Conheço  que  naô 
tenho  as  cores,  que  fe  requerem,  pa- 
ra completar  o  quadro  promettido. 
Cora  tudo,  esforçado  daquelle  Deos  , 
que  curvados  os  joelhos  profunda- 
mente adoro  naquella  Hoftia  de  Pro- 
piciação: Hoília  immaculada,  entro  já 

fen* 


104  O  R   A   Ç   A   6 

fem  mais  pròemios  na  empfeza.  At- 
tendei-me  qiíe  eu  começo,  Senhoras, 

Els-aqui  huma  das  máximas  da- 
í  quelle  Deos,  de  que  todo  o  bem 
deriva,  como  de  natural,  e  única  fon- 
te :  confundir  com  inftrumen tos  fra- 
cos a  arrogância  dos  Poderofos  do 
Mundo:  Infirmi  munài^  Deus  eligit^ 
m  confundat  fortia.  Nada  importa 
que  da  terra  furja  huma  eftatua,  que 
alçando  por  cima  das  nuvens  a  vai* 
dofa  frofite  ,  aíToberbe  a  todos  com 
a  fua  grandeza.  O  ouro,  a  prata, 
o  bronze,  e  o  ferro,  rigiffimos  me- 
taes,  de  que  déílro  Artífice  a  funde, 
e  lavra,  embora  Jhe  promettao  eter- 
na duração,  que  pequena  pedra  fa- 
cudida  ,  e  arrojada  do  monte  ,  por 
mão  inviíivel ,  fobejará  para  a  der- 
ribar. 

Nao  he  com  o  eílrondo  de  guer- 
reiras armas ,  que  levaò  o  terror ,  e  a 
morre  a  deía percebidos  Povos,  que 
fe  efpalhou  por  todo  Univerfo  a 
Lei  do  Crucificado.  Huns  Pefcadores 
charlados  das  Ribeiras  de  Galliléa,  a 

pé 


A   S.   N  A  T  A  L  I  A.  lOj 

pé,  defcalços,  mendigando  pelas  por- 
tas o  paó  de  cinzas,  de  que  eícat- 
íamente  fe  nutrem ,  fao  os  que  a  pro- 
mulgaó  5  triunfando  já  nas  Cortes  , 
já  nas  Academias  dos  Príncipes,  e 
dos  Filofofos  ,  até  fazerem  tremolar 
fobre  as  ruinas  de  eílragados  ídolos 
o  Eílandarte  da  Cruz  ,  como ^troféo 
das  vidlorias  ,   que  confeguiao. 

Para  nos  horrorizarmos,  baila  re- 
paíTar  pela  memoria  o  nome  de  Ma- 
ximiano. Abufando  do  poder  que  ti- 
nha ,  com  que  complacência  naó  via 
enfopados  os  alfanjes  de  feus  verdu- 
gos no  fangue  Chriílão  :  Tangue  que, 
como  o  de  Abel  ,  debaixo   do  Thro- 
no  de  Deos  clamava  por  vingança: 
f?ndo  muitas  vezes  pafto  de  esfaima- 
das féras  os  cadáveres  efpalhados  pe- 
lo campo  daquelles  ,  cujas  almas  ef- 
tavao  já  gozando  no  Empyreo  o  pre- 
mio devido  á  conftancia,  com  que  fo- 
portara6  o  martyrio  que  padecerão. 
Nicomedia  era  a  Corte  aonde   a  ty- 
rannia  eílabelecera  o  feu  folio. 
4'      Entre  os  Beraaventurados  ,  que 
como  cândidas  pombas  efperavao  vo- 
ar 


'\m 


m 


jo6  O  R  A  Ç  A  S 

ar  ás  celeíles  moradas  para  fe  ani- 
-nharem  no  roto  peito  de  feu  Jesus  j 
diílinguia-fe  muito  Adrião  ,  pela  re- 
/oluçâo  prompta  ,  e  denodada  com 
que  deteftando  a  Idolatria  abraçou  o 
Chriílianifmo  ;  correndo-fe  de  que 
JiouvèíTe  tempo,  no  qual  por  fua  det 
graça  naô  conheceíTe  ,  e  adoraíTe  o 
verdadeiro  Deos  ,  que  para  nos  abrir 
as  portas  da  bella  Síao,  que  o  pec- 
cado  aíFerrolhara ,  fe  fez  Homem  pe- 
los homens. 

Chega  a  noticia  a  Maximiano, 
chameja  nos.feus  olhos  encarniçados 
a  ira  ,  para  que  he  eftreito  vafo  o  feu 
coração.  Convoca  em  feu  foccorro  co- 
das as  fuás  ardilofas  ,  e  coílumadas 
manhas.  Ora  promette^  ora  ameaça: 
que  he  facil  á  tyrannia  vatiar  de  lin- 
guâ  ,  e  de  aíFectos.  Nada  confegue: 
^  querendo  deixar  ao  Mundo  exem- 
plos, ainda  que  funeílos,  de  feu  furor 
verdadeiramente  infernal  ;  que  cru- 
eldades naò  inventa,  de  que  ha  de 
fer  alvo  o  generofo  moço  ?  Todavia 
jiao  te  defvaneças  coroado  Tigre  ; 
huma  frágil  mulher  o  anima  para  que 

con- 


A  S/N  AT  A  LIA.  Í07 

confunda  com  O  teu  rigor  atua  fo* 

berba.  ,./f       vt 

Natália,  a  voíTa  adoradiílima  Na- 
tália ,  era  a  fua  Eípofa.  Ghriftâ  ,  e  fi- 
lha dos  Chriftãos.  Eftando  no  retiro 
das  fuás  antecameras  ,  como  tinha  de 
coílume  ,    enlevada   na  contemplação 
dosMyfterios  Divinos,  frágoa  aonde 
o  feu  efpirito  fe  purificava  cada  vez 
mais,  recebe  a  alegre  nova.  Naó  cor- 
je5V0â  á  prefença  do  marido;  e  com 
ar  de  quem   leva    na  ferenidade  de 
feu  rodo  a  certeza  da  vidoria  ,  entra 
pelo   eícuro  ,    e  horrorofo    cárcere. 
Com  as  lagrimas,  que  o  gofto  de  feu 
eoraçaô  arranca  ,    parece  que  perten- 
de  abrandar  a  dureza  dos  ferros,  que 
como  réo  facinorofo  arrafta.   Beja-o 
huma  vez  ,  beja-o  muitas  vezes^com 
mais  carinho  que  nunca  :    e^naô  te- 
mendo incorrer  na  indignação  doTy- 
ranno  ;   que  naó  diz  ,  e  que  naó  faz , 
infiammando  Adrião   para   a  ^peleja 
com  a  efperança    do  galardão  ,  que 
Deos   tem   preparado  para  aquelles, 
que   branqueando  as  fuás  eftolas  no 
Sangue  do  Cordeiro,  que  tira  os  pec- 

ca- 


ip 


loS  Oração 

cados  do  Mundo,  morrem  fuftenir 
tando  ,  e  defendendo  a  Fé  que  pro-? 
fefsaô  ? 

He  verdade  regiftada  nos  Códi- 
gos fagrados  ,  que  a  mulher  íélfan- 
tifica  o  marido  ,  poílo  que  infiel.  O 
exemplo  dasTheodolindaSj  das  CIo- 
thildes  ,    das  Erigidas  ,  e  das  Ceei- 
lias  confirmao-na.    Como  realçaria  a 
minha  Oração,  fe  eu  agora  vos  po- 
deíTe  dignamente  pintar  quaes  foraó 
os  fentimentos  de  valor,  e  de  Re- 
Jigiao  ,  que  as    palavras  de  Natália 
excitarão,  cravando-fe  como  agudas 
fettas  no  peito  de  Adrião  !  Já  íe  de- 
fejava  ver  com  os  inimigos  na  eíla- 
cada.   O    fangue    parece   que  já  lhe 
naô  cabia  nas  veias  ,  impaciente  de 
brotar  por  todos  os  poros  de  feu  cor- 
po para  efmaltar  as  palmas,  de  que 
brevemente  havia  tecer  a  grinalda', 
com  que  triunfante  entraria  para  a- 
quelle Reino  da  Paz,  que  íó  aos  vio- 
lentos fe  promette.  Honras ,  rique- 
zas,  a  mefma  ametade  de  fua  alma 
a  fua  adoradillima  Conforte,  nada  o 
prende. 

Com 


umuM 


A  S.  N  A  T  A  L  I  A»  109 

Com  tudo  a  famofa  Heroina  nad 
focega.  Conhece  que  rodos  fomos 
amaííados  de  barro  muito  quebradi- 
ço  ,  recommenda-o  aos  companhei- 
ros. Roga-lhes  que  nao  ceifem  de  o 
esforçar  para  o  combate  j  e  como  a 
fua  aííiílencia  podia  fer  perigo fa,  he 
com  efta  condição  que  naó  Te  fepa- 
ra  5  arranca-fe  ,  de  que  chegado  o 
dia  de  feu  triunfo  a  avifariaõ  5  para 
fer  naó  fó  expeâ:adora  ,  mas  á  imi- 
tação da  Ínclita  mãi  dosMachabeos^ 
quem  com  a  fua  prefença  lhe  infun- 
diífe  novos  brios  para  prefiíiir ,  qual 
rochedo  no  meio  das  ondas  ,  incon^ 
traftavel   a  tudo. 

ISIao  ,  Senhoras  ,  na6  entendai^^ 
que  cedendo  aos  aíTedos  da  humani- 
dade ,  e  do  amor  ,  cuftaria  a  Natália 
quebrar  os  laços,  com  que  a  fé  con- 
jugal a  tinha  docemente  atado.  Ba^ 
nhada  de  luz  celeílial  ,  como  conhe- 
ce que  o  mundo  nada  tem  ,  que  fe 
compare  com  os  bens  ,  que  no  Pa- 
jaifo  eftaô  refervados  para  aquelles 
que  pizando  as  fuás  pompas  ,  e  a$ 
íuas  mentirofas  yaidades ,  deixaó  05 

pais ; 


im  i 


1^'i:' 


tio  o  K    A    Ç' A   6 

pais,  deixao  os  parentes;  deixaS  tu- 
do para  íaivarem  as  íuas  almas.  ^Eis* 
aqui  porque  mais  que  nunca  faô  ago- 
ra as  íuas  vigílias  mais  longas,  os 
fens  jejuns  mais  auíleros,  os  íeus  ci- 
iicios  mais  aíperos  5_na6  volvendo 
idéa  no  feu  peníamento  ,  que  naô 
feja  encaminhada  á  completa  vidto- 
ria  que  defej^v^,. 

Porém  que  y(^$  aíTuíla,  Santa  Ma- 
trona? Que?  Entendeis  vós  por  ven- 
tura ,  que  afFraca  o  novo  Campiao  ? 
Porque  o  vedes  na  voíía  prefença,  já 
dais  porcerta  a  fua  infidelidade,  iup- 
pondo  que  naõ  teve  valor  para  fo- 
portar  o  martyrio  ?  Moderai  a  voí- 
ía ira  fanta  :  torne  com  a  ferenida- 
de  a  alegria  a  fazer  aíTento  nas  vof- 
fas  faces  belías.  AdriaÓ  fahe  do  cár- 
cere :  entra  Adrião  pelo  feu  palácio, 
mas  he  para  vos  noticiar ,  que  já  ef- 
tá  citado  para  comparecer  ante  Ma- 
ximiano. Vede  com  que  complacên- 
cia,  depois  de  vo-lo  dizer,  volta  pa- 
ra os  grilhões  ,  volta  para  a  mafmor- 
ra,  de  que  a  fua  alma,  purificada  coma 
o  ouro  da  forja  ^  cedo  íurgirá  coroa» 
da  de  gloria^  Eu 


A   S.  Na  TA  L  IA.  Xít 

Eu  nao  fou  encarecido,  Senho- 
ras ;  as  minhas  palavras  eu  devo  le- 
valias  á  balança  do  Santuário.  Mas 
porque  vos  nao   direi  ,  que  a  intre- 
pidez do  deftemido  Athleta  ,   ainda 
que  era  fruto  da  graça,  de  que  eílava 
efcudado,  foi  muito  ajudada  das  ora- 
ções de  Natália  ,  que.  teftimunhando 
os  defufados  tormej^toVcom  que  erao' 
attenuados,  e  confumiaos   os  mem- 
bros do  Efpofo  5  mais  ,  e  mais   pe- 
4iâ  a  Deos  ,  que  rociando-o  com  o 
feu  orvalho  fanto  ,   o  fuílenraífe  com' 
aquella  dextra,  que  quando  quer  con-^. 
fundir   o    poder    dos  Grandes  ,   que- 
abufaõ  de  fuás  forças   para  opprimi- 
rem  os  fèus  efcolhidos  ,    infunde  ef- 
pi ritos   valentes   no  braço   de   huma 
fraca   mulher?  Confirme-o  a   iníigne 
Libertadora  de  Bethulia.   Porque  V05 
iraõ  direi,  que  fe  Maximiano  ,  fazen- 
do   arrogante    oílentaçao    de  Tua  xy^ 
rannia  ,    vio  illudido    o  feu   Im.peria 
cóm  irinfao  de  fiias  promeíTas  ,  e   de 
fuás    ameaças  ,    pagando  com  húm^' 
morte  defaftrada  os  crimes  de  hunia; 
tida  diíTolutaj  foi  porque  deferindQv 

Deos 


w 


HvM»;: 


\ ;,.''' 


Í.I2  Oração 

Deos  ás  preces  de  Natália,  fe  appref- 
íou  a  deíaíTombrar  a  fua  Igreja  das 
tyrannias,  com  que  a  conííernava  ? 
Porque  vos  nao   direi... 

Mas  que  fim  levo  eu  agora?  Aca- 
fo  recolher  em  pequena  concha  o 
Oceano  ,  referindo-vos  que  Natália 
he  quem  acudindo  não  íó  ao  feu 
Conforte,  mas  aos  feus  inviélos  Com- 
panheiros lhe  curava  as  chagas  ,  ain- 
da que  afquerofas  ?  Que  preíervan- 
do-os  da  voracidade  das  chammas 
ialvou  os  feus  corpos  ,  ordenando, 
jem  perdoar  a  defpezas  ,  que  foííem 
trasladados  paraConftantinopía,  aon- 
de recebendo  o  culto  devido  ,  def- 
cânçaíTem  em  fanta  paz  os  offos  dos 
Capitaens  de  Jesus  Chriílo  ,  que  por 
propagarem  a  fua  Lei  foraõ  immo- 
iados  conío  innocentes  cordeiros  ? 
Que  rejeitando  as  núpcias  do  Tri- 
l)uno  teve  a  confolaçao  de  terminar 
a  carreira  de  feus  dias  ,  com  o  feu 
morto  Adrião,  efperando  a  refurrei- 
çaó  univerfal  no  feu  mefmo  fepul- 
ehro  ,  iheatro  de  muitos  prodígios, 
que  obrad  as  fuás  Relíquias,  de  quç 

hc 


A   S.    N  A  T  A  L  I  A.  113 

he  cofre  riquíflimo  o  voíTo  Mofteiro  ? 
Quem  nao  íabe,  que  iílo  feria  ex- 
ceder os  efcíaffos  limites  ,  que  vós 
me  prefcreveftes.  Todavia  do  que  me 
naô  poíTo  dífpenfar  ,  he  de  vos  lou- 
var a  devoção  ,  com  que  promoveis  o 
culto  de  huma  Santa  ,  que  honra  o 
voffb  fexo  ,  que  honra  a  Igreja  ,  de 
que  todos  fomos  filhos.  Continuai 
pois  com  aquelle  ardor ,  que  he  in- 
feparavel  do  voíTo  illuftre  coração, 
Aquella  ferie  de  milagres  ,  que  no 
rápido  curfo  de  muitos  Séculos  dao 
a  conhecer  a  gloria ,  de  que  no  Em- 
pyreo  goza  Natália  ,  que  eítimulos 
vos  naõ  dao  também ,  para  que  cum- 
prindo com  os  deveres  de  voíTo  ef- 
tado  ,  defempenheis  a  obrigação ,  em 
que  vos  poz,de  efcolher  para  fua  ha- 
bitação a  voíTa  Cafa  ?  Imitai  as  fuás 
virtudes,  que  he  como  lhe  podeis  fer 
agradecidas,  para  poíTuirdes  o  thefou- 
TOy  a  que  o  R^eino  do  Ceo  fe  compa- 
ra :  Simile  eji  Regnum  Cmlorum  the- 
fauro. 

Difle. 


H 


ORÀ^ 


J 


«4 


O  R  A  q  A  Ó 

AO  SS.  ROSA  RIO 


Beatus  venter 


h:':\ 


^  qui  te  portavit* 
Luc.  c.  II. 


E 


Com  que  gofto  na6  appareço 
eu  hoje  na  voíTa  prefença  , 
■^  lembrando-me ,  que  naó  ferao 
defagradaveis  aos  voíTos  ouvidos  as 
palavras ,  que  vos  diíTer !  Aquelie  ju- 
ílo,  e  natural  temor ,  que  quafi  fem- 
pre  esfria  nas  minhas  veias  o  fan- 
gue ,  quando  alçando  a  voz  da  Ca- 
deira da  verdade,  que  occupo,  tenho 
de  annunciar-vos  a  doutrina  do  San- 
to Evangelho  ,  de  quem  fou  Minif- 
tro  5  ainda  que  indignoi;  como  o  ve- 
jo agora  de  todo  diíílpado ,  havendo 
de  diícorreride  huma  devoção,  que 
no  parecer  do  Beato  Alano,  he  a  ra- 
inha de  todas  as  devoções,  pelos  ma- 
ravilhofos  eíFeitos  que  gera  ,  e  pro- 
duz nas  noíTas  almas!  Já  fabeís,  que 

he 


AO   Ss.   R  o  S  A  R  I  o.         Iljr 

he  do  Santiffioio  Rofario,  que  eu  vos 
fallo. 

é*  Naó  he  para  promoverdes,  e  pro- 
pagadres  a  fua  prática,  que  vós  unidos 
em  hum  Corpo,  vos  ajuntais  aqui, 
defejandò  ,  que  nao  haja^  quem  inte- 
reflando-fe  pela  gloria  de  Maria  ,  a 
naõ  honre  todos  os  dias ,  na  certeza 
de  que  feraó  copio í os  os  friitos  que 
colha,  facom  a  devida  attençaõ  re- 
citar aquellas  preces,  que  tiveraô  hu- 
ma  origem  tao  divina  ? 

Pois  eu,  que  tenho  obrigação  de 
condefcender  com  os  voííos  .defig- 
nios,  quando  fao  ta6  pios  ,  depois  de 
adorar  como  bemaventurado  o  cafto 
feio  da  Ínclita  ,  e  famoía  Donzella 
deNazareth  com  a  mulher  das  Tur- 
bas ,  me  proponho  no  Panegírico  ^ 
que  por  obedecer-vos  lhe  conTagro, 
moftrar-vos  a  importância  deita  devo- 
ção ,  referindo-vo5  ,  ainda:  que  com- 
pendiados ,os  b^ns  que  encerra ^  pa- 
ra inflam  mar  os  peitos  Chriftãos  « 
que  formão  o  refpeitaveí  Auditório,, 
que  agora  me  attende. 

'  CreÍQ.>  que  a.màteria  per  fi  íe 
H  li  re 


:/*:: 


JtM/r 


lí6  ^^O  RAÇA  6 

recomtnenda.  Nem  a  voíTa  benevo- 
lência ,  de  que  tenho  já  brilhantes 
provas  ,  me  conftitue  na  preciíaô  de 
implorar  a  voíTa  urbanidade  ,  can- 
fando-vos  com  mais  longos  ,  e  eftu- 
dados  proemios.  E  cheio  de  refoJu- 
çaò,  e  cheio  de  goilo,  entro  fem  mais 
perda  de  tempo  na  empreza  promet- 
tida.  Peos  ,  meu  bom  Deos  ,  ajudai- 
me.  Eu  começo  ,  Senhores. 

Todas  as  devoções  fao  importan- 
tes. Encaminhaó-fe  todas  á  nof- 
fâ  felicidade,  mais  que  temporal, 
eterna:  porque  aquelles  a  quem  hon- 
ramos ante  o  Deos,  de  quem  faô  pri- 
vados ,  e  validos,  empenhando  a  Tua 
protecção  ,  quaíi  fempre  nos  confe- 
guem  o  que  lhe  pedimos  ,  fe  por 
ventura  nos  he  conveniente. 

Ora  entre  todas  as  devoçáes  a 
mais  importante  he  a  do  Santiílimo 
Rofario,como  atteftaô  veneráveis  In- 
terpretes ,  que  com  a  fua  fciencia  , 
naõ  menos  que  com  as  fuás  virtudes 
tem  eílabelecido,  e  arraigado  o  feu 
credito  na  Igreja  ,  de  quem  faÔ  filhos 

be- 


A  O  Ss.   R  o  S  Á  R  I  O.        tI7 

beneméritos:  porque  as  orações  de 
que  fe  compõem,  íaò  as  mais  effica- 
2és  para  inclinarem  o  coração  de  Je- 
sus ,  e  de  Maria  a  noíTo  favor.,  fa- 
cilitando-nos  o  que  lhe  fupplicamos, 
em  quanto  envoltos  no  tumulto  do 
Século  continuamos  a  merc|uinha  ,  e 
aípera   carreira  da  noíTa  vida. 

Naó  he  da  Oração  Dominical,  e 
da  Saudação  Angélica  ,  que  fe  tece, 
e  matiza  aquella  coroa  de  roías,  que 
YÓs  todos  os  dias ,  como  fupponho, 
confagrais  á  Santa  Virgem?  O  que 
he  mais'  poderofo  entre  nós  ?  Que 
arma  mais  forte  podemos  nós.  ter  , 
naó  fó  para  alcançarmos  â  viéloria 
dos  noííbs  inimigos,  mas  para  ob- 
termos o  que  pertendemos?  Eu  vo- 
lo  moftro  claramente. 

Que  fazemos  nós,  quando  recita- 
mos a  Oração  Dominical  P  Santifica- 
mos oNome  deDeos;  pedimos-lhe, 
que  nos  dê  o  feu  Reino:  Reino  de 
paz,  para  que  todos  fomos  nad  fó 
creados  ,  mas  remidos  com  o  leu 
Sangue  :  conformamo-nos  com  a  fua 
yontade  fantiflima,  que  he  o  ápice  da 
perfeição  Chriftã.  O 


i 


'ír^ 


isi 


mâ 


\cm. 


Il8  O  R  A  Ç  A  6 

o  Pao  de  que  pecifamos  para 
nos  nutrirmos  :  paÓ  quotidiano  :  o 
perdão  das  noíTas  graves  culpas  he 
com  efta  Oração  divina  na  lua  ori- 
gem ,  que  o  impetramos  :  triunfan- 
do das  tentaçáes  vehementes,que  co-> 
mo  amargofos  frutos  do  peccado  , 
quaíi  que  comnofco  fe  encarnaô  defn 
de  que  no  berço  nos  enfaxao ,  até  que 
no  féretro  nos  amortalhaõ. 

Bailava  eílaeircumílancia  para 
que  a  devoção  do  Rofario  foíTe  en-* 
tre  aS' mais  devoções  a  primeira ,  ei^*^ 
volvendo  huma  Graçaõ,  que  em  to- 
dos os  Séculos  dp  Chriftianifmo  fe 
reputou  fempre  ípela  Oração  de  mais 
valor;  dando-llie  unicamente  os  Pa- 
dres^ que  traçaô  o  plano  da  infallivel 
e  orthodoxa  tradição  a  primazia  ,.  na- 
confideraçao  de  que  Deos  fora  ò  feu 
author*  :- 

Pois  que  direi  da  Saudação  An- 
gélica ?  A  lembrança  daquelíe  Myf- 
terío  inefFavel,  que  unindo  pelo  la- 
ço  hypoftatico  o  Creador  com  a  crea- 
tura  5  deu  ao  homem  huma  honra  in- 
comprehenfiyel  j  ,podendo-fe  íem  te- 

meri- 


AO    Ss.  R  o  S  A  RIO.  119 

meridade  affirmar,  que  pela  commu- 
nicaçaó  4«s  idiomas  ,  paffou  a  fer 
Deos  :  efta  lembrança  digo  como  ex- 
altando a  Maria  nos  inflammará^,  pa- 
ra que  cobertos  de  fua  protecção  nao 
defanimemos  ?  Como  a  intereííará 
a  noíío  bem ,  naô  ceifando ,  mais 
que  a  benéfica  Abigail ,  de  rogar  por 
nós  ao  preciofo  Fruto  do  feu  caftiíTi- 
mo  feio  Jesus  ,  para  que  fempre 
nos  feja  propicio,  e  favorável  ? 

Muito  mais  5  fe  nós  mefclando 
com  as  noíías  vozes  os  noífos  affec- 
tos  ,  vivamente  meditar-mos  em  be- 
nefícios taô  grandes  ,  como  foi  hu- 
mana r-fe ,  padecer,  e  morrer  por  nós 
aquelle ,  aquelle  Deos  ,  que  de  nada 
nos  creou  á  fua  imagem  bella  ,  que 
com  a  fua  dextra  fuftenta  o  pezo  dos 
celeíles  Orbes ,  que  he  Senhor  de  tu- 
do :  o  Deos  dos  Deofes  ,  que  olha 
para  a  terra  »  e  a  faz  tremer :  que 
toca  os  montes,  e  os  faz  funiegar. 

Pôde  haver  devoção  mais  impor- 
tante ?  Refiftirlhe-ha  nada  ,  ou  no 
Ceo,  ou  na  terra  ?  Applicando-lhe  ò 
que  S.  Joaô  Chryfoílomo  diz  da  Ora- 

çaõ 


I 


i 


!'';! 


120  O  R  A  Ç  A  Õ 

çaó  em  commum,  naõ  lhe  poderemos 
chamar  omnipotente  :  Oratio  una 
cum  fit  omnia  potejl  ?  Com  eíta  ar- 
ma nas  noíTas  mãos  ,  eu  quero  dizer, 
com  o  Santiílímo  Rofario  ,  nao  can- 
taremos fempre  a  viftoria  das  noíTas 
paixões  ?  Figurando-o  com  o  Beato 
Alano,  naquella  Torre  de  David,  da 
qual  pendem  muitos  efcudos ,  que 
antemural  temos  para  rebatermos  a 
invaíao  ,  que  o  príncipe  ,  que  impe- 
ra no  Reino  da  morte  ^  e  do  pecca- 
do  ,  continuamente  nos  faz:  fendo 
daquellas  myílicas  rofas  ,  que  fe  pre- 
para o  balfamo ,  que  nos  cura  ? 

Eis-aqui ,  Senhores ,  porque  na- 
quelle  Século  (calamitofo  Século  ) 
em  que  a  Igreja,  gemendo  debaixo  da 
períeguiçao  dos  Albigenfes  ,  que  co- 
mo ingratos  ao  leite  com  que  forao 
alimentados  ,  pertendera6  com  ávi- 
do 5  e  venenofo  dente  ,  dilacerar-lhe 
a  inconfutil  túnica  ,  a  Fé  digo  ,  foi 
infpirada  ao  grande  Pai  da  Domini- 
cana Familia  efta  devoção ,  unindo- 
>fe  os  Principes  Catholicos  para  cor- 
tarem a  cabeça  á  hydra  infernal ,  nao 

foi 


U.Vy 


A  O   Ss.  R  o  S  A  R  I  o.  121 

foi  neceffario  que  fe  armaíTem  exér- 
citos como  os  de  Dário.  O  Rofario 
de  Maria  recitado  com  devoção  con- 
feguio  o  defejado  triunfo. 

Era  para  ver  como  os  Templos 
fe  enchiaõ,  refoando  em  torno  de  feus 
Altares  as  glorias  de  Deos  !  Como  as 
ruas  fe  inundavaô  de  procifsôes  de- 
votas ,  efpalhando-fe  em  alternados 
coros  os  louvores  da  Virgem !  Erao 
para  ver  as  maravilhofas  conversões, 
de  que  todos  os  dias  haviao  pere- 
nes provas!  Reílituir-fe  á  Igreja  pu- 
ra ,  e  immaculada  a  Fé  de  feus  dog- 
mas :  a  paz,  a  concórdia  tornarem 
a  raiar  nos  hoíTos  horizontes,  naõ  foi 
tudo  devido  ao  Santiífimo  Rofario  ? 

Mas  eu  pertendo  referi r-vos  to- 
dos os  bens  ,  que  fe  encerrao  no  Ro- 
fario Santiífimo  de  Maria.  Quem  en- 
freia a  braveza  das  ondas  ,  que  er^ 
guendo-fe  como  efcarpadas  ferras  » 
parece  que  querem  affogar  as  eítrel- 
las?  Quem  ferena  as  tempeftades,  con- 
tendo os  ventos  no  cárcere,  aonde 
bramem  afferrolhados ,  e  prezos  ?  Se 
os  raios  fe  apagao  na  Athmosfera  : 

fe 


■fMiiii 


It 


IÍ| 


IZ2  O  R  A  Ç  A  6 

íe  as  doenças  fe  aplacaó  ,  quem  pô- 
de negar  que  tudo  muitas  vezes  nos 
lem  vindo  do  Santiífimo  Rofario  , 
como  fonte  inexhaurivel  de  tantos 
bens? 

Ao  menos  ,  Senhores  ,  que  ex- 
tenfao  naô  daria  ao  meu  difçurfo  , 
fe  cingindo-me  ás  provas,  que  da  ex- 
periência podemos  tirar,  eu  vos  abrif- 
fe  os  Annaes  daquella  Religião  ,  que 
tem  por  timbre,  e  por  principal  de- 
ver adiantar,  e  promover  o  culto  do 
Rofario?  Vós  verieis  os  demónios 
fugindo  do  corpo  dos  energúmenos 
como  leões  ,  a  quem  eícaparaó  das 
garras  as  innocentes  prezas  :  Vós  ve- 
rieis os  mortos  levantado-fe  do  hor- 
ror das  fepulturas  ,  tornados  á  vida 
que  perderão  :  vós  verieis  as  amiza^ 
des  illicitas  convertidas  em  matri- 
mónios fantos  :  os  ódios  implaca- 
yeis .  .  • 

/  Mas  ai  I  que  funeíla  lembrança 
me  vem  interromper  agora  ?  Quizera 
deixar  de  vo-la  comunicar  j  mas  o  mi- 
nifterio  que  exercito ,  nao  foíFre  que 
vo-la  envolva  em  filencio.  Todos  re 

ci- 


^     V, 


•  A  o   SS.  ROS  A  R  1  O.  123 

cítao  o  Rofario  :  poucos  ha  que  do 
feu  peito  o  naô  rragao  pendente.  Po- 
rém de  que  procederá  ,  que  he  raro 
o  fruto  que  fe  colhe  ?  Terei  eu  fido  . 
demaíiado  no  que  vos  tenho  dito? 
Naô  ,  Senhores  :  Nem  por  génio  , 
nem  por  educação  devo  fer  encareci- 
do. As  minhas^palavras  levo-as  fem- 
pre  á  balança  do  Sanfluario.  Pezo- 
as  exaílamente.  Sabeis  qual  he  a  ra- 
zão do  que  por  defgraça  noffa  expe- 
rimentamos ? 

Naô  bafta  que  os  noíTos  lábios 
fe  appliquem  aos  louvores  de  Maria. 
Naó  bafta  recitarmos  todos  os  dias  o 
Rofario.  Parando  fimplesmente  nifto, 
pouca  utilidade  tiraremos  de  exercí- 
cio taô  pio:  de  devoção  tao  impor- 
tante. Releva  que  nafçaõ  do  cora- 
ção as  noiías.  vozes.  He  unicamente 
como  fubiráo  á  maneira  de  vara  de 
odorífero  incenfo  ao  Throno  do  Al- 
ti/fimo. 

Nem  todos  os  que  dizem  :  Amen» 
amen  ,  faô  aptos  para  o  Reino  de 
Deos.  Sem  recolhimento  de  efpiri- 
to ,  fem  gravidade  de  íemblante  ,  de 

que 


m 


III 


Hf 


Í24  o  R  A  Ç  A  6 

que  valerão  as  noíTas  orações  ?  Fal- 
íamos com  Deos  :  falíamos  com  fua 
Sanfiífima  Mâi,  de  que  refpeito  nao 
devemos  eftar  cheios  ?  Se.  nós  faze- 
mos as  vezes  do  Archanjo  Embaixa- 
dor ,  qual  importa  que  íeja  o  nof- 
fo  acatamento  ? 

Recitai  pois  o  Rofario  com  mui- 
ta devoção.  Eu  vos  feguro  ,  Senho- 
res ,  que  os  voíTos  deíignias  feráo 
profperados  na  terra  :  as  voíTas  al- 
mas bemaveníuradas  no  Ceo.  Quei- 
ra Deos  ,  que  lá  nos  vejamos  todos, 
cantando  com  os  1  ou vor^es ide  Maria 
as  mifericordias  de  Jesus. 


DiíTe* 


ORA- 


M 


22f 


O  R  A  Ç  A  Õ 

A  S.  AGOSTINHO. 

Qut  fuerit ,  &  docuerit  ,  hic  mag- 
nus  vocabitur»    Maith.  c.  5. 

COmo  fa6  incomprehenfiveis  os 
juízos  de  Deos  !  Nao  ha  mão 
que  poíTa  correr  o  tapado,  e 
denfo  véo ,  que  os  cobre.  Nem  fe  in- 
veftigaõ  :  adorao-fe  :  pois  por  cami- 
nhos que  a  nós  nos  parecem  aveffos, 
conduz  muitas  vezes  aquelles  homés, 
dos  quaes  conforme  a  economia  de 
feus  invariáveis  decretos  ,  a  tempo 
qpportuno  fe  ferve  ,  para  levarem  , 
como  vafos  de  eleição ,  de  boca  em 
boca  ás  extremidades  do  Univerfo  , 
com  o  conhecimento  de  fua  Lei  ,  a 
gloria  de  feu  nome.  Sem  que  engra- 
xe huns  com  outfos  exemplos  ,  vós 
tendes  aprova  no  Santo  ,  de  quem 
cu,  incorporando-me  comvofco  ,  de- 
termino hoje  louvar  as  acções  no  Pa- 
ne- 


la ■ 


mÊf* 


L'): 


126  O  R  A  Ç  A  S 

negyrko ,  que  por  obedecer-vos  lhe 
coníãgro.  Nao  he  neceííario  que  vos 
diga  3  que  he  do  voíTo  ,  e  do  meu 
adorado  Agoílinho  ,  que  vos  fallo, 
Qiiem  o  obfervaíTe  na  primave- 
ra de  feus  annos  juvenis  affanando- 
fe  por  confeguir  a  fatisfaçao  comple^ 
ta  de  feus  appetires  ,  que  encarniça- 
dos, á  maneira  de  roazes  ,  e  esfaima- 
dos lobos  ,  engollilo  ,  e  devorallo 
queriaõ  no  feu  ávido  feio;  como  fe 
lafíimaria  de  feu  deítino  ,  temendo 
que  feguindo  os  caprichos  de  fua  des- 
regrada vontade  ,  infelizmente  arre- 
mataííe  a  cat"reira  de  fua  vida,  como 
Sanfa6  no  regaço  da  pérfida  ,  ainda 
íque  formofa  Dalila  ?  Prazeres  vergo- 
nhofos ,  cubica  de  honras  ,  e  de  ap-^ 
plaufos  5  infaciavel  fede  de  faber  tu* 
do  y  eis-aqui  as  paixões  que  cria  ,  e 
ceva  no  feu  coração  :  enfurdecendo 
ao  confelho  dos  amigos  ,  ás  lagri- 
mas da  mãi  carinhofa  ,  e  aos  afpe- 
ros  remorfos  da  confciencia  ,  que  pa- 
ra o  confeguirem  ,  e  eftradarem  vã- 
mente fe  esforça  vao. 

Mas  quando  menos  p  efpera,naá 

raf" 


A   S.   A  GO  S  T  I  N  H  o.  127 

rafga  a  venda,  que  deslumbrando-o  o 
cega  ?  Ferido  mais  que  de  aguda  ,  e 
farpada  fetta  daquelia  graça  ,  que 
de  hum  perfeguidor  faz  hum  Apof- 
tolo,  naõ  erige  fobre  os  feus  erros, 
que  envergonhado  ,  e  confuíb  publi- 
camente detéíla  ,  o  padraô  que  im- 
morraliza  na  poíleridade  a  íiia  virtu- 
de :  exultando  de  alegria  Ta  gaite  , 
que  na  Africa  lhe  dera  o  berço  ,  Mi- 
lão, que  na  Europa  lhe  infundira  a 
perdida  fé,  e  a  Igreja  que  já  o  con- 
íiderava  como  hum  de  feus  mais  íó- 
lidos  apoios  contra  a  invafaó  de  nao 
fei  que  raça  infame  de  viboras ,  e  de 
baíilifcos,  que  com  os  nomes  de  Ma- 
nicheos,  Donatiílas,  e  Pelagianos  per- 
tendiaô  dilacerar-lhe  a  inconíutil  tú- 
nica, negando  a  fincera  crença  da  mor 
parte  de  feus  dogmas  ?  Como  faó  in- 
compreheníiveis  os  juizos  de  Deos  ! 

Ora  naõ  devendo  eu  aíFaílar-me 
do  Evangelho  ,  de  quem  fou  Mini- 
ftro,  que  matéria  poffo  efcolher,  que 
mais  íe  amolde  ,  e  a  juíte  ao  texto 
que  tomei  por  tliema  ;  que  moftrar- 
vos*  Senhoras,  o  direito  com  que  o 

Pai 


•í 


128  o  B  A  Ç  A  3 

Pai  3  de  quem  fois  beneméritas  filhas, 
fe  conflitue  apar  dor  Grandes  gran- 
de no  Ceo  ,  pelo  que  enfina ,  igual- 
mente que  pelo  que  obra  :  Qui  fe- 
cerit ,  ^  docuerit  ,  hic  magnus  do- 
cabiturt  A  fua  fciencia  ,  e  a  lua  fan- 
tidade  ,  traçando  o  piano  da  Oração, 
que  me  ouvireis  agora ,  de  que  bri- 
lhantes imagens  naó  enriqueceráõ  o 
meu  difcurío  ,  fe  vós  como  partes 
intereíTadas  ,  naó  fó  me  lifongeardes 
com  ã  voíTa  attençaõ ,  mas  me  aíFer- 
vorardes  com  as  voíTaá^  preces  ,  pe- 
dindo ao  Cordeiro  fem  mancha  ,  de 
quem  fois  Efpofas  ,  que  com  huma 
faífca  do  incêndio,  que  ardia  no  pei- 
to do  illultre  Africano,  inflame  a  mi- 
nha lingua?  E  na  certeza  de  que  fa* 
reis  o  que  vos  rogo,  cheio  de  confian- 
ça cheio  de  goílo  entro  na  empreza 
promettida.    Eu  começo  ,  Senhoras. 

MEfquinha  condição  do  homem ! 
Ainda  do  que  he  bom  ,  muitas 
vezes  feiamente  abufa.  Ornar  ,  e  en- 
riquecer de  efpecies  o  noflb  enten- 
dimento, fazendo  no  eftudo,  a  que 

cur* 


A  S.  A  Q  o  S  I*  I  N  lí  Ò*  115 

turvados  lobre  os  livros  nos  appli- 
camos  ,  rápidos  progreíTos  ,*  que  van-»- 
tajens  nos  naó  traz  comfigo  ?  Toda* 
yia  o  indifcreto,  e  demafiado  defe- 
jo  de  faber,  de  que  damnos  naò  tem 
íido  no  Mundo  funeíta  caufa  ?  Sem 
que  nos  lembremos  do  exemplo  d© 
noíTo  primeiro  ,  mais  que  progenitor, 
parricida,  que  cedendo  ás  fuggefloes 
da  manhofa  Serpente  ,  nos  perdeo  a 
todos  ,  por  querer  conhecer  o  mal  ,' 
e  o  bem,  levando  além  do  juílo  a  fua 
fciencia  :  Eritis  fictit  Dii  [cientes 
honum^  ^  malum.  Vós  rendes  a  pro- 
va no  Ínclito  Pai  de  quem  fois  dig- 
nas   filhas. 

Que  delicadeza  de  engenho,  que 
promptidaô  de  memoria,  que  prefen» 
ça  de  efpirito,  que  Índole  viva,  ar- 
dente 3  e  refoluta  naô  era  a  fua?  Eis^ 
aqui  porque  fem  temermos,  que  nos 
taxem  de  encarecidos ,  nós  podemos 
denodadamente  affirmar ,  que  o  que 
para  os  mais  feria  o  fruto  de  longas 
vigílias  ,  de  íizudas  ,  e  repetidas  re-- 
flexões,  de  brancas  cans ,  e  de  hum 
Gonfumraado  juizo  ,  p«ra  Agoftinho 
I  foi 


f  gó  Oração 

foi  a  flor  de  fua  nafcente ,  e  tenra  - 
doutrina/  Para  com  prehender  qiíanto 
de  myíleriofo  ,  e  de  recôndito  eníi- 
naraó  os  Trimegiílos  ,  os  Sócrates  , 
e  GsPlarÒes,  precifou  por  ventura, 
ou  do  foccorro  dos  Meftres  ,  ou  da 
frequência  das  Eícolas  ?  Guiado  uní- 
Gamente  de  fua  quaíi  mila:grora  intel- 
ligencia  ,  naÔ  fouhe  quanto  de  fan- 
taftico,  e  univerfal  eílab^reccràô  nas 
Academias  de  que  erao  Chefes  os  Pi- 
thagoras,  os  Democritos  ,  e  os  Arif- 
toteles  ?  Que  tinha  já  de  maravilho* 
fo  a  Fabula  ,  já  de  heróico  a  Hiílo-^ 
ria,  que  naô  defenvolveííe  ?  Como  fe 
viajaíTe  pelos  Ceos  de  eftrelia  em  ef- 
treíla  ,  com  que  erudição  n^o  expli- 
•cava  as  cifras  ,  os  geroglificos  ,  oà 
oráculos  ,  e  as  cabalas  dos  Caldeos  , 
€  dos  Egypcios,  das  Sibyllas,  t  dos 
Rabinos,  attrahindo  a  quem  o  ouvia 
com  a  fuave  força  de  fua  eloquência  ?  Ê 
-SoíFrei-me  ,  que  forrando- me  a  diíFu- 
fos,  ainda  que  pompofos  ,  difcurfos, 
com  huraa  pincelada  complete  o  qua- 
dro :  faltariao  as  fciencias  á  Agoílinho: 
nunca  Agoílinho  ás  fciencias»  Sabia 
tud;0,  Senhoras^  Mas^ 


A   S.   A  G  OST  I  N  H  O.         I3I 

Mas  devorado  da  ambiça6  infa- 
ciavel  de  nada  ignorar,  em  vez  de  re- 
ferir ao  Pai  dos  lumes,  que  he  a  fon- 
te, de  que  perennemente  manaò  para 
nós  todos  os  bens ,  as  luzes  de  que 
cada  dia  illuftrava  mais  a  íua  mente, 
mó  fe  precipita  no  abyfmo  de  feus 
erros  ,  até  reputar  por  fraqueza  mu- 
lheril a  humilde  ^  e  fincera  crença 
daquellas  verdades  ,  que  excedem  á 
baixa  ,  e  acanhada  esfera  de  noíTa 
compreheníao  ?  Prevenido  da  falfa  , 
e  fuperfticiofa  fabedoria  dos  Gentios, 
nao  menos  que  das  imagens  ,  ainda 
que  brilhantes  ,  das  poéticas  ficções, 
que  efcaldando  a-  noíTa  fantaíia  do- 
cemente nos  arrebatad  ,  naÓ  come- 
çou a  enjoar-fe  da  íingeleza  (belia, 
c  mageftofa  íingeleza  )  das  fantas  EC^ 
cripturas  ,  mofando  da  credulidade 
dos  Padres  ,  que  tra< 


içao 


formão  o 


Ç lano  da  refpeitavel  ,  e  infallivel 
Vadiçaô  ?  ISIa6  começou  a  agra- 
dar-lhe  ,  fenao  a  louvar  a  fórdida, 
e  vil  Theologia  do  Paganifmo  ?  A 
Celebrar,  fenaó  a  crer  as  engenhofas 
mentiras  da  Grega  Mythologia  ?  Di- 
1  ii  ga- 


^ « 


01 1 


til 


!^   IW> 


t^^í  o  R   A   Ç  A  5 

ga-fe  tudo:  como  fe  por  Iiuma  parttí 
íe  envergonhaíle  de  fe  alTimilhar  coni 
os  brutos:  como  fe  fe  iaftimaíTe  por 
outra  parte,  de  que  foiTe  immorral  a 
fua  alma ,  que  naó  trabalha  por  fe 
illudir  a  íi  mefmo  ,  repartindo  en- 
tre duas  Divindades  ,  huma  iniqua 
e  maligna  ,  outra  juíla  e  fanta  ,  a  lo- 
berania  ,  e  o  império  de  tudo  o  que 
pertence  ao  corpo,  e  aos  feus  fen- 
tidos  ,  ao  efpirito  ,  c  á  fua  razão  ! 
Herefía  ,  Senhoras,  a  mais  nefanda  , 
que  do  Reino  das  defordens  ,  e  da 
morte  tem  vomitado  ,  e  diíFundido 
pela  terra  o  noíTo  commum  inimigo, 
para  corromper,  e  empeílar  os  ho- 
mens. 

Santo  três  vezes  Santo  Deos  í 
na6  he  eíle  com  tudo  aquelle  Agoíti- 
nho  ,  que  na  eterna  ,  e  immudavel 
ferie  de  voíTos  juizos,  vós  tendes  ef- 
colhido  para  luz  de  voíTa  Igreja,  pa- 
ra defeníor  devoíTos  dogmas  revela- 
<dos  ,  e  para  raio  que  reduza  a  cin- 
zas a  maldade,  e  o  erro,  como  Doul- 
tor  invifto  da  graça  ,  igualmente 
que  como  triunfo  o  mais  gioriofo  de 

noíTo 


À  S.  A  G  o  ST  INH  o:        l^i 

hoíTo  divino  Mediador  Jesus  Chriílo, 
fendo  o  exemplar  porque  em  todas 
as  idades  fe  ajuftem  5  e  amoldem  os 
Cenobitas  na  ília  contemplação,  os 
Sacerdotes  na  fua  pureza  ,  os  Biípos 
na  fua  caridade  ?  E  fera  eíla  a  vez, 
que  contra  os  voííos  invariáveis  de- 
cretos prevaleça  a  humana  malícia? 
Porém  que  he  o  que  eu  digo,  Se- 
nhoras ?  Como  naô  adoro  antes  a 
próvida,  e  prodigiofa  economia,  com 
que  o  fupremo  Arbitre  de  noíTos  co- 
rações fabe,  por  caminhos  que  a  nos 
nos  parecem  aveííos,  conduzir  aquel- 
las  almas,  que  prezas  por  algum  tem- 
po com  as  douradas  ,  mas  vergonho- 
fas  cadeias  do  peccado  5  dao  uhima- 
mente  aflenfo  á  cândida  verdade,  pa- 
ra fazerem  mais  palpável  a  miferi- 
cordia  de  noííoDeos?  Tal  foi  Agof- 
tinho  ;  porque  do  diáfano,  e  reful- 
gente Sólio  que  occupa  ,  deferindo  o 
Todo  Poderofo  ás  preces  ,  e  ás  la- 
grimas da  Mãi  carinhofa  \  para  que 
íua  cafta  Efpofa  tiveíTe  hum  filho  , 
qu€  mais  a  honraíTe  ,  naò  fó  com^  a 
fua  doutrina  ,  mas  com  as  fuás  vir- 


r/  /': 


•'i. 


t34  O  R  A  ç  A  6 

íudes  ,  com  que  induftrias  naó  faz  J 
que  nos  aduítos  rochedos  da  Africa 
foafle  a  fama  de  Ambrofio  :  Ambro- 
íio  ,  hum  dos  Padres  mais  eloquentes, 
que  por  entaó  fe  conhecia  ? 

Arde  o  ilhiílre  Moço  no  defe- 
jo  de  ouvir.  Pertende  ,  fe  he  poíH- 
vel,  aproveitar-fe  ,  e  inílruir-fe  mais. 
Milaó  o  chama.  Ternos  laços  da 
amifade,  eftreitos  vínculos  de  paren- 
tefco  ,  com  que  valor  vos  quebra  ! 
Na6  parte ,  voa  para  MilaÒ  :  e  prin- 
cipiando primeiro  por  curioíidade  , 
depois  por  goílo  ,  pouco  a  pouco  , 
coíno  orvalho  ,  que  callando  bran- 
damente a  terra  ,  a  fertiliza  ,  fe  [Qn- 
te  fuavemente  attrahido  da  formoíu- 
ra  daquelles  difcurfos  ,  e  da  energia 
daquellas  verdades,  que  como  Mi- 
niílro  da  palavra ,  vibrando  a  efpa- 
da  de  dois  gumes  eníinava  as  fuás 
ovelhas  o  Paílor  felicito  ?  Que  mu- 
dança da  dextra  do  Excelfo  !  Con- 
funde-fe  Agoítinho  :  defpe  o  homem 
velho:  e  chamejando  nas  íuas  faces, 
naô  fei  que  novo  amor ,  que  derretia 
o  feu  coração  como  moUe  cera ,  já 

de- 


A    S.    A  G  o  ST  I  ÍTHO;       13? 

a^teíla  a  impia  feita,  que  feguira,  de 
feus  prazeres  impuros,  já  fe  enver- 
gonha naõ  podendo  foportar  o  pe- 
zo  dos  ferros, que  em  torno  dos  rios, 
que  banhaô  os  muros  da  proítituida 
Babylonia,  como  cativo  de  íuas  pai- 
xões arraílara.  A  humildade,  o  co- 
medimento ,  o  defejo  de  padecer,  o 
defejo  de  fer  defprezado  para  dar  al- 
guma fatisfaçaò  dos  crimes  que  com- 
jnettera  ;  eis-aqui  os  aíFeélos  a  que 
dá  fó  lugar  no  feu  animo,  bufcando 
nos  fantos  Códigos  o  reparo  dos 
damhos  ,  que  fe  caufara  a  fi  mefmo, 
quando,  como  empavezado  galeão,  fe 
lorveo  ,  e  engolfou  no  largo  ,  e  pro- 
cellofo  mar  das  fciencias  ,  que  o  Sé- 
culo enganador  eílima  :  fciencias  que 
conforme  o  Apoílolo  ,  inchao  ,  edef- 
vanecem.  Que  mudança  da  dextra  do 
Kxcelío  1 

Conhecello-heis  vós  agora.  Se- 
nhoras, envolto  5  e  miíluradô  com  a 
fimples  ,  e  ignorante  turba  dos  Ca- 
thecumenos,  a  cabeça  inclinada  fobre 
os  hombros,  os  olhos  baixos,  as  mãos 
erguidas ,  aprendendo  os  Dogmas  de 

aoffa 


;  li 


'S3^  O  K    Á   Ç   À    o 

noíTa  Fé  fantiffima ,  pedindo ,  banha- 
do de  lagrimas,  o  baptiímo?  Conhe- 
cello-heis  vós  ,  mais  que  efcondido, 
enterrado  vivo  em  efcura ,  e  afpera 
gruta  5  cingido  de  cilícios ,  mirrado 
de  jejuns  ^  e  retalhado  de  difciplinas, 
que  com  o  fangue  que  de  fuás  veias 
efpremem  ,  eníopa  ,  e  quaíi  abranda 
aquellas  rijas  pedras,  beijando huma 
vez,  beijando  muitas  vezes  a  Cruz 
de  feu  Deos,  com  quem  intimamen- 
te fe  abraça,  pállido  ,  e  tremulo  co- 
iro convulfo  ,  na  coníideraçaó  da 
eítreita  conta  que  lhe  havia  dar  de 
feus  erros  paíTados  ?  Conhecello-heis 
vós,  quando  elevado  a  dignidade  Sa- 
cerdotal ,  íe  abate  ,  e  fe  confunde  , 
reffledlindo  que  nem  os  Anjos  com 
toda  a  fua  pureza  feriao  capazes*  de 
defempenhar  ?  Que  vibrando  a  efpa- 
da  de  dois  gumes,  teve  fempre  ao 
feu  ferviço  a  vidloria,  infpirando  nos 
peitos  de  quem  o  ouvia,  com  o  temor 
depeos  o  amor  das  virtudes  ?  Conhe- 
cello-heis vós  ... 

Mas  eu  quero,  fondando  os  abyf- 
mos   dizer-voSp  que  vergado  com  o 

pezo 


A   S.  A  G  O  S  T  I  N  H  O.  137 

piezo  da  Mitra  de  Hiponia  he  entaá 
que  a  fua  humildade  he  a  mais  pro- 
funda, o  feu  zelo  o  mais  fervorofo,  a 
fua  caridade  a  mais  ardente  ,  promo- 
vendo os  intereííes  da  Religião ,  de 
que  era  folícito  5  e  vigilante  cultor? 
Quem  mais  terno  com  os  pobres  , 
que  como  pai  o  bufcavaó ,  para  que 
cobríndo-lhes  a  defnudez  ,  e  maran- 
do-!hes  a  fome,  lhes  fuavizaíTe  os 
males  porque  paíTavaÔ  ?  Podia  af- 
firmar  com  aquelle  Príncipe  da  Idu- 
mea  ,  que  a  commiferaçaõ  ,  e  a  pie- 
dade nafceraó  com  eile.  Nas  fuás  do- 
enças naó  era  ínfeparavel  de  fua  ca- 
beceira, ora  adminiílrando4faes  os  re- 
médios ,  ora  confortando-os  para  fo- 
poriarem  ,  fe  naó  com  goílo  ,  com 
reíignaçaô  a  fua  cruz,  pofto  que  pe- 
zada?  Quem  mais  déftro,  e  incanfa- 
vel  guiando  ,  e  conduzindo  as  almas 
pelas  efcabrofas  varédas  dâ  perfei- 
ção ?  Caftas  Virgens,  confeíTai  vós  , 
le  naó  era  Agoftinho  quem  vos  *in- 
flammava  para  vos  uuirdes  a  J  e  s  u  s 
Chrifto  com  o  laço  de  hum  confor- 
cio  quali  angélico ,  pizando  o  Mun- 
do , 


Mi 


n 


fjS  o  R    A   Ç  A  8 

do,  as  fuás  pompas ,  e  as  fuás  enga- 
nadoras vaidades  ? 

Que  Ímpia  Seita  defpontou ,  e 
nafoeo  nos  feus  dias  ,  que  naò  arran- 
caíle  ?  Que  duvida  que  com  a  fua 
doutrina  nao  efclareceíTe  ?  Que  Dog- 
ma, ainda  que  fortemente  combatido,  J 
que  naó  fuftentaíTe?  Qaando  a  Igreja  * 
gemia  debaixo  de  alguma  per fegui*^ 
çaô,  nao  era  fempre  o  Teu  apoio?  Nos 
feus  triunfos  ,  o  feu  braço  naô  era 
fempre  quem  mais  fe  aífignalava ,  le« 
vantando  fobre  as  ruinas  dos  Pelagia- 
nos ,  dos  Donatiílas  ,  e  dos  Manir 
cheos  o  troféo,  que  immortaliza  na 
poíleridade  a  fua  gloria?  Oh  grande 
Agoftinho,  naó  fó  pelo  que  obras  , 
mas  peio  que  eníinas !  Quem  te  naô 
louva?  Qui  fecerit ^í^  docuerity  hic 
magnus  vocabitur. 

Já  me  naô  admira,  que  unindo 
com  a  íimplicidade  de  pomba  a  af- 
tucia  de  ferpente  ,  de  forte  preve- 
jiiíTe  09  damnos  ,  que  podiao  lavrar 
no  Chriftianirmo,  pela  malignidade 
de  alguns  chamados  Filofofos  ,  que 
querendo  com  a  fua  razaõ  penetrar 

arca- 


A  S.  Agostinho.  139 
cremos  ,  que  nem  he  licito  averigu-; 
ar^  fó  porque  os  naÔ  comprehendem, 
liegaô  os  nolíos  mais  fágrados  Myfte- 
rios,  nos  deixaíTe  nas  fuás  obras  (ma- 
raviíhofas  obras)  as  armas  para  os 
vencermos  ,  zombando  dos  foíifmas 
com  que  pertendem  i!ludir-nos!  Q^ie 
para  que^  perfeveraíTe  na  terra  a  íua 
memoria,  depois  que  a  fua  alma  cin- 
giíTe  no  Ceo  a  coroa  ,  que  lhe  com- 
petia, fundaíTe  fantos  Moíleiros,  pa- 
ra os  quaes  iranímigrando  o  feu  ef- 
pirito  viííemos  com  o  feu  Inftituto 
reproduzidas  as  fuás  virtudes  !  Taes 
fois  vós  ,  Senhoras  ,  que  na6  dege- 
nerando do  tronco,  de  que  fois  pre- 
ciofo  fruto,  teceis  com  a  voíTa  exaâ:a 
obfervancia  o  mais  delicado  elogio 
de  Agoftinho. 

Já  me  nao  admira  ,  que  até  nos 
feus  erros  fe  fizeíTe  grande ,  confef- 
fando-os  publicamente  ,  e  deixando- 
os  gravados  na  lembrança  de  todos, 
para  dar ,  ainda  depois  de  feu  glorio- 
fo  traníiío,  hum  irrefragavçl  teílimu- 
nho  de  fua  humildade  ,  igualmente 
que  de  fua  penitencia.  Vós  fabeis  co- 
mo 


1 


u 


,  /• . 


,,|;^l 


'146  O  R  A  Ç  A  6 

mo  nós  fomos  indulgentes  com  oÉ 
noíTos  defeitos  ,  querendo  ,  já  que 
Jiãô  defculpallos,  ao  menos  encubril- 
]os  ,  apagando-os  da  memoria  dos 
homenç.  Agoílinho  pelo  contrario  : 
como  os  divulga  1  como  os  perpe- 
tóa  ,  deixando  no  livro  de  fuasCon- 
íifsóes  eternizadas  as  fuás  primeiras 
maldades,  que  podiao  ferdefcul  pa- 
das facilmente ,  attendendo  aos  feus 
pouco  experimentados  annos ! 

E  fera  maravilha  ,  que  o  fek 
amor  para  com  Deôs  fe  refinaffe  tan- 
to ,  que  íuíFócado  todo  o  temor  fer- 
vi!, naô  ceflaíTe  de  exclamar  :  Eu  vos 
amo,  mas  fem  que  as  vojfas  promef- 
fas  me  animem  ,  e  as  vojfas  amea- 
ças me  att errem.  NaÕ  he  o  medo  do 
Inferno ,  nao  he  a  ej per  anca  da  Glo* 
ria  porque  eu  vos  amo,  E  que  tar-- 
de  vos  conheço  ,  ó  antiga  ,  ó  nova, 
belleza ! 

E  naõ  feria  natural ,  que  fentin- 
do  também  a  Africa  a  defgraça  por- 
que paflava  o  Latino  Império,  quaíi 
aífolado  do  furor  dos  Bárbaros  ,  vcn- 
do-fe  Hiponia  cercada  doExercito  ini- 

mi- 


A  S.  A  G  o  S  T  I  N  H  o.         141 

tnigo,  como  filhos  aos  braços  do  pai 
carinhofo  ,  correíTem  todofe  á  prefen- 
ça  de  Agoítinho  para  lhes  acudir  ? 
E  que  enternecido  de  íuas  lagrimas 
pediíTe  a  Deos ,  que  embainhando  a 
efpada  de  fua  ira  ,  falvafle  o  feu  cha- 
ro  rebanho,  naõ  fó  do  damno  tem^ 
poral,  que  o  ameaçava,  mas  do  pe- 
rigo que  corria  a  íua  Fé  entre  ioi- 
migos  de  noíFa  Religião  :  concluin- 
do 5  que  ou  fortificaíTe  a  lua  decrépi- 
ta velhice,  para  fe  oppor  a  tantos  ef- 
tragos ,  ou  terminaíFe  a  carreira  de 
fua  vida  ,  para  naÕ  Ter  trifte  ,  e  in- 
confolavel  expedlador  de  tantos  ma- 
les ? 

Defcança ,  Ínclito  Agoftinho  :  as 
tuas  preces  faô  deferidas :  porque  car- 
regado deméritos,  e  de  virtudes  , 
mais  que  de  annos  ,  devorado  de  tua 
caridade  ,  de  quem  fofte  fempre  a 
viílima  ,  naó  como  huma  arvore  que 
fe  arranca  ,  mas  como  huma  luz  que 
fe  apaga ,  repoufas  erernamente  no 
feio  de  teu  Deos  ,  por  premio  daa 
«cçoes  heróicas  ,  com  que  te  fizefte 
grande  na  içrra  ^  grande  no  Ceo  t, 


TT-m 


I4^  Ora  ç  a^ 

Quifecerit ,  í^  docuerity  hic  magnuf 
'vocabitur. 

Agora  reílava  que  volveíTe  para 
vós  a  minha  Oração,  congratulando- 
me  comvoíco  pelo  Pai  que  tendes. 
Mas  íe  he  vantajofa  a  voíía  felicida- 
de, participando  da  honra  que  confe- 
guio,  facudindo  o  jugo  que  por  com- 
pridos annos  lhe  trilhara  a  quali  cale- 
jada cerviz:  íe  he  vantajoía  a  voíTa 
felicidade  convertendo-fe  para  o  feu 
Deos  pela  íabedoria  aprendida  nas 
Chagas  de  Jesus  Chrifto  ,  bebendo 
como  Águia  raio  a  raio  as  luzes  da- 
qutlle  Sol  dejuíliça,  que  adoramos 
no  Sacramento  Auguítode  noíTos  Al- 
tares :  fe  he  vantajofa  a  voíTa  felici- 
dade pelas  proezas  ,  que  executou  , 
cumprindo  fielmente  os  deveres  do 
íummo  Sacerdócio  que  o  decorara  :j1 
quanto  maior  fera  a  voíía  ventura  ,  fé| 
perfeverando  fegurardes  a  voíTa  finalj 
juftiBcaçao,  para  que  como  Filhas  de 
Âgoftinho  na  terra,  participeis  de  fuaj^ 
grandeza  no  Ceo  i 


DIíTe. 


ORA^ 


MJ 
O  R  A  q  A  Õ 

A   SANTIAGO. 

Poteftis  bthere  calicem\  qtiè^  ego  hi^ 
bit  urus  Jum}      Manh.  c.  20. 

A  Cruz  he  o  património  dos  juf- 
tos.  Sem  padecer  ninguém  fe 
falva.  He  efte  o  exemplo,  que 
Jesus  Chrifto  nos  deixou  gravado  nas 
acções  de  fua  vida  :  he  efta  a  doutri- 
na ,  que  nós  lemos,  definida  ,  e  ca- 
nonizada no  fanto  Evangelho. 

Eis-aqui  porque  quem  naõ  tiver 
valor  para  arroílar  os  perigos  ,  e  a 
morte ,  bebendo  o  cálix ,  ainda  que 
amargofo  ,  da  tribulação ,  sãmente  fe 
lifongeará  j  com  a  efperança  de  con- 
feguir  o  Reino  de  Deos  :  Reino  qtte* 
fó  os  violentos  arrebacao.  \ 

Eu  nao  neceífito  revolver  os  Fa*^ 
fios  da  Synagoga  ,  e  da  Igreja,  para 
engrazar  humas  com  outras  as   pro- 
\dk%  da  verdade  ^  que  i^%  digo.  Baf- 


f  "H 


I 


'I!  i^ 


3:44  O   R    A   Ç  A   6- 

ta  trazer-vos  á  memoria  o  grande  Pa- 
trão das  Hefpanhas,  a  quem  vós  com 
os  voíTos  cultos  confagrais  os  vof- 
fos  corações.  Santiago  Maior :  nome 
que  vale  por  muitos  elogios. 

Mais  que  nos  feus  ouvidos  foa 
na  íua  alma  a  voz  ,  que  das  ribei- 
ras de  Galiléa  o  chama.  He  voz  de 
Deos  5  que  nem  honras  ,  nem  ri- 
quezas lhe  promette  :  bens  de  que  o 
Mundo  enganador  coíluma  tecer ,  e. 
matizar  os  laços  com  que  nos  pren- 
de :  mas  trabalhos  ,  e  perfeguiçõee 
que  faò  os  frutos  que  colhe  ,  quem 
contradizendo  fempre  a  fua  vontade, 
vive  conforme  a  juftiça.  Com  que 
goílo  pois  lhe  naÔ  obedece,  fazen- 
do prompta  ,  e  generofa  abdicação 
do  que  poíTue  para  melhor  o  feguir? 
Ora  eu  ,  que  em  cumprimento 
àp  miniílerio  que  exercito  ,  me  nao 
devo  demorar  com  propoíições,  ain- 
da que  engenhofas  ,  eftéreis ,  determi- 
no moftrar-vos  já  no  zelo  com  que 
propaga  por.  Climas,  e  Regiões  re- 
motas a  luz  do  Cruciíicadoj^já  na 
intrepidez  com  que  foporta  q  mar-? 


A   SanTI  A  G  O.'  145' 

tyrio,  efmaltando  com  o  fangue,  que 
verte,  as  palmas,  de  que  enrrama  a 
vidloriofa  téíla,  a  fidelidade  com  que 
Santiago  correfponde  á  fua  vocação : 
única  reflexão,  que  traça  o  plano  do 
Panegyrico,  que  vou  a  recitar  na  vof- 
fa  preiença. 

k  Grande  Sacerdote  ,  na6  he  fó  a 
pobreza  de  meus  talentos  ,  que  em- 
bargando-me  na  garganta  as  palavras, 
me  intimida  \  também  o  refpeito  me 
atalha.  Mais  que  o  fangue  Régio  qée 
vos  authoriza,  amo  as  virtudes  bellas 
que  vos  ornao.  Os  retratos  daque.l-^ 
les  Príncipes,  que  pendiao  de  voíTas 
antecameras  no  Século,  Príncipes  de 
quem  derivais  a  origem  ,  as  inípi- 
rárao  :  aperfeiçoando-fe  depois  nb 
Clauílro  ,  de  que  benevolência  vos 
nao  encherão  agora  para  me  defcul- 
pardes  !  Euvo-!o  peço  :  Eu  o  cfpe^ 
ro.  E  na  certeza  de  que  me  atten- 
dereis  com  benignidade  ,  fem  mais 
proemios,  que  reputo  efcufado??,  en- 
tre-fe  na  empreza  promsítida.  Eu 
começo  3  Senhores» 


M 


K 


Con-í 


'  ■ 


146 


o   R   A    Ç   A    6 


/f^  Onfundo-me  ,  fempre  que  íizu* 
V_^  damente   coníidero  ,  que  fendo 
a  Gloria  o  principal  objedio ,   a    que 
devemos  encaminhar  os  noíTos  votos  y 
a  Gloria  ,  Senhores  ,  para  que  Deos 
nos  cria  ,  para  que  Deos  nos  chama, 
com  tudo  fao  muito  poucos  aquelies,< 
que   para   a  confeguirem   correípon- 
dendo  fielmente  á  ília  vocação,  appli- 
caô  as  precifas  diligencias.   Engolfa- 
dos ,  e  íorvidos  nos  goílos  vãos  do 
Mun^o  ,   que  ainda  que  por  dourada 
taça  fe  bebaõ,  deixaô  no  fundo  amar-   j 
gofas  fezes  ,  naÔ  he  com  hum  vergo-  1 
nhofo  defprezo  da  fanta  Lei,  que  pro^ 
feíTamos,  que  fe  paíTa  a  vida  toda  ? 
Nefcios ,  exclama  da  Cadeira  de  Hi- 
ponia   o  voíTo  eílimadiílimo  Agoílí- 
nho  y  que  fentados  fobre  as  margens 
dos  rios,  que  torneiâo  os   muros  da 
proítituida  Babjlonia  ,  nao  he  de  ef- 
trellas  que    fe   coroao  ,  mas  de   flo^ 
les ,  que  ,    ou  com  qualquer  Sol   fe 
iBurchao,   ou  com  qualquer  vento  fe 
desífoihao.    f 

Eu  me  admiro  mais,  repaíTando 
.3  pe- 


HT"^-. 


A  S  A  N  T  r  A  G  o;  147 

peia  minha  lembrança  ,  as  folicitas 
fadigas  ,  com  que  a  mor  parte  dos 
homens  aíFanando-fe  fe  esforçaô,  para 
mandarem  á  poíteridade  a  íua  fama, 
por  melo  de  humas  acções  ,  que  fe 
naõfaô  temerárias,  necellirao  ao  me- 
nos de  hum  valor  heróico  ,  para  fe- 
rem ,  naó  digo  eu  já  executadas,  mas 
íimplesmenre  comprehendidas.  Que 
os  Euros,  e  os  Aquiloes,  folros  do  cár- 
cere; aonde  como  leÓes  raíyofos  bra- 
mem aíFerrolhados  ,  e  prezos  ,  decla- 
rem a  guerra  a  eíTes  lenhos  nada- 
dores, que  oufados  atraveííaó  os  Re?- 
nos  procellofos  de  Neptuno  :  que  ef-^ 
tremeçao  o  ar  accezas  b^JÍas,  cobrin- 
do de  fumo,  e  de  horror  os  enfan- 
guenrados  campos  de  Marte  ,  eíles 
naÔ  fao  perigos  que  congelem  nas 
veias  o  fangue  ao  Argonauta  aíFoito^ 
que  ericem  na  cabeça  os  cabellos 
ao  Capitão  intrépido  !  Nao  reprovo 
eftas  gentilezas  de  efpirito,  Sao  ju- 
ftos  os  applaufos  ,  que  univerfalmen- 
te  alcançao.  A  Pátria  ,  a  honra  ,  e  o 
Rei  ,  merecem  muitas  vezes  eííe  fa. 
erificio.  Mas  quem  obra  taó  eftupen. 
K  ií  das 


mm 


14?  O   R    A  Ç   A   8 

das  maravilhas  ,  para  grangear  íiúrit' 
nome ,  que  as  mais  das  vezes  fe  con- 
funde com  o  rude  ,  e  groíTeiro  pó  da 
fepultura  :  porque  nao  infiftirá  refo- 
luto  na  conquifta  de  huma  gloria  , 
que  nem  o  tempo,  por  mais  que  ra- 
pidamente volva  a  roda  de  feus  ân- 
uos ,  nem  a  inveja  ,  por  mais  que 
refine  o  veneno  de  feu  ódio,  nos  po- 
dem tirar  ?  Huma  gloria  eterna. 

ConfeíTo,  que  com  a  noíTa  natu- 
reza eítragada  pela  culpa,  mais  fe  con- 
formao  os  regalos,  que  as  mortifica- 
ções. Porém  aicançaraó-íe  nunca  pré- 
mios grandes  com  difpoíiçoes  vul- 
gares ,  como  da  eminência  do  Vati- 
cano aíiirma  S.  Gregório  ?  Vede  o 
que  faz  AbrahaÔ  para  obter  a  benção 
promettida.  Qiiebra,  e  defpedaça  to- 
das aqueilas  cadeias,  com  que  o  amor 
natural  tao  forte  ,  como  fuavemente 
nos  prende  desde  o  berço.  Naô  fò 
fe  arranca  daquella  terra  ,  que  co- 
mo fegunda  mai  carinhofamenre  nos 
recebe  no  feu  regaço  ,  mas  daquelles 
primeiros  ares  com  que  refpiramos 
a  doce  vida»  O  braço,  que  defembai- 

nha- 


I 


ik  ^'1 


■i'.    J^X'. 


A  -S  A  N  T  I  A  G  o;  149 

«hara  o  cutelo  para  vibrar  o  golpe 
febre  a  garganta  do  innocente  filho, 
ainda  parece  que  eonvulío  ,  e  aíTuf- 
tado  treme.  Dçiíça  o  certo  pelo  du- 
vidofo  ;  o  prefenre  pelo  futuro  :  dei- 
xa tudo  3  crendo  na  efperança  con- 
tra a  efperança.  E  vós  entre  brandos, 
e  mimoíos  prazeres  ,  quereis  cingir 
na  cabeça  a  coroa  de  vencedores  fem 
^deftrardes  primeiramente  a  mão  na 
peleja  ?  Non  coronahittir  ntfi  qui  le- 
gitime certaverh, 

Bellas  ,  ainda  que  afperas  verda- 
des,  como  embebendo-vos  no  cora- 
ção de  Santiago  illuílraíles  o  íèu  en- 
tendimento ,,  pára  correfponder  fiel- 
mente no  feu  Appílolado  á  fua  vo- 
cação, que  he  o  meu  aííumpto!  Nao 
faílo  na  promptidaô,  com  que  de  tu- 
do o  que  poíTue  faz  género ío  faeri- 
ficio  para  feguir  o  feu  J;^us.  Conhe- 
ce que  o  jMundo  he  humá  figura  que 
ÍDaíTa  :  as  fuás  honras  fe  bfilhao,  he 
com  hurha  luz,  que,  como  a  do  re- 
lâmpago, mais  do  que  efclarece,  def- 
lumbra.  Eílreitos  vínculos  do  fangue, 
íloces  laços  da  amizade,  riquezas ,  na* 
d^.  Q  prende,    -  -  -^^^ 


10  O  R   A   |f  â  B'^ 

Nao  fallo  íio  ardor  com  que  íu* 
bindo  de  virtude  em  virtude  á  ma* 
neira  de  Águia  real  ,  que  eftendçn- 
do  o  voo  fé  remonta  por  cima  dâ^ 
nuvens  ,  começou  a  entranhar^fe  no 
coração  de  feu  Meílre.  Naó  he  horn 
dos  Dilbi pulos  mais  amados  do  Re- 
demptor  ?  Se  fe  transfigura,  nao  o 
quer  por  teftimunha  ?  Havendo  de 
tornar  á  vida  a  filha  morta  do  Archi- 
íinagogo,  nao  o  chama  para  que  pre- 
fencee  aquelle  prodígio  ?  Antes  que 
ééÇ[c  principio  á  tragedia  (  fuiíeíliíli- 
una  tragedia)  de  íua  PaixaÓ  ,  êmbre- 
nhando-fe  na  efcuridade  da  iloite  pe- 
io monte  das  Oliveiras  para  orar , 
nao  o  leva  por   teftimunha  ? 

Nao  fallo  na  fua  ardente  cari- 
dade ,  exercitada  com  o  próximo. 
Deixou  acafo  de  acudir  fempre  á 
neceílidade  dos  pobres  ,  que  como 
Pai  o  bufcavao  para  que  os  foccor- 
reÇÇe}  Seníivel  aos  males  porque  paí^ 
fa  a  mefquinha  humanidade  na  falta 
dos  bens  de  que  precifa  para  a  fuâ 
fubíiftencia  ,  reftos  defgraçados  da 
culpa  da  origem ,  que  todos  con- 
tra- 


A  Santiago;  ifi 

trahimos  ,  de  que  terna  compaixa6 
fe  nao  enchia  ?  Cs  mais  defampara- 
dos  naÓ  erao  os  mais  favorecidos?  A 
quantos  roílos  pállidos  ,  e  defcarna- 
dos  tornava  com  a  alegria  a  paz,  e 
o  focego,  de  que  esbulhados  eíia- 
vaô;  matando  a  huns  a  fome,  cubrin- 
do  a  outros  a  esfarrapada  ,  e  vergo- 
nhofa  desnudez  ?  Eíías  nao  faô  co- 
res, que  eu  artiíicioíamente  efteja  car* 
regando  na  palheta  para  fazer  mais 
recommendavel  a  memoria  de  San- 
tiago. Conheço  as  minhas  obrigações. 
A  minha  língua  naô  devo  profanai- 
la,  e  corrompelia  com  exprefsoes  que 
nao  fejao  levadas  á  balança  do  San- 
tuário. O  que  vos  digo,  fa6  verdades, 
que  conílaô  das  Adas  de  fua  vida  : 
faõ   verdades  inconrroverfas. 

Com  humas  qualidades  tao  ra- 
ras, com  humas  virtudes  tao  fólidas, 
com  humas  difpoíiçoes  tao  antecipa^! 
das,  nao  me  admira  que  Santiago  no 
feu  Apoíloiado  lâvrâlTe  a  eílatua  com 
que  a  fama  engroííando  o  brado  tem 
feito  inmmortal  no  mundo  o  fcu  No- 
me amável.  Zelo,  quç  devoravas,  de- 
tém 


T«" 


mn 


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ly^-  o    R    AÇA   6 

tem  a  torrente  de  erpecíes  ,  que  agò* 
ra  me  mandas.  No  meio  de  hum 
concurfo  de  acções  ,  que  como  de 
tropel  íe  me  eítaô  apreíenrando  ,  to- 
das dignas  de  fe  ponderarem  ,  he- 
róicas todas  ,  nenhuma  difficuldade 
tenho  de  vos  affirmar  ,  que  a  mim 
me  íuccede  o  meímo  ,  que  áquelles 
que  atrevidamente  fe  põem  a  regiílar 
os  raios  do  Sol ,  fem  o  foccorro  de 
algum  vidro,  que  tempere,  e  modifi- 
que a  brilhante  copia  de  íeus  refplan- 
dores  ,  que  nao  podendo  fuílentar  a 
aidividade  de  fuás  luzes,  tímido,  en- 
vergonhado, e  confuío,  fixa  os  olhos, 
volta  a  cara,  quaíi  cego  defifte  da 
empreza. 

Mas  ainda  que  emmudecendo  eu 
as  omirtiíTe,  o  publico  pregão  ,  que 
TiOs  íioíTos  ouvidos  conílantemente 
foa  ,  nao  confeíTará  que  na  fua  em- 
prendida  carreira  ^  nada  houve  que 
ihe  embargaíTe  o  rápido  pé,  trazen- 
do feuipre  pendente  de  íeu  braço  a 
ViCioriâ  ? 

NaÔ  confeíTará,  que  como  agri- 
cultor foliei £0  fazia  reverdecer  já  na 

Ju- 


A    S  ANTI  A  G  O.  Ifj 

Judéa  ,  já  na  Samaria  novas  plantas^ 
que  curvadas  com  o  pezo  de  fazo- 
nados  frutos  ,  derao  de  fuà  fé  in- 
conteílaveis  provas  no  brio  com  que 
foportaraô  os  rigores  da  perfeguiçao, 
levantando  fobre  as  ruinas  da  Syna- 
goga  os  troféos  de  fua  gloria  ?  Nao 
confeílará  ,  que  atropellando  longas 
diftancias  a  pé ,  defcako  ,  toftado  do 
Sol  5  e  enregelado  do  frio  ,  fe  nao 
forrava  a  trabalhos  ,  que  fó  ao  feu 
fervor  pareciao  Toporraveis  ,  arran- 
cando na  Hefpanha  a  zizania  que  af- 
fogava  o  trigo  ?  quero  dizer  ,  a  fal- 
fa  idolatria  ,  que  lavrava  como  fo- 
go,  que  cm  fecco  mato  pega? 

Duro,  mas  gloriofo  projeflio,  nao 
já  combater,  mas  arruinar  huma  Sei- 
ta ,  que  os  bens  ,  que  promette  aos 
feus  fequazes,  faõ  viíiveis  :  que  abre 
ás  honras,  aos  deleites,  e  aos  applau- 
fos  hum  eípaçofo  campo.  Vós  fabeis 
como  eftas  armas  faÔ  forres  para  com- 
baterem o  fraco  coração  do  homem. 
Com  tudo  Santiago  falia.  Perdoai-me 
que  nao  diíTe  bem.  Troveja.  Nao  íao 
palavras  que  articula  j  faó  raios  que 

fui- 


u 


fS^  o  RAÇA   6 

fulmina,   Perfuade  ,   convence ,  inti- 
mida 5  triunfa. 

Qual  detéfta  os  feus  craíTos  er- 
ros :  qual,  para  os  pizar,  derriba  da 
4ra  os  mentirofos  Numes  :  aqueJJes 
renunciando  pelo  baptifmo  as  pom- 
pas profanas  ,  cubertos  de  cinza  ,  e 
de  ciJicio,  deciaraô  aos  vicios  fan- 
guinofa  guerra  :  eítes  accendendo  nas 
luas  almas  defejos  de  perfeição  ,  pro-- 
íeítaõ  y  com  o  ApoftoJo  proteílaõ^ 
que  com  os  alfanges  na  garganta  , 
que  com  as  algemas  nos  puifos  feraõ 
iníeparaveis  da  fé  de  Jesus  Chriílo  , 
que  Santiago  ,  correfpcndendo  fiel- 
mente a  íua  vocação,  lhes  pregava. 

Porém  que  lagrimas  correm  por 
tantas  conílernadas  faces  ?  Qiie  ais 
me  parece  que  íoaõ  ainda  pelos  fiu- 
idos  ares?  Jeruíalem,  naô  eílás  ainda 
farta  do  Sangue  de  Jesus?  Ha  de 
também  o  fangue  de  Santiago  alagar 
as  tuas  praças  ?  Porque  reduz  Hermo- 
genes  o  Magico  aò  grémio  da  Igre- 
ja^  he  que  tu  re  confpifas  contra  o 
zeiofo  Apoílolo?  Nem  te  obrigao  os 
beneficiou  que.te  fez  ?.  A  que  cegos 
-. ...  '         naô ■' 


H  V 


A   S  À  N  T  I  A  G  O.  Ijf 

rja6  reftitue  a  eclipfâda  viíla  ?  A  que 
mudos  nao  defata  as  prezas  línguas  ? 
Vê  como  aquelle  paralytico  ,  folros 
os  engelhados,  e  tolhidos  membros, 
anda  livremente  :  E  naõ  te  confun- 
des? 

Sabia  Santiago  ^  que  para  cor4 
refponder  fielmente  á  íua  vocação, 
importava  muito  beber  ,  e  efgotar  as 
fezes  do  amargofo  caliz :  fabia  que 
fem  padeeer  ninguém  Te  falva  :  que 
em  fim  a  Cruz  he  o  património  dos 
feguidores  de  Jesus  Chriílo.  Que 
o  prendao  :  que  carregado  de  ferros 
o  lancem ,  e  arrojem  em  efcuro  ,  e 
hórrido  cárcere:  que  a  fome  o  atte- 
núe :  que  a  fede  o  mirre  :  eíles  naÔ 
faõ  tormentos  que  o  aíTuílem  ,  fao 
flores  de  que  guarnece  a  grinalda 
que  cinge.  Reverberando  no  feu  ro- 
íio  a  gloria  que  eípera;  com  que  ale- 
gria naô  eílende  a  garganta,  para  que 
vibrado  o  golpe  voe  de  eílrella  em 
eílrella  a  gozar  no  Empyreo  a  bera- 
aventurança  de  que  eternamente  g  za! 

Agora  efperaveis  vós  ,  Senho- 
res,  que  congratuiando-me  comvof* 

CO, 


ts6  Ora  q  a  6      \ 

CO,  me  trasladafle  a  Compoftella,  aònií 
de  em  paz  defcança   o  feu  Corpo  2 
que  vos   referiíTe  hum    por   hum  os 
prodigios,  com  que  canoniza  o  íeu 
poder  ,   attrahindo   do  Mundo   to- 
do  os  Peregrinos  cheios  de  fé  ,    que 
lionrando    o   feu    fepulchro    deixao 
de  fua   gratidão    illuítres  monumen- 
tos, nos  votos,  que  pendem  das  fa- 
gradas  paredes   daquelle  Santuário: 
que  vos  diíTeíTe  ,  que  no  Reinado  de 
D.  Ramiro  he  que  teve  principio  a 
voíTa  illuílriífima  Ordem  ,  dignando- 
fe  Santiago  de  ajudallo  nas  fuasCon- 
qujftas,  quando  na  famofa  Batalha  de 
de  Clavijo  appareceo   fobre   foberbo 
ginete  ,  cortando  com  a  fua  efpada 
os  louros,  de  que  a  noíía  fé   fe  coro- 
ara, de  que  foraô  teílemunhas  feíTen- 
ta  mil  Sarracenos  ,  por  cima  de  cu- 
jos defpedaçados  cadáveres  tremolou 
por  muito  tempo  vidloriofo  o  Eílan- 
darte  da  Cruz  :  que  vos  teceffe  hum 
luzido   catalogo    daquelles    Cavallei- 
Tos  ,   que  feguindo  o  voiTo  ínílituto, 
deraô  de  fua  religião  ,  e  de  feu   va- 
lor brilhantes ,  e  perennes  provas. 


A  S  A  N  I  I  A  G  o:  10 

Nao,  Senhores,  o  zelo,  e  a  in- 
trepidez ,  com  que  Santiago  correí- 
pondeo  á  íua  vocação,  para  outro  ar- 
gumento me  chamaõ.  Os  Cânones 
melhor  entendidos ,  naõ  foíFrem  que 
vós  vibreis  a  efpada  ;  mas  para  fer- 
dcs  imitadores  de  Santiago  ,  que 
larga  matéria  naô  tendes,  já  cobrin- 
do a  deínudez  dos  pobres ,  já  con- 
correndo para  a  liberdade  dos  Cati- 
vos, já  pro'movendo  com  o  voíío  ex- 
emplo a  Religião  de  que  fois  Mini- 
ílros  \  O  fangue  nobre,  que  vos  ani- 
ma ,  fangue  Portuguez  ,  que  eílimu- 
los  vos  nao  dará  para  deíempenhar- 
des  os  voíTos  deveres  ?  Ante  os  vof- 
fos  olhos  tendes  o  efpelho  a  que  vos 
componhais.  He  como  obrigareis  a 
Santiago  :  he  como  confguireis  a 
Gloria  para  que  foíles  creados. 


DiíTeJ 


ORAí 


tss 


o  R  A  Ç  A  Õ 

A'  CONCEIÇÃO. 

Mari^y  ãe  qua  na  tus  eft  JESUS. 
Matth.  c.  I. 

ENxLigai,  Santos  Patriarcas,  a» 
lagrimas,  que  ha  longos  tempos 
correm  por  voíías  crefpas  ,  e 
enrugadas  faces.  As  fupplicas,  que  fa- 
zíeis aos  Ceos  para  que  fe  raígaíTcm, 
ás  nuvens  para  que  choveíTem  como 
orvalho  na  rofada  manha  o  Juílo  ,  e 
o  Salvador,  deferidas  eftao.  Já  paííbu 
o  afpero  ,  e  engeiliado  Inverno.  Por 
entre  as  efpeffas  ,  e  carregadas  fom- 
bras ,  que  cobriaó  defuílo,ede  hor- 
ror o  Mundo  ,  vede  como  raia  no 
horizonte  a  ferena  ,  e  roxa  aurora  ! 
Eílá  concebida  M^ria.  De  feu  caíto 
feio  ha  de  nafcer Jesus,  o  grande,  e 
o  forteLibertador  de  Jírael.  Difpon- 
do-vos  para  beijar  o  pé  ,  que  intré- 
pido calcará  a  cabeça  da  manhofa 
-i^:.'  ^^  Ser. 


A   CONCEIÇ  AO.  IfT? 

Serpente.  Poucos  fa6  os  triíles  mo- 
mentos de  voiTo  cativeiro.  Os  ferros 
que  nrraílais  era  terra  alheia,  cedo 
fe  quebrarão.  Tornai  a  pegar  nos  ór- 
gãos ,  que  pendiao  dos  ramos  dos 
lalgueiros,  Eílremeça  o  ar  com  o  éco 
de  voíTos  Hymnos.  Todas  as  demon- 
ítraçòes  de  contentamento  que  fizer- 
des,  devidas  fao  a  hum  Myílerio ,  que 
he  a  bafe  de  noíTa  felicidade. 

Senhores,  a  terra  toda  inundada 
de  alegria  com  a  Conceição  da  Vir- 
gem:  e  as  fuás  virtudes  taó  folidas  > 
e  os  feus  privilégios  taó  raros,  e  as 
fuás  graças  taô  exceifas  :  aquellas 
prerogativas  nunca  concedidas  a  ne- 
nhuma creatura  puramente  humana  , 
a  nenhum  Anjo  concedidas  ,  aílim  co-, 
mo  fao  a  fonte  de  noíTas  admirações, 
porque  naô  feraô  também  o  aíTumpto 
de  noíTos  louvores  ?  Neíles  termos , 
vós  me  haveis  permittir,  que  fuppon* 
do  a  Makia  pura,  e  immaculada 
naquelle  inílante^que  a  conflitue  úni- 
ca entre  a  criminofa  poíleridade  de 
Adão ,  fem  mais  proemios  que  repu- 
to efcufados ,  eu  vos  moítre  qual  he 


'mmm 


Séo  O  R  A  Ç  A  6 

a  grandeza  a  que  fe  eleva  ,  quaes  as 
utilidades  de  que  íie  para  nós  fértil, 
e  inexhaurivel  principio  a  fua  Con- 
ceição fantiílima  :  duas  Reflexões  que 
fazem  a  divifaó  do  Panegyrico,  que 
por  obedecer-vos,  cheio  de  gofto  lhe 
Gonfagro.  E  fe  me  dais  licença,  entre* 
fe  já  na  empreza  promettida.  Eu  co- 
meço, Senhores. 

Primeira  Reflexão* 

QUe  vos  parece  ,  Senhores ,  que 
querendo  eu  dar-vos  huma  idéa 
da  grandeza  a  que  Ma  ria  fe 
eleva  na  fua  Conceição ,  eu  me  po- 
rei de  propoíito  a  referir-vos  a  efcía- 
recida  eílirpe  de  que  procede?  Que 
amoldando  me  ao  coftume  dos  Pa- 
negyriílas  profanos  ,  eu  metterei  os 
braços  ,  eu  revolverei  as  cinzas  da- 
quelles  Patriarcas  ,  que  mandarão  á 
poíleridade  as  primeiras  noticias  da 
Religião  ,  confervando  no  meio  da 
corrupção  dos  Povos  a  Lei  natural  na 
fua  pureza  ?  Daquelíes  Capitaens  , 
que  enlouradas  as  luas  frentes,  defen-. 

de- 


Tf? 


^ 


A   C  o  N  C  E  I  Ç  A  o.  l6t 

dfrra6  com  as  efpadas ,  e  com  as  vi* 
cias  na  réfla  de  guerreiros  Exércitos  a 
Arca  da  Alliança  P  Daquelies  Princ^- 
pes,  a  quem  Deos  pelos  feus  Profetas 
cingio  as  Coroas  ,  que  cfgotaraõ  os 
theíòuros,que  pofluiaó,  na  fabricada 
Tabernáculo  ,  cantando  debaixo  dê 
agradáveis,  e  engenhofas  imagens  aè 
fom  de  fuás  ly^ras  ,  os  amores  do  efr 
perado  Meílias  com  a  íiia  Igreja  ? 

Ah,  que  eftes  nao  faò  mais  que 
huns  languidos  ,  e  efcaíFos  clar6ês  de 
fua  gloria  !  Qs  Sceptros  alndà  que 
preciofos  :  os  Eílados  ,  poílo  quç 
opulentos  nada  a  deívanecem.  Dig- 
na áika.  dos  Reis  de  Ifraei  :  legici*» 
má  fucceíFora  do  ufurpado  Sólio  de 
David  5  naó  he.  marávilhofa  a  fonte 
de  fua  elevação  ?  A  fua  humildade  : 
Quia  refpexít  humilitatern  andllíe 
fu£  ^  ecce  enim  ex  hoc  beatam  me 
dicent  omnss  generationes  ?  Pé  f  fidos 
amadores  do  Século  enganador,  que 
documento  para  vós  ,  que  feiamente 
cfquecidos  do  pó,  de  que  todos  fo- 
mos amaífados  ,  nenhum  ca fofazêiâ 
de  huma  virtude^  que  he  a  cba^vecom 
L  que 


ism 


-i  " 


n  t 


|í^2  O   R    A    Ç   A    d 

que  fe  abrem  os  cofres   da  graça  i 
que  he  a  fonhada  Efcada  de  Jacob  , 
por  onde  da  terra  fe  fóbe  ao  Geo? 
Que  vos  parece?  que  para  attra- 
Jhir  mais  facilmente  os  voíTos  ânimos, 
éu  me  applicarei  a  traçar-vos  huma 
pintura  íimples ,   mas   agradável  de 
lua   rara  formofura  }    Daqueila  for- 
inofura,  com  a  qual  fe  íizeraõ  raô  ce-» 
lebres  no  Mundo  para  com  Jacob  hu* 
jna  Raquel,    para  com  Eiimelec  hu- 
tna  Noemi ,  para  com  Elcana  huma 
:Anna>?  Fallax  gratia  y  ^  vafia   eji 
fulchritudo.  . .  .  .1 

Ainda  que  nas  fuás  faces  amor 
xeíide ,  como  no  feu  throno  y  que  a 
graça^que  deftilJaõ  os  feus  lábios,  he 
taa  copiofa,  como  a  rairrha  que  cahé 
dos  brancos  lyrios  :  que  o  feu  collo 
he  como  huma  rorre  de  aiabaftro  : 
que  he  como  oCarmelo  a  íua  cabe^ 
ça  .;  çoírhece  Makia,  que  efte  he  hum 
bem  vão  ^  que  naÔ  dura  mais ,  que  a 
flor  mimofa,  que  o  Sol  murcha  lia  ar- 
dente féfta  ;  que  o  vento  desfolha 
fia  frefca  tarde  :  conhece  que  he  hum 
bemj  que  cora  os  cftragos,  que  o  tem-» 

po 


A  Conceição.  ^(Í| 
po  faz  volvendo  a  roda  de  féis  an- 
nos ,  perde  a  galla ,  perde  o  brio  , 
perde  tudo. 

Ao  menos,  remontando  mais  o 
meu  difcurfo,  esforçarme-heiparavos 
referir  as  fuás  virtudes  incorhprehen- 
íiveis  ?  Aquelias  virtudes,  com  quô 
excede  a  hum  Abel  com  todo  o  can- 
dor de  feus  coílumes ;  a  hum  Henoc 
com  toda  a  abftracçaõ  de  feus  reti- 
ros ;  a  hum  Jofeph  com  todas  as  va- 
lentias de  fua  conftancía  ;  a  hum  Ja* 
cob  com  todos  os  milagres  de  fua 
paciência ;  a  hum  Elias  com  todo  o 
fogo  de  feu  arrebatado  carro  ? 

Vós  pafmais  do  zelo,  com  quc! 
os  Apoftolos  efpalharao  a  sã  Doutri* 
na  do  Evangelho  ,  arvorando  o  fa- 
grado  Eftandarte  da  Cruz  ,  nao  fó  fo- 
bre  as  guinas  do  Gentilifmõ  cega 
no  Capitólio  da  foberba  Roma?  Ad* 
mira-vos  o  defengano  dos  Paulos,  e 
dos  Antonios ,  que  na  primavera  xle 
fuã  idade  /fugindo  do  Mundo  como 
de  hum  paÍ2  cmpéftado  ,  naô  fei  íé 
fe  recolhem  ,  fe  fc  enterraõ  vivos 
jias  afperas  grutas  dos  defeitos?  Se 
Lú  fe 


Uí 


!iH'  i 


1^4         ;  O  R  A  ç  A  6 

fe  fuftentaá  5  he  das  hervas  mais  vis ; 
fe  fe  vefteHi,  he  das  pellcs  mais  grof- 
feira^:  fe  dao  algum  repoufo  ao  laG- 
fo ,  e  enfraquecido  corpo  ,  he  fobre 
a  nua,  e  fria  terra  ?  Confunde-vos  o 
valor  dos  Martyres ,  que  arroílando 
impávidos  artiorté,  efmaltaõ  com  o 
fangueque  vertem,  as  palmas  queem- 
punhao  ?  Efpanta-vos.. . 

Mas-  que  lie  o  que  eu  pertendo  ? 
Acafo  moftFar-vos,  Senhores,  que  to- 
dos os  Santos  juntos  faó  huma  bai- 
xa cópia  de  taô  peregrino  original? 
Que  Maria  excede  a  todps  na  digr 
nidade^  ignalmente  que  nos  mereci- 
mentos ,  como  ao  débil  vime  o  ro- 
buílo  ,  e  corpulento  ulmeiro  ?  Quem 
tao  pego  que  o  nap  veja  ?  Quem  ha 
taq  pbílinado  ,  que  o  nao  confeííe  ? 
Origem  inculpável  5  tu  fofte  a  raiz 
de  que  defpontou  toda  a  fua  gran- 
deza! Como  furprendendo-me  meac- 
rebatas  ! 

Qye  o  Mundo  todo  mortalmen* 
te  achacaíTe  çom  a  defobediencia  de 
Adão,  ninguém  ha  entre  nós  que  o 
ignore.  ;Dcfpidos  da  cândida  eílo- 

la 


A.   C  O  N  C  E  I  Ç  À*6.  I^ 

la  da  primeira  Juíliçajunratnèntéconí 
a  innocencia  (beJla  ,  e  fórmofa  iri- 
nocencia)  perdemos  á  liberdade^  per- 
demos a  honra  ,  perdemos  a  vida  ^ 
perdemos  tudo  ,    Senhores  :    perde- 
mos a  alma.  De  filhos  de  Deos  paf- 
fámos  a  fer  efcravos  de  Lúcifer.  E 
eraõ  tao  duros  os  grilhões,  que  arra^ 
liávamos,  que  a  naô  fer  omnipoten- 
te o  braço,  que  os  quebrou  ,  ainda 
agora  gemeríamos    debaixo   de   feu 
pezo    vergonhofo  ,    e  inTopòrtavel. 
Vierao  como   de  repelaô   fobre  nós 
todos  os  males.  Huma  vontade  incli- 
nada fempre  para  o  peior.  Huns  ap- 
petites  ,  que  nao   nos  lifongeaõ ,  ty- 
rannizaò.  A  pobre  razaõ  fuffbcada , 
e  efcurécida   nò  meio  da  confufa,  e 
inteftina    defordem  das    paixões.    A 
mefma  mão  ,    que  atrevidamente    íe 
eftendeo  para  colher  da  arvore  o  ve- 
dado pomo  ,    nos  abrio   a    fepultu- 
ra  :  comemos   a  morte  :    coniemos^a 
€ondiemnaça6.  Vede  quaes  fa6  es  peP 
fimos  eíFeitos  de  hum   peccadó  P-E' 
nao  o  deteftamos  todos  ?       '     ' 
^     Mas  que  gloria  nao  he  para  Ma- 

RIA 


K.'l 


1(5^  O   R   A    Ç   A   6 

BiA  fçr  a  única,  que  atraveíTa  a  p| 
enxuta  aquella  corrente  de  agoas  en- 
yenenadas  ,  que  com  hum  diluvio 
taô  univerfal,  como  laftimofa,  alaga* 
xa6,  €  forvçraô  a  terra  toda  ?  E  ta- 
Ihandofe-ihe  dos  raios  dp  Sol  o  ma- 
gtíloíp  manto ,  que  a  cobre,  tecent 
doíe-lhe  dp  refplandor  das  eftreUas  q 
brilhante  diadema  ,  que  cinge ;  que 
gloria  nao  he  para  Maria  ,  conftit 
t;UÍr  hMma  nova ,  e  diíFerente  Jerar- 
quia entre  peps ,  e  os  Anjos  ,  fupe- 
rior  a  tedos  os  Thronos,  a  todas  as 
^Dominações  5  a  todas  as  Virtudes: 
íó  a  D.^os  inferior  ?  Que  gloria  naq 
he  para  Maria  fer  o  íris,  que  no$ 
annuncía  a  defejada  ferenidade  ?  Que 
emula  da  valerofa  Judith  ,  naó  fá 
calca  a  cabeça  da  orgulhofa  Serpen- 
te ,  mas  degolla  ao  Dragão  tartareo,. 
^rrancando-lhe  das  unhas  as  miferas 
prezas,  que  eternamente  ferviriaÔ  de^ 
paftp  á  fua  negra  ,  e  devoradora  gar-? 
.ganta.e^  a  naõ  as  refgatar  intrépida  j, 
c  corppaíUva  ?  ,: 

Corra-fe  o  véo  á  allegoria,  Ser 
nhpfes.  Qti€  gloria  nao  he  para  Ma-i 

BIA 


A    Co  N  CE  I  Ç  A  6.  167 

RIA  nao  contrahir  na  fuâ  Conceição 
a  feia  mancha  da  culpa  ?  Talvez  ef- 
perais  ,  que  vos  allegue  textos  ,  gue 
vos  cite  Padres  para  o  confirmar  ? 
Nao  Senhores.  He  de  fua  boca  que 
o  haveis  ouvir ,  participado  ia  Santa 
Brígida,  cujas  revelações  tem  a  feu 
favor  a  authoridade  de  quatro  Roma- 
nos Pontifices  ,  que  da  eminência 
do  Vaticano  as  approvaraó.  Que  ref- 
peito  fe  lhe  nao  devem  !  Véritas 
ergo  ejl ,  quod  ego  fui  concepta  fine 
peccato  originali. 

Desde  os  confelhos  eternos  fora 
deftinada  Maria  para  fer  a  Mai  dei 
Deos.  Mái  de  Deos !  Porque  naÔ 
concorreria  o  Pai  com  o  feu  poder , 
o  Filho  com  a  fua  fabedoria ,  o  Efpi^ 
rito  Santo  com  o  feu  amor  ,  para  a 
fazer  a  mais  bella ,  a  mais  pura  ,  e 
a  mais  fanta  de  rodas  as  puras  crca- 
turas  ?  A  fua  Maternidade  (  foíFrei- 
me  a  expreíTao ,  que  he  de  hum  Pa* 
dre  refpeitavel  da  Igreja  ,  que  mais 
que  com  a  fua  Purpura,  com  as  fuás 
virtudes  ennobreceo  os  Clauílros  do 
famofo  Serafim  de  Afliz  )  a  fua  Ma- 
ter- 


I 


t68  O   KA    Ç   Ao 

ternidade  i  digo,  porque  oaoeígo- 
taria  todas  as  forcas  da  Omnipoten- 
te:  Fecit  potentiam  in  brachio  fuo  ? 
Aonde  quereis  vós  que  fe  encerra flfe 
O  balfamo  mais  laudavel,  íenao  no 
cr}^ílal  mais  terfo?  O  diamante  mais 
refulgente  aonde  quericis  vós  ,  que 
fe  engaílaíTe,  íenaõ  no  ouro  mais 
íno? 

Se  a  antiga  Lei  coníiderava  nos 
feus  Patriarcas  ,  nos  feus  Profetas  ,  e 
nos  feus  Reis  huma  tao  grande  fupe- 
TÍoridade,  porque  íiguravaô  ao  Mef* 
lias,  e  porque  entravaõ  fimplesmen- 
te  na  fua  genealogia  :  fe  he  grande 
a  gloria  deMoyfés,  por  ter  no  mon- 
te face  a  face  converíado  com  Deos  : 
fe  os  Apòílòlos  no  Chriílianifmo  , 
por  terem  aprendido  na  efcola  do 
Remptor,  faô  reputados  pelas  bazes 
fundamentaes  da  Igreja  ,  pelas  co- 
Jumnas  daFé:  Mais  que  tudo:  Se  o 
f  lho  de  Ifabel ,  e  Zacarias  ,  porque 
ihe  ha  de  preparar  os  caminhos  como 
fcu  Precurfor,  nao  tein  maior  entre 
es  nafcidos  :  Inter  natos  mulie  rum 
mn  furre^U  maior  Joanne  Baptijia : 

quem 


A   C  O'  N  G  E  I  Ç  A  6  l6(} 

quem  o  concebe  no  feu  caíto  feio  : 
quem  carinhoiamente  o  aperta  entre 
Cs  feus  braços:  quem  o  fuítenta  com  o 
cândido  leite  dos  íeus  peitos:  quem 
he  carne  de  Tua  carne :  quem  he  de 
fua  mefma  natureza:  quem  he  íua  Mai, 
a  que  grandeza  naÔ  fe  verá  remon- 
tada na  íua  Conceição? 

Se  nas  noíTas  mãos  eílivera  a  ef- 
colha  dos  pais,  que  nos  gerarão,  que 
qualidade  boa  haveria  ,  que  privile- 
gio ,  que  graça  que  lhe  naó  cómuni- 
caffemos  podendo?  E  ha  de  fer  Deos 
ဠ diíferente  condição  ?  O  argumen- 
to naó  tem  refporta  5  Senhores.  Na 
prefervaçao  da  Virgem  ,  ou  Deos 
quiz,  e  nao  pôd«  ,  ou  pôde,  e  nao 
quiz.  Se  quiz,  e  nao  pôde,  que  in- 
juria para  a  fua  Omnipotência?  Se 
pôde  ^  e  nao  quiz  ,  que  dezar  para 
o  feu  amor  ?  O'  Conceição  immacu- 
lada  de  Ma  RI  A,  louvem-te  as  Uni- 
veríidâdes  que  te  juraô ,  as  Reli- 
giões que  te  defendem,  as  Monar- 
quias de  quem  es  Protedlora  ?  Lou- 
vem-te  os  Anjos  ^e  quem  es  Rainha: 
Toda  a  Igreja  te  louve  a  quem  inun- 
das 


tf  o  o  «  A  ç  A  8; 

das  de  contentamento  ,  e  de  alegria. 

Agora  dizei-me,  Senhores ,co(n 

que  fervor  vos  naó  deveis  intereflaF 

Sela  Conceição  de  Imma  Virgem  de 
uma  eftirpe  taõ  clara,  de  huma  for- 
mofura  taõ  peregrina,  de  humas  vir- 
tudes rao  fólidas  ,  de  huns  privile-^ 
gios...  hia  a  dizer  divinos?  De  hu-^ 
ma  Virgem  ,  que  he  a  gloria  de  Je- 
rufalem,  que  he  a  alegria  de  Ifrael, 
que  he  a  honra  de  noííb  Povo?  Prin- 
cipalmente fe  refledirmos  nas  utili- 
dades  ,  de  que  he  para  nós  fértil ,  e 
%exhaurivel  principio:  Segunda Re^ 
flexão ,  que  prometti  fazer-vos. 

Segunda  Reflexão. 

I?  U  naó  poffo  ,  Senhores ,  di'cor- 
]j  rer  por  todas  as  utilidades  de 
^ue  he  para  nós  fértil ,  e  inexhaurivel 
raiz  a  Conceição  de  Maria.  Quan- 
do acabara  de  fallar  ?  Mas  ainda  que 
vos  naó  diga  ^  que  naó  ha  bem,  que 
por  fuás  mãos  nos  naó  venha  ,  co- 
mo affirma  S.  Bernardo  :  ainda  que 
VOS  naó  diga,  que  no  meio  das  ca« 


A   C  O  N  CE  IÇA  O.  171 

íámidades ,  que  nos  cercão,  patrimo-* 
nio  herdado  de  ncíTos  rebeldes  Pro* 
genhores  ;  Maria  he  a  primeira^ 
que  eftendendo  o  compaíTivo  braço 
nos  enxuga  as  lagrimas,  e  nos  fere-^ 
na  o  animo ,  como  arréfta  S»  Boaven- 
tura: poíTo  por  ventura  efquecer-me 
do  beneficio  da  RedernpçaÓ? 

Qual  era  o  noíío  eftado  antes 
que  a  Eílrella  de  Jacob  defponraíTe 
nos  noíTos  horizontes  ,  quem  ha  que 
o  naò  faiba  ?  Nafcendo  com  o  ver- 
gonhofo  carafter  do  peccado  impref? 
ío  na  alma,  de  nada  valiaô  as  lagri- 
mas dos  Patriarcas  ,  e  os  íufpiros  dos 
Profetas.  Pouco  importava  que  os  Al- 
tares eftallaíTem  vergados  com  o  pe- 
20  das  vidimas.  O  fangue  das  rezes, 
ainda  que  innocentes ,  naó  baílavao. 
para  applacarem  a  Juíliça  oíFendida^ 
Eftavaò  para  nós  os  Ceos  como  fe 
foíTem  de  bronze.  Naõ  deftillavao  as 
nuvens  o  appetecido  orvalho.  Volvia- 
fe  a  veloz  roda  do  tempo  ,  os  Sécu- 
los huns  apoz  outros  fe  fuccediao  y 
íem  que  para  nós  raiaíTe  o  dia  defe- 
jado.  Em  torno  dos  rios  que  banhaá 

os 


âfc^w.í  ^ 


m 


ty%  O  R  A  ç  A  6 

os  muros  da  proftituidaBabylomâ,  nós 
nao  fazíamos  mais  que  chorar  memòt 
rias  de  Siaõ  :  triftes  memorias  com 
que  a  noíía  faudade  fe  exafperava 
mais.  ^ 

-  ^  M;ís  nao  he  por  Ma  ria,  que 
nós  temos  lium  Redempror,  que  com 
padecendo-fe  de  nós,  nos  quebra  com 
a  fua  Cruz  os  ferros  ,  que  como  ca- 
ptivos  arraigávamos  ?  Naô  he  por 
Maria  que  nós  temos  hum  Deos, 
que  para  que  nao  cahiíTem  fobre  nos 
as  fulminadas  maldições  ,  fe  fez  por 
nós  maldito  ,  como  diz  5a6  Paulo  : 
Chriftus  nos  reãemtt  de  maledtão  le^ 
gis  ,  faSlus  pro  nobis  malediãus  ? 

PoíTo  por  ventura  efquecer-me  da- 
quelle  perenne  manancial  de  graças? 
Já  fabeis,  que  he  do  Sacramento  Au- 
guílo  de  noíTos  Altares  que  vos  falio. 
Se  o  expomos  nos  n o flbs  Templos 
para  o  adorarmos,  fe  paííea  como  em 
triunfo  pelas  noífas  ruas  ,  fe  nos  vi- 
íita  nas  noíTas  cafas  ,  fe  nos  illuílra 
nas  noíTas  duvidas  ,  fe  nos  fortalece 
nos  noíTos  perigos  ,  fe  nos  commu- 
liica  huma  vida  naô  caduca^  na©  cheia 

de 


I 


A  Cone  E  IÇA  6.  17J 

de  trabalhos  como  eíla  vida  que  nòi 
temos  ,  canfada  vida !  mas  bemaven- 
turada  ,  e  eterna,  dando-nos  a  comer 
a  fua  Carne  ,  a  beber  o  íeu  Sangue; 
negai ,  fe  podeis,  que  eíle  he  hum  be* 
neficio  que  devemos  a  Mabía  ?  Nõ^ 
bis  datus  5  mbis  natus  ex  intaUo^ 
Virgins,  :i 

Palio  eu  por  ventura  efquecer-m«ei 
da  efficacia  ,  cõm  que  maisque  a  bé^^ 
néfica  Abigaii  fe  intereíTa  por  nóá^ 
applacando  a  ira  do  Fiího  para  qug 
naô  fulmine  o  raio  de  fua  juíliçâ  ^ 
como  por  noífas  culpas  merecemos? 
Que  bem  ha, que  nos  nao  iiberâlize^ 
Que  mal  nos  ameaça  ,  de  que  nóá 
naõ  preferve,  fe  com  fé  viva  implo;^ 
ramos  o  feu  auxilio?  A  faude  de  qua 
gozamos,  a  vida  que  temos,  a  efpe^ 
rança  que  nos  anima  ,  a  mefma  fal^ 
vaçaõ  donde  nos  vem  ?  como  de  fua 
gruta  aííevera  o  grande  Abbade  dô 
Claraval :  Siquid  fpei^  Jiquid gratine; 
Jiquid  falutts  in  mbis  efl  \  áb  ea  no* 
verimus  redtmdare.  O'  Conceição 
immaculada  ,  quem  te  na6  lou^â  ? 
Agora  colhendo  as  velas  ao  diC- 

cuc* 


l\ ..; 


f74  Ora  ç  a  6 

eurfo,  que  nao  folgo  de  abufar  da  pa* 
ciência  de  quem  me  ouve  ,  com  quq 
fervor  nos  devemos  appliear  ao  cul* 
ço  de  líum  Myílerio  ,  de  que  tantas 
utilidades  nos  refulrárao  ,  principal- 
mente  lifongeandonos,  de  que  naÔ  íe* 
rào  eftéreis  os  noíTos  obfequios,  pelo 
premio  que  receberemos ,  que  he  a 
fegurança  de  noíTa  eterna  felicidade  ? 
Quereis  que  vo-lo  moílre?  Ouvi-me  , 
Senhores. 

-  Qiiaíi  todos  os  Myfteríos  concer- 
lientes  a  M  A  r  i  a  eftaô  definidos. 
Qi,iafi  todos  faó  dogmas  ,  que  deve- 
mos crer.  A  fua  Maternidade,  a  fua 
Virgindade  incorrupta,  a  fua  Impec- 
cabilidade  fe  naô  por  natureza,  por 
privilegio.  Só  a  fua  Conceição,  por 
fins,  que  nós  naó  alcançamos  ,  fe  naó 
definio  ainda.  Q^em  pois  a  illuítrar 
perfuadindo-a ,  propagando-a  ,  cren- 
dò-a  ,  gozará  de  huma  vida  eterna. 
G  texto  he  claro  ,  Senhores ,  enten- 
dendo-fe  de  Ma  r  i  a  com  a  torren- 
te dos  fagrados  Interpretes :  ^i  elu* 

Jni    Exaltai  a  Conceição  de  Maria»  \ 


A  S.  Margarida  de  Cort.     lyf 

O  feu  culto  promovei-o.  Com  que 
complacência  naô  ireis  algum  dia  lou-^ 
valia  no  Ceo :  no  Ceo  entre  os  Anjos, 
íobre  que  fe  levanta  o  feu  throno  : 
apar  do  Padre  de  quem  he  Filha  , 
do  Filho  de  quem  he  Mai  ,  e  do  Eí- 
pirito  Sâ^nto  de  quem  he  Éfpofa  ? 

Diíle* 


O  R  A  Ç  A  Õ 

AS.  MARGARIDA 

:^^^:  DE  CORTONA/ 

Levãvi  óculos  meos  in  montes,  iinâe 
ventet  auxiUum  mihi.  Pfal.  120. 

SE  naó  efperarmos  em  Deos,  em 
quem  havemos  efperar?  Nós  ho- 
mens-,  que  fe  hoje  nos  acolhem 
benignamente  entre  os  feus  braços, 
i  manhã  nos  volvem  com  deíprezo 

as 


!.||J 


175        •"     "0-K-A.^^W^M'i^A  ■ 

as  cofias  >  Enterrenos-ha6  com^fpé-^ 
ranças  ,  que  nos  lifongeao  enthuíias- 
mados  ou  do  feu  poder  ^' ou  da  fua 
fortuna  quaíi  fempre  cega  na  repar* 
]tiça6  de  íeus  favor(ís :  mas  como  fe« 
rao  úteis  aos  outros  ,  fe  nem  para  fi 
faó  bons  ,  arrancado-fe  dos  males  , 
já  fyfícos  ,  já  moraes ,  que  padecem 
na  arrifcada  ,  e  elcabrofa  carreira  de 
fua  vida  ? 

Eis-aqui  porque  David  nao  Í6  re- 
prebende,  mas  amaldiçoa  a  quem  con- 
fia nos  homens  j  perfuadindo-nos  pa- 
ra erguermos,  ç  levantarmos  os  nof- 
fos  olhos  aos  montes  da  formo fa  Si- 
ão ,  que  he  donde  nos  pode  vir  um- 
cámente  o  auxilio  ,  e  o  foccorro  de 
que  neceflitamos  :  Levavi  óculos 
meos  in  montes^  ande  veniei  auxilium 
mihu    •       ■  s  .  ■-■.,  \ 

Illuílre  Penitente  de  Gortona  , 
vós  nos  arraigais  no  conhecimento 
de  verdade  taô  importante  com  o 
voiTo  exemplo.  Ferida  ,  Senhores,  da 
Graça  ,  que  como  aguda  (etra  fe  em- 
bebe ,  e  entranha  no  feti.  coraçaa  ^ 
como  apoia  afua  efperança  río-rfeu 
£;.  Deos? 


A  S.  Margamda  de  Cort.     177 

Deos  ?  No  íeu  Deos  ,  que  creando-a 
de  nada  á  fua  imagem  bella ,  gravou 
na  fua  alma  hum  raio  do  lume  incir- 
cumicripto  ,  que  caradteriza  a  fua 
Divindade  r*  No  íeu  Deos,  que  refga- 
íando-a  do  vergonhofo  capciveiro  do 
peccado,  nos  abrio  com  a  fua  Cruz 
as  aferrolhadas  portas  do  Paraifo  ? 
No  feu  Deos ,  fobre  cujo  roto  peito 
faz  como  cândida  pomba  o  feu  ni-* 
nho  ?  Ora  eu  ,  cingindo-me  á  Medi- 
tação da  Novena,  tomarei  por  argu- 
mento da  pratica  que  me  ouvireis,  que 
he  fó  em  Deos  em  quem  devemos  ef- 
perar  ,  para  furgirraos  coroados  de 
gloria  das  tentações  ,  que  á  manei- 
ra de  ávidos  ,  e  esfaimados  lobos  do 
berço  nos  perfeguem  para  nos  devo-' 
rarem. 

Santa  gloriofa  ,  vós  fabeis  qual 
he  o  meu  animo.  Nao  he  o  incenfo 
de  voílbs  louvores ,  que  eu  pertendo 
queimar  ante  os  voíTos  altares.  Qui- 
zera  engroffar  o  partido  de  voífos  de- 
votos, para  que  attrahidos  da  formo- 
fura  de  voíTas  virtudes  ,  imitando- 
yos  Jia  terra^  vos.  Ãcorapanhaffem  no 
M  tco. 


T^ 


178  O   R    A  Ç   A   6 

Ceo.  Ajudai^me  por  quem  foís :  e  i 
efperança  ,  que  eu  colíoco  no  meu 
Deos  5  feirilizai-a  vós  com  a  voiTa 
protecção.  Eu  começo ,  Senhores. 

TRânfcende  por  todos  o  defejo  da 
raivaçaõ.  He  quaíi  infeparaveida 
fé  que  recebemos  ,  quando  peio-  bap- 
tifrao  entramos  na  Igreja,  de  que  fo- 
mos filhos.  Porérti' como  apparece- 
mos  rio  Mundo  com  huma  natureza 
feiamente  eílragad a  pela  culpa  da  ori- 
gem :  como  go7ernando-nos  depois 
peio  ncíTos  fentidps,  a  largos  forvós 
bebemos  o  venef*9>  que  corrompe  o 
homem  carnal  ;  he  eíla  a  razaÓ  por- 
que aíFraca  mos  nos  noíTos  projeftos 
cahindo  a  cada  paíío  nos  laços  ^  que 
enfeitados  de  flores,  com  facilidade 
nos  prendem ,  para  nao  irmos  avan- 
te no  caminho  fanto  da  virtude. 
'  Nem  bafta  muitas  vezes,  que  ar- 
mados feveramente  contra  nós  ,  de- 
claremos a  guerra  ás  noíTas  paixões, 
para  que  os  máos  habkos  nao  preva- 
leçad.  A^  íimilhança  de  afpides  fur- 
dos ,  gue  enrofcados  fe  embofcaõ  pa- 


A  S,  Margarida  deCort.   179 

ra  nos  morderem  mais  a  íèu  falvo  ; 
que  triunfos  naõ  confeguem  mais  que 
de  noíTa  fra gi^l idade  ,  de  noíla  malí- 
cia, enganando-nos  com  efpeçies,  ain-? 
da  que  agradáveis,  nocivas,  para  que 
fundados  em  huma  confiança  cemera- 
ria,  refervemos  para  quando  nós  qui- 
zermos,  a  noífa  total  conveffaô? 

Nefcios,  exclama  o  meu  eítima-» 
diíUmo  Agoílinho  5  que  podendo  ef- 
perar  unicamente  de  Deos  o  auxilio, 
e  o  foccorro,  cevais  nos  voíTos  peitos 
o  damno,  que  crefcendo  com  o  tem- 
po 5  impoíTibilita  mais  aquella  gra«- 
ça  3  fem  a  qual  já  nao  podereis  fur- 
gir  coroados  de  gloria,  das  tentações, 
que  como  inimigos  implacáveis  fem- 
pre  vos  acompanhao.  Nefcios  .... 
^  Porém  para  que  he  canfarme  com 
invedlivas  ,  fe  o  exemplo  de  Santa 
Margarida  de  Gortona  he  huma  prova 
a  que  vós  naõ  podereis  reíiítir  ?  Pren^ 
deo-a  o  mundo  com  douradas  cadcr 
ias.  ,Ao  carro  de  feu  triunfo  gémeo 
por  nove  annos  infelizmente  atada* 
Honras  ,  deleites  ,  ainda  que  vergo- 
Jlhofos;  cópia  de  havereS;  porque  tan- 
M  ií  tQ 


iSo  O   RAÇA  6 

to  nos  aiFanamos  todos  :  belleza  ra-^ 
ra:  nada  Jhe  falta.  Todavia,  quando 
a  graça  raia  como  luz  derivada  da 
Ceo  lobre  a  fua  alma  ,  nao  he  no 
feu  Deos ,  que  colloea  rodas  as  fua» 
cfperanças  ?  Se  doma  o  orgulho  de 
fua  carne  ,  fe  enfreia  a  liberdade  de 
feus  aíFeftos,  fe  com  as  lagrimas  que 
perennemente  correm  pelas  fuás  bei- 
jas faces,  lava,  e  purifica  as  maip- 
chas  de  feus  peccados  \  eíla  vi»floria 
iiaô  a  deve  precifamente ,  nem  aos 
jejuns  a  que  fe  mirra  ,  nem  aos  cili'- 
cios  com  que  fe  cinge,  nem  ás  dif- 
ciplinas  com  que  fe  rafga,  mas  á  con- 
fiança que  tem  na  miíericordia  de 
feu  Jesus,  com  quem  fe  defpofa. 

Ainda  que  a  matéria  de  ília  ora- 
ção fora  ao  principio  os  crimes  de 
fua  vida  diíToluta  ;  depois  que  acha 
nas  Chagas  do  Redemptor,  mais  que 
o  doente  na  Pifcina,  o  remédio,  nao 
paílava  as  noites  ,  na6  paíTava  os  dias 
enlevada  na  contemplação  da  gloria 
cjue  efperava;  nao  fabendo,  como  o 
Apoftolo,  quando  viria  aquelle  mo* 
mento  feliz ,   (jue  folta  das  torpes 

pri' 


A  S.  Margarida  de  Cort.    i8i 

prízoes  do  corpo  voaíTe,  á  íimilhan- 
^a  de  Águia  generofa,  da  terra  ao 
Ceo  ?  Se  raiava  no  horizonte  a  ma- 
nhã, deixou  de  achalla  já  mai«  can- 
tando os  louvores  divinos,  com  que 
emula  das  innocentes  aves  convida- 
va a  todos  para  engradecerem  ao  feu 
Deos  ,  e  efperarem  de  fua  bondade 
os  bens ,  principalmente  efpirituaes, 
de  que  precifavaó  ? 

Eisaqui  porque  nunca  a  remo- 
verão dos  projedtos  que  concebera 
da  fua  juftifícaçaõ  final  ,  os  afperos 
tratamentos  da  Madrafta  iniqua  ,  a 
infeníibilidade  do  Pai  defabrido  ,  os 
impropérios  com  que  a  mofavaò,  ten- 
do-a  por  huma  embufteira  :  Eis-aqui 
porque  triunfou  fempre  das  fuggef- 
toes,  com  que  Lúcifer ,  e  os  feus  in- 
fames fequazes  pertenderaò  por  mui- 
tas vezes  illudilia.  Como  as  fuás  ef- 
peranças  eftavao  unicamente  poftas 
no  feu  Deos,  nada  a  atrerrava  ,  pro- 
feguindo  nos  feus  exercidos  ,  íetn 
nunca  interromper  o  fio  das  acqoes 
de  piedade,  a  que  fe  applicava. 

Que  muito,  Senhores,  fe  ainda 

ij^uan- 


:í-^i 


•lí' 


iSz  O   K    A   Ç   AO; 

quando  envolta  no  tumulto  do  fe- 
culo  enganador,  houve  quem  a  re- 
p rehendeíTe,  dizendo-lhe  :  VãrnJJlmâ 
Margarida ,  que  fera  de  ti  ?  cheia 
de  fua  efperança  com  hum  ár  de  pro- 
fecia ,  que  íe  verificou  depois,  ref- 
pondeo  :  Deixai  correr  os  tempos. 
O  meu  Jepukhro  ferd  vifitado  de 
remotos  Climas  ,  achando  na  minha 
froteccção  os  peregrinos  ,  qtie  me 
bufcarem ,  o  precifo  ,  e  neceffario  rc' 
medío  ?  Que  muito  que  naquelleinílan- 
te,  que  decide  de  noíía  forte,  ou  boa  , 
ou  má  ,  naó  como  huma  arvore  que 
Xe  arranca,  mas  como  huma  luz  que 
fe  apaga,  fubiíTe  o  feu  efpirito  aos 
montes  da  formofa  Sião  ,  para  gc^ 
zar  do  premio  que  desde  a  eternida- 
de lhe  eftava  preparado  comofruélo 
de  fua  efperança:  Levavi  óculos  meos 
in montes ^unde  veniet  auxilium  mihi\ 
E  nao  a  imitaremos  nós  ,  Se- 
nhores ?  Nós  nao  nos  converteremos 
também  ,  efperando  do  noílb  Deoí, 
que  nos  auxilie  para  vencermos  o 
mundo  ,  a  carne  ,  e  o  inferno  ?  Os 
Janeiros  haõ  dç  cobrir  de  çans   as 

nof- 


A  S.  Mai^garida  de  Cort.  1S5 
noíTas  cabeças,  e  de  rugas  as  noíldS 
Caras  ,  fem  que  quebremos  o  grilhão 
infame  ,  que  nos  prende  ?  O  exem- 
plo de  Santa  Margarida  naó  nos  ha 
de  convencer  ?  A  fua  protecção  iiaó 
nos  ha  de  animar?  ^-r 

/       Gloriofa  Santa,  fe  vos  feguimos 
nâs  culpas,    porque   vos    nao    imi- 
taremos nas  lagrimas  ?   Volvei  para 
nós   os  voííos  olhos  ,  e  como  agudo 
puftello  fira  os  noííos  peitos  a  dór  de 
noííos  peccados.    Animada  de  yoíTa 
cfperança  :  no  amor  de  voíTo  Deos  , 
totalmente  inflammada  ,   vós  confe- 
guiítes  por  hum  privilegio  raro  ,  que 
ornaíTem    os  lírios  da  virgindade    o 
voíTo  cândido  feio.  Naô  aipiramos  a 
tanto:    pertendemos  de  vós ,  que  fe- 
cundando a  noíTa  confiança,  depois 
de  levantarmos  os  noííos  olhos  aos 
montes  da  formafaSiaó,  vos  vamos 
acompanhar  no  Ceo  :    Levcivi  ocuks 
meus  in  montes,  unàe  venitt  nuxíftum 
mihi.   Queira  Deos ,  que  affiia  leja  : 
Qiieira  Deos. 

PlíTe. 


ORA- 


lS4 


I 


i  ''»;'■ 


ORAÇÃO  FÚNEBRE 

Do   EXCELLENTISSIMO  SeNHOR       , 

D.JOAÒDEFARa, 

Principal  Presbytero  da  Santa  Igre^ 
ja  de  Lisboa. 

NA6  he  da  Cadeira  da  verdade^ 
que  contra  a  tyrannia  da  mor* 
te  venha  agora  formar  as  mi- 
nhas invedivcis.  Prompta,  e  íiel  exe- 
cutora dós  Decretos  de  hum  Deos  ^ 
por  naturezajufto,  nada  obra,  que  nao 
íeja  conforme  á  reda  razaô.  Pode, 
murchando  as  noíFas  Jifonjeiras  efpe-? 
ranças,  arrancar  do  meio  de  nós  aquel- 
les  que,  ou  com  authoridade  de  fua 
pefiba  5  ou  com  influxo  de  feu  con- 
feího  nos  honravaõ,  e  nos  efaó  úteis. 
Mas  como  Jhe  denfo  o  vêo  ,  que  en- 
volve os  adoráveis  fegredos  da  Pro- 
videncia :  a  nofla  vida  (canfada  vida) 
como  quem  a  dá  he  unicamente  quem 
a  tira  ,  por  fins  que  nao  çoraprehen-» 

de, 


F  V   H   K   E    R    E.  IS5? 

de  o  fraco  entendimento  dos  homens, 
que  aíFronta  naõ  faríamos  á  íanta  Fé 
que  profeíTamos,  íe  rebatendo  o  nof- 
fo  indifcreto,  talvez  iniquo,  fentim^en- 
to,  naõ  beijâíTemos  a  poderofamão  , 
que  vibra  o  golpe  que  nos  fere,  ain- 
da que  pezado  ?  Se  erguendo  aos 
Geos  os  olhos  arrazados  de  innocei>- 
tes  lagrimas,  cheios  de  humildade, 
cheios  de  confiança,  Jhes  nao  pediííe- 
rnos  para  os  noíTos,  pofto  que  reíig- 
nados  affligidos  corações  ,  a  pa/  ,  Q 
defafogo  ,  e  a  confolaçao  de  que  ne- 
ceíTitaõ  na  afpera ,  e  vehemente  fau- 
dade  porque  paíTaõ  ? 

Contra  os  cegos  amadores  do 
Mundo,  que  no  regaço  das  delicias 
placidamente  reclinaô  as  vaidofas  ca- 
beças, he  que  levanto  a  voz.  Nao 
diíTe  bem  ,  Senhores;  aqueiie  Tumu- 
lo he  quem  mudamente  falia  ,  con- 
fundindo ,  e  envergonhando  o  defef- 
perado  orgulho,  com  que  cada  dia 
cngroííaô  mais  a  corrente  de  feus  vãos 
deíignios  ,  fem  advertirem  ,  que  he 
frágil  o  fio  de  que  pende  a  noíTa  du- 
ração: que  a  vereda  que  trilhamos  , 

ain- 


■■f^'£^-'^ 


ih 


„¥86  O   R   A   Ç   A   6 

ainda   que  matizada   de  flores  ,  qu:e 
mais  nos  corrõpem  com  o  íeu  cheiro, 
C|Ue  nosarrebaiao  com  ília  formoíura, 
he   muita  curta.    Hoje  enfaxados  no 
berço,  á  manha  amortalhados  na  tum^ 
ba.  Grandezas  da  terra  á  íimiilhança^ 
de  raios,  que  da  periferia  fet^açaõ, 
vós  tendes  hum  centro  commum  aon*- 
de  vos  ajuntais.   A  fepultura.  Senho- 
res. Seguindo   a  condição  do  corpo 
a  que  fe  unem  ,  algum   languido  ,  e 
eícaflo  ciarão  de  íua  gloria  ,   ^^  íica- 
ío  reíla  ,    volvendc-íe   a    veloz    ro- 
da do  tempo  ,  naõ  fe  reduz  a  nada  í 
Caiando  da  Parca   a  cortadora  foice 
derriba  os  cedros  igualmente  que  os 
vimes  (quero  dizer,  Os  Príncipes,  e  os 
Paílorcs)  quem  pode  diftinguir  a  pur- 
pura do  furraõPMiíiurando-fe  as  fuás 
Cinzas,  ha  por  ventura  viíla  tao  perf- 
picaz  ,  que  conhecendo-a?  as  fepare? 
Efpirito  ,   ditofo  Efpirito  ,  que 
ornado  de  tantas  fublimes  qualidades, 
naõ,   ru   nao  te  deixafte  enganar    da 
falfa  bdieza  de   huns    bens  ,    que  fe 
jios  attrahem  ,  refinando  a  magia  de 
kus  pérfidos  encantos  ^  he  para  dou- 
rar 


F  xr  íT  E  B  R  E.  i^yp 

far  a  malignidade  dos  fruftos  ,  que 
de  fuás    envenenadas    raizes  brotaô. 
Sem  degenerares  doTronco  d(?  que  es 
íloiente  ramo,  o  teu  voo,  como  ca- 
Ita    pomba  ,  fubindo  de  virtude  em 
virtude  ,  tu  fempre  o  dirigifte  do  Lí- 
bano aoEmpyreo.    Perdemos-te  .  .  . 
(da  pallidez  que  rinje  os  noííos  roí- 
tos,  quem  naô  infere   a  dôr  oue  que- 
bra  os  noíTos  peitos?)  Para  mais  en- 
tre nós  te  nao  vermos,    perdemos»te. 
Porém  ainda  que  a  morte  furda 
ao  noíTo  pranto  ,  inexorável  aos  noí- 
fos  rogos  5   nos  levou   o  noíío  bem- 
feitor  commum  ,    (  trasladando^o  de 
meu  coração  á  minha  lingua,  eu  hei 
de  dar-lhe  o  nome  còm   que   ainda 
nos  honra  )   o  noíTo  Irmão  g  Excel- 
lentiíTimo  Senhor  D.  Joaô  de  Faro, 
Principal  Presbytero  da  Santa  Igreja 
de  Lisboa:  ainda  que  a  falta,  que  nos 
faz  ,  he  ,    fe  nao  impoíTível  ,  difficul- 
tofa  de  reparar- fe;    moderrída   chri- 
ílámente  a  noíTa  pena  ,  nao  pede    o 
minifterio  que  exercito,  que  para  re- 
morfo   de  quem  naó  imiia  o  feu  ex- 
emplo ;  efcolha  para  matem  do  PV 

nc- 


r 


rSS  o  RAÇA   6 

rebre  Elogio  ,  que  coníagrais  á  fua 
^emoria  ,  aqueJIas  acções ,  com  que 
immòrtalizando  na  poíleridade  a  fua 
fama  ,  fe  habilitou  para  a  poíTe  do 
premio,  de  que  gozará  na  Bemaven- 
turança  ,  como  eu  piamente  creio  , 
como  vós  credes  ? 

Mas  que   tumulto  de   efpecies 
vem  já  fobre  mim  ,  Senhores?  Para 
quem  refpira  o  ar  do  Século  engana- 
dor, que  campo  na6  abre  já  para  os 
louvores  do  Excellentiílíino  Senhor 
D.  João  deFaro,  a  fua  Regia  Eftirpe? 
A  terra  que  poííuimos  :   as  rápidas 
conquiílas  ,   com  que  di/íipando  nu« 
vens  de  voadoras,  e  emplumadas  íet^ 
fas ,  dilatámos  os  Eílados ,  e  os  Do- 
iTiinios  da  Portugucza  Coroa  :  a  gen- 
til oufadia  com  que  pondo    freio  á 
Ibberba  de  fuás  agoas  fizemos  do  Te- 
jo tributário  o  Ganges,  rafgando  cora 
as  noflas  Qiúlhas  de  mares, que  na3 
conheciamos,   as   largas  ,  e  procel- 
Jofas  Cóílas,  tao  temidas  pelos  feus 
naufrágios,  como  dcfejadas  pelas  fuás 
riquezas  :   a   America  com    os   feus 
Certões  :  a  Africa  com   os  feus  ro- 

che- 


Fúnebre.  iS^ 

chedos  :  mais  que  tudo  :  a  intrepi- 
dez quaíi  íobrenatural,  com  que  ref* 
gatámos  a  liberdade  que  perdemos, 
facudindo  o  jugo  ,  com  que  o  braço 
de  ávido,  e  iníquo  ufurpador  nos  op. 
primio  por  efpaço  de  fcíTenra  e  dois 
ânnos  a  cançada  cerviz  ;  que  vivas 
Gores  na6  dariao  aos  fcus  applaufos 
pertencendo-lhe  tao  heróicos  feitos, 
Gomo  geração  legitima  da  Augaftaj 
€  SereniíEma  Cafa  Bragantina  ? 

Todavia,  hum  animo  que  fe  nu-? 
tre  ,  naó  fó  do  paò  que  come  ,  mas 
também  da  palavra  que  procede  da 
boca  de  Deos  :  hum  animo  qual  o 
de  S.  Excellencia  ,  nao  faz  coníiílir  a 
fua  felicidade  no  privilegio  de  huma 
deílinaçaô  ,  que  he  puramente  ter- 
rena. Reputa-a  por  dadiva  do  cha* 
ir»ado  acafo  ,  que  nunca  deve  lifon* 
gear  muito  a  quem  a  recebe.  Co- 
operando com  a  graça,  que  das  man- 
tilhas o  previne,  naõ  encaminha  a 
mais  alta  esfera  a  fua  cftintaçaÔ  ?  A, 
innocencia  de  fua  alma  ?  / 

Ao  menos  confultándo  a  fua  pue* 
licía  irei  bufcar  na  candidez  de  feus 

coftu- 


rpo  Ora  ca  6 

coftumes  algum  prefagio  venmrofo  ; 
que  como  luz  ,  que  do  efpelho  por, 
entre  fombras  reverbera  ,   vos  dê  è 
conhecer  a  íóíida ,  e  inconfeílaveJ  ba- 
ze  de  íeu  merecimenro  ?    As  Águias 
já  do  ninho  fe  avezao   a  arroftarem 
na  fua  carreira  o  Sol.  Samuel  de  me-, 
nino  moílra  no  ferviço  dos  Altares, 
a  que  goítofamenre  fe:  dedica,  a  fua 
futura  fantidade.    Amar  a  formofura 
da  virtude  :    corregir  as  funeftas  in^ 
clinaçoes  da  natureza  ,laílimofos  re- 
ftos  da  culpa,  que  na  origem  contra-? 
himos:  cultivar,  e  enriquecer  o  en- 
tendimento com  a  liçaô  de   pios  ,  e 
devotos  livros  :  naô  beber,  ainda  que 
por  dourada  taça  ,  o  veneno  de  más 
companhias  :  deteílar  o  peccado,  fao 
coníequencias,  que  facilmente  fe  de- 
duzem de   huma  boa  educação.  Nós 
temos  a  indole  das   arvores.   Se  de 
tenras  vergontas  acertao  a  ferem  tra- 
tadas por  déílros  ,  e    peritos  culto- 
res ,  de  que  fazonados  pomos  fe  nao 
veílem  ?    A  difciplina  doma  os  brur 
tos  y  que  fera  os  homens  ? 

Teve  S.  Excellencia  hunia  Mãi 

mui-» 


Fúnebre.  ipt 

multo  vigilante.  Seu  nome  foará  fem»^ 
pre  entre  nós  com  reípeiro  ,  e  com 
faudade.    Honrem-fe  os  meus  lábios 
repetindo-o.  A  Illuílriíriína  ,  e  Excei- 
lentiífima   Senhora  Dona  Tereíajo-* 
fefa  de  Mendonça,  fcgunda  CondeíTít 
do  Vimieiro.  Que  máximas   ihe  nsá 
infpira  ?  Concordando  amigável men* 
te  a  policia  ao  parecer  contraria  do 
Evangelho  ,  e  do  Mundo  ,  nao  o  en^ 
fina  a  fer  com  efpanto  daquella  ida- 
de 5  humilde   fem  baixeza  ,  magnifi- 
co fem  elevação  ,  generofo  fem  def- 
perdicio ,  exaclo   fem  rigor  ,  affavel 
íem  facilidade  ?   Viaô-no  ,    amavao- 
no.    Quem  mais  prompto   na  obedif 
encia  ?  Hum  volver  de  olhos  menos 
carinhofo,  naõ  bailava  mais  que  pa- 
ra o  conter,  para  o  intimidar  ?  Quem 
mais  circunfpedlo  fallando?  Proferio 
nunca  cxpreíTaó  ,  que  para  fe  adoçar 
precizaUe  de  correcftivo?  Quem  mais 
íizudo  na  aíliítencia  do  incruento  Sa- 
crifício? Naó  era  eíla  a  fuá  natural 
poftura  ?    Curvados   no  chaõ  os  joer 
lhos ,  erguidos  aos  Céos  os  olhos  ^ 
trasbordando   na   ferenidade  de-fusi 

h 


fi!-' 


tqr  O  R  A  ç  A  6    '^ 

face  a   pureza   de   feu  interior. 

O  defejo  da   perfeição  Chriílâ  , 
huma  vez  que  fe  accende,  nada  o  apa- 
ga. Ateia  huma  eípecie   de  fede  co- 
iTio  a  do  hydropico  ,  que  naõ  ha  re- 
frigério que  a  mate  ,  ao  menos  que  a 
initigue.    Lavra  como  fogo  ,  que  no 
fecco  matopega.  Qiíe  feia  injuria  nao 
fatieis  a  Sua  Excellencia  ,  íe   enten- 
deíTeis  ,  que  cedendo  á  fraqueza  de 
feus  annos  pouco  experimentados,  fe 
fatisfaria  com  huma  vida  juítifícada  , 
mas  livre  !  Nao,  Senhores  ,  naÕ  he 
de  tempera,  que  com  a  mediania  fe 
contente.  He  perfeito:  quer  fer  mais 
perfeito.   Dos  laços  que  o  aíluto  ini- 
migo tece,  e  eílende  ,  retira  com  pru- 
dência o  timido  pé.    A  obfervancia 
regular  tem  huma  belleza  a  que  reílf- 
tir  nao  pôde.  Já  o  chama.    Naô  íaá 
vozes  de  engandora  Sereia  ,   de  que 
acautelado  fuja.   Obedece-lhe  ,  abra- 
ça-a    Das  Religiões  ,   que  conhece , 
Clauílros  de  S.  Filipe  Neri ,  vós  fois 
os  preferidos.  Recolhendo-fe  nas  vof- 
|as  fagradas  paredes,  dia,  feliz  dia 
de  vinte  e  dois  de  Junho ,  quando  vos 
i-  et 


F   U   N   E   B   RE.    i*         193 

efquecerá?  Leva-o  para  aquelIaCom- 
munidade  o  amor  materno  :  leva-o  a 
fua  vocação. 

Com  que  gofto  o  recebem  nos 
braços  aquelles  Padres  !  Gerando-o 
para  Jesus  Chriílo  antecipadamente 
íe  gloriaÔ  no  íilho  de  fua  doutrina. 
Coberto  Sua  Excellencia  com  hiima 
roupeta  de  eftamenha  ,  pobre,  mas 
decente:  cingido  com  huma  correa  , 
de  que  defufado  prazer  inunda  !  Pa- 
rentes j  amigos,  fuaves  vínculos,  que 
tanto  nos  prendeis ,  com  que  refo- 
luçaÓ  vos  dá  hum  adeos  5  que  eíli- 
maria  que  foíTe  para  fempre?  Aò 
palácio  prefere  o  cubiculo  :  Troca 
pela  mortificação  o  regalo  :  a  afpe- 
reza  do  cilicio  ,  o  rigor  das  diíci- 
plinas  5  nada  o  intimida.  Saó  armas 
com  que  irjunfa  do  Lea5  tpAvoÇq  , 
.  que  declarando-nos  do  berço  a  guer- 
ra y  entre  as  fuás  garras  defpedaçar- 
nos  pertende.  Ao  raiar  no  horizon- 
te a  roxa  madrugada,  alhanando  com 
o  feu  exemplo  aos  feus  Companhei- 
ros ,  naõ  he  o  primeiro  que  vai  pa- 
ra o  Coro  5  para  meditar  as  miferi- 
N  cor- 


w 


1F«1 


194,  •  O  R  A  Ç  A  S 
cordias  de  Deos  ^  as  fuás  verdades 
reveladas  ,  e  os  incomprehenliveis 
benefícios,  de  que  ihe  he  devedor  ? 
Com  huma  OraçaÔ  ,  ainda  que  com- 
prida ,  fervorofa :  cofido  com  a  ter- 
ra para  que  o  pizem  :  pegando  em 
huma  vaffoura  com  mais  fatisfaçao 
do  que  fe  empunhara  huín  Sceptro  : 
beijando  os  pés  aos  feus  Irmãos ,  que 
ternamente  ama:  fervindo-os,  de  que 
confufao  nos  naõ  enche  hum  Neto 
do  Senhor  D«  Fernando  o  primeiro  , 
fegundo  Duque  de  Bragança  ? 

Deftinava-fe  S.  Excellencia  para 
o  Sacerdócio.  A  humildade,  e  a  fabe- 
^oria  fao  as  pedras  fobre  que  levan- 
ta o  edifício,  que  em  prende.  Ha 
de,  conforme  oChryfoftomo,  incar- 
nar novamente  nas  íuas  mãos  o  Ver- 
bo5Como  no  feio  da  Virgem.  O  Cor- 
deiro confagrado  ha  de  diílribuillo 
ás  famintas  turbas.  Débil  canna  agi- 
tada do  vento  nao  treme  mais.  Atter- 
ra-fe  ,  conílerna-fe.  A^  maneira  de 
Job,  naõ  fe  confidera  como  hum  ho- 
mem:  confidera-fe  como  hum  vil 
infeílo.   .Debaixo    da    direcção    do 

mais 


F   U   N    E   B   R   E»  I95r 

mais  engenhofo  Meftre,  que  regeo  as 
Cadeiras  da  Congregação  (  foíFrei-lhe 
o  louvor  ,  que  nada  tem  de  encare- 
cido )  o  Padre  Eftacio  de  Almeida  , 
que  progreíTos  naô  faz  nos  feus  ef- 
tudos  ?  Digaõ-no  asConclufoens  que 
publicamente  defendeo.  Engolfado 
no  vafto  pélago  dos  attributos  divi* 
nos  ,  houve  argumento  de  que  naó 
defatafle  o  nó  ,  pofto  que  apertado  ? 
Nos  fevéros  exames  porque  paíTava, 
que  agradáveis  efperanças  fenaõ  con* 
cebiaô  de  feu  futuro  magifterio  ? 

Mas  que  trifteza  cahe  fobre  vós, 
veneráveis  Padres  ?  Desfazem-fe ,  do- 
mo as  efcumas  do  mar  ,  os  voíTos 
premeditados  projeítos.  Juízos  de 
Deòs,  quem  vos  ba  de  fondar  ?  Per- 
de o  tempo  quem  comprehender-vos 
efpera.  A  fria,e  pezada  mao  da  pál- 
lida  moleftia,  na  flor  da  idade  op- 
prime  a  S.  Excellencia.  S.Paulo  diz, 
que  a  virtude  com  a  enfermidade  fe 
aperfeiçoa.  Armado  S.  Excellencia 
de  fua  conftante  reíignaçao  ,  padece 
hum  anno  :  padece  muitos  annos.  A 
Medicina  efgota  todos  os  feus  feme» 


N  ii 


dios. 


196  o    í^    A   Ç    A    5 

dios.  Por  vezes  ,  batendo  as  negras 
azas  ,  rodeia  a  morte  o  feu  humilde 
leito,  He  golpe  ,  que  ameaça  os  co- 
rações de  toda  a  Comunidade.  Conf- 
írangido  dos  Fyíicos,  que  lhe  aíTif- 
tera,  a  que  fe  une  o  voto  do  Confef- 
for  que  o  dirige,  vai  ultim.amente  buf- 
car  por  algum  tempo  na  mudança  de 
eílado  a  melhoria,  que  na  Congrega- 
ção na6  pode  ter.  A  faudade  hehum 
punhal  que  leva  era  irado  n^alma.  Nao 
íe  defpede,  arranca-íe.  Ha  unicamen- 
te huma  razão  5  com  que  o  conven- 
cem :  a  obrigação  de  coníervar  a  Tua 
faude.  Muda  de  habito ,  nunca  de 
vida. 

Deos  na  urna  de  feus  confelhos 
tinha  refervado  a  S.  Excellencia  pa- 
ra edificar  a  Corte  com  o  feu  exem- 
plo:  para  promover  os  intereíTes  de 
íua  Caía  com  a  fua  adminiílfaçaò. 
AquelleRei  ,  que  á  íimilhança  de  Da- 
vid 5  fora  feito  pelo  molde  do  co- 
ração de  Deos  :  digno  Pai  do  gran- 
de Rei  que  temos  ,  obfervando  as 
qualidades  de  S.  Excellencia,  os  feus 
coibmes  ,  os  feus   talentos ,   nao  o 

ele- 


F    lí  N    E    B    R'  t.  497 

eleva  á  dignidade  ,  primeiro  de  Co4 
nego ,  depois  de  Monfenhor  Acoly-* 
to?  Miniftro  do  Altar  como  defem^ 
penha  as  fuás  laboriofas,  ainda  que 
fublimes  funçóes  ?  Naô  obftante  que 
a  fua  conílituiçao  nada  tinha  de  forr 
te,  forrou  nunca  os  hombros  ao  tra- 
balho que  lhe  competia?. Quem  mais 
refidente  no  Coro  ?  Defprezando  os 
clamores  de  fua  Familia  ,  nao  arrif- 
ca  muitas  vezes  a  fua  faude,  por  nao 
faltar  ás  fuás  obrigações?  1 

Sabia  S.  Exceilencia  ,  que  para* 
cumprir  perfeitamente  os  feus  deve- 
res, precifava  atar  o  fio  de  feus  eílur^ 
dos.  Já  nas  frefcas  margens  do  Mon-í 
dego,  creados  eílaõ  oslouros^que  lhe 
hâo  de  ornar  a  téíta.  A  faélildade  dos? 
fagrados  Cânones  o  recebe  já  por 
feu  Alumno,  x\  fama,  que  grangeara 
nas  Aulas  da  Congregação  ,  reforça 
o  brado  nos  Geraes  da  Univerfidade.^ 
Interpretando  textos ,  e  combinan-: 
do  opiniões  ,  quem  nao  pende  de  fua 
boca,  como,  feeítiveíTe  prezo  de  dou- 
radas cadeias  ?  Naô  parece  difcipu- 
lo;  Meílrs  parece.  Cingindo  a  bor- 
la 


'..^^ítí'-:-/' 


198  O     R   A   Ç   A   S 

la  de  Doutor  ,  entre  públicos  ,  e  pe- 
rennes  applaufos ,  naó  voa  o  íeu  no- 
me pela  Portugueza  Athenas  ,  como 
jufta  remuneração  do  credito,  que  lhe 
adquire  com  os  feus  Aélos  ?  As  Mu- 
fas  aíFagando-o  no  feu  branco  collo, 
eom  os  veríos  que  lhe  confagrao  , 
nao  lhe  lavraô  a  Eftatua  que  o  im* 
morta  liza? 

Ha  merecimentos,  Senhores,  que 
dos  empregos  a  que  fe  elevao  eftaó  a 
rofto  defcoberto  defafíando  os  pré- 
mios. Na6  neceflitaô  de  interceíTores 
para  ferem  attendidoÊ.  O  pio ,  e  o 
incomparável  Rei ,  que  nos  governa , 
quer  prover  de  Principaes  a  Patriar- 
cal. Tem  unicamente  huma  regra 
porque  fe  dirige:  a  juftiça.  Havia  in- 
fallivelmenre  cahir  fobre  S.  Excellen- 
€ia  a  nomeação.  A  eícolha  leva  com- 
íigo  a  approvaçao  commum.  Ainda 
os  preteridos  taxaila  nao  oufao.  Af- 
froxaria  acafo  no  feu  fervor  >  Co- 
mo zela  os  intereíTes  da  Igreja !  A 
fua  authoridade  como  a  fuftenta  ! 
Conformando-fe  eom  o  efpirito  de 
quemcreou  ^quelles  lugares,  nao  cui- 
dou 


F   U    N   Ê    B    É    E.  199 

dou  muito  na  corafervaçaó  de  feu  de- 
coro, tratando-fe  fempre  com  a  pom- 
pa correfpondente  á  fua  Dignidade  ? 
Na6  era  foberba.  Senhores  :  NaÒ  era 
enthufiafmo  do  mundo.  Apartados  de 
S.  Excellencia  viviao  taô  baixos  at- 
fedlos.  Pediâ-o  o  efplendor  daquellà 
Bafilica  :  pedia-o  a  razão. 

Que  nao  faz  a  favor  de  feus  II- 
luftriíTimos  Sobrinhos?  Tenros  ,^  màç 
adorados  pupillos  ,  cedo  íicaraô  pri- 
vados dos  Pais  que  os  gerarão.  Po- 
rém o   fangue  com   os  feus   eftimu- 
los ,  o  amor  com  as  fuás  finezas  ,  a 
Lei  com  as  fuás  providencias  naó  lhes 
deu  hum  Tio,   hum  Amigo  ,   e  hum 
Tutor  ,  que  fuavizando-lhes  a  fatta  , 
fez  menos    fenfivel  a  perda  ,  porque 
paíTaraó  ?    Sem  perdoar    a  defpezâs 
nao  refgata  o  perdido   Cartório  dô 
fua  Gafa  >  As  fuás  rendas  nao  as^  en- 
groíTa  ,    já   por  novas   acquifiçoes  , 
reivindicando   os  bens    injuftaraente 
alheados  ?    Com    que    folicita   dili- 
gencia fe  nao  applica,  para    que  fof^ 
fem  úteis  aò  Príncipe  de  quem   fáo 
valTallos,  á  Pátria  áe  quem  faó  filhos? 

San- 


20Ô  Q   R   A   Ç   A  5 

Santas  Máximas  da  Religião,  vós  fo- 
ftes  o  leite  que  os  nutria.  Sem  fe  cf- 
quecerem  da  grandeza  com  que  naf- 
cerao,   naô  lhes  inípira  a  affabiiida- 
de  com  os  pequenos  ?  Com  o  feu  ex- 
emplo, nao  ihes   enfina  a  amallos  , 
a"  protegellos  ,    a   nao   os  defprezâr 
precifamente  com  aferia  reflexão  de 
que  a  natureza  os  fez  iguaes;  a   gra- 
ça   muitas  vezes  fuperiores  ?  Forao 
iementes,que  cahirao  fobre  fértil  ter- 
reno :,  frutificarão  ,   Senhores. 

Que  nao  faz  a  fa^/or  dos  pobres^ 
que  cobertos  de  vergonha  ,  e  de  con- 
fufao,    rotos,    defcalços  ,  fuílentan- 
do-fe  do  pao  de  cinzas ,   que  amaOao 
com  as  fuás  lagrimas,  fao  as  imagens 
de  Jes  us  Chrifto  ?.  A  caridade  he  a 
pedra  mais  rica  ,  com  que  Deos  guar- 
nece a  coroa  ,  que  colioca  na  fron- 
te do  juílo.  Concebidos  no  caíío  feio 
de   huma  Mai  carinhofa  ,  a  Igreja  ; 
alterarfe-hia  a  armonía  do  Corpo  de 
que  fomos  membros :  nós  como  fe- 
ras peílimas  ,  nos  devoraria-mos  huns 
^os   outros  ,  fe   a  caridade  nos   nao 
uniíFe.  A  caridade  Jie,  toda  a  lei. 

Sen- 


F   U   N    E    B    R    E.  20 T 

Senfivel  aos  males ,  que  padece 
a  melquinha  liuinanidade  na  privação 
do  que  precifa  para  a  lua  fubfiílen- 
cia,  ha  porventura  indigente,  que 
recorrendo  a  S.  Excellencia ,  nao  fi- 
caíTe  liberalmente  íbccorrido  ?  Para 
acodir  aos  mais  naõ  faltava  a  fi  ?  A 
quem  naó  abrange  a  íua  chriíla  gene- 
rofidade  ?  Nao  ,  Senhores ,  naò  íou 
eu  quem  vo-lo  ha  de  dizer.  De  bocas 
mais  eloquentes,  que  a  minha,  haveis 
ouvillo.  Viuvas  recolhidas,  velhos, 
que  vergados  com  o  pezo  dos  annos 
efcaíTamente  arraftais  fobre  hum  bor- 
dão os  froxos,  e  cançados  membros, 
ao  redor  daquelle  tumulo,  vós  o  di- 
zei. Se  nao  fois  ingratos,  mifturan- 
do  com  as  fuás  cinzas  as  voíTas  la- 
grimas ,  confedai  os  bens  de  que  a 
Sua  Excellencia  fois  devedores.  Por 
mãos  defconhecidas  nao  fazia  entrar 
muitas  vezes  com  abundância  a  coa- 
folaçao  por  voíTas  cafas  ? 

^Comhumas  virtudes  tao  raras  ,- 
nao  me  admira  ,  Senhores  ,  que  fe- 
guindoo  Ímpeto  de  feus  juííos  defe- 
jos,  tiveíTe  S.  Excellencia,  nao  huma, 

mas 


202  O   R    A   f   A   8 

mas  muitas  vezes  a  lincéra  refoluçaô 
de  terminar  a  carreira  de  fua  vida  no 
Clauílro  aonde  fora  creado.  Caufas  , 
que  a  nós  na^  he  lícito  averiguar ,  le- 
gitimamente o  impedirão.  Ao  menos 
pela  Semana  Santa  ,  o  tempo  que  lhe 
reílava   de  fuás  obrigações,  nao  hia 
ficar  na  Congregação  ?  Solta  a  pedra 
da  mão  ,  nao  bufca  com  mais  preíTa 
o  appetecido  centro.    Na  alegria  de 
feu   rofto  nao  reverberava  a  fatisfa- 
çao  de  feu  animo  ?  Nao  me  admira, 
que  fendo  Prefidente  da  noífa  Irman- 
dade 5   nos  déíTe  tao  repetidas  provas 
do  zelo,  e  do  amor  com  que  promo- 
via os  feus  intereííes.    Faltou  nunca 
ás  Mefas  para  que  foi  chamado?  Vós 
fois  teítimunhas  d«  que  era  fempre  o 
primeiro.  De  que  pezo  nao  era  o  feu 
voro  ?  Mas  nao  cedia  com  prompti- 
daó  a  pluralidade?  Nos  litígios  que 
fe  nao  podia6  attalhar  ,  aílim  como 
nas  noíTas  dependências  todas  ,  havia 
Procurador    mais  folicito  ?    Qiiando 
nos  efquecerá  o  agrado,  e  a  aíFabili- 
dade  com  que  nos  tratava  ?   De  nof- 
fos  corações  nunca  o  tempo  o  pode- 
rá arrancar.  Ago- 


Fúnebre  203 

Agora  dizei-me,  Senhores:  ao 
efpalhar-fe  a  infauíla  noticia  de  fua 
arrebatada  doença  ,  crefcendo  o  pe- 
rigo, como  fe  naó  avivaria  o  noflb  fu- 
fto  !  O  temor  do  mal  que  nos  amea- 
çava 5  quantas  vezes  nos  fez  recor* 
rer  a  Deos  para  que  reílituiffe  a  S.Ex- 
cellencia  a   perdida  faude  ?   NaÒ  era 
fó  a  conveniência  quem  animava  as 
noíías  preces  :  hum  amor  intenfo  nos 
fazia  loiicitar  a  fua  melhoria.  Falta- 
vaó-nos  as  forças  para  foportar^hum 
golpe  taô  penetrante.  Naô  foraõ  ou- 
vidos os  noíTos  rogos.  O  prazo  de 
S.  Excellencia  eílava  chegado.  Havia 
cumprir-fe  o  decreto.  Naô  o  intimi- 
da o  defengano.  Arma-fe  para  o  con- 
flito.   Intrépido  General  ,   que  teve 
fempre  ao  feu  ferviço  a  fortuna  ,  e 
a  viéloria  ,  n^o  entra  cora  mais  fere- 
nidade  de  animo  na  peleja.    Confef- 
fa-fe  :  recebe  os  Santos  Sacramentos 
da  Igreja  ,    que  com  ardor  extraor- 
dinário pede  :  põem  a  fua  alma  nas 
mãos  de  feu  Deos.  E  com  a  boCa  íb- 
bre  o  roto  peito  de  Jesus  ( lagrimas 
detendo-vos:  animo  esforca-te  para 

o 


BFW 


204  O    R    A    Ç   A   6 

O  dizer)  morreo.  O  Excellentiffima 
Senhor  D.  João  de  Faro  naó  o  ha- 
vemos ver  mais.  ..  morreo. 

Nao  podia  S.  Exceílencia  efque-. 
cer-fe  da  tenra  Mãi,  que  fegundo  o 
efpirho  o  gerara.    Veílido   interior- 
,niente  de  fua  Roupeta ,  manda  no  fea 
teftamento,que  o  fepultem  na  Congre-, 
gaçao.    MagoadiiTímos  Padres,    oue 
differente  he  eíta  entrada,  da  primei- 
ra que  fez  pelas  voíTas  portas !  Entaôj 
o  recebeftes   com  fino  goílo  ,  agora 
com  intenfa  faudade.     Sepultura   do 
amado  Tio  ,  naõ  he  o  aeaíb  quem  te 
abre.    Unio-os  o  fangue ,   unio-os  a 
amizade,  unio-os  a  morte.   Debaixo 
da   mefma  pedra  jazem   efperando  á. 
refurreiçaò  univerfal  ,    o  Senhor  D. 
Fianciíco  Manoel,    e    o  Senhor  D. 
Joad  de  Faro.  Seja-Jhe  a  terra  leve 
síTmi  como  â  fua  falta  nos  foi  pezada.' 
Nâ6  quero  privar  de  huma  hon- 
ra, que  ennobrecerá  os  faftos  á  nof-, 
fa  Capitã!.  Lisboa  he  a  Pátria  de  S. 
Exceílencia.    Foi  filho  dos.  Ilíuftriíil-, 
iBos  ,    e    Excellentíffimos    Senhores 
D.  Sancha  de  Faro  ,  e  Dona  Terefa 

Jo- 


Fúnebre.  io^ 

Jofefa  de  Mendonça  ,  fegundos  Con- 
des de  Vimieiro.    Nafceo  a  dezafete 
deMaio  de  mil  fetecentos  e  quinze  : 
a  ília  carreira  rematou-a  no  primei- 
ro de  Julho  de  mil  fetecentos  fetenta 
e  quatro.  A  natureza  o  dotou  de  hum 
engenho   claro  ,    de   huma   memoria 
prompta,  de  huma  prefença  amável, 
de  huma  Índole  benigna.  Quem  mais 
fiel  nas  fuás   amifades  ?    Quem  mais 
confiante  nas  fuás  refoluçces  ?  Cho- 
raõ-no   os    parentes  :    choraó-no  os 
amigos.    O  clamor  dos  pobres  ainda 
nao  enfraqueceo  o  brado.    Fechou-f& 
a  bemfeitora  mão,  que  lhes  matava 
a  fome  ,  que  lhes  cobria  a  defnudez. 
Mais  carregado    de    merecimentos  , 
que  de  annos  ,    como  nao  repoufa- 
rá  eternamente  a  fua  Alma  na  paz  de 
feu  Dcos. 


Requiescat  in  pace. 


O  R  A- 


WÊÊÊÊá 


2o6 


ORAÇÃO  FÚNEBRE 

Do  EiMINENTISSIMO   SenHOR 

D.JOAÒ  COSME 

DA  CUNHA, 

Cardeal  da  Santa  Igreja. 

E  Poderá  ainda  o  Mundo  com  a 
magia  de  feus  encantos  enfa- 
tuamos de  maneira,   que  ef- 
quecidos  feiamente   de  noílas   obri- 
gações ,  fó  pela  poíTe  de  feus  bens 
nos  aiFanem.os:  ávidos ,  e  cubiçofos, 
já  de  riquezas,  que  desfazendo-fe  co- 
mo a  efcumas  do  mar,   hoje  eftaô 
em   huma  mão,  a  manhã  em  outra? 
Já  de  honras  ,  que  fe  brilhaô  ,  he  co- 
mo huma  luz  ,  que  como  a  do  re- 
lâmpago, naó  illuftra  ,  cega?  As  nof- 
fas  cabeças  féraõ  porventura  tao  vans 
que  nutrindo,  e  volvendo idéas  além 
de  fantafticas,  as  mais  das  vezes  pe- 
rigo- 


Fúnebre.  207 

rigofas;  ponhamos  unicamente  a  mi- 
ra neíTa  chamada  Fortuna  ,  para  con- 
feguirmos  aquella  grandeza  ( falfa 
grandeza)  com  que  os  filhos  de  Belial, 
refinando  a  fua  íoberba  ,  parece  que 
querem  da  terra  que  pizaô  ,  alcançar 
por  cima  das  nuvens  a  orgulhofa  fron- 
te ,  fem  advertirem  que  pequena  pe- 
dra facudida  da  funda  pelo  braço  de 
humPaílor,  baila  para  derrubar  atre- 
vidos Gigantes  ? 

Nao  ,  eu  naó  o  fupponho;  prin- 
cipalmente de  vós  ,   que  tendes  na- 
quelle  tumulo  hum  mudo  ,   mas  elo- 
quente defengano  ;  refledlindo  ,  que 
com    a   morte  tudo   acaba.    Sangue 
mais   que   nobre  ,    régio  :    immenfa 
cópia  de  haveres :  fublimes  ,  e  eleva- 
dos empregos  :    obfequios  ....   ap- 
plaufos  ...  (incenfo,  Senhores,  que 
a  defcarada   adulação  com  prodiga- 
lidade queima)   que  juftamente   fois 
comparados    ás    maçans    da    profti- 
tuida  Sodoma  !  por  fora  ouro ,   por 
dentro  cinza.  Eis-aqui  porque  no  mo- 
mento ,  que  a  carreira  de  noíía  vida 
fe  remata,  nos   prefeririamos  rodos 

de 


T^ 


^o8  Oração 

de  boa  vontade  á  purpura  de  Hero- 
des  ,  ainda  que  recamada  de  precio- 
fas  pedrarias,  a  túnica  do  Bapriíla, 
pofto  que  tecida  de  groíTeira,  e  afpcr 
ra  lá  :  conhecendo  na  fragilidade  das 
glorias  terrenas ,  o  deíprezo  de  que 
fâò  merecedoras. 

A  mim  nao  me  he  licito  correr 
o  véo,  que  cobre  os  arcanos  da  pre- 
deílinaçao  :    Sa6  Sacramentos  ,    que 
íiem^  fe  comprehendem  :    adorao-fe. 
Porém  íe  o  muito  Excellente  Prínci- 
pe 5  a  quem  vós    confagrais  eíla  fú- 
nebre pompa  j  renunciando  na  prima- 
vera de  feus  annos   juvenis  todas  as 
efperançasde  que   podia  lifongearíe  , 
deixou  juntamente   com   a  Univerfi- 
dãáQ  ,    que    feguia  ,   a  Caía   de  feus 
Ínclitos  Progenitores  ,  para  fe  reco- 
lher na  Congreçaçao    dos    Cónegos 
Regrantes,  fequeílrando-fe    ao   com- 
mercio  das  creaturas  ,  para   fe   unir 
mais  intimamente  com  o  feu  Deos; 
porque  nao  entenderei,  que  a  formo- 
íura  de  verdade  tao  importante  ,  co- 
mo a  que  acabo  de  ponderar-vos,  foi 
quem  o  aítralíio  para  bufcar  no  plá- 

ci- 


F  t;  íí  E  B  R  È.  I09 

eido,  e  fanro  retiro  do  Ciaiiílro  a  fe- 
licidade eterna,  a  que  todos  devemoá 
aípirar  :  e  que  ainda  arrancando  por 
preceito  de  íeu  Soberano  ,  do  meio 
de  fuás  Ovelhas  ,  nunca  perderia  de 
viíta  os  feus  mais  fagrados  deveres, 
para  correfponder  com  fidelidade  í 
fua  vocação. 

Ao  menos  crendo-o  piamente  af- 
íim;  que  o  contrario  feria  metter  com 
temeridade  a  foice  em  feára  alheia;  que 
efpaçofo  theatro  na6  vejo  já  abef^ 
to  ,  para  o  elogio,  qiie  vós,  fem  con- 
templardes a  minha  inhabilidade,  qui- 
zeftes  que  eu  no  acanhado  ternio  de 
poucos  dias  recitaíTe  na  prefehça  de 
humConcurfo  taô  refpeitavel  ,  mo- 
llrando-vosnas  altas  Dignidades,  com 
que  efmaltou ,  e  efclarecéo  a  fua  Pef- 
loa  ,  igualmente  que  a  fua  Fámiliâ , 
qual  he  o  merecimento  doEmminen- 
tilTimo  Senhor,  o  Senhor  Domí  Joa6 
Cofme  da  Cunha,  Cardeal  da  Sántà 
Igreja,  Miniftro  do  Gabinete  aífillen- 
te  ao  DefpachOj  Confelheiro  de  Efta- 
do  ,  Arcebifpò  de  Évora  ,  Regedor 
das  Juítiças^  ln<|uifidor  Geral ,  Com- 
O  mif- 


»IP  o   R    A    Ç   A    g 

HiiíTario  da  Bulia,  e  Prefidente  da  Me- 
fa  das  Confirmações ;  Efpefo  da  vof- 
fa  beflevolencia  com  a  defculpa,  a  at- 
enção de  que  a  matéria  fe  faz  digna. 
E  recobrandõ-me  do  fufto  ,  que  he 
Jlatural  que  eu  tenha  ,  foffrei  que  ef- 
forçado  da  confiança,  que  a  voíTa 
Índole  benigna  me  dá,  entre  na  em^ 
preza  promèttida.  Deos  me  ajude. 
Eu  começo,  Senhores. 

QUando,  eu  revolvendo  osFaf- 
tos  da  Synagoga ,  leio  ,  que  he 
contada  entre  as  felicidades,  com 
que  Deos  abençoou  a  fé  de  Abra- 
hao,  a  gloria  que  lhe  refulta  por 
Chefe  de  huma  Família  ,  de  que  ha- 
viao  nafccr  aquelles  Príncipes  ,  que 
fentados  no  Throno  de.  Judéa  leva- 
ria a  Climas  ,  e  Regièes  eílranhas 
com  as  fu^as  conquiftas ,  a  fama  de 
feus  nomes  ;  eu  me  perfuado  ,  que 
nao  he  de  pequeno  merecimento 
para  o  Senhor  Dom  JoaÔ  Cofme  da 
Cunha,  fabcrmos  que  foi  Filho  de 
huma  Cafa ,  que  dediiz  à  fua  origem 
dè\Seculos  taÕ  remoto*  ,  que  antes 

de 


F   Xr   N    E   B    R    E.' 


2rt 


de  ganharmos  aos  Sarracenos  as  ter- 
ras, que  poíTuiníios,  já  na  floíTa  Lu- 
firania  eftavaô  eftabelecidos  os  feus 
liiuftriílirnos  Afcendentes,  a  quem  to- 
dos reconheciaò  por  netos  de  D.  Ra- 
miro fegundoRei  de  Leaõ:  como  fun- 
dado na  authoridade  de  encarquilha- 
dos ,  mas  authenticos  pergaminhos^ 
prova  Fr.  Bernardo  de  Brito  :  deri- 
vando do  rio ,  que  banha ,  e  fertiliza 
os  campos  de  feu  Solar,  o  appellido 
com  que  cnlouradas  de  triunfos  as 
fuás  téftas ,  ainda  hoje  honraõ  os  Ati- 
naes  de  noíTa  Hiftoria. 

Ora  fe  as  Águias  geraô  Águias, 
que  eftimulos  de  brio  naó  inflamma- 
Tia6  ao   Senhor  D.  JoaÔ  Cofme  da 
Cunha  ,  logo  que  fua  puericia  come- 
çou a  ver  pendentes  de  fuás  anteca- 
ineras  os  Retratos  daquelles  Heróes, 
dos  quaes  com  o  fangue  tinha  obri- 
gação de  herdar  as  qualidades,  que^ 
ou  no  ardor  da  guerra  ,  ou  no  def- 
canço  da  paz  promoverão  fempre, 
já  com  o  feu  confelho ,  já  com  o  feu 
valor  os  intereííes  da  Monarquia,  dç 
que  foraô  firmiffimos  Atlantes  3  ar-- 
O  ii  roí- 


hl" 


212,  O  R    A    Ç   A    6 

rodando  muitas  vezes  impávidos  os 
perigos,  e  a  morte  ,  para  que  febre 
a  ruína  de  noííos  inimigos  ,  tremo- 
laíTem    vidoriofos    os   noíTos    Pavi- 

Ihôes  ? 

Eis-aqui  porque  fentindo-fe  in- 
clinado  ao  eíiudo  daquellas  Leis  por- 
que os  Eíhdos  fe  governao :  Leis  que 
rem  por  fonte  a  razão  ,  e  a  equida- 
de,   avançando-fe  com    rápido  pro- 
greíTo  no  conhecimento  da  lingua  La- 
tina ,  para  meliior  fervir   a  Pátria, 
arquem  todos  devemos,  como  Cida- 
dãos honra  dos,  confagrar  comos  noí- 
fos  talentos  as  noíTas  vidas,  fe  refol- 
veo  a  ir  para  a  Univeríidade  :  aonde 
como  Porcionifta  do  Coilegio  de  S. 
Pedro  ,  desde  o  ku  Tirocinio,  foube 
de  forte   embeber-fe  ,  e  entranhar-fe 
Í30  coração  de  feus  Meílres ,  que  pre- 
cedendo os  i^ílos  do  Goftume  ,  fem 
que  a  lifonja,  e  o  refpeito  fobornaf- 
íem  os  Votos,  lhe  Gonferira^  o  gráa 
de  Doutor  :    gloriando-fe    anticipa- 
damente  no  íilho    de  fua  difciplina 
niuuos  daquelks,  que  depois  com  o 
fluido    curfo  dos  anãos  o  yirao  re- 

mon- 


^  \ 


Fúnebre.  213 

montado   a  fublimes  empregos. 

Ornado  cem  a  borla  Doutoral , 
naô  tardou  muito ,  que  o  feu  mereci- 
mento naó  foíTe  contemplado.  O  Tri- 
bunal do  Santo  Officio,  querendo  au- 
thorizar  as  fuás  Cadeiras  com  hum 
Miniftro  ,  que  zelofo  fuftentaíTe  as 
caufas  da  Fé  ,  naõ  vacilla  agora  na 
efcolhâ :  lembra-lhe  o  Senhor  D.  Joaó 
Cofme  da  Cunha  :  nomea-o.  Quem 
lhe  diria  entaó,  que  dentro  daquel- 
las  reípeitaveis  paredes  tinha  já  quem 
a  feu  tempo  o  regeria,  como  feu  In- 
quifidor  Geral  ?  Com  tudo  naõ  erao 
eftes  os  Caminhos,  porque  Deos  o 
queria  conduzir.  Na  urna  de  feus  inf- 
crutaveis  decretos  eílava  deílinado 
para  maiores  honras.  E  quando  a 
fortuna  o  aíFagava  mais  ,  reclinan- 
do-o  carinhofamente  entre  os  feus 
braços:  quando  o  Século  enganador 
nutria  no  feu  peito  mais  agradáveis 
efperanças,  efcudado  daqueila  graça, 
que  nunca  nos  falta  ,  com  que  refo- 
luçaô  fe  determina  a  calcar  o  Mun- 
do ,  e  as  fuás  profanas  pompas  ,  pa- 
ra que  recolhido  no  Glauílro  ,   como 

Noé 


1ZI4  O   R    A    Ç   A   6 

Noé  na  Arca  ,  feguraíTe  a  fua  falva- 
çao.  Dcos  ,  judo  Oeos  j  fecundai  os 
íeus  deíignids, 

Fiorecia  por  aquelles  tempos  a 
Reforma  dos  Cónegos  Regrantes  , 
cjue  eftava  no  berço.  Para  lhe  fazerdes 
juítiça,  confiderai-a  y  Senhores  ,  como 
huma  vergonta  ,  que  acertando  a  naf- 
cer  em  fértil  terreno,  com  facilida* 
de  engi  oíTando  o  tronco ,  c  dilatando 
os  ramos  fe  curva  de  fazonados  po- 
mos. A  modeftia  daquelles  Religio- 
fos ,  o  retiro  ,  o  filencio  ;  mais  que 
tudo  ,  o  total  defapego  do  Mundo  , 
que  fuave  impreflaÕ  nao  faziaÔ  no 
Senhor  D.  Joaô  Cofme  da  Cunha  ! 
írefere  aquella  Congregação  a  todas 
as  Ordens  Regulares»  Pede ,  infta  : 
talvez  com  as  fuás  lagrimas  reforça 
as  fuás  fupplicas ,  para  que  o  admk- 
tao  naquelle  Santuário.  He  defericTo 
como  pertende  Solta  pedra  da  mão, 
accelerando-fe  pela  fua  gravidade  na 
defcida  ,  na6  bufca  com  mais  Ímpeto 
o  defejadó  centro,  Eítreitos  vínculos 
do  parentefco,  doces  laços  da  amiza- 
de, com  que  defengano  vos  quebra, 

naõ 


F  TT  li   E   B   R    E.  11$ 

nao  fabendo  já  quando  á  fombra  do 
Inftituto  de  Agoftinho  repoufaria  na 
paz  de  feu  Deos  o  feu  efpirito  1 

Tocava  agora  a  vós ,  Venera- 
reis Padres ,  informar-nos  como  tef- 
timunhas  oculares,  do  exemplo  que 
vos  deu,  quando  incorporado  com- 
vofco,  vós  o  vieis  fubir  de  virtude  em 
virtude  para  obfervar  exadlamente  ^ 
Regra  que  profeíTara.  A  humildade 
com  que  obedecia  aos  feus  Superio- 
res :  o  fervor ,  e  a  prompiidaó  com 
que  ora  de  noite  ,  ora  de  dia  acudia 
ao  Coro  para  cantar  os  louvores  di- 
vinos :  a  gravidade  com  que  celebra- 
va o  Sacrifício  de  noíTos  Altares  :  o 
zelo  com  que  muitas  vezes  da  Ca- 
deira da  verdade,  vibrando  a  efpada 
de  dois  gumes,  inftruia  os  Povos  na 
doutrina  do  Evangelho  ,  como  ditas 
todas  eftas  coufas  por  vós,  recebtriaá 
de  voíTa  eloquência  aquella  energia  f 
qae  eu  pela  pobreza  de  meu  engenho 
lhe  naõ  poíTo  communicar  ? 

Todavia  nós  fabemos ,    que  ha-^ 
vendo  de  dar-fe   á  Igreja  de  Leiria 
hum  Bifpo ,  que  fuccedendo  a  D.  Ál- 
varo 


^i6  Ora-  ç  a  6 

varo  de  Abranches  no   officlo  Paílo- 
ral,  cumpriíTe  plenamente  as  funções 
de  feu  fagrado  Miniílerio  ,  o  Senhor 
D.  Jpao  D  Qainfo  ,  de  faudoía  recor- 
dação ,  que  exames  naõ  faz  ,  que  nao 
medita  ,    para  que    a  efcolha  tiveíTe 
^  feu  favor  aapprovaçao  commurr;?' 
Coníeguio-o,  Senhores,    He  o  dei- 
to o  Senhor  D.  Joaô  Cofme  da  Cu- 
nha ,  vindo  como  de  mais  á  aquella 
Mitra   a  qualificada  ,  e  antiquiífima 
nobreza  de  feu  fangue.  A  noticia  fur- 
prende-o  :   para  que  nao  precipite  a 
íuâ  refoluçaô  ,    confuita    o  Diredor 
de  íuaiconíciencia.  He-lhe  manifeíla- 
da  a  vontade  de  Deos.  Aceita.  Eno 
itiomento,  rriíle  momento,  de  dei^ 
xar  aquellas  famas  paredes,  nas  quaes 
como  cândida  pomba  fizera  o  feu  ni- 
nho ;  dando  com  o  adeos  da  defpe- 
dida  a^  tao  bons  Companheiros  a  lua 
benção  i  nao  fe  fepara  ,    arranca-fe. 
Eu  tremo,  quando  faço  huma 
reflexão  fizuda  no   pezo  que    agora 
toma  fobre  os  feus  hombros  ,   Jem- 
brando-me  da  pintura  que  do  Epif- 
<íopado  pos  traça  o  ApoíIoIo  nas  fuás 

EpiP 


Fúnebre.  217 

Epiftolasi.  Coílumes  incorruptos,  ani- 
mo deíaflerrado  dos  bens  mundanos, 
inteireza' de  juftiça,  caridade  arden- 
te: diga^fe  tudo:  vida  irreprelieníi- 
vel  j  eil:is  fao  as  pedras  preciofas  de 
que  os  Bagos  fe  devem  guarnecer. 
Ma;5  deixou  acafo  o  Senhor  D.  João 
Colme  da  Cunha  de  cooperar,  quan- 
to nós  podemos  entender  de  fuás  ac- 
ções extíirnas  ,  para  o  cumprimenta 
de  fwas  obrigações  j  reíidindo  fempre 
na  fua  Sede  ,  viíitando  todos  os  ân- 
uos as  fuás  Ovelhas  ,  e  arrancando 
abufos  ,  que  como  zizania,  que  aífo- 
ga  o  trigo  ,  femeava  o  homem  ini- 
migo ? 

Quem  mais  circumfpedlo  na  ef- 
eolha  dos  Miniílros  ,  que  havia  ter 
20  feu  lado?  Quem  mais  folicito  do 
pado,  que  havia  dar  ao  feu  rebanho, 
nao  fó  convidando  expertos  ,  e  dou- 
tos MiíHonarJos  ,  que  o  ajudaílem  , 
mas  mandando  traduzir  excellentes 
Cathecifmos,  para  que  todos  fe  arrai- 
gaíTem  mais  nos  Dogmas  de  noíía  Fé, 
e  no  conhecimento  de  noíTa  Religião? 
Para  que  o  feu  Qero  nao  foíTe  igno- 
\  ran- 


rarite 


TO 


R    A    Ç   A   é 

raiz  de  que  brorao  tantos  ma- 
les ,  nao  vulgarizou  huma  Surtima  de 
Moral,  naô  eftragada  com  as  Mera- 
íyíicas  dz  Eícola ,  mas  pura  ,  co  mo 
fundada  i.a  sã  doutrina  do:?  Padres  ? 
Eftas  tíâô  faõ  cores  ,  que  eu  andíi- 
ciofamente  prepare  na  palheta  co- 
mp  Orador  a  quem  a  lifonja  correm- 
pe.  O  que  vos  digo  faó  foftos  pujbii- 
cos ,  que  ninguém,  íem  a  nota  de  in- 
fame irnpoftor,  fe  atreveria  a  negar. 

Perdoai  ao  efpirito  de  Pátrio- 
tifmo ,    fe  para  fazer  mais   patpavel 
o  merecimento   do  Senhor   D.  João 
Cofme  da  Cunha  ,  eu  me  demorara 
agora  ,  fallando  de  hum  Rei,  a  quem 
a    natureza    prodigalizando   os    feus 
dons,  enriqueceo   de  huma  compre- 
henfao  extraordinária  ,  de  hum  ani- 
mo grande,  e  de  hum  ganio  original : 
de  hum  Rei,  que  para  dar  á  Nação, 
de  que  era  arbitro  independente,  hu- 
ma brilhante  face  ,  nunca  fe  forrou, 
cem   a  defpezas  ,    nem  a  cuidados  : 
eftabelecendo    importantes    Manufa- 
éluras  ,  erigindo  foberbos  Collegios 
para  educação  da  láocidade  nobre, 

re- 


Fúnebre.  ^119 

reduzindo  a  methodo  o  deícahido 
Gommercio,  e  reformando  ,  nao  lo 
a  noíía  Tropa  ,  mas  os  noííos  hltu- 
dos  públicos  :  tendo  porém  a  con- 
folaçaô  de  ver  nos  feus  dias  ,  ainda 
que  perturbados,  e  turvos,  tornea- 
rem-lhe  oThrono  as  Artes  ,  e  as  Sci- 
encias ,  que  desde  o  Século  das  nol- 
fas  glorias  ,  eftavao  como  dellerra- 
das  do  noflb  Clima. 

Efte  Rei   digno  de  melhor  for- 
tuna ,    fobre   cujas   cinzas   correráo 
fempre    as  lagrimas  daquelles  Patrí- 
cios ,  que  entenderem  bem   os  noi- 
fos  intereíTes  :    conftante   nas  adver- 
fidades,  como  nas  refoluçôes  :  prom- 
pto  nos  caítigos ,  como  i^os  prémios; 
pólos  fobre  que  os  Eftados  fe  fírmao: 
religiofo  fem  fanarifmo:  liberal  fem 
defperdicio  :    com   huma     pincelada 
complere-fe  o  quadro  :  digno  Pai  da 
Augufta  Soberana  que  nos  governa  , 
naÔ  coníentio,  que  em  taô  pequeno 
theatro  ,  como  era  Leiria ,  figuralle 
o  Senhor  D.  Joaô  Cofme  da  Cunha. 
Chama-o:  obedece-lhe:  que  he  quan- 
do a  auíleridade  dos  Cânones  foffre , 

que 


i: 


2^0  o   RAÇA    6 

que  os  Pallores  íe  íeparem    de  fuás 
Uvreíhas.    Confere^lhe  o  emprego  de 
Regedor  de   íiiasjuftiças  :  nomeia-o 
Arcebjfpo  de  Évora  :  da-lhe  a  Prefi- 
dencia  da  Meia  Cenforia  ,  Tribunal 
que  novamenre  cria  :    faz  com   que 
a  Purpura  Cardinalicia  o  orne:  e  pa- 
ra  que  as  caufas  da  noíTa  fé  tiveíTem 
f^i"'/''^  ^eílreza  ,    e  experiência 
ioubeíTe  manejailas,  he  o  noiloínqui- 
iidor  Gera*. 

,  "^v^is  chamados   fem    razão   Fi- 

cn    ^"^  ^"gí-aros  ao  leite  com 
que  foíles  alimentados,    oufaftes  raf- 
gar  com  roaz  ,  e  venenofo  dente  a 
tunjca  jnconfuril  da  Igreja,  que  co- 
mo Mãi    carinhofa  vos   gerou   para 
J  Esus  Chriílo  ;  confeíTai    fe  nao  he 
a  lua    vigilança  ,  que  deveis  a  voíTa 
emenda.  Nao  pararão  aqui  as  honras 
que  o  Senhor  D.  Jofeph  lhe  libera- 
ii^zou     Que-lo  a  par  de  íi ,  como  feu 
Confelheiro  deEílado:  da~Ihe  a  Pre- 
iidencia  da  Junta  das  Confirmações  : 
rã-\o  Commiííarío  da  Bulia.    Nada 
vaga  no  feu  tempo,   para  que  o  nao 
ache  digno.    Mas  íuccedendo-ihe  a 

noíTa 


• 


F   U   N   E   B   íl   E.  221 

noíTa  Primeira  Auguíla ,  ficari-a  o  Se- 
nhor D.  JoaÔ  Cofme  da  Cunha  em 
menos  vantajofa  fituaçaõ  ?  Remove- 
lo-hia  dos  cargos  ,  que  naÔ  eraõ  vi- 
talicios  ?  NaÔ  ,  Senhores  :  antes  con- 
fervando-lhe  tudo  ,  he  crcado  Minif- 
tro  do  Gabinete,  aíTiílente  ao  Defpa- 
cho  5  aonde .  .  .  ,    aonde  .  .  •  • 

Porém  que  lúgubres  efpecle^ 
me  vem  funeílar  agora  ?  Porque 
me  lembras  dia  ultimo  de  Janeiro  ? 
.  .  .  Acafo  prefumís  vós  ,  Senhores  , 
que  para  vos  fazer  muitas  invecti- 
vas contra  a  morte  ,  he  que  eu  vos 
tenho  debuxado  o  merecimento  do 
Senhor  D.  JoaÓ  Cofme  da  Cunha  , 
que  no  governo  fucceílivo  de  três  So- 
beranos confervou  fempre  o  feu  va- 
limento ,  fendo  eílimado  de  todos  ? 
Que  ao  menos  vos  traga  á  memo- 
ria a  reíignaçaôjcom  que  defengana- 
do  dos  Fyíicos  ,  que  lhe  aííiítiaõ,  ef- 
peraria  por  aquelie  momento  ,  que 
decide  da  noíTa  felicidade,  receben- 
do cheio  de  fé,  cheio  de  devoção  os 
Sacramentos,  que  a  Igreja  nos  admi- 
mílra  ? 

NaÔ 


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222  O    K    A    Ç   A   S 

Nao  bailará  que  vós,  conhecen- 
do a  fraglljidade  das  grandezas  ter- 
renas,  naô  vos  aíFaneis  para.poíTuil- 
las  ?  Advertindo  ,  que  nem  a  nobre- 
za do  Tangue,  nem  a  opulência  dos 
cabedaes,  nem  a  fublimidade  dos  em- 
pregos eftao  fora  da  jurisdição  déíTa 
miniítra  inexorável  da  vont/ade  -de 
Deos  y  que  confundindo  as.íurpiíras 
com  osSurrÓes,  entra  igual meijté  pe- 
los Palácios  5  que  pelas  choupanas  ? 
Qiiem  mais  illuílre  ,  quem  mais  fa- 
vorecido da  fortuna,  quem  mais  ref- 
Í3eitavel  pelas  Dignidades,  que  tinha, 
que  o  Senhor  D.  Joaó  Coime  da  Cu- 
nha ?  Com  tudo  adverti  no  que 
mudamente  vos  diz  para  voíTo  do- 
cumento aquelle  Tumulo.  Morreo. 

Nafcera  o  Senhor  D.  João  Cof- 
me  da  Cunha  em  Lisboa  em  vinte 
e  féis  de  Setembro  de  mil  fetecentos 
c  quinze.  Faleceo  a  trinta  e  hum 
de  Janeiro  de  mil  fetecentos  e  oiten- 
ta e  três.  Foi  fiího  do  llíuílriílimo,  c 
ExcellentiíRmo  Conde  de  S,  Vicente 
Manoel  Carlos  da  Cunha  ,  e  da  Illu- 
ftriffima  ,    e  Excellentiílima  Senhora 

Do-. 


1 

Dona  Tfabí 
Rainha  D. 
lima  Caía  < 
nos  carreg 
Convento  c 
a  terra  lhe  i 
Senhor  ,  a 
fragios,  rc 
iias  voíias  | 
em  paz  ,  >j 
fua  alma  : 


«^   U   N    E   B    R    E.  -223 

1   de  Noronha  ,  Dama  da 

Maria  Sofia  ,   da  antiquif- 

\e  Arcos.  Mais  que  de  an- 

ado  de   honras  ,    jaz    no 

le  S.  Domingos  ,  para  que 

eja  leve.  VÓ3  Chriftos  do 

jntinuando  os  voflbs  fíuf- 

)gai  ao  Deos  ,  que  tomiais, 

mãos  todos  os  dias  ,  c  me 

em   fanta  paz  dcfcançç ;   a 

na  Região  dos  vivos» 


j  ^equtefcat  in  pace, 


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