Skip to main content

Full text of "A ordem de Deus e a desordem do homem : la Epístola aos Ef'esios e a 'Epoca Atual"

See other formats


JOHN  A.  MACKA 


A  01 

DE  DEUS 


E  A  DESORDEM 
DO  HOMEM 


A  EPÍSTOLA  AOS  EFÉSIOS 
E  A  ÉPOCA  ATUAL 


Z)e  uma  cela  de  T^iUãó. . 


...  na  Roma  dos  Césares,  veio 
até  nós  uma  carta  que  é  tão 
extremamente  relevante  para  o 
século  XX  como  foi  para  o 
primeiro.  A  carta  de  S.  Paulo 
aos  Efésios  é  hoje  reconhecida 
como  possuindo  a  essência  mes- 
ma da  religião  cristã,  ampla  nos 
seus  largos  horizontes  e  jamais 
igualada  na  sua  maneira  de 
tratar  os  básicos  problemas  hu- 
manos. 

John  A.  Mackay  viu  pela  pri- 
meira vêz  as  maravilhas  de  um 
mundo  novo,  vislumbrou  a  no- 
va ordem  do  Universo,  quando 
era  apenas  um  menino  de  14 
anos  de  idade  ao  lêr,  na  sua 
terra  escocêsa,  as  incandescen- 
tes palavras  de  S,  Paulo.  Afir- 
ma o  famoso  teólogo  que  à 
Carta  de  S.  Paulo  aos  Efésios 
deve  a  sua  vida.  Todos  os  anos 
que  correram  desde  a  sua  pri- 
meira estranha  experiência,  sò- 
mente  tèm  fortalecido  a  sua 
convicção  de  que  nesta  Carta 
Apostólica  se  encontra  em  tô- 
da  a  sua  plenitude  o  sentido  das 
relações  do  homem  com  Deus. 
Foi  Paulo  quem  melhor  com- 
preendeu Jesus  Cristo,  quem 
mais  o  serviu,  cuja  vida  e  es- 
pírito mais  intimamente  se  apro- 
ximou da  mente  de  Jesus  que 
qualquer  outro  homem  na  His- 
tória . 

Todo  ministro  e  estudioso  da 
Bíblia  bendirá  esta  extraordiná- 
ria contribuição  para  a  crítica 
do  Novo  Testamento.  Nêle  o 
Dr.  Mackay  traça  a  Ordem  de 
Deus  como  o  tema  central  da 
Carta  aos  Efésios,  mostrando 
quais  são  as  suas  consequên- 
cias para  o  pensamento  e  a 
vida  humana.  Êle  mostra  que 
o  desenvolvimento  da  ordem 
espiritual  traz  uma  promessa 
para  o  futuro  e  que  a  lealdade 
às  suas  afirmações  é  da  maior 
(continua) 


A  ORDEM  DE  DEUS 

E  A 

DESORDEM  DO  HOMEM 


A  Epístola  aos  Efésios 
e     a     Época  Atual 


União  Cristã  de  Estudantes  do  Brasil  —  São  Paulo 
—  e  — 

Confederação  Evangélica  do  Brasil  —  Rio 
  1959   


A  ORDEM  DE  DEUS 

E  A 

DESORDEM  DO  HOMEM 

A  Epístola  aos  Efésios 
e     a     Época  Atual 

por 


JOHN  A.  MACKAY 
Presidente  do  Seminário  Teológico  de  Princeton,  E.U.A. 


Título  do  original  inglês: 

GOD^S  ORDER 

Tradução  revista  por 
THEODOMIRO  EMERIQUE  e 
JORGE  CESAR  MOTA 


ERRATA 


À  pág.  5,  na  dedicatória,  deve  lêr-se  REISNER, 
em  vez  de  REINER. 

À  pág".  11,  no  segundo  parágrafo,  3.'  linha,  leia-se 
CATORZE  ANOS,  em  vez  de  DEZ  ANOS,  e  na  penúl- 
tima linha  do  mesmo  parágrafo  leia-se  ADOLESCÊN- 
CIA em  vez  de  INFÂNCIA. 


A  Sherwood  e  Elena  Reiner,  no  jardim  de 
cuja  vivenda,  nas  montanhais  do  México,  a 
maior  parte  dêste  livro  foi  escrita. 


Digitized  by  the  Internet  Archive 
in  2015 


https://archive.org/details/ordemdedeusedesoOOmack 


PRÓLOGO 

O  LIVRO  E  O  TEMA 


O  Livro 

Êste  livro  contém  a  substância  das  Preleções  Croall,  que  o  autor  teve 
o  privilégio  de  pronunciar  na  Universidade  de  Edimburgo,  em  janeiro 
de  1948. 

O  convite  original  para  pronunciar  as  Preleções  Croall  foi-me  feito 
em  1938,  durante  a  presidência  do  ilustre  e  erudito  ministro,  rev.  Wil- 
liam A.  Curtis,  D.  D.,  agora  jubilado.  As  preleções  deviam  ter  sido  feitas 
em  qualquer  época  do  ano  de  1941.  Entretanto,  explodiu  a  segunda 
Guerra  Mundial  e,  além  das  dificuldades  de  viagens  transatlânticas,  outros 
motivos,  como  os  meus  compromissos  no  Seminário  Teológico  de  Prin- 
ceton  e  na  Igreja  em  geral,  por  causa  da  nova  situação  criada  pela  guerra, 
obrigaram  ao  adiamento  das  Preleções.  Durante  os  anos  seguintes  mais 
de  um  tema  foram  apresentados  aos  Patrocinadores  das  Preleções  Croall, 
um  após  outro,  aceitos  por  êles  somente  para  serem  mudados  de  novo. 

Mas  afinal,  foi  escolhido  o  assunto  que  dá  o  título  a  êste  volume. 
Convenci-me  cada  vez  mais  de  que  nada  seria  mais  útil  à  situação  atual 
da  Igreja  e  do  mundo,  em  vista  da  próxima  organização  de  um  Conselho 
Mundial  de  Igrejas,  em  Amsterdão,  do  que  a  discussão  da  Epístola  aos 
Efésios.  O  fato  de  se  haver  mudado  o  fraseado  original  da  Assembléia 
de  Amsterdão,  a  meu  juízo  sem  qualquer  razão  justificável,  de  «A  Ordem 
de  Deus  e  a  Desordem  do  Homem»  para  «A  Desordem  do  Homem  e  o 
Desígnio  de  Deus»,  ainda  mais  me  robusteceu  a  determinação  de  con- 
servar no  título  das  preleções  de  Edimburgo  a  palavra  «ordem»  que  con- 
siderava eu  insubstituível,  se  se  quisesse  expressar  verdadeiramente  a 
idéia  fundamental. 

Em  várias  ocasiões  anteriores,  já  havia  eu  tratado  da  Epístola  aos 
Efésios.  Numa  das  primeiras  sessões  do  Instituto  de  Teologia  de  Prin- 
ceton,  mais  tarde  em  Montreat,  nas  montanhas  da  Carolina  do  Norte,  e 
em  Massanetta  Springs,  no  vale  da  Virgínia,  apresentaram-se  opiniões 
sôbre  êste  tema  favorito,  de  modo  um  tanto  informal  e  fragmentário. 

Mas,  quando  considerei  a  honra,  querida  ao  coração  de  todo  escocês, 
de  fazer  conferências  na  principal  cidade  da  terra  dos  seus  antepassa- 


—  7  — 


dos,  e  dentro  dos  limites  de  uma  escola  de  Teologia,  rica  de  tradições 
teológicas,  que  agora  faz  parte  da  Universidade  de  Edimburgo,  dispus- 
me  a  dar  forma  mais  desenvolvida  às  meditações  que  vinham  ocupan- 
do a  minha  mente  durante  muitos  anos. 

Passaram-se  quatro  anos  desde  que  foram  feitas  as  Preleções.  A 
preparação  para  serem  publicadas  encontrou  dificuldades,  as  dificuldades 
que  todo  administrador  da  era  ecuménica  defronta.  Por  fim,  durante 
um  retiro  de  férias  nas  montanhas  do  México  Setentrional,  pelo  qual 
estou  agradecido  à  Diretoria  do  Seminário  Teológico  de  Princeton,  foi-me 
possível  preparar  a  maior  parte  dos  manuscritos  para  a  tipografia.  Dois 
anos  mais  tarde,  o  trabalho  foi  finalmente  acabado  durante  breve  estada 
no  Texas. 

Aproveito  esta  oportunidade  para  expressar  meu  profundíssimo  reco- 
nhecimento aos  membros  da  Administração  das  Preleções  Croall,  pela 
sua  inalterável  cortezia  e  ilimitada  paciência,  nos  anos  em  que  se  mudava 
o  tema  das  conferências  e  a  data  da  sua  realização  era  constantemente 
adiada.  Teriam  tôda  a  razão  de  cancelar  o  contrato  das  Preleções,  e  o 
fato  de  o  não  terem  feito,  os  torna  colaboradores  na  produção  dêste  vo- 
lume que,  nunca  teria  vindo  à  luz  não  fôsse  a  sua  grande  paciência. 
Aceitem,  juntamente  com  o  Reitor  Hugh  Watt,  atualmente  jubilado,  e  o 
seu  sucessor,  Reitor  John  Badllie  e  a  Congregação  do  New  College,  a 
minha  profunda  gratidão  pela  inspiradora  e  inesquecível  experiência  no 
inverno  de  1948. 

O  Tema 

Êste  livro  trata  do  que  se  chama  A  Ordem  de  Deus.  Pela  expressão 
Ordem  de  Deus,  entende-se  a  estrutura  essencial  da  realidade  espiritual, 
que  tem  origem  em  Deus  e  cujo  desenvolvimento  é  determinado  pela 
vontade  de  Deus. 

Esta  estrutura  foi  encarada  mais  perfeitamente  por  São  Paulo,  por 
meio  da  iluminação  do  Espírito  Santo,  na  Epístola  aos  Efésios,  o  maior 
e  o  mais  amadurecido  de  todos  os  seus  escritos.  A  Estrutura  ou  «Ordem» 
assim  encarada,  tem  o  seu  centro  em  Jesus  Cristo.  Cristo  é  o  seu 
centro.  O  desenvolvimento  desta  estrutura  é  o  sustentáculo  da  promes- 
sa e  determina  a  tarefa  do  futuro,  não  sòmente  do  futuro  da  história  hu- 
mana, como  também  o  futuro  da  história  cósmica.  A  compreensão  clara 
desta  «Ordem  de  Deus»,  e  o  fiel  cumprimento  de  suas  reivindicações, 
são  da  mais  alta  importância  para  o  Cristianismo  e  a  civilização  dos 
nossos  tempos. 

Mas  no  nosso  estudo  da  Carta  aos  Efésios  não  é  a  Utopia  futurística 
que  nos  interessará.  Não  trataremos  de  nenhum  sonho  do  que  possa  ser, 
nem  mesmo  de  nenhuma  forma  ideal  de  pensamento  ou  da  vida  do  que 
deve  ser.  O  que  irá  ocupar  os  nossos  pensamentos  é  alguma  coisa  que 
está  agora,  em  forma  nuclear,  essencial.  A  Ordem  de  Deus  realmente 
existe,  imperfeitamente  porém,  na  Igreja  Cristã,  a  qual  Deus  designou 


—  8  — 


para  ser  o  verdadeiro  centro  integrador  e  o  modêlo  para  a  vida  e  as 
relações  humanas.  Esta  «Ordem»,  como  está  esboçada  na  visão  inspi- 
rada de  S.  Paulo,  atingirá  as  suas  últimas  dimensões  naquilo  que  êle 
descreve  «como  um  plano  para  a  plenitude  dos  tempos,  para  unir  todas 
as  coisas  nele  (isto  é,  em  Cristo),  coisas  nos  céus  e  coisas  na  terra» 
(Efes.  1-10).  O  desenvolvimento  e  o  sucesso  desta  «ordem»  são  abran- 
gidos e  garantidos  pelo  eterno  Propósito  de  Deus.  Através  do  estudo 
do  que  São  Paulo  chama  o  «mistério»,  «o  segredo  desvendado  de  Deus»,  e 
as  suas  implicações  para  a  vida  humana,  somos  ajudados  a  dar  sentido 
ao  mundo  em  que  vivemos,  a  focalizar  com  clareza  os  seus  problemcis 
essenciais,  e  a  encarar  a  solução  de  Deus  para  o  pecado  e  o  Seu  padrão 
divino  para  a  vida. 

Ao  preparar  êste  volume,  fiz  todo  possível  para  estar  familiarizado 
com  os  melhores  estudos  existentes  a  respeito  de  S.  Paulo  e  da  Epístola 
aos  Efésios,  e  fazê-los  contribuir  para  a  exposição  da  maior  de  suas  obras, 
e  para  nossa  época  a  mais  importante.  Se  bem  que  êste  livro  não  vise 
ser  comentário  à  Epístola  aos  Efésios,  no  sentido  comum,  tradicional 
do  termo,  destina-se  ser  menos  e  também  mais  do  que  isto.  Omitindo 
as  minúcias  da  erudição  exegética,  mas  levando  em  consideração  tudo  o 
que  na  Carta  é  essencial  para  a  compreensão  do  pensamento  de  Paulo, 
o  presente  volume  está  relacionado  simples  e  exclusivamente  com  o 
centro  e  as  doutrinas  centrais  do  mais  importante  dos  documentos  cris- 
tãos e  com  a  sua  influência  sôbre  a  situação  humana  dos  nossos  dias. 

John  A.  Mackay 

Princeton,  Nova  Jersey 
Maio  de  1952. 


—  9  — 


PREFÁCIO 


À  EDIÇÃO  BRASILEIRA 

Sinto-me  feliz  e  honrado  porque  meu  livro  «A  Ordem  de  Deus  e 
a  Desordem  do  Homem»  está  sendo  traduzido  em  Português  e  porque 
a  União  Cristã  de  Estudantes  do  Brasil  esteja  agora  fazendo  com  que 
seja  minha  obra  útil  ao  público  ledor  brasileiro.  Confio  em  que  o  apa- 
recimento deste  livro  na  língua  de  Camões  seja  muito  útil  aos  que  o 
lerem,  e  assim  preste  valioso  serviço  à  vida  e  ao  pensamento  brasileiro. 

Êste  livro  teve  sua  origem,  como  se  expõe  no  primeiro  capi- 
tulo, em  profunda  experiência  religiosa  por  que  passou  o  escritor, 
quando  ainda  tinha  dez  anos.  Naquela  ocasião,  abriu-se-lhe  uma 
nova  ordem  de  existência,  diante  de  si,  cujo  centro  era  Jesus  Cristo. 
O  meio  século  desde  então  foi  marcado  por  duas  das  maiores  e  mais 
revolucionárias  guerras  da  história  humana;  mas  êsses  anos  só  serviram 
para  realçar  em  meus  pensamentos  a  significação  da  carta  de  Paulo  aos 
Efésios.  Essa  grande  Carta  que  se  tornou  a  companheira  da  minha 
infância,  continua  ainda  a  ser  a  inspiração  da  vida  na  maturidade,  quando 
se  começa  a  olhar  para  o  pôr  do  sol. 

Pouco  compreendeu  o  presente  escritor  naqueles  primeiros  anos  que 
o  discernimento  e  os  ritmos  da  carta  de  Paulo  contivessem  a  quinta- 
essência  da  religião  cristã,  e  que  de  todos  os  livros  da  Bíblia,  seja  êste  o 
mais  conveniente  à  situação  contemporânea,  tanto  da  Igreja  como  do 
mundo. 

Na  epístola  imortal  que  êste  volume  tenta  interpretar,  realidades 
importantes  do  pensamento  e  da  vida,  que  foram  muitíssimas  vêzes  postas 
de  parte  na  experiência  e  no  pensamento  cristão,  combinam-se  em  glo- 
riosa unidade,  como  aspectos  da  Ordem  Divina.  Aqui,  Deus  e  o  homem, 
Cristo  crucificado  e  Cristo  ressurrecto,  doutrina  e  música,  pensamento 
teológico  e  viver  diário,  vida  no  lar  e  vida  no  mundo,  a  experiência  arre- 
batadora de  segurança  em  Cristo  e  a  consciência  de  perigo  iminente,  a 
calma  íntima  e  a  ação  de  cruzado  no  caminho  da  vida,  reconciliam-se 
sob  os  raios  do  mais  luminoso  pensamento  que  jamais  cintilou  na  mente 
humana.  Êsse  pensam.ento  que  nasceu  no  espírito  de  Paulo  numa  prisão 
romana,  e  que  é  o  centro  de  sua  maior  carta,  é  êste.  O  plano  de  Deus 
na  história  é  formar  uma  comunidade  cujos  membros,  guardando  a  sua 


11  — 


fidelidade  a  Jesus  Cristo  como  Salvador  e  Senhor,  transporão  em  suas 
relações  tódas  as  barreiras  que  ordinariamente  dividem  a  humanidade. 
Essa  comunidade,  que  é  a  Igreja  Cristã,  mostrar-se-á  ser  a  comunidade 
do  destino  humano  e  se  tornará  o  centro  de  unidade  mais  rica  que  I>eus 
planejou  além  das  fronteiras  da  vida  terrena. 

Sinceramente  espero  que  esta  tentativa  de  interpretar  o  pensamento 
de  Paulo  de  Tarso,  que,  se  excluirmos  o  Senhor  a  quem  êle  adorou,  foi 
tanto  a  maior  mente  religiosa  como  o  mais  verdadeiro  cristão  que  jamais 
viveu,  auxilie  a  muitos  leitores  a  encontrar  o  caminho  da  verdade  e  a 
inspirá-los  com  força  e  coragem  para  seguí-la  até  o  fim. 

John  A.  Mackay 

Princeton,  Nova  Jersey 
11  de  fevereiro  de  1956 


—  12  — 


CAPÍTULO  I 


PERSPECTIVAS 


Antes  de  examinarmos  a  Epístola  aos  Efésios,  considerê-mo-la  exter- 
namente. Antes  de  ouvirmos  pormenorizadamente  o  que  diz  o  livro, 
aprendamos  algumas  coisas  a  respeito  do  próprio  livro.  Em  uma  pala- 
vra, procuremos  descobrir  a  espécie  de  perspectiva  que  é  indispensável  ao 
empreendermos  o  estudo  das  idéias  e  da  significação  delas. 

a)    A  Proclamação  Apostólica 

Como  já  declarei  no  Prólogo,  o  tema  da  Carta  aos  Efésios  é  a 
Ordem  de  Deus.  E'  importante  observar  que  Paulo  proclama  esta  Ordem. 
Não  arrazoa  a  respeito  dela  em  pensamento  discursivo,  nem  a  vê  em 
imagens  poéticas.  Ao  fazer  a  proclamação,  Paulo,  o  autor  deste 
documento,  fala  como  arauto,  e  não  como  filósofo  ou  poeta.  A  sua  pro- 
clamação de  arauto  é  de  alguma  coisa  que  Deus  lhe  revelou,  o  que  coloca 
a  substância  do  seu  pensamento  fora  das  categorias  mais  comuns  da 
idéia  especulativa  e  do  símbolo  mitológico. 

Há  tôda  evidência  na  vida  e  nos  escritos  de  S.  Paulo,  de  que  êle 
estava  interessado  na  filosofia  e  que  estava  familiarizado  com  a  espe- 
culação filosófica  do  tempo.  Mas  a  sua  descrição  da  Ordem  de  Deus  não 
é  quadro  composto,  baseado  nos  primeiros  princípios  e  verdades  elemen- 
tares que  tenha  descoberto  em  estudo  da  natureza,  do  homem  ou  da 
história  e  depois  arranjados  em  sistema  lógico,  sob  a  inspiração  de  uma 
idéia  luminosa  central.  Foi  assim  que  Platão  organizou  a  sua  famosa 
«República>.  Paulo,  entretanto,  torna  perfeitamente  claro  que  a  estru- 
tura sublime,  que  êle  está  expondo  não  era  produto  da  especulação  huma- 
na no  que  há  de  melhor,  nem,  em  qualquer  sentido,  criação  da  sabe- 
doria do  homem.  Atribuía  sua  penetração  no  «mistério»  do  propó- 
sito de  Deus  em  constituir  esta  suprema  realidade  espiritual,  à  ação  do 
próprio  Deus,  que  se  aprazia  em  lhe  revelar  o  assunto. 

Nem  era  o  ponto  de  vista  que  Paulo  tinha  dêste  plano  divino,  o  que 
vulgarmente  se  descreve  como  \dsão  poética.  O  poeta  sempre  foi  mais 
criador  e  penetrante  do  que  os  filósofos  na  apreensão  das  realidades 
espirituads. 

Aos  poetas  é  que  devemos  a  nossa  compreensão  do  fato  de  que  tôda 
interpretação  fiel  da  realidade,  seja  humana  ou  divina,  tem  de  ser  baseada 
na  apreensão  da  imagem  essencial  que  fornece  a  luz  em  que  as  coisas 


—  13  — 


devem  ser  estudadas,  e  a  forma  em  relação  à  qual  elas  podem  ser  enten- 
didas. Esta  imagem  é  o  que  comumente  se  chama  «mito»,  quando  se 
emprega  «mito»  no  sentido  poético  ou  filosófico,  para  significar  a  imagem 
de  uma  verdade  fundamental,  e  não  no  infeliz  sentido  popular  de  ficção 
inescrupulosa.  O  grande  mérito  do  poeta  William  Blake  foi  ter  visto  com 
grande  clareza  que  a  tarefa  suprema  do  verdadeiro  poeta  é  ter  visão 
da  imagem  essencial  e  interpretá-la.  Esta  imagem  essencial,  ou  «mito», 
não  pode  ser  apresentada  em  forma  de  conceito,  mas  somente  em  forma 
de  pintura,  muitas  vêzes  na  forma  de  história.  Quando  a  Platão  se 
apresentou  a  necessidade  de  mostrar  verdades  que,  por  causa  do  seu 
caráter  transcendental,  não  se  podiam  enunciar  em  têrmos  conceituais, 
contou  histórias.  Essas  histórias  constituem  os  mitos  platónicos.  Quan- 
do os  profetas  de  Israel  e  o  vidente  do  Apocalipse  desejaram  descrever 
coisas  que  o  «olho  humano  não  viu  nem  o  ouvido  ouviu»,  coisas  que 
não  tinham  entrado  na  experiência  humana,  escreveram  em  linguagem 
altamente  simbólica  e  pictorial. 

Mas  S.  Paulo,  ao  apresentar  a  Ordem  de  Deus,  vai  além  da  poesia  e 
do  apocalítico,  do  mesmo  modo  que  também  ultrapassa  a  filosofia.  Êle 
possuía  toda  «a  constante  consciência  de  fôrças  transcendentais  esprei- 
tando através  das  fendas  do  universo  visível»,  que,  para  alguns,  é  a 
própria  essência  do  mito  O).  Êle  estava  plenamente  cônscio  do  problema 
da  comunicação  que  tem  levado  à  definição  contemporânea  de  mito  como 
«ampla  imagem  controladora,  que  dá  sentido  filosófico  aos  fatos  da  vida 
ordinária».  (2)  Estaria  pronto  a  admitir  que,  sem  tais  imagens  «a 
experiência  é  caótica,  fragmentária  e  meramente  fenomenal».  (3)  Con- 
tudo, quando  Paulo  teve  a  visão  da  suprema  estrutura  espiritual  da  reali- 
dade e  anunciou  que  Jesus  Cristo  era  a  «Cabeça  do  Seu  Corpo,  a  Igreja», 
sociedade  que  Deus  tinha  constituído  para  ser  o  modêlo  da  verdadeira 
unidade  humana  e  a  sede  do  único  poder  capaz  de  produzir  a  unidade; 
e  quando  continuou  a  dizer  que  Deus  designara  uma  unidade  muito  mads 
vasta  na  qual  Êle  «reuniria»  em  Cristo  as  coisas  celestiais  e  as  terrenas, 
êle  estava  proclamando  o  que,  de  acordo  com  a  sua  própria  convicção 
profunda,  lhe  fora  desvendado  pelo  próprio  Deus,  como  o  centro  de  tôda 
a  realidade  e  a  chave  de  tôda  a  compreensão  da  realidade. 

Paulo,  o  Apóstolo,  na  sua  proclamação  de  arauto  da  Ordem  de  Deus, 
coloca-se,  assim,  sozinho  em  um  lugar  à  parte,  acima  do  filósofo  e  do 
poeta,  acima  do  profeta  e  do  vidente.  O  que  chega  até  nós  através  dêle 
não  é  nem  conclusão  raciocinada  nem  interpretação  mitológica;  não 
é  simples  introspecção  profética  dos  fundamentos  da  órdem  moral,  nem 
tranquilizadora  afirmação  da  vitória  de  Deus  na  história.  Aqui,  temos 
antes  a  descrição  suprema  e  concreta  do  que  está  incluído  no  credo  da 
Época  apostólica,  —  que  é  o  credo  básico  para  tôdas  as  épocas,  —  de 
que  Jesus  Cristo  é  Senhor  (Fil.  2:11). 


(1)  Philip  Wiicohvright,  citado  por  Mark  Schorer  em  William  Blake:  The  Politics 
of  Vision,  p.  28. 

(2;  Mark  Schorer,  op.  cit.,  p.  27. 
(3;    Mark  Schorer,  op.  cit.,  p.  27. 


—  H  — 


Interlúdio  lírico  sobre  a  Autoridade  Bíblica 

Neste  ponto  surge  muito  bem  a  pergunta:  Porque  devemos  nós 
tomar  a  sério  S.  Paulo  e  a  Carta  aos  Efésios?  Porque  é  que  devemos 
nós  considerar  o  conteúdo  desse  documento  do  século  primeiro  como  re- 
velação final  dos  propósitos  da  Divindade,  tanto  do  que  Deus  tem  feito 
como  do  que  pretende  fazer?  A  resposta  a  esta  pergunta  é  a  seguinte: 
—  Porque  a  Epístola  aos  Efésios  ocupa  lugar  central  em  um  livro,  a 
Bíblia,  que  a  Igreja  Cristã  crê  ser  o  registro  da  revelação  do  próprio 
Deus  à  humanidade. 

Isto  desperta  a  questão  da  autoridade  da  Biblia,  questão  que  desejo 
considerar,  antes  de  prosseguir  nesta  discussão.  Que  direito  temos  nós 
de  atribuir  à  Bíblia  ou  a  qualquer  de  suas  partes,  a  espécie  de  autoridade 
que  aqui  lhe  é  atribuída?  Que  base  possuímos  nós  para  admitirmos  que 
encontramos  na  Bíblia  revelação  com  autoridade  da  parte  de  Deus  e  des- 
crição da  estrutura  definitiva  da  realidade  espiritual?  Com  que  razão 
se  pode  manter  que  na  Bíblia,  e  sòmente  na  Bíblia,  somos  postos  face  a 
face  com  a  revelação  que  Deus  fêz  de  Si  mesmo  e  da  Sua  vontade? 

Uma  coisa  é  certa.  A  Bíblia  não  pode  ser  apreciada  ou  entendida 
por  pessoas  que  se  aproximam  dela  no  espírito  de  pura  objetivi- 
dade.  A  pessoa  que  se  chega  à  Bíblia  simplesmente  para  a  olhar,  para 
examinar  as  suas  verdades  com  pesquisa  fria,  querendo  aplicar  ao  seu 
estudo  todos  os  recursos  de  investigação  e  tôda  a  sabedoria  enciclo- 
pédica dos  documentos  humanos,  mas  sem  entrega  pessoal  ao  Deus  a 
Quem  a  Bíblia  revela,  absolutamente  não  poderá  compreender  nem  apre- 
ciar o  Livro.  A  razão  é  óbvia.  Depois  que  o  texto  bíblico  e  o  pensa- 
mento nêle  guardado  piedosamente  tenham  sido  explorados  o  mais  cui- 
dadosamente possível,  do  ponto  de  vista  de  sua  base  linguística  e  histó- 
rica, depois  de  terem  sido  estudadas  a  vida  e  as  idéias  das  personalidades 
bíblicas,  a  importância  principal  da  significação  e  da  mensagem  da  Bíblia 
permanece  intangível.  A  Bíblia  exige  dos  que  a  desejam  estudar,  que 
se  tornem  dispostos  a  adotar  a  atitude  básica  para  com  Deus  e  para  com 
a  vida,  que  ela  desafia  os  homens  a  adotar.  Ela  exige,  especialmente, 
que  se  submetam  ao  domínio  dessa  figura  central,  Jesus  Cristo,  a  Quem 
apresenta.  Quando  os  homens  estão  desejosos  de  adotar  um  ponto  de 
vista  bíblico,  para  se  colocarem  na  perspectiva  em  que  a  Bíblia  encara 
todas  as  coisas,  e  para  se  identificarem  com  o  plano  espiritual  da  vida 
que  a  Bíblia  revela,  compreendem  a  Bíblia,  vêem  as  realidades  espirituais 
de  que  a  Bíblia  fala.  Para  que  a  única  auto-revelação  de  Deus  e  a  Sua 
Vontade  devam  ter  para  que  tenham  algum  sentido,  façam  verdadeira 
Impressão  no  estudante  dos  registros  bíblicos,  são  necessários  os  «olhos 
da  fé». 

Êste  é  o  método  que  a  própria  Bíblia  propõe  para  tornar  válida  a 
verdade  que  proclama.  Obediência  a  Deus  é  o  primeiro  requisito  para 
a  percepção  de  Deus  pelo  homem.  Sòmente  quando  o  espectador  se 
toma  um  viajante  na  estrada  real  dos  propósitos  de  Deus,  sòmente  quan- 
do êle  está  desejando  identificar-se  com  o  grande  esquema  divino  de 
tôdas  as  coisas,  conforme  se  revela  na  Bíblia,  é  que  êle  está  habilitado 


—  15  — 


a  compreender  a  maneira  bíblica  de  ver  as  coisas.  Em  uma  palavra, 
quando  o  observador  displicente  das  coisas  bíblicas  se  transforma  em 
ator  no  drama  bíblico,  quando  começa  a  pensar  com  a  Bíblia  e  não  apenas 
acêrca  da  Bíblia,  quando  segue  as  indicações  que  o  levam  pelo  caminho 
£ifora  até  certos  montes  de  visão,  então  e  somente  então  pode  crer,  com 
todo  o  seu  coração,  ter  estado  ouvindo  o  Eterno.  Então  perceberá  coisas 
escondidas  da  objetividade  científica,  seguirá  nas  pegadas  dos  santos,  tor- 
nar-se-á  cidadão  da  Comunidade  de  Deus.  Porque  a  Bíblia  é  confirma- 
da, como  tôdas  as  verdades  fundamentais  contidas  na  Bíblia  o  são,  pelo 
testemunho  íntimo  no  estudante  humano  da  Bíblia,  o  testemunho  do 
mesmo  Espírito  Santo,  a  cuja  especial  iluminação  deveram  os  escritores 
da  Bíblia  a  sua  percepção  de  Deus,  dos  Seus  propósitos  e  das  Suas  obras. 
Não  podemos  ir  além  dessa  afirmação  grande  e  simples  de  Tomas  à  Kem- 
pis,  de  que  «a  Bíblia  deve  ser  lida  com  o  mesmo  Espírito  com  que  foi 
escrita». 

Mas  então,  que  acontece  com  a  «objetividade  científica»?  Que  se 
há  de  fazer  com  a  afirmação  de  que  aproximação  alguma  da  verdade 
será  válida,  a  não  ser  que  seja  realizada  na  «atmosfera  antisética  da  ob- 
jetividade»? E'  nesta  luz  solar  antissética,  costumam  dizer,  que  morrem 
todos  os  germes  que  dificultam  o  estudo  objetivo:  os  germes  da  emoção, 
os  germes  do  preconceito,  os  germes  do  compromisso.  A  resposta  é  que, 
nessa  espécie  de  aproximação  da  verdade  em  que  está  em  jôgo  a  própria 
existência  do  inquiridor,  não  pode  existir  tal  objetividade.  Onde  estão 
envolvidos  os  supremos  valores  que  têm  de  ser  escolhidos  ou  rejeitados, 
e  quando  a  própria  vida  de  uma  pessoa  depende  da  sua  rejeição  ou  da 
sua  escolha,  o  estudo  todo  eleva-se  muito  acima  e  se  estende  muito  além 
da  «atmosfera  antissética  da  objetividade».  Quando  a  própria  existência 
de  um  homem  está  envolvida  no  valor  particular  que  êle  escolhe  ou  na 
suprema  decisão  que  adota,  não  existe  absolutamente  tal  coisa  como  ob- 
jetividade absoluta.  As  escolhas  e  as  decisões  vitais  são  feitas  não  em 
bases  objetivas  mas  subjetivas.  Quando  tudo  que  é  do  homem  está  em 
jôgo,  êle  é  obrigado  a  pensar  «existencialmente».  No  reino  das  relações 
pessoais  e  das  supremas  atitudes  espirituais,  o  pensamento  de  existência 
é  a  única  forma  verdadeiramente  adequada  do  pensamento.  Tôda  pessoa 
que  pretenda  explorar  a  significação  da  verdade  bíblica,  defronta-se  com 
uma  escolha  terrível  e  inevitável. 

Neste  ponto,  é  difícil  a  uma  pessoa  evitar  de  se  tornar  lírica.  Essa 
espécie  de  objetividade  que  algumas  pessoas  advogariam  no  estudo  da 
religião,  é  para  mim  totalmente  impossível,  no  que  se  refere  à  Epís- 
tola aos  Efésios.  Porque  a  êste  livro  devo  a  vida.  Era  um  rapaz  de 
apenas  catorze  anos  de  idade  quando,  nas  páginas  da  Carta  aos  Efésios, 
vi  um  mundo  novo.  Achei  ali  um  mundo  de  aspectos  semelhantes  aos 
do  mundo  que  se  tinha  formado  dentro  de  mim.  Depois  de  um  período  de 
angustiosos  desejos  ardentes,  durante  o  qual  orava  a  Deus,  tôdas  as 
noites,  nas  simples  palavras:  «ó  Deus,  ajuda-me»,  alguma  cousa  acon- 
teceu. Depois  de  desejar  apaixonadamente  que  eu  pudesse  cruzar  a 
fronteira  para  um  novo  plano  de  vida,  a  respeito  de  que  tinha  lido  e  que 


—  16  — 


tinha  visto  em  outras  pessoas  a  quem  admirava,  fui  admitido,  de  ma- 
neira inexplicável  mas,  para  a  minha  inexprimível  alegria,  a  uma  nova 
dimensão  de  existência.  Que  me  havia  acontecido?  Tudo  era  novo. 
Alguém  tinha  descido  até  à  minha  alma.  Tive  nova  visão,  novas  expe- 
riências, novas  atitudes  para  com  os  outros.  Eu  amava  a  Deus.  Jesus 
tomou-se  para  mim  o  centro  de  tôdas  as  coisas.  A  única  explicação  que 
eu  poderia  dar  a  mim  mesmo  e  aos  demais,  estava  nas  palavras  da  Carta 
aos  Efésios,  cujas  cadências  começaram  a  soar  dentro  de  mim  e  cuja 
verdade  os  meus  novos  pensamentos  pareciam  confirmar.  Passou  minha 
vida  a  ser  musicada  no  texto  que  começa:  «E  vos  vivificou,  estando  vós 
mortos  em  ofensas  e  pecados»  (2:1). 

Eu  fôra  «vivificado»:  estava  realmente  vivo.  A  vivificação  veio  do 
modo  seguinte:  Era  sábado,  perto  do  meio-dia,  no  mês  de  julho  de  1903. 
Estava-se  realizando  um  culto  de  «preparação»  de  um  retiro  de  comu- 
nhão, à  velha  moda  escocêsa;  era  ao  ar  livre,  entre  as  montanhas,  na 
paróquia  montanhesa  de  Rogart,  em  Sutherlandshire.  Um  ministro  es- 
tava pregando  de  um  púlpito  de  madeira,  tradicionalmente  chamado  «the 
tent»  (*),  a  algumas  centenas  de  pessoas,  que  se  sentavam  em  bancos  ou 
no  chão,  à  sombra  de  grandes  árvores,  pela  encosta.  Eu  não  me  posso  re- 
cordar de  nada  do  que  disse  o  ministro.  Mas  alguma  coisa  ou  alguém, 
dentro  de  mim,  disse-me,  com  fôrça  esmagadora,  que  eu  também  preci- 
sava pregar,  que  eu  precisava  estar  onde  estava  aquêle  homem.  O  pen- 
samento assustou-me,  porque  eu  tinha  outros  planos. 

Durante  o  resto  do  verão,  vivi  literalmente  nas  páginas  de  um  pe- 
queno Novo  Testamento,  que  tinha  adquirido  por  um  pêni  inglês.  De 
modo  bastante  estranho,  eram  as  Cartas  de  Paulo,  mais  do  que  os  Evan- 
gelhos, que  eu  mais  lia  e  anotava.  Fôsse  isto  talvez  porque  os  Evange- 
lhos tinham  sido  muito  familiares  a  mim,  ao  passo  que  as  Cartas  de 
Paulo,  que  nunca  me  interessaram  particularmente  antes,  agora  tinham, 
em  minha  nova  visão,  tôda  a  novidade  e  frescura  de  um  romance.  Era 
isto  particularmente  verdade  da  Epístola  aos  Efésios,  que  se  tomou  desde 
então,  e  tem  continuado  ser,  o  meu  livro  favorito  na  Bíblia.  Desde  o 
princípio,  começou  a  minha  imaginação  a  inflamar-se  com  a  significação 
cósmica  de  Jesus  Cristo  vivo,  que  era  o  centro  de  um  grande  drama  de 
unidade,  drama  em  que  tôdas  as  coisas  nos  céus  e  na  terra  deviam  tor- 
nar-se  um.a  nÊle.  Eu  não  compreendia  o  que  significava  tudo  isto,  mas 
a  tendência  para  pensar  tôdas  as  coisas  relacionadas  com  Jesus  Cristo 
e  um  anseio  de  fazer  a  minha  contribuição  para  esta  unidade  em  Cristo, 
tornou-se  a  paixão  da  minha  vida.  Tomou-se-me  natural,  então,  e  con- 
tinua sendo  natural  desde  então,  dizer  eu  «Senhor  Jesus»  a  uma  Pre- 
sença pessoal. 

Digo  isto  porque  quero  tornar  perfeitamente  claro  que,  no  que  res- 
peita à  Bíblia  e  especialmente  à  Carta  de  Paulo  aos  Efésios,  não  posso 
encontrar  os  padrões  da  assim  chamada  objetividade  científica.  Fora  da 
experiência  que  me  veio,  por  intermédio  da  Bíblia  e  da  visão  que  tive  na 

(*)  Xa  Eacócia,  tent  significa  tento,  cuidado,  atenção.  Abrey.  de  attenti&n.  (N. 
dçs  B«T.). 


—  17  — 


Epístola  aos  Efésios,  eu  não  sou  nada  e  a  minha  vida  não  tem  signifi- 
cação. Devo  ser  perdoado  se  insisto  novamente  neste  ponto,  isto  é,  em 
que  existe  um  reino  no  qual,  no  mais  profundo  sentido,  a  subjetividade 
ê  a  verdade. 

Mas  isto  significa  que  não  há  lugar  no  pensamento  e  na  vida  de  um 
cristão  onde  se  possa  encontrar  a  subjetividade  e  a  objetividade?  Não 
há  evidência  objetiva  na  vida  pessoal  e  acontecimentos  providenciais  que 
possam  dar  a  sanção  de  objetividade  a  alguma  cousa  que  aconteceu  no 
íntimo  da  aJma? 

Há  algum  tempo  atrás,  enquanto  me  preparava  para  as  Preleções 
Croall  em  Edimburgo,  abri  as  páginas  de  um  velho  diário  do  meu  tempo 
de  estudante  em  Aberdeen,  para  o  qual  eu  não  tinha  olhado  há  mais  de 
trinta  anos.  Nele  achei  que,  em  5  de  fevereiro  de  1908,  fiz  um  registro 
em  que  me  referia  à  experiência  de  Rogart. 

Quando  era  adolescente  de  dezoito  anos,  em  meu  primeiro  ano  de 
colégio,  tinha  o  hábito,  como  parte  de  minhas  devoções  diárias,  de  lançar 
no  papel  algumas  observações  à  passagem  lida  na  Bíblia.  Depois  de 
transcrever  as  palavras:  «Esta  é  uma  palavra  fiel  e  digna  de  tôda  a 
aceitação,  que  Cristo  Jesus  veio  ao  mundo  para  salvar  os  pecadores; 
dos  quais  eu  sou  o  principal»  (1  Tim.  1:15),  fiz  a  seguinte  observação: 
«Quando  leio  êste  capítulo  e  procuro  seguir  o  pensamento  do  apóstolo, 
certa  cadência  sublime  parece  cair  nos  meus  ouvidos,  notas  que  desper* 
tam  ecos  responsivos  das  profundidades  da  minha  alma.  Qual  a  causa 
disto?  Paulo  alcançou  misericórdia.  Paulo  foi  colocado  no  ministério. 
Paulo  foi  grandemente  abençoado  por  Deus.  Eu  —  oh!  aqui  lanço  de 
novo  a  minha  alma  sôbre  Ti  —  alcancei  misericórdia!  Alcancei  a  pro- 
messa de  prègar  o  Evangelho.  E,  ó  meu  Senhor  e  meu  Redentor,  rega- 
rás certamente  os  meus  trabalhos  e  darás  crescimento  às  sementes  que 
semeei.  «Não  por  mim,  mas  por  amor  do  Teu  próprio  Nome».  Aprofun- 
da a  minha  experiência.  Concede  que,  como  o  Apóstolo,  possa  eu  muitas 
vêzes  proclamar  com  entusiasmo  o  que  devo  à  Tua  graça  —  o  principaT 
dos  pecadores  e  o  principal  dos  salvadores  nos  braços  do  amor,  e  as  estrê- 
las  em  seu  curso  da  meia-noite,  testemunhando  os  eternos  esponsais  na 
solidão  dos  ásperos  penhascos.  Oh,  Rogart,  o  meu  coração  anseia  nova- 
mente pela  doçura  que  gozou  com  o  seu  Salvador,  nos  teus  queridos  mon- 
tes cobertos  de  urze.  Nunca,  nunca  poderei  esquecer-te».  A  referência 
aos  «esposais  perenes»  pode  denunciar  a  disposição  de  ânimo  da  adoles- 
cência e  a  influência  da  literatura  mística  na  tradição  evangélica  em  que 
eu  começava  a  mergulhar-me.  Mas  conservo  a  indelével  recordação  de 
juramento  ardente  a  Jesus  Cristo,  entre  os  rochedos,  à  luz  das  estrêlas, 
na  noite  seguinte  à  minha  primeira  consciência  da  realidade  de  Deus,  de 
que  eu  Lhe  pertencia  e  que  Êle  me  pertencia. 

Cincoenta  anos,  quase,  já  se  passaram  desde  êste  arrebatamento  da 
adolescência,  nas  montanhas  da  Escócia,  e  quarenta  e  cinco,  desde  que 
lembrei  a  experiência,  no  meu  quarto  de  estudante  na  Cidade  de  Granito. 
O  sol  da  vida  se  está  dirigindo  para  o  ocaso  e  esta  peregrinação  morta! 
deve,  na  natureza  das  coisas,  estar  entrando  na  última  volta  antes  do  pôr 
do  sol.    A  vida  tem  sido  completamente  uma  aventura,  um  movimento 


—  18  — 


de  uma  fronteira  para  outra.  Para  mim,  quando  reflito  sôbre  o  passar 
dos  anos,  tanto  a  respeito  da  autoridade  da  Bíblia  como  da  significação 
da  minha  própria  vida,  subjetividade  e  objetividade  nunca  podem  ser 
separadas.  Um  fato  subjetivo,  uma  experiência  de  avivamento  pelo  Es- 
pirito Santo  de  Deus.  na  tradição  clássica  da  conversão  cristã,  modelou 
o  meu  ser  de  tal  maneira  que  comecei  a  viver  em  Cristo  e  por  Cristo,  e 
«pelo  Seu  corpo,  que  é  a  Igreja».  Meu  interesse  pessoal  pela  Ordem  de 
E>eus  começou,  quando  a  única  maneira  em  que  a  vida  podia  ter  sentido 
para  mim,  era  na  base  de  uma  certeza  íntima  de  que  eu  mesmo,  por  meio 
da  operação  de  um  poder  que  a  Epistola  aos  Efésios  me  ensinou  a  chamar 
«graça»,  tinha-se  tornado  parte  daquela  Ordem,  e  que  eu  devo,  daí  por 
diante,  dedicar  as  minhas  forças  ao  seu  desenvolvimento  e  cumprimento. 
A  única  maneira  pela  qual  a  vida  tem  sentido  para  mim,  agora,  no  reino 
objetivo  da  história,  deriva  desta  convicção:  que  a  Igreja  Cristã  que  con- 
fessa o  seu  Senhor  e  se  esforça  pela  unidade  nÊle,  a  unidade  que  se  torna 
manifesta,  hoje,  como  a  mais  universal  e  benéfica  das  realidades  da  his- 
tória, é  em  si  mesma  o  centro  e  o  verdadeiro  modelo  da  Ordem  de  Deus 
neste  mundo  e  a  promessa  e  garantia  da  final  consumação  de  tôdas  as 
coisas  em  Cristo,  no  mundo  que  está  para  vir. 
c)    Uma  Carta,  Paulina  e  Eícumênica 

Com  considerações  preliminares,  prossigamos  imediatamente  para 
colocar  a  Carta  aos  Efésios  em  perspectiva  para  estudo  íntimo,  examinan- 
do, primeiramente,  a  sua  origem,  a  natureza  e  o  caráter  único  entre  os 
escritos  bíblicos  e  contemporâneos. 

O  autor  deste  documento  bíblico,  em  que  a  natureza  da  Ordem  de 
E>eus  é  mais  completamente  revelado  do  que  em  qualquer  outro  lugar  das 
Santas  Escrituras,  é  S.  Paulo  (4).  Presentemente,  estamos  no  meio  de 
um  renascimento  paulino.  Em  virtude  do  que  Paulo  e  os  seus  escritos 
têm  significado  para  a  minha  própria  vida  e  pensamento,  é  naturalmente 
muito  agradável  para  mim  pessoalmente,  verificar  que  a  sua  condição  no 
mundo  da  erudição  da  crítica  bíblica  seja  hoje  tão  diferente  do  que  era 
há  meio  século  atrás  ou  mesmo  há  menos  tempo,  quando  a  sua  forte  voz 
me  falou  pela  primeira  vez.  Naqueles  dias,  muitas  vozes  influentes  pro- 
clamavam que  o  grande  Tarzan  era  o  pervertedor  da  religião  cristã,  o 
homem  que  transformou  a  simples  fé  em  Jesus  em  fantasias  místicas  e 
teologia  complexa.  Mas,  no  curso  destas  últimas  décadas,  em  parte  por- 
que o  estudo  do  Novo  Testamento  readquiriu  a  dimensão  da  profundi- 
dade e  em  parte,  porque  os  acontecimentos  trágicos  relacionados  com 
duas  Guerras  Mundiais  têm  sido  comentários  luminosos  para  o  estudo 
paulino  da  natureza  humana  e  da  sua  declaração  do  problema  humano 
básico,  o  mais  famoso  discípulo  de  Gamaliel  e  o  mais  distinto  dos  após- 

(4)  Entre  os  estudos  recentes  que  sustentam  a  autoria  paulina  desta  disputada  Epís- 
tola, sem  dúvida  ficarão  por  muitos  anos  como  os  mais  conclusivos  e  mais  compreensivos, 
os  argumentos  apresentados  por  Ernst  Percy  era  seu  trabalho  maciço  Die  ProMeme  dei 
Kolosser  —  imd  Epheserhriefe  (Lund,  1946).  E'  de  se  lamentar  muito  que  C.  Leslie  Mitton 
(como  êle  mesmo  reconhece  em  seu  Prefácio)  não  tivesse  acesso  ao  volume  de  Percy,  en- 
quanto escrevia  o  seu  recente  livro  The  Epi^tle  to  Ephesians,  Its  Anthorship,  Origin  and 
Purpose  (Oxford,  1951),  em  que  finalmente  decide  contra  a  autoria  de  Paulo. 


—  19  — 


tolos  do  Cristianismo  surge  sob  nova  luz.  Reconhece-se,  agora,  que  não 
mais  existe  conflito,  muito  menos  abismo,  entre  os  ensinos  de  Jesus  e  a 
fé  que  Paulo  tinha.  Tornou-se  claro  que,  como  matéria  de  fato,  foi 
Paulo  o  primeiro  homem  na  primitiva  comunidade  cristã  que  compreen- 
deu inteiramente  a  significação  de  Jesus  Cristo.  A  experiência  pessoal 
e  o  espírito  independente  do  apóstolo  como  um  abortivo  (*)  fizeram-no 
não  simples  eco  ou  pálido  reflexo  da  comunidade  de  Jerusalém.  Foi  êle 
quem  melhor  compreendeu  a  Jesus,  quem  mais  serviu  e  foi  o  que  cuja 
vida  e  espírito  mais  se  aproximaram  do  modelo  e  da  mente  de  Cristo,  do 
que  a  de  qualquer  outro  homem  que  jamais  existiu.  Porque  êste  homem 
também  viu  o  Senhor,  e  os  princípios  básicos  que  proclamou,  lhe  tinham 
vindo  de  revelação  pessoal  de  Jesus  Cristo,  a  êle  e  nêle.  Paulo  conheceu 
a  história  de  Cristo;  prezou  a  tradição  a  respeito  de  Cristo.  Mas  êle  era 
o  que  era  e  disse  o  que  disse,  por  causa  da  «revelação  de  Jesus  Cristo». 
E  nunca,  podíamos  acrescentar,  foi  a  realidade  da  Revelação  mais  clara 
e  os  poderes  de  reflexão  da  mente  do  Apóstolo  mais  transfigurados,  do 
que  no  grande  livro  que  é  conhecido  pelo  título  de  «A  Epístola  aos 
Efésios». 

E'  importante  observar  que  êste  documento  é  uma  carta.  Não  é  um 
oráculo,  como  se  fôsse  proferido  por  um  dos  profetas  do  Velho  Testa- 
mento. Não  é  também  um  tratado  teológico  impessoal,  como  os  que 
foram  produzidos  por  muitos  dos  sucessores  de  Paulo  no  pensamento 
cristão.  E'  uma  carta  que  êle,  na  sua  qualidade  de  membro  da  primi- 
tiva comunidade  cristã,  escreveu  aos  seus  companheiros  daquela  comu- 
nidade. Tanto  êstes  como  êle  pertenciam  à  «Comunhão  do  Espírito», 
isto  é,  à  «Comunhão  criada  pelo  Espírito».  Passaram  pela  experiência 
da  nova  vida  em  Cristo.  Paulo  está  interessado  na  educação  dêles. 
Queria  dizer-lhes  o  que  êles  realmente  eram,  o  que  lhes  havia  acontecido, 
o  que  eram  as  implicações  da  experiência  e  da  vida  coletiva  dêles  na 
estrada  do  tempo  e  na  perspectiva  infinita  da  eternidade.  Desejava 
sobretudo  que  conhecessem  Quem  era  êste  Jesus,  realmente  em  tôda  a 
majestade  da  Sua  pessoa,  da  Sua  obra  e  da  Sua  significação  cósmica. 

Entretanto,  apesar  de  sòmente  uma  carta,  não  faltava  autoridde  a 
êste  documento.  Paulo,  como  os  demais  escritores  apostólicos,  faiava 
com  tôda  a  autoridade  de  um  profeta  do  Velho  Testamento.  A  sua  auto- 
ridade derivava  da  sua  consciência  profética,  da  certeza  de  que  Jesus 
Cristo  mesmo  o  havia  chamado  e  lhe  tinha  desvendado  o  «mistério».  A 
sua  posição  temporária  em  uma  prisão  romana  era  a  de  «mordomo», 
isto  é,  de  «executor»  do  «mistério».  Um  segrêdo,  antes  escondido  em 
Deus,  lhe  fôra  revelado  e  agora  exigia-se  que  êle  também  o  manifestasse 
a  outros.  Foi  Paulo  quem  primeiro  apanhou,  em  tôda  a  sua  grandeza, 
a  significação  da  nova  comunidade  cristã  e  foi  êle  quem  proclamou  aa 
implicações  cósmicas  desta  nova  unidade,  que  tinha  vindo  a  existir  em 
Cristo. 

Como  «executor»  dêste  «mistério»,  êste  segrêdo  revelado,  Paulo  es- 
tava bem  certo  e  bem  instruído  ácêrca  da  sua  autoridade  apostólica. 

(*)    Nota  do  tradutor:  "como  um  abortivo"  —  nascido  fora  de  tempo. 


—  20  — 


Mas  êle  não  Gomunicou  êste  «segrêdo  aberto»  aos  seus  correligionários 
com  gestos  olímpicos,  imperiosos,  nem  como  as  grandes  maneiras  de  um 
Moisés,  cuja  face  brilhava  tanto,  descida  do  «Santo  Monte»,  que  o  povo 
não  podia  olhar  para  êle.  A  mais  sublime  comunicação  já  feita  aos  ho- 
mens, foi  a  que  saiu  de  uma  prisão  romana  e  feita  por  alguém  que,  na 
sua  própria  opinião,  era  «o  menor  de  todos  os  santos»  (3:8)  na  comu- 
nidade cristã,  um  que  se  considerava  prisioneiro  de  Jesus  Cristo»  por 
amor  daqueles  a  quem  escrevia,  para  que  suas  mentes  pudessem  ser  ilu- 
minadas pelas  palavras  dêle  e  seus  corações  recebessem  nova  coragem 
para  êles  das  «tribulações»  dêle,  que  eram  a  sua  «glória»  (3:13). 

Mas  Paulo  era  tão  sacerdotal  em  sua  simpatia,  como  era  profético 
em  sua  expressão.  Amava  o  povo  «com  a  afeição  de  Jesus  Cristo», 
«sentia  dores  de  parto»  para  que  Cristo  pudesse  nêle  ser  formado.  Quan- 
do contemplamos  a  ternura  sacerdotal  de  S.  Paulo,  que  dava  beleza  e 
fragrância  à  profética  majestade  do  seu  pensamento,  podemos  compreen- 
der como  foi  que  Rembrandt,  o  maior  dos  pintores,  se  imbuiu  êle  todo 
dos  escritos  de  Paulo  a  fim  de  poder  «interpretar  o  divino  companheiro 
em  termos  da  ternura  infinita  e  tôda  envolvente  de  Cristo»  (Baldwin 
Brown) . 

Esta  carta  é  uma  carta  ecuménica.  Não  foi  dirigida  a  nenhuma 
igreja  em  particular,  mas  a  tôdas  as  igrejas  e  a  todos  os  cristãos  em 
geral,  onde  quer  que  se  pudessem  encontrar,  por  todo  o  inteiro  «oikume- 
ne»,  isto  é,  a  «terra  habitada».  Os  mais  antigos  manuscritos  da  Epís- 
tola não  têm  referências  a  Éfeso,  e  nada  existe  no  texto  que  lhe  dê  qual- 
quer colorido  local.  Paulo  escreve  «aos  santos  e  fiéis  em  Cristo  Jesus» 
(1:1),  para  que  pudessem  ter  a  compreensão  de  tudo  que  significa  estar 
«em  Cristo». 

Nesta  Epístola,  pois,  não  se  trata  de  qualquer  problema  humano  es- 
pecifico. Quando  escreveu  aos  Gálatas,  Paulo  discutiu  os  conceitos  fu- 
nestos e  as  tática^  indignas  dos  que  estavam  adaptando  ao  judaísmo  a 
religião  cristã  e  reduzindo  a  nascente  Igreja  Cristã  a  uma  seita  do  ju- 
daísmo. Com  palavras  candentes  e  indignação  chamejante,  desmasca- 
rou os  que  pervertiam  o  Evangelho  de  Cristo.  Ao  mesmo  tempo,  esta- 
beleceu em  sua  simplicidade  nua,  a  natureza  íntima  do  Evangelho  e  o 
centro  da  vida  cristã. 

Quando  escreveu  a  sua  primeira  grande  carta  aos  cristãos  de  Corin- 
to, Paulo  tinha  em  mente  formas  de  procedimento  na  vida  da  comunidade 
cristã  local,  que  rebaixavam  o  Evangelho.  A  sublime  passagem  em  que 
êle  fala  da  instituição  da  Ceia  do  Senhor,  é  exposta  no  fundo  sórdido  das 
vergonhosas  orgias  festivas  que,  na  Igreja  de  Corinto,  muitas  vezes,  pre- 
cediam a  Ceia  do  Senhor. 

Mas  aqui,  Paulo  não  está  pensando  em  qualquer  situação  particular, 
nem  se  ocupa  das  pessoas  que  procuram  perverter  a  religião  cristã,  nem 
tão  pouco  nos  que  a  degradam.  Está  antes  interessado  na  situação  per- 
manente, tanto  divina  como  humana.  Quando  escreve,  pois,  a  respeito 
das  coisas  mais  fundamentais  e  mais  permainentes,  das  coísels  mais  pro- 
fundas e  mais  escondidas,  no  propósito  remidor  de  Deus.    Escreve  acér- 


—  21  — 


ca  da  graciosa  operação  desse  propósito  na  história  e  além  da  história. 
Descreve  o  plano  divino,  que  começou  a  manifestar-se  de  forma  concreta 
quando,  por  meio  da  fé  em  Cristo,  a  graça  de  Deus  e  a  necessidade  do 
homem  estabeleceram  entre  si  contacto  transfigurador.  Havia  chegado 
a  oportunidade  para  uma  grande  epístola  ecuménica. 

Já  fôra  ganha  a  batalha  da  catolicidade  do  Cristianismo  contra  os 
judaizantes,  que  teriam  feito  da  igreja  cristã  uma  seita  judáica.  Existia 
agora  uma  comunidade  cristã  em  Roma.  Até  na  «casa  do  César»  havia 
santos.  Admira  pouco  que  «o  prisioneiro  de  Cristo»,  vivendo  no  centro 
de  um  império  mundial,  desenvolvesse  tipo  de  mentalidade  imperial! 
Podia  haver  haver  qualquer  coisa  mais  natural  do  que  Paulo,  com  seu 
génio  das  perspectivas  de  grande  alcance,  o  seu  pensamento  incendido 
pelas  circunstâncias  dramáticas  da  sua  vida,  o  caráter  único  do  seu 
ambiente,  e  inspirado  por  iluminação  especial  do  Espírito  Santo  nos  vastos 
propósitos  de  Deus,  fizesse,  em  nome  de  Cristo,  o  pronunciamento  im- 
perial  que  é  o  objetivo  dêste  estudo? 

d)    Compêndio  da  Verdade  Cristã 

A  Carta  aos  Efésios  muito  apropriadamente  foi  designada  como  «a 
coroa  e  o  clímax  da  teologia  paulina».  Ela  mantém  a  mesma  distinção, 
ousa-se  afirmar,  em  relação  ao  Novo  Testamento  como  um  todo.  Vale 
a  pena  considerar  uma  declaração  do  Dr.  J.  Scott  Lidgett  a  esse  respeito. 
Para  êste  erudito,  a  Epístola  aos  Efésios  é  a  «declaração  perfeita,  e  a 
mais  compreensiva  que  se  contém  até  mesmo  em  todo  o  Novo  Testamen- 
to, do  significado  da  religião  cristã,  amalgamando  como  em  nenhum  outro 
lugar  mais  elementos  evangélicos,  espirituais,  morais  e  universais.  E' 
sem  dúvida  a  exposição  final  da  teologia  paulina»  (5).  o  mesmo  escri- 
tor prossegue  para  acrescentar:  «Contudo,  esta  Epístola  não  pode  ser 
simplesmente  considerada  como  a  corôa  e  clímax  da  teologia  paulina, 
mas  do  Novo  Testamento  como  um  todo.  Ela  está  em  relação  muito 
íntima  com  certos  outros  dos  escritos  do  Novo  Testamento,  além  dos  de 
S.  Paulo.  Se  êste  fato  fôr  devidamente  reconhecido,  deve-se  então  colo- 
car a  Epístola  ao  lado  dos  capítulos  catorze  e  dezessete  do  Evangelho  de  S. 
João,  da  primeira  Epístola  do  mesmo  João  e  da  Primeira  Epístola  de 
Pedro»  (6).  Na  verdade,  podíamos  afirmar  ser  esta  carta,  como  que  a 
essência  distilada  da  religião  cristã,  o  compêndio  mais  autorizado  e  per- 
feito da  nossa  fé  cristã. 

Êste  juizo  pode  ser  ilustrado  e  confirmado  por  umas  poucas  alusões 
simples.  Na  Epístola  aos  Gálatas,  Paulo  expõe  e  reinvindica  o  caráter 
objetivo  e  essencialmente  evangélico  da  mensagem  cristã  à  humanidade. 
A  salvação  era  pela  fé  em  Jesus  Cristo,  sem  as  obras  da  Lei.  Na  Epís- 
tola aos  Romanos,  discorreu  sôbre  a  «Justiça  de  Deus»,  a  graciosa  entra- 
da de  Deus  na  história,  em  Jesus  Cristo  que,  quando  aceito,  por  judeus 
ou  gentios,  liga  a  alma,  na  forma  mais  íntima  e  vitoriosa,  com  o  próprio 

(5)  God  in  Christ  Jesus:  A  study  of  PauPs  Epistle  to  the  Ephesians,  por  J.  Scott 
Lidgett,  p.  2. 

(6)  Id.,  p.  3. 


—  22  — 


Deus  e  com  o  novo  plano  da  Sua  Justiça  em  Cristo  Jesus.  Mas,  na 
Epístola  aos  Efésios,  a  verdade  do  Evangelho,  que  Paulo  estabelece  com 
argumentos  persuasivos  em  sua  áspera  polémica  com  cristãos  da  Galácia, 
é  tão  certa,  como  realidade  bendita  e  aceita.  A  luta  de  línguas  já  tinha 
cessado,  e  nenhuma  nota  de  controvérsia  brota  da  pena  do  apóstolo. 
Tanto  os  que  «estavam  longe»  como  os  «que  estavam  perto»,  foram  re- 
conciliados com  Deus  pela  Cruz.  Na  Epístola  aos  Romanos,  a  afirmação 
a  respeito  da  bem^aventurança  dos  que  se  submetem  à  Justiça  de  Deus, 
vem  no  fim  do  raciocínio  maciço  e  intrincado;  na  grande  Epístola  Ecimiê- 
nica,  esta  bem-aventurança  é  o  ponto  alegre  de  partida.  O  fim  da  dialé- 
tica  torna-se  o  princípio  da  rapsódia:  «Bendito  o  Deus  e  Pai  de  Nosso 
Senhor  Jesus  Cristo,  que  nos  tem  abençoado  em  Cristo»  com  tôdas  as 
bênçãos  espirituais  nos  lugares  celestiais.  (1:3). 

A  largueza  do  interêsse  de  Paulo  e  a  extensão  da  sua  visão  na  Carta 
aos  Efésios,  são  ambos  igualmente  surpreendentes.  Seu  interesse  abar- 
ca tudo  quanto  Deus  tem  feito  a  favor  do  homem,  o  que  Êle  tem  feito 
no  homem  e  o  que  Êle  faz  e  pode  fazer  por  intermédio  do  homem. 

Para  usar  linguagem  teológica,  os  grandes  atos  redentores  da  fé 
cristã  são  expostos  aqui  em  seu  esplendor  objetivo.  Segue-se  então  co- 
movedora descrição  da  experiência  cristã,  aquela  interioridade  espiritual 
que  caracteriza  a  vida  quando  é  renovada  pelo  Espírito  Santo  e  é  vivida 
«em  Cristo».  Depois,  vem  uma  afirmação  da  natureza  essencialmente 
ativa  e  militante  do  viver  cristão.  O  cristão  precisa  de  sej*  fielmente 
cristão  em  tôdas  as  relações  da  vida.  Além  disso,  em  vista  dos  adver- 
sários subtis  e  poderosos,  que  constantemente  obstruem  o  seu  caminho, 
a  regra  permanente  da  vida  do  cristão  na  história  tem  de  ser  vigilância 
constante  e  coragem  militar.  A  doutrina  cristã,  a  experiência  cristã  e  a 
ética  cristã  estão  inseparàvelmente  relacionadas. 

Não  menos  notável  é  o  alcance  da  visão  do  Apóstolo.  Tôdas  as 
idades,  de  eternidade  a  eternidade,  vem  dentro  do  seu  alcance.  A  sua 
vista  move-se  desde  «antes  da  fundação  do  mundo»  (1:4)  até  o  tempo 
que  fica  além  do  tempo,  quando  o  tempo  atingir  a  sua  «plenitude»  e  Deus 
«tomar  a  congregar  em  Cristo  tôdas  as  coisas»  (1:10).  Êle  abarca  com 
o  pensamento  as  imensidades  do  espaço  até  as  mais  distantes  fronteiras. 
A  órbita  da  sua  elevada  imaginação  é  não  apenas  «tôdas  as  coisas  no  céu 
e  na  terra»  (1:10) ;  os  seus  poios  extremos  estão  «acima  de  todos  os  céus» 
(4:10)  e  nas  «partes  mais  baixas  da  terra»  (4:9).  A  unidade  espiritual 
final  que  êle  contempla  é  tão  rica  que,  dentro  de  seu  alvo  que  abrange 
tudo,  todos  serão  reunidos  unissonantemente.  Deus  e  o  homem,  o  homem 
e  a  mulher,  judeus  e  gentios,  senhor  e  servo.  Desta  diversidade  sem 
limites,  Deus  estabelecerá,  com  Cristo  como  centro,  um  Reino  Unido  dos 
Céus  e  da  Terra,  uma  grande  Comunidade  divina,  majestoso  esquema  de 
relações  cósmicas. 

e)    A  Doutrina  posta  em  música 

Paulo  apresenta  esta  «esplêndida  visão»  em  forma  e  em  linguagem 
consonantes  com  a  sua  grandeza.  Êle  infunde  no  produto  brilhante  da 
sua  imaginação  a  melodia  do  seu  espírito  em  êxtase.    Se  já  alguma  vez 


—  23  — 


El  suavidade  se  casou  com  a  luz  em  uma  produção  literária,  foi  na  Epís- 
tola aos  E^fésios. 

A  Carta  é  pura  música.  Mais  do  que  um  estudioso  notou  a  sua 
estrutura  e  a  sua  qualidade  musical.  O  que  lemos  aqui  é  a  verdade  que 
canta,  a  doutrina  musicada.  Alguns  têm  chamado  a  atenção  para  o  ca- 
ráter  litúrgico  da  Epístola.  Edgar  J.  Goodspeed  fala  acêrca  «desta  gran- 
de meditação  litúrgica  sobre  o  valor  supremo  do  Cristianismo»  (7).  A 
explosão  rapsódica  de  ação  de  graças  com  que  êle  começa,  foi  chamada 
«uma  das  primeiras  manifestações  do  primitivo  génio  cristão  para  a  litur- 
gia», e  os  capítulos  primeiro  e  segundo,  «cântico  jubiloso  da  bem-aven- 
turança  da  Salvação  Cristã»  (8).  O  que  é  certo  é  que  a  sequência  das 
idéias  é  mais  litúrgica  do  que  friamente  lógica.  Deve-se  ler  a  Epístola 
em  voz  alta  para  que  se  tome  claro  o  sentido  e  majestade  desta  pri- 
meira liturgia  da  Igreja. 

A  nota  principal  desta  grande  composição  litúrgica  é  o  terceiro  verso 
do  capítulo  primeiro,  que  começa:  «Bendito  o  Deus  e  Pai  de  Nosso  Se- 
nhor Jesus  Cristo».  Aqui  o  «Prisioneiro  de  Jesus»  deixa-se  ir;  «atira  o 
seu  coração  em  um  hino  de  triunfo».  Esta  explosão  rapsódica  foi  com- 
parada ao  «prelúdio  de  uma  ópera,  prefigurando  as  sucessivas  melodias 
que  se  hão  de  seguir». 

Êste  êxtase  de  Paulo  torna-se  a  verdadeira  alma  da  religião  cristã, 
como  o  mais  sublime  expoente  da  «música  de  eternidade».  Não  se  pode 
senão  comparar  e  contrastar  o  seu  temperamento  com  o  do  filósofo  grego 
ou  do  rabi  hebreu.  Para  os  grandes  pensadores  da  idade  de  ouro  de 
Atenas,  como  também  para  o  filósofo  alemão  Hegel,  em  período  mais 
tarde,  a  glória  coroadora  do  pensamento  filosófico  era  aplicar  a  reflexão 
serena  ao  que  já  se  transformara  em  realidade,  a  fim  de  se  descobrir  e 
Interpretar  a  sua  verdade.  «O  mocho  de  Minerva  alça  o  vôo  quando 
descem  as  sombras  da  noite».  Primeiramente,  a  consumação,  depois  o 
pensamento  aplicado  ao  fato.  Para  os  grandes  rabinos  judaicos,  Gama- 
liel, por  exemplo,  a  suprema  verdade  do  amor  ainda  esperava  ser  des- 
vendada; tomar-se-ia  manifesta  com  a  vinda  do  Messias.  Mas  para 
Paulo,  o  real  e  o  verdadeiro  tinham  vindo  no  grande  ato  de  Deus,  em 
Jesus  Cristo.  Por  isso,  não  como  o  mocho  de  Minerva,  que  sai  pelo  cre- 
púsculo da  tarde  para  se  entregar  à  reflexão  calma  de  um  plano  que  já 
foi  completado,  mas  antes,  como  uma  águia,  Paulo  alça  o  seu  pensamento, 
em  um  tempo  de  desapontamento  universal,  para  saudar  e  anunciar  o 
nascimento  de  uma  nova  ordem  que  já  tinha  chegado.  Era,  portanto, 
ocasião  para  música  e  alegria. 

A  musicalidade  do  pensamento  de  Paulo  na  Carta  aos  Efésios, 
quando  vê  em  visão  a  Ordem  de  Deus,  coincide  com  o  caráter  essencial- 
mente musical  da  Bíblia  como  um  todo.  Todos  os  grandes  movimentos 
no  drama  bíblico  da  criação  e  da  redenção  têm  acompanhamento  musical. 
Na  madrugada  da  natureza  as  «estrêlas  da  manhã  cantam  em  uníssono 

(7)  The  Meaning  of  Ephesiane,  p.  10. 

(8)  Id.  p.  22. 


—  24  — 


e  todos  os  filhos  de  Deus  clamam  de  alegria».  Uma  orquestra  de  anjo^ 
saudou  o  Advento  do  «Menino  que  nasceu,  do  Filho  que  nos  foi  dado». 
No  encerramento  da  história,  haverá  um  «Grande  Finale».  As  trom- 
betas soarão.  Dryden,  o  poeta  do  século  XVII,  pôs  em  versos  magníficos 
o  que  se  encontra  no  coração  do  grande  esquema  divino  para  tôdas  as 
coisas: 

«Da  harmonia,  da  celestial  harmonia 

Foi  a  origem  desta  universal  estrutura; 

De  harmonia  em  harmonia. 

Através  da  inteira  gama  sonora, 

Até  a  nota  culminante  —  a  humana  criatura! 

Do  poder  das  leis  celestiais 
Começaram  a  mover-se  as  esferas  dos  céus, 

A  lodos  que,  em  cima,  são  benditos, 
O  louvor  proclamando  do  Eterno  Criador. 

Assim,  quando  a  hora  final  soar  terrível 
E  destruído  fôr  êste  cortejo  celerado, 

Altissonantes  as  trombetas  clamarão: 
Os  mortos  viverão  e  os  viventes  morrerão 

E  de  música  será  plena  dos  céus  a  amplitude»  (9). 

Que  outra  coisa  podia  ser  a  religião  cristã,  senão  religião  que  canta? 
Os  seus  mais  doces  cânticos  são  «Cânticos  na  noite»;  a  sua  música  mais 
Eorebatadora  nasceu  em  alguma  prisão.    Porque  na  prisão, 

Porque  o  coração  sente  mais  a  infelicidade  da  vida 
Soam  mais  alegres  as  tensas  cordas  da  lira. 

Num  calabouço  de  Toledo,  João  da  Cruz  escreveu  a  mais  sublime 
das  líricas  místicas.  A  Viagem  do  Peregrino,  a  mais  famosa  e  mais 
triunfante  alegoria  da  literatura,  foi  composta  por  João  Bunyan,  em  uma 
prisão  de  Bedford.  Da  escravidão  é  que  vieram  os  cânticos  chamados 
«Negro  Spirituals  (*),  a  msds  sagrada  das  artes  do  menestrel  cristão  das 
Américas.  Da  cela  de  uma  prisão,  na  Roma  dos  Césares,  veio-nos  a 
Epístola  aos  Efésios. 

f)    O  Livro  Mais  Contemporâneo  da  Bíblia 

S.  Paulo  viveu  na  época  pós-augustana  da  história  de  Roma.  Fôra 
o  sonho  do  grande  Augusto  dar  ao  Império  Romano  uma  constituição 
perfeita  e  permanente:  e  morreu  na  convicção  de  o  ter  conseguido.  Mas 
no  tempo  de  Paulo,  não  muitas  décadas  depois  da  morte  de  Augusto,  a 
vida  em  Roma,  e  em  todo  o  Império,  era  caracterizada  por  um  processo 
de  desintegração  socigd  e  pelo  sentimento  de  futilidade  e  degenerescência 

(9)    John  Dryden,  Song  for  St.  C€oilia's  Day. 

(*)    N.  do  tradutor:    Cânticos  religiosos  doa  pretos  dos  Estados  Unidos. 


—  25  — 


dos  indivíduos.  Foi  em  situação  assim  que  Paulo  proclamou  a  Ordem 
de  Deus. 

Nos  dias  de  hoje,  podemos  olhar  retrospectivamente  para  outros 
planos  que,  em  seu  tempo,  tiveram  todos  os  sinais  de  permanência  e  que, 
contudo,  passaram.  Vivemos  na  idade  pós-constantina,  época  em  que  a 
imponente  unidade  da  Igreja  e  do  Estado  se  despedaçaram,  tendo  aca- 
bado, nas  regiões  mais  representativas  do  mundo  com  os  especiais  privi- 
légios seculares  da  religião  cristã.  Vivemos  também  em  época  pós-vito- 
riana,  isto  é,  vivemos  em  um  período  em  que  se  dissipou  a  ilusão  do 
progresso  automático,  quando  os  homens  não  mais  crêem  em  inevitável 
progresso  revolucionário.  Alguns  costumam  dizer  que  vivemos  em  uma 
idade  pós-cristã.  Isto  não  é  verdade,  se  se  pretende  dizer  que  o  Cristia- 
nismo deixou  de  crescer  e  perdeu  a  vitalidade.  E'  verdade  entretanto,  no 
sentido  importante  de  que  agora  entramos  num  período,  na  história  do 
homem  ocidental,  em  que  os  axiomas  e  postulados  do  Cristianismo  não 
mais  constituem  a  base  do  seu  pensamento  e  da  sua  ação.  A  nossa  cul- 
tura dominante  e  a  nossa  atividade  política  atual  cessaram,  em  grande 
parte,  de  ser  inspiradas  nos  princípios  cristãos. 

A  nossa  era  é  uma  versão  grandemente  intensificada  da  era  pós- 
augustana  de  Paulo.  O  niilismo  e  o  pessimismo  são  as  marcas  de  con- 
traste da  Cultura  Ocidental  do  nosso  tempo.  Que  é  niilismo?  O  espírito 
do  niilismo  é,  conforme  o  define  Nietzsche,  «ter  procurado  um  sentido  na 
vida  que  não  se  encontrava  nela».  Vivemos  em  um  grande  vazio  e  so- 
fremos da  desilusão  universal.  «Tôda  verdade  se  transforma»,  multidões 
afirmam,  «e  as  luzes  da  terra  estão  apagadas». 

O  pessimismo  é  a  atitude  dominante  do  espírito.  Depois  de  tudo  isso, 
que  importância  tem  afinal?  Para  que  serve?  Os  nossos  atos  são  espe- 
ranças despedaçadas  em  noite  sem  estrêlas».  Quanto  à  civilização,  não 
disse  um  filósofo  popular:  «Quanto  mais  civilizados  nos  tornamos,  tanto 
mais  incapazes  somos  de  manter  a  civilização»? 

E'  claro  que  nenhum  progresso  em  nosso  conhecimento  da  natureza 
ou  no  contrôle  dela,  tem  utilidade  alguma  para  nós.  A  vastidão  do  nosso 
conhecimento  da  natureza  e  das  suas  forças  é,  na  verdade,  no  estado 
presente  das  relações  humanas,  uma  grande  parte  do  nosso  problema. 
Conhecemos  demais  para  o  nosso  bem  estar;  o  nosso  conhecimento  cien- 
tífico é  muitíssimo  para  a  nossa  bondade.  Se  Einstein  estivesse  certo, 
na  fórmula  que  propôs  para  unificar  o  setor  do  mundo  em  que  dominain 
as  fôrças  eletromagnéticas  com  o  mundo  controlado  pela  fôrça  da  gravi- 
tação, não  se  teria  tocado  o  real  problema  do  nosso  tempo.  Tudo  o  que 
se  poderia  conseguir  era  apenas  mais  uma  contribuição  decisiva  para  a 
unidade  física  do  mundo,  sôbre  o  fundo  da  desunião  espiritual,  com  o  seu 
niilismo  ou  pessimismo. 

A  unidade  de  que  necessitamos  é  de  espécie  completamente  diferente. 
Os  homens  precisam  de  unir-se  em  uma  perspectiva  comum  da  significa- 
ção da  vida  e  em  uma  viva  aproximação  dos  problemas  da  vida.  Esta  é 
a  espécie  de  unidade  que  se  abre  diante  de  nós,  na  Epístola  aos  Efésios. 


—  26  — 


Um  estudo  deste  livro  do  Novo  Testamento  oferece-nos  três  coisas  de 
que  a  nossa  geração  necessita  desesperadamente. 

1..  Esta  carta  proclama  a  imagem  essencial.  No  meio  do  niilismo 
do  nosso  tempo,  em  que  os  homens  desesperadamente  tentam  certificar- 
se  da  própria  existência,  buscando  ardentemente  alguma  mitologia  apro- 
veitável e  hipotecando  a  sua  fidelidade  a  algum  simbolo  corajoso  e  signi- 
ficativo, ontem  ao  Faseio  ou  à  Suástica,  hoje  à  Foice  e  ao  Martelo,  Paulo 
proclama  a  imagem  essencial.  Essa  imagem  é  a  figura  de  Jesus  Cristo. 
Cristo  é  a  prova  de  que  Deus  deseja  comunhão,  de  que  o  amor  é  a  reali- 
dade última.  Cristo  é  o  centro  de  uma  comunidade,  a  Igreja,  que  Deus 
designou  para  ser  a  precursora  de  uma  vasta  sociedade  cósmica.  Esta  é 
a  imagem  que  um  poeta  do  nosso  tempo,  no  espirito  de  S.  Paulo,  põe  na 
boca  dos  magos  do  Oriente,  os  representantes  da  sabedoria  humana,  à 
sua  chegada  ao  estábulo  de  Belém:  «Oh,  aqui  e  neste  mesmo  momento, 
termina  a  nossa  longa,  longa  viagem»  (10).  Cristo  é  a  imagem  essencial. 
«Conhecê-lo»,  explorar  o  que  Êle  significa  para  Deus  e  para  o  homem,  para 
a  história  terrestre  e  para  a  história  celestial,  é  obter  o  fio  do  significado 
da  vida  e  descobrir  o  coração  da  realidade  da  vida.  Então,  à  semelhança 
das  sombras,  ao  despontar  da  aurora,  os  mitos  e  os  símbolos  que  forne- 
ceram aos  homens  zelosos  a  luz  para  a  interpretação  do  mundo,  e  a  força 
para  viverem,  nêle,  passarão.  Então,  vimos  de  novo  a  aprender  que  co- 
munhão, e  não  uma  «existência  de  arame  farpado»,  é  o  que  Deus  tem 
determinado  para  os  Seus  filhos.  Despertamo-nos  para  o  fato  de  que  a 
fraternidade  tem  significação  cultural  e  que  o  conhecimento  humano  sem 
fraternidade  humana  é  vaidade.  E  observando  as  fronteiras  fortificadas 
da  terra  e  sentindo-lhes  as  intoleráveis  tensões,  proclamamos  a  verdade 
de  que  o  perdão  e  a  misericórdia  têm  poder  político. 

2.  A  Carta  aos  Efésios  apresenta  a  estrutura  básica  de  que  a  hu- 
manidade necessita  para  a  verdadeira  expressão  da  vida  em  comum.  Essa 
estrutura  é  a  comunhão  dos  crentes  em  Jesus  Cristo  e  constitui  a  essência 
do  que  chamamos  a  Igreja  Cristã.  A  Igreja  é  a  comunidade  universal 
por  Deus  designada  para  transcender  e  abranger  tôdas  as  diferenças  de 
raça,  condição  e  sexo  que  dividem  a  humanidade.  Constitui  ela  o  modêlo 
de  tôda  verdadeira  comunidade,  de  tal  modo  que  a  mais  segura  forma  de 
se  conseguir  a  harmonia  humana  na  ordem  secular,  é  estender  os  limites 
da  comunidade  cristã  pelo  mundo  inteiro.  Porque  é  na  medida  em  que 
os  homens  são  reconciliados  com  Deus,  na  medida  em  que  praticam  o 
culto  a  Deus,  que  buscam  o  Reino  de  Deus,  e  vivem  um  com  o  outro  em 
paz  como  irmãos  em  Cristo,  que  a  sociedade  será  levada,  direta  e  indireta- 
mente,  a  buscar  a  paz  e  a  concórdia. 

Além  do  mais,  não  se  pode  dar  ênfase  demasiada  à  idéia  de  que  ó 
somente  na  comunhão  da  Igreja,  por  meio  do  culto  e  da  disciplina,  da  acei- 
tação de  responsabilidades  de  acordo  com  os  talentos  e  oportunidades  de 
cada  um,  e  pela  colaboração  leal  em  tarefas  comuns,  que  os  homens  e 
as  mulheres  estão  preparados  para  a  vida  de  cidadania  na  sociedade. 

(10)    W.  H.  Auden  in  A  Christmas  Oratório. 


—  27  — 


Como  membros  da  comunidade  cristã,  os  homens  chegam  a  aprender  a 
lição  em  que  a  própria  possibilidade  da  vida  criativa  se  baseia,  isto  é,  que 
a  vida  não  é  suplício  (*),  mas  escola.  E'  certamente  significativo  que, 
no  brilhante  pensamento  de  S.  Paulo,  a  vida  e  a  história  da  Igreja  Cristã 
constituem  o  principal  compêndio  em  que  espíritos  superiores  aos  espíritos 
humanos,  os  Principados  e  as  Potestades  na  esfera  celestial,  receberão  a 
sua  mais  profunda  lição  sôbre  a  «multiforme  (a  multicolorida)  sabedoria 
de  Deus».  Não  sòmente  isso,  mas  é  somente  na  comunidade  cristã, 
quando  a  sua  vida  corporativa  funciona  como  deve,  que  aos  homens  se 
pode  ensinar,  em  geral,  com  ilustração  concreta  o  sentido  daquele  dar-se 
abundante,  exuberante  e  sacrificial  que,  tão  sòmente,  constitui  a  verda- 
deira vida.  E'  sòmente  na  Igreja,  quando  ela  é  verdadeiramente  a 
Igreja,  que  os  homens  encontram  uma  instituição  em  que  a  bondade  trans- 
borda como  fonte  e  não  fica  sòmente  como  em  cisterna.  As  cisternas  da 
vida  estão  vazias,  os  seus  poços  esgotados,  porque  os  homens  falharam 
em  relacionar-se  com  a  comunidade,  cujas  necessidades  são  diretamente 
supridas  da  Fonte  da  Vida. 

3.  A  Carta  aos  Efésios  é  supremamente  importante  para  a  nossa 
situação  de  hoje  em  dia,  porque  ela  provê  a  verdade  com  nma  canção 
alegre  e  cheia  de  vida.  Necessitamos  da  verdade  não  sòmente  como 
imagem  ou  sistema,  mas  também,  e  acima  de  tudo,  como  melodia.  Não 
podemos  deixar  de  reconhecer,  certamente,  que  o  nosso  tempo  caótico 
necessita  da  verdade  sistematizada,  uma  estrutura  da  verdade.  A  ge- 
ração que  antes  precedeu  da  nossa,  porque  viveu  dias  românticos  e  tran- 
quilos, não  gostava  de  doutrina  e  criou  complexo  anti-dogmático.  A 
desilusão  e  a  necessidade  sentia  de  um  ponto  de  vista  inteligível  do 
mundo,  sacudiu  e  despertou  a  nossa  geração  da  sonolência  anti-dogmática. 
Para  pôr  em  ordem  as  nossas  vidas  e  dirigir  a  nossa  peregrinação  no 
meio  das  perplexidades  dêste  tempo  presente,  necessitamos  de  um  sis- 
tema de  pensamento  e  de  um  sistema  luminoso  maciço.  Em  um  mundo 
em  que  o  Marxismo  e  outros  sistemas  de  pensamento  hostis  ao  Cristia- 
nismo fazem  constante  progresso,  podemos  compreender  e  apreciar  o 
que  é  que  William  Blake  quiz  dizer  quando  afirmou:  «Preciso  criar  um 
sistema  ou  serei  escravizado  pelo  de  outro  homem». 

Mas  é  muito  mais  importante  que  o  pensamento  tenha  um  cântico 
do  que  um  sistema.  A  verdade  de  que  necessitamos  é  a  verdade  que 
canta.  E  este  canto  precisa  de  possuir  a  nota  de  esperança  e  de  vitória. 
Porque,  da  música  de  desordem  e  de  desespero,  temos  já  bastante.  A 
nossa  geração  tem  ouvido  esta  música.  Temos  ouvido  o  dito  jatancioso: 
«A  minha  música  é  um  brado  estrelado  de  ferro».    Nós  nos  temos  delei- 


(*)  Nota  do  tradutor:  Treaãmill  foi  traduzido  por  suplício,  termo  muito  geral; 
treadmill  era  um  género  de  suplício:  Um  cilindro  ôeo  feito  de  madeira  em  armação  de 
ferro,  dentro  do  qual,  havia  degraus,  o  criminoso  segurando  em  espécie  de  cambotas  se- 
cundárias, mais  próximas  do  centro  do  que  as  cambotas  nas  extremidades  dos  raios,  pisava 
nos  degraus  que  cediam  ao  peso  do  criminoso  e  assim  a  roda  se  punha  em  movimento. 
Tal  máquina  foi  inventada  para  se  tomar  útil  o  castigo. 


—  28  — 


tado  com  a  glorificação  da  incerteza:  «Os  meus  sóis  nascem  com  a  bre- 
vidade de  uma  centelha».    O  de  que  necessitamos  é  a  música  da  fé. 

Os  marxistas  possuem  esta  qualidade  de  música.  Uma  proposição 
fria,  por  mui  verdadeira  que  seja  considerada,  não  tem  nenhum  poder 
dinâmico.  Dizer  que  a  matéria  é  o  que  é  importante,  não  move  ninguém. 
Mas  afirmar  que  o  materialismo  tem  a  chave  e  a  promessa  do  futuro, 
pode  pôr  uma  cruzada  em  movimento.  Porque  isto  é  alguma  coisa  da 
excitar;  eis  uma  causa  em  que  devemos  entrar.  O  velho  materialista 
era  académico;  o  novo  materialista  dialético  de  Marx  e  de  Lenine  é  dinâ- 
mico. Crer  que  as  forças  radiantes  e  invencíveis  do  universo  estão  ao 
lado  dêle,  cria  um  cântico: 

Erguei- vos,  prisioneiros  da  inanição! 
Erguei-vos,  ó  desditosos  da  terra: 
Porque  a  justiça  troveja  condenação 
E  um  mundo  melhor  está  nascendo. 

A  primeira  coisa  que  faziam  os  comunistas  chineses,  ao  entrarem 
em  uma  nova  povoação,  na  sua  marcha  do  norte  para  o  sul  da  China,  era 
ensinar  o  povo  a  cantar;  e  depois  disso,  a  dançar. 

Nenhuma  doutrina,  por  verdadeira  que  seja,  que  não  possuir  em 
si  um  cântico,  pode  enfrentar  o  Marxismo  moderno,  com  a  sua  paixão 
de  cruzada.  Mas  o  Cristianismo,  que  é  a  própria  «música  da  eternidade», 
não  somente  tem  dado  origem  à  grande  música,  aos  corais  de  Bach,  ao 
Messias  de  Haendel,  à  Canção  do  Berço  de  Lutero  e  aos  Cânticos  Espi- 
rituais dos  Negros;  também  tem  dado  origem  a  pensamentos  que  cantam. 
Tais  são  os  pensamentos  de  Paulo  na  Carta  aos  Efésios. 

Vamos  agora  estudar,  pois,  de  maneira  mais  familiar,  a  razão-de-ser 
doutrinária  da  melodia  orquestral,  que  é  a  Epístola  de  Paulo  aos  Efésios. 


—  29  — 


CAPÍTULO  II 


A  GRANDE  DIVISÃO 

O  universo  está  dividido.  A  divisão  atingiu  a  história  e  o  coração 
do  homem.  Êsse  é  o  fato  elementar  e  decisivo  acêrca  da  realidade,  em 
sua  inteireza . 

No  fundo  do  vasto  esquema  de  reconciliação  que  forma  o  tema  cen- 
tral da  Epístola  aos  Efésios  e  a  que  temos  chamado  de  Ordem  de  Deus, 
existe  uma  condição  de  completa  desordem  espiritual.  Essa  desordem 
não  somente  caracteriza  a  vida  interior  do  homem  e  as  suas  relações 
com  os  companheiros;  implica  em  estado  de  conflito  nas  relações  do  ho- 
mem para  com  Deus  e  até  de  luta  mutuamente  destrutiva  «nos  lugares 
celestiais»,  isto  é,  dentro  da  própria  esfera  sobrenatural.  A  desarmonia 
reina  no  universo  todo;  o  cosmos  está  fendido.  No  reino  supramundano, 
estão  os  «principados»,  as  «potestades»,  os  «príncipes  das  trevas  deste 
século»,  as  «hostes  espirituais  da  maldade  nos  lugares  celestiais»  (6:12), 
que  se  opõem  à  vontade  de  Deus,  o  Criador;  enquanto  que,  na  terra,  anda 
orgulhosa  uma  cruel  «inimizade»  (2:16),  separando  os  homens  de  Deus 
e  dos  seus  companheiros.  O  pecado  aparece  por  toda  a  parte,  como  fato 
cósmico.  O  universo  é  o  cenário  de  uma  revolta  largamente  espalhada 
contra  a  autoridade  de  Deus.  A  soberania  do  Todo-poderoso  é  contes- 
tada e  ruge  conflito  espiritual. 

Importa  observar  que  o  dualismo  universal  a  que  aqui  se  alude  não 
é  dualismo  absoluto  e  fundamental.  E'  contudo  dualismo  real.  Não  é 
dualidade  constituída  por  mera  diferença  de  ponto  de  vista,  tal  como  a 
clássica  distinção  entre  sentimento  e  razão.  E'  mais  do  que  dualismo 
em  aparência,  mera  interpretação  mental  de  fenómenos  vários  ou  contra- 
ditórios. Existe  no  universo  conflito  e  muito  real  de  forças  espirituais: 
mas  não  é  absoluto:  não  é  inerente  à  constituição  do  universo.  Não  há 
dois  princípios  ou  poderes  originais.  O  Universo  tem  a  existência  era 
um  Deus,  que  é  «Pai  de  todos»,  «sôbre  todos  e  por  todos  e  em  todos» 
(4:6),  de  quem  «tôda  a  família  nos  céus  e  na  terra  toma  o  nome»  (3:15), 
e  «que  tudo  criou»  (3:9).  Conquanto  seja  verdade  estar  a  supremacia 
de  Deus  no  Universo  sendo  disputada  de  maneira  real  por  forças  sobre- 
naturais, e  conquanto  a  vida  dos  seres  humanos  que  procuram  obedecer 
a  Deus  seja  vida  de  conflito,  «no  meio  e  no  coração  da  batalha  universal», 


—  30  — 


a  vitória  pertencerá  a  Deus,  que  estabelecerá  a  Sua  Ordem  espiritual  em 
Cristo  (1:21),  no  qual  será  restaurada  a  unidade  perdida  da  criação. 
Porque  Deus  é  o  Rei  da  Eternidade;  ao  passo  que  as  torças  extraviadas 
que  se  lhe  opõem  são  finitas  e  pertencem  ao  tempo  somente.  Na  visão 
mundial  de  Paulo,  não  há  qualquer  sugestão  de  divindade  finita  enfren- 
tada por  forças  cósmicas  que,  inexoravelmente  em  seu  direito  natural 
e  em  seu  poder  increado,  possam  desafiar  a  Sua  soberania. 

a)    A  Divisão  Transcendental 

Não  havia  concepção  sistemática  cristã  do  Universo  no  primeiro 
século  e  não  devemos  esperar  que  S.  Paulo  nos  desse  uma  concepção  to- 
talmente elaborada.  Ainda  assim,  certas  coisas  são  claras.  Segundo  a 
Carta  aos  Efésios,  existem  dois  reinos  distintos,  um  reino  transcendental 
ou  supramundano  e  um  reino  terrestre.  Paulo  fala  do  primeiro  como 
«esfera  celestial»  ou  «lugares  celestiais»  (1:3),  cujos  limites  estão  «acima 
de  todos  os  céus»;  o  segundo  é  a  «terra»  (1:10),  abaixo  do  qual  estão 
«as  partes  mais  baixas  da  terra»  (4:9).  A  forma  temporal  e  o  momento 
do  terrestre  é  «esta  idade»  (1:21).  A  separação  não  decorre  do  fato 
de  existirem  dois  reinos  diversos.  A  divisão  passa  pelo  meio  de  ambos 
os  reinos  e  os  separa  em  duas  partes  (l). 

A  divisão  «nos  lugares  celestiais»  é  de  importância  decisiva,  porque 
se  projeta  dentro  da  esfera  mundana,  histórica  da  vida  humana.  A  «es- 
fera celestial»  na  Epistola  aos  Efésios  não  é  o  que  é  entendido  ordinà- 
riamente  por  Céus,  como  futuro  estado  de  bem-aventurança  perfeita. 
Também  difere  da  esfera  joanina  da  Vida  e  da  Verdade.  Porque  nela 
estão  incluídos  não  sòmente  aspectos  de  bem-aventurança  mas  também 
as  fôrças  sobrenaturais  da  maldade.  As  «hostes  de  maldade  vivem  e  agem 
nos  «lugares  celestiais».  Por  outro  lado,  Cristo  está  entronizado  nesta 
esfera  e  aqueles  que  estão  «em  Cristo»  também  nela  habitam.  Mas, 
enquanto  aquêles  que  estão  «em  Cristo»  tenham  a  verdadeira  fonte  e 
centro  da  sua  vida  na  «esfera  celestial»,  à  qual  pertencem,  esta  é  também 
a  habitação  das  tremendas  «hostes  espirituais  da  maldade»  (6:12) ;  para 
combatê-las  os  cristãos  necessitam  de  «tôda  a  armadura  de  Deus»  (6:13). 

Êste  conceito  da  «esfera  celestial»  é  tão  importante  para  a  nossa 
compreensão  do  pensamento  de  Paulo  que  cito  aqui  um  admirável  pensa- 
mento a  respeito  dêle,  emitido  por  J.  Armitage  Robinson,  cujo  livro  St, 
Paulos  Epistle  to  the  Ephesians,  (A  Epistola  de  S.  Paulo  aos  Efésios)  é, 
provàvelmente,  o  melhor  e  mais  completo  estudo  existente  sôbre  a  gran- 
de carta  paulina.  «A  esfera  celestial»,  diz  o  Dr.  Robinson,  «é  a  esfera 
das  atividades  espirituais:  essa  região  imaterial,  o  «universo  invisível», 
que  fica  atrás  do  mundo  dos  sentidos.  Nela,  grandes  fôrças  estão  em 
atividade:  fôrças  que,  pensa-se,  têm  ordem  e  constituição  próprias;  têm, 
em  parte,  transgredido  contra  aquela  ordem,  tendo-se  assim  tomado 
desordenadas:  fôrças  que,  em  parte,  se  nos  opõem  e  lutam  contra  nós: 


(1)  Para  estudo  do  penwimento  paulino  sôbre  o  mundo,  veja-se  Hugo  Odeberg;,  The 
ViexD  of  the  Universe  in  the  Epistle  to  the  Ephesians,  (O  Conceito  do  UniTerso  na  Epís- 
tola aos  Efésios),  (Lunds  Universitets  Aersskrift  K.  F.,  I,  29). 


—  31  — 


forças  ainda  que  tomam  interesse  inteligente  nos  propósitos  de  Deus  a 
respeito  deste  mundo,  e  para  as  quais  a  história  do  homem  é  uma  lição 
objetiva  da  multiforme  sabedoria  de  Deus:  fôrças  todas  sôbre  que  Cristo 
será  entronizado,  sejam  elas  boas  ou  ruins,  e  nós  com  Êle»  (2). 

Um  Estrategista  Mestre  do  Mal 

Um  dos  «principados  destas  trevas  presentes»  Paulo  personaliza  e 
nomeia.  Êle  lhe  chama  «o  Príncipe  das  potestades  do  ar,  o  espírito  que 
agora  opera  nos  filhos  da  desobediência»  (2:2)  e  também,  simplesmente, 
o  «Diabo»,  contra  cujas  «ciladas»  precisam  os  cristãos  de  acau- 
telar-se  (6:11). 

Tomando  a  sério  um  espírito  pessoal,  sobrenatural  do  mal  no  Uni- 
verso, Paulo  não  faz  mais  do  que  seguir  o  pensamento  bíblico,  como  um 
todo.  Porque  a  Bíblia,  afirmemos,  fala  menos  do  mal  em  geral  e  mais 
do  Maligno.  Não  escape  o  fato  de  que,  para  Jesus,  um  Diabo  pessoal 
era  realidade  tremenda.  Era  muito  mais  do  que  representação  mitoló- 
gica de  sinistro  olhar  vesgo  na  natureza  humana  e  de  tremenda  tendência 
na  história.  E  quem  se  atreveria  a  afirmar  que  Jesus,  com  Sua  aguda 
sensibilidade  para  com  Deus,  não  deveria  ser  tomado  a  sério,  quando 
alude  à  real  existência  de  um  espírito  sobrenatural  que  desafia  o  princí- 
pio hierárquico  de  que  a  vontade  do  Criador  tem  de  ser  suprema  sôbre 
todos  os  graus  da  existência,  e  de  que  êle  mesmo  incarna  a  quebra  dêste 
princípio?  Não  nos  deve  surpreender,  portanto,  que  Paulo  de  Tarso, 
que  possuía  em  grau  sem  paralelo  a  mente  de  Cristo,  tivesse  a  mesma 
concepção  do  Mestre  a  respeito  da  natureza  e  das  dimensões  da  luta  espi- 
ritual que  os  seres  humanos  estão  condenados  a  sustentar  na  história. 

Depois  de  um  período  durante  o  qual,  sob  a  influência  do  Raciona- 
lismo e  a  projeção  na  história  cósmica  e  humana  de  uma  hipótese  evolu- 
cionista, a  figura  do  Diabo  fôsse  simplesmente  uma  tentativa  mitológica 
de  explicar  a  existência  do  mal  no  mundo,  começa  a  mudar  o  clima  inte- 
lectual que  cerca  o  problema.  Todos  os  acontecimentos  sórdidos  e  desa- 
pontadores  da  geração  passada  fizeram  surgir  de  novo  em  muitas  mentes 
zelosas  a  hipótese  de  uma  estratégia  do  mal,  executada  por  um  poder 
espiritual,  que  é  mal  intencionado  para  com  o  bem-estar  da  humanidade. 
Ao  mesmo  tempo  vai-se  reconhecendo  que,  filosòficamente  falando,  não 
se  pode  aduzir  nenhuma  razão  metafísica  ou  bem  fundamentada  quanto  ao 
porquê  não  deve  haver,  na  hierarquia  cósmica,  espíritos  diferentes  ou 
superiores  ao  espírito  humano,  porque  alguns  dêstes  espíritos  não  teriam 
feito  do  Mal  o  seu  Bem,  e  porque  as  suas  atividades  não  pudessem  ter 
sido  orientadas  por  um  estrategista  mestre. 

Quaisquer  que  sejam  as  opiniões  que  uma  pessoa  possa  ter  sôbre 
êste  assunto,  poderá  ela  também  encarar  o  fato  de  que  a  questão  de  sua 
Majestade  Satânica,  o  Diabo,  foi  reaberta  no  pensamento  contemporâneo. 
Além  disso,  entre  os  que  têm  trazido  o  Diabo  novamente  como  tópico 
para  discussão  intelectual,  encontram-se  dois  leigos.  Um  dêles  é  o  pro- 
fessor de  Literatura  inglêsa  de  Oxford,  C.  S.  Lewis;  o  outro  é  Denis  de 


(2)    J.  Armitage  Robinson,  St.  Taul's  Epistle  to  the  Ephesians,  p.  21. 


Rougemont,  jovem  autor  franco-suíço.  As  já  famosas  Screwtape  Letters 
de  Lewis  ressuscitam  a  figura  de  Satã  como  força  contemporânea.  Em 
termos  do  tradicional  «Arqui-inimigo»,  transformado  neste  meio  século 
vinte  em  mentor  cortez  e  atual  dos  modernos  homens  e  mulheres,  Lewis 
traça  a  norma  e  aponta  a  fonte  da  filosofia  muito  popular  na  vida  de 
hoje.  Isto,  êle  o  faz  de  forma  alegre  e  com  sarcasmos  mordazes,  o  que 
está  inteiramente  de  acordo  com  a  opinião  tradicional  a  respeito  das  sen- 
sibilidades do  Grande  Enganador,  e  está  em  harmonia  com  o  são  prin- 
cípio psicológico  de  que  ninguém  aborrece  tanto  que  façam  graça  consigo, 
como  aquele  que  é  radicalmente  insincero.  Assim,  Lewis  ri-se  do  Diabo. 

De  Rougemont,  em  seu  livro  The  Devil's  Share  (A  Parte  do  Diabo), 
tem  muito  a  dizer,  ao  mesmo  tempo  popular  e  profundo,  sôbre  o 
assunto.  Faz  êle  uma  referência  particularmente  notável  ao  poeta  fran- 
cês Baudelaire  e  ao  seu  ponto  de  vista  sôbre  a  questão  de  Satanás.  «No 
livro  de  Baudelaire  «Pequenos  Poemas  em  Prosa»,  diz  Rougemont,  «en- 
contramos a  mais  profunda  observação  sôbre  Satanás,  de  autoria  de 
um  escritor  moderno:  O  mais  engenhoso  ardil  do  Diabo  é  convencer- 
nos  de  que  êle  não  existe.  Deus  diz:  «Eu  sou  o  que  sou».  Mas  o  Diabo, 
sempre  ciumento  de  Deus  e  sempre  pronto  a  imitá-lo  mesmo  que  seja 
o  contrário  (pois  êle  vê  tudo  debaixo)  nos  diz,  como  Ulisses  aos  Ciclo- 
pes: «O  meu  nome  é  Ninguém.  Não  há  Ninguém;  de  quem  deveis  ter 
mêdo?   Ides  tremer  diante  do  Não-existente?»  (3). 

Nada  é  tão  indicativo,  porém  de  uma  perspectiva  intelectual  mais 
sóbria  e  mais  realística  sôbre  o  lado  sombrio  da  existência,  como  o  re- 
nascimento de  John  Milton,  que  se  vem  realizando  na  literatura  contem- 
porânea. Depois  de  um  longo  período  de  eclipse,  Milton  e  a  sua  grande 
epopéia  «O  Paraíso  Perdido»,  estão  reconquistando  o  antigo  apreço. 
Milton  está  voltando,  porque  a  nossa  geração,  cônscia  de  que  está  «per- 
dida», procura  direção  quanto  à  origem  e  ao  significado  da  sua  perdição. 
A  apresentação,  que  faz  Milton,  de  um  universo  hierárquico,  em  que  a 
unidade  espiritual  e  a  integridade  moral  dependem  da  obediência  à  von- 
tade de  Deus,  e  em  que  os  espíritos  finitos  se  «perderam»  por  causa  de 
seu  orgulho  e  pela  sua  desobediência,  oferece  muito  motivo  para  séria 
reflexão.  As  figuras  do  «Arcanjo  Perdido»  e  do  homem  a  quem  êle 
seduziu  são  as  figuras  centrais  do  poema.  Literalmente  nada  é  mais 
apropriado,  na  literatura  secular,  ao  problema  espiritual  de  nossa  época, 
do  que  um  estudo  do  Satã  de  Milton. 

Na  linguagem  original  de  Jacob  Boehme,  citada  por  Denis  de  Rou- 
gemont, Satã  caiu  porque  «queria  tornar-se  autor».  Isto  é,  êle  queria 
originar  alguma  coisa  de  si  mesmo,  de  que  êle  seria  o  criador  e  o  sus- 
tentador.  Na  impressionante  mitologia  do  Paraíso  Perdido,  a  cabeça  de 
Satã  gerou  o  Pecado,  o  princípio  da  desobediência.  Nas  terríveis  entra- 
nhas do  Pecado,  filha  de  Satã  foi  engendrado  o  horrível  monstro,  a  Morte, 
pela  ação  amorosa  do  próprio  pai.  Êstes  dois,  o  Pecado  e  a  Morte, 
montam  guarda  aos  pórticos  do  Inferno. 

(3)    The  DeviVs  Share,  p.  17. 


—  33  — 


Como  é  que  o  serafim  celestial  se  tornou  o  Príncipe  do  Inferno? 
Pelo  «orgulho»  e  a  perversa  «ambição».  Êle  queria  «buscar  para  si 
mesmo  uma  glória  acima  da  dos  seus  pares».  «Êle  pensou  ter  igualado 
o  Altíssimo».    Eis  a  sua  própria  narração: 

«Tão  altamente  alçado, 

sujeitar-me  abominei:  cheguei  mesmo  a  julgar: 

mais  um  degrau  e  o  Altíssimo  eu  serei; 

ainda  mais,  de  uma  vez  desobrigado 

da  imensa  dívida  sem  fim,  por  isso  mesmo  tão  pesada: 

sempre  pagando,  sempre  endividado; 

das  Suas  dádivas  sempre  recebidas 

eu  me  esquecia;  compreender  também  eu  não  podia 

que  um  grato  espírito,  devendo, 

nada  deve,  realmente,  antes,  sem  cessar, 

está  pagando  com  a  mesma  gratidão: 

sempre  endividado  e  simultâneamente  desobrigado. 

Que  fardo,  êsse  então?» 

Satanás  estava  entediado  de  ser  simples  criatura  e  de  ter  de  mostrar 
gratidão  pelas  dádivas  recebidas.  Queria  ser  Deus,  ser  Criador  com  os 
seus  próprios  direitos  e  não  dever  nada  a  ninguém  mais  alto.  Rebelou-se, 
pois,  lutou  e  perdeu.  Tendo  malogrado,  transformou  todos  os  valores: 
«Mal,  sê  tu  o  meu  Bem;  por  ti,  ao  menos,  eu  possuo  um  império  dividido 
com  o  Rei  dos  Céus».  Foi  infeliz  e  sofreu  as  dores  agudas  do  remorso; 
contudo,  não  se  arrependeu,  mas  antes  exultou  na  sua  miséria  orgulhosa, 
a  que  chamou  liberdade: 

Reinar  é  digna  ambição,  mesmo  no  Inferno; 
Melhor  é  reinar  no  Inferno  do  que  nos  céus  servir. 

Pouco  e  pouco,  vão-se  desvanecendo  os  traços  todos  da  original  no- 
breza espiritual  do  «Arcanjo  Perdido».  Aquêle  que  aspirou  ser  Deus  tor- 
na-se  literalmente  o  Diabo,  não  obstante  a  manifestação  de  traços  que,  por 
causa  da  sua  indizível  baixeza,  estejam  os  homens  acostumados  a  chamar 
«diabólicas».  Satã  assaltou  o  homem  por  causa  da  pura  inveja.  Na 
evolução  satânica  que  se  seguiu,  podemos  perceber  o  equivalente  de  uma 
segunda  «Queda».  Em  um  1í\to  intitulado  A  Preface  to  Paradise  Lost, 
(Prefácio  ao  Paraíso  Perdido)  C.  S.  Lewis,  êle  mesmo  discípulo  moderno 
de  John  Milton,  sumarizou  assim  o  que  se  poderia  descrever  como  a 
progressiva  satanização  do  Diabo,  processo  êsse  que  o  leitor  da  sublime 
epopéia  pode  seguir  e  verificar  por  si  mesmo  manuseando  os  vários  livros, 
sôbre  o  tema.  Diz  o  professor  de  Oxford:  «De  herói  a  general,  de  gene- 
ral a  político,  de  politico  a  agente  do  serviço  secreto  e  daí  a  uma  coisa 
que  às  janelas  dum  quarto  de  dormir  ou  de  um  banheiro,  espia  para 
dentro,  daí  a  um  sapo  e,  afinal,  a  uma  serpente  —  tal  é  o  progresso  de 
Satanás»  (4).    Lewis  prossegue  discutindo  a  opinião  comumente  susten- 

(4)    A  Treface  to  Faraãise  Lo^,  C.  S.  Lewis,  p.  97. 


—  34  — 


tada  de  que  Milton,  percebendo  que  tinha  começado  por  fazer  Satanás 
glorioso  demais,  introduz  os  subseqiientes  sinais  de  degeneração,  a  fim 
de  «corrigir  o  seu  erro».  Corretamente,  refuta  tal  interpretação  e 
acrescenta:  «Não  devemos  duvidar  que  fôra  a  intenção  do  poeta  ser 
amável  para  com  o  mal,  dar-lhe  consolo  pelo  dinheiro  perdido  na  corri- 
da —  mostrá-lo  primeiro  no  alto  com  tôdas  as  suas  gabolices  e  melodra- 
mas e  «estado  imitado  semelhante  a  Deus»  ãcêrca  dele  e,  depois,  traçar 
o  que  realmente  acontece  com  tal  auto-intoxicação,  quando  êle  se  encon- 
tra com  a  realidade». 

Não  somente  o  caráter  moral  do  Diabo  se  torna  cada  vez  mais  baixo 
e  banal,  como  também  a  sua  intuição,  tanto  intelectual  como  espiritual, 
Bofre  eclipse.  Êle  se  torna  cego  à  realidade.  Milton  parecia  estar  ple- 
namente convencido  da  proposição  de  que  o  «Diabo  é  (em  tôda  a  ex- 
tensão do  têrmo)  um  asno».  Há  nêle  certo  brilho  intelectual  mas  tam- 
bém total  incapacidade  para  entender  seja  o  que  fôr.  «Esta  condenação», 
comenta  Lewis,  «foi  êle  que  a  trouxe  sôbre  si  mesmo,  no  afã  de  evitar 
de  ver  uma  certa  coisa,  êle  se  tem  tornado,  quase  voluntàriamente,  inca- 
pacitado de  ver  tudo.  E  assim,  através  de  todo  o  poema,  todos  os  seus 
tormentos  vieram,  em  certo  sentido,  atendendo  à  sua  própria  ordem,  e 
o  julgamento  de  Deus  podia  muito  bem  ter  sido  expresso  pelas  palavras 
«a  tua  vontade  seja  feita».  Êle  diz:  «Mal,  sê  tu  o  meu  Bem»  (o  que 
implica:  Contrasenso,  sê  tu  o  meu  Senso),  e  a  sua  oração  é  atendida»  (5). 
Nestas  palavras,  podemos  ler  a  história  do  caráter  e  da  vida  dos  tiranos 
contemporâneos  que,  querendo  refazer  o  mundo  à  sua  própria  imagem  e 
dirigí-lo  de  acôrdo  com  a  sua  própria  vontade,  tornam-se  fôrças  impes- 
soais, a  que  o  homem  é  sujeito. 

«Principados  e  Potestades». 

Um  aspecto  muito  real  da  Divisão  que  separa  o  Universo  é  a  pre- 
sença das  Fôrças  inexoráveis  ou  Poderes  de  caráter  impessoal,  que  afe- 
tam  a  vida  terrestre  e  frustram  as  aspirações  humanas.  Ainda  mesmo 
que  seja  considerada  a  opinião,  que  eu  creio  ser  filosòficamente  insusten- 
tável, biblicamente  falsa  e  religiosamente  errónea,  de  que  não  existe  no 
Universo  um  poder  pessoal  do  mal,  ainda  restarão  «coisas  nos  céus»: 
Principados  e  Potestades.  Estas  fôrças,  mesmo  que  sejam  interpretadas 
em  sua  natureza  fundamental,  são  realidades  com  que  temos  de  contar 
na  história,  porque  a  história  humana  é,  em  muitos  respeitos  cruciais, 
controlada  por  elas.  Sejam  mitológicas  ou  não,  estas  fôrças  são  devasta- 
doramente reais.  Exercem  poderosa  influência  sôbre  a  humanidade. 
Frequentemente  destroem  as  esperanças  dos  homens,  e  levam  à  «Vai- 
dade dos  Desejos  Humanos». 

De  certo  ponto  de  vista,  podem-se  considerar  tais  Poderes  como  pro- 
cessos judiciais  que  entram  em  ação  sempre  que  se  viola  o  princípio  de 
obediência  a  Deus  por  espíritos  finitos.  Neste  sentido,  são  leis  da  ordem 
moral  ou,  como  poderíamos  dizer,  de  ordem  moral  violada.  Quando  espí- 
ritos finitos,  cuja  verdadeira  existência  e  destino  consistem  na  obediência 


(5)    Id.,  p.  97. 


leal  à  divindade  infinita,  transgridem  a  ordem  constituída,  seguem-se  as 
mais  terríveis  consequências.  Os  gregos  falavam  acerca  da  «Nêmesis» 
e  das  «Fúrias»,  que  seguiam  os  passos  dos  transgressores.  Os  hebreus 
proclamavam  que  «as  estrêlas,  em  seus  cursos,  lutaram  contra  Sísera», 
isto  é,  contra  todo  o  violador  da  justiça  elementar.  S.  Paulo,  no  primeiro 
capítulo  da  Epístola  aos  Romanos  pinta  um  quadro  lúgubre,  mas  per- 
feitamente realístico,  das  consequências  que  resultam  —  o  julgamento 
e  a  ira  —  quando  são  desobedecidos  os  princípios  da  virtude  moral.  Temos 
chegado  a  ver  que  a  história  do  mundo  é  o  julgamento  do  mundo».  So- 
mos forçados  a  perceber  uma  dialética  na  história,  um  «processo  pelo 
qual  a  história  a  si  mesma  se  vence».  Quando  qualquer  bem  humano  é 
apreendido  firmemente  e  acariciado  e  feito  o  Bem  Supremo,  produz  o 
seu  oposto.  Quando  a  ciência  é  saudada  como  o  Salvador  do  mundo, 
produz  uma  arma  que  cria  as  trevas  mundiais  e  prognostica  a  destruição 
do  mundo.  Quando  a  civilização  é  procurada  como  fim  em  si  mesmo, 
origina-se  nos  «civilizados»  uma  psicologia  que  torna  difícil  à  civilização 
manter-se.  A  visão  poética  de  Francis  Thompson  é  literalmente  ver- 
dadeira no  plano  da  história  do  mundo: 

Tôdas  as  coisas  te  abandonam, 
a  ti,  que  me  abandonas. 

A  «Era  dos  Monstros»,  que  ainda  se  arrasta  fora  de  seu  curso,  tem 
levado  muitas  das  mais  sóbrias  mentalidades  do  nosso  tempo  a  reconhe- 
cer, nestes  «Principados  e  Potentades»  de  S.  Paulo,  a  expressão  deificada 
das  realidades  finitas  que,  quando  tornadas  absolutas,  isto  é,  elevadas  à 
categoria  do  Divino,  exercem  influência  incontrolável  e  sinistra  nos  ne- 
gócios humanos.  No  momento  em  que  alguma  raça,  nação  ou  classe  se 
exalta  acima  de  «tudo  que  se  chama  Deus  e  que  é  adorada»,  aparecem 
religiões  aberrantes  de  caráter  secular.  Nestes  últimos  tempos,  temos 
testemunhado  a  história  em  contrário.  As  antigas  divindades  pagãs, 
arrancadas  dos  santuários  pelo  advento  de  Cristo,  fato  que  Milton  des- 
creve com  licença  poética  em  seu  famoso  poema,  foram  de  novo  entroni- 
zadas em  sistemas  políticos.  Ao  renascimento  espiritual  desta  «turba 
condenada»,  como  Milton  os  chama  na  sua  Ode  ao  Natal,  pode-se  atribuir 
multidão  das  nossas  atuais  desgraças. 

Mas,  completamente  separada  da  realidade  de  um  processo  judicial 
na  história  e  do  poder  funesto  das  divindades  seculares,  a  vida  histórica 
da  humanidade  é  controlada,  e  muitas  vêzes  escravizada,  por  outros  «po- 
deres» de  ordem  transcendental,  que  tomam  a  forma  de  sistemas  de  pen- 
samento. As  idéias,  sejam  de  que  espécie  forem,  verdadeiras  ou  falsas, 
exercem  a  mais  poderosa  soberania  nos  negócios  humanos.  Que  não 
tem  feito  o  Racionalismo,  por  exemplo,  para  agrilhoar  a  mente  humana, 
fazendo  impossível  ver-se  e  impopular,  afirmar-se  que  se  vê  qualquer  coi- 
sa que  fique  além  dos  circunscritos  limites  de  seu  míope  dogmatismo?  A 
tirania  ideológica  é  uma  das  mais  universais  e  sinistras  de  tôdas  as  for- 
mas de  tirania.  A  mais  aguda  fase  da  presente  crise  mundial  deriva  do  po- 
der transcendental  do  Materialismo  dialético.  Nos  círculos  cristãos,  um  Po- 


—  36  — 


der  semelhante  produziu  males  indisíveis.  A  aplicação  dos  princípios  do  puro 
racionalismo  ao  estudo  da  Bíblia,  onde  quer  que  sejam  usadas  idéias  con- 
sideradas como  auto-evidentes  na  interpretação  da  Bíblia,  constitui  um 
dos  «Principados  e  Potestades  nos  lugares  celestiais»,  que  destroem  o 
discernimento  e  enfraquecem  o  testemunho  de  muitos  dos  seguidores  de 
Jesus  Cristo,  tanto  pelo  que  é  teologicamente  heterodoxo  como,  igualmen- 
te, pelo  que  é  teologicamente  ortodoxo. 

b)    A  Separação  Histórica 

Ao  tratarmos,  na  secção  anterior,  da  «separação  transcendental»,  con- 
siderámos a  questão  de  uma  ordem  supramundana,  que  é  a  sede  de  for- 
ças, pessoais  ou  impessoais,  que  exercem  influência  controladora  na  vida 
humana.  Voltamos,  agora,  a  considerar  o  próprio  homem,  e  a  divisão 
que  existe  na  vida  humana,  juntamente  com  as  dolorosas  consequências 
desta  divisão  na  vida  da  humanidade.  Começaremos  com  a  interpretação 
bíblica  do  homem,  muito  especialmente  com  a  visão  do  verdadeiro  estado 
do  homem,  como  é  exposto  por  S.  Paulo  na  Epístola  aos  Efésios. 

O  Homem  Segundo  o  Pensamento  Bíblico. 

O  homem  como  o  conhecemos,  o  ser  de  diversas  maneiras  descrito 
como  homem  «natural»,  homem  «comum»  ou  homem  «médio»  é,  no  pen- 
samento de  S.  Paulo,  o  homem  «sem  Deus»  e,  portanto,  «sem  esperança 
no  mundo»  (2:12).  Porque  Deus  não  ocupa  o  lugar  central  em  sua  obe- 
diência, nem  opera  como  a  fôrça  central  na  sua  vida,  o  homem,  em  sua 
existência  histórica,  está  em  uma  condição  desesperada  e  sem  espe- 
rança. «Está  «morto»,  imerso,  sepultado,  em  «trespasse  e  pecados^ 
(2:1) ;  isto  é,  vive  fazendo  o  que  é  errado  e  está  errando  o  alvo.  Segue 
o  «Príncipe  das  Potestades  do  Ar,  o  espírito  que  está  operando  nos  filhos 
da  desobediência»  (2:2),  o  que  significa  que  o  Senhor  do  homem  não  é 
Deus,  mas  um  poder  rebelado.  A  sua  vida  é  caracterizada  pelo  predo- 
mínio das  concupiscências  da  carne  e  êle  é  escravo  dos  apetites  carnais  e 
extravagâncias  intelectuais.  Todos  os  homens  são,  assim,  «filhos  da  ira» 
(2:3);  passam  a  vida  em  desarmonia  com  o  verdadeiro  curso  da  vida  e, 
por  conseguinte,  sofrem  as  consequências  dos  seus  caminhos  desnortea- 
dos. São  inúteis  todos  os  esforços  da  parte  dos  homens  para  corrigir 
a  situação,  porque  vivem  na  «vaidade  (ou  futilidade)  do  seu  sentido» 
(4:17).  Sofrem  de  cegueira  espiritual  estando  «entenebrecidos  no  seu 
entendimento»  (4:18).  Falta-lhes  a  verdadeira  luz,  porque  vivem  fora 
da  verdadeira  vida,  «separados  da  vida  de  Deus».  E  vivem  assim,  por 
seus  caminhos,  sem  desejo  de  mudarem  de  direção  e  de  dar^^m  séria 
causa  da  «dureza  dos  seus  corações»,  porque  se  acham  endurecidos  em 
consideração  a  qualquer  outro  ponto  de  vista  ou  maneira  de  viver.  A 
dedicação  a  uma  existência  puramente  humanística  e  secularísta  os  toma 
«calejados»;  a  sua  fibra  moral  decai,  pelo  que  se  degeneram  e  caiem  em 
«licenciosidade»,  invocando,  para  sua  indulgência,  novas  maneiras  de 
procedimento  imoral  (4:19). 


—  37  — 


Em  tais  têrmos  descreve  Paulo  o  homem  e  o  problema  humano  e 
faz  os  distantes  leitores  da  sua  carta  ecuménica  compreenderem  que  estes 
traços  resumem  a  «velha  natureza»  (4:12)  em  que  os  homens,  em  geral, 
viviam.  Esta  era  a  natureza  de  que  êles,  como  cristãos,  deviam  «des- 
pojar-se»,  «renovando-se  no  espírito  do  seu  sentido»  (4:23),  que  é  o  mes- 
mo que  dizer,  pela  aquisição  de  uma  total  mudança  de  perspetiva.  A 
«nova  natureza»,  que  deve  substituir  a  velha,  é  «criada,  segundo  Deus, 
em  verdadeira  justiça  e  santidade»  (4:24);  é  uma  natureza  semelhante 
a  Deus,  que  se  expressa  em  conformidade  com  a  vontade  de  Deus,  que 
é  «justiça»,  e  em  consagração  à  realidade  de  Deus,  que  é  «santidade». 

Tendo  em  mente  esta  descrição  do  homem  como  êle  é,  descrição  que 
Paulo  nos  dá  no  mais  amadurecido  dos  seus  escritos,  consideremos  a  sua 
significação  e  o  que  ela  implica.  Isto  é,  interpretemos  o  homem  à  iupla 
luz  do  pensamento  bíblico  e  da  vida  histórica. 

Que  é  o  homem?  Esta  é  uma  pergunta  decisiva.  Tôda  civilização 
particular,  tôda  cultura  específica,  como  também  todo  sistema  de  pen- 
samento, são  fundamentalmente  baseados  numa  dada  opinião  a  respeito 
do  homem.  Até  onde  diz  respeito  à  história,  como  afirmou  Toynbee,  o 
homem,  como  o  conhecemos,  o  chamado  «homem  médio»,  não  tem  mu- 
dado apreciavelmente  em  sua  natureza  essencial  e  em  tempo  histórico. 
Êle  é  hoje  em  dia  mais  ou  menos  como  sempre  tem  sido.  Parece,  além 
disso,  que  êle  nada  ter  aprendido  da  experiência,  que  lhe  seja  de  impor- 
tância decisiva  para  a  sua  orientação  espiritual.  «A  única  coisa  que 
temos  aprendido  da  história»,  tem-se  dito,  «é  que  o  homem  nunca  apren- 
deu nada  da  história». 

No  espirito  e  na  linguagem  da  Bíblia,  o  homem  é  um  ser  feito  à 
imagem  e  semelhança  de  Deus.  Ele  foi  feito  em  amor,  por  um  D«}us 
que  é  amor.  Deus,  o  Criador,  teve  intenção  de  que  o  homem  Lhe  devia 
ser  semelhante.  A  única  maneira  pela  qual  a  criatura  podia  ser  seme- 
lhante ao  seu  Criador  era,  na  sua  condição  de  criatura,  obedecer  ao 
mandamento  de  amar.  Um  ser  criado  e  finito  obedece  a  este  manda- 
mento, quando  ama  a  Deus  com  reverência  de  adoração  e  com  obe- 
diência cheia  de  amor  e  ama  O  próximo  como  a  si  mesmo.  Mas  o 
homem,  como  nós  o  conhecemos  na  história,  tem  aspirado  a  ser  seme- 
lhante a  Deus,  mas  sem  Deus.  Ele  tem  querido  ser  como  Deus,  no 
sentido  de  possuir  condição  divina  e  atributos  divinos,  mas  sem  reco- 
nhecer a  Deus  como  Deus.  Tem  acariciado  a  ambição  de  ser  «um 
deus»;  daí,  o  significado  da  tentação  de  Génesis  (3:5)  «sereis  como 
deuses».  O  homem  tem  buscado  em  delírio  ser  igual  a  Deus  e  rival  de 
Deus.  Êle  não  tem  desejado  ser  semelhante  a  Deus,  manifestando,  como 
filho  de  Deus  e  Seu  servo,  a  humildade  e  condescendência  que  caracte- 
rizam a  vida  da  Divindade. 

E  assim,  temos  o  «homem  caído»,  o  homem  pecador,  o  homem  qua 
«errou  o  alvo»  no  atingir  a  existência  verdadeira,  o  homem  que  está 
«fora  do  passo»  com  a  realidade,  que  está  «fora  da  rota»  quando  busca 
o  seu  destino.  Quando  observamos  a  natureza  humana  dividida  que  foi 
fendida  pelo  orgulho  e  inclinada  para  a  desobediência,  torna-se  neces- 


—  38  — 


sário  que  a  várias  coisas  seja  dada  ênfase.  O  pecado  não  tem  a  sua 
sede  nos  centros  inferiores  da  personalidade,  mas  nos  mais  altos.  Con- 
quanto conduza  às  mais  grosseiras  formas  de  sensualidade,  à  medida 
que  o  espírito  humano  se  extravia  cada  vez  mais,  «fora  da  rota»,  o 
pecado  não  tem  a  sua  origem  no  desejo  sensual,  nem  tem  a  sua  mais 
terrível  expressão  em  qualquer  coisa  que  pertença  ao  corpo.  Pecado  é 
perversidade  da  mente  mais  do  que  fraqueza  da  carne.  Além  disso, 
êle  tem  manifestação  positiva,  como  também  negativa.  Negativamente 
êle  é,  nas  palavras  do  Breve  Catecismo  de  Westminster,  «qualquer  falta 
de  conformidade  com  a  lei  de  Deus  ou  qualquer  transgressão  desta  lei». 
Como  tal,  é  uma  revolta  contra  a  autoridade,  rebelião  contra  a  estrutura 
hierárquica  do  Universo,  afirmação  de  vontade  própria.  Mas,  no  lado 
positivo,  o  pecado  é,  como  já  foi  sugerido,  a  busca  de  uma  falsa  seme- 
lhança com  Deus.  É  a  tentativa  de  alcançar  a  divindade  pelo  caminho 
mais  curto,  de  possuir  os  atributos  e  prerrogativas  brilhantes  de  Deus, 
sem  participar  da  graciosa  condescendência  de  Deus. 

Indubitàvelmente,  há  na  natureza  humana,  como  seu  desejo  mais 
profundo,  uma  aspiração  ao  Infinito  e  ao  Eterno.  Deus  fêz  o  homem 
semelhante  a  Si  mesmo  e  para  Si  mesmo,  pondo  eternidade  em  seu 
coração.  Por  isso,  como  o  expressou  Agostinho,  «os  nossos  corações  não 
têm  repouso,  enquanto  não  repousarem  em  Ti».  Um  filósofo  contem- 
porâneo interpreta  fielmente  a  aspiração  básica  humana,  quando  diz: 
«A  vida  inteira  do  homem  é  luta  para  a  conquista  da  existência  verda- 
deira, esfôrço  para  alcançar  a  substancialidade,  para  que  não  tenha 
vivido  em  vão  e  desaparecido  qual  sombra».  (6)  Mas  a  dificuldade 
é  que  êsse  homem,  o  pecador,  não  se  contentou  em  encontrar  a  sua 
verdadeira  existência  em  Deus  e  por  meio  de  Deus.  Êle  quiz  antes 
possuir,  como  seu  próprio  direito  e  posse  própria,  as  coisas  que  consi- 
dera inerentes  à  sua  semelhança  com  Deus.  Desde  que  êle  caiu  do  Ser 
esteve  mais  interessado  em  ter  do  que  em  ser.  Esqueceu-se  de  que  a 
não  ser  que  tenha  a  Deus,  não  tem  nada.  Dai  provém  o  pecado  do 
homem  e  o  problema  humano. 

Ninguém  conheceu  melhor  o  homem  e  a  natureza  humana  do  que 
Jesus.  Certa  ocasião  fêz  aos  Seus  contemporâneos  uma  pergunta,  que 
é  a  mais  profunda  pergunta  que  jamais  se  fêz  a  respeito  e  ainda  é  a 
mais  importante  pergunta  que  possa  dirigir  a  nossa  geração:  «Que 
aproveitará  ao  homem»  perguntou  Êle,  «se  ganhar  o  mundo  inteiro  e  vier 
a  perder  a  sua  alma  (ou  a  sua  própria  vida?»  (Mateus  16:26).  Jesus 
sabia,  como  Paulo  também  sabia,  que  o  principal  impulso  do  homem  é  a 
paixão  do  lucro,  de  ter,  de  possuir  um  mundo,  algum  mundo,  o  mundo 
inteiro.  O  Diabo  já  tinha  feito  uma  proposta  assim  a  Jesus.  A  proposta 
foi  a  seguinte:  Êle,  o  «Príncipe  dêste  mundo»,  daria  a  Jesus  o  mundo 
inteiro  como  um  presente,  uma  vez  que  Êle  estivesse  disposto  a  negar  a 
Devs,  a  ser  e  a  agir  «sem  Deus»  e,  adorando  ao  Diabo,  aderir  à  grande 
revolta.    Mas,  para  Jesus,  o  que  realmente  interessava  era  ser  e  não 


{6)    Erich  Fiíiiik,  PhiJosophical  KnowJedge  and  Eeligious  Understanding,  p.  116. 


ter.  Para  êle,  o  verdadeiro  ser  consistia  em  viver  vida  com  Deus,  por 
meio  de  Deus  e  para  Deus;  a  uma  vida  assim,  as  coisas  e  o  mundo 
seriam  acrescentados  em  devido  tempo. 

Por  outro  lado,  a  tentativa  de  ganhar  o  mundo,  conduz  à  perda  do 
único  mundo  que  realmente  importa,  o  mundo  da  alma,  a  vida  interior 
do  homem.  A  busca  das  coisas,  a  paixão  aquisitiva  do  homem,  em  ter, 
destrói  a  alma,  desintegra  a  vida,  faz  do  espírito  humano,  sepulcro  vazio, 
sepulcro  de  valores  mortos,  de  esperanças  estioladas. 

Contudo,  à  parte  do  significado  desta  questão  que  Jesus  propôs  ao 
povo  do  Seu  tempo,  a  Bíblia,  tanto  no  Velho  como  no  Novo  Testamento, 
está  cheia  de  descrições  do  julgamento  divino,  que  dão  testemunho  das 
trágicas  consequências  que  a  busca  da  falsa  semelhança  com  Deus  traz 
ao  homem  e  à  sociedade  humana.  Quão  lúgubres  e  dramáticos  os  qua- 
dros que  na  Bíblia  se  esboçam  da  total  desintegração  espiritual  que 
resulta,  quando  o  homem  toma  a  vida  em  suas  próprias  mãos  e  se 
dispõe  a  forjar  o  seu  próprio  destino!  O  resultado  é  desmoralização;  o 
homem  desumaniza-se:  a  sua  natureza,  dada  por  Deus  e  na  qual  Deus 
imprimiu  a  Sua  própria  imagem,  é  maculada.  Caim,  tornou-se  o  impu- 
dente assassino  de  seu  irmão.  As  características  naturais  das  relações 
sexuais  desapareceram,  e  temos  Sodoma,  com  tudo  quando  «Sodomav* 
significa  na  história  bíblica,  e  com  tudo  quanto  vem  a  significar  nos 
tribunais  seculares.  A  perversão  do  instinto  religioso  no  culto  idólatra 
torna-se,  como  nos  cultos  cananitas,  a  fonte  turva  de  indescritível  per- 
versidade. Paulo,  em  sua  grande  Epístola  aos  Romanos,  dá-nos  um 
cálculo  clássico  dos  efeitos  fatalmente  morais  que  sucedem  à  deter- 
minação de  repudiar  a  Deus,  tudo  isso  estava  no  painel  de  sua  mente, 
quando  escrevia  a  Carta  aos  Efésios.  Os  homens  que,  «tendo  conhe- 
cido a  Deus,  não  o  glorificaram  como  Deus,  nem  Lhe  deram  graças, 
antes  em  seus  discursos  se  desvaneceram  e  o  seu  coração  insensato  se 
obscureceu»  (Rom.  1:21).  «Pois  mudaram  a  verdade  de  Deus  em  men- 
tira e  honraram  e  serviram  mais  a  criatura  do  que  o  Criador»  (v.  25) ; 
«e,  como  êles  se  não  importaram  de  ter  conhecimento  de  Deus,  assim 
Deus  os  entregou  a  um  sentimento  perverso,  para  fazerem  coisas  que 
não  convêm»  (v.  28). 

Não  sòmente  isto:  a  Revolta  do  homem  manifestou-se  em  relações 
sociais  confusas  e  amarguradas.  A  grande  tentativa  de  levantar  uma 
tôrre  à  glória  do  homem,  que  seria  monumento  perpétuo  à  divindade  do 
homem  e  centro  permanente  de  unidade  humana,  terminou  em  babel 
linguística  e  em  dispersão  racial.  Porque  na  própria  humanidade  sepa- 
rado de  Deus,  não  há  meio  de  compreensão  nem  vínculo  de  coesão. 
Portanto,  o  de  que  a  nação  necessita,  entre  a  confusão  criada  por  um 
colapso  de  compreensão  é,  no  simbolismo  de  um  grande  profeta  hebreu, 
«lábios  puros»,  que  Deus  pode  dar  aos  povos  da  terra.  O  que  os  povos 
do  mundo  exigem  em  seu  isolamento  e  antagonismo  mútuo  é  de  um 
centro  renovador  de  unidade.  Êste  centro  de  unidade,  na  brilhante 
imagem  da  Bíblia,  Deus  o  provê  como  vemos  atualmente,  na  Jerusalém, 


—  40  — 


a  Cidade  de  Deus  que,  no  desenvolver  dos  Seus  propósitos  sucederá  à 
Cidade  do  Homem. 

Mas,  antes  que  as  consequências  históricas  da  separação  básica 
espiritual  possam  ser  vencidas,  uma  outra  divisão  na  história,  de  caráter 
quase  único,  precisa  de  ser  vencida  também.  Paulo  a  ela  se  refere  no 
segundo  capitulo  da  Carta  aos  Efésios.  É  a  profunda  separação  entre 
judeus  e  gentios.  Encarada  da  perspetiva  da  história  secular,  esta  tem 
sido  uma  das  mais  amargas  e  aterradoras  de  todas  as  divisões  da 
história.  Esta  era  a  divisão  conforme  Paulo  a  descreve,  entre  um  povo 
chamado  dos  judeus,  descendentes  de  um  ancestral  comum,  Abrão,  e  em 
quem  fôra  realizado  o  rito  da  circuncisão,  de  um  lado  e,  do  outro  lado, 
todos  os  não-judeus,  levando  o  nome  geral  de  gentios,  as  «nações»,  que 
eram  os  incircuncisos  (Efésios  2).  Os  gentios  eram.  na  linguagem  de 
Paulo,  «separados  da  comunidade  de  Israel  e  estranhos  aos  concertos 
da  promessa»  (2:12).  Esta  divisão  podia  ser  apropriadamente  chamada 
a  Separação  Sagrada.  Era  uma  divisão  estabelecida  por  Deus  mesmo  entre 
setores  da  família  humana  que,  por  meio  da  oportunidade  oferecida  de 
tratar  específica  e  redentivamente  com  um  setor,  levaria,  quando  esti- 
vesse divinamente  desfeita,  a  um  eventual  desaparecimento  da  própria 
grande  separação. 

O  Homem  na  Vida  Histórica 

O  que  Paulo  descreveu  como  a  vida  de  pecado,  a  «vida  sem  Deus», 
o  que  Jesus  disse  que  acontece  quando  os  homens  se  dispõem  a  ter  em 
vez  de  ser,  tem-se  manifestado  em  nosso  tempo  com  aspectos  parti- 
cularmente impressionantes  e  trágicos.  A  nossa  época  é  um  comen- 
tário mundial  e  ecuménico  das  palavras  de  S.  Paulo.  «O  salário  do 
pecado  é  a  morte».  Êste  é  um  «dia  do  Senhor»,  em  que  processos  judi- 
ciais inexoráveis  estão  operando  na  história  humana.  À  semelhança  dos 
contemporâneos  de  Jeremias,  mas  em  escala  muito  mais  vasta  e  em 
contexto  mais  trágico,  nós  e  os  nossos  contemporâneos  «seguimos  a 
Ilusão  e  Ilusões  nos  tornamos»  (tradução  de  G.  A.  Smith),  «fomos  após 
ídolos  vazios  e  nos  tornámos  a  nós  mesmos  vazios»  (tradução  de 
Moffat).7 

Um  grande  vácuo,  um  espantoso  vazio,  um  vão  de  abismo  cara- 
teriza  a  vida  hum.ana  em  nosso  tempo.  Procuramos  na  vida  sentido  que 
nela  não  havia.  Como  consequência,  uma  atitude  de  niilismo  invade  todos 
os  continentes.  O  espetro  do  Nada  assombra  o  mundo.  Mesmo  nos 
Estados  Unidos,  nação  vitoriosa,  está-se  incubando  um  certo  Niilismo. 
As  seguintes  palavras  não  foram  escritas  da  Alemanha  ou  do  Japão,  ou 
das  terras  do  Oriente  ou  Ocidente  que  estão  mergulhadas  em  trevas. 
Foram  elas  recentemente  dirigidas  à  nação  americana  por  um  dos  seus 
próprios  poetas: 

(7)    Jeremias  2:5. 


—  41  — 


ó  minha  terra, 
é  o  Nada  que  precisamos  de  temer: 

o  pensamento  do  Nada: 
o  som  do  Nada  em  nossos  corações, 

como  o  alarido  horrendo 
das  bombas  incendiárias  nas  ruas,  à  meia  noite: 
a  crença  no  Nada.  (8) 

Duas  características  em  particular  indicam  este  grande  vácuo,  esta 
perda  da  dimensão  espiritual,  tragédia  do  nosso  tempo.  Uma  destas  é 
a  Anonímia,  a  outra  é  a  Banalidade. 

Quando  os  homens  vivem  «sem  Deus»,  chega  o  momento  em  que 
passarão  a  viver  sem  êles  mesmos.  Tornam-se  estranhos  a  si  próprios: 
não  sabem  quem  são.  Transformam-se  em  simples  átomos,  que  são 
levados  para  cá  e  para  lá.  Amam  as  multidões  em  que  podem  perder-se. 
Imaginam  tôda  espécie  de  inventos  que  lhes  permitam  o  esquecimento 
de  si  mesmos.  Porque  a  solidão  e  o  silêncio  suscitam  perguntas  quanto 
a  quem  são  como  também  quanto  para  onde  vão  indo,  e  odeiam  a  ambas. 
Porque  a  música  fala  de  ordem  e  de  sentido,  êles  fogem  dela.  Que 
lhes  importa  que  as  coisas  sejam  de  qualquer  maneira?  Daí,  a  «fuga 
universal  para  a  anonímia  e  a  tremenda  cacofonia,  dominada  pelo  som 
das  bombas». 

Quando  os  homens  perdem  a  profundeza  e  o  objetivo;  quando  os 
horizontes  distantes  e  os  ideais  nobres  não  mais  os  inspiram;  quando 
«Tudo  é  um  no  fim,  República,  Ditador»,  certa  banalidade  invade  a  vida. 
Uma  morbidez  e  um  instinto  vil  e  rasteiro,  juntamente  com  amor 
veemente  do  que  é  novo  e  estranho,  surgem  logo.  O  povo  quer  ser 
«distraído  da  distração  pela  distração».  Por  essa  razão,  o  que  agora  se 
designa  como  arte  «moderna»,  tornou-se  «museu  de  patologia  social  e 
cultural».    Não  mais  o  brado:  «Excelsior». 

Alimentai-nos  os  corpos,  não  as  almas 

Quanto  mais  gordo  for  o  corpo,  tanto  mais  depressa  se  rebola. 

Escarnecem-se  dos  ideais  mais  nobres,  aparece  a  corrupção  sórdida 
por  tôda  a  parte,  tanto  nos  lugares  altos  como  nos  baixos. 

Mas,  porque  o  homem  foi  feito  para  algo  muito  diferente  disto,  a 
natureza  humana  não  pode  sofrer  indefinidamente  um  vácuo  desta  ordem 
com  a  sua  anonímia,  a  sua  banalidade,  a  sua  corrupção.  Situação  tal 
é  sempre  propícia  ao  irromper  de  guerra  porque,  na  guerra,  o  povo 
torna-se  alguma  coisa;  diz-se-lhe  o  que  deve  fazer  e  perde-se  em  alguma 
coisa  maior  do  que  êle  mesmo.  É  a  guerra  igualmente  favorável  a 
submissão  do  homem  à  superstição,  à  tirania  e  à  falsa  autoridade.  Por- 
que, quando  o  homem  se  torna  completamente  vazio  da  sua  humani- 
dade, de  novo  levanta  a  questão  da  divindade.  Uma  vez  mais,  é  uma 
escolha  entre  Deus  e  os  «deuses»,  entre  a  companhia  dos  santos  e  as 
filas  da  «multidão  de  condenados». 


(8)    "My  Country",  Davenport. 


—  42  — 


Êste  é  o  perene  ciclo  humano:  Homem,  o  pecador,  em  revolta  con- 
tra Deus  e  recusando-se  a  encontrar  a  sua  verdadeira  existência  em 
Deus  e  em  Seus  propósitos,  arroga-se  o  domínio  da  sua  própria  vida. 
Luta  para  adquirir  grandes  posses,  a  fim  de  se  tornar  semelhante  a 
Deus.  Mas  a  sua  entrega  delirante  èis  finalidades  do  ter  resulta  em 
uma  total  perda  do  ser,  em  uma  vida  vazia  e  desintegrada  e  numa 
sociedade  desordenada  e  sem  finalidade.  A  grande  Divisão,  a  pecami- 
nosidade  nos  «lugares  celestiais»,  e  no  plano  da  história  humana,  cria 
dois  problemas  supremos:  o  problema  do  verdadeiro  ser,  para  o  homem, 
e  o  problema  da  verdadeira  unidade,  entre  os  homens.  Antes  de  pas- 
saiTnos  a  considerar  a  maneira  como  são  por  Deus  resolvidos  ambos 
estes  problemas,  na  vida  e  nas  relações  do  Piano  de  Deus,  consideremos 
de  maneira  breve  e  sumáriomente  alguns  esforços  humanos  e  caraterís- 
ticos,  tanto  antigos  como  modernos,  de  tratar  do  problema  da  grande 
Separação  e  as  suas  consequências. 

c)    Tentativas  Humanas  para  Desfazer  a  Separação. 

É  o  homem  constituído  de  tal  maneira  que  a  unidade  é  necessidade 
indispensável  da  sua  natureza.  Necessidade  de  unidade  na  forma  de 
idéia,  para  compreender  a  vida;  necessita  de  unidade  em  forma  de 
poder,  para  controlar  a  vida.  A  realidade  do  mistério  e  do  paradoxo  no 
mundo,  a  presença  da  desordem  e  de  forças  em  conflito,  torna  a  necessi- 
dade de  unidade  por  demais  imperiosa,  tanto  para  o  homem  de  pensa- 
mento como  para  o  homem  de  ação,  para  o  homem  mau  como  também 
para  o  homem  bom.  Até  mesmo  um  sistema  de  falso  pensamento  requer 
unidade,  coerência  lógica  baseada  em  êrro  ou  mentira;  até  um  Reino 
do  Mal  exige  unidade,  na  forma  de  estratégia  comum  em  oposição  ao 
Bem. 

No  curso  da  história  humana,  fizeram-se  várias  tentativas  para 
reduzir  a  um  pensamento  simples  a  diversidade  e  a  desordem  que  carac- 
terizam as  coisas,  e  para  vencer  o  conflito  e  acabar  com  a  divisão  por 
meio  de  uma  política  única. 

Dois  caminhos  foram  seguidos  para  alcançar  a  unidade:  um  dêles 
foi  o  caminho  da  sabedoria  e  o  outro,  o  caminho  do  poder. 

O  Caminho  da  Sabedoria 

Os  antigos  gregos,  que  foram  os  primeiros  a  exercer  a  curiosidade 
reflexiva  a  respeito  do  mundo  em  que  viviam,  pareciam  estar  totalmente 
inconscientes  da  existência  de  uma  divisão  espiritual  no  cosmos  e  na 
vida  do  homem.  O  pecado  original,  inclinação  inata  para  o  mal  no 
espírito  humano,  era  completamente  irreal  para  êles.  Os  jônios  inte- 
ressavam-se  pela  busca  da  substância  simples,  terra  ou  ar,  fogo  ou  água, 
a  que  pudesse  a  natureza  ser  reduzida.  Os  pitagóricos  procuravam  nos 
números  o  princípio  da  harmonia  entre  os  diversos  fenómenos  da  Natu- 
reza. Os  estóicos  encontravam  no  universo  um  logos  imanente,  um 
princípio  unificador  de  ordem  impessoal.  Platão  sabia  que  estava  o 
homem  comum  imerso  em  uma  vida  de  apetites  e  de  sensualidades  e, 


consequentemente,  incapaz  de  conhecer  a  Verdade  ou  de  ver  o  Bem. 
Mas  não  havia  divisão  fundamental.  Segundo  o  ponto  de  vista  de  Platão, 
era  possível  à  alma  voltar-se  para  a  Luz  e  alcançar  a  visão  do  Bem, 
por  processo  de  educação  que  incluía  auto-disciplina.  No  fundo,  o  pro- 
blema era  mental  mais  do  que  espiritual:  Como  poderia  o  homem  alcan- 
çar verdadeira  unidade  de  pensamento,  como  poderia  êle  descobrir  o 
verdadeiro  objeto  de  adoração?  A  solução,  o  prelúdio  da  salvação,  era 
elevação  natural  à  contemplação  e  não  livramento  sobrenatural  da 
escravidão. 

Nos  tempos  modernos,  o  inteiro  problema  de  unidades,  seja  no 
sentido  de  compreender  o  mundo  seja  no  de  controlá-lo,  tem  sido  atacado 
do  lado  da  ciência  e,  mais  recentemente,  do  lado  da  técnologia.  A  última 
grande  opinião  mundial  que  dominou  a  cultura  ocidental  foi  o  esforço 
de  compreender  o  Universo  em  têrmos  de  princípio  cósmico  de  evolução. 
Uma  vez  que  esta  opinião  sofreu  colapso,  despedaçada  por  acontecimen- 
tos descepcionantes,  nenhuma  outra  filosofia  cósmica  tem  aparecido 
nos  círculos  burgueses  representativos.  No  mundo  democrático  dos  nos- 
sos dias,  não  existe  uma  grande  idéia,  racional  ou  religiosa,  a  qual  se 
presta  fildelidade  comum  e  que,  por  seu  caráter  luminoso,  esclareça  a 
significação  da  vida  e  proveja  a  fôrça  para  palmilhar  trilhos  da  vida. 
Fora  as  histórias  críticas  da  filosofia  e  as  filosofias  sugestivas  da  história, 
a  única  coisa  que  se  deixou  na  cultura  democrática  com  a  semelhança 
de  opinião  mundial  é  a  filosofia  da  liberdade.  Mas  esta  filosofia  da 
liberdade,  êste  vestígio  esquecido  de  grandeza  intelectual,  no  fundo,  não 
é  nada  mais  do  que  liberdade  negativa,  a  proclamação  de  liberdade  polí- 
tica sem  implicação  de  responsabilidade  moral.  O  que  se  proclama  é 
liberdade  de  alguma  coisa  e  não  liberdade  para  alguma  coisa  ou  em 
alguma  coisa;  e  tal  liberdade  não  é  a  que  é  sòmente,  a  verdadeira  liber- 
dade: sujeição,  cativeiro  ao  Eterno. 

O  abandono,  nos  círculos  democráticos,  da  tentativa  de  desenvolver 
ponto  de  vista  de  compreensão  mundial  deixou  à  ciência  o  problema  de 
entender  o  mundo  e  determinar  o  que  o  homem  pode  ousar  esperar. 
Isto  levou  à  tendência  de  fazer  positivista  o  ideal  do  conhecimento  frag- 
mentário, o  escopo  do  conhecimento  e  utilitário  o  fim  do  conhecimento. 
Uma  cultura  científica  não  ensina  ao  homem  o  que  deve  fazer;  não  o 
ajuda  a  obter  uma  visão  da  vida  como  um  todo.  Diz-lhe  apenas  como 
é  que  êle  pode  ter  número  crescente  de  coisas,  enquanto  que  o  seu  pro- 
blema real  é  um  profundo  senso  da  necessidade  de  ser  alguma  coisa. 
Os  fatos  da  futilidade  da  especialização  e  dos  peritos  tecnológicos  no 
que  interessa  ao  conhecimento  e  à  solução  do  problema  fundamental, 
tém-se  tornado  tão  familiares  pela  muita  reiteração,  que  nada  mais 
necessita  de  ser  dito  a  respeito.  Sòmente  isto:  —  Seria  bom  aos  positi- 
vistas culturais  lembrarem-se  de  que  o  amor  tem  significação  cultural. 
Será  totalmente  fútil  a  educação,  a  não  ser  que  consiga  criar  entre  as 
pessoas  um  sentimento  de  amizade  e  fraternidade,  de  modo  que  aprendam 
a  viver  juntos.  Porque,  se  não  o  fizerem,  alargar-se-ão  em  nossa  socie- 
dade contemporânea  as  nefastas  e  crescentes  divisões.    Seria  bom  tam- 


—  44  — 


bém  se  os  nossos  positivistas  da  política,  que  pensam  somente  em  termos 
de  justiça  legal,  em  sanções  militares  e  em  segurança  nacional,  consi- 
derassem que  o  perdão  tem  poder  político.  Uma  grande  parte  da  res- 
responsabilidades  da  desmoralização  reinante  nas  relações  humanas  dos 
nossos  dias,  é  que  o  ódio  e  a  vingança  têm  dominado  a  política  nas  rela- 
ções entre  os  diversos  grupos  humanos.  A  «Inimizade»  tem  sido  domi- 
nante e  progressiva. 

Tem  aumentado,  porém,  o  interêsse  sôbre  nossa  cultura  contem- 
porânea, aprendida  pelos  sentidos,  esta  cultura  cuja  alma  tem  sido  a 
ciência  e  cujos  interêsses  têm  sido  exclusivamente  o  espacial  e  o  tem- 
poral, o  visível  e  o  tangível.  Sorokin,  o  sociólogo  de  Harvard,  tem  sido 
líder  em  acusar  a  devoção  exclusiva  ao  «sentido»,  que  êle  considera, 
como  está  hoje  em  dia,  completamente  exaurido,  sem  nada  mais  para 
dar.  Mas  esta  devoção  religiosa  às  coisas  dos  sentidos,  coisas  que  os 
homens  podem  ter,  êle  não  a  considera  como  fundamentalmente  peca- 
minosa, mas  somente  como  contemporâneamente  prejudicial.  A  busca 
do  que  é  «sentido»  não  é,  para  Sorokin,  a  expressão  de  uma  aberração 
espiritual;  pelo  contrário,  é  antes  a  manifestação  de  um  ritmo  cíclico 
cujo  extensão  apropriada  foi  indevidamente  prolongado  em  nossos  dias. 
Assim,  a  nossa  grande  necessidade  contemporânea,  segundo  a  opinião 
dêsse  professor,  é  a  de  dar  ênfase  ao  ideacional,  palavra  pela  qual  êle 
quer  significar  a  devoção  aos  valores  espirituais.  Mas,  diria  o  cínico, 
tais  valores  são  objetivamente  irreais  e  negam  inteiradamente  a  objeti- 
vidade  ou  propriedade  do  ritmo  cultural  e,  então,  o  «santo»,  o  homem 
que  é  tão  consagrado  aos  valores  fundamentalmente  espirituais,  que  se 
dedica  à  disciplina  ascética,  deve  tornar-se,  segundo  êste  ponto  de  vista, 
o  nosso  tipo  representativo.  Mas  será  claramente  uma  esperança  per- 
dida tentarmos  produzir  santos  e  promover  precursores  de  uma  cultura 
ideacional,  a  não  ser  que  êles  creiam  o  que  o  seu  próprio  advogado  soció- 
logo não  crê,  isto  é,  que  os  valores  que  êles  sustentam  são  absolutamente 
verdadeiros  e  são  garantidos  por  uma  ordem  cósmica.  Isto  é  o  mesmo 
que  dizer,  que  os  «santos»  e  só  êles,  é  que  podem  redimir  a  nossa  ordem 
cultural,  não  podem  ser  criados  para  pôr  ordem,  nem  pelas  pressuposi- 
ções propostas  por  Sorokin. 

Em  círculos  filosóficos,  começa  a  tomar  expressão  o  mais  profundo 
interêsse  a  respeito  do  abismo  espiritual  que  divide  o  Oriente  do  Oci- 
dente, e  separa  as  grandes  religiões  da  humanidade.  O  de  que  se  neces- 
sita, afirma-se,  é  transcender  o  parcial  e  criar  uma  ultra-suprema  leal- 
dade a  que  todos  possam  aderir.  Northrop,  o  filósofo  de  Yale,  conclui 
o  seu  livro:  O  Encontro  do  Oriente  com  o  Ocidente:  Um  Ensaio  de 
Compreensão  Humana,  com  um  apêlo  à  lealdade  mundial.  No  interêsse 
da  lealdade  de  âmbito  mundial,  dever-se-ia  promover  a  mutualidade  leal 
e  universal  entre  o  Oriente  e  Ocidente,  cada  uma  dessas  partes  parti- 
lhando com  a  outra  dos  seus  ideais.  Mas,  quão  completamente  irreal  é 
tal  proposta  nêste  momento  histórico  em  que  as  idéias  tradicionais,  tanto 
do  Oriente  como  do  Ocidente,  estão  passando,  e  em  que  uma  tremenda 
fôrça,  a  do  Comunism.o  marxista,  proclama  pelo  mundo  afora  que,  o  que 


—  45  — 


importa  não  é  a  mutualidade  das  idéias,  mas  o  reconhecimento  comum 
das  realidades! 

Num  livro  que  apareceu  entre  as  duas  guerras,  englobando  o  rela- 
tório de  uma  Comissão  cujo  Presidente  era  o  distinto  filósofo  de  Harvard, 
Professor  W.  E.  Hocking,  e  intitulado  Um  Inquérito  dos  Leigos  sôbre  as 
Missões  Cristãs,  foi  proposta  a  idéia  de  que,  em  vista  do  que  parecia  ser 
cultura  mundial  em.ergente,  o  futuro  espiritual  da  humanidade  está  se 
movendo  em  direção  ao  «Novo  Testamento  de  tôdas  as  religiões  que  exis- 
tem». Mas,  além  do  fato  de  que  um  vazio  cultural  e  não  uma  cultura 
emergente  e  mundial  é  o  principal  característico  do  mundo  do  ocidente,  o 
resultado  da  Segunda  Guerra  Mundial  foi  desintegração  muito  decisiva 
das  antigas  religiões  que  dominaram  o  Oriente.  Nos  lugares  em  que  houve 
grandes  progressos  do  Budismo,  do  Induísmo  e  do  Islam,  estiveram  êles 
sempre  fortemente  ligados  a  nacionalismos.  Não  mostram  qualquer  inte- 
résse  num  «Novo  Testamento»  que  surge. 

O  Caminho  do  Poder 

O  Caminho  da  Sabedoria,  porém  não  tem  sido  o  único  caminho  em 
que  se  tentou  produzir  a  ordem  e  a  unidade  na  confusão  e  no  conflito 
humano.  Alguns  tentaram  realizar  este  desiderato  pelo  emprêgo  da 
fôrça. 

Alexandre  e  Augusto  foram  famosos  representantes  deste  caminho 
do  poder,  nos  tempos  antigos.  Era  a  ambição  de  um  deles  unir  e  huma- 
nizar  o  vasto  império  que  havia  conquistado,  por  meio  da  difusão  da 
cultura  helénica.  O  outro,  crendo-se  ser  o  autor  da  constituição  ideal 
e  permanente,  meteu  mãos  à  tarefa  de  unificar  os  seus  largos  domínios, 
desde  o  Tibre  até  à  «última  Thule»  pela  imposição  da  Lei  Romana. 

Ao  alvorecer  da  era  moderna,  os  patrocinadores  de  Colombo,  Fer- 
nando e  Isabel  de  Espanha,  bem  como  os  monarcas  espanhóis  que  lhes 
sucederam  durante  a  Idade  de  Ouro  da  Espanha,  empreenderam  a  tarefa 
de  forçar  o  estabelecimento  de  uma  teocracia  no  Mundo  Ocidental  que 
Colombo  havia  descoberto.  Na  prática,  os  indígenas  eram  obrigados  a 
prestar  homenagem  à  Cruz  ou  seriam  estirpados  pela  espada.  No  fim 
da  era  moderna,  os  princípios  da  Democracia,  que  constituiu  a  maior 
realização  politica  desta  era,  são  promovidos  pela  fôrça,  ainda  que  esta 
não  seja  fôrça  despótica,  entre  os  povos  que  foram  vencidos,  tanto  no 
Ocidente  como  no  Oriente,  pelas  potências  democráticas  na  Segunda 
Guerra  Mundial. 

O  ideal  da  Teocracia,  padrão  de  sociedade  divinamente  inspirado, 
que  deve  ser  imposto  pela  fôrça,  fôrça  esta  que  realizará  o  controle 
totalitário  da  vida,  externa  como  interna,  de  todos  os  cidadãos,  continua 
a  operar  em  nossos  tempos.  A  sua  expressão  representativa  e  secular 
é  a  «Hispanidade»,  a  sua  expressão  religiosa  característica  é  o  «Cleri- 
calismo». 

«Hispanidade»  é  a  teoria  que  inspira  os  atuais  dirigentes  fascistas 
da  Espanha  e  da  Argentina.    Significa  ela  que  a  raça  Hispânica,  quando 


—  46  — 


guiada  pela  Igreja  Católica  Romana,  tem  a  missão  histórica  de  mostrar 
que  um  fiel  paternalismo  político  é  a  melhor  forma  de  governo  para  os 
seres  humanos.  A  unidade  que  foi  estabelecida  entre  a  Igreja  e  o 
Estado  de  Franco,  é  uma  das  mais  terríficas  coisas  na  história  da 
civilização. 

O  Clericalismo  é  a  busca  do  poder,  especialmente  do  poder  político, 
por  uma  hierarquia  religiosa,  busca  esta  sustentada  por  processos  secula- 
res e  com  finalidades  de  dominação  social.  A  expressão  suprema  do 
Clericalismo  é  o  Clericalismo  Romano.  A  hierarquia  católica  romana, 
considerando-se  a  si  como  a  única  verdadeira  Igreja  de  Jesus  Cristo, 
crê  que  lhe  foi  dada  a  divina  missão  de  trazer  a  sociedade  e  o  estado 
debaixo  do  completo  controle  da  Igreja,  como  instituição  visível.  Sò- 
mente  essa  relação  da  Igreja  com  o  Estado  pode-se  considerar  politica- 
mente ideal,  quando  o  Estado  está  disposto  a  aceitar  o  ponto  de  vista  da 
Igreja,  em  todos  os  assuntos  referentes  à  fé  e  à  moral,  à  verdade  e  ao 
erro.  O  Estado  exercerá  o  seu  poder  de  tal  modo  que  todos  os  indivíduos 
e  grupos  que  a  Igreja  considere  como  representantes  e  propagadores  do 
êrro,  não  desfrutem  de  plenos  direitos  e  privilégios  de  cidadãos,  mas 
sejam  antes  objetos  da  coerção  que  os  possa  levar  à  aceitação  da  ordem 
teocrática  estabelecida.  O  Clericalismo  está  fundado  sobre  um  ponto  de 
vista  inferior  do  homem,  mesmo  no  caso  do  cristão  e  das  suas  possibili- 
dades, e  sobre  um  ponto  de  vista  insustentável  da  Igreja,  compreendida 
como  Reino  de  Deus  visível,  autoritário  e  institucional  na  terra.  A  Igreja, 
em  seu  estado  contemporâneo,  representa  uma  aberração  crescente  da 
religião  cristã.  Tem  cessado  de  ser  de  Cristo  para  se  tornar  Sua  senho- 
ra. Ela  é,  como  se  verá  adiante,  um  dos  mais  sinistros  inimigos  da 
ordem  de  Deus. 

Mas  nada,  nem  mesmo  o  Clericalismo  romanista,  é  tão  dramático  e 
tão  universal  em  seus  esfôrços  para  constituir  pela  fôrça  uma  unidade 
terrestre,  um  paraíso  secular,  como  o  Comunismo  marxista.  Inspirado 
na  tese  de  que  na  inexorável  dialética  da  história  soou  a  hora  de  o 
homem  proletário  governar  o  mundo,  sob  a  liderança  da  Santa  Madre 
Rússia,  o  primeiro  e  mais  potente  dos  Estados  Comunistas,  move-se  o 
Comunismo  através  do  mundo  com  paixão  de  cruzada  e  sentido  apoca- 
líptico de  destino.  Consagrados  à  verdade  do  materialismo  histórico  e  do 
determinismo  económico,  e  considerando  todos  os  ideais  humanos  e 
sistemas  religiosos  como  criações  do  interesse  de  classes,  e  convencidos 
de  que  os  mesmos  estão  destinados  a  desaparecer  com  estabelecimento 
de  uma  sociedade  comunista,  o  Comunismo  tolera  a  religião  quando  ela 
se  mantém  estritamente  dentro  do  santuário  e  persegue-a  cruelmente 
quando  julga  que  está  desafiando  ou  influenciando  a  ordem  secular. 
Geopolíticos  técnicos,  possuidores  do  melhor  sistema  de  espionagem  do 
mundo,  rejeitando  todos  os  padrões  morais,  confiantes  em  que  «as  fôrças 
radiantes»  da  história  estão  com  êles,  estabeleceram  os  dirigentes  da 
Rússia  o  maior  movimento  imperialista  da  história  para  dominar  «todas 
as  nações  e  povos  e  línguas».  Tomeim  a  sério  o  famoso  dito  de  Sir 
Halford  Mackinder,  a  ingénua  fonte  da  moderna  geopolítica,  de  que. 


—  47  — 


«quem  governa  a  Europa  Oriental  domina  o  Coração  da  Terra:  quem 
governa  o  Coração  da  Terra  domina  a  Ilha  do  Mundo,  quem  governa  a 
Ilha  do  Mundo,  domina  o  Mundo».  A  Rússia  Comunista,  que  tem  em 
seu  poder  a  vasta  região  da  Europa  e  da  Ásia  que  no  inverno  está 
coberta  de  neve,  prossegue  à  conquista  da  Ilha  do  Mundo  —  a  Europa, 
a  Ásia  e  a  África.  Então,  a  não  ser  que  o  Novo  Imperialismo  seja 
frustrado,  seguir-se-á  o  domínio  do  mundo  e  o  reino  de  ferro  do  Anticristo! 

Mas  há  um  Plano  de  Deus,  como  também  um  plano  do  homem.  E 
Deus  é  o  Senhor!  No  fundo  da  Grande  Divisão,  com  as  suas  implicações 
e  as  suas  consequências,  e  as  tentativas  humanas  para  resolver  a  desor- 
dem do  mundo  sem  referência  à  verdadeira  fonte  dos  seus  males,  pas- 
samos a  considerar  a  Grande  Revelação. 


—  48  — 


CAPÍTULO  m 
o  SEGKÊDO  DE  DEUS  REVELADO 

Qual  a  solução  de  Deus  para  o  problema,  humano  e  cósmico,  criado 
pela  separação?  Qual  a  resposta  divina  à  busca  de  Unidade,  que  tantos 
«imperialismos  desesperados»,  tanto  de  sabedoria  como  de  poder,  têm 
tentado  dar,  na  história,  e  que  ainda  se  esforçam  por  dar,  em  nosso 
tempo?  Seja  Paulo  o  nosso  guia,  ao  seguirmos  o  seu  pensamento  através 
da  Carta  aos  Efésios. 

a)    Instrumentalidade  apostólica  para  a  solução. 

Primeiro,  paremos  no  limiar  da  Epístola  para  ouvir  como  êle  mesmo 
se  apresenta  ao  largo  círculo  ecuménico  a  quem  se  dirige.  Êle  é  «Paulo, 
apóstolo  de  Cristo  Jesus,  pela  vontade  de  Deus».  Como  «apóstolo»,  é 
homem  que  foi  chamado  e  comissionado  pelo  próprio  Jesus  Cristo.  O 
seu  título  especial  ao  apostolado  é,  segundo  nos  informa  em  outros  dos 
seus  escritos,  que  éle  tinha  «visto  o  Senhor»  e  tinha  «ouvido  a  Sua  voz» 
e  que  éle  recebeu  a  Sua  palavra  pessoal  de  ordem.  Conhecia  o  sentido 
da  vontade  de  Deus,  porque  Êle  tinha  querido  «revelar  Seu  filho  nêle> 
fGal.  1:16).  Era  homem  que  tinha  sido  «separado  para  o  Evangelho  de 
Deus»  (Rom.  1:1).  Paulo,  assim,  claramente  se  considerava  como  após- 
tolo de  Jesus  Cristo  em  sentido  muito  particular.  A  éle  não  sòmente 
fôra  confiada  a  mensagem  do  Evangelho,  como  aos  demais  apóstolos, 
mas  Deus  quis  que  as  implicações  completas  do  Evangelho,  a  que  éle 
chama  o  «Mistério»,  lhe  fossem  inteiramente  comunicadas  «por  meio  de 
revelação»  (Efes.  3:3).  Deus,  por  assim  dizer,  o  tinha  constituído  como 
apóstolo  muito  especial,  «mordomo»  ou  «Executor»  de  uma  revelação, 
até  então  escondida,  da  inteira  extensão  do  propósito  divino  em  relação 
ao  mundo  e  ao  homem.  Aquéle  que  tinha  sido  «confirmado  no  tempo 
devido»  e  que,  em  sua  própria  opinião  era  «o  menor  de  todos  os 
santos»  (3:8)  e  «indigno  de  ser  chamado  apóstolo»,  dirigiu  a  vanguarda 
apóstolica  em  sua  experiência  e  compreensão  da  mais  íntima  intenção 
e  do  alcance  cósmico  da  «vontade  de  Deus». 

Foi,  portanto,  da  humilhante  experiência  da  condescendência  de  Deus 
para  com  êle  e  de  um  profundo  discernimento  da  vastidão  da  miseri- 
córdia divina  para  com  a  humanidade,  que  Paulo  invocou  a  «graça»  e 
a  «paz»  sobre  aquéles  que,  à  sua  semelhança,  tinham-se  tornado  «santos», 
povo  separado  para  Deus  pela  sua  fé  em  Jesus  Cristo.    Que  a  graça,  o 


—  40  — 


imerecido  favor  de  Deus,  e  a  Sua  paz  que  trás  a  unidade  interior  à  alma, 
corra  para  êles,  do  Pai  e  do  Senhor  Jesus  Cristo. 

Depois  da  identificação  e  da  saudação,  um  vôo  arrebatador  leva  o 
escritor  ao  centro  da  «esplêndida  visão».  Êle  sobe  ao  empíreo,  onde 
se  realiza  a  grande  Revelação.  Nenhuma  outra  passagem  da  Bíblia 
combina  a  música  com  a  majestade  e  momentos  de  importância  na  mesma 
medida  que  os  doze  versículos  seguintes  (1:3-14).  Eu  nada  de  melhor 
posso  fazer  do  que  transcrever  nêste  ponto  a  descrição  que  destes  versos 
fêz  um  homem  que,  mais  do  que  qualquer  outro  do  seu  tempo,  penetrou  o 
espírito  da  Carta  aos  Efésios:  «Os  doze  versos  que  se  seguem  confun- 
dem a  nossa  análise.  São  um  caleidoscópio  de  luzes  ofuscantes  e  de 
cores  cambiantes.  A  princípio,  não  podemos  achar  umi  traço  de  ordem 
ou  método.  São  como  o  vôo  preliminar  da  águia,  subindo  e  rodando  em 
círculos,  como  se  por  um  pouco  ainda  estivesse  incerta  da  direção  que 
deve  tomar,  em  sua  liberdade  ilimitada.  Assim  o  pensamento  do  após- 
tolo se  projeta  além  dos  limites  do  tempo  e  se  eleva  acima  das  concep- 
ções materiais  que  põem  limites  aos  homens  comuns  e  coloca  êste  cami- 
nho e  o  outro,  numa  região  do  espírito,  esfera  celestial  sem  rumo,  ainda 
que  indicada,  exultando  simplesmente  nos  atributos  e  propósitos  de 
Deus . . .  Parece  estar  êle  sendo  arrebatado  pelo  tema,  não  sabendo 
bem  aonde  êste  o  conduzirá.  Começa  com  Deus,  a  bênção  que  vem  de 
Deus  aos  homens,  a  eternidade  do  Seu  propósito  do  bem,  a  glória  da 
sua  consumação.  Mas  êle  não  pode  pôr  em  ordem  a  sua  concepção  ou 
terminar  as  suas  sentenças.  Um  pensamento  exerce  pressão  sobre  outro 
e  não  será  recusado.  E  assim  segue  esta  grande  doxologia:  em  quem 
—  nÊle  —  nÊle  —  em  quem  —  em  quem  — .  Mas  quando  lemos  isto, 
repetidas  vêzes,  começamos  a  perceber  certas  grandes  palavras  voltando 
e  revolvendo-se  em  redor  de  um  ponto  central:  A  vontade  de  Deus  amol- 
dando-se,  para  algum  glorioso  resultado  em  Cristo,  êste  é  o  tema.  Uma 
só  frase  do  verso  nove  diz  tudo:    é  o  «mistério  da  Sua  vontade»,  (i). 

b)    O  Prelúdio  Divino 

A  realidade  do  Deus  soberano  e  gracioso  fixa  o  pensamento  de  Paulo. 
Também  expande  o  seu  coração  e  faz  brilhar  a  sua  imaginação.  Paulo 
não  está  dando  interpretação  do  Universo  rival  e  oposta  às  teorias  cor- 
rentes em  seu  tempo.  Não  se  estende  sobre  a  superioridade  da  religião 
de  Cristo  sobre  as  outras  religiões  rivais.  Não  argumenta  em  favor 
de  Deus  contra  todas  as  «agonizantes  tentativas  de  negá-lo».  Afirma, 
proclama;  antes:  adora.  Com  um  ato  de  adoração:  «Bendito  seja  o 
Deus  e  Pai  de  nosso  Senhor  Jesus  Cristo,  que  nos  tem  abençoado  com 
tôdas  as  bênçãos  espirituais  nos  lugares  celestiais  em  Cristo»,  começa 
êle  a  falar. 

Sugeriu-se  no  capítulo  sôbre  Perspectivas  que  esta  adoração  rapsó- 
dica  é  comparável  ao  prelúdio  de  uma  ópera,  abertura  que  contém  as 
sucessivas  melodias  que  se  vão  seguir.  É  exato.  Esta  é  a  nota  de 
clarim,  o  toque  de  alvorada  ao  romper  do  dia.    As  trevas  se  foram:  vai 


(1)    J.  Armifãge  Robinson,  op.  cit.,  p.  19. 


ser  anunciado  um  programa  de  acontecimentos  dramáticos.  Os  conse- 
lhos escondidos  de  Deus  tomaram-se  segrêdo  revelado.  Os  céus  desce- 
ram à  terra.  A  prova  disto,  é  que  uma  multidão  de  pessoas,  entre  as 
quais  Paulo  se  inclui,  têm  em  si  o  testemunho  de  que  chegou  uma  nova 
ordem.  Êles  realmente  foram  abençoados  «com  toda  a  bênção  espiritual 
nos  lugares  celestiais».  Não  que  tivessem  já  experimentado  o  alcance 
completo  destas  «bênçãos  espirituais»,  mas  que  o  Espírito  Santo  estava 
presente  em  suas  vidas  (1:14),  e  Êle  era  a  garantia  de  que  eventual- 
mente eles  iriam  compreender  a  extensão  completa  da  bênção  e  dela 
participar.  Bendigam  êles,  por  isso,  a  Deus,  que  tão  poderosamente  os 
abençoara.  Aquêle  que  tivesse  concedido  tão  inexauríveis  benefícios  aos 
homens,  era  digno  de  inexaurível  manifestação  de  louvor  da  parte  dos 
homens. 

Deus:  Que  havia  na  mente  e  no  coração  de  Paulo  quando,  em  êxtase 
de  adoração,  convidava  a  si  mesmo  e  a  todos  os  «santos»  a  «bendizer»  a 
Deus,  a  atribuir  bem-aventurança  ao  «Deus  e  Pai  de  Nosso  Senhor  Jesus 
Cristo»? 

O  fariseu  «batizado  em  Cristo»  tinha  em  sua  herança  religiosa  a 
visão  majestática  que  inspirou  Moisés  e  os  profetas.  O  seu  Deus  era  o 
Deus  de  Israel,  que  era  também  o  Deus  de  tôda  a  terra.  Êle,  a  quem 
Paulo,  noutra  carta  escrita  da  sua  prisão  em  Roma  chama  o  «meu  Deus» 
(Fili.  4:19),  era  o  Deus  vivo.  Não  era  um  entre  muitas  divindades  que 
pudessem  contrariar  a  Sua  ação.  A  sua  liberdade  não  era  limitada  pelo 
fado  cósmico.  Não  era  estrutura  da  mente  humana,  nem  podia  ser  des- 
crito por  tentativa  sintética  qualquer  de  fundir  atributos  considerados 
divinos.  Deus  podia  ser  conhecido  somente  pelas  Suas  obras,  por  aquilo 
que  tinha  feito  e  ainda  estava  fazendo.  Fora  da  Sua  atividade  não 
podia  absolutamente  ser  conhecido.  Era  sempre  sujeito,  nunca  objeto. 
Daquele  que,  no  Velho  Testamento,  de  Si  mesmo  falou:  «Eu  sou»  podia- 
se  somente  dizer  «Deus  é».  E  êste  Deus  que  é  eternamente,  visto  que 
não  é  o  produto  da  mente  humana  nem  depende  da  ação  dos  homens, 
não  pode  ser  nem  patrocinado,  nem  negociado,  nem  servir  de  instrumento 
da  política  humana.  É  tão  pouco  o  Deus  dos  políticos  e  dos  governa- 
dores do  mundo,  como  dos  «filósofos  e  sábios»  de  Pascal. 

Mas  o  Deus  de  Paulo,  conquanto  seja  soberano  em  Sua  majestade, 
é  muito  mais  do  que  simples  poder,  infinitamente  mais  do  que  poder 
arbitrário.  É  um  Deus  que  se  interessa  pelos  homens  e  gracioso  para 
com  êles.  Diferentemente  do  Deus  de  Aristóteles,  o  Seu  pensar  não  é 
meramente  feito  no  pensamento.  Tem  um  interêsse  mais  do  que  esté- 
tico pelo  mundo.  O  Deus  da  Carta  aos  Efésios,  não  é  mero  turista  e 
veranista,  para  quem  os  homens  são  apenas  cenário.  (2)  A  solicitude 
divina  é  expressa  por  Paulo  na  Epístola  aos  Romanos,  o  maior  dos  seus 
escritos  antes  da  sua  Carta  aos  Efésios.  Ali  Deus  aparece  como  sendo, 
em  sentido  muito  especial,  o  «Deus  de  Abraão».  O  Seu  interêsse  pelos 
homens  levou-O  a  «chamar»  Abraão,  a  estabelecer  um  «concerto»  com 


(2)    W.  H.  Auden. 


o  patriarca  de  Ur.  Abraão  «creu»  em  Deus.  Ao  mandado  de  Deus,  êste 
caldeu  que  habitava  junto  do  Eufrates,  em  centro  adiantado  de  civili- 
zação, tomou-se  imbuído  de  divina  «solicitude».  Ainda  que  já  estivesse 
muito  além  da  moderna  idade  de  jubilação  e  gozando  à  tarde  a  despreo- 
cupação da  vida  que  a  velhice  confere,  situação  que  Aristóteles,  em  sua 
Ética,  considera  como  traço  da  beatitude  humana,  ele  descalçou  as  alper- 
catas e  pôs  os  sapatos  nos  pés,  para  uma  jornada  cheia  de  aventuras  ao 
desconhecido.  Êle  se  tornou  um  alienígena  em  terra  estranha,  come- 
çando a  vida  de  novo  como  colonizador,  em  lugar  em  que  os  pastores 
nómades  cuidavam  dos  rebanhos.  Tomando  Deus  a  sério  quando  Êle 
lhe  prometeu  que  teria  um  filho  que  seria  o  homem  destinado  a  levar 
avante  o  pacto  de  Deus  de  abençoar  a  humanidade,  dispós-se  Abraão  a 
criar  família.  Como  «Pai  dos  crentes,  pioneiro  de  nova  ordem,  tornou- 
se  Abraão  para  o  fariseu  convertido,  agora  na  prisão  de  Roma,  o  homem 
que,  de  todos  quantos  existiram  antes  do  advento  de  Cristo,  expressou 
mais  perfeitamente  o  que  se  pode,  com  reverência,  chamar  a  solicitude 
aventurosa  de  Deus  para  com  o  género  humano.  Porque  o  idoso  exilado 
caldeu  no  planalto  palestiniano  foi,  nos  acontecimentos  da  vida,  o  sím- 
bolo e  corporização  désse  espírito  de  fronteira,  dêsse  avanço  propositado 
no  futuro,  que  tem  caracterizado  o  Deus  da  Bíblia  e  as  vidas  de  todos 
os  homens  semelhantes  a  Deus. 

O  Deus  de  Abraão  revelou-se  à  humanidade  na  «plenitude  dos  tem- 
pos» como  o  Deus  e  Pai  de  Jesus  Cristo,  Deus,  como  Pai  dos  Filhos  de 
Abraão,  isto  é,  do  povo  hebreu,  tornou-se  o  Pai  de  uma  Pessoa.  Essa 
pessoa  é  Seu  Filho,  em  um  sentido  único.  Esse  Filho  proclamou,  como 
ainda  antes  nunca  tinha  sido  proclamado,  que  Deus  era  supremamente 
Pai. 

Atrás  da  cortina  das  aparências,  controlando  o  movimento  da  história, 
como  fundamento  do  mistério  cósmico,  há  um  Pai.  O  reconhecimento 
de  que  a  Realidade  Fundamental  no  universo  é  paternal,  de  que  a  Pater- 
nidade de  Deus  é  verdadeira,  de  que  o  fato  de  Cristo  era  a  prova  e  o 
padrão  da  Paternidade  Divina,  levou  Paulo  a  lançar  o  seu  coração  em 
um  cântico  de  triunfo.  Podemos  bem  parar  um  momento  para  meditar 
no  que  realmente  significa  crer  que  há  um  Pai  Onipotente  no  Universo. 
Realmente,  crer  isto  e  senti-lo  é  exultar,  como  Paulo  exultou,  porque  o 
Universo  não  é  uma  grande  máquina.  Nêle  existem  leis;  uma  das  suas 
caracteristicas  é  a  ação  eficiente;  não  estão  ausentes  dêle  processos  ine- 
xoráveis e  cruéis;  mas  os  atributos  do  mecanismo  no  que  há  de  melhor, 
não  esgotam  o  que  o  Universo  é.  A  vontade  de  um  Pai  controla  a  má- 
quina, que  é  a  obra  da  Sua  infinita  sabedoria  e  o  instrumento  do  Seu 
propósito  paternal.  Essa  vontade  e  esse  propósito  estão  acima  da  neces- 
sidade física.  Não  são  limitados  por  dialética  ou  qualquer  determinismo 
da  história.  Porque  Deus  é  Pai,  o  mundo  não  é  orfanato.  Se  fôsse,  a 
bondade  humana  terrena  que  conhecemos  não  teria  o  seu  correspondente 
cm  uma  bondade  divina  fundamental.Os  homens  seriam  tais  como  órfãos 
cheios  de  decepção,  despertando  para  a  realidade  da  sua  solidão  cósmica. 
Mas,  porque  Deus  é  Pai,  muito  menos  a  história  humana  é  um  vasto 


—  52  — 


cemitério  de  valores  mortos.  Um  cemitério  pode  ser  um  lugar  de  exta- 
siante  beleza,  mas  a  beleza  estética  é  uma  compensação  pobre  para  a 
esperança  imortal.  Mas  há  um  Pai.  O  padrão  espiritual  fundamental 
é  o  de  um  Reino  paternal.  Portanto,  a  fôrça  não  é  o  direito.  As  almas 
não  são  para  venda.  A  paternidade  entre  os  homens,  e  tudo  quanto 
ela  significa,  baseia-se  na  realidade  de  uma  Divina  Paternidade  univer- 
sal. E  a  glória  desta  Paternidade  é,  como  Paulo  sugere,  que  o  Pai  uni- 
versal é  também  o  Pai  arquétipo.  Porque  Deus  é  «o  Pai  do  qual  tôda  a 
família  nos  céus  e  na  terra  toma  o  nome»  (Efes.  3:14,  15).  Tudo  o 
que  de  mais  nobre  existe  nas  afeições  humanas  tem  na  Paternidade  de 
Deus  a  sua  origem,  bem  como  é  nela  modelada. 

Êste  Deus  paternal  é  o  Deus  e  Pai  de  «nosso  Senhor  Jesus  Cristo». 
Paulo,  até  onde  sabemos,  nunca  viu  a  Jesus  de  Nazaré  na  carne.  Diz-se 
que  êle  não  se  interessou  pela  vida  anterior  de  Cristo,  porque  silencia  a 
respeito  dela.  É  verdade  que,  quando  se  refere  à  Figura  histórica,  é  para 
relacioná-la  com  o  Ser  Divino  «que  Se  humilhou  a  si  mesmo,  tomando  a 
forma  de  servo  e  foi  obedecido  até  à  morte»  (Fili.  2:8)  e  que,  pelo  grande 
poder  de  Deus,  foi  levantado  dos  mortos.  Recordemos,  porém,  que  a 
tarefa  de  Paulo  não  foi  escrever  uma  outra  vida  de  Cristo,  competindo, 
assim  com  as  dos  seus  companheiros  de  viagens.  Marcos  e  Lucas.  A 
sua  tarefa  era  proclamar  a  relação  de  Jesus  de  Nazaré  com  o  Cristo 
pré-existente  e  expor  a  significação  que  o  Cristo  Ressurreto,  que  o  tinha 
chamado  para  o  Apostolado,  tinha  para  com  Israel  e  para  com  a  Igreja, 
para  com  a  humanidade  e  para  com  o  cosmos.  E  assim  mesmo,  não 
podemos  escapar  ao  temo  interesse  que  Paulo  teve  pelo  Homem  da  Gali- 
léia.  Êle  acrescenta  mais  um  item  à  coleção  dos  ensinos  de  Jesus  regis- 
trados nos  Evangelhos,  quando  (segundo  Atos  20:35),  introduz,  certa 
ocasião,  as  «palavras  do  Senhor  Jesus»:  «Coisa  mais  bem-aventurada 
é  dar  do  que  receber».  Mas,  mais  importante  do  que  isso  é  o  próprio 
fato  de  que  o  mesmo  ensino  de  Paulo  sôbre  os  grandes  assuntos  espiri- 
tuais é,  como  os  estudos  mais  recentes  do  Novo  Testamento  têm  demons- 
trado, virtualmente  idêntico  ao  de  Jesus.  Não  sòmente  isto,  mas  a  sua 
própria  vida,  como  «servo  de  Jesus  Cristo»,  mais  se  aproxima  daquêle 
cuja  grande  glória  foi  que  Êle  «humilhou-Se  e  tomou  a  forma  de  servo», 
do  que  a  vida  de  qualquer  outro  que  já  tenha  vivido.  Ninguém  pode 
fugir  à  evidência  da  medida  em  que  a  «mente  de  Cristo»  estava  em 
Paulo  e  de  que  a  vida  concreta  de  Jesus  era  tão  normativa  para  o  seu 
pensamento  a  respeito  de  Deus  e  do  homem  como  deve  ser  para  todos 
os  cristãos. 

O  que  é  realmente  importante  é  reconhecer  que  o  homem  chamado 
Jesus  era  para  Paulo,  como  o  era  também  para  os  cristãos  primitivos, 
o  Messias  de  Israel,  o  Filho  de  Deus  Incarnado,  que  fôra  enviado  por 
Deus  para  missão  de  misericórdia  redentora,  que  era  igual  a  Deus  em 
Sua  vida;  em  cujos  sofrimentos  e  morte  Deus  estava  presente  e  a  Quem 
Deus  ressuscitou  dos  mortos  e  exaltou  até  à  sede  principal  do  poder 
universal.  Quando  Paulo  e  os  cristãos  primitivos  formularam  o  pri- 
meiro e  mais  básico  dos  credos:    «Jesus  Cristo  é  Senhor»  (Fili.  2:11), 


—  53  — 


aplicaram  a  Jesus  um  termo  que,  na  Septuaginta,  se  aplicava  a  Jeová, 
o  Deus  de  Israel,  e  que,  entre  os  romanos,  era  empregado  para  designar 
o  César  imperial.  O  Deus,  cujo  pensamento  inspirava  a  Paulo  uma  rap- 
sódia, era  o  Deus  cuja  natureza  como  Pai  eterno  se  demonstrou  supre- 
mamente na  vida,  no  ensino,  na  morte,  na  ressurreição  e  exaltação  de 
Jesus  Cristo,  o  Senhor,  e  cujo  propósito  soberano  e  graciocíssimo  se 
tornaram  manifestos  em  Jesus  Cristo  e  por  intermédio  dêle.  Assim  foi, 
tanto  por  causa  do  que  Jesus  Cristo  fêz  e  também  porque  os  «fiéis  em 
Cristo  Jesus  eram  abençoados  por  Deus  «com  todas  as  bênçãos  espiri- 
tuais nos  lugares  celestiais». 

A  magnitude  completa  e  as  implicações  desta  «bênção»  são  o  tema 
do  que  imediatamente  segue  este  «prelúdio»  magnificente.  Neste  ponto 
basta  dizer-se,  antes  de  passarmos  à  revelação  concreta  do  propósito 
divino,  que  «tôdas  as  bênçãos  espirituais  nos  lugares  celestiais»,  segundo 
a  concepção  de  Paulo,  incluem  e  levam  tudo  o  que  se  entende  nos  Evan- 
gelhos Sinópticos  como  «Reino  de  Deus»  e  a  «Nova  Idade»  e  as  suas 
bênçãos,  que  vieram  com  poder  em  Jesus  Cristo.  Inclui  o  que  o  próprio 
Paulo  quer  dizer  na  Carta  aos  Romanos  por  «Justiça  de  Deus»,  aquela 
nova  ordem  de  existência  que  veio  ao  mundo  com  Jesus  Cristo  e  que, 
por  intermédio  dÊle  é  comunicada  às  almas  dos  homens  por  Êle. 

Com  isto,  estamos  prontos  a  considerar  o  vasto  esquema  de  recon- 
ciliação, ato  paternal  da  parte  de  Deus  e  da  Sua  vontade  redentora  de 
unidade,  que  Êle  propôs  em  Cristo,  pela  qual  o  poder  do  amor  triunfou 
onde  tinha  falhado  o  amor  do  poder. 

c)    O  «Mistério  da  Sua  Vontade» 

O  estribilho  da  mensagem  dirigida  por  Paulo  aos  cristãos  espa- 
lhados pelo  mundo  romano  era  que  o  segrêdo  do  propósito  de  Deus,  até 
aqui  escondido  de  tôda  a  humanidade,  fôra  agora  revelado.  O  objetivo 
da  sua  carta  ecuménica  era  informá-los  de  que  tinha  brilhado  uma  luz 
nas  trevas  da  condição  do  homem  e  de  que  o  enigma  trágico  da  vida 
humana  tinha  sido  decifrado  por  uma  Revelação  Divina.  A  esta  reve- 
lação, ou  antes  ao  Segrêdo  Revelado,  chamou  êle  o  «Mistério».  Êle, 
Paulo,  fôra  por  Deus  constituído  como  «mordomo»  ou  «executor»  dêste 
«Mistério»,  para  tomar  de  todos  os  homens  conhecido  o  «plano»,  «o 
plano  do  mistério,  que  desde  os  séculos  esteve  oculto  em  Deus,  que  tudo 
criou».  (Efes.  3:9).  O  cumprimento  desta  função  especial  como  «Exe- 
cutor», de  que  tinha  sido  encarregado,  para  ver  se  o  conhecimento  do 
«Mistério»  era  difundido  pelo  mundo  inteiro,  Paulo  o  relacionou  intima- 
mente com  o  seu  ofício  de  «Ministro  do  Evangelho»,  a  quem  Deus  tinha 
separado  «para  pregar  aos  gentios  as  incompreensíveis  riquezas  de  Cristo» 
(3:7,  8).  Para  êle  e  para  a  sua  missão  apostólica,  o  «Mistério»,  o  «Evan- 
gelho» e  «Cristo»,  estão  inseparavelmente  unidos. 

São  apropriadas  algumas  observações,  antes  de  irmos  mais  adiante, 
a  respeito  do  têrmo  «Mistério»,  como  é  aqui  empregado  por  S.  Paulo.  É 
importante  ter  em  mente  que  o  seu  uso  do  têrmo  nada  tem  que  ver  com 
o  emprêgo  moderno  do  mesmo.  Hoje  em  dia,  significamos  por  «Mis^ 
tério»  alguma  coisa  estranha,  inescrutável,  enigmática,  algo  que  neces- 


—  54  — 


sita  de  ser  decifrada  e  para  o  qual  é  imprescindível  uma  chave.  Assim 
é  que  falamos  acerca  de  «novelas  de  mistério».  Ora,  Paulo  significava 
por  «Mistério»  exatamente  o  contrário  de  nós.  Para  êle  «mistério»  era 
um  segredo,  antes  escondido  e  agora  desvendado.  O  «Mistério»,  por- 
tanto era  o  «segredo  revelado»,  uma  verdade  divina  supremamente  im- 
portante, que  Deus  tinha  antes  mantido  em  segredo,  mas  agora  tomada 
conhecida. 

É  natural  que  se  deva  procurar  alguma  conexão  entre  o  interêsse 
que  Paulo  tinha  no  «Mistério»  e  os  cultos  do  «Mistério»,  que  eram 
comuns  no  seu  tempo.  O  colapso  das  velhas  religiões  da  Grécia  foi  acom- 
panhado da  invasão  dos  cultos  orientais.  Com  a  desintegração  das 
estruturas  tradicionais  das  crenças  religiosas  e  dos  costumes  sociais,  e 
com  o  crescimento  do  espírito  cético  e  indagador,  os  homens,  então 
como  agora,  começaram  a  sentir  intensa  solidão  espiritual.  Tinham  sido 
devolvidos  a  si  mesmos  e  estavam  dispostos  a  tôda  a  sorte  de  experiên- 
cia religiosa.  O  culto  do  «Mistério»  era  uma  espécie  de  «Franco-Maço- 
naria».  Seguindo  purificações  apropriadas  e  ritos  sacramentais,  os  devo- 
tos eram  iniciados  em  certos  conhecimentos  esotéricos  e  recebiam  a 
promessa  da  imortalidade.  Mas  o  «Mistério»  de  que  Paulo  era  «exe- 
cutor» não  convidava  apenas  uns  poucos  a  se  iniciar  no  que  era  esotérico. 
Era  um  convite  a  todos  os  homens  para  a  proclamação  do  que  tinha  sido 
desvendado  e  tornado  público  e  que,  por  essa  razão,  assumia  a  condição 
de  conhecimento  comum.  Esses  iniciados  nos  «mistérios»  eram  obriga- 
dos a  não  revelarem  os  segredos  do  culto;  os  cristãos,  pelo  contrário, 
estavam  obrigados  a  comunicar  a  todos  o  «Segrêdo  Desvendado». 

Não  há  evidência  de  que  o  uso  que  Paulo  fêz  do  têrmo  «Mistério» 
devesse,  ao  menos  o  nome,  aos  cultos  em  voga.  Parece  antes  que  êle 
o  derivou  de  fontes  puramente  judáicas.  No  «Livro  de  Enoque»,  por 
exemplo,  que  esteve  perdido  durante  longo  tempo,  e  do  qual  grandes 
porções  agora  foram  restauradas,  a  palavra  «mistério»  é  usada  repe- 
tidamente dos  «segredos  divinos  que,  certa  ou  erradamente,  chegaram 
ao  conhecimento  do  homem».  Por  outro  lado,  resta  pouca  dúvida  de 
que  Paulo,  com  agudo  senso  das  situações  humanas,  muito  deliberada- 
mente usou  um  têrmo  que  estava  em  voga  e  lhe  infundiu  um  novo  con- 
teúdo de  desafio. 

Na  Carta  aos  Efésios  estão  expostas  três  fases  do  «Mistério»..  A 
primeira  é  a  fase  vertical.  Deus,  «em  tôda  a  sabedoria  e  prudência», 
diz  Paulo,  «nos  descobriu  o  mistério  da  Sua  vontade,  segundo  o  Seu 
beneplácito,  que  propusera  em  Si  mesmo,  de  forma  a  congregar  em 
Cristo  tôdas  as  coisas,  na  dispensação  da  plenitude  dos  tempos,  tanto 
as  que  estão  nos  céus  como  as  que  estão  na  terra  (1:8-10).  Isto  signi- 
fica que  Deus  constituiu  a  Jesus  Cristo  como  centro  unificador  de  um 
vasto  esquema  de  unidade,  pelo  qual  as  ordens  celestes  e  terrestres, 
separadas  como  agora  estão  por  um  grande  abismo  entre  o  sobrenatural 
e  o  natural,  e  pelo  abismo  ainda  maior  do  santo  e  do  pecaminoso,  serão 
de  novo  reunidas  em  uma  única  e  unida  Comunidade.  Nesta  unidade 
transcendental  em  que  tôda  a  criação  de  Deus  será  «congregada  em 


—  55  — 


Cristo»,  será  perfeitamente  feita  a  vontade  de  Deus.  O  Seu  Reino  terá 
vindo  no  sentido  mais  completo.  A  Divisão  terá  sido  totalmente  desfeita. 

A  segunda  fase  pode  ser  designada  como  a  fase  horizontal  ou  histó- 
rica. Como  prelúdio  da  unidade  horizontal,  a  grande  divisão  que  a 
história  conheceu,  a  separação  entre  judeus  e  gentios,  desaparecerá. 
Esta  eliminação  também  se  realiza  em  Cristo.  É  tarefa  de  Paulo,  como 
êle  a  considera,  proclamar  o  «Mistério  de  Cristo»,  do  qual  êle  tem  espe- 
cial introspecção,  segundo  o  qual  os  «gentios  são  coerdeiros,  membros 
de  um  mesmo  corpo,  e  participantes  da  promessa  em  Cristo  pelo  Evan- 
gelho» (3:4-6).  A  constituição  de  uma  única  família  humana,  entre 
povos  historicamente  separados  um  do  outro,  torna-se  possível,  como 
veremos  mais  adiante,  porque  Jesus  Cristo  destruiu  a  «inimizade»  ou  a 
«hostilidade»  que  os  conservava  separados  um  do  outro.  Os  judeus  e 
os  gentios  reconciliaram-se,  mutuamente,  porque  ambos  se  reconciliaram 
com  Deus.  Por  meio  de  Cristo,  tornaram-se  membros  do  mesmo  Corpo: 
o  novo  homem,  a  nova  humanidade,  o  novo  Israel,  que  é  constituído  pela 
Igreja  Cristã.  O  sentido  é  claro:  que  Deus  Se  propõe  relacionar  consigo 
mesmo  em  uma  grande  família  povos  que  tinham  estado  separados  por 
ódios  históricos,  por  diferenças  culturais  e  condições  sociais.  O  unifi- 
cador é  Cristo  e  o  princípio  unificador  é  o  «Evangelho». 

A  terceira  fase  do  «Mistério»  é  que,  em  resultado  da  ação  transfor- 
madora e  unificadora  da  Igreja  na  história,  espíritos,  tanto  bons  como 
maus,  superiores  aos  espíritos  humanos,  adquirirão,  contemplando  esta 
atividade  da  Igreja,  a  sua  mais  profunda  introspecção  da  sabedoria,  a 
«multiforme  sabedoria»  de  Deus  (3:10).  Não  existe  mais  sublime  pen- 
samento na  Carta  aos  Efésios  e  em  tôda  a  Escritura  do  que  êste.  A 
história  da  Igreja  Cristã  torna-se  uma  escola  que  confere  graus  a  anjos. 
Pelo  estudo  do  Corpo  de  Cristo,  as  inteligências  superiores  ao  homem 
recebem  novas  luzes  sôbre  introspecção  da  natureza  divina.  Chegarão 
a  compreender  coisas  que  lhes  tinham  sido  inescrutáveis,  na  dispensação 
de  Deus  com  os  homens,  e  adquirem  uma  visão  do  supremo  esplendor  e 
das  dimensões  do  propósito  do  Criador  em  Cristo.  E  o  que  contemplam 
não  é  a  espécie  de  sabedoria  que  consiste  em  adquirir  idéias  que  sempre 
estiveram  lá;  contemplam  a  operação  de  poder  que  se  torna  a  fonte  de 
novas  idéias.  Porque  o  poder  que  opera  na  igreja  e  a  sabedoria  que  se 
manifesta  nas  operações  desse  poder,  ultrapassam  de  muito  em  signi- 
ficação tôdas  as  manifestações  seculares  de  sabedoria  e  de  poder  de  que 
o  homem  tem  disposto  para  tratar  do  problema  do  universo  dividido. 

A  vontade  de  Deus  para  a  unidade  é,  desse  modo,  a  coisa  mais  central 
na  história  cósmica  e  humana.  Ninguém  deve  atrever-se  a  ignorar  êste 
divino  impulso,  porque  de  tudo  o  que  o  homem  intenta,  que  vier  de  encon- 
tro à  vontade  divina  malogrará  completamente  e  se  aniquilará  por  ela. 
Quanto  aos  cristãos,  é  importante  que  explorem  no  grau  mais  completo  a 
natureza  e  as  implicações  desta  unidade  que  Deus  busca,  êste  plano  de 
vida  que  Êle  está  estabelecendo. 

Qual  é  a  natureza  desta  unidade  que  é  executada  pelo  poder  de  Deus 
e  é  supremamente  expressiva  da  Sua  sabedoria?  A  unidade  que  Deus 


—  56  — 


quer  é  uma  unidade  religiosa.  Uma  unidade  religiosa  é  uma  unidade 
em  que  espíritos  criados  vivem  em  perfeita  harmonia  com  a  vontade  do 
Criador.  Esta  é  a  única  espécie  de  unidade  que  tem  sentido  no  pensa- 
mento da  Bíblia.  Esta  é  a  unidade  central  no  pensamento  de  Paulo  e 
que  constitui  o  grande  tema  da  Carta  aos  Efésios.  O  grande  problema 
da  humanidade  não  é  alcançar  clareza  intelectual  na  interpretação  do 
Universo.  Por  assim  dizer,  o  problema  não  filosófico.  Nem  é  politico 
tão  pouco  achar  algum  princípio  de  utilidade  ou  de  ajuste  que  constitua 
acordo  apropriado  entre  os  homens.  Ainda  é  menos  problema  estético, 
o  de  introduzir  tal  beleza  no  quadro  do  Universo  que  fizesse  os  homens 
esquecer  a  sua  fealdade,  ou  produzir,  por  meio  de  certas  criações  artís- 
ticas uma  limpeza  de  emoção  humana,  que  imunizasse  o  homem  do  seu 
interesse  a  respeito  da  tragédia  do  mundo.  O  problema  real  é  constituir 
uma  unidade  espiritual  pela  qual  os  homens,  unidos  em  sua  fidelidade  a 
Deus,  lealmente  se  devotem  uns  aos  outros. 

Tal  unidade  não  é  unidade  abstrata.  É  antes  uma  comunidade, 
aliança  de  espíritos  humanos  unidos  a  Deus  e  uns  aos  outros.  O  que 
Deus  quer,  portanto,  não  é  mera  unidade,  mas  comunidade.  E  a  comu- 
nidade que  Deus  quer  não  é  aquela  sociedade  sem  classes  tal  como  a  com 
que  os  marxistas  contam,  que  expressaria  o  último  grau  de  evolução,  mas 
em  que  faltará  totalmente  dimensão  espiritual.  A  comunidade  que  Deus 
quer  é  comunhão  de  amor,  não  constituída  por  evolução  na  história, 
mas  pela  intervenção  de  Deus  na  história.  É  uma  comunidade  constituída 
por  Jesus  Cristo,  que,  pelo  que  Êle  foi  e  pelo  que  fez,  reuniu  em  amor  o 
homem  a  Deus  e  o  Homem  ao  homem.  Nesta  comunidade  reinará  o 
amor,  e  o  princípio  hierárquico,  o  princípio  da  reverência  para  com  a 
verdadeira  superioridade,  será  realidade.  A  verdadeira  finalidade  da 
história,  pois,  o  supremo  objetivo  que  Deus  quer,  não  é  a  vitória  da  sabe- 
doria em  uma  corporação  de  eruditos,  nem  a  vitória  do  poder  em  uma 
oligarquia  fascista,  nem  ainda  a  imposição  de  uma  sociedade  comunista 
sem  classes,  da  qual  será  excluída  tôda  obediência  hierárquica.  A  von- 
tade de  Deus  a  respeito  da  comunhão  busca  uma  comunidade  de  amor, 
um  plano  de  vida  em  que  Êle  reinará  em  todo  o  coração  humano  e  em 
tôdas  as  relações  humanas. 

E'  claro,  porém,  que  uma  comunidade  tal  sòmente  poderá  ser  cons- 
tituída mediante  uma  mudança  da  natureza  humana.  Marx  estava  certo 
quando  manteve,  contra  a  filosofia  tradicional,  que  a  verdadeira  tarefa 
não  é  entender  o  mundo,  mas  mudá-lo.  Contudo,  estava  errado  quando 
pensou  que  mera  mudança  na  estrutura  e  constituição  da  sociedade 
humana  era  em  si  mesma  o  acontecimento  revolucionário  de  que  se 
necessitava.  Marx  não  foi  radical,  nem  revolucionário  bastante.  A 
mudança  real  que  se  precisa  alcançar,  a  mudança  que  a  vontade  de 
Deus  invencivelmente  procura,  é  mudar  o  homem  do  egocentrismo  e  do 
classecentrismo  para  o  teocentrismo.  Mas  isto  significa,  não  revolução, 
mas  salvação.  Significa  redenção,  a  libertação  do  homem  do  poder 
e  dos  efeitos  da  sua  vontade  rebelde,  egoística,  deificadora.  A  comuni- 
dade, no  sentido  mais  amplo,  salvação  no  sentido  mais  completo,  são 


—  57  — 


escatológicas  em  caráter,  isto  é,  elas  somente  poderão  ser  realizarias  intei- 
ramente no  fim  da  história  como  nós  a  conhecemos.  Mas,  até  que  a 
<í^justiça  e  a  paz  se  beijem»,  até  que  Deus  estabeleça  o  «Seu  Reino  que 
não  pode  ser  abalado»,  duas  coisas  serão  verdadeiras.  A  primeira  ó 
esta:  a  presença  do  amor,  operando  em  uma  limitada  comunidade  de 
amor,  será  uma  fôrça  supremamente  criativa  e  preservativa  na  sociedade 
humana.  E  a  segunda:  «O  Evangelho  da  vossa  salvação»,  que  é  tam- 
bém o  «Evangelho  da  glória  do  Deus  bendito»,  tanto  em  sua  proclamação 
verbal  como  em  sua  expressão  vital,  será  o  interêsse  principal  de  todos 
os  que  conhecem  o  «Mistério»  e  por  êle  vivem. 

d)    O  Amor  Eterno  e  Invencível. 

É  necessário  agora  que  consideremos  a  fôrça  que  leva  a  vontade 
divina  à  comunhão,  o  propósito  de  Deus  de  constituir  em  Cristo  uma 
«Comunidade  ou  Reino  Unido  dos  Céus  e  da  Terra»,  propósito  que  é  des- 
vendado no  «Mistério».  Essa  fôrça  é  o  amor,  o  amor  de  Deus,  santo, 
soberano,  o  apaixonado  amor  de  Deus.  O  amor  de  Deus  é  um  poder  im- 
pulsionador, por  detrás  do  movimento  histórico  e  cósmico  para  a  uni- 
dade espiritual . 

O  amor  de  Deus,  que  ocupa  lugar  tão  central  na  Epístola  aos  Efésios 
e  que  constitui  o  tema  central  da  Bíblia  como  um  todo,  é  um  interêsse 
apaixonado  e  uma  devoção  para  com  pessoas  não  naturalmente  amáveis, 
nem  amoráveis,  em  si  mesmas,  pessoas  essencialmente  indignas  e  peca- 
minosas. É  ágape,  o  caminho  de  Deus  para  o  homem,  por  virtude  do 
qual  Deus  tem  saudades  do  homem,  procura  o  seu  bem,  esforça-se  por 
libertá-lo  de  sua  rebelião  pecaminosa,  torna-se  Seu  Salvador  e  o  faz  Seu 
filho.  Isto  é  alguma  coisa  completamente  diferente  do  que  os  gregos 
chamavam  Eros.  Eros  era  uma  aspiração  por  tudo  que  era  natural- 
mente amável  e  belo,  devoção  a  isso.  Eros  fugia  da  presença  do  feio,  do 
indigno,  do  pecaminoso  e  do  desleixado;  êle  não  podia  inspirar  paixão 
ou  intêresse. 

Pensando  nas  pessoas  que  estavam  «mortas  em  delitos  e  pecados» 
lascivos  nos  corpos  e  fúteis  na  mente,  vivendo  sem  esperança  e  separa- 
dos de  Deus,  Paulo  afirma  que  Deus,  com  amor  «predestinou-nos  para  ser- 
mos Seus  filhos  por  Jesus  Cristo  (Efes.  1:5).  Êle  provocou  com  carícias 
tais  pessoas  para  interêsses  e  atitudes  que  naturalmente  não  tinham; 
deu-lhes  uma  condição  que,  naturalmente,  não  mereceram.  Quando 
Deus,  portanto,  fêz  de  homens  perdidos  «Seus  filhos»,  esta  filiação  foi  dom 
concedido  a  pecadores  e  não  coroa  conferida  a  vencedores. 

Mas  o  amor  de  Deus  para  com  os  homens  a  quem  fêz  «filhos»,  não 
teve  início  na  história,  nem  no  tempo  da  vida  dos  «filhos»:  «Esco- 
Iheu-os  em  Cristo  «antes  da  fundação  do  mundo»;  «Destinou-os  ou  «pre- 
destinou-os»  para  serem  «filhos»,  «segundo  o  beneplácito  da  Sua  vontade» 
(1:5). 

Aqui  nos  aproximamos  de  uma  questão  mui  grande  e  importante  a 
respeito  de  que,  em  algumas  épocas,  travaram-se  amargas  controvérsias, 
na  Igreja  Cristã.  E'  a  questão  da  Eleição  de  Deus  ou  da  Divina  Predestina- 


—  58  — 


ção.  E'  importante  que  demos  alguma  atenção  a  este  assunto.  O  contexto 
da  Carta  aos  Efésios  é  boa  moldura  e  em  que  para  estudar  tal  doutrina 
o  problema  nêle  envolvido  é  de  interesse  básico.  De  fato,  o  problema 
geral  da  filosofia  da  história  e  o  problema  particular  do  determinismo 
histórico  dão  grande  atualidade  a  tôda  questão  do  que  pode  ser  chamado 
Eleição  da  Graça. 

O  problema  essencial,  naturalmente,  é  este:  —  Como  é  que  um 
erande  propósito  espiritual  será  infalivelmente  ou,  se  achardes  melhor, 
inexoravelmente  alcançado,  na  história,  sem  que  seja  violada  a  liber- 
dade humana?  Como  será  atingida  a  finalidade  divina  ou  cósmica  no 
mundo  dos  homens,  em  que  são  envolvidos  o  destino  e  a  cooperação  dos 
homens,  sem  serem  os  homens  autómatos,  isto  é  sem  que  sejam  meros 
peões  de  um  jôgo  cuja  conclusão  não  depende  da  sua  vontade?  Tal 
problema  é  tanto  para  a  filosofia  como  para  a  religião. 

Examinemos  primeiramente  a  concepção  da  liberdade.  Quando  ó 
cue  os  homens  são  verdadeiramente  livres?  Os  homens  não  são  livres 
quando  a  sua  ação  é  determinada  por  mera  fantasia  ou  capricho,  pois  que, 
cm  tal  caso,  a  fantasia  ou  capricho  seriam  os  seus  senhores.  Os  homens 
tão  poucos  são  livres  quando  uma  autoridade  de  qualquer  espécie  que  seja 
os  força  a  fazer  alguma  coisa  cuja  retidão  essencial  ou  importância  não 
lhes  é  clara.  Na  verdadeira  liberdade,  duas  condições  têm  de  ser  preen- 
chidas. Uma  delas  é  a  legitimidade  ou  valor  universal  daquilo  que  se 
pede  a  uma  pessoa  aceitar;  a  segunda  é  a  voluntariedade  pessoal  com 
que  a  pessoa  pode  agir.  Tal  liberdade  é  refletida  nas  linhas  do  hino: 
«Faze  de  mim,  Senhor,  Teu  servo,  e  então  livre  serei».  Isto  é  o  reco- 
nhecimento do  fato  de  que  a  verdadeira  liberdade  é  uma  submissão  ao 
divino.  Não  existe  servidão  quando  o  espírito  humano  se  torna  o  agente 
voluntário  e  alegre  do  Infinito  e  do  Santo.  «Eu  de  muito  bom  grado 
seria  para  a  bondade  Eterna  o  que  a  sua  própria  mão  é  para  im  homem». 
Aí  tendes  uma  aspiração  exuberante  de  ser  agente  voluntário,  ainda 
que  inevitável,  dos  graciosos  propósitos  de  Deus. 

Eis  aqui  um  assunto  em  que  os  marxistas  revelam  grande  visão. 
Para  o  marxista,  liberdade  consiste  em  «reconhecer  uma  necessidade 
superior».  Esta  necessidade  superior  é,  naturalmente,  o  «Determinismo 
Económico»,  e  a  inteira  visão  universal  está  ligada  a  êle.  Mas  a  coisa 
importante  de  que  se  deve  lembrar  é  que  nenhum  comunista  fiel  se 
considera  servo.  Está  cumprindo,  mesmo  quando  se  submete  ao  jugo 
de  ferro  da  ditadura,  uma  expressão  inevitável,  ainda  que  temporária, 
segundo  êle  espera,  das  «forças  radiantes  do  Universo»,  Quão  muito 
mais  gloriosamente  livre  é  um  homem  que,  quando  admitido  como  filho 
na  família  de  Deus,  aceita  o  jugo  que  Deus  impõe,  para  promover  a 
vontade  paternal  de  comunhão  e  assim  gozar  da  «gloriosa  liberdade  dos 
filhos  de  Deus», 

Mas  a  principal  dificuldade  nas  mentes  de  alguns  é  que  uma  «Eleição 
da  Graça»  ou  «predestinação  de  amor»,  pareceriam  envolver  seleção 
arbitrária  da  parte  de  Deus  de  algumas  pessoas  favorecidas  em  detri- 
mento de  outras.    Observe-se  que  Paulo  apresenta  a  idéia  da  Eleição 


—  59  — 


de  Deus  «antes  da  fundação  do  mundo»,  a  fim  de  explicar  aos  « santos 
a  quem  escrevia,  como  se  realizou  a  experiência  que  éles  tiveram.  O 
que  lhes  havia  acontecido  não  era  mera  casualidade.  A  nova  esperança 
dêles  em  Cristo  não  era  ilusão,  porque  a  vida  e  o  destino  déles  estavam 
incluídos  no  eterno  plano  de  Deus,  que  nêles  se  estava  realizando.  Deus 
tinha  pensado  nêles,  antes  que  fossem  nascidos  e  mesmo  antes  de  terem 
sido  criados  os  mundos.  Por  isso,  tenham  êles  bom  ânimo.  Era  como 
se  Paulo  quisesse  ensinar-lhes,  a  cada  um  dêles,  a  dizer  a  Deus: 

«Tu  antecipaste  a  minha  alma 

E  sempre  me  amaste». 

Deve-se  lembrar,  também,  de  que  João  Calvino,  cujo  nome  é  asso- 
ciado, em  muitos  espíritos,  com  uma  concepção  que  tem  ligação  apenas 
arbitrária  com  a  doutrina  da  predestinação  divina,  não  a  apresenta 
antes  do  terceiro  livro  das  suas  Institutas  da  Religião  Cristã.  E  quando 
o  faz,  não  é  em  conexão  com  a  sua  doutrina  de  Deus  mas  com  a  doutrina 
do  homem  cristão.  Como  Paulo,  êle  relaciona  a  Eleição  de  Deus  com  a 
experiência  cristã  de  regeneração,  como  seu  antecedente  fundamental. 
No  seu  Catecismo  das  Crianças,  absolutamente  não  aparece  esta  doutrina, 
considerada  por  êle  como  alimento  forte  para  adultos.  Foi  somente 
como  resultado  da  amarga  controvérsia  a  respeito  do  plano  divino  de 
salvação  é  que  fêz  com  que  a  doutrina  da  Predestinação  tivesse  tomado, 
no  pensamento  de  Calvino,  a  preeminência  com  que  costuma  ser  asso- 
ciada ao  seu  nome.  A  escolástica  protestante  de  tempos  posteriores  fêz 
o  que  Calvino  não  tinha  feito:  tratou  da  Predestinação  ao  discutir  a 
doutrina  de  Deus. 

Mas  aqui  estamos,  tratando  de  Paulo  e  da  Carta  aos  Efésios.  No 
que  se  refere  ao  pensamento  de  Paulo  no  mais  amadurecido  dos  seus 
escritos,  êstes  são  os  fatos  salientes:  Os  «Santos»,  a  quem  se  dirige, 
foram  escolhidos  «em  amor».  Ora  amor  não  pode  pensar  no  mal  nem 
praticá-lo.  Onde,  pois,  está  o  amor  por  detrás  da  seleção,  estão  excluí- 
dos, tanto  o  fatalismo  da  necessidade  como  a  arbitrariedades  do  poder. 
Onde  o  amor  é  supremo,  não  há  lugar  para  o  destino  ou  para  o  capricho. 

Além  disso,  foram  «escolhidos  em  Cristo»  (1:4);  Deus  ordenou  que 
Jesus  Cristo  fôsse  tanto  o  Salvador  como  o  centro  de  tôda  unidade  espi- 
ritual, tanto  no  tempo  como  além  do  tempo.  Cristo  não  foi  um  simples 
instrumento  da  eleição  divina;  os  homens  foram  escolhidos  nÊle.  Karl 
Barth  está  perfeitamente  certo  quando,  em  sua  interpretação  da  dou- 
trina clássica  da  Predestinação,  fazendo-a  tanto  mais  escriturística,  e 
assim  tão  m.ais  cristã,  afirma  que  não  existe  decreto  divino  absoluto  fora 
de  Jesus  Cristo.  Falando  paradoxalmente,  Cristo  é,  simultaneamente, 
o  Deus  que  escolheu  e  o  Homem  que  foi  escolhido.  Ser  «escolhido  em 
Cristo»,  significa,  pois,  ser  escolhido  para  ser  salvo  por  Aquele  que  não 
exclui  a  ninguém  que  a  Êle  venha.  Ninguém  é  excluído  da  eleição  de 
Deus  em  Cristo,  senão  os  que  deliberadamente  se  excluem. 

Mas  Paulo  e  os  seus  leitores  também  foram  escolhidos  para  serem 
«santos  e  inculpáveis».  Deus  queria  que  fossem  verdadeiramente  seme- 
lhantes a  Jesus  Cristo,  em  Quem  foram  escolhidos.    Ai  dêles,  se  alguma 


—  60  — 


vez  pensassem  que  deviam  «pecar  para  que  abundasse  a  graça»  ou  que 
outra  coisa  qualquer  que  não  a  bondade  fôra  o  fruto  que  Deus  procurava 
em  suas  vidas.  A  semelhança  dêles  com  Cristo  não  devia  manifestar-se 
meramente  em  espiritualidade  interior  e  virtudes  passivas.  Foram  es- 
colhidos por  Deus  para  as  «boas  obras»  de  natureza  visível  e  externa. 
Quer  isto  dizer  que  Deus  escolhe  os  homens  não  para  fazer  dêles  crianças 
mimadas,  fariseus  cristãos  ou  intoleráveis  pedantes.  Êle  queria  gente 
que  fizesse  as  Suas  «obras»  e  levasse  avante  a  Sua  obra. 

Em  uma  palavra,  foram  escolhidos  para  o  «louvor  da  Sua  glória» 
(Efes.  1:12).  A  grande  finalidade  do  amor  eterno  e  invencível  de  Deus 
foi  formar  homens  que  fossem  realmente  semelhantes  a  Deus,  isto  é, 
homens  que  aspirassem  à  semelhança  em  Deus  e  com  Deus.  A  ambição 
constante  dêles  seria  «glorificar»  a  Deus,  isto  é,  torná-Lo  manifesto  em 
suas  palavras  e  feitos,  lutando  por  serem  «perfeitos  como  seu  Pai  Celes- 
tial é  perfeito». 

e)    O  Órgão  Histórico  de  um  Propósito  Eterno. 

Deixando  a  realidade  de  Jesus  Cristo  como  Criador  e  centro  de  tôda 
unidade  espiritual  na  história  cósmica  e  na  humana  para  especial  consi- 
deração no  próximo  capítulo,  estudemos  agora,  no  final  dêste,  o  órgão 
que  Deus  designou  para  dar  cumprimento  histórico  ao  «plano  do  Mis- 
tério». 

Êste  órgão  é  uma  comunidade,  a  comunidade  dos  «escolhidos  em 
Cristo»,  dos  «predestinados  em  amor».  Esta  comunidade  pode  ser  ge- 
ralmente chamada  «O  Povo  de  Deus».  Na  Epístola  aos  Efésios,  supre- 
mamente interessado  no  aspecto  encorporado  do  cristianismo,  o  «Povo 
de  Deus»  ocupa  lugar  central.  No  Velho  Testamento,  êle  formara  a  «Co- 
munidade de  Israel»;  no  Novo  Testamento,  constitui  a  Igreja  Cristã,  o 
«Corpo  de  Cristo». 

O  propósito  de  Deus  de  criar  uma  nova  humanidade  e  constituir 
uma  unidade  espiritual  em  escala  maior  do  que  a  que  foi  desfeita,  levou, 
no  curso  da  história  humana,  à  escolha  de  uma  nação  especial  que  se 
tornasse  o  órgão  da  Sua  vontade  redentora.  Escolhendo  um  homem, 
Abraão,  para  se  tomar  o  ancestral  de  uma  «raça  escolhida».  Deus  fêz 
duas  coisas:  aprofundou  a  brecha  que  separava  os  povos,  de  modo  tal 
oiíe  a  consciência  desta  escolha,  por  parte  dos  «filhos  de  Abraão»,  se 
tornasse  a  fonte  da  mais  aguda  divisão  racial  que  a  história  tem  registado. 
Por  outro  lado,  foi  formada  uma  nação  por  Deus  designada,  por  meio 
de  uma  experiência  de  redenção  e  de  um  propósito  especial  de  educação, 
para  ser  o  meio  cole  ti  vo  de  promover  o  Seu  eterno  propósito.  Um  povo 
que  não  possuía  grandeza  política  nem  génio  religioso  nativo,  tornou-se 
o  «Povo  de  Deus». 

A  «Comunidade  de  Israel»,  para  usar  a  designação  de  Paulo  (Efes. 
2:12),  manifestou  através  da  história  duas  características  principais.  O 
povo  hebreu  tinha  intensa  consciência  da  realidade  de  Deus,  e  uma  cons- 
ciência igualmente  intensa  do  seu  próprio  destino  sob  a  direção  de  Deus- 
Os  hebreus  tinham  senso  de  Presença  e  senso  de  Destino.  Como  o  «Povo 
da  Presença»,  constituíam  um  povo  cuja  inteira    história  recebeu  a  sua 


—  01  — 


significação  da  consciência  da  proximidade  de  Deus.  Deus  falou-lhes; 
Êle  os  chamou;  Êle  os  conduziu.  Na  sua  peregrinação  do  deserto,  Êle 
habitava  entre  os  «Querubins  da  Glória»,  que  circundavam  a  «Sagrada 
Arca  do  Concerto».  Êles  levantavam  as  tendas  para  O  seguirem,  quan- 
do Êle  se  movia  avante,  na  Nuvem  ou  na  Coluna  de  Fogo.  «O'  Senhor, 
mostra-me  a  Tua  glória  (o  Teu  esplendor  desvendado)»,  disse  o  Legisla- 
dor de  Israel.  E  de  novo:  «Se  a  Tua  presença  não  fôr  conosco,  não  nos 
faças  subir  daqui»  (Ex.  33:15). 

Israel  tinha  igual  senso  de  Destino.  Os  Israelitas  sabiam  que  Deus 
os  tinha  feito  nação  e  tinha  controlado  a  sua  vida  nacional,  com  um  pro- 
pósito. Êsse  propósito  era  abençoar  o  mundo.  As  páginas  dos  Salmos 
e  dos  Profetas  resplandecem  de  visões  do  futuro  Reino  Messiânico.  Um 
grande  Libertador,  um  Rei  Messiânico,  havia  de  vir  a  Israel  e  venceria 
todos  os  inimigos  do  povo  de  Deus  e  faria  de  Israel  a  Nação  Predestinada. 

Êste  duplo  senso  de  Presença  e  de  Destino,  deu  à  «Comunidade  de 
Israel»  unidade  extraordinária  e  sem  precedentes.  Israel  tinha  um  Deus, 
Jeová,  o  Senhor  de  Israel,  que  tinha  feito  concerto  com  o  Seu  povo,  o 
Qual  era  também  o  «Deus  de  tôda  a  terra».  Israel  tinha  uma  Lei.  A 
presença  de  Deus  entre  o  Seu  povo  e  o  destino  de  Israel  dependiam  da 
obediência  a  esta  Lei.  Israel  tinha  uma  Cidade  Santa,  Jerusalém,  a  «Ci- 
dade do  Grande  Rei»,  que  era  literalmente  o  centro  da  terra,  a  verda- 
deira capital  do  mundo,  à  qual  tôdas  as  nações  viriam  um  dia,  para 
«adorar  o  Rei,  o  Senhor  dos  Exércitos».  Israel  tinha  um  Templo.  O 
Templo  de  Jerusalém,  sôbre  ser  o  centro  do  culto  de  Israel  era,  também, 
como  o  consideravam  os  escritores  judaicos,  o  «umbigo  da  terra».  Isto 
significava  que,  por  meio  do  templo,  a  terra  recebia  ou  devia  receber  o 
seu  nutrimento  espiritual. 

Mas  Israel  perdeu  a  Presença  e  deixou  de  cumprir  o  seu  Destino. 
Chegou  um  momento  na  história  de  Israel  em  que  a  nação,  espiritual- 
mente cega,  não  pôde  reconhecer  o  seu  Messias  e  recusou-se  a  dar  o  ne- 
cessário passo  seguinte  para  a  bênção  do  mundo.  A  nação,  em  seu  or- 
gulho, desejou  antes  ser  abençoada  e  do  que  abençoar.  Ela  antes  quis 
ter  do  que  ser.  Estava  mais  interessada  em  receber  segurança  da  parte 
de  Deus  do  que  em  prestar  serviço,  a  Deus.  Tinha  perdido  o  senso  do 
peregrino;  isto  impediu  que  se  entregasse  a  uma  nova  e  grande  aventura, 
tal  como  Abraão  empreendeu  deixando  a  Babilónia,  tal  como  Moisés  em- 
preendeu deixando  o  Egito,  tal  como  encararam  os  grandes  Profetas  de 
Israel  como  o  futuro  papel  de  Israel.  Assim,  foi  crucificado  o  Messias; 
foi  constituido  um  novo  Povo  de  Deus,  e  a  Comunidade  de  Israel  deixou 
de  ser  espiritualmente  significativa  para  o  desenvolvimento  do  Eterno 
Propósito. 

A  Igreja  Cristã,  em  cujos  membros  é  transposto  e  vencido  o  antago- 
nismo entre  judeus  e  gentios,  porque  Deus  a  ambos  reconciliou  consigo 
mesmo  «em  um  corpo»,  é  o  Novo  Israel.  E'  mais  do  que  isso,  é  o  Novo 
Homem,  a  Nova  Humanidade  (Efes.  2:15).  Assim,  a  unidade  da  Igreja 
não  é  uma  questão  de  política  eclesiástica  e  prática  nem  de  ciência  de 
governar.  Os  que  têm  «chegado  perto,  no  sangue  de  Cristo»  (2:13) ;  que 
têm  sido  «reconciliados  com  Deus  por  meio  da  Cruz»  (2:16) ;  que  têm 


—  62  — 


«acesso  ao  Pai  em  um  mesmo  Espírito»  (2:18) ;  que  «s,ão  edificados  para 
morada  de  Deus  no  Espirito»  (2:22);  que  formam  a  «Igreja,  que  é  o 
Seu  Corpo»,  constituem  uma  unidade  ontológica.  Quer  isto  dizer  que 
a  Igreja  Cristã,  conforme  o  seu  significado  exposto  por  S.  Paulo  na  Carta 
aos  Efésios,  é  uma  unidade,  uma  pessoa  coletiva.  Os  seus  membros, 
através  da  sua  relação  comum  com  Jesus  Cristo,  foram  tirados  de  uma 
comunidade  e  colocados  em  outra. 

Teremos  ocasião  de  considerar,  em  capitulos  subsequentes,  a  descri- 
ção que  Paulo  faz  dos  membros  individuais  da  nova  comunidade  e  da 
própria  comunidade  como  um  todo.  E  basta  dizer  a  respeito  da  Igreja, 
ao  concluir  este  capitulo,  que,  no  «propósito  eterno»  de  Deus,  a  Igreja 
Cristã  está  destinada  a  ser  a  comunidade  padrão  da  história  e,  ao  mesmo 
tempo,  a  bênção  da  inteira  comunidade  histórica  da  humanidade.  Na 
vida  e  na  atividade  da  Igreja  como  Nova  Humanidade,  nada  se  deve  per- 
mitir que  apareça,  em  palavras  ou  atos,  que  seja  indigno  do  espírito  de 
amor  que  deve  reinar  dentro  dela,  no  qual  é  «arraigada  e  fundada»  (Efes. 
3:17).  Ela  não  pode  ser  fim  em  si  mesma,  porque  é  o  «Corpo  de  Cristo», 
o  órgão  da  Sua  vontade  redentora.  Nunca  deve  tornar-se  complacente 
ou  aspirar  a  tornar-se  reino  deste  mundo.  Rodeada  de  fôrças  hostis, 
nunca  deve  deixar  de  ser  militante,  revestida  de  «tôda  a  armadura  de 
Deus».  Nunca  pode  sentir-se  em  casa  dentro  de  qualquer  forma  de  so- 
ciedade. Em  momentos  de  crise  histórica,  deve  estar  preparada,  a  fim 
de  ser  leal  a  Deus,  a  deixar  tudo  e  tornar-se  estrangeira  como  Abraão, 
a  tomar  a  Cruz  e  a  seguir  o  Crucificado. 

Ao  contrário  do  proletariado  revolucionário,  a  Igreja  não  se  con- 
siderará como  o  cumprimento  das  fôrças  imanentes  da  história;  deve 
antes  considerar-se  como  o  órgão  histórico  de  um  propósito  que  fica 
para  além  da  história.  Colónia  dos  céus  na  terra,  contudo,  a  Igreja  Cristã 
será  a  comunidade  decisiva  para  a  transformação  da  terra  e  para  amol- 
dar o  destino  dos  que  nela  habitam. 

À  medida  que  o  Grande  Drama  continua  e  o  Eterno  Propósito  se 
desdobra,  a  Igreja  Cristã,  a  Nova  Humanidade,  torna-se  a  grande  lição 
objetiva,  por  meio  de  cujo  estudo,  como  já  vimos,  os  «Principados  e  as 
Potestades  nos  lugares  celestiais»  se  tornam  instruídos  na  sabedoria  de 
Deus.  Os  dirigentes  de  homens  muito  lucrariam,  também,  em  estudar 
esta  comunidade  com  o  mesmo  interêsse  absorvente  com  que  espíritos 
superiores  o  fazem.  Descobririam  que  a  história  da  Igreja  tem  lições 
importantes  de  estadística.  Talvez,  como  estadistas  ou  militares,  apreen- 
dessem a  «beijar  o  Filho»,  a  humilharem-se  diante  daquele  que,  só  Êle,  é 
o  único  Vencedor  entre  todos  que  a  história  já  conheceu.  Porque,  final- 
mente, Êle  e  só  Êle  é  quem  deve  reinar. 

Com  isto,  entremos  na  parte  mais  crucial  do  nosso  estudo:  —  Con- 
sideremos o  papel  desempenhado  por  Jesus  Cristo.  Porque  foi  por  meio 
dÊle  que  veio  à  Humanidade  o  Eterno  e  Invencível  Amor  de  Deus.  Foi 
Êle  quem  criou  uma  Nova  Humanidade  curada  da  antiga  divisão.  E' 
por  meio  de  Cristo  que  o  eterno  propósito  de  Deus  tem  de  ser  cumprido, 
cumprimento  êste  em  cuja  melodia  rapsódica  lançará  as  suas  árias  por 
todos  os  corredores  do  Tempo  —  e  da  Eternidade. 


—  63  — 


CAPÍTULO  IV 


A  VITÓRIA  QUE  CRISTO  ALCANÇOU 

No  mesmo  momento  em  que  consideramos  a  relação  da  religião  cris* 
tã  com  o  pensamento  humano,  damos  de  frente  com  um  grande  paradoxo. 

a)    O  Centro  e  a  Chave  da  Fé:  Uma  Pessoa. 

A  religião  que,  mais  do  que  qualquer  outra  das  grandes  religiões  da 
humanidade,  deu  origem  a  idéias  e  influenciou  sistemas  de  idéias,  não  era, 
em  si  mesma,  uma  religião  de  idéias,  mas  a  religião  de  uma  Pessoa.  Na 
afirmação  «O  Cristianismo  é  Cristão»,  existe  alguma  coisa  que  sobre- 
passa  o  sentimento  piedoso  e  o  arrojo  teológico.  Jesus  Cristo  é  o  centro 
da  religião  cristã.  E'  o  seu  criador  histórico,  quando  considerada  como 
uma  fé  mundial.  E'  o  centro  da  sua  mensagem  religiosa;  E'  também,  a 
chave  pela  qual  a  mensagem,  entesourada  nas  Santas  Escrituras,  pode 
ser  entendida. 

São  Paulo,  na  Carta  aos  Efésios,  vai  mais  longe  do  que  isto.  Quem 
fôra  outrora  o  mais  feroz  inimigo  de  Jesus  de  Nazaré  e  da  religião  por 
Êle  fundada,  apresenta  a  Jesus  Cristo  como  o  Criador  e  Centro  de  uma 
nova  ordem  divina.  A  Pessoa  a  Quem  Paulo,  noutro  lugar,  chama  de 
<"^meu  Senhor»  (Filip.  3:8),  a  respeito  de  quem  usou  as  palavras  «que  me 
amou  e  Se  deu  a  Si  mesmo  por  mim»  (Gal.  2:20),  é  apresentado  como 
o  supremo  vencedor  espiritual,  que  Se  torna  a  base  e  o  centro  do  vasto 
esquema  de  Deus  para  a  reconciliação.  Confrontado  com  o  fato  do  mais 
acerbo  conflito,  da  trágica  alienação  na  história  e  em  sua  própria  alma, 
Paulo  encontra  a  solução  completa  da  Grande  Separação  e  de  todas  as 
suas  perniciosas  consequências,  no  plano  redentor  de  Deus  em  Jesus 
Cristo. 

Para  tôdas  as  aparências  exteriores  de  desunião  na  natureza  e  na 
história,  Hegel,  o  grande  profeta  do  Idealismo  Absoluto,  encontrou  a 
resposta  na  afirmação  de  que  «o  racional  é  o  real».  Em  sua  concepção, 
o  irracional,  o  assim  chamado  pecado  e  mal,  não  tem  realidade  verdadeira. 
Karl  Marx  achou  a  solução  para  a  desunião  entre  os  homens,  que  iden- 
tificou com  a  luta  de  ciasses,  na  afirmação  de  que  o  povo  comum,  o 
proletariado  deserdado,  quando  se  torna  revolucionário,  cumpre  uma 
missão  messiânica  e  constitui  o  que  é  fundamentalmente  real.  Mas  para 
Paulo,  Jesus  Cristo  entrou  no  conflito  para  acabar  com  o  conflito.  A 
Figura  do  Crucificado,  que  se  tornou  o  mais  famoso  centro  de  luta  da 
história,  representava  o  esforço  planejado  de  Deus,  o  «Poder  de  Deus 


—  64  — 


e  a  Sabedoria  de  Deus»,  para  dar  fim  à  separação  entre  Êle  mesmo  e  o 
íiomem  e  entre  o  homem  e  o  seu  próximo.  A  resposta  ao  problema  da 
desordem  humana,  portanto,  não  está  em  se  tornarem  revolucionários  os 
homens  deserdados  e  em  assumirem  êles  prerrogativas  divinas  e  absolutas, 
a  fim  de  alcançarem  a  paz  e  a  unidade.  A  resposta  acha-se,  antes,  no 
Deus  que  Se  humilhou,  que  se  fêz  homem,  o  mais  deserdado  dos  homens, 
para  que,  em  sua  pobreza  os  homens  «pudessem  tornar-se  ricos»  e  que, 
por  meio  do  Seu  desamparo  pudessem  ser  feitos  «filhos  de  Deus». 

Para  a  manifestação  destes  «filhos  de  Deus»,  tôda  a  criação  gemeu 
e  trabalhou  penosamente  no  primeiro  século  (Rom.  8:22) ;  com  angústia 
ainda  mais  profunda  e  mais  estudada,  os  homens  e  a  natureza  gemem  no 
nosso  tempo,  esperando  mais  amplos  e  mais  valiosos  frutos  da  Vitória 
que  Cristo  alcançou. 

Voltemos,  poranto,  a  considerar  o  Redentor  da  Humanidade  e  a  vi- 
tória que  Êle  conseguiu. 

b)    Uma  Vida  Destinada  à  Morte 

Quem  era  a  Figura  a  quem  Paulo,  na  Carta  aos  Efésios,  designava 
como  «Cristo»,  «Cristo  Jesus»  ou  «nosso  Senhor  Jesus  Cristo»?  Apesar  de 
Paulo  não  ter  feito,  como  já  afirmamos,  muitas  referências  ao  «Jesus  da 
História»,  nem  ter  baseado  o  «seu  Evangelho»  sôbre  qualquer  coisa  ordi- 
nariamente associada  com  a  Sua  «vida»,  «ensino»  ou  «personalidade»,  a 
inteira  tradição  sinótica  a  respeito  de  Jesus  era  bem  conhecida  do  homem 
de  Tarso.  O  grande  interêsse  de  Paulo,  é  verdade,  estava  concentrado  no 
fato  de  que  Jesus  nasceu,  morreu,  e  ressuscitou  dos  mortos  e  de  que 
Deus  «exaltou-o  soberanamente».  Mas,  conquanto  nenhuma  Crítica  Li- 
terária nem  qualquer  forma  de  radicalismo  no  trato  dos  pormenores  da 
vida  de  Jesus,  afete  a  posição  essencial  de  Paulo  a  respeito  de  Jesus 
Cristo,  a  Figura  histórica  e  a  narrativa  que  Lhe  diz  respeito,  eram 
parte  da  sua  querida  herança,  vinda  dos  que  tinham  conhecido  o  «Se- 
nhor» nos  dias  da  Sua  carne. 

Jesus,  que  significa  «Salvador»,  era  o  nome  desta  Pessoa,  e  a  Sua 
missão  era  «salvar».  Veio  a  fim  de  «salvar  o  Seu  povo  dos  seus  pecados», 
isto  é,  de  terem  ficado  aquém  do  alvo  de  Deus  para  as  suas  vidas,  de 
terem  errado  o  seu  verdadeiro  destino.  Podia  parecer  que  antes  de  Jesus 
de  Nazaré,  o  único  indivíduo  particular  a  quem  foi  dado  o  título  grego  de 
soter  («salvador»)  foi  o  filósofo  helénico  Epicuro.  «Êsse  título»,  diz 
Toynbee,  «era  normalmente  monopólio  de  príncipes  e  prémio  de  serviços 
políticos  e  militares!»  Mas  a  «serena  imperturbabilidade»  pela  qual  Epi- 
curo era  famoso,  e  em  virtude  da  qual,  foi  grandemente  amado  e  reve- 
renciado pelos  seus  contemporâneos  duma  época  de  ansiedade,  nem  o 
fizeram  no  seu  tempo,  nem  depois,  salvador  eficiente  dos  seus  compa- 
nheiros, numa  ordem  humana  que  se  desintegrava.  E  mais  ninguém 
tem  aparecido,  desde  os  tempos  de  Epicuro,  segundo  o  nosso  grande  his- 
toriador, que  mostre  as  genuínas  qualidades  de  um  salvador.  A  calma 
forçada,  ainda  que  majestosa,  de  Epicuro,  em  seus  dias,  e  a  sublime  indi- 
ferença de  um  Buda  em  dias  mais  antigos,  são  mais  do  que  reflexos  da 
ansiedade  da  alma.    A  angústia  cria,  como  sedativo  para  o  espírito,  a 


—  65  — 


figura  idealizada  de  alguém  que  triunfa  sôbre  ela.  Uma  figura  deste 
tipo  é  a  enorme  imagem  de  um  Buda  em  repouso,  que  se  pode  ver  em 
Bangcoque,  uma  estátua  brilhante  que  exprime  consciente  e  deliberada 
abstração  das  realidades  da  situação  humana,  no  momento  exato  em 
que  um  «Dia  do  Senhor»  está  baixando  sóbre  a  Ásia  oriental  e  sôbre 
o  mundo. 

O  Nazareno  de  há  dezenove  séculos,  também  foi  chamado  «Salvador». 
E  quando  nós,  neste  nosso  «Tempo  de  Tribulações»,  esperamos  às  margens 
do  rio  do  Tempo,  em  angustiado  anseio  por  um  Libertador,  «uma  Figura 
única  surge  do  dilúvio  e  imediatamente  enche  todo  o  horizonte.  Eis 
o  Salvador;  e  o  prazer  do  Senhor  prosperará  em  Sua  mão;  Êle  verá  o 
trabalho  da  Sua  alma  e  ficará  satisfeito»  (D.  Mas  a  figura  de  Jesus 
como  Salvador  é  diferente  da  de  todos  os  demais  «salvadores».  Eram 
a  idealização  dos  anseios  humanos;  Êle  tinha  características  diferentes 
de  quaisquer  em  quem  o  homem  tenha  já  pensado  serem  as  caracterís- 
ticas de  um  salvador. 

Jesus  veio,  disse  Paulo,  na  plenitude  dos  tempos.  O  tempo  tinha 
«atingido  a  sua  maturação».  Era  o  kairos,  o  tempo  que  deu  a  signifi- 
cação a  todo  o  tempo.  Considerando  o  tempo  do  nascimento  de  Jesus 
dentro  do  contexto  da  história  do  mundo,  impressionam-nos  certas  coisas 
notáveis,  de  caráter  claramente  providencial.  Uma  fé  monoteística,  uma 
crença  em  um  único  Deus,  tinha-se  tornado  firmemente  estabelecida  na 
Palestina,  depois  de  longa  luta  religiosa.  Roma,  sob  a  liderança  de 
Augusto,  tinha  organizado  o  mais  poderoso  império  que  o  mundo  já 
tinha  conhecido.  Os  que  viviam  sob  a  augusta  «Paix  Romana»  podiam 
contar  com  facilidades  de  viajar  de  terra  a  terra,  e  os  cidadãos  podiain 
contar  com  a  justiça  romana.  Deste  modo,  tornava-se  possível  uma  pro- 
paganda de  âmbito  imperial.  A  língua  grega,  o  mais  perfeito  instru- 
mento linguistico  jamiais  forjado  para  a  comunicação  de  idéias,  tornou- 
se  o  principal  meio  de  cultura.  Tinha  chegado,  portanto,  a  ocasião  para 
o  advento  de  uma  fé  mundial. 

Na  recepção  que  foi  feita  a  Jesus  quando  menino,  podemos  discernir 
aspectos  de  profunda  significação  histórica.  Tinha  chegado  o  tempo  em 
que  a  indagação  milenar  da  verdade  fundamental  ia  encontrar  a  chave 
de  «todos  os  tesouros  da  sabedoria  e  do  conhecimento».  Com  razão  dis- 
seram os  magos  do  Oriente,  nas  palavras  de  Auden,  quando  ajoelharam 
ante  a  Criança  Galiléia,  em  Belém:  «Oh!  aqui  e  agora  se  finda  a  nossa 
jornada  sem  fim».  Com  igual  razão  exclamaram  os  pastores  dos  montes 
vizinhos,  prestando  a  homenagem  no  mesmo  local:  «oh!  aqui  e  agora 
começa  a  nossa  jornada  sem  fim».  Porque  este  Nascimento  significava 
que  tinha  chegado  o  tempo  em  que  o  povo  comum  da  terra  ia  ter  um 
novo  comêço  na  história.  Nova  luz  para  o  pensamento  e  novo  poder 
para  a  vida  tinham  acabado  de  chegar. 

A  atmosfera  nacional  da  Palestina  estava  saturada,  naqueles  dias, 
de  esperança  messiânica,  como  os  Evangelhos  tornam  claro.  Tôdas  as 
classes  estavam  como  que  nas  pontais  dos  pés  da  esperança  de  que  a 

(1)-    Arnold  J.  Toynbee. 


—  66  — 


hora  estava  próxima  para  o  Messias  de  Israel  aparecer  e  libertar  o  Seu 
povo  da  escravidão.  Jesus,  o  menino  que  ia  crescendo,  não  podia  estar 
alheio  ou  indiferente  ao  sentimento  patriótico.  Milton,  no  Paraíso  Re- 
conquistado, põe  o  seguinte  solilóquio  nos  lábios  do  Filho  do  Homem 
quando,  depois  do  Seu  batismo,  vagueava  pelo  deserto  da  Judéia,  recor- 
dando os  anos  da  sua  meninice  e  a  paixão  precoce  pela  justiça  que  os 
inspiravam: 

Feitos  vitoriosos 

ardiam  em  meu  peito,  atos  heróicos  de  um  momento 

para  libertar  a  Israel  do  jugo  romano; 

Depois,  subjugar,  por  tôda  a  terra, 

a  violência  bruta  e  o  orgulhoso  poder  tirânico, 

até  que  fôsse  a  verdade  libertada  e  a 

equidade  restaurada  (2). 

Jesus  teve  de  lutar,  como  sabemos,  contra  a  tentação  de  se  tornar 
grande  figura  política  e  assim,  cumprir  as  esperanças  messiânicas  de 
Israel.  Declinou,  porém,  de  assumir  o  inflamado  papel  do  patriota  na- 
cionalista. Mas,  fazendo  assim,  tornou  claro  que  o  papel  do  Messias  de 
Israel  podia  ser  interpretado  em  outros  termos,  e  que  a  iniciação  do  seu 
próprio  ministério  público  era  ocasião  de  grande  júbilo  nacional.  Porque 
tinha  na  verdade  chegado  a  «hora»,  estava  na  verdade  cumprido  o 
«tempo»,  que  tinham  sido  predito  pelos  profetas  antigos  e  saudado  pelo 
Batista  contemporâneo,  na  sua  pregação  e  nos  seus  ritos  simbólicos,  junto 
do  Jordão.  A  história  estava  agora  sendo  invadida  pelas  forças  de  uma 
nova  ordem,  de  uma  nova  dimensão  da  realidade  espiritual.  Jesus  re- 
conheceu e  proclamou  de  forma  completa  que  nÊle  e  no  Seu  trabalho 
viera  o  Reino  de  Deus.  O  poder  de  Deus,  de  maneira  e  em  grau  total- 
mente novos,  entraram  na  história  humana.  «Hoje»,  disse  Jesus,  fa- 
lando na  Sinagoga  da  cidade  natal  de  Nazaré,  «se  cumpriu  a  Escritura 
em  vossos  ouvidos».  «O  Espírito  do  Senhor  é  sôbre  mim,  pois  que 
me  ungiu  para  evangelizar  os  pobres,  enviou-me  a  curar  os  quebranta- 
dos de  coração,  a  apregoar  liberdade  aos  cativos  e  dar  vista  aos  cegos;  a 
pôr  em  liberdade  os  oprimidos;  a  anunciar  o  ano  aceitável  do  Senhor». 
(Luc.  4:18). 

Era,  pois,  claramente  o  tempo  de  alegria.  Havia  alegria  exuberante, 
tanto  no  ensino  como  na  conduta  de  Jesus,  no  primeiro  período  do  Seu 
ministério  público.  Em  suas  próprias  palavras,  era  a  época  do  «Noiva- 
do», tempo  de  lua  de  mel,  o  tempo  do  «vinho  novo»  que  pedia  «odres 
novos»,  tempo  para  «fazer  soar  o  baixo  do  órgão  sonoro  dos  céus».  Mas, 
justamente  porque  era  a  «plenitude  dos  tempos»  e  tempo  de  alegria,  «ar- 
rependam-se»  os  homens,  pois.  Sofram  eles  mudança  total  na  sua  mente 
com  respeito  a  Deus,  ao  mundo  e  ao  homem;  experimentem  completa 
reorientação  de  vida.  «Creiam  no  Evangelho»,  abrindo  êles  a  inteira 
personalidade  às  «Boas  Novas»  de  que  Deus  tinha  «vindo  ao  Israel  Ca- 
tivo» e  de  que  tinha  sido  inaugurada  nova  era  para  a  humanidade.  Ti- 

(2)    Livro  I. 


—  67  — 


nham  passado  os  velhos  ciclos  da  história,  nos  quais  não  havia  «nada  de 
novo  sob  o  sol».  A  história  tinha  agora  recebido  um  Centro  e  estava-se 
movendo  para  um  fim. 

O  Cristo  cuja  vinda  deu  à  história  novo  comêço  e  que,  Êle  mesmo, 
se  tomou  o  centro  da  história,  era  pessoa  inteiramente  única.  Poucas 
coisas  têm  sido  mais  impressivas  na  recente  erudição  neo-testamentária 
do  que  o  reconhecimento,  por  parte  de  distintos  estudiosos  judeus  do 
Novo  Testamento,  de  que  Jesus  Cristo  não  pode  ser  pôsto  em  paralelo 
na  literatura  religiosa  de  Israel.  O  a  que  êles  dão  ênfase,  chegando-se 
ao  estudo  dÊle  com  novos  olhos  e  depois  de  árdua  luta  contra  os  seus 
prejuízos,  é  que  o  que  de  novo  Jesus  trouxe  à  história  de  Israel  era 
Êle  mesmo.  Êle  era  a  grande  nova.  Tinha-se  conhecido  o  amor  dêle 
e  falado  antes  de  ter  Êle  vindo,  mas  nunca  amor  da  redentora  quali- 
dade que  Êle  descreveu  em  suas  parábolas  e  ilustrou  em  Sua  vida.  A 
novidade  era  que  Deus  devia  ser  representado  como  o  pastor  que  sai  em 
busca  da  Sua  ovelha  perdida,  e  que  o  próprio  Jesus  tivesse  sido  o  amigo 
amoroso  em  busca  «dos  perdidos».  Pessoa  tal  e  tal  ensino  introdu- 
ziram na  religião  espírito  e  atmosfera  inteiramente  novos.  Pôs  inicia- 
tiva redentora  e  amor  de  sacrifício  próprio  no  próprio  coração  da  Di- 
vindade. 

O  que  ainda  é  mais  notável  é  que  Jesus  atribuiu  à  atividade  de  Deus, 
tudo  o  que  Êle  mesmo  fez.  Não  era  o  «descobridor  de  caminhos»,  que 
proclamou  um  caminho  luminoso  para  o  coração  e  os  propósitos  secretos 
da  Divindade.  Não  há  culto  a  Jesus  no  Novo  Testamento.  O  Homem 
Cristo  Jesus  é  antes  um  nascido  «de  cima»,  a  quem  Deus  «envia»  à  his- 
tória, para  que  introduzisse  no  Tempo  os  conselhos  da  Eternidade. 

Mas,  se  era  verdade  que  Jesus  era  uma  figura  única,  é  igualmente 
verdade  que  foi  uma  figura  representativa.  Quando  Paulo,  na  Carta  aos 
Efésios,  fala  do  Cristo  «resumindo»  tôdas  as  coisas,  estava  descrevendo 
uma  característica  que  era  tão  verdadeira  do  «Jesus  da  História»,  como 
era  e  será,  do  Cristo  Cósmico.  Jesus  era  o  representante  de  Israel.  Êle 
resumia  em  Si  e  em  Sua  missão  a  história  e  o  destino  divino  do  povo 
judeu.  Era  a  verdadeira  «semente  de  Abraão»,  cujo  dia  Abraão  tinha 
antecipado  de  longe  (João  8:56).  Era  o  Filho  de  Davi,  tão  bem  como 
era  o  Senhor  de  Davi.  E  há  na  narrativa  sinótica  um  paralelismo  entre 
Jesus  e  Israel,  que  é  íntima  demais  para  que  tenha  sido  impensada. 
Israel  saiu  do  Egito.  Assim  o  fêz  também  Jesus,  depois  que  a  perse- 
guição de  Herodes  às  crianças  tinha  cessado.  Israel  foi  batizado  no 
Mar  Vermelho;  Jesus  foi  batisado  nas  águas  do  Jordão.  Israel  gastou 
quarenta  anos  no  deserto,  onde  Deus  provou  o  Seu  povo;  Jesus  esteve 
quarenta  dias  no  deserto,  tentado  de  Satanás.  Não  existe  a  mínima 
dúvida  também  de  que  Jesus,  deliberadamente,  identificou-se  no  último 
período  do  Seu  ministério,  como  o  Servo  Sofredor  de  Jeová  que,  inques- 
tionàvelmente,  representava  a  Israel  nas  páginas  do  escritor  profético. 
Como  Messias  de  Israel,  assumiu  e  cumpriu  o  papel  vicário  do  Seu  povo. 
Seja  o  que  fôr  que  se  pensar  desta  relação  simbólica  entre  Israel  e  Jesus, 
do  ponto  de  vista  da  critica  bíblica,  ninguém  pode  ignorar  a  sua  signi- 
ficação do  ponto  de  vista  da  teologia  bíblica.    Existem  na  Bíblia  unida- 


—  68  — 


des  extremamente  significativas  que  necessitam  dos  «olhos  da  fé»  para 
serem  descobertas  e  muito  mais  para  serem  entendidas. 

Jesus  também  representou  a  humanidade.  Era  o  novo  homem,  o 
verdadeiro  homem,  o  «filho  do  homem».  Aparece  nos  Evangelhos  como 
o  representante  perfeito  e  sem  pecado  da  humanidade.  Amou  a  Deus  e 
ao  homem  com  perfeito  amor.  A  sua  vida  era  teocêntrica  no  sentido 
mais  absoluto.  Viveu  para  fazer  a  vontade  do  Seu  Pai;  para  «se  ocupar 
dos  negócios  de  Seu  Pai»;  para  cumprir  a  Sua  Missão  dada  por  Deus. 
Traduziu  o  amor  de  Deus  no  mais  apaixonado  amor  pelos  homens.  «Andou 
fazendo  o  bem».  Só  êle,  dentre  todos  os  filhos  dos  homens,  foi  capaz 
de  expressar,  em  perfeito  e  natural  uníssono,  a  divina  justiça  e  a  miseri- 
córdia divina.  Os  olhos  que  chamejaram  de  indignação  quando  o  Tem- 
plo foi  profanado  e  os  santos  recintos  transformados  em  mercado  de 
vendilhões,  foram  os  mesmos  que  derramaram  lágrimas  de  simpatia  em 
presença  da  dor  de  uma  família  e  à  vista  de  uma  cidade  condenada.  A 
chama  e  a  lágrima  provinham  da  mesma  fonte.  A  mão  que  empunhou 
o  azorrague  para  expulsar  dos  Pátios  do  Templo  os  iníquios  vendilhões, 
era  a  mesma  que  acariciou  as  crianças,  que  curou  os  doentes  e  que  ali- 
mentou os  famintos.  O  Homem  Cristo  Jesus  conheceu  também  o  signi- 
ficado da  violenta  tentação.  O  Tentador  experimentou-O  onde  todo  o 
homem  forte  é  o  mais  fraco,  na  questão  do  uso  do  poder.  Mas  Jesus  re- 
cusou-se  a  usar  do  poder  para  fins  meramente  egoísticos,  mesmo  que 
fôsse  para  conservar  a  vida;  ou  por  um  grande  esforço  especial  de  publi- 
cidade para  forçar  o  reconhecimento  do  Seu  povo;  ou  para  atingir  digno 
objetivo  por  métodos  errados.  Enquanto  Milton,  como  ambas  as  partes 
da  sua  grande  epopéia  fazem  muito  claro,  cria  que  a  parte  decisiva  da 
redenção  humana  fôra  cumprida  na  Cruz,  seguiu  são  instinto  toológico, 
ao  fazer  a  tentação  de  Jesus  tão  grandemente  importante.  Foi  pela  sua 
resistência  à  tentação  de  pôr  o  interêsse  próprio  acima  da  obediência  a 
Deus,  por  meio  da  fé  na  direção  soberana  de  Deus  na  Sua  vida,  que  Jesus 
provou  ser  o  homem  perfeito.  Em  tudo  que  se  relaciona  com  o  procedi- 
mento humano,  a  vida  de  Jesus  Cristo  é  normativa  para  o  homem.  Todas 
as  vêzes  em  que  a  moralidade  cristã,  ou  até  a  teologia  cristã  se  desviam 
muito  da  maneira  concreta  e  do  espírito  da  vida  de  Jesus,  ou  deixa  de 
lhe  fazer  justiça,  ambas  caem  em  inevitáveis  aberrações. 

Mas  o  homem  representativo  era  mais  do  que  homem.  O  Segundo 
Adão  não  era  simples  filho,  mesmo  o  maior  dos  filhos,  do  primeiro  Adão. 
Êste  homem  de  Deus  era  o  Deus-homem.  Jesus  de  Nazaré  representava 
a  Deus.  E  Êle  o  pôde  fazer  só  porque  era  Deus  manifesto  na  carne. 
Era  Deus  Encarnado.  Nas  palavras  do  Quarto  Evangelho,  a  Palavra 
de  Deus,  a  eterna  palavra  pessoal,  «tornou-se  carne».  O  autor  da  Epís- 
tola aos  Hebreus  fala  dÊle  como  de  um  «Filho»  que  reflete  a  glória  de 
Deus  e  leva  o  próprio  sêlo  da  sua  natureza.  Paulo,  na  Epístola  aos  Co- 
losenses,  que  escreveu  de  Roma  mais  ou  menos  pelo  tempo  em  que  es- 
creveu a  Carta  aos  Efésios,  fala  de  Jesus  Cristo  como  «imagem  do  Deus 
invisível,  o  primogénito  de  tôda  a  criação».  E'  Êle  em  quem  foram  todas 
as  coisas  criadas,  nos  céus  e  na  terra  —  todas  as  coisas  foram  criadas 
por  meio  dÊle  e  para  Êle.    Em  uma  das  outras  «epistolas  da  prisão»,  a 


—  69  — 


grande  Carta  aos  Filipenses,  Paulo  representa  a  Jesus  Cristo  como  «ten- 
do sido  em  forma  de  Deus»,  mas  não  considerando  a  igualdade  com  Deus 
um  prémio  que  devesse  ser  retido  avaramente.  Despojou-se  a  Si  mesmo, 
tomando  a  forma  de  servo,  fazendo-se  semelhante  aos  homens».  Êsté 
também  é  o  Cristo  da  Carta  aos  Efésios,  em  cujos  térmos  considerare- 
mos mais  especificamente  a  Sua  obra  redentora  e  a  Sua  vitória.  Êste 
Cristo  representava  a  Deus,  não  como  alguém  que  abria  a  Sua  vida  hu- 
mana à  plenitude  divina,  não  como  alguém  que  a  Divindade,  tendo  encon- 
trado em  Sua  humanidade  um  instrumento  perfeito,  se  tornou  manifesta 
nÊle  e  operou  por  meio  dÊle.  Pelo  contrário,  o  que  temos  no  Homem 
Cristo  Jesus  é  a  real  encarnação  da  Divindade,  dando-se  a  Si  mesmo  e 
esvaziando-se,  no  homem,  para  constituir  o  maior  paradoxo  do  pensa- 
mento e  a  esperança  redentora  da  vida. 

Como  pôde  o  Eterno  realizar  um  ato  temporal, 
O  Infinito  transformar-se  em  um  fato  finito? 

Êste,  sim,  é  o  problema.  Mas  o  fato  do  Deus-homem  ainda  per- 
manece; os  frutos  da  fé  de  que  Êle  era  o  Filho  de  Deus  permanecem 
também. 

Existe  na  história  do  Evangelho  um  retrato  de  Cristo  antes  da  Sua 
morte  que  se  poderia  considerar  como  a  imagem  essencial  dAquêle  que  em 
Si  mesmo  resumia  tudo  o  que  era  mais  distintivo  em  Israel,  da  humani- 
dade e  da  Divindade.  E'  o  retrato  de  Jesus  a  que  já  aludimos  e  que, 
em  um  momento  de  intensa  consciência  quanto  à  Sua  identidade  e  mis- 
são, «sabendo  que  tinha  vindo  de  Deus  e  ia  para  Deus»,  derrama  água 
numa  bacia  e  lava  os  pés  dos  Seus  discípulos.  A  figura  do  Mestre  trans- 
formado em  Servo  dos  Seus  servos,  do  Altíssimo  realizando  o  mais  servil 
dos  trabalhos,  é  uma  perfeita  revelação  do  «Mistério  de  Cristo».  Um 
jóvem  professor  de  filosofia  em  Oxford,  professor  agnóstico  em  matéria 
de  religião,  estava  andando  um  dia,  sem  destino,  descendo  pela  famosa 
Rua  Broad,  de  Oxford.  Casualmente,  a  sua  vista  pousou  em  uma  expo- 
sição de  artigos  na  vitrina  de  uma  livraria.  Entre  os  livros  estava  um 
quadro,  uma  pintura  do  século  dezenove,  representando  Jesus  lavando 
os  pés  dos  discípulos.  Enquanto  o  jóvem  filósofo  olhava  para  o  quadro, 
alguma  coisa  aconteceu.  «Conheci»  disse  êle  mais  tarde  a  um  amigo, 
«que  o  Absoluto  era  o  meu  lacaio».  A  natureza  íntima  da  Divindade 
com  amor  que  se  dá,  a  realidade  de  Deus  tornando-se  homem  para  a  sal- 
vação do  homem,  tornou-se  clara  para  êle.  Êle  aprendeu  a  «imagem  es- 
sencial», comprendeu  que  a  coisa  mais  fundamental  e  única  e  que  tem 
futuro,  no  grande  plano  divino  das  cousas,  é  o  amor  que  se  dá  em  favor 
dos  outros.  Êle  viu  a  verdade  fundamental  da  Ordem  de  Deus. 

A  conseqiiência  do  lava-pés,  e  o  objetivo  da  humildade  que  o  ins- 
pirou, foi  a  Cruz.  Água  e  toalha  retratam  a  vitória  do  Deus-Homem 
na  vida;  A  Cruz  foi  o  Seu  triunfo  sôbre  a  Morte. 

c)    Conquista  por  meio  de  Crucifixão 

Falando  ao  seu  auditório  ecuménico  a  respeito  da  obra  de  Jesus 
Cristo  para  alcançar  a  redenção,  Paulo  apresentou  o  amor  de  Cristo  imo- 


lado  como  sacrifício,  como  norma  de  conduta  dos  cristãos.  Disse  êle: 
«Andai  em  amor,  como  também  Cristo  nos  amou,  e  Se  entregou  a  Si 
mesmo  por  nós,  em  oferta  e  sacrifício  a  Deus,  em  cheiro  suave»  (Efes. 
5:2).  Para  Paulo  e  para  todos  os  escritores  do  Novo  Testamento,  a 
Morte  de  Jesus  Cristo  era  essencial  para  o  cumprimento  da  Sua  missão 
redentora . 

De  diversas  maneiras  pode-se  encarar  a  Crucifixão.  Pode  ser  consi- 
derada como  a  mais  simples  das  contingências  da  história.  Jowett,  fa- 
moso professor  do  século  dezenove,  em  Oxford,  costumava  dizer  jatancio- 
samente  que  a  única  parte  do  Credo  dos  Apóstolos  em  que  êle  cria  era  a 
que  diz:  «Sofreu  sob  o  poder  de  Pôncio  Pilatos,  foi  crucificado,  morto  e 
sepultado».  Tal  perspectiva  da  morte  de  Cristo  considera-a  como  acon- 
tecimento historicamente  isolado.  Quando  muito,  permanece  como  ho- 
micídio judicial  cometido  pelos  representantes  de  um  Império,  cujo  or- 
gulho era  a  justiça  romana.  Em  tal  caso,  a  Crucifixão  era  simplesmente 
abôrto  da  justiça,  que  ilustra  a  incapacidade  do  homem  para  realizar  os 
seus  próprios  ideais  de  justiça. 

O  Cristo  Crucificado  tem  aparecido  a  outros  como  a  suprema  vítima 
do  destino.  Em  Buenos  Aires,  centro  líder  da  cultura  hispânica,  cujos 
cidadãos  nos  dias  trágicos  da  última  guerra  tinham  a  reputação  de  se- 
rem o  povo  mais  bem  nutrido  e  mais  bem  vestido  do  mundo,  era  corrente 
a  frase  altamente  reveladora,  senão  trágica.  Quando  um  homem  da 
grande  metrópole  do  Rio  da  Prata  quer  referir-se  a  alguém  que  não  tem 
qualquer  valor,  que  não  tem  eira  nem  beira,  exemplo  desprezível  de  sub- 
humanidade,  pobre  mendigo  ou  pobre  diabo,  diz:  é  um  «pobre  Cristo». 
Quer  dizer  que  aquêle  resto  humano  de  quem  se  está  pensando  se  asse- 
melha à  tradicional  representação  espanhola  de  Jesus  Cristo,  uma  Figura 
completamente  morta  e  desamparada.  Está  pensando  da  imagem  do 
Crucificado,  cuja  expressão  clássica  é  o  «Cristo  Reclinado  de  Palência», 
a  quem  Unamuno  descreve  como  a  «Eternidade  da  Morte»,  a  «imortaliza- 
ção  da  Morte».  O  que  temos  aqui  é  antes  um  exemplo  extremo  de  pessi- 
mismo religioso,  em  referência  ao  poder  eficaz  e  redentor  do  Crucificado. 
Existe  nos  círculos  seculares  de  hoje  desdenhosa  rejeição,  da  parte  dos 
^  homens  de  gosto»  e  dos  «homens  de  sangue  vermelho»  em  geral,  por 
Qualquer  relação  entre  a  Crucifixão  de  Cristo  e  a  solução  dos  problemas 
básicos  da  humanidade. 

Mas,  para  Paulo,  a  Cruz  tem  significação  tanto  histórica  como  cós- 
mica. Em  um  acontecimento  que,  para  o  observador  casual,  foi  apenas 
brutal  assassínio  judicial,  e  para  os  homens  do  mundo  o  símbolo  de  insig- 
nificância sentimental,  Paulo  viu  as  marcas  da  eternidade.  Aconteceu 
certa  vez  no  Gólgota  um  fato  que  não  foi  nem  historicamente  causal,  nem 
espiritualmente  insignificante,  mas  que  constituía  portentosa  vitória.  Êsse 
evento  se  deu  uma  vez  por  tôdas  para  a  história  e  para  o  cosmos:  nunca 
podia  nem  necessitava  de  ser  repetido. 

Paulo  pensava  dêste  acontecimento  como  de  vitória.  O  Crucificado 
foi  Vencedor  que,  na  linguagem  da  Epístola  aos  Colossenses,  «cravou» 
na  Cruz  as  exigências  legais  ou  «ordenanças»  contra  aqueles  por  quem 


—  71  — 


Êle  morreu,  e  «sóbre  a  Cruz»  triunfou  dos  rPrincipados  e  Potestades», 
desarmando-os  e  expondo-os  «publicamente»  (Col.  2:15).  Para  ser  fiel 
ao  pensamento  de  Paulo  e  do  Novo  Testamento,  a  Cruz  de  Jesus  Cristo 
tem  de  ser  considerada  como  um  assalto  vitorioso,  ao  invés  de  o  ser  a 
morte  de  uma  vítima.  E'  somente  quando  ao  quadro  clássico  e  fiel  do 
Cristo,  como  «Cordeiro  levado  para  o  matadouro»  acrescentamos  o  qua- 
dro igualmente  clássico  e  fiel  do  Rei  Guerreiro,  «vindo  de  Edom  com 
vestidos  tingidos  de  Bozrá  e  viajando  na  grandeza  do  seu  poder»,  e  de 
um  Cordeiro  cujos  vestidos  são  tingidos  no  Seu  próprio  sangue,  somente 
então  é  que  alcançamos  uma  concepção  adequada  da  doutrina  da  Cruz, 
o  que,  em  linguagem  teológica,  é  chamado  a  Expiação.  E,  depois  de 
tudo,  no  Apocalipse  do  Novo  Testamento,  o  Cordeiro  «morto  antes  da 
fundação  do  mundo»  aparece  como  figura  essencialmente  militante,  po- 
tente e  ativa. 

Que  significa  a  Expiação?  Jesus  Cristo,  diz  Paulo  em  palavras  já 
citadas  da  Carta  aos  Efésios,  «amou-nos  e  deu-se  a  Si  mesmo  por  nós 
(5:2).  Limitando-nos  a  esta  Carta  sòmente,  achamos  um  tesouro  de 
expressões  que  Paulo  usa  para  exprimir  a  significação  da  morte  de  Cristo. 
E'  por  «meio  do  Seu  sangue»  que  a  «redenção»  vem  a  nós  e  que  recebe- 
mos «o  perdão  dos  nossos  trespasses»  (1:7).  E'  «no  sangue  de  Cristo» 
que  os  homens  são  trazidos  para  «perto  de  Deus  e  um  do  outro»  (2:13). 
«Pelo  sangue  de  Cristo»,  também  os  judeus  e  os  gentios  foram  feitos  um; 
porque  o  Crucificado  Se  tornou  a  «nossa  paz»  por  meio  «do  derrubamen- 
to  da  parede  de  separação  que  estava  no  meio»  (2:41).  Na  segunda  Epís- 
tola aos  Coríntios,  há  uma  passagem  que  completa  estas  referências  à 
relação  entre  paz  e  unidade;  e  que  lança  luz  sôbre  a  profunda  significação 
íntima  do  grande  acontecimento.  «Deus»,  diz  o  Apóstolo,  «estava  em 
Cristo,  reconciliando  o  mundo  Consigo  mesmo»  (2  Cor.  5:19).  Isto 
equivale  a  dizer:  Deus  esteve  ativo  na  Cruz.  Considerada  em  sua  signi- 
ficação fundamental,  a  morte  de  Jesus  Cristo  era  a  suprema  manifesta- 
ção do  amor  divino  reconciliador.  Em  uma  palavra,  a  Expiação,  o  acon- 
tecimento por  que  foram  perdoados  e  esquecidos,  os  pecados,  e  pelo  qual 
os  perdoados,  reconciliados  com  Deus  e  uns  com  os  outros,  se  tornaram 
«filhos  de  Deus»,  foi  um  ato  do  próprio  Deus. 

Quando  chegamos  a  compreender  que  a  morte  de  Jesus  pelos  peca- 
dos do  mundo  foi  um  ato  de  Deus  para  reconciliar  o  mundo  consigo  mes- 
mo, nova  luz  se  lança  sôbre  a  idéia  vicária  da  Expiação,  que  é  básica  no 
pensamento  de  Paulo,  como  o  é  no  pensamento  e  nas  figuras  da  Bíblia 
como  um  todo.  Foi  Deus  que  Se  deu  a  Si  mesmo  em  Cristo  pelos  pe- 
cados do  mundo;  foi  Deus  que  Se  tornou  o  Reconciliador.  Em  Jesus 
Cristo  —  o  Deus-Homem  —  o  próprio  Deus  esteve  presente  em  per- 
feição divina.  A  ação  redentora  de  Jesus  foi  a  ação  redentora  de  Deus. 
Porque  Deus  esteve  completamente  no  Crucificado,  a  separação  entre 
Deus  e  Jesus,  conquanto  possível  em  pensamento,  não  existiu  em  realidade. 

Lança-se  luz  na  significação  do  «sangue»,  do  «sangue  de  Cristo»,  na 
Expiação.  Que  significa  o  sangue  no  pensamento  bíblico?  Significa  a 
«vida».    Sangue  que  é  derramado,  como  o  foi  o  «sangue  de  Cristo»,  é 


vida  que  é  dada  em  agonia  e  sofrimento.  Mas  não  podia  haver  maior 
ên  o  do  que  limitar  a  correlação  do  «sangue  de  Cristo»  ao  fluido  físico  que 
con-eu  das  Suas  chagas.  Em  alguns  círculos,  a  palavra  «sangue»  recebe 
a  significação  virtualmente  mágica.  Nenhuma  pregação  que  não  fale 
constantemente  do  «sangue»  é  considerada  evangélica.  A  simples  men- 
ção do  «sangue»  torna-se  característica  contrastante  de  ortodoxia  e 
ocasião  frequente  para  uma  demonstração  orgíaca  de  emoção.  Mas,  no 
seu  mais  profundo  sentido,  o  que  era  o  sangue  que  foi  derramado?  O 
sangue  físico  que  foi  perdido  por  nosso  Senhor  em  Seu  sofrimento  e  em 
Sua  morte,  foi  apenas  um  símbolo  do  sangue  de  verdade,  isto  é,  da  vida 
derramada  em  angústia,  durante  todo  o  Seu  ministério  público.  Porque, 
falando  com  tôda  a  reverência,  o  Deus-Homem  teve  de  Se  preparar  para 
se  tornar  digno  do  ato  final  de  morrer.  Na  linguagem  da  Epístola  aos 
Hebreus,  Êle  «aprendeu  obediência  naquilo  que  sofreu».  Foi  «por  meio 
dos  sofrimentos»  que  Êle  se  tomou  perfeito.  Tinha  de  ser  feito  idóneo 
para  a  morte,  doutro  modo  o  derramamento  de  simples  sangue  físico, 
que  milhões  de  outros  seres  humanos  já  tinham  derramado  em  circuns- 
tâncias igualmente  penosas,  teria  sido  em  vão.  Mas,  desde  a  Tentação 
até  à  Cruz,  o  sangue  foi  literalmente  drenado  da  alma  de  Cristo.  A  gran- 
de dor  que  Êle  sofreu  e  que  suportou  tão  jubilosa  e  voluntàriamente, 
também  foi  parte  do  «preço  de  sangue».  Para  compreendermos  a  Ex- 
piação, recordemos  que  o  Cristo  crucificado,  que  em  Si  mesmo  resumia 
tanto  a  Deus  como  ao  homem,  resumiu  também,  nas  supremas  horas  da 
Seu  sacrifício,  tudo  quanto  tinha  sofrido  pelo  pecado  e  do  pecado,  desde 
o  tempo  em  que  subiu  do  Jordão  até  o  tempo  em  que  disse:  «Tudo  está 
consumado». 

O  reconhecimento  da  Expiação  como  ato  de  Deus  evita  também  a 
concepção  muito  superficial  da  significação  da  morte  de  Cristo,  que  a  re- 
duz à  expressão  de  uma  lei  natural.  Alguns,  fazendo  ilegítima  distinção 
entre  Deus  e  o  Filho  de  Deus,  consideram  a  Jesus  Cristo  como  uma  ter- 
ceira parte  inocente  que  foi  feita  sofrer  pelos  culpados.  Independente- 
mente do  fato  de  que  não  há  lei  geral,  na  natureza  ou  na  vida  humana, 
pela  qual  o  inocente  sofra  vicàriamente  pelos  culpados,  e  de  que  este 
ponto  de  vista  da  Expiação,  podesse  ser  considerada  como  ilustração,  algo 
de  mais  sério  precisa  dizer-se.  A  idéia  que  considera  Cristo,  o  Filho  de 
Deus,  como  mera  parte  inocente,  atrás  de  cujos  méritos  os  homens  cul- 
pados podiam  esconder-se,  reflete  tendência  para  dividir  a  divina  Famí- 
lia em  Triteísmo  e  de  caluniar  Deus,  o  Pai.  O  Filho  torna-se  Herói,  mas 
os  homens  são  repelidos  pelo  Pai.  Esta  falsa  fórmula  da  Expiação  ê 
refutada,  porém,  quando  chegamos  à  compreensão  de  que  foi  o  própria 
Deus  que  realizou  a  Expiação,  substituindo  o  homem  por  Êle  mesmo. 
Então,  não  há  tal  coisa  como  uma  terceira  parte  atrás  da  qual  se  podem 
esconder  os  culpados.  Jesus  Cristo  era  inocente,  mas  não  simples  ter- 
ceira parte.  Era  Deus  manifesto  em  carne,  cumprindo  tôdas  as  custosas 
obrigações  de  remir  o  homem  do  seu  pecado,  recebendo  na  forma  de 
homem  pecador  tôdas  as  consequências  do  pecado.  Na  Cruz  de  Cristo, 
pois,  os  pecadores  culpados  são  arrancados  para  fora  de  todo  o  escon- 


—  73  — 


derijo  ou  fenda  de  abrigo  e  trazidos  face  a  face  com  o  próprio  Deus,  que 
em  Jesus  Cristo  se  deu  a  Si  mesmo  em  amor  pelos  pecados  do  mundo, 
a  fim  de  poder  reconciliar  o  mundo  consigo  mesmo.  Que  lugar  há  agora 
para  a  busca  de  uma  falsa  semelhança  com  Deus,  para  o  anseio  de  ser 
como  Deus,  sem  Deus  e  rival  de  Deus?  O  pecador,  quebrantado  e  per- 
doado, somente  pode  dizer  ao  Salvador  que  o  amou  e  a  Si  mesmo  se 
deu  por  êle: 

Tu,  ó  Cristo,  és  tudo  que  desejo: 

Mais  do  que  tudo  encontro,  meu  Senhor,  em  Ti. 

Não  temos,  contudo,  ainda,  considerado  concretamente  as  maneiras 
específicas  por  que  Jesus  Cristo  alcançou  uma  vitória  redentora.  Tendo 
dado  ênfase  à  verdade  de  que  o  que  foi  implicado,  quando  Cristo  «se  deu 
a  Si  mesmo  por  nós»,  morrendo  «por  nossos  pecados»,  no  que  chamamos 
de  Expiação,  foi  um  ato  de  Deus,  é  agora  necessário  considerar  as  fôrças 
que  Êle  teve  de  vencer  antes  que  pudesse  ser  chamado,  no  sentido  mais 
completo,  o  «Salvador».  Não  podemos  esperar  resolver,  é  verdade,  o 
mistério  da  redenção.  Não  podemos  formular  teoria  humana  adequada 
para  expressar  um  ato  tão  divino  e  infinito.  Mas  o  próprio  fato  de  ten- 
tarmos apreender  a  situação  concreta  que  o  Salvador  da  humanidade  teve 
de  encarar  na  sua  obra  redentora,  e  em  que  êle  foi  vencedor,  ajuda  o 
pensamento  e  procura-se  explicação  de  fato. 

O  primeiro  grande  encontro  de  Jesus  como  Redentor  dos  homens 
foi  com  a  Lei.  O  Deus-Homem,  que  representou  a  raça  humana  peca- 
dora, e  a  Si  mesmo  se  constituiu  uma  nova  humanidade,  teve  de  tomar 
em  devida  conta  a  ordem  moral  estabelecida  por  Deus,  sob  a  qual  tôda 
a  vida  humana  tinha  de  ser  pautada.  Na  ordem  moral  hierárquica  es- 
tava estabelecido  que  o  inferior  tinha  de  prestar  afetuosa  obediência  ao 
superior  e,  um  ao  outro  em  amor  mútuo;  e  que  o  superior  devia  mostrar 
afetuoso  interesse  para  com  o  inferior.  Esta  ordem,  que  teve  a  sua 
origem  na  natureza  de  Deus,  de  que  era  expressão,  conservava  unido  o 
universo  espiritual.  De  Jesus  Cristo  pode  dizer-se,  quando  seguimos  o 
curso  da  Sua  vida  desde  a  meninice  até  à  Cruz,  e  sôbre  a  Cruz,  que  Êle 
foi  fiel  a  esta  ordem  moral.  Foi  amorosamente  obediente  a  Deus,  Seu 
Pai,  e  sempre  esteve  afetuosamente  interessado  a  respeito  de  todos  os 
que  estavam  em  necessidade.  Êle  amou  a  Deus  e  a  Seus  companheiros 
no  mais  absoluto  sentido  e,  assim,  cumpriu  a  Lei. 

Fêz  isto,  note-se,  não  porque  se  esforçasse  para  fazer,  mas  porque 
era  da  Sua  natureza  fazê-lo.  Isto  significa  que  a  devoção  de  Cristo  para 
com  a  Lei  de  Deus  não  era  a  busca  legalística  do  amor,  mas  movimento 
espontâneo  de  amor.  Existe  um  paradoxo  do  moralismo,  como  existe 
um  paradoxo  do  hedonismo.  Quem  procura  a  felicidade  como  seu  ob- 
jetivo,  nunca  se  torna  feliz.  Do  mesmo  modo,  quem  busca  a  bondade 
como  sua  finalidade,  nunca  se  torna  bom.  O  mais  que  se  pode  tornar  a 
ser  é  um  fariseu  pedante;  mas  o  que  mais,  provavelmente,  se  tomará,  é 


—  74  — 


um  neurótico  desesperado.  A  pessoa  realmente  boa  é  aquela  que  faz 
o  bem  sem  cogitar  de  bondade  ou  de  prémio  da  bondade,  mas,  antes, 
agindo  de  puro  amor  para  com  Deus  e  para  com  o  próximo.  Mas,  neste 
sentido,  Jesus  Cristo  foi  a  única  pessoa  boa  que  já  existiu.  Era  assim 
porque  por  Êle  é  que  veio  o  Amor.  Foi  Êle  mesmo  o  Amor  em  essência 
mais  pura.  NÊle,  o  Amor  não  era  um  manto  que  pusesse  para  desem- 
penhar um  papel;  era  a  fonte  perene  dentro  dÊle,  que  inspirou  tôdas  as 
Suas  ações.  Podemos  dizer,  pois,  que  Jesus  Cristo  cumpriu  perfeita- 
mente a  ordem  moral  divina.  Êle  se  qualificou  como  o  pioneiro  e  pri- 
mícias de  uma  nova  humanidade. 

Mais  difícil  foi  o  encontro  de  Jesus  com  a  vontade  concreta  de  Deus 
para  a  Sua  própria  vida.  Porque  obediência  ao  Plano  Moral  significa 
não  somente  obediência  geral,  mas  obediência  verdadeiramente  especí- 
fica aos  mandamentos  de  Deus  para  a  conduta  pessoal.  E  isto,  também, 
Jesus  fêz  aceitando  tôdas  as  penosas  implicações  da  sua  missão  messiâ- 
nica. Com  obediência  filial  aceitou  e  esgotou,  até  às  fezes,  o  «cálice»  que 
o  Pai  Lhe  deu  a  beber.  Com  fé  simples  em  Deus  e  por  obediência  leal 
a  Deus,  Êle  se  lançou  até  os  últimos  e  escuros  desfiladeiros  do  Seu  cami- 
nho redentor.  E  ali,  na  mais  escondida  e  mais  enigmática  das  fases  da 
Sua  tarefa  redentora,  Êle  encontrou,  por  amor  do  homem  e  como  seu 
representante,  as  consequências  e  as  sanções  de  uma  ordem  moral  vio- 
lada, a  realidade  da  justiça  de  Deus.  Como  o  Sem-Pecado  que  tomou 
o  lugar  dos  pecadores  e  desbravou  o  caminho  para  a  manifestação  dos 
novos  filhos  de  Deus,  Êle  veio  a  conhecer,  na  amargura  da  Sua  alma  e 
de  maneira  que  nunca  poderemos  compreender,  que  o  «salário  do  pe- 
cado é  a  morte».    Êle  sofreu  e  triunfou. 

Isto  nos  leva  ao  segundo  encontro  de  Jesus  Cristo,  o  Seu  encontro 
com  o  Pecado.  O  pecado,  como  já  temos  visto,  em  sua  essência,  é  a  afir- 
mação de  uma  vontade-própria  contra  a  vontade  de  Deus.  O  pecado 
significa  a  tentativa  de  um  espírito  finito  de  se  tomar  rival  de  Deus. 
Quando  a  lógica  íntima  do  pecado  opera,  ela  consegue  transformar  o 
mal  em  bem. 

Por  tôda  a  Sua  vida,  mas  especialmente  entre  o  tempo  em  que  foi 
derramada  água  sôbre  Êle  no  Jordão,  até  quando  Êle  Seu  próprio  sangue 
derramou  na  Cruz,  o  Filho  de  Deus  se  entregou  a  luta  terrível  com  o 
pecado.  Os  poderes  demoníacos  O  assaltaram  e  lutaram  para  O  desviar 
do  Seu  caminho  escolhido.  Nós,  simplesmente  não  podemos  entender 
a  vida  de  Cristo  ou  fazer  justiça  ao  grande  drama  da  redenção,  a  não 
ser  que  tomemos  a  sério  os  poderes  sobrenaturais  do  mal,  que  figuram 
no  quadro  de  todo  o  pensamento  bíblico  e  que  executam  estratégia  or- 
ganizada. Mas  o  Tentador  foi  logrado.  Depois  daquele  esforço  do  de- 
serto, êle  «deixou  a  Jesus  por  um  pouco  de  tempo».  Nosso  Senhor, 
depois  de  ter  ouvido  o  relato  das  manifestações  de  poder  que  os  Seus  dis- 
cípulos tinham  operado  em  Seu  Nome,  «viu  Satã  cair  dos  céus».  «Eis 
que  vem  o  Príncipe  dêste  mundo»,  disse  Êle,  «mas  não  acha  nada  em  mim». 


—  75  — 


Mal  te  abrigaste  então, 
O'  paciente  Filho  de  Deus:  contudo  permaneceste  impávido! 
Contudo  não  parou  o  terror  ali; 
Espíritos  e  fúrias  infernais  te  envolveram; 
uns  uivavam,  outros  gritavam  ou  guinchavam, 
alguns  desferiam  contra  ti  os  dardos,  enquanto  que  Tu 
permanecias  sem  pavor,  em  calma  e  impecável  paz! (3) 

O  pecado  dos  seres  humanos  descarregou-se  sôbre  o  Redentor.  Ha- 
via a  inconstância  das  multidões,  a  quem  Êle  tão  assiduamente  ensinou 
e  das  quais  tão  bondosamente  cuidava,  e  que  no  final  gritaram:  «Cruci- 
fica-O»!  Havia  o  fanatismo  religioso  dos  líderes  de  Israel,  que  que- 
bravam o  espírito  da  Lei  em  suas  tentativas  de  definir  a  letra.  Havia  a 
falta  de  percepção  espirtual  da  parte  dos  Seus  discípulos,  que  tentavam, 
frequentemente,  tirá-Lo  do  Seu  próprio  caminho.  Dentre  o  Seu  grupo 
de  escolhidos,  acima  de  tôda  a  mera  ausência  de  visão,  sobressaiu  a  des- 
lealdade de  Pedro  e  a  traição  de  Judas.  Contudo,  Jesus  nunca  sucumbiu 
ante  nenhuma  palavra  ou  atitude  pecaminosa. 

O  pecado  encastelado  nas  formas  institucionais,  onde  tinham  assento 
direitos  adquiridos,  foi  particularmente  cruel.  Por  amor  de  conveniên- 
cias, a  hierarquia  judaica,  para  defender  os  seus  interêsses,  repudiou  o 
«Justo».  Também  por  amor  das  conveniências,  o  Governador  Romano, 
para  se  congraçar  com  uma  raça  rebelde  e  provar  ser  «amigo  de  César», 
condenou  à  crucifixão  um  homem  em  quem  não  tinha  encontrado  falta. 
Mas  Jesus,  com  isto,  não  se  deixou  ficar  amargurado:  continuou  a  mos- 
trar o  mais  afetuoso  interêsse  pelos  homens.  Também  amou  os  Seus 
inimigos.  O  pecado,  em  tôdas  as  suas  formas,  fêz  tudo  quanto  pôde 
contra  Êle.  Mas,  quando  exalou  o  último  suspiro,  Êle  disse:  «Pai,  per- 
doa-lhes  porque  não  sabem  o  que  fazem». 

E  foi  assim  que  Jesus  morreu.  Êle  morreu  em  um  horrendo  encon- 
tro com  a  Morte,  o  último  inimigo,  depois  que  tinham  já  sido  vencidos 
todos  os  outros  inimigos.  Morreu  no  madeiro  e,  assim,  tornou-se  literal- 
mente coisa  maldita,  de  acordo  com  a  tradição  religiosa  do  Seu  povo.  O 
pecado  não  pôde  fazer  mais  do  que  fêz;  a  Lei  não  podia  tão  pouco  exigir 
mais;  os  homens  não  podiam  esperar  mais.  Desceram  as  trevas  sôbre 
o  Gólgota.  Era  agora  a  ocasião  de  Deus  falar.  Foi  o  que  tinha  acon- 
tecido, um  assassínio  judicial  desusadamente  brutal,  mas  ainda  mera  con- 
tingência da  história?  Foi  um  acontecimento  espiritualmente  inaplicá- 
vel para  o  problema  da  história  e  do  coração  huamno? 

Diz  a  Carta  aos  Efésios,  falando  em  nome  do  Novo  Testamento,  que 
Jesus  Cristo  «Se  entregou  a  Si  mesmo  por  nós».  (5:22).  Êle  »aproxi- 
mou»  judeus  e  gentios,  de  Deus  e  uns  dos  outros,  «pelo  sangue  da  Sua 
Cruz»,  acabando  com  a  «inimizade»,  amarga  e  antiga  hostilidade  (2:14). 
Como  o  sabemos?  Deus  «levantou-O  dos  mortos  e  O  pôs  à  Sua  direita 
nos  céus»  (1:20).  As  portas  eternas  foram  levantadas;  o  «Rei  da  Gló- 
ria» entrou. 

(3)    Paradi^e  Rc^^ained,   Livro   TV,  linhas  419-425. 


—  76  — 


Antes  de  Jesus  ter  morrido,  a  Morte  era  o  maior  terror  dos  homens. 
Significava  a  frustração  de  tôdas  as  esperanças  humanas;  era  a  entrada 
sombria  de  um  reino  de  existência  escura,  repleta  de  terror  e  despida  de 
significado  vital.  Mas,  pela  Sua  morte,  Cristo  redimiu  a  Morte.  Êle 
«féz  da  Morte  a  nossa  mãe»,  para  usar  a  frase  de  Miguel  de  Unamuno  í*). 
No  ventre  terrível  dela,  Êle  gerou  uma  nova  raça  de  homens.  Êle  a 
tornou  meio  de  renascimento  e  órgão  para  promover  os  grandes  fins 
espirituais.  Evangelizou  a  Morte.  Estar  «crucificado  com  Cristo», 
restar  morto  com  Cristo»  tornou-se,  desde  então,  o  prelúdio  de  uma  nova 
vida;  morrer  por  Cristo  tornou-se  o  objetivo  de  muito  sonho  ardente. 
Como  e  porquê  tal  mudança?  Jesus  Cristo  tornou-se  o  Vencedor  Cru- 
cificado da  Morte:   «Deus  O  ressuscitou  dos  mortos»  (1:20). 

d)  Exaltação 

«Ao  terceiro  dia  ressurgiu  dos  mortos;  subiu  ao  Céu  e  está  sentado 
à  mão  direita  de  Deus  Pai  Todo-Poderoso».  Assim  diz  a  grande  afir- 
mação do  Credo  dos  Apóstolos,  fazendo  eco  da  Carta  aos  Efésios  e  da  fé 
histórica  da  Igreja  Cristã. 

Calmamente,  sem  controvérsia,  sem  apologética,  Paulo  estabelece  o 
fato  da  vitória  de  Cristo  sôbre  a  Morte,  pela  Sua  Ressurreição  dos  mortos. 
Está  em  notável  harmonia  com  o  caráter  litúrgico-rapsódico  da  Epístola 
aos  Efésios,  que  a  proclamação  da  Ressurreição  seja  feita  conjuntamente 
com  uma  prece  (1:15-23),  para  que  os  cristãos  de  todo  o  mundo,  a  quem 
êle  escrevia,  alcançassem  visão  do  significado  prático,  para  as  suas  vidas, 
âe  que  Deus  levantou  dos  mortos  a  Jesus.  Êle  ora  para  que  o  Deus  de 
nosso  Senhor  Jesus  Cristo,  «o  Pai  da  Glória»,  lhes  concedesse  a  visão  de 
Jesus  Cristo,  para  que  pudessem  tornar-se  completamente  conscientes, 
primeiro,  da  esperança  implícita  na  sua  vocação  cristã;  segundo,  da  ri- 
queza da  glória  envolvida  em  pertencer  a  Jesus  Cristo;  e,  terceiro,  da 
vastidão  do  poder  divino  que  nêles  estava  operando  e  que  lhes  era  aces- 
sível. A  medida  dêste  poder  é  a  ressurreição  de  Cristo.  «Lembro-me 
de  vós  nas  minhas  orações»,  diz  êle,  «para  que  possais  conhecer  a  sobre- 
excelente  grandeza  do  Seu  poder  sôbre  nós,  os  que  cremos,  segundo  a 
operação  da  fôrça  do  Seu  poder  que  manifestou  em  Cristo,  ressuscitan- 
do-O  dos  mortos  e  pondo-0  à  Sua  direita  nos  céus,  acima  de  todo  o  prin- 
não  só  neste  século  mas  também  no  vindouro»  (1:16-21).  Justamente 
cipado,  e  poder,  e  potestade,  e  domínio,  e  de  todo  o  nome  que  se  nomeia, 
como  Paulo,  quando  se  referia  à  Eleição  de  Deus,  não  apresenta  a  dou- 
trina como  frio  dogma  teológico,  mas  para  explicar  aos  cristãos  o  que 
tinha  acontecido  nêles  e  a  significação  transcendente  da  sua  profissão 
cristã,  assim,  também,  neste  exemplo.  Êle  quer  que  conheçam  a  possível 
extensão  da  experiência  e  da  atividade  que  possa  ser  dêles,  porque  o 
mesmo  poder  que  Deus  usou  para  levantar  dos  mortos  a  Cristo,  lhes  é 
acessível.  Porque  o  Cristo  Ressurrecto  é  dêles  e  porque  estão  «nÊle», 
o  poder  infinito  está  operando  nêles  e  pode  operar  por  meio  dêles.  Os 
que  foram  escolhidos  em  Cristo  «antes  da  fundação  do  mundo»,  trabalha- 


(4)    El  Cristo  de  Velasquez,  I,  IV. 


—  77  — 


ráo  e  triunfarão  em  Cristo,  que  foi  exaltado  acima  de  todos  os  mundos. 
A  mais  alta  sabedoria,  portanto,  é  conhecer  experimentalmente  êste  poder 
altíssimo. 

Não  fôsse  a  Sua  Ressurreição,  tudo  o  que  Jesus,  não  somente  disse, 
mas  também  fez,  em  Sua  vida  e  também  em  Sua  morte,  teria  sido  fútil 
e  vão.  Sua  memória,  muito  provàvelmente,  já  teria  sido  esquecida. 
Quando  muito,  poderia  aparecer  como  um  resplendor  brilhante,  fosfore- 
cente  nas  marés  oceânicas  da  história.  Podia  tornar-se  a  fonte  de  muito 
testemunho  trágico  em  prosa  e  verso,  como  nas  artes  plásticas,  de  que 
tudo  é  vaidade  e  de  que  o  universo  está  desinteressado  do  verdadeiro  valor 
heróico.  Mas,  pela  Ressurreição,  Cristo  foi  vindicado.  Tôdas  as  pro- 
messas e  propósitos  de  Deus  que  se  tinham  centralizado  nÊle  atingiram 
a  sua  realização.  Tinha-se  começado  uma  nova  era  cósmica;  uma  nova 
ordem  de  realidade  tinha  nascido.  A  história,  agora,  prosseguiria  para 
o  seu  fim,  com  tôdas  as  suas  forças  sujeitas  a  Jesus  Cristo  que,  no  fim, 
também  será  o  seu  Juiz.  O  cristã,  o  plano  espiritual  criado  por  Êle  e 
a  Êle  devendo  a  sua  fidelidade,  sobreviveria  à  história. 

O  que  se  realizou  quando  Cristo  se  levantou  dos  mortos  é,  como  a 
Sua  Incarnação  e  Expiação,  mistério.  O  que  é  claro,  pois,  é  que  em  um 
corpo,  o  mesmo  e,  contudo,  diferente  do  corpo  da  Sua  carne,  porque  do- 
tado de  novas  qualidades,  Êle  voltou  à  vida  e  «subiu  ao  Pai»  e  se  tomou 
o  Senhor  cósmico  da  história  e  a  Cabeça  Divina  da  Igreja.  Não  se  pode 
pensar  da  centralidade  dada  à  Ressurreição  no  Novo  Testamento,  sem 
compreender  que  o  que  está  diante  dos  cristãos,  quando  esta  vida  tiver 
passado,  não  é  mais  bênção  nebulosa,  fantástica.  O  objetivo  real  de 
Deus  para  com  o  homem  será  cumprido,  não  na  hora  da  sua  morte,  mas 
quando  Êle  também  fôr  levantado  dos  mortos,  em  um  corpo  espiritual, 
que  desempenhará  o  seu  papel  nos  mais  largos  propósitos  de  Deus,  quando 
o  drama  histórico  chegar  ao  fim. 

Mas  as  coisas  escondidas  de  amanhã  podem  ser  deixadas  com  Deus. 
Para  nós,  a  Eternidade  é  agora,  no  que  concerne  aos  grandes  assuntos. 
O  propósito  de  Paulo  na  Carta  aos  Efésios  não  era  entregar-se  a  sonhos 
apocalíticos,  fazendo  ostentação  do  seu  conhecimento  de  coisas  que  «o 
ôlho  não  viu  nem  o  ouvido  ouviu»,  nem  mesmo  satisfazer  a  curiosidade 
natural  dos  seus  leitores  de  então  e  de  agora,  de  saberem  a  respeito  das 
coisas  por  vir.  O  seu  fim  foi  fixar  no  espírito  dos  leitores  êste  tremendo 
fato,  como  base  da  fé  e  do  trabalho  deles  neste  mundo,  a  saber,  que 
«Jesus  Cristo  é  Senhor».  O  Salvador  que  os  uniu  a  Deus  e  não  a  outro, 
que  se  tornou  a  paz  e  a  fonte  da  luz  e  da  fôrça,  dêles  era  o  Senhor  So- 
berano, o  Governador  do  Universo  e  a  Cabeça  do  Seu  Corpo,  a  Igreja. 

Como  êles,  em  obediência  ao  desejo  de  Paulo,  examinemos,  por  um 
momento,  o  que  significa  o  Domínio  Soberano  de  Jesus  Cristo. 

Deus  «sujeitou  tôdas  as  coisas  debaixo  de  Seus  pés»  (Efes.  1:22).  O 
curso  da  história  e  o  destino  espiritual  do  universo,  estão  ambos  nas  mãos 
de  Jesus  Cristo.  Não  pode  haver  falta  nem  ilusão.  Quem  governa  a 
história  não  é  nenhum  «jóvem  combatendo  a  Divindade»,  de  recursos 
limitados  e  de  futuro  incerto,  para  usar  o  conceito  cheio  de  fantasia  de 


—  78  — 


H.  G.  Wells.  Jesiis  Cristo  reinará  até  que  tenha  sido  vencido  todo  ini- 
migo do  Propósito  de  Deus.  Como  será  alcançado  o  Seu  triunfo,  se  por 
meio  de  uma  especial  manifestação  pessoal  da  Sua  glória,  para  inaugurar 
o  Seu  reino  espiritual,  ou  por  meio  de  um  especial  derramamento  do  seu 
Espirito  sobre  a  Igreja,  como  instrumento  histórico  da  Sua  vontade,  não 
importa  muito.  A  coisa  importante  é  que  o  Cristo  Ressurrecto  não  é 
um  espectador  longínquo  dos  acontecimentos  da  história  humana;  e  o 
futuro  está  com  Êle. 

Deus  fêz  Jesus  Cristo,  «sôbre  tôdas  as  coisas  para  a  Igreja  que  é  o 
Seu  corpo,  a  plenitude  dAquele  que  cumpre  tudo  em  todos»  (1:22,  23). 
O  interesse  primacial  de  Jesus  Cristo  é  a  Igreja  Cristã,  que  é  o  Seu 
Corpo.  Não  é  a  civilização,  ou  a  cultura  ou  a  ordem  política.  O  seu 
interesse  é  que  o  Seu  Corpo  seja  conforme  o  propósito  de  Deus  a  Seu 
respeito.  Quando  a  Igreja  é  realmente  a  Igreja,  quando,  em  sua  rea- 
lidade empírica  e  em  sua  existência  histórica,  verdadeiramente  funciona 
como  a  Igreja,  mostrará  que  é  na  história  o  instrumento  da  glória  de 
Deus.  Quando  a  civilização,  a  cultura  e  a  ordem  política  estiverem  pre- 
paradas par  reconhecer  a  Igreja  e  tomar  a  sério  o  que  a  Igreja  repre- 
senta, então  a  ordem  secular  ganhará  em  pureza,  em  unidade  e  em  es- 
tabilidade. Uma  verdadeiro  plano  secular  depende  da  Igreja,  mas  a 
Igreja  não  depende  de  uma  ordem  secular  bondosa. 

Não  sendo  um  Reino  dêste  mundo,  a  Igreja  deve  sua  vassalagem  tão 
sòmente  a  Jesus  Cristo.  Nenhuma  hierarquia  humana  tem  o  direito  de 
usurpar  a  autoridade  de  Cristo  na  Igreja:  nenhum  estado  secular  tem 
o  direito  de  tamsformar  a  Igreja  em  instrumento  de  sua  política;  a  Igreja 
não  se  atreve  a  servir  a  nenhum  outro  senhor  senão  a  Cristo.  Nesta 
época  revolucionária,  em  que  o  estado,  sob  diferentes  formas,  tem  tido  a 
pretensão  de  escravizar  a  Igreja  e  fazê-la  agente  servil  da  sua  vontade, 
uma  grande  declaração  da  fé  e  da  missão  da  Igreja  sobresai  acima  de 
tôdas  as  outras.  Foi  ela  formulada  na  cidade  alemã  de  Barmen,  no 
tempo  da  tirania  Nazi.  «Rejeitamos  a  falsa  doutrina»,  diziam  os  sina- 
tários,  «de  que  há  esferas  da  vida  em  que  pertencemos,  não  a  Jesus  Cristo, 
mas  sim  a  outros  senhores;  reinos  onde  não  necessitamos  de  ser  justi- 
ficados ou  santificados  por  Êle». 

Proclamando,  no  espírito  paulino,  como  é  exposto  na  Carta  aos  Efé- 
sios, «as  riquezas  incompreensíveis  de  Cristo»  (3:8),  «demonstrando  a 
todos  qual  seja  a  dispensação  do  Mistério  que  desde  os  séculos  esteve 
oculto  em  Deus,  que  tudo  criou  por  Jesus  Cristo»  (3:9),  a  Igreja  Cristã 
será,  parcialmente  neste  mundo  e  completamente  no  mundo  por  vir,  a 
«plenitude  dAquêle  que  cumpre  tudo  em  todos»  (1:23). 

Precisamos  agora  averiguar  que  é  que  Paulo  nos  ensina  concreta- 
mente a  respeito  do  novo  tipo  de  humanidade  que  Jesus  Cristo  cria,  a 
comunidade  que  êle  chama  de  Igreja,  como  se  origina,  quem  são  os  seus 
membros  e  de  que  maneira  vivem  êles. 


—  79  — 


CAPITULO  V 


HOMENS  NOVOS  EM  CRISTO 


O  desígnio  de  Deus  na  história  e  no  cosmos  envolve  duas  coisas. 
Envolve,  como  já  vimos,  o  estabelecimento  de  um  novo  centro  de  rela- 
ções espirituais,  no  qual  se  reúnem  «coisas  no  céu  e  coisas  na  terra». 
Êsse  centro,  Deus  o  constituiu  em  Jesus  Cristo.  Jesus  Cristo,  em  virtude 
do  que  Êle  era  em  Si  mesmo,  como  Deus-Homem,  e  pela  vida  que  viveu 
entre  os  homens,  por  Sua  morte  na  Cruz  pelo  pecado  dos  homens,  por 
Sua  ressurreição  gloriosa  e  por  Sua  ascensão  à  «mão  direita  de  Deus», 
tornou-se  o  centro  de  um  novo  plano  de  realidade.  Êsse  novo  plano,  que 
foi  revelado  a  S.  Paulo,  que  se  considerou  como  seu  «mordomo»  ou  «exe- 
cutor», é  o  «mistério»,  o  segredo  de  Deus  revelado,  que  é  proclamado  à 
humanidade  no  Evangelho. 

A  finalidade  de  Deus  envolve,  contudo,  alguma  coisa  mais.  Envolve 
o  estabelecimento  de  relações  entre  os  homens  e  Jesus  Cristo,  êste  novo 
centro  de  unidade  espiritual.  Tornando-se  unidos  a  Cristo,  os  homens 
são  levantados  do  egocentrismo;  a  hostilidade  para  com  Deus  e  de  uns 
para  com  os  outros,  cessa;  realiza-se  a  reconciliação  em  Jesus  Cristo,  a 
<paz»  dêles.  De  «filhos  da  ira»,  membros  de  uma  comunidade  alienada 
de  Deus,  tornam-se  «filhos  de  Deus»,  membros  de  uma  nova  comunidade 
chamada  a  Igreja.  Isto  significa  um  ajustamento  total  das  vidas  em 
relação  a  Deus  e  aos  Seus  propósitos.  A  procura  de  uma  falsa  semelhan- 
ça com  Deus,  o  desejo  de  ter  os  atributos  de  Deus  mas  sem  a  submissão 
à  autoridade  de  Deus,  acaba-se.  Os  homens  que  se  reconciliam  com 
Deus  tornam-se  Seus  filhos  por  adoção  e  buscam  fazer  as  Suas  obras. 

a)    «Em  Cristo» 

Esta  nova  relação  espiritual  é  caracterizada  por  S.  Paulo  como  sendo 
«em  Cristo».  Estudantes  do  pensamento  paulino  tão  diferentes  uns  dos 
outros,  como  Adolfo  Deissmann  e  Alberto  Schweitzer,  são  concordes  em 
que  a  frase  «em  Cristo»  é  a  concepção  central  do  pensamento  de  Paulo. 
Esta  frase  «em  Cristo»  ou  «em  Cristo  Jesus»  é  usada  por  Paulo  em  suas 
cartas,  de  acordo  com  os  cálculos  de  Deissman,  algumas  cento  e  sessenta  e 
nove  vezes.  Que  significa  Paulo  por  esta  concepção  vital?  Há  de  fa- 
zer-se,  primeiramente,  entre  a  expressão  «em  Cristo»  e  a  outra  expressão 
«nos  lugares  celestes».  Pela  última  frase  Paulo  significa  mais  do  que 
uma  condição  espiritual:  significa  a  esfera  sobrenatural.    Mas  esta  esfera 


—  80  — 


é  também  a  sede  de  poderes  espiritualmente  hostis.  Estar  «em  Cristo», 
portanto,  é  mais  do  que  estar  «nas  regiões  celestes»,  é  ter  posição  na 
própria  vida  de  Deus  e  tirar  sustento  de  Deus  em  Cristo;  mas  daí  não 
se  conclui  possa  alguém  nesta  indicação,  em  qualquer  sentido  místico, 
^star  acima  de  todo  o  conflito.  O  reajustamento  da  vida  para  com  Deus 
em  Cristo,  viver  «nos  lugares  celestes  em  Cristo  Jesus»,  significa  viver 
daí  por  diante  existência  teocêntrica,  vivendo-se  por  Deus  e  para  Deus, 
no  meio  de  tôdas  as  realidades  de  conflito  espiritual.  Em  uma  palavra, 
^star  «em  Cristo»  não  significa  estar  acima  da  luta;  não  é  uma  absorção 
de  um  estado  de  transcendente  calma. 

Estar  «em  Cristo»,  diga-se  mais  uma  vez,  é  mais  do  que  estar  «na 
Igreja».  E*  por  meio  do  sua  relação  com  Cristo  que  o  homem  se  rela- 
ciona com  a  Igreja.  A  igreja  é  a  realidade  onde  aparece  a  Sua  plenitude, 
a  «pleroma»;  mas  a  Igreja  não  esgota  a  Cristo,  nem  O  cerceia,  nem  O 
limita.  Quando  tiver  sua  plena  realização  o  vasto  plano  cósmico  de 
Deus  «em  Jesus  Cristo»,  entre  «tôdas  as  coisas  nos  céus  e  na  terra» 
encontrar-se-á  uma  estrutura  maior  do  que  a  que  pode  ser  formada  por 
espíritos  meramente  humanos.  Por  essa  razão  é  que  Paulo  distingue 
cuidadosamente  entre  Cristo  e  a  Igreja.  Em  uma  grande  doxologia  da 
Epístola  aos  Efésios  diz  êle:  «A  Êsse  (Deus)  glória  na  Igreja  por  Jesus 
Cristo»  (3:21).  Um  espírito  humano  é  posto  em  relação  com  a  Igreja 
poi-que  está  «em  Cristo». 

Pareceria  também  haver  distinção  real  no  pensamento  de  Paulo 
entre  as  expressões  «em  Cristo»  e  «no  Senhor».  A  frase  «em  Cristo» 
indica  uma  relação  transcendental  para  com  Cristo.  Os  cristãos,  por 
exemplo,  foram  «criados  em  Cristo  Jesus  para  as  boas  obras»  (2:10).  No 
viver  concreto,  contudo,  êles  agem  «no  Senhor»  (6:1).  Devem  ser  «for- 
tes no  Senhor»  (6:10).  O  «Senhor»  é  o  padrão  e  o  diretor  de  todo  o 
viver  cristão.  E*  a  distinção  entre  Cristo  como  a  Realidade  espiritual 
cósmica,  acima  de  todos  os  mundos,  e  Presença  viva  e  concreta,  encon- 
ti^da  em  todos  os  caminhos  do  mundo. 

O  que  importa  compreender  é  isto:  —  Estar  «em  Cristo»  implica  re- 
novação espiritual,  «nova  criação».  Dizer  a  respeito  de  alguma  pessoa 
estar  «em  Cristo»  sem  que  a  mesma  tenha  sido  «vivificada»  (1  Cor.  15:22), 
é  coisa  inteiramente  sem  sentido.  Os  que  foram  «predestinados  para 
filhos  de  Deus  por  Jesus  Cristo»  (Efes.  1:5),  foram  vivificados  junta- 
mente com  Cristo  (1  Cor.  15:22)  e  com  Êle  juntamente  ressuscitados  e 
sentados  nos  lugares  celestiais  em  Cristo  Jesus  (Efes.  2:6).  Tais  pes- 
soas, daquele  dia  em  diante,  organizarão  e  determinarão  tôdas  as  atitu- 
des e  atos,  partindo  do  seu  novo  centro,  Jesus  Cristo.  Empregarão  dis- 
cernimento e  discriminação.  São  o  povo  que,  segundo  Paulo,  forma  a 
Igreja.  Sendo  assim,  e  isto  é  importante  para  todo  o  nosso  pensar,  dêste 
ponto  em  diante,  a  Igreja  neste  último  sentido,  —  uma  comunhão  de 
homens  e  de  mulheres  «em  Cristo»  —  não  tem  qualquer  significação  para 
S.  Paulo,  exceto  como  uma  comunhão  viva  de  uns  para  os  outros,  por 
virtude  da  comunhão  de  cada  um  com  Cristo. 


—  81  — 


b)    Homens  em  Cristo 

Quaisquer  que  possam  ser  as  dúvidas  a  respeito  do  inteiro  significada 
da  expressão  favorita  de  Paulo,  «em  Cristo»,  de  uma  coisa  não  pode  haver 
dúvida  e  é  que,  «estar  em  Cristo»  significa  completa  mudança  espiritual. 
Os  que  estão  «em  Cristo»,  não  somente  receberam  nova  posição  e  estão 
relacionados  com  uma  nova  fonte  de  fôrça:  a  êles  pertence  o  permitirem 
ser  possuídos  por  Cristo,  esforçarem-se  por  conformar  as  vidas  por 
Cristo,  tratarem  de  «aprender»  a  Cristo,  «conhecer»  a  Cristo  (Efes.  4:20). 
A  paixão  deles  é,  ou  devia  ser,  tornarem-se  um  com  o  propósito  de  Deus 
em  Cristo.  Nesta  completa  renovação  espiritual  incluem-se  tôdas  as 
facetas  da  mudança  interior  de  que  comumente  se  fala  como  de  regene- 
ração, conversão,  arrependimento.  Conquanto  diversos  possam  ser  os 
tipos  atuais  de  experiência  espiritual,  dependentes  como  são  do  background 
do  indivíduo  e  da  operação  particular  da  graça  de  Deus,  conforme  vere- 
mos mais  adiante,  homens  em  Cristo  são  as  pessoas  em  quem  foi  implan- 
tado um  novo  princípio  de  vida,  pessoas  cuja  direção  de  vida  difere  da 
massa  da  humanidade  e  cuja  visão  tem  sido  reorientada  para  Deus.  Re- 
sumem em  si  a  tríplice  realidade  da  regeneração,  conversão  e  arrepen- 
dimento. Quando  são  fiéis  a  sua  nova  condição  e  relações,  Cristo  é  a 
sua  vida,  como  era  para  Paulo.  Cristo  toma-se  o  solo  em  que  crescem, 
a  atmosfera  em  que  respiram,  a  fonte  e  o  objetivo  da  sua  inteira  exis- 
tência de  homens.  O  homem  que  escreveu  a  Carta  aos  Efésios  falava 
de  si  mesmo  como  de  um  «homem  de  Cristo»  (2  Cor.  12:2)  e  disse  «Para 
mim  o  viver  é  Cristo»,  isto  é,  «A  Vida  significa  Cristo  para  mim»> 
(Fili.  1:21). 

Tais  homens  são  «pessoas»,  no  sentido  cristão  e  único  verdadeiro  do 
têrmo.  Responderam  a  Deus.  São  verdadeiros  homens  porque  vieram 
a  conhecer  o  Homem  e  submeter-se  a  Êle  e  aos  desígnios  de  Deus  nÊle^. 
Por  causa  da  sua  relação  para  com  Jesus  Cristo,  a  imagem  de  Deus,  essa 
semelhança  com  Deus  que  era  a  essência  da  natureza  humana  dêles,  rea- 
parece na  existência  atual.  A  sua  virilidade  é  restaurada  em  Cristo. 
Quando  abandonam  o  esforço  de  ser  Deus,  e  ao  invés  disso,  se  submetem 
a  Deus,  renasce  a  sua  humanidade,  isto  é,  a  sua  verdadeira  natureza 
humana.  O  verdadeiro  movimento,  portanto,  é  da  essência  para  a  exis- 
tência e  não  da  existência  para  a  essência. 

Os  que,  à  semelhança  do  francês  Sartre,  afirmam  que  o  homem  não 
tem  essência,  que  a  única  coisa  que  se  pode  saber  acerca  dêle  é  que  existe, 
dizem  isso  em  virtude  da  sua  negação  da  existência  de  Deus.  E'  ver- 
dade, de  fato,  como  Dostoevski  disse  que,  «se  Deus  não  existisse  tudo 
seria  possível».  A  tarefa  humana  consistiria,  então,  na  busca  de  uma 
essência,  de  uma  verdadeira  natureza.  Mas  o  homem  tem  uma  essência, 
que  se  corrompeu;  em  Cristo  porém,  restaurou-se  essa  essência  pura  e 
imaculada.  Os  homens  «em  Cristo»  se  redescobrem,  quando  O  descobrem. 
A  sua  essência  humana  torna -se  manifesta  na  sua  existência  semelhante 
a  Cristo.  Um  pensador  muito  maior  do  que  Sartre,  o  espanhol  Una- 
muno,  diagnosticou  que  a  verdadeira  dificuldade  do  ateu  em  ser  a  veri- 


—  82  — 


ficação  que,  tivesse  éle  de  admitir  a  existência  de  Deus,  teria  de  ser  tipo 
muito  diferente  de  personalidade  do  que  êle  sabia  ser.  Em  um  famoso 
soneto,  Unamuno  põe,  nos  lábios  ingénuos  e  cândidos  do  ateu  estas 
palavras: 

«Se  Tu  existirás,  existiria  eu  também,  deveras»  (O.  O  problema 
humano  perene  é  a  recusa  do  homem,  por  orgulho  ou  médo,  de  aceitar 
o  dom  divino  da  verdadeira  existência,  que  lhe  é  oferecido  «em  Cristo». 

Nada  há  comparável  à  experiência  de  «existir  realmente»,  à  expe- 
riência désse  arrebatamento  de  alma  que  sobrevêm  quando  uma  pessoa 
chega  à  compreensão  do  significado  de  estar  «em  Cristo».  Quando  a 
varonilidade  é  restaurada  em  Cristo,  a  alma  cristã  se  toma  mais  do  que 
um  mero  tipo.  Quem  desperta  para  o  que  significa  estar  «em  Cristo», 
toma-se  «indivíduo»,  em  forma  muito  mais  intensa  do  que  já  fôra  antes. 
Porque  a  glória  de  Deus,  conforme  se  revela  na  Bíblia  e  em  Jesus  Cristo, 
é  que  Êle  individualiza.  Para  aplicar  um  verso  do  velho  William  Blake, 
Deus  não  salva  e  rotula  os  homens  por  atacado.  Em  um  dos  Salmos 
(87:4-6)  representa-se  a  Deus  registrando  em  Seu  recenseamento  os 
nomes  dos  egípcios  e  dos  babilónios  individualmente,  déste  modo  consi- 
derando-os  como  filhos  nativos  de  Sião.  Os  homens  que  estão  «em 
Cristo»  têm  mais  do  que  consciência  de  grupo.  A  inteira  significação  de 
estar  «em  Cristo»,  de  ser  «filhos  de  Deus»,  não  se  abre  diante  do  povo, 
a  não  ser  que  se  tenha  chegado  à  consciência  do  amor  pessoal  de  Deus 
para  com  êles,  como  indivíduos.  Nada  existe  de  mais  elementar  na 
religião  cristã,  nada  que  possa  mais  completamente  desenvolver  a  signi- 
ficação de  ser  «filhos  de  Deus»,  de  estar  «em  Cristo  Jesus»,  do  que  a 
consciência  de  uma  dívida  de  gratidão  pessoal  para  com  Jesus  Cristo 
e  de  uma  relação  pessoal  para  com  Êle.  Conquanto  seja  verdade  que 
um  sentido  tão  dominante  de  se  pertencer  a  Cristo  possa  produzir  o 
individualismo  cristão  e  tornar  muitas  vêzes  difícil  a  consecução  da  ação 
coletiva  e  do  sentido  eclesiástico,  é  igualmente  verdade  que  não  pode 
haver  substitutos  para  «almas»,  para  indivíduos  afetuosos  e  fortes,  que 
saibam  de  quem  são  e  a  quem  servem,  e  que  possam  dar  a  razão  da 
«esperança  que  há  nêles». 

Fica-se  surpreendido,  neste  respeito,  descobrir  como  possa  um  co- 
mentador contemporâneo  da  Epístola  aos  Efésios,  fazer  afirmação  desta 
espécie:  «Têem-se  feito  muitas  tentativas  para  expor  o  que  Paulo  signifi- 
cava pela  frase  «em  Cristo».  Êle  diz:  «precisamos  de  estar  acautelados  com 
os  que  falam  de  união  pessoal  mística  com  Cristo.  Há  pouco,  em  Paulo, 
de  pietismo  individual,  ou  de  místico  ou  de  Evangelismo.  Porque  êle 
era  judeu  e  os  judeus  pensam  em  têrmos  de  corporação».  (2)  Mas 
esta  idéia  ignora  completamente  o  fato  de  que  nos  Salmos,  o  maior  repo- 
sitório de  devoção  religiosa,  um  escritor  devoto  pode  dirigir-se  sem  inter- 
mediários a  Deus  e  dizer  :«Tu  és  meu  Deus»,  e  esquece  que  Paulo,  o 
judeu  que  tinha  o  mais  perfeito  senso  de  aspeto  corporativo  e  eclesiástico 

(1)  "Si  tu  existidas  existiria  yo  también  de  veras". 

(2)  F.  C.  Syngt',  St.  PauVs  Epistle  to  thc  Ephesimus^  p.  2. 


do  Cristianismo  do  que  qualquer  mortal  jamais  teve,  não  somente  escre- 
veu: «Cristo  amou  a  Igreja  e  a  Si  mesmo  Se  entregou  por  ela»  (Efes. 
5:25)  mas  também:  «Que  me  amou  e  Se  deu  a  Si  mesmo  por  mim»  (GaL 
2:20).  Correspondendo  a  esse  amor  de  Cristo  individualmente,  Paulo 
de  Tarso  teve,  através  de  sua  vida  inteira,  senso  apaixonado  de  relação 
pessoal  com  Jesus  Cristo  —  chama-se  a  isto  misticismo,  pietismo  ou  o 
quer  que  seja.  F.  W.  H.  Myers  é  absolutamente  fiel  ao  registro  neotes- 
tamentário  quando,  em  sua  obra  S.  Paulo,  faz  o  homem  que  «viu»,  que 
«ouviu»  a  Cristo,  que  foi  «crucificado»  com  Cristo,  que  «vive»  em  Cristo, 
dizer: 

«Cristo!    Eu  sou  de  Cristo! 
Que  este  nome  seja  suficiente 
Para  Vós  também». 

A  verdade  clara  é  que  ênfase  exclusiva  ou  super-ênfase  na  signi- 
ficação corporativa  ou  eclesiástica  de  estar  «em  Cristo»,  tende  a  destruir 
a  coisa  mais  básica  e  mais  sem-preço  que  existe  na  herança  cristã.  É 
precisamente  o  que  tem  acontecido  na  tradição  católica  romana,  espe- 
cialmente em  países  hispânicos.  O  sentimento  de  camaradagem  viva 
com  o  Senhor  Ressuscitado  é  desencorajado  e  desaparece  progressiva- 
mente. A  Igreja,  que  se  tem  tornado  a  dona  de  Cristo,  ao  invés  de 
conservar  a  condição  de  serva  Sua,  provê  para  os  fiéis,  em  uma  multi- 
plicidade de  Virgens  e  de  Santos,  tôda  a  sorte  de  objetos  para  a  sua 
ardente  devoção.  O  Senhor  mesmo  é  guardado  debaixo  da  mais  estrita 
vigilância.  Deve-se,  pois,  ficar  admirado  que  este  medo,  êste  terror 
literal  do  individualismo  cristão  seja,  conforme  a  evidência  contempo- 
rânea, a  melhor  preparação  possível  para  o  comunismo?  Quando  se 
ensina  a  alma  cristã  a  perder-se  numa  massa  religiosa,  em  uma  vasta 
corporação  eclesiástica,  não  lhe  é  difícil,  quando  perde  a  sua  religião, 
o  perder-se  na  massa  secular,  em  um  vasto  coletivismo  político.  E  tal 
está  acontecendo  em  uma  época  em  que,  conforme  bem  informados  estu- 
diosos do  Comunismo  Russo,  começa  de  novo  a  impôr-se  uma  compre- 
ensão da  importância  do  individual  e  do  pessoal  (3).  Nada  há  que  possa 
enfrentar  o  flagelo  da  anonímia  do  nosso  tempo,  na  ordem  secular  como 
na  religiosa  também,  senão  um  ressurgimento  do  cristianismo  evangé- 
lico, um  redescobrimento,  por  isolados  átomos  humanos,  do  que  signi- 
fica estar  «em  Cristo». 

c)    Pela  Graça 

Mas,  como  chegam  os  homens  a  estar  «em  Cristo?».  Como  nasce  a 
personalidade  cristã?  Como  é  que  são  os  homens  «salvos»,  libertados 
do  egocentrismo  para  o  cristocentrismo?  A  resposta  que  dá  S.  Paulo, 
na  sua  Carta  aos  Efésios  é:  «Pela  Graça»  (2:8),  pela  Graça  de  Deus. 
Por  «graça»,  Paulo  dá  a  entender  o  amor  de  Deus,  ativo,  compassivo, 
remidor.  É  a  atividade  do  Seu  amor,  é  o  Seu  favor  imerecido,  é  o  Seu 
ágape  que  «predestinou»  os  homens  para  serem  «Seus  filhos»,  que  provou 

(3)    Sir  John  Maynard,  Bus9ia  in  Flux,  p.  492. 


—  84  — 


a  Jesus  Cristo,  o  Redentor  (1:6)  e  que,  amorosa  e  poderosamente,  influen- 
ciou as  vidas  dos  homens,  a  fim  de  que  pudessem  crer  em  Cristo  e 
receber  o  perdão  dos  seus  pecados  (1:7). 

A  ênfase  de  Paulo  na  Graça  de  Deus  coloca-nos  face  a  face  com  o 
fato  de  que  temos  de  tratar,  não  com  uma  ordem  ideal  passiva,  mas 
com  o  amor  ativo.  Os  seres  humanos  não  são  convidados  a  suspirar 
por  um  reino  espiritual  de  formas  e  satisfações  perfeitas.  Não  se  con- 
vidam os  homens  para  que  a  si  se  ergam,  por  um  supremo  ato  da 
vontade,  do  seu  rastejar  mundano,  para  vôos  para  o  alto,  nas  asas  de 
águia,  aos  «lugares  celestiais»,  onde  Deus  mora  e  está  pronto  a  recebê-los. 
Não;  Deus  vem  à  alma,  agora,  como  veio  ao  mundo  em  Jesus  Cristo. 
Êle  ama  apaixonadamente  os  homens  em  todos  os  seus  desvios  e  modos 
pouco  amáveis.  O  Seu  amor  os  segue,  cerca-os  em  todos  os  escuros 
recessos  da  sua  perdição  e  da  sua  alienação.  Para  as  grandes  menta- 
lidades da  Grécia,  a  piedade  que  tal  atitude  pressupunha  era  doença: 
A  Divindade,  por  certo,  não  podia  ser  menos  impassível  e  impertur- 
bável do  que  o  homem  ideal.  O  hinduísmo  nunca  tem  podido  relacionar 
o  amor  de  Deus  com  o  amor  dos  homens.  O  amor,  no  hinduísmo, 
promove  a  abstenção  de  prejudicar,  mas  não  produz  a  paixão  de  curar. 
Mas,  no  que  diz  respeito  ao  Deus  e  Pai  de  Jesus  Cristo,  pode-se  dizer: 
«Onde  abundou  o  pecado,  superabundou  a  graça»  (Rom.  5:20). 

Mas,  como  vem  Deus  à  alma?  De  que  modo  opera  a  Sua  Graça? 
Algumas  vêzes  violentamente,  como  a  «arrebentação  do  mar».  Algu- 
mas vêzes,  ela  troveja  como  os  aríetes  de  Boanerges»,  que  batia  à  Porta 
do  Ouvido  em  Alma  Humana.  (4)  Algumas  vêzes  leva  um  homem  a 
dizer  como  o  Peregrino  de  Bunyan:  «Fui  obrigado  a  sair  da  minha 
pátria  por  causa  de  um  som  terrível  que  me  estava  nos  ouvidos:  a  saber, 
que  estaria  infalivelmente  perdido  se  ficasse  ali»  (5).  Ela  veio  a  Paulo 
em  uma  Voz  que  o  deteve  no  seu  fervor  anti-cristão:  «Saulo,  Saulo. 
por  que  me  persegues?»    (Atos  9:4). 

Outras  vêzes,  a  Graça  de  Deus  manifesta-se  menos  dramática,  mas 
nem  por  isso  menos  eficcizmente.  Vem  à  alma  «como  uma  vozinha 
mansa».  Ela  vem  como  «a  bater  de  asas,  as  plumas  diáfanas  da  asa 
de  um  pássaro  contra  as  portas  fechadas  de  barro».  Ou  vem  em  tris- 
teza, que  se  transforma  na  sombra  da  mão  de  Deus,  «carinhosamente 
estendida».  (6). 

Quanto  à  maneira  pela  qual  a  Graça  opera,  tudo  depende  da  situa- 
ção humana,  do  estado  de  alma.  Mas,  em  todos  os  casos,  a  fôrça  é 
combinada  com  a  beleza.  E,  em  cada  exemplo,  o  que  Deus,  em  Sua 
Graça,  quer,  é  uma  resposta,  disposição  de  deixar  entrar  Aquêle  que 
bate  à  porta,  de  abrir  as  janelas  à  luz,  de  aceitar  as  propostas  do  amor, 
de  submeter-se  à  voz  imperiosa  que  diz:  «Segue-me».  Mas  qualquer 
que  seja  a  maneira,  de  aproximação,  desde  que  a  resposta  seja  real,  o 


(4)  John  Bunyan,  A  Guerra  Santa. 

(5)  O  Peregrino. 

(6)  Francis  Thompson,  The  Hovnd  of  Heaven. 


ritmo  da  vida,  dêsse  ponto  em  diante,  é  «para  o  louvor  da  glória  da 
Sua  Graça».  (Efes.  1:6). 

Porque  a  Graça  de  Deus  não  opera  apenas  uma  vez  na  vida  da 
pessoa  que  se  submete  a  ela.  O  princípio  da  sola  gratia  («a  graça  só») 
continua  através  da  vida  tôda.  Os  cristãos  vivem  pela  Graça  de  Deus. 
Em  sua  fraqueza,  quando  a  fôrça  humana  se  tem  refluído  e  tôdas  as 
aparências  são  contra  a  alma  cristã,  soa  a  mesma  voz,  essa  Voz  sem 
tempo:  «Basta-te  a  minha  graça»,  (2  Cor.  12:9).  Com  razão  Paulo, 
costumava  concluir  suas  cartas,  da  mesma  maneira  que  a  própria  Bíblia 
também  conclui,  com  as  palavras:  «A  Graça  de  Nosso  Senhor  Jesus 
Cristo  seja  com  todos  vós»  ou  «com  todos  os  santos». 

d)    Por  meio  da  Fé. 

Mas  como,  do  ponto  de  vista  humano,  torna-se  a  Graça  de  Deus 
realmente  eficaz  na  vida?  Qual  a  natureza  da  resposta  que  introduz 
a  vida  do  homem  na  esfera  da  ação  de  Deus?  Porque  Deus  nunca  viola 
a  personalidade  humana.  Êle  nunca  se  introduz  onde  não  é  desejado. 
Êle  correu  o  risco  de  conceder  liberdade  de  escolha  ao  homem,  em  sua 
criação  original;  continua  a  respeitar  o  livre  arbítrio  do  homem  de 
aceitar  ou  de  rejeitar  a  Sua  Graça.  A  resposta  positiva  do  homem  à 
Graça  de  Deus  é  a  Fé.  «De  Graça  é  que  sois  salvos»,  diz  Paulo,  «por 
meio  da  Fé»  (Efes.  2:8). 

A  Fé  é  o  campo  aberto  para  a  entrada  de  Deus.  Ê  a  decisão  de  se 
aceitar  o  que  Deus  dá,  deixar  Deus  operar  em  nós,  da  mesma  maneira 
que  tem  operado  por  nós.  É  o  abrirmos  todo  o  ser  à  entrada  de  Deus 
como  o  Salvador  da  vida;  é  a  resposta  completa  do  espírito  humano  ao 
mandamento  de  Deus  como  Senhor  da  Vida.  É,  no  mais  profundo  dos 
sentidos,  atitude  de  confiança  em  Deus.  A  fé  cristã  é  muitíssimo  mais 
do  que  se  tem  chamado  o  «princípio  protestante»,  isto  é,  certo  senso 
crítico  do  além,  uma  saída  para  o  desconhecido,  uma  dissatisfação  com 
tudo  quanto  se  tem  conseguido  até  aqui.  Ao  contrário,  a  fé  cristã  é 
entrega  de  aventura,  muito  definida  e  muito  confiante,  a  Deus  mesmo, 
que  introduz  na  alma,  pela  porta  aberta  da  fé,  tudo  o  que  na  Bíblia  se 
entende  por  «Seu  Reino»,  Sua  «Justiça»,  Sua  «Luz»,  Seu  «Conhecimento«, 
Sua  «Glória».  Por  meio  da  Fé  surge  nova  era  de  Deus;  por  meio  da  Fé, 
vem  a  sua  nova  ordem.  Assim,  a  f é  é  a  recepção  que  dá  nova  percepção. 
É  o  reconhecimento  do  fato  de  que  vivemos  a  conhecer  a  Deus  quando 
nos  tivermos  tomado  conhecidos  de  Deus;  porque  o  Deus  que  viremos 
a  conhecer  é  o  Deus  que  vem  ao  nosso  encontro.  Êle  vem  ao  nosso 
encontro,  em  Sua  Graça,  para  que  possamos  ir  a  Êle,  com  a  nossa  fé. 

Se,  em  termos  gerais,  fé  é  isto,  é  preciso  que  claramente  se  dis- 
tinga esta  interpretação  do  modo  por  que  se  estabelece  o  contacto  entre 
Deus  e  o  homem  de  outras  que  se  têm  proposto.  Propuseram-se  diversos 
pontos  de  vista  de  como  se  pode,  em  última  análise,  alcançar  a  verdade, 
ideal,  como  se  pode  realizar  o  bem-estar  da  humanidade.  Tôdas  estas 
opiniões  atribuem  sempre,  em  um  ou  outro  sentido,  a  iniciativa  ao  pró- 


—  86  — 


prio  homem,  de  tal  modo  que  o  produto  é  sempre  uma  realização  do 
homem . 

O  primeiro  caminho  é  o  caminho  do  conhecimento.  Êsse  podia  ser 
chamado  o  caminho  grego.  Baseia-se  na  convicção  de  que  o  de  que  mais 
necessita  o  homem,  a  fim  de  cumprir  o  ideal  humano,  é  informação 
exata,  pensamento  claro,  inspirado  pelo  amor  da  verdade.  Êste  conceito 
é  a  base  fundamental  do  moderno  desenvolvimento  cultural.  Pressupõe 
duas  coisas  que  brotam  da  experiência:  primeiro,  que  o  homem,  pela 
investigação,  pode  vir  a  conhecer  a  verdade  fundamental:  segundo,  que 
o  homem,  quando  os  seus  próprios  interesses  estão  em  jôgo,  é  desinte- 
ressado indagador  da  verdade.  Mas,  mesmo  admitindo-se  que  o  homem 
viesse  a  alcançar  o  perfeito  conhecimento,  sabedoria,  no  seu  sentido 
mais  absoluto,  a  sua  sabedoria  não  podia,  como  disse  Pascal,  produzir  um 
só  sentimento  de  amor.  E,  sem  amor,  nenhum  problema  humano  real 
pode  ser  resolvido.    Além  disso,  sem  amor.  Deus  não  pode  ser  conhecido. 

Em  alguns  círculos  cristãos,  há  certa  forma  do  caminho  do  conhe- 
cimento, que  merece,  de  passagem,  uma  breve  referência.  A  ortodoxia 
teológica,  isto  é,  o  pensamento  exato  acêrca  de  Deus,  é  um  ideal  nobre  e 
necessário  da  religião  cristã.  Mas,  infelizmente,  idéias  corretas  acerca 
de  Deus  podem  transformar-se  em  substituto  das  relações  justas  para 
com  Deus.  Os  homens  aceitam  idéias,  protestam  sua  lealdade  a  idéias, 
desafiam  os  outros  a  indicarem  onde  estão  erradas  as  suas  idéias.  Mas 
esquecem-se  de  que  é  perfeitamente  possível  terem  as  idéias  mais  ortodo- 
xas e  incontestáveis  a  respeito  de  Deus,  a  respeito  da  Incarnação,  da  Morte 
e  da  Ressurreição  do  Senhor  Jesus  Cristo,  e  serem  não  mais  do  que 
puros  pagãos  quanto  às  relações  para  com  Deus,  o  Pai  e  Jesus  Cristo, 
o  Filho.  Têm  conhecimento  escolástico,  mas  falta-lhes  a  fé  evangélica. 
E.  por  essa  razão,  sofrem  do  defeito  que,  segundo  Paulo,  é  inseparável 
dos  que  têm  o  conhecimento  sem  o  amor:  tornam-se  «enfatuados»  (1 
Cor.  13:4),  orgulhosos,  críticos,  áridos,  até  cruéis,  sendo  tudo  isso  terrí- 
vel testemunho  do  fato  de  que  é  possível  ter  conhecimento  acêrca  de 
Cristo  sem,  contudo,  O  conhecer.  E,  que  será  dos  que  se  orgulham 
de  ser  autoridades  em  tudo  o  que  se  relaciona  com  o  caminho  que  leva 
à  «Cidade  Celestial»  e  que,  entretanto,  nunca  trilharam  êsse  caminho 
como  peregrinos?  Existem  também  alguns  que  presumem  ter  a  quali- 
dade de  relações  ministeriais  com  a  Divindade,  que  lhes  dá  conhecimento 
autorizado  da  planta  apocalítica  de  todas  as  épocas  vindouras  e  que, 
contudo,  nunca  aprenderam  a  viver  e  a  servir  a  Deus,  no  tempo  atual. 

Um  outro  caminho  é  o  caminho  da  virtnde.  Êste  é  o  velho  caminho 
judaico.  É  o  caminho  dos  que  têm  paixão  pela  bondade,  que  se  esforçemi 
por  viver  de  acordo  com  a  Lei,  que  possuem  os  mais  elevados  ideais 
éticos.  M£is,  pondo  de  lado  o  fato  de  que  ninguém  pode  atingir  bondade 
perfeita,  tanto  como  na  forma  da  ação,  os  que  tentam  fazer  assim  tomam- 
se,  ou  fariseus  sem  alma  ou  desengonçados  neuróticos.  É  tão  verdade 
hoje,  como  sempre  foi,  que  «Pelas  obras  da  Lei  nenhuma  carne  será 
justificada»  (Gal.  2:16).    O  homem  não  alcança  a  verdadeira  virilidade, 


nem  consegue  realizar  a  vontade  de  Deus,  fazendo  de  algum  preceito 
ético  a  sua  Divindade.  A  tentativa  de  viver,  em  sentido  absoluto,  por 
prescrições  legalistas,  longe  de  conduzir  à  perfeição  ética,  destrói  a 
personalidade  moral  e  as  relações  humanas.  Boa  parte  do  mal  que 
aflige  o  mundo  deve-se  às  «boas»  pessoas,  que  insistem  na  aplicação  de 
princípios  que  são  inaplicáveis,  ou  que  forçam  os  homens  à  obediência  a 
leis  que  são  incapazes  de  observar. 

Há  também  um  modo,  que  se  podia  designar  como  o  caminho  da 
barganha.  Foi  o  caminho  dos  velhos  cananitas.  O  seu  princípio  inspi- 
rador foi  enunciado  pelas  palavras  latinas:  «Do  ut  des».  «Eu  dou 
para  que  tu  me  dês».  Os  adoradores  de  Baal  barganha vaim  com  a  sua 
divindade.  Eles  davam  para  que,  por  seu  turno,  pudessem  receber  de 
volta.  A  religião  do  ut  des  tem  caracterizado  o  catolicismo  popular 
nas  terras  da  América  Latina.  A  condição  e  o  tratamento  dado  às 
Imagens  dos  santos,  nos  lares  do  povo  simples,  dependia  da  maneira  pela 
qual  cumpriam  ou  não  as  barganhas  sagradas.  Que  é  isto  senão  o 
«caminho  da  barganha»,  relações  do  tipo  Do  ut  des  com  a  Divindade, 
o  inteiro  sistema  de  indulgências  da  Igreja  Católica  Romana?  Quando 
se  fazem  promessas  aos  adoradores,  de  que  em  troca  de  certas  somas 
de  dinheiro  se  podem  conseguir  privilégios  correspondentes  ou  satisfa- 
ções espirituais,  assistimos,  nas  relações  religiosas,  a  uma  reversão  cristã 
ao  paganismo  primitivo.  A  inculcação  da  idéia  de  que  se  podem  com- 
prar com  dinheiro  recompensas  religiosas  importando  em  favor  da  Divin- 
dade, é  negação  completa  do  significado  cristão  da  fé  e  degradação 
absoluta  da  ênfase  cristã  na  religião. 

Podem-se  mencionar  dois  outros  absolutos  espirituais  que  têm  sido, 
em  tempos  recentes,  competidores  populares  da  fé  cristã.  Um  dêles 
podia  chamar-se  o  cammho  da  ancestralidade,  o  outro  o  caminho  da 
associação.  O  Mito  do  Século  Vinte,  de  Rosemberg,  que  proclamou 
que  a  raça  nórdica  era  a  raça  messiânica,  a  raça  predestinada,  ilustra  o 
caminho  da  ancestralidade.  O  simples  fato  de  ser  alemão  dava  a  uma 
pessoa  a  mesma  condição  fundamental,  em  relação  à  Divindade,  que 
um  judeu  antigo  possuía,  em  virtude  de  ser  um  filho  de  Abraão.  No 
momento  em  que  se  dá  à  filiação  a  uma  raça  ou  nação  valor  absoluto, 
proclama-se,  uma  outra  base  de  bondade  universal  Mas,  no  Novo  Testa- 
mento soa  uma  palavra  decisiva  e  condenatória  de  tôda  a  presunção 
quanto  ao  valor  fundamental  de  nação  ou  de  raça:  «A  Escritura  encer- 
rou tudo  debaixo  do  pecado»  (Gal.  3:22).  «Não  há  justo,  nem  sequer 
um»  (Rom.  2:10).  «O  justo  viverá  da  fé»  Gal.  3:11).  Para  Deus  não 
tem  qualquer  importância  o  tronco  racial  de  que  é  oriundo  o  homem. 

O  caminho  da  associação  baseia  a  posição  e  a  dignidade  funda- 
mentais no  grupo  a  que  alguém  pertence.  O  marxismo  faz  assim  na 
glorificação  do  proletariado  revolucionário.  Quão  difícil  é  convencer  um 
marxista  de  que  «todos  pecaram  e  destituídos  estão  da  glória  de  Deus» 
(Rom.  3:23)  e  não  sómente  os  capitalistas?  A  «justiça  que  é  pela  fé» 
(Rom.  9:30)  nada  significa  para  o  marxista,  porque  «as  radiantes  forças 
do  universo»  estão  automáticamente  do  lado  das  massas  deserdadas. 


—  88  — 


Mas  o  que  é  particularmente  penoso  pensar,  contudo,  é  que  possa 
existir  uma  doutrina  da  Igreja  Cristã  tão  grosseiramente  mecânica,  a 
ponto  de  afirmar  que  simplesmente  o  fato  de  uma  pessoa  pertencer 
a  uma  instituição  chamada  Igreja  e  de  lhe  ser  leal,  garante  posição 
acreditada  junto  de  Deus.  Não  podemos  escapar  ao  fato  de  que  a  dou- 
trina romana  da  Igreja,  pela  qual,  na  base  de  incondicional  lealdade  à  ins- 
tuição,  está  a  posição  do  homem  perante  Deus  absolutamente  garantida, 
é  uma  forma  muito  crua  de  salvação  por  meio  da  linhagem.  Em  seus 
resultados  práticos,  esta  doutrina  é  obstáculo  ao  desenvolvimento  e 
amadurecimento  da  personalidade  cristã.  Em  principio,  é  uma  violação 
da  verdade  nuclear  do  cristianismo  neo-testamentário,  de  que  é  pela  fé, 
a  fé  pessoal  em  Deus,  e  tão  somente  por  uma  fé  assim,  que  uma  pessoa 
é  justificada  diante  de  Deus  e  feita  participante  da  Graça  de  Deus.  E 
ainda,  a  mesma  tendência  anti-evangélica  pode-se  encontrar  em  muitas 
igrejas  protestantes.  Quão  frequentemente  à  filiação  à  Igreja,  o  sim- 
ples pagamento  das  quotas  devidas  e  um  certo  número  de  presenças  aos 
serviços  religiosos,  apenas  para  não  ser  tirado  do  rol  da  Igreja,  torna-se 
o  equivalente  de  salvação  por  associação,  e  virtual  negação  da  salvação 
pela  fé? 

Esta  excursão  em  outros  caminhos  para  a  justiça  fundamental,  que 
são  substitutos  humanos  da  fé  em  Deus,  prepara-nos  para  tratarmos 
mais  concretamente  do  significado  da  fé.  Até  aqui,  temos  achado  que 
a  fé  é  apenas  sinceridade  para  com  Deus,  confiança  em  Deus.  Mas  a 
fé  é  sinceridade  e  confiança  inseparávelmente  relacionadas  com  Jesus 
Cristo.  Para  Paulo,  como  para  o  cristianismo  neotestamentário,  a  fé 
«salvadora»  é  a  fé  em  Jesus  Cristo  que  faz  a  alma  aberta  e  confiante 
para  com  Deus.  Como  Jesus  Cristo  está  no  centro  da  Graça  de  Deus, 
isto  é,  o  movimento  gracioso  de  Deus  em  direção  ao  homem,  Êle  não 
menos  está  no  centro  da  apreensão  e  da  resposta  do  homem  à  Graça 
de  Deus.  É  em  Cristo  que  Deus  vem  à  alma  humana;  Cristo  é  o  dom 
de  Deus  à  alma.  É  o  discernimento  que  a  alma  tem  de  Cristo,  como 
supremamente  valioso,  que  desperta  a  fé  em  resposta.  Assim,  a  própria 
fé  é  um  dom  de  Deus,  porque  é  o  encontro  com  Jesus  Cristo  e  a  cons- 
ciência da  sua  excelência  espiritual  que  lhe  dá  origem. 

A  fé  em  Jesus  Cristo  é,  por  um  lado,  um  assentimento  à  verdade 
acêrca  de  Jesus  Cristo,  e,  por  outro,  consentimento  para  com  a  realidade 
de  Cristo.  A  fé  não  toma  lugar  em  um  vácuo.  Vem  pelo  «ouvir», 
como  disse  Paulo  na  sua  Carta  aos  Romanos.  E  o  «ouvir»  vem  pela 
Palavra  de  Deus.  Cristo  é  proclamado;  as  coisas  que  lhe  dizem  respeito 
são  levadas  à  consideração  de  uma  pessoa.  O  que  a  pessoa  ouve  acêrca 
de  Cristo  recomenda-O  como  Um  cujas  pretensões  são  dignas  de  crédito 
c  como  Salvador  e  Senhor  a  quem  uma  pessoa  deve  entregar  a  vida.  O 
assentimento  a  Jesus  Cristo  não  dignifica  necessáriamente,  no  comêço 
da  fé,  a  adesão  intelectual  a  uma  elaborada  declaração  teológica  a  Seu 
respeito.  Significa  antes  que  Êle  está  diante  de  uma  pessoa  como  Um 
que  faz  apêlo  único  e  absoluto,  como  Salvador.  Então,  não  cegamente, 
mas  com  tôdas  as  suas  faculdades  em  funcionamento,  o  homem  se  dá 


—  89  — 


a  si  mesmo,  em  entrega  sem  reservas,  a  Jesus  Cristo.  Dessa  entrega 
virá,  em  devido  tempo,  conhecimento  único  de  Deus  e  experiência,  igual- 
mente única,  do  poder  de  Deus.  No  que  respeita  a  Paulo,  êle  disse  a 
Jesus  Cristo,  no  seu  primeiro  encontro:  «Senhor,  que  queres  que  eu 
faça?»  Mais  tarde,  depois  que  já  O  tinha  conhecido  de  longa  data, 
disse:  «Já  estou  crucificado  com  Cristo  e  vivo,  não  mais  eu,  mas  Cristo 
vive  em  mim;  e  a  vida  que  eu  agora  vivo  na  carne,  vivo-a  na  fé  do  Filho  | 
de  Deus,  que  me  amou  e  Se  entregou  a  Si  mesmo  por  mim»  (Gal.  2:20). 

Estando  «crucificado  com  Cristo»,  Paulo  se  considerava  como  homem 
morto  e,  assim,  não  reconhecia  acusações  do  passado  contra  êle.  Jesus 
Cristo,  com  cuja  morte  estava  identificado,  tinha  tomado  conta  de  tôda 
a  lista  passada  dos  seus  pecados.  «Estando  crucificado  com  Cristo», 
não  reconhecia,  outrossim,  pretensões  presentes  sôbre  a  sua  pessoa,  a 
não  ser  as  pretensões  de  Jesus  Cristo,  com  quem  ressurgiu  dos  mortos, 
que  nêle  vivia  e  pela  fé  em  quem  prosseguia  na  vida.  Assim,  a  fé  em 
Jesus  Cristo,  crer  realmente  em  Cristo  no  sentido  paulino,  significa  que 
Cristo  assumiu  completo  controle  do  Sêr  todo  daquele  que  crê.  A  fé 
evangélica  é  uma  coisa  muito  mais  rica  e  mais  radical  do  que  a 
simples  aceitação  do  perdão  de  Deus  por  amor  de  Cristo;  envolve 
também  a  aceitação  do  domínio  soberano  de  Cristo  nas  nossas  vidas. 
Isto  equivale  a  dizer  que,  «aceitar  a  Jesus  Cristo»  significa  não  só  aceitar 
com  gratidão  o  que  Êle  fez  a  nosso  favor,  mas  também  o  que  Êle  deseja 
fazer  em  nós  e  por  meio  de  nós.  Porque  o  Cristão  não  mais  pertence  a 
si  mesmo,  para  fazer  a  sua  própria  vontade  tão  somente;  pertence,  dai 
em  diante  e  para  sempre,  ao  Salvador  e  Senhor,  Jesus  Cristo,  que  morreu 
por  êle  e  para  êle  vive.  Recebemos  ã  Jesus  Cristo  sem  preço,  por  causa 
do  que  Êle  fêz  por  nós,  mas  torna-se  trabalho  custoso  recebê-Lo,  por 
causa  do  que  Êle  fará  em  nós.  A  livre  graça  de  Deus  em  Jesus  Cristo, 
s  que  a  fé  responde,  torna-se  graça  custosa  quando  Cristo  assume  o 
comando  da  vida. 

Quando  se  alcança  a  verdadeira  significação  da  fé  evangélica,  caem 
por  terra  certas  críticas  que  se  têm  levantado  contra  ela.  Diz-se  que  a 
doutrina  do  perdão  de  Deus,  na  base  do  que  Cristo  fêz,  envolve  uma 
grave  depreciação  da  justiça.  Também  se  tem  alegado  que  ela  tende, 
outrossim,  a  produzir  espírito  de  cínica  fanfarronice  entre  certas  pessoas: 
o  que  Cristo  fêz  por  elas  dá  à  sua  dignidade  moral  um  novo  sentido  de 
Importância  e  constitui  um  convite  a  pecar  de  novo,  a  fim  de  que  possam 
receber  o  perdão  de  Deus.  Se  o  perdão  é  assim  livre,  porque  não  se  ter 
indulgência  própria,  elevando  o  débito  moral  até  o  limite,  para  gozar  de 
todas  as  vantagens  do  perdão  divino? 

W.  H.  Auden  interpreta  êste  modo  de  oposição,  como  a  concepção 
evangélica  de  perdão.  «A  Justiça»,  faz  êle  uma  das  suas  personagens 
dizer,  «será  substituída  pela  Piedade,  como  a  virtude  humana  funda- 
mental, e  todo  o  temor  de  retribuição  desaparecerá.  Todo  moleque  de 
rua  se  felicitará:  «Eu  sou  um  tão  grande  pecador,  que  o  próprio  Deus 
tem  de  vir  em  pessoa  para  me  salvar.  É  preciso  que  eu  seja  um  autên- 
tico demónio».    Todo  trapaceiro  argumentará:    «Eu  gosto  de  cometer 


—  90  — 


crimes.  Deus  gosta  de  perdoá-los.  Na  realidade,  o  mundo  está  admira- 
velmente organizado».  E  a  ambição  de  todo  o  jovem  policial  é  garantir 
o  arrependimento  no  leito  mortuário».  (7). 

Duas  coisa  são  aqui  esquecidas.  Esquece-se  que  a  aceitação  do 
Crucificado  pela  fé  é  acompanhada  de  um  profundo  ódio  ao  pecado 
que  O  levou  à  Cruz.  Também  se  esquece  que  a  aceitação  do  Ressusci- 
tado pela  Fé  convoca  o  pecador  perdoado  para  uma  vida  nova  e  o  rela- 
ciona vitalmente  com  o  Senhor  da  Vida. 

Assim,  de  fato,  a  fé  é  tão  importante  na  vida  de  um  cristão,  que 
não  é  apenas  o  meio  pelo  qual  êle  entra  na  vida,  como  também  se  torna 
a  atitude  permanente  de  sua  vida.  Um  cristão  não  somente  começou 
a  viver  quando  a  fé  o  despertou.  A  sua  vida  recem-despertada  tornou-se 
vida  de  fé.  «O  justo  viverá  da  fé»,  disse  Paulo.  Os  crentes  irão  de  «fé 
em  fé».  Quando  vão,  é  para  a  frente  que  vão,  em  demanda  de  uma 
fronteira  da  vida,  depois  de  outra.  Não  fecharão  os  olhos  aos  fatos. 
Não  cairão  em  um  estado  de  otimísta  decepção  própria,  crendo  que,  no 
fim,  tudo  sairá  bem.  Ao  contrário,  viverão  pela  graça  e  seguirão  nos 
passos  do  «Pioneiro  e  Aperfeiçoador  da  fé»,  o  Cristo  que  os  chamou 
para  uma  vida  de  peregrinos  e  de  cruzados. 

e)    Para  a  Paz. 

Mas  uma  vida  assim,  vivida  nas  fronteiras  do  pensamento  e  da  ação, 
é  condicionada  pela  realidade  da  paz.  A  fé  produz  a  paz  e  a  paz  se 
transforma  em  condição  de  contínuo  exercício  da  fé.  «A  Paz  de  Deus», 
torna-se  a  guardiã,  a  custódia  da  alma  cristã. 

A  Carta  aos  Efésios  lança  luminoso  jato  de  luz  sôbre  o  lugar  e  a 
significação  da  paz  na  vida  dos  homens  novos.  Antes,  tinham  êles 
vivido  em  estado  de  tensão  e  de  luta.  Tinham  sido  alienados  de  Deus 
e  tinham  estado  em  inimizade  uns  com  os  outros.  «Mas  agora  em 
Cristo  Jesus  vós,  que  antes  estáveis  longe,  já  pelo  sangue  de  Cristo, 
chegastes  perto.  Porque  Êle  é  a  nossa  paz,  o  qual  dos  dois  (judeus  e 
gentios)  fez  um;  e  derrubou  o  muro  de  separação,  a  inimizade  para  que 
dos  dois  Êle  criasse  em  si  mesmo  um  homem  novo,  fazendo  assim  a 
paz,  e  que  reconciliasse  ambos  em  um  só  corpo,  com  Deus  mediante 
a  Cruz»  (2:13-16). 

A  Paz,  bem  como  a  Graça  e  a  Fé,  está  intimamente  associada  com 
Jesus  Cristo.  «Êle  é  a  nossa  Paz».  É  necessário  dizer  duas  cousas  a 
respeito  da  paz  que  Cristo  dá.  E'  paz  que  se  baseia  na  reconciliação  e  é 
também  paz  que  é  realizada  pela  ação. 

A  paz  cristã  é  baseada  na  reconciliação.  É,  primariam.ente,  paz  com 
Deus,  a  paz  que  vem  quando  cessa  a  alienação  e  a  alma  se  aproxima 
de  Deus.  É  um  visão  da  Cruz,  do  significado  profundo  do  «sangue  de 
Cristo»  que  produz  este  sentimento  de  reconciliação  entre  Deus  e  o 
homem.  Instala  a  paz  em  um  espírito  que  é  infeliz,  sem  repouso  e 
apreensivo,  por  causa  do  sentimento  de  pecado  e  de  culpa. 

(7)    Cf.  A  Christmas  Oratório. 


—  91  — 


Em  nenhum  lugar  da  literatura  cristã,  é  tão  perfeitamente  descrita 
a  relação  entre  a  paz  espiritual  e  a  visão  da  Cruz,  como  no  «Peregrino», 
de  Bunyan.  «Exatamente  quando  Cristão  chegou  junto  da  Cruz»,  lemos, 
«o  seu  fardo  se  lhe  caiu  dos  ombros,  escorregando  pelas  suas  costas . . . 
Então,  cheio  de  contentamento  e  aliviado,  êle  exclamou  com  o  coração 
repleto  de  felicidade:  «Êle  me  deu  paz  pelos  Seus  sofrimentos  e  vida 
pela  Sua  morte».  Chorando  pura  alegria  e  com  o  coração  pleno  de 
profunda  paz,  êle  deu  três  pulos  de  alegria  e  foi  embora  cantando: 
«Bendita  seja  a  Cruz! 

Bendito  seja  o  Sepulcro! 
Muito  mais  bendito  ainda 

Seja  o  Homem  que,  por  mim, 
foi  pôsto  sob  condenação!» 

O  homem  que  conhece  a  paz  que  se  origina  no  sentimento  dos  peca- 
dos perdoados  e  da  reconciliação  com  Deus,  está  predisposto  para  a 
reconciliação  com  os  que  antes  odiava.  O  velho  ego  cheio  de  orgulho 
e  de  importância  própria,  que  sempre  encontra  alguma  ocasião  para 
mostrar  ressentimento,  passou  através  da  agonia  da  morte,  entrando 
na  alegria  e  na  paz  da  nova  vida.  O  homem  novo,  aliviado  e  livre  e 
cheio  de  gratidão  a  Deus  pela  Sua  indizivel  bondade  para  consigo,  torna- 
se  agente  da  bondade  e  da  paz  de  Deus  nas  vidas  dos  outros.  Paulo 
menciona  como,  por  meio  da  Cruz,  a  histórica  separação,  a  hostilidade 
profundamente  localizada  entre  judeus  e  gentios  foi  vencida.  Cristo 
reconciliou  a  ambos  com  Deus  e  os  fêz  um  corpo  só  em  Si  mesmo.  A 
paz  que  reinou  entre  os  cristãos  gentios  e  judeus  não  era  baseada 
em  um  recem-nascido  espirito  de  apreciação  mútua  desejoso  de  esquecer 
o  passado;  não  era  aliança  recém-formada  para  promover  certos  fins 
comuns.  Era  antes  paz,  reconciliação,  realizada  pelo  fato  de  que  os 
velhos  problemas  eram  todos  problemas  mortos.  Agora  eles  eram  um 
em  Cristo  Jesus;  êles  eram  conjuntamente  membros  de  um  único  corpo. 
Eis  aqui  claramente  a  norma  de  tratamento  para  tôda  a  qualidade  de 
antagonismo  humano.  Sejam  todos  os  inimigos  trazidos  para  perto  de 
Deus,  na  Cruz  de  Cristo,  e  ali,  recebendo  o  perdão  de  Deus  e  perdoando-se 
uns  aos  outros,  tornem-se  um  só  corpo.  Daí  em  diante,  conheçam  a 
«comunhão  do  sangue  de  Cristo»  (1  Cor.  10:16).  Seja  agora  o  sangue, 
a  vida  que  lhes  foi  dada  comunicada  a  êles  e  surja  por  meio  dêles,  como 
membros  de  um  único  corpo.  É  a  vontade  de  Deus  que  a  unidade  corpo- 
rativa constituída  de  grupos,  antes,  grupos  antagónicos,  quando  a  paz 
de  Deus  reina  em  todos  os  corações,  seja  padronizada  na  primeira  e 
mais  decisiva  reconciliação.  Entre  os  «homens  em  Cristo»  absoluta- 
mente não  há  lugar  para  se  manterem  direitos  e  prioridades,  para  se 
perpetuarem  prejuízos  e  antipatias  que  caracterizavam  as  primitivas 
relações  entre  êles,  como  membros  de  diferentes  raças,  nacionalidades, 
classes  e  castas. 

Tal  paz,  tal  unidade  harmoniosa,  contudo,  somente  pode  ser  man- 
tida em  ação.    A  paz  cristã  não  é  um  fim  em  si:  é  um  meio  para  o 


—  92  — 


alcance  de  um  fim.  É  o  requisito  indispensável  para  que  seja  feita  a 
vontade  de  Deus  pelo  indivíduo  cristão  ou  por  um  grupo  cristão.  No 
momento  em  que  a  paz  for  procurada  como  o  mais  desejável  objetivo 
da  vida,  está  irremediávelmente  perdida.  A  paz  permanente  é  como  a 
felicidade:  Deus  a  dá  somente  àqueles  que  O  servem.  É  só  dada  aos 
que  estão  desejando  conhecer  somente  a  Jesus  Cristo  e  Êste  crucificado» 
(1  Cor.  2:2).  «A  paz  de  Deus  que  excede  a  todo  o  entendimento»  é 
dada  aos  peregrinos  e  aos  cruzados.  Ela  lhes  é  concedida  à  beira  do 
caminho,  quando  repousam  do  seu  trabalho,  a  fim  de  equipá-los  para 
mais  trabalho  ainda.    É  a  paz  no  Caminho  e  para  o  Caminho. 

Esta  paz  é  inestimávelmente  descrita  em  «A  Viagem  do  Peregrino». 
Cristão  foi  hospedado  em  uma  casa  da  beira  do  caminho,  por  Piedade, 
Prudência  e  Caridade.  «Êles  discutiram  juntos  até  alta  noite;  e  depois 
que  se  tinham  encomendado  à  proteção  do  Senhor,  foram  repousar. 
Pnseram  o  peregrino  em  um  grande  quarto  de  cima,  cuja  janela  dava 
para  o  nascente:  o  nome  do  quarto  era  Paz,  Ali  ele  dormiu  até  o  romper 
do  dia».  De  manhã  Cristão  despediu-se  das  hospedeiras.  Antes  de  ter- 
minar o  dia,  êle  já  tinha  lutado  com  o  demónio  Apolião,  no  vale  da 
Humilhação,  na  maior  batalha  da  sua  carreira;  e  durante  a  maior  parte 
da  noite  que  se  seguiu,  marchou  pelo  meio  dos  horrores  do  Vale  da 
Sombra  da  Morte.  Mas  a  Paz  lhe  havia  fortalecido  o  coração  e  êle  não 
conheceu  o  medo.  A  paz  cristã  é  a  paz  para  o  sol  nascente,  como  tam- 
bém para  o  vale,  profundo  onde  a  luz  não  brilha  de  dia.  E'  paz  para  as 
tre\?^s  que  descem  quando  o  sol  se  vai;  é  paz  também  para  a  «manhã  sem 
nuvens»  que  fica  além  do  vale,  no  reino  em  que  o  viajante  «repousará 
finalmente». 

E'  simplesmente  natural  que  a  paz  cristã  deva  ser  assim,  se  ela  é  real- 
mente a  «Paz  de  Cristo».  Quando  Jesus  Cristo  disse  aos  seus  discípulos: 
<  A  minha  paz  vos  deixo,  a  minha  paz  vos  dou»  (João  14:27),  era  a 
noite  de  véspera  da  Sua  morte.  Êle  estava  perfeitamente  cônscio  do 
que  estava  diante  dÊle,  mas  a  Sua  alma  estava  em  paz.  Essa  paz,  Êle 
a  legava  aos  Seus  discípulos  como  Sua  mais  preciosa  herança.  A  paz 
que  Jesus  Cristo  dá  aos  Seus  seguidores  é  a  paz  para  a  ação,  a  paz  para 
o  Caminho,  a  paz  para  fazer  a  vontade  de  Deus.  Não  é  a  paz  dos 
cemitérios,  onde  a  beleza  calma  reina  no  meio  da  morte.  É  antes  a 
paz  do  rio  em  caminho,  desde  os  planaltos  até  o  mar.  O  rio  está  em 
paz  porque  o  seu  leito  está  feito.  Se  as  águas  se  atiram  em  corre- 
deiras, ou  redemoinham  pelas  cavernas  sem  sol,  ou  espelham  a  luz 
do  sol  em  seu  caminho  através  de  alguma  plácida  campina,  o  rio  está 
em  paz.  Está  em  paz  porque,  além  das  montanhas  e  das  planícies,  dos 
barcos  e  dos  moinhos,  fica  o  oceano  e  o  «descanso  que  permanece». 

f)    Para  as  «Boas  Obras»  no  serviço  da  Igreja. 

Os  homens  a  quem  Deus  «vivifica»,  que  se  tornaram  «homens  em 
Cristo»,  estão  «destinados»  por  Deus  a  uma  vida  de  bondade  ativa.  A 
manifestação  suprema  da  sua  condição  espiritual  e  da  atividade  operante 
da  Graça,  da  Fé  e  da  Paz  em  suas  vidas,  encontra-se  em  suas  «boas- 


—  93  — 


obras»,  nos  frutos  práticos  que  produzem.  Nunca  se  deixa  impressionar 
com  a  ênfase  que  o  Novo  Testamento  põe  no  procedimento,  como  a  condi- 
ção sine  qua  non  da  verdadeira  religião  e  o  critério  fundamental  pelo  qual 
será  julgada  pelo  homem.  Soma  alguma  de  conhecimento,  por  verda- 
deiro que  seja,  soma  alguma  de  discursos  acêrca  do  verdadeiro  cristia- 
nismo ou  de  violento  libelo  contra  o  falso  cristianismo,  jamais  poderão 
constituir  substitutos  das  «obras  de  amor». 

Em  «A  Viagem  do  Peregrino»  de  Bunyan  —  para  citar  mais  uma 
vez  esta  obra  clássica  da  vida  cristã  —  existe  uma  descrição  inestimável 
e  sóbria,  como  eu  a  tenho  julgado,  de  um  homem  chamado  Loquaz, 
que  era,  no  seu  próprio  sentir,  modêlo  de  cristão.  Quando  convidado  por 
Fiel  a  declarar  as  suas  opiniões  sôbre  a  evidencia  externa  de  um  verda- 
deiro cristão,  um  que  conhecesse  a  graça  de  Deus  em  verdade,  Loquaz 
deu  estas  duas  caraterísticas:  primeiro,  «uma  grande  gritaria  contra  o 
pecado»  e,  segundo,  «um  grande  conhecimento  dos  mistérios  do  Evange- 
lho». Com  fulminante  desprêzo  e  provas  biblicas,  Fiel  rejeita  ambos 
os  critérios.  Uma  coisa,  diz  êle,  é  gritar  contra  o  pecado  dos  outros  e 
outra  mui  diferente  é  aborrecê-lo  em  si  mesmo.  E,  quanto  ao  conhe- 
cimento da  verdade  divina,  «uma  pessoa»,  diz  Fiel,  «pode  conhecer  tanto 
como  um  anjo  e,  contudo,  não  ser  cristão». 

E  não  menos  verdade  é  que  os  «homens  em  Cristo»  devem  viver 
para  alguma  cousa  mais  do  que  expressão  emotiva,  quer  o  sentimento 
religioso  busque  a  sua  suprema  expressão  em  exterioridades  litúrgicas, 
quer  em  explosões  de  orgia.  Na  religião  cristã,  o  conhecimento  e  o 
sentimento  têm  lugar  nobre  e  importante,  mas  nenhum  dêles  deve  ser 
cultivado  por  amor  dêles  mesmos;  nem  qualquer  dêles  oferece  prova 
infalível  de  verdadeira  piedade.  Os  cristãos  não  se  tomam  «filhos  de 
r>eus»  pelas  suas  boas-obras,  mas  é  tão  somente  pelas  suas  boas-obras 
que  êles  provam  ser  «filhos  de  E>eus». 

As  «boas-obras»  para  que  os  «homens  em  Cristo»  são  convidados, 
manifestam-se  primariamente  no  íntimo,  e  em  favor  da  comunidade  cristã, 
a  Igreja.  O  círculo  dos  cristãos  é  a  esfera  onde  se  devem  tornar  pri- 
mariamente eficazes  as  «boas-obras».  Porque  a  comunidade  dos  remi- 
dos tem  importância  e  finalidade  que  não  pertencem  a  nenhum  outro 
grupo.  Deus,  diz  Paulo,  fêz  Cristo  «a  cabeça  sôbre  todas  as  coisas  para 
a  Igreja,  que  é  o  Seu  corpo»  (Efes.  1:22,23).  Falando  para  si  mesmo, 
Paulo  considerava  ser  o  seu  mais  alto  e  mais  significativo  procedimento 
o  sofrer  por  causa  da  Igreja,  «para  cumprir  o  que  falta  das  aflições 
de  Cristo,  em  favor  do  Seu  Corpo,  que  é  a  Igreja»  (Col.  1:24).  Deixando 
para  o  capítulo  seguinte  toda  a  discussão  a  respeito  da  natureza  funda- 
mental e  da  realidade  histórica  da  Igreja,  demos  atenção,  neste  final  de 
capítulo,  ao  fato  de  que  os  «homens  em  Cristo»,  em  virtude  de  perten- 
cerem a  Cristo,  pertencem  também  a  uma  comunidade  de  espíritos  afins, 
neste  mundo.  Isto  é  verdade,  qualquer  que  seja  o  ponto  de  vista  de 
cada  um  a  respeito  da  Igreja.  Nós  nos  relacionamos  com  Cristo,  indivi- 
dualmente, mas  não  podemos  viver  em  Cristo,  isoladamente.  A  nossa 
apresentação  a  Êle  pode  ter  sido  uma  coisa  extremamente  individual  e 


—  94  — 


auto-consciente,  como  se  a  realidade  espiritual  fôsse  limitada  a  um  encon- 
tro entre  o  Tu  infinito  e  um  Eu  pecaminoso  e  humano.  Mas  Cristo  ime- 
diatamente nos  apresenta  a  espiritos  afins  que  também  estão  «nÊle». 
Paulo  se  ausentou  durante  certo  período  para  os  desertos  solitários  da 
Arábia,  mas  finalmente  voltou  a  Damasco  e  subiu  a  Jerusalém,  a  fim 
de  conferenciar  com  os  que  estavam  «em  Cristo»  antes  dêle. 

A  comunidade  cristã  é  inevitável.  É  tanto  o  instrumento  funda- 
mental do  desígnio  de  Deus  como  a  esfera  imediata  da  ação  cristã. 
Paulo  orava  para  que  a  sua  clientela  de  leitores  espalhada  por  longe 
pudesse  chegar  a  conhecer  a  grandeza  e  a  significação  da  «herança  de 
Deus  nos  santos»  (Efes.  1:18).  Era  somente  quando  êles  viessem  «com 
todos  os  santos»  que  «poderiam  perfeitamente  compreender»  a  verda- 
deira extensão  do  «amor  de  Cristo»,  que  excede  a  todo  o  entendimento 
(3:18,  19).  Porque  essa  comunidade  era  realmente  a  «morada  de  Deus 
em  Espírito»  (2:22).  Não  é  de  surpreender,  pois,  que  a  principal  es- 
fera da  ação  do  cristão  devia  ser  com  os  outros  cristãos  e  em  favor 
deles,  membros  com  êle  do  Corpo  de  Cristo.  Quão  perfeitamente  con- 
corda a  ênfase  de  Paulo  sôbre  a  natureza  social  do  cristianismo  com  as 
palavras  do  próprio  Jesus:  «Onde  dois  ou  três  estiverem  reunidos  em 
meu  nome,  eu  estarei  no  meio  dêles»  (Mateus  18:20). 

É  impossível,  pois,  estar  um  «homem  em  Cristo»,  em  boa  posição 
e  regular,  e  ser  individualista  absoluto.  A  importância  da  Igreja  e  os 
interêsses  da  Igreja  devem  sempre  ser  o  interêsse  primário  de  todo 
cristão.  Êle  não  pode  ser  um  cristão,  no  sentido  mais  amplo  do  têrmo, 
senão  como  membro  da  comunidade  cristã;  não  pode  cumprir  a  sua 
missão  de  cristão  e  como  homem,  sem  que  a  Igreja  ocupe  lugar  impor- 
tante no  seu  pensamento  e  êle  encontre  nela  esfera  apropriada  para  a 
sua  ação.  Naturalmente,  precisamos  de  admitir  que  possa  haver  cris- 
tãos que,  por  uma  ou  outra  razão,  nunca  encontraram  um  lar  espiritual 
em  qualquer  comunidade  cristã  organizada.  Este  foi  o  caso  do  grande 
cristão  espanhol,  Miguel  de  Unamuno.  Tais  cristãos  não  são  incomuns 
no  mundo  espanhol.  Há  «homens  em  Cristo»  que  não  estão  registrados 
como  membros  no  rol  de  qualquer  igreja.  É  muito  mais  comum,  porém, 
terem  as  pessoas  boa  e  regular  posição  na  Igreja,  como  sociedade  visível, 
sem  serem  «homens  em  Cristo».  Tais  pessoas  estão  na  Igreja,  mas  a 
Igreja  não  está  neles.  Nunca  têm  chegado  a  ver  a  verdadeira  grandeza 
da  Igreja,  nem  a  Igreja  tem  um  lugar  supremo  na  sua  devoção.  Como 
membros  da  Igreja,  não  vivem  em  submissão  incondicional  ao  Senhor 
da  Igreja. 

Thomas  Chalmers  foi  pessoa  desta  natureza,  na  primeira  parte  do 
seu  ministério;  homem  que,  no  julgamento  do  seu  compatriota  Carlyle, 
era  o  maior  dos  escoceses,  depois  de  John  Knox.  Chalmers  era  religioso 
por  natureza.  Quando  chegava  a  sua  vez  de  dirigir  o  culto,  como  estu- 
dante de  teologia  na  capela  do  colégio,  as  suas  orações  públicas  eram 
tão  eloquentes,  que  o  povo  da  cidade  de  Sto.  André,  ia  ouví-lo  dirigir  o 
culto.  Era  também  brilhante  matemático.  A  economia  política,  uma 
ciência  que  nascia,  era  outro  dos  seus  estudos  favoritos.   No  começo 


—  95  — 


do  seu  ministério,  desejou  muito  a  cadeira  de  Matemática  da  Univer- 
sidade de  Edimburgo,  que  tinha  ficado  vaga.  Playfair,  o  professor  que 
se  aposentara,  tinha  feito  uma  declaração  pública  para  que  os  diretores 
da  Universidade  não  pensassem  para  a  Cadeira,  em  nenhum  ministro 
da  Igreja  da  Escócia.  Nenhum  clérigo  se  podia  encontrar  bastante 
eminente  para  a  alta  distinção.  Chalmers  se  sentiu  ferido  pela  ponde- 
ração do  matemático  a  respeito  do  ministério  escocês.  Escreveu  e  publi- 
cou um  panfleto  anónimo  em  que  mantinha  que  nenhum  grupo  da 
sociedade  escocesa  estava  em  melhor  posição  para  se  devotar  às  Artes 
Liberais  do  que  o  clero.  Eram  dias  do  «Moderatismo»  religioso.  Ser 
bom  colega,  membro  de  academias  literárias,  decente  e  bem  equilibrado, 
eram  qualidades  mais  elevadas  para  o  ministério  do  que  o  fervor  evan- 
gélico. O  que  Chalmers  escreveu  disse  mais  do  que  êle  e  uma  multidão 
de  outros  ministros  da  época  pensavam  a  respeito  da  Igreja  Cristã  e  do 
oficio  ministerial,  do  que  o  folheto  disse  da  proficiência  dêles  em  huma- 
nidades.   Eis  algumas  das  suas  expressões  encolerizadas. 

«O  autor  dêste  panfleto  pode  asseverar,  o  que  para  êle  é  a  mais 
alta  autoridade,  a  autoridade  da  sua  própria  experiência,  que,  depois  do 
desempenho  satisfatório  dos  seus  deveres  paroquiais,  um  ministro 
pode  gozar  de  ininterrupto  período  de  cinco  dias  por  semana, 
para  se  dedicar  a  qualquer  ciência  para  que  tenha  gôsto  e  disposição. 
No  que  respeita  à  distribuição  do  tempo,  dificilmente  se  poderá  encontrar 
uma  situação  no  país  mais  favorável  para  o  exercício  livre  e  ininterrupto 
da  inteligência . .  .  Um  ministro  tem  cinco  dias  por  semana  para  ocupa- 
ções livres  e  independentes;  seria  a  mais  ridícula  exposição  de  argu- 
mentos, provar  que  existe  qualquer  coisa  no  emprêgo  dos  dois  dias 
restantes  julgados  capazes  de  extinguir  o  seu  ardor  matemático,  de  imbe- 
cilizar  e  degradar  as  suas  faculdades,  de  fechar  o  seu  espírito  às  fasci- 
nantes distrações  da  ciência,  ou  de  destruir  qualquer  das  vigorosas  e 
decididas  tendências  que  a  natureza  ou  o  hábito  nêle  possam  ter  implan- 
tado. Quase  não  há  consumo  de  esforço  intelectual  no  emprêgo  parti- 
cular do  ministério.  As  grandes  doutrinas  da  revelação,  ainda  que  subli- 
mes, são  simples.  Não  requerem  que  se  queimem  as  pestanas  para 
serem  compreendidas,  —  não  há  necessidade  de  ostentação  de  linguagem 
artificial  para  imprimi-las  no  coração  do  povo.  O  dever  do  ministro  é 
dever  do  coração.  É  imprimir  as  lições  simples  e  caseiras  de  humanidade 
e  de  justiça  e  os  exercícios  de  uma  piedade  sóbria  e  iluminada.  Cabe-lhe 
iluminar  os  que  estão  no  leito  da  velhice  ou  da  enfermidade;  rejubilar  na 
administração  do  conforto;  manter  relações  amigáveis  com  o  povo  e 
conseguir  a  sua  afeição,  por  aquilo  que  nem  arte  nem  hipocrisia  podem 
realizar  —  o  sorriso  de  um  rosto  bondoso,  o  ar  franco  e  aberto  de  uma 
honestidade  não  dissimulada ...  A  utilidade  de  um  caráter  como  êste, 
não  exige  exercícios  fatigantes  de  compreensão  para  sustentá-lo;  nem 
ostentação  de  cultura  ou  de  eloquência;  nem  arrebatamentos  de  misti- 


—  96  — 


cismo;  nem  discussão  elaborada;  nem  gíria  de  sistema  ou  de  contro- 
véi^ia».  (8). 

No  pensamento  de  Thomas  Chalmers,  o  ministério,  naquela  época, 
era  uma  profissão  com  tempo  livre.  Nada  havia  no  serviço  de  Igreja 
Cristã  que  exigisse  todo  o  tempo,  toda  a  devoção,  todo  o  vigor  intelectual 
que  um  homem  possuísse. 

Passaram-se  os  anos.  O  jovem  ministro  escocês  sofreu  profunda 
exp)eriência  religiosa.  Em  uma  palavra,  converteu-se.  «Cristo»,  n 
«Graça»,  a  «Paz»,  as  «Obras»,  e  a  «Igreja»  tomaram  nova  significação 
para  o  «novo  homem  em  Cristo».  Cristo  e  a  Igreja,  agora,  tinham  tudo 
o  que  havia  nêle.  A  sua  paixão  evangélica  realçou  e  transfigurou  os 
seus  poderes  intelectuais.  Matemática,  astronomia,  economia  política, 
filosofia  e  eloquência  incomparável,  tudo  isto  era  oferecido  no  altar  de 
Deus  a  Cristo  e  à  Sua  Igreja.  Coube  a  Chalmers  viver  a  sua  vida  em  um 
dos  períodos  mais  críticos  e  mais  criadores  da  história  da  Igreja  Escocesa. 
O  Estado  tinha  tentado  privar  a  Igreja  da  liberdade  espiritual,  insistindo 
em  que  os  patronos  locais  deviam  ter  o  direito  de  indicar  os  titulares  das 
paróquias  escocesas.  Chalmers  dirigiu  o  grande  «Rompimento»  de  1843, 
pelo  qual  quinhentos  ministros  abandonaram  as  suas  paróquias  e  resi- 
dências e  enfrentaram  a  penúria  antes  do  que  se  submeterem  à  imposição 
do  poder  secular. 

Em  certas  ocasiões,  anos  depois  da  publicação  do  famoso  panfleto 
já  referido,  surgiu  na  Assembléia  Geral  Escocesa  a  questão  se  seria 
permitido  a  um  ministro,  encarregado  de  uma  paróquia,  manter  outro 
emprêgo  de  tempo  integral  além  do  seu  pastorado.  O  proponente  da 
moção  olhou  significativamente  para  Chalmers,  que  estava  presente. 
Êste  se  levantou  e  então  se  seguiu  um  dos  momentos  mais  dramáticos 
e  memoráveis  na  história  do  debate  eclesiástico  da  Escócia.  Depois  de 
pormenorizar  as  razões  que  o  tinham  levado  a  escrever  o  famoso  pan- 
fleto em  defesa  das  habilidades  do  clero  escocês  e  do  seu  direito  da 
usar  cinco  dias  da  semana  em  qualquer  estudo  que  lhes  interessasse, 
concluiu  com  as  seguintes  palavras:  «Singularmente  cego  que  eu  era! 
Qual  é,  senhor,  o  objetivo  da  matemática?  A  grandeza  e  as  proporções 
da  grandeza.  Mas  então,  senhor,  eu  tinha  esquecido  duas  grandezas. 
Eu  não  pensava  na  insignificância  do  tempo  —  temerariamente  eu  não 
pensava  na  grandeza  da  eternidade». 

Êste  é  o  problema,  a  questão  de  proporção  e  de  grandeza.  Tenho-me 
referido  ao  caso  de  Chalmers  a  fím  de  pôr  em  alto  relêvo  a  importância 
inerente  da  Igreja  e  do  serviço  da  Igreja  para  todos  os  «homens  em 
Cristo».  Nem  todos  precisarão  de  ser  ministros  de  tempo  integral,  no 
sentido  profissional,  mas  todos  devem  ser  filhos  e  filhas  dedicados.  A 
grande  Mãe  os  proverá  de  inspiração  e  fôrça  necessárias  para  a  vocação 
secular.  A  sua  vocação  secular  os  proverá  de  recursos  de  que  a  Igreja 
necessita  para  cumprir  a  sua  missão. 

(8)  "Observações  a  uma  Passagem  da  Carta  do  Sr.  Plajfair  ao  Preboste  de  Edimburgo 
a  respeito  das  pretensões  matemáticas  do  clero  escocês".  (Publicado  e  rendido  por  K 
Tullis,  1805). 


CAPÍTULO  VI 
A  NOVA  ORDEM  DIVINA 


A  vida  é  um  vale  em  que  se  constroem  almas  e  as  almas  são  mais 
importantes  do  que  as  civilizações.  Mas  as  almas  não  se  fazem  em 
solidão,  nem  são  por  Deus  destinadas  a  viver  em  solidão. 

Na  Comunidade  Unida  dos  Céus  e  da  Terra  apresentada  em  visão 
na  Epístola  aos  Efésios  e  que  Deus  tem  o  propósito  de  estabelecer,  almas, 
e  não  nações  ou  raças,  instituições  ou  classes,  serão  as  unidades  funda- 
mentais. Mas  quando  em  Cristo  tiver  sido  fechada  a  brecha  cósmica  e 
a  divisão  na  criação  de  Deus  tiver  desaparecido,  os  filhos  e  filhas  indi- 
viduais do  Altíssimo,  unidos  a  Deus  e  uns  aos  outros,  serão  membros 
de  uma  vasta  estrutura,  de  uma  comunidade  cósmica,  de  uma  nova  Ordem 
Divina.  Essa  Ordem  estabelecida  cm  Jesus  Cristo,  seu  Criador  e  Centro, 
está  agora  em  processo  de  formação.  Dentro  do  seu  escopo,  englo- 
bar-se-á  tudo  que  Paulo  inclui  em  «tôdas  as  coisas  nos  céus  e  na  terra», 
mais  do  que  os  espíritos  humanos  reunidos,  mais  do  que  a  Igreja  que  é  o 
Corpo  de  Cristo.  Ele  quer  dizer  por  essa  frase  impressiva  uma  ordem 
cósmica  como  resultado,  formada  de  espíritos  criados  e  fundamentados 
em  Cristo,  nos  quais  Deus  será  tudo  em  todos.  O  centro  integrador  e 
também  padrão  dessa  Ordem  será  Cristo  e  a  Igreja. 

a)    A  «Igreja  que  é  o  Seu  Corpo». 

Sem  peiTnitir  que  a  nossa  imaginação  se  entregue  à  fútil  especulação 
sôbre  a  forma  resultante  da  ordem  de  Deus,  duas  coisas  são  claras.  A 
comunidade  chamada  a  Igreja,  que  ocupa  lugar  central  na  Carta  aos 
Efésios,  é  apresentada  por  Paulo  neste  documento,  como  em  outros  seus 
escritos,  sob  dois  aspectos.  Há  a  Comunidade  Transcendental  e  a  Comu- 
nidade Histórica.    Ambas  juntas  formam  a  «Igreja  que  é  o  Seu  Corpo». 

A  Comunidade  Transcendental 

Por  comunidade  transcedental,  mais  comumente  chamada  Igreja 
Invisível,  entende-se  o  número  completo  dos  eleitos  de  Deus,  a  sociedade 
dos  remidos,  os  que  foram,  por  meio  de  Cristo,  reconciliados  com  Deus, 
Esta  comunidade  é  constituída  dos  «santos»  que  acabaram  a  jornada 
terrena,  e  dos  «fieis  em  Cristo  Jesus»  que  ainda  militam  na  terra,  e 
cuja  identidade  sòmente  é  conhecida  de  E>eus.    Os  seus  membros  são  os 


—  98  — 


«homens  em  Cristo».  Somente  êles,  no  mais  profundo  e  mais  funda- 
mental dos  sentidos,  pertencem  ao  Corpo  de  Cristo,  que  não  será  com- 
pletado nem  aperfeiçoado,  como  unidade  corporativa,  até  o  fim  da  histó- 
ria, quando  os  desígnios  de  Deus  tiverem  atingido  pleno  cumprimento. 

Os  membros  do  Corpo  de  Cristo  tornam-se  relacionados  com  Êle, 
que  é  a  sua  cabeça,  como  unidades  individuais.  Êles  são  a  Sua  «nova 
criação»,  a  Sua  «feitura».  Êle  «os  trouxe  perto».  Quanto  à  «Paz», 
deles,  Êle  os  reconciliou  com  Deus;  Êle  os  fêz  «um  novo  homem»,  «Um 
Corpo  único»  em  si  mesmo.  E  o  próprio  Cristo,  a  vitoriosa  Cabeça  da 
Igreja,  Deus  O  fez  «Cabeça  sôbre  tôdas  as  coisas  para  a  Igreja».  As 
riquezas  e  o  aperfeiçoamento  da  Igreja  constituirão  assim  a  verdadeira 
finalidade  da  história,  que  está  sob  o  poder  soberano  de  Jesus  Cristo, 
a  Cabeça  da  Igreja  e  Senhor  da  História. 

Esta  comunidade,  o  Corpo  de  Cristo,  que  é  simultaneamente  a  «ple- 
nitude de  Cristo»  e  a  esfera  em  que  o  próprio  Cristo  atinge  a  Sua  pleni- 
tude, é  de  um  outro  ponto  de  vista,  «a  herança  de  Deus  nos  santos» 
(Efes.  1:18).  Moisés  tinha  dito:  «A  porção  do  Senhor  é  o  Seu  povo; 
Israel  é  a  parte  da  Sua  herança»  (Deut.  32:9).  A  Igreja  é  a  «porção»  de 
Deus,  a  herança  de  Deus.  Paulo  orava  para  que  os  leitores  pudessem 
ficar  conscientes  do  que  Deus  estava  obtendo  do  Seu  empréstimo  em 
Cristo,  a  quanto  realmente  montaria  a  Sua  herança,  antes  de  chegar  ao 
fim  o  Seu  divino  interêsse  pelos  «homens  em  Cristo».  Noutro  lugar, 
Paulo  havia  dito:  «Aquilo  que  o  ôlho  não  viu,  nem  o  ouvido  ouviu,  nem 
subiu  ao  coração  do  homem,  é  o  que  Deus  tem  preparado  para  aqueles 
que  o  amam»  (I  Cor.  2:9).  Já  notamos  que,  pelo  menos,  o  estudo 
da  Igreja  proporciona  aos  anjos  a  sua  maior  lição  objetiva  a  respeito 
da  «multiforme  sabedoria  de  Deus».  E  não  admira!  Porque,  além 
da  vitória  de  Cristo  e  das  atitudes  de  Deus  para  com  a  Igreja  através 
de  tôda  a  história  e  de  tôda  a  fascinação  dessa  epopeia,  «os  anjos  e 
arcanjos  e  tôda  a  hoste  dos  céus»  contemplariam,  na  comunidade  aper- 
feiçoada de  Jesus  Cristo,  «tôda  a  glória  e  tôda  a  honra  das  nações». 
Em  uma  palavra,  maravilhar-se-iam  ante  um  mundo  remido.  Encon- 
trar-se-á  um  «mundo»  na  «Comunidade  Transcendental».  Na  Comuni- 
dade dos  remidos  estariam  todos  os  tipos  humanos  representativos  e 
todos  os  mais  nobres  dons  e  talentos,  renovados  por  Cristo.  A  nova 
humanidade  eclipsaria  grandemente  o  primeiro  Adão  e  seus  filhos.  Aç 
palavras  de  Tennyson  podem  ser  interpretadas  de  maneira  muito  mais 
significativa  do  que  o  poeta  pretendera,  com  a  sua  filosofia  otimista  e 
evolucionária: 

Até  que  todos  os  povos  sejam  um 
E  que  tôdas  as  suas  vozes  se  fundam  no  côro: 
«Aleluia  ao  Criador:    Tudo  está  consumado»  — 
O  homem  é  criado». 

Mas  esta  comunidade  começou  na  terra;  muito  dela  ainda  está 
na  terra.  Como  «grande  Mãe»,  «Jerusalém  que  é  de  cima»,  ela  se  toma 
o  arquétipo  para  a  comunidade  histórica  que  milita  na  terra. 


  99   


A  Comunidade  Histórica 

Como  a  vitória  de  Jesus  Cristo  foi  realizada  na  história  e  todos 
os  «homens  em  Cristo»  se  tomaram  relacionados  com  o  Seu  Salvador 
e  Senhor,  na  história,  a  Igreja,  que  é  o  Corpo  de  Cristo»,  existe  dentro 
da  história  da  mesma  maneira  que  existe  acima  da  história  e  além 
da  história.  É  uma  comunidade  histórica,  como  também  uma  comu- 
nidade transcendental.  Os  seus  membros  têm  vivido  desde  o  começo  nas 
relações  mais  íntimas  com  tôdas  as  forças  e  tôdas  as  condições  que 
determinam  a  vida  da  humanidade  no  tempo  e  no  espaço. 

Podem-se  fazer  certas  afirmações  a  respeito  da  Igreja  como  comu- 
nidade histórica.  Façamos  tais  afirmações  agora,  antes  de  passarmos  a 
considerar  certas  questões  sugeridas  pela  Epístola  aos  Efésios,  conside- 
rando a  natureza,  a  constituição  e  a  política  da  Igreja  na  história. 

1.  A  Igreja  Cristã  é  a  Igreja  de  Jesus  Cristo.  Os  cristãos  , homens 
e  mulheres,  que  confessaram  a  Jesus  como  «o  Cristo,  o  filho  do  Deus 
Vivo»,  de  quem  e  a  quem  Paulo  escreveu,  que  eram  as  «primícias»  histó- 
ricas no  mundo  não- judaico  (Rom.  16:5),  formavam  desde  o  comêço 
comunidades  chamadas  Igrejas,  «ecclesiae».  Os  que  pertenciam  como 
membros  às  «ecclesiae»  em  Jerusalém,  Antioquia,  Roma  ou  Corinto, 
eram  pessoas  «chamadas»  da  comunidade  geral;  eram  «santos»  ou  gente 
«separada»,  que  se  reunia  para  a  adoração  de  Deus  por  meio  de  Jesus 
Cristo  e  que  vivia  para  o  serviço  de  Cristo.  Tal  gente,  os  «fiéis  em 
Cristo  Jesus»  (Efes.  1:1),  constituíam,  no  pensamento  de  Paulo,  o  «novo 
Israel».  Cada  ecclesia  local  não  era  uma  unidade  isolada,  porque  em 
cada  uma  delas  estava  a  realidade  da  Igreja  Una  de  Jesus  Cristo.  As 
várias  ecclesiae  eram  especificações  comunais  dessa  realidade  espiritual 
transcendental  a  «Igreja  que  é  o  Seu  Corpo».  É  importante  ter  em  mente 
que,  no  pensamento  de  S.  Paulo,  como  no  do  Novo  Testamento  como 
um  todo,  a  Igreja  tem  dois  sentidos  e  dois  sòmente:  a  Igreja  Universal, 
nos  céus  e  na  terra,  que  é  o  novo  homem,  o  Corpo  Uno,  o  Corpo  de 
Cristo;  e  as  comunidades  cristãs  organizadas  e  locais,  chamadas  ecclesiae. 
A  Igreja,  como  comunidade  histórica,  recebe  a  sua  realidade  eclesiástica 
da  conjunção  de  ambos  estes  sentidos:  a  presença  viva  de  Jesus  Cristo, 
a  Cabeça  da  Igreja,  e  a  associação  dos  cristãos  em  nome  de  Cristo.  A 
Igreja,  neste  sentido,  é  a  verdadeira  portadora  e  a  significação  da  história, 
porque  é  na  Igreja  e  por  meio  dela  que  se  desenvolve  o  eterno  propósito 
de  Deus  em  Jesus  Cristo.  Ela  sobrevirá,  pois,  a  tôdas  as  mudanças 
históricas. 

2.  A  Igreja,  quando  é  verdadeiramente  a  Igreja  no  significado 
prinriitivo  e  neotestamentário  do  termo,  é  composta  de  pessoas  que  foram 
«vivificadas»,  pessoas  que  passaram  por  morte  e  renascimento  radicais, 
pessoas  que  constituem  «nova  Criação».  Os  seus  membros  foram  «sela- 
dos com  o  Espírito  Santo»  (1:13),  a  manifestação,  de  cuja  graciosa 
operação  em  suas  vidas,  é  sinal  e  garantia  de  que  eventualmente  serão 
completamente  santificados  do  pecado  e  se  tornarão  perfeitamente  seme- 
lhantes a  Deus  em  sua  natureza.    É  claro,  portanto,  que  qualquer  quali-  ^ 


—  100  — 


dade  de  associação  humana  cujos  membros  não  estão  ligados  por  fé 
comum  em  Cristo  e  experiência  comum  de  renovação  por  Cristo,  não 
pode,  com  qualquer  propriedade,  ser  chamada  Igreja. 

3.  Os  que  professam  esta  fé  comum  e  partilham  da  experiência 
comum,  estão  relacionados  uns  com  os  outros  em  congregações.  Como 
o  indivíduo  é  a  unidade  fundamental  da  Igreja  Universal,  o  Corpo  de 
Cristo,  assim  a  congregação  ê  a  unidade  fundamental  da  comunidade 
histórica  chamada  a  Igreja.  Mas  congregação,  neste  sentido,  não  neces- 
sita de  ser  limitada  a  uma  comunidade  local;  pode  ela  abranger  os  que 
se  «congregam»  em  muitas  comunidades  locais,  professando  a  mesma 
fé  e  desejando  prestar  obediência  coletiva  a  Jesus  Cristo  e  ao  Evangelho. 
No  momento  em  que  cristãos  desejam  prestar  testemunho  em  conjunto 
de  Cristo,  em  uma  organização  mais  ampla  do  que  local,  e  fazem  arranjos 
para  se  unirem  em  nome  de  Cristo  para  estudar  e  considerar  questões 
relativas  à  Sua  causa  no  mundo,  passam  a  constituir,  pelo  próprio  ato 
de  assim  fazerem,  expressão  empírica  ou  histórica  do  Corpo  Uno.  Isto 
envolverá,  como  na  verdade  tem  envolvido  históricamente,  que  alguns 
cristãos  que  se  tornam  servos  da  Igreja  nesta  expressão  mais  ampla 
da  sua  realidade,  têm  de  encontrar  a  sua  comunhão  cristã  pessoal  dentro 
da  «congregação»  mais  larga,  antes  do  que  serem  limitados  à  associação 
mantida  por  uma  comunidade  cristã  local.  Isto  necessita  de  ser  dito; 
de  outra  maneira,  seria  impossível  falar  com  qualquer  propriedade  o 
que  quer  que  fôsse  da  Igreja  como  comunidade  histórica.  Haveria  comu- 
nidades mas  não  comunidade. 

E'  verdade,  porém,  como  Karl  Barth  recentemente  frisou,  que  o 
padrão  da  Igreja  deve  sempre  ser  o  grupo  de  pessoas  que  se  reúnem 
em  um  lugar,  ligadas  umas  às  outras  pela  «Palavra  e  Espírito  do  Senhor 
Jesus  Cristo  vivo».  O  que  constituía  a  Igreja,  diz  Barth,  era  o  «aconte- 
cimento» ou  o  «ajuntar  do  seu  povo  pelo  Senhor  vivo»,  (i)  A  congre- 
gação é  o  acontecimento  que  consiste  em  reunir  (congrega tio)  os  homens 
e  mulheres  (f ideies)  a  quem  o  Senhor  Jesus  Cristo  vivo  escolhe  e  chama 
para  serem  as  testemunhas  da  vitória  que  Êle  já  realmente  ganhou,  e 
arautos  da  futura  manifestação  universal,  desta  vitória.  Assim,  a  Igreja 
é  a  congregação  viva  do  Senhor  Jesus  Cristo  vivo  «que  necessita  de  ser 
constantemente  recriada  por  Êle». A  congregação  local  é,  naturalmente, 
a  forma  «primária,  normal  e  visível  do  acontecimento»,  por  causa  do 
fato  de  que  a  reunião  se  realiza  em  uma  paróquia  ou  distrito  com  limites 
claramente  definidos. 

Falando  da  congregação  sinodal,  Barth  não  limita  a  realidade  ecle- 
siástica, à  comunidade  cristã  local  ou  ecclesia.  Esta  advertência,  porém, 
é  básica  e  salutar  e,  de  acôrdo  com  o  pensamento  paulino  e  neotesta- 
mentário,  o  que  faz  uma  Igreja  é  a  resposta  uníssona  à  chamada  do 
próprio  Senhor  vivo.   Nenhuma  associação  de  cristãos  se  constitiu  em 


(1)  "The  Chuieh  —  lhe  Living  CongiegHtion  ot*  the  Living  Lord  Jesus  Christ"  in 
Man's  Disordfr  anã  God's  De.sign   (Harper  &  Brothers.  New  York),  1^  pág.  67-76. 


—  101  — 


«Igreja»  uma  vez  e  para  sempre.  Ela  pode  reduzir-se  a  mera  «aparência 
morta»  uma  associação  que  não  está  mais  em  contacto  com  a  reali- 
dade espiritual  viva,  mas  interessada  somente  em  «peças  de  museu»,  um 
monumento  à  memória  de  Deus,  em  lugar  de  testemunha  da  Sua  glória. 
Mas,  quando  o  Senhor  vivo  está  presente,  em  poder,  na  Sua  «congre- 
gação», quaisquer  que  sejam  os  seus  limites  físicos  ou  dimensões  numé- 
ricas, tendes  em  verdade  uma  Santa  Comunidade.  Tendes  uma  comu- 
nhão, mais  do  que  uma  instituição.  Tendes  pessoas  cujo  interesse  primá- 
rio é  estar  em  harmonia  com  Jesus  Cristo.  O  critério  fundamental  para 
distinguir  uma  Igreja  falsa  ou  moribunda  de  uma  viva  e  verdadeira  Igreja 
é  a  presença  do  próprio  Jesus  Cristo. 

4.  A  Igreja,  como  comunidade  histórica,  foi  e  continua  a  ser, 
grandemente  dividida.  Temos  as  três  grandes  tradições  cristãs,  o  Cato- 
licismo Romano,  a  Igreja  Ortodoxa  Oriental  e  o  Protestantismo.  A 
primeira  destas  tradições  tem  centralizado  a  realidade  eclesiástica  na 
ordem  institucional,  a  segunda  na  comunhão  mística  e  a  terceira  na 
Palavra  do  Evangelho.  Além  disso,  existe  em  nosso  tempo  uma  diver- 
sidade muito  grande  de  denominações  dentro  da  tradição  Protestante. 
Algumas  destas  têm  sido  o  fruto  de  cisma  religioso,  mas  muitas  delas 
devem  sua  origem  e  existência  separada  a  circunstâncias  raciais,  linguís- 
ticas e  culturais.  Mas,  nêste  tempo  presente,  pareceria  que  o  movimento 
centrífugo  que  tem  caracterizado  a  história  da  Igreja  Cristã  durante 
muitos  séculos,  está  dando  lugar  agora  a  um  poderoso  movimento  centrí- 
peto para  a  unidade. 

5.  A  Comunidade  Cristã  em  nosso  tempo  procura,  de  diferentes 
maneiras  e  por  vários  meios,  dar  forma  concreta  e  histórica  à  imidade 
que  é  real  nmn  Corpo  uno  da  Igreja  transcendental.  Depois  de  certo 
período  em  que  o  Reino  de  Deus  e  a  promoção  de  uma  influência  espi- 
ritual difundida  derivada  de  Cristo  tomou  o  lugar  de  um  esfôrço  para 
entregar  homens  a  Cristo  como  membros  de  uma  comunhão  de  fé, 
nasceu  um  novo  sentido  da  Igreja.  O  surgir  de  novas  Igrejas  em 
diferentes  partes  do  mundo  como  resultado  do  movimento  missionário 
cristão;  o  espírito  de  unidade  criado  pelas  missões  mundiais;  o  fato  de 
que,  na  recente  perseguição  da  religião  cristã  pelos  poderes  totalitários, 
foram  apenas  os  ministros  e  as  igrejas  que  ficaram  firmes  até  à  morte  e 
se  recusaram  a  submeter-se:  tudo  isto  tem  dado  lugar  a  um  novo  sentido 
da  realidade  e  da  importância  da  Igreja. 

Coincidindo  com  renovado  sentido  da  Igreja  e  com  o  movimento  em 
favor  da  unidade  cristã,  conhecido  como  o  Movimento  Ecuménico,  novo 
desejo  de  relacionar  o  Cristianismo  com  a  vida  se  tem  manifestado  nos 
círculos  cristãos,  por  tôda  a  parte.  Os  leigos,  isto  é,  aqueles  que  não  se 
dedicam  em  regime  de  tempo  integral  e  mediante  salário,  ao  serviço 
de  Igrejas  organizadas,  mostram  mais  vivo  senso  de  responsabilidade 
cristã  em  «imitar  a  Deus»  ou  «aprender  a  Cristo»;  são  impelidos  a 
^'batizar  em  Cristo»  as  suas  vocações  seculares.  As  Igrejas,  indivi- 
dual e  encorporadamente,  sentem  a  responsabilidade  de  desafiar  a 
inteira  ordem  secular,  a  sociedade  e  as  suas  instituições  e  o  pró- 


—  102  — 


prio  estado,  em  nome  de  Jesus  Cristo.  A  nova  consciência  do  fato 
de  que  Jesus  é  não  somente  a  Cabeça  da  Igreja  como  também  o  Senhor 
da  história,  leva  a  Igreja  Cristã  a  fazer  claro,  a  cidadãos  e  a  gover- 
nantes na  ordem  secular,  que  a  obediência  às  leis  de  Deus  é  o  único 
fundamento  da  pureza  e  da  ordem  públicas,  e  que  a  justiça,  as  relações 
justas  entre  Deus  e  homem  e  entre  homem  e  homem,  constituem  a 
única  base  de  compreensão  internacional.  A  visão  de  uma  ordem  de 
Deus  contra  a  desordem  do  homem  está  crescendo,  e  a  comunidade 
histórica  —  a  Igreja  —  está  sendo  levada  pelo  Espirito  de  Deus  a  aceitar 
e  cumprir  o  seu  papel  histórico. 

Para  que  possamos  entender  mais  completamente  a  natureza  da 
Igreja  de  Jesus  Cristo  como  comunidade  na  história,  e  receber  orien- 
tação para  resolver  os  seus  problemas  e  dar  forma  ao  seu  destino  nêste 
nosso  tempo,  escutemos,  no  resto  dêste  capítulo,  a  sabedoria  e  o  espírito 
do  primeiro  grande  arquiteto  da  Igreja  Cristã  do  primeiro  século,  que 
escreveu  a  Carta  aos  Efésios. 

b)    Imagens  da  Igreja. 

Ajudar-nos-á  a  perceber  a  realidade  histórica  e  o  papel  da  Igreja, 
começando  por  examinar  as  três  imagens  ou  representações  pictóricas 
da  Igreja,  que  são  usadas  por  Paulo  em  sua  Epístola  aos  Efésios. 
Conquanto  estas  imagens  tenham  sido  designadas  para  descrever  dife- 
rentes facetas  da  Igreja  Transcendental,  são  de  primeira  importância  na 
consideração  da  Igreja  Histórica.  A  Igreja,  na  história,  cumprirá  a 
sua  verdadeira  missão  à  medida  em  que  também  aspire  a  ser  —  e  consi- 
ga ser  bem  sucedida  —  o  Edifício,  a  Esposa  e  o  Corpo  de  Jesus  Cristo. 
Estas  grandes  imagens  são  os  padrões  ou  arquétipos  do  que  a  Igreja  é  e 
deve  ser.  Enquanto  formos  considerando  cada  uma  delas  por  seu  turno, 
lembremo-nos  de  que  são  figuras,  imagens,  metáforas.  Cada  uma  delas 
?uarda  uma  ou  mais  facetas  da  verdade  cristã  essencial.  Mas  não 
devem  ser  estudadas  alegòricamente,  como  se  cada  pormenor  da  figura 
tivesse  significação.    Isto  é,  estas  figuras  são  parábolas  e  não  alegorias. 

1..    O  Edifício 

A  primeira  figura  que  Paulo  usa  para  expor  o  significado  da  Igreja 
é  a  de  um  edifício,  um  edifício  sagrado,  o  templo.  Esta  figura,  tirada 
do  reino  material,  apresenta  a  Igreja  como  estrutura,  da  qual  Deus  é  o 
Construtor  e  que  Êle  mesmo  habita.  Como  edifício,  a  Igreja  Cristã 
pertence  à  história.  Representa  a  continuidade  comunal  concreta  do 
desígnio  de  Deus  através  dos  séculos.  Os  profetas  do  Velho  Pacto  e 
os  apóstolos  do  Novo  Pacto  estão  associados  juntamente  nas  fundações 
dela.  A  Pedra  Angular,  a  imensa  lage  fundamental  que  dava  unidade 
e  estabilidade  às  estruturas  antigas,  é  Jesus  Cristo.  As  pedras,  as  pedras 
vivas,  de  que  é  composto  o  templo,  são  os  crentes  em  Cristo.  São  pessoas 
que  fizeram  sua  a  grande  Confissão  que  Pedro  fêz  e  que  constitui  a  afirma- 
ção básica  ou  a  fidelidade,  sôbre  a  qual  é  fundada  a  Igreja  Cristã.  A 
Confissão  de  Pedro:  «Tu  és  o  Cristo,  o  Filho  do  Deus  Vivo»  —  ela,  e 
não  o  próprio  Pedro,  tornou-se  o  alicerce  histórico  da  ecciesia  cristã. 


—  103  — 


Fazendo  essa  confissão,  os  primeiros  cristãos  indicavam  que  tinham 
ouvido,  compreendido  e  correspondido  à  chamada  de  Jesus  Cristo.  Por 
isso,  tornaram-se  pedras  vivas  em  Sua  Igreja,  que  Êle  disse  que  sobrevi- 
veria a  tôda  mudança  histórica,  desafiando  até  as  próprias  «portas  do 
Inferno»,  todas  as  tentativas  do  poder  satânico  de  frustrar  o  propósito 
de  Deus  nÊle.  O  fato  de  o  próprio  Pedro,  e  não  a  sua  Confissão,  ter  sido 
feito  o  alicerce  da  Igreja  Cristã  por  uma  grande  Comunhão  Cristã,  repre- 
senta simplesmente  a  maior  das  calamidades  na  história  da  religião  cristã. 
A  posição  da  Igreja  Romana  neste  respeito  \iola  a  clara  significação  das 
palavras  de  Jesus  Cristo.  Faz  imensa  injustiça  ao  impulsivo  e  dedicado 
Pedro,  mas,  inconstante  e  miope  nos  momentos  cruciais.  Vai  de  encontro 
ao  Novo  Testamento  como  um  todo  e  contra  o  génio  da  religião  cristã. 
Não  tem  lugar  na  sublime  imagem  da  Igreja  como  uma  construção  da 
qual  o  próprio  «Jesus  Cristo  é  a  principal  pedra  de  esquina»  (Efes.  2:20). 

A  estabilidade  da  Igreja,  semelhante  à  da  rocha,  e  a  sua  segurança 
de  muitos  anos,  não  se  destina,  contudo,  a  fazer  os  cristãos  complacentes 
e  dar-lhes  sentimento  de  falsa  segurança.  Novas  pedras  vivas  é  preciso 
que  sejam  continuamente  acrescentadas  ao  edificio  incompleto  e,  tanto 
as  que  já  estão  nelas  postas,  como  também  as  que  ainda  serão  assentadas 
na  estrutura  sagrada,  precisam  de  «crescer  em  santo  templo  no  Senhor*. 
Os  seguidores  de  Cristo,  membros  da  Sua  Igreja,  pela  qualidade  do  seu 
discipulado,  aderindo  intimamente  ao  seu  Senhor,  devem  contribuir  para  a 
unidade,  poder  e  perfeição  da  Igreja.  O  que  se  exige  de  todos  os  bloc.os 
separados  é  ajustamento  coletivo  à  Pedra  de  Esquina.  É  claro  que,  para 
tomar  a  sua  idéia  clara,  Paulo  esmera-se  na  sua  figura  do  edifício. 
De  maneira  alguma,  não  há  dúvida,  porém,  de  que  o  que  êle  luta  para 
comunicar,  é  a  idéia  de  que  a  Igreja,  como  templo,  é  firmemente  cons- 
truída, não  simplesmente  pela  adição  de  novos  blocos,  mas  também  pela 
relação  progressiva  e  unificada  com  a  «pedra  principal  de  esquina». 
Êle  quer  dizer  que  a  unidade  estrutural  e  a  força  são  mais  importantes, 
na  Igreja  de  Jesus  Cristo,  do  que  o  aumento  e  o  volume  numérico. 

Conquanto  Paulo,  em  seu  ardor  de  provar  o  grande  ideal  e  requisito 
de  unidade  «no  Senhor»,  não  se  refira  aqui  a  outros  aspectos  significa- 
tivos do  templo  simbólico,  certamente  queria  que  os  seus  leitores  refli- 
tissem  no  fato  de  que  um  «santo  templo»  não  é  como  estrutura  ordinária. 
Sem  a  Presença,  o  templo  não  tem  significação  e  não  é  o  que  foi  destinado 
a  ser.  A  Igreja  Cristã,  quando  é  verdadeiramente  a  Igreja,  é  o  Lar 
da  Presença.  Debaixo  do  Novo  Pacto  como  debaixo  do  Velho,  Deus 
não  sómente  chama  o  Seu  povo  e  dêle  fá-lo  Comunidade  escolhida;  Êle 
também  habita  e  tabernacula  com  êles.  «O  Senhor  está  no  Seu  santo 
templo».  Com  o  risco  de  confundir  metáforas,  recordemo-nos  de  que, 
conforme  o  pensamento  do  Novo  Testamento,  a  «Pedra  Angular»,  o 
Senhor  Jesus  Cristo  vivo,  é  também  a  «Glória  no  meio»  da  Sua  Igreja. 
Paulo  tinha  dito  dos  cristãos  individualmente:  «os  vossos  corpos  são 
templos  do  Espírito  Santo».  Disse  também  na  Carta  aos  Efésios:  «Não 
entristeçais  o  Espirito  Santo  de  Deus»  (4:20).  Cada  cristão  indivi- 
dual e,  ainda  mais,  a  Igreja  Cristã  como  um  todo,  são  uma  Catedral. 


—  104  — 


Mas  somente  na  proporção  em  que  a  Presença  habita  «no  meio  dela» 
é  que  a  alma  cristã  ou  a  Igreja  Cristã  são  testemunhas  da  Sua  Glória. 
Quando  a  Presença  foge,  nem  a  alma  nem  a  Igreja  são  qualquer  coisa 
mais  do  que  monumento  à  memória  de  Deus. 

2.    A  Esposa 

Paulo  também  usou  a  figura  de  uma  esposa  para  indicar  a  condição 
da  Igreja  Cristã  em  relação  a  Cristo.  Assim  como  a  figura  de  um 
templo  dá  ênfase  à  estabilidade  e  permanência  históricas,  assim  a  figura 
da  esposa  dá  ênfase  à  esperança  apocalíptica  da  Igreja,  o  seu  triunfo 
final  no  encerramento  da  história.  A  Igreja  é  a  Prometida  de  Cristo, 
em  casamento,  que  se  manterá  fiel  e  pura,  durante  a  sua  existência 
terrena,  para  as  núpcias  celestiais.  Em  sua  segunda  Carta  aos  Corín- 
tios, (11:2)  Paulo  pensa  de  uma  dada  congregação  local  como  de  uma 
esposa  de  Cristo.  Êle  se  esforçara,  diz,  para  apresentar  a  ecclesia  corín- 
tia  como  «virgem  pura  a  Cristo».  Na  Carta  aos  Efésios,  depois  de  fazer 
das  relações  entre  Cristo  e  a  Igreja  a  base  e  o  padrão  para  as  relações 
matrimoniais  entre  cristãos,  Paulo  irrompe  nesta  passagem  rapsódica: 
«Maridos»,  diz,  «amai  as  vossas  mulheres,  como  Cristo  amou  a  Igreja  e  a 
Si  mesmo  se  entregou  por  ela,  para  a  santificar,  purificando-a  com  a 
lavagem  da  água  e  da  Palavra,  para  a  apresentar  a  si  mesmo  Igreja 
gloriosa,  sem  mácula  nem  ruga,  nem  coisa  semelhante,  mas  santa  e 
irrepreensível»  (5:25-27). 

Esta  passagem  sublime  é  uma  das  grandes  fontes  do  misticismo 
cristão.  As  relações  entre  Deus  e  o  Seu  povo,  que  Oséias  descreve  em 
linguagem  queixosa  e  comovente,  como  de  um  espôso  apaixonadamente 
dedicado  e  uma  esposa  infiel,  se  transforma,  no  Novo  Testamento,  nas 
relações  de  Cristo  e  Sua  Igreja.  A  Igreja  Cristã  sòmente  pode,  indi- 
vidual e  coleti vãmente,  corresponder  dignamente  ao  amor  sacrificial  e  à 
incessante  solicitude  de  Jesus  Cristo,  por  meio  de  uma  terna,  apaixonada 
devoção  ao  Amado,  sòmente  por  meio  de  constante  aspiração  à  perfeita 
santidade  e  à  semelhança  a  Cristo.  Lealdade  imortal  e  pureza  espiri- 
tual são  os  grandes  objetivos.  O  grande  interêsse  cristão  torna-se:  «Esta 
palavra  e  êste  ato  serão  dignos  de  Jesus  Cristo?»  Conquanto  seja  verda- 
de que  a  Esposa  de  Cristo  é  a  Igreja  coletivamente  e  não  o  indivíduo 
cristão,  é  perdoável  e  legítimo  que  o  indivíduo  cristão  sinta  o  afago 
desta  grande  figura  para  expressar  o  seu  amor  pessoal  para  com  o 
Redentor.  Porque,  se  os  corpos  podem  ser  «templos»,  as  almas  podem 
ser  «noivas»;  e  as  que  amam  apaixonadamente  o  Noivo,  Teresa  de  Ávila 
e  Rutherford  de  Anworth,  continuarão  a  falar  ao  mais  profundo  da 
alma  da  Igreja  Cristã  e  em  favor  dela.  Existe,  naturalmente,  perigo 
constante  de  sentimentalismo:  os  cristãos  e  a  Igreja  precisam  de  estar 
constantemente  em  guarda  contra  êle.  Mas,  no  Protestantismo  contem- 
porâneo, não  há  perigo  presente  de  sentimentalismo  na  expressão  da 
devoção  a  Jesus  Cristo.  Nem  existe  qualquer  evidência  de  ressurgi- 
mento do  fervor  místico  que  distinguiu  os  maiores  dias  da  Igreja.  No 
Catolicismo  Romano,  por  outro  lado,  a  crua  propaganda  do  Culto  da 
Virgem  tem  solapado  as  raízes  do  Misticismo  de  Cristo  nessa  Comunhão. 


—  105  — 


3.    O  Corpo 

A  terceira,  a  maior  e  a  mais  característica  das  figuras  que  Paulo 
usa  na  Carta  aos  Efésios,  para  descrever  a  Igreja  Cristã,  é  a  de  um 
corpo.  A  Igreja  é  o  Corpo  de  Cristo.  Algumas  vêzes,  no  pensamento 
de  Paulo,  Cristo  é  a  Cabeça  do  Corpo;  algumas  vêzes,  é  o  Corpo  todo, 
de  que  são  membros  os  cristãos.  É  ao  tratar  desta  imagem  celestial 
de  que  precisamos  de  estar  particularmente  cuidadosos,  para  não  alego- 
rizarmos  os  pormenores. 

Escolhido  do  mais  familiar  reino  biológico,  o  corpo  exprime  função, 
instrumentalidade,  mobilidade.  Como  tal,  é  a  figura  para  a  qual  tem 
especial  significação  o  caminho,  o  serviço,  o  conflito.  Um  corpo  nunca 
pode  cumprir  a  sua  função,  se  o  cultivo  do  próprio  corpo  se  tomar  fim 
em  si  próprio,  se  o  exercício  físico  e  a  busca  da  saúde  não  servir  a  outra 
coisa  senão  a  si  mesmos.  Um  corpo  é  verdadeiramente  corpo  quando 
é  servo  do  pensamento  e  do  espírito.  Um  corpo  alcança  a  verdadeira 
glória  do  corporal,  quando  se  dá  a  si  mesmo  e  até  perde  a  vida  física 
por  algo  que  é  mais  do  que  um  corpo. 

Como  nas  figuras  do  Edifício  e  da  Esposa,  a  entrega  a  Cristo  é  o 
grande  pensamento  que  Paulo  deseja  comunicar.  Êste  pensamento  pode 
ser  expresso  muito  mais  natural  e  adequadamente  pelo  Corpo  do  que 
pelo  Edifício.  Porque,  como  o  princípio  de  vida  e  de  movimento  é 
natural  ao  corpo,  uma  entrega  progressiva  e  estrutural  a  Cristo  cara- 
teriza  os  membros  individuais  e  o  corpo  como  um  todo.  Êles  todos 
juntamente  se  esforçam  para  atingir  a  harmonia  com  a  Cabeça.  Por- 
tanto, a  questão  a  respeito  do  objetivo  da  atividade  corporal  é  de  impor- 
tância extraordinária. 

O  objetivo  da  Igreja  Cristã  como  Corpo  de  Cristo  é,  como  Paulo  o 
concebe  na  Carta  aos  Efésios,  «crescer  em  Cristo»  (4:15).  Mais  especi- 
ficamente, a  finalidade  do  Corpo  é  ser  edificado  pelos  que  nisso  estão 
interessados  (4:11,  12),  para  que  todos  os  membros  possam  atingir  «a 
unidade  da  fé  e  o  conhecimento  do  Filho  de  Deus,  a  varão  perfeito,  à 
medida  da  estatura  completa  de  Cristo»  (4:12).  A  estatura  de  Cristo, 
o  Homem  Novo,  é  o  que  se  procura.  E  esta  estatura,  Paulo  afirma, 
nunca  poderá  ser  alcançada,  a  não  ser  que  aconteçam  duas  coisas.  Pri- 
meiro, cada  membro  precisa  de  contribuir  para  a  vida  e  funcionamento 
do  Corpo  com  o  que  êle  sòzinho,  seja  «junta  ou  músculo»,  é  capaz  de 
dar  (4:16).  Segundo,  tôda  ação  precisa  de  ser  coordenada.  Os  mem- 
bros do  Corpo  precisam  de  compreender  que  são  «membros  um  do  outro»; 
concordemente,  precisam  de  agir  juntos  «em  amor»,  para  o  bem  do 
todo.  Por  um  lado,  cada  membro  do  Corpo  funcionará  de  acôrdo  com 
a  sua  natureza.  Fará  assim  como  indivíduo,  expressando,  no  mais  exato 
sentido,  a  sua  individualidade,  mas  sem  qualquer  laivo  de  individualismo. 
Por  outro  lado,  a  atividade  das  partes  deve  ser  harmonizada  com  a 
ação  que  o  Corpo,  como  todo,  empreende  realizar.  Como  membro  do 
Corpo  de  Cristo,  todo  cristão  é  importante  e  precisa  de  trabalhar,  mas 


—  106  — 


o  trabalho  que  empreende  deve  de  ser  no  espírito  de  amor,  com  consi^ 
deração  e  apreciação  pelo  trabalho  dos  demais  membros.  Desta  manei- 
ra, os  esforços  de  iim  cristão  tornam-se  parte  da  ação  total  proposta  e 
empreendida  pelo  Corpo  de  Cristo,  em  resposta  ao  mandato  da  Cabeça, 
e  como  expressão  da  vida  particular  que  inspira  o  Corpo  como  um  todo. 
É  este  o  objetivo  de  tôda  a  atividade  cristã,  como  é  também  o  perene 
problema  cristão  —  fazer  com  que  todos  os  cristãos  trabalhem  e,  ao 
mesmo  tempo,  harmonizem  o  ardor  dos  obreiros  isolados,  seja  indivi- 
dualmente, seja  como  Igrejas,  com  as  necessidades  e  alvos  da  inteira 
Comunidade  Cristã,  como  o  Corpo  de  Cristo. 

c)    As  Grandes  Unidades. 

A  consideração  da  Igreja  como  um  Corpo  leva-nos,  imediata  e 
naturalmente,  a  considerar  a  apresentação  que  Paulo  faz  nesta  grande 
Epístola,  das  Unidades  da  Igreja.  Há  sete  coisas  que  fazem  a  Igreja 
Una.  Ouçamos  como  Paulo  as  conta,  uma  por  uma.  «Há  um  só  corpo 
é  um  só  Espírito,  como  também  fostes  chamados  em  uma  só  esperança 
de  vossa  vocação;  um  só  Senhor,  uma  só  fé,  um  só  batismo;  um  só 
Deus  e  Pai  de  Todos,  o  qual  é  sôbre  todos  e  por  todos  e  em  todos» 
(4:4-6). 

Elstas  sete  unidades  básicas  caem  em  três  grupos.  Há,  primeiro, 
um  Corpo,  um  Espírito,  uma  esperança.  A  conexão  formal  entre  estas 
é  óbvia.  Um  corpo  é  vitalizado  por  um  Espírito  e  move-se  progressiva- 
mente para  uma  esperança.  Temos  depois  um  Senhor,  uma  fé,  um 
batismo.  A  fidelidade  a  um  Senhor  dá  origem  a  uma  fé  e  recebe  o 
sinal  de  um  ato  de  batismo.  Finalmente,  acima  de  todas,  operando  por 
meio  de  tôdas  e  imanente  em  tôdas,  há  um  Deus  Eterno  e  Pai,  cujo 
propósito  gracioso  instituído  abrange  a  tôdas  as  demais  unidades  e  lhes 
dá  unidade. 

Três  destas  unidades  são  claramente  de  importância  central,  a  saber: 
Um  só  Corpo,  Um  só  Senhor,  Um  só  Deus. 

Um  só  Corpo.  Há  apenas  uma  comunidade  fundamental,  o  Povo 
de  Deus.  Jesus  Cristo  tem  apenas  um  Corpo;  há  somente  uma  Igreja 
de  Cristo.  Os  cristãos  precisam  ter  este  fato  sempre  em  mente  para 
a  iluminação  da  sua  fé  e  orientação  da  sua  prática.  No  meio 
do  tumulto  dos  séculos  cristãos,  todos  os  membros  do  Seu  Corpo  têm 
sido  igualmente  caros  a  Jesus  Cristo,  a  Cabeça.  É,  pois,  prática  mui 
pouco  santa  e  perigosa,  o  condenar  e  lançar  juízo  definitivos  sôbre 
irmãos  na  fé.  O  pecado  mortal  contra  o  Corpo  de  Cristo,  a  apostasia 
fundamental  contra  a  Cabeça  do  Corpo,  é  praticar  e  glorificar  o  «cisma» 
por  amor  dêsse  mesmo  cisma.  A  glorificação  do  cisma,  a  transfor- 
mação do  mandamento  de  nos  separarmos  dos  pagãos  em  ordem  expressa 
aos  cristãos  para  que  se  separem  de  outros  cristãos  que  não  concordam 
absolutamente  com  o  ponto  de  vista  do  grupo  dissidente,  é  «crucificar 
de  novo  o  Filho  de  Deus  e  pô-lo  em  vitupério».    Todo  aquele  que  dissen- 


—  107  — 


tir  conscienciosamente,  ou  mesmo  um  grupo,  dentro  da  Igreja  Cristã, 
deve  ser  tratado  com  o  máximo  respeito  e  consideração.  Mas  quebrar 
a  unidade  do  Corpo  de  Cristo  meramente  por  amor  do  cisma,  é  como 
dizer:  «Cisma,  sê  tu  o  meu  Deus»,  é  seguir  nas  pegadas  do  «: arcanjo 
perdido».  Estou  falando  aqui  da  canonização  da  revolta  como  tal  e  não 
da  necessidade  constante  da  reforma  dentro  da  Igreja  Cristã. 

Dentro  da  Comunidade  cristã  ha  um  só  Espírito,  que  para  sempre 
foi  dado  à  Igreja.  A  vida  nova  dos  cristãos,  o  seu  crescimento  em 
Cristo,  a  manifestação  neles  de  dons  e  graças  especiais,  são  devidos  à 
presença  e  obra  do  Espirito  Santo.  O  Espírito  é  o  inimigo  da  discórdia, 
como  é,  também,  a  fonte  da  concórdia  da  Igreja.  A  Sua  presença,  como 
autor  e  aperfeiçoador  do  amor  cristão,  é  o  sêlo  especial  de  Deus  sóbre 
os  membros  da  Comunidade.  A  coisa  mais  desastrosa  que  podem  fazer 
os  cristãos  é  «entristecer  o  Espírito  Santo».  Porque  então  o  «amor,  a 
alegria  e  a  paz  no  Espírito  Santo»  desaparecem,  e  com  êles,  uma  das 
mais  preciosas  unidades  cristãs. 

O  Espírito  que  vivifica  o  Corpo  toma  real  e  guarda  viva  a  grande 
esperança  cristã.  Esta  é  a  segura  esperança  da  salvação,  da  redenção 
final  e  a  vitória  do  Corpo,  por  meio  do  poder  do  Cristo  Ressurrecto. 
Sustentados  por  esta  esperança,  os  cristãos  «não  serão  confundidos^; 
usarão  a  salvação,  «a  esperança  de  salvação»,  como  elmo  nas  cabeças. 
Por  essa  razão  podem  conservá-las  eretas,  quando  outrgis  se  abaixam. 
Podem  sorrir  serenamente  no  perigo,  quando  outros  tremem  de  terror. 
Vão,  alertas,  ao  encontro  do  amanhã  desconhecido,  porque  sabem  que, 
além  das  trevas,  «está  próxima»  a  madrugada  e  a  salvação  se  aproxima. 

Um  só  Senhor.  Os  membros  de  um  só  Corpo,  vitalizado  por  um 
só  Espírito  e  inspirados  por  uma  só  Esperança,  dão  obediência  a  um 
só  Senhor,  o  qual  é  a  Cabeça  do  Corpo.  O  único  Senhor  Jesus  Cristo  é 
o  Senhor  do  Corpo,  controlando-lhe  a  vida.  É  também  o  objeto  de 
devoção  do  Corpo,  recebendo  a  fidelidade  ardente  de  todos  os  membros. 
Todos  os  pormenores  dos  esforços  práticos  que  empreendem,  bem  como 
todos  os  problemas  de  relação  e  conduta,  são  resolvidos  «no  Senhor». 

«Jesus  Cristo  é  Senhor».  Estas  são  as  palavras  do  mais  antigo  e 
mais  básico  dos  credos  cristãos.  Na  carta  que,  da  prisão  de  Roma, 
endereçou  à  Igreja  dos  Filipenses,  Paulo  compreende  e  faz  ressoar  uma 
fórmula  de  devoção  cristã  que  era  corrente  na  Igreja  do  primeiro  século. 
Estava  chegando  o  tempo,  disse  êle,  em  que  toda  língua  «confessará 
que  Jesus  Cristo  é  Senhor,  para  a  glória  de  Deus  Pai»  (Filip.  2:11).  Eis 
o  primeiro  credo  com  respeito  ao  tempo  e  o  credo  básico  para  todos  os 
tempos.  «Senhor,  Kurios,  foi  o  têrmo  usado  na  Septuaginta,  a  tradução 
grega  do  Velho  Testamento,  para  designar  Jehovah  ou  Jahveh,  o  Deus  de 
Israel.  Era  também  o  têrmo  corrente  usado  no  mundo  de  S.  Paulo  para 
designar  o  Imperador  Romano.  O  Apóstolo  usa  êste  mesmo  têrmo 
Kurios  duzentas  e  cincoenta  vêzes  em  seus  escritos,  para  designar  o  único 
Senhor,  Jesus  Cristo,  que  era  o  próprio  Deus  e  mais  poderoso  do  que  o 
César  imperial  em  cuja  prisão,  êle,  Paulo,  era  «embaixador  de  Cristo  em 
cadeias». 


—  108  — 


Neste  ponto,  fazemos  uma  pausa.  Dizer  verdadeiramente  que 
«Jesus  Cristo  é  Senhor»  é  fazer  a  afirmação  básica  da  religião  cristã. 
«Ninguém»,  diz  Paulo,  «pode  dizer  que  Jesus  Cristo  é  o  Senhor,  senão 
pelo  Espírito  Santo»  (1  Cor.  12:3).  Fazer-se  ainda  esta  afirmação  como 
fórmula  fria  como  conceito  de  ortodoxia  escolástica  não  faz  ninguém 
tomar-se  cristão.  Muitos,  como  o  mesmo  Jesus  disse,  podem  dizer: 
«Senhor,  Senhor»;  mas  o  único  Senhor  não  os  reconhecerá,  porque  nun- 
ca o  tiveram  como  Senhor  da  sua  vida.  A  maior  das  unidades  cristãs 
torna-se  real,  e  nós  nos  tornamos  cristãos  no  sentido  do  Novo  Testa- 
mento, membros  de  um  só  Corpo  quando,  com  tôda  a  nossa  personali- 
dade, curvamo-nos,  e  adoramos  a  realidade  viva  de  Jesus  Cristo,  o  Se- 
nhor. Jesus  Cristo,  o  Senhor,  não  é  honrado  quando  afirmamos  uma 
verdade  como  conceito  a  Seu  respeito,  por  amor  da  posição  ortodoxa. 
Êle  é  honrado  sòmente  quando  nos  submetemos  ao  seu  domínio  soberano, 
porque  só  êle  nos  pode  dar  existência  vital.  Tornar  a  descobrir  neste 
tempo  de  novos  «senhores»  e  de  apaixonadas  lealdades,  tudo  que  é  en- 
volvido no  credo  intemporal  de  que  Jesus  Cristo  é  Senhor,  seria  reco- 
brar a  atmosfera  e  tornar  à  realidade  da  idade  Apostólica. 

Fazer  de  Jesus  o  Rei  da  vida  em  sua  inteireza,  opor-se  a  todos 
quantos  contestam  os  Seus  «direitos  à  coroa»,  rejeitar  a  idéia  de  que 
Êle  abdicou  e  deixou  a  outros  «senhores»  conduzir  os  negócios  da  Sua 
Igreja,  esta  é  a  grande  unidade  de  ação  que  corresponde  à  unidade  da 
fé  no  «Único  Senhor».  Tanto  como  uma  e  única  Cabeça  da  Igreja, 
como  também  na  sua  qualidade  de  supremo  tribunal  de  apelação  cristã, 
Jesus  Cristo  é  Senhor. 

A  lealdade  a  Jesus  Cristo  como  o  Único  Senhor  dá  origem  a  uma 
Fé  só.  Insistentemente  se  pergunta:  «Quais  são  as  coisas  essenciais 
da  fé  cristã?».  Em  sentido  formal,  a  questão  é  fácil  de  responder.  A3 
cousas  essenciais  da  religião  cristã  são  as  afirmações  de  crença  que  se 
centralizam  na  básica  convicção  cristã  de  que  Jesus  Cristo  é  Senhor  e 
que  da  mesma  convição  derivam.  Dentro  do  contexto  e  da  atmosfera 
da  Carta  aos  Efésios,  isto  significa  que  Jesus  Cristo  está  no  centro  do 
«Mistério»,  o  grande  esquema  de  redenção  que  Deus  revelou.  Ninguém 
pode  conhecer  o  que  Jesus  Cristo  e  a  Sua  soberania  realmente  significam, 
salvo  no  contexto  das  Sagradas  Escrituras.  Porque  Jesus  Cristo  é,  no 
mais  completo  sentido,  o  Senhor  das  Escrituras,  a  chave  da  sua  signi- 
ficação de  crença  cristã  essencial  que  expresse  a  Fé  Única  e  lhe  seja 
fiel,  tem  de  incluir,  primeiramente,  a  aceitação  da  suprema  autoridade 
da  Bíblia,  como  a  Palavra  de  Deus,  na  qual  tão  sòmente  aprendemos 
acerca  de  Jesus  Cristo;  segundo,  uma  afirmação  adequada  baseada  na 
Bíblia,  a  respeito  de  Jesus  Cristo  e  dos  grandes  acontecimentos  das 
verdades  que  nÊle  se  centralizam;  terceiro,  a  aceitação  dos  dois  Sacra- 
mentos instituídos  por  Cristo,  o  Batismo  e  a  Ceia  do  Senhor.  Alguns 
acrescentariam  a  aceitação  de  alguma  afirmação  particular  a  respeito 


—  109  — 


do  Governo  da  Igreja,  por  exemplo,  o  «Episcopado  Histórico».  Não 
acho,  contudo,  que  qualquer  formulação  relacionada  com  a  forma  do 
Governo  da  Igreja,  como  também  contra  a  sua  substância  e  seu  espírito, 
pertença  à  essência  da  Fé  Única.  Êste  ponto  receberá  mais  completa 
elucidação  na  secção  seguinte. 

Presentemente,  o  interesse  revivido  na  teologia  cristã  e  na  fé  cristã 
histórica,  e  os  muitos  esforços  para  promover  a  união  da  Igreja,  dão 
grande  atualidade  à  discussão  da  Fé  tinica.  Podem-se  afirmar  certas 
coisas: 

Primeira:  Não  pode  haver  unidade  cristã,  nem  se  alcançará  ne- 
nhuma verdadeira  união  cristã  se  não  se  firmar  sôbre  a  lealdade  in- 
condicional ao  único  Senhor.  A  base  de  filiação  ao  Conselho  Mundial 
de  Igrejas,  segundo  os  termos  constitucionais  firmados  no  ato  de  sua 
organização,  em  Amsterdão,  em  agosto  de  1948,  é  que  as  Igrejas  tenham 
a  «Jesus  Cristo  como  Deus  e  Salvador».  Desse  modo,  o  Conselho  es- 
tabeleceu que  da  lealdade  a  êsse  fundamento  terão  de  partir  tôdas  as 
negociações  entre  as  Igrejas,  para  relações  mais  intimas.  E'  preciso 
que  se  note  que  não  houve  a  intenção  de  que  servisse  de  base  para 
uma  reunião  orgémica  de  Igrejas,  mas  tão  sòmente  para  tornar  possível 
às  Igrejas  reunirem-se  sôbre  essa  declaração  fundamental  a  fim  de  ado- 
rarem a  Deus  juntas,  pensarem  juntas  e,  tanto  quanto  possível  falarem 
e  agirem  juntas  e,  pelo  menos,  discutirem  juntas  as  suas  diferenças. 

Segunda:  Nenhum  motivo  de  conveniência,  nenhuma  pressão  política, 
nenhuma  procura  de  maior  poder  corporativo,  nenhum  sentimento  idea- 
lista, nenhum  interêsse  financeiro,  nenhuma  solicitude  social  ou  afini- 
dade cultural,  podem  fornecer  base  digna  e  própria  para  a  união  de 
Igrejas  Cristãs.  Uma  tal  união  deve  ser  sempre  união  na  Verdade. 
Por  isso,  todos  os  movimentos  em  prol  da  unidade  da  Igreja,  e  a  orga- 
nização da  união  de  tôda  a  Igreja,  precisam  de  reconhecer  a  augusta 
majestade  da  Verdade.  A  Verdade  deve  ser  sempre  o  interêsse  primeiro 
da  unidade.  Mas  eu  me  apresso  a  acrescentar:  Nunca  se  pode  esquecer 
que  Jesus  Cristo  é  a  Verdade,  que  a  unidade  cristã  é  uma  parte  da 
Verdade,  e  que  tôda  a  verdade  precisa  de  ser  sustentada  e  dita  com  amor. 

Terceira:  Movidas  pelo  interêsse  por  uma  só  Fé  e  dedicadas  a  con- 
seguir a  máxima  unidade  visível  de  um  só  Corpo,  tôdas  as  Igrejas  cris- 
tãs deviam  reexaminar-se  a  si  mesmas.  Na  lealdade  a  um  só  Senhor, 
guiadas  por  um  só  Espírito  e  avançando  para  uma  só  Esperança,  deviam 
inquirir  o  que  é  que  Jesus  Cristo  lhes  deu  como  o  único  testemunho,  ou 
como  dom  e  graça  especial,  que  elas  desejassem,  em  tôda  a  humildade 
e  por  amor  do  Corpo  de  Cristo,  a  Igreja,  trazer  como  sua  contribui- 
ção para  uma  unidade  cristã  mais  ampla. 

Quarta:  A  qualidade  e  o  êxito  de  qualquer  união  eclesiástica  que 
possa  ser  realizada,  dependerão,  não  sòmente  do  espirito  cristão  e  da 
dedicação  dos  que  nela  entram,  mas  também  das  ricas  bases  da  verdade 


—  310  — 


cristá  sôbre  que  for  estabelecida.  Quanto  mais  rica  e  mais  adequada 
for  a  declaração  confessional  de  fé  sôbre  que  se  unaim  as  Igrejas,  contanto 
que  sejam  as  afirmações  doutrinárias  inteligente  e  entusiásticamente 
sancionadas,  tanto  mais  coesiva  será  a  sua  unidade  em  Uma  Só  Fé; 
serão  também  maiores  os  tesouros  da  crença  comum  de  que  se  pode 
valer  para  a  tarefa  educacional  das  Igrejas.  Uma  Igreja  sem  credo,  ou 
dotada  de  credo  mui  pobre,  terá  de  defrontar  a  dificuldade  que  surge 
quando  uma  Igreja  não  possui  base  doutrinária  própria  para  sua  tarefa 
cultural. 

Quinta.  Uma  das  maiores  necessidades  de  Uma  Só  Fé,  nos  nossos 
dias,  é  que  a  Igreja  Cristã  se  dedique  ao  trabalho  de  elaborar  uma 
teologia  ecuménica.  Nesta  época  em  que  o  mundo  é  fisicamente  unido, 
mas  espiritualmente  dividido;  em  que  o  conflito  das  religiões  seculares  res- 
soa por  todas  as  fronteiras  do  globo;  em  que  a  Igreja  Cristã  é  verdadeira- 
mente ecuménica,  coextensiva  com  a  terra  habitada;  em  que  o  esplendor 
majestoso  do  propósito  de  Deus  em  Cristo  Jesus  brilha  de  novo  na  mente 
cristã,  é  o  tempo  amadurecido  para  uma  declaração  teológica  que  tome 
em  conta  éstes  diversos  fatores.  Mas,  para  repetir  palavras  que  já 
escrevi  noutro  lugar,  nunca  deve  a  Igreja  de  Cristo  patrocinar  decla- 
ração de  teologia  confessional  pálida,  desvitalizada  e  invertebrada.  Pre- 
cisa de  produzir,  nesta  época  revolucionária  de  transição,  um  sistema 
de^fé  cristã  que  seja  rubro  de  sangue,  lealmente  bíblico,  sem  pejo  de  ser 
ecuménico  e  ao  mesmo  tempo  sistema  fortemente  vertebrado  de  cren- 
ça cristã. 

Os  que  servem  ao  Único  Senhor  e  professam  a  Fé  Única,  darão  pú- 
blico conhecimento  da  sua  posição,  submetendo-se  ao  rito  do  Batismo. 
O  batismo  é  um  dos  sacramentos  instituídos  por  Jesus  Cristo  e  pelo 
qual,  no  uso  simbólico  da  água  significando  purificação  do  pecado  e 
identificação  da  pessoa  batizada  com  Jesus  Cristo  em  Sua  morte  e 
ressurreição,  o  crente  cristão  é  incorporado  à  Igreja  de  Cristo  como 
comunidade  visível.  Paulo  diz  que  os  cristãos  são  «batizados  em  Cristo». 
(Rom.  6:3.  Gal.  3:27).  Ou  então,  o  que  significa  o  mesmo:  «todos  são 
batizados  em  um  corpo»,  isto  é,  na  Igreja  de  Cristo,  como  personalidade 
coletiva  na  Nova  Humanidade.  As  pessoas  batizadas  que  foram  bati- 
zadas  em  nome  do  Pai,  do  Filho  e  do  Espírito  Santo,  não  im.porta  a 
Idade  quando  foram  batizadas,  ou  a  forma  ou  circunstâncias  do  batismo, 
estão  diante  do  mundo  como  pertencentes  à  Igreja  Cristã.  O  batismo 
envolve,  por  sua  própria  natureza,  rompimento  com  a  velha  vida  e  suas 
relações,  e  uma  entrega  declarada  a  Cristo,  à  Igreja  e  a  uma  nova  vida. 
A  pessoa  batizada  precisa,  pois,  de  estabelecer  uma  posição  firme,  pois 
doutra  maneira  o  seu  batismo  será  sem  significação  qualquer. 

Na  Igreja  Cristã  de  hoje  em  dia,  a  significação  radical  e  as  conse- 
qiiências  do  batismo  cristão,  segundo  o  modêlo  do  Novo  Testamento, 
tomam-se  meds  dramàticamene  claras,  quando  o  indivíduo  ou  famílias 


—  111  — 


pertencentes  a  uma  fé  não-cristã,  ou  vivendo  em  uma  comunidade  secula- 
rizada  e  hostil  ao  cristianismo,  decidem  professar  a  sua  fé  em  Jesus  Cris- 
to, pelo  batismo.  O  batismo,  em  tais  casos,  pode  ser  seguido  por  um  ato  de 
repúdio  das  pessoas  batizadas,  por  parte  de  seus  parentes  e  da  comu- 
nidade local  e  mesmo  de  severa  discriminação  e  perseguição  ativa. 
Enquanto  uma  pessoa  guarda  dentro  de  si  as  suas  crenças  e  simpatias, 
por  si  mesmas,  enquanto  não  faz  profissão  pública  da  sua  fé,  e  enquanto 
não  é  recebida  nas  fileiras  da  Igreja  Cristã,  nada  lhe  acontece.  Somen- 
te quando  a  sua  fé  é  selada  pela  água  do  batismo,  é  que  paga  o  preço 
de  crer. 

Quão  lamentável  ter-se  obliterado,  em  um  grande  setor  da  Igreja 
Cristã  de  hoje,  a  significação  do  batismo  inerente  no  Novo  Testamento. 
Em  alguns  círculos,  o  sacramento  tem-se  tornado  rito  mágico,  pelo 
qual  a  criança  batizada  é  regenerada  pelo  Espírito  Santo.  Tal  ponto 
de  vista  não  somente  viola  todo  o  espírito  da  religião  bíblica,  como 
também  dá  origem  a  espírito  de  complacência  e  irresponsabilidade  em 
milhões  de  cristãos.  Em  outros  círculos,  conquanto  não  se  tenha  acei- 
tado a  idéia  da  regeneração  batismal,  o  batismo  se  reduz  a  rito  pura- 
mente formal.  Êle  é  o  primeiro  de  uma  série  de  ritos  que,  quando  reali- 
zados, garantem  boa  e  regular  posição  na  Igreja  Cristã  às  pessoas  que 
passarem  pela  série  completa.  Nada  importa  se  a  pessoa  é  ou  não  mem- 
bro verdadeiro  e  ativo  da  Igreja.  O  indivíduo  pode  aparecer  em  um 
santuário  cristão  uma  vez  por  ano  ou  menos  frequentemente  ainda. 
Foi  diplomado  pela  Igreja.  Como  «diplomado»  ou  «aluno»  na  Igreja, 
a  sua  ligação  ativa  pode  significar  nada  mais  do  que  interêsse  senti- 
mental por  instituição  que  lhe  concederam  os  vários  diplomas  eclesiásticos. 
Foi  a  esmagadora  consciência  de  que  milhões  de  pessoas  batizadas  na 
Europa  não  tinham  qualquer  interêsse  por  Jesus  Cristo  ou  pela  Igreja, 
que  levou  Karl  Barth  a  fazer  violento  ataque  ao  inteiro  sistema  batismal, 
como  é  praticado  hoje  em  dia  por  muitas  igrejas  cristãs.  Êle  desejava 
infundir  Um  Só  Batismo  e  um  Só  Deus  e  Pai  de  Todos,  com  tôda  a 
antiga  significação  bíblica. 

Tôdas  as  demais  unidades  ligadas  à  existência  são  inspiradas  pela 
mais  básica  de  tôdas  e  servem  ao  seu  eterno  propósito:  Deus,  o  Uni- 
versal, o  «Pai  Arquétipo».  «Dêle,  a  inteira  família  nos  céus  e  na 
terra»  —  a  despeito  da  diversidade  e  das  divergências  e  conflitos  histó- 
ricos entre  os  seus  membros  —  toma  o  nome».  Deus,  o  «Pai  Eterno», 
permanece  único  no  meio  das  vicissitudes  tôdas  da  vida  cósmica  e  terre- 
na. As  criações  do  homem  aparecem  e  se  dissolvem,  os  impérios  sur- 
gem e  perecem,  as  civilizações  esplendem  e  se  eclipsam,  mas  o  desígnio 
eterno  de  Deus  em  Jesus  Cristo,  de  «reunir  tôdas  as  coisas  nÊle»,  perma- 
nece constante  no  meio  de  tôdas  as  mudanças.  «A  Êle  seja  glória  na 
Igreja  e  em  Jesus  Cristo,  por  tôdas  as  gerações  para  sempre  e  sempre» 
(Efes.  3:12). 

Somente  quando  se  toma  a  idéia  cristã  de  Deus  sériamente  e  somen- 
te quando  os  homens  se  tornam  conscientes  do  Sêr  e  do  propósito  que 


operam  na  história,  é  que  há  qualquer  esperança  de  realização  para 
muitos  e  há  caros  anelos  humanos.  O  internacionalismo  e  o  desejo  de 
fraternidade  humana,  fora  da  fé  na  divina  Paternidade,  são  sonhos 
fúteis  que  se  transformam  em  trágicos  fracassos.  Não  se  pode  alcançar 
a  fraternidade  pelo  simples  desejá-la.  Nenhum  sentimento  humano,  e  o 
amor  muito  menos,  pode  ser  criado  por  ato  da  volição.  O  amor  que 
transforma  os  homens  em  irmãos  tem  de  crescer,  natural  e  espontanea- 
mente, de  um  sentido  de  comum  relação  para  com  o  Pai,  que  ama  a  todos 
os  homens.  O  amor  é  de  Deus;  os  homens  precisam  de  ser  plantados 
no  solo  do  amor,  ou  não  crescerão  em  amor,  para  unir  tanto  a  Deus 
como  aos  outros. 

Quão  doloroso  e  irónico  é  o  pensamento  de  que  a  época  da  história, 
em  que  os  homens  falaram  mais  de  fraternidade  fôsse  época  caracte- 
rizada por  duas  guerras  mundiais!  Mas,  para  os  cristãos  «as  coisas 
que  não  podem  ser  abaladas»  permanecerão  ainda.  A  principal  entre 
estas  cousas  é  a  certeza  experimental  de  que  o  Eterno  Deus,  o  Deus  e 
Pai  de  Jesus  Cristo,  é  o  nosso  Deus  e  Pai,  também.  Vem  muito  a 
propósito,  portanto,  nêste  tempo  mais  do  que  trágico,  fazer  ecoar  com 
fé  e  com  esperança  a  rapsódia  de  adoração  com  que  S.  Paulo  começou  a 
sua  Carta  aos  Efésios:  «Bendito  seja  o  Deus  e  Pai  de  Nosso  Senhor 
Jesus  Cristo  que  nos  tem  abençoado  em  Cristo,  com  tôdas  as  bênçãos 
espirituais  nos  lugares  celestiais».  No  espírito  de  Davi,  em  um  dos 
momentos  cruciais  da  sua  vida,  e  adaptando  as  palavras  do  bardo  real 
de  Israel,  repitamos  hoje:  «Ainda  que  a  nossa  casa  —  a  casa  da  Igreja 
Cristã  e  da  nossa  humanidade  comum  —  não  seja  tal  para  com  Deus, 
contudo,  Êle  estabeleceu  conosco  um  Concerto  eterno,  ordenado  e  guar- 
dado em  tôdas  as  cousas.  Êle  é  tôda  a  nossa  salvação  e  todo  o  nosso 
desejo».    (2  Sam.  23:5). 


—  113  — 


CAPITULO  VII 


A  PLENITUDE  DE  CRISTO 

Mas,  como  se  deverá  alcançar  a  unidade  da  Igreja?  Como  se  devem 
expressar  as  grandes  unidades  da  fé  que  foram  estudadas  no  capitulo 
anterior? 

Paulo,  agora,  passa  a  responder  a  estas  perguntas.  Êle  as  responde 
dizendo  que  Cristo,  de  Sua  plenitude  como  Cabeça  de  Igreja,  dá  à  Igreja, 
como  dons  especiais,  homens  a  quem  conferiu  os  dotes  e  qualificações- 
necessários  aos  vários  misteres.  Jesus  Cristo,  o  grande  Vencedor,  que 
primeiramente  desceu  às  mais  baixas  regiões  da  experiência  e  da  neces- 
sidade terrena,  e  então  subiu  à  sede  do  poder  celestial,  agora  confere 
larga  diversidade  de  dons  da  sua  liberdade  celestial  (Efes.  4:7-10). 

a)    Da  Sua  Plenitude  —  Homens  cheios  de  Dons. 

Que  eram  os  dons  de  Cristo?  Seus  dons  eram  para  que  uns  fossem 
«apóstolos,  outros  profetas,  outros  evangelistas,  outros  pastores  e  douto- 
res» (4:11).  Todos  êstes  eram  «ministros»,  «servos»  de  Deus  e  da. 
Igreja.  Todos  deviam  ter  relações  com  a  Igreja  em  geral,  da  mesma 
maneira  que  «bispos»,  «presbíteros»  e  «diáconos»  deviam  ter  responsa- 
bilidade especial  em  relação  a  regiões  particulares  ou  igrejas  locais. 

Na  extrema  dianteira  dos  dons  humanos  de  Cristo  à  Igreja,  Paulo 
coloca  os  «apóstolos».  Os  apóstolos  eram  os  «mensageiros  especiais». 
Eram  hom.ens  que  podiam  dar  testemunho  do  fato  de  que  o  Humilhado, 
que  tinha  descido  tornou-se  o  Ressuscitado,  que  subiu  «acima  de  todos 
os  céus».  A  maior  parte  dos  apóstolos  tinham  visto  e  ouvido  a  Cristo- 
seguiram-no  e  com  Êle  trabalharam  durante  a  Sua  carreira  terrena. 
O  próprio  Paulo,  não  tinha  conhecido  a  Cristo  «nos  dias  da  Sua  carne». 
Contudo,  Aquele  que  ressurgiu  e  subiu  aos  céus,  depois  que  a  Sua  carrei- 
ra terrena,  com  a  Sua  consequente  humilhação,  tinham  chegado  ao  fim, 
encontrou-se  com  Paulo  e  dirigiu-se  a  êle  em  circunstâncias  dramáticas, 
dando-lhes  ao  mesmo  tempo  a  comissão  de  «apóstolo».  Contudo,  tanto 
Paulo  como  os  companheiros  apóstolos  não  eram  homens  capazes  de 
formar  conceitos.  Não  eram  dotados  da  capacidade  de  penetrar  no 
significado  intimo  da  realidade  e  da  história  universal.  Não  estavam 
dentro  da  tradição  clássica  dos  «filósofos  e  dos  sábios»,  que  podiam  tecer 
complicadas  tramas  de  pensamento,  tirar  de  sua  íntima  consciência, 
conceitos  universais.    Eram  antes,  em  sua  totalidade,  homens  comuns. 


—  114  — 


Mas  oportunidades  incomuns  de  percepção  lhes  tinham  sido  dadas.  Podiam 
dar  testemunho  concreto  dos  fatos  que  estão  por  detrás  da  afirmação 
da  primitiva  comunidade  cristã:  «Jesus  Cristo  é  Senhor».  Os  apóstolos 
eram  testemunhas  oculares  do  fato  de  que  o  Crucificado  se  tornou  o 
Ressuscitado. 

Os  «Profetas»,  que  constituem  o  segundo  grupo  dos  homens  dotados, 
recebiam  a  afirmação  dos  apóstolos  a  respeito  da  ressurreição  e  da  sobe- 
rania de  Cristo  e  interpretavam  a  significação.  Êles  mesmos  eram  uma 
prova  do  fato  afirmado  pelo  autor  do  Apocalipse  de  «que  o  testemunho 
de  Jesus  é  o  espírito  da  profecia»  (Apoc.  19:10).  Eram  capacitados, 
sob  a  orientação  do  Espírito  Santo,  a  se  entregarem  a  sólido  pensamento 
cristão,  à  luz  e  nos  termos  do  Senhor  Ressurrecto,  de  quem  os  apóstolos 
davam  testemunho.  Os  «profetas»,  iluminadas  as  mentes  por  Cristo  que  é 
a  Verdade,  mostravam  profunda  percepção  do  significado  de  Cristo.  Po- 
diam discernir  tempos  e  estações,  podiam  interpretar  Deus  aos  homens 
e  o  homem  a  si  mesmo.  Alguns  dêles  escreveram  livros  que  têm  o  seu 
lugar  no  cânon  do  Novo  Testamento.  Os  seus  sucessores,  através  das 
eras  cristãs,  têm  sido  teólogos  e  autores  de  credos,  a  verdadeira  suces- 
são dos  pensadores  do  Novo  Testamento.  Hoje,  os  filhos  dêsses  «profe- 
tas», lutam  com  a  tarefa  de  apresentar  a  verdade  cristã  a  uma  geração 
altamente  sofisticada  e  secularizada.  Visam  fazê-lo  de  tal  maneira  que 
«a  verdade  que  há  em  Jesus»  seja  exposta  nas  categorias  que  lhe  são 
próprias  e  que,  ao  mesmo  tempo,  desafiem  homens  e  mulheres  letrados 
e  iletrados,  selvagens  primitivos  ou  ao  ateniense  pedante,  todos  êles  con- 
temporâneos do  século  vinte. 

Em  terceiro  lugar,  na  lista  dos  dons  de  Cristo,  estão  os  dos  evange- 
listas». Os  evangelistas  são  homens  dotados  especialmente  para  serem 
os  pregadores  do  Evangelho,  «as  Boas  Novas»,  a  respeito  do  Crucificado 
e  Ressuscitado.  O  Evangelista  toma  a  verdade,  de  que  o  apóstolo  dá 
testemunho  e  que  é  pelo  profeta  interpretada,  e  a  proclama  como  Boas 
Novas.  A  tarefa  do  evangelista  tem  sido  admiravelmente  exposta  em 
um  documento  da  igreja  contemporânea:  «apresentar  Jesus  Cristo,  no 
poder  do  Espírito  Santo,  de  tal  modo  que  os  homens  sejam  levados 
a  colocar  a  confiança  em  Deus  por  meio  dÊle,  a  aceitá-lo  como 
Salvador  e  a  seguí-lo  como  Rei,  na  comunidade  da  Igreja»,  (i)  O 
evangelista  cristão  sente-se  comissionado  a  ir  a  todos  os  homens,  a 
qualquer  terra  em  que  êles  vivam  e  a  todo  lugar  onde  trabalhem.  Êle 
se  dirigirá  a  êles  com  convicção  ardente  e  claridade  cristalina.  Em 
cada  caso,  buscará  a  melhor  maneira  de  se  aproximar  das  pessoas  que 
busca  levar  à  conversão,  reconhecendo  o  direito  de  fazer-se  ouvir.  Se 
conquistar  tal  direito,  não  ficará  satisfeito  antes  de  ser  a  mensagem 
compreendida  e  obedecida.  Na  persecução  dêsse  objetivo,  o  evange- 
lista verdadeiro  alimentará  a  aspiração  constante  de  que  a  palavra  estran- 
geira de  sua  mensagem  se  torne  carne  indígena.  O  que  êle  procurará, 
acima  de  tôdas  as  coisas,  é  uma  resposta  séria  à  mensagem.  Procurará 

(1)    Towards  the  Conversion  of  EngJanã, 


—  115  — 


constantemente  reproduzir  êsse  clássico  emblema  de  submissão  ao  Senhor 
da  Vida,  conhecido  comumente  como  «timbre  de  Calvino»,  em  que  numa 
das  mãos  estendida  aparece  um  coração  flamejante  e  as  palavras  inter- 
pretativas: «O  meu  coração  te  dou,  Senhor,  ardente  e  sinceramente». 
A  entrega  a  Jesus  Cristo  é  o  que  o  sucessor  contemporâneo  da  antiga 
ordem  dos  evangelistas  continuará  a  levar  avante. 

Os  «Pastores»  são  também  dotados  de  Cristo.  São  homens  a  quem 
Êle  tem  dado  coração  de  pastor,  que  são  seguidores  do  próprio  Grande 
Pastor,  que,  à  semelhança  de  S.  Paulo,  amam  os  homens  «entranhada- 
mente», isto  é,  «com  a  afeição»  de  Jesus  Cristo.  Outras  religiões  têm  oa 
seus  profetas  e  sacerdotes  e  até  os  seus  evangelistas,  mas  somente  a 
religião  cristã  tem  produzido  uma  ordem  de  pastores.  O  pastor  cristão, 
com  o  seu  coração  de  pastor  e  a  sua  vocação  pastoral,  é  único  entre  os  fun- 
cionários religiosos.  Enfim,  é  o  pastor  cristão  e  somente  êle  é  quem  se 
mostrará  digno  adversário  dos  ardentes  devotos  do  Comunismo  marxis- 
ta. Porque  chegará  o  tempo  em  que  os  homens  desiludidos  e  quebran- 
tados, inflamados  revolucionários  de  ontem  e  de  hoje,  de  luzes  apagadas 
e  fogos  extintos  precisarão,  da  ternura  de  um  coração  de  pastor.  Des- 
feitas as  esperanças  dêles  de  uma  nova  era,  oprimidos  pelos  impre- 
vistos fenómenos  do  mal  pós-revolucionários,  procurarão  homens  que  os 
amem  como  indivíduos,  que  lhes  restaurem  as  almas,  apascentando-os 
nas  «verdejantes  pastagens»  ao  lado  de  «águas  de  descanso».  Para  o 
espírito  humano  solitário  e  quebrantado,  não  há  auxílio,  nem  esperança 
senão  em  homem  com  coração  de  pastor,  que  o  vá  procurar  na  prisão 
ou  o  busque  como  caminhante  perdido  na  estrada  da  vida. 

Depois  dos  pastores  vêm  os  «mestres».  Os  mestres,  na  grande 
sucessão  evangélica,  são  homens  e  mulheres  que,  tomando  as  pessoas 
que  entraram  em  uma  nova  experiência  espiritual  por  meio  da  obra  doa 
evangelistas,  e  cuja  nova  vida  está  sendo  alimentada  pelo  pastor, 
instruem-nas  na  fé  cristã.  Esta  é  a  grande  tarefa  da  educação  cristã. 
Inclui  instrução  da  Bíblia  e  da  significação  e  implicações  da  fé  cristã. 
O  mestre  precisa  de  fazer  muito  mais  do  que  simplesmente  apresentar 
como  fatos,  e  teológicamente,  as  verdades  cristãs:  precisa  de  ensinar  ao 
povo  a  maneira  de  ser  cristão  em  todas  as  circunstâncias  e  caminhoa 
da  vida.  Uma  grande  parte  da  educação  cristã  consiste  em  tomar  aa 
pessoas  que  pertencem  ks  várias  vocações  da  vida  e  mostrar-lhes  como 
pensar  e  viver  e  agir  como  cristãos  na  profissão  secular.  Um  mestre 
cristão  não  tem  maior  tarefa  do  que  a  de  tornar  claro  o  sentido  da 
Bíblia  e  da  vida  cristã  em  tódas  as  esferas  do  trabalho  diário  e  em  todas 
as  fases  da  experiência  humana.  O  mestre  cristão  precisa  de  ajudar  o 
povo  a  «aprender  a  Cristo»,  de  modo  tal  que  a  vida  inteira  se  tome 
ciistã.  O  objetivo  da  instrução  cristã  deve  se  guiar  todo  o  pensamento 
à  obediência  de  Cristo,  trazer  tôda  a  esfera  debaixo  da  lei  de  Cristo. 


—  IIG  — 


Os  homens  a  quem  Cristo  dotou  especialmente  e  que  Êle  ofereceu 
à  Igreja  como  dom,  têm  uma  grande  tarefa  em  comum.  Êles  devem 
exercer  o  ministério  de  tal  maneira  que  os  «santos»  sejam  «aperfeiçoa- 

b)    Para  a  Sua  Plenitude  —  Um  Ministério  Eficaz. 

dos»  ou  «equipados»  a  fim  de  que  também  em  sentido  não-profissional 
mas  efetivo,  possam  tornar-se  «ministros».  Desta  maneira  e  somente 
desta  maneira,  será  edificado  todo  o  Corpo  de  Cristo  (4:13). 

Nenhujna  passagem  da  Bíblia  é  mais  importante  do  que  esta,  para 
a  prosperidade  e  missão  da  Igreja  Cristã  hoje  em  dia.  A  tradução 
familiar  desta  importante  passagem  é  assim:  «E  Êle  mesmo  deu  uns  pa- 
ra apóstolos;  e  outros,  para  profetas;  e  outros,  para  evangelistas;  e 
outros,  para  pastores  e  mestres;  para  o  aperfeiçoamento  dos  santos,  para 
a  obra  do  ministério,  para  o  edificar  do  Corpo  de  Cristo».  (4:11,  12). 
Na  Revised  Standard  Version,  recentemente  publicada,  a  passagem  está 
traduzida:  «para  o  equipamento  dos  santos,  para  a  obra  do  ministério, 
para  edificação  do  Corpo  de  Cristo».  Aqui,  sem  autoridade  linguística 
mas  com  indubitável  tendência  eclesiológica,  conservou-se  a  vírgula  depois 
da  palavra  «santos».  Os  ministros  hesitam  em  sancionar  um  «minis- 
tério» neotestamentário  para  os  cristãos  comuns.  Contudo,  de  acordo 
com  o  melhor  e  mais  moderno  conhecimento  do  Novo  Testamento  e 
algumas  das  suas  mais  reputadas  traduções,  tais  como  as  Weymouth  e 
de  Phillips,  a  sentido  claro  da  passagem  é  simplesmente  este,  que  os 
«santos»  não  «equipados»  para  servirem.  J.  B.  Phillips,  em  suas 
Cartas  às  Igrejas  Jovens,  que  é  uma  tradução  das  epístolas  do 
Novo  Testamento,  tem  esta  tradução  livre:  «Os  Seus  dons  foram  dados 
para  que  os  cristãos  pudessem  ser  adequadamente  equipados  para  o  seu 
serviço,  para  que  o  inteiro  Corpo  pudesse  ser  edificado».  (2)  Richard 
Francis  Weymouth,  em  sua  famosa  tradução  do  Novo  Testamento,  O 
Novo  Testamento  em  Linguagem  Moderna,  traduziu  a  passagem  em 
questão  do  seguinte  modo:  «A  fim  de  equipar  inteiramente  o  seu  povo 
para  a  obra  de  serviço  na  edificação  do  Corpo  de  Cristo». 

A  favor  desta  tradução  está,  não  somente  o  teor  geral  do  pensa- 
mento de  Paulo  em  sua  Epístola  aos  Efésios  e  o  seu  ponto  de  vista  geral 
a  respeito  dos  funcionários  especiais  da  Igreja,  como  também  o  uso  das 
preposições  gregas.  Enquanto  que  a  preposição  prós,  significando 
«com  vistas  a»,  é  usada  diante  da  preparação  ou  equipamento  dos 
santos,  uma  preposição  diferente,  de  semelhante  significado,  eis,  «para 
o  fim  de»,  é  usada  antes  de  cada  uma  das  duas  frases  —  a  obra  do 
ministério,  e  a  edificação  do  Corpo.  O  sentido  parece  claramente  ser 
que  o  objetivo  supremo  dos  homens  dotados  deve  ser  equipar  os  «santos» 
para  que  êles,  por  seu  turno,  possam  dedicar-se  ao  ministério,  possam 
também  ser  servos  e,  do  seu  serviço,  resulte  a  edificação  do  Corpo  de 
Cristo . 


(2)    Publicado  pela  Companhia  Macmillan  em  1950. 


—  117  — 


A  idéia  tôda  é  assustadora,  mas  decisiva.  A  função  suprema  dos 
assim  chamados  oficias  da  Igreja,  cujo  ministério  é  relacionado  com 
algum  aspeto  do  progresso  da  Igreja,  pode  ser  assim  definido:  A  função 
dos  «ministros»  é  equipar  os  «santos»,  isto  é,  os  membros  comuns  da 
congregação  cristã  que,  pela  sua  ligação  e  profissão  são  «homens  e  mu- 
lheres de  Cristo»,  de  tal  maneira  que  também  êles  possam  prestar  ser- 
viços a  Cristo  e  à  Igreja,  no  mais  completo  sentido  do  termo.  Os  mem- 
bros leigos  estão  sob  a  mesma  obrigação  que  os  membros  do  clero,  de 
serem  integralmente  cristãos,  de  tomarem  a  sério  o  seu  chamado  cristão 
e  de  seguirem  nos  passos  daquele  que  disse  que  «não  tinha  vindo  para 
ser  servido  mas  para  servir».  Para  a  formação  do  espírito  cristão  e  a 
orientação  do  serviço  cristão,  os  homens  e  as  mulheres  leigos  precisam 
de  conservar  sempre  diante  de  si  a  imagem  essencial  da  religião  cristã. 
E^ta  imagem  essencial  é-nos  dada  no  Evangelho  de  S.  João,  capítulo 
13:1-17.  Jesus,  intensamente  consciente  da  Sua  identidade  e  Seu  des- 
tino e  de  que  era  Seu  o  poder  absoluto  e  de  «que  o  Pai  tinha  entregue 
tudo  nas  Suas  mãos»,  e  de  que  estava  para  voltar  para  Deus,  de  onde 
tinha  vindo,  derramou  água  em  uma  bacia  e,  cingindo-se  de  uma  toalha, 
lavou  e  enxugou  os  pés  dos  discípulos.  Esta  é  a  norma  autorizada  para 
todos  os  «santos».  Conscientes  do  fato  de  que  são  herdeiros  de  Deus 
e  co-herdeiros  com  Cristo,  os  «homens  e  as  mulheres  de  Cristo»,  pre- 
cisam de  estar  sempre  prontos  a  executar  as  mais  humildes  tarefas,  no 
serviço  de  Cristo  e  de  seus  companheiros.  Precisam  de  consagrar  suas 
forças  e  talentos,  seu  tempo  e  seu  dinheiro,  sua  posição  e  reputação  ao 
cumprimento  da  sua  vocação  cristã  e  à  edificação  da  comunidade  cristã, 
que  é  o  Corpo  de  Cristo.  Os  que  têm  «subido»  com  Cristo,  que  estão 
«em  Cristo»  e  assim,  vivem  nos  «lugares  celestiais  em  Cristo  Jesus»,  pre- 
cisam também  de  descer,  como  Ele  fêz,  às  «mais  baixas  partes  da  terra», 
isto  é,  se  estiverem  dispostos  a  tomar  a  sério  a  injunção  de  que  o  seu 
pensamento  e  ação  cristãos  precisam  de  ser  executados  «no  Senhor». 

O  que  vimos  até  aqui  não  é  nada  mais  e  nada  menos,  do  que  uma 
faceta  da  verdade  básica  do  Novo  Testamento,  do  sacerdócio  universal 
dos  crentes.  Todo  o  cristão  é  chamado  para  ser  ministro,  servo,  sacer- 
dote. O  seu  supremo  oferecimento  deve  ser  oferecimento  de  si  mesmo 
e  do  seu  serviço  a  Cristo  e  aos  homens.  Um  tal  oferecimento  não  pode 
ser  feito  por  procuração.  Somente  pode  ser  feito  pessoalmente  e  de  tal 
maneira  que  a  realidade  do  lavar  os  pés,  o  sofrimento  da  Cruz  e  o  poder 
da  Ressurreição  entrarão  todos  nela.  Uma  das  tristíssimas  coisas  da  his- 
tória cristã  é  que  a  doutrina  do  sacerdócio  universal  dos  crentes  tenha 
sido  tantas  vêzes  e  tanto  tempo  interpretada  como  a  simples  afirmação 
do  direito  e  do  privilégio  de  todo  o  cristão  de  se  aproximar  de  Jesus 
Cristo,  «dentro  do  véu»,  e  de  gozar  da  mais  completa  participação  da 
benção  espiritual.  E'  tempo  de  os  cristãos  se  tornarem  conscientes  de 
que  sacerdócio  significa  responsabilidade,  tanto  como  privilégio.  O  sa- 
cerdote cristão  precisa  de  mostrar  que  preza  os  seus  privilégios,  pela 


—  118  — 


aceitação  de  suas  responsabilidades,  oferecendo-se  a  si  mesmo  e  pro- 
curando oferecer  ainda  outros  como  sacrifícios  vivos  no  altar  da  de- 
voção cristã.  Não  basta  que  um  cristão,  clérigo  ou  leigo,  seja  bom  para 
com  outras  pesoas  no  espírito  de  Jesus  Cristo:  o  seu  anseio  constante 
deve  ser  o  de  que  os  que  se  tornam  recipientes  do  bem,  devem  ser  tam- 
bém os  fazedores  do  bem.  Naturalmente  que  não  deve  impor,  como  con- 
dição do  bem  que  fazem,  que  os  que  se  beneficiam  de  sua  bondade  devam 
ser  recíprocos  em  fazer  o  que  se  lhes  pediu  para  fazer.  Porque  proceder 
um  cristão  assim  eria  agir  segundo  a  «caridade  teológica»,  pela  qual  o 
recipiente  da  bondade  deveria  ser  obrigado  a  conformar-se  com  as  idéias 
e  os  preceitos  expostos  pelo  seu  benfeitor.  Contudo,  enquanto  aborre- 
cendo tôda  a  semelhança  de  «caridade  teológica»,  o  objetivo  supremo  de 
todo  serviço  cristão  deve  ser  que  todos  aqueles  que  são  servidos,  darão 
suas  próprias  vidas  a  Cristo,  em  cujo  nome,  pela  graça  dÊle  e  para  cuja 
glória  todo  o  verdadeiro  serviço  é  prestado. 

Uma  palavra  é  necessária  em  referência  a  «santos»  e  «santidade». 
A  palavra  «santo»,  é  têrmo  que  tem  sido  muito  mal  entendido  e  masca- 
rado através  dos  tempos.  Há  uns  poucos  têrmos  bíblicos  para  os  quais 
o  século  vinte  é  mais  alérgico.  A  maior  parte  das  pessoas  entendem 
mal  o  significado  da  santidade  cristã.  Muitos  outros  que  a  entende- 
ram, tem  decidida  antipatia  por  tudo  quanto  ela  quer  dizer.  Os 
santos  do  Novo  Testamento  não  são  pessoas  que  se  distinguem  pelas 
práticas  ascéticas  no  domínio  dos  seus  corpos,  nem  ainda  pela  capacidade 
espiritual  de  vôos  e  arrebatamentos  místicos.  São  simples  e  unicamente, 
como  já  têm  sido  chamados,  «homens  e  mulheres  de  Cristo».  Sentindo 
que  pertencem  a  Cristo,  reconhecem  o  privilégio  e  aceitam  a  obrigação  de 
realizarem  na  vida  as  mais  extremas  implicações  da  vida  cristã.  Alguns 
dêles  escalarão  a  escada  do  misticismo  e  por  outras  maneiras,  pela  espe- 
cial graça  de  Cristo,  alcançarão  a  «santidade»,  no  mais  tradicional  sen- 
tido do  têrmo.  Mas  todos  os  que  tomam  a  sério  a  sua  vocação  cristã  e 
que  se  esforçam  por  serem  «santos»,  no  sentido  do  Novo  Testamento, 
são  os  verdadeiros  humanistas;  porque  são  êles,  e  êles  somente,  que 
lutam  por  serem  verdadeiramente  humanos  e  só  êles  têm  qualquer  pos- 
sibilidade de  alcançar  a  espécie  de  varonilidade  que  dimana  da  plenitude 
de  Cristo.  Uma  pessoa  é  «santa»  no  sentido  do  Novo  Testamento,  não 
pela  grandeza  das  suas  realizações  espirituais,  mas  pela  realidade  da  sua 
devoção  cristã. 

Quando  todos  os  «santos»  tomam  a  sério  a  sua  chamada  à  santidade, 
expressando  no  pensamento  e  na  vida  tudo  quanto  é  implicado  no  per- 
tencer-se  a  Jesus  Cristo,  verdadeiramente  será  edificada  a  Igreja,  que  é  o 
Cx)rpo  de  Cristo.  Cada  um  dos  membros  estará  de  saúde  perfeita  e  per- 
feitamente desempenhará  a  sua  função  especial.  Então,  sob  a  direção 
dos  líderes  por  Cristo  indicados,  e  pela  congregação  reconhecidos,  para 
conduzirem  a  vida  da  Igreja,  o  Corpo,  como  um  todo,  funcionará  har- 
moniosamente, em  obediência  a  Cristo,  e  estará  equipado  para  o  serviço 
coletivo  de  Cristo. 


—  119  — 


o  significado  da  Ordem  da  Igreja. 

Aventuro-me  a  parar  um  pouco,  neste  ponto,  para  fazer  algumas  refle- 
xões sôbre  a  questão  do  ministério  cristão  e  da  ordem  da  Igreja;  porque 
a  paissagem  que  exatamente  prendeu  a  nossa  atenção  é  muito  importante 
para  a  compreensão  cristã  de  ambas. 

Cristãos  que  aceitam  os  fatos  centrais  da  fé  neotestamentária  e  são 
fiéis  às  unidades  de  que  tratéimos  no  último  capítulo,  divergem  mui  sèria- 
mente  a  respeito  das  relações  entre  a  ordem  da  Igreja,  incluindo  o  minis- 
tério, e  a  fé  cristã  e  a  sua  realidade  básica.  O  ponto  de  vista  que  aqui  se 
considera  é  que,  na  Igreja  de  Jesus  Cristo,  Ordem  é  ordem.  Isto  significa 
que  na  Igreja  Cristã  a  estrutura  é  essencialmente  funcional  em  caráter. 
Os  funcionários  da  Igreja  e  a  forma  de  sua  organização  foram  designados 
por  Jesus  Cristo  para  servirem  os  melhores  interêsses  da  Igreja.  Êste 
propósito  consiste,  como  veremos  mais  completamente  adiante,  na  prepa- 
ração de  todos  os  membros  para  cumprirem,  até  os  últimos  limites,  as 
várias  funções,  e  para  juntos  crescerem  até  à  medida  da  estatura  da  ple- 
nitude de  Cristo.  O  que  a  Cabeça  da  Igreja  tem  determinado  para  os 
membros  do  Seu  corpo  e  para  o  Corpo  como  um  todo,  é  a  mais  completa 
maturidade  espiritual.  Sendo  assim,  enquanto  somos  providos  no  Novo 
Testamento  com  um  modêlo  para  a  liderança  e  organização  da  Igreja, 
ambos  êstes  precisam  de  ser  fundamentalmente  julgados  pela  medida  em 
que  coontribuem  para  «equipar  os  santos  para  a  obra  do  ministério  e  da 
edificação  do  Corpo  de  Cristo».  No  momento  em  que  um  funcionário 
eclesiástico  ou  uma  forma  específica  de  ordem  eclesiástica,  deixam  de  ter 
como  objetivo  a  formação  de  cristãos  amadurecidos  e  fazer  da  Igreja, 
como  um  todo,  instrumento  útil  da  vontade  de  Cristo,  uma  aberração 
toma  o  lugar  do  espírito,  e  eu  me  atrevo  a  dizer,  até  da  letra  do  ensino 
do  Novo  Testamento,  a  respeito  da  Igreja  e  do  seu  ministério. 

Há  dois  pontos  de  vista,  em  particular,  da  Igreja  e  do  ministério,  que 
parece  estarem  em  oposição  ao  ponto  de  vista  implícito  na  Carta  aos  Efé- 
sios. Uma  dessas  opiniões  poderia  ser  formulada  assim:  a  Ordem  é  a 
Igreja.  Esta  é  a  opinião  católica  romana.  Ela  sustenta  que  o  clero,  e 
em  particular  os  hierarcas  que  dirigem  a  Igreja,  pertencem  à  Igreja,  em 
um  sentido  em  que  os  comuns  crentes  católicos  não  pertencem.  A  Igreja, 
em  sua  forma  institucional,  é  para  todos  os  objetivos  e  propósitos,  a  hie- 
rarquia e  a  estrutura  de  organização  é  que  é  constituída  pelos  hierarcas. 
A  hierarquia  é  a  Igreja.  Ela  é  a  dona  da  Igreja  e  a  se  considera  inves- 
tida de  autoridade  divina  para  delinear  os  destinos  da  Igreja.  Mais  e  mais 
na  moderna  literatura  católica  romana,  afirma-se  que  Jesus  Cristo  fun- 
dou a  sua  «organização».  A  Igreja,  como  instituição,  mais  do  que  como 
comunhão,  constitui,  neste  ponto  de  vista,  a  realidade  básica  da  Igreja 
Cristã.  Se  fôr  assim,  então  certos  funcionários  e  uma  certa  norma  estru- 
tural é  que  constituem  a  Igreja. 

Esta  opinião  particular  da  Igreja  tem  produzido  dois  resultados  de- 
sastrosos.   Para  todos  os  fins  práticos,  no  que  concerne  aos  seres  hu- 


—  120  — 


manos  comuns,  a  Igreja  toma  o  lugar  da  Divindade.  Cristo  e  a  Igreja 
tornam-se  de  tal  maneira,  institucionalmente,  uma  só  coisa,  que  não  há 
mais  qualquer  possibilidade  de  apêlo  da  Igreja  institucional  para  Jesus 
Cristo.  A  Cabeça  da  Igreja  perde  a  Sua  soberania.  A  Igreja  torna-se 
o  Seu  patrono,  pretendendo  controlar  os  Seus  movimentos  e  a  Sua  gra- 
ciosa influência.  A  mesma  situação  foi  alcançada,  com  desastrosos  re- 
sultados, na  história  religiosa  de  Israel,  quando  o  poder  presente  e  vivo 
de  Deus  foram  mecanicamente  identificados  com  a  existência  da  Arca  e, 
mais  tarde,  com  o  templo.  A  Igreja  Cristã  é  algo  mais  e  maior  do  que 
a  instituição  chamada  a  Igreja.  Jesus  Cristo  é  mais  e  é  maior  áb  que 
a  Igreja,  de  qualquer  forma. 

Esta  concepção  da  natureza  da  ordem  da  Igreja  produz  um  outro 
mal.  Onde  a  Ordem  se  torna  a  Igreja,  surge  uma  realidade  funesta  cha- 
mada Clericalismo.  O  Clericalismo  romano  já  foi  por  mim  definido 
como  «a  busca  do  poder,  especialmente  poder  politico,  por  uma  hierarquia 
religiosa,  executada  por  meio  de  métodos  seculares  e  com  propósitos  de 
dominação  social».  Ela  se  baseia  na  afirmação  de  que  a  Igreja  institu- 
cional, constituída  pela  sua  hierarquia,  é  o  Reino  de  Deus  e,  assim,  um 
fim  em  si  mesma.  Por  essa  razão,  os  interêsses  da  Igreja,  que  são  iden- 
tificados com  os  interêsses  da  hierarquia,  constituem  o  objetivo  supremo 
que  se  procura  colimar.  Dêste  modo,  a  situação  social  ideal  na  história 
é  a  em  que  o  povo  de  uma  nação  e  os  seus  governantes  também,  sujeitam 
o  penssimento  e  a  ação  ao  que  a  Igreja  considera  ser  direito,  para  oi 
melhores  interêsses  dos  homens  e  da  Igreja.  O  desenvolvimento  do  Cle- 
ricalismo investe  a  Igreja  de  soberania  espiritual  e  de  majestade  criativa. 
A  coisa  agora  importante  torna-se,  não  que  o  povo  comum  se  torne  espi- 
ritualmente amadurecido,  mas  que  obedeça  à  Igreja.  A  Igreja,  como 
substituta  da  maturidade  espiritual  que  é  inseparável  da  liberdade,  dá  a 
seus  membros  a  qualidade  de  segurança  que  é  a  morte  da  liberdade.  Os 
fiéis  se  tornam  eternas  crianças.  A  fé  não  mais  é  a  fé  em  Cristo.  Trans- 
forma-se  em  assentimento  a  proposições  a  Seu  respeito.  Ela  se  relaciona 
especialmente  com  a  crença  na  autoridade  de  que  Cristo  revestiu  a  Igreja. 
Tão  absoluta  é  esta  autoridade,  que  ela  proclama,  como  artigos  de  fé,  que 
certos  acontecimentos  se  realizaram  como  fatos  históricos  objetivos,  ainda 
que  nem  a  história,  nem  a  Escritura,  nem  a  tradição,  registam  os  mes- 
mos acontecimentos.  A  Igreja,  assim,  tem  poder  para  criar  acontecimen- 
tos de  importância  histórica  e  de  alcance  cósmico,  e  não  necessita  de 
limitar  a  sua  ação  ao  testemunho  dos  atos  portentosos  de  Deus. 

A  outra  concepção  da  Igreja,  que  também  corre  ao  arrepio  do  espí- 
rito e  do  ensino  da  Carta  aos  Efésios,  é  a  que  considera  a  Ordem  como 
artigo  de  fé,  isto  é,  como  pertencendo  à  essência  da  Igreja.  Esta  con- 
cepção é  comumente  associada  à  Igreja  Ortodoxa  Oriental  e  com  a  Alta 
Igreja  da  Comunhão  Anglicana.  Esta  concepção  da  Igreja,  que  é  susten- 
tada por  muitas  pessoas  piedosas  e  conscienciosas,  torna-lhes  difícil  aceitar 


—  121  — 


as  ordens  ministeriais  de  outras  igrejas,  cujo  ministério  pode  ter  sido 
singularmente  abençoado  pela  presença  e  pelo  poder  do  Espírito  Santo. 
Os  membros  de  tais  igrejas  não  permitem  que  outros  com  eles  participem 
na  sua  celebração  da  Santa  Comunhão,  nem  permitirão  que  a  sua  gente 
partilhe  do  Sacramento  da  Ceia  do  Senhor  sob  os  auspícios  de  igrejas 
protestantes.  Segundo  esta  concepção,  as  Igrejas  Livres  são  mais  «so- 
ciedades» do  que  Igrejas.  Esta  concepção  da  Igreja  é  a  que  constitui  o 
maior  obstáculo  à  união  das  igrejas  mais  jovens,  nos  chamados  campos 
missionários  do  mundo.  Um  poeta  cristão  como  T.  S.  Eliot,  a  quem 
devem  uma  profunda  dívida  de  gratidão  tanto  a  poesia  como  a  cultura 
cristã  do  nosso  tempo,  permitiu-se  a  si  mesmo,  por  causa  da  atitude 
própria  de  membro  da  High  Church,  chamar  a  uma  realização  tão  emi- 
nentemente cristã  como  foi  a  constituição  de  uma  nova  Igreja  unida 
no  sul  da  índia,  de  «amável  mascarada»,  «artifício  elaborado»,  «mon- 
tagem de  pantomima». 

O  perigo  de  uma  tal  concepção  da  Igreja  é  o  eclesiasticismo.  A  Igre- 
ja como  instituição,  cujos  ministros  se  consideram  sucessores  dos  após- 
tolos, tende  a  tornar-se  um  fim  em  si  mesma.  Ela  promove  direitos  ins- 
titucionais adquiridos,  ao  invés  dos  interêsses  evangélicos  de  Jesus  Cristo, 
dos  santos  e  do  Reino  de  Deus.  No  eclesiasticismo,  a  Igreja  presume 
possuir  monopólio  do  Espírito  Santo,  do  mesmo  modo  que,  no  Clericalis- 
mo,  ela  se  torna  a  protetora  do  Cristo  Ressurrecto. 

Contra  o  clericalismo  e  o  eclesiasticismo  levanta-se  a  concepção  do 
Novo  Testamento  e  de  Paulo,  de  que  a  Igreja  não  necessita  de  estrutura 
institucional  específica,  ou  de  uma  ordem  especial  de  hierarcas,  para  ga- 
rantir a  sua  origem  sagrada  ou  para  tornar  eficaz  a  sua  missão  dada  de 
Deus.  Para  um  homem  como  João  Calvino,  a  forma  presbiteriana  da 
ordem  da  Igreja  era  a  que  mais  fielmente  expressava  o  padrão  do  Novo 
Testamento.  Calvino,  contudo,  apressou-se  a  acrescentar  que,  em  sua 
concepção,  outros  cristãos  podiam,  sem  qualquer  violência  ao  Novo  Tes- 
tamento, encontrar  outras  formas  de  organização  eclesiástica  nas  pá- 
ginas sagradas.  Quem  ousaria  afirmar,  à  luz  do  Novo  Testamento,  do 
ensino  específico  da  Carta  aos  Efésios  e  do  registo  da  história  cristã,  que 
o  Espírito  Santo  de  Deus  tenha  exaurido  as  possibilidades  estruturais 
da  Igreja  Cristã?  Na  situação  atual,  a  fidelidade  a  Cristo  e  à  Igreja  e 
ao  espírito  da  Carta  aos  Efésios  exige  que  encaremos  a  ordem  eclesiás- 
tica, como  essencialmente  funcional  em  caráter.  A  ordem  que  seja  mais 
perfeitamente  leal  ao  espírito  da  Igreja  do  Novo  Testamento  e  que  mais 
perfeitamente  «equipa  os  santos  para  o  ministério»  é  a  melhor,  em  um 
dado  tempo  e  meio.  Ordem  é  ordem  e  estrutura  é  estrutura.  E'  isto 
que  se  exige:  Que  os  cristãos  que  estão  arraigados  na  Bíblia  e  ligados  a 
Jesus  Cristo,  a  Palavra  viva  de  Deus,  e  que  proclamam  o  Evangelho  da 
Sua  Graça,  se  relacionem  uns  com  os  outros  para  que  as  almas  sejam 
nascidas  para  a  fé  em  Cristo,  nutridas  na  vida  de  Cristo  e  juntamente 
unidos  no  espírito  de  Cristo.    Sòmente  assim  podem  elas  atingir  o  grau 


—  122  — 


4 

4 


de  maturidade  espiritual  que  se  torna  possível  por  meio  da  plenitude  de 
Cristo.  Porque  a  única  forma  de  ordem  eclesiástica  que  pode  refletir 
a  Igreja  do  Novo  Testamento  ou  ser  continuação  dela,  é  a  que  produz  san- 
tos e  que  cultiva  a  comunhão  dos  santos. 

c)    A  realização  da  Plenitude  de  Cristo  —  A  Maturidade  Cristã. 

O  padrão  da  vida  cristã  é  a  varonilidade  amadurecida.  Medir-se-á 
o  êxito  ou  o  fracasso  dos  líderes  da  Igreja,  como  já  temos  visto,  pelo 
grau  em  que  contribuam  para  a  formação  da  maturidade  cristã,  naqueles 
a  quem  ministram.  Na  medida  em  que  fôr  alcançada  a  maturidade 
cristã,  manifestar-se-á  e  se  consumará  a  plenitude  de  Cristo.  Os  dons 
e  as  graças  que  Cristo  concede  de  Sua  plenitude  para  a  edificação  do  Seu 
Corpo,  a  Igreja,  contribuirão,  digâ-mo-lo  com  tôda  a  reverência,  para  a 
Sua  própria  plenitude,  por  intermédio  do  crescimento  e  aperfeiçoamento 
dêsse  Corpo.  Edificar  o  Corpo  de  Cristo  e  atingir  a  maturidade  cristã, 
são  coisas  inseparàvelmente  relacionadas.  A  maturidade  dos  indivíduos 
cristãos  não  se  pode  realizar  fora  do  crescimento  deles  no  Corpo  e  da 
contribuição  pessoal,  em  uníssono  com  outros  cristãos,  para  o  cresci- 
mento do  Corpo.  Por  outro  lado,  o  Corpo,  como  um  todo,  não  pode  crescer 
à  parte  do  crescimento  e  funcionamento  harmonioso  dos  seus  membros. 
A  varonilidade  cristã  e  a  comunhão  dos  santos  não  podem  ser  separadas. 

Mas  os  interesses  individuais  dos  cristãos  e  os  do  corpo  organizado 
de  cristãos,  somente  podem  ser  reconciliados  quando  se  mantém  a  ver- 
dade em  amor.  Verdade  é  alguma  coisa  que  o  indivíduo  sente  com  inten- 
sidade e  a  que  êle  deseja  dedicar-se.  Mas  deve  êle  ter  o  cuidado  de,  na 
defesa  da  Verdade,  não  estar  mais  interessado  em  conseguir  preeminên- 
cia, como  testemunha  da  Verdade,  do  que  na  causa  da  própria  Verdade. 
É  fácil,  e  isto  muitas  vezes  lisongeia  o  orgulho  humano,  poder  fazer-se 
uma  demonstração.  E'  muito  mais  difícil  perder-se  uma  pessoa  numa 
causa.  Sejam  os  cristãos  cautelosos  para  não  confundir  a  causa  da 
Verdade  com  o  esfôrço  de  consolidar  a  própria  posição  e  garantir  o  pres- 
tígio dêles.  Sobretudo,  não  permitam  que  a  verdade  parcial  que  sus- 
tentam se  torne  mania,  dessa  espécie  de  mania  com  que  a  nossa  geração 
se  tem  acostumado  na  ordem  política.  A  única  maneira  de  evitar  o  cris- 
tão que  a  verdade  se  torne  mania  e  de  êle  mesmo  se  tornar  fanático  de- 
voto de  uma  verdade  parcial,  é  que  a  verdade  seja  «mantida  em  amor». 
Porque,  quando  a  verdade  é  sustentada  em  amor,  duas  coisas  acontecem. 
E*  reconhecido  que  o  próprio  amor  é  parte  e  parte  muito  básica  da  ver- 
dade cristã.  Segundo,  é  impossível  sustentar  a  verdade  em  amor  sem 
se  ter  um  sentido  de  integridade  cristã.  Quando  falamos  a  verdade  em 
amor,  manifestamos  estima  para  com  os  nossos  companheiros  cristãos 
que  pertencem  conosco  ao  Corpo  de  Cristo,  que  são  perfeitamente  fiéis 
a  Cristo,  a  Cabeça,  mas  que  se  sentem  constrangidos  em  dar  ênfase  a 
algum  aspecto  da  verdade  diferente  do  aspecto  que  é  supremamente  im- 
ix)rtante  para  nós. 

Sòmente  quando  o  princípio  de  se  falar  a  verdade  em  amor  recebe 
adesão  leal,  é  que  os  cristãos  podem  evitar  a  imaturidade  que  associamos 


—  123  — 


à  infância.  Os  adolescentes  costumam  dedica r-se  fanàticamente  a  ver- 
dades parciais.  Os  cristãos  não  devem  ser  mais  crianças,  «levados  em 
roda  por  todo  o  vento  de  doutrina,  pelo  engano  dos  homens  que  com  as- 
túcia enganam  fraudulosamente»  (Efes.  4:14).  Pelo  contrário,  diz  Paulo, 
«seguindo  a  verdade  em  caridade,  cresçamos  em  tudo  nAquele  que  é  a 
Cabeça,  Cristo  (4:15).  Nada  é  mais  desastroso  do  que  cristãos  sinceros, 
em  seu  zelo  pela  verdade  cristã,  se  tornaram  presa  de  homens  de  «astúcia 
hábil  e  inescrupulosa».  Tais  homens  são  habilíssimos  na  «astuta  apre- 
sentação de  mentiras»;  torcem  e  pervertem  a  verdade;  arrancam-na  do 
contexto  natural;  regozijam-se  em  tôda  a  manifesctação  de  cisma  na  Igreja 
Cristã.  Algumas  vezes  em  cochichos,  outras  em  ondas  violentas  de  pro- 
paganda, tentam  arregimentar  os  adolescentes  cristãos  sob  a  sua  bandeira. 
Os  membros  das  «Igrejas  mais  Jovens»,  estão  particularmente  expostos 
a  esta  espécie  de  astúcia  diabólica,  que  considera  o  cisma  como  virtude, 
e  manifestação  de  unidade  como  apostasia.  Os  homens  que  fazem  da 
mente  dos  adolescentes  cristãos  prêsa,  a  fim  de  a  envenenarem  contra 
os  cristãos  que  tomam  a  sério  a  injunção  do  Novo  Testamento  de  que  a 
unidade  em  amor  e  o  serviço  de  Cristo  são  parte  da  verdade  cristã,  são 
chamados  na  Bíblia  de  «inimigos  da  Cruz  de  Cristo».  Tais  pessoas  são 
filhos  do  Arcanjo  caido,  cuja  paixão  devoradora  era  rasgar  a  harmonia 
divina,  inscrevendo  em  sua  bandeira  de  cruzada  o  tremendo  grito  de 
guerra:  «Mal,  sê  tu  o  meu  Deus».  Tais  influências  assaltaram  os  cris- 
tãos do  tempo  de  Paulo  com  as  prescrições  legalísticas  dos  judaizantes 
e  as  concepções  ideológicas  dos  gnósticos.  Para  Paulo,  o  único  antídoto 
verdadeiro  para  ambas  as  influências  era  «aprender  a  Cristo». 

O  objetivo  para  que  devem  lutar  tanto  os  membros  do  Corpo  como 
o  mesmo  Corpo,  como  um  todo,  é  a  «plenitude  de  Cristo».  Todo  o  es- 
forço, tanto  pessoal  como  coletivo,  deve  ser  dirigido  para  «a  medida  de 
desenvolvimento  que  tem  por  sentido  a  plenitude  de  Cristo»  (Efes.  4:13, 
versão  de  Phillips).  Assim,  a  «plenitude  de  Cristo»  é  o  fim,  como  tam- 
bém o  comêço.  Como  se  alcança  esta  plenitude  e  quais  são  as  suas  ma- 
nifestações? 

Para  responder  a  esta  pergunta,  pomos  em  foco  lampejos  de  verdade 
espiritual,  que  têm  brilhado  em  diferentes  pontos  na  parte  precedente  da 
Carta  e  cujo  significado  atinge  a  sua  completa  refulgência  neste  ponto. 
Cristo  torna-se  manifesto  em  Sua  plenitude  por  meio  do  poder  espiritual. 
Êste  poder  espiritual  flui  de  uma  unidade  dupla  por  parte  dos  cristãos: 
a  unidade  na  fé  e  no  conhecimento  do  Filho  de  Deus,  e  a  unidade 
no  amor. 

Primeiro,  existe  a  unidade  em  conhecimento  ou  compreensão.  O 

crescimento  espiritual  na  «medida  da  estatura  da  plenitude  de  Cristo ^> 
depende  da  compreensão  do  eterno  propósito  de  Deus  de  constituir  em 
Cristo  uma  nova  ordem,  que  abarcará  tôdas  as  coisas  nos  céus  e  na  terra, 
e  depende  também  da  adesão  a  êsse  propósito.  Envolve  discernimento  do 
fato  de  que  Jesus  Cristo,  pela  Sua  Cruz,  tornou-se  o  vencedor  espiritual  que 


—  124  — 


uniu  Deus  e  os  homens,  e  judeus  e  gentios,  em  um  sentido  novo.  Nas  pala- 
vras da  grande  oração  com  que  Paulo  encerrou  o  primeiro  capitulo  da  Carta 
(1:15-23),  é  essencial  que  os  cristãos  tenham  «espírito  de  sabedoria  e  de 
revelação  no  conhecimento  de  Cristo»  (1:17).  Dêste  modo,  os  seus  «cora- 
ções», isto  é,  a  sua  inteira  personalidade,  serão  tão  iluminados  que  poderão 
apreender  a  significação  da  esperança  por  que  anseiam,  e  o  que  irá  dar 
a  Jesus  Cristo  ter  os  santos  como  Sua  herança  gloriosa.  Também  lhes 
pertencerá  conhecerem,  como  conceito  e  experimentalmente,  qual  o  gran- 
de poder  que  se  manifestou  na  ressurreição  de  Cristo.  Êste  poder  leva  à 
entronização  de  Cristo  sôbre  «todo  o  govêrno  e  autoridade  e  poder  e 
dominio  e  sôbre  todo  o  nome  que  é  nomeado,  não  só  neste  século  mas 
também  nos  que  hão-de  vir».  Êles  virão  a  conhecer  o  que  significa 
Cristo  ter  sido  feito  «Cabeça  sôbre  tôdas  as  coisas  para  a  Igreja».  Porque 
a  Igreja  é  o  Corpo  de  Cristo;  ela  se  torna  a  perfeição  de  Cristo  que  enche 
inteiramente  o  Universo.  A  visão  dêste  grande  drama  divino  e  essa  qua- 
lidade de  poder  que  é  experimentado  quando  o  povo  se  torna  ator  neste 
drama,  são  indispensáveis  para  que  se  tome  manifesta  a  perfeição  de 
Cristo.  Isto  equivale  a  dizer  que  uma  fé  comum,  um  conhecimento  comum, 
uma  experiência  comum  e  um  poder  comum,  são  indispensáveis,  para 
que  seja  cumprido  o  propósito  de  Deus,  em  Jesus  Cristo,  de  manifestar 
a  plenitude  de  Cristo  no  tempo  e  além  do  tempo. 

Igualmente  importante  é  a  unidade  no  amor.  Na  grande  oração  com 
que  termina  o  terceiro  capítulo  (3:14-21),  Paulo  torna  claro  que,  como 
as  mentes  dos  cristãos  devem  ser  iluminadas  pelo  Espírito  Santo  para 
a  grande  visão  da  verdade  centralizada  no  propósito  de  Deus  em  Cristo, 
assim  também  o  Espírito  precisa  de  fortalecer  a  estrutura  íntima  da 
personalidade  a  fim  de  que  ali,  no  centro  mesmo  da  personalidade,  o 
próprio  Cristo  possa  habitar.  Porque,  sómente  na  medida  em  que 
Cristo  mesmo  habita  nos  corações  dos  cristãos,  é  que,  «arraigados  e 
sobreedificados  em  amor,  podem  compreender  com  todos  os  santos,  qual 
seja  a  largura  e  o  comprimento  e  a  altura  e  a  profundidade  e  conhecer 
o  amor  de  Cristo,  que  excede  todo  o  entendimento».  Somente  assim, 
por  meio  de  uma  visão  coletiva  e  de  uma  experiência  de  amor,  po- 
dem êles  estar  «cheios  de  tôda  a  plenitude  de  Deus».  A  plenitude  de 
Cristo  é,  assim,  plenitude  de  existência,  bem  como  plenitude  de  conhe- 
cimento. Nesta  plenitude,  a  luta  imemorial  do  homem  para  conhecer 
e  para  ser,  chegam  ao  fim;  porque  a  plenitude  de  Cristo  é  a  consumação, 
tanto  das  aspirações  e  dos  esforços  do  homem,  como  do  planejamento 
e  realização  de  Deus. 

Mas,  se  êste  é  o  objetivo,  a  participação  da  «plenitude  de  Cristo», 
que  precisam,  pois,  fazer  os  cristãos,  à  luz  desta  visão?  Como  devem 
pensar  e  viver,  como  membros  da  Igreja  Militante,  para  que  a  plenittide 
de  Cristo  se  possa  transformar  em  realidade,  e  para  que  se  possam  tornar 
visíveis  brilhos  dela  na  vida  coletiva  da  Igreja  Cristã,  na  estrada  da 
história? 


—  125  — 


E'  perfeitamente  claro  que  a  plenitude  de  Cristo  não  pode  ser  iden- 
tificada com  qualquer  instituição  histórica  que  se  chame  a  Igreja  de  Cristo. 
Essa  catolicidade,  essa  integridade  suficientemente  larga  para  abarcar 
tudo  quanto  pertence  a  Cristo,  como  membros  do  Seu  Corpo,  não  se  en- 
contra dentro  de  qualquer  instituição  ou  manifestação  visivel  dêsse 
Corpo.  Se  formos  capazes  de  buscar  a  plenitude  de  Cristo,  precisamos  estar 
interessados  em  cada  pessoa  que,  em  qualquer  parte,  reconheça  a  Cristo, 
que  tenha  nascido  de  novo  pelo  Espírito  de  Cristo,  e  cuja  vida  leve  as 
marcas  de  Cristo.  A  catolicidade  evangélica  é  a  única  catolicidade  ver- 
dadeira, a  forma  de  catolicidade  cujo  moto  é:  «Onde  está  Cristo,  está 
a  Igreja».  O  nosso  supremo  interesse  precisa  ser  sempre  uma  união 
tal  com  Cristo  que  nos  leve  a  reconhecer  a  manifestação  da  Sua  pleni- 
tude nas  vidas  de  devoção  cristã,  onde  quer  que  apareçam.  Podemos 
estar  absolutamente  certos  de  que,  por  outro  lado,  sempre  que  o  poder 
de  Jesus  Cristo  não  se  manifesta  e  não  aparecem  as  marcas  de  Jesus 
Cristo,  e  o  Espírito  de  Jesus  Cri.sto  não  modela  as  relações  dos  que 
professam  o  Seu  nome,  Cristo  mesmo  não  está  presente.  A  Sua  pre- 
sença soberana  não  é  limitada  aos  <''templos  feitos  por  mãos  de  homens», 
nem  pode  o  Seu  soberano  domínio  ser  controlado  por  qualquer  corpo 
eclesiástico  ou  qualquer  oficial  de  igreja.  E'  um  direito  de  nascimento 
de  tôda  alma  cristã,  que  se  ache  presa  e  emudecida  dentro  de  uma  ex- 
pressão super-organizada  da  religião  cristã,  bradar  com  Blaise  Pascal: 
^Ao  Teu  tribunal,  Senhor  Jesus,  eu  apelo».  Porque  as  Escrituras  tor- 
nam clara  a  possibilidade  e  a  história  confirma  a  atualidade,  de  que 
qualquer  estrutura  eclesiástica,  a  despeito  de  suas  pretensões,  pode  negar 
a  Jesus  Cristo  e  tornar-se  apóstata. 

O  segrêdo  do  pensamento  cristão  e  da  vida  consiste  na  constante 
manutenção  de  intimidade  com  Jesus  Cristo.  Não  basta  manter-se  perto 
da  Bíblia,  ainda  que,  fora  da  Bíblia,  nada  podemos  conhecer  a  respeito 
de  Cristo.  Cristo  é  o  coração  da  mensagem  bíblica  e  a  chave  da  signi- 
ficação da  Bíblia.  A  Bíblia  cumpre  a  função  que  Deus  lhe  deu,  quando 
leva  o  leitor  a  Cristo,  e  o  edifica  na  fé,  no  conhecimento  e  na  experiência 
de  Cristo.  Contudo,  no  próprio  momento  em  que  a  Bíblia  se  torna 
substituta  de  Cristo,  ela  se  torna  ídolo.  O  Senhor  Jesus  Cristo  vivo,  a 
Cabeça  da  Igreja,  é  ainda  maior  do  que  a  Bíblia.  E  fazer  da  Bíblia, 
fora  de  Jesus  Cristo,  o  objeto  de  fé,  não  é  sòmente  idolatria;  pode  levar 
as  pessoas  a  negar  a  realidade  de  Cristo,  ainda  que  se  lhe  pague  tributo 
de  lábios. 

Assim,  também,  sempre  que  a  Igreja  se  torna  o  supremo  objeto  de 
devoção,  em  lugar  do  Cristo,  a  Cabeça  da  Igreja,  tal  ato  é  ato  de  ido- 
latria. Então,  nega-se  a  Cristo,  a  tudo  quanto  Êle  significa  e  a  tudo 
quanto  Êle  é.  E'  estranho,  mas  é  verdade,  que  os  homens  podem  tor- 
nar-se dedicados  à  Bíblia  e  à  Igreja,  sem  serem  verdadeiros  cristãos. 
Por  outro  lado,  ninguém  cuja  vida  e  fé  sejam  verdadeiramente  cristo- 


cêntricas,  que  tenha  intenso  amor  e  dedicação  a  Jesus  Cristo,  como  Êle 
é  testificado  pelas  Santas  Escrituras,  e  como  Cabeça  do  Seu  Corpo,  a 
Igreja  pode  negar  a  Cristo  e  Sua  verdade.  Amando-0,  amam  por  amor 
dÊle,  todos  os  seus  companheiros  cristãos,  no  centro  de  cuja  fé  e  vida, 
encontram  o  mesmo  Senhor  Crucificado  e  Vivo. 

Mas,  pode-se  perguntar:  Como  pode  o  conhecimento  cristão  e  o 
amor  cristão  de  tal  modo  influenciar  os  cristãos  em  seus  contatos  com 
o  plano  secular  que,  como  membros  da  Igreja  Cristã,  possam  pensar  e 
agir  de  modo  que  contribuam  para  a  plenitude  de  Cristo?  Consagrem 
os  cristãos  a  Cristo  tudo  que  é  verdadeiramente  humano  no  plano  na- 
tural. Isto  significará  o  batismo  a  Cristo  das  suas  vocações  e  chama- 
das seculares.  Todo  o  conhecimento  e  cultura  humanos  devem  ser  pos- 
tos debaixo  da  influência  e  da  luz  de  Cristo,  e  ser-lhes  permitido  fazer 
a  sua  característica  contribuição  para  a  promoção  da  causa  de  Cristo. 

Isto  também  significará  que,  na  vida  diária  e  concreta  da  Igreja, 
os  cristãos  precisam  de  lutar  para  dar  expressão  ao  companheirismo  de 
uns  com  os  outros  e  com  Cristo,  na  adoração  e  serviço,  dentro  das  várias 
denominações  e  através  de  tôdas  as  barreiras  denominacionais.  Lutem 
éles  sempre  para  se  encontrarem  um  ao  outro  no  mais  profundo  nível, 
isto  é,  no  nível  do  seu  amor  comum  a  Jesus  Cristo. 

Desta  maneira,  e  somente  desta  maneira,  poderão  os  cristãos  apre- 
ciar o  que  é  verdadeiro,  em  sua  própria  herança  religiosa,  e  o  que  é  ver- 
dadeiro na  herança  religiosa  dos  seus  irmãos.  O  que  é  puramente  con- 
dicionado pelo  tempo  começará  a  desaparecer  e  se  trará  o  ouro  puro  à 
casa  do  tesouro  cristão.  Cristo  mesmo,  mais  do  que  qualquer  outro 
objetivo  menor,  mais  e  mais  se  tomará  o  centro  supremo  da  piedade. 
A  plenitude  de  Cristo  tornar-se-á  manifesta  progressivamente  e  Êle 
mesmo  se  tornará  tudo  em  todos.  Quando  tal  se  consumar  na  vida  de- 
nominacional,  institucional  e  pessoal,  muitos  e  difíceis  problemas  nas  re- 
lações entre  indivíduos  e  igrejas  podem  ser  e  serão  resolvidos  por  meio 
da  obra  criadora  do  Espírito  de  Deus. 


—  127  — 


CAPÍTULO  vm 


os  QUATRO  IMPERATIVOS  DA  VIDA  CRISTÃ 

Vivos  Paulo  elevar-se  bem  alto  em  setores  da  verdade,  nunca  antes 
alcançados  pela  mente  mortal.  Vimo-lo  tocar  de  novo  a  terra,  para 
falar  da  unidade  da  Igreja,  somente  para  se  arrebatar  mais  uma  vez  em 
descrição  rapsódica  da  plenitude  de  Cristo.  O  seu  pensamento,  agora, 
vem  repousar  afinal  no  plano  horizontal. 

Em  uma  descida  anterior  no  caminho  da  vida,  Paulo  proclamara 
que  os  cristãos  devem  viver  de  maneira  condigna  com  a  sua  vocação. 
Precisam  fazer  assim  de  modo  humilde,  sendo  a  compreensão  da  dis- 
tância entre  a  grandeza  de  Deus  e  a  sua  própria  pequenez,  ma- 
nifestando, entretanto,  espírito  de  mansidão,  de  paciência,  de  cle- 
mência para  com  todos  os  irmãos.  Mas,  no  mesmo  momento  em 
que  êle  mencionou  a  unidade  e  o  amor  que  devem  caracterizar  tôdas  as 
relações  do  cristão,  ergueu-se  de  novo  para  um  último  vôo,  no  qual  ten- 
tamos seguí-lo  no  capítulo  anterior.  Depois  de  discorrer  sobre  a  ple- 
nitude de  Cristo  e  tudo  que  ela  importa  para  as  relações  dos  cristãos 
ims  com  os  outros,  como  membros  do  Corpo  de  Cristo,  que  é  a  Igreja, 
finalmente  êle  baixa,  para  considerar  a  conduta  pessoal  do  homem  e  da 
mulher  cristãos,  que  têm  de  viver  no  mundo,  que  estão  filiados  às  ordens 
naturais  da  vida,  no  lar  e  no  trabalho,  e  que  precisam  de  enfrentar  as 
forças  espirituais  de  uma  ordem  demoníaca,  sobrenatural.  Ai  está, 
onde  se  gasta  a  vida  diária,  lugar  onde  governam  os  gentios  e  em  que  os 
cristãos  têm  de  viver  e  de  lutar  até  o  fim  do  caminho. 

Até  aqui,  Paulo  tratou  de  conceitos  e  de  figuras.  Esteve  pensando, 
podemos  dizer,  centrifugadamente,  tratando  de  verdades  básicas  do  pen- 
samento e  da  experiência  cristãos.  Agora,  começa  a  pensar  em  têrmos 
de  pessoas  concretas.  O  seu  pensamento  toma-se  centrípeto.  Passa  de 
conceitos  para  almas.  Mostra  as  implicações  éticas  da  vida  de  Deus  na 
alma  do  homem.  Insiste  em  que  o  indivíduo  que  foi  chamado  por  Deus 
e  separado  para  Deus  precisa  de  ser  santo  e  irrepreensível.  Precisa  de 
dedicar-se,  no  mais  completo  dos  sentidos,  às  boas-obras.  Porque  a  ver- 
dade tem  por  objetivo  a  bondade.  A  bondade  precisa  sempre  de  ser 
o  fruto  da  salvação  cristã.  A  religião  pura,  que  grandemente  consiste 
de  afeições  santas  para  com  Deus  e  para  com  os  companheiros  cristãos, 
precisa  de  manifestar-se  no  procedimento  verdadeiramente  ético.  A 
bondade  moral  é  a  única  prova  real  da  salvação  cristã.    A  verdade  cris- 


—  128  — 


tâ  precisa  de  produzir  pessoas  reais.  Origina-se  ela  de  uma  Pessoa  e 
tem  de  dar  origem  a  pessoas.  A  verdade  cristã  é  verdade  pessoal  no 
sentido  mais  completo,  ou  então  não  é  verdade  absolutamente. 

Mais  uma  vez  intensamente  consciente  de  ser  prisioneiro,  não  obs- 
tante prisioneiro  do  Senhor,  e  de  que  os  gentios  controlam  o  plano  mun- 
dial, Paulo  dá  conselhos  aos  «santos».  Precisa  de  mostrar-lhes  como 
se  devem  conduzir  de  maneira  condigna  com  a  condição  de  homens  e  de 
mulheres  chamados  de  Deus  para  serem  membros  de  Sua  família.  Não 
é  bastante  que  sejam  profundamente  versados  no  conhecimento  do  eter- 
no propósito  de  Deus  de  fundar  uma  nova  ordem  em  Cristo,  nem  bas- 
tará que  tenham  experiências  estáticas  de  vida  nos  lugares  celestiais. 
Precisam  até  de  passar  além  do  interesse  de  se  relacionarem  com  os 
irmãos  em  amor,  como  membros  do  Corpo  de  Cristo.  Nem  as  sublimi- 
dades  da  doutrina  cristã,  nem  as  emoções  despertadas  por  experiência 
pessoal  de  Cristo,  nem  sentimento  de  glória  de  pertencer  a  uma  comu- 
nhão que  é,  ao  mesmo  tempo,  a  Esposa,  o  Templo  e  o  Corpo  de  Cristo, 
podem  impedi-los  de  tomar  a  sério  os  problemas  e  os  interesses  da  vida 
de  cada  dia.  A  finalidade  de  alta  doutrina  e  experiência  profunda,  e  o 
privilégio  da  filiação  à  Igreja,  tudo  tem  como  fim  o  habituá-los  a  andar 
dignamente,  em  sua  condição  de  «homens  e  mulheres  de  Cristo». 

Os  cristãos,  ao  trilharem  os  caminhos  da  vida  e  ao  esforçarem-se 
para  ser  cristãos  no  mais  completo  sentido  do  termo,  defrontam  quatro 
grandes  imperativos,  todos  êles  explícitos  ou  implícitos  na  descrição  que 
Paulo  faz  da  vida  pessoal  cristã,  na  secção  da  Carta  que  vai  do  verso  17 
do  capítulo  VI  ao  verso  20  do  capítulo  seguinte.  Os  preceitos  morais 
concretos  que  Paulo  expõe  nesta  passagem,  agrupam-se  em  uma  ou  outra 
destas  grandes  injunções.  Os  cristãos  devem  «andar  na  luz».  Pre- 
cisam «imitar  a  Deus».  Devem  «aprender  a  Cristo».  Necessitam  de 
ser  «cheios  do  Espírito  Santo».  Todos  êstes  imperativos  decorrem  di- 
retamente  da  verdade  da  doutrina  cristã  e  da  realidade  da  experiência 
cristã  de  que  Paulo  tem  tratado. 

a)    Andai  na  Luz 

E'  êste  o  primeiro  grande  imperativo  da  vida  cristã.  Os  cristãos  são 
«filhos  da  luz».  Aquêles  que  foram  «uma  vez  trevas  mas  agora  são  luz 
no  Senhor»  (5:8),  precisam  de  ser,  na  vida  diária,  o  que  são  realmente 
em  condição  e  natureza.  Expressam  os  filhos  da  Luz  a  sua  verdadeira 
natureza.  Vivam  de  acôrdo  com  ela.  Demonstrem  não  estar  dormindo 
mas  sim  bem  acordados,  que  para  êles  a  noite  é  já  passada,  que  se 
precisa  tomar  a  vida  a  sério  e  que  a  eternidade  é  agora.  Foram  sor 
corridos  por  Deus  que  os  tirou  do  reino  das  trevas.  Atendam  agora  as 
exigências  de  Deus  para  que  vivam  em  Sua  Luz. 

1  Significará  isto,  para  os  cristãos,  rompimento  total  com  o  passado. 

Anteriormente,  a  grande  separação  na  experiência  dêles  era  uma  divisão 
em  suas  almas,  uma  divisão  em  suas  relações  com  Deus.  Mas  agora,  a 
grande  separação  para  êles,  como  cristãos,  será  uma  divisão  completa 

I  entre  a  maneira  em  que  outrora  viveram  e  pela  qual  agora  devem  viver. 
Viveram  uma  vez  «como  gentios»  (4:17).    Agora  não  mais  devem  viver 


—  129  — 


como  gentios  mas  como  «santos»,  como  «homens  e  mulheres  de  Cristo v. 
Por  que?  Porque  a  massa  da  humanidade,  os  gentios,  os  que  não  conhe- 
cem a  Jesus  Cristo,  vivem  existência  fútil.  Vivem  «entenebrecidos  em 
um  mundo  de  ilusão»  (4:18).  Estão  «separados  da  vida  de  Deus  pela 
sua  ignorância  e  dureza  de  coração»  (4:18).  Aqueles  a  quem  uma  vez 
foram  semelhantes,  e  entre  os  quais  ainda  precisam  de  viver,  «perderam 
todo  o  sentimento  e  entregaram-se  à  dissolução,  para  com  avidez  pra- 
ticarem tôda  a  impureza».  A  pureza  moral,  pela  qual  os  homens  não 
dão  rédeas  aos  seus  apetites,  mas  controlam-nos,  é  um  desiderato  pri- 
mário da  vida  cristã.  Entregar-se  aos  apetites  carnais,  ser  indulgente 
para  com  os  vícios  sexuais,  deleitar  o  corpo  ou  interessar-se  por  êle  como 
por  algo  mais  do  que  um  simples  instrumento  do  que  é  espiritual,  torna 
uma  pessoa  insensível  às  obrigações  morais  e  entenebrece  a  sua  visão 
da  verdade  espiritual.  Nenhuma  idéia  cultural,  nenhum  preceito  lega- 
lista, nenhum  assentimento  a  um  credo  ortodoxo,  nenhuma  emoção  des- 
pertada pelos  acompanhamentos  estéticos  da  religião,  nenhum  entusiasmo 
pela  Igreja  institucional  podem,  de  per  si  ou  englobadamente,  tratar  dos 
profundos  problemas  congénitos  da  natureza  pecaminosa  do  homem. 
Somente  uma  nova  natureza  produzida  pelo  Espírito  Santo  pode  resolver 
o  problema  da  propensão  humana  para  o  mal. 

Os  cristãos,  por  Cristo  libertados  da  servidão  à  sua  própria  natu- 
reza pecaminosa,  fazem  seu  supremo  interêsse  conhecer  a  vontade  de 
Cristo  para  as  sua  vidas  (5:17).  Com  sentimento  tremendo  do  valor  do 
tempo,  e  claro  discernimento  das  sinistras  forças  que  operam  no  mundo, 
viverão  e  agirão  com  tôda  a  prudência,  iluminados  pela  luz  da  veMade. 

Mas,  enquanto  que  uma  grande  parte  da  sabedoria  cristã  será  de- 
dicada a  discernir  e  a  evitar  o  mal,  a  tarefa  suprema  dos  cristãos,  como 
filhos  da  luz,  deve  ser  a  de  permitir  que  a  luz  da  verdade  ilumine-lhes  as 
mentes  em  todo  o  pensamento  e  vida.  Deverão  encarar  a  vida  tôda  do 
homem  à  luz  de  Deus  e  não  à  luz  do  que  é  puramente  sensato.  Deverão 
ver  que  os  principais  problemas  da  conduta  humana  e  das  suas  relações 
surgem  da  secularização  da  vida,  pela  qual  os  homens  deixam  de  tomar 
em  conta  a  Deus  e  à  verdade  transcendente,  tanto  no  seu  pensamento 
como  no  seu  planejamento.  Deverão  ver  claramente  que  os  principais 
problemas  do  homem  surgem  do  fato  de  negarem  haver  qualquer  outra 
luz  além  da  luz  da  razão,  pela  qual  a  situação  humana  possa  ser  estuda- 
da e  seus  problemas  resolvidos.  Mas  os  «filhos  da  luz»  saberão  que  há 
não  sòmente  uma  luz  transcendente  para  considerarem  a  situação  hu- 
mana, mas  que  muita  dessa  luz,  pela  qual  os  homens  estudam  a  si  mes- 
mos e  o  mundo  dêles,  é,  relativamente  falando,  puras  trevas. 

b)    Imitai  a  Deus 

Êste  é  o  segundo  grande  imperativo  (5:1).  A  aispiração  e  a  tarefa 
da  vida  inteira  dos  cristãos  devem  ser  a  busca  da  semelhança  com  Deus. 
Naturalmente,  é  importante  que  obedeçam  a  Deus;  a  vontade  de  Deus 
deve  ser  a  sua  lei;  precisam  de  andar  na  Sua  luz.  Mas  isso  não  é  o 
bastante.    Precisam  de  lutar  ardentemente  por  se  tomarem  como  o 


—  130  — 


Deus  que  os  governa.  Não  simplesmente  devem  as  suas  vidas  confor- 
mar-se  com  a  Sua  lei;  a  sua  natureza  precisa  de  refletir  a  Sua  natureza. 
Em  uma  palavra,  precisam  de  trazer  a  imagem  de  Deus.  Precisam  não 
somente  de  mostrar  que  obedecem  a  Deus,  mas  que  pertencem  a  Deus. 
Precisam  de  mostrar  nas  vidas,  não  somente  que  Lhe  obedecem,  mas 
que  Lhe  são  semelhantes.  Por  que?  Em  sentido  absoluto,  a  natureza  de 
Deus  é  a  lei  do  cristão.  Porque  isto  é  assim,  a  finalidade  de  todo  o  viver 
cristão  é  manifestar  a  Deus,  isto  é,  «glorificar»  a  Deus,  torná-lo  visível 
aos  homens. 

A  busca  da  semelhança  com  Deus  como  principal  lei  e  finalidade  da 
vida  está  em  flagrante  contraste  com  a  busca  da  falsa  semelhança  com 
Deus,  que  é  a  essência  do  pecado.  O  diabo,  no  Paraíso  Perdido,  de  Mil- 
ton, queria  ser  como  Deus  para  ser  o  rival  de  Deus  e  nada  dever  a  Deus, 
nada,  nem  nesmo  a  gratidão.  Os  que  seguem  esta  idéia  rejeitam  a 
Deus;  desprezam  tôda  a  obediência  a  Deus  e  assumem  os  atributos  de 
Deus,  a  fim  de  tomarem  o  lugar  de  Deus.  Querem  tornar-se  deuses  pelo 
seu  próprio  direito.  Completamente  diferente  é  a  semelhança  de  Deus 
a  fim  de  glorificar  a  Deus,  isto  é,  a  fim  de  que  Deus  possa  fazer  a 
Sua  vontade  e  revelar  a  Sua  natureza  mais  perfeitamente,  por  meie 
da  personalidade  e  da  atividade  da  individualidade  humana.  Fazer  da 
semelhança  de  Deus  o  fim  do  procedimento  humano  é  simplificar  gran- 
demente todo  o  problema  moral.  O  cristão  pode  começar  a  tirar 
da  cabeça  «grandes  massas  de  lixo»  na  forma  de  preceitos  mo- 
rais. Imitar  a  Deus,  ser  «imitador  de  Deus»,  é  ser  alguma  cousa 
muito  mais  do  que  ser  leal  à  verdade  ou  mesmo  do  que  ser  «leal  à  leal- 
dade». A  vida  moral  recebe  nova  solidez.  E'  ser-se  semelhante  a  uma 
Pessoa,  é  refletir  a  Sua  imagem.  Mais  uma  vez,  quão  verdadeiro  é  isto: 
a  verdade  cristã  é  verdade  pessoal,  através  de  tôda  a  extensão  e  de  todas 
as  implicações  do  sentido  da  verdade. 

O  imperativo  de  «imitar  a  Deus»  tem  no  pensamento  de  Paulo  algu- 
mas implicações  muito  importantes.  Envolve  expressão  de  constante 
gratidão  a  Deus.  Se  os  cristãos  têm  de  imitar  a  Deus  e  de  ser  seme- 
lhantes a  Deus,  então  precisam  ser  gratos  a  Deus,  tanto  pelo  que  Êle 
é  como  pelo  que  tem  feito.  Porque  nada  conserva  os  homens  mais  perto 
de  Deus  do  que  o  sentimento  de  divida  para  com  Êle.  Reconhecendo  o 
que  Deus  tem  feito  por  ela,  a  alma  cristã  louva  a  Deus.  Tanto  no  Velho 
Testamento  como  no  Novo,  constantemente  ordena-se  louvor  a  Deus. 
O  que  «oferece  louvor»  como  sacrifício,  «glorifica»  a  Deus,  proclama  a 
Sua  verdadeira  natureza  e  a  significação  dos  Seus  feitos.  Deus  «habita», 
isto  é,  está  «entronizado  sôbre»  os  «louvores  de  Israel».  O  verdadeiro 
trono  de  Deus  é  o  culto  de  adoração  dos  que  são  envolvidos  pelo  esplendor 
do  Seu  grande  plano  de  constituir  um  novo  plano  de  existência,  com 
Cristo  como  centro.  Identificar-se  em  adoração  com  este  plano  é  o 
caminho  mais  seguro  de  um  cristão  tomar-se  semelhante  a  Deus,  em 
pensamento  e  vida. 

E'  impossível,  contudo,  imitar  a  Deus  sem  compreender  que,  na  na- 
tureza de  Deus  e  na  Sua  divina  atividade,  há  um  elemento  de  ira.    A  ira 


—  131  — 


de  Deus,  como  Paulo  afirma,  «vem  sobre  os  filhos  da  desobediência». 
Homens  que  tentam  opor-se  a  Deus,  que  vivem  segundo  padrões  de  pro- 
cedimento que  violam  a  natureza  e  o  propósito  de  Deus,  não  podem  ter 
futuro  real  no  mundo  de  Deus.  Imitar  a  Deus  significa  que  há  um 
lugar  na  vida  cristã  para  uma  ira  santa,  isto  é,  para  uma  reação  explícita 
contra  tôda  manifestação  da  natureza  humana  e  contra  tôda  forma 
de  atividade  humana,  que  viola  o  supremo  cânon  da  bondade  humana, 
como  se  revela  na  natureza  e  na  atividade  de  Deus.  Nunca  tente,  po- 
rém, aquele  que  sente  o  agitar  da  raiva  na  presença  do  mal  moral,  tomar 
o  lugar  de  Deus  e  fazer  justiça.  A  vingança  pertence  só  a  Deus.  No 
mistério  da  nossa  existência  humana  e  das  complexidades  do  procedi- 
mento moral,  temos  muitas  vezes  de  tolerar  o  mal.  Deus,  conforme 
Jesus  nos  recorda  em  outro  lugar,  derrama  a  Sua  chuva  sôbre  maus  e 
bons.  E'  sòmente  afinal,  além  da  história,  seguindo-se  ao  julgamento 
de  Deus,  que  a  influência  do  mal  e  dos  homens  maus  terá  o  seu  fim. 
Imitar  a  Deus,  portanto,  na  presença  do  mal,  pode  muitas  vêzes  signi- 
ficar qualidade  de  atitude  tolerante  para  com  o  pecador  humano,  sempre 
fugindo  da  justiça  própria  e  reconhecendo  que  nós,  também,  somos  pe- 
cadores e  precisamos  de  viver  pela  misericórdia  e  perdão  de  Deus. 

Mas,  além  da  gratidão  pela  bondade  de  Deus  e  aquiescência  no  jul- 
gamento de  Deus,  os  cristãos  precisam  constantemente  de  se  esforçar  em 
conformar-se  à  humildade  de  Deus.  Imitar  a  Deus  não  tem  significação, 
a  não  ser  que  o  cristão  reconheça  que  o  fato  supremo  a  respeito  de  Deus 
é  que  Êle  Se  humilhou,  que  Êle  continua  a  humilhar-se,  que  Êle  se  hu- 
milha para  vencer.  E'  conveniente  que  os  cristãos  imitem  a  humildade 
de  Deus.  Sòmente  quando  a  alma  é  impressionada  pelo  sentimento  do  que 
Deus  fez  pelo  homem,  do  que  Êle  se  tornou  pelo  homem,  do  que  Êle  faz 
pelo  homem,  pode  ser  criada  na  alma  humana  a  verdadeira  humildade. 
E*  aqui  que  tem  lugar  o  grande  rompimento  entre  a  moral  cristã  e  tôda 
a  forma  de  procedimento  ético  não-cristão.  Para  o  cavalheiro  grego 
não  havia  lugar  para  a  humildade.  O  estóico  orgulhava-se  de  se  poder 
mostrar  superior  às  pauladas  das  circunstâncias,  de  «cabeça  ensanguen- 
tada mas  não  abaixada». 

Na  tradição  clássica  do  mundo  hispânico,  o  ideal  de  virilidade  era 
sentir  que  cada  espanhol  era  um  César,  pelo  seu  próprio  direito  nativo. 
«Cada  catalão  tem  um  rei  dentro  de  si»,  dizia  um  famoso  mote.  Na  tra- 
dição ética  do  paganismo,  no  que  havia  de  melhor,  e  nos  ideais  éticos  da 
natureza  espanhola  que  o  cristianismo  nunca  abateu,  não  há  lugar  para 
a  humildade.  O  sentido  espanhol  de  honra,  baseado  sôbre  um  delirante 
sentimento  de  grandeza  de  uma  personalidade  invicta  e  invencível,  é  a 
antítese  histórica  da  humildade  cristã,  que  nasce  do  reconhecimento  do 
fato  de  que  Deus  a  si  mesmo  se  humilhou. 

Não  podemos  apreender  ou  sentir  a  verdadeira  majestade  da  humil- 
dade que  Paulo  ordena  aos  peregrinos  na  estrada  da  vida,  sem  rememo- 
rarmos o  transporte  inicial  com  que  êle  começou  a  elevar-se  e  a  cantar: 
«Bendito  seja  o  Deus  e  Pai  de  nosso  Senhor  Jesus  Cristo».  Tornar-se 


—  lo2  — 


bendito  com  a  bênção  de  Deus  é  imitar  a  Deus  em  Sua  humildade,  tor- 
nar-se  humanamente  grande  pela  nobreza  divina. 

c)    Aprendei  a  Cristo 

Isto  nos  leva  ao  terceiro  imperativo.  Êste  imperativo  é  formulado 
por  inferência.  Dizendo  ao  po\o  a  quem  escrevia  (4:20),  que  certo  tipo 
de  procedimento  era  contrário  a  tudo  quanto  tinham  êles  aprendido 
acerca  de  Jesus  Cristo,  importava  em  que,  para  êles,  aprender  a  Cristo 
era  a  grande  tarefa. 

O  objetivo  fundamental  do  pensamento  e  do  procedimento  humanos 
é  pensar  e  agir  «como  a  verdade  está  em  Jesus».  O  esforço  de  «imitar  a 
Deus»  leva  diretamente  a  Jesus  Cristo.  «Aprender  a  Cristo»  é  muito 
mais  do  que  adquirir  conhecimento  a  Seu  respeito.  E'  absorvê-lo  e  ser 
por  Êle  absorvido.  Cristo,  a  Verdade  Pessoal,  torna-se  o  supremo  mo- 
delo, a  imagem-padrão,  que  precisa  de  ser  aprendida.  E  esta  lição  so- 
mente pode  ser  aprendida  quando  Cristo,  que  é  a  própria  lição,  torna-se 
parte  da  própria  existência  do  cristão,  iluminando-lhe  a  mente,  alvoro- 
çando-lhe  o  coração,  controlando-lhe  a  vontade.  Quando  isto  se  realiza, 
o  cristão,  para  usar  outra  grande  idéia  de  Paulo,  que  consideraremos 
mais  tarde,  pensa  e  age  «no  Senhor». 

Para  começar,  aprender  a  Cristo  significa  estudar  cuidadosamente 
a  vida  e  os  ensinos  de  Jesus.  Significa,  principalmente,  porém,  apreen- 
der a  imagem  essencial  de  Jesus,  que  é  a  imagem  do  que  Deus  é  e  do  que 
o  homem  deve  e  pode  ser  por  meio  da  graça  de  Jesus.  Essa  imagem, 
a  que  já  se  deu  ênfase,  foi  retratada  na  memorável  cena  do  lava-pés, 
quando  o  Mestre,  completamente  consciente  da  Sua  Divindade,  como 
também  plenamente  sabedor  do  Seu  destino,  se  tornou  o  servo.  Essa 
imagem  é  projetada  por  S.  Paulo,  na  Carta  aos  Filipenses,  no  contexto 
e  estrutura  do  grande  drama  cósmico.  «De  sorte  que  haja  em  vós  o 
mesmo  sentimento  que  houve  em  Cristo  Jesus  que,  sendo  em  forma  de 
Deus,  não  teve  por  usurpação  ser  igual  a  Deus,  mas  despojou-se  a  si 
mesmo,  tomando  a  forma  de  servo,  fazendo-se  semelhante  aos  homens; 
e,  achado  na  forma  de  homem,  humilhou-se  a  si  mesmo,  sendo  obediente 
até  à  morte  e  morte  de  Cruz»  (Fili.  2:5-8).  Êste  é  o  tremendo  fato  pelo 
qual  os  cristãos  devem  agradecer  e  louvar  a  Deus.  Esta  é  também  a 
imagem  do  que  êles  devem  também  tornar-se.  Tomando-se  êles  mes- 
mos nada,  para  que  Cristo  possa  ser  tudo  em  todos,  neles  e  por  meio 
deles,  êles,  por  sua  vez,  tornam-se  tôdas  as  coisas  para  todos  os  homens, 
servos  de  todos. 

Para  um  cristão,  aprender  a  Cristo  neste  sentido  é  abandonar  a 
velha  natureza,  repudiar  tudo  que,  em  palavra  ou  ato,  «pertence  ao  velho 
homem,  que  se  corrompe  pelas  concupiscências  do  engano»  (4:22).  Assim, 
uma  pessoa  «renova-se  no  espírito  do  seu  sentido»  (4:23).  Isto  acon- 
tece porque  a  gente  se  «rev^estiu  do  novo  homem  que  segundo  Deus  é 
criado  em  verdadeira  justiça  e  santidade»  (4:24).  Então,  Deus  em  Cristo 
deixa  de  ser  apenas  cópia  meramente  observada.  Cristo,  em  quem  Deus 
vem  a  nós,  a  imagem  do  Deus  invisível  e  o  agente  da  Sua  vontade,  torna- 
se  nossa  vida,  a  nossa  verdadeira  natureza.    Então  a  bondade  torna-se, 


não  imperativo  pelo  qual  se  luta,  mas  atividade  a  que  nos  entregamos 
naturalmente.    Torna-se  segunda  natureza. 

Aquêles  que  aprenderam  a  Cristo  despojam-se  de  tôdas  as  formas 
de  falsidade.  Falam  a  verdade  uns  aos  outros.  Fazem  assim  porque 
a  mentira  é  incompatível  com  a  vida  comum.  Uma  mentira  destrói  a 
comunidade.  Ela  despedaça  a  base  de  perfeita  confiança  sôbre  que  se 
estabelece  a  comunidade  cristã.  A  mentira  é  punhalada  nas  partes  vitais 
do  Corpo  de  Cristo.  E'  assim  porque  a  mentira  é  dardo  negro  vindo  do 
reino  das  trevas,  e  os  cristãos  precisam  de  viver  na  luz  de  perfeita  sin- 
ceridade para  com  Deus  e  de  uns  para  com  os  outros.  Não  há  lugar 
na  moral  cristã  para  mentira  bem  intencionada.  Na  moral  cristã  que 
Cristo  inspira,  os  fins  nunca  justificam  os  meios.  Nunca  é  legítimo,  como 
o  Grande  Inquisidor  (O  sugeria  que  era,  mentir  ao  povo  no  próprio  inte- 
resse deste.  É  muito  melhor  que  o  povo  conheça  a  verdade.  Mas  a  verdade 
precisa  sempre  de  ser  dita  em  amor.  Deve  também  lhes  ser  contada  à 
luz  do  que  Deus  tem  feito,  do  que  está  fazendo  e  do  que  pode  fazer,  de 
modo  tal  que,  aquêles  sôbre  cujas  mentes  brilha  alguma  terrível  verda- 
de, não  sejam  arrastados  ao  desespero  (4:25). 

Aprender  a  Cristo  é  compatível  com  a  ira.  Doutra  maneira,  que 
significado  podia  ter  tido  para  os  cristãos  o  fato  de  que  Seus  olhos,  que 
muitas  vêzes  se  encheram  de  lágrimas,  também  outras  vezes,  fusilaram 
de  ira  na  presença  dos  que  exploravam  a  religião  e  desonravam  o  nome 
de  Deus?  Mas,  se  temos  de  aprender  a  Cristo  e  imitar  a  Deus.  precisa- 
mos também  de  nos  irarmos  sem  pecar.  Nunca  devemos  pensar  ou  agir 
de  tal  modo  que  a  nossa  própria  vontade  pecaminosa  tome  o  lugar  da 
vontade  de  Deus.  Paulo  exprime  esta  recomendação  muito  humana  e 
muito  pertinente:  «Não  se  ponha  o  sol  sôbre  a  vossa  ira»  (4:26).  Essa 
ocasião,  em  horas  de  trevas,  quando  se  está  prestes  a  fazer  repousar  a 
cabeça  cansada  no  travesseiro,  é  tempo  impróprio  para  se  permitir 
que  se  inflame  a  ira.  E'  o  pior  tempo  possível  para  uma  discussão. 
Ninguém  é  senhor  de  si  mesmo,  quando  a  mente  e  o  corpo  estão  exaus- 
tos e  a  gente  está  envolto  pela  pálio  das  trevas,  símbolo  da  morte  e  do 
mal.  À  hora  de  se  retirar  para  o  repouso,  componha  a  pessoa  o  seu 
espírito,  esquecendo  as  ofensas  recebidas.  Com  entrega  humilde  e  con- 
fiante do  caso  inteiro  a  Deus,  repouse  e  espere  um  novo  dia,  para  buscar 
a  solução  do  assunto  debatido.  Doutra  maneira,  os  poderes  das  trevas 
acharão  ingresso  e  o  diabo  apanhará  o  espírito  humano  desprevenido. 
Então  raiará  a  manhã,  não  sôbre  um  guerreiro  cristão  pronto  para  fazer 
justiça,  mas  sôbre  um  homem  quebrantado  e  desonrado. 

Nunca  é  direito  a  um  cristão  roubar,  tomar  para  si  o  que  a  outrem 
pertence.  Vá  ao  encontro  de  suas  próprias  necessidades  e  das  dos  outros, 
por  meio  do  trabalho  honesto.  Cristo  sabia  o  que  significava  trabalhar 
com  as  Suas  mãos.  Também  Paulo,  que  se  mantinha  e  os  companheiros, 
nos  trabalhos  de  evangelização,  no  ofício  de  fazer  tendas,  sempre  que 
se  lhe  oferecia  oportunidade.  O  verdadeiro  cristianismo  torna  honroso 
todo  o  trabalho.    Ninguém  que  não  esteja  desejando  trabalhar  com  as 

(1)    Oh  Irmãos  Karama^ov,  de  Dostoievski. 


—  134  — 


suas  mãos  e  dedicar-se  a  qualquer  trabalho  honesto,  recusando  ser  pa- 
rasita e  viver  do  labor  alheio,  vivo  ou  morto,  jamais  aprendeu  a 
Cristo  (4:28). 

Ninguém  que  difame  ou  calunie  as  pessoas,  que  se  deleite  em  pro- 
clamar do  alto  dos  telhados  as  faltas  e  fraquezas  do  próximo,  regalan- 
do-se  na  conversa  a  respeito  das  fraquezas  dos  santos,  nenhuma  pessoa 
dessa  qualidade  já  aprendeu  a  Cristo.  Também  não  aprendeu  a  Cristo 
aquele  que,  em  nome  da  verdade  e  fidelidade,  desvenda  a  olhos  ímpios 
as  faltas  dos  amigos.  No  espírito  humano  que  tenha  aprendido  a  Cristo, 
não  há  lugar  para  a  amargura.  Paulo  diz:  «Tôda  a  amargura,  e  ira  e 
cólera,  e  gritaria,  e  blasfémias  e  tôda  a  malícia  seja  tirada  de  entre  vós» 
(4:31).  E'  difícil  a  uma  pessoa  não  se  sentir  insultada  e  ressentida 
quando  alguém  tenha  dito  coisas  a  seu  respeito  ou  lhe  tenha  feito  coisas 
que  afetem  a  sua  condição  ou  o  seu  prestígio.  Mas  o  que  se  não  deve 
fazer  é  permitir  que  o  veneno  do  ódio  manche  a  nossa  vida  interior,  vol- 
tando-nos  para  as  pessoas  com  vontade  de  brigar,  ou  guardando  raiva 
permanente  em  nossos  corações,  o  que  se  reflete  em  impertinências  per- 
manentes, amargas  imprecações  e  ódio.  Ai!  do  cristão  que  permite  que 
a  malícia  desenvolva  no  seu  íntimo  a  má  disposição  de  ver,  à  pior  luz 
possível,  os  que  o  tenham  ofendido  e  de  abrigar  o  desejo  malicioso  de  que 
lhes  aconteça  qualquer  mal!  E'  coisa  terrível  ser  a  vida  orientada  e 
fortalecida  por  uma  incontrolável  paixão  vingativa  de  se  fazer  o  que  se 
deseja,  de  vingar-se  de  alguém  e  cortar  uma  libra  de  carne  de  alguém, 
exatamente  do  lue:ar  onde  lhe  fôr  mais  prejudicial. 

Aprender  a  Cristo  significa  isto  também:  ao  invés  de  consentirmos 
ser  governados  por  todos  os  poderes  do  Inferno,  aprendamos  de  tal  modo 
a  Cristo  que  os  nossos  corações  se  enterneçam  e  nossos  sentimentos  se 
tornem  bondosos  =  Faça-se  dominante  em  nós  uma  disposição  para  per- 
doar, por  causa  da  santa  lembrança  de  que  nós  também  estávamos  em 
desesperada  necessidade  da  misericórdia  de  Deus,  e  Deus  em  Cristo  nos 
perdoou.  Portanto,  diz  Paulo,  «Sêde  misericordiosos  uns  para  com  os 
outros,  benignos,  perdoando-vos  uns  aos  outros  como  também  Deus  vos 
perdoou  em  Cristo  (4:32). 

Mas,  se  a  disposição  íntima  de  bondade  cheia  de  afetos  deve  se 
caracterizar  por  uma  atitude  vital  dos  cristãos,  é  imperativo  que  se  dê 
ao  Espírito  Santo  a  oportunidade.  Porque  é  sòmente  o  Espírito  Santo 
que  pode  criar  a  semelhança  de  Cristo  na  alma  humana.  Os  cristãos 
foram  selados  pelo  Espírito  Santo  com  a  própria  marca  de  Deus,  para 
serem  sua  possessão.  A  influência  graciosa  do  Espírito  Santo  faz  que 
se  torne  cada  vez  mais  evidente  a  quem  os  cristãos  pertencem,  qual  a  sua 
lealdade  fundamental,  quais  as  suas  afinidades.  Mas  o  Espírito  Santo 
é  muito  sensível.  Êle  pode  ser  entristecido.  De  acôrdo  com  o  próprio 
Cristo,  o  pecado  contra  o  Espírito  Santo  é  atribuir  à  influência  satânica 
feitos  e  ações  de  que  o  Espírito  Santo  é  autor.  E'  também  pecado  con- 
tra o  Espírito  Santo  deixar  uma  pessoa  deliberadamente  submeter-se  a 
influências  e  disposições  satânicas  nas  atitudes  para  com  os  outros. 
Quando  a  fôrça  vital  de  uma  pessoa  é  posta  do  lado  do  mal  e  essa  pessoa 
se  recusa  a  ser  dirigida  e  orientada  pelo  Espírito  Santo,  o  Espírito  de 


1  '>r: 
—  loO  — 


Deus  fica  entristecido.  Quando  a  Sua  graciosa  presença  se  retira,  os 
horrores  do  inferno  irrompem  em  «Alma  Humana»  e  os  demónios 
vagam  em  redor,  à  vontade.  Foi  em  vista  dessa  terrível  possibilidade 
que  Paulo  disse:  «E  não  entristeçais  ao  Espírito  Santo,  no  qual  estais 
selados  para  o  dia  da  redenção  (4:30). 

d)    Enchei- vos  do  Espírit'» 

Todos  os  demais  imperativos  nos  têm  preparado  para  esta  suprema 
recomendação.  Podemos  andar  na  luz,  podemos  imitar  a  Deus,  podemos 
aprender  a  Cristo  e  dar-lhe  a  nossa  suprema  obediência,  somente  quando 
estamos  preparados  para  viver  uma  vida  de  fervor  espiritual.  Chegamos 
aqui  a  um  dos  paradoxos  da  religião  cristã  na  esfera  do  procedimento 
moral.  Duas  coisas  que  antes  nunca  se  encontraram  juntas  fora  dês  te 
espírito  humano  a  quem  Jesus  Cristo  dominou,  agora  se  tornam  compa- 
tíveis. Há,  por  um  lado,  calma  profunda,  a  paz  de  Deus  que  excede  todo 
o  entendimento,  terna  e  amorosa  disposição  mesmo  quando  nos  injuriam; 
por  outro  lado  está  presente  uma  paixão  incessante,  um  entusiasmo  que 
não  morre,  noutro  lugar  associado  por  Paulo  com  a  vida  de  um  atleta  e 
de  um  soldado,  mas  que  êle  aqui,  numa  figura  muito  arrojada,  associa 
com  a  embriaguez.  O  cristão  que  verdadeiramente  anda  na  luz,  imita 
a  Deus  e  aprende  a  Cristo,  é  criatura  intoxicada.  Mas  a  embriaguez  não 
é  de  álcool.  Não  é  delicioso  delírio  provocado  por  narcóticos.  E'  es- 
tado de  alma  produzido  pelo  Espírito  Santo,  pelo  qual  o  espírito  do  ho- 
mem se  enche,  até  na  capacidade,  com  o  Espírito  de  Deus.  «Não  vos 
embriagueis  com  vinho»,  disse  Paulo,  «em  que  há  contenda,  mas  enchei- 
vos  do  Espírito  Santo»  (5:18). 

E'  uma  das  tragédias  de  muitos  pensamentos  cristãos  ortodoxos,  e 
ainda  mais  de  muito  viver  cristão  acomodado,  que  qualquer  sugestão  de 
plenitude  do  Espírito  esteja  associada  com  fanatismo  religioso  ou  com 
as  aberrações  dos  grupos  sectários  que  vivem  à  margem  do  cristianismo 
eclesiástico.  O  lugar  da  emoção  na  natureza  humana  e  no  viver  humano, 
muito  especialmente  na  vida  e  atitudes  dos  cristãos,  precisa  de  ser  re- 
pensada em  nosso  tempo.  E'  mais  do  que  tempo  de  reconhecermos  que 
a  emoção  é  uma  parte  constitutiva  da  natureza  humana  e  precisa  de  ter 
legítima  oportunidade  de  expressar-se  na  religião.  Podíamos  ir  além  e 
dizer  que  a  expressão  de  sentimento  é  aspecto  essencial  da  ordem  racional 
da  existência.  Seja  no  reino  da  descoberta  científica,  seja  na  formulação 
filosófica  dos  postulados  chamados  verdades  da  razão  a  priori,  nada  de 
grande  se  realiza  sem  a  emoção.  Se  eu  disser  que  a  matéria,  ou  o  espí- 
rito é  a  realidade  fundamental,  estou  fazendo  afirmação  que  tem  origem 
no  sentimento.  Ela  deriva  da  maneira  pela  qual  vim  a  «sentir»  a  vida, 
no  decorrer  da  minha  experiência.  Todos  os  grandes  feitos  criadores 
são  o  fruto  de  paixão,  no  sentido  mais  puro.  Nada  de  grande  já  se  tem 
realizado,  tanto  na  ordem  secular  como  na  ordem  religiosa,  se  não  por 
almas  em  chama.  Não  foi  Unamuno,  o  intérprete  do  ardor  espiritual 
da  mística  espanhola  e  o  discípulo  de  Dostoievski  e  de  Kierkegaard  quem 
disse:  «Nenhum  coração  é  puro  se  não  for  apaixonado,  nenhuma  virtude 


pode  chamar-se  fé  se  não  estiver  cheia  de  entusiasmo».  Não;  foram 
estas  palavras  de  um  cristão  da  éra  vitoriana,  J.  R.  Seely  (2). 

E  ainda,  naturalmente,  é  claro  o  perigo  inerente  ao  ardor  emocional. 
Vimo-lo  nestes  últimos  tempos,  em  movimentos  que  se  inspiram  em 
«verdades  enlouquecidas».  Temos  o  direito  de  recear  a  ocorrência,  e, 
ainda  mais,  a  predominância  do  fanatismo  dentro  da  comunidade  cristã. 
E  contudo,  G  muito  difícil  separar  o  fanatismo  da  fé.  E'  um  dilema  com 
que  constantemente  defrontamos.  Como  garantiremos  que  tudo  será 
feito  «com  decência  e  ordem»  na  vida  comum  da  comunidade  cristã,  en- 
quanto reconhecemos  que  o  fanatismo  é  da  linhagem  da  fé?  Seria  bom, 
nesta  relação  de  sentido,  escutar  as  palavras  sábias  de  Arnold  J.  Toynbee 
quando,  baseado  em  estudo  profundo  da  civilização  humana,  nos  acon- 
selha a  que  tenhamos  o  cuidado  de  não  «sufocar  o  fanatismo  à  custa  de 
extinguir  a  fé». 

E'  esta  precisamente  a  situação  embaraçosa  em  que  se  encontra  o 
Protestantismo  contemporâneo.  Encaramos  mal  tôdas  as  manifestações 
de  emoção.  Tornamos-nos  receosos  da  reação,  uma  após  outra  no  do~ 
minio  do  sentimento.  Convencemo-nos  de  que  a  pessoa  grave,  conven- 
cional, honesta  e  amável  que  evita  tôda  emoção  que  poderia  expressar 
forte  exultação  ou  depressão  espiritual,  é  o  cristão  de  tipo  normal, 
cuja  classe  devemos  tornar  universal  e  saudar  como  verdadeiro 
cristão  ecuménico.  A  nova  voga  do  pensamento  dialético  com  a 
sua  intensa  antipatia  para  com  os  absolutos  e  a  sua  doutrina  de  com- 
promisso sintético,  tende  a  fazer  os  cristãos  cada  vez  mais  cautelosos  a 
respeito  de  maneiras,  atitudes  ou  «slogans»  de  aparência  extremista, 
sinal  autêntico  das  pessoas  que  sentem  ter  descoberto  a  verdade. 

De  tempos  a  tempos,  êste  modo  neo-helenístico  sofre  um  rude  des- 
pertamento.  Os  nossos  greco-cristãos  são  postos  em  face  do  fato  de 
que  há  situações  humanas  tão  desesperadas,  seres  humanos  tão  imersos 
em  pecado  ou  miséria,  tão  completamente  «perdidos»,  que  não  podem 
ser  tratados  senão  por  pessoas  de  ardor  emocional  que  os  cristãos  con- 
vencionais desprezam.  Contudo,  essas  pessoas  são  capaizes  de  aplicar 
à  sua  tarefa  espiritual  atitude  emocional  tão  poderosa,  que  arranca 
vidas  humanas  da  sarjeta,  em  que  se  arrastam,  para  iniciar  nova  vida 
em  padrão  altamente  espiritual. 

Há  alguns  anos  o  escritor  destas  linhas  teve  de  enfrentar  justa- 
mente esta  contingência.  Um  educador  chileno,  diretor  de  uma  das 
principais  instituições  de  ensino  superior  do  Chile,  homem  perfeitamente 
relacionado  com  a  cultura  européia  e  norte-americana,  afirmou  em  minha 
presença  que,  em  seu  juizo,  o  Protestantismo  foi  sempre  frio  demais  e 
por  demais  interessado  exclusivamente  na  moral,  para  atingir  a  alma 
chilena.  «Nos  primeiros  dias  da  nossa  história  pátria»,  disse  êle,  «os 
missionários  católicos  romanos  moveram  profundamente  o  nosso  povo 
com  a  deslumbrante  natureza  da  sua  pompa  religiosa.  Essa  pompa  pro- 
duziu uma  impressão  poderosa  em  multidões  de  pessoas  que,  então  viviam, 

(2)    Cf.  Ecce  H&nio. 


—  137  — 


como  vivem  hoje,  nas  margens  perpétuas  da  miséria.  Essa  pompa  pôde 
transportá-las  interiormente  acima  das  sórdidas  condições  da  sua  vida 
diária  e  dar-lhes  um  sentimento  de  importância».  «Mas  vocês»,  disse 
êle,  «nada  têm  que  possa  descer  até  às  profundezas  da  alma  das  massas 
chilenas».  Desde  essa  ocasião,  porém,  irrompeu  pelo  Chile  afora  um 
movimento  pentecostal  indígena.  Nos  anos  que  se  seguiram,  aumentou 
a  comunidade  cristã  em  várias  centenas  de  milhares  de  almas,  surgidas 
dos  trabalhadores  rurais  e  industriais  do  país.  O  movimento,  é  verdade, 
foi  acompanhado,  a  princípio,  de  fenómenos  estranhos,  na  forma  de  des- 
maios e  dansas  rítmicas  e  expressões  de  êxtase,  que  eram  características 
de  certas  manifestações  da  religião  cristã  do  século  primeiro.  Êstes  fe- 
nómenos, contudo,  estão  desaparecendo  gradualmente.  Conquanto  não 
tenham  sido  suprimidos  totalmente,  têm  sido  desencorajados  pelos  líderes 
religiosos  do  movimento.  Milhares  de  chilenos  que  foram  apanhados 
nas  profundezas  das  almas  pela  história  da  Cruz  de  Cristo  e  que  expe- 
rimentaram o  poder  da  Sua  Ressurreição  na  tradição  clássica  do  evan- 
gelismo cristão,  vivem  agora  a  vida  de  cidadãos  normais.  Não  perderam 
o  zêlo  cristão,  mas  têm-se  tornado  interessados  em  tudo  que  concerne  à 
verdadeira  varonilidade  e  feminilidade  e  às  tarefas  de  boa  cidadania. 
O  que  é  mais,  desejam  ardentemente  relacionar-se  com  os  companheiros 
cristãos.  No  momento  presente,  o  velho  movimento  pentecostal,  outrora 
tão  desprezado  nos  círculos  cristãos  mais  convencionais  do  Chile,  está 
começando  a  ser  encarado  nêsses  mesmos  círculos  como  grande  aconte- 
cimento cristão.  Por  outro  lado,  o  govêrno  e  as  autoridades  civis  da 
sociedade  chegaram  a  considerar  o  movimento  como  um  grande  benefí- 
cio à  vida  nacional  e  como  importante  contribuição  ao  levantamento  das 
massas  à  elevação  da  moral  pública.  Menciono  êste  fato  porque,  quando 
tratarmos  nos  círculos  ecuménicos  do  problema  do  evangelismo,  não  po- 
demos ignorar  movimentos  desta  natureza.  Tais  movimentos,  não  menos 
do  que  os  fanáticos  devotos  da  religião  política,  têm  muito  para  ensinar- 
nos  nesta  hora.  Pelo  estudo  dêstes  fenómenos,  podemos  recuperar  e 
reinterpretar  certos  fatóres  esquecidos,  que  são  bem  básicos  da  religião 
cristã. 

As  religiões  seculares  dos  nossos  dias,  que  são  os  maiores  rivais  do 
Cristianismo,  têm-se  caracterizado  por  tremenda  emoção  derivada  dire- 
tamente  de  idéias.  O  Comunismo  é  uma  fé  que  canta,  como  o  Nazismo 
foi  antes  dêle.  Os  comunistas  marxistas  têm  a  convicção  de  que  as  «for- 
ças radiantes  do  Universo»  estão  do  lado  da  sua  causa  e  de  que  a  revo- 
lução comunista  é  «aquilo  que  tódas  as  épocas  sempre  quiseram.  Os 
comunistas  chineses  têm  lutado  e  cantado  e  dansado,  nestes  últimos  anos, 
através  do  caminho,  desde  a  Manchúria  até  os  limites  do  Sião,  e  do 
Rio  Yalu  até  o  paralelo  trinta  e  oito.  O  ideal  de  Lenine  para  o  Partido 
Comunista  era  que  êste  devia  ser  uma  «ordem  monástica  militante».  A 
Revolução  necessitava  de  seguidores  que  tivessem  a  disciplina  calma  de 
monges  e  o  ardor  ardente  dos  cruzados. 

Mas  há  no  coração  da  tradição  cristã  e  mui  principalmente  no 
maior  dos  documentos  cristãos  que  é  objeto  dêste  estudo,  o  padrão  de 


—  l:J8  — 


um  ardor  disciplinado,  mais  puro  e  mais  forte  do  que  qualquer  devoção 
de  cruzada  que  regista  os  anais  da  história.  Os  cristãos  «cheios  do 
Espírito  Santo»,  como  santamente  inebriados,  deviam  «falar  um  com  o 
outro  em  salmos,  hinos  e  cânticos  espirituais;  cantando  e  salmodiando 
ao  Senhor  nos  seus  corações;  dando  sempre  graças  por  tudo  a  nosso 
Deus  e  Pai  em  nome  de  Nosso  Senhor  Jesus  Cristo»  (5:19,  20).  O 
quadro,  que  aqui  nos  é  apresentado,  de  homens  e  mulheres  cheios  do 
Espírito,  andando  na  luz,  imitando  a  Deus,  aprendendo  a  Cristo,  é  o 
quadro  de  entusiastas  fraternalmente.  Entusiasmo  e  fraternidade,  quão 
difícil  de  encontrá-los  juntos!  Mais  difícil  ainda,  mantê-los  juntos! 
Porque  o  entusiasmo  tende  a  tornar  as  pessoas  individualistas;  elas  se 
tornam  tão  impacientes  em  tomar  a  dianteira,  e  saem  do  passo  e  des- 
fazem a  forma.  O  seu  próprio  ardor  as  toma  sujeitas  a  extravagâncias 
e  são  naturalmente  inimigas  da  ordem  estabelecida  e  convencional,  com 
as  suas  propriedades  geladas.  E'  por  esta  razão  que  no  curso  da  his- 
tória da  Igreja,  eclesiásticos  e  entusiastas  sempre  têm  sido  a  antítese 
humana  uns  dos  outros.  A  Igreja  oficial  muitas  vêzes  tem  expulsado 
do  rol  indivíduos  e  grupos  considerados  insubordinados,  porque  desafiam 
costumes  estabelecidos.  «Glória  à  Igreja  e  condenação  para  os  entusias- 
tas», foi  o  mote  gravado  em  um  sino  dependurado  no  campanário  de 
uma  nova  igreja  em  Cambridge,  Inglaterra,  como  protesto  contra  o  mi- 
nistério do  famoso  pregador  da  Universidade,  Charles  Simeon.  Como 
pode  ser  canalizado  o  ardor  religioso?  Como  pode  a  cooperação  e  a 
imidade  ser  alcançadas  entre  os  entusiastas  cristãos  e  os  cristãos  de 
tipo  mais  calmo  e  conservador?  Em  uma  palavra,  como  podemos  casar 
o  ardor  com  a  ordem? 

Antes  de  recomendar  os  calmos  e  condenar  os  apaixonados,  lembre- 
mo-nos  disto:  —  E'  possível  ao  povo  cristão  expressar  fraternidade  que 
se  move  para  frente  e  é  consumada  na  união  da  Igreja  e  ainda  estar 
vazio  de  ardor  redentivo;  porque  é  comum  às  relações  amigáveis  e  a 
ausência  de  tensões  e  a  alegria  de  estar  juntos,  tornarem-se  fins  em 
si  mesmos. 

Porque  os  teus  amigos  são  meus  amigos 

e  os  meus  amigos  também  são  teus; 

E  quanto  mais  juntos  estivermos 

tanto  mais  felizes  todos  seremos. 

Quando  esta  canção  expressar  o  espírito  da  reunião  cristã,  quando 
os  cristãos  exultarem  na  unidade  e  no  bom  companheirismo,  somente  por 
amor  dêles  mesmos,  o  movimento  cristão  se  torna  estéril.  Surge  a  per- 
gunta: Para  que  a  unidade?  E'  ela  alguma  coisa  simplesmente  para  ser 
exaltada  e  gozada?  Ou  a  unidade  é  para  alguma  coisa  que  fica  além  da 
própria  unidade?  Para  que  a  Igreja  Cristã  seja  verdadeiramente  a 
l£:reja,  não  basta  que  os  cristãos  expressem  o  seu  amor  a  Deus  e  de  uns 
para  com  os  outros,  no  culto  coletivo.  A  Igreja  verdadeiramente  é  a 
Igreja  sòmente  quando  o  culto  coletivo,  o  entendimento  teológico  c  a 
unidade  eclesiástica  levam  os  cristãos  ao  ardor  missionário,  inspirando - 


—  139  — 


os  a  avançar  em  ordem  de  batalha,  como  cruzada,  além  dos  portais  do 
santuário,  em  direção  a  tôdas  as  fronteiras  do  mundo. 

A  solução  deste  problema,  o  mais  difícil,  é  a  Igreja  recobrar  como 
doutrina  teológica  e  como  realidade  espiritual,  o  que  Paulo  quer  dizer 
quando  fala  no  Espírito  Santo.  Porque  à  obra  do  Espírito  Santo  são  atri- 
buídos tanto  o  ardor  espiritual  como  a  ordem  espiritual.  O  entusiasmo 
precisa  ser  fraternal;  a  fraternidade  precisa  ser  entusiástica.  A  fraterni- 
dade cristã  e  a  paixão  missionária  são  ambas  necessárias  e  nenhuma 
delas  se  completa  sem  a  outra.  Os  cristãos,  como  entusiastas  fraternais, 
são  os  herdeiros  da  grande  tradição  bíblica  e  clássica  da  sua  fé  sagrada. 
Às  vêzes,  eles  não  se  tornarão  alheios  ao  êxtase  rapsódico  produzido  pela 
visão  que  se  eleva  ou  por  um  lampejo  nos  lugares  celestiais.  As  idéias 
que  acarinham  e  as  experiências  de  que  gozam  as  altas  esperanças  da 
sua  chamada,  farão  com  que  rompam  entoando  «salmos  e  hinos  e  cân- 
ticos espirituais»,  bendizendo  a  Deus  o  Pai.  em  nome  de  Jesus  Cristo, 
Seu  Filho.  Dedicados  a  fazer  a  vontade  de  Deus  para  a  vinda  da  nova 
ordem  divina,  a  dêles  será  «permanente  embriaguez  de  ardor  vital». 
Vigiarão  e  esperarão,  crendo  que  se  aproxima  o  tempo,  que  a  «estação 
traz  perto  a  sua  colheita».  Ainda  por  todo  o  seu  ardor,  ou  antes  por 
causa  do  seu  caráter  iluminado  e  intensamente  espiritual,  viverão  no 
meio  do  plano  secular  e  nela  desempenharão  a  sua  parte;  serão  úteis 
para  o  seu  tempo  e  terão  o  seu  lugar  nas  várias  esferas  e  vocações  da 
vida.  Compreendendo  terem  sido  batizados  em  um  único  Espírito,  tra- 
balharão juntos  e  terão  paciência  uns  com  os  outros;  sabendo  que  a  luta 
não  é  apenas  «com  a  carne  e  com  o  sangue»,  armar-se-ão  e  se  conserva- 
rão armados  para  o  combate  espiritual. 

Assim  nos  aproximamos  do  fim  da  jornada.  Na  parte  que  conclui 
êste  estudo,  consideraremos,  orientados  por  Paulo,  como  é  que  devem 
agir  os  «homens  e  as  mulheres  de  Cristo»,  como  membros  das  instituições 
básicas  da  sociedade  e  como  enfrentarão  os  «Principados  e  Potestades», 
que  obstruem  o  caminho  da  sua  peregrinação. 


—  140  — 


CAPÍTULO  IX 


A  ATUAÇÃO  CRISTÃ  NA  FRENTE  DA  BATALHA 

A  ação,  já  tem  sido  dito  com  verdade,  é  a  essência  da  vida,  como  a 
combustão  é  a  essência  da  chama.  A  secção  final  da  Carta  aos  Efésios 
é  um  convite  à  ação. 

O  propósito  divino  de  redenção  somente  podia  ser  cumprido  por  meio 
da  ação  de  Deus.  Êsse  mesmo  propósito  também  exige  ação  por  parte 
daqueles  cujas  vidas  foram  transformadas  pela  ação  de  Deus  e  que  se 
têm  dedicado  a  viver  para  a  ordem  de  Deus.  O  que  Paulo  disse  até  aqui, 
tem  inspirado  o  misticismo  cristão,  a  teologia  cristã,  a  liturgia  cristã, 
a  poesia  e  as  belas  artes  cristãs,  a  eclesiologia  cristã,  isto  é,  a  discussão 
a  i^speito  da  natureza  da  Igreja.  Mas  o  desígnio  divino  não  pode  ser 
cumprido,  nem  podem  os  cristãos  cumprir  o  seu  verdadeiro  destino,  ex- 
ceto  por  meio  de  ação  concreta.  A  ordem  de  Deus  é  tal  que  os  homens 
não  podem  pensar  ou  sentir  ou  organizar  o  seu  caminho  para  dentro 
dela.  Os  cristãos  cuja  condição  e  fonte  de  vida  na  esfera  celestial  estão 
em  Cristo,  precisam  de  agir  «no  Senhor»,  na  esfera  terrena;  e  isto  é  o 
que  cada  cristão  amadurecido  precisa  de  fazer,  como  individuo  e  não 
meramente  como  membro  de  uma  sociedade  em  massa,  seja  secular,  seja 
religiosa.  Deus  trata  individualmente,  quando  chama  homens  para  a 
cidadania  da  sua  nova  ordem.  Os  que  desta  maneira  são  chamados, 
precisam  de  agir  como  indivíduos,  na  filiação  desta  nova  Ordem.  Tanto 
os  termos  do  propósito  de  Deus  como  as  exigências  da  maturidade  cristã, 
requerem  que  êles  devem  agir  assim. 

Certas  coisas  há,  na  vida  contemporânea,  que  colocam  em  alto 
relêvo  a  importância  do  indivíduo  e  a  sua  ação  pessoal.  A  civiliza- 
ção do  nosso  tempo  se  tem  apropriadamente  chamado  «civilização 
sentada».  Os  que  viajam  às  maiores  velocidades  pelo  ar  ou  no  solo, 
fsizem-no  sentados  em  postura  imóvel,  sem  se  lhes  exigir  qualquer  es- 
forço físico.  Física  e  espiritualmente,  a  gente  prefere  estar  sentado. 
Por  que  mover-se?  Por  que  agir?  «Leve  a  mão  ao  fone  antes  de  levá-la 
ao  chapéu»,  assim  dizia  o  anúncio  de  uma  companhia  telefónica,  em 
anos  recentes.  «Faça  qualquer  coisa  menos  agir»,  aconselha  Screw- 
tape,  na  mais  profunda  e  divertida  descrição  da  filosofia  satânica,  feita 
por  C.  S.  Lewis.  E  ainda,  como  um  sútil  psicológo  afirmou:  «O  povo 
quando  sentado,  inventa  temores  e  os  vence  quando  se  movimenta».  E' 
sòmente  na  ação  que  se  pode  vencer  o  enfado  e  só  por  ela  se  pode  remo- 


—  141  — 


ver  o  temor  obsedante  do  dia  seguinte.  Como  é  paradoxal  que,  em  ope- 
rações militares  dêstes  últimos  tempos,  a  despeito  da  propensão  para  o 
movimento  rápido  e  par  a  complicada  mecanização,  seja  importante  ainda 
o  soldado  de  infantaria;  em  muitos  exemplos,  tem  êle  sido  o  senhor  único 
do  campo.  Deus  requer  que  os  cidadãos  do  Seu  Reino  ajam,  andem, 
lutem,  movam-se  sempre  para  a  frente,  para  as  fronteiras  onde  estão  os 
interêsses  de  valor.  Se  êles  dizem:  «Guia-nos,  ó  Rei  Eterno»,  Êle  cui- 
dará que  «marchem  e  não  desfaleçam».  «Na  luz»  de  um  eterno  pro- 
pósito, «imitando  a  Deus»,  «aprendendo  a  Cristo»,  «cheios  do  Espírito», 
os  membros  da  comunidade  divina  entrarão  em  ação. 

Na  secção  final  da  Carta  (5:22  a  6:24),  aproximamo-nos  das  reali- 
dades fronteiriças  da  vida.  Aqui,  os  cristãos,  na  sua  qualidade  de  ci- 
dadãos de  uma  nova  Ordem,  de  membros  do  Corpo  místico  de  Cristo, 
são  necessários  para  agir  na  vida  comum,  tanto  em  público  como  indi- 
vidualmente, como  membros  da  família  humana,  sempre  conscientes  de 
que  podem  estar  sujeitos,  em  qualquer  ocasião,  ao  assalto  de  forças  que 
não  podem  controlar,  e  mesmo  de  forças  cuja  sede  de  poder  é  o  reino 
sobrenatural  do  mal. 

O  sentimento  de  expedicionário,  o  sentimento  de  se  estar  sempre 
movimentando  para  adiante  como  peregrino,  sempre  pronto  a  usar  as 
armas  de  soldado,  está  profundamente  enquadrado  no  pensamento  e  nas 
imagens  do  Novo  Testamento.  Nesta  secção  final  da  Carta  ao3  Efésios, 
sentimos  o  tacto  e  a  viva  emoção  das  fronteiras  essenciais  da  existência 
humana.  A  vida  cristã  não  pode  ser  vivida  individualmente  em  qual- 
quer mundo  religioso.  Os  cristãos  nunca  poderão  acomodar-se  a  uma 
existência  de  mosteiro  ou  de  gheto.  Não  podem  aceitar  como  funda- 
mentais qualquer  série  de  prescrições  legais  impostas  por  fariseus  anti- 
gos ou  modernos.  Não  podem  também  conformar-se,  em  sua  perspectiva 
e  em  sua  ação,  com  o  que  os  homens  pretendem  que  seja  verdade  cien- 
tífica. Para  êles,  existe  um  além  eterno.  Na  esfera  geográfica,  sen- 
tem-se  impelidos,  por  lealdade  ao  seu  Senhor  e  em  resposta  ao  grande 
propósito  de  Deus,  que  se  centraliza  nêle,  a  levar  as  novas  dêsse  propó- 
sito a  tôda  a  humanidade.  O  próprio  Paulo  acha  como  um  seu  moderno 
admirador  judeu  disse  dêle,  que  «o  Cristo  é  um  grande  caçador».  «Eu 
O  segui»,  disse  êle,  «dentro  de  estranhas  cidades».  Na  esfera  vocacio- 
nal, os  cristãos  têm  sempre  de  se  mover  para  além  do  espírito  e  dos 
padrões  que  inspiram  pensamento  e  procedimento  em  tôdas  as  esferas  e 
chamadas  naturais  da  vida.  Na  esfera  especificamente  religiosa,  nunca 
podem  ficar  satisfeitos  com  a  Igreja  que  adora  a  Deus;  mas  não  dá  tes- 
temunho de  Deus.  Na  vida  de  soldados,  são  os  cristãos  conv^idados  a 
ocupar  e  a  evangelizar  todos  os  espaços  desocupados  do  mundo  habitado 
e  da  vida  vocacional  da  humanidade.  Também  são  convidados  a  enfren- 
tar o  inteiro  reino  hostil  dos  «Principados  e  Potestades»,  que  procuram 
impedir  a  vinda  da  ordem  de  Deus,  o  estabelecimento  do  Seu  Reino 
entre  os  homens. 

As  «Fronteiras»,  como  as  encontramos  na  parte  final  desta  Carta, 
são  de  duas  qualidades.  Há  as  Fronteiras  da  Ordem  Natural  e  há  tam- 
bém as  Fronteiras  da  Ordem  Sobrenatnral. 


—  142  — 


a)    As  Fronteiras  da  Ordem  Natural 

E'  impressionante  o  fato  de  que  Paulo  descreve  a  concepção  cristã 
dos  dois  principais  planos  da  vida  do  homem,  o  lar  e  o  trabalho. 

No  lar,  vivem  os  que  são  mais  chegados  ao  homem  pelos  laços  do 
sangue.  As  relações  familiares  não  somente  são  as  relações  fundamen- 
tais, as  primeiras  e  básicas  relações  dos  sêres  humanos  uns  para  com 
os  outros.  Foram  consagradas  pela  religião  cristã  como  símbolo  das 
relações  entre  Deus  e  os  homens,  que  são  Seus  filhos.  O  casamento, 
sobre  que  se  funda  o  lar,  foi  feito  o  emblema  ou  parábola  das  relações 
entre  Jesus  Cristo  e  a  Sua  Igreja. 

O  homem  também  precisa  de  trabalhar;  êle  tem  de  dedicar-se  a  um 
ofício.  «O  homem»,  diz  um  dos  grandes  Salmos,  «sai  para  a  sua  lida  e 
para  o  seu  trabalho,  até  a  tarde»  (Salmo  104:23).  Entre  a  manhã, 
quando  um  homem  deixa  a  casa,  e  à  tarde,  quando  êle  retorna  ao  lar, 
supõe-se  que  esteja  ocupado  com  o  seu  trabalho.  Toma  parte  nos  ne- 
gócios públicos.  E'  patrão  ou  empregado.  Pertence  à  gerência  ou  ao 
grupo  de  servidores.  E'  membro  de  um  sistema  social  no  qual  precisa 
desempenhar  a  sua  parte  e  ganhar  a  vida,  se  quiser  o  sustento  do  lar 
e  mais  ainda,  os  interêsses  da  sociedade. 

Escutemos  as  palavras  de  conselho  de  Paulo  a  respeito  da  conduta 
da  vida  na  esfera  doméstica  e  na  vida  pública. 

O  Princípio  da  Ação  Cristã:    «No  Senhor». 

O  supremo  princípio  que  deve  guiar  os  cristãos  em  tôdas  as  relações 
humanas  é:  «no  Senhor»  ou  «no  temor  de  Cristo»  (5:21).  Tôdas  as 
coisas  se  devem  fazer  no  temor  dAquele  que  é  o  supremo  Patrão  e  Se- 
nhor de  tôda  alma  cristã.  Êste  princípio  normativo  deriva,  naturalmen- 
te, do  imperativo  básico  mais  geral  de  «aprender  a  Cristo».  A  presença 
de  Cristo  na  vida,  e  a  nova  natureza  ou  disposição  que  a  Sua  presença 
empresta  à  vida,  leva  ao  princípio  moral  do  «temor  de  Cristo»  como 
norma  ou  padrão  da  conduta  social  cristã.  O  Cristo  que  se  torna  objeto 
de  reverência  é,  naturalmente,  tanto  o  Jesus  dos  Evangelhos  como  o 
Cristo  do  drama  cósmico,  redentor.  E'  o  Cristo  em  cujos  olhos,  em 
diferentes  ocasiões  e  em  circunstâncias  diversas,  lampejou  a  luz  e  brilhou 
a  lágrima.  E'  o  Cristo  que  desceu  e  que  subiu:  o  Cristo  da  Cruz  e  da 
Ressurreição,  o  Cristo  da  Encarnação  e  da  Ascensão.  E'  Jesus  Cristo,  em 
tôda  a  Sua  plenitude,  que  deve  ser  tão  reverenciado,  que  os  que  se  cha- 
mam pelo  Seu  nome  agirão  com  acêrto  em  Seu  espírito.  Podia-se  na 
verdade,  dizer  que,  agir  «no  temor  de  Cristo»  e  agir  «no  Senhor»  são 
expressões  sinónimas;  porque  ambas  implicam  a  aplicação  prática,  às 
relações  sociais,  daquilo  que  cada  cristão  acha  ou  devia  achar  em  Jesus 
Cristo. 

Reconhecendo  e  aplicando  êste  padrão  personificado,  os  cristãos 
devem  ser  em  todos  os  exemplos  «sujeitos  uns  aos  outros»  ou  antes, 
«acomodados  uns  aos  outros».  Ainda  que  espiritualmente  livres  e,  em 
Cristo,  «senhores  de  tudo»,  devem,  nas  palavras  de  Lutero,  tornar-se 
também  «servos  de  todos».    Somente  como  cristãos,  no  espírito  de  Cristo, 


—  143  — 


se  preferirem  os  outros  a  si  mesmos,  é  que  pode  vir  à  existência  essa 
qualidade  de  articulação  e  harmonia  que  uma  sociedade  cristã  exige. 

Ação  na  Fronteira  Doméstica. 

A  vida  no  lar,  como  a  instituição  primária  e  básica  da  sociedade, 
exige  tratamento  especial.  O  lar,  por  sua  própria  natureza,  devia  de 
ser  a  morada  do  amor.  O  lar  cristão,  naturalmente,  deveria  cumprir 
ou  preencher  tudo  que  pertencesse  inerentemente  à  realidade  doméstica, 
como  ordem  da  criação.  O  princípio  essencial  do  lar  é  que  cada  um  dos 
membros  da  família,  estando  preocupado  nos  interêsses  e  bem-estar  de 
todos  os  outros  membros  e  da  família  como  um  todo,  proceda  com  espí- 
rito de  cooperação.  Mas  a  família,  que  é  a  primeira  grande  fronteira 
da  existência  humana,  pode  ser  uma  fronteira  flamejante.  Pode  ser 
fronteira  de  violento  conflito  e  certamente  assim  foi  em  grande  exten- 
são, desde  os  albores  da  história  humana.  Os  conflitos  mais  dramáticos 
que  têm  inspirado  dramas  trágicos  até  ao  mais  horrendo,  têm  sido  con- 
flitos no  círculo  doméstico.  Um  dos  problemas  do  lar  é  o  autoritarismo; 
o  outro  é  o  hedonismo. 

O  princípio  autoritário  expressa-se  quando  um  dos  membros  da  fa- 
mília, o  pai  ou  a  mãe,  ou  talvez  mesmo  uma  irmã  ou  um  irmão,  pretende 
exercer  o  contrôle  absoluto  no  círculo  familiar  ou  governar  só  pela  fôrça, 
de  uma  espécie  ou  de  outra.  O  resultado  é  uma  casa  de  bonecos  ou  uma 
casa  de  loucos.  Temos  uma  quietude  sepulcral  ou  uma  ordem  imposta 
pelo  medo;  ou  teremos  caótica  desordem  causada  pelo  desespêro.  Neste 
caso,  não  há  espontaneidade  de  procedimento,  nem  inciativa  na  ação. 
Por  outro  lado,  nada  há  senão  frustração  e  neurose.  Em  qualquer  dos 
casos,  a  idéia  do  lar  e  a  realidade  da  família  estão  destruídas. 

Outro  flagelo  da  felicidade  doméstica  é  o  hedonismo.  Quando  o 
marido  ou  a  esposa  consideram  o  casamento  e  os  fundamentos  de  uma 
família,  como  exclusivamente  ocasião  de  garantir  o  prazer  pessoal,  des- 
troi-se  a  realidade  do  matrimónio  e  do  lar.  O  culto  exclusivista  e  egoís- 
tico da  felicidade  própria,  a  insistente  exigência  de  satisfação  do  que  se 
considera  «vital»  para  o  seu  próprio  prazer  e  bem-estar,  é  indigno  de 
um  verdadeiro  marido  ou  de  uma  verdadeira  esposa,  e  pode  destruir  um 
lar.  Quantas  vêzes  acontece,  que  o  que  o  marido  ou  a  esposa  considera 
«vital»  à  felicidade,  torna-se  de  realização  impossível  devido  às  circuns- 
tâncias, seja  a  saúde  da  esposa  ou  os  revêses  da  profissão  do  marido. 
Desenvolvem-se  as  tensões  e  surge  ameaça  de  ruptura  do  matrimónio. 
Se  as  simpatias  e  o  ajustamento  mútuo  não  tomarem  em  consideração  a? 
circunstâncias  mudadas,  se  o  sentimento  de  responsabilidade  não  triun- 
far sôbre  a  inclinação  egoística  para  o  prazer,  pode  se  destruir  o  lar. 
O  insucesso,  a  incompatibilidade,  a  crueldade  ou  coisas  piores  ainda,  po- 
dem ser  alegadas  e  o  divórcio  é  inevitável.  Então  a  imagem  filial  que 
realça  as  relações  dos  homens  para  com  o  Pai  Celestial,  e  a  imagem  nup- 
cial que  simboliza  o  dramático  amor  de  Jesus  Cristo  para  com  a  Sua 
Igreja,  são  ambas  conspurcadas.  Rejeitam-se  imagens  que  são  a  ex- 
pressão suprema  de  responsabilidade  com  amor,  isso  em  nome  do  hedo- 
nismo egoístico. 


—  144  — 


Qual  a  orientação  que  S.  Paulo  nos  oferece  para  tal  situação? 
Todos  os  mebros  de  um  circulo  familiar  devem,  de  uma  maneira  ou  de 
outra,  pensar  no  «Senhor»,  «porque  o  marido  é  a  cabeça  da  esposa  como 
Cristo  é  a  Cabeça  da  Igreja,  Seu  Corpo,  e  Êle  mesmo  é  o  Seu  Salvador». 
(Efes.  5:23).  Os  maridos,  pela  sua  parte,  devem  «amar  as  suas  mu- 
lheres como  Cristo  amou  a  Igreja  e  se  deu  a  si  mesmo  por  ela»  (5:25). 
Os  maridos  devem  amar  as  esposas  «como  aos  seus  próprios  corpos». 
«Aquele  que  ama  a  sua  própria  mulher  ama-se  a  si  próprio»  (5:28).  O 
marido  e  a  mulher,  como  Cristo  e  a  Igreja,  são  indissoluvelmente  um. 
Os  filhos,  por  seu  lado,  devem  obedecer  aos  pais  no  Senhor.  Os  pais,  de 
sua  parte,  não  devem  provocar  ou  exasperar  os  filhos,  mas  criá-los  «na 
disciplina  e  instrução  do  Senhor»  (Efes.  6:4). 

Que  significa  isto?  O  marido  sobressai  como  a  cabeça  do  lar.  Se 
êle  é  a  cabeça  do  lar,  como  Cristo  é  a  Cabeça  da  Igreja,  então  precisa 
êle  de  «aprender  a  Cristo»  e  agir  «no  temor  do  Senhor»;  porque  Cristo 
sempre  pôs  os  interêsses  da  Sua  Igreja  acima  dos  Seus  próprios  interês- 
ses.  Êle  viveu  para  a  Igreja;  Êle  procurou  a  perfeição  e  o  bem-estar  da 
Igreja;  Êle  nunca  se  fez  de  patrão  da  Igreja  ou  a  espancou.  Pelo  con- 
trário, Êle  cortejou  a  Igreja  e  firmou  o  Seu  direito  à  reverência  e  à  obe- 
diência dela,  por  Seu  próprio  valor  puro.  E'  êste  o  segrêdo  e  é  também, 
para  assim  falar,  a  lei  do  marido.  Estabeleça-se  a  sua  liderança  pelo 
processo  do  carinho  e  da  dignidade;  seja  a  sua  vontade  acatada  pela  sa- 
bedoria clara  do  conselho  que  êle  dá  e  pela  atitude  que  assume  em 
relação  à  companheira  e  aos  filhos.  Quanto  à  esposa,  que  ela,  tanto 
quanto  possível,  se  adapte  ao  seu  marido,  deixando  de  ver  uma  multidão 
de  fraquezas  e  faltas.  Tomando-se  como  certo  o  seu  amor  por  êle,  pro- 
cure ela  respeitá-lo  e  reverenciá-lo,  mesmo  quando  isso  seja  difícil  de 
fazer.  Quanto  aos  filhos  e  filhas  da  casa,  tratem  êles  os  pais  com  a 
devida  honra,  simplesmente  porque  são  seus  pais;  prestem-lhes  obediên- 
cia no  Senhor.  Mas  deve-se  considerar  também  esta  possibilidade.  Por- 
que em  obedecer  os  filhos  aos  pais  «no  Senhor»  pode  significar  que, 
quando  crescerem  e  chegarem  à  maturidade  cristã,  aconteça  não  pode- 
rem êles  aceitar  o  ponto  de  vista  dos  pais.  A  lealdade  a  Cristo  pode 
levá-los  a  fazer  alguma  coisa  contrária  à  vontade  dos  pais.  Contudo, 
isto  é  de  conformidade  com  a  reverência  por  Cristo.  Porque  pode  haver 
ocasiões  em  que,  pelo  amor  de  Cristo  e  por  lealdade  à  Sua  Palavra  e  es- 
pírito, um  filho  ou  uma  filha  tenham  de  desobedecer  aos  pais,  a  fim  de 
manterem  a  obediência  a  Cristo.  Assim,  o  princípio  permanece  do  se- 
guinte modo:  a  lei  suprema  da  vida  doméstica  é  pensar  e  agir  «no  Senhor» 
e  «pelo  temor  de  Cristo». 

Ação  na  Fronteira  Profissional. 

O  mesmo  prircíoio  é  verdadeiro  na  fronteira  profissional  do  crente. 
A  forma  de  vida  pública  mais  comum  a  todos  os  seres  humanos  é  alguma 
vocação  ou  esfera,  que  os  homens  se  empenham  para  ganhar  a  vida. 
Assim  como  o  lar  é  supremamente  a  esfera  do  amor,  a  vida  numa  pro- 


—  145  — 


fissão,  a  vida  na  fazenda,  a  vida  no  escritório,  a  vida  no  armazém,  a 
vida^  na  fábrica,  a  vida  na  governança,  devem  ser  a  esfera  da  justiça. 
Aqui  também,  o  princípio  prescrito  para  as  relações  humanas  se  centra- 
liza concretamente  na  «reverência  a  Cristo». 

O  homem  precisa  de  trabalhar.  Para  ser  verdadeiramente  homem, 
precisa  êle  de  se  entregar  ao  trabalho  honesto  e  criador,  seja  para  pre- 
encher as  necessidades  da  própria  varonilidade  como  pessoa,  ou  para 
ganhar  a  subsistência  daqueles  a  quem  está  unido  pelos  laços  de  família, 
ou  para  prestar  serviço  à  sociedade.  Mesmo  nas  formas  primitivas  da 
sociedade  humana,  existem  relações  entre  patrão  e  empregado,  entre  a 
direção  e  o  trabalho.  Na  sociedade  moderna,  tôdas  as  relações  sociais 
que  envolvem  trabalho,  relacionam-se  diretamente  com  a  industrializa- 
ção, ou  vivem  à  sua  sombra  ou  atmosfera.  A  máquina,  com  a  conse- 
quente mecanização  e  produção  em  massa,  tem  mudado  radicalmente  a 
natureza  e  os  problemas  das  relações  entre  patrões  e  empregados. 

No  nosso  estudo  da  conduta  do  princípio  cristão  da  «reverência  a 
Cristo»,  nas  complexidades  da  sociedade  moderna  industrializada,  preci- 
samos de  ter  em  mente  certas  coisas.  Desde  o  começo  da  religião  cristã, 
os  cristãos  e  a  Igreja  cristã  tiveram  de  viver  em  muitas  formas  diversas 
de  sociedade  humana.  Tiveram  de  dar  o  testemunho  sob  diversas  for- 
mas de  govêrno.  Nenhuma  forma  de  sociedade  organizada  pode  ser 
considerada  pelo  cristão  como  absolutamente  ideal  em  todos  os  respeitos, 
isto  é,  como  tendo  sanção  divina  absoluta.  Não  há  forma  de  organiza- 
ção social  que  possa  ser  considerada  tão  imperiosa  e  inspirada,  a  ponto 
de  poder  ser  igualada  ao  Reino  de  Deus.  O  princípio  de  que  «ordem  é 
ordem»  é  tão  verdadeiro  na  sociedade  secular,  como  temos  sustentado 
ser  verdadeiro  na  estrutura  organizada  da  Igreja  Cristã.  Há  princípios 
cristãos  imperiosos  para  a  organização  da  sociedade  e  para  a  conduta  nas 
relações  sociais.  Mas  não  existem  padrões  imperiosos  específicos  para 
as  operações  pormenorizadas  da  vida  social  ou  das  relações  profissionais. 
Tudo  o  que  se  pode  dizer,  é  que  uma  sociedade  verdadeiramente  demo- 
crática, em  que  os  princípios  de  responsabilidade  do  procedimento  huma- 
no e  a  dignidade  e  os  direitos  dos  seres  humanos  sejam  devidamente  re- 
conhecidos, é  a  melhor  e  mais  desejável  forma  de  organização  social  que 
a  história  já  tem  conhecido.  Contudo,  nem  a  democracia,  nem  qualquer 
outra  forma  de  organização  social  podem,  como  eu  já  disse,  ser  identi- 
ficadas com  o  Reino  de  Deus.  Sòmente  quando  vier  o  Reino  de  Deus 
e  se  tornarem  dominantes  os  princípios  da  «reverência  de  Cristo»  com.o 
manifestação  plena  da  justiça  e  amor  de  Deus,  aclamará  a  humanidade 
a  sociedade  ideal.  Entretanto,  ficando  nós  à  margem  de  todo  o  utopis- 
mo  e  não  nos  entregando  a  sonhos  apocalíticos,  exploremos  o  princínio 
da  «reverência  de  Cristo»  no  meio  das  realidades  concretas  da  situação 
do  trabalho,  na  sociedade  que  conhecemos. 

Uma  sociedade  industrializada,  que  a  tecnologia  tornou  possível,  en- 
frenta dois  grandes  perigos,  que  precisam  de  ser  descritos  e  examinados 
«no  Senhor».  Um  dêsses  perigos  é  a  despersonalização  do  trabalhador; 
o  outro  perigo  é  a  tiranização  do  patrão. 


—  146  — 


Nas  condições  particulares  sob  que  trabalham  os  homens  hoje  em 
dia,  milhões  de  sêres  humanos  são  simplesmente  ligados  a  uma  engre- 
nagem. São,  exatamente,  tantos  braços  que  trabalham,  são  apenas  ins- 
trumentos que  funcionam,  são  apenas  cifras  humanas,  cuja  existência  é 
tabulada  por  uma  máquina  de  contabilidade.  Em  tais  condições,  os 
seres  humanos  tendem  a  perder  a  sua  individualidade;  os  traços  da  ima- 
gem de  Deus,  que  cada  homem  traz  e  deveria  cultivar  em  trabalho  cria- 
dor, e  a  cultura  dos  interêsses  pessoais,  tendem  a  desaparecer. 

Do  lado  do  patrão,  o  perigo  é  o  da  tiranização.  Nestes  últimos 
tempos  o  patrão  pode  ser  o  estado,  inteiramente  divorciado  dos  desejos 
e  dos  interêsses  do  cidadão.  A  tirania  totalitária,  em  que  a  sociedade  e 
o  estado  se  fundem,  e  a  tecnologia,  que  habilita  uma  oligarquia  a  atingir 
poder  supremo  e  incontestado,  tomam  possível  e  têm  feito  real  a  mais 
aguda  forma  de  tiranização  que  a  história  já  tem  conhecido.  O  Go- 
verno torna-se  o  senhor  absoluto  da  vida  humana,  os  cidadãos  perdem 
a  sua  liberdade  e  se  tornam  escravos. 

Qual  a  orientação  que  Paulo  oferece  para  tal  situação?  O  operário 
cristão  deve  tomar  o  seu  trabalho  tão  a  sério  como  toma  ao  seu  Senhor. 
Se  o  seu  trabalho  é  trabalho  real,  então  é  trabalho  para  ser  feito.  E' 
trabalho  digno  dos  seus  melhores  esforços,  trabalho  em  que  êle  deve  pôr 
o  seu  orgulho  pessoal.  Por  amor  do  trabalho,  esqueça  êle  os  seus  pa- 
trões, mesmo  que  sejam  injustos  e  tirânicos.  Trabalhe  com  a  mesma 
singeleza  de  coração  como  se  estivesse  trabalhando  para  o  próprio  Jesus 
Cristo.  Seja  o  seu  critério,  não  se  êle  está  sendo  vigiado  ou  se  o  seu 
trabalho  vai  agradar  ou  não  aos  homens.  Como  servo  de  Cristo,  faça  o 
melhor  que  puder.  Fazendo  assim,  tenha  a  certeza  de  que  Cristo  o  re- 
compensará pelo  seu  esfôrço.  Como  homem  debaixo  de  ordens  supe- 
riores, servindo  a  um  Senhor  que  lhe  tem  dado  padrão  de  boa  mão-de- 
obra,  ponha  os  seus  melhores  esforços  em  cada  um  dos  momentos  do 
tempo  de  trabalho.  Qualquer  que  seja  a  sua  questão  com  as  condições 
em  que  o  seu  trabalho  tem  de  ser  realizado,  traga  o  fruto  do  seu  trabalho 
o  sêlo  do  seu  ideal.  Isto  não  significa,  contudo,  que  como  um  homem, 
como  um  cidadão,  e  como  cristão,  o  operário  não  possa  lutar  por  me- 
lhores condições  de  trabalho.  Mas  não  permita  que  a  luta  pela  justiça 
interfira  com  a  qualidade  do  seu  serviço.  Êle  tem  o  direito  de  reclamar, 
mas  não  tem  o  direito  de  fazer  serviço  inferior.  Tem  o  direito  de  fazer 
greve,  mas  não  de  se  entregar  à  sabotagem.  Sob  certas  circunstâncias,  tem 
o  direito  de  ser  revolucionário.  Êle  deve  até  tornar-se  revolucionário  nos 
interêsses  dos  homens  que  sofrem,  quando  os  seus  patrões  governam  de 
maneira  contrária  à  ordem  moral  de  Deus.  Mas  nenhuma  ação  revolu- 
cionária, repitamos,  pode  justificar  a  quebra  da  responsabilidade  de  fazer 
bom  trabalho,  quando  se  tem  um  trabalho  que  deva  ser  feito. 

Quanto  ao  patrão,  seja  êle  homem  ou  sistema  social  ou  político,  se 
acontecer  que  o  nome  de  Cristo  seja  por  êles  honrado  e  conhecido,  reco- 
nheça-se  a  dignidade  de  todo  o  trabalhador  humano.  Sejam  os  homens 
estimulados,  por  incentivos  positivos,  a  um  trabalho  superior  e  não  por 
meio  de  ameaças,  no  caso  de  falharem.   Todo  sistema  de  poder,  que 


—  147  — 


reconheça  o  lugar  de  Cristo  na  vida  humana  proceda  com  justiça  e  im- 
parcialidade. Lembre-se  que  Cristo  não  é  nenhum  bajulador.  Não  tem 
preferências  quaisquer  pelas  pessoas  de  maior  poder  ou  maior  riqueza 
do  que  outras  ou  pelas  que  pensam  ser  naturalmente  superiores  a  outras. 
Para  Êle,  o  servo  é  tão  bom  como  o  patrão,  e  Êle  exercerá  julgamento 
justo.  Mas  onde  quer  que  o  patrão  ou  o  sistema  de  poder  não  conhece 
nem  reconhece  a  Cristo,  êles  serão  julgados  por  Cristo.  Trema  a  tira- 
nia; «beijem  o  filho»  os  tiranos,  porque  Deus,  como  Paulo  disse  uma  vez 
aos  filósofos  que  se  reuniram  no  areópago  ateniense,  «julgará  o  mundo 
com  justiça,  por  meio  do  varão  que  destinou»  (Atos  17:31). 

E'  claro  que  em  todos  os  assuntos  relativos  à  vida,  nas  ardentes 
fronteiras  da  ordem  natural,  os  homens  e  as  mulheres  cristãos  ocuparão 
lugar  de  responsabilidade  especial.  Têm  uma  função  muito  especial  que 
desempenhar.  A  crescente  sofisticação  do  pensamento  e  a  progressiva 
secularização  da  vida  dão  aos  homens  e  às  mulheres,  que  vivem  em  con- 
tacto íntimo  com  as  realidades  do  plano  secular,  penetração  mais  pro- 
funda do  problema  humano  do  que  o  descortino  ordinàriamente  possuí- 
do pelos  clérigos.  Pela  mesma  razão,  os  leigos,  quando  tomam  a  sério 
os  grandes  princípios  cristãos  da  reverência  a  Cristo,  têm  oportunidades 
estratégicas  de  apresentar  soluções  cristãs  para  a  vida  particular  e  pú- 
blica.   O  dia  de  hoje  é  a  grande  era  do  leigo  cristão. 

b)    As  Fronteiras  da  Ordem  Sobrenatural 

Paulo  iniciou  esta  Carta  com  uma  fuga  rapsódica  até  às  esferas 
celestiais.  Ali  explorou  tudo  o  que  êle  entendia  pela  afirmação  de  que 
Deus  abençoou  os  cristãos  «com  tôda  a  bênção  celestial  em  Cristo 2>. 
Termina  a  Carta  com  uma  descrição  sóbria  e  realística  da  esfera  terrena, 
onde  os  cristãos  têm  de  permanecer  e  de  lutar.  Mas  esta  luta  nos  ca- 
minhos do  mundo,  os  cristãos  a  levarão  avante  no  poder  do  Seu  Senhor 
celestial.  Terão  de  lutar,  porém,  contra  as  fôrças  espirituais  hostis  ao 
bem-estar  do  homem,  as  quais  têm  a  sede  acima  da  terra  e  além  da 
história.  Os  cristãos,  diz  Paulo,  não  são  contra  qualquer  inimigo  mera- 
m.ente  físico.  São  contra  «organizações  e  poderes  que  são  espirituais». 
Acima  de  tudo,  são  contra  «o  Poder  invisível  que  controla  êste  mundo 
perverso,  e  contra  os  agentes  espirituais  do  próprio  quartel  general  do 
mal»  (6:12)  (versão  de  Phillips). 

Paulo,  como  Jesus,  tinha  consciência  viva  do  caráter  pessoal  e  dos 
poderes  do  maligno  no  universo.  Reconhecia  uma  estratégia  organizada 
do  mal.  Aqui  está  alguma  coisa  inteiramente  diferente  do  poder  da 
hereditariedade,  alguma  coisa  mais  horrenda  e  pavorosa  do  que  as  fôrças 
judiciais  e  dialéticas  que  operam  na  história,  pelas  quais,  às  vêzes,  a  his- 
tória zomba  da  lógica  do  homem  e  outras  vêzes  leva  à  destruição  o  seu 
orgulho  titânico.  Paulo  estava  pensando  em  fôrças  inteiramente  distin- 
tas das  fôrças  demoníacas  da  história  contemporânea,  que  se  arrogam  a 
condição  e  os  atributos  da  Divindade,  poderes  êsses  que  se  esforçam  para 
controlar  a  história,  como  se  não  houvesse  Deus  nem  propósito  eterno 
passando  pelos  séculos  e  operando  por  meio  dêle.  Enquanto,  Paulo,  se 
estivesse  vivendo  o  dia  de  hoje,  tomaria  perfeito  conhecimento  de  todas 


—  148  — 


essas  forças  antes  que  os  homens  comuns  se  achassem,  nestes  tempos, 
tão  indefesos,  êle  ainda  insistiria  no  caráter  pessoal  do  mal  sobrenatural. 
Insistiria  na  realidade  dos  «príncipes  das  trevas  deste  século,  as  hostes 
espirituais  da  maldade  nos  lugares  celestiais»  (6:12).  Êle  pede,  pois, 
aos  homens  e  mulheres  a  quem  escreve,  que  busquem  a  força  «não  em 
si  mesmos,  mas  no  Senhor,  no  poder  dos  Seus  ilimitados  recursos». 
«Tomai  tôda  a  armadura  de  Deus»,  diz  êle,  «para  que  possais  resistir 
a  todos  os  métodos  de  ataque  do  diabo».  «Vós  deveis  usar»,  continua, 
«a  inteira  armadura  de  Deus,  para  que  possais  resistir  ao  maligno  no 
dia  do  seu  poder  e  para  que,  tendo  lutado  até  ao  fim,  possais  conservar  o 
vosso  terreno»  (tradução  de  Phillips). 

E'  importante  observar,  neste  ponto,  alguma  coisa  de  significação 
espiritual.  Paulo  começou  esta  Carta  falando  aos  cristãos  individual- 
mente, como  tais;  neste  final,  torna  claro  que  não  é  em  massa  que  os 
cristãos  têm  de  combater  o  diabo,  mas  como  indivíduos.  No  correr  da 
luta  cósmica  entre  o  bem  e  o  mal,  entre  Deus  e  Satã,  tôda  vitória  de 
cada  cristão  individual  é  uma  derrota  dos  poderes  cósmicos  do  maligno. 
Nós,  que  estamos  habituados  a  considerar  a  vitória  sòmente  em  têrmos  de 
movimentos  organizados  e  no  êxito  dêles,  bem  faríamos  em  considerar 
isto:  A  vitória  sôbre  a  tentação,  ganha  pela  alma  cristã  mais  significante, 
tem  dimensão  universal.  Quebra  parte  do  poder  do  Inimigo  e  faz  apro- 
ximar-se  o  Reino  de  Deus.  Mais  fundamental  ainda  do  que  a  Igreja  de 
Cristo  organizada  na  terra,  é  a  alma  individual.  As  almas,  que  nas  pa- 
lavras do  grande  historiador,  são  mais  importantes  do  que  a  civilização, 
foram,  em  certos  períodos  da  história,  muito  mais  importantes  também 
do  que  as  Igrejas  organizadas.  Tais  almas,  pertencentes  a  Jesus  Cristo 
e  membros  do  Seu  Corpo  místico,  podem  exercer  ocasionalmente  enorme 
influência  espiritual,  ainda  que  possam  ser  obrigadas  a  viver  existência 
solitária  e  não  reconhecida  pela  Igreja  organizada  de  Cristo. 

A  Panóplia  de  Deus. 

Fortalecidos  «no  Senhor»,  os  cristãos  travarão  guerra  coroada  de 
êxito,  se  estiverem  revestidos  da  armadura  e  fizerem  uso  das  armas  que 
o  próprio  Deus  preparou  para  o  grande  conflito.  As  peças  da  armadura 
são  sete  em  número,  sugestivas  de  perfeição  espiritual.  Contudo,  é  claro 
que  nenhum  esfôrço  se  faz  para  descrever  a  panóplia  completa  de  um 
legionário  romano.  Por  exemplo,  estão  faltando  as  grevas  e  a  lança. 
Quando  analisamos  as  peças,  é  evidente  que  caem  em  dois  grupos:  as 
peças  menores  e  as  peças  maiores. 

A  primeira  e  mais  importante  entre  as  peças  menores  é  a  couraça  da 
.justiça.  A  couraça  protege  o  coração.  O  cristão  não  se  pode  empenhar 
em  luta  espiritual  vitoriosa,  a  não  ser  que  possua  integridade  pessoal. 
A  sua  fôlha  precisa  de  estar  limpa.  Precisa  de  ficar  acima  de  censura. 
Não  deve  nêle  haver  pecado  secreto  e  inconfessado.  Não  deve  ser  hi- 
pócrita, isto  é,  ator  de  máscara  no  rosto  e  que  aparece  a  outras  pessoas 
mui  diferente  do  que  realmente  é.  Admitindo  livremente  o  seu  pecado 
indignidade  pessoal,  a  vida  do  guerreiro  cristão  deve  estar  aberta 
diante  de  Deus  e  diante  dos  homens.  Deve  possuir  a  pureza  interior  que 


—  149  — 


vem  de  «desejar  uma  só  coisa».  O  orgulho  que  êle  possa  alimentar  não 
deve  estar  nas  suas  próprias  realizações,  nem  em  qualquer  graça  pessoal, 
mas  somente  nas  suas  cicatrizes,  as  «marcas  do  Senhor  Jesus»,  que  re- 
cebeu nas  lutas  pela  justiça. 

Logo  depois,  em  importância,  vem  o  escudo  da  fé.  A  confiança  do 
cristão  deve  estar  em  Deus.  Não  deve  nutrir  qualquer  dúvida  a  res- 
peito da  base  da  sua  fé  e  da  verdade  da  sua  causa.  Precisa  de  ser  ho- 
mem de  intensa  convicção,  que  tenha  ao  redor  o  ar  de  calma  decisão  que 
caracteriza  o  homem  de  espirito  resoluto,  cuja  cama  já  está  arrumada. 
Sabe  quem  é  êle  e  a  quem  pertence.  Muitas  coisas  há  a  respeito  de 
Cristo  e  da  sua  própria  vida,  como  dos  propósitos  de  Deus,  que  êle  des- 
conhece, mas  há  algumas  coisas,  as  coisas  básicas,  que  são  dêle  conhe- 
cidas; e  a  qualquer  tempo,  êle  estará  pronto,  se  alguém  lhe  pede,  a  dar 
a  razão  da  sua  esperança.  Com  o  seu  escudo  da  fé,  estará  habilitado 
a  aparar  o  golpe  e  a  neutralizar  a  fôrça  de  quaisquer  zombarias  ou  insi- 
nuações, escárneos  ou  difamações,  dúvidas  ou  ameaças,  que  se  possam 
atirar  contra  êle. 

Sôbre  a  cabeça  do  cruzado  espiritual  está  o  capacete  da  salvação. 
Usando  êste  elmo,  pode  conservar  a  cabeça  ereta  como  soldado  que  luta 
pelo  Reino  de  Deus,  que  sabe  que  Jesus  Cristo  é  Senhor  e  que  a  batalha 
decisiva  de  uma  grande  campanha  já  foi  vitoriosamente  ferida.  Sabe 
que  Cristo,  em  Sua  vida  e  em  Sua  morte  e  pela  Sua  gloriosa  ressurreição, 
derrotou  os  «Principados  e  as  Potestades»  e  «os  expôs  publicamente,  e 
triunfou  sôbre  êles  na  Cruz».  Êle  pode,  pois,  olhar  os  inimigos  face 
a  face.  Sabe  que  estão  condenados  todos  os  seus  inimigos  e  de  Cristo, 
e  que  o  propósito  eterno  de  Deus  e  de  Cristo,  será  cumprido  na  história 
e  além  da  história.  Disto,  também,  está  inteiramente  convencido:  na 
grande  campanha  pelo  Reino,  não  existem  mais  do  que  simples  escara- 
muças e  operações  de  limpeza.  Por  último,  então,  como  Paulo  escreveu 
em  outra  das  suas  epístolas  da  prisão,  a  sua  carta  aos  Filipenses,  «tôda 
a  língua  confessará  que  Jesus  Cristo  é  Senhor,  para  a  glória  de  Deus 
Pai»  (FiU.  2:11). 

Agora,  as  quatro  peças  maiores: 

Básica  e  indispensável  ao  guerreiro  cristão,  que  Paulo  descreve  em 
termos  de  um  legionário  romano,  é  o  cinto  ou  cinturão.  Com  o  cinto, 
êle  é  cingido  para  a  ação.  No  fim  de  um  período  de  descanso  e  à  chama- 
da da  trombeta,  o  legionário  vestiu  a  armadura  e  apertou  o  cinto.  Sem 
tal  cinto,  êle  ficaria  mal  arranjado.  Com  êle,  está  pronto  e  bem  firme. 
Assim,  Paulo  diz:  «Tendo  cingidos  os  vossos  lombos  com  a  Verdade» 
(Efes.  6:14).  A  verdade  aqui  significa  absoluta  sinceridade,  inequívoca, 
e  devoção  sem  reservas  e  de  coração  inteiro  à  causa,  na  qual  e  para  a 
qual  êle  se  tornou  soldado.  Um  guerreiro  cristão,  com  o  cinto  apertado 
ao  redor,  de  si,  não  se  põe  a  correr  em  perseguição  da  verdade,  como 
se  fosse  encantadora  borboleta  ou  pássaro  fugitivo.  Tais  excursões  têm 
o  seu  lugar  mui  próprio  na  vida.  Elas  até  podem  entreter  o  legionário 
nos  momentos  de  folga.  Mas  a  sua  tarefa  principal  é  de  uma  quali- 
dade mais  austera.    A  verdade  é  alguma  cousa  da  qual  êle  parte  e  não 


—  150  — 


alguma  cousa  que  êle  se  deleita  em  perseguir.  A  Verdade,  no  sentido 
mais  básico,  precisa  de  ser  a  posse  da  vida  de  um  cristão  e  não  a 
busca  do  seu  lazer.  E  ainda,  em  última  análise,  a  Verdade  não  é 
alguma  coisa  que  o  cristão  tenha  em  absoluto,  seja  como  distintivo  ou 
adorno,  seja  como  bandeira  que  êle  desfralda,  tocha  que  êle  acende 
dentro  das  trevas,  ou  como  farol  que  ilumina  a  noite.  Ela  é  tudo  isso 
e  muito  mais.  Ela  é  alguma  coisa  que  o  tem,  que  o  possui  e  o  cinge. 
É  um  cinto  apertando  ao  redor  de  seus  lombos.  É  um  Braço  afetuoso 
e  poderoso. 

Então  vêm  os  sapatos  do  guerreiro,  com  que  se  calçam  os  pés  de 
cruzado.  Sem  calçado  apropriado,  é  impossível  a  campanha  real.  Com 
sapatos  adequados,  o  soldado  tem  completa  liberdade  de  movimentos. 
Os  sapatos  de  campanha  são  próprios  para  todos  os  terrenos  e  ocasiões. 
Bem  calçado,  o  soldado  pode  adaptar-se  a  tôdas  as  circunstâncias.  Pode 
trilhar  os  caminhos  dos  prados,  que  ficam  perto  de  águas  mansas;  pode 
caminhar  por  cima  de  rochas  cheias  de  pontas,  pelos  trilhos  da  monta- 
nha. Os  sapatos  do  guerreiro  cristão  são  a  estabilidade  do  «Evangelho 
da  paz».  Não  há  sapatos  como  êstes.  Fazem  o  homem  correr  ou  an- 
dar com  maior  rapidez  e  mais  poder  de  estabilidade  do  que  os  sapatos 
de  qualquer  das  figuras  da  lenda  e  da  fábula.  «Quão  formosos  sôbre 
os  montes  são  os  pés  daqueles  que  leva  as  boas-novas».  Equipado  com 
as  «Boas-Novas»,  o  cristão  sente  pressa  de  ir  por  tôda  parte  com  a 
mensagem  —  de  andar  por  tôda  a  «terra  de  Deus». 

Na  mão  do  guerreiro  está  uma  espada.  Ela  lhe  serve  para  defesa 
própria  e  para  levar  a  ofensiva  ao  território  inimigo.  É  a  «Espada  do 
Espírito,  a  Palavra  de  Deus».  Jesus,  quando  assaltado  por  Satanás, 
usou-a  para  fazer  frustrar  os  ardis  do  Tentador.  A  Palavra  de  Deus,  como 
sentia  o  peregrino  de  Bunyan,  é  «uma  verdadeira  lâmina  de  Jerusalém». 
Nas  mãos  de  cada  cristão  «Grande  Coração»,  cortante.  O  seu  brilho 
nas  trevas  do  presente  ilumina  as  idades.  O  seu  gume  separa  as  coisas 
que  não  devem  permanecer  naturalmente  unidas.  Penetra  até  o  âmago 
os  negócios  humanos.  Corta  os  nós  górdios  e  rasga  as  máscaras  da 
falsidade.  Armado  da  Espada  do  Espírito,  o  cristão  abre  caminho  pelo 
meio  da  confusão  das  circunstâncias.  Interessado  sòmente  com  o  que  o 
Senhor  Deus  disse  e  mandou  que  êle  falasse,  finca  os  pés  no  chão  sem 
desfalecer,  e  persegue  o  inimigo  no  próprio  território  dêste, 

A  mais  poderosa  de  tôdas  as  armas,  em  que  culminam  as  sete  peças 
da  armadura  do  cristão,  é  uma  arma  chamada  «tôda  a  oração».  Usar 
esta  arma  é  orar  em  tôdas  as  ocasiões  no  Espírito.  Permita  o  cruzado 
que  o  Espírito  Santo,  que  nele  habita,  interceda  no  seu  íntimo,  com 
gemidos  dolorosos  e  verdadeiro  conhecimento  da  vontade  de  Deus.  Use 
êle  tôda  espécie  de  oração  —  às  vêzes  uma  oração  curta  e  fervorosa 
pedindo  socorro,  outras,  a  prece  calma  da  comunhão.  Persevere  em 
oração,  vigilante  e  insistente,  nela  orando  sem  cessar.  Ore  a  favor  de 
todos  os  «homens  e  mulheres  em  Cristo»,  pelos  indivíduos  dentro  da 
Igreja,  como  um  todo,  através  de  toda  a  terra  habitada. 


—  151  — 


EPÍLOGO 


CORAGEM,  POIS! 


A  Carta  termina  com  um  apêlo  pessoal.  Em  suas  orações,  não  se 
esqueçam  os  membros  da  Grande  Igreja  Universal  de  Cristo,  a  quem 
é  esta  carta  enviada,  não  se  esqueçam  do  seu  autor,  o  embaixador  de 
Cristo,  em  sua  prisão  de  Roma.  Porque  foi  numa  cela  da  prisão  que  teve 
Paulo  a  dupla  visão  do  conselho  celestial  de  Deus  e  da  peregrinação 
terrena  da  Igreja.  Em  favor  dêle,  o  prisioneiro  de  Cristo,  subam  as 
preces,  para  que,  «embaixador  em  cadeias»,  possa  êle,  até  o  seu  última 
suspiro,  tornar  conhecido  de  todos  e  de  vários  modos  o  segrêdo  desven- 
dado de  Deus  em  Jesus  Cristo,  pelo  Evangelho.  Quanto  a  tudo  mais, 
o  seu  fiel  amigo  e  irmão  em  Cristo,  Tí quico,  lhes  faria  saber  pessoal- 
mente tudo  a  seu  respeito.    Êle  seria  o  portador  da  Carta. 

Na  sua  luta  cristã,  entre  tôdas  as  lutas  pela  fé,  seja  deles  a  paz, 
paz  no  meio  da  batalha.  E  experimentem,  também,  o  «amor  com  fé, 
da  parte  de  Deus  Pai  e  do  Senhor  Jesus  Cristo».  O  desejo  final  de 
Paulo  era  que  êles  e  todos  em  tôda  parte,  que  sinceramente  amavam  ao 
Senhor  Jesus  Cristo  com  amor  imorredouro,  sincero  e  imperecível,  fossem 
objetos  dessa  santa  influência  transformadora,  dêsse  poder  capacitador 
que  é  a  graça,  a  graça  de  Deus.  Pela  graça,  foram  salvos;  pela  graça 
precisam  de  ser  guardados. 

Não  muito  depois  que  fôra  escrita  e  lida  a  Carta  aos  Efésios  «o 
embaixador  em  cadeias  de  Cristo»  deu  o  seu  último  testemunho  do 
Evangelho  diante  do  Imperador.  Séculos  mais  tarde,  quando  Roma 
estava  caindo  e  um  outro  César,  o  Imperador  Justiniano,  se  estava  pre- 
parando para  a  batalha,  sua  esposa  recusou-se  a  abandonar  a  cidade 
condenada  e  proferiu  o  famoso  dito:  «O  Império  é  uma  esplêndida 
mortalha». 

Inspirado  por  uma  visão  imperial,  Paulo  escreveu  a  respeito  do 
Reino  Unido  da  Terra  e  dos  Céus,  quando  o  Império  Romano  estava  no 
apogeu  da  sua  glória.  Então,  quando  o  seu  combate  já  se  tinha  acabado 
e  a  sua  carreira  terminada,  e  o  seu  destino  de  mártir  já  tinha  sido 
determinado,  envolveu-se  nas  dobras  da  mortalha  do  Reino  de  Deus. 
Na  grande  tradição  cristã  de  morrer  para  viver,  Paulo  se  semeou  como 
semente  nos  sulcos  de  uma  cidade  condenada,  na  certa  esperança  de 
que  o  que  êle  disse  e  afirmou  produziria,  por  fim,  seara  de  justiça  na 
Cidade  de  Deus,  destinada  a  erguer-se  das  suas  ruínas. 


—  152  — 


índice 


Prólogo   

Prefácio  à  Edição  Brasileira   

Cap.  I  —  PERSPECTIVAS   

a)  A  proclamação  apostólica   

b)  Interlúclio  lírico  sobre  a  Autoridade  Bíblica  .  .  . 

c)  Uma  Carta,  Paulina  e  Ecuménica   

d)  Compêndio  da  Vida  Cristã   

e)  A  Doutrina  posta  em  música   

f)  O  Livro  mais  contemporâneo  da  Bíblia   

Cap.  II  —  A  GRANDE  DIVISÃO   

a)  A  Divisão  Transcendental   

b)  A  Separação  Histórica   

c)  Tentativas  Humanas  para  Desfazer  a  Separação 

Cap.  Hl  —  O  SEGRÊDO  DE  DEUS  REVELADO   

a)  Instrumentalidade  apostólica  para  a  solução  .  .  . 

b)  O  Prelúdio  Divino   

c)  O  Mistério  da  sua  Vontade   

d)  O  Amor  Eterno  e  Invencível   

e)  O  Ói'gão  Histórico  de  um  Propósito  Eterno  .  .  .  . 

Cap.  IV  —  A  VITÓRIA  QUE  CRISTO  ALCANÇOU  .  .  .  . 

a)  O  Centro  e  a  Chave  da  Fé:  Uma  Pessoa   

b)  Uma  Vida  Destinada  à  Morte   

c)  Conquista  por  meio  da  Crucifixão   

d)  Exaltação   

Cap.  V  —  HOMENS  NOVOS  EM  (ARISTO   

a)  «Em  Cristo»   

b)  Homens  em  Cristo   

c)  Pela  Graça   


(1)    Por  meio  da  fé    86 

e)  Para  a  Paz    91 

f )  Para  as  «Boas  Obras»  no  serviço  da  Igreja    93 

Cap.  VI  —  A  NOVA  ORDEM  DmXA    98 

a)  A  «Igreja  que  é  o  Seu  Corpo»    98 

b)  Imagens  da  Igreja    103 

c)  As  Grandes  Unidades    107 

Cap.  VII  —  A  PLENITUDE  DE  CRISTO    114 

a)  Da  Sua  Plenitude  —  Homens  cheios  de  Dons    114 

b)  Para  a  Sua  Plenitude  —  Um  Ministério  Eficaz    117 

c)  A  realização  da  Plenitude  de  Cristo  —  A  Maturidade  Cristã  123 

Cap.  VIII  —  OS  QUATRO  IMPERATIVOS  DA  VIDA  CRISTÃ    128 

a)  Andai  na  Luz    129 

b)  Imitai  a  Deus    130 

c)  Aprendei  a  Cristo    133 

d)  Enchei-vos  do  EsiDÍrito    136 

Cap.  IX  —  A  ATUAÇÃO  CRISTÃ  XA  FRENTE  DA  BATALHA  ...  141 

a)  As  Fronteiras  da  Ordem  X^^atural    143 

b)  As  Fronteiras  da  Ordem  Sobrenatural    148 

EPÍLOGO  —  Coragem.  ]jois!    152 


Reis.    Cardoso,    Botelho   S.  A. 
Av.   Rudge,    110   -   S.  Paulo 
COMPÔS   E  IMPRIMIU 


I 


(continuação) 

importância  para  o  Cristianis- 
mo e  para  a  civilização  do  nos- 
so  tempo. 

Êste  livro  não  é  um  tratado 
especializado  para  teólogos  e  es- 
tudantes apenas,  mas  é  um  guia 
para  a  ação  social  para  aque- 
le que  busca  o  sentido  do  mun- 
do ao  seu  redor.  Nove  convin- 
centes capítulos  mostram  que 
essa  ordem  divina  existe,  em- 
bora imperfeitamente,  na  igreja 
Cristã  dos  nossos  dias,  e  indi- 
ca o  único  poderoso  meio  capaz 
de  orientar  aquêles  que  vivem 
no  nosso  conturbado  e  confu- 
so século. 

Através  da  claríssima  expo- 
sição que  o  Dr.  Mackay  faz  do 
que  tem  sido  chamado  «corôa 
e  clímax  da  teologia  Paulina», 
vibra  um  sentimento  ardente 
que  se  comunica  imediatamen- 
te ao  leitor.  Poucas  vêzes  um 
escritor  interpretou  com  tanta 
perfeição  a  melodia  pura  do  pro- 
fundo espírito  de  Paulo.  Reu- 
nem-se  nêste  livro  inspiração  e 
compreensão  inteiramente  ama- 
durecida e  extremamente  bem 
informada  do  pensamento. 

O  AUTOR 

John  A.  Mackay  é  Presiden- 
te do  Seminário  Teológico  de 
Princeton,  U.S.A.,  e  autor  de 
muitos  livros,  entre  os  quais 
A  Preface  to  Christian  Theolo- 
gy  e  Christlanity  on  the  Fron- 
tier.  O  presente  volume  é  o  re- 
sultado de  um  desenvolvimento 
das  Croall  Lectures,  que  foram 
pronunciadas  pela  primeira  vez 
no  New  College,  Universidade 
de  Edimburgo,  em  1948. 

Em  português  foi  publicado 
há  alguns  anos  o  comentário  às 
parábolas  de  Jesus  Cristo: 
. . .  Eu,  porém,  vos  digo»,  tra- 
dução de  Jorge  Cesar  Mota  e 
O  Sentido  da  Vida,  tradução 
de  João  Del  Nero.