JOHN A. MACKA
A 01
DE DEUS
E A DESORDEM
DO HOMEM
A EPÍSTOLA AOS EFÉSIOS
E A ÉPOCA ATUAL
Z)e uma cela de T^iUãó. .
... na Roma dos Césares, veio
até nós uma carta que é tão
extremamente relevante para o
século XX como foi para o
primeiro. A carta de S. Paulo
aos Efésios é hoje reconhecida
como possuindo a essência mes-
ma da religião cristã, ampla nos
seus largos horizontes e jamais
igualada na sua maneira de
tratar os básicos problemas hu-
manos.
John A. Mackay viu pela pri-
meira vêz as maravilhas de um
mundo novo, vislumbrou a no-
va ordem do Universo, quando
era apenas um menino de 14
anos de idade ao lêr, na sua
terra escocêsa, as incandescen-
tes palavras de S, Paulo. Afir-
ma o famoso teólogo que à
Carta de S. Paulo aos Efésios
deve a sua vida. Todos os anos
que correram desde a sua pri-
meira estranha experiência, sò-
mente tèm fortalecido a sua
convicção de que nesta Carta
Apostólica se encontra em tô-
da a sua plenitude o sentido das
relações do homem com Deus.
Foi Paulo quem melhor com-
preendeu Jesus Cristo, quem
mais o serviu, cuja vida e es-
pírito mais intimamente se apro-
ximou da mente de Jesus que
qualquer outro homem na His-
tória .
Todo ministro e estudioso da
Bíblia bendirá esta extraordiná-
ria contribuição para a crítica
do Novo Testamento. Nêle o
Dr. Mackay traça a Ordem de
Deus como o tema central da
Carta aos Efésios, mostrando
quais são as suas consequên-
cias para o pensamento e a
vida humana. Êle mostra que
o desenvolvimento da ordem
espiritual traz uma promessa
para o futuro e que a lealdade
às suas afirmações é da maior
(continua)
A ORDEM DE DEUS
E A
DESORDEM DO HOMEM
A Epístola aos Efésios
e a Época Atual
União Cristã de Estudantes do Brasil — São Paulo
— e —
Confederação Evangélica do Brasil — Rio
1959
A ORDEM DE DEUS
E A
DESORDEM DO HOMEM
A Epístola aos Efésios
e a Época Atual
por
JOHN A. MACKAY
Presidente do Seminário Teológico de Princeton, E.U.A.
Título do original inglês:
GOD^S ORDER
Tradução revista por
THEODOMIRO EMERIQUE e
JORGE CESAR MOTA
ERRATA
À pág. 5, na dedicatória, deve lêr-se REISNER,
em vez de REINER.
À pág". 11, no segundo parágrafo, 3.' linha, leia-se
CATORZE ANOS, em vez de DEZ ANOS, e na penúl-
tima linha do mesmo parágrafo leia-se ADOLESCÊN-
CIA em vez de INFÂNCIA.
A Sherwood e Elena Reiner, no jardim de
cuja vivenda, nas montanhais do México, a
maior parte dêste livro foi escrita.
Digitized by the Internet Archive
in 2015
https://archive.org/details/ordemdedeusedesoOOmack
PRÓLOGO
O LIVRO E O TEMA
O Livro
Êste livro contém a substância das Preleções Croall, que o autor teve
o privilégio de pronunciar na Universidade de Edimburgo, em janeiro
de 1948.
O convite original para pronunciar as Preleções Croall foi-me feito
em 1938, durante a presidência do ilustre e erudito ministro, rev. Wil-
liam A. Curtis, D. D., agora jubilado. As preleções deviam ter sido feitas
em qualquer época do ano de 1941. Entretanto, explodiu a segunda
Guerra Mundial e, além das dificuldades de viagens transatlânticas, outros
motivos, como os meus compromissos no Seminário Teológico de Prin-
ceton e na Igreja em geral, por causa da nova situação criada pela guerra,
obrigaram ao adiamento das Preleções. Durante os anos seguintes mais
de um tema foram apresentados aos Patrocinadores das Preleções Croall,
um após outro, aceitos por êles somente para serem mudados de novo.
Mas afinal, foi escolhido o assunto que dá o título a êste volume.
Convenci-me cada vez mais de que nada seria mais útil à situação atual
da Igreja e do mundo, em vista da próxima organização de um Conselho
Mundial de Igrejas, em Amsterdão, do que a discussão da Epístola aos
Efésios. O fato de se haver mudado o fraseado original da Assembléia
de Amsterdão, a meu juízo sem qualquer razão justificável, de «A Ordem
de Deus e a Desordem do Homem» para «A Desordem do Homem e o
Desígnio de Deus», ainda mais me robusteceu a determinação de con-
servar no título das preleções de Edimburgo a palavra «ordem» que con-
siderava eu insubstituível, se se quisesse expressar verdadeiramente a
idéia fundamental.
Em várias ocasiões anteriores, já havia eu tratado da Epístola aos
Efésios. Numa das primeiras sessões do Instituto de Teologia de Prin-
ceton, mais tarde em Montreat, nas montanhas da Carolina do Norte, e
em Massanetta Springs, no vale da Virgínia, apresentaram-se opiniões
sôbre êste tema favorito, de modo um tanto informal e fragmentário.
Mas, quando considerei a honra, querida ao coração de todo escocês,
de fazer conferências na principal cidade da terra dos seus antepassa-
— 7 —
dos, e dentro dos limites de uma escola de Teologia, rica de tradições
teológicas, que agora faz parte da Universidade de Edimburgo, dispus-
me a dar forma mais desenvolvida às meditações que vinham ocupan-
do a minha mente durante muitos anos.
Passaram-se quatro anos desde que foram feitas as Preleções. A
preparação para serem publicadas encontrou dificuldades, as dificuldades
que todo administrador da era ecuménica defronta. Por fim, durante
um retiro de férias nas montanhas do México Setentrional, pelo qual
estou agradecido à Diretoria do Seminário Teológico de Princeton, foi-me
possível preparar a maior parte dos manuscritos para a tipografia. Dois
anos mais tarde, o trabalho foi finalmente acabado durante breve estada
no Texas.
Aproveito esta oportunidade para expressar meu profundíssimo reco-
nhecimento aos membros da Administração das Preleções Croall, pela
sua inalterável cortezia e ilimitada paciência, nos anos em que se mudava
o tema das conferências e a data da sua realização era constantemente
adiada. Teriam tôda a razão de cancelar o contrato das Preleções, e o
fato de o não terem feito, os torna colaboradores na produção dêste vo-
lume que, nunca teria vindo à luz não fôsse a sua grande paciência.
Aceitem, juntamente com o Reitor Hugh Watt, atualmente jubilado, e o
seu sucessor, Reitor John Badllie e a Congregação do New College, a
minha profunda gratidão pela inspiradora e inesquecível experiência no
inverno de 1948.
O Tema
Êste livro trata do que se chama A Ordem de Deus. Pela expressão
Ordem de Deus, entende-se a estrutura essencial da realidade espiritual,
que tem origem em Deus e cujo desenvolvimento é determinado pela
vontade de Deus.
Esta estrutura foi encarada mais perfeitamente por São Paulo, por
meio da iluminação do Espírito Santo, na Epístola aos Efésios, o maior
e o mais amadurecido de todos os seus escritos. A Estrutura ou «Ordem»
assim encarada, tem o seu centro em Jesus Cristo. Cristo é o seu
centro. O desenvolvimento desta estrutura é o sustentáculo da promes-
sa e determina a tarefa do futuro, não sòmente do futuro da história hu-
mana, como também o futuro da história cósmica. A compreensão clara
desta «Ordem de Deus», e o fiel cumprimento de suas reivindicações,
são da mais alta importância para o Cristianismo e a civilização dos
nossos tempos.
Mas no nosso estudo da Carta aos Efésios não é a Utopia futurística
que nos interessará. Não trataremos de nenhum sonho do que possa ser,
nem mesmo de nenhuma forma ideal de pensamento ou da vida do que
deve ser. O que irá ocupar os nossos pensamentos é alguma coisa que
está agora, em forma nuclear, essencial. A Ordem de Deus realmente
existe, imperfeitamente porém, na Igreja Cristã, a qual Deus designou
— 8 —
para ser o verdadeiro centro integrador e o modêlo para a vida e as
relações humanas. Esta «Ordem», como está esboçada na visão inspi-
rada de S. Paulo, atingirá as suas últimas dimensões naquilo que êle
descreve «como um plano para a plenitude dos tempos, para unir todas
as coisas nele (isto é, em Cristo), coisas nos céus e coisas na terra»
(Efes. 1-10). O desenvolvimento e o sucesso desta «ordem» são abran-
gidos e garantidos pelo eterno Propósito de Deus. Através do estudo
do que São Paulo chama o «mistério», «o segredo desvendado de Deus», e
as suas implicações para a vida humana, somos ajudados a dar sentido
ao mundo em que vivemos, a focalizar com clareza os seus problemcis
essenciais, e a encarar a solução de Deus para o pecado e o Seu padrão
divino para a vida.
Ao preparar êste volume, fiz todo possível para estar familiarizado
com os melhores estudos existentes a respeito de S. Paulo e da Epístola
aos Efésios, e fazê-los contribuir para a exposição da maior de suas obras,
e para nossa época a mais importante. Se bem que êste livro não vise
ser comentário à Epístola aos Efésios, no sentido comum, tradicional
do termo, destina-se ser menos e também mais do que isto. Omitindo
as minúcias da erudição exegética, mas levando em consideração tudo o
que na Carta é essencial para a compreensão do pensamento de Paulo,
o presente volume está relacionado simples e exclusivamente com o
centro e as doutrinas centrais do mais importante dos documentos cris-
tãos e com a sua influência sôbre a situação humana dos nossos dias.
John A. Mackay
Princeton, Nova Jersey
Maio de 1952.
— 9 —
PREFÁCIO
À EDIÇÃO BRASILEIRA
Sinto-me feliz e honrado porque meu livro «A Ordem de Deus e
a Desordem do Homem» está sendo traduzido em Português e porque
a União Cristã de Estudantes do Brasil esteja agora fazendo com que
seja minha obra útil ao público ledor brasileiro. Confio em que o apa-
recimento deste livro na língua de Camões seja muito útil aos que o
lerem, e assim preste valioso serviço à vida e ao pensamento brasileiro.
Êste livro teve sua origem, como se expõe no primeiro capi-
tulo, em profunda experiência religiosa por que passou o escritor,
quando ainda tinha dez anos. Naquela ocasião, abriu-se-lhe uma
nova ordem de existência, diante de si, cujo centro era Jesus Cristo.
O meio século desde então foi marcado por duas das maiores e mais
revolucionárias guerras da história humana; mas êsses anos só serviram
para realçar em meus pensamentos a significação da carta de Paulo aos
Efésios. Essa grande Carta que se tornou a companheira da minha
infância, continua ainda a ser a inspiração da vida na maturidade, quando
se começa a olhar para o pôr do sol.
Pouco compreendeu o presente escritor naqueles primeiros anos que
o discernimento e os ritmos da carta de Paulo contivessem a quinta-
essência da religião cristã, e que de todos os livros da Bíblia, seja êste o
mais conveniente à situação contemporânea, tanto da Igreja como do
mundo.
Na epístola imortal que êste volume tenta interpretar, realidades
importantes do pensamento e da vida, que foram muitíssimas vêzes postas
de parte na experiência e no pensamento cristão, combinam-se em glo-
riosa unidade, como aspectos da Ordem Divina. Aqui, Deus e o homem,
Cristo crucificado e Cristo ressurrecto, doutrina e música, pensamento
teológico e viver diário, vida no lar e vida no mundo, a experiência arre-
batadora de segurança em Cristo e a consciência de perigo iminente, a
calma íntima e a ação de cruzado no caminho da vida, reconciliam-se
sob os raios do mais luminoso pensamento que jamais cintilou na mente
humana. Êsse pensam.ento que nasceu no espírito de Paulo numa prisão
romana, e que é o centro de sua maior carta, é êste. O plano de Deus
na história é formar uma comunidade cujos membros, guardando a sua
11 —
fidelidade a Jesus Cristo como Salvador e Senhor, transporão em suas
relações tódas as barreiras que ordinariamente dividem a humanidade.
Essa comunidade, que é a Igreja Cristã, mostrar-se-á ser a comunidade
do destino humano e se tornará o centro de unidade mais rica que I>eus
planejou além das fronteiras da vida terrena.
Sinceramente espero que esta tentativa de interpretar o pensamento
de Paulo de Tarso, que, se excluirmos o Senhor a quem êle adorou, foi
tanto a maior mente religiosa como o mais verdadeiro cristão que jamais
viveu, auxilie a muitos leitores a encontrar o caminho da verdade e a
inspirá-los com força e coragem para seguí-la até o fim.
John A. Mackay
Princeton, Nova Jersey
11 de fevereiro de 1956
— 12 —
CAPÍTULO I
PERSPECTIVAS
Antes de examinarmos a Epístola aos Efésios, considerê-mo-la exter-
namente. Antes de ouvirmos pormenorizadamente o que diz o livro,
aprendamos algumas coisas a respeito do próprio livro. Em uma pala-
vra, procuremos descobrir a espécie de perspectiva que é indispensável ao
empreendermos o estudo das idéias e da significação delas.
a) A Proclamação Apostólica
Como já declarei no Prólogo, o tema da Carta aos Efésios é a
Ordem de Deus. E' importante observar que Paulo proclama esta Ordem.
Não arrazoa a respeito dela em pensamento discursivo, nem a vê em
imagens poéticas. Ao fazer a proclamação, Paulo, o autor deste
documento, fala como arauto, e não como filósofo ou poeta. A sua pro-
clamação de arauto é de alguma coisa que Deus lhe revelou, o que coloca
a substância do seu pensamento fora das categorias mais comuns da
idéia especulativa e do símbolo mitológico.
Há tôda evidência na vida e nos escritos de S. Paulo, de que êle
estava interessado na filosofia e que estava familiarizado com a espe-
culação filosófica do tempo. Mas a sua descrição da Ordem de Deus não
é quadro composto, baseado nos primeiros princípios e verdades elemen-
tares que tenha descoberto em estudo da natureza, do homem ou da
história e depois arranjados em sistema lógico, sob a inspiração de uma
idéia luminosa central. Foi assim que Platão organizou a sua famosa
«República>. Paulo, entretanto, torna perfeitamente claro que a estru-
tura sublime, que êle está expondo não era produto da especulação huma-
na no que há de melhor, nem, em qualquer sentido, criação da sabe-
doria do homem. Atribuía sua penetração no «mistério» do propó-
sito de Deus em constituir esta suprema realidade espiritual, à ação do
próprio Deus, que se aprazia em lhe revelar o assunto.
Nem era o ponto de vista que Paulo tinha dêste plano divino, o que
vulgarmente se descreve como \dsão poética. O poeta sempre foi mais
criador e penetrante do que os filósofos na apreensão das realidades
espirituads.
Aos poetas é que devemos a nossa compreensão do fato de que tôda
interpretação fiel da realidade, seja humana ou divina, tem de ser baseada
na apreensão da imagem essencial que fornece a luz em que as coisas
— 13 —
devem ser estudadas, e a forma em relação à qual elas podem ser enten-
didas. Esta imagem é o que comumente se chama «mito», quando se
emprega «mito» no sentido poético ou filosófico, para significar a imagem
de uma verdade fundamental, e não no infeliz sentido popular de ficção
inescrupulosa. O grande mérito do poeta William Blake foi ter visto com
grande clareza que a tarefa suprema do verdadeiro poeta é ter visão
da imagem essencial e interpretá-la. Esta imagem essencial, ou «mito»,
não pode ser apresentada em forma de conceito, mas somente em forma
de pintura, muitas vêzes na forma de história. Quando a Platão se
apresentou a necessidade de mostrar verdades que, por causa do seu
caráter transcendental, não se podiam enunciar em têrmos conceituais,
contou histórias. Essas histórias constituem os mitos platónicos. Quan-
do os profetas de Israel e o vidente do Apocalipse desejaram descrever
coisas que o «olho humano não viu nem o ouvido ouviu», coisas que
não tinham entrado na experiência humana, escreveram em linguagem
altamente simbólica e pictorial.
Mas S. Paulo, ao apresentar a Ordem de Deus, vai além da poesia e
do apocalítico, do mesmo modo que também ultrapassa a filosofia. Êle
possuía toda «a constante consciência de fôrças transcendentais esprei-
tando através das fendas do universo visível», que, para alguns, é a
própria essência do mito O). Êle estava plenamente cônscio do problema
da comunicação que tem levado à definição contemporânea de mito como
«ampla imagem controladora, que dá sentido filosófico aos fatos da vida
ordinária». (2) Estaria pronto a admitir que, sem tais imagens «a
experiência é caótica, fragmentária e meramente fenomenal». (3) Con-
tudo, quando Paulo teve a visão da suprema estrutura espiritual da reali-
dade e anunciou que Jesus Cristo era a «Cabeça do Seu Corpo, a Igreja»,
sociedade que Deus tinha constituído para ser o modêlo da verdadeira
unidade humana e a sede do único poder capaz de produzir a unidade;
e quando continuou a dizer que Deus designara uma unidade muito mads
vasta na qual Êle «reuniria» em Cristo as coisas celestiais e as terrenas,
êle estava proclamando o que, de acordo com a sua própria convicção
profunda, lhe fora desvendado pelo próprio Deus, como o centro de tôda
a realidade e a chave de tôda a compreensão da realidade.
Paulo, o Apóstolo, na sua proclamação de arauto da Ordem de Deus,
coloca-se, assim, sozinho em um lugar à parte, acima do filósofo e do
poeta, acima do profeta e do vidente. O que chega até nós através dêle
não é nem conclusão raciocinada nem interpretação mitológica; não
é simples introspecção profética dos fundamentos da órdem moral, nem
tranquilizadora afirmação da vitória de Deus na história. Aqui, temos
antes a descrição suprema e concreta do que está incluído no credo da
Época apostólica, — que é o credo básico para tôdas as épocas, — de
que Jesus Cristo é Senhor (Fil. 2:11).
(1) Philip Wiicohvright, citado por Mark Schorer em William Blake: The Politics
of Vision, p. 28.
(2; Mark Schorer, op. cit., p. 27.
(3; Mark Schorer, op. cit., p. 27.
— H —
Interlúdio lírico sobre a Autoridade Bíblica
Neste ponto surge muito bem a pergunta: Porque devemos nós
tomar a sério S. Paulo e a Carta aos Efésios? Porque é que devemos
nós considerar o conteúdo desse documento do século primeiro como re-
velação final dos propósitos da Divindade, tanto do que Deus tem feito
como do que pretende fazer? A resposta a esta pergunta é a seguinte:
— Porque a Epístola aos Efésios ocupa lugar central em um livro, a
Bíblia, que a Igreja Cristã crê ser o registro da revelação do próprio
Deus à humanidade.
Isto desperta a questão da autoridade da Biblia, questão que desejo
considerar, antes de prosseguir nesta discussão. Que direito temos nós
de atribuir à Bíblia ou a qualquer de suas partes, a espécie de autoridade
que aqui lhe é atribuída? Que base possuímos nós para admitirmos que
encontramos na Bíblia revelação com autoridade da parte de Deus e des-
crição da estrutura definitiva da realidade espiritual? Com que razão
se pode manter que na Bíblia, e sòmente na Bíblia, somos postos face a
face com a revelação que Deus fêz de Si mesmo e da Sua vontade?
Uma coisa é certa. A Bíblia não pode ser apreciada ou entendida
por pessoas que se aproximam dela no espírito de pura objetivi-
dade. A pessoa que se chega à Bíblia simplesmente para a olhar, para
examinar as suas verdades com pesquisa fria, querendo aplicar ao seu
estudo todos os recursos de investigação e tôda a sabedoria enciclo-
pédica dos documentos humanos, mas sem entrega pessoal ao Deus a
Quem a Bíblia revela, absolutamente não poderá compreender nem apre-
ciar o Livro. A razão é óbvia. Depois que o texto bíblico e o pensa-
mento nêle guardado piedosamente tenham sido explorados o mais cui-
dadosamente possível, do ponto de vista de sua base linguística e histó-
rica, depois de terem sido estudadas a vida e as idéias das personalidades
bíblicas, a importância principal da significação e da mensagem da Bíblia
permanece intangível. A Bíblia exige dos que a desejam estudar, que
se tornem dispostos a adotar a atitude básica para com Deus e para com
a vida, que ela desafia os homens a adotar. Ela exige, especialmente,
que se submetam ao domínio dessa figura central, Jesus Cristo, a Quem
apresenta. Quando os homens estão desejosos de adotar um ponto de
vista bíblico, para se colocarem na perspectiva em que a Bíblia encara
todas as coisas, e para se identificarem com o plano espiritual da vida
que a Bíblia revela, compreendem a Bíblia, vêem as realidades espirituais
de que a Bíblia fala. Para que a única auto-revelação de Deus e a Sua
Vontade devam ter para que tenham algum sentido, façam verdadeira
Impressão no estudante dos registros bíblicos, são necessários os «olhos
da fé».
Êste é o método que a própria Bíblia propõe para tornar válida a
verdade que proclama. Obediência a Deus é o primeiro requisito para
a percepção de Deus pelo homem. Sòmente quando o espectador se
toma um viajante na estrada real dos propósitos de Deus, sòmente quan-
do êle está desejando identificar-se com o grande esquema divino de
tôdas as coisas, conforme se revela na Bíblia, é que êle está habilitado
— 15 —
a compreender a maneira bíblica de ver as coisas. Em uma palavra,
quando o observador displicente das coisas bíblicas se transforma em
ator no drama bíblico, quando começa a pensar com a Bíblia e não apenas
acêrca da Bíblia, quando segue as indicações que o levam pelo caminho
£ifora até certos montes de visão, então e somente então pode crer, com
todo o seu coração, ter estado ouvindo o Eterno. Então perceberá coisas
escondidas da objetividade científica, seguirá nas pegadas dos santos, tor-
nar-se-á cidadão da Comunidade de Deus. Porque a Bíblia é confirma-
da, como tôdas as verdades fundamentais contidas na Bíblia o são, pelo
testemunho íntimo no estudante humano da Bíblia, o testemunho do
mesmo Espírito Santo, a cuja especial iluminação deveram os escritores
da Bíblia a sua percepção de Deus, dos Seus propósitos e das Suas obras.
Não podemos ir além dessa afirmação grande e simples de Tomas à Kem-
pis, de que «a Bíblia deve ser lida com o mesmo Espírito com que foi
escrita».
Mas então, que acontece com a «objetividade científica»? Que se
há de fazer com a afirmação de que aproximação alguma da verdade
será válida, a não ser que seja realizada na «atmosfera antisética da ob-
jetividade»? E' nesta luz solar antissética, costumam dizer, que morrem
todos os germes que dificultam o estudo objetivo: os germes da emoção,
os germes do preconceito, os germes do compromisso. A resposta é que,
nessa espécie de aproximação da verdade em que está em jôgo a própria
existência do inquiridor, não pode existir tal objetividade. Onde estão
envolvidos os supremos valores que têm de ser escolhidos ou rejeitados,
e quando a própria vida de uma pessoa depende da sua rejeição ou da
sua escolha, o estudo todo eleva-se muito acima e se estende muito além
da «atmosfera antissética da objetividade». Quando a própria existência
de um homem está envolvida no valor particular que êle escolhe ou na
suprema decisão que adota, não existe absolutamente tal coisa como ob-
jetividade absoluta. As escolhas e as decisões vitais são feitas não em
bases objetivas mas subjetivas. Quando tudo que é do homem está em
jôgo, êle é obrigado a pensar «existencialmente». No reino das relações
pessoais e das supremas atitudes espirituais, o pensamento de existência
é a única forma verdadeiramente adequada do pensamento. Tôda pessoa
que pretenda explorar a significação da verdade bíblica, defronta-se com
uma escolha terrível e inevitável.
Neste ponto, é difícil a uma pessoa evitar de se tornar lírica. Essa
espécie de objetividade que algumas pessoas advogariam no estudo da
religião, é para mim totalmente impossível, no que se refere à Epís-
tola aos Efésios. Porque a êste livro devo a vida. Era um rapaz de
apenas catorze anos de idade quando, nas páginas da Carta aos Efésios,
vi um mundo novo. Achei ali um mundo de aspectos semelhantes aos
do mundo que se tinha formado dentro de mim. Depois de um período de
angustiosos desejos ardentes, durante o qual orava a Deus, tôdas as
noites, nas simples palavras: «ó Deus, ajuda-me», alguma cousa acon-
teceu. Depois de desejar apaixonadamente que eu pudesse cruzar a
fronteira para um novo plano de vida, a respeito de que tinha lido e que
— 16 —
tinha visto em outras pessoas a quem admirava, fui admitido, de ma-
neira inexplicável mas, para a minha inexprimível alegria, a uma nova
dimensão de existência. Que me havia acontecido? Tudo era novo.
Alguém tinha descido até à minha alma. Tive nova visão, novas expe-
riências, novas atitudes para com os outros. Eu amava a Deus. Jesus
tomou-se para mim o centro de tôdas as coisas. A única explicação que
eu poderia dar a mim mesmo e aos demais, estava nas palavras da Carta
aos Efésios, cujas cadências começaram a soar dentro de mim e cuja
verdade os meus novos pensamentos pareciam confirmar. Passou minha
vida a ser musicada no texto que começa: «E vos vivificou, estando vós
mortos em ofensas e pecados» (2:1).
Eu fôra «vivificado»: estava realmente vivo. A vivificação veio do
modo seguinte: Era sábado, perto do meio-dia, no mês de julho de 1903.
Estava-se realizando um culto de «preparação» de um retiro de comu-
nhão, à velha moda escocêsa; era ao ar livre, entre as montanhas, na
paróquia montanhesa de Rogart, em Sutherlandshire. Um ministro es-
tava pregando de um púlpito de madeira, tradicionalmente chamado «the
tent» (*), a algumas centenas de pessoas, que se sentavam em bancos ou
no chão, à sombra de grandes árvores, pela encosta. Eu não me posso re-
cordar de nada do que disse o ministro. Mas alguma coisa ou alguém,
dentro de mim, disse-me, com fôrça esmagadora, que eu também preci-
sava pregar, que eu precisava estar onde estava aquêle homem. O pen-
samento assustou-me, porque eu tinha outros planos.
Durante o resto do verão, vivi literalmente nas páginas de um pe-
queno Novo Testamento, que tinha adquirido por um pêni inglês. De
modo bastante estranho, eram as Cartas de Paulo, mais do que os Evan-
gelhos, que eu mais lia e anotava. Fôsse isto talvez porque os Evange-
lhos tinham sido muito familiares a mim, ao passo que as Cartas de
Paulo, que nunca me interessaram particularmente antes, agora tinham,
em minha nova visão, tôda a novidade e frescura de um romance. Era
isto particularmente verdade da Epístola aos Efésios, que se tomou desde
então, e tem continuado ser, o meu livro favorito na Bíblia. Desde o
princípio, começou a minha imaginação a inflamar-se com a significação
cósmica de Jesus Cristo vivo, que era o centro de um grande drama de
unidade, drama em que tôdas as coisas nos céus e na terra deviam tor-
nar-se um.a nÊle. Eu não compreendia o que significava tudo isto, mas
a tendência para pensar tôdas as coisas relacionadas com Jesus Cristo
e um anseio de fazer a minha contribuição para esta unidade em Cristo,
tornou-se a paixão da minha vida. Tomou-se-me natural, então, e con-
tinua sendo natural desde então, dizer eu «Senhor Jesus» a uma Pre-
sença pessoal.
Digo isto porque quero tornar perfeitamente claro que, no que res-
peita à Bíblia e especialmente à Carta de Paulo aos Efésios, não posso
encontrar os padrões da assim chamada objetividade científica. Fora da
experiência que me veio, por intermédio da Bíblia e da visão que tive na
(*) Xa Eacócia, tent significa tento, cuidado, atenção. Abrey. de attenti&n. (N.
dçs B«T.).
— 17 —
Epístola aos Efésios, eu não sou nada e a minha vida não tem signifi-
cação. Devo ser perdoado se insisto novamente neste ponto, isto é, em
que existe um reino no qual, no mais profundo sentido, a subjetividade
ê a verdade.
Mas isto significa que não há lugar no pensamento e na vida de um
cristão onde se possa encontrar a subjetividade e a objetividade? Não
há evidência objetiva na vida pessoal e acontecimentos providenciais que
possam dar a sanção de objetividade a alguma cousa que aconteceu no
íntimo da aJma?
Há algum tempo atrás, enquanto me preparava para as Preleções
Croall em Edimburgo, abri as páginas de um velho diário do meu tempo
de estudante em Aberdeen, para o qual eu não tinha olhado há mais de
trinta anos. Nele achei que, em 5 de fevereiro de 1908, fiz um registro
em que me referia à experiência de Rogart.
Quando era adolescente de dezoito anos, em meu primeiro ano de
colégio, tinha o hábito, como parte de minhas devoções diárias, de lançar
no papel algumas observações à passagem lida na Bíblia. Depois de
transcrever as palavras: «Esta é uma palavra fiel e digna de tôda a
aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores;
dos quais eu sou o principal» (1 Tim. 1:15), fiz a seguinte observação:
«Quando leio êste capítulo e procuro seguir o pensamento do apóstolo,
certa cadência sublime parece cair nos meus ouvidos, notas que desper*
tam ecos responsivos das profundidades da minha alma. Qual a causa
disto? Paulo alcançou misericórdia. Paulo foi colocado no ministério.
Paulo foi grandemente abençoado por Deus. Eu — oh! aqui lanço de
novo a minha alma sôbre Ti — alcancei misericórdia! Alcancei a pro-
messa de prègar o Evangelho. E, ó meu Senhor e meu Redentor, rega-
rás certamente os meus trabalhos e darás crescimento às sementes que
semeei. «Não por mim, mas por amor do Teu próprio Nome». Aprofun-
da a minha experiência. Concede que, como o Apóstolo, possa eu muitas
vêzes proclamar com entusiasmo o que devo à Tua graça — o principaT
dos pecadores e o principal dos salvadores nos braços do amor, e as estrê-
las em seu curso da meia-noite, testemunhando os eternos esponsais na
solidão dos ásperos penhascos. Oh, Rogart, o meu coração anseia nova-
mente pela doçura que gozou com o seu Salvador, nos teus queridos mon-
tes cobertos de urze. Nunca, nunca poderei esquecer-te». A referência
aos «esposais perenes» pode denunciar a disposição de ânimo da adoles-
cência e a influência da literatura mística na tradição evangélica em que
eu começava a mergulhar-me. Mas conservo a indelével recordação de
juramento ardente a Jesus Cristo, entre os rochedos, à luz das estrêlas,
na noite seguinte à minha primeira consciência da realidade de Deus, de
que eu Lhe pertencia e que Êle me pertencia.
Cincoenta anos, quase, já se passaram desde êste arrebatamento da
adolescência, nas montanhas da Escócia, e quarenta e cinco, desde que
lembrei a experiência, no meu quarto de estudante na Cidade de Granito.
O sol da vida se está dirigindo para o ocaso e esta peregrinação morta!
deve, na natureza das coisas, estar entrando na última volta antes do pôr
do sol. A vida tem sido completamente uma aventura, um movimento
— 18 —
de uma fronteira para outra. Para mim, quando reflito sôbre o passar
dos anos, tanto a respeito da autoridade da Bíblia como da significação
da minha própria vida, subjetividade e objetividade nunca podem ser
separadas. Um fato subjetivo, uma experiência de avivamento pelo Es-
pirito Santo de Deus. na tradição clássica da conversão cristã, modelou
o meu ser de tal maneira que comecei a viver em Cristo e por Cristo, e
«pelo Seu corpo, que é a Igreja». Meu interesse pessoal pela Ordem de
E>eus começou, quando a única maneira em que a vida podia ter sentido
para mim, era na base de uma certeza íntima de que eu mesmo, por meio
da operação de um poder que a Epistola aos Efésios me ensinou a chamar
«graça», tinha-se tornado parte daquela Ordem, e que eu devo, daí por
diante, dedicar as minhas forças ao seu desenvolvimento e cumprimento.
A única maneira pela qual a vida tem sentido para mim, agora, no reino
objetivo da história, deriva desta convicção: que a Igreja Cristã que con-
fessa o seu Senhor e se esforça pela unidade nÊle, a unidade que se torna
manifesta, hoje, como a mais universal e benéfica das realidades da his-
tória, é em si mesma o centro e o verdadeiro modelo da Ordem de Deus
neste mundo e a promessa e garantia da final consumação de tôdas as
coisas em Cristo, no mundo que está para vir.
c) Uma Carta, Paulina e Eícumênica
Com considerações preliminares, prossigamos imediatamente para
colocar a Carta aos Efésios em perspectiva para estudo íntimo, examinan-
do, primeiramente, a sua origem, a natureza e o caráter único entre os
escritos bíblicos e contemporâneos.
O autor deste documento bíblico, em que a natureza da Ordem de
E>eus é mais completamente revelado do que em qualquer outro lugar das
Santas Escrituras, é S. Paulo (4). Presentemente, estamos no meio de
um renascimento paulino. Em virtude do que Paulo e os seus escritos
têm significado para a minha própria vida e pensamento, é naturalmente
muito agradável para mim pessoalmente, verificar que a sua condição no
mundo da erudição da crítica bíblica seja hoje tão diferente do que era
há meio século atrás ou mesmo há menos tempo, quando a sua forte voz
me falou pela primeira vez. Naqueles dias, muitas vozes influentes pro-
clamavam que o grande Tarzan era o pervertedor da religião cristã, o
homem que transformou a simples fé em Jesus em fantasias místicas e
teologia complexa. Mas, no curso destas últimas décadas, em parte por-
que o estudo do Novo Testamento readquiriu a dimensão da profundi-
dade e em parte, porque os acontecimentos trágicos relacionados com
duas Guerras Mundiais têm sido comentários luminosos para o estudo
paulino da natureza humana e da sua declaração do problema humano
básico, o mais famoso discípulo de Gamaliel e o mais distinto dos após-
(4) Entre os estudos recentes que sustentam a autoria paulina desta disputada Epís-
tola, sem dúvida ficarão por muitos anos como os mais conclusivos e mais compreensivos,
os argumentos apresentados por Ernst Percy era seu trabalho maciço Die ProMeme dei
Kolosser — imd Epheserhriefe (Lund, 1946). E' de se lamentar muito que C. Leslie Mitton
(como êle mesmo reconhece em seu Prefácio) não tivesse acesso ao volume de Percy, en-
quanto escrevia o seu recente livro The Epi^tle to Ephesians, Its Anthorship, Origin and
Purpose (Oxford, 1951), em que finalmente decide contra a autoria de Paulo.
— 19 —
tolos do Cristianismo surge sob nova luz. Reconhece-se, agora, que não
mais existe conflito, muito menos abismo, entre os ensinos de Jesus e a
fé que Paulo tinha. Tornou-se claro que, como matéria de fato, foi
Paulo o primeiro homem na primitiva comunidade cristã que compreen-
deu inteiramente a significação de Jesus Cristo. A experiência pessoal
e o espírito independente do apóstolo como um abortivo (*) fizeram-no
não simples eco ou pálido reflexo da comunidade de Jerusalém. Foi êle
quem melhor compreendeu a Jesus, quem mais serviu e foi o que cuja
vida e espírito mais se aproximaram do modelo e da mente de Cristo, do
que a de qualquer outro homem que jamais existiu. Porque êste homem
também viu o Senhor, e os princípios básicos que proclamou, lhe tinham
vindo de revelação pessoal de Jesus Cristo, a êle e nêle. Paulo conheceu
a história de Cristo; prezou a tradição a respeito de Cristo. Mas êle era
o que era e disse o que disse, por causa da «revelação de Jesus Cristo».
E nunca, podíamos acrescentar, foi a realidade da Revelação mais clara
e os poderes de reflexão da mente do Apóstolo mais transfigurados, do
que no grande livro que é conhecido pelo título de «A Epístola aos
Efésios».
E' importante observar que êste documento é uma carta. Não é um
oráculo, como se fôsse proferido por um dos profetas do Velho Testa-
mento. Não é também um tratado teológico impessoal, como os que
foram produzidos por muitos dos sucessores de Paulo no pensamento
cristão. E' uma carta que êle, na sua qualidade de membro da primi-
tiva comunidade cristã, escreveu aos seus companheiros daquela comu-
nidade. Tanto êstes como êle pertenciam à «Comunhão do Espírito»,
isto é, à «Comunhão criada pelo Espírito». Passaram pela experiência
da nova vida em Cristo. Paulo está interessado na educação dêles.
Queria dizer-lhes o que êles realmente eram, o que lhes havia acontecido,
o que eram as implicações da experiência e da vida coletiva dêles na
estrada do tempo e na perspectiva infinita da eternidade. Desejava
sobretudo que conhecessem Quem era êste Jesus, realmente em tôda a
majestade da Sua pessoa, da Sua obra e da Sua significação cósmica.
Entretanto, apesar de sòmente uma carta, não faltava autoridde a
êste documento. Paulo, como os demais escritores apostólicos, faiava
com tôda a autoridade de um profeta do Velho Testamento. A sua auto-
ridade derivava da sua consciência profética, da certeza de que Jesus
Cristo mesmo o havia chamado e lhe tinha desvendado o «mistério». A
sua posição temporária em uma prisão romana era a de «mordomo»,
isto é, de «executor» do «mistério». Um segrêdo, antes escondido em
Deus, lhe fôra revelado e agora exigia-se que êle também o manifestasse
a outros. Foi Paulo quem primeiro apanhou, em tôda a sua grandeza,
a significação da nova comunidade cristã e foi êle quem proclamou aa
implicações cósmicas desta nova unidade, que tinha vindo a existir em
Cristo.
Como «executor» dêste «mistério», êste segrêdo revelado, Paulo es-
tava bem certo e bem instruído ácêrca da sua autoridade apostólica.
(*) Nota do tradutor: "como um abortivo" — nascido fora de tempo.
— 20 —
Mas êle não Gomunicou êste «segrêdo aberto» aos seus correligionários
com gestos olímpicos, imperiosos, nem como as grandes maneiras de um
Moisés, cuja face brilhava tanto, descida do «Santo Monte», que o povo
não podia olhar para êle. A mais sublime comunicação já feita aos ho-
mens, foi a que saiu de uma prisão romana e feita por alguém que, na
sua própria opinião, era «o menor de todos os santos» (3:8) na comu-
nidade cristã, um que se considerava prisioneiro de Jesus Cristo» por
amor daqueles a quem escrevia, para que suas mentes pudessem ser ilu-
minadas pelas palavras dêle e seus corações recebessem nova coragem
para êles das «tribulações» dêle, que eram a sua «glória» (3:13).
Mas Paulo era tão sacerdotal em sua simpatia, como era profético
em sua expressão. Amava o povo «com a afeição de Jesus Cristo»,
«sentia dores de parto» para que Cristo pudesse nêle ser formado. Quan-
do contemplamos a ternura sacerdotal de S. Paulo, que dava beleza e
fragrância à profética majestade do seu pensamento, podemos compreen-
der como foi que Rembrandt, o maior dos pintores, se imbuiu êle todo
dos escritos de Paulo a fim de poder «interpretar o divino companheiro
em termos da ternura infinita e tôda envolvente de Cristo» (Baldwin
Brown) .
Esta carta é uma carta ecuménica. Não foi dirigida a nenhuma
igreja em particular, mas a tôdas as igrejas e a todos os cristãos em
geral, onde quer que se pudessem encontrar, por todo o inteiro «oikume-
ne», isto é, a «terra habitada». Os mais antigos manuscritos da Epís-
tola não têm referências a Éfeso, e nada existe no texto que lhe dê qual-
quer colorido local. Paulo escreve «aos santos e fiéis em Cristo Jesus»
(1:1), para que pudessem ter a compreensão de tudo que significa estar
«em Cristo».
Nesta Epístola, pois, não se trata de qualquer problema humano es-
pecifico. Quando escreveu aos Gálatas, Paulo discutiu os conceitos fu-
nestos e as tática^ indignas dos que estavam adaptando ao judaísmo a
religião cristã e reduzindo a nascente Igreja Cristã a uma seita do ju-
daísmo. Com palavras candentes e indignação chamejante, desmasca-
rou os que pervertiam o Evangelho de Cristo. Ao mesmo tempo, esta-
beleceu em sua simplicidade nua, a natureza íntima do Evangelho e o
centro da vida cristã.
Quando escreveu a sua primeira grande carta aos cristãos de Corin-
to, Paulo tinha em mente formas de procedimento na vida da comunidade
cristã local, que rebaixavam o Evangelho. A sublime passagem em que
êle fala da instituição da Ceia do Senhor, é exposta no fundo sórdido das
vergonhosas orgias festivas que, na Igreja de Corinto, muitas vezes, pre-
cediam a Ceia do Senhor.
Mas aqui, Paulo não está pensando em qualquer situação particular,
nem se ocupa das pessoas que procuram perverter a religião cristã, nem
tão pouco nos que a degradam. Está antes interessado na situação per-
manente, tanto divina como humana. Quando escreve, pois, a respeito
das coisas mais fundamentais e mais permainentes, das coísels mais pro-
fundas e mais escondidas, no propósito remidor de Deus. Escreve acér-
— 21 —
ca da graciosa operação desse propósito na história e além da história.
Descreve o plano divino, que começou a manifestar-se de forma concreta
quando, por meio da fé em Cristo, a graça de Deus e a necessidade do
homem estabeleceram entre si contacto transfigurador. Havia chegado
a oportunidade para uma grande epístola ecuménica.
Já fôra ganha a batalha da catolicidade do Cristianismo contra os
judaizantes, que teriam feito da igreja cristã uma seita judáica. Existia
agora uma comunidade cristã em Roma. Até na «casa do César» havia
santos. Admira pouco que «o prisioneiro de Cristo», vivendo no centro
de um império mundial, desenvolvesse tipo de mentalidade imperial!
Podia haver haver qualquer coisa mais natural do que Paulo, com seu
génio das perspectivas de grande alcance, o seu pensamento incendido
pelas circunstâncias dramáticas da sua vida, o caráter único do seu
ambiente, e inspirado por iluminação especial do Espírito Santo nos vastos
propósitos de Deus, fizesse, em nome de Cristo, o pronunciamento im-
perial que é o objetivo dêste estudo?
d) Compêndio da Verdade Cristã
A Carta aos Efésios muito apropriadamente foi designada como «a
coroa e o clímax da teologia paulina». Ela mantém a mesma distinção,
ousa-se afirmar, em relação ao Novo Testamento como um todo. Vale
a pena considerar uma declaração do Dr. J. Scott Lidgett a esse respeito.
Para êste erudito, a Epístola aos Efésios é a «declaração perfeita, e a
mais compreensiva que se contém até mesmo em todo o Novo Testamen-
to, do significado da religião cristã, amalgamando como em nenhum outro
lugar mais elementos evangélicos, espirituais, morais e universais. E'
sem dúvida a exposição final da teologia paulina» (5). o mesmo escri-
tor prossegue para acrescentar: «Contudo, esta Epístola não pode ser
simplesmente considerada como a corôa e clímax da teologia paulina,
mas do Novo Testamento como um todo. Ela está em relação muito
íntima com certos outros dos escritos do Novo Testamento, além dos de
S. Paulo. Se êste fato fôr devidamente reconhecido, deve-se então colo-
car a Epístola ao lado dos capítulos catorze e dezessete do Evangelho de S.
João, da primeira Epístola do mesmo João e da Primeira Epístola de
Pedro» (6). Na verdade, podíamos afirmar ser esta carta, como que a
essência distilada da religião cristã, o compêndio mais autorizado e per-
feito da nossa fé cristã.
Êste juizo pode ser ilustrado e confirmado por umas poucas alusões
simples. Na Epístola aos Gálatas, Paulo expõe e reinvindica o caráter
objetivo e essencialmente evangélico da mensagem cristã à humanidade.
A salvação era pela fé em Jesus Cristo, sem as obras da Lei. Na Epís-
tola aos Romanos, discorreu sôbre a «Justiça de Deus», a graciosa entra-
da de Deus na história, em Jesus Cristo que, quando aceito, por judeus
ou gentios, liga a alma, na forma mais íntima e vitoriosa, com o próprio
(5) God in Christ Jesus: A study of PauPs Epistle to the Ephesians, por J. Scott
Lidgett, p. 2.
(6) Id., p. 3.
— 22 —
Deus e com o novo plano da Sua Justiça em Cristo Jesus. Mas, na
Epístola aos Efésios, a verdade do Evangelho, que Paulo estabelece com
argumentos persuasivos em sua áspera polémica com cristãos da Galácia,
é tão certa, como realidade bendita e aceita. A luta de línguas já tinha
cessado, e nenhuma nota de controvérsia brota da pena do apóstolo.
Tanto os que «estavam longe» como os «que estavam perto», foram re-
conciliados com Deus pela Cruz. Na Epístola aos Romanos, a afirmação
a respeito da bem^aventurança dos que se submetem à Justiça de Deus,
vem no fim do raciocínio maciço e intrincado; na grande Epístola Ecimiê-
nica, esta bem-aventurança é o ponto alegre de partida. O fim da dialé-
tica torna-se o princípio da rapsódia: «Bendito o Deus e Pai de Nosso
Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado em Cristo» com tôdas as
bênçãos espirituais nos lugares celestiais. (1:3).
A largueza do interêsse de Paulo e a extensão da sua visão na Carta
aos Efésios, são ambos igualmente surpreendentes. Seu interesse abar-
ca tudo quanto Deus tem feito a favor do homem, o que Êle tem feito
no homem e o que Êle faz e pode fazer por intermédio do homem.
Para usar linguagem teológica, os grandes atos redentores da fé
cristã são expostos aqui em seu esplendor objetivo. Segue-se então co-
movedora descrição da experiência cristã, aquela interioridade espiritual
que caracteriza a vida quando é renovada pelo Espírito Santo e é vivida
«em Cristo». Depois, vem uma afirmação da natureza essencialmente
ativa e militante do viver cristão. O cristão precisa de sej* fielmente
cristão em tôdas as relações da vida. Além disso, em vista dos adver-
sários subtis e poderosos, que constantemente obstruem o seu caminho,
a regra permanente da vida do cristão na história tem de ser vigilância
constante e coragem militar. A doutrina cristã, a experiência cristã e a
ética cristã estão inseparàvelmente relacionadas.
Não menos notável é o alcance da visão do Apóstolo. Tôdas as
idades, de eternidade a eternidade, vem dentro do seu alcance. A sua
vista move-se desde «antes da fundação do mundo» (1:4) até o tempo
que fica além do tempo, quando o tempo atingir a sua «plenitude» e Deus
«tomar a congregar em Cristo tôdas as coisas» (1:10). Êle abarca com
o pensamento as imensidades do espaço até as mais distantes fronteiras.
A órbita da sua elevada imaginação é não apenas «tôdas as coisas no céu
e na terra» (1:10) ; os seus poios extremos estão «acima de todos os céus»
(4:10) e nas «partes mais baixas da terra» (4:9). A unidade espiritual
final que êle contempla é tão rica que, dentro de seu alvo que abrange
tudo, todos serão reunidos unissonantemente. Deus e o homem, o homem
e a mulher, judeus e gentios, senhor e servo. Desta diversidade sem
limites, Deus estabelecerá, com Cristo como centro, um Reino Unido dos
Céus e da Terra, uma grande Comunidade divina, majestoso esquema de
relações cósmicas.
e) A Doutrina posta em música
Paulo apresenta esta «esplêndida visão» em forma e em linguagem
consonantes com a sua grandeza. Êle infunde no produto brilhante da
sua imaginação a melodia do seu espírito em êxtase. Se já alguma vez
— 23 —
El suavidade se casou com a luz em uma produção literária, foi na Epís-
tola aos E^fésios.
A Carta é pura música. Mais do que um estudioso notou a sua
estrutura e a sua qualidade musical. O que lemos aqui é a verdade que
canta, a doutrina musicada. Alguns têm chamado a atenção para o ca-
ráter litúrgico da Epístola. Edgar J. Goodspeed fala acêrca «desta gran-
de meditação litúrgica sobre o valor supremo do Cristianismo» (7). A
explosão rapsódica de ação de graças com que êle começa, foi chamada
«uma das primeiras manifestações do primitivo génio cristão para a litur-
gia», e os capítulos primeiro e segundo, «cântico jubiloso da bem-aven-
turança da Salvação Cristã» (8). O que é certo é que a sequência das
idéias é mais litúrgica do que friamente lógica. Deve-se ler a Epístola
em voz alta para que se tome claro o sentido e majestade desta pri-
meira liturgia da Igreja.
A nota principal desta grande composição litúrgica é o terceiro verso
do capítulo primeiro, que começa: «Bendito o Deus e Pai de Nosso Se-
nhor Jesus Cristo». Aqui o «Prisioneiro de Jesus» deixa-se ir; «atira o
seu coração em um hino de triunfo». Esta explosão rapsódica foi com-
parada ao «prelúdio de uma ópera, prefigurando as sucessivas melodias
que se hão de seguir».
Êste êxtase de Paulo torna-se a verdadeira alma da religião cristã,
como o mais sublime expoente da «música de eternidade». Não se pode
senão comparar e contrastar o seu temperamento com o do filósofo grego
ou do rabi hebreu. Para os grandes pensadores da idade de ouro de
Atenas, como também para o filósofo alemão Hegel, em período mais
tarde, a glória coroadora do pensamento filosófico era aplicar a reflexão
serena ao que já se transformara em realidade, a fim de se descobrir e
Interpretar a sua verdade. «O mocho de Minerva alça o vôo quando
descem as sombras da noite». Primeiramente, a consumação, depois o
pensamento aplicado ao fato. Para os grandes rabinos judaicos, Gama-
liel, por exemplo, a suprema verdade do amor ainda esperava ser des-
vendada; tomar-se-ia manifesta com a vinda do Messias. Mas para
Paulo, o real e o verdadeiro tinham vindo no grande ato de Deus, em
Jesus Cristo. Por isso, não como o mocho de Minerva, que sai pelo cre-
púsculo da tarde para se entregar à reflexão calma de um plano que já
foi completado, mas antes, como uma águia, Paulo alça o seu pensamento,
em um tempo de desapontamento universal, para saudar e anunciar o
nascimento de uma nova ordem que já tinha chegado. Era, portanto,
ocasião para música e alegria.
A musicalidade do pensamento de Paulo na Carta aos Efésios,
quando vê em visão a Ordem de Deus, coincide com o caráter essencial-
mente musical da Bíblia como um todo. Todos os grandes movimentos
no drama bíblico da criação e da redenção têm acompanhamento musical.
Na madrugada da natureza as «estrêlas da manhã cantam em uníssono
(7) The Meaning of Ephesiane, p. 10.
(8) Id. p. 22.
— 24 —
e todos os filhos de Deus clamam de alegria». Uma orquestra de anjo^
saudou o Advento do «Menino que nasceu, do Filho que nos foi dado».
No encerramento da história, haverá um «Grande Finale». As trom-
betas soarão. Dryden, o poeta do século XVII, pôs em versos magníficos
o que se encontra no coração do grande esquema divino para tôdas as
coisas:
«Da harmonia, da celestial harmonia
Foi a origem desta universal estrutura;
De harmonia em harmonia.
Através da inteira gama sonora,
Até a nota culminante — a humana criatura!
Do poder das leis celestiais
Começaram a mover-se as esferas dos céus,
A lodos que, em cima, são benditos,
O louvor proclamando do Eterno Criador.
Assim, quando a hora final soar terrível
E destruído fôr êste cortejo celerado,
Altissonantes as trombetas clamarão:
Os mortos viverão e os viventes morrerão
E de música será plena dos céus a amplitude» (9).
Que outra coisa podia ser a religião cristã, senão religião que canta?
Os seus mais doces cânticos são «Cânticos na noite»; a sua música mais
Eorebatadora nasceu em alguma prisão. Porque na prisão,
Porque o coração sente mais a infelicidade da vida
Soam mais alegres as tensas cordas da lira.
Num calabouço de Toledo, João da Cruz escreveu a mais sublime
das líricas místicas. A Viagem do Peregrino, a mais famosa e mais
triunfante alegoria da literatura, foi composta por João Bunyan, em uma
prisão de Bedford. Da escravidão é que vieram os cânticos chamados
«Negro Spirituals (*), a msds sagrada das artes do menestrel cristão das
Américas. Da cela de uma prisão, na Roma dos Césares, veio-nos a
Epístola aos Efésios.
f) O Livro Mais Contemporâneo da Bíblia
S. Paulo viveu na época pós-augustana da história de Roma. Fôra
o sonho do grande Augusto dar ao Império Romano uma constituição
perfeita e permanente: e morreu na convicção de o ter conseguido. Mas
no tempo de Paulo, não muitas décadas depois da morte de Augusto, a
vida em Roma, e em todo o Império, era caracterizada por um processo
de desintegração socigd e pelo sentimento de futilidade e degenerescência
(9) John Dryden, Song for St. C€oilia's Day.
(*) N. do tradutor: Cânticos religiosos doa pretos dos Estados Unidos.
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dos indivíduos. Foi em situação assim que Paulo proclamou a Ordem
de Deus.
Nos dias de hoje, podemos olhar retrospectivamente para outros
planos que, em seu tempo, tiveram todos os sinais de permanência e que,
contudo, passaram. Vivemos na idade pós-constantina, época em que a
imponente unidade da Igreja e do Estado se despedaçaram, tendo aca-
bado, nas regiões mais representativas do mundo com os especiais privi-
légios seculares da religião cristã. Vivemos também em época pós-vito-
riana, isto é, vivemos em um período em que se dissipou a ilusão do
progresso automático, quando os homens não mais crêem em inevitável
progresso revolucionário. Alguns costumam dizer que vivemos em uma
idade pós-cristã. Isto não é verdade, se se pretende dizer que o Cristia-
nismo deixou de crescer e perdeu a vitalidade. E' verdade entretanto, no
sentido importante de que agora entramos num período, na história do
homem ocidental, em que os axiomas e postulados do Cristianismo não
mais constituem a base do seu pensamento e da sua ação. A nossa cul-
tura dominante e a nossa atividade política atual cessaram, em grande
parte, de ser inspiradas nos princípios cristãos.
A nossa era é uma versão grandemente intensificada da era pós-
augustana de Paulo. O niilismo e o pessimismo são as marcas de con-
traste da Cultura Ocidental do nosso tempo. Que é niilismo? O espírito
do niilismo é, conforme o define Nietzsche, «ter procurado um sentido na
vida que não se encontrava nela». Vivemos em um grande vazio e so-
fremos da desilusão universal. «Tôda verdade se transforma», multidões
afirmam, «e as luzes da terra estão apagadas».
O pessimismo é a atitude dominante do espírito. Depois de tudo isso,
que importância tem afinal? Para que serve? Os nossos atos são espe-
ranças despedaçadas em noite sem estrêlas». Quanto à civilização, não
disse um filósofo popular: «Quanto mais civilizados nos tornamos, tanto
mais incapazes somos de manter a civilização»?
E' claro que nenhum progresso em nosso conhecimento da natureza
ou no contrôle dela, tem utilidade alguma para nós. A vastidão do nosso
conhecimento da natureza e das suas forças é, na verdade, no estado
presente das relações humanas, uma grande parte do nosso problema.
Conhecemos demais para o nosso bem estar; o nosso conhecimento cien-
tífico é muitíssimo para a nossa bondade. Se Einstein estivesse certo,
na fórmula que propôs para unificar o setor do mundo em que dominain
as fôrças eletromagnéticas com o mundo controlado pela fôrça da gravi-
tação, não se teria tocado o real problema do nosso tempo. Tudo o que
se poderia conseguir era apenas mais uma contribuição decisiva para a
unidade física do mundo, sôbre o fundo da desunião espiritual, com o seu
niilismo ou pessimismo.
A unidade de que necessitamos é de espécie completamente diferente.
Os homens precisam de unir-se em uma perspectiva comum da significa-
ção da vida e em uma viva aproximação dos problemas da vida. Esta é
a espécie de unidade que se abre diante de nós, na Epístola aos Efésios.
— 26 —
Um estudo deste livro do Novo Testamento oferece-nos três coisas de
que a nossa geração necessita desesperadamente.
1.. Esta carta proclama a imagem essencial. No meio do niilismo
do nosso tempo, em que os homens desesperadamente tentam certificar-
se da própria existência, buscando ardentemente alguma mitologia apro-
veitável e hipotecando a sua fidelidade a algum simbolo corajoso e signi-
ficativo, ontem ao Faseio ou à Suástica, hoje à Foice e ao Martelo, Paulo
proclama a imagem essencial. Essa imagem é a figura de Jesus Cristo.
Cristo é a prova de que Deus deseja comunhão, de que o amor é a reali-
dade última. Cristo é o centro de uma comunidade, a Igreja, que Deus
designou para ser a precursora de uma vasta sociedade cósmica. Esta é
a imagem que um poeta do nosso tempo, no espirito de S. Paulo, põe na
boca dos magos do Oriente, os representantes da sabedoria humana, à
sua chegada ao estábulo de Belém: «Oh, aqui e neste mesmo momento,
termina a nossa longa, longa viagem» (10). Cristo é a imagem essencial.
«Conhecê-lo», explorar o que Êle significa para Deus e para o homem, para
a história terrestre e para a história celestial, é obter o fio do significado
da vida e descobrir o coração da realidade da vida. Então, à semelhança
das sombras, ao despontar da aurora, os mitos e os símbolos que forne-
ceram aos homens zelosos a luz para a interpretação do mundo, e a força
para viverem, nêle, passarão. Então, vimos de novo a aprender que co-
munhão, e não uma «existência de arame farpado», é o que Deus tem
determinado para os Seus filhos. Despertamo-nos para o fato de que a
fraternidade tem significação cultural e que o conhecimento humano sem
fraternidade humana é vaidade. E observando as fronteiras fortificadas
da terra e sentindo-lhes as intoleráveis tensões, proclamamos a verdade
de que o perdão e a misericórdia têm poder político.
2. A Carta aos Efésios apresenta a estrutura básica de que a hu-
manidade necessita para a verdadeira expressão da vida em comum. Essa
estrutura é a comunhão dos crentes em Jesus Cristo e constitui a essência
do que chamamos a Igreja Cristã. A Igreja é a comunidade universal
por Deus designada para transcender e abranger tôdas as diferenças de
raça, condição e sexo que dividem a humanidade. Constitui ela o modêlo
de tôda verdadeira comunidade, de tal modo que a mais segura forma de
se conseguir a harmonia humana na ordem secular, é estender os limites
da comunidade cristã pelo mundo inteiro. Porque é na medida em que
os homens são reconciliados com Deus, na medida em que praticam o
culto a Deus, que buscam o Reino de Deus, e vivem um com o outro em
paz como irmãos em Cristo, que a sociedade será levada, direta e indireta-
mente, a buscar a paz e a concórdia.
Além do mais, não se pode dar ênfase demasiada à idéia de que ó
somente na comunhão da Igreja, por meio do culto e da disciplina, da acei-
tação de responsabilidades de acordo com os talentos e oportunidades de
cada um, e pela colaboração leal em tarefas comuns, que os homens e
as mulheres estão preparados para a vida de cidadania na sociedade.
(10) W. H. Auden in A Christmas Oratório.
— 27 —
Como membros da comunidade cristã, os homens chegam a aprender a
lição em que a própria possibilidade da vida criativa se baseia, isto é, que
a vida não é suplício (*), mas escola. E' certamente significativo que,
no brilhante pensamento de S. Paulo, a vida e a história da Igreja Cristã
constituem o principal compêndio em que espíritos superiores aos espíritos
humanos, os Principados e as Potestades na esfera celestial, receberão a
sua mais profunda lição sôbre a «multiforme (a multicolorida) sabedoria
de Deus». Não sòmente isso, mas é somente na comunidade cristã,
quando a sua vida corporativa funciona como deve, que aos homens se
pode ensinar, em geral, com ilustração concreta o sentido daquele dar-se
abundante, exuberante e sacrificial que, tão sòmente, constitui a verda-
deira vida. E' sòmente na Igreja, quando ela é verdadeiramente a
Igreja, que os homens encontram uma instituição em que a bondade trans-
borda como fonte e não fica sòmente como em cisterna. As cisternas da
vida estão vazias, os seus poços esgotados, porque os homens falharam
em relacionar-se com a comunidade, cujas necessidades são diretamente
supridas da Fonte da Vida.
3. A Carta aos Efésios é supremamente importante para a nossa
situação de hoje em dia, porque ela provê a verdade com nma canção
alegre e cheia de vida. Necessitamos da verdade não sòmente como
imagem ou sistema, mas também, e acima de tudo, como melodia. Não
podemos deixar de reconhecer, certamente, que o nosso tempo caótico
necessita da verdade sistematizada, uma estrutura da verdade. A ge-
ração que antes precedeu da nossa, porque viveu dias românticos e tran-
quilos, não gostava de doutrina e criou complexo anti-dogmático. A
desilusão e a necessidade sentia de um ponto de vista inteligível do
mundo, sacudiu e despertou a nossa geração da sonolência anti-dogmática.
Para pôr em ordem as nossas vidas e dirigir a nossa peregrinação no
meio das perplexidades dêste tempo presente, necessitamos de um sis-
tema de pensamento e de um sistema luminoso maciço. Em um mundo
em que o Marxismo e outros sistemas de pensamento hostis ao Cristia-
nismo fazem constante progresso, podemos compreender e apreciar o
que é que William Blake quiz dizer quando afirmou: «Preciso criar um
sistema ou serei escravizado pelo de outro homem».
Mas é muito mais importante que o pensamento tenha um cântico
do que um sistema. A verdade de que necessitamos é a verdade que
canta. E este canto precisa de possuir a nota de esperança e de vitória.
Porque, da música de desordem e de desespero, temos já bastante. A
nossa geração tem ouvido esta música. Temos ouvido o dito jatancioso:
«A minha música é um brado estrelado de ferro». Nós nos temos delei-
(*) Nota do tradutor: Treaãmill foi traduzido por suplício, termo muito geral;
treadmill era um género de suplício: Um cilindro ôeo feito de madeira em armação de
ferro, dentro do qual, havia degraus, o criminoso segurando em espécie de cambotas se-
cundárias, mais próximas do centro do que as cambotas nas extremidades dos raios, pisava
nos degraus que cediam ao peso do criminoso e assim a roda se punha em movimento.
Tal máquina foi inventada para se tomar útil o castigo.
— 28 —
tado com a glorificação da incerteza: «Os meus sóis nascem com a bre-
vidade de uma centelha». O de que necessitamos é a música da fé.
Os marxistas possuem esta qualidade de música. Uma proposição
fria, por mui verdadeira que seja considerada, não tem nenhum poder
dinâmico. Dizer que a matéria é o que é importante, não move ninguém.
Mas afirmar que o materialismo tem a chave e a promessa do futuro,
pode pôr uma cruzada em movimento. Porque isto é alguma coisa da
excitar; eis uma causa em que devemos entrar. O velho materialista
era académico; o novo materialista dialético de Marx e de Lenine é dinâ-
mico. Crer que as forças radiantes e invencíveis do universo estão ao
lado dêle, cria um cântico:
Erguei- vos, prisioneiros da inanição!
Erguei-vos, ó desditosos da terra:
Porque a justiça troveja condenação
E um mundo melhor está nascendo.
A primeira coisa que faziam os comunistas chineses, ao entrarem
em uma nova povoação, na sua marcha do norte para o sul da China, era
ensinar o povo a cantar; e depois disso, a dançar.
Nenhuma doutrina, por verdadeira que seja, que não possuir em
si um cântico, pode enfrentar o Marxismo moderno, com a sua paixão
de cruzada. Mas o Cristianismo, que é a própria «música da eternidade»,
não somente tem dado origem à grande música, aos corais de Bach, ao
Messias de Haendel, à Canção do Berço de Lutero e aos Cânticos Espi-
rituais dos Negros; também tem dado origem a pensamentos que cantam.
Tais são os pensamentos de Paulo na Carta aos Efésios.
Vamos agora estudar, pois, de maneira mais familiar, a razão-de-ser
doutrinária da melodia orquestral, que é a Epístola de Paulo aos Efésios.
— 29 —
CAPÍTULO II
A GRANDE DIVISÃO
O universo está dividido. A divisão atingiu a história e o coração
do homem. Êsse é o fato elementar e decisivo acêrca da realidade, em
sua inteireza .
No fundo do vasto esquema de reconciliação que forma o tema cen-
tral da Epístola aos Efésios e a que temos chamado de Ordem de Deus,
existe uma condição de completa desordem espiritual. Essa desordem
não somente caracteriza a vida interior do homem e as suas relações
com os companheiros; implica em estado de conflito nas relações do ho-
mem para com Deus e até de luta mutuamente destrutiva «nos lugares
celestiais», isto é, dentro da própria esfera sobrenatural. A desarmonia
reina no universo todo; o cosmos está fendido. No reino supramundano,
estão os «principados», as «potestades», os «príncipes das trevas deste
século», as «hostes espirituais da maldade nos lugares celestiais» (6:12),
que se opõem à vontade de Deus, o Criador; enquanto que, na terra, anda
orgulhosa uma cruel «inimizade» (2:16), separando os homens de Deus
e dos seus companheiros. O pecado aparece por toda a parte, como fato
cósmico. O universo é o cenário de uma revolta largamente espalhada
contra a autoridade de Deus. A soberania do Todo-poderoso é contes-
tada e ruge conflito espiritual.
Importa observar que o dualismo universal a que aqui se alude não
é dualismo absoluto e fundamental. E' contudo dualismo real. Não é
dualidade constituída por mera diferença de ponto de vista, tal como a
clássica distinção entre sentimento e razão. E' mais do que dualismo
em aparência, mera interpretação mental de fenómenos vários ou contra-
ditórios. Existe no universo conflito e muito real de forças espirituais:
mas não é absoluto: não é inerente à constituição do universo. Não há
dois princípios ou poderes originais. O Universo tem a existência era
um Deus, que é «Pai de todos», «sôbre todos e por todos e em todos»
(4:6), de quem «tôda a família nos céus e na terra toma o nome» (3:15),
e «que tudo criou» (3:9). Conquanto seja verdade estar a supremacia
de Deus no Universo sendo disputada de maneira real por forças sobre-
naturais, e conquanto a vida dos seres humanos que procuram obedecer
a Deus seja vida de conflito, «no meio e no coração da batalha universal»,
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a vitória pertencerá a Deus, que estabelecerá a Sua Ordem espiritual em
Cristo (1:21), no qual será restaurada a unidade perdida da criação.
Porque Deus é o Rei da Eternidade; ao passo que as torças extraviadas
que se lhe opõem são finitas e pertencem ao tempo somente. Na visão
mundial de Paulo, não há qualquer sugestão de divindade finita enfren-
tada por forças cósmicas que, inexoravelmente em seu direito natural
e em seu poder increado, possam desafiar a Sua soberania.
a) A Divisão Transcendental
Não havia concepção sistemática cristã do Universo no primeiro
século e não devemos esperar que S. Paulo nos desse uma concepção to-
talmente elaborada. Ainda assim, certas coisas são claras. Segundo a
Carta aos Efésios, existem dois reinos distintos, um reino transcendental
ou supramundano e um reino terrestre. Paulo fala do primeiro como
«esfera celestial» ou «lugares celestiais» (1:3), cujos limites estão «acima
de todos os céus»; o segundo é a «terra» (1:10), abaixo do qual estão
«as partes mais baixas da terra» (4:9). A forma temporal e o momento
do terrestre é «esta idade» (1:21). A separação não decorre do fato
de existirem dois reinos diversos. A divisão passa pelo meio de ambos
os reinos e os separa em duas partes (l).
A divisão «nos lugares celestiais» é de importância decisiva, porque
se projeta dentro da esfera mundana, histórica da vida humana. A «es-
fera celestial» na Epistola aos Efésios não é o que é entendido ordinà-
riamente por Céus, como futuro estado de bem-aventurança perfeita.
Também difere da esfera joanina da Vida e da Verdade. Porque nela
estão incluídos não sòmente aspectos de bem-aventurança mas também
as fôrças sobrenaturais da maldade. As «hostes de maldade vivem e agem
nos «lugares celestiais». Por outro lado, Cristo está entronizado nesta
esfera e aqueles que estão «em Cristo» também nela habitam. Mas,
enquanto aquêles que estão «em Cristo» tenham a verdadeira fonte e
centro da sua vida na «esfera celestial», à qual pertencem, esta é também
a habitação das tremendas «hostes espirituais da maldade» (6:12) ; para
combatê-las os cristãos necessitam de «tôda a armadura de Deus» (6:13).
Êste conceito da «esfera celestial» é tão importante para a nossa
compreensão do pensamento de Paulo que cito aqui um admirável pensa-
mento a respeito dêle, emitido por J. Armitage Robinson, cujo livro St,
Paulos Epistle to the Ephesians, (A Epistola de S. Paulo aos Efésios) é,
provàvelmente, o melhor e mais completo estudo existente sôbre a gran-
de carta paulina. «A esfera celestial», diz o Dr. Robinson, «é a esfera
das atividades espirituais: essa região imaterial, o «universo invisível»,
que fica atrás do mundo dos sentidos. Nela, grandes fôrças estão em
atividade: fôrças que, pensa-se, têm ordem e constituição próprias; têm,
em parte, transgredido contra aquela ordem, tendo-se assim tomado
desordenadas: fôrças que, em parte, se nos opõem e lutam contra nós:
(1) Para estudo do penwimento paulino sôbre o mundo, veja-se Hugo Odeberg;, The
ViexD of the Universe in the Epistle to the Ephesians, (O Conceito do UniTerso na Epís-
tola aos Efésios), (Lunds Universitets Aersskrift K. F., I, 29).
— 31 —
forças ainda que tomam interesse inteligente nos propósitos de Deus a
respeito deste mundo, e para as quais a história do homem é uma lição
objetiva da multiforme sabedoria de Deus: fôrças todas sôbre que Cristo
será entronizado, sejam elas boas ou ruins, e nós com Êle» (2).
Um Estrategista Mestre do Mal
Um dos «principados destas trevas presentes» Paulo personaliza e
nomeia. Êle lhe chama «o Príncipe das potestades do ar, o espírito que
agora opera nos filhos da desobediência» (2:2) e também, simplesmente,
o «Diabo», contra cujas «ciladas» precisam os cristãos de acau-
telar-se (6:11).
Tomando a sério um espírito pessoal, sobrenatural do mal no Uni-
verso, Paulo não faz mais do que seguir o pensamento bíblico, como um
todo. Porque a Bíblia, afirmemos, fala menos do mal em geral e mais
do Maligno. Não escape o fato de que, para Jesus, um Diabo pessoal
era realidade tremenda. Era muito mais do que representação mitoló-
gica de sinistro olhar vesgo na natureza humana e de tremenda tendência
na história. E quem se atreveria a afirmar que Jesus, com Sua aguda
sensibilidade para com Deus, não deveria ser tomado a sério, quando
alude à real existência de um espírito sobrenatural que desafia o princí-
pio hierárquico de que a vontade do Criador tem de ser suprema sôbre
todos os graus da existência, e de que êle mesmo incarna a quebra dêste
princípio? Não nos deve surpreender, portanto, que Paulo de Tarso,
que possuía em grau sem paralelo a mente de Cristo, tivesse a mesma
concepção do Mestre a respeito da natureza e das dimensões da luta espi-
ritual que os seres humanos estão condenados a sustentar na história.
Depois de um período durante o qual, sob a influência do Raciona-
lismo e a projeção na história cósmica e humana de uma hipótese evolu-
cionista, a figura do Diabo fôsse simplesmente uma tentativa mitológica
de explicar a existência do mal no mundo, começa a mudar o clima inte-
lectual que cerca o problema. Todos os acontecimentos sórdidos e desa-
pontadores da geração passada fizeram surgir de novo em muitas mentes
zelosas a hipótese de uma estratégia do mal, executada por um poder
espiritual, que é mal intencionado para com o bem-estar da humanidade.
Ao mesmo tempo vai-se reconhecendo que, filosòficamente falando, não
se pode aduzir nenhuma razão metafísica ou bem fundamentada quanto ao
porquê não deve haver, na hierarquia cósmica, espíritos diferentes ou
superiores ao espírito humano, porque alguns dêstes espíritos não teriam
feito do Mal o seu Bem, e porque as suas atividades não pudessem ter
sido orientadas por um estrategista mestre.
Quaisquer que sejam as opiniões que uma pessoa possa ter sôbre
êste assunto, poderá ela também encarar o fato de que a questão de sua
Majestade Satânica, o Diabo, foi reaberta no pensamento contemporâneo.
Além disso, entre os que têm trazido o Diabo novamente como tópico
para discussão intelectual, encontram-se dois leigos. Um dêles é o pro-
fessor de Literatura inglêsa de Oxford, C. S. Lewis; o outro é Denis de
(2) J. Armitage Robinson, St. Taul's Epistle to the Ephesians, p. 21.
Rougemont, jovem autor franco-suíço. As já famosas Screwtape Letters
de Lewis ressuscitam a figura de Satã como força contemporânea. Em
termos do tradicional «Arqui-inimigo», transformado neste meio século
vinte em mentor cortez e atual dos modernos homens e mulheres, Lewis
traça a norma e aponta a fonte da filosofia muito popular na vida de
hoje. Isto, êle o faz de forma alegre e com sarcasmos mordazes, o que
está inteiramente de acordo com a opinião tradicional a respeito das sen-
sibilidades do Grande Enganador, e está em harmonia com o são prin-
cípio psicológico de que ninguém aborrece tanto que façam graça consigo,
como aquele que é radicalmente insincero. Assim, Lewis ri-se do Diabo.
De Rougemont, em seu livro The Devil's Share (A Parte do Diabo),
tem muito a dizer, ao mesmo tempo popular e profundo, sôbre o
assunto. Faz êle uma referência particularmente notável ao poeta fran-
cês Baudelaire e ao seu ponto de vista sôbre a questão de Satanás. «No
livro de Baudelaire «Pequenos Poemas em Prosa», diz Rougemont, «en-
contramos a mais profunda observação sôbre Satanás, de autoria de
um escritor moderno: O mais engenhoso ardil do Diabo é convencer-
nos de que êle não existe. Deus diz: «Eu sou o que sou». Mas o Diabo,
sempre ciumento de Deus e sempre pronto a imitá-lo mesmo que seja
o contrário (pois êle vê tudo debaixo) nos diz, como Ulisses aos Ciclo-
pes: «O meu nome é Ninguém. Não há Ninguém; de quem deveis ter
mêdo? Ides tremer diante do Não-existente?» (3).
Nada é tão indicativo, porém de uma perspectiva intelectual mais
sóbria e mais realística sôbre o lado sombrio da existência, como o re-
nascimento de John Milton, que se vem realizando na literatura contem-
porânea. Depois de um longo período de eclipse, Milton e a sua grande
epopéia «O Paraíso Perdido», estão reconquistando o antigo apreço.
Milton está voltando, porque a nossa geração, cônscia de que está «per-
dida», procura direção quanto à origem e ao significado da sua perdição.
A apresentação, que faz Milton, de um universo hierárquico, em que a
unidade espiritual e a integridade moral dependem da obediência à von-
tade de Deus, e em que os espíritos finitos se «perderam» por causa de
seu orgulho e pela sua desobediência, oferece muito motivo para séria
reflexão. As figuras do «Arcanjo Perdido» e do homem a quem êle
seduziu são as figuras centrais do poema. Literalmente nada é mais
apropriado, na literatura secular, ao problema espiritual de nossa época,
do que um estudo do Satã de Milton.
Na linguagem original de Jacob Boehme, citada por Denis de Rou-
gemont, Satã caiu porque «queria tornar-se autor». Isto é, êle queria
originar alguma coisa de si mesmo, de que êle seria o criador e o sus-
tentador. Na impressionante mitologia do Paraíso Perdido, a cabeça de
Satã gerou o Pecado, o princípio da desobediência. Nas terríveis entra-
nhas do Pecado, filha de Satã foi engendrado o horrível monstro, a Morte,
pela ação amorosa do próprio pai. Êstes dois, o Pecado e a Morte,
montam guarda aos pórticos do Inferno.
(3) The DeviVs Share, p. 17.
— 33 —
Como é que o serafim celestial se tornou o Príncipe do Inferno?
Pelo «orgulho» e a perversa «ambição». Êle queria «buscar para si
mesmo uma glória acima da dos seus pares». «Êle pensou ter igualado
o Altíssimo». Eis a sua própria narração:
«Tão altamente alçado,
sujeitar-me abominei: cheguei mesmo a julgar:
mais um degrau e o Altíssimo eu serei;
ainda mais, de uma vez desobrigado
da imensa dívida sem fim, por isso mesmo tão pesada:
sempre pagando, sempre endividado;
das Suas dádivas sempre recebidas
eu me esquecia; compreender também eu não podia
que um grato espírito, devendo,
nada deve, realmente, antes, sem cessar,
está pagando com a mesma gratidão:
sempre endividado e simultâneamente desobrigado.
Que fardo, êsse então?»
Satanás estava entediado de ser simples criatura e de ter de mostrar
gratidão pelas dádivas recebidas. Queria ser Deus, ser Criador com os
seus próprios direitos e não dever nada a ninguém mais alto. Rebelou-se,
pois, lutou e perdeu. Tendo malogrado, transformou todos os valores:
«Mal, sê tu o meu Bem; por ti, ao menos, eu possuo um império dividido
com o Rei dos Céus». Foi infeliz e sofreu as dores agudas do remorso;
contudo, não se arrependeu, mas antes exultou na sua miséria orgulhosa,
a que chamou liberdade:
Reinar é digna ambição, mesmo no Inferno;
Melhor é reinar no Inferno do que nos céus servir.
Pouco e pouco, vão-se desvanecendo os traços todos da original no-
breza espiritual do «Arcanjo Perdido». Aquêle que aspirou ser Deus tor-
na-se literalmente o Diabo, não obstante a manifestação de traços que, por
causa da sua indizível baixeza, estejam os homens acostumados a chamar
«diabólicas». Satã assaltou o homem por causa da pura inveja. Na
evolução satânica que se seguiu, podemos perceber o equivalente de uma
segunda «Queda». Em um 1í\to intitulado A Preface to Paradise Lost,
(Prefácio ao Paraíso Perdido) C. S. Lewis, êle mesmo discípulo moderno
de John Milton, sumarizou assim o que se poderia descrever como a
progressiva satanização do Diabo, processo êsse que o leitor da sublime
epopéia pode seguir e verificar por si mesmo manuseando os vários livros,
sôbre o tema. Diz o professor de Oxford: «De herói a general, de gene-
ral a político, de politico a agente do serviço secreto e daí a uma coisa
que às janelas dum quarto de dormir ou de um banheiro, espia para
dentro, daí a um sapo e, afinal, a uma serpente — tal é o progresso de
Satanás» (4). Lewis prossegue discutindo a opinião comumente susten-
(4) A Treface to Faraãise Lo^, C. S. Lewis, p. 97.
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tada de que Milton, percebendo que tinha começado por fazer Satanás
glorioso demais, introduz os subseqiientes sinais de degeneração, a fim
de «corrigir o seu erro». Corretamente, refuta tal interpretação e
acrescenta: «Não devemos duvidar que fôra a intenção do poeta ser
amável para com o mal, dar-lhe consolo pelo dinheiro perdido na corri-
da — mostrá-lo primeiro no alto com tôdas as suas gabolices e melodra-
mas e «estado imitado semelhante a Deus» ãcêrca dele e, depois, traçar
o que realmente acontece com tal auto-intoxicação, quando êle se encon-
tra com a realidade».
Não somente o caráter moral do Diabo se torna cada vez mais baixo
e banal, como também a sua intuição, tanto intelectual como espiritual,
Bofre eclipse. Êle se torna cego à realidade. Milton parecia estar ple-
namente convencido da proposição de que o «Diabo é (em tôda a ex-
tensão do têrmo) um asno». Há nêle certo brilho intelectual mas tam-
bém total incapacidade para entender seja o que fôr. «Esta condenação»,
comenta Lewis, «foi êle que a trouxe sôbre si mesmo, no afã de evitar
de ver uma certa coisa, êle se tem tornado, quase voluntàriamente, inca-
pacitado de ver tudo. E assim, através de todo o poema, todos os seus
tormentos vieram, em certo sentido, atendendo à sua própria ordem, e
o julgamento de Deus podia muito bem ter sido expresso pelas palavras
«a tua vontade seja feita». Êle diz: «Mal, sê tu o meu Bem» (o que
implica: Contrasenso, sê tu o meu Senso), e a sua oração é atendida» (5).
Nestas palavras, podemos ler a história do caráter e da vida dos tiranos
contemporâneos que, querendo refazer o mundo à sua própria imagem e
dirigí-lo de acôrdo com a sua própria vontade, tornam-se fôrças impes-
soais, a que o homem é sujeito.
«Principados e Potestades».
Um aspecto muito real da Divisão que separa o Universo é a pre-
sença das Fôrças inexoráveis ou Poderes de caráter impessoal, que afe-
tam a vida terrestre e frustram as aspirações humanas. Ainda mesmo
que seja considerada a opinião, que eu creio ser filosòficamente insusten-
tável, biblicamente falsa e religiosamente errónea, de que não existe no
Universo um poder pessoal do mal, ainda restarão «coisas nos céus»:
Principados e Potestades. Estas fôrças, mesmo que sejam interpretadas
em sua natureza fundamental, são realidades com que temos de contar
na história, porque a história humana é, em muitos respeitos cruciais,
controlada por elas. Sejam mitológicas ou não, estas fôrças são devasta-
doramente reais. Exercem poderosa influência sôbre a humanidade.
Frequentemente destroem as esperanças dos homens, e levam à «Vai-
dade dos Desejos Humanos».
De certo ponto de vista, podem-se considerar tais Poderes como pro-
cessos judiciais que entram em ação sempre que se viola o princípio de
obediência a Deus por espíritos finitos. Neste sentido, são leis da ordem
moral ou, como poderíamos dizer, de ordem moral violada. Quando espí-
ritos finitos, cuja verdadeira existência e destino consistem na obediência
(5) Id., p. 97.
leal à divindade infinita, transgridem a ordem constituída, seguem-se as
mais terríveis consequências. Os gregos falavam acerca da «Nêmesis»
e das «Fúrias», que seguiam os passos dos transgressores. Os hebreus
proclamavam que «as estrêlas, em seus cursos, lutaram contra Sísera»,
isto é, contra todo o violador da justiça elementar. S. Paulo, no primeiro
capítulo da Epístola aos Romanos pinta um quadro lúgubre, mas per-
feitamente realístico, das consequências que resultam — o julgamento
e a ira — quando são desobedecidos os princípios da virtude moral. Temos
chegado a ver que a história do mundo é o julgamento do mundo». So-
mos forçados a perceber uma dialética na história, um «processo pelo
qual a história a si mesma se vence». Quando qualquer bem humano é
apreendido firmemente e acariciado e feito o Bem Supremo, produz o
seu oposto. Quando a ciência é saudada como o Salvador do mundo,
produz uma arma que cria as trevas mundiais e prognostica a destruição
do mundo. Quando a civilização é procurada como fim em si mesmo,
origina-se nos «civilizados» uma psicologia que torna difícil à civilização
manter-se. A visão poética de Francis Thompson é literalmente ver-
dadeira no plano da história do mundo:
Tôdas as coisas te abandonam,
a ti, que me abandonas.
A «Era dos Monstros», que ainda se arrasta fora de seu curso, tem
levado muitas das mais sóbrias mentalidades do nosso tempo a reconhe-
cer, nestes «Principados e Potentades» de S. Paulo, a expressão deificada
das realidades finitas que, quando tornadas absolutas, isto é, elevadas à
categoria do Divino, exercem influência incontrolável e sinistra nos ne-
gócios humanos. No momento em que alguma raça, nação ou classe se
exalta acima de «tudo que se chama Deus e que é adorada», aparecem
religiões aberrantes de caráter secular. Nestes últimos tempos, temos
testemunhado a história em contrário. As antigas divindades pagãs,
arrancadas dos santuários pelo advento de Cristo, fato que Milton des-
creve com licença poética em seu famoso poema, foram de novo entroni-
zadas em sistemas políticos. Ao renascimento espiritual desta «turba
condenada», como Milton os chama na sua Ode ao Natal, pode-se atribuir
multidão das nossas atuais desgraças.
Mas, completamente separada da realidade de um processo judicial
na história e do poder funesto das divindades seculares, a vida histórica
da humanidade é controlada, e muitas vêzes escravizada, por outros «po-
deres» de ordem transcendental, que tomam a forma de sistemas de pen-
samento. As idéias, sejam de que espécie forem, verdadeiras ou falsas,
exercem a mais poderosa soberania nos negócios humanos. Que não
tem feito o Racionalismo, por exemplo, para agrilhoar a mente humana,
fazendo impossível ver-se e impopular, afirmar-se que se vê qualquer coi-
sa que fique além dos circunscritos limites de seu míope dogmatismo? A
tirania ideológica é uma das mais universais e sinistras de tôdas as for-
mas de tirania. A mais aguda fase da presente crise mundial deriva do po-
der transcendental do Materialismo dialético. Nos círculos cristãos, um Po-
— 36 —
der semelhante produziu males indisíveis. A aplicação dos princípios do puro
racionalismo ao estudo da Bíblia, onde quer que sejam usadas idéias con-
sideradas como auto-evidentes na interpretação da Bíblia, constitui um
dos «Principados e Potestades nos lugares celestiais», que destroem o
discernimento e enfraquecem o testemunho de muitos dos seguidores de
Jesus Cristo, tanto pelo que é teologicamente heterodoxo como, igualmen-
te, pelo que é teologicamente ortodoxo.
b) A Separação Histórica
Ao tratarmos, na secção anterior, da «separação transcendental», con-
siderámos a questão de uma ordem supramundana, que é a sede de for-
ças, pessoais ou impessoais, que exercem influência controladora na vida
humana. Voltamos, agora, a considerar o próprio homem, e a divisão
que existe na vida humana, juntamente com as dolorosas consequências
desta divisão na vida da humanidade. Começaremos com a interpretação
bíblica do homem, muito especialmente com a visão do verdadeiro estado
do homem, como é exposto por S. Paulo na Epístola aos Efésios.
O Homem Segundo o Pensamento Bíblico.
O homem como o conhecemos, o ser de diversas maneiras descrito
como homem «natural», homem «comum» ou homem «médio» é, no pen-
samento de S. Paulo, o homem «sem Deus» e, portanto, «sem esperança
no mundo» (2:12). Porque Deus não ocupa o lugar central em sua obe-
diência, nem opera como a fôrça central na sua vida, o homem, em sua
existência histórica, está em uma condição desesperada e sem espe-
rança. «Está «morto», imerso, sepultado, em «trespasse e pecados^
(2:1) ; isto é, vive fazendo o que é errado e está errando o alvo. Segue
o «Príncipe das Potestades do Ar, o espírito que está operando nos filhos
da desobediência» (2:2), o que significa que o Senhor do homem não é
Deus, mas um poder rebelado. A sua vida é caracterizada pelo predo-
mínio das concupiscências da carne e êle é escravo dos apetites carnais e
extravagâncias intelectuais. Todos os homens são, assim, «filhos da ira»
(2:3); passam a vida em desarmonia com o verdadeiro curso da vida e,
por conseguinte, sofrem as consequências dos seus caminhos desnortea-
dos. São inúteis todos os esforços da parte dos homens para corrigir
a situação, porque vivem na «vaidade (ou futilidade) do seu sentido»
(4:17). Sofrem de cegueira espiritual estando «entenebrecidos no seu
entendimento» (4:18). Falta-lhes a verdadeira luz, porque vivem fora
da verdadeira vida, «separados da vida de Deus». E vivem assim, por
seus caminhos, sem desejo de mudarem de direção e de dar^^m séria
causa da «dureza dos seus corações», porque se acham endurecidos em
consideração a qualquer outro ponto de vista ou maneira de viver. A
dedicação a uma existência puramente humanística e secularísta os toma
«calejados»; a sua fibra moral decai, pelo que se degeneram e caiem em
«licenciosidade», invocando, para sua indulgência, novas maneiras de
procedimento imoral (4:19).
— 37 —
Em tais têrmos descreve Paulo o homem e o problema humano e
faz os distantes leitores da sua carta ecuménica compreenderem que estes
traços resumem a «velha natureza» (4:12) em que os homens, em geral,
viviam. Esta era a natureza de que êles, como cristãos, deviam «des-
pojar-se», «renovando-se no espírito do seu sentido» (4:23), que é o mes-
mo que dizer, pela aquisição de uma total mudança de perspetiva. A
«nova natureza», que deve substituir a velha, é «criada, segundo Deus,
em verdadeira justiça e santidade» (4:24); é uma natureza semelhante
a Deus, que se expressa em conformidade com a vontade de Deus, que
é «justiça», e em consagração à realidade de Deus, que é «santidade».
Tendo em mente esta descrição do homem como êle é, descrição que
Paulo nos dá no mais amadurecido dos seus escritos, consideremos a sua
significação e o que ela implica. Isto é, interpretemos o homem à iupla
luz do pensamento bíblico e da vida histórica.
Que é o homem? Esta é uma pergunta decisiva. Tôda civilização
particular, tôda cultura específica, como também todo sistema de pen-
samento, são fundamentalmente baseados numa dada opinião a respeito
do homem. Até onde diz respeito à história, como afirmou Toynbee, o
homem, como o conhecemos, o chamado «homem médio», não tem mu-
dado apreciavelmente em sua natureza essencial e em tempo histórico.
Êle é hoje em dia mais ou menos como sempre tem sido. Parece, além
disso, que êle nada ter aprendido da experiência, que lhe seja de impor-
tância decisiva para a sua orientação espiritual. «A única coisa que
temos aprendido da história», tem-se dito, «é que o homem nunca apren-
deu nada da história».
No espirito e na linguagem da Bíblia, o homem é um ser feito à
imagem e semelhança de Deus. Ele foi feito em amor, por um D«}us
que é amor. Deus, o Criador, teve intenção de que o homem Lhe devia
ser semelhante. A única maneira pela qual a criatura podia ser seme-
lhante ao seu Criador era, na sua condição de criatura, obedecer ao
mandamento de amar. Um ser criado e finito obedece a este manda-
mento, quando ama a Deus com reverência de adoração e com obe-
diência cheia de amor e ama O próximo como a si mesmo. Mas o
homem, como nós o conhecemos na história, tem aspirado a ser seme-
lhante a Deus, mas sem Deus. Ele tem querido ser como Deus, no
sentido de possuir condição divina e atributos divinos, mas sem reco-
nhecer a Deus como Deus. Tem acariciado a ambição de ser «um
deus»; daí, o significado da tentação de Génesis (3:5) «sereis como
deuses». O homem tem buscado em delírio ser igual a Deus e rival de
Deus. Êle não tem desejado ser semelhante a Deus, manifestando, como
filho de Deus e Seu servo, a humildade e condescendência que caracte-
rizam a vida da Divindade.
E assim, temos o «homem caído», o homem pecador, o homem qua
«errou o alvo» no atingir a existência verdadeira, o homem que está
«fora do passo» com a realidade, que está «fora da rota» quando busca
o seu destino. Quando observamos a natureza humana dividida que foi
fendida pelo orgulho e inclinada para a desobediência, torna-se neces-
— 38 —
sário que a várias coisas seja dada ênfase. O pecado não tem a sua
sede nos centros inferiores da personalidade, mas nos mais altos. Con-
quanto conduza às mais grosseiras formas de sensualidade, à medida
que o espírito humano se extravia cada vez mais, «fora da rota», o
pecado não tem a sua origem no desejo sensual, nem tem a sua mais
terrível expressão em qualquer coisa que pertença ao corpo. Pecado é
perversidade da mente mais do que fraqueza da carne. Além disso,
êle tem manifestação positiva, como também negativa. Negativamente
êle é, nas palavras do Breve Catecismo de Westminster, «qualquer falta
de conformidade com a lei de Deus ou qualquer transgressão desta lei».
Como tal, é uma revolta contra a autoridade, rebelião contra a estrutura
hierárquica do Universo, afirmação de vontade própria. Mas, no lado
positivo, o pecado é, como já foi sugerido, a busca de uma falsa seme-
lhança com Deus. É a tentativa de alcançar a divindade pelo caminho
mais curto, de possuir os atributos e prerrogativas brilhantes de Deus,
sem participar da graciosa condescendência de Deus.
Indubitàvelmente, há na natureza humana, como seu desejo mais
profundo, uma aspiração ao Infinito e ao Eterno. Deus fêz o homem
semelhante a Si mesmo e para Si mesmo, pondo eternidade em seu
coração. Por isso, como o expressou Agostinho, «os nossos corações não
têm repouso, enquanto não repousarem em Ti». Um filósofo contem-
porâneo interpreta fielmente a aspiração básica humana, quando diz:
«A vida inteira do homem é luta para a conquista da existência verda-
deira, esfôrço para alcançar a substancialidade, para que não tenha
vivido em vão e desaparecido qual sombra». (6) Mas a dificuldade
é que êsse homem, o pecador, não se contentou em encontrar a sua
verdadeira existência em Deus e por meio de Deus. Êle quiz antes
possuir, como seu próprio direito e posse própria, as coisas que consi-
dera inerentes à sua semelhança com Deus. Desde que êle caiu do Ser
esteve mais interessado em ter do que em ser. Esqueceu-se de que a
não ser que tenha a Deus, não tem nada. Dai provém o pecado do
homem e o problema humano.
Ninguém conheceu melhor o homem e a natureza humana do que
Jesus. Certa ocasião fêz aos Seus contemporâneos uma pergunta, que
é a mais profunda pergunta que jamais se fêz a respeito e ainda é a
mais importante pergunta que possa dirigir a nossa geração: «Que
aproveitará ao homem» perguntou Êle, «se ganhar o mundo inteiro e vier
a perder a sua alma (ou a sua própria vida?» (Mateus 16:26). Jesus
sabia, como Paulo também sabia, que o principal impulso do homem é a
paixão do lucro, de ter, de possuir um mundo, algum mundo, o mundo
inteiro. O Diabo já tinha feito uma proposta assim a Jesus. A proposta
foi a seguinte: Êle, o «Príncipe dêste mundo», daria a Jesus o mundo
inteiro como um presente, uma vez que Êle estivesse disposto a negar a
Devs, a ser e a agir «sem Deus» e, adorando ao Diabo, aderir à grande
revolta. Mas, para Jesus, o que realmente interessava era ser e não
{6) Erich Fiíiiik, PhiJosophical KnowJedge and Eeligious Understanding, p. 116.
ter. Para êle, o verdadeiro ser consistia em viver vida com Deus, por
meio de Deus e para Deus; a uma vida assim, as coisas e o mundo
seriam acrescentados em devido tempo.
Por outro lado, a tentativa de ganhar o mundo, conduz à perda do
único mundo que realmente importa, o mundo da alma, a vida interior
do homem. A busca das coisas, a paixão aquisitiva do homem, em ter,
destrói a alma, desintegra a vida, faz do espírito humano, sepulcro vazio,
sepulcro de valores mortos, de esperanças estioladas.
Contudo, à parte do significado desta questão que Jesus propôs ao
povo do Seu tempo, a Bíblia, tanto no Velho como no Novo Testamento,
está cheia de descrições do julgamento divino, que dão testemunho das
trágicas consequências que a busca da falsa semelhança com Deus traz
ao homem e à sociedade humana. Quão lúgubres e dramáticos os qua-
dros que na Bíblia se esboçam da total desintegração espiritual que
resulta, quando o homem toma a vida em suas próprias mãos e se
dispõe a forjar o seu próprio destino! O resultado é desmoralização; o
homem desumaniza-se: a sua natureza, dada por Deus e na qual Deus
imprimiu a Sua própria imagem, é maculada. Caim, tornou-se o impu-
dente assassino de seu irmão. As características naturais das relações
sexuais desapareceram, e temos Sodoma, com tudo quando «Sodomav*
significa na história bíblica, e com tudo quanto vem a significar nos
tribunais seculares. A perversão do instinto religioso no culto idólatra
torna-se, como nos cultos cananitas, a fonte turva de indescritível per-
versidade. Paulo, em sua grande Epístola aos Romanos, dá-nos um
cálculo clássico dos efeitos fatalmente morais que sucedem à deter-
minação de repudiar a Deus, tudo isso estava no painel de sua mente,
quando escrevia a Carta aos Efésios. Os homens que, «tendo conhe-
cido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem Lhe deram graças,
antes em seus discursos se desvaneceram e o seu coração insensato se
obscureceu» (Rom. 1:21). «Pois mudaram a verdade de Deus em men-
tira e honraram e serviram mais a criatura do que o Criador» (v. 25) ;
«e, como êles se não importaram de ter conhecimento de Deus, assim
Deus os entregou a um sentimento perverso, para fazerem coisas que
não convêm» (v. 28).
Não sòmente isto: a Revolta do homem manifestou-se em relações
sociais confusas e amarguradas. A grande tentativa de levantar uma
tôrre à glória do homem, que seria monumento perpétuo à divindade do
homem e centro permanente de unidade humana, terminou em babel
linguística e em dispersão racial. Porque na própria humanidade sepa-
rado de Deus, não há meio de compreensão nem vínculo de coesão.
Portanto, o de que a nação necessita, entre a confusão criada por um
colapso de compreensão é, no simbolismo de um grande profeta hebreu,
«lábios puros», que Deus pode dar aos povos da terra. O que os povos
do mundo exigem em seu isolamento e antagonismo mútuo é de um
centro renovador de unidade. Êste centro de unidade, na brilhante
imagem da Bíblia, Deus o provê como vemos atualmente, na Jerusalém,
— 40 —
a Cidade de Deus que, no desenvolver dos Seus propósitos sucederá à
Cidade do Homem.
Mas, antes que as consequências históricas da separação básica
espiritual possam ser vencidas, uma outra divisão na história, de caráter
quase único, precisa de ser vencida também. Paulo a ela se refere no
segundo capitulo da Carta aos Efésios. É a profunda separação entre
judeus e gentios. Encarada da perspetiva da história secular, esta tem
sido uma das mais amargas e aterradoras de todas as divisões da
história. Esta era a divisão conforme Paulo a descreve, entre um povo
chamado dos judeus, descendentes de um ancestral comum, Abrão, e em
quem fôra realizado o rito da circuncisão, de um lado e, do outro lado,
todos os não-judeus, levando o nome geral de gentios, as «nações», que
eram os incircuncisos (Efésios 2). Os gentios eram. na linguagem de
Paulo, «separados da comunidade de Israel e estranhos aos concertos
da promessa» (2:12). Esta divisão podia ser apropriadamente chamada
a Separação Sagrada. Era uma divisão estabelecida por Deus mesmo entre
setores da família humana que, por meio da oportunidade oferecida de
tratar específica e redentivamente com um setor, levaria, quando esti-
vesse divinamente desfeita, a um eventual desaparecimento da própria
grande separação.
O Homem na Vida Histórica
O que Paulo descreveu como a vida de pecado, a «vida sem Deus»,
o que Jesus disse que acontece quando os homens se dispõem a ter em
vez de ser, tem-se manifestado em nosso tempo com aspectos parti-
cularmente impressionantes e trágicos. A nossa época é um comen-
tário mundial e ecuménico das palavras de S. Paulo. «O salário do
pecado é a morte». Êste é um «dia do Senhor», em que processos judi-
ciais inexoráveis estão operando na história humana. À semelhança dos
contemporâneos de Jeremias, mas em escala muito mais vasta e em
contexto mais trágico, nós e os nossos contemporâneos «seguimos a
Ilusão e Ilusões nos tornamos» (tradução de G. A. Smith), «fomos após
ídolos vazios e nos tornámos a nós mesmos vazios» (tradução de
Moffat).7
Um grande vácuo, um espantoso vazio, um vão de abismo cara-
teriza a vida hum.ana em nosso tempo. Procuramos na vida sentido que
nela não havia. Como consequência, uma atitude de niilismo invade todos
os continentes. O espetro do Nada assombra o mundo. Mesmo nos
Estados Unidos, nação vitoriosa, está-se incubando um certo Niilismo.
As seguintes palavras não foram escritas da Alemanha ou do Japão, ou
das terras do Oriente ou Ocidente que estão mergulhadas em trevas.
Foram elas recentemente dirigidas à nação americana por um dos seus
próprios poetas:
(7) Jeremias 2:5.
— 41 —
ó minha terra,
é o Nada que precisamos de temer:
o pensamento do Nada:
o som do Nada em nossos corações,
como o alarido horrendo
das bombas incendiárias nas ruas, à meia noite:
a crença no Nada. (8)
Duas características em particular indicam este grande vácuo, esta
perda da dimensão espiritual, tragédia do nosso tempo. Uma destas é
a Anonímia, a outra é a Banalidade.
Quando os homens vivem «sem Deus», chega o momento em que
passarão a viver sem êles mesmos. Tornam-se estranhos a si próprios:
não sabem quem são. Transformam-se em simples átomos, que são
levados para cá e para lá. Amam as multidões em que podem perder-se.
Imaginam tôda espécie de inventos que lhes permitam o esquecimento
de si mesmos. Porque a solidão e o silêncio suscitam perguntas quanto
a quem são como também quanto para onde vão indo, e odeiam a ambas.
Porque a música fala de ordem e de sentido, êles fogem dela. Que
lhes importa que as coisas sejam de qualquer maneira? Daí, a «fuga
universal para a anonímia e a tremenda cacofonia, dominada pelo som
das bombas».
Quando os homens perdem a profundeza e o objetivo; quando os
horizontes distantes e os ideais nobres não mais os inspiram; quando
«Tudo é um no fim, República, Ditador», certa banalidade invade a vida.
Uma morbidez e um instinto vil e rasteiro, juntamente com amor
veemente do que é novo e estranho, surgem logo. O povo quer ser
«distraído da distração pela distração». Por essa razão, o que agora se
designa como arte «moderna», tornou-se «museu de patologia social e
cultural». Não mais o brado: «Excelsior».
Alimentai-nos os corpos, não as almas
Quanto mais gordo for o corpo, tanto mais depressa se rebola.
Escarnecem-se dos ideais mais nobres, aparece a corrupção sórdida
por tôda a parte, tanto nos lugares altos como nos baixos.
Mas, porque o homem foi feito para algo muito diferente disto, a
natureza humana não pode sofrer indefinidamente um vácuo desta ordem
com a sua anonímia, a sua banalidade, a sua corrupção. Situação tal
é sempre propícia ao irromper de guerra porque, na guerra, o povo
torna-se alguma coisa; diz-se-lhe o que deve fazer e perde-se em alguma
coisa maior do que êle mesmo. É a guerra igualmente favorável a
submissão do homem à superstição, à tirania e à falsa autoridade. Por-
que, quando o homem se torna completamente vazio da sua humani-
dade, de novo levanta a questão da divindade. Uma vez mais, é uma
escolha entre Deus e os «deuses», entre a companhia dos santos e as
filas da «multidão de condenados».
(8) "My Country", Davenport.
— 42 —
Êste é o perene ciclo humano: Homem, o pecador, em revolta con-
tra Deus e recusando-se a encontrar a sua verdadeira existência em
Deus e em Seus propósitos, arroga-se o domínio da sua própria vida.
Luta para adquirir grandes posses, a fim de se tornar semelhante a
Deus. Mas a sua entrega delirante èis finalidades do ter resulta em
uma total perda do ser, em uma vida vazia e desintegrada e numa
sociedade desordenada e sem finalidade. A grande Divisão, a pecami-
nosidade nos «lugares celestiais», e no plano da história humana, cria
dois problemas supremos: o problema do verdadeiro ser, para o homem,
e o problema da verdadeira unidade, entre os homens. Antes de pas-
saiTnos a considerar a maneira como são por Deus resolvidos ambos
estes problemas, na vida e nas relações do Piano de Deus, consideremos
de maneira breve e sumáriomente alguns esforços humanos e caraterís-
ticos, tanto antigos como modernos, de tratar do problema da grande
Separação e as suas consequências.
c) Tentativas Humanas para Desfazer a Separação.
É o homem constituído de tal maneira que a unidade é necessidade
indispensável da sua natureza. Necessidade de unidade na forma de
idéia, para compreender a vida; necessita de unidade em forma de
poder, para controlar a vida. A realidade do mistério e do paradoxo no
mundo, a presença da desordem e de forças em conflito, torna a necessi-
dade de unidade por demais imperiosa, tanto para o homem de pensa-
mento como para o homem de ação, para o homem mau como também
para o homem bom. Até mesmo um sistema de falso pensamento requer
unidade, coerência lógica baseada em êrro ou mentira; até um Reino
do Mal exige unidade, na forma de estratégia comum em oposição ao
Bem.
No curso da história humana, fizeram-se várias tentativas para
reduzir a um pensamento simples a diversidade e a desordem que carac-
terizam as coisas, e para vencer o conflito e acabar com a divisão por
meio de uma política única.
Dois caminhos foram seguidos para alcançar a unidade: um dêles
foi o caminho da sabedoria e o outro, o caminho do poder.
O Caminho da Sabedoria
Os antigos gregos, que foram os primeiros a exercer a curiosidade
reflexiva a respeito do mundo em que viviam, pareciam estar totalmente
inconscientes da existência de uma divisão espiritual no cosmos e na
vida do homem. O pecado original, inclinação inata para o mal no
espírito humano, era completamente irreal para êles. Os jônios inte-
ressavam-se pela busca da substância simples, terra ou ar, fogo ou água,
a que pudesse a natureza ser reduzida. Os pitagóricos procuravam nos
números o princípio da harmonia entre os diversos fenómenos da Natu-
reza. Os estóicos encontravam no universo um logos imanente, um
princípio unificador de ordem impessoal. Platão sabia que estava o
homem comum imerso em uma vida de apetites e de sensualidades e,
consequentemente, incapaz de conhecer a Verdade ou de ver o Bem.
Mas não havia divisão fundamental. Segundo o ponto de vista de Platão,
era possível à alma voltar-se para a Luz e alcançar a visão do Bem,
por processo de educação que incluía auto-disciplina. No fundo, o pro-
blema era mental mais do que espiritual: Como poderia o homem alcan-
çar verdadeira unidade de pensamento, como poderia êle descobrir o
verdadeiro objeto de adoração? A solução, o prelúdio da salvação, era
elevação natural à contemplação e não livramento sobrenatural da
escravidão.
Nos tempos modernos, o inteiro problema de unidades, seja no
sentido de compreender o mundo seja no de controlá-lo, tem sido atacado
do lado da ciência e, mais recentemente, do lado da técnologia. A última
grande opinião mundial que dominou a cultura ocidental foi o esforço
de compreender o Universo em têrmos de princípio cósmico de evolução.
Uma vez que esta opinião sofreu colapso, despedaçada por acontecimen-
tos descepcionantes, nenhuma outra filosofia cósmica tem aparecido
nos círculos burgueses representativos. No mundo democrático dos nos-
sos dias, não existe uma grande idéia, racional ou religiosa, a qual se
presta fildelidade comum e que, por seu caráter luminoso, esclareça a
significação da vida e proveja a fôrça para palmilhar trilhos da vida.
Fora as histórias críticas da filosofia e as filosofias sugestivas da história,
a única coisa que se deixou na cultura democrática com a semelhança
de opinião mundial é a filosofia da liberdade. Mas esta filosofia da
liberdade, êste vestígio esquecido de grandeza intelectual, no fundo, não
é nada mais do que liberdade negativa, a proclamação de liberdade polí-
tica sem implicação de responsabilidade moral. O que se proclama é
liberdade de alguma coisa e não liberdade para alguma coisa ou em
alguma coisa; e tal liberdade não é a que é sòmente, a verdadeira liber-
dade: sujeição, cativeiro ao Eterno.
O abandono, nos círculos democráticos, da tentativa de desenvolver
ponto de vista de compreensão mundial deixou à ciência o problema de
entender o mundo e determinar o que o homem pode ousar esperar.
Isto levou à tendência de fazer positivista o ideal do conhecimento frag-
mentário, o escopo do conhecimento e utilitário o fim do conhecimento.
Uma cultura científica não ensina ao homem o que deve fazer; não o
ajuda a obter uma visão da vida como um todo. Diz-lhe apenas como
é que êle pode ter número crescente de coisas, enquanto que o seu pro-
blema real é um profundo senso da necessidade de ser alguma coisa.
Os fatos da futilidade da especialização e dos peritos tecnológicos no
que interessa ao conhecimento e à solução do problema fundamental,
tém-se tornado tão familiares pela muita reiteração, que nada mais
necessita de ser dito a respeito. Sòmente isto: — Seria bom aos positi-
vistas culturais lembrarem-se de que o amor tem significação cultural.
Será totalmente fútil a educação, a não ser que consiga criar entre as
pessoas um sentimento de amizade e fraternidade, de modo que aprendam
a viver juntos. Porque, se não o fizerem, alargar-se-ão em nossa socie-
dade contemporânea as nefastas e crescentes divisões. Seria bom tam-
— 44 —
bém se os nossos positivistas da política, que pensam somente em termos
de justiça legal, em sanções militares e em segurança nacional, consi-
derassem que o perdão tem poder político. Uma grande parte da res-
responsabilidades da desmoralização reinante nas relações humanas dos
nossos dias, é que o ódio e a vingança têm dominado a política nas rela-
ções entre os diversos grupos humanos. A «Inimizade» tem sido domi-
nante e progressiva.
Tem aumentado, porém, o interêsse sôbre nossa cultura contem-
porânea, aprendida pelos sentidos, esta cultura cuja alma tem sido a
ciência e cujos interêsses têm sido exclusivamente o espacial e o tem-
poral, o visível e o tangível. Sorokin, o sociólogo de Harvard, tem sido
líder em acusar a devoção exclusiva ao «sentido», que êle considera,
como está hoje em dia, completamente exaurido, sem nada mais para
dar. Mas esta devoção religiosa às coisas dos sentidos, coisas que os
homens podem ter, êle não a considera como fundamentalmente peca-
minosa, mas somente como contemporâneamente prejudicial. A busca
do que é «sentido» não é, para Sorokin, a expressão de uma aberração
espiritual; pelo contrário, é antes a manifestação de um ritmo cíclico
cujo extensão apropriada foi indevidamente prolongado em nossos dias.
Assim, a nossa grande necessidade contemporânea, segundo a opinião
dêsse professor, é a de dar ênfase ao ideacional, palavra pela qual êle
quer significar a devoção aos valores espirituais. Mas, diria o cínico,
tais valores são objetivamente irreais e negam inteiradamente a objeti-
vidade ou propriedade do ritmo cultural e, então, o «santo», o homem
que é tão consagrado aos valores fundamentalmente espirituais, que se
dedica à disciplina ascética, deve tornar-se, segundo êste ponto de vista,
o nosso tipo representativo. Mas será claramente uma esperança per-
dida tentarmos produzir santos e promover precursores de uma cultura
ideacional, a não ser que êles creiam o que o seu próprio advogado soció-
logo não crê, isto é, que os valores que êles sustentam são absolutamente
verdadeiros e são garantidos por uma ordem cósmica. Isto é o mesmo
que dizer, que os «santos» e só êles, é que podem redimir a nossa ordem
cultural, não podem ser criados para pôr ordem, nem pelas pressuposi-
ções propostas por Sorokin.
Em círculos filosóficos, começa a tomar expressão o mais profundo
interêsse a respeito do abismo espiritual que divide o Oriente do Oci-
dente, e separa as grandes religiões da humanidade. O de que se neces-
sita, afirma-se, é transcender o parcial e criar uma ultra-suprema leal-
dade a que todos possam aderir. Northrop, o filósofo de Yale, conclui
o seu livro: O Encontro do Oriente com o Ocidente: Um Ensaio de
Compreensão Humana, com um apêlo à lealdade mundial. No interêsse
da lealdade de âmbito mundial, dever-se-ia promover a mutualidade leal
e universal entre o Oriente e Ocidente, cada uma dessas partes parti-
lhando com a outra dos seus ideais. Mas, quão completamente irreal é
tal proposta nêste momento histórico em que as idéias tradicionais, tanto
do Oriente como do Ocidente, estão passando, e em que uma tremenda
fôrça, a do Comunism.o marxista, proclama pelo mundo afora que, o que
— 45 —
importa não é a mutualidade das idéias, mas o reconhecimento comum
das realidades!
Num livro que apareceu entre as duas guerras, englobando o rela-
tório de uma Comissão cujo Presidente era o distinto filósofo de Harvard,
Professor W. E. Hocking, e intitulado Um Inquérito dos Leigos sôbre as
Missões Cristãs, foi proposta a idéia de que, em vista do que parecia ser
cultura mundial em.ergente, o futuro espiritual da humanidade está se
movendo em direção ao «Novo Testamento de tôdas as religiões que exis-
tem». Mas, além do fato de que um vazio cultural e não uma cultura
emergente e mundial é o principal característico do mundo do ocidente, o
resultado da Segunda Guerra Mundial foi desintegração muito decisiva
das antigas religiões que dominaram o Oriente. Nos lugares em que houve
grandes progressos do Budismo, do Induísmo e do Islam, estiveram êles
sempre fortemente ligados a nacionalismos. Não mostram qualquer inte-
résse num «Novo Testamento» que surge.
O Caminho do Poder
O Caminho da Sabedoria, porém não tem sido o único caminho em
que se tentou produzir a ordem e a unidade na confusão e no conflito
humano. Alguns tentaram realizar este desiderato pelo emprêgo da
fôrça.
Alexandre e Augusto foram famosos representantes deste caminho
do poder, nos tempos antigos. Era a ambição de um deles unir e huma-
nizar o vasto império que havia conquistado, por meio da difusão da
cultura helénica. O outro, crendo-se ser o autor da constituição ideal
e permanente, meteu mãos à tarefa de unificar os seus largos domínios,
desde o Tibre até à «última Thule» pela imposição da Lei Romana.
Ao alvorecer da era moderna, os patrocinadores de Colombo, Fer-
nando e Isabel de Espanha, bem como os monarcas espanhóis que lhes
sucederam durante a Idade de Ouro da Espanha, empreenderam a tarefa
de forçar o estabelecimento de uma teocracia no Mundo Ocidental que
Colombo havia descoberto. Na prática, os indígenas eram obrigados a
prestar homenagem à Cruz ou seriam estirpados pela espada. No fim
da era moderna, os princípios da Democracia, que constituiu a maior
realização politica desta era, são promovidos pela fôrça, ainda que esta
não seja fôrça despótica, entre os povos que foram vencidos, tanto no
Ocidente como no Oriente, pelas potências democráticas na Segunda
Guerra Mundial.
O ideal da Teocracia, padrão de sociedade divinamente inspirado,
que deve ser imposto pela fôrça, fôrça esta que realizará o controle
totalitário da vida, externa como interna, de todos os cidadãos, continua
a operar em nossos tempos. A sua expressão representativa e secular
é a «Hispanidade», a sua expressão religiosa característica é o «Cleri-
calismo».
«Hispanidade» é a teoria que inspira os atuais dirigentes fascistas
da Espanha e da Argentina. Significa ela que a raça Hispânica, quando
— 46 —
guiada pela Igreja Católica Romana, tem a missão histórica de mostrar
que um fiel paternalismo político é a melhor forma de governo para os
seres humanos. A unidade que foi estabelecida entre a Igreja e o
Estado de Franco, é uma das mais terríficas coisas na história da
civilização.
O Clericalismo é a busca do poder, especialmente do poder político,
por uma hierarquia religiosa, busca esta sustentada por processos secula-
res e com finalidades de dominação social. A expressão suprema do
Clericalismo é o Clericalismo Romano. A hierarquia católica romana,
considerando-se a si como a única verdadeira Igreja de Jesus Cristo,
crê que lhe foi dada a divina missão de trazer a sociedade e o estado
debaixo do completo controle da Igreja, como instituição visível. Sò-
mente essa relação da Igreja com o Estado pode-se considerar politica-
mente ideal, quando o Estado está disposto a aceitar o ponto de vista da
Igreja, em todos os assuntos referentes à fé e à moral, à verdade e ao
erro. O Estado exercerá o seu poder de tal modo que todos os indivíduos
e grupos que a Igreja considere como representantes e propagadores do
êrro, não desfrutem de plenos direitos e privilégios de cidadãos, mas
sejam antes objetos da coerção que os possa levar à aceitação da ordem
teocrática estabelecida. O Clericalismo está fundado sobre um ponto de
vista inferior do homem, mesmo no caso do cristão e das suas possibili-
dades, e sobre um ponto de vista insustentável da Igreja, compreendida
como Reino de Deus visível, autoritário e institucional na terra. A Igreja,
em seu estado contemporâneo, representa uma aberração crescente da
religião cristã. Tem cessado de ser de Cristo para se tornar Sua senho-
ra. Ela é, como se verá adiante, um dos mais sinistros inimigos da
ordem de Deus.
Mas nada, nem mesmo o Clericalismo romanista, é tão dramático e
tão universal em seus esfôrços para constituir pela fôrça uma unidade
terrestre, um paraíso secular, como o Comunismo marxista. Inspirado
na tese de que na inexorável dialética da história soou a hora de o
homem proletário governar o mundo, sob a liderança da Santa Madre
Rússia, o primeiro e mais potente dos Estados Comunistas, move-se o
Comunismo através do mundo com paixão de cruzada e sentido apoca-
líptico de destino. Consagrados à verdade do materialismo histórico e do
determinismo económico, e considerando todos os ideais humanos e
sistemas religiosos como criações do interesse de classes, e convencidos
de que os mesmos estão destinados a desaparecer com estabelecimento
de uma sociedade comunista, o Comunismo tolera a religião quando ela
se mantém estritamente dentro do santuário e persegue-a cruelmente
quando julga que está desafiando ou influenciando a ordem secular.
Geopolíticos técnicos, possuidores do melhor sistema de espionagem do
mundo, rejeitando todos os padrões morais, confiantes em que «as fôrças
radiantes» da história estão com êles, estabeleceram os dirigentes da
Rússia o maior movimento imperialista da história para dominar «todas
as nações e povos e línguas». Tomeim a sério o famoso dito de Sir
Halford Mackinder, a ingénua fonte da moderna geopolítica, de que.
— 47 —
«quem governa a Europa Oriental domina o Coração da Terra: quem
governa o Coração da Terra domina a Ilha do Mundo, quem governa a
Ilha do Mundo, domina o Mundo». A Rússia Comunista, que tem em
seu poder a vasta região da Europa e da Ásia que no inverno está
coberta de neve, prossegue à conquista da Ilha do Mundo — a Europa,
a Ásia e a África. Então, a não ser que o Novo Imperialismo seja
frustrado, seguir-se-á o domínio do mundo e o reino de ferro do Anticristo!
Mas há um Plano de Deus, como também um plano do homem. E
Deus é o Senhor! No fundo da Grande Divisão, com as suas implicações
e as suas consequências, e as tentativas humanas para resolver a desor-
dem do mundo sem referência à verdadeira fonte dos seus males, pas-
samos a considerar a Grande Revelação.
— 48 —
CAPÍTULO m
o SEGKÊDO DE DEUS REVELADO
Qual a solução de Deus para o problema, humano e cósmico, criado
pela separação? Qual a resposta divina à busca de Unidade, que tantos
«imperialismos desesperados», tanto de sabedoria como de poder, têm
tentado dar, na história, e que ainda se esforçam por dar, em nosso
tempo? Seja Paulo o nosso guia, ao seguirmos o seu pensamento através
da Carta aos Efésios.
a) Instrumentalidade apostólica para a solução.
Primeiro, paremos no limiar da Epístola para ouvir como êle mesmo
se apresenta ao largo círculo ecuménico a quem se dirige. Êle é «Paulo,
apóstolo de Cristo Jesus, pela vontade de Deus». Como «apóstolo», é
homem que foi chamado e comissionado pelo próprio Jesus Cristo. O
seu título especial ao apostolado é, segundo nos informa em outros dos
seus escritos, que éle tinha «visto o Senhor» e tinha «ouvido a Sua voz»
e que éle recebeu a Sua palavra pessoal de ordem. Conhecia o sentido
da vontade de Deus, porque Êle tinha querido «revelar Seu filho nêle>
fGal. 1:16). Era homem que tinha sido «separado para o Evangelho de
Deus» (Rom. 1:1). Paulo, assim, claramente se considerava como após-
tolo de Jesus Cristo em sentido muito particular. A éle não sòmente
fôra confiada a mensagem do Evangelho, como aos demais apóstolos,
mas Deus quis que as implicações completas do Evangelho, a que éle
chama o «Mistério», lhe fossem inteiramente comunicadas «por meio de
revelação» (Efes. 3:3). Deus, por assim dizer, o tinha constituído como
apóstolo muito especial, «mordomo» ou «Executor» de uma revelação,
até então escondida, da inteira extensão do propósito divino em relação
ao mundo e ao homem. Aquéle que tinha sido «confirmado no tempo
devido» e que, em sua própria opinião era «o menor de todos os
santos» (3:8) e «indigno de ser chamado apóstolo», dirigiu a vanguarda
apóstolica em sua experiência e compreensão da mais íntima intenção
e do alcance cósmico da «vontade de Deus».
Foi, portanto, da humilhante experiência da condescendência de Deus
para com êle e de um profundo discernimento da vastidão da miseri-
córdia divina para com a humanidade, que Paulo invocou a «graça» e
a «paz» sobre aquéles que, à sua semelhança, tinham-se tornado «santos»,
povo separado para Deus pela sua fé em Jesus Cristo. Que a graça, o
— 40 —
imerecido favor de Deus, e a Sua paz que trás a unidade interior à alma,
corra para êles, do Pai e do Senhor Jesus Cristo.
Depois da identificação e da saudação, um vôo arrebatador leva o
escritor ao centro da «esplêndida visão». Êle sobe ao empíreo, onde
se realiza a grande Revelação. Nenhuma outra passagem da Bíblia
combina a música com a majestade e momentos de importância na mesma
medida que os doze versículos seguintes (1:3-14). Eu nada de melhor
posso fazer do que transcrever nêste ponto a descrição que destes versos
fêz um homem que, mais do que qualquer outro do seu tempo, penetrou o
espírito da Carta aos Efésios: «Os doze versos que se seguem confun-
dem a nossa análise. São um caleidoscópio de luzes ofuscantes e de
cores cambiantes. A princípio, não podemos achar umi traço de ordem
ou método. São como o vôo preliminar da águia, subindo e rodando em
círculos, como se por um pouco ainda estivesse incerta da direção que
deve tomar, em sua liberdade ilimitada. Assim o pensamento do após-
tolo se projeta além dos limites do tempo e se eleva acima das concep-
ções materiais que põem limites aos homens comuns e coloca êste cami-
nho e o outro, numa região do espírito, esfera celestial sem rumo, ainda
que indicada, exultando simplesmente nos atributos e propósitos de
Deus . . . Parece estar êle sendo arrebatado pelo tema, não sabendo
bem aonde êste o conduzirá. Começa com Deus, a bênção que vem de
Deus aos homens, a eternidade do Seu propósito do bem, a glória da
sua consumação. Mas êle não pode pôr em ordem a sua concepção ou
terminar as suas sentenças. Um pensamento exerce pressão sobre outro
e não será recusado. E assim segue esta grande doxologia: em quem
— nÊle — nÊle — em quem — em quem — . Mas quando lemos isto,
repetidas vêzes, começamos a perceber certas grandes palavras voltando
e revolvendo-se em redor de um ponto central: A vontade de Deus amol-
dando-se, para algum glorioso resultado em Cristo, êste é o tema. Uma
só frase do verso nove diz tudo: é o «mistério da Sua vontade», (i).
b) O Prelúdio Divino
A realidade do Deus soberano e gracioso fixa o pensamento de Paulo.
Também expande o seu coração e faz brilhar a sua imaginação. Paulo
não está dando interpretação do Universo rival e oposta às teorias cor-
rentes em seu tempo. Não se estende sobre a superioridade da religião
de Cristo sobre as outras religiões rivais. Não argumenta em favor
de Deus contra todas as «agonizantes tentativas de negá-lo». Afirma,
proclama; antes: adora. Com um ato de adoração: «Bendito seja o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com
tôdas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo», começa
êle a falar.
Sugeriu-se no capítulo sôbre Perspectivas que esta adoração rapsó-
dica é comparável ao prelúdio de uma ópera, abertura que contém as
sucessivas melodias que se vão seguir. É exato. Esta é a nota de
clarim, o toque de alvorada ao romper do dia. As trevas se foram: vai
(1) J. Armifãge Robinson, op. cit., p. 19.
ser anunciado um programa de acontecimentos dramáticos. Os conse-
lhos escondidos de Deus tomaram-se segrêdo revelado. Os céus desce-
ram à terra. A prova disto, é que uma multidão de pessoas, entre as
quais Paulo se inclui, têm em si o testemunho de que chegou uma nova
ordem. Êles realmente foram abençoados «com toda a bênção espiritual
nos lugares celestiais». Não que tivessem já experimentado o alcance
completo destas «bênçãos espirituais», mas que o Espírito Santo estava
presente em suas vidas (1:14), e Êle era a garantia de que eventual-
mente eles iriam compreender a extensão completa da bênção e dela
participar. Bendigam êles, por isso, a Deus, que tão poderosamente os
abençoara. Aquêle que tivesse concedido tão inexauríveis benefícios aos
homens, era digno de inexaurível manifestação de louvor da parte dos
homens.
Deus: Que havia na mente e no coração de Paulo quando, em êxtase
de adoração, convidava a si mesmo e a todos os «santos» a «bendizer» a
Deus, a atribuir bem-aventurança ao «Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo»?
O fariseu «batizado em Cristo» tinha em sua herança religiosa a
visão majestática que inspirou Moisés e os profetas. O seu Deus era o
Deus de Israel, que era também o Deus de tôda a terra. Êle, a quem
Paulo, noutra carta escrita da sua prisão em Roma chama o «meu Deus»
(Fili. 4:19), era o Deus vivo. Não era um entre muitas divindades que
pudessem contrariar a Sua ação. A sua liberdade não era limitada pelo
fado cósmico. Não era estrutura da mente humana, nem podia ser des-
crito por tentativa sintética qualquer de fundir atributos considerados
divinos. Deus podia ser conhecido somente pelas Suas obras, por aquilo
que tinha feito e ainda estava fazendo. Fora da Sua atividade não
podia absolutamente ser conhecido. Era sempre sujeito, nunca objeto.
Daquele que, no Velho Testamento, de Si mesmo falou: «Eu sou» podia-
se somente dizer «Deus é». E êste Deus que é eternamente, visto que
não é o produto da mente humana nem depende da ação dos homens,
não pode ser nem patrocinado, nem negociado, nem servir de instrumento
da política humana. É tão pouco o Deus dos políticos e dos governa-
dores do mundo, como dos «filósofos e sábios» de Pascal.
Mas o Deus de Paulo, conquanto seja soberano em Sua majestade,
é muito mais do que simples poder, infinitamente mais do que poder
arbitrário. É um Deus que se interessa pelos homens e gracioso para
com êles. Diferentemente do Deus de Aristóteles, o Seu pensar não é
meramente feito no pensamento. Tem um interêsse mais do que esté-
tico pelo mundo. O Deus da Carta aos Efésios, não é mero turista e
veranista, para quem os homens são apenas cenário. (2) A solicitude
divina é expressa por Paulo na Epístola aos Romanos, o maior dos seus
escritos antes da sua Carta aos Efésios. Ali Deus aparece como sendo,
em sentido muito especial, o «Deus de Abraão». O Seu interêsse pelos
homens levou-O a «chamar» Abraão, a estabelecer um «concerto» com
(2) W. H. Auden.
o patriarca de Ur. Abraão «creu» em Deus. Ao mandado de Deus, êste
caldeu que habitava junto do Eufrates, em centro adiantado de civili-
zação, tomou-se imbuído de divina «solicitude». Ainda que já estivesse
muito além da moderna idade de jubilação e gozando à tarde a despreo-
cupação da vida que a velhice confere, situação que Aristóteles, em sua
Ética, considera como traço da beatitude humana, ele descalçou as alper-
catas e pôs os sapatos nos pés, para uma jornada cheia de aventuras ao
desconhecido. Êle se tornou um alienígena em terra estranha, come-
çando a vida de novo como colonizador, em lugar em que os pastores
nómades cuidavam dos rebanhos. Tomando Deus a sério quando Êle
lhe prometeu que teria um filho que seria o homem destinado a levar
avante o pacto de Deus de abençoar a humanidade, dispós-se Abraão a
criar família. Como «Pai dos crentes, pioneiro de nova ordem, tornou-
se Abraão para o fariseu convertido, agora na prisão de Roma, o homem
que, de todos quantos existiram antes do advento de Cristo, expressou
mais perfeitamente o que se pode, com reverência, chamar a solicitude
aventurosa de Deus para com o género humano. Porque o idoso exilado
caldeu no planalto palestiniano foi, nos acontecimentos da vida, o sím-
bolo e corporização désse espírito de fronteira, dêsse avanço propositado
no futuro, que tem caracterizado o Deus da Bíblia e as vidas de todos
os homens semelhantes a Deus.
O Deus de Abraão revelou-se à humanidade na «plenitude dos tem-
pos» como o Deus e Pai de Jesus Cristo, Deus, como Pai dos Filhos de
Abraão, isto é, do povo hebreu, tornou-se o Pai de uma Pessoa. Essa
pessoa é Seu Filho, em um sentido único. Esse Filho proclamou, como
ainda antes nunca tinha sido proclamado, que Deus era supremamente
Pai.
Atrás da cortina das aparências, controlando o movimento da história,
como fundamento do mistério cósmico, há um Pai. O reconhecimento
de que a Realidade Fundamental no universo é paternal, de que a Pater-
nidade de Deus é verdadeira, de que o fato de Cristo era a prova e o
padrão da Paternidade Divina, levou Paulo a lançar o seu coração em
um cântico de triunfo. Podemos bem parar um momento para meditar
no que realmente significa crer que há um Pai Onipotente no Universo.
Realmente, crer isto e senti-lo é exultar, como Paulo exultou, porque o
Universo não é uma grande máquina. Nêle existem leis; uma das suas
caracteristicas é a ação eficiente; não estão ausentes dêle processos ine-
xoráveis e cruéis; mas os atributos do mecanismo no que há de melhor,
não esgotam o que o Universo é. A vontade de um Pai controla a má-
quina, que é a obra da Sua infinita sabedoria e o instrumento do Seu
propósito paternal. Essa vontade e esse propósito estão acima da neces-
sidade física. Não são limitados por dialética ou qualquer determinismo
da história. Porque Deus é Pai, o mundo não é orfanato. Se fôsse, a
bondade humana terrena que conhecemos não teria o seu correspondente
cm uma bondade divina fundamental.Os homens seriam tais como órfãos
cheios de decepção, despertando para a realidade da sua solidão cósmica.
Mas, porque Deus é Pai, muito menos a história humana é um vasto
— 52 —
cemitério de valores mortos. Um cemitério pode ser um lugar de exta-
siante beleza, mas a beleza estética é uma compensação pobre para a
esperança imortal. Mas há um Pai. O padrão espiritual fundamental
é o de um Reino paternal. Portanto, a fôrça não é o direito. As almas
não são para venda. A paternidade entre os homens, e tudo quanto
ela significa, baseia-se na realidade de uma Divina Paternidade univer-
sal. E a glória desta Paternidade é, como Paulo sugere, que o Pai uni-
versal é também o Pai arquétipo. Porque Deus é «o Pai do qual tôda a
família nos céus e na terra toma o nome» (Efes. 3:14, 15). Tudo o
que de mais nobre existe nas afeições humanas tem na Paternidade de
Deus a sua origem, bem como é nela modelada.
Êste Deus paternal é o Deus e Pai de «nosso Senhor Jesus Cristo».
Paulo, até onde sabemos, nunca viu a Jesus de Nazaré na carne. Diz-se
que êle não se interessou pela vida anterior de Cristo, porque silencia a
respeito dela. É verdade que, quando se refere à Figura histórica, é para
relacioná-la com o Ser Divino «que Se humilhou a si mesmo, tomando a
forma de servo e foi obedecido até à morte» (Fili. 2:8) e que, pelo grande
poder de Deus, foi levantado dos mortos. Recordemos, porém, que a
tarefa de Paulo não foi escrever uma outra vida de Cristo, competindo,
assim com as dos seus companheiros de viagens. Marcos e Lucas. A
sua tarefa era proclamar a relação de Jesus de Nazaré com o Cristo
pré-existente e expor a significação que o Cristo Ressurreto, que o tinha
chamado para o Apostolado, tinha para com Israel e para com a Igreja,
para com a humanidade e para com o cosmos. E assim mesmo, não
podemos escapar ao temo interesse que Paulo teve pelo Homem da Gali-
léia. Êle acrescenta mais um item à coleção dos ensinos de Jesus regis-
trados nos Evangelhos, quando (segundo Atos 20:35), introduz, certa
ocasião, as «palavras do Senhor Jesus»: «Coisa mais bem-aventurada
é dar do que receber». Mas, mais importante do que isso é o próprio
fato de que o mesmo ensino de Paulo sôbre os grandes assuntos espiri-
tuais é, como os estudos mais recentes do Novo Testamento têm demons-
trado, virtualmente idêntico ao de Jesus. Não sòmente isto, mas a sua
própria vida, como «servo de Jesus Cristo», mais se aproxima daquêle
cuja grande glória foi que Êle «humilhou-Se e tomou a forma de servo»,
do que a vida de qualquer outro que já tenha vivido. Ninguém pode
fugir à evidência da medida em que a «mente de Cristo» estava em
Paulo e de que a vida concreta de Jesus era tão normativa para o seu
pensamento a respeito de Deus e do homem como deve ser para todos
os cristãos.
O que é realmente importante é reconhecer que o homem chamado
Jesus era para Paulo, como o era também para os cristãos primitivos,
o Messias de Israel, o Filho de Deus Incarnado, que fôra enviado por
Deus para missão de misericórdia redentora, que era igual a Deus em
Sua vida; em cujos sofrimentos e morte Deus estava presente e a Quem
Deus ressuscitou dos mortos e exaltou até à sede principal do poder
universal. Quando Paulo e os cristãos primitivos formularam o pri-
meiro e mais básico dos credos: «Jesus Cristo é Senhor» (Fili. 2:11),
— 53 —
aplicaram a Jesus um termo que, na Septuaginta, se aplicava a Jeová,
o Deus de Israel, e que, entre os romanos, era empregado para designar
o César imperial. O Deus, cujo pensamento inspirava a Paulo uma rap-
sódia, era o Deus cuja natureza como Pai eterno se demonstrou supre-
mamente na vida, no ensino, na morte, na ressurreição e exaltação de
Jesus Cristo, o Senhor, e cujo propósito soberano e graciocíssimo se
tornaram manifestos em Jesus Cristo e por intermédio dêle. Assim foi,
tanto por causa do que Jesus Cristo fêz e também porque os «fiéis em
Cristo Jesus eram abençoados por Deus «com todas as bênçãos espiri-
tuais nos lugares celestiais».
A magnitude completa e as implicações desta «bênção» são o tema
do que imediatamente segue este «prelúdio» magnificente. Neste ponto
basta dizer-se, antes de passarmos à revelação concreta do propósito
divino, que «tôdas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais», segundo
a concepção de Paulo, incluem e levam tudo o que se entende nos Evan-
gelhos Sinópticos como «Reino de Deus» e a «Nova Idade» e as suas
bênçãos, que vieram com poder em Jesus Cristo. Inclui o que o próprio
Paulo quer dizer na Carta aos Romanos por «Justiça de Deus», aquela
nova ordem de existência que veio ao mundo com Jesus Cristo e que,
por intermédio dÊle é comunicada às almas dos homens por Êle.
Com isto, estamos prontos a considerar o vasto esquema de recon-
ciliação, ato paternal da parte de Deus e da Sua vontade redentora de
unidade, que Êle propôs em Cristo, pela qual o poder do amor triunfou
onde tinha falhado o amor do poder.
c) O «Mistério da Sua Vontade»
O estribilho da mensagem dirigida por Paulo aos cristãos espa-
lhados pelo mundo romano era que o segrêdo do propósito de Deus, até
aqui escondido de tôda a humanidade, fôra agora revelado. O objetivo
da sua carta ecuménica era informá-los de que tinha brilhado uma luz
nas trevas da condição do homem e de que o enigma trágico da vida
humana tinha sido decifrado por uma Revelação Divina. A esta reve-
lação, ou antes ao Segrêdo Revelado, chamou êle o «Mistério». Êle,
Paulo, fôra por Deus constituído como «mordomo» ou «executor» dêste
«Mistério», para tomar de todos os homens conhecido o «plano», «o
plano do mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo
criou». (Efes. 3:9). O cumprimento desta função especial como «Exe-
cutor», de que tinha sido encarregado, para ver se o conhecimento do
«Mistério» era difundido pelo mundo inteiro, Paulo o relacionou intima-
mente com o seu ofício de «Ministro do Evangelho», a quem Deus tinha
separado «para pregar aos gentios as incompreensíveis riquezas de Cristo»
(3:7, 8). Para êle e para a sua missão apostólica, o «Mistério», o «Evan-
gelho» e «Cristo», estão inseparavelmente unidos.
São apropriadas algumas observações, antes de irmos mais adiante,
a respeito do têrmo «Mistério», como é aqui empregado por S. Paulo. É
importante ter em mente que o seu uso do têrmo nada tem que ver com
o emprêgo moderno do mesmo. Hoje em dia, significamos por «Mis^
tério» alguma coisa estranha, inescrutável, enigmática, algo que neces-
— 54 —
sita de ser decifrada e para o qual é imprescindível uma chave. Assim
é que falamos acerca de «novelas de mistério». Ora, Paulo significava
por «Mistério» exatamente o contrário de nós. Para êle «mistério» era
um segredo, antes escondido e agora desvendado. O «Mistério», por-
tanto era o «segredo revelado», uma verdade divina supremamente im-
portante, que Deus tinha antes mantido em segredo, mas agora tomada
conhecida.
É natural que se deva procurar alguma conexão entre o interêsse
que Paulo tinha no «Mistério» e os cultos do «Mistério», que eram
comuns no seu tempo. O colapso das velhas religiões da Grécia foi acom-
panhado da invasão dos cultos orientais. Com a desintegração das
estruturas tradicionais das crenças religiosas e dos costumes sociais, e
com o crescimento do espírito cético e indagador, os homens, então
como agora, começaram a sentir intensa solidão espiritual. Tinham sido
devolvidos a si mesmos e estavam dispostos a tôda a sorte de experiên-
cia religiosa. O culto do «Mistério» era uma espécie de «Franco-Maço-
naria». Seguindo purificações apropriadas e ritos sacramentais, os devo-
tos eram iniciados em certos conhecimentos esotéricos e recebiam a
promessa da imortalidade. Mas o «Mistério» de que Paulo era «exe-
cutor» não convidava apenas uns poucos a se iniciar no que era esotérico.
Era um convite a todos os homens para a proclamação do que tinha sido
desvendado e tornado público e que, por essa razão, assumia a condição
de conhecimento comum. Esses iniciados nos «mistérios» eram obriga-
dos a não revelarem os segredos do culto; os cristãos, pelo contrário,
estavam obrigados a comunicar a todos o «Segrêdo Desvendado».
Não há evidência de que o uso que Paulo fêz do têrmo «Mistério»
devesse, ao menos o nome, aos cultos em voga. Parece antes que êle
o derivou de fontes puramente judáicas. No «Livro de Enoque», por
exemplo, que esteve perdido durante longo tempo, e do qual grandes
porções agora foram restauradas, a palavra «mistério» é usada repe-
tidamente dos «segredos divinos que, certa ou erradamente, chegaram
ao conhecimento do homem». Por outro lado, resta pouca dúvida de
que Paulo, com agudo senso das situações humanas, muito deliberada-
mente usou um têrmo que estava em voga e lhe infundiu um novo con-
teúdo de desafio.
Na Carta aos Efésios estão expostas três fases do «Mistério».. A
primeira é a fase vertical. Deus, «em tôda a sabedoria e prudência»,
diz Paulo, «nos descobriu o mistério da Sua vontade, segundo o Seu
beneplácito, que propusera em Si mesmo, de forma a congregar em
Cristo tôdas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto
as que estão nos céus como as que estão na terra (1:8-10). Isto signi-
fica que Deus constituiu a Jesus Cristo como centro unificador de um
vasto esquema de unidade, pelo qual as ordens celestes e terrestres,
separadas como agora estão por um grande abismo entre o sobrenatural
e o natural, e pelo abismo ainda maior do santo e do pecaminoso, serão
de novo reunidas em uma única e unida Comunidade. Nesta unidade
transcendental em que tôda a criação de Deus será «congregada em
— 55 —
Cristo», será perfeitamente feita a vontade de Deus. O Seu Reino terá
vindo no sentido mais completo. A Divisão terá sido totalmente desfeita.
A segunda fase pode ser designada como a fase horizontal ou histó-
rica. Como prelúdio da unidade horizontal, a grande divisão que a
história conheceu, a separação entre judeus e gentios, desaparecerá.
Esta eliminação também se realiza em Cristo. É tarefa de Paulo, como
êle a considera, proclamar o «Mistério de Cristo», do qual êle tem espe-
cial introspecção, segundo o qual os «gentios são coerdeiros, membros
de um mesmo corpo, e participantes da promessa em Cristo pelo Evan-
gelho» (3:4-6). A constituição de uma única família humana, entre
povos historicamente separados um do outro, torna-se possível, como
veremos mais adiante, porque Jesus Cristo destruiu a «inimizade» ou a
«hostilidade» que os conservava separados um do outro. Os judeus e
os gentios reconciliaram-se, mutuamente, porque ambos se reconciliaram
com Deus. Por meio de Cristo, tornaram-se membros do mesmo Corpo:
o novo homem, a nova humanidade, o novo Israel, que é constituído pela
Igreja Cristã. O sentido é claro: que Deus Se propõe relacionar consigo
mesmo em uma grande família povos que tinham estado separados por
ódios históricos, por diferenças culturais e condições sociais. O unifi-
cador é Cristo e o princípio unificador é o «Evangelho».
A terceira fase do «Mistério» é que, em resultado da ação transfor-
madora e unificadora da Igreja na história, espíritos, tanto bons como
maus, superiores aos espíritos humanos, adquirirão, contemplando esta
atividade da Igreja, a sua mais profunda introspecção da sabedoria, a
«multiforme sabedoria» de Deus (3:10). Não existe mais sublime pen-
samento na Carta aos Efésios e em tôda a Escritura do que êste. A
história da Igreja Cristã torna-se uma escola que confere graus a anjos.
Pelo estudo do Corpo de Cristo, as inteligências superiores ao homem
recebem novas luzes sôbre introspecção da natureza divina. Chegarão
a compreender coisas que lhes tinham sido inescrutáveis, na dispensação
de Deus com os homens, e adquirem uma visão do supremo esplendor e
das dimensões do propósito do Criador em Cristo. E o que contemplam
não é a espécie de sabedoria que consiste em adquirir idéias que sempre
estiveram lá; contemplam a operação de poder que se torna a fonte de
novas idéias. Porque o poder que opera na igreja e a sabedoria que se
manifesta nas operações desse poder, ultrapassam de muito em signi-
ficação tôdas as manifestações seculares de sabedoria e de poder de que
o homem tem disposto para tratar do problema do universo dividido.
A vontade de Deus para a unidade é, desse modo, a coisa mais central
na história cósmica e humana. Ninguém deve atrever-se a ignorar êste
divino impulso, porque de tudo o que o homem intenta, que vier de encon-
tro à vontade divina malogrará completamente e se aniquilará por ela.
Quanto aos cristãos, é importante que explorem no grau mais completo a
natureza e as implicações desta unidade que Deus busca, êste plano de
vida que Êle está estabelecendo.
Qual é a natureza desta unidade que é executada pelo poder de Deus
e é supremamente expressiva da Sua sabedoria? A unidade que Deus
— 56 —
quer é uma unidade religiosa. Uma unidade religiosa é uma unidade
em que espíritos criados vivem em perfeita harmonia com a vontade do
Criador. Esta é a única espécie de unidade que tem sentido no pensa-
mento da Bíblia. Esta é a unidade central no pensamento de Paulo e
que constitui o grande tema da Carta aos Efésios. O grande problema
da humanidade não é alcançar clareza intelectual na interpretação do
Universo. Por assim dizer, o problema não filosófico. Nem é politico
tão pouco achar algum princípio de utilidade ou de ajuste que constitua
acordo apropriado entre os homens. Ainda é menos problema estético,
o de introduzir tal beleza no quadro do Universo que fizesse os homens
esquecer a sua fealdade, ou produzir, por meio de certas criações artís-
ticas uma limpeza de emoção humana, que imunizasse o homem do seu
interesse a respeito da tragédia do mundo. O problema real é constituir
uma unidade espiritual pela qual os homens, unidos em sua fidelidade a
Deus, lealmente se devotem uns aos outros.
Tal unidade não é unidade abstrata. É antes uma comunidade,
aliança de espíritos humanos unidos a Deus e uns aos outros. O que
Deus quer, portanto, não é mera unidade, mas comunidade. E a comu-
nidade que Deus quer não é aquela sociedade sem classes tal como a com
que os marxistas contam, que expressaria o último grau de evolução, mas
em que faltará totalmente dimensão espiritual. A comunidade que Deus
quer é comunhão de amor, não constituída por evolução na história,
mas pela intervenção de Deus na história. É uma comunidade constituída
por Jesus Cristo, que, pelo que Êle foi e pelo que fez, reuniu em amor o
homem a Deus e o Homem ao homem. Nesta comunidade reinará o
amor, e o princípio hierárquico, o princípio da reverência para com a
verdadeira superioridade, será realidade. A verdadeira finalidade da
história, pois, o supremo objetivo que Deus quer, não é a vitória da sabe-
doria em uma corporação de eruditos, nem a vitória do poder em uma
oligarquia fascista, nem ainda a imposição de uma sociedade comunista
sem classes, da qual será excluída tôda obediência hierárquica. A von-
tade de Deus a respeito da comunhão busca uma comunidade de amor,
um plano de vida em que Êle reinará em todo o coração humano e em
tôdas as relações humanas.
E' claro, porém, que uma comunidade tal sòmente poderá ser cons-
tituída mediante uma mudança da natureza humana. Marx estava certo
quando manteve, contra a filosofia tradicional, que a verdadeira tarefa
não é entender o mundo, mas mudá-lo. Contudo, estava errado quando
pensou que mera mudança na estrutura e constituição da sociedade
humana era em si mesma o acontecimento revolucionário de que se
necessitava. Marx não foi radical, nem revolucionário bastante. A
mudança real que se precisa alcançar, a mudança que a vontade de
Deus invencivelmente procura, é mudar o homem do egocentrismo e do
classecentrismo para o teocentrismo. Mas isto significa, não revolução,
mas salvação. Significa redenção, a libertação do homem do poder
e dos efeitos da sua vontade rebelde, egoística, deificadora. A comuni-
dade, no sentido mais amplo, salvação no sentido mais completo, são
— 57 —
escatológicas em caráter, isto é, elas somente poderão ser realizarias intei-
ramente no fim da história como nós a conhecemos. Mas, até que a
<í^justiça e a paz se beijem», até que Deus estabeleça o «Seu Reino que
não pode ser abalado», duas coisas serão verdadeiras. A primeira ó
esta: a presença do amor, operando em uma limitada comunidade de
amor, será uma fôrça supremamente criativa e preservativa na sociedade
humana. E a segunda: «O Evangelho da vossa salvação», que é tam-
bém o «Evangelho da glória do Deus bendito», tanto em sua proclamação
verbal como em sua expressão vital, será o interêsse principal de todos
os que conhecem o «Mistério» e por êle vivem.
d) O Amor Eterno e Invencível.
É necessário agora que consideremos a fôrça que leva a vontade
divina à comunhão, o propósito de Deus de constituir em Cristo uma
«Comunidade ou Reino Unido dos Céus e da Terra», propósito que é des-
vendado no «Mistério». Essa fôrça é o amor, o amor de Deus, santo,
soberano, o apaixonado amor de Deus. O amor de Deus é um poder im-
pulsionador, por detrás do movimento histórico e cósmico para a uni-
dade espiritual .
O amor de Deus, que ocupa lugar tão central na Epístola aos Efésios
e que constitui o tema central da Bíblia como um todo, é um interêsse
apaixonado e uma devoção para com pessoas não naturalmente amáveis,
nem amoráveis, em si mesmas, pessoas essencialmente indignas e peca-
minosas. É ágape, o caminho de Deus para o homem, por virtude do
qual Deus tem saudades do homem, procura o seu bem, esforça-se por
libertá-lo de sua rebelião pecaminosa, torna-se Seu Salvador e o faz Seu
filho. Isto é alguma coisa completamente diferente do que os gregos
chamavam Eros. Eros era uma aspiração por tudo que era natural-
mente amável e belo, devoção a isso. Eros fugia da presença do feio, do
indigno, do pecaminoso e do desleixado; êle não podia inspirar paixão
ou intêresse.
Pensando nas pessoas que estavam «mortas em delitos e pecados»
lascivos nos corpos e fúteis na mente, vivendo sem esperança e separa-
dos de Deus, Paulo afirma que Deus, com amor «predestinou-nos para ser-
mos Seus filhos por Jesus Cristo (Efes. 1:5). Êle provocou com carícias
tais pessoas para interêsses e atitudes que naturalmente não tinham;
deu-lhes uma condição que, naturalmente, não mereceram. Quando
Deus, portanto, fêz de homens perdidos «Seus filhos», esta filiação foi dom
concedido a pecadores e não coroa conferida a vencedores.
Mas o amor de Deus para com os homens a quem fêz «filhos», não
teve início na história, nem no tempo da vida dos «filhos»: «Esco-
Iheu-os em Cristo «antes da fundação do mundo»; «Destinou-os ou «pre-
destinou-os» para serem «filhos», «segundo o beneplácito da Sua vontade»
(1:5).
Aqui nos aproximamos de uma questão mui grande e importante a
respeito de que, em algumas épocas, travaram-se amargas controvérsias,
na Igreja Cristã. E' a questão da Eleição de Deus ou da Divina Predestina-
— 58 —
ção. E' importante que demos alguma atenção a este assunto. O contexto
da Carta aos Efésios é boa moldura e em que para estudar tal doutrina
o problema nêle envolvido é de interesse básico. De fato, o problema
geral da filosofia da história e o problema particular do determinismo
histórico dão grande atualidade a tôda questão do que pode ser chamado
Eleição da Graça.
O problema essencial, naturalmente, é este: — Como é que um
erande propósito espiritual será infalivelmente ou, se achardes melhor,
inexoravelmente alcançado, na história, sem que seja violada a liber-
dade humana? Como será atingida a finalidade divina ou cósmica no
mundo dos homens, em que são envolvidos o destino e a cooperação dos
homens, sem serem os homens autómatos, isto é sem que sejam meros
peões de um jôgo cuja conclusão não depende da sua vontade? Tal
problema é tanto para a filosofia como para a religião.
Examinemos primeiramente a concepção da liberdade. Quando ó
cue os homens são verdadeiramente livres? Os homens não são livres
quando a sua ação é determinada por mera fantasia ou capricho, pois que,
cm tal caso, a fantasia ou capricho seriam os seus senhores. Os homens
tão poucos são livres quando uma autoridade de qualquer espécie que seja
os força a fazer alguma coisa cuja retidão essencial ou importância não
lhes é clara. Na verdadeira liberdade, duas condições têm de ser preen-
chidas. Uma delas é a legitimidade ou valor universal daquilo que se
pede a uma pessoa aceitar; a segunda é a voluntariedade pessoal com
que a pessoa pode agir. Tal liberdade é refletida nas linhas do hino:
«Faze de mim, Senhor, Teu servo, e então livre serei». Isto é o reco-
nhecimento do fato de que a verdadeira liberdade é uma submissão ao
divino. Não existe servidão quando o espírito humano se torna o agente
voluntário e alegre do Infinito e do Santo. «Eu de muito bom grado
seria para a bondade Eterna o que a sua própria mão é para im homem».
Aí tendes uma aspiração exuberante de ser agente voluntário, ainda
que inevitável, dos graciosos propósitos de Deus.
Eis aqui um assunto em que os marxistas revelam grande visão.
Para o marxista, liberdade consiste em «reconhecer uma necessidade
superior». Esta necessidade superior é, naturalmente, o «Determinismo
Económico», e a inteira visão universal está ligada a êle. Mas a coisa
importante de que se deve lembrar é que nenhum comunista fiel se
considera servo. Está cumprindo, mesmo quando se submete ao jugo
de ferro da ditadura, uma expressão inevitável, ainda que temporária,
segundo êle espera, das «forças radiantes do Universo», Quão muito
mais gloriosamente livre é um homem que, quando admitido como filho
na família de Deus, aceita o jugo que Deus impõe, para promover a
vontade paternal de comunhão e assim gozar da «gloriosa liberdade dos
filhos de Deus»,
Mas a principal dificuldade nas mentes de alguns é que uma «Eleição
da Graça» ou «predestinação de amor», pareceriam envolver seleção
arbitrária da parte de Deus de algumas pessoas favorecidas em detri-
mento de outras. Observe-se que Paulo apresenta a idéia da Eleição
— 59 —
de Deus «antes da fundação do mundo», a fim de explicar aos « santos
a quem escrevia, como se realizou a experiência que éles tiveram. O
que lhes havia acontecido não era mera casualidade. A nova esperança
dêles em Cristo não era ilusão, porque a vida e o destino déles estavam
incluídos no eterno plano de Deus, que nêles se estava realizando. Deus
tinha pensado nêles, antes que fossem nascidos e mesmo antes de terem
sido criados os mundos. Por isso, tenham êles bom ânimo. Era como
se Paulo quisesse ensinar-lhes, a cada um dêles, a dizer a Deus:
«Tu antecipaste a minha alma
E sempre me amaste».
Deve-se lembrar, também, de que João Calvino, cujo nome é asso-
ciado, em muitos espíritos, com uma concepção que tem ligação apenas
arbitrária com a doutrina da predestinação divina, não a apresenta
antes do terceiro livro das suas Institutas da Religião Cristã. E quando
o faz, não é em conexão com a sua doutrina de Deus mas com a doutrina
do homem cristão. Como Paulo, êle relaciona a Eleição de Deus com a
experiência cristã de regeneração, como seu antecedente fundamental.
No seu Catecismo das Crianças, absolutamente não aparece esta doutrina,
considerada por êle como alimento forte para adultos. Foi somente
como resultado da amarga controvérsia a respeito do plano divino de
salvação é que fêz com que a doutrina da Predestinação tivesse tomado,
no pensamento de Calvino, a preeminência com que costuma ser asso-
ciada ao seu nome. A escolástica protestante de tempos posteriores fêz
o que Calvino não tinha feito: tratou da Predestinação ao discutir a
doutrina de Deus.
Mas aqui estamos, tratando de Paulo e da Carta aos Efésios. No
que se refere ao pensamento de Paulo no mais amadurecido dos seus
escritos, êstes são os fatos salientes: Os «Santos», a quem se dirige,
foram escolhidos «em amor». Ora amor não pode pensar no mal nem
praticá-lo. Onde, pois, está o amor por detrás da seleção, estão excluí-
dos, tanto o fatalismo da necessidade como a arbitrariedades do poder.
Onde o amor é supremo, não há lugar para o destino ou para o capricho.
Além disso, foram «escolhidos em Cristo» (1:4); Deus ordenou que
Jesus Cristo fôsse tanto o Salvador como o centro de tôda unidade espi-
ritual, tanto no tempo como além do tempo. Cristo não foi um simples
instrumento da eleição divina; os homens foram escolhidos nÊle. Karl
Barth está perfeitamente certo quando, em sua interpretação da dou-
trina clássica da Predestinação, fazendo-a tanto mais escriturística, e
assim tão m.ais cristã, afirma que não existe decreto divino absoluto fora
de Jesus Cristo. Falando paradoxalmente, Cristo é, simultaneamente,
o Deus que escolheu e o Homem que foi escolhido. Ser «escolhido em
Cristo», significa, pois, ser escolhido para ser salvo por Aquele que não
exclui a ninguém que a Êle venha. Ninguém é excluído da eleição de
Deus em Cristo, senão os que deliberadamente se excluem.
Mas Paulo e os seus leitores também foram escolhidos para serem
«santos e inculpáveis». Deus queria que fossem verdadeiramente seme-
lhantes a Jesus Cristo, em Quem foram escolhidos. Ai dêles, se alguma
— 60 —
vez pensassem que deviam «pecar para que abundasse a graça» ou que
outra coisa qualquer que não a bondade fôra o fruto que Deus procurava
em suas vidas. A semelhança dêles com Cristo não devia manifestar-se
meramente em espiritualidade interior e virtudes passivas. Foram es-
colhidos por Deus para as «boas obras» de natureza visível e externa.
Quer isto dizer que Deus escolhe os homens não para fazer dêles crianças
mimadas, fariseus cristãos ou intoleráveis pedantes. Êle queria gente
que fizesse as Suas «obras» e levasse avante a Sua obra.
Em uma palavra, foram escolhidos para o «louvor da Sua glória»
(Efes. 1:12). A grande finalidade do amor eterno e invencível de Deus
foi formar homens que fossem realmente semelhantes a Deus, isto é,
homens que aspirassem à semelhança em Deus e com Deus. A ambição
constante dêles seria «glorificar» a Deus, isto é, torná-Lo manifesto em
suas palavras e feitos, lutando por serem «perfeitos como seu Pai Celes-
tial é perfeito».
e) O Órgão Histórico de um Propósito Eterno.
Deixando a realidade de Jesus Cristo como Criador e centro de tôda
unidade espiritual na história cósmica e na humana para especial consi-
deração no próximo capítulo, estudemos agora, no final dêste, o órgão
que Deus designou para dar cumprimento histórico ao «plano do Mis-
tério».
Êste órgão é uma comunidade, a comunidade dos «escolhidos em
Cristo», dos «predestinados em amor». Esta comunidade pode ser ge-
ralmente chamada «O Povo de Deus». Na Epístola aos Efésios, supre-
mamente interessado no aspecto encorporado do cristianismo, o «Povo
de Deus» ocupa lugar central. No Velho Testamento, êle formara a «Co-
munidade de Israel»; no Novo Testamento, constitui a Igreja Cristã, o
«Corpo de Cristo».
O propósito de Deus de criar uma nova humanidade e constituir
uma unidade espiritual em escala maior do que a que foi desfeita, levou,
no curso da história humana, à escolha de uma nação especial que se
tornasse o órgão da Sua vontade redentora. Escolhendo um homem,
Abraão, para se tomar o ancestral de uma «raça escolhida». Deus fêz
duas coisas: aprofundou a brecha que separava os povos, de modo tal
oiíe a consciência desta escolha, por parte dos «filhos de Abraão», se
tornasse a fonte da mais aguda divisão racial que a história tem registado.
Por outro lado, foi formada uma nação por Deus designada, por meio
de uma experiência de redenção e de um propósito especial de educação,
para ser o meio cole ti vo de promover o Seu eterno propósito. Um povo
que não possuía grandeza política nem génio religioso nativo, tornou-se
o «Povo de Deus».
A «Comunidade de Israel», para usar a designação de Paulo (Efes.
2:12), manifestou através da história duas características principais. O
povo hebreu tinha intensa consciência da realidade de Deus, e uma cons-
ciência igualmente intensa do seu próprio destino sob a direção de Deus-
Os hebreus tinham senso de Presença e senso de Destino. Como o «Povo
da Presença», constituíam um povo cuja inteira história recebeu a sua
— 01 —
significação da consciência da proximidade de Deus. Deus falou-lhes;
Êle os chamou; Êle os conduziu. Na sua peregrinação do deserto, Êle
habitava entre os «Querubins da Glória», que circundavam a «Sagrada
Arca do Concerto». Êles levantavam as tendas para O seguirem, quan-
do Êle se movia avante, na Nuvem ou na Coluna de Fogo. «O' Senhor,
mostra-me a Tua glória (o Teu esplendor desvendado)», disse o Legisla-
dor de Israel. E de novo: «Se a Tua presença não fôr conosco, não nos
faças subir daqui» (Ex. 33:15).
Israel tinha igual senso de Destino. Os Israelitas sabiam que Deus
os tinha feito nação e tinha controlado a sua vida nacional, com um pro-
pósito. Êsse propósito era abençoar o mundo. As páginas dos Salmos
e dos Profetas resplandecem de visões do futuro Reino Messiânico. Um
grande Libertador, um Rei Messiânico, havia de vir a Israel e venceria
todos os inimigos do povo de Deus e faria de Israel a Nação Predestinada.
Êste duplo senso de Presença e de Destino, deu à «Comunidade de
Israel» unidade extraordinária e sem precedentes. Israel tinha um Deus,
Jeová, o Senhor de Israel, que tinha feito concerto com o Seu povo, o
Qual era também o «Deus de tôda a terra». Israel tinha uma Lei. A
presença de Deus entre o Seu povo e o destino de Israel dependiam da
obediência a esta Lei. Israel tinha uma Cidade Santa, Jerusalém, a «Ci-
dade do Grande Rei», que era literalmente o centro da terra, a verda-
deira capital do mundo, à qual tôdas as nações viriam um dia, para
«adorar o Rei, o Senhor dos Exércitos». Israel tinha um Templo. O
Templo de Jerusalém, sôbre ser o centro do culto de Israel era, também,
como o consideravam os escritores judaicos, o «umbigo da terra». Isto
significava que, por meio do templo, a terra recebia ou devia receber o
seu nutrimento espiritual.
Mas Israel perdeu a Presença e deixou de cumprir o seu Destino.
Chegou um momento na história de Israel em que a nação, espiritual-
mente cega, não pôde reconhecer o seu Messias e recusou-se a dar o ne-
cessário passo seguinte para a bênção do mundo. A nação, em seu or-
gulho, desejou antes ser abençoada e do que abençoar. Ela antes quis
ter do que ser. Estava mais interessada em receber segurança da parte
de Deus do que em prestar serviço, a Deus. Tinha perdido o senso do
peregrino; isto impediu que se entregasse a uma nova e grande aventura,
tal como Abraão empreendeu deixando a Babilónia, tal como Moisés em-
preendeu deixando o Egito, tal como encararam os grandes Profetas de
Israel como o futuro papel de Israel. Assim, foi crucificado o Messias;
foi constituido um novo Povo de Deus, e a Comunidade de Israel deixou
de ser espiritualmente significativa para o desenvolvimento do Eterno
Propósito.
A Igreja Cristã, em cujos membros é transposto e vencido o antago-
nismo entre judeus e gentios, porque Deus a ambos reconciliou consigo
mesmo «em um corpo», é o Novo Israel. E' mais do que isso, é o Novo
Homem, a Nova Humanidade (Efes. 2:15). Assim, a unidade da Igreja
não é uma questão de política eclesiástica e prática nem de ciência de
governar. Os que têm «chegado perto, no sangue de Cristo» (2:13) ; que
têm sido «reconciliados com Deus por meio da Cruz» (2:16) ; que têm
— 62 —
«acesso ao Pai em um mesmo Espírito» (2:18) ; que «s,ão edificados para
morada de Deus no Espirito» (2:22); que formam a «Igreja, que é o
Seu Corpo», constituem uma unidade ontológica. Quer isto dizer que
a Igreja Cristã, conforme o seu significado exposto por S. Paulo na Carta
aos Efésios, é uma unidade, uma pessoa coletiva. Os seus membros,
através da sua relação comum com Jesus Cristo, foram tirados de uma
comunidade e colocados em outra.
Teremos ocasião de considerar, em capitulos subsequentes, a descri-
ção que Paulo faz dos membros individuais da nova comunidade e da
própria comunidade como um todo. E basta dizer a respeito da Igreja,
ao concluir este capitulo, que, no «propósito eterno» de Deus, a Igreja
Cristã está destinada a ser a comunidade padrão da história e, ao mesmo
tempo, a bênção da inteira comunidade histórica da humanidade. Na
vida e na atividade da Igreja como Nova Humanidade, nada se deve per-
mitir que apareça, em palavras ou atos, que seja indigno do espírito de
amor que deve reinar dentro dela, no qual é «arraigada e fundada» (Efes.
3:17). Ela não pode ser fim em si mesma, porque é o «Corpo de Cristo»,
o órgão da Sua vontade redentora. Nunca deve tornar-se complacente
ou aspirar a tornar-se reino deste mundo. Rodeada de fôrças hostis,
nunca deve deixar de ser militante, revestida de «tôda a armadura de
Deus». Nunca pode sentir-se em casa dentro de qualquer forma de so-
ciedade. Em momentos de crise histórica, deve estar preparada, a fim
de ser leal a Deus, a deixar tudo e tornar-se estrangeira como Abraão,
a tomar a Cruz e a seguir o Crucificado.
Ao contrário do proletariado revolucionário, a Igreja não se con-
siderará como o cumprimento das fôrças imanentes da história; deve
antes considerar-se como o órgão histórico de um propósito que fica
para além da história. Colónia dos céus na terra, contudo, a Igreja Cristã
será a comunidade decisiva para a transformação da terra e para amol-
dar o destino dos que nela habitam.
À medida que o Grande Drama continua e o Eterno Propósito se
desdobra, a Igreja Cristã, a Nova Humanidade, torna-se a grande lição
objetiva, por meio de cujo estudo, como já vimos, os «Principados e as
Potestades nos lugares celestiais» se tornam instruídos na sabedoria de
Deus. Os dirigentes de homens muito lucrariam, também, em estudar
esta comunidade com o mesmo interêsse absorvente com que espíritos
superiores o fazem. Descobririam que a história da Igreja tem lições
importantes de estadística. Talvez, como estadistas ou militares, apreen-
dessem a «beijar o Filho», a humilharem-se diante daquele que, só Êle, é
o único Vencedor entre todos que a história já conheceu. Porque, final-
mente, Êle e só Êle é quem deve reinar.
Com isto, entremos na parte mais crucial do nosso estudo: — Con-
sideremos o papel desempenhado por Jesus Cristo. Porque foi por meio
dÊle que veio à Humanidade o Eterno e Invencível Amor de Deus. Foi
Êle quem criou uma Nova Humanidade curada da antiga divisão. E'
por meio de Cristo que o eterno propósito de Deus tem de ser cumprido,
cumprimento êste em cuja melodia rapsódica lançará as suas árias por
todos os corredores do Tempo — e da Eternidade.
— 63 —
CAPÍTULO IV
A VITÓRIA QUE CRISTO ALCANÇOU
No mesmo momento em que consideramos a relação da religião cris*
tã com o pensamento humano, damos de frente com um grande paradoxo.
a) O Centro e a Chave da Fé: Uma Pessoa.
A religião que, mais do que qualquer outra das grandes religiões da
humanidade, deu origem a idéias e influenciou sistemas de idéias, não era,
em si mesma, uma religião de idéias, mas a religião de uma Pessoa. Na
afirmação «O Cristianismo é Cristão», existe alguma coisa que sobre-
passa o sentimento piedoso e o arrojo teológico. Jesus Cristo é o centro
da religião cristã. E' o seu criador histórico, quando considerada como
uma fé mundial. E' o centro da sua mensagem religiosa; E' também, a
chave pela qual a mensagem, entesourada nas Santas Escrituras, pode
ser entendida.
São Paulo, na Carta aos Efésios, vai mais longe do que isto. Quem
fôra outrora o mais feroz inimigo de Jesus de Nazaré e da religião por
Êle fundada, apresenta a Jesus Cristo como o Criador e Centro de uma
nova ordem divina. A Pessoa a Quem Paulo, noutro lugar, chama de
<"^meu Senhor» (Filip. 3:8), a respeito de quem usou as palavras «que me
amou e Se deu a Si mesmo por mim» (Gal. 2:20), é apresentado como
o supremo vencedor espiritual, que Se torna a base e o centro do vasto
esquema de Deus para a reconciliação. Confrontado com o fato do mais
acerbo conflito, da trágica alienação na história e em sua própria alma,
Paulo encontra a solução completa da Grande Separação e de todas as
suas perniciosas consequências, no plano redentor de Deus em Jesus
Cristo.
Para tôdas as aparências exteriores de desunião na natureza e na
história, Hegel, o grande profeta do Idealismo Absoluto, encontrou a
resposta na afirmação de que «o racional é o real». Em sua concepção,
o irracional, o assim chamado pecado e mal, não tem realidade verdadeira.
Karl Marx achou a solução para a desunião entre os homens, que iden-
tificou com a luta de ciasses, na afirmação de que o povo comum, o
proletariado deserdado, quando se torna revolucionário, cumpre uma
missão messiânica e constitui o que é fundamentalmente real. Mas para
Paulo, Jesus Cristo entrou no conflito para acabar com o conflito. A
Figura do Crucificado, que se tornou o mais famoso centro de luta da
história, representava o esforço planejado de Deus, o «Poder de Deus
— 64 —
e a Sabedoria de Deus», para dar fim à separação entre Êle mesmo e o
íiomem e entre o homem e o seu próximo. A resposta ao problema da
desordem humana, portanto, não está em se tornarem revolucionários os
homens deserdados e em assumirem êles prerrogativas divinas e absolutas,
a fim de alcançarem a paz e a unidade. A resposta acha-se, antes, no
Deus que Se humilhou, que se fêz homem, o mais deserdado dos homens,
para que, em sua pobreza os homens «pudessem tornar-se ricos» e que,
por meio do Seu desamparo pudessem ser feitos «filhos de Deus».
Para a manifestação destes «filhos de Deus», tôda a criação gemeu
e trabalhou penosamente no primeiro século (Rom. 8:22) ; com angústia
ainda mais profunda e mais estudada, os homens e a natureza gemem no
nosso tempo, esperando mais amplos e mais valiosos frutos da Vitória
que Cristo alcançou.
Voltemos, poranto, a considerar o Redentor da Humanidade e a vi-
tória que Êle conseguiu.
b) Uma Vida Destinada à Morte
Quem era a Figura a quem Paulo, na Carta aos Efésios, designava
como «Cristo», «Cristo Jesus» ou «nosso Senhor Jesus Cristo»? Apesar de
Paulo não ter feito, como já afirmamos, muitas referências ao «Jesus da
História», nem ter baseado o «seu Evangelho» sôbre qualquer coisa ordi-
nariamente associada com a Sua «vida», «ensino» ou «personalidade», a
inteira tradição sinótica a respeito de Jesus era bem conhecida do homem
de Tarso. O grande interêsse de Paulo, é verdade, estava concentrado no
fato de que Jesus nasceu, morreu, e ressuscitou dos mortos e de que
Deus «exaltou-o soberanamente». Mas, conquanto nenhuma Crítica Li-
terária nem qualquer forma de radicalismo no trato dos pormenores da
vida de Jesus, afete a posição essencial de Paulo a respeito de Jesus
Cristo, a Figura histórica e a narrativa que Lhe diz respeito, eram
parte da sua querida herança, vinda dos que tinham conhecido o «Se-
nhor» nos dias da Sua carne.
Jesus, que significa «Salvador», era o nome desta Pessoa, e a Sua
missão era «salvar». Veio a fim de «salvar o Seu povo dos seus pecados»,
isto é, de terem ficado aquém do alvo de Deus para as suas vidas, de
terem errado o seu verdadeiro destino. Podia parecer que antes de Jesus
de Nazaré, o único indivíduo particular a quem foi dado o título grego de
soter («salvador») foi o filósofo helénico Epicuro. «Êsse título», diz
Toynbee, «era normalmente monopólio de príncipes e prémio de serviços
políticos e militares!» Mas a «serena imperturbabilidade» pela qual Epi-
curo era famoso, e em virtude da qual, foi grandemente amado e reve-
renciado pelos seus contemporâneos duma época de ansiedade, nem o
fizeram no seu tempo, nem depois, salvador eficiente dos seus compa-
nheiros, numa ordem humana que se desintegrava. E mais ninguém
tem aparecido, desde os tempos de Epicuro, segundo o nosso grande his-
toriador, que mostre as genuínas qualidades de um salvador. A calma
forçada, ainda que majestosa, de Epicuro, em seus dias, e a sublime indi-
ferença de um Buda em dias mais antigos, são mais do que reflexos da
ansiedade da alma. A angústia cria, como sedativo para o espírito, a
— 65 —
figura idealizada de alguém que triunfa sôbre ela. Uma figura deste
tipo é a enorme imagem de um Buda em repouso, que se pode ver em
Bangcoque, uma estátua brilhante que exprime consciente e deliberada
abstração das realidades da situação humana, no momento exato em
que um «Dia do Senhor» está baixando sóbre a Ásia oriental e sôbre
o mundo.
O Nazareno de há dezenove séculos, também foi chamado «Salvador».
E quando nós, neste nosso «Tempo de Tribulações», esperamos às margens
do rio do Tempo, em angustiado anseio por um Libertador, «uma Figura
única surge do dilúvio e imediatamente enche todo o horizonte. Eis
o Salvador; e o prazer do Senhor prosperará em Sua mão; Êle verá o
trabalho da Sua alma e ficará satisfeito» (D. Mas a figura de Jesus
como Salvador é diferente da de todos os demais «salvadores». Eram
a idealização dos anseios humanos; Êle tinha características diferentes
de quaisquer em quem o homem tenha já pensado serem as caracterís-
ticas de um salvador.
Jesus veio, disse Paulo, na plenitude dos tempos. O tempo tinha
«atingido a sua maturação». Era o kairos, o tempo que deu a signifi-
cação a todo o tempo. Considerando o tempo do nascimento de Jesus
dentro do contexto da história do mundo, impressionam-nos certas coisas
notáveis, de caráter claramente providencial. Uma fé monoteística, uma
crença em um único Deus, tinha-se tornado firmemente estabelecida na
Palestina, depois de longa luta religiosa. Roma, sob a liderança de
Augusto, tinha organizado o mais poderoso império que o mundo já
tinha conhecido. Os que viviam sob a augusta «Paix Romana» podiam
contar com facilidades de viajar de terra a terra, e os cidadãos podiain
contar com a justiça romana. Deste modo, tornava-se possível uma pro-
paganda de âmbito imperial. A língua grega, o mais perfeito instru-
mento linguistico jamiais forjado para a comunicação de idéias, tornou-
se o principal meio de cultura. Tinha chegado, portanto, a ocasião para
o advento de uma fé mundial.
Na recepção que foi feita a Jesus quando menino, podemos discernir
aspectos de profunda significação histórica. Tinha chegado o tempo em
que a indagação milenar da verdade fundamental ia encontrar a chave
de «todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento». Com razão dis-
seram os magos do Oriente, nas palavras de Auden, quando ajoelharam
ante a Criança Galiléia, em Belém: «Oh! aqui e agora se finda a nossa
jornada sem fim». Com igual razão exclamaram os pastores dos montes
vizinhos, prestando a homenagem no mesmo local: «oh! aqui e agora
começa a nossa jornada sem fim». Porque este Nascimento significava
que tinha chegado o tempo em que o povo comum da terra ia ter um
novo comêço na história. Nova luz para o pensamento e novo poder
para a vida tinham acabado de chegar.
A atmosfera nacional da Palestina estava saturada, naqueles dias,
de esperança messiânica, como os Evangelhos tornam claro. Tôdas as
classes estavam como que nas pontais dos pés da esperança de que a
(1)- Arnold J. Toynbee.
— 66 —
hora estava próxima para o Messias de Israel aparecer e libertar o Seu
povo da escravidão. Jesus, o menino que ia crescendo, não podia estar
alheio ou indiferente ao sentimento patriótico. Milton, no Paraíso Re-
conquistado, põe o seguinte solilóquio nos lábios do Filho do Homem
quando, depois do Seu batismo, vagueava pelo deserto da Judéia, recor-
dando os anos da sua meninice e a paixão precoce pela justiça que os
inspiravam:
Feitos vitoriosos
ardiam em meu peito, atos heróicos de um momento
para libertar a Israel do jugo romano;
Depois, subjugar, por tôda a terra,
a violência bruta e o orgulhoso poder tirânico,
até que fôsse a verdade libertada e a
equidade restaurada (2).
Jesus teve de lutar, como sabemos, contra a tentação de se tornar
grande figura política e assim, cumprir as esperanças messiânicas de
Israel. Declinou, porém, de assumir o inflamado papel do patriota na-
cionalista. Mas, fazendo assim, tornou claro que o papel do Messias de
Israel podia ser interpretado em outros termos, e que a iniciação do seu
próprio ministério público era ocasião de grande júbilo nacional. Porque
tinha na verdade chegado a «hora», estava na verdade cumprido o
«tempo», que tinham sido predito pelos profetas antigos e saudado pelo
Batista contemporâneo, na sua pregação e nos seus ritos simbólicos, junto
do Jordão. A história estava agora sendo invadida pelas forças de uma
nova ordem, de uma nova dimensão da realidade espiritual. Jesus re-
conheceu e proclamou de forma completa que nÊle e no Seu trabalho
viera o Reino de Deus. O poder de Deus, de maneira e em grau total-
mente novos, entraram na história humana. «Hoje», disse Jesus, fa-
lando na Sinagoga da cidade natal de Nazaré, «se cumpriu a Escritura
em vossos ouvidos». «O Espírito do Senhor é sôbre mim, pois que
me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me a curar os quebranta-
dos de coração, a apregoar liberdade aos cativos e dar vista aos cegos; a
pôr em liberdade os oprimidos; a anunciar o ano aceitável do Senhor».
(Luc. 4:18).
Era, pois, claramente o tempo de alegria. Havia alegria exuberante,
tanto no ensino como na conduta de Jesus, no primeiro período do Seu
ministério público. Em suas próprias palavras, era a época do «Noiva-
do», tempo de lua de mel, o tempo do «vinho novo» que pedia «odres
novos», tempo para «fazer soar o baixo do órgão sonoro dos céus». Mas,
justamente porque era a «plenitude dos tempos» e tempo de alegria, «ar-
rependam-se» os homens, pois. Sofram eles mudança total na sua mente
com respeito a Deus, ao mundo e ao homem; experimentem completa
reorientação de vida. «Creiam no Evangelho», abrindo êles a inteira
personalidade às «Boas Novas» de que Deus tinha «vindo ao Israel Ca-
tivo» e de que tinha sido inaugurada nova era para a humanidade. Ti-
(2) Livro I.
— 67 —
nham passado os velhos ciclos da história, nos quais não havia «nada de
novo sob o sol». A história tinha agora recebido um Centro e estava-se
movendo para um fim.
O Cristo cuja vinda deu à história novo comêço e que, Êle mesmo,
se tomou o centro da história, era pessoa inteiramente única. Poucas
coisas têm sido mais impressivas na recente erudição neo-testamentária
do que o reconhecimento, por parte de distintos estudiosos judeus do
Novo Testamento, de que Jesus Cristo não pode ser pôsto em paralelo
na literatura religiosa de Israel. O a que êles dão ênfase, chegando-se
ao estudo dÊle com novos olhos e depois de árdua luta contra os seus
prejuízos, é que o que de novo Jesus trouxe à história de Israel era
Êle mesmo. Êle era a grande nova. Tinha-se conhecido o amor dêle
e falado antes de ter Êle vindo, mas nunca amor da redentora quali-
dade que Êle descreveu em suas parábolas e ilustrou em Sua vida. A
novidade era que Deus devia ser representado como o pastor que sai em
busca da Sua ovelha perdida, e que o próprio Jesus tivesse sido o amigo
amoroso em busca «dos perdidos». Pessoa tal e tal ensino introdu-
ziram na religião espírito e atmosfera inteiramente novos. Pôs inicia-
tiva redentora e amor de sacrifício próprio no próprio coração da Di-
vindade.
O que ainda é mais notável é que Jesus atribuiu à atividade de Deus,
tudo o que Êle mesmo fez. Não era o «descobridor de caminhos», que
proclamou um caminho luminoso para o coração e os propósitos secretos
da Divindade. Não há culto a Jesus no Novo Testamento. O Homem
Cristo Jesus é antes um nascido «de cima», a quem Deus «envia» à his-
tória, para que introduzisse no Tempo os conselhos da Eternidade.
Mas, se era verdade que Jesus era uma figura única, é igualmente
verdade que foi uma figura representativa. Quando Paulo, na Carta aos
Efésios, fala do Cristo «resumindo» tôdas as coisas, estava descrevendo
uma característica que era tão verdadeira do «Jesus da História», como
era e será, do Cristo Cósmico. Jesus era o representante de Israel. Êle
resumia em Si e em Sua missão a história e o destino divino do povo
judeu. Era a verdadeira «semente de Abraão», cujo dia Abraão tinha
antecipado de longe (João 8:56). Era o Filho de Davi, tão bem como
era o Senhor de Davi. E há na narrativa sinótica um paralelismo entre
Jesus e Israel, que é íntima demais para que tenha sido impensada.
Israel saiu do Egito. Assim o fêz também Jesus, depois que a perse-
guição de Herodes às crianças tinha cessado. Israel foi batizado no
Mar Vermelho; Jesus foi batisado nas águas do Jordão. Israel gastou
quarenta anos no deserto, onde Deus provou o Seu povo; Jesus esteve
quarenta dias no deserto, tentado de Satanás. Não existe a mínima
dúvida também de que Jesus, deliberadamente, identificou-se no último
período do Seu ministério, como o Servo Sofredor de Jeová que, inques-
tionàvelmente, representava a Israel nas páginas do escritor profético.
Como Messias de Israel, assumiu e cumpriu o papel vicário do Seu povo.
Seja o que fôr que se pensar desta relação simbólica entre Israel e Jesus,
do ponto de vista da critica bíblica, ninguém pode ignorar a sua signi-
ficação do ponto de vista da teologia bíblica. Existem na Bíblia unida-
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des extremamente significativas que necessitam dos «olhos da fé» para
serem descobertas e muito mais para serem entendidas.
Jesus também representou a humanidade. Era o novo homem, o
verdadeiro homem, o «filho do homem». Aparece nos Evangelhos como
o representante perfeito e sem pecado da humanidade. Amou a Deus e
ao homem com perfeito amor. A sua vida era teocêntrica no sentido
mais absoluto. Viveu para fazer a vontade do Seu Pai; para «se ocupar
dos negócios de Seu Pai»; para cumprir a Sua Missão dada por Deus.
Traduziu o amor de Deus no mais apaixonado amor pelos homens. «Andou
fazendo o bem». Só êle, dentre todos os filhos dos homens, foi capaz
de expressar, em perfeito e natural uníssono, a divina justiça e a miseri-
córdia divina. Os olhos que chamejaram de indignação quando o Tem-
plo foi profanado e os santos recintos transformados em mercado de
vendilhões, foram os mesmos que derramaram lágrimas de simpatia em
presença da dor de uma família e à vista de uma cidade condenada. A
chama e a lágrima provinham da mesma fonte. A mão que empunhou
o azorrague para expulsar dos Pátios do Templo os iníquios vendilhões,
era a mesma que acariciou as crianças, que curou os doentes e que ali-
mentou os famintos. O Homem Cristo Jesus conheceu também o signi-
ficado da violenta tentação. O Tentador experimentou-O onde todo o
homem forte é o mais fraco, na questão do uso do poder. Mas Jesus re-
cusou-se a usar do poder para fins meramente egoísticos, mesmo que
fôsse para conservar a vida; ou por um grande esforço especial de publi-
cidade para forçar o reconhecimento do Seu povo; ou para atingir digno
objetivo por métodos errados. Enquanto Milton, como ambas as partes
da sua grande epopéia fazem muito claro, cria que a parte decisiva da
redenção humana fôra cumprida na Cruz, seguiu são instinto toológico,
ao fazer a tentação de Jesus tão grandemente importante. Foi pela sua
resistência à tentação de pôr o interêsse próprio acima da obediência a
Deus, por meio da fé na direção soberana de Deus na Sua vida, que Jesus
provou ser o homem perfeito. Em tudo que se relaciona com o procedi-
mento humano, a vida de Jesus Cristo é normativa para o homem. Todas
as vêzes em que a moralidade cristã, ou até a teologia cristã se desviam
muito da maneira concreta e do espírito da vida de Jesus, ou deixa de
lhe fazer justiça, ambas caem em inevitáveis aberrações.
Mas o homem representativo era mais do que homem. O Segundo
Adão não era simples filho, mesmo o maior dos filhos, do primeiro Adão.
Êste homem de Deus era o Deus-homem. Jesus de Nazaré representava
a Deus. E Êle o pôde fazer só porque era Deus manifesto na carne.
Era Deus Encarnado. Nas palavras do Quarto Evangelho, a Palavra
de Deus, a eterna palavra pessoal, «tornou-se carne». O autor da Epís-
tola aos Hebreus fala dÊle como de um «Filho» que reflete a glória de
Deus e leva o próprio sêlo da sua natureza. Paulo, na Epístola aos Co-
losenses, que escreveu de Roma mais ou menos pelo tempo em que es-
creveu a Carta aos Efésios, fala de Jesus Cristo como «imagem do Deus
invisível, o primogénito de tôda a criação». E' Êle em quem foram todas
as coisas criadas, nos céus e na terra — todas as coisas foram criadas
por meio dÊle e para Êle. Em uma das outras «epistolas da prisão», a
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grande Carta aos Filipenses, Paulo representa a Jesus Cristo como «ten-
do sido em forma de Deus», mas não considerando a igualdade com Deus
um prémio que devesse ser retido avaramente. Despojou-se a Si mesmo,
tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens». Êsté
também é o Cristo da Carta aos Efésios, em cujos térmos considerare-
mos mais especificamente a Sua obra redentora e a Sua vitória. Êste
Cristo representava a Deus, não como alguém que abria a Sua vida hu-
mana à plenitude divina, não como alguém que a Divindade, tendo encon-
trado em Sua humanidade um instrumento perfeito, se tornou manifesta
nÊle e operou por meio dÊle. Pelo contrário, o que temos no Homem
Cristo Jesus é a real encarnação da Divindade, dando-se a Si mesmo e
esvaziando-se, no homem, para constituir o maior paradoxo do pensa-
mento e a esperança redentora da vida.
Como pôde o Eterno realizar um ato temporal,
O Infinito transformar-se em um fato finito?
Êste, sim, é o problema. Mas o fato do Deus-homem ainda per-
manece; os frutos da fé de que Êle era o Filho de Deus permanecem
também.
Existe na história do Evangelho um retrato de Cristo antes da Sua
morte que se poderia considerar como a imagem essencial dAquêle que em
Si mesmo resumia tudo o que era mais distintivo em Israel, da humani-
dade e da Divindade. E' o retrato de Jesus a que já aludimos e que,
em um momento de intensa consciência quanto à Sua identidade e mis-
são, «sabendo que tinha vindo de Deus e ia para Deus», derrama água
numa bacia e lava os pés dos Seus discípulos. A figura do Mestre trans-
formado em Servo dos Seus servos, do Altíssimo realizando o mais servil
dos trabalhos, é uma perfeita revelação do «Mistério de Cristo». Um
jóvem professor de filosofia em Oxford, professor agnóstico em matéria
de religião, estava andando um dia, sem destino, descendo pela famosa
Rua Broad, de Oxford. Casualmente, a sua vista pousou em uma expo-
sição de artigos na vitrina de uma livraria. Entre os livros estava um
quadro, uma pintura do século dezenove, representando Jesus lavando
os pés dos discípulos. Enquanto o jóvem filósofo olhava para o quadro,
alguma coisa aconteceu. «Conheci» disse êle mais tarde a um amigo,
«que o Absoluto era o meu lacaio». A natureza íntima da Divindade
com amor que se dá, a realidade de Deus tornando-se homem para a sal-
vação do homem, tornou-se clara para êle. Êle aprendeu a «imagem es-
sencial», comprendeu que a coisa mais fundamental e única e que tem
futuro, no grande plano divino das cousas, é o amor que se dá em favor
dos outros. Êle viu a verdade fundamental da Ordem de Deus.
A conseqiiência do lava-pés, e o objetivo da humildade que o ins-
pirou, foi a Cruz. Água e toalha retratam a vitória do Deus-Homem
na vida; A Cruz foi o Seu triunfo sôbre a Morte.
c) Conquista por meio de Crucifixão
Falando ao seu auditório ecuménico a respeito da obra de Jesus
Cristo para alcançar a redenção, Paulo apresentou o amor de Cristo imo-
lado como sacrifício, como norma de conduta dos cristãos. Disse êle:
«Andai em amor, como também Cristo nos amou, e Se entregou a Si
mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave» (Efes.
5:2). Para Paulo e para todos os escritores do Novo Testamento, a
Morte de Jesus Cristo era essencial para o cumprimento da Sua missão
redentora .
De diversas maneiras pode-se encarar a Crucifixão. Pode ser consi-
derada como a mais simples das contingências da história. Jowett, fa-
moso professor do século dezenove, em Oxford, costumava dizer jatancio-
samente que a única parte do Credo dos Apóstolos em que êle cria era a
que diz: «Sofreu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e
sepultado». Tal perspectiva da morte de Cristo considera-a como acon-
tecimento historicamente isolado. Quando muito, permanece como ho-
micídio judicial cometido pelos representantes de um Império, cujo or-
gulho era a justiça romana. Em tal caso, a Crucifixão era simplesmente
abôrto da justiça, que ilustra a incapacidade do homem para realizar os
seus próprios ideais de justiça.
O Cristo Crucificado tem aparecido a outros como a suprema vítima
do destino. Em Buenos Aires, centro líder da cultura hispânica, cujos
cidadãos nos dias trágicos da última guerra tinham a reputação de se-
rem o povo mais bem nutrido e mais bem vestido do mundo, era corrente
a frase altamente reveladora, senão trágica. Quando um homem da
grande metrópole do Rio da Prata quer referir-se a alguém que não tem
qualquer valor, que não tem eira nem beira, exemplo desprezível de sub-
humanidade, pobre mendigo ou pobre diabo, diz: é um «pobre Cristo».
Quer dizer que aquêle resto humano de quem se está pensando se asse-
melha à tradicional representação espanhola de Jesus Cristo, uma Figura
completamente morta e desamparada. Está pensando da imagem do
Crucificado, cuja expressão clássica é o «Cristo Reclinado de Palência»,
a quem Unamuno descreve como a «Eternidade da Morte», a «imortaliza-
ção da Morte». O que temos aqui é antes um exemplo extremo de pessi-
mismo religioso, em referência ao poder eficaz e redentor do Crucificado.
Existe nos círculos seculares de hoje desdenhosa rejeição, da parte dos
^ homens de gosto» e dos «homens de sangue vermelho» em geral, por
Qualquer relação entre a Crucifixão de Cristo e a solução dos problemas
básicos da humanidade.
Mas, para Paulo, a Cruz tem significação tanto histórica como cós-
mica. Em um acontecimento que, para o observador casual, foi apenas
brutal assassínio judicial, e para os homens do mundo o símbolo de insig-
nificância sentimental, Paulo viu as marcas da eternidade. Aconteceu
certa vez no Gólgota um fato que não foi nem historicamente causal, nem
espiritualmente insignificante, mas que constituía portentosa vitória. Êsse
evento se deu uma vez por tôdas para a história e para o cosmos: nunca
podia nem necessitava de ser repetido.
Paulo pensava dêste acontecimento como de vitória. O Crucificado
foi Vencedor que, na linguagem da Epístola aos Colossenses, «cravou»
na Cruz as exigências legais ou «ordenanças» contra aqueles por quem
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Êle morreu, e «sóbre a Cruz» triunfou dos rPrincipados e Potestades»,
desarmando-os e expondo-os «publicamente» (Col. 2:15). Para ser fiel
ao pensamento de Paulo e do Novo Testamento, a Cruz de Jesus Cristo
tem de ser considerada como um assalto vitorioso, ao invés de o ser a
morte de uma vítima. E' somente quando ao quadro clássico e fiel do
Cristo, como «Cordeiro levado para o matadouro» acrescentamos o qua-
dro igualmente clássico e fiel do Rei Guerreiro, «vindo de Edom com
vestidos tingidos de Bozrá e viajando na grandeza do seu poder», e de
um Cordeiro cujos vestidos são tingidos no Seu próprio sangue, somente
então é que alcançamos uma concepção adequada da doutrina da Cruz,
o que, em linguagem teológica, é chamado a Expiação. E, depois de
tudo, no Apocalipse do Novo Testamento, o Cordeiro «morto antes da
fundação do mundo» aparece como figura essencialmente militante, po-
tente e ativa.
Que significa a Expiação? Jesus Cristo, diz Paulo em palavras já
citadas da Carta aos Efésios, «amou-nos e deu-se a Si mesmo por nós
(5:2). Limitando-nos a esta Carta sòmente, achamos um tesouro de
expressões que Paulo usa para exprimir a significação da morte de Cristo.
E' por «meio do Seu sangue» que a «redenção» vem a nós e que recebe-
mos «o perdão dos nossos trespasses» (1:7). E' «no sangue de Cristo»
que os homens são trazidos para «perto de Deus e um do outro» (2:13).
«Pelo sangue de Cristo», também os judeus e os gentios foram feitos um;
porque o Crucificado Se tornou a «nossa paz» por meio «do derrubamen-
to da parede de separação que estava no meio» (2:41). Na segunda Epís-
tola aos Coríntios, há uma passagem que completa estas referências à
relação entre paz e unidade; e que lança luz sôbre a profunda significação
íntima do grande acontecimento. «Deus», diz o Apóstolo, «estava em
Cristo, reconciliando o mundo Consigo mesmo» (2 Cor. 5:19). Isto
equivale a dizer: Deus esteve ativo na Cruz. Considerada em sua signi-
ficação fundamental, a morte de Jesus Cristo era a suprema manifesta-
ção do amor divino reconciliador. Em uma palavra, a Expiação, o acon-
tecimento por que foram perdoados e esquecidos, os pecados, e pelo qual
os perdoados, reconciliados com Deus e uns com os outros, se tornaram
«filhos de Deus», foi um ato do próprio Deus.
Quando chegamos a compreender que a morte de Jesus pelos peca-
dos do mundo foi um ato de Deus para reconciliar o mundo consigo mes-
mo, nova luz se lança sôbre a idéia vicária da Expiação, que é básica no
pensamento de Paulo, como o é no pensamento e nas figuras da Bíblia
como um todo. Foi Deus que Se deu a Si mesmo em Cristo pelos pe-
cados do mundo; foi Deus que Se tornou o Reconciliador. Em Jesus
Cristo — o Deus-Homem — o próprio Deus esteve presente em per-
feição divina. A ação redentora de Jesus foi a ação redentora de Deus.
Porque Deus esteve completamente no Crucificado, a separação entre
Deus e Jesus, conquanto possível em pensamento, não existiu em realidade.
Lança-se luz na significação do «sangue», do «sangue de Cristo», na
Expiação. Que significa o sangue no pensamento bíblico? Significa a
«vida». Sangue que é derramado, como o foi o «sangue de Cristo», é
vida que é dada em agonia e sofrimento. Mas não podia haver maior
ên o do que limitar a correlação do «sangue de Cristo» ao fluido físico que
con-eu das Suas chagas. Em alguns círculos, a palavra «sangue» recebe
a significação virtualmente mágica. Nenhuma pregação que não fale
constantemente do «sangue» é considerada evangélica. A simples men-
ção do «sangue» torna-se característica contrastante de ortodoxia e
ocasião frequente para uma demonstração orgíaca de emoção. Mas, no
seu mais profundo sentido, o que era o sangue que foi derramado? O
sangue físico que foi perdido por nosso Senhor em Seu sofrimento e em
Sua morte, foi apenas um símbolo do sangue de verdade, isto é, da vida
derramada em angústia, durante todo o Seu ministério público. Porque,
falando com tôda a reverência, o Deus-Homem teve de Se preparar para
se tornar digno do ato final de morrer. Na linguagem da Epístola aos
Hebreus, Êle «aprendeu obediência naquilo que sofreu». Foi «por meio
dos sofrimentos» que Êle se tomou perfeito. Tinha de ser feito idóneo
para a morte, doutro modo o derramamento de simples sangue físico,
que milhões de outros seres humanos já tinham derramado em circuns-
tâncias igualmente penosas, teria sido em vão. Mas, desde a Tentação
até à Cruz, o sangue foi literalmente drenado da alma de Cristo. A gran-
de dor que Êle sofreu e que suportou tão jubilosa e voluntàriamente,
também foi parte do «preço de sangue». Para compreendermos a Ex-
piação, recordemos que o Cristo crucificado, que em Si mesmo resumia
tanto a Deus como ao homem, resumiu também, nas supremas horas da
Seu sacrifício, tudo quanto tinha sofrido pelo pecado e do pecado, desde
o tempo em que subiu do Jordão até o tempo em que disse: «Tudo está
consumado».
O reconhecimento da Expiação como ato de Deus evita também a
concepção muito superficial da significação da morte de Cristo, que a re-
duz à expressão de uma lei natural. Alguns, fazendo ilegítima distinção
entre Deus e o Filho de Deus, consideram a Jesus Cristo como uma ter-
ceira parte inocente que foi feita sofrer pelos culpados. Independente-
mente do fato de que não há lei geral, na natureza ou na vida humana,
pela qual o inocente sofra vicàriamente pelos culpados, e de que este
ponto de vista da Expiação, podesse ser considerada como ilustração, algo
de mais sério precisa dizer-se. A idéia que considera Cristo, o Filho de
Deus, como mera parte inocente, atrás de cujos méritos os homens cul-
pados podiam esconder-se, reflete tendência para dividir a divina Famí-
lia em Triteísmo e de caluniar Deus, o Pai. O Filho torna-se Herói, mas
os homens são repelidos pelo Pai. Esta falsa fórmula da Expiação ê
refutada, porém, quando chegamos à compreensão de que foi o própria
Deus que realizou a Expiação, substituindo o homem por Êle mesmo.
Então, não há tal coisa como uma terceira parte atrás da qual se podem
esconder os culpados. Jesus Cristo era inocente, mas não simples ter-
ceira parte. Era Deus manifesto em carne, cumprindo tôdas as custosas
obrigações de remir o homem do seu pecado, recebendo na forma de
homem pecador tôdas as consequências do pecado. Na Cruz de Cristo,
pois, os pecadores culpados são arrancados para fora de todo o escon-
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derijo ou fenda de abrigo e trazidos face a face com o próprio Deus, que
em Jesus Cristo se deu a Si mesmo em amor pelos pecados do mundo,
a fim de poder reconciliar o mundo consigo mesmo. Que lugar há agora
para a busca de uma falsa semelhança com Deus, para o anseio de ser
como Deus, sem Deus e rival de Deus? O pecador, quebrantado e per-
doado, somente pode dizer ao Salvador que o amou e a Si mesmo se
deu por êle:
Tu, ó Cristo, és tudo que desejo:
Mais do que tudo encontro, meu Senhor, em Ti.
Não temos, contudo, ainda, considerado concretamente as maneiras
específicas por que Jesus Cristo alcançou uma vitória redentora. Tendo
dado ênfase à verdade de que o que foi implicado, quando Cristo «se deu
a Si mesmo por nós», morrendo «por nossos pecados», no que chamamos
de Expiação, foi um ato de Deus, é agora necessário considerar as fôrças
que Êle teve de vencer antes que pudesse ser chamado, no sentido mais
completo, o «Salvador». Não podemos esperar resolver, é verdade, o
mistério da redenção. Não podemos formular teoria humana adequada
para expressar um ato tão divino e infinito. Mas o próprio fato de ten-
tarmos apreender a situação concreta que o Salvador da humanidade teve
de encarar na sua obra redentora, e em que êle foi vencedor, ajuda o
pensamento e procura-se explicação de fato.
O primeiro grande encontro de Jesus como Redentor dos homens
foi com a Lei. O Deus-Homem, que representou a raça humana peca-
dora, e a Si mesmo se constituiu uma nova humanidade, teve de tomar
em devida conta a ordem moral estabelecida por Deus, sob a qual tôda
a vida humana tinha de ser pautada. Na ordem moral hierárquica es-
tava estabelecido que o inferior tinha de prestar afetuosa obediência ao
superior e, um ao outro em amor mútuo; e que o superior devia mostrar
afetuoso interesse para com o inferior. Esta ordem, que teve a sua
origem na natureza de Deus, de que era expressão, conservava unido o
universo espiritual. De Jesus Cristo pode dizer-se, quando seguimos o
curso da Sua vida desde a meninice até à Cruz, e sôbre a Cruz, que Êle
foi fiel a esta ordem moral. Foi amorosamente obediente a Deus, Seu
Pai, e sempre esteve afetuosamente interessado a respeito de todos os
que estavam em necessidade. Êle amou a Deus e a Seus companheiros
no mais absoluto sentido e, assim, cumpriu a Lei.
Fêz isto, note-se, não porque se esforçasse para fazer, mas porque
era da Sua natureza fazê-lo. Isto significa que a devoção de Cristo para
com a Lei de Deus não era a busca legalística do amor, mas movimento
espontâneo de amor. Existe um paradoxo do moralismo, como existe
um paradoxo do hedonismo. Quem procura a felicidade como seu ob-
jetivo, nunca se torna feliz. Do mesmo modo, quem busca a bondade
como sua finalidade, nunca se torna bom. O mais que se pode tornar a
ser é um fariseu pedante; mas o que mais, provavelmente, se tomará, é
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um neurótico desesperado. A pessoa realmente boa é aquela que faz
o bem sem cogitar de bondade ou de prémio da bondade, mas, antes,
agindo de puro amor para com Deus e para com o próximo. Mas, neste
sentido, Jesus Cristo foi a única pessoa boa que já existiu. Era assim
porque por Êle é que veio o Amor. Foi Êle mesmo o Amor em essência
mais pura. NÊle, o Amor não era um manto que pusesse para desem-
penhar um papel; era a fonte perene dentro dÊle, que inspirou tôdas as
Suas ações. Podemos dizer, pois, que Jesus Cristo cumpriu perfeita-
mente a ordem moral divina. Êle se qualificou como o pioneiro e pri-
mícias de uma nova humanidade.
Mais difícil foi o encontro de Jesus com a vontade concreta de Deus
para a Sua própria vida. Porque obediência ao Plano Moral significa
não somente obediência geral, mas obediência verdadeiramente especí-
fica aos mandamentos de Deus para a conduta pessoal. E isto, também,
Jesus fêz aceitando tôdas as penosas implicações da sua missão messiâ-
nica. Com obediência filial aceitou e esgotou, até às fezes, o «cálice» que
o Pai Lhe deu a beber. Com fé simples em Deus e por obediência leal
a Deus, Êle se lançou até os últimos e escuros desfiladeiros do Seu cami-
nho redentor. E ali, na mais escondida e mais enigmática das fases da
Sua tarefa redentora, Êle encontrou, por amor do homem e como seu
representante, as consequências e as sanções de uma ordem moral vio-
lada, a realidade da justiça de Deus. Como o Sem-Pecado que tomou
o lugar dos pecadores e desbravou o caminho para a manifestação dos
novos filhos de Deus, Êle veio a conhecer, na amargura da Sua alma e
de maneira que nunca poderemos compreender, que o «salário do pe-
cado é a morte». Êle sofreu e triunfou.
Isto nos leva ao segundo encontro de Jesus Cristo, o Seu encontro
com o Pecado. O pecado, como já temos visto, em sua essência, é a afir-
mação de uma vontade-própria contra a vontade de Deus. O pecado
significa a tentativa de um espírito finito de se tomar rival de Deus.
Quando a lógica íntima do pecado opera, ela consegue transformar o
mal em bem.
Por tôda a Sua vida, mas especialmente entre o tempo em que foi
derramada água sôbre Êle no Jordão, até quando Êle Seu próprio sangue
derramou na Cruz, o Filho de Deus se entregou a luta terrível com o
pecado. Os poderes demoníacos O assaltaram e lutaram para O desviar
do Seu caminho escolhido. Nós, simplesmente não podemos entender
a vida de Cristo ou fazer justiça ao grande drama da redenção, a não
ser que tomemos a sério os poderes sobrenaturais do mal, que figuram
no quadro de todo o pensamento bíblico e que executam estratégia or-
ganizada. Mas o Tentador foi logrado. Depois daquele esforço do de-
serto, êle «deixou a Jesus por um pouco de tempo». Nosso Senhor,
depois de ter ouvido o relato das manifestações de poder que os Seus dis-
cípulos tinham operado em Seu Nome, «viu Satã cair dos céus». «Eis
que vem o Príncipe dêste mundo», disse Êle, «mas não acha nada em mim».
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Mal te abrigaste então,
O' paciente Filho de Deus: contudo permaneceste impávido!
Contudo não parou o terror ali;
Espíritos e fúrias infernais te envolveram;
uns uivavam, outros gritavam ou guinchavam,
alguns desferiam contra ti os dardos, enquanto que Tu
permanecias sem pavor, em calma e impecável paz! (3)
O pecado dos seres humanos descarregou-se sôbre o Redentor. Ha-
via a inconstância das multidões, a quem Êle tão assiduamente ensinou
e das quais tão bondosamente cuidava, e que no final gritaram: «Cruci-
fica-O»! Havia o fanatismo religioso dos líderes de Israel, que que-
bravam o espírito da Lei em suas tentativas de definir a letra. Havia a
falta de percepção espirtual da parte dos Seus discípulos, que tentavam,
frequentemente, tirá-Lo do Seu próprio caminho. Dentre o Seu grupo
de escolhidos, acima de tôda a mera ausência de visão, sobressaiu a des-
lealdade de Pedro e a traição de Judas. Contudo, Jesus nunca sucumbiu
ante nenhuma palavra ou atitude pecaminosa.
O pecado encastelado nas formas institucionais, onde tinham assento
direitos adquiridos, foi particularmente cruel. Por amor de conveniên-
cias, a hierarquia judaica, para defender os seus interêsses, repudiou o
«Justo». Também por amor das conveniências, o Governador Romano,
para se congraçar com uma raça rebelde e provar ser «amigo de César»,
condenou à crucifixão um homem em quem não tinha encontrado falta.
Mas Jesus, com isto, não se deixou ficar amargurado: continuou a mos-
trar o mais afetuoso interêsse pelos homens. Também amou os Seus
inimigos. O pecado, em tôdas as suas formas, fêz tudo quanto pôde
contra Êle. Mas, quando exalou o último suspiro, Êle disse: «Pai, per-
doa-lhes porque não sabem o que fazem».
E foi assim que Jesus morreu. Êle morreu em um horrendo encon-
tro com a Morte, o último inimigo, depois que tinham já sido vencidos
todos os outros inimigos. Morreu no madeiro e, assim, tornou-se literal-
mente coisa maldita, de acordo com a tradição religiosa do Seu povo. O
pecado não pôde fazer mais do que fêz; a Lei não podia tão pouco exigir
mais; os homens não podiam esperar mais. Desceram as trevas sôbre
o Gólgota. Era agora a ocasião de Deus falar. Foi o que tinha acon-
tecido, um assassínio judicial desusadamente brutal, mas ainda mera con-
tingência da história? Foi um acontecimento espiritualmente inaplicá-
vel para o problema da história e do coração huamno?
Diz a Carta aos Efésios, falando em nome do Novo Testamento, que
Jesus Cristo «Se entregou a Si mesmo por nós». (5:22). Êle »aproxi-
mou» judeus e gentios, de Deus e uns dos outros, «pelo sangue da Sua
Cruz», acabando com a «inimizade», amarga e antiga hostilidade (2:14).
Como o sabemos? Deus «levantou-O dos mortos e O pôs à Sua direita
nos céus» (1:20). As portas eternas foram levantadas; o «Rei da Gló-
ria» entrou.
(3) Paradi^e Rc^^ained, Livro TV, linhas 419-425.
— 76 —
Antes de Jesus ter morrido, a Morte era o maior terror dos homens.
Significava a frustração de tôdas as esperanças humanas; era a entrada
sombria de um reino de existência escura, repleta de terror e despida de
significado vital. Mas, pela Sua morte, Cristo redimiu a Morte. Êle
«féz da Morte a nossa mãe», para usar a frase de Miguel de Unamuno í*).
No ventre terrível dela, Êle gerou uma nova raça de homens. Êle a
tornou meio de renascimento e órgão para promover os grandes fins
espirituais. Evangelizou a Morte. Estar «crucificado com Cristo»,
restar morto com Cristo» tornou-se, desde então, o prelúdio de uma nova
vida; morrer por Cristo tornou-se o objetivo de muito sonho ardente.
Como e porquê tal mudança? Jesus Cristo tornou-se o Vencedor Cru-
cificado da Morte: «Deus O ressuscitou dos mortos» (1:20).
d) Exaltação
«Ao terceiro dia ressurgiu dos mortos; subiu ao Céu e está sentado
à mão direita de Deus Pai Todo-Poderoso». Assim diz a grande afir-
mação do Credo dos Apóstolos, fazendo eco da Carta aos Efésios e da fé
histórica da Igreja Cristã.
Calmamente, sem controvérsia, sem apologética, Paulo estabelece o
fato da vitória de Cristo sôbre a Morte, pela Sua Ressurreição dos mortos.
Está em notável harmonia com o caráter litúrgico-rapsódico da Epístola
aos Efésios, que a proclamação da Ressurreição seja feita conjuntamente
com uma prece (1:15-23), para que os cristãos de todo o mundo, a quem
êle escrevia, alcançassem visão do significado prático, para as suas vidas,
âe que Deus levantou dos mortos a Jesus. Êle ora para que o Deus de
nosso Senhor Jesus Cristo, «o Pai da Glória», lhes concedesse a visão de
Jesus Cristo, para que pudessem tornar-se completamente conscientes,
primeiro, da esperança implícita na sua vocação cristã; segundo, da ri-
queza da glória envolvida em pertencer a Jesus Cristo; e, terceiro, da
vastidão do poder divino que nêles estava operando e que lhes era aces-
sível. A medida dêste poder é a ressurreição de Cristo. «Lembro-me
de vós nas minhas orações», diz êle, «para que possais conhecer a sobre-
excelente grandeza do Seu poder sôbre nós, os que cremos, segundo a
operação da fôrça do Seu poder que manifestou em Cristo, ressuscitan-
do-O dos mortos e pondo-0 à Sua direita nos céus, acima de todo o prin-
não só neste século mas também no vindouro» (1:16-21). Justamente
cipado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia,
como Paulo, quando se referia à Eleição de Deus, não apresenta a dou-
trina como frio dogma teológico, mas para explicar aos cristãos o que
tinha acontecido nêles e a significação transcendente da sua profissão
cristã, assim, também, neste exemplo. Êle quer que conheçam a possível
extensão da experiência e da atividade que possa ser dêles, porque o
mesmo poder que Deus usou para levantar dos mortos a Cristo, lhes é
acessível. Porque o Cristo Ressurrecto é dêles e porque estão «nÊle»,
o poder infinito está operando nêles e pode operar por meio dêles. Os
que foram escolhidos em Cristo «antes da fundação do mundo», trabalha-
(4) El Cristo de Velasquez, I, IV.
— 77 —
ráo e triunfarão em Cristo, que foi exaltado acima de todos os mundos.
A mais alta sabedoria, portanto, é conhecer experimentalmente êste poder
altíssimo.
Não fôsse a Sua Ressurreição, tudo o que Jesus, não somente disse,
mas também fez, em Sua vida e também em Sua morte, teria sido fútil
e vão. Sua memória, muito provàvelmente, já teria sido esquecida.
Quando muito, poderia aparecer como um resplendor brilhante, fosfore-
cente nas marés oceânicas da história. Podia tornar-se a fonte de muito
testemunho trágico em prosa e verso, como nas artes plásticas, de que
tudo é vaidade e de que o universo está desinteressado do verdadeiro valor
heróico. Mas, pela Ressurreição, Cristo foi vindicado. Tôdas as pro-
messas e propósitos de Deus que se tinham centralizado nÊle atingiram
a sua realização. Tinha-se começado uma nova era cósmica; uma nova
ordem de realidade tinha nascido. A história, agora, prosseguiria para
o seu fim, com tôdas as suas forças sujeitas a Jesus Cristo que, no fim,
também será o seu Juiz. O cristã, o plano espiritual criado por Êle e
a Êle devendo a sua fidelidade, sobreviveria à história.
O que se realizou quando Cristo se levantou dos mortos é, como a
Sua Incarnação e Expiação, mistério. O que é claro, pois, é que em um
corpo, o mesmo e, contudo, diferente do corpo da Sua carne, porque do-
tado de novas qualidades, Êle voltou à vida e «subiu ao Pai» e se tomou
o Senhor cósmico da história e a Cabeça Divina da Igreja. Não se pode
pensar da centralidade dada à Ressurreição no Novo Testamento, sem
compreender que o que está diante dos cristãos, quando esta vida tiver
passado, não é mais bênção nebulosa, fantástica. O objetivo real de
Deus para com o homem será cumprido, não na hora da sua morte, mas
quando Êle também fôr levantado dos mortos, em um corpo espiritual,
que desempenhará o seu papel nos mais largos propósitos de Deus, quando
o drama histórico chegar ao fim.
Mas as coisas escondidas de amanhã podem ser deixadas com Deus.
Para nós, a Eternidade é agora, no que concerne aos grandes assuntos.
O propósito de Paulo na Carta aos Efésios não era entregar-se a sonhos
apocalíticos, fazendo ostentação do seu conhecimento de coisas que «o
ôlho não viu nem o ouvido ouviu», nem mesmo satisfazer a curiosidade
natural dos seus leitores de então e de agora, de saberem a respeito das
coisas por vir. O seu fim foi fixar no espírito dos leitores êste tremendo
fato, como base da fé e do trabalho deles neste mundo, a saber, que
«Jesus Cristo é Senhor». O Salvador que os uniu a Deus e não a outro,
que se tornou a paz e a fonte da luz e da fôrça, dêles era o Senhor So-
berano, o Governador do Universo e a Cabeça do Seu Corpo, a Igreja.
Como êles, em obediência ao desejo de Paulo, examinemos, por um
momento, o que significa o Domínio Soberano de Jesus Cristo.
Deus «sujeitou tôdas as coisas debaixo de Seus pés» (Efes. 1:22). O
curso da história e o destino espiritual do universo, estão ambos nas mãos
de Jesus Cristo. Não pode haver falta nem ilusão. Quem governa a
história não é nenhum «jóvem combatendo a Divindade», de recursos
limitados e de futuro incerto, para usar o conceito cheio de fantasia de
— 78 —
H. G. Wells. Jesiis Cristo reinará até que tenha sido vencido todo ini-
migo do Propósito de Deus. Como será alcançado o Seu triunfo, se por
meio de uma especial manifestação pessoal da Sua glória, para inaugurar
o Seu reino espiritual, ou por meio de um especial derramamento do seu
Espirito sobre a Igreja, como instrumento histórico da Sua vontade, não
importa muito. A coisa importante é que o Cristo Ressurrecto não é
um espectador longínquo dos acontecimentos da história humana; e o
futuro está com Êle.
Deus fêz Jesus Cristo, «sôbre tôdas as coisas para a Igreja que é o
Seu corpo, a plenitude dAquele que cumpre tudo em todos» (1:22, 23).
O interesse primacial de Jesus Cristo é a Igreja Cristã, que é o Seu
Corpo. Não é a civilização, ou a cultura ou a ordem política. O seu
interesse é que o Seu Corpo seja conforme o propósito de Deus a Seu
respeito. Quando a Igreja é realmente a Igreja, quando, em sua rea-
lidade empírica e em sua existência histórica, verdadeiramente funciona
como a Igreja, mostrará que é na história o instrumento da glória de
Deus. Quando a civilização, a cultura e a ordem política estiverem pre-
paradas par reconhecer a Igreja e tomar a sério o que a Igreja repre-
senta, então a ordem secular ganhará em pureza, em unidade e em es-
tabilidade. Uma verdadeiro plano secular depende da Igreja, mas a
Igreja não depende de uma ordem secular bondosa.
Não sendo um Reino dêste mundo, a Igreja deve sua vassalagem tão
sòmente a Jesus Cristo. Nenhuma hierarquia humana tem o direito de
usurpar a autoridade de Cristo na Igreja: nenhum estado secular tem
o direito de tamsformar a Igreja em instrumento de sua política; a Igreja
não se atreve a servir a nenhum outro senhor senão a Cristo. Nesta
época revolucionária, em que o estado, sob diferentes formas, tem tido a
pretensão de escravizar a Igreja e fazê-la agente servil da sua vontade,
uma grande declaração da fé e da missão da Igreja sobresai acima de
tôdas as outras. Foi ela formulada na cidade alemã de Barmen, no
tempo da tirania Nazi. «Rejeitamos a falsa doutrina», diziam os sina-
tários, «de que há esferas da vida em que pertencemos, não a Jesus Cristo,
mas sim a outros senhores; reinos onde não necessitamos de ser justi-
ficados ou santificados por Êle».
Proclamando, no espírito paulino, como é exposto na Carta aos Efé-
sios, «as riquezas incompreensíveis de Cristo» (3:8), «demonstrando a
todos qual seja a dispensação do Mistério que desde os séculos esteve
oculto em Deus, que tudo criou por Jesus Cristo» (3:9), a Igreja Cristã
será, parcialmente neste mundo e completamente no mundo por vir, a
«plenitude dAquêle que cumpre tudo em todos» (1:23).
Precisamos agora averiguar que é que Paulo nos ensina concreta-
mente a respeito do novo tipo de humanidade que Jesus Cristo cria, a
comunidade que êle chama de Igreja, como se origina, quem são os seus
membros e de que maneira vivem êles.
— 79 —
CAPITULO V
HOMENS NOVOS EM CRISTO
O desígnio de Deus na história e no cosmos envolve duas coisas.
Envolve, como já vimos, o estabelecimento de um novo centro de rela-
ções espirituais, no qual se reúnem «coisas no céu e coisas na terra».
Êsse centro, Deus o constituiu em Jesus Cristo. Jesus Cristo, em virtude
do que Êle era em Si mesmo, como Deus-Homem, e pela vida que viveu
entre os homens, por Sua morte na Cruz pelo pecado dos homens, por
Sua ressurreição gloriosa e por Sua ascensão à «mão direita de Deus»,
tornou-se o centro de um novo plano de realidade. Êsse novo plano, que
foi revelado a S. Paulo, que se considerou como seu «mordomo» ou «exe-
cutor», é o «mistério», o segredo de Deus revelado, que é proclamado à
humanidade no Evangelho.
A finalidade de Deus envolve, contudo, alguma coisa mais. Envolve
o estabelecimento de relações entre os homens e Jesus Cristo, êste novo
centro de unidade espiritual. Tornando-se unidos a Cristo, os homens
são levantados do egocentrismo; a hostilidade para com Deus e de uns
para com os outros, cessa; realiza-se a reconciliação em Jesus Cristo, a
<paz» dêles. De «filhos da ira», membros de uma comunidade alienada
de Deus, tornam-se «filhos de Deus», membros de uma nova comunidade
chamada a Igreja. Isto significa um ajustamento total das vidas em
relação a Deus e aos Seus propósitos. A procura de uma falsa semelhan-
ça com Deus, o desejo de ter os atributos de Deus mas sem a submissão
à autoridade de Deus, acaba-se. Os homens que se reconciliam com
Deus tornam-se Seus filhos por adoção e buscam fazer as Suas obras.
a) «Em Cristo»
Esta nova relação espiritual é caracterizada por S. Paulo como sendo
«em Cristo». Estudantes do pensamento paulino tão diferentes uns dos
outros, como Adolfo Deissmann e Alberto Schweitzer, são concordes em
que a frase «em Cristo» é a concepção central do pensamento de Paulo.
Esta frase «em Cristo» ou «em Cristo Jesus» é usada por Paulo em suas
cartas, de acordo com os cálculos de Deissman, algumas cento e sessenta e
nove vezes. Que significa Paulo por esta concepção vital? Há de fa-
zer-se, primeiramente, entre a expressão «em Cristo» e a outra expressão
«nos lugares celestes». Pela última frase Paulo significa mais do que
uma condição espiritual: significa a esfera sobrenatural. Mas esta esfera
— 80 —
é também a sede de poderes espiritualmente hostis. Estar «em Cristo»,
portanto, é mais do que estar «nas regiões celestes», é ter posição na
própria vida de Deus e tirar sustento de Deus em Cristo; mas daí não
se conclui possa alguém nesta indicação, em qualquer sentido místico,
^star acima de todo o conflito. O reajustamento da vida para com Deus
em Cristo, viver «nos lugares celestes em Cristo Jesus», significa viver
daí por diante existência teocêntrica, vivendo-se por Deus e para Deus,
no meio de tôdas as realidades de conflito espiritual. Em uma palavra,
^star «em Cristo» não significa estar acima da luta; não é uma absorção
de um estado de transcendente calma.
Estar «em Cristo», diga-se mais uma vez, é mais do que estar «na
Igreja». E* por meio do sua relação com Cristo que o homem se rela-
ciona com a Igreja. A igreja é a realidade onde aparece a Sua plenitude,
a «pleroma»; mas a Igreja não esgota a Cristo, nem O cerceia, nem O
limita. Quando tiver sua plena realização o vasto plano cósmico de
Deus «em Jesus Cristo», entre «tôdas as coisas nos céus e na terra»
encontrar-se-á uma estrutura maior do que a que pode ser formada por
espíritos meramente humanos. Por essa razão é que Paulo distingue
cuidadosamente entre Cristo e a Igreja. Em uma grande doxologia da
Epístola aos Efésios diz êle: «A Êsse (Deus) glória na Igreja por Jesus
Cristo» (3:21). Um espírito humano é posto em relação com a Igreja
poi-que está «em Cristo».
Pareceria também haver distinção real no pensamento de Paulo
entre as expressões «em Cristo» e «no Senhor». A frase «em Cristo»
indica uma relação transcendental para com Cristo. Os cristãos, por
exemplo, foram «criados em Cristo Jesus para as boas obras» (2:10). No
viver concreto, contudo, êles agem «no Senhor» (6:1). Devem ser «for-
tes no Senhor» (6:10). O «Senhor» é o padrão e o diretor de todo o
viver cristão. E* a distinção entre Cristo como a Realidade espiritual
cósmica, acima de todos os mundos, e Presença viva e concreta, encon-
ti^da em todos os caminhos do mundo.
O que importa compreender é isto: — Estar «em Cristo» implica re-
novação espiritual, «nova criação». Dizer a respeito de alguma pessoa
estar «em Cristo» sem que a mesma tenha sido «vivificada» (1 Cor. 15:22),
é coisa inteiramente sem sentido. Os que foram «predestinados para
filhos de Deus por Jesus Cristo» (Efes. 1:5), foram vivificados junta-
mente com Cristo (1 Cor. 15:22) e com Êle juntamente ressuscitados e
sentados nos lugares celestiais em Cristo Jesus (Efes. 2:6). Tais pes-
soas, daquele dia em diante, organizarão e determinarão tôdas as atitu-
des e atos, partindo do seu novo centro, Jesus Cristo. Empregarão dis-
cernimento e discriminação. São o povo que, segundo Paulo, forma a
Igreja. Sendo assim, e isto é importante para todo o nosso pensar, dêste
ponto em diante, a Igreja neste último sentido, — uma comunhão de
homens e de mulheres «em Cristo» — não tem qualquer significação para
S. Paulo, exceto como uma comunhão viva de uns para os outros, por
virtude da comunhão de cada um com Cristo.
— 81 —
b) Homens em Cristo
Quaisquer que possam ser as dúvidas a respeito do inteiro significada
da expressão favorita de Paulo, «em Cristo», de uma coisa não pode haver
dúvida e é que, «estar em Cristo» significa completa mudança espiritual.
Os que estão «em Cristo», não somente receberam nova posição e estão
relacionados com uma nova fonte de fôrça: a êles pertence o permitirem
ser possuídos por Cristo, esforçarem-se por conformar as vidas por
Cristo, tratarem de «aprender» a Cristo, «conhecer» a Cristo (Efes. 4:20).
A paixão deles é, ou devia ser, tornarem-se um com o propósito de Deus
em Cristo. Nesta completa renovação espiritual incluem-se tôdas as
facetas da mudança interior de que comumente se fala como de regene-
ração, conversão, arrependimento. Conquanto diversos possam ser os
tipos atuais de experiência espiritual, dependentes como são do background
do indivíduo e da operação particular da graça de Deus, conforme vere-
mos mais adiante, homens em Cristo são as pessoas em quem foi implan-
tado um novo princípio de vida, pessoas cuja direção de vida difere da
massa da humanidade e cuja visão tem sido reorientada para Deus. Re-
sumem em si a tríplice realidade da regeneração, conversão e arrepen-
dimento. Quando são fiéis a sua nova condição e relações, Cristo é a
sua vida, como era para Paulo. Cristo toma-se o solo em que crescem,
a atmosfera em que respiram, a fonte e o objetivo da sua inteira exis-
tência de homens. O homem que escreveu a Carta aos Efésios falava
de si mesmo como de um «homem de Cristo» (2 Cor. 12:2) e disse «Para
mim o viver é Cristo», isto é, «A Vida significa Cristo para mim»>
(Fili. 1:21).
Tais homens são «pessoas», no sentido cristão e único verdadeiro do
têrmo. Responderam a Deus. São verdadeiros homens porque vieram
a conhecer o Homem e submeter-se a Êle e aos desígnios de Deus nÊle^.
Por causa da sua relação para com Jesus Cristo, a imagem de Deus, essa
semelhança com Deus que era a essência da natureza humana dêles, rea-
parece na existência atual. A sua virilidade é restaurada em Cristo.
Quando abandonam o esforço de ser Deus, e ao invés disso, se submetem
a Deus, renasce a sua humanidade, isto é, a sua verdadeira natureza
humana. O verdadeiro movimento, portanto, é da essência para a exis-
tência e não da existência para a essência.
Os que, à semelhança do francês Sartre, afirmam que o homem não
tem essência, que a única coisa que se pode saber acerca dêle é que existe,
dizem isso em virtude da sua negação da existência de Deus. E' ver-
dade, de fato, como Dostoevski disse que, «se Deus não existisse tudo
seria possível». A tarefa humana consistiria, então, na busca de uma
essência, de uma verdadeira natureza. Mas o homem tem uma essência,
que se corrompeu; em Cristo porém, restaurou-se essa essência pura e
imaculada. Os homens «em Cristo» se redescobrem, quando O descobrem.
A sua essência humana torna -se manifesta na sua existência semelhante
a Cristo. Um pensador muito maior do que Sartre, o espanhol Una-
muno, diagnosticou que a verdadeira dificuldade do ateu em ser a veri-
— 82 —
ficação que, tivesse éle de admitir a existência de Deus, teria de ser tipo
muito diferente de personalidade do que êle sabia ser. Em um famoso
soneto, Unamuno põe, nos lábios ingénuos e cândidos do ateu estas
palavras:
«Se Tu existirás, existiria eu também, deveras» (O. O problema
humano perene é a recusa do homem, por orgulho ou médo, de aceitar
o dom divino da verdadeira existência, que lhe é oferecido «em Cristo».
Nada há comparável à experiência de «existir realmente», à expe-
riência désse arrebatamento de alma que sobrevêm quando uma pessoa
chega à compreensão do significado de estar «em Cristo». Quando a
varonilidade é restaurada em Cristo, a alma cristã se toma mais do que
um mero tipo. Quem desperta para o que significa estar «em Cristo»,
toma-se «indivíduo», em forma muito mais intensa do que já fôra antes.
Porque a glória de Deus, conforme se revela na Bíblia e em Jesus Cristo,
é que Êle individualiza. Para aplicar um verso do velho William Blake,
Deus não salva e rotula os homens por atacado. Em um dos Salmos
(87:4-6) representa-se a Deus registrando em Seu recenseamento os
nomes dos egípcios e dos babilónios individualmente, déste modo consi-
derando-os como filhos nativos de Sião. Os homens que estão «em
Cristo» têm mais do que consciência de grupo. A inteira significação de
estar «em Cristo», de ser «filhos de Deus», não se abre diante do povo,
a não ser que se tenha chegado à consciência do amor pessoal de Deus
para com êles, como indivíduos. Nada existe de mais elementar na
religião cristã, nada que possa mais completamente desenvolver a signi-
ficação de ser «filhos de Deus», de estar «em Cristo Jesus», do que a
consciência de uma dívida de gratidão pessoal para com Jesus Cristo
e de uma relação pessoal para com Êle. Conquanto seja verdade que
um sentido tão dominante de se pertencer a Cristo possa produzir o
individualismo cristão e tornar muitas vêzes difícil a consecução da ação
coletiva e do sentido eclesiástico, é igualmente verdade que não pode
haver substitutos para «almas», para indivíduos afetuosos e fortes, que
saibam de quem são e a quem servem, e que possam dar a razão da
«esperança que há nêles».
Fica-se surpreendido, neste respeito, descobrir como possa um co-
mentador contemporâneo da Epístola aos Efésios, fazer afirmação desta
espécie: «Têem-se feito muitas tentativas para expor o que Paulo signifi-
cava pela frase «em Cristo». Êle diz: «precisamos de estar acautelados com
os que falam de união pessoal mística com Cristo. Há pouco, em Paulo,
de pietismo individual, ou de místico ou de Evangelismo. Porque êle
era judeu e os judeus pensam em têrmos de corporação». (2) Mas
esta idéia ignora completamente o fato de que nos Salmos, o maior repo-
sitório de devoção religiosa, um escritor devoto pode dirigir-se sem inter-
mediários a Deus e dizer :«Tu és meu Deus», e esquece que Paulo, o
judeu que tinha o mais perfeito senso de aspeto corporativo e eclesiástico
(1) "Si tu existidas existiria yo también de veras".
(2) F. C. Syngt', St. PauVs Epistle to thc Ephesimus^ p. 2.
do Cristianismo do que qualquer mortal jamais teve, não somente escre-
veu: «Cristo amou a Igreja e a Si mesmo Se entregou por ela» (Efes.
5:25) mas também: «Que me amou e Se deu a Si mesmo por mim» (GaL
2:20). Correspondendo a esse amor de Cristo individualmente, Paulo
de Tarso teve, através de sua vida inteira, senso apaixonado de relação
pessoal com Jesus Cristo — chama-se a isto misticismo, pietismo ou o
quer que seja. F. W. H. Myers é absolutamente fiel ao registro neotes-
tamentário quando, em sua obra S. Paulo, faz o homem que «viu», que
«ouviu» a Cristo, que foi «crucificado» com Cristo, que «vive» em Cristo,
dizer:
«Cristo! Eu sou de Cristo!
Que este nome seja suficiente
Para Vós também».
A verdade clara é que ênfase exclusiva ou super-ênfase na signi-
ficação corporativa ou eclesiástica de estar «em Cristo», tende a destruir
a coisa mais básica e mais sem-preço que existe na herança cristã. É
precisamente o que tem acontecido na tradição católica romana, espe-
cialmente em países hispânicos. O sentimento de camaradagem viva
com o Senhor Ressuscitado é desencorajado e desaparece progressiva-
mente. A Igreja, que se tem tornado a dona de Cristo, ao invés de
conservar a condição de serva Sua, provê para os fiéis, em uma multi-
plicidade de Virgens e de Santos, tôda a sorte de objetos para a sua
ardente devoção. O Senhor mesmo é guardado debaixo da mais estrita
vigilância. Deve-se, pois, ficar admirado que este medo, êste terror
literal do individualismo cristão seja, conforme a evidência contempo-
rânea, a melhor preparação possível para o comunismo? Quando se
ensina a alma cristã a perder-se numa massa religiosa, em uma vasta
corporação eclesiástica, não lhe é difícil, quando perde a sua religião,
o perder-se na massa secular, em um vasto coletivismo político. E tal
está acontecendo em uma época em que, conforme bem informados estu-
diosos do Comunismo Russo, começa de novo a impôr-se uma compre-
ensão da importância do individual e do pessoal (3). Nada há que possa
enfrentar o flagelo da anonímia do nosso tempo, na ordem secular como
na religiosa também, senão um ressurgimento do cristianismo evangé-
lico, um redescobrimento, por isolados átomos humanos, do que signi-
fica estar «em Cristo».
c) Pela Graça
Mas, como chegam os homens a estar «em Cristo?». Como nasce a
personalidade cristã? Como é que são os homens «salvos», libertados
do egocentrismo para o cristocentrismo? A resposta que dá S. Paulo,
na sua Carta aos Efésios é: «Pela Graça» (2:8), pela Graça de Deus.
Por «graça», Paulo dá a entender o amor de Deus, ativo, compassivo,
remidor. É a atividade do Seu amor, é o Seu favor imerecido, é o Seu
ágape que «predestinou» os homens para serem «Seus filhos», que provou
(3) Sir John Maynard, Bus9ia in Flux, p. 492.
— 84 —
a Jesus Cristo, o Redentor (1:6) e que, amorosa e poderosamente, influen-
ciou as vidas dos homens, a fim de que pudessem crer em Cristo e
receber o perdão dos seus pecados (1:7).
A ênfase de Paulo na Graça de Deus coloca-nos face a face com o
fato de que temos de tratar, não com uma ordem ideal passiva, mas
com o amor ativo. Os seres humanos não são convidados a suspirar
por um reino espiritual de formas e satisfações perfeitas. Não se con-
vidam os homens para que a si se ergam, por um supremo ato da
vontade, do seu rastejar mundano, para vôos para o alto, nas asas de
águia, aos «lugares celestiais», onde Deus mora e está pronto a recebê-los.
Não; Deus vem à alma, agora, como veio ao mundo em Jesus Cristo.
Êle ama apaixonadamente os homens em todos os seus desvios e modos
pouco amáveis. O Seu amor os segue, cerca-os em todos os escuros
recessos da sua perdição e da sua alienação. Para as grandes menta-
lidades da Grécia, a piedade que tal atitude pressupunha era doença:
A Divindade, por certo, não podia ser menos impassível e impertur-
bável do que o homem ideal. O hinduísmo nunca tem podido relacionar
o amor de Deus com o amor dos homens. O amor, no hinduísmo,
promove a abstenção de prejudicar, mas não produz a paixão de curar.
Mas, no que diz respeito ao Deus e Pai de Jesus Cristo, pode-se dizer:
«Onde abundou o pecado, superabundou a graça» (Rom. 5:20).
Mas, como vem Deus à alma? De que modo opera a Sua Graça?
Algumas vêzes violentamente, como a «arrebentação do mar». Algu-
mas vêzes, ela troveja como os aríetes de Boanerges», que batia à Porta
do Ouvido em Alma Humana. (4) Algumas vêzes leva um homem a
dizer como o Peregrino de Bunyan: «Fui obrigado a sair da minha
pátria por causa de um som terrível que me estava nos ouvidos: a saber,
que estaria infalivelmente perdido se ficasse ali» (5). Ela veio a Paulo
em uma Voz que o deteve no seu fervor anti-cristão: «Saulo, Saulo.
por que me persegues?» (Atos 9:4).
Outras vêzes, a Graça de Deus manifesta-se menos dramática, mas
nem por isso menos eficcizmente. Vem à alma «como uma vozinha
mansa». Ela vem como «a bater de asas, as plumas diáfanas da asa
de um pássaro contra as portas fechadas de barro». Ou vem em tris-
teza, que se transforma na sombra da mão de Deus, «carinhosamente
estendida». (6).
Quanto à maneira pela qual a Graça opera, tudo depende da situa-
ção humana, do estado de alma. Mas, em todos os casos, a fôrça é
combinada com a beleza. E, em cada exemplo, o que Deus, em Sua
Graça, quer, é uma resposta, disposição de deixar entrar Aquêle que
bate à porta, de abrir as janelas à luz, de aceitar as propostas do amor,
de submeter-se à voz imperiosa que diz: «Segue-me». Mas qualquer
que seja a maneira, de aproximação, desde que a resposta seja real, o
(4) John Bunyan, A Guerra Santa.
(5) O Peregrino.
(6) Francis Thompson, The Hovnd of Heaven.
ritmo da vida, dêsse ponto em diante, é «para o louvor da glória da
Sua Graça». (Efes. 1:6).
Porque a Graça de Deus não opera apenas uma vez na vida da
pessoa que se submete a ela. O princípio da sola gratia («a graça só»)
continua através da vida tôda. Os cristãos vivem pela Graça de Deus.
Em sua fraqueza, quando a fôrça humana se tem refluído e tôdas as
aparências são contra a alma cristã, soa a mesma voz, essa Voz sem
tempo: «Basta-te a minha graça», (2 Cor. 12:9). Com razão Paulo,
costumava concluir suas cartas, da mesma maneira que a própria Bíblia
também conclui, com as palavras: «A Graça de Nosso Senhor Jesus
Cristo seja com todos vós» ou «com todos os santos».
d) Por meio da Fé.
Mas como, do ponto de vista humano, torna-se a Graça de Deus
realmente eficaz na vida? Qual a natureza da resposta que introduz
a vida do homem na esfera da ação de Deus? Porque Deus nunca viola
a personalidade humana. Êle nunca se introduz onde não é desejado.
Êle correu o risco de conceder liberdade de escolha ao homem, em sua
criação original; continua a respeitar o livre arbítrio do homem de
aceitar ou de rejeitar a Sua Graça. A resposta positiva do homem à
Graça de Deus é a Fé. «De Graça é que sois salvos», diz Paulo, «por
meio da Fé» (Efes. 2:8).
A Fé é o campo aberto para a entrada de Deus. Ê a decisão de se
aceitar o que Deus dá, deixar Deus operar em nós, da mesma maneira
que tem operado por nós. É o abrirmos todo o ser à entrada de Deus
como o Salvador da vida; é a resposta completa do espírito humano ao
mandamento de Deus como Senhor da Vida. É, no mais profundo dos
sentidos, atitude de confiança em Deus. A fé cristã é muitíssimo mais
do que se tem chamado o «princípio protestante», isto é, certo senso
crítico do além, uma saída para o desconhecido, uma dissatisfação com
tudo quanto se tem conseguido até aqui. Ao contrário, a fé cristã é
entrega de aventura, muito definida e muito confiante, a Deus mesmo,
que introduz na alma, pela porta aberta da fé, tudo o que na Bíblia se
entende por «Seu Reino», Sua «Justiça», Sua «Luz», Seu «Conhecimento«,
Sua «Glória». Por meio da Fé surge nova era de Deus; por meio da Fé,
vem a sua nova ordem. Assim, a f é é a recepção que dá nova percepção.
É o reconhecimento do fato de que vivemos a conhecer a Deus quando
nos tivermos tomado conhecidos de Deus; porque o Deus que viremos
a conhecer é o Deus que vem ao nosso encontro. Êle vem ao nosso
encontro, em Sua Graça, para que possamos ir a Êle, com a nossa fé.
Se, em termos gerais, fé é isto, é preciso que claramente se dis-
tinga esta interpretação do modo por que se estabelece o contacto entre
Deus e o homem de outras que se têm proposto. Propuseram-se diversos
pontos de vista de como se pode, em última análise, alcançar a verdade,
ideal, como se pode realizar o bem-estar da humanidade. Tôdas estas
opiniões atribuem sempre, em um ou outro sentido, a iniciativa ao pró-
— 86 —
prio homem, de tal modo que o produto é sempre uma realização do
homem .
O primeiro caminho é o caminho do conhecimento. Êsse podia ser
chamado o caminho grego. Baseia-se na convicção de que o de que mais
necessita o homem, a fim de cumprir o ideal humano, é informação
exata, pensamento claro, inspirado pelo amor da verdade. Êste conceito
é a base fundamental do moderno desenvolvimento cultural. Pressupõe
duas coisas que brotam da experiência: primeiro, que o homem, pela
investigação, pode vir a conhecer a verdade fundamental: segundo, que
o homem, quando os seus próprios interesses estão em jôgo, é desinte-
ressado indagador da verdade. Mas, mesmo admitindo-se que o homem
viesse a alcançar o perfeito conhecimento, sabedoria, no seu sentido
mais absoluto, a sua sabedoria não podia, como disse Pascal, produzir um
só sentimento de amor. E, sem amor, nenhum problema humano real
pode ser resolvido. Além disso, sem amor. Deus não pode ser conhecido.
Em alguns círculos cristãos, há certa forma do caminho do conhe-
cimento, que merece, de passagem, uma breve referência. A ortodoxia
teológica, isto é, o pensamento exato acêrca de Deus, é um ideal nobre e
necessário da religião cristã. Mas, infelizmente, idéias corretas acerca
de Deus podem transformar-se em substituto das relações justas para
com Deus. Os homens aceitam idéias, protestam sua lealdade a idéias,
desafiam os outros a indicarem onde estão erradas as suas idéias. Mas
esquecem-se de que é perfeitamente possível terem as idéias mais ortodo-
xas e incontestáveis a respeito de Deus, a respeito da Incarnação, da Morte
e da Ressurreição do Senhor Jesus Cristo, e serem não mais do que
puros pagãos quanto às relações para com Deus, o Pai e Jesus Cristo,
o Filho. Têm conhecimento escolástico, mas falta-lhes a fé evangélica.
E. por essa razão, sofrem do defeito que, segundo Paulo, é inseparável
dos que têm o conhecimento sem o amor: tornam-se «enfatuados» (1
Cor. 13:4), orgulhosos, críticos, áridos, até cruéis, sendo tudo isso terrí-
vel testemunho do fato de que é possível ter conhecimento acêrca de
Cristo sem, contudo, O conhecer. E, que será dos que se orgulham
de ser autoridades em tudo o que se relaciona com o caminho que leva
à «Cidade Celestial» e que, entretanto, nunca trilharam êsse caminho
como peregrinos? Existem também alguns que presumem ter a quali-
dade de relações ministeriais com a Divindade, que lhes dá conhecimento
autorizado da planta apocalítica de todas as épocas vindouras e que,
contudo, nunca aprenderam a viver e a servir a Deus, no tempo atual.
Um outro caminho é o caminho da virtnde. Êste é o velho caminho
judaico. É o caminho dos que têm paixão pela bondade, que se esforçemi
por viver de acordo com a Lei, que possuem os mais elevados ideais
éticos. M£is, pondo de lado o fato de que ninguém pode atingir bondade
perfeita, tanto como na forma da ação, os que tentam fazer assim tomam-
se, ou fariseus sem alma ou desengonçados neuróticos. É tão verdade
hoje, como sempre foi, que «Pelas obras da Lei nenhuma carne será
justificada» (Gal. 2:16). O homem não alcança a verdadeira virilidade,
nem consegue realizar a vontade de Deus, fazendo de algum preceito
ético a sua Divindade. A tentativa de viver, em sentido absoluto, por
prescrições legalistas, longe de conduzir à perfeição ética, destrói a
personalidade moral e as relações humanas. Boa parte do mal que
aflige o mundo deve-se às «boas» pessoas, que insistem na aplicação de
princípios que são inaplicáveis, ou que forçam os homens à obediência a
leis que são incapazes de observar.
Há também um modo, que se podia designar como o caminho da
barganha. Foi o caminho dos velhos cananitas. O seu princípio inspi-
rador foi enunciado pelas palavras latinas: «Do ut des». «Eu dou
para que tu me dês». Os adoradores de Baal barganha vaim com a sua
divindade. Eles davam para que, por seu turno, pudessem receber de
volta. A religião do ut des tem caracterizado o catolicismo popular
nas terras da América Latina. A condição e o tratamento dado às
Imagens dos santos, nos lares do povo simples, dependia da maneira pela
qual cumpriam ou não as barganhas sagradas. Que é isto senão o
«caminho da barganha», relações do tipo Do ut des com a Divindade,
o inteiro sistema de indulgências da Igreja Católica Romana? Quando
se fazem promessas aos adoradores, de que em troca de certas somas
de dinheiro se podem conseguir privilégios correspondentes ou satisfa-
ções espirituais, assistimos, nas relações religiosas, a uma reversão cristã
ao paganismo primitivo. A inculcação da idéia de que se podem com-
prar com dinheiro recompensas religiosas importando em favor da Divin-
dade, é negação completa do significado cristão da fé e degradação
absoluta da ênfase cristã na religião.
Podem-se mencionar dois outros absolutos espirituais que têm sido,
em tempos recentes, competidores populares da fé cristã. Um dêles
podia chamar-se o cammho da ancestralidade, o outro o caminho da
associação. O Mito do Século Vinte, de Rosemberg, que proclamou
que a raça nórdica era a raça messiânica, a raça predestinada, ilustra o
caminho da ancestralidade. O simples fato de ser alemão dava a uma
pessoa a mesma condição fundamental, em relação à Divindade, que
um judeu antigo possuía, em virtude de ser um filho de Abraão. No
momento em que se dá à filiação a uma raça ou nação valor absoluto,
proclama-se, uma outra base de bondade universal Mas, no Novo Testa-
mento soa uma palavra decisiva e condenatória de tôda a presunção
quanto ao valor fundamental de nação ou de raça: «A Escritura encer-
rou tudo debaixo do pecado» (Gal. 3:22). «Não há justo, nem sequer
um» (Rom. 2:10). «O justo viverá da fé» Gal. 3:11). Para Deus não
tem qualquer importância o tronco racial de que é oriundo o homem.
O caminho da associação baseia a posição e a dignidade funda-
mentais no grupo a que alguém pertence. O marxismo faz assim na
glorificação do proletariado revolucionário. Quão difícil é convencer um
marxista de que «todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus»
(Rom. 3:23) e não sómente os capitalistas? A «justiça que é pela fé»
(Rom. 9:30) nada significa para o marxista, porque «as radiantes forças
do universo» estão automáticamente do lado das massas deserdadas.
— 88 —
Mas o que é particularmente penoso pensar, contudo, é que possa
existir uma doutrina da Igreja Cristã tão grosseiramente mecânica, a
ponto de afirmar que simplesmente o fato de uma pessoa pertencer
a uma instituição chamada Igreja e de lhe ser leal, garante posição
acreditada junto de Deus. Não podemos escapar ao fato de que a dou-
trina romana da Igreja, pela qual, na base de incondicional lealdade à ins-
tuição, está a posição do homem perante Deus absolutamente garantida,
é uma forma muito crua de salvação por meio da linhagem. Em seus
resultados práticos, esta doutrina é obstáculo ao desenvolvimento e
amadurecimento da personalidade cristã. Em principio, é uma violação
da verdade nuclear do cristianismo neo-testamentário, de que é pela fé,
a fé pessoal em Deus, e tão somente por uma fé assim, que uma pessoa
é justificada diante de Deus e feita participante da Graça de Deus. E
ainda, a mesma tendência anti-evangélica pode-se encontrar em muitas
igrejas protestantes. Quão frequentemente à filiação à Igreja, o sim-
ples pagamento das quotas devidas e um certo número de presenças aos
serviços religiosos, apenas para não ser tirado do rol da Igreja, torna-se
o equivalente de salvação por associação, e virtual negação da salvação
pela fé?
Esta excursão em outros caminhos para a justiça fundamental, que
são substitutos humanos da fé em Deus, prepara-nos para tratarmos
mais concretamente do significado da fé. Até aqui, temos achado que
a fé é apenas sinceridade para com Deus, confiança em Deus. Mas a
fé é sinceridade e confiança inseparávelmente relacionadas com Jesus
Cristo. Para Paulo, como para o cristianismo neotestamentário, a fé
«salvadora» é a fé em Jesus Cristo que faz a alma aberta e confiante
para com Deus. Como Jesus Cristo está no centro da Graça de Deus,
isto é, o movimento gracioso de Deus em direção ao homem, Êle não
menos está no centro da apreensão e da resposta do homem à Graça
de Deus. É em Cristo que Deus vem à alma humana; Cristo é o dom
de Deus à alma. É o discernimento que a alma tem de Cristo, como
supremamente valioso, que desperta a fé em resposta. Assim, a própria
fé é um dom de Deus, porque é o encontro com Jesus Cristo e a cons-
ciência da sua excelência espiritual que lhe dá origem.
A fé em Jesus Cristo é, por um lado, um assentimento à verdade
acêrca de Jesus Cristo, e, por outro, consentimento para com a realidade
de Cristo. A fé não toma lugar em um vácuo. Vem pelo «ouvir»,
como disse Paulo na sua Carta aos Romanos. E o «ouvir» vem pela
Palavra de Deus. Cristo é proclamado; as coisas que lhe dizem respeito
são levadas à consideração de uma pessoa. O que a pessoa ouve acêrca
de Cristo recomenda-O como Um cujas pretensões são dignas de crédito
c como Salvador e Senhor a quem uma pessoa deve entregar a vida. O
assentimento a Jesus Cristo não dignifica necessáriamente, no comêço
da fé, a adesão intelectual a uma elaborada declaração teológica a Seu
respeito. Significa antes que Êle está diante de uma pessoa como Um
que faz apêlo único e absoluto, como Salvador. Então, não cegamente,
mas com tôdas as suas faculdades em funcionamento, o homem se dá
— 89 —
a si mesmo, em entrega sem reservas, a Jesus Cristo. Dessa entrega
virá, em devido tempo, conhecimento único de Deus e experiência, igual-
mente única, do poder de Deus. No que respeita a Paulo, êle disse a
Jesus Cristo, no seu primeiro encontro: «Senhor, que queres que eu
faça?» Mais tarde, depois que já O tinha conhecido de longa data,
disse: «Já estou crucificado com Cristo e vivo, não mais eu, mas Cristo
vive em mim; e a vida que eu agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho |
de Deus, que me amou e Se entregou a Si mesmo por mim» (Gal. 2:20).
Estando «crucificado com Cristo», Paulo se considerava como homem
morto e, assim, não reconhecia acusações do passado contra êle. Jesus
Cristo, com cuja morte estava identificado, tinha tomado conta de tôda
a lista passada dos seus pecados. «Estando crucificado com Cristo»,
não reconhecia, outrossim, pretensões presentes sôbre a sua pessoa, a
não ser as pretensões de Jesus Cristo, com quem ressurgiu dos mortos,
que nêle vivia e pela fé em quem prosseguia na vida. Assim, a fé em
Jesus Cristo, crer realmente em Cristo no sentido paulino, significa que
Cristo assumiu completo controle do Sêr todo daquele que crê. A fé
evangélica é uma coisa muito mais rica e mais radical do que a
simples aceitação do perdão de Deus por amor de Cristo; envolve
também a aceitação do domínio soberano de Cristo nas nossas vidas.
Isto equivale a dizer que, «aceitar a Jesus Cristo» significa não só aceitar
com gratidão o que Êle fez a nosso favor, mas também o que Êle deseja
fazer em nós e por meio de nós. Porque o Cristão não mais pertence a
si mesmo, para fazer a sua própria vontade tão somente; pertence, dai
em diante e para sempre, ao Salvador e Senhor, Jesus Cristo, que morreu
por êle e para êle vive. Recebemos ã Jesus Cristo sem preço, por causa
do que Êle fêz por nós, mas torna-se trabalho custoso recebê-Lo, por
causa do que Êle fará em nós. A livre graça de Deus em Jesus Cristo,
s que a fé responde, torna-se graça custosa quando Cristo assume o
comando da vida.
Quando se alcança a verdadeira significação da fé evangélica, caem
por terra certas críticas que se têm levantado contra ela. Diz-se que a
doutrina do perdão de Deus, na base do que Cristo fêz, envolve uma
grave depreciação da justiça. Também se tem alegado que ela tende,
outrossim, a produzir espírito de cínica fanfarronice entre certas pessoas:
o que Cristo fêz por elas dá à sua dignidade moral um novo sentido de
Importância e constitui um convite a pecar de novo, a fim de que possam
receber o perdão de Deus. Se o perdão é assim livre, porque não se ter
indulgência própria, elevando o débito moral até o limite, para gozar de
todas as vantagens do perdão divino?
W. H. Auden interpreta êste modo de oposição, como a concepção
evangélica de perdão. «A Justiça», faz êle uma das suas personagens
dizer, «será substituída pela Piedade, como a virtude humana funda-
mental, e todo o temor de retribuição desaparecerá. Todo moleque de
rua se felicitará: «Eu sou um tão grande pecador, que o próprio Deus
tem de vir em pessoa para me salvar. É preciso que eu seja um autên-
tico demónio». Todo trapaceiro argumentará: «Eu gosto de cometer
— 90 —
crimes. Deus gosta de perdoá-los. Na realidade, o mundo está admira-
velmente organizado». E a ambição de todo o jovem policial é garantir
o arrependimento no leito mortuário». (7).
Duas coisa são aqui esquecidas. Esquece-se que a aceitação do
Crucificado pela fé é acompanhada de um profundo ódio ao pecado
que O levou à Cruz. Também se esquece que a aceitação do Ressusci-
tado pela Fé convoca o pecador perdoado para uma vida nova e o rela-
ciona vitalmente com o Senhor da Vida.
Assim, de fato, a fé é tão importante na vida de um cristão, que
não é apenas o meio pelo qual êle entra na vida, como também se torna
a atitude permanente de sua vida. Um cristão não somente começou
a viver quando a fé o despertou. A sua vida recem-despertada tornou-se
vida de fé. «O justo viverá da fé», disse Paulo. Os crentes irão de «fé
em fé». Quando vão, é para a frente que vão, em demanda de uma
fronteira da vida, depois de outra. Não fecharão os olhos aos fatos.
Não cairão em um estado de otimísta decepção própria, crendo que, no
fim, tudo sairá bem. Ao contrário, viverão pela graça e seguirão nos
passos do «Pioneiro e Aperfeiçoador da fé», o Cristo que os chamou
para uma vida de peregrinos e de cruzados.
e) Para a Paz.
Mas uma vida assim, vivida nas fronteiras do pensamento e da ação,
é condicionada pela realidade da paz. A fé produz a paz e a paz se
transforma em condição de contínuo exercício da fé. «A Paz de Deus»,
torna-se a guardiã, a custódia da alma cristã.
A Carta aos Efésios lança luminoso jato de luz sôbre o lugar e a
significação da paz na vida dos homens novos. Antes, tinham êles
vivido em estado de tensão e de luta. Tinham sido alienados de Deus
e tinham estado em inimizade uns com os outros. «Mas agora em
Cristo Jesus vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo,
chegastes perto. Porque Êle é a nossa paz, o qual dos dois (judeus e
gentios) fez um; e derrubou o muro de separação, a inimizade para que
dos dois Êle criasse em si mesmo um homem novo, fazendo assim a
paz, e que reconciliasse ambos em um só corpo, com Deus mediante
a Cruz» (2:13-16).
A Paz, bem como a Graça e a Fé, está intimamente associada com
Jesus Cristo. «Êle é a nossa Paz». É necessário dizer duas cousas a
respeito da paz que Cristo dá. E' paz que se baseia na reconciliação e é
também paz que é realizada pela ação.
A paz cristã é baseada na reconciliação. É, primariam.ente, paz com
Deus, a paz que vem quando cessa a alienação e a alma se aproxima
de Deus. É um visão da Cruz, do significado profundo do «sangue de
Cristo» que produz este sentimento de reconciliação entre Deus e o
homem. Instala a paz em um espírito que é infeliz, sem repouso e
apreensivo, por causa do sentimento de pecado e de culpa.
(7) Cf. A Christmas Oratório.
— 91 —
Em nenhum lugar da literatura cristã, é tão perfeitamente descrita
a relação entre a paz espiritual e a visão da Cruz, como no «Peregrino»,
de Bunyan. «Exatamente quando Cristão chegou junto da Cruz», lemos,
«o seu fardo se lhe caiu dos ombros, escorregando pelas suas costas . . .
Então, cheio de contentamento e aliviado, êle exclamou com o coração
repleto de felicidade: «Êle me deu paz pelos Seus sofrimentos e vida
pela Sua morte». Chorando pura alegria e com o coração pleno de
profunda paz, êle deu três pulos de alegria e foi embora cantando:
«Bendita seja a Cruz!
Bendito seja o Sepulcro!
Muito mais bendito ainda
Seja o Homem que, por mim,
foi pôsto sob condenação!»
O homem que conhece a paz que se origina no sentimento dos peca-
dos perdoados e da reconciliação com Deus, está predisposto para a
reconciliação com os que antes odiava. O velho ego cheio de orgulho
e de importância própria, que sempre encontra alguma ocasião para
mostrar ressentimento, passou através da agonia da morte, entrando
na alegria e na paz da nova vida. O homem novo, aliviado e livre e
cheio de gratidão a Deus pela Sua indizivel bondade para consigo, torna-
se agente da bondade e da paz de Deus nas vidas dos outros. Paulo
menciona como, por meio da Cruz, a histórica separação, a hostilidade
profundamente localizada entre judeus e gentios foi vencida. Cristo
reconciliou a ambos com Deus e os fêz um corpo só em Si mesmo. A
paz que reinou entre os cristãos gentios e judeus não era baseada
em um recem-nascido espirito de apreciação mútua desejoso de esquecer
o passado; não era aliança recém-formada para promover certos fins
comuns. Era antes paz, reconciliação, realizada pelo fato de que os
velhos problemas eram todos problemas mortos. Agora eles eram um
em Cristo Jesus; êles eram conjuntamente membros de um único corpo.
Eis aqui claramente a norma de tratamento para tôda a qualidade de
antagonismo humano. Sejam todos os inimigos trazidos para perto de
Deus, na Cruz de Cristo, e ali, recebendo o perdão de Deus e perdoando-se
uns aos outros, tornem-se um só corpo. Daí em diante, conheçam a
«comunhão do sangue de Cristo» (1 Cor. 10:16). Seja agora o sangue,
a vida que lhes foi dada comunicada a êles e surja por meio dêles, como
membros de um único corpo. É a vontade de Deus que a unidade corpo-
rativa constituída de grupos, antes, grupos antagónicos, quando a paz
de Deus reina em todos os corações, seja padronizada na primeira e
mais decisiva reconciliação. Entre os «homens em Cristo» absoluta-
mente não há lugar para se manterem direitos e prioridades, para se
perpetuarem prejuízos e antipatias que caracterizavam as primitivas
relações entre êles, como membros de diferentes raças, nacionalidades,
classes e castas.
Tal paz, tal unidade harmoniosa, contudo, somente pode ser man-
tida em ação. A paz cristã não é um fim em si: é um meio para o
— 92 —
alcance de um fim. É o requisito indispensável para que seja feita a
vontade de Deus pelo indivíduo cristão ou por um grupo cristão. No
momento em que a paz for procurada como o mais desejável objetivo
da vida, está irremediávelmente perdida. A paz permanente é como a
felicidade: Deus a dá somente àqueles que O servem. É só dada aos
que estão desejando conhecer somente a Jesus Cristo e Êste crucificado»
(1 Cor. 2:2). «A paz de Deus que excede a todo o entendimento» é
dada aos peregrinos e aos cruzados. Ela lhes é concedida à beira do
caminho, quando repousam do seu trabalho, a fim de equipá-los para
mais trabalho ainda. É a paz no Caminho e para o Caminho.
Esta paz é inestimávelmente descrita em «A Viagem do Peregrino».
Cristão foi hospedado em uma casa da beira do caminho, por Piedade,
Prudência e Caridade. «Êles discutiram juntos até alta noite; e depois
que se tinham encomendado à proteção do Senhor, foram repousar.
Pnseram o peregrino em um grande quarto de cima, cuja janela dava
para o nascente: o nome do quarto era Paz, Ali ele dormiu até o romper
do dia». De manhã Cristão despediu-se das hospedeiras. Antes de ter-
minar o dia, êle já tinha lutado com o demónio Apolião, no vale da
Humilhação, na maior batalha da sua carreira; e durante a maior parte
da noite que se seguiu, marchou pelo meio dos horrores do Vale da
Sombra da Morte. Mas a Paz lhe havia fortalecido o coração e êle não
conheceu o medo. A paz cristã é a paz para o sol nascente, como tam-
bém para o vale, profundo onde a luz não brilha de dia. E' paz para as
tre\?^s que descem quando o sol se vai; é paz também para a «manhã sem
nuvens» que fica além do vale, no reino em que o viajante «repousará
finalmente».
E' simplesmente natural que a paz cristã deva ser assim, se ela é real-
mente a «Paz de Cristo». Quando Jesus Cristo disse aos seus discípulos:
< A minha paz vos deixo, a minha paz vos dou» (João 14:27), era a
noite de véspera da Sua morte. Êle estava perfeitamente cônscio do
que estava diante dÊle, mas a Sua alma estava em paz. Essa paz, Êle
a legava aos Seus discípulos como Sua mais preciosa herança. A paz
que Jesus Cristo dá aos Seus seguidores é a paz para a ação, a paz para
o Caminho, a paz para fazer a vontade de Deus. Não é a paz dos
cemitérios, onde a beleza calma reina no meio da morte. É antes a
paz do rio em caminho, desde os planaltos até o mar. O rio está em
paz porque o seu leito está feito. Se as águas se atiram em corre-
deiras, ou redemoinham pelas cavernas sem sol, ou espelham a luz
do sol em seu caminho através de alguma plácida campina, o rio está
em paz. Está em paz porque, além das montanhas e das planícies, dos
barcos e dos moinhos, fica o oceano e o «descanso que permanece».
f) Para as «Boas Obras» no serviço da Igreja.
Os homens a quem Deus «vivifica», que se tornaram «homens em
Cristo», estão «destinados» por Deus a uma vida de bondade ativa. A
manifestação suprema da sua condição espiritual e da atividade operante
da Graça, da Fé e da Paz em suas vidas, encontra-se em suas «boas-
— 93 —
obras», nos frutos práticos que produzem. Nunca se deixa impressionar
com a ênfase que o Novo Testamento põe no procedimento, como a condi-
ção sine qua non da verdadeira religião e o critério fundamental pelo qual
será julgada pelo homem. Soma alguma de conhecimento, por verda-
deiro que seja, soma alguma de discursos acêrca do verdadeiro cristia-
nismo ou de violento libelo contra o falso cristianismo, jamais poderão
constituir substitutos das «obras de amor».
Em «A Viagem do Peregrino» de Bunyan — para citar mais uma
vez esta obra clássica da vida cristã — existe uma descrição inestimável
e sóbria, como eu a tenho julgado, de um homem chamado Loquaz,
que era, no seu próprio sentir, modêlo de cristão. Quando convidado por
Fiel a declarar as suas opiniões sôbre a evidencia externa de um verda-
deiro cristão, um que conhecesse a graça de Deus em verdade, Loquaz
deu estas duas caraterísticas: primeiro, «uma grande gritaria contra o
pecado» e, segundo, «um grande conhecimento dos mistérios do Evange-
lho». Com fulminante desprêzo e provas biblicas, Fiel rejeita ambos
os critérios. Uma coisa, diz êle, é gritar contra o pecado dos outros e
outra mui diferente é aborrecê-lo em si mesmo. E, quanto ao conhe-
cimento da verdade divina, «uma pessoa», diz Fiel, «pode conhecer tanto
como um anjo e, contudo, não ser cristão».
E não menos verdade é que os «homens em Cristo» devem viver
para alguma cousa mais do que expressão emotiva, quer o sentimento
religioso busque a sua suprema expressão em exterioridades litúrgicas,
quer em explosões de orgia. Na religião cristã, o conhecimento e o
sentimento têm lugar nobre e importante, mas nenhum dêles deve ser
cultivado por amor dêles mesmos; nem qualquer dêles oferece prova
infalível de verdadeira piedade. Os cristãos não se tomam «filhos de
r>eus» pelas suas boas-obras, mas é tão somente pelas suas boas-obras
que êles provam ser «filhos de E>eus».
As «boas-obras» para que os «homens em Cristo» são convidados,
manifestam-se primariamente no íntimo, e em favor da comunidade cristã,
a Igreja. O círculo dos cristãos é a esfera onde se devem tornar pri-
mariamente eficazes as «boas-obras». Porque a comunidade dos remi-
dos tem importância e finalidade que não pertencem a nenhum outro
grupo. Deus, diz Paulo, fêz Cristo «a cabeça sôbre todas as coisas para
a Igreja, que é o Seu corpo» (Efes. 1:22,23). Falando para si mesmo,
Paulo considerava ser o seu mais alto e mais significativo procedimento
o sofrer por causa da Igreja, «para cumprir o que falta das aflições
de Cristo, em favor do Seu Corpo, que é a Igreja» (Col. 1:24). Deixando
para o capítulo seguinte toda a discussão a respeito da natureza funda-
mental e da realidade histórica da Igreja, demos atenção, neste final de
capítulo, ao fato de que os «homens em Cristo», em virtude de perten-
cerem a Cristo, pertencem também a uma comunidade de espíritos afins,
neste mundo. Isto é verdade, qualquer que seja o ponto de vista de
cada um a respeito da Igreja. Nós nos relacionamos com Cristo, indivi-
dualmente, mas não podemos viver em Cristo, isoladamente. A nossa
apresentação a Êle pode ter sido uma coisa extremamente individual e
— 94 —
auto-consciente, como se a realidade espiritual fôsse limitada a um encon-
tro entre o Tu infinito e um Eu pecaminoso e humano. Mas Cristo ime-
diatamente nos apresenta a espiritos afins que também estão «nÊle».
Paulo se ausentou durante certo período para os desertos solitários da
Arábia, mas finalmente voltou a Damasco e subiu a Jerusalém, a fim
de conferenciar com os que estavam «em Cristo» antes dêle.
A comunidade cristã é inevitável. É tanto o instrumento funda-
mental do desígnio de Deus como a esfera imediata da ação cristã.
Paulo orava para que a sua clientela de leitores espalhada por longe
pudesse chegar a conhecer a grandeza e a significação da «herança de
Deus nos santos» (Efes. 1:18). Era somente quando êles viessem «com
todos os santos» que «poderiam perfeitamente compreender» a verda-
deira extensão do «amor de Cristo», que excede a todo o entendimento
(3:18, 19). Porque essa comunidade era realmente a «morada de Deus
em Espírito» (2:22). Não é de surpreender, pois, que a principal es-
fera da ação do cristão devia ser com os outros cristãos e em favor
deles, membros com êle do Corpo de Cristo. Quão perfeitamente con-
corda a ênfase de Paulo sôbre a natureza social do cristianismo com as
palavras do próprio Jesus: «Onde dois ou três estiverem reunidos em
meu nome, eu estarei no meio dêles» (Mateus 18:20).
É impossível, pois, estar um «homem em Cristo», em boa posição
e regular, e ser individualista absoluto. A importância da Igreja e os
interêsses da Igreja devem sempre ser o interêsse primário de todo
cristão. Êle não pode ser um cristão, no sentido mais amplo do têrmo,
senão como membro da comunidade cristã; não pode cumprir a sua
missão de cristão e como homem, sem que a Igreja ocupe lugar impor-
tante no seu pensamento e êle encontre nela esfera apropriada para a
sua ação. Naturalmente, precisamos de admitir que possa haver cris-
tãos que, por uma ou outra razão, nunca encontraram um lar espiritual
em qualquer comunidade cristã organizada. Este foi o caso do grande
cristão espanhol, Miguel de Unamuno. Tais cristãos não são incomuns
no mundo espanhol. Há «homens em Cristo» que não estão registrados
como membros no rol de qualquer igreja. É muito mais comum, porém,
terem as pessoas boa e regular posição na Igreja, como sociedade visível,
sem serem «homens em Cristo». Tais pessoas estão na Igreja, mas a
Igreja não está neles. Nunca têm chegado a ver a verdadeira grandeza
da Igreja, nem a Igreja tem um lugar supremo na sua devoção. Como
membros da Igreja, não vivem em submissão incondicional ao Senhor
da Igreja.
Thomas Chalmers foi pessoa desta natureza, na primeira parte do
seu ministério; homem que, no julgamento do seu compatriota Carlyle,
era o maior dos escoceses, depois de John Knox. Chalmers era religioso
por natureza. Quando chegava a sua vez de dirigir o culto, como estu-
dante de teologia na capela do colégio, as suas orações públicas eram
tão eloquentes, que o povo da cidade de Sto. André, ia ouví-lo dirigir o
culto. Era também brilhante matemático. A economia política, uma
ciência que nascia, era outro dos seus estudos favoritos. No começo
— 95 —
do seu ministério, desejou muito a cadeira de Matemática da Univer-
sidade de Edimburgo, que tinha ficado vaga. Playfair, o professor que
se aposentara, tinha feito uma declaração pública para que os diretores
da Universidade não pensassem para a Cadeira, em nenhum ministro
da Igreja da Escócia. Nenhum clérigo se podia encontrar bastante
eminente para a alta distinção. Chalmers se sentiu ferido pela ponde-
ração do matemático a respeito do ministério escocês. Escreveu e publi-
cou um panfleto anónimo em que mantinha que nenhum grupo da
sociedade escocesa estava em melhor posição para se devotar às Artes
Liberais do que o clero. Eram dias do «Moderatismo» religioso. Ser
bom colega, membro de academias literárias, decente e bem equilibrado,
eram qualidades mais elevadas para o ministério do que o fervor evan-
gélico. O que Chalmers escreveu disse mais do que êle e uma multidão
de outros ministros da época pensavam a respeito da Igreja Cristã e do
oficio ministerial, do que o folheto disse da proficiência dêles em huma-
nidades. Eis algumas das suas expressões encolerizadas.
«O autor dêste panfleto pode asseverar, o que para êle é a mais
alta autoridade, a autoridade da sua própria experiência, que, depois do
desempenho satisfatório dos seus deveres paroquiais, um ministro
pode gozar de ininterrupto período de cinco dias por semana,
para se dedicar a qualquer ciência para que tenha gôsto e disposição.
No que respeita à distribuição do tempo, dificilmente se poderá encontrar
uma situação no país mais favorável para o exercício livre e ininterrupto
da inteligência . . . Um ministro tem cinco dias por semana para ocupa-
ções livres e independentes; seria a mais ridícula exposição de argu-
mentos, provar que existe qualquer coisa no emprêgo dos dois dias
restantes julgados capazes de extinguir o seu ardor matemático, de imbe-
cilizar e degradar as suas faculdades, de fechar o seu espírito às fasci-
nantes distrações da ciência, ou de destruir qualquer das vigorosas e
decididas tendências que a natureza ou o hábito nêle possam ter implan-
tado. Quase não há consumo de esforço intelectual no emprêgo parti-
cular do ministério. As grandes doutrinas da revelação, ainda que subli-
mes, são simples. Não requerem que se queimem as pestanas para
serem compreendidas, — não há necessidade de ostentação de linguagem
artificial para imprimi-las no coração do povo. O dever do ministro é
dever do coração. É imprimir as lições simples e caseiras de humanidade
e de justiça e os exercícios de uma piedade sóbria e iluminada. Cabe-lhe
iluminar os que estão no leito da velhice ou da enfermidade; rejubilar na
administração do conforto; manter relações amigáveis com o povo e
conseguir a sua afeição, por aquilo que nem arte nem hipocrisia podem
realizar — o sorriso de um rosto bondoso, o ar franco e aberto de uma
honestidade não dissimulada ... A utilidade de um caráter como êste,
não exige exercícios fatigantes de compreensão para sustentá-lo; nem
ostentação de cultura ou de eloquência; nem arrebatamentos de misti-
— 96 —
cismo; nem discussão elaborada; nem gíria de sistema ou de contro-
véi^ia». (8).
No pensamento de Thomas Chalmers, o ministério, naquela época,
era uma profissão com tempo livre. Nada havia no serviço de Igreja
Cristã que exigisse todo o tempo, toda a devoção, todo o vigor intelectual
que um homem possuísse.
Passaram-se os anos. O jovem ministro escocês sofreu profunda
exp)eriência religiosa. Em uma palavra, converteu-se. «Cristo», n
«Graça», a «Paz», as «Obras», e a «Igreja» tomaram nova significação
para o «novo homem em Cristo». Cristo e a Igreja, agora, tinham tudo
o que havia nêle. A sua paixão evangélica realçou e transfigurou os
seus poderes intelectuais. Matemática, astronomia, economia política,
filosofia e eloquência incomparável, tudo isto era oferecido no altar de
Deus a Cristo e à Sua Igreja. Coube a Chalmers viver a sua vida em um
dos períodos mais críticos e mais criadores da história da Igreja Escocesa.
O Estado tinha tentado privar a Igreja da liberdade espiritual, insistindo
em que os patronos locais deviam ter o direito de indicar os titulares das
paróquias escocesas. Chalmers dirigiu o grande «Rompimento» de 1843,
pelo qual quinhentos ministros abandonaram as suas paróquias e resi-
dências e enfrentaram a penúria antes do que se submeterem à imposição
do poder secular.
Em certas ocasiões, anos depois da publicação do famoso panfleto
já referido, surgiu na Assembléia Geral Escocesa a questão se seria
permitido a um ministro, encarregado de uma paróquia, manter outro
emprêgo de tempo integral além do seu pastorado. O proponente da
moção olhou significativamente para Chalmers, que estava presente.
Êste se levantou e então se seguiu um dos momentos mais dramáticos
e memoráveis na história do debate eclesiástico da Escócia. Depois de
pormenorizar as razões que o tinham levado a escrever o famoso pan-
fleto em defesa das habilidades do clero escocês e do seu direito da
usar cinco dias da semana em qualquer estudo que lhes interessasse,
concluiu com as seguintes palavras: «Singularmente cego que eu era!
Qual é, senhor, o objetivo da matemática? A grandeza e as proporções
da grandeza. Mas então, senhor, eu tinha esquecido duas grandezas.
Eu não pensava na insignificância do tempo — temerariamente eu não
pensava na grandeza da eternidade».
Êste é o problema, a questão de proporção e de grandeza. Tenho-me
referido ao caso de Chalmers a fím de pôr em alto relêvo a importância
inerente da Igreja e do serviço da Igreja para todos os «homens em
Cristo». Nem todos precisarão de ser ministros de tempo integral, no
sentido profissional, mas todos devem ser filhos e filhas dedicados. A
grande Mãe os proverá de inspiração e fôrça necessárias para a vocação
secular. A sua vocação secular os proverá de recursos de que a Igreja
necessita para cumprir a sua missão.
(8) "Observações a uma Passagem da Carta do Sr. Plajfair ao Preboste de Edimburgo
a respeito das pretensões matemáticas do clero escocês". (Publicado e rendido por K
Tullis, 1805).
CAPÍTULO VI
A NOVA ORDEM DIVINA
A vida é um vale em que se constroem almas e as almas são mais
importantes do que as civilizações. Mas as almas não se fazem em
solidão, nem são por Deus destinadas a viver em solidão.
Na Comunidade Unida dos Céus e da Terra apresentada em visão
na Epístola aos Efésios e que Deus tem o propósito de estabelecer, almas,
e não nações ou raças, instituições ou classes, serão as unidades funda-
mentais. Mas quando em Cristo tiver sido fechada a brecha cósmica e
a divisão na criação de Deus tiver desaparecido, os filhos e filhas indi-
viduais do Altíssimo, unidos a Deus e uns aos outros, serão membros
de uma vasta estrutura, de uma comunidade cósmica, de uma nova Ordem
Divina. Essa Ordem estabelecida cm Jesus Cristo, seu Criador e Centro,
está agora em processo de formação. Dentro do seu escopo, englo-
bar-se-á tudo que Paulo inclui em «tôdas as coisas nos céus e na terra»,
mais do que os espíritos humanos reunidos, mais do que a Igreja que é o
Corpo de Cristo. Ele quer dizer por essa frase impressiva uma ordem
cósmica como resultado, formada de espíritos criados e fundamentados
em Cristo, nos quais Deus será tudo em todos. O centro integrador e
também padrão dessa Ordem será Cristo e a Igreja.
a) A «Igreja que é o Seu Corpo».
Sem peiTnitir que a nossa imaginação se entregue à fútil especulação
sôbre a forma resultante da ordem de Deus, duas coisas são claras. A
comunidade chamada a Igreja, que ocupa lugar central na Carta aos
Efésios, é apresentada por Paulo neste documento, como em outros seus
escritos, sob dois aspectos. Há a Comunidade Transcendental e a Comu-
nidade Histórica. Ambas juntas formam a «Igreja que é o Seu Corpo».
A Comunidade Transcendental
Por comunidade transcedental, mais comumente chamada Igreja
Invisível, entende-se o número completo dos eleitos de Deus, a sociedade
dos remidos, os que foram, por meio de Cristo, reconciliados com Deus,
Esta comunidade é constituída dos «santos» que acabaram a jornada
terrena, e dos «fieis em Cristo Jesus» que ainda militam na terra, e
cuja identidade sòmente é conhecida de E>eus. Os seus membros são os
— 98 —
«homens em Cristo». Somente êles, no mais profundo e mais funda-
mental dos sentidos, pertencem ao Corpo de Cristo, que não será com-
pletado nem aperfeiçoado, como unidade corporativa, até o fim da histó-
ria, quando os desígnios de Deus tiverem atingido pleno cumprimento.
Os membros do Corpo de Cristo tornam-se relacionados com Êle,
que é a sua cabeça, como unidades individuais. Êles são a Sua «nova
criação», a Sua «feitura». Êle «os trouxe perto». Quanto à «Paz»,
deles, Êle os reconciliou com Deus; Êle os fêz «um novo homem», «Um
Corpo único» em si mesmo. E o próprio Cristo, a vitoriosa Cabeça da
Igreja, Deus O fez «Cabeça sôbre tôdas as coisas para a Igreja». As
riquezas e o aperfeiçoamento da Igreja constituirão assim a verdadeira
finalidade da história, que está sob o poder soberano de Jesus Cristo,
a Cabeça da Igreja e Senhor da História.
Esta comunidade, o Corpo de Cristo, que é simultaneamente a «ple-
nitude de Cristo» e a esfera em que o próprio Cristo atinge a Sua pleni-
tude, é de um outro ponto de vista, «a herança de Deus nos santos»
(Efes. 1:18). Moisés tinha dito: «A porção do Senhor é o Seu povo;
Israel é a parte da Sua herança» (Deut. 32:9). A Igreja é a «porção» de
Deus, a herança de Deus. Paulo orava para que os leitores pudessem
ficar conscientes do que Deus estava obtendo do Seu empréstimo em
Cristo, a quanto realmente montaria a Sua herança, antes de chegar ao
fim o Seu divino interêsse pelos «homens em Cristo». Noutro lugar,
Paulo havia dito: «Aquilo que o ôlho não viu, nem o ouvido ouviu, nem
subiu ao coração do homem, é o que Deus tem preparado para aqueles
que o amam» (I Cor. 2:9). Já notamos que, pelo menos, o estudo
da Igreja proporciona aos anjos a sua maior lição objetiva a respeito
da «multiforme sabedoria de Deus». E não admira! Porque, além
da vitória de Cristo e das atitudes de Deus para com a Igreja através
de tôda a história e de tôda a fascinação dessa epopeia, «os anjos e
arcanjos e tôda a hoste dos céus» contemplariam, na comunidade aper-
feiçoada de Jesus Cristo, «tôda a glória e tôda a honra das nações».
Em uma palavra, maravilhar-se-iam ante um mundo remido. Encon-
trar-se-á um «mundo» na «Comunidade Transcendental». Na Comuni-
dade dos remidos estariam todos os tipos humanos representativos e
todos os mais nobres dons e talentos, renovados por Cristo. A nova
humanidade eclipsaria grandemente o primeiro Adão e seus filhos. Aç
palavras de Tennyson podem ser interpretadas de maneira muito mais
significativa do que o poeta pretendera, com a sua filosofia otimista e
evolucionária:
Até que todos os povos sejam um
E que tôdas as suas vozes se fundam no côro:
«Aleluia ao Criador: Tudo está consumado» —
O homem é criado».
Mas esta comunidade começou na terra; muito dela ainda está
na terra. Como «grande Mãe», «Jerusalém que é de cima», ela se toma
o arquétipo para a comunidade histórica que milita na terra.
99
A Comunidade Histórica
Como a vitória de Jesus Cristo foi realizada na história e todos
os «homens em Cristo» se tomaram relacionados com o Seu Salvador
e Senhor, na história, a Igreja, que é o Corpo de Cristo», existe dentro
da história da mesma maneira que existe acima da história e além
da história. É uma comunidade histórica, como também uma comu-
nidade transcendental. Os seus membros têm vivido desde o começo nas
relações mais íntimas com tôdas as forças e tôdas as condições que
determinam a vida da humanidade no tempo e no espaço.
Podem-se fazer certas afirmações a respeito da Igreja como comu-
nidade histórica. Façamos tais afirmações agora, antes de passarmos a
considerar certas questões sugeridas pela Epístola aos Efésios, conside-
rando a natureza, a constituição e a política da Igreja na história.
1. A Igreja Cristã é a Igreja de Jesus Cristo. Os cristãos , homens
e mulheres, que confessaram a Jesus como «o Cristo, o filho do Deus
Vivo», de quem e a quem Paulo escreveu, que eram as «primícias» histó-
ricas no mundo não- judaico (Rom. 16:5), formavam desde o comêço
comunidades chamadas Igrejas, «ecclesiae». Os que pertenciam como
membros às «ecclesiae» em Jerusalém, Antioquia, Roma ou Corinto,
eram pessoas «chamadas» da comunidade geral; eram «santos» ou gente
«separada», que se reunia para a adoração de Deus por meio de Jesus
Cristo e que vivia para o serviço de Cristo. Tal gente, os «fiéis em
Cristo Jesus» (Efes. 1:1), constituíam, no pensamento de Paulo, o «novo
Israel». Cada ecclesia local não era uma unidade isolada, porque em
cada uma delas estava a realidade da Igreja Una de Jesus Cristo. As
várias ecclesiae eram especificações comunais dessa realidade espiritual
transcendental a «Igreja que é o Seu Corpo». É importante ter em mente
que, no pensamento de S. Paulo, como no do Novo Testamento como
um todo, a Igreja tem dois sentidos e dois sòmente: a Igreja Universal,
nos céus e na terra, que é o novo homem, o Corpo Uno, o Corpo de
Cristo; e as comunidades cristãs organizadas e locais, chamadas ecclesiae.
A Igreja, como comunidade histórica, recebe a sua realidade eclesiástica
da conjunção de ambos estes sentidos: a presença viva de Jesus Cristo,
a Cabeça da Igreja, e a associação dos cristãos em nome de Cristo. A
Igreja, neste sentido, é a verdadeira portadora e a significação da história,
porque é na Igreja e por meio dela que se desenvolve o eterno propósito
de Deus em Jesus Cristo. Ela sobrevirá, pois, a tôdas as mudanças
históricas.
2. A Igreja, quando é verdadeiramente a Igreja no significado
prinriitivo e neotestamentário do termo, é composta de pessoas que foram
«vivificadas», pessoas que passaram por morte e renascimento radicais,
pessoas que constituem «nova Criação». Os seus membros foram «sela-
dos com o Espírito Santo» (1:13), a manifestação, de cuja graciosa
operação em suas vidas, é sinal e garantia de que eventualmente serão
completamente santificados do pecado e se tornarão perfeitamente seme-
lhantes a Deus em sua natureza. É claro, portanto, que qualquer quali- ^
— 100 —
dade de associação humana cujos membros não estão ligados por fé
comum em Cristo e experiência comum de renovação por Cristo, não
pode, com qualquer propriedade, ser chamada Igreja.
3. Os que professam esta fé comum e partilham da experiência
comum, estão relacionados uns com os outros em congregações. Como
o indivíduo é a unidade fundamental da Igreja Universal, o Corpo de
Cristo, assim a congregação ê a unidade fundamental da comunidade
histórica chamada a Igreja. Mas congregação, neste sentido, não neces-
sita de ser limitada a uma comunidade local; pode ela abranger os que
se «congregam» em muitas comunidades locais, professando a mesma
fé e desejando prestar obediência coletiva a Jesus Cristo e ao Evangelho.
No momento em que cristãos desejam prestar testemunho em conjunto
de Cristo, em uma organização mais ampla do que local, e fazem arranjos
para se unirem em nome de Cristo para estudar e considerar questões
relativas à Sua causa no mundo, passam a constituir, pelo próprio ato
de assim fazerem, expressão empírica ou histórica do Corpo Uno. Isto
envolverá, como na verdade tem envolvido históricamente, que alguns
cristãos que se tornam servos da Igreja nesta expressão mais ampla
da sua realidade, têm de encontrar a sua comunhão cristã pessoal dentro
da «congregação» mais larga, antes do que serem limitados à associação
mantida por uma comunidade cristã local. Isto necessita de ser dito;
de outra maneira, seria impossível falar com qualquer propriedade o
que quer que fôsse da Igreja como comunidade histórica. Haveria comu-
nidades mas não comunidade.
E' verdade, porém, como Karl Barth recentemente frisou, que o
padrão da Igreja deve sempre ser o grupo de pessoas que se reúnem
em um lugar, ligadas umas às outras pela «Palavra e Espírito do Senhor
Jesus Cristo vivo». O que constituía a Igreja, diz Barth, era o «aconte-
cimento» ou o «ajuntar do seu povo pelo Senhor vivo», (i) A congre-
gação é o acontecimento que consiste em reunir (congrega tio) os homens
e mulheres (f ideies) a quem o Senhor Jesus Cristo vivo escolhe e chama
para serem as testemunhas da vitória que Êle já realmente ganhou, e
arautos da futura manifestação universal, desta vitória. Assim, a Igreja
é a congregação viva do Senhor Jesus Cristo vivo «que necessita de ser
constantemente recriada por Êle». A congregação local é, naturalmente,
a forma «primária, normal e visível do acontecimento», por causa do
fato de que a reunião se realiza em uma paróquia ou distrito com limites
claramente definidos.
Falando da congregação sinodal, Barth não limita a realidade ecle-
siástica, à comunidade cristã local ou ecclesia. Esta advertência, porém,
é básica e salutar e, de acôrdo com o pensamento paulino e neotesta-
mentário, o que faz uma Igreja é a resposta uníssona à chamada do
próprio Senhor vivo. Nenhuma associação de cristãos se constitiu em
(1) "The Chuieh — lhe Living CongiegHtion ot* the Living Lord Jesus Christ" in
Man's Disordfr anã God's De.sign (Harper & Brothers. New York), 1^ pág. 67-76.
— 101 —
«Igreja» uma vez e para sempre. Ela pode reduzir-se a mera «aparência
morta» uma associação que não está mais em contacto com a reali-
dade espiritual viva, mas interessada somente em «peças de museu», um
monumento à memória de Deus, em lugar de testemunha da Sua glória.
Mas, quando o Senhor vivo está presente, em poder, na Sua «congre-
gação», quaisquer que sejam os seus limites físicos ou dimensões numé-
ricas, tendes em verdade uma Santa Comunidade. Tendes uma comu-
nhão, mais do que uma instituição. Tendes pessoas cujo interesse primá-
rio é estar em harmonia com Jesus Cristo. O critério fundamental para
distinguir uma Igreja falsa ou moribunda de uma viva e verdadeira Igreja
é a presença do próprio Jesus Cristo.
4. A Igreja, como comunidade histórica, foi e continua a ser,
grandemente dividida. Temos as três grandes tradições cristãs, o Cato-
licismo Romano, a Igreja Ortodoxa Oriental e o Protestantismo. A
primeira destas tradições tem centralizado a realidade eclesiástica na
ordem institucional, a segunda na comunhão mística e a terceira na
Palavra do Evangelho. Além disso, existe em nosso tempo uma diver-
sidade muito grande de denominações dentro da tradição Protestante.
Algumas destas têm sido o fruto de cisma religioso, mas muitas delas
devem sua origem e existência separada a circunstâncias raciais, linguís-
ticas e culturais. Mas, nêste tempo presente, pareceria que o movimento
centrífugo que tem caracterizado a história da Igreja Cristã durante
muitos séculos, está dando lugar agora a um poderoso movimento centrí-
peto para a unidade.
5. A Comunidade Cristã em nosso tempo procura, de diferentes
maneiras e por vários meios, dar forma concreta e histórica à imidade
que é real nmn Corpo uno da Igreja transcendental. Depois de certo
período em que o Reino de Deus e a promoção de uma influência espi-
ritual difundida derivada de Cristo tomou o lugar de um esfôrço para
entregar homens a Cristo como membros de uma comunhão de fé,
nasceu um novo sentido da Igreja. O surgir de novas Igrejas em
diferentes partes do mundo como resultado do movimento missionário
cristão; o espírito de unidade criado pelas missões mundiais; o fato de
que, na recente perseguição da religião cristã pelos poderes totalitários,
foram apenas os ministros e as igrejas que ficaram firmes até à morte e
se recusaram a submeter-se: tudo isto tem dado lugar a um novo sentido
da realidade e da importância da Igreja.
Coincidindo com renovado sentido da Igreja e com o movimento em
favor da unidade cristã, conhecido como o Movimento Ecuménico, novo
desejo de relacionar o Cristianismo com a vida se tem manifestado nos
círculos cristãos, por tôda a parte. Os leigos, isto é, aqueles que não se
dedicam em regime de tempo integral e mediante salário, ao serviço
de Igrejas organizadas, mostram mais vivo senso de responsabilidade
cristã em «imitar a Deus» ou «aprender a Cristo»; são impelidos a
^'batizar em Cristo» as suas vocações seculares. As Igrejas, indivi-
dual e encorporadamente, sentem a responsabilidade de desafiar a
inteira ordem secular, a sociedade e as suas instituições e o pró-
— 102 —
prio estado, em nome de Jesus Cristo. A nova consciência do fato
de que Jesus é não somente a Cabeça da Igreja como também o Senhor
da história, leva a Igreja Cristã a fazer claro, a cidadãos e a gover-
nantes na ordem secular, que a obediência às leis de Deus é o único
fundamento da pureza e da ordem públicas, e que a justiça, as relações
justas entre Deus e homem e entre homem e homem, constituem a
única base de compreensão internacional. A visão de uma ordem de
Deus contra a desordem do homem está crescendo, e a comunidade
histórica — a Igreja — está sendo levada pelo Espirito de Deus a aceitar
e cumprir o seu papel histórico.
Para que possamos entender mais completamente a natureza da
Igreja de Jesus Cristo como comunidade na história, e receber orien-
tação para resolver os seus problemas e dar forma ao seu destino nêste
nosso tempo, escutemos, no resto dêste capítulo, a sabedoria e o espírito
do primeiro grande arquiteto da Igreja Cristã do primeiro século, que
escreveu a Carta aos Efésios.
b) Imagens da Igreja.
Ajudar-nos-á a perceber a realidade histórica e o papel da Igreja,
começando por examinar as três imagens ou representações pictóricas
da Igreja, que são usadas por Paulo em sua Epístola aos Efésios.
Conquanto estas imagens tenham sido designadas para descrever dife-
rentes facetas da Igreja Transcendental, são de primeira importância na
consideração da Igreja Histórica. A Igreja, na história, cumprirá a
sua verdadeira missão à medida em que também aspire a ser — e consi-
ga ser bem sucedida — o Edifício, a Esposa e o Corpo de Jesus Cristo.
Estas grandes imagens são os padrões ou arquétipos do que a Igreja é e
deve ser. Enquanto formos considerando cada uma delas por seu turno,
lembremo-nos de que são figuras, imagens, metáforas. Cada uma delas
?uarda uma ou mais facetas da verdade cristã essencial. Mas não
devem ser estudadas alegòricamente, como se cada pormenor da figura
tivesse significação. Isto é, estas figuras são parábolas e não alegorias.
1.. O Edifício
A primeira figura que Paulo usa para expor o significado da Igreja
é a de um edifício, um edifício sagrado, o templo. Esta figura, tirada
do reino material, apresenta a Igreja como estrutura, da qual Deus é o
Construtor e que Êle mesmo habita. Como edifício, a Igreja Cristã
pertence à história. Representa a continuidade comunal concreta do
desígnio de Deus através dos séculos. Os profetas do Velho Pacto e
os apóstolos do Novo Pacto estão associados juntamente nas fundações
dela. A Pedra Angular, a imensa lage fundamental que dava unidade
e estabilidade às estruturas antigas, é Jesus Cristo. As pedras, as pedras
vivas, de que é composto o templo, são os crentes em Cristo. São pessoas
que fizeram sua a grande Confissão que Pedro fêz e que constitui a afirma-
ção básica ou a fidelidade, sôbre a qual é fundada a Igreja Cristã. A
Confissão de Pedro: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus Vivo» — ela, e
não o próprio Pedro, tornou-se o alicerce histórico da ecciesia cristã.
— 103 —
Fazendo essa confissão, os primeiros cristãos indicavam que tinham
ouvido, compreendido e correspondido à chamada de Jesus Cristo. Por
isso, tornaram-se pedras vivas em Sua Igreja, que Êle disse que sobrevi-
veria a tôda mudança histórica, desafiando até as próprias «portas do
Inferno», todas as tentativas do poder satânico de frustrar o propósito
de Deus nÊle. O fato de o próprio Pedro, e não a sua Confissão, ter sido
feito o alicerce da Igreja Cristã por uma grande Comunhão Cristã, repre-
senta simplesmente a maior das calamidades na história da religião cristã.
A posição da Igreja Romana neste respeito \iola a clara significação das
palavras de Jesus Cristo. Faz imensa injustiça ao impulsivo e dedicado
Pedro, mas, inconstante e miope nos momentos cruciais. Vai de encontro
ao Novo Testamento como um todo e contra o génio da religião cristã.
Não tem lugar na sublime imagem da Igreja como uma construção da
qual o próprio «Jesus Cristo é a principal pedra de esquina» (Efes. 2:20).
A estabilidade da Igreja, semelhante à da rocha, e a sua segurança
de muitos anos, não se destina, contudo, a fazer os cristãos complacentes
e dar-lhes sentimento de falsa segurança. Novas pedras vivas é preciso
que sejam continuamente acrescentadas ao edificio incompleto e, tanto
as que já estão nelas postas, como também as que ainda serão assentadas
na estrutura sagrada, precisam de «crescer em santo templo no Senhor*.
Os seguidores de Cristo, membros da Sua Igreja, pela qualidade do seu
discipulado, aderindo intimamente ao seu Senhor, devem contribuir para a
unidade, poder e perfeição da Igreja. O que se exige de todos os bloc.os
separados é ajustamento coletivo à Pedra de Esquina. É claro que, para
tomar a sua idéia clara, Paulo esmera-se na sua figura do edifício.
De maneira alguma, não há dúvida, porém, de que o que êle luta para
comunicar, é a idéia de que a Igreja, como templo, é firmemente cons-
truída, não simplesmente pela adição de novos blocos, mas também pela
relação progressiva e unificada com a «pedra principal de esquina».
Êle quer dizer que a unidade estrutural e a força são mais importantes,
na Igreja de Jesus Cristo, do que o aumento e o volume numérico.
Conquanto Paulo, em seu ardor de provar o grande ideal e requisito
de unidade «no Senhor», não se refira aqui a outros aspectos significa-
tivos do templo simbólico, certamente queria que os seus leitores refli-
tissem no fato de que um «santo templo» não é como estrutura ordinária.
Sem a Presença, o templo não tem significação e não é o que foi destinado
a ser. A Igreja Cristã, quando é verdadeiramente a Igreja, é o Lar
da Presença. Debaixo do Novo Pacto como debaixo do Velho, Deus
não sómente chama o Seu povo e dêle fá-lo Comunidade escolhida; Êle
também habita e tabernacula com êles. «O Senhor está no Seu santo
templo». Com o risco de confundir metáforas, recordemo-nos de que,
conforme o pensamento do Novo Testamento, a «Pedra Angular», o
Senhor Jesus Cristo vivo, é também a «Glória no meio» da Sua Igreja.
Paulo tinha dito dos cristãos individualmente: «os vossos corpos são
templos do Espírito Santo». Disse também na Carta aos Efésios: «Não
entristeçais o Espirito Santo de Deus» (4:20). Cada cristão indivi-
dual e, ainda mais, a Igreja Cristã como um todo, são uma Catedral.
— 104 —
Mas somente na proporção em que a Presença habita «no meio dela»
é que a alma cristã ou a Igreja Cristã são testemunhas da Sua Glória.
Quando a Presença foge, nem a alma nem a Igreja são qualquer coisa
mais do que monumento à memória de Deus.
2. A Esposa
Paulo também usou a figura de uma esposa para indicar a condição
da Igreja Cristã em relação a Cristo. Assim como a figura de um
templo dá ênfase à estabilidade e permanência históricas, assim a figura
da esposa dá ênfase à esperança apocalíptica da Igreja, o seu triunfo
final no encerramento da história. A Igreja é a Prometida de Cristo,
em casamento, que se manterá fiel e pura, durante a sua existência
terrena, para as núpcias celestiais. Em sua segunda Carta aos Corín-
tios, (11:2) Paulo pensa de uma dada congregação local como de uma
esposa de Cristo. Êle se esforçara, diz, para apresentar a ecclesia corín-
tia como «virgem pura a Cristo». Na Carta aos Efésios, depois de fazer
das relações entre Cristo e a Igreja a base e o padrão para as relações
matrimoniais entre cristãos, Paulo irrompe nesta passagem rapsódica:
«Maridos», diz, «amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e a
Si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a
lavagem da água e da Palavra, para a apresentar a si mesmo Igreja
gloriosa, sem mácula nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e
irrepreensível» (5:25-27).
Esta passagem sublime é uma das grandes fontes do misticismo
cristão. As relações entre Deus e o Seu povo, que Oséias descreve em
linguagem queixosa e comovente, como de um espôso apaixonadamente
dedicado e uma esposa infiel, se transforma, no Novo Testamento, nas
relações de Cristo e Sua Igreja. A Igreja Cristã sòmente pode, indi-
vidual e coleti vãmente, corresponder dignamente ao amor sacrificial e à
incessante solicitude de Jesus Cristo, por meio de uma terna, apaixonada
devoção ao Amado, sòmente por meio de constante aspiração à perfeita
santidade e à semelhança a Cristo. Lealdade imortal e pureza espiri-
tual são os grandes objetivos. O grande interêsse cristão torna-se: «Esta
palavra e êste ato serão dignos de Jesus Cristo?» Conquanto seja verda-
de que a Esposa de Cristo é a Igreja coletivamente e não o indivíduo
cristão, é perdoável e legítimo que o indivíduo cristão sinta o afago
desta grande figura para expressar o seu amor pessoal para com o
Redentor. Porque, se os corpos podem ser «templos», as almas podem
ser «noivas»; e as que amam apaixonadamente o Noivo, Teresa de Ávila
e Rutherford de Anworth, continuarão a falar ao mais profundo da
alma da Igreja Cristã e em favor dela. Existe, naturalmente, perigo
constante de sentimentalismo: os cristãos e a Igreja precisam de estar
constantemente em guarda contra êle. Mas, no Protestantismo contem-
porâneo, não há perigo presente de sentimentalismo na expressão da
devoção a Jesus Cristo. Nem existe qualquer evidência de ressurgi-
mento do fervor místico que distinguiu os maiores dias da Igreja. No
Catolicismo Romano, por outro lado, a crua propaganda do Culto da
Virgem tem solapado as raízes do Misticismo de Cristo nessa Comunhão.
— 105 —
3. O Corpo
A terceira, a maior e a mais característica das figuras que Paulo
usa na Carta aos Efésios, para descrever a Igreja Cristã, é a de um
corpo. A Igreja é o Corpo de Cristo. Algumas vêzes, no pensamento
de Paulo, Cristo é a Cabeça do Corpo; algumas vêzes, é o Corpo todo,
de que são membros os cristãos. É ao tratar desta imagem celestial
de que precisamos de estar particularmente cuidadosos, para não alego-
rizarmos os pormenores.
Escolhido do mais familiar reino biológico, o corpo exprime função,
instrumentalidade, mobilidade. Como tal, é a figura para a qual tem
especial significação o caminho, o serviço, o conflito. Um corpo nunca
pode cumprir a sua função, se o cultivo do próprio corpo se tomar fim
em si próprio, se o exercício físico e a busca da saúde não servir a outra
coisa senão a si mesmos. Um corpo é verdadeiramente corpo quando
é servo do pensamento e do espírito. Um corpo alcança a verdadeira
glória do corporal, quando se dá a si mesmo e até perde a vida física
por algo que é mais do que um corpo.
Como nas figuras do Edifício e da Esposa, a entrega a Cristo é o
grande pensamento que Paulo deseja comunicar. Êste pensamento pode
ser expresso muito mais natural e adequadamente pelo Corpo do que
pelo Edifício. Porque, como o princípio de vida e de movimento é
natural ao corpo, uma entrega progressiva e estrutural a Cristo cara-
teriza os membros individuais e o corpo como um todo. Êles todos
juntamente se esforçam para atingir a harmonia com a Cabeça. Por-
tanto, a questão a respeito do objetivo da atividade corporal é de impor-
tância extraordinária.
O objetivo da Igreja Cristã como Corpo de Cristo é, como Paulo o
concebe na Carta aos Efésios, «crescer em Cristo» (4:15). Mais especi-
ficamente, a finalidade do Corpo é ser edificado pelos que nisso estão
interessados (4:11, 12), para que todos os membros possam atingir «a
unidade da fé e o conhecimento do Filho de Deus, a varão perfeito, à
medida da estatura completa de Cristo» (4:12). A estatura de Cristo,
o Homem Novo, é o que se procura. E esta estatura, Paulo afirma,
nunca poderá ser alcançada, a não ser que aconteçam duas coisas. Pri-
meiro, cada membro precisa de contribuir para a vida e funcionamento
do Corpo com o que êle sòzinho, seja «junta ou músculo», é capaz de
dar (4:16). Segundo, tôda ação precisa de ser coordenada. Os mem-
bros do Corpo precisam de compreender que são «membros um do outro»;
concordemente, precisam de agir juntos «em amor», para o bem do
todo. Por um lado, cada membro do Corpo funcionará de acôrdo com
a sua natureza. Fará assim como indivíduo, expressando, no mais exato
sentido, a sua individualidade, mas sem qualquer laivo de individualismo.
Por outro lado, a atividade das partes deve ser harmonizada com a
ação que o Corpo, como todo, empreende realizar. Como membro do
Corpo de Cristo, todo cristão é importante e precisa de trabalhar, mas
— 106 —
o trabalho que empreende deve de ser no espírito de amor, com consi^
deração e apreciação pelo trabalho dos demais membros. Desta manei-
ra, os esforços de iim cristão tornam-se parte da ação total proposta e
empreendida pelo Corpo de Cristo, em resposta ao mandato da Cabeça,
e como expressão da vida particular que inspira o Corpo como um todo.
É este o objetivo de tôda a atividade cristã, como é também o perene
problema cristão — fazer com que todos os cristãos trabalhem e, ao
mesmo tempo, harmonizem o ardor dos obreiros isolados, seja indivi-
dualmente, seja como Igrejas, com as necessidades e alvos da inteira
Comunidade Cristã, como o Corpo de Cristo.
c) As Grandes Unidades.
A consideração da Igreja como um Corpo leva-nos, imediata e
naturalmente, a considerar a apresentação que Paulo faz nesta grande
Epístola, das Unidades da Igreja. Há sete coisas que fazem a Igreja
Una. Ouçamos como Paulo as conta, uma por uma. «Há um só corpo
é um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança
de vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só
Deus e Pai de Todos, o qual é sôbre todos e por todos e em todos»
(4:4-6).
Elstas sete unidades básicas caem em três grupos. Há, primeiro,
um Corpo, um Espírito, uma esperança. A conexão formal entre estas
é óbvia. Um corpo é vitalizado por um Espírito e move-se progressiva-
mente para uma esperança. Temos depois um Senhor, uma fé, um
batismo. A fidelidade a um Senhor dá origem a uma fé e recebe o
sinal de um ato de batismo. Finalmente, acima de todas, operando por
meio de tôdas e imanente em tôdas, há um Deus Eterno e Pai, cujo
propósito gracioso instituído abrange a tôdas as demais unidades e lhes
dá unidade.
Três destas unidades são claramente de importância central, a saber:
Um só Corpo, Um só Senhor, Um só Deus.
Um só Corpo. Há apenas uma comunidade fundamental, o Povo
de Deus. Jesus Cristo tem apenas um Corpo; há somente uma Igreja
de Cristo. Os cristãos precisam ter este fato sempre em mente para
a iluminação da sua fé e orientação da sua prática. No meio
do tumulto dos séculos cristãos, todos os membros do Seu Corpo têm
sido igualmente caros a Jesus Cristo, a Cabeça. É, pois, prática mui
pouco santa e perigosa, o condenar e lançar juízo definitivos sôbre
irmãos na fé. O pecado mortal contra o Corpo de Cristo, a apostasia
fundamental contra a Cabeça do Corpo, é praticar e glorificar o «cisma»
por amor dêsse mesmo cisma. A glorificação do cisma, a transfor-
mação do mandamento de nos separarmos dos pagãos em ordem expressa
aos cristãos para que se separem de outros cristãos que não concordam
absolutamente com o ponto de vista do grupo dissidente, é «crucificar
de novo o Filho de Deus e pô-lo em vitupério». Todo aquele que dissen-
— 107 —
tir conscienciosamente, ou mesmo um grupo, dentro da Igreja Cristã,
deve ser tratado com o máximo respeito e consideração. Mas quebrar
a unidade do Corpo de Cristo meramente por amor do cisma, é como
dizer: «Cisma, sê tu o meu Deus», é seguir nas pegadas do «: arcanjo
perdido». Estou falando aqui da canonização da revolta como tal e não
da necessidade constante da reforma dentro da Igreja Cristã.
Dentro da Comunidade cristã ha um só Espírito, que para sempre
foi dado à Igreja. A vida nova dos cristãos, o seu crescimento em
Cristo, a manifestação neles de dons e graças especiais, são devidos à
presença e obra do Espirito Santo. O Espírito é o inimigo da discórdia,
como é, também, a fonte da concórdia da Igreja. A Sua presença, como
autor e aperfeiçoador do amor cristão, é o sêlo especial de Deus sóbre
os membros da Comunidade. A coisa mais desastrosa que podem fazer
os cristãos é «entristecer o Espírito Santo». Porque então o «amor, a
alegria e a paz no Espírito Santo» desaparecem, e com êles, uma das
mais preciosas unidades cristãs.
O Espírito que vivifica o Corpo toma real e guarda viva a grande
esperança cristã. Esta é a segura esperança da salvação, da redenção
final e a vitória do Corpo, por meio do poder do Cristo Ressurrecto.
Sustentados por esta esperança, os cristãos «não serão confundidos^;
usarão a salvação, «a esperança de salvação», como elmo nas cabeças.
Por essa razão podem conservá-las eretas, quando outrgis se abaixam.
Podem sorrir serenamente no perigo, quando outros tremem de terror.
Vão, alertas, ao encontro do amanhã desconhecido, porque sabem que,
além das trevas, «está próxima» a madrugada e a salvação se aproxima.
Um só Senhor. Os membros de um só Corpo, vitalizado por um
só Espírito e inspirados por uma só Esperança, dão obediência a um
só Senhor, o qual é a Cabeça do Corpo. O único Senhor Jesus Cristo é
o Senhor do Corpo, controlando-lhe a vida. É também o objeto de
devoção do Corpo, recebendo a fidelidade ardente de todos os membros.
Todos os pormenores dos esforços práticos que empreendem, bem como
todos os problemas de relação e conduta, são resolvidos «no Senhor».
«Jesus Cristo é Senhor». Estas são as palavras do mais antigo e
mais básico dos credos cristãos. Na carta que, da prisão de Roma,
endereçou à Igreja dos Filipenses, Paulo compreende e faz ressoar uma
fórmula de devoção cristã que era corrente na Igreja do primeiro século.
Estava chegando o tempo, disse êle, em que toda língua «confessará
que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus Pai» (Filip. 2:11). Eis
o primeiro credo com respeito ao tempo e o credo básico para todos os
tempos. «Senhor, Kurios, foi o têrmo usado na Septuaginta, a tradução
grega do Velho Testamento, para designar Jehovah ou Jahveh, o Deus de
Israel. Era também o têrmo corrente usado no mundo de S. Paulo para
designar o Imperador Romano. O Apóstolo usa êste mesmo têrmo
Kurios duzentas e cincoenta vêzes em seus escritos, para designar o único
Senhor, Jesus Cristo, que era o próprio Deus e mais poderoso do que o
César imperial em cuja prisão, êle, Paulo, era «embaixador de Cristo em
cadeias».
— 108 —
Neste ponto, fazemos uma pausa. Dizer verdadeiramente que
«Jesus Cristo é Senhor» é fazer a afirmação básica da religião cristã.
«Ninguém», diz Paulo, «pode dizer que Jesus Cristo é o Senhor, senão
pelo Espírito Santo» (1 Cor. 12:3). Fazer-se ainda esta afirmação como
fórmula fria como conceito de ortodoxia escolástica não faz ninguém
tomar-se cristão. Muitos, como o mesmo Jesus disse, podem dizer:
«Senhor, Senhor»; mas o único Senhor não os reconhecerá, porque nun-
ca o tiveram como Senhor da sua vida. A maior das unidades cristãs
torna-se real, e nós nos tornamos cristãos no sentido do Novo Testa-
mento, membros de um só Corpo quando, com tôda a nossa personali-
dade, curvamo-nos, e adoramos a realidade viva de Jesus Cristo, o Se-
nhor. Jesus Cristo, o Senhor, não é honrado quando afirmamos uma
verdade como conceito a Seu respeito, por amor da posição ortodoxa.
Êle é honrado sòmente quando nos submetemos ao seu domínio soberano,
porque só êle nos pode dar existência vital. Tornar a descobrir neste
tempo de novos «senhores» e de apaixonadas lealdades, tudo que é en-
volvido no credo intemporal de que Jesus Cristo é Senhor, seria reco-
brar a atmosfera e tornar à realidade da idade Apostólica.
Fazer de Jesus o Rei da vida em sua inteireza, opor-se a todos
quantos contestam os Seus «direitos à coroa», rejeitar a idéia de que
Êle abdicou e deixou a outros «senhores» conduzir os negócios da Sua
Igreja, esta é a grande unidade de ação que corresponde à unidade da
fé no «Único Senhor». Tanto como uma e única Cabeça da Igreja,
como também na sua qualidade de supremo tribunal de apelação cristã,
Jesus Cristo é Senhor.
A lealdade a Jesus Cristo como o Único Senhor dá origem a uma
Fé só. Insistentemente se pergunta: «Quais são as coisas essenciais
da fé cristã?». Em sentido formal, a questão é fácil de responder. A3
cousas essenciais da religião cristã são as afirmações de crença que se
centralizam na básica convicção cristã de que Jesus Cristo é Senhor e
que da mesma convição derivam. Dentro do contexto e da atmosfera
da Carta aos Efésios, isto significa que Jesus Cristo está no centro do
«Mistério», o grande esquema de redenção que Deus revelou. Ninguém
pode conhecer o que Jesus Cristo e a Sua soberania realmente significam,
salvo no contexto das Sagradas Escrituras. Porque Jesus Cristo é, no
mais completo sentido, o Senhor das Escrituras, a chave da sua signi-
ficação de crença cristã essencial que expresse a Fé Única e lhe seja
fiel, tem de incluir, primeiramente, a aceitação da suprema autoridade
da Bíblia, como a Palavra de Deus, na qual tão sòmente aprendemos
acerca de Jesus Cristo; segundo, uma afirmação adequada baseada na
Bíblia, a respeito de Jesus Cristo e dos grandes acontecimentos das
verdades que nÊle se centralizam; terceiro, a aceitação dos dois Sacra-
mentos instituídos por Cristo, o Batismo e a Ceia do Senhor. Alguns
acrescentariam a aceitação de alguma afirmação particular a respeito
— 109 —
do Governo da Igreja, por exemplo, o «Episcopado Histórico». Não
acho, contudo, que qualquer formulação relacionada com a forma do
Governo da Igreja, como também contra a sua substância e seu espírito,
pertença à essência da Fé Única. Êste ponto receberá mais completa
elucidação na secção seguinte.
Presentemente, o interesse revivido na teologia cristã e na fé cristã
histórica, e os muitos esforços para promover a união da Igreja, dão
grande atualidade à discussão da Fé tinica. Podem-se afirmar certas
coisas:
Primeira: Não pode haver unidade cristã, nem se alcançará ne-
nhuma verdadeira união cristã se não se firmar sôbre a lealdade in-
condicional ao único Senhor. A base de filiação ao Conselho Mundial
de Igrejas, segundo os termos constitucionais firmados no ato de sua
organização, em Amsterdão, em agosto de 1948, é que as Igrejas tenham
a «Jesus Cristo como Deus e Salvador». Desse modo, o Conselho es-
tabeleceu que da lealdade a êsse fundamento terão de partir tôdas as
negociações entre as Igrejas, para relações mais intimas. E' preciso
que se note que não houve a intenção de que servisse de base para
uma reunião orgémica de Igrejas, mas tão sòmente para tornar possível
às Igrejas reunirem-se sôbre essa declaração fundamental a fim de ado-
rarem a Deus juntas, pensarem juntas e, tanto quanto possível falarem
e agirem juntas e, pelo menos, discutirem juntas as suas diferenças.
Segunda: Nenhum motivo de conveniência, nenhuma pressão política,
nenhuma procura de maior poder corporativo, nenhum sentimento idea-
lista, nenhum interêsse financeiro, nenhuma solicitude social ou afini-
dade cultural, podem fornecer base digna e própria para a união de
Igrejas Cristãs. Uma tal união deve ser sempre união na Verdade.
Por isso, todos os movimentos em prol da unidade da Igreja, e a orga-
nização da união de tôda a Igreja, precisam de reconhecer a augusta
majestade da Verdade. A Verdade deve ser sempre o interêsse primeiro
da unidade. Mas eu me apresso a acrescentar: Nunca se pode esquecer
que Jesus Cristo é a Verdade, que a unidade cristã é uma parte da
Verdade, e que tôda a verdade precisa de ser sustentada e dita com amor.
Terceira: Movidas pelo interêsse por uma só Fé e dedicadas a con-
seguir a máxima unidade visível de um só Corpo, tôdas as Igrejas cris-
tãs deviam reexaminar-se a si mesmas. Na lealdade a um só Senhor,
guiadas por um só Espírito e avançando para uma só Esperança, deviam
inquirir o que é que Jesus Cristo lhes deu como o único testemunho, ou
como dom e graça especial, que elas desejassem, em tôda a humildade
e por amor do Corpo de Cristo, a Igreja, trazer como sua contribui-
ção para uma unidade cristã mais ampla.
Quarta: A qualidade e o êxito de qualquer união eclesiástica que
possa ser realizada, dependerão, não sòmente do espirito cristão e da
dedicação dos que nela entram, mas também das ricas bases da verdade
— 310 —
cristá sôbre que for estabelecida. Quanto mais rica e mais adequada
for a declaração confessional de fé sôbre que se unaim as Igrejas, contanto
que sejam as afirmações doutrinárias inteligente e entusiásticamente
sancionadas, tanto mais coesiva será a sua unidade em Uma Só Fé;
serão também maiores os tesouros da crença comum de que se pode
valer para a tarefa educacional das Igrejas. Uma Igreja sem credo, ou
dotada de credo mui pobre, terá de defrontar a dificuldade que surge
quando uma Igreja não possui base doutrinária própria para sua tarefa
cultural.
Quinta. Uma das maiores necessidades de Uma Só Fé, nos nossos
dias, é que a Igreja Cristã se dedique ao trabalho de elaborar uma
teologia ecuménica. Nesta época em que o mundo é fisicamente unido,
mas espiritualmente dividido; em que o conflito das religiões seculares res-
soa por todas as fronteiras do globo; em que a Igreja Cristã é verdadeira-
mente ecuménica, coextensiva com a terra habitada; em que o esplendor
majestoso do propósito de Deus em Cristo Jesus brilha de novo na mente
cristã, é o tempo amadurecido para uma declaração teológica que tome
em conta éstes diversos fatores. Mas, para repetir palavras que já
escrevi noutro lugar, nunca deve a Igreja de Cristo patrocinar decla-
ração de teologia confessional pálida, desvitalizada e invertebrada. Pre-
cisa de produzir, nesta época revolucionária de transição, um sistema
de^fé cristã que seja rubro de sangue, lealmente bíblico, sem pejo de ser
ecuménico e ao mesmo tempo sistema fortemente vertebrado de cren-
ça cristã.
Os que servem ao Único Senhor e professam a Fé Única, darão pú-
blico conhecimento da sua posição, submetendo-se ao rito do Batismo.
O batismo é um dos sacramentos instituídos por Jesus Cristo e pelo
qual, no uso simbólico da água significando purificação do pecado e
identificação da pessoa batizada com Jesus Cristo em Sua morte e
ressurreição, o crente cristão é incorporado à Igreja de Cristo como
comunidade visível. Paulo diz que os cristãos são «batizados em Cristo».
(Rom. 6:3. Gal. 3:27). Ou então, o que significa o mesmo: «todos são
batizados em um corpo», isto é, na Igreja de Cristo, como personalidade
coletiva na Nova Humanidade. As pessoas batizadas que foram bati-
zadas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, não im.porta a
Idade quando foram batizadas, ou a forma ou circunstâncias do batismo,
estão diante do mundo como pertencentes à Igreja Cristã. O batismo
envolve, por sua própria natureza, rompimento com a velha vida e suas
relações, e uma entrega declarada a Cristo, à Igreja e a uma nova vida.
A pessoa batizada precisa, pois, de estabelecer uma posição firme, pois
doutra maneira o seu batismo será sem significação qualquer.
Na Igreja Cristã de hoje em dia, a significação radical e as conse-
qiiências do batismo cristão, segundo o modêlo do Novo Testamento,
tomam-se meds dramàticamene claras, quando o indivíduo ou famílias
— 111 —
pertencentes a uma fé não-cristã, ou vivendo em uma comunidade secula-
rizada e hostil ao cristianismo, decidem professar a sua fé em Jesus Cris-
to, pelo batismo. O batismo, em tais casos, pode ser seguido por um ato de
repúdio das pessoas batizadas, por parte de seus parentes e da comu-
nidade local e mesmo de severa discriminação e perseguição ativa.
Enquanto uma pessoa guarda dentro de si as suas crenças e simpatias,
por si mesmas, enquanto não faz profissão pública da sua fé, e enquanto
não é recebida nas fileiras da Igreja Cristã, nada lhe acontece. Somen-
te quando a sua fé é selada pela água do batismo, é que paga o preço
de crer.
Quão lamentável ter-se obliterado, em um grande setor da Igreja
Cristã de hoje, a significação do batismo inerente no Novo Testamento.
Em alguns círculos, o sacramento tem-se tornado rito mágico, pelo
qual a criança batizada é regenerada pelo Espírito Santo. Tal ponto
de vista não somente viola todo o espírito da religião bíblica, como
também dá origem a espírito de complacência e irresponsabilidade em
milhões de cristãos. Em outros círculos, conquanto não se tenha acei-
tado a idéia da regeneração batismal, o batismo se reduz a rito pura-
mente formal. Êle é o primeiro de uma série de ritos que, quando reali-
zados, garantem boa e regular posição na Igreja Cristã às pessoas que
passarem pela série completa. Nada importa se a pessoa é ou não mem-
bro verdadeiro e ativo da Igreja. O indivíduo pode aparecer em um
santuário cristão uma vez por ano ou menos frequentemente ainda.
Foi diplomado pela Igreja. Como «diplomado» ou «aluno» na Igreja,
a sua ligação ativa pode significar nada mais do que interêsse senti-
mental por instituição que lhe concederam os vários diplomas eclesiásticos.
Foi a esmagadora consciência de que milhões de pessoas batizadas na
Europa não tinham qualquer interêsse por Jesus Cristo ou pela Igreja,
que levou Karl Barth a fazer violento ataque ao inteiro sistema batismal,
como é praticado hoje em dia por muitas igrejas cristãs. Êle desejava
infundir Um Só Batismo e um Só Deus e Pai de Todos, com tôda a
antiga significação bíblica.
Tôdas as demais unidades ligadas à existência são inspiradas pela
mais básica de tôdas e servem ao seu eterno propósito: Deus, o Uni-
versal, o «Pai Arquétipo». «Dêle, a inteira família nos céus e na
terra» — a despeito da diversidade e das divergências e conflitos histó-
ricos entre os seus membros — toma o nome». Deus, o «Pai Eterno»,
permanece único no meio das vicissitudes tôdas da vida cósmica e terre-
na. As criações do homem aparecem e se dissolvem, os impérios sur-
gem e perecem, as civilizações esplendem e se eclipsam, mas o desígnio
eterno de Deus em Jesus Cristo, de «reunir tôdas as coisas nÊle», perma-
nece constante no meio de tôdas as mudanças. «A Êle seja glória na
Igreja e em Jesus Cristo, por tôdas as gerações para sempre e sempre»
(Efes. 3:12).
Somente quando se toma a idéia cristã de Deus sériamente e somen-
te quando os homens se tornam conscientes do Sêr e do propósito que
operam na história, é que há qualquer esperança de realização para
muitos e há caros anelos humanos. O internacionalismo e o desejo de
fraternidade humana, fora da fé na divina Paternidade, são sonhos
fúteis que se transformam em trágicos fracassos. Não se pode alcançar
a fraternidade pelo simples desejá-la. Nenhum sentimento humano, e o
amor muito menos, pode ser criado por ato da volição. O amor que
transforma os homens em irmãos tem de crescer, natural e espontanea-
mente, de um sentido de comum relação para com o Pai, que ama a todos
os homens. O amor é de Deus; os homens precisam de ser plantados
no solo do amor, ou não crescerão em amor, para unir tanto a Deus
como aos outros.
Quão doloroso e irónico é o pensamento de que a época da história,
em que os homens falaram mais de fraternidade fôsse época caracte-
rizada por duas guerras mundiais! Mas, para os cristãos «as coisas
que não podem ser abaladas» permanecerão ainda. A principal entre
estas cousas é a certeza experimental de que o Eterno Deus, o Deus e
Pai de Jesus Cristo, é o nosso Deus e Pai, também. Vem muito a
propósito, portanto, nêste tempo mais do que trágico, fazer ecoar com
fé e com esperança a rapsódia de adoração com que S. Paulo começou a
sua Carta aos Efésios: «Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor
Jesus Cristo que nos tem abençoado em Cristo, com tôdas as bênçãos
espirituais nos lugares celestiais». No espírito de Davi, em um dos
momentos cruciais da sua vida, e adaptando as palavras do bardo real
de Israel, repitamos hoje: «Ainda que a nossa casa — a casa da Igreja
Cristã e da nossa humanidade comum — não seja tal para com Deus,
contudo, Êle estabeleceu conosco um Concerto eterno, ordenado e guar-
dado em tôdas as cousas. Êle é tôda a nossa salvação e todo o nosso
desejo». (2 Sam. 23:5).
— 113 —
CAPITULO VII
A PLENITUDE DE CRISTO
Mas, como se deverá alcançar a unidade da Igreja? Como se devem
expressar as grandes unidades da fé que foram estudadas no capitulo
anterior?
Paulo, agora, passa a responder a estas perguntas. Êle as responde
dizendo que Cristo, de Sua plenitude como Cabeça de Igreja, dá à Igreja,
como dons especiais, homens a quem conferiu os dotes e qualificações-
necessários aos vários misteres. Jesus Cristo, o grande Vencedor, que
primeiramente desceu às mais baixas regiões da experiência e da neces-
sidade terrena, e então subiu à sede do poder celestial, agora confere
larga diversidade de dons da sua liberdade celestial (Efes. 4:7-10).
a) Da Sua Plenitude — Homens cheios de Dons.
Que eram os dons de Cristo? Seus dons eram para que uns fossem
«apóstolos, outros profetas, outros evangelistas, outros pastores e douto-
res» (4:11). Todos êstes eram «ministros», «servos» de Deus e da.
Igreja. Todos deviam ter relações com a Igreja em geral, da mesma
maneira que «bispos», «presbíteros» e «diáconos» deviam ter responsa-
bilidade especial em relação a regiões particulares ou igrejas locais.
Na extrema dianteira dos dons humanos de Cristo à Igreja, Paulo
coloca os «apóstolos». Os apóstolos eram os «mensageiros especiais».
Eram hom.ens que podiam dar testemunho do fato de que o Humilhado,
que tinha descido tornou-se o Ressuscitado, que subiu «acima de todos
os céus». A maior parte dos apóstolos tinham visto e ouvido a Cristo-
seguiram-no e com Êle trabalharam durante a Sua carreira terrena.
O próprio Paulo, não tinha conhecido a Cristo «nos dias da Sua carne».
Contudo, Aquele que ressurgiu e subiu aos céus, depois que a Sua carrei-
ra terrena, com a Sua consequente humilhação, tinham chegado ao fim,
encontrou-se com Paulo e dirigiu-se a êle em circunstâncias dramáticas,
dando-lhes ao mesmo tempo a comissão de «apóstolo». Contudo, tanto
Paulo como os companheiros apóstolos não eram homens capazes de
formar conceitos. Não eram dotados da capacidade de penetrar no
significado intimo da realidade e da história universal. Não estavam
dentro da tradição clássica dos «filósofos e dos sábios», que podiam tecer
complicadas tramas de pensamento, tirar de sua íntima consciência,
conceitos universais. Eram antes, em sua totalidade, homens comuns.
— 114 —
Mas oportunidades incomuns de percepção lhes tinham sido dadas. Podiam
dar testemunho concreto dos fatos que estão por detrás da afirmação
da primitiva comunidade cristã: «Jesus Cristo é Senhor». Os apóstolos
eram testemunhas oculares do fato de que o Crucificado se tornou o
Ressuscitado.
Os «Profetas», que constituem o segundo grupo dos homens dotados,
recebiam a afirmação dos apóstolos a respeito da ressurreição e da sobe-
rania de Cristo e interpretavam a significação. Êles mesmos eram uma
prova do fato afirmado pelo autor do Apocalipse de «que o testemunho
de Jesus é o espírito da profecia» (Apoc. 19:10). Eram capacitados,
sob a orientação do Espírito Santo, a se entregarem a sólido pensamento
cristão, à luz e nos termos do Senhor Ressurrecto, de quem os apóstolos
davam testemunho. Os «profetas», iluminadas as mentes por Cristo que é
a Verdade, mostravam profunda percepção do significado de Cristo. Po-
diam discernir tempos e estações, podiam interpretar Deus aos homens
e o homem a si mesmo. Alguns dêles escreveram livros que têm o seu
lugar no cânon do Novo Testamento. Os seus sucessores, através das
eras cristãs, têm sido teólogos e autores de credos, a verdadeira suces-
são dos pensadores do Novo Testamento. Hoje, os filhos dêsses «profe-
tas», lutam com a tarefa de apresentar a verdade cristã a uma geração
altamente sofisticada e secularizada. Visam fazê-lo de tal maneira que
«a verdade que há em Jesus» seja exposta nas categorias que lhe são
próprias e que, ao mesmo tempo, desafiem homens e mulheres letrados
e iletrados, selvagens primitivos ou ao ateniense pedante, todos êles con-
temporâneos do século vinte.
Em terceiro lugar, na lista dos dons de Cristo, estão os dos evange-
listas». Os evangelistas são homens dotados especialmente para serem
os pregadores do Evangelho, «as Boas Novas», a respeito do Crucificado
e Ressuscitado. O Evangelista toma a verdade, de que o apóstolo dá
testemunho e que é pelo profeta interpretada, e a proclama como Boas
Novas. A tarefa do evangelista tem sido admiravelmente exposta em
um documento da igreja contemporânea: «apresentar Jesus Cristo, no
poder do Espírito Santo, de tal modo que os homens sejam levados
a colocar a confiança em Deus por meio dÊle, a aceitá-lo como
Salvador e a seguí-lo como Rei, na comunidade da Igreja», (i) O
evangelista cristão sente-se comissionado a ir a todos os homens, a
qualquer terra em que êles vivam e a todo lugar onde trabalhem. Êle
se dirigirá a êles com convicção ardente e claridade cristalina. Em
cada caso, buscará a melhor maneira de se aproximar das pessoas que
busca levar à conversão, reconhecendo o direito de fazer-se ouvir. Se
conquistar tal direito, não ficará satisfeito antes de ser a mensagem
compreendida e obedecida. Na persecução dêsse objetivo, o evange-
lista verdadeiro alimentará a aspiração constante de que a palavra estran-
geira de sua mensagem se torne carne indígena. O que êle procurará,
acima de tôdas as coisas, é uma resposta séria à mensagem. Procurará
(1) Towards the Conversion of EngJanã,
— 115 —
constantemente reproduzir êsse clássico emblema de submissão ao Senhor
da Vida, conhecido comumente como «timbre de Calvino», em que numa
das mãos estendida aparece um coração flamejante e as palavras inter-
pretativas: «O meu coração te dou, Senhor, ardente e sinceramente».
A entrega a Jesus Cristo é o que o sucessor contemporâneo da antiga
ordem dos evangelistas continuará a levar avante.
Os «Pastores» são também dotados de Cristo. São homens a quem
Êle tem dado coração de pastor, que são seguidores do próprio Grande
Pastor, que, à semelhança de S. Paulo, amam os homens «entranhada-
mente», isto é, «com a afeição» de Jesus Cristo. Outras religiões têm oa
seus profetas e sacerdotes e até os seus evangelistas, mas somente a
religião cristã tem produzido uma ordem de pastores. O pastor cristão,
com o seu coração de pastor e a sua vocação pastoral, é único entre os fun-
cionários religiosos. Enfim, é o pastor cristão e somente êle é quem se
mostrará digno adversário dos ardentes devotos do Comunismo marxis-
ta. Porque chegará o tempo em que os homens desiludidos e quebran-
tados, inflamados revolucionários de ontem e de hoje, de luzes apagadas
e fogos extintos precisarão, da ternura de um coração de pastor. Des-
feitas as esperanças dêles de uma nova era, oprimidos pelos impre-
vistos fenómenos do mal pós-revolucionários, procurarão homens que os
amem como indivíduos, que lhes restaurem as almas, apascentando-os
nas «verdejantes pastagens» ao lado de «águas de descanso». Para o
espírito humano solitário e quebrantado, não há auxílio, nem esperança
senão em homem com coração de pastor, que o vá procurar na prisão
ou o busque como caminhante perdido na estrada da vida.
Depois dos pastores vêm os «mestres». Os mestres, na grande
sucessão evangélica, são homens e mulheres que, tomando as pessoas
que entraram em uma nova experiência espiritual por meio da obra doa
evangelistas, e cuja nova vida está sendo alimentada pelo pastor,
instruem-nas na fé cristã. Esta é a grande tarefa da educação cristã.
Inclui instrução da Bíblia e da significação e implicações da fé cristã.
O mestre precisa de fazer muito mais do que simplesmente apresentar
como fatos, e teológicamente, as verdades cristãs: precisa de ensinar ao
povo a maneira de ser cristão em todas as circunstâncias e caminhoa
da vida. Uma grande parte da educação cristã consiste em tomar aa
pessoas que pertencem ks várias vocações da vida e mostrar-lhes como
pensar e viver e agir como cristãos na profissão secular. Um mestre
cristão não tem maior tarefa do que a de tornar claro o sentido da
Bíblia e da vida cristã em tódas as esferas do trabalho diário e em todas
as fases da experiência humana. O mestre cristão precisa de ajudar o
povo a «aprender a Cristo», de modo tal que a vida inteira se tome
ciistã. O objetivo da instrução cristã deve se guiar todo o pensamento
à obediência de Cristo, trazer tôda a esfera debaixo da lei de Cristo.
— IIG —
Os homens a quem Cristo dotou especialmente e que Êle ofereceu
à Igreja como dom, têm uma grande tarefa em comum. Êles devem
exercer o ministério de tal maneira que os «santos» sejam «aperfeiçoa-
b) Para a Sua Plenitude — Um Ministério Eficaz.
dos» ou «equipados» a fim de que também em sentido não-profissional
mas efetivo, possam tornar-se «ministros». Desta maneira e somente
desta maneira, será edificado todo o Corpo de Cristo (4:13).
Nenhujna passagem da Bíblia é mais importante do que esta, para
a prosperidade e missão da Igreja Cristã hoje em dia. A tradução
familiar desta importante passagem é assim: «E Êle mesmo deu uns pa-
ra apóstolos; e outros, para profetas; e outros, para evangelistas; e
outros, para pastores e mestres; para o aperfeiçoamento dos santos, para
a obra do ministério, para o edificar do Corpo de Cristo». (4:11, 12).
Na Revised Standard Version, recentemente publicada, a passagem está
traduzida: «para o equipamento dos santos, para a obra do ministério,
para edificação do Corpo de Cristo». Aqui, sem autoridade linguística
mas com indubitável tendência eclesiológica, conservou-se a vírgula depois
da palavra «santos». Os ministros hesitam em sancionar um «minis-
tério» neotestamentário para os cristãos comuns. Contudo, de acordo
com o melhor e mais moderno conhecimento do Novo Testamento e
algumas das suas mais reputadas traduções, tais como as Weymouth e
de Phillips, a sentido claro da passagem é simplesmente este, que os
«santos» não «equipados» para servirem. J. B. Phillips, em suas
Cartas às Igrejas Jovens, que é uma tradução das epístolas do
Novo Testamento, tem esta tradução livre: «Os Seus dons foram dados
para que os cristãos pudessem ser adequadamente equipados para o seu
serviço, para que o inteiro Corpo pudesse ser edificado». (2) Richard
Francis Weymouth, em sua famosa tradução do Novo Testamento, O
Novo Testamento em Linguagem Moderna, traduziu a passagem em
questão do seguinte modo: «A fim de equipar inteiramente o seu povo
para a obra de serviço na edificação do Corpo de Cristo».
A favor desta tradução está, não somente o teor geral do pensa-
mento de Paulo em sua Epístola aos Efésios e o seu ponto de vista geral
a respeito dos funcionários especiais da Igreja, como também o uso das
preposições gregas. Enquanto que a preposição prós, significando
«com vistas a», é usada diante da preparação ou equipamento dos
santos, uma preposição diferente, de semelhante significado, eis, «para
o fim de», é usada antes de cada uma das duas frases — a obra do
ministério, e a edificação do Corpo. O sentido parece claramente ser
que o objetivo supremo dos homens dotados deve ser equipar os «santos»
para que êles, por seu turno, possam dedicar-se ao ministério, possam
também ser servos e, do seu serviço, resulte a edificação do Corpo de
Cristo .
(2) Publicado pela Companhia Macmillan em 1950.
— 117 —
A idéia tôda é assustadora, mas decisiva. A função suprema dos
assim chamados oficias da Igreja, cujo ministério é relacionado com
algum aspeto do progresso da Igreja, pode ser assim definido: A função
dos «ministros» é equipar os «santos», isto é, os membros comuns da
congregação cristã que, pela sua ligação e profissão são «homens e mu-
lheres de Cristo», de tal maneira que também êles possam prestar ser-
viços a Cristo e à Igreja, no mais completo sentido do termo. Os mem-
bros leigos estão sob a mesma obrigação que os membros do clero, de
serem integralmente cristãos, de tomarem a sério o seu chamado cristão
e de seguirem nos passos daquele que disse que «não tinha vindo para
ser servido mas para servir». Para a formação do espírito cristão e a
orientação do serviço cristão, os homens e as mulheres leigos precisam
de conservar sempre diante de si a imagem essencial da religião cristã.
E^ta imagem essencial é-nos dada no Evangelho de S. João, capítulo
13:1-17. Jesus, intensamente consciente da Sua identidade e Seu des-
tino e de que era Seu o poder absoluto e de «que o Pai tinha entregue
tudo nas Suas mãos», e de que estava para voltar para Deus, de onde
tinha vindo, derramou água em uma bacia e, cingindo-se de uma toalha,
lavou e enxugou os pés dos discípulos. Esta é a norma autorizada para
todos os «santos». Conscientes do fato de que são herdeiros de Deus
e co-herdeiros com Cristo, os «homens e as mulheres de Cristo», pre-
cisam de estar sempre prontos a executar as mais humildes tarefas, no
serviço de Cristo e de seus companheiros. Precisam de consagrar suas
forças e talentos, seu tempo e seu dinheiro, sua posição e reputação ao
cumprimento da sua vocação cristã e à edificação da comunidade cristã,
que é o Corpo de Cristo. Os que têm «subido» com Cristo, que estão
«em Cristo» e assim, vivem nos «lugares celestiais em Cristo Jesus», pre-
cisam também de descer, como Ele fêz, às «mais baixas partes da terra»,
isto é, se estiverem dispostos a tomar a sério a injunção de que o seu
pensamento e ação cristãos precisam de ser executados «no Senhor».
O que vimos até aqui não é nada mais e nada menos, do que uma
faceta da verdade básica do Novo Testamento, do sacerdócio universal
dos crentes. Todo o cristão é chamado para ser ministro, servo, sacer-
dote. O seu supremo oferecimento deve ser oferecimento de si mesmo
e do seu serviço a Cristo e aos homens. Um tal oferecimento não pode
ser feito por procuração. Somente pode ser feito pessoalmente e de tal
maneira que a realidade do lavar os pés, o sofrimento da Cruz e o poder
da Ressurreição entrarão todos nela. Uma das tristíssimas coisas da his-
tória cristã é que a doutrina do sacerdócio universal dos crentes tenha
sido tantas vêzes e tanto tempo interpretada como a simples afirmação
do direito e do privilégio de todo o cristão de se aproximar de Jesus
Cristo, «dentro do véu», e de gozar da mais completa participação da
benção espiritual. E' tempo de os cristãos se tornarem conscientes de
que sacerdócio significa responsabilidade, tanto como privilégio. O sa-
cerdote cristão precisa de mostrar que preza os seus privilégios, pela
— 118 —
aceitação de suas responsabilidades, oferecendo-se a si mesmo e pro-
curando oferecer ainda outros como sacrifícios vivos no altar da de-
voção cristã. Não basta que um cristão, clérigo ou leigo, seja bom para
com outras pesoas no espírito de Jesus Cristo: o seu anseio constante
deve ser o de que os que se tornam recipientes do bem, devem ser tam-
bém os fazedores do bem. Naturalmente que não deve impor, como con-
dição do bem que fazem, que os que se beneficiam de sua bondade devam
ser recíprocos em fazer o que se lhes pediu para fazer. Porque proceder
um cristão assim eria agir segundo a «caridade teológica», pela qual o
recipiente da bondade deveria ser obrigado a conformar-se com as idéias
e os preceitos expostos pelo seu benfeitor. Contudo, enquanto aborre-
cendo tôda a semelhança de «caridade teológica», o objetivo supremo de
todo serviço cristão deve ser que todos aqueles que são servidos, darão
suas próprias vidas a Cristo, em cujo nome, pela graça dÊle e para cuja
glória todo o verdadeiro serviço é prestado.
Uma palavra é necessária em referência a «santos» e «santidade».
A palavra «santo», é têrmo que tem sido muito mal entendido e masca-
rado através dos tempos. Há uns poucos têrmos bíblicos para os quais
o século vinte é mais alérgico. A maior parte das pessoas entendem
mal o significado da santidade cristã. Muitos outros que a entende-
ram, tem decidida antipatia por tudo quanto ela quer dizer. Os
santos do Novo Testamento não são pessoas que se distinguem pelas
práticas ascéticas no domínio dos seus corpos, nem ainda pela capacidade
espiritual de vôos e arrebatamentos místicos. São simples e unicamente,
como já têm sido chamados, «homens e mulheres de Cristo». Sentindo
que pertencem a Cristo, reconhecem o privilégio e aceitam a obrigação de
realizarem na vida as mais extremas implicações da vida cristã. Alguns
dêles escalarão a escada do misticismo e por outras maneiras, pela espe-
cial graça de Cristo, alcançarão a «santidade», no mais tradicional sen-
tido do têrmo. Mas todos os que tomam a sério a sua vocação cristã e
que se esforçam por serem «santos», no sentido do Novo Testamento,
são os verdadeiros humanistas; porque são êles, e êles somente, que
lutam por serem verdadeiramente humanos e só êles têm qualquer pos-
sibilidade de alcançar a espécie de varonilidade que dimana da plenitude
de Cristo. Uma pessoa é «santa» no sentido do Novo Testamento, não
pela grandeza das suas realizações espirituais, mas pela realidade da sua
devoção cristã.
Quando todos os «santos» tomam a sério a sua chamada à santidade,
expressando no pensamento e na vida tudo quanto é implicado no per-
tencer-se a Jesus Cristo, verdadeiramente será edificada a Igreja, que é o
Cx)rpo de Cristo. Cada um dos membros estará de saúde perfeita e per-
feitamente desempenhará a sua função especial. Então, sob a direção
dos líderes por Cristo indicados, e pela congregação reconhecidos, para
conduzirem a vida da Igreja, o Corpo, como um todo, funcionará har-
moniosamente, em obediência a Cristo, e estará equipado para o serviço
coletivo de Cristo.
— 119 —
o significado da Ordem da Igreja.
Aventuro-me a parar um pouco, neste ponto, para fazer algumas refle-
xões sôbre a questão do ministério cristão e da ordem da Igreja; porque
a paissagem que exatamente prendeu a nossa atenção é muito importante
para a compreensão cristã de ambas.
Cristãos que aceitam os fatos centrais da fé neotestamentária e são
fiéis às unidades de que tratéimos no último capítulo, divergem mui sèria-
mente a respeito das relações entre a ordem da Igreja, incluindo o minis-
tério, e a fé cristã e a sua realidade básica. O ponto de vista que aqui se
considera é que, na Igreja de Jesus Cristo, Ordem é ordem. Isto significa
que na Igreja Cristã a estrutura é essencialmente funcional em caráter.
Os funcionários da Igreja e a forma de sua organização foram designados
por Jesus Cristo para servirem os melhores interêsses da Igreja. Êste
propósito consiste, como veremos mais completamente adiante, na prepa-
ração de todos os membros para cumprirem, até os últimos limites, as
várias funções, e para juntos crescerem até à medida da estatura da ple-
nitude de Cristo. O que a Cabeça da Igreja tem determinado para os
membros do Seu corpo e para o Corpo como um todo, é a mais completa
maturidade espiritual. Sendo assim, enquanto somos providos no Novo
Testamento com um modêlo para a liderança e organização da Igreja,
ambos êstes precisam de ser fundamentalmente julgados pela medida em
que coontribuem para «equipar os santos para a obra do ministério e da
edificação do Corpo de Cristo». No momento em que um funcionário
eclesiástico ou uma forma específica de ordem eclesiástica, deixam de ter
como objetivo a formação de cristãos amadurecidos e fazer da Igreja,
como um todo, instrumento útil da vontade de Cristo, uma aberração
toma o lugar do espírito, e eu me atrevo a dizer, até da letra do ensino
do Novo Testamento, a respeito da Igreja e do seu ministério.
Há dois pontos de vista, em particular, da Igreja e do ministério, que
parece estarem em oposição ao ponto de vista implícito na Carta aos Efé-
sios. Uma dessas opiniões poderia ser formulada assim: a Ordem é a
Igreja. Esta é a opinião católica romana. Ela sustenta que o clero, e
em particular os hierarcas que dirigem a Igreja, pertencem à Igreja, em
um sentido em que os comuns crentes católicos não pertencem. A Igreja,
em sua forma institucional, é para todos os objetivos e propósitos, a hie-
rarquia e a estrutura de organização é que é constituída pelos hierarcas.
A hierarquia é a Igreja. Ela é a dona da Igreja e a se considera inves-
tida de autoridade divina para delinear os destinos da Igreja. Mais e mais
na moderna literatura católica romana, afirma-se que Jesus Cristo fun-
dou a sua «organização». A Igreja, como instituição, mais do que como
comunhão, constitui, neste ponto de vista, a realidade básica da Igreja
Cristã. Se fôr assim, então certos funcionários e uma certa norma estru-
tural é que constituem a Igreja.
Esta opinião particular da Igreja tem produzido dois resultados de-
sastrosos. Para todos os fins práticos, no que concerne aos seres hu-
— 120 —
manos comuns, a Igreja toma o lugar da Divindade. Cristo e a Igreja
tornam-se de tal maneira, institucionalmente, uma só coisa, que não há
mais qualquer possibilidade de apêlo da Igreja institucional para Jesus
Cristo. A Cabeça da Igreja perde a Sua soberania. A Igreja torna-se
o Seu patrono, pretendendo controlar os Seus movimentos e a Sua gra-
ciosa influência. A mesma situação foi alcançada, com desastrosos re-
sultados, na história religiosa de Israel, quando o poder presente e vivo
de Deus foram mecanicamente identificados com a existência da Arca e,
mais tarde, com o templo. A Igreja Cristã é algo mais e maior do que
a instituição chamada a Igreja. Jesus Cristo é mais e é maior áb que
a Igreja, de qualquer forma.
Esta concepção da natureza da ordem da Igreja produz um outro
mal. Onde a Ordem se torna a Igreja, surge uma realidade funesta cha-
mada Clericalismo. O Clericalismo romano já foi por mim definido
como «a busca do poder, especialmente poder politico, por uma hierarquia
religiosa, executada por meio de métodos seculares e com propósitos de
dominação social». Ela se baseia na afirmação de que a Igreja institu-
cional, constituída pela sua hierarquia, é o Reino de Deus e, assim, um
fim em si mesma. Por essa razão, os interêsses da Igreja, que são iden-
tificados com os interêsses da hierarquia, constituem o objetivo supremo
que se procura colimar. Dêste modo, a situação social ideal na história
é a em que o povo de uma nação e os seus governantes também, sujeitam
o penssimento e a ação ao que a Igreja considera ser direito, para oi
melhores interêsses dos homens e da Igreja. O desenvolvimento do Cle-
ricalismo investe a Igreja de soberania espiritual e de majestade criativa.
A coisa agora importante torna-se, não que o povo comum se torne espi-
ritualmente amadurecido, mas que obedeça à Igreja. A Igreja, como
substituta da maturidade espiritual que é inseparável da liberdade, dá a
seus membros a qualidade de segurança que é a morte da liberdade. Os
fiéis se tornam eternas crianças. A fé não mais é a fé em Cristo. Trans-
forma-se em assentimento a proposições a Seu respeito. Ela se relaciona
especialmente com a crença na autoridade de que Cristo revestiu a Igreja.
Tão absoluta é esta autoridade, que ela proclama, como artigos de fé, que
certos acontecimentos se realizaram como fatos históricos objetivos, ainda
que nem a história, nem a Escritura, nem a tradição, registam os mes-
mos acontecimentos. A Igreja, assim, tem poder para criar acontecimen-
tos de importância histórica e de alcance cósmico, e não necessita de
limitar a sua ação ao testemunho dos atos portentosos de Deus.
A outra concepção da Igreja, que também corre ao arrepio do espí-
rito e do ensino da Carta aos Efésios, é a que considera a Ordem como
artigo de fé, isto é, como pertencendo à essência da Igreja. Esta con-
cepção é comumente associada à Igreja Ortodoxa Oriental e com a Alta
Igreja da Comunhão Anglicana. Esta concepção da Igreja, que é susten-
tada por muitas pessoas piedosas e conscienciosas, torna-lhes difícil aceitar
— 121 —
as ordens ministeriais de outras igrejas, cujo ministério pode ter sido
singularmente abençoado pela presença e pelo poder do Espírito Santo.
Os membros de tais igrejas não permitem que outros com eles participem
na sua celebração da Santa Comunhão, nem permitirão que a sua gente
partilhe do Sacramento da Ceia do Senhor sob os auspícios de igrejas
protestantes. Segundo esta concepção, as Igrejas Livres são mais «so-
ciedades» do que Igrejas. Esta concepção da Igreja é a que constitui o
maior obstáculo à união das igrejas mais jovens, nos chamados campos
missionários do mundo. Um poeta cristão como T. S. Eliot, a quem
devem uma profunda dívida de gratidão tanto a poesia como a cultura
cristã do nosso tempo, permitiu-se a si mesmo, por causa da atitude
própria de membro da High Church, chamar a uma realização tão emi-
nentemente cristã como foi a constituição de uma nova Igreja unida
no sul da índia, de «amável mascarada», «artifício elaborado», «mon-
tagem de pantomima».
O perigo de uma tal concepção da Igreja é o eclesiasticismo. A Igre-
ja como instituição, cujos ministros se consideram sucessores dos após-
tolos, tende a tornar-se um fim em si mesma. Ela promove direitos ins-
titucionais adquiridos, ao invés dos interêsses evangélicos de Jesus Cristo,
dos santos e do Reino de Deus. No eclesiasticismo, a Igreja presume
possuir monopólio do Espírito Santo, do mesmo modo que, no Clericalis-
mo, ela se torna a protetora do Cristo Ressurrecto.
Contra o clericalismo e o eclesiasticismo levanta-se a concepção do
Novo Testamento e de Paulo, de que a Igreja não necessita de estrutura
institucional específica, ou de uma ordem especial de hierarcas, para ga-
rantir a sua origem sagrada ou para tornar eficaz a sua missão dada de
Deus. Para um homem como João Calvino, a forma presbiteriana da
ordem da Igreja era a que mais fielmente expressava o padrão do Novo
Testamento. Calvino, contudo, apressou-se a acrescentar que, em sua
concepção, outros cristãos podiam, sem qualquer violência ao Novo Tes-
tamento, encontrar outras formas de organização eclesiástica nas pá-
ginas sagradas. Quem ousaria afirmar, à luz do Novo Testamento, do
ensino específico da Carta aos Efésios e do registo da história cristã, que
o Espírito Santo de Deus tenha exaurido as possibilidades estruturais
da Igreja Cristã? Na situação atual, a fidelidade a Cristo e à Igreja e
ao espírito da Carta aos Efésios exige que encaremos a ordem eclesiás-
tica, como essencialmente funcional em caráter. A ordem que seja mais
perfeitamente leal ao espírito da Igreja do Novo Testamento e que mais
perfeitamente «equipa os santos para o ministério» é a melhor, em um
dado tempo e meio. Ordem é ordem e estrutura é estrutura. E' isto
que se exige: Que os cristãos que estão arraigados na Bíblia e ligados a
Jesus Cristo, a Palavra viva de Deus, e que proclamam o Evangelho da
Sua Graça, se relacionem uns com os outros para que as almas sejam
nascidas para a fé em Cristo, nutridas na vida de Cristo e juntamente
unidos no espírito de Cristo. Sòmente assim podem elas atingir o grau
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4
4
de maturidade espiritual que se torna possível por meio da plenitude de
Cristo. Porque a única forma de ordem eclesiástica que pode refletir
a Igreja do Novo Testamento ou ser continuação dela, é a que produz san-
tos e que cultiva a comunhão dos santos.
c) A realização da Plenitude de Cristo — A Maturidade Cristã.
O padrão da vida cristã é a varonilidade amadurecida. Medir-se-á
o êxito ou o fracasso dos líderes da Igreja, como já temos visto, pelo
grau em que contribuam para a formação da maturidade cristã, naqueles
a quem ministram. Na medida em que fôr alcançada a maturidade
cristã, manifestar-se-á e se consumará a plenitude de Cristo. Os dons
e as graças que Cristo concede de Sua plenitude para a edificação do Seu
Corpo, a Igreja, contribuirão, digâ-mo-lo com tôda a reverência, para a
Sua própria plenitude, por intermédio do crescimento e aperfeiçoamento
dêsse Corpo. Edificar o Corpo de Cristo e atingir a maturidade cristã,
são coisas inseparàvelmente relacionadas. A maturidade dos indivíduos
cristãos não se pode realizar fora do crescimento deles no Corpo e da
contribuição pessoal, em uníssono com outros cristãos, para o cresci-
mento do Corpo. Por outro lado, o Corpo, como um todo, não pode crescer
à parte do crescimento e funcionamento harmonioso dos seus membros.
A varonilidade cristã e a comunhão dos santos não podem ser separadas.
Mas os interesses individuais dos cristãos e os do corpo organizado
de cristãos, somente podem ser reconciliados quando se mantém a ver-
dade em amor. Verdade é alguma coisa que o indivíduo sente com inten-
sidade e a que êle deseja dedicar-se. Mas deve êle ter o cuidado de, na
defesa da Verdade, não estar mais interessado em conseguir preeminên-
cia, como testemunha da Verdade, do que na causa da própria Verdade.
É fácil, e isto muitas vezes lisongeia o orgulho humano, poder fazer-se
uma demonstração. E' muito mais difícil perder-se uma pessoa numa
causa. Sejam os cristãos cautelosos para não confundir a causa da
Verdade com o esfôrço de consolidar a própria posição e garantir o pres-
tígio dêles. Sobretudo, não permitam que a verdade parcial que sus-
tentam se torne mania, dessa espécie de mania com que a nossa geração
se tem acostumado na ordem política. A única maneira de evitar o cris-
tão que a verdade se torne mania e de êle mesmo se tornar fanático de-
voto de uma verdade parcial, é que a verdade seja «mantida em amor».
Porque, quando a verdade é sustentada em amor, duas coisas acontecem.
E* reconhecido que o próprio amor é parte e parte muito básica da ver-
dade cristã. Segundo, é impossível sustentar a verdade em amor sem
se ter um sentido de integridade cristã. Quando falamos a verdade em
amor, manifestamos estima para com os nossos companheiros cristãos
que pertencem conosco ao Corpo de Cristo, que são perfeitamente fiéis
a Cristo, a Cabeça, mas que se sentem constrangidos em dar ênfase a
algum aspecto da verdade diferente do aspecto que é supremamente im-
ix)rtante para nós.
Sòmente quando o princípio de se falar a verdade em amor recebe
adesão leal, é que os cristãos podem evitar a imaturidade que associamos
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à infância. Os adolescentes costumam dedica r-se fanàticamente a ver-
dades parciais. Os cristãos não devem ser mais crianças, «levados em
roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com as-
túcia enganam fraudulosamente» (Efes. 4:14). Pelo contrário, diz Paulo,
«seguindo a verdade em caridade, cresçamos em tudo nAquele que é a
Cabeça, Cristo (4:15). Nada é mais desastroso do que cristãos sinceros,
em seu zelo pela verdade cristã, se tornaram presa de homens de «astúcia
hábil e inescrupulosa». Tais homens são habilíssimos na «astuta apre-
sentação de mentiras»; torcem e pervertem a verdade; arrancam-na do
contexto natural; regozijam-se em tôda a manifesctação de cisma na Igreja
Cristã. Algumas vezes em cochichos, outras em ondas violentas de pro-
paganda, tentam arregimentar os adolescentes cristãos sob a sua bandeira.
Os membros das «Igrejas mais Jovens», estão particularmente expostos
a esta espécie de astúcia diabólica, que considera o cisma como virtude,
e manifestação de unidade como apostasia. Os homens que fazem da
mente dos adolescentes cristãos prêsa, a fim de a envenenarem contra
os cristãos que tomam a sério a injunção do Novo Testamento de que a
unidade em amor e o serviço de Cristo são parte da verdade cristã, são
chamados na Bíblia de «inimigos da Cruz de Cristo». Tais pessoas são
filhos do Arcanjo caido, cuja paixão devoradora era rasgar a harmonia
divina, inscrevendo em sua bandeira de cruzada o tremendo grito de
guerra: «Mal, sê tu o meu Deus». Tais influências assaltaram os cris-
tãos do tempo de Paulo com as prescrições legalísticas dos judaizantes
e as concepções ideológicas dos gnósticos. Para Paulo, o único antídoto
verdadeiro para ambas as influências era «aprender a Cristo».
O objetivo para que devem lutar tanto os membros do Corpo como
o mesmo Corpo, como um todo, é a «plenitude de Cristo». Todo o es-
forço, tanto pessoal como coletivo, deve ser dirigido para «a medida de
desenvolvimento que tem por sentido a plenitude de Cristo» (Efes. 4:13,
versão de Phillips). Assim, a «plenitude de Cristo» é o fim, como tam-
bém o comêço. Como se alcança esta plenitude e quais são as suas ma-
nifestações?
Para responder a esta pergunta, pomos em foco lampejos de verdade
espiritual, que têm brilhado em diferentes pontos na parte precedente da
Carta e cujo significado atinge a sua completa refulgência neste ponto.
Cristo torna-se manifesto em Sua plenitude por meio do poder espiritual.
Êste poder espiritual flui de uma unidade dupla por parte dos cristãos:
a unidade na fé e no conhecimento do Filho de Deus, e a unidade
no amor.
Primeiro, existe a unidade em conhecimento ou compreensão. O
crescimento espiritual na «medida da estatura da plenitude de Cristo ^>
depende da compreensão do eterno propósito de Deus de constituir em
Cristo uma nova ordem, que abarcará tôdas as coisas nos céus e na terra,
e depende também da adesão a êsse propósito. Envolve discernimento do
fato de que Jesus Cristo, pela Sua Cruz, tornou-se o vencedor espiritual que
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uniu Deus e os homens, e judeus e gentios, em um sentido novo. Nas pala-
vras da grande oração com que Paulo encerrou o primeiro capitulo da Carta
(1:15-23), é essencial que os cristãos tenham «espírito de sabedoria e de
revelação no conhecimento de Cristo» (1:17). Dêste modo, os seus «cora-
ções», isto é, a sua inteira personalidade, serão tão iluminados que poderão
apreender a significação da esperança por que anseiam, e o que irá dar
a Jesus Cristo ter os santos como Sua herança gloriosa. Também lhes
pertencerá conhecerem, como conceito e experimentalmente, qual o gran-
de poder que se manifestou na ressurreição de Cristo. Êste poder leva à
entronização de Cristo sôbre «todo o govêrno e autoridade e poder e
dominio e sôbre todo o nome que é nomeado, não só neste século mas
também nos que hão-de vir». Êles virão a conhecer o que significa
Cristo ter sido feito «Cabeça sôbre tôdas as coisas para a Igreja». Porque
a Igreja é o Corpo de Cristo; ela se torna a perfeição de Cristo que enche
inteiramente o Universo. A visão dêste grande drama divino e essa qua-
lidade de poder que é experimentado quando o povo se torna ator neste
drama, são indispensáveis para que se tome manifesta a perfeição de
Cristo. Isto equivale a dizer que uma fé comum, um conhecimento comum,
uma experiência comum e um poder comum, são indispensáveis, para
que seja cumprido o propósito de Deus, em Jesus Cristo, de manifestar
a plenitude de Cristo no tempo e além do tempo.
Igualmente importante é a unidade no amor. Na grande oração com
que termina o terceiro capítulo (3:14-21), Paulo torna claro que, como
as mentes dos cristãos devem ser iluminadas pelo Espírito Santo para
a grande visão da verdade centralizada no propósito de Deus em Cristo,
assim também o Espírito precisa de fortalecer a estrutura íntima da
personalidade a fim de que ali, no centro mesmo da personalidade, o
próprio Cristo possa habitar. Porque, sómente na medida em que
Cristo mesmo habita nos corações dos cristãos, é que, «arraigados e
sobreedificados em amor, podem compreender com todos os santos, qual
seja a largura e o comprimento e a altura e a profundidade e conhecer
o amor de Cristo, que excede todo o entendimento». Somente assim,
por meio de uma visão coletiva e de uma experiência de amor, po-
dem êles estar «cheios de tôda a plenitude de Deus». A plenitude de
Cristo é, assim, plenitude de existência, bem como plenitude de conhe-
cimento. Nesta plenitude, a luta imemorial do homem para conhecer
e para ser, chegam ao fim; porque a plenitude de Cristo é a consumação,
tanto das aspirações e dos esforços do homem, como do planejamento
e realização de Deus.
Mas, se êste é o objetivo, a participação da «plenitude de Cristo»,
que precisam, pois, fazer os cristãos, à luz desta visão? Como devem
pensar e viver, como membros da Igreja Militante, para que a plenittide
de Cristo se possa transformar em realidade, e para que se possam tornar
visíveis brilhos dela na vida coletiva da Igreja Cristã, na estrada da
história?
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E' perfeitamente claro que a plenitude de Cristo não pode ser iden-
tificada com qualquer instituição histórica que se chame a Igreja de Cristo.
Essa catolicidade, essa integridade suficientemente larga para abarcar
tudo quanto pertence a Cristo, como membros do Seu Corpo, não se en-
contra dentro de qualquer instituição ou manifestação visivel dêsse
Corpo. Se formos capazes de buscar a plenitude de Cristo, precisamos estar
interessados em cada pessoa que, em qualquer parte, reconheça a Cristo,
que tenha nascido de novo pelo Espírito de Cristo, e cuja vida leve as
marcas de Cristo. A catolicidade evangélica é a única catolicidade ver-
dadeira, a forma de catolicidade cujo moto é: «Onde está Cristo, está
a Igreja». O nosso supremo interesse precisa ser sempre uma união
tal com Cristo que nos leve a reconhecer a manifestação da Sua pleni-
tude nas vidas de devoção cristã, onde quer que apareçam. Podemos
estar absolutamente certos de que, por outro lado, sempre que o poder
de Jesus Cristo não se manifesta e não aparecem as marcas de Jesus
Cristo, e o Espírito de Jesus Cri.sto não modela as relações dos que
professam o Seu nome, Cristo mesmo não está presente. A Sua pre-
sença soberana não é limitada aos <''templos feitos por mãos de homens»,
nem pode o Seu soberano domínio ser controlado por qualquer corpo
eclesiástico ou qualquer oficial de igreja. E' um direito de nascimento
de tôda alma cristã, que se ache presa e emudecida dentro de uma ex-
pressão super-organizada da religião cristã, bradar com Blaise Pascal:
^Ao Teu tribunal, Senhor Jesus, eu apelo». Porque as Escrituras tor-
nam clara a possibilidade e a história confirma a atualidade, de que
qualquer estrutura eclesiástica, a despeito de suas pretensões, pode negar
a Jesus Cristo e tornar-se apóstata.
O segrêdo do pensamento cristão e da vida consiste na constante
manutenção de intimidade com Jesus Cristo. Não basta manter-se perto
da Bíblia, ainda que, fora da Bíblia, nada podemos conhecer a respeito
de Cristo. Cristo é o coração da mensagem bíblica e a chave da signi-
ficação da Bíblia. A Bíblia cumpre a função que Deus lhe deu, quando
leva o leitor a Cristo, e o edifica na fé, no conhecimento e na experiência
de Cristo. Contudo, no próprio momento em que a Bíblia se torna
substituta de Cristo, ela se torna ídolo. O Senhor Jesus Cristo vivo, a
Cabeça da Igreja, é ainda maior do que a Bíblia. E fazer da Bíblia,
fora de Jesus Cristo, o objeto de fé, não é sòmente idolatria; pode levar
as pessoas a negar a realidade de Cristo, ainda que se lhe pague tributo
de lábios.
Assim, também, sempre que a Igreja se torna o supremo objeto de
devoção, em lugar do Cristo, a Cabeça da Igreja, tal ato é ato de ido-
latria. Então, nega-se a Cristo, a tudo quanto Êle significa e a tudo
quanto Êle é. E' estranho, mas é verdade, que os homens podem tor-
nar-se dedicados à Bíblia e à Igreja, sem serem verdadeiros cristãos.
Por outro lado, ninguém cuja vida e fé sejam verdadeiramente cristo-
cêntricas, que tenha intenso amor e dedicação a Jesus Cristo, como Êle
é testificado pelas Santas Escrituras, e como Cabeça do Seu Corpo, a
Igreja pode negar a Cristo e Sua verdade. Amando-0, amam por amor
dÊle, todos os seus companheiros cristãos, no centro de cuja fé e vida,
encontram o mesmo Senhor Crucificado e Vivo.
Mas, pode-se perguntar: Como pode o conhecimento cristão e o
amor cristão de tal modo influenciar os cristãos em seus contatos com
o plano secular que, como membros da Igreja Cristã, possam pensar e
agir de modo que contribuam para a plenitude de Cristo? Consagrem
os cristãos a Cristo tudo que é verdadeiramente humano no plano na-
tural. Isto significará o batismo a Cristo das suas vocações e chama-
das seculares. Todo o conhecimento e cultura humanos devem ser pos-
tos debaixo da influência e da luz de Cristo, e ser-lhes permitido fazer
a sua característica contribuição para a promoção da causa de Cristo.
Isto também significará que, na vida diária e concreta da Igreja,
os cristãos precisam de lutar para dar expressão ao companheirismo de
uns com os outros e com Cristo, na adoração e serviço, dentro das várias
denominações e através de tôdas as barreiras denominacionais. Lutem
éles sempre para se encontrarem um ao outro no mais profundo nível,
isto é, no nível do seu amor comum a Jesus Cristo.
Desta maneira, e somente desta maneira, poderão os cristãos apre-
ciar o que é verdadeiro, em sua própria herança religiosa, e o que é ver-
dadeiro na herança religiosa dos seus irmãos. O que é puramente con-
dicionado pelo tempo começará a desaparecer e se trará o ouro puro à
casa do tesouro cristão. Cristo mesmo, mais do que qualquer outro
objetivo menor, mais e mais se tomará o centro supremo da piedade.
A plenitude de Cristo tornar-se-á manifesta progressivamente e Êle
mesmo se tornará tudo em todos. Quando tal se consumar na vida de-
nominacional, institucional e pessoal, muitos e difíceis problemas nas re-
lações entre indivíduos e igrejas podem ser e serão resolvidos por meio
da obra criadora do Espírito de Deus.
— 127 —
CAPÍTULO vm
os QUATRO IMPERATIVOS DA VIDA CRISTÃ
Vivos Paulo elevar-se bem alto em setores da verdade, nunca antes
alcançados pela mente mortal. Vimo-lo tocar de novo a terra, para
falar da unidade da Igreja, somente para se arrebatar mais uma vez em
descrição rapsódica da plenitude de Cristo. O seu pensamento, agora,
vem repousar afinal no plano horizontal.
Em uma descida anterior no caminho da vida, Paulo proclamara
que os cristãos devem viver de maneira condigna com a sua vocação.
Precisam fazer assim de modo humilde, sendo a compreensão da dis-
tância entre a grandeza de Deus e a sua própria pequenez, ma-
nifestando, entretanto, espírito de mansidão, de paciência, de cle-
mência para com todos os irmãos. Mas, no mesmo momento em
que êle mencionou a unidade e o amor que devem caracterizar tôdas as
relações do cristão, ergueu-se de novo para um último vôo, no qual ten-
tamos seguí-lo no capítulo anterior. Depois de discorrer sobre a ple-
nitude de Cristo e tudo que ela importa para as relações dos cristãos
ims com os outros, como membros do Corpo de Cristo, que é a Igreja,
finalmente êle baixa, para considerar a conduta pessoal do homem e da
mulher cristãos, que têm de viver no mundo, que estão filiados às ordens
naturais da vida, no lar e no trabalho, e que precisam de enfrentar as
forças espirituais de uma ordem demoníaca, sobrenatural. Ai está,
onde se gasta a vida diária, lugar onde governam os gentios e em que os
cristãos têm de viver e de lutar até o fim do caminho.
Até aqui, Paulo tratou de conceitos e de figuras. Esteve pensando,
podemos dizer, centrifugadamente, tratando de verdades básicas do pen-
samento e da experiência cristãos. Agora, começa a pensar em têrmos
de pessoas concretas. O seu pensamento toma-se centrípeto. Passa de
conceitos para almas. Mostra as implicações éticas da vida de Deus na
alma do homem. Insiste em que o indivíduo que foi chamado por Deus
e separado para Deus precisa de ser santo e irrepreensível. Precisa de
dedicar-se, no mais completo dos sentidos, às boas-obras. Porque a ver-
dade tem por objetivo a bondade. A bondade precisa sempre de ser
o fruto da salvação cristã. A religião pura, que grandemente consiste
de afeições santas para com Deus e para com os companheiros cristãos,
precisa de manifestar-se no procedimento verdadeiramente ético. A
bondade moral é a única prova real da salvação cristã. A verdade cris-
— 128 —
tâ precisa de produzir pessoas reais. Origina-se ela de uma Pessoa e
tem de dar origem a pessoas. A verdade cristã é verdade pessoal no
sentido mais completo, ou então não é verdade absolutamente.
Mais uma vez intensamente consciente de ser prisioneiro, não obs-
tante prisioneiro do Senhor, e de que os gentios controlam o plano mun-
dial, Paulo dá conselhos aos «santos». Precisa de mostrar-lhes como
se devem conduzir de maneira condigna com a condição de homens e de
mulheres chamados de Deus para serem membros de Sua família. Não
é bastante que sejam profundamente versados no conhecimento do eter-
no propósito de Deus de fundar uma nova ordem em Cristo, nem bas-
tará que tenham experiências estáticas de vida nos lugares celestiais.
Precisam até de passar além do interesse de se relacionarem com os
irmãos em amor, como membros do Corpo de Cristo. Nem as sublimi-
dades da doutrina cristã, nem as emoções despertadas por experiência
pessoal de Cristo, nem sentimento de glória de pertencer a uma comu-
nhão que é, ao mesmo tempo, a Esposa, o Templo e o Corpo de Cristo,
podem impedi-los de tomar a sério os problemas e os interesses da vida
de cada dia. A finalidade de alta doutrina e experiência profunda, e o
privilégio da filiação à Igreja, tudo tem como fim o habituá-los a andar
dignamente, em sua condição de «homens e mulheres de Cristo».
Os cristãos, ao trilharem os caminhos da vida e ao esforçarem-se
para ser cristãos no mais completo sentido do termo, defrontam quatro
grandes imperativos, todos êles explícitos ou implícitos na descrição que
Paulo faz da vida pessoal cristã, na secção da Carta que vai do verso 17
do capítulo VI ao verso 20 do capítulo seguinte. Os preceitos morais
concretos que Paulo expõe nesta passagem, agrupam-se em uma ou outra
destas grandes injunções. Os cristãos devem «andar na luz». Pre-
cisam «imitar a Deus». Devem «aprender a Cristo». Necessitam de
ser «cheios do Espírito Santo». Todos êstes imperativos decorrem di-
retamente da verdade da doutrina cristã e da realidade da experiência
cristã de que Paulo tem tratado.
a) Andai na Luz
E' êste o primeiro grande imperativo da vida cristã. Os cristãos são
«filhos da luz». Aquêles que foram «uma vez trevas mas agora são luz
no Senhor» (5:8), precisam de ser, na vida diária, o que são realmente
em condição e natureza. Expressam os filhos da Luz a sua verdadeira
natureza. Vivam de acôrdo com ela. Demonstrem não estar dormindo
mas sim bem acordados, que para êles a noite é já passada, que se
precisa tomar a vida a sério e que a eternidade é agora. Foram sor
corridos por Deus que os tirou do reino das trevas. Atendam agora as
exigências de Deus para que vivam em Sua Luz.
1 Significará isto, para os cristãos, rompimento total com o passado.
Anteriormente, a grande separação na experiência dêles era uma divisão
em suas almas, uma divisão em suas relações com Deus. Mas agora, a
grande separação para êles, como cristãos, será uma divisão completa
I entre a maneira em que outrora viveram e pela qual agora devem viver.
Viveram uma vez «como gentios» (4:17). Agora não mais devem viver
— 129 —
como gentios mas como «santos», como «homens e mulheres de Cristo v.
Por que? Porque a massa da humanidade, os gentios, os que não conhe-
cem a Jesus Cristo, vivem existência fútil. Vivem «entenebrecidos em
um mundo de ilusão» (4:18). Estão «separados da vida de Deus pela
sua ignorância e dureza de coração» (4:18). Aqueles a quem uma vez
foram semelhantes, e entre os quais ainda precisam de viver, «perderam
todo o sentimento e entregaram-se à dissolução, para com avidez pra-
ticarem tôda a impureza». A pureza moral, pela qual os homens não
dão rédeas aos seus apetites, mas controlam-nos, é um desiderato pri-
mário da vida cristã. Entregar-se aos apetites carnais, ser indulgente
para com os vícios sexuais, deleitar o corpo ou interessar-se por êle como
por algo mais do que um simples instrumento do que é espiritual, torna
uma pessoa insensível às obrigações morais e entenebrece a sua visão
da verdade espiritual. Nenhuma idéia cultural, nenhum preceito lega-
lista, nenhum assentimento a um credo ortodoxo, nenhuma emoção des-
pertada pelos acompanhamentos estéticos da religião, nenhum entusiasmo
pela Igreja institucional podem, de per si ou englobadamente, tratar dos
profundos problemas congénitos da natureza pecaminosa do homem.
Somente uma nova natureza produzida pelo Espírito Santo pode resolver
o problema da propensão humana para o mal.
Os cristãos, por Cristo libertados da servidão à sua própria natu-
reza pecaminosa, fazem seu supremo interêsse conhecer a vontade de
Cristo para as sua vidas (5:17). Com sentimento tremendo do valor do
tempo, e claro discernimento das sinistras forças que operam no mundo,
viverão e agirão com tôda a prudência, iluminados pela luz da veMade.
Mas, enquanto que uma grande parte da sabedoria cristã será de-
dicada a discernir e a evitar o mal, a tarefa suprema dos cristãos, como
filhos da luz, deve ser a de permitir que a luz da verdade ilumine-lhes as
mentes em todo o pensamento e vida. Deverão encarar a vida tôda do
homem à luz de Deus e não à luz do que é puramente sensato. Deverão
ver que os principais problemas da conduta humana e das suas relações
surgem da secularização da vida, pela qual os homens deixam de tomar
em conta a Deus e à verdade transcendente, tanto no seu pensamento
como no seu planejamento. Deverão ver claramente que os principais
problemas do homem surgem do fato de negarem haver qualquer outra
luz além da luz da razão, pela qual a situação humana possa ser estuda-
da e seus problemas resolvidos. Mas os «filhos da luz» saberão que há
não sòmente uma luz transcendente para considerarem a situação hu-
mana, mas que muita dessa luz, pela qual os homens estudam a si mes-
mos e o mundo dêles, é, relativamente falando, puras trevas.
b) Imitai a Deus
Êste é o segundo grande imperativo (5:1). A aispiração e a tarefa
da vida inteira dos cristãos devem ser a busca da semelhança com Deus.
Naturalmente, é importante que obedeçam a Deus; a vontade de Deus
deve ser a sua lei; precisam de andar na Sua luz. Mas isso não é o
bastante. Precisam de lutar ardentemente por se tomarem como o
— 130 —
Deus que os governa. Não simplesmente devem as suas vidas confor-
mar-se com a Sua lei; a sua natureza precisa de refletir a Sua natureza.
Em uma palavra, precisam de trazer a imagem de Deus. Precisam não
somente de mostrar que obedecem a Deus, mas que pertencem a Deus.
Precisam de mostrar nas vidas, não somente que Lhe obedecem, mas
que Lhe são semelhantes. Por que? Em sentido absoluto, a natureza de
Deus é a lei do cristão. Porque isto é assim, a finalidade de todo o viver
cristão é manifestar a Deus, isto é, «glorificar» a Deus, torná-lo visível
aos homens.
A busca da semelhança com Deus como principal lei e finalidade da
vida está em flagrante contraste com a busca da falsa semelhança com
Deus, que é a essência do pecado. O diabo, no Paraíso Perdido, de Mil-
ton, queria ser como Deus para ser o rival de Deus e nada dever a Deus,
nada, nem nesmo a gratidão. Os que seguem esta idéia rejeitam a
Deus; desprezam tôda a obediência a Deus e assumem os atributos de
Deus, a fim de tomarem o lugar de Deus. Querem tornar-se deuses pelo
seu próprio direito. Completamente diferente é a semelhança de Deus
a fim de glorificar a Deus, isto é, a fim de que Deus possa fazer a
Sua vontade e revelar a Sua natureza mais perfeitamente, por meie
da personalidade e da atividade da individualidade humana. Fazer da
semelhança de Deus o fim do procedimento humano é simplificar gran-
demente todo o problema moral. O cristão pode começar a tirar
da cabeça «grandes massas de lixo» na forma de preceitos mo-
rais. Imitar a Deus, ser «imitador de Deus», é ser alguma cousa
muito mais do que ser leal à verdade ou mesmo do que ser «leal à leal-
dade». A vida moral recebe nova solidez. E' ser-se semelhante a uma
Pessoa, é refletir a Sua imagem. Mais uma vez, quão verdadeiro é isto:
a verdade cristã é verdade pessoal, através de tôda a extensão e de todas
as implicações do sentido da verdade.
O imperativo de «imitar a Deus» tem no pensamento de Paulo algu-
mas implicações muito importantes. Envolve expressão de constante
gratidão a Deus. Se os cristãos têm de imitar a Deus e de ser seme-
lhantes a Deus, então precisam ser gratos a Deus, tanto pelo que Êle
é como pelo que tem feito. Porque nada conserva os homens mais perto
de Deus do que o sentimento de divida para com Êle. Reconhecendo o
que Deus tem feito por ela, a alma cristã louva a Deus. Tanto no Velho
Testamento como no Novo, constantemente ordena-se louvor a Deus.
O que «oferece louvor» como sacrifício, «glorifica» a Deus, proclama a
Sua verdadeira natureza e a significação dos Seus feitos. Deus «habita»,
isto é, está «entronizado sôbre» os «louvores de Israel». O verdadeiro
trono de Deus é o culto de adoração dos que são envolvidos pelo esplendor
do Seu grande plano de constituir um novo plano de existência, com
Cristo como centro. Identificar-se em adoração com este plano é o
caminho mais seguro de um cristão tomar-se semelhante a Deus, em
pensamento e vida.
E' impossível, contudo, imitar a Deus sem compreender que, na na-
tureza de Deus e na Sua divina atividade, há um elemento de ira. A ira
— 131 —
de Deus, como Paulo afirma, «vem sobre os filhos da desobediência».
Homens que tentam opor-se a Deus, que vivem segundo padrões de pro-
cedimento que violam a natureza e o propósito de Deus, não podem ter
futuro real no mundo de Deus. Imitar a Deus significa que há um
lugar na vida cristã para uma ira santa, isto é, para uma reação explícita
contra tôda manifestação da natureza humana e contra tôda forma
de atividade humana, que viola o supremo cânon da bondade humana,
como se revela na natureza e na atividade de Deus. Nunca tente, po-
rém, aquele que sente o agitar da raiva na presença do mal moral, tomar
o lugar de Deus e fazer justiça. A vingança pertence só a Deus. No
mistério da nossa existência humana e das complexidades do procedi-
mento moral, temos muitas vezes de tolerar o mal. Deus, conforme
Jesus nos recorda em outro lugar, derrama a Sua chuva sôbre maus e
bons. E' sòmente afinal, além da história, seguindo-se ao julgamento
de Deus, que a influência do mal e dos homens maus terá o seu fim.
Imitar a Deus, portanto, na presença do mal, pode muitas vêzes signi-
ficar qualidade de atitude tolerante para com o pecador humano, sempre
fugindo da justiça própria e reconhecendo que nós, também, somos pe-
cadores e precisamos de viver pela misericórdia e perdão de Deus.
Mas, além da gratidão pela bondade de Deus e aquiescência no jul-
gamento de Deus, os cristãos precisam constantemente de se esforçar em
conformar-se à humildade de Deus. Imitar a Deus não tem significação,
a não ser que o cristão reconheça que o fato supremo a respeito de Deus
é que Êle Se humilhou, que Êle continua a humilhar-se, que Êle se hu-
milha para vencer. E' conveniente que os cristãos imitem a humildade
de Deus. Sòmente quando a alma é impressionada pelo sentimento do que
Deus fez pelo homem, do que Êle se tornou pelo homem, do que Êle faz
pelo homem, pode ser criada na alma humana a verdadeira humildade.
E* aqui que tem lugar o grande rompimento entre a moral cristã e tôda
a forma de procedimento ético não-cristão. Para o cavalheiro grego
não havia lugar para a humildade. O estóico orgulhava-se de se poder
mostrar superior às pauladas das circunstâncias, de «cabeça ensanguen-
tada mas não abaixada».
Na tradição clássica do mundo hispânico, o ideal de virilidade era
sentir que cada espanhol era um César, pelo seu próprio direito nativo.
«Cada catalão tem um rei dentro de si», dizia um famoso mote. Na tra-
dição ética do paganismo, no que havia de melhor, e nos ideais éticos da
natureza espanhola que o cristianismo nunca abateu, não há lugar para
a humildade. O sentido espanhol de honra, baseado sôbre um delirante
sentimento de grandeza de uma personalidade invicta e invencível, é a
antítese histórica da humildade cristã, que nasce do reconhecimento do
fato de que Deus a si mesmo se humilhou.
Não podemos apreender ou sentir a verdadeira majestade da humil-
dade que Paulo ordena aos peregrinos na estrada da vida, sem rememo-
rarmos o transporte inicial com que êle começou a elevar-se e a cantar:
«Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo». Tornar-se
— lo2 —
bendito com a bênção de Deus é imitar a Deus em Sua humildade, tor-
nar-se humanamente grande pela nobreza divina.
c) Aprendei a Cristo
Isto nos leva ao terceiro imperativo. Êste imperativo é formulado
por inferência. Dizendo ao po\o a quem escrevia (4:20), que certo tipo
de procedimento era contrário a tudo quanto tinham êles aprendido
acerca de Jesus Cristo, importava em que, para êles, aprender a Cristo
era a grande tarefa.
O objetivo fundamental do pensamento e do procedimento humanos
é pensar e agir «como a verdade está em Jesus». O esforço de «imitar a
Deus» leva diretamente a Jesus Cristo. «Aprender a Cristo» é muito
mais do que adquirir conhecimento a Seu respeito. E' absorvê-lo e ser
por Êle absorvido. Cristo, a Verdade Pessoal, torna-se o supremo mo-
delo, a imagem-padrão, que precisa de ser aprendida. E esta lição so-
mente pode ser aprendida quando Cristo, que é a própria lição, torna-se
parte da própria existência do cristão, iluminando-lhe a mente, alvoro-
çando-lhe o coração, controlando-lhe a vontade. Quando isto se realiza,
o cristão, para usar outra grande idéia de Paulo, que consideraremos
mais tarde, pensa e age «no Senhor».
Para começar, aprender a Cristo significa estudar cuidadosamente
a vida e os ensinos de Jesus. Significa, principalmente, porém, apreen-
der a imagem essencial de Jesus, que é a imagem do que Deus é e do que
o homem deve e pode ser por meio da graça de Jesus. Essa imagem,
a que já se deu ênfase, foi retratada na memorável cena do lava-pés,
quando o Mestre, completamente consciente da Sua Divindade, como
também plenamente sabedor do Seu destino, se tornou o servo. Essa
imagem é projetada por S. Paulo, na Carta aos Filipenses, no contexto
e estrutura do grande drama cósmico. «De sorte que haja em vós o
mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus que, sendo em forma de
Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas despojou-se a si
mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;
e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente
até à morte e morte de Cruz» (Fili. 2:5-8). Êste é o tremendo fato pelo
qual os cristãos devem agradecer e louvar a Deus. Esta é também a
imagem do que êles devem também tornar-se. Tomando-se êles mes-
mos nada, para que Cristo possa ser tudo em todos, neles e por meio
deles, êles, por sua vez, tornam-se tôdas as coisas para todos os homens,
servos de todos.
Para um cristão, aprender a Cristo neste sentido é abandonar a
velha natureza, repudiar tudo que, em palavra ou ato, «pertence ao velho
homem, que se corrompe pelas concupiscências do engano» (4:22). Assim,
uma pessoa «renova-se no espírito do seu sentido» (4:23). Isto acon-
tece porque a gente se «rev^estiu do novo homem que segundo Deus é
criado em verdadeira justiça e santidade» (4:24). Então, Deus em Cristo
deixa de ser apenas cópia meramente observada. Cristo, em quem Deus
vem a nós, a imagem do Deus invisível e o agente da Sua vontade, torna-
se nossa vida, a nossa verdadeira natureza. Então a bondade torna-se,
não imperativo pelo qual se luta, mas atividade a que nos entregamos
naturalmente. Torna-se segunda natureza.
Aquêles que aprenderam a Cristo despojam-se de tôdas as formas
de falsidade. Falam a verdade uns aos outros. Fazem assim porque
a mentira é incompatível com a vida comum. Uma mentira destrói a
comunidade. Ela despedaça a base de perfeita confiança sôbre que se
estabelece a comunidade cristã. A mentira é punhalada nas partes vitais
do Corpo de Cristo. E' assim porque a mentira é dardo negro vindo do
reino das trevas, e os cristãos precisam de viver na luz de perfeita sin-
ceridade para com Deus e de uns para com os outros. Não há lugar
na moral cristã para mentira bem intencionada. Na moral cristã que
Cristo inspira, os fins nunca justificam os meios. Nunca é legítimo, como
o Grande Inquisidor (O sugeria que era, mentir ao povo no próprio inte-
resse deste. É muito melhor que o povo conheça a verdade. Mas a verdade
precisa sempre de ser dita em amor. Deve também lhes ser contada à
luz do que Deus tem feito, do que está fazendo e do que pode fazer, de
modo tal que, aquêles sôbre cujas mentes brilha alguma terrível verda-
de, não sejam arrastados ao desespero (4:25).
Aprender a Cristo é compatível com a ira. Doutra maneira, que
significado podia ter tido para os cristãos o fato de que Seus olhos, que
muitas vêzes se encheram de lágrimas, também outras vezes, fusilaram
de ira na presença dos que exploravam a religião e desonravam o nome
de Deus? Mas, se temos de aprender a Cristo e imitar a Deus. precisa-
mos também de nos irarmos sem pecar. Nunca devemos pensar ou agir
de tal modo que a nossa própria vontade pecaminosa tome o lugar da
vontade de Deus. Paulo exprime esta recomendação muito humana e
muito pertinente: «Não se ponha o sol sôbre a vossa ira» (4:26). Essa
ocasião, em horas de trevas, quando se está prestes a fazer repousar a
cabeça cansada no travesseiro, é tempo impróprio para se permitir
que se inflame a ira. E' o pior tempo possível para uma discussão.
Ninguém é senhor de si mesmo, quando a mente e o corpo estão exaus-
tos e a gente está envolto pela pálio das trevas, símbolo da morte e do
mal. À hora de se retirar para o repouso, componha a pessoa o seu
espírito, esquecendo as ofensas recebidas. Com entrega humilde e con-
fiante do caso inteiro a Deus, repouse e espere um novo dia, para buscar
a solução do assunto debatido. Doutra maneira, os poderes das trevas
acharão ingresso e o diabo apanhará o espírito humano desprevenido.
Então raiará a manhã, não sôbre um guerreiro cristão pronto para fazer
justiça, mas sôbre um homem quebrantado e desonrado.
Nunca é direito a um cristão roubar, tomar para si o que a outrem
pertence. Vá ao encontro de suas próprias necessidades e das dos outros,
por meio do trabalho honesto. Cristo sabia o que significava trabalhar
com as Suas mãos. Também Paulo, que se mantinha e os companheiros,
nos trabalhos de evangelização, no ofício de fazer tendas, sempre que
se lhe oferecia oportunidade. O verdadeiro cristianismo torna honroso
todo o trabalho. Ninguém que não esteja desejando trabalhar com as
(1) Oh Irmãos Karama^ov, de Dostoievski.
— 134 —
suas mãos e dedicar-se a qualquer trabalho honesto, recusando ser pa-
rasita e viver do labor alheio, vivo ou morto, jamais aprendeu a
Cristo (4:28).
Ninguém que difame ou calunie as pessoas, que se deleite em pro-
clamar do alto dos telhados as faltas e fraquezas do próximo, regalan-
do-se na conversa a respeito das fraquezas dos santos, nenhuma pessoa
dessa qualidade já aprendeu a Cristo. Também não aprendeu a Cristo
aquele que, em nome da verdade e fidelidade, desvenda a olhos ímpios
as faltas dos amigos. No espírito humano que tenha aprendido a Cristo,
não há lugar para a amargura. Paulo diz: «Tôda a amargura, e ira e
cólera, e gritaria, e blasfémias e tôda a malícia seja tirada de entre vós»
(4:31). E' difícil a uma pessoa não se sentir insultada e ressentida
quando alguém tenha dito coisas a seu respeito ou lhe tenha feito coisas
que afetem a sua condição ou o seu prestígio. Mas o que se não deve
fazer é permitir que o veneno do ódio manche a nossa vida interior, vol-
tando-nos para as pessoas com vontade de brigar, ou guardando raiva
permanente em nossos corações, o que se reflete em impertinências per-
manentes, amargas imprecações e ódio. Ai! do cristão que permite que
a malícia desenvolva no seu íntimo a má disposição de ver, à pior luz
possível, os que o tenham ofendido e de abrigar o desejo malicioso de que
lhes aconteça qualquer mal! E' coisa terrível ser a vida orientada e
fortalecida por uma incontrolável paixão vingativa de se fazer o que se
deseja, de vingar-se de alguém e cortar uma libra de carne de alguém,
exatamente do lue:ar onde lhe fôr mais prejudicial.
Aprender a Cristo significa isto também: ao invés de consentirmos
ser governados por todos os poderes do Inferno, aprendamos de tal modo
a Cristo que os nossos corações se enterneçam e nossos sentimentos se
tornem bondosos = Faça-se dominante em nós uma disposição para per-
doar, por causa da santa lembrança de que nós também estávamos em
desesperada necessidade da misericórdia de Deus, e Deus em Cristo nos
perdoou. Portanto, diz Paulo, «Sêde misericordiosos uns para com os
outros, benignos, perdoando-vos uns aos outros como também Deus vos
perdoou em Cristo (4:32).
Mas, se a disposição íntima de bondade cheia de afetos deve se
caracterizar por uma atitude vital dos cristãos, é imperativo que se dê
ao Espírito Santo a oportunidade. Porque é sòmente o Espírito Santo
que pode criar a semelhança de Cristo na alma humana. Os cristãos
foram selados pelo Espírito Santo com a própria marca de Deus, para
serem sua possessão. A influência graciosa do Espírito Santo faz que
se torne cada vez mais evidente a quem os cristãos pertencem, qual a sua
lealdade fundamental, quais as suas afinidades. Mas o Espírito Santo
é muito sensível. Êle pode ser entristecido. De acôrdo com o próprio
Cristo, o pecado contra o Espírito Santo é atribuir à influência satânica
feitos e ações de que o Espírito Santo é autor. E' também pecado con-
tra o Espírito Santo deixar uma pessoa deliberadamente submeter-se a
influências e disposições satânicas nas atitudes para com os outros.
Quando a fôrça vital de uma pessoa é posta do lado do mal e essa pessoa
se recusa a ser dirigida e orientada pelo Espírito Santo, o Espírito de
1 '>r:
— loO —
Deus fica entristecido. Quando a Sua graciosa presença se retira, os
horrores do inferno irrompem em «Alma Humana» e os demónios
vagam em redor, à vontade. Foi em vista dessa terrível possibilidade
que Paulo disse: «E não entristeçais ao Espírito Santo, no qual estais
selados para o dia da redenção (4:30).
d) Enchei- vos do Espírit'»
Todos os demais imperativos nos têm preparado para esta suprema
recomendação. Podemos andar na luz, podemos imitar a Deus, podemos
aprender a Cristo e dar-lhe a nossa suprema obediência, somente quando
estamos preparados para viver uma vida de fervor espiritual. Chegamos
aqui a um dos paradoxos da religião cristã na esfera do procedimento
moral. Duas coisas que antes nunca se encontraram juntas fora dês te
espírito humano a quem Jesus Cristo dominou, agora se tornam compa-
tíveis. Há, por um lado, calma profunda, a paz de Deus que excede todo
o entendimento, terna e amorosa disposição mesmo quando nos injuriam;
por outro lado está presente uma paixão incessante, um entusiasmo que
não morre, noutro lugar associado por Paulo com a vida de um atleta e
de um soldado, mas que êle aqui, numa figura muito arrojada, associa
com a embriaguez. O cristão que verdadeiramente anda na luz, imita
a Deus e aprende a Cristo, é criatura intoxicada. Mas a embriaguez não
é de álcool. Não é delicioso delírio provocado por narcóticos. E' es-
tado de alma produzido pelo Espírito Santo, pelo qual o espírito do ho-
mem se enche, até na capacidade, com o Espírito de Deus. «Não vos
embriagueis com vinho», disse Paulo, «em que há contenda, mas enchei-
vos do Espírito Santo» (5:18).
E' uma das tragédias de muitos pensamentos cristãos ortodoxos, e
ainda mais de muito viver cristão acomodado, que qualquer sugestão de
plenitude do Espírito esteja associada com fanatismo religioso ou com
as aberrações dos grupos sectários que vivem à margem do cristianismo
eclesiástico. O lugar da emoção na natureza humana e no viver humano,
muito especialmente na vida e atitudes dos cristãos, precisa de ser re-
pensada em nosso tempo. E' mais do que tempo de reconhecermos que
a emoção é uma parte constitutiva da natureza humana e precisa de ter
legítima oportunidade de expressar-se na religião. Podíamos ir além e
dizer que a expressão de sentimento é aspecto essencial da ordem racional
da existência. Seja no reino da descoberta científica, seja na formulação
filosófica dos postulados chamados verdades da razão a priori, nada de
grande se realiza sem a emoção. Se eu disser que a matéria, ou o espí-
rito é a realidade fundamental, estou fazendo afirmação que tem origem
no sentimento. Ela deriva da maneira pela qual vim a «sentir» a vida,
no decorrer da minha experiência. Todos os grandes feitos criadores
são o fruto de paixão, no sentido mais puro. Nada de grande já se tem
realizado, tanto na ordem secular como na ordem religiosa, se não por
almas em chama. Não foi Unamuno, o intérprete do ardor espiritual
da mística espanhola e o discípulo de Dostoievski e de Kierkegaard quem
disse: «Nenhum coração é puro se não for apaixonado, nenhuma virtude
pode chamar-se fé se não estiver cheia de entusiasmo». Não; foram
estas palavras de um cristão da éra vitoriana, J. R. Seely (2).
E ainda, naturalmente, é claro o perigo inerente ao ardor emocional.
Vimo-lo nestes últimos tempos, em movimentos que se inspiram em
«verdades enlouquecidas». Temos o direito de recear a ocorrência, e,
ainda mais, a predominância do fanatismo dentro da comunidade cristã.
E contudo, G muito difícil separar o fanatismo da fé. E' um dilema com
que constantemente defrontamos. Como garantiremos que tudo será
feito «com decência e ordem» na vida comum da comunidade cristã, en-
quanto reconhecemos que o fanatismo é da linhagem da fé? Seria bom,
nesta relação de sentido, escutar as palavras sábias de Arnold J. Toynbee
quando, baseado em estudo profundo da civilização humana, nos acon-
selha a que tenhamos o cuidado de não «sufocar o fanatismo à custa de
extinguir a fé».
E' esta precisamente a situação embaraçosa em que se encontra o
Protestantismo contemporâneo. Encaramos mal tôdas as manifestações
de emoção. Tornamos-nos receosos da reação, uma após outra no do~
minio do sentimento. Convencemo-nos de que a pessoa grave, conven-
cional, honesta e amável que evita tôda emoção que poderia expressar
forte exultação ou depressão espiritual, é o cristão de tipo normal,
cuja classe devemos tornar universal e saudar como verdadeiro
cristão ecuménico. A nova voga do pensamento dialético com a
sua intensa antipatia para com os absolutos e a sua doutrina de com-
promisso sintético, tende a fazer os cristãos cada vez mais cautelosos a
respeito de maneiras, atitudes ou «slogans» de aparência extremista,
sinal autêntico das pessoas que sentem ter descoberto a verdade.
De tempos a tempos, êste modo neo-helenístico sofre um rude des-
pertamento. Os nossos greco-cristãos são postos em face do fato de
que há situações humanas tão desesperadas, seres humanos tão imersos
em pecado ou miséria, tão completamente «perdidos», que não podem
ser tratados senão por pessoas de ardor emocional que os cristãos con-
vencionais desprezam. Contudo, essas pessoas são capaizes de aplicar
à sua tarefa espiritual atitude emocional tão poderosa, que arranca
vidas humanas da sarjeta, em que se arrastam, para iniciar nova vida
em padrão altamente espiritual.
Há alguns anos o escritor destas linhas teve de enfrentar justa-
mente esta contingência. Um educador chileno, diretor de uma das
principais instituições de ensino superior do Chile, homem perfeitamente
relacionado com a cultura européia e norte-americana, afirmou em minha
presença que, em seu juizo, o Protestantismo foi sempre frio demais e
por demais interessado exclusivamente na moral, para atingir a alma
chilena. «Nos primeiros dias da nossa história pátria», disse êle, «os
missionários católicos romanos moveram profundamente o nosso povo
com a deslumbrante natureza da sua pompa religiosa. Essa pompa pro-
duziu uma impressão poderosa em multidões de pessoas que, então viviam,
(2) Cf. Ecce H&nio.
— 137 —
como vivem hoje, nas margens perpétuas da miséria. Essa pompa pôde
transportá-las interiormente acima das sórdidas condições da sua vida
diária e dar-lhes um sentimento de importância». «Mas vocês», disse
êle, «nada têm que possa descer até às profundezas da alma das massas
chilenas». Desde essa ocasião, porém, irrompeu pelo Chile afora um
movimento pentecostal indígena. Nos anos que se seguiram, aumentou
a comunidade cristã em várias centenas de milhares de almas, surgidas
dos trabalhadores rurais e industriais do país. O movimento, é verdade,
foi acompanhado, a princípio, de fenómenos estranhos, na forma de des-
maios e dansas rítmicas e expressões de êxtase, que eram características
de certas manifestações da religião cristã do século primeiro. Êstes fe-
nómenos, contudo, estão desaparecendo gradualmente. Conquanto não
tenham sido suprimidos totalmente, têm sido desencorajados pelos líderes
religiosos do movimento. Milhares de chilenos que foram apanhados
nas profundezas das almas pela história da Cruz de Cristo e que expe-
rimentaram o poder da Sua Ressurreição na tradição clássica do evan-
gelismo cristão, vivem agora a vida de cidadãos normais. Não perderam
o zêlo cristão, mas têm-se tornado interessados em tudo que concerne à
verdadeira varonilidade e feminilidade e às tarefas de boa cidadania.
O que é mais, desejam ardentemente relacionar-se com os companheiros
cristãos. No momento presente, o velho movimento pentecostal, outrora
tão desprezado nos círculos cristãos mais convencionais do Chile, está
começando a ser encarado nêsses mesmos círculos como grande aconte-
cimento cristão. Por outro lado, o govêrno e as autoridades civis da
sociedade chegaram a considerar o movimento como um grande benefí-
cio à vida nacional e como importante contribuição ao levantamento das
massas à elevação da moral pública. Menciono êste fato porque, quando
tratarmos nos círculos ecuménicos do problema do evangelismo, não po-
demos ignorar movimentos desta natureza. Tais movimentos, não menos
do que os fanáticos devotos da religião política, têm muito para ensinar-
nos nesta hora. Pelo estudo dêstes fenómenos, podemos recuperar e
reinterpretar certos fatóres esquecidos, que são bem básicos da religião
cristã.
As religiões seculares dos nossos dias, que são os maiores rivais do
Cristianismo, têm-se caracterizado por tremenda emoção derivada dire-
tamente de idéias. O Comunismo é uma fé que canta, como o Nazismo
foi antes dêle. Os comunistas marxistas têm a convicção de que as «for-
ças radiantes do Universo» estão do lado da sua causa e de que a revo-
lução comunista é «aquilo que tódas as épocas sempre quiseram. Os
comunistas chineses têm lutado e cantado e dansado, nestes últimos anos,
através do caminho, desde a Manchúria até os limites do Sião, e do
Rio Yalu até o paralelo trinta e oito. O ideal de Lenine para o Partido
Comunista era que êste devia ser uma «ordem monástica militante». A
Revolução necessitava de seguidores que tivessem a disciplina calma de
monges e o ardor ardente dos cruzados.
Mas há no coração da tradição cristã e mui principalmente no
maior dos documentos cristãos que é objeto dêste estudo, o padrão de
— l:J8 —
um ardor disciplinado, mais puro e mais forte do que qualquer devoção
de cruzada que regista os anais da história. Os cristãos «cheios do
Espírito Santo», como santamente inebriados, deviam «falar um com o
outro em salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando e salmodiando
ao Senhor nos seus corações; dando sempre graças por tudo a nosso
Deus e Pai em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo» (5:19, 20). O
quadro, que aqui nos é apresentado, de homens e mulheres cheios do
Espírito, andando na luz, imitando a Deus, aprendendo a Cristo, é o
quadro de entusiastas fraternalmente. Entusiasmo e fraternidade, quão
difícil de encontrá-los juntos! Mais difícil ainda, mantê-los juntos!
Porque o entusiasmo tende a tornar as pessoas individualistas; elas se
tornam tão impacientes em tomar a dianteira, e saem do passo e des-
fazem a forma. O seu próprio ardor as toma sujeitas a extravagâncias
e são naturalmente inimigas da ordem estabelecida e convencional, com
as suas propriedades geladas. E' por esta razão que no curso da his-
tória da Igreja, eclesiásticos e entusiastas sempre têm sido a antítese
humana uns dos outros. A Igreja oficial muitas vêzes tem expulsado
do rol indivíduos e grupos considerados insubordinados, porque desafiam
costumes estabelecidos. «Glória à Igreja e condenação para os entusias-
tas», foi o mote gravado em um sino dependurado no campanário de
uma nova igreja em Cambridge, Inglaterra, como protesto contra o mi-
nistério do famoso pregador da Universidade, Charles Simeon. Como
pode ser canalizado o ardor religioso? Como pode a cooperação e a
imidade ser alcançadas entre os entusiastas cristãos e os cristãos de
tipo mais calmo e conservador? Em uma palavra, como podemos casar
o ardor com a ordem?
Antes de recomendar os calmos e condenar os apaixonados, lembre-
mo-nos disto: — E' possível ao povo cristão expressar fraternidade que
se move para frente e é consumada na união da Igreja e ainda estar
vazio de ardor redentivo; porque é comum às relações amigáveis e a
ausência de tensões e a alegria de estar juntos, tornarem-se fins em
si mesmos.
Porque os teus amigos são meus amigos
e os meus amigos também são teus;
E quanto mais juntos estivermos
tanto mais felizes todos seremos.
Quando esta canção expressar o espírito da reunião cristã, quando
os cristãos exultarem na unidade e no bom companheirismo, somente por
amor dêles mesmos, o movimento cristão se torna estéril. Surge a per-
gunta: Para que a unidade? E' ela alguma coisa simplesmente para ser
exaltada e gozada? Ou a unidade é para alguma coisa que fica além da
própria unidade? Para que a Igreja Cristã seja verdadeiramente a
l£:reja, não basta que os cristãos expressem o seu amor a Deus e de uns
para com os outros, no culto coletivo. A Igreja verdadeiramente é a
Igreja sòmente quando o culto coletivo, o entendimento teológico c a
unidade eclesiástica levam os cristãos ao ardor missionário, inspirando -
— 139 —
os a avançar em ordem de batalha, como cruzada, além dos portais do
santuário, em direção a tôdas as fronteiras do mundo.
A solução deste problema, o mais difícil, é a Igreja recobrar como
doutrina teológica e como realidade espiritual, o que Paulo quer dizer
quando fala no Espírito Santo. Porque à obra do Espírito Santo são atri-
buídos tanto o ardor espiritual como a ordem espiritual. O entusiasmo
precisa ser fraternal; a fraternidade precisa ser entusiástica. A fraterni-
dade cristã e a paixão missionária são ambas necessárias e nenhuma
delas se completa sem a outra. Os cristãos, como entusiastas fraternais,
são os herdeiros da grande tradição bíblica e clássica da sua fé sagrada.
Às vêzes, eles não se tornarão alheios ao êxtase rapsódico produzido pela
visão que se eleva ou por um lampejo nos lugares celestiais. As idéias
que acarinham e as experiências de que gozam as altas esperanças da
sua chamada, farão com que rompam entoando «salmos e hinos e cân-
ticos espirituais», bendizendo a Deus o Pai. em nome de Jesus Cristo,
Seu Filho. Dedicados a fazer a vontade de Deus para a vinda da nova
ordem divina, a dêles será «permanente embriaguez de ardor vital».
Vigiarão e esperarão, crendo que se aproxima o tempo, que a «estação
traz perto a sua colheita». Ainda por todo o seu ardor, ou antes por
causa do seu caráter iluminado e intensamente espiritual, viverão no
meio do plano secular e nela desempenharão a sua parte; serão úteis
para o seu tempo e terão o seu lugar nas várias esferas e vocações da
vida. Compreendendo terem sido batizados em um único Espírito, tra-
balharão juntos e terão paciência uns com os outros; sabendo que a luta
não é apenas «com a carne e com o sangue», armar-se-ão e se conserva-
rão armados para o combate espiritual.
Assim nos aproximamos do fim da jornada. Na parte que conclui
êste estudo, consideraremos, orientados por Paulo, como é que devem
agir os «homens e as mulheres de Cristo», como membros das instituições
básicas da sociedade e como enfrentarão os «Principados e Potestades»,
que obstruem o caminho da sua peregrinação.
— 140 —
CAPÍTULO IX
A ATUAÇÃO CRISTÃ NA FRENTE DA BATALHA
A ação, já tem sido dito com verdade, é a essência da vida, como a
combustão é a essência da chama. A secção final da Carta aos Efésios
é um convite à ação.
O propósito divino de redenção somente podia ser cumprido por meio
da ação de Deus. Êsse mesmo propósito também exige ação por parte
daqueles cujas vidas foram transformadas pela ação de Deus e que se
têm dedicado a viver para a ordem de Deus. O que Paulo disse até aqui,
tem inspirado o misticismo cristão, a teologia cristã, a liturgia cristã,
a poesia e as belas artes cristãs, a eclesiologia cristã, isto é, a discussão
a i^speito da natureza da Igreja. Mas o desígnio divino não pode ser
cumprido, nem podem os cristãos cumprir o seu verdadeiro destino, ex-
ceto por meio de ação concreta. A ordem de Deus é tal que os homens
não podem pensar ou sentir ou organizar o seu caminho para dentro
dela. Os cristãos cuja condição e fonte de vida na esfera celestial estão
em Cristo, precisam de agir «no Senhor», na esfera terrena; e isto é o
que cada cristão amadurecido precisa de fazer, como individuo e não
meramente como membro de uma sociedade em massa, seja secular, seja
religiosa. Deus trata individualmente, quando chama homens para a
cidadania da sua nova ordem. Os que desta maneira são chamados,
precisam de agir como indivíduos, na filiação desta nova Ordem. Tanto
os termos do propósito de Deus como as exigências da maturidade cristã,
requerem que êles devem agir assim.
Certas coisas há, na vida contemporânea, que colocam em alto
relêvo a importância do indivíduo e a sua ação pessoal. A civiliza-
ção do nosso tempo se tem apropriadamente chamado «civilização
sentada». Os que viajam às maiores velocidades pelo ar ou no solo,
fsizem-no sentados em postura imóvel, sem se lhes exigir qualquer es-
forço físico. Física e espiritualmente, a gente prefere estar sentado.
Por que mover-se? Por que agir? «Leve a mão ao fone antes de levá-la
ao chapéu», assim dizia o anúncio de uma companhia telefónica, em
anos recentes. «Faça qualquer coisa menos agir», aconselha Screw-
tape, na mais profunda e divertida descrição da filosofia satânica, feita
por C. S. Lewis. E ainda, como um sútil psicológo afirmou: «O povo
quando sentado, inventa temores e os vence quando se movimenta». E'
sòmente na ação que se pode vencer o enfado e só por ela se pode remo-
— 141 —
ver o temor obsedante do dia seguinte. Como é paradoxal que, em ope-
rações militares dêstes últimos tempos, a despeito da propensão para o
movimento rápido e par a complicada mecanização, seja importante ainda
o soldado de infantaria; em muitos exemplos, tem êle sido o senhor único
do campo. Deus requer que os cidadãos do Seu Reino ajam, andem,
lutem, movam-se sempre para a frente, para as fronteiras onde estão os
interêsses de valor. Se êles dizem: «Guia-nos, ó Rei Eterno», Êle cui-
dará que «marchem e não desfaleçam». «Na luz» de um eterno pro-
pósito, «imitando a Deus», «aprendendo a Cristo», «cheios do Espírito»,
os membros da comunidade divina entrarão em ação.
Na secção final da Carta (5:22 a 6:24), aproximamo-nos das reali-
dades fronteiriças da vida. Aqui, os cristãos, na sua qualidade de ci-
dadãos de uma nova Ordem, de membros do Corpo místico de Cristo,
são necessários para agir na vida comum, tanto em público como indi-
vidualmente, como membros da família humana, sempre conscientes de
que podem estar sujeitos, em qualquer ocasião, ao assalto de forças que
não podem controlar, e mesmo de forças cuja sede de poder é o reino
sobrenatural do mal.
O sentimento de expedicionário, o sentimento de se estar sempre
movimentando para adiante como peregrino, sempre pronto a usar as
armas de soldado, está profundamente enquadrado no pensamento e nas
imagens do Novo Testamento. Nesta secção final da Carta ao3 Efésios,
sentimos o tacto e a viva emoção das fronteiras essenciais da existência
humana. A vida cristã não pode ser vivida individualmente em qual-
quer mundo religioso. Os cristãos nunca poderão acomodar-se a uma
existência de mosteiro ou de gheto. Não podem aceitar como funda-
mentais qualquer série de prescrições legais impostas por fariseus anti-
gos ou modernos. Não podem também conformar-se, em sua perspectiva
e em sua ação, com o que os homens pretendem que seja verdade cien-
tífica. Para êles, existe um além eterno. Na esfera geográfica, sen-
tem-se impelidos, por lealdade ao seu Senhor e em resposta ao grande
propósito de Deus, que se centraliza nêle, a levar as novas dêsse propó-
sito a tôda a humanidade. O próprio Paulo acha como um seu moderno
admirador judeu disse dêle, que «o Cristo é um grande caçador». «Eu
O segui», disse êle, «dentro de estranhas cidades». Na esfera vocacio-
nal, os cristãos têm sempre de se mover para além do espírito e dos
padrões que inspiram pensamento e procedimento em tôdas as esferas e
chamadas naturais da vida. Na esfera especificamente religiosa, nunca
podem ficar satisfeitos com a Igreja que adora a Deus; mas não dá tes-
temunho de Deus. Na vida de soldados, são os cristãos conv^idados a
ocupar e a evangelizar todos os espaços desocupados do mundo habitado
e da vida vocacional da humanidade. Também são convidados a enfren-
tar o inteiro reino hostil dos «Principados e Potestades», que procuram
impedir a vinda da ordem de Deus, o estabelecimento do Seu Reino
entre os homens.
As «Fronteiras», como as encontramos na parte final desta Carta,
são de duas qualidades. Há as Fronteiras da Ordem Natural e há tam-
bém as Fronteiras da Ordem Sobrenatnral.
— 142 —
a) As Fronteiras da Ordem Natural
E' impressionante o fato de que Paulo descreve a concepção cristã
dos dois principais planos da vida do homem, o lar e o trabalho.
No lar, vivem os que são mais chegados ao homem pelos laços do
sangue. As relações familiares não somente são as relações fundamen-
tais, as primeiras e básicas relações dos sêres humanos uns para com
os outros. Foram consagradas pela religião cristã como símbolo das
relações entre Deus e os homens, que são Seus filhos. O casamento,
sobre que se funda o lar, foi feito o emblema ou parábola das relações
entre Jesus Cristo e a Sua Igreja.
O homem também precisa de trabalhar; êle tem de dedicar-se a um
ofício. «O homem», diz um dos grandes Salmos, «sai para a sua lida e
para o seu trabalho, até a tarde» (Salmo 104:23). Entre a manhã,
quando um homem deixa a casa, e à tarde, quando êle retorna ao lar,
supõe-se que esteja ocupado com o seu trabalho. Toma parte nos ne-
gócios públicos. E' patrão ou empregado. Pertence à gerência ou ao
grupo de servidores. E' membro de um sistema social no qual precisa
desempenhar a sua parte e ganhar a vida, se quiser o sustento do lar
e mais ainda, os interêsses da sociedade.
Escutemos as palavras de conselho de Paulo a respeito da conduta
da vida na esfera doméstica e na vida pública.
O Princípio da Ação Cristã: «No Senhor».
O supremo princípio que deve guiar os cristãos em tôdas as relações
humanas é: «no Senhor» ou «no temor de Cristo» (5:21). Tôdas as
coisas se devem fazer no temor dAquele que é o supremo Patrão e Se-
nhor de tôda alma cristã. Êste princípio normativo deriva, naturalmen-
te, do imperativo básico mais geral de «aprender a Cristo». A presença
de Cristo na vida, e a nova natureza ou disposição que a Sua presença
empresta à vida, leva ao princípio moral do «temor de Cristo» como
norma ou padrão da conduta social cristã. O Cristo que se torna objeto
de reverência é, naturalmente, tanto o Jesus dos Evangelhos como o
Cristo do drama cósmico, redentor. E' o Cristo em cujos olhos, em
diferentes ocasiões e em circunstâncias diversas, lampejou a luz e brilhou
a lágrima. E' o Cristo que desceu e que subiu: o Cristo da Cruz e da
Ressurreição, o Cristo da Encarnação e da Ascensão. E' Jesus Cristo, em
tôda a Sua plenitude, que deve ser tão reverenciado, que os que se cha-
mam pelo Seu nome agirão com acêrto em Seu espírito. Podia-se na
verdade, dizer que, agir «no temor de Cristo» e agir «no Senhor» são
expressões sinónimas; porque ambas implicam a aplicação prática, às
relações sociais, daquilo que cada cristão acha ou devia achar em Jesus
Cristo.
Reconhecendo e aplicando êste padrão personificado, os cristãos
devem ser em todos os exemplos «sujeitos uns aos outros» ou antes,
«acomodados uns aos outros». Ainda que espiritualmente livres e, em
Cristo, «senhores de tudo», devem, nas palavras de Lutero, tornar-se
também «servos de todos». Somente como cristãos, no espírito de Cristo,
— 143 —
se preferirem os outros a si mesmos, é que pode vir à existência essa
qualidade de articulação e harmonia que uma sociedade cristã exige.
Ação na Fronteira Doméstica.
A vida no lar, como a instituição primária e básica da sociedade,
exige tratamento especial. O lar, por sua própria natureza, devia de
ser a morada do amor. O lar cristão, naturalmente, deveria cumprir
ou preencher tudo que pertencesse inerentemente à realidade doméstica,
como ordem da criação. O princípio essencial do lar é que cada um dos
membros da família, estando preocupado nos interêsses e bem-estar de
todos os outros membros e da família como um todo, proceda com espí-
rito de cooperação. Mas a família, que é a primeira grande fronteira
da existência humana, pode ser uma fronteira flamejante. Pode ser
fronteira de violento conflito e certamente assim foi em grande exten-
são, desde os albores da história humana. Os conflitos mais dramáticos
que têm inspirado dramas trágicos até ao mais horrendo, têm sido con-
flitos no círculo doméstico. Um dos problemas do lar é o autoritarismo;
o outro é o hedonismo.
O princípio autoritário expressa-se quando um dos membros da fa-
mília, o pai ou a mãe, ou talvez mesmo uma irmã ou um irmão, pretende
exercer o contrôle absoluto no círculo familiar ou governar só pela fôrça,
de uma espécie ou de outra. O resultado é uma casa de bonecos ou uma
casa de loucos. Temos uma quietude sepulcral ou uma ordem imposta
pelo medo; ou teremos caótica desordem causada pelo desespêro. Neste
caso, não há espontaneidade de procedimento, nem inciativa na ação.
Por outro lado, nada há senão frustração e neurose. Em qualquer dos
casos, a idéia do lar e a realidade da família estão destruídas.
Outro flagelo da felicidade doméstica é o hedonismo. Quando o
marido ou a esposa consideram o casamento e os fundamentos de uma
família, como exclusivamente ocasião de garantir o prazer pessoal, des-
troi-se a realidade do matrimónio e do lar. O culto exclusivista e egoís-
tico da felicidade própria, a insistente exigência de satisfação do que se
considera «vital» para o seu próprio prazer e bem-estar, é indigno de
um verdadeiro marido ou de uma verdadeira esposa, e pode destruir um
lar. Quantas vêzes acontece, que o que o marido ou a esposa considera
«vital» à felicidade, torna-se de realização impossível devido às circuns-
tâncias, seja a saúde da esposa ou os revêses da profissão do marido.
Desenvolvem-se as tensões e surge ameaça de ruptura do matrimónio.
Se as simpatias e o ajustamento mútuo não tomarem em consideração a?
circunstâncias mudadas, se o sentimento de responsabilidade não triun-
far sôbre a inclinação egoística para o prazer, pode se destruir o lar.
O insucesso, a incompatibilidade, a crueldade ou coisas piores ainda, po-
dem ser alegadas e o divórcio é inevitável. Então a imagem filial que
realça as relações dos homens para com o Pai Celestial, e a imagem nup-
cial que simboliza o dramático amor de Jesus Cristo para com a Sua
Igreja, são ambas conspurcadas. Rejeitam-se imagens que são a ex-
pressão suprema de responsabilidade com amor, isso em nome do hedo-
nismo egoístico.
— 144 —
Qual a orientação que S. Paulo nos oferece para tal situação?
Todos os mebros de um circulo familiar devem, de uma maneira ou de
outra, pensar no «Senhor», «porque o marido é a cabeça da esposa como
Cristo é a Cabeça da Igreja, Seu Corpo, e Êle mesmo é o Seu Salvador».
(Efes. 5:23). Os maridos, pela sua parte, devem «amar as suas mu-
lheres como Cristo amou a Igreja e se deu a si mesmo por ela» (5:25).
Os maridos devem amar as esposas «como aos seus próprios corpos».
«Aquele que ama a sua própria mulher ama-se a si próprio» (5:28). O
marido e a mulher, como Cristo e a Igreja, são indissoluvelmente um.
Os filhos, por seu lado, devem obedecer aos pais no Senhor. Os pais, de
sua parte, não devem provocar ou exasperar os filhos, mas criá-los «na
disciplina e instrução do Senhor» (Efes. 6:4).
Que significa isto? O marido sobressai como a cabeça do lar. Se
êle é a cabeça do lar, como Cristo é a Cabeça da Igreja, então precisa
êle de «aprender a Cristo» e agir «no temor do Senhor»; porque Cristo
sempre pôs os interêsses da Sua Igreja acima dos Seus próprios interês-
ses. Êle viveu para a Igreja; Êle procurou a perfeição e o bem-estar da
Igreja; Êle nunca se fez de patrão da Igreja ou a espancou. Pelo con-
trário, Êle cortejou a Igreja e firmou o Seu direito à reverência e à obe-
diência dela, por Seu próprio valor puro. E' êste o segrêdo e é também,
para assim falar, a lei do marido. Estabeleça-se a sua liderança pelo
processo do carinho e da dignidade; seja a sua vontade acatada pela sa-
bedoria clara do conselho que êle dá e pela atitude que assume em
relação à companheira e aos filhos. Quanto à esposa, que ela, tanto
quanto possível, se adapte ao seu marido, deixando de ver uma multidão
de fraquezas e faltas. Tomando-se como certo o seu amor por êle, pro-
cure ela respeitá-lo e reverenciá-lo, mesmo quando isso seja difícil de
fazer. Quanto aos filhos e filhas da casa, tratem êles os pais com a
devida honra, simplesmente porque são seus pais; prestem-lhes obediên-
cia no Senhor. Mas deve-se considerar também esta possibilidade. Por-
que em obedecer os filhos aos pais «no Senhor» pode significar que,
quando crescerem e chegarem à maturidade cristã, aconteça não pode-
rem êles aceitar o ponto de vista dos pais. A lealdade a Cristo pode
levá-los a fazer alguma coisa contrária à vontade dos pais. Contudo,
isto é de conformidade com a reverência por Cristo. Porque pode haver
ocasiões em que, pelo amor de Cristo e por lealdade à Sua Palavra e es-
pírito, um filho ou uma filha tenham de desobedecer aos pais, a fim de
manterem a obediência a Cristo. Assim, o princípio permanece do se-
guinte modo: a lei suprema da vida doméstica é pensar e agir «no Senhor»
e «pelo temor de Cristo».
Ação na Fronteira Profissional.
O mesmo prircíoio é verdadeiro na fronteira profissional do crente.
A forma de vida pública mais comum a todos os seres humanos é alguma
vocação ou esfera, que os homens se empenham para ganhar a vida.
Assim como o lar é supremamente a esfera do amor, a vida numa pro-
— 145 —
fissão, a vida na fazenda, a vida no escritório, a vida no armazém, a
vida^ na fábrica, a vida na governança, devem ser a esfera da justiça.
Aqui também, o princípio prescrito para as relações humanas se centra-
liza concretamente na «reverência a Cristo».
O homem precisa de trabalhar. Para ser verdadeiramente homem,
precisa êle de se entregar ao trabalho honesto e criador, seja para pre-
encher as necessidades da própria varonilidade como pessoa, ou para
ganhar a subsistência daqueles a quem está unido pelos laços de família,
ou para prestar serviço à sociedade. Mesmo nas formas primitivas da
sociedade humana, existem relações entre patrão e empregado, entre a
direção e o trabalho. Na sociedade moderna, tôdas as relações sociais
que envolvem trabalho, relacionam-se diretamente com a industrializa-
ção, ou vivem à sua sombra ou atmosfera. A máquina, com a conse-
quente mecanização e produção em massa, tem mudado radicalmente a
natureza e os problemas das relações entre patrões e empregados.
No nosso estudo da conduta do princípio cristão da «reverência a
Cristo», nas complexidades da sociedade moderna industrializada, preci-
samos de ter em mente certas coisas. Desde o começo da religião cristã,
os cristãos e a Igreja cristã tiveram de viver em muitas formas diversas
de sociedade humana. Tiveram de dar o testemunho sob diversas for-
mas de govêrno. Nenhuma forma de sociedade organizada pode ser
considerada pelo cristão como absolutamente ideal em todos os respeitos,
isto é, como tendo sanção divina absoluta. Não há forma de organiza-
ção social que possa ser considerada tão imperiosa e inspirada, a ponto
de poder ser igualada ao Reino de Deus. O princípio de que «ordem é
ordem» é tão verdadeiro na sociedade secular, como temos sustentado
ser verdadeiro na estrutura organizada da Igreja Cristã. Há princípios
cristãos imperiosos para a organização da sociedade e para a conduta nas
relações sociais. Mas não existem padrões imperiosos específicos para
as operações pormenorizadas da vida social ou das relações profissionais.
Tudo o que se pode dizer, é que uma sociedade verdadeiramente demo-
crática, em que os princípios de responsabilidade do procedimento huma-
no e a dignidade e os direitos dos seres humanos sejam devidamente re-
conhecidos, é a melhor e mais desejável forma de organização social que
a história já tem conhecido. Contudo, nem a democracia, nem qualquer
outra forma de organização social podem, como eu já disse, ser identi-
ficadas com o Reino de Deus. Sòmente quando vier o Reino de Deus
e se tornarem dominantes os princípios da «reverência de Cristo» com.o
manifestação plena da justiça e amor de Deus, aclamará a humanidade
a sociedade ideal. Entretanto, ficando nós à margem de todo o utopis-
mo e não nos entregando a sonhos apocalíticos, exploremos o princínio
da «reverência de Cristo» no meio das realidades concretas da situação
do trabalho, na sociedade que conhecemos.
Uma sociedade industrializada, que a tecnologia tornou possível, en-
frenta dois grandes perigos, que precisam de ser descritos e examinados
«no Senhor». Um dêsses perigos é a despersonalização do trabalhador;
o outro perigo é a tiranização do patrão.
— 146 —
Nas condições particulares sob que trabalham os homens hoje em
dia, milhões de sêres humanos são simplesmente ligados a uma engre-
nagem. São, exatamente, tantos braços que trabalham, são apenas ins-
trumentos que funcionam, são apenas cifras humanas, cuja existência é
tabulada por uma máquina de contabilidade. Em tais condições, os
seres humanos tendem a perder a sua individualidade; os traços da ima-
gem de Deus, que cada homem traz e deveria cultivar em trabalho cria-
dor, e a cultura dos interêsses pessoais, tendem a desaparecer.
Do lado do patrão, o perigo é o da tiranização. Nestes últimos
tempos o patrão pode ser o estado, inteiramente divorciado dos desejos
e dos interêsses do cidadão. A tirania totalitária, em que a sociedade e
o estado se fundem, e a tecnologia, que habilita uma oligarquia a atingir
poder supremo e incontestado, tomam possível e têm feito real a mais
aguda forma de tiranização que a história já tem conhecido. O Go-
verno torna-se o senhor absoluto da vida humana, os cidadãos perdem
a sua liberdade e se tornam escravos.
Qual a orientação que Paulo oferece para tal situação? O operário
cristão deve tomar o seu trabalho tão a sério como toma ao seu Senhor.
Se o seu trabalho é trabalho real, então é trabalho para ser feito. E'
trabalho digno dos seus melhores esforços, trabalho em que êle deve pôr
o seu orgulho pessoal. Por amor do trabalho, esqueça êle os seus pa-
trões, mesmo que sejam injustos e tirânicos. Trabalhe com a mesma
singeleza de coração como se estivesse trabalhando para o próprio Jesus
Cristo. Seja o seu critério, não se êle está sendo vigiado ou se o seu
trabalho vai agradar ou não aos homens. Como servo de Cristo, faça o
melhor que puder. Fazendo assim, tenha a certeza de que Cristo o re-
compensará pelo seu esfôrço. Como homem debaixo de ordens supe-
riores, servindo a um Senhor que lhe tem dado padrão de boa mão-de-
obra, ponha os seus melhores esforços em cada um dos momentos do
tempo de trabalho. Qualquer que seja a sua questão com as condições
em que o seu trabalho tem de ser realizado, traga o fruto do seu trabalho
o sêlo do seu ideal. Isto não significa, contudo, que como um homem,
como um cidadão, e como cristão, o operário não possa lutar por me-
lhores condições de trabalho. Mas não permita que a luta pela justiça
interfira com a qualidade do seu serviço. Êle tem o direito de reclamar,
mas não tem o direito de fazer serviço inferior. Tem o direito de fazer
greve, mas não de se entregar à sabotagem. Sob certas circunstâncias, tem
o direito de ser revolucionário. Êle deve até tornar-se revolucionário nos
interêsses dos homens que sofrem, quando os seus patrões governam de
maneira contrária à ordem moral de Deus. Mas nenhuma ação revolu-
cionária, repitamos, pode justificar a quebra da responsabilidade de fazer
bom trabalho, quando se tem um trabalho que deva ser feito.
Quanto ao patrão, seja êle homem ou sistema social ou político, se
acontecer que o nome de Cristo seja por êles honrado e conhecido, reco-
nheça-se a dignidade de todo o trabalhador humano. Sejam os homens
estimulados, por incentivos positivos, a um trabalho superior e não por
meio de ameaças, no caso de falharem. Todo sistema de poder, que
— 147 —
reconheça o lugar de Cristo na vida humana proceda com justiça e im-
parcialidade. Lembre-se que Cristo não é nenhum bajulador. Não tem
preferências quaisquer pelas pessoas de maior poder ou maior riqueza
do que outras ou pelas que pensam ser naturalmente superiores a outras.
Para Êle, o servo é tão bom como o patrão, e Êle exercerá julgamento
justo. Mas onde quer que o patrão ou o sistema de poder não conhece
nem reconhece a Cristo, êles serão julgados por Cristo. Trema a tira-
nia; «beijem o filho» os tiranos, porque Deus, como Paulo disse uma vez
aos filósofos que se reuniram no areópago ateniense, «julgará o mundo
com justiça, por meio do varão que destinou» (Atos 17:31).
E' claro que em todos os assuntos relativos à vida, nas ardentes
fronteiras da ordem natural, os homens e as mulheres cristãos ocuparão
lugar de responsabilidade especial. Têm uma função muito especial que
desempenhar. A crescente sofisticação do pensamento e a progressiva
secularização da vida dão aos homens e às mulheres, que vivem em con-
tacto íntimo com as realidades do plano secular, penetração mais pro-
funda do problema humano do que o descortino ordinàriamente possuí-
do pelos clérigos. Pela mesma razão, os leigos, quando tomam a sério
os grandes princípios cristãos da reverência a Cristo, têm oportunidades
estratégicas de apresentar soluções cristãs para a vida particular e pú-
blica. O dia de hoje é a grande era do leigo cristão.
b) As Fronteiras da Ordem Sobrenatural
Paulo iniciou esta Carta com uma fuga rapsódica até às esferas
celestiais. Ali explorou tudo o que êle entendia pela afirmação de que
Deus abençoou os cristãos «com tôda a bênção celestial em Cristo 2>.
Termina a Carta com uma descrição sóbria e realística da esfera terrena,
onde os cristãos têm de permanecer e de lutar. Mas esta luta nos ca-
minhos do mundo, os cristãos a levarão avante no poder do Seu Senhor
celestial. Terão de lutar, porém, contra as fôrças espirituais hostis ao
bem-estar do homem, as quais têm a sede acima da terra e além da
história. Os cristãos, diz Paulo, não são contra qualquer inimigo mera-
m.ente físico. São contra «organizações e poderes que são espirituais».
Acima de tudo, são contra «o Poder invisível que controla êste mundo
perverso, e contra os agentes espirituais do próprio quartel general do
mal» (6:12) (versão de Phillips).
Paulo, como Jesus, tinha consciência viva do caráter pessoal e dos
poderes do maligno no universo. Reconhecia uma estratégia organizada
do mal. Aqui está alguma coisa inteiramente diferente do poder da
hereditariedade, alguma coisa mais horrenda e pavorosa do que as fôrças
judiciais e dialéticas que operam na história, pelas quais, às vêzes, a his-
tória zomba da lógica do homem e outras vêzes leva à destruição o seu
orgulho titânico. Paulo estava pensando em fôrças inteiramente distin-
tas das fôrças demoníacas da história contemporânea, que se arrogam a
condição e os atributos da Divindade, poderes êsses que se esforçam para
controlar a história, como se não houvesse Deus nem propósito eterno
passando pelos séculos e operando por meio dêle. Enquanto, Paulo, se
estivesse vivendo o dia de hoje, tomaria perfeito conhecimento de todas
— 148 —
essas forças antes que os homens comuns se achassem, nestes tempos,
tão indefesos, êle ainda insistiria no caráter pessoal do mal sobrenatural.
Insistiria na realidade dos «príncipes das trevas deste século, as hostes
espirituais da maldade nos lugares celestiais» (6:12). Êle pede, pois,
aos homens e mulheres a quem escreve, que busquem a força «não em
si mesmos, mas no Senhor, no poder dos Seus ilimitados recursos».
«Tomai tôda a armadura de Deus», diz êle, «para que possais resistir
a todos os métodos de ataque do diabo». «Vós deveis usar», continua,
«a inteira armadura de Deus, para que possais resistir ao maligno no
dia do seu poder e para que, tendo lutado até ao fim, possais conservar o
vosso terreno» (tradução de Phillips).
E' importante observar, neste ponto, alguma coisa de significação
espiritual. Paulo começou esta Carta falando aos cristãos individual-
mente, como tais; neste final, torna claro que não é em massa que os
cristãos têm de combater o diabo, mas como indivíduos. No correr da
luta cósmica entre o bem e o mal, entre Deus e Satã, tôda vitória de
cada cristão individual é uma derrota dos poderes cósmicos do maligno.
Nós, que estamos habituados a considerar a vitória sòmente em têrmos de
movimentos organizados e no êxito dêles, bem faríamos em considerar
isto: A vitória sôbre a tentação, ganha pela alma cristã mais significante,
tem dimensão universal. Quebra parte do poder do Inimigo e faz apro-
ximar-se o Reino de Deus. Mais fundamental ainda do que a Igreja de
Cristo organizada na terra, é a alma individual. As almas, que nas pa-
lavras do grande historiador, são mais importantes do que a civilização,
foram, em certos períodos da história, muito mais importantes também
do que as Igrejas organizadas. Tais almas, pertencentes a Jesus Cristo
e membros do Seu Corpo místico, podem exercer ocasionalmente enorme
influência espiritual, ainda que possam ser obrigadas a viver existência
solitária e não reconhecida pela Igreja organizada de Cristo.
A Panóplia de Deus.
Fortalecidos «no Senhor», os cristãos travarão guerra coroada de
êxito, se estiverem revestidos da armadura e fizerem uso das armas que
o próprio Deus preparou para o grande conflito. As peças da armadura
são sete em número, sugestivas de perfeição espiritual. Contudo, é claro
que nenhum esfôrço se faz para descrever a panóplia completa de um
legionário romano. Por exemplo, estão faltando as grevas e a lança.
Quando analisamos as peças, é evidente que caem em dois grupos: as
peças menores e as peças maiores.
A primeira e mais importante entre as peças menores é a couraça da
.justiça. A couraça protege o coração. O cristão não se pode empenhar
em luta espiritual vitoriosa, a não ser que possua integridade pessoal.
A sua fôlha precisa de estar limpa. Precisa de ficar acima de censura.
Não deve nêle haver pecado secreto e inconfessado. Não deve ser hi-
pócrita, isto é, ator de máscara no rosto e que aparece a outras pessoas
mui diferente do que realmente é. Admitindo livremente o seu pecado
indignidade pessoal, a vida do guerreiro cristão deve estar aberta
diante de Deus e diante dos homens. Deve possuir a pureza interior que
— 149 —
vem de «desejar uma só coisa». O orgulho que êle possa alimentar não
deve estar nas suas próprias realizações, nem em qualquer graça pessoal,
mas somente nas suas cicatrizes, as «marcas do Senhor Jesus», que re-
cebeu nas lutas pela justiça.
Logo depois, em importância, vem o escudo da fé. A confiança do
cristão deve estar em Deus. Não deve nutrir qualquer dúvida a res-
peito da base da sua fé e da verdade da sua causa. Precisa de ser ho-
mem de intensa convicção, que tenha ao redor o ar de calma decisão que
caracteriza o homem de espirito resoluto, cuja cama já está arrumada.
Sabe quem é êle e a quem pertence. Muitas coisas há a respeito de
Cristo e da sua própria vida, como dos propósitos de Deus, que êle des-
conhece, mas há algumas coisas, as coisas básicas, que são dêle conhe-
cidas; e a qualquer tempo, êle estará pronto, se alguém lhe pede, a dar
a razão da sua esperança. Com o seu escudo da fé, estará habilitado
a aparar o golpe e a neutralizar a fôrça de quaisquer zombarias ou insi-
nuações, escárneos ou difamações, dúvidas ou ameaças, que se possam
atirar contra êle.
Sôbre a cabeça do cruzado espiritual está o capacete da salvação.
Usando êste elmo, pode conservar a cabeça ereta como soldado que luta
pelo Reino de Deus, que sabe que Jesus Cristo é Senhor e que a batalha
decisiva de uma grande campanha já foi vitoriosamente ferida. Sabe
que Cristo, em Sua vida e em Sua morte e pela Sua gloriosa ressurreição,
derrotou os «Principados e as Potestades» e «os expôs publicamente, e
triunfou sôbre êles na Cruz». Êle pode, pois, olhar os inimigos face
a face. Sabe que estão condenados todos os seus inimigos e de Cristo,
e que o propósito eterno de Deus e de Cristo, será cumprido na história
e além da história. Disto, também, está inteiramente convencido: na
grande campanha pelo Reino, não existem mais do que simples escara-
muças e operações de limpeza. Por último, então, como Paulo escreveu
em outra das suas epístolas da prisão, a sua carta aos Filipenses, «tôda
a língua confessará que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus
Pai» (FiU. 2:11).
Agora, as quatro peças maiores:
Básica e indispensável ao guerreiro cristão, que Paulo descreve em
termos de um legionário romano, é o cinto ou cinturão. Com o cinto,
êle é cingido para a ação. No fim de um período de descanso e à chama-
da da trombeta, o legionário vestiu a armadura e apertou o cinto. Sem
tal cinto, êle ficaria mal arranjado. Com êle, está pronto e bem firme.
Assim, Paulo diz: «Tendo cingidos os vossos lombos com a Verdade»
(Efes. 6:14). A verdade aqui significa absoluta sinceridade, inequívoca,
e devoção sem reservas e de coração inteiro à causa, na qual e para a
qual êle se tornou soldado. Um guerreiro cristão, com o cinto apertado
ao redor, de si, não se põe a correr em perseguição da verdade, como
se fosse encantadora borboleta ou pássaro fugitivo. Tais excursões têm
o seu lugar mui próprio na vida. Elas até podem entreter o legionário
nos momentos de folga. Mas a sua tarefa principal é de uma quali-
dade mais austera. A verdade é alguma cousa da qual êle parte e não
— 150 —
alguma cousa que êle se deleita em perseguir. A Verdade, no sentido
mais básico, precisa de ser a posse da vida de um cristão e não a
busca do seu lazer. E ainda, em última análise, a Verdade não é
alguma coisa que o cristão tenha em absoluto, seja como distintivo ou
adorno, seja como bandeira que êle desfralda, tocha que êle acende
dentro das trevas, ou como farol que ilumina a noite. Ela é tudo isso
e muito mais. Ela é alguma coisa que o tem, que o possui e o cinge.
É um cinto apertando ao redor de seus lombos. É um Braço afetuoso
e poderoso.
Então vêm os sapatos do guerreiro, com que se calçam os pés de
cruzado. Sem calçado apropriado, é impossível a campanha real. Com
sapatos adequados, o soldado tem completa liberdade de movimentos.
Os sapatos de campanha são próprios para todos os terrenos e ocasiões.
Bem calçado, o soldado pode adaptar-se a tôdas as circunstâncias. Pode
trilhar os caminhos dos prados, que ficam perto de águas mansas; pode
caminhar por cima de rochas cheias de pontas, pelos trilhos da monta-
nha. Os sapatos do guerreiro cristão são a estabilidade do «Evangelho
da paz». Não há sapatos como êstes. Fazem o homem correr ou an-
dar com maior rapidez e mais poder de estabilidade do que os sapatos
de qualquer das figuras da lenda e da fábula. «Quão formosos sôbre
os montes são os pés daqueles que leva as boas-novas». Equipado com
as «Boas-Novas», o cristão sente pressa de ir por tôda parte com a
mensagem — de andar por tôda a «terra de Deus».
Na mão do guerreiro está uma espada. Ela lhe serve para defesa
própria e para levar a ofensiva ao território inimigo. É a «Espada do
Espírito, a Palavra de Deus». Jesus, quando assaltado por Satanás,
usou-a para fazer frustrar os ardis do Tentador. A Palavra de Deus, como
sentia o peregrino de Bunyan, é «uma verdadeira lâmina de Jerusalém».
Nas mãos de cada cristão «Grande Coração», cortante. O seu brilho
nas trevas do presente ilumina as idades. O seu gume separa as coisas
que não devem permanecer naturalmente unidas. Penetra até o âmago
os negócios humanos. Corta os nós górdios e rasga as máscaras da
falsidade. Armado da Espada do Espírito, o cristão abre caminho pelo
meio da confusão das circunstâncias. Interessado sòmente com o que o
Senhor Deus disse e mandou que êle falasse, finca os pés no chão sem
desfalecer, e persegue o inimigo no próprio território dêste,
A mais poderosa de tôdas as armas, em que culminam as sete peças
da armadura do cristão, é uma arma chamada «tôda a oração». Usar
esta arma é orar em tôdas as ocasiões no Espírito. Permita o cruzado
que o Espírito Santo, que nele habita, interceda no seu íntimo, com
gemidos dolorosos e verdadeiro conhecimento da vontade de Deus. Use
êle tôda espécie de oração — às vêzes uma oração curta e fervorosa
pedindo socorro, outras, a prece calma da comunhão. Persevere em
oração, vigilante e insistente, nela orando sem cessar. Ore a favor de
todos os «homens e mulheres em Cristo», pelos indivíduos dentro da
Igreja, como um todo, através de toda a terra habitada.
— 151 —
EPÍLOGO
CORAGEM, POIS!
A Carta termina com um apêlo pessoal. Em suas orações, não se
esqueçam os membros da Grande Igreja Universal de Cristo, a quem
é esta carta enviada, não se esqueçam do seu autor, o embaixador de
Cristo, em sua prisão de Roma. Porque foi numa cela da prisão que teve
Paulo a dupla visão do conselho celestial de Deus e da peregrinação
terrena da Igreja. Em favor dêle, o prisioneiro de Cristo, subam as
preces, para que, «embaixador em cadeias», possa êle, até o seu última
suspiro, tornar conhecido de todos e de vários modos o segrêdo desven-
dado de Deus em Jesus Cristo, pelo Evangelho. Quanto a tudo mais,
o seu fiel amigo e irmão em Cristo, Tí quico, lhes faria saber pessoal-
mente tudo a seu respeito. Êle seria o portador da Carta.
Na sua luta cristã, entre tôdas as lutas pela fé, seja deles a paz,
paz no meio da batalha. E experimentem, também, o «amor com fé,
da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo». O desejo final de
Paulo era que êles e todos em tôda parte, que sinceramente amavam ao
Senhor Jesus Cristo com amor imorredouro, sincero e imperecível, fossem
objetos dessa santa influência transformadora, dêsse poder capacitador
que é a graça, a graça de Deus. Pela graça, foram salvos; pela graça
precisam de ser guardados.
Não muito depois que fôra escrita e lida a Carta aos Efésios «o
embaixador em cadeias de Cristo» deu o seu último testemunho do
Evangelho diante do Imperador. Séculos mais tarde, quando Roma
estava caindo e um outro César, o Imperador Justiniano, se estava pre-
parando para a batalha, sua esposa recusou-se a abandonar a cidade
condenada e proferiu o famoso dito: «O Império é uma esplêndida
mortalha».
Inspirado por uma visão imperial, Paulo escreveu a respeito do
Reino Unido da Terra e dos Céus, quando o Império Romano estava no
apogeu da sua glória. Então, quando o seu combate já se tinha acabado
e a sua carreira terminada, e o seu destino de mártir já tinha sido
determinado, envolveu-se nas dobras da mortalha do Reino de Deus.
Na grande tradição cristã de morrer para viver, Paulo se semeou como
semente nos sulcos de uma cidade condenada, na certa esperança de
que o que êle disse e afirmou produziria, por fim, seara de justiça na
Cidade de Deus, destinada a erguer-se das suas ruínas.
— 152 —
índice
Prólogo
Prefácio à Edição Brasileira
Cap. I — PERSPECTIVAS
a) A proclamação apostólica
b) Interlúclio lírico sobre a Autoridade Bíblica . . .
c) Uma Carta, Paulina e Ecuménica
d) Compêndio da Vida Cristã
e) A Doutrina posta em música
f) O Livro mais contemporâneo da Bíblia
Cap. II — A GRANDE DIVISÃO
a) A Divisão Transcendental
b) A Separação Histórica
c) Tentativas Humanas para Desfazer a Separação
Cap. Hl — O SEGRÊDO DE DEUS REVELADO
a) Instrumentalidade apostólica para a solução . . .
b) O Prelúdio Divino
c) O Mistério da sua Vontade
d) O Amor Eterno e Invencível
e) O Ói'gão Histórico de um Propósito Eterno . . . .
Cap. IV — A VITÓRIA QUE CRISTO ALCANÇOU . . . .
a) O Centro e a Chave da Fé: Uma Pessoa
b) Uma Vida Destinada à Morte
c) Conquista por meio da Crucifixão
d) Exaltação
Cap. V — HOMENS NOVOS EM (ARISTO
a) «Em Cristo»
b) Homens em Cristo
c) Pela Graça
(1) Por meio da fé 86
e) Para a Paz 91
f ) Para as «Boas Obras» no serviço da Igreja 93
Cap. VI — A NOVA ORDEM DmXA 98
a) A «Igreja que é o Seu Corpo» 98
b) Imagens da Igreja 103
c) As Grandes Unidades 107
Cap. VII — A PLENITUDE DE CRISTO 114
a) Da Sua Plenitude — Homens cheios de Dons 114
b) Para a Sua Plenitude — Um Ministério Eficaz 117
c) A realização da Plenitude de Cristo — A Maturidade Cristã 123
Cap. VIII — OS QUATRO IMPERATIVOS DA VIDA CRISTÃ 128
a) Andai na Luz 129
b) Imitai a Deus 130
c) Aprendei a Cristo 133
d) Enchei-vos do EsiDÍrito 136
Cap. IX — A ATUAÇÃO CRISTÃ XA FRENTE DA BATALHA ... 141
a) As Fronteiras da Ordem X^^atural 143
b) As Fronteiras da Ordem Sobrenatural 148
EPÍLOGO — Coragem. ]jois! 152
Reis. Cardoso, Botelho S. A.
Av. Rudge, 110 - S. Paulo
COMPÔS E IMPRIMIU
I
(continuação)
importância para o Cristianis-
mo e para a civilização do nos-
so tempo.
Êste livro não é um tratado
especializado para teólogos e es-
tudantes apenas, mas é um guia
para a ação social para aque-
le que busca o sentido do mun-
do ao seu redor. Nove convin-
centes capítulos mostram que
essa ordem divina existe, em-
bora imperfeitamente, na igreja
Cristã dos nossos dias, e indi-
ca o único poderoso meio capaz
de orientar aquêles que vivem
no nosso conturbado e confu-
so século.
Através da claríssima expo-
sição que o Dr. Mackay faz do
que tem sido chamado «corôa
e clímax da teologia Paulina»,
vibra um sentimento ardente
que se comunica imediatamen-
te ao leitor. Poucas vêzes um
escritor interpretou com tanta
perfeição a melodia pura do pro-
fundo espírito de Paulo. Reu-
nem-se nêste livro inspiração e
compreensão inteiramente ama-
durecida e extremamente bem
informada do pensamento.
O AUTOR
John A. Mackay é Presiden-
te do Seminário Teológico de
Princeton, U.S.A., e autor de
muitos livros, entre os quais
A Preface to Christian Theolo-
gy e Christlanity on the Fron-
tier. O presente volume é o re-
sultado de um desenvolvimento
das Croall Lectures, que foram
pronunciadas pela primeira vez
no New College, Universidade
de Edimburgo, em 1948.
Em português foi publicado
há alguns anos o comentário às
parábolas de Jesus Cristo:
. . . Eu, porém, vos digo», tra-
dução de Jorge Cesar Mota e
O Sentido da Vida, tradução
de João Del Nero.