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Full text of "O retrato de Venus e Estudos de historia litteraria"

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Presented  to  the 

UBRARYofthe 

UNIYERSITY  OF  TORONTO 

by 

Professor 

Ralph  G.  Stanton 


OBRAS 

DO 

Y.  D'ALMEIDA  GARRETT. 

XXI 

o  RETRATO  DE  VÉNUS. 

ESTUDOS   DE  HISTORIA    LITTEUARIA. 


Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2009  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/oretratodevenuseOOalme 


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ESTUDOS  DE  HISTORIA  LITTERARIA 


VISCONDE   D'ALMEiDA   GARREH 


PUHTO 

EM  CASA  DA  VIUVA  MORE  — EDITOUA 

PRAÇA    DE    D.  PEUHU 

18(i7 


PORTO  :  1867  —  Typographia  Commercial, 
Bellomonte,  19. 


o  RETRATO  DE  VÉNUS 


o  RETRATO  DE  VÉNUS 


POEMA 


....  whiie   it   puTsues 
Things  unnattempted  yet  in  prnxc,  ot  rhxjme. 

MiLT   Parad    losl:  book  1,  v.  IS. 


CANTO    PRIMEIRO 


Doce  mãe  do  universo,  ó  Natureza, 
Alma  origem  do  ser,  germe  da  vida, 
Tu,  que  matizas  de  verdor  mimoso 
Na  estação  do  prazer  o  monte,  o  prado, 
E  á  voz  fagueira  de  celeste  gôso 
De  raultimodos  entes  reproduzes 
A  variada  existência,  e  Ih' a  prolongas; 
Q'ie,  no  Huido  immenso  logi.slando, 
Libras  sem  conto  ponderosos  mundos. 


8 


o    RETRATO 


Que  na  ellipse  invariável  rotam  fixos, 
O  alma  do  universo,  ó  Natureza, 
Teus  sacros  penetraes  em  voo  ardido 
Busco,  rasgo -lhe  o  véo,  prescruto,  e  Yejo 
Insondáveis  mysterios:  puro,  e  simples 
Nunca  ouvidas  canções  na  lyra  entoo. 
Nua  d'enfeites  vãos  a  face  amena 
Tu  volve  ao  mundo,  que  te  ignora  errado. 
Qual  és,  qual  foste,  qual  te  apura  os  mimos 
A  arte  engenhosa,  tu  lhe  amostra  e  ensina. 

Como  é  dado  aos  mortaes  hellezas  tuas 
Co  di\ino  pincel,  co'as  magas  tintas 
Estremar  com  primor,  colher-lhe  o  bejo, 
Sem  donosas  ficções  meu  cauto  ensine. 

Ficções!...  E  áureas  ficções  desdenha  o  sábio? 
A  douta,  a  mestra  antiguidade  o  diga. 
Não;  fabula  gentil,  volve  a  meus  versos; 
Oraa-me  a  Ij-ra  c'os  festões  de  rosas. 
Que  ás  margens  colhes  da  Castaha  pura: 
Flores,  que  outr'ora  de  Epicuro  ao  vate 
Co  austero  assumpto  lhe  entrançaste  amenas, 
Essas  no  canto  me  desparze  agora. 


DE    VÉNUS  { 

Vénus,  Vénus  gentil !— Mais  doce,  e  meigo 
Soa  este  nome,  ó  Natureza  augusta. 
Amores,  graças,  revoae-lhe  emtorno, 
Cingi-lhe  a  zona,  que  enfeitiça  os  olhos; 
Que  inflamma  os  corações,  que  as  almas  rende. 
Vem,  ó  Cypria  formosa,  oh!  vem  do  Olympo, 
Vem  c'um  mago  surrir,  c'um  terno  bejo 
Fazer-me  vate,  endeusar-me  a  lyra. 

E  quanto  podes  c'um  surriso,  ó  Vénus! 
Jove,  que  empunhe  o  temeroso  raio; 
Neptuno  as  ondas  tempestuoso  agite; 
Torvo  Sumano  desenfreie  as  fúrias . . . 
Se  dos  olhos  gentis,  dos  lábios  meigos 
Desprender  um  surriso  a  Idalia  deusa, 
Rendido  é  Jove,  o  mar,  o  Averno,  o  Olympo. 

Mas  quanto  é  bello,  é  grato  o  vencimento, 
Se  á  dor  suave  do  pungir  fagueiro. 
Da  ferida  se  encontra  amigo  bálsamo, 
E  nos  olhos  da  hnda  vencedora 
Do  ardimento  o  perdão  braudo  se  accolhe! 
Tu,  Marte,  o  dize,  o  Cyprio  moço,  o  Toucro; 
E  vós,  que  ousais  na  terra  imitar  numes, 
Que  do  sumrao  prazer  rompendo  arcanos, 


10  o    RETRATO 

!N'um  momento  gosais  da  eternidade. 

Emquanto  nas  lidadas  officinas, 

Forjando  o  raio  vingador  dos  numes, 

Vive  o  coxo  marido  sem  receios, 

Ja  deslembrado  da  traidora  rede; 

Do  Cynireo  mancebo  entre  os  abraços, 

Jaz  a  esposa  gentil  ennamorada. 

Nas  languidas  pupillas  lhe  transluzo 

O  prazer  divinal,  que  a  opprime,  e  anceia; 

Nos  inflammados  bejos,  nas  caricias, 

No  palpitar  do  seio  voluptuoso, 

No  lascivo  apertar  dos  braços  niveos. 

Nos  olhos,  em  que  a  luz  quasi  se  extingue, 

Na  interrompida  voz,  que  balbucia. 

Nos  derradeiros  ais,  que  desfalecem  . . . 

Quem  do  prazer  não  reconhece  a  deusa 

No  excesso  do  prazer  quasi  espirando? 

Surri-lhe  ao  lado  o  filho  de  travesso, 

E  d'entre  o  myrtho  as  cândidas  pombinhas 

Co  estremecido  arrulho  a  dona  imitam. 

Ah!  se  o  gosto  supremo  a  um  deus  não  peja, 
Porquê   mesquinhas  leis  nos  vedam  barbaras 
Tam  suave  pecar,  doce  delicto. 


DE      VÉNUS  11 

Antes  virtude,  que  natura  ensina! 

Desfarte  as  breves  horas  decorriam 

Aos  alheados,  férvidos  amantes; 

E  vezes  três  rotára  o  disco  argênteo 

Trivia  gentil,  sem  que  no  Olympo,  ou  Lemnos 

A  esposa  de  Vulcano  apparecesse. 

Ja  na  etherea  mansão  vagos  juizos 

Maliciosos  forma  a  inveja,  a  intriga; 

E  surriso  maligno  ás  deusas  todas, 

Do  marido   iníeliz  excita  o  fado. 

Em  zelosa  vingança  ajffana  e  freme 
O  dcspeitoso  Marte;  corre,  voa, 
E  em  busca  da  infiel  vagueia  o  mundo. 
Coxeando  o  segue  o  malfadado  esposo. 
Dos  antigos  errores  esquecido: 
Tal  é,  paixão  zelosa,  o  teu  império! 

Eis  do  somno  d' amor  espavoridos. 

Os  dous  amantes  c*o  ruido  accordam. 

Do  pavor  esmorece  o  joven  tímido; 

Por  elle  anceia  a  carinhosa  amante, 

Descuidosa  de  si;  geme,  soluça, 

E  do  amado  na  dor,  sua  dor  recresce. 

Que  fará!-'. .  vacilluute. . .  Adónis  .  . .  Marte . . . 


12  o    RETRATO 

O  esposo...  Ideias,  que  alma  lhe  confundem! 
Com  o  amante  ficar,  morrer  com  elle? 
Defender  com  seu  peito  o  peito  amado? 
E  salva-lo  é  possível  desta  sorte? 
Deixa-lo?...  Fera  ideia!..  Ir  as  suspeitas 
Dos  numes  dissipar  com  sua  presença? 
Que!  deixa-lo!  o  seu  bem!  Vénus  a  Adónis  ! 
Tanto  não  pode  a  mesma  divindade. 

Mas  este  só  lhe  resta  único  meio: 
É  forçoso:  comsigo  ao  carro  o  sobe; 
Voa  a  Paphos,  e  ás  Graças  lisongeiras 
O  precioso  pinhor  saudosa  entrega, 
Que  n'um  basto  rosal  mimoso  o  guardem, 
Velem  sempre  por  elle,  té  que  aos  deuses 
Se  esvaeça  o  furor.  Súbito  ao  Olympo, 
Composto   o  vulto,  serenando  os  olhos, 
^'um  momento  chegou:  mago  atractivo 
Que  lhe  spira  dos  lábios,  das  pupillas, 
Do  todo  encantador,  ódios,  suspeitas 
Desfaz,  esquece  em  ânimos  divinos: 
Tam  pouco,  ó  bellas,  persuadir-nos  custa! 

Arde  voltar  ao  suspirado  asylo; 

Mas  teme  a  vejam  desconfiados  olhos; 


DE  VÉNUS  13 

E  em  tanto  Adónis  geme,  e  o  seu  tormento 
Mais  que  o  próprio  penar  lhe  punge  n'alma. 
Disenhos  volve...  Alfim  um  lhe  suscita 
Novo  a  mente  engenhosa:  ei-lo  abraçado. 

Jaz  muito  alem  do  tormentório  cabo, 
(Sempiterno  brasão  da  Lusa  gloria) 
Em  não  sabido  mar,  jamais  sulcado, 
Dha  aprazivel,  deliciosa,  e  breve. 
A  mão  dos  homens  destruidora,  e  barbara, 
Mimos  da  creação  não  lhe  estragara. 
A  seu  grado  crescia  o  bosque,  a  selva; 
Vecejava  sem  leis  o  prado  ameno; 
D'alvas  pedrinhas  pelo  leito  amigo 
Se  espriguiçava  o  crystalino  arroio. 
Sem  temer  que  impia  dextra  ouse  perversa, 
No  brando  curso  imterromper-lhe  as  aguas. 
Presas  não  gemem  fugitivas  Nayas, 
Nem  Dryades  gentis  feridas  choram: 
Sem  arte  a  natureza  era  inda  a  mesma. 
No  mais  escuro  do  copado  bosque 
Ternas  suspiram  maviosas  rolas; 
E  em  mais  alegres  sons,  prazer  mais  ledo, 
A  meiga  ave  d'amor  no  arrulho  exprime. 
Outro  vivente  algum  a  aura  fagueira 


14  o    RETRATO 

Não  ousa  respirar.   Silencio  eterno 
Impera  na  solidão,  dobra-lhe  encantos. 

Tam  suave  mansão  nem  mesmo  os  numes 
No  ceo  conhecem.  Da  ternura  a  deusa, 
Só  Vénus  sabe  do  recanto  ameno. 
Tu,  do  universo  creador  principio, 
Vénus!  oh  mãe  d'amor,  oh  mãe  de  tudo! 
Que  amor  é  tudo,  que  só  tu  com  elle. 
Ambos  creastes  e  regeis  o  mundo. 
Que  a  natureza  sois,  ou  ella  é  vossa: 
Cypria,  Cypria  gentil,  podes  acaso 
Ignorar  uma  só  das  obras  tuas? 

"Mãe,  (lhe  diz,  entre  alegre  e  malicioso, 

Mas  compassivo,  o  filho)  nessa  ignota 

"Ilha  do  Indico  mar..."— Um  doce  bejo 

O  concelho  pagou.  — Súbito  parte. 

Lá  chega;  e  nova  se  difunde  a  vida 

Na  solitária  estancia;    em  novos  germes 

O  deleite,   o  prazer  renascem,  pulam, 

Quam  doces  d' antemão  gosou  delicias 
A  mui  fagueira  deusa!  O  sitio  ameno 
Extasiada  contempla.   "Oh!  quam  dit(jsos 


DE    VÉNUS  15 

(Clamou)  seremos!  Ignorado,  occulto, 

"  O'  doce  amante,  viverás  sem  medo, 

"  Aqui,  no  seio  da  ventura  e  gôso, 

"  Nos  meus  braços..."  Parou  suspensa,  e  geme: 

Cruel  lembrança  lhe  assomou  na  mente; 

Agros  deveres,  pérfidas  suspeitas, 

Quantas  vezes  do  amante  hão  de  aparta-la. 

Suspira:  as  rosas  do  prazer  se  esvaem 

Das  lindas  faces  niveas.    Pensativa, 

Melancólica,  e  triste....  Eis  (fausto  agouro!) 

Estremecido  arrulho  alvas  pombinhas 

Deram  á  sestra  mão.  Ah!  sim:  é  elle: 

Amor,  apoz  a  mãe,  veio  ajuda-la. 

"Filho  (co'a  voz  lhe  diz,  que  impera  em  Jove, 

"  Que  tam  suave  rege  a  natureza) 

"  Tu  me  feriste:  não  accuso  o  golpe: 

"  Amo,  adoro  esse  ferro,  que  me  punge, 

"  Que  na  chaga,  que  abiiu,  doçura  entorna; 

"  Só  quero,  só  te  peço  (que  não  peja 

"  De  implorar-te  soccorro  a  mãe  ferida) 

"  Derradeira  mercê:  oh!  deixa  um  pouco 

"  D'humanos  corações  fácil  conquista: 

"  Cesse  qualquer  amor  quando  ama  Vénus. 

"  A  culta  Europa  lapido  discorre, 


16  o    RETRATO 

"  E  a  progénie  d'Apollo,  almos,  divinos, 
"  Os  pintores  me  traze  aqui  n'um  ponto. 

Pasmou  c'o  rogo  inesperado  o  numen: 

A  causa  inquire.  "Ah!  não:  (lhe  torna  a  deusa) 

"  Não  cumpre  ainda  revelar- t'a,  ó  filho; 

"  Cubra  o  véo  do  mysterio  o  doce  intento." 

Mal  disse:  e  o  raio  mais  veloz  não  rue 
Da  rubra  dextra  do  Tonante  irado, 
Do  que  a  turba  dos  cândidos  amores 
A'  voz  da  deusa  fende  os  ares  liquides. 
Quaes  voam  de  Minerva  ao  sábio  clima. 
Hoje  torpe,  e  servil  c'o  bruto  império: 
Quaes  á  augusta  senhora  do  universo; 
Senhora,  emquanto  Homa  era  inda  Roma: 
Quaes  ao  paiz  do  mysterioso  Etrusco: 
A'  formosa  Bolonha,  á  gran  Veneza; 
Grande  emquanto   reinou  sobre  o  Oceano: 
Quaes   á  suberba  Gallia,  á  Ibéria,  a  Lysia; 
Que  de  Lysia  também,  tam  cara  ás  musas. 
Da  poesia  a  rival,  a  irman  tem  filhos. 

De  toda  a  parte  a  obedecer  contentes 
Correm  ao  mando  de  Cyprina  bella, 


DE    VÉNUS  17 

Da  natura  em  despeito,   homens  creadores, 
Prometheus,  que  á  matéria  informe  e  bruta 
Co  divino  pincel  dao  forma,  e  vida; 
Erguem  da  campa  gerações  extinctas; 
Plantam  copados,  que  enfloream,  bosques; 
Co'a  viva  historia  os  homens  eternisam; 
E,  fitando  no  ceo  audazes  vistas, 
Aos  pasmados  sentidos  apresentam 
Visivel,  sem  rebuço  a  divindade. 

Da  fértil  em  prodigios,  d'alta  Grécia 
O  pae  d'arte  divina,  Apelles  marcha, 
Thimante,  Zeuxis,  e  Parrhasio,  e  quantos 
A  culta  Grécia,  a  deliciosa  Roma 
Famosos  produziu  em  sec'los  d'ouro: 
Cimabúe  famoso  apoz  caminha. 
Que  as  esfriadas  cinzas  animando 
Do  engenho,  do  talento,  o  faxo  vívido 
Fez  na  Europa  brilhar,  e  abriu  de  novo 
O  caminho  gentil  da  natureza 
Do  bárbaro  furor  fechado,  ha  muito. 

Aos  golpes  crebros,  incessantes,  duros 
Da  férrea  mão  do  avaro  despotismo, 
Sem  forças,  sem  vigor  jazia,  ha  muito, 


18  o    RETRATO 

A  mísera  Bysancio.   Em  surda  guerra 
Fallaz  superstição  d'mfames  bonzos, 
Fanatismo  cruel,  bifronte,  e  iniquo, 
Hypocrisia  vil,  pérfida  e  dobre, 
E-uina  infausta  lhe  apressava,  e  morte. 
A' vidos  sorvos  de  Roman  cubica, 
Da  Latina  ambição,  riquezas,  pompa 
Roubado  haviam  insaciáveis,  feros 
De  Constantino  á  corte.   Espessa  nlivem 
De  negros  vicios,  de  perversos  crimes 
Pousou  medonha  sobre  os  tristes  netos 
Degenerados,  vis  d'um  povo  illustre. 
Crestadas,  secas  pelo  sopro  ardente 
Da  tyrannia   atroz  definham,  morrem 
Apesinhadas  as  virtudes  cândidas; 
Ao  cúmulo  chegou  desdita,  opprobrio 
Dos  fados  teus,    ó  Grécia.  Eis  ante  as  portas 
Da  famosa  cidade,   audaz,  suberbo 
Musuhnano  feroz,   Mahomet  se  ostenta. 
Monstros,  que  o  sangue  do  mesquinho  povo 
ímpios  bebestes,  ah!  tremei,  que  é  elle: 
Austero  açoite  das  celestes  iras 
Sobre  vós  descarrega  a  mão  divina. 
Bonzos,  no  centro  aos  claustros  profanados 
Embalde  a  frente  d'horridas  maldades 


DE  VENIS  19 

Carregada  escondeis:  lá  vai,  lá  chega; 

Sobre  asarasd'um  deus,  a  um  deus,  que  ousastes, 

lucençando-o,  offeuder,  lá  vos  immola. 

Artes,"  sciencias,  a  guarida  extrema, 

Perdeste'-a  em  fim:  voltai,   fugi;  que  Hesperia 

Os  carinhosos  braços  vos  estende. 

Ei-las:  oh!  folga,   venturosa  Europa. 

Lá  cai  a  pouco  e  pouco  em  terra  o  throno 

Da  barbara  ignorância:  as  ti'evas  do  erro 

Vai   accossando  da  verdade  o  faxo. 

Arte  divina,  magica  pintura, 
Foragida  também,  thesouros,  mimos 
Yens  espalhar  na  mui  ditosa  Itália. 
ItaHa!  oh!  folga:  Rapliaeis  ja  pulam. 


FliM    IK)  CANTO  PRIME IKO. 


GANTO     SEGUNDO 


Mas  eis,  distinctos  esquadrões  formando. 
As  escliolas  assomara ;  reina  entre  ellas 
Vivaz  emulação,  que  gera  os  sábios  : 
Vão-lhe  na  frente  os  aífamados  chefes, 
Que  a  pátria  honraram  c'o  pincel  divino. 

No  bello  antigo  modelando  as  graças. 

Que  em  mais  sábio  pincel,  mais  bellas  surgem, 

A  frente  airosa  sobre  erguendo  ás  outras. 

Vem  tribu  excelsa  dos  Romãos  pintores. 

Deram-lhe  o  grau  supremo  árdua  sciencia 

Das  attitudes,  d'expressão,  verdade. 

De  audaz  composição,  nobre  elegância, 

O  correcto  desenho,  e  puro,  e  grave, 

E  ([uanto  inspira  ApoUo  ás  almas  grandes. 

Em  extusi  sublime  altas  ideias. 


22  o    RETRATO 

É  filho  seu  (que  mais  sobeja  glória  !) 
E.aphael,  o  divino,  o  mestre,  o  numen 
Da  moderna  pintura,  eterno  brilho, 
Que  os  Apelles  offusca,  e  Roma,  e  Grécia ; 
Que,  as  barreiras  transpondo  á  natureza, 
Olhou  de  face  a  face  a  divindade, 
E  as  glórias  do  Thabôr  fez  ver  ao  Tybre, 
E  aos  d' arte  amantes  desejar  com  Pedro 
Junto  ao  prodigio  habitação  ditosa.  ' 

Júlio  o  mestre  imitou,  foi  digno  d'elle : 
Forte,  ardida  expressão  lhe  anima  os  traços. 
Que  ás  profícuas  lições  dão  glória  e  lustre. 

Em  cerca  aos  muros  da  gentil  Parthénope, 
Onde  aprimora  a  natureza  os  mimos, 
E  a  voz  do  creador  soou  mais  bella, 
Onde,  entre  montes  de  sulphureas  cinzas, 
Umas  sobre  outras,  as  cidades  jazem, 
E  a  rodo  os  d' atro  fogo  hórridos  rios 
A  poéticas  ficções  dão  ser  terrivel ; 
Alli,  silencio  eterno  ergueu  severo 
Religiosa  mansão  ;  firmou-lhe  as  bases 

»  A  transfiguração  de  Raphael. 


DE    VÉNUS 


23 


Austera,  descarnada  penitencia. 

Sobre  as  azas  do  ingenho,  á  voz  d'um  numen, 

Vigoroso,  expressivo  Spanholeto, 

Lá  foste,  e  a  assomos  do  pincel  terrível 

Em  longas  vestes  surgem,  pulam,  \ãvem 

Fatidicos  anciãos  ;  ás  portas  velam 

Da  estancia  outr'ora  silenciosa,  e  sancta. 

E  quando  atroz,  hypocrita  veneno, 

Lavrando  a  furto  sob  o  sacco,  e  cinza, 

Os  muros  profanou,  que  ergueu  virtude, 

Inda  no  mesto  panno  af&ictos  suam  ; 

E  a  gloria  do  pintor  fulge  entre  o  crime.  ' 

Fostes,  como  elle,  berocs  da  arte  divina, 
Polidoro  gentil,  vivaz  Fattore, 
Saliente  Caravaggio,  que  exprimiste, 
Senão  bella,  fiel  a  natureza. 

Nobre,  altivo  Cortona,  quanto  vivem 
Scenas  famosas  da  nascente  Roma  ! 
Nas  mães  trementes,  pallidas  filhinhas, 
Vc  como  a  mesma  dòr  redobra  encantos ! 

'   Quadros  dos  propliclas  por  Spaiiliolftlo,  na  Carluclia  do 
Nápoles. 


24  o    RETRATO 

E  O  fero  aspeito  dos  Quirinos  Martes, 
Onde  a  furto  da  glória  amor  scintilla ! 
Ah !  próximo  o  prazer  vai  dar  ao  mundo 
Prodigios  de  valor,  extremos  d'honra, 
Prole  Romana.  .  .  Eis  o  universo  em  ferros.  ' 

Amável,  temo  Sacchi,  a  ti  surriram 
Do  mago  cinto  de  Erycina  as  graças ; 
Meigos,  suaves  dons  te  esparzem  n'alma. 
Que  nos  quadros  gentis  reflectem  doces. 
Belligero  Cerquozzi  avulta  aos  olhos 
Brandir  no  panno,  lampejar  mil  ferros, 
E  aos  roucos  sons  da  sanguinosa  guerra. 
Entre  as  phalanges  baralhadas  rotas, 
Entre  abysmos  d'horror  alçar-se  a  morte.    '^ 

Quam  magos  fulgem  divinaes,  sublimes, 
Maratti  encantador,  fácil  Giordano, 
Mimoso  Dolce,  e  vós,  que  á  nova  Roma 
Ingenhos  tantos,  insondáveis,  grandes. 
Por  guerreiros  tropheos,  suberbos  róstros, 
Triumphos  cem  do  ovante  Capitólio, 


O  roubo  dds  Sabinas  por  Cortona. 
pintor  de  batalhas. 


DE    VÉNUS  25 

Dais,  se  menos  viril,  menos  heróico, 
Ornamento  gentil,  belleza,  encantos. 

Ja  de  acurvados  reis  não  brilha  o  fasto 
Da  escravidão  contentes ;  não  se  antolha 
Em  cada  senador  um  nume,  um  Jove. 
Ja  nas  praças,  nos  templos  não  campeiam 
Os  despojos  do  mundo ;  o  Circo,  o  Foro, 
Prodígios  d' arte,  da  opulência,  e  luxo. 
Da  barbara  ignorância  ás  mãos  cederam. 
Cheio  de  Livio  o  \àajante  absorto 
Não  ve  do  Capitólio  a  frente  erguida 
Torreada  avultar  com  ferros  cento. 
Não  ve  povo  d'heroes  girar-lhe  entorno; 
Da  incsp'rada  mudança  pasma,  e  geme, 
E  no  centro  de  Roma  a  Roma  busca. 
Porem,  se  amiga  mão  lhe  guia  os  passos, 
Se  o  Vaticano  e  mil  prodígios  nota. 
Que  do  antigo  explendor  moderam  fama ; 
Então  Roma  conhece,  então  venera 
Nobres  resquícios  de  gloriosos  evos. 

Tacs  da  moderna  Roma  os  filhos  iam 
Por  travesso  menino  conduzidos  ; 
E  d*altiva  belleza  ornada  a  frente, 


26  o    RETRATO 

A  magestosa,  Florentina  eschola 
De  perto  os  segue :  no  atrevido  ensejo 
Parece  disputar-lhe  o  grau  supremo. 
Co'a  sublime  expressão,  desenho  ardido^ 
Gigantesca  maneira,  audaz,  mas  bella, 
Se  antolha  eunobrecer  a  natureza. 
Brandas  graças  d' amor,  ternura,  encantos 
Feroz  desdenha ;  só  lhe  avulta  á  mente 
O  nobre,  a  pompa  da  ideal  grandeza. 

Não  foi  sobre  o  Synai  mais  formidável, 

Que  d' Angelo  entre  as  mãos,  Moysés  terrivel ; 

Nem  lá  no  extremo,  derradeiro  dia 

Julgamento  final  será  mais  hórrido. 

Co  deus,  que  o  peito  vos  perturba,  anceia, 

Mais  pavorosas  não  rugis,  Sibylas. 

Da  mão  nervosa  cada  traço  é  raio. 

Que  espanta  os  olhos,  que  deslumbra  a  mente ; 

Que  enxofrado  clarão,  medonhas  larvas 

Em  todo  o  horror  do  Averno  ostenta  horrivel ; 

Que,  se  um  deus  pinta,  é  do  castigo  o  numen, 

Que  em  longa  geração  pune  um  só  crime, 

O  deus,  que  no  deserto,  entre  os  relâmpagos, 

Entre  o  rouco  estampido  das  trombetas, 

Pela  voz  do  trovão  legisla  ao  mundo. 


DE    VÉNUS  27 

Eis,  desdobrando  hydraulicos  segredos, 
E  as  mechanicas  leis  com  sabia  dextra 
Movendo  a  seu  sabor,  á  glória  sua, 
Vinci  tam  caro  aos  reis,  de  o  ser  tam  digno, 
Seu  correcto,  purissimo  desenho. 
Engenhoso  compor  o  eleva  aos  astros, 
Aos  astros,  onde  fora  em  vôo  ardido 
Os  pincéis  escolher,  buscar  as  tintas, 
Com  que  d' ultima  ceia  debuxara 
Amor,  transportes,  mysteriosas  scenas. 
Ah  !  gire  o  teu  prodígio  o  mundo  inteiro ; 
E  de  grado  a  razão  cede  ao  mysterio. 

Cores  roubando  á  natureza,  e  mimos, 
Bello  como  ella,  o  inimitável  Porta 
Ao  gelado  silencio  de  ermo  claustro 
Chamou  das  nove  irmans  o  choro  arguto. 
Urbino  o  conheceu ;  c  o  sceptro  augusto 
Curvou  ante  elle;  e,  confundindo  os  raios. 
Os  dous  d' alma  pintura  astros  brilhantes. 
Sem  nogro  eclypse,  sciutillaram  juntos. 

"Vens,  ó  Sarto,  apoz  cUc,  ameno,  e  brando ; 
Vens,  Pcruzzi  gentil,  fértil  Pantorma, 
Que  ao  nobre  assomo  do  pincel  nervoso, 


28  o    RETRATO 

Co  doco  encanto  das  mimosas  tintas 
Fizeste  a  Raphael,  a  Buonarrotti 
D'arte  a  coroa  estremecer  na  frente. 
Sec'los  famosos  d' Alexandre,  e  Augusto 
Na  Itália  renovou  macio  Allori ; 
E  as  meigas  cores  do  pincel  Lombardo 
Quasi  Ciogli  usurpara  ao  grão  Corregio. 

Ah !  veda  a  musa,  e  pequenez  do  ingenho 
Seguir- vos  todos,  divinaes  pintores : 
Segura  a  fama  vossa  alteia  a  frente, 
E  o  vate  ao  longe  vos  contempla  os  voos. 

Gentil  Bolonha,  que  na  Europa  barbara 
O  faxo  das  sciencias  accendeste, 
Que  o  Gothico  stupor  tiraste  ás  artes, 
E  as  cinzas  da  virtude  apesinhadas 
Por  sanctos  crimes  de  sagrados  monstros 
Cum  Benedicto  consolaste  em  Roma, 
Eis  vem  dignos  de  ti,  teus  sábios  filhos, 
Numerosa  familia,  antiga  e  nobre. 
Que  o  mel  das  graças  delibando  férvida 
Em  quantas  flores  produzira  Apollo, 
Nobre  desenho  modelou  no  antigo, 
A  natura  usurpou  vivaz  belleza, 


DE    VÉNUS 

E  o  mago,  o  puro  dos  gentis  contornos, 
A  verdade,  a  exprossão,  o  rico  d'ordem, 
E  o  colorido  inimitável,  bello. 
Que  emparelha  com  a  arte  a  natureza. 

Assim  brilhou  di\dno  o  gran  Corregio, 
Assim  Fraucia  gentil,  assim  Mantegna, 
E  Bolognese  vigoroso,  e  forte  ; 
E  tu,  que  o  terno  amor,  e  seus  encantos, 
Simplices  graças  da  natura  virgem. 
Da  innocencia  infantil  o  mimo,  os  jogos, 
As  singelas  beldades  exprimiste 
No  mavioso  pincel,  mavioso  Albano. 
Nem  deslembre  de  Guido  a  fértil  mente. 
Talento  universal,  vago,  mas  bello. . . 

Ca  expressão  de  Zampieri  ordem,  nobreza, 
Vê  d'Agnese  gentil  a  árdua  constância 
Como  os  p'rigos  desdenha,  e  ve  risonha 
Ja  do  ferro  do  algoz  pender-lhe  a  morte. 
í'erino  aspeito  dos  ministros  bárbaros. 
Da  augusta  religião  viril  triumpho 
Aos  engolfados  olhos  se  apresenta, 
E,  arrebatando  o  esp'rito  a  deus,  ao  vate. 
Um  prodígio  a  prodigios  amontoa. 


29 


30  o     RETRATO 

Ve  Guerccino  também,  que  ora  nervoso, 

Ora  sombrio,  e  fero,  e  terno  outr'ora, 

Mas  sempre  encantador,  em  cada  rasgo 

Cam  portento  de  mais  a  arte  enriquece. 

Qual  vira  a  Palestina  o  pae  dos  crentes  ' 

De  fe,  de  submissão  dar  nobre  exemplo ; 

Tal  vive  no  pincel,  tal  inda  avulta 

Co'as  veneráveis  cans,  e  honrado  aspeito. 

Misero  velho  !  desgraçado  infante  ! 

Que  !  tu  mesmo,  infehz  !  co'a  mão  paterna 

Hasde  cortar-lhe  o  fio  á  tenra  vida, 

Unica  esp'rança  de  cançados  annos. 

De  mui  doces  promessas?  Como.  .  .  ai  triste! 

Oh  !  como  voltará  sem  elle  á  tenda  ? 

Com  que  olhos  fitará  maternos  olhos  ? 

Com  que  voz  lhe  dirá  ?. .  Mas  parte  :  e  a  dextra 

Ja,  ja  quasi. . .  Suspende:  um  deus  o  ordena; 

Um  deus  é  pae  também  :  suspende  o  crime : 

São  leis  da  natureza  as  leis  divinas; 

Em  premio  da  tua  fe  recebe  o  filho. 

Ah !  se  ao  nome  Lombardo  é  pouco  tanto ; 
Eis  tríplice  ornamento  á  pátria  ao  mundo, 

'    O  sacriíicio  de  Isiich,  quadro  famoso  de  Guercciuo. 


DE  VÉNUS  31 

Doutos  Caraccis,  que  o  divino  ingenho, 
Ou  co'a  dextra  gentil  ornando  a  Itália, 
Ou  dando  á  juventude  alnios  preceitos 
Da  arte  formosa,  perpetuando-a  aos  evos, 
Nova,  estremada  lhe  augmentáram  glória. 


FIM  DO  CANTO  SEGUNDO. 


CANTO     TERCEIRO 


Musa,  deixemos  a  mansão  terrestre, 

Sobre  o  iníidu  elomeuto  estende  os   voos. 

Eis  sobre  as  ondas  c'o  pincel  divino 

Maga  pintura,    legislando  ás  vagas, 

Enfreia  as  iras  de  Neptuno  indómito. 

Ve  d'Adria  o  gôlpho  tempestuoso,  e  fero 

A'  voz  da  liberdade  agrilhoado. 

Surge  do  seio  das  domadas  aguas 

A  cidade  gentil:  pasmou  de  ve-la,    . 

E  corou  de  vergonha  a  natureza. 

E  a  mã(j  do  creador,  ao  ver  confusos, 

Baralhados  antigos  elementos, 

Se  ao  homem,  que  os  trocou,  não  dera  a  vida, 

Quasi,  quasi  um  rival  temera  nelle. 

Alli,  fugindo  aos  clamorosos  brados, 


34  o    RETRATO 

Ao  jugo,  á  servidão  da  tyrannia, 
Homens,  poucos,  mas  homens,  começaram 
Com  ância  a  defender  sacros  direitos. 
Empório  foi  depois  do  rico  Oriente, 
E  do  alado   leão  tremeu  gran  tempo 
O  atrevido  colosso  Mussulmano. 
Hoje  (Ideias  de  dor,  lembrança  amarga!) 
Da  poppa  olhando  o  navegante  ao  longe: 
"Veneza   aquella  foi  "— exclama,  e  geme; 
E  segue  a  esteira  das  cortadas  ondas. 

Veneza  foi:  compridas,  longas  eras 
Foi  a  pátria  d'heroes,  foi  mãe  de  sábios; 
E  as  dadivosas  musas  lhe  outorgaram 
Egrégios  filhos,  que  o  talento,  as  vidas 
A'  formosa  sciencia  consagraram; 
Que  imitando  fieis  a  natureza. 
Olhos  seduzem,  e  deleitam  alma, 
Que  nos  toques  graciosos,  na  belleza 
Da  gentil  invenção,  doce  magia 
Do  claro-escuro,  rico  invento  d' arte. 
Aos  mais  sábios  pincéis  não  cedem  nada. 

Deusa,  acode  á  avidez,  que  o  vate  enleia. 
Fere  nas  coadas  da  estremada  lyra 


DE  viiííuá  35 

Dos  famosos  varões  o  nome  e  os  dotes: 

Dize  a  Ticiano,  dize  quaes  natura 

Lhe  entornou  dadivosa  encantos  simples, 

Que,  ou  arte  ignoram,  ou  subtis  a  escondem; 

Ja  d']iumanas  feições  transsumpto  exacto, 

Ja  co'as  nativas  cores  exprimindo 

No  ingeuhoso  pincel  tudo  o  que  existe. 

Adriades  gentis,  olil  vinde,  as  frentes 
Coroadas  de  dor,  na  campa  avara 
Ilumido  pranto  derramar  saudoso! 
Ai  do  triste  mancebo!  o  fado  iniquo, 
Só  por  chora-lo,  o  concedera  ao  mundo! 
Oh!  com  quanta  expressão,  nobre  altiveza 
Castel-franco  brilhou,  fulgiu  mais  que  homem! 
E  tam  breve  lhe  deu  a  sorte  a  vida! 
E  no  fuso  cruel  a  Parca  dura 
Um  fio  tam  gentil  fiou  tam  curto! 

Oh!  suspendei  as  lagrimas  formosas: 
Longa  carreira  os  ceos  marcaram  próvidos 
Aos  dous  Bellinis,  venerandos  chefes 
Da  nomeada  eschola;  á  glória  vossa 
Vivem  padrões  eternos;  Piombo  illustre, 
Que  a  fama  ousou  balancear  d'Urbino; 


36  o    RETRATO 

Pordenone  inventor,  de  quem  Ticiano 
Temeu  roubadas  as  divinas  cores; 
Completo  Palma,  a  quem  mostrou  natura 
Sempre  formoso  o  variado  aspeito; 
Animado  Bassano  verdadeiro; 
Fértil,  e  vivo  Tintoreto  rápido; 
E  tu,  Paulo  gentil,  delicias,  mimo 
Dos  voluptuosos  olhos  da  donzella; 
(Mui  grato  enlevo  do  insoffrido  amante) 
Qual  Yerona  folgou  com  seu  Catullo, 
Tal  comtigo:  mil  graças,  mil  encantos 
Sem  mysterio,  sem  véo  te  deu,  lhe  dera 
Nua  de  pompas  vans,  a  natureza: 
Seu  renome  inda  vive;  e  o  teu  com  eUe, 
Emque  lhe  péze  á  inveja,  e  seus  furores, 
Hade  eterno  brilhar.  Assim  raivosas, 
Frustradas  gralhas  invejosas  grasnam 
A'  ave  olympia  de  Jove;  e  entanto  os  voos 
Ella  ao  sol  remontando,  as  mofa,  e  burla. 

Porem  mais  longe  da  rinhosa  Hesperia 
Voltemos  a  attenção:  ve  como  em  Flandres, 
Scena  outr'ora  infehz  da  glória  Franca, 
Da  Cypria  deusa  demandando  a  estancia 
Vai  turba  immensa  dos  rivaes  d'Italia. 


DE      VÉNUS  37 

As  graças  naturaes,  singellas,  puras 

A'  porfia  a  accompanham:  não  se  enfeita 

Por  suas  mãos  a  simples  natureza: 

Em  loução  desalinho  bella,  e  nua 

Mimos  lhe  outorga,  que  ella  só  conhece, 

Que  a  vós  é  dado  só,  magos  pintores, 

Com  arte  ignota  do  universo  ao  resto 

No  pincel  exprimir  fiel,  divino. 

Prodigios  faUem  de  Yan-Eick  famoso, 

Do  correcto,  vivaz,  firme  Duréro; 

Dize-o  por  todos;  se  inda  alguém  no  mundo 

Ignora  tanto,  que  te  ignore  os  dotes; 

Fértil,   brilhante,  verdadeiro  Rubens. 

Rubens!  Oh  nome!  O'  filhas  de  Memoria, 

Vós,  que  no  Pindo  entre  o  verdor  mimoso 

Lhe  bafejastes  divinal  espirito. 

Quando,  Hbrado  sobre  as  azas  d'ouro 

De  sublime,  elevada  allegoria, 

Viu,  pintou  . . .   Ah!  fez  mais:  creou,  deu  vida 

A  chymericos  entes,  vãos,  mas  bellos. 

Que  o  vivo  imaginar  lhe  debuxara. 

Quam  doce,  e  meiga  a  enternecida  Vénus 

Com  suspiros,  com  ais,  com  ternos  bejos 

Tenta  a  fúria  applacar,  retter  nos  braços 

Gradivo  impaciente!  Olha  do  monstro 


38  o    RETRATO 

O  torvo  gesto,  o  faxo  sanguinoso . . . 
EUa  ! . .  a  guerra  crucll  a  horrível  frente 
Co'a  máscara  da  glória  esconde  ao  numen, 
E  o  veneno  lethal  lhe  infunde  n'alma. 
Lá  haqueia  de  Jano  o  templo  augusto; 
As  artes,  as  sciencias  calca  o  monstro; 
E  a  d'auradas  espigas,  rubros  pomos 
Gentil  coroa  á  agricultura  arranca. 
Ternura,  horror,  assolação,  helleza 
Com  portentosa  mão  juntaste,  ó  Rubens.  ' 

Quam  hello  é  na  expressão  Vaén  correcto! 
Hólbein  sublime,  vigoroso,  nobre! 
Ván-Rin  saliente,  harmonioso,  e  doce! 
Quam  firme  é  Wanderwérff  singello,  e  puro 
E  tu,  mimoso  Yan-Dernér,  que  em  Gnido 
Bebeste  as  graças,  possuíste  os  risos. 

Ah!  ja  cançada   se  me  aífrouxa  a  lyra: 
Rouca,  e  sem  voz  mal  associa  ás  cordas 
Difíiceis  nomes  de  estremados  mestres. 
Um  por  tantos  direi;  e  o  nome  illustre 
Te  baste,  ó  Flandria,  a  coroar-te  a  gloria: 

'    Quadro  allegorico  da  guerra  por  R. 


DE    VÉNUS  39 

O  bello,  o  simples,  verdadeiro,  e  grande, 
Do  mestre  a  obra  maior,  Vandick  insigne. 

Mas,  qual  ruido,  que  tumulto,  ó  musas, 

Do  Pindo  a  sacra  paz  impio  disturba? 

Quanto  vivem  !  . .  Que  lieroes  da  pátria  raios! 

Armas!.,  guerra  !..  o  furor!.,  o  sangue!.,  a  morte!. 

Destroço  ! .  .  horror!  assolações  ! . .  ruínas  !  . . 

Eis  dos  Alpes  franqueado  o  gelo  eterno; 

Nada  resiste:  c'o  rugido  extremo 

Baqueia  exangue  de  Pyrene  a  fera. 

Co'a  Europeia  ruina  Africa  nuta, 

Ásia  treme;  e  nas  praias  de  Colombo 

A  fugitiva  liberdade  apporta. 

A  longes  terras  se  accolheu  Minerva, 

8em  rumo  as  artes  desgrenhadas  fogem, 

A  Roma  de  Catão,  d' Augusto  a  Roma 

Não  é  de  Pio  a  efFeminada  corte; 

E  em  vez  d'um  Fábio  tardador,  d'um  Quincio, 

D'um  Bruto,  um  ManHo;  prostituta  prole 

No  deshonrado  Capitólio  avulta. 

Quem,  bellezas  d'Italia,  hade  amparar-vos  ? 
Quem  !  .  .  Ânimos  cobrai;  volvei  sem  medo 
Artes,  seiencias:  ja  no  Kena  ovante 


40  o    RETRATO 

O  próprio  vencedor  no  seio  amigo 

Vos  accolhe,  e  aecarinha,  e  no  alto  alcaçar 

Augusto  sólio  perenal  vos  ergue. 

No  Sena  ovante  (oh  do  porvir  assombro!) 

Em  quanto  os  filhos  seus,  terror  do  mundo. 

Raios  desferem,  que  o  universo  atterram; 

Renasce  mais  gentil,  vive  mais  fúlgido 

O  sec'lo  de  Luiz;  succede  á  velha, 

A'  pedante  Sorbona,  almo  Instituto. 

Eis  novos  Raphaeis,  arte  divina! 

Não  lamentes  Poussin,  Gallia  ditosa, 
De  Mignard,  e  Blanchard  divinas  cores, 
De  Lebrun  a  expressão,  fieis  costumes, 
Paizagens  de  Lorrain,  maga  ternura 
Do  voluptuoso,  encantador  Santerre, 
Grandioso  stylo  do  vivaz  Subleyras: 
Teus  modernos  heroes  excedem  tudo; 
E  ao  seio  da  opulência  amamentados, 
A'  voz  da  glória  redobrando  exforços, 
Talvez  irão  com  denodado  arrojo 
Do  sólio  d'arte  derribar  a  Itália. 

Se,  entre  barbaras  mãos  gemendo  outr'ora, 
Deveste  a  Belisario  a  vida,  ó  Roma; 


DE    VÉNUS  41 

Se  das  fúrias  cruéis  d'liorrida  guerra 
O  juramento  te  isentou  d'E[oracios; 
Se  quanto  foste  em  gloriosas  quadras 
A  um  necessário  roubo,  á  paz,  que  o  segue, 
Ao  ferro  audaz  de  Rómulo  deveste;   ' 
Treme  d'elles  agora,  treme,  ó  Roma; 
Que  no  heróico  pincel   David  illustre 
As  cinzas  lhe  animou;  marcham  por  elle 
Tua  fama  a  conquistar,  roubar  teus  louros: 
De  Urbino,  e  Buonarroti  o  throno  prostram; 
Eis  campeia  David!  — Não  longe  d'elle 
O  terno  Girodet,  suave,  e  brando. 
Que,  do  Meschacebeu  vingando  as  margens, 
Co  vate  insigne  emparelhou  nos  voos, 
E  na  pasmada  Europa  ergueu  d' Américo 
As  pomposas  florestas,  e  a  nobreza, 
Ornamento  feroz  d'um  mundo  virgem: 
Que  os  encantos  d'amor,  e  os  seus  furores, 
O  poder  da  virtude,  e  os  seus  exforços 
Dignos  d'clle  exprimiu,  e  fez  do  novo 
Olhos  sensiveis  afogar  em  pranto. 

Eis  á  voz  de  Gérard  das  campas  rompem 
'    Quadros  eeiebres  de  Darid. 


42  o    RETRATO 

Extinctas  gerações:  Saturno  as  azas 
Indignado  encolheu,  e  a  presa  antiga 
Viu  roubar-lh'a  o  pincel,  quebrar-lhe  os  éllos 
Da  impreterivel,  perenal  cadeia. 

Ruge  fremente  o  mar,  bramindo,  e  ronca 

Nas  ouças  rocas,  nas  quebradas  fragas 

Do  tormentório  mar...  Lá  se  ergue  ingente, 

E  immenso  troa  o  colossal  gigante. 

Treme  d'entôrno   o  mar,  e  a  terra,  e  o  mundo; 

E  a  voz,  que  os  poios  com  fragor  desloca. 

Pela  primeira  vez  á  gente  Lusa 

Pallida  imprime  a  sensação  do  medo. 

Só  impávido,  um  só,  Vasco  lhe  arrosta: 

Pasma  a  ousadia  d' um  mortal  a  um  nume. 

Oh  lagrimas  d'Ignez,  sangue  innocente, 

Correi,  correi  do  milagroso  panno; 

E  em  lagrimas  de  sangue  o  applauso  eterno 

Aos  vates  recebei,  aos  vates  ambos. 

Oh  Gérard!   oh  Camões!  qual  mão  divina 

Vos  uniu,  vos  juntou?  Oh!  folga,  ó  pátria! 


DE    VENLS  43 

E  tu,  Sousa  immortal,  grata  homenagem 
E,ecebe  eterna  da  mui  grata  Elysia.  * 

Ve  nas  mãos  de  Guérin  qual  geme  e  anceia 
Pincel,  que  hervou  na  dor, que  embebe  em  pranto, 
Que  incestos,  crimes  (de  Trezena  horrores) 
Co  Euripides  Francez  disputa  ainda. 
Quem  de  pavor,  de  compaixão  não  gela 
Ao  ver  nas  murchas,  esmyrradas  faces 
Da  bella  ainda,  miseranda  Phedra 
Surgir  do  panno,  que  as  conter  mal  pôde, 
D'um  criminoso  amor,  violência,  e  fogo  ?  * 

Guerreira  a  mente  de  Yemet  fulmina 
Os  raios  de  Mavorte,  o  horror  das  armas; 
E  sobre  os  quadros  de  Lc-Gros  famoso 
Os  manes  folgam  de  RoUin,  Voltaire. 

Mas  tanta  glória  inda  não  basta,  ó  Francos, 
Para  o  completo,  universal  triumpho: 
Que  no  Tbero  pincel  inda  refulge 
O  nome  da  Ribcra,  o  de  Murillo, 

'    Celebres  pinturas  de  Gérard  na  edioílo  dos  Lusíadas  pelo 
Sr.  José  Maria  de  Sousa 
*    Pinturas  de  Guerin  tiradas  de  Racine. 


44  o    RETRATO 

E  duvida  d'Albioii  mosqueada  fera, 
Vaidosa  d' West,  conceder-te  a  palma;- 
Inda  lhes  guardam  justiçosas  musas 
No  bifido  Parnaso  um  grau  distincto. 

Assim  quando  no  ceo,  callada  a  noute. 
Cândida  brilha  sup'rior  Diana, 
Se  com  menos  fulgor,  astros  com  tudo, 
Gentis  avultam  nitidas  estrellas. 


FIM   DO    CANTO   TERCEIRO 


CARTO     QUARTO 


Eia!  colhamos  as  cançadas  velas, 

Musa:  o  filhinho  da  amorosa  Veuus 

Ja  pelos  ares  líquidos  se  entranha, 

E  ledo  corre  co'as  donosas  tribus 

Dos  illustres  rivaes  da  natureza. 

Da  Europa  toda  ja  voaram  férvidos 

Da  voz  ennamorada  ao  som  fagueiro, 

Só  Lysia  falta.  . .  A  minha  Lysia,  ó  Vénus ! 

A  pátria  dos  heroes,  a  mãe  dos  vates, 

A  pátria  de  Camões,  do  teu  Filinto ! 

Onde  a  voz  de  Bocage,  a  voz  do  Gomes 

Sempre  em  teu  nome  resoou  na  lyra  ! 

Onde  a  teu  culto,  mais  que  em  Roma,  ou  Grécia, 

Era  cada  coração  se  eleva  um  templo! 

Lysia,  de  Veuus  esqueceram  filhos ! 


46  o    RETKATO 

Ah !  volve  os  olhos  immortaes,  divinos, 
Aos  séculos  remotos ;  ve  no  Tejo 
Como  entre  as  sombras  da  ignorância  Gothica 
Brilham  nas  trevas  Lusitanas  tintas ; 
Ve  do  gran  Manoel  na  épocha  d'ouro 
Sobre  as  bellas  irmans  como  se  eleva 
A  divinal  pintura ;  ve  mais  perto, 
Em  quanto  geme  c'o  ferrenho  jugo 
A  flor,  a  augusta  das  nações  princeza, 
Ei'guer  das  rainas  sobranceira  a  frente ; 
E  alfim  nas  quadras  que  marcara  o  fado 
Ao  brio  Lusitano  extremo  exforço ; 
Calcando  a  juba  de  Leões  gryfauhos, 
Parando  ás  Águias  remontados  voos, 
Como  á  porfia  sobre  o  Tejo  e  Douro 
Apelles  mil  e  mil  revivem,  fulgem  ; 
Brilha  o  Luso  pincel.  . .  Ah  !  se  aura  amiga 
Continua  a  soprar. . .  Não  ;  férrea  pesa 
A  mão  do  despotismo,  opprime,  esmaga, 
Destroe  renovos  das  mimosas  artes. 

Mas  qual  ouço  confuso  borborinho  ! 
E  soifi  vós !  Ah !  perdoa,  alma  Erycina: 
O  teu  povo  fiel  tu  bem  coulieces ; 
Nem  chama-lo  cumpria :  é  lhe  sagrada, 


DE    VÉNUS  47 

Inviolável  lei  um  teu  desejo. 

Ei-lo  corre :  que  luz,  que  ethereo  brilho 

De  louro  e  rosas  lhe  engrinalda  as  frentes ! 

Olha  entre  a  névoa  de  allongados  evos, 
De  atroz  barbaridade  embrutecidos, 
Como  Álvaro  rebrilha,  um  Nuno,  ura  Annes, 
E  do  enérgico  Vasco  a  fértil  mente  ; 
E  Duarte,  e  Gromes  tam  famosos  ambos, 
Tam  caros  ao  gran  rei,  Manoel  ditoso. 
Ve  do  illustre  Resende  a  mão  facunda, 
Trocando  a  penna,  que  mandara  aos  evos 
Os  feitos  dignos  de  perenne  historia, 
Pelo  arguto  pincel ;  o  sábio  Carlos, 
Que  ao  divino  Correggio  usurpa  as  cores ; 
Dias,  que  á  pátria  transportara  ovante 
O  mel,  e  as  graças  dos  famosos  mestres ; 
Harmonioso  Christovão,  claro  Sanches, 
Que  os  mouarchas  d'Europa  inteira  vira 
D'honras,  de  bens,  accumulá-lo  anciosos. 

Eis  sobre  as  azas  de  elevado  arrojo 
Vinga  altivo  Carapello  o  cume  erguido 
Dos  montes  de  Judá.  La  surge,  e  avulta 
No  mysterioso  pauno  um  deus,  uni  homem. 


48  o   RETRATO 

Pasmou  a  natureza  ao  ver  confusos 
No  seio  maternal  o  pae  e  o  filho. 
Mago  pintor  lhe  renovou  prodígios ; 
E  aos  tormentos  d' um  deus  tremeu  de  novo 
A  longa  serie  dos  criados  mundos.  ' 
Sensiveis  corações,  vinde  espelhar- vos 
Nos  ternos  quadros,  que  sagrou  virtude ; 
Vinde  á  sombra  do  vate,  ao  seio  augusto 
Da  sancta  religião,  da  mãe  oaroavel 
De  humanas  affliçÕes  verter  o  pranto : 
Vinde  ;  e  entre  a  dor  vos  surgirão  prazeres, 
Prazeres  do  Christão,  doçuras  d'alma. 
Quanta  glória  Fernando  ao  sábio  mestre. 
Quantos  louros  grangeou  !  Lopes  sublime 
Juntou  d'Urbino  aos  expressivos  rasgos 
A  ardideza  gentil  d' Angelo  altivo. 
Vasques  douto,  e  regrado  os  traços  mede 
No  exacto  petipé  da  natureza. 
E  tu,  Leonor,  d'entre  a  nobreza  e  fasto, 
Origens  sempre  de  brutal  inércia, 
Soubeste  ás  artes  levantar  o  espirito. 

Qual  do  Luso  pincel  nos  fastos  vive. 
I  Quadros  da  paixão  de  Ch.  por  Campello. 


DE    VÉNUS  49 

HoUanda  creador  !  Deusas  do  Pindo, 
Eis  novo  esmero  vosso,  invento  novo  ! 
Vastos  arcanos  da  pintura  se  abrem, 
Accumulam-se  a  rodo  almos  tesouros  ; 
Graças  lhe  admira  o  árbitro  da  Europa, 
E  na  boca  dos  reis  louvores  fulgem. 
Hollanda  venturoso  !  Ah  !  de  tuas  ditas 
Taes  as  menores  são :  mais  deste  ás  musas, 
Mais  a  ti,  ao  teu  nome,  á  pátria,  ao  mundo 
No  filho,  o  grande  filho,  a  glória  nossa. 
Mimo  ao  pátrio  pincel  do  numen  louro. 

Cedendo  á  voz  d'um  deus,  que  o  chama  a  nome, 

O  Cicero  Africano  erros  abjura ; 

Sancto  prelado  o  omnipotente  invoca, 

E  d'agua  exulta  cândido  Agustinho. 

Portento  d'expressão,  viva  faisca 

Do  lume  eterno,  que  lhe  ardeu  na  mente. 

"Vate ! . .  Ah !  não  vate  :  um  anjo,  um  deus  te  guia, 

Move  o  arguto  pincel  na  sabia  dextra. 

Do  Olyrapo  eis  surge  a  magestade,  a  pompa : 

Olha  d' Ambrósio  o  venerando  aspeito. 

Os  olhos,  onde  cm  goso  alma  trasborda, 

D' Agustinho  a  liumildade,  e  o  gesto  vívido, 

Onde  a  força  transluz  d'activa  mente, 


50  o    RETRATO 

Da  eloquência  viril,  saber  profundo.  * 

Pereira  natural,  severo  e  forte 
O  terrível  pincel  por  entre  ruinas, 
Entre  chaminas  e  horror  meneia  ardido. 
De  novo  a  cinzas  reduzida  Tróia 
Por  elle  foi ;  por  elle  Pyrro  ingente 
Co  faxo  assolador  vagou  por  Illion. 
Antolha  ouvir-se  em  pávidos  lamentos 
O  confuso  ulular  da  mãe,  que  espira, 
E  no  extremo  bocejo  aperta  os  filhos, 
Do  pae  tremente,  que  a  rugosa  face 
Entre  o  seio  da  filha  esconde,  e  geme, 
E  quizera  morrer  no  doce  amplexo. 
O  crepitar  das  estridentes  chammas, 
O  baquear  dos  templos,  dos  palácios, 
E  quantas  vozes  de  terror,  d'espanto. 
Quantas  scenas  d'horror  cantaram  vates 
Nas  Gregas  cordas,  Mantuana  lyra.  ^ 

Elementos,  cedei-lhe  ao  mago  encanto 
Das  vozes  do  pincel !  Stridentes  rompem 

'    Quadro  do  baptismo  de  S.  Agustinho. 
'    Quadro  da  deslruição  de  Tróia. 


I)E    VÉNUS  51 

Com  ruidoso  estampido  as  cataractas  ; 
Confunde  a  natureza  a  essência,  os  termos, 
jN^a  face  do  universo  impera  a  morte, 
Mysterioso  baixel  ao  longe  avulta ; 
E  de  novo  o  castigo  formidável 
Os  olhos  da  razão  cega  d'espanto.  ' 

Olha  como  apoz  elle  vem  seguindo 
Valle  expressivo,  delicado  e  grande, 
Nobre  Gonçalves,  entendido  e  ornado, 
Rebcllo  audaz,  o  Buonarroti  Luso, 
E  as  do  patiio  pincel  divinas  Saphos, 
Ayalla,  e  Guadalupe,  e  Ritto,  e  Browne, 
E  Luiza  gentil,  que  os  sabio.s  tempos 
Ao  Porto  renovou  da  Grega  Aspasia. 

Fastoso  monumento  d'alta  Ibéria, 
Voragem,  golphão,  que  absorveste  os  rios 
Do  precioso  metal,  que  a  ti  con-eram  ' 
Do  Chily,  e  Potozi,  das  índias  duas. 
Soberbo  Escurial,  onde  se  aninham. 
Sob  apparente  sacco  o  vicio,  o  crime. 
Tu  de  Cláudio  por  mim  celebra  o  nome, 

'    Quadro  do  diluvio. 


52  o    RETRATP 

Do  Camões  da  pintura,  a  quem  deveste 
De  teus  ornatos  o  maior,  mais  bello. 

Nem  sorva  o  Lettes  de  confuso  olvido 
Yictorino  engraçado,  André  mimoso. 
Verdadeiro  Apparicio,  simples  Barros, 
Vivaz  Alexandrino,  destro  Senna, 
Barreto  original,  brando  Oliveira, 
E  tu.  Rocha  correcto,  ameno  e  vívido, 
Que  obscuras  scenas  da  marinlia  Pathmos, 
E  o  confuso  vedor  nos  exprimiste. 
Olhos  em  alvo,  mysteriosos  seguem 
Prophetico  furor,  que  o  volve  e  agita. 
Na  dextra  a  penna  mal  segura  forma 
Nunca  entendidas,  enredadas  notas.  ' 

Terra  fértil  d'heroes,  solo  fecundo, 
Salve  !  Eis  novo  clarão,  eis  novos  louros 
Sobre  a  frente  gentil  pululam,  vivem ! 
Eis  do  pátrio  esplendor  eterna  gloria, 
Raios  de  Lysia,  que  a  remotas  praias. 
Do  magico  pincel  nas  azas  d'Iris 
Levaram  em  triumpho  o  Tejo  e  Douro, 

'  Quadro  de  S.  João,  escrevendo  o  Apocalypse. 


DE  VENTJS  53 

Dous  Vieiras  !  Não  ousa  a  minha  lyra 
Dotes  brilhantes  numerar  nas  cordas  : 
Assaz  por  meu  silencio  o  dizem,  cantam 
Lysia,  Hesperia,  Britania,  Europa,  o  mundo. 


Desfarte  á  voz  da  meiga  Cytherea, 

D'amor  guiados,  sobre  as  azas  do  estro, 

E-apidos  voam  n'um  momento,  e  chegam  : 

Pasmam  de  vêr  a  face  á  natureza, 

Tam  bella  e  simples  qual  na  infância  ao  mundo ; 

Os  bosques  entram  :  no  matiz  do  prado 

Vão  com  delicia  apascentando  os  olhos. 

Eis  outeiro  gentil  se  eleva  á  dextra ; 

Sobre  elle. . .  Assombro  quem  ja  viu,  que  iguale 

Dos  illustres  varões  súbito  assombro  ? 

Amor,  o  mesmo  amor  parou  de  espanto. 

De  maravilha  súbita  cortado. 

Sobre  altas  se  ergue  Dóricas  columnas 

De  fino  jaspe  cúpula  suberba. 

Brilha  c'o  azul  do  ceo  linda  saphira 

Nos  capiteis,  nas  bases.  Das  cornijas 

Scintilla  em  fogo  do  carbunclo  a  charama. 

Mimos,  riquezas  de  pomposo  fausto, 


^ 


54  o    RETRATO 

Quantas  com  larga  mSo  semçou  profusas 
Nas  entranhas  da  terra  a  natureza, 
Na  vastidão  dos  mares ;  tudo  aos  olhos 
Extasiados  se  ostenta.  Riu  do  encanto, 
E  a  causa  do  prodigio  amor  conhece  : 
Entra ;  e  apoz  elle  os  estremados  chefes. 

Languidamente  o  hraço  repousado 

Nos  hombros  niveos  do  formoso  Adónis, 

Ei-la  ao  encontro  a  deusa  da  teinura 

Lhes  sai,  e  assim  lhes  falia :  "  Esta,  que  vedes, 

"  Consagrada  ao  prazer,  mansão  ditosa, 

"  Ergueu  á  minha  voz  a  natureza,. 

"  De  per  si  se  puliu,  lavrou-se  o  marmor, 

"  E  se  entalharam  gemmas.   N'um  instante 

"  Meu  doce  intento  completado  houvera, 

"  Se  o  que  vós  só  podeis,  dar-lhe  eu  pudera. 

"  Frio,  e  sem  vida  não  me  falia  ao  peito, 

"  Não  falia  ao  coração  todo  esse  esmero. 

"  Oh !  cortai-lhe  a  mudez,  dai-lhe  existência, 

"  E  c'o  mago  pincel  toruai-o  á  vida.  " 

Disse :  e  a  divina  voz  do  ouvido  aos  peitos 
Chammas  d'estro,  e  de  ingenho  acceude  aos  vates; 
E  em  breve  espaço  divinaes  assomos 


DE    VÉNUS  00 

Daqui,  dalli  se  apinham.  Clio  alteia 
Com  portentosa  mão  cantados  íèitos ; 
Alem  da  natureza  o  vôo  erguido 
Alça  a  maga,  gentil  Alegoria ; 
Desalinhada,  rústica  beldade, 
Singella,  e  pura  a  Paizagem  uoce 
Sem  mysterio,  sem  véo  cândida  ostenta. 

Ja  Anda  é  tudo  ;  satisfeita  a  deusa 

Vai  alfim  completar  os  seus  intentos ; 

E  c'um  meigo  surrir,  c'um  doce  agrado, 

Que  vale  tanto,  que  enamora  tudo. 

Assim  lhes  falia  a  carinhosa  Vénus  : 

"  Vinde,  ó  filhos  ;  que  um  nome  tam  suave 

"  Vossos  dotes  merecem ;  vinde  :  e  a  empresa, 

*'  Que  na  mente  revolvo,  efíeituai-me. 

"  Não  mando,  peço. . .  (Ah  !  d'uma  bella  o  rogo 

Quanto  mais  vale,  que  uma  lei  d'um  nume  !) 

"  lletratai-me,  ó  pintores."  Nisto  a  deusa 

O  mimoso  sendal,  ja  pouco  avaro 

Do  thcsouro,  despiu.  Quantas  bellezas. 

Que  divinos  encantos  não  descobrem, 

Não  pesquisam,  não  vem  ávidos  olhos  ! 

Sonhos  da  phantasia,  ah  !  não  sois  nada  ! 

Guindado  imaginar,  ideal  bclleza. 


56  o    RETRATO 

E'  frouxo  o  vôo,  limitado  o  arrojo  ; 
Jí^ão  tenteis  franquear  mysterios  tantos. 

Cai  das  mãos  o  pincel,  sem  que  o  percebam, 

Aos  pintores  na  vista  embevecidos  ; 

No  Olympo  os  deuses,  ignorando  a  causa, 

De  insólito  prazer  sentem  banhar-se. 

A  natureza  inteira  revolveu-se  ; 

Sonhada  Pytbagorica  harmonia 

Nas  espheras  soou  mais  branda  e  doce. 

Aos  entes  todos  pelas  veias  lavra 

O  incentivo  do  gosto :  gemem  ternas. 

Que  ha  pouco  uivaram,  pelo  bosque  as  feras  ; 

Arrulharam  d'amor  meigas  pombinhas  ; 

Correu  á  esposa  o  nadador  salgado ; 

E  nos  olhos  da  amante  leu  ditoso 

O  constante  amador  perdão  á  culpa ; 

A  doce  culpa  tam  querida  e  bella ! 

Ah !  muitas  vezes  não  descubras,  Vénus, 
Magos  encantos  ;  ou  verás  que  em  breve 
A  força  de  prazer  se  extingue  o  mundo. 

Ja  do  extasi  accordada  um  pouco  a  turba 
Dos  vates  se  prepara  ao  doce  emprego. 


DE      VÉNUS  57 

Tintas  fornece  amor,  pincéis  as  graças  ; 
E  eis  no  panno  avultando  a  pouco  e  pouco 
Assomos  divinaes !  .  .  É  ella.  . .  é  Vénus ! 
Eis  a  forma  gentil  do  corpo  airoso 
Salta,  deslisa  o  fundo  apavonado  ; 
Róseos  descurvam,  se  arredondam  braços ; 
Ondeiam  n'alva  frente  as  tranças  d'ebano  ; 
Doce  brilham  d' amor  os  olhos  meigos. 
Os  meigos  olhos,  que  prazer  scintillam. 
Que  o  facho  accendem  dos  desejos  sofiregos, 
E  contra  o  débil  resistir  do  pejo 
Do  atrevido  mancebo  a  audácia  imploram. 
Nas  lindas  faces  purpureia  a  rosa. 
Que  insensível  esvai  na  cor  de  neve ; 
Surri  nos  lábios  o  deHrio,  o  encanto, 
Que  importuna  razão  tam  doce  affasta, 
Que  ávidos  bejos,  deliciosos,  ternos, 
Annuncios  de  prazer,  mutuam  fervidos. 
Despontam  no  alvo,  crystallino  coUo 
Os  arcanos  d' amor,  que  anceiam  d'elle, 
Que  a  furto  ousaste,  mui  ditoso  Anchises, 
Nas  trevas  do  prazer  palpar  ardido  ; 
Formosos  pomos,  que  ao  pastor  Idalio 
Pelo  tam  cubicado  outr'ora  deste.  .  . 
Deste  ;  que  bem  o  sei :  (não  te  envergonho';) 


58  o    RETRATO 

Era  pobre  o  pastor,  e  os  seus  thesouros 
Juno  lhe  franqueou,  seus  mimos  Palias: 
Sem  troca  tam  gentil  tu  não  venceras. 

Mas  quanto  voa  nas  mui  sabias  dextras 
O  divino  pincel !  Que  ebúrneas  formas 
Voluptuosas  surgir  das  tintas  vejo  ! 
Que  exactas,  lindas  proporções  esbeltas  ! 
Que  norma  tam  gentil  as  regra,  as  mede ! 

Ja,  por  milagre  de  Cyprina,  é  prompta 
N'um  momento  a  grande  obra.  Ei-los  de  novo 
A  vista  do  retrato  absortos,  raptos, 
E,  novos  Pygmaliões,  por  elle  anceiam. 

De  transportada  a  deusa  ao  doce  amante 

Nas  mãos  a  entrega  ;  e  :  "Esta  (lhe  diz)  conserva 

"  Copia  fíel  da  tua  amada  Vénus. 

"  Com  eUa,  ausente,  ó  caro,  te  consola, 

"  Quando  longe  de  ti  me  re  ti  verem 

"  Cruéis  deveres,  pérfidas  suspeitas.  " 

Admira  o  joven  a  belleza,  as  graças 

Do  mimoso  traslado  ;  beja,  e  rega 

Com  lagrimas  d' amor  qual  um,  qual  outra. 


DE  VÉNUS  59 

Co'  elle,  em  quanto  viveu,  sempre  abraçaáo 
As  poucas  horas,  que  ficava  ausente. 
Mitigava  a  saudade  :  e  quando  a  morte 
O  mancebo  infeliz  roubou  sem  pejo, 
No  templo  a  deusa  o  coUocou  de  Papbos, 
E  longas  eras  recebeu  d' amantes 
Ternas  off' rendas,  amorosos  votos. 

AUi,  quando  natura  se  empenhara 

Em  dar-te  ao  mundo,  carinhosa  Annalia, 

Um  e  um  copiou  meigos  encantos. 

Que,  ó  minha  Yenus,  te  compõe,  te  adornam. 

Alli,  olhos  no  quadro,  os  teus  formosos 

Estremada  rasgou ;  alli  as  faces 

De  neve,  e  rosas  coloriu  divinas ; 

Alli  risonha  boca,  onde  contino 

Foi  aninhar-se  amor,  te  abriu  mimosa ; 

Alli  o  collo  d' alabastro  puro  ; 

Os  lácteos  pomos,  que  devoram  bejos 

Do  faminto  amador  ;  lisas  columnas, 

Que  sustentam  avaras  mil  segredos  ; 

Segredos,  que.  .  .  Perdoa  :  eis-me  calado. 

Volve  a  meus  versos,  compassiva  amante, 
Benignos  olhos  :  para  ti  voando. 


60  o   RETRATO    DE    VÉNUS. 

Da  crítica  mordaz  censuras  fogem : 
Se  accolheres  o  rude  offertamento, 
Serão  meus  versos,  como  tu,  divinos. 


FIM  DO  ULTIMO  CANTO. 


NOTAS 


JVotas  ao  canto  primeiro 


"Alma  origem  do  ser,  germe  da  vida." 

.     .     .     Per  te  quoniam  genus  omne  animantum 
Concipitur,  visitquc  exortum  lumiiia  solis; 

.     .     .     .     .     libi  suaves  dedala  tellus 
Summittit  flores. 

LucBET.  de  Ter.  nat.  Lib.  I, 


"Que  tia  ellijjse  invariável  rotam  fixos." 

Todos  sabem,  que  tal  é  a  orbita,  que  todos  os  pla- 
neta? descrevem. 

"Qual  és,  qual  foste,  qual  te  appiíra  os  mimos 
"A  arfe  engen/w^a." 

Artes  reperla;  sunt,  docente  natura. 

Cic.  de  kg.  Lib.  I,  8. 

"Como  é  dado  aoè  mortaes  hellezas  tuas." 

Platão,  fallando  da  musica,  diz  :  (De  republ.)  que 
se  nSo  deve  conceiliiar  polo  prazer,  nem  preferir  a 
que  não  tem  oiilro  objecto,  senão  o  prazer  ;  mas  a 
que  em  si  contiver  a  simillianra  da  hella  natureza. 
Esta  sentença  c  perfeilauienle  applicavel  ú  pintura. 


64  NOTAS 

E  lai  é  d'ha  muito  a  opinião  de  todos  os  rhetori- 
cos  e  philologos.  (Vid.  Arislot.,  Le  Battpux,  La- 
harpe,  Lemercier,  ele.)  Não  nos  enganemos  porém 
com  esla— natureza  bella. — Nem  só  aqiiillo  que  lera 
bellas  e  lindas  formas,  é  bello;e  nen)  ludoaquillo, 
que  as  tem,  o  é.  Boileau  o  declara  manífeslamen- 
le,  e  o  prova  : 

II  nest  point  de  serpent,  ni  de  monstre  odieux, 
Qui,  par  Tart  imite,  ne  puisse  plaire  hux  yeux. 
D'un  piiiceau  délicat  TartiGce  agréable 
Du  plus  affreux  object  fait  un  ohject  aimable. 

BoiLEAO:  Ari.  Poet.  Cbant  3. 


'A  mestra,  a  sabia  antiguidade  o  diga." 

Qnid  virtus,  et  qnid  sapientia  possint 
Utile  proposuit  nobis  exemplar. 

BOBAT.  Ep.  II,  L.  I. 

.     Fabularum  cur  sit  inventum  genus, 
Brevi  docebo.   Servitus  obnoxia.  .  .  e(c. 
PflOEDR.  Lib.  III,  prolog. 


"Não  :  fabula  gentil,  volve  a  meus  versos. 

.     .     .     Et,  s'il  est  vrai,  que  la  fable  aulrefois 
Sut  á  tes  fiers  accents  mêler  ?a  douce  voix; 
Si  sa  raain  délicate  orna  ta  tête  altièie; 
Si  son  orabre  embellit  las  traits  de  ta  lumière, 
Avec  raoi  sur  tes  pas  permets-lui  de  marclier. 
Pour  oníer  tes  attr.iit<,  et  non  pour  ies  cacher. 
Voltaire:  Henr.  Cliant  I. 

Cosia  egro  fanciul  porgiamo  aspersi 


AO    RETRATO    DK    VENtIS  65 

Di  soavc  licor  groiii  dei  vasoi,  ele. 

Tasso:  Gerusalém  Canto  I,  slauz.  3. 

"  .     .     .  O  Ci/prio  mot;o,  o  Teucro. " 

Adónis,  filho  do  Cyniras,  rei  de  Chypre  {Cyprum) 
Anchises,  Troiano  etc. 

Acbises  conjugio  Yeneris  dignale  superbo. 
ViHG.  ^n.  Lib.  2. 


"  -Em  quanto  nas  lidadas  officinas.  " 

Retumbam  nas  lidadas  o/ficinas 
Echos  gostosos  das  nascentes  almas, 
Quo  novos  corpos  a  habitar  caminham. 

FiLiNT.  Elys.   Ode  a  Vénus  (Tom.  ti.) 

"  C'o  cíitre^nccido  arniJho  n  dona  hnitam.  " 

Presontem  ja  no  eslrcmecido  arrulho 
Os  propinquos  prazeres. 

FiLiMT.  Elys.  ibíd. 


"  Porque  mpftqnin/ias  leis  nos  vedam  harharas 
"  Tam  sxace  jiecar.  .  ." 

Si  il  peccar  é  si  dolcc, 

E'l  non  peccar  si  necessário;  ò  Iroppo 

Imperfeita  natura, 

Cho  repugni  ala  leggel 

O  troppo  dura  legge, 

Cbc  la  natura  oirendi  I 

GuARiNi :  pasl.  fid, 

i 


66  NOTAS 

Se  este  crime  é  tam  doce, 

Se  tanto  fugir  delle  é  necessário ; 

Imperfeita  parece  a  natureza, 

Que  fraca  á  lei  repugna, 

Ou  lei  muito  severa, 

Que  a  natureza  offende. 

Traducç.  de  Thomé  Joaq.  Gokzaga 


"-E*  do  amado  na  dor,  sua  dor  recresce.'* 

Che  r.esempio  dei  dolore 
É  un  stimolo  maggiore, 
Che  riehiania  a  sospirar. 

Metastaz  :  Artass.  alto  I. 

"  Dos  antigos  errores  esquecido.  " 

Errores  é  usado  por  Camões  nosenlidode — longas, 
e  desvairadas  viagens— ;  Vevrt^iva  porem,  e  outros 
clássicos  de  igual  nota  o  tomaram  na  mesma  acce- 
pção,  em  que  aqui  se  toma. 

"Com  o  amante  fugir,  morrer  com  elle  ?'* 

Uma  deusa  não  pôde  morrer  :  me  diz  ja  algum 
critico,  muito  contente  do  quinau.  Assim  é.  Sr. 
critico  ;  mas  no  dfilirio  das  paixões  quem  se  lem- 
bra da  sua  natureza  ?— Uma  deusa  com  paixões! 
— Os  deuses  da  mylhologia,  os  numes  dos  Gregos, 
ft  Romanos  não  são  o  mesmo  que  o  deus  do  philo- 
sopho  (digno  de  tal  nome)  (|ue,  satisfeito  de  reco- 
nhecer a  existcucia  d'um  ente  supremo,  pára,  onde 


AO    RETRATO    DE    VÉNUS  67 

se  lhe  acabam  as  forças,  nem  prosegue  em  invesli- 
«jaçòes.  onde  se  llie  apaj^a  a  luz  da  fraca  razão  ; 
nem  em})resla  á  desconhecida  cansa  das  causas  os 
hahitos,  as  paixões,  a  forma,  e  toda  a  natureza  da 
frágil  e  apoucada  humanidade.  O  orgulho  de  se 
occiíltar  a  si  próprio  a  sua  fraqueza,  e  de  abaixar 
aló  á  sua  mesquinhez  a  idea  de  deus,  por  não  po- 
der subir  até  á  altura  d'ella,  nasce  da  nossa  vaida- 
de, da  nossa  ignorância  e  da  nossa  miséria.  Por 
isso  os  iheologos  desbocadamente  nos  pintam,  e 
nos  querem  fazer  crer  em  um  deus  vingativo,  ira- 
do, e  capaz  eu)  íim  de  lodos  os  crimes  e  vicios, 
(|ue  elles  em  sua  alma  alimentam  e  nos  ([uerem 
vender  por  virtudes. 

"...    Conmcjo  ao  carro  o  sobe." 

Subir  é  nm  verbo  neutro  ;  mas  é  este  um  idiotis- 
mo bem  notável  da  nossa  lingiia  ,  usar  de  taes  ver- 
bos com  força  activa,  como  o  fazem  os  nossos  clás- 
sicos a  cada  passo. 

"  Q"(>  lhe  s/>/ra  dos  lábios,  dasp/tjii/bis." 

Ai|uellp,  não  sei  f|UP, 
Que  spira  não  sei  como, 
Que  iiivisivci  saliiiido,  a  visla  o  \c. 

CAHUBá  :    Ode  Cl. 

Spirem  suaves  cheiros 

De  que  se  encha  este  ar  lodo. 

Ferr.  Cuslr.  acl.  I. 


68  NOTAS 

"  Arde  voltar  ao  suspirado  asylo. " 

.    .    .    Jamdudum  errumpere  nubem 
Árdehant. 

VmoiL.  Mneid.  L.  I.  v.  580. 

"  Disenhos  volve " 


Esta  palavra  mui  portugueza  e  antiga  (embora  de 
origem  estrangeira)  não  égallicismo;  exprime  bem 
o  —  dessein  —  francez,  e  tem  por  si  a  atictoridade 
d'um  escriptor  bem  notável  e  bem  antigo,  qual  é 
Damião  de  Góes.  (v.  Chron.  de  D.  ftlan.  part.  I,  cap. 
4,  e  passim.) 


"  Que  iam  suave  rege  a  natureza. " 

.     .     .    .    OmDÍs  natura  aHimanlium 
Te  sequitur  cupide. 

LucRET.  Lib.  I.  V.  15. 


"  Mal  disse ;  e  o  raio  mais  veloz  não  ruc." 

Este  verbo  muito  sdoptado  por  Filinto  Elysio,  e 
pelo  erudito  traduclor  da  lyrica  de  Horácio,  Antó- 
nio Ribeiro  dos  Santos  ;  e  cujos  compostos,  e  de- 
rivados ja  tinhamos  {correr,  decorrer  ele.)  tem  to- 
das as  qualidades  necessárias  para  a  sua  naturali- 
sacão. 


Ao    RETRATO   DE    VEKUS  69 

"  Da  rubra  dextra  do  Tonante  irado." 

.     .     .     .     Et  rubente 
Dextra  sacras  jaculatus  arces 
Terruit  urbera. 

HoRAT.  Od.  2,  Lib.  I. 

"A'  VOZ  da  deusa  fende  oa  ares  /iqiiidos.  " 

.     .     .     .     Per  liquidum  acthera: 

Vino.  Mn.  Lib.  I. 

"  Qnaes  ao  paiz  do  mysterioso  Etrusco.  " 

Florença  na  Toscana,  ou  antiga  Etruria,  àilamya- 
teriosa  em  razão  dos  seus  augures. 

"  A'  formosa  Bolonha     .     .     .     .     " 

D«  Bolonha  conta  Ganganeli  (ou  antes  Carracioli) 
nas  suas  cartas,  que  um  Portuguez,  encantado  de 
sua  belleza,  exclamara  :  «^'ão  se  devia  mostrar  se- 
não ao  domingo.» 

'^  E  fitando  no  ceo  audazes  vistas.  " 

Cflclam  ipsum  petímus  stuUitia 

HoR&T.  Lib.  II,  OJ. 

"  Aos  golpes  crebros,  incessantes,  duros.  " 

O  império  Grego  acabou  era  1448  pela  morte  do 


70  NOTAS   AO   TIETRATO    DE    VÉNUS 

ullimo  Constantino,  e  entrada  de  Mahomet  II  em 
Consianlinopola,  a  cujos  muros  se  limitava,  ha 
muito,  o  vasto  império  Grego  e  líomano.  Os  hor- 
rores desta  tomada  de  Cp.,  a  immensidade  de  fa- 
mílias que  fugiram  para  a  Itália,  e  principaimenle 
para  Veneza,  Geuova  e  Florença,  o  adiatitanieulo, 
que  este  successo  causou  ás  sciencias  e  artes  do 
occidente  ;  são  cousas  sahidas  de  lodo  o  mundo. 
(Vid.  Auquétil  :  prccis  de  Tliist.  iiuivers.  tom.  4, 
pag.  249,  etc  e  Cliateaubriand  Gcnie  du  Christ. 
part.  3,  iib.  í.) 


llíotas  ao  canto   segundo 


" Vão-lhe  na  f/ente  os  offamados  c/iefes." 

Aquelles  sam  sós  homens  que  se  affamam. 

Ferreir.  Cari.  6,    Liv.  I. 

"iV^o  hello  antigo  modelando  as  fjvnça!<." 

O  verbo  modelar  está  p;eralnienle  adoptado  mas 
que  não  seja  antigo.  Assim  como  de  molde  se  fez, 
e  deduziu  moldar;  de  modelo  se  pôde  derivar  mo- 
delar. 

"  Vem  trihu  excelsa  de  Romãos  pintorcí^." 

Gregos,  Romãos,  e  toda  a  outra  gente. 

Ferreir.  Cari.  3,  Liv.  I. 

"E  quanto  inspira  Apollo:.." 

O  fito  que  neste  poema  levei,  foi  simplesmente 
celehrar  os  louvores  da  pintura,  e  de  seus  prin- 
cipacs  mestres.  Sou  apaixonado  amador  desta  su- 
blime  poesia;  contento-me  de  adnnrar;  mas  nun- 
ca dei  a  menor  lapizada.  A  l<'ilura,  a  obsf^rvaçào 
curiosa,  e  exacta  do  pouco.  (|ue  teniio  vislo,  me 
deram  os  limitados  conhecimentos,  que  cm  tarn 
comprida    matéria   possuo.    Ideias    vastas,  ainda 


72  NOTAS 

mesmo  na  liisloria  s«')  da  pintura,  apenas  pode- 
rão ser  o  fruclo  de  lonp^os  estudos,  que  a  minha 
pouca  idade,  e  mais  sérias,  mas  (|U(j  ennojosas 
occupaçôes  prohibem.  Declaro  pois  que,  se  erro 
encontrarem  os  professores,  mui  grata  e  grande 
mercê  me  farão  de  me  avisar;  e  conhecerão  pela 
minha  docilidade  na  emenda  a  pouca  presump- 
cão  do  auctor. 


"E  aos  (Varte  aiiunifcs  desejar  com  Pedro 
"Jinifo  ao2>rodigio.  .  .  " 

Faeiamus  hic  iria  tabernacula, 

Matth.  Evang. 

"Em  cerca  aos  muros  da  gentil  Pecrf/iénope." 

Nápoles,  assim  ditta  antigamente  de  Parthénope, 
uma  d.is  sereias,  que  se  encheram  de  desespera- 
ção |ior  não  poder  vencer  Ulysses  com  o  seu  can- 
{o.  Junto  ao  tumulo  desta  simideusa  ou  nymplia 
se  edificou  uma  cidade,  que  delia  tonmu  nome. 
Destruida  esta,  se  tornou  em  seu  mesmo  legar  a 
edificar  outra  nova, dita  Nápoles  {Neajwlis — i>ieamXir 
—  cidade  nova)  nome  que  inda  hoje  conserva. 

"Umas  sohrc  outras  as  cidades  Jazem." 

Pelos  fins  do  século  passado  se  descuhriram  nas 
visinlianças  do  Vezuvio  as  antigas  cidades  de  Her- 
culano e  Pompeia.   A  cidade  de  Portici  está  quasí 


AO   RETRATO     DE    VÉNUS  73 

situada  sobre  a  anlíga  Pompeia,  que,  assim  como 
o  Herculano,  fora  submergida  em  uma  explosão 
do  Vesúvio. 

"E  a  rodo  os  cf  atro  fogo  hórridos  r/os." 

Nas  ffrandes  irrupções  do  Vesúvio  corre  do  alto 
da  montanha  um,  como  rio,  de  fogo.  que  dá  uma 
imagem  das  fingidas  torrentes  do  sonhado  Aver- 
no.  -  Virgilio,  que  de  certo  dos  volcões  de  Nápoles 
houve  a  idea  do  seu  Plderjetonle.  situou  por  aquel- 
les  logares  os  seus—  PluUmia  regna.  —  (Vid.  Stael 
na  Corin.) 

''Inda  no  mesfo  2^(i)U}0  afflidos  suam." 

....  Sudant  in  mármore  niocsto. 

Siu.  lai  Lib.  I. 

"Saliente  Caravaggio,  que  exprimiste." 

Saliente;  porque  as  figuras  de  seus  quadros  tem 
um  ar  de  rpíêvo,  que  engana.  E'  necessária  meto- 
nymia,  de  que  uso  muitas  vezes  para  carecterizar 
os  pintores,  segundo  suas  mais  distinctas  quali- 
dades. 

"Ja  di;  firciirrados  rris  tiTio  brilha  o  fasto." 

O  simples  nofoe  de  Homa  basta  para  fazer  nascer 
uma  infinidade  de  ideias  grandes  e  de  magestade. 


74  NOTAS 

Todos  os  pensamentos  sublimes,  que  a  imagina- 
ção pôde  crear.  Iodas  as  sérias  reflexões,  que  pôde 
suscitar  a  raz3o,  todds  as  memorias  augustas, 
que  a  virtude  e  a  humanidad«  podem  fazer  nas- 
cer, occorrem  e  borljiiUiauí  associadamente  na 
alma  do  honieni  peNsador  com  a  simples  ideia  de 
Roma.  O  exfôrço  dos  Horacios,  a  castidade  das 
Lucrecias,  a  integridade  dos  Brutos  e  Calões,  o 
patriotismo  dos  Fabios  e  Scevolas,  a  magnanimi- 
dade e  valor  dos  Scipiões,  a  eloquência  dos  Ci- 
ceros.  o  saber  dos  Pliuios,  a  liberalidade  dos  Au- 
gustos, a  grandeza  dos  Trajannos,  a  bumanidade 
dosTilos,  tudo  se  recorda  com  a  memoria  illus- 
tre  da  cidade  por  excellencia. 

Imagine-se  um  bomem  cbeio  de  toda  a  magni- 
ficência destas  ideias,  possuído  de  respeito  e  ve- 
neração, ao  entrar  em  Roma. — Ruinas.  sepulcros, 
templo^  derrocados,  estradas  solitárias,  ruas  de- 
sertas... são  os  miseráveis  objectos,  que  lhe  fe- 
rem os  olhos,  mui  de  longe  preparados  para  ad- 
mirar a  senhora  do  universo.  De  espaço  a  espaço 
descobre  (é  verdade)  um  templo  magnifico,  um 
grande  palácio;  mas  breve  se  desvanece  este  vis- 
lumbre de  grandeza,  e  stibito  se  esvai  a  nascen- 
te esperança  de  encontrar  a  Roma  de  Augusto. 
Estes  palácios,  estes  templos,  que  se  elevam  do 
meio  das  choupanas  (habitação  da  indiíieucia  e 
da  fome)  carregados  d'ornatos,  de  sobejo  embel- 
lezados,  serão  acaso  aquelles  esmeros  de  arcbile- 
tura  grande  e  magestosa,  suberba  e  varonil  dos 
edificios  Latinos?  Poderá  algum  d'elles  similhar- 
se  ao   Foro,  ao  Palácio,  ao  Amphilhealro?  Descu- 


AO   RETRATO     DE   VÉNUS.  75 

brir-sc-lia  n'al2uma  destas  modernas  praças  o  me- 
nor  vestisio  dos /íosíros/  O  Capitólio,  o  terrível, 
o  venerando  C.ipilolio.  onde  se  julgava  dos  des- 
tinos das  nações,  onde  os  reis  curvavam  os  scep- 
Iros,  e  depiiniiam  os  diademas;  d'onde  sabiam  os 
irrevogáveis  e  tremendos  decretos,  que  dispn- 
iiliam  da  sorte  dos  povos,  e  legislavam  ao  uni- 
verso, que  é  feito  d'eíle? —  O  solicito  viajante  ain- 
da o  descobre;  o  seu  cicerone  (guia)  ainda  lhe 
mostra  o  logar  d'elie.  —  E  será  este?— Dilíerente 
estrada  conduz  ao  cimo  do  monte;  o  palácio  do 
senador,  alguns  restos  de  quebradas  estatuas,  de 
desGgurados  relevos  são  todas  as  riquezas,  todos 
os  tro|)heos.  todos  os  despojos,  que  ornam  o  an- 
tigo alcaçar  úo  mundo. 

Confuso,  bumilbado.  o  viajante  não  se  atreve  ja 
a  encarar  nenhum  editicio.  —  «Os  habitantes  ao 
menos  (diz  elle)  talvez  conservem  alguma  cousa 
ainda  de  Romanos.  Tantas  virtudes,  tanta  gran- 
deza não  podiam  extinguir-se  de  todo.» — Um  ban- 
do de  miseráveis,  uma  plebe  indigente,  vil  e  sem 
costumes,  são  os  successores  do  povo  rei;  uma 
corte  eiteminada,  e  entregue  aos  deleites  do  ócio 
occupa  (»  logar  dos  Brutos  e  Catões;  declamado- 
res sem  gòslo,  com  alíectadas  e  gnindiídas  pbra- 
ses  íi|ue  011  não  entendem  ou  níio  cremi  f.izpm  re- 
tenir  aquelle  mesmo  ar,  que  ouviu  os  eloquen- 
tes e  numerosos  sons  de  Cícero  e  Marco  Antó- 
nio; assucarados  trovadores  infectam  com  os  seus 
—concelli  -  a  degradada  lyra  de  Virgilio  e  Horá- 
cio; os  Sei  piões,  os  Eiuilios,  os  grandes  generaes, 
as  invcucivcis  tropas  da  iriumpliante  republica 


7b  NOTAS 

s3o  substituídas  por  um  bando  de  assoldados 
Suissos,  cujas  grandes  proesas  e  valor,  cujos 
puerreiros  exforços  são  o  fazer  a  guarda  do  papa. 
Em  vez  do  au?usto  e  venerando  senado,  um 
ajuntamento  (l'homens  ambiciosos,  insaciáveis 
d'ouro,  regem  despoticamente;  nâo  os  direitos 
das  nações,  e  deveres  dos  reis  e  povos  pelas  in- 
variáveis leis  da  justiça,  como  os  antigos  conscrip- 
tos;  mas  o  corpo  invalido  da  igreja  por  elles  ar- 
ruinada e  depravada,  levando  simplesmente  o 
fito  em  pescar  para  a  barca  do  humilde  S.  Pe- 
dro as  riquezas  das  nações  com  o  sagrado  anzol 
das  indulgências,  relíquias  e  breves,  —  «Roma! 
oh  Roma!  (exclamará  o  contristado  viajante)  tu 
ja  nSo  existes;  a  tua  liberdade  expirou  em  Catão, 
e  tu  com  ella!  A  liberdade  te  conservava  as  vir- 
tudes, que,  mais  que  tuas  façanhas,  te  consti- 
tuíram no  império  do  orbe.  Perdeste-a;  e  desde 
então  caminhaste  sempre  com  gigantescos  passos 
ao  abysrao  de  miséria  e  vileza,  em  que  jazes  se- 
pultada para  eterno  exemplo  do  universo. 

E  com  effeito,  lai  é  a  sorte  de  quasi  todas  as  na- 
ções! Florecem,  reinam  em  quanto  a  liberdade, 
ou  a  larva  delia  subsiste;  apenas  se  eleva  a  lyran- 
nia.  caí  de  rojo  com  a  liberdade  o  amor  das  vir- 
tudes; a  servidão  embrutece  o  homem;  a  socieda- 
de se  muda  em  um  rebanho  de  escravos;  e  a  mi- 
séria succede  á  opulência.  Assim  cahiu  Roma,  as- 
sim Sparta,  assim  Holianda,  assim  tantas  outras. 
Que  exemplos  para  os  tyrannos,  e  que  terrível 
escarmento  para  os  povos!  Miseráveis  déspotas, 
embreve   estendereis    o  sceptro    de  ferro  sobre 


AO    RETRATO    DE    VÉNUS  77 

montões  de  ruínas.  Os  Vândalos,  os  Godos,  os 
Árabes  não  se  acabaram  ainda;  e  vós  os  chamais 
com  tanta  anciã!  ' 


'  É  fácil  de  ver  (juo  esta  nola  foi  escri|»la  anlcs  do  dia  21 
d  Agosto.  Felizmente  ja  se  podem  liatlar  estes  assumptos  com 
meãos  atrabilis. 


]¥o(»s  ao  cauto  terceiro 


""  Enfrm  as  iras  de  Nejytuno  indómito.  " 

Império  premit,  et  vincli?,  et  cárcere  froenat. 

ViRG.  Mn.  Lib.  I,  V.  34. 

"  Ve  d'Ad)'ia  o  golpho  tempestuoso  efero.  " 

K  o  golpho  He  Veneza,  aniigamente  chamado  de 
Adria,  oii  Adrialico,  d'uma  cidade  desle  nome. 

"  Alli,  fugindo  aos  clamorosos  brados.  " 

No  meio  do  século  V,  foram  destruidas  por  Attila, 
rei  dos  Hunos,  as  cidades  de  Aqiiilea,  Altino, 
Concórdia.  Opitergo  e  Pádua,  todas  visinhas  ao 
golpho,  então  chamado  Adriático.  Os  iiabifantes 
destas  cidades,  fugindo  ao  furor  irresislivel,  e  cruel 
ferocidade  dos.  bárbaros,  se  foram  refugiar  nas  pe- 
íjiienas  e  desertas  ilhotas  do  mar  Adriático,  e  fun- 
daram assim  o  conjeço  de  Veneza.  (Vid.  AnquóiU, 
Millol,  e  la  Istoria  de  Vinegia  per  *") 

"  Empório  foi  depois  do  rico  orieide.  " 

Antes  que  ha  índia  fosse  descuherla  pelos  Porlngue- 
zes,  ha  tnayor  parte  da  especiaria,  droga,  e  pedraria 
se  vacava  pelo  mar  roxo,  donde  ya  ler  d  cidade  Da- 


XOTAS  AO  RETRATO  DE  VÉNUS       70 

Icxandria,  e  dalli  ha  compravâo  lios  Venezianos,  que 
a  espalhaavào  2)ela  Europa. 

Castanheda  Lib.  I,  cap.  i. 

"  F  do  alado  Leão  tremeu  (jran  tempo.  " 

Um  leão  com  azas  era  o  timbre,  ou  armas  da  re- 
publica, ou  senboria  de  Veneza. 

'^  E  negue  a  esteira  das  cortadas  omJas.  " 

Eakira.  ou  esteiro,  que  assim,  e  iiidiíTerentemente 
escrevem  e  usam  os  nossos  clássicos,  éa(|uelle  sul- 
co, que  os  navio?  vão  fazendo  e  deixando  depoz  si 
nas  aguas,  e  que  bom  espaço  se  conserva  depois. 
Maior  é  talvez  o  numero  das  pessoas  que  sshem  a 
simpjicissima  razfio  pbysica  deste  natural  pbeno- 
mcno.  do  que  o  das  que  o  nome  portuguez  lhe 
conhecem. 

"  Foi  a  jjatria  d'heroes,foi  mãe  de  sábios. " 

•     .     .     .     Air  Adria  in  seno 
Um  popolo  d'croi  saiiuna     . 

Matbst.  Ezio  :  alto  I. 

"  Adr tintes  gentis,  oh  !  vinde  a^fre}ifes.  " 

Assim  como  de  Tugns  Latino  fez  ílamOes  Tágides  ; 
e  outros  do  Douro— Durms — Ihirindes  «Uc.  ;  í|uení 
me  impede  a  mim,  que  de  Adria,  fará  Adriades? 


80  NOTAS 

"  Qual  Verona  folgou  com  seu  Catullo." 

.     .     .     .    Gaudel  Verona  Catullo, 
Pelignae  d  içar  gloria  gentis  ego. 

OviD.  Trist. 

"...     Mil  graças  mil  encantos 

"  Sem  mysterio,  sem  véo  te  deu,  lhe  dera.  " 

Assim  como  Catullo,  Paulo  Veronese  é  notado  de 
pouco  honesto.  Todos  sabem  a  lascívia  e  volnptno- 
sidade  (los  versos  do  primeiro:  os  quatlros  do  se- 
gundo tem  uma  poesia  deste  género  bem  mais  ex- 
pressiva. 

^'  Em  que  IJie  j)eze  ú  inveja,  e  seus  furores.  " 

Eu,  que  apezar  da  inveja,  e  seus  furores 
Aos  astros  levo  o  nome  Lusitano. 

Elpi«.  I\'onacr.  Od.  a  Vaso.  da  Gani. 

Em  que  lhe  péze,  e  em  que  lhe  pez  são  ph rases  dos 
melhores  clássicos  :  mil  exemplos,  por  um,  pudera 
appresentar  ;  mas  citarei  o  que  tenho  aqui  mais  á 
mão,  que  é  o  P.  Vieira  {Vozes  baudosas :  voz  histor.) 

"  Scena  outr^ora  infeliz  da  gloria  Franca.  " 

As  províncias  Flamengas  foram  um  dos  principaes 
theatros  das  ambiciosas  guerras  de  Luiz  xiv  com 
a  Hollanda.  (Vid.  Voltaiue  Siécl.  de  Louis  xiv.) 


AO   RETRATO    DE    VÉNUS  81 

"Lhe  bafejades  dicinal  csjJtrito.  " 

Quasi  divino  qaodam  spirilu  inflari. 

CicBB.  pro  Arch.  §.  8. 

"  JE  o  veneno  lethal  lhe  infunde  n^alma.  " 

Sic  effata,  facem  juveni  conjecit,  el  atro 
Lumine  íumanlis  Úxit  sub  peclore  tajdas. 

YiRG.  iEn.Liv.  VIII,  V.  56,  e  seg. 

"  Quam  hcJIo  é  na  expressão  Vaén  correcto.  " 

Porventura  não  serão  os  verdadeiros  accentos  da 
pronúncia  nacional,  os  qne  ponho  aqui  neste  e  nos 
outros  nomes  dos  pintores  ílamenfíos  :  piiz-lhe  os 
necessários  para  o  rythmo,  que  é  a  minha  (ibri^a- 
ção  ;  dos  outros  não  sei,  pois  qne  ifjnoro  a  tal  lin- 
gua;  no  que,  segundo  creio,  não  perderei  nada. 

"  Difficcis  nomes  d' estremados  mestres.  " 

E  hem  difíiceis,  com  eíFeito.  para  accomodar  ao 
verso  com  os  seus— /c/; — rr — etc:  não  são  daquelies, 
de  que  Horácio  diz  : 

Verba  loquor  socianda  cbordis. 

HoBAT.  Lib.  II,  Od. 

"  Do  mestre  a  obra  maior,  Waudiek  insigne.  '* 

Voltaire  diz  algures,  fallando  de  Tasso,  que,  se  é 


82  NOTAS 

verdade  o  que  vulgarmente  se  diz  ,  que  os  Lusía- 
das, e  seu  auctor  formaram  a  Gerusalera  do  pri- 
meiro, fora  esta  a  mellior  obra  de  Camões.  INão 
estou  absolutamente  por  este  espirituoso  dito  de  Vol- 
taire; mas  com  justiça  o  appliquei  a  llubens,  e 
Wandick. 

"  E,  em  vez  d' um  Fábio  tardador.     .     .     " 

Assim  traduziu  Filinto  Elys.  o  Fahius  cunlaclor  dos 
Latinos.  (Vid.  Filint.  Ode  d  Liberdade.) 

"...  Ja  no  Sena  ovante.  " 


Sobre  a  margem  feliz  do  rio  ovante, 
Donde  arrancando  omnipotência  aos  fados 
Impoz  tropel  d'heroes  silencio  ao  globo. 

BocAG.  Od.  a  Filint. 


"  Qite  do  Mcschacebeu  vingando  as  margens,  " 

Este  é  o  verdadeiro  nome  do  célebre  rio  da  Luisia- 
íia  ,  na  America  Septentrional,  chamado  vulgar- 
mente Mississipi.  (Vid.  Chateaubriand  :  Génie  du 
Christ.  Part.  IIÍ,  Livr.  5.) 

"  Co  Euripides  Francez  disputa  ainda. " 

Racine  bem  se  pôde  assim  chamar,  não  somente 
por  suas  absolutas  e  eminentes  qualidades  ;   mas 


AO    RETRATO    DE    VÉNUS  83 

pela  relativa,  e  mui  particular  da  similhança  dos 
ingenhos,  e  feliz  imitação  de  Racine.  (Vid.  Lahar- 
PE  :  Cours  de  Litlcr. ;  Lemekcier  :  ibid.;  e  o  P.  Bru- 
MOY  no  Theatr.  dos  Gregos.) 

"  Ao  ver  nas  murchas,  csmyrradas  faces. " 

J'ai  langui,  j'ai  séchc  dans  Ics  (eux,  dans  les  larmes. 
Raciw.  Phoedr.  Act.  II. 

Dcsfalleci,  murchei  no  ardor,   no  pranto. 

Trad.  ms.  do  Sr.  H.  E. 

*'  Bhim  criminoso  amor  violência  efoyo.  " 

Quaod  je  suis  toule  en  ícu,  vous  neles quo  de  glacc. 
Phoedr.  Act.  II. 

"  Os  manes  foUjam  de  Rolliii,  Voltaire.  " 

Le-Gros  é  pintor  histórico;  e  Iloilin  c  Voltaire  fo- 
ram liistoriúgraplios  francezes. 


IVotas  ao  eaiito  «iiiartc» 


*'Onde  a  voz  de  Bocage,  a  voz  de  Gomes." 

Outros  quaesquer  poetas,  e  de  mais  nomeada  por- 
ventura,  pudera  eu  citar;  mas  quiz,  quanto  em 
mim  era  ,  e  o  permitlia  o  assumpto  e  a  obra, 
prestar  homenagem  a  dous  ingenhos,  que  hon- 
raram a  pátria  e  a  liugua;  e  dos  quaes  o  pri- 
meiro depois  d'uma  fama  gigantesca,  e  maior 
que  seu  merecimento,  passou  a  ser  enxovalhado 
por  quanto  Mevio  eBaviosahe  dizer  —  Traduziu, 
traduziu,  traduziu  tudo  —  como  se  um  iraductor 
como  Bocage  não  fosse  um  poeta  de  muito  mere- 
cimento, e  de  muito  maior,  que  tantos  originalis- 
tas  de  nome  (de  nome  sim;  que  realmente  deus 
sabe  o  que  é);  como  se  Pope,  Dryden,  Annibal 
Caro,  JoAo  Franco  Barreto,  e  tantos  outros  illus- 
tres  traductores  não  figurassem  mais  na  repu- 
blica litteraria  que  tantos  épicos  modernos....  Eu 
não  sou  dos  apaixonados  do  privilegio  exclusivo, 
(|ue  ha  certo  tempo  obtiveram  entre  nós  as  tra- 
ducçòes.  Uma  nação  (|ue  assim  obra  por  espirito 
de  priguiça,  ou  menos-preço  de  si  própria,  em 
vez  de  enriquecer  Sua  lilteratura,  empobrece-a 
e  perde-a.  De  J.  B.  Gomes  e  da  sua  Castro  tan- 
to mal  como  bem  se  tem  dito.  Não  a  dou  por 
uma  tragedia  perfeitamente  regular,  não  a  com- 
paro ás  grandes  peças  de  Bacinc  e  Alfieri;  mas 


AO   RETRATO    DE  VÉNUS  85 

sei  que  tem  muitas  bellezas,  e  que  n'um  thea- 
tro  tam  pobre,  como  o  nosso,  é  digna  de  muita  e 
muita  estimação.  Para  criticar  a  Castro  de  Go- 
mes é  preciso  encbugar  muilas  vezes  as  lagrimas, 
que  ella  excita  continuamente. 

''Calcando  a  juba  dos  LcÕes  (irypha.nhos^, 
"Parando  ás  Agmas  efe." 

Revoluções  de  1640  e  1808. 

"     .     .     .     .   Ah  f  SC  aura  amiga 
"     Continua  a  soprar.     .     .     " 

Em  Roma,  assim  como  na  Grécia,  se  formariam 
Zeuxis  e  Apelles,  se  os  liomanos  dessem  a  Fábio 
as  bonras,  que  seus  talentos  mereciam.  Diz  Cí- 
cero algures  nas  QueslOes  Tusculanas. 

"Inviolável  lei  um  teu  desejo." 

JVaç5o  nenhuma  (diz  Florian  no  avant  propôs  de 
Sancho)  possue  a  arte  d  amar, como  a  portugueza. 

,  "Os  feitos  dignos  de perenne  historia." 


.    as  cousas    .... 
Que  merecerem  tor  eterna  historia. 

Cahõbs  Lvs.  Caat.  7. 


86  NOTAS 

"Sensiveis  corações,  vinde,  espclhar-ros  etc." 

Vidi   ssepius  inscriptionis  imaginem,  et  sine  lacrymis   tran- 
sire  non  potui. 

S.  GnEGOR.  II    Coneil.  Nicen.  act.  40. 

"Prazorfi  do  chridão,  doçuras  d'alma." 

Le  nouveau   testament   cbange  le  gcnie  de  la  peinlure.  Sans 

lui  rien  ôler  de  sa  sublimilé,  il  iui  a  donné  plus  de  teiidrosse. 

Gbateaubrund  Gen.  du  Clir,  part.  III,  Livr.  1,  cap.  4. 


'^Portento  d'cjrprcsmo,  rira  faísca 
"I>o  lume  eterno     .     .     .  " 


Les  peintres. .  famille  sublime  qae  le  souflle  de  Tesprilravit  au 
dessus  de  Ihomme. 

Cháieaubriand  ibid. 


"Fastoso  monumento  d'aUa  Ibéria." 

Resta  ainda  resolver  o  grande  problema:  Se  a  des- 
cuberta  da  America  foi  ulil  ou  prejudicial  d  Euro- 
pa; o  qual,  emqiianto  a  mim,  depende  d'outro 
mais  genérico:  Se  as  conquistas,  principalmente 
longínquas,  podem  ser  úteis  a  uma  nação.  Não  me 
atrevo  a  resolver  nem  um  nem  outro.  As  theo- 
rias  falham  quasi  sempre  em  politica,  bem  como 
em  moral.  So  noto  imparcialmente,  que  a  íles- 
panba  foi  poderosíssima  nação  antes  do  XVI  se- 


\ 


AO  RETRATO   Ml  VÉNUS  87 

cnlo;  que  Portugal,  se  nos  tempos  de  D.  Manoel 
e  João  III  íloreceu,  e  deu  brado  na  Europa  e  no 
mundo;  depois  não  fez  mais  que  luctar  contra 
innumeraveis  desgraças:  que  não  tivemos  mais 
um  João  lí;  e  que  as  conquistas  d'Asia  e  Egypto 
deram  por  Icrra  com  o  império  Romano.  —  Pro- 
vêm isto  das  descubertas  em  si?  —  Provêm  do 
uso  que  d'ellas  se  fez?  —  Continua  a  minha  igno- 
rância.—Os  monarchas  liespanhoes  fundiram  no 
Escurial.  e  n'outras  cousas  d'esta  ordem,  as  im- 
mensas  riquezas  das  índias  occidentaes.  ganhas  á 
custa  de  tantos  crimes,  barbaridades,  irreligião, 
fanatismo  e  sacrilégios  de  Corlêz  e  de  mil  ou- 
tros. Diminuiu  no  continente  hespanhol  a  popu- 
lação; não  &e  fez  o  menor  caso  da  agricultura;  o 
commercio  não  foi  senão  passivo;  e,  depois  d'um 
breve  esplendor,  a  suberha  Ilespanha  cahiu  na 
miséria  d'uma  nação  pobre  e  falta  de  tudo,  a  pe- 
zar  de  toda  a  sua  prata.— E  que  diremos  de  nós? 
— O  mesmo,  com  alguma  differença  para  peior. 
Todo  o  homem,  que  pensa,  sabe  o  que  eu  pode- 
ria dizer  neste  artigo;  como  para  estes  só  escre- 
vo, elles  meenlendom;  e  eu,  com  o  meu  silencio, 
me  poupo  ás  criticas  da  ignorância  e  da  sórdida 
adulação.  {E' bem  facilr  de  ver  qne  ésía  nola  foi 
igualmente  escripla  antes  do  dia  !2í  d' Agosto.) 

^'Tcrrafcrtil  d'he)'oc'S,  solo  fecumlo, 
*'Sahr  /     .     .     .  " 

Salve  magna  parcos  fruguru     .  •  icllus, 

Magoa  virum. 

Vino.  Georg.  Lib. 


bS  NOTAS 

"O  mmoso  sendal,  Ja  pouco  avaro." 

O  véo  dos  roxos  lirios  pouco  avaro. 

C&MÕES  Lus.  Cant.  9. 

Diripui  tunicam,  nec  multam  rara  noccbal. 
OviD.  Elcg.  iib.  1,  Eleg.  S. 

"Que  divinos  encantos  não  descobretn  etcJ* 

E  tuto  ciò,  cbe  piii  la  vista  alletti. 

Tas80  Gerusal.  Cant.  XV,  st.  59. 

"Sonhada,  j^ytliagorica   harmonia." 

A  hnrmonía  das  spheras  é  um  dos  sonhos  de  Py- 
tliiigoras.  Póde-se  ver  a  satyra  galantíssima  des- 
tas e  outras  philosophicas  extravagâncias  no  ce- 
lebre poenaa  alIem5o  —  Musarion  —  de  Wielland: 
Canto  II. 

"Arrulharam  d' amor  meigas  pombinhas." 

Presentem  ja  no  estremecido  arrulho 
Os  propinquos  prazeres . 
FiLiNT.  Elys.  Ode  a  Yenus.  (Tom.  5.) 

"Boseos  descurvam,  se  arredondam  braços." 

NV®*   ^'  hpiyvtia    (pitm   poo  oo  áxtXcf    iír. 

HoMER,  Odyssea  B.  (Lib.  II.) 


AO    RETRATO    DE  VÉNUS  89 

*' Ondeiam  n'ah'a  frente  as  tranças  d'evano." 

Os  cabellos  e  olhos  pretos  eram  os  mais  estima- 
dos dos  Romanos— iV/gra  oculis,  nigraque  capillis: 
Horat. —  Se  é  mau  gôslo,  confesso  que  o  tenho, 
Quem  amar  mais  os  louros,  não  tem  senão  di- 
zer: 

«Ondeiam  n'alva  frente  as  tranças  (l'ouro." 

Assim,  eu,  e  o  leitor  ficamos  ambos  satisfeitos. 
De  mais,  até  lhe  posso  ensinar  um  texto,  com 
que  provar  o  seu  gosto.  E'  a  auctoridade  de  Pe- 
trarca, que  nao  e  peca  neste  ponto: 

L'auro,  e  i  topazj  ai  sol  sopra  la  neve 
YincoD  le  biondc  cbiorae  presso  agli  occhi. 

Petrarca,  rim.  Part.  I.  cans.  9. 

"Deste;  que  bem  o  sei    ..." 

Assim  é  de  crer  piamente;  e,  comquanlo  o  não 
digam  os  DD.,  eu  o  penso.  O  leitor  pôde  ficar 
pelo  que  quizer  —  salva  fide — pois  estas  matérias 
fião  de  mylhologia,  e  não  de  theologia. 

"Ja  j)or  milagre  de  Cyprina  é  j)rompta." 

Manca  i!  parlar;  di  7Ívo  allro  non  chiedi. 
Ne  nuança  queslo  ancor,  se  agii  occhi  credi. 

Tass.  GeTus.   Cant.  XYI. 


90      NOTAS  AO  RETRATO  DE  VÉNUS 

"E  novos  PygmaliÕes  por  elle  ancdam.^* 

Pigmalion,  quanto  Iodar  ti  dei 
Deír  imagine  tua,  se  mille  volte 
Wavesti  qucl,  eh'  io  sol'  unavorrei. 

Petrarca,  rime,  Part  I,  sonelt.  S8. 

"Admira  ojoren  a  helleza     ..." 

Faria,  pouco  mais  ou  menos,  as  mesmas  extra- 
vagâncias com  o  retrato,  que  o  amante  de  Júlia 
com  o  da  sua  bella. 

(Vid.  Nouvell.  Iléloi.  Part.  II,  Lelt.  22. 

"Os  lacfcos  pomos     ..." 

Le  pome  acccrbe,  e  crude    .     .     . 

Tass.  Gerus.  Cant.  XVI. 


"Serão  meus  versos,  como  tu,  divinos. 

Me  juvat  in  grcemio  doctse  legisse  puellae, 
Auribus  et  puris  dieta  probasse  mea: 
Haec  si  conlingant    .     . 
.     .     .    Domina  judice,  tutus  ero. 

Propert,  Eleg. 


ENSAIO 


Wi  â  ilIMH  Di 


ENSAIO 


SOBRE 


A  HISTORIA  DA  PINTURA 


o  OBJECTO  principal  deste  ensaio  é  a  historia 
da  pintura.  A  maior  parte  do  meu  poema  será 
inintolligivel  sem  elle  a  todo  o  leitor,  que  não  ti- 
ver feito  um  comprido  estudo  nesta  matéria. 
Menos  porem  bastaria  talvez  para  a  intelligencia 
do  opúsculo:  fui  mais  longo  e  extenso,  princi- 
palmente na  historia  da  pintura  portugueza, 
porque  julguei  útil  dar  á  minha  nação  uma  coi- 
sa que  ella  não  tinha,  a  hiographia  critica  dos 
seus  pintores.  Sobejo  c  enfadonho  trabalho  mo 
deu:  oxalá  que  approveite!  liem  pago  fico,  se, 
entre  todos  os  leitores ,  deparar  com  dous,  em 
quem  faça  impressão  o  amor  de  boas-artes,  e  da 
pátria,  que  toda  a  obra  respira. 


94  ENSAIO   SOURE    A  HISTORIA 

CAPITULO    I 

Dos  Pintores    Gregos  e  Romanos. 

O  numero  dos  pintores  Gregos  e  ainda  Ro- 
manos, cujos  nomes  chegaram  até  nós,  é  grande, 
mas  o  d'aquenes,  cujas  obras  ou  maneiras  co- 
nhecemos, é  bem  diminuto.  O  respeito  da  an- 
tiguidade com  tudo  no-los  faz  admirar,  por 
ventura  mais,  do  que  o  seu  merecimonto  exige. 
Os  quadros  modernamente  descobertos  nas  cin- 
zas do  Herculano  e  Pompeia ,  alguns  frescos 
conservados  nas  ruinas  de  Roma  e  outras  cida- 
des de  Itália  tem  subejamente  mostrado  aos  en- 
tendedores imparciaes,  que  a  pintura  dos  anti- 
gos, ainda  mesmo  no  seu  maior  auge,  não  pode 
soíFrer  compararão  com  o  menor  quadro  dos 
Rafados,  dos  Corrcgios,  dos  Caracóis,  nem  mes- 
mo d'outros  pintores  de  segunda  ordem  das  mo- 
dernas escholas.  Duas  coisas  principalmente  fal- 
tavam aos  antigos  pintores.  Uma,  as  tintas,  cu- 
jas bellas  composições,  descobertas  em  mui  pos- 
teriores séculos,  absolutamente  ignoravam;  não 
conhecendo,  senão   us  terras  de  côr,  e  os  mctacs 


DA  PINTURA  95 

calcinados;  faltando-lhes  aquellas  cores,  que  dão 
o  tom  médio,  entro  a  luz  o  a  sombra,  que  for- 
mam o  matizado  e  assombrado,  e  exprimem  a 
natureza  tal  qual  ella  é,  e  com  toda  a  sua  for- 
mosura: outra,  o  conhecimento  das  leis  da  pros- 
pectiva, como  bem  mostram  todas  as  suas  obras, 
que  nos  restam:  defeito  este,  que  salta  aos  olhos, 
e  de  impossivel  disfarce.  Só  aquelle  cego  fana- 
tismo, que  faz  cançar  os  pedantes  no  estudo  do 
Hebraico  e  Syriaco  c  d'outras  inúteis  antigua- 
Ihas,  pode  achar  nos  quadros  Gregos  e  Roma- 
nos bellezas,  niTo  digo  superiores,  mas  iguaes  ás 
das  magnificas  pinturas  do  bom  tempo  das  mo- 
dernas escholas,  e  ainda  mesmo  das  de  hoje;  com 
quanto  a  pintura,  á  excepção  da  franceza,  bas- 
tante se  approxima  da  decadência  pelo  espirito 
servil,  mania  das  copias  e  mal  entendida  imita- 
ção. 

CAPITULO  II 

Restauração  da  inntura  na  Itália. 

Cimabúo,   nascido  era   12'i(),  '    e  morto   cm 

'    iMuncli  o  faz  nascido  cm  1240—10  annos  depois. 


96  ENSAIO    SOBRE  A  HISRORIA 

1300,  é  conhecido  em  toda  a  Europa  pelo  hon- 
roso titulo  de  restaurador  da  pintura.  Ouviu  os 
principios  de  sua  arte  d'alguns  pintores  Gregos 
vindos  a  Florença,  que  ainda  conservavam  res- 
tos do  hom  stylo  da  nação:  aperfeiçoou-se  de- 
pois com  o  estudo,  e  imitação  dos  poucos  mo- 
delos antigos,  que  então  appareciam  na  Itália. 
Preciosas  descobertas,  que  se  foram  pelo  andar 
dos  tempos  fazendo,  pouco  a  pouco  desterraram 
a  barbaridade,  que,  entre  as  outras  boas-artes, 
tinha  também  sepultado  a  pintura.  As  estatuas, 
os  quadros,  os  relevos  arrancados  das  cinzas  e 
ruinas  dos  famosos  monumentos  romanos,  quan- 
tos mestres,  quantos  primores  d'arte,  d'archi- 
tectura,  sculptura  e  pintura  não  deram  á  Euro- 
pa! Miguel  Angelo  confessava  dever  toda  a  sua 
sciencia  ao  assiduo  estudo,  que  por  toda  a  vida 
fizera  no  tronco  '  de  Hercules,  no  griqio  '^  de 
Laocoon,  no  Apello »  do  Belveder,  e  n'outros 
modelos  da  bella  antiguidade. 

Com  quanto  porem  a  pintura  e  mais  boas- 

'    Famosos  restos  da  estatua  de  Apoloi)io  Atheniense. 
'    Obra  de  três  escultores  Rhodios  Athenodoro,  Agesandro 
e  Polidoro. 
'    Estatua  bem  conhecida. 


DA    PIJfTURA  97 

artes  não  possam  propriamente  dizer-se  restaura- 
das antes  do  século  de  Leão  X,  que  foi  o  de  Ra- 
phael,  de  Miguel  Angelo,  de  Leonardo  da  Vin- 
ci,  etc;  Cimabúe  comtudo  foi  o  pae  da  pintura 
moderna;  suas  obras  espalhadas  pela  ItaHa  reno- 
varam o  bom  gosto,  e  abriram  os  alicerces,  so- 
bre que  se  havia  depois  formar  o  grande  edificio 
das  escholas  Florentina,  Romana,  etc. 

Todavia,  em  abono  da  verdade  devemos  con- 
fessar, que,  posto  que  Cimabúe  possua  com  ra- 
zão o  titulo  de  restaurador  da  pintura;  outros 
antes  d'elle  houve,  que  se  o  não  excederam,  lhe 
não  foram  ao  menos  inferiores.  De  Guido  de 
Senna,  pintor  do  XIII  século  existe  em  uma 
igreja  de  sua  pátria  um  quadro  da  Virgem,  tão 
bom  como  os  melhores  de  Cimabúe:  o  seu  dese- 
nho é  de  bom  stylo,  e  ainda  fresco  de  cores,  ape- 
zar  do  ser  feito  no  principio  do  mesmo  século, 
como  indica  a  inscripção,  que  se  Ic  por  baixo. 

Me  Guido  de  Sonnis 
Diebus  depinxit   amenis; 
Quem  Christus  lenis 
Nullis  nolit  agcre  penis. 
A.  D.  MCCXXI. 


98  ENSAIO    SOBRE    A    HISTORIA 

Ora,  a  data  deste  quadro  é  anterior  ao  nasci- 
mento de  Cimabi'ie,  afíirmado  por  uns  em  1230, 
e  por  outros  (como  Pruncti)  em  1240;  e  por 
isso  os  Semienses  querem  disputar  a  Cimabúe 
o  titulo,  quo  a  elle  e  sua  pátria,  Florença,  tan- 
to ennobrece.  Mas  debalde;  porque  de  Guido 
não  se  conhece  outra  obra;  e  de  Cimabúe  exis- 
tem ainda  muitas,  cuja  nomeada  o  faz  hoje 
mesmo  celebre  e  conhecido,  e  que  n'aqucllc 
tempo   serviam  de  modelo   aos   seus   discipulos. 

Do  principio  também  deste  século  XIII  se 
conservava  em  Luca  um  antiquissimo  quadro 
de  certo  pintor  d'aquella  cidade:  representava 
S.  Francisco  d'Assis.  Seu  deseuho  é  correcto, 
posto  que  um  pouco  rude;  o  ar-de-cabeça  tem 
muita  expressão,  e  as  mãos  são  bem  tractadas.     ' 

Deste,  e  d'outros  alguns  monumentos  desta 
épocha,  devemos  concluir:  que  Cimabúe  não 
foi  o  primeiro  que  na  Itália  começou  a  pintar 
com  menos  defeitos:  mas   nunca  se  poderá  asse- 

'  Advirto,  e  fique  advertido  por  todo  o  decurso  deste  en- 
saio, que  quando  digo,  que  este,  ou  aquelle  quadro,  ou  es- 
tatua se  acham  em  Roma,  Florença,  ou  outra  qualquer  cidade; 
deve  sempre  entender-se  antes  das  ultimas  revoluções  da  Eu- 
ropa. 


DA    PINTURA  99 

verar,  que  elle,  e  sua  escliola  (a  Florentina)  não 
foram  os  restauradores  e  pães  da  moderna  pin- 
tura. 

O  que  Pruneti  diz  a  este  respeito  não  destrói 
os  meus  principios. 

Jamais  as  sciencias,  e  artes  foram  de  repente 
á  perfeição.  Antes  de  Sócrates  e  Platão  existiu 
Pythagoras  e  outros  philosophos,  que  lhe  abri- 
ram o  caminho;  antes  de  Hippocrates,  Avicena 
e  Averroes  '  houve  Esculápio,  e  outros  mezi- 
nheiros;  antes  de  Homero,  Hesiodo  e  Virgílio, 
havia  Orphcus  e  Linos;  Eschylo,  Sóphocles, 
Euripides  e  Aristophanes  foram  precedidos  por 
Thespis;  os  erros  de  Descartes  allumiaram  New- 
ton; Mairet,  Routrou  e  Cornoille  formaram  Ra- 
cine e  Voltaire;  e  entre  nós  finalmente,  antes  de 
Camões,  Ferreira  e  Bernardes  houve  Gil  Vi- 
cente, Bernardim  e  outros  muitos,  quo  lhes 
franquearam  a  carreira  poética.  Agora  quasi  era 
nossos  dias,  na  brilhante  restauração  das  lettras, 

•  Nilo  confundo  Avicena,  e  Averroes  com  Oippocrates:  bem 
sei  a  distancia  de  tempos  e  merecimentos.  Faço  porem  esta 
advertência,  porque  n<1n  leia  isto  aljjum  Esculápio  cnlhusias- 
ta,  que  grite:  au  tcandalc. 


100  ENSAIO    SOBRE    A    HISTORIA 

OS  Elpinos,  "OS  Filintos,  os  Gomes  e  os  Bocages 
não  apyiareceram  de  repente. 

Assim  gradualmente  foram  crescendo  os  pin- 
tores na  Itália,  e  adiantando-se  a  perfeição  de 
suas  obras.  Nos  últimos  parocismos  do  império 
Grego  uma  infinidade  de  professores  vinham 
procurar  entre  os  Italianos  um  asylo  mais  se- 
guro, e  uma  pátria  menos  despótica:  e  quando 
finalmente  em  1448,  tomada  Constantinopola 
por  Mahometh  II,  se  extinguiu  de  todo  aquel- 
le  phantasma  colossal,  maior  numero  ainda  se 
espalhou  por  todo  o  meio-dia  da  Europa,  e  con- 
correu para  a  perfeição  da  pintura  moderna;  as- 
sim como  a  alluvião  de  theologos  Gregos  con- 
correu, e  muito,  para  a  perpetuação  das  barba- 
ridades scholasticas,  e  atrazo  das  sciencias.  São 
deste  tempo  — Gioto,  cujas  obras  se  acham  ainda 
em  Florença,  Piza  e  Roma  nascido  em  1276, 
e  morto  em  1336;  foi  discipulo  de  Cimabúe,  e 
contribuiu  muito  para  a  perfeição  da  arte  pelo 
bem-ordenado  da  sua  pintura,  e  boa  disposição 
de  figuras. 

Masaccio,  nasc.  em  1417,  e  mort.  em  1521, 
seria  o   verdadeiro  e  completo  restaurador  da 


DA   PINTURA  101 

pintura,   se   vivesse  mais  tempo:   o  pouco  que 
d'elle  resta,  acha-se  em  Florença. 

Luca  Signorelli  di  Cortona  n.  em  1449,  e  m. 
em  1521;  foi  celebre  pela  precisão  de  desenho,  e 
belleza  de  composição,  todavia  fraco  no  colorido. 
Notam- se  bem  estas  propriedades  nos  seus  qua- 
dros, que  ainda  se  encontram  no  Loreto  e  Ro- 
ma. E  este  é  o  ultimo  pintor  de  fama  anterior  a 
Leonardo  da  Vinci,  que  depois,  com  Miguel  An- 
gelo, foi  julgado  fundador  da  eschola  Florentina. 

CAPITULO  III 

Da  Eschola.  Romana 

Apezar  de  que  a  eschola  Florentina  com  ra- 
zão se  possa  chamar  a  mais  antiga,  pois  que 
seus  alluranos  se  começam  a  contar  de-sde  Cima- 
búe;  com  tudo  a  Romana  foi,  e  sempre  será 
como  a  primeira  olhada,  não  só  em  favor  e  res- 
peito de  seu  illustre  chefe  Raphael  Sanzio  de 
Urbino;  mas  pela  bellesa  de  desenho,  elegância 
do  composição,  verdade  de  expressão,  e  sobre 
tudo  intelligencia  de  attitudes,  que  a  caracte- 
rizam e  sobreelevam  a  todas  as  outras. 


102  ENSAIO    SOBRE   A    HISTORIA 

As  descobertas  dos  grandes  monumentos  de 
pintura  e  sculptura,  que  os  zelosos  cuidados  de 
alguns  papas,  e  outras  principaes  pessoas  de 
Itália  desenterravam  todos  os  dias  das  ruinas 
da  antiga  E-oma,  formaram  o  gosto, dos  mestres 
desta  eschola,  moldando-o  no  antigo.  E  tal  é  a 
caracteristica  das  suas  producçÕes.  Os  rasgos 
mestres  d'aquelles  preciosos  antigos  lhes  inspira- 
ram uma  magestosa  solemnidade  de  expressão 
nas  grandes  ideias  que  concebiam;  e  esta  mira, 
que  levaram  sempre  os  pintores  Romanos,  lhes 
fez  desprezar  alguma  coisa  o  colorido:  defeito, 
que  bem  se  esquece  por  outras,  e  tão  brilhantes 
qualidades. 

Para  tecer  o  elogio  da  eschola  Romana  basta 
nomear  Raphael.  Que  nome  nos  fastos  das  boas- 
artes!  Se  VirgiHo  e  Homero  não  são  mais  cele- 
bres, que  Zeuxis  e  Apelles;  a  glória  de  Raphael 
quanto  é  superior  á  de  Tasso  e  Ariosto!  líao  me 
agrada  aquella  sentença  dos  antigos: 

— Ut  pictura  poesis— 
A  poesia  será  como  a  phitura 
(Bocage.) 


DA.  PINTURA  103 

A  poesia  (attrevi-me  a  pensá-lo  assim,  e  se  a 
novidade  não  agradar,  nem  por  isso  me  desdigo) 
é  uma  só:  aos  poetas-pintores,  seus  primeiros  fi- 
lhos é  dado  tratta-la  viva:  os  poetas- versejado- 
res só  com  o  véo  do  mysterio  coberta  a  podem 
ver  e  seguir.  A  poesia  animada  da  pintura  ex- 
prime a  natureza  toda;  a  dos  versos  porem,  me- 
nos viva  e  exacta,  falha  em  muita  parte  na  ex- 
pressão das  suas  bellezas.  Que  poeta  nos  pode- 
ria dar  uma  ideia  de  Rómulo  como  iJavid  no  seu 
quadro  das  Sabinas?  Que  versos  nos  poderiam 
fazer  imaginar  a  Divindade  como  a  transfigura- 
ção de  Raphael?  Que  poema  nos  faria  conceber 
a  magestade  d' um  Deiui  Crmdor  dando  forma  ao 
cáhos,  e  ser  ao  universo,  como  a  pintura  de  Mi- 
guel Angelo  ? 

Estas  reflexões  sobre  o  paralollo  das  duas  es- 
pécies de  poesia  são  minhas;  por  taes  as  dou,  e 
me  encarrego  do  mal,  ou  bem,  que  d'ellas  se  pen- 
sar. Por  ventura  não  foi  este  o  conceito  dos  an- 
tigos; mas  a  arte  mui  atrazada  entre  cUes  não  es- 
tava em  propoi  ção  da  nossa;  os  gregos  não  ti- 
nham, como  nós,  Homeros  em  pintura.  Im- 
mensas  vantagens,  como  já  notamos,  lhes  levam 
os  modernos  pintores;  a  que  de  mais  accresee  o 


104  ENSAIO  SOBRE    A  HISTORIA 

nobre  invento  da  gravura,  que  (bem  como  a  im- 
prensa nos  facilita  o  trato  dos  mais  antigos 
poetas  do  mundo)  transmitte  á  posteridade  e 
nações  remotas  os  esmeros  da  pintura,  e  ainda 
da  scultura.  Os  nossos  Appelles  não  podem  te- 
mer o  ser  conhecidos  pelos  vindouros  só  de  nome 
e  fama,  como  o  é  por  nós  o  dos  antigos;  a  es- 
tampa lhes  assegura  o  conhecimento  àe  facto  no 
mais  remoto  porvir,  e  mais  longes  chmas. 

Mui  fértil  foi  a  eschola  Romana;  grande  é  o 
numero  dos  seus  pintores:  daremos  de  cada  um 
d'elles  uma  brevissima,  porem  exacta  noticia: 
desta  maneira  terá  a  mocidade  applicada,  como 
em  synopse,  e  sem  o  trabalho  enfadonho  de  re- 
volver muitos  e  antigos  cartapacios,  a  historia 
completa  desta  e  das  outras  escholas,  em  que 
seguiremos  o  mesmo  methodo. 

Século  XVI 

Rafaelo  Sanzio  d'Urbino,  nascido  em  1483, 
morto  em  1420,  facilmente  julgado  o  príncipe 
dos  pintores:  nenhum  (se  não  for  o  moderno 
francez,  Mr.  David)  poderá  rivaHza-lo.  O  bri- 
lhante colorido  de  Ticiano,  a  belleza  das   tintas 


DA  PINTURA  105 

de  Corregio,  a  gicantesca  altivez  de  Miguel  An- 
gelo não  fazem  a  menor  sombra  á  gloria  do  gran- 
de Romano.  Raphael  levou  a  sua  arte  ao  grau 
de  perfeição,  de  que  é  capaz  a  humanidade.  Per- 
tender  dar  uma  ideia  d'elle  é  tentar  o  impossi- 
vel:  o  estudo  das  suas  producçÕes  é  o  único  meio 
de  o  conhecer.  Elle  ainda  vive  repartido  por  seus 
quadros,  um  dos  mais  bellos  e  ricos  ornamentos 
das  cidades  que  os  possuem.  Digam-o  os  tem- 
plos de  Roma,  as  casas  dos  principes,  o  Vaticano 
(onde  existe  a  sua  famosa  Bíblia),  e  sobre  tudo  a 
igreja  de  S.  P tetro  in  monte  situada  no  Janiculo; 
onde  se  conserva  o  primeiro  quadro  do  universo, 
a  única  producção  da  arte,  que  excede  a  nature- 
za, a  maior  honra  do  ingenho  humano,  a  melhor 
obra  de  Raphael,  a  sua  Transfiguração.  Tal  foi 
um  dos  primeiros  homens  do  mundo,  de  quem  (e 
com  mais  razão  por  ventura,  do  que  Horácio  di- 
zia de  si)  podemos  asseverar,  que  não  morreu 
todo:  Non  onínin  moriar;  ou  como  ja  se  disse 
em  portugucz;  O  sábio  não  rai  todo  á  sepultura. 
A  belleza  principal  das  suas  obras  é  o  desenho 
e  attitudos. 

Júlio   Romano    (Giulio   Pippi)    n.    1492,  m. 
1546;  foi  discipulo  de  Raphael.    Em  suas  obras, 


106  ENSAIO   SOBRE   A    HISTORIA 

que  principalmente  se  acham  em  Roma,  se  ve 
que  o  caracter  d'este  pintor  era  a  fôrça  e  ar- 
dimento:  o  seu  collorido  é  obscuro,  mas  o  dese- 
5iho  admirável. 

João  Francisco  Penni  (il  Fattore)  n.  em  1488, 
m.  em  1528 ;  trabalhou  quasi  sempre  debaixo 
das  vistas,  e  pelos  desenhos  de  Baphael,  seu 
mestre.  Suas  obras  principaes  são  as  gallerias 
do  Vaticano. 

PoHdoro  de  Caravaggio  n.  1495,  m.  1543;  foi 
fcom  colorista,  correcto  no  desenho,  nobre  e 
fero  nos  ares  de  cabeça. 

José  fíibera,  hespanhol,  e  por  isso  dito  il 
Spagnoleto,  nasc.  em  Valença  em  1589,  e  m. 
«m  1656.  O  seu  caracter  é  o  vigor  e  expres- 
são :  todas  as  figuras  austeras  e  carregadas, 
prophetas,  philosophos,  tudo  quanto  exige  um 
pincel  forte  e  vigoroso,  sahia  de  suas  mãos, 
como  das  da  natureza.  Suas  obras  principaes 
existiam  na  cartuxa  de  Nápoles;  e  entre  ellas, 
a  mais  conhecida  é  a  coUecção  dos  prophetas. 

Perrino  dei  Vague  Buonacorsi  n.  1500,  m. 
1547;  foi  tão  feliz  imitador  do  stylo  de  P^aphael, 
seu  mestre,  que  muitos  de  seus  quadros  passam 
por  d'elle. 


DA  PINTURA  107 

Innocenzio  d'Imola  n...,  m...;  desenhou  se- 
gundo a  maneira  de  Raphael,  mas  coloriu  muito 
bem.   Seus  quadros  são  preciosos  e  raros. 

Giulio  Clovio  n.  1498,  m.  1578.  Trabalhou 
sempre  em  miniatura,  e  apprendeu  o  desenho 
com  seu  mestre,  Júlio  Romano. 

Federico  Barrocci  n.  1Õ28,  m.  1612.  Suas  ex- 
cellentes  obras,  que  se  acham  em  Milão,  Bolo- 
nha, Pesaro,  Loreto  e  Roma,  se  distinguem  pela 
belleza  do  colorido  (pouco  vulgar  na  sua  escho- 
ia)  e  que  assemelha  ao  de  Corregio,  grande  ex- 
actidão de  desenho,  muita  seiencia  de  luz,  e  gra- 
ciosos ares  de  cabeça. 

Thadco,  e  Federico  Zucaro,  irmãos:  morto  o 
primeiro  era  1566;  o  segundo  em  1609.  Thadeo 
tinha  grande  ingenho  e  bom  colorido;  Federico, 
menos  hábil,  acabou  quasi  todas  as  obras,  que 
seu  irmão  começara.  Acham-se  em  Veneza, 
Tivoli  e  Roma. 

António  Tcmpesta  n,  1555,  m.  1630.  Foi  emi- 
nente em  batalhas,  caçadas,  mercados,  aniraaes 
etc  — Roma.— 

José  (iesar  d'Arpin  (II  cavalier  Giuseppino) 
n.  1560,  m.  1640.  Seus  quadros  grandes,  que 
se  vem   no   Capitólio,  são  históricos   e  bons;   e 


108  ENSAIO    SOBRE    A  HISTORIA 

notáveis,  sobre  tudo,  pela  belleza  dos  cavai- 
los. 

Michel  Angelo  Ameriggi  da  Caravaggio,  n. 
1569,  m.  1609.  Suas  obras  são  mui  fáceis  de 
conhecer  pelo  ar  de  relevo,  que  dava  a  todas  as 
figuras  por  via  do  assombrado.  Esta  originali- 
dade imita  bem  a  natureza.  O  seu  desenho  é 
preciso  e  fero.  —  Roma  e  Nápoles.— 

Domenico  Feti  n.  1589,  m.  1624.  Imitou  o 
antigo,  e  Júlio  Romano;  donde  houve  um  carac- 
ter de  desenho  fero  e  vigoroso,  com  quanto  in- 
correcto. Seus  quadros,  mui  procurados,  se  dis- 
tinguem por  uma  graça  particular,  e  picante.  — 
Roma.— 

Giovanni  Lanfranco  n.  1581,  m.  1647.  Foi 
eminente  nas  grandes  obras,  como  platafundos, 
cúpulas,  etc.  —Nápoles. 

Século  XVII 

Pietro  Beritini  di  Cortona  n.  1596,  m.  1669. 
Todas  as  suas  ingenhosas  producções  tem  um  ar 
de  nobreza,  que  encanta.  Mas  a  obra  prima  d'es- 
te  grande  mestre  é  o  roubo  das  Sabinas,  que  Le- 
brun  servilmente  copiou.— Roma  e  Florença.  — 


DA   PINTUKA  109 

Mário  Nuzzi  di  Fiori  n.  1599,  m.  1673;  alcan- 
çou um  grande  nome  pela  maneira  excellente  de 
pintar  flores. 

Miguel  Angelo  Cerquozzi  dito  o  das  batalhas 
e  bambuc/iatas:  nasc.  1602,  m.  1666;  teve  um 
colorido  vigoroso  e  um  pincel  ligeiro.  Era  tam 
hábil  no  seu  género,  que  pela  simples  narração 
d'uma  peleja,  traçava  logo  a  ordem  do  quadro 
no  mesmo  panno,  em  que  havia  de  pintar,— Ro- 
ma.— 

Cláudio  Geleo  (Lorrain)  n.  1600,  m.  1682. 
Todos  conhecem  este  nome;  todos  sabem  que  foi 
o  príncipe  dos  paizagistas.  Ninguém  conheceu 
como  Lorrain  a  perspectiva  aeria,  e  o  eífeito  dos 
pontos  de  vista.  — França.— 

Andrea  Sacchi  n.  1599,  m.  1661.  Suas  pintu- 
ras ternas  e  graciosas  são  admiráveis  pelo  dese- 
nho, colorido  e  verdade  de  expressão. 

Domenico  Passignani  pelos  annos  de  1680, 
pintou  com  gosto  e  nobreza,  muita  expressão,  po- 
rem mau  colorido.  —  Florença. 

Pictro  Tosta  n.  1611,  ra.  1648;  moldou  o 
seu  estylo  nos  antigos  do  Roma,  donde  houve  um 
bom  e  correcto  desenho,  com  quanto  rude.  — 
Ho  ma. 


110  ENSAIO   SOBRE   A    HISTORIA 

Salvator  Rosa  n.  1614,  m.  1673.  Trabalhou 
muito  ;  e  suas  obras  se  acham  por  toda  a  Itália: 
todas  ellas  tem  um  ar  de  originalidade,  que  as 
distingue,  muita  verdade  e  bom  colorido  ;  porem 
o  desenho  não  é  perfeito. 

Carlin  Dolce  n.  1616,  m.  .  .  . ;  célebre  pela 
graça  da  composição  e  frescura  do  colorido.— 
Roma. 

Hiacinto  Brandi  n.  1623,  m.  1719  (outros  que- 
rem que  em  1691.)  Seus  quadros  são  muito  vul- 
gares: apezar  das  incorrecções  do  desenho,  e  fra- 
queza de  cores,  teve  com  tudo  uma  belleza  d' or- 
nato, e  fecundidade  de  imaginação,  que  admira. 

Cario  Maratti  n.  em  1624,  m.  1713;  foi  emi- 
nente nos  ares  de  cabeça :  seu  desenho  é  mui  as- 
sisado, e  seu  colorido  brilhante.  Todas  as  com- 
posições deste  mestre  encantam,  e  são  bem  aca- 
badas. 

Luca  Giordano  n.  1632,  m.  1705.  Seu  me- 
recimento principal  é  a  facilidade  e  presteza  , 
com  que  trabalhava :  muitas  obras  delle  são  d'uma 
bella  expressão. 

João  Baptista  Bacici  n.  1639,  m.  1709;  re- 
tratava bem ;  e  os  seus  quadros  mostram  muito 
talento,  e  beKo  colorido. 


DA   PINTUEA  111 

Mattia  Preti  (II  Calabrese)  teve  o  ingenho 
mais  feliz  na  invenção ;  bella  e  rica  ordem,  e 
muita  originalidade.  Nasc.  1643,  morr.  1699. 

José  Passari  n.  1654,  m.  1714;  discipulo  e 
imitador  absoluto  de  Cario  Maratti. 


Século  XYIII 

Francesco  Solimeni  n.  1655,  m.  1747.  Bella 
imaginação,  nnuito  talento,  um  desenho  fero  e 
correcto  o  constituem  n'um  dos  primeiros  luga- 
res da  pintura ;  com  quanto  o  seu  colorido  seja 
sombrio  e  pouco  doce.  A  grande  qualidade  po- 
rem d'este  mestre,  e  em  que  elle  sobreexcedeu 
a  todos,  é  o  ar  de  vida,  animação  e  movimento 
das  suas  figuras.— Nápoles. 

Sebastião  Concha  morto  pelos  annos  de  1740. 
Imitou  Solimeni ;  mas  o  seu  génio  fno  o  não 
ajudava.  Coratudo  no  hospital  de  Sicnna  ha  dcUe 
uma  boa  pintura  a  fresco. 

Paolo  Pauini,  vivo  em  Roma  ainda  no  anno 
de  1767.  Tem  bom  colorido,  e  muito  espirito. 

Paolo  ^lonaldi  do  mesmo  tempo  foi  pintor  de 
bnmhochata-s  muito  estimadas. 


112  ENSAIO    SOBRE    A    HISTORIA 

Pompeio  Battoni,  retratista  e  pintor  históri- 
co :  o  seu  colorido  é  bem  imitado  de  Corregio. 

Muitos  outros  pintores,  posto  que  não  de  gran- 
de fama,  tem  produzido  mais  modernamente  a 
eschola  Romana  ;  mas  não  temos  delles  sufficien- 
te  conhecimento  para  poder  formar  um  exacto 
conceito. 

CAPITULO  IV 

Da  Eschola  Florentina 

A  eschola  Florentina  é,  por  sua  antiguidade, 
a  mais  respeitável :  seu  primeiro  mestre  foi  Ci- 
mabúe  ;  com  quanto,  fallando  em  rigor,  só  Leo- 
nardo da  Vinci  e  Miguel  Angelo  mereçam  (como 
ja  notamos)  o  nome  de  fundadores.  As  obras  dos 
seus  alumnos  occupam  um  logar  mui  distincto  nas 
collecções  mais  ricas  ;  e  a  Itália,  e  toda  a  Europa 
se  julga  com  elles  ennobrecida.  Seu  gosto  de  de- 
senho é  fero  e  decidido ;  sua  expressão  sublime, 
algumas  vezes  attrevida,  e  gigantesca,  e  mesmo 
contra- natural,  mas  sempre  magnifica ;  o  colorido 
nos  seus  princípios  era  rude;  apperfeiçoou-se  de- 
pois, sem  perder  nada  da  sua  viveza,  magnificen- 


DA    TINTURA  113 

cia  e  outras   brilhantes  qualidades.  Esta  eschola 
é  a  menos  numerosa,  mas  não  a  menos  célebre. 

Século  XVI 

Leonardi  da  Vinci  n.  1445,  m.  1520,  um  dos 
grandes  ingenhos  do  seu  século,  foi  sculptor,  ar- 
chitecto  e  pintor.  Seu  desenho  é  correcto  e  puro, 
e  suas  obras  todas  d' uma  composição  ingenhosis- 
slma ;  das  quaes  a  melhor  é  sem  questão  o  grande 
quadro  da  ceia  em  Milão.  Foi  muito  estimado 
de  Francisco  i  de  França,  em  cujos  braços  mor- 
reu.  O  canal  de  Milão  foi  dirigido  por  elle. 

Pictro  Perugino  n.  1446,  m.  em  1524.  Colo- 
riu graciosamente ;  mas,  apezar  de  ser  discipulo 
do  Cimabúe,  todos  sabem  quanto  é  rude  o  seu 
ÍDgenho. 

Fra  Bartholomeo  delia  Porta  n.  1465,  m* 
1517,formou  seu  delicado  gosto  no  de  Vinci,don- 
de houve  muita  correcção  e  pureza.  Seu  colorido  é 
bello  e  natural.  Kafaelo  não  se  dedignou  de 
apprender  delle  a  arte  de  colorir,  ensiuando-lhe 
em  troco  as  necessárias  regras  da.  prespcdim. — 
Roma  e  Florença. 

Miguel  Angelo  Buonarroti  n.  1475,  m.  1504 ; 


114  ENSAIO    SOBRE     A    HÍSTORIA 

esculptor  incomparável,  magnifico  architecto,  pin- 
tor sublime  ;  não  pôde  decidir-se  a  qual  das  boas- 
artes  pertenceu  mais:  suas  estatuas,  seus  edifícios, 
seus  quadros,  tudo  mostra  o  maior  homem  do 
seu  século.  Teve  uma  maneira  de  pincel  altiva  e 
fera,  e  em  geral  similhante  á  da  sua  eschola;  vas- 
tíssima concepção,  ideias  sublimes  e  arrojadas,  e 
muita  expressão  e  vigor.  Seus  quadros  princi- 
paes  se  acham  na  capella  Sixtina  do  Vaticano. 
A  antiguidade  toda  e  talvez  os  séculos  posterio- 
res não  tem  nada  que  oppor  a  tão  grande  inge- 
nho  :  seus  quadros  são  inferiores  aos  de  Raphael, 
e  por  ventura  aos  de  alguns  outros  ainda ;  porém 
Miguel  Angelo  é  mui  superior  a  todos  elles. 

Andrea  dei  Sarto  n.  1478,  m.  1580;  foi  o 
maior  colorista  da  eschola  de  Florença;  suas 
obras,  em  que  se  distingue  uma  maneira  larga, 
e  ura  pincel  fresco  e  brando,  conservam  ainda 
hoje  um  brilho  singular. 

Baltazar  Peruzzi  n.  1481,  m.  1536,  alem  dos 
grandes  mestres,  estudou  sobre  tudo  a  natureza, 
foi  grande  na  prospectiva,  porem  fraco  no  colo- 
rido. Ninguém  antes  de  Peruzzi  executou  com 
gosto  uma  decoração  de  theatro. 

Giacomo  Pontorma  n.  1494,  m.  1559  ;  dese- 


DA    PINTURA  íla 

nhou  como  Leonardo  da  Vinci,  e  coloriu  como 
Sarto.  Seu  pincel  vigoroso,  seu  colorido  brilhante, 
sua  imaginaçíío  bella  e  fecunda  o  fizeram  olhar 
por  Mig.  Ang.,  e  Raphael  como  seu  mais  temido 
rival ;  e  se  a  louca  mania  de  imitar  as  maneiras 
alemans  o  não  fizesse  mudar  de  estylo,  por  ven- 
tura os  dois  grandes  mestres  não  gosariam  sós  da 
gloria  do  primado. 

Machcrino  de  Sienna  (chamado  Domenico  Bec- 
cafumi)  n.  1484,  m.  1549  ;  desenhou  com  gosto 
e  correcção,  mas  coloriu  mal. 

Mestre  Rosso,  ou  Roux  (como  lhe  cliamam  os 
francezes)  n.  1496,  m.  1541 ;  pintou  com  muita 
expressão  e  viveza,  porem  ás  vezes  um  pouco 
rude.  Trabalhou  quasi  sempre  em  França,  onde 
teve  muitos  discípulos,  e  de  cuja  eschola  é  julga- 
do fundador.  — Fontainebleau. 

Alexandre  Allori  n.  1535,  m.  1607;  foi  gra- 
cioso e  macio,  e  desenhou  com  toda  a  pureza  do 
antigo. 

Francisco  Rossi  (il  Salviati)  n.  1510,  m.  1563  ; 
e  muito  estimado  pela  grande  intelligcncia  do 
luz ;  desenhou  e  coloriu  bem  ;  seus  quadros  se 
distinguem  pelas  singulares  attitudes  das  figuras. 
—  Florcnra  o  Bolonha. 


116  ENSAIO    SOBRE     A    HISTORIA 

Jorge  Vasari  n.  1511,  m.  1574 ;  muito  céle- 
bre pelas  vidas  dos  pintores,  que  escreveu :  seu 
desenho  é  bom,  mas  sem  energia,  e  seu  colorido 
fraco.  — Roma. 

Jacoppino  dei  Ponte  n.  1511,  m.  1570 ;  as 
suas  maneiras  são  as  de  Andrea  dei  Sarto,  seu 
mestre.   Foi  o  melhor  retratista  da  sua  eschola. 

Século  XVII 

Daniel  Bacciarelli  de  Volterra  n.  1579,  m.  em 
1625 ;  desenhou  bem,  e  o  que  lhe  deu  grande 
nomeada  sobre  tudo,  foi  a  sua  descida  da  cruz  na 
igreja  delia  Trinità  dei  monte  em  Roma. 

Ludovico  CiogH  n.  1559,  m.  1673,  pintou 
d'uma  maneira  firme  e  vigorosa;  mas  coloriu 
principalmente  com  o  pincel  de  Corregio. 

Francisco  Vanni  n.  1563,  m.  1615.  Coloriu 
muito  bem,  e  desenhou  sofifrivelmente. 

João  Manozzi  (Giovani  di  S.  Giovani)  n.  1490 ; 
m.  1636 ;  foi  um  dos  melhores  pintores  de  sua 
eschola;  seus  quadros,  que  mostram  muita  intel- 
ligencia  de  perspectiva  e  architectura,  se  acham 
cm  Roma,  principalmente  no  palácio  Pitti. 


DA     PINTURA  117 

CAPITULO  V 

Da  Eschola  de  Bolonha 

A  eschola  de  Bolonha,  ou  Lombarda  juntou 
era  si  quanto  pode  produzir  a  perfeição  da  arte. 
Talvez  (geralmente  íallando)  nenhuma  das  outras 
o  conseguiu  tanto.  O  antigo  foi  o  seu  modelo  ; 
mas  sem  uma  servil  e  exclusiva  imitação ;  não 
tratou  de  formar  systema ;  ou,  se  o  formou,  foi 
extrahindo  de  todos  o  que  achou  melhor.  As  bel- 
lezas  vivas  e  sensíveis  da  natureza,  a  verdade  de 
expressão,  a  riqueza  da  ordem,  a  pureza  dos  con- 
tornos a  facilidade  admirável  de  pincel,  e  sobre 
tudo  o  colorido  da  mesma  natureza,  verdadeiro 
e  encantador ;  tudo  emfim,  quanto  offerece  a  pin- 
tura, bello  e  terno,  tudo  reuniram  os  com-alum- 
nos  de  Cor  régio. 

Auctores  ha  hi  (como  Pruneti)  que  dividem  es- 
tas duas  escholas  de  Bolonha  e  Lombardia;  po- 
rém a  geral  opinião  é  a  que  sigo.  Sobre  o  chefe, 
ou  fundador  desta  eschola,  diversos  são  também 
os  conceitos,  querendo  uns  que  seja  Francia,  ou- 
tros Mantegna  :  a  questão  é  de  pouca  utilidade. 


118  ENSAIO   SOBRE     A    HISTORIA 

.  Skculo   XVI 

Francisco  Francia  n.  1450,  m.  1518.  Suas 
obras  sâo  d' um  desenho  muito  assisado,  e  mui 
boa  cor  para  o  seu  tempo.  Raphaeí  lhe  enviou 
o  seu  quadro  de  Santa  Cecília  para  que  o  corri- 
gisse. Diz-se  que  a  inveja  e  dor  de  ver  tam  per- 
feita obra  em  um  mancebo  de  tão  pouca  idade, 
lhe  causara  a  morte. 

Andrea  Mantegna  n.  ]4õl,  m.  1517;  seus 
quadros  raríssimos  conservam  ainda  muito  bri- 
lho, e  são  de  melhor  desenho  que  os  de  Francia. 

Francesco  Primaticcio  Bolognesse  n.  1490,  m. 
1570;  coloriu  graciosamente,  e  desenhou  no  estylo 
de  JuKo  Romano.  Alguns,  como  Pruneti ,  o  que- 
rem fazer  chefe  da  eschola  de  França,  onde  qua- 
si  sempre  viveu  e  pintou. 

António  AUegri  (Corregio)  n.  1494,  m.  1554. 
Tinha  chegado  á  perfeição  da  arte,  e  ignorava  o 
seu  merecimento.  O  antigo,  Raphael,  Yinci,  etc, 
tudo  lhe  era  desconhecido  ;  não  sabia  senão  a  na- 
tureza. Ouviu  gabar  muito  um  quadro  de  Ra- 
phael, observou-o,  e  conheceu  o  seu  próprio  me- 
recimento ;  soube  o  que  vaha,  e  nem  porisso  foi 


DA    PINTURA  119 

mais  vaidoso  ;  antes  continuou  a  dar  por  mui 
rasteiro  preço  seus  inestimáveis  quadros,  cujo 
colorido  e  frescura  de  pincel  ainda  não  pôde  ser 
imitado. 

Francesco  Massuoli  (o  Parmezao,  ou  Parme- 
gianino)  n.  1504,  m.  1540.  Maneiras  graciosas, 
colorido  fresco  e  natural,  muita  facilidade  e  cor- 
recção no  desenho  o  constituiram  um  dos  pri- 
meiros pintores  da  sua  rica  e  fecunda  eschola. 
Os  quadros   deste  mestre  são  raros  e  caríssimos. 

Lucas  Cangiagio,  ou  Cambiagi  n.  1527,  m. 
1583  ou  85.  Pintou  com  muita  facilidade,  e  o 
que  é  de  admirar,  com  ambas  as  mãos  ao  mesmo 
tempo.  Teve  muita  verdade  e  viveza,  e  tal  ex- 
pressão nas  figuras,  que  parece  que  faliam  : 

Manca  il  parlar:  di  vivo  altro  non  chicdi ; 
JNe  manca  qucsto  aiicor,  se  agli  occhi  credi. 
(Tasso  Gerus.) 

Os  Caraches,  Carachas,  ou  Caraccis,  (segundo 
a  nacional  e  verdadeira  orthogi-aphia)  mais  cele- 
bres e  conhecidos  são  três.  Luiz  Caracci  n.  1555, 
m.  1618;  estudou  muito  os  grandes  mestres  c 
adquiriu  uma  maneira  nobre  e  verdadeira,  ex- 


120  ENSAIO   SOBRE     A    HISTORIA 

pressão  e  belleza  de  colorido.  Instituiu  uma  aca- 
demia ajudado  de  Agustinho  e  Annibal  Caracci, 
seus  primos,  na  qual  se  formaram  Albano,  Guido, 
Guercino  e  outros  illustres  artistas.—  Agustiuho 
Caracci  desenhou  perfeitamente  e  coloriu  bem  : 
dos  três  é  o  menos  celebre  ;  n.  Iõ58,  m.  1603.— 
Annibal  Caracci  n.  lõliO,  m.  1609 ,  foi  superior 
a  seu  irmão  e  primo ;  teve  um  estylo  nobre  e  su- 
blime, desenho  preciso  e  fero,  e  colorido  muitas 
vezes  admirável.  A  galeria  Farnesi  é  de  todas  as 
suas  obras  a  mais  famosa. 

Bernardo  Castelli  n.  1559,  m.  1629;  grande  ami- 
go de  Tasso,  a  quem  retratou,  bem  como  a  quasi 
todos  os  bons  poetas  do  seu  tempo.  Foi  insigne 
neste  género  :  desenhou  bem  e  coloriu  melhor. 
Guido  Renni  (o  Guido)  n.  1575,  m.  1624, 
Costumam  distinguir-se  três  maneiras  differentes 
neste  pintor  famoso:  a  1.^  forte  e  assombrada;  a 
2.*  natural  e  bella;  a  3.=^  terna  e  doce,  porem  mais 
fraca.  Pintava  com  a  maior  facilidade. 

Século  XVII 

Francesco  Albani  (o  Albano)  n.  1578,  m.  1660; 
deu-se  absolutamente  aos  assumptos  galantes  e 


DA  PINTURA  121 

graciosos:  seu  génio  doce  e  terno  o  determinou 
na  escolha.  O  nosso  Vieira  Portuense  o  estudou 
muito  e  imitou  bem. 

Domouica  Zampierri  (Doraenichino)  n.  1581, 
ra.  1641;  observou  sempre  uma  ordem  magni- 
fica nos  seus  quadros,  muita  nobreza,  correcto 
desenho  e  verdade  de  expressão. 

Francesco  Barbieri  da  Cento  (o  Guerchino) 
n.  1Õ90,  m.  1666.  Trabalhou  com  uma  facili- 
dade incrivel:  e  os  seus  quadros  se  encontram 
por  toda  a  parte:  teve  um  desenho  fero  e  ex- 
pressão nobre;  mas  o  colorido  não  é  igual.  Sua 
1.^  maneira  é  escura  e  fraca;  a  2.^  é  mais  dura 
e  fortemente  assombrada;  a  'ò.^  é  bella  e  encan- 
tadora, e  participa  do  gosto  de  Ticiano  e  Cor- 
rcgio.  Nos  fins  de  sua  vida,  porem,  obrigado  da 
miséria,  trabalhou  mal  e  sem  gosto. 

Luciano  Borzoni  n.  1590,  m.  1645.  Verdade 
e  intelligencia  de  expressão,  c  delicioso  colorido 
o  fiíieram  um  excellente  pintor.  Teve  dois  filhos, 
que  o  imitaram,  e  se  distinguiram;  sobre  tudo 
Francisco  Borzoni  nas  paizagens  e  marinhas. 

João  Francisco  Frimaldi  n.  I60(j,  m.  1688. 
Coloriu  suavemente  e  com  harmonia;  suas  pai- 
zagens  são  excellentes. 


122  ENSAIO  SOBRB  A  HISTORIA 

Benvenuto  da  Ferrara  (o  Garofalo)  n.  1615, 
m.  1695,  foi  muito  bom  colorista  e  desenhou 
bem.  As  suas  cópias  de  Eaphael  são  muito  esti- 
madas, 

Beneditto  Castiglioni.  Sua  pureza  de  dese- 
nho, frescura  de  colorido,  delicadeza  de  toque  e 
grande  intelligencia  de  chro-escuro  fizeram  os 
seus  admiráveis  quadros  preciosissimos  e  caros. 
Nasceu  1616,  m.  1670. 

Cario  Cignani  n.  1629,  m.  1673.  Teve  muito 
boa  composição  e  desenho;  mas  pouca  expressão 
por  causa  do  muito-acahado  dos  seus  quadros.— 
Bolonha.  — 

Século  XVIII 

Thiarini,  chamado  o  expressivo,  morto  pelos 
annos  de  1750;  teve  muita  expressão  e  um  colo- 
rido vigoroso:  exprimiu  bem  as  paixões. 

Izabel  Cirani,  do  mesmo  tempo.  Estudou  com 
proveito  os  grandes  mestres:  adquiriu  um  gra- 
cioso colorido;  e,  com  quanto  preferia  os  assum- 
ptos terríveis,  executou  muito  melhor  os  doces 
e  ternos. 

Marcantonio  Franceschini  (o  Francesquino) 


DA   PINTURA  123 

morto  era  1729.  Seu  colorido  é  muito  engraça- 
do, seu  desenho  precsiso,  e  sua  maneira  tem  uma 
bella  simplicidade.  Os  quadros  de  Francesqui- 
no  tem  muita  estimação  e  valor.  — Bolonha. — 
Marcos  Benefiale  n.  1684,  m.  1764;  foi  um  dos 
bons  mestres  de  sua  eschola  por  seu  correctís- 
simo desenho,  grande  energia  e  expressão,  © 
fecundidade  de  pincel.— Roma.— 

CAPITULO  VI 

J)a   Eadiúh    Veneziana 

A  eschola  Veneziana,  que  reconhece  por  fun- 
dadores os  Bellinis,  Giorgione  e  Ticiano,  pro- 
duziu excellentes  pintores,  que  imitaram  a  na- 
tureza com  uma  fidehdade,  que  seduz  os  olhos. 
Seu  colorido  é  sábio  e  encantador,  seu  claro-es- 
€Ui'o  de  muita  intelligencia,  a  imaginação  bclla, 
a  ordem  rica,  e  os  mais  galantes  e  spiriiuosos 
toques;  cm  fim,  sua  maneira  é  originalmente 
encantadora,  sobre  tudo  nas  formosas  e  sabias 
composições  de  Ticiano  e  Paulo  Veronese.  Os 
grandes  mestres  desta  eschola  desprezaram  to- 
davia alguma  cousa  o  desenho;   tam   essencial  (n 


124  ENSAIO    SOBRE    A  HISTORIA 

boa  pintura.  Ticiano,  e  Giorgione  elevaram  o 
modo  Veneziano  a  um  ponto,  que  será  difficil 
iguala-los.  Nota-se  em  geral  a  esta  eschola  pou- 
60  conhecimento  do  a u  figo,  e  attitudes. 

Século  XV 

Gentil  e  João  Bellini  mortos,  o  primeiro  era 
1501,  o  segundo  em  1512,  e  mui  velhos.  Seus 
quadros  rarissimos  mostram  ainda  um  desenho 
verdadeiro,  mas  sem  ordem:  seu  maior  mereci- 
mento é  terem  sido  mestres  de  Giorgione  e  Ti- 
ciano. 

Giorgione  de  Castel-franco  n.  1477,  m.  1511. 
Sciencia  de  claro-escuro,  ordem,  colorido  e  de- 
senho o  elevaram  em  brevissimo  tempo  (pois  vi- 
veu só  34  annos)  á  perfeição. 

Seuulo  XVI 

Ticiano  Vecelli  da  Cadore  n.  1477,  m.  1576. 
Suas  obras  espalhadas  por  toda  a  Europa  fize- 
ram conhecer  este  mestre,  que  discorreu  uma 
longa  e  feliz  carreira,  vivendo  99  annos;  um 
quasi   inteiro   e  glorioso  século  empregado   na 


DA   PINTURA  125 

mais  nobre  das  artes.  Ignorou  o  antigo,  e  falhou 
no  desenho;  mas  o  colorido  de  Ticiano,  e  sua  ex- 
pressão, assim  como  não  tiveram  modelo,  não 
terão  imitadores. 

Gio  António  Eegillo  (il  Podernone)  n.  1484, 
m.  1Õ40.  A  belleza  de  seu  colorido,  facilidade 
de  desenho  e  apurado  gosto  de  invenção  o  fize- 
ram temer  muito  de  Ticiano.  Nada  mais  é  ne- 
cessário para  seu  elogio. 

Sebastião  Piombo  n.  1485,  m.  1547.  O  qua- 
dro da  ressurreição  de  Lasaro,  feito  para  oppor 
ao  da  transJi(juração  de  Haphael,  lhe  adquiriu 
muita  fama;  e  Miguel  Angelo,  cujo  é  o  dese- 
nho do  dito  quadro,  quiz  por  via  d'elle  dispu- 
tar a  Raphael  o  priíueiro  logar;  mas  a  expres- 
são, e  colorido  de  Piombo  não  podaram  trium- 
phar  do  incontrastavcl  merecimento  de  seu  illus- 
tre  rival. 

Giacomo  Ponte  Bassano  n.  1510,  m.  1592. 
Amou  os  assumptos  communs,  cm  que  foi  gran- 
de: seu  stylo  é  verdadeiro,  e  as  suas  cores  ex- 
cellentes. 

André  Sciavone  n.  152'2,  m.  1582;  desenhou 
incorrectamente;  porem  cuk)riu  tam  bem,  teve 
UDi  modo  tam  fácil  o  engraçado,   tam  bom  gosto 


126  ENSAIO   SOBRE    A    HISTORIA 

nas  roupagens,  e  tam  bellas  attitudes,  que  se  lhe 
não  pode  negar  o  titulo  de  grande  pintor. 

Giacorao  Robusti  (il  Tintoreto)  n.  1524,  m. 
1594.  Uma  imaginação  vivíssima,  uma  rapidez 
incompi*ehensivel  e  um  finíssimo  gosto  o  eleva- 
ram á  primeira  ordem  dos  mestres.  É  prodigioso 
o  numero  de  suas  obras. 

Paolo  Calliari  Veronese  (Paulo  Veronese)  n. 
1532,  m.  1588.  Seus  quadros  farão  sempre  as 
delicias  dos  amadores  da  arte  pela  riqueza  d'or- 
dem,  belleza  de  caracteres,  bom  gosto  de  roupa- 
gens, frescura  de  colorido  e  nobre  elegância  de 
figuras. 

Giacomo  Palma  (Palma  il  Yechio)  n.  1540, 
m.  1588;  imitou  a  natureza  sempre  bella,  e  com 
um  bem -acabado  sem  afíectação. 

Século  XYII 

Tiago  Palma  (Giacomo  Palma  il  giovane)  n. 
1544,  m.  1628.  Foi  discipulo^de  Tintoreto,  que 
imitou  optimamente. 

Carlos  Veneziano  n.  1585,  m.  1625.  Seu  colo- 
rido imita  bem  Corregio,  e  suas  physionomias 
engraçadas  as  de  Guido. 


DA   PINTURA  127 

Alessandro  Yeronese  dito  o  Turchi,  ou  Or- 
herto  n.  1600,  m,  1670;  desenhou  bem,  e  coloriu 
como  um  Veneziano. 

Sectlo  XYIII 

Giam  Battista  Piazzeta  morto  no  fira  do 
XYIII  século.  Seu  colorido  é  mau,  mas  o  dese- 
nho imita  muitas  vezes,  e  com  verdade,  a  nobre 
altivez  de  Miguel  Angelo. 

Hosa  Alba  Carriera  n...,  m.  1761.  Seus  retra- 
tos e  pasteis  são  conhecidos  em  toda  a  Europa; 
seu  principal  merecimento  é  o  novo  gosto,  e  ma- 
neira singular,  com  que  trabalhou  em  minia- 
tura. 

CAPITULO    YII 

Da  Eschola  Flamenga 

A  eschola  Flamenga  é  a  de  Rubens  e  Wan- 
dick;  tanto  basta  para  o  seu  elogio.—  Yan-Eick, 
tam  conhecido  pelo  invento  da  pintura  a  oloo, 
foi  o  seu  chefe.  Quem  amar  a  nobreza  do  pincel 
Romano,  a  bella   arrogância   do  Florentino,   as 


128  ENSAIO    SOBRE    A  HISTORIA 

graças  do  antigo,  as  gentilezas  Gregas;  não  será 
decerto  muito  apaixonado  das  producçÕes  Fla- 
mengas. Os  gelos  do  paiz,  o  temperamento  frio 
dos  habitantes  são  as  causas  necessárias  e  na- 
turaes  do  pouco  fogo  que  se  lhes  nota.  Mas, 
em  troco  desta  falta,  que  bellezas  lhes  não  acha- 
rá o  amador  imparcial  e  singelol  Ninguém,  se- 
não os  pintores  Flamengos,  appresenta  em  seus 
quadros  um  bem-acaòado,  um  conipkto,  que  pa- 
rece superior  á  paciência  humana;  uma  fideli- 
dade original  na  imitação  da  natureza,  que  en- 
canta e  admira.  O  seu  defeito  todavia  é  o  me- 
nos-preço  d'aquella  genérica  e  fundamental  re- 
gra das  boas  artes:  Imitar  a  bella  natureza;  isto 
he,  saher  extremar  n^ella  o  helJo  do  mcdiocre. 
Nisto  falharam  de  certo,  exprimindo-a  muitas 
vezes  com  a  cega  punctualidade,  e  o  verbo  ad 
rerbum  d'um  Jidas  interpres;  mas  este  mesmo 
defeito  (permitta-se-me  julga-lo  assim,com  quan- 
to vou  contra  o  commum  parecer)  dá  muitas  ve- 
zes ás  pinturas  Flamengas  encantos  simphces, 
e  singelos,  que  em  nenhumas  outras  se  encontram. 
Nesta  numerosa  eschola  se  classificam  todos 
os  pintores  das  nações  do  norte;  e  se  os  caracte- 
res, mais  que  as  pátrias,  devem  ser  neste  ponto 


DA  PINTURA  129 

OS  verdadeiros  dados,  não  duvidarei  também 
emiumerar  n'ella  os  poucos  bous  inglezes.  Nunca 
pude  gostar  da  pintura  Britaunica:  um  contra- 
natural,  um  monótono,  um  forçado  no  colorido, 
um  sempiterno  gelo  na  expressão,  que  sempre 
lhe  notei,  me  fizeram  olha-la  com  desprezo,  e  a 
não  ser  o  moderno  West,  (de  quem  adiante  fal- 
larei)  de  certo  os  inglezes  avultariam  bem  pou- 
co neste  ramo  das  boas-artes. 

Século   XV 

João  Van-Eick  n.  1370,  m.  1441;  fundou  a 
sua  cschola,  e  inventou  a  pintura  a  óleo.  Nada 
mais  se  sabe. 

Alberto  Durero  n.  1471,  m.  1528.  Seu  dese- 
nho é  correcto,  sua  imaginação  viva,  sua  manei- 
ra firme;  mas  falhou  muito  nos  costumes. 

Século   XVI 

João  Holbein  n.  3498,  m.  1554.  Sua  imagi- 
nação é  sublime,  o  colorido  vigoroso,  e  suas  figu- 
ras tem  um  ar  de  relevo,  que  engana.  Em  geral 


130  "ENSAIO   SOBRE    A    HISTORIA 

O  pintar  deste  mestre  parece  mais  Lombardo, 
que  Flamengo. 

Otam  Vaen  ou  Vaenio  n.  1556,  m.  1634; 
formou-se  no  gosto  Romano,  que  lhe  deu  mui- 
ta correcção  de  desenho,  e  hellezia  de  expres- 
são; qualidades,  a  que  ajuntou  grande  intelli- 
gencia  de  claro-escuro. 

Bloemart  n.  1567,  m.  1647.  Um  toque  ex- 
pedito e  livre,  bellas  roupagens,  muita  sciencia 
de  claro-escuro  são  os  caracteres  d'este  pintor. 

Pedro  Paulo  Rubens  n.  1567,  m.  1640.  Nada 
será  bastante  para  fazer  descer  este  grande  ho- 
mem do  grau  illustre  de  primeiro  pintor  histó- 
rico. Não  quero,  nem  devo  occupar-me  de  seus 
defeitos;  releva-me  só  dizer:  que  o  seu  colorido 
é  verdadeiro  e  brilhante,  sua  imaginação  fér- 
til, seu  claro-escuro  sábio,  todo  elle  é  encanta- 
dor.—  A  galleria  do  Luxembourg  é  a  sua  me- 
lhor obra:  mas  um  quadro  allegorico  da  guerra 
(no  palácio  ducal  de  Florença)  no  meu  parecer, 
e  no  de  muitos,  não  é  inferior.  Fogo  brilhante, 
nobreza  poética,  côr  excellente;   *  caracteres  in- 

'  A  mui  lo  me  affoito,  conceituando  da  belleza  de  côr  d'uin 
quadro,  que  nunca  vi,  senão  em  estampa,  e  nià  estampa;  mas 
fio-me  na  auctor idade  de  eruditos  viajantes.    Haverá  dous  an- 


DA    P1NTT3RA  131 

teressantes,  composição  precisa,  intelligente  dis- 
tribuição de  luz;  tudo  se  juutou  neste  quadro;  e 
n'uin  grau  de  íbrmusura,  a  que  só  a  allegoria 
pôde  remontar.  A  simples  ideia  deste  painel  vale 
bem  uma  Iliada,  e  todos  os  Klopstocks  juntos 
talvez  a  não  produzissem:  "É  a  transfiguração 
de  Rubens"  dizia  um  philologo  meu  conhecido, 
alludindo  ao  célebre  quadro  deRaphael.  "A  vi- 
da dos  homens  sábios  é  o  cathalogo  de  suas 
obras"  diz  um  grande  litterato. '''  Esta  sentença 
desculpa  a  minha  diíFusao. 

Século  XVII 

António  Wandick  n.  1599,  ra.  1641.  Foi  dis- 
cipulo  de  Rubens,  e  a  maior  honra  do  mestre; 
verdadeiro  e  simples  na  imitação  da  natureza. 
O  seu  género  foi  o  retrato,  cm  que  ninguém  o 
excedeu. 

Rembran-Van-Ryn  n.  1606.  m.  1674;  foi 
grande  no  c/aro-esciiro,  na  harmonia  das  côrcs; 

1103   que    me  communicou   esta  esLimpa  em  Lisboa  o  sábio 
pbilologoj.   B.  S.  Dos  aponlamnntus,  que  ontão   fíz,  oxtrahi 
esU  e  outras  fiiscri|irões,  que  jior  alii  vào. 
'    Vollairc:  Sièdc  de  Louis  XIV. 


132  ENSAIO    SOBRE    A    HISTORIA 

na  imitação  do  relevo.  Seus  quadros  são  conhe- 
cidos pelo  fundo  negro. 

Vander-Kabel  n.  1631,  m.  1695;  distinguiu- 
se  absolutamente  da  sua  eschola  pela  imitação 
dos  Caracóis,  e  Salvator  Rosa. 

Egione-Vandernér,  ou  Vandernêér  n.  1643, 
m.  1697.  Um  colorido  vivo,  um  pincel  mimoso 
lhe  fizeram  naturalmente  procurar  os  assumptos 
amorosos,  em  que  foi  excellente. 

Wanderwerfl*  n.  1659,  m.  1722.  Seus  toques 
são  firmíssimos,  e  seu  desenho  correcto. 


Século   XVIII 


António  Raphael  Mengs  n.  1728,  ra.  1779. 
Tem  uma  verdade  de  colorido,  e  uma  facilidade 
de  pincel,  que  distingue  as  suas  obras  de  quaes- 
quer  outras. 

Gerardow,  n...,  bem  conhecido  pelo  seu  Hy- 
dropico  que  existia  no  palácio  real  em  Turin,  e 
que  Mr.  Cochin  na  sua  viagem  de  Itália  não 
duvida  chamar  o   melhor   quadro   Flamengo,  e 


DA     PINTURA  133 

assegura    ter  sido  um    dos   mais  estimados  do 
principe  Eugénio.  ' 

CAPITULO  VIII 


Ba  Exdiohi  Franceza 


A  cschola  Franceza,  filha  da  Bomana  (segun- 
do Pruneti)  honra  muito  a  sua  progenitora.  Des- 
de o  século  XVII  as  Italianas  (seu  modelo)  de- 
clinavam muito;  ja  se  não  viam  Rafados,  Cor- 
regios,  nem  Ticianos:  parece  que  a  natureza,  es- 
gotada por  tam  grandes  talentos,  queria  descan- 
car.  E  nesta  mesma  épocha  (principies  do  século 
XVIII,  e  fins  do  XVII)  brilhavam  em  França 
Le  Crun,  Lesueur,  Subloiras  etc.  Veio  o  século 
XIX  tam  memorando  pelas  extraordinárias  mu- 
danças, que  viu  a  Europa;  e  em  quanto  a  revo- 


'  Maito  há  que  li  eslas  viagens,  assim  como  as  memorias 
do  Mr.  l'Abbc  Richard;  de  maneira  que  agora  nao  poderei  a^ 
severar  cm  qual  dos  dous  encontrei  Gerardow,  c  o  seu  hjdro- 
pico.  A'  leitura  d'ambos  remoto  os  curiosos. 


134  ENSAIO   SOBRE    A   HISTORIA 

lução  Franceza,  e  suas  consequências  aniquila- 
vam em  toda  a  parte  ^  as  boas-artes;  a  França 
apresentava  ao  mundo  o  mais  brilhante  espec- 
táculo. Por  entre  o  ruido  das  armas;  e  o  estré- 
pito dos  combates,  as  margens  do  Sena, 

D' onde,  arrancando  omnipotência  aos  fados, 
Impoz  tropel  d'heroes  silencio  ao  (/lobo. 
(Bocage.) 

se  ornavam  com  todo  o  esplendor  das  sciencias 
e  artes.  A  mesma  Theologia  tam  seca,  e  enfa- 
donha nas  mãos  de  Santo  Thomaz,  tam  immoral 
nas  de  Mollina,  e  Sanches,  muda  de  forma, 
toma  nova  essência,  e  na  milagrosa  penna  de 
Chateaubriand  surge  com  uma  belleza  e  ma- 
gestade,  que  jamais  puderam  dar-lhe  o  douto 
Agustinho,  o  eloquente  Origenes.  Com  bem  jus- 
tiça, em  quanto  a  mim,  se  podem  a  si  próprios 
applicar  os  Francezes,  a  respeito  das  outras  na- 
ções, aquella  sentença  de  Séneca:  MuUum  ege- 
rirnt  qui  ante  nos  fuerunt,  sed  non  pcragerunt.     ^ 

'    A'  excepçSo   da  Inglaterra  e  Rússia,  e  tarabem  de  Portu- 
gal, que  então  colhia  os  fructos  de  todas  a.  fadigas   de  Pombal, 
e  Manique. 
'    Seiieca£'i3ut.  65 


DA    PINTURA  135 

Nesta  époclia  brilhante  e  memoranda  nos  fas- 
tos da  humanidade,  das  sciencias  e  das  artes,  a 
pintura  renova  em  Paris  os  séculos  de  Augusto, 
de  Leão  X  e  de  Luiz  XIV.  Os  generaes  victo- 
riosos  traziam  de  toda  a  parte  os  monumentos 
mais    preciosos   das    boas- artes.  O  Vaticano,  o 
Belveder,  o   Capitólio,  Roma,  toda  a  Itália  foi 
exhaurida,  e  suas   riquezas  de  sculptura  e  pintu- 
ra transportadas  á  nova  capital  do  mundo.  En- 
tão appareccram  em  França  David,  Girodet,  e 
muitos  outros,  que  vão  parelhas   com  os  mais  fa- 
mosos Italianos,  se  em  parte  os  nSo  excederam. 
Lavater  no   seu  ingenhoso  livro   das  physiono- 
mias  não  se  attreveu  a  caracterisar  os  Francezes. 
Seus  génios  e  maneiras  tam   incertos  e  incapa- 
zes de  classificação,  como  sua  variada  phisiono- 
mia,  impedem  afíixar-lhes  com  exactidão  a  ca- 
racteristica;  e  philologos  por  isso  houve,  que  não 
quizeram  considerar  na  Franceza  uma  eschola; 
porem  esta  assersão  é  sem  critica,  e  pouco  segui- 
da. Pruneti  no  seu  Ensaio  Pictórico   aceusa  a 
eschola  Franceza  de  mau  colorido,  e  ignorância 
do  antigo.  Eu,  sem  me  attrever  a  contrastar  este 
parecer,  julgo  que  tal  imputação  não  pode  ter  lu- 
gar na  moderna  eschola  franceza;   mas  somen- 


136  ENSAIO   SOBRE   A    HISTORIA 

te  se  deve  referir  á  antiga.  Pruneti  todavia  não 
conheceu  a  eschola  de  David;  mas  devia  conhe- 
ce-la  seu  traductor  Taborda;  devera  estuda-la 
para  emendar  o  seu  original,  e  exceder  assim  a 
mediocridade  d'un"i  traductor  servil,  aecrescen- 
tando-lhe  novas  ideias.  O  grande  género  fran- 
cez  é  geralmente  o  histórico.  O  chefe  desta  es- 
chola, querem  uns  que  seja  Roux,  ou  liosso,  ou- 
tros que  Leonai'do  da  Vinci:  Pruneti  assevera 
que  fora  Primaticio  Bolognese,e  o  faz  alumno  da 
eschola  Romana.  Eu  o  classifiquei  na  Lombar- 
da; mas  confesso  que  me  enganei;  porque  o  seu 
pintar,  verdadeira  norma,  é  mais  Romano,  que 
Lombardo. 

Século    XVI 

Vovet  n.  1590,  m.  1649.  Teve  um  desenha 
altivo,  e  um  pincel  vigoroso;  mas  imitou  depois 
todas  as  boas  e  más  qualidades  de  Mig.  Ang.  de 
Caravaggio. 

Nicolau  Poussin:  Pruneti  o  faz  nascido  em 
1594;  mas  Voltaire  {Sièc/e  de  Louis  XIV)  asse- 
vera esta  data  em  1599.  A  boa  critica  decide 
por  este,   como  nacional,   e  tam  instruído  nos 


DA  PINTURA  137 

successos  d'um  tempo,  cuja  historia  nos  deu.  O 
mesmo  Voltaire  diz  que  Poussin  era  chamado  o 
pintor  das  pessoas  de  spirito,  e  accrescenta  que 
também  das  de  gosto  se  podia  dizer.  Soube  bem 
o  antigo  e  o  desenho;  mas  o  gosto  Romano  lhe 
deu  um  colorido  sombrio.  Sua  philosophia  (diz  o 
grande  escriptor)  o  fez  superior  ás  intrigas  de 
Lo  Brun,  e  morreu  pobre  mas  contente  em  1665. 

Pedro  Yalentin  de  Colonier  n.  1600,  m.  1632, 
imitou  Poussin;  teve  um  colorido  harmonioso, 
boa  ordem  nas  figuras,  mas  pouca  correcção  no 
desenho. 

Jacques  Blanchard  foi  imitador  feliz  das  bel- 
lezas  de  Ticiano.   Nasc.  1600,  m.  1638. 

Lesueur  n.  1617,  m.  1655.  Seu  ingenho  é 
sublime  e  elevado,  seu  gosto  de  roupagens  ma- 
gnifico. E  um  dos  primeiros  pintores  da  antiga 
eschola  Franceza. 

Pedro  Mignard  n.  1610,  m.  1638.  O  estudo, 
e  imitação  de  Kaphacl  e  Ticiano  o  fizeram  al- 
gum tempo  rival  de  Le  Brun;  mas  a  posteridade 
imparcial  o  extremou  bom. 

(jarlos  Le  ]iruu  n,  1619,  m.  1690.  Sua  com- 
posição, dignidade  de  exprimir,  e  fidelidade  do 
costumes  se  conhece   principalmente  pelas  bata- 


138  ENSAIO    SOBRE   A    HISTORIA 

lhas  de  Alexandre,  que  Voltaire  julga  superio- 
res ás  de  Paulo  Veronese;  mas  apezar  do  meu 
respeito  a  um  tal  historiador,  e  philologo,  creio 
que  nisto  se  engana,  bem  como  no  elogio  do  seu 
colorido,  que  todos  taxam  de  menos  correcto. 


Século  XVIII 


José  Vivien  n.  1651,  m.  1735.  Retratou  bem 
a  pastel,  teve  muita  belleza  e  fecundidade  de 
ideias,  e  executou  bem. 

Pedro  Subleiras  n.  1699,  m.  1749.  Fertili- 
dade de  ingenho,  grandeza  de  stylo,  viveza  de 
colorido,  magnifica  prespectiva,  boas  roupagens 
são  os  seus  caracteres,  e  os  d 'um  grande  pintor. 

João  Baptista  Santerre  n....,  m....  Seu  mere- 
cimento principal  é  um  colorido  verdadeiro  e 
terno.  O  quadro  de  Santa  Thereza  na  capella  de 
Versailles  é  um  dos  esmeros  d'arte  mais  precio- 
sos e  beUos;  com  quanto  um  pouco  voluptuoso 
de  mais,   do   que  ao  assumpto  e  logar  cumpria. 


DA  PINTURA  139 

Século  XIX 

David  '  é  não  só  o  primeiro  pintor  da  mo- 
derna eschola  Franceza,  mas  por  ventura  o  pri- 
meiro do  mundo,  depois  de  Raphael.  Que  vas- 
tidão e  sublimidade  de  ideias !  Que  força  e  ver- 
dade no  colorido!  Finalmente  as  suas  compósi- 
tos reúnem  todas  as  boas  qualidades,  que  ape- 
nas se  acham  dispersas  pelos  quadros  mais  fa- 
mosos das  antigas  escholas,  e  que  só  a  elle  foi 
dado  juntar.  Fallem  os  prodigiosos  quadros  de 
Belisario,  do  juramento  dos  Horacios,  da  morte 
de  Sócrates,  e  sobre  tudo  o  incomparável  quadro 
das  Sabinas,  o  noii  phs  nitra  da  concepção  e  ex- 
ecução, e  a  eterna  inveja  de  todos  os  pintores 
existentes  e  futuros. 

'  Girodet  igualmente  se  tem  distinguido  muito 
pela  elegância  de  suas  composições,  e  suavidade 
de  seu  colorido,  que  nos  seus  quadros,  quer  de 
perto,  quer   de  longe,   prescnta   quasi  o  mesmo 

'  Tinha  me  feito  a  mim  próprio  uma  lei  de  nao  nomear  ne- 
nhum pintor  \ivo;  mas  o  reconhecido  merecimento  destes,  o 
serem  estranj;eiros,  a  necessidade  de  fallar  da  moderna  escho- 
la Francciii,  e  não  poder  faze-lo  de  outra  maneira,  me  obrigou 
a  infraciãu  da  lei,  c  quebra  do  protesto. 


140  ENSAIO   SOBRE    A    HISTORIA 

eJBFeito.   Não  tem  as  graças  viris  de  David;  mas 
um  acabado,   uma  doçura,  uma  maneira  de  ex- 
primir, que  o  caracterizara,  e  tornam  por  extre- 
mo encantadoras  suas  bellas  prcducçÕes.  Vejara- 
se  os  quadros  do  enterro  (VAtala,  e  da  Virgem. 
Gérard  por  seus  excellentes  retratos,  chamado 
o  Wandiek  de  França,  é  também  pintor  históri- 
co e  famoso  pelo  bom  arranjo  e  ordem  de  seus 
grupos,   pannejado,   ou  trapejadó  de  suas  figuras, 
e  bella  correcção  de  desenho.  Seus  grandes  qua- 
dros são  o  Belisario,a  Batalha  d'Austerlitz,  e  ul- 
timamente a  entrada  de  Henrique  IV  em  Paris, 
que  lhe  grangeou  o  logar  de  primeiro  pintor  da 
Camera  de  Luiz  XVIII;  não  porque  Girodet  seja 
superior  a  David,  nem  mesmo  igual ;  mas  porque 
soube  lisongear  a  tempo. 

Régnault  é  mui  conhecido  pela  correcção  do 
desenho ;  porém  o  seu  colorido,  em  demasia  bri- 
lhante, é  mais  contrafeito,  que  natural:  todavia 
deu  muitos  e  bons  discípulos,  e  entre  elles  o  mais 
famoso  é  : 

Guérin  tão  celebre  pelos  seus  quadros  de  Phe- 
dra,  e  115'^ppolito,  de  M.  Sexto,  e  da  narração  de 
Eneas  a  Dido.  Seus  caracteres  são  fogo  pictores- 
co,  e  muita  scicncia  de  claro-cscuro. 


DA    PINTURA  141 

Le  Gros  bem  conhecido  pintor  de  historia  se- 
gue a  David.  E  mui  celebre  o  seu  quadro  de 
Francisco  I,  e  Carlos  V  em  S.  Diniz. 

Vernet,  filho  do  paizagista  do  mesmo  nome,  e 
que  no  género  de  batalhas  é  sem  par.  Só  elle 
conseguiu  exprimir  com  todo  o  fogo,  e  energia  os 
brutos,  que  puxam  o  carro  de  Neptuno. 

CAPITULO  IX 

Dos  Pintores  IngkzcH,  e  principalmente 
de  West 

West  é  o  único  inglez,  cujas  obras  mereçam 
collocar-se  a  par  das  boas  das  outras  nações.  Os 
Inglezes  não  tem  o  génio  da  pintura.  A  natureza 
do  paiz  não  é  bella,  o  sexo  frio  e  desleixado ;  as 
proporções  do  corpo  em  geral  irregulares,  mal 
feitas ;  o  caracter  da  nação  duro  e  ríspido ;  os 
costumes  ferozes ;  tudo  em  fim  concorre  a  impos- 
sibilitar a  Gran-]iretanha  do  ])roduzir  bons  pin- 
tores. Um  inglez  bem  conhecido,  o  barão  do  Ches- 
terficld  o  confessava,  quando  n'uma  do  suas  car- 
tas a  certa  dama  franceza  diz :  Every  country  has 
talents  peculiar  to  it,  as  well   as  fruits,  or  other 


142  ENSAIO  SOBRE    A  HISTORIA 

natural  productions.  "VYe  here  thiiik  deeply,  and 
fathom  to  the  very  bottom.  Italian  thoughts  are 
sublime  to  a  degree  beyond  ali  comprebension. 
You  keep  tlie  midle  patb,  and  consequently  are 
seen  foUowed,  and  beloved  (Chestarfield  Let- 
ters :  Lett.  444.)  Comtudo  "West  soube  distin- 
guir-se  de  seus  compatriotas  por  um  génio  vasto, 
e  desenho  correcto  ;  mas  seu  caracter  de  pintura 
não  é  sublime  ;  e  o  seu  colorido  (como  o  geral  da 
nação)  contrafeito  e  impróprio. 

CAPITULO  X 

Dos  Pintores  Portuguezes 

Tem-se  escripto  muito,  e  muito  controvertido 
sobre  a  Pintura  portugueza,  e  sua  historia ;  mas 
tanto  nacionaes,  como  estrangeiros  (affoitamente 
o  digo)  sem  critica.  O  exame  de  seus  escriptos, 
das  obras  dos  nossos  artistas  me  suscitou  a  ideia 
de  entrar  com  o  faxo  da  philosophia  neste  cahos 
informe  e  desembaraçar,  quanto  em  mim  fosse, 
com  o  fio  da  critica  este  inextricável  labyrinto. 
Não  pretendo  adiantar  ideias  novas :  pois  donde 
as  haveria  ?   Menos  ainda  refutar  as  poucas  his- 


DA   PINTURA  143 

toricas  que  temos :  pois  que  documentos  poderia 
allegar?  Mas  simplesmente  examinar  o  que  ha, 
e  dar-lhe  ordem  e  methodo.  Eisaqui  o  que  é  meu, 
o  resto  é  dos  escriptores,  de  quem  o  houve.  Com 
estes  dados  considerei  em  Portugal  quatro  epo^ 
chás  de  pintura,  umas  mais,  outras  menos  bri- 
lhantes :  por  via  destas  divisões  será  por  ventura 
mais  fácil  o  formar  um  systema  histórico  desta 
boa-arte  entre  nós. 

ErOCHA    I 

(Séculos  XI  até  XIV) 

O  erudito  arcebispo  Cenáculo,  Barbosa  e  ou- 
tros modernos,  na  investigação  das  antiguidades 
da  pintura  portugueza,  conjecturaram  muito  e 
com  muita  fadiga,  mas  pouco  fructo,  O  desleixa- 
ra ento  daquelles  séculos  meio-barbaros  em  se 
lembrar  da  posteridade  com  a  historia  de  seu 
tempo,  não  deixa  aos  ânimos  estudiosos,  e  amigos 
da  gloria  pátria,  senão  o  desejo  e  infructuoso  tra- 
balho de  vagar  sem  rumo  por  um  pelogo  de  con- 
jecturas, a  qual  mais  vaga.  Que  Itália  e  Portu- 
gal eram,  nestas  cpochas  remotas  dos  séculos  XI, 


144  ENSAIO    SOBRE    A    HISTORIA 

XII  e  XIII,  as  províncias  menos  barbaras  da 
Europa ;  seus  monumentos  públicos,  templos,  es- 
tatuas e  ainda  livros  o  mostram.  Alcobaça  e  Santa 
Cruz  de  Coimbra  são,  além  d'outras,  incontras- 
taveis  provas  da  minha  asserção.  Vivia  entre 
nós  a  pintura ;  e  vivia  o  melhor,  que  do  gosto  do 
tempo  se  podia  esperar.  Quem  exigir  mais  diíFu- 
são,  pôde  ver  os  citados  Barbosa,  e  Cenáculo,  e 
todos  os  allegados  pelo  moderno  Taborda.  O  re- 
sultado philosophico  de  quanto  disseram  é  em 
poucas  phrascs:  — Que  esta  arte  antiquíssima  en- 
tre nós  remonta  ao  principio  da  monarchia.— 
Que  barbara  e  gothica  ao  principio,  se  foi  pouco 
e  pouco  melhorando,  já  pelas  viagens  dos  nossos 
mestres  á  Itália,  já  pelas  obras  e  pintores,  que 
de  lá  vinham  chamados  pelo  bom  accolhimento, 
que  lhes  nossos  monarchas  faziam.  — Que  existem 
ainda  deste  tempo  algumas  pinturas,  cujo  auctor 
se  ignora.  —  Que  nos  reinados  d'AfFonso  V,  e 
João  II  ja  tínhamos  pintores  de  nome,  como 
Gonsalo  Nuno,  João  Annes,  e  Álvaro  de  Pedro. 
Que  o  estylo  da  nossa  pintura  deste  tempo,  era 
um  mesclado  de  gothico  e  grego-moderno,  simi- 
Ihante  ao  de  Cimabué,  Guido  de  Sienna,  e  Pedro 
Pcrugino.—  O  gosto  do  antir/o,  que  então  come" 


DA    PINTURA  145 

cava  a  prevalecer  na  Itália,  e  que  de  lá  se  com- 
municou  a  Portugal  pela  protecção,  com  que  o 
amador  das  boas-artes,  D.  Manoel  especializou  a 
pintura,  assignala  a  segunda  epocha,  que  se  deve 
contar  do  XV  século. 

EPOCHA    II 

(Séculos  XV e  XVI) 

"  Em  quanto  a  França  se  occupava  em  justas 
e  t(jrneios,  em  discórdias  e  guerras  civis,  Portu- 
gal descobria  novos  mundos,  fazia  o  commercio 
da  Europa,  e  produzia  um  sem  numero  de  Ca- 
mões, antes  que  em  Paris  houvesse  um  só  Ma- 
Iherbe  "  diz  Mr.  Voltaire  (siècle  de  Louis  XIV) , 
e  devera  accrescentar  que,  antes  que  nascessem 
Le  Brun  e  Poussin,  ja  Portugal  contava,  na  longa 
serie  de  seus  pintores,  Grau  Vasco,  Francisco  de 
HoUanda,  Cláudio  Coelho,  e  mil  outros.  D.  Ma- 
noel chamado  o  feliz,  fui  o  pae  das  scieiícias  e 
artes :  e  se  João  III  C(mtou  no  seu  tempo  mais 
sábios,  que  seu  illustre  antecessor,  fructos  foram, 
que  cm  seu  tempo  amaduraram  ;  mas  devidos  ás 
fadigas  do  semeador  e  cultor,  o  grande  Manoel. 

10 


146  ENSAIO   SOBRE    A    HISTORIA 

Gran  Vasco,  Gonsalo  Gomes,  Fr.  Carlos  todos 
são  deste  tempo.  O  commercio  e  conquistas  da 
índia  tinham  elevado  o  reino  a  um  gráo  de  opu- 
lência, desconhecido  então  das  outras  nações. 
D.  IVIanoel  quiz  eternizar-se  com  a  fabrica  do 
mosteiro  de  Belém ;  conhecendo:  , 

Que  d^ acções  immortaes  se  murcha  a  gloria, 
Se  a  não  regam  as  filhas  da  memoria. 

(Diniz  od.) 

Os  mancebos  de  mais  esperanças  foram  manda- 
dos á  Itália  a  aperfeiçoar-se  na  pintura.  Aífonso 
Sanches,  Fernão  Gomes,  Manoel  Campello,  Chris- 
tovão  Lopes  e  outros,  voltaram  approveitados,  e 
enriqueceram  não  só  Belera  e  Lisboa,  mas  o 
reino  e  toda  a  Europa  com  suas  primorosas  obras. 
Veio  depois  Francisco  de  Hollanda,  Diogo  Pe- 
reira e  Cláudio  Coelho,  que  não  deixaram  ao  sé- 
culo de  Manoel  e  João  III  •  que  invejar  ao  de 

'  Nunca  pude  affeiçoar-me  a  D.  João  III  apesar  da  sua 
piedade  e  bondade,  apezar  do  seu  amor  das  sciencias,  protec- 
ção que  lhes  deu,  etc,  ele.  Donde  virá  islo?  Será  do  seu 
ainda  maior  amor,  e  do  generoáo  accolliimenlo,  que  fez  á 
Sane  ta  Inquisição. 


DA   PINTURA  147 

Luiz  XIV.  O  stylo  pomposo  de  Miguel  Angelo, 
que  tanto  agradava  ao  génio  altivo  d'uma  nação 
conquistadora,  prevalecia  muito  entre  os  pintores 
portuguezes,  que  nem  por  isso  menos  prosaram 
o  desenho  de  Rapliael,  e  o  colorido  de  Ticiano, 
que  ainda  hoje  se  admira,  em  suas  bellas  com- 
posições. 

EPOCHA    III 

(Século  XVII) 

Espiraram  com  D.  Sebastião  nas  areias  de 
Africa  o  valor  e  espirito  portuguez ;  cairam  as 
sciencias,  esmoreceram  as  artes;  e,  com  quanto 
os  intrusos  Philippes  favoreciam  alguma  cousa  o 
talento ;  a  abundância  e  riquezas,  em  cujo  seio 
se  crearam  sempre  os  grandes  ingenhos  tinham 
desamparado  o  reino,  e  sepultado  a  nação  no  le- 
thargo  politico,  na  miséria  e  na  ignorância.  As 
cinzas  das  sciencias  fumegavam  com  tudo ;  c  os 
últimos  vislumbres  d'um  clarão  moribundo,  mas 
ainda  grande,  alluniiaram  ainda  a  Amaro  do 
Valle,  Kstevão  Gonsalvcs,  José  d'Avellar  e  Ben- 
to Coelho.  — Surgiu  finalmente  a  independência 

portugueza  depois  de  60  annos  de  escravidão; 

« 


148  ENSAIO  SOBRE    A  HISTORIA 

mas  o  génio  da  nação  estava  muito  abatido  ;  era 
necessário  ainda  o  decurso  de  muitos  séculos  para 
o  levantar.  Vem-se  com  tudo  desta  quadra  mui- 
tas pinturas,  supposto  não  mereçam  comparar-se 
com  as  do  bom  tempo  de  Campello  e  Cláudio. 
Bem  como  nos  ânimos,  reinava  na  pintura  por 
estes  desgraçados  tempos  a  servidão  e  mau  gosto, 
que  se  limitava  a  copiar  e  imitar  com  baixeza ;  e 
por  ventura  pela  mesma  razão,  que  nos  fez  des- 
prezar a  materna  lingua,  para  escrevermos  na 
hespanbola  :  lisonja  vil  e  indigna  do  nome  portu- 
guez,  eterno  opprobrio  e  mancha  de  escriptores, 
aliás  beneméritos,  como  Faria  e  Sousa,  que  en- 
xovalhou sua  fama  com  tal  baixeza  e  vitupério,  ■ 
e  a  marcou  indelevelmente  com  o  ferrete  da  sór- 
dida adulação ;  perniciosa  mania,  que  tanto  es- 
tragou o  idioma  de  Camões  e  Barros,  e  a  tal 
ponto,  que  os  esforços  e  fadigas  de  tantos  sábios 
e  philologos  tem  sido  pouco  para  a  restaurar. 

'  E  cora  eflfeito  qual  será  o  bom  portuguez,  que  possa  per- 
doar a  Faria  e  Sousa  o  ter  escripto  as  suas  historias  em  cas- 
telhano? Os  seus  taes  e  quaes  commentarios  a  Camões,  ao 
melhor  dos  escriptores  porluguezes,  ao  mais  célebre  da  sua 
nação,  na  língua  dos  uppressores  da  pátria,  dos  tyrannos  de 
Portugal  ? 


DA   PINTURA  149 


EPOCHA    IV 

(Séculos  XVIII  e  XIX) 

A  longa  paz  do  remado  de  D.  João  V,  o  cora- 
mercio  das  colónias  Americanas,  as  riquezas  e 
abundância  consecutivas  fizeram  reviver  as  artes 
e  sobretudo  a  pintura  e  arcliitectura.  Começou-se 
Mafra  pela  mesma  razão,  que  se  começara  Be- 
lém: a  Itália  recebeu  de  novo  muitos  alumnos 
portuguezes ;  e  como  Luiz  XIV  fizera  em  Roma, 
fez  João  V,  instituindo  n'aquella  cidade  uma 
academia  de  pintura.  Francisco  Vieira  Lusita- 
no, Ignacio  d'01iveira,  e  muitos  outros  foram  o 
digno  fructo  dos  cuidados  do  monarcha,  merece- 
dor por  seus  bons  desejos  d'um  século  mais  phi- 
losopho,  e  d'uma  corte  menosjiypocrita.  N'este 
estado  de  cousas  começou  a  reinar  D.  José,  ecom 
elle  o  marquez  de  Pombal :  tudo  mudou  de  face ; 
cahiu  o  colosso  jesuitico,  o  reino  d' Aristóteles  e 
a  barbaridade  Thomistica  '  ;  brilhou  a  pintura 


'  Todos  sabem  que  a  philosophia  Arislotelico-Tbomislico- 
escholastica,  tam  querida  de  nossos  avós,  era  o  opposto  diame- 


150  ENSAIO    SOBRE    A    HISTORIA 

como  a  poesia,  e  as  outras  artes  e  sciencias.  O 
governo  doce  e  moderado  de  Maria  I  acabou  de 
aperfeiçoar  o  que  principiara  e  adiantara  D.  José, 
e  o  raarquez  de  Pombal,  que  na  universidade  de 
Coimbra  ',  em  Mafra,  no  collegio  dos  nobres,  e 
outras  partes  tinham  instituido  aulas  de  desenho 
e  pintura.  D.  Maria  fundou  a  academia  do  nu;  em 
seu  tempo  ^  se  instituiu  a  de  desenho  do  Porto. 
A  nenhum  bom  portuguez  devem  esquecer  os  vi- 
gilantes cuidados  do  intendente  Manique,  a  quem 
a  pintura,  a  esculptura  e  mais  artes  devem  tanto 
em  Portugal.  Esta  fértil  epocha  produziu  ura 
Pedro  Alexandrino,  Vieira  Lusitano,  Teixeira 
Barreto,  Vieira  Portuense,  Sequeira,  e  muitos 
outros,  cujos  nomes  callo,  mas  bem  conhecidos 
pelas  suas  bellas  producçoes.  A  verdade,  a  ex- 
pressão, o  bello  natural  são  os  caracteres  domi- 
nantes nestes  tempos. 


trai  d'aquella  deflinição  de  Séneca:  Non  est  philosopMa  popu- 
lare  arteficium,  nec  ostentafione  paratum  Non  in  verbis,  sed 
inrebusest.  Senec.  Epist.  XVII  Ad  Lucil. 

'  Em  Coimbra  não  teve  effeito :  dizem  as  más  linguas, 
q<je  por  ser  cousa  d'ulilidTde  e  espécie  ommissa  nos  (f.  e  Inst 

'  Na  regência  do  actual  reinante,  e  demência  da  rainha. 


DA    PINTURA  151 

PINTORES  PORTUGUEZES   DA    I.    EPOCHA 

(Século  XI  até  XIV) 

Álvaro  de  Pedro  viveu  e  pintou  na  Itália  pe- 
los annos  de  1450.  Nada  mais  se  sabe;  mercês 
á  incúria  de  nossos  avoengos.  Oxalá  que  este 
miserável  e  vergonhoso  exemplo  sirva  de  esti- 
mulo a  netos,  que  possam  melhor  que  eu,  trans- 
mittir  á  posteridade  a  memoria  illustre  de  nos- 
sos coevos.  Noto  de  passagem  que  o  traductor 
da  oração  de  Belori  assevera,  com  uma  intrepi- 
dez que  me  espanta,  serem  de  Gonsalo  Nuno,  ou 
Nuno  Gonsalves  as  pinturas  da  capella  de  S.  Vi- 
cente na  sé  de  Lisboa.  O  mesmo  dizem  Fran- 
cisco de  Ilollanda  e  Bermudes. 

João  Annes.  Deixadas  conjecturas,  nada  mais 
sabemos  deste  pintor,  senão  que  vivia  pelos  an- 
nos de  1459  por  uma  carta  de  privilegio  dada 
por  D.  Affonso  V.  ( Vide  Taborda,  Cenáculo, 
etc.) 

Vasco  dito  o  grande  (Gran  Vasco).  Sabemos 
por  documentos  d'aquelle  tempo,  que  vivia  ain- 
da nos  fins  do  XV  século.  Seu  stylo  do  antigo 
modo  Florentino  faz  julgar  aos  sabedores,   que 


152  ENSAIO   SOBRE     A   HISTORIA 

estudara  com  Pedro  Perugino.  Desenho,  ainda 
que  rude,  exacto,  attitudes  enérgicas,  grande  co- 
nhecimento de  architectura,  bellas  paízagens  são 
os  caracteres  deste  insigne  mestre,  que  fértil,  e 
assiduo  no  trabalho  enriqueceu  todo  o  reino  com 
seus  primores.  Muitos  templos  de  Lisboa,  o  da 
Ordem  de  Christo  em  Thomar,  e  outros  o  attes- 
tam.  Foi  pintor  de  D.  AíFonso  V,  e  segundo  o 
traductor  portuguez  de  Belori,  também  de  D. 
Manoel.  Um  periódico  de  Lisboa  (que  infeliz- 
mente se  intitula  Mnemosine  Lusitana)  quer  que 
o  melhor  quadro  de  Vasco  seja  o  da  paixão  de 
Christo  no  horto  (em  Thomar):  pintura  (diz  el- 
le)  porque  um  Inglez  philologo,  dava  6$  cruza- 
dos, e  uma  boa  copia.  Desejava  de  todo  o  meu 
coração,  que  o  redactor,  ou  redactores  tivessem, 
ao  menos  nisto,  razão:  em  quanto  a  mim  o  amor 
da  pátria  m'o  faz  crer  facilmente. 

PINTORES   PORTUGUEZES  DA   II.    EPOCHA 

(Smi/o  XV  e  XVI) 

Gonçalo  Gomes,  de  quem  nada  mais  se  sabe 
senão  que  vivia  nos  fins  do  século   XV,  foi  pin- 


DA    PINTURA  153 

tor  de  D.  Manoel;  e  a  estimação,  que  este  sábio 
rei  d'elle  fez,  é  o  único,  mas  relevante  testemu- 
nho do  seu  merecimento. 

Na  chronica  de  D.  Manoel  é  chamado  Duarte 
Darmas  grande  pintor,  e  como  tal  enviado  por 
el-rei  a  debuxar  as  entradas  de  Azamor,  Salé, 
etc.  ( Vide  Damião  de  Góes,  chron.  de  D,  Man. 
part.  II,  cap.  27,  pag.  208,  ediç.  de  1819.) 

Firmado  no  próprio  testemunho  do  auctor 
assevera  (e  não  sei  se  com  razão)  Vicente  Car- 
ducho,  e  com  elle  Taborda,  que  o  nosso  historia- 
dor Eesende  fora  também  grande  pintor.  Não 
sei  se  a  singeleza  d'aquelles  tempos  é  bastante 
para  crermos  um  homem  no  artigo  dos  seus  lou- 
vores. 

Fr.  Carlos,  monge  de  S.  Jeronymo  vivia  no 
principio  do  século  XVI.  Pintou  no  stylo  de  Bo- 
lonha, e  sobre  tudo  no  de  Corregio.  Ainda  que 
flamengo  de  origem,  suas  obras  tem  mais  no- 
breza, que  o  coramum  d'aquella  nação,  sem 
deixar  de  ter  sua  bella  simplicidade. 

Gaspar  Dias  viveu  pelos  princípios  do  XVI 
século.  Mandado  a  Itália  por  D.  Manoel  a  es- 
tudar os  grandes  modelos,  e  formar  o  stylo,  sua 
alma  elevada  não  so  contentou  d'outros  mestres, 


154  ENSAIO    SOBRE    A  HISTORIA 

que  não  fossem  Raphael  e  Miguel  Angelo.  Estu- 
dou-os,  e  mereceu  imitá-los  com  dignidade. 

Christovão  d'Utreclit  n.  1478  m.  1557.  Ain- 
da que  nascido  em  Hollanda,-nossos  escriptores 
o  fazem  portuguez.  Soube  perfeitamente  a  pers- 
pectiva, e  juntou  ao  gosto  de  Perugino,  e  João 
Bellini  a  maior  delicadeza  e  harmonia  de  pin- 
cel. 

Affonso  Sanches  Coelho  n.  1515,  m.  1590. 
Dotado  pela  natureza  de  quanto  constituo  um 
grande  pintor  concebeu  fortes  desejos  de  passar 
á  Itália,  onde  ouviu  as  lições  de  Raphael;  hon- 
ra, que  bem  mereceu  por  seu  aproveitamento. 
Chamado  por  Philippe  II  á  Hespanha  ennobre- 
ceu  Madrid;  e  sobre  tudo  o  Escurial  com  suas 
pinturas.  Um  dos  poucos  exemplos  do  mereci- 
mento premiado  foi  este  illustre  portuguez.  João 
III  de  Portugal,  Philippe  II,  Gregório  XIII, 
o  grão  duque  de  Toscana,  o  da  Sabóia,  o  cardeal 
Alexandre  Farnese,  o  estimaram,  enriqueceram 
e  honraram  á  porfia.  Sua  alma  bemformada 
escutou  sempre  a  voz  da  natureza;  e  o  philologo 
não  excedeu  neUe  o  homem.  ( Vide  Palomino, 
Bermudes,  etc.) 

Peruão,  ou  Fernando  Gomes,  mandado  á  Ita- 


DA     PINTURA  155 

lia  por  D.  Manoel,  e  em  consequência  vivendo 
no  principio  do  século  XVI,  foi  aproveitado  dis- 
cipulo  de  Miguel  Angelo;  e  suas  obras  o  provara 
bem. 

Manoel  Campello  também  enviado  á  Itália,  e 
também  do  mesmo  tempo.  Ainda  hoje  se  admi- 
ra em  Belém  nos  seus  quadros  aquella  correc- 
ção de  desenho  da  eschola  Romana,  aquella 
grandeza  de  stylo,  que  faz  a  glória  de  Miguel 
Angelo,  seu  mestre,  e  que  a  não  faz  menos  do  il- 
lustre  discipulo.  Estas  brilhantes  qualidades  lhe 
grangearam  os  elogios  de  todos  os  sábios  nacio- 
naes  e  estrangeiros.  ( Vid.  D.  Francisco  Manoel 
de  Mello:  hoqntcddm  ktfras;   Guarenti,  etc.) 

Vasques...  viveu  pelos  annos  de  1562.  Poucos 
pintores  souberam,  como  elle,  anatomia  tão  ne- 
cessária para  o  bom  desenho,  e  proporções,  em 
que  se  avantajou,  e  que  lhe  deram  um  mui  dis- 
tincto  logar  na  historia  da  arte,  apezar  de  seu 
stylo  um  pouco  rudov,^ 

Christovão  Lopes  n.  1516,  m....  O  stylo  pom- 
poso de  Miguel  Angelo,  que  tanto  agradava  ao 
génio  sublime  e  elevado  dos  portuguczes,  foi  o 
seu  modelo;  e  juntando  a  tam  brilhante  quaUda- 
de  a  expressão  do  llaphael,  enriqueceu  a  Pátria 


156  ENSAIO   SOBRE    A    HISTORIA 

com  as  magnificas  producções,  que  ainda  hoje 
são  admiradas  depois  de  tantos  séculos  pelos  sa- 
bedores, e  amantes  das  boas- artes. 

D.  Leonor  de  Noronha  da  casa  de  Linhares, 
«.  1550,  m.  1636.  De  Duarte  Nunes  de  Leão  na 
^escripçíio  de  Portugal,  e  de  Barbosa  na  Biblio- 
th.  Lus.  sabemos  só  que  pintou  ex^elkntemente  a 
óleo  e  illuminnção. 

António  de  Hollanda,  inventor  da  illumina- 
ção  a  pontos  brancos  e  pretos  em  Portugal;  e 
com  tanto  mais  merecimento,  que  absolutamen- 
te ignorava  a  mesma  descoberta,  que  então  se 
começava  na  Itália.  Delle  disse  o  Imperador 
Carlos  V,  que  mejor  le  habia  sacado  ai  natu- 
ral António  de  Holanda  en  Toledo  de  ilumina- 
cion,  que  Ticiano  en  Bolona.  Bem  pouco  vale 
este  elogio,  porque  homens  desta  classe  nada  en- 
tendem de  ordinário  de  tudo  o  que  pode  ter  al- 
gum valor  ou  merecimento,  tendo  de  mais  a 
mais  a  presumpção  do  voto  decisivo.  Não  cons- 
ta porém,  que  Deus  creasse  mais  que  um  Salo- 
mão, e  como  este  um  morreu  ha  muito  tempo, 
e  estes  senhores  se  não  dão  o  incommodo  de  fazer 
aquillo,  que  fazem  os  que  não  são  SalomÕes,  ou 
não  tem  a  tal  infiim,  é  bem  claro  o  valor  de  si- 


DA   PINTURA  157 

milhantes  elogios.  Carlos  V  porém  (façamos 
justiça)  posto  que  o  mais  odioso  monarcha  por 
seu  cruel  despotismo,  não  era  com  tudo  o  mais 
tolo,  e  algumas  luzes  lhe  tinham  ficado  de  sen- 
so commum,  que  se  costumam  apagar  com  a.... 
Francisco  de  Hollanda  íloreceu  pelo  meio  do 
século  XVI.  —  Pintor,  architecto,  poeta  e  phi- 
losopho.  — Na  Itália  Paulo  III,  e  todos  os  gran- 
des e  sábios;  toda  a  Hespanha;  em  Portugal 
João  III,  e  toda  a  corte  o  estimaram  como 
merecia.  (Pois  n'aquelle  tempo  também  em  Por- 
tugal se  dava  preço  ao  merecimento!)  O  muito 
que  se  tem  escripto  sobre  este  memorável  por- 
tuguez,  me  desobriga  de  mais  extensa  apologia. 
De  sobejo  lh'a  fazem  seus  preciosos  escriptos, 
suas  pinturas,  e  toda  a  Europa.  —  De  suas  pro- 
ducções  é  sem  questão  a  obra-prima,  o  baptis- 
mo de  S.  Agustinho  (que  ainda  se  conserva  em 
cabeça  de  morgado  na  casa  dos  Castros)  em  que 
se  admiram  reunidos  a  sabia  composição  de  Ra- 
phaol,  o  desenho  nobre  e  altivo  de  Mig.  Angcl., 
e  o  bcllo  colorido  de  Ticiano.  —  Julga-se  quo 
morreu  cm  1Õ7 4. 


158  ENSAIO    SOBRE     A    HISTORIA 

PINTORES   PORTUGUEZES   DA    III.    ÉPOCHA 

{Século   XVII) 

Diogo  Pereira  n.  1570,  m.  1640.  Traballiou 
muito;  e  o  desvalimento,  em  que  sempre  viveu, 
não  lhe  aíFrouxou  as  graças  naturaes  e  puras, 
que  fazem  a  belleza  de  suas  composições.  Mas 
sobre  tudo  as  scenas  de  horror  foram  o  mimo  do 
seu  pincel.  Tive  o  prazer  de  admira-lo  muitas 
vezes  em  suas  obras,  que  por  decisiva  prova  de 
merecimento,  sSo  procuradas  por  altissimos  pre- 
ços para  Itália,  França  e  Inglaterra. 

Estevão  Gonçalves  Neto  n....,  m.  1627.  E 
delle  o  missal  do  convento  de  Jesus  tam  gabado 
pelas  excellentes  miniaturas  que  o  ornam.  Sou- 
be bera  o  ornato  e  prospectiva. 

Amaro  do  Yalle  n....,  m.  em  1619.  Seu  gos- 
to é  delicado;  seu  stylo  grande  e  expressivo;  o 
desenho  correcto,  e  assizada  a  perspectiva.  Foi 
pintor  de  Philippe  II. 

José  de  Avelar  RebeUo  viveu  no  tempo  de 
D.  João  IV,  que  o  condecorou  com  o  habito  de 
Aviz.  Caracterizam  suas  obras  (das  quaes  a  me- 
lhor é  o  >S.  Jeronymo  da  livraria  de  Belém)  um 


DA  PINTURA  159 

stylo  da  grandeza  de  Mig.   Ang.,   e  um  colorido 
de  sumnia  verdade. 

D.  Josephade  Ayala  n...,,  m.  1684.  Um  in- 
genho  fértil,  muita  verdade,  expressão  vivissima 
são  a  característica  de  seus  quadros,  pela  maior 
parte,  de  flores  e  fructos;  mas  o  seu  grande  gé- 
nero foi  o  retrato. 

Cláudio  Coelho  n....,  m.  1693.  Este  homem 
tam  grande  e  tam  conhecido  tem  sido  aboca- 
nhado por  muitos,  e  exagerado  por  alguns;  mas 
a  opinião  geral  o  constituo  n'um  dos  mais  supe- 
riores graus  entre  os  mais  illustres  pintores.  De- 
senhou correctamente;  coloriu  como  Ticiano;  e 
conheceu,  como  poucos,  o  effeito  da  prespectiva. 
Tudo  isto  se  observa  principalmente  no  seu  pri- 
moroso quadro  da  sacristia  do  Escurial  bem  di- 
vulgado pela  moderna  estampa  de  Bartholozzi. 
( Vid.  Palomin.  Mii.s.  Uid.  pag.  440  até  444;  o 
abbadc  Ponzz.  Viag.  cVEnp.  Tom.  V.  pag.  65 
até  126;  Bermudez  Diccion.  hintor.  Tom.  I  pag. 
337  até  347;  Bourgeoin  Tableau  de  VExpaíjue 
moderno  Tom.  I.  p.  227.) 

liento  Coelho  viveu  no  XVII  sec.  Grande  faci- 
lidade, bom  colorido,  como  o  de  Rubens,  que  imi- 


160  ENSAIO   SOBRE    A    HISTORIA 

teu;  pouca  correcção  no  desenho.  Conservam-se 
ainda  muitas  de  suas  obras. 

PINTORES   PORTUGUEZES  DA   IV.    EPOCHÁ 

{Século  XVIII) 

Victorino  Manoel  da  Serra  n.  1692,  m.  1747. 
Foi  o  primeiro,  que  em  Portugal  introduziu  o 
gôsto  e  ornato  francez. 

André  Gonsalves,  n....,  m....  Foi  correcto  no 
desenho,  e  bom  no  colorido;  mas  seu  mereci- 
mento principal  é  o  de  copista. 

Ignacio  d'01iveira,  n...,,  m.  1781.  Distin- 
guiu-se  sobre  tudo  pelos  encantos  do  colorido: 
estudou  em  Roma,  e  trabalhou  muito  em  Ma- 
fra. 

Francisco  Vieira  Lusitano  n....,  m.  1783.  Es- 
tudou muito  em  Roma,  aonde,  por  concurso,  le- 
vou o  premio  da  academia  de  S.  Lucas.  Foi 
grande  na  alegoria;  desenhou  bem,  coloriu  divi- 
namente, e  teve  muita  expressão.  Apezar  de 
tudo  o  que  a  inveja  e  a  ignorância  tem  suscita- 
do contra  este  grande  mestre,  elle  será  sempre 
um  d'aquelles,  com  que  a  pintura  nacional  mais 


DA  PINTURA  161 

se  honra  e  ennobrece.   Vieira  Lusitano  é  muito 
conhecido,  para  me  obrigar  a  maior  elogio. 

Joaquim  Manoel  da  Rocha  n,  1730,  m.  1786. 
Distinguiu-se  pela  correcção  do  desenho,  e  mui- 
ta expressão.  Foi  director  da  academia  do  nu,  e 
professor  na  aula  do  desenho  de  Lisboa. 

Francisco  Apparicio  n....,  m.  1787.  Distin- 
guiu-se muito  no  retrato  e  sobre  tudo,  por  uma 
grande  verdade  de  colorido.  Estudou  em  França. 

Luiz  Gonsalves  de  Senna,  n.  1713,  m.  1700. 
Foi  mui  destro  no  pintar;  e  em  Lisboa  se  vêm 
muitas   obras  suas   de    grande  merecimento. 

Jeronymo  de  Barros  Teixeira  n.  em  1750,  m. 
1803.  O  stjdo  simples  e  natural,  bom  colorido, 
muita  sciencia  de  claro-cscuro,  e  de  architectura, 
grande  talento  para  o  retrato  o  constituem  em 
mui  distincto  legar  na  ordem  dos  bons   artistas. 

Pedro  Alexandrino  de  Carvalho  n.  1730,  m. 
1810.  Teve  um  pincel  livre,  viveza  de  cores,  e 
maneiras  engraçadas,  e  foi  um  dos  directores  da 
academia  do  nu. 

José  Teixeira  Barreto  nasc.  no  Porto  1763, 
m.  1810.  Estudou  muito  cm  lloma,  c  com  gran- 
des mestres.  Seu  stylo  é  caprichoso,  ma.s  boUo. 
Foi  lente  de  desenho  na  academia  do  Porto. 


162   ENSAIO    SOBRE    A    HISTORIA  DA  PINTURA 

Francisco  Vieira  Portuense  n.  1765,  m.  1805. 
Foi  primeiro-pintor  da  camera  e  corte,  director 
do  instituto  de  desenho  do  Porto,  e  estimado  e 
honrado  de  toda  a  nação,  e  das  estrangeiras, 
principalmente  da  Ingleza.  Foi  premiado  pela 
academia  de  Londres.  Pintou  no  stylo  do  Gui- 
do  e  Albano;  e,  no  seu  género,  não  deixou  aos 
portaguezes  nada  que  invejar  ás  outras  nações. 


riM. 


ADVERTÊNCIA 


Fui  sempre  muito  pouco  amigo  de  dar  satisfa- 
ções. Porém  esta  minha  repugnância  não  é  filha 
de  presumpção,  nem  de  orgulho.  De  todo  o  meu 
coração  o  digo,  e  todos  os  que  me  conhecem,  o  sa- 
bem. Nasce  d<i  persuasão,  em  que  estou,  de  que  a 
justificação  diurna  coma  está  na  maneira  por  que 
essa  cousa  se  faz.  E  appUcando  esta  generalida- 
de ás  composições  litterarias,  cada  vez  me  conven- 
ço mais  que  os  prólogos,  prefácios,  avisos  a  leito- 
res, etc.  nada  fazem,  nem  fizeram,  nem  farão 
nunca  ao  conceito,  que  da  obra  se  forma. 

S  principio  foi  este,  por  que  na  faseada  do  meu 
poema  não  puz  tal  ceremonia.  Recendo  -o  porem 
agora,  examinando  este  Ensaio,  e  conhecendo- lhe 
infindos  defeitos,  que  me  tinham  escapado;  sendo- 
me  impossível  emenda-los;  resolvo-me  a  dar  satis- 
fação; não  para  pretender  Justifica-los,  e  salvar- 
me  dd  critica  com  subtilezas,  e  argucias;  mas  para 
fazer  confissão  pública  d'ellcs. 

Se  me  é  licito  x>orcm   dizer   duas  palavras  cm 


meu  abono,  direi  que  tanto  o  poema,  como  as  no- 
tas, e  ensaio  são  da  minha  infância  poética;  são 
comjjostos  na  idade  de  dezasette  annos.  Isto  não  é 
impostura:  sobejas  pessoas  Jiahi,  que  m'o  viram  co- 
meçar, e  acabar  então.  É  certo  que  desde  esse 
tempo  ategora,  em  que  conto  quasi  vinte  e  dous, 
por  três  vezes  o  tenho  corrigido;  e  até  submettido 
á  censura  de  pessoas  doutas,  e  de  conhecida  philo- 
logia,  como  foi  o  Excellentissimo  Senhor  S.  Luiz, 
que  me  honrou  a  mim,  e  a  este  opúsculo  com  suas 
correcções.  Mas  todos  estes  cuidados  não  puderam 
(emquanto  a  mim)  tirar- lhe  o  vicio  do  nasci- 
mento. 

Eisaqui  a  minha  confissão  geral.  Os  que  me  ab- 
solverem ficar-lhes-hei  muito  obrigado;  os  que  não 
quizerem;  paciência;  não  me  mato  por  isso.  Co- 
mecei esta  obrinha  por  desenfado:  acabei-a  por  di- 
vertimento: publico-a  por  amor  das  artes:  se  me 
criticarem,  rio-me,  e  não  fico  nml  com  ninguém. 


BOSQUEJO 


DA 


HISTORIA  DA  POESIA  E  LÍNGUA  PORTUGUEZA 


A  QUEM  LER 


A  MINHA  primeira  ideia  quando  inteitei  esta 
coUecção,  foi  dar  ao  publico  um  extracto  das  me- 
lhores poesias  de  nossos  clássicos.  Reflecti  depois 
que  não  seria  ella  completa,  porque  alguns  géne- 
ros ha  que  não  tractaram  aquclles  illustres  escrip- 
tores :  e  em  tam  rica  litteratura  como  é  a  portu- 
gueza,  pena  fôra  mostrar  pouquidade  e  pobreza. 
Resolvi-me  por  esse  motivo  a  sahir  dos  limites 
clássicos.  Mas  ainda  apparecia  outra  diííiculdade: 
espécies  ha  de  poesia  em  que  não  escreveram  se- 
não auctores  vivos ;  atterrava-me  a  lembrança 
de  haver  de  julgar  e  escolher  obras  que  aguardam 
ainda  o  conceito  da  posteridade,  quaái  sempre 
único  tribunal  recto  das  cousas  dos  homens,  es- 


168  A    QUEM    LER 

pecialmente  do  matéria  de  gosto.  Todavia  o 
mesmo  motivo  de  querer  fazer  esta  escolha  o 
mais  completa  que  é  possível,  me  determinou  a 
arrostar  ess'outro  escolho.  Procurei  nos  escripto- 
res  vivos  cingir-me  quanto  racionavelmente  pude 
á  mais  geral  opinião,  escolhendo  aquelles  trechos 
que  mais  approvados  teem  sido ;  ohservando  pela 
minha  parte  a  mais  vigorosa  imparciaHdade  que 
humanamente  se  pode.  E  sendo,  como  sou,  alheio 
a  toda  disputa  e  rivalidade  litteraria  e  poética, 
se  alguma  hora  no  decurso  d'esta  obra  julgarem 
deslisei  d'essa  proposta  impassibilidade,  peço  que 
o  attribuam  a  erro  de  meu  juizo,  não  a  propósito 
dehberado.  * 

Queria  eu  também  ao  principio  conservar  a 

■  Muito  tempo  hesitei  se  daria  logar  n'e8ta  coIlecçSo  a  nm 
poeta  (iioje  morto)  em  quem  de  certo  houve  algum  ingenho, 
mas  que  ignorou  e  desprezou  a  tal  ponto  a  língua,  tam  cinica- 
mente violou  o  decoro  do  stylo,  as  mais  indispeasaveis  regras 
do  gosto  e  da  boa  razão,  que  seus  poemas  são  uma  sentina  de 
gallicismos,  e  um  apontoado  de  termos  baixos,  de  expressões 
que  não  usa  gente  de  bem,  de  construcções  barbaras,  de  versos 
prosaicos,  semeados  áquem  além  de  uma  ideia  feliz,  de  um  bom 
verso,  de  uma  imagem  poética.  Já  se  vé  que  esta  descripção  a 
ninguém  quadra  senão  ao  Santos  e  Silva.  Cedi  também  n'este 
ponto  á  opinião  que  o  considera  mais  do  que  elle  vale,  e  esco- 
lhi o  que  me  pareceu  menos  bárbaro  da  tal  excêntrica  Brazilia- 


A   QUEM    LER  169 

cada  escriptor  sua  particular  orthograpliia ;  mas 
a  isso  obstaram  dous  insuperáveis  obstáculos.  Pri- 
meiro—não haver,  sobre  tudo  nos  clássicos,  uma 
base  boa  ou  má  em  que  cada  um  d'eUes  fundasse 
a  sua  orthographia  para  se  poderem  regularizar 
as  incalculáveis  anomalias  que  se  encontram  em 
uma  mesma  obra,  na  mesma  pagina  ás  vezes. 
Segundo— que  bavendo  sido  muitas  das  obras  de 
nossos  poetas  antigos  e  modernos  publicadas  pos- 
thumas,  é  impossivel  acertar  com  o  verdadeiro 
systhema  orthographico  d'elles.  Esta  impossibi- 
lidade augmentou  ainda  e  se  estendeu  áquelles 
que  apezar  de  publicarem  suas  obras  em  vida,  ca- 
hiram  em  mãos  de  novos  editores  todos  ignoran- 
tes ou  descuidados  (nenhum  conheço,  a  quem 
fique  mal  o  epitheto)  que  em  vez  de  as  melhora- 
rem, estragaram  e  confundiram  tudo.  Ora  d'al- 
guns  d'esses  não  foi  possivel,  por  mais  diligencias 
que  se  fizeram,  descubrir  as  primeiras  edições,  as 


da:  e  provável   é  que  escolhesse  mal,  porque  difficil  é  julgar 
um  bomcm  bem  quando  está  cahindo  com  $omno. 

Fui  obrigado  a  pdr  um  grande  pedaço,  porque  em  maior  es- 
paço appareceria  um  maior  numero  d'e8se8  poucos  descuidos 
felizeã  do  auctor. 


170  A   QUEM    LER 

quaes,  segundo  observei,  ainda  assim,  não  servi- 
riam de  muito. 

Accresciam  a  estes  dous  motivos  a  feia  appa- 
rencia  que  teria  a  obra  que  mais  houvera  ficado 
recosida  manta  de  retalhos  furtaeôres,  do  que 
uma  colleeção  de  poetas  da  mesma  lingua. 

Determinei  pois  imprimir  tudo  com  regular  e 
geral  orthographia;  cujos  principios  extrahi  do 
uso  dos  melhores  clássicos,  uso  que  nem  sempre 
seguiram,  mas  que  manifestamente  se  vê  quise- 
ram seguir ;  e  são  estes : 

I.  Conservar  fielmente  a  ethymologia  quando 
se  lhe  não  oppõe  a  pronúncia. 

II.  Combiná-la  com  a  pronúncia  quando  esta 
se  oppõe  á  inteira  conservação  d'aquella. 

III.  Nas  palavras  de  raiz  incógnita  seguir  o 
uso  geral, 

IV.  Nas  diversas  modificações  dos  verbos  con- 
servar sempre  a  figurativa  quando  a  pronúncia 
não  obsta. 

V.  Não  pôr  accentos  (agudo  e  circumflexo  que 
são  os  únicos  portuguezes)  senão  onde  a  palavra 
sem  elles  se  confundiria  com  outra.  (Também  me 
servi  do  agudo  para  marcar  a  dieresis  por  não 


A    QUEM   LER  171 

estar  ainda  adoptado  entre  nós  o  signal  (. .)  que  é 
bem  necessário.) 

Julgo  haver  prestado  algum  serviço  á  littera- 
tura  nacional  em  offerecer  aos  estudiosos  de  sua 
lingua  e  poesia  um  rápido  bosquejo  da  historia 
de  ambas.  Quem  sabe  que  tive  de  encetar  maté- 
ria nova,  que  portuguez  nenhum  d'ella  escreveu, 
e  os  dous  estrangeiros  Bouterweck  e  Sismondi 
incorrectissimamente  e  de  tal  modo  que  mais  con- 
fundem do  que  ajudam  a  conceber  e  ajuizar  da 
historia  htteraria  de  Portugal ;  avaliará  decerto 
o  grande  e  quasi  iudizivel  trabalho  que  me  cus- 
tou esse  ensaio.  Não  quero  dá-lo  por  cabal  e  per- 
feito ;  mas  é  o  primeiro,  não  podia  se-lo.  Além 
de  que,  a  maior  parte  das  ideias  vão  apenas  to- 
cadas, porque  não  havia  espaço  em  obra  de  taes 
limites  para  lhe  dar  o  necessário  desenvolvimento. 


BOSQUEJO 


DA 


HISTORU  DÂ  POESIA  E  LINGUÂ  PORTUGUEZA 


Origem  de  nossa  língua  e  poesia. 

A  UNGUA  e  a  poesia  porhigueza  (bem  como 
as  outras  todas)  nasceram  gémeas,  e  se  criaram 
ao  mesmo  tempo.  Erro  é  commum,  e  geral  mesmo 
entre  nacionaes,  pela  maior  parte  pouco  versados 
em  nossas  cousas,  o  pensar  que  a  língua  portu- 
gueza  é  um  dialecto  da  castelhana,  ou  hespanhola 
segundo  hoje  inexactamente  se  diz. 

Das  variadas  combinações  das  primitivas  lin- 
guagens das  Hespanhas  com  o  Grego,  o  Latim, 
com  os  bárbaros  idiomas  dos  invasores  do  norte, 
e  alfim  com  o  Arábigo,  nasceram  em  diversas 
partes  da  Península  diversíssimas  línguas  que 
nem  dialectos  se  podem  chamar  geralmente,  por- 
que, além  de  não  haver  uma  commum,  do  muitos 


174  HISTORIA    DA   LÍNGUA 

d'elles  é  tam  distincta  a  Índole  e  tam  opposta 
que  se  lhes  não  colhe  similhança. 

Ninguém  ignora  hoje  que  o  Proençal  foi  a 
primeira  que  entre  as  linguas  modernas  se  culti- 
vou, mas  que  por  sua  breve  dura  riao  chegou 
nunca  á  perfeição.  Das  nações  da  Hespanha,  as 
mais  vizinhas  áquelle  crepúsculo  de  civilização 
primeiro  melhoraram  sua  linguagem:  mas  tam- 
bém lhes  coube  igual  sorte ;  nunca  de  todo  se  pu- 
liram.  O  Castelhano  e  Portuguez,  que  mais  tarde 
se  cultivaram,  permaneceram  pelo  sabido  motivo 
da  conservação  da  independência  nacional,  e  vie- 
ram a  completo  estado  de  perfeição  e  caracter 
cabal  de  linguas  cultas  e  civilizadas.  O  Biscainho, 
Catalão,  Gallego,  Aragonez,  Castelhano,  Portu- 
guez e  outras  mais  foram  e  são  ainda  alguns  dis- 
tinctos  idiomas :  porém  so  os  dous  últimos  tive- 
ram litteratura  própria  e  perfeita,  linguagem 
commum  e  scientifica,  tudo  emfim  quanto  cons- 
tituo e  caracteriza  (se  é  licita  a  expressão)  a  in- 
dependência de  uma  lingua. 

Grande  similhança  ha  entre  o  Portuguez  e 
Castelhano ;  nem  podia  ser  menos  quando  suas 
capitães  origens  são  as  mesmas  e  communs :  po- 
rém tam  parecidas  como  são  pelas  raizes  de  de- 


E   DA    POESIA    PORTUGUEZA  175 

rivação ;  no  modo,  no  systhema  d'essas  mesmas 
derívações,  na  combinação  e  amalgama  de  idênti- 
cas substancias  e  principios  se  vê  todavia  que  di- 
versos agentes  entraram,  e  que  mui  variado  foi 
o  resultado  que  a  cada  uma  proveio.  Filhas  dos 
mesmos  pães,  diversamente  educadas,  distinctas 
feições,  vario  génio,  porte  e  ademan  tiveram :  ha 
comtudo  nas  feições  de  ambas  aquelle  ar  de  fa- 
mília que  á  prima  vista  se  colhe. 

Este  ar  de  familia  enganou  os  estrangeiros,  que 
sem  mais  profundar,  decidiram  logo,  que  o  Por- 
tuguez  não  era  lingua  própria.  Esse  achaque  de 
decidir  afoitamente  de  tudo  é  velho,  sobre  tudo 
entre  francezes,  que  são  o  povo  do  mundo  entre 
o  qual  (por  philaucia  do  certo)  menos  conheci- 
mento ha  das  alheias  cousas. 

Sem  dúvida  é  que  a  lingua  portugueza  comC' 
çou  com  seus  trovadores,  únicos  no  meio  do  es- 
trépito das  armas  que  algum  tal  qual  cultivo  lhe 
podiam  dar ;  e  provável  é  que  assim  fosse  com 
pouco  melhoramento  até  os  tempos  d'el-rei  D.  Di- 
niz, que  no  remanso  da  paz  de  seu  reinado  i)ro- 
tegeu  e  animou  as  lettras,  que  elle  próprio  culti- 
vou também. 


176  HISTORIA    DA    LÍNGUA 


II 


Primeira  epocha  lilteraria ;  fins  do  xiii  até  os 
principios  do  xti  sec. 

D.  João  I  o  eleito  do  povo,  e  o  mais  nacional 
de  todos  os  nossos  reis,  deu  ao  idioma  pátrio  va- 
lente impulso,  mandando  usar  d'elle  em  todos  os 
actos  e  instrumentos  públicos,  que  até  então  se 
faziam  em  Latim.  Foi  esta  lei  carta  de  alforria 
e  de  cidade  para  a  lingua  que  atélli  vivera  es- 
crava da  dominação  latina,  a  qual  sobrevivera 
não  só  ao  império  romano,  mas  a  tantas  conquis- 
tas e  reconquistas  de  tam  desvairados  povos. 

Aqui  se  deve  pôr  a  data  da  verdadeira  aurora 
das  lettras  em  Portugal,  que  por  singular  pheno- 
meno  pouco  visto  entre  outros  povos,  raiou  ao 
mesmo  tempo  com  a  das  sciencias ;  por  maneira 
que  quando  o  romântico  alaúde  de  nossas  musas 
começava  a  dar  mais  afinados  sons,  e  a  subir  mais 
alto  que  o  atélli  conhecido,  as  sciencias  e  as  artes 
cresciam  a  ponto  de  espantar  a  Europa,  mudar  a 
face  do  mundo,  e  alterar  o  systbema  do  universo. 

Desde  então  até  á  morte  d'el-rei  D.  Manuel, 


E  DA   ror.SIA   rORTUGUEZA  177 

tudo  foi  crescer  em  Portugal;  artes,  sciencias, 
commércio,  riqueza,  virtudes,  espirito  nacional. 

Muitas  foram  as  producçÕes  de  nossa  littera- 
tura  n'aquelle  século  de  glória  em  que  Gil- Vi- 
cente abriu  os  fundamentos  ao  theatro  das  linguas 
vivas,  Bernardim  Ribeiro  puliu  e  adereçou  com 
alguns  mimos  da  antiguidade  o  género  inculto 
dos  romances  '  c  seguiu  (quasi  o  segundo)  o  ca- 
minho encetado  pelo  nosso  Vasco  de  Lobeira  nas 
composições  romanescas  ;  e  ao  cabo  mostrou  aos 
rústicos  pastores  do  Tejo  alguns  dos  suaves  modos 
da  frauta  de  Sicilia  que  nenhuma  lingua  viva  até 
então  ouvira  soar. 

A  natural  suavidade  do  idioma  portuguez,  a 
melancholia  saudosa  de  seus  números  nos  leva- 
ram á  cultura  d'cste  género  pastoril,  cm  que  raro 
poeta  nosso  deixou  de  escrever,  quasi  todos  bem, 
porque  a  lingua  os  ajudava;  nenhum  perfeita- 
mente, porque  (inda  mal)  deram  ás  cegas  em  imi- 
tar Sannazaro,  depois  Boscan  e  Garcilasso,  e  co- 
piaram pouco  do  vivo  da  natureza,  que  tara  bclla, 
tam  rica,  tam  variada  so  lhes  prescntava  por 
todas  as  quatro  partes  de  que  em  breve  constou 

'  Não  no  scnlido  de  novcUas,  roas  no  que  então  bc  llic  dava. 

1^ 


178  HISTORIA   DA   LÍNGUA 

O  mundo  portuguez,  e  das  quaes  todas  ou  assumpto 
uu  logar  de  scena  tiraram  nossos  bucólicos.  Nem 
d'este  geral  defeito  '  (o  máximo  que  por  ventura 
se  lhes  nota)  pode  fazer-se  excepção,  senão  for 
alguma  rara  em  favor  de  Camões  e  de  Rodriguez 
Lobo.  O  Tejo,  o  Mondego,  os  montes,  os  sitios 
conhecidos  de  nosso  paiz  e  dos  que  nos  deu  a 
conquista,  figuram  em  seus  poemas ;  porém  raro 
se  vè  descripção  que  recorde  alguns  d'esses  sitios 
que  já  vimos,  que  nos  lembre  os  costumes,  as 
usanças,  os  preconceitos  mesmos  populares;  que 
d'ahi  vem  á  poesia  o  aspecto  e  feições  nacionaes, 
que  são  sua  maior  belleza. 

Bernardim  Ribeiro  foi  um  tanto  mais  original 
em  sua  simplicidade,  o  que  lhe  falta  de  sublime 
e  culto  sobcja-lhe  em  brandura,  e  n'uma  ingénua 
ternura  que  faz  suspirar  de  saudade,  d'aquella 
saudade  cujo  poeta  foi,  cujos  suaves  tormentos 
tani  longo  padeceu,  e  tam  bem  pintou. 

Foi  seu  contemporâneo  Gil- Vicente  fundador 
do  theatro  moderno,  de  cujas  obras  imitaram  os 
Castelhanos  ;  e  d'ellas  se  espalhou  pela  Europa  o 


'  Coinmum  fainbera  nos  outros  géneros  de  poesia,  onde  quer 
ÍJU8  enlra  o  descriplivo. 


E    DA   POESIA   PORTUGUEZA  179 

mau  e  o  bom  d'essa  irregular  e  caprichosa  scena, 
que  ainda  assim  suas  belle>ías  tem. 

O  próprio  Gil- Vicente  não  deixa  de  ter  seu  có- 
mico sal,  e  entre  muita  extravagância  muita  cousa 
boa.  Bouterweck  e  Sismondi  parece  que  escolhe- 
ram o  peior  para  citar ;  muito  melhores  cousas 
tem,  particularmente  nos  autos,  superiores  sem 
comparação  ás  comedias.  A  soltura  da  phrase,  o 
a  falta  de  gosto  são  os  defeitos  do  século  ;  o  inge- 
uho  que  d'alii  transparece  é  do  homem  grande  e 
de  todas  epochas '. 


III 


Segunda  cpocha  littcmria;  idade  de  ouro  da  poesia  e  da  lingua 
ámdo  os  princípios  do  xvi   ate  os  do  xvii  sec. 

Com  a  morto  d'el-rei  D.  Manuel  declinou  vi- 
sivelmente a  fortuna  portugucxa:  certo  é  que  as 
artes  progrediram,  que  a  lingua  se  aperfeiçoou ; 
porém  esse  movimento  era  continuado  ainda  do 


'  Rcservo-mc  para  uma  edirilo  que  pretendo  publicar  do 
nosso  IMauto,  fructo  de  loiíf^o  e  penoso  trabalho,  para  exami- 
nar melhor  eslo  ponto,  e  demonstrar  o  qnu  uqiii  enuncio. 


180  HISTORIA   DA    LÍNGUA 

impulso  anterior  e  já  não  promettia  longa  dura. 
Assim  succedeu.  D.  João  III  colheu  os  fructos 
do  que  D.  Manuel  havia  semeado  ;  mas  de  lavras 
suas,  nem  elle,  nem  seus  successores  viram  co- 
lheita. 

Uma  cousa  todavia  que  muita  influencia  teve 
sobre  a  lingua  e  litteratura  portugueza  e  que  a 
instituições  de  D.  João  III  se  deve,  foi  o  cultivo 
das  linguas  clássicas,  que  na  reformação  da  uni- 
versidade de  Coimbra  augmentou  muito.  Os  mo- 
delos gregos  e  romanos  foram  então  versados  de 
todas  as  mãos,  estudados,  traduzidos,  imitados. 
Aperfeiçoou-se  a  lingua,  enriqueceu-se,  adquiriu 
aquella  solemnidade  clássica  que  a  distingue  de 
todas  as  outras  vivas,  seus  periodos  se  arredon- 
daram ao  modo  latino,  suas  vozes  tomaram  muito 
da  euphonia  grega  ;  d' um  e  d'outro  d'esses  idio- 
mas lhe  vieram  as  muitas,  e  principalmente  da 
grega,  os  muitos  hyperbatos ;  com  o  que  vai  rica, 
Hvre  e  magestosa  por  todas  as  províncias  da  lit- 
teratura, que  tem  decorrido,  não  havendo  ahi  gé- 
nero de  composição,  para  o  qual,  ou  por  doce  de 
mais  como  o  Toscano,  não  seja  própria,— ou  por 
mui  áspera  e  guindada  como  o  Castelhano,  se 
não  adapte,— por  curta  como  o  Fraucez,  não  che- 


Á 


E   DA   POESIA    PORTUGUEZA  181 

gue,— por  inflexível  e  ríspida  como  o  Alemão  e 
Inglez,  se  não  amolde. 

Claro  é  que  a  historia,  a  oratória,  todas  as  ar- 
tes do  discurso  deviam  de  florescer  com  tal 
augmento.  Com  ellas  todas  medrou  e  cresceu  a 
poesia  na  delicadeza,  na  harmonia,  no  gosto ;  po- 
rem desmereceu  muito,  demasiado  na  originali- 
dade, no  caracter  próprio,  que  perdeu  quasi  todo, 
em  a  nacionalidade,  que  por  mui  pouco  se  lhe  ia. 
Todos  os  deuses  gregos  tomaram  posse  do  mara- 
vilhoso poético,  todas  as  imagens,  todas  as  ideias; 
todas  as  allusões  do  tempo  de  Augusto  occupa- 
ram  as  mais  partes  da  poesia ;  e  mui  pouco  ficou 
para  o  que  era  nacional,  para  o  que  já  tínhamos, 
para  o  que  podíamos  adquirir  ainda,  para  o  que 
naturalmente  devia  nascer  de  nossos  usos,  de  nos- 
sas recordações,  de  nossa  archeologia,  do  aspecto 
de  nosso  paíz,  de  nossas  crenças  populares,  e  em- 
fim  de  nossa  religião. 

Sá  do  Miranda,  verdadeiro  pao  da  nossa  poe- 
sia, um  dos  maiores  homens  de  seu  século,  foi  o 
poeta  da  razão  e  da  virtude,  philosophou  com  as 
musas,  c  pootisou  com  a  philosopliia.  Seu  muito 
saber,  sua  experiência,  seu  tracto  aíFavcl,  e  até 
a  nobreza  do  seu  nascimento,  lho  deram  indíspu- 


182  HISTORIA   DA    LÍNGUA 

tada  superioridade  a  todos  os  escriptores  d'aquelle 
tempo,  dos  quaes  era  ouvido,  consultado  e  imi- 
tado. Sá  de  Miranda  exerceu  sobre  todos  os  poe- 
tas d'aquella  cpocha  a  mesma  espécie  de  império 
que  veio  a  ter  Boileau  em  França,  e  mais  mo- 
dernamente Francisco  Manuel  entre  nós.  Intro- 
duziu na  poesia  os  metros  italianos,  e  os  modos, 
versos  e  combinações  de  rhymas  de  Dante  e  Pe- 
trarca :  e  desd'alii  quasi  se  abandonaram  inteira- 
mente (excepto  nas  voltas  e  glosas)  os  nossos  an- 
tigos versos  de  redondilha,  e  absolutamente  os 
de  arte  maior  e  menor,  que  ainda  assim  mui  pró- 
prios são  para  certos  assumptos,  segundo  com  fe- 
liz exemplo  no-lo  mostraram  antigos  e  modernos 
poetas.  Nem  o  mesmo  Sá  de  Miranda  igualou 
nunca  em  composições  hendecasyllabas  a  pureza, 
a  correcção,  a  naturalidade  e  sublime  simplicidade 
de  suas  redondilbas  nas  epistolas,  que  hoje  são 
seu  maior  e  quasi  único  titulo  de  glória. 

São  de  admirar  suas  comedias,  e  são  notá- 
vel monumento  para  a  historia  das  artes  pela  fe- 
liz imitação  dos  antigos,  e  pelo  que  excedem 
quanto  até  então  se  tinha  escripto.  Porem  o 
theatro  portuguez  creado  pela  musa  negligente 
e  travessa  de  Gil- Vicente  e  João  Prestes,  carecia 


E    DA  POESIA  PORTUGUEZA  183 

de  reforma,  mas  não  podia  supportar  uma  re- 
volução. As  comedias  de  Sá  de  Miranda  sem  ca- 
racter nacional,  mui  clássicas  de  mais  não  eram 
para  reformá-lo:  o  mesmo  direi,  e  o  mesmo 
succedeu  ás  de  Ferreira,  a  algumas  poucas  mais 
que  depois  vieram.  O  etfeito  d 'estas  composi- 
ções, aliás  preciosas,  foi  funesto:  os  litteratos 
enjoaram-se  (e  com  razão)  do  theatro  nacional, 
e  não  se  deram  a  corrigi-lo  e  melhora-lo:  o  pú- 
blico preferia  (e  com  razão  também)  o  com  que 
fôracreado,  o  que  o  interessava,  o  que  o  diver- 
tia, e  antes  queria  rir  com  as  grosserias  dos  au- 
tos populares,  que  bocejar  e  adormecer-se  com 
as  finuras  d'arte  e  correcções  d'essas  comedias, 
que  tudo  tinham,  menos  interesse,  onde  todo  o 
spirito  havia,   menos  o  nacional. 

Sc  houveram  Sá  de  Miranda  e  Ferreira  esco- 
lhido assumptos  portuguezes,  se  houveram  pin- 
tado os  costumes  naciouaes,  e  prescntado  ao 
público,  em  vez  de  quadros  itahanos,  um  espe- 
lho em  que  se  elle  visse  a  si  e  aos  seus  usos,  c 
se  risse  do  seus  próprios  defeitos;  fico  em  que 
houveram  reformado  o  thoatro  em  vez  de  lhe 
empecer:  e  acaso  gosariaraos  ainda  hoje  em  uma 
scena  rica  e  abastada  dos  resultados  d'esse  im- 


184  HISTORIA    DA    LÍNGUA 

pulso,  quando  não  temos  senão  que  chorar,  e 
vivemos,  sobre  o  theatro,  das  migalhas  que  men- 
digamos a  estrangeiros  pelo  triste  meio  de  tra- 
ducções,  que  (as  dramáticas  sobre  tudo)  nun- 
ca podem  ser  boas. 

Sá  de  Miranda  escreveu  alem  d'isto  algumas 
éclogas  bastante  frias,  vários  sonetos  geralmen- 
te de  pouca  monta.  Um  d'elles  á  morte  de  Le- 
andro e  Hero  é  excollente,  mas  castelhano,  e  por 
esse  achaque  o  não  incluí  na  escolha.   ^ 

Não  posso  deixar  de  querer  mal  a  tam  illus- 
tre  portuguez  pelo  muito  que  escreveu  n'essa 
lingua  estranha;  com  que  não  só  privou  a  natu- 
ral do  fructo  de  suas  tarefas,  mas  fez  maior  dam- 
no  ainda  com  o  exemplo  que  abriu;  exemplo 
funesto  que  nos  cerceou  a  litteratura,  que  nos 
defraudou  d'uma  Diana  de  Monte-maior,  de 
tantas  boas  coisas  mais,  e  ao  cabo  ia  perdendo 
a  lingua. 

Mas  eisahi  António  Ferreira  para  combater 
esse  mal  em  sua  origem:  ei-lo  ahi  esse  portu- 
guez  verdadeiro,   ardente    amador    da  lingua, 


'    A.  Rib.  dos  Santos  tradazia  este  soneto  em  portuguez  e 
(cousa  inexplicável  em  tal  homem!)  o  deu  por  seu. 


E    DA    POESIA    PORTUGUEZA  185 

clamando  a  todos,  pugnando  contra  todos  os  que 
não  prezavam  e  aditavam  o  pátrio  idioma  com 
as  producções  do  ingenho  e  das  artes.  O  pro- 
fundo conhecimento  dos  clássicos  gregos  e  lati- 
nos, o  finíssimo  gosto  que  em  seu  estudo  tinha 
adquirido,  •  a  felicidade  com  que  sempre  os  imi- 
tou, a  pureza  da  phrase,  as  riquezas  com  que 
adornou  a  língua  deram  aos  versos  de  Ferreira 
grande  popularidade  entre  os  Ktteratos  e  corte- 
zãos  (que,  ao  aveço  de  hoje,  as  lettras  viviam 
então  quasi  só  na  corte)  e  fixaram  determina- 
damente  o  género  clássico  entre  nós. 

Cegou-se  todavia  o  nosso  bom  Ferreira  na 
imitação  dos  antigos;  copiou-os,  não  os  imitou: 
c  d'ahi,  enriquecendo  a  lingua,  empobreceu  a 
litteratura,  porque  a  avezou  a  esse  hábito  de  co- 
pista; cancro  que  roe  o  espirito  creador,  alma  e 
váda  da  poesia  nacional.  Tão  cega  foi  esta  imi- 
tação, que  seus  mesmos  versos,  aos  quaes  hoje 
ninguém  defende  da  nota  de  ásperos  e  duros  (e 
muitos  direi—  errados)  os  fazia  assim  de  propó- 
sito por  querer  usar  das  ellipses  gregas  c  lati- 
nas, a  que  repugna  a  Índole  de  nossa  lingua,  so 
toleráveis  em  certas  vozes  que  na  prosa  mesma 
80  pronunciam  e  escrevem   no  final   com    m  ou 


186  '         HISTORIA    DA    língua 

sem  elle.  Este  desagradável  defeito  dos  versos 
de  Ferreira  é  principalmente  sensivel  nas  dicções 
que  teem  final  no  que  chamámos  (mal  ou  bem) 
diphtongos  nasaes  de  ão,  e  muito  mais  quando 
n'elle  é  o  accento  predominante  da  palavra. 

Os  sonetos  são  frios  desengraçados;  nas  éclo- 
gas ha  beliezas  muitas,  e  mui  grandes,  mas  es- 
palhadas: nenhuma  d'éstas  composições  toma- 
da per  si  pôde  merecer  o  nome  de  bella.  Porem 
das  odes,  ha  d'ellas  que  são  puramente  horacia- 
nas,  e  se  lhes  fallece  a  elevação  (que  não  era 
esse  o  génio  de  Ferreira)  sobeja-lhe  a  graça,  a 
elegância  e  a  adornada  phiiosophia,  que  não 
agradam  menos,  nem  de  menos  valor  e  mérito 
são  que  os  extasis  pindarieos,  ou  os  requebros 
anacreonticos.  O  que  é  sem  dúvida  é  que  nas 
linguas  vivas  Ferreira  foi  o  primeiro  imitador 
feliz  de  Horácio,  e  o  primeiro  dos  modernos  que 
pulsou  a  lyra  clássica.  Das  epistolas,  ha  algu- 
mas que  podem  pleitear  em  concisão  e  fino  dizer 
com  as  boas  do  lyrico  romano.  Quanto  á  pure- 
za da  moral,  ao  nobre  patriotismo,  áquelle  ge- 
neroso sentimento  da  honrada  liberdade  de  nos- 
sos avós,  áquelle  enthusiasmo  da  virtude;  esse 


E    DA   POESIA    PORTUGUEZA  187 

respira,  mostra-se   e  resplandece    em  todas  as 
suas  obras. 

Mí>6  a  verdadeira  glória  de  Ferreira  é  a 
Castro,  producçSo  admirável  per  si  mesma,  pelo 
tempo  em  que  a  escreveu,  por  todos  os  lados 
por  que  se  considere.  Não  é  ainda  líquido  en- 
tre os  philologos  se  era  possivel  o  ter  visto  Fer- 
reira a  Sophonisba  de  Trissino,  que  mui  poucos 
annos  antes  da  Castro  appareceu:  mas  é  sem  a 
minima  questão  reconhecida  a  superioridade  da 
tragedia  portugueza  á  italiana:  pasma  como 
sem  ver  um  tlieatro,  sem  mais  exemplares  que 
os  gregos  e  latinos,  podessc  Ferreira  tractar  tão 
delicadamente  um  tal  assumpto  em  um  género 
desconhecido  da  antiguidade.  E  notável  a  pri- 
meira scena  da  Castro,  a  scena  d'el-rei  e  dos 
conselheiros  no  acto  II.  a  do  acto  III.  em  que 
o  coro  traz  a  Castro  as  novas  de  sua  cruel  sen- 
tença, onde  aquella  pergunta  de  Ignez:  "É  mor- 
to o  meu  senhor,  o  meu  infante?"  rasgo  de  su- 
blime, porem  d'um  sublime  todo  sensibilidade, 
ao  qual  nom  o  qi('il  mouràt  de  Corneille  pode 
coniparar-se;  e  finalmente  os  coros,  que  sem  pai- 
xão são  superiores  a  todos  os  exemplares  da  an- 
tiguidade, e  não  teem  que  invejar  aos  tão  gaba- 


188  HISTORIA    DA    LÍNGUA 

dos  da  Athalia.  Nâo  dou  a  Castro  por  uma  tra- 
gedia perfeita:  ainda  em  relação  ao  seu  tempo 
e  aos  conhecimentos  da  scena  d'então  tem  ella 
defeitos:  não  haver  uma  scena  em  que  se  encon- 
trem Pedro  e  Ignez,  não  haver  algum  esforço 
do  infante  para  lhe  valer,  deixam  a  peça  muito 
nua  de  acção,  e  lhe  entibiam  o  interesse.  A  ver- 
sificação (que  todavia  é  de  preferir  aos  versos 
sesquipedaes  e  himpados  com  que  hoje  está  pre- 
vertida  a  scena  portugueza)  pécca  geralmente 
por  dura;  mas  essa  mesma  é  por  vezes  bella;  e 
para  bons  entendedores  muito  ha  hi  que  estu- 
dar; e  oxalá  que  os  nossos  dramáticos  lessem  e 
relessem  bem  a  Castro,  e  apprendessem  alli,  pe- 
lo menos,  naturalidade  e  verdade  de  expressão, 
que  tanto  lhes  fallecem. 

Não  estava  ainda  n'este  auge  a  poesia  portu- 
gueza quando  um  homem  pouco  conhecido  dos 
lettrados,  mas  ja  célebre  per  suas  aventuras  e 
valor,  foi  para  tão  longe  da  ingratissiraa  pátria 
despicar-se  de  seu  desamor  com  a  mais  nobre 
vingança;  a  de  levantar-lhe  um  padrão,  com  que 
não  entram  as  idades,  e  que  conservará  ainda  o 
nome  portuguez  quando  ja  elle  houver  desap- 
parecido  da  terra.    Muita  erudição  (pois  sabia 


E   DA    POESIA    PORTUGUHZA  189 

quanto  se  soube  em  seu  tempo)  ingenho  dos  que 
vêem  ao  mundo  de  séculos  a  séculos  se  reuni- 
ram em  Camões.  Esse  homem  levantou  a  cabe- 
ça la  das  extremidades  d' Ásia,  e  viu  tudo  pe- 
queno á  roda  de  si,  todos  os  poetas  pigmeus,  to- 
dos acanhados  com  as  linguas  modernas  ainda 
mal  perfeitas,  escravos  da  imitação  clássica,  in- 
certos e  entalados  todos  entre  o  cego  respeito 
da  antiguidade  e  as  novas  precisões  que  as  novas 
ideias,  que  o  novo  estado  do  mundo  requeria. 
Teve  animo  para  conceber  e  força  para  execu- 
tar um  rasgado  e  necessário  atrevimento  do  se 
abrir  caminho  novo,  de  crear  emfim  a  poesia 
moderna,'  dar  não  so  a  Portugal,  mas  á  Europa 
toda  um  grande  exemplo,  e  coustituir-se  o  Ho- 
mero das  linguas  vivas. 

Não  me  dá  espaço  o  acanho  de  meus  limites 
para  dizer  de  Camões  o  que  era  indispensável; 
antes  a  celebridade  do  seu  nome  me  deixará  pa- 
rar aqui  para  dar  logar  a  tractar  de  menos  co- 
nhecidos nomes.  Só  direi  que  a  influencia  de  Ca- 
mões na  nossa  poesia,  e  em  toda  a  littcratura 
portugueza  foi  tal  que  desde  então  té  hoje  ainda 
se  não  deixou  de  sentir,  mesmo  nas  epochas  em 
que  mais  desvairados   teem  andado  nossos  poo- 


190  HISTORIA    DA    LÍNGUA 

tas  com  as  empolas  do  gongorismo,  ou  mais  luná- 
ticos com  os  esfusiotes  do  clmanismo.  Quasi  que 
não  houve  género  de  poesia  que  não  tractasse: 
tem  sonetos  admiráveis;  éclogas  (sobre  tudo  as 
primeiras)  excellentes;  mas  principalmente  de 
todas  as  poesias  menores  são  o  mais  sublime  e 
perfeito  as  canções,  género  a  que  deu  uma  no- 
breza e  elevação  desconhecida  mesmo  em  Pe- 
trarca: sirva  de  prova  e  exemplo  aquella  que 
começa—  "Junto  d' um  sêcco  duro  e  estéril  mon- 
te." Dos  Lusíadas,  de  suas  bellezas  e  defeitos, 
das  controvérsias  sobre  umas  e  outros,  está  cheio 
o  mundo  Htterario. 

Contemporâneo  de  Camões  e  ousado  também 
como  elle  a  encetar  a  carreira  épica  foi  Jeróni- 
mo Cortereal.  O  Cerco  de  Diu,  que  é  notável 
monumento  litterario,  e  que  de  certo  se  teve  al- 
gum exemplar  foi  a  Itália  do  Trissino,  é  uma 
fria  narração,  em  que  ha  bellas  ideias  áquein 
alem,  muita  riqueza  de  linguagem,  pouca  de 
poesia,  e  pelo  geral  maus  versos.  E  comtudo  é 
talvez  Cortereal  o  primeiro  (em  data)  poeta  des- 
criptivo;  e  creou  elle  acaso  esse  género  de  que 
tanto  blasonam  hoje  inglezes,  alemães,  e  até 
francezes,  e  que  todavia  nós   tínhamos  séculos 


E    DA    POESIA    PORTUGCEZA  191 

antes  d'elles.  Ja  no  Cerco  de  Diu  ha  muitas 
boas  descripções;  mas  no  naufrágio  de  Sepúlveda 
ha  d'ellas  subhmes. 

Entre  muito  devaneio  de  imaginação  e  de 
mau  gosto,  entre  aquelles  insipidos  requebros 
de  Pan  e  de  Protheu  apparece  todavia  a  morte 
de  D.  Leonor  que  é  um  trecho  da  mais  bella 
poesia,  da  mais  fina  sensibilidade  que  se  tem 
composto. 

De  todos  esses  poetas  que  então  floreceram  é 
na  rainha  opinião  o  menos  poeta  esse  Pêro  d' An- 
drade Caminha,  a  quem  da  amisade  e  celebri- 
dade de  Ferreira  e  Bernardes  vem  talvez  o 
maior  renome.  Ainda  assim  tem  algumas  odes 
boas,  simplicidade  com  elegância  por  partes  de 
suas  composições:  cpigrammas,  são  alguns  ex- 
ccllentes. 

Sobreviveu  a  todos  estes  e  á  pátria,  que  não 
tardou  em  perecer,  o  suave  cantor  do  Jjiina  que 
levado  per  D.  Sebastião  para  testimunhar  seus 
altos  feitos,  do  que  devia  ía/or  um  poema,  per- 
deu-se  cora  seu  rei,  e  jazeu  captivo  em  Africa. 
Pondo  de  parte  a  questíio  das  éclogas  (na  qual 
do  certo  não  andou  de  boa  fé  Faria  c  »Sousa)  a 
íjual,  ainda  que  própria  do  logar,    é  mui    longa 


192  HISTORIA   DA    LINGDA 

para  os  meus  limites;  Bernardes  foi  excellente 
poeta;  e  com  quanto  sua  linguagem  é  pobre,  e 
em  geral  pouco  variadas  suas  composições;  a 
suavidade  de  seu  stylo,  certa  m^elancholia  d'ex- 
pressão  que  lli'o  requebra  e  embrandece  darão 
sempre  a  Bernardes  um  logar  mui  distincto  na 
poesia  portugueza. 

Mas  já  a  nação  se  perdera  nos  arcaes  de  Afri- 
ca, já  a  glória  portugueza  estava  ofifuscada;  com 
ella  foram  (como  sempre  vão)  as  boas  artes. 
Ainda  brilhara  a  espaços  faíscas  do  grande  lu- 
zeiro que  se  apagara;  mas  já  não  eram  senão 
faíscas. 

Ainda  Luis  Pereira  deplora  na  Elcgiada  a 
ruma  da  pátria,  mas  esse  canto  fúnebre  é  quasi 
o  canto  de  cysne  da  poesia  nacional,  que  parece 
querer  fenecer  com  elle,  e  já  n'elle  moribunda 
se  mostra.  Ha  excellentes  oitavas  derramadas 
per  esse  poema,  algumas  descripções  felizes, 
grandíssima  riqueza  de  linguagem;  mas  pouco 
mais. 

Já  Fernão  Alves  do  Oriente  dififuso,  intrin- 
cado nos  primeiros  labyrinthos  dos  conceitos  ita- 
lianos mostra  a  visível  decadência  da  poesia:  já 
as  musas  que  tão   louçans,  e  ingenuamente  bel- 


E    DA   POESIA    PORTUGUEZA  193 

las  tinham  folgado  pelas  várzeas  do  Tejo  e  do 
Mondego  com  Ferreira  e  Camões,  apparecem 
aíFeitadas  com  arrebiques  e  cores  falsas,  como 
essas  damas  para  quem  se  desbota  a  flor  da  ida- 
de e  lhe  querem  ainda  supprir  o  viço  com  em- 
prestados ornamentos,  gentilezas  compradas  e 
postiças.  E  todavia  ha  na  Lusitânia  transfor- 
mada pedaços  lyricos  excellentes,  e  alguns  bucó- 
licos soôriveis.  Assim  elle  nos  dissesse  mais  do 
seu  Oriente  do  que  nos  disse:  assim  houvesse 
enriquecido  a  litteratura  com  mais  imagens  de 
tantas  que  sua  Ásia  lhe  oíferecia,  e  com  que 
houvera  additado  a  mãe  pátria.  Onde  o  fez,  n'a- 
quella  écloga  em  que  conta  a  historia  de  Sala- 
dino,  é  elle  verdadeiramente  poeta;  c  se  d'ahi 
tirarem  alguns  trocadilhos  que  tinha  apprendido 
cm  Itália,  excellente  e  digno  de  imitar-se  é  o 
resto. 

IV 


Terceira  epoclia  lilleraria;   principia  a  corromper-sc  o  goílo  e 
a  declinar  a  liii{,'ua. — Começo,  até  o  Um  do  xvii    sec. 

Porem  os  symptomas  do    Gomjorisnw  e  Ma- 
rinmnu  se  manifestavam  já  cm   Itália  c  Castel- 

13 


194  HISTORIA    DA    LÍNGUA 

la;  não  perfeitos  ainda,  não  no  auge  a  que  os  le- 
varam os  dous  poetas,  aliás  ingenhosos,  cujo  nome 
vieram  a  tomar;  mas  já  assim  mesmo  a  poesia 
moderna  estava  toda  gafa  d'essa  lepra  de  su- 
berba  requintada. 

Vasco  Mousinho  de  Quevedo,  que  sem  dispu- 
tar é  depois  de  Camões,  nosso  primeiro  épico, 
ahi  tem  já  em  toda  a  nobreza  de  seus  versos  a 
quebra  de  bastardia  d'esse  defeito,  que  todavia 
é  n'elle  ainda  raro.  Mas  que  bellezas  tem  esse 
tão  mal  avaliado  Affonso  Africano,  a  que  a  ce- 
gueira e  o  mau  gosto  tem  querido  preferir  a 
quixotica  e  sesquipedal  Ulyssea,  a  hyperborea  e 
campanuda  Malaca!  Não  é  regular  o  poema,  não 
é  uni  todo  perfeito;  o  maravilhoso  é  frio,  e  a 
acção  toda  não  mui  bem  deduzida;  mas  que  ri- 
quissimos  episódios  a  enfeitam!  A  descripção 
de  Zara,  o  jardim  incantado  onde  aporta  o  prín- 
cipe D.  João,  e  alguns  outros  trechos  são  cu- 
nhados com  o  sêllo  da  verdadeira  poesia,  e  ani- 
mados da  luz  que  só  dá  o  ingenho.  Quanto  ao 
stylo,  é  com  poucas  excepções  fluido  e  elegan- 
te; custa  a  achar  em  tão  longo  poema  uma  rhy- 
ma  forcada  ou  má:  e  a  mesma  linguagem,  sup- 


E    DA    POESIA    PORTUGUESA  A  195 

posto  decline  um  tanto  da  primeira  pureza,  é 
ainda  de  boa  lei  e  valiosos  quilates. 

D'ésta  epocha  é  também  Rodrigues  Lobo,  cujo 
grande  logar  como  prosista  não  é  aqui  próprio  de 
examinar:  de  seu  merecimento  poético  a  com- 
mum  opinião  tem  com  justiça  decidido  dando- 
Ihe  um  dos  primeiros  (eu  quizera  o  primeiro) 
logar  entre  os  bucólicos  antigos;  e  outro  mui  dif- 
ferente  e  inferior  entre  os  épicos.  E  certo,  o 
Condestabre,  apezar  de  muitos  e  bons  pedaços 
descriptivos,  é  frouxa  e  morna  composição.  Que 
dififerente  era  a  frauta  que  ia  fioando  pelas  mar- 
gens do  Lis,  a  dulcissima  frauta  de  Lobo, 
quando  comparada  com  a  tuba  heróica,  para 
cuja  altivez  lhe  fallccem  natureza  e  arte!  seus 
pastores  são  verdadeiros  pastores,  sua  lingua- 
gem é  verdadeira  do  campo,  não  lhes  sahem  pe- 
los golpes  do  pcllico  as  alfaias  da  cidade,  tão 
mal  encubcrtas  pelos  outros  bucólicos,  os  quaes, 
sem  excepção  do  próprio  Camões,  todos  peccam 
por  mui  sabidos  e  lettrados,  por  discretos  e  ga- 
lantes mais  que  soem  ser  aldeãos  e  pastores. 

Alem  d'isso  ha  derramados  pela  Primavera, 
Pastor  peregrino,  ctc,  pedaços  lyricos  de  sum- 


196  HISTOKIA    DA    LÍNGUA 

ma  belleza,  romances  excellentes  e  verdadeira- 
mente dignos  de  admiração  e  estudo. 

Tinhamos  perdido  a  independência;  perde- 
mos logo  o  espirito  nacional,  o  tymbre,  o  amor 
pátrio  (que  amor  da  pátria  poderá  haver  em 
quem  pátria  já  nSo  tem);  a  lisonja  servil,  a  adu- 
lação infame  levou  nossos  deshonrados  avós  a 
desprezar  seu  próprio  riquíssimo  e  tão  suave 
idioma,  para  escrever  no  guttural  Castelhano, 
preferindo  os  sonoros  helenismos  do  portuguez 
ás  aspiradas  aravias  da  lingua  dos  tyrannos.  Ver- 
gonha que  so  tem  par  nas  derradeiras  vergo- 
nhas com  que  nos  enxovalharam  a  lingua  e  a 
fama  os  tarellos  ,  francelhos,  gallici-parlas  e 
toda  a  caterva  dos  gallo- manos! 

Em  Castelhano  escreviam  já  esses  degene- 
rados portuguezes:  mas  pouco  importava  que 
o  fizessem,  que  n'isso  fraca  perda  tivemos  nós: 
de  toda  essa  cafra  de  versos  castelhano-portu- 
guezes  pouco  ou  nada  ha  que  espremer. 

D'ésta  commum  baixeza  se  alevantou  o  hon- 
rado e  douto  magistrado  Gabriel  Pereira  de  Cas- 
tro, que  depois  de  ter  aberto  na  jurisprudência 
um  caminho  novo  e  n'aquelle  tempo  tão  difficil 
por  grandes  verdades  então  perigosas,    tomou 


E    DA    POESIA   PORTUGUEZA  197 

ousado  a  trombeta  de  Homero,  e  não  se  arrojou 
a  menos  que  a  competir  ao  mesmo  tempo  com  a 
Iliada  e  Odyssea;  que  tanto  abraça  o  assumpto 
de  seu  poema.  Grande  é  a  concepção,  bem  dis- 
tribuídas as  partes,  regularissimo  o  todo,  regu- 
lar e  bella  a  acção,  bem  intendidos  os  episódios; 
mas  o  stylo....  o  stylo  é,  prototypo  da  Phenix- 
reiMscida,  o  requinte  do  gongorismo,  cujo  patri- 
archa  foi  entre  nós,  pervertendo-nos,  á  sombra 
de  sua  grande  fama  e  brilhante  ingenho,  todo 
o  resto  escasso  que  de  gosto  tinhamos  ainda,  in- 
trincando a  poesia  (senão  que  também  a  prosa 
por  mau  exemplo)  n'um  dédalo  inextricável  de 
conceitos,  de  argucias,  de  exagerações,  de  affec- 
tada  sublimidade,  falsa  c  van  grandeza;  com 
que  de  todo  veio  a  torra  a  poesia  nacional,  e 
acabou  a  grande  eschola  de  Camões  e  Ferrei- 
ra, que  tantos  e  tamanhos  alumnos  havia  pro- 
duzido. E  suppunha  esse  homem  vaidoso  ter 
sobrepujado  com  as  queixotadas  da  sua  Ulyssea 
as  naturacs  bellczas  dos  divinos  Lusíadas! 

Quasi  o  mesmo  errado  trilho,  mas  que  menos 
brilhante  e  com  inferior  ingenho,  seguiu  Sá  de 
Menezes  na  Malaca.  Esse  poema,  que  tanto  tem 
engrandecido  o  mau  gosto,    é  na  minha  opinião 


198  HISTORIA    DA    LÍNGUA 

um  dos  derradeiros  títulos  de  glória  da  litera- 
tura pprtugueza.  E  todavia  é  bem  regular,  bera 
concebido,  e  a  espaços  se  lhe  encontram  grandes 
rasgos  de  gentileza  poética.  A  falia  de  Asmo- 
deu  no  conselho  infernal  faz  lembrar  muito  a 
de  Lúcifer  em  Milton.  Porem  quando  agitado  o 
poeta  do  génio  mau  que  avexava  e  endemoni- 
nhava os  poetas  d* então,  começa  a  guindar-se  a 
transpor  os  derradeiros  limites  da  natui-alidade; 
esquece  todo  o  deleite  que  algumas  estancias 
mais  descuidadas  nos  haviam  causado,  e  é  forço- 
so desemparar  a  dura  tarefa  de  tão  incommoda 
leitura,  porque  verdadeiramente  incommoda  e 
cança  tal  stylo,  tal  phrase,  tanto  hyperbolico 
luxo  e  destemperado  alambicar. 


Quarta  epocha:  idade  de  ferro;  aniquila-se  a  littoratura,  cor- 
rompe-se  inteiramente  a  língua.  —  Fios  do  xvii,  até  mea- 
dos do  XVIII  sec. 


Mas  ainda  estes  tinham  sua  nobreza,  havia 
não  sei  que  grande  entre  todas  essas  nuvens  de 
talco;  talvez  lhes  viesse  dos  assumptos:  porem 


K    DA    POESIA  PORTUGUEZA  199 

seus  discípulos  que  ainda  quizeram  ir  avante, 
deram  em  fazer  silvas,  acrósticos,  e  engendra- 
ram todos  os  outros  monstros  (originários,  se- 
gundo Diniz,  do  paiz  das  hagatellas)  e  distillan- 
do  mais  e  mais  as  quintas  essências  dos  concei- 
tos, tanto  torceram  e  retorceram  o  ja  delgado  fio 
poético,  que  de  todo  o  quebraram.  So  Manuel 
da  Veiga  o  atou  momentaneamente  em  uma  ou 
duas  lyras  da  Laura  de  Amphriso.  Logo  tornou 
a  estalar:  e  per  ahi ,  andaram  as  pobres  musas 
portuguezas  jogando  as  cabras-cegas  pelas  éclo- 
gas de  Poliphemo  e  Galatea,  pelos  romances 
hendecasyllabos,  e  per  todos  os  outros  escondri- 
jos  do  gosto  depravado,  de  que  boas  amostras 
se  conservam  no  precioso  tombo  da  PJicnix-re- 
nascida  e  alguns  outros  hoje  ignorados  livros 
d'essa  triste  data. 

E  todavia  ja  nós  tinliamos  recobrado  tão  glo- 
riosamente nossa  independência,  ja  o  nome  por- 
tuguez  tornara  a  ser  honra  e  nobreza,  e  ainda 
essa  lepra  castelhana  lavrava. 

Dous  grandes  escriptores,  anibos  prosistas  e 
ambos  dignos  de  muito  louvor,  concorreram  para 
a  continuação  d'este  mal.  Quem  podia  deixar 
de  admirar  Vieira?   Quem  não  iria  levado   pela 


200  HISTORIA    DA   LÍNGUA 

torrente  de  sua  eloquência?  Quem  resistiria  aos 
Ímpetos  de  arrebatamento  de  Jacinto  Freire?  O 
grande  talento  de  ambos,  a  vasta  erudição  e 
desmedido  iugenho  de  Vieira  sobre  tudo,  fizeram 
grande  damno  á  litteratura:  sabiam,  escreviam 
perfeitamente  a  lingua,  tinham  grande  crédito 
na  corte,  tractavam  grandes  assumptos,  anima- 
va-os  o  nobre  e  sincero  enthusiasmo  da  glória 
e  liberdade  nacional:  tudo  foi  após  elles;  imita- 
ram-lhes  vicies  e  virtudes;  como  não  distinguiam 
em  Vieira  o  grande  orador,  o  grande  philoso- 
pho  do  gongorista  aífectado  (quando  o  era)  não 
estremavam  em  Jacintho  Freire  o  historiador, 
o  panegyrista  do  declamador,  do  académico  vão; 
ruim  e  bom  seguiam.  E  como  é  mais  fácil  imi- 
tar a  aífectação,  que  a  naturaHdade,  as  argucias 
de  má  arte,  que  as  graças  de  boa  natureza;  os 
imitadores  foram  alem  de  seus  typos  noafíecta- 
do,  no  mau  d'elles,  ficaram  immenso  aquém  do 
que  n'esses  era  bello  e  para  imitar. 

Nem  o  conde  da  Ericeira  que  traduziu  a  Ar- 
te poética  de  Boileau  e  d'elle  levou  tão  immere- 
cidos  e  banaes  elogios,  tomou  d'ella  triaga  bas- 
tante para  se  curar  do  veneno  commum:  e  ainda 
assim  melhor  é  sua  frigida  Henriqueida  que  os 


E  DA   POESIA    PORTUGUEZA  201 

outros  versos  que  por  então  se  faziam  em  Por- 
tugal: porem  o  único  olho  que  o  fez  rei  em  ter- 
ra de  cegos,  não  lhe  era  bastante  para  ver  e 
acertar  com  a  vereda  da  posteridade.  Ahi  mor- 
reu no  seu  século  e  ahi  jaz  pela  poeira  de  alguma 
livraria  de  bibhomaniaco. 

As  academias  de  historia,  de  Htteratura  do 
tempo  de  D.  João  V,  as  associações  ridículas  de 
todos  os  nomes  e  descripções  que  então  se  for- 
maram, a  mais  c  mais  empeioraram  o  mal,  que 
progressivamente  cresceu  até  o  ministério  do 
marquez  de  Pombal. 


VI 


Quinla  epocha:  restauraçio  das  lettras  em  Portugal.  —  Meio 
do    século    XYiii  alé  o  fim. 


A  civilisação  e  as  luzes  que  a  geram,  tinham- 
se  estendido  do  sul  para  o  norte.  A  corrupção 
que  após  ellas  vem  em  seu  marcado  período,  as 
fora  apagando,  ou  enncvoando  ao  menos,  na 
mesma  direcção.  De  sorte  que  pelos  fine  do 
XVII  século  o  meio-dia,  que  havia  sido  berço 
da  illustração  da  Europa,  quasi  se  cnnoitava  daa 


202  HISTORIA    DA    LÍNGUA 

trevas  da  ignorância,  as  quaes  pareciam  voltar 
como  em  reacção  para  o  ponto  d'onde  partira  a 
primeira  acção  da  luz  que  as  dissipara. 

O  norte,  que  mais  tarde  se  havia  allumiado, 
progredia  no  emtanto:  as  boas  letras,  as  artes, 
as  sciencias  floreciam  na  Inglaterra  e  por  quasi 
toda  a  Allemauha.  Milton,  Descartes,  Newton 
e  Linneu  brilharam  ao  septentrião  da  Europa; 
e  nós  meridionaes  estudávamos  as  catl/egorias  e 
as  sumnms,  aguçávamos  distincções,  alambicáva- 
mos conceitos,  retorcíamos  a  phrase  no  discur- 
so, torcíamos  a  razão  no  pensamento. 

Porem  a  face  do  mundo  estava  começada  a 
mudar:  as  antigas  barreiras  que  a  politica  e  os 
preconceitos  erguiam  entre  povo  e  povo  quasi  de- 
sappareciam;  as  mutuas  necessidades,  e  até  o 
mesmo  luxo,  faziam  quasi  indispensável  preci- 
são as  permutações  do  commércio;  e  o  commér- 
cio  fraternizou  as  nações. 

Reciprocamente  se  estudaram  as  linguas,  ge- 
neralizou-se  esse  estudo:  então  é  que  exactamen- 
te os  sábios  começaram  a  ser  de  todos  os  paizes: 
os  bons  livros  pertenceram  a  todas  as  linguas;  e 
verdadeiramente  se  formou  dentro  de  todos  os 
estados  um  estado  que  (sem  os  inconvenientes 


li    DA    POESIA    PORTUGUEZa  203 

do  status  in  statu  dos  ultramontanos)  com  justi- 
ça e  exacção  obteve  e  mereceu  o  nome  de  repu- 
blica das  lettras,  a  qual  é  uma,  universal,  e 
sem  perigo   de  scliisma. 

Os  effeitos  d' esta  alteração  no  modo  de  exis- 
tir do  universo  foram  sonsiveis:  as  luzes  não  so 
reverteram  (sem  retrogradar)  do  norte  para  o 
sul,  mas  se  diíFundiram  geraes.  A  França  viu 
então  o  século  de  Luiz  XIV;  Itália  deixou  sanc- 
to  Thomaz  e  os  comncetti  por  melhor  pbiloso- 
pbia  e  melhor  gosto;  Hespanha  teve  o  seu  Car- 
los III;  e  Portugal  no  reinado  d'el-rei  D,  José 
subiu  á  altura  dos  outros  povos,  senão  é  que  em 
muitas  cousas  acima. 

E  ainda  na  reforma  da  universidade  não  ti- 
nham apparecido  Monteiros-da-Rocha  e  os  ou- 
tros portuguezes  que  d'alli  expulsaram  a  barba- 
ridade entrincheirada  em  Coimbra  como  em 
sua  ultima  cidadella  da  Europa,  e  ja  a  razão  e 
o  gosto  recobravam  seu  império  na  litteratura; 
ja  as  odes  do  Garção,  as  obras  do  padre  Freire 
e  de  outros  illustres  philologos  haviam  afugen- 
tado as  .silvas,  os  acrósticos,  e  os  campanudos 
periodos  do  conde  da  Ericeira,  regenerado  a  poe- 
sia e  restituído  a  lingua. 


204  HISTORIA    DA    MNGUA 

Outravez  ainda  o  limitado  d'este  bosquejo  me 
impede  de  mencionar  outros  ingentes  que  tan- 
to mereceram  da  pátria  e  da  litteratura  e  remo- 
çaram a  perdida  língua  de  Camões.  Exige  o 
meu  assumpto  e  o  meu  espaço  que  me  estreite 
no  círculo  poético. 

Garção  foi  o  poeta  de  mais  gosto  c  (por  aven- 
turar uma  expressão  que  não  é  legitima,  mas 
pode  ser  legitimada  portugueza)  de  mais  fino 
htcto  que  entre  nós  appareceu  até  agora.  Have- 
rá n'outros  mais  fogo,  outros  ferverão  em  mais 
euthusiasmo,  crearão  acaso  mais;  porem  a  deli- 
cadeza de  Garção  so  tem  rival  na  antiguidade. 
A  musa  pura,  casta,  ingénua,  nunca  lhe  desvai- 
rou: em  suas  composições  ha  d'ellas  onde  a  mais 
aguçada  crítica  não  esmiunçará  um  defeito.  Tal 
é  a  cantata  de  Dido,  uma  das  mais  sublimes  con- 
cepções do  ingenho  humano,  uma  das  mais  per- 
feitas obras  executadas  da  mão  do  homem.  Todo 
se  deu  ao  género  lyrico,  especialmente  ao  Hora- 
ciano;  e  n'esse  ninguém  o  excedeu,  antes  nin- 
guém o  igualou.  A  ode  á  virtude,  a  que  se  in- 
titula o  Suicídio  (que  pela  primeira  vez  sai  a 
lume  n'esta  coUecção)  outras  muitas  que  longo 
fora  enumerar,  são  de  uma  beUeza,  d'uma  cor- 


E   DA    POESIA    PORTUGUEZA  205 

recção,  d'um  acabado  (como  dizem  os  pintores) 
que  difficilmente  se  imitará,  tarde  se  chegará  a 
igualar. 

Não  da  mesma  sorte  António  Diniz,  que  mais 
arrojado,  mais  pomposo,  menos  correcto  e  ele- 
gante, assim  correu  mais  caudalosa,  porem  me- 
nos pura  torrente.  Em  quanto  lyrico,  tem  ras- 
gos pindaricos  verdadeiramente  sublimes;  mas  o 
todo  de  suas  odes  é  em  demasia  ornamentado;  e 
ellas  entre  si  peccam  amiúdo  de  monotonias  o 
repetições.  Talvez  o  jugo  dos  consoantes,  que 
tão  desnecessariamente  se  impoz,  o  acanhou  a 
isso.  Mas  nas  anacreonticas  é  elle  sem  disputa  o 
primeiro  poeta  portuguez,  e  digno  rival  do  an- 
cião de  Teios.  No  género  bucólico  também  nos 
deixou  mui  bonitas  cousas,  nenhuma  perfeita. 
Porem  a  verdadeira  coroa  poética  do  Diniz  Tha- 
lia  lh'a  teceu,  que  não  outra  musa.  O  Hyssope 
é  o  mais  perfeito  poema  heroicomico  de  seu  gé- 
nero '  que  ainda  se  compoz  em  lingua  nenhu- 
ma: se  no  castigado  da  dicção  o  excede  o  Lu- 
trin;  no   desenho  da  obra,   na  regularidade  do 


'    Digo  He  íeu  gp.ncro,  porque  o  Orlando  furioso  também  é 
heroicomico,  mas  doutro  genoro. 


200  HISTORIA    DA    LÍNGUA 

edificio,  na  imaginação,  foi  o  discípulo  de  Boi- 
leau  muito  alem  de  seu  grande  mestre:  e  com 
mais  exacção  se  diria  de  um  e  outro  o  que  de 
Camões  e  Tasso  presumpçosamente  disse  Voltai- 
re: que  se  a  imitação  d'aquel]e  fizera  este,  a  sua 
melhor  obra  era  essa.  O  palácio  do  génio  das  Ba- 
gatellas,  a  conversa  do  deão  na  cerca  dos  capu- 
chos, a  ressurreição  e  vaticínio  do  gallo  assado, 
a  caverna  d'Abracadabro  serão,  em  quanto  hou- 
ver gosto,  estudados  como  exemplar  pelos  litte- 
ratos,  lidos  e  relidos  sempre  com  prazer  per  to- 
dos os  amigos   das  artes. 

Após  estes  vem  o  virtuoso  e  honrado  Quita, 
a  quem  pagou  a  pátria  com  miséria  e  fome  as 
immensas  riquezas  que  para  a  lingua  e  littera- 
tura  de  seus  versos  herdou.  Um  pobre  cabellei- 
reiro,  a  quem  as  musas  que  serviu,  os  grandes 
que  com  ellas  honrou  nunca  tiraram  do  triste 
officio,  pôde  de  sua  baixa  condição  social  alevan- 
tar-se  do  primeiro  grau  litterario,  que  acaso  lhe 
disputam  ignorantes  ou  presumpçosos,  nenhum 
homem  de  gosto  deixará  de  lh'o  dar. 

Este  é  em  meu  humilde  conceito  o  nosso  me- 
lhor bucólico:  tomo  a  liberdade  de  contrastar  a 
opinião  commum,  porque  o  meu  dever  de  crítico 


E    DA    rOESlA    POTITUGUEZA  207 

me  obriga  a  ennunciar  lealmente  o  meu  pensa- 
mento. Tenho  para  mim  (e  fico  que  acharei 
quem  me  siga  se  de  boa  fé  quizerem  entrar  no 
exame)  que  a  immensa  cópia  de  composições 
pastoris,  as  quaes  não  são  riqueza,  mas  desper- 
dício de  nossas  musas,  ou  peccam  por  empoladas, 
por  inverosímeis,  por  baixas,  por  demasiado  na- 
turaes,  por  sobejo  elevadas.  Um  meio  termo  dif- 
ficilimo  de  tocar,  de  n'elle  permanacer,  um  sty- 
lo  singelo  como  o  campo,  mas  não  rústico  como 
as  brenhas,  são  dos  mais  difficeis  requisitos  que 
d'um  poeta  se  podem  exigir.  Se  tem  ingenho, 
custa-lhe  a  moldar-se  e  a  retc-lo  que  não  suba 
mais  alto  que  a  difícil  medida,  e  raro  deixa  de 
a  exceder,  de  perde r-se  do  bosque  e  acabar  em 
jardins  cidadãos  e  conversas  do  damas  e  cava- 
lheiros o  que  começara  no  monte  ou  na  várzea 
entre  pastores  e  serranas. 

Nem  Virgílio  d'ahi  escapou,  nem  Sannazaro, 
nem  Camões;  Gcssner  sim,  e  depois  de  Gessner, 
o  nosso  Quita.  Não  digo  que  não  tenha  defeitos, 
ainda  em  seu  género  pastoril;  mas  a  boa  e  hon- 
rada crítica  falia  em  geral,  louva  o  bom,  nota  o 
mau,  porem  não  faz  tymbrc  em  achar  defeitos  e 
erros  na  menor  falta  para  se  rcgosijar  da  censu- 


208  HISTORIA   DA    LÍNGUA 

ra.  Grandes  homens,  grandes  erros:  a  natureza 
da  mediocridade  é  cingir-se  a  tristes  preceitos 
para  esconder  sua  mesquinhez:  porem  de  taes 
nunca  fallou  posteridade.  Horácio  e  Boileau  fo- 
ram atrevidos  quando  lhes  cumpriu,  e  despreza- 
ram regras  e  arte  quando  os  chamou  a  nature- 
za, e  lhes  mostrou  o  sublime.  Philinto,  que  os 
sabia  de  cór,  também  se  levantou  acima  das  re- 
gras, e  nunca  foi  tamanho.  E  todavia  foi  elle  o 
maior  poeta  de  seu  século:  mas  os  grandes  in- 
genhos  não  contraveem  a  lei,  sâo  superiores  a 
ella,  e  são  eUes  viva  lei. 

Mui  distincto  logar  obteve  entre  os  poetas 
portuguezes  d'ésta  epocha  Cláudio  Manoel  da 
Costa:  o  Brazil  o  deve  contar  seu  primeiro  poe- 
ta, '    e  Portugal   entre   um  dos  melhores. 

Deixou-nos  alguns  sonetos  excellentes,  e  riva- 
lizou no  género  de  Metastasio,  com  as  melhores 
cançonetas  do  delicado  poeta  itahano.  A  que  di- 
rige á  lyra  com  sua  palidonia  imitando  a  tão 
conhecida  do  mesmo  Metastasio  a  Nice,  Grazie 
air  ingani  fiioi,  póde-se  apontar  como  exccUente 
modêllo.  Nota-se  em  muitas  partes  dos  outros 

*    Em  antiguidade. 


E   DA    POESIA    PORTUGUEZA  209 

versos  d'elle  vários  resquícios  de  (jongorismo  e 
aíFectação  seiscentista. 

E  agora  começa  a  litteratura  portugueza  a 
avultar  e  enriquecer-se  com  as  producçoes  dos 
ingenhos  brazileiros.  Certo  é  que  as  magestosas 
e  novas  scenas  da  natureza  n'aquella  vasta  re- 
gião deviam  ter  dado  a  seus  poetas  mais  Origina- 
lidade, mais  differentes  imagens,  expressões  e 
stylo,  do  que  n'elles  apparece:  a  educação  euro- 
peia apagou-lhes  o  espirito  nacional:  parece  que 
receiam  de  se  mostrar  americanos;  e  d'ahi  lhes 
vem  uma  aíFectação  e  impropriedade  que  dá 
quebra  era  suas  melhores  qualidades. 

Muito  havia  que  a  tuba  épica  estava  entre 
nós  silenciosa,  quando  Fr,  José  Durão  a  embo- 
cou  para  cantar  as  romanescas  aventuras  de  Ca- 
ramurú.  O  assumpto  não  era  verdadeiramente 
heróico,  mas  abundava  em  riquissimos  e  varia- 
dos quadros,  era  vastissimo  campo  sobre  tudo 
para  a  poesia  descriptiva.  O  auctor  atinou  com 
muitos  dos  tons  que  deviam  naturalmente  com- 
binar-se  para  formar  a  harmonia  de  seu  canto; 
mas  de  leve  o  fez:  so  se  estendeu  em  os  monos 
poéticos  objectos;  e  d'ahi  esfriou  muito  do  gran- 
de interesse  que  a  novidade  do  at^sunipto  c  a  va- 

14 


210  HISTOKIA   DA   LÍNGUA 

riedade  das  scenas  promettia.  Notarei  por  ex- 
emplo o  episodio  de  Moêma,  que  é  um  dos  mais 
gabados,  para  demonstração  do  que  assevero. 
Que  bellissimas  cousas  da  situação  da  amante 
brazileira,  da  do  heroe,  do  logar,  do  tempo  não 
poderá  tirar  o  auctor,  se  tam  de  leve  não  hou- 
vera desenhado  este,  assim  como  outros  painéis? 

O  stylo  é  ainda  por  vezes  affectado:  la  sur- 
dem aqui  alli  seus  gongorismos;  mas  onde  o 
poeta  se  contentou  com  a  natureza  e  com  a  sim- 
ples expressão  da  verdade,  ha  oitavas  bellissimas, 
ainda  sublimes. 

Depois  de  Diniz  o  logar  im mediato  nos  ana- 
creonticos   pertence  a  outro  Brazileiro. 

Gonzaga  mais  conhecido  pelo  nome  pastoril 
de  Dirceu,  e  pela  sua  Marilia,  cuja  belleza  e 
amores  tam  célebres  fez  n'aquellas  nomeadas  ly- 
ras.  Tenho  para  mim  que  ha  d'essas  lyras  al- 
gumas de  perfeita  e  incomparável  belleza:  em 
geral  a  Mariha  de  Dirceú  é  um  dos  livros  a 
quem  o  publico  fez  immediata  e  boa  justiça. 
Se  houvesse  por  minha  parte  de  lhe  fazer  algu- 
ma censura,  só  me  queixaria,  não  do  que  fez, 
mas  do  que  deixou  de  fazer.  Explico-me:  quize- 
ra  eu  que  em  vez  de  nos  debuxar  no  Brazil  soe- 


E    DA    POESIA    PORTUGUEZA  211 

nas  da  arcádia,  quadros  inteiramente  europeus, 
pintasse  os  seuá  painéis  com  as  cores  do  paiz  on- 
de os  situou.  Oh!  e  quanto  não  perdeu  a  poesia 
n'esse  fatal  erro!  se  essa  amável,  se  essa  ingénua 
Marilia  fosse,  como  a  Virgínia  de  saint-Pierre, 
sentar-se  á  sombra  das  palmeiras,  e  em  quanto 
lhe  revoavam  emtôrno  o  cardeal  suberbo  com  a 
purpura  dos  reis,  o  sabiá  terno  e  melodioso,  — 
que  saltasse  pelos  montes  espessos  a  cotia  fugíu 
como  a  lebre  da  Europa,  ou  grave  passeasse 
pela  orla  da  ribeira  o  tatu  esquamoso,  —  ella  se 
entretivesse  em  tecer  para  o  seu  amigo  e  seu 
cantor  uma  grinalda  nuo  de  rosas,  não  de  jas- 
mins, porem  dos  roixos  martyrios,  das  alvas  flo- 
res dos  vermelhos  bagos  do  lustroso  cafozeiro; 
que  pintura,  se  a  desenhara  com  sua  natural 
graça  o  ingénuo  pincel  de  Gonzaga! 

Justo  elogio  merece  o  sonsivel  cantor  da  infe- 
liz Lindoya  que  mais  nacional  foi  que  nenhum 
do  seus  compatriotas  brazileiros,  O  Uraguay  de 
José  Bazilio  da  Gama  é  o  moderno  poema  que 
mais  mérito  tom  na  minha  opinião.  Scenas  na- 
turaos  mui  bem  pintadas,  de  grande  e  bella  exe- 
cução descriptiva;  phrase  pura  e  sem  affecta- 
ção,  versos  naturaos    som  ser  prosaicos,  e  quan- 


212  HISTORIA   DA   LÍNGUA 

do  cumpre  sublimes  sem  ser  guindados;  não  são 
qualidades  communs.  Os  Brazileiros  principal- 
mente lhe  devem  a  melhor  coroa  de  sua  poesia, 
que  n'elle  é  verdadeiramente  nacional,  e  legítima 
americana.  Mágoa  é  que  tam  distincto  poeta 
não  limasse  mais  o  seu  poema,  lhe  não  desse 
mais  amplidão,  e  quadro  tão  magnifico  o  acanhas- 
se tanto.  Se  houvera  tomado  esse  trabalho,  de- 
sappareceriam  algumas  incorrecções  de  stylo,  al- 
gumas repetições,  e  um  certo  desalinho  geral, 
que  muitas  vezes  é  belleza,  mas  continuado  e 
constante  em  um  poema  longo,  é  defeito. 

Muito  ha  que  os  nossos  auctores  desempara- 
ram  o  theatro:  eisahi  o  faceto  António  José,  a 
quem  muitos  quizeram  appeUidar  Plauto  por- 
tuguez  e  que  sem  duvida  alguns  serviços  tem  a 
esse  titulo,  porem  não  tantos  como  apaixonada- 
mente lhe  decretaram.  Em  seus  informes  dra- 
mas algumas  scenas  ha  verdadeiramente  cómi- 
cas, alguns  dictos  de  summa  graça;  porem  essa 
degenera  amiúdo  em  baixa  e  vulgar.  Talvez 
que  o  Alecrim  e  Mangerona  seja  a  melhor  de 
todas;  e  de  certo  o  assumpto  é  iminentemente 
cómico  e  portuguez:  hoje  teria  todo  o  mérito  de 
uma  comedia  histórica:  e  se  fora  tractada  no  ge- 


E    DA    POESIA   PORTUGUEZA  213 

nero  de  Beaumarchais,  produziria  uma  excellen- 
te  peça. 

VII 


Epocha,  segunda  decadência  da  língua  e  litteratura; 
gallicismo  e  traducções. 

A'  volta  este  tempo  se  formou  a  academia 
das  scieucias  de  Lisboa  pelos  generosos  esforços 
do  duque  de  Lafões.  Esse  corpo  scientifico,  de 
quem  tanto  bem  se  augurou  para  a  lingua  e  lit- 
teratura nacional,  nem  fez  tudo  o  que  d'eUe 
se  esperava,  nem  uma  parte  mui  pequena  do 
que  podia  e  lhe  cumpria  fazer:  mas  nem  foi  inú- 
til, nem,  como  alguns  tecm  querido,  prejudicial. 
E  todavia  sua  força  moral  não  foi  bastante 
para  vencer  um  mal  terrível  que  já  no  tempo  do 
sua  creação  se  manifestava,  mas  que  depois, 
cresceu  e  avultou  a  ponto,  que  veio  a  tornar-so 
quasi  indestructivel. 

Este  mal  foi  o  gallo-mania,  que  sobre  per- 
verter o  caracter  da  nação,  de  todo  perdeu  o 
acabou  com  a  já  combalida  linguagem:  phrascs 
barbaras  repugnantes  á  Índole   do   idioma,  ter- 


214  HISTORIA    DA    LINGUÀ 

mos  hybridos,  locuções  arrastadas,  sem  elegân- 
cia, formaram  a  algaravia  da  moda,  e  prestes  in- 
vadiram todas  as  provincias  das  lettras.  Estudar 
a  lingua  materna,  como  aquella  em  que  falía- 
mos e  escrevemos,  é  dos  mais  difficeis  estudos, 
ha  mister  longa  e  porfiada  applicaçao.  Que  bel- 
la  invenção  para  a  ignorância  e  para  a  preguiça 
não  foi  esta  nova  linguagem  mascavada  e  de 
furtacôres,  que  todos  podiam  saber  sem  fadiga, 
cujas  leis  cada-um  moderava  e  arbitrava  a  seu 
modo,  alterava  a  seu  sabor  com  tam  plena  liber- 
dade de  consciência!  Foi  a  religião  de  Mafoma: 
propagou-a  a  incontinência,  a  soltura,  o  desen- 
freio do  appetite.  Desprezaram-se  os  clássicos, 
apodaram-se  de  ignorantes,  de  rançosos;  e  os 
que  não  ousavam,  por  algum  resto  de  vergo- 
nha, desacatar  assim  as  honradas  cans  dos  nossos 
mestres,  sahiram  então  com  o  banal  e  ridiculo  pre- 
texto de  que  ninguém  podia  le-los  pelas  maté- 
rias que  tractaram;  que  tudo  eram  sermões,  vi- 
das de  sanctos,  historias  de  conventos,  de  fra- 
des. Vergonhosa  desculpa!  Comquê  as  décadas 
de  Barros,  que  foi  talvez  o  primeiro  que  intro- 
duziu com  feliz  execução  o  stylo  clássico  na 
historia  moderna,   são  chronicas  de  conventos? 


K    DA    POEiSlA    PORTUGUEZA  215 

Fernão  Mendes  Pinto,  o  primeiro  europeu  que 
escreveu  uma  viagem  regular  da  China  e  dos 
extremos  d' Ásia,  são  vidas  de  sanctos?  E  d'es- 
sas  mesmas  %idas  de  sanctos,  quantas  d'enas  são 
de  summo  interesse,  divertida  e  proíicua  leitura! 
A  vida  de  D.  Fr.  Bartholomeu  dos  Martyres  tem 
toda  a  valia  das  mais  gabadas  memorias  histó- 
ricas, de  que  hoje  anda  cheia  a  Europa,  e  que 
ninguém  taxou  ainda  de  pouco  interessantes. 
Quando  outra  cousa  não  contivesse  aquelle  ex- 
cellente  livro  senão  a  narração  do  concilio  de 
Trento,  a  viagem  e  estada  do  arcebispo  em  Ro- 
ma, já  seria  elle  uma  das  mais  curiosas  e  im- 
portantes obras  do  século  XVI.  E  D.  Francis- 
co Manuel  de  Mello,  e  Rodrigues  Lobo,  e  Ca- 
mões, e  grande  cópia  de  poetas  de  todos  os  gé- 
neros, —  tudo  isso  são  sermonarios,  vidas  de 
sanctos? 

Miséria  é  que  o  geral  dos  portuguezes  jurou 
nas  palavras  de  quatro  peralvilhos  que  essas  ca- 
lumnias  apregoavam:  passou  em  julgado  que  os 
clássicos  se  não  podiam  ler,  e  ninguém  mais  quiz 
tomar  o  trabalho  nem  sequer  de  examinar  se  sim 
ou  não  assim  era. 

ÍJ'cstc  estado  de  cousas  apparcceram  em  Por- 


216  HISTORIA    DA    língua 

tugãl  dous  homens  extraordinários,  ambos  do- 
tados pela  natureza  de  prodigioso  ingenho  poé- 
tico, Francisco  Manuel  e  Bocage.  Aquelle,  fi- 
lho da  eschola  de  Garção  e  Diniz,  cultivou  mui- 
to tempo  as  musas  clássicas,  e  já  imbuido  no 
gosto  da  antiguidade,  ja  imitador  e  rival  de  Ho- 
rácio e  Pindaro,  começou  a  ser  conhecido  em 
idade  madura.  Este,  quasi  desd'a  infância  poeta, 
appareceu  no  mundo  em  toda  a  eíFervescencia 
dos  primeiros  annos,  ardente  cantor  das  pai- 
xões, enthusiasta,  agitado  do  seu  próprio  natu- 
ral violento,  rápido,  insofirido,  sem  cabal  instruc- 
ção  para  poeta,  com  todo  o  talento  (raro,  espan- 
toso talento!)  para  improvisador. 

Ambos  começaram  imitando  os  grandes  mes- 
tres de  seu  tempo,  seguindo  cada- um  em  seu  gé- 
nero o  stylo  e  gosto  adoptado  e  geral  desde  a 
restauração  das  letras  no  meado  do  século.  Mas 
não  são  ingenhos  grandes  para  seguir,  senão 
para  fundar  escholas:  ^nem  tardou  muito  que 
cada  um,  per  seu  lado,  não  sacudisse  todo  jugo 
da  imitação,  e  seguisse  livre  e  rasgadamente  um 
trilho  novo.  Bocage  a  quem  seu  fado,  por  mais 
aventureira  lhe  fazer  a  vida,  levou  ao  antigo 
theatro  das  glórias  portuguezas,  voltando  d' Ásia 


E    DA  POESIA   PORTUGUEZA  217 

foi  recebido  em  Lisboa  entre  os  applausos  dos 
muitos  admiradores  que  já  tinha  deixado  na  vi- 
ril infância  de  seu  talento  poético.  Augmentou- 
se  esta  admiração  com  os  novos  improvisos  do 
joven  poeta,  com  a  extrema  facilidade,  com  o  mui 
sonoro  de  seus  versos.  O  fogo  de  suas  ideias 
ateou  o  enthusiasmo  geral;  a  mocidade  inflamou- 
se  com  o  nome  de  Bocage:  de  enthusiasmo  dege- 
nerou em  cegueira,  em  mania;  nâo  lhe  viam  já 
defeitos;  menos  eUe  em  si  mesmo.  Ninguém 
duvidava  que  os  improvisos  dos  cafés  do  Rocio 
eram  superiores  a  todas  as  obras  da  antiguida- 
de, e  que  um  soneto  de  Bocage  valia  mais  que 
todos  esses  volumes  de  versos  do  século  de  João 
III.  e  do  de  José  I.  Esta  era  a  opinião  commum 
da  mocidade;  e  tam  geral  se  fez,  tantas  vezes  a 
ouviu  repetir  o  objecto  de  tal  idolatria,  que  for- 
ça era  que  a  accreditasse,  que  com  ella  se  desva- 
necesse e  desvairasse. 

Isso  lhe  aconteoeu.  O  temperamento  irritá- 
vel e  ardentíssimo  de  Bocage  o  levava  natural- 
mente ás  hyperboles  e  exagerações:  essas  eram 
as  mais  admiradas  de  seus  ouvintes;  requintou 
n*ella8,  subiu  a  ponto  que  &e  perdeu  pelos  cspa- 
çog  imaginários   de  sua    crcação  phantastica, 


218  HISTORIA    DA   LÍNGUA 

abandonou  a  natureza,  o  a  suppoz  acanhado  ele- 
mento para  o  génio.  Mais  elle  repetia  eternida- 
des, nnmdoíi,  ceos,  espheras,  orbes,  fúrias,  gorgo- 
nas;  mais  dobrava  o  applauso;  mais  delirava  elle, 
mais  o  admiravam.  Ao  cabo,  nem  elle  a  si,  nem 
os  outros  a  elle  o  intendiam.  '  A  par  e  passo 
que  as  ideias  desvairavam,  desvairava  também 
o  stylo,  e  emfim  se  reduziu  a  uma  continuada 
antithese,  perpétuos  trocadilhos,  tours-de- force, 
pulos,  saltos,  rumpantes,  castelhanadas,  com  que 
se  tornou  monótono  e  (usarei  d'uma  expressão 
de  pintor)  amaneirado. 

A  metrificação  de  Bocage,  julgam-na  sua  me- 
lhor qualidade;  eu  a  peior;  ao  menos,  a  que  peio- 
res  effeilos  causou.  Não  fez  elle  um  verso  duro, 
mal  soante,  frouxo;  porem  não  são  esses  os  úni- 
cos defeitos  dos  versos.  As  varias  ideias,  as  di- 
versas paixões  e  aífectos,  as  distinctas  posições 
e  circumstancias  do  assumpto,  do  objecto,  de  mil 
outras  cousas,  —  variada  medida  exigem;  como 
exige  a  musica  vários .  tons  e  cadencias.  A  mes- 
ma medida  sempre,   embora  cheia  e  boa,  —  o 

*  Assim  lhe  suecedeu,  principalmente  em  muitos  dos, 
por  natureza  e  essência,  hypertlolicos  elogios  dramáticos;  gé- 
nero de  composição  estravagaote  e  tj^uasi  sempre  ridiculo. 


E    DA    POESIA   rORlTGUEZA  219 

mesmo  tom,  embora  afinado,  — a  mesma  harmo- 
nia, embora  perfeita,—  o  mesmo  compasso,  em- 
bora exacto,  fazem  monótona  e  insuportável  a 
mais  bella  peça  de  musica  ou  de  poesia.  E  taes 
são  os  versos  de  Bocage,  que  nos  pretendem  dar 
para  typo  seus  apaixonados  cegos:  digo  cegos, 
porque  muitos  tem  elle  (e  n'esse  numero  que 
conto)  que  o  são,  mas  não  cegos.  Imitar  com  o 
som  mechanico  das  vozes  a  harmonia  intima  da 
ideia,  supprir  com  as  vibrações  que  só  podem  fe- 
rir a  alma  pelo  órgão  dos  ouvidos,  a  vida,  o  mo- 
vimento, as  côrcs,  as  formas  dos  quadros  natu- 
raes,  eisahi  a  superioridade  da  poesia,  a  vanta- 
gem que  tem  sobre  todas  as  outras  bellas  artes: 
mas  quam  difficil  é  perceber  e  executar  esse  dc- 
licadissiino  ponto!  Poucos  o  conseguiram:  Fran- 
cisco Manuel  foi  entre  nós  o  que- mais  finamen- 
te o  intendeu  e  executou,  mas  nem  sempre,  nem 
cabalmente. 

Porem  nos  intervalos  lúcidos  que  a  Bocage 
deixava  o  fatal  desejo  do  brilhar,  n'alguns  ins- 
tantes que,  dospossesso  do  demónio  das  hyperbo- 
les  e  anthiteses,  ficava  seu  grande  ingenho  a 
808  com  a  natureza  c  cm  paz  com  a  verdade,  en- 
tão se  via  a  immensidade  d'essa  grande  alma,  a 


220  HISTORIA   DA    LÍNGUA 

fina  tempera  d'esse  raro  ingenho  que  a  aura  po- 
pular estragou,  perdeu  o  pouco  estudo,  os  costu- 
mes desregrados,  a  miséria,  a  dependência,  a  sol- 
tura, a  fome.  Muitas  epistolas,  vários  idílios 
marítimos,  algumas  fabulas,  e  epigrammas,  as 
cantatas,  não  são  medíocres  títulos  de  glória. 
Dos  sonetos  ha  grande  cópia  que  não  tem  igual 
nem  em  portuguez,  nem  em  língua  nenhuma, 
d'uma  força,  d'uma  valentia,  d'uma  perfeição 
admirável.  O  resto  é  pequeno  e  pouco.  A  lin- 
guagem é  pobre;  ás  vezes  fácil,  mas  em  geral 
escaca.  Sabia  pouco  a  língua;  a  força  do  gran- 
de ínstincto  lhe  arredava  os  erros;  mas  as  belle- 
zas  do  idioma,  só  as  dá  e  ensina  o  estudo.  As 
traducções  de  Ovídio,  Delille  e  Gastei  são  pri- 
morosas. 

Mas  de  traducções  estamos  nós  gafos:  e  com 
traducções  levou  o  ultimo  golpe  a  litteratura  por- 
tugueza;  foi  a  estocada  de  morte  que  nos  joga- 
ram os  estrangeiros.  Traduzir  livros  d'artes,  de 
sciencias  é  necessário,  é  indispensável;  obras  de 
gosto,  de  ingenho,  raras  vezes  convém;  é  quasi 
impossível  fazê-lo  bem,  é  míngua  e  não  riqueza 
para  a  litteratura  nacional.  Essa  casta  de  obras 
estuda-se,  imita-se,  não  se  traduz.   Quem  assim 


E   DA   POESIA  PORTUGUEZA  221 

faz  accomoda-as  ao  character  nacional,  dá-lhes 
côr  de  próprias,  e  não  só  veste  um  corpo  estran- 
geiro de  alfaias  nacionaes  (como  o  traductor), 
mas  a  esse  corpo  dá  feições,  gestos,  modo,  e  Ín- 
dole nacional:  assim  fizeram  os  Latinos,  que 
sempre  imitaram  os  Gregos  e  nunca  os  traduzi- 
ram; assim  fizeram  os  nossos  poetas  da  boa  ida- 
de. Se  Virgilio  houvera  traduzido  a  Iliada,  Ca- 
mões a  Eneada,  Tasso  os  Lusiadas,  Milton  a  Je- 
rusalém, Klopstock  o  Paraizo  perdido;  nenhum 
d'elles  fora  tamanho  poeta,  nenhuma  d'essas 
línguas  se  enriquecera  com  tam  preciosos  monu- 
mentos: e  todavia  imitaram  uns  dos  outros,  e 
d' essa  imitação  lhes  veio  grande  proveito. 

Esta  mania  de  traduzir  subiu  a  ponto  em 
Portugal,  e  do  tal  modo  estragou  o  gosto  do  pu- 
blico, que  não  só  lho  não  agradavam,  mas  quasi 
não  intendia  os  bons  originaes  portuguezes:  a 
poesia,  a  litteratura  nacional  reduziu-so  a  mo- 
nótonos sonetos,  a  trovinhas  d'amores,  a  insípi- 
das enfiadas 

De  versinhos  anõcs  a  anans  Nerinns. 

Tam  baixos  nos  pozoram  os  admiradores  o  imi- 


222  HISTORIA    UA    LÍNGUA 

tadores  de  Bocage,  a  quem  justamente  a  critica 
stigmatizou  com  o  nome  de  elmanistas,—  e  de  el- 
manisrno  sua  afFectada  esctola.  N'elles  se  mostra- 
ram exagerados  os  defeitos  todos  do  enthusiasta 
Elmano,  sem  nenhum  dos  grandes  dotes,  das 
brilhantes  qualidades   do  poeta  Bocage. 

Alguns  ha  coratudo  de  quem  esta  asserção 
não  deve  intender-se  em  todo  o  rigor  da  phra- 
se.  João  Baptista  Gomes,  auctor  da  Castro, 
mostrou  n'ella  muito  talento  poético  e  dramáti- 
co. D'entre  os  bastos  defeitos  d'essa  tragedia 
sobresahem  muitas  bellezas.  Desvaira-o  o  ehna- 
-nismo;  derrama-se  per  madrigaes  quando  a  aus- 
teridade de  Melpomene  pedia  concisão,  força  e 
naturaHdade;  perde-se  em  declamações,  extra- 
vaga  em  legares  communs,  inverte  a  dicção 
com  antitheses,  destrói  toda  aillusão  com  versos 
amiúdo  s.esquipedaes  e  entumecidos;  mas  per 
meio  de  todas  essas  névoas  brilha  muita  luz  de 
ingenho,  muita  sensibilidade,  muita  energia  de 
coração;  predicados  que  com  o  estudo  da  lingua 
que  não  tinha,  com  a  experiência  que  lhe  falle- 
cia,  triumphariam  ao  cabo  do  mau  gosto  do  tem- 
po, e  viriam  provavelmente  a  fazer  de  João  Bap- 
tista Gomes  o  nosso  melhor  trágico.   Atalhou-o 


E    DA   POESIA   PORTUGUEZA  223 

a  TOorte  em  tam  illustre  carreira,  e  deixou  or- 
phão  o  tteatro  portuguez  que  de  tamanho  talen- 
to esperava  reforma  e  abastança. 

Mas  em  quanto  Bocage  e  seus  discípulos  ty- 
rannizavam  a  poesia  e  estragavam  o  gosto,  Fran- 
cisco Manuel,  único  representante  da  grande  es- 
chola  de  Garção,  gemia  no  exilio,  e  de  la  com  os 
olhos  fitos  na  pátria  se  preparava  para  luctar 
contra  a  enorme  hydra  cujas  innumeras  cabeças 
eram  o  gallicismo,  a  ignorância,  a  vaidade,  to- 
dos os  outros  vicios  que  iam  devorando  a  littera- 
tura  nacional. 

A  sua  epistola  sobre  a  arte  poética  e  lingua 
portugueza,  pôde  rivalizar  com  a  de  Ho- 
rácio aos  Pisões  :  força  d' argumentos  ,  elo- 
quência da  poesia,  nobre  patriotismo,  finissimo 
sal  da  satyra,  tudo  ahi  peleja  contra  o  monstro 
multiforme. 

Que  direi  das  odes?  Minha  intima  persuasão 
é  que  nunca  lingua  nenhuma  subiu  tam  alto 
como  a  portugueza  na  lyra  de  Francisco  Manuel. 
Que  ha  em  Pindaro  comparável  á  ode  a  Afon- 
so d' Albuquerque?  onde  ha  poesia  sublime,  ele- 
gante, immensa  como  seu  assumpto,  na  dos  no- 
vos Gamas?   se  o  patriotismo  fali  asse   alguma 


224  HISTORIA    DA    LÍNGUA 

hora  aos  degenerados  netos  de  Pacheco  e  Albu- 
querque, que  poderia  elle  dizer-lhes  igual  áquel- 
la  inestimável  ode  quo  se  intitula  Neptuno  aos 
portuguezes?  E  quando  a  liberdade  troa  na  es- 
pada de  Washington,  submette  os  raios  de  Jú- 
piter ao  sceptro  dos  tyrannos  aos  pés  de  Fran- 
klim,  ou  tece  pelas  mãos  de  Penn  os  laços  de  fra- 
terna união!  Que  immenso,  que  gi-andioso  é  o 
cantor  de  tamanhos  objectos!  Quando  nas  odes 
a  Vénus,  a  Marfisa,  a  Mareia  voltando  inopinada^ 
no  hymno  á  noite  se  requebra  em  amoroso  jubi- 
lo, ou  se  enternece  de  saudade,  todo  é  graças  e 
primores  de  Hnguagem,  de  imaginação,  de  stylo, 
de  delicadeza,  de  inimitável  poesia.  No  género 
Horaciano  não  é  elle  tam  puro  e  perfeito  como 
Garção,  mas  nem  intendeu  menos  nem  imitou 
peior  o  seu  modelo. 

Entre  as  epistolas  ha  muitas  admiráveis:  dos 
contos  e  fabulas,  alguns  com  elegante  sal  e  chis- 
te. As  traducçõcs  do  Oberon  de  Wielland,  da 
Guerra  púnica  de  Silio  Itálico,  mas  sobre  todas, 
a  dos  Martyres  de  Chateaubriand,  são  thesou- 
ros  de  linguagem  e  de  poesia. 

Nenhum  poeta  desde  Camões  havia  feito  tan- 
tos serviços  á  lingua  portugueza:  so  per  si  Fran- 


E    DA    POESIA    PORTUGUEZA  225 

cisco  Manuel  valeu  uma  academia,  e  fez  mais 
que  ella;  muita  gente  abriu  os  olhos,  e  adquiriu 
amor  a  seu  tam  rico  e  bello,  quanto  desprezado 
idioma:  e  se  ainda  hoje  em  Portugal  ha  quem 
estude  os  clássicos,  quem  se  não  envergonhe  de 
ler  Barros  e  Lucena,  deve-se  ao  exemplo,  aos  bra- 
dos, ás  invectivas  do  grande  propugnado r  de 
seus  foros  e  liberdades. 

Nos  últimos  periodos  de  sua  longa  vida  afrou- 
xaram as  enérgicas  faculdades  d'este  grande 
poeta,  e  excepto  a  traducção  dos  Martyres  (que 
assim  mesmo  tem  seus  altos  e  baixos)  quasi  tu- 
do o  mais  que  fez  é  tibio  e  morno  como  de  um 
octogenário  se  podia  esperar.  O  nimio  temor  de 
comiueter  gallicismos,  a  que  tinha  justo  e  sanc- 
to  horror,  o  fez  cahir  em  archaismos,  e  affecta- 
ção  demasiada  de  palavras  antiquadas  e  excessi- 
vos hyperbatos.  Não  são  porem  estas  faltas,  nem 
tantas  nem  tamanhas  como  o  pregoou  a  inveja  e 
a  ignorância. 

Muito  honrosa  menção  deve  a  historia  da  lin- 
gua  e  poesia  portugucza  a  Domingos  Maximiano 
Torres,  cujas  éclogas  rivalizam  com  as  de  Quita 
e  Gessner,  cujas  cançonetas  são,  depois  das  do 
Cláudio  Manuel  da  Costa,  as  melhore*  (juí!  temos. 


226  HISTORIA    DA    LINOUA 

Foi  este  muito  intimo  de  Francisco  Manuel, 
mas  tenho  por  mui  exagerados  os  elogios  que 
d'elle  recebeu. 

António  Ribeiro  dos  Santos,  honra  da  magis- 
tratura portugueza,  foi  imitador  e  emulo  de  Fer- 
reira: poucos  ingenhos,  poucos  characteres,  pou- 
cos stylos  ha  tam  parecidos;  se  não  que  o  auctor 
dos  coros  da  Castro  era  muito  maior  poeta,  e  o 
cantor  do  grande  D.  Henrique  muito  melhor  me- 
treficador.  Esta  ode  ao  infante  sábio,  algumas  ou- 
tras a  vários  heroes'")ortuguezes,algumas  das  epis- 
tolas, e  especialmente  os  versos  que  lhe  dictava  a 
amizade  para  o  seu  Almeno,  são  d'uma  elegância 
e  pureza  de  linguagem  raríssima  em  nossos  dias. 

Este  Almeno  é  Fr.  José  do  Coração  de  Jesus, 
missionário  de  Brancannes,  ([ue  traduziu  os  pri- 
meiros livros  das  methamorphoses  de  Ovidio  em 
excellente,  requissimo,  puríssimo  portuguez,  mas 
em  maus  versos:  e  ainda  assim,  alguns  d'elles 
são  feHzes:  é  de  estudar,  de  versar  com  mão  di- 
urna e  noctiiniii  esse  começo  de  traducção  para 
quem  quizer  conhecer  as  riíjuezas  de  uma  lín- 
gua que  compete,  emparelha,  vence  ás  vezes,  a 
sua  própria  máe  laiiuu. 


E    DA    POESIA    PORTUGUEZA  227 

Duas  ou  três  odes  d'este  virtuoso  e  erudito  pa- 
dre sao  mui  bonitas. 

Nicolau  Tolentino  é  o  poeta  eminentemente 
nacional  no  seu  género:  Boileau  teve  mais  força, 
mas  não  tanta  graça  como  o  nosso  bom  mestre 
de  rhetorica.  E  de  suas  satyras  ninguém  se  pode 
escandalizar;  começa  sempre  per  casa,  e  primei- 
ro se  ri  de  si  antes  que  zombeteie  com  os  outros. 
As  pinturas  dos  costumes,  da  sociedade,  tudo  é 
tam  natura],  tam  verdadeiro!  Confesso  que  de 
todos  os  poetas  (juc  meu  triste  mister  de  critico 
me  tem  obrigado  a  analysar,  único  é  este  em 
cuja  causa  me  dou  por  suspeito:  tanta  é  a  paixão, 
a  cegueira  que  tenho  polo  mais  verdadeiro,  mais 
engraçado,  mais  bo)n  homem  de  todos  os  nossos 
escriptores.  Aquelle  bilhar,  aquella  funcção  de 
Imrrinhos,  aquelle  rha,  aquellas  despedidas  ao 
cavallo  deitado  á  margem;  o  memorial  ao  princi- 
pe,  o  presente  do  pcriim,  são  bcUezas  que  so  nãt> 
admirarão  atrabilarios  zangãos  em  perpetuo  es- 
tado de  guerra  com  a  franca  alegria,  com  o  in- 
génuo gosto  da  natureza. 

De  José  Anastácio  da  Cunha,  que  das  mathe- 
maticas  puras  nos  deu  o  nielhoi'  curso  que  ha 
cm  toda  Europa,  d'cs3C  infeliz  ingcnho  (que  ta- 


228  HISTORIA    DA    LÍNGUA 

lento  houve  ja  feliz  em  Portugal?)  a  quem  não 
impediam  as  rectas  de  Euclides,  nem  as  curvas 
de  Archimedes  de  cultivar  também  as  musas; 
de  tam  illustre  e  conhecido  nome  que  direi  eu 
senão  o  muito  que  me  pcza  da  raridade  de  suas 
poesias?  Todas  são  philosophicas,  ternas  e  re- 
passadas d'uma  tam  meiga  sensibilidade  algu- 
mas, que  deixam  n'alma  um  como  echo  de  har- 
monia interior  que  não  vem  do  metro  de  seus 
versos,  mas  das  ideias,  dos  pensamentos.  Toda- 
via ha  mister  le-lo  com  prevenção,  porque 
(provavelmente  estropiada  de  copistas)  a  phra- 
se  nem  sempre  é  portugueza  de  lei. 

O  padre  A.  P.  de  Souza  Caldas,  brazileiro,  é 
dos  melhores  lyricos  modernos.  A  poesia  biblica, 
apenas  encetada  de  Camões  na  paraphrase  do 
psalmo  super  Jlumina  Bahylonis,  foi  per  elle  ma- 
ravilhosamente tractada;  e  desde  Milton  e  Klo- 
pstock  ninguém  chegou  tanto  acima  n'este  gé- 
nero. 

A  cantata  de  Pygmalião,  a  ode  O  homem  sel- 
vagem são  excellentes  também. 

Aqui  me  cai  a  penna  das  mãos:  o  estádio  livre 
para  a  critica  imparcial  acabou.  Nem  posso 
continuar  a  exercê-la   sem  temor,  nem  o  faria 


E    DA   POESIA   PORTTGUEZA  229 

ainda  assim,  pois  não  quizera  ver  revogadas 
minhas  presumidas  sentenças  pela  severa  pos- 
teridade, quasi  sempre  annuUadora  de  juizos 
contemporãos. 

Não  posso  todavia  fechar  este  hreve  quadro 
sem  patentear  a  admiração,  e  o  indizível  prazer 
que  me  deu  o  poema  do  Passeio  do  snr.  J.  M.  da 
Costa  e  Silva,  cuja  existência  tinha  a  infelicidade 
de  ignorar  (tam  pouco  sabemos  nós  portuguezes 
das  riquezas  que  temos  em  casa !)  e  que  não  sei 
que  tenha  que  invejar  a  Thompson  e  Dehlle,  se 
não  for  na  pouca  extensão  e,  acaso  dirá  mais  se- 
vero juiz,  em  algum  verso  de  demasiado  Elma- 
nismo.  Quanto  a  mim,  folgo  de  me  lisongear  com 
a  esperança  que  seu  auctor  lhe  dará  a  amplidão 
e  mais  (poucos  mais)  retoques  com  que  ficará  por 
ventura  o  melhor  poema  d'esse  género. 

Apczar  dos  motivos  referidos,  pedirei  uma  vé- 
nia mais  para  mencionar  como  um  poema  que 
faz  summa  honra  ao  nome  portuguez,  a  Medita- 
ção do  snr.  J.  A.  de  Macedo,  ([ue  tem  sido  cen- 
surada por  quem  não  é  capaz  de  intendê-la.  Não 
sei  eu  se  ella  tom  defeitos  ;  é  obra  humana,  e  de 
certo  lhes  não  escapou ;  mas  sublimidade,  cópia 


230  HISTORIA    DA    LÍNGUA 

de  doctrina,  phrase  portugueza,  e  grandes  ideias, 
só  lh'o  negará  a  cegueira  ou  a  paixão. 

Cita-se  com  elogio  o  nome  do  sur.  J.  F.  de 
Castilho,  joven  poeta  que  se  despica  da  injuria 
da  sorte  que  o  privou  da  vista,  com  muita  luz  de 
iugenbo  poético. 

Os  dytJnmmhos  do  snr.  Curvo  Semedo,  as  odes 
do  snr.  J.  Evangelista  de  Moraes  merecera  grande 
favor  do  publico  :  os  apologos  do  snr.  J.  V.  Pi- 
mentel Maldonado  são  por  certo  dignos  da  maior 
estimação. 

As  Georgicas  do  snr.  Mozinho  d' Albuquerque 
fizeram  a  reputação  poética  de  seu  benemérito 
auctor.  Alguns  lhe  adiaram  deraaziada  erudi- 
ção, e  queriam  mais  poesia  e  menos  soiencia. 
Eu  por  mim  tomarei  a  confiança  de  pedir  ao 
illustre  poeta,  em  nome  da  litteratura  portugue- 
f.a,  que  na  segunda  edição  de  sua  tam  útil  obra 
não  desdenhe  de  aproveitar  os  muitos  e  riquis- 
sinaos  ornatos  que  habilmente  pode  tirar  de  nos- 
sas festas  ruraes,  de  nossas  usanças  (como  feiras, 
serões,  desfolhas,  etc),  das  descripções  de  nos- 
so formoso  paiz;  com  que  decerto  fará  mais  na- 
cional e  interessante  seu  estimável  poema. -Não 
sei  tambom  se  alguma   incorrecção  typographica 


E    DA    rOESIA   POKTUGUEZA  2'il 

OU  de  cópia,  seria  origem  de  varias  imperfeições 
e  impurezas  de  linguagem,  que  os  escrupulosos 
(e  em  tal  matéria  é  forçoso  se-lo)  lhe  notam. 

Tudo  isso  esperamos  os  portuguezes  que  nos 
vangloriamos  de  sua  excellente  obra,  ve-lo  me- 
lhorado na  próxima  edição  que  ja  reclama  o  ]m- 
blico  impaciente. 

A  litteratura  portugueza  não  mostra  presente- 
mente grandes  symptomas  de  vigor:  mas  ha  mui- 
ta força  latente  sob  essa  apparencia;  o  menor 
sopro  animador  que  da  administração  lhe  venha, 
ateará  muitos  luzeiros  com  que  de  novo  brilhe  e 
se  engrandeça. 


l-IM. 


índice 

DAS  OBRAS  CONTIDAS  NESTE   VOLUME 

Pag. 

Retrato  de  vénus ".     .     .     .  7 

Notas 63 

Ensaio  sobre  a  historia  da  pintura    .     .        93 

Bosquejo  da  historia  da  poesia  e  língua 

pobtugueza 167 


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