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Presented to the
UBRARYofthe
UNIYERSITY OF TORONTO
by
Professor
Ralph G. Stanton
OBRAS
DO
Y. D'ALMEIDA GARRETT.
XXI
o RETRATO DE VÉNUS.
ESTUDOS DE HISTORIA LITTEUARIA.
Digitized by the Internet Archive
in 2009 with funding from
University of Toronto
http://www.archive.org/details/oretratodevenuseOOalme
o
m
ESTUDOS DE HISTORIA LITTERARIA
VISCONDE D'ALMEiDA GARREH
PUHTO
EM CASA DA VIUVA MORE — EDITOUA
PRAÇA DE D. PEUHU
18(i7
PORTO : 1867 — Typographia Commercial,
Bellomonte, 19.
o RETRATO DE VÉNUS
o RETRATO DE VÉNUS
POEMA
.... whiie it puTsues
Things unnattempted yet in prnxc, ot rhxjme.
MiLT Parad losl: book 1, v. IS.
CANTO PRIMEIRO
Doce mãe do universo, ó Natureza,
Alma origem do ser, germe da vida,
Tu, que matizas de verdor mimoso
Na estação do prazer o monte, o prado,
E á voz fagueira de celeste gôso
De raultimodos entes reproduzes
A variada existência, e Ih' a prolongas;
Q'ie, no Huido immenso logi.slando,
Libras sem conto ponderosos mundos.
8
o RETRATO
Que na ellipse invariável rotam fixos,
O alma do universo, ó Natureza,
Teus sacros penetraes em voo ardido
Busco, rasgo -lhe o véo, prescruto, e Yejo
Insondáveis mysterios: puro, e simples
Nunca ouvidas canções na lyra entoo.
Nua d'enfeites vãos a face amena
Tu volve ao mundo, que te ignora errado.
Qual és, qual foste, qual te apura os mimos
A arte engenhosa, tu lhe amostra e ensina.
Como é dado aos mortaes hellezas tuas
Co di\ino pincel, co'as magas tintas
Estremar com primor, colher-lhe o bejo,
Sem donosas ficções meu cauto ensine.
Ficções!... E áureas ficções desdenha o sábio?
A douta, a mestra antiguidade o diga.
Não; fabula gentil, volve a meus versos;
Oraa-me a Ij-ra c'os festões de rosas.
Que ás margens colhes da Castaha pura:
Flores, que outr'ora de Epicuro ao vate
Co austero assumpto lhe entrançaste amenas,
Essas no canto me desparze agora.
DE VÉNUS {
Vénus, Vénus gentil !— Mais doce, e meigo
Soa este nome, ó Natureza augusta.
Amores, graças, revoae-lhe emtorno,
Cingi-lhe a zona, que enfeitiça os olhos;
Que inflamma os corações, que as almas rende.
Vem, ó Cypria formosa, oh! vem do Olympo,
Vem c'um mago surrir, c'um terno bejo
Fazer-me vate, endeusar-me a lyra.
E quanto podes c'um surriso, ó Vénus!
Jove, que empunhe o temeroso raio;
Neptuno as ondas tempestuoso agite;
Torvo Sumano desenfreie as fúrias . . .
Se dos olhos gentis, dos lábios meigos
Desprender um surriso a Idalia deusa,
Rendido é Jove, o mar, o Averno, o Olympo.
Mas quanto é bello, é grato o vencimento,
Se á dor suave do pungir fagueiro.
Da ferida se encontra amigo bálsamo,
E nos olhos da hnda vencedora
Do ardimento o perdão braudo se accolhe!
Tu, Marte, o dize, o Cyprio moço, o Toucro;
E vós, que ousais na terra imitar numes,
Que do sumrao prazer rompendo arcanos,
10 o RETRATO
!N'um momento gosais da eternidade.
Emquanto nas lidadas officinas,
Forjando o raio vingador dos numes,
Vive o coxo marido sem receios,
Ja deslembrado da traidora rede;
Do Cynireo mancebo entre os abraços,
Jaz a esposa gentil ennamorada.
Nas languidas pupillas lhe transluzo
O prazer divinal, que a opprime, e anceia;
Nos inflammados bejos, nas caricias,
No palpitar do seio voluptuoso,
No lascivo apertar dos braços niveos.
Nos olhos, em que a luz quasi se extingue,
Na interrompida voz, que balbucia.
Nos derradeiros ais, que desfalecem . . .
Quem do prazer não reconhece a deusa
No excesso do prazer quasi espirando?
Surri-lhe ao lado o filho de travesso,
E d'entre o myrtho as cândidas pombinhas
Co estremecido arrulho a dona imitam.
Ah! se o gosto supremo a um deus não peja,
Porquê mesquinhas leis nos vedam barbaras
Tam suave pecar, doce delicto.
DE VÉNUS 11
Antes virtude, que natura ensina!
Desfarte as breves horas decorriam
Aos alheados, férvidos amantes;
E vezes três rotára o disco argênteo
Trivia gentil, sem que no Olympo, ou Lemnos
A esposa de Vulcano apparecesse.
Ja na etherea mansão vagos juizos
Maliciosos forma a inveja, a intriga;
E surriso maligno ás deusas todas,
Do marido iníeliz excita o fado.
Em zelosa vingança ajffana e freme
O dcspeitoso Marte; corre, voa,
E em busca da infiel vagueia o mundo.
Coxeando o segue o malfadado esposo.
Dos antigos errores esquecido:
Tal é, paixão zelosa, o teu império!
Eis do somno d' amor espavoridos.
Os dous amantes c*o ruido accordam.
Do pavor esmorece o joven tímido;
Por elle anceia a carinhosa amante,
Descuidosa de si; geme, soluça,
E do amado na dor, sua dor recresce.
Que fará!-'. . vacilluute. . . Adónis . . . Marte . . .
12 o RETRATO
O esposo... Ideias, que alma lhe confundem!
Com o amante ficar, morrer com elle?
Defender com seu peito o peito amado?
E salva-lo é possível desta sorte?
Deixa-lo?... Fera ideia!.. Ir as suspeitas
Dos numes dissipar com sua presença?
Que! deixa-lo! o seu bem! Vénus a Adónis !
Tanto não pode a mesma divindade.
Mas este só lhe resta único meio:
É forçoso: comsigo ao carro o sobe;
Voa a Paphos, e ás Graças lisongeiras
O precioso pinhor saudosa entrega,
Que n'um basto rosal mimoso o guardem,
Velem sempre por elle, té que aos deuses
Se esvaeça o furor. Súbito ao Olympo,
Composto o vulto, serenando os olhos,
^'um momento chegou: mago atractivo
Que lhe spira dos lábios, das pupillas,
Do todo encantador, ódios, suspeitas
Desfaz, esquece em ânimos divinos:
Tam pouco, ó bellas, persuadir-nos custa!
Arde voltar ao suspirado asylo;
Mas teme a vejam desconfiados olhos;
DE VÉNUS 13
E em tanto Adónis geme, e o seu tormento
Mais que o próprio penar lhe punge n'alma.
Disenhos volve... Alfim um lhe suscita
Novo a mente engenhosa: ei-lo abraçado.
Jaz muito alem do tormentório cabo,
(Sempiterno brasão da Lusa gloria)
Em não sabido mar, jamais sulcado,
Dha aprazivel, deliciosa, e breve.
A mão dos homens destruidora, e barbara,
Mimos da creação não lhe estragara.
A seu grado crescia o bosque, a selva;
Vecejava sem leis o prado ameno;
D'alvas pedrinhas pelo leito amigo
Se espriguiçava o crystalino arroio.
Sem temer que impia dextra ouse perversa,
No brando curso imterromper-lhe as aguas.
Presas não gemem fugitivas Nayas,
Nem Dryades gentis feridas choram:
Sem arte a natureza era inda a mesma.
No mais escuro do copado bosque
Ternas suspiram maviosas rolas;
E em mais alegres sons, prazer mais ledo,
A meiga ave d'amor no arrulho exprime.
Outro vivente algum a aura fagueira
14 o RETRATO
Não ousa respirar. Silencio eterno
Impera na solidão, dobra-lhe encantos.
Tam suave mansão nem mesmo os numes
No ceo conhecem. Da ternura a deusa,
Só Vénus sabe do recanto ameno.
Tu, do universo creador principio,
Vénus! oh mãe d'amor, oh mãe de tudo!
Que amor é tudo, que só tu com elle.
Ambos creastes e regeis o mundo.
Que a natureza sois, ou ella é vossa:
Cypria, Cypria gentil, podes acaso
Ignorar uma só das obras tuas?
"Mãe, (lhe diz, entre alegre e malicioso,
Mas compassivo, o filho) nessa ignota
"Ilha do Indico mar..."— Um doce bejo
O concelho pagou. — Súbito parte.
Lá chega; e nova se difunde a vida
Na solitária estancia; em novos germes
O deleite, o prazer renascem, pulam,
Quam doces d' antemão gosou delicias
A mui fagueira deusa! O sitio ameno
Extasiada contempla. "Oh! quam dit(jsos
DE VÉNUS 15
(Clamou) seremos! Ignorado, occulto,
" O' doce amante, viverás sem medo,
" Aqui, no seio da ventura e gôso,
" Nos meus braços..." Parou suspensa, e geme:
Cruel lembrança lhe assomou na mente;
Agros deveres, pérfidas suspeitas,
Quantas vezes do amante hão de aparta-la.
Suspira: as rosas do prazer se esvaem
Das lindas faces niveas. Pensativa,
Melancólica, e triste.... Eis (fausto agouro!)
Estremecido arrulho alvas pombinhas
Deram á sestra mão. Ah! sim: é elle:
Amor, apoz a mãe, veio ajuda-la.
"Filho (co'a voz lhe diz, que impera em Jove,
" Que tam suave rege a natureza)
" Tu me feriste: não accuso o golpe:
" Amo, adoro esse ferro, que me punge,
" Que na chaga, que abiiu, doçura entorna;
" Só quero, só te peço (que não peja
" De implorar-te soccorro a mãe ferida)
" Derradeira mercê: oh! deixa um pouco
" D'humanos corações fácil conquista:
" Cesse qualquer amor quando ama Vénus.
" A culta Europa lapido discorre,
16 o RETRATO
" E a progénie d'Apollo, almos, divinos,
" Os pintores me traze aqui n'um ponto.
Pasmou c'o rogo inesperado o numen:
A causa inquire. "Ah! não: (lhe torna a deusa)
" Não cumpre ainda revelar- t'a, ó filho;
" Cubra o véo do mysterio o doce intento."
Mal disse: e o raio mais veloz não rue
Da rubra dextra do Tonante irado,
Do que a turba dos cândidos amores
A' voz da deusa fende os ares liquides.
Quaes voam de Minerva ao sábio clima.
Hoje torpe, e servil c'o bruto império:
Quaes á augusta senhora do universo;
Senhora, emquanto Homa era inda Roma:
Quaes ao paiz do mysterioso Etrusco:
A' formosa Bolonha, á gran Veneza;
Grande emquanto reinou sobre o Oceano:
Quaes á suberba Gallia, á Ibéria, a Lysia;
Que de Lysia também, tam cara ás musas.
Da poesia a rival, a irman tem filhos.
De toda a parte a obedecer contentes
Correm ao mando de Cyprina bella,
DE VÉNUS 17
Da natura em despeito, homens creadores,
Prometheus, que á matéria informe e bruta
Co divino pincel dao forma, e vida;
Erguem da campa gerações extinctas;
Plantam copados, que enfloream, bosques;
Co'a viva historia os homens eternisam;
E, fitando no ceo audazes vistas,
Aos pasmados sentidos apresentam
Visivel, sem rebuço a divindade.
Da fértil em prodigios, d'alta Grécia
O pae d'arte divina, Apelles marcha,
Thimante, Zeuxis, e Parrhasio, e quantos
A culta Grécia, a deliciosa Roma
Famosos produziu em sec'los d'ouro:
Cimabúe famoso apoz caminha.
Que as esfriadas cinzas animando
Do engenho, do talento, o faxo vívido
Fez na Europa brilhar, e abriu de novo
O caminho gentil da natureza
Do bárbaro furor fechado, ha muito.
Aos golpes crebros, incessantes, duros
Da férrea mão do avaro despotismo,
Sem forças, sem vigor jazia, ha muito,
18 o RETRATO
A mísera Bysancio. Em surda guerra
Fallaz superstição d'mfames bonzos,
Fanatismo cruel, bifronte, e iniquo,
Hypocrisia vil, pérfida e dobre,
E-uina infausta lhe apressava, e morte.
A' vidos sorvos de Roman cubica,
Da Latina ambição, riquezas, pompa
Roubado haviam insaciáveis, feros
De Constantino á corte. Espessa nlivem
De negros vicios, de perversos crimes
Pousou medonha sobre os tristes netos
Degenerados, vis d'um povo illustre.
Crestadas, secas pelo sopro ardente
Da tyrannia atroz definham, morrem
Apesinhadas as virtudes cândidas;
Ao cúmulo chegou desdita, opprobrio
Dos fados teus, ó Grécia. Eis ante as portas
Da famosa cidade, audaz, suberbo
Musuhnano feroz, Mahomet se ostenta.
Monstros, que o sangue do mesquinho povo
ímpios bebestes, ah! tremei, que é elle:
Austero açoite das celestes iras
Sobre vós descarrega a mão divina.
Bonzos, no centro aos claustros profanados
Embalde a frente d'horridas maldades
DE VENIS 19
Carregada escondeis: lá vai, lá chega;
Sobre asarasd'um deus, a um deus, que ousastes,
lucençando-o, offeuder, lá vos immola.
Artes," sciencias, a guarida extrema,
Perdeste'-a em fim: voltai, fugi; que Hesperia
Os carinhosos braços vos estende.
Ei-las: oh! folga, venturosa Europa.
Lá cai a pouco e pouco em terra o throno
Da barbara ignorância: as ti'evas do erro
Vai accossando da verdade o faxo.
Arte divina, magica pintura,
Foragida também, thesouros, mimos
Yens espalhar na mui ditosa Itália.
ItaHa! oh! folga: Rapliaeis ja pulam.
FliM IK) CANTO PRIME IKO.
GANTO SEGUNDO
Mas eis, distinctos esquadrões formando.
As escliolas assomara ; reina entre ellas
Vivaz emulação, que gera os sábios :
Vão-lhe na frente os aífamados chefes,
Que a pátria honraram c'o pincel divino.
No bello antigo modelando as graças.
Que em mais sábio pincel, mais bellas surgem,
A frente airosa sobre erguendo ás outras.
Vem tribu excelsa dos Romãos pintores.
Deram-lhe o grau supremo árdua sciencia
Das attitudes, d'expressão, verdade.
De audaz composição, nobre elegância,
O correcto desenho, e puro, e grave,
E ([uanto inspira ApoUo ás almas grandes.
Em extusi sublime altas ideias.
22 o RETRATO
É filho seu (que mais sobeja glória !)
E.aphael, o divino, o mestre, o numen
Da moderna pintura, eterno brilho,
Que os Apelles offusca, e Roma, e Grécia ;
Que, as barreiras transpondo á natureza,
Olhou de face a face a divindade,
E as glórias do Thabôr fez ver ao Tybre,
E aos d' arte amantes desejar com Pedro
Junto ao prodigio habitação ditosa. '
Júlio o mestre imitou, foi digno d'elle :
Forte, ardida expressão lhe anima os traços.
Que ás profícuas lições dão glória e lustre.
Em cerca aos muros da gentil Parthénope,
Onde aprimora a natureza os mimos,
E a voz do creador soou mais bella,
Onde, entre montes de sulphureas cinzas,
Umas sobre outras, as cidades jazem,
E a rodo os d' atro fogo hórridos rios
A poéticas ficções dão ser terrivel ;
Alli, silencio eterno ergueu severo
Religiosa mansão ; firmou-lhe as bases
» A transfiguração de Raphael.
DE VÉNUS
23
Austera, descarnada penitencia.
Sobre as azas do ingenho, á voz d'um numen,
Vigoroso, expressivo Spanholeto,
Lá foste, e a assomos do pincel terrível
Em longas vestes surgem, pulam, \ãvem
Fatidicos anciãos ; ás portas velam
Da estancia outr'ora silenciosa, e sancta.
E quando atroz, hypocrita veneno,
Lavrando a furto sob o sacco, e cinza,
Os muros profanou, que ergueu virtude,
Inda no mesto panno af&ictos suam ;
E a gloria do pintor fulge entre o crime. '
Fostes, como elle, berocs da arte divina,
Polidoro gentil, vivaz Fattore,
Saliente Caravaggio, que exprimiste,
Senão bella, fiel a natureza.
Nobre, altivo Cortona, quanto vivem
Scenas famosas da nascente Roma !
Nas mães trementes, pallidas filhinhas,
Vc como a mesma dòr redobra encantos !
' Quadros dos propliclas por Spaiiliolftlo, na Carluclia do
Nápoles.
24 o RETRATO
E O fero aspeito dos Quirinos Martes,
Onde a furto da glória amor scintilla !
Ah ! próximo o prazer vai dar ao mundo
Prodigios de valor, extremos d'honra,
Prole Romana. . . Eis o universo em ferros. '
Amável, temo Sacchi, a ti surriram
Do mago cinto de Erycina as graças ;
Meigos, suaves dons te esparzem n'alma.
Que nos quadros gentis reflectem doces.
Belligero Cerquozzi avulta aos olhos
Brandir no panno, lampejar mil ferros,
E aos roucos sons da sanguinosa guerra.
Entre as phalanges baralhadas rotas,
Entre abysmos d'horror alçar-se a morte. '^
Quam magos fulgem divinaes, sublimes,
Maratti encantador, fácil Giordano,
Mimoso Dolce, e vós, que á nova Roma
Ingenhos tantos, insondáveis, grandes.
Por guerreiros tropheos, suberbos róstros,
Triumphos cem do ovante Capitólio,
O roubo dds Sabinas por Cortona.
pintor de batalhas.
DE VÉNUS 25
Dais, se menos viril, menos heróico,
Ornamento gentil, belleza, encantos.
Ja de acurvados reis não brilha o fasto
Da escravidão contentes ; não se antolha
Em cada senador um nume, um Jove.
Ja nas praças, nos templos não campeiam
Os despojos do mundo ; o Circo, o Foro,
Prodígios d' arte, da opulência, e luxo.
Da barbara ignorância ás mãos cederam.
Cheio de Livio o \àajante absorto
Não ve do Capitólio a frente erguida
Torreada avultar com ferros cento.
Não ve povo d'heroes girar-lhe entorno;
Da incsp'rada mudança pasma, e geme,
E no centro de Roma a Roma busca.
Porem, se amiga mão lhe guia os passos,
Se o Vaticano e mil prodígios nota.
Que do antigo explendor moderam fama ;
Então Roma conhece, então venera
Nobres resquícios de gloriosos evos.
Tacs da moderna Roma os filhos iam
Por travesso menino conduzidos ;
E d*altiva belleza ornada a frente,
26 o RETRATO
A magestosa, Florentina eschola
De perto os segue : no atrevido ensejo
Parece disputar-lhe o grau supremo.
Co'a sublime expressão, desenho ardido^
Gigantesca maneira, audaz, mas bella,
Se antolha eunobrecer a natureza.
Brandas graças d' amor, ternura, encantos
Feroz desdenha ; só lhe avulta á mente
O nobre, a pompa da ideal grandeza.
Não foi sobre o Synai mais formidável,
Que d' Angelo entre as mãos, Moysés terrivel ;
Nem lá no extremo, derradeiro dia
Julgamento final será mais hórrido.
Co deus, que o peito vos perturba, anceia,
Mais pavorosas não rugis, Sibylas.
Da mão nervosa cada traço é raio.
Que espanta os olhos, que deslumbra a mente ;
Que enxofrado clarão, medonhas larvas
Em todo o horror do Averno ostenta horrivel ;
Que, se um deus pinta, é do castigo o numen,
Que em longa geração pune um só crime,
O deus, que no deserto, entre os relâmpagos,
Entre o rouco estampido das trombetas,
Pela voz do trovão legisla ao mundo.
DE VÉNUS 27
Eis, desdobrando hydraulicos segredos,
E as mechanicas leis com sabia dextra
Movendo a seu sabor, á glória sua,
Vinci tam caro aos reis, de o ser tam digno,
Seu correcto, purissimo desenho.
Engenhoso compor o eleva aos astros,
Aos astros, onde fora em vôo ardido
Os pincéis escolher, buscar as tintas,
Com que d' ultima ceia debuxara
Amor, transportes, mysteriosas scenas.
Ah ! gire o teu prodígio o mundo inteiro ;
E de grado a razão cede ao mysterio.
Cores roubando á natureza, e mimos,
Bello como ella, o inimitável Porta
Ao gelado silencio de ermo claustro
Chamou das nove irmans o choro arguto.
Urbino o conheceu ; c o sceptro augusto
Curvou ante elle; e, confundindo os raios.
Os dous d' alma pintura astros brilhantes.
Sem nogro eclypse, sciutillaram juntos.
"Vens, ó Sarto, apoz cUc, ameno, e brando ;
Vens, Pcruzzi gentil, fértil Pantorma,
Que ao nobre assomo do pincel nervoso,
28 o RETRATO
Co doco encanto das mimosas tintas
Fizeste a Raphael, a Buonarrotti
D'arte a coroa estremecer na frente.
Sec'los famosos d' Alexandre, e Augusto
Na Itália renovou macio Allori ;
E as meigas cores do pincel Lombardo
Quasi Ciogli usurpara ao grão Corregio.
Ah ! veda a musa, e pequenez do ingenho
Seguir- vos todos, divinaes pintores :
Segura a fama vossa alteia a frente,
E o vate ao longe vos contempla os voos.
Gentil Bolonha, que na Europa barbara
O faxo das sciencias accendeste,
Que o Gothico stupor tiraste ás artes,
E as cinzas da virtude apesinhadas
Por sanctos crimes de sagrados monstros
Cum Benedicto consolaste em Roma,
Eis vem dignos de ti, teus sábios filhos,
Numerosa familia, antiga e nobre.
Que o mel das graças delibando férvida
Em quantas flores produzira Apollo,
Nobre desenho modelou no antigo,
A natura usurpou vivaz belleza,
DE VÉNUS
E o mago, o puro dos gentis contornos,
A verdade, a exprossão, o rico d'ordem,
E o colorido inimitável, bello.
Que emparelha com a arte a natureza.
Assim brilhou di\dno o gran Corregio,
Assim Fraucia gentil, assim Mantegna,
E Bolognese vigoroso, e forte ;
E tu, que o terno amor, e seus encantos,
Simplices graças da natura virgem.
Da innocencia infantil o mimo, os jogos,
As singelas beldades exprimiste
No mavioso pincel, mavioso Albano.
Nem deslembre de Guido a fértil mente.
Talento universal, vago, mas bello. . .
Ca expressão de Zampieri ordem, nobreza,
Vê d'Agnese gentil a árdua constância
Como os p'rigos desdenha, e ve risonha
Ja do ferro do algoz pender-lhe a morte.
í'erino aspeito dos ministros bárbaros.
Da augusta religião viril triumpho
Aos engolfados olhos se apresenta,
E, arrebatando o esp'rito a deus, ao vate.
Um prodígio a prodigios amontoa.
29
30 o RETRATO
Ve Guerccino também, que ora nervoso,
Ora sombrio, e fero, e terno outr'ora,
Mas sempre encantador, em cada rasgo
Cam portento de mais a arte enriquece.
Qual vira a Palestina o pae dos crentes '
De fe, de submissão dar nobre exemplo ;
Tal vive no pincel, tal inda avulta
Co'as veneráveis cans, e honrado aspeito.
Misero velho ! desgraçado infante !
Que ! tu mesmo, infehz ! co'a mão paterna
Hasde cortar-lhe o fio á tenra vida,
Unica esp'rança de cançados annos.
De mui doces promessas? Como. . . ai triste!
Oh ! como voltará sem elle á tenda ?
Com que olhos fitará maternos olhos ?
Com que voz lhe dirá ?. . Mas parte : e a dextra
Ja, ja quasi. . . Suspende: um deus o ordena;
Um deus é pae também : suspende o crime :
São leis da natureza as leis divinas;
Em premio da tua fe recebe o filho.
Ah ! se ao nome Lombardo é pouco tanto ;
Eis tríplice ornamento á pátria ao mundo,
' O sacriíicio de Isiich, quadro famoso de Guercciuo.
DE VÉNUS 31
Doutos Caraccis, que o divino ingenho,
Ou co'a dextra gentil ornando a Itália,
Ou dando á juventude alnios preceitos
Da arte formosa, perpetuando-a aos evos,
Nova, estremada lhe augmentáram glória.
FIM DO CANTO SEGUNDO.
CANTO TERCEIRO
Musa, deixemos a mansão terrestre,
Sobre o iníidu elomeuto estende os voos.
Eis sobre as ondas c'o pincel divino
Maga pintura, legislando ás vagas,
Enfreia as iras de Neptuno indómito.
Ve d'Adria o gôlpho tempestuoso, e fero
A' voz da liberdade agrilhoado.
Surge do seio das domadas aguas
A cidade gentil: pasmou de ve-la, .
E corou de vergonha a natureza.
E a mã(j do creador, ao ver confusos,
Baralhados antigos elementos,
Se ao homem, que os trocou, não dera a vida,
Quasi, quasi um rival temera nelle.
Alli, fugindo aos clamorosos brados,
34 o RETRATO
Ao jugo, á servidão da tyrannia,
Homens, poucos, mas homens, começaram
Com ância a defender sacros direitos.
Empório foi depois do rico Oriente,
E do alado leão tremeu gran tempo
O atrevido colosso Mussulmano.
Hoje (Ideias de dor, lembrança amarga!)
Da poppa olhando o navegante ao longe:
"Veneza aquella foi "— exclama, e geme;
E segue a esteira das cortadas ondas.
Veneza foi: compridas, longas eras
Foi a pátria d'heroes, foi mãe de sábios;
E as dadivosas musas lhe outorgaram
Egrégios filhos, que o talento, as vidas
A' formosa sciencia consagraram;
Que imitando fieis a natureza.
Olhos seduzem, e deleitam alma,
Que nos toques graciosos, na belleza
Da gentil invenção, doce magia
Do claro-escuro, rico invento d' arte.
Aos mais sábios pincéis não cedem nada.
Deusa, acode á avidez, que o vate enleia.
Fere nas coadas da estremada lyra
DE viiííuá 35
Dos famosos varões o nome e os dotes:
Dize a Ticiano, dize quaes natura
Lhe entornou dadivosa encantos simples,
Que, ou arte ignoram, ou subtis a escondem;
Ja d']iumanas feições transsumpto exacto,
Ja co'as nativas cores exprimindo
No ingeuhoso pincel tudo o que existe.
Adriades gentis, olil vinde, as frentes
Coroadas de dor, na campa avara
Ilumido pranto derramar saudoso!
Ai do triste mancebo! o fado iniquo,
Só por chora-lo, o concedera ao mundo!
Oh! com quanta expressão, nobre altiveza
Castel-franco brilhou, fulgiu mais que homem!
E tam breve lhe deu a sorte a vida!
E no fuso cruel a Parca dura
Um fio tam gentil fiou tam curto!
Oh! suspendei as lagrimas formosas:
Longa carreira os ceos marcaram próvidos
Aos dous Bellinis, venerandos chefes
Da nomeada eschola; á glória vossa
Vivem padrões eternos; Piombo illustre,
Que a fama ousou balancear d'Urbino;
36 o RETRATO
Pordenone inventor, de quem Ticiano
Temeu roubadas as divinas cores;
Completo Palma, a quem mostrou natura
Sempre formoso o variado aspeito;
Animado Bassano verdadeiro;
Fértil, e vivo Tintoreto rápido;
E tu, Paulo gentil, delicias, mimo
Dos voluptuosos olhos da donzella;
(Mui grato enlevo do insoffrido amante)
Qual Yerona folgou com seu Catullo,
Tal comtigo: mil graças, mil encantos
Sem mysterio, sem véo te deu, lhe dera
Nua de pompas vans, a natureza:
Seu renome inda vive; e o teu com eUe,
Emque lhe péze á inveja, e seus furores,
Hade eterno brilhar. Assim raivosas,
Frustradas gralhas invejosas grasnam
A' ave olympia de Jove; e entanto os voos
Ella ao sol remontando, as mofa, e burla.
Porem mais longe da rinhosa Hesperia
Voltemos a attenção: ve como em Flandres,
Scena outr'ora infehz da glória Franca,
Da Cypria deusa demandando a estancia
Vai turba immensa dos rivaes d'Italia.
DE VÉNUS 37
As graças naturaes, singellas, puras
A' porfia a accompanham: não se enfeita
Por suas mãos a simples natureza:
Em loução desalinho bella, e nua
Mimos lhe outorga, que ella só conhece,
Que a vós é dado só, magos pintores,
Com arte ignota do universo ao resto
No pincel exprimir fiel, divino.
Prodigios faUem de Yan-Eick famoso,
Do correcto, vivaz, firme Duréro;
Dize-o por todos; se inda alguém no mundo
Ignora tanto, que te ignore os dotes;
Fértil, brilhante, verdadeiro Rubens.
Rubens! Oh nome! O' filhas de Memoria,
Vós, que no Pindo entre o verdor mimoso
Lhe bafejastes divinal espirito.
Quando, Hbrado sobre as azas d'ouro
De sublime, elevada allegoria,
Viu, pintou . . . Ah! fez mais: creou, deu vida
A chymericos entes, vãos, mas bellos.
Que o vivo imaginar lhe debuxara.
Quam doce, e meiga a enternecida Vénus
Com suspiros, com ais, com ternos bejos
Tenta a fúria applacar, retter nos braços
Gradivo impaciente! Olha do monstro
38 o RETRATO
O torvo gesto, o faxo sanguinoso . . .
EUa ! . . a guerra crucll a horrível frente
Co'a máscara da glória esconde ao numen,
E o veneno lethal lhe infunde n'alma.
Lá haqueia de Jano o templo augusto;
As artes, as sciencias calca o monstro;
E a d'auradas espigas, rubros pomos
Gentil coroa á agricultura arranca.
Ternura, horror, assolação, helleza
Com portentosa mão juntaste, ó Rubens. '
Quam hello é na expressão Vaén correcto!
Hólbein sublime, vigoroso, nobre!
Ván-Rin saliente, harmonioso, e doce!
Quam firme é Wanderwérff singello, e puro
E tu, mimoso Yan-Dernér, que em Gnido
Bebeste as graças, possuíste os risos.
Ah! ja cançada se me aífrouxa a lyra:
Rouca, e sem voz mal associa ás cordas
Difíiceis nomes de estremados mestres.
Um por tantos direi; e o nome illustre
Te baste, ó Flandria, a coroar-te a gloria:
' Quadro allegorico da guerra por R.
DE VÉNUS 39
O bello, o simples, verdadeiro, e grande,
Do mestre a obra maior, Vandick insigne.
Mas, qual ruido, que tumulto, ó musas,
Do Pindo a sacra paz impio disturba?
Quanto vivem ! . . Que lieroes da pátria raios!
Armas!., guerra !.. o furor!., o sangue!., a morte!.
Destroço ! . . horror! assolações ! . . ruínas ! . .
Eis dos Alpes franqueado o gelo eterno;
Nada resiste: c'o rugido extremo
Baqueia exangue de Pyrene a fera.
Co'a Europeia ruina Africa nuta,
Ásia treme; e nas praias de Colombo
A fugitiva liberdade apporta.
A longes terras se accolheu Minerva,
8em rumo as artes desgrenhadas fogem,
A Roma de Catão, d' Augusto a Roma
Não é de Pio a efFeminada corte;
E em vez d'um Fábio tardador, d'um Quincio,
D'um Bruto, um ManHo; prostituta prole
No deshonrado Capitólio avulta.
Quem, bellezas d'Italia, hade amparar-vos ?
Quem ! . . Ânimos cobrai; volvei sem medo
Artes, seiencias: ja no Kena ovante
40 o RETRATO
O próprio vencedor no seio amigo
Vos accolhe, e aecarinha, e no alto alcaçar
Augusto sólio perenal vos ergue.
No Sena ovante (oh do porvir assombro!)
Em quanto os filhos seus, terror do mundo.
Raios desferem, que o universo atterram;
Renasce mais gentil, vive mais fúlgido
O sec'lo de Luiz; succede á velha,
A' pedante Sorbona, almo Instituto.
Eis novos Raphaeis, arte divina!
Não lamentes Poussin, Gallia ditosa,
De Mignard, e Blanchard divinas cores,
De Lebrun a expressão, fieis costumes,
Paizagens de Lorrain, maga ternura
Do voluptuoso, encantador Santerre,
Grandioso stylo do vivaz Subleyras:
Teus modernos heroes excedem tudo;
E ao seio da opulência amamentados,
A' voz da glória redobrando exforços,
Talvez irão com denodado arrojo
Do sólio d'arte derribar a Itália.
Se, entre barbaras mãos gemendo outr'ora,
Deveste a Belisario a vida, ó Roma;
DE VÉNUS 41
Se das fúrias cruéis d'liorrida guerra
O juramento te isentou d'E[oracios;
Se quanto foste em gloriosas quadras
A um necessário roubo, á paz, que o segue,
Ao ferro audaz de Rómulo deveste; '
Treme d'elles agora, treme, ó Roma;
Que no heróico pincel David illustre
As cinzas lhe animou; marcham por elle
Tua fama a conquistar, roubar teus louros:
De Urbino, e Buonarroti o throno prostram;
Eis campeia David! — Não longe d'elle
O terno Girodet, suave, e brando.
Que, do Meschacebeu vingando as margens,
Co vate insigne emparelhou nos voos,
E na pasmada Europa ergueu d' Américo
As pomposas florestas, e a nobreza,
Ornamento feroz d'um mundo virgem:
Que os encantos d'amor, e os seus furores,
O poder da virtude, e os seus exforços
Dignos d'clle exprimiu, e fez do novo
Olhos sensiveis afogar em pranto.
Eis á voz de Gérard das campas rompem
' Quadros eeiebres de Darid.
42 o RETRATO
Extinctas gerações: Saturno as azas
Indignado encolheu, e a presa antiga
Viu roubar-lh'a o pincel, quebrar-lhe os éllos
Da impreterivel, perenal cadeia.
Ruge fremente o mar, bramindo, e ronca
Nas ouças rocas, nas quebradas fragas
Do tormentório mar... Lá se ergue ingente,
E immenso troa o colossal gigante.
Treme d'entôrno o mar, e a terra, e o mundo;
E a voz, que os poios com fragor desloca.
Pela primeira vez á gente Lusa
Pallida imprime a sensação do medo.
Só impávido, um só, Vasco lhe arrosta:
Pasma a ousadia d' um mortal a um nume.
Oh lagrimas d'Ignez, sangue innocente,
Correi, correi do milagroso panno;
E em lagrimas de sangue o applauso eterno
Aos vates recebei, aos vates ambos.
Oh Gérard! oh Camões! qual mão divina
Vos uniu, vos juntou? Oh! folga, ó pátria!
DE VENLS 43
E tu, Sousa immortal, grata homenagem
E,ecebe eterna da mui grata Elysia. *
Ve nas mãos de Guérin qual geme e anceia
Pincel, que hervou na dor, que embebe em pranto,
Que incestos, crimes (de Trezena horrores)
Co Euripides Francez disputa ainda.
Quem de pavor, de compaixão não gela
Ao ver nas murchas, esmyrradas faces
Da bella ainda, miseranda Phedra
Surgir do panno, que as conter mal pôde,
D'um criminoso amor, violência, e fogo ? *
Guerreira a mente de Yemet fulmina
Os raios de Mavorte, o horror das armas;
E sobre os quadros de Lc-Gros famoso
Os manes folgam de RoUin, Voltaire.
Mas tanta glória inda não basta, ó Francos,
Para o completo, universal triumpho:
Que no Tbero pincel inda refulge
O nome da Ribcra, o de Murillo,
' Celebres pinturas de Gérard na edioílo dos Lusíadas pelo
Sr. José Maria de Sousa
* Pinturas de Guerin tiradas de Racine.
44 o RETRATO
E duvida d'Albioii mosqueada fera,
Vaidosa d' West, conceder-te a palma;-
Inda lhes guardam justiçosas musas
No bifido Parnaso um grau distincto.
Assim quando no ceo, callada a noute.
Cândida brilha sup'rior Diana,
Se com menos fulgor, astros com tudo,
Gentis avultam nitidas estrellas.
FIM DO CANTO TERCEIRO
CARTO QUARTO
Eia! colhamos as cançadas velas,
Musa: o filhinho da amorosa Veuus
Ja pelos ares líquidos se entranha,
E ledo corre co'as donosas tribus
Dos illustres rivaes da natureza.
Da Europa toda ja voaram férvidos
Da voz ennamorada ao som fagueiro,
Só Lysia falta. . . A minha Lysia, ó Vénus !
A pátria dos heroes, a mãe dos vates,
A pátria de Camões, do teu Filinto !
Onde a voz de Bocage, a voz do Gomes
Sempre em teu nome resoou na lyra !
Onde a teu culto, mais que em Roma, ou Grécia,
Era cada coração se eleva um templo!
Lysia, de Veuus esqueceram filhos !
46 o RETKATO
Ah ! volve os olhos immortaes, divinos,
Aos séculos remotos ; ve no Tejo
Como entre as sombras da ignorância Gothica
Brilham nas trevas Lusitanas tintas ;
Ve do gran Manoel na épocha d'ouro
Sobre as bellas irmans como se eleva
A divinal pintura ; ve mais perto,
Em quanto geme c'o ferrenho jugo
A flor, a augusta das nações princeza,
Ei'guer das rainas sobranceira a frente ;
E alfim nas quadras que marcara o fado
Ao brio Lusitano extremo exforço ;
Calcando a juba de Leões gryfauhos,
Parando ás Águias remontados voos,
Como á porfia sobre o Tejo e Douro
Apelles mil e mil revivem, fulgem ;
Brilha o Luso pincel. . . Ah ! se aura amiga
Continua a soprar. . . Não ; férrea pesa
A mão do despotismo, opprime, esmaga,
Destroe renovos das mimosas artes.
Mas qual ouço confuso borborinho !
E soifi vós ! Ah ! perdoa, alma Erycina:
O teu povo fiel tu bem coulieces ;
Nem chama-lo cumpria : é lhe sagrada,
DE VÉNUS 47
Inviolável lei um teu desejo.
Ei-lo corre : que luz, que ethereo brilho
De louro e rosas lhe engrinalda as frentes !
Olha entre a névoa de allongados evos,
De atroz barbaridade embrutecidos,
Como Álvaro rebrilha, um Nuno, ura Annes,
E do enérgico Vasco a fértil mente ;
E Duarte, e Gromes tam famosos ambos,
Tam caros ao gran rei, Manoel ditoso.
Ve do illustre Resende a mão facunda,
Trocando a penna, que mandara aos evos
Os feitos dignos de perenne historia,
Pelo arguto pincel ; o sábio Carlos,
Que ao divino Correggio usurpa as cores ;
Dias, que á pátria transportara ovante
O mel, e as graças dos famosos mestres ;
Harmonioso Christovão, claro Sanches,
Que os mouarchas d'Europa inteira vira
D'honras, de bens, accumulá-lo anciosos.
Eis sobre as azas de elevado arrojo
Vinga altivo Carapello o cume erguido
Dos montes de Judá. La surge, e avulta
No mysterioso pauno um deus, uni homem.
48 o RETRATO
Pasmou a natureza ao ver confusos
No seio maternal o pae e o filho.
Mago pintor lhe renovou prodígios ;
E aos tormentos d' um deus tremeu de novo
A longa serie dos criados mundos. '
Sensiveis corações, vinde espelhar- vos
Nos ternos quadros, que sagrou virtude ;
Vinde á sombra do vate, ao seio augusto
Da sancta religião, da mãe oaroavel
De humanas affliçÕes verter o pranto :
Vinde ; e entre a dor vos surgirão prazeres,
Prazeres do Christão, doçuras d'alma.
Quanta glória Fernando ao sábio mestre.
Quantos louros grangeou ! Lopes sublime
Juntou d'Urbino aos expressivos rasgos
A ardideza gentil d' Angelo altivo.
Vasques douto, e regrado os traços mede
No exacto petipé da natureza.
E tu, Leonor, d'entre a nobreza e fasto,
Origens sempre de brutal inércia,
Soubeste ás artes levantar o espirito.
Qual do Luso pincel nos fastos vive.
I Quadros da paixão de Ch. por Campello.
DE VÉNUS 49
HoUanda creador ! Deusas do Pindo,
Eis novo esmero vosso, invento novo !
Vastos arcanos da pintura se abrem,
Accumulam-se a rodo almos tesouros ;
Graças lhe admira o árbitro da Europa,
E na boca dos reis louvores fulgem.
Hollanda venturoso ! Ah ! de tuas ditas
Taes as menores são : mais deste ás musas,
Mais a ti, ao teu nome, á pátria, ao mundo
No filho, o grande filho, a glória nossa.
Mimo ao pátrio pincel do numen louro.
Cedendo á voz d'um deus, que o chama a nome,
O Cicero Africano erros abjura ;
Sancto prelado o omnipotente invoca,
E d'agua exulta cândido Agustinho.
Portento d'expressão, viva faisca
Do lume eterno, que lhe ardeu na mente.
"Vate ! . . Ah ! não vate : um anjo, um deus te guia,
Move o arguto pincel na sabia dextra.
Do Olyrapo eis surge a magestade, a pompa :
Olha d' Ambrósio o venerando aspeito.
Os olhos, onde cm goso alma trasborda,
D' Agustinho a liumildade, e o gesto vívido,
Onde a força transluz d'activa mente,
50 o RETRATO
Da eloquência viril, saber profundo. *
Pereira natural, severo e forte
O terrível pincel por entre ruinas,
Entre chaminas e horror meneia ardido.
De novo a cinzas reduzida Tróia
Por elle foi ; por elle Pyrro ingente
Co faxo assolador vagou por Illion.
Antolha ouvir-se em pávidos lamentos
O confuso ulular da mãe, que espira,
E no extremo bocejo aperta os filhos,
Do pae tremente, que a rugosa face
Entre o seio da filha esconde, e geme,
E quizera morrer no doce amplexo.
O crepitar das estridentes chammas,
O baquear dos templos, dos palácios,
E quantas vozes de terror, d'espanto.
Quantas scenas d'horror cantaram vates
Nas Gregas cordas, Mantuana lyra. ^
Elementos, cedei-lhe ao mago encanto
Das vozes do pincel ! Stridentes rompem
' Quadro do baptismo de S. Agustinho.
' Quadro da deslruição de Tróia.
I)E VÉNUS 51
Com ruidoso estampido as cataractas ;
Confunde a natureza a essência, os termos,
jN^a face do universo impera a morte,
Mysterioso baixel ao longe avulta ;
E de novo o castigo formidável
Os olhos da razão cega d'espanto. '
Olha como apoz elle vem seguindo
Valle expressivo, delicado e grande,
Nobre Gonçalves, entendido e ornado,
Rebcllo audaz, o Buonarroti Luso,
E as do patiio pincel divinas Saphos,
Ayalla, e Guadalupe, e Ritto, e Browne,
E Luiza gentil, que os sabio.s tempos
Ao Porto renovou da Grega Aspasia.
Fastoso monumento d'alta Ibéria,
Voragem, golphão, que absorveste os rios
Do precioso metal, que a ti con-eram '
Do Chily, e Potozi, das índias duas.
Soberbo Escurial, onde se aninham.
Sob apparente sacco o vicio, o crime.
Tu de Cláudio por mim celebra o nome,
' Quadro do diluvio.
52 o RETRATP
Do Camões da pintura, a quem deveste
De teus ornatos o maior, mais bello.
Nem sorva o Lettes de confuso olvido
Yictorino engraçado, André mimoso.
Verdadeiro Apparicio, simples Barros,
Vivaz Alexandrino, destro Senna,
Barreto original, brando Oliveira,
E tu. Rocha correcto, ameno e vívido,
Que obscuras scenas da marinlia Pathmos,
E o confuso vedor nos exprimiste.
Olhos em alvo, mysteriosos seguem
Prophetico furor, que o volve e agita.
Na dextra a penna mal segura forma
Nunca entendidas, enredadas notas. '
Terra fértil d'heroes, solo fecundo,
Salve ! Eis novo clarão, eis novos louros
Sobre a frente gentil pululam, vivem !
Eis do pátrio esplendor eterna gloria,
Raios de Lysia, que a remotas praias.
Do magico pincel nas azas d'Iris
Levaram em triumpho o Tejo e Douro,
' Quadro de S. João, escrevendo o Apocalypse.
DE VENTJS 53
Dous Vieiras ! Não ousa a minha lyra
Dotes brilhantes numerar nas cordas :
Assaz por meu silencio o dizem, cantam
Lysia, Hesperia, Britania, Europa, o mundo.
Desfarte á voz da meiga Cytherea,
D'amor guiados, sobre as azas do estro,
E-apidos voam n'um momento, e chegam :
Pasmam de vêr a face á natureza,
Tam bella e simples qual na infância ao mundo ;
Os bosques entram : no matiz do prado
Vão com delicia apascentando os olhos.
Eis outeiro gentil se eleva á dextra ;
Sobre elle. . . Assombro quem ja viu, que iguale
Dos illustres varões súbito assombro ?
Amor, o mesmo amor parou de espanto.
De maravilha súbita cortado.
Sobre altas se ergue Dóricas columnas
De fino jaspe cúpula suberba.
Brilha c'o azul do ceo linda saphira
Nos capiteis, nas bases. Das cornijas
Scintilla em fogo do carbunclo a charama.
Mimos, riquezas de pomposo fausto,
^
54 o RETRATO
Quantas com larga mSo semçou profusas
Nas entranhas da terra a natureza,
Na vastidão dos mares ; tudo aos olhos
Extasiados se ostenta. Riu do encanto,
E a causa do prodigio amor conhece :
Entra ; e apoz elle os estremados chefes.
Languidamente o hraço repousado
Nos hombros niveos do formoso Adónis,
Ei-la ao encontro a deusa da teinura
Lhes sai, e assim lhes falia : " Esta, que vedes,
" Consagrada ao prazer, mansão ditosa,
" Ergueu á minha voz a natureza,.
" De per si se puliu, lavrou-se o marmor,
" E se entalharam gemmas. N'um instante
" Meu doce intento completado houvera,
" Se o que vós só podeis, dar-lhe eu pudera.
" Frio, e sem vida não me falia ao peito,
" Não falia ao coração todo esse esmero.
" Oh ! cortai-lhe a mudez, dai-lhe existência,
" E c'o mago pincel toruai-o á vida. "
Disse : e a divina voz do ouvido aos peitos
Chammas d'estro, e de ingenho acceude aos vates;
E em breve espaço divinaes assomos
DE VÉNUS 00
Daqui, dalli se apinham. Clio alteia
Com portentosa mão cantados íèitos ;
Alem da natureza o vôo erguido
Alça a maga, gentil Alegoria ;
Desalinhada, rústica beldade,
Singella, e pura a Paizagem uoce
Sem mysterio, sem véo cândida ostenta.
Ja Anda é tudo ; satisfeita a deusa
Vai alfim completar os seus intentos ;
E c'um meigo surrir, c'um doce agrado,
Que vale tanto, que enamora tudo.
Assim lhes falia a carinhosa Vénus :
" Vinde, ó filhos ; que um nome tam suave
" Vossos dotes merecem ; vinde : e a empresa,
*' Que na mente revolvo, efíeituai-me.
" Não mando, peço. . . (Ah ! d'uma bella o rogo
Quanto mais vale, que uma lei d'um nume !)
" lletratai-me, ó pintores." Nisto a deusa
O mimoso sendal, ja pouco avaro
Do thcsouro, despiu. Quantas bellezas.
Que divinos encantos não descobrem,
Não pesquisam, não vem ávidos olhos !
Sonhos da phantasia, ah ! não sois nada !
Guindado imaginar, ideal bclleza.
56 o RETRATO
E' frouxo o vôo, limitado o arrojo ;
Jí^ão tenteis franquear mysterios tantos.
Cai das mãos o pincel, sem que o percebam,
Aos pintores na vista embevecidos ;
No Olympo os deuses, ignorando a causa,
De insólito prazer sentem banhar-se.
A natureza inteira revolveu-se ;
Sonhada Pytbagorica harmonia
Nas espheras soou mais branda e doce.
Aos entes todos pelas veias lavra
O incentivo do gosto : gemem ternas.
Que ha pouco uivaram, pelo bosque as feras ;
Arrulharam d'amor meigas pombinhas ;
Correu á esposa o nadador salgado ;
E nos olhos da amante leu ditoso
O constante amador perdão á culpa ;
A doce culpa tam querida e bella !
Ah ! muitas vezes não descubras, Vénus,
Magos encantos ; ou verás que em breve
A força de prazer se extingue o mundo.
Ja do extasi accordada um pouco a turba
Dos vates se prepara ao doce emprego.
DE VÉNUS 57
Tintas fornece amor, pincéis as graças ;
E eis no panno avultando a pouco e pouco
Assomos divinaes ! . . É ella. . . é Vénus !
Eis a forma gentil do corpo airoso
Salta, deslisa o fundo apavonado ;
Róseos descurvam, se arredondam braços ;
Ondeiam n'alva frente as tranças d'ebano ;
Doce brilham d' amor os olhos meigos.
Os meigos olhos, que prazer scintillam.
Que o facho accendem dos desejos sofiregos,
E contra o débil resistir do pejo
Do atrevido mancebo a audácia imploram.
Nas lindas faces purpureia a rosa.
Que insensível esvai na cor de neve ;
Surri nos lábios o deHrio, o encanto,
Que importuna razão tam doce affasta,
Que ávidos bejos, deliciosos, ternos,
Annuncios de prazer, mutuam fervidos.
Despontam no alvo, crystallino coUo
Os arcanos d' amor, que anceiam d'elle,
Que a furto ousaste, mui ditoso Anchises,
Nas trevas do prazer palpar ardido ;
Formosos pomos, que ao pastor Idalio
Pelo tam cubicado outr'ora deste. . .
Deste ; que bem o sei : (não te envergonho';)
58 o RETRATO
Era pobre o pastor, e os seus thesouros
Juno lhe franqueou, seus mimos Palias:
Sem troca tam gentil tu não venceras.
Mas quanto voa nas mui sabias dextras
O divino pincel ! Que ebúrneas formas
Voluptuosas surgir das tintas vejo !
Que exactas, lindas proporções esbeltas !
Que norma tam gentil as regra, as mede !
Ja, por milagre de Cyprina, é prompta
N'um momento a grande obra. Ei-los de novo
A vista do retrato absortos, raptos,
E, novos Pygmaliões, por elle anceiam.
De transportada a deusa ao doce amante
Nas mãos a entrega ; e : "Esta (lhe diz) conserva
" Copia fíel da tua amada Vénus.
" Com eUa, ausente, ó caro, te consola,
" Quando longe de ti me re ti verem
" Cruéis deveres, pérfidas suspeitas. "
Admira o joven a belleza, as graças
Do mimoso traslado ; beja, e rega
Com lagrimas d' amor qual um, qual outra.
DE VÉNUS 59
Co' elle, em quanto viveu, sempre abraçaáo
As poucas horas, que ficava ausente.
Mitigava a saudade : e quando a morte
O mancebo infeliz roubou sem pejo,
No templo a deusa o coUocou de Papbos,
E longas eras recebeu d' amantes
Ternas off' rendas, amorosos votos.
AUi, quando natura se empenhara
Em dar-te ao mundo, carinhosa Annalia,
Um e um copiou meigos encantos.
Que, ó minha Yenus, te compõe, te adornam.
Alli, olhos no quadro, os teus formosos
Estremada rasgou ; alli as faces
De neve, e rosas coloriu divinas ;
Alli risonha boca, onde contino
Foi aninhar-se amor, te abriu mimosa ;
Alli o collo d' alabastro puro ;
Os lácteos pomos, que devoram bejos
Do faminto amador ; lisas columnas,
Que sustentam avaras mil segredos ;
Segredos, que. . . Perdoa : eis-me calado.
Volve a meus versos, compassiva amante,
Benignos olhos : para ti voando.
60 o RETRATO DE VÉNUS.
Da crítica mordaz censuras fogem :
Se accolheres o rude offertamento,
Serão meus versos, como tu, divinos.
FIM DO ULTIMO CANTO.
NOTAS
JVotas ao canto primeiro
"Alma origem do ser, germe da vida."
. . . Per te quoniam genus omne animantum
Concipitur, visitquc exortum lumiiia solis;
. . . . . libi suaves dedala tellus
Summittit flores.
LucBET. de Ter. nat. Lib. I,
"Que tia ellijjse invariável rotam fixos."
Todos sabem, que tal é a orbita, que todos os pla-
neta? descrevem.
"Qual és, qual foste, qual te appiíra os mimos
"A arfe engen/w^a."
Artes reperla; sunt, docente natura.
Cic. de kg. Lib. I, 8.
"Como é dado aoè mortaes hellezas tuas."
Platão, fallando da musica, diz : (De republ.) que
se nSo deve conceiliiar polo prazer, nem preferir a
que não tem oiilro objecto, senão o prazer ; mas a
que em si contiver a simillianra da hella natureza.
Esta sentença c perfeilauienle applicavel ú pintura.
64 NOTAS
E lai é d'ha muito a opinião de todos os rhetori-
cos e philologos. (Vid. Arislot., Le Battpux, La-
harpe, Lemercier, ele.) Não nos enganemos porém
com esla— natureza bella. — Nem só aqiiillo que lera
bellas e lindas formas, é bello;e nen) ludoaquillo,
que as tem, o é. Boileau o declara manífeslamen-
le, e o prova :
II nest point de serpent, ni de monstre odieux,
Qui, par Tart imite, ne puisse plaire hux yeux.
D'un piiiceau délicat TartiGce agréable
Du plus affreux object fait un ohject aimable.
BoiLEAO: Ari. Poet. Cbant 3.
'A mestra, a sabia antiguidade o diga."
Qnid virtus, et qnid sapientia possint
Utile proposuit nobis exemplar.
BOBAT. Ep. II, L. I.
. Fabularum cur sit inventum genus,
Brevi docebo. Servitus obnoxia. . . e(c.
PflOEDR. Lib. III, prolog.
"Não : fabula gentil, volve a meus versos.
. . . Et, s'il est vrai, que la fable aulrefois
Sut á tes fiers accents mêler ?a douce voix;
Si sa raain délicate orna ta tête altièie;
Si son orabre embellit las traits de ta lumière,
Avec raoi sur tes pas permets-lui de marclier.
Pour oníer tes attr.iit<, et non pour ies cacher.
Voltaire: Henr. Cliant I.
Cosia egro fanciul porgiamo aspersi
AO RETRATO DK VENtIS 65
Di soavc licor groiii dei vasoi, ele.
Tasso: Gerusalém Canto I, slauz. 3.
" . . . O Ci/prio mot;o, o Teucro. "
Adónis, filho do Cyniras, rei de Chypre {Cyprum)
Anchises, Troiano etc.
Acbises conjugio Yeneris dignale superbo.
ViHG. ^n. Lib. 2.
" -Em quanto nas lidadas officinas. "
Retumbam nas lidadas o/ficinas
Echos gostosos das nascentes almas,
Quo novos corpos a habitar caminham.
FiLiNT. Elys. Ode a Vénus (Tom. ti.)
" C'o cíitre^nccido arniJho n dona hnitam. "
Presontem ja no eslrcmecido arrulho
Os propinquos prazeres.
FiLiMT. Elys. ibíd.
" Porque mpftqnin/ias leis nos vedam harharas
" Tam sxace jiecar. . ."
Si il peccar é si dolcc,
E'l non peccar si necessário; ò Iroppo
Imperfeita natura,
Cho repugni ala leggel
O troppo dura legge,
Cbc la natura oirendi I
GuARiNi : pasl. fid,
i
66 NOTAS
Se este crime é tam doce,
Se tanto fugir delle é necessário ;
Imperfeita parece a natureza,
Que fraca á lei repugna,
Ou lei muito severa,
Que a natureza offende.
Traducç. de Thomé Joaq. Gokzaga
"-E* do amado na dor, sua dor recresce.'*
Che r.esempio dei dolore
É un stimolo maggiore,
Che riehiania a sospirar.
Metastaz : Artass. alto I.
" Dos antigos errores esquecido. "
Errores é usado por Camões nosenlidode — longas,
e desvairadas viagens— ; Vevrt^iva porem, e outros
clássicos de igual nota o tomaram na mesma acce-
pção, em que aqui se toma.
"Com o amante fugir, morrer com elle ?'*
Uma deusa não pôde morrer : me diz ja algum
critico, muito contente do quinau. Assim é. Sr.
critico ; mas no dfilirio das paixões quem se lem-
bra da sua natureza ?— Uma deusa com paixões!
— Os deuses da mylhologia, os numes dos Gregos,
ft Romanos não são o mesmo que o deus do philo-
sopho (digno de tal nome) (|ue, satisfeito de reco-
nhecer a existcucia d'um ente supremo, pára, onde
AO RETRATO DE VÉNUS 67
se lhe acabam as forças, nem prosegue em invesli-
«jaçòes. onde se llie apaj^a a luz da fraca razão ;
nem em})resla á desconhecida cansa das causas os
hahitos, as paixões, a forma, e toda a natureza da
frágil e apoucada humanidade. O orgulho de se
occiíltar a si próprio a sua fraqueza, e de abaixar
aló á sua mesquinhez a idea de deus, por não po-
der subir até á altura d'ella, nasce da nossa vaida-
de, da nossa ignorância e da nossa miséria. Por
isso os iheologos desbocadamente nos pintam, e
nos querem fazer crer em um deus vingativo, ira-
do, e capaz eu) íim de lodos os crimes e vicios,
(|ue elles em sua alma alimentam e nos ([uerem
vender por virtudes.
"... Conmcjo ao carro o sobe."
Subir é nm verbo neutro ; mas é este um idiotis-
mo bem notável da nossa lingiia , usar de taes ver-
bos com força activa, como o fazem os nossos clás-
sicos a cada passo.
" Q"(> lhe s/>/ra dos lábios, dasp/tjii/bis."
Ai|uellp, não sei f|UP,
Que spira não sei como,
Que iiivisivci saliiiido, a visla o \c.
CAHUBá : Ode Cl.
Spirem suaves cheiros
De que se encha este ar lodo.
Ferr. Cuslr. acl. I.
68 NOTAS
" Arde voltar ao suspirado asylo. "
. . . Jamdudum errumpere nubem
Árdehant.
VmoiL. Mneid. L. I. v. 580.
" Disenhos volve "
Esta palavra mui portugueza e antiga (embora de
origem estrangeira) não égallicismo; exprime bem
o — dessein — francez, e tem por si a atictoridade
d'um escriptor bem notável e bem antigo, qual é
Damião de Góes. (v. Chron. de D. ftlan. part. I, cap.
4, e passim.)
" Que iam suave rege a natureza. "
. . . . OmDÍs natura aHimanlium
Te sequitur cupide.
LucRET. Lib. I. V. 15.
" Mal disse ; e o raio mais veloz não ruc."
Este verbo muito sdoptado por Filinto Elysio, e
pelo erudito traduclor da lyrica de Horácio, Antó-
nio Ribeiro dos Santos ; e cujos compostos, e de-
rivados ja tinhamos {correr, decorrer ele.) tem to-
das as qualidades necessárias para a sua naturali-
sacão.
Ao RETRATO DE VEKUS 69
" Da rubra dextra do Tonante irado."
. . . . Et rubente
Dextra sacras jaculatus arces
Terruit urbera.
HoRAT. Od. 2, Lib. I.
"A' VOZ da deusa fende oa ares /iqiiidos. "
. . . . Per liquidum acthera:
Vino. Mn. Lib. I.
" Qnaes ao paiz do mysterioso Etrusco. "
Florença na Toscana, ou antiga Etruria, àilamya-
teriosa em razão dos seus augures.
" A' formosa Bolonha . . . . "
D« Bolonha conta Ganganeli (ou antes Carracioli)
nas suas cartas, que um Portuguez, encantado de
sua belleza, exclamara : «^'ão se devia mostrar se-
não ao domingo.»
'^ E fitando no ceo audazes vistas. "
Cflclam ipsum petímus stuUitia
HoR&T. Lib. II, OJ.
" Aos golpes crebros, incessantes, duros. "
O império Grego acabou era 1448 pela morte do
70 NOTAS AO TIETRATO DE VÉNUS
ullimo Constantino, e entrada de Mahomet II em
Consianlinopola, a cujos muros se limitava, ha
muito, o vasto império Grego e líomano. Os hor-
rores desta tomada de Cp., a immensidade de fa-
mílias que fugiram para a Itália, e principaimenle
para Veneza, Geuova e Florença, o adiatitanieulo,
que este successo causou ás sciencias e artes do
occidente ; são cousas sahidas de lodo o mundo.
(Vid. Auquétil : prccis de Tliist. iiuivers. tom. 4,
pag. 249, etc e Cliateaubriand Gcnie du Christ.
part. 3, iib. í.)
llíotas ao canto segundo
" Vão-lhe na f/ente os offamados c/iefes."
Aquelles sam sós homens que se affamam.
Ferreir. Cari. 6, Liv. I.
"iV^o hello antigo modelando as fjvnça!<."
O verbo modelar está p;eralnienle adoptado mas
que não seja antigo. Assim como de molde se fez,
e deduziu moldar; de modelo se pôde derivar mo-
delar.
" Vem trihu excelsa de Romãos pintorcí^."
Gregos, Romãos, e toda a outra gente.
Ferreir. Cari. 3, Liv. I.
"E quanto inspira Apollo:.."
O fito que neste poema levei, foi simplesmente
celehrar os louvores da pintura, e de seus prin-
cipacs mestres. Sou apaixonado amador desta su-
blime poesia; contento-me de adnnrar; mas nun-
ca dei a menor lapizada. A l<'ilura, a obsf^rvaçào
curiosa, e exacta do pouco. (|ue teniio vislo, me
deram os limitados conhecimentos, que cm tarn
comprida matéria possuo. Ideias vastas, ainda
72 NOTAS
mesmo na liisloria s«') da pintura, apenas pode-
rão ser o fruclo de lonp^os estudos, que a minha
pouca idade, e mais sérias, mas (|U(j ennojosas
occupaçôes prohibem. Declaro pois que, se erro
encontrarem os professores, mui grata e grande
mercê me farão de me avisar; e conhecerão pela
minha docilidade na emenda a pouca presump-
cão do auctor.
"E aos (Varte aiiunifcs desejar com Pedro
"Jinifo ao2>rodigio. . . "
Faeiamus hic iria tabernacula,
Matth. Evang.
"Em cerca aos muros da gentil Pecrf/iénope."
Nápoles, assim ditta antigamente de Parthénope,
uma d.is sereias, que se encheram de desespera-
ção |ior não poder vencer Ulysses com o seu can-
{o. Junto ao tumulo desta simideusa ou nymplia
se edificou uma cidade, que delia tonmu nome.
Destruida esta, se tornou em seu mesmo legar a
edificar outra nova, dita Nápoles {Neajwlis — i>ieamXir
— cidade nova) nome que inda hoje conserva.
"Umas sohrc outras as cidades Jazem."
Pelos fins do século passado se descuhriram nas
visinlianças do Vezuvio as antigas cidades de Her-
culano e Pompeia. A cidade de Portici está quasí
AO RETRATO DE VÉNUS 73
situada sobre a anlíga Pompeia, que, assim como
o Herculano, fora submergida em uma explosão
do Vesúvio.
"E a rodo os cf atro fogo hórridos r/os."
Nas ffrandes irrupções do Vesúvio corre do alto
da montanha um, como rio, de fogo. que dá uma
imagem das fingidas torrentes do sonhado Aver-
no. - Virgilio, que de certo dos volcões de Nápoles
houve a idea do seu Plderjetonle. situou por aquel-
les logares os seus— PluUmia regna. — (Vid. Stael
na Corin.)
''Inda no mesfo 2^(i)U}0 afflidos suam."
.... Sudant in mármore niocsto.
Siu. lai Lib. I.
"Saliente Caravaggio, que exprimiste."
Saliente; porque as figuras de seus quadros tem
um ar de rpíêvo, que engana. E' necessária meto-
nymia, de que uso muitas vezes para carecterizar
os pintores, segundo suas mais distinctas quali-
dades.
"Ja di; firciirrados rris tiTio brilha o fasto."
O simples nofoe de Homa basta para fazer nascer
uma infinidade de ideias grandes e de magestade.
74 NOTAS
Todos os pensamentos sublimes, que a imagina-
ção pôde crear. Iodas as sérias reflexões, que pôde
suscitar a raz3o, todds as memorias augustas,
que a virtude e a humanidad« podem fazer nas-
cer, occorrem e borljiiUiauí associadamente na
alma do honieni peNsador com a simples ideia de
Roma. O exfôrço dos Horacios, a castidade das
Lucrecias, a integridade dos Brutos e Calões, o
patriotismo dos Fabios e Scevolas, a magnanimi-
dade e valor dos Scipiões, a eloquência dos Ci-
ceros. o saber dos Pliuios, a liberalidade dos Au-
gustos, a grandeza dos Trajannos, a bumanidade
dosTilos, tudo se recorda com a memoria illus-
tre da cidade por excellencia.
Imagine-se um bomem cbeio de toda a magni-
ficência destas ideias, possuído de respeito e ve-
neração, ao entrar em Roma. — Ruinas. sepulcros,
templo^ derrocados, estradas solitárias, ruas de-
sertas... são os miseráveis objectos, que lhe fe-
rem os olhos, mui de longe preparados para ad-
mirar a senhora do universo. De espaço a espaço
descobre (é verdade) um templo magnifico, um
grande palácio; mas breve se desvanece este vis-
lumbre de grandeza, e stibito se esvai a nascen-
te esperança de encontrar a Roma de Augusto.
Estes palácios, estes templos, que se elevam do
meio das choupanas (habitação da indiíieucia e
da fome) carregados d'ornatos, de sobejo embel-
lezados, serão acaso aquelles esmeros de arcbile-
tura grande e magestosa, suberba e varonil dos
edificios Latinos? Poderá algum d'elles similhar-
se ao Foro, ao Palácio, ao Amphilhealro? Descu-
AO RETRATO DE VÉNUS. 75
brir-sc-lia n'al2uma destas modernas praças o me-
nor vestisio dos /íosíros/ O Capitólio, o terrível,
o venerando C.ipilolio. onde se julgava dos des-
tinos das nações, onde os reis curvavam os scep-
Iros, e depiiniiam os diademas; d'onde sabiam os
irrevogáveis e tremendos decretos, que dispn-
iiliam da sorte dos povos, e legislavam ao uni-
verso, que é feito d'eíle? — O solicito viajante ain-
da o descobre; o seu cicerone (guia) ainda lhe
mostra o logar d'elie. — E será este?— Dilíerente
estrada conduz ao cimo do monte; o palácio do
senador, alguns restos de quebradas estatuas, de
desGgurados relevos são todas as riquezas, todos
os tro|)heos. todos os despojos, que ornam o an-
tigo alcaçar úo mundo.
Confuso, bumilbado. o viajante não se atreve ja
a encarar nenhum editicio. — «Os habitantes ao
menos (diz elle) talvez conservem alguma cousa
ainda de Romanos. Tantas virtudes, tanta gran-
deza não podiam extinguir-se de todo.» — Um ban-
do de miseráveis, uma plebe indigente, vil e sem
costumes, são os successores do povo rei; uma
corte eiteminada, e entregue aos deleites do ócio
occupa (» logar dos Brutos e Catões; declamado-
res sem gòslo, com alíectadas e gnindiídas pbra-
ses íi|ue 011 não entendem ou níio cremi f.izpm re-
tenir aquelle mesmo ar, que ouviu os eloquen-
tes e numerosos sons de Cícero e Marco Antó-
nio; assucarados trovadores infectam com os seus
—concelli - a degradada lyra de Virgilio e Horá-
cio; os Sei piões, os Eiuilios, os grandes generaes,
as invcucivcis tropas da iriumpliante republica
7b NOTAS
s3o substituídas por um bando de assoldados
Suissos, cujas grandes proesas e valor, cujos
puerreiros exforços são o fazer a guarda do papa.
Em vez do au?usto e venerando senado, um
ajuntamento (l'homens ambiciosos, insaciáveis
d'ouro, regem despoticamente; nâo os direitos
das nações, e deveres dos reis e povos pelas in-
variáveis leis da justiça, como os antigos conscrip-
tos; mas o corpo invalido da igreja por elles ar-
ruinada e depravada, levando simplesmente o
fito em pescar para a barca do humilde S. Pe-
dro as riquezas das nações com o sagrado anzol
das indulgências, relíquias e breves, — «Roma!
oh Roma! (exclamará o contristado viajante) tu
ja nSo existes; a tua liberdade expirou em Catão,
e tu com ella! A liberdade te conservava as vir-
tudes, que, mais que tuas façanhas, te consti-
tuíram no império do orbe. Perdeste-a; e desde
então caminhaste sempre com gigantescos passos
ao abysrao de miséria e vileza, em que jazes se-
pultada para eterno exemplo do universo.
E com effeito, lai é a sorte de quasi todas as na-
ções! Florecem, reinam em quanto a liberdade,
ou a larva delia subsiste; apenas se eleva a lyran-
nia. caí de rojo com a liberdade o amor das vir-
tudes; a servidão embrutece o homem; a socieda-
de se muda em um rebanho de escravos; e a mi-
séria succede á opulência. Assim cahiu Roma, as-
sim Sparta, assim Holianda, assim tantas outras.
Que exemplos para os tyrannos, e que terrível
escarmento para os povos! Miseráveis déspotas,
embreve estendereis o sceptro de ferro sobre
AO RETRATO DE VÉNUS 77
montões de ruínas. Os Vândalos, os Godos, os
Árabes não se acabaram ainda; e vós os chamais
com tanta anciã! '
' É fácil de ver (juo esta nola foi escri|»la anlcs do dia 21
d Agosto. Felizmente ja se podem liatlar estes assumptos com
meãos atrabilis.
]¥o(»s ao cauto terceiro
"" Enfrm as iras de Nejytuno indómito. "
Império premit, et vincli?, et cárcere froenat.
ViRG. Mn. Lib. I, V. 34.
" Ve d'Ad)'ia o golpho tempestuoso efero. "
K o golpho He Veneza, aniigamente chamado de
Adria, oii Adrialico, d'uma cidade desle nome.
" Alli, fugindo aos clamorosos brados. "
No meio do século V, foram destruidas por Attila,
rei dos Hunos, as cidades de Aqiiilea, Altino,
Concórdia. Opitergo e Pádua, todas visinhas ao
golpho, então chamado Adriático. Os iiabifantes
destas cidades, fugindo ao furor irresislivel, e cruel
ferocidade dos. bárbaros, se foram refugiar nas pe-
íjiienas e desertas ilhotas do mar Adriático, e fun-
daram assim o conjeço de Veneza. (Vid. AnquóiU,
Millol, e la Istoria de Vinegia per *")
" Empório foi depois do rico orieide. "
Antes que ha índia fosse descuherla pelos Porlngue-
zes, ha tnayor parte da especiaria, droga, e pedraria
se vacava pelo mar roxo, donde ya ler d cidade Da-
XOTAS AO RETRATO DE VÉNUS 70
Icxandria, e dalli ha compravâo lios Venezianos, que
a espalhaavào 2)ela Europa.
Castanheda Lib. I, cap. i.
" F do alado Leão tremeu (jran tempo. "
Um leão com azas era o timbre, ou armas da re-
publica, ou senboria de Veneza.
'^ E negue a esteira das cortadas omJas. "
Eakira. ou esteiro, que assim, e iiidiíTerentemente
escrevem e usam os nossos clássicos, éa(|uelle sul-
co, que os navio? vão fazendo e deixando depoz si
nas aguas, e que bom espaço se conserva depois.
Maior é talvez o numero das pessoas que sshem a
simpjicissima razfio pbysica deste natural pbeno-
mcno. do que o das que o nome portuguez lhe
conhecem.
" Foi a jjatria d'heroes,foi mãe de sábios. "
• . . . Air Adria in seno
Um popolo d'croi saiiuna .
Matbst. Ezio : alto I.
" Adr tintes gentis, oh ! vinde a^fre}ifes. "
Assim como de Tugns Latino fez ílamOes Tágides ;
e outros do Douro— Durms — Ihirindes «Uc. ; í|uení
me impede a mim, que de Adria, fará Adriades?
80 NOTAS
" Qual Verona folgou com seu Catullo."
. . . . Gaudel Verona Catullo,
Pelignae d içar gloria gentis ego.
OviD. Trist.
"... Mil graças mil encantos
" Sem mysterio, sem véo te deu, lhe dera. "
Assim como Catullo, Paulo Veronese é notado de
pouco honesto. Todos sabem a lascívia e volnptno-
sidade (los versos do primeiro: os quatlros do se-
gundo tem uma poesia deste género bem mais ex-
pressiva.
^' Em que IJie j)eze ú inveja, e seus furores. "
Eu, que apezar da inveja, e seus furores
Aos astros levo o nome Lusitano.
Elpi«. I\'onacr. Od. a Vaso. da Gani.
Em que lhe péze, e em que lhe pez são ph rases dos
melhores clássicos : mil exemplos, por um, pudera
appresentar ; mas citarei o que tenho aqui mais á
mão, que é o P. Vieira {Vozes baudosas : voz histor.)
" Scena outr^ora infeliz da gloria Franca. "
As províncias Flamengas foram um dos principaes
theatros das ambiciosas guerras de Luiz xiv com
a Hollanda. (Vid. Voltaiue Siécl. de Louis xiv.)
AO RETRATO DE VÉNUS 81
"Lhe bafejades dicinal csjJtrito. "
Quasi divino qaodam spirilu inflari.
CicBB. pro Arch. §. 8.
" JE o veneno lethal lhe infunde n^alma. "
Sic effata, facem juveni conjecit, el atro
Lumine íumanlis Úxit sub peclore tajdas.
YiRG. iEn.Liv. VIII, V. 56, e seg.
" Quam hcJIo é na expressão Vaén correcto. "
Porventura não serão os verdadeiros accentos da
pronúncia nacional, os qne ponho aqui neste e nos
outros nomes dos pintores ílamenfíos : piiz-lhe os
necessários para o rythmo, que é a minha (ibri^a-
ção ; dos outros não sei, pois qne ifjnoro a tal lin-
gua; no que, segundo creio, não perderei nada.
" Difficcis nomes d' estremados mestres. "
E hem difíiceis, com eíFeito. para accomodar ao
verso com os seus— /c/; — rr — etc: não são daquelies,
de que Horácio diz :
Verba loquor socianda cbordis.
HoBAT. Lib. II, Od.
" Do mestre a obra maior, Waudiek insigne. '*
Voltaire diz algures, fallando de Tasso, que, se é
82 NOTAS
verdade o que vulgarmente se diz , que os Lusía-
das, e seu auctor formaram a Gerusalera do pri-
meiro, fora esta a mellior obra de Camões. INão
estou absolutamente por este espirituoso dito de Vol-
taire; mas com justiça o appliquei a llubens, e
Wandick.
" E, em vez d' um Fábio tardador. . . "
Assim traduziu Filinto Elys. o Fahius cunlaclor dos
Latinos. (Vid. Filint. Ode d Liberdade.)
"... Ja no Sena ovante. "
Sobre a margem feliz do rio ovante,
Donde arrancando omnipotência aos fados
Impoz tropel d'heroes silencio ao globo.
BocAG. Od. a Filint.
" Qite do Mcschacebeu vingando as margens, "
Este é o verdadeiro nome do célebre rio da Luisia-
íia , na America Septentrional, chamado vulgar-
mente Mississipi. (Vid. Chateaubriand : Génie du
Christ. Part. IIÍ, Livr. 5.)
" Co Euripides Francez disputa ainda. "
Racine bem se pôde assim chamar, não somente
por suas absolutas e eminentes qualidades ; mas
AO RETRATO DE VÉNUS 83
pela relativa, e mui particular da similhança dos
ingenhos, e feliz imitação de Racine. (Vid. Lahar-
PE : Cours de Litlcr. ; Lemekcier : ibid.; e o P. Bru-
MOY no Theatr. dos Gregos.)
" Ao ver nas murchas, csmyrradas faces. "
J'ai langui, j'ai séchc dans Ics (eux, dans les larmes.
Raciw. Phoedr. Act. II.
Dcsfalleci, murchei no ardor, no pranto.
Trad. ms. do Sr. H. E.
*' Bhim criminoso amor violência efoyo. "
Quaod je suis toule en ícu, vous neles quo de glacc.
Phoedr. Act. II.
" Os manes foUjam de Rolliii, Voltaire. "
Le-Gros é pintor histórico; e Iloilin c Voltaire fo-
ram liistoriúgraplios francezes.
IVotas ao eaiito «iiiartc»
*'Onde a voz de Bocage, a voz de Gomes."
Outros quaesquer poetas, e de mais nomeada por-
ventura, pudera eu citar; mas quiz, quanto em
mim era , e o permitlia o assumpto e a obra,
prestar homenagem a dous ingenhos, que hon-
raram a pátria e a liugua; e dos quaes o pri-
meiro depois d'uma fama gigantesca, e maior
que seu merecimento, passou a ser enxovalhado
por quanto Mevio eBaviosahe dizer — Traduziu,
traduziu, traduziu tudo — como se um iraductor
como Bocage não fosse um poeta de muito mere-
cimento, e de muito maior, que tantos originalis-
tas de nome (de nome sim; que realmente deus
sabe o que é); como se Pope, Dryden, Annibal
Caro, JoAo Franco Barreto, e tantos outros illus-
tres traductores não figurassem mais na repu-
blica litteraria que tantos épicos modernos.... Eu
não sou dos apaixonados do privilegio exclusivo,
(|ue ha certo tempo obtiveram entre nós as tra-
ducçòes. Uma nação (|ue assim obra por espirito
de priguiça, ou menos-preço de si própria, em
vez de enriquecer Sua lilteratura, empobrece-a
e perde-a. De J. B. Gomes e da sua Castro tan-
to mal como bem se tem dito. Não a dou por
uma tragedia perfeitamente regular, não a com-
paro ás grandes peças de Bacinc e Alfieri; mas
AO RETRATO DE VÉNUS 85
sei que tem muitas bellezas, e que n'um thea-
tro tam pobre, como o nosso, é digna de muita e
muita estimação. Para criticar a Castro de Go-
mes é preciso encbugar muilas vezes as lagrimas,
que ella excita continuamente.
''Calcando a juba dos LcÕes (irypha.nhos^,
"Parando ás Agmas efe."
Revoluções de 1640 e 1808.
" . . . . Ah f SC aura amiga
" Continua a soprar. . . "
Em Roma, assim como na Grécia, se formariam
Zeuxis e Apelles, se os liomanos dessem a Fábio
as bonras, que seus talentos mereciam. Diz Cí-
cero algures nas QueslOes Tusculanas.
"Inviolável lei um teu desejo."
JVaç5o nenhuma (diz Florian no avant propôs de
Sancho) possue a arte d amar, como a portugueza.
, "Os feitos dignos de perenne historia."
. as cousas ....
Que merecerem tor eterna historia.
Cahõbs Lvs. Caat. 7.
86 NOTAS
"Sensiveis corações, vinde, espclhar-ros etc."
Vidi ssepius inscriptionis imaginem, et sine lacrymis tran-
sire non potui.
S. GnEGOR. II Coneil. Nicen. act. 40.
"Prazorfi do chridão, doçuras d'alma."
Le nouveau testament cbange le gcnie de la peinlure. Sans
lui rien ôler de sa sublimilé, il iui a donné plus de teiidrosse.
Gbateaubrund Gen. du Clir, part. III, Livr. 1, cap. 4.
'^Portento d'cjrprcsmo, rira faísca
"I>o lume eterno . . . "
Les peintres. . famille sublime qae le souflle de Tesprilravit au
dessus de Ihomme.
Cháieaubriand ibid.
"Fastoso monumento d'aUa Ibéria."
Resta ainda resolver o grande problema: Se a des-
cuberta da America foi ulil ou prejudicial d Euro-
pa; o qual, emqiianto a mim, depende d'outro
mais genérico: Se as conquistas, principalmente
longínquas, podem ser úteis a uma nação. Não me
atrevo a resolver nem um nem outro. As theo-
rias falham quasi sempre em politica, bem como
em moral. So noto imparcialmente, que a íles-
panba foi poderosíssima nação antes do XVI se-
\
AO RETRATO Ml VÉNUS 87
cnlo; que Portugal, se nos tempos de D. Manoel
e João III íloreceu, e deu brado na Europa e no
mundo; depois não fez mais que luctar contra
innumeraveis desgraças: que não tivemos mais
um João lí; e que as conquistas d'Asia e Egypto
deram por Icrra com o império Romano. — Pro-
vêm isto das descubertas em si? — Provêm do
uso que d'ellas se fez? — Continua a minha igno-
rância.—Os monarchas liespanhoes fundiram no
Escurial. e n'outras cousas d'esta ordem, as im-
mensas riquezas das índias occidentaes. ganhas á
custa de tantos crimes, barbaridades, irreligião,
fanatismo e sacrilégios de Corlêz e de mil ou-
tros. Diminuiu no continente hespanhol a popu-
lação; não &e fez o menor caso da agricultura; o
commercio não foi senão passivo; e, depois d'um
breve esplendor, a suberha Ilespanha cahiu na
miséria d'uma nação pobre e falta de tudo, a pe-
zar de toda a sua prata.— E que diremos de nós?
— O mesmo, com alguma differença para peior.
Todo o homem, que pensa, sabe o que eu pode-
ria dizer neste artigo; como para estes só escre-
vo, elles meenlendom; e eu, com o meu silencio,
me poupo ás criticas da ignorância e da sórdida
adulação. {E' bem facilr de ver qne ésía nola foi
igualmente escripla antes do dia !2í d' Agosto.)
^'Tcrrafcrtil d'he)'oc'S, solo fecumlo,
*'Sahr / . . . "
Salve magna parcos fruguru . • icllus,
Magoa virum.
Vino. Georg. Lib.
bS NOTAS
"O mmoso sendal, Ja pouco avaro."
O véo dos roxos lirios pouco avaro.
C&MÕES Lus. Cant. 9.
Diripui tunicam, nec multam rara noccbal.
OviD. Elcg. iib. 1, Eleg. S.
"Que divinos encantos não descobretn etcJ*
E tuto ciò, cbe piii la vista alletti.
Tas80 Gerusal. Cant. XV, st. 59.
"Sonhada, j^ytliagorica harmonia."
A hnrmonía das spheras é um dos sonhos de Py-
tliiigoras. Póde-se ver a satyra galantíssima des-
tas e outras philosophicas extravagâncias no ce-
lebre poenaa alIem5o — Musarion — de Wielland:
Canto II.
"Arrulharam d' amor meigas pombinhas."
Presentem ja no estremecido arrulho
Os propinquos prazeres .
FiLiNT. Elys. Ode a Yenus. (Tom. 5.)
"Boseos descurvam, se arredondam braços."
NV®* ^' hpiyvtia (pitm poo oo áxtXcf iír.
HoMER, Odyssea B. (Lib. II.)
AO RETRATO DE VÉNUS 89
*' Ondeiam n'ah'a frente as tranças d'evano."
Os cabellos e olhos pretos eram os mais estima-
dos dos Romanos— iV/gra oculis, nigraque capillis:
Horat. — Se é mau gôslo, confesso que o tenho,
Quem amar mais os louros, não tem senão di-
zer:
«Ondeiam n'alva frente as tranças (l'ouro."
Assim, eu, e o leitor ficamos ambos satisfeitos.
De mais, até lhe posso ensinar um texto, com
que provar o seu gosto. E' a auctoridade de Pe-
trarca, que nao e peca neste ponto:
L'auro, e i topazj ai sol sopra la neve
YincoD le biondc cbiorae presso agli occhi.
Petrarca, rim. Part. I. cans. 9.
"Deste; que bem o sei ..."
Assim é de crer piamente; e, comquanlo o não
digam os DD., eu o penso. O leitor pôde ficar
pelo que quizer — salva fide — pois estas matérias
fião de mylhologia, e não de theologia.
"Ja j)or milagre de Cyprina é j)rompta."
Manca i! parlar; di 7Ívo allro non chiedi.
Ne nuança queslo ancor, se agii occhi credi.
Tass. GeTus. Cant. XYI.
90 NOTAS AO RETRATO DE VÉNUS
"E novos PygmaliÕes por elle ancdam.^*
Pigmalion, quanto Iodar ti dei
Deír imagine tua, se mille volte
Wavesti qucl, eh' io sol' unavorrei.
Petrarca, rime, Part I, sonelt. S8.
"Admira ojoren a helleza ..."
Faria, pouco mais ou menos, as mesmas extra-
vagâncias com o retrato, que o amante de Júlia
com o da sua bella.
(Vid. Nouvell. Iléloi. Part. II, Lelt. 22.
"Os lacfcos pomos ..."
Le pome acccrbe, e crude . . .
Tass. Gerus. Cant. XVI.
"Serão meus versos, como tu, divinos.
Me juvat in grcemio doctse legisse puellae,
Auribus et puris dieta probasse mea:
Haec si conlingant . .
. . . Domina judice, tutus ero.
Propert, Eleg.
ENSAIO
Wi â ilIMH Di
ENSAIO
SOBRE
A HISTORIA DA PINTURA
o OBJECTO principal deste ensaio é a historia
da pintura. A maior parte do meu poema será
inintolligivel sem elle a todo o leitor, que não ti-
ver feito um comprido estudo nesta matéria.
Menos porem bastaria talvez para a intelligencia
do opúsculo: fui mais longo e extenso, princi-
palmente na historia da pintura portugueza,
porque julguei útil dar á minha nação uma coi-
sa que ella não tinha, a hiographia critica dos
seus pintores. Sobejo c enfadonho trabalho mo
deu: oxalá que approveite! liem pago fico, se,
entre todos os leitores , deparar com dous, em
quem faça impressão o amor de boas-artes, e da
pátria, que toda a obra respira.
94 ENSAIO SOURE A HISTORIA
CAPITULO I
Dos Pintores Gregos e Romanos.
O numero dos pintores Gregos e ainda Ro-
manos, cujos nomes chegaram até nós, é grande,
mas o d'aquenes, cujas obras ou maneiras co-
nhecemos, é bem diminuto. O respeito da an-
tiguidade com tudo no-los faz admirar, por
ventura mais, do que o seu merecimonto exige.
Os quadros modernamente descobertos nas cin-
zas do Herculano e Pompeia , alguns frescos
conservados nas ruinas de Roma e outras cida-
des de Itália tem subejamente mostrado aos en-
tendedores imparciaes, que a pintura dos anti-
gos, ainda mesmo no seu maior auge, não pode
soíFrer compararão com o menor quadro dos
Rafados, dos Corrcgios, dos Caracóis, nem mes-
mo d'outros pintores de segunda ordem das mo-
dernas escholas. Duas coisas principalmente fal-
tavam aos antigos pintores. Uma, as tintas, cu-
jas bellas composições, descobertas em mui pos-
teriores séculos, absolutamente ignoravam; não
conhecendo, senão us terras de côr, e os mctacs
DA PINTURA 95
calcinados; faltando-lhes aquellas cores, que dão
o tom médio, entro a luz o a sombra, que for-
mam o matizado e assombrado, e exprimem a
natureza tal qual ella é, e com toda a sua for-
mosura: outra, o conhecimento das leis da pros-
pectiva, como bem mostram todas as suas obras,
que nos restam: defeito este, que salta aos olhos,
e de impossivel disfarce. Só aquelle cego fana-
tismo, que faz cançar os pedantes no estudo do
Hebraico e Syriaco c d'outras inúteis antigua-
Ihas, pode achar nos quadros Gregos e Roma-
nos bellezas, niTo digo superiores, mas iguaes ás
das magnificas pinturas do bom tempo das mo-
dernas escholas, e ainda mesmo das de hoje; com
quanto a pintura, á excepção da franceza, bas-
tante se approxima da decadência pelo espirito
servil, mania das copias e mal entendida imita-
ção.
CAPITULO II
Restauração da inntura na Itália.
Cimabúo, nascido era 12'i(), ' e morto cm
' iMuncli o faz nascido cm 1240—10 annos depois.
96 ENSAIO SOBRE A HISRORIA
1300, é conhecido em toda a Europa pelo hon-
roso titulo de restaurador da pintura. Ouviu os
principios de sua arte d'alguns pintores Gregos
vindos a Florença, que ainda conservavam res-
tos do hom stylo da nação: aperfeiçoou-se de-
pois com o estudo, e imitação dos poucos mo-
delos antigos, que então appareciam na Itália.
Preciosas descobertas, que se foram pelo andar
dos tempos fazendo, pouco a pouco desterraram
a barbaridade, que, entre as outras boas-artes,
tinha também sepultado a pintura. As estatuas,
os quadros, os relevos arrancados das cinzas e
ruinas dos famosos monumentos romanos, quan-
tos mestres, quantos primores d'arte, d'archi-
tectura, sculptura e pintura não deram á Euro-
pa! Miguel Angelo confessava dever toda a sua
sciencia ao assiduo estudo, que por toda a vida
fizera no tronco ' de Hercules, no griqio '^ de
Laocoon, no Apello » do Belveder, e n'outros
modelos da bella antiguidade.
Com quanto porem a pintura e mais boas-
' Famosos restos da estatua de Apoloi)io Atheniense.
' Obra de três escultores Rhodios Athenodoro, Agesandro
e Polidoro.
' Estatua bem conhecida.
DA PIJfTURA 97
artes não possam propriamente dizer-se restaura-
das antes do século de Leão X, que foi o de Ra-
phael, de Miguel Angelo, de Leonardo da Vin-
ci, etc; Cimabúe comtudo foi o pae da pintura
moderna; suas obras espalhadas pela ItaHa reno-
varam o bom gosto, e abriram os alicerces, so-
bre que se havia depois formar o grande edificio
das escholas Florentina, Romana, etc.
Todavia, em abono da verdade devemos con-
fessar, que, posto que Cimabúe possua com ra-
zão o titulo de restaurador da pintura; outros
antes d'elle houve, que se o não excederam, lhe
não foram ao menos inferiores. De Guido de
Senna, pintor do XIII século existe em uma
igreja de sua pátria um quadro da Virgem, tão
bom como os melhores de Cimabúe: o seu dese-
nho é de bom stylo, e ainda fresco de cores, ape-
zar do ser feito no principio do mesmo século,
como indica a inscripção, que se Ic por baixo.
Me Guido de Sonnis
Diebus depinxit amenis;
Quem Christus lenis
Nullis nolit agcre penis.
A. D. MCCXXI.
98 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
Ora, a data deste quadro é anterior ao nasci-
mento de Cimabi'ie, afíirmado por uns em 1230,
e por outros (como Pruncti) em 1240; e por
isso os Semienses querem disputar a Cimabúe
o titulo, quo a elle e sua pátria, Florença, tan-
to ennobrece. Mas debalde; porque de Guido
não se conhece outra obra; e de Cimabúe exis-
tem ainda muitas, cuja nomeada o faz hoje
mesmo celebre e conhecido, e que n'aqucllc
tempo serviam de modelo aos seus discipulos.
Do principio também deste século XIII se
conservava em Luca um antiquissimo quadro
de certo pintor d'aquella cidade: representava
S. Francisco d'Assis. Seu deseuho é correcto,
posto que um pouco rude; o ar-de-cabeça tem
muita expressão, e as mãos são bem tractadas. '
Deste, e d'outros alguns monumentos desta
épocha, devemos concluir: que Cimabúe não
foi o primeiro que na Itália começou a pintar
com menos defeitos: mas nunca se poderá asse-
' Advirto, e fique advertido por todo o decurso deste en-
saio, que quando digo, que este, ou aquelle quadro, ou es-
tatua se acham em Roma, Florença, ou outra qualquer cidade;
deve sempre entender-se antes das ultimas revoluções da Eu-
ropa.
DA PINTURA 99
verar, que elle, e sua escliola (a Florentina) não
foram os restauradores e pães da moderna pin-
tura.
O que Pruneti diz a este respeito não destrói
os meus principios.
Jamais as sciencias, e artes foram de repente
á perfeição. Antes de Sócrates e Platão existiu
Pythagoras e outros philosophos, que lhe abri-
ram o caminho; antes de Hippocrates, Avicena
e Averroes ' houve Esculápio, e outros mezi-
nheiros; antes de Homero, Hesiodo e Virgílio,
havia Orphcus e Linos; Eschylo, Sóphocles,
Euripides e Aristophanes foram precedidos por
Thespis; os erros de Descartes allumiaram New-
ton; Mairet, Routrou e Cornoille formaram Ra-
cine e Voltaire; e entre nós finalmente, antes de
Camões, Ferreira e Bernardes houve Gil Vi-
cente, Bernardim e outros muitos, quo lhes
franquearam a carreira poética. Agora quasi era
nossos dias, na brilhante restauração das lettras,
• Nilo confundo Avicena, e Averroes com Oippocrates: bem
sei a distancia de tempos e merecimentos. Faço porem esta
advertência, porque n<1n leia isto aljjum Esculápio cnlhusias-
ta, que grite: au tcandalc.
100 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
OS Elpinos, "OS Filintos, os Gomes e os Bocages
não apyiareceram de repente.
Assim gradualmente foram crescendo os pin-
tores na Itália, e adiantando-se a perfeição de
suas obras. Nos últimos parocismos do império
Grego uma infinidade de professores vinham
procurar entre os Italianos um asylo mais se-
guro, e uma pátria menos despótica: e quando
finalmente em 1448, tomada Constantinopola
por Mahometh II, se extinguiu de todo aquel-
le phantasma colossal, maior numero ainda se
espalhou por todo o meio-dia da Europa, e con-
correu para a perfeição da pintura moderna; as-
sim como a alluvião de theologos Gregos con-
correu, e muito, para a perpetuação das barba-
ridades scholasticas, e atrazo das sciencias. São
deste tempo — Gioto, cujas obras se acham ainda
em Florença, Piza e Roma nascido em 1276,
e morto em 1336; foi discipulo de Cimabúe, e
contribuiu muito para a perfeição da arte pelo
bem-ordenado da sua pintura, e boa disposição
de figuras.
Masaccio, nasc. em 1417, e mort. em 1521,
seria o verdadeiro e completo restaurador da
DA PINTURA 101
pintura, se vivesse mais tempo: o pouco que
d'elle resta, acha-se em Florença.
Luca Signorelli di Cortona n. em 1449, e m.
em 1521; foi celebre pela precisão de desenho, e
belleza de composição, todavia fraco no colorido.
Notam- se bem estas propriedades nos seus qua-
dros, que ainda se encontram no Loreto e Ro-
ma. E este é o ultimo pintor de fama anterior a
Leonardo da Vinci, que depois, com Miguel An-
gelo, foi julgado fundador da eschola Florentina.
CAPITULO III
Da Eschola. Romana
Apezar de que a eschola Florentina com ra-
zão se possa chamar a mais antiga, pois que
seus alluranos se começam a contar de-sde Cima-
búe; com tudo a Romana foi, e sempre será
como a primeira olhada, não só em favor e res-
peito de seu illustre chefe Raphael Sanzio de
Urbino; mas pela bellesa de desenho, elegância
do composição, verdade de expressão, e sobre
tudo intelligencia de attitudes, que a caracte-
rizam e sobreelevam a todas as outras.
102 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
As descobertas dos grandes monumentos de
pintura e sculptura, que os zelosos cuidados de
alguns papas, e outras principaes pessoas de
Itália desenterravam todos os dias das ruinas
da antiga E-oma, formaram o gosto, dos mestres
desta eschola, moldando-o no antigo. E tal é a
caracteristica das suas producçÕes. Os rasgos
mestres d'aquelles preciosos antigos lhes inspira-
ram uma magestosa solemnidade de expressão
nas grandes ideias que concebiam; e esta mira,
que levaram sempre os pintores Romanos, lhes
fez desprezar alguma coisa o colorido: defeito,
que bem se esquece por outras, e tão brilhantes
qualidades.
Para tecer o elogio da eschola Romana basta
nomear Raphael. Que nome nos fastos das boas-
artes! Se VirgiHo e Homero não são mais cele-
bres, que Zeuxis e Apelles; a glória de Raphael
quanto é superior á de Tasso e Ariosto! líao me
agrada aquella sentença dos antigos:
— Ut pictura poesis—
A poesia será como a phitura
(Bocage.)
DA. PINTURA 103
A poesia (attrevi-me a pensá-lo assim, e se a
novidade não agradar, nem por isso me desdigo)
é uma só: aos poetas-pintores, seus primeiros fi-
lhos é dado tratta-la viva: os poetas- versejado-
res só com o véo do mysterio coberta a podem
ver e seguir. A poesia animada da pintura ex-
prime a natureza toda; a dos versos porem, me-
nos viva e exacta, falha em muita parte na ex-
pressão das suas bellezas. Que poeta nos pode-
ria dar uma ideia de Rómulo como iJavid no seu
quadro das Sabinas? Que versos nos poderiam
fazer imaginar a Divindade como a transfigura-
ção de Raphael? Que poema nos faria conceber
a magestade d' um Deiui Crmdor dando forma ao
cáhos, e ser ao universo, como a pintura de Mi-
guel Angelo ?
Estas reflexões sobre o paralollo das duas es-
pécies de poesia são minhas; por taes as dou, e
me encarrego do mal, ou bem, que d'ellas se pen-
sar. Por ventura não foi este o conceito dos an-
tigos; mas a arte mui atrazada entre cUes não es-
tava em propoi ção da nossa; os gregos não ti-
nham, como nós, Homeros em pintura. Im-
mensas vantagens, como já notamos, lhes levam
os modernos pintores; a que de mais accresee o
104 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
nobre invento da gravura, que (bem como a im-
prensa nos facilita o trato dos mais antigos
poetas do mundo) transmitte á posteridade e
nações remotas os esmeros da pintura, e ainda
da scultura. Os nossos Appelles não podem te-
mer o ser conhecidos pelos vindouros só de nome
e fama, como o é por nós o dos antigos; a es-
tampa lhes assegura o conhecimento àe facto no
mais remoto porvir, e mais longes chmas.
Mui fértil foi a eschola Romana; grande é o
numero dos seus pintores: daremos de cada um
d'elles uma brevissima, porem exacta noticia:
desta maneira terá a mocidade applicada, como
em synopse, e sem o trabalho enfadonho de re-
volver muitos e antigos cartapacios, a historia
completa desta e das outras escholas, em que
seguiremos o mesmo methodo.
Século XVI
Rafaelo Sanzio d'Urbino, nascido em 1483,
morto em 1420, facilmente julgado o príncipe
dos pintores: nenhum (se não for o moderno
francez, Mr. David) poderá rivaHza-lo. O bri-
lhante colorido de Ticiano, a belleza das tintas
DA PINTURA 105
de Corregio, a gicantesca altivez de Miguel An-
gelo não fazem a menor sombra á gloria do gran-
de Romano. Raphael levou a sua arte ao grau
de perfeição, de que é capaz a humanidade. Per-
tender dar uma ideia d'elle é tentar o impossi-
vel: o estudo das suas producçÕes é o único meio
de o conhecer. Elle ainda vive repartido por seus
quadros, um dos mais bellos e ricos ornamentos
das cidades que os possuem. Digam-o os tem-
plos de Roma, as casas dos principes, o Vaticano
(onde existe a sua famosa Bíblia), e sobre tudo a
igreja de S. P tetro in monte situada no Janiculo;
onde se conserva o primeiro quadro do universo,
a única producção da arte, que excede a nature-
za, a maior honra do ingenho humano, a melhor
obra de Raphael, a sua Transfiguração. Tal foi
um dos primeiros homens do mundo, de quem (e
com mais razão por ventura, do que Horácio di-
zia de si) podemos asseverar, que não morreu
todo: Non onínin moriar; ou como ja se disse
em portugucz; O sábio não rai todo á sepultura.
A belleza principal das suas obras é o desenho
e attitudos.
Júlio Romano (Giulio Pippi) n. 1492, m.
1546; foi discipulo de Raphael. Em suas obras,
106 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
que principalmente se acham em Roma, se ve
que o caracter d'este pintor era a fôrça e ar-
dimento: o seu collorido é obscuro, mas o dese-
5iho admirável.
João Francisco Penni (il Fattore) n. em 1488,
m. em 1528 ; trabalhou quasi sempre debaixo
das vistas, e pelos desenhos de Baphael, seu
mestre. Suas obras principaes são as gallerias
do Vaticano.
PoHdoro de Caravaggio n. 1495, m. 1543; foi
fcom colorista, correcto no desenho, nobre e
fero nos ares de cabeça.
José fíibera, hespanhol, e por isso dito il
Spagnoleto, nasc. em Valença em 1589, e m.
«m 1656. O seu caracter é o vigor e expres-
são : todas as figuras austeras e carregadas,
prophetas, philosophos, tudo quanto exige um
pincel forte e vigoroso, sahia de suas mãos,
como das da natureza. Suas obras principaes
existiam na cartuxa de Nápoles; e entre ellas,
a mais conhecida é a coUecção dos prophetas.
Perrino dei Vague Buonacorsi n. 1500, m.
1547; foi tão feliz imitador do stylo de P^aphael,
seu mestre, que muitos de seus quadros passam
por d'elle.
DA PINTURA 107
Innocenzio d'Imola n..., m...; desenhou se-
gundo a maneira de Raphael, mas coloriu muito
bem. Seus quadros são preciosos e raros.
Giulio Clovio n. 1498, m. 1578. Trabalhou
sempre em miniatura, e apprendeu o desenho
com seu mestre, Júlio Romano.
Federico Barrocci n. 1Õ28, m. 1612. Suas ex-
cellentes obras, que se acham em Milão, Bolo-
nha, Pesaro, Loreto e Roma, se distinguem pela
belleza do colorido (pouco vulgar na sua escho-
ia) e que assemelha ao de Corregio, grande ex-
actidão de desenho, muita seiencia de luz, e gra-
ciosos ares de cabeça.
Thadco, e Federico Zucaro, irmãos: morto o
primeiro era 1566; o segundo em 1609. Thadeo
tinha grande ingenho e bom colorido; Federico,
menos hábil, acabou quasi todas as obras, que
seu irmão começara. Acham-se em Veneza,
Tivoli e Roma.
António Tcmpesta n, 1555, m. 1630. Foi emi-
nente em batalhas, caçadas, mercados, aniraaes
etc — Roma.—
José (iesar d'Arpin (II cavalier Giuseppino)
n. 1560, m. 1640. Seus quadros grandes, que
se vem no Capitólio, são históricos e bons; e
108 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
notáveis, sobre tudo, pela belleza dos cavai-
los.
Michel Angelo Ameriggi da Caravaggio, n.
1569, m. 1609. Suas obras são mui fáceis de
conhecer pelo ar de relevo, que dava a todas as
figuras por via do assombrado. Esta originali-
dade imita bem a natureza. O seu desenho é
preciso e fero. — Roma e Nápoles.—
Domenico Feti n. 1589, m. 1624. Imitou o
antigo, e Júlio Romano; donde houve um carac-
ter de desenho fero e vigoroso, com quanto in-
correcto. Seus quadros, mui procurados, se dis-
tinguem por uma graça particular, e picante. —
Roma.—
Giovanni Lanfranco n. 1581, m. 1647. Foi
eminente nas grandes obras, como platafundos,
cúpulas, etc. —Nápoles.
Século XVII
Pietro Beritini di Cortona n. 1596, m. 1669.
Todas as suas ingenhosas producções tem um ar
de nobreza, que encanta. Mas a obra prima d'es-
te grande mestre é o roubo das Sabinas, que Le-
brun servilmente copiou.— Roma e Florença. —
DA PINTUKA 109
Mário Nuzzi di Fiori n. 1599, m. 1673; alcan-
çou um grande nome pela maneira excellente de
pintar flores.
Miguel Angelo Cerquozzi dito o das batalhas
e bambuc/iatas: nasc. 1602, m. 1666; teve um
colorido vigoroso e um pincel ligeiro. Era tam
hábil no seu género, que pela simples narração
d'uma peleja, traçava logo a ordem do quadro
no mesmo panno, em que havia de pintar,— Ro-
ma.—
Cláudio Geleo (Lorrain) n. 1600, m. 1682.
Todos conhecem este nome; todos sabem que foi
o príncipe dos paizagistas. Ninguém conheceu
como Lorrain a perspectiva aeria, e o eífeito dos
pontos de vista. — França.—
Andrea Sacchi n. 1599, m. 1661. Suas pintu-
ras ternas e graciosas são admiráveis pelo dese-
nho, colorido e verdade de expressão.
Domenico Passignani pelos annos de 1680,
pintou com gosto e nobreza, muita expressão, po-
rem mau colorido. — Florença.
Pictro Tosta n. 1611, ra. 1648; moldou o
seu estylo nos antigos do Roma, donde houve um
bom e correcto desenho, com quanto rude. —
Ho ma.
110 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
Salvator Rosa n. 1614, m. 1673. Trabalhou
muito ; e suas obras se acham por toda a Itália:
todas ellas tem um ar de originalidade, que as
distingue, muita verdade e bom colorido ; porem
o desenho não é perfeito.
Carlin Dolce n. 1616, m. . . . ; célebre pela
graça da composição e frescura do colorido.—
Roma.
Hiacinto Brandi n. 1623, m. 1719 (outros que-
rem que em 1691.) Seus quadros são muito vul-
gares: apezar das incorrecções do desenho, e fra-
queza de cores, teve com tudo uma belleza d' or-
nato, e fecundidade de imaginação, que admira.
Cario Maratti n. em 1624, m. 1713; foi emi-
nente nos ares de cabeça : seu desenho é mui as-
sisado, e seu colorido brilhante. Todas as com-
posições deste mestre encantam, e são bem aca-
badas.
Luca Giordano n. 1632, m. 1705. Seu me-
recimento principal é a facilidade e presteza ,
com que trabalhava : muitas obras delle são d'uma
bella expressão.
João Baptista Bacici n. 1639, m. 1709; re-
tratava bem ; e os seus quadros mostram muito
talento, e beKo colorido.
DA PINTUEA 111
Mattia Preti (II Calabrese) teve o ingenho
mais feliz na invenção ; bella e rica ordem, e
muita originalidade. Nasc. 1643, morr. 1699.
José Passari n. 1654, m. 1714; discipulo e
imitador absoluto de Cario Maratti.
Século XYIII
Francesco Solimeni n. 1655, m. 1747. Bella
imaginação, nnuito talento, um desenho fero e
correcto o constituem n'um dos primeiros luga-
res da pintura ; com quanto o seu colorido seja
sombrio e pouco doce. A grande qualidade po-
rem d'este mestre, e em que elle sobreexcedeu
a todos, é o ar de vida, animação e movimento
das suas figuras.— Nápoles.
Sebastião Concha morto pelos annos de 1740.
Imitou Solimeni ; mas o seu génio fno o não
ajudava. Coratudo no hospital de Sicnna ha dcUe
uma boa pintura a fresco.
Paolo Pauini, vivo em Roma ainda no anno
de 1767. Tem bom colorido, e muito espirito.
Paolo ^lonaldi do mesmo tempo foi pintor de
bnmhochata-s muito estimadas.
112 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
Pompeio Battoni, retratista e pintor históri-
co : o seu colorido é bem imitado de Corregio.
Muitos outros pintores, posto que não de gran-
de fama, tem produzido mais modernamente a
eschola Romana ; mas não temos delles sufficien-
te conhecimento para poder formar um exacto
conceito.
CAPITULO IV
Da Eschola Florentina
A eschola Florentina é, por sua antiguidade,
a mais respeitável : seu primeiro mestre foi Ci-
mabúe ; com quanto, fallando em rigor, só Leo-
nardo da Vinci e Miguel Angelo mereçam (como
ja notamos) o nome de fundadores. As obras dos
seus alumnos occupam um logar mui distincto nas
collecções mais ricas ; e a Itália, e toda a Europa
se julga com elles ennobrecida. Seu gosto de de-
senho é fero e decidido ; sua expressão sublime,
algumas vezes attrevida, e gigantesca, e mesmo
contra- natural, mas sempre magnifica ; o colorido
nos seus princípios era rude; apperfeiçoou-se de-
pois, sem perder nada da sua viveza, magnificen-
DA TINTURA 113
cia e outras brilhantes qualidades. Esta eschola
é a menos numerosa, mas não a menos célebre.
Século XVI
Leonardi da Vinci n. 1445, m. 1520, um dos
grandes ingenhos do seu século, foi sculptor, ar-
chitecto e pintor. Seu desenho é correcto e puro,
e suas obras todas d' uma composição ingenhosis-
slma ; das quaes a melhor é sem questão o grande
quadro da ceia em Milão. Foi muito estimado
de Francisco i de França, em cujos braços mor-
reu. O canal de Milão foi dirigido por elle.
Pictro Perugino n. 1446, m. em 1524. Colo-
riu graciosamente ; mas, apezar de ser discipulo
do Cimabúe, todos sabem quanto é rude o seu
ÍDgenho.
Fra Bartholomeo delia Porta n. 1465, m*
1517,formou seu delicado gosto no de Vinci,don-
de houve muita correcção e pureza. Seu colorido é
bello e natural. Kafaelo não se dedignou de
apprender delle a arte de colorir, ensiuando-lhe
em troco as necessárias regras da. prespcdim. —
Roma e Florença.
Miguel Angelo Buonarroti n. 1475, m. 1504 ;
114 ENSAIO SOBRE A HÍSTORIA
esculptor incomparável, magnifico architecto, pin-
tor sublime ; não pôde decidir-se a qual das boas-
artes pertenceu mais: suas estatuas, seus edifícios,
seus quadros, tudo mostra o maior homem do
seu século. Teve uma maneira de pincel altiva e
fera, e em geral similhante á da sua eschola; vas-
tíssima concepção, ideias sublimes e arrojadas, e
muita expressão e vigor. Seus quadros princi-
paes se acham na capella Sixtina do Vaticano.
A antiguidade toda e talvez os séculos posterio-
res não tem nada que oppor a tão grande inge-
nho : seus quadros são inferiores aos de Raphael,
e por ventura aos de alguns outros ainda ; porém
Miguel Angelo é mui superior a todos elles.
Andrea dei Sarto n. 1478, m. 1580; foi o
maior colorista da eschola de Florença; suas
obras, em que se distingue uma maneira larga,
e ura pincel fresco e brando, conservam ainda
hoje um brilho singular.
Baltazar Peruzzi n. 1481, m. 1536, alem dos
grandes mestres, estudou sobre tudo a natureza,
foi grande na prospectiva, porem fraco no colo-
rido. Ninguém antes de Peruzzi executou com
gosto uma decoração de theatro.
Giacomo Pontorma n. 1494, m. 1559 ; dese-
DA PINTURA íla
nhou como Leonardo da Vinci, e coloriu como
Sarto. Seu pincel vigoroso, seu colorido brilhante,
sua imaginaçíío bella e fecunda o fizeram olhar
por Mig. Ang., e Raphael como seu mais temido
rival ; e se a louca mania de imitar as maneiras
alemans o não fizesse mudar de estylo, por ven-
tura os dois grandes mestres não gosariam sós da
gloria do primado.
Machcrino de Sienna (chamado Domenico Bec-
cafumi) n. 1484, m. 1549 ; desenhou com gosto
e correcção, mas coloriu mal.
Mestre Rosso, ou Roux (como lhe cliamam os
francezes) n. 1496, m. 1541 ; pintou com muita
expressão e viveza, porem ás vezes um pouco
rude. Trabalhou quasi sempre em França, onde
teve muitos discípulos, e de cuja eschola é julga-
do fundador. — Fontainebleau.
Alexandre Allori n. 1535, m. 1607; foi gra-
cioso e macio, e desenhou com toda a pureza do
antigo.
Francisco Rossi (il Salviati) n. 1510, m. 1563 ;
e muito estimado pela grande intelligcncia do
luz ; desenhou e coloriu bem ; seus quadros se
distinguem pelas singulares attitudes das figuras.
— Florcnra o Bolonha.
116 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
Jorge Vasari n. 1511, m. 1574 ; muito céle-
bre pelas vidas dos pintores, que escreveu : seu
desenho é bom, mas sem energia, e seu colorido
fraco. — Roma.
Jacoppino dei Ponte n. 1511, m. 1570 ; as
suas maneiras são as de Andrea dei Sarto, seu
mestre. Foi o melhor retratista da sua eschola.
Século XVII
Daniel Bacciarelli de Volterra n. 1579, m. em
1625 ; desenhou bem, e o que lhe deu grande
nomeada sobre tudo, foi a sua descida da cruz na
igreja delia Trinità dei monte em Roma.
Ludovico CiogH n. 1559, m. 1673, pintou
d'uma maneira firme e vigorosa; mas coloriu
principalmente com o pincel de Corregio.
Francisco Vanni n. 1563, m. 1615. Coloriu
muito bem, e desenhou sofifrivelmente.
João Manozzi (Giovani di S. Giovani) n. 1490 ;
m. 1636 ; foi um dos melhores pintores de sua
eschola; seus quadros, que mostram muita intel-
ligencia de perspectiva e architectura, se acham
cm Roma, principalmente no palácio Pitti.
DA PINTURA 117
CAPITULO V
Da Eschola de Bolonha
A eschola de Bolonha, ou Lombarda juntou
era si quanto pode produzir a perfeição da arte.
Talvez (geralmente íallando) nenhuma das outras
o conseguiu tanto. O antigo foi o seu modelo ;
mas sem uma servil e exclusiva imitação ; não
tratou de formar systema ; ou, se o formou, foi
extrahindo de todos o que achou melhor. As bel-
lezas vivas e sensíveis da natureza, a verdade de
expressão, a riqueza da ordem, a pureza dos con-
tornos a facilidade admirável de pincel, e sobre
tudo o colorido da mesma natureza, verdadeiro
e encantador ; tudo emfim, quanto offerece a pin-
tura, bello e terno, tudo reuniram os com-alum-
nos de Cor régio.
Auctores ha hi (como Pruneti) que dividem es-
tas duas escholas de Bolonha e Lombardia; po-
rém a geral opinião é a que sigo. Sobre o chefe,
ou fundador desta eschola, diversos são também
os conceitos, querendo uns que seja Francia, ou-
tros Mantegna : a questão é de pouca utilidade.
118 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
. Skculo XVI
Francisco Francia n. 1450, m. 1518. Suas
obras sâo d' um desenho muito assisado, e mui
boa cor para o seu tempo. Raphaeí lhe enviou
o seu quadro de Santa Cecília para que o corri-
gisse. Diz-se que a inveja e dor de ver tam per-
feita obra em um mancebo de tão pouca idade,
lhe causara a morte.
Andrea Mantegna n. ]4õl, m. 1517; seus
quadros raríssimos conservam ainda muito bri-
lho, e são de melhor desenho que os de Francia.
Francesco Primaticcio Bolognesse n. 1490, m.
1570; coloriu graciosamente, e desenhou no estylo
de JuKo Romano. Alguns, como Pruneti , o que-
rem fazer chefe da eschola de França, onde qua-
si sempre viveu e pintou.
António AUegri (Corregio) n. 1494, m. 1554.
Tinha chegado á perfeição da arte, e ignorava o
seu merecimento. O antigo, Raphael, Yinci, etc,
tudo lhe era desconhecido ; não sabia senão a na-
tureza. Ouviu gabar muito um quadro de Ra-
phael, observou-o, e conheceu o seu próprio me-
recimento ; soube o que vaha, e nem porisso foi
DA PINTURA 119
mais vaidoso ; antes continuou a dar por mui
rasteiro preço seus inestimáveis quadros, cujo
colorido e frescura de pincel ainda não pôde ser
imitado.
Francesco Massuoli (o Parmezao, ou Parme-
gianino) n. 1504, m. 1540. Maneiras graciosas,
colorido fresco e natural, muita facilidade e cor-
recção no desenho o constituiram um dos pri-
meiros pintores da sua rica e fecunda eschola.
Os quadros deste mestre são raros e caríssimos.
Lucas Cangiagio, ou Cambiagi n. 1527, m.
1583 ou 85. Pintou com muita facilidade, e o
que é de admirar, com ambas as mãos ao mesmo
tempo. Teve muita verdade e viveza, e tal ex-
pressão nas figuras, que parece que faliam :
Manca il parlar: di vivo altro non chicdi ;
JNe manca qucsto aiicor, se agli occhi credi.
(Tasso Gerus.)
Os Caraches, Carachas, ou Caraccis, (segundo
a nacional e verdadeira orthogi-aphia) mais cele-
bres e conhecidos são três. Luiz Caracci n. 1555,
m. 1618; estudou muito os grandes mestres c
adquiriu uma maneira nobre e verdadeira, ex-
120 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
pressão e belleza de colorido. Instituiu uma aca-
demia ajudado de Agustinho e Annibal Caracci,
seus primos, na qual se formaram Albano, Guido,
Guercino e outros illustres artistas.— Agustiuho
Caracci desenhou perfeitamente e coloriu bem :
dos três é o menos celebre ; n. Iõ58, m. 1603.—
Annibal Caracci n. lõliO, m. 1609 , foi superior
a seu irmão e primo ; teve um estylo nobre e su-
blime, desenho preciso e fero, e colorido muitas
vezes admirável. A galeria Farnesi é de todas as
suas obras a mais famosa.
Bernardo Castelli n. 1559, m. 1629; grande ami-
go de Tasso, a quem retratou, bem como a quasi
todos os bons poetas do seu tempo. Foi insigne
neste género : desenhou bem e coloriu melhor.
Guido Renni (o Guido) n. 1575, m. 1624,
Costumam distinguir-se três maneiras differentes
neste pintor famoso: a 1.^ forte e assombrada; a
2.* natural e bella; a 3.=^ terna e doce, porem mais
fraca. Pintava com a maior facilidade.
Século XVII
Francesco Albani (o Albano) n. 1578, m. 1660;
deu-se absolutamente aos assumptos galantes e
DA PINTURA 121
graciosos: seu génio doce e terno o determinou
na escolha. O nosso Vieira Portuense o estudou
muito e imitou bem.
Domouica Zampierri (Doraenichino) n. 1581,
ra. 1641; observou sempre uma ordem magni-
fica nos seus quadros, muita nobreza, correcto
desenho e verdade de expressão.
Francesco Barbieri da Cento (o Guerchino)
n. 1Õ90, m. 1666. Trabalhou com uma facili-
dade incrivel: e os seus quadros se encontram
por toda a parte: teve um desenho fero e ex-
pressão nobre; mas o colorido não é igual. Sua
1.^ maneira é escura e fraca; a 2.^ é mais dura
e fortemente assombrada; a 'ò.^ é bella e encan-
tadora, e participa do gosto de Ticiano e Cor-
rcgio. Nos fins de sua vida, porem, obrigado da
miséria, trabalhou mal e sem gosto.
Luciano Borzoni n. 1590, m. 1645. Verdade
e intelligencia de expressão, c delicioso colorido
o fiíieram um excellente pintor. Teve dois filhos,
que o imitaram, e se distinguiram; sobre tudo
Francisco Borzoni nas paizagens e marinhas.
João Francisco Frimaldi n. I60(j, m. 1688.
Coloriu suavemente e com harmonia; suas pai-
zagens são excellentes.
122 ENSAIO SOBRB A HISTORIA
Benvenuto da Ferrara (o Garofalo) n. 1615,
m. 1695, foi muito bom colorista e desenhou
bem. As suas cópias de Eaphael são muito esti-
madas,
Beneditto Castiglioni. Sua pureza de dese-
nho, frescura de colorido, delicadeza de toque e
grande intelligencia de chro-escuro fizeram os
seus admiráveis quadros preciosissimos e caros.
Nasceu 1616, m. 1670.
Cario Cignani n. 1629, m. 1673. Teve muito
boa composição e desenho; mas pouca expressão
por causa do muito-acahado dos seus quadros.—
Bolonha. —
Século XVIII
Thiarini, chamado o expressivo, morto pelos
annos de 1750; teve muita expressão e um colo-
rido vigoroso: exprimiu bem as paixões.
Izabel Cirani, do mesmo tempo. Estudou com
proveito os grandes mestres: adquiriu um gra-
cioso colorido; e, com quanto preferia os assum-
ptos terríveis, executou muito melhor os doces
e ternos.
Marcantonio Franceschini (o Francesquino)
DA PINTURA 123
morto era 1729. Seu colorido é muito engraça-
do, seu desenho precsiso, e sua maneira tem uma
bella simplicidade. Os quadros de Francesqui-
no tem muita estimação e valor. — Bolonha. —
Marcos Benefiale n. 1684, m. 1764; foi um dos
bons mestres de sua eschola por seu correctís-
simo desenho, grande energia e expressão, ©
fecundidade de pincel.— Roma.—
CAPITULO VI
J)a Eadiúh Veneziana
A eschola Veneziana, que reconhece por fun-
dadores os Bellinis, Giorgione e Ticiano, pro-
duziu excellentes pintores, que imitaram a na-
tureza com uma fidehdade, que seduz os olhos.
Seu colorido é sábio e encantador, seu claro-es-
€Ui'o de muita intelligencia, a imaginação bclla,
a ordem rica, e os mais galantes e spiriiuosos
toques; cm fim, sua maneira é originalmente
encantadora, sobre tudo nas formosas e sabias
composições de Ticiano e Paulo Veronese. Os
grandes mestres desta eschola desprezaram to-
davia alguma cousa o desenho; tam essencial (n
124 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
boa pintura. Ticiano, e Giorgione elevaram o
modo Veneziano a um ponto, que será difficil
iguala-los. Nota-se em geral a esta eschola pou-
60 conhecimento do a u figo, e attitudes.
Século XV
Gentil e João Bellini mortos, o primeiro era
1501, o segundo em 1512, e mui velhos. Seus
quadros rarissimos mostram ainda um desenho
verdadeiro, mas sem ordem: seu maior mereci-
mento é terem sido mestres de Giorgione e Ti-
ciano.
Giorgione de Castel-franco n. 1477, m. 1511.
Sciencia de claro-escuro, ordem, colorido e de-
senho o elevaram em brevissimo tempo (pois vi-
veu só 34 annos) á perfeição.
Seuulo XVI
Ticiano Vecelli da Cadore n. 1477, m. 1576.
Suas obras espalhadas por toda a Europa fize-
ram conhecer este mestre, que discorreu uma
longa e feliz carreira, vivendo 99 annos; um
quasi inteiro e glorioso século empregado na
DA PINTURA 125
mais nobre das artes. Ignorou o antigo, e falhou
no desenho; mas o colorido de Ticiano, e sua ex-
pressão, assim como não tiveram modelo, não
terão imitadores.
Gio António Eegillo (il Podernone) n. 1484,
m. 1Õ40. A belleza de seu colorido, facilidade
de desenho e apurado gosto de invenção o fize-
ram temer muito de Ticiano. Nada mais é ne-
cessário para seu elogio.
Sebastião Piombo n. 1485, m. 1547. O qua-
dro da ressurreição de Lasaro, feito para oppor
ao da transJi(juração de Haphael, lhe adquiriu
muita fama; e Miguel Angelo, cujo é o dese-
nho do dito quadro, quiz por via d'elle dispu-
tar a Raphael o priíueiro logar; mas a expres-
são, e colorido de Piombo não podaram trium-
phar do incontrastavcl merecimento de seu illus-
tre rival.
Giacomo Ponte Bassano n. 1510, m. 1592.
Amou os assumptos communs, cm que foi gran-
de: seu stylo é verdadeiro, e as suas cores ex-
cellentes.
André Sciavone n. 152'2, m. 1582; desenhou
incorrectamente; porem cuk)riu tam bem, teve
UDi modo tam fácil o engraçado, tam bom gosto
126 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
nas roupagens, e tam bellas attitudes, que se lhe
não pode negar o titulo de grande pintor.
Giacorao Robusti (il Tintoreto) n. 1524, m.
1594. Uma imaginação vivíssima, uma rapidez
incompi*ehensivel e um finíssimo gosto o eleva-
ram á primeira ordem dos mestres. É prodigioso
o numero de suas obras.
Paolo Calliari Veronese (Paulo Veronese) n.
1532, m. 1588. Seus quadros farão sempre as
delicias dos amadores da arte pela riqueza d'or-
dem, belleza de caracteres, bom gosto de roupa-
gens, frescura de colorido e nobre elegância de
figuras.
Giacomo Palma (Palma il Yechio) n. 1540,
m. 1588; imitou a natureza sempre bella, e com
um bem -acabado sem afíectação.
Século XYII
Tiago Palma (Giacomo Palma il giovane) n.
1544, m. 1628. Foi discipulo^de Tintoreto, que
imitou optimamente.
Carlos Veneziano n. 1585, m. 1625. Seu colo-
rido imita bem Corregio, e suas physionomias
engraçadas as de Guido.
DA PINTURA 127
Alessandro Yeronese dito o Turchi, ou Or-
herto n. 1600, m, 1670; desenhou bem, e coloriu
como um Veneziano.
Sectlo XYIII
Giam Battista Piazzeta morto no fira do
XYIII século. Seu colorido é mau, mas o dese-
nho imita muitas vezes, e com verdade, a nobre
altivez de Miguel Angelo.
Hosa Alba Carriera n..., m. 1761. Seus retra-
tos e pasteis são conhecidos em toda a Europa;
seu principal merecimento é o novo gosto, e ma-
neira singular, com que trabalhou em minia-
tura.
CAPITULO YII
Da Eschola Flamenga
A eschola Flamenga é a de Rubens e Wan-
dick; tanto basta para o seu elogio.— Yan-Eick,
tam conhecido pelo invento da pintura a oloo,
foi o seu chefe. Quem amar a nobreza do pincel
Romano, a bella arrogância do Florentino, as
128 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
graças do antigo, as gentilezas Gregas; não será
decerto muito apaixonado das producçÕes Fla-
mengas. Os gelos do paiz, o temperamento frio
dos habitantes são as causas necessárias e na-
turaes do pouco fogo que se lhes nota. Mas,
em troco desta falta, que bellezas lhes não acha-
rá o amador imparcial e singelol Ninguém, se-
não os pintores Flamengos, appresenta em seus
quadros um bem-acaòado, um conipkto, que pa-
rece superior á paciência humana; uma fideli-
dade original na imitação da natureza, que en-
canta e admira. O seu defeito todavia é o me-
nos-preço d'aquella genérica e fundamental re-
gra das boas artes: Imitar a bella natureza; isto
he, saher extremar n^ella o helJo do mcdiocre.
Nisto falharam de certo, exprimindo-a muitas
vezes com a cega punctualidade, e o verbo ad
rerbum d'um Jidas interpres; mas este mesmo
defeito (permitta-se-me julga-lo assim,com quan-
to vou contra o commum parecer) dá muitas ve-
zes ás pinturas Flamengas encantos simphces,
e singelos, que em nenhumas outras se encontram.
Nesta numerosa eschola se classificam todos
os pintores das nações do norte; e se os caracte-
res, mais que as pátrias, devem ser neste ponto
DA PINTURA 129
OS verdadeiros dados, não duvidarei também
emiumerar n'ella os poucos bous inglezes. Nunca
pude gostar da pintura Britaunica: um contra-
natural, um monótono, um forçado no colorido,
um sempiterno gelo na expressão, que sempre
lhe notei, me fizeram olha-la com desprezo, e a
não ser o moderno West, (de quem adiante fal-
larei) de certo os inglezes avultariam bem pou-
co neste ramo das boas-artes.
Século XV
João Van-Eick n. 1370, m. 1441; fundou a
sua cschola, e inventou a pintura a óleo. Nada
mais se sabe.
Alberto Durero n. 1471, m. 1528. Seu dese-
nho é correcto, sua imaginação viva, sua manei-
ra firme; mas falhou muito nos costumes.
Século XVI
João Holbein n. 3498, m. 1554. Sua imagi-
nação é sublime, o colorido vigoroso, e suas figu-
ras tem um ar de relevo, que engana. Em geral
130 "ENSAIO SOBRE A HISTORIA
O pintar deste mestre parece mais Lombardo,
que Flamengo.
Otam Vaen ou Vaenio n. 1556, m. 1634;
formou-se no gosto Romano, que lhe deu mui-
ta correcção de desenho, e hellezia de expres-
são; qualidades, a que ajuntou grande intelli-
gencia de claro-escuro.
Bloemart n. 1567, m. 1647. Um toque ex-
pedito e livre, bellas roupagens, muita sciencia
de claro-escuro são os caracteres d'este pintor.
Pedro Paulo Rubens n. 1567, m. 1640. Nada
será bastante para fazer descer este grande ho-
mem do grau illustre de primeiro pintor histó-
rico. Não quero, nem devo occupar-me de seus
defeitos; releva-me só dizer: que o seu colorido
é verdadeiro e brilhante, sua imaginação fér-
til, seu claro-escuro sábio, todo elle é encanta-
dor.— A galleria do Luxembourg é a sua me-
lhor obra: mas um quadro allegorico da guerra
(no palácio ducal de Florença) no meu parecer,
e no de muitos, não é inferior. Fogo brilhante,
nobreza poética, côr excellente; * caracteres in-
' A mui lo me affoito, conceituando da belleza de côr d'uin
quadro, que nunca vi, senão em estampa, e nià estampa; mas
fio-me na auctor idade de eruditos viajantes. Haverá dous an-
DA P1NTT3RA 131
teressantes, composição precisa, intelligente dis-
tribuição de luz; tudo se juutou neste quadro; e
n'uin grau de íbrmusura, a que só a allegoria
pôde remontar. A simples ideia deste painel vale
bem uma Iliada, e todos os Klopstocks juntos
talvez a não produzissem: "É a transfiguração
de Rubens" dizia um philologo meu conhecido,
alludindo ao célebre quadro deRaphael. "A vi-
da dos homens sábios é o cathalogo de suas
obras" diz um grande litterato. ''' Esta sentença
desculpa a minha diíFusao.
Século XVII
António Wandick n. 1599, ra. 1641. Foi dis-
cipulo de Rubens, e a maior honra do mestre;
verdadeiro e simples na imitação da natureza.
O seu género foi o retrato, cm que ninguém o
excedeu.
Rembran-Van-Ryn n. 1606. m. 1674; foi
grande no c/aro-esciiro, na harmonia das côrcs;
1103 que me communicou esta esLimpa em Lisboa o sábio
pbilologoj. B. S. Dos aponlamnntus, que ontão fíz, oxtrahi
esU e outras fiiscri|irões, que jior alii vào.
' Vollairc: Sièdc de Louis XIV.
132 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
na imitação do relevo. Seus quadros são conhe-
cidos pelo fundo negro.
Vander-Kabel n. 1631, m. 1695; distinguiu-
se absolutamente da sua eschola pela imitação
dos Caracóis, e Salvator Rosa.
Egione-Vandernér, ou Vandernêér n. 1643,
m. 1697. Um colorido vivo, um pincel mimoso
lhe fizeram naturalmente procurar os assumptos
amorosos, em que foi excellente.
Wanderwerfl* n. 1659, m. 1722. Seus toques
são firmíssimos, e seu desenho correcto.
Século XVIII
António Raphael Mengs n. 1728, ra. 1779.
Tem uma verdade de colorido, e uma facilidade
de pincel, que distingue as suas obras de quaes-
quer outras.
Gerardow, n..., bem conhecido pelo seu Hy-
dropico que existia no palácio real em Turin, e
que Mr. Cochin na sua viagem de Itália não
duvida chamar o melhor quadro Flamengo, e
DA PINTURA 133
assegura ter sido um dos mais estimados do
principe Eugénio. '
CAPITULO VIII
Ba Exdiohi Franceza
A cschola Franceza, filha da Bomana (segun-
do Pruneti) honra muito a sua progenitora. Des-
de o século XVII as Italianas (seu modelo) de-
clinavam muito; ja se não viam Rafados, Cor-
regios, nem Ticianos: parece que a natureza, es-
gotada por tam grandes talentos, queria descan-
car. E nesta mesma épocha (principies do século
XVIII, e fins do XVII) brilhavam em França
Le Crun, Lesueur, Subloiras etc. Veio o século
XIX tam memorando pelas extraordinárias mu-
danças, que viu a Europa; e em quanto a revo-
' Maito há que li eslas viagens, assim como as memorias
do Mr. l'Abbc Richard; de maneira que agora nao poderei a^
severar cm qual dos dous encontrei Gerardow, c o seu hjdro-
pico. A' leitura d'ambos remoto os curiosos.
134 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
lução Franceza, e suas consequências aniquila-
vam em toda a parte ^ as boas-artes; a França
apresentava ao mundo o mais brilhante espec-
táculo. Por entre o ruido das armas; e o estré-
pito dos combates, as margens do Sena,
D' onde, arrancando omnipotência aos fados,
Impoz tropel d'heroes silencio ao (/lobo.
(Bocage.)
se ornavam com todo o esplendor das sciencias
e artes. A mesma Theologia tam seca, e enfa-
donha nas mãos de Santo Thomaz, tam immoral
nas de Mollina, e Sanches, muda de forma,
toma nova essência, e na milagrosa penna de
Chateaubriand surge com uma belleza e ma-
gestade, que jamais puderam dar-lhe o douto
Agustinho, o eloquente Origenes. Com bem jus-
tiça, em quanto a mim, se podem a si próprios
applicar os Francezes, a respeito das outras na-
ções, aquella sentença de Séneca: MuUum ege-
rirnt qui ante nos fuerunt, sed non pcragerunt. ^
' A' excepçSo da Inglaterra e Rússia, e tarabem de Portu-
gal, que então colhia os fructos de todas a. fadigas de Pombal,
e Manique.
' Seiieca£'i3ut. 65
DA PINTURA 135
Nesta époclia brilhante e memoranda nos fas-
tos da humanidade, das sciencias e das artes, a
pintura renova em Paris os séculos de Augusto,
de Leão X e de Luiz XIV. Os generaes victo-
riosos traziam de toda a parte os monumentos
mais preciosos das boas- artes. O Vaticano, o
Belveder, o Capitólio, Roma, toda a Itália foi
exhaurida, e suas riquezas de sculptura e pintu-
ra transportadas á nova capital do mundo. En-
tão appareccram em França David, Girodet, e
muitos outros, que vão parelhas com os mais fa-
mosos Italianos, se em parte os nSo excederam.
Lavater no seu ingenhoso livro das physiono-
mias não se attreveu a caracterisar os Francezes.
Seus génios e maneiras tam incertos e incapa-
zes de classificação, como sua variada phisiono-
mia, impedem afíixar-lhes com exactidão a ca-
racteristica; e philologos por isso houve, que não
quizeram considerar na Franceza uma eschola;
porem esta assersão é sem critica, e pouco segui-
da. Pruneti no seu Ensaio Pictórico aceusa a
eschola Franceza de mau colorido, e ignorância
do antigo. Eu, sem me attrever a contrastar este
parecer, julgo que tal imputação não pode ter lu-
gar na moderna eschola franceza; mas somen-
136 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
te se deve referir á antiga. Pruneti todavia não
conheceu a eschola de David; mas devia conhe-
ce-la seu traductor Taborda; devera estuda-la
para emendar o seu original, e exceder assim a
mediocridade d'un"i traductor servil, aecrescen-
tando-lhe novas ideias. O grande género fran-
cez é geralmente o histórico. O chefe desta es-
chola, querem uns que seja Roux, ou liosso, ou-
tros que Leonai'do da Vinci: Pruneti assevera
que fora Primaticio Bolognese,e o faz alumno da
eschola Romana. Eu o classifiquei na Lombar-
da; mas confesso que me enganei; porque o seu
pintar, verdadeira norma, é mais Romano, que
Lombardo.
Século XVI
Vovet n. 1590, m. 1649. Teve um desenha
altivo, e um pincel vigoroso; mas imitou depois
todas as boas e más qualidades de Mig. Ang. de
Caravaggio.
Nicolau Poussin: Pruneti o faz nascido em
1594; mas Voltaire {Sièc/e de Louis XIV) asse-
vera esta data em 1599. A boa critica decide
por este, como nacional, e tam instruído nos
DA PINTURA 137
successos d'um tempo, cuja historia nos deu. O
mesmo Voltaire diz que Poussin era chamado o
pintor das pessoas de spirito, e accrescenta que
também das de gosto se podia dizer. Soube bem
o antigo e o desenho; mas o gosto Romano lhe
deu um colorido sombrio. Sua philosophia (diz o
grande escriptor) o fez superior ás intrigas de
Lo Brun, e morreu pobre mas contente em 1665.
Pedro Yalentin de Colonier n. 1600, m. 1632,
imitou Poussin; teve um colorido harmonioso,
boa ordem nas figuras, mas pouca correcção no
desenho.
Jacques Blanchard foi imitador feliz das bel-
lezas de Ticiano. Nasc. 1600, m. 1638.
Lesueur n. 1617, m. 1655. Seu ingenho é
sublime e elevado, seu gosto de roupagens ma-
gnifico. E um dos primeiros pintores da antiga
eschola Franceza.
Pedro Mignard n. 1610, m. 1638. O estudo,
e imitação de Kaphacl e Ticiano o fizeram al-
gum tempo rival de Le Brun; mas a posteridade
imparcial o extremou bom.
(jarlos Le ]iruu n, 1619, m. 1690. Sua com-
posição, dignidade de exprimir, e fidelidade do
costumes se conhece principalmente pelas bata-
138 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
lhas de Alexandre, que Voltaire julga superio-
res ás de Paulo Veronese; mas apezar do meu
respeito a um tal historiador, e philologo, creio
que nisto se engana, bem como no elogio do seu
colorido, que todos taxam de menos correcto.
Século XVIII
José Vivien n. 1651, m. 1735. Retratou bem
a pastel, teve muita belleza e fecundidade de
ideias, e executou bem.
Pedro Subleiras n. 1699, m. 1749. Fertili-
dade de ingenho, grandeza de stylo, viveza de
colorido, magnifica prespectiva, boas roupagens
são os seus caracteres, e os d 'um grande pintor.
João Baptista Santerre n...., m.... Seu mere-
cimento principal é um colorido verdadeiro e
terno. O quadro de Santa Thereza na capella de
Versailles é um dos esmeros d'arte mais precio-
sos e beUos; com quanto um pouco voluptuoso
de mais, do que ao assumpto e logar cumpria.
DA PINTURA 139
Século XIX
David ' é não só o primeiro pintor da mo-
derna eschola Franceza, mas por ventura o pri-
meiro do mundo, depois de Raphael. Que vas-
tidão e sublimidade de ideias ! Que força e ver-
dade no colorido! Finalmente as suas compósi-
tos reúnem todas as boas qualidades, que ape-
nas se acham dispersas pelos quadros mais fa-
mosos das antigas escholas, e que só a elle foi
dado juntar. Fallem os prodigiosos quadros de
Belisario, do juramento dos Horacios, da morte
de Sócrates, e sobre tudo o incomparável quadro
das Sabinas, o noii phs nitra da concepção e ex-
ecução, e a eterna inveja de todos os pintores
existentes e futuros.
' Girodet igualmente se tem distinguido muito
pela elegância de suas composições, e suavidade
de seu colorido, que nos seus quadros, quer de
perto, quer de longe, prescnta quasi o mesmo
' Tinha me feito a mim próprio uma lei de nao nomear ne-
nhum pintor \ivo; mas o reconhecido merecimento destes, o
serem estranj;eiros, a necessidade de fallar da moderna escho-
la Francciii, e não poder faze-lo de outra maneira, me obrigou
a infraciãu da lei, c quebra do protesto.
140 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
eJBFeito. Não tem as graças viris de David; mas
um acabado, uma doçura, uma maneira de ex-
primir, que o caracterizara, e tornam por extre-
mo encantadoras suas bellas prcducçÕes. Vejara-
se os quadros do enterro (VAtala, e da Virgem.
Gérard por seus excellentes retratos, chamado
o Wandiek de França, é também pintor históri-
co e famoso pelo bom arranjo e ordem de seus
grupos, pannejado, ou trapejadó de suas figuras,
e bella correcção de desenho. Seus grandes qua-
dros são o Belisario,a Batalha d'Austerlitz, e ul-
timamente a entrada de Henrique IV em Paris,
que lhe grangeou o logar de primeiro pintor da
Camera de Luiz XVIII; não porque Girodet seja
superior a David, nem mesmo igual ; mas porque
soube lisongear a tempo.
Régnault é mui conhecido pela correcção do
desenho ; porém o seu colorido, em demasia bri-
lhante, é mais contrafeito, que natural: todavia
deu muitos e bons discípulos, e entre elles o mais
famoso é :
Guérin tão celebre pelos seus quadros de Phe-
dra, e 115'^ppolito, de M. Sexto, e da narração de
Eneas a Dido. Seus caracteres são fogo pictores-
co, e muita scicncia de claro-cscuro.
DA PINTURA 141
Le Gros bem conhecido pintor de historia se-
gue a David. E mui celebre o seu quadro de
Francisco I, e Carlos V em S. Diniz.
Vernet, filho do paizagista do mesmo nome, e
que no género de batalhas é sem par. Só elle
conseguiu exprimir com todo o fogo, e energia os
brutos, que puxam o carro de Neptuno.
CAPITULO IX
Dos Pintores IngkzcH, e principalmente
de West
West é o único inglez, cujas obras mereçam
collocar-se a par das boas das outras nações. Os
Inglezes não tem o génio da pintura. A natureza
do paiz não é bella, o sexo frio e desleixado ; as
proporções do corpo em geral irregulares, mal
feitas ; o caracter da nação duro e ríspido ; os
costumes ferozes ; tudo em fim concorre a impos-
sibilitar a Gran-]iretanha do ])roduzir bons pin-
tores. Um inglez bem conhecido, o barão do Ches-
terficld o confessava, quando n'uma do suas car-
tas a certa dama franceza diz : Every country has
talents peculiar to it, as well as fruits, or other
142 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
natural productions. "VYe here thiiik deeply, and
fathom to the very bottom. Italian thoughts are
sublime to a degree beyond ali comprebension.
You keep tlie midle patb, and consequently are
seen foUowed, and beloved (Chestarfield Let-
ters : Lett. 444.) Comtudo "West soube distin-
guir-se de seus compatriotas por um génio vasto,
e desenho correcto ; mas seu caracter de pintura
não é sublime ; e o seu colorido (como o geral da
nação) contrafeito e impróprio.
CAPITULO X
Dos Pintores Portuguezes
Tem-se escripto muito, e muito controvertido
sobre a Pintura portugueza, e sua historia ; mas
tanto nacionaes, como estrangeiros (affoitamente
o digo) sem critica. O exame de seus escriptos,
das obras dos nossos artistas me suscitou a ideia
de entrar com o faxo da philosophia neste cahos
informe e desembaraçar, quanto em mim fosse,
com o fio da critica este inextricável labyrinto.
Não pretendo adiantar ideias novas : pois donde
as haveria ? Menos ainda refutar as poucas his-
DA PINTURA 143
toricas que temos : pois que documentos poderia
allegar? Mas simplesmente examinar o que ha,
e dar-lhe ordem e methodo. Eisaqui o que é meu,
o resto é dos escriptores, de quem o houve. Com
estes dados considerei em Portugal quatro epo^
chás de pintura, umas mais, outras menos bri-
lhantes : por via destas divisões será por ventura
mais fácil o formar um systema histórico desta
boa-arte entre nós.
ErOCHA I
(Séculos XI até XIV)
O erudito arcebispo Cenáculo, Barbosa e ou-
tros modernos, na investigação das antiguidades
da pintura portugueza, conjecturaram muito e
com muita fadiga, mas pouco fructo, O desleixa-
ra ento daquelles séculos meio-barbaros em se
lembrar da posteridade com a historia de seu
tempo, não deixa aos ânimos estudiosos, e amigos
da gloria pátria, senão o desejo e infructuoso tra-
balho de vagar sem rumo por um pelogo de con-
jecturas, a qual mais vaga. Que Itália e Portu-
gal eram, nestas cpochas remotas dos séculos XI,
144 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
XII e XIII, as províncias menos barbaras da
Europa ; seus monumentos públicos, templos, es-
tatuas e ainda livros o mostram. Alcobaça e Santa
Cruz de Coimbra são, além d'outras, incontras-
taveis provas da minha asserção. Vivia entre
nós a pintura ; e vivia o melhor, que do gosto do
tempo se podia esperar. Quem exigir mais diíFu-
são, pôde ver os citados Barbosa, e Cenáculo, e
todos os allegados pelo moderno Taborda. O re-
sultado philosophico de quanto disseram é em
poucas phrascs: — Que esta arte antiquíssima en-
tre nós remonta ao principio da monarchia.—
Que barbara e gothica ao principio, se foi pouco
e pouco melhorando, já pelas viagens dos nossos
mestres á Itália, já pelas obras e pintores, que
de lá vinham chamados pelo bom accolhimento,
que lhes nossos monarchas faziam. — Que existem
ainda deste tempo algumas pinturas, cujo auctor
se ignora. — Que nos reinados d'AfFonso V, e
João II ja tínhamos pintores de nome, como
Gonsalo Nuno, João Annes, e Álvaro de Pedro.
Que o estylo da nossa pintura deste tempo, era
um mesclado de gothico e grego-moderno, simi-
Ihante ao de Cimabué, Guido de Sienna, e Pedro
Pcrugino.— O gosto do antir/o, que então come"
DA PINTURA 145
cava a prevalecer na Itália, e que de lá se com-
municou a Portugal pela protecção, com que o
amador das boas-artes, D. Manoel especializou a
pintura, assignala a segunda epocha, que se deve
contar do XV século.
EPOCHA II
(Séculos XV e XVI)
" Em quanto a França se occupava em justas
e t(jrneios, em discórdias e guerras civis, Portu-
gal descobria novos mundos, fazia o commercio
da Europa, e produzia um sem numero de Ca-
mões, antes que em Paris houvesse um só Ma-
Iherbe " diz Mr. Voltaire (siècle de Louis XIV) ,
e devera accrescentar que, antes que nascessem
Le Brun e Poussin, ja Portugal contava, na longa
serie de seus pintores, Grau Vasco, Francisco de
HoUanda, Cláudio Coelho, e mil outros. D. Ma-
noel chamado o feliz, fui o pae das scieiícias e
artes : e se João III C(mtou no seu tempo mais
sábios, que seu illustre antecessor, fructos foram,
que cm seu tempo amaduraram ; mas devidos ás
fadigas do semeador e cultor, o grande Manoel.
10
146 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
Gran Vasco, Gonsalo Gomes, Fr. Carlos todos
são deste tempo. O commercio e conquistas da
índia tinham elevado o reino a um gráo de opu-
lência, desconhecido então das outras nações.
D. IVIanoel quiz eternizar-se com a fabrica do
mosteiro de Belém ; conhecendo: ,
Que d^ acções immortaes se murcha a gloria,
Se a não regam as filhas da memoria.
(Diniz od.)
Os mancebos de mais esperanças foram manda-
dos á Itália a aperfeiçoar-se na pintura. Aífonso
Sanches, Fernão Gomes, Manoel Campello, Chris-
tovão Lopes e outros, voltaram approveitados, e
enriqueceram não só Belera e Lisboa, mas o
reino e toda a Europa com suas primorosas obras.
Veio depois Francisco de Hollanda, Diogo Pe-
reira e Cláudio Coelho, que não deixaram ao sé-
culo de Manoel e João III • que invejar ao de
' Nunca pude affeiçoar-me a D. João III apesar da sua
piedade e bondade, apezar do seu amor das sciencias, protec-
ção que lhes deu, etc, ele. Donde virá islo? Será do seu
ainda maior amor, e do generoáo accolliimenlo, que fez á
Sane ta Inquisição.
DA PINTURA 147
Luiz XIV. O stylo pomposo de Miguel Angelo,
que tanto agradava ao génio altivo d'uma nação
conquistadora, prevalecia muito entre os pintores
portuguezes, que nem por isso menos prosaram
o desenho de Rapliael, e o colorido de Ticiano,
que ainda hoje se admira, em suas bellas com-
posições.
EPOCHA III
(Século XVII)
Espiraram com D. Sebastião nas areias de
Africa o valor e espirito portuguez ; cairam as
sciencias, esmoreceram as artes; e, com quanto
os intrusos Philippes favoreciam alguma cousa o
talento ; a abundância e riquezas, em cujo seio
se crearam sempre os grandes ingenhos tinham
desamparado o reino, e sepultado a nação no le-
thargo politico, na miséria e na ignorância. As
cinzas das sciencias fumegavam com tudo ; c os
últimos vislumbres d'um clarão moribundo, mas
ainda grande, alluniiaram ainda a Amaro do
Valle, Kstevão Gonsalvcs, José d'Avellar e Ben-
to Coelho. — Surgiu finalmente a independência
portugueza depois de 60 annos de escravidão;
«
148 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
mas o génio da nação estava muito abatido ; era
necessário ainda o decurso de muitos séculos para
o levantar. Vem-se com tudo desta quadra mui-
tas pinturas, supposto não mereçam comparar-se
com as do bom tempo de Campello e Cláudio.
Bem como nos ânimos, reinava na pintura por
estes desgraçados tempos a servidão e mau gosto,
que se limitava a copiar e imitar com baixeza ; e
por ventura pela mesma razão, que nos fez des-
prezar a materna lingua, para escrevermos na
hespanbola : lisonja vil e indigna do nome portu-
guez, eterno opprobrio e mancha de escriptores,
aliás beneméritos, como Faria e Sousa, que en-
xovalhou sua fama com tal baixeza e vitupério, ■
e a marcou indelevelmente com o ferrete da sór-
dida adulação ; perniciosa mania, que tanto es-
tragou o idioma de Camões e Barros, e a tal
ponto, que os esforços e fadigas de tantos sábios
e philologos tem sido pouco para a restaurar.
' E cora eflfeito qual será o bom portuguez, que possa per-
doar a Faria e Sousa o ter escripto as suas historias em cas-
telhano? Os seus taes e quaes commentarios a Camões, ao
melhor dos escriptores porluguezes, ao mais célebre da sua
nação, na língua dos uppressores da pátria, dos tyrannos de
Portugal ?
DA PINTURA 149
EPOCHA IV
(Séculos XVIII e XIX)
A longa paz do remado de D. João V, o cora-
mercio das colónias Americanas, as riquezas e
abundância consecutivas fizeram reviver as artes
e sobretudo a pintura e arcliitectura. Começou-se
Mafra pela mesma razão, que se começara Be-
lém: a Itália recebeu de novo muitos alumnos
portuguezes ; e como Luiz XIV fizera em Roma,
fez João V, instituindo n'aquella cidade uma
academia de pintura. Francisco Vieira Lusita-
no, Ignacio d'01iveira, e muitos outros foram o
digno fructo dos cuidados do monarcha, merece-
dor por seus bons desejos d'um século mais phi-
losopho, e d'uma corte menosjiypocrita. N'este
estado de cousas começou a reinar D. José, ecom
elle o marquez de Pombal : tudo mudou de face ;
cahiu o colosso jesuitico, o reino d' Aristóteles e
a barbaridade Thomistica ' ; brilhou a pintura
' Todos sabem que a philosophia Arislotelico-Tbomislico-
escholastica, tam querida de nossos avós, era o opposto diame-
150 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
como a poesia, e as outras artes e sciencias. O
governo doce e moderado de Maria I acabou de
aperfeiçoar o que principiara e adiantara D. José,
e o raarquez de Pombal, que na universidade de
Coimbra ', em Mafra, no collegio dos nobres, e
outras partes tinham instituido aulas de desenho
e pintura. D. Maria fundou a academia do nu; em
seu tempo ^ se instituiu a de desenho do Porto.
A nenhum bom portuguez devem esquecer os vi-
gilantes cuidados do intendente Manique, a quem
a pintura, a esculptura e mais artes devem tanto
em Portugal. Esta fértil epocha produziu ura
Pedro Alexandrino, Vieira Lusitano, Teixeira
Barreto, Vieira Portuense, Sequeira, e muitos
outros, cujos nomes callo, mas bem conhecidos
pelas suas bellas producçoes. A verdade, a ex-
pressão, o bello natural são os caracteres domi-
nantes nestes tempos.
trai d'aquella deflinição de Séneca: Non est philosopMa popu-
lare arteficium, nec ostentafione paratum Non in verbis, sed
inrebusest. Senec. Epist. XVII Ad Lucil.
' Em Coimbra não teve effeito : dizem as más linguas,
q<je por ser cousa d'ulilidTde e espécie ommissa nos (f. e Inst
' Na regência do actual reinante, e demência da rainha.
DA PINTURA 151
PINTORES PORTUGUEZES DA I. EPOCHA
(Século XI até XIV)
Álvaro de Pedro viveu e pintou na Itália pe-
los annos de 1450. Nada mais se sabe; mercês
á incúria de nossos avoengos. Oxalá que este
miserável e vergonhoso exemplo sirva de esti-
mulo a netos, que possam melhor que eu, trans-
mittir á posteridade a memoria illustre de nos-
sos coevos. Noto de passagem que o traductor
da oração de Belori assevera, com uma intrepi-
dez que me espanta, serem de Gonsalo Nuno, ou
Nuno Gonsalves as pinturas da capella de S. Vi-
cente na sé de Lisboa. O mesmo dizem Fran-
cisco de Ilollanda e Bermudes.
João Annes. Deixadas conjecturas, nada mais
sabemos deste pintor, senão que vivia pelos an-
nos de 1459 por uma carta de privilegio dada
por D. Affonso V. ( Vide Taborda, Cenáculo,
etc.)
Vasco dito o grande (Gran Vasco). Sabemos
por documentos d'aquelle tempo, que vivia ain-
da nos fins do XV século. Seu stylo do antigo
modo Florentino faz julgar aos sabedores, que
152 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
estudara com Pedro Perugino. Desenho, ainda
que rude, exacto, attitudes enérgicas, grande co-
nhecimento de architectura, bellas paízagens são
os caracteres deste insigne mestre, que fértil, e
assiduo no trabalho enriqueceu todo o reino com
seus primores. Muitos templos de Lisboa, o da
Ordem de Christo em Thomar, e outros o attes-
tam. Foi pintor de D. AíFonso V, e segundo o
traductor portuguez de Belori, também de D.
Manoel. Um periódico de Lisboa (que infeliz-
mente se intitula Mnemosine Lusitana) quer que
o melhor quadro de Vasco seja o da paixão de
Christo no horto (em Thomar): pintura (diz el-
le) porque um Inglez philologo, dava 6$ cruza-
dos, e uma boa copia. Desejava de todo o meu
coração, que o redactor, ou redactores tivessem,
ao menos nisto, razão: em quanto a mim o amor
da pátria m'o faz crer facilmente.
PINTORES PORTUGUEZES DA II. EPOCHA
(Smi/o XV e XVI)
Gonçalo Gomes, de quem nada mais se sabe
senão que vivia nos fins do século XV, foi pin-
DA PINTURA 153
tor de D. Manoel; e a estimação, que este sábio
rei d'elle fez, é o único, mas relevante testemu-
nho do seu merecimento.
Na chronica de D. Manoel é chamado Duarte
Darmas grande pintor, e como tal enviado por
el-rei a debuxar as entradas de Azamor, Salé,
etc. ( Vide Damião de Góes, chron. de D, Man.
part. II, cap. 27, pag. 208, ediç. de 1819.)
Firmado no próprio testemunho do auctor
assevera (e não sei se com razão) Vicente Car-
ducho, e com elle Taborda, que o nosso historia-
dor Eesende fora também grande pintor. Não
sei se a singeleza d'aquelles tempos é bastante
para crermos um homem no artigo dos seus lou-
vores.
Fr. Carlos, monge de S. Jeronymo vivia no
principio do século XVI. Pintou no stylo de Bo-
lonha, e sobre tudo no de Corregio. Ainda que
flamengo de origem, suas obras tem mais no-
breza, que o coramum d'aquella nação, sem
deixar de ter sua bella simplicidade.
Gaspar Dias viveu pelos princípios do XVI
século. Mandado a Itália por D. Manoel a es-
tudar os grandes modelos, e formar o stylo, sua
alma elevada não so contentou d'outros mestres,
154 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
que não fossem Raphael e Miguel Angelo. Estu-
dou-os, e mereceu imitá-los com dignidade.
Christovão d'Utreclit n. 1478 m. 1557. Ain-
da que nascido em Hollanda,-nossos escriptores
o fazem portuguez. Soube perfeitamente a pers-
pectiva, e juntou ao gosto de Perugino, e João
Bellini a maior delicadeza e harmonia de pin-
cel.
Affonso Sanches Coelho n. 1515, m. 1590.
Dotado pela natureza de quanto constituo um
grande pintor concebeu fortes desejos de passar
á Itália, onde ouviu as lições de Raphael; hon-
ra, que bem mereceu por seu aproveitamento.
Chamado por Philippe II á Hespanha ennobre-
ceu Madrid; e sobre tudo o Escurial com suas
pinturas. Um dos poucos exemplos do mereci-
mento premiado foi este illustre portuguez. João
III de Portugal, Philippe II, Gregório XIII,
o grão duque de Toscana, o da Sabóia, o cardeal
Alexandre Farnese, o estimaram, enriqueceram
e honraram á porfia. Sua alma bemformada
escutou sempre a voz da natureza; e o philologo
não excedeu neUe o homem. ( Vide Palomino,
Bermudes, etc.)
Peruão, ou Fernando Gomes, mandado á Ita-
DA PINTURA 155
lia por D. Manoel, e em consequência vivendo
no principio do século XVI, foi aproveitado dis-
cipulo de Miguel Angelo; e suas obras o provara
bem.
Manoel Campello também enviado á Itália, e
também do mesmo tempo. Ainda hoje se admi-
ra em Belém nos seus quadros aquella correc-
ção de desenho da eschola Romana, aquella
grandeza de stylo, que faz a glória de Miguel
Angelo, seu mestre, e que a não faz menos do il-
lustre discipulo. Estas brilhantes qualidades lhe
grangearam os elogios de todos os sábios nacio-
naes e estrangeiros. ( Vid. D. Francisco Manoel
de Mello: hoqntcddm ktfras; Guarenti, etc.)
Vasques... viveu pelos annos de 1562. Poucos
pintores souberam, como elle, anatomia tão ne-
cessária para o bom desenho, e proporções, em
que se avantajou, e que lhe deram um mui dis-
tincto logar na historia da arte, apezar de seu
stylo um pouco rudov,^
Christovão Lopes n. 1516, m.... O stylo pom-
poso de Miguel Angelo, que tanto agradava ao
génio sublime e elevado dos portuguczes, foi o
seu modelo; e juntando a tam brilhante quaUda-
de a expressão do llaphael, enriqueceu a Pátria
156 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
com as magnificas producções, que ainda hoje
são admiradas depois de tantos séculos pelos sa-
bedores, e amantes das boas- artes.
D. Leonor de Noronha da casa de Linhares,
«. 1550, m. 1636. De Duarte Nunes de Leão na
^escripçíio de Portugal, e de Barbosa na Biblio-
th. Lus. sabemos só que pintou ex^elkntemente a
óleo e illuminnção.
António de Hollanda, inventor da illumina-
ção a pontos brancos e pretos em Portugal; e
com tanto mais merecimento, que absolutamen-
te ignorava a mesma descoberta, que então se
começava na Itália. Delle disse o Imperador
Carlos V, que mejor le habia sacado ai natu-
ral António de Holanda en Toledo de ilumina-
cion, que Ticiano en Bolona. Bem pouco vale
este elogio, porque homens desta classe nada en-
tendem de ordinário de tudo o que pode ter al-
gum valor ou merecimento, tendo de mais a
mais a presumpção do voto decisivo. Não cons-
ta porém, que Deus creasse mais que um Salo-
mão, e como este um morreu ha muito tempo,
e estes senhores se não dão o incommodo de fazer
aquillo, que fazem os que não são SalomÕes, ou
não tem a tal infiim, é bem claro o valor de si-
DA PINTURA 157
milhantes elogios. Carlos V porém (façamos
justiça) posto que o mais odioso monarcha por
seu cruel despotismo, não era com tudo o mais
tolo, e algumas luzes lhe tinham ficado de sen-
so commum, que se costumam apagar com a....
Francisco de Hollanda íloreceu pelo meio do
século XVI. — Pintor, architecto, poeta e phi-
losopho. — Na Itália Paulo III, e todos os gran-
des e sábios; toda a Hespanha; em Portugal
João III, e toda a corte o estimaram como
merecia. (Pois n'aquelle tempo também em Por-
tugal se dava preço ao merecimento!) O muito
que se tem escripto sobre este memorável por-
tuguez, me desobriga de mais extensa apologia.
De sobejo lh'a fazem seus preciosos escriptos,
suas pinturas, e toda a Europa. — De suas pro-
ducções é sem questão a obra-prima, o baptis-
mo de S. Agustinho (que ainda se conserva em
cabeça de morgado na casa dos Castros) em que
se admiram reunidos a sabia composição de Ra-
phaol, o desenho nobre e altivo de Mig. Angcl.,
e o bcllo colorido de Ticiano. — Julga-se quo
morreu cm 1Õ7 4.
158 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
PINTORES PORTUGUEZES DA III. ÉPOCHA
{Século XVII)
Diogo Pereira n. 1570, m. 1640. Traballiou
muito; e o desvalimento, em que sempre viveu,
não lhe aíFrouxou as graças naturaes e puras,
que fazem a belleza de suas composições. Mas
sobre tudo as scenas de horror foram o mimo do
seu pincel. Tive o prazer de admira-lo muitas
vezes em suas obras, que por decisiva prova de
merecimento, sSo procuradas por altissimos pre-
ços para Itália, França e Inglaterra.
Estevão Gonçalves Neto n...., m. 1627. E
delle o missal do convento de Jesus tam gabado
pelas excellentes miniaturas que o ornam. Sou-
be bera o ornato e prospectiva.
Amaro do Yalle n...., m. em 1619. Seu gos-
to é delicado; seu stylo grande e expressivo; o
desenho correcto, e assizada a perspectiva. Foi
pintor de Philippe II.
José de Avelar RebeUo viveu no tempo de
D. João IV, que o condecorou com o habito de
Aviz. Caracterizam suas obras (das quaes a me-
lhor é o >S. Jeronymo da livraria de Belém) um
DA PINTURA 159
stylo da grandeza de Mig. Ang., e um colorido
de sumnia verdade.
D. Josephade Ayala n...,, m. 1684. Um in-
genho fértil, muita verdade, expressão vivissima
são a característica de seus quadros, pela maior
parte, de flores e fructos; mas o seu grande gé-
nero foi o retrato.
Cláudio Coelho n...., m. 1693. Este homem
tam grande e tam conhecido tem sido aboca-
nhado por muitos, e exagerado por alguns; mas
a opinião geral o constituo n'um dos mais supe-
riores graus entre os mais illustres pintores. De-
senhou correctamente; coloriu como Ticiano; e
conheceu, como poucos, o effeito da prespectiva.
Tudo isto se observa principalmente no seu pri-
moroso quadro da sacristia do Escurial bem di-
vulgado pela moderna estampa de Bartholozzi.
( Vid. Palomin. Mii.s. Uid. pag. 440 até 444; o
abbadc Ponzz. Viag. cVEnp. Tom. V. pag. 65
até 126; Bermudez Diccion. hintor. Tom. I pag.
337 até 347; Bourgeoin Tableau de VExpaíjue
moderno Tom. I. p. 227.)
liento Coelho viveu no XVII sec. Grande faci-
lidade, bom colorido, como o de Rubens, que imi-
160 ENSAIO SOBRE A HISTORIA
teu; pouca correcção no desenho. Conservam-se
ainda muitas de suas obras.
PINTORES PORTUGUEZES DA IV. EPOCHÁ
{Século XVIII)
Victorino Manoel da Serra n. 1692, m. 1747.
Foi o primeiro, que em Portugal introduziu o
gôsto e ornato francez.
André Gonsalves, n...., m.... Foi correcto no
desenho, e bom no colorido; mas seu mereci-
mento principal é o de copista.
Ignacio d'01iveira, n...,, m. 1781. Distin-
guiu-se sobre tudo pelos encantos do colorido:
estudou em Roma, e trabalhou muito em Ma-
fra.
Francisco Vieira Lusitano n...., m. 1783. Es-
tudou muito em Roma, aonde, por concurso, le-
vou o premio da academia de S. Lucas. Foi
grande na alegoria; desenhou bem, coloriu divi-
namente, e teve muita expressão. Apezar de
tudo o que a inveja e a ignorância tem suscita-
do contra este grande mestre, elle será sempre
um d'aquelles, com que a pintura nacional mais
DA PINTURA 161
se honra e ennobrece. Vieira Lusitano é muito
conhecido, para me obrigar a maior elogio.
Joaquim Manoel da Rocha n, 1730, m. 1786.
Distinguiu-se pela correcção do desenho, e mui-
ta expressão. Foi director da academia do nu, e
professor na aula do desenho de Lisboa.
Francisco Apparicio n...., m. 1787. Distin-
guiu-se muito no retrato e sobre tudo, por uma
grande verdade de colorido. Estudou em França.
Luiz Gonsalves de Senna, n. 1713, m. 1700.
Foi mui destro no pintar; e em Lisboa se vêm
muitas obras suas de grande merecimento.
Jeronymo de Barros Teixeira n. em 1750, m.
1803. O stjdo simples e natural, bom colorido,
muita sciencia de claro-cscuro, e de architectura,
grande talento para o retrato o constituem em
mui distincto legar na ordem dos bons artistas.
Pedro Alexandrino de Carvalho n. 1730, m.
1810. Teve um pincel livre, viveza de cores, e
maneiras engraçadas, e foi um dos directores da
academia do nu.
José Teixeira Barreto nasc. no Porto 1763,
m. 1810. Estudou muito cm lloma, c com gran-
des mestres. Seu stylo é caprichoso, ma.s boUo.
Foi lente de desenho na academia do Porto.
162 ENSAIO SOBRE A HISTORIA DA PINTURA
Francisco Vieira Portuense n. 1765, m. 1805.
Foi primeiro-pintor da camera e corte, director
do instituto de desenho do Porto, e estimado e
honrado de toda a nação, e das estrangeiras,
principalmente da Ingleza. Foi premiado pela
academia de Londres. Pintou no stylo do Gui-
do e Albano; e, no seu género, não deixou aos
portaguezes nada que invejar ás outras nações.
riM.
ADVERTÊNCIA
Fui sempre muito pouco amigo de dar satisfa-
ções. Porém esta minha repugnância não é filha
de presumpção, nem de orgulho. De todo o meu
coração o digo, e todos os que me conhecem, o sa-
bem. Nasce d<i persuasão, em que estou, de que a
justificação diurna coma está na maneira por que
essa cousa se faz. E appUcando esta generalida-
de ás composições litterarias, cada vez me conven-
ço mais que os prólogos, prefácios, avisos a leito-
res, etc. nada fazem, nem fizeram, nem farão
nunca ao conceito, que da obra se forma.
S principio foi este, por que na faseada do meu
poema não puz tal ceremonia. Recendo -o porem
agora, examinando este Ensaio, e conhecendo- lhe
infindos defeitos, que me tinham escapado; sendo-
me impossível emenda-los; resolvo-me a dar satis-
fação; não para pretender Justifica-los, e salvar-
me dd critica com subtilezas, e argucias; mas para
fazer confissão pública d'ellcs.
Se me é licito x>orcm dizer duas palavras cm
meu abono, direi que tanto o poema, como as no-
tas, e ensaio são da minha infância poética; são
comjjostos na idade de dezasette annos. Isto não é
impostura: sobejas pessoas Jiahi, que m'o viram co-
meçar, e acabar então. É certo que desde esse
tempo ategora, em que conto quasi vinte e dous,
por três vezes o tenho corrigido; e até submettido
á censura de pessoas doutas, e de conhecida philo-
logia, como foi o Excellentissimo Senhor S. Luiz,
que me honrou a mim, e a este opúsculo com suas
correcções. Mas todos estes cuidados não puderam
(emquanto a mim) tirar- lhe o vicio do nasci-
mento.
Eisaqui a minha confissão geral. Os que me ab-
solverem ficar-lhes-hei muito obrigado; os que não
quizerem; paciência; não me mato por isso. Co-
mecei esta obrinha por desenfado: acabei-a por di-
vertimento: publico-a por amor das artes: se me
criticarem, rio-me, e não fico nml com ninguém.
BOSQUEJO
DA
HISTORIA DA POESIA E LÍNGUA PORTUGUEZA
A QUEM LER
A MINHA primeira ideia quando inteitei esta
coUecção, foi dar ao publico um extracto das me-
lhores poesias de nossos clássicos. Reflecti depois
que não seria ella completa, porque alguns géne-
ros ha que não tractaram aquclles illustres escrip-
tores : e em tam rica litteratura como é a portu-
gueza, pena fôra mostrar pouquidade e pobreza.
Resolvi-me por esse motivo a sahir dos limites
clássicos. Mas ainda apparecia outra diííiculdade:
espécies ha de poesia em que não escreveram se-
não auctores vivos ; atterrava-me a lembrança
de haver de julgar e escolher obras que aguardam
ainda o conceito da posteridade, quaái sempre
único tribunal recto das cousas dos homens, es-
168 A QUEM LER
pecialmente do matéria de gosto. Todavia o
mesmo motivo de querer fazer esta escolha o
mais completa que é possível, me determinou a
arrostar ess'outro escolho. Procurei nos escripto-
res vivos cingir-me quanto racionavelmente pude
á mais geral opinião, escolhendo aquelles trechos
que mais approvados teem sido ; ohservando pela
minha parte a mais vigorosa imparciaHdade que
humanamente se pode. E sendo, como sou, alheio
a toda disputa e rivalidade litteraria e poética,
se alguma hora no decurso d'esta obra julgarem
deslisei d'essa proposta impassibilidade, peço que
o attribuam a erro de meu juizo, não a propósito
dehberado. *
Queria eu também ao principio conservar a
■ Muito tempo hesitei se daria logar n'e8ta coIlecçSo a nm
poeta (iioje morto) em quem de certo houve algum ingenho,
mas que ignorou e desprezou a tal ponto a língua, tam cinica-
mente violou o decoro do stylo, as mais indispeasaveis regras
do gosto e da boa razão, que seus poemas são uma sentina de
gallicismos, e um apontoado de termos baixos, de expressões
que não usa gente de bem, de construcções barbaras, de versos
prosaicos, semeados áquem além de uma ideia feliz, de um bom
verso, de uma imagem poética. Já se vé que esta descripção a
ninguém quadra senão ao Santos e Silva. Cedi também n'este
ponto á opinião que o considera mais do que elle vale, e esco-
lhi o que me pareceu menos bárbaro da tal excêntrica Brazilia-
A QUEM LER 169
cada escriptor sua particular orthograpliia ; mas
a isso obstaram dous insuperáveis obstáculos. Pri-
meiro—não haver, sobre tudo nos clássicos, uma
base boa ou má em que cada um d'eUes fundasse
a sua orthographia para se poderem regularizar
as incalculáveis anomalias que se encontram em
uma mesma obra, na mesma pagina ás vezes.
Segundo— que bavendo sido muitas das obras de
nossos poetas antigos e modernos publicadas pos-
thumas, é impossivel acertar com o verdadeiro
systhema orthographico d'elles. Esta impossibi-
lidade augmentou ainda e se estendeu áquelles
que apezar de publicarem suas obras em vida, ca-
hiram em mãos de novos editores todos ignoran-
tes ou descuidados (nenhum conheço, a quem
fique mal o epitheto) que em vez de as melhora-
rem, estragaram e confundiram tudo. Ora d'al-
guns d'esses não foi possivel, por mais diligencias
que se fizeram, descubrir as primeiras edições, as
da: e provável é que escolhesse mal, porque difficil é julgar
um bomcm bem quando está cahindo com $omno.
Fui obrigado a pdr um grande pedaço, porque em maior es-
paço appareceria um maior numero d'e8se8 poucos descuidos
felizeã do auctor.
170 A QUEM LER
quaes, segundo observei, ainda assim, não servi-
riam de muito.
Accresciam a estes dous motivos a feia appa-
rencia que teria a obra que mais houvera ficado
recosida manta de retalhos furtaeôres, do que
uma colleeção de poetas da mesma lingua.
Determinei pois imprimir tudo com regular e
geral orthographia; cujos principios extrahi do
uso dos melhores clássicos, uso que nem sempre
seguiram, mas que manifestamente se vê quise-
ram seguir ; e são estes :
I. Conservar fielmente a ethymologia quando
se lhe não oppõe a pronúncia.
II. Combiná-la com a pronúncia quando esta
se oppõe á inteira conservação d'aquella.
III. Nas palavras de raiz incógnita seguir o
uso geral,
IV. Nas diversas modificações dos verbos con-
servar sempre a figurativa quando a pronúncia
não obsta.
V. Não pôr accentos (agudo e circumflexo que
são os únicos portuguezes) senão onde a palavra
sem elles se confundiria com outra. (Também me
servi do agudo para marcar a dieresis por não
A QUEM LER 171
estar ainda adoptado entre nós o signal (. .) que é
bem necessário.)
Julgo haver prestado algum serviço á littera-
tura nacional em offerecer aos estudiosos de sua
lingua e poesia um rápido bosquejo da historia
de ambas. Quem sabe que tive de encetar maté-
ria nova, que portuguez nenhum d'ella escreveu,
e os dous estrangeiros Bouterweck e Sismondi
incorrectissimamente e de tal modo que mais con-
fundem do que ajudam a conceber e ajuizar da
historia htteraria de Portugal ; avaliará decerto
o grande e quasi iudizivel trabalho que me cus-
tou esse ensaio. Não quero dá-lo por cabal e per-
feito ; mas é o primeiro, não podia se-lo. Além
de que, a maior parte das ideias vão apenas to-
cadas, porque não havia espaço em obra de taes
limites para lhe dar o necessário desenvolvimento.
BOSQUEJO
DA
HISTORU DÂ POESIA E LINGUÂ PORTUGUEZA
Origem de nossa língua e poesia.
A UNGUA e a poesia porhigueza (bem como
as outras todas) nasceram gémeas, e se criaram
ao mesmo tempo. Erro é commum, e geral mesmo
entre nacionaes, pela maior parte pouco versados
em nossas cousas, o pensar que a língua portu-
gueza é um dialecto da castelhana, ou hespanhola
segundo hoje inexactamente se diz.
Das variadas combinações das primitivas lin-
guagens das Hespanhas com o Grego, o Latim,
com os bárbaros idiomas dos invasores do norte,
e alfim com o Arábigo, nasceram em diversas
partes da Península diversíssimas línguas que
nem dialectos se podem chamar geralmente, por-
que, além de não haver uma commum, do muitos
174 HISTORIA DA LÍNGUA
d'elles é tam distincta a Índole e tam opposta
que se lhes não colhe similhança.
Ninguém ignora hoje que o Proençal foi a
primeira que entre as linguas modernas se culti-
vou, mas que por sua breve dura riao chegou
nunca á perfeição. Das nações da Hespanha, as
mais vizinhas áquelle crepúsculo de civilização
primeiro melhoraram sua linguagem: mas tam-
bém lhes coube igual sorte ; nunca de todo se pu-
liram. O Castelhano e Portuguez, que mais tarde
se cultivaram, permaneceram pelo sabido motivo
da conservação da independência nacional, e vie-
ram a completo estado de perfeição e caracter
cabal de linguas cultas e civilizadas. O Biscainho,
Catalão, Gallego, Aragonez, Castelhano, Portu-
guez e outras mais foram e são ainda alguns dis-
tinctos idiomas : porém so os dous últimos tive-
ram litteratura própria e perfeita, linguagem
commum e scientifica, tudo emfim quanto cons-
tituo e caracteriza (se é licita a expressão) a in-
dependência de uma lingua.
Grande similhança ha entre o Portuguez e
Castelhano ; nem podia ser menos quando suas
capitães origens são as mesmas e communs : po-
rém tam parecidas como são pelas raizes de de-
E DA POESIA PORTUGUEZA 175
rivação ; no modo, no systhema d'essas mesmas
derívações, na combinação e amalgama de idênti-
cas substancias e principios se vê todavia que di-
versos agentes entraram, e que mui variado foi
o resultado que a cada uma proveio. Filhas dos
mesmos pães, diversamente educadas, distinctas
feições, vario génio, porte e ademan tiveram : ha
comtudo nas feições de ambas aquelle ar de fa-
mília que á prima vista se colhe.
Este ar de familia enganou os estrangeiros, que
sem mais profundar, decidiram logo, que o Por-
tuguez não era lingua própria. Esse achaque de
decidir afoitamente de tudo é velho, sobre tudo
entre francezes, que são o povo do mundo entre
o qual (por philaucia do certo) menos conheci-
mento ha das alheias cousas.
Sem dúvida é que a lingua portugueza comC'
çou com seus trovadores, únicos no meio do es-
trépito das armas que algum tal qual cultivo lhe
podiam dar ; e provável é que assim fosse com
pouco melhoramento até os tempos d'el-rei D. Di-
niz, que no remanso da paz de seu reinado i)ro-
tegeu e animou as lettras, que elle próprio culti-
vou também.
176 HISTORIA DA LÍNGUA
II
Primeira epocha lilteraria ; fins do xiii até os
principios do xti sec.
D. João I o eleito do povo, e o mais nacional
de todos os nossos reis, deu ao idioma pátrio va-
lente impulso, mandando usar d'elle em todos os
actos e instrumentos públicos, que até então se
faziam em Latim. Foi esta lei carta de alforria
e de cidade para a lingua que atélli vivera es-
crava da dominação latina, a qual sobrevivera
não só ao império romano, mas a tantas conquis-
tas e reconquistas de tam desvairados povos.
Aqui se deve pôr a data da verdadeira aurora
das lettras em Portugal, que por singular pheno-
meno pouco visto entre outros povos, raiou ao
mesmo tempo com a das sciencias ; por maneira
que quando o romântico alaúde de nossas musas
começava a dar mais afinados sons, e a subir mais
alto que o atélli conhecido, as sciencias e as artes
cresciam a ponto de espantar a Europa, mudar a
face do mundo, e alterar o systbema do universo.
Desde então até á morte d'el-rei D. Manuel,
E DA ror.SIA rORTUGUEZA 177
tudo foi crescer em Portugal; artes, sciencias,
commércio, riqueza, virtudes, espirito nacional.
Muitas foram as producçÕes de nossa littera-
tura n'aquelle século de glória em que Gil- Vi-
cente abriu os fundamentos ao theatro das linguas
vivas, Bernardim Ribeiro puliu e adereçou com
alguns mimos da antiguidade o género inculto
dos romances ' c seguiu (quasi o segundo) o ca-
minho encetado pelo nosso Vasco de Lobeira nas
composições romanescas ; e ao cabo mostrou aos
rústicos pastores do Tejo alguns dos suaves modos
da frauta de Sicilia que nenhuma lingua viva até
então ouvira soar.
A natural suavidade do idioma portuguez, a
melancholia saudosa de seus números nos leva-
ram á cultura d'cste género pastoril, cm que raro
poeta nosso deixou de escrever, quasi todos bem,
porque a lingua os ajudava; nenhum perfeita-
mente, porque (inda mal) deram ás cegas em imi-
tar Sannazaro, depois Boscan e Garcilasso, e co-
piaram pouco do vivo da natureza, que tara bclla,
tam rica, tam variada so lhes prescntava por
todas as quatro partes de que em breve constou
' Não no scnlido de novcUas, roas no que então bc llic dava.
1^
178 HISTORIA DA LÍNGUA
O mundo portuguez, e das quaes todas ou assumpto
uu logar de scena tiraram nossos bucólicos. Nem
d'este geral defeito ' (o máximo que por ventura
se lhes nota) pode fazer-se excepção, senão for
alguma rara em favor de Camões e de Rodriguez
Lobo. O Tejo, o Mondego, os montes, os sitios
conhecidos de nosso paiz e dos que nos deu a
conquista, figuram em seus poemas ; porém raro
se vè descripção que recorde alguns d'esses sitios
que já vimos, que nos lembre os costumes, as
usanças, os preconceitos mesmos populares; que
d'ahi vem á poesia o aspecto e feições nacionaes,
que são sua maior belleza.
Bernardim Ribeiro foi um tanto mais original
em sua simplicidade, o que lhe falta de sublime
e culto sobcja-lhe em brandura, e n'uma ingénua
ternura que faz suspirar de saudade, d'aquella
saudade cujo poeta foi, cujos suaves tormentos
tani longo padeceu, e tam bem pintou.
Foi seu contemporâneo Gil- Vicente fundador
do theatro moderno, de cujas obras imitaram os
Castelhanos ; e d'ellas se espalhou pela Europa o
' Coinmum fainbera nos outros géneros de poesia, onde quer
ÍJU8 enlra o descriplivo.
E DA POESIA PORTUGUEZA 179
mau e o bom d'essa irregular e caprichosa scena,
que ainda assim suas belle>ías tem.
O próprio Gil- Vicente não deixa de ter seu có-
mico sal, e entre muita extravagância muita cousa
boa. Bouterweck e Sismondi parece que escolhe-
ram o peior para citar ; muito melhores cousas
tem, particularmente nos autos, superiores sem
comparação ás comedias. A soltura da phrase, o
a falta de gosto são os defeitos do século ; o inge-
uho que d'alii transparece é do homem grande e
de todas epochas '.
III
Segunda cpocha littcmria; idade de ouro da poesia e da lingua
ámdo os princípios do xvi ate os do xvii sec.
Com a morto d'el-rei D. Manuel declinou vi-
sivelmente a fortuna portugucxa: certo é que as
artes progrediram, que a lingua se aperfeiçoou ;
porém esse movimento era continuado ainda do
' Rcservo-mc para uma edirilo que pretendo publicar do
nosso IMauto, fructo de loiíf^o e penoso trabalho, para exami-
nar melhor eslo ponto, e demonstrar o qnu uqiii enuncio.
180 HISTORIA DA LÍNGUA
impulso anterior e já não promettia longa dura.
Assim succedeu. D. João III colheu os fructos
do que D. Manuel havia semeado ; mas de lavras
suas, nem elle, nem seus successores viram co-
lheita.
Uma cousa todavia que muita influencia teve
sobre a lingua e litteratura portugueza e que a
instituições de D. João III se deve, foi o cultivo
das linguas clássicas, que na reformação da uni-
versidade de Coimbra augmentou muito. Os mo-
delos gregos e romanos foram então versados de
todas as mãos, estudados, traduzidos, imitados.
Aperfeiçoou-se a lingua, enriqueceu-se, adquiriu
aquella solemnidade clássica que a distingue de
todas as outras vivas, seus periodos se arredon-
daram ao modo latino, suas vozes tomaram muito
da euphonia grega ; d' um e d'outro d'esses idio-
mas lhe vieram as muitas, e principalmente da
grega, os muitos hyperbatos ; com o que vai rica,
Hvre e magestosa por todas as províncias da lit-
teratura, que tem decorrido, não havendo ahi gé-
nero de composição, para o qual, ou por doce de
mais como o Toscano, não seja própria,— ou por
mui áspera e guindada como o Castelhano, se
não adapte,— por curta como o Fraucez, não che-
Á
E DA POESIA PORTUGUEZA 181
gue,— por inflexível e ríspida como o Alemão e
Inglez, se não amolde.
Claro é que a historia, a oratória, todas as ar-
tes do discurso deviam de florescer com tal
augmento. Com ellas todas medrou e cresceu a
poesia na delicadeza, na harmonia, no gosto ; po-
rem desmereceu muito, demasiado na originali-
dade, no caracter próprio, que perdeu quasi todo,
em a nacionalidade, que por mui pouco se lhe ia.
Todos os deuses gregos tomaram posse do mara-
vilhoso poético, todas as imagens, todas as ideias;
todas as allusões do tempo de Augusto occupa-
ram as mais partes da poesia ; e mui pouco ficou
para o que era nacional, para o que já tínhamos,
para o que podíamos adquirir ainda, para o que
naturalmente devia nascer de nossos usos, de nos-
sas recordações, de nossa archeologia, do aspecto
de nosso paíz, de nossas crenças populares, e em-
fim de nossa religião.
Sá do Miranda, verdadeiro pao da nossa poe-
sia, um dos maiores homens de seu século, foi o
poeta da razão e da virtude, philosophou com as
musas, c pootisou com a philosopliia. Seu muito
saber, sua experiência, seu tracto aíFavcl, e até
a nobreza do seu nascimento, lho deram indíspu-
182 HISTORIA DA LÍNGUA
tada superioridade a todos os escriptores d'aquelle
tempo, dos quaes era ouvido, consultado e imi-
tado. Sá de Miranda exerceu sobre todos os poe-
tas d'aquella cpocha a mesma espécie de império
que veio a ter Boileau em França, e mais mo-
dernamente Francisco Manuel entre nós. Intro-
duziu na poesia os metros italianos, e os modos,
versos e combinações de rhymas de Dante e Pe-
trarca : e desd'alii quasi se abandonaram inteira-
mente (excepto nas voltas e glosas) os nossos an-
tigos versos de redondilha, e absolutamente os
de arte maior e menor, que ainda assim mui pró-
prios são para certos assumptos, segundo com fe-
liz exemplo no-lo mostraram antigos e modernos
poetas. Nem o mesmo Sá de Miranda igualou
nunca em composições hendecasyllabas a pureza,
a correcção, a naturalidade e sublime simplicidade
de suas redondilbas nas epistolas, que hoje são
seu maior e quasi único titulo de glória.
São de admirar suas comedias, e são notá-
vel monumento para a historia das artes pela fe-
liz imitação dos antigos, e pelo que excedem
quanto até então se tinha escripto. Porem o
theatro portuguez creado pela musa negligente
e travessa de Gil- Vicente e João Prestes, carecia
E DA POESIA PORTUGUEZA 183
de reforma, mas não podia supportar uma re-
volução. As comedias de Sá de Miranda sem ca-
racter nacional, mui clássicas de mais não eram
para reformá-lo: o mesmo direi, e o mesmo
succedeu ás de Ferreira, a algumas poucas mais
que depois vieram. O etfeito d 'estas composi-
ções, aliás preciosas, foi funesto: os litteratos
enjoaram-se (e com razão) do theatro nacional,
e não se deram a corrigi-lo e melhora-lo: o pú-
blico preferia (e com razão também) o com que
fôracreado, o que o interessava, o que o diver-
tia, e antes queria rir com as grosserias dos au-
tos populares, que bocejar e adormecer-se com
as finuras d'arte e correcções d'essas comedias,
que tudo tinham, menos interesse, onde todo o
spirito havia, menos o nacional.
Sc houveram Sá de Miranda e Ferreira esco-
lhido assumptos portuguezes, se houveram pin-
tado os costumes naciouaes, e prescntado ao
público, em vez de quadros itahanos, um espe-
lho em que se elle visse a si e aos seus usos, c
se risse do seus próprios defeitos; fico em que
houveram reformado o thoatro em vez de lhe
empecer: e acaso gosariaraos ainda hoje em uma
scena rica e abastada dos resultados d'esse im-
184 HISTORIA DA LÍNGUA
pulso, quando não temos senão que chorar, e
vivemos, sobre o theatro, das migalhas que men-
digamos a estrangeiros pelo triste meio de tra-
ducções, que (as dramáticas sobre tudo) nun-
ca podem ser boas.
Sá de Miranda escreveu alem d'isto algumas
éclogas bastante frias, vários sonetos geralmen-
te de pouca monta. Um d'elles á morte de Le-
andro e Hero é excollente, mas castelhano, e por
esse achaque o não incluí na escolha. ^
Não posso deixar de querer mal a tam illus-
tre portuguez pelo muito que escreveu n'essa
lingua estranha; com que não só privou a natu-
ral do fructo de suas tarefas, mas fez maior dam-
no ainda com o exemplo que abriu; exemplo
funesto que nos cerceou a litteratura, que nos
defraudou d'uma Diana de Monte-maior, de
tantas boas coisas mais, e ao cabo ia perdendo
a lingua.
Mas eisahi António Ferreira para combater
esse mal em sua origem: ei-lo ahi esse portu-
guez verdadeiro, ardente amador da lingua,
' A. Rib. dos Santos tradazia este soneto em portuguez e
(cousa inexplicável em tal homem!) o deu por seu.
E DA POESIA PORTUGUEZA 185
clamando a todos, pugnando contra todos os que
não prezavam e aditavam o pátrio idioma com
as producções do ingenho e das artes. O pro-
fundo conhecimento dos clássicos gregos e lati-
nos, o finíssimo gosto que em seu estudo tinha
adquirido, • a felicidade com que sempre os imi-
tou, a pureza da phrase, as riquezas com que
adornou a língua deram aos versos de Ferreira
grande popularidade entre os Ktteratos e corte-
zãos (que, ao aveço de hoje, as lettras viviam
então quasi só na corte) e fixaram determina-
damente o género clássico entre nós.
Cegou-se todavia o nosso bom Ferreira na
imitação dos antigos; copiou-os, não os imitou:
c d'ahi, enriquecendo a lingua, empobreceu a
litteratura, porque a avezou a esse hábito de co-
pista; cancro que roe o espirito creador, alma e
váda da poesia nacional. Tão cega foi esta imi-
tação, que seus mesmos versos, aos quaes hoje
ninguém defende da nota de ásperos e duros (e
muitos direi— errados) os fazia assim de propó-
sito por querer usar das ellipses gregas c lati-
nas, a que repugna a Índole de nossa lingua, so
toleráveis em certas vozes que na prosa mesma
80 pronunciam e escrevem no final com m ou
186 ' HISTORIA DA língua
sem elle. Este desagradável defeito dos versos
de Ferreira é principalmente sensivel nas dicções
que teem final no que chamámos (mal ou bem)
diphtongos nasaes de ão, e muito mais quando
n'elle é o accento predominante da palavra.
Os sonetos são frios desengraçados; nas éclo-
gas ha beliezas muitas, e mui grandes, mas es-
palhadas: nenhuma d'éstas composições toma-
da per si pôde merecer o nome de bella. Porem
das odes, ha d'ellas que são puramente horacia-
nas, e se lhes fallece a elevação (que não era
esse o génio de Ferreira) sobeja-lhe a graça, a
elegância e a adornada phiiosophia, que não
agradam menos, nem de menos valor e mérito
são que os extasis pindarieos, ou os requebros
anacreonticos. O que é sem dúvida é que nas
linguas vivas Ferreira foi o primeiro imitador
feliz de Horácio, e o primeiro dos modernos que
pulsou a lyra clássica. Das epistolas, ha algu-
mas que podem pleitear em concisão e fino dizer
com as boas do lyrico romano. Quanto á pure-
za da moral, ao nobre patriotismo, áquelle ge-
neroso sentimento da honrada liberdade de nos-
sos avós, áquelle enthusiasmo da virtude; esse
E DA POESIA PORTUGUEZA 187
respira, mostra-se e resplandece em todas as
suas obras.
Mí>6 a verdadeira glória de Ferreira é a
Castro, producçSo admirável per si mesma, pelo
tempo em que a escreveu, por todos os lados
por que se considere. Não é ainda líquido en-
tre os philologos se era possivel o ter visto Fer-
reira a Sophonisba de Trissino, que mui poucos
annos antes da Castro appareceu: mas é sem a
minima questão reconhecida a superioridade da
tragedia portugueza á italiana: pasma como
sem ver um tlieatro, sem mais exemplares que
os gregos e latinos, podessc Ferreira tractar tão
delicadamente um tal assumpto em um género
desconhecido da antiguidade. E notável a pri-
meira scena da Castro, a scena d'el-rei e dos
conselheiros no acto II. a do acto III. em que
o coro traz a Castro as novas de sua cruel sen-
tença, onde aquella pergunta de Ignez: "É mor-
to o meu senhor, o meu infante?" rasgo de su-
blime, porem d'um sublime todo sensibilidade,
ao qual nom o qi('il mouràt de Corneille pode
coniparar-se; e finalmente os coros, que sem pai-
xão são superiores a todos os exemplares da an-
tiguidade, e não teem que invejar aos tão gaba-
188 HISTORIA DA LÍNGUA
dos da Athalia. Nâo dou a Castro por uma tra-
gedia perfeita: ainda em relação ao seu tempo
e aos conhecimentos da scena d'então tem ella
defeitos: não haver uma scena em que se encon-
trem Pedro e Ignez, não haver algum esforço
do infante para lhe valer, deixam a peça muito
nua de acção, e lhe entibiam o interesse. A ver-
sificação (que todavia é de preferir aos versos
sesquipedaes e himpados com que hoje está pre-
vertida a scena portugueza) pécca geralmente
por dura; mas essa mesma é por vezes bella; e
para bons entendedores muito ha hi que estu-
dar; e oxalá que os nossos dramáticos lessem e
relessem bem a Castro, e apprendessem alli, pe-
lo menos, naturalidade e verdade de expressão,
que tanto lhes fallecem.
Não estava ainda n'este auge a poesia portu-
gueza quando um homem pouco conhecido dos
lettrados, mas ja célebre per suas aventuras e
valor, foi para tão longe da ingratissiraa pátria
despicar-se de seu desamor com a mais nobre
vingança; a de levantar-lhe um padrão, com que
não entram as idades, e que conservará ainda o
nome portuguez quando ja elle houver desap-
parecido da terra. Muita erudição (pois sabia
E DA POESIA PORTUGUHZA 189
quanto se soube em seu tempo) ingenho dos que
vêem ao mundo de séculos a séculos se reuni-
ram em Camões. Esse homem levantou a cabe-
ça la das extremidades d' Ásia, e viu tudo pe-
queno á roda de si, todos os poetas pigmeus, to-
dos acanhados com as linguas modernas ainda
mal perfeitas, escravos da imitação clássica, in-
certos e entalados todos entre o cego respeito
da antiguidade e as novas precisões que as novas
ideias, que o novo estado do mundo requeria.
Teve animo para conceber e força para execu-
tar um rasgado e necessário atrevimento do se
abrir caminho novo, de crear emfim a poesia
moderna,' dar não so a Portugal, mas á Europa
toda um grande exemplo, e coustituir-se o Ho-
mero das linguas vivas.
Não me dá espaço o acanho de meus limites
para dizer de Camões o que era indispensável;
antes a celebridade do seu nome me deixará pa-
rar aqui para dar logar a tractar de menos co-
nhecidos nomes. Só direi que a influencia de Ca-
mões na nossa poesia, e em toda a littcratura
portugueza foi tal que desde então té hoje ainda
se não deixou de sentir, mesmo nas epochas em
que mais desvairados teem andado nossos poo-
190 HISTORIA DA LÍNGUA
tas com as empolas do gongorismo, ou mais luná-
ticos com os esfusiotes do clmanismo. Quasi que
não houve género de poesia que não tractasse:
tem sonetos admiráveis; éclogas (sobre tudo as
primeiras) excellentes; mas principalmente de
todas as poesias menores são o mais sublime e
perfeito as canções, género a que deu uma no-
breza e elevação desconhecida mesmo em Pe-
trarca: sirva de prova e exemplo aquella que
começa— "Junto d' um sêcco duro e estéril mon-
te." Dos Lusíadas, de suas bellezas e defeitos,
das controvérsias sobre umas e outros, está cheio
o mundo Htterario.
Contemporâneo de Camões e ousado também
como elle a encetar a carreira épica foi Jeróni-
mo Cortereal. O Cerco de Diu, que é notável
monumento litterario, e que de certo se teve al-
gum exemplar foi a Itália do Trissino, é uma
fria narração, em que ha bellas ideias áquein
alem, muita riqueza de linguagem, pouca de
poesia, e pelo geral maus versos. E comtudo é
talvez Cortereal o primeiro (em data) poeta des-
criptivo; e creou elle acaso esse género de que
tanto blasonam hoje inglezes, alemães, e até
francezes, e que todavia nós tínhamos séculos
E DA POESIA PORTUGCEZA 191
antes d'elles. Ja no Cerco de Diu ha muitas
boas descripções; mas no naufrágio de Sepúlveda
ha d'ellas subhmes.
Entre muito devaneio de imaginação e de
mau gosto, entre aquelles insipidos requebros
de Pan e de Protheu apparece todavia a morte
de D. Leonor que é um trecho da mais bella
poesia, da mais fina sensibilidade que se tem
composto.
De todos esses poetas que então floreceram é
na rainha opinião o menos poeta esse Pêro d' An-
drade Caminha, a quem da amisade e celebri-
dade de Ferreira e Bernardes vem talvez o
maior renome. Ainda assim tem algumas odes
boas, simplicidade com elegância por partes de
suas composições: cpigrammas, são alguns ex-
ccllentes.
Sobreviveu a todos estes e á pátria, que não
tardou em perecer, o suave cantor do Jjiina que
levado per D. Sebastião para testimunhar seus
altos feitos, do que devia ía/or um poema, per-
deu-se cora seu rei, e jazeu captivo em Africa.
Pondo de parte a questíio das éclogas (na qual
do certo não andou de boa fé Faria c »Sousa) a
íjual, ainda que própria do logar, é mui longa
192 HISTORIA DA LINGDA
para os meus limites; Bernardes foi excellente
poeta; e com quanto sua linguagem é pobre, e
em geral pouco variadas suas composições; a
suavidade de seu stylo, certa m^elancholia d'ex-
pressão que lli'o requebra e embrandece darão
sempre a Bernardes um logar mui distincto na
poesia portugueza.
Mas já a nação se perdera nos arcaes de Afri-
ca, já a glória portugueza estava ofifuscada; com
ella foram (como sempre vão) as boas artes.
Ainda brilhara a espaços faíscas do grande lu-
zeiro que se apagara; mas já não eram senão
faíscas.
Ainda Luis Pereira deplora na Elcgiada a
ruma da pátria, mas esse canto fúnebre é quasi
o canto de cysne da poesia nacional, que parece
querer fenecer com elle, e já n'elle moribunda
se mostra. Ha excellentes oitavas derramadas
per esse poema, algumas descripções felizes,
grandíssima riqueza de linguagem; mas pouco
mais.
Já Fernão Alves do Oriente dififuso, intrin-
cado nos primeiros labyrinthos dos conceitos ita-
lianos mostra a visível decadência da poesia: já
as musas que tão louçans, e ingenuamente bel-
E DA POESIA PORTUGUEZA 193
las tinham folgado pelas várzeas do Tejo e do
Mondego com Ferreira e Camões, apparecem
aíFeitadas com arrebiques e cores falsas, como
essas damas para quem se desbota a flor da ida-
de e lhe querem ainda supprir o viço com em-
prestados ornamentos, gentilezas compradas e
postiças. E todavia ha na Lusitânia transfor-
mada pedaços lyricos excellentes, e alguns bucó-
licos soôriveis. Assim elle nos dissesse mais do
seu Oriente do que nos disse: assim houvesse
enriquecido a litteratura com mais imagens de
tantas que sua Ásia lhe oíferecia, e com que
houvera additado a mãe pátria. Onde o fez, n'a-
quella écloga em que conta a historia de Sala-
dino, é elle verdadeiramente poeta; c se d'ahi
tirarem alguns trocadilhos que tinha apprendido
cm Itália, excellente e digno de imitar-se é o
resto.
IV
Terceira epoclia lilleraria; principia a corromper-sc o goílo e
a declinar a liii{,'ua. — Começo, até o Um do xvii sec.
Porem os symptomas do Gomjorisnw e Ma-
rinmnu se manifestavam já cm Itália c Castel-
13
194 HISTORIA DA LÍNGUA
la; não perfeitos ainda, não no auge a que os le-
varam os dous poetas, aliás ingenhosos, cujo nome
vieram a tomar; mas já assim mesmo a poesia
moderna estava toda gafa d'essa lepra de su-
berba requintada.
Vasco Mousinho de Quevedo, que sem dispu-
tar é depois de Camões, nosso primeiro épico,
ahi tem já em toda a nobreza de seus versos a
quebra de bastardia d'esse defeito, que todavia
é n'elle ainda raro. Mas que bellezas tem esse
tão mal avaliado Affonso Africano, a que a ce-
gueira e o mau gosto tem querido preferir a
quixotica e sesquipedal Ulyssea, a hyperborea e
campanuda Malaca! Não é regular o poema, não
é uni todo perfeito; o maravilhoso é frio, e a
acção toda não mui bem deduzida; mas que ri-
quissimos episódios a enfeitam! A descripção
de Zara, o jardim incantado onde aporta o prín-
cipe D. João, e alguns outros trechos são cu-
nhados com o sêllo da verdadeira poesia, e ani-
mados da luz que só dá o ingenho. Quanto ao
stylo, é com poucas excepções fluido e elegan-
te; custa a achar em tão longo poema uma rhy-
ma forcada ou má: e a mesma linguagem, sup-
E DA POESIA PORTUGUESA A 195
posto decline um tanto da primeira pureza, é
ainda de boa lei e valiosos quilates.
D'ésta epocha é também Rodrigues Lobo, cujo
grande logar como prosista não é aqui próprio de
examinar: de seu merecimento poético a com-
mum opinião tem com justiça decidido dando-
Ihe um dos primeiros (eu quizera o primeiro)
logar entre os bucólicos antigos; e outro mui dif-
ferente e inferior entre os épicos. E certo, o
Condestabre, apezar de muitos e bons pedaços
descriptivos, é frouxa e morna composição. Que
dififerente era a frauta que ia fioando pelas mar-
gens do Lis, a dulcissima frauta de Lobo,
quando comparada com a tuba heróica, para
cuja altivez lhe fallccem natureza e arte! seus
pastores são verdadeiros pastores, sua lingua-
gem é verdadeira do campo, não lhes sahem pe-
los golpes do pcllico as alfaias da cidade, tão
mal encubcrtas pelos outros bucólicos, os quaes,
sem excepção do próprio Camões, todos peccam
por mui sabidos e lettrados, por discretos e ga-
lantes mais que soem ser aldeãos e pastores.
Alem d'isso ha derramados pela Primavera,
Pastor peregrino, ctc, pedaços lyricos de sum-
196 HISTOKIA DA LÍNGUA
ma belleza, romances excellentes e verdadeira-
mente dignos de admiração e estudo.
Tinhamos perdido a independência; perde-
mos logo o espirito nacional, o tymbre, o amor
pátrio (que amor da pátria poderá haver em
quem pátria já nSo tem); a lisonja servil, a adu-
lação infame levou nossos deshonrados avós a
desprezar seu próprio riquíssimo e tão suave
idioma, para escrever no guttural Castelhano,
preferindo os sonoros helenismos do portuguez
ás aspiradas aravias da lingua dos tyrannos. Ver-
gonha que so tem par nas derradeiras vergo-
nhas com que nos enxovalharam a lingua e a
fama os tarellos , francelhos, gallici-parlas e
toda a caterva dos gallo- manos!
Em Castelhano escreviam já esses degene-
rados portuguezes: mas pouco importava que
o fizessem, que n'isso fraca perda tivemos nós:
de toda essa cafra de versos castelhano-portu-
guezes pouco ou nada ha que espremer.
D'ésta commum baixeza se alevantou o hon-
rado e douto magistrado Gabriel Pereira de Cas-
tro, que depois de ter aberto na jurisprudência
um caminho novo e n'aquelle tempo tão difficil
por grandes verdades então perigosas, tomou
E DA POESIA PORTUGUEZA 197
ousado a trombeta de Homero, e não se arrojou
a menos que a competir ao mesmo tempo com a
Iliada e Odyssea; que tanto abraça o assumpto
de seu poema. Grande é a concepção, bem dis-
tribuídas as partes, regularissimo o todo, regu-
lar e bella a acção, bem intendidos os episódios;
mas o stylo.... o stylo é, prototypo da Phenix-
reiMscida, o requinte do gongorismo, cujo patri-
archa foi entre nós, pervertendo-nos, á sombra
de sua grande fama e brilhante ingenho, todo
o resto escasso que de gosto tinhamos ainda, in-
trincando a poesia (senão que também a prosa
por mau exemplo) n'um dédalo inextricável de
conceitos, de argucias, de exagerações, de affec-
tada sublimidade, falsa c van grandeza; com
que de todo veio a torra a poesia nacional, e
acabou a grande eschola de Camões e Ferrei-
ra, que tantos e tamanhos alumnos havia pro-
duzido. E suppunha esse homem vaidoso ter
sobrepujado com as queixotadas da sua Ulyssea
as naturacs bellczas dos divinos Lusíadas!
Quasi o mesmo errado trilho, mas que menos
brilhante e com inferior ingenho, seguiu Sá de
Menezes na Malaca. Esse poema, que tanto tem
engrandecido o mau gosto, é na minha opinião
198 HISTORIA DA LÍNGUA
um dos derradeiros títulos de glória da litera-
tura pprtugueza. E todavia é bem regular, bera
concebido, e a espaços se lhe encontram grandes
rasgos de gentileza poética. A falia de Asmo-
deu no conselho infernal faz lembrar muito a
de Lúcifer em Milton. Porem quando agitado o
poeta do génio mau que avexava e endemoni-
nhava os poetas d* então, começa a guindar-se a
transpor os derradeiros limites da natui-alidade;
esquece todo o deleite que algumas estancias
mais descuidadas nos haviam causado, e é forço-
so desemparar a dura tarefa de tão incommoda
leitura, porque verdadeiramente incommoda e
cança tal stylo, tal phrase, tanto hyperbolico
luxo e destemperado alambicar.
Quarta epocha: idade de ferro; aniquila-se a littoratura, cor-
rompe-se inteiramente a língua. — Fios do xvii, até mea-
dos do XVIII sec.
Mas ainda estes tinham sua nobreza, havia
não sei que grande entre todas essas nuvens de
talco; talvez lhes viesse dos assumptos: porem
K DA POESIA PORTUGUEZA 199
seus discípulos que ainda quizeram ir avante,
deram em fazer silvas, acrósticos, e engendra-
ram todos os outros monstros (originários, se-
gundo Diniz, do paiz das hagatellas) e distillan-
do mais e mais as quintas essências dos concei-
tos, tanto torceram e retorceram o ja delgado fio
poético, que de todo o quebraram. So Manuel
da Veiga o atou momentaneamente em uma ou
duas lyras da Laura de Amphriso. Logo tornou
a estalar: e per ahi , andaram as pobres musas
portuguezas jogando as cabras-cegas pelas éclo-
gas de Poliphemo e Galatea, pelos romances
hendecasyllabos, e per todos os outros escondri-
jos do gosto depravado, de que boas amostras
se conservam no precioso tombo da PJicnix-re-
nascida e alguns outros hoje ignorados livros
d'essa triste data.
E todavia ja nós tinliamos recobrado tão glo-
riosamente nossa independência, ja o nome por-
tuguez tornara a ser honra e nobreza, e ainda
essa lepra castelhana lavrava.
Dous grandes escriptores, anibos prosistas e
ambos dignos de muito louvor, concorreram para
a continuação d'este mal. Quem podia deixar
de admirar Vieira? Quem não iria levado pela
200 HISTORIA DA LÍNGUA
torrente de sua eloquência? Quem resistiria aos
Ímpetos de arrebatamento de Jacinto Freire? O
grande talento de ambos, a vasta erudição e
desmedido iugenho de Vieira sobre tudo, fizeram
grande damno á litteratura: sabiam, escreviam
perfeitamente a lingua, tinham grande crédito
na corte, tractavam grandes assumptos, anima-
va-os o nobre e sincero enthusiasmo da glória
e liberdade nacional: tudo foi após elles; imita-
ram-lhes vicies e virtudes; como não distinguiam
em Vieira o grande orador, o grande philoso-
pho do gongorista aífectado (quando o era) não
estremavam em Jacintho Freire o historiador,
o panegyrista do declamador, do académico vão;
ruim e bom seguiam. E como é mais fácil imi-
tar a aífectação, que a naturaHdade, as argucias
de má arte, que as graças de boa natureza; os
imitadores foram alem de seus typos noafíecta-
do, no mau d'elles, ficaram immenso aquém do
que n'esses era bello e para imitar.
Nem o conde da Ericeira que traduziu a Ar-
te poética de Boileau e d'elle levou tão immere-
cidos e banaes elogios, tomou d'ella triaga bas-
tante para se curar do veneno commum: e ainda
assim melhor é sua frigida Henriqueida que os
E DA POESIA PORTUGUEZA 201
outros versos que por então se faziam em Por-
tugal: porem o único olho que o fez rei em ter-
ra de cegos, não lhe era bastante para ver e
acertar com a vereda da posteridade. Ahi mor-
reu no seu século e ahi jaz pela poeira de alguma
livraria de bibhomaniaco.
As academias de historia, de Htteratura do
tempo de D. João V, as associações ridículas de
todos os nomes e descripções que então se for-
maram, a mais c mais empeioraram o mal, que
progressivamente cresceu até o ministério do
marquez de Pombal.
VI
Quinla epocha: restauraçio das lettras em Portugal. — Meio
do século XYiii alé o fim.
A civilisação e as luzes que a geram, tinham-
se estendido do sul para o norte. A corrupção
que após ellas vem em seu marcado período, as
fora apagando, ou enncvoando ao menos, na
mesma direcção. De sorte que pelos fine do
XVII século o meio-dia, que havia sido berço
da illustração da Europa, quasi se cnnoitava daa
202 HISTORIA DA LÍNGUA
trevas da ignorância, as quaes pareciam voltar
como em reacção para o ponto d'onde partira a
primeira acção da luz que as dissipara.
O norte, que mais tarde se havia allumiado,
progredia no emtanto: as boas letras, as artes,
as sciencias floreciam na Inglaterra e por quasi
toda a Allemauha. Milton, Descartes, Newton
e Linneu brilharam ao septentrião da Europa;
e nós meridionaes estudávamos as catl/egorias e
as sumnms, aguçávamos distincções, alambicáva-
mos conceitos, retorcíamos a phrase no discur-
so, torcíamos a razão no pensamento.
Porem a face do mundo estava começada a
mudar: as antigas barreiras que a politica e os
preconceitos erguiam entre povo e povo quasi de-
sappareciam; as mutuas necessidades, e até o
mesmo luxo, faziam quasi indispensável preci-
são as permutações do commércio; e o commér-
cio fraternizou as nações.
Reciprocamente se estudaram as linguas, ge-
neralizou-se esse estudo: então é que exactamen-
te os sábios começaram a ser de todos os paizes:
os bons livros pertenceram a todas as linguas; e
verdadeiramente se formou dentro de todos os
estados um estado que (sem os inconvenientes
li DA POESIA PORTUGUEZa 203
do status in statu dos ultramontanos) com justi-
ça e exacção obteve e mereceu o nome de repu-
blica das lettras, a qual é uma, universal, e
sem perigo de scliisma.
Os effeitos d' esta alteração no modo de exis-
tir do universo foram sonsiveis: as luzes não so
reverteram (sem retrogradar) do norte para o
sul, mas se diíFundiram geraes. A França viu
então o século de Luiz XIV; Itália deixou sanc-
to Thomaz e os comncetti por melhor pbiloso-
pbia e melhor gosto; Hespanha teve o seu Car-
los III; e Portugal no reinado d'el-rei D, José
subiu á altura dos outros povos, senão é que em
muitas cousas acima.
E ainda na reforma da universidade não ti-
nham apparecido Monteiros-da-Rocha e os ou-
tros portuguezes que d'alli expulsaram a barba-
ridade entrincheirada em Coimbra como em
sua ultima cidadella da Europa, e ja a razão e
o gosto recobravam seu império na litteratura;
ja as odes do Garção, as obras do padre Freire
e de outros illustres philologos haviam afugen-
tado as .silvas, os acrósticos, e os campanudos
periodos do conde da Ericeira, regenerado a poe-
sia e restituído a lingua.
204 HISTORIA DA MNGUA
Outravez ainda o limitado d'este bosquejo me
impede de mencionar outros ingentes que tan-
to mereceram da pátria e da litteratura e remo-
çaram a perdida língua de Camões. Exige o
meu assumpto e o meu espaço que me estreite
no círculo poético.
Garção foi o poeta de mais gosto c (por aven-
turar uma expressão que não é legitima, mas
pode ser legitimada portugueza) de mais fino
htcto que entre nós appareceu até agora. Have-
rá n'outros mais fogo, outros ferverão em mais
euthusiasmo, crearão acaso mais; porem a deli-
cadeza de Garção so tem rival na antiguidade.
A musa pura, casta, ingénua, nunca lhe desvai-
rou: em suas composições ha d'ellas onde a mais
aguçada crítica não esmiunçará um defeito. Tal
é a cantata de Dido, uma das mais sublimes con-
cepções do ingenho humano, uma das mais per-
feitas obras executadas da mão do homem. Todo
se deu ao género lyrico, especialmente ao Hora-
ciano; e n'esse ninguém o excedeu, antes nin-
guém o igualou. A ode á virtude, a que se in-
titula o Suicídio (que pela primeira vez sai a
lume n'esta coUecção) outras muitas que longo
fora enumerar, são de uma beUeza, d'uma cor-
E DA POESIA PORTUGUEZA 205
recção, d'um acabado (como dizem os pintores)
que difficilmente se imitará, tarde se chegará a
igualar.
Não da mesma sorte António Diniz, que mais
arrojado, mais pomposo, menos correcto e ele-
gante, assim correu mais caudalosa, porem me-
nos pura torrente. Em quanto lyrico, tem ras-
gos pindaricos verdadeiramente sublimes; mas o
todo de suas odes é em demasia ornamentado; e
ellas entre si peccam amiúdo de monotonias o
repetições. Talvez o jugo dos consoantes, que
tão desnecessariamente se impoz, o acanhou a
isso. Mas nas anacreonticas é elle sem disputa o
primeiro poeta portuguez, e digno rival do an-
cião de Teios. No género bucólico também nos
deixou mui bonitas cousas, nenhuma perfeita.
Porem a verdadeira coroa poética do Diniz Tha-
lia lh'a teceu, que não outra musa. O Hyssope
é o mais perfeito poema heroicomico de seu gé-
nero ' que ainda se compoz em lingua nenhu-
ma: se no castigado da dicção o excede o Lu-
trin; no desenho da obra, na regularidade do
' Digo He íeu gp.ncro, porque o Orlando furioso também é
heroicomico, mas doutro genoro.
200 HISTORIA DA LÍNGUA
edificio, na imaginação, foi o discípulo de Boi-
leau muito alem de seu grande mestre: e com
mais exacção se diria de um e outro o que de
Camões e Tasso presumpçosamente disse Voltai-
re: que se a imitação d'aquel]e fizera este, a sua
melhor obra era essa. O palácio do génio das Ba-
gatellas, a conversa do deão na cerca dos capu-
chos, a ressurreição e vaticínio do gallo assado,
a caverna d'Abracadabro serão, em quanto hou-
ver gosto, estudados como exemplar pelos litte-
ratos, lidos e relidos sempre com prazer per to-
dos os amigos das artes.
Após estes vem o virtuoso e honrado Quita,
a quem pagou a pátria com miséria e fome as
immensas riquezas que para a lingua e littera-
tura de seus versos herdou. Um pobre cabellei-
reiro, a quem as musas que serviu, os grandes
que com ellas honrou nunca tiraram do triste
officio, pôde de sua baixa condição social alevan-
tar-se do primeiro grau litterario, que acaso lhe
disputam ignorantes ou presumpçosos, nenhum
homem de gosto deixará de lh'o dar.
Este é em meu humilde conceito o nosso me-
lhor bucólico: tomo a liberdade de contrastar a
opinião commum, porque o meu dever de crítico
E DA rOESlA POTITUGUEZA 207
me obriga a ennunciar lealmente o meu pensa-
mento. Tenho para mim (e fico que acharei
quem me siga se de boa fé quizerem entrar no
exame) que a immensa cópia de composições
pastoris, as quaes não são riqueza, mas desper-
dício de nossas musas, ou peccam por empoladas,
por inverosímeis, por baixas, por demasiado na-
turaes, por sobejo elevadas. Um meio termo dif-
ficilimo de tocar, de n'elle permanacer, um sty-
lo singelo como o campo, mas não rústico como
as brenhas, são dos mais difficeis requisitos que
d'um poeta se podem exigir. Se tem ingenho,
custa-lhe a moldar-se e a retc-lo que não suba
mais alto que a difícil medida, e raro deixa de
a exceder, de perde r-se do bosque e acabar em
jardins cidadãos e conversas do damas e cava-
lheiros o que começara no monte ou na várzea
entre pastores e serranas.
Nem Virgílio d'ahi escapou, nem Sannazaro,
nem Camões; Gcssner sim, e depois de Gessner,
o nosso Quita. Não digo que não tenha defeitos,
ainda em seu género pastoril; mas a boa e hon-
rada crítica falia em geral, louva o bom, nota o
mau, porem não faz tymbrc em achar defeitos e
erros na menor falta para se rcgosijar da censu-
208 HISTORIA DA LÍNGUA
ra. Grandes homens, grandes erros: a natureza
da mediocridade é cingir-se a tristes preceitos
para esconder sua mesquinhez: porem de taes
nunca fallou posteridade. Horácio e Boileau fo-
ram atrevidos quando lhes cumpriu, e despreza-
ram regras e arte quando os chamou a nature-
za, e lhes mostrou o sublime. Philinto, que os
sabia de cór, também se levantou acima das re-
gras, e nunca foi tamanho. E todavia foi elle o
maior poeta de seu século: mas os grandes in-
genhos não contraveem a lei, sâo superiores a
ella, e são eUes viva lei.
Mui distincto logar obteve entre os poetas
portuguezes d'ésta epocha Cláudio Manoel da
Costa: o Brazil o deve contar seu primeiro poe-
ta, ' e Portugal entre um dos melhores.
Deixou-nos alguns sonetos excellentes, e riva-
lizou no género de Metastasio, com as melhores
cançonetas do delicado poeta itahano. A que di-
rige á lyra com sua palidonia imitando a tão
conhecida do mesmo Metastasio a Nice, Grazie
air ingani fiioi, póde-se apontar como exccUente
modêllo. Nota-se em muitas partes dos outros
* Em antiguidade.
E DA POESIA PORTUGUEZA 209
versos d'elle vários resquícios de (jongorismo e
aíFectação seiscentista.
E agora começa a litteratura portugueza a
avultar e enriquecer-se com as producçoes dos
ingenhos brazileiros. Certo é que as magestosas
e novas scenas da natureza n'aquella vasta re-
gião deviam ter dado a seus poetas mais Origina-
lidade, mais differentes imagens, expressões e
stylo, do que n'elles apparece: a educação euro-
peia apagou-lhes o espirito nacional: parece que
receiam de se mostrar americanos; e d'ahi lhes
vem uma aíFectação e impropriedade que dá
quebra era suas melhores qualidades.
Muito havia que a tuba épica estava entre
nós silenciosa, quando Fr, José Durão a embo-
cou para cantar as romanescas aventuras de Ca-
ramurú. O assumpto não era verdadeiramente
heróico, mas abundava em riquissimos e varia-
dos quadros, era vastissimo campo sobre tudo
para a poesia descriptiva. O auctor atinou com
muitos dos tons que deviam naturalmente com-
binar-se para formar a harmonia de seu canto;
mas de leve o fez: so se estendeu em os monos
poéticos objectos; e d'ahi esfriou muito do gran-
de interesse que a novidade do at^sunipto c a va-
14
210 HISTOKIA DA LÍNGUA
riedade das scenas promettia. Notarei por ex-
emplo o episodio de Moêma, que é um dos mais
gabados, para demonstração do que assevero.
Que bellissimas cousas da situação da amante
brazileira, da do heroe, do logar, do tempo não
poderá tirar o auctor, se tam de leve não hou-
vera desenhado este, assim como outros painéis?
O stylo é ainda por vezes affectado: la sur-
dem aqui alli seus gongorismos; mas onde o
poeta se contentou com a natureza e com a sim-
ples expressão da verdade, ha oitavas bellissimas,
ainda sublimes.
Depois de Diniz o logar im mediato nos ana-
creonticos pertence a outro Brazileiro.
Gonzaga mais conhecido pelo nome pastoril
de Dirceu, e pela sua Marilia, cuja belleza e
amores tam célebres fez n'aquellas nomeadas ly-
ras. Tenho para mim que ha d'essas lyras al-
gumas de perfeita e incomparável belleza: em
geral a Mariha de Dirceú é um dos livros a
quem o publico fez immediata e boa justiça.
Se houvesse por minha parte de lhe fazer algu-
ma censura, só me queixaria, não do que fez,
mas do que deixou de fazer. Explico-me: quize-
ra eu que em vez de nos debuxar no Brazil soe-
E DA POESIA PORTUGUEZA 211
nas da arcádia, quadros inteiramente europeus,
pintasse os seuá painéis com as cores do paiz on-
de os situou. Oh! e quanto não perdeu a poesia
n'esse fatal erro! se essa amável, se essa ingénua
Marilia fosse, como a Virgínia de saint-Pierre,
sentar-se á sombra das palmeiras, e em quanto
lhe revoavam emtôrno o cardeal suberbo com a
purpura dos reis, o sabiá terno e melodioso, —
que saltasse pelos montes espessos a cotia fugíu
como a lebre da Europa, ou grave passeasse
pela orla da ribeira o tatu esquamoso, — ella se
entretivesse em tecer para o seu amigo e seu
cantor uma grinalda nuo de rosas, não de jas-
mins, porem dos roixos martyrios, das alvas flo-
res dos vermelhos bagos do lustroso cafozeiro;
que pintura, se a desenhara com sua natural
graça o ingénuo pincel de Gonzaga!
Justo elogio merece o sonsivel cantor da infe-
liz Lindoya que mais nacional foi que nenhum
do seus compatriotas brazileiros, O Uraguay de
José Bazilio da Gama é o moderno poema que
mais mérito tom na minha opinião. Scenas na-
turaos mui bem pintadas, de grande e bella exe-
cução descriptiva; phrase pura e sem affecta-
ção, versos naturaos som ser prosaicos, e quan-
212 HISTORIA DA LÍNGUA
do cumpre sublimes sem ser guindados; não são
qualidades communs. Os Brazileiros principal-
mente lhe devem a melhor coroa de sua poesia,
que n'elle é verdadeiramente nacional, e legítima
americana. Mágoa é que tam distincto poeta
não limasse mais o seu poema, lhe não desse
mais amplidão, e quadro tão magnifico o acanhas-
se tanto. Se houvera tomado esse trabalho, de-
sappareceriam algumas incorrecções de stylo, al-
gumas repetições, e um certo desalinho geral,
que muitas vezes é belleza, mas continuado e
constante em um poema longo, é defeito.
Muito ha que os nossos auctores desempara-
ram o theatro: eisahi o faceto António José, a
quem muitos quizeram appeUidar Plauto por-
tuguez e que sem duvida alguns serviços tem a
esse titulo, porem não tantos como apaixonada-
mente lhe decretaram. Em seus informes dra-
mas algumas scenas ha verdadeiramente cómi-
cas, alguns dictos de summa graça; porem essa
degenera amiúdo em baixa e vulgar. Talvez
que o Alecrim e Mangerona seja a melhor de
todas; e de certo o assumpto é iminentemente
cómico e portuguez: hoje teria todo o mérito de
uma comedia histórica: e se fora tractada no ge-
E DA POESIA PORTUGUEZA 213
nero de Beaumarchais, produziria uma excellen-
te peça.
VII
Epocha, segunda decadência da língua e litteratura;
gallicismo e traducções.
A' volta este tempo se formou a academia
das scieucias de Lisboa pelos generosos esforços
do duque de Lafões. Esse corpo scientifico, de
quem tanto bem se augurou para a lingua e lit-
teratura nacional, nem fez tudo o que d'eUe
se esperava, nem uma parte mui pequena do
que podia e lhe cumpria fazer: mas nem foi inú-
til, nem, como alguns tecm querido, prejudicial.
E todavia sua força moral não foi bastante
para vencer um mal terrível que já no tempo do
sua creação se manifestava, mas que depois,
cresceu e avultou a ponto, que veio a tornar-so
quasi indestructivel.
Este mal foi o gallo-mania, que sobre per-
verter o caracter da nação, de todo perdeu o
acabou com a já combalida linguagem: phrascs
barbaras repugnantes á Índole do idioma, ter-
214 HISTORIA DA LINGUÀ
mos hybridos, locuções arrastadas, sem elegân-
cia, formaram a algaravia da moda, e prestes in-
vadiram todas as provincias das lettras. Estudar
a lingua materna, como aquella em que falía-
mos e escrevemos, é dos mais difficeis estudos,
ha mister longa e porfiada applicaçao. Que bel-
la invenção para a ignorância e para a preguiça
não foi esta nova linguagem mascavada e de
furtacôres, que todos podiam saber sem fadiga,
cujas leis cada-um moderava e arbitrava a seu
modo, alterava a seu sabor com tam plena liber-
dade de consciência! Foi a religião de Mafoma:
propagou-a a incontinência, a soltura, o desen-
freio do appetite. Desprezaram-se os clássicos,
apodaram-se de ignorantes, de rançosos; e os
que não ousavam, por algum resto de vergo-
nha, desacatar assim as honradas cans dos nossos
mestres, sahiram então com o banal e ridiculo pre-
texto de que ninguém podia le-los pelas maté-
rias que tractaram; que tudo eram sermões, vi-
das de sanctos, historias de conventos, de fra-
des. Vergonhosa desculpa! Comquê as décadas
de Barros, que foi talvez o primeiro que intro-
duziu com feliz execução o stylo clássico na
historia moderna, são chronicas de conventos?
K DA POEiSlA PORTUGUEZA 215
Fernão Mendes Pinto, o primeiro europeu que
escreveu uma viagem regular da China e dos
extremos d' Ásia, são vidas de sanctos? E d'es-
sas mesmas %idas de sanctos, quantas d'enas são
de summo interesse, divertida e proíicua leitura!
A vida de D. Fr. Bartholomeu dos Martyres tem
toda a valia das mais gabadas memorias histó-
ricas, de que hoje anda cheia a Europa, e que
ninguém taxou ainda de pouco interessantes.
Quando outra cousa não contivesse aquelle ex-
cellente livro senão a narração do concilio de
Trento, a viagem e estada do arcebispo em Ro-
ma, já seria elle uma das mais curiosas e im-
portantes obras do século XVI. E D. Francis-
co Manuel de Mello, e Rodrigues Lobo, e Ca-
mões, e grande cópia de poetas de todos os gé-
neros, — tudo isso são sermonarios, vidas de
sanctos?
Miséria é que o geral dos portuguezes jurou
nas palavras de quatro peralvilhos que essas ca-
lumnias apregoavam: passou em julgado que os
clássicos se não podiam ler, e ninguém mais quiz
tomar o trabalho nem sequer de examinar se sim
ou não assim era.
ÍJ'cstc estado de cousas apparcceram em Por-
216 HISTORIA DA língua
tugãl dous homens extraordinários, ambos do-
tados pela natureza de prodigioso ingenho poé-
tico, Francisco Manuel e Bocage. Aquelle, fi-
lho da eschola de Garção e Diniz, cultivou mui-
to tempo as musas clássicas, e já imbuido no
gosto da antiguidade, ja imitador e rival de Ho-
rácio e Pindaro, começou a ser conhecido em
idade madura. Este, quasi desd'a infância poeta,
appareceu no mundo em toda a eíFervescencia
dos primeiros annos, ardente cantor das pai-
xões, enthusiasta, agitado do seu próprio natu-
ral violento, rápido, insofirido, sem cabal instruc-
ção para poeta, com todo o talento (raro, espan-
toso talento!) para improvisador.
Ambos começaram imitando os grandes mes-
tres de seu tempo, seguindo cada- um em seu gé-
nero o stylo e gosto adoptado e geral desde a
restauração das letras no meado do século. Mas
não são ingenhos grandes para seguir, senão
para fundar escholas: ^nem tardou muito que
cada um, per seu lado, não sacudisse todo jugo
da imitação, e seguisse livre e rasgadamente um
trilho novo. Bocage a quem seu fado, por mais
aventureira lhe fazer a vida, levou ao antigo
theatro das glórias portuguezas, voltando d' Ásia
E DA POESIA PORTUGUEZA 217
foi recebido em Lisboa entre os applausos dos
muitos admiradores que já tinha deixado na vi-
ril infância de seu talento poético. Augmentou-
se esta admiração com os novos improvisos do
joven poeta, com a extrema facilidade, com o mui
sonoro de seus versos. O fogo de suas ideias
ateou o enthusiasmo geral; a mocidade inflamou-
se com o nome de Bocage: de enthusiasmo dege-
nerou em cegueira, em mania; nâo lhe viam já
defeitos; menos eUe em si mesmo. Ninguém
duvidava que os improvisos dos cafés do Rocio
eram superiores a todas as obras da antiguida-
de, e que um soneto de Bocage valia mais que
todos esses volumes de versos do século de João
III. e do de José I. Esta era a opinião commum
da mocidade; e tam geral se fez, tantas vezes a
ouviu repetir o objecto de tal idolatria, que for-
ça era que a accreditasse, que com ella se desva-
necesse e desvairasse.
Isso lhe aconteoeu. O temperamento irritá-
vel e ardentíssimo de Bocage o levava natural-
mente ás hyperboles e exagerações: essas eram
as mais admiradas de seus ouvintes; requintou
n*ella8, subiu a ponto que &e perdeu pelos cspa-
çog imaginários de sua crcação phantastica,
218 HISTORIA DA LÍNGUA
abandonou a natureza, o a suppoz acanhado ele-
mento para o génio. Mais elle repetia eternida-
des, nnmdoíi, ceos, espheras, orbes, fúrias, gorgo-
nas; mais dobrava o applauso; mais delirava elle,
mais o admiravam. Ao cabo, nem elle a si, nem
os outros a elle o intendiam. ' A par e passo
que as ideias desvairavam, desvairava também
o stylo, e emfim se reduziu a uma continuada
antithese, perpétuos trocadilhos, tours-de- force,
pulos, saltos, rumpantes, castelhanadas, com que
se tornou monótono e (usarei d'uma expressão
de pintor) amaneirado.
A metrificação de Bocage, julgam-na sua me-
lhor qualidade; eu a peior; ao menos, a que peio-
res effeilos causou. Não fez elle um verso duro,
mal soante, frouxo; porem não são esses os úni-
cos defeitos dos versos. As varias ideias, as di-
versas paixões e aífectos, as distinctas posições
e circumstancias do assumpto, do objecto, de mil
outras cousas, — variada medida exigem; como
exige a musica vários . tons e cadencias. A mes-
ma medida sempre, embora cheia e boa, — o
* Assim lhe suecedeu, principalmente em muitos dos,
por natureza e essência, hypertlolicos elogios dramáticos; gé-
nero de composição estravagaote e tj^uasi sempre ridiculo.
E DA POESIA rORlTGUEZA 219
mesmo tom, embora afinado, — a mesma harmo-
nia, embora perfeita,— o mesmo compasso, em-
bora exacto, fazem monótona e insuportável a
mais bella peça de musica ou de poesia. E taes
são os versos de Bocage, que nos pretendem dar
para typo seus apaixonados cegos: digo cegos,
porque muitos tem elle (e n'esse numero que
conto) que o são, mas não cegos. Imitar com o
som mechanico das vozes a harmonia intima da
ideia, supprir com as vibrações que só podem fe-
rir a alma pelo órgão dos ouvidos, a vida, o mo-
vimento, as côrcs, as formas dos quadros natu-
raes, eisahi a superioridade da poesia, a vanta-
gem que tem sobre todas as outras bellas artes:
mas quam difficil é perceber e executar esse dc-
licadissiino ponto! Poucos o conseguiram: Fran-
cisco Manuel foi entre nós o que- mais finamen-
te o intendeu e executou, mas nem sempre, nem
cabalmente.
Porem nos intervalos lúcidos que a Bocage
deixava o fatal desejo do brilhar, n'alguns ins-
tantes que, dospossesso do demónio das hyperbo-
les e anthiteses, ficava seu grande ingenho a
808 com a natureza c cm paz com a verdade, en-
tão se via a immensidade d'essa grande alma, a
220 HISTORIA DA LÍNGUA
fina tempera d'esse raro ingenho que a aura po-
pular estragou, perdeu o pouco estudo, os costu-
mes desregrados, a miséria, a dependência, a sol-
tura, a fome. Muitas epistolas, vários idílios
marítimos, algumas fabulas, e epigrammas, as
cantatas, não são medíocres títulos de glória.
Dos sonetos ha grande cópia que não tem igual
nem em portuguez, nem em língua nenhuma,
d'uma força, d'uma valentia, d'uma perfeição
admirável. O resto é pequeno e pouco. A lin-
guagem é pobre; ás vezes fácil, mas em geral
escaca. Sabia pouco a língua; a força do gran-
de ínstincto lhe arredava os erros; mas as belle-
zas do idioma, só as dá e ensina o estudo. As
traducções de Ovídio, Delille e Gastei são pri-
morosas.
Mas de traducções estamos nós gafos: e com
traducções levou o ultimo golpe a litteratura por-
tugueza; foi a estocada de morte que nos joga-
ram os estrangeiros. Traduzir livros d'artes, de
sciencias é necessário, é indispensável; obras de
gosto, de ingenho, raras vezes convém; é quasi
impossível fazê-lo bem, é míngua e não riqueza
para a litteratura nacional. Essa casta de obras
estuda-se, imita-se, não se traduz. Quem assim
E DA POESIA PORTUGUEZA 221
faz accomoda-as ao character nacional, dá-lhes
côr de próprias, e não só veste um corpo estran-
geiro de alfaias nacionaes (como o traductor),
mas a esse corpo dá feições, gestos, modo, e Ín-
dole nacional: assim fizeram os Latinos, que
sempre imitaram os Gregos e nunca os traduzi-
ram; assim fizeram os nossos poetas da boa ida-
de. Se Virgilio houvera traduzido a Iliada, Ca-
mões a Eneada, Tasso os Lusiadas, Milton a Je-
rusalém, Klopstock o Paraizo perdido; nenhum
d'elles fora tamanho poeta, nenhuma d'essas
línguas se enriquecera com tam preciosos monu-
mentos: e todavia imitaram uns dos outros, e
d' essa imitação lhes veio grande proveito.
Esta mania de traduzir subiu a ponto em
Portugal, e do tal modo estragou o gosto do pu-
blico, que não só lho não agradavam, mas quasi
não intendia os bons originaes portuguezes: a
poesia, a litteratura nacional reduziu-so a mo-
nótonos sonetos, a trovinhas d'amores, a insípi-
das enfiadas
De versinhos anõcs a anans Nerinns.
Tam baixos nos pozoram os admiradores o imi-
222 HISTORIA UA LÍNGUA
tadores de Bocage, a quem justamente a critica
stigmatizou com o nome de elmanistas,— e de el-
manisrno sua afFectada esctola. N'elles se mostra-
ram exagerados os defeitos todos do enthusiasta
Elmano, sem nenhum dos grandes dotes, das
brilhantes qualidades do poeta Bocage.
Alguns ha coratudo de quem esta asserção
não deve intender-se em todo o rigor da phra-
se. João Baptista Gomes, auctor da Castro,
mostrou n'ella muito talento poético e dramáti-
co. D'entre os bastos defeitos d'essa tragedia
sobresahem muitas bellezas. Desvaira-o o ehna-
-nismo; derrama-se per madrigaes quando a aus-
teridade de Melpomene pedia concisão, força e
naturaHdade; perde-se em declamações, extra-
vaga em legares communs, inverte a dicção
com antitheses, destrói toda aillusão com versos
amiúdo s.esquipedaes e entumecidos; mas per
meio de todas essas névoas brilha muita luz de
ingenho, muita sensibilidade, muita energia de
coração; predicados que com o estudo da lingua
que não tinha, com a experiência que lhe falle-
cia, triumphariam ao cabo do mau gosto do tem-
po, e viriam provavelmente a fazer de João Bap-
tista Gomes o nosso melhor trágico. Atalhou-o
E DA POESIA PORTUGUEZA 223
a TOorte em tam illustre carreira, e deixou or-
phão o tteatro portuguez que de tamanho talen-
to esperava reforma e abastança.
Mas em quanto Bocage e seus discípulos ty-
rannizavam a poesia e estragavam o gosto, Fran-
cisco Manuel, único representante da grande es-
chola de Garção, gemia no exilio, e de la com os
olhos fitos na pátria se preparava para luctar
contra a enorme hydra cujas innumeras cabeças
eram o gallicismo, a ignorância, a vaidade, to-
dos os outros vicios que iam devorando a littera-
tura nacional.
A sua epistola sobre a arte poética e lingua
portugueza, pôde rivalizar com a de Ho-
rácio aos Pisões : força d' argumentos , elo-
quência da poesia, nobre patriotismo, finissimo
sal da satyra, tudo ahi peleja contra o monstro
multiforme.
Que direi das odes? Minha intima persuasão
é que nunca lingua nenhuma subiu tam alto
como a portugueza na lyra de Francisco Manuel.
Que ha em Pindaro comparável á ode a Afon-
so d' Albuquerque? onde ha poesia sublime, ele-
gante, immensa como seu assumpto, na dos no-
vos Gamas? se o patriotismo fali asse alguma
224 HISTORIA DA LÍNGUA
hora aos degenerados netos de Pacheco e Albu-
querque, que poderia elle dizer-lhes igual áquel-
la inestimável ode quo se intitula Neptuno aos
portuguezes? E quando a liberdade troa na es-
pada de Washington, submette os raios de Jú-
piter ao sceptro dos tyrannos aos pés de Fran-
klim, ou tece pelas mãos de Penn os laços de fra-
terna união! Que immenso, que gi-andioso é o
cantor de tamanhos objectos! Quando nas odes
a Vénus, a Marfisa, a Mareia voltando inopinada^
no hymno á noite se requebra em amoroso jubi-
lo, ou se enternece de saudade, todo é graças e
primores de Hnguagem, de imaginação, de stylo,
de delicadeza, de inimitável poesia. No género
Horaciano não é elle tam puro e perfeito como
Garção, mas nem intendeu menos nem imitou
peior o seu modelo.
Entre as epistolas ha muitas admiráveis: dos
contos e fabulas, alguns com elegante sal e chis-
te. As traducçõcs do Oberon de Wielland, da
Guerra púnica de Silio Itálico, mas sobre todas,
a dos Martyres de Chateaubriand, são thesou-
ros de linguagem e de poesia.
Nenhum poeta desde Camões havia feito tan-
tos serviços á lingua portugueza: so per si Fran-
E DA POESIA PORTUGUEZA 225
cisco Manuel valeu uma academia, e fez mais
que ella; muita gente abriu os olhos, e adquiriu
amor a seu tam rico e bello, quanto desprezado
idioma: e se ainda hoje em Portugal ha quem
estude os clássicos, quem se não envergonhe de
ler Barros e Lucena, deve-se ao exemplo, aos bra-
dos, ás invectivas do grande propugnado r de
seus foros e liberdades.
Nos últimos periodos de sua longa vida afrou-
xaram as enérgicas faculdades d'este grande
poeta, e excepto a traducção dos Martyres (que
assim mesmo tem seus altos e baixos) quasi tu-
do o mais que fez é tibio e morno como de um
octogenário se podia esperar. O nimio temor de
comiueter gallicismos, a que tinha justo e sanc-
to horror, o fez cahir em archaismos, e affecta-
ção demasiada de palavras antiquadas e excessi-
vos hyperbatos. Não são porem estas faltas, nem
tantas nem tamanhas como o pregoou a inveja e
a ignorância.
Muito honrosa menção deve a historia da lin-
gua e poesia portugucza a Domingos Maximiano
Torres, cujas éclogas rivalizam com as de Quita
e Gessner, cujas cançonetas são, depois das do
Cláudio Manuel da Costa, as melhore* (juí! temos.
226 HISTORIA DA LINOUA
Foi este muito intimo de Francisco Manuel,
mas tenho por mui exagerados os elogios que
d'elle recebeu.
António Ribeiro dos Santos, honra da magis-
tratura portugueza, foi imitador e emulo de Fer-
reira: poucos ingenhos, poucos characteres, pou-
cos stylos ha tam parecidos; se não que o auctor
dos coros da Castro era muito maior poeta, e o
cantor do grande D. Henrique muito melhor me-
treficador. Esta ode ao infante sábio, algumas ou-
tras a vários heroes'")ortuguezes,algumas das epis-
tolas, e especialmente os versos que lhe dictava a
amizade para o seu Almeno, são d'uma elegância
e pureza de linguagem raríssima em nossos dias.
Este Almeno é Fr. José do Coração de Jesus,
missionário de Brancannes, ([ue traduziu os pri-
meiros livros das methamorphoses de Ovidio em
excellente, requissimo, puríssimo portuguez, mas
em maus versos: e ainda assim, alguns d'elles
são feHzes: é de estudar, de versar com mão di-
urna e noctiiniii esse começo de traducção para
quem quizer conhecer as riíjuezas de uma lín-
gua que compete, emparelha, vence ás vezes, a
sua própria máe laiiuu.
E DA POESIA PORTUGUEZA 227
Duas ou três odes d'este virtuoso e erudito pa-
dre sao mui bonitas.
Nicolau Tolentino é o poeta eminentemente
nacional no seu género: Boileau teve mais força,
mas não tanta graça como o nosso bom mestre
de rhetorica. E de suas satyras ninguém se pode
escandalizar; começa sempre per casa, e primei-
ro se ri de si antes que zombeteie com os outros.
As pinturas dos costumes, da sociedade, tudo é
tam natura], tam verdadeiro! Confesso que de
todos os poetas (juc meu triste mister de critico
me tem obrigado a analysar, único é este em
cuja causa me dou por suspeito: tanta é a paixão,
a cegueira que tenho polo mais verdadeiro, mais
engraçado, mais bo)n homem de todos os nossos
escriptores. Aquelle bilhar, aquella funcção de
Imrrinhos, aquelle rha, aquellas despedidas ao
cavallo deitado á margem; o memorial ao princi-
pe, o presente do pcriim, são bcUezas que so nãt>
admirarão atrabilarios zangãos em perpetuo es-
tado de guerra com a franca alegria, com o in-
génuo gosto da natureza.
De José Anastácio da Cunha, que das mathe-
maticas puras nos deu o nielhoi' curso que ha
cm toda Europa, d'cs3C infeliz ingcnho (que ta-
228 HISTORIA DA LÍNGUA
lento houve ja feliz em Portugal?) a quem não
impediam as rectas de Euclides, nem as curvas
de Archimedes de cultivar também as musas;
de tam illustre e conhecido nome que direi eu
senão o muito que me pcza da raridade de suas
poesias? Todas são philosophicas, ternas e re-
passadas d'uma tam meiga sensibilidade algu-
mas, que deixam n'alma um como echo de har-
monia interior que não vem do metro de seus
versos, mas das ideias, dos pensamentos. Toda-
via ha mister le-lo com prevenção, porque
(provavelmente estropiada de copistas) a phra-
se nem sempre é portugueza de lei.
O padre A. P. de Souza Caldas, brazileiro, é
dos melhores lyricos modernos. A poesia biblica,
apenas encetada de Camões na paraphrase do
psalmo super Jlumina Bahylonis, foi per elle ma-
ravilhosamente tractada; e desde Milton e Klo-
pstock ninguém chegou tanto acima n'este gé-
nero.
A cantata de Pygmalião, a ode O homem sel-
vagem são excellentes também.
Aqui me cai a penna das mãos: o estádio livre
para a critica imparcial acabou. Nem posso
continuar a exercê-la sem temor, nem o faria
E DA POESIA PORTTGUEZA 229
ainda assim, pois não quizera ver revogadas
minhas presumidas sentenças pela severa pos-
teridade, quasi sempre annuUadora de juizos
contemporãos.
Não posso todavia fechar este hreve quadro
sem patentear a admiração, e o indizível prazer
que me deu o poema do Passeio do snr. J. M. da
Costa e Silva, cuja existência tinha a infelicidade
de ignorar (tam pouco sabemos nós portuguezes
das riquezas que temos em casa !) e que não sei
que tenha que invejar a Thompson e Dehlle, se
não for na pouca extensão e, acaso dirá mais se-
vero juiz, em algum verso de demasiado Elma-
nismo. Quanto a mim, folgo de me lisongear com
a esperança que seu auctor lhe dará a amplidão
e mais (poucos mais) retoques com que ficará por
ventura o melhor poema d'esse género.
Apczar dos motivos referidos, pedirei uma vé-
nia mais para mencionar como um poema que
faz summa honra ao nome portuguez, a Medita-
ção do snr. J. A. de Macedo, ([ue tem sido cen-
surada por quem não é capaz de intendê-la. Não
sei eu se ella tom defeitos ; é obra humana, e de
certo lhes não escapou ; mas sublimidade, cópia
230 HISTORIA DA LÍNGUA
de doctrina, phrase portugueza, e grandes ideias,
só lh'o negará a cegueira ou a paixão.
Cita-se com elogio o nome do sur. J. F. de
Castilho, joven poeta que se despica da injuria
da sorte que o privou da vista, com muita luz de
iugenbo poético.
Os dytJnmmhos do snr. Curvo Semedo, as odes
do snr. J. Evangelista de Moraes merecera grande
favor do publico : os apologos do snr. J. V. Pi-
mentel Maldonado são por certo dignos da maior
estimação.
As Georgicas do snr. Mozinho d' Albuquerque
fizeram a reputação poética de seu benemérito
auctor. Alguns lhe adiaram deraaziada erudi-
ção, e queriam mais poesia e menos soiencia.
Eu por mim tomarei a confiança de pedir ao
illustre poeta, em nome da litteratura portugue-
f.a, que na segunda edição de sua tam útil obra
não desdenhe de aproveitar os muitos e riquis-
sinaos ornatos que habilmente pode tirar de nos-
sas festas ruraes, de nossas usanças (como feiras,
serões, desfolhas, etc), das descripções de nos-
so formoso paiz; com que decerto fará mais na-
cional e interessante seu estimável poema. -Não
sei tambom se alguma incorrecção typographica
E DA rOESIA POKTUGUEZA 2'il
OU de cópia, seria origem de varias imperfeições
e impurezas de linguagem, que os escrupulosos
(e em tal matéria é forçoso se-lo) lhe notam.
Tudo isso esperamos os portuguezes que nos
vangloriamos de sua excellente obra, ve-lo me-
lhorado na próxima edição que ja reclama o ]m-
blico impaciente.
A litteratura portugueza não mostra presente-
mente grandes symptomas de vigor: mas ha mui-
ta força latente sob essa apparencia; o menor
sopro animador que da administração lhe venha,
ateará muitos luzeiros com que de novo brilhe e
se engrandeça.
l-IM.
índice
DAS OBRAS CONTIDAS NESTE VOLUME
Pag.
Retrato de vénus ". . . . 7
Notas 63
Ensaio sobre a historia da pintura . . 93
Bosquejo da historia da poesia e língua
pobtugueza 167
T #
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