O MUNDO DO LIVRO
P- L. da Trindade, 11 - IS
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McKEW PARR COLLECTION
MAGELLAN
and the AGE of DISCOVERY
PRESENTED TO
BRANDEIS UNIVERSITY • 1961
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A tiragem d'esta Separata do Annuario do
Serviço Municipal de Saúde e Hygiene, foi de
300 exemplares numerados.
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"V
ORIGENS & DESENVOLVIMENTO da
População do Porto
PUBLICAÇÕES DO AUCTOR
Um ensaio sobre o nervosismo — These inaugural — 1879.
Localisações motrizes no cérebro — These de concurso — 1880.
Revista scientifica — Periódico mensal (Direcção e collabora-
ção) — 1882.
Hygiene Social — Conferencias — 1885.
Relatório apresentado ao Conselho Superior de Instrucção
Publica— 1885.
Ensaios scientificos e críticos — 1886.
Os Heroes do Trabalho de G. Tissandier, augmentado com
noticias de varões illustres de Portugal e Brazil — 1887.
De l'électrométrie et de lélectro-diagnostic à propôs de
la paralysie íaciale de Ch. Bell — 1888.
Saneamento do Porto — 1888.
O Gerez Thermal — Historia, Hydrologia, Medicina — 1888.
Caldas do Gerez— Guia Thermal — 189 1 .
A EPIDEMIA DE LlSBOA DE 1894 — 1 895 .
Boletim mensal d'estatistica sanitária do Porto — Desde 1893.
ARTIGOS
Trabalhos experimentaes sobre os fluoretos alcalinos — in
Medicina Contemporânea — 1886.
Estudo sobre a Lithiase biliar — ibidem, 1890.
A Acromegalia — Um caso clinico — ibidem, 1891.
Une nouvelle classification des eaux minérales — in Congros
de cBesançon da Associaiion Française poar l ' avancement
des sciences — 1893.
Ueber einer neuer Wasser Vibrio — in Centralblatt filr Da-
cteriolooie — 1896.
ORIGENS & DESENVOLVIMENTO da
População do
Porto
Notas históricas
& ESTATÍSTICAS ***********************
De IVlCardO J Orge, Lente de Hygiene da Escola
Medico- Cirúrgica do Porto, Director do Serviço
Municipal de Hygiene, Sócio correspondente
da Academia Real das Sciencias, do
Instituto de Coimbra e da
Soe. das Sciencias
Aledicas.
I
1
PORTO
TYPOGRAFMIIA OCCIDENTAL
8o, Rua da Fabrica, 8o
.189;
A minha mãe
t
17-5-96
Não houve dór que a esta me che-
gasse, nem perda que mais sentisse; lem-
bra-me que lhe fui molesta carga, conti-
nuo trabalho, temeroso cuidado; de quan-
tas vezes lhe rompi o somno, tirei o comer,
e de quantos receios e dores com meus
tristes casos lhe causei.
Amador Arkaiz.
198626
EX IMO
'egra mancha de dó tarja o cabecel d' este livro, desabro-
chado entre amarguras. 0,4 meio da sua escrita, tom
cortada de todo o sojfrer, lanhou-me o coração a dor
mais cruciante, golpe d' alma que não fecha nunca, sangrado de
continuo pelo gume da saudade. qA penna que se ensopou nesse
borbulhar de sangue, gotleja-o nestas tristes linhas, riscadas em
redimento de magnas; magnas que, para serem as maiores, fo-
ram as primeiras da vida que não tiveram a linimental-as a con-
solação d' uma mãe, o supremo analgésico de todas as dolências.
Pobre mãe! como não havia de consagrar- te estas lettras
ultimadas sobre o teu covaf se luas foram as primeiras que tra-
çou a mão incerta do filho.
Quando na escola me torturavam com bárbaros exercidos
de composição, affligia-me a mais cabal negação que dar-se pôde,
para cernir duas phrases pegadas sobre um thema para mim es-
téril. N'esses lances era a mãe eslremosa que dictava o exercício,
salvando-me do penoso aperto. Como o destino nos retorce ás
ve\es a vocação, obrigando invita Minerva o ignaro plumitivo
dos de\ annos a ser toda a sua vida um galeote da penna.
lnspirou-me o escrever e o ler. Com ella aprendi a admi-
rar o grande Camillo que então enfeitava de romance português
de lei os folhetins do « Commercio do Porto». Curiosa do antigo,
contava-me o que sabia de historia de Portugal, repetia-me as
narrativas do antiquário Vilhena de Barbosa, e guiava-me atra-
ve\ do Porto velho, animando- o com as vivas reminiscências da
infância e as tradições hauridas da mãe, uma santa velha a quem
ainda na primeira meninice escutei boquiaberto historias infantis.
Se nas paginas que seguem, vislumbra alguma inclinação
pelas coisas do passado, algum amor por esta terra que nos foi
berço commum, bebi-o no seu seio onde pulsava ainda o extincto
fanatismo do tripeiro pelas glorias da cidade, e a memoria en-
vaidecida do pae, um bravo obscuro do povo, que largara o mar-
tello para empunhar a espingarda nas linhas liberaes do Porto.
Bell as madrugadas d' inverno! como eu as revejo nesta doce
compuneção das saudades d' infância. A pequena casa cedo se en-
chia do moirejar do trabalho; antes do dia, ainda cm «casa de
Cliristo», para cada um nascia a sua canceira. Apegado ao ca-
lhamaço do latim, aconchegava-me d beira de minha mãe; girava
o fuso ou rodava a dobadoira, c ella a di\er lendas e contos ou
a cantar os romances populares, ora d' uma caridade mystica
como o «Lavrador da Arada», ora vivamente dolentes como a
« CD. Silvana », que não posso ouvir hoje sem uma cbullição de
lagrimas.
Em baixo, resfolegava a forja, soprando para a rua um
clarão vermelho ; a espaços chispava o martello cadente na safra ;
e emquanío não caldeava o ferro, meu pai cantava contente a sua
moda predilecta :
ífol eu filho, eu tive um sonho
Qual era do meu agrado . . .
Esse sonho, coitado, era o nervo do seu braço incansável :
o refrigério daquella fronte gottejante de suor com que amas-
sava dia a dia o futuro do filho, tal qual Ih' o retratava a phan-
ta si a. qA cada passo vencido nessa esteira exultava. Estou a
vêl-o, á volta dos exames, na porta da officina, a enxugar o
rosto, traçando o avental crivado de faúlas, com um sorriso tam
fundo e tam aberto, que me ensoberbecia. Fiquei a amar o ÍD/-
derot, quando lhe li o desvanecimento com que da aula traria as
coroas dos prémios ao ferreiro de La n gr es.
Que maior galardão e incentivo do que, então e sempre, a
alegria incomparável do pai e a ternura da mãe a effundir-se
em lagrimas e beijos I
Era que farte para a vaidade do filho ; nem outra tive
maior no luctar da vida. Foi a primeira ambição, a única que o
destino não quebrou, a única felizmente satisfeita, mas bastante
para assegurar de per si uma finalidade tranquilla d existência.
Depois. . . depois, passada a primeira arrancada mais ou
menos venturosa, vieram-se permeando as intercadencias sinistras
do mezzo dei camin dei nostra vita.
Ao que a pulso seu rasgou lugar humilde á lu% do mundo,
salleiam-no a reveles garras implacáveis d'um pavor e raiva de
gehenna. Que cruciamento, emquanto se não falririsa a alma
contra as torturas d' estes gnomos d'uma crueldade ophidia e
d'uma pliantasia inquisitorial ', mais injiciosos que pestes, mais
voraces que gusanos.
Triste e dolorosa immunisação ; mas o soro balsâmico que
me neutralisava de continuo estas peçonhas homicidas, era a vo%
alentadora da mãe, cila quem me dava alôr em todos os quebran-
tos. Os golpes que o destino ou o malquerer me despontavam ao
peito, rebatiam-se no escudo do seu coração amantíssimo. E mor-
reu, como viveu, d'olhos postos na bemavenlurança nunca vinda
do filho.
Paranhos, ij-i2-ç6.
Ricardo Jor$e.
Oaggregado urbano quando em via de evolução
progressiva, accresce a sua população por dois
processos : pela reproducção dos moradores próprios, e
pela acquisição de moradores extranhos. O primeiro é
uma espécie de intussuscepção, de crescença physiologica,
pelo excesso do numero dos nados sobre o dos finados;
é um phenomeno biológico. O segundo é o efTeito da
attracção do núcleo urbano sobre as gentes ruraes; é
um phenomeno social. Por multiplicação do indigena e
por assimilação do forasteiro, assim se criam e se desen-
volvem especialmente as cidades.
xMas, não é só pela natalidade e pela migração, que
a população cidadina se exagera, e se dilata a área da
sua sede. Desmarcado o crescimento natural, chega o
dia em que, mal contida no seu âmbito, desborda para
as cercanias; opera-se uma dispersão peripherica. E a
seu turno o povoado vago do arrabalde vai-se acogu-
lando e dispondo á laia da cidade convisinha, tocado
pela força aggremiativa que d'ella irradia. Assim se gera
uma zona circumvallar juxta-urbana, o termo como de
longe se diz entre nós, adensada pelo trasbordo da
accumulação interna e pelo próprio desenvolvimento,
independente ou communicado. Tudo isto se funde a
pouco e pouco no núcleo primitivo, por apposição e
metamorphose; é uma espécie de conquista pacifica
pela qual a cidade ganha em numero e em superfície,
afastando as suas balizas e recolhendo novos fogos.
Amplificado ou reduzido, eis o mecanismo que
pauta a arithmetica e a geometria urbanas, quer as cida-
des lentamente evolvam, como os velhos burgos euro-
peus, quer rebentem quasi de súbito, como as cidades
americanas. Natalidade e mortalidade, immigração e ar-
redondamento, em intensão como em extensão, de feito
oscillam ao sabor de tudo quanto influe sobre a sorte
das populações — topographia, clima, guerras, epidemias,
condições económicas, industriaes e politicas.
Seguir na sua marcha gradativa a crescença duma
cidade como o Porto, desde a humilde communa d'onde
alastrou e pujou á vastidão e populosidade d'hoje em
dia, ir ao arrepio dos séculos até á pequena mó do
burgo episcopal d'onde lentamente se derivou a segunda
cidade do reino, graças ao caracter das gentes, á consi-
deração politica e á absorpção commercial e financeira,
é por certo um estudo interessantíssimo de civilisação
local nas suas relações com o numeramento dos radi-
caes humanos.
Infelizmente, para esta categoria numérica da nobre
cidade portugueza não abundam os subsidios. São par-
cos os de que rezam documentos impressos; e a própria
pesquiza dos archivos públicos essa mesma é um pouco
avara. Quanto possível sobre esses elementos vamos
rastrear pelos tempos fora a demographia topographica
do Porto, pondo em jogo os dados estatísticos mais ou
menos apuráveis e insistindo sobre as causas que affe-
ctaram o incremento da cidade; tarefa difficil para uma
terra que tem a sua historia por fazer e até os seus
documentos por compilar \ Em taes condições é de vêr
1 Seria extranhabilissimo que o Porto falhasse historicamente, se
entre nós a historiographia não estivesse padecendo duma crise attentatoria
dos brios e até das faculdades orgânicas d'uma nacionalidade. Jaz pelos
archivos, aqui e lá fora, em tranquilla dormência, material inexgotavel
para refazer o passado portuguez, até no que mais impenetrado ficou até
hoje, a vida nacional e a historia social. A nossa escola historico-academica
começou de moirejar n'essa faina de assoalhar documentos; e Herculano
encetava a sua historia de Portugal, que é acima de tudo um modelo aca-
bado de trabalho sciente e consciente. Depois vieram Michelets á pressa,
menos rebeldes ás exigências do mercado do que aos rigores da investigação,
entre os quaes, embora custe dizel-o, throneou Oliveira Martins, graças a um
incontestável talento litterario e a uma fácil assimilação erudita; sobretudo
o processo das suas monographias chega a constituir um perigoso exemplo.
Salvante alguns trabalhos parcellares mais ou menos correctos e louváveis,
certo é que Portugal soffre duma fome histórica, que desgraçadamente nem
o estômago do publico sente nem o cérebro do Estado provê. Ao menos que
se fossem pondo a lume os thesouros dos cartórios em publicações metho-
dicas, corno as que todos os paizes civilisados editam por honra sua; seriam
o cabouco firme sobre que escriptores futuros aprumariam monumento his-
tórico perdurável. Os Portugália; monumento, são apenas espécime do muito
que já devera esiar lançado.
Vão estas lastimas, não no intuito de jeremiade critica, mas á conta
de quem se viu abarbado n'este passo, desbaratando cabedal e tempo que
chegavam por certo para ageitar coisas mais vistosas e rendosas.
Das fontes históricas sobre o Porto são poucas as antigas dignas d'im-
portancia. — O Catalogo e Historia dos Bispos do Porto (IÔ23) pelo bispo
D. Rodrigo da Cunha, obra bastante conscienciosa e documentada. — A Des-
cripção da cidade do Porto (1789) pelo P.e Agostinho Rebello da Costa, muito
compendiosa e notável — e emfim algumas das excellentes Dissertações
(181 o e seguintes) e Memorias do portuense João Pedro Ribeiro, o illustre
que o que vai dizer-se não pretende passar d'um singelo
ensaio do que se poderia chamar a demogenia da ci-
dade.
Mas na sua singeleza não se desattente ou se in-
crepe que este bosquejo, ao relevar as linhas evolucio-
nares do Porto, rebusque com certo interesse em seu
e incomparável mestre da diplomática portugueza. Alexandre Herculano,
até onde chegou a sua memorável empreza, não se esquece nunca de
tudo quanto diga respeito ao Porto, sempre com a segurança habitual e
critério profundo com que colheu e manejou as espécies históricas; nem
outra coisa era de esperar de quem concentrara os seus affectos patrióticos
na cidade que elle olhava como o ultimum moriens da antiga tempera do
caracter portuguez.
Os escriptores portuenses, em tempos já idos, quando ainda por aqui
medravam lettras, não se despreoccuparam da historia do seu burgo.
Arnaldo Gama forrageou á farta pelo archivo municipal, enriquecendo de
notas e figurando ao vivo scenas da cidade velha na Ultima Dona de S. Ni-
colau e no Motim ha cem annos ; Coelho Louzada gisa também romances
históricos, resuscitando o Porto antigo nos Tripeiros e na Rua Escura;
Camillo Castello Branco compila muitas curiosidades na Gazeta litteraria
do Porto, e se não se abalança a mais intensa obra, elle que, artista de gé-
nio, possuía uma incomparável envergadura de historiador e amor de histo-
ria, foi por lembrar-se da mingua de leitores e da ruina dos editores.
Não devo esquecer Pinho Leal, um trabalhador meritório que no seu
conhecido Diccionano — 'Portugal Antigo e Moderno, vol. 7.", amassou
muitas noticias do Porto, mas sem ordem de methodo nem joeira critica,
deixando escapar bastantes confusões e erros.
Mas a principal mina a explorar é o riquissimo repositório do Archivo
camarário. Dos seus códices e documentos colhemos o que mais nos impor-
tou e pudemos, tendo por guia principal o magnifico Índice que João Pedro
Ribeiro ordenou em 1795, ao qual o laborioso cartorário Januário Luiz da
Costa addicionou novos e largos índices remissivos.
Estavam alli bradando por uma vulgarisação condigna aquelles padrões
da historia municipal do Porto, ao mesmo par monumentos históricos pre-
ciosos e modelos insubstituíveis deducação cívica; por esta obra clamára-
mos em 18S8. Mercê da honrosa iniciativa do então presidente da Gamara,
o dr. Oliveira Monteiro, nomeou-se uma commissão em outubro de 1888
para tratar de levar avante a publicidade do melhor recheio do archivo,
constituida pelo dr. José Carlos Lopes, José Caldas e Ricardo Jorge. Depois
passado, na pista da exacção documental e da impressão
histórica; impulsionou-nos a quasi novidade da obser-
vação e o sentimento localista que naturalmente inspira
uma povoação de tão exquisito caracter social, que
era forçoso assignalar como factor intrinseco da sua
populosidade.
dos trabalhos preliminares, o illustre publicista José Caldas deitava hombros
á benedictina tarefa da reproducção dos mais ricos diplomas communaes, a
começar pelo famoso cartulario apographo o Livro Grande. Sob o titulo de
Corpus codicum qui in zArdiivo municipali porlucalensi asservantur
se iniciou e.n 1893 por benéfica ordem do presidente conselheiro Costa e
Almeida, em edição magnifica, a publicação com todas as regras da diplo-
mática e precedida d'uma introducçáo de excellente critica histórica.
Quando esteja completo este monumental Corpus, das melhores
obras que entre nós teem surgido em seu género, a historia communal do
Porto, sob todas as suas faces, poderá ser ensaiada. Não seria difficil addi-
cionar-lhe o que por outros archivos se depare e nomeadamente no cartório
da mitra. Existe ahi um códice reputado, o chamado Censual do Cabido,
apographo do século XV do raçoeiro João da Guarda; não é interdita a sua
consulta, como teme José Caldas, mas o valor que lhe arbitra como ele-
mento histórico, tem de ser um tanto desbalisado, se se altentar no indice
que d'elle fez J. P. Ribeiro e no truncamento do capitulo intitulado De ju-
risdiclione civitatis, onde por certo a gigantesca lucta communo-episcopal
devia estar gravada em documentos vivos.
II
Arredadas as varias fabulações encampadas por
pseudo-historiadores sem juizo probo e reproduzidas
por crendeiros ingénuos, * vislumbram-se apenas si-
gnaes presumiveis da existência do Porto no tempo dos
1 Quem quizer inteirar-se d'este rol de patranhas, relancêe os olhos
pelo indigesto proemio do antiquário portuense Cerqueira Pinto á edição de
1742 do Catalogo do Cunha. AUi verá que vários novelleiros eruditos enca-
beçaram com muita extravagância de pormenores, cada um por seu lado, a
fundação do Porto — em um genro do Faraó bíblico que veiu aqui parar
acossado pelas pragas do Egypto, — em Diomedes á voltada guerra de Tróia,
— em Menelau com a bella Helena — em um argonauta rilhodoBoreasda Thra-
cia — etc. Cerqueira Pinto, conspícuo auctor da Historia do Senhor de Matto-
sinhos, não se contenta com tam modernos e modestos personagens; alça-se
a Noé que entrou pelo Douro com suas galés, quando veiu á Hespanha (§ 42)
«não só a conduzir Tubal e suas famílias, mas também a observar ooccaso
do Sol e os movimentos da estrella chamada Hispena vespertina, em que
desde a creação do mundo estava symbolisada a mesma Hespanha, cabeça
d'elle, de que a Lusitânia era o penacho»... A crer piamente nesta arri-
bação de Noé, era muito mais verosímil o pensar que o venerando patriar-
cha, em vez de trazer os olhos na tal estrella e no penacho luso, vinha as-
sim de tão longe ao lambisco das boas novidades do Douro; assenta bem
que a este empório do vinho lhe desse Noé a primeira cavadella no alicerce.
bárbaros. De creação sueva primitivamente, transitaria
pela dominação visigothica até ser avassallado pela con-
quista musulmana; mas o mais verosímil é que o em-
brião portuense fosse mais tardio ainda, gerando-se so-
mente quando a reconquista christã, irradiada das Astú-
rias e Leão, se dilatou até ás praias do Douro. Então, no
cerro da Pena- Ventosa, onde ao depois se erigiu a ca-
thedral, fundara-se um castello ou presidio militar que,
por fronteiro ao antiquissimo e romano Cale ou Portu-
cale—o castello de Gaya, situado na margem esquerda
do rio, — se denominou Portucale castrum novum \ Da
fortaleza germinou o Porto; do nome se baptisou o ter-
ritório circumdante e ao depois o novo reino.
Lá na leal cidade d'onde teve
Origem (como é fama) o nome eterno
De Portugal...
Este germe de villa fronteiriça apparece no sé-
culo x a encabeçar um districto de contornos vagos,
o condado portugalense, abrangendo parte do Minho e
Traz-os-Montes, e ao sul do Douro as terras da Feira
1 Foros romanos não podem conceder-se senão a Gaya, a antiga
Cale, apontada no itinerário d'AntoninO ; segue-se-lhe o rasto com o nome
de Portucale, atravez de suevos, visigodos, árabes e christãos, desde o sé-
culo V até ao X. A povoação gemina-se porém; ao 'Portucale castrum
antiquum do lado de além, a Gaya, oppõe-se da banda d'aquémo Portucale
castrum novum, o Porto. Actas d'um concilio de Lugo, e escripturas de di-
visões de bispados suevos, fariam remontar longe a existência do segundo
Portucale, se a authenticidadc das suas datas não fosse suspeita, embora seja
certa a sua remota antiguidade. Rezam até os documentos de bispos portu-
calenses já durante o domínio suevo-godo, já mesmo durante a occupaçáo
sarracena. A.Herculano, Ilist. de Portugal, t. I, pag. 445.
que ao depois se partiriam com o districto colimbriense,
quando até ao Mondego se dilataram as conquistas de
Fernando Magno.
Attribulada lhe seria esta quadra pelas frequentes
correrias e tomadias de mouros, das quaes a mais devas-
tadora foi em 937, a do temeroso El-Mansur que, apro-
visionado com uma frota sahida de Alcácer, desembar-
cou no Porto, arrasou e talou tudo até Compostella K
É depois d'este terrivel assolamento que, se não
falham remotas narrativas 2, vai opcrar-se a restauração,
senão a verdadeira fundação da cidade.
Em data incerta, mas provavelmente nos primeiros
annos do século xi, aportou, segundo contam, á foz
do Douro uma armada de gascões, que, fixando-se no
villar deserto, o fortaleceram e povoaram definitiva-
mente. Os chefes d'esta expedição eram um D. Moni-
nho Viegas e irmãos, — presumidos filhos d'um conde
D. Gonçalo Moniz, que fora governante do condado
portugalez, — associados a aventureiros extranhos para
levar a cabo à entrepresa militar d'assenhorear terras sa-
queadas por infiéis.
Esta colónia militar d'arribação teria constituido o
primeiro burgo portuense; estrangeira de procedência,
em grande parte, a cidade seria mais um exemplo da
colonisação por gentes d'além Pyrineus, da emigração
dos francos, tam vulgar nos primeiros tempos da fun-
1 Herculano, loc. cit., pag. 1 53. Os chronistas árabes chamam ao lu-
gar do desembarque Bortkal, evidente corrupção de Portucale.
8 O primeiro narrador é o conde D. Pedro na sua Nobiliarchia, ao
tratar da linhagem dos Viegas. V. o commento de D. Rodrigo da Cunha,
pag. 177 do Catalogo.
o
dação do reino, ora espontânea, tanto por espirito de
aventura cavalleiresca, como por cubica de presas e
terras conquistadas, ora fomentada pela monarchia
nascente para a repovoação e reorganisação d'um paiz
devastado pelas guerras em pleno chãos social e eco-
nómico \
Estas levas de estrangeiros costumavam ser con-
duzidas por aventureiros illustres da nobreza e do sa-
cerdócio; aqui também a chronica registra, afora aquel-
les cuja naturalidade parece indigena, como D. Moninho
e seus filhos, um tal bispo francez Nonego, que deixa-
ria, como rasto da sua passagem, o culto de Nossa Se-
nhora da Vandoma e o vetusto arco da Vandoma ainda
em nosso século demolido 2.
Certo é que o estabelecimento dos gascões, impos-
sível d'abonar com documentos de sufficiente confiança
1 Estes povoados de francezes, tam communs ao depois como núcleo
de tantas villas do sul do paiz, onde os arreigaria os esforços dos reis po-
voadores, começaram entre Douro e Minho; Guimarães, por exemplo, loi
em parte colónia franca por iniciativa do conde D. Henrique: pelo territó-
rio de Caminha, citam os documentos, povoamentos e solares da rresma
procedência. Hercul. Hist. de Port., t. IV.
O jesuíta António de Vasconcellos (cit. por Cunha), ao ver estas re-
lações estreitas entre os primeiros portuguezes e francezes, não teme dizer
com exagero que « se pôde bem chamar a Portugal uma colónia de França».
2 Este Nonego dá-o Bernardo de Brito, e com elle os que o segui-
ram, por bispo de Vandoma, cuja sé abandonara para tomar parte na expe-
dição do Porto. Erro crasso é este, visto que, como fez notar J. P. Ribeiro,
(Dissert., t. IV, pag. 32) Vandoma nunca foi bispado: e de facto verificamos
que a egreja de Vandoma pertenceu primeiro ao bispado de Blois e depois
ao de Chartres. Passa também por ter oceupado a sé do Porto ; ha memoria
dum Nonego, bispo portugalez em 102 5 A. D., mas que nada tem com o
homem da Vandoma (ibidem). Os nossos agiographos e chronistas consola-
ram-se aqui, como em tudo o que se refere á nascença da monarchia, d'cn-
genhar patranhas e invencionices, ainda muito acreditadas c correntes.
IO
histórica, se nos affigura um tanto precoce, como phe-
nomeno d'immigração franca, de que só ha provas
certas, meado além do século xi, quando nobres borgo-
nhões vieram militar contra sarracenos e a pró da
monarchia leoneza, em entrepreza de fortuna e de glo-
ria; entre elles se destaca por mais valoroso e mais po-
litico D. Henrique, a quem — pela cessão do condado
portugalense em 1095 e casamento com a filha bastarda
de D. AfTonso vi, D. Thereza — se deve a obra prepa-
ratória da creação da nacionalidade portugueza.
III
Vida obscura, sem nota, decorre para o recempo-
voado, durante todo o século xi; o Porto não passava
d'um humilde burgo, entalado entre Braga e Guimarães
ao norte e Coimbra ao sul, os verdadeiros núcleos da
nação nascente. A sua própria jerarchia ecclesiastica jazia
abatida, pois que apenas se lhe divisa um bispo, D. Ses-
nando, e a partir d'elle, a sé do Porto fica entregue a
arcediagos *.
Medrou a villa, e a ponto que, ao começar do sé-
culo xii em ii 20 A. D. 2, a rainha D. Thereza encou-
1 Não é precisamente desde a morte de Fernando Magno que a dio-
cese do Porto se torna um simples arcediaqado, como diz Herculano. Do
pontificado de Sesnando encontrou Ribeiro provas até 1075 ; ora a morte de
Fernando deu-se em io65. Não foi só o Porto que careceu de bispos n'este
período de lucta accesa entre os filhos de Fernando Magno; ha interrupção
semelhante nas outras dioceses, mas muito menos duradoura.
2 Reduzimos sempre todas as datas a amios de Christo A. D., em
vez da era de César, adoptada em Portugal até á revogação de D. João I
em 1422 A. D. A era de César adiantava 38 annos á de Christo.
12
tava o burgo portucalense \ já de sufficiente preço para
que podesse servir de mercê a um personagem muito
seu nas intrigações politicas, se é que não mais chegado
em relações menos confessáveis. Foi Hugo o presen-
teado com o novo couto, Hugo, um bizarro aventu-
reiro francez, de poucos escrúpulos e muita habilidade,
ao mesmo tempo todo creatura da rainha e do poderoso
arcebispo Gelmires de Compostella, «espécie de Me-
phistophcles sacerdotal», como lhe chama Herculano a.
Familiar e agente do façanhoso prelado gallego,
sagram-no (ir 14) 3 bispo da sé ha tanto vacante do
Porto, bispo improvisado, pois que D. Hugo, apesar dos
seus titulos ecclesiasticos em Santiago, não tomara ainda
ordens presbyteriaes. Era bem misera a mitra, mas a ca-
beça que a investiu, soube enriquecel-a; tenazmente
cubiçoso, estende a aba do pontifical a todas as munifi-
cencias regias e papaes, ora impetrando como diplomata,
ora sonegando com a mesma mão astuta, que em tem-
pos ajudara em Braga a furtar relíquias a S. Geraldo 4.
1 Livro Grande, fl. I, Corpus codicum, pag. 17. Todos OS Livros
citados nas notas são os do archivo municipal do Porto com a sua denomi-
nação cartular habitual. Quando o documento já tenha sido publicado, vai
a indicação do lugar, e nomeadamente do Corpus até onde elle já se acha
impresso.
2 Sobre as acções e o perfil, que esta celebre personalidade deixou
vivamente escorçado na Historia Compostellana e nos documentos dos car-
tórios, veja-se J. P. Ribeiro, loc. cit.. t. IV, pag. 12, Herculano, t. I, pag.
241 e segií., e a introducção de José Caldas ao Corpus codicum.
3 Esta data da sagraçáo de D. Hugo é geralmente feita em ui3;
foi Herculano quem corrigiu a data T. I, pag. 462.
4 Km 1102, indo com o bispo gallego a Braga, roubaram umas relí-
quias a S. Geraldo, pagando-lhe assim a obsequiosa hospedagem, que ellc
próprio confessa.
Do papa, em peregrinações a Roma \ captara rescriptos
conferindo direitos á sua egreja e alargando os limites
do bispado, a empurrar ás cotovelladas os collegas de
Braga e Coimbra 2; dos poderosos colhe avidamente
padroados, deixas e escambos 3; da rainha, sua decidida
e dadivosa amiga, obtém doações fartas e multiplica-
das 4, e entre ellas a grossa posta do feudo portuense.
Escandaloso favoritismo esse da princeza, que os poucos
e fracos villãos supportaram, mas de que haviam de
desforçar-se a breve trecho na pessoa dos successores do
intruso prelado, em lucta accesa e aporfiada com os bis-
pos extorsores, num duello de perto de três séculos,
1 D'uma vez para chegar ao papa, que estava em Cluny, atravessou
com muito risco o reino d'Aragão, disfarçado em mendigo.
- Graças aos rescriptos apostólicos por elle directamente negociados,
que conferiam á sua egreja toda a autonomia e immunidadcs, arredonda a
diocese pelas antigas balisas, acordando com o bispo de Coimbra a cessão
de toda a comarca da Feira até ao Douro (ui5j; chegou mesmo a poisar a
garra no bispado vacante de Lamego, mas a graça pontifícia foi-lhe revo-
gada (1116), apesar de já concedida pelo papa, desviado pelas informações
que desconfiado do caso mandara colher.
3 Os 23 annos do seu pontificado registram-se, no rol do Censual do
Cabido e nos diplomas que subsistiram dos cartórios, por uma serie de he-
ranças, trocas e doações de particulares e corporações ecclesiasticas ; ad nos
venial regnum tnum, parece ser a divisa perenne do fundador da egreja por-
tuense. Figuram entre esses contractos acquisições de padroados e foros em
Rio-Tinto (a doação do mosteiro por uma mula amarella), Villa-do Conde,
Leça, terras de Souza, e particularmente a egreja de S. Verissimo de Para-
mio (Paranhos, U23), doada por uma dama Truitesendes, com grande nu-
mero de casaes no mesmo lugar.
4 Da mão regia, além do couto do Porto, aproveitou ainda o mosteiro
de Crestuma (iiiSl, a egreja da Regoa (S. Frausto da Regula, 1120), o mos-
teiro de Bouças, e «metade do porto d'agua da Pedra Salgada até o mar »,
complemento fiscal indispensável ás rendas foreiras do burgo. E notável que o
próprio Affjnso Henriques o contemplasse com as egrejas de S Pedro da Cova
(u3o) c Meinedo. Um venturoso prelado de insondáveis palmas, este D. Hugo!
14
em que a mão armada se entremeiava com as demandas
e excommunhões, até rasgarem com o apoio da realeza
a odiosa carta da suzerania episcopal.
Na posse senhorial do couto, Hugo três annos
depois usa dos seus direitos dominicaes, outorgando
carta de foral (1123) aos moradores presentes e futuros
da cidade. Esse diploma, fundamental para a historia
politica, juridica e económica do Porto, molda as insti-
tuições do burgo pelas do foral de Sahagun que, desde
1084, data da sua promulgação, quasi servia de padrão
para a nova municipalisação burgueza da peninsula;
toma como base tributaria a capitação predial e as por-
tagens, e no tocante ao exercicio da jurisdicção, confe-
re-a a um único magistrado, o maiorino, de nomeação
do bispo, mas que para alguns actos judiciaes tinha de
valer-se dos homens bons do concelho.
N'esta singeleza orgânica revela-se a formula rudi-
mental dos municípios imperfeitos, grau primitivo da
evolução municipal, segundo as categorias fixadas por
Herculano. 1
1 L.° Grande, fl. i, Corpus, pag. 19, Herculano, t. IV, pag. 97.
Cotejou José Caldas (Corpus, pag. 19) o foral do Porto, tal qual se lê
no L.° Grande, com o documento archetypo da Torre do Tombo e outro
exemplar encontrado no mosteiro d'Arouca, publicado no Port. Mon. Hist.,
t. I. Confere com a lição do primeiro, mas diversifica da do segundo, onde
se depara este expressivo addita mento — Ilomines eiusde7n vi lie sini semper
obediens Sedi et Episcopo et Capitulo tamquam dominis. Tal interpolação
não passa, segundo a evidente interpretação de José Caldas, d'uma violação
de texto, uma falsificação, engendrada quando a mitra, investida pelo conce-
lho, se defendia por todos os modos dos ataques á sua immunidade mages-
tatica. O documento primitivo não intimava obediências, ou por não vexar
os burguezes, ou antes por imprevisão dos seus ouzios tão pouco de futurar
n'aquelles tempos de soffrida vassallagem.
15
Por severo que seja o juizo moral que deva for-
mar-se do rapace prelado, manda a justiça histórica que
se rememore a obra do homem que, tornando o Porto
a sede d'uma larga província diocesana, privilegiando
com regalias o seu couto, promovendo a attracção dos
moradores l, incitou poderosamente o desenvolvimento
da cidade. D. Hugo é o grande fomentador da populosi-
dade do Porto, emparelhando com os poderosos bispos
da Allemanha que em torno dos seus paços fizeram
brotar as opulentas Francfort e Colónia, Strasburgo e
Moguncia 2.
Os términos do couto de D. Thereza, vinculado á
sé portucalense, são hoje difEceis de deslindar da ono-
mástica obliterada do diploma, do vago das confronta-
ções e até das testilhas apaixonadas a que mais tarde
deu lugar a invalidação dos direitos episcopaes. O terri-
tório coutado parece-nos ter sido um triangulo irregular,
tendo por base a linha d'agua que vai de Noeda ao ri-
beiro de Miragaya e por vértice o Monte Pedral; partiria
assim dos dois lados com o couto de Cedofeita e o do-
mínio de Campanhã, tocando pela ponta na egreja de
Paranhos 3.
1 O imposto predial não passava cTum soldo; e a quemquizesse edi-
ficar e morar, o maiorino dava- lhe lugar na villa a troco d'este foro. Extra-
muros, o maiorino dava terreno para plantação de vinhas, ficando a mitra
parceira no quarto da colheita.
2 Seignobos, Hisl. de la civilisation, t. II, pag. iaS.
3 Tal é pelo menos o que nos atrevemos a inferir dos termos da
carta e das inquirições dos séculos XIII e XIV sobre os limites do couto do
Porto. A luneta, primeira confrontação do diploma, traduzida na inquirição
de Affonso IV por Lueda. presumo que seja a actual Noeda, o lugar mais
avançado de Campanhã. O monte de cativiis, por onde parte Citofacta mm
germinadi, isto é, Cedofeita com Germalde, é d'uma significação topogra-
iò
O burgo episcopal esse não passava d'um escasso
núcleo, acantoado n'este território relativamente vas-
phica actual. Emfim o canalis major, a cal mayor que vai dar ao Douro,
foi um thema debatido de rabulices nas demandas entre mitra, município e
coroa.
Nas inquirições de Affonso III feitas em 125o (Memorias das Inquiri-
ções, pag. 45) a estrema poente do couto da Sé, a partir com o de Cedo-
feita, marca-se pelo ribeiro que das Virtudes desce sobre Miragaya, e que
ainda hoje se vê a descoberto entre as casas da rua ; doze testimunhas con-
testes juram que até alli vai o senhorio do Bispo. Noventa annos depois,
Affonso IV manda ao seu tabellião do Porto proceder a uma devassa sobre
os termos da doação de D. Thereza (L.° Grande, fl. i v.°, publicado nas
Dissert. chron., t. V, pag. 292, e Corpus, pag. 20); ora n'esse inquérito as
testimunhas apoucam a área dominial ao pequeno burgo apar da ermida da
Sé. A caal mayor, todas o conclamam, não era o regato de Miragaya; fi-
cava muito mais áquem no Rio da Villa; os bispos é que tinham desbapti-
sado este ribeiro, prohibindo com excommunhão que se lhe chamasse cal
maior para arredondarem o seu couto até Monchique.
listes testimunhos não deixam a menor fé, não só por contradictados
em documento mais antigo, como per eivados de manifesta tenção. Taes
depoimentos brigam com as inquirições do século anterior, relativos tanto
ao Porto corno ás terras da Maia (Ribeiro, ibidem). As ignorâncias e os erros
não resaltam menos, e grosseiramente quando dão o mosteiro de S. Domin-
gos como fundado por D. Thereza, ao tempo da qual nem o próprio santo
nascera ainda. Este desacerto reprova a veracidade da escriptura do tabel-
lião do rei, que, como official da coroa, no duello com a mitra por todos
os modos diligenciava derrubar- lhe os direitos (Corpus, José Caldas, nota
de pag. 22).
Nem por isso se innocentam os donos da Sé d'usurparem dominio
alheio; pois que na própria inquirição do bolonhez, favorável aos direitos
episcopaes, as testimunhas asseveram que os bispos trataram de povoar o
lugar, havendo já setenta e cinco casas edificadas, além do regato de Mi-
ragaya, ullra illam aquam. Mem. das lnquir., pag. 46, Hercul., t. Ill,
pag. 46.
A coníinação do couto portuense pôde ainda abonar- se com um do-
cumento, d exactidão aliás hoje inverihcavel. Refiro-me á doação do couto
de Cedofeita por Affonso Henriques (114^) de que não existe senão treslado
feito no século passado dum texto deturpado já; n'ella se marcam as con-
frontações do colho pelas da egieja portucalense « id est. per locum qui vo-
calur de (AJoiíe/uque, per (lei miiialdum, et (Monle-cativus, et per 'lJara-
mios)). Ms. do auetor.
*7
to \ O que elle foi no resto do século xn e mesmo no xm
avalia-se pela sua topographia, em parte descriminavel,
quer pelas memorias escriptas, quer pelos monumentos
coevos, cujos restos perduraram. Empoleirado no pendor
do monte da Sé, apinhoado em derredor da cathedral 2,
cintara-se de muralha pela encosta da eminência 3. Era-
lhe porta principal o Arco da Vandoma, a entestar com o
largo da Sé e a velha rua Chã das Eiras; d'ahi declivava
o muro monte abaixo, costeando as Escadas das Ver-
dades onde teria um postigo, tornejava pelo alto do Bar-
redo \ angulando sobranceiro ao Rio da Villa que, pre-
cipitando-se por funda corga, desaguava a descoberto
ao fundo da actual rua de S. João; rasgava-se no Arco de
Sant'Arma, e proseguindo por S. Sebastião onde formava
novo arco, recurvava- se em zigue-zague para fechar o
1 A inquirição cTAffonso IV teima manhosamente em reduzir o couto
ao pequeno burgo, o que é manifestamente falso: « a doaçam que fora feita
aa egreja do Porto de huma ermida que estaua hu hora esta See, e huum
burgo que hi estaua a par da dita ermida» (/. c, pag. 22).
2 A confiar-se na citação da nota anterior, a sé de D. Hugo tinha o
corpo d'uma modesta ermida. Natural que assim fosse. A cathedral actual,
por vetusta que seja, não deve remontar além do século XIII.
3 Estes muros, que os nossos antiquários e seus compiladores teem
ingenuamente impingido por suevos, já existiam ao tempo do foral. Nelle
leio a concessão de plantação de vinhas extra-muros. E de presumir porém
que posteriormente tivessem soffrido profunda transformação.
4 Estes primeiros muros dáo-nos os auctores como descendo, quer
do lado do Codeçal até á Lada, quer do lado do Rio da Villa até á Ribeira.
Duvidamos muito de tal versão, em face da topographia do terreno e da
falta de documentação; o afortalezamento primitivo limitava-se natural-
mente ao monte da Sé. A inquirição de Affonso IV falia de fortaleza e tor-
res, onde os alcaides mettiam os presos, e da Cerca do Castello, onde não
era permittida a pousada a fidalgo; e no caso que lá poizasse algum, ficava
o bispo com a chave. É de presumir pois que houvesse um castello atorreado
no cimo da eminência, com uma cerca á volta a circumscrever o monte, que
seriam os chamados muros do Porto. L.° Grande, fl. 10, Corpus, pag. 43.
i8
circuito. O Arco da Vandoma ainda muita gente viva o
viu; do Arco de Sant'Anna, que serviu de titulo à co-
nhecida novella histórica de Garrett, subsiste a espessa
hombreira na rua do seu nome; no Aljube divisa-se um
grosso troço da muralha, encravado nas casas, ainda com
a emposta do arco.
Este curto perimetro circumdava uma escassa área
atravessada por caprichosas ruellas, em parte conservadas
no bairro da Sé, d'onde hoje resalta ainda ao transeunte
curioso a impressão pinturesca do Porto medieval. Den-
tro de tal âmbito não podia enxamear grande gente;
mas a cidade cedo tufou, no alto pelas Eiras e Pellames,
beira-rio pela Ribeira e S. Nicolau. Ainda assim, quem
ao Porto do fim do século xm conceder quatro mil vi-
sinhos, talvez desacerte por excesso.
Muros além, os campos próximos e o sertão quasi
ermo, picado de longe a longe por mesquinhos casaes.
Além-Douro, a vetusta Gaya coutada; á ilharga, a er-
mida de Miragaya com sua povoa e a visinhança de Mas-
sarellos; mais ao largo, o couto da velhissima Cedofeita,
as egrejas de Paranhos, de Campanhã, de Lordello, de
S. João da Foz, já mencionadas em escripturas coevas,
obscuros núcleos de povoados que a cidade ia absorver
na sua evolução transsecular \.
1 O padroado de S. Vereixemo de 'Paramio em terras da Maia foi
doado, como já dissemos, a D. Hugo em ii23. Censual do Cabido, ti. 10 v.°.
Os direitos sobre Santa Maria de Campanhã, em Gondomar, são objecto
d'um escambo com o mesmo prelado em 1120; a sua posse vem para a
mitra em 1227, completada ao depois pela cedência de numerosos compa-
tronos; as doações respectivas são no Censual em numero de 5o. Ibidem,
fl. 20 a 35.
Miragaya era mesmo um subúrbio do Porto e dentro do seu couto;
IV
Quem visse ao tempo o humilde burgo, ennove-
lando as suas pequenas alíurjas e cangôstas aos pés da
cathedral acastellada que o assoberbava com os grossos
no meado do século XIII quando o bispo Julião partilhou com o cabido os
seus direitos sobre a ermida de S. Pedro (ibidem, fl. i3í), já formava villar,
e bastante desenvolvido, como o mostram as j5 casas ao pé de Monchique,
apontadas na inquirição d'Affonso III. Convisinhava-o Massarellos, aldeia de
pescadores, onde parece se fabricava sal, segundo se depreende d'uma carta
de D. Diniz de i3i8, referente a direitos de «tyrare sal in (Micerellos*.
L.° Gr., fl. 3o v.°, Corpus, pag. 87.
Da Foz ha a carta de 121 1 em que D. Mafalda, filha de Sancho I, doa
ao Mosteiro de Santo Thyrso « heremitagium Sancti Johannes de Foce».
Diss. chron., t. I, pag. 259.
Cedofeita essa remonta-se a tempos de reis suevos no século VI, au-
reolando-se de lendas onde milagrêa S. Martinho de Tours a converter o
hereje Theodomiro, pretendido fundador da egreja — coisas ineditaveis hoje
em historia seria. A famosa inscripção da testada do templo foi alli posta
apenas em 1767, tresladada dum pergaminho antigo de 1 556 casualmente
descoberto no archivo capitular, a seu turno copia d'uma pedra antiga
que se dizia pertencer á frontaria primeira da egreja, onde estava lavrada
em «letras gothicas e verdugadas», diz o grosseiro notário. O que é certo
20
campanários, e envolvendo-se na cintura angusta de
muralhas ameiadas de pouco guerreiro aspecto, não pre-
sagiaria por certo o seu alevantado futuro. O Porto não
era então cidade que contasse entre as jóias da coroa
portugueza; essas eram outras que lhe sobrelevavam
em importância, como a « theocratica» Braga, Évora
«a romana e monumental», Coimbra «a cavalleirosa»,
Santarém «a cortezã», * para não fallar de Lisboa, que
de chofre attingiu o primado urbano do paiz.
Mas n'este minguado retalho de terra, n'esse pu-
é que o tal pergaminho, resuscitado pelos cónegos, levou logo sumiço
depois de dar matéria á campanuda inscripção e a um instrumento tabellio-
nar. A collegiada exhibiu ainda pela mesma época uma torpe carta de doa-
ção de Theodomiro, e um salvoconducto do tempo dos árabes para permis-
são d'exercicios religiosos, a emparelhar com o que fr. Bernardo de Brito
amanhou para Lorvão. Tudo isto foi apregoado pelo cónego Minuel Silves-
tre Ferreira (Ms. de 1771) como grandes descobrimentos no archivo, assim
como uma exposição ao papa feita pelo bispo Fernando Ramires em 1280;
mas por artes do diabo some-se logo tudo outra vez.
Quanto ás doações e cartas dos reis portuguezes, essas são admissí-
veis, embora as copias que tive presentes, sobretudo as relativas a Affonso
Henriques, a que já nos referimos, e a Affonso II, não satisfaçam á boa au-
thenticidade diplomática, o que attribuo a serem extrahidas de treslados já
viciados.
Escusado é dizer, depois da critica histórica de Herculano, que o
templo de Cedofeita não ascende ao século VI ; a archeologia artística corta
pela raiz a questão; é um edifício de estylo românico que não pôde ir além
do século XI.
cAldoar, Nevogilde e Ramalde, freguezias agora annexadas, são
também de velha fundação. Em San Veríssimo de Luvigildi apresenta
abbade seu a padroa da egreja D. Constança Gil em 1294. Dissert., t. I,
pag. 291. As inquirições de Affonso III de i25S faliam das freguezias de
Aldoar, lettogilde, rranhaldy e francos. L.° Gr., fl. 56 e 5j .
S Martinho de Loordello também lá figura ao lado de Sanhoane da
Foz, pertencente tudo com as anteriores ao julgado de Bouças (ibidem),
1 Herculano, Lendas e nattattvas, t. I, pag. 1 55.
21
nhado de villãos, labutava-se forte e firme, e accendia-se
um sentimento altivo d'independencia, uma rebeldia a
todas as sujeições e extorsões odiosas. Desentranhava-se
na consciência collectiva o poder da burguezia, que,
afreimada no tracto e nos* mesteres, queria sacudir o
jugo de tudo quanto lhe tolhesse as mercancias ou lhe
sugasse os proventos. Mercantil e fabril, a cidade, abo-
minando a oppressão do trabalho e a extorsão tributa-
ria, luctava pela sua alforria; accentuava-se aqui a ten-
dência d'autonomia communal, analogamente aos bur-
gos commerciaes e manufactureiros da Europa medie-
val, como os da Itália e Flandres.
Atacar a suzerania episcopal, acabar com os privilé-
gios da mitra, que a cubica sórdida dos bispos tantas
vezes aggravava, era o primeiro passo; o Porto não
queria que a crossa dos seus prelados fosse ao mesmo
tempo sceptro tyrannico, vara de justiça e arpão de
fisco. E para conseguil-o, para entrar no concerto geral
do paiz, no grémio das behetrias e da hegemonia mo-
narchica, não poupou sacrifícios, arriscando paz e vida
nas revoltas, e afTrontando os raios ao tempo vingado-
res da cúria romana. Ao contrario dos burguezes de
Liége, que nos seus assomos d'independencia se acurva-
vam sempre á potencia infrangivel do senhorio episco-
pal l, os nossos aífrontavam o bispo em pessoa e des-
afiavam os interdictos e anathemas que a meia volta
sellavam por largo tempo as portas das egrejas e emmu-
deciam os sinos dos campanários.
0 foral primitivo, ou por convenções expressas
1 Michclct, Ilisl. de France, t. IV.
22
hoje desconhecidas, ou por accordo na sua applicação,
não tardara a revestir-se de maiores franquias na gerên-
cia municipal da cidade. A própria administração se
complicava; em vez d'um único magistrado, o meiri-
nho, havia um juiz de causas eiveis e criminaes, um
alcaide de prisões, dois mordomos de execuções e co-
branças, e almotacés, tudo de nomeação do bispo; os
burguezes só eram ouvidos para a escolha de metade
dos almotacés l.
Os portuenses detestavam o feudo, mesmo mino-
rado, e por outro lado os oíficiaes do rei, que vinham
pela cidade pegavam-se com os officiaes da mitra; d'ahi
incessantes attritos d'onde faiscavam temerosas confla-
grações. '
Logo em tempo de Sancho i, ahi por 1208, o povo
rebellado contra a vassallagem tyrannicamente imposta
pelo altivo e indomável prelado Martinho Rodrigues,
rompia em terrivel motim, arrombando as portas do
paço, prendendo e guardando á vista o bispo, que
somente ao cabo de cinco mezes de cárcere se pôde
escapar de noite para Roma, onde chegou em mi-
serável estado, mas inabalável na sua fúria de vin-
gança, obtendo que o papa indignado, por intermédio
do bispo de Zamora, brandisse excommunhão fulmi-
nante sobre os sacrílegos aggressores. Na conjura as-
signalaram-se, como cabeças, os cidadãos João Alvo e
Pedro Feudo-Tirou, assim appellidado pelo seu com-
mettimento d'emancipação anti-feudal; as bulias do
papa Innocencio, ao feril-os com as armas mais ve-
1 Herculano, t. IV, pag. 99.
23
nenosas da egreja, aureolaram historicamente os dois
obscuros villãos, os protorevolucionarios das liberdades
do Porto K
Apoz mal aquietadas tréguas, os burguezes de novo
aferram os seus intentos; o bispo Pedro Salvadores é
desacatado por seus súbditos, que, mais uma vez des-
amparados do braço real, se submettem a composição
d'escriptura (1240) com o prelado, que deixa sanar os
ultrajes recebidos, á conta de grossa quantia que os in-
1 Herculano, t. II, pag. 120.
A revolta fomentou-se de tal forma, que os burguezes tiveram a seu
lado muitos dos próprios cónegos, resabiados com a mitra por causa da di-
visão das rendas do bispado que Martinho Rodrigues, ao invez do seu pre-
decessor, não quizera compartir com o cabido (Rodrigo da Cunha, pag.
52) ; os officiaes do rei, que tão fortemente se desaviera com o bispo, secun-
daram vigorosamente o movimento. A perseguição popular chegou a ponto,
que, enfermando o bispo durante o assedio do paço, não lhe consentiram
padre que o confessasse. Herculano, ibidem, pag. 109 e seggs. Voltou victo-
rioso de Roma o êxul prelado, logo que obteve a bulia para o bispo e arce-
diago de Zamora; estes, como juizes delegados do papa, julgaram á revelia
os réus, e proferiram em 121 1 sentença fera, declarando vinte cidadãos do
Porto infames e lançando-lhes a excommunhão reservada á sé apostólica.
L.° da Demanda do bisfo D. Pedro, pag. 5o.
O rei avelhentado curvou o collo, outr'ora duro e arrogante, e expe-
diu cartas sobre cartas humilhantíssimas a Martinho Rodrigues, fazendo-lhe
entrega pelo alcaide de Coimbra de todos os seus bens, redintegrando pelo
prior de Nandim em todos os seus direitos a egreja do Porto, e confirmando
a primitiva doação do burgo numa tal latitude, que a cidade fosse para
todos os effeitos políticos, judiciários e fiscaes, vassalla da mitra, concedendo
ao prelado a jurisdicção da cidade «como e melhor do que a possuirá o
bispo D. Fernando e seus antecessores». Rodrigo da Cunha, pag. 53, L.°
da Demanda do bispo, pag. 44 a 48. Os pobres burguezes, de todo ao aban-
dono, ficaram acalcanhados e desfeitos, triste presa nas garras da harda
episcopal, que ultimava a sua vingança pela ultrajante compaixão de rogar
a absolvição dos criminosos ao papa, que a mandou por breve ao abbade do
Mosteiro de Santo Thyrso (i2i3), depois, já se vê, de em bulia anterior con-
firmar as doações de Sancho I (12 12), tão esbulhadoras do poder, realengo.
Ibidem, pag. 3ç>, 43 e 5i.
24
subordinados cidadãos teem de largar a troco da absol-
vição da excommunhão imposta \
A cubica dos monarchas aguçava-se perante as ren-
das cada vez mais pingues da cidade, absorvidas pelo se-
nhorio ecclesiastico. nas quaes o bolonhez Affonso m
tentou compartir, encetando uma politica original e as-
saz perigosa para os destinos do Porto. O meio posto
em pratica foi a creação d'um burgo, grandemente afo-
ralado logo de privilégios, em Villa Nova a par de
Gaya, a que o rei chamava expressivamente o seu Porto
Novo, certo d'annullar o Porto episcopal, desviando
para aquelle o commercio interno e externo pelas exa-
cções íiscaes promulgadas que tolheriam d'oravante á
cidade o accesso das mercadorias de terra pela banda
d'além, assim como pela via fluvial e marítima, sujei-
tando-as a desembarque e tributos no burgo real de
Gaya -'. Este golpe ameaçava de chofre as prebendas da
1 No desaguisado tiveram os villãos por alliados a um tal Rodrigo
Sanches e a um poderoso cónego de Braga, Fernam Eannes. Depois de
muito reboliço e da trovoada d'excommunhóes, fizeram-se as pazes por en-
tremissão do bispo eleito de Coimbra, Tiburcio ou Toribio e do senhor
de Lumiares, Abril Peres, que sentenciaram o prelado a absolver os rebeldes,
obrigando-se estes á pagar-lhe em quatro prestações dois mil áureos (crusa-
dos). L.° da Demanda do bispo, pag. 5i. Rodrigo da Cunha, pag. 78. Her-
culano, t. H, pag. 356.
2 Herculano, t. III, pag. 48. Rodrigo da Cunha, pag. 92 e seggs. O
foral de Villa Nova data de ia55. L.° Grande, fl. 72 e L.° 1 .° dos Perga-
minhos, fi. 4. Os tolhimentos á liberdade commercial do Porto começaram
de ser levantados pelo próprio Affonso, mandando dividir o desembarque
pelas duas margens, exceptuando as naus dos moradores da cidade que des-
embarcariam n'ella, revogando a iniqua prohibiçáo da venda do sal, que
primeiramente negara á cidade. D. Diniz levantou por rim todas estas peias,
ordenando por carta de 1282 em composição com o bispo Vicente, refu-
giado em Roma, que os negociantes desembarcassem suas mercadorias onde
25
mitra e a riqueza commercial do Porto. Novas desaven-
ças se emmaranharam entre os dois concelhos antago-
nistas, o bispo, o rei e os seus officiaes, com as habi-
tuaes alicantinas apimentadas, como sempre, com o
exilio interdictorio dos bispos e as bulias apostólicas.
A própria coroa reconhecia o errado passo, pois
que Diniz, abandonando o proceder paterno, investe, a
instancias do concelho e camará do Porto, contra o se-
nhorio da Egreja e em favor dos burguezes, conferindo-
lhes a posse e direitos exarados na sentença que á reve-
lia do bispo proferiu, e accrescentando-lhes os foros
de modo que fossem os que legitimamente competiam
a um concelho perfeito K
Era de facto agora uma behetria o burgo episcopal;
pois que pela sentença do rei lavrador de seu alvedrio
dependia a escolha dos juizes da cidade. Mas pouco lhe
durou a alforria juridica; que o braço ecclesiastico teve
forças de deitar outra vez as mãos à vara, alcançando da
fraqueza de D. Diniz nova sujeição aos officiaes do
lhes aprouvesse. L.° r.° dos Pergaminhos, fl. 8. Entretanto diplomas
subsequentes versam ainda sobre differenças entre os.dois concelhos; taes
são a sentença de i3i7 sobre a venda do vinho de Riba-Doiro (L.° Grande,
fl. 18 v.°, Corpus, pag. 61 e L.° t.° dos Perg., fl. 6), a provisão de i33'2 so-
bre sonegamento de direitos de vinhos e mercadorias por certos abbades a
coberto do concelho do Porto (L.° /.° dos Perg., fl. 21).
1 A camará instaurou mesmo demanda perante o rei, o qual citou o
bispo Fernando Ramires perante sua justiça — ad suggestionem concilii et
hominum civitatis, como diz o papa na bulia reprehensoria endereçada a
D. Diniz. Rodrigo da Cunha, pag. i3o e seggs. Ramires, que se julgou des-
obrigado de apparecer diante d'el-rei, apoiado por conselhos de doutores que
ouviu, como Oldrado da Ponte, deixou correr a causa a revelia, que foi sen-
tenciada em i3i6; a posse «das coisas mandadas dar por sentença ao conce-
lho» foi confirmada, apoz um anno e um dia, a requerimento da camará.
L.° Grande, fl. i5 v.°, Corpus, pag. 55.
s
26
bispo. Reagem incontinenti os procuradores do concelho
com protestos tabellionares, arma-se grossa demanda,
apasiguada por D. AtTonso, então infante, que, escolhido
para julgador da contenda, a dirimiu, favorecendo as li-
berdades dos burguezes, muito a desprazimento da sé,
que se fartou d'instrumentar em retaliação pela penna
causidica dos notários K
Ia d'avenças em desavenças esta contenda secular, e
assim se continuou no bispado de Vasco Martins, ora
tratando com a camará escambos de rendas e servidões,
pautados por longas escripturas, onde os procuradores
da cidade immunisavam as suas «franquezas e liver-
dões», ora pleiteando em Avinhão os seus privilégios e
aggravos das injurias do seu povo, que, como já era
useiro, parece tel-o aggredido no próprio paço \
1 A carta regia de D. Diniz (i323) não deixa de ser um pouco rude
para o bispo D. João e cabido, que anteriormente menospresavam á revelia
o desembargo real, e cautelosamente se reserva para a corte a appellação
dos feitos crimínaes. L.° da Demanda do bispo, pag. 55 e Rodrigo da Cunha,
pag. 1 36. Á nomeação dos juizes, protestou logo a Camará, que embirrou
sobretudo com um dos escolhidos (L.° idem, pag. i63-4). Mezes depois,
vem a chamamento o infante de Coimbra ao Porto, e corta o nó da jurisdi-
cção pela apresentação por parte do concelho d'uma lista de quatro pares
d'homens bons, d'onde o bispo, limitado agora no seu arbítrio, escolheria
os dois juizes. Apesar de lavrado instrumento de transacção, logo no fim do
anno as gentes da Sé, percebido o damno, se desdisseram e reclamaram, ò
que lhes valeu amarga reprimenda do infante que frisou o seu papel de juiz
compromissado, pois que como tal fora convidado a fazer a concórdia. Ibi-
dem, pag. i65-8 e 182.
2 Este escambo entre Sc e Concelho, feito em 1 33 1 (L.° Grande, ri.
12, 'Dissert., t. V, pag. 261, e Corpus, pag. 47), muito interessante cm espé-
cies históricas e particularmente pela obrigação imposta de crearem «banhos
boos com caldeiras », pretendia pôr ponto em « todallas as demandas e es-
candallos», c como tal está inçado de formulas tabellioas c todas as •■firmi-
dões » possíveis. As dissenções reatiçam-se porem logo (L.° idem, 191-2-4),
37
A acção decisiva cPesta guerra sem tréguas tenta-a
a decahida mitra com o animo valoroso de Pedro
AfTonso, adversário indomável, que por duas vezes põe
o interdicto á cidade, á própria cabeça do rei arremessa
sem respeito a excommunhão, escapa-se das mãos do
infante D. Pedro em pessoa que quer prendel-o no paço,
e por duas vezes ainda se lança á correria d' Avinhão,
soltando de caminho, a cada cidade onde parava, anathe-
mas excommunhantes sobre o burgo do Porto e a coroa
de Portugal. Mas esta dantesca figura da sanha religiosa,
este derradeiro pulso do virote episcopal, teve de que-
brar os Ímpetos e passar pelas forcas caudinas da justiça
real, sujeitando-se á sentença do tribunal da corte, sen-
tença em que os juizes árbitros pouco já puderam fazer
em favor da suzerania mitral, embora não satisfizessem
e os protestos, partindo do bispo e cabido, denunciam já qual é a parte mais
fraca. Rodrigo da Cunha (pag. 145) conta sem precisar data que o povo
amotinado entrou de roldão no paço do Bispo, matando-lhe alguns servi-
caes, tendo Vasco Martins de se aferrolhar no Castello, d'onde, logo que
pôde, se escapou, andando foragido da sua sé nove annos. O texto com
que se abona para provar este attentado, extrahido das allegaçóes do
bispo successor D. Pedro, não demonstra que o arremettimento armado,
aliás provado para outros prelados, se desse indicadamente contra Vasco
Martins, ao qual se referem propriamente « gravissimas perseguições» e
exílio de «nove annos ou mais». Este desterro não o julgo attribuivel ex-
clusivamente á causa que D. Pedro invoca na força do seu articulado. V.
Martins foi eleito estando em Avinhão em 1329, onde se conservou até i334,
como consta da serie chronologica de J. P. Ribeiro ('Dissert., t. V, pag.
184) e como o próprio Cunha lestimunha fallando do seu regresso forçado
ao Porto por ordem do papa. Sabendo-se que foi n'este intervallo (1 33 1 ) a
composição com a camará, a explicação da demora do bispo parece-me ser
o desaffecto de Affonso IV e a privança do papa João XXIÍ. Desde a volta
de Avinhão até á morte do bispo em 1342 medeiam apenas 8 annos, durante
os quaes vários documentos mostram a residência de Vasco Martins no reino
e na cidade. L.° da Demanda, pag. 191, 2, 4.
38
os aggravos desmedidos do Porto e de D. Affonso iv
que desde infante apoiava a causa dos seus predilectos
burguezes e da rendosa cidade \
Cerrava-se a primeira phase do acérrimo combate,
que durara acceso quasi século e meio, arrevezado de
sangue e perseguições; e cerrava-se esta grande scena
com o mesquinho fecho duma sentença de tribunal se-
1 Rompeu o escândalo logo em 1 343 pelo conflicto entre o correge-
dor, que tomou conta da jurisdicção criminal, e o vigário da Sé, que na
ausência do bispo acudiu com censuras, retirando-as mal o corregedor o
ameaçou com desterro, Pedro Affonso resentido denunciou logo o contracto
feito para a escolha dos juizes, chicanando sobre a sua validade, na mesma
pouca fé com que ao depois em i35i se negou também ao escambo de
D. Vasco com o concelho. O rei replica propondo a audiência do concelho,
mas o bispo, julgando-se menoscabado, convoca synodo em Cedofeita e
atira aos reveis, monarcha e povo, as mais fulminantes excommunhóes. Foi
então que o infante D. Pedro, vindo de propósito, trata d'enjaular o feroz
prelado, que, temeroso de perder a vida, consegue illudir-lhe a vigilância,
fugindo, sempre perseguido, a unhas de cavallo para Tuy, d'onde atira nova
e mais solemne excommunhão. Estacionou em Avinhão seis annos, vivendo
á custa duma subscripção dos seus collegas de Hespanha, e obtendo cartas
do papa que pouco demoveram o animo d el-rei. Regressando ao Porto, o
seu animo não lhe consentiu ser victima das extorsões dos officiaes munici-
paes e reaes; manda intimar as excommunhóes á cidade e ao rei, que pelos
modos não se molestaram com estas aggressóes espirituaes. Pelo seguro o
bispo exilou-se de novo para a corte pontifícia, e ao passar por Salamanca
prega segunda vez na cathedral a excommunhão contra o rei, tam possesso
de ira que a voz se lhe sumiu na gorja. Por intermédio do papa, junto do
qual também D. Affonso e a camará mandaram os seus procuradores, tra-
tou-se então da demanda em que as partes litigantes foram devidamente re-
presentadas com seus aggravos perante cinco juizes nomeados por el-rei.
Apesar dum d'estes ser aílim do bispo, o seu lucro na causa pouco foi além
d'uma retirada honrosa e d'um modus vivendi quasi ephemero. A sentença
foi dada no mosteiro de S. Jorge, perto de Coimbra, em 28 de outubro de
i354, e este diploma fecha o celebre L.° da Demanda (pag. 270 a 2S5, e
Cunha, pag. 171).
— Por lapso não reduzimos a era de i3i8 a 1280, data da carta de
D. Diniz, citada a pag. 19.
cular, onde se lia a autonomia civica dos burguezes.
Eram d'oravante para todos os effeitos vassallos do rei ;
trocava-se a thiara pela coroa; os gibelinos triumphavam
dos guelfos.
Secularisado o burgo, estava quebrada a omnipo-
tência pontifical, que fora atéli o nervo da heróica resis-
tência dos prelados portuenses, o escudo a que inces-
santemente recorriam nos lances afrlictos. Observa com
graça discreta o P.e Rebello da Costa que n'essa época o
caminho de Roma era tam familiar aos nossos bispos
como o foi ao depois o da sua regalada quinta de Santa
Cruz. Là mesmo os seguia o implacável antagonismo
do municipio; a camará do Porto também mandava os
seus emissários á corte pontifícia. Assim foi que, antes
da eleição de Vasco Martins, recorreram ao papa, como
«devotos e humildes filhos da cidade do Porto», exo-
rando-lhe que os provesse de bispo da feição d'elles \
Na demanda com D. Pedro fez-se o concelho repre-
sentar em Roma, tenaz na defeza das suas reivindica-
ções 2.
Não cerceou a sentença de Coimbra o escândalo e
a discórdia da vida felina do povo e do bispo. O inter-
dicto perpetuava -se vergonhosamente; o concelho re-
1 Foi por occasiáo da transferencia de D. Fr. Estevão para Lisboa,
que mandou a Roma a camará dois procuradores, por causa da successão ;
na curiosa carta dirigida ao pontifice, intilulam-se os villãos devoti et humi-
lei fdii concilii civitatis porlucalensis. Rodrigo da Cunha, pag. 122. Se
isto rendeu a escolha de Vasco Martins, perderam os peticionários o tempo
e o cabedal.
2 D'estas embaixadas municipaes consta a procuração de Martim
João d'Aveiro, deão de Silves, em i35i — L.° B, fl. 237 v.° — e outra em i353
— L.° i.° dos Perg., fl. 27.
^
queria em vão ao successor de D. Pedro, Affonso Pires,
a cessação da censura, como era justo \ Succedem-se os
bispos e sempre o labéu ecclesiastico a ferir a cidade.
D. Fernando, apesar do muito que o Porto lhe deve, esse
vai até repor a jurisdicção nas mãos do poder ecclesias-
tico \ Não sabemos o que os burguezes retorquiram,
mas o Mestre d'Aviz, ao triumphar do seu golpe dis-
tado, vem ainda encontral-os a barafustar contra a cen-
sura teimosamente mantida, e apenas interrompida para
a sua festiva recepção. O rei, logo que a occasião lh'o
permittiu, corta o nó gordio da excommunhão, contra-
ctando com a mitra a venda da jurisdicção por um foro
annual; o bispo fazia o escambo dos seus poderes tem-
poraes a troco d'avença 3. Mais valia a indemnisaçao do
que perder tudo; desgraçadamente nem d'ella se gosou,
porque a paga íicou-se na promessa, nem os seus ex-
vassallos deixaram a revezes de inquietal-o, sempre agi-
tados de revelia, chegando a ir ao paço intimar-lhe
mandado de despejo i, volvidos agora em senhores. O
1 L.° CB, fl. 3i. Traz este instrumento a data errada de i352, pois
que D. Affonso começou a sua prelazia em i357.
3 E o que consta do pergaminho de 1 373, encontrado e transcripto
por Cunha, pag. 212, por signal que com a era errada; o seu contexto é
mais um triste documento de inépcia.
3 Obrigou-se D. João por contracto a pagar á mitra três mil libras
pela plena posse da cidade. Esta composição, feita com João d'Azambuja em
i3q2, só teve execução, por causa das guerras, em 1405 por contracto feito
com o bispo D. Gil, assignado em Montemor-o-Novo nos paços do bispo de
Évora. L.° Grande, ri. 5i, Corpus, pag. i36. A escriptura foi confirmada
pelo papa, que commetteu ao arcebispo de Lisboa João d' Azambuja o con-
certo da questão e o levantamento do interdicto que foi emrim relaxado no
anno seguinte. Cunha, pag. 21 5 e 221. L.° Grande, fl. iZ'] v.°
4 Agudaram estas testilhas com o bispo Luiz Pires e não foram das
menos aporfiadas e incidentadas (1457-60). Não sei porque o bispo excom-
3i
senado municipal ascendera progressivamente perante a
egreja; bem o mostra a prohibiçáo que a camará iníligiu
ao bispo em 1474, tolhendo-lhe com ordem regia a
assistência ás suas sessões. E quando em 1487 o prelado
teve de sahir do reino, veiu á barra da vereação indicar
munga dois cidadãos, desobedientes pelos modos aos seus mandados ; a ca-
mará accorda não fazer caso de tal excommunhão ; menoscabado, o prelado
pespega logo interdicto em cartas monitorias pregadas ás portas da Sé. Re-
calcitram os burguezes que lhe mandam ao paço recado da Camará para
sahir da cidade, sob pena de ser victima do povo alvoroçado. A este êxodo
succede a mais fulminante das censuras ecclesiasticas sobre a herética cidade,
que afinal sempre se moveu a rogar a volta do bispo, já se vê sem se arredar
do primeiro accordo camarário. O bispo, perante tal intransigência, envia á
camará uma curiosa epistola, datada do mosteiro de Moreira, em que se
nega a regressar ao Porto: «Ca pões deshonradamente saimos, por vosso
mandado, nom seria rezom que deshonradamente tornássemos a ella ». Quem
vem applacar, por instancia do rei, a contenda foi D. Álvaro, bispo de Syl-
ves, legado apostólico, que levou os cidadãos obstinados a pedir perdão ao
seu prelado, que á boa paz conferiu absolvição geral. O legado, pondo em
evidencia as semrazões d'uma e outra parte, recommenda paz e concórdia
(1457). Mas qual? a reconciliação pouco durou. Três annos depois, á conta
de que o bispo não deixava cortar lenha na serra de Roboreda, a camará
insurge-se. Os escudeiros do paço ameaçam de morte um cidadão, e a ca-
mará toma a si remir a injuria. Queixas reiteradas a el-rei, já do bispo, já do
senado, que dá por suspeito o regedor da justiça Vasco Rezende. Entretanto
os vereadores não socegam ; partes, juizes e senhores acabrunham a sé; até
que D. Affonso V, um tanto interessado pelo bispo como pessoa « de sua
creaçom » e estomagado por que a municipalidade sem se importar com
suas justiças se arrogasse illimitados direitos attentatorios do poder realengo,
espede á camará uma carta regia (1461), exprobando-lhe gravemente o
procedimento, que transgredira os limites da sua inspecção e competência.
Ao mettel-a duramente nos eixos, curva-se em todo o caso perante os privi-
légios municipaes, mas não quer que elles interceptem o que elle julga ex-
clusivo das suas justiças e provisões. Como já se sente nas palavras regias
que a coroa começa a recalcar as demasias communaes e a impor o seu se-
nhorio centralisador ; o absolutismo está perto. L." B, fl. i52 e L.° das
vereações de 1460, fl. 23, 3i a 59. R. da Cunha, que só conheceu a pri-
meira parte da disputa, publica a carta do bispo, pag. 262 ; Ribeiro treslada
a carta d'Affonso V. 'Disser t., t. V, pag. 159.
Lamenta José Caldas que nos archivos municipaes se tenha apagado
32
o seu substituto, o que o concelho houve por bem;
quasi se invertia a sujeição primeira l.
O duello episcopo-municipal desfecha emfim ^de
vez com D. Manuel 2, ao cabo de três séculos; a coroa
liquida as suas contas com a mitra (1503), e outorga
ao burgo o foral manuelino (15 17), derradeiro diploma
da sua historia foraleira, remate d'este longo drama
d'emancipação feudal e d'absorpção monarchica 3.
o caracter pessoal destas luctas memoráveis, fiando que elle só resalte dos
documentos ecclesiasticos; assim é para os primeiros tempos, embora, como
vimos, alguma nota pessoal se consiga ferir, tirada é verdade das bulias
pontifícias; mas aqui nos diplomas camarários já se mencionam as pessoas
que, ou accenderam as discórdias, ou n'ellas se envolveram apaixonada-
mente. Os burguezes tinham perdido o anonymato.
1 L.° Ant. das Provisões, fi. 5a — L.° das ver. de 1486, fl. 78.
a A liquidação de D. Manuel íoi levada a elfeito em i5o3, como
ultimação e acclaração do contracto de D. Joáo 1. O rei declara fazel-o
principalmente por mercê, e, um tanto scepticamente desdenhoso, por «algum
descargo de nossa consciência se em alguma maneira nisso temos obriga-
ção». A renda annual prestada á mitra e cabido fixa-se em 120 marcos «de
prata marcadoura de ley como ora se lavra nas nossas moedas de Lisboa e
da dita cidade do Porto » ; ao pagamento consignam-se rendas especiaes.
R. da Cunha, pag. 276.
3 Este foral é propriamente uma divisão fiscal de contribuições en-
tre coroa e mitra, baseado nas inquirições d Affonso IV, e nos escambos e
contractos successivamente celebrados entre os dois senhorios. A maquia da
sé, apezar dos ratinhamentos reaes, ficou ainda avultada; o imposto das
colheres sobre os cereaes reservou-se totalmente á egreja ; da maila tosta,
sobre o vinho, pertenceu-lhe metade, assim como a redizima dos direitos
aduaneiros. A convenção de 141 o já linha fixado a cobrança do sal de Santa
5\íaria, imposto sobre a navegação, a principio pago em medidas de sal,
conforme a carga e a tonelagem.
O foral manuelino existe bellamente illuminado no cartório munici-
pal; a primeira camará constitucional do Porto fel-o publicar em 1.823, jun-
tamente com outras cartas, sob o titulo de Foraes da cidade do Porto. As
cortes constituintes por decreto de 5 de junho de 1822 tinham começado o
ataque contra o gravame dos foraes, derrubados emfim ás mãos reformado-
ras de Mousinho da Silveira. Acabaram, é certo, as alcavallas da mitra;
V
A peleja contra as exacções das classes privilegia-
das, affrontadoras no seu parasitismo, não attingiu só a
clerical; os portuenses declararam-se também de logo
inconciliáveis com esta licenciosa fidalguia de Riba e
Além-Douro que devassava a cidade em arruaças e bri-
gas, implicava escarninha com os ruões do burgo, hosti-
lisando o socego do trabalho, a dignidade dos oíficios, e
a honestidade domestica. Mercadores e mesteiraes arre-
daram-se d'esta insolente e rixosa nobreza; lé com lé.
O concelho accordou em votar ao ostracismo as
gentes fidalgas; prohibiu-lhes redondamente que na
cidade possuissem prédios ou quaesquer bens, e que
n'ella estanciassem. Só o transito lhes era facultado, e,
quando muito, pousada não superior a três dias.
mas ficou o ónus da propriedade, os foros e laudemios, — resíduo vexatório
de velhas eras, verdadeiramente monstruoso e iniquo. Hoje em dia ainda o
burguez proprietário do Porto paga as dadivas gratuitas da snr.a D. Thereza
que Deus haja.
34
Garantiram as cartas regias esta indemnidade de-
mocrática; parece ter sido o primeiro a coníirmal-a D.
Diniz, mas Affonso iv e seus successores, entre elles
João i, sellaram successivamente os privilégios firmes
dos portuenses. Brigaram rijo por esta franquia os bur-
guezes, e souberam mantel-a a todo o custo, perante os
tribunaes e as cortes, á viva força até, reagindo contra
os mais poderosos senhores e contra os mesmos favo-
ritismos da coroa.
Na celebre inquirição de 1339, a de Affonso iv,
affirma-se o embargo de pousada aos fidalgos na cerca
do castello, a prohibição de morada, de compra de casas,
e creação de filhos \
Ás suas justiças ordena D. Fernando que impeçam
a pousada dos fidalgos e a própria creação dos seus fi-
lhos, na forma dos privilégios de D. Affonso 2 (1368), e
façam cumprir as vereações do concelho, na observân-
cia do antigo costume; o Mestre d'Aviz assigna nume-
rosas cartas, sagrando a franquia democrática da sua
leal cidade.
As casas e lojas dos mercadores eram mesmo isen-
tas do vexame das aposentadorias e aboletamentos; e
1 « Nehum richohomem nem ricadona nem cavalleiro nem outro
fidalgo que seia». Quando lá pousassem, o bispo ficava com as chaves das
portas do Castello. Ementa 20, e 16.
2 São duas as cartas do meirinho-mór de Entre-Douro e Minho ao
juiz do Porto, L.° 2.0 dos Fera., fl. 2Í. D'ambas se tiraram instrumentos e
se fizeram accordãos de vereações contra vários fidalgos n'elles nomeados
que ao tempo estavam morando no Porto, ou ahi vinham amiúde, trazendo
outros fidalgos. D. Fernando no mesmo anno manda em minuciosa provisão
cumprir o privilegio, justificando-o e apontando os abusos commettidos.
L.° Grande, fl. 38, Corpus, pag. 106.
35
para melhor se manter a inviolabilidade domiciliar dos
cidadãos, ordenou D. João á camará que se fizessem sete
estalagens no Porto, para pousarem os que á cidade
tivessem necessidade de vir \
Os monarchas foram tam respeitadores do privile-
gio que raro poisavam no Porto; nem o próprio Mestre
d'Aviz aqui teve paços, como tantas vezes se tem dito
erradamente. Ao seu filho o conde D. Affonso se nega-
ram os portuenses a deixar-lhe edificar casas que lhe
servissem de residência temporária; queixaram-se a D.
Duarte que prometteu escrever ao irmão para desistir
da pretenção, de forma que os privilégios fossem guar-
dados 2.
Uma ou outra vez apadrinhou a coroa validos
seus junto dos burguezes para estes lhe consentirem a
1 A carta regia de i355 estatue que se não tome aposentadoria nas
casas e logeas dos mercadores do Porto e viuvas honestas, nem se lhes tome
coisa alguma contra sua vontade. L.° A, fl. 37 v.°. Em 1374 reitera-se o
privilegio da pousada dos três dias, sendo esta ainda assim prohibida na rua
dos Mercadores e indica-se aos fidalgos que vão para os mosteiros, para
casa dos seus amigos ou para as estalagens. L.° A, íi. i5v.°. D. João, confir-
mando em i385 estas franquias, especifica como isentas as ruas das Eiras (Chã)
e Mercadores, as casas d'homens honrados, mercadores, viuvas honestas, e
mulheres casadas com marido ausente. L.° Grande, fl. 45 v.°, Corpus, pag.
122. A dois fidalgos apenas concedeu a residência pelos cargos que exerciam,
D. Fr. Álvaro Gonçalves, meirinho-mór de Entre Douro e Minho e João
Rodrigues de Sá, alcaide-mór do Porto, o famoso Sá das galés. Em 1390
promulgou duas cartas contra a moradia dos fidalgos, (L.° Grande, fl. 46,
Corpus, pag. 124-5) e repete-as ainda em 1416. Ibidem, fl. 48 e pag. 129.
Na vereação de 2 d'outubro de 1392, em conformidade das cartas de
el-rei dirigidas ao Prior do Hospital, marcou a camará nas Congostas duas
estalagens «grandes e boas», no Souto uma egual, outra na rua Chá e outra
á porta de Cima de Villa. L.° das Vereações da era de 1428-31.
2 Assim o obtiveram nas cortes d'Evora de 1436. L.° Grande, fl. 54,
Corpus, pag. 141.
36
visinhança; mas os acérrimos cidadinos recalcitravam
despejadamente que não, recusando-se a consentir mu-
ros a dentro, não só fidalgos volteiros, mas o próprio
Arcebispo de Braga e a condessa viuva de Marialva l.
Este precato era bem justificado, não queriam lobo
no povoado; os homens d'armas dos fidalgos do Minho,
a começar pelos do condestavel Nunalvares, eram bri-
gões atrevidos, e nos solares dos poderosos da comarca
acoitavam-se malfeitores que andavam no séquito sus-
peito dos senhores 2.
Sempre estremados na defeza de suas regalias, não
se contentavam nos casos urgentes em aggravar para a
justiça real; á viva força expulsavam do burgo os fidal-
gos contumazes que os incommodavam. Assim fize-
1 A condessa era protegida d'el-rei, o que lhe não valeu, porque pe-
ranle a negativa da camará, este por carta desistiu da pretenção (1462). L.°
ant. das provisões, ti. 72. O arcebispo esse pedia apenas vénia de residência
temporária; pois a vereação negou-lh'a para evitar trabalhos (1475, L.° das
ver., fl. 17). E não poucos effectivamente lhe tinham dado os intrusos
aristocratas, e entre elles Fernão Coutinho que, munido de cartas d'empe-
nho da rainha e do infante regente (1443), pretendia viver numas casas suas
de Monchique como e quando lhe aprouvesse. L.° das ver. de 1442 e
segg., fl. 36 v.°. Oppoz-se a vereação do concelho, mas os seus procuradores
em cortes fraquejaram, permittindo a estada ao fidalgo durante três vezes
quinze dias cada anno. L.° B, fl. 2i5. Abusou da mercê Fernão Coutinho, e
mais d'uma vez foi preciso lembrar-lh'o duramente; também este ruim visi-
nho era de tal raça que lhe foram sequestrados os bens que possuia na terra
da Maia, como indemnisação e castigo de malfeitorias e violências commet-
tidas pelo faccinoroso fidalgo e seus creados (1479). L.° Li, fl. 154. Com o
filho d' este Coutinho andou ainda ás voltas o concelho pelo mesmo motivo
das casas de Monchique ; a camará aporfiou na sua e Fero Coutinho teve de
desistir (1499). L.° Li, fl. 219.
2 Sobre a tempera dos homens de Nunalvares dizem as chronicas
{Chronica do condestabre). Da casta de gente que os fidalgos albergavam,
reza a carta regia de 1482 contra os poderosos d'Entre Douro e Minho que
acolhiam e defendiam nas suas terras malfeitores. L.° das ver., fl. 58 v.°
37
ram em 145 1, pondo fora dois e obtendo carta de segu-
rança real pelo feito 1; e não temeram até metter-se em
façanhas cruentas, como aconteceu em 1474, arremet-
tendo contra o opulento e poderoso Rui Pereira, senhor
das terras de Santa Maria, pessoa d'alta importância no
paço. Altivo e orgulhoso, desafiou a camará que repeti-
damente lhe intimou a obediência aos seus privilégios;
desdenhando d'estes mandados, o povo incendiou-lhe
as casas da pousada; o fidalgo que viu cahir mortos
muitos dos seus homens e a custo salvou a vida, não
encontrou ouvidos junto d'el-rei que por sentença ab-
solveu a cidade e lhe deu segurança 2.
Este communalismo ferrenho não representa ape-
nas um traço de caracter do nosso burgo medieval;
constitue uma força social; a exclusão do fidalgo na
visinhança do mercador e mesteiral é um agente de
prosperidade numérica, tal qual como no cortiço em
que o enxame das laboriosas abelhas se guarda de zan-
gão damninho. E o burguez d'então tinha a noção ní-
tida de quanto importava a guarda da isenção para o
crescimento do povoado.
1 L.° A, fl. io3.
2 A estada de Ruy Pereira nas casas « de Lianor Vaz, viuva da rua
nova», pouco ia além dos três dias da conta quando a camará resolveu re-
querer-lhe a sahida. Este rigor deve não só attribuir-se a espirito de desaf-
fronta de privilégios, mas ainda, creio eu, a ciúme mercantil. De facto, da
sentença dada contra Ruy Pereira (L.° 'B, fl. i3i) deprehende-se que elle
viera a tomar conta dos fretes dos seus navios e mercadorias; o senhor de
Santa Maria era, apesar dos seus brazóes, concorrente da rua dos Mercado-
res, o que prova que entre nós o commercio não era vileza que destingisse
o azul ferrete dos sangues finos.
Toda esta curiosa pagina da vida histórica do Porto foi minudente-
mente romanceada por Arnaldo Gama na Ultima "Dona de S. Nicolau, 1861.
38
Nas cortes d'Evora de 1436, onde o concelho do
Porto se assignalou, como em quasi todas, pelo tino po-
litico dos seus capitulos, os procuradores da cidade, ao
instarem pela confirmação das defezas impostas aos fi-
dalgos e sua extensão ao próprio irmão do rei, definiam
com admirável critério a razão de existência do Porto.
Não se fixaram aqui povoadores por amor da subsistên-
cia agrícola, que a esterilidade da terra nega; attrahira-os
sim o porto, o mais seguro de Lisboa á Galliza, que os
convidou a mercadejar activamente por longes terras. E
assim acudiu gente sobre gente, sempre atarefada no
trafico, ausente largo tempo por terra e mar, nas suas
aventuras mercantis; e mal lhes iria, e ao futuro da
pujante cidade, que suas casas, fazendas e familia não
ficassem isentas e seguras, ao abrigo d'intrusos e depre-
dadores.
Quando o antagonismo das classes ou antes o pre-
ponderantismo municipal se foi delindo, e a centralisa-
ção monarchica veiu a impôr-se imperiosamente, o pri-
vilegio entrou de caducar. D. Manuel atreveu-se a revo-
gal-o (1502) *; e embora a instancias do concelho,
mantidas pela própria mitra, suspendesse a derogação, os
penates do Porto foram-se pouco e pouco franqueando
á fidalguia. Esta declinação do burguezismo consumma-
va-a o absorvente monarcha, impondo o seu sello para
a confirmação das eleições da cidade e acabando com a
tradicional constituição do município livre do Porto 3.
1 A carta regia permitte que possam viver e ter na cidade casas e
bens quaesquer fidalgos. L." A, ri. 104 v.°
2 A eleição popular directa dos vereadores, escolhidos livremente
entre os homens bons do concelho, substituiu o rei o systema indirecto de
39
Punindo sempre pela integridade civica e descoa-
cção do trabalho, os munícipes portucalenses, ao sacu-
dir o jugo clerical e a intromissão aristocrática, iam
ganhando par e passo poderosas isenções, que ás largas
a mão regia lhes dispensava em foros successivos.
Pouco volteiros e desejosos de não serem desviados do
seu trafico, livraram-se dos recrutamentos forçados e
outras vexações inherentes ao militarismo 1; repellindo
as jurisdicções iníquas, lograram os direitos forenses
que uma jurisprudência summamente desegual em pro-
cesso e penas somente assegurava aos fidalgos 2; emfim
na ambição legitima d'enaltecer o municipio e fundar a
jerarchia burgueza, obtiveram as franquias indumenta-
res e sumptuárias que as pragmáticas comminatorias só
concediam a infanções e ricos-homens 8.
eleição, creando a casa dos vinte e quatro mesteres, analogamente á de Lis-
boa (i5i8). L.° i.° dos Perg., fl. 109.
1 A provisão d'Affonso III de 1255 manda aos seus officiaes que não
alistem gente á força para as naus e galés reaes (L.° da Ttemanda, fl. 49)-
A carta de D. João II em 1490, outorgando e confirmando privilégios, esta-
tue que caseiros, mordomos e lavradores não sejam constrangidos «para
hauerem de servir em guerra, nem outras idas por mar nem por terra». L.°
Grande, fl. 196.
3 A citada carta de João II privilegia os cidadãos do Porto para que
«não sejam mettidos a tormentos por nenhuns malefícios, que tenhão feitos,
saluo nos feitos, & d'aquellas qualidades & nos modos em que o devem ser,
& são os fidalgos d'estes reinos : & isso mesmo não possão ser presos por ne-
nhuns crimes somente sobre suas homenagens, & assi como o são, & deuem
ser os sobreditos fidalgos ».
3 As provisões regias permittem que os portuenses possam trazer
por toda a parte e a toda a hora armas offensivas e defensivas. A seda, guar-
nições d'ouro ou prata, e outros guizamentos de vestuário, defezos pela pra-
gmática das ordenações, eram um privilegio do cidadão do Porto. Já em
fins do século XVI se pucharam demandas contra meirinhos que pretende-
ram coimar filhos do Porto por porte dcfezo de trajos de luxo ; vieram ao
4o
N'uma palavra, a ladainha cTisenções e regalias, ar-
rancadas ás decisões das cortes e ás cartas realengas,
durante a primeira dynastia, as quaes a segunda havia
de additar e codificar, era tal e tanta que os privilégios
de cidadão do Porto passavam a provérbio. Ainda no
século xvi, desbaratado já o foralismo municipal, Ca-
mões dizia espirituosamente no fecho d'uma das suas
cartas da índia que temia dar em enfadonho do que
o não livraria nem ainda o privilegio de cidadão do
Porto.
lume dos processos as antigas immunidades que Philippe II confirmou em
alvará. Destas contestações e diplomas corre impresso um folheto intitulado
Privilégios dos cidadãos da cidade do 'Porto, publicado á custa das rendas
da cidade em 1611 (reimpresso em 1878).
VI
Sob estas garantias politico-sociaes, fructificou a
laboriosidade do burgo; desenvolveram-se as artes e
industrias do tempo; e acima de tudo se fomentou o
inicio d'uma riqueza progressiva, mercê de assignaladas
propensões commerciaes e da situação fluvial á beira
d'um porto considerável, que lançaram a cidade avida-
mente no trafico interno e externo, negociando larga-
mente com o paiz inteiro e levando as suas trocas ás
praças mercantes do norte da Europa. Tudo tendia a
avolumar a população da cidade pela melhoria social e
económica de quem n'ella por nascença ou migração
fogueasse; o aldeão volvia-se em cidadão, o mesteiral
passava a burguez, o munícipe aforava-se em nobre de
nova fidalguia, podendo hombrear com a velha em isen-
ções e riqueza; uma corrente de prosperidade animava o
balcão dos mercadores e as lojas dos oíricios.
Escalara a cidade a primeira muralha que cedo dei-
xara de abarcar-lhe o bojo. Ás barbas do muro pujara
42
novo burgo; mas não por egual, porque este povoa-
mento peripherico operou-se principalmente para o
occidente; a cidade chegava-se para o mar e para o sol.
Trasbordou o casario fora do arco da Vandoma,
para norte pelas Eiras (rua Chã), Cimo de Villa e Pel-
lames, para oeste ao longo da principal via d'accesso do
velho burgo episcopal, que descendo d'aquella porta,
vadeava em ponte o rio da Villa, seguia atravez d'um
bosque de castanheiros, d'ónde lhe veiu o nome de rua
do Souto, de que só restam hoje troços, sepultada como
foi no amplo leito da rua Mousinho da Silveira.
As hortas e almoinhas que ladeavam as margens
do rio da Villa, por onde hoje se rasgam a rua das Flo-
res e a de S. João, foram-se mosqueando d'habitações
e officinas de mesteiraes.
Além, toda a encosta que olha para o Douro,
sobposta á eminência da Victoria e á de Bellomonte,
coalhava casas pouco e pouco. AUi vieram estancear os
seus mosteiros as ordens de S. Domingos e S. Fran-
cisco, quando pela restauração monástica estas duas
novas milicias apostólicas revolucionaram o mundo
christão, a luctar contra a corrupção desmarcada dos
costumes; patrocinados pelos nobres, como pelos vil-
lãos que á sua pureza ascética se acolhiam, deixando
sem freguezia nem esmolas o clero secular desmorali-
sado, feriram a inveja da mitra que cercou d'implican-
cias a estada e progressos dos religiosos, tam queridos
dos fieis da cidade K
1 Foi o próprio bispo D. Pedro Salvadores que exorou os pregadores
dominicanos a estabelecerem-se no Porto para terem mão nos bons costumes
43
Emfim, Ribeira fora, pela ermida de S. Nicolau e
Reboleira até Miragaya, foi-se acogulando a ourela mar-
ginal do Douro onde afferravam as embarcações e se
carregavam as mercadorias.
Á matriz primitiva, ao burgo episcopal, addita-
vam-se novos núcleos demogenicos, que poderiam appel-
lidar-se pelas influencias que os dominaram — o indus-
trial, por sobre o Rio da Villa — o monástico, em torno
dos frades — emfim o commercial e marítimo, á beira-
Douro.
A segurança defensiva do novo burgo fel-o aforta-
lezar com larga roda de muralhas. Ordenou-se esta cir-
cumvallação, antes de meiado o século xiv, em tempos
de AfFonso iv, que consignou rendas para a obra, e
forçou a servirem n'ella os moradores dos julgados vi-
sinhos, dando cada um certos dias de trabalho, ou con-
tribuindo com materiaes e dinheiro. Activou-se a em-
preitada com Pedro Cru que, apesar da reluctancia dos
povos, manteve o constrangimento ordenado, impondo
notavelmente cahidos, e em cartas datadas em 1238 exorta os seus súbditos
a ajudarem efficazmente os frades na sua santa obra. O zelo do povo estre-
mou-se mais do que o bom do bispo desejaria ; missas, officios, mortuorios,
enterros, encanaram-se para a igreja de S. Domingos; o pé d'altar na sé
entrou de seccar. Assim feridos nos seus sensíveis interesses, mitra e cabido
moveram taes desconcertos, que teve de intervir o próprio papa, e somente
a pia guerra se accommodou quando a rainha D. Mafalda, filha de D. San-
cho, padroeira dos frades, indemnisou a sé com a igreja de Santa Cruz de
Riba-Leça (1277). A prebenda socegou-os; a questão não era de primazias
evangélicas, mas de espórtulas. Cunha, pag. 80.
Foi quasi synchronica a fundação de S. Francisco que o deão da Sé
impugnou, perseguindo os frades com toda a casta de moléstias e d'injurias;
teve ainda d'interceder o papa, sempre prompto na defeza das ordens mo-
násticas, que tanto consolidaram a auctoridade pontifícia no mundo catho-
lico, derribando o poderio das egrejas locaes.
44
a rigor o ónus da contribuição pessoal para a adua do
muro. O circuito devia estar fechado no reinado de
D. Fernando, mas o acabamento da muralha só se ulti-
mou em princípios do século xv 1.
São rigorosamente balisaveis estes muros, pois que
só mais tarde se derruíram, no século corrente, e ainda
manteem de pé lanços inteiros ameiados 2.
A Porta da Vandoma correspondia agora uma trí-
plice porta atorreada, distante d'ella todo o compri-
mento das ruas Chã das Eiras e Cimo de Villa —
1 No L.° Grande e no L.° ;.° dos 'Perg. apparecem vários documen-
tos sobre as obras do muro, desde i356 a 1414. De Affonso IV, mandando
applicar para a sua ajuda as cobranças de varias coimas e fianças (L.° i.° dos
Perg., fl. 35, 39). Pedro I confirma as provisões do seu pai, mandando que
os moradores de Massarellos, Maia, Bouças, Gondomar, Melres, Refoios,
Riba d'Ave, Aguiar de Souza por sen giro servissem com bois ou sem elles
na adua do muro (L.° Grande, fl. 35, L.° i.° dos Perg., fl. 54, Corpus, pag.
99). Foram remissos os intimados, Maia e Gondomar resistiram, e ordens
repetidas tiveram de baixar aos juizes para fazerem cumprir á risca esta finta
de trabalho; e tanto buscaram eximir-se, que chegaram a recolher-se nos
terrenos privilegiados das Ordens, o que não lhes valeu, pois que, pelas de-
cisões das cortes d'Elvas e mandado régio, tiveram de regressar ao serviço
condemnado (L.° Grande, fl. 37, Corpus, pag. 102). Esta área de cooperação
forçada, confirmada por D. Fernando (ib., fl. 38, pag. 104), ia desde Pena-
fiel por Louzada e Santo Thyrso á Maia; Gaya, Avintes, Paiva, Feira, Fi-
gueiredo, eram também adueiros (ib., fl. 37, pag. 102); mas apparecem do-
cumentos citando como contribuintes outros concelhos distantes, por exem-
plo os de Cambra, Fermedp na Beira e Villa boa da líoda (ib., fl. 37 e 42,
pag. io3 e n3). Em 1367 vê-se que havia um vedor da obra ao qual se or-
denava a empreitada de quatro quadrcllas, sendo a pedra trazida pelos povos
do termo, empreitada que devia estar prompta dentro de 3 annos (ib., fl. 38,
pag. io5). Um grande lanço do muro se derruiu, tendo de se lançar em 1399
um imposto no vinho para seu concerto; o recibo do empreiteiro tem a data
de 1414 (ib., fl. 49, pag. i3i).
2 Esta circumscripção encontra-se, entre outros, em Rebello da
Gosta, ob. cit.; Arnaldo Gama, introd. do [Motim ha cem annos, e cm Pinho
Leal, ob. cit.
45
Portas de Cimo de Villa ou da Batalha. Para a esquerda
a cortina corria pelo pendor da calçada da Thereza,
hoje viella da Madeira, até ao postigo l rasgado em Porta
de Carros, em 1521, para dar sahida condigna á rua
das Flores, aberta no reinado de D. Manuel pelo corre-
gedor António Correia. Novo lanço da Porta de Carros,
ao longo da actual casa da Cardosa na Praça Nova, até
ao postigo chamado de Santo Eloy, depois que os frades
loyos alli fundaram o seu convento em 1491. Trepando
pela em tempo denominada calçada da Natividade, hoje
Clérigos, e rua d' Assumpção, abria-se no alto em nova
porta acastellada a do Olival; torcia depois, facejando
pela Cordoaria, para a rua do Calvário, ao fundo da
qual para o lado das Taypas se rompeu a porta das
Virtudes. Angulava de novo, a buscar o rio, enfiando
pela Cordoaria Velha, alto da Esperança onde teve de-
pois a porta d'este nome, e descahindo pelas escadas da
Esperança, rematava pela Porta Nova ou Nobre, o adito
mais grado da cidade, e como tal o primeiro ingresso de
seus bispos e governadores ao tomarem posse dos seus
cargos.
Beira-rio, a muralha ia ao longo de Cima do Muro,
recortando-se em diversos postigos, entre elles o dos
Banhos, do Terreirinho e do Peixe, e na ampla Porta da
Ribeir2, proximamente ao fundo da rua de S. João.
Chegada ás Escadas do Codeçal, outro cotovello para
empinar costa arriba pelos Guindaes ao Postigo dos
1 O postigo dos carros existia desde 1409; foi mandado abrir para
serventia das obras das casas da rua Chã que ardera e das hortas que esta-
vam ao pé e eram das melhores. L.° A, fl. i55.
46
Carvalhos, depois Porta do Sol, d'onde cortava para a
torre de Cima de Villa, fechando o seu zigzague poly-
gonal.
D'este circuito subsistem ainda lanços mais ou
menos intactos, como na viella da Madeira, nas ruas
do Calvário e Cordoaria Velha, nas escadas da Espe-
rança, e na cerca do convento de Santa Clara, onde se
eleva uma torre, ameaçada já do camartello; por Cima
do Muro fora persistem as substrucções da muralha.
Fora do recinto, de povoado contiguo havia so-
mente o bairro de Miragaya, grandemente morado já;
em meado do século xin accusam as inquirições 1 que
só para o lado de Monchique em quinze annos se
tinham edificado setenta e cinco casas, e continuavam,
progressão notável e sobretudo pasmosa em taes eras.
O incremento foi tanto que o subúrbio entestou com a
cidade, já á ourela do rio, já encosta acima para os altos
do Olival.
Como é que um povoado d'esta possança e que
tão notavelmente assignala a crescença do Porto, foi
engeitado e rejeitado extra-muros?! Talvez que as aca-
nhadas estratégias do tempo assim o impozessem, to-
lhendo que a roda da muralha descesse da borda em-
pinada das Virtudes e Esperança á corga do ribeiro de
Miragaya. E quem sabe se ás razões defensivas se casa-
riam razões sociaes, um propósito d'alienar da cidade
visinhos de menos estima.
1 Man. das inquir., pag. 46. Diz a testimunha refcrindo-se ao lugar
alem do riacho: «Eptscopus populavit ipsum, non suni aduc guindecim
anni elapsi quod eum incepit populare suntmodo facte septuaginta quin-
que case, el cotidie faciunl magis».
47
Taes eram os judeus que avultavam entre os habi-
tadores do florescente arrabalde. Alli foi a primeira ju-
diaria do Porto, residência que a terminologia local
atravez de tantos annos ainda perpetua no Monte e Es-
cada dos judeus, centro do povoado hebraico, que se
alastrava da calçada de Monchique pelo alto até ás Vir-
tudes e Esperança \ Odiado do christão medieval, vivia
o judeu relegado fora de portas, á sombra mesquinha da
muralha onde viera acoitar-se, mas pullulando sempre,
graças á sua extranha vitalidade physica e económica,
em gentes e riquezas.
Tirante este núcleo accessorio, no raio juxta ur-
bano não se divisava povoado apreciável; era quasi tudo
terreno de fruição agricola.
Pelo norte, o dilatado campo do Olival com sua
cordoaria, o maior rocio da cidade 2; o postigo dos carros
dava para hortas e laranjaes. Á direita de Cimo de Villa
um montado de carvalhos. A onomástica guardou e em
parte guarda ainda estas reminiscências da primitiva ser-
ventia agricola dos locaes, hoje attestados de casario,
trilhados de ruas, e mergulhados no coração da cidade 3.
1 Nota de Arnaldo Gama a pag. 478 da Ultima Dona de S. Nicolau.
2 O campo do Olival foi feito ressyo do concelho no escambo com o
bispo D. Vasco a quem a cidade o comprou por troca de herdades e casaes
na Maia, em i33i. Havia alli já pertencente á mitra uma cordoaria, que se
manteve até ha poucos annos, deixando o nome ao passeio ajardinado.
L." Grande, ri. i5, Corpus, pag. 53. A crêr-se na antiga denominação ainda
conservada, esta cordoaria foi precedida d'outra, a cordoaria velha, por sobre
Miragaya (Reb. da Costa, loc. cit., pag. 232); esta anterioridade porém não
pôde ser grande ; o que é natural, é que cedo cessasse de funccionar, pois que
o Olival se prestava muito melhor a tal industria.
3 Largo do Olival, rua das Hortas, Laranjal; e antigamente Porta
do Carvalho, ao depois Porta do Sol.
48
Intramuros mesmo, o adensamento era débil em
parte do âmbito recemcircuitado; por entre as ruas que
se tinham desennovelado do velho burgo sobravam es-
paços vasios, grandes manchas verdes no povoado. Da
Ferraria ás Congostas, de S. Nicolau a Bellomonte, as
cercas dos mosteiros dominico e franciscano. De S. Do-
mingos ao Souto, pomares e jardins atravez dos quaes
D. Manuel mandou rasgar a rua das Flores \ Por traz
da cortina de Cimo de Villa ás Hortas, os claros onde
vieram fixar-se as freiras de S. Bento e os frades de
Santo Eloy \ O Monte dos Carvalhos deu espaço tam-
bém para a cerca do convento de Santa Clara 3. O alto
da Victoria esperou da nova judiaria o seu povoamento
outorgado por João i. Antes de se encetarem os muros,
havia ressyos na Ribeira e hortas por traz da rua da
Fonte Taurina 4. O Porto cabia á farta dentro do seu
polygono ameiado 5.
1 A rua das Flores construiu-se em i52i, assim como a Poria de
Carros que n'ella entestava, por industria do corregedor António Corre '*,
como se lia na inscripção do arco da Porta, tam deploravelmente sumiuo
como quasi tudo o que rememorava em pedra o passado do Porto.
2 Os loyos vieram em 1491 e as benedictinas em i5i8. O concelho
deu aos frades um rocio ao pé do Rio da Villa. L.° das ver. de 1494, fl. 32.
3 Transferido d'Entre-os-Rios para a cidade em 1416; foi o primeiro
convento de freiras do Porto.
4 Dos ressyos falia a carta de D. Diniz de i3i6; e ás hortas refere-se
um protesto da mitra de 1 3a5. L.° da 'Demanda, pag. i83.
5 Esboçamos umas cartas topographicas do Porto dos séculos XIV
e XV, mas não nos atrevemos a insenl-as por incompletas; era preciso es-
quadrinhar muito mais o archivo, principalmente os enfadonhos livros dos
tombos e das vereações.
VII
No remate do século xiv o Porto avigorava já assaz
consciência do seu papel como elemento de organisação
patriótica, na grande crise da nacionalidade. O Defensor
do reino encontra-o de braços abertos ; a arraia miúda e
graúda, desfraldada a bandeira da camará l, acclama im-
petuosamente o Mestre d'Aviz, acoroçoa-o no seu papel
redemptor da nação em perigo, serve-o com fazenda e
pessoas, arrostando extremos de sacrifício civico. Es-
treava-se o Porto nos grandes actos de heroicidade com
que a revezes tem surgido nos periodos angustiados da
vida da pátria.
Do que então elle valeu — prova do seu caracter
civico, da sua populosidade e riqueza — quem consultar
os praxistas da historia portugueza, mal o perceberá.
Ominoso e ingrato esse desapreço dos historiadores.
1 Como Álvaro da Veiga não quizesse sahir para a rua com a ban-
deira da cidade, o povo matou-o.
5o
Exalta-se o messianismo da demagogia lisboeta; can-
tam-se em tuba épica os heroes das façanhas de Ato-
leiros e Trancoso; mas aos villãos anonymos do burgo
que rasgaram a bolsa e as veias, a esses nem glorias
subalternas lhes são dadas.
E querem saber quamanha foi a acção do Porto no
duello jogado em prol do reino?
Emquanto que a mor parte dos fidalgos d'Entre
Douro e Minho era contraria ao Mestre d'Aviz, dando
a voz das villas e castellos ao rei castelhano, o Porto
foi o primeiro a acclamar o Defensor, prestando a sua
adhesão á revolução que estava ameaçada d'abortar.
Equipou uma grande armada com que se foi a livrar
Lisboa onde D. João se via em estreito cerco por el-rei
de Castella e seus adversários \ Aos fidalgos renitentes,
indecisos e acovardados, moveram-n'os os patriotas
portuenses, com instancias e sobretudo a peso d'ouro, a
entrar ao serviço do Defensor; tiveram de lhes comprar
a adhesão, «por que daoutra guisa ho não quizerom
fazer» os grandes senhores, senão com a escarcella atu-
lhada pelos villãos, pródigos de dinheiro como de no-
breza patriótica 2. Ao próprio caudilho lendário, Nunal-
1 Reza a tradição dum bravo portuense João Ramalho que n'este
feito atravessou a armada inimiga n'uma chalupa para noticiar a D. João
que lhe chegava do Porto o soccorro salvador. Cunha, loc . cit., pag. 210.
2 A Ruy Pereira e outros mandaram-n^s na armada a Lisboa, dan-
do-lhes muitos dinheiros, assim como a Gonçalo Vaz Coutinho por ir com
elles ao Castello da Feira. Ao conde D. Pedro de Trastamara, de quem a
cidade desconfiava, apesar de fugido a el-rei de Castella por conspirar con-
tra elle, deram-lhe 3:ooo libras d'Atfonsys para o caminho quando o Mestre
o chamou. Enviaram « muitos dinheiros e pannos a Coimbra ao conde Dom
Gonçalo, que tivesse a voz d'Elrey, com quantos podesse aver, e lizerão-no
vir á Cidade, honde lhe davão quanto havia mister ; e porque se hum dia
5i
vares, á passagem d'elle pelo Porto, lhe entregaram
avultada somma l. Aos capitães da heróica batalha de
Trancoso deram dinheiros os nossos homens bons \
Ao rei fizeram successivos empréstimos, cedendo-lhe
inclusivamente as mercadorias carregadas, que, vendidas
no estrangeiro, lhe renderam dez mil francos com que
foram pagos os archeiros e mercenários inglezes. E para
ajuda da deíensào da cidade e da terra, imitando o pre-
tendente, mandaram alliciar á Inglaterra archeiros e
homens d'armas que longo tempo estiveram no Porto,
comendo grandes soldos de mezada 3.
tingio que se queria partir, por que lhe não daváo poos pêra a cosinha de-
ram-lhe mil libras cTAffonsys».
Impagável este fidalgo, que se fingia enfarado com a falta d'especia-
rias, para lhe metterem não a pimenta no paladar, mas dinheiro na bolsa, a
sugar sôfrego no ubere patriótico dos leaes burguezes. Saía á irmã, a rainha
D. Leonor, e traiçoeiro como eila ; ao serviço depois do mestre, entrou numa
conspiração contra a sua vida.
Estas scenas do tempo do condestabre parecem de ha pouco; lem-
bram certos episódios da guerra liberai. Como a historia se repete retrospe-
ctivamente, mau grado dos panegyristas das virtudes antigas e dos profiiga-
dores das corrupções modernas.
1 A Nunalvares « ofíerecerão e mandarão a elle e a sua mulher,
que chegarão á cidade, mil e duzentas livras da dita moeda ».
2 « E também mandaro muytos dinheyros a gonçallo uasqez couty-
nho e a martym vaasquez de Cunha por teerem a batalha de trancoso. » Se
estes dinheiros foram antes da batalha, deve pôr-se uma ementa na historia
feita, onde se diz que os dois capitães desavindos e ciosos, Gonçalo Coutinfio
e Martim Vasques, espécie de Saldanha e Terceira daquella guerra, foram
reconciliados por João Fernandes Pacheco ; se assim foi, na solda dos dois
guerreiros entrou ouro do Forto. E d'ahi talvez que o sentido seja outro;
darem dinheiro aos chefes viclonosos para continuarem na defeza do reino.
3 A importância só do dinheiro, prestado nos varies soccorros a
el-rei, monta a 30.766 cruzados a 6 cruzados por marco, somma quantiosa
para a época. Excedeu pois cinco mil marcos de prata a sangria dos portuen-
ses, ao passo que de Lisboa o mestre apenas arrancou 900. Pinheiro Chagas,
Historia de Portugal, vol. II.
52
Que maior rol de serviços para mostrar a acção
decisiva dos esquecidos burguezes na obra da indepen-
dência?! 1
D. João i não foi tam ingrato como a historia. Na
sua acclamação o seu primeiro preito é para « a boa e
leal cidade do Porto que muito trabalhou comigo n'este
tão forte negocio, mostrando e ministrando grades aju-
das e despezas por manter a verdade que eu defendia».
Também rei algum mais se esmerou em bem tratal-a
com honras e mercês. Entregou-lhe por «seus assigna-
lados serviços» os julgados de Bouças, da Maia e de
Emquanto que o nosso povo assim se arruinava, o Ínclito doutor João
das Regras especulava torpemente com a quebra de moeda, ganhando grossa
maquia. Ibidem.
1 Admira que o snr. Conde de Villa-Franca numa obra de
sabedoria erudita e incontestável consciência histórica, 'L>. João I e a
Alliança inglesa, 1884, onde rectificou muitos erros e accrescentou impor-
tantes espécies, nem palavra pronuncie sobre os actos dos portuenses na
gloriosa revolução. O episodio dos inglezes no Porto é-lhe desconhecido.
Parece que o Porto dignus non est intrare na grande historia. Pois o titulo
d'essas façanhas existe no L.° Grande, fi. 54 e L.° 'B, fl. 25o; e já sahiu
uma vez do silencio dos archivos, quando João Pedro Ribeiro o publicou
nas suas Dissertações, vol. 1, pag. 3i8. E o decreto de D. Duarte, em favor
dos privilégios da cidade, attendendo as reclamações dos procuradores do
Porto nas cortes d'Evora de 1436. Não conheço pagina mais honrosa da
nossa historia communal; bem merecia ser trasladada e afhxada em lugar
d'honra na camará do Porto.
A versão de J. P. Ribeiro foi tirada do vicioso L.° B ; os erros d'este
torpe apographo passaram para a penna do illustre cartulista. (^uandoque
bónus... E entre elles cahiu um que me deu que scismar. Foi a ida dum
bispo á Inglaterra, mandado pelos portuenses a assoldadar ingrezes. Ora o
texto do L.° Grande não falia de bispo nem de clérigo nenhum, mas sim
d'um barinel, uma embarcação. Este diploma está reproduzido cuidadosa-
mente no Corpus codicum, pag. 141. « Mandarom hum barenel ajngraterra
por trazer ingrezes pêra ajuda da defensom da cidade e da terra; e tiverom
estes ingrezes muytos tempos consigo pagando-lhes grandes soldos cadantes
em que gastarom muyto».
53
Gaya, dando-lhe por termo Penafiel e Villa Nova \ a
quem mais tarde obrigou a concorrer para os encargos
do concelho do Porto. Não houve isenções ou doações,
arrancadas pelos nobres, que lhe fizessem cassar os di-
reitos outorgados; o próprio Nunalvares, que pleiteou
contra a cidade a jurisdicção de Bouças, viu-se d'ella
desapossado, sendo condemnado nas custas. A cidade
pôde mais do que o poderoso condestabre 2.
Especificou, refirmou e accrescentou os seus privi-
légios e foros; e quando as cortes de Coimbra impoze-
ram ao rei acclamado que do seu conselho fizessem
parte homens tirados do braço popular, os procurado-
res do Porto n'elle entraram ao lado dos de Lisboa,
Coimbra e Évora.
Foi no Porto que João i teve a primeira festa
triumphal digna da sua magestade victoriosa e redem-
ptora, festa tam estremada que no seu pittoresco e realce
se deliciou a penna do chronista 3. Aqui celebrou casa-
1 Consta de duas cartas regias datadas em abril e maio de 1384. L.°
Grande, fl. 44. Confirmou-lhe a jurisdicção no anno seguinte, a despeito
d'outras doações que tivera de fazer. L.° A, fl. 149. Já D. Fernando dera
por termo á cidade o julgado de Melres em i36o. porque lhe « enviarom
dizer que a dita cidade era de pouca companha e nom era pobrada como
compria». L.° Grande, fl. 41, Corpus, pag. 11 o.
2 Provisão de i388, L.° A, fl. no, e Sentença da corte do mesmo
anno contra D. Nuno Alvares Pereira, condemnando o conde em 160 livras
e 7 soldos de custas. L.° A, fl. 78. Aqui o condestavel viu tolhidas as suas
ambições, como na distribuição de terras feita a esmo a vassallos seus. Não
lhe chegaram as immensas doações feitas, nem o monopólio do titulo de
conde que se arrogara.
3 Leia-se em Fernão Lopes a viva descripção da recepção do rei —
as ruas, desde a porta de Miragaya até aos paços, volvidas em estradas de
ramos e flores e com defumaduras de cheiros, o rio apinhado de nãos e
bateis apendoados e enramados, e o rei a pé por entre tanta gente que pa-
54
mento com a Lencastre, a filha do seu alliado João de
Gand, em pomposas bodas *; aqui lhe nasceu o mais
famoso dos seus filhos, o infante D. Henrique, o fautor
das máximas glorias de Portugal. E quando o espirito
d'aventuras d'além-mar rompeu com a expedição de
Ceuta, ainda os seus fieis burguezes se empenharam
em servil-o, apparelhando naus e municiando galés,
fazendo sahir da barra do Douro a mais poderosa e
galharda armada que jamais houvera 2.
recia querer-se afogar sob uma chuva de rosas que as mãos das donas lhe
desfolhavam das janellas.
1 Contadas por Fernão Lopes e Froissart. Conde de Villa Franca,
/. c. Ao jantar da boda assistiram, ao lado dos fidalgos, cidadãos grados da
terra, prova do ascendente tomado pela burguezia. No espaço que medeia
entre o Souto e S. Domingos, «que era entom todo ortas», diz o chronista,
fez-se uma grande liça de torneio, onde justaram fidalgos e cavalleiros. As
festas duraram quinze dias cheios.
2 Dizem vaidosamente os procuradores do Porto em seus capítulos,
« grande poderio de nãos quando passou a Cepta que forom bem seteenta
naaos e barchas afora outra muita fustalha que nom sabiees hum soo lugar
na espanha de que tam poderosa armada poderá sahir». Loc. cit. Foi n'esta
occasião que os portuenses ganharam a alcunha de tripeiros, alimentando-se
dos miúdos do gado para abastecerem a frota de viandas.
VIII
N'este Porto do Mestre cTAviz, ao arraiar do século
xv, borbulhava o gomo do futuro empório, atravez da
sua interessante topographia profissional.
Por Cima de Villa e Eiras era a barra secca da cidade,
o canal d'ingresso para os viveres e productos agricolas,
provenientes das terras do norte. A esta boca succedia-se
o ventre do Porto; feirava-se no largo da Sé, e pelas ruellas
da villa episcopal, por entre a clerezia da sé e os officiaes
da almotaceria, bolseiros e portageiros, estanceiavam
sobretudo nas Aldas os açougueiros e enxarqueiros.
As bandeiras dos officios desenrolavam-se arrua-
das. Surradores pelas viellas dos Pellames moirejavam
sobre o rio da villa, aprestando principalmente as pelles
cabritas. Ferreiros e armeiros forjavam ferramentas e
armaduras ao longo da Ferraria de baixo e da de cima,
ao tempo simples continuação do Souto; e ao pé d'elles
martellavam os caldeireiros, que haviam de dar o nome
ao seguimento da mesma rua, por onde ainda hoje
56
demoram as ofíicinas, talvez bem pouco mudadas do
que primeiro foram. Ourives estadeiavam os seus dixes
na extincta rua da Ourivesaria; e fabricantes de calçado
manipulavam a sola na Çapataria. Cada arte, cada mes-
ter, á moda da meia edade, vivia fechada na sua ban-
deira, e aggremiada ainda em confrarias, sob a égide
d'um patrono santo; cada corporação de mesteiraes,
vinculada pelo laço industrial e religioso, organisava-se
bem cedo, outorgando-se regimentos e estatutos l, e
assegurando, não só a solidariedade económica, como o
soccorro mutuo e até a beneficência publica 2.
Pelo alto da Victoria acoitava-se a judiaria. Facul-
tara-a D. João i em 1386, ordenando á camará que de-
marcasse muros a dentro cerca privativa para moradia
de judeus. O bairro judaico abrangia o espaço que do
extremo norte da rua da Victoria, ladeando pelas duas
vertentes da eminência, vai até ás Escadas da Esnoga,
que conservam no nome a corruptela da velha syna-
goga. Alli se apinhavam em communa com sua camará
e arabi, pagando ao concelho avultada pensão perpetua
e gozando das protecções e isenções facultadas por leis
próvidas, que tanto procuraram entre nós libertar o ju-
deu dos entraves odientos que lhe oppunha o fanatismo
popular, tam avesso aos por vileza chamados marranos.
1 São antiquíssimas estas associações, que lá por fora se ostentaram
poderosas e ricas nas cidades allemãs e flamengas. A dos ferreiros, tendo por
patrono a Senhora da Silva, é talvez a mais velha do Porto; note-se ainda
a dos ourives com Santo Eloy, a dos sapateiros com S. Chrispim, etc. Na
Bibliotheca do Porto existe uma collecçáo de regimentos d^fficios e confra-
rias, valiosa para a historia da organisação do trabalho entre nós.
2 A irmandade da Senhora da Silva tinha hospital, assim como a de
S. Chrispim. Estas instituições quasi chegaram aos nossos dias.
57
Accrescentada ainda ao depois pela im migração de Cas-
tella favorecida por D. João n, a colónia hebraica foi
um importante elemento demographico da cidade; do-
tada de singular actividade e industria, collaborou valio-
samente no fomento commercial e na prosperidade do
Porto \ e contava no seu seio os homens mais illustra-
dos e sabedores.
1 A judiaria, encravada e isolada na cidade, tinha duas portas, uma
na Esnoga, outra no Olival ; por foro do terreno pagava 200 maravedis velhos
á camará, com a qual testilhou em 1396 (L.° Grande, fl. 48) e judicialmente
em 1423. L.° A, fl. 229. Formava uma communa com seus vereadores e arabi,
e era residência do ouvidor da comarca judaica d'Entre Douro e Minho.
Houve no Porto judeus opulentos, dados á especulação commercial e finan-
ceira; e os diplomas faliam de vários que foram rendeiros dos impostos da
cidade como Jusuf-Ben-Abasis {Perg., 1. II, fl. 28), Abensagal, em 1448 (L.°
das ver.) e Jacob Baruch, em 1459 (L.° A, fl. i32) que por signal foi preso
por falsificador d'escripta. Houve também judeus physicos da cidade. Quando
em 1485 os judeus de Castella se vasaram sobre Portugal, a camará do
Porto quiz resistir á invasão (L.° das ver., 1485, fl. 8), allegando a con-
tagião da peste; chegou a expulsal-os, pelo que foi censurada (L.° das
ver. de 1487, fl. 6i). D'estes adventícios trinta famílias poisavam aqui, diri-
gidos por um judeu distincto Isac Aboab; deram-lhes casas na rua de S. Mi-
guel, contribuindo elles para o calcetamento da rua. Estas casas tinham um
P na testada.
Recentemente o snr. Mendes dos Remédios, doutor em theologia,
publicou um livro sobre os Judeus em Portugal, para o qual não encontro
encarecimento bastante; causa a mais grata surpreza esta obra de fartíssima
erudição e superior critério histórico, trabalhada, pensada e sentida. Oxalá
que a historia dos judeus portuguezes, que tanta honra deram á sua pátria
adoptiva, não a deixe em meio o sábio professor, invadido certamente pelo
desdém ignaro com que se saúdam entre nós trabalhos de tal quilate. Se
algum dia publicar nova edição do seu livro, atrevo-me a indicar-lhe
duas emendas, a respeito dos judeus do Porto. Não existe o L.° verde
que cita, no archivo da camará; é um equivoco de lettras com os livros
das vereações, e d'analogia com códices que se conheciam pela côr das
capas, como o L.° Prelo de Coimbra e outros. Também é engano dizer
que a judiaria do Porto se fundou em sitio onde fora um convento de bene-
dictinos; os frades é que vieram substituir os judeus desterrados, em tempo
dos Filippes.
58
Balcões e lojas dos commerciantes enfiavam pela
rua dos Mercadores; as casas do trato marítimo, com
seus mestres e carregadores, estabeleceram-se na praia,
da Ribeira a Miragaya, pela Fonte Taurina, S. Nicolau,
Reboleira e Banhos. Pelos surgidouros da margem an-
coravam as barcas, naus, baixeis e pinaças, as embarca-
ções do tempo, que ou arrepiavam a corrente do rio até
Ribadouro, ou vencendo a barra singravam mar em
fora, na rota dos portos costeiros e dos empórios estra-
nhos. Era aqui o coração do Porto, onde batia o sangue
que lhe arterialisava a pujança.
«O Porto pela sua situação, diz Herculano, perto
da foz d'um rio de primeira ordem, e rodeado d'uma
população numerosa qual era a d'Entre Douro e Mi-
nho, devia crescer rapidamente como empório com-
mercial.» 1 Esta expansão mercantil foi a mola real do
seu dynamismo demographico; e tanto avultava o pre-
dominio d'esta condição social na população da cidade
que os burguezes do século xv, dissemol-o já, o enun-
ciavam bem alto quando affirmavam nas cortes d'Evora
que os antigos edificaram aqui a povoação, não por
«lavrar e crear» na faina agrícola, porque a terra a isso
se não presta, mas por causa do porto o mais seguro
do norte, somente por «viverem pelo trafego das mer-
cadorias». Ora esta polarisação sociogenica do Porto,
causal intrinseca da sua populosidade, merece ser ao
menos rastreada nas suas origens e modalidades primi-
tivas, quasi completamente ignoradas.
A fertilidade da grande bacia do Douro trasbordava
1 T. IV, pag. 99.
59
os seus excellentes productos rio-abaixo a fundear na
Ribeira, que derramava o excedente do consumo da
terra pelos portos do paiz e até estrangeiros, e com
elles cambiava fazendas importadas no estrangeiro. A
formula commercial d'hoje esboçou-se já na primeira
quadra da vida nacional. A miude faliam escripturas
do século xiv dos barcos que vêem de Ribadoiro,
commandados por seus arraes, e talvez com o mesmo
original feitio que se perpetuou atravez dos tempos K
Occupam-se sobretudo, além de pão e fructas, a trans-
portar os vinhos de estima tam antiga, «carregam vi-
nhos de Ribadoyro», que, tornados do Porto, eram
exportados pela foz.
A importância d'este commercio infere-se do texto
de providencias successivas sobre sizas e arrecadações
d'alcavallas que já então oneravam os vinhos, sobre os
locaes da sua venda, e outras regulamentações.
Gaya partilhava com o Porto este trafico, e lá
1 O mais suggestivo e extenso documento que se me deparou para
apreciar a pauta commercial do Porto é uma espécie de inquérito fiscal,
já tantas vezes citado, mandado fazer em i33o por Affonso IV na sua
cubica d'esbulhar a sé de tam rica prebenda — « Enquiriçon que foy tyrada
por mandado delrey dom Affonso quarto por saber em certo que rendia a
dita cidade e oque o bispo e cabidoo auyam em ella pelas testimunhas que
elles apresentassem». L.° Grande, fl. 3 e segg., e Corpus, pag. a5.
A sessão d'inquerito, presidida por Lopo Fernandes, senhor de Fer-
reira, a que assistiram Vasco Gil, cidadão do Porto, e homens boos do con-
celho, teve lugar no Mosteiro de S. Domingos « atraio o virgeu do paaço
grande ».
D'envolta com os impostos, tributos, coimas e alcavallas e sua co-
brança, especificam-se ao longo dos seus 1 53 items as mercadorias e géne-
ros de toda a ordem, entrados e sahidos, assim como a sua proveniência
e natureza. É uma pagina viva, a primeira da larga vida commercial do
Porto.
6o
como aqui registram-se já proprietários de vinhas no
Douro \
O pescado era outro género natural importante de
subsistência e negocio. Os pescadores, que se escalona-
vam pela praia, da Lada a Massarellos, batiam o mar
costeiro até á Galliza, e aventuravam-se até á pesca do
mar alto e remoto. Obteve o Porto em 1383 a permis-
são de pesca por 50 annos nas aguas da Inglaterra e da
Bretanha 2.
A industria do peixe salgado florescia. As marinhas
do estuário do Vouga já produziam, carregava-se o sal
d'Aveiro 3, e Massarellos era em tempo de D. Diniz um
entreposito d'este género. Exportava-se peixe secco, e
no rol do fisco o pescado fresco e salgado é grande con-
tribuinte d'alcavallas 4.
1 D. Diniz em i33j expede carta para harmonisar contendas entre
Gaya e Porto, mandando que « todolos vynhos que ueherem pêra vender de
Riba de Doyro se uendam nas Barcas sobrela agua». Isentava d'esta impo-
sição « os vezynhos do porto ou de gaya ou de villa noua » que tivessem
« uynhas em Riba de Doyro». L.° Grande, fl. 28 e Corpus, pag. 61.
Na cidade e além apromptavam-se arcos para pipas e toneis, que
eram até objecto de exportação para Lisboa. Como n'esta multavam os car-
regadores que impingiam arcos de má qualidade, D, João em 1423 ordenou
que dois homens bons fossem vedores dos arcos antes delles serem enfeixa-
dos, e achando-os bons lhe pozessem uma contramarca ao lado da marca
do vendedor. L.° Grande, fl. 5o e Corpus, pag. i32.
2 O tratado commercial foi feito com Eduardo III. Balbi, Variétés
politico-statistiqucs, pag. 5. O Visconde de Santarém não se refere porém
a tal tratado.
3 A carta de D. Fernando de 1377 fixa o imposto sobre navios de
sal em «sete Uyuras do mylheyro daaueiro ». L.° Grande, fl. 42, Corpus.
pag. 112. As barcas do sal deviam «aportar dereyto da rua da Roballeyra ».
In,], de Affonso IV.
4 Inquirição d Affonso IV e outros documentos. Peixotas e congros
seccos mencionam as ementas.
6i
Aqui confluía pois o melhor da producção utilisa-
vel de solo e agua, mas a mercancia de procedência
agrícola ou piscatória figurava em quinhão apenas no
inventario commercial do burgo. O Porto era quem
acudia ás deficiências industriaes e manufactureiras, fa-
bricando e manipulando até onde chegavam as suas
oíiicinas, carreando e importando matérias primas e
artefactos que faltavam no mercado interno. Aos cen-
tros de mais avançada industria se dirigiam os nossos
negociantes, aos portos e cidades dlnglaterra, França e
Flandres, com os quaes sustentavam perenne trafico; e
em tal escala que mal se suspeitaria, se não fora a men-
ção clara dos diplomas coevos.
Esta navegação mercantil logo de começo se orien-
tou principalmente para o norte da França e Flandres;
com as suas praças, então das mais ricas da Europa, se
afreguezou o Porto; lá carregavam directamente as naus
os nossos próprios mercadores em demoradas peregri-
nações, sem recorrer a intermédios nem a marinha es-
tranha.
Ainda em tempo d'Affonso Henriques, meado
além o século xn, já os navios procedentes de França
pagavam dizima, metade da qual foi adquirida pela sé
em escambo com a coroa \ O conde de Bolonha no
século xin regula a policia dos vasos mercantes que dos
portos de França entravam no Douro 2; e D. Diniz con-
firma posturas dos mercadores sobre as taxas dos barcos
1 Em 1179 a mitra e cabido compraram esta meia dizima a D.
Affonso Henriques por cem maravedis d'ouro. Dil-o Rodrigo da Cunha, pag.
29, sem citar porém o diploma por onde o soube.
2 1254. Visconde de Santarém, Quadro elemeníar, vol. I, pag. 20.
62
que carregam para Flandres, Inglaterra e Normandia l.
Toda a inquirição de D. Affonso iv se farta de fallar nos
navios e mercadorias que vão ou vêem de França, a
attestar a intensidade da navegação e commercio com
este paiz. Abundam mesmo provas curiosas das dila-
tadas viagens dos nossos mercadores, que em grande
numero demoravam por terras francezas e flamengas,
annos ás vezes, sem perder os seus direitos de visinhos
do Porto 2. E são tam frisantes estes exemplos da sua
estada e tracto, que não pôde haver duvida em con-
siderar portuenses grande parte dos negociantes portu-
guezes lá por fora estabelecidos, citados nos archivos
estrangeiros, — colónias que tinham a importância pre-
cisa para obterem em paiz extranho privilégios e orde-
nanças regias 3.
1 Pera Frandres ou pêra Engraterra ou pêra Lormandia ou pêra
Bretanha ou pera Arrochella. Provisão de 1293. Ribeiro, t. IV, pag. 170.
2 Assim que se celebrou a concórdia entre o concelho e Pedro Sal-
vadores em 1240, estipulou-se que o bispo mandasse por commissão absolver
os cidadãos excommungados que estivessem residindo in Francia. Hercu-
lano, t. III, pag. 20.
Na inquirição de Affonso IV mostra-se que o burguez não perdia essa
qualidade «se for a frança e morar alli por huum ano e por dous ou mais».
D. Fernando em 1379 mandou ao seu coudel que ficavam isentos de apresen-
tar cavallos e armas os mercadores que «carregam e vaão pera frança e
leuam todo aquello que ham ou a mayor parte dello»; as mulheres na sua
ausência não seriam constrangidas. L.° Grande, fl. 53, Corpus, pag. 1 1 5.
3 V. de Santarém, Quadro elementar das relações diplomáticas de
Portugal. Les Portugais en France, Francisque Michel, 1882, cap. III, Re-
lations commerciales, trabalho consciencioso, embora rápido e muito incom-
pleto. Sobre as relações de portuguezes e flamengos, HeitTenberg, Relations
anciennes de la Belgique et Portugal. Em Bruges havia grande colónia
portugueza ; para lá se dirigia Froissart a obter informações para a sua
chronica da nossa guerra da independência. Conde de Villa Franca, loc. cit.
A feitoria dos portuguezes data de i38b: é pelo menos d'esse anno o privi-
63
Os pannos eram a fazenda que especialmente bus-
cavam e traziam dos centros onde na edade media me-
lhor se fabricavam; assim suppriam as deficientes e
grosseiras lãs, os pannos da terra, que então e por sécu-
los se teceram no reino. Esta industria manufactureira
estava pujante nas fabricas normandas e flamengas de
tecelagem e tinturaria. Vinham aos bulhões e balas os
pannos d'Abbeville, Ruão, Arras, Chartres, S.1 Omer,
Bruges, Ipres, Gand, Tournay, Lille. No rol taxativo de
mercadorias, promulgado no século xin, para fixar, se-
gundo as ideias económicas da época que parecem que-
rer resuscitar com o proteccionismo d'hoje, o preçário
da vendagem dos objectos em toda a comarca d'Entre
Douro e Minho, especificam-se todas estas fazendas
com os nomes, deturpados já se vê, das terras d'origem,
pelos quaes eram vulgarmente appellidadas \
Contribuíamos fortemente para a riqueza commer-
legio que lhes confere o duque de Borgonha, ao depois confirmado e am-
pliado. Mal Bruges começou de decahir, no final do século XV, principal-
mente por causa das suas continuas revoltas, os portuguezes com os outros
negociantes estrangeiros mudaram-se para Antuérpia, onde agruparam coló-
nia prospera em tempo de D. Manuel com o trafico da índia. J. Maurício
Lopes, Les 'Portugais à Anvcrs au XVI" siccle, 1896.
1 Eis outro documento precioso para a historia da merciologia por-
tugueza ao norte do paiz. Promulgado em 1253 pertence á chancellaria de
Affonso III. J. P. Ribeiro, /. c, t. Ill, pag. 5g. Na extensa lista dos preços
impostos a cada covado de tecidos diz-se: «et cobitus de meliori panno tinto
de Gam, aut de Ruans, aut de Ipli, valeat triginta sólidos » ; a citar ainda
entre outros decifráveis, Abouvilla, Lila, Brugia, Sancto Omer, Chartes,
Tornay. O nome commum dos tecidos era o da vi!la fabricadora; assim se
dizia umas calças de lila, um gibão de ipre. O regimento aduaneiro de
D. João, abaixo citado, falia de «bailas de valencinas» e os documentos da
chancellaria referem-se muito a « pannos de menim ». Valenciennes e Me-
nin são também duas villas da Flandres, hoje franceza.
64
ciai e industrial d'estas cidades, populosas e opulentas
entre as que mais o eram. Quem diria então que este
burgo remoto da península, ao tempo relativamente
humilde e escasso, havia de no discorrer dos séculos
egualar ou sobrepujar muitos d'esses soberbos empó-
rios?! Estacionaram uns e desandaram outros, secco o
caudal da sua prosperidade, desviado a partir do século
xvi para Antuérpia e depois para os portos hollandezes
e inglezes. A própria Gand, berço de Carlos-Quinto,
então a cidade maior da Europa, não excede muito a
população do Porto, com a qual emparelha também a
de Ruão, a velha capital da Normandia. Ipres conserva
apenas a memoria dos seus duzentos mil habitantes;
extinguiu-se o sussurro dos seus quatro mil teares, villa
hoje indigente e morta. E sem fallar de Abbeville,
S.* Omer e Tournay, reduzidas a cidades subalternas
que juntam algumas dezenas de mil almas, Bruges, a
sumptuosa Bruges, a corte magnifica dos duques de
Borgonha, centro do commercio universal, entreposito
da liga hanseatica e da Inglaterra, porto das naus de
Veneza, Génova e Constantinopla, é hoje uma cidade
triste, deserta, quasi pobre, de guarda apenas ás relí-
quias architectonicas e artísticas do seu passado glo-
rioso. Sem pompas nem estádios de gloria, rutilantes
mas ephemeros, o progredimento do Porto foi bem
mais afortunado e mais seguro.
Vinham tecidos também de Castella, dos teares de
Palencia e Segóvia, d'inferior qualidade assim como os
de Londres e de Bristol. A Inglaterra, atrazada no cami-
nho do desmarcado progresso que attingiu depois, mal
fabricava ainda; exportava como matéria prima para a
65
manipulação flamenga as lãs creadas nas suas ferazes
pastagens. Mas já em fins do século xiv a nossa praça
negociava largamente com a Inglaterra, com quem fazia
tratados de commercio, como já veremos \
Era reciproco este commercio internacional; tro-
cávamos os productos naturaes da terra. Exportava-se
o sal para França, Inglaterra e Flandres, carregação de
sufíiciente importância para merecer uma provisão adua-
neira de D. Fernando 2. O pescado também se carregava
para Hespanha 3; vinhos, laranjas e outros fructos para
Flandres e Inglaterra 4. A exportação de coiros, e espe-
cialmente pelles cabritas, é muito assignalada nos regu-
lamentos decretados 5. Qual era este commercio d'ex-
1 A pauta dAffonso III insere a escarlata engleza e ingres tinto.
Os documentos do século XIV e XV esses faliam a miude do londra e do
bristol, menos estimados do que os bons pannos francezes e flamengos, as-
sim como o piquote palenciano e segobiano. No ajuste da obra de carpinta-
ria da casa do concelho em 1405 assigna-se o preço corrente d'um fauno
de marca, maior d' Inglaterra. L.° CB, fl. 34. Ao portador da noticia das
pazes com Castella mandou a Camará dar de alviçaras um vestido de panno
de bom bristol. L.° das ver. de 1431 e segg., fl. 3o.
3 É a de 1377, já citada: «alguuns mercadores carregam sal em esse
porto pêra fora dos nossos Reynos, convém a saber frandes e frança e in-
graterra e que nom querem a nós pagar o nosso dereyto».
3 Uma provisão de 1405 foi provocada por testilhas com mercadores
aragonezes que vinham comprar pescado. L.° A, fl. 85.
4 Uma carta regia de 1470 providencia sobre este commercio em
Flandres. L.° sAnt.0 das Provisões, fl. 19. Nas contas dos duques de Bor-
gonha do século XIV figuram laranjas de Portugal. Nas cortes de Lisboa de
1446 se queixaram os portuenses de que nas costas d Inglaterra piratas ingle-
zes lhes tomaram embarcações carregadas de figo e vinho. L.° '£, fl. 264.
5 Inq. de Affonso III. Na segunda metade do século XV abundam
as providencias sobre coiros. Assim em 1462 prohibe-se a exportação,
L.° A, fl. 100; em 1466 prohibe-se aos fidalgos a compra das pelles em
concorrência com os mercadores, L." A, fl. 126; em 1489 nova carta sobre
carregação de coiros. L.° zAnt.° das Provisões, fl. 95.
66
portação, mal individuavel hoje, julga-se pela carta de
privilégios outorgada por D. Fernando, onde se afíirma
que os negociantes do Porto compram suas mercado-
rias para as levarem e enviarem a França por terras
estranhas e alongadas l.
Traficar por mar exige boa construcção naval, e a
praia do Douro era um estaleiro de primeira ordem,
não só em Portugal como na Europa. Equipavam-se
aqui embarcações d'alto bordo superiores ao melhor
que se apparelhava nos portos estrangeiros. As mattas
de Riba e Alémdouro davam os lenhos; as cordoarias
do Olival os cordames e calavres; os teares de Villa do
Conde os pannos das velas 2. O governo de D. Fer-
nando honrosamente fomenta por todos os modos este
progresso naval, e outorga isenções e regalias aos cons-
tructores e armadores d'embarcações que cubassem mais
de cincoenta toneladas 3.
Esta protecção á marinha mercante, tam abomina-
velmente descurada em tempos mais próximos e pre-
sentes, sustenta-se com D. João i, que isenta de direitos
1 Dante em i368, contra a moradia dos fidalgos e em favor «dos
vezynhos e moradores da dita cidade que por estranhas terras andam com
suas mercadaryas e as compram para as leuarem e enuyarem a frança per
que am de viver». L.° Grande, fl. 3q, Corpus, pag. io6.
2 Como o fauno de tren começasse de fazer-se mais estreito em
Villa do Conde e lugares da comarca, D. Fernando, considerando no prejuízo
que dahi advinha para o velame, mandou em 1377 que fosse feito por marca
de palmo e dous dedos em ancho. L.° Grande, fi 5 1 e Corpus, pag. 112.
3 A carta que D. Fernando promulgou em i38o para Lisboa foi logo
no anno seguinte ampliada ao Porto. Graças e mercês se concedem, e não
são de pequena monta, « a todos aquelles que quizerem fazer ou comprar
naues e bayxees tylhados de cinquoenta tonecs acima». Desta « hordinha-
çom » foram executores os cidadãos Affonso Diniz e Estevão Lourenço. L.°
Grande, fl. 53, Corpus, pag. 116.
67
todos os aprestes importados para fazer ou refazer na-
vios l, e com D. João n que chega a crear prémios
pecuniários para os armadores de naus d'arqueação de
cem toneladas 2.
Durante o reinado glorioso do Mestre d'Aviz, o
Porto torna-se o seu arsenal de guerra, onde se arma,
entre outras, a bizarra e nunca vista frota da expedição
de Ceuta. Materialmente, pôde dizer-se que a vasta en-
trepreza maritima da nação, então preludiada, aqui ger-
minou. Ao Porto devia Portugal o baptismo do seu
nome nas nações da Europa e o da primeira gloria nos
mares d'além.
N'este andar da navegação e do commercio haviam
de desentranhar-se instituições collectivas protectoras e
reguladoras. Á depredação dos corsários que então in-
festavam os mares, oppunham-se armadas, equipadas
despendiosamente pelos nossos negociantes, que a espa-
ços iam varrer as rotas da ladroagem e proteger os
comboios de mercadorias. Assim se faziam amiúde ex-
pedições contra os piratas andaluzes, biscainhos e in-
glezes. Para o resguardo das fazendas, á carga e á des-
1 No valioso regimento de 1410 manda-se que não pague decima
«alguém que trouuer bordalha de frança ou de ingraterra ou de hirlanda
pêra fazer navyos ou pêra refazimento d'elles» ; o mesmo para quem « trouuer
ou mandar trazer masto ou verga, garoupezes, ancoras, breu ou resina,
alcatram, ou outras guarniçóos e aparelhos pêra seus navyos». L.° Grande,
fl. 5i, Corpus, pag. i35.
2 Na provisão de 1474 consigna-se um premio de duas coroas, em
vez de duas que já tinham, aos constructores de naus de cem toneladas
«debaixo do primeiro telhado». E mais ainda: isenção de portagem de ma-
deira, enxárcias, armas, etc, e corte gratuito de madeiras nas mattas reaes.
L.° A, fl. 226. Hoje que os nossos estaleiros estão desertos, as providencias
governativas são mudas.
68
carga, utilisavam-se a principio de casas arrendadas e
até dos próprios mosteiros, com perigo e damno dos
seus cabedaes, que D. Affbnso iv procurou remover,
em bem dos mercadores e do seu erário, mandando
construir um armazém em terrenos e prédios pela coroa
adquiridos na Fonte Taurina l. AUi foi a primeira Al-
fandega, que até nossos dias estanceiou no mesmo local
primitivo do século xiv; alli se depositavam, dizima-
vam e lealdavam as mercadorias, sob a inspecção dos
almoxarifes, dizimeiros, arrecadadores, escrivães, o pes-
soal aduaneiro do tempo, sujeito nas suas funcções a
prescripções successivamente ordenadas sobre pautas,
taxas e isenções de direitos, e nomeadamente ao extenso
regimento promulgado por D. João i 2.
No movimento aduaneiro d'entrada e sahida inter-
vinham peias prohibitivas, quando assim convinha, so-
bretudo para os géneros de mantimento, como pão e
pescado, cuja exportação era permittida ou tolhida con-
forme abundavam ou escasseavam no mercado interno,
de modo a não haver carestia \ Já vimos como bem
1 Este foi um dos aggravos do Bispo na contenda com o monarcha.
As razões porque « elrey disse que mandava fazer o almazem e alffandega
do Porto» constam do auto de 1348, já citado. Este armazém d'alfandcga
já estava feito em \2>ib, quando a sé protestou contra as casas que «elrey
mandava fazer nas ortas atraz da rua da Fonte Tourina ». L.° da Demanda,
pag. i83.
a «Carta de como se ham de tirar os dereitos que ellrey ha na
cidade do Porto». Dante em 1410. L.° Grande, fl. 5o e Corpus, pag. i33,
onde o importante diploma vem mondado dos vicios da copia. O original
veiu em duplicado, um para o armazém, outro para o cartório da cidade.
índice de J. P. Ribeiro.
* Sáo numerosas as provisões e accordáos sobre prohibição e liber-
dade do commercio dos cereaes e peixe.
69
entendidas liberdades d'importação foram aproveitadas
para fomento de navegação. E em seu próprio favor
obtinham os mercadores protecção contra os concor-
rentes de fora da cidade que tolhiam a retalho o grosso
trato \ e além d'isso pequenas franquias, que eram uma
espécie de bónus para o seu commercio — entrada livre
sem siza da primeira venda de pannos 2, assim como de
tecidos, vestuários e utensílios para uso próprio 3. A
praga do contrabando é que já grassava pela Reboleira
e Mercadores, até dentro dos próprios armazéns reaes \
As relações entre mercadores e carregadores pauta-
vam-se de modo que ao commercio não faltasse trans-
porte, nem se abusasse no preço dos fretes. Fixaram-se
as tarifas para França e Flandres, e para a distribuição
equitativa dos carregamentos nomearam-se corretores-
1 Por carta de D. Duarte em 1434. Como os negociantes de pouca
fazenda davam grandes perdas aos mercadores, obtiveram estes que ninguém
de fora da terra carregasse fazendas de menos de 3oo coroas d'ouro. L.°
Grande, fl. 48, Corpus, pag. 139.
2 Por graça de D. Fernando em 1 383 escusando o pagamento da
siza da primeira venda que fizerem de pannos de fora do reino. L.° Grande,
fl. 42, Corpus, pag. 114.
3 Por carta d'Affonso IV eram poupadas de dizima vestiarias que
trouxessem de Flandres para uso próprio, assim como « calças, canivetes,
alfresses, especias, bacios e agomys, e outras coisas que trazem para sy e
para sas casas». Em cada bulhão de pannos podia entrar livremente um
retalho de 14 covados. L.° Grande, fl. 34, Corpus, pag. 96. D. João confir-
mou no seu regimento esta franquia assim como a de trazerem de Frandes
de dois em dois annos uma «opa empenada». Que luxo 1 Um burguez das
Congostas embrulhado numa opa forrada de pennas deixava a perder de
vista o melhor pintalegrete de hoje em dia.
4 Pela provisão de D. Fernando, já citada, se vê que havia merca-
dores que descarregavam navios além de Villa do Conde para não pagar
dizima. O regimento do armazém falia dos que « trabalham de furtar os
panos e mercadoryas », mettendo-as debaixo do lastro e nas arcas dos navios.
7o
fretadores *, intermédios forçados entre os commercian-
tes e os mestres d'embarcações. Os navios do Porto
buscaram quanto possível subtrahir-se ao ónus arbitrá-
rio do serviço publico; não podiam ser constrangidos a
servir o Estado, senão por intermédio da camará 2.
Remata as feições da cidade, como grande porto
mercantil, a existência d'uma bolsa de commercio; e
maravilha deveras vêl-a tam cedo instituida, a par das
que se estabeleceram nas mais poderosas praças estran-
geiras. Esta bolsa ascende ao meio do século xiv, mas
as guerras da independência e a crise nacional, fizeram-
n'a cessar até que os burguezes e a coroa a resuscitaram
e ampliaram. O accordo camarário de 1402 e a carta
regia de 1397 restauram a bolsa, tributo imposto sobre
todas as mercadorias do porto, cujo producto era desti-
nado a fazer face a despezas occasionaes que fora do
reino incidissem sobre a entrada de fazendas, acquisição
de privilégios e obtenção de tratados, assim como ou-
tros encargos communs ao commercio da cidade 3. É
1 A eleição e funcçóes destes corretores foram decididas por accordo
camarário de 1324; a carta de D. Affonso de 1 355 interpretou e confirmou
a postura, a pedido não só dos mercadores do Porto, como de Braga, Gui-
marães, Vizeu e Chaves. L.° Grande, fl. 35, Corpus, pag. 97. Uma sentença
de 1372 entre negociantes e mestres de navios estabelece o custo da tone-
lada para França e Flandres em 6 escudos de verão e 8 d'inverno. L.° A, fi.S.
2 Assim se decretou nas cortes de Lisboa de 1455, L.° B, fl. 338.
3 Na sessão de 24 de janeiro de 1402 em que se fez o accordão da
bolsa, apresentou o cidadão Diego Affonso uma carta de privilegio d'el-rei
de Inglaterra, isentando as fazendas do Forto de direitos novos que por elle
tinham sido impostos. As despezas d'este verdadeiro tratado de commercio,
negociado directamente pelos nossos burguezes, deu causa á restauração da
bolsa que na carta regia se diz haver existido em tempos dos reis antecesso-
res, tendo cessado « por razom da guerra e outras necessidades e embargos » ;
e consistia ella na arrecadação de dinheiros contados sobre a valia dos car-
7i
um signal eloquente de solidariedade mercantil este
previdente seguro mutuo contra embargos que a miude
surgiam, embaraçando ou onerando a entrada das nos-
sas mercadorias fora do reino, contra os desastres e
perdas de grandes carregamentos, contra as depredações
dos piratas que das naus do Porto faziam preza, emfim
contra tudo quanto então fazia affligir e perigar o com-
mercio \
Estes e outros interesses próprios e geraes da classe
careciam de ser discutidos e praticados em ajuntamento
e casa commum. Assim o fizeram os nossos mercado-
res, obtendo de D. João i pelos procuradores do conce-
lho casa e foro de grémio, á semelhança das loggias das
cidades italianas e das bolsas das cidades flamengas \
reganientos, com o fim de solver despezas « se algum embargo acontecia,
assy como ora em Galliza e outrossy em Ingraterra ».
Estipulou se que o imposto fosse de to libras por cada tonelada sin-
gela e 20 libras por cada trouxel de panno. Para a bolsa «ordinhada por
prol communal da cidade» e contra a qual se oppozeram em vão os merca-
dores de fora (L.° A, fl. 121), nomearam-se logo fretadores, escrivão e the-
soureiro que por signal era um « Joliã Pires barba mea ». L.° das ver., 1439-
1449, fl. 40. O accordão foi publicado por Arnaldo Gama, loc. cit., nota
66; traz o calculo da data errado.
1 Do que lá por fora soffriam n'esses tempos os nossos negociantes,
é exemplo a queixa nas cortes de 1445 a que já nos referimos. Uns ladroes
inglezes saqueiam nas costas do seu paiz barcos do Porto carregados de
fructa e vinho; requereram os roubados perante a justiça ingleza ; pois fo-
ram ainda por cima mettidos na cadeia e a custo se escaparam da prisão.
Já nas cortes de Coimbra de 1390 os visinhos do Porto, vendo-se tantas
vezes presos sem culpa e demandados injustamente em Inglaterra e Flan-
dres, pediam auctorisação para poder resarcir-se d'esses damnos perante
as justiças do reino quando cá apanhassem os estrangeiros rapinantes. L.n
cA, fl. 4.
3 A carta de D. João é de 1412, aprazendo ao pedido dos procura-
dores do Porto nas cortes de Lisboa, os quaes disseram que « em todos os
lugares das provincias do mundo, onde ha mercadores, se costumou e cos-
72
Esta primeira bolsa teve a sua sede num prédio d'arco
na rua nova a S. Nicolau, a celebre rua fermosa do
Mestre d'Aviz \ Desempenada e pracejada, a contras-
tar com as cangostas antigas, obra collossal para o
tempo e despendiosa, a futura rua dos Inglezes e do
Infante D. Henrique, foi logo dês a abertura o centro
onde se arreigou o alto trafico, onde brotaram e vi-
goraram até hoje as instituições d'uma solida orga-
nisação commercial maritima, que tem sido a força
prosperadora, sempre activa, do engrandecimento da
nossa terra.
tuma terem hua casa por logea em que fazem seus ajuntamentos quando
querem fallar sobre alguas coisas que pertencem a serviço do seu senhor e
a pro de suas mercadorias». Manda-lhes pois dar uma casa sobre um arco
na rua fermosa. L.° A, fl. 5i.
E sabido que o vocábulo de bolsa vem do appellido duma família
patrícia van der cBuerse, que tinha por brazão três bolsas, proprietária da
casa onde, a partir do século XIV, em Bruges se reuniam os negociantes.
A instituição e o nome da casa da bolsa derramou-se depois por todo o
mundo. O prédio da rua nova do Porto foi a nossa bolsa. Todavia a bolsa
de commercio existia de muito antes, organisada com seus rendimentos e
administração, como já vimos. Evidentemente aqui o termo de bolsa, offi-
cialmente usado nos documentos acima, não tem o sentido figurado que se
diz originado em Bruges, mas sim o de mealheiro ou cofre, onde se guar-
davam rendas de commercio para protecção mercantil. Não sei se isto abala
a etymologia flamenga do vocábulo, por todos repetida ; a verdade é (|ue no
Porto o grémio dos commerciantes começou por uma verdadeira bolsa,
bolsa commum de dinheiros que se amealhavam para seguro contra os
azares do trafico.
1 A rua nova ou rua fermosa foi mandada fazer por D. João, mas á
custa da cidade, entenda-se. Os pedreiros e carpinteiros que n'ella traba-
lhavam, foram isentos em i3q5 dos encargos do concelho. L.° Grande, h\
5o, Corpus, pag. 1 33 . A obra teve vedores e thesoureiros aos quaes se man-
dou tomar contas uma commissão em 1418. L.° zA, fl. 145.
IX
O esboço da physionomia topographica e social
do Porto do século xv poderá completar-se com algum
dado numeral, computativo da sua população? Em taes
eras não ha que buscar contagens recenseadoras de sa-
tisfactoria precisão; essas necessidades d'estatistica regu-
lar para a administração publica vinham remotas ainda
e para nós remotíssimas, embora não faltem exemplos
de tentativas.
A força numérica dos diversos lugares do paiz
tem-se pretendido induzir duma lista recenseadora dos
besteiros do conto, apurada ainda no reinado de D. João i
para fixar o numero dos besteiros que devia dar cada
uma das cidades, villas, julgados e concelhos do reino.
É uma resenha dos contingentes militares, que tinham
obrigação de prestar os diversos lugares do paiz, con-
tingentes que andavam minguados e em parte occupa-
dos por inválidos; de preencher as vagas e promover as
substituições foram incumbidos por ordem do infante
74
D. Duarte, em nome d'el-rei, Vasco Fernandes de Tá-
vora fazendo as vezes de Aífonso Furtado, anadel-mór
dos besteiros, e Armom Botim, escrivão da anadaria,
que correram o paiz no desempenho da sua missão.
Este rol de recrutamento, incluído nas Ordenações
Affon sinas \ foi aproveitado para o calculo retrospe-
ctivo da população portugueza, pelo académico Soares
de Barros, o primeiro que sapientemente se occupou
entre nós de demographia nacional 2. Subscreve-lhe a
data de 141 7, que Rebello da Silva 3, allegando o exame
directo do original, emenda para 1422, marcando uma
data que é aliaz a d'um alvará do infante desfazendo
duvidas dos recrutadores 4. A data de 1422 é pois ape-
nas approximada e provável.
1 L.° I, tit. 69, pag. 438.
2 Memorias económicas da Academia real das sciencias, t. I, pag.
148, 1789.
3 Memoria sobre a população e agricultura de 'Portugal, 1868,
pag. 43.
4 O rd. A gr., L.° I, tit. 69, pag. 466.
Ha uma outra lista de besteiros, attribuida ao reinado de D. Diniz,
mas referente apenas a algumas terras da Estremadura e Beira Occidental.
Herculano, t. IV, pag. 317; Gama Barros, Historia da administração pu-
blica em 'Portugal, t. II, 1896, pag. 233. Rebello da Silva também architecta
sobre essa tabeliã computações phantasticas. Loc. cit., pag. 47.
Os números ordenados em 1422 provavelmente, para o apuramento de
Vasco Fernandes e Armom Botim, presuppõem listas anteriores sobre as
quaes foi arranjada a distribuição dos contingentes; assim o declara até a
provisão do infante (Ord. Aff., loc. cit., pag. 435). E essas listas foram obti-
das pelos recenseamentos operados em diversas épocas pela anadaria mór
do reino, de que encontrei provas em diplomas do nosso cartório que escla-
recem e completam os documentos compilados nas Ordenações. Assim em
1390 diz el-rei ao concelho do Porto que manda pelo reino Estevão de
Vasconcellos Filippe, anadel-mór, para apurar todas as vintenas de homens
do mar e os besteiros do conto, segundo o regimento que dera. L.° das
ver. da era de 1428, fl. 19. E no anno seguinte ordena-lhe que não augmente
75
Eram os besteiros do conto uma milícia municipal
permanente, privilegiada l, fornecida segundo o numero
prefixado. Se este contingente fosse proporcional á força
numérica do povoado, podia estabelecer-se com certa
approximação e segurança uma relação conjectural entre
o rol dos besteiros e o censo total effectivo. Assim o
parece presumir o nosso primeiro demographista Soares
de Barros, presumpção abertamente acceita por Rebello
da Silva, seguido por Pinheiro Chagas 2, que, em face
o numero de 25 besteiros que sempre houvera no Porto. L.° A, fl. 36. Re-
pete-se o recrutamento em 1411 ; uma provisão regia cTesse anno, dirigida a
Vasco Fernandes e João de Basto, manda escusar de besteiro do conto, a
supplica do bispo do Porto, um criado de sua irmã Catharina Affonso, L.°
das ver. de 1450, fl. 12; outra provisão do mesmo anno, datada em Azurara,
pelo próprio Vasco Fernandes, apurador de besteiros em nome de Affonso
Furtado, anadel-mór, faz escusar um besteiro por ordem regia e manda nomear
outro em seu lugar. Confere a lição d'estes dois documentos com a das car-
tas de D. João I de 1410, insertas nas Ordenações ; uma avisando as justiças e
pessoas de todas as terras do reino que Vasco Fernandes de Távora, como
apurador, e João Basto, como escrivão, vão por sua ordem marcar e escolher
os besteiros do conto e homens das vintenas do mar; e outra formulando o
regimento a que os dois commissarios se deviam sujeitar no apuramento.
Não ha pois duvida de que, por ordens dadas em 141 o, se operou um
recrutamento militar em todo o reino; o delegado é o mesmo Vasco Fer-
nandes que nos apparece na provisão de 1422, mas o escrivão é outro, João
de Basto, e não Armom Botim. Foram esses os que andaram pelo Porto e
Azurara em 141 1.
0 snr. Gama Barros (loc. cit., pag. 3o5), reparando em dois diplomas
que com os anteriores se compilaram nas ordenações, mas datados em 1405,
fica em duvida sobre a época do arrolamento, duvida insubsistente em face
da approximação documentar que fizemos. Ou esses dois diplomas foram
reproduzidos com erro de data, e para um delles já o alvitra o snr. Gama
Barros, ou então o recenseamento de 1410 foi precedido doutro em 1405.
1 Em cortes de i36g D. Fernando concede aos besteiros do Porto
foro de cavalleiros, um juiz especial o seu anadel, isenção de fintas e peitas,
etc., privilégios conducentes a facilitar o alistamento pelo qual havia não
pequena repugnância. L.° Grande, fl. 40, Corpus, pag. 109.
2 Hist. de Portugal, v. II.
76
da resenha de Vasco Fernandes, estendem em lista pom-
posa as cifras censuarias das comarcas e principaes lu-
gares do reino. Deveriam porém ter pesado os erros a
que pôde conduzir este modo d'engendrar estatísticas
sobre tam incerta base.
Considerando que os besteiros se tiravam quasi
exclusivamente da classe dos artistas, dos mesteiraes,
claro é que povoados eguaes forneceriam contingentes
diversos, se a proporção dos seus oíficiaes d'offlcio fosse
diíferente; a população urbana por exemplo, onde a
classe industrial predomina, daria caeieris paribus mais
besteiros do que a população rural. Sabe-se por outro
lado que o numero dos besteiros nem sempre se regu-
lava pela massa da população, ou antes pela quantidade
dos legalmente recrutáveis.
O Porto por exemplo era apenas obrigado a ter 25
besteiros; assim o ordenou João 1 em 1391, conser-
vando o contingente antigo, «visto que alli se faziam
outras apuraçoens de homens de vintena do mar, caval-
leiros, peoens e arricaveiros» '. Elevado depois este
numero a 40, e já assim figura no rol de Vasco Fer-
nandes, o concelho nas cortes de Coimbra de 1439,
pediu a sua reducção á cifra primitiva, allegando que na
cidade havia muitos besteiros de polé, de cavallo e de
garrucha e que em tempo de guerra todos pegavam em
armas; o recrutamento forçado é que lhes repugnava,
pois que muitos para se eximirem fugiam da cidade
quando se tratava da inscripção, levando cada um os
1 L.°c/\, fl. 36. Esta ordem, já acima citada, foi dada em carta regia
a Estevão Vasques Filippe, anadel-mór, apurador das vintenas e besteiros-
77
seus capitães e mudando de terra «por cujo motivo se
ia despovoando» \ Era já o militarismo a atiçar a emi-
gração, o que contrariava os burguezes aífeiçoados ao
crescimento da sua cidade.
Eis ahi uma prova manifesta de quanto as condi-
ções locaes influiam sobre o pelotão dos milicianos. E
quantas haveria que juntar-lhe; o próprio infante o diz
na provisão, quando aíHrma que na resenha, apresentada
a Vasco Fernandes, a algumas cidades, villas e lugares
tocariam menos besteiros do que os já taxados em
tempo do pai e reinados anteriores 2. Tudo concorre
pois a legitimar o asserto de que grandes discrepâncias
havia entre a força demographica de cada terra e o conto
arbitrado de besteiros 3.
Soares de Barros assigna á população de Lisboa e
Porto ao tempo do arrolamento respectivamente os nú-
meros de 63:750 e 8:500 pessoas, números que dividi-
dos pelos contingentes das duas cidades, que na lista
dos besteiros são de 300 e 40, dão um quociente
approximado de 213. Haveria pois um besteiro por 213
habitantes, relação que Rebello da Silva formula e ge-
neralisa, sem attentar nas objecções que naturalmente
suscita este abuso demographico. Escuda-se com le-
veza condemnavel na auctoridade de Soares de Barros
e Balbi. Ora o académico não se atreve a estatuir a taxa
1 L.» <B, fl. 3o8.
* Ord. Aff., /. c, pag. 436.
3 Braga tanto se sentiu onerada que em 1462 representava a D. Affon-
so V contra o conto de 5o que lhe era imposto, allegando que era despro-
porcional ao numero dos seus habitantes, e uma causa de despovoamento ;
pedia que lhe reduzissem os besteiros a 25. Gama Barros, loc. cit., pag. 168.
78
censuaria dos besteiros, nem adduz a menor considera-
ção para justificar a quota de 213; e o geographo, em-
bora aproveite d'este o computo de Lisboa e Porto, nem
uma palavra solta sobre a resenha dos besteiros, pou-
pando-se até a qualquer referencia de calculo ao arrola-
mento de 1422, como elemento depreciação para a po-
pulação geral do paiz.
O rol de Rebello da Silva pôde mencionar-se a
titulo de inventario curioso, mas desbalise-se por com-
pleto o seu credito, tanto quanto o evidencia a critica
segura que arrazoamos *. Assim o Minho, ou antes a
comarca d'Entre Douro e Minho, vinha numericamente
em terceiro logar (125 mil), depois da Beira (215 mil)
e do Alemtejo (316 mil); mas de menor território a
sua população especifica orçava pela d'aquellas duas
províncias. Preparava-se o Minho para a extrema po-
pulosidade que attingiu ao depois, a contrastar com o
Alemtejo votado ao ermo.
N'este possante viveiro humano se creou o Porto;
1 Já depois cTescripto, e até composto, o que se lê no texto, veiu-
nos felizmente ás mãos a Historia da administração publica do snr. Gama
Barros, livro damplissima investigação e d'um apuro exemplar de factos e
documentos. Distingue-se bem d'estas historias de massa revelha que nos
continuam a servir, com applauso do noticiário, como o chá cansado do
Tolentino. Vejo com prazer que o snr. Gama Barros entende « que o nu-
mero dos besteiros só por si é elemento sem valor para indicar a grandeza
e prosperidades absolutas ou relativas de qualquer terra». T. II, pag. 244.
Em nota (pag. 3o3) critica também, embora suavemente, o rol pseudo-demo-
graphico de Rebello da Silva, mostrando que o modo porque eram apurados
os besteiros estava sujeito a indefinidas variantes.
Os erros de methodo, as inexactidões, os equívocos e até os cálculos
falsos são tantos que o trabalho de Rebello da Silva é n'este ponto um acervo
de monstruosidades que deixam desauctorisado o historiador; errar acontece
a tv!o~, iT-jj- tinto é ^'nWvel n\m psciptor de tomo.
79
todavia os seus 8:500 habitantes não lhe davam sequer
o primado entre as cidades minhotas. A velha Braga
passava de dez mil almas, e a própria Ponte de Lima
de seis mil *. Pelo paiz fora havia umas poucas de cida-
des que sobrelevavam consideravelmente ao Porto, com
mais de vinte mil moradores; taes Coimbra, Santarém e
Évora, nenhuma das quaes se goza hoje de semelhante
cifra. Excediam-n'o ainda Setúbal, Beja, Almada, Faro;
e emparelhavam com elle Thomar, Leiria, Elvas, Es-
tremoz.
Estes parallelos, alguns dos quaes são aliaz vero-
símeis por inferência histórica embora outros sejam
pouco ou nada criveis, sobre peccarem por fundamento,
como já vimos, sujeitam-se ainda a outro erro, que
não escapou a Pinheiro Chagas; é a falta de exacta cir-
cumscripção, visto que a cada villa ou cidade corres-
pondia um termo de grande ou pequena área, e da in-
clusão ou exclusão d'elle advinham difíerenças de monta.
Não nos diz o rol precisamente que Porto era esse o
que dava os 40 besteiros, computado em 8:500 habi-
tantes; e, por via de regra, os que teem assignado ao
Porto cifras censuarias, correspondentes a épocas pas-
sadas, as manejam e comparam como se se tratasse
sempre d'identico território. No apuramento de Vasco
Fernandes apparecem sobre si as zonas comarcas limi-
1 Rcbello da Silva dá Guimarães especificadamente como o lugar
mais povoado no norte com 21:000 habitantes; mas a resenhados besteiros
em Soares de Barros assigna-lhe apenas dez besteiros ; houve erro de cifra.
Logo adiante na no:a a pag* 5j apresenta Guimarães com 2:i3o. O illustre
escriptor apurava os dados históricos n'este gosto. Ao comparar o seu
pseudo-censo de J422 com o de 1527 encontra saltos descommunacs, que
nem sequer o feriram pela inverosimilhança.
8o
trophes do Porto, como eram os julgados de Azurara,
de Refoios, de Aguiar de Souza, de Penafiel, de Gaya,
da Maia, a que pertencia Paranhos, e de Bouças a que
pertenciam Foz e Lordello. Parece que estes termos
foram excluídos da contagem ; os que lá não vêem, e
não se sabe se foram mettidos ou não no Porto, são o
couto de Cedofeita a que pertencia Massarellos, o jul-
gado de Melres e Gondomar, que continha Campanhã.
Seja como fôr, este numero de 8:500 moradores
attribuido ao Porto e arrabalde mais chegado, não deixa
de contrastar com os testimunhos coevos do engrande-
cimento e prosperidade da cidade. Pois o Porto que foi
chamado a entrar no conselho d'estado que as cortes
impozeram a D. João, ao lado de Coimbra e Évora,
estaria em tamanha desproporção de gentes? Em 1436
nos famosos capítulos das cortes d'Evora, o Porto inti-
tulava—se já sem disputa o segundo membro de Portu-
gal. É verdade que D. Fernando deu ao Porto para seu
termo o julgado de Melres, em 1369, a pedido dos
homens bons que lhe disseram ser a cidade de pouca
«companha» e não povoada como cumpria; queriam
segundo se exara na carta regia maior termo para que se
podesse melhor povoar e ser mais honrada e avondada
das coisas que aos moradores d'ella fossem mister. Não
estavam pois no mesmo plano a sua populosidade e
importância; dir-se-hia que se lhe fallecia povo, sobra-
va-lhe valor e riqueza. Quando o Mestre d'Aviz em
justo galardão do seu esforço e civismo lhe addicionou
ao termo os julgados limitrophes, a cidade conquistou
para sua jurisdicção uma área enorme, abrangendo
Bouças, Azurara, Santo Thyrso, Penafiel e Gaya, um
8i
território pouco menor do que o actual districto. Fica-
ram sujeitos os povos d'esta larga circumscripção ás
justiças e officiaes do concelho, que attingiu assim um
poderio enorme. Constituia dentro do reino um pe-
queno estado; mas a valia da sua capital era anterior á
formação do potentado e independente d'elle. O Porto
em si não podia ser um villar mesquinho; que estivesse
inferior em habitantes a Coimbra, a Évora e a Santarém,
pôde julgar-se exacto; abaixo porém de tantas outras
terras, a que Rebello da Silva assigna números superio-
res, não deve crêr-se. Isto não invalida o poder julgar-se
approximado o computo de 8:500 almas; ajusta-se o
numero com o recenseamento de D. João 111 um século
depois, e suppôr-lhe agora população maior seria admit-
tir uma regressão posterior, o que é pouco admissivel.
Não ha duvida porém de que a cifra de Soares de Barros
se não proporciona bem á valia social, politica e econó-
mica do Porto em pleno século xv. .
X
A crescença popular era lenta na meia-edade; não
bafejavam o viveiro humano as condições mesologicas
dos dias d'hoje. Travavam o progredimento causas de
toda a ordem, económicas, sociaes e sanitárias. A era da
abastança, trazida pelo desenvolvimento commercial e
industrial, pelo descobrimento e colonisação dos paizes
remotos, não se inaugurara ainda; e a parca riqueza
publica nem sequer tranquillamente se fruia, antes se
desbaratava e tolhia em continuas pelejas.
Sorvedouro de posses e pessoas, a guerra é um dos
grandes inimigos demographicos; e para nós inimigo
jurado, que dizimou como poucos a população portu-
gueza. Os gritos de Santiago e S.Jorge, na arrancada de
continuas batalhas, raro deixavam d'estrugir; contra a
mourisma primeiro na conquista interna, contra o cas-
telhano invasor na defeza nacional, contra as gentes
d'além mar, quando a febre aventureira da Índia de-
mentou o paiz num suicidio grandioso, trucidando e
83
sepultando gerações successivas na mais larga esteira de
mar e no mais remoto raio de plagas que jamais homem
houvera trilhado.
Depois, os esterquilineos em que se amesendrava
o povoado das cidades, aquella immundicie proverbial
das gentes christãs da edade media; e tamanha que aqui
no Porto revoltava ás vezes os aliaz bem pouco susce-
ptíveis moradores l. A má hygiene, fomentadora de mo-
léstias, casava-se com flagellos, filhos d'uma etiologia
especial do tempo. A lepra abrolhava na pelle esquálida
os seus rebentos ascorosos; era uma endemia terrível,
ao mesmo par repellente e piedosa. Do povoado refuga-
vam-se os gafos, entes perigosos e degenerados; mas á
povoa maldita e sequestrada das gafarias presidia o prin-
cipio severo da salvação publica, adoçado com o bálsamo
da caridade christã. Próximo do Porto, havia os lepro-
sos d'Alfena, herdeiros citados em vários testamentos de
bispos, e ás barbas da cidade a gafaria de Mijavelhas,
resguardada e privilegiada pela coroa 2.
Depois ainda d'este cancro interno e endémico, que
1 Ricardo Jorge, Saneamento do Porto, pag. 88. Vários accordáos
dos séculos XIV e XV estabelecem posturas contra o acervo da porcaria.
Em i5i9 os moradores da rua do Souto clamam contra as sujidades e fedo-
res das viellas dos Pellames.
2 Uns poucos de testamentos do século XIII, transcriptos no Censual
do Cabido, como os dos bispos Julião, Vicente e Sancho, mencionam lega-
dos aos leprosos d'Alfena, e também aos de Gaya e Porto.
Em i385 os gafos de Cima de Villa de Mijavelhas tiveram de João I
a confirmação dos privilégios que lhes foram outorgados pelos antecessores.
Os leprosos eram coutados e defesos ; nenhum fidalgo ou cidadão lhes podia
fazer «força nem mal nem outro desaguisado nenhum», nem tão pouco
metter entre elles gafos de fora da cidade sem o seu consentimento e do
seu vigário. L.° Grande, fl. 45, Corpus, pag. 121.
84
roia vorazmente o povoado, o açoute cruelissimo do
flagello externo, epidemico, o feixe supremo de todas as
calamidades.
No século xiv a peste do levante arremetteu-nos
bastas vezes; e mais ateou os seus estragos nos sé-
culos xv e xvi \ A epidemia de 1348, a famosa peste
grande, um dos maiores extermínios que tem vindo
ao mundo, foi aqui como em toda a parte uma cala-
mitosa mortandade nunca vista. Invade o flagello
ainda em 141 5 as cidades de Lisboa e Porto; trouxe-
ram-n'o os navios estrangeiros que vieram reforçar a
armada de Ceuta, e d'ahi o seu assalto nos dois portos
d'embarque 2.
O ultimo quartel do século xv é uma epidemia
pegada, rastilhando successivamente pelo reino 3. Ardia
a peste em Coimbra em 1479 e a camará accordou logo
na guarda da cidade, prohibindo o ingresso em Villa
1 Vieira de Meirelles, Epidemiologia Portuguesa. Gama Barros,
loc. cit., cap. XIII. O archivo municipal encerra numerosas noticias muito
interessantes sobre peste; alguns cTesses trechos publicou-os o illustrado
prof. Maximiano de Lemos nos seus excellentes Archivos da Historia da
Medicina, n.° 3, 1894. Tencionamos em lugar adequado minuciar quanto
seja possível a epidemiologia portuense, antiga e moderna.
3 Mateus Pisano, o historiador da guerra de Ceuta, diz que a pesti-
lência «graviter Ulisiponem et Portum civitatem affligebat». Gama Barros,
loc. cit.
3 Vieira de Meirelles expungiu estas crises epidemicas da serie pes-
tilencial, allegando a longa duração da epidemia e a falta de noticia positiva
de peste no resto da Europa. Estas razões são tam fracas, que nem vale a
pena mostrar que nada provam. Que os judeus expulsos de Castella, d'onde
começou a emigração em 1487, trouxessem, não a peste, mas um contagio
especial de tabardilho, contra o qual também se premuniu a nossa camará,
aventa-se dos testimunhos citados por Meirelles; do que se não segue, antes
o contrario se presume, que o andaço que havia tanto assolava o reino, não
fosse peste.
85
Nova de toda a gente que viesse dos lugares contami-
nados í.
Os cordões sanitários dos próvidos burguezes rom-
peu-os a contagião, e por tal arte que dois annos depois
a cidade, dizem os accordãos municipaes, estava tam
trabalhada e enferma dos ares corruptos que a mór
parte da gente era d'aqui ida e fugida 2.
Não se fartou o mal com tamanha immolação.
Logo em 86 rebenta um foco pestífero na rua do
Olival; entaipou-a a camará, a vêr se pelo sequestro
jugulava o mal; mas a infecção saltou fora do cercado,
obrigando o senado a crear um hospital d'empestados
com seu physico e enfermagem na torre de Pedro Sem 3.
Nova irrupção em 1488, provendo-se um hospital
no Senhor d'Além, em Villa Nova, para onde se despa-
chavam os atacados dentro d'uma barca especial só a
este serviço destinada \ A imminencia do açoute da
1 Todos os visinhos foram obrigados a guardar « por giro a Porta da
Pibeira e a área e as barcas de Villa Nova ». L.° das ver. de 1475 e segg.,fl. 83.
2 A eleição dos officiaes da camará em 1481 fez-se em Azurara pelo
impedimento da peste; e á morte de Affonso V n'esse anno, não se lhe
fizeram as exéquias, porque não havia bispo nem cónegos, e a maior parte
dos cavalleiros e cidadãos estavam ausentes por causa da pestilença. Loc.
cit., fi. 1 55 e i65. Em 84 accordou-se em fechar as portas e postigos menos
necessários, prohibindo-se o acolher pessoas vindas de Barcellos e Aveiro,
terras contagiadas. L.° das ver. de 1484, fl. 23.
8 O actual nome de rua das Taypas recorda este episodio epidemico.
O procurador da cidade Joham de França propoz a creação do hospital com
physico, um sangrador, e duas enfermeiras; para as despezas abriu-se uma
subscripção entre as pessoas abonadas. A torre de Pêro do Sem está ainda
de pé no palácio Monfalim, não sei porque feliz sorte. L.° das ver. de 1485
e segg., fl. 26.
* Em S. Nicolainho, hoje Senhor d'Além. Nomeou-se um Pêro Vaz
barqueiro para conduzir os enfermos, e não outras pessoas. L.° das ver. de
1488, fl. 3.
86
pestilência era continua; os moradores faziam sentinella
á vez ás portas da cidade, e a guarda da peste confiava-se
a cidadãos vigilantes e dedicados *.
O século xvi viu succederem-se as crises epidemi-
cas; a de 1521 foi tam aguda e mortifera no Porto, que
se trancavam as casas, sequestrando os atacados e ex-
pulsando da cidade os moradores; houve quasi uma
emigração em massa, voltando somente aos penates os
visinhos, mezes depois do derradeiro caso de pestilên-
cia 2. O immenso morticínio de 1569, que só á parte de
Lisboa levou sessenta mil habitantes, também castigou
a cidade 3, assim como a epidemia de 1581-82 que dei-
xou apoz si um longo rasto de cadáveres. Foi tal o de-
solamento que D. Filippe mandou um soccorro ao con-
celho de 1:500 cruzados para acudir aos empestados *.
Algumas vezes foi o Porto poupado pela peste; ou por
eífeito do draconismo prophylatico, ou mercê de S. Ro-
que a quem os portuenses erigiram capella para desvio
do contagio, teve a cidade a boa fortuna de se vêr illesa
em 98 e 99, annos em que a epidemia não deixou
canto do reino que não assolasse 5.
1 Gonçalo AfFonso mercador tinha-se desempenhado muito a con-
tento de todos d'esta missão de guarda da peste. O corregedor porém arbi-
trariamente o degradara da cidade, o que a camará revogou chamando ao
seu posto o zeloso commissario para lhes afugentar a peste que incendiava
Guimarães e cercanias. L ° das ver. de 1488, fl. 19. Em 94 vêem no livro
respectivo dous guardas nomeados.
2 L.° i.° das Provisões, fl. l65.
8 Foi contratado o physico Lopo Dias da Cunha por 20 cruzados
para curar da peste. El-rei mandou tambcm ao Porto em iby5 Jorge de Sá,
lente de véspera em Coimbra. L.° 2.0 das Prop., fl. 426.
4 L.° j.° das Prop., fl. 49.
5 Rebello da Costa, loc. cit., pag. 299. Meirclles acha muito im-
§7
Sem desdobrar as folhas da epidemiologia por-
tuense \ estes exemplos bastam para mostrar quanto o
burgo sofTreu de successivos insultos epidemicos, que
lhe levavam largo tributo de vidas. Ao extermínio das
pestes jungia-se o das fomes; uma era a mensageira ou
a despedida da outra. Antes que a grande relacionação
commercial de nossos dias desse em resultado uma
espécie de seguro-mutuo das nações contra as faltas
eventuaes d'alimentação, anno de má colheita era anno
de fome; e por vezes tal e tanta que punha os famintos
a caminho, juncando as estradas de corpos inanimados.
Para sustar este espectro choviam os accordãos, a ter
mão na exportação de géneros, e a importar o pão defi-
ciente da Inglaterra, da França, ou d'onde mais feliz
colheita o abundava.
A guerra misturava-se com estes horrores, aggra-
vando-os ou provocando-os. É de vêr o rejubilo com
que o senado acolhia a nova de pazes, cobrindo d'alvi-
çaras os portadores da boa mensagem. Não pouco sof-
frera a cidade, não só das guerras do reino, mas dos
seus próprios alvoroços, das suas brigas com a mitra,
provável que a cidade ficasse indemne. Esta capella foi instituída defronte
do alpendre da cathedral; derrubada pelo terremoto de Lisboa, o advogado
da peste mudou para o largo do Souto, d'onde ha annos o camartello muni-
cipal o desalojou de vez. E curioso que na testada se lia a seguinte hespa-
nholada : Slet hoec dotnus, donec formica tolum imbibat maré, et donec tes-
ludo tolum circumambulet orbem ; ora antes que a formiga tivesse bebido
um dedal e a tartaruga andasse uma lcgua, a capella vinha abaixo.
1 Deixamol-o para a sequencia do nosso trabalho este interessantís-
simo capitulo, onde abundam espécies curiosas em matéria sanitária. O Porto
praticou assignalados serviços em differentes pestes das visinhanças como
dAzurara, Penafiel, Espozende, etc. ; e os seus regimentos prophylaticos
são de primeira importância na historia da hygiene portugueza.
que de momento pelo menos lhe deviam afugentar a
visinhança.
Estes três males supremos eschematisaram-se em
diabólica trindade na mente espavorida dos nossos avós:
peste, fome e guerra eram o terror do mundo; que
Deus e santos o livrassem d'ellas toda a alma christã o
resava dia a dia.
Comprehende-se que com estes inimigos desenca-
deados a população a custo reparasse as suas perdas; da
crescença physiologica pouco sobraria para cobrir os
deficits, e ás vezes não chegava. O povoado definha-
va-se, ou a custo e lentamente progredia. Mas o Porto
é d'estas cidades que subsistem, quando mais não seja,
por necessidade topographica; da terra haurem, como
Anteu, a força indestructivel. A labuta commercial sus-
tinha-o de pé, vergado momentaneamente ao peso da
calamidade, resurgindo logo melhorado em gentes e
cabedaes.
E quando se escancarou o torvelinho dos mares e
se semeavam feitorias e colónias pelos portos longin-
quos, surgidoiro primeiro das nossas quilhas, o Porto
lá foi mercanciar, tocado pela especulação das especiarias
e dos géneros orientaes. Os fumos da índia também
nos embriagaram. Os pardaos até circulavam em Basto,
como conta Sá de Miranda. O Porto, que começou logo
a negociar com a Madeira e Açores l, servindo d'entre-
posito para o commercio d'exportação, fez com Villa
de Conde e Vianna a possivcl concorrência a Lisboa, o
1 A carta regia de 1497 regula o carregamento dos assucares da
Madeira para Flandres. L." ant.° das Provisões, fl. 5o.
89
grande empório das conquistas d'Oriente. Em Antuér-
pia, onde confluiam as especiarias da índia comboiadas
pelas naus portuguezas, teve D. João m um feitor,
Manuel Cirne, negociante do Porto, famoso pela sua
opulência e bizarria K
Quem contribuirá immenso para o fomento das
nossas expedições descobridoras, ninguém o reconhe-
cia. Fora o judeu intelligente, illustrado e activo, ao
mesmo par homem d'estado e de saber, negociante e
astrónomo, financeiro e mathematico. Sellado pelo ódio
popular e pelo fanatismo religioso, aguentara-o a poli-
tica hábil de João n, mas repellia-o o ominoso tratado
de D. Manuel, pactuando com Castella na atroz perse-
guição dos confessos, que tam caro tinham pago a
hospitalidade portugueza. A misérrima carta de 5 de
dezembro de 1496 intimava a expulsão dos judeus, e
com falsa caridade convidava a camará do Porto a dei-
xal-os ir em paz e sem aggravo 2. Era uma formidável
sangria no organismo nacional, que lhe vasava os me-
lhores glóbulos rubros a paizes extranhos. A colónia he-
braica formava o recheio da nação, e o judeu portuguez,
como dizia o hebreu londrino Costa em controvérsia
X
1 Atacado de febre, tratou-o Amato Lusitano, a quem gratificou
pela assistência de vinte dias vcom tresentos ducados d'ouro. O auctor das
Centúrias desfaz o latim perante esta magnificência de honorários; não que
o presente era, se me não engano, superior a seiscentos mil reis d'hoje em
dia. Não será maligno presumir que este liberal varão não deveria ter assis-
tido muito tempo no Porto. Conta-se da sua extravagante prodigalidade que
n'um dia de banquete em Antuérpia mandou queimar, tanto nos fogões de
sala como na cosinha, em vez de lenha, paus de canella. A Índia dava para
tudo. Maurício Lopes, loc. cit.
2 L.° Ant.° das 'Provisões, fl. 66.
90
com Voltaire, era em costumes, intelligencia e actividade
o escol dos judeus de todo o mundo. Barbara e estúpida
lei, a que a custo se subtrahiram os que apparentemente
mudaram de fé, dizimados mais tarde nas grelhas da
inquisição. E é de crer com Galton que se não fora essa
conservação por mimetismo religioso, a servir de fer-
mento na massa da população, ter-se-hia operado em
toda a peninsula a cretinisação absoluta pela selecção
do queimadeiro e pela educação fradesca.
Os judeus portuguezes, acolhidos lá fora, foram en-
riquecer Antuérpia e Amsterdam. Os nossos mais dis-
tinctos médicos, os Amatos e os Zacutos, os primeiros
do tempo, emigravam perseguidos; as bestas-feras de
S. Domingos não deixavam quartel aos falsos conversos,
apezar da eloquente e hábil defeza de António Vieira.
Desertara a opulenta judiaria do Olival; devasso
o lugar, herdaram-no os benedictinos, que vieram aben-
çoar ovantes e inúteis a terra maldita da synagoga. E
emquanto os judeus portuguezes x davam a riqueza á
Hollanda e Spinosa ao mundo, nós empobreciamos e
bestificavamo-nos na mais soez beatitude que dar-se
pôde.
1 Entre os hebreus emigrados citarei, como naturaes do Porto, 3V/a-
nuel Aboab, reputado auctor da Nomologia, tam citada pelos judiographos,
e o celebre Uriel da Cosia, do século XVII, espirito inquieto e atormentado,
controversista violento, que morreu victima das suas ideias revolucionarias,
em lucta escandalosa com a própria communa israelita de Amsterdam onde
se acolhera apóstata e foragido. Este original personagem, um livre-pensador
precoce, tem occupado os críticos modernos da Allemanha, merecendo-lhes
artigos e monographias (Pertes, Graetz, Kaizerling). A sua vida accidentada
deu até entrecho a um drama de Gutzkow. Entre nós ha apenas que eu saiba
uma citação de Rebello da Costa, que ao incluil-o no rol dos portuenses
illustres, o esconjura como um monstro.
XI
Do andamento da população, atravez d'estas crises
aminguadoras, não possuímos signaes indicativos por
mais d'um século, até dias de João iii.
Em 1475 João 11, ainda principe, mandava in-
quirir com exactidão quanta gente poderia haver n'esta
cidade e seus termos de 18 a 60 annos d'edade capaz de
pegar em armas. A camará accordou que se fizesse o
recenseamento com toda a consciência, inscrevendo-o
em roes authenticos, e d'elle encarregou pessoas de sua
confiança para apurarem as listas, quer na cidade, quer
nos julgados limitrophes \ Esta sim é que era uma
base excellente para um computo correcto e muito
approximado da população eíFectiva. Infelizmente nem
1 L.° das ver. de 1476, fl. 71. Foram sete os recenseadores respecti-
vamente para a cidade, Gaya, Maia, Gondomar, Refoios, Aguiar de Souza e
Penafiel. Conforme as distancias e o trabalho, abonou-lhes a camará para
despezas de 5oo reis a 200 reis; se gastassem mais, ser-lhes-ia pago;
se menos, haviam de restituil-o.
92
vestígios encontro do precioso rol que devia ter sido
enviado á chancellaria regia.
O numeramento, ordenado por D. João in em 1527,
não obedece apenas a intuitos de recrutamento; acto já
d'administraçào civil, é um inquérito sobre os limites
dos lugares e numero dos seus fogos, um apuramento
de verdadeira estatística, destinado entre outros fins a
servir de base a uma nova divisão das comarcas ou
correições. Todas as averiguações locaes, confiadas aos
corregedores e seus escrivães, e em certos lugares a
commissarios especiaes, confluíam á meza do escrivão
da camará, Henrique da Motta, que coordenou o censo
geral l.
Na comarca d'Entre Douro e Minho, já então a
mais recheada de gente, pois que o numeramento lhe
dá 55:066 fogos, avultava em área e povoado o territó-
rio do Porto. O termo da cidade tocava, desde as am-
plíssimas jurisdicções de D. João 1 2, uma boa parte das
raias do districto d'hoje. Este enorme domínio conce-
lhio seguia o littoral da Foz do Douro até Azurara, á
foz do Ave, que o estremava de Villa do Conde; partia
em seguida com o termo de Barcellos e Guimarães,
1 J. P. Ribeiro, Reflexões históricas, Parte II, pag. 8. Rebello da
Silva, loc. cit., pag. 53.
O rol da província tem por titulo «Livro do numero que se fez das
cidades e vylas e loguares dantre doyro e mynho e moradores delias e ter-
mos e assy com quem partem por carta de elrei Nosso Senhor » ; Torre do
Tombo, gav. i5.°, m.° 24, n." 12. A fl. 27 v. deste códice encontra-se a
lista referente «A cidade do porto dei Rey nosso senhor»; d'este interes-
santíssimo trecho fiz tirar copia exacta.
2 Por lapso não mencionamos a pag. 53 a doação de Azurara e Pi-
dcllo, feita por carta de i386. L." Crande, fl. 46. Corpus, pag. 122.
93
desandando para leste a pegar em Felgueiras e Louzada;
encontrado o Tâmega, fechava Entre-ambos-os-Rios;
além-Douro, desde Arnellas, abraçava toda a Gaya até á
Terra da Feira.
O censo, depois de summariar esta topographia,
marca á cidade de muros a dentro e aos seus arrabaldes,
entre os quaes conta Miragaya, Massarellos, Villa Nova,
Gaya, Cordoaria, Santo Ildefonso e Meijoeira, um total
de 3:006 fogos \ Incluiam-se pois no Porto, como sua
cercania, Miragaya e Massarellos, a Cordoaria, que for-
mava o lugar do Olival intermédio á cidade e ao couto
de Cedofeita, Santo Ildefonso, que da Cordoaria cir-
cumdava a cidade até Campanhã, e do lado d'além
Gaya e Villa Nova, que já em tempos d'Affonso 111
formavam dois burgos distinctos, ao depois fundidos,
mas que ainda no século passado eram considerados
pertença do Porto apesar de terem o Douro a meio 2.
Se quizermos desfalcar Gaya, a regularmo-nos pelo
censo de Rodrigo da Cunha no século seguinte 3, po-
deremos arbitrar aos seus dois burgos 300 fogos.
Ficam-nos 2:706 fogos, o que a 4,5 moradores 4 por
fogo dá 12:177 habitantes. A ser exacta esta estima-
tiva e licita a comparação com o computo de Soares
1 « Tem na cidade e muros a dentro e asy nos arrabaldes de myra-
guaya e guaya e maçarellos e vyla noua e cordoaria e santelyafonso e mei-
joeira e com viuvas e clerygcs per todos foguos ao todo três mil e seis mo-
radores ».
3 iYleijoeira ou Ameijoeira é o lugar da Serra do Pilar, onde os fra-
des cruzios ergueram convento. índice cias Prop. de J. L. da Costa.
3 Cunha attribue á freguezia de Santa Marinha, em 1623, i:5o5 pes-
soas e 281 menores.
4 Rebello da Silva arruma-lhe com 6 moradores por fogo.
94
de Barros, a cidade teria crescido um terço no espaço
d'um século.
Numera o arrolamento os principaes povoados cir-
caportuenses, com seus fogos, que ao tempo eram Leça
e Mathosinhos (677) o mais importante de todos, Azu-
rara (371), Alfena (78), Vallongo (57), Arrifana de
Souza (Penafiel, 290), Melres (78), Entre-ambos-os-rios
(86); e ao redor da cidade, S. João da Foz (286), e os
coutos de Cedofeita, Campanhã, Paranhos e Rio-Tinto,
(ao todo 310). Seguem-se as freguezias, coutos e honras
dos julgados de Gaya, Bouças l, Gondomar, Maia, Re-
foyos d'Ave Santo) Thyrso), Aguiar de Souza e Penafiel
de Souza. O total de toda a área excedia 13:122 fogos 2.
Taes são as cifras d'este notável cadastro, de tanto
interesse para a topographia e demographia do Porto e
seu território no século dos quinhentos.
D. João III — 1527
Porto e arrabaldes (Santo Ilde-
fonso, Cordoaria, Miragaya,
Massarellos, Gaya, Villa Nova
e Meijoeira)
Cedofeita, Campanhã, Paranhos
e Rio Tinto
S.João da Foz
Lordello
HHIIIII1IHIIIIII
iiimiiuuuuuHiui
Fogos
Almas
3:oo6
1 3:527
3IO
i:3g5
286
1:287
42
189
1 Lordello conta 42 fogos, Ramalde 36, Nevogilde 12 e Aldoar 7.
2 O rol inscreve á parte 12:600 mancebos solteiros de 18 a 3o annos
que vivem com seus pães e amos.
95
Mau grado o período critico de decadência, que se
apoderou do paiz no ultimo quartel do século xvi, mais
accentuado ainda no século seguinte, a cidade não de-
clinava. As suas transacções cresciam. A navegação do
Douro melhorava; em 1502 D. Manuel mandava rasgar
os primeiros cachões \ Barra fora o movimento commer-
cial progredia. Os nossos vinhos a principio menos
estimados por seu mau fabrico, iam em melhoria de
acceitação; avultava o commercio com a Inglaterra, que
já em princípios do século xvn aqui tinha feitor e
cônsul.
As forças do paiz tinham é certo decrescido. Per-
dera mais de quatrocentos mil habitantes; é a baixa que
Balbi fundamentadamente calcula entre o censo de 1527
e um arrolamento de 1636, em que a população portu-
gueza, ao terminar do domínio hespanhol, nos apparece
pouco superior a um milhão, cifra que só por si é a
prova mais eloquente do nosso desastrado abatimento.
Esta regressão, se aífectava o Porto, nem por isso
suspendia o seu desenvolvimento. Dentro dos muros
contava-se apenas uma freguezia, a da Sé; adensara-se
tanto que em 1583 o bispo D. Marcos de Lisboa creou
no seu âmbito mais três, Victoria, S. Nicolau e S. João
de Belmonte. Esta ultima foi apenas temporária, pois
que em 1592 era reunida á de S. Nicolau 2. Fora dos
1 Carta regia para que todos os canaes do Rio Douro até S. João da
Pesqueira se abram na largura de 3 braças craveiras. L.° A, fl. 1^4.
2 A Camará e o povo embargaram esta multiplicação com receio
dos seus encargos, e o Bispo viu-se obrigado a assignar uma escriptura em
que tomava sobre si as despezas da fabrica das novas freguezias. Rebello da
Costa, pag. 43.
96
muros havia a freguezia de Miragaya, e a de Santo Ilde-
fonso que se formara em volta duma ermida l, esten-
dendo-se em larga área desde o extremo de Campanhã
á Cordoaria.
Esta circumscripção parochial abona a crescença da
cidade; e o estabelecimento n'ella do Tribunal da Rela-
ção por Filippe n em 1583 demonstra a supremacia que
o Porto tinha conquistado na metade mais populosa do
reino 2.
O illustrado bispo D. Rodrigo da Cunha apresenta
em 1623 um rol d'almas das parochias urbanas da Sé,
Victoria, S. Nicolau, e das suburbanas, Santo Ildefonso
e Miragaya. Extraio ainda da sua resenha dos povos do
bispado o rol das freguezias convisinhas hoje fundidas
no Porto; são Cedofeita, Massarellos, Foz, Lordello,
Paranhos, pertencentes á comarca ecclesiastica da Maia,
e Campanhã á de Penafiel.
O grosso da população — 12:033 — vivia intramu-
ros; á volta do recinto ainda sommavam 2:548 as fre-
guezias periphericas de Miragaya e de Santo Ildefonso,
ao tempo quasi todo rural 3. Das suburbanas só Massa-
rellos e Foz, ambas ribeirinhas, ascendiam a mil; o
1 A provisão de i56o sobre as profanidades e indecencias que se
praticavam na procissão de Corpus-Christi diz que o cortejo ia até á ermida
de Santo Ildefonso, sita no meio d'um campo, onde deixavam o Santíssimo
debaixo d'um carvalho. L.° 2.0 das Prov., fl. 160, Ribeiro, 'DisserU, t. V,
pag. 68.
2 Esta instituição tinha sido em vão pedida a D. João III pelos pro-
curadores dos concelhos do norte em 1 535, requerimento renovado a D.
Sebastião. Rebello da Gosta, pag. 176 e Cunha, pag. 340.
3 Para as figuras da procissão de Corpus-Christi contribuíam os hor-
telões de Santo Ildefonso por accordo de 1621. L.° 4.0 de iProp., fl. 376.
97
resto eram pequenas aldeias, incluindo a insignificante
Cedofeita.
D. Rodrigo da Cunha — 1623
FREGULZIAS
Sé
Victoria. . . .
S. Nicolau . .
Santo Ildefonso
Miragaya . . .
Massarellos . .
Cedofeita . . .
Lordello . . .
Foz
Paranhos . . .
Campanhã * . .
ALMAS
De communhão
5:65i
2:100
3:25o
1:000
r.2 5i
894
3i8
200
i:356
201
525
Menores
404
3oo
328
i5o
147
20c
93
37
2l5
45
132
TOTAL
6:o55
2:400
3:578
12:033
i:i5o
1:398
14:581
1:094
411
237
1:571
246
657
18:797
Comparado este computo ao do século anterior,
vê-se que em egualdade d'area o augmento é approxi-
madamente de um quarto, o que significa uma cres-
cença lenta, explicável pela crise nacional.
O progresso naval, que assegura aos estaleiros do
Douro supremacia sobre os do Tejo 2, e o impulsiona-
1 Ramalde, 298, Nevogilde, 79.
2 « Estava na cidade do Porto um galeão, ao qual pozeram nome
S. Pedro d'Alcantara, acabado com toda a perfeição, uma das melhores e
maiores embarcações que se fizeram n'este reino ; esperou as aguas vivas
98
mento commercial, preparam com a sua forte seiva a
florescência do Porto no século xvm. Empório de vi-
nhos agora afamados, exporta-os para todo o mundo.
A concorrência mercantil de Villa do Conde, Vianna e
Aveiro, apaga-se; monopolisa-se aqui todo o commer-
cio maritimo do norte. Operam-se em larga escala pela
barra do Douro a navegação e trafico com o Brazil l.
O tratado de Methuen de 1703 que facilitou em Ingla-
terra a entrada dos vinhos portuguezes e o commercio
com a nossa grande colónia americana promovem o
enriquecimento do Porto. Um longo período de paz
secunda este movimento d'expansão, reforçado pelas
próvidas medidas do Pombal, o creador da famosa
Companhia dos Vinhos.
O geographo D. Luiz Caetano de Lima insere
uma lista geral de fogos e almas de todo o reino, refe-
d'esta lua para poder sair pela barra em rezáo da sua grandeza; sahiu com
boa fortuna, com a gente do mar e guerra necessária, e com a mesma en-
trou no porto de Lisboa, d'onde foi visto com admiração de todos. Elle
partido, por ordem de S. M. se começarão duas fragatas de guerra em lugar
do Ouro d'onde se fabricáo as embarcações d'el-rei com grande commodi-
dade pela abundância das madeiras d'esta província». Esta noticia do anno
de 1670 encontrei-a no notável diário « Monstruosidades do tempo e da for-
tuna» ; demonstra bem qual a excellencia dos estaleiros e arsenal do Porto.
N'esse lugar do Ouro, citado pelo chronista, ainda na minha infância vi eu
a labuta dos calafates. Hoje a praia está erma e silenciosa!
1 «O commercio do Brazil é dos mais vantajosos a esta cidade. Para
os seus portos e de outras colónias que nos pertencem, navegam mais de
oitenta navios de muito maior porte que o dos navios mercantes das outras
nações commerciantes. Todos elles são construidos nos estaleiros d'esta
cidade, ou nos dos portos visinhos, cuja construcção e reparo occupam um
grande numero d'artifices ». Reb. da Costa, pag. 2o3.
Para illustrar o crescimento mercantil da cidade, informa o curioso
padre que na alfandega só da renda chamada do consulado em vinte annos
subiu a sua arrematação de i5o contos a 366.
99
rida a 1732, que diz ter-lhe sido ofíerecida pelo Mar-
quez d'Abrantes l. Do seu rol tiramos um quadro nu-
mérico na ordem do antecedente.
D. Luiz Caetano de Lima — 1732
FREGUEZIAS
Almas
de confissão
TOTAL
Sé
6:53o
3:7i5
3:220
7:836
4:458
3:864
S. Nicolau
Santo Ildefonso ....
13:465
3:956
i:5o8
16:158
4:747
1:809
Foz
18:929
821
987
i:5o8
5i6
696
i:565
22714
985
1:184
1:809
619
835
1:878
25:022
30:024
As suas cifras, sobretudo comparadas com as pos-
teriores de Rebello da Costa, parecem um pouco defi-
cientes 3; talvez que correspondessem a data mais an-
1 Geographia histórica, 1736, t. II, pag. 478.
2 Ramalde — 887 ; Nevogilde — i33.
5 O termo genérico <Xalmas tem para os nossos antigos estatistas
accepçóes confusas, que já faziam desesperar o illustre Balbi. Ora signifi-
cava habitantes em geral, ora se restringia ao sentido ecclesiastico ftalmas
de confissão ou apenas de communhão ; estas excluíam os menores de 10
ou 12 annos, aquellas os menores de 7 annos. O rol do nosso geographo,
aliaz pouco abalisado, é de presumir, segundo Balbi, se refira á primeira
100
tiga, ou então depois d'ella o incremento se tornou
extraordinariamente activo.
Rebello da Costa que escrevia em 1787, ao indicar
o rápido e notável accrescimo da cidade na segunda
metade do século \ pasma do fabrico continuo de novas
casas e edifícios públicos, assim como do rasgamento e
multiplicação de ruas. O Porto entrara n'um período
de haussmanisação, em que se notabilisou benemérita-
mente o illustre Almada.
Achando que a immigração afroixara um pouco,
depois de 1785, censura a camará por não desistir de
abrir ruas sobre ruas, e afSrma a impossibilidade de
povoal-as no decurso dum século ainda que a rapidez
demographica anterior se reanimasse. Se o bom do
panegyrista do Porto resuscitasse ao cabo do praso
que marcou, pouparia a camará da censura e renegaria
espantado a prophecia.
Também resenha o illustrado topographista o censo
da cidade, na qual mette Gaya com suas freguezias de
Santa Marinha e Mafamude, excluindo Foz, Lordello e
Paranhos que inscreve adiante nos quadros das comar-
cas ecclesiasticas da diocese. Sobre os seus números
gizamos esta tabeliã, moldando-a pela divisão urbana
d'hoje, como já fizemos para as anteriores, no intuito
de tornar as cifras comparáveis.
espécie (1'almas; n'esse sentido o tomamos, accrescentando-lhe na segunda
columna o calculo dos menores, computados, como era costume, n uma
quinta parte.
1 Aponta também o douto padre a emigração de gente de Lisboa,
que, aterrorisada pelo terramoto de 1755, se refugiara aqui. Pag. 46. Toda-
via, segundo Balbi, o numero de fogos na capital continuou crescendo logo
apoz o terramoto.
101
Rebello da Costa — 1787
FREGUEZIAS
Fogos
Varões
Fêmeas
TOTAL
Sé
3:i85
1:374
1:281
4:390
661
324
8o5
736
365
3i8
868
6:838
2:524
2:980
9:896
i:359
737
2: 389
i:53o
7:o54
2:765
2:672
8:918
1:398
808
1:672
i:654
i3:8g2
5:289
5:652
Santo Ildefonso. . .
24:833
18:814
2:757
46:404
i:545
4:061
3:3i2
1:642
1 :3 14
3:i84
61:462
No espaço de século e meio a população das três
freguezias centraes cresceu muitíssimo; dobrou em
cheio. Das periphericas, duplicou Miragaya, e Santo
Ildefonso augmentou n'uma proporção desmarcada;
foi para Santo Ildefonso principalmente que a cidade
desbordou, visto que lhe formava um cinto dos Guin-
daes á Cordoaria. O total passou de triplicar. As fre-
guezias suburbanas todas augmentaram, avultando já
Cedofeita.
Devo confessar que esta estimativa talvez seja um
1 Da Foz, Lordello e Paranhos apresenta só o numero dos adultos e
dos fogos, do qual deduzimos a cifra total. Aldoar, 68 f., 333 habit. ; Nevo-
gilde, 36 f., i63 habit. ; Ramalde, 438 f., 1:822 habit.
102
pouco exagerada l; feita a comparação com avaliações
posteriores, as cifras podem tomar-se por demasia.
0 numeramento de 1801, feito por ordem do
conde de Linhares, Rodrigo de Souza Coutinho, indica
para a cidade, em sete freguezias, 43:218 habitantes. A
invasão dos francezes e a guerra peninsular arruinam
o paiz e abatem-lhe a população. O censo de 1819 já
dá ás cinco freguezias centraes 45:180 almas 2.
A agitação politica de que o Porto foi foco até á
guerra liberal, devia prejudicar-lhe a prosperidade nu-
mérica. Ao tempo calamitoso do cerco, quando o cho-
lera morbus fez irrupção na cidade trazido pelos merce-
nários estrangeiros, a população civil de nove freguezias,
isto é, das actuaes menos Campanhã e Paranhos, é
orçada approximadamente em 50:000 pela commissão
medica da epidemia 3.
Apaziguadas as revoltas politicas, o progresso ma-
terial e popular marcha rápido. Os subúrbios enredados
pelos braços de polvo das ruas irradiadas da cabeça da
cidade, tornam-se cidadinos; o município absorve as
freguezias circumdantes. Até 1836 consta o Porto pro-
priamente de sete freguezias, Sé, Victoria, S. Nicolau,
1 Reb. da Costa diz que não se aproveitou dos catálogos parochia-
nos. «O calculo que apresentei, e me parece o mais exacto, eu o devo a
um laborioso exame e a uma efficaz diligencia, bem necessária em matéria
tam curiosa». Pag. 47.
3 Balbi, Variétés poliiico-statístiques, 1S22, pag. 104; as freguezias
são Sé, Santo Ildefonso, S. Nicolau, Victoria, Miragaya. Fizeram-se no fim
do século passado e no actual vários recenseamentos irregulares e muito
defeituosos de que não conheço senão os resultados geraes, sem as cifras
referentes ao Porto, a não ser as magras indicações dos de 1801 c 1819 que
pedimos a Balbi.
3 Relatório da commissão sanitária do Porto, 1 83 3.
103
Santo Ildefonso, Miragaya, Massarellos e Cedofeita.
Pelo decreto de 26-11-36, foram-lhe annexadas ' Lor-
dello do Ouro, Campanhã e S. João da Foz 2; e por
carta de lei de 27-9-37, nova annexação, a de Para-
nhos 3.
A desegual distribuição d'estas freguezias pedia re-
forma das suas circumscripções; d'este plano tomou a
iniciativa o bispo eleito, e approvado superiormente o
seu projecto por portaria de 13-2-38, procedeu-se á
nova demarcação, fixada por uma commissão onde en-
travam o bispo, a camará, e delegados das juntas de pa-
rochia. Santo Ildefonso, d'uma área enorme, foi des-
membrada, creando-se á sua custa uma nova freguezia,
a do Senhor do Bomfim. O arredondamento parochial
de 38 só foi sanccionado pelo decreto de 11- 12-41, sob
a referenda de Costa Cabral \
1 L.° 40 das Prop., fl. 177, L.° 42 das Prop., fl. 128.
2 S. João da Foz formava anteriormente um concelho com sua com-
petente camará.
3 L.° 44 das Prop., fl. l85.
4 Foi publicado em edital de 29-12 dõ mesmo anno, com a nova
circumscripção, pelo administrador geral do districto, Marcellino Máximo
d'Azevedo e Mello. L.° 57 das Prop., fl. 157.
Em 1862 installava-se na casa da Camará uma commissão para, em
observância do decreto de 21-4-62, elaborar um projecto de divisão paro-
chial. A commissão celebrou algumas sessões, depois do que se dissolveu,
porque o decreto ficou sem effeito ; das actas vê-se que não bulia nas fre-
guezias do Porto; das suburbanas Aldoar era fundida com Nevogilde, o que
já ha muito se deveria ter feito.
Recentemente rasgou-se por accordo da Gamara e Governo uma es-
trada de circumvallação, que obrigou a uma nova limitação municipal,
exarada no Decreto de 21-11-95 (Diário n ° 267), que encorporou no Porto
as freguezias de Ramalde, Nevogilde e Aldoar, todas do concelho de Bou-
ças, já pelas annexações anteriores despojado para o alargamento da cidade.
A organisação actual é muito viciosa e criticável; confere ao município
104
O edital, que promulgou a divisão parochial ainda
hoje em vigor, com os respectivos términos, assigna
fogos a nove freguezias, pelos quaes podemos fazer a
estimativa do seu povoamento \
Arredondamento parochial — 1838
FREGUEZIAS
Fogos
Almas
Sé
2:o57
2:55i
9:256
It:479
Santo Ildefonso . . .
i:356
6:i02
S. Nicolau
1:175
5:287
860
3:870
1:963
8:883
829
3:73o
1:733
7:888
639
2:875
Total das 9 fregi
íezias . . . .
59:370
Dobrado o meio do século, a velocidade demogra-
phica do Porto torna-se vertiginosa; a cidade pullula e
pletorisa-se de gente. O rol dos habitantes apparece no
uma área desproporcionada, retalha a freguezia de Campanhã, cortando
metade já incluida no Porto desde 36, emfim faz discordar a divisão admi-
nistrativa da divisão parochial e ecclesiastica, o que é inconveniente soh
todos os pontos de vista, e particularmente para a estatistica.
Entretanto temos defronte a visinha Gaya, intimamente relacionada
com o Porto pelo seu passado e pelo seu commercio, hoje ligada por duas
pontes, que bem devia formar corpo com a cidade, um 'Porto occidental.
1 Em i83S operou-se um recenseamento, sendo os seus resultados
publicados apenas n'um escasso mappa de districtos, inserido no Diário do
Governo n.° 94 de 1840; assignou-o pela commissão permanente destatis-
tica Miguel Franzini. Em 41, 54 e 58 apparecem oficialmente novos censos,
do mesmo teor e forma. Infelizes e vergonhosas estatísticas!
io5
primeiro censo regular, o de 1864, com 86 mil; no
censo de 1878 são já 105 mil e no de 1890 138 mil.
Faliam bem alto estes números do seu engrandeci-
mento; a taxa do crescimento figura entre as das mais
progressivas cidades europeias. Sobrepuja a capital em
intensidade demogenica; no século xvn Lisboa a que
se contavam mais de 100 mil almas, era quasi dez vezes
maior que o Porto; ao romper do século actual o
Porto seria approximadamente um terço de Lisboa, e
actualmente já attingiu metade da capital. Desde o prin-
cipio do século o Porto passou muito de duplicar a sua
população.
Está pois em plena pujança o Porto n'este final do
século xix ; sombra de declinação não se lhe antevê,
mau grado os palpites pessimistas. Quem atravessou,
como a phenix, o incêndio das guerras, das epidemias e
crises de toda a ordem, saberá conjurar contrariedades.
Pôde ter pausas o seu incremento, mas não é para temer
que se trave a roda. Se a febre das construcções dimi-
nuiu, se a ampliação d'area em parte corresponde a uma
dispersão peripherica, tudo isso são phenomenos acci-
dentaes e communs da vida urbana.
No que o Porto declina é no arrogo supremacial
de capital do norte, na senhoria de mordomo de três
provincias, como lhe chamava Herculano. O centralismo
predominante da capital, entretido por causas de toda a
espécie, entre as quaes avulta uma viciosa orientação de
politica geral, essa absorpção desmesurada e mórbida,
quasi cancerosa, sobre todo o organismo nacional, tem
abatido os foros seculares que o Porto sellou ainda em
nossos tempos com sangue e sacrifícios. Luctar contra
IOÓ
essa hegemonia deprimente e nociva é-lhe um dever;
e para isso, sem derogar as suas tradições d'afinco eco-
nómico, deveria mirar mais alto do que costuma, no
volver-se em cidade moderna, um pouco mais do que
o grande aldeão do Garrett, do que um burguez a moi-
rejar escuramente.
Bussaco, 6-9 ç — Paranhos, 11-96.
ACABOU-SE D IMPRIMIR ESTE LIVRO A I 3-4-97
NA IMPRENSA DE CoSTA CaRREGAL,
O SAUDOSO MESTRE DA ARTE
TYPOGRAPHICA DO PORTO,
E DEVOTADO AMIGO,
FALLECIDO A
29-3-97.
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