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Full text of "Origens & desenvolvimento da população do Porto : notas historicas & estatísticas"

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O  MUNDO  DO  LIVRO 

P-    L.  da  Trindade,  11  -  IS 
m    Telaf.  2B9S1  -LISBOA 


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MAGELLAN 

and   the  AGE  of  DISCOVERY 


PRESENTED      TO 

BRANDEIS  UNIVERSITY  •  1961 


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A  tiragem  d'esta  Separata  do  Annuario  do 
Serviço  Municipal  de  Saúde  e  Hygiene,  foi  de 
300  exemplares  numerados. 


K-°  1A1 


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ORIGENS  &  DESENVOLVIMENTO  da 

População  do  Porto 


PUBLICAÇÕES  DO  AUCTOR 

Um  ensaio  sobre  o  nervosismo  —  These  inaugural — 1879. 
Localisações  motrizes  no  cérebro — These  de  concurso — 1880. 
Revista  scientifica  —  Periódico  mensal  (Direcção  e  collabora- 

ção) —  1882. 
Hygiene  Social  —  Conferencias  —  1885. 
Relatório  apresentado  ao  Conselho  Superior  de  Instrucção 

Publica— 1885. 
Ensaios  scientificos  e  críticos — 1886. 
Os  Heroes  do  Trabalho  de  G.  Tissandier,  augmentado  com 

noticias  de  varões  illustres  de  Portugal  e  Brazil — 1887. 
De  l'électrométrie  et  de  lélectro-diagnostic  à  propôs  de 

la  paralysie  íaciale  de  Ch.  Bell — 1888. 
Saneamento  do  Porto — 1888. 

O  Gerez  Thermal — Historia,  Hydrologia,  Medicina — 1888. 
Caldas  do  Gerez— Guia  Thermal — 189 1 . 

A  EPIDEMIA  DE  LlSBOA  DE  1894 —  1 895 . 

Boletim  mensal  d'estatistica  sanitária  do  Porto — Desde  1893. 


ARTIGOS 

Trabalhos  experimentaes  sobre  os  fluoretos  alcalinos  —  in 

Medicina  Contemporânea  — 1886. 
Estudo  sobre  a  Lithiase  biliar  —  ibidem,   1890. 
A  Acromegalia — Um  caso  clinico  —  ibidem,  1891. 
Une  nouvelle  classification  des  eaux  minérales  —  in  Congros 

de  cBesançon  da  Associaiion  Française  poar  l ' avancement 

des  sciences —  1893. 
Ueber  einer  neuer  Wasser  Vibrio — in  Centralblatt  filr  Da- 

cteriolooie —  1896. 


ORIGENS  &  DESENVOLVIMENTO  da 

População  do 
Porto 


Notas  históricas 


&   ESTATÍSTICAS  *********************** 


De  IVlCardO  J  Orge,    Lente  de  Hygiene  da  Escola 

Medico- Cirúrgica  do  Porto,  Director  do  Serviço 

Municipal  de  Hygiene,  Sócio  correspondente 

da  Academia  Real  das  Sciencias,  do 

Instituto  de  Coimbra  e  da 

Soe.  das   Sciencias 

Aledicas. 


I 


1 


PORTO 


TYPOGRAFMIIA   OCCIDENTAL 
8o,  Rua  da  Fabrica,  8o 


.189; 


A  minha  mãe 


t 


17-5-96 


Não  houve  dór  que  a  esta  me  che- 
gasse, nem  perda  que  mais  sentisse;  lem- 
bra-me  que  lhe  fui  molesta  carga,  conti- 
nuo trabalho,  temeroso  cuidado;  de  quan- 
tas vezes  lhe  rompi  o  somno,  tirei  o  comer, 
e  de  quantos  receios  e  dores  com  meus 
tristes  casos  lhe  causei. 

Amador  Arkaiz. 


198626 


EX  IMO 


'egra  mancha  de  dó  tarja  o  cabecel  d' este  livro,  desabro- 
chado entre  amarguras.  0,4  meio  da  sua  escrita,  tom 
cortada  de  todo  o  sojfrer,  lanhou-me  o  coração  a  dor 
mais  cruciante,  golpe  d' alma  que  não  fecha  nunca,  sangrado  de 
continuo  pelo  gume  da  saudade.  qA  penna  que  se  ensopou  nesse 
borbulhar  de  sangue,  gotleja-o  nestas  tristes  linhas,  riscadas  em 
redimento  de  magnas;  magnas  que,  para  serem  as  maiores,  fo- 
ram as  primeiras  da  vida  que  não  tiveram  a  linimental-as  a  con- 
solação d' uma  mãe,  o  supremo  analgésico  de  todas  as  dolências. 

Pobre  mãe!  como  não  havia  de  consagrar- te  estas  lettras 
ultimadas  sobre  o  teu  covaf  se  luas  foram  as  primeiras  que  tra- 
çou a  mão  incerta  do  filho. 

Quando  na  escola  me  torturavam  com  bárbaros  exercidos 
de  composição,  affligia-me  a  mais  cabal  negação  que  dar-se  pôde, 
para  cernir  duas  phrases  pegadas  sobre  um  thema  para  mim  es- 
téril. N'esses  lances  era  a  mãe  eslremosa  que  dictava  o  exercício, 
salvando-me  do  penoso  aperto.  Como  o  destino  nos  retorce  ás 
ve\es  a  vocação,  obrigando  invita  Minerva  o  ignaro  plumitivo 
dos  de\  annos  a  ser  toda  a  sua  vida  um  galeote  da  penna. 

lnspirou-me  o  escrever  e  o  ler.  Com  ella  aprendi  a  admi- 
rar o  grande  Camillo  que  então  enfeitava  de  romance  português 
de  lei  os  folhetins  do  «  Commercio  do  Porto».  Curiosa  do  antigo, 


contava-me  o  que  sabia  de  historia  de  Portugal,  repetia-me  as 
narrativas  do  antiquário  Vilhena  de  Barbosa,  e  guiava-me  atra- 
ve\  do  Porto  velho,  animando- o  com  as  vivas  reminiscências  da 
infância  e  as  tradições  hauridas  da  mãe,  uma  santa  velha  a  quem 
ainda  na  primeira  meninice  escutei  boquiaberto  historias  infantis. 
Se  nas  paginas  que  seguem,  vislumbra  alguma  inclinação 
pelas  coisas  do  passado,  algum  amor  por  esta  terra  que  nos  foi 
berço  commum,  bebi-o  no  seu  seio  onde  pulsava  ainda  o  extincto 
fanatismo  do  tripeiro  pelas  glorias  da  cidade,  e  a  memoria  en- 
vaidecida do  pae,  um  bravo  obscuro  do  povo,  que  largara  o  mar- 
tello  para  empunhar  a  espingarda  nas  linhas  liberaes  do  Porto. 

Bell  as  madrugadas  d' inverno!  como  eu  as  revejo  nesta  doce 
compuneção  das  saudades  d' infância.  A  pequena  casa  cedo  se  en- 
chia do  moirejar  do  trabalho;  antes  do  dia,  ainda  cm  «casa  de 
Cliristo»,  para  cada  um  nascia  a  sua  canceira.  Apegado  ao  ca- 
lhamaço do  latim,  aconchegava-me  d  beira  de  minha  mãe;  girava 
o  fuso  ou  rodava  a  dobadoira,  c  ella  a  di\er  lendas  e  contos  ou 
a  cantar  os  romances  populares,  ora  d' uma  caridade  mystica 
como  o  «Lavrador  da  Arada»,  ora  vivamente  dolentes  como  a 
«  CD.  Silvana  »,  que  não  posso  ouvir  hoje  sem  uma  cbullição  de 
lagrimas. 

Em  baixo,  resfolegava  a  forja,  soprando  para  a  rua  um 


clarão  vermelho  ;  a  espaços  chispava  o  martello  cadente  na  safra ; 
e  emquanío  não  caldeava  o  ferro,  meu  pai  cantava  contente  a  sua 
moda  predilecta  : 

ífol eu  filho,  eu  tive  um  sonho 
Qual  era  do  meu  agrado .  .  . 

Esse  sonho,  coitado,  era  o  nervo  do  seu  braço  incansável  : 
o  refrigério  daquella  fronte  gottejante  de  suor  com  que  amas- 
sava dia  a  dia  o  futuro  do  filho,  tal  qual  Ih' o  retratava  a  phan- 
ta  si  a.  qA  cada  passo  vencido  nessa  esteira  exultava.  Estou  a 
vêl-o,  á  volta  dos  exames,  na  porta  da  officina,  a  enxugar  o 
rosto,  traçando  o  avental  crivado  de  faúlas,  com  um  sorriso  tam 
fundo  e  tam  aberto,  que  me  ensoberbecia.  Fiquei  a  amar  o  ÍD/- 
derot,  quando  lhe  li  o  desvanecimento  com  que  da  aula  traria  as 
coroas  dos  prémios  ao  ferreiro  de  La n gr es. 

Que  maior  galardão  e  incentivo  do  que,  então  e  sempre,  a 
alegria  incomparável  do  pai  e  a  ternura  da  mãe  a  effundir-se 
em  lagrimas  e  beijos  I 

Era  que  farte  para  a  vaidade  do  filho ;  nem  outra  tive 
maior  no  luctar  da  vida.  Foi  a  primeira  ambição,  a  única  que  o 
destino  não  quebrou,  a  única  felizmente  satisfeita,  mas  bastante 
para  assegurar  de  per  si  uma  finalidade  tranquilla  d  existência. 


Depois.  .  .  depois,  passada  a  primeira  arrancada  mais  ou 
menos  venturosa,  vieram-se  permeando  as  intercadencias  sinistras 
do  mezzo  dei  camin  dei  nostra  vita. 

Ao  que  a  pulso  seu  rasgou  lugar  humilde  á  lu%  do  mundo, 
salleiam-no  a  reveles  garras  implacáveis  d'um  pavor  e  raiva  de 
gehenna.  Que  cruciamento,  emquanto  se  não  falririsa  a  alma 
contra  as  torturas  d' estes  gnomos  d'uma  crueldade  ophidia  e 
d'uma  pliantasia  inquisitorial ',  mais  injiciosos  que  pestes,  mais 
voraces  que  gusanos. 

Triste  e  dolorosa  immunisação ;  mas  o  soro  balsâmico  que 
me  neutralisava  de  continuo  estas  peçonhas  homicidas,  era  a  vo% 
alentadora  da  mãe,  cila  quem  me  dava  alôr  em  todos  os  quebran- 
tos. Os  golpes  que  o  destino  ou  o  malquerer  me  despontavam  ao 
peito,  rebatiam-se  no  escudo  do  seu  coração  amantíssimo.  E  mor- 
reu, como  viveu,  d'olhos  postos  na  bemavenlurança  nunca  vinda 
do  filho. 

Paranhos,  ij-i2-ç6. 

Ricardo  Jor$e. 


Oaggregado  urbano  quando  em  via  de  evolução 
progressiva,  accresce  a  sua  população  por  dois 
processos :  pela  reproducção  dos  moradores  próprios,  e 
pela  acquisição  de  moradores  extranhos.  O  primeiro  é 
uma  espécie  de  intussuscepção,  de  crescença  physiologica, 
pelo  excesso  do  numero  dos  nados  sobre  o  dos  finados; 
é  um  phenomeno  biológico.  O  segundo  é  o  efTeito  da 
attracção  do  núcleo  urbano  sobre  as  gentes  ruraes;  é 
um  phenomeno  social.  Por  multiplicação  do  indigena  e 
por  assimilação  do  forasteiro,  assim  se  criam  e  se  desen- 
volvem especialmente  as  cidades. 

xMas,  não  é  só  pela  natalidade  e  pela  migração,  que 
a  população  cidadina  se  exagera,  e  se  dilata  a  área  da 
sua  sede.  Desmarcado  o  crescimento  natural,  chega  o 
dia  em  que,  mal  contida  no  seu  âmbito,  desborda  para 
as  cercanias;  opera-se  uma  dispersão  peripherica.  E  a 
seu  turno  o  povoado  vago  do  arrabalde  vai-se  acogu- 
lando  e  dispondo  á  laia  da  cidade  convisinha,  tocado 


pela  força  aggremiativa  que  d'ella  irradia.  Assim  se  gera 
uma  zona  circumvallar  juxta-urbana,  o  termo  como  de 
longe  se  diz  entre  nós,  adensada  pelo  trasbordo  da 
accumulação  interna  e  pelo  próprio  desenvolvimento, 
independente  ou  communicado.  Tudo  isto  se  funde  a 
pouco  e  pouco  no  núcleo  primitivo,  por  apposição  e 
metamorphose;  é  uma  espécie  de  conquista  pacifica 
pela  qual  a  cidade  ganha  em  numero  e  em  superfície, 
afastando  as  suas  balizas  e  recolhendo  novos  fogos. 

Amplificado  ou  reduzido,  eis  o  mecanismo  que 
pauta  a  arithmetica  e  a  geometria  urbanas,  quer  as  cida- 
des lentamente  evolvam,  como  os  velhos  burgos  euro- 
peus, quer  rebentem  quasi  de  súbito,  como  as  cidades 
americanas.  Natalidade  e  mortalidade,  immigração  e  ar- 
redondamento, em  intensão  como  em  extensão,  de  feito 
oscillam  ao  sabor  de  tudo  quanto  influe  sobre  a  sorte 
das  populações  —  topographia,  clima,  guerras,  epidemias, 
condições  económicas,  industriaes  e  politicas. 

Seguir  na  sua  marcha  gradativa  a  crescença  duma 
cidade  como  o  Porto,  desde  a  humilde  communa  d'onde 
alastrou  e  pujou  á  vastidão  e  populosidade  d'hoje  em 
dia,  ir  ao  arrepio  dos  séculos  até  á  pequena  mó  do 
burgo  episcopal  d'onde  lentamente  se  derivou  a  segunda 
cidade  do  reino,  graças  ao  caracter  das  gentes,  á  consi- 
deração politica  e  á  absorpção  commercial  e  financeira, 
é  por  certo  um  estudo  interessantíssimo  de  civilisação 
local  nas  suas  relações  com  o  numeramento  dos  radi- 
caes  humanos. 

Infelizmente,  para  esta  categoria  numérica  da  nobre 
cidade  portugueza  não  abundam  os  subsidios.  São  par- 
cos os  de  que  rezam  documentos  impressos;  e  a  própria 


pesquiza  dos  archivos  públicos  essa  mesma  é  um  pouco 
avara.  Quanto  possível  sobre  esses  elementos  vamos 
rastrear  pelos  tempos  fora  a  demographia  topographica 
do  Porto,  pondo  em  jogo  os  dados  estatísticos  mais  ou 
menos  apuráveis  e  insistindo  sobre  as  causas  que  affe- 
ctaram  o  incremento  da  cidade;  tarefa  difficil  para  uma 
terra  que  tem  a  sua  historia  por  fazer  e  até  os  seus 
documentos  por  compilar  \  Em  taes  condições  é  de  vêr 


1  Seria  extranhabilissimo  que  o  Porto  falhasse  historicamente,  se 
entre  nós  a  historiographia  não  estivesse  padecendo  duma  crise  attentatoria 
dos  brios  e  até  das  faculdades  orgânicas  d'uma  nacionalidade.  Jaz  pelos 
archivos,  aqui  e  lá  fora,  em  tranquilla  dormência,  material  inexgotavel 
para  refazer  o  passado  portuguez,  até  no  que  mais  impenetrado  ficou  até 
hoje,  a  vida  nacional  e  a  historia  social.  A  nossa  escola  historico-academica 
começou  de  moirejar  n'essa  faina  de  assoalhar  documentos;  e  Herculano 
encetava  a  sua  historia  de  Portugal,  que  é  acima  de  tudo  um  modelo  aca- 
bado de  trabalho  sciente  e  consciente.  Depois  vieram  Michelets  á  pressa, 
menos  rebeldes  ás  exigências  do  mercado  do  que  aos  rigores  da  investigação, 
entre  os  quaes,  embora  custe  dizel-o,  throneou  Oliveira  Martins,  graças  a  um 
incontestável  talento  litterario  e  a  uma  fácil  assimilação  erudita;  sobretudo 
o  processo  das  suas  monographias  chega  a  constituir  um  perigoso  exemplo. 
Salvante  alguns  trabalhos  parcellares  mais  ou  menos  correctos  e  louváveis, 
certo  é  que  Portugal  soffre  duma  fome  histórica,  que  desgraçadamente  nem 
o  estômago  do  publico  sente  nem  o  cérebro  do  Estado  provê.  Ao  menos  que 
se  fossem  pondo  a  lume  os  thesouros  dos  cartórios  em  publicações  metho- 
dicas,  corno  as  que  todos  os  paizes  civilisados  editam  por  honra  sua;  seriam 
o  cabouco  firme  sobre  que  escriptores  futuros  aprumariam  monumento  his- 
tórico perdurável.  Os  Portugália;  monumento,  são  apenas  espécime  do  muito 
que  já  devera  esiar  lançado. 

Vão  estas  lastimas,  não  no  intuito  de  jeremiade  critica,  mas  á  conta 
de  quem  se  viu  abarbado  n'este  passo,  desbaratando  cabedal  e  tempo  que 
chegavam  por  certo  para  ageitar  coisas  mais  vistosas  e  rendosas. 

Das  fontes  históricas  sobre  o  Porto  são  poucas  as  antigas  dignas  d'im- 
portancia. — O  Catalogo  e  Historia  dos  Bispos  do  Porto  (IÔ23)  pelo  bispo 
D.  Rodrigo  da  Cunha,  obra  bastante  conscienciosa  e  documentada.  — A  Des- 
cripção  da  cidade  do  Porto  (1789)  pelo  P.e  Agostinho  Rebello  da  Costa,  muito 
compendiosa  e  notável  —  e  emfim  algumas  das  excellentes  Dissertações 
(181  o  e  seguintes)  e  Memorias  do  portuense  João  Pedro  Ribeiro,  o  illustre 


que  o  que  vai  dizer-se  não  pretende  passar  d'um  singelo 
ensaio  do  que  se  poderia  chamar  a  demogenia  da  ci- 
dade. 

Mas  na  sua  singeleza  não  se  desattente  ou  se  in- 
crepe  que  este  bosquejo,  ao  relevar  as  linhas  evolucio- 
nares do  Porto,  rebusque  com  certo  interesse  em  seu 


e  incomparável  mestre  da  diplomática  portugueza.  Alexandre  Herculano, 
até  onde  chegou  a  sua  memorável  empreza,  não  se  esquece  nunca  de 
tudo  quanto  diga  respeito  ao  Porto,  sempre  com  a  segurança  habitual  e 
critério  profundo  com  que  colheu  e  manejou  as  espécies  históricas;  nem 
outra  coisa  era  de  esperar  de  quem  concentrara  os  seus  affectos  patrióticos 
na  cidade  que  elle  olhava  como  o  ultimum  moriens  da  antiga  tempera  do 
caracter  portuguez. 

Os  escriptores  portuenses,  em  tempos  já  idos,  quando  ainda  por  aqui 
medravam  lettras,  não  se  despreoccuparam  da  historia  do  seu  burgo. 
Arnaldo  Gama  forrageou  á  farta  pelo  archivo  municipal,  enriquecendo  de 
notas  e  figurando  ao  vivo  scenas  da  cidade  velha  na  Ultima  Dona  de  S.  Ni- 
colau e  no  Motim  ha  cem  annos ;  Coelho  Louzada  gisa  também  romances 
históricos,  resuscitando  o  Porto  antigo  nos  Tripeiros  e  na  Rua  Escura; 
Camillo  Castello  Branco  compila  muitas  curiosidades  na  Gazeta  litteraria 
do  Porto,  e  se  não  se  abalança  a  mais  intensa  obra,  elle  que,  artista  de  gé- 
nio, possuía  uma  incomparável  envergadura  de  historiador  e  amor  de  histo- 
ria, foi  por  lembrar-se  da  mingua  de  leitores  e  da  ruina  dos  editores. 

Não  devo  esquecer  Pinho  Leal,  um  trabalhador  meritório  que  no  seu 
conhecido  Diccionano  —  'Portugal  Antigo  e  Moderno,  vol.  7.",  amassou 
muitas  noticias  do  Porto,  mas  sem  ordem  de  methodo  nem  joeira  critica, 
deixando  escapar  bastantes  confusões  e  erros. 

Mas  a  principal  mina  a  explorar  é  o  riquissimo  repositório  do  Archivo 
camarário.  Dos  seus  códices  e  documentos  colhemos  o  que  mais  nos  impor- 
tou e  pudemos,  tendo  por  guia  principal  o  magnifico  Índice  que  João  Pedro 
Ribeiro  ordenou  em  1795,  ao  qual  o  laborioso  cartorário  Januário  Luiz  da 
Costa  addicionou  novos  e  largos  índices  remissivos. 

Estavam  alli  bradando  por  uma  vulgarisação  condigna  aquelles  padrões 
da  historia  municipal  do  Porto,  ao  mesmo  par  monumentos  históricos  pre- 
ciosos e  modelos  insubstituíveis  deducação  cívica;  por  esta  obra  clamára- 
mos em  18S8.  Mercê  da  honrosa  iniciativa  do  então  presidente  da  Gamara, 
o  dr.  Oliveira  Monteiro,  nomeou-se  uma  commissão  em  outubro  de  1888 
para  tratar  de  levar  avante  a  publicidade  do  melhor  recheio  do  archivo, 
constituida  pelo  dr.  José  Carlos  Lopes,  José  Caldas  e  Ricardo  Jorge.   Depois 


passado,  na  pista  da  exacção  documental  e  da  impressão 
histórica;  impulsionou-nos  a  quasi  novidade  da  obser- 
vação e  o  sentimento  localista  que  naturalmente  inspira 
uma  povoação  de  tão  exquisito  caracter  social,  que 
era  forçoso  assignalar  como  factor  intrinseco  da  sua 
populosidade. 


dos  trabalhos  preliminares,  o  illustre  publicista  José  Caldas  deitava  hombros 
á  benedictina  tarefa  da  reproducção  dos  mais  ricos  diplomas  communaes,  a 
começar  pelo  famoso  cartulario  apographo  o  Livro  Grande.  Sob  o  titulo  de 
Corpus  codicum  qui  in  zArdiivo  municipali  porlucalensi  asservantur 
se  iniciou  e.n  1893  por  benéfica  ordem  do  presidente  conselheiro  Costa  e 
Almeida,  em  edição  magnifica,  a  publicação  com  todas  as  regras  da  diplo- 
mática e  precedida  d'uma  introducçáo  de  excellente  critica  histórica. 

Quando  esteja  completo  este  monumental  Corpus,  das  melhores 
obras  que  entre  nós  teem  surgido  em  seu  género,  a  historia  communal  do 
Porto,  sob  todas  as  suas  faces,  poderá  ser  ensaiada.  Não  seria  difficil  addi- 
cionar-lhe  o  que  por  outros  archivos  se  depare  e  nomeadamente  no  cartório 
da  mitra.  Existe  ahi  um  códice  reputado,  o  chamado  Censual  do  Cabido, 
apographo  do  século  XV  do  raçoeiro  João  da  Guarda;  não  é  interdita  a  sua 
consulta,  como  teme  José  Caldas,  mas  o  valor  que  lhe  arbitra  como  ele- 
mento histórico,  tem  de  ser  um  tanto  desbalisado,  se  se  altentar  no  indice 
que  d'elle  fez  J.  P.  Ribeiro  e  no  truncamento  do  capitulo  intitulado  De  ju- 
risdiclione  civitatis,  onde  por  certo  a  gigantesca  lucta  communo-episcopal 
devia  estar  gravada  em  documentos  vivos. 


II 


Arredadas  as  varias  fabulações  encampadas  por 
pseudo-historiadores  sem  juizo  probo  e  reproduzidas 
por  crendeiros  ingénuos,  *  vislumbram-se  apenas  si- 
gnaes  presumiveis  da  existência  do  Porto  no  tempo  dos 


1  Quem  quizer  inteirar-se  d'este  rol  de  patranhas,  relancêe  os  olhos 
pelo  indigesto  proemio  do  antiquário  portuense  Cerqueira  Pinto  á  edição  de 
1742  do  Catalogo  do  Cunha.  AUi  verá  que  vários  novelleiros  eruditos  enca- 
beçaram com  muita  extravagância  de  pormenores,  cada  um  por  seu  lado,  a 
fundação  do  Porto  —  em  um  genro  do  Faraó  bíblico  que  veiu  aqui  parar 
acossado  pelas  pragas  do  Egypto, — em  Diomedes  á  voltada  guerra  de  Tróia, 
— em  Menelau  com  a  bella  Helena  — em  um  argonauta  rilhodoBoreasda  Thra- 
cia — etc.  Cerqueira  Pinto,  conspícuo  auctor  da  Historia  do  Senhor  de  Matto- 
sinhos,  não  se  contenta  com  tam  modernos  e  modestos  personagens;  alça-se 
a  Noé  que  entrou  pelo  Douro  com  suas  galés,  quando  veiu  á  Hespanha  (§  42) 
«não  só  a  conduzir  Tubal  e  suas  famílias,  mas  também  a  observar  ooccaso 
do  Sol  e  os  movimentos  da  estrella  chamada  Hispena  vespertina,  em  que 
desde  a  creação  do  mundo  estava  symbolisada  a  mesma  Hespanha,  cabeça 
d'elle,  de  que  a  Lusitânia  era  o  penacho»...  A  crer  piamente  nesta  arri- 
bação de  Noé,  era  muito  mais  verosímil  o  pensar  que  o  venerando  patriar- 
cha,  em  vez  de  trazer  os  olhos  na  tal  estrella  e  no  penacho  luso,  vinha  as- 
sim de  tão  longe  ao  lambisco  das  boas  novidades  do  Douro;  assenta  bem 
que  a  este  empório  do  vinho  lhe  desse  Noé  a  primeira  cavadella  no  alicerce. 


bárbaros.  De  creação  sueva  primitivamente,  transitaria 
pela  dominação  visigothica  até  ser  avassallado  pela  con- 
quista musulmana;  mas  o  mais  verosímil  é  que  o  em- 
brião portuense  fosse  mais  tardio  ainda,  gerando-se  so- 
mente quando  a  reconquista  christã,  irradiada  das  Astú- 
rias e  Leão,  se  dilatou  até  ás  praias  do  Douro.  Então,  no 
cerro  da  Pena- Ventosa,  onde  ao  depois  se  erigiu  a  ca- 
thedral,  fundara-se  um  castello  ou  presidio  militar  que, 
por  fronteiro  ao  antiquissimo  e  romano  Cale  ou  Portu- 
cale—o  castello  de  Gaya,  situado  na  margem  esquerda 
do  rio,  —  se  denominou  Portucale  castrum  novum  \  Da 
fortaleza  germinou  o  Porto;  do  nome  se  baptisou  o  ter- 
ritório circumdante  e  ao  depois  o  novo  reino. 

Lá  na  leal  cidade  d'onde  teve 
Origem  (como  é  fama)  o  nome  eterno 
De  Portugal... 

Este  germe  de  villa  fronteiriça  apparece  no  sé- 
culo x  a  encabeçar  um  districto  de  contornos  vagos, 
o  condado  portugalense,  abrangendo  parte  do  Minho  e 
Traz-os-Montes,  e  ao  sul  do  Douro  as  terras  da  Feira 


1  Foros  romanos  não  podem  conceder-se  senão  a  Gaya,  a  antiga 
Cale,  apontada  no  itinerário  d'AntoninO ;  segue-se-lhe  o  rasto  com  o  nome 
de  Portucale,  atravez  de  suevos,  visigodos,  árabes  e  christãos,  desde  o  sé- 
culo V  até  ao  X.  A  povoação  gemina-se  porém;  ao  'Portucale  castrum 
antiquum  do  lado  de  além,  a  Gaya,  oppõe-se  da  banda  d'aquémo  Portucale 
castrum  novum,  o  Porto.  Actas  d'um  concilio  de  Lugo,  e  escripturas  de  di- 
visões de  bispados  suevos,  fariam  remontar  longe  a  existência  do  segundo 
Portucale,  se  a  authenticidadc  das  suas  datas  não  fosse  suspeita,  embora  seja 
certa  a  sua  remota  antiguidade.  Rezam  até  os  documentos  de  bispos  portu- 
calenses já  durante  o  domínio  suevo-godo,  já  mesmo  durante  a  occupaçáo 
sarracena.  A.Herculano,  Ilist.  de  Portugal,  t.  I,  pag.  445. 


que  ao  depois  se  partiriam  com  o  districto  colimbriense, 
quando  até  ao  Mondego  se  dilataram  as  conquistas  de 
Fernando  Magno. 

Attribulada  lhe  seria  esta  quadra  pelas  frequentes 
correrias  e  tomadias  de  mouros,  das  quaes  a  mais  devas- 
tadora foi  em  937,  a  do  temeroso  El-Mansur  que,  apro- 
visionado  com  uma  frota  sahida  de  Alcácer,  desembar- 
cou no  Porto,  arrasou  e  talou  tudo  até  Compostella  K 

É  depois  d'este  terrivel  assolamento  que,  se  não 
falham  remotas  narrativas  2,  vai  opcrar-se  a  restauração, 
senão  a  verdadeira  fundação  da  cidade. 

Em  data  incerta,  mas  provavelmente  nos  primeiros 
annos  do  século  xi,  aportou,  segundo  contam,  á  foz 
do  Douro  uma  armada  de  gascões,  que,  fixando-se  no 
villar  deserto,  o  fortaleceram  e  povoaram  definitiva- 
mente. Os  chefes  d'esta  expedição  eram  um  D.  Moni- 
nho  Viegas  e  irmãos,  —  presumidos  filhos  d'um  conde 
D.  Gonçalo  Moniz,  que  fora  governante  do  condado 
portugalez,  —  associados  a  aventureiros  extranhos  para 
levar  a  cabo  à  entrepresa  militar  d'assenhorear  terras  sa- 
queadas por  infiéis. 

Esta  colónia  militar  d'arribação  teria  constituido  o 
primeiro  burgo  portuense;  estrangeira  de  procedência, 
em  grande  parte,  a  cidade  seria  mais  um  exemplo  da 
colonisação  por  gentes  d'além  Pyrineus,  da  emigração 
dos  francos,  tam  vulgar  nos  primeiros  tempos  da  fun- 


1  Herculano,  loc.  cit.,  pag.  1 53.  Os  chronistas  árabes  chamam  ao  lu- 
gar do  desembarque  Bortkal,  evidente  corrupção  de  Portucale. 

8  O  primeiro  narrador  é  o  conde  D.  Pedro  na  sua  Nobiliarchia,  ao 
tratar  da  linhagem  dos  Viegas.  V.  o  commento  de  D.  Rodrigo  da  Cunha, 
pag.  177  do  Catalogo. 


o 


dação  do  reino,  ora  espontânea,  tanto  por  espirito  de 
aventura  cavalleiresca,  como  por  cubica  de  presas  e 
terras  conquistadas,  ora  fomentada  pela  monarchia 
nascente  para  a  repovoação  e  reorganisação  d'um  paiz 
devastado  pelas  guerras  em  pleno  chãos  social  e  eco- 
nómico \ 

Estas  levas  de  estrangeiros  costumavam  ser  con- 
duzidas por  aventureiros  illustres  da  nobreza  e  do  sa- 
cerdócio; aqui  também  a  chronica  registra,  afora  aquel- 
les  cuja  naturalidade  parece  indigena,  como  D.  Moninho 
e  seus  filhos,  um  tal  bispo  francez  Nonego,  que  deixa- 
ria, como  rasto  da  sua  passagem,  o  culto  de  Nossa  Se- 
nhora da  Vandoma  e  o  vetusto  arco  da  Vandoma  ainda 
em  nosso  século  demolido  2. 

Certo  é  que  o  estabelecimento  dos  gascões,  impos- 
sível d'abonar  com  documentos  de  sufficiente  confiança 


1  Estes  povoados  de  francezes,  tam  communs  ao  depois  como  núcleo 
de  tantas  villas  do  sul  do  paiz,  onde  os  arreigaria  os  esforços  dos  reis  po- 
voadores, começaram  entre  Douro  e  Minho;  Guimarães,  por  exemplo,  loi 
em  parte  colónia  franca  por  iniciativa  do  conde  D.  Henrique:  pelo  territó- 
rio de  Caminha,  citam  os  documentos,  povoamentos  e  solares  da  rresma 
procedência.  Hercul.  Hist.  de  Port.,  t.  IV. 

O  jesuíta  António  de  Vasconcellos  (cit.  por  Cunha),  ao  ver  estas  re- 
lações estreitas  entre  os  primeiros  portuguezes  e  francezes,  não  teme  dizer 
com  exagero  que  «  se  pôde  bem  chamar  a  Portugal  uma  colónia  de  França». 

2  Este  Nonego  dá-o  Bernardo  de  Brito,  e  com  elle  os  que  o  segui- 
ram, por  bispo  de  Vandoma,  cuja  sé  abandonara  para  tomar  parte  na  expe- 
dição do  Porto.  Erro  crasso  é  este,  visto  que,  como  fez  notar  J.  P.  Ribeiro, 
(Dissert.,  t.  IV,  pag.  32)  Vandoma  nunca  foi  bispado:  e  de  facto  verificamos 
que  a  egreja  de  Vandoma  pertenceu  primeiro  ao  bispado  de  Blois  e  depois 
ao  de  Chartres.  Passa  também  por  ter  oceupado  a  sé  do  Porto ;  ha  memoria 
dum  Nonego,  bispo  portugalez  em  102 5  A.  D.,  mas  que  nada  tem  com  o 
homem  da  Vandoma  (ibidem).  Os  nossos  agiographos  e  chronistas  consola- 
ram-se  aqui,  como  em  tudo  o  que  se  refere  á  nascença  da  monarchia,  d'cn- 
genhar  patranhas  e  invencionices,  ainda  muito  acreditadas  c  correntes. 


IO 


histórica,  se  nos  affigura  um  tanto  precoce,  como  phe- 
nomeno  d'immigração  franca,  de  que  só  ha  provas 
certas,  meado  além  do  século  xi,  quando  nobres  borgo- 
nhões  vieram  militar  contra  sarracenos  e  a  pró  da 
monarchia  leoneza,  em  entrepreza  de  fortuna  e  de  glo- 
ria; entre  elles  se  destaca  por  mais  valoroso  e  mais  po- 
litico D.  Henrique,  a  quem  —  pela  cessão  do  condado 
portugalense  em  1095  e  casamento  com  a  filha  bastarda 
de  D.  AfTonso  vi,  D.  Thereza  —  se  deve  a  obra  prepa- 
ratória da  creação  da  nacionalidade  portugueza. 


III 


Vida  obscura,  sem  nota,  decorre  para  o  recempo- 
voado,  durante  todo  o  século  xi;  o  Porto  não  passava 
d'um  humilde  burgo,  entalado  entre  Braga  e  Guimarães 
ao  norte  e  Coimbra  ao  sul,  os  verdadeiros  núcleos  da 
nação  nascente.  A  sua  própria  jerarchia  ecclesiastica  jazia 
abatida,  pois  que  apenas  se  lhe  divisa  um  bispo,  D.  Ses- 
nando,  e  a  partir  d'elle,  a  sé  do  Porto  fica  entregue  a 
arcediagos  *. 

Medrou  a  villa,  e  a  ponto  que,  ao  começar  do  sé- 
culo xii  em   ii  20  A.  D.  2,  a  rainha  D.  Thereza  encou- 


1  Não  é  precisamente  desde  a  morte  de  Fernando  Magno  que  a  dio- 
cese do  Porto  se  torna  um  simples  arcediaqado,  como  diz  Herculano.  Do 
pontificado  de  Sesnando  encontrou  Ribeiro  provas  até  1075 ;  ora  a  morte  de 
Fernando  deu-se  em  io65.  Não  foi  só  o  Porto  que  careceu  de  bispos  n'este 
período  de  lucta  accesa  entre  os  filhos  de  Fernando  Magno;  ha  interrupção 
semelhante  nas  outras  dioceses,  mas  muito  menos  duradoura. 

2  Reduzimos  sempre  todas  as  datas  a  amios  de  Christo  A.  D.,  em 
vez  da  era  de  César,  adoptada  em  Portugal  até  á  revogação  de  D.  João  I 
em  1422  A.  D.  A  era  de  César  adiantava  38  annos  á  de  Christo. 


12 


tava  o  burgo  portucalense  \  já  de  sufficiente  preço  para 
que  podesse  servir  de  mercê  a  um  personagem  muito 
seu  nas  intrigações  politicas,  se  é  que  não  mais  chegado 
em  relações  menos  confessáveis.  Foi  Hugo  o  presen- 
teado com  o  novo  couto,  Hugo,  um  bizarro  aventu- 
reiro francez,  de  poucos  escrúpulos  e  muita  habilidade, 
ao  mesmo  tempo  todo  creatura  da  rainha  e  do  poderoso 
arcebispo  Gelmires  de  Compostella,  «espécie  de  Me- 
phistophcles  sacerdotal»,  como  lhe  chama  Herculano  a. 
Familiar  e  agente  do  façanhoso  prelado  gallego, 
sagram-no  (ir  14)  3  bispo  da  sé  ha  tanto  vacante  do 
Porto,  bispo  improvisado,  pois  que  D.  Hugo,  apesar  dos 
seus  titulos  ecclesiasticos  em  Santiago,  não  tomara  ainda 
ordens  presbyteriaes.  Era  bem  misera  a  mitra,  mas  a  ca- 
beça que  a  investiu,  soube  enriquecel-a;  tenazmente 
cubiçoso,  estende  a  aba  do  pontifical  a  todas  as  munifi- 
cencias  regias  e  papaes,  ora  impetrando  como  diplomata, 
ora  sonegando  com  a  mesma  mão  astuta,  que  em  tem- 
pos ajudara  em  Braga  a  furtar  relíquias  a  S.  Geraldo  4. 


1  Livro  Grande,  fl.  I,  Corpus  codicum,  pag.  17.  Todos  OS  Livros 
citados  nas  notas  são  os  do  archivo  municipal  do  Porto  com  a  sua  denomi- 
nação cartular  habitual.  Quando  o  documento  já  tenha  sido  publicado,  vai 
a  indicação  do  lugar,  e  nomeadamente  do  Corpus  até  onde  elle  já  se  acha 
impresso. 

2  Sobre  as  acções  e  o  perfil,  que  esta  celebre  personalidade  deixou 
vivamente  escorçado  na  Historia  Compostellana  e  nos  documentos  dos  car- 
tórios, veja-se  J.  P.  Ribeiro,  loc.  cit..  t.  IV,  pag.  12,  Herculano,  t.  I,  pag. 
241  e  segií.,  e  a  introducção  de  José  Caldas  ao  Corpus  codicum. 

3  Esta  data  da  sagraçáo  de  D.  Hugo  é  geralmente  feita  em  ui3; 
foi  Herculano  quem  corrigiu  a  data    T.  I,  pag.  462. 

4  Km  1102,  indo  com  o  bispo  gallego  a  Braga,  roubaram  umas  relí- 
quias a  S.  Geraldo,  pagando-lhe  assim  a  obsequiosa  hospedagem,  que  ellc 
próprio  confessa. 


Do  papa,  em  peregrinações  a  Roma  \  captara  rescriptos 
conferindo  direitos  á  sua  egreja  e  alargando  os  limites 
do  bispado,  a  empurrar  ás  cotovelladas  os  collegas  de 
Braga  e  Coimbra  2;  dos  poderosos  colhe  avidamente 
padroados,  deixas  e  escambos  3;  da  rainha,  sua  decidida 
e  dadivosa  amiga,  obtém  doações  fartas  e  multiplica- 
das 4,  e  entre  ellas  a  grossa  posta  do  feudo  portuense. 
Escandaloso  favoritismo  esse  da  princeza,  que  os  poucos 
e  fracos  villãos  supportaram,  mas  de  que  haviam  de 
desforçar-se  a  breve  trecho  na  pessoa  dos  successores  do 
intruso  prelado,  em  lucta  accesa  e  aporfiada  com  os  bis- 
pos extorsores,  num  duello  de  perto  de  três  séculos, 


1  D'uma  vez  para  chegar  ao  papa,  que  estava  em  Cluny,  atravessou 
com  muito  risco  o  reino  d'Aragão,  disfarçado  em  mendigo. 

-  Graças  aos  rescriptos  apostólicos  por  elle  directamente  negociados, 
que  conferiam  á  sua  egreja  toda  a  autonomia  e  immunidadcs,  arredonda  a 
diocese  pelas  antigas  balisas,  acordando  com  o  bispo  de  Coimbra  a  cessão 
de  toda  a  comarca  da  Feira  até  ao  Douro  (ui5j;  chegou  mesmo  a  poisar  a 
garra  no  bispado  vacante  de  Lamego,  mas  a  graça  pontifícia  foi-lhe  revo- 
gada (1116),  apesar  de  já  concedida  pelo  papa,  desviado  pelas  informações 
que  desconfiado  do  caso  mandara  colher. 

3  Os  23  annos  do  seu  pontificado  registram-se,  no  rol  do  Censual  do 
Cabido  e  nos  diplomas  que  subsistiram  dos  cartórios,  por  uma  serie  de  he- 
ranças, trocas  e  doações  de  particulares  e  corporações  ecclesiasticas ;  ad  nos 
venial  regnum  tnum,  parece  ser  a  divisa  perenne  do  fundador  da  egreja  por- 
tuense. Figuram  entre  esses  contractos  acquisições  de  padroados  e  foros  em 
Rio-Tinto  (a  doação  do  mosteiro  por  uma  mula  amarella),  Villa-do  Conde, 
Leça,  terras  de  Souza,  e  particularmente  a  egreja  de  S.  Verissimo  de  Para- 
mio  (Paranhos,  U23),  doada  por  uma  dama  Truitesendes,  com  grande  nu- 
mero de  casaes  no  mesmo  lugar. 

4  Da  mão  regia,  além  do  couto  do  Porto,  aproveitou  ainda  o  mosteiro 
de  Crestuma  (iiiSl,  a  egreja  da  Regoa  (S.  Frausto  da  Regula,  1120),  o  mos- 
teiro de  Bouças,  e  «metade  do  porto  d'agua  da  Pedra  Salgada  até  o  mar  », 
complemento  fiscal  indispensável  ás  rendas  foreiras  do  burgo.  E  notável  que  o 
próprio  Affjnso  Henriques  o  contemplasse  com  as  egrejas  de  S  Pedro  da  Cova 
(u3o)  c  Meinedo.  Um  venturoso  prelado  de  insondáveis  palmas,  este  D.  Hugo! 


14 


em  que  a  mão  armada  se  entremeiava  com  as  demandas 
e  excommunhões,  até  rasgarem  com  o  apoio  da  realeza 
a  odiosa  carta  da  suzerania  episcopal. 

Na  posse  senhorial  do  couto,  Hugo  três  annos 
depois  usa  dos  seus  direitos  dominicaes,  outorgando 
carta  de  foral  (1123)  aos  moradores  presentes  e  futuros 
da  cidade.  Esse  diploma,  fundamental  para  a  historia 
politica,  juridica  e  económica  do  Porto,  molda  as  insti- 
tuições do  burgo  pelas  do  foral  de  Sahagun  que,  desde 
1084,  data  da  sua  promulgação,  quasi  servia  de  padrão 
para  a  nova  municipalisação  burgueza  da  peninsula; 
toma  como  base  tributaria  a  capitação  predial  e  as  por- 
tagens, e  no  tocante  ao  exercicio  da  jurisdicção,  confe- 
re-a  a  um  único  magistrado,  o  maiorino,  de  nomeação 
do  bispo,  mas  que  para  alguns  actos  judiciaes  tinha  de 
valer-se  dos  homens  bons  do  concelho. 

N'esta  singeleza  orgânica  revela-se  a  formula  rudi- 
mental dos  municípios  imperfeitos,  grau  primitivo  da 
evolução  municipal,  segundo  as  categorias  fixadas  por 
Herculano.  1 


1     L.°  Grande,  fl.  i,  Corpus,  pag.  19,  Herculano,  t.  IV,  pag.  97. 

Cotejou  José  Caldas  (Corpus,  pag.  19)  o  foral  do  Porto,  tal  qual  se  lê 
no  L.°  Grande,  com  o  documento  archetypo  da  Torre  do  Tombo  e  outro 
exemplar  encontrado  no  mosteiro  d'Arouca,  publicado  no  Port.  Mon.  Hist., 
t.  I.  Confere  com  a  lição  do  primeiro,  mas  diversifica  da  do  segundo,  onde 
se  depara  este  expressivo  addita  mento —  Ilomines  eiusde7n  vi  lie  sini  semper 
obediens  Sedi  et  Episcopo  et  Capitulo  tamquam  dominis.  Tal  interpolação 
não  passa,  segundo  a  evidente  interpretação  de  José  Caldas,  d'uma  violação 
de  texto,  uma  falsificação,  engendrada  quando  a  mitra,  investida  pelo  conce- 
lho, se  defendia  por  todos  os  modos  dos  ataques  á  sua  immunidade  mages- 
tatica.  O  documento  primitivo  não  intimava  obediências,  ou  por  não  vexar 
os  burguezes,  ou  antes  por  imprevisão  dos  seus  ouzios  tão  pouco  de  futurar 
n'aquelles  tempos  de  soffrida  vassallagem. 


15 


Por  severo  que  seja  o  juizo  moral  que  deva  for- 
mar-se  do  rapace  prelado,  manda  a  justiça  histórica  que 
se  rememore  a  obra  do  homem  que,  tornando  o  Porto 
a  sede  d'uma  larga  província  diocesana,  privilegiando 
com  regalias  o  seu  couto,  promovendo  a  attracção  dos 
moradores  l,  incitou  poderosamente  o  desenvolvimento 
da  cidade.  D.  Hugo  é  o  grande  fomentador  da  populosi- 
dade  do  Porto,  emparelhando  com  os  poderosos  bispos 
da  Allemanha  que  em  torno  dos  seus  paços  fizeram 
brotar  as  opulentas  Francfort  e  Colónia,  Strasburgo  e 
Moguncia  2. 

Os  términos  do  couto  de  D.  Thereza,  vinculado  á 
sé  portucalense,  são  hoje  difEceis  de  deslindar  da  ono- 
mástica obliterada  do  diploma,  do  vago  das  confronta- 
ções e  até  das  testilhas  apaixonadas  a  que  mais  tarde 
deu  lugar  a  invalidação  dos  direitos  episcopaes.  O  terri- 
tório coutado  parece-nos  ter  sido  um  triangulo  irregular, 
tendo  por  base  a  linha  d'agua  que  vai  de  Noeda  ao  ri- 
beiro de  Miragaya  e  por  vértice  o  Monte  Pedral;  partiria 
assim  dos  dois  lados  com  o  couto  de  Cedofeita  e  o  do- 
mínio de  Campanhã,  tocando  pela  ponta  na  egreja  de 
Paranhos  3. 


1  O  imposto  predial  não  passava  cTum  soldo;  e  a  quemquizesse  edi- 
ficar e  morar,  o  maiorino  dava- lhe  lugar  na  villa  a  troco  d'este  foro.  Extra- 
muros, o  maiorino  dava  terreno  para  plantação  de  vinhas,  ficando  a  mitra 
parceira  no  quarto  da  colheita. 

2  Seignobos,  Hisl.  de  la  civilisation,  t.  II,  pag.  iaS. 

3  Tal  é  pelo  menos  o  que  nos  atrevemos  a  inferir  dos  termos  da 
carta  e  das  inquirições  dos  séculos  XIII  e  XIV  sobre  os  limites  do  couto  do 
Porto.  A  luneta,  primeira  confrontação  do  diploma,  traduzida  na  inquirição 
de  Affonso  IV  por  Lueda.  presumo  que  seja  a  actual  Noeda,  o  lugar  mais 
avançado  de  Campanhã.  O  monte  de  cativiis,  por  onde  parte  Citofacta  mm 
germinadi,  isto  é,  Cedofeita  com  Germalde,  é  d'uma  significação  topogra- 


iò 


O  burgo  episcopal  esse  não  passava  d'um  escasso 
núcleo,  acantoado  n'este  território  relativamente  vas- 


phica  actual.  Emfim  o  canalis  major,  a  cal  mayor  que  vai  dar  ao  Douro, 
foi  um  thema  debatido  de  rabulices  nas  demandas  entre  mitra,  município  e 
coroa. 

Nas  inquirições  de  Affonso  III  feitas  em  125o  (Memorias  das  Inquiri- 
ções, pag.  45)  a  estrema  poente  do  couto  da  Sé,  a  partir  com  o  de  Cedo- 
feita, marca-se  pelo  ribeiro  que  das  Virtudes  desce  sobre  Miragaya,  e  que 
ainda  hoje  se  vê  a  descoberto  entre  as  casas  da  rua ;  doze  testimunhas  con- 
testes juram  que  até  alli  vai  o  senhorio  do  Bispo.  Noventa  annos  depois, 
Affonso  IV  manda  ao  seu  tabellião  do  Porto  proceder  a  uma  devassa  sobre 
os  termos  da  doação  de  D.  Thereza  (L.°  Grande,  fl.  i  v.°,  publicado  nas 
Dissert.  chron.,  t.  V,  pag.  292,  e  Corpus,  pag.  20);  ora  n'esse  inquérito  as 
testimunhas  apoucam  a  área  dominial  ao  pequeno  burgo  apar  da  ermida  da 
Sé.  A  caal  mayor,  todas  o  conclamam,  não  era  o  regato  de  Miragaya;  fi- 
cava muito  mais  áquem  no  Rio  da  Villa;  os  bispos  é  que  tinham  desbapti- 
sado  este  ribeiro,  prohibindo  com  excommunhão  que  se  lhe  chamasse  cal 
maior  para  arredondarem  o  seu  couto  até  Monchique. 

listes  testimunhos  não  deixam  a  menor  fé,  não  só  por  contradictados 
em  documento  mais  antigo,  como  per  eivados  de  manifesta  tenção.  Taes 
depoimentos  brigam  com  as  inquirições  do  século  anterior,  relativos  tanto 
ao  Porto  corno  ás  terras  da  Maia  (Ribeiro,  ibidem).  As  ignorâncias  e  os  erros 
não  resaltam  menos,  e  grosseiramente  quando  dão  o  mosteiro  de  S.  Domin- 
gos como  fundado  por  D.  Thereza,  ao  tempo  da  qual  nem  o  próprio  santo 
nascera  ainda.  Este  desacerto  reprova  a  veracidade  da  escriptura  do  tabel- 
lião do  rei,  que,  como  official  da  coroa,  no  duello  com  a  mitra  por  todos 
os  modos  diligenciava  derrubar- lhe  os  direitos  (Corpus,  José  Caldas,  nota 
de  pag.  22). 

Nem  por  isso  se  innocentam  os  donos  da  Sé  d'usurparem  dominio 
alheio;  pois  que  na  própria  inquirição  do  bolonhez,  favorável  aos  direitos 
episcopaes,  as  testimunhas  asseveram  que  os  bispos  trataram  de  povoar  o 
lugar,  havendo  já  setenta  e  cinco  casas  edificadas,  além  do  regato  de  Mi- 
ragaya, ullra  illam  aquam.  Mem.  das  lnquir.,  pag.  46,  Hercul.,  t.  Ill, 
pag.  46. 

A  coníinação  do  couto  portuense  pôde  ainda  abonar- se  com  um  do- 
cumento, d  exactidão  aliás  hoje  inverihcavel.  Refiro-me  á  doação  do  couto 
de  Cedofeita  por  Affonso  Henriques  (114^)  de  que  não  existe  senão  treslado 
feito  no  século  passado  dum  texto  deturpado  já;  n'ella  se  marcam  as  con- 
frontações do  colho  pelas  da  egieja  portucalense  «  id  est.  per  locum  qui  vo- 
calur  de  (AJoiíe/uque,  per  (lei  miiialdum,  et  (Monle-cativus,  et  per  'lJara- 
mios)).  Ms.  do  auetor. 


*7 


to  \  O  que  elle  foi  no  resto  do  século  xn  e  mesmo  no  xm 
avalia-se  pela  sua  topographia,  em  parte  descriminavel, 
quer  pelas  memorias  escriptas,  quer  pelos  monumentos 
coevos,  cujos  restos  perduraram.  Empoleirado  no  pendor 
do  monte  da  Sé,  apinhoado  em  derredor  da  cathedral  2, 
cintara-se  de  muralha  pela  encosta  da  eminência  3.  Era- 
lhe  porta  principal  o  Arco  da  Vandoma,  a  entestar  com  o 
largo  da  Sé  e  a  velha  rua  Chã  das  Eiras;  d'ahi  declivava 
o  muro  monte  abaixo,  costeando  as  Escadas  das  Ver- 
dades onde  teria  um  postigo,  tornejava  pelo  alto  do  Bar- 
redo  \  angulando  sobranceiro  ao  Rio  da  Villa  que,  pre- 
cipitando-se  por  funda  corga,  desaguava  a  descoberto 
ao  fundo  da  actual  rua  de  S.  João;  rasgava-se  no  Arco  de 
Sant'Arma,  e  proseguindo  por  S.  Sebastião  onde  formava 
novo  arco,  recurvava- se  em  zigue-zague  para  fechar  o 


1  A  inquirição  cTAffonso  IV  teima  manhosamente  em  reduzir  o  couto 
ao  pequeno  burgo,  o  que  é  manifestamente  falso:  «  a  doaçam  que  fora  feita 
aa  egreja  do  Porto  de  huma  ermida  que  estaua  hu  hora  esta  See,  e  huum 
burgo  que  hi  estaua  a  par  da  dita  ermida»  (/.  c,  pag.  22). 

2  A  confiar-se  na  citação  da  nota  anterior,  a  sé  de  D.  Hugo  tinha  o 
corpo  d'uma  modesta  ermida.  Natural  que  assim  fosse.  A  cathedral  actual, 
por  vetusta  que  seja,  não  deve  remontar  além  do  século  XIII. 

3  Estes  muros,  que  os  nossos  antiquários  e  seus  compiladores  teem 
ingenuamente  impingido  por  suevos,  já  existiam  ao  tempo  do  foral.  Nelle 
leio  a  concessão  de  plantação  de  vinhas  extra-muros.  E  de  presumir  porém 
que  posteriormente  tivessem  soffrido  profunda  transformação. 

4  Estes  primeiros  muros  dáo-nos  os  auctores  como  descendo,  quer 
do  lado  do  Codeçal  até  á  Lada,  quer  do  lado  do  Rio  da  Villa  até  á  Ribeira. 
Duvidamos  muito  de  tal  versão,  em  face  da  topographia  do  terreno  e  da 
falta  de  documentação;  o  afortalezamento  primitivo  limitava-se  natural- 
mente ao  monte  da  Sé.  A  inquirição  de  Affonso  IV  falia  de  fortaleza  e  tor- 
res, onde  os  alcaides  mettiam  os  presos,  e  da  Cerca  do  Castello,  onde  não 
era  permittida  a  pousada  a  fidalgo;  e  no  caso  que  lá  poizasse  algum,  ficava 
o  bispo  com  a  chave.  É  de  presumir  pois  que  houvesse  um  castello  atorreado 
no  cimo  da  eminência,  com  uma  cerca  á  volta  a  circumscrever  o  monte,  que 
seriam  os  chamados  muros  do  Porto.  L.°  Grande,  fl.  10,  Corpus,  pag.  43. 


i8 


circuito.  O  Arco  da  Vandoma  ainda  muita  gente  viva  o 
viu;  do  Arco  de  Sant'Anna,  que  serviu  de  titulo  à  co- 
nhecida novella  histórica  de  Garrett,  subsiste  a  espessa 
hombreira  na  rua  do  seu  nome;  no  Aljube  divisa-se  um 
grosso  troço  da  muralha,  encravado  nas  casas,  ainda  com 
a  emposta  do  arco. 

Este  curto  perimetro  circumdava  uma  escassa  área 
atravessada  por  caprichosas  ruellas,  em  parte  conservadas 
no  bairro  da  Sé,  d'onde  hoje  resalta  ainda  ao  transeunte 
curioso  a  impressão  pinturesca  do  Porto  medieval.  Den- 
tro de  tal  âmbito  não  podia  enxamear  grande  gente; 
mas  a  cidade  cedo  tufou,  no  alto  pelas  Eiras  e  Pellames, 
beira-rio  pela  Ribeira  e  S.  Nicolau.  Ainda  assim,  quem 
ao  Porto  do  fim  do  século  xm  conceder  quatro  mil  vi- 
sinhos,  talvez  desacerte  por  excesso. 

Muros  além,  os  campos  próximos  e  o  sertão  quasi 
ermo,  picado  de  longe  a  longe  por  mesquinhos  casaes. 
Além-Douro,  a  vetusta  Gaya  coutada;  á  ilharga,  a  er- 
mida de  Miragaya  com  sua  povoa  e  a  visinhança  de  Mas- 
sarellos;  mais  ao  largo,  o  couto  da  velhissima  Cedofeita, 
as  egrejas  de  Paranhos,  de  Campanhã,  de  Lordello,  de 
S.  João  da  Foz,  já  mencionadas  em  escripturas  coevas, 
obscuros  núcleos  de  povoados  que  a  cidade  ia  absorver 
na  sua  evolução  transsecular  \. 


1  O  padroado  de  S.  Vereixemo  de  'Paramio  em  terras  da  Maia  foi 
doado,  como  já  dissemos,  a  D.  Hugo  em  ii23.  Censual do  Cabido,  ti.  10  v.°. 
Os  direitos  sobre  Santa  Maria  de  Campanhã,  em  Gondomar,  são  objecto 
d'um  escambo  com  o  mesmo  prelado  em  1120;  a  sua  posse  vem  para  a 
mitra  em  1227,  completada  ao  depois  pela  cedência  de  numerosos  compa- 
tronos;  as  doações  respectivas  são  no  Censual  em  numero  de  5o.  Ibidem, 
fl.  20  a  35. 

Miragaya  era  mesmo  um  subúrbio  do  Porto  e  dentro  do  seu  couto; 


IV 


Quem  visse  ao  tempo  o  humilde  burgo,  ennove- 
lando  as  suas  pequenas  alíurjas  e  cangôstas  aos  pés  da 
cathedral  acastellada  que  o  assoberbava  com  os  grossos 


no  meado  do  século  XIII  quando  o  bispo  Julião  partilhou  com  o  cabido  os 
seus  direitos  sobre  a  ermida  de  S.  Pedro  (ibidem,  fl.  i3í),  já  formava  villar, 
e  bastante  desenvolvido,  como  o  mostram  as  j5  casas  ao  pé  de  Monchique, 
apontadas  na  inquirição  d'Affonso  III.  Convisinhava-o  Massarellos,  aldeia  de 
pescadores,  onde  parece  se  fabricava  sal,  segundo  se  depreende  d'uma  carta 
de  D.  Diniz  de  i3i8,  referente  a  direitos  de  «tyrare  sal  in  (Micerellos*. 
L.°  Gr.,  fl.  3o  v.°,  Corpus,  pag.  87. 

Da  Foz  ha  a  carta  de  121 1  em  que  D.  Mafalda,  filha  de  Sancho  I,  doa 
ao  Mosteiro  de  Santo  Thyrso  «  heremitagium  Sancti  Johannes  de  Foce». 
Diss.  chron.,  t.  I,  pag.  259. 

Cedofeita  essa  remonta-se  a  tempos  de  reis  suevos  no  século  VI,  au- 
reolando-se  de  lendas  onde  milagrêa  S.  Martinho  de  Tours  a  converter  o 
hereje  Theodomiro,  pretendido  fundador  da  egreja  —  coisas  ineditaveis  hoje 
em  historia  seria.  A  famosa  inscripção  da  testada  do  templo  foi  alli  posta 
apenas  em  1767,  tresladada  dum  pergaminho  antigo  de  1 556  casualmente 
descoberto  no  archivo  capitular,  a  seu  turno  copia  d'uma  pedra  antiga 
que  se  dizia  pertencer  á  frontaria  primeira  da  egreja,  onde  estava  lavrada 
em  «letras  gothicas  e  verdugadas»,  diz  o  grosseiro  notário.  O  que  é  certo 


20 


campanários,  e  envolvendo-se  na  cintura  angusta  de 
muralhas  ameiadas  de  pouco  guerreiro  aspecto,  não  pre- 
sagiaria  por  certo  o  seu  alevantado  futuro.  O  Porto  não 
era  então  cidade  que  contasse  entre  as  jóias  da  coroa 
portugueza;  essas  eram  outras  que  lhe  sobrelevavam 
em  importância,  como  a  « theocratica»  Braga,  Évora 
«a  romana  e  monumental»,  Coimbra  «a  cavalleirosa», 
Santarém  «a  cortezã»,  *  para  não  fallar  de  Lisboa,  que 
de  chofre  attingiu  o  primado  urbano  do  paiz. 

Mas  n'este  minguado  retalho  de  terra,  n'esse  pu- 


é  que  o  tal  pergaminho,  resuscitado  pelos  cónegos,  levou  logo  sumiço 
depois  de  dar  matéria  á  campanuda  inscripção  e  a  um  instrumento  tabellio- 
nar.  A  collegiada  exhibiu  ainda  pela  mesma  época  uma  torpe  carta  de  doa- 
ção de  Theodomiro,  e  um  salvoconducto  do  tempo  dos  árabes  para  permis- 
são d'exercicios  religiosos,  a  emparelhar  com  o  que  fr.  Bernardo  de  Brito 
amanhou  para  Lorvão.  Tudo  isto  foi  apregoado  pelo  cónego  Minuel  Silves- 
tre Ferreira  (Ms.  de  1771)  como  grandes  descobrimentos  no  archivo,  assim 
como  uma  exposição  ao  papa  feita  pelo  bispo  Fernando  Ramires  em  1280; 
mas  por  artes  do  diabo  some-se  logo  tudo  outra  vez. 

Quanto  ás  doações  e  cartas  dos  reis  portuguezes,  essas  são  admissí- 
veis, embora  as  copias  que  tive  presentes,  sobretudo  as  relativas  a  Affonso 
Henriques,  a  que  já  nos  referimos,  e  a  Affonso  II,  não  satisfaçam  á  boa  au- 
thenticidade  diplomática,  o  que  attribuo  a  serem  extrahidas  de  treslados  já 
viciados. 

Escusado  é  dizer,  depois  da  critica  histórica  de  Herculano,  que  o 
templo  de  Cedofeita  não  ascende  ao  século  VI ;  a  archeologia  artística  corta 
pela  raiz  a  questão;  é  um  edifício  de  estylo  românico  que  não  pôde  ir  além 
do  século  XI. 

cAldoar,  Nevogilde  e  Ramalde,  freguezias  agora  annexadas,  são 
também  de  velha  fundação.  Em  San  Veríssimo  de  Luvigildi  apresenta 
abbade  seu  a  padroa  da  egreja  D.  Constança  Gil  em  1294.  Dissert.,  t.  I, 
pag.  291.  As  inquirições  de  Affonso  III  de  i25S  faliam  das  freguezias  de 
Aldoar,  lettogilde,  rranhaldy  e  francos.  L.°  Gr.,  fl.  56  e  5j . 

S  Martinho  de  Loordello  também  lá  figura  ao  lado  de  Sanhoane  da 
Foz,  pertencente  tudo  com  as  anteriores  ao  julgado  de  Bouças  (ibidem), 

1     Herculano,  Lendas  e  nattattvas,  t.  I,  pag.  1 55. 


21 


nhado  de  villãos,  labutava-se  forte  e  firme,  e  accendia-se 
um  sentimento  altivo  d'independencia,  uma  rebeldia  a 
todas  as  sujeições  e  extorsões  odiosas.  Desentranhava-se 
na  consciência  collectiva  o  poder  da  burguezia,  que, 
afreimada  no  tracto  e  nos*  mesteres,  queria  sacudir  o 
jugo  de  tudo  quanto  lhe  tolhesse  as  mercancias  ou  lhe 
sugasse  os  proventos.  Mercantil  e  fabril,  a  cidade,  abo- 
minando a  oppressão  do  trabalho  e  a  extorsão  tributa- 
ria, luctava  pela  sua  alforria;  accentuava-se  aqui  a  ten- 
dência d'autonomia  communal,  analogamente  aos  bur- 
gos commerciaes  e  manufactureiros  da  Europa  medie- 
val, como  os  da  Itália  e  Flandres. 

Atacar  a  suzerania  episcopal,  acabar  com  os  privilé- 
gios da  mitra,  que  a  cubica  sórdida  dos  bispos  tantas 
vezes  aggravava,  era  o  primeiro  passo;  o  Porto  não 
queria  que  a  crossa  dos  seus  prelados  fosse  ao  mesmo 
tempo  sceptro  tyrannico,  vara  de  justiça  e  arpão  de 
fisco.  E  para  conseguil-o,  para  entrar  no  concerto  geral 
do  paiz,  no  grémio  das  behetrias  e  da  hegemonia  mo- 
narchica,  não  poupou  sacrifícios,  arriscando  paz  e  vida 
nas  revoltas,  e  afTrontando  os  raios  ao  tempo  vingado- 
res da  cúria  romana.  Ao  contrario  dos  burguezes  de 
Liége,  que  nos  seus  assomos  d'independencia  se  acurva- 
vam sempre  á  potencia  infrangivel  do  senhorio  episco- 
pal l,  os  nossos  aífrontavam  o  bispo  em  pessoa  e  des- 
afiavam os  interdictos  e  anathemas  que  a  meia  volta 
sellavam  por  largo  tempo  as  portas  das  egrejas  e  emmu- 
deciam  os  sinos  dos  campanários. 

0  foral   primitivo,   ou   por  convenções  expressas 

1  Michclct,  Ilisl.  de  France,  t.  IV. 


22 


hoje  desconhecidas,  ou  por  accordo  na  sua  applicação, 
não  tardara  a  revestir-se  de  maiores  franquias  na  gerên- 
cia municipal  da  cidade.  A  própria  administração  se 
complicava;  em  vez  d'um  único  magistrado,  o  meiri- 
nho, havia  um  juiz  de  causas  eiveis  e  criminaes,  um 
alcaide  de  prisões,  dois  mordomos  de  execuções  e  co- 
branças, e  almotacés,  tudo  de  nomeação  do  bispo;  os 
burguezes  só  eram  ouvidos  para  a  escolha  de  metade 
dos  almotacés  l. 

Os  portuenses  detestavam  o  feudo,  mesmo  mino- 
rado, e  por  outro  lado  os  oíficiaes  do  rei,  que  vinham 
pela  cidade  pegavam-se  com  os  officiaes  da  mitra;  d'ahi 
incessantes  attritos  d'onde  faiscavam  temerosas  confla- 
grações. ' 

Logo  em  tempo  de  Sancho  i,  ahi  por  1208,  o  povo 
rebellado  contra  a  vassallagem  tyrannicamente  imposta 
pelo  altivo  e  indomável  prelado  Martinho  Rodrigues, 
rompia  em  terrivel  motim,  arrombando  as  portas  do 
paço,  prendendo  e  guardando  á  vista  o  bispo,  que 
somente  ao  cabo  de  cinco  mezes  de  cárcere  se  pôde 
escapar  de  noite  para  Roma,  onde  chegou  em  mi- 
serável estado,  mas  inabalável  na  sua  fúria  de  vin- 
gança, obtendo  que  o  papa  indignado,  por  intermédio 
do  bispo  de  Zamora,  brandisse  excommunhão  fulmi- 
nante sobre  os  sacrílegos  aggressores.  Na  conjura  as- 
signalaram-se,  como  cabeças,  os  cidadãos  João  Alvo  e 
Pedro  Feudo-Tirou,  assim  appellidado  pelo  seu  com- 
mettimento  d'emancipação  anti-feudal;  as  bulias  do 
papa  Innocencio,  ao   feril-os  com  as  armas  mais  ve- 

1    Herculano,  t.  IV,  pag.  99. 


23 


nenosas  da  egreja,  aureolaram  historicamente  os  dois 
obscuros  villãos,  os  protorevolucionarios  das  liberdades 
do  Porto  K 

Apoz  mal  aquietadas  tréguas,  os  burguezes  de  novo 
aferram  os  seus  intentos;  o  bispo  Pedro  Salvadores  é 
desacatado  por  seus  súbditos,  que,  mais  uma  vez  des- 
amparados do  braço  real,  se  submettem  a  composição 
d'escriptura  (1240)  com  o  prelado,  que  deixa  sanar  os 
ultrajes  recebidos,  á  conta  de  grossa  quantia  que  os  in- 


1    Herculano,  t.  II,  pag.  120. 

A  revolta  fomentou-se  de  tal  forma,  que  os  burguezes  tiveram  a  seu 
lado  muitos  dos  próprios  cónegos,  resabiados  com  a  mitra  por  causa  da  di- 
visão das  rendas  do  bispado  que  Martinho  Rodrigues,  ao  invez  do  seu  pre- 
decessor, não  quizera  compartir  com  o  cabido  (Rodrigo  da  Cunha,  pag. 
52) ;  os  officiaes  do  rei,  que  tão  fortemente  se  desaviera  com  o  bispo,  secun- 
daram vigorosamente  o  movimento.  A  perseguição  popular  chegou  a  ponto, 
que,  enfermando  o  bispo  durante  o  assedio  do  paço,  não  lhe  consentiram 
padre  que  o  confessasse.  Herculano,  ibidem,  pag.  109  e  seggs.  Voltou  victo- 
rioso  de  Roma  o  êxul  prelado,  logo  que  obteve  a  bulia  para  o  bispo  e  arce- 
diago de  Zamora;  estes,  como  juizes  delegados  do  papa,  julgaram  á  revelia 
os  réus,  e  proferiram  em  121 1  sentença  fera,  declarando  vinte  cidadãos  do 
Porto  infames  e  lançando-lhes  a  excommunhão  reservada  á  sé  apostólica. 
L.°  da  Demanda  do  bisfo  D.  Pedro,  pag.  5o. 

O  rei  avelhentado  curvou  o  collo,  outr'ora  duro  e  arrogante,  e  expe- 
diu cartas  sobre  cartas  humilhantíssimas  a  Martinho  Rodrigues,  fazendo-lhe 
entrega  pelo  alcaide  de  Coimbra  de  todos  os  seus  bens,  redintegrando  pelo 
prior  de  Nandim  em  todos  os  seus  direitos  a  egreja  do  Porto,  e  confirmando 
a  primitiva  doação  do  burgo  numa  tal  latitude,  que  a  cidade  fosse  para 
todos  os  effeitos  políticos,  judiciários  e  fiscaes,  vassalla  da  mitra,  concedendo 
ao  prelado  a  jurisdicção  da  cidade  «como  e  melhor  do  que  a  possuirá  o 
bispo  D.  Fernando  e  seus  antecessores».  Rodrigo  da  Cunha,  pag.  53,  L.° 
da  Demanda  do  bispo,  pag.  44  a  48.  Os  pobres  burguezes,  de  todo  ao  aban- 
dono, ficaram  acalcanhados  e  desfeitos,  triste  presa  nas  garras  da  harda 
episcopal,  que  ultimava  a  sua  vingança  pela  ultrajante  compaixão  de  rogar 
a  absolvição  dos  criminosos  ao  papa,  que  a  mandou  por  breve  ao  abbade  do 
Mosteiro  de  Santo  Thyrso  (i2i3),  depois,  já  se  vê,  de  em  bulia  anterior  con- 
firmar as  doações  de  Sancho  I  (12 12),  tão  esbulhadoras  do  poder,  realengo. 
Ibidem,  pag.  3ç>,  43  e  5i. 


24 


subordinados  cidadãos  teem  de  largar  a  troco  da  absol- 
vição da  excommunhão  imposta  \ 

A  cubica  dos  monarchas  aguçava-se  perante  as  ren- 
das cada  vez  mais  pingues  da  cidade,  absorvidas  pelo  se- 
nhorio ecclesiastico.  nas  quaes  o  bolonhez  Affonso  m 
tentou  compartir,  encetando  uma  politica  original  e  as- 
saz perigosa  para  os  destinos  do  Porto.  O  meio  posto 
em  pratica  foi  a  creação  d'um  burgo,  grandemente  afo- 
ralado  logo  de  privilégios,  em  Villa  Nova  a  par  de 
Gaya,  a  que  o  rei  chamava  expressivamente  o  seu  Porto 
Novo,  certo  d'annullar  o  Porto  episcopal,  desviando 
para  aquelle  o  commercio  interno  e  externo  pelas  exa- 
cções  íiscaes  promulgadas  que  tolheriam  d'oravante  á 
cidade  o  accesso  das  mercadorias  de  terra  pela  banda 
d'além,  assim  como  pela  via  fluvial  e  marítima,  sujei- 
tando-as  a  desembarque  e  tributos  no  burgo  real  de 
Gaya  -'.  Este  golpe  ameaçava  de  chofre  as  prebendas  da 


1  No  desaguisado  tiveram  os  villãos  por  alliados  a  um  tal  Rodrigo 
Sanches  e  a  um  poderoso  cónego  de  Braga,  Fernam  Eannes.  Depois  de 
muito  reboliço  e  da  trovoada  d'excommunhóes,  fizeram-se  as  pazes  por  en- 
tremissão  do  bispo  eleito  de  Coimbra,  Tiburcio  ou  Toribio  e  do  senhor 
de  Lumiares,  Abril  Peres,  que  sentenciaram  o  prelado  a  absolver  os  rebeldes, 
obrigando-se  estes  á  pagar-lhe  em  quatro  prestações  dois  mil  áureos  (crusa- 
dos).  L.°  da  Demanda  do  bispo,  pag.  5i.  Rodrigo  da  Cunha,  pag.  78.  Her- 
culano, t.  H,  pag.  356. 

2  Herculano,  t.  III,  pag.  48.  Rodrigo  da  Cunha,  pag.  92  e  seggs.  O 
foral  de  Villa  Nova  data  de  ia55.  L.°  Grande,  fl.  72  e  L.°  1 .°  dos  Perga- 
minhos, fi.  4.  Os  tolhimentos  á  liberdade  commercial  do  Porto  começaram 
de  ser  levantados  pelo  próprio  Affonso,  mandando  dividir  o  desembarque 
pelas  duas  margens,  exceptuando  as  naus  dos  moradores  da  cidade  que  des- 
embarcariam n'ella,  revogando  a  iniqua  prohibiçáo  da  venda  do  sal,  que 
primeiramente  negara  á  cidade.  D.  Diniz  levantou  por  rim  todas  estas  peias, 
ordenando  por  carta  de  1282  em  composição  com  o  bispo  Vicente,  refu- 
giado em  Roma,  que  os  negociantes  desembarcassem  suas  mercadorias  onde 


25 


mitra  e  a  riqueza  commercial  do  Porto.  Novas  desaven- 
ças se  emmaranharam  entre  os  dois  concelhos  antago- 
nistas, o  bispo,  o  rei  e  os  seus  officiaes,  com  as  habi- 
tuaes  alicantinas  apimentadas,  como  sempre,  com  o 
exilio  interdictorio  dos  bispos  e  as  bulias  apostólicas. 

A  própria  coroa  reconhecia  o  errado  passo,  pois 
que  Diniz,  abandonando  o  proceder  paterno,  investe,  a 
instancias  do  concelho  e  camará  do  Porto,  contra  o  se- 
nhorio da  Egreja  e  em  favor  dos  burguezes,  conferindo- 
lhes  a  posse  e  direitos  exarados  na  sentença  que  á  reve- 
lia do  bispo  proferiu,  e  accrescentando-lhes  os  foros 
de  modo  que  fossem  os  que  legitimamente  competiam 
a  um  concelho  perfeito  K 

Era  de  facto  agora  uma  behetria  o  burgo  episcopal; 
pois  que  pela  sentença  do  rei  lavrador  de  seu  alvedrio 
dependia  a  escolha  dos  juizes  da  cidade.  Mas  pouco  lhe 
durou  a  alforria  juridica;  que  o  braço  ecclesiastico  teve 
forças  de  deitar  outra  vez  as  mãos  à  vara,  alcançando  da 
fraqueza   de   D.  Diniz  nova  sujeição  aos  officiaes  do 


lhes  aprouvesse.  L.°  r.°  dos  Pergaminhos,  fl.  8.  Entretanto  diplomas 
subsequentes  versam  ainda  sobre  differenças  entre  os.dois  concelhos;  taes 
são  a  sentença  de  i3i7  sobre  a  venda  do  vinho  de  Riba-Doiro  (L.°  Grande, 
fl.  18  v.°,  Corpus,  pag.  61  e  L.°  t.°  dos  Perg.,  fl.  6),  a  provisão  de  i33'2  so- 
bre sonegamento  de  direitos  de  vinhos  e  mercadorias  por  certos  abbades  a 
coberto  do  concelho  do  Porto  (L.°  /.°  dos  Perg.,  fl.  21). 

1  A  camará  instaurou  mesmo  demanda  perante  o  rei,  o  qual  citou  o 
bispo  Fernando  Ramires  perante  sua  justiça  —  ad  suggestionem  concilii  et 
hominum  civitatis,  como  diz  o  papa  na  bulia  reprehensoria  endereçada  a 
D.  Diniz.  Rodrigo  da  Cunha,  pag.  i3o  e  seggs.  Ramires,  que  se  julgou  des- 
obrigado de  apparecer  diante  d'el-rei,  apoiado  por  conselhos  de  doutores  que 
ouviu,  como  Oldrado  da  Ponte,  deixou  correr  a  causa  a  revelia,  que  foi  sen- 
tenciada em  i3i6;  a  posse  «das  coisas  mandadas  dar  por  sentença  ao  conce- 
lho» foi  confirmada,  apoz  um  anno  e  um  dia,  a  requerimento  da  camará. 
L.°  Grande,  fl.  i5  v.°,  Corpus,  pag.  55. 

s 


26 


bispo.  Reagem  incontinenti  os  procuradores  do  concelho 
com  protestos  tabellionares,  arma-se  grossa  demanda, 
apasiguada  por  D.  AtTonso,  então  infante,  que,  escolhido 
para  julgador  da  contenda,  a  dirimiu,  favorecendo  as  li- 
berdades dos  burguezes,  muito  a  desprazimento  da  sé, 
que  se  fartou  d'instrumentar  em  retaliação  pela  penna 
causidica  dos  notários  K 

Ia  d'avenças  em  desavenças  esta  contenda  secular,  e 
assim  se  continuou  no  bispado  de  Vasco  Martins,  ora 
tratando  com  a  camará  escambos  de  rendas  e  servidões, 
pautados  por  longas  escripturas,  onde  os  procuradores 
da  cidade  immunisavam  as  suas  «franquezas  e  liver- 
dões»,  ora  pleiteando  em  Avinhão  os  seus  privilégios  e 
aggravos  das  injurias  do  seu  povo,  que,  como  já  era 
useiro,  parece  tel-o  aggredido  no  próprio  paço  \ 


1  A  carta  regia  de  D.  Diniz  (i323)  não  deixa  de  ser  um  pouco  rude 
para  o  bispo  D.  João  e  cabido,  que  anteriormente  menospresavam  á  revelia 
o  desembargo  real,  e  cautelosamente  se  reserva  para  a  corte  a  appellação 
dos  feitos  crimínaes.  L.°  da  Demanda  do  bispo,  pag.  55  e  Rodrigo  da  Cunha, 
pag.  1 36.  Á  nomeação  dos  juizes,  protestou  logo  a  Camará,  que  embirrou 
sobretudo  com  um  dos  escolhidos  (L.°  idem,  pag.  i63-4).  Mezes  depois, 
vem  a  chamamento  o  infante  de  Coimbra  ao  Porto,  e  corta  o  nó  da  jurisdi- 
cção  pela  apresentação  por  parte  do  concelho  d'uma  lista  de  quatro  pares 
d'homens  bons,  d'onde  o  bispo,  limitado  agora  no  seu  arbítrio,  escolheria 
os  dois  juizes.  Apesar  de  lavrado  instrumento  de  transacção,  logo  no  fim  do 
anno  as  gentes  da  Sé,  percebido  o  damno,  se  desdisseram  e  reclamaram,  ò 
que  lhes  valeu  amarga  reprimenda  do  infante  que  frisou  o  seu  papel  de  juiz 
compromissado,  pois  que  como  tal  fora  convidado  a  fazer  a  concórdia.  Ibi- 
dem, pag.  i65-8  e  182. 

2  Este  escambo  entre  Sc  e  Concelho,  feito  em  1 33 1  (L.°  Grande,  ri. 
12,  'Dissert.,  t.  V,  pag.  261,  e  Corpus,  pag.  47),  muito  interessante  cm  espé- 
cies históricas  e  particularmente  pela  obrigação  imposta  de  crearem  «banhos 
boos  com  caldeiras  »,  pretendia  pôr  ponto  em  « todallas  as  demandas  e  es- 
candallos»,  c  como  tal  está  inçado  de  formulas  tabellioas  c  todas  as  •■firmi- 
dões »  possíveis.  As  dissenções  reatiçam-se  porem  logo  (L.°  idem,  191-2-4), 


37 


A  acção  decisiva  cPesta  guerra  sem  tréguas  tenta-a 
a  decahida  mitra  com  o  animo  valoroso  de  Pedro 
AfTonso,  adversário  indomável,  que  por  duas  vezes  põe 
o  interdicto  á  cidade,  á  própria  cabeça  do  rei  arremessa 
sem  respeito  a  excommunhão,  escapa-se  das  mãos  do 
infante  D.  Pedro  em  pessoa  que  quer  prendel-o  no  paço, 
e  por  duas  vezes  ainda  se  lança  á  correria  d' Avinhão, 
soltando  de  caminho,  a  cada  cidade  onde  parava,  anathe- 
mas  excommunhantes  sobre  o  burgo  do  Porto  e  a  coroa 
de  Portugal.  Mas  esta  dantesca  figura  da  sanha  religiosa, 
este  derradeiro  pulso  do  virote  episcopal,  teve  de  que- 
brar os  Ímpetos  e  passar  pelas  forcas  caudinas  da  justiça 
real,  sujeitando-se  á  sentença  do  tribunal  da  corte,  sen- 
tença em  que  os  juizes  árbitros  pouco  já  puderam  fazer 
em  favor  da  suzerania  mitral,  embora  não  satisfizessem 


e  os  protestos,  partindo  do  bispo  e  cabido,  denunciam  já  qual  é  a  parte  mais 
fraca.  Rodrigo  da  Cunha  (pag.  145)  conta  sem  precisar  data  que  o  povo 
amotinado  entrou  de  roldão  no  paço  do  Bispo,  matando-lhe  alguns  servi- 
caes,  tendo  Vasco  Martins  de  se  aferrolhar  no  Castello,  d'onde,  logo  que 
pôde,  se  escapou,  andando  foragido  da  sua  sé  nove  annos.  O  texto  com 
que  se  abona  para  provar  este  attentado,  extrahido  das  allegaçóes  do 
bispo  successor  D.  Pedro,  não  demonstra  que  o  arremettimento  armado, 
aliás  provado  para  outros  prelados,  se  desse  indicadamente  contra  Vasco 
Martins,  ao  qual  se  referem  propriamente  « gravissimas  perseguições»  e 
exílio  de  «nove  annos  ou  mais».  Este  desterro  não  o  julgo  attribuivel  ex- 
clusivamente á  causa  que  D.  Pedro  invoca  na  força  do  seu  articulado.  V. 
Martins  foi  eleito  estando  em  Avinhão  em  1329,  onde  se  conservou  até  i334, 
como  consta  da  serie  chronologica  de  J.  P.  Ribeiro  ('Dissert.,  t.  V,  pag. 
184)  e  como  o  próprio  Cunha  lestimunha  fallando  do  seu  regresso  forçado 
ao  Porto  por  ordem  do  papa.  Sabendo-se  que  foi  n'este  intervallo  (1 33 1 )  a 
composição  com  a  camará,  a  explicação  da  demora  do  bispo  parece-me  ser 
o  desaffecto  de  Affonso  IV  e  a  privança  do  papa  João  XXIÍ.  Desde  a  volta 
de  Avinhão  até  á  morte  do  bispo  em  1342  medeiam  apenas  8  annos,  durante 
os  quaes  vários  documentos  mostram  a  residência  de  Vasco  Martins  no  reino 
e  na  cidade.  L.°  da  Demanda,  pag.  191,  2,  4. 


38 


os  aggravos  desmedidos  do  Porto  e  de  D.  Affonso  iv 
que  desde  infante  apoiava  a  causa  dos  seus  predilectos 
burguezes  e  da  rendosa  cidade  \ 

Cerrava-se  a  primeira  phase  do  acérrimo  combate, 
que  durara  acceso  quasi  século  e  meio,  arrevezado  de 
sangue  e  perseguições;  e  cerrava-se  esta  grande  scena 
com  o  mesquinho  fecho  duma  sentença  de  tribunal  se- 


1  Rompeu  o  escândalo  logo  em  1 343  pelo  conflicto  entre  o  correge- 
dor, que  tomou  conta  da  jurisdicção  criminal,  e  o  vigário  da  Sé,  que  na 
ausência  do  bispo  acudiu  com  censuras,  retirando-as  mal  o  corregedor  o 
ameaçou  com  desterro,  Pedro  Affonso  resentido  denunciou  logo  o  contracto 
feito  para  a  escolha  dos  juizes,  chicanando  sobre  a  sua  validade,  na  mesma 
pouca  fé  com  que  ao  depois  em  i35i  se  negou  também  ao  escambo  de 
D.  Vasco  com  o  concelho.  O  rei  replica  propondo  a  audiência  do  concelho, 
mas  o  bispo,  julgando-se  menoscabado,  convoca  synodo  em  Cedofeita  e 
atira  aos  reveis,  monarcha  e  povo,  as  mais  fulminantes  excommunhóes.  Foi 
então  que  o  infante  D.  Pedro,  vindo  de  propósito,  trata  d'enjaular  o  feroz 
prelado,  que,  temeroso  de  perder  a  vida,  consegue  illudir-lhe  a  vigilância, 
fugindo,  sempre  perseguido,  a  unhas  de  cavallo  para  Tuy,  d'onde  atira  nova 
e  mais  solemne  excommunhão.  Estacionou  em  Avinhão  seis  annos,  vivendo 
á  custa  duma  subscripção  dos  seus  collegas  de  Hespanha,  e  obtendo  cartas 
do  papa  que  pouco  demoveram  o  animo  d  el-rei.  Regressando  ao  Porto,  o 
seu  animo  não  lhe  consentiu  ser  victima  das  extorsões  dos  officiaes  munici- 
paes  e  reaes;  manda  intimar  as  excommunhóes  á  cidade  e  ao  rei,  que  pelos 
modos  não  se  molestaram  com  estas  aggressóes  espirituaes.  Pelo  seguro  o 
bispo  exilou-se  de  novo  para  a  corte  pontifícia,  e  ao  passar  por  Salamanca 
prega  segunda  vez  na  cathedral  a  excommunhão  contra  o  rei,  tam  possesso 
de  ira  que  a  voz  se  lhe  sumiu  na  gorja.  Por  intermédio  do  papa,  junto  do 
qual  também  D.  Affonso  e  a  camará  mandaram  os  seus  procuradores,  tra- 
tou-se  então  da  demanda  em  que  as  partes  litigantes  foram  devidamente  re- 
presentadas com  seus  aggravos  perante  cinco  juizes  nomeados  por  el-rei. 
Apesar  dum  d'estes  ser  aílim  do  bispo,  o  seu  lucro  na  causa  pouco  foi  além 
d'uma  retirada  honrosa  e  d'um  modus  vivendi  quasi  ephemero.  A  sentença 
foi  dada  no  mosteiro  de  S.  Jorge,  perto  de  Coimbra,  em  28  de  outubro  de 
i354,  e  este  diploma  fecha  o  celebre  L.°  da  Demanda  (pag.  270  a  2S5,  e 
Cunha,  pag.  171). 

—  Por  lapso  não  reduzimos  a  era  de  i3i8  a  1280,  data  da  carta  de 
D.  Diniz,  citada  a  pag.  19. 


cular,  onde  se  lia  a  autonomia  civica  dos  burguezes. 
Eram  d'oravante  para  todos  os  effeitos  vassallos  do  rei ; 
trocava-se  a  thiara  pela  coroa;  os  gibelinos  triumphavam 
dos  guelfos. 

Secularisado  o  burgo,  estava  quebrada  a  omnipo- 
tência pontifical,  que  fora  atéli  o  nervo  da  heróica  resis- 
tência dos  prelados  portuenses,  o  escudo  a  que  inces- 
santemente recorriam  nos  lances  afrlictos.  Observa  com 
graça  discreta  o  P.e  Rebello  da  Costa  que  n'essa  época  o 
caminho  de  Roma  era  tam  familiar  aos  nossos  bispos 
como  o  foi  ao  depois  o  da  sua  regalada  quinta  de  Santa 
Cruz.  Là  mesmo  os  seguia  o  implacável  antagonismo 
do  municipio;  a  camará  do  Porto  também  mandava  os 
seus  emissários  á  corte  pontifícia.  Assim  foi  que,  antes 
da  eleição  de  Vasco  Martins,  recorreram  ao  papa,  como 
«devotos  e  humildes  filhos  da  cidade  do  Porto»,  exo- 
rando-lhe  que  os  provesse  de  bispo  da  feição  d'elles  \ 
Na  demanda  com  D.  Pedro  fez-se  o  concelho  repre- 
sentar em  Roma,  tenaz  na  defeza  das  suas  reivindica- 
ções 2. 

Não  cerceou  a  sentença  de  Coimbra  o  escândalo  e 
a  discórdia  da  vida  felina  do  povo  e  do  bispo.  O  inter- 
dicto  perpetuava -se  vergonhosamente;  o  concelho  re- 


1  Foi  por  occasiáo  da  transferencia  de  D.  Fr.  Estevão  para  Lisboa, 
que  mandou  a  Roma  a  camará  dois  procuradores,  por  causa  da  successão ; 
na  curiosa  carta  dirigida  ao  pontifice,  intilulam-se  os  villãos  devoti  et  humi- 
lei  fdii  concilii  civitatis  porlucalensis.  Rodrigo  da  Cunha,  pag.  122.  Se 
isto  rendeu  a  escolha  de  Vasco  Martins,  perderam  os  peticionários  o  tempo 
e  o  cabedal. 

2  D'estas  embaixadas  municipaes  consta  a  procuração  de  Martim 
João  d'Aveiro,  deão  de  Silves,  em  i35i  —  L.°  B,  fl.  237  v.°  — e  outra  em  i353 
—  L.°  i.°  dos  Perg.,  fl.  27. 


^ 


queria  em  vão  ao  successor  de  D.  Pedro,  Affonso  Pires, 
a  cessação  da  censura,  como  era  justo  \  Succedem-se  os 
bispos  e  sempre  o  labéu  ecclesiastico  a  ferir  a  cidade. 
D.  Fernando,  apesar  do  muito  que  o  Porto  lhe  deve,  esse 
vai  até  repor  a  jurisdicção  nas  mãos  do  poder  ecclesias- 
tico \  Não  sabemos  o  que  os  burguezes  retorquiram, 
mas  o  Mestre  d'Aviz,  ao  triumphar  do  seu  golpe  dis- 
tado, vem  ainda  encontral-os  a  barafustar  contra  a  cen- 
sura teimosamente  mantida,  e  apenas  interrompida  para 
a  sua  festiva  recepção.  O  rei,  logo  que  a  occasião  lh'o 
permittiu,  corta  o  nó  gordio  da  excommunhão,  contra- 
ctando  com  a  mitra  a  venda  da  jurisdicção  por  um  foro 
annual;  o  bispo  fazia  o  escambo  dos  seus  poderes  tem- 
poraes  a  troco  d'avença  3.  Mais  valia  a  indemnisaçao  do 
que  perder  tudo;  desgraçadamente  nem  d'ella  se  gosou, 
porque  a  paga  íicou-se  na  promessa,  nem  os  seus  ex- 
vassallos  deixaram  a  revezes  de  inquietal-o,  sempre  agi- 
tados de  revelia,  chegando  a  ir  ao  paço  intimar-lhe 
mandado  de  despejo  i,  volvidos  agora  em  senhores.  O 


1  L.°  CB,  fl.  3i.  Traz  este  instrumento  a  data  errada  de  i352,  pois 
que  D.  Affonso  começou  a  sua  prelazia  em  i357. 

3  E  o  que  consta  do  pergaminho  de  1 373,  encontrado  e  transcripto 
por  Cunha,  pag.  212,  por  signal  que  com  a  era  errada;  o  seu  contexto  é 
mais  um  triste  documento  de  inépcia. 

3  Obrigou-se  D.  João  por  contracto  a  pagar  á  mitra  três  mil  libras 
pela  plena  posse  da  cidade.  Esta  composição,  feita  com  João  d'Azambuja  em 
i3q2,  só  teve  execução,  por  causa  das  guerras,  em  1405  por  contracto  feito 
com  o  bispo  D.  Gil,  assignado  em  Montemor-o-Novo  nos  paços  do  bispo  de 
Évora.  L.°  Grande,  ri.  5i,  Corpus,  pag.  i36.  A  escriptura  foi  confirmada 
pelo  papa,  que  commetteu  ao  arcebispo  de  Lisboa  João  d' Azambuja  o  con- 
certo da  questão  e  o  levantamento  do  interdicto  que  foi  emrim  relaxado  no 
anno  seguinte.  Cunha,  pag.  21 5  e  221.  L.°  Grande,  fl.  iZ']  v.° 

4  Agudaram  estas  testilhas  com  o  bispo  Luiz  Pires  e  não  foram  das 
menos  aporfiadas  e  incidentadas  (1457-60).  Não  sei  porque  o  bispo  excom- 


3i 


senado  municipal  ascendera  progressivamente  perante  a 
egreja;  bem  o  mostra  a  prohibiçáo  que  a  camará  iníligiu 
ao  bispo  em  1474,  tolhendo-lhe  com  ordem  regia  a 
assistência  ás  suas  sessões.  E  quando  em  1487  o  prelado 
teve  de  sahir  do  reino,  veiu  á  barra  da  vereação  indicar 


munga  dois  cidadãos,  desobedientes  pelos  modos  aos  seus  mandados ;  a  ca- 
mará accorda  não  fazer  caso  de  tal  excommunhão ;  menoscabado,  o  prelado 
pespega  logo  interdicto  em  cartas  monitorias  pregadas  ás  portas  da  Sé.  Re- 
calcitram os  burguezes  que  lhe  mandam  ao  paço  recado  da  Camará  para 
sahir  da  cidade,  sob  pena  de  ser  victima  do  povo  alvoroçado.  A  este  êxodo 
succede  a  mais  fulminante  das  censuras  ecclesiasticas  sobre  a  herética  cidade, 
que  afinal  sempre  se  moveu  a  rogar  a  volta  do  bispo,  já  se  vê  sem  se  arredar 
do  primeiro  accordo  camarário.  O  bispo,  perante  tal  intransigência,  envia  á 
camará  uma  curiosa  epistola,  datada  do  mosteiro  de  Moreira,  em  que  se 
nega  a  regressar  ao  Porto:  «Ca  pões  deshonradamente  saimos,  por  vosso 
mandado,  nom  seria  rezom  que  deshonradamente  tornássemos  a  ella  ».  Quem 
vem  applacar,  por  instancia  do  rei,  a  contenda  foi  D.  Álvaro,  bispo  de  Syl- 
ves,  legado  apostólico,  que  levou  os  cidadãos  obstinados  a  pedir  perdão  ao 
seu  prelado,  que  á  boa  paz  conferiu  absolvição  geral.  O  legado,  pondo  em 
evidencia  as  semrazões  d'uma  e  outra  parte,  recommenda  paz  e  concórdia 
(1457).  Mas  qual?  a  reconciliação  pouco  durou.  Três  annos  depois,  á  conta 
de  que  o  bispo  não  deixava  cortar  lenha  na  serra  de  Roboreda,  a  camará 
insurge-se.  Os  escudeiros  do  paço  ameaçam  de  morte  um  cidadão,  e  a  ca- 
mará toma  a  si  remir  a  injuria.  Queixas  reiteradas  a  el-rei,  já  do  bispo,  já  do 
senado,  que  dá  por  suspeito  o  regedor  da  justiça  Vasco  Rezende.  Entretanto 
os  vereadores  não  socegam ;  partes,  juizes  e  senhores  acabrunham  a  sé;  até 
que  D.  Affonso  V,  um  tanto  interessado  pelo  bispo  como  pessoa  «  de  sua 
creaçom  »  e  estomagado  por  que  a  municipalidade  sem  se  importar  com 
suas  justiças  se  arrogasse  illimitados  direitos  attentatorios  do  poder  realengo, 
espede  á  camará  uma  carta  regia  (1461),  exprobando-lhe  gravemente  o 
procedimento,  que  transgredira  os  limites  da  sua  inspecção  e  competência. 
Ao  mettel-a  duramente  nos  eixos,  curva-se  em  todo  o  caso  perante  os  privi- 
légios municipaes,  mas  não  quer  que  elles  interceptem  o  que  elle  julga  ex- 
clusivo das  suas  justiças  e  provisões.  Como  já  se  sente  nas  palavras  regias 
que  a  coroa  começa  a  recalcar  as  demasias  communaes  e  a  impor  o  seu  se- 
nhorio centralisador ;  o  absolutismo  está  perto.  L."  B,  fl.  i52  e  L.°  das 
vereações  de  1460,  fl.  23,  3i  a  59.  R.  da  Cunha,  que  só  conheceu  a  pri- 
meira parte  da  disputa,  publica  a  carta  do  bispo,  pag.  262 ;  Ribeiro  treslada 
a  carta  d'Affonso  V.   'Disser t.,  t.  V,  pag.  159. 

Lamenta  José  Caldas  que  nos  archivos  municipaes  se  tenha  apagado 


32 


o  seu  substituto,  o  que  o  concelho  houve  por  bem; 
quasi  se  invertia  a  sujeição  primeira  l. 

O  duello  episcopo-municipal  desfecha  emfim  ^de 
vez  com  D.  Manuel  2,  ao  cabo  de  três  séculos;  a  coroa 
liquida  as  suas  contas  com  a  mitra  (1503),  e  outorga 
ao  burgo  o  foral  manuelino  (15 17),  derradeiro  diploma 
da  sua  historia  foraleira,  remate  d'este  longo  drama 
d'emancipação  feudal  e  d'absorpção  monarchica  3. 


o  caracter  pessoal  destas  luctas  memoráveis,  fiando  que  elle  só  resalte  dos 
documentos  ecclesiasticos;  assim  é  para  os  primeiros  tempos,  embora,  como 
vimos,  alguma  nota  pessoal  se  consiga  ferir,  tirada  é  verdade  das  bulias 
pontifícias;  mas  aqui  nos  diplomas  camarários  já  se  mencionam  as  pessoas 
que,  ou  accenderam  as  discórdias,  ou  n'ellas  se  envolveram  apaixonada- 
mente. Os  burguezes  tinham  perdido  o  anonymato. 

1     L.°  Ant.  das  Provisões,  fi.  5a —  L.°  das  ver.  de  1486,  fl.  78. 

a  A  liquidação  de  D.  Manuel  íoi  levada  a  elfeito  em  i5o3,  como 
ultimação  e  acclaração  do  contracto  de  D.  Joáo  1.  O  rei  declara  fazel-o 
principalmente  por  mercê,  e,  um  tanto  scepticamente  desdenhoso,  por  «algum 
descargo  de  nossa  consciência  se  em  alguma  maneira  nisso  temos  obriga- 
ção». A  renda  annual  prestada  á  mitra  e  cabido  fixa-se  em  120  marcos  «de 
prata  marcadoura  de  ley  como  ora  se  lavra  nas  nossas  moedas  de  Lisboa  e 
da  dita  cidade  do  Porto  » ;  ao  pagamento  consignam-se  rendas  especiaes. 
R.  da  Cunha,  pag.  276. 

3  Este  foral  é  propriamente  uma  divisão  fiscal  de  contribuições  en- 
tre coroa  e  mitra,  baseado  nas  inquirições  d  Affonso  IV,  e  nos  escambos  e 
contractos  successivamente  celebrados  entre  os  dois  senhorios.  A  maquia  da 
sé,  apezar  dos  ratinhamentos  reaes,  ficou  ainda  avultada;  o  imposto  das 
colheres  sobre  os  cereaes  reservou-se  totalmente  á  egreja ;  da  maila  tosta, 
sobre  o  vinho,  pertenceu-lhe  metade,  assim  como  a  redizima  dos  direitos 
aduaneiros.  A  convenção  de  141  o  já  linha  fixado  a  cobrança  do  sal  de  Santa 
5\íaria,  imposto  sobre  a  navegação,  a  principio  pago  em  medidas  de  sal, 
conforme  a  carga  e  a  tonelagem. 

O  foral  manuelino  existe  bellamente  illuminado  no  cartório  munici- 
pal;  a  primeira  camará  constitucional  do  Porto  fel-o  publicar  em  1.823,  jun- 
tamente com  outras  cartas,  sob  o  titulo  de  Foraes  da  cidade  do  Porto.  As 
cortes  constituintes  por  decreto  de  5  de  junho  de  1822  tinham  começado  o 
ataque  contra  o  gravame  dos  foraes,  derrubados  emfim  ás  mãos  reformado- 
ras de  Mousinho  da  Silveira.   Acabaram,  é  certo,  as  alcavallas  da  mitra; 


V 


A  peleja  contra  as  exacções  das  classes  privilegia- 
das, affrontadoras  no  seu  parasitismo,  não  attingiu  só  a 
clerical;  os  portuenses  declararam-se  também  de  logo 
inconciliáveis  com  esta  licenciosa  fidalguia  de  Riba  e 
Além-Douro  que  devassava  a  cidade  em  arruaças  e  bri- 
gas, implicava  escarninha  com  os  ruões  do  burgo,  hosti- 
lisando  o  socego  do  trabalho,  a  dignidade  dos  oíficios,  e 
a  honestidade  domestica.  Mercadores  e  mesteiraes  arre- 
daram-se  d'esta  insolente  e  rixosa  nobreza;  lé  com  lé. 

O  concelho  accordou  em  votar  ao  ostracismo  as 
gentes  fidalgas;  prohibiu-lhes  redondamente  que  na 
cidade  possuissem  prédios  ou  quaesquer  bens,  e  que 
n'ella  estanciassem.  Só  o  transito  lhes  era  facultado,  e, 
quando  muito,  pousada  não  superior  a  três  dias. 


mas  ficou  o  ónus  da  propriedade,  os  foros  e  laudemios,  —  resíduo  vexatório 
de  velhas  eras,  verdadeiramente  monstruoso  e  iniquo.  Hoje  em  dia  ainda  o 
burguez  proprietário  do  Porto  paga  as  dadivas  gratuitas  da  snr.a  D.  Thereza 
que  Deus  haja. 


34 


Garantiram  as  cartas  regias  esta  indemnidade  de- 
mocrática; parece  ter  sido  o  primeiro  a  coníirmal-a  D. 
Diniz,  mas  Affonso  iv  e  seus  successores,  entre  elles 
João  i,  sellaram  successivamente  os  privilégios  firmes 
dos  portuenses.  Brigaram  rijo  por  esta  franquia  os  bur- 
guezes,  e  souberam  mantel-a  a  todo  o  custo,  perante  os 
tribunaes  e  as  cortes,  á  viva  força  até,  reagindo  contra 
os  mais  poderosos  senhores  e  contra  os  mesmos  favo- 
ritismos  da  coroa. 

Na  celebre  inquirição  de  1339,  a  de  Affonso  iv, 
affirma-se  o  embargo  de  pousada  aos  fidalgos  na  cerca 
do  castello,  a  prohibição  de  morada,  de  compra  de  casas, 
e  creação  de  filhos  \ 

Ás  suas  justiças  ordena  D.  Fernando  que  impeçam 
a  pousada  dos  fidalgos  e  a  própria  creação  dos  seus  fi- 
lhos, na  forma  dos  privilégios  de  D.  Affonso  2  (1368),  e 
façam  cumprir  as  vereações  do  concelho,  na  observân- 
cia do  antigo  costume;  o  Mestre  d'Aviz  assigna  nume- 
rosas cartas,  sagrando  a  franquia  democrática  da  sua 
leal  cidade. 

As  casas  e  lojas  dos  mercadores  eram  mesmo  isen- 
tas do  vexame  das  aposentadorias  e  aboletamentos;  e 


1  « Nehum  richohomem  nem  ricadona  nem  cavalleiro  nem  outro 
fidalgo  que  seia».  Quando  lá  pousassem,  o  bispo  ficava  com  as  chaves  das 
portas  do  Castello.  Ementa  20,  e  16. 

2  São  duas  as  cartas  do  meirinho-mór  de  Entre-Douro  e  Minho  ao 
juiz  do  Porto,  L.°  2.0  dos  Fera.,  fl.  2Í.  D'ambas  se  tiraram  instrumentos  e 
se  fizeram  accordãos  de  vereações  contra  vários  fidalgos  n'elles  nomeados 
que  ao  tempo  estavam  morando  no  Porto,  ou  ahi  vinham  amiúde,  trazendo 
outros  fidalgos.  D.  Fernando  no  mesmo  anno  manda  em  minuciosa  provisão 
cumprir  o  privilegio,  justificando-o  e  apontando  os  abusos  commettidos. 
L.°  Grande,  fl.  38,  Corpus,  pag.  106. 


35 


para  melhor  se  manter  a  inviolabilidade  domiciliar  dos 
cidadãos,  ordenou  D.  João  á  camará  que  se  fizessem  sete 
estalagens  no  Porto,  para  pousarem  os  que  á  cidade 
tivessem  necessidade  de  vir  \ 

Os  monarchas  foram  tam  respeitadores  do  privile- 
gio que  raro  poisavam  no  Porto;  nem  o  próprio  Mestre 
d'Aviz  aqui  teve  paços,  como  tantas  vezes  se  tem  dito 
erradamente.  Ao  seu  filho  o  conde  D.  Affonso  se  nega- 
ram os  portuenses  a  deixar-lhe  edificar  casas  que  lhe 
servissem  de  residência  temporária;  queixaram-se  a  D. 
Duarte  que  prometteu  escrever  ao  irmão  para  desistir 
da  pretenção,  de  forma  que  os  privilégios  fossem  guar- 
dados 2. 

Uma  ou  outra  vez  apadrinhou  a  coroa  validos 
seus  junto  dos  burguezes  para  estes  lhe  consentirem  a 


1  A  carta  regia  de  i355  estatue  que  se  não  tome  aposentadoria  nas 
casas  e  logeas  dos  mercadores  do  Porto  e  viuvas  honestas,  nem  se  lhes  tome 
coisa  alguma  contra  sua  vontade.  L.°  A,  fl.  37  v.°.  Em  1374  reitera-se  o 
privilegio  da  pousada  dos  três  dias,  sendo  esta  ainda  assim  prohibida  na  rua 
dos  Mercadores  e  indica-se  aos  fidalgos  que  vão  para  os  mosteiros,  para 
casa  dos  seus  amigos  ou  para  as  estalagens.  L.°  A,  íi.  i5v.°.  D.  João,  confir- 
mando em  i385  estas  franquias,  especifica  como  isentas  as  ruas  das  Eiras  (Chã) 
e  Mercadores,  as  casas  d'homens  honrados,  mercadores,  viuvas  honestas,  e 
mulheres  casadas  com  marido  ausente.  L.°  Grande,  fl.  45  v.°,  Corpus,  pag. 
122.  A  dois  fidalgos  apenas  concedeu  a  residência  pelos  cargos  que  exerciam, 
D.  Fr.  Álvaro  Gonçalves,  meirinho-mór  de  Entre  Douro  e  Minho  e  João 
Rodrigues  de  Sá,  alcaide-mór  do  Porto,  o  famoso  Sá  das  galés.  Em  1390 
promulgou  duas  cartas  contra  a  moradia  dos  fidalgos,  (L.°  Grande,  fl.  46, 
Corpus,  pag.  124-5)  e  repete-as  ainda  em  1416.  Ibidem,  fl.  48  e  pag.  129. 

Na  vereação  de  2  d'outubro  de  1392,  em  conformidade  das  cartas  de 
el-rei  dirigidas  ao  Prior  do  Hospital,  marcou  a  camará  nas  Congostas  duas 
estalagens  «grandes  e  boas»,  no  Souto  uma  egual,  outra  na  rua  Chá  e  outra 
á  porta  de  Cima  de  Villa.  L.°  das  Vereações  da  era  de  1428-31. 

2  Assim  o  obtiveram  nas  cortes  d'Evora  de  1436.  L.°  Grande,  fl.  54, 
Corpus,  pag.  141. 


36 


visinhança;  mas  os  acérrimos  cidadinos  recalcitravam 
despejadamente  que  não,  recusando-se  a  consentir  mu- 
ros a  dentro,  não  só  fidalgos  volteiros,  mas  o  próprio 
Arcebispo  de  Braga  e  a  condessa  viuva  de  Marialva  l. 

Este  precato  era  bem  justificado,  não  queriam  lobo 
no  povoado;  os  homens  d'armas  dos  fidalgos  do  Minho, 
a  começar  pelos  do  condestavel  Nunalvares,  eram  bri- 
gões atrevidos,  e  nos  solares  dos  poderosos  da  comarca 
acoitavam-se  malfeitores  que  andavam  no  séquito  sus- 
peito dos  senhores  2. 

Sempre  estremados  na  defeza  de  suas  regalias,  não 
se  contentavam  nos  casos  urgentes  em  aggravar  para  a 
justiça  real;  á  viva  força  expulsavam  do  burgo  os  fidal- 
gos contumazes  que  os  incommodavam.  Assim  fize- 


1  A  condessa  era  protegida  d'el-rei,  o  que  lhe  não  valeu,  porque  pe- 
ranle  a  negativa  da  camará,  este  por  carta  desistiu  da  pretenção  (1462).  L.° 
ant.  das  provisões,  ti.  72.  O  arcebispo  esse  pedia  apenas  vénia  de  residência 
temporária;  pois  a  vereação  negou-lh'a  para  evitar  trabalhos  (1475,  L.°  das 
ver.,  fl.  17).  E  não  poucos  effectivamente  lhe  tinham  dado  os  intrusos 
aristocratas,  e  entre  elles  Fernão  Coutinho  que,  munido  de  cartas  d'empe- 
nho  da  rainha  e  do  infante  regente  (1443),  pretendia  viver  numas  casas  suas 
de  Monchique  como  e  quando  lhe  aprouvesse.  L.°  das  ver.  de  1442  e 
segg.,  fl.  36  v.°.  Oppoz-se  a  vereação  do  concelho,  mas  os  seus  procuradores 
em  cortes  fraquejaram,  permittindo  a  estada  ao  fidalgo  durante  três  vezes 
quinze  dias  cada  anno.  L.°  B,  fl.  2i5.  Abusou  da  mercê  Fernão  Coutinho,  e 
mais  d'uma  vez  foi  preciso  lembrar-lh'o  duramente;  também  este  ruim  visi- 
nho  era  de  tal  raça  que  lhe  foram  sequestrados  os  bens  que  possuia  na  terra 
da  Maia,  como  indemnisação  e  castigo  de  malfeitorias  e  violências  commet- 
tidas  pelo  faccinoroso  fidalgo  e  seus  creados  (1479).  L.°  Li,  fl.  154.  Com  o 
filho  d' este  Coutinho  andou  ainda  ás  voltas  o  concelho  pelo  mesmo  motivo 
das  casas  de  Monchique ;  a  camará  aporfiou  na  sua  e  Fero  Coutinho  teve  de 
desistir  (1499).  L.°  Li,  fl.  219. 

2  Sobre  a  tempera  dos  homens  de  Nunalvares  dizem  as  chronicas 
{Chronica  do  condestabre).  Da  casta  de  gente  que  os  fidalgos  albergavam, 
reza  a  carta  regia  de  1482  contra  os  poderosos  d'Entre  Douro  e  Minho  que 
acolhiam  e  defendiam  nas  suas  terras  malfeitores.  L.°  das  ver.,  fl.  58  v.° 


37 


ram  em  145 1,  pondo  fora  dois  e  obtendo  carta  de  segu- 
rança real  pelo  feito  1;  e  não  temeram  até  metter-se  em 
façanhas  cruentas,  como  aconteceu  em  1474,  arremet- 
tendo  contra  o  opulento  e  poderoso  Rui  Pereira,  senhor 
das  terras  de  Santa  Maria,  pessoa  d'alta  importância  no 
paço.  Altivo  e  orgulhoso,  desafiou  a  camará  que  repeti- 
damente lhe  intimou  a  obediência  aos  seus  privilégios; 
desdenhando  d'estes  mandados,  o  povo  incendiou-lhe 
as  casas  da  pousada;  o  fidalgo  que  viu  cahir  mortos 
muitos  dos  seus  homens  e  a  custo  salvou  a  vida,  não 
encontrou  ouvidos  junto  d'el-rei  que  por  sentença  ab- 
solveu a  cidade  e  lhe  deu  segurança  2. 

Este  communalismo  ferrenho  não  representa  ape- 
nas um  traço  de  caracter  do  nosso  burgo  medieval; 
constitue  uma  força  social;  a  exclusão  do  fidalgo  na 
visinhança  do  mercador  e  mesteiral  é  um  agente  de 
prosperidade  numérica,  tal  qual  como  no  cortiço  em 
que  o  enxame  das  laboriosas  abelhas  se  guarda  de  zan- 
gão damninho.  E  o  burguez  d'então  tinha  a  noção  ní- 
tida de  quanto  importava  a  guarda  da  isenção  para  o 
crescimento  do  povoado. 


1  L.°  A,  fl.  io3. 

2  A  estada  de  Ruy  Pereira  nas  casas  «  de  Lianor  Vaz,  viuva  da  rua 
nova»,  pouco  ia  além  dos  três  dias  da  conta  quando  a  camará  resolveu  re- 
querer-lhe  a  sahida.  Este  rigor  deve  não  só  attribuir-se  a  espirito  de  desaf- 
fronta  de  privilégios,  mas  ainda,  creio  eu,  a  ciúme  mercantil.  De  facto,  da 
sentença  dada  contra  Ruy  Pereira  (L.°  'B,  fl.  i3i)  deprehende-se  que  elle 
viera  a  tomar  conta  dos  fretes  dos  seus  navios  e  mercadorias;  o  senhor  de 
Santa  Maria  era,  apesar  dos  seus  brazóes,  concorrente  da  rua  dos  Mercado- 
res, o  que  prova  que  entre  nós  o  commercio  não  era  vileza  que  destingisse 
o  azul  ferrete  dos  sangues  finos. 

Toda  esta  curiosa  pagina  da  vida  histórica  do  Porto  foi  minudente- 
mente  romanceada  por  Arnaldo  Gama  na  Ultima  "Dona  de  S.  Nicolau,  1861. 


38 


Nas  cortes  d'Evora  de  1436,  onde  o  concelho  do 
Porto  se  assignalou,  como  em  quasi  todas,  pelo  tino  po- 
litico dos  seus  capitulos,  os  procuradores  da  cidade,  ao 
instarem  pela  confirmação  das  defezas  impostas  aos  fi- 
dalgos e  sua  extensão  ao  próprio  irmão  do  rei,  definiam 
com  admirável  critério  a  razão  de  existência  do  Porto. 
Não  se  fixaram  aqui  povoadores  por  amor  da  subsistên- 
cia agrícola,  que  a  esterilidade  da  terra  nega;  attrahira-os 
sim  o  porto,  o  mais  seguro  de  Lisboa  á  Galliza,  que  os 
convidou  a  mercadejar  activamente  por  longes  terras.  E 
assim  acudiu  gente  sobre  gente,  sempre  atarefada  no 
trafico,  ausente  largo  tempo  por  terra  e  mar,  nas  suas 
aventuras  mercantis;  e  mal  lhes  iria,  e  ao  futuro  da 
pujante  cidade,  que  suas  casas,  fazendas  e  familia  não 
ficassem  isentas  e  seguras,  ao  abrigo  d'intrusos  e  depre- 
dadores. 

Quando  o  antagonismo  das  classes  ou  antes  o  pre- 
ponderantismo  municipal  se  foi  delindo,  e  a  centralisa- 
ção  monarchica  veiu  a  impôr-se  imperiosamente,  o  pri- 
vilegio entrou  de  caducar.  D.  Manuel  atreveu-se  a  revo- 
gal-o  (1502)  *;  e  embora  a  instancias  do  concelho, 
mantidas  pela  própria  mitra,  suspendesse  a  derogação,  os 
penates  do  Porto  foram-se  pouco  e  pouco  franqueando 
á  fidalguia.  Esta  declinação  do  burguezismo  consumma- 
va-a  o  absorvente  monarcha,  impondo  o  seu  sello  para 
a  confirmação  das  eleições  da  cidade  e  acabando  com  a 
tradicional  constituição  do  município  livre  do  Porto  3. 


1  A  carta  regia  permitte  que  possam  viver  e  ter  na  cidade  casas  e 
bens  quaesquer  fidalgos.  L."  A,  ri.  104  v.° 

2  A  eleição  popular  directa  dos  vereadores,  escolhidos  livremente 
entre  os  homens  bons  do  concelho,  substituiu  o  rei  o  systema  indirecto  de 


39 


Punindo  sempre  pela  integridade  civica  e  descoa- 
cção  do  trabalho,  os  munícipes  portucalenses,  ao  sacu- 
dir o  jugo  clerical  e  a  intromissão  aristocrática,  iam 
ganhando  par  e  passo  poderosas  isenções,  que  ás  largas 
a  mão  regia  lhes  dispensava  em  foros  successivos. 
Pouco  volteiros  e  desejosos  de  não  serem  desviados  do 
seu  trafico,  livraram-se  dos  recrutamentos  forçados  e 
outras  vexações  inherentes  ao  militarismo  1;  repellindo 
as  jurisdicções  iníquas,  lograram  os  direitos  forenses 
que  uma  jurisprudência  summamente  desegual  em  pro- 
cesso e  penas  somente  assegurava  aos  fidalgos  2;  emfim 
na  ambição  legitima  d'enaltecer  o  municipio  e  fundar  a 
jerarchia  burgueza,  obtiveram  as  franquias  indumenta- 
res  e  sumptuárias  que  as  pragmáticas  comminatorias  só 
concediam  a  infanções  e  ricos-homens  8. 


eleição,  creando  a  casa  dos  vinte  e  quatro  mesteres,  analogamente  á  de  Lis- 
boa (i5i8).  L.°  i.°  dos  Perg.,  fl.  109. 

1  A  provisão  d'Affonso  III  de  1255  manda  aos  seus  officiaes  que  não 
alistem  gente  á  força  para  as  naus  e  galés  reaes  (L.°  da  Ttemanda,  fl.  49)- 
A  carta  de  D.  João  II  em  1490,  outorgando  e  confirmando  privilégios,  esta- 
tue  que  caseiros,  mordomos  e  lavradores  não  sejam  constrangidos  «para 
hauerem  de  servir  em  guerra,  nem  outras  idas  por  mar  nem  por  terra».  L.° 
Grande,  fl.  196. 

3  A  citada  carta  de  João  II  privilegia  os  cidadãos  do  Porto  para  que 
«não  sejam  mettidos  a  tormentos  por  nenhuns  malefícios,  que  tenhão  feitos, 
saluo  nos  feitos,  &  d'aquellas  qualidades  &  nos  modos  em  que  o  devem  ser, 
&  são  os  fidalgos  d'estes  reinos :  &  isso  mesmo  não  possão  ser  presos  por  ne- 
nhuns crimes  somente  sobre  suas  homenagens,  &  assi  como  o  são,  &  deuem 
ser  os  sobreditos  fidalgos  ». 

3  As  provisões  regias  permittem  que  os  portuenses  possam  trazer 
por  toda  a  parte  e  a  toda  a  hora  armas  offensivas  e  defensivas.  A  seda,  guar- 
nições d'ouro  ou  prata,  e  outros  guizamentos  de  vestuário,  defezos  pela  pra- 
gmática das  ordenações,  eram  um  privilegio  do  cidadão  do  Porto.  Já  em 
fins  do  século  XVI  se  pucharam  demandas  contra  meirinhos  que  pretende- 
ram coimar  filhos  do  Porto  por  porte  dcfezo  de  trajos  de  luxo ;  vieram  ao 


4o 


N'uma  palavra,  a  ladainha  cTisenções  e  regalias,  ar- 
rancadas ás  decisões  das  cortes  e  ás  cartas  realengas, 
durante  a  primeira  dynastia,  as  quaes  a  segunda  havia 
de  additar  e  codificar,  era  tal  e  tanta  que  os  privilégios 
de  cidadão  do  Porto  passavam  a  provérbio.  Ainda  no 
século  xvi,  desbaratado  já  o  foralismo  municipal,  Ca- 
mões dizia  espirituosamente  no  fecho  d'uma  das  suas 
cartas  da  índia  que  temia  dar  em  enfadonho  do  que 
o  não  livraria  nem  ainda  o  privilegio  de  cidadão  do 
Porto. 


lume  dos  processos  as  antigas  immunidades  que  Philippe  II  confirmou  em 
alvará.  Destas  contestações  e  diplomas  corre  impresso  um  folheto  intitulado 
Privilégios  dos  cidadãos  da  cidade  do  'Porto,  publicado  á  custa  das  rendas 
da  cidade  em  1611  (reimpresso  em  1878). 


VI 


Sob  estas  garantias  politico-sociaes,  fructificou  a 
laboriosidade  do  burgo;  desenvolveram-se  as  artes  e 
industrias  do  tempo;  e  acima  de  tudo  se  fomentou  o 
inicio  d'uma  riqueza  progressiva,  mercê  de  assignaladas 
propensões  commerciaes  e  da  situação  fluvial  á  beira 
d'um  porto  considerável,  que  lançaram  a  cidade  avida- 
mente no  trafico  interno  e  externo,  negociando  larga- 
mente com  o  paiz  inteiro  e  levando  as  suas  trocas  ás 
praças  mercantes  do  norte  da  Europa.  Tudo  tendia  a 
avolumar  a  população  da  cidade  pela  melhoria  social  e 
económica  de  quem  n'ella  por  nascença  ou  migração 
fogueasse;  o  aldeão  volvia-se  em  cidadão,  o  mesteiral 
passava  a  burguez,  o  munícipe  aforava-se  em  nobre  de 
nova  fidalguia,  podendo  hombrear  com  a  velha  em  isen- 
ções e  riqueza;  uma  corrente  de  prosperidade  animava  o 
balcão  dos  mercadores  e  as  lojas  dos  oíricios. 

Escalara  a  cidade  a  primeira  muralha  que  cedo  dei- 
xara de  abarcar-lhe  o  bojo.  Ás  barbas  do  muro  pujara 


42 


novo  burgo;  mas  não  por  egual,  porque  este  povoa- 
mento peripherico  operou-se  principalmente  para  o 
occidente;  a  cidade  chegava-se  para  o  mar  e  para  o  sol. 

Trasbordou  o  casario  fora  do  arco  da  Vandoma, 
para  norte  pelas  Eiras  (rua  Chã),  Cimo  de  Villa  e  Pel- 
lames,  para  oeste  ao  longo  da  principal  via  d'accesso  do 
velho  burgo  episcopal,  que  descendo  d'aquella  porta, 
vadeava  em  ponte  o  rio  da  Villa,  seguia  atravez  d'um 
bosque  de  castanheiros,  d'ónde  lhe  veiu  o  nome  de  rua 
do  Souto,  de  que  só  restam  hoje  troços,  sepultada  como 
foi  no  amplo  leito  da  rua  Mousinho  da  Silveira. 

As  hortas  e  almoinhas  que  ladeavam  as  margens 
do  rio  da  Villa,  por  onde  hoje  se  rasgam  a  rua  das  Flo- 
res e  a  de  S.  João,  foram-se  mosqueando  d'habitações 
e  officinas  de  mesteiraes. 

Além,  toda  a  encosta  que  olha  para  o  Douro, 
sobposta  á  eminência  da  Victoria  e  á  de  Bellomonte, 
coalhava  casas  pouco  e  pouco.  AUi  vieram  estancear  os 
seus  mosteiros  as  ordens  de  S.  Domingos  e  S.  Fran- 
cisco, quando  pela  restauração  monástica  estas  duas 
novas  milicias  apostólicas  revolucionaram  o  mundo 
christão,  a  luctar  contra  a  corrupção  desmarcada  dos 
costumes;  patrocinados  pelos  nobres,  como  pelos  vil- 
lãos  que  á  sua  pureza  ascética  se  acolhiam,  deixando 
sem  freguezia  nem  esmolas  o  clero  secular  desmorali- 
sado,  feriram  a  inveja  da  mitra  que  cercou  d'implican- 
cias  a  estada  e  progressos  dos  religiosos,  tam  queridos 
dos  fieis  da  cidade  K 


1     Foi  o  próprio  bispo  D.  Pedro  Salvadores  que  exorou  os  pregadores 
dominicanos  a  estabelecerem-se  no  Porto  para  terem  mão  nos  bons  costumes 


43 


Emfim,  Ribeira  fora,  pela  ermida  de  S.  Nicolau  e 
Reboleira  até  Miragaya,  foi-se  acogulando  a  ourela  mar- 
ginal do  Douro  onde  afferravam  as  embarcações  e  se 
carregavam  as  mercadorias. 

Á  matriz  primitiva,  ao  burgo  episcopal,  addita- 
vam-se  novos  núcleos  demogenicos,  que  poderiam  appel- 
lidar-se  pelas  influencias  que  os  dominaram  —  o  indus- 
trial, por  sobre  o  Rio  da  Villa  —  o  monástico,  em  torno 
dos  frades  —  emfim  o  commercial  e  marítimo,  á  beira- 
Douro. 

A  segurança  defensiva  do  novo  burgo  fel-o  aforta- 
lezar  com  larga  roda  de  muralhas.  Ordenou-se  esta  cir- 
cumvallação,  antes  de  meiado  o  século  xiv,  em  tempos 
de  AfFonso  iv,  que  consignou  rendas  para  a  obra,  e 
forçou  a  servirem  n'ella  os  moradores  dos  julgados  vi- 
sinhos,  dando  cada  um  certos  dias  de  trabalho,  ou  con- 
tribuindo com  materiaes  e  dinheiro.  Activou-se  a  em- 
preitada com  Pedro  Cru  que,  apesar  da  reluctancia  dos 
povos,  manteve  o  constrangimento  ordenado,  impondo 


notavelmente  cahidos,  e  em  cartas  datadas  em  1238  exorta  os  seus  súbditos 
a  ajudarem  efficazmente  os  frades  na  sua  santa  obra.  O  zelo  do  povo  estre- 
mou-se  mais  do  que  o  bom  do  bispo  desejaria ;  missas,  officios,  mortuorios, 
enterros,  encanaram-se  para  a  igreja  de  S.  Domingos;  o  pé  d'altar  na  sé 
entrou  de  seccar.  Assim  feridos  nos  seus  sensíveis  interesses,  mitra  e  cabido 
moveram  taes  desconcertos,  que  teve  de  intervir  o  próprio  papa,  e  somente 
a  pia  guerra  se  accommodou  quando  a  rainha  D.  Mafalda,  filha  de  D.  San- 
cho, padroeira  dos  frades,  indemnisou  a  sé  com  a  igreja  de  Santa  Cruz  de 
Riba-Leça  (1277).  A  prebenda  socegou-os;  a  questão  não  era  de  primazias 
evangélicas,  mas  de  espórtulas.  Cunha,  pag.  80. 

Foi  quasi  synchronica  a  fundação  de  S.  Francisco  que  o  deão  da  Sé 
impugnou,  perseguindo  os  frades  com  toda  a  casta  de  moléstias  e  d'injurias; 
teve  ainda  d'interceder  o  papa,  sempre  prompto  na  defeza  das  ordens  mo- 
násticas, que  tanto  consolidaram  a  auctoridade  pontifícia  no  mundo  catho- 
lico,  derribando  o  poderio  das  egrejas  locaes. 


44 


a  rigor  o  ónus  da  contribuição  pessoal  para  a  adua  do 
muro.  O  circuito  devia  estar  fechado  no  reinado  de 
D.  Fernando,  mas  o  acabamento  da  muralha  só  se  ulti- 
mou em  princípios  do  século  xv  1. 

São  rigorosamente  balisaveis  estes  muros,  pois  que 
só  mais  tarde  se  derruíram,  no  século  corrente,  e  ainda 
manteem  de  pé  lanços  inteiros  ameiados  2. 

A  Porta  da  Vandoma  correspondia  agora  uma  trí- 
plice porta  atorreada,  distante  d'ella  todo  o  compri- 
mento  das   ruas   Chã   das   Eiras  e  Cimo  de  Villa  — 


1  No  L.°  Grande  e  no  L.°  ;.°  dos  'Perg.  apparecem  vários  documen- 
tos sobre  as  obras  do  muro,  desde  i356  a  1414.  De  Affonso  IV,  mandando 
applicar  para  a  sua  ajuda  as  cobranças  de  varias  coimas  e  fianças  (L.°  i.°  dos 
Perg.,  fl.  35,  39).  Pedro  I  confirma  as  provisões  do  seu  pai,  mandando  que 
os  moradores  de  Massarellos,  Maia,  Bouças,  Gondomar,  Melres,  Refoios, 
Riba  d'Ave,  Aguiar  de  Souza  por  sen  giro  servissem  com  bois  ou  sem  elles 
na  adua  do  muro  (L.°  Grande,  fl.  35,  L.°  i.°  dos  Perg.,  fl.  54,  Corpus,  pag. 
99).  Foram  remissos  os  intimados,  Maia  e  Gondomar  resistiram,  e  ordens 
repetidas  tiveram  de  baixar  aos  juizes  para  fazerem  cumprir  á  risca  esta  finta 
de  trabalho;  e  tanto  buscaram  eximir-se,  que  chegaram  a  recolher-se  nos 
terrenos  privilegiados  das  Ordens,  o  que  não  lhes  valeu,  pois  que,  pelas  de- 
cisões das  cortes  d'Elvas  e  mandado  régio,  tiveram  de  regressar  ao  serviço 
condemnado  (L.°  Grande,  fl.  37,  Corpus,  pag.  102).  Esta  área  de  cooperação 
forçada,  confirmada  por  D.  Fernando  (ib.,  fl.  38,  pag.  104),  ia  desde  Pena- 
fiel por  Louzada  e  Santo  Thyrso  á  Maia;  Gaya,  Avintes,  Paiva,  Feira,  Fi- 
gueiredo, eram  também  adueiros  (ib.,  fl.  37,  pag.  102);  mas  apparecem  do- 
cumentos citando  como  contribuintes  outros  concelhos  distantes,  por  exem- 
plo os  de  Cambra,  Fermedp  na  Beira  e  Villa  boa  da  líoda  (ib.,  fl.  37  e  42, 
pag.  io3  e  n3).  Em  1367  vê-se  que  havia  um  vedor  da  obra  ao  qual  se  or- 
denava a  empreitada  de  quatro  quadrcllas,  sendo  a  pedra  trazida  pelos  povos 
do  termo,  empreitada  que  devia  estar  prompta  dentro  de  3  annos  (ib.,  fl.  38, 
pag.  io5).  Um  grande  lanço  do  muro  se  derruiu,  tendo  de  se  lançar  em  1399 
um  imposto  no  vinho  para  seu  concerto;  o  recibo  do  empreiteiro  tem  a  data 
de  1414  (ib.,  fl.  49,  pag.  i3i). 

2  Esta  circumscripção  encontra-se,  entre  outros,  em  Rebello  da 
Gosta,  ob.  cit.;  Arnaldo  Gama,  introd.  do  [Motim  ha  cem  annos,  e  cm  Pinho 
Leal,  ob.  cit. 


45 


Portas  de  Cimo  de  Villa  ou  da  Batalha.  Para  a  esquerda 
a  cortina  corria  pelo  pendor  da  calçada  da  Thereza, 
hoje  viella  da  Madeira,  até  ao  postigo  l  rasgado  em  Porta 
de  Carros,  em  1521,  para  dar  sahida  condigna  á  rua 
das  Flores,  aberta  no  reinado  de  D.  Manuel  pelo  corre- 
gedor António  Correia.  Novo  lanço  da  Porta  de  Carros, 
ao  longo  da  actual  casa  da  Cardosa  na  Praça  Nova,  até 
ao  postigo  chamado  de  Santo  Eloy,  depois  que  os  frades 
loyos  alli  fundaram  o  seu  convento  em  1491.  Trepando 
pela  em  tempo  denominada  calçada  da  Natividade,  hoje 
Clérigos,  e  rua  d' Assumpção,  abria-se  no  alto  em  nova 
porta  acastellada  a  do  Olival;  torcia  depois,  facejando 
pela  Cordoaria,  para  a  rua  do  Calvário,  ao  fundo  da 
qual  para  o  lado  das  Taypas  se  rompeu  a  porta  das 
Virtudes.  Angulava  de  novo,  a  buscar  o  rio,  enfiando 
pela  Cordoaria  Velha,  alto  da  Esperança  onde  teve  de- 
pois a  porta  d'este  nome,  e  descahindo  pelas  escadas  da 
Esperança,  rematava  pela  Porta  Nova  ou  Nobre,  o  adito 
mais  grado  da  cidade,  e  como  tal  o  primeiro  ingresso  de 
seus  bispos  e  governadores  ao  tomarem  posse  dos  seus 
cargos. 

Beira-rio,  a  muralha  ia  ao  longo  de  Cima  do  Muro, 
recortando-se  em  diversos  postigos,  entre  elles  o  dos 
Banhos,  do  Terreirinho  e  do  Peixe,  e  na  ampla  Porta  da 
Ribeir2,  proximamente  ao  fundo  da  rua  de  S.  João. 
Chegada  ás  Escadas  do  Codeçal,  outro  cotovello  para 
empinar  costa  arriba  pelos  Guindaes  ao  Postigo  dos 


1  O  postigo  dos  carros  existia  desde  1409;  foi  mandado  abrir  para 
serventia  das  obras  das  casas  da  rua  Chã  que  ardera  e  das  hortas  que  esta- 
vam ao  pé  e  eram  das  melhores.  L.°  A,  fl.  i55. 


46 


Carvalhos,  depois  Porta  do  Sol,  d'onde  cortava  para  a 
torre  de  Cima  de  Villa,  fechando  o  seu  zigzague  poly- 
gonal. 

D'este  circuito  subsistem  ainda  lanços  mais  ou 
menos  intactos,  como  na  viella  da  Madeira,  nas  ruas 
do  Calvário  e  Cordoaria  Velha,  nas  escadas  da  Espe- 
rança, e  na  cerca  do  convento  de  Santa  Clara,  onde  se 
eleva  uma  torre,  ameaçada  já  do  camartello;  por  Cima 
do  Muro  fora  persistem  as  substrucções  da  muralha. 

Fora  do  recinto,  de  povoado  contiguo  havia  so- 
mente o  bairro  de  Miragaya,  grandemente  morado  já; 
em  meado  do  século  xin  accusam  as  inquirições  1  que 
só  para  o  lado  de  Monchique  em  quinze  annos  se 
tinham  edificado  setenta  e  cinco  casas,  e  continuavam, 
progressão  notável  e  sobretudo  pasmosa  em  taes  eras. 
O  incremento  foi  tanto  que  o  subúrbio  entestou  com  a 
cidade,  já  á  ourela  do  rio,  já  encosta  acima  para  os  altos 
do  Olival. 

Como  é  que  um  povoado  d'esta  possança  e  que 
tão  notavelmente  assignala  a  crescença  do  Porto,  foi 
engeitado  e  rejeitado  extra-muros?!  Talvez  que  as  aca- 
nhadas estratégias  do  tempo  assim  o  impozessem,  to- 
lhendo que  a  roda  da  muralha  descesse  da  borda  em- 
pinada das  Virtudes  e  Esperança  á  corga  do  ribeiro  de 
Miragaya.  E  quem  sabe  se  ás  razões  defensivas  se  casa- 
riam razões  sociaes,  um  propósito  d'alienar  da  cidade 
visinhos  de  menos  estima. 


1  Man.  das  inquir.,  pag.  46.  Diz  a  testimunha  refcrindo-se  ao  lugar 
alem  do  riacho:  «Eptscopus  populavit  ipsum,  non  suni  aduc  guindecim 
anni  elapsi  quod  eum  incepit  populare  suntmodo  facte  septuaginta  quin- 
que  case,  el  cotidie  faciunl  magis». 


47 


Taes  eram  os  judeus  que  avultavam  entre  os  habi- 
tadores do  florescente  arrabalde.  Alli  foi  a  primeira  ju- 
diaria do  Porto,  residência  que  a  terminologia  local 
atravez  de  tantos  annos  ainda  perpetua  no  Monte  e  Es- 
cada dos  judeus,  centro  do  povoado  hebraico,  que  se 
alastrava  da  calçada  de  Monchique  pelo  alto  até  ás  Vir- 
tudes e  Esperança  \  Odiado  do  christão  medieval,  vivia 
o  judeu  relegado  fora  de  portas,  á  sombra  mesquinha  da 
muralha  onde  viera  acoitar-se,  mas  pullulando  sempre, 
graças  á  sua  extranha  vitalidade  physica  e  económica, 
em  gentes  e  riquezas. 

Tirante  este  núcleo  accessorio,  no  raio  juxta  ur- 
bano não  se  divisava  povoado  apreciável;  era  quasi  tudo 
terreno  de  fruição  agricola. 

Pelo  norte,  o  dilatado  campo  do  Olival  com  sua 
cordoaria,  o  maior  rocio  da  cidade  2;  o  postigo  dos  carros 
dava  para  hortas  e  laranjaes.  Á  direita  de  Cimo  de  Villa 
um  montado  de  carvalhos.  A  onomástica  guardou  e  em 
parte  guarda  ainda  estas  reminiscências  da  primitiva  ser- 
ventia agricola  dos  locaes,  hoje  attestados  de  casario, 
trilhados  de  ruas,  e  mergulhados  no  coração  da  cidade  3. 


1  Nota  de  Arnaldo  Gama  a  pag.  478  da  Ultima  Dona  de  S.  Nicolau. 

2  O  campo  do  Olival  foi  feito  ressyo  do  concelho  no  escambo  com  o 
bispo  D.  Vasco  a  quem  a  cidade  o  comprou  por  troca  de  herdades  e  casaes 
na  Maia,  em  i33i.  Havia  alli  já  pertencente  á  mitra  uma  cordoaria,  que  se 
manteve  até  ha  poucos  annos,  deixando  o  nome  ao  passeio  ajardinado. 
L."  Grande,  ri.  i5,  Corpus,  pag.  53.  A  crêr-se  na  antiga  denominação  ainda 
conservada,  esta  cordoaria  foi  precedida  d'outra,  a  cordoaria  velha,  por  sobre 
Miragaya  (Reb.  da  Costa,  loc.  cit.,  pag.  232);  esta  anterioridade  porém  não 
pôde  ser  grande  ;  o  que  é  natural,  é  que  cedo  cessasse  de  funccionar,  pois  que 
o  Olival  se  prestava  muito  melhor  a  tal  industria. 

3  Largo  do  Olival,  rua  das  Hortas,  Laranjal;  e  antigamente  Porta 
do  Carvalho,  ao  depois  Porta  do  Sol. 


48 


Intramuros  mesmo,  o  adensamento  era  débil  em 
parte  do  âmbito  recemcircuitado;  por  entre  as  ruas  que 
se  tinham  desennovelado  do  velho  burgo  sobravam  es- 
paços vasios,  grandes  manchas  verdes  no  povoado.  Da 
Ferraria  ás  Congostas,  de  S.  Nicolau  a  Bellomonte,  as 
cercas  dos  mosteiros  dominico  e  franciscano.  De  S.  Do- 
mingos ao  Souto,  pomares  e  jardins  atravez  dos  quaes 
D.  Manuel  mandou  rasgar  a  rua  das  Flores  \  Por  traz 
da  cortina  de  Cimo  de  Villa  ás  Hortas,  os  claros  onde 
vieram  fixar-se  as  freiras  de  S.  Bento  e  os  frades  de 
Santo  Eloy  \  O  Monte  dos  Carvalhos  deu  espaço  tam- 
bém para  a  cerca  do  convento  de  Santa  Clara  3.  O  alto 
da  Victoria  esperou  da  nova  judiaria  o  seu  povoamento 
outorgado  por  João  i.  Antes  de  se  encetarem  os  muros, 
havia  ressyos  na  Ribeira  e  hortas  por  traz  da  rua  da 
Fonte  Taurina  4.  O  Porto  cabia  á  farta  dentro  do  seu 
polygono  ameiado  5. 


1  A  rua  das  Flores  construiu-se  em  i52i,  assim  como  a  Poria  de 
Carros  que  n'ella  entestava,  por  industria  do  corregedor  António  Corre '*, 
como  se  lia  na  inscripção  do  arco  da  Porta,  tam  deploravelmente  sumiuo 
como  quasi  tudo  o  que  rememorava  em  pedra  o  passado  do  Porto. 

2  Os  loyos  vieram  em  1491  e  as  benedictinas  em  i5i8.  O  concelho 
deu  aos  frades  um  rocio  ao  pé  do  Rio  da  Villa.  L.°  das  ver.  de  1494,  fl.  32. 

3  Transferido  d'Entre-os-Rios  para  a  cidade  em  1416;  foi  o  primeiro 
convento  de  freiras  do  Porto. 

4  Dos  ressyos  falia  a  carta  de  D.  Diniz  de  i3i6;  e  ás  hortas  refere-se 
um  protesto  da  mitra  de  1 3a5.  L.°  da  'Demanda,  pag.  i83. 

5  Esboçamos  umas  cartas  topographicas  do  Porto  dos  séculos  XIV 
e  XV,  mas  não  nos  atrevemos  a  insenl-as  por  incompletas;  era  preciso  es- 
quadrinhar muito  mais  o  archivo,  principalmente  os  enfadonhos  livros  dos 
tombos  e  das  vereações. 


VII 


No  remate  do  século  xiv  o  Porto  avigorava  já  assaz 
consciência  do  seu  papel  como  elemento  de  organisação 
patriótica,  na  grande  crise  da  nacionalidade.  O  Defensor 
do  reino  encontra-o  de  braços  abertos ;  a  arraia  miúda  e 
graúda,  desfraldada  a  bandeira  da  camará  l,  acclama  im- 
petuosamente o  Mestre  d'Aviz,  acoroçoa-o  no  seu  papel 
redemptor  da  nação  em  perigo,  serve-o  com  fazenda  e 
pessoas,  arrostando  extremos  de  sacrifício  civico.  Es- 
treava-se  o  Porto  nos  grandes  actos  de  heroicidade  com 
que  a  revezes  tem  surgido  nos  periodos  angustiados  da 
vida  da  pátria. 

Do  que  então  elle  valeu  —  prova  do  seu  caracter 
civico,  da  sua  populosidade  e  riqueza  —  quem  consultar 
os  praxistas  da  historia  portugueza,  mal  o  perceberá. 
Ominoso  e  ingrato  esse  desapreço  dos  historiadores. 


1     Como  Álvaro  da  Veiga  não  quizesse  sahir  para  a  rua  com  a  ban- 
deira da  cidade,  o  povo  matou-o. 


5o 


Exalta-se  o  messianismo  da  demagogia  lisboeta;  can- 
tam-se  em  tuba  épica  os  heroes  das  façanhas  de  Ato- 
leiros e  Trancoso;  mas  aos  villãos  anonymos  do  burgo 
que  rasgaram  a  bolsa  e  as  veias,  a  esses  nem  glorias 
subalternas  lhes  são  dadas. 

E  querem  saber  quamanha  foi  a  acção  do  Porto  no 
duello  jogado  em  prol  do  reino? 

Emquanto  que  a  mor  parte  dos  fidalgos  d'Entre 
Douro  e  Minho  era  contraria  ao  Mestre  d'Aviz,  dando 
a  voz  das  villas  e  castellos  ao  rei  castelhano,  o  Porto 
foi  o  primeiro  a  acclamar  o  Defensor,  prestando  a  sua 
adhesão  á  revolução  que  estava  ameaçada  d'abortar. 
Equipou  uma  grande  armada  com  que  se  foi  a  livrar 
Lisboa  onde  D.  João  se  via  em  estreito  cerco  por  el-rei 
de  Castella  e  seus  adversários  \  Aos  fidalgos  renitentes, 
indecisos  e  acovardados,  moveram-n'os  os  patriotas 
portuenses,  com  instancias  e  sobretudo  a  peso  d'ouro,  a 
entrar  ao  serviço  do  Defensor;  tiveram  de  lhes  comprar 
a  adhesão,  «por  que  daoutra  guisa  ho  não  quizerom 
fazer»  os  grandes  senhores,  senão  com  a  escarcella  atu- 
lhada pelos  villãos,  pródigos  de  dinheiro  como  de  no- 
breza patriótica  2.  Ao  próprio  caudilho  lendário,  Nunal- 

1  Reza  a  tradição  dum  bravo  portuense  João  Ramalho  que  n'este 
feito  atravessou  a  armada  inimiga  n'uma  chalupa  para  noticiar  a  D.  João 
que  lhe  chegava  do  Porto  o  soccorro  salvador.    Cunha,  loc .  cit.,  pag.  210. 

2  A  Ruy  Pereira  e  outros  mandaram-n^s  na  armada  a  Lisboa,  dan- 
do-lhes  muitos  dinheiros,  assim  como  a  Gonçalo  Vaz  Coutinho  por  ir  com 
elles  ao  Castello  da  Feira.  Ao  conde  D.  Pedro  de  Trastamara,  de  quem  a 
cidade  desconfiava,  apesar  de  fugido  a  el-rei  de  Castella  por  conspirar  con- 
tra elle,  deram-lhe  3:ooo  libras  d'Atfonsys  para  o  caminho  quando  o  Mestre 
o  chamou.  Enviaram  «  muitos  dinheiros  e  pannos  a  Coimbra  ao  conde  Dom 
Gonçalo,  que  tivesse  a  voz  d'Elrey,  com  quantos  podesse  aver,  e  lizerão-no 
vir  á  Cidade,  honde  lhe  davão  quanto  havia  mister ;  e  porque  se  hum  dia 


5i 


vares,  á  passagem  d'elle  pelo  Porto,  lhe  entregaram 
avultada  somma  l.  Aos  capitães  da  heróica  batalha  de 
Trancoso  deram  dinheiros  os  nossos  homens  bons  \ 
Ao  rei  fizeram  successivos  empréstimos,  cedendo-lhe 
inclusivamente  as  mercadorias  carregadas,  que,  vendidas 
no  estrangeiro,  lhe  renderam  dez  mil  francos  com  que 
foram  pagos  os  archeiros  e  mercenários  inglezes.  E  para 
ajuda  da  deíensào  da  cidade  e  da  terra,  imitando  o  pre- 
tendente, mandaram  alliciar  á  Inglaterra  archeiros  e 
homens  d'armas  que  longo  tempo  estiveram  no  Porto, 
comendo  grandes  soldos  de  mezada  3. 


tingio  que  se  queria  partir,  por  que  lhe  não  daváo  poos  pêra  a  cosinha  de- 
ram-lhe  mil  libras  cTAffonsys». 

Impagável  este  fidalgo,  que  se  fingia  enfarado  com  a  falta  d'especia- 
rias,  para  lhe  metterem  não  a  pimenta  no  paladar,  mas  dinheiro  na  bolsa,  a 
sugar  sôfrego  no  ubere  patriótico  dos  leaes  burguezes.  Saía  á  irmã,  a  rainha 
D.  Leonor,  e  traiçoeiro  como  eila  ;  ao  serviço  depois  do  mestre,  entrou  numa 
conspiração  contra  a  sua  vida. 

Estas  scenas  do  tempo  do  condestabre  parecem  de  ha  pouco;  lem- 
bram certos  episódios  da  guerra  liberai.  Como  a  historia  se  repete  retrospe- 
ctivamente, mau  grado  dos  panegyristas  das  virtudes  antigas  e  dos  profiiga- 
dores  das  corrupções  modernas. 

1  A  Nunalvares  «  ofíerecerão  e  mandarão  a  elle  e  a  sua  mulher, 
que  chegarão  á  cidade,  mil  e  duzentas  livras  da  dita  moeda  ». 

2  «  E  também  mandaro  muytos  dinheyros  a  gonçallo  uasqez  couty- 
nho  e  a  martym  vaasquez  de  Cunha  por  teerem  a  batalha  de  trancoso.  »  Se 
estes  dinheiros  foram  antes  da  batalha,  deve  pôr-se  uma  ementa  na  historia 
feita,  onde  se  diz  que  os  dois  capitães  desavindos  e  ciosos,  Gonçalo  Coutinfio 
e  Martim  Vasques,  espécie  de  Saldanha  e  Terceira  daquella  guerra,  foram 
reconciliados  por  João  Fernandes  Pacheco ;  se  assim  foi,  na  solda  dos  dois 
guerreiros  entrou  ouro  do  Forto.  E  d'ahi  talvez  que  o  sentido  seja  outro; 
darem  dinheiro  aos  chefes  viclonosos  para  continuarem  na  defeza  do  reino. 

3  A  importância  só  do  dinheiro,  prestado  nos  varies  soccorros  a 
el-rei,  monta  a  30.766  cruzados  a  6  cruzados  por  marco,  somma  quantiosa 
para  a  época.  Excedeu  pois  cinco  mil  marcos  de  prata  a  sangria  dos  portuen- 
ses, ao  passo  que  de  Lisboa  o  mestre  apenas  arrancou  900.  Pinheiro  Chagas, 
Historia  de  Portugal,  vol.  II. 


52 


Que  maior  rol  de  serviços  para  mostrar  a  acção 
decisiva  dos  esquecidos  burguezes  na  obra  da  indepen- 
dência?! 1 

D.  João  i  não  foi  tam  ingrato  como  a  historia.  Na 
sua  acclamação  o  seu  primeiro  preito  é  para  « a  boa  e 
leal  cidade  do  Porto  que  muito  trabalhou  comigo  n'este 
tão  forte  negocio,  mostrando  e  ministrando  grades  aju- 
das e  despezas  por  manter  a  verdade  que  eu  defendia». 
Também  rei  algum  mais  se  esmerou  em  bem  tratal-a 
com  honras  e  mercês.  Entregou-lhe  por  «seus  assigna- 
lados  serviços»  os  julgados  de  Bouças,  da  Maia  e  de 


Emquanto  que  o  nosso  povo  assim  se  arruinava,  o  Ínclito  doutor  João 
das  Regras  especulava  torpemente  com  a  quebra  de  moeda,  ganhando  grossa 
maquia.  Ibidem. 

1  Admira  que  o  snr.  Conde  de  Villa-Franca  numa  obra  de 
sabedoria  erudita  e  incontestável  consciência  histórica,  'L>.  João  I  e  a 
Alliança  inglesa,  1884,  onde  rectificou  muitos  erros  e  accrescentou  impor- 
tantes espécies,  nem  palavra  pronuncie  sobre  os  actos  dos  portuenses  na 
gloriosa  revolução.  O  episodio  dos  inglezes  no  Porto  é-lhe  desconhecido. 
Parece  que  o  Porto  dignus  non  est  intrare  na  grande  historia.  Pois  o  titulo 
d'essas  façanhas  existe  no  L.°  Grande,  fi.  54  e  L.°  'B,  fl.  25o;  e  já  sahiu 
uma  vez  do  silencio  dos  archivos,  quando  João  Pedro  Ribeiro  o  publicou 
nas  suas  Dissertações,  vol.  1,  pag.  3i8.  E  o  decreto  de  D.  Duarte,  em  favor 
dos  privilégios  da  cidade,  attendendo  as  reclamações  dos  procuradores  do 
Porto  nas  cortes  d'Evora  de  1436.  Não  conheço  pagina  mais  honrosa  da 
nossa  historia  communal;  bem  merecia  ser  trasladada  e  afhxada  em  lugar 
d'honra  na  camará  do  Porto. 

A  versão  de  J.  P.  Ribeiro  foi  tirada  do  vicioso  L.°  B ;  os  erros  d'este 
torpe  apographo  passaram  para  a  penna  do  illustre  cartulista.  (^uandoque 
bónus...  E  entre  elles  cahiu  um  que  me  deu  que  scismar.  Foi  a  ida  dum 
bispo  á  Inglaterra,  mandado  pelos  portuenses  a  assoldadar  ingrezes.  Ora  o 
texto  do  L.°  Grande  não  falia  de  bispo  nem  de  clérigo  nenhum,  mas  sim 
d'um  barinel,  uma  embarcação.  Este  diploma  está  reproduzido  cuidadosa- 
mente no  Corpus  codicum,  pag.  141.  «  Mandarom  hum  barenel  ajngraterra 
por  trazer  ingrezes  pêra  ajuda  da  defensom  da  cidade  e  da  terra;  e  tiverom 
estes  ingrezes  muytos  tempos  consigo  pagando-lhes  grandes  soldos  cadantes 
em  que  gastarom  muyto». 


53 


Gaya,  dando-lhe  por  termo  Penafiel  e  Villa  Nova  \  a 
quem  mais  tarde  obrigou  a  concorrer  para  os  encargos 
do  concelho  do  Porto.  Não  houve  isenções  ou  doações, 
arrancadas  pelos  nobres,  que  lhe  fizessem  cassar  os  di- 
reitos outorgados;  o  próprio  Nunalvares,  que  pleiteou 
contra  a  cidade  a  jurisdicção  de  Bouças,  viu-se  d'ella 
desapossado,  sendo  condemnado  nas  custas.  A  cidade 
pôde  mais  do  que  o  poderoso  condestabre  2. 

Especificou,  refirmou  e  accrescentou  os  seus  privi- 
légios e  foros;  e  quando  as  cortes  de  Coimbra  impoze- 
ram  ao  rei  acclamado  que  do  seu  conselho  fizessem 
parte  homens  tirados  do  braço  popular,  os  procurado- 
res do  Porto  n'elle  entraram  ao  lado  dos  de  Lisboa, 
Coimbra  e  Évora. 

Foi  no  Porto  que  João  i  teve  a  primeira  festa 
triumphal  digna  da  sua  magestade  victoriosa  e  redem- 
ptora,  festa  tam  estremada  que  no  seu  pittoresco  e  realce 
se  deliciou  a  penna  do  chronista  3.  Aqui  celebrou  casa- 


1  Consta  de  duas  cartas  regias  datadas  em  abril  e  maio  de  1384.  L.° 
Grande,  fl.  44.  Confirmou-lhe  a  jurisdicção  no  anno  seguinte,  a  despeito 
d'outras  doações  que  tivera  de  fazer.  L.°  A,  fl.  149.  Já  D.  Fernando  dera 
por  termo  á  cidade  o  julgado  de  Melres  em  i36o.  porque  lhe  «  enviarom 
dizer  que  a  dita  cidade  era  de  pouca  companha  e  nom  era  pobrada  como 
compria».  L.°  Grande,  fl.  41,  Corpus,  pag.  11  o. 

2  Provisão  de  i388,  L.°  A,  fl.  no,  e  Sentença  da  corte  do  mesmo 
anno  contra  D.  Nuno  Alvares  Pereira,  condemnando  o  conde  em  160  livras 
e  7  soldos  de  custas.  L.°  A,  fl.  78.  Aqui  o  condestavel  viu  tolhidas  as  suas 
ambições,  como  na  distribuição  de  terras  feita  a  esmo  a  vassallos  seus.  Não 
lhe  chegaram  as  immensas  doações  feitas,  nem  o  monopólio  do  titulo  de 
conde  que  se  arrogara. 

3  Leia-se  em  Fernão  Lopes  a  viva  descripção  da  recepção  do  rei  — 
as  ruas,  desde  a  porta  de  Miragaya  até  aos  paços,  volvidas  em  estradas  de 
ramos  e  flores  e  com  defumaduras  de  cheiros,  o  rio  apinhado  de  nãos  e 
bateis  apendoados  e  enramados,  e  o  rei  a  pé  por  entre  tanta  gente  que  pa- 


54 


mento  com  a  Lencastre,  a  filha  do  seu  alliado  João  de 
Gand,  em  pomposas  bodas  *;  aqui  lhe  nasceu  o  mais 
famoso  dos  seus  filhos,  o  infante  D.  Henrique,  o  fautor 
das  máximas  glorias  de  Portugal.  E  quando  o  espirito 
d'aventuras  d'além-mar  rompeu  com  a  expedição  de 
Ceuta,  ainda  os  seus  fieis  burguezes  se  empenharam 
em  servil-o,  apparelhando  naus  e  municiando  galés, 
fazendo  sahir  da  barra  do  Douro  a  mais  poderosa  e 
galharda  armada  que  jamais  houvera  2. 


recia  querer-se  afogar  sob  uma  chuva  de  rosas  que  as  mãos  das  donas  lhe 
desfolhavam  das  janellas. 

1  Contadas  por  Fernão  Lopes  e  Froissart.  Conde  de  Villa  Franca, 
/.  c.  Ao  jantar  da  boda  assistiram,  ao  lado  dos  fidalgos,  cidadãos  grados  da 
terra,  prova  do  ascendente  tomado  pela  burguezia.  No  espaço  que  medeia 
entre  o  Souto  e  S.  Domingos,  «que  era  entom  todo  ortas»,  diz  o  chronista, 
fez-se  uma  grande  liça  de  torneio,  onde  justaram  fidalgos  e  cavalleiros.  As 
festas  duraram  quinze  dias  cheios. 

2  Dizem  vaidosamente  os  procuradores  do  Porto  em  seus  capítulos, 
«  grande  poderio  de  nãos  quando  passou  a  Cepta  que  forom  bem  seteenta 
naaos  e  barchas  afora  outra  muita  fustalha  que  nom  sabiees  hum  soo  lugar 
na  espanha  de  que  tam  poderosa  armada  poderá  sahir».  Loc.  cit.  Foi  n'esta 
occasião  que  os  portuenses  ganharam  a  alcunha  de  tripeiros,  alimentando-se 
dos  miúdos  do  gado  para  abastecerem  a  frota  de  viandas. 


VIII 


N'este  Porto  do  Mestre  cTAviz,  ao  arraiar  do  século 
xv,  borbulhava  o  gomo  do  futuro  empório,  atravez  da 
sua  interessante  topographia  profissional. 

Por  Cima  de  Villa  e  Eiras  era  a  barra  secca  da  cidade, 
o  canal  d'ingresso  para  os  viveres  e  productos  agricolas, 
provenientes  das  terras  do  norte.  A  esta  boca  succedia-se 
o  ventre  do  Porto;  feirava-se  no  largo  da  Sé,  e  pelas  ruellas 
da  villa  episcopal,  por  entre  a  clerezia  da  sé  e  os  officiaes 
da  almotaceria,  bolseiros  e  portageiros,  estanceiavam 
sobretudo  nas  Aldas  os  açougueiros  e  enxarqueiros. 

As  bandeiras  dos  officios  desenrolavam-se  arrua- 
das. Surradores  pelas  viellas  dos  Pellames  moirejavam 
sobre  o  rio  da  villa,  aprestando  principalmente  as  pelles 
cabritas.  Ferreiros  e  armeiros  forjavam  ferramentas  e 
armaduras  ao  longo  da  Ferraria  de  baixo  e  da  de  cima, 
ao  tempo  simples  continuação  do  Souto;  e  ao  pé  d'elles 
martellavam  os  caldeireiros,  que  haviam  de  dar  o  nome 
ao  seguimento  da   mesma  rua,  por  onde  ainda  hoje 


56 


demoram  as  ofíicinas,  talvez  bem  pouco  mudadas  do 
que  primeiro  foram.  Ourives  estadeiavam  os  seus  dixes 
na  extincta  rua  da  Ourivesaria;  e  fabricantes  de  calçado 
manipulavam  a  sola  na  Çapataria.  Cada  arte,  cada  mes- 
ter, á  moda  da  meia  edade,  vivia  fechada  na  sua  ban- 
deira, e  aggremiada  ainda  em  confrarias,  sob  a  égide 
d'um  patrono  santo;  cada  corporação  de  mesteiraes, 
vinculada  pelo  laço  industrial  e  religioso,  organisava-se 
bem  cedo,  outorgando-se  regimentos  e  estatutos  l,  e 
assegurando,  não  só  a  solidariedade  económica,  como  o 
soccorro  mutuo  e  até  a  beneficência  publica  2. 

Pelo  alto  da  Victoria  acoitava-se  a  judiaria.  Facul- 
tara-a  D.  João  i  em  1386,  ordenando  á  camará  que  de- 
marcasse muros  a  dentro  cerca  privativa  para  moradia 
de  judeus.  O  bairro  judaico  abrangia  o  espaço  que  do 
extremo  norte  da  rua  da  Victoria,  ladeando  pelas  duas 
vertentes  da  eminência,  vai  até  ás  Escadas  da  Esnoga, 
que  conservam  no  nome  a  corruptela  da  velha  syna- 
goga.  Alli  se  apinhavam  em  communa  com  sua  camará 
e  arabi,  pagando  ao  concelho  avultada  pensão  perpetua 
e  gozando  das  protecções  e  isenções  facultadas  por  leis 
próvidas,  que  tanto  procuraram  entre  nós  libertar  o  ju- 
deu dos  entraves  odientos  que  lhe  oppunha  o  fanatismo 
popular,  tam  avesso  aos  por  vileza  chamados  marranos. 


1  São  antiquíssimas  estas  associações,  que  lá  por  fora  se  ostentaram 
poderosas  e  ricas  nas  cidades  allemãs  e  flamengas.  A  dos  ferreiros,  tendo  por 
patrono  a  Senhora  da  Silva,  é  talvez  a  mais  velha  do  Porto;  note-se  ainda 
a  dos  ourives  com  Santo  Eloy,  a  dos  sapateiros  com  S.  Chrispim,  etc.  Na 
Bibliotheca  do  Porto  existe  uma  collecçáo  de  regimentos  d^fficios  e  confra- 
rias, valiosa  para  a  historia  da  organisação  do  trabalho  entre  nós. 

2  A  irmandade  da  Senhora  da  Silva  tinha  hospital,  assim  como  a  de 
S.  Chrispim.  Estas  instituições  quasi  chegaram  aos  nossos  dias. 


57 


Accrescentada  ainda  ao  depois  pela  im migração  de  Cas- 
tella  favorecida  por  D.  João  n,  a  colónia  hebraica  foi 
um  importante  elemento  demographico  da  cidade;  do- 
tada de  singular  actividade  e  industria,  collaborou  valio- 
samente no  fomento  commercial  e  na  prosperidade  do 
Porto  \  e  contava  no  seu  seio  os  homens  mais  illustra- 
dos  e  sabedores. 


1  A  judiaria,  encravada  e  isolada  na  cidade,  tinha  duas  portas,  uma 
na  Esnoga,  outra  no  Olival ;  por  foro  do  terreno  pagava  200  maravedis  velhos 
á  camará,  com  a  qual  testilhou  em  1396  (L.°  Grande,  fl.  48)  e  judicialmente 
em  1423.  L.°  A,  fl.  229.  Formava  uma  communa  com  seus  vereadores  e  arabi, 
e  era  residência  do  ouvidor  da  comarca  judaica  d'Entre  Douro  e  Minho. 
Houve  no  Porto  judeus  opulentos,  dados  á  especulação  commercial  e  finan- 
ceira; e  os  diplomas  faliam  de  vários  que  foram  rendeiros  dos  impostos  da 
cidade  como  Jusuf-Ben-Abasis  {Perg.,  1.  II,  fl.  28),  Abensagal,  em  1448  (L.° 
das  ver.)  e  Jacob  Baruch,  em  1459  (L.°  A,  fl.  i32)  que  por  signal  foi  preso 
por  falsificador  d'escripta.  Houve  também  judeus  physicos  da  cidade.  Quando 
em  1485  os  judeus  de  Castella  se  vasaram  sobre  Portugal,  a  camará  do 
Porto  quiz  resistir  á  invasão  (L.°  das  ver.,  1485,  fl.  8),  allegando  a  con- 
tagião  da  peste;  chegou  a  expulsal-os,  pelo  que  foi  censurada  (L.°  das 
ver.  de  1487,  fl.  6i).  D'estes  adventícios  trinta  famílias  poisavam  aqui,  diri- 
gidos por  um  judeu  distincto  Isac  Aboab;  deram-lhes  casas  na  rua  de  S.  Mi- 
guel, contribuindo  elles  para  o  calcetamento  da  rua.  Estas  casas  tinham  um 
P  na  testada. 

Recentemente  o  snr.  Mendes  dos  Remédios,  doutor  em  theologia, 
publicou  um  livro  sobre  os  Judeus  em  Portugal,  para  o  qual  não  encontro 
encarecimento  bastante;  causa  a  mais  grata  surpreza  esta  obra  de  fartíssima 
erudição  e  superior  critério  histórico,  trabalhada,  pensada  e  sentida.  Oxalá 
que  a  historia  dos  judeus  portuguezes,  que  tanta  honra  deram  á  sua  pátria 
adoptiva,  não  a  deixe  em  meio  o  sábio  professor,  invadido  certamente  pelo 
desdém  ignaro  com  que  se  saúdam  entre  nós  trabalhos  de  tal  quilate.  Se 
algum  dia  publicar  nova  edição  do  seu  livro,  atrevo-me  a  indicar-lhe 
duas  emendas,  a  respeito  dos  judeus  do  Porto.  Não  existe  o  L.°  verde 
que  cita,  no  archivo  da  camará;  é  um  equivoco  de  lettras  com  os  livros 
das  vereações,  e  d'analogia  com  códices  que  se  conheciam  pela  côr  das 
capas,  como  o  L.°  Prelo  de  Coimbra  e  outros.  Também  é  engano  dizer 
que  a  judiaria  do  Porto  se  fundou  em  sitio  onde  fora  um  convento  de  bene- 
dictinos;  os  frades  é  que  vieram  substituir  os  judeus  desterrados,  em  tempo 
dos  Filippes. 


58 


Balcões  e  lojas  dos  commerciantes  enfiavam  pela 
rua  dos  Mercadores;  as  casas  do  trato  marítimo,  com 
seus  mestres  e  carregadores,  estabeleceram-se  na  praia, 
da  Ribeira  a  Miragaya,  pela  Fonte  Taurina,  S.  Nicolau, 
Reboleira  e  Banhos.  Pelos  surgidouros  da  margem  an- 
coravam as  barcas,  naus,  baixeis  e  pinaças,  as  embarca- 
ções do  tempo,  que  ou  arrepiavam  a  corrente  do  rio  até 
Ribadouro,  ou  vencendo  a  barra  singravam  mar  em 
fora,  na  rota  dos  portos  costeiros  e  dos  empórios  estra- 
nhos. Era  aqui  o  coração  do  Porto,  onde  batia  o  sangue 
que  lhe  arterialisava  a  pujança. 

«O  Porto  pela  sua  situação,  diz  Herculano,  perto 
da  foz  d'um  rio  de  primeira  ordem,  e  rodeado  d'uma 
população  numerosa  qual  era  a  d'Entre  Douro  e  Mi- 
nho, devia  crescer  rapidamente  como  empório  com- 
mercial.»  1  Esta  expansão  mercantil  foi  a  mola  real  do 
seu  dynamismo  demographico;  e  tanto  avultava  o  pre- 
dominio  d'esta  condição  social  na  população  da  cidade 
que  os  burguezes  do  século  xv,  dissemol-o  já,  o  enun- 
ciavam bem  alto  quando  affirmavam  nas  cortes  d'Evora 
que  os  antigos  edificaram  aqui  a  povoação,  não  por 
«lavrar  e  crear»  na  faina  agrícola,  porque  a  terra  a  isso 
se  não  presta,  mas  por  causa  do  porto  o  mais  seguro 
do  norte,  somente  por  «viverem  pelo  trafego  das  mer- 
cadorias». Ora  esta  polarisação  sociogenica  do  Porto, 
causal  intrinseca  da  sua  populosidade,  merece  ser  ao 
menos  rastreada  nas  suas  origens  e  modalidades  primi- 
tivas, quasi  completamente  ignoradas. 

A  fertilidade  da  grande  bacia  do  Douro  trasbordava 

1    T.  IV,  pag.  99. 


59 


os  seus  excellentes  productos  rio-abaixo  a  fundear  na 
Ribeira,  que  derramava  o  excedente  do  consumo  da 
terra  pelos  portos  do  paiz  e  até  estrangeiros,  e  com 
elles  cambiava  fazendas  importadas  no  estrangeiro.  A 
formula  commercial  d'hoje  esboçou-se  já  na  primeira 
quadra  da  vida  nacional.  A  miude  faliam  escripturas 
do  século  xiv  dos  barcos  que  vêem  de  Ribadoiro, 
commandados  por  seus  arraes,  e  talvez  com  o  mesmo 
original  feitio  que  se  perpetuou  atravez  dos  tempos  K 
Occupam-se  sobretudo,  além  de  pão  e  fructas,  a  trans- 
portar os  vinhos  de  estima  tam  antiga,  «carregam  vi- 
nhos de  Ribadoyro»,  que,  tornados  do  Porto,  eram 
exportados  pela  foz. 

A  importância  d'este  commercio  infere-se  do  texto 
de  providencias  successivas  sobre  sizas  e  arrecadações 
d'alcavallas  que  já  então  oneravam  os  vinhos,  sobre  os 
locaes  da  sua  venda,  e  outras  regulamentações. 

Gaya   partilhava   com    o  Porto  este  trafico,  e  lá 


1  O  mais  suggestivo  e  extenso  documento  que  se  me  deparou  para 
apreciar  a  pauta  commercial  do  Porto  é  uma  espécie  de  inquérito  fiscal, 
já  tantas  vezes  citado,  mandado  fazer  em  i33o  por  Affonso  IV  na  sua 
cubica  d'esbulhar  a  sé  de  tam  rica  prebenda  —  «  Enquiriçon  que  foy  tyrada 
por  mandado  delrey  dom  Affonso  quarto  por  saber  em  certo  que  rendia  a 
dita  cidade  e  oque  o  bispo  e  cabidoo  auyam  em  ella  pelas  testimunhas  que 
elles  apresentassem».   L.°  Grande,  fl.  3  e  segg.,  e  Corpus,  pag.  a5. 

A  sessão  d'inquerito,  presidida  por  Lopo  Fernandes,  senhor  de  Fer- 
reira, a  que  assistiram  Vasco  Gil,  cidadão  do  Porto,  e  homens  boos  do  con- 
celho, teve  lugar  no  Mosteiro  de  S.  Domingos  « atraio  o  virgeu  do  paaço 
grande  ». 

D'envolta  com  os  impostos,  tributos,  coimas  e  alcavallas  e  sua  co- 
brança, especificam-se  ao  longo  dos  seus  1 53  items  as  mercadorias  e  géne- 
ros de  toda  a  ordem,  entrados  e  sahidos,  assim  como  a  sua  proveniência 
e  natureza.  É  uma  pagina  viva,  a  primeira  da  larga  vida  commercial  do 
Porto. 


6o 


como  aqui  registram-se  já  proprietários  de  vinhas  no 
Douro  \ 

O  pescado  era  outro  género  natural  importante  de 
subsistência  e  negocio.  Os  pescadores,  que  se  escalona- 
vam pela  praia,  da  Lada  a  Massarellos,  batiam  o  mar 
costeiro  até  á  Galliza,  e  aventuravam-se  até  á  pesca  do 
mar  alto  e  remoto.  Obteve  o  Porto  em  1383  a  permis- 
são de  pesca  por  50  annos  nas  aguas  da  Inglaterra  e  da 
Bretanha  2. 

A  industria  do  peixe  salgado  florescia.  As  marinhas 
do  estuário  do  Vouga  já  produziam,  carregava-se  o  sal 
d'Aveiro  3,  e  Massarellos  era  em  tempo  de  D.  Diniz  um 
entreposito  d'este  género.  Exportava-se  peixe  secco,  e 
no  rol  do  fisco  o  pescado  fresco  e  salgado  é  grande  con- 
tribuinte d'alcavallas  4. 


1  D.  Diniz  em  i33j  expede  carta  para  harmonisar  contendas  entre 
Gaya  e  Porto,  mandando  que  « todolos  vynhos  que  ueherem  pêra  vender  de 
Riba  de  Doyro  se  uendam  nas  Barcas  sobrela  agua».  Isentava  d'esta  impo- 
sição «  os  vezynhos  do  porto  ou  de  gaya  ou  de  villa  noua  »  que  tivessem 
«  uynhas  em  Riba  de  Doyro».  L.°  Grande,  fl.  28  e  Corpus,  pag.  61. 

Na  cidade  e  além  apromptavam-se  arcos  para  pipas  e  toneis,  que 
eram  até  objecto  de  exportação  para  Lisboa.  Como  n'esta  multavam  os  car- 
regadores que  impingiam  arcos  de  má  qualidade,  D,  João  em  1423  ordenou 
que  dois  homens  bons  fossem  vedores  dos  arcos  antes  delles  serem  enfeixa- 
dos, e  achando-os  bons  lhe  pozessem  uma  contramarca  ao  lado  da  marca 
do  vendedor.  L.°  Grande,  fl.  5o  e  Corpus,  pag.  i32. 

2  O  tratado  commercial  foi  feito  com  Eduardo  III.  Balbi,  Variétés 
politico-statistiqucs,  pag.  5.  O  Visconde  de  Santarém  não  se  refere  porém 
a  tal  tratado. 

3  A  carta  de  D.  Fernando  de  1377  fixa  o  imposto  sobre  navios  de 
sal  em  «sete  Uyuras  do  mylheyro  daaueiro  ».  L.°  Grande,  fl.  42,  Corpus. 
pag.  112.  As  barcas  do  sal  deviam  «aportar  dereyto  da  rua  da  Roballeyra  ». 
In,],  de  Affonso  IV. 

4  Inquirição  d  Affonso  IV  e  outros  documentos.  Peixotas  e  congros 
seccos  mencionam  as  ementas. 


6i 


Aqui  confluía  pois  o  melhor  da  producção  utilisa- 
vel  de  solo  e  agua,  mas  a  mercancia  de  procedência 
agrícola  ou  piscatória  figurava  em  quinhão  apenas  no 
inventario  commercial  do  burgo.  O  Porto  era  quem 
acudia  ás  deficiências  industriaes  e  manufactureiras,  fa- 
bricando e  manipulando  até  onde  chegavam  as  suas 
oíiicinas,  carreando  e  importando  matérias  primas  e 
artefactos  que  faltavam  no  mercado  interno.  Aos  cen- 
tros de  mais  avançada  industria  se  dirigiam  os  nossos 
negociantes,  aos  portos  e  cidades  dlnglaterra,  França  e 
Flandres,  com  os  quaes  sustentavam  perenne  trafico;  e 
em  tal  escala  que  mal  se  suspeitaria,  se  não  fora  a  men- 
ção clara  dos  diplomas  coevos. 

Esta  navegação  mercantil  logo  de  começo  se  orien- 
tou principalmente  para  o  norte  da  França  e  Flandres; 
com  as  suas  praças,  então  das  mais  ricas  da  Europa,  se 
afreguezou  o  Porto;  lá  carregavam  directamente  as  naus 
os  nossos  próprios  mercadores  em  demoradas  peregri- 
nações, sem  recorrer  a  intermédios  nem  a  marinha  es- 
tranha. 

Ainda  em  tempo  d'Affonso  Henriques,  meado 
além  o  século  xn,  já  os  navios  procedentes  de  França 
pagavam  dizima,  metade  da  qual  foi  adquirida  pela  sé 
em  escambo  com  a  coroa  \  O  conde  de  Bolonha  no 
século  xin  regula  a  policia  dos  vasos  mercantes  que  dos 
portos  de  França  entravam  no  Douro  2;  e  D.  Diniz  con- 
firma posturas  dos  mercadores  sobre  as  taxas  dos  barcos 


1  Em  1179  a  mitra  e  cabido  compraram  esta  meia  dizima  a  D. 
Affonso  Henriques  por  cem  maravedis  d'ouro.  Dil-o  Rodrigo  da  Cunha,  pag. 
29,  sem  citar  porém  o  diploma  por  onde  o  soube. 

2  1254.  Visconde  de  Santarém,  Quadro  elemeníar,  vol.  I,  pag.  20. 


62 


que  carregam  para  Flandres,  Inglaterra  e  Normandia  l. 
Toda  a  inquirição  de  D.  Affonso  iv  se  farta  de  fallar  nos 
navios  e  mercadorias  que  vão  ou  vêem  de  França,  a 
attestar  a  intensidade  da  navegação  e  commercio  com 
este  paiz.  Abundam  mesmo  provas  curiosas  das  dila- 
tadas viagens  dos  nossos  mercadores,  que  em  grande 
numero  demoravam  por  terras  francezas  e  flamengas, 
annos  ás  vezes,  sem  perder  os  seus  direitos  de  visinhos 
do  Porto  2.  E  são  tam  frisantes  estes  exemplos  da  sua 
estada  e  tracto,  que  não  pôde  haver  duvida  em  con- 
siderar portuenses  grande  parte  dos  negociantes  portu- 
guezes  lá  por  fora  estabelecidos,  citados  nos  archivos 
estrangeiros,  —  colónias  que  tinham  a  importância  pre- 
cisa para  obterem  em  paiz  extranho  privilégios  e  orde- 
nanças regias  3. 


1  Pera  Frandres  ou  pêra  Engraterra  ou  pêra  Lormandia  ou  pêra 
Bretanha  ou  pera  Arrochella.  Provisão  de  1293.  Ribeiro,  t.  IV,  pag.  170. 

2  Assim  que  se  celebrou  a  concórdia  entre  o  concelho  e  Pedro  Sal- 
vadores em  1240,  estipulou-se  que  o  bispo  mandasse  por  commissão  absolver 
os  cidadãos  excommungados  que  estivessem  residindo  in  Francia.  Hercu- 
lano, t.  III,  pag.  20. 

Na  inquirição  de  Affonso  IV  mostra-se  que  o  burguez  não  perdia  essa 
qualidade  «se  for  a  frança  e  morar  alli  por  huum  ano  e  por  dous  ou  mais». 
D.  Fernando  em  1379  mandou  ao  seu  coudel  que  ficavam  isentos  de  apresen- 
tar cavallos  e  armas  os  mercadores  que  «carregam  e  vaão  pera  frança  e 
leuam  todo  aquello  que  ham  ou  a  mayor  parte  dello»;  as  mulheres  na  sua 
ausência  não  seriam  constrangidas.  L.°  Grande,  fl.  53,  Corpus,  pag.  1 1 5. 

3  V.  de  Santarém,  Quadro  elementar  das  relações  diplomáticas  de 
Portugal.  Les  Portugais  en  France,  Francisque  Michel,  1882,  cap.  III,  Re- 
lations  commerciales,  trabalho  consciencioso,  embora  rápido  e  muito  incom- 
pleto. Sobre  as  relações  de  portuguezes  e  flamengos,  HeitTenberg,  Relations 
anciennes  de  la  Belgique  et  Portugal.  Em  Bruges  havia  grande  colónia 
portugueza ;  para  lá  se  dirigia  Froissart  a  obter  informações  para  a  sua 
chronica  da  nossa  guerra  da  independência.  Conde  de  Villa  Franca,  loc.  cit. 
A  feitoria  dos  portuguezes  data  de  i38b:  é  pelo  menos  d'esse  anno  o  privi- 


63 


Os  pannos  eram  a  fazenda  que  especialmente  bus- 
cavam e  traziam  dos  centros  onde  na  edade  media  me- 
lhor se  fabricavam;  assim  suppriam  as  deficientes  e 
grosseiras  lãs,  os  pannos  da  terra,  que  então  e  por  sécu- 
los se  teceram  no  reino.  Esta  industria  manufactureira 
estava  pujante  nas  fabricas  normandas  e  flamengas  de 
tecelagem  e  tinturaria.  Vinham  aos  bulhões  e  balas  os 
pannos  d'Abbeville,  Ruão,  Arras,  Chartres,  S.1  Omer, 
Bruges,  Ipres,  Gand,  Tournay,  Lille.  No  rol  taxativo  de 
mercadorias,  promulgado  no  século  xin,  para  fixar,  se- 
gundo as  ideias  económicas  da  época  que  parecem  que- 
rer resuscitar  com  o  proteccionismo  d'hoje,  o  preçário 
da  vendagem  dos  objectos  em  toda  a  comarca  d'Entre 
Douro  e  Minho,  especificam-se  todas  estas  fazendas 
com  os  nomes,  deturpados  já  se  vê,  das  terras  d'origem, 
pelos  quaes  eram  vulgarmente  appellidadas  \ 

Contribuíamos  fortemente  para  a  riqueza  commer- 


legio  que  lhes  confere  o  duque  de  Borgonha,  ao  depois  confirmado  e  am- 
pliado. Mal  Bruges  começou  de  decahir,  no  final  do  século  XV,  principal- 
mente por  causa  das  suas  continuas  revoltas,  os  portuguezes  com  os  outros 
negociantes  estrangeiros  mudaram-se  para  Antuérpia,  onde  agruparam  coló- 
nia prospera  em  tempo  de  D.  Manuel  com  o  trafico  da  índia.  J.  Maurício 
Lopes,  Les  'Portugais  à  Anvcrs  au  XVI"  siccle,  1896. 

1  Eis  outro  documento  precioso  para  a  historia  da  merciologia  por- 
tugueza  ao  norte  do  paiz.  Promulgado  em  1253  pertence  á  chancellaria  de 
Affonso  III.  J.  P.  Ribeiro,  /.  c,  t.  Ill,  pag.  5g.  Na  extensa  lista  dos  preços 
impostos  a  cada  covado  de  tecidos  diz-se:  «et  cobitus  de  meliori  panno  tinto 
de  Gam,  aut  de  Ruans,  aut  de  Ipli,  valeat  triginta  sólidos »  ;  a  citar  ainda 
entre  outros  decifráveis,  Abouvilla,  Lila,  Brugia,  Sancto  Omer,  Chartes, 
Tornay.  O  nome  commum  dos  tecidos  era  o  da  vi!la  fabricadora;  assim  se 
dizia  umas  calças  de  lila,  um  gibão  de  ipre.  O  regimento  aduaneiro  de 
D.  João,  abaixo  citado,  falia  de  «bailas  de  valencinas»  e  os  documentos  da 
chancellaria  referem-se  muito  a  «  pannos  de  menim  ».  Valenciennes  e  Me- 
nin  são  também  duas  villas  da  Flandres,  hoje  franceza. 


64 


ciai  e  industrial  d'estas  cidades,  populosas  e  opulentas 
entre  as  que  mais  o  eram.  Quem  diria  então  que  este 
burgo  remoto  da  península,  ao  tempo  relativamente 
humilde  e  escasso,  havia  de  no  discorrer  dos  séculos 
egualar  ou  sobrepujar  muitos  d'esses  soberbos  empó- 
rios?! Estacionaram  uns  e  desandaram  outros,  secco  o 
caudal  da  sua  prosperidade,  desviado  a  partir  do  século 
xvi  para  Antuérpia  e  depois  para  os  portos  hollandezes 
e  inglezes.  A  própria  Gand,  berço  de  Carlos-Quinto, 
então  a  cidade  maior  da  Europa,  não  excede  muito  a 
população  do  Porto,  com  a  qual  emparelha  também  a 
de  Ruão,  a  velha  capital  da  Normandia.  Ipres  conserva 
apenas  a  memoria  dos  seus  duzentos  mil  habitantes; 
extinguiu-se  o  sussurro  dos  seus  quatro  mil  teares,  villa 
hoje  indigente  e  morta.  E  sem  fallar  de  Abbeville, 
S.*  Omer  e  Tournay,  reduzidas  a  cidades  subalternas 
que  juntam  algumas  dezenas  de  mil  almas,  Bruges,  a 
sumptuosa  Bruges,  a  corte  magnifica  dos  duques  de 
Borgonha,  centro  do  commercio  universal,  entreposito 
da  liga  hanseatica  e  da  Inglaterra,  porto  das  naus  de 
Veneza,  Génova  e  Constantinopla,  é  hoje  uma  cidade 
triste,  deserta,  quasi  pobre,  de  guarda  apenas  ás  relí- 
quias architectonicas  e  artísticas  do  seu  passado  glo- 
rioso. Sem  pompas  nem  estádios  de  gloria,  rutilantes 
mas  ephemeros,  o  progredimento  do  Porto  foi  bem 
mais  afortunado  e  mais  seguro. 

Vinham  tecidos  também  de  Castella,  dos  teares  de 
Palencia  e  Segóvia,  d'inferior  qualidade  assim  como  os 
de  Londres  e  de  Bristol.  A  Inglaterra,  atrazada  no  cami- 
nho do  desmarcado  progresso  que  attingiu  depois,  mal 
fabricava  ainda;  exportava  como  matéria  prima  para  a 


65 


manipulação  flamenga  as  lãs  creadas  nas  suas  ferazes 
pastagens.  Mas  já  em  fins  do  século  xiv  a  nossa  praça 
negociava  largamente  com  a  Inglaterra,  com  quem  fazia 
tratados  de  commercio,  como  já  veremos  \ 

Era  reciproco  este  commercio  internacional;  tro- 
cávamos os  productos  naturaes  da  terra.  Exportava-se 
o  sal  para  França,  Inglaterra  e  Flandres,  carregação  de 
sufíiciente  importância  para  merecer  uma  provisão  adua- 
neira de  D.  Fernando  2.  O  pescado  também  se  carregava 
para  Hespanha  3;  vinhos,  laranjas  e  outros  fructos  para 
Flandres  e  Inglaterra  4.  A  exportação  de  coiros,  e  espe- 
cialmente pelles  cabritas,  é  muito  assignalada  nos  regu- 
lamentos decretados  5.   Qual  era  este  commercio  d'ex- 


1  A  pauta  dAffonso  III  insere  a  escarlata  engleza  e  ingres  tinto. 
Os  documentos  do  século  XIV  e  XV  esses  faliam  a  miude  do  londra  e  do 
bristol,  menos  estimados  do  que  os  bons  pannos  francezes  e  flamengos,  as- 
sim como  o  piquote  palenciano  e  segobiano.  No  ajuste  da  obra  de  carpinta- 
ria da  casa  do  concelho  em  1405  assigna-se  o  preço  corrente  d'um  fauno 
de  marca,  maior  d' Inglaterra.  L.°  CB,  fl.  34.  Ao  portador  da  noticia  das 
pazes  com  Castella  mandou  a  Camará  dar  de  alviçaras  um  vestido  de  panno 
de  bom  bristol.  L.°  das  ver.  de  1431  e  segg.,  fl.  3o. 

3  É  a  de  1377,  já  citada:  «alguuns  mercadores  carregam  sal  em  esse 
porto  pêra  fora  dos  nossos  Reynos,  convém  a  saber  frandes  e  frança  e  in- 
graterra  e  que  nom  querem  a  nós  pagar  o  nosso  dereyto». 

3  Uma  provisão  de  1405  foi  provocada  por  testilhas  com  mercadores 
aragonezes  que  vinham  comprar  pescado.  L.°  A,  fl.  85. 

4  Uma  carta  regia  de  1470  providencia  sobre  este  commercio  em 
Flandres.  L.°  sAnt.0  das  Provisões,  fl.  19.  Nas  contas  dos  duques  de  Bor- 
gonha do  século  XIV  figuram  laranjas  de  Portugal.  Nas  cortes  de  Lisboa  de 
1446  se  queixaram  os  portuenses  de  que  nas  costas  d  Inglaterra  piratas  ingle- 
zes  lhes  tomaram  embarcações  carregadas  de  figo  e  vinho.  L.°  '£,  fl.  264. 

5  Inq.  de  Affonso  III.  Na  segunda  metade  do  século  XV  abundam 
as  providencias  sobre  coiros.  Assim  em  1462  prohibe-se  a  exportação, 
L.°  A,  fl.  100;  em  1466  prohibe-se  aos  fidalgos  a  compra  das  pelles  em 
concorrência  com  os  mercadores,  L."  A,  fl.  126;  em  1489  nova  carta  sobre 
carregação  de  coiros.  L.°  zAnt.°  das  Provisões,  fl.  95. 


66 


portação,  mal  individuavel  hoje,  julga-se  pela  carta  de 
privilégios  outorgada  por  D.  Fernando,  onde  se  afíirma 
que  os  negociantes  do  Porto  compram  suas  mercado- 
rias para  as  levarem  e  enviarem  a  França  por  terras 
estranhas  e  alongadas  l. 

Traficar  por  mar  exige  boa  construcção  naval,  e  a 
praia  do  Douro  era  um  estaleiro  de  primeira  ordem, 
não  só  em  Portugal  como  na  Europa.  Equipavam-se 
aqui  embarcações  d'alto  bordo  superiores  ao  melhor 
que  se  apparelhava  nos  portos  estrangeiros.  As  mattas 
de  Riba  e  Alémdouro  davam  os  lenhos;  as  cordoarias 
do  Olival  os  cordames  e  calavres;  os  teares  de  Villa  do 
Conde  os  pannos  das  velas  2.  O  governo  de  D.  Fer- 
nando honrosamente  fomenta  por  todos  os  modos  este 
progresso  naval,  e  outorga  isenções  e  regalias  aos  cons- 
tructores  e  armadores  d'embarcações  que  cubassem  mais 
de  cincoenta  toneladas  3. 

Esta  protecção  á  marinha  mercante,  tam  abomina- 
velmente descurada  em  tempos  mais  próximos  e  pre- 
sentes, sustenta-se  com  D.  João  i,  que  isenta  de  direitos 


1  Dante  em  i368,  contra  a  moradia  dos  fidalgos  e  em  favor  «dos 
vezynhos  e  moradores  da  dita  cidade  que  por  estranhas  terras  andam  com 
suas  mercadaryas  e  as  compram  para  as  leuarem  e  enuyarem  a  frança  per 
que  am  de  viver».  L.°  Grande,  fl.  3q,  Corpus,  pag.  io6. 

2  Como  o  fauno  de  tren  começasse  de  fazer-se  mais  estreito  em 
Villa  do  Conde  e  lugares  da  comarca,  D.  Fernando,  considerando  no  prejuízo 
que  dahi  advinha  para  o  velame,  mandou  em  1377  que  fosse  feito  por  marca 
de  palmo  e  dous  dedos  em  ancho.  L.°  Grande,  fi   5 1  e  Corpus,  pag.  112. 

3  A  carta  que  D.  Fernando  promulgou  em  i38o  para  Lisboa  foi  logo 
no  anno  seguinte  ampliada  ao  Porto.  Graças  e  mercês  se  concedem,  e  não 
são  de  pequena  monta,  «  a  todos  aquelles  que  quizerem  fazer  ou  comprar 
naues  e  bayxees  tylhados  de  cinquoenta  tonecs  acima».  Desta  «  hordinha- 
çom  »  foram  executores  os  cidadãos  Affonso  Diniz  e  Estevão  Lourenço.  L.° 
Grande,  fl.  53,  Corpus,  pag.  116. 


67 


todos  os  aprestes  importados  para  fazer  ou  refazer  na- 
vios l,  e  com  D.  João  n  que  chega  a  crear  prémios 
pecuniários  para  os  armadores  de  naus  d'arqueação  de 
cem  toneladas  2. 

Durante  o  reinado  glorioso  do  Mestre  d'Aviz,  o 
Porto  torna-se  o  seu  arsenal  de  guerra,  onde  se  arma, 
entre  outras,  a  bizarra  e  nunca  vista  frota  da  expedição 
de  Ceuta.  Materialmente,  pôde  dizer-se  que  a  vasta  en- 
trepreza  maritima  da  nação,  então  preludiada,  aqui  ger- 
minou. Ao  Porto  devia  Portugal  o  baptismo  do  seu 
nome  nas  nações  da  Europa  e  o  da  primeira  gloria  nos 
mares  d'além. 

N'este  andar  da  navegação  e  do  commercio  haviam 
de  desentranhar-se  instituições  collectivas  protectoras  e 
reguladoras.  Á  depredação  dos  corsários  que  então  in- 
festavam os  mares,  oppunham-se  armadas,  equipadas 
despendiosamente  pelos  nossos  negociantes,  que  a  espa- 
ços iam  varrer  as  rotas  da  ladroagem  e  proteger  os 
comboios  de  mercadorias.  Assim  se  faziam  amiúde  ex- 
pedições contra  os  piratas  andaluzes,  biscainhos  e  in- 
glezes.  Para  o  resguardo  das  fazendas,  á  carga  e  á  des- 


1  No  valioso  regimento  de  1410  manda-se  que  não  pague  decima 
«alguém  que  trouuer  bordalha  de  frança  ou  de  ingraterra  ou  de  hirlanda 
pêra  fazer  navyos  ou  pêra  refazimento  d'elles» ;  o  mesmo  para  quem  « trouuer 
ou  mandar  trazer  masto  ou  verga,  garoupezes,  ancoras,  breu  ou  resina, 
alcatram,  ou  outras  guarniçóos  e  aparelhos  pêra  seus  navyos».  L.°  Grande, 
fl.  5i,  Corpus,  pag.  i35. 

2  Na  provisão  de  1474  consigna-se  um  premio  de  duas  coroas,  em 
vez  de  duas  que  já  tinham,  aos  constructores  de  naus  de  cem  toneladas 
«debaixo  do  primeiro  telhado».  E  mais  ainda:  isenção  de  portagem  de  ma- 
deira, enxárcias,  armas,  etc,  e  corte  gratuito  de  madeiras  nas  mattas  reaes. 
L.°  A,  fl.  226.  Hoje  que  os  nossos  estaleiros  estão  desertos,  as  providencias 
governativas  são  mudas. 


68 


carga,  utilisavam-se  a  principio  de  casas  arrendadas  e 
até  dos  próprios  mosteiros,  com  perigo  e  damno  dos 
seus  cabedaes,  que  D.  Affbnso  iv  procurou  remover, 
em  bem  dos  mercadores  e  do  seu  erário,  mandando 
construir  um  armazém  em  terrenos  e  prédios  pela  coroa 
adquiridos  na  Fonte  Taurina  l.  AUi  foi  a  primeira  Al- 
fandega, que  até  nossos  dias  estanceiou  no  mesmo  local 
primitivo  do  século  xiv;  alli  se  depositavam,  dizima- 
vam e  lealdavam  as  mercadorias,  sob  a  inspecção  dos 
almoxarifes,  dizimeiros,  arrecadadores,  escrivães,  o  pes- 
soal aduaneiro  do  tempo,  sujeito  nas  suas  funcções  a 
prescripções  successivamente  ordenadas  sobre  pautas, 
taxas  e  isenções  de  direitos,  e  nomeadamente  ao  extenso 
regimento  promulgado  por  D.  João  i  2. 

No  movimento  aduaneiro  d'entrada  e  sahida  inter- 
vinham peias  prohibitivas,  quando  assim  convinha,  so- 
bretudo para  os  géneros  de  mantimento,  como  pão  e 
pescado,  cuja  exportação  era  permittida  ou  tolhida  con- 
forme abundavam  ou  escasseavam  no  mercado  interno, 
de  modo  a  não  haver  carestia  \  Já  vimos  como  bem 


1  Este  foi  um  dos  aggravos  do  Bispo  na  contenda  com  o  monarcha. 
As  razões  porque  «  elrey  disse  que  mandava  fazer  o  almazem  e  alffandega 
do  Porto»  constam  do  auto  de  1348,  já  citado.  Este  armazém  d'alfandcga 
já  estava  feito  em  \2>ib,  quando  a  sé  protestou  contra  as  casas  que  «elrey 
mandava  fazer  nas  ortas  atraz  da  rua  da  Fonte  Tourina  ».  L.°  da  Demanda, 
pag.  i83. 

a  «Carta  de  como  se  ham  de  tirar  os  dereitos  que  ellrey  ha  na 
cidade  do  Porto».  Dante  em  1410.  L.°  Grande,  fl.  5o  e  Corpus,  pag.  i33, 
onde  o  importante  diploma  vem  mondado  dos  vicios  da  copia.  O  original 
veiu  em  duplicado,  um  para  o  armazém,  outro  para  o  cartório  da  cidade. 
índice  de  J.  P.  Ribeiro. 

*  Sáo  numerosas  as  provisões  e  accordáos  sobre  prohibição  e  liber- 
dade do  commercio  dos  cereaes  e  peixe. 


69 


entendidas  liberdades  d'importação  foram  aproveitadas 
para  fomento  de  navegação.  E  em  seu  próprio  favor 
obtinham  os  mercadores  protecção  contra  os  concor- 
rentes de  fora  da  cidade  que  tolhiam  a  retalho  o  grosso 
trato  \  e  além  d'isso  pequenas  franquias,  que  eram  uma 
espécie  de  bónus  para  o  seu  commercio  —  entrada  livre 
sem  siza  da  primeira  venda  de  pannos  2,  assim  como  de 
tecidos,  vestuários  e  utensílios  para  uso  próprio  3.  A 
praga  do  contrabando  é  que  já  grassava  pela  Reboleira 
e  Mercadores,  até  dentro  dos  próprios  armazéns  reaes  \ 
As  relações  entre  mercadores  e  carregadores  pauta- 
vam-se  de  modo  que  ao  commercio  não  faltasse  trans- 
porte, nem  se  abusasse  no  preço  dos  fretes.  Fixaram-se 
as  tarifas  para  França  e  Flandres,  e  para  a  distribuição 
equitativa  dos  carregamentos  nomearam-se  corretores- 


1  Por  carta  de  D.  Duarte  em  1434.  Como  os  negociantes  de  pouca 
fazenda  davam  grandes  perdas  aos  mercadores,  obtiveram  estes  que  ninguém 
de  fora  da  terra  carregasse  fazendas  de  menos  de  3oo  coroas  d'ouro.  L.° 
Grande,  fl.  48,  Corpus,  pag.  139. 

2  Por  graça  de  D.  Fernando  em  1 383  escusando  o  pagamento  da 
siza  da  primeira  venda  que  fizerem  de  pannos  de  fora  do  reino.  L.°  Grande, 
fl.  42,  Corpus,  pag.  114. 

3  Por  carta  d'Affonso  IV  eram  poupadas  de  dizima  vestiarias  que 
trouxessem  de  Flandres  para  uso  próprio,  assim  como  «  calças,  canivetes, 
alfresses,  especias,  bacios  e  agomys,  e  outras  coisas  que  trazem  para  sy  e 
para  sas  casas».  Em  cada  bulhão  de  pannos  podia  entrar  livremente  um 
retalho  de  14  covados.  L.°  Grande,  fl.  34,  Corpus,  pag.  96.  D.  João  confir- 
mou no  seu  regimento  esta  franquia  assim  como  a  de  trazerem  de  Frandes 
de  dois  em  dois  annos  uma  «opa  empenada».  Que  luxo  1  Um  burguez  das 
Congostas  embrulhado  numa  opa  forrada  de  pennas  deixava  a  perder  de 
vista  o  melhor  pintalegrete  de  hoje  em  dia. 

4  Pela  provisão  de  D.  Fernando,  já  citada,  se  vê  que  havia  merca- 
dores que  descarregavam  navios  além  de  Villa  do  Conde  para  não  pagar 
dizima.  O  regimento  do  armazém  falia  dos  que  « trabalham  de  furtar  os 
panos  e  mercadoryas  »,  mettendo-as  debaixo  do  lastro  e  nas  arcas  dos  navios. 


7o 


fretadores  *,  intermédios  forçados  entre  os  commercian- 
tes  e  os  mestres  d'embarcações.  Os  navios  do  Porto 
buscaram  quanto  possível  subtrahir-se  ao  ónus  arbitrá- 
rio do  serviço  publico;  não  podiam  ser  constrangidos  a 
servir  o  Estado,  senão  por  intermédio  da  camará  2. 

Remata  as  feições  da  cidade,  como  grande  porto 
mercantil,  a  existência  d'uma  bolsa  de  commercio;  e 
maravilha  deveras  vêl-a  tam  cedo  instituida,  a  par  das 
que  se  estabeleceram  nas  mais  poderosas  praças  estran- 
geiras. Esta  bolsa  ascende  ao  meio  do  século  xiv,  mas 
as  guerras  da  independência  e  a  crise  nacional,  fizeram- 
n'a  cessar  até  que  os  burguezes  e  a  coroa  a  resuscitaram 
e  ampliaram.  O  accordo  camarário  de  1402  e  a  carta 
regia  de  1397  restauram  a  bolsa,  tributo  imposto  sobre 
todas  as  mercadorias  do  porto,  cujo  producto  era  desti- 
nado a  fazer  face  a  despezas  occasionaes  que  fora  do 
reino  incidissem  sobre  a  entrada  de  fazendas,  acquisição 
de  privilégios  e  obtenção  de  tratados,  assim  como  ou- 
tros encargos  communs  ao  commercio  da  cidade  3.  É 


1  A  eleição  e  funcçóes  destes  corretores  foram  decididas  por  accordo 
camarário  de  1324;  a  carta  de  D.  Affonso  de  1 355  interpretou  e  confirmou 
a  postura,  a  pedido  não  só  dos  mercadores  do  Porto,  como  de  Braga,  Gui- 
marães, Vizeu  e  Chaves.  L.°  Grande,  fl.  35,  Corpus,  pag.  97.  Uma  sentença 
de  1372  entre  negociantes  e  mestres  de  navios  estabelece  o  custo  da  tone- 
lada para  França  e  Flandres  em  6  escudos  de  verão  e  8  d'inverno.  L.°  A,  fi.S. 

2  Assim  se  decretou  nas  cortes  de  Lisboa  de  1455,  L.°  B,  fl.  338. 

3  Na  sessão  de  24  de  janeiro  de  1402  em  que  se  fez  o  accordão  da 
bolsa,  apresentou  o  cidadão  Diego  Affonso  uma  carta  de  privilegio  d'el-rei 
de  Inglaterra,  isentando  as  fazendas  do  Forto  de  direitos  novos  que  por  elle 
tinham  sido  impostos.  As  despezas  d'este  verdadeiro  tratado  de  commercio, 
negociado  directamente  pelos  nossos  burguezes,  deu  causa  á  restauração  da 
bolsa  que  na  carta  regia  se  diz  haver  existido  em  tempos  dos  reis  antecesso- 
res, tendo  cessado  «  por  razom  da  guerra  e  outras  necessidades  e  embargos  » ; 
e  consistia  ella  na  arrecadação  de  dinheiros  contados  sobre  a  valia  dos  car- 


7i 


um  signal  eloquente  de  solidariedade  mercantil  este 
previdente  seguro  mutuo  contra  embargos  que  a  miude 
surgiam,  embaraçando  ou  onerando  a  entrada  das  nos- 
sas mercadorias  fora  do  reino,  contra  os  desastres  e 
perdas  de  grandes  carregamentos,  contra  as  depredações 
dos  piratas  que  das  naus  do  Porto  faziam  preza,  emfim 
contra  tudo  quanto  então  fazia  affligir  e  perigar  o  com- 
mercio  \ 

Estes  e  outros  interesses  próprios  e  geraes  da  classe 
careciam  de  ser  discutidos  e  praticados  em  ajuntamento 
e  casa  commum.  Assim  o  fizeram  os  nossos  mercado- 
res, obtendo  de  D.  João  i  pelos  procuradores  do  conce- 
lho casa  e  foro  de  grémio,  á  semelhança  das  loggias  das 
cidades  italianas  e  das  bolsas  das  cidades  flamengas  \ 


reganientos,  com  o  fim  de  solver  despezas  « se  algum  embargo  acontecia, 
assy  como  ora  em  Galliza  e  outrossy  em  Ingraterra ». 

Estipulou  se  que  o  imposto  fosse  de  to  libras  por  cada  tonelada  sin- 
gela e  20  libras  por  cada  trouxel  de  panno.  Para  a  bolsa  «ordinhada  por 
prol  communal  da  cidade»  e  contra  a  qual  se  oppozeram  em  vão  os  merca- 
dores de  fora  (L.°  A,  fl.  121),  nomearam-se  logo  fretadores,  escrivão  e  the- 
soureiro  que  por  signal  era  um  «  Joliã  Pires  barba  mea  ».  L.°  das  ver.,  1439- 
1449,  fl.  40.  O  accordão  foi  publicado  por  Arnaldo  Gama,  loc.  cit.,  nota 
66;  traz  o  calculo  da  data  errado. 

1  Do  que  lá  por  fora  soffriam  n'esses  tempos  os  nossos  negociantes, 
é  exemplo  a  queixa  nas  cortes  de  1445  a  que  já  nos  referimos.  Uns  ladroes 
inglezes  saqueiam  nas  costas  do  seu  paiz  barcos  do  Porto  carregados  de 
fructa  e  vinho;  requereram  os  roubados  perante  a  justiça  ingleza ;  pois  fo- 
ram ainda  por  cima  mettidos  na  cadeia  e  a  custo  se  escaparam  da  prisão. 
Já  nas  cortes  de  Coimbra  de  1390  os  visinhos  do  Porto,  vendo-se  tantas 
vezes  presos  sem  culpa  e  demandados  injustamente  em  Inglaterra  e  Flan- 
dres, pediam  auctorisação  para  poder  resarcir-se  d'esses  damnos  perante 
as  justiças  do  reino  quando  cá  apanhassem  os  estrangeiros  rapinantes.  L.n 
cA,  fl.  4. 

3  A  carta  de  D.  João  é  de  1412,  aprazendo  ao  pedido  dos  procura- 
dores do  Porto  nas  cortes  de  Lisboa,  os  quaes  disseram  que  «  em  todos  os 
lugares  das  provincias  do  mundo,  onde  ha  mercadores,  se  costumou  e  cos- 


72 


Esta  primeira  bolsa  teve  a  sua  sede  num  prédio  d'arco 
na  rua  nova  a  S.  Nicolau,  a  celebre  rua  fermosa  do 
Mestre  d'Aviz  \  Desempenada  e  pracejada,  a  contras- 
tar com  as  cangostas  antigas,  obra  collossal  para  o 
tempo  e  despendiosa,  a  futura  rua  dos  Inglezes  e  do 
Infante  D.  Henrique,  foi  logo  dês  a  abertura  o  centro 
onde  se  arreigou  o  alto  trafico,  onde  brotaram  e  vi- 
goraram até  hoje  as  instituições  d'uma  solida  orga- 
nisação  commercial  maritima,  que  tem  sido  a  força 
prosperadora,  sempre  activa,  do  engrandecimento  da 
nossa  terra. 


tuma  terem  hua  casa  por  logea  em  que  fazem  seus  ajuntamentos  quando 
querem  fallar  sobre  alguas  coisas  que  pertencem  a  serviço  do  seu  senhor  e 
a  pro  de  suas  mercadorias».  Manda-lhes  pois  dar  uma  casa  sobre  um  arco 
na  rua  fermosa.  L.°  A,  fl.  5i. 

E  sabido  que  o  vocábulo  de  bolsa  vem  do  appellido  duma  família 
patrícia  van  der  cBuerse,  que  tinha  por  brazão  três  bolsas,  proprietária  da 
casa  onde,  a  partir  do  século  XIV,  em  Bruges  se  reuniam  os  negociantes. 
A  instituição  e  o  nome  da  casa  da  bolsa  derramou-se  depois  por  todo  o 
mundo.  O  prédio  da  rua  nova  do  Porto  foi  a  nossa  bolsa.  Todavia  a  bolsa 
de  commercio  existia  de  muito  antes,  organisada  com  seus  rendimentos  e 
administração,  como  já  vimos.  Evidentemente  aqui  o  termo  de  bolsa,  offi- 
cialmente  usado  nos  documentos  acima,  não  tem  o  sentido  figurado  que  se 
diz  originado  em  Bruges,  mas  sim  o  de  mealheiro  ou  cofre,  onde  se  guar- 
davam rendas  de  commercio  para  protecção  mercantil.  Não  sei  se  isto  abala 
a  etymologia  flamenga  do  vocábulo,  por  todos  repetida ;  a  verdade  é  (|ue  no 
Porto  o  grémio  dos  commerciantes  começou  por  uma  verdadeira  bolsa, 
bolsa  commum  de  dinheiros  que  se  amealhavam  para  seguro  contra  os 
azares  do  trafico. 

1  A  rua  nova  ou  rua  fermosa  foi  mandada  fazer  por  D.  João,  mas  á 
custa  da  cidade,  entenda-se.  Os  pedreiros  e  carpinteiros  que  n'ella  traba- 
lhavam, foram  isentos  em  i3q5  dos  encargos  do  concelho.  L.°  Grande,  h\ 
5o,  Corpus,  pag.  1 33 .  A  obra  teve  vedores  e  thesoureiros  aos  quaes  se  man- 
dou tomar  contas  uma  commissão  em  1418.  L.°  zA,  fl.  145. 


IX 


O  esboço  da  physionomia  topographica  e  social 
do  Porto  do  século  xv  poderá  completar-se  com  algum 
dado  numeral,  computativo  da  sua  população?  Em  taes 
eras  não  ha  que  buscar  contagens  recenseadoras  de  sa- 
tisfactoria  precisão;  essas  necessidades  d'estatistica  regu- 
lar para  a  administração  publica  vinham  remotas  ainda 
e  para  nós  remotíssimas,  embora  não  faltem  exemplos 
de  tentativas. 

A  força  numérica  dos  diversos  lugares  do  paiz 
tem-se  pretendido  induzir  duma  lista  recenseadora  dos 
besteiros  do  conto,  apurada  ainda  no  reinado  de  D.  João  i 
para  fixar  o  numero  dos  besteiros  que  devia  dar  cada 
uma  das  cidades,  villas,  julgados  e  concelhos  do  reino. 
É  uma  resenha  dos  contingentes  militares,  que  tinham 
obrigação  de  prestar  os  diversos  lugares  do  paiz,  con- 
tingentes que  andavam  minguados  e  em  parte  occupa- 
dos  por  inválidos;  de  preencher  as  vagas  e  promover  as 
substituições  foram  incumbidos  por  ordem  do  infante 


74 


D.  Duarte,  em  nome  d'el-rei,  Vasco  Fernandes  de  Tá- 
vora fazendo  as  vezes  de  Aífonso  Furtado,  anadel-mór 
dos  besteiros,  e  Armom  Botim,  escrivão  da  anadaria, 
que  correram  o  paiz  no  desempenho  da  sua  missão. 
Este  rol  de  recrutamento,  incluído  nas  Ordenações 
Affon sinas  \  foi  aproveitado  para  o  calculo  retrospe- 
ctivo da  população  portugueza,  pelo  académico  Soares 
de  Barros,  o  primeiro  que  sapientemente  se  occupou 
entre  nós  de  demographia  nacional  2.  Subscreve-lhe  a 
data  de  141 7,  que  Rebello  da  Silva  3,  allegando  o  exame 
directo  do  original,  emenda  para  1422,  marcando  uma 
data  que  é  aliaz  a  d'um  alvará  do  infante  desfazendo 
duvidas  dos  recrutadores  4.  A  data  de  1422  é  pois  ape- 
nas approximada  e  provável. 


1  L.°  I,  tit.  69,  pag.  438. 

2  Memorias  económicas  da  Academia  real  das  sciencias,  t.  I,  pag. 
148,  1789. 

3  Memoria  sobre  a  população  e  agricultura  de  'Portugal,  1868, 
pag.  43. 

4  O  rd.  A  gr.,  L.°  I,  tit.  69,  pag.  466. 

Ha  uma  outra  lista  de  besteiros,  attribuida  ao  reinado  de  D.  Diniz, 
mas  referente  apenas  a  algumas  terras  da  Estremadura  e  Beira  Occidental. 
Herculano,  t.  IV,  pag.  317;  Gama  Barros,  Historia  da  administração  pu- 
blica em  'Portugal,  t.  II,  1896,  pag.  233.  Rebello  da  Silva  também  architecta 
sobre  essa  tabeliã  computações  phantasticas.  Loc.  cit.,  pag.  47. 

Os  números  ordenados  em  1422  provavelmente,  para  o  apuramento  de 
Vasco  Fernandes  e  Armom  Botim,  presuppõem  listas  anteriores  sobre  as 
quaes  foi  arranjada  a  distribuição  dos  contingentes;  assim  o  declara  até  a 
provisão  do  infante  (Ord.  Aff.,  loc.  cit.,  pag.  435).  E  essas  listas  foram  obti- 
das pelos  recenseamentos  operados  em  diversas  épocas  pela  anadaria  mór 
do  reino,  de  que  encontrei  provas  em  diplomas  do  nosso  cartório  que  escla- 
recem e  completam  os  documentos  compilados  nas  Ordenações.  Assim  em 
1390  diz  el-rei  ao  concelho  do  Porto  que  manda  pelo  reino  Estevão  de 
Vasconcellos  Filippe,  anadel-mór,  para  apurar  todas  as  vintenas  de  homens 
do  mar  e  os  besteiros  do  conto,  segundo  o  regimento  que  dera.  L.°  das 
ver.  da  era  de  1428,  fl.  19.  E  no  anno  seguinte  ordena-lhe  que  não  augmente 


75 


Eram  os  besteiros  do  conto  uma  milícia  municipal 
permanente,  privilegiada  l,  fornecida  segundo  o  numero 
prefixado.  Se  este  contingente  fosse  proporcional  á  força 
numérica  do  povoado,  podia  estabelecer-se  com  certa 
approximação  e  segurança  uma  relação  conjectural  entre 
o  rol  dos  besteiros  e  o  censo  total  effectivo.  Assim  o 
parece  presumir  o  nosso  primeiro  demographista  Soares 
de  Barros,  presumpção  abertamente  acceita  por  Rebello 
da  Silva,  seguido  por  Pinheiro  Chagas  2,  que,  em  face 


o  numero  de  25  besteiros  que  sempre  houvera  no  Porto.  L.°  A,  fl.  36.  Re- 
pete-se  o  recrutamento  em  1411 ;  uma  provisão  regia  cTesse  anno,  dirigida  a 
Vasco  Fernandes  e  João  de  Basto,  manda  escusar  de  besteiro  do  conto,  a 
supplica  do  bispo  do  Porto,  um  criado  de  sua  irmã  Catharina  Affonso,  L.° 
das  ver.  de  1450,  fl.  12;  outra  provisão  do  mesmo  anno,  datada  em  Azurara, 
pelo  próprio  Vasco  Fernandes,  apurador  de  besteiros  em  nome  de  Affonso 
Furtado,  anadel-mór,  faz  escusar  um  besteiro  por  ordem  regia  e  manda  nomear 
outro  em  seu  lugar.  Confere  a  lição  d'estes  dois  documentos  com  a  das  car- 
tas de  D.  João  I  de  1410,  insertas  nas  Ordenações  ;  uma  avisando  as  justiças  e 
pessoas  de  todas  as  terras  do  reino  que  Vasco  Fernandes  de  Távora,  como 
apurador,  e  João  Basto,  como  escrivão,  vão  por  sua  ordem  marcar  e  escolher 
os  besteiros  do  conto  e  homens  das  vintenas  do  mar;  e  outra  formulando  o 
regimento  a  que  os  dois  commissarios  se  deviam  sujeitar  no  apuramento. 

Não  ha  pois  duvida  de  que,  por  ordens  dadas  em  141  o,  se  operou  um 
recrutamento  militar  em  todo  o  reino;  o  delegado  é  o  mesmo  Vasco  Fer- 
nandes que  nos  apparece  na  provisão  de  1422,  mas  o  escrivão  é  outro,  João 
de  Basto,  e  não  Armom  Botim.  Foram  esses  os  que  andaram  pelo  Porto  e 
Azurara  em  141 1. 

0  snr.  Gama  Barros  (loc.  cit.,  pag.  3o5),  reparando  em  dois  diplomas 
que  com  os  anteriores  se  compilaram  nas  ordenações,  mas  datados  em  1405, 
fica  em  duvida  sobre  a  época  do  arrolamento,  duvida  insubsistente  em  face 
da  approximação  documentar  que  fizemos.  Ou  esses  dois  diplomas  foram 
reproduzidos  com  erro  de  data,  e  para  um  delles  já  o  alvitra  o  snr.  Gama 
Barros,  ou  então  o  recenseamento  de  1410  foi  precedido  doutro  em  1405. 

1  Em  cortes  de  i36g  D.  Fernando  concede  aos  besteiros  do  Porto 
foro  de  cavalleiros,  um  juiz  especial  o  seu  anadel,  isenção  de  fintas  e  peitas, 
etc.,  privilégios  conducentes  a  facilitar  o  alistamento  pelo  qual  havia  não 
pequena  repugnância.  L.°  Grande,  fl.  40,  Corpus,  pag.  109. 

2  Hist.  de  Portugal,  v.  II. 


76 


da  resenha  de  Vasco  Fernandes,  estendem  em  lista  pom- 
posa as  cifras  censuarias  das  comarcas  e  principaes  lu- 
gares do  reino.  Deveriam  porém  ter  pesado  os  erros  a 
que  pôde  conduzir  este  modo  d'engendrar  estatísticas 
sobre  tam  incerta  base. 

Considerando  que  os  besteiros  se  tiravam  quasi 
exclusivamente  da  classe  dos  artistas,  dos  mesteiraes, 
claro  é  que  povoados  eguaes  forneceriam  contingentes 
diversos,  se  a  proporção  dos  seus  oíficiaes  d'offlcio  fosse 
diíferente;  a  população  urbana  por  exemplo,  onde  a 
classe  industrial  predomina,  daria  caeieris  paribus  mais 
besteiros  do  que  a  população  rural.  Sabe-se  por  outro 
lado  que  o  numero  dos  besteiros  nem  sempre  se  regu- 
lava pela  massa  da  população,  ou  antes  pela  quantidade 
dos  legalmente  recrutáveis. 

O  Porto  por  exemplo  era  apenas  obrigado  a  ter  25 
besteiros;  assim  o  ordenou  João  1  em  1391,  conser- 
vando o  contingente  antigo,  «visto  que  alli  se  faziam 
outras  apuraçoens  de  homens  de  vintena  do  mar,  caval- 
leiros,  peoens  e  arricaveiros»  '.  Elevado  depois  este 
numero  a  40,  e  já  assim  figura  no  rol  de  Vasco  Fer- 
nandes, o  concelho  nas  cortes  de  Coimbra  de  1439, 
pediu  a  sua  reducção  á  cifra  primitiva,  allegando  que  na 
cidade  havia  muitos  besteiros  de  polé,  de  cavallo  e  de 
garrucha  e  que  em  tempo  de  guerra  todos  pegavam  em 
armas;  o  recrutamento  forçado  é  que  lhes  repugnava, 
pois  que  muitos  para  se  eximirem  fugiam  da  cidade 
quando  se  tratava  da  inscripção,  levando  cada  um  os 


1     L.°c/\,  fl.  36.  Esta  ordem,  já  acima  citada,  foi  dada  em  carta  regia 
a  Estevão  Vasques  Filippe,  anadel-mór,  apurador  das  vintenas  e  besteiros- 


77 


seus  capitães  e  mudando  de  terra  «por  cujo  motivo  se 
ia  despovoando»  \  Era  já  o  militarismo  a  atiçar  a  emi- 
gração, o  que  contrariava  os  burguezes  aífeiçoados  ao 
crescimento  da  sua  cidade. 

Eis  ahi  uma  prova  manifesta  de  quanto  as  condi- 
ções locaes  influiam  sobre  o  pelotão  dos  milicianos.  E 
quantas  haveria  que  juntar-lhe;  o  próprio  infante  o  diz 
na  provisão,  quando  aíHrma  que  na  resenha,  apresentada 
a  Vasco  Fernandes,  a  algumas  cidades,  villas  e  lugares 
tocariam  menos  besteiros  do  que  os  já  taxados  em 
tempo  do  pai  e  reinados  anteriores  2.  Tudo  concorre 
pois  a  legitimar  o  asserto  de  que  grandes  discrepâncias 
havia  entre  a  força  demographica  de  cada  terra  e  o  conto 
arbitrado  de  besteiros  3. 

Soares  de  Barros  assigna  á  população  de  Lisboa  e 
Porto  ao  tempo  do  arrolamento  respectivamente  os  nú- 
meros de  63:750  e  8:500  pessoas,  números  que  dividi- 
dos pelos  contingentes  das  duas  cidades,  que  na  lista 
dos  besteiros  são  de  300  e  40,  dão  um  quociente 
approximado  de  213.  Haveria  pois  um  besteiro  por  213 
habitantes,  relação  que  Rebello  da  Silva  formula  e  ge- 
neralisa,  sem  attentar  nas  objecções  que  naturalmente 
suscita  este  abuso  demographico.  Escuda-se  com  le- 
veza condemnavel  na  auctoridade  de  Soares  de  Barros 
e  Balbi.  Ora  o  académico  não  se  atreve  a  estatuir  a  taxa 


1    L.»  <B,  fl.  3o8. 

*    Ord.  Aff.,  /.  c,  pag.  436. 

3  Braga  tanto  se  sentiu  onerada  que  em  1462  representava  a  D.  Affon- 
so  V  contra  o  conto  de  5o  que  lhe  era  imposto,  allegando  que  era  despro- 
porcional ao  numero  dos  seus  habitantes,  e  uma  causa  de  despovoamento ; 
pedia  que  lhe  reduzissem  os  besteiros  a  25.  Gama  Barros,  loc.  cit.,  pag.  168. 


78 


censuaria  dos  besteiros,  nem  adduz  a  menor  considera- 
ção para  justificar  a  quota  de  213;  e  o  geographo,  em- 
bora aproveite  d'este  o  computo  de  Lisboa  e  Porto,  nem 
uma  palavra  solta  sobre  a  resenha  dos  besteiros,  pou- 
pando-se  até  a  qualquer  referencia  de  calculo  ao  arrola- 
mento de  1422,  como  elemento  depreciação  para  a  po- 
pulação geral  do  paiz. 

O  rol  de  Rebello  da  Silva  pôde  mencionar-se  a 
titulo  de  inventario  curioso,  mas  desbalise-se  por  com- 
pleto o  seu  credito,  tanto  quanto  o  evidencia  a  critica 
segura  que  arrazoamos  *.  Assim  o  Minho,  ou  antes  a 
comarca  d'Entre  Douro  e  Minho,  vinha  numericamente 
em  terceiro  logar  (125  mil),  depois  da  Beira  (215  mil) 
e  do  Alemtejo  (316  mil);  mas  de  menor  território  a 
sua  população  especifica  orçava  pela  d'aquellas  duas 
províncias.  Preparava-se  o  Minho  para  a  extrema  po- 
pulosidade  que  attingiu  ao  depois,  a  contrastar  com  o 
Alemtejo  votado  ao  ermo. 

N'este  possante  viveiro  humano  se  creou  o  Porto; 


1  Já  depois  cTescripto,  e  até  composto,  o  que  se  lê  no  texto,  veiu- 
nos  felizmente  ás  mãos  a  Historia  da  administração  publica  do  snr.  Gama 
Barros,  livro  damplissima  investigação  e  d'um  apuro  exemplar  de  factos  e 
documentos.  Distingue-se  bem  d'estas  historias  de  massa  revelha  que  nos 
continuam  a  servir,  com  applauso  do  noticiário,  como  o  chá  cansado  do 
Tolentino.  Vejo  com  prazer  que  o  snr.  Gama  Barros  entende  « que  o  nu- 
mero dos  besteiros  só  por  si  é  elemento  sem  valor  para  indicar  a  grandeza 
e  prosperidades  absolutas  ou  relativas  de  qualquer  terra».  T.  II,  pag.  244. 
Em  nota  (pag.  3o3)  critica  também,  embora  suavemente,  o  rol  pseudo-demo- 
graphico  de  Rebello  da  Silva,  mostrando  que  o  modo  porque  eram  apurados 
os  besteiros  estava  sujeito  a  indefinidas  variantes. 

Os  erros  de  methodo,  as  inexactidões,  os  equívocos  e  até  os  cálculos 
falsos  são  tantos  que  o  trabalho  de  Rebello  da  Silva  é  n'este  ponto  um  acervo 
de  monstruosidades  que  deixam  desauctorisado  o  historiador;  errar  acontece 
a  tv!o~,  iT-jj-  tinto  é  ^'nWvel  n\m  psciptor  de  tomo. 


79 


todavia  os  seus  8:500  habitantes  não  lhe  davam  sequer 
o  primado  entre  as  cidades  minhotas.  A  velha  Braga 
passava  de  dez  mil  almas,  e  a  própria  Ponte  de  Lima 
de  seis  mil  *.  Pelo  paiz  fora  havia  umas  poucas  de  cida- 
des que  sobrelevavam  consideravelmente  ao  Porto,  com 
mais  de  vinte  mil  moradores;  taes  Coimbra,  Santarém  e 
Évora,  nenhuma  das  quaes  se  goza  hoje  de  semelhante 
cifra.  Excediam-n'o  ainda  Setúbal,  Beja,  Almada,  Faro; 
e  emparelhavam  com  elle  Thomar,  Leiria,  Elvas,  Es- 
tremoz. 

Estes  parallelos,  alguns  dos  quaes  são  aliaz  vero- 
símeis por  inferência  histórica  embora  outros  sejam 
pouco  ou  nada  criveis,  sobre  peccarem  por  fundamento, 
como  já  vimos,  sujeitam-se  ainda  a  outro  erro,  que 
não  escapou  a  Pinheiro  Chagas;  é  a  falta  de  exacta  cir- 
cumscripção,  visto  que  a  cada  villa  ou  cidade  corres- 
pondia um  termo  de  grande  ou  pequena  área,  e  da  in- 
clusão ou  exclusão  d'elle  advinham  difíerenças  de  monta. 
Não  nos  diz  o  rol  precisamente  que  Porto  era  esse  o 
que  dava  os  40  besteiros,  computado  em  8:500  habi- 
tantes; e,  por  via  de  regra,  os  que  teem  assignado  ao 
Porto  cifras  censuarias,  correspondentes  a  épocas  pas- 
sadas, as  manejam  e  comparam  como  se  se  tratasse 
sempre  d'identico  território.  No  apuramento  de  Vasco 
Fernandes  apparecem  sobre  si  as  zonas  comarcas  limi- 


1  Rcbello  da  Silva  dá  Guimarães  especificadamente  como  o  lugar 
mais  povoado  no  norte  com  21:000  habitantes;  mas  a  resenhados  besteiros 
em  Soares  de  Barros  assigna-lhe  apenas  dez  besteiros ;  houve  erro  de  cifra. 
Logo  adiante  na  no:a  a  pag*  5j  apresenta  Guimarães  com  2:i3o.  O  illustre 
escriptor  apurava  os  dados  históricos  n'este  gosto.  Ao  comparar  o  seu 
pseudo-censo  de  J422  com  o  de  1527  encontra  saltos  descommunacs,  que 
nem  sequer  o  feriram  pela  inverosimilhança. 


8o 


trophes  do  Porto,  como  eram  os  julgados  de  Azurara, 
de  Refoios,  de  Aguiar  de  Souza,  de  Penafiel,  de  Gaya, 
da  Maia,  a  que  pertencia  Paranhos,  e  de  Bouças  a  que 
pertenciam  Foz  e  Lordello.  Parece  que  estes  termos 
foram  excluídos  da  contagem ;  os  que  lá  não  vêem,  e 
não  se  sabe  se  foram  mettidos  ou  não  no  Porto,  são  o 
couto  de  Cedofeita  a  que  pertencia  Massarellos,  o  jul- 
gado de  Melres  e  Gondomar,  que  continha  Campanhã. 
Seja  como  fôr,  este  numero  de  8:500  moradores 
attribuido  ao  Porto  e  arrabalde  mais  chegado,  não  deixa 
de  contrastar  com  os  testimunhos  coevos  do  engrande- 
cimento e  prosperidade  da  cidade.  Pois  o  Porto  que  foi 
chamado  a  entrar  no  conselho  d'estado  que  as  cortes 
impozeram  a  D.  João,  ao  lado  de  Coimbra  e  Évora, 
estaria  em  tamanha  desproporção  de  gentes?  Em  1436 
nos  famosos  capítulos  das  cortes  d'Evora,  o  Porto  inti- 
tulava—se já  sem  disputa  o  segundo  membro  de  Portu- 
gal. É  verdade  que  D.  Fernando  deu  ao  Porto  para  seu 
termo  o  julgado  de  Melres,  em  1369,  a  pedido  dos 
homens  bons  que  lhe  disseram  ser  a  cidade  de  pouca 
«companha»  e  não  povoada  como  cumpria;  queriam 
segundo  se  exara  na  carta  regia  maior  termo  para  que  se 
podesse  melhor  povoar  e  ser  mais  honrada  e  avondada 
das  coisas  que  aos  moradores  d'ella  fossem  mister.  Não 
estavam  pois  no  mesmo  plano  a  sua  populosidade  e 
importância;  dir-se-hia  que  se  lhe  fallecia  povo,  sobra- 
va-lhe  valor  e  riqueza.  Quando  o  Mestre  d'Aviz  em 
justo  galardão  do  seu  esforço  e  civismo  lhe  addicionou 
ao  termo  os  julgados  limitrophes,  a  cidade  conquistou 
para  sua  jurisdicção  uma  área  enorme,  abrangendo 
Bouças,  Azurara,  Santo  Thyrso,  Penafiel  e  Gaya,  um 


8i 


território  pouco  menor  do  que  o  actual  districto.  Fica- 
ram sujeitos  os  povos  d'esta  larga  circumscripção  ás 
justiças  e  officiaes  do  concelho,  que  attingiu  assim  um 
poderio  enorme.  Constituia  dentro  do  reino  um  pe- 
queno estado;  mas  a  valia  da  sua  capital  era  anterior  á 
formação  do  potentado  e  independente  d'elle.  O  Porto 
em  si  não  podia  ser  um  villar  mesquinho;  que  estivesse 
inferior  em  habitantes  a  Coimbra,  a  Évora  e  a  Santarém, 
pôde  julgar-se  exacto;  abaixo  porém  de  tantas  outras 
terras,  a  que  Rebello  da  Silva  assigna  números  superio- 
res, não  deve  crêr-se.  Isto  não  invalida  o  poder  julgar-se 
approximado  o  computo  de  8:500  almas;  ajusta-se  o 
numero  com  o  recenseamento  de  D.  João  111  um  século 
depois,  e  suppôr-lhe  agora  população  maior  seria  admit- 
tir  uma  regressão  posterior,  o  que  é  pouco  admissivel. 
Não  ha  duvida  porém  de  que  a  cifra  de  Soares  de  Barros 
se  não  proporciona  bem  á  valia  social,  politica  e  econó- 
mica do  Porto  em  pleno  século  xv.  . 


X 


A  crescença  popular  era  lenta  na  meia-edade;  não 
bafejavam  o  viveiro  humano  as  condições  mesologicas 
dos  dias  d'hoje.  Travavam  o  progredimento  causas  de 
toda  a  ordem,  económicas,  sociaes  e  sanitárias.  A  era  da 
abastança,  trazida  pelo  desenvolvimento  commercial  e 
industrial,  pelo  descobrimento  e  colonisação  dos  paizes 
remotos,  não  se  inaugurara  ainda;  e  a  parca  riqueza 
publica  nem  sequer  tranquillamente  se  fruia,  antes  se 
desbaratava  e  tolhia  em  continuas  pelejas. 

Sorvedouro  de  posses  e  pessoas,  a  guerra  é  um  dos 
grandes  inimigos  demographicos;  e  para  nós  inimigo 
jurado,  que  dizimou  como  poucos  a  população  portu- 
gueza.  Os  gritos  de  Santiago  e  S.Jorge,  na  arrancada  de 
continuas  batalhas,  raro  deixavam  d'estrugir;  contra  a 
mourisma  primeiro  na  conquista  interna,  contra  o  cas- 
telhano invasor  na  defeza  nacional,  contra  as  gentes 
d'além  mar,  quando  a  febre  aventureira  da  Índia  de- 
mentou o  paiz  num  suicidio  grandioso,  trucidando  e 


83 


sepultando  gerações  successivas  na  mais  larga  esteira  de 
mar  e  no  mais  remoto  raio  de  plagas  que  jamais  homem 
houvera  trilhado. 

Depois,  os  esterquilineos  em  que  se  amesendrava 
o  povoado  das  cidades,  aquella  immundicie  proverbial 
das  gentes  christãs  da  edade  media;  e  tamanha  que  aqui 
no  Porto  revoltava  ás  vezes  os  aliaz  bem  pouco  susce- 
ptíveis moradores  l.  A  má  hygiene,  fomentadora  de  mo- 
léstias, casava-se  com  flagellos,  filhos  d'uma  etiologia 
especial  do  tempo.  A  lepra  abrolhava  na  pelle  esquálida 
os  seus  rebentos  ascorosos;  era  uma  endemia  terrível, 
ao  mesmo  par  repellente  e  piedosa.  Do  povoado  refuga- 
vam-se  os  gafos,  entes  perigosos  e  degenerados;  mas  á 
povoa  maldita  e  sequestrada  das  gafarias  presidia  o  prin- 
cipio severo  da  salvação  publica,  adoçado  com  o  bálsamo 
da  caridade  christã.  Próximo  do  Porto,  havia  os  lepro- 
sos d'Alfena,  herdeiros  citados  em  vários  testamentos  de 
bispos,  e  ás  barbas  da  cidade  a  gafaria  de  Mijavelhas, 
resguardada  e  privilegiada  pela  coroa  2. 

Depois  ainda  d'este  cancro  interno  e  endémico,  que 


1  Ricardo  Jorge,  Saneamento  do  Porto,  pag.  88.  Vários  accordáos 
dos  séculos  XIV  e  XV  estabelecem  posturas  contra  o  acervo  da  porcaria. 
Em  i5i9  os  moradores  da  rua  do  Souto  clamam  contra  as  sujidades  e  fedo- 
res das  viellas  dos  Pellames. 

2  Uns  poucos  de  testamentos  do  século  XIII,  transcriptos  no  Censual 
do  Cabido,  como  os  dos  bispos  Julião,  Vicente  e  Sancho,  mencionam  lega- 
dos aos  leprosos  d'Alfena,  e  também  aos  de  Gaya  e  Porto. 

Em  i385  os  gafos  de  Cima  de  Villa  de  Mijavelhas  tiveram  de  João  I 
a  confirmação  dos  privilégios  que  lhes  foram  outorgados  pelos  antecessores. 
Os  leprosos  eram  coutados  e  defesos ;  nenhum  fidalgo  ou  cidadão  lhes  podia 
fazer  «força  nem  mal  nem  outro  desaguisado  nenhum»,  nem  tão  pouco 
metter  entre  elles  gafos  de  fora  da  cidade  sem  o  seu  consentimento  e  do 
seu  vigário.  L.°  Grande,  fl.  45,  Corpus,  pag.  121. 


84 


roia  vorazmente  o  povoado,  o  açoute  cruelissimo  do 
flagello  externo,  epidemico,  o  feixe  supremo  de  todas  as 
calamidades. 

No  século  xiv  a  peste  do  levante  arremetteu-nos 
bastas  vezes;  e  mais  ateou  os  seus  estragos  nos  sé- 
culos xv  e  xvi  \  A  epidemia  de  1348,  a  famosa  peste 
grande,  um  dos  maiores  extermínios  que  tem  vindo 
ao  mundo,  foi  aqui  como  em  toda  a  parte  uma  cala- 
mitosa mortandade  nunca  vista.  Invade  o  flagello 
ainda  em  141 5  as  cidades  de  Lisboa  e  Porto;  trouxe- 
ram-n'o  os  navios  estrangeiros  que  vieram  reforçar  a 
armada  de  Ceuta,  e  d'ahi  o  seu  assalto  nos  dois  portos 
d'embarque  2. 

O  ultimo  quartel  do  século  xv  é  uma  epidemia 
pegada,  rastilhando  successivamente  pelo  reino  3.  Ardia 
a  peste  em  Coimbra  em  1479  e  a  camará  accordou  logo 
na  guarda  da  cidade,  prohibindo  o  ingresso  em  Villa 


1  Vieira  de  Meirelles,  Epidemiologia  Portuguesa.  Gama  Barros, 
loc.  cit.,  cap.  XIII.  O  archivo  municipal  encerra  numerosas  noticias  muito 
interessantes  sobre  peste;  alguns  cTesses  trechos  publicou-os  o  illustrado 
prof.  Maximiano  de  Lemos  nos  seus  excellentes  Archivos  da  Historia  da 
Medicina,  n.°  3,  1894.  Tencionamos  em  lugar  adequado  minuciar  quanto 
seja  possível  a  epidemiologia  portuense,  antiga  e  moderna. 

3  Mateus  Pisano,  o  historiador  da  guerra  de  Ceuta,  diz  que  a  pesti- 
lência «graviter  Ulisiponem  et  Portum  civitatem  affligebat».  Gama  Barros, 
loc.  cit. 

3  Vieira  de  Meirelles  expungiu  estas  crises  epidemicas  da  serie  pes- 
tilencial, allegando  a  longa  duração  da  epidemia  e  a  falta  de  noticia  positiva 
de  peste  no  resto  da  Europa.  Estas  razões  são  tam  fracas,  que  nem  vale  a 
pena  mostrar  que  nada  provam.  Que  os  judeus  expulsos  de  Castella,  d'onde 
começou  a  emigração  em  1487,  trouxessem,  não  a  peste,  mas  um  contagio 
especial  de  tabardilho,  contra  o  qual  também  se  premuniu  a  nossa  camará, 
aventa-se  dos  testimunhos  citados  por  Meirelles;  do  que  se  não  segue,  antes 
o  contrario  se  presume,  que  o  andaço  que  havia  tanto  assolava  o  reino,  não 
fosse  peste. 


85 


Nova  de  toda  a  gente  que  viesse  dos  lugares  contami- 
nados í. 

Os  cordões  sanitários  dos  próvidos  burguezes  rom- 
peu-os  a  contagião,  e  por  tal  arte  que  dois  annos  depois 
a  cidade,  dizem  os  accordãos  municipaes,  estava  tam 
trabalhada  e  enferma  dos  ares  corruptos  que  a  mór 
parte  da  gente  era  d'aqui  ida  e  fugida  2. 

Não  se  fartou  o  mal  com  tamanha  immolação. 
Logo  em  86  rebenta  um  foco  pestífero  na  rua  do 
Olival;  entaipou-a  a  camará,  a  vêr  se  pelo  sequestro 
jugulava  o  mal;  mas  a  infecção  saltou  fora  do  cercado, 
obrigando  o  senado  a  crear  um  hospital  d'empestados 
com  seu  physico  e  enfermagem  na  torre  de  Pedro  Sem  3. 

Nova  irrupção  em  1488,  provendo-se  um  hospital 
no  Senhor  d'Além,  em  Villa  Nova,  para  onde  se  despa- 
chavam os  atacados  dentro  d'uma  barca  especial  só  a 
este  serviço  destinada  \  A  imminencia  do  açoute  da 


1  Todos  os  visinhos  foram  obrigados  a  guardar  «  por  giro  a  Porta  da 
Pibeira  e  a  área  e  as  barcas  de  Villa  Nova  ».  L.°  das  ver.  de  1475  e  segg.,fl.  83. 

2  A  eleição  dos  officiaes  da  camará  em  1481  fez-se  em  Azurara  pelo 
impedimento  da  peste;  e  á  morte  de  Affonso  V  n'esse  anno,  não  se  lhe 
fizeram  as  exéquias,  porque  não  havia  bispo  nem  cónegos,  e  a  maior  parte 
dos  cavalleiros  e  cidadãos  estavam  ausentes  por  causa  da  pestilença.  Loc. 
cit.,  fi.  1 55  e  i65.  Em  84  accordou-se  em  fechar  as  portas  e  postigos  menos 
necessários,  prohibindo-se  o  acolher  pessoas  vindas  de  Barcellos  e  Aveiro, 
terras  contagiadas.  L.°  das  ver.  de  1484,  fl.  23. 

8  O  actual  nome  de  rua  das  Taypas  recorda  este  episodio  epidemico. 
O  procurador  da  cidade  Joham  de  França  propoz  a  creação  do  hospital  com 
physico,  um  sangrador,  e  duas  enfermeiras;  para  as  despezas  abriu-se  uma 
subscripção  entre  as  pessoas  abonadas.  A  torre  de  Pêro  do  Sem  está  ainda 
de  pé  no  palácio  Monfalim,  não  sei  porque  feliz  sorte.  L.°  das  ver.  de  1485 
e  segg.,  fl.  26. 

*  Em  S.  Nicolainho,  hoje  Senhor  d'Além.  Nomeou-se  um  Pêro  Vaz 
barqueiro  para  conduzir  os  enfermos,  e  não  outras  pessoas.  L.°  das  ver.  de 
1488,  fl.  3. 


86 


pestilência  era  continua;  os  moradores  faziam  sentinella 
á  vez  ás  portas  da  cidade,  e  a  guarda  da  peste  confiava-se 
a  cidadãos  vigilantes  e  dedicados  *. 

O  século  xvi  viu  succederem-se  as  crises  epidemi- 
cas;  a  de  1521  foi  tam  aguda  e  mortifera  no  Porto,  que 
se  trancavam  as  casas,  sequestrando  os  atacados  e  ex- 
pulsando da  cidade  os  moradores;  houve  quasi  uma 
emigração  em  massa,  voltando  somente  aos  penates  os 
visinhos,  mezes  depois  do  derradeiro  caso  de  pestilên- 
cia 2.  O  immenso  morticínio  de  1569,  que  só  á  parte  de 
Lisboa  levou  sessenta  mil  habitantes,  também  castigou 
a  cidade  3,  assim  como  a  epidemia  de  1581-82  que  dei- 
xou apoz  si  um  longo  rasto  de  cadáveres.  Foi  tal  o  de- 
solamento  que  D.  Filippe  mandou  um  soccorro  ao  con- 
celho de  1:500  cruzados  para  acudir  aos  empestados  *. 
Algumas  vezes  foi  o  Porto  poupado  pela  peste;  ou  por 
eífeito  do  draconismo  prophylatico,  ou  mercê  de  S.  Ro- 
que a  quem  os  portuenses  erigiram  capella  para  desvio 
do  contagio,  teve  a  cidade  a  boa  fortuna  de  se  vêr  illesa 
em  98  e  99,  annos  em  que  a  epidemia  não  deixou 
canto  do  reino  que  não  assolasse  5. 


1  Gonçalo  AfFonso  mercador  tinha-se  desempenhado  muito  a  con- 
tento de  todos  d'esta  missão  de  guarda  da  peste.  O  corregedor  porém  arbi- 
trariamente o  degradara  da  cidade,  o  que  a  camará  revogou  chamando  ao 
seu  posto  o  zeloso  commissario  para  lhes  afugentar  a  peste  que  incendiava 
Guimarães  e  cercanias.  L  °  das  ver.  de  1488,  fl.  19.  Em  94  vêem  no  livro 
respectivo  dous  guardas  nomeados. 

2  L.°  i.°  das  Provisões,  fl.  l65. 

8  Foi  contratado  o  physico  Lopo  Dias  da  Cunha  por  20  cruzados 
para  curar  da  peste.  El-rei  mandou  tambcm  ao  Porto  em  iby5  Jorge  de  Sá, 
lente  de  véspera  em  Coimbra.  L.°  2.0  das  Prop.,  fl.  426. 

4  L.°  j.°  das  Prop.,  fl.  49. 

5  Rebello  da  Costa,  loc.  cit.,  pag.  299.  Meirclles  acha  muito  im- 


§7 


Sem  desdobrar  as  folhas  da  epidemiologia  por- 
tuense \  estes  exemplos  bastam  para  mostrar  quanto  o 
burgo  sofTreu  de  successivos  insultos  epidemicos,  que 
lhe  levavam  largo  tributo  de  vidas.  Ao  extermínio  das 
pestes  jungia-se  o  das  fomes;  uma  era  a  mensageira  ou 
a  despedida  da  outra.  Antes  que  a  grande  relacionação 
commercial  de  nossos  dias  desse  em  resultado  uma 
espécie  de  seguro-mutuo  das  nações  contra  as  faltas 
eventuaes  d'alimentação,  anno  de  má  colheita  era  anno 
de  fome;  e  por  vezes  tal  e  tanta  que  punha  os  famintos 
a  caminho,  juncando  as  estradas  de  corpos  inanimados. 
Para  sustar  este  espectro  choviam  os  accordãos,  a  ter 
mão  na  exportação  de  géneros,  e  a  importar  o  pão  defi- 
ciente da  Inglaterra,  da  França,  ou  d'onde  mais  feliz 
colheita  o  abundava. 

A  guerra  misturava-se  com  estes  horrores,  aggra- 
vando-os  ou  provocando-os.  É  de  vêr  o  rejubilo  com 
que  o  senado  acolhia  a  nova  de  pazes,  cobrindo  d'alvi- 
çaras  os  portadores  da  boa  mensagem.  Não  pouco  sof- 
frera  a  cidade,  não  só  das  guerras  do  reino,  mas  dos 
seus  próprios  alvoroços,  das  suas  brigas  com  a  mitra, 


provável  que  a  cidade  ficasse  indemne.  Esta  capella  foi  instituída  defronte 
do  alpendre  da  cathedral;  derrubada  pelo  terremoto  de  Lisboa,  o  advogado 
da  peste  mudou  para  o  largo  do  Souto,  d'onde  ha  annos  o  camartello  muni- 
cipal o  desalojou  de  vez.  E  curioso  que  na  testada  se  lia  a  seguinte  hespa- 
nholada :  Slet  hoec  dotnus,  donec  formica  tolum  imbibat  maré,  et  donec  tes- 
ludo  tolum  circumambulet  orbem ;  ora  antes  que  a  formiga  tivesse  bebido 
um  dedal  e  a  tartaruga  andasse  uma  lcgua,  a  capella  vinha  abaixo. 

1  Deixamol-o  para  a  sequencia  do  nosso  trabalho  este  interessantís- 
simo capitulo,  onde  abundam  espécies  curiosas  em  matéria  sanitária.  O  Porto 
praticou  assignalados  serviços  em  differentes  pestes  das  visinhanças  como 
dAzurara,  Penafiel,  Espozende,  etc. ;  e  os  seus  regimentos  prophylaticos 
são  de  primeira  importância  na  historia  da  hygiene  portugueza. 


que  de  momento  pelo  menos  lhe  deviam  afugentar  a 
visinhança. 

Estes  três  males  supremos  eschematisaram-se  em 
diabólica  trindade  na  mente  espavorida  dos  nossos  avós: 
peste,  fome  e  guerra  eram  o  terror  do  mundo;  que 
Deus  e  santos  o  livrassem  d'ellas  toda  a  alma  christã  o 
resava  dia  a  dia. 

Comprehende-se  que  com  estes  inimigos  desenca- 
deados a  população  a  custo  reparasse  as  suas  perdas;  da 
crescença  physiologica  pouco  sobraria  para  cobrir  os 
deficits,  e  ás  vezes  não  chegava.  O  povoado  definha- 
va-se,  ou  a  custo  e  lentamente  progredia.  Mas  o  Porto 
é  d'estas  cidades  que  subsistem,  quando  mais  não  seja, 
por  necessidade  topographica;  da  terra  haurem,  como 
Anteu,  a  força  indestructivel.  A  labuta  commercial  sus- 
tinha-o  de  pé,  vergado  momentaneamente  ao  peso  da 
calamidade,  resurgindo  logo  melhorado  em  gentes  e 
cabedaes. 

E  quando  se  escancarou  o  torvelinho  dos  mares  e 
se  semeavam  feitorias  e  colónias  pelos  portos  longin- 
quos,  surgidoiro  primeiro  das  nossas  quilhas,  o  Porto 
lá  foi  mercanciar,  tocado  pela  especulação  das  especiarias 
e  dos  géneros  orientaes.  Os  fumos  da  índia  também 
nos  embriagaram.  Os  pardaos  até  circulavam  em  Basto, 
como  conta  Sá  de  Miranda.  O  Porto,  que  começou  logo 
a  negociar  com  a  Madeira  e  Açores  l,  servindo  d'entre- 
posito  para  o  commercio  d'exportação,  fez  com  Villa 
de  Conde  e  Vianna  a  possivcl  concorrência  a  Lisboa,  o 


1     A  carta  regia   de    1497  regula  o  carregamento  dos  assucares  da 
Madeira  para  Flandres.  L."  ant.°  das  Provisões,  fl.  5o. 


89 


grande  empório  das  conquistas  d'Oriente.  Em  Antuér- 
pia, onde  confluiam  as  especiarias  da  índia  comboiadas 
pelas  naus  portuguezas,  teve  D.  João  m  um  feitor, 
Manuel  Cirne,  negociante  do  Porto,  famoso  pela  sua 
opulência  e  bizarria  K 

Quem  contribuirá  immenso  para  o  fomento  das 
nossas  expedições  descobridoras,  ninguém  o  reconhe- 
cia. Fora  o  judeu  intelligente,  illustrado  e  activo,  ao 
mesmo  par  homem  d'estado  e  de  saber,  negociante  e 
astrónomo,  financeiro  e  mathematico.  Sellado  pelo  ódio 
popular  e  pelo  fanatismo  religioso,  aguentara-o  a  poli- 
tica hábil  de  João  n,  mas  repellia-o  o  ominoso  tratado 
de  D.  Manuel,  pactuando  com  Castella  na  atroz  perse- 
guição dos  confessos,  que  tam  caro  tinham  pago  a 
hospitalidade  portugueza.  A  misérrima  carta  de  5  de 
dezembro  de  1496  intimava  a  expulsão  dos  judeus,  e 
com  falsa  caridade  convidava  a  camará  do  Porto  a  dei- 
xal-os  ir  em  paz  e  sem  aggravo  2.  Era  uma  formidável 
sangria  no  organismo  nacional,  que  lhe  vasava  os  me- 
lhores glóbulos  rubros  a  paizes  extranhos.  A  colónia  he- 
braica formava  o  recheio  da  nação,  e  o  judeu  portuguez, 
como  dizia  o  hebreu  londrino  Costa  em  controvérsia 


X 


1  Atacado  de  febre,  tratou-o  Amato  Lusitano,  a  quem  gratificou 
pela  assistência  de  vinte  dias  vcom  tresentos  ducados  d'ouro.  O  auctor  das 
Centúrias  desfaz  o  latim  perante  esta  magnificência  de  honorários;  não  que 
o  presente  era,  se  me  não  engano,  superior  a  seiscentos  mil  reis  d'hoje  em 
dia.  Não  será  maligno  presumir  que  este  liberal  varão  não  deveria  ter  assis- 
tido muito  tempo  no  Porto.  Conta-se  da  sua  extravagante  prodigalidade  que 
n'um  dia  de  banquete  em  Antuérpia  mandou  queimar,  tanto  nos  fogões  de 
sala  como  na  cosinha,  em  vez  de  lenha,  paus  de  canella.  A  Índia  dava  para 
tudo.  Maurício  Lopes,  loc.  cit. 

2  L.°  Ant.°  das  'Provisões,  fl.  66. 


90 


com  Voltaire,  era  em  costumes,  intelligencia  e  actividade 
o  escol  dos  judeus  de  todo  o  mundo.  Barbara  e  estúpida 
lei,  a  que  a  custo  se  subtrahiram  os  que  apparentemente 
mudaram  de  fé,  dizimados  mais  tarde  nas  grelhas  da 
inquisição.  E  é  de  crer  com  Galton  que  se  não  fora  essa 
conservação  por  mimetismo  religioso,  a  servir  de  fer- 
mento na  massa  da  população,  ter-se-hia  operado  em 
toda  a  peninsula  a  cretinisação  absoluta  pela  selecção 
do  queimadeiro  e  pela  educação  fradesca. 

Os  judeus  portuguezes,  acolhidos  lá  fora,  foram  en- 
riquecer Antuérpia  e  Amsterdam.  Os  nossos  mais  dis- 
tinctos  médicos,  os  Amatos  e  os  Zacutos,  os  primeiros 
do  tempo,  emigravam  perseguidos;  as  bestas-feras  de 
S.  Domingos  não  deixavam  quartel  aos  falsos  conversos, 
apezar  da  eloquente  e  hábil  defeza  de  António  Vieira. 

Desertara  a  opulenta  judiaria  do  Olival;  devasso 
o  lugar,  herdaram-no  os  benedictinos,  que  vieram  aben- 
çoar ovantes  e  inúteis  a  terra  maldita  da  synagoga.  E 
emquanto  os  judeus  portuguezes  x  davam  a  riqueza  á 
Hollanda  e  Spinosa  ao  mundo,  nós  empobreciamos  e 
bestificavamo-nos  na  mais  soez  beatitude  que  dar-se 
pôde. 


1  Entre  os  hebreus  emigrados  citarei,  como  naturaes  do  Porto,  3V/a- 
nuel  Aboab,  reputado  auctor  da  Nomologia,  tam  citada  pelos  judiographos, 
e  o  celebre  Uriel  da  Cosia,  do  século  XVII,  espirito  inquieto  e  atormentado, 
controversista  violento,  que  morreu  victima  das  suas  ideias  revolucionarias, 
em  lucta  escandalosa  com  a  própria  communa  israelita  de  Amsterdam  onde 
se  acolhera  apóstata  e  foragido.  Este  original  personagem,  um  livre-pensador 
precoce,  tem  occupado  os  críticos  modernos  da  Allemanha,  merecendo-lhes 
artigos  e  monographias  (Pertes,  Graetz,  Kaizerling).  A  sua  vida  accidentada 
deu  até  entrecho  a  um  drama  de  Gutzkow.  Entre  nós  ha  apenas  que  eu  saiba 
uma  citação  de  Rebello  da  Costa,  que  ao  incluil-o  no  rol  dos  portuenses 
illustres,  o  esconjura  como  um  monstro. 


XI 


Do  andamento  da  população,  atravez  d'estas  crises 
aminguadoras,  não  possuímos  signaes  indicativos  por 
mais  d'um  século,  até  dias  de  João  iii. 

Em  1475  João  11,  ainda  principe,  mandava  in- 
quirir com  exactidão  quanta  gente  poderia  haver  n'esta 
cidade  e  seus  termos  de  18  a  60  annos  d'edade  capaz  de 
pegar  em  armas.  A  camará  accordou  que  se  fizesse  o 
recenseamento  com  toda  a  consciência,  inscrevendo-o 
em  roes  authenticos,  e  d'elle  encarregou  pessoas  de  sua 
confiança  para  apurarem  as  listas,  quer  na  cidade,  quer 
nos  julgados  limitrophes  \  Esta  sim  é  que  era  uma 
base  excellente  para  um  computo  correcto  e  muito 
approximado  da  população  eíFectiva.  Infelizmente  nem 


1  L.°  das  ver.  de  1476,  fl.  71.  Foram  sete  os  recenseadores  respecti- 
vamente para  a  cidade,  Gaya,  Maia,  Gondomar,  Refoios,  Aguiar  de  Souza  e 
Penafiel.  Conforme  as  distancias  e  o  trabalho,  abonou-lhes  a  camará  para 
despezas  de  5oo  reis  a  200  reis;  se  gastassem  mais,  ser-lhes-ia  pago; 
se  menos,  haviam  de  restituil-o. 


92 


vestígios  encontro  do  precioso  rol  que  devia  ter  sido 
enviado  á  chancellaria  regia. 

O  numeramento,  ordenado  por  D.  João  in  em  1527, 
não  obedece  apenas  a  intuitos  de  recrutamento;  acto  já 
d'administraçào  civil,  é  um  inquérito  sobre  os  limites 
dos  lugares  e  numero  dos  seus  fogos,  um  apuramento 
de  verdadeira  estatística,  destinado  entre  outros  fins  a 
servir  de  base  a  uma  nova  divisão  das  comarcas  ou 
correições.  Todas  as  averiguações  locaes,  confiadas  aos 
corregedores  e  seus  escrivães,  e  em  certos  lugares  a 
commissarios  especiaes,  confluíam  á  meza  do  escrivão 
da  camará,  Henrique  da  Motta,  que  coordenou  o  censo 
geral  l. 

Na  comarca  d'Entre  Douro  e  Minho,  já  então  a 
mais  recheada  de  gente,  pois  que  o  numeramento  lhe 
dá  55:066  fogos,  avultava  em  área  e  povoado  o  territó- 
rio do  Porto.  O  termo  da  cidade  tocava,  desde  as  am- 
plíssimas jurisdicções  de  D.  João  1  2,  uma  boa  parte  das 
raias  do  districto  d'hoje.  Este  enorme  domínio  conce- 
lhio seguia  o  littoral  da  Foz  do  Douro  até  Azurara,  á 
foz  do  Ave,  que  o  estremava  de  Villa  do  Conde;  partia 
em   seguida  com  o  termo  de  Barcellos  e  Guimarães, 


1  J.  P.  Ribeiro,  Reflexões  históricas,  Parte  II,  pag.  8.  Rebello  da 
Silva,  loc.  cit.,  pag.  53. 

O  rol  da  província  tem  por  titulo  «Livro  do  numero  que  se  fez  das 
cidades  e  vylas  e  loguares  dantre  doyro  e  mynho  e  moradores  delias  e  ter- 
mos e  assy  com  quem  partem  por  carta  de  elrei  Nosso  Senhor » ;  Torre  do 
Tombo,  gav.  i5.°,  m.°  24,  n."  12.  A  fl.  27  v.  deste  códice  encontra-se  a 
lista  referente  «A  cidade  do  porto  dei  Rey  nosso  senhor»;  d'este  interes- 
santíssimo trecho  fiz  tirar  copia  exacta. 

2  Por  lapso  não  mencionamos  a  pag.  53  a  doação  de  Azurara  e  Pi- 
dcllo,  feita  por  carta  de  i386.  L."  Crande,  fl.  46.  Corpus,  pag.  122. 


93 


desandando  para  leste  a  pegar  em  Felgueiras  e  Louzada; 
encontrado  o  Tâmega,  fechava  Entre-ambos-os-Rios; 
além-Douro,  desde  Arnellas,  abraçava  toda  a  Gaya  até  á 
Terra  da  Feira. 

O  censo,  depois  de  summariar  esta  topographia, 
marca  á  cidade  de  muros  a  dentro  e  aos  seus  arrabaldes, 
entre  os  quaes  conta  Miragaya,  Massarellos,  Villa  Nova, 
Gaya,  Cordoaria,  Santo  Ildefonso  e  Meijoeira,  um  total 
de  3:006  fogos  \  Incluiam-se  pois  no  Porto,  como  sua 
cercania,  Miragaya  e  Massarellos,  a  Cordoaria,  que  for- 
mava o  lugar  do  Olival  intermédio  á  cidade  e  ao  couto 
de  Cedofeita,  Santo  Ildefonso,  que  da  Cordoaria  cir- 
cumdava  a  cidade  até  Campanhã,  e  do  lado  d'além 
Gaya  e  Villa  Nova,  que  já  em  tempos  d'Affonso  111 
formavam  dois  burgos  distinctos,  ao  depois  fundidos, 
mas  que  ainda  no  século  passado  eram  considerados 
pertença  do  Porto  apesar  de  terem  o  Douro  a  meio  2. 
Se  quizermos  desfalcar  Gaya,  a  regularmo-nos  pelo 
censo  de  Rodrigo  da  Cunha  no  século  seguinte  3,  po- 
deremos arbitrar  aos  seus  dois  burgos  300  fogos. 
Ficam-nos  2:706  fogos,  o  que  a  4,5  moradores  4  por 
fogo  dá  12:177  habitantes.  A  ser  exacta  esta  estima- 
tiva e  licita  a  comparação  com  o  computo  de  Soares 


1  «  Tem  na  cidade  e  muros  a  dentro  e  asy  nos  arrabaldes  de  myra- 
guaya  e  guaya  e  maçarellos  e  vyla  noua  e  cordoaria  e  santelyafonso  e  mei- 
joeira e  com  viuvas  e  clerygcs  per  todos  foguos  ao  todo  três  mil  e  seis  mo- 
radores ». 

3  iYleijoeira  ou  Ameijoeira  é  o  lugar  da  Serra  do  Pilar,  onde  os  fra- 
des cruzios  ergueram  convento.  índice  cias  Prop.  de  J.  L.  da  Costa. 

3  Cunha  attribue  á  freguezia  de  Santa  Marinha,  em  1623,  i:5o5 pes- 
soas e  281  menores. 

4  Rebello  da  Silva  arruma-lhe  com  6  moradores  por  fogo. 


94 


de  Barros,  a  cidade  teria  crescido  um  terço  no  espaço 
d'um  século. 

Numera  o  arrolamento  os  principaes  povoados  cir- 
caportuenses,  com  seus  fogos,  que  ao  tempo  eram  Leça 
e  Mathosinhos  (677)  o  mais  importante  de  todos,  Azu- 
rara (371),  Alfena  (78),  Vallongo  (57),  Arrifana  de 
Souza  (Penafiel,  290),  Melres  (78),  Entre-ambos-os-rios 
(86);  e  ao  redor  da  cidade,  S.  João  da  Foz  (286),  e  os 
coutos  de  Cedofeita,  Campanhã,  Paranhos  e  Rio-Tinto, 
(ao  todo  310).  Seguem-se  as  freguezias,  coutos  e  honras 
dos  julgados  de  Gaya,  Bouças  l,  Gondomar,  Maia,  Re- 
foyos  d'Ave  Santo)  Thyrso),  Aguiar  de  Souza  e  Penafiel 
de  Souza.  O  total  de  toda  a  área  excedia  13:122  fogos  2. 

Taes  são  as  cifras  d'este  notável  cadastro,  de  tanto 
interesse  para  a  topographia  e  demographia  do  Porto  e 
seu  território  no  século  dos  quinhentos. 

D.  João  III  —  1527 


Porto  e  arrabaldes  (Santo  Ilde- 
fonso, Cordoaria,  Miragaya, 
Massarellos,  Gaya,  Villa  Nova 
e  Meijoeira) 

Cedofeita,  Campanhã,  Paranhos 
e  Rio  Tinto 

S.João  da  Foz 

Lordello 


HHIIIII1IHIIIIII 

iiimiiuuuuuHiui 

Fogos 

Almas 

3:oo6 

1 3:527 

3IO 

i:3g5 

286 

1:287 

42 

189 

1  Lordello  conta  42  fogos,  Ramalde  36,  Nevogilde  12  e  Aldoar  7. 

2  O  rol  inscreve  á  parte  12:600  mancebos  solteiros  de  18  a  3o  annos 
que  vivem  com  seus  pães  e  amos. 


95 


Mau  grado  o  período  critico  de  decadência,  que  se 
apoderou  do  paiz  no  ultimo  quartel  do  século  xvi,  mais 
accentuado  ainda  no  século  seguinte,  a  cidade  não  de- 
clinava. As  suas  transacções  cresciam.  A  navegação  do 
Douro  melhorava;  em  1502  D.  Manuel  mandava  rasgar 
os  primeiros  cachões  \  Barra  fora  o  movimento  commer- 
cial  progredia.  Os  nossos  vinhos  a  principio  menos 
estimados  por  seu  mau  fabrico,  iam  em  melhoria  de 
acceitação;  avultava  o  commercio  com  a  Inglaterra,  que 
já  em  princípios  do  século  xvn  aqui  tinha  feitor  e 
cônsul. 

As  forças  do  paiz  tinham  é  certo  decrescido.  Per- 
dera mais  de  quatrocentos  mil  habitantes;  é  a  baixa  que 
Balbi  fundamentadamente  calcula  entre  o  censo  de  1527 
e  um  arrolamento  de  1636,  em  que  a  população  portu- 
gueza,  ao  terminar  do  domínio  hespanhol,  nos  apparece 
pouco  superior  a  um  milhão,  cifra  que  só  por  si  é  a 
prova  mais  eloquente  do  nosso  desastrado  abatimento. 

Esta  regressão,  se  aífectava  o  Porto,  nem  por  isso 
suspendia  o  seu  desenvolvimento.  Dentro  dos  muros 
contava-se  apenas  uma  freguezia,  a  da  Sé;  adensara-se 
tanto  que  em  1583  o  bispo  D.  Marcos  de  Lisboa  creou 
no  seu  âmbito  mais  três,  Victoria,  S.  Nicolau  e  S.  João 
de  Belmonte.  Esta  ultima  foi  apenas  temporária,  pois 
que  em   1592  era  reunida  á  de  S.  Nicolau  2.  Fora  dos 


1  Carta  regia  para  que  todos  os  canaes  do  Rio  Douro  até  S.  João  da 
Pesqueira  se  abram  na  largura  de  3  braças  craveiras.  L.°  A,  fl.  1^4. 

2  A  Camará  e  o  povo  embargaram  esta  multiplicação  com  receio 
dos  seus  encargos,  e  o  Bispo  viu-se  obrigado  a  assignar  uma  escriptura  em 
que  tomava  sobre  si  as  despezas  da  fabrica  das  novas  freguezias.  Rebello  da 
Costa,  pag.  43. 


96 


muros  havia  a  freguezia  de  Miragaya,  e  a  de  Santo  Ilde- 
fonso que  se  formara  em  volta  duma  ermida  l,  esten- 
dendo-se  em  larga  área  desde  o  extremo  de  Campanhã 
á  Cordoaria. 

Esta  circumscripção  parochial  abona  a  crescença  da 
cidade;  e  o  estabelecimento  n'ella  do  Tribunal  da  Rela- 
ção por  Filippe  n  em  1583  demonstra  a  supremacia  que 
o  Porto  tinha  conquistado  na  metade  mais  populosa  do 
reino  2. 

O  illustrado  bispo  D.  Rodrigo  da  Cunha  apresenta 
em  1623  um  rol  d'almas  das  parochias  urbanas  da  Sé, 
Victoria,  S.  Nicolau,  e  das  suburbanas,  Santo  Ildefonso 
e  Miragaya.  Extraio  ainda  da  sua  resenha  dos  povos  do 
bispado  o  rol  das  freguezias  convisinhas  hoje  fundidas 
no  Porto;  são  Cedofeita,  Massarellos,  Foz,  Lordello, 
Paranhos,  pertencentes  á  comarca  ecclesiastica  da  Maia, 
e  Campanhã  á  de  Penafiel. 

O  grosso  da  população — 12:033  —  vivia  intramu- 
ros; á  volta  do  recinto  ainda  sommavam  2:548  as  fre- 
guezias periphericas  de  Miragaya  e  de  Santo  Ildefonso, 
ao  tempo  quasi  todo  rural  3.  Das  suburbanas  só  Massa- 
rellos e  Foz,  ambas  ribeirinhas,  ascendiam  a  mil;  o 


1  A  provisão  de  i56o  sobre  as  profanidades  e  indecencias  que  se 
praticavam  na  procissão  de  Corpus-Christi  diz  que  o  cortejo  ia  até  á  ermida 
de  Santo  Ildefonso,  sita  no  meio  d'um  campo,  onde  deixavam  o  Santíssimo 
debaixo  d'um  carvalho.  L.°  2.0  das  Prov.,  fl.  160,  Ribeiro,  'DisserU,  t.  V, 
pag.  68. 

2  Esta  instituição  tinha  sido  em  vão  pedida  a  D.  João  III  pelos  pro- 
curadores dos  concelhos  do  norte  em  1 535,  requerimento  renovado  a  D. 
Sebastião.  Rebello  da  Gosta,  pag.  176  e  Cunha,  pag.  340. 

3  Para  as  figuras  da  procissão  de  Corpus-Christi  contribuíam  os  hor- 
telões de  Santo  Ildefonso  por  accordo  de  1621.  L.°  4.0  de  iProp.,  fl.  376. 


97 


resto  eram  pequenas  aldeias,  incluindo  a  insignificante 
Cedofeita. 

D.  Rodrigo  da  Cunha — 1623 


FREGULZIAS 


Sé 

Victoria.  .  .  . 
S.  Nicolau    .   . 

Santo  Ildefonso 
Miragaya   .  .  . 

Massarellos  .  . 
Cedofeita  .  .  . 
Lordello    .  .  . 

Foz 

Paranhos  .  .  . 
Campanhã  * .  . 


ALMAS 


De  communhão 


5:65i 
2:100 
3:25o 


1:000 
r.2  5i 


894 
3i8 
200 
i:356 
201 
525 


Menores 


404 

3oo 

328 


i5o 
147 


20c 
93 

37 

2l5 

45 

132 


TOTAL 


6:o55 
2:400 
3:578 

12:033 
i:i5o 

1:398 

14:581 
1:094 
411 
237 
1:571 
246 
657 

18:797 


Comparado  este  computo  ao  do  século  anterior, 
vê-se  que  em  egualdade  d'area  o  augmento  é  approxi- 
madamente  de  um  quarto,  o  que  significa  uma  cres- 
cença  lenta,  explicável  pela  crise  nacional. 

O  progresso  naval,  que  assegura  aos  estaleiros  do 
Douro  supremacia  sobre  os  do  Tejo  2,  e  o  impulsiona- 


1  Ramalde,  298,  Nevogilde,  79. 

2  «  Estava  na  cidade  do  Porto  um  galeão,  ao  qual  pozeram  nome 
S.  Pedro  d'Alcantara,  acabado  com  toda  a  perfeição,  uma  das  melhores  e 
maiores  embarcações  que  se  fizeram  n'este  reino ;  esperou  as  aguas  vivas 


98 


mento  commercial,  preparam  com  a  sua  forte  seiva  a 
florescência  do  Porto  no  século  xvm.  Empório  de  vi- 
nhos agora  afamados,  exporta-os  para  todo  o  mundo. 
A  concorrência  mercantil  de  Villa  do  Conde,  Vianna  e 
Aveiro,  apaga-se;  monopolisa-se  aqui  todo  o  commer- 
cio  maritimo  do  norte.  Operam-se  em  larga  escala  pela 
barra  do  Douro  a  navegação  e  trafico  com  o  Brazil  l. 
O  tratado  de  Methuen  de  1703  que  facilitou  em  Ingla- 
terra a  entrada  dos  vinhos  portuguezes  e  o  commercio 
com  a  nossa  grande  colónia  americana  promovem  o 
enriquecimento  do  Porto.  Um  longo  período  de  paz 
secunda  este  movimento  d'expansão,  reforçado  pelas 
próvidas  medidas  do  Pombal,  o  creador  da  famosa 
Companhia  dos  Vinhos. 

O   geographo   D.   Luiz  Caetano  de  Lima  insere 
uma  lista  geral  de  fogos  e  almas  de  todo  o  reino,  refe- 


d'esta  lua  para  poder  sair  pela  barra  em  rezáo  da  sua  grandeza;  sahiu  com 
boa  fortuna,  com  a  gente  do  mar  e  guerra  necessária,  e  com  a  mesma  en- 
trou no  porto  de  Lisboa,  d'onde  foi  visto  com  admiração  de  todos.  Elle 
partido,  por  ordem  de  S.  M.  se  começarão  duas  fragatas  de  guerra  em  lugar 
do  Ouro  d'onde  se  fabricáo  as  embarcações  d'el-rei  com  grande  commodi- 
dade  pela  abundância  das  madeiras  d'esta  província».  Esta  noticia  do  anno 
de  1670  encontrei-a  no  notável  diário  «  Monstruosidades  do  tempo  e  da  for- 
tuna» ;  demonstra  bem  qual  a  excellencia  dos  estaleiros  e  arsenal  do  Porto. 
N'esse  lugar  do  Ouro,  citado  pelo  chronista,  ainda  na  minha  infância  vi  eu 
a  labuta  dos  calafates.  Hoje  a  praia  está  erma  e  silenciosa! 

1  «O  commercio  do  Brazil  é  dos  mais  vantajosos  a  esta  cidade.  Para 
os  seus  portos  e  de  outras  colónias  que  nos  pertencem,  navegam  mais  de 
oitenta  navios  de  muito  maior  porte  que  o  dos  navios  mercantes  das  outras 
nações  commerciantes.  Todos  elles  são  construidos  nos  estaleiros  d'esta 
cidade,  ou  nos  dos  portos  visinhos,  cuja  construcção  e  reparo  occupam  um 
grande  numero  d'artifices  ».  Reb.  da  Costa,  pag.  2o3. 

Para  illustrar  o  crescimento  mercantil  da  cidade,  informa  o  curioso 
padre  que  na  alfandega  só  da  renda  chamada  do  consulado  em  vinte  annos 
subiu  a  sua  arrematação  de  i5o  contos  a  366. 


99 


rida  a  1732,  que  diz  ter-lhe  sido  ofíerecida  pelo  Mar- 
quez d'Abrantes  l.  Do  seu  rol  tiramos  um  quadro  nu- 
mérico na  ordem  do  antecedente. 

D.  Luiz  Caetano  de  Lima — 1732 


FREGUEZIAS 

Almas 
de  confissão 

TOTAL 

Sé 

6:53o 
3:7i5 
3:220 

7:836 
4:458 
3:864 

S.  Nicolau 

Santo  Ildefonso  .... 

13:465 

3:956 
i:5o8 

16:158 

4:747 
1:809 

Foz 

18:929 
821 
987 
i:5o8 
5i6 
696 
i:565 

22714 

985 

1:184 

1:809 

619 

835 

1:878 

25:022 

30:024 

As  suas  cifras,  sobretudo  comparadas  com  as  pos- 
teriores de  Rebello  da  Costa,  parecem  um  pouco  defi- 
cientes 3;  talvez  que  correspondessem  a  data  mais  an- 


1  Geographia  histórica,  1736,  t.  II,  pag.  478. 

2  Ramalde  —  887  ;  Nevogilde  —  i33. 

5  O  termo  genérico  <Xalmas  tem  para  os  nossos  antigos  estatistas 
accepçóes  confusas,  que  já  faziam  desesperar  o  illustre  Balbi.  Ora  signifi- 
cava habitantes  em  geral,  ora  se  restringia  ao  sentido  ecclesiastico  ftalmas 
de  confissão  ou  apenas  de  communhão ;  estas  excluíam  os  menores  de  10 
ou  12  annos,  aquellas  os  menores  de  7  annos.  O  rol  do  nosso  geographo, 
aliaz  pouco  abalisado,  é  de  presumir,  segundo  Balbi,  se  refira  á  primeira 


100 


tiga,  ou  então  depois  d'ella  o  incremento  se  tornou 
extraordinariamente  activo. 

Rebello  da  Costa  que  escrevia  em  1787,  ao  indicar 
o  rápido  e  notável  accrescimo  da  cidade  na  segunda 
metade  do  século  \  pasma  do  fabrico  continuo  de  novas 
casas  e  edifícios  públicos,  assim  como  do  rasgamento  e 
multiplicação  de  ruas.  O  Porto  entrara  n'um  período 
de  haussmanisação,  em  que  se  notabilisou  benemérita- 
mente  o  illustre  Almada. 

Achando  que  a  immigração  afroixara  um  pouco, 
depois  de  1785,  censura  a  camará  por  não  desistir  de 
abrir  ruas  sobre  ruas,  e  afSrma  a  impossibilidade  de 
povoal-as  no  decurso  dum  século  ainda  que  a  rapidez 
demographica  anterior  se  reanimasse.  Se  o  bom  do 
panegyrista  do  Porto  resuscitasse  ao  cabo  do  praso 
que  marcou,  pouparia  a  camará  da  censura  e  renegaria 
espantado  a  prophecia. 

Também  resenha  o  illustrado  topographista  o  censo 
da  cidade,  na  qual  mette  Gaya  com  suas  freguezias  de 
Santa  Marinha  e  Mafamude,  excluindo  Foz,  Lordello  e 
Paranhos  que  inscreve  adiante  nos  quadros  das  comar- 
cas ecclesiasticas  da  diocese.  Sobre  os  seus  números 
gizamos  esta  tabeliã,  moldando-a  pela  divisão  urbana 
d'hoje,  como  já  fizemos  para  as  anteriores,  no  intuito 
de  tornar  as  cifras  comparáveis. 

espécie  (1'almas;  n'esse  sentido  o  tomamos,  accrescentando-lhe  na  segunda 
columna  o  calculo  dos  menores,  computados,  como  era  costume,  n  uma 
quinta  parte. 

1  Aponta  também  o  douto  padre  a  emigração  de  gente  de  Lisboa, 
que,  aterrorisada  pelo  terramoto  de  1755,  se  refugiara  aqui.  Pag.  46.  Toda- 
via, segundo  Balbi,  o  numero  de  fogos  na  capital  continuou  crescendo  logo 
apoz  o  terramoto. 


101 


Rebello  da  Costa —  1787 


FREGUEZIAS 

Fogos 

Varões 

Fêmeas 

TOTAL 

Sé 

3:i85 
1:374 
1:281 

4:390 

661 

324 
8o5 
736 
365 
3i8 
868 

6:838 
2:524 
2:980 

9:896 

i:359 

737 
2: 389 

i:53o 

7:o54 
2:765 
2:672 

8:918 
1:398 

808 
1:672 

i:654 

i3:8g2 
5:289 
5:652 

Santo  Ildefonso.  .  . 

24:833 

18:814 

2:757 

46:404 
i:545 

4:061 
3:3i2 
1:642 
1 :3 14 

3:i84 

61:462 

No  espaço  de  século  e  meio  a  população  das  três 
freguezias  centraes  cresceu  muitíssimo;  dobrou  em 
cheio.  Das  periphericas,  duplicou  Miragaya,  e  Santo 
Ildefonso  augmentou  n'uma  proporção  desmarcada; 
foi  para  Santo  Ildefonso  principalmente  que  a  cidade 
desbordou,  visto  que  lhe  formava  um  cinto  dos  Guin- 
daes  á  Cordoaria.  O  total  passou  de  triplicar.  As  fre- 
guezias suburbanas  todas  augmentaram,  avultando  já 
Cedofeita. 

Devo  confessar  que  esta  estimativa  talvez  seja  um 


1  Da  Foz,  Lordello  e  Paranhos  apresenta  só  o  numero  dos  adultos  e 
dos  fogos,  do  qual  deduzimos  a  cifra  total.  Aldoar,  68  f.,  333  habit. ;  Nevo- 
gilde,  36  f.,  i63  habit. ;  Ramalde,  438  f.,  1:822  habit. 


102 


pouco  exagerada  l;  feita  a  comparação  com  avaliações 
posteriores,  as  cifras  podem  tomar-se  por  demasia. 

0  numeramento  de  1801,  feito  por  ordem  do 
conde  de  Linhares,  Rodrigo  de  Souza  Coutinho,  indica 
para  a  cidade,  em  sete  freguezias,  43:218  habitantes.  A 
invasão  dos  francezes  e  a  guerra  peninsular  arruinam 
o  paiz  e  abatem-lhe  a  população.  O  censo  de  1819  já 
dá  ás  cinco  freguezias  centraes  45:180  almas  2. 

A  agitação  politica  de  que  o  Porto  foi  foco  até  á 
guerra  liberal,  devia  prejudicar-lhe  a  prosperidade  nu- 
mérica. Ao  tempo  calamitoso  do  cerco,  quando  o  cho- 
lera  morbus  fez  irrupção  na  cidade  trazido  pelos  merce- 
nários estrangeiros,  a  população  civil  de  nove  freguezias, 
isto  é,  das  actuaes  menos  Campanhã  e  Paranhos,  é 
orçada  approximadamente  em  50:000  pela  commissão 
medica  da  epidemia  3. 

Apaziguadas  as  revoltas  politicas,  o  progresso  ma- 
terial e  popular  marcha  rápido.  Os  subúrbios  enredados 
pelos  braços  de  polvo  das  ruas  irradiadas  da  cabeça  da 
cidade,  tornam-se  cidadinos;  o  município  absorve  as 
freguezias  circumdantes.  Até  1836  consta  o  Porto  pro- 
priamente de  sete  freguezias,  Sé,  Victoria,  S.  Nicolau, 

1  Reb.  da  Costa  diz  que  não  se  aproveitou  dos  catálogos  parochia- 
nos.  «O  calculo  que  apresentei,  e  me  parece  o  mais  exacto,  eu  o  devo  a 
um  laborioso  exame  e  a  uma  efficaz  diligencia,  bem  necessária  em  matéria 
tam  curiosa».  Pag.  47. 

3  Balbi,  Variétés  poliiico-statístiques,  1S22,  pag.  104;  as  freguezias 
são  Sé,  Santo  Ildefonso,  S.  Nicolau,  Victoria,  Miragaya.  Fizeram-se  no  fim 
do  século  passado  e  no  actual  vários  recenseamentos  irregulares  e  muito 
defeituosos  de  que  não  conheço  senão  os  resultados  geraes,  sem  as  cifras 
referentes  ao  Porto,  a  não  ser  as  magras  indicações  dos  de  1801  c  1819  que 
pedimos  a  Balbi. 

3     Relatório  da  commissão  sanitária  do  Porto,   1 83 3. 


103 


Santo  Ildefonso,  Miragaya,  Massarellos  e  Cedofeita. 
Pelo  decreto  de  26-11-36,  foram-lhe  annexadas  '  Lor- 
dello  do  Ouro,  Campanhã  e  S.  João  da  Foz  2;  e  por 
carta  de  lei  de  27-9-37,  nova  annexação,  a  de  Para- 
nhos 3. 

A  desegual  distribuição  d'estas  freguezias  pedia  re- 
forma das  suas  circumscripções;  d'este  plano  tomou  a 
iniciativa  o  bispo  eleito,  e  approvado  superiormente  o 
seu  projecto  por  portaria  de  13-2-38,  procedeu-se  á 
nova  demarcação,  fixada  por  uma  commissão  onde  en- 
travam o  bispo,  a  camará,  e  delegados  das  juntas  de  pa- 
rochia.  Santo  Ildefonso,  d'uma  área  enorme,  foi  des- 
membrada, creando-se  á  sua  custa  uma  nova  freguezia, 
a  do  Senhor  do  Bomfim.  O  arredondamento  parochial 
de  38  só  foi  sanccionado  pelo  decreto  de  11- 12-41,  sob 
a  referenda  de  Costa  Cabral  \ 


1  L.°  40  das  Prop.,  fl.  177,  L.°  42  das  Prop.,  fl.   128. 

2  S.  João  da  Foz  formava  anteriormente  um  concelho  com  sua  com- 
petente camará. 

3  L.°  44  das  Prop.,  fl.  l85. 

4  Foi  publicado  em  edital  de  29-12  dõ  mesmo  anno,  com  a  nova 
circumscripção,  pelo  administrador  geral  do  districto,  Marcellino  Máximo 
d'Azevedo  e  Mello.  L.°  57  das  Prop.,  fl.  157. 

Em  1862  installava-se  na  casa  da  Camará  uma  commissão  para,  em 
observância  do  decreto  de  21-4-62,  elaborar  um  projecto  de  divisão  paro- 
chial. A  commissão  celebrou  algumas  sessões,  depois  do  que  se  dissolveu, 
porque  o  decreto  ficou  sem  effeito  ;  das  actas  vê-se  que  não  bulia  nas  fre- 
guezias do  Porto;  das  suburbanas  Aldoar  era  fundida  com  Nevogilde,  o  que 
já  ha  muito  se  deveria  ter  feito. 

Recentemente  rasgou-se  por  accordo  da  Gamara  e  Governo  uma  es- 
trada de  circumvallação,  que  obrigou  a  uma  nova  limitação  municipal, 
exarada  no  Decreto  de  21-11-95  (Diário  n  °  267),  que  encorporou  no  Porto 
as  freguezias  de  Ramalde,  Nevogilde  e  Aldoar,  todas  do  concelho  de  Bou- 
ças, já  pelas  annexações  anteriores  despojado  para  o  alargamento  da  cidade. 
A  organisação   actual  é  muito  viciosa  e  criticável;  confere  ao   município 


104 


O  edital,  que  promulgou  a  divisão  parochial  ainda 
hoje  em  vigor,  com  os  respectivos  términos,  assigna 
fogos  a  nove  freguezias,  pelos  quaes  podemos  fazer  a 
estimativa  do  seu  povoamento  \ 

Arredondamento  parochial  — 1838 


FREGUEZIAS 

Fogos 

Almas 

Sé 

2:o57 

2:55i 

9:256 
It:479 

Santo  Ildefonso    .  .   . 

i:356 

6:i02 

S.  Nicolau 

1:175 

5:287 

860 

3:870 

1:963 

8:883 

829 

3:73o 

1:733 

7:888 

639 

2:875 

Total  das  9  fregi 

íezias  .  .  .  . 

59:370 

Dobrado  o  meio  do  século,  a  velocidade  demogra- 
phica  do  Porto  torna-se  vertiginosa;  a  cidade  pullula  e 
pletorisa-se  de  gente.  O  rol  dos  habitantes  apparece  no 


uma  área  desproporcionada,  retalha  a  freguezia  de  Campanhã,  cortando 
metade  já  incluida  no  Porto  desde  36,  emfim  faz  discordar  a  divisão  admi- 
nistrativa da  divisão  parochial  e  ecclesiastica,  o  que  é  inconveniente  soh 
todos  os  pontos  de  vista,  e  particularmente  para  a  estatistica. 

Entretanto  temos  defronte  a  visinha  Gaya,  intimamente  relacionada 
com  o  Porto  pelo  seu  passado  e  pelo  seu  commercio,  hoje  ligada  por  duas 
pontes,  que  bem  devia  formar  corpo  com  a  cidade,  um  'Porto  occidental. 

1  Em  i83S  operou-se  um  recenseamento,  sendo  os  seus  resultados 
publicados  apenas  n'um  escasso  mappa  de  districtos,  inserido  no  Diário  do 
Governo  n.°  94  de  1840;  assignou-o  pela  commissão  permanente  destatis- 
tica  Miguel  Franzini.  Em  41,  54  e  58  apparecem  oficialmente  novos  censos, 
do  mesmo  teor  e  forma.  Infelizes  e  vergonhosas  estatísticas! 


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primeiro  censo  regular,  o  de  1864,  com  86  mil;  no 
censo  de  1878  são  já  105  mil  e  no  de  1890  138  mil. 
Faliam  bem  alto  estes  números  do  seu  engrandeci- 
mento; a  taxa  do  crescimento  figura  entre  as  das  mais 
progressivas  cidades  europeias.  Sobrepuja  a  capital  em 
intensidade  demogenica;  no  século  xvn  Lisboa  a  que 
se  contavam  mais  de  100  mil  almas,  era  quasi  dez  vezes 
maior  que  o  Porto;  ao  romper  do  século  actual  o 
Porto  seria  approximadamente  um  terço  de  Lisboa,  e 
actualmente  já  attingiu  metade  da  capital.  Desde  o  prin- 
cipio do  século  o  Porto  passou  muito  de  duplicar  a  sua 
população. 

Está  pois  em  plena  pujança  o  Porto  n'este  final  do 
século  xix ;  sombra  de  declinação  não  se  lhe  antevê, 
mau  grado  os  palpites  pessimistas.  Quem  atravessou, 
como  a  phenix,  o  incêndio  das  guerras,  das  epidemias  e 
crises  de  toda  a  ordem,  saberá  conjurar  contrariedades. 
Pôde  ter  pausas  o  seu  incremento,  mas  não  é  para  temer 
que  se  trave  a  roda.  Se  a  febre  das  construcções  dimi- 
nuiu, se  a  ampliação  d'area  em  parte  corresponde  a  uma 
dispersão  peripherica,  tudo  isso  são  phenomenos  acci- 
dentaes  e  communs  da  vida  urbana. 

No  que  o  Porto  declina  é  no  arrogo  supremacial 
de  capital  do  norte,  na  senhoria  de  mordomo  de  três 
provincias,  como  lhe  chamava  Herculano.  O  centralismo 
predominante  da  capital,  entretido  por  causas  de  toda  a 
espécie,  entre  as  quaes  avulta  uma  viciosa  orientação  de 
politica  geral,  essa  absorpção  desmesurada  e  mórbida, 
quasi  cancerosa,  sobre  todo  o  organismo  nacional,  tem 
abatido  os  foros  seculares  que  o  Porto  sellou  ainda  em 
nossos  tempos  com  sangue  e  sacrifícios.  Luctar  contra 


IOÓ 


essa  hegemonia  deprimente  e  nociva  é-lhe  um  dever; 
e  para  isso,  sem  derogar  as  suas  tradições  d'afinco  eco- 
nómico, deveria  mirar  mais  alto  do  que  costuma,  no 
volver-se  em  cidade  moderna,  um  pouco  mais  do  que 
o  grande  aldeão  do  Garrett,  do  que  um  burguez  a  moi- 
rejar  escuramente. 

Bussaco,  6-9  ç —  Paranhos,   11-96. 


ACABOU-SE  D  IMPRIMIR  ESTE  LIVRO  A  I  3-4-97 

NA    IMPRENSA    DE     CoSTA    CaRREGAL, 

O     SAUDOSO     MESTRE      DA     ARTE 

TYPOGRAPHICA  DO   PORTO, 

E    DEVOTADO    AMIGO, 

FALLECIDO    A 

29-3-97. 


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