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Full text of "Os gatos, publicação mensal, d'inquerito á vida Portugueza"

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OS   GATOS 


FIALHO  D'ALMEIDA 


OS  GATOS 


PUBLICAÇÃO  MENSAL, 
DINQUERTTO  A  VIDA  PORTUGUEZA 


N.  i  —Agosto  de  [889 


PORTO 

WHA    {<   C. 

/  .  96 

FILIAL  EM  LISBOA 


*•-   ~íf 


SUMMAR10 


MEUS   SENHORES,    AQUI   ESTÃO  OS  GATOS ! 

-  BRIC-Á-BRACOMANIA,  COMO  CULTURA  E 
COMO  DOENÇA  -OS  GRANDES  LARÁPIOS  AR- 
TISTAS, NAPOLEÃO,  JUNOT,  O  «SOUTH-KEN- 
SINGTON        E     OUTROS     MAIS  —  AQUI     d'f.L-REI 

ONTRA   OS  CABIDOS,    AS    COLLEGIADAS,  E    AS 
JUNTAS     DE     PAROCHIA      QUE      DEFRAUDAM      0 
PAIZl  —  A    INDIFFERENÇA    DO    ESTADO  PERAN- 
TE  O   OBJECTO   d'aRTF.        PRÍNCIPES    ARTISTAS 
B    SUAS     MATILHAS         A     CAÇA     REAL     AO        BI- 
BELOT    — BARÃO   dVm  PRATO  DAS  CALDAS  — 
UM    ALMOXARIFADO     POR     UM     PENICO — •] 
PO    POVO    EM    CASA    DOS    REIS  —  UMA     CAPEL- 
LANIA    DEFENDE    OS    SEUS    MOVEIS   Á   BORDOA- 
DA— OS  TOCHEIROS  DE  MAFRA  —  COLLEí 
DE   RECEITAS   PA  KW    SE    SFR    UM    RFI    VIRT1       - 
—  O  ANJO  E  0  VICE-ANJO        PERFIL    DO  RFI   D. 
FERNANDO;     SUAS     VIRTUDES     E     PERRICES  — 
NOS    TERRAÇOS     DA     PENA,     VESTIDO    DE    MA- 
LHA.    A      (    \NIAK     DF     BARÍTONO  —  O     TESTA- 
MENTO  nV.LLE   E   A    OPINIÃO  PUBLICA  EX  PRES- 
SA   PELA    GRANDE    VOZ    DAS      NOVIDADES 
AS  COLLECÇÕES  DAS  NECESSIDADES  SÂO  NOS- 
SAS,  !    TO(    \   A   <  REAR  COM    l  LLAS  LM   MUSEU 


\ , 


d'aRTES  DECORATIVAS!  —  O  SOUTH-KENSIN- 
\  E  O  ENSINO  [NDUSTRIAL  DA  GRAN- 
BRETANHA-  ROUBOS  NOS  CONVENTOS — SAN- 
TA  MARIA  D'ALMOSTER  -OS  ARCHEOLOGOS 
QUE  SE  CORTAM  — ABADESSAS  FRANDUNAS — 
UM  CELEBRE  ACADÉMICO  COLLECCIONADOR  — 
-  NO  PAÇO  DE  S.  VICENTE  — OS  CA- 
PELLÃES  QUE  VÃO  EMPENHAR  ALFAIAS  AOS 
ARMAZÉNS  DE  VELHARIAS  —  A  ESTRELLA,  OS 
GRILLOS  E  SANTA  MARTHA  -LADRÕES,  LA- 
DRÕES,  LADRÕES,  NÃO  DEVIA  HAVER,  NÃO 
DEVIA  HAVER!  ..  —  COMO  SE  ORGANISA  UM 
MUSEU  D'ARTE  ORNAMENTAL,  E  SE  DOTA  O 
ENSINO  ARTÍSTICO,  SEM  AUGMENTO  DE  DES- 
PI/X PARA  O  THESOURO — PUBLICAÇÕES  DE 
VRTE  E  COLLECÇÕES  PROVINCIAES  —  O  QUE 
A  COMMISSÃO  ARTÍSTICA  DA  (AMARA  DEVE 
FAZER  CARTA  A  S.  M.  SOBRE  AS  VANTA- 
GENS DE  SER  ASSASSINAI)!  I  o  REGICIDA  DE 
UNHA  DE  COMO  O  CULTIVO  LAS  BELLAS 
LETTRAS  NÀn  LÁ  IMMUNIDADE  AOS  MONAR- 
CHAS,  PARA  AS  AMEIXAS  DOS  CONSPIRADORES 
QUE  LHE  CUSTA  A  V.  M.  APANHAR  UM  BA- 
l  ■■■  5IO? —  OFFERECE-SE  UM  REGICIDA  COM 
PRATICA  NA  PROVÍNCIA  ANTÓNIO  PEDRO  E 
0  THEATRO  NACIONAL  OS  ACTORES  DINS- 
PIRAÇÃO  E  os  ACTORES  DE  SAGACIDADE  —  A 
PORTUGUEZA  NO  THEATRO  —  O  QUE  FICA  DE- 
3  DA  LUCINDA.  DE  ROSA  DAMASCENO  E 
D  \    VIRGINI  \        «  ONCLUSÃO. 


Deus  fez  o  homem  á  sua  imagem  <• 
semelhança,  e  Pez  ocritico  á  semelhança 
do  gato. 

A.,  critico  deu  elle,  como  ao  gato,  a 
graça  ondulosa  <i  o  assopro,  o  rhon-rhon 
e  a  garra,  a  lingua  espinhosa  e  a  cali- 
nerie.  Fel-o  uervoso  e  ágil,  reflectido  e 
preguiçoso;  artista  ;ií<;  ao  requinte,  sar- 
casta  atéá  tortura,  e  para  os  amigos  bom 
rapaz,  desconfiado  para  os  indifferentes, 
e  terrível  cora  agressores  <v  adversários. 
—Um  pouco  lambareiro  talvez  perante 
as  bellas  coisas,  e  ura  quasi  nada  scepti- 
co  perante  as  coisas  consagradas;  achan- 


\  III 


doa  quasi  todos  os  deuses  pés  de  barro, 
ventre  de  giboia  a  quasi  todos  os  liou  hm  is, 
e  a  quasi  iodos  os  tribunaes,  portas  tra- 
vessas.- Amigo  de  íâzerjongleries  com 
;i  primeira  bolla  de  papel  que  alguém 
lhe  atii-e,  ou  seja  um  poema,  ou  seja 
um  tratado,  ou  seja  um  código. —Pa- 
ciente em  aguardar,  manso  e  apagado, 
(•mui  um  ar  de  mysterio,  horas  e  horas, 
a  sortida  (rum  rato  pelos  interstícios 
d'um  tapume,  e  pelando-se,  uma  vez 
cacada  a  preza,  por  fazer  da  agonia 
d'ella,  uma  distracção;  ora  enrolando-a 
como  um  cigarro,  entre  as  patinhas  de 
velludo;  ora  fingindo  (pie  lhe  concede 
a  liberdade,  e  atirando-a  ao  ar,  rece- 
bendo-a  entre  os  dentes,  roçando^se 
por  ella  e  moendo-a,  té  a  deixai-  n'um 
picado  ou  a'um  frangalho. 

Desde   (pie   o   QOSSO    lempo   englobou 

os  homens  em  ires  cathegorias  de  bru- 
tos, o   burro,  o  cão  e  <>  gato—  isto  <\ 


I\ 


M  animal  de  trabalho,  o  animal  d'atta- 
que,  e  o  animal  de  humor  e  phantasia 
— porque  não  escolheremos  nós  o  tra- 
vesti do  ultimo  ?  E  o  que  se  quadra 
mais  ao  nosso  typo,  e  aquelle  que  me- 
lhor nos  livrará  da  escravidão  do  asno,  e 
das  dentadas  famintas  do  cachorro. 

Razão  porque  nos  acharás  aqui,  lei- 
tor, miando  pouco,  arranhando  sempre 
c  não  temendo  nunca. 


A  paixão  pelas  obras  cTarte,  está  entre  os 
particulares  tomando  tão  grande  espaço,  que 
seria  justo  suggerirmol-a  aos  poderes  consti- 
tuídos, na  mira  de  vermos  ingurgitados  com 
algumas  acquisições,  o  museu  nacional.  Por 
Ioda  ;i  banda  o  coMeccionador  acorda,  e  <i*> 
moveis  d'esta  selecção  exótica  <|in'  lhe  aguça 
i  sensibilidade,  posto  nem  sempre  venham 
liliar-se  n'um  fervoroso  culto  d'arte  pura,  e 
muitas  \r/.r^  se  expliquem  pelo  amor  do  ne- 
gocio, por  vaidade  burgueza,  por  emulações 
de  família,  <>u  por  doença,  não  obstante  con- 
vergem todos  a  um  resultado  nobre  e  salubcr- 
rimo,  qual  <>  de  libertar  da  poeira  é  da  ruina, 
ijuaesquer  destroços,  minúsculos  que  sejam, 
d'essa  divina  arte  com  que  "  Portugal  >l"  ve- 


I-J 


OS   GATOS 


lli«»  tempo  interpretou  o  conforto,  e  soube 
poetisar  os  interiores  —  esses  refúgios  de  paz 
dos  combatentes  exhaustos  pela  fadiga  das 
\  iagens  e  das  guerras. 

De  feito,  não  se  sobe  ;i  uma  residência 
'I  amanuense,  de  simples  agente  de  leilões,  ou 
de  boticário,  sem  depararmos  na  sala,  no  ga- 
binete de  trabalho  ou  no  tottette,  em  núcleo 
ainda,  e  mais  ou  menos  risível  pela  prosápia 
d'etalage3  a  famosa,  a  lambida,  a  suspirada 
collecção. 

VentaroIIas    e    selins    servidos,     pratos  das 

Caldas  e  oleographias,  indo  serve  a  pôr  n'es- 
tes  sanctuarios  do  medíocre,  a  mancha  de  côr 
que  faz  entrar  na  casa  o  raio  d'aregria  por- 
que todos  os  olhos  amortecidos  suspiram,  ea 
nota  de  bem  estar  que  ás  vezes  falta  na  man- 
teiga das  torradas,  no  roupão  de  madame^ 
nas  botinas  tortas  das  creanças,  e  u<»s  tresen- 
los  e  cincoenta  mil  reis  annuaes  de  monsieur. 


os  <■  \ I os 


13 


Cumpre  entretanto  encorajar  no  publi- 
stes  instinctos  de  pega,  porque  se  o  li<>- 
ixiem  pobre  e  deseducado  collecciona  far- 
rapos, em  vez  de  bibdots,  ascendendo  na 
escala  do  eolleccionador,  té  á  opulência,  acha- 
remos pelos  palácios  de  Lisboa,  em  exhibições 
de  gosto,  os  mais  impressivos  e  serpentinos 
echantilloru  dos  grandes  séculos  da  arte  eu- 
ropéa. 

Demais  que  esta  predilecção  'I"  bello, 
mesmo  caraiba,  sendo  um  syndroma  de  se- 
riação cerebral  d'ordera  superior,  consola  n 
critério,  da  opinião  pessimista  que  elle  se  afi- 
zera ;i  formular  sobre  a  decadência  portu- 
tíueza,  ao  mesmo  lempo  que  irá  precavendo 
;i  opinião  contra  as  rapinancias  e  logros,  com 
que  os  grandes  espertalhões  cá  da  casa  e  lá 
de  fora,  ha  cincoenta  annos  exturquem  o  que 
em  Portugal  havia  de  magnifico,  em  todos  os 
géneros  de  pintura  e  de  cerâmica,  mobília  e 
bordadura,  ourivesaria  e  decoração.  Como 
quasi  Iodas  as  collecções  portuguezas  (a  de 
li.  Fernando  aparte)  são  modernas,  acontece 
nós  estarmos  desde  o  principio  <l<>  século  ;i 
exportar  para  •»  estrangeiro  maravilhas,  sem 
a  menor  consciência  d'esta   sangria  artística, 


os  GATOS 


e  sem  o  mais  ligeiro  esforço  de  reacção  con- 
tra ella,  apesar  dos  gritos  que  vera  ;i  impren- 
sa soltar  de  quando  em  quando,  algumas  vo- 
zes bera  intencionadas.  Começou  o  saque  com 
a  evasão  franceza,  onde  soldados  e  capitães 
carregaram  para  o  seu  paiz  de  França,  o  que 
quizeram,  destruindo  velhacamente  o  que  não 
podiam  levar.  E  d'esta  infâmia  guerreira,  fi- 
lha da  cobiça  mais  áspera,  deu  exemplo  o 
próprio  Bonaparte,  que  enviava  no  exercito, 
delegações  d'artistas  e  peritos,  com  ordem  de 
rapinar  tudo  o  que  de  precioso  houvesse,  nos 
edifícios  das  povoações  invadidas,  e  antes  de 
concedido  o  saque  á  soldadesca.  Só  á  sua 
parte  Juno!  levou  comsigo,  entre  sedas  e  qua- 
dros, manuscriptos,  gravuras,  alfaias  sagra- 
das,   moveis,  jóias,   armas,   e    maravilhosas 

loiças    do    .lapão   e   da   China,  despojos  duma 

riqueza  innarravel,  como  nenhum  rei  possua 
hoje  talvez ;  e  por  lai  forma  abundantes,  mie 
Ires  navios  quasi  não  bastaram  para  os  trans- 
portar. Ainda  lhe  podemos  arrancar  a  Biblia 
dos  Jeronymos,  e  não  sei  que  outros  monu- 
mentos d'arte  nacional,  mercê  (ruma  recom- 
pensa em  dinheiro,  de  muito  contos.  Mas  cal- 
cula-se  o  destroço,  dizendo  que  só  em  prata 


OS  GATOS 


15 


roubada,  á  sua  banda,  este  bandido  arrecadou 
|,:li,,  cima  de  trezentas  arrobas. 

Vcha-se  graça  a  um  chronista  do  Echo  dt 
Fbrâ,  que  escrevia  lia  dias  a  seguinte  boutadt 
feroz,  a  respeito  da  pobri  :>/  do  Low  re  :  «o 
mrii  amor  próprio  sangra  ainda,  á  recordação 
das  maravilhas  que  viu  uo  .Museu  de  Madrid. 
_L  otterra  </<  Hespariha  não  foi  para  nós  tão  fe- 
liz, como  as  expedições  </'Jt"/l<i  >.—  Que  especta- 
cuioso  miserável ! 


í 


Quando  os  francezes  se  foram,  ficaram  os 
inglezes,  «I»'  rustilhada  com  alguns  portugue- 
jses,  legítimos  ou  adoptivos,  que  se  valeram  do 
oiro  ou  da  omnipotência,  para  dos  defrauda- 
rem do  ultimo  quadro  de  mosteiro,  e  irem 
lançando  a  unha  á  ultima  bonbonniéré  de  fa- 
mília arruinada. 

II. i  setenta  annos  qi Sotdh-Kensington- 

Museum,  de  Londres,  secretamente  mantém 
entre  nós  agentes  seus,  com  ordem  de  vindi- 


OS  GATOS 


marero  d  paiz  de  lodos  os  objectos  cParte  que 
iippareçam.  E  esses  homens,  que  de  Portu- 
gal lêem  carregado  para  aquella  espécie  de 
formidável  ministério  d'artes  e  sciencias,  pelo 
menos  um  decimo  das  preciosidades  que  elle 
encerra,  esses  homens  conhecem,  como  pro- 

íissionaes,   ponto   por  | to,   a   historia   das 

peças  que  ainda  restam,  pertencentes  ao  Es- 
tado ou  pertencentes  ;i  particulares,  o  seu  va- 
lor, os  seus  detalhes,  as  suas  imperfeições,  as 
suas  magnificências,  os  seus  estragos  ;  e  ini- 
placavelmente,  como  famintos  lobos,  eil-os 
espiam  as  necessidades  de  dinheiro  dos  pro- 
prietários, até  chegar  o  dia  em  que  a  venda 
forçada  lhes  lance  nas  mãos  algumas  d'aquel- 
las  jóias,  divinas  e  puras,  que  eiies  enamo- 
ram. 

De  roda  aos  agentes  do  South-Kensintgon 
ponham-se  os  espertalhões  «pie  vem  explorar 
por  conta  dos  grandes  ha/ares  da  Europa... 
frahcezes  que  compram  para  os  judeus  mil- 
lionarios  de  Paris...  americanos  enviados  de 
Nova-York  e  S.  Francisco,  por  conta  dos  ven- 
dedores de  cortumes,  enriquecidos,  e  dos  ne- 
gociantes de  loirinho  nioiioni.iniaeos  de  l>ihelo- 

'":/'■.. .   Accrescentar  a  isto  os  espertalhõesi- 


OS  GATOS  17 

nhos  modestos  da  Rua  do  Alecrim  e  Moinho 
de  Vento,  agentes  de  colleccionadores  portu- 
guezes;  calcular  ;i  cifra  das  transacções  an- 
uuaes  em  seguida;  tomar  nota  do  tempo  que 
esta  sangria  tem  durado;  e  admirar  emfím  o 
manancial  de  riquezas  decorativas,  indescripti- 
vel,  ii1"'  era  Portugal ! 

Ai !  temos  assistido  impassíveis,  como  se 
não  se  tractasse  de  coisas  nossas,  ;i  esse  des- 
moronar cTalfaias  e  obras  primas,  tramado  na 
sombra  pelas  collegiadas  soezes,  por  cabidos 
indignos,  e  por  audaciosos  mordomos  e  in- 
tendentes, que  assim  foram  trespassando  das 
caixas  fortes  confiadas  á  sua  guarda,  para  as 
galerias  dos  príncipes  e  dos  grandes,  as  peças 
de  valor  histórico  e  artístico,  sem  o  menor 
temor  de  responsabilidades  contrahidas,  e  ga- 
bando-se  do  roubo,  inda  por  cima,  com  a  im- 
pudência de  pulhastros  abroquellados  sol»  os 
brazões  reaes  dos  seus  senhores. 

Temos  deixado  vendei-  sem  reluctancia, 
aos  estrangeiros,  obras  únicas,  maravilhas  ex- 
tremas d*;iriisi;is  os  m;iis  celebres  e  os  mais 
deificados  pela  admiração  universal,  sem  que 
o  Estado  tenha  offerecido  á  cubica  de  fora, 
um  esforcosinho  de  concorrência,  tendente  a 

2 


18  <>S  GATOS 

adquirir  para  as  galerias  nacionaes  a  obra  em 
almoeda  :  e  sem  uma  reproducção  sequer,  mu 
simples  desenho,  que  ao  menos  nos  conser- 
vassem a  silhouette  d'aquellas  maravilhas  per- 
didas para  sempre  (a). 

E  nas  raras  bibliotecas  e  ileposilos  do  rei- 
no, as  coisas  guardadas  jaziam  a  esmo,  ainda 
lia  pouco,  devoradas  pela  poeira  e  as  rataza- 
nas, e  sem  que  nenhuma  mào  caridosa  as 
fosse  de  lá  tirar,  dando  aos  touristes,  sob  uma 
luz  favorável,  o  regalo  d'admirar  o  pouco  que 
ainda  resta. 


(u)  É  conhecida  a  historia  do  jarro  e  da  bacia  <!<• 
prata,  cinzeladas  eassignadas  por  Benvenuto  Celini, 
que  o  ourives  Tavares,  da  Rua  do  Ouro,  lanha  com- 
prado cremos  que  aos  viscondes  de  Cintra,  indo-as 
offérecer  mais  tarde  a  l>.  Fernando,  que  as  recusou 
por  um  mal  entendido  Ur  preço,  ridiculo  quasi.  Jar- 
ro e  bacia,  que  primitivamente  haviam  sido  offer- 
tados  por  pouco  mais  de  meia  dúzia  de  contos,  fo- 
ram comprados  depois  pelo  liarão  d'Alcochete,  que 
os  vendeu  em  Paris  por  noventa  e  tantos:  c  aca- 
bam, depois  de  peripécias  varias  nas  niàus  (los  l»-ic- 
á-bracquistas,  de  fazer  a  sua  entrada  solemne  na 


OS    GATOS  19 


Estas  afirmativas  demandara  porém  (ixar- 
se  na  ideia  com  exemplos;  diflicil  caso  n'um 
paizito  onde  todos  se  conhecem  e  tractam  por 
cavalheiros,  e  onde  o  procedimento  de  muitos, 
servos  e  bovardos,    raro  extravasa   da  m  ' 


io  cTourivesaria  do  South- Kensington-Mu* 
Assim  o  refere  o  jorna]  inglez,    Decoration. 

i  •   conde   <ia   Folgosa   possuía  duas  terrinas 
prata,   assignadas  Germain,  queo  inarquez  d; 
adquiriu  por  uma  quantia  oscill&nte  entre  onze  e 
quatorse  contos,  e  que  acabam  de  ser  vendidas 
.  por  quarenta,  emos  a  quem. 

Nenhuma   d'esta 
por  conquistar,  chegando  o  desleixo  a  não  ficar 
ta  uma  simples  photographia,  para  os  r»  »  - 

-  de  Bellas 


20  os  GATOS 

aceada  eavalheirice.  De  portuguezes  que  ha 
quarenta  annos  fizessem  sombra  aos  prestima- 
n  >s  britânicos,  na  arte  d'empolgar  um  bibdot 
;i  preços  irrisórios,  valendo-se  ua  bestialidade 
soez  dos  donos,  o  mais  opíparo  pairava,  feliz- 
mente para  elle,  D'uma  altura  em  que  a  vontade 
uão  sofíre  imposições,  afeita  ao  mando  supremo, 
que  se  herda  com  os  caprichos,  mercê  <IV>- 
s.i  excepção  odiosa  a  que  se  chama  dymnastia. 

Fácil  a  este  foi  chamar  aos  seus  museus 
privados,  muitas  palhetas  do  filão  riquissimo 
que  tínhamos,  em  preciosidades  de  todos  os 
géneros,  pelos  palácios  e  templos  do  paiz. 

Os  processos  usados  para  este  arrebanhar 
de  coisas  raras,  uão  variou  grandemente  dos 
que  hoje  estão  sendo  postos  em  pratica,  pelos 
banqueiros  em  fortuna,  e  por  alguns  dos 
nossos  políticos  e  jornalistas  adoradores  de 
bric-à-brac.  Lançavam-se  pela  província  ava- 
liadores de  confiança,  convividos  no  bibdot,  e 

jtrados  secretamente  uo  manejo  de  verem  o 
que  havia,  sema  primeiravista  lhes  parecerem 
ligar  grande  importância.  Estas  creaturas,  vista 
,i  j  iia,  punham-se  a  sondai'  manhosamente  as 
necessidades  do  proprietário,  as  suas  preoc- 

ições,  as  suas  ambições,  as  suas  prosa- 


os  GATOS 


21 


pias  —  ,,v  pontos  vnlneraveis  da  confraria,  da 
parochia,  ou  da  municipalidade  possuidoras  da 
obra  cubicada  —  e  em  m<'i:i  nora  concebia-se 
o  plano,  11  lançavam-se  os  primeiros  lineamen- 
tos para  o  cerco  1  Sc  ;i  peça  era  de  vulto,  um 
desenhista  enviado  de  Lisboa  recambiava   um 
croquis  na  volta  do  correio,  afim  do  Potentado 
illustre  decidir.  Na  manhã  seguinte,  os  foras- 
teiros debandavam,    fingindo   desdenhar   um 
(louco  o  mérito  da  obra  —  mas  três  ou  quatro 
mezes  depois,  tornava  um,  e  earrement  pn 
ulia  a  compra,  não  se  mencionando  nunca, 
n'essa  primeira  abonlagem,  o  nome  il<>  com- 
prador, afim  de  Dão  despertar  suspeitas  nem 
cubicas. 


Acontecia  ás  vezes  o  dono  da  coisa,  não  v<  n- 
der  a  dinheiro,  i  orque  era  rico. 

ii  remédio  era  offerecer-lhe  á  queima  rou- 


V2  os  <;.\tos 

l>;i  uma  venera,  uma  regalia  qualquer  cTordem 
hierática,  rei  d'armas,  barão,  moço  fidalgo  .. . 
Na  minha  aldeia  fez-se  um  visconde  por  um 
prato  das  Caldas,  muito  velho.  Outro,  argucioso, 
veio  ás  Necessidades  pedir  a  nomeação  ^al- 
moxarife, com  um  bispote  na  mão,  que  posto 
exótico,  era  infamado  já  pelos  trazeiros  de 
bastas  gerações. 

Para  ocaso  extremo  da  recusa  de  venda 
ser    formal,    os    louvados    tinham    ainda    um 

ultimo  expediente:  pediam  o  objecto  ao  pro- 
prietário, e  levavam-no  para  Lisboa,  onde  per- 
manecia até  se  amollecer  de  lodo  a  resistên- 
cia da  collectividade  ou  do  particular  recalci- 
trantes. 

Grande  porção  d'obras  d'arte,  pertencentes 
a  instituições  religiosas  e  pias,  entraram  por 
este  meio  na  capharnaum  artística  dos  nossos 
príncipes— consortes  e  governantes,  como  por 
exemplo  a  custodia  dos  .leroiivnios,  ha  inimeii- 
sos  annos  guardada  no  museu   particular  do 

rei  I).   Luiz  —  as  pratas  da  Sé,  que  SÓ  por  VO- 

zidos  da  imprensa  ha  pouco  tempo  foram  res- 
tituídas ao  cabido,  e  emtiin,  o  quadro  de  llnl- 
beín,  que  a  Academia  das  l!ell;is-.\rles  cedeu  a 

I).  Fernando,   em   deposito,  e   lá  figura   boje 


os  GATOS  23 

nu  inventario  ilo  príncipe,  como  coisa  que  le- 
gitimamente lhe  houvesse  pertencido,  (h) 


(b)  O  snr.  Rodrigues  de  Freitas,  n'um  artigo   do 

.    BENS  DO    POVO    DEPOSITADOS    EM  CASA    DOS 

ih  [g,  fere  este  i to,  e  amplifica  : 

«Seria  ao  rtado  que  também  se  tratasse  de 
i„  i-  -  nade  deposito, exemplificado  no  qua- 

dro de  Holbein,  com  vantagem  para  a  galeria  de 
D.  Fernando,  tem  tido  applicaçâo  a  muitos  outros 
objectos  de  arte,  e  em  beneficio  >\>-  outras  pessoas 
idamente  collocadas  ;  quem  sabe  .'  Talvez  a 
collecçao  de  todos  elles  constituísse  um  museu  di- 

g le  ser  visitado  por  nacionaes  e  estrangeiros. 

Dize s  isto  fundados  n'uma  grande  serie  de  Ca- 
im egaveis  .  é  a  3erie  longuissima  das  appa- 
rentemente  mysteriosas  desapparições  de  tantissi- 
moe  objectos  pertencentes  aos  conventos ;  suspei- 
tava-se  geralmente  que  tivessem  sido  roubados,  ou 
dados;   é  muito  possível   que  haja  inteiro  engano 


->; 


OS  GATOS 


Este  capitulo  das  capellanras  e  irmandades 
que  presentearam  os  príncipes  e  os  grandes, 
«'"Ni  objectos  de  que  ellas  eram  simples  usu- 
fructuarias,  meras  vigias;  este  capitulo  eslava 
a  exigirum  inquérito  minucioso  e  implacável, 
que  desconfiamos  havia  de  descobrir  muita 
estorsão,  e  ferrafr  com  os  costados  de  muita 
gente  fina  no  Limoeiro. 

Junto  a  Óbidos  lia  uma  capella,  cujo  nome 
não  colhe  para  aqui,  cem  cuja  sachristia  exis- 


•  'iii  tão  atrevida  hypothese;  foram  porventura  depo- 
sitados em  casas  d.'  gente  digna  de  os  admirar.  É 
até  provável  que,  se  fossem  quadros,  os  depositá- 
rios mandassem  pôr  nos  caixilhos  respectivos  o  seu 
brazSo,  para  melhor  assignalarem  a  protecção  que 
davam  a  esses  depósitos,  e  o  zelo  com  que  os  guar- 
davam. <>  quadro  de  Holbein,  por  exemplo,  podia 
ter  no  caixilho  as  armas  de  Goburgo-Gotha.  Quem 
sabe?  Talvez  as  tivesse. 

ignoramos  completamente  como  se  fazem  ou 
se  faziam  estes  depósitos;  qual  <>  formulário  da  re- 
messa e  do  reciho. . . 

Quando  falleceu  D.  Fernando,  publicaram-se  ar- 
tigos  vigorosos,  nos  quaes  foi  affirmado  que  muitos 
objectos  pertencentes  ao  estado  figuravam  na  -alc- 
eia particular  do  esposo  de  D.  Maria  II.  A  asserção 
não   foi  desmentida,  se  liem  nos  lembramos;  pedia 


os  <;.\  ros 


ao 


tiara  (se  existirão  ainda?)  algumas  peças  <1»1 
mobília  artística,  maravilhosas  .- .  tambore- 
tes turrados  de  coiro  de  Córdova,  gravffréa  de 
dezenhoa  soberbissimos,  uma  mcza  com  em- 
butidos de  marfim  e  ferrarias  de  cobre  cinze- 
lado, uma  pequena  credencia,  etc.,  doações, 
cremos  <|llr  da  rainha  I».  Leonor,  fundadora 
ou  protectora  da  capellania  mencionada. 

I».  Fernando,  que  tivera  noticia  d'aquelles 
objectos,  ou  passando  por  alli,  lograra  vel-os, 


comtudo  ser  falsa;  agora  porém,  se  a.Aeademia  de 
Bellas  .\ i-i.  —  fez  aquelle  pedido,  não  é  sem  funda- 
mento a  suspeita  de  que  estava  bem  informado  o 
auctor  dos  artigos. 

Mas  realmente  este  deposito  de  um  quadro  attri- 
buido  a  Holbein  é  um  deposito  de  nova  espécie  ;  a 
pintura  não  foi  levada  para  a  habitação  de  D.  Fer- 
nando  por  não  haver  onde  a  guardar ;  não  seguiu 
o  caminho  da  régia  galeria  em  virtude  de  uma  or- 
dem judiciaria;  não  entrou  lã  para  ser  submettida 
ame  de  peritos,  afim  de  sabiamente  resolve- 
rem quem   flora  o  auctor  d'ella :  entrou  por  favor'? 
salim  da  Bemposta  paia  a  posse  de  D.  Fernando, 
poreffeitode  alguma  portaria  amigavelmente  surda'? 
Este  caso  leva-nosa  recordar  mais   uma  vezo 
que  se   passou  cora  a  ramosa  custodia  de  Belém; 
esta  na   posse  da  Casa  Real  e  comtudo  pertence  á 


26  OS  GATOS 

fez  diligencias  furiosas  para  os  alcançar,  da 
administração.  Mas  ;i  todas  as  suggestões  de 
compra  e  troca,  brinde  ou  deposito,  os  honra- 
dos homens  que  geriam  os  bens  da  capella 
responderam  á  cubica  real,  recusas  firmes;  e 
os  tamboretes  e  as  me/as  não  figurarão  oa 
corbeUle  viuvai  da  segunda  mulher  do  rei  ar- 
tista ! 

Estes  exemplos  porem   nfin  são  ínirtifrms, 

e  a  mobília  da  capella  .Tapar  d'0bidos,  se  es- 


nação;  os  documentos  sobre  este  facto  existem  na 
('.asa  da  Moeda;  a  Casa  Real  certamente  não  os 
desconhece;  ella  não  pôde  ignorar  que  esse  monu- 
mento da  ourivesaria  foi  dado  em  troca  de  uma 

pouca   de    praia   do  palácio  da  Bemposta,  avaliada 

'■ih  3:648 #000  réis;  importaram-se  unicamente  do 
valor  intrínseco  da  custodia,  como  se  o  artístico  não 

fosse  O  principal  ! 

Também  a  prata  que  pertenceu  á  casa  de  Nossa 
Senhora  das  Necessidades  foi  entregue  a  I».  Ma- 
ria II.  Entrego  u-se-lhe  pelo  mesmo  tempo  a  de  um 
convento  da  ordem  de  S.  Francisco;  foram  regula- 
res estas  entregas?  Os  documentos  que  conhece- 
mos a  este  respeito,  não  dão  resposta  á  nossa  per* 

-unta. 

Desejaríamos  egualmente  conhecer  o  que  foi  lei- 
to da  livraria  do  convento  das  Necessidades ;  parte 


OS  GATOS  '-> 

capou  ás  garras  do  GoburgOj  ainda  vem  a  cahir 
provavelmente  nas  dos  srs.  marqoeí  da  Foz 
nu  Marianno  ti»1  Carvalho,  que  Deus  guarde. 
Na  exposição  portugueza  d'arte  ornamental, 
aalla  D.  Fernando,  vi  eu  uma  grande  vitrine 
de  carvalho  negro,  em  talha  salomoniea,  cu- 
jas hombrekase  cimalhas,  recamadas  de  gros- 
sas esculpturas  de  pássaros,  caçadores,  gno- 


d'clla  terá  ido  para  a  Ajuda,  como  deposito  análogo 
ao  do  quadro  de  Holbein,  ou  passou  toda  para  as 
bibliothecas  publicas?  E  a  livraria  de  Mafra?  <>  au- 
ctorda  Vcscripção  minuciosa  do  edifício  d'este  nome, 
diz  que  na  bibliotheca  do  anti:;"  conveDto  ba  trinta 

mil  volu -  escriptos  em  todas  as  línguas,  e  sobre 

as  sciencias,  industrias,  profissões,  artes  e 
officios  ;  prehenchem  150  estantes  collocadas  sobre 
,,  pavimento e  a  galeria...  Todas  as  obras  estão  sis- 
tematicamente distribuídas  por  a  e  discipli- 
e  alpbabeticamente  catalogadas.  Notam-se  es- 
pecialmente entre  ellas  edições  riquíssimas  de  1 170 
a  !  ISO  dos  melhores  clássicos  latinos,  e  admiráveis 
pela  belleza  d  estampas.  Encontram-se  tam- 
bém preciosas  edições  das  nossas  cbronii 
tugal,  Ck  Luziadcu  <1>>  morgado  de  Matheus  ;  museus 
de  pintura,  e  'ia-  medalhas  e  moedas  a-  mais  anti- 

iriedadeecoll*  bíblias  anl 

modernas  em  vários  idiomas,  enti — ia-  a  polyglot- 


28 


os  GATOS 


mos  e  folhagens,  eram  feitas  nada  menos  que 
das  columnas  d'uma  capella  alemtejana,  amiga 
minha  d'infancia,  que  S.  M.  l-i  teria  mandado 
buscar  pelos  seus  espiões  de  bibdotoge,  tudo 
por  comprazer  ao  seu  papel  de  salvador  da 
arte  antiga  e  das  batatas. 

S.  M.  a  rainha  i).    Maria  Pia   levou  de  Ma- 
fra, contaram  os  jomaes  aqui  ha  tempos,  para 


ia.  e  alguns  manuscriptos  religiosos  em  pergaminho, 
•  •oiii    lettras  a   capricho,    perfeitamente    illumina- 

<!as.» 

A  quem  pertence  tudo  isto?  Parece-nos  que  per- 
tence á  nação;  comtudo  não  tem  servi, lo  para  ella. 
Está  na  posse  Ma  rasa  real,  como  o  quadro  de  lloi- 
bein  esteve  na  posso  .lo  d.  Fernando?  Cumpre  que 
as  auctoridades  competentes  o  investiguem  ;  o  que 
Se  taes  riquezas  são  .lo  povo,  passem  quanto  antes 

para  bibliothecas  publicas. 

...  Chegamos  sempre  a  concluir  que  o  Holbein 
jamais  deveria  ter  ido  para  a  casa  de  l>.  Fernando. 
E  embora  não  tenhamos  tido  a  honra  de  examinar 
a  escripturação  dos  depósitos,  parece-nos  que  se 
pôde  apostar  100  contra  1  que  na  lista  dos  deposi- 
tários se  não  achará  sequer  um  nome  de  artista 
que  seja  poluo,   por  grande  que   seja  o  seu    talento. 

Assim  prosperam  as  artes  e  os  depositos.it 


OS  GATOS  -' 

oe  seus  aposentos  da  Ajmla.  uns  koeheiros  de 
bronie,  esculptarados  em  magnifico  estylo, 
que  segundo  dos  dizem,  Qão  voltaram  ainda 
ao  seu  logar. 

Dezenas  d'outros  objectes  d'arte,  enfileira- 
dos nas  collecções  de  1».  Fernando  e  D.  Lufe, 
teem  uma  historia  equivalente. 


Daria  um  perfil  bem  extraordinário,  na  lúsr 
loria  da  actual  sociedade  portugueza,  se  qui- 
zessemos  visional-o  com  brutalidade  e  sangue- 
ntilhomem  teutão  que  foi  D.  Fer- 
nando, e  que  mesi imbevecido  ao  seu  sonho 

d'arte,  linha  tempo  para  ir  lançando  golpes  de 
vista  frios,  mercenários  mesmo,  sobre  as  coi- 

,la  vida  pratica  qu jercavam.  Evidente- 

II|t.Mit.  que  elle  possuía  muitos  dotes  de  bon- 
dade particular,  todos  sinceros,  e  destronca- 
dos d'essas  virtudes  de  cathalogo  que  os  con- 


m 


OS  GATOS 


selhos  d'estado  impõem  a. is  governantes,  e 
n'elles  sai»  como  que  as  ferramentas  do  officio 
de  reinar. 

Povo  nenhum  da  terra  admlttiria  boje  por 
exemplo,  uma  rainha,  que  (»s  jornaes  não 
fetGhisassem  como  um  water-doset  de  caridade 

1,11  lll||;i  vitri l'eleganeias,  mi  uma  espécie  de 

realejo  de  sanctidades  femininas  e  domesticas. 
Ainda  liem  os  herdeiros  da  coroa  não  apre- 
sentam a  cabeça,  pelo  postigo  materno,  ás  ge- 
nuflexões «la  comadre,  já  os  ministros  lhes  icem 
costurada  a  fatiota  de  virtudes  publicas  com 
•l1"1  elles  lião-de  mistificar  o  povo,  ioda  a  vi- 
,i;i:  fatiota  afinada  ao  sentimentalismo  da  epo- 
clia,  e  ás  tendências  moraes  e  sociológicas  da 
geração  que  ha-de  aturai-os.  Na  carte  das  vir- 
tudes governativas  dos  Braganças,  coube  por 
exemplo  a  D.  Cedro  v  ,,  papei  d'um  carneiri- 
11,1,1  mandado  fenecer  antes  d'armado,  afim  de 
justificar  o  cognome  cfEspercmçoso  que  o  con- 
selho resolveu  que  se  lhe  desse.  D.  Luiz  veio 
já   numa   epocha    profusa  em   manifestações 
d'ordem  mental ;  então  ordenou-se-lhe  cristal- 
lisasse  entre  o  violoncelio  e  Shakespeare,  o 
que  elle   fez,   charivarisando  com  bonhomia 
egual  f^u>>  dois  infelizes  martyrcs  dos  seus 


OS  GATOS 


31 


ócios...  E  aproveitando  a  crise  agrícola,  <»s  go- 
vernos suggerem  agora  ao  snr.  D.  Carlos,  que 
paraa  recolta  da  popularidade,  S.  A.  amosende 
nas  predilecções  fie  lavrador,  e  vá  de  chapéu 
á  serrana,  applaudir  as  asneiras  dos  congres- 
sos. Jà  aqui  <>  artificio  resalta.  Mas  lia  melhor! 
\chando-se  provido,  na  pessoa  da  actual  rai- 
,,!,;,,  o  logar  de  consoladora  dos  afflictos,  e 
tendo  passado  de  moda  o  beaterio,  está  por 
ag0ra  ;,  Snr.a  duqueza  de  Bragança  sem  tra- 
//s/;  _  |.;  ;l  gente  assiste  todos  os  dias  a  esta 
comediasinha  da  sogra  e  da  nora  que  mutua- 
mente se  usurpam  r  iniciativa  das  kermcsses 
e  bazares  de  caridade —  uma  eom  a  chave  do 
cofre  dos  inundados  na  algibeira,  coberta  de 
jóias,  e  de  mão  estendida,  Sarah  Bernbardl 
da  esmola,  aos  cinco-reisinhos  de  quem  passa 

;i  outra,  um  pouco  froissée  do  jogo  scenico 

,l;i  primeira,  e  contentando-se,  vice-anjo  mal 
ensaiado,  em  vir  ás  Cestas  de  caridade  parti- 
cular, nu  aos  bazares  das  meninas  abandona- 
das da  província,  repetir  as  creaeões  mais  ap- 
plaudidaa  do  anjo  topa  a  lado. 


32 


<»S  GATOS 


Paulo  Bourgel  diz  qo  Disciple,  «é  raro  que 
"m  homem  lançado  na  batalha  das  ideias,  em 
pouco  tempo  se  não  venha  a  tornar  no  come- 
diante das  suas  próprias  sinceridades.» — E 
que  esforços  este  I).  Fernando  não  fez,  para 
guardar  até  á  morte,  na  sympathia  da  cidade, 
ò  sen  velho  dichê  de  rei-artista,  rei  bonenfant, 
apesar  da  interferência  pessoal  pouco  correcta 
que  ás  vezes  se  permittia  ter  nas  coisas  do 
Estado,  estando  já  recluido  á  vida  de  (amilia, 
e  apesar  de  seu  morganático  casamento,  con- 
traindo ih»  meio  do  desagrado  dos  filhos,  e 
das  ironias  dos  seus  mais  dedicados  servido- 
res ! 

Ramalho  pinta-o  como  uma  espécie  de  re- 
quintado burgomestre,  já  no  rãour  da  edade, 
gosando  a  existência  n'uma  atmosphera  con- 
fortável e  balsâmica,  entre  formas  raras  e 
cambiantes  de  índio,  vaporosas,  lodo  entregue 


08  o. Mos  •!-',> 

;i  vetteidades  de  dUettanH,  <\\u>  mereé  da  ins- 
ciencia,  percorriam  quasi  todas  as  especiali- 
dades artísticas  conhecidas,  desde  fazer  gra- 
vuras <li'  saloios  a  afcua  forle,  e  pintar  loiça, 
até  andar  com  fatos  da  Lmcia,  nos  <li;is  de 
bruma,  ;i  roncar  .mí.is  pelos  terraços  de  Cin- 
tra, para  se  «lar  a  iilnsão  d'um  amor  roma- 
nesco  —  aos  cincoenta  annos  ! 

Entanto,  se  por  uma  banda  convém  não 
regatear  as  verdadeiras  qualidades  que  elle 
tinha,  por  outra  cumpre  pôr  em  equação  os 
defeitos  justapostos  i  essas  qualidades.  Era 
uma  sensibilidade  dPartista,  desunida  e  mór- 
bida portanto,  propensa  ao  sonho  da  phan- 
tasia  que  se  ala,  como  ama  borboleta  de  noite, 
aos  intermundios  da  belleza  pura.  Masaqnella 
mesma  sua  convivência  entre  coisas  d*arte 
lhe  fazia  os  nervos  presentidos,  ;<  ponto  de 
se  lhe  produzirem  intercadencias  no  caracter, 
com  grandes  alternativas  de  bizarria  e  de  sec- 
cura.  Deve-se-lhe  quasi  todo  o  miserável  en- 
sino artístico  que  hoje  temos.  Com  o  apoio 

OU    a   iniciativa    d*elle   se    levaram   ;i  cabo  al- 

gumas  exposições  de  pintura  6  d'arte  orna- 
mental. Muitos  dos  nossos  artistas  agradecem 
hoje  .1  mensalidades  d'elte,  a  educação  rece- 


;\\  os  GATOS 

bida  nos  ateliers  de  Paris  e  Roma.  Os  seus 
gOStOS  ifartisla,  a  sua  imaginação  visual  ifal- 
lemão  contemplador,  um  raro  senso  evoca- 
tivo da  pureza  das  formas,  originarias  ou 
typicas  d'uma  escola,  duma  nacionalidade 
ou  iruma  epocba,  davam  ao  esposo  de  D. 
Maria  II  golpes  de  vista  sagazes  sobre  muitos 
ramos  d'archeologia  artística  e  (fartes  deco- 
raes:  critério  este  mais  d'instincto  que  d'eru- 
dição,  mas  em  todo  o  caso  seguro  e  bem  ali- 
cerçado. 

E  sem  a  sua  actividade,  inteligente,  sem  o 
seu  ciúme  de  bric-á-brac(|iiisla,  que  o  ía/.ia 
policiar  os  manejos  d'alguns  larápios  influen- 
tes, e  alguma  vez  rechaçou  do  campo  das  ac- 
quisições,  a  concorrência  estrangeira,  Portu- 
gal teria  sido  saqueado  nos  seus  bibelots,  nos 
seus  moveis,  bibliotecas  e  loicarias,  em  muito 
menos  tempo  do  que  o  foi.  Entretanto,  nós  já 
fizemos  sentir  como  esta  interferência  de  D. 
Fernando  nas  coisas  estheticas  de  Portugal, 

custava  cara,  e  como  elle  se  identificara  ao 
paiz  adoptivo,  a  ponto  de  confundir  os  museus 
públicos  com  as  suas  colleccões  particulares, 
e  d'estabelecer  com  a  maior  sem  cerimonia, 
migrações  de  quadros,  baixos  relevos,   bron- 


OS  GATOS  35 

zes,  dos  nossos  conventos  para  o  seu  palá- 
cio real  das  Necessidades,  alardeando  *\\w  os 
salvava  da  cubica   mercenária,  em  nome  do 

pOVO,  «'  vindo  ;i   ;il;i|;inl;ir-sc   depois    COm    cl- 

les,  não  sabemos  em  nome  de  que.  Na  genero- 
sa franqueza  com  <|n«'  lhe  abríamos  os  braços, 
e  permittimos  que  elle  fosse  manuseando,  co- 
mo m'hs,  objectos  que  jamais  poderiam  se- 
questrar-se  ã  tutella  do  Estado,  e  á  proprie- 
dade e  á  posse  do  paiz^  ia  para  assim  dizer 
formulada  a  esperança  de  todos,  em  que  o 
príncipe  legaria  aos  museus  nacionaes,  por 
sua  morte,  os  soberbos  exemplares  que  lo- 
grara reunir,  graças  ao  dinheiro  que  nós  lhe 
demos,  á  situação  moral  <|in'  lhe  creamos,  e 
ao  enternecimento,  imperdoável,  com  que  o 
deixamos  ir  pelas  nossas  gavetas,  ruínas  e 
sanctuarios,  ;í  basca  de  surprezas  que  apasi- 
guassem  ;i  neuresthenia  de  bello  que  o  es- 
tortegava. 

Por  isso  o  seu  testamento  produziu  no  pu- 
blico, estupor  primeiro,  depois  incredulida- 
de —  e  ódio  por  ultimo.  Um  ódio  agreste,  fais- 
cando  desdéns  «•  sedes  de  desforço,  contra  a 
memoria  d'elle,  contra  ;i  sim  probidade  de  ho- 
mem, a  Bua  integridade  de  ser  pensante,  o  seu 


36  os  RATOS 

passado,  e  as  affeieões  que  na  vida  mais  o  en- 
terneciam, (c) 


Os  longos  extractos  que  damos,  do  jornal 
q  ii'  mais  vivamente  tractou  a  questão  do  tes- 


(c)  «.As  Novidades  ■  de  22  de  dezembro  de  1885: 
«...  Mas  o  príncipe  era  homem:  HoWiq  sum 
i  hil,  etc.  Ninguém,  por  mais  elevado  que  seja,  po- 
de  fugir  a  esta  condirão.  As  fragilidades  da  natu- 
reza humana  dão-sr  nos  príncipes,  como  no  com- 
íniiin  dos  mortaes ;  e  a  doença  exerce  sobre  aquel- 
les  a  mesma  influencia  nefasta,  que  sobre  estes.  O 
cancro  (pie  se  apossou  dum  coração,  e  o  roeu  com 
aferro  implacável,  não  pôde  inspirar  mais  respeito 
do  que  o  cancro  que  dilacerou  a  face.  A  medicina 
foi  impotente  para  extirpar  o  shirro  da  cara,  como 
a  luz  da  razão  não  pôde  sarjar  o  outro,  o  que  lhe 
invadia  o  espirito.  Essas  duas  impurezas  liquidam- 
se  pela  morte  (!)  Os  physicos  purificaram  o  cadáver 
pelo  embalsamamento,  á  luz  tremula  dos  tocheiros 
fúnebres  os  críticos  teem  de  purificar  a  memoria 
do  príncipe,  lavando-o  do  outro  cancro,  á  grande 
lu/.  da  opinião  publica.  Picará  então,  como  deve  II- 


-  «.  \ 


lamento,  se  acaso  espelham,  como  o  jorna 
ta  pretende,  ;i  opinião,  deixam-nos  vèrqueel- 
l;)  considerava  o  amor  do  rei  pela  condessa, 
como  um  cancro  que  lhe  fez  o  coração  cruel, 
e  lhe  arrancou  de  lá  o  amor  dos  filhos,  •  o 
respeito  il<>  seu  passado  e  '1<>  seu  nome,  aca- 
rinhados durante  quarenta  annos  pelo  afecto 
leal  < r  u ni  povo  inteiro.  Mostram  esses  extractos 
mais,  «-..111  certidões  de  physicos,  que  era 


.ar.  honrado,  respeitado  i    venerado,  no  panlheon 
doa  reis.   Â  opinião  tem  esta  missão  a  cumpr 
;,.,,,  :,  cumprir  também  e  parallellamente  a  mi 
de  proteger  a  magestade  do  rei  contra  a  piedade  do 
nu,,,.  e  •»  expleodor  da  coroa,  que  é  unia  dymuastia 
e  uma  instituição,  contra  as  desfaUencias  eauei 
pelos  afTectos  de  família,  tanto  mais  vivos,  quanto 
mais  se  afogam  em  lagrimas  de  dor. . .  Cá  estamos, 
e  começaremos  ãmanhl 

\e  dezembro  de  Í885.  « l  mesmo: 
...  i».  Fernando  morreu  de  dois  cancros.  <  i  da 
face,  revelava-o  a  intumescência  e  dilaceração  dos 
tecidas;  o  do  coração  maniíi  stou-se  em  toda 
profundidade  e  crueza,  no  testamento  com  que  tal- 

leceu.  0  testamento  produziu  no  primeiro  i nento 

mm  impi  ral  d  estupor,  que  a  breve  l 

.a  a  indignação  profunda.   Em  nosa  i  op 
nunca  a  opinião  publica  se  aflirmou  n'ui  ia  sol  da- 


38 


os  GATOS 


vavel  Dão  gozar  o  rei  de  todas  as  suas  facul- 
dades, ao  redigir  do  testamento  com  que  mor- 
reu, sendo  natural  que  um  tal  documento  lhe 
fosse  arrancado  pela  mão  .ruma  mulher  devo- 
rada ,,('  cubica,  sem  amor  ao  marido,  e  levan- 
do o  egoísmo  até  á  infâmia  de  querer  provocar 
"m  mcesto  na  família.  E finalmente accrescen- 
tam  que  se  inutítise  o  testamento,  confrontan- 
do-o  com  outro  que  o  rei  Qzera  em  estado  lu- 


nedade  tão  forte,  como  agora.  Como  foi  que  a  alma 
delicada  d'aquelle  rei  artista  pôde  subscrever  um 
tal  testamento  >  Sem  ter  perdido  o  uso  da  razão, 
que  importa  o  desconcerto  absoluto  da  vida,  teria  o 
snr.  D.  Fernando  perdido  o  vigor  e  a  energia  neces- 
sarias  para  resistir  a  suggestr.es  pérfidas  e  a  amea- 
insidiosas? 

(Segue  uma  co  iferenciacom  um  dos  facultativos 
que  trataram  o    ei,  e  diz  assim  :) 

"•••  O  tumor  maligno  da  face  não  poupou  os 
nervos  e  artérias,  produzindo  até  a  decomposição 
il.  <)s  progressos  da  doença  irritaram  necessa- 
riamente as  meninges,  corromperam  os  vasos,  e  al- 
teraram a  circulação.  0  lóbulo  anterior  do  cérebro 
deve  ter  sido  comprimido,  o  que  a  autopsia  nao  dei- 
xaria de  mostrar.  Este  lóbulo  soffreu  por  tanto  na 
circulação,  e  assim  na  sua  nutrição  e  regular  func- 


(is  GATOS 


m 


eido;  terminando  por  aconselhar  que  as  col- 
lecções  artísticas  do  castello  e  Mda  da  Pena 
e  ,i()  palácio  das  Necessieades,  já  minguadas 
,1,.  jóias  e  pratas  em  que  firandulentamente  se 
substituíram  monogramas,  voltem  ao  Estado, 
senão  na  totalidade,  pelo  menos  em  parte  vis- 
to como  si,,  do  paiz  muitas  das  preciosidades 
artisticas  que  as  compõem.  Nós  registramos 
com  jubilo  esta  impetuosa  esfusiada  de  fran- 


eiooamento.  A  doença  teria  alterado  também  o  es- 
tado plástico  .1.»  sangue,  o  que  viria  a  influir  no 
modo  de  sef  da  actividade  cerebral.  Effeitos  análo- 
gos se  registam  nas  cacbexias  extremas,  oos  amol- 
ecimentos cerebraes,  etc.  B  de  tudo  isto  se  pôde 
concluir  com  afoiteza,  independentemente  de  qual- 
quer exame  especial,  e  só  pela  marcha  geral  da 
doença,  que  o  snr.  1».  Fernando,  som  ter  perdido  o 
cahira  progressivamente  num  estado 
em  que  as  faculdades  aflectivas  levam  racilmente  de 
vencida  as  faculdades  intellectuaes.  ■ . 

«O  tostam. mi t..  de  l».  Fernando  data  de  13  >\- 
neiro  de  1886,  quando  já  ette  estava  irremediavel- 
mente condemnado,  e  se  sabia  que  a  sua  vida  devia 
durar  apenas  alguns  mexes,  ou  mesmo  dias,  boras, 
conforme,  i »  ensejo  do  testamento  foi  escolhido 
conhecimento  i,  e  desalmadamente  aprovei- 

tado. Tinha  feito  oatro  antes,  em  1880.  Era  o  do  ho- 


40  OS  GATOS 

queza,  que  põea  questão  piara  e  virgineamente 
aua  dos  véus  hypocritas,  eutre  que  os  jornaes 

usam  [falar  das  grandes  falcatruas.  SódOHOSr 

so  applauso  expulsaremos  os  trechos  em  que 

se  allude  em  termos  pouco  generosos  ás  qua- 
lidades e  intentos  d'uma  senhora,  que  seja  o 
que  for  não  tem  marido,  e  resgatara  pela  sua 
alliança  a  um  rei  de  Portugal,  quaesquer  som- 
bras que  podesse  trazer  da  vida  de   tablado. 


mem  são.  Para  se  ajuizar  da  perfeita  Inteireza  do  li- 
vre arbítrio  do  testador,  seria  necessário  confrontar 
entre  si  os  dois  testamentos.  Assim  se  porá  em  me- 
lhor evidencia  o  que  pertence  ás  responsabilidades 
do  testador,  e  o  que  pertence  á  garra  da  harpia.  É 
preciso  por  tanto  que  o  testamento  de  1880  appa- 
rcça.  Não  só  para  se  liquidar  de  todo  [observação  d  > 
jornalista  —  para  quem  seja  preciso,  que  não  para 
nós)  este  processo  moral  em  que  está  interessada  a 
memoria  de  D.  Fernando,  mas  também  para  se  ins- 
truir o  processo  legal  do  inventario,  que  em  qual- 
quer hypothese  terá  de  fazer-se. 

«...  O  testamento  ultimo  não  é  obra  de  D.  Fer- 
nando. Não  o  pôde  ser,  porque  nem  mesmo  por  um 
egoismo  feroz  (que  aliás  nunca  manifestou  em  vida 
poderia  ser  explicado.  É  descaroavel  demais  até 
paia  isso.  Está  alli,  sibilando  em  cada  linha,  o  ran- 
cor venenoso   d'uma  ambição  que  serpeou  até  aO£ 


OS  GATOS  !  I 

Sobra  a  sua  tiipidc/  tambem,poucos  dados  com- 
provam, desde  que  essa  mulher  accedeu  a  des- 
fazer-se  da  propriedade  «la  Pena,  sem  violência, 
e  abriu  elle  mesma  ás  indagações  da  justiça,  as 
coilecções  adquiridas  por  herança.  D'ahi,  não 
r  necessário  recorrer  ;i  harpia  que  se  vinga  com 
•i  mào  do  finado,  nem  á  loucura  Incida  do  prín- 
cipe, paia  explicar  <»  testamento,  .lá  desenhá- 
mos a   sensibilidade  mórbida   especial  de  D. 


degraus  do  throao,  e  que  9e  consummiii  em  esfor- 
ços impotentes  para  ter  assento  n'elie. 

.1  e.wTAiuNA  procurou   oingar-se  rum  a  mV 
finado...  E  está  também  retratada,  com  toda-  as 
suas  unlias.  a  rapacidade  implacável  '|ur  nem  a  po- 
bre gratificação  aos  mais  antigos  servidores  pou- 
pa. . .  0  testa oto  assim  feito  pôde  ter  como  oom- 

mentario  a  vibrante  apostropbe  de  Tibullo,  na  ele- 
gia iv.  liv.  u,  á  oortezã  Nemesis. 

—  Ta  cavas  a  concha  da  mão  para  arrebanhar 
mais  dinheiro. 

< »  poeta  definiu  a  harpia  com  forma  tiuma 

94  dt  dezembro  de  1885.    .1-  Novidades*: 
Nada  temos  particularmente  ■■outra  a  snr."  con- 
a  d'Edla,  Não  lhe  arremesaamos  injurias  porque 
é  viuva,  como  lhe  não  arremessamos  flores  quando 
■  gposa  morganática  dosar.  i»  Fernando.  Nin- 
guém no»  viu  por  detrás  dasjanellat  >'"  Poj     d      Ni 


\'l  OS  (.AIOS 

Fernando,  que  era  a  éftim  príncipe,  complica- 
da da  (rum  artista;  caprichosa,  desegual,  in- 
transigente ena  questões  d'obediencia,  cheia 
de  violências  e  dMnfantiHdades,  e  exteriormen- 
te glacida  e  com  deasás  de  bonhomia,  como 

deve  ser  a  d'um  allemào.  Em  typos  (Testes,  a 
altivez,  quando  ferida,   é  rancorosa,  e  raro  é 
que  não  chegue  a  lançar  mão  da  crueldade. 
Ponham  agora  ao  redor  d'tim  homem  as- 


cessidades,  turvado*  humildemente  diante  da  snr.* 
condessa,  (inundo  ella  poisava  <<  sim  mão  enluvada  x<> 
braço  d'el-rei,  porque  nunca  lá  fomos;  e  ninguém 
nos  verá  cá  fora  a  apedrejar-lhe  as  janellas. . .  que 
nSo  são  suas  —  (allusão  a  um  artigo  do  Correio  da 
Manhã. 

Os  nossos  artigos  são  apenas  um  pallido  reflexo 
da  explosão  de  cólera  que  rebentou  em  todas  as 
consciências.  Somos  apenas  um  ecoo  e  nada  mais. 
A  opinião  publica  nunca  se  pronunciou  com  uma  tal 
intensidade,  e  uma  tal  unanimidade,  sem  ter  por  si 
a  justiça,  e  sem  haver  um  grande  malefício  a  vin- 
gar. Os  próprios  que  correm  a  estender  o  manto  da 
misericórdia  sobre  a  desolada  viuva  (commentário  do 
jornalista — dedicatória  de  coroa  fúnebre)  reconhe- 
cem e  confessam  que  o  (estamento  d'el-rei  D.  Fer- 
nando é  um  documento  lastimoso,  e  que  produziu  a 
mais  deplorável  impressão...  0  testador  podia  dis- 


(>S  GATOS  Kl 

>im  susceptível,  .1  família  real  que  lhe  não  re- 
cofthece  oficialmente  <>  casamento,  Maria  r*i.i 
que  parte  o  oopo,  iTum  banquete,  quando  o 
marido  tem  <»  desceeo  de  propor  um  brinde  ;i 
condessa  d'Edla,  deante  de  toda  a  corte, — e 
os  seus  sarcasmos  quando  lhe  faliam  na  wgra, 
e  o  seu  ódio  de  princeza  authentica,  todos  os 
iiins  froimé  pela  impertinência  da  cantora  —  e 
accrescentem  ainda,  para  acabar  d'exasperal-o, 


lo  que  era  sen,  como  muito  bem  quizesse.  Mas 
fi  Imprensa  não  pôde  negar-se  o  direito  dMnvestigar 
se  na  herança  do  snr.  D.  Fernando  est&o  todos  os 
valores  que  lá  devem  estar.  Não  Falíamos  <las  in>- 
cripções  d'averbamento  •  ju<-  se  inverteram  em  títu- 
lo portador,  para  poderem  ser  sonegadas  á  he- 
a,  nem  nas  Jóias  de  I>.  Maria  n.  qne  passaram 
,-t  . nitro  oolo  estas  jóias,  perguntamos  nos,  não  per- 
tencerão talvez  á  ror...!''   nem  das  preciosidades  ar- 
tísticas a  que  se  mandoa   razer  um  monogramma 
d*usurpação,  nem  «las  pratas  em  que  se  substituiu 
por  esse  mesmo  monogramma,  a  coroa  real. ..»  {o 
Uista  '"/'"'  repete  <>  '/-"•  mais  d'uma  >•<■:.   '<<>  de~ 
.  ,in  queêtão,  tem  procurado  transfiltrar  noespi- 
,!,,  feitor}  íflo  é,  que  /"<"  cita.  facto*,  nem  hieto- 
,,,  m  episódios,  /<"/■'/>'<■   "//"/  m   coitas  d'alto.    I. 
f   /,/,-.  insistindo  em  demonstrar  </"<•  a  mr.*  condessa 
4  'Edla  extorquira  da  razão  vacillante  do  rei,  o  teeta- 


i  1  OS  CA TOS 

o  afastamento  do  povo,  que  recusa  ao  rei  ar- 
tista a  sua  antiga  sympattóa,  satyriBando-6  aos 
jornaes  e  reuniões  publicas,  pelo  facto  d'aquel- 
le  matrimonio  escandoloso,  e  elaro  dando  a 
vèr  <>  quanto  o  melindrava  a  violação,  pela 
cabotine,  do  fauteuÚ  em  queoutr'ora  se  sentou 
D.  Maria  II. 

Ora,  injurias  assim  não  se  perdoam  ;  quan- 
do é  impossível  cevadas  de  prompto,  o  tempo, 


mento  supra,  onde  se  uãn  faliu  da  snr.*  1>.  Maria 
Pia,  t/<h-  tanto  <>  affeiçoava,  e  se  mencionam  secca- 
mente  as  filhas  por  as  infantes,  >■  se  irada  a  swr.* 
condessa  por  minha   muito  QUERIDA  E  amada  ES- 

POSA.) 

28  <!<■  dezembro  <!>■  lss.~>.  o  mesmo  jornal: 
...  1 1  rei  artista,  que  era  amado  do  povo,  com 
o  qual  se  misturava  nos  ajuntamentos  e  festivida- 
des, viu-se  que  nada  deixou  para  o  adiantamento  e 
bem  estar  dos  artistas,  nem  uma  insignificante  col- 
lecção  d'objectos  d'arte  para  o  estudo,  o  que  pro- 
duziu um  arrefecimento  súbito  nas  sympathias  de 
que  gosava,  e  uma  indignação  vivissima  coatra  a 
Egeria  funesta  que  Ibe  inspirou  uma  tal  disposição 
d'ultima  vontade. . ,  bastaria  entretanto  que  o  tes- 
tamento contivesse  algumas  boas  palavras,  etc... 
bastaria  que  D,  Fernando  escrevesse  o'elle  uma  dis- 
posição que  resalvasse  para  a  coroa  e  para  a  nação 


OS  6ATOS  *0 

em  \«v.  deaspuir,  centuplica-Ilies  os  Ímpetos, 
acoamtilanéo  os  dias  de  scínimento,  em  juros 
d'odio,  lê  a<>  momento  em  que  a  vingança 
nos  desforce  integralmente.  D.  Fernando  havia 
de  ter  premeditado  assim  uma  desforra,  longo 
tempo,  sob  as  suggestôes  e  conselhos  da  espo- 
sa, não  tem  duvida,  mas  por  obsessões  também 
do  seu  próprio  rancor  de  governante  achinca- 
lhado.  Essa  outorga  de  riquezas  a  uma  mu- 


a  propriedade  e  regalia  do  Gastello  da  Pena,  que  lhe 
rendido  como  monumento  histórico  (isto  é,  por 
ii, na  quantia  mínima.  que  não  podia  por  forma  al- 
guma significar  cedência  de  propriedade)  e  que  o 
paiz  se  habituara  a  considerar  como  formosíssima 
jóia  sua. ..» 

i8  de  dezembro,  85. 
....  vamos  terminar  esta  primeira  serie  d'arti- 
speito  do  testamento  d'el-rei  D.  Fernando. 
i    das  aa  consciências  pediam  uma  correcção  «lura 
.•  um  desagravo  proporcional  ao  malifício;   mas  al- 
ta vozes  dizem  já,  basta  !  e  nós  somos  e  quere- 
ser  apenas  os  executores  da  alta  justiça  popu- 
lar. .1  segunda  serie,  }">•■< m.   min  $e  demorará.. .  se 
for  preciso.  E  será  talvez  ainda  mais  áspera  do  que 
a   primeira,  e  <'"m  certeza  muito  mais  interessante 
-iK-  ella.  Porque  haverá  historias  largas  que  con- 
\  j.ii  ,,  articulista,  <iu>-  atrai  dissera  querer 


Wi  08  CAI  os 

lher  que  apenas  podia  auferir  d'ellas  um  gozo 
egoísta  e  improductivo,  nu  detrimento  d'um 
P°vo,  que  pelo  estudo  saberia  transformar 
taes  maravilhas  em  instrumentos  de  critica  e 
•I'1  cultura  ;  essa  doação  por  certo  foi  uma  vin- 
gança de  mercieiro  casmurro,  reles  e  mesqui-» 
nha,  mas  devemos  recordar  que  o  rei  não 
tinha  outra. 


apenas  encarar  as  coisas  d'alto,  refere  a  aventura  de 
uma  sobrinha  sem  tia,  que  veio  das  Salezias  para  o 
paço  das  Necessidades,  <■  que  parece  a  snr.»  condessa 
d'Edla  quiz  casar  com  osr.  infante  D.  Augusto.  Tem- 
pos depois,  esta  menina  desposava  um  oflicial  de  ma- 
rinha, abandonando  o  paço  bruscamente,  só  com  ■> 
roupa  que  trazia  vestida  '. 

E  continua  : 

«...  esperamos  que  a  sr.«  condessa  cTEdla  se 
poupará  e  nos  poupará  á  segunda  parte  d'esta  mis- 
são dolorosa.  Tratando  o  assumpto  dalto,  não  qui- 
zemos  discutir  n'esto  momento  as  questões  propria- 
mente jurídicas  que  no  testamento  se  ventilam.  Ha- 
vemos, porem,  de  as  acompanhar  com  cuidado,  por 
que  nem  podemos  resignar-nos  a  (pie  o  monumento 
histórico  da  Pena  saia  da  corda  ou  da  família  real 
portugueza,  nem  podemos  consenti»  que  a  rapa- 
cidade LEVE,  ENGLOBADOS   NA    HERANÇA,    PRECIO- 


OS  GATOS  í-7 


(Br 


Sr  faltando  n<>  testamento  de  l>.  Fernando, 
trasladámos  os  artigos  das  Novidades,  foi  para 
somente  d*elles  fixarmos  ;is  ultimas  linhas,  que 


SOS  OBJECTOS   D'ARTE  QUE  PERTENCEM    AO    ESTADO. 

(Sublinhado  por  nós  .» 

Como  se  vê,  este  libello  <las  Novidades,  tão  ter- 
rivelmente formulado  em  seis  artigos  editoi 
procedia  com  methodo,  e  por  series — conforme  a 
praxe.  Man  grado  o  nosso  respeito  pelos  bomens 
d'im prensa  que  tractam  coisas  d'alto,  não  descon- 
remos  a  anciedade  com  que  esperámos  a  se- 
cunda serie  promettida,  mais  <>  seu  supple nto  de 

contraprovas  e  historias,  onde  facilmente  <»  nosso 
espirito  beberia  as  excruciantes  indignações  da  '»pi- 
nião,  contra  a  mão  <\<>  finado  e  a  cantarína.  Por 
desgraça,  que  essa  segunda  serie  nunca  appareceu 
—  já  porque  a  questão  houvesse  tomado  directri- 
mciliadoras,  entre  as  diversas  parles  litigantes, 
lendo  a  sr.*  condi  ssa  em  poupar  talvez  ao  ar- 
ticulista, a  tal  segunda  parte  doesta  missão  dolorosa, 
i  ih  que  ••lio  falia;  já  porque  muito  pouco  tempo  de- 
;  da  primeira  serie  apparecer  nas  Novida 
sr.  Emygdio  Navarro  era  chamado  a  fazer  parte  do< 
gabinete  progressista,  'i1"'  subiu. 


»-N  os  GATOS 

escriptas  por  uni  ministro,  quasi  valem  por 
declarações  de  gabinete. 

«...  não  podemos  consentir  que  a  rapacidade 
leve,  englobados  na  herança,  preciosos  objectos 
d'arte  que  pertencem  «o  Estada. . .»  Ousaríamos 
completar  o  sentido  do  trecho,  recapitulando 
o  que  atraz  deixamos  dito,  quanto  aos  meios 
empregados  por  D.  Fernando,  para  a  amon- 
toação  dos  thesouros  artísticos  que  deixou. 
Assim,  S.  M.  teria  adquirido  muitos  dYsses 
thesouros  por  compra,  nas  províncias  e  casas 
o|iiileiilas,  mas  por  preços  que  alguma  vez  re- 
presentaram apenas  a  crassa  ignorância  da 
pessoa  que  vendia,  e  o  perfeito  conhecimento 
do  vaior  da  obra,  por  banda  da  pessoa  que 
comprava  —  aclo  esle  que  os  tribunaes  punem 
com  o  rigor  que  lhe  assiste,  (d)  S.  M.  teria 


(d)  "...  La  théorie  de  la  valeur  èst  la  règle 
des  esprits  civilisés,  et  qui  la  mèconnait  apparait 
comme  an  étre  inférieur,  stupide  nu  déraisonnable. 
Ceei  est  tellement  vrai  qu'on  ftnirait  par  arréter  un 
homme  qui  offrirait  roille  franes  d'une  image  <l'Epi- 
n.ii  cotée  1111  sou,  et  qu'on  finirait  par  1'enfermer 
comme  fou.  Le  seul  fait  de  ne  pas  avoir  la  notion  du 
prix  siíffit,  dans  notre  société  actuelle,  pour  faire 
retirer  sa  capacite  juridique  •■[  1'usage  de  sa  fortune 


OS  i.ATOS  49 

ainda  adquirido  alguns,  ;i  titulo  de  simples 
deposito,  oomo  no  caso  do  quadro  de  Holbein, 
que  o  snr.  Rodrigues  de  Freitas  verbera.  Fi- 
nalmente, haveria  deslocado  outros,  sem  au- 
ctorisação  nem  direito,  dos  legares  em  que 
ellee  estavam,  como  por  exemplo  os  Lucca 
delia  Robia  do  convento  da  Madre  de  Deus, 
l>;ir;i  os  fixar  nos  seus  salões  da  Pena  e  das 
Necessidades,  o  que  também  constitue  deli- 
cio grave,  e  de  sanha  a  fazer  figurar  na  parte 
de  policia,  qualquer  desgraçado  das  ruas  que 
o  commettesse. 

Por  consequência,  as  collecções  d'elle  per- 
tencem-nos,  são  aossas;  cumpre  revindical-as 
para  a  posse  do  Estado,  e  fazer  d'ellas  um  nu- 
cl Iii  museu,  indispensável  não  somente  á 

ostituição  da  historia  portugueza,  e  ao  es- 
ludo  da  arte  < •  i \ i I  e  religiosa  dos  nossos  gran- 


à  um  bomme,  en  toate  aatre  ciroonstance  eatimé  ca- 
pable  mème  dana  lea  aaaembléea  parle- 

meotairefl  >-t  de  donner  <!<•>  loia  a<»  pays. 

i  i  -  ôc  momiates  detona  lea  temps  et  de  tona  les 
d'Adam  Smitb  à  Bastiat,  et  de  Ricardo  a  J.-B. 

S;iv.  n  BOnt  I -aLtus  sur  06  temia  :  la  définitlOD  de 
la  valtur.  < » 1 1  n'ett  poa  encore  arrivé  á  troover  use 
formule  nre,  •  laire  et  precise.  La  vateor  eat  tonl  à 

i 


;,(!  os  GATOS 

des  séculos— o  que  é  o  passado — senão  lam- 
bem á  reorganisação  do  ensino  artístico  o  in- 
dustrial,—*» que  é  o  futuro. 

É  forçoso  aão  dentar  sahir  do  paiz  nem 
uma  só  das  peças  que  compõem  aquetias  col- 
lecções;  evitar  os  leilões,  que  nol-as  disper- 
sariam pelas  garras  dos  l)ric-á-l»rae< juistas  de 
todo  o  mundo,  que  estão  á  espreita  ;  e  adqui- 
ril-as  em  massa,  quer  pela  aceào  dos  tribunaes, 
quer  por  uma  compra  amigável,  estabelecida 
em  cálculos  lícitos,  e  paga  por  exemplo  com 
o  dinheiro  d'uma  loteria  patrocinada  pelo  Es- 
tado. 

A  fundação  d'um  museu  dYsla  ordem,  não 
é  hoje  um  simples  luxo  em  paiz  nenhum,  mas 
o  repositório  de  motivos  omamentaes,  d'ins- 
pirações  (Farte  pratica,  supérflua  ou  familiar, 
simplesmente  exótica  ou  applicada  ás  indus- 

la  iois  1'utilité  d'un  objet  particulier  par  rapport  à 
,m  individu,  ''i  enmèmetempslapropriétéd'écban- 
ger  cet  objet  contre  un  autre  d'une  atilité  sesabla- 
ble.  AopremieralM.nl,  ['uiilité semblerait  oréeraíule 
la  valeur  et  former  L'étiage  auquel  cet  objet  peut 
monter:  la  valeur  d'an  objet  est  dane  toujoura  rela- 
tive,  ainsi  mi  puita  a  moitíé  tari,  une  maigre  sour- 
ce  dans  les  plaines  d'Algérie  ont  plus  de  valeur 


06  GATOS  :»| 

tii;i<.  ao  qual  deva  prender-se  o  ensino  offici- 
nal,  que  lança  os  povoe  no  caminho  da  pros- 
peridade e  da  fortuna.  K  necessário  comple- 
tar :i  obra  ihs  escolas  indnstriaes,  fundadas 
por  Aguiar,  pondo-lhe  por  cupnla  um  museu 
d'aquelles,  organisado  segundo  os  planos  do 
South-Kensington. 

Para  se  imaginar  o  que  esse  Sout-Ketmn- 
gton  seja,  bastará  dizer  que  elle  contem  para 
mais  de  trinta  milhões  d'objectos  d'arte,  au- 
thenticos  e  inéditos,  de  todas  as  epochas,  gé- 
neros, paizes  e  destinos;  e  um  mimem  ainda 
maior  de  livros,  estampas  e  manuscriptos, 
cathalogados  com  methodo;  e  outros  tantos 
milhões  de  modelos  d'arte  industrial  —  e  que 
tudo  isto  faz  annualmente  ;i  viagem  dos  gran- 
des centros  manufactureiros  e  estudiosos  d'In- 
giaterra,  em  series  combinadas,  que  um  em- 


•  luiiii  abondanl  ruisseaa  dana  Pile  <!«•  K  rance:  un 
bifteck  :'i  bord  da  radeaa  <!<•  la  Méduse  valait  plus 
cher  'i"'»"  diamant.  Cest  lararetéqui  íntervient, 
oompliquée  da  déslr.  Ces  deax  mobiles  ont  an  role 
actif  dana  Ia  ratear  dea  oeavres  d'art  Lea  objets  ar- 
tisti<|iif>  i»nt  um  caractere  d'utilité  incontestable  pour 
céus  qni  leaachètent,  paiaqa'ila  y  trouvent  desjouis* 
sances  cérébrales,  dea  modeles,  dea  stimulanta,  des 


52  OS  GATOS 

pi  jgado  do  museu  acompanha,  com  ordem  de 
preleccionar  sobre  o  destino  dos  objectos  que 
passeia.  Museus  análogos  foram  estabelecidos, 
em  .Moscou,  Vienna  d'Austria,  Berlim  e  S. 
Petersburgo,  ha  muito  tempo.  Em  1885,  dias 
antes  do  jornal  L'Ari,  propor  uma  subscripção 
publica  em  Paris,  para  a  ereação  d'um  Musée 

Arte  Decoratifs,  Ph.  Burty  escrevia  estas 
palavras : 

"La  France  attend  encore  im  musée  analogue 
au  SOUTH-KENSINGTON.  Lorsqu'eUe  le  tentero, 
malgré  les  richesses  dispersées  dcms  ses  différentes 
collections  nationales,  il  será  foreément  bien  in- 
complet.  Les  étrangers  ont  ecrémé  tout  ce  qui  est 
d'un  interet  supérieur,  et  la  coneurrence  a  amené 
les  surencheres  ruim  uses. .  .„ 

o  museu  de  Paris  foi  creado  em  1887,  e 
todos  conhecem  a  historia  da  sua  interferência 


moj  cus  d'enseigne nt,  ou  tout  simplement  des  oc- 

casions  ile  savourer  1'orgueil  de  la  possession  et  de 
faire  des  enyieux.  La  science  économique  constate 
les  faits,  .-nissi  bien  psychologiques  «i1"'  matériels, 
sans  l<-s  apprécier  au  point  de  vue  moral...» 

(E.  Lepelletier,  artigo  Justice  dans  Vart,  do  Echo 
de  Paris.) 


OS  GA !    -  I 

industrias  francezas,  que  vem  de  dar  na 
Exposição  uma  tão  brilhante  prova  <le  vitali- 
dade. 

Th.  Burty  queixa-se  dos  estrangeiros  que 
expoliavara  a  França,  pom  dinheiro  nas  mãos, 
dos  seus  thesouros.  Pe  quem  nos  queixaremos 
nós  então!?.,.  Estrangeiros  e  nacionaes  — 
mais  nacionaes  agora  do  que  estrangeiros  — 
avançando  em  quadrilhas,  teem  roubado  in- 
famemente  o  paiz  das  suas  melhores  alfaias  e 
bijoitx,  i  isto  "'iii  plena  inania  dos  governos, 
cujos  membros  condescendem  por  vezes,  ver- 
dade seja,  a  ter  no  roubo  a  parte  do  leão.  E 
quanto  mais  a  fundação  <1  um  museu  d 
ornamental  nos  for  tardando,  tanto  maiores 
desfalques  se  hão-de  fazer  no  pouco  que  nos 
resta.  Ás  collccções  de  D.  Fernando,  umi 
securas,  viriam  juntar-se  os  destroçados  espó- 
lios dos  muitos  conventos  de  freiras  que  i 
fechando,  ou  fecharão,  em  breves  «lias  as  suas 
portas;  e  é  provável  que  todos  estes  ilexpojos 
reunidos  lograssem  dar  de  si  um  basar  ainda 
vasto,  <!••  formosas  ."i-.i-. 


54 


os  GATOS 


Só  no  districtpde  Lisboa,  conventos  fecha- 
dos contamos  este  anuo  d' oito  a  nove  ;  e  alguns 
antigos,  com  tradicções  históricas,  fundações 
de  princezas,  e  restos  de  sumptuosidades  devi- 
das ao  favor  de  reis  e  de  rainhas.  Em  quasi 
todos,  sem  que  se  soubesse  em  globo  O  qim 
continham,  era  voz  publica  haver  trabalhos 
d'arte,  em  talhas,  colchas,  retábulos,  lavran- 
laria  artística,  mobílias,  poterie$}  estatuetas,  e 
azulejos:  tudo  restos  d'opulencias  passadas, 
que  os  capellães-administradores,  e  as  madres, 
instadas  por  parentes,  por  funccionarios  civis, 
ou  por  simples  trampoliueiros,  foram  vendendo 


(>S  (iATOS  55 

.ilcavez  dos  tempos,  por  mn  quasi  nada  mais 
de  tuita  e  meia.  (e) 

Um  nosso  amigo,  que  foi  outro  <lia  ao 
mosteiro  de  Santa  .Maria  d' Almoster,  casa  de 
penitencia  onde  foram  acabar  infantas  e  man- 
cebas de  reis,  e  ainda  aqui  ha  trinta  annos 
atolhada  de  preciosidades  caras,  voltou  de  lá 
com  ;i  indignação  inflada  nas  palavras,  e  ba- 
rafustando contra  o  desleixo  das  auetoridades 
que  deixaram  roubar  estupidamente  os  san- 
ctuarios,  retalhar  as  pinturas,  fazer  fogueiras 
com  as  estatuas  dos  santos  e  os  cotomnellos 
das  capellas;  b  pennittiram,  senão  coUabora- 
ram,  nos  roubos  e  salvagerias  que  vieram  a 
tornar  aquella  maravilhosa  casa  a'uma  pocilga 
de  camponezes  alvares,  de  sachristas  gatunos, 


(e)  Se  nos  não  falha  a  memoria,  fez-se  em  1868 
om  inventario  geral  aos  conventos  de  religiosas. 
Comparando  os  espólios  d'agoracom  as  listas  d'a- 
quelle,  fácil  seria  calcular  o  que  Boi  desviado,  para 
em  seguida  deitar  a  policia  a  rabo  .los  larápios.  Que 
governo  ousaria  porém  vibrar  esta  justiça,  sem 
afoeinhar  na  escadaria  dos  paços,  nas  collecções 
dos  ricos,  e  ua  desboora  de  muitos  crismados  por 
ahi  de  veoeraveisl 


56 


OS  GATOS 


e  de  regedores  leiloeiros  e  canalhas.  De  quando 
em  quando  apparecia  por  Lá  um  d'estes  velhos 
-raves,  d'oculos,  diplomados  pela  Academia, 
pela  sociedade  dos  archeologos,  ou  pela  com- 
missão  protectora  dos  monumentos,  o  qual  a 
titulo  de  salvai-  a  arte,  trazia  cemsigo  o  que 
adregava,  esquecendo-ae,  poraffazeres,  de  res- 
tituir essa  colheita  ás  sociedades  sal. ias  que  o 
tinham  commissionado. 

.\'uni  mosteiro  de  Beja,  antiquisskno,  cuja 
fachada  gothica,  posta  no  alto  «ruma  escada- 
ria de  pedra,  concita  o  forasteiro  á  contempla- 
ção embevecida,  conseraram-se,  me  disseram, 
por  muitos  annos,  preciosas  recordações  do 
velho  tempo.  As  ultimas  freiras  que  lá  houve, 
já  um  pouco  secularisadas  pelos  pagodes  que 
D.  João  v  mandava  ensinar  ás  suas  colle^as 
d'Odivellas,  quando  os  amantes  massadosnão 
vinham  ás  entrevistas  nocturnas,  expediam- 
Ihes  por  uma  alcoviteira,  sob  a  forma  de  brin- 
de, algumas  das  bellas  curiosidades  do  mos- 
teiro, baixos  relevos,  colgaduras,  trypticos, 
gomis,  painéis,  e  peças  de  mobília,  em  lermos 
d'acenderem  a  carne  aos  machos  lassos,  pela 
espórtula  da  bugiganga,  paga  adeantada.  Ulti- 
mamente, houve  lá  uma  abbadessa,  oavaquea- 


OS  6  VtOS  ."»/ 

dom  dengosa  e  emérita  magana,  que  convi- 
dava oa  ;ili<>s  funccionarios  civis  a  alegres  me- 
rendas* òYonde  s.ihi;i  bêbeda  e  Baltona,  a 
acompanhar  no  cravo  versos  de  Bocage. 

Conheci  um  secretario  geral  que  lhe  apa- 
nhou magnificas  prebendas,  e  um  monsenhor, 
bispo  quasi,  que  não  desdenhava  fazer  sentir 
;i  freira  rábida,  nas  occasiões  <l«i  satyriase,  o 
quanto  lhe  agradaria  avolumar  a  sua  colteção, 
com  uma  "li  outra  peça  artística  do  convento. 
\vxim  foram  abalando  da  casa  as  belias  coi- 
sas; creio  que  não  lia  em  Beja  homem  ne- 
nhum de  setenta  annos,  que  não  possua  no 
ses  gabinete,  em  paga  d'uma  noite,  alguma  re- 
cordação  da  zorra  professa. 

Todo  o  Alemtejo  baixo,  na  zf >n;i  districtal 
d*entre  Évora  e  Beja,  conhece  um  erudito 
mazorro,  estúpido  e  rapace,  que  unis  d'uma 
vei  tem  figurado  em  commissões  de  historia 
c  archeologia.  Esse  donato  reles,  que  uma 
academia  e  um  governo,  mais  reles  ainda,  se 
não  envergonharam  d'enviar  ;n>  desempenho 
de  missões  de  confiança,  ••num  inquéritos  d'al- 
faias  em  igrejas  * I < -  província,  constatações  il<' 
relíquias  mortuárias,  relatórios  d'arte  e  scien- 
<-i:i  histórica,  ete.,  deixou  pelos  sítios  de  passa- 


-xS  OS  (i.\Ti>S 

gem  a  reputação  (rum  homem  sem  escrúpulos, 
o  mais  cynicamente  deshonesto  de  quantos  mo- 
nos fardados  os  governos  costumam  enviar  ao 
encontro  das  coisas  a  que  não  dão  impor- 
tância. 

De  todos  os  inventários  que  esse  homem 
lá  fez,  pelos  conventos,  revertia  metade  aos 
caixotins  do  seu  museu  particular,  intimidando 
descaradamente  a  timidez  das  monjas  e  a  bes- 
tialidade dos  administradores  de  concelho,  ne- 
gociando á  má  cara  as  peças  que  lhe  recusa- 
vam, e  justificando  enfim  por  toda  a  parte  a 
reputação  d'um  velho  tonto,  abraçado  á  velha- 
caria  d  um  gatuno  exhaustinado.  Tem  um  mu- 
seu riquíssimo,  este  mariola,  que  fui  sempre 
pobre,  e  nunca  esteve  prezo,  e  possue  a  con- 
sideração <le  gregos  e  troianos.  E  com  elle, 
outros  eruditos  que  fustigam  na  imprensa  o 
abandono  dos  monumentos,  a  pobreza  dos  mu- 
seus, e  ;i  selvageria  do  povo,  vão  accumulando 
á  sombra  das  commissões  que  usufruem,  èrtc- 
à-braca  roubados,  indiscutivelmente  roubados, 
sem  <pie  uni  ministro  austero  lhes  peca  contas 
da  villania  com  (pie  elles  se  locupletam.  Tod;i 

a  gente  conhece  ;i  historia  d' uns  azulejos  ce- 
lebres, que  um  architecto  possue  nas  suas  col- 


OS    GATOS  59 

lecções,  e  a  d  umas  talhas  de  capella  antiga, 
que  um  funcckmario  bestado  arrematou  por 
20$000  reis,  para  a  decoração  d'uma  casa  de 
campo.  Querem  mais  factos? 

Um  cirurgião  de  cunho,  amigo  meu,  costu- 
mava comprar  ;i  um  brfoú-braequistã  hespa- 
nhol,  bocados  d'arte  com  que  ia  ornamentando, 
petit-i*petit,  a  sua  rasa  de  residência.  Aconte- 
ceu comprar  elle  ae  hespanhol  umas  cadeiras 
de  pau  santo,  trabalhadas;  e  tempos  depois, 
ao  voltar  do  jardim  zoológico,  uma  tarde,  o 
hespanhol  que  apparece. . .  Havia  entre  os  dois 
pendente  o  contracto  (ruma  esculptura  em 
marfim,  que  obrigou  o  medico  a  acompanhar 

o  espertalhão.    E  c o  o  meu  amigo  passava 

por  mu  convento  fechado,  o  outro,  súbito  : 

—  Lembra-se  V.  Kx.;i  d'aqueltas  cadeiras? 
Pertenciam  aqui  a  este  convento;  comprei-as 
cu  ;i  abbadessa. . .  entravamos  lá  de  coite,  ves- 
tidos de  padres;  a  fazer  negocio. 

Por  occasião  de  morrer  o  patriarcha  Igna- 
cio,  antecessor  do  actual,  desappareceu  de  S. 
Vicente  um  quadro  gothico,  onde,  n'um  grupo 
ajoelhado,  se  via  um  retrato  do  infante  D.  Hen- 
rique, que  passava  por  authentico.  Esse  qua- 
dro  está  hoje  na  galeria  d'ura  titular  Bnaucei- 


(»(l  08  GATOS 

ro,  e  ninguém  lhe  vae  perguntar  como  foi  que 
elle  o  adquiriu.  Já  sol»  o  fcemporado  do  pa- 
triarcha  actual,  roubaram  <lc  S.  Vicente  um 
tapete  persa,  magnifico,  que  veio  a  sim-  vendi- 
do por  5:000  n'uma  loja  d'adelo,  e  está  actual- 
mente no  gabinete  de  trabalho  d'um  homem 
muito  conhecido  em  Lisboa.  Querem  ainda 
mais?  Vão  visitai-  um  dia  os  armazéns  d'anti- 
guidades  de  Lisboa  ;  e  fmgindo-se  interessa- 
dos perante  os  objectos  de  caracter  religioso 
([lio  virem,  inquiram  do  judeu  vendilhão  a  his- 
toria d'elles. 

Lá  saberão  que  ha  câpellães  que  vem  á 
noitinha  com  embrulhos  nas  algibeiras  anaes 
da  sobrecasaca,  negociar  objectos  de  culto, 
rolos  de  leias  com  pinturas  de  santos,  frou- 
taes  o  cazulas,  miniaturas,  pequeninas  esta- 
tuetas e  vasos  preciosos,  por  couta  das  freiras 
que  liquidam,  e  de  conventos  fechados  aonde 
o  governo  ainda  não  mandou  fazer  arrolamen- 
tos. 

0  museu  das  Janellas  Verdes  é  pobre?  A 
Bibliothecá  Publica  está  em  risco  de  não  ad- 
quirir a  folleccão  Cifka,  por  falta  d'um  conto 
e  oitocentos  (pie  a  pague  aos  herdeiros  do  col- 
leccionador?  O  governo  não  tem  dinheiro  para 


OS    GATOS 


Hl 


acqui«çõe8?  Não  ha  colleeções  completas  d'ar- 
te  industrial,  religiosa,  domestica,  ornamen- 
tal? Poderá!  Sc  as  colleeções  do  paiz  estão 
sendo  averbadas  a  beneficio  dos  herdeiros  de 
D.  Fernando!  Sc  os  commissarios  enviados 
aos  inquéritos  dos  conventos,  não  zelam  como 
•  levem  a  arrecadação  <l<»s  espólios,  nem  pro- 
curam saber  para  onde  se  somem  as  coisas 
que  faltam  !  Sc  o  paço  d'Ajuda  regorgita  de 
coisas  desviadas  do  seu  logar!  Se  os  funecio- 
aarios  graúdos  espreitam  ;i  agonia  das  monjas 
Qonagenarias,  para  irem  elles  mesmos,  marcar 
as  peças  que  desejam  recambiar  para  os  seus 
palácios ! 

E  é  por  isso  que  os  Grillos  fecham  e  não 

se  apura  <lc  lá  coisa  nenhuma  de  valor,   para 

auseus.  Que  a  Estrella  fecha,  e  o  encarre- 

i  de  trazer  para  a  Academia  objectos  d*ar- 

te,  só  encontra  nos  muros  quadros  reles,  la- 

vrantarias  sornas,  e  paramentos  banaes. 

E  em  Santa  Martha  e  na  Esperança,  e  por 
todos  os  mosteiros  sellados,  a  mesma  penúria, 
a  mesma  pobreza,  e  a  mesma  abominável  pou- 
ca vergonha. 

—  Aqui  (Tel-rei!  isto  é  uma  liquidação  ge- 
ral nos  bens  do  povo;  om  saque  trinta  vezes 


62 


os   GATOS 


mais  vil  que  o  de  Junot;  uma  epopeia  de  fur- 
to, mais  audaciosa  do  que  a  historia  celebre 
d'AUi-Baba,  onde  lambem  figuram  cavernas  de 
riquezas,  um  poderoso  chefe,  e  quarenta  la? 
drões.  Morreu  o  chefe,  as  preciosidades  foram 
arrola-las,  mas  os  quarenta  ladrões  multipli- 
(•aram-sc,  e  por  alii  continuam  a  saquear  ali' 
ao  fim. 


Movidos  pelos  alarmantes  boatos  d'essas 
vendas  fraudulentas,  dYssas  manhosas  caça- 
rias feitas  por  agentes  suspeitos,  ao  Irem  cul- 
tual dos  nossos  templos,  e  ás  baixellas  e  ador- 
nos das  rasas  históricas  necessitadas,  dois 
deputados  ollereceram  ao  parlamento  um  pro- 
jecto de  lei,  em  que  se  prescreviam  grossas 
taxas  dmnposto  aos  objectos  d'arte  que  emi- 
grassem do  paiz. 

Ora,  deveremos  dizer  que  uma  semelhan- 
te   proposta,    posto    sincera    lio    intuito,  lia-de 


88  6AT8S  69 

ser  sempre  incompleta  nos  resultados  que  pre- 
tende. 

Efe  feito,  não  derivando  ella  d'um  plano  de 
legislação  que  abranja  todos  <>s  casos,  fica  de 
>i  impotente,  a  quando  muito  fera  mal  ;n»s 
Hambrugers,  ;i<>s  agentes  d'Ephrussi,  dos  Ro- 
tschilds  c  «los  Van-der-Bildt,  que  n'esta  ultima 
phase  da  dqringolade  artística  que  vimos  des- 
crevendo,  não  passam  e?uns  inimigos  nossos, 
subalternos.  Depois,  sendo  taes  vendas  feitas 
em  segredo,  podendo  ;i  maior  parte  dos  obje- 
ctos d'arte  occultar-se  em  pequenos  volumes 
de  bagagem,  e  não  havendo  (iscalisacão  rigo- 
rosa sobre  os  volumes  que  sabem  do  paiz, 
como  é  que  o  imposto  aconselhado  pelos  dois 
parlamentares,  ha-de  eobrar-se? 

0  grande  mal  não  vem  agora  dos  compra- 
dores estrangeiros:  vem  dos  gatunos  indíge- 
nas, <l;i  cobardia  e  da  ignorância  dos  ministros, 
incapazes  de  pedirem  contas  aos  salafrários  que 
nos  defraudam,  <i  emfim  <1<is  abusos  da  in<>- 
narchia,  que  n'este  rama  se  ha  mostrado,  já 
dissemos,  d'uma  velhacaria  incomparável.  Êíão 
desse  ella  o  exemplo  <l«'  larga  data,  <i  nos  sa- 
beríamos se  os  servidores  graduados  se  arris- 
cavam a  andar  por  Odivellas  arrancando  os 


64  08   GATOS 

azulejos  do  claustro^  peto  Alemtejo  extór* 
quindo  baixos-relevos  ás  freiras,  e  pela  Beira 
Alta  fazendo  mão  baixa  nos  celumnellos  de 
talha  dos  sanctuarios. 

O  governo  de  eerto  tem  eommissarios  es* 
portuládos  paca  a  (iscalisação  dos  edifícios  que 
lhe  pertencem.  Que  diabo  faz  a  chamada  Cóm- 
missão  dos  Monumentos?  A  chamada  Academia 
das  Bellas-Artes  >  A  Sociedade  promotora  das 
ditas/  A  dos  ArcheoJogos  /  A  dos  Architectos? 
E  a  mirabolante  Commissão  artística  da  Cama- 
rá Municipal  t 

Com  foros  d^gremiações  patrocinadas  pelo 
Estado,  ou  com  simples  cédulas  de  sociedades 
particulares,  aquellas  enfermarias  de  somuam- 
bulos,  de  derreados,  de  preguiçosos  e  de  pe- 
dantes, tinham  obrigação  de  regular  entre  si 
a  policia  dos  monumentos,  do  lhes  vigiar  ciu- 
mentamente OS  valores,  e  de  se  auxiliarem  no 
procurar  dos  objectos  extraviados  ou  extor- 
quidos—isto por  dever  de  fundação  ou  por 
simples  fervor  de  patriotismo  —  e  nada  fazem! 
Ninguém  se  importa.  Naturalmente  os  das  liei- 
las  Artes  fazem  costas,  em  quanto  os  dos  .Mo- 
mimentos  fazem  habilidades;  e  os  da  Archeo- 
Jogia  fazem  escovinhas,  emquantoos  da  Cama- 


os  gatos  65 

r.i  Municipal  fazem  concursos  de  pintura  his- 
tórica. —  Sucia  de  mostrengos,  acephalos  e 
inermes,  cuja  indifferenca  criminosa  infunde 
uma  tristissima  ideia  da  austeridade  cívica. 
individual  <>n  collectiva,  dos  funccionarios  do 
qosso  paiz ! 

lios  sele  conventos,  ou  oito,  fechados  du- 
rante os  últimos  mezes,  querem  s;il>iic  o  que 
o  delegado  il<»  governo  conseguiu  apurar  para 
o»  museus ?  Nada. 

n  bric-á-brac  das  Janellas  Verdes,  que  era 
um  punhado  de  loiças,  esmaltes  e  tabaquei- 
ras, foi  adquirido  no  Luiz  da  Costa  por 
2:800$000  reis,  ainda  no  tempo  do  marquez 
de  Souza  Holstein;  e  d'então  para  cá,  em  quasi 
nada   ha  sido  acerescentado !  Morre  a  ultima 

freira  d'um  recolhimento. . .  quand lelega- 

do  do  museu  lá  chega,  ou  já  não  encontra  nada 
que  arrolar,  ou  recolhe  apenas  bugigangas  e 
tarecos  velhos,  sem  valor  —  não  sendo  raro 
que  mesmo  d'estes,  a  quantidade  baixe,  não 

jabe  entre  mãos  de  quem,  no  trajecto  d'uma 

i  para  a  outra. 


66 


(ts   GATOS 


Ao  leitor  enausea  a  lista  dé  proscripção 
desdobrada  por  nós  ao  travez  d'este  fascículo, 
que  melhor  soaria  aos  seus  ócios,  num  cas- 
calhar de  trocas  e  piadas. 

Haja  paciência:  o  escarneo  virá:  mas  já 
lhe  promettemos  publicar  todas  as  denuncias 
provadas,  que  adregue  de  nos  endereçar  sobre 
a  questão  dos  museus  nacionaes.  Chega  uma 
hora  difficil  em  que,  sob  pena  d'um  naufrá- 
gio geral,  é  necessário  corrermos  a  pon- 
tapés os  intrujões  que  se  apoderaram  dos  ci- 
mos, arrogando-se  o  titulo  de  chefes  e  dicta- 
dores,  em  todos  os  ramos  da  administração  e 
da  vida  publica,  e  antepondo  ao  bem  do  Es- 
tado a  sua  anciã  de  gosos  e  riquezas,  trahida 
em  toda  a  linha  por  um  banditismo  que  nem 
sequer  já  perde  tempo  em  disfarçar-se  ! 

Porém  esta    nossa  jeremiada   vae   longa,  e 

compilaremos  rápido  os  pontos  principaes  da 

exposição. 


ns    GATOS 


67 


Não  temos  um  museu  d*artes  decorativas, 
nem  em  embrião  sequer,  e  é  indispensável 
creal-o,   se  com  alguma   seriedade  cuidamos 
de  dar  hausto,  pelo  levantamento  do  nivel  es- 
thetico  quer  no  consummidor,  quer   no  pro- 
ductor,  ;ios  nossos  antigos  centros  d'actividade 
industrial.  Não  temos  uma  collecção  de  mo- 
veis d'arte  a  que  os  artífices  ignorantes  se  re- 
portem,   nós  que   possuímos   dos   primeiros 
marceneiros   e   restauradores  de   moveis  <lu 
mundo.  Não  temos  um  gabinete  de  ourivesa- 
rias, constituído  com  exemplares  das  nossas 
officinas  da   Renascença,   nós  que  ainda  hoje 
executamos  com  uma   perfeição  manual  sur- 
prehendente,  os  trabalhos  mais  arriscados  de 
lavrantaria  e  filigranagem.  Senhores  dos  pri- 
meiros canteiros  do  mundo,   não  possuímos, 
sob  a   forma  de  collecções  tf  atelier,  junto  ;n»s 
monumentos,  exemplares  catalogados  consoan- 
te ;i^  epochas,  os  destinos,  e  as  deducções 
ornamentistas  derivadas  das   nervuras  geraes 
iriiin  typo  d'architectura  civil  ou  religiosa. 

Não  ha  collecções  publicas  d'estofos,  de 
rendas,  e  de  bordados,  n'um  paiz  que  tem  as 
tecedeiras  barbaras  e  geniaes  das  províncias 
do  Minho  e  Traz-os-Montes,  as  rendilheiras  de 


68  <»^  GATOS 

Peniche  e  de  Setúbal,  e  as  maravilhosas  bor- 
dadoras  das  ilhas  «los  Acures  e  de  certas  po- 
voações ruraes  do  Alemtejo.  Nas  aossas  velhas 
olarias  d'Estremoz  e  das  ilhas,  onde  a  esta- 
gnação multi-secular  dos  processos  de  fabrico, 
produziu  o  milagre  de  se  haverem  mantido 
entre  as  mãos  d'esses  rudes  louceiros,  sem 
alteração,  todas  as  linhas  do  etrusco,  o  mais 
correcto;  nas  velhas  fabricas  de  faiança  das 
Caldas  da  Rainha,  que  ha  duzentos  annos  da- 
vam o  vidrado  d'uma  maneira  unira,  hoje  per- 
dida :  nas  serralherias  dos  arredores  de  Gui- 
marães, onde  camponios  broncos  ainda  hoje 
produzem  á  forja,  sem  instrumentos,  ferragens 
comparáveis  ás  melhores  da  Renascença  fran- 
Ceza  e  italiana — em    todos  estes    fóCOS   extiu- 

ctos  da  arte    industrial   portugueza,   não   ha 

um  museu  onde  os  arlistas  estudem  a  archeo- 
logia  ilas  suas  profissões,  as  evoluções  do  pro- 

diiclo,  as  intersecções  e  as  influencias  soffri- 
das  por  suggestão  estrangeira  —  ou  sequer  uma 
COÍleCÇãO  centra]  que  lhes  expessa  esses  mo- 
delos, por  viagens  circulatórias,  como  ;is  que 
o  Kensington  promove  atravez  as  regiões  of- 
ficinaes  da  Gran-Bretanha. 

É    indispensável    pois    creir  eSse   museu,  c 


OS  GATOS  r,<'' 


por  influencia  d'elle  depois,  museus  com  sede 
junto  às  escolas  industriaes  que  estão  funda- 
das, mas  onde  os  exemplares  se  renovem  a 
prazo,  n'uma  deslocação  periódica  e  fructife- 
ra.  (f)  <>s  nirins  práticos  de  havel-o,  são  em 


I  rjm  dos  primeiros  actos  do  actual  patriarcha 
de  Lisboa  foi  dirigir  ao  ministro  da  justiça  e  cultos, 
um  relatório  muitissimo  sensato,  em  que  se  propu- 
nha a  fundação  de  museus  d'arte  religiosa,  n? 

i(.  do  patriarchado,  mas  também  na  de  todos 
osbispadose  arcebispados  do  paiz.  Estes  museus 
exhibiriam  os  objectos  pertencentes  ás  residências 
prelaticias,  e  assim  todas  as  alfaias  e  obras  d'arte 
das  i(  Lbricasannexas.  Cada  um  d'ellesteria 

um  conservador  estipendiado  modestamente,  e  cre- 
mos que  ás  3uas  collecções  iria  revertendoo  espolio 
dos  conventos,  na  proporção  em  que  estes  fossem 
acabando. 

Escuso  dizer  qual  tenha  sido  a  resposta  do  go- 
verno. Não  lias  ia  dinheiro!  «>  sr.  Silveira  da  Motta, 
director  da  repartição  d'estatistica,  e  erudito  apai- 
xonado pelas  velhas  coisas,  declarou  mesmo  aosr. 
encarregava  de  crear  verba  para  cus- 
teio dos  museus  religiosos,  sem  sensível  augmento 
d'encargos  paia  o  Estado.  Entanto,  apesar  d'esta 
vontade,  a  questão  foi  atirada  de  vez  ao  esque- 
cimento. 


70  OS  CA  TOS 

primeiro  logar  adquirir  as  collecções  de  J). 
Fernando  (</);  e  em  segundo  lançar  mão  do 
que  ha  pelos  conventos,  palácios  e  quaesquer 
outros  edifícios  públicos  desoccupados. 

Para  a  realisação  do  primeiro  desideratum 
lemos  a  chicana,  que  lia  de  pôr  de  nosso  lado 
a  justiça,  desde  que  se  provem  os  poucos  es- 
crúpulos de  S.  M.  o  rei  finado,  o  que  com  boa 
vontade  não  ha-de  ser  talvez  difficil ;  ou  recu- 
sada a  acção  judicial,  lançaríamos  mão  da 
compra  em  massa  das  collecções,  com  dinhei- 
ro obtido,  já  dissemos,  por  meio  d  uma  gran- 


fgj  È  uma  das  maiores,  mais  variadas  e  mais 
completas  que  andam  por  mãos  de  particulares.  A 
secção  das  loiças  é  maravilhosa,  pelos  pratos  árabes 
que  contem,  e  pelas  fayanças  portuguezas,  allemãs 
<•  italianas.  Em  anuas,  mobílias,  bronzes,  Saxes,  é 
também  riquíssima;  e  assim  em  quadros  antigos, 
de  auetores  portuguezes  e  allemães,  mencionada- 
mente  da  idade  gothica.  A  collecção  de  gravuras  ii- 
gura  no  inventario  com  um  valor  approximadn  de 
-13:000#00o  réis,  e  consta  de  dezesete  mil  exempla- 
res, dos  quaes  muitos  raríssimos,  assignados  por 
Durer,  Rerabrandt,  Callot,  Ostade,  Marco  António, 
Morgher,  Vanteuil,  Edelvisk,  Drevet,  Dirk-Stoop,  Lu- 
cas de  Leyde,  Goltzius,  etc. 


os  GATOS 


71 


,1,.  Loteria,  exclusivamente  consagrada  ao  ensi- 
no artístico,  como  a  da  União  Central  das 
Artes  Decorativas,  de  Paris,  que  produziu  einco 
milhões  de  francos  d'uma  só  vez.  Lançado  <> 
museu,  tractar-se-hia  de  o  ir  enriquecendo,  a 
pouco  e  pouco.  E  por  que  meios?  Um  já  dis- 
semos: a  entrada  immediata,  nas  salas  das 
Janellas  Verdes,  de  todos  os  objectos  de  cara- 
racter  artístico  sobre  que  o  Estado  tivesse  di- 
reitos reconhecidos,  e  que  se  achem  dessimi- 
Qados  boje  pelos  edifícios  públicos  sem  fun- 

cção. 

Dos  outros  meios,  nlii  vão  alguns  que  nos 

occorrera : 

I.-  —  Compra  de  collecções  particulares  ne- 
gociáveis, em  detalhe  ou  em  globo,  cujos 
proprietários  desde  agora  dariam  ao  Estado 
condições  de  preferencia,  posto  o  projecto  de 
lei  .los  snrs.  Fuschini  e  Consiglieri. 

2>(  _  Requisições  d'objectos  por  troca,  com 
particulares  e  museus  estrangeiros,  de  peças 
que  os  nossos  tivessem  repetidas. 

8.o_Acquisições  decopiase  modelos d*obje- 
ctos  (mencionadamente  os  que  digam  respeito 
;-,  arte  portugueza  e  peninsular)  «pie  figurem 
em   museus  estrangeiros,  e  de  cuja  reprodu- 


"ri  os  i; aios 

cção   c  estudo  se    possa    tirar   proveito  pu- 
blico. 

i.°  — Propostas  de  compra  ás  confrarias, 
bospitaes,  misericórdias,  juntas  de  parochia, 
etc.,  d'objectos  d'arte  que  por  sua  antiguida- 
de ou  mau  estado  de  conservação,  hajam  sido 
desviados  dos  seus  respectivos  serviços  e  des- 
tinos, e  que  constituindo  exemplares  dignos 
d'apreço,  andem  pelos  thesouros  d'aquelks 
corporações  em  eminente  risco  de  perda  oa 
de  ruina  (h). 

5.°  Vigiar  assiduamente  as  coisas  que  não 
podessem  logo  reverter  ao  Estado,  evitando 
por  Iodas  as  formas  a  sua  dispersão,  desde 
ensinar  o  publico  a  zelar  elle  mesmo  a  con- 
servação   d'esses    lhe/ouros,   ale    definir   as 


(h)  Exemplo:  as  magnificas  lanternas  de  prata 
da  igreja  das  Mercês,  cinzeladas  n'um  estylo  tão 
puro  como  elegante,  e  muitas  outras  alfaias  d'esta 
igreja.  Exemplo  :  as  pinturas  gothicas,  sobre  madei- 
ra, que  se  guardam  n  um  escaninho  ignóbil  da  Ma- 
dre de  Deus,  aos  ratos,  á  poeira,  e  que  o  padre 
Coentro  mostra  aos  raros  visitantes  que  se  dignam 
procural-o.  Exemplo:  um  grandíssimo  numero  de 
quadros,  mobílias,  e  alfaias,  que  fazem  parte  do  trem 
patriarchalj  etc. 


OS  GATOS  73 

responsabilidades  dos  depositários,  em  bases 
que  (garantissem  ao  Estado  a  perfeita  manu- 
tenção e  conservação  dos  objectos  d'arte,  e as- 
sim .1  sua  revertencia  futura  aos  museus  na- 
cionaes. 

Entre  os  meios  práticos  de  conseguir  esta 
policia,  mencionaríamos  ainda —  exposições 
permanentes,  n<>  vestiário  dos  templos,  de  to- 
dos os  objectos  d'arte  que  as  uossas  institui- 
religiosas  e  pias  possuam,  e  onde  <i  i»ii- 
blico  se  acostume  ;i  ir  reconhece  1-os,  estudal-os, 
e  apreciar-lhes  <>  valor — fundação  d'um  grande 
cathalogo  geral  das  obras  d'arte  existentes  no 
paiz,  já  por  mãos  de  particulares,  já  por  mãos 
de  corporações,  illustrado  a  grandes  phototy- 
pias,  e  contendo  summariamente  a  biographia 
de  cada  objecto,  o  resumo  dos  seus  caracteres 
pstheticos,  menção  d'escola  eauthor,  e  emflm 
,i  maior  somma  de  dados  materiaes  para  um 
computo  rápido  das  nossas  riquezas  artísticas 
—  educação  do  gosto  publico  por  via  <l<i  pu- 
blicações  análogas  às  da  Biblioteque  de  l\ 
çnemeni  de*  Beaux  Arts,  de  Paris,  feitas  por 
conta  da  Camará  Municipal  ou  da  direcção  ge- 
ral «I"-  museus,  segundo  nm  plantologico,  e 
postas  .1  concurso  entre  os  escriptores  de  es- 


i  *  os   GATOS 

pecialidade  —  e  finalmente,  reforma  completa 
no  ensino  das  Bellas  Artes,  attendendp-se  o 
mais  possível  ao  estudo  do  desenho,  tão  des- 
curado em  S.  Francisco,  e  chamando-se  á  re- 
gência dos  cursos,  mestres  conhecedores  da 
sua  arte,  muito  embora  contractados  no  es- 
trangeiro, (i) 


(i)  «Les  expositions  universelles  on  pose  dans 
tout  sa  rigueur,  devant  le  public,  la  question  de 
l'enseignement  pratique  du  dessin.  En  presence  des 
peuves  éclatantes  du  concours  apporté  par  cet  ensei- 
gnement  á  toutes  les  industries  qui  exigent  un  ef- 
fort  de  l'imagination  et  une  exécution  supérieure, 
les  gouveruements  de  L'Europe  ont  compris  qu'il  fal- 
lait  1'associer  largement  á  celui  des  lettres  et  des 
sciences..  .Des  méthodes  techniques ont  eté  propo- 
sées  á  1'éffet  diuitier  le  plus  grand  nombre  possi- 
ble  d'enfants  aux  élements  du  dessin  et  de  Leur  met- 
tre  ainsi  dans  la  main  un  outil  précieuxdans  quel- 
que  carriére  qu'ils  abordent.  II  ne  serait  pas  juste 
d'attribuer  ;i  notre  temps  seu!  Ia  préoecupation  de 
faire,  par  1'habitude  du  dessin,  des  mains  plusihab- 


(is    GATOS  y> 

Desde  que  o  sentimento  do  bello  estivesse 
na  multidão,  em  via  de  cultura,  veríamos 
aquella  exercer  ella  mesma  sobre  as  obras 
d'arte  uma  vigilância  sollicita,  e  faculdades  af- 
fectivas  que  haviam  d'obstar  ao  descaminho 
,1,.  muitos  objectos  para  fora  do  reino.  Veja-se 
o  exemplo  de  Paris,  no  Hotel  Druot,  ha  mez 
e  meio,  quando  a  collecção  Sécretau  disper- 
sou! Entre  as  telas  d'esse  oiuseu  havia  <>  án- 
gdus,  de  Millet,  scena  emotiva,  pintada  n'uma 
gamma  de  tons  sombrios  e  fortes,  que  o  pin- 
tor vendera  em  1867  a  M.  Feydeau  por  1,800 


;  des  v.-.ix  pias  judieieux.  Les  corporations, 
jusqu'á  la  fin  do  kviii  siéele,  enseignaient  a  les 
ouvriere  le  dessin  professionel.  Le  grand  siéele  wni, 
aaquel  rien  n'a  ecbappé  de  ee  qui  peut  former  des 
citoyens,  avait  cQmprise  et  agitée  cette  question  .. 
Léon  ,|,.  Laborde,  dana  son  rapporl  Bur  la  premiére 
Esposition  universelle  de  Londres,  insista  avec  éner- 

,,-  ce  point  capitel:  multiplier  l'ins4raction  des 
artisans,  entraver  les  faosses  vocations.  Cesl  toul 
le  contraire  de  ceque  proclame  la  doctrine  académi- 
que.  Dansson  livre  Union  de»  arte  eí  de  Vindustrie,  il 
ecrivatt  de  fins  ta  onze  siécles  de  distaoce,  U  será 

une  loi  qni  ordonnera  qu'  en  France,  doréna- 

vant,  tont  le  monde  saura  dessíner,  comi n  787, 

Charlemagnie  jetait,  á  1'étonnement  de  ses  vastes 


/«>  (ts  CÍÀTOS 

francos,  que  Feydeau  vendeu  em  ISTO  a  um 
Pierre  Blanc  por  .'{,000,  passando-a  este  por 
5,000  a  um  certo  Vau  Pràet,  ministro  belga, 
que  a  vendeu  a  outro,  etc,  etc.  —  té  o  Ange- 
lus  apparecer  em  1881  na  venda  Jonh  Wilson, 
por  160,000  francos,  e  entrar  para  o  Louvre 
agora,  peia  quantia  inverosímil  de  553,000. 
No  leilão  Secretan,  muitos  americanos  e  iu- 
giezes  vindos  expressamente  das  suas  cidades, 
começaram  a  picar  o  quadro,  decididos  a  cin- 
polgal-o  aos  naturaes.  Por  iniciativa  d' Antonin 
Prousí   formou-se   immediatamente   alli,    nas 


Etats,  nu  simple  décret  qui  ordonnait  qu'  a  partir 
de  cette  dattechacunsutlire.  La  France  de  nosjours 
peut  voir  avec  douleur  1'ignorance  de  ses  enfants 
dans  cette  langue  naturelle  qui  est  la  representatiou 
iiaturelledes  objects. »  II  conclui  á  Fenseignement  du 
dessin  assimile strictement á celui  de  l'écriture.  Cest 
en  effect  ee  qui  se  passe  chez  un  peuple  de  d'ex- 
trême  Orient  que  nous  traitons  cavaliérement  de 
barbare,  chez  les  Japonais. 

Tout  le  monde  y  sait  lire,  écrire  etdessiner.  C  est 
avec  le  pinceau  que  les  ambassadeura  qui  nous  ont 
visites  récemment  prenaient  le  plus  souvent  note 
des  objects  qui  frappaient  leur  attention.» 

/'A.  Burty  (maitres  et  petits-maitres) 


os  GATOS  ' i 

salas  do  Hotel,  uma  sociedade  patriótica,  que 
linha  por  fim  rehaver  o  Angelus  para  o  Lou- 
vre,  não  importa  a  que  preço.  E  essa  socie- 
dade instantânea*  nascida  d'uma  embriaguez 
(l'arte  apenas  perceptível  em  Portugal,  arran- 
cou o  Millel  das  mãos  estrangeiras,  por  um 
preço  archi-doido  é  certo,  mas  no  meio  da 
mais  phrenetica  ovação  que  talvez  se  tenha 
feito  a  uma  pintura. 

Outra  vantagem  do  uivei  esthetico  subir, 
seria,  como  succede  lá  fora,  as  doações  ^obje- 
ctos d'arte  ao  Estado,  chance  de  que  nós  qua- 
si  por  completo  temos  sido  privados,  e  a  que 
mv  nmsciis  de  França  e  d'Inglaterra  devem 
parte  das  maravilhas  de  que  se  orgulham. 

Insistiríamos  mais  uma  vez,  sobre  a  ma- 
nrii-;,  ,|(.  recolher  os  espólios  das  casas  reli- 
is.  \  recolta  devia  fazer-se  estugadamente 
e  porcompleto,  não  só  nos  conventos  fechados, 
mas  em  todas  ;is  easas  conventuaes  <im>  llll,;l 
teem  gente;  e  fazer-se  com  methodo,  energia, 
prudência  e  sagacidade,  escolhendo  homens  acti- 
vos, novos,  e  venhamos  n'isto  —  não  coUecciona- 
e8.  0  Estado  carece  d' alijar  de  si  a  velhada  até 
gora  adstricta  a  estes  serviços  de  confiança,  e 
que  umas  vezes  por  ignorância,  por  desma- 


78  OS  GATOS 

zello  outras,  e  algumas  também  por  pouco  es- 
crúpulo, tem  defraudado  o  paiz  de  copiosas 
obras  de  valor. 

Somos  o  paiz  do  general  reformado.  Á  testa 
de  serviços  em  que  se  lia  mister  de  braços 
validos,  de  caberás  claras,  e  de  probidades 
austeras,  não  raro  é  ver  paralyticOS  a  difficul- 
tarem  O  expediente,  idiotas  a  exercei'  no  pessoal 
pressões  intoleráveis,  e  alipiiladores  que  por 
desculpar  as  próprias  rapinancias,  abrem  bal- 
cão ás  gatunices  dos  seus  subordinados.  A 
contagem  do  mérito  d'um  homem,  pelos  ân- 
uos de  pascigo  ás  mangedouras  do  Estado,  leva 
aos  cargos  opíparos  uma  frandulagem  de  Mente, 
(pie  como  os  burros  só  tem  de  venerável  o 
orelliame,  e  unia  ou  outra  vez,  a  assiduidade. 

0  conselheiro  Meiicio,  espostejado  em  77 
nas  Farpas,  pelas  ironias  terríveis  de  Rama- 
lho, acaso  deixava  então  deletrear,  na  sua  in- 
significância de  caguinchas,  a  nomeação  de 
commissario  portuguez  na  Exposição  Univer- 
sal de  89? 

Porque  planaltos  cortou  esta  figura,  antes 
de  se  alar  a  uma  posição  de  tanta  magnitude? 

Simplesmente  por  este  —  a  calvicia  —  sobre- 
pujando esfoutro,  a  pontualidade. 


OS  G  MOS 


K  a  historia  cTaquelle  amanuense  tísico,  que 
dizia  aos  collegas — rapaces!  eu  cá  já  podia 
ser  chefe  de  repartição,  porque  estou  mhabi- 
litado. 


HL 


N'outro  ponto  viemos  sobre  o  costeio  de 
museus  assim  organisados,  com  as  suas  gran- 
des compras  de  eollecções,  os  seus  cathalogos 
críticos,  as  suas  publicações  de  livros  d'arte, 
e  ;issiin  o  pessoal  adstricto,  e  as  viagens  de 
objectos  atravez  das  escolas  industriaes.  Cer- 
tamente que  a  realisaçâo  d'uma  tão  bella  obra 
custa  cara.  Mas  não  pôde  o  governo  fundar 
uma  loteria  annual,  com  prémios  <lc  dinheiro 
e  obras  d'arte,  cujo  producto  convirja  todo  a 
questões  de  bibliotheca  e  Bellas-Artes  ?  A 
(  ommissão  Artística  da  Camará  Municipal,  por- 
que não  lama  hombros  á  em  preza,  e  vincula 
;i  sua  boa  vontade,  se  alguma  tem,  a  esta 
grande  obra  patriótica  e  alevantada  ? 


80  os  GATOS 

Na  noite  de  15  de  julho  ultimo,  um  portu- 
guez  d'apellido  Valle  disparou  no  Rio  de  Ja- 
neiro um  tiro  de  rewolver  contra  ;i  carruagem 
«lo  imperador  Pedro  ti,  quando  este  s;ilii;i  do 
theatro  SanfAnna,  acompanhado  pela  princeza 
herdeira  e  a  imperatriz. 

o  tiro  perdeu-se"  entre  as  cabeças  da  multi- 
dão que  estacionava  à  porta  do  theatro,  sem 
raspar  chapéu  OU  muro,  nem  dar  de  si  outro 
signa!  que  não  fosse  a  detonação,  a  qual  nem 
chegou  a  ser  ouvida  por  Iodas  as  pessoas  do 
séquito  imperial,  incluindo  a  princeza. 

Julgou-se  em  principio  que  o  regicida  fosse 
um  certo  Hasslock,  redactor  d'um  jornal  re- 
publicano, homem  exaltado,  e  ao  que  parece 
audaz,  ti'1  á  loucura.  .Mas  o  delegado  da  policia, 
Bernardino  Pereira,  que  esfusiou  nas  ruas  do 
Ria,  á  mira  de  capturar  o  indigitado,  ai»  topar 
este,  recebeu  d'um  tal  Eduardo  Freitas,  que 
acompanhava  Hasslock,  e  passa  por  amigo 
particular  do  conde  d'Eu,  a  denuncia  de  ter 
sido  Valle  o  verdadeiro  auetor  da  tentativa. 

Preso    o    assassino    e  reconhecido,  a  policia 

interroga-o.   É  um   rapaz  imberbe  quasi,  de 
physionomia    inexpressiva,    tez   desbotada,   e 

vestiuios  d'orgía  na  figura.  Tem  mau  passado. 


os  GATOS  81 

i'  li/.rr  dos  jornaes  Dão  poucas  vezes  re- 

correra,  para  viver,  a  expedientes.  I>i>  azedume 
de  aão  achar  na  conducta  medíocre  que  de- 
seovoivera,  a  felicidade  a  que  se  julgaria  com 
direito,  derivou  talvez  o  republicanismo  esiul- 
i<>  de  que  costumava  lazer  estardalhaço.  Na 
primeira  entrevista  com  o  director  da  policia, 
<lr.  Basson,  Valle  oega  terminantemente  que 
seja  elle  o  andor  do  crime :  em  caso  contra- 
rio, até  o  confessaria  com  orgulho,  pois  um 
tal  acto  —  declara  —  Dão  faria  senão  nobilitar 
pelo  martyrio,  o  republicano  que  em  terras 
de  Brazil  o  perpetrasse. 

Estas  declarações  desmoronam-se  porém, 
des'que  a  policia  chama  a  perguntas,  pela  se- 
gunda vez,  o  regicida.  E  então  elle  confessa 
que  uni  homem,  cujo  nome  não  disse,  o  con- 
vidara a  beber  álcool  num  botequim,  travan- 
do-se  entre  os  dois  disputa  accesa,  no  atinen- 
te .i  sinceridade  <le  convicções  anti-monarchi- 
cas  de  cada  qual :  onde  o  outro  declarou  ter 
suspeitas  de  que  em  Valle  não  jogasse  a  alma 
heróica  (rum  verdadeiro  filho  da  republica. 

Por  aquelle  tempo  incendia  o  cognac  o  olhar 
do  rapazola,  que  dando  murros  oa  meza,  re- 
forçava esbaforido  os  seus  protestos  de  febre 

« 


g$  os  GATOS 

jacobina,  emquauto  o  interlocutor,  por  contra- 
prova, súbito  propõe  um  tiro  ue  imperador 
Pedro  ii  — ao  que  Valle  accedeu,  já  esfuriado 
em  obsessões  de  bêbedo  pimpão;  Á  meia  noite, 
os  dois  separam-se:  é  a  hora  de  sahir  gente 
do  theatro  SanfAnna,  a  cuja  recita  o  impera- 
dor fora  assistir,  .lá  0  cedi»1  imperial  aborda 
o  átrio,  e  a  família  do  monarcha  se  lhe  aco- 
moda dentro,  quando  sob  o  látego  do  sota, 
os  muares  destravam  o  carro,  num  arranco 
enérgico  de  partida.  E  foi  só  então  que  Valle 
desfechou,  sem  pontaria,  como  levando  no  tiro 
,,  propósito  apenas  do  estrondo  que  chama- 
ria sobre  elle  as  attenções,  Eazendo-lhe  ganhar 
a  aposta,  sem  recorrência  a  derrames  de  san- 
gue, que  horrorisavam,  parece,  o  seu  espirito 
inconsistente  e  aparvalhado. 

Gomettido  o  feito,  Valle  corre  atravez  as 
mas  da  cidade,  sem  jamais  escolher  as  menos 
frequentadas,  nem  procurar  disfarcar-se  entre 
os  passantes,  mas  delendo-se  ao  contrario  a 
cada  passo,  para  mostrar  aos  conhecidos  o 
rewolver  com  o  cartucho  queimado,  cujo  des- 
tino elle  explica,  alegre  quasi,  aos  que  se 
achegam  a  lhe  escutar  os  dizeres  de  gabazola. 


OS  8ATOS  88 


Estamos  pois  em  face  «ruiu  regicídio  pica- 
resco, que  salvaguardada  a  Ggura  venerável 
do  monarcka  brazileiro,  tem  diabólicos  visos 
de  sceua  encommeudada  para  emocionar  thea* 
trai  mente  ;i  opinião,  o  regicida,  que  i<'in  o 
nome  do  nosso  primeiro  actor  cómico,  é  con- 
vidado á  bebedeira  por  um  personagem  mys- 
terioso,  imiiii  botequim  d'alcunka  romanesco, 
Cafte  de  Londres,  ao  soai-  a  hora  fatal  da  meia 
noite. 

Produz-se  o  tiro,  que  nem  chega  ;i  ser  ou- 
vido por  Iodas  as  prsso;ts  da  comitiva  impe- 
rial, não  podendo  o  próprio  andor  d'elle  in- 
fonnar  mesmo  se  o  cartucho  estaria  embalado, 
visto  como,  de  carnifice  que  estava,  nnn 
sequer  verificou  o  estado  da  arma  «pie  lhe 
deram. 

Aqui  se  deita  o  commissario  Bernardino  a 
rabo  d'ellc,  reforçado  d*um  capitão  que  assi- 

* 


84  OS  GATOS 

gna  Lyrio;  e  os  dois  d'esfusiote  Lnquerem  da 
gentana  das  ruas,  se  acaso  o  regicida  sinistro 
alli  passou. 

De  grupo  em  grupo,  e  esquina  nu  esquina, 
lá  vae  a  lei,  de  que  é  manitanço  o  Bernardino, 
amparada  na  forra,  que  Lyrio  exprime  pelos 
seus  galões  de  capitão,  seguindo  o  rastro  da 
fera  pelos  cheiretes  de  pólvora  que  por  ven- 
tura o  cano  da  arma  inda  trescale  (se  outro 
cheiro  os  não  guia,  muito  mais  fedorento  e  in- 
dicador); e  em  tão  boa  hora  caminham,  que 
vão  aíocinhar  os  dois  com  o  amigo  particular  do 
conde  d'Eu.  Trava-se  alarde.  Bernardino  viera 
a  farisear  regicidio  no  republicanismo  escamado 
•rilasslock;  Freitas  porém  salva  o  amigo  da 
injuria  policial,  produzindo  a  denuncia  de  co- 
nhecer o  sicário  authentico  .  .  .  por  signal  que 
ainda  ha  bocado  vinha  a  brandir  um  rewol- 
ver,  rua  acima,  e  ao  passar  perto  dYlle,  cs- 
tendendo-lhe  a  mão,  dissera  até : 

—  Matei  agora  mesmo  o  imperador,  seu 
Freitas.  É  extraordinário  como  um  regicidio 
abre  o  apetite!  .lá  viu?  .  .  .  Vamos  cear. 

Ora,  n'estas  alturas  do  drama,  tudo  quanto 
a  effervencia  monarchica  do  amigo  particular 
do  genro,  ponde  fazer  em  desafronta  á  mages- 


(ts  GATOS  85 

tade  'l"  sogro  imperial,  foi  recusar  a  offerta 
da  ceia,  aão  por  horror  á  hediondez  do  assas- 
sino que  lhe  fazia  o  convite,  mas  pela  razão, 
mais  digestiva  do  que  civica,  de  já  ter  ceado. 

.Mas  eil-o  que  vae  depor  ao  tribunal;  e  diz 
um  jornal  brazileiro  do  seu  depoimento: 

«Parece  que  as  revelações  d'Eduardo  Frei- 
tas são  importantes,  e  que  aão  se  limitou  a 
dizer  o  que  viu,  como  também  o  que  sabia 
dos  antecedentes  do  crime,  e  dos  seus  conse- 
quentes, chegando  a  declarar  o  nome  da  pes- 
soa a  quem  Adriano,  depois  de  dados  os  ti- 
ros, entregou  o  rewolver .  .  .» 

Estranho  amigo  de  príncipes,  este  Freitas 
que  passeia  de  noite  com  os  republicanos 
exaltados,  e  deixa  fugir  sem  protesto  os  regi- 
cidas, para,  postado  no  caminho,  os  denun- 
ciar depois  aos  Lyrios  da  iropn,  e  aos  Bemar- 
dinos  esbodegados  da  policia!  Estranho  amigo 

de    príncipes,    este  que   dá    pormenores  sobre 

as  conspirações  tramadas  contra  o  throno, 
mas  só  no  fim  das  conspirações  terem  gorado! 

Elle  sabe  de  tudo,  conheci'  tudo,  os  antece- 
dentes do  crime,  o  criminoso,  as  suas  rela- 
ções,   as    SUaS    ideias,    (piem    lhe    SUggeriu   a 

tentativa  de  i te,  e  quem  lhe  recebeu  a  ar- 


86  08  catos 

ma,  depois  d'essa  tentativa  malograda!  Ea 
policia,  tão  ávida  em  esquadrinhar  de  que 
mansarda  robespierriána  teria  sahido  o  re- 
wolver  carregado,  a  policia  depois  de  o  ouvir, 
manda-o  em  paz,  exactamente  como  faria  a  um 
alguazil  seu,  ensaiado  a  capricho,  n'este  papel 
de  tyranno  d'entremez.  (k) 


(k)  «...  Aqnella  bala,  disparada  muito  natural- 
mente depois  da  partida  do  snr.  D.  Pedro  n,  muito 
naturalmente  disparada  para  o  ar,  serviu  entretanto 
paia  eixo  de  toda  a  actual  comedia.  Ella  serviu  para 
demonstrar  o  valor  d'essas  declarações  de  gente 
que  se  offerece  em  holocausto  á  liberdade,  e  recla- 
ma o  primeiro  logar  somente  quando  se  trata  de  fu- 
gir a  uma  phantasmagoria  d'attaque,  ou  a  um  man- 
dado de  prisão.  Ella  serviu  também  para  que  todos 
os  candidatos  a  baronias  ou  eommendas  escovassem 
os  seus  zelos  monarchicos  e  as  suas  dedicações  ao 
imperador,  e  envergassem  semelhantes  vestuários 


os  GATOS 


87 


Todos  conhecem  a  situação  moral  e  politica 
do  lim/.il  contemporâneo.  K'  a  d'um  povo  jo- 
ven,  debatendo-se  como  um  pássaro,  na  estrei- 
ta gaiola  d'um  regimen  caduco.  Os  últimos 
trinta  annostransformaram-no.  Ks  viagens  abri- 
ram aos  homens  de  todas  as  cathegorias,  hori- 
sontes  intérminos  e  profundos. 

A  mocidade  veio  á>  escolas  da  Europa  cor- 
rigir os  vicios  da  nica  amollecida  pelos  ener- 
vamentos  do  clima,  e  pela  subserviência  an- 
cestral, herdada  em  hábitos  timidos  <i  humil- 
des, d'esses  primeiros  colonos  grosseiros  e 
plebeus  que  nós  lá  pozémos. 

De  todos  os  ramos  d^ctividade  physica  e 


para  a  provisão  de  felicitações  com  que  actualmen- 
te andam  a  cumprimentar  o  snr.  D.  Pedro  u. 

Boa  comedia!  I!'»a  e  proveitosa  para  lições !.. • 
que  perdure  toda  essa  comedia  phantastica  de  regi- 
ci<li>>  Inspirado  em  reuniões  secreta»  ou  inventado 

pela  policia,    conform xplicar  a  voutade  de 

cada  um.  Não  ha  porém  razão  para  fazer  uma  vi- 
ctima,  para  Bervir  á  curiosidade  publica  i 
colo  compungente  duma  creança  debatendo-se  em 
plena  desgraça,  e  para  maior  gáudio  de  tercein 

Pardal  Mallet  —  Gazeta  de  ■  ju- 

lho.) 


88  OS  GATOS 

especulativa  —  do  commercio,  da  sciencia,  do 
jornalismo,  da  politica  e  da  arte  —  tirou  o 
Brazil  delegados  seus,  <|uo  envia  quotidiana- 
mente aos  certamens  de  civilisação  do  velho 
c  novo  mundo :  e  esses  homens  trazem  ás 
missões  ardores  insaciados,  talentos  cálidos, 
curiosidades  vividas  e  tenazes  :  e  ao  voltar  ao 
paiz,  encontrando  a  rotina  em  cada  braço  da 
especialidade  professada,  motejam-na,  inves- 
tem com  ella,  e  por  ultimo  esmagain-na.  Hoje, 
essa  vasta  nação  destinada  a  ser  talvez  para 
o  mundo,  no  século  xx,  o  desdobramento  d'a- 
quillo  que  foi  Portugal  no  século  xvi,  posto 
não  seja  ainda  uni  compósito  uniforme   d'ele- 


«...  Se  ao  facto  em  questão  applicassemos  esto 
critério  e  a  hermenêutica  juridico-penal,  seriamos 
lixados  a  suppor  que  o  resumido  attentado  foi  obra 
de  encommenda  para  reavivar  a  sympathia  publica 
pela  causa  monarehica  e  tornar  odioso  o  partido  re- 
publicano. 

Esse  expediente,  notório  de  uma  raça  sentimen- 
talista como  a  nossa,  no  seio  de  um  povo  generoso 
e  de  indole  pacifica  e  branda  como  o  povo  brasilei- 
ro, não  deixaria  de  produzir  effeito. ..» 

(Quintino  Bocayuva  — O  Paiz,  artigo  «Os  dois 
factos».) 


os  GATOS  69 

mentos  progressivos,  marcha  todavia  a  passos 
de  gigante  para  uma  renascença  de  caracter 
formidável,  que  ha-de  comptetar-se  a  breve 
trecho,  mercê  tios  núcleos  de  civiiisação  quo- 
tidianamente fundados  do  precurso  do  império, 
por  esses  innovadores  que  da  Europa  lhe  che- 
gam, devorados  de  iodas  as  sedes  de  reforma. 

A  sua  sciencia  repete  as  experiências  e  con- 
firma as  leis  nos  grandes  laboratórios  da  Fran- 
ca e  d'Allemanha.  V  agricultura  restaurasse, 
amplia-se  o  commercio ;  o  capitai  abre  fontes 
de  credito,  inexhauriveis,  em  lodos  os  manan- 
eiaes  sterlinos  da  Europa  e  da  America  do 
Norte,  d'onde  jorram  as  grandes  emprezas 
d'industria,  viação e  alta  finança.  .Nascem  as  ar- 
tes: a  litteratura  balbucia  e  tenta  adaptar-se 
ás  formulas  scientiflcas  em  voga,  tendo  na 
frente  uma  poesia,  que  aparte  a  ingleza,  é  a 
mais  vehemente  e  a  mais  lyrica  do  mundo. 

Porta-trombeta  d'esta  era  nova  que  se  res- 
pira já  por  grande  numero   de   cidades    liia/.i- 

leiras,  o  jornalismo  transmuta-se,  revestindo 
a  feição  d'um  grande  campo  de  torneios,  onde 
os  campeões  vem  luminosamente  justar  pelos 
ideaes  de  liberdade,  de  pátria  e  de  justiça.  E 

sempre   que  algum  patriota,  0    imperador    in- 


96  09  8ÀT0S 

cluido,  eircumvaga  os  olhos  á  procura  d'um 
canto  de  terra,  cuja  felicidade  aspirai'  para  o 
Brazil,  esse  canto  evocado  por  cada  brazilei- 
ro,  em  horas  d'extasi,  esse  paiz  modelo  é  sem- 
pre o  mesmo,  os  Estados-Unidos,  com  a  mes- 
ma forma  de  governo,  o  mesmo  systhema 
rápido  e  efficaz  de  colonisação,  e  o  mesmo 
aspecto  de  forra  robusta  e  de  consciência  inex- 
pugnável. .V  hora  presente,  quasi  se  pôde  di- 
zer que  ha  no  Brazil,  entre  os  homens  d'acção, 
um  único  monarohieo,  o  imperador,  e  esse 
por  deveres  de  profissão,  jamais  por  fé.  No  dia 
da  sua  morte,  a  realeza,  cuja  actual  manuten- 
ção é  uo  Brazil  simplesmente  o  acto  de  defe- 
rência d  um  povo  meigo  ás  caturrices  dum  ve- 
lho philosopho  bondoso,  a  realeza  liquidará 
em  S.  Christovam  (!),  vindo  o  d'Orleans  agio- 


(l)  «...  A  situação  presente  e  a  impopularidade 
do  príncipe  consorte,  fazem-nos  presentir  que  a  ter- 
ceira  monarchia  brazileira  não  tardará  a  vèr  repro- 
duzido em  si  o  drama  terrível  de  epie  foi  theatro  a 
França,  durante  e  depois  do  reinado  de  Luiz  \vt. 
Que  Deus  inspire  <>  imperador  e  sua  santa  esposa, 
fazendo-lhes  entrever  toda9  as  tristezas,  todas  as 
amarguras  e  todas  as  afflicções  que  parecem  amea- 
çal-os  n'iniia  epocha  próxima!...   Que  os  bomens 


(is  GATOS 


íH 


lár  i>r';i  junto  do  seu  primo  o  colide  de  Paris, 
o  que  talvez  <>  faça  mais  sympathico  ;'i  clien- 

lella. 

A  abolição  total  da  escravatura,  eom  que  a 
regente  cuidava  de  sustar  por  longo  tempo  ain- 
da, a  invasão  da  ideia  democrática;  aabolição 
não  fez  senão  subir  <>  nível  revolucionário,  por- 
que á  iiiuii  não  recrutou  complacências  no  parti- 
do republicano,  b  á  outra  desviou  da  coroa  os 
fazendeiros,  classe  poderosa,  privada  por  aquel- 
I,.  decreto  dos  serviços  gratuitos  de  oitocentos 
mil  trabalhadores,  e  não  indemnisada  ao  de- 
pois, como  pretendia,  dos  capitães  fabulosos 
que  o  mesmo  decreto  lhe  arrancou. 
Emquanto  Pedro  II  andava  por  fora  do  im- 


politicoe  resgatem  os  seus  erros,  e  qne  o  sen  amor 
ao  poder  desappareça  perante  a  paixão  do  intei 
nacional,  e  o  devotamente  á  grandeza  da  pátria.. .1 
zeta  da  Tarde,  do  Rio). 
kA  Republica  Federativa  Brasileira  será  porque 
deve  ser.  Toda  ;i  solução  do  problema  Be  acha  cir- 
cumsoripta  pela  rida  <l"  soberano  actual.  Se  l».  Pe- 
dro n  entrevê  os  acontecimentos  bumanoa  i»'l" 
prisma  da  intuição  philoeophica  que  lhe  atribuem, 
elle  será  o  primeiro,  como  ftiho  da  pátria,  a  applau- 


92  OS  GATOS 

perio,  os  republicanos  do  Brazil,  cuidando  que 
elle  só  voltasse  á  pátria,  embalsamado,  preci- 
pitaram por  tal  forma  ò  movimento  insurrecto, 
que  se  chegou  a  temer  pela  segurança  do  Es- 
tado. Tuia  campanha  intelligentemente  condu- 
zida, por  homens  que  desmentindo  a  indolên- 
cia lendária  da  terra,  entrecruzavam  por  todos 
os  focos  da  vida  civica  e  rural,  a  sua  ivde  te- 
naz de  propaganda,  fazendo  apostolagens  nos 
clubs  e  nas  praças,  nas  fazendas  e  nas  esco- 
las, afizera  o  espirito  ardente  da  joven  nacio- 
nalidade a  dizer  alto  as  suas  angustias  e  os 
seus  sonhos,  sem  receio  ás  revindictas  dym- 
oasticas,  impotentes  de  resto  a  amordaçal-a. 
A  ponto  foi   que  os  adeptos   do  turbilhão 


dir  do  fundo  da  sua  consciência,  este  despertar  vi- 
ril do  povo  generoso  e  grande  que  o  protegeu  quan- 
do elle  ci-a  orphão,  e  que  no  decorrer  da  sua  longa 
vida,  soube  sempre  testemunhar-lhe  affeição  e  res- 
peíto,  apesar  dos  erros  da  sua  politica,  e  dos  maus 
resultados  da  instituição  fatal  que  elle  representa.» 
(Q.  Bogayuva  —  Ao  partido  republicano  brasilei- 
ro, manifesto  que  se  bem  nos  recorda,  termina  con- 
vocando  para  .'50  d'agOSto  um  grande  congresso  fe- 
deral republicano,  na  província  de  .Minas  Geraes). 


os  GATOS 


!U 


revolucionário,  centuplicaram  de  numero  e 
d'exaspero,  graças  á  eloquência  fogosa,  barba- 
ra, e  um  pouco  emphatica,  de  cabecilhas  como 
Silva  Jardim,  Quintino  Bocayuva,  Lopes  Tro- 
vão, José  do  Patrocínio,  etc. 

A  propaganda  foi  Iam  rápida,  enérgica  e 
fulgurante,  que  a  breve  trecho  núcleos  de  sub- 
versão romperam  a  harmonia  factícia  do  im- 
pério, quer  pelos  campos,  quer  pelas  cidades 
intellectuaes  e  commerciantes,  fecundados  pe- 
los apóstolos  videntes  que  dissemos ;  sendo  ne- 
cessário que  as  auctoridades  viessem  reprimir 
a  eflervescencia  dos  ânimos,  prohibindo  comi- 
cios,  mettendo  era  processo  jornaes  e  jorna- 
listas, e  ate  valendo-se  da  forca  armada  muitas 
vezes. 


Desde  que  a  realeza  é  pois  no  Brazil  uma 
agonia,  o  papel  dos  seus  médicos  -em  espe- 
rança, e  dos  seus  lacaios  -em  esteio  moral, 
consistirá  simplesmente  cm  transigir  com  «> 
partido  forte,  revestindo  a  covardia  <\<>  acto 


94  os  GATOS 

em  europeis  de  cerimonial  dymnastico,  que  já 
nem  sequer  darão  ao  Estado  um  exterior  da 
antiga  galhardia. 

(»  partido  republicano  escrevera  no  seu 
programma  a  abolição  total  da  escravatura: 
veio  a  princeza  e  enfeitou  com  cila  a  sua  re- 
gência !  A  restauração  agrícola  era  egualmen- 
le  uni  dos  grandes  problemas  que  a  democra- 
cia se  propunha  resolver:  e  o  gabinete  Affonso 
Celso  corre  a  empolgal-o  ! 

Para  inutilisar  os  galgões  da  onda  revolu- 
cionaria, o  governo  imperial  que  uão  pôde 
impòr-lhe  diques  d'ideias,  manda  ao  seu  en- 
contro os  esquadrões — e  vem  os  conílictos  de 
Bagé,  de  Jundiahy,  d'Itabapoana,  de  S.  Paulo 
e  de  .Minas  (ieraes  —  encarrega  a  calumnia  de 
morder  no  calcanhar  dos  vencedores:  e  vem  a 
comedia  do  regicídio,  á  saliida  do  (healro  de 
SanfAnna. 

Por  mais  que  tenha  feito  ;t  critica  do  Rio, 
para  varrei-  da  hombridade  do  actual  ministé- 
rio a  suspeita  (Testa  tareada  regicida,  sempre 
,-i  opinião  eonverge  teimosamente  a  ella,  por 
encontrar  porto  bloqueado  a  qualquer  outra 
hypothese  plausível,  .lámais  alguém  pensou  no 
Brazil  em  attribuir  o  tiro  d' Adriano  do  Vallea 


os   GATOS  95 

suggestòes  republicanas.  A  democracia  brazn 
leira  bate  de  frente,  sem  recorrer  como  a  nos- 
sa, a  chicanas,  nem  como  a  bespanhola,  a  liau- 
ditismos.  (»0 

Ninguém  pensa  tão  pouco  em  explicar  o 
tiro  pela  impulsão  d'um  degenerado  e  d'um 
maníaco.  Ninguém  o  explica  por  determinação 
expontânea  d'um  arrebatado,  filha  d'um  exas- 
pero d'ideias  de  natureza  politica  ou  philoso- 
phica.  E  aquelle  desconhecido  que  dá  cognac 
antes  de  suggerir  a  tentativa  de  morte  ao  ra- 
pazola. .  •  aquelle  conde  d'Eu  que  faz  postar 
denunciantes  no  caminho  <l<>s  Bernardinos  e 
dos  Ly rios...  a  teimosia  «la  policia  em  tor- 
oar  o  assassínio  cúmplice  d'uma  conspiração 
republicana...  todos  estes  episódios  convém 


..  .  Seja  qual  IV» r  a  intensidade  e  a  maivlia 
erada  da  propaganda  republicana,  essa  propa- 
ganda visa  um  ideal  politico  e  não  se  apoia  senão 
em  princípios. 

Na  presumpção  de  interpretar  os  sentimentos 
do  partido  politico  que  tenho  a  honra  de  represen- 
tar, e  fallando  com  a  auetoridade  que  decorre  do 
mandato  de  que  me  acho  investido,  pi  curar 

que  na  propaganda  do  partido  republicano  não  en- 
►mo  elemento,  nem  isto  seria  tolerado,  o  desi- 


96  OS  GATOS 

gem  diabolicamente  a  creditar  a  existência 
d'uma  pantomima  ministro-policial,  mal  cons- 
truída em  verdade,  e  ainda  peormente  execu- 
ta.la. 

Logo  em  seguida  ao  attentado,  o  imperador 
foi  alvo  d'ovações  que  se  repetiram,  no  dia 
seguinte  e  nos  mais,  por  banda  de  Iodas  as 
colónias  e  coílectividades  particulares  e  publi- 
cas do  império.  Pedro  11  correspondia  aos  tes- 
temunhos d'apreço  com  a  sua  habitual  simple- 
/a  de  grande  velho  conhecedor  da  giria  dos 
homens,  contrafeita  no  intimo  por  servir  de 
joguete  a  estes  passes  forains  do  seu  governo. 
A  frieza  que  elle  apparentou  desde  a  primeira 
hora  do  crime,  significa  não  lauto  o  desprezo 
da  vida,  como  o  das  illusorias  festanças  com 


gnio  de  qualquer  injuria  ou  offensa,  moral  ou  ma- 
terial, quer  ao  chefe  do  estado,  quer  ás  pessoas  da 
sua  família. 

N'esta  hirta  incessante  da  politica,  forte  pelo 
sen  direito  e  pelas  nobres  qualidades  que  o  impul- 
sam, o  partido  republicano  pôde,  como  tantos  ou- 
tros partidos  em  tantos  diversos  paizes,  chegar  até 
ao  extremo  da  revolução;  mas  não  chegará  nunca 
até  manchar-se  com  a  ignominia,  nem  a  deshon- 
rar-se  pelo  desígnio  de  um  crime. 


OS    GATOS  97 

que  os  ministros  publicamente  !li<'  detraem  ;i 
magestade  luminosíssima  dos  trabalhos  e  dos 
annos. 

Teve,  como  monarcha,  uma  palavra  que 
rescende  ligeiramente  aos  deveres  scenogra- 
phicos  »la  sua  profissão,  e  que  alvitraríamos  lhe 
houvesse  sido  aconselhada,  se  não  fora  sabida 
a  sua  austeridade.  Foi  quando,  chegado  a 
palácio,  depois  da  scena  do  tiro,  rende  graças 
por  ter  sido  um  estrangeiro,  que  não  um  filho 
Ao  Brazil,  o  auetor  do  attentado. 

Esta  phrase,  repetida  pelo  commissario  de 
policia,  imiiii  officio  ao  paiz,  e  pelo  presidente 
<}n  conselho  depois,  ao  plenipotenciário  argen- 
tino,  lembra   um  mot-cPordre  de  despeito  ou 


A  violência  nunca  fundou  Dada  que  fosse  per- 
dnravel.  O  crime  nunca  serviu,  nem  servirá  de  base 
para  sobre  ''li'1  assei iiarem-se  as  fundações  de  ne- 
nhuma obra  ><>li'ia  e  correcta. 

Victimar  um  homem  não  importa  suffocar  uma 
idéa  <»n  destruir  uma  instituição. 

Só  as  e;ui>;i>  vencidas  s  os  partidos  desalenta- 
dos podem  recorrer,  na  cegueira  do  desespero,  a 
taes  expedientes  «•ondemnaveis...» 

(Q.  Bocayuva,  artigo  Vou»  Factos,  no  Paiz). 

7 


98  <»s  ('.AIOS 

revindicta,  injustamente  vibrado  á  mais  activa, 
á  mais  intelligente  e  á  mais  prestante  socie- 
dade colonisadora  do  Brazil,  a  portugueza.  (n) 
Resabe  vagamente  á  assafoetida  d'uma  inju- 
ria, que  enausea,  mesmo  quando  á  face  da 
critica,  nem  sequer  represente  a  digestão  d'um 
dispauterio.  As  grandes  virtudes  que  exalçam 
o  caracter  d'um  homem,  podem  muitas  mv.cs 
ser  o  reflexo  das  qualidades  d'um  povo;  mas 


(n)  «...  Primeiro  que  tudo,  esse  rapaz  não  é 
propriamente  estrangeiro,  no  sentido  em  que  essa 
qualidade  podia  servir  de  argumento  para  tirar  va- 
lor á  tentativa.  Veiu  para  o  Brazil  com  8  annos  e 
hoje  tem  20;  aqui  se  formou  o  seu  espirito,  e  o  que 
sabe  aqui  o  aprendeu;  se  alguma  politica  pude  in- 
fluir sobre  o  seu  espirito— e  todos  os  que  o  conhe- 
cem dizem  que  elle  nunca  cogitou  d'isso— é  a  poli- 
tica desta  terra,  a  unira  que  elle  talvez  conheça;  e 
que  a  conhece  pouco,  prova-o  o  facto  de  pensar  que 
pôde  ser  applaudido  por  alguém  sendo  grosseiro 
com  o  Imperador,  ou  que  podia  ser  agradável  a  al- 
gum partido,  deitando  uma  larga  nódoa  de  sangue 
em  uma  propaganda  que  tem  sido  sempre  feita  no 
terreno  pacifico  das  idéas...» 

(Gazeta  de  Noticias,  do  Rio). 


nv  ,,\  ros  99 

raro  é  que  os  malandros  isolados  refranjam  ou- 
tra coisa  que  Qão  seja  a  maldade,  fermentada 
pelo  meio  moral  em  que  elles  vivem,  ou  a  lou- 
cura, que  iicin  sequer  às  vezes  tem  família, 
quanto  mais  ter  casta  ou  nacionalidade  ! 

o  conde  de  Mathosinhos,  partido  da  sua 
aldeia  com  um  sacco  de  roupa  e  um  chapéu 
braguez,  chegando  á  riqueza  pela  perseveran- 
ça do  seu  esforço  heróico  e  immaculado,  e 
constituindo-se  —  espécie  de  rei  pastor  (ruma 
grande  tribu  d'obreiros  incansáveis  —  em  pro- 
curador <lc  lodos  os  desvalidos,  sem  discre- 
pância de  sei-  ou  de  iiarào ;  Ramalho  Ortigão 
e  Eduardo  Lemos,  vindo  pela  Europa,  até  á 
Rússia,  abrir  mercados  para  os  prod.uctos 
agrícolas  do  império,  e  installando  a'um  pa- 
lácio magnifico  o  Qubineti  Portuguez  de  Leitura, 
a  maior  bibliotheca  actual  do  Rio  de  .Iam  iro: 
o  liarão  do  Alio  Mearim,  Martins  do  Pinho,  fun- 
dando e  subsidiando  "  Liceu  L/ftcrario  Por- 
tugue^  onde  se  faculta  a  instrucçãoa  lodos  os 
indivíduos  que  a  reclamem  ;  António  de  Mello, 

o  erudito  r  tino  llielanr||olir<i,  enlrelcildo  com 

Camillo  polemicas  litterarias  do  mais  puro  la- 
vor; e  como  estes,  duzentos  mil  portugueze  . 
do  -"ii  caracter  ou  do  seu  quilate,  collabo- 

* 


IDO  OSCATitS 

rando  infatigavelmente,  com  a  honra  mais  al- 
h),  em  prol  da  civilisação  norte-americana — 
ris  quem  pôde  dar  ao  Brazil  a  imagem  da  alma 
portugueza,  de  que  a  brazileira  hoje  exhala, 
orgulho  nosso,  o  mais  divino  quinhão  da  sua 
essência !  Quanto  a  Adriano  do  Valle,  não  si- 
gnifica nem  dá  coisa  nenhuma,  alem  do  exem- 
plo triste  do  que  pôde  uma  cabeça  irara  ao 
serviço  d'uma  politica  dissoluta. 

Numa    coisa   somente   os   ensaiadores   da 
comedia  foram  babeis:  a  escolha  do  lyranno! 
Esse   paiz  que  tem   no  capoeira  o   assassino 
ideal,  scientifico,  inverosimil,   que  abre  ven- 
tres a   um  tanto,  sem  perguntar  o  nome  se- 
quer de  quem  lhe  paga,  mais  uma  vez  repul- 
sou a  industria  nacional,  neste  ramo  perfeita, 
,i  beneficio  (rum  titere  de  fora,  assegurando 
assim  (pie  a  scena  trágica  não  passaria  duma 
bufona  imitação.  Resta  saber  se  na  guerra  que 
as    auctoridades    fluminenses  movem   contra 
Adriano,  não  irá  mais  do  que  o  luxo  empba- 
tico  d  uma  pavorosa  politica  que  já  rendeu  pro- 
moções e  veneras,  sobre  distanciar  o  dMliieaus 
cada  vez  mais,  do  sólio   imperial.     É   natural 
que   os   capoeiras    despeitados  da    preferencia 
dada  a  um  estrangeiro,  em  matéria  de  serviço 


o-.  GATOS 


official,  busquem  aziumar  contra  eUe  a  obses- 
são dos  magistrados,  desforrando  do  inerme  a 
desconsideração  vibrada  á  classe  d'aquelles 
;ili;i/  inimitáveis  extirpadores. 


Esta  tragedia  brazilica  me  põe  de  queixos, 
meu  senhor  e  rei  de  Portugal,  a  cogitar  na 
forma  porque  V.  M.  tem  comprehendido  até 
o  pesado  encargo  de  reinar.  A.té  ao  dia 
15  de  julho  ainda  havia  no  mundo  dois  mo- 
narchas  immunes  para  as  tentativas  d'assassi- 
nato  —  V.  M.  e  seu  ii<>  Pedro.  Para  qualquer 
< !( is  dois,  ;i  situação  era  deprimente,  um  pou- 
cochinho. Reis  'i1"'  ";m  gramam  chumbadas 
do  povo  são  como  ;i>  cigarreiras  que  nãoapa- 

uli; cascudos  dos  amantes,  umas  lesmas  a 

cuja  existência  se  perdeu  <>  interesse.  Emtanto 
;i  desdita  de  VV.  MM.  lá  ia  tendo  conforto  no 
próprio  seio  familial  —  V.  M.  consolando-se  de 
lhe  não  furarem  ;^  costellas,  na  immunidade 
ilr  seu  li"  <»  imperador ;  este,  illudindo  as  suas 
bazoíias  <\>-  grande  rei,  c ;i  integridade  das 


[02  OS   GATOS 

costellas  de  V.  M.  Uma  tal  miragem  acaba 
porem,  senhor,  d' evaporar-se.  I).  Pedro  n  já  lá 
tem  a  sua  ameixa  para  a  Historia:  por  signa] 
que  o  caroço  nunca  appareceu!  E  ahi  está  V. 
.M.  agora  sosinho  a  carregar  com  a  ignominia 
de  nunca  hiaver  despertado  ódio  a  ninguém. 
Desde  Alexandre  da  Rússia  até  Kalakana  de 
Sandwich,  iodos  os  monarchas  contemporâ- 
neos hão  bemerecido  do  povo,  inequivocos  tes- 
temunhos d»1  respeito  e  d'afiecto,  sol»  a  forma 
de  minas  de  dynamiir  e  de  balazios  —  só 
M.  V.,  moita  !  É  indecente. 

Perspicaz  (-orno  é,  e  delirando  talvez  por 
cahir  cm  graça  aos  vindouros,  mediante  uma 
façanha  diversa  da  dom-juansextite  chronica  da 
sua  família,  V.  M.  haverá  predito  a  urgência 
d'apropinquar  á  sua  real  pessoa  uma  tentativa- 
sinha  de  regicídio,  já  não  digo  das  grandes, 
mas  attinente  emlim  ás  suas  posses.  Porque 
ás  transformações  d'este  tempo,  nem  escapam 
íris  nem  patriarchas ;  e  se  é  certo  que  uns  e 
outros  estejam  dispensados  d»'  fazer  as  gran- 
des guerras  e  de  pregar  as  grandes  cruzadas, 
não  pelo  duvidoso  tenho  a  instancia  de  cada 
qual  aproveitar  a  occasião  de  se  fazer  temido, 
e  sobrelevar  ao  vulgacho,  por  uma  altiva  bra- 


os  GATOS  103 

\ uri  ante  os  perigos  —  inda que  sejam  apocri- 
phos,  como  <»s  do  tio  de  V.  M. 

Pintar  <>  gosto  que  todos  teríamos,  ven- 
do V.  M.  emparceirar  na  escala  do  martyrio, 
com  outi  -   collegas,    grous   coroados, 

graças  á  ferocidade  d'um  sicário,  é  coisa  que 
não  pôde  o  colorido  exangue  d'esta  penna, 
afeita  a  chronicar  discursos  arroyanos,  e  a 
aluar  epitaphio  ás  artes  fuschinisadas  por  es- 
ses saguões  -  jardins-publicos  iv  paços  conse- 
Ihios.  Mas  calcularia  V.  mercê  0  are.»  de  tal 
jubilo,  meu  senhor,  abiscoitando  uma  ovação- 
sinha  galopinada  cá  pelo  rapaz,  e  então  me- 
dindo a  toda  a  grandeza  histórica,  a  vergo- 
nha de  que  libertava  a  monarchia,  caso  uma 
inoffensiva  bomba  de  dynamite  viesse  a  re- 
bentai- aos  pés  mais  que  tudo  Raphaeis  — 
Gabrieis  —  d' Assis —  Gonzagas,  etc,  de  V.  M. ! 


104  OS  GATOS 

Sobrevenho  portanto,  meu  rei  e  padre, 
com  patrióticas  instancias,  a  que  V.  M.  se 
deixe  chumbar  seja  por  que  buraco  fôr.  Ah, 
senhor  meu,  que  rica  coisa  é  um  monarcha 
que  procura  dar  lustre  ao  seu  reinado,  vindo 
ã  estacada  caçar  lauréis  e  palmas,  sem  outra 
defeza  contra  as  jugatas  da  turba,  além  d'uma 
inoffensiva  camisola  de  flanella!  No  tocante  a 
armamentos,  é  singular  que  emquanto  as  ma- 
chinas  de  guerra  vão  complicando  a  ferocida- 
de das  nações,  e  enfreando  a  sciencia  ao  ser- 
viço da  hecatombe,  esteja  a  armadura  dos 
guerreiros  reduzida  ás  formas  simples  da  ca- 
misa Jagger,  dos  suspensórios  1'ivei,  e  (ias 
meias  de  borracha  contra  as  varises  das  per- 
nas. Denuncia  islo  que  a  coragem  do  homem 
leni  crescido,  pois  que  elle  dispensa  o  aço  de 
lhe  proteger  o  cavername,  e  que  V.  M.  evi- 
tando dar  motivo  de  zanga  aos  seus  vassallos, 
pelo  receio  pessoal  (ruma  agressão,  baixa  por 
esie  facto  escandalosamente  do  uivei  épico 
aonde  os  reis  devem  moslrar-se,  como  em 
obeliscos  de  gloria,  para  as  ovações  triumphaes 
da  posteridade.  E  islo  me  peza,  senhor,  que 
possuindo  V.  mercê  todos  os  attributOS  (rum 
grande  e  illustre  rei,  só  de  bravura  esteja  mal 


os  GATOS  105 

servidOj  a  ponto  de  sujai-  as  ceroulas  mal  lhe 
dizem  que  foi  um  camarada  seu  espingar- 
deado.  (o)  Está  puis  V.  M.  um  monarcha 
aceado !  Pôde  limpai'  as  ceroulas  á  parede  ! 

Veja  o  imperador  l>.  Pedro,  seu  tio,  que 
o  Dia  pintou  tomando  d'assalto  a  fortale- 
za d'Uruguayana,  de  chapéu  desabado,  e  ruja 
fria  coragem  o  mesmo  jornal  assinala,  con- 
tando que  ao  ealiir  ao  mar,  perto  do  raes,  a 
primeira  coisa  que  fez  foi  descalçar  as  botas 
—que  homem!  —  e  a  segunda  recusar  o  capi- 
lé momo  que  lhe  offereciam,  á  guiza  de  cal- 
mante. Ta--  rasgos  habilitariam  por  si  sós, 
epicamente,  o  Mo  Pedro  a  um  bronze  he- 
róico na  Tijuca,  quanto  mais  o  saber-se  com 
que  temeridade  carlovingia  elle  levou  a  cabo 

eu  papel  de  naufrago,  afastando  o  escal- 
dão de  pés  prescripto  pelos  médicos,  e  appa- 

iido  em  piugas  á  corte,  que  ao  som  d" 
coro  d'aventureiros  <l>  Guarany,  se  propunha 
vasar-lhe  copinhos  de  cognac. 

o  monarcha  brazileiro  lhe  vem  delineando 


Marquez  d'Alvito:    el-rei  d.  luiz  na  inti- 
midam, pag.  I  í. 


106  os  (JATOS 

pois,  meu  senhor  e  rei,  o  curso  de  heroe  que 
V.  M.   terá  de  frequentar  antes  de  constituir  a 

sua  preciosa  pelle  em  alvo  á  pontaria  dos  algo- 
zes» É  abrir  matricula  nas  aulas  de  martyrio  ! 
Imitar  o  outro.  Ir  por  exemplo  de  coroa  des- 
abada conquistar  o  forte  de  Caxias,  façanha 
commoda,  alli  tão  perlo  do  paço,  e  com  ch«r- 
á-banes  Ires  vezes  ao  dia.  Cahir  ao  mar,  como 
o  senhor  D.  Pedro,  inda  que  tirando  as  babu- 
chas,  o  povo  lhe  lobrigue  por  baixo,  piugas  de 
cautchouc  Oh  meu  senhor!  fosse  eu  rei,  e 
■diabos  me  levem  se  não  tinha  já  nomeado  re- 
gicida da  minha  real  camará  (sem  perda  de 
direitos  para  o  dr.  .May  figueira)  o  faccinora 
mais  catita,  da  Penitenciaria.  A  realeza  carece 
de  sagrar-se  no  espirito  da  turba,  pela  espé- 
cie d'aureola  que  põe  n'um  homem  a  realisa- 
ção  d  um  acto  extraordinário.  Por  GOnsequen- 
cia  faca  V.  M.  com  que  o  escadeirem.  Não 
abrenuncie,  por  Deus,  esta  proposta.,  gritando 
que  se  renta  para  os  Meputas  que  lh'a  alvi- 
tram. A  Razão  d'Estado  antes  de  tudo.  É  o 
barbadão  de  Veiros  que  lhe  acena.  1).  João  Y! 
•  pie  do  tumulo  lhe  diz:  dei.xa-ie  chumbar, 
Lúlúsinho. 

Porque  emfim  V.  M.  não  tem  agora  tão 


tis  GATOS 


grandes  coisas  do  sen  reinado  que  possa  pres- 
cindir assim  dum  regicidio.  A  nota  <!<>  ódio  é 
:  ío  aecessaria  ao  prestigio  da  sua  coroa,  como 
a  mota  de  vinte  mil  reis.  Mesmo,  n'essa  dymnas- 
tia  de  frustes  que  vae  de  1>.  Joào  iv  a  D.  João 
vi.  Dão  apparece  um  anico  rei  com  a  bonho- 
mia  parrana  de  V.  .M.  D.  João  rv  era  um 
polirão,  mas  emfim  lá  tinha  a  mulher.  D.  João 
v,  um  femeeiro,  mas  propulsou  as  artes  do 
luxo  a  um  explendor  requintado  e  extraordl- 
n  irio.  A  Affonso  vi  faltava  aquillo  que  Brown- 
Secquard  anda  a  restaurar  uas  regiões  infra-um- 
bilicaes  dos  homens  velhos :  emtanto  elle  con- 
seguiu gastar  a  enclausura  de  Cintra,  primeiro 
que  a  prisão  <>  gastasse  a  elle. 

E  convenho  mesmo  que  l>.  José  fosse 
um  maricas,  que  andava  sempre  a  tasqui- 
nhar  barrigas  de  freira  :  mas,  meu  senhor,  lá 
o  lemos  em  broDze  do  Terreiro  do  Paço, 
porque  teve  a  habilidade  de  arranjar  um  ter- 
ramoto authentico,  um  ministro  enérgico,  e 
uma  tentativa  de  regicidio  menos  mal  engeró- 
cada. 

N'este  carnaval  de  Braganças,  é  poisV.  St. 
o  único  que  intenta  penetrar  os  humbraes  da 
Historia,  sem  bagagem— apenas  coma  sua  tra- 


108  OS  GATOS 

duçãosinha  do  JEfomtef,  a  greve  dos  chapellei- 
ros,  e  i»  sr.  José  Luciano  preso  por  uma  cor- 
rente ao  realejo  constitucional  onde  ha  vinte 
e  seis  annos  V.  M.  móe  a  sua  própria  marcha 
fúnebre.  Ah,  que  pobreza  de  feitos  históricos ! 
que  suppressão  de  vícios  e  manias!  que  au- 
sência de  vultos  glorificadores  da  sua  gover- 
nação!... V.  M.  não  tem  a  sen  lado  Luizas 
de  Gusmão;  o  luxo  da  sua  corte  infere-se  pe- 
las equipagens  do  sr.  ex-conde  de  Mesqúitella 
e  pelas  toilettes  do  .sr.  Teixeira  Lacrau  ;  V. 
M.  está  como  D.  Affonso  vi,  e  ainda  não  de- 
liu que  eu  saiba,  prisão  nenhuma;  e  tendo 
por  barrigas  de  freira  a  glotoneria  de  l>.  José, 
llão  leve  ainda,  nano  elle,  as  compensações 
do  terramoto,  do  ministro,  ou  da  tentativa  de 
regicídio.  Como  ha-de  o  reinado  de  V.  .M.  fazei' 
fumo,  se  ninguém  contra  elle  Inda  fez  fogo? 
— E  a  decadência!...  antigamente  só  emigra- 
vam do  paiz  caixeiros  de  lenda,  cavadores  do 
campo,  e  uma  ou  oulra  aclrizita  da  Trindade. 
Agora,  até  os  regicidas.,,  uns  desgraçados 
que  a  casa  real  deixa  inaclivos  (pouca  vergo- 
nha!) e  que  pia  ganharem  a  vida,  teem  d'ir 
trabalhar  para  o  Brazil. 

Recapitulo :  V.  M.  tem  tudo  a  ganhar  em 


OS  GATOS 


III!) 


ser  assassinado.  Mecha  os  pausinhos  p'ra  isso, 
despache-se  !  Digne-se  verter  o  seu  sangue^ 
antes  que  a  Historia,  julgando-o,  sollicite  a 
posteridade  a  verter  aguas. 


Convenhamos  porem,  que  apesar  do  meu 
dito,  eu  não  fujo  a  reconhecer  em  V.  M.  al- 
gumas preciosíssimas  qualidades  *  1  *  ^  reinante. 
E  comigo  o  povo,  real  senhor.  Lá  quanto  a 
isso,  em  vefdade,  muito  obrigados  lh'estamos. 
por  Dem  da  pátria,  já  V.  M.  traduziu  tão  mal 
Shakespeare,  que  esfriou  em  nós  o  felichismo 
pelas  obras  primas  estrangeiras  —  subtil  ma- 
aeira  esta  de  V.  M.  reconduzir  o  gosto  á  ex- 
clusiva adoração  das  nacionaes !  —  e  este  bello 
exemplo,  se  Dão  vate  o  das  pingas  de  seu  tio 
Pedro,  reveste  pelo  menos  uma  flamancia  d'a- 
inor  pátrio,  digna  d'intervir  nos  desdéns  anti- 


MO  OS  GATOS 

Lusitanos  do  venddo  da  vida  Ramalho  Ortigão. 
Mas  meu  senhor,  se  o  cultivo  infeliz  das  bel- 
las-lettras  inhabilitasse  os  monarchas  para  as 
ameixas  dos  sicários,  estaria  o  imperador  do 
Brazil  mais  que  nenhum  outro  livre  e  isempto 
de  taes  fructos,  em  razão  das  esquirolas  poéti- 
cas i[iui  intermitentemente  exgrega  pr'as  ga- 
zetas: e  viu  V.  M.  Como  Adriano  lhe  aliníou 
com  um,  sem  grandemente  acatar  a  sonetaria 
imperial ! 

Sc  Quincey  rimou  as  excellencias  do  assas- 
sinato como  obra  d'arte,  V.  M.,  assíduo  inter- 
prete da  poesia  trágica  d'Alem-Mancha,  podia 
liem  trazer  a  vernáculo  este  poema,  preambu- 
lando-o  (Fuma  falia  em  que  enaltecesse  o  re- 
gicídio como  obra  de  politica.  Era  trabalho 
onde  o  meu  rei  despejaria  a  contento  geral 
as  asneiras  que  lhe  tivessem  sobrado  dos  seus 
outros  trabalhos  litterarios,  c  que  podia  sug- 
gerir  talvez  ao  snr.  Gualdino  Comes,  por  via 
do  rancor  plumitivo,  o  tirasio  que  V.  Al.  ja- 
mais pechinchará  do  snr.  Consiglieri  Pedroso, 
mercê  do  jacobino. 

Oh  meu  senhor,  habilite-se !  Uma  reles 
bomba  que  seja.  Para  o  effeito  moral  até  um 
buscapés  seria  bastante.  Não  faça  caso  das 


os  GATOS 


I  I 


l  recauções  da  medicina,  venha  á  cidade  re- 
pontar c'o  zé  povinho,  chamar-nós  typos,  dar 
canelões  nas  nossas  mulheres —  fazer  emfim 
pelo  tirasio  emquanto  é  tempo.  N'estas  coisas 
de  martyrio,  só  a  primeira  abordagem  custa 
um  pouco.  Que  transtorno  faria  a  V.  M.  um 
balasio,  sabendo  a  ovação  que  abichava  fl»1- 
pois  de  morto? 

Ah,  que  vida   monótona  tem  sido  ;i  de  \ . 
M.  .  .  .  jantarinhos  de  canja  magra  no  quarto, 
violoncello  quando  vão  artistas  de  S.  Carlos, 
e  como  hors-d'(Buvre,  a  pouca  vergonhasinha 
extra-matrimonial  ás  quintas-feiras !  ...  V.  M. 
carece  de  sahir  quanto  anteá  d'essa  apathia. 
Iin  brazileiro,  senhor,  não  usufrue  maior  ri- 
panso,  do  que  o  meu  rei  sentado  n'esse  throno, 
,,  com  a   marrafa   a  dividir-lhe  o  craneo  em 
duas  metades  parallellamente  encarquilhadas. 
E  quando  os  republicanos  cuspirem  á  face  de 
v.   \|.   os  •>v»|>  contos  da  sua  dotação,  como 
ha-de  V.   M.  justificar  essa   maquia  auferida 
dos  erários,  não  tendo  feito  no  decurso  d'um 
anno,  outra  coisa  que  não  seja  abrir  e  fechar 
cortes,  levar  salvas  a  bordo,  e  tapar  e  desta- 
par ladrões  e  tolos,  consoante  a  matula  dos 
gabinetes  que  governam? 


I  1  '1  OS  GATOS 

Com  o  tirasio  era  outro  aceio.  Pela  tenta- 
tiva de  regicídio,  disse  Guizot,  a  inoffensivi- 
dade  dos  reis  cola-se  á  veneração  dos  povos, 
como  um  rabotalho  de  trampa  á  barriga  d'um 
macaco:  e  os  povos  tanto  esgatanham  n'essa 
veneração,  que  acabam  por  abrir-se  o  ventre, 
Sem  que  a  mistella  de  lá  saia  e  deixe  de  feder. 

Se  por  consequência,  V.  \\.  está  resolvido  a 
acceitar  o  alvitre  da  sua  próxima  eliminação, 
porvia  Lefaucheux,  e  Dão  achar  sicário  idóneo 
que  lhe  expeça  um  balasio  aos  quartos  poste- 
riores, d'aqui  me  offereço  eu  com  toda  a  leal- 
dade, certo  de  que  V.  M.  não  haverá  que  di- 
zer do  trabalhinho. 

De  mais,  V.  M.  já  me  conhece.  Ora  se 
não!...  Eu  era  um  que  estava  de  chapéu  de 
coco,  n'um  dos  bancos  do  Aterro,  haverá  seis 
annos,  uma  tarde  que  V.  M.  passou  de  lunetas 
fumadas,  for  signa!  que  até  lhe  mostrei  o 
Diário  de  Noticias.  .  . 

Tenho  vinte  e  cinco  annos  d'idade,  lindo 
talhe  de  lettra,  e  des'que  me  metteram  o  ler  e 
o  escrever  no  corpo,  ando  mesmo  hydrophobo 
por  espatifar  um  desavergonhado.  Gontracte-me, 
senhor  !  lia  em  mim  um  sicário  á  altura  da  im- 
portância européa  de  V.  M. —  E  garantias!  fui 


os   GATOS  |  l.í 

eu  que  atirei  a  bomba  ás  janeilas  do  rei  do 
Porto,  GSorreia  de  Barros,  de  combinação  com 
elle  mesmo.  Sou  portanto  um  regicida  com 
pratica  ua  província,  um  regicida  em  segunda 
mão,  bem  conservado,  e  podendo  mostrar 
abonacões  como  o  primeiro,  .luro  que  não  fa- 
rei questão  <lc  preço.  Somente,  como  apesar 
do  meu  ódio,  eu  nfio  quero  que  V.  Al.  morra, 
porque  emfim  podia  vir  outro  peor,  combina- 

re s  ;i  conspirata  por  forma  que  eila  revista 

todas  ;is  apparencias  de  seria,  sem  todavia 
deixar  d'abexigar-se  por  dentro,  com  todas  as 
inoffensividades  de  jocosa.  Eu  lenho  i,i  em 
casa  um  rewolver  de  uickel,  muito  lindo,  e 
que  é  por  signal  de  cautchauc,  onde,  nos 
meus  intervallos  <!»•  faccinora,  uso  guardar  pi- 
cado de  Kentuky.  Se  acordarmos  em  intrujar 
;•  Europa  com  a  comediasinha  d'onde  \ .  M. 
ha-de  sahir  ovante  e  lieróicisado,  pôde  combi- 
nar-se  a  coisa  para  <><  começos  do  inverno, 
uma  noite,  ao  acaba?  do  lheatro. . .  Eu  ponho 
um  estalo  d*entrudo  uo  gatilho  da  arma ;  V. 
Al.  mette  oa  bocca  um  zagalote;  e  quando,  s,,l» 
um  jorro  eléctrico,  pozer  o  pé  no  estribo  da 

carruagem,  eu  de  meu  lado— pif!  paf! <; 

deito  a  fugir,  ermraanto  V,  Al.  cal     i  os  bra- 

9 


144 


os   GATOS 


cos  dos  seus  officiaes,  não  sem  primeiro  en- 
tornar sobre  a  camisa  um  frasquinho  de  tinta 
carmezi. 

Attenta  a  eòr  da  tinta,  e  o  fado  de  V.  M. 
cuspir  a  bala  no  delíquio,  os  médicos  não  se 
recusarão,  creio  eu,  a  jurar  sobre  <>s  Evange- 
lhos, que  V.  M.  foi  ferido...  Emtanto,  n'este 
tão  fácil  plano,  só  um  temor  me  alanceia : 

—  Com  a  bravura  que  todos  lheconhecem, 
V.  M.  é  capaz  de  morrer  de  susto,  mesmo 
tendo  a  certeza  de  não  ler  morrido  —  <!<>  tiro. 

31  d'agosto  i!e  1889. 


OS   GATOS 


FIALHO  JVALMEIDA 


OS  GATOS 


PUBLICADA» )  MENSAL, 
D'INQUERITO  Á  VIDA  PORTUGUEZA 


PORTO 
(\^.\  Editora  Alcino  Aranha  &  C 

llim  ilo  Bomjarditn,  96 

FILIAL  EM  LISBOA 

75,  llua  dos  lie.li  ozeiros,  7.~> 


PORTO 
Typ.  da  Empreza  Litteraria  e  Typographica 

178,  Rua  de  D.  Pedro,  184 


SUMMARIO 


0  VIOLINISTA  SÉRGIO  N'UM  CAFFÉ  DA 
MOURARIA  -  O  SEU  TYPO,  O  SEU  JOGO  B 
O    SEI'    BUMOR— ASPECTO    DO   BOTEQUIM 

—  MUSICA  AUDITIVA  E  MUSICA  «VISUAL»: 
A  SYMPHONIA  HERÓICA,  A  DAMNAÇÃO  DO 
FAUSTO,  E  O  QUINTETO  DE  MENDELSSOHN 

—  A  RECEPTIVIDADE  PARA  A  MUSICA  É 
UM  CAsu  DE  MOMENTO  — A  HORA  DE 
GLUECK,  A  HORA  DE  WAGNER,  A  HORA 
DE  BEETHOVEN,  E  A   HORA   D'OFFEMBACH 

—  O  ARCEBISPO  DE  PERCA  RESTABELECE 
MIRACULOSAMENTE  A  TIRAGEM  INTESTI- 
NAL DO  GENERAL  VALLADAS,  GRAÇAS  AO 
is<>  DE  BEMI-CUPIOS  MUSICAES  ÉVORA 
JUBILOSA  POB  ESTE  PRODÍGIO  DO  PRÍN- 
CIPE DA  [GREJA,  NUNES  —  MUSICAS  IN- 
COMPREHENDIDAS  —  A  ÁRIA  DAS  JÓIAS, 
A  SUA  tNTENÇÂO,  A  SUA  ALMA,  E  OS 
CAMBIANTES  DA  SUA  INTERPRETAÇÃO  NO 
THEATRO  — POR  CAUSA  DA  MUSICA  VI- 
SIONANTE  DESCOBRE-SE  A  POUCA  VERGO- 
NHA IiVm  CARREJÂO— PARA  QUE  SERVE 


VI 


A  SERENATA  DO  FAUSTO,  NOS  CAFFÉS  DE 
FADISTAS—  1DYLLIO  RÚSTICO  —SÉRGIO, 
MEPHISTOPHELES  —  NA  RUA:  QUEM  ME 
DÁ  UMA  TERCEIRA.  VISTA,  OU  OS  ÓCULOS 
VERDES  DE  BOCCACIO  ?  — INTERVÉM  O 
DIABO  QUANDO  ELLES  SE  RESOLVEM  A 
PROCRE AR  — APONTAMENTOS  PARA  A  HIS- 
TORIA DAS  NÁDEGAS  DO  REI  NOVO  —  O 
«REPÓRTER»,  LOJA  DE  FRESSURA  —  AS 
MULHERES  DEVEM  FUMAR?— MORTE  DE 
S.  M.  O  REI  LUIZ  —  MYSTERIOS  QUANTO 
Á  DIVULGAÇÃO  DA  DOENÇA  —  ÚLTIMOS 
DIAS  NO  PAÇO  DE  CASCAES  —  AS  LAGRI- 
MAS D'0PFICI0  SÃO  CUSPO  MAL  POSTO— 
SYXTIIETISA-SE  O  REINADO  TRANSACTO 
—  O  REI  GUARDA-MARINHA  E  O  REI  ES- 
TUDIOSO:  O  SEU  SYSTEMA  DE  CORRUPÇÃO 
E  A  SUA  SUPERIORIDADE  MORAL  SOBRE 
OS  DEMAIS  —  OS  CÃES  DO  BOM  JESUS  DE 
BRAGA  E  0  SR.  MINISTRO  DA  FAZENDA  — 
O  REI  FAZ-SF  PODER  OCCULTO  DE  TODAS 
AS  SITUAÇÕES  — O  ESTADO  FOI  ELLE  — 
REI  PODER  MODERADOR,  REI  ACADEMIA 
REAL  DAS  SCIENCIAS,  E  REI  EXPOSIÇÃO 
DE  SAPATOS  I)'OURELLO  NA  AVENIDA  — 
O  DITO  DO  VELHO   SAMPAIO  —  O  QUE   É  O 


VI] 


PARLAMENTARISMO  NOS  PAIZES  CREADOS 
\  CACETE  -  CONTRADICÇ  lo  ENTRE  OS 
NOSSOS  DISCURSOS  E  OS  NOSSOS  ACTOS 
MISÉRIA  I".  CRÁPULA  DO  PAIZ  —AS  ES- 
COLAS BUPERIORES  TRANSPORMAM-SE 
EM  OFFICINAS  D^NGENHEIROS  E  BACHA- 
RÉIS NEGOCIÁVEIS —O  AGIOTA  ,0  FAL- 
LADHR  K  o  VRTIClOLElRO  ,  CONSIDERA- 
DOS OS  TRÊS  RATAS  DA  SITUAÇÃO  POLI- 
TIC  V  ACTUAL  'Tl, MIN  LNC1  \  SOCIAL  DO 
AGIOTA  :  QUEM  N  LO  Ê  D<  i  BURNAY,  Ê 
DO  FÓZ;  QUEM  NÃO  É  I»1»  HERSENT,  !::  DO 
BARTISSOL  — AS  GORGETAS  POUR  LA 
REUSSITE     DE     L'AFFAIRE    —  DELIQUES- 

<  IA  D  \  VEDA  PORTUGUEZ  \.  NOS  SEUS 
DUM. ms  LSPECTO  -  D  \  CONS  3IENC1  \  E  DA 
MORAL  — DESPREZO    PUBLICO  POR  TODOS 

COMMENSAES  DA  ORGIA  POLITICA — 
OS  QUE  SE  DESPEDEM,  COMO  VICENTE 
MONTEIRO  E  CONSIGLIERI,  SÃO  APUPADOS 
—  PAPEL  POLITICO  DO  REI:  A  SUA  tNTEL- 
LIGENCJ  \.  A  se  \  ESPERTEZ  L,  \  SUA  M  \- 
NEIRA  DE  C  LPTAR  PERFIL  D  \  H  \INIIA 
PIA,  E  SU  \  M  LR  LVILHOS  L  [NTUIÇÃO  D  \ 
M  LGESTADE  MODERN  \  EM  19  DE  M  LIO 
MARIA  PI  \   E  FONTES    FOR  LM    OS    UNI 


VIII 


COS  MESTRES  B  AMIGOS  DO  REI  —PORTU- 
GAL GOVERNADO  PELAS  ESPOSAS  E  FI- 
LHAS DOS  MINISTROS  —  UM  CONSELHO 
DISTADO  MEMORÁVEL—  AJTN AL  D.  LUIZ 

FOI  BOM  OU  MAU?  — APOLOGO  DA  CAIXA 
DE  MUSICA  NA  CAIXA  DE  CHARUTOS  —  O 
QUE  FICA  D'ESSES  28  ANNOS  DE  REINADO 
—  O  REI  NOVO  —  O  PRÉSTITO  FÚNEBRE 
NA  ESTRADA  DE  CASCAES  A  LISBOA,  SOB 
A  NOITE  —  A  Cl  I  E(  1  A  DA  AOS  JERONYMOS  : 
ASPECTO  DO  TEMPLO— O  TRUC  DA  CAU- 
DA —  CONCLUSÃO. 


3| 


5(  rgio,  primeiro  violoncello  de  S.  Carlos, 

[ar  concertos  todas  as  noites  a  um  café 

de  fadistas  da  ma  Fernandes  da  Fonseca,  an- 

Carreirinha  do  Soccorro,  mesmo  defronte 

da  caixa  do  Príncipe  Real. 

É  d'estes  já  raros  artistas,  irregulares  por 
herança  mórbida,  que  passam  a  vida  a  cortar 
as  amarras  que  prendel-os  possam  a  todas  e 
quaesquer  conveniências  da  vida  social,  e  cuja 
acuidade  esthetica  se  afusa  na  proporção  da 
ausência  do  senso  moral,  que  dir-se-hia  con- 
trariar-lhes  as  rêveries  do  seu  mundo  interior. 
■  de  povo,  alto,  secco,  avermelhado  d*al- 
cool,  e  com  uma  pequena  cabeça  de  sargento 
velho  d'opera  cómica,  Sérgio  é  o  typo  d'< 
decilitreiros  que  monologam  de  noite  pelas 

2 


K)  os  GATOS 

ruas,  ás  esquinas  ladeirentas,  às  portas  das 

escadas,  diante  dos  monumentos  e  dOS  carta- 
zes, pondo  uma  silhouette  hoffmanica  na  bana- 
lidade do  fora  de  horas  de  Lisboa. 

Jamais,  na  sua  vida  de  violoncellista  raro, 
ora  sollicitada  pelas  deferências  dos  convictos 
admiradores  da  sua  arcada,  ora  pela  blandicia 
d'esses  parvenus  que  só  querem  tirar  da  convi- 
vência com  músicos  e  pintores,  meros  partidos 
scenicos  de  dandysmo. . .  jamais  elle  conseguiu 
moedar-se  ás  formulas  artificiaes  da  correcção, 
sem  a  qual  o  mais  bello  espirito  se  arrisca  a 
passar  nos  saiões  por  um  eivado,  entre  os 
desdéns  das  mulheres,  as  jugatas  dos  sport- 
men,  e  a  iria  insolência  dos  velhos  pilotos  do 
cotillon. 

Assim  como  Heine,  que  só  admittia  uma 
classificação  de  plantas— as  que  se  comem  e 
as  que  se  não  comem  —  Sérgio  só  conhece  dos 
homens  duas  cathegorias:  com  gravata,  e  sem 
gravata. 

No  primeiro  grupo  põe  elle  os  seres  infe- 
riores, os  pedantes,  os  márOtOS,  os  intrujões, 
os  idiotas  e  OS  vadios:  sendo  no  segundo  on- 
de, esquadrinhando  bem,  ainda  se  pôde  en- 
contrar gente  capa/. 


os  GATOS  I  [ 

l»a>  suas  relações  com  os  gravatas,  o  artista 
não  tem  tirado  senão  desaires,  massadas  e  sem- 
saborias,  e  por  principio  aborrece-os,  muito 
embora  não  recuse  a  mão  a  vários  que  lhe  es- 
tendem as  (Telles, —  do  'i1"'  vae  logo  desin- 
fectal-a  com  abiuções  de  canna  branca,  ao 
i  alcoólico  mais  a  geito. 


ÍBÍ 


guindo  esta  lei  zoológica  das  espécies 
jantes  descriminadas  segundo  o  trapo  que 
trazem  ou  não  trazem  lacado  á  volta  do  pes- 
coço, que  Sérgio  depois  de  ter  bastos  annos 
convivido  com  pessoas  de  sociedade,  mercê  do 
seu  togar  na  orchestra  de  S.  Carlos,  i  refere 
i  descer  ás  baixas  espiraes  de  gente  subal- 
terna, onde  os  seus  arrazoados  impressionam, 
iis  ditos  teem  echo,  e  o  seu  divino  instru- 


|  -J  os  GATOS 

mento  todas  as  noites  o  salva,  pela  virtuosidade 
magnifica  do  estro,  do  grotesco  naufrágio  de 
uma  eamoeca  apanhada  Com  grogs  offerecidos 
—  como  remember  de  preito  — pelos  admira- 
dores em  mangas  de  camisa  e  tamancos,  que 

para  OUVil-O  locar  vem  ao  Café  Iodas  as  noiles. 
Ás  oito  horas,  QO  corredor  estreito  e  com- 
prido que  é  a  sala  do  botequim  de  fadistas  que 
lhes  disse,  todo  occupado  com  duas  filas  de 
mezas  onde  os  freguezes  abancam,  sentados 
em  mochos  de  pau,  para  saborear  a  pequenos 
goles,  uma  cerveja  que  parece  feita  d'ourina 
ãlbuminurica,  ou  qualquer  chávena  d'esse  cate 
aegro  e  pegajoso  que  a  .Mouraria  designa  pelo 
pittoresco  nome  de  carocha;  ás  oito  horas  uào 
ha  no  botequim  um  logar  único,  devoluto.  Por 
uma  rotula  de  dois  pórticos,  ao  fundo,  inter- 
calada de  prateleiras  de  garrafas,  d'onde  se 
franjam,  por  transparência,  fogos  de  rubis  de 
Greme  rosa  e  d'aguardente  de  ginjas,  esmeral- 
das de  Kermann,  grandes  topasios  de  licor  de 
canélla  e  tangerina,  pousa  o  busto  docafézeiro, 
em  camisola,  um  gordanchudo,  barbaceno  e 
alvar,  que  trata  a  freguezia  por  gajos,  e  coça 
as  piugas  nos  entreactos  da  confecção  dos  ca- 
pilés. De  roda,    outros  gallegOS  ajudam,  indo 


(is    (,  \'|US  18 

do  fogão  para  <>  balde  das  lavagens,  da  gaveta 
das  colheres  para  os  trés-fonda  da  baiuca,  d'on- 
de  aos  intervallos  de  silencio  vem  um  guin- 
char d'enormes  ratazanas.  Nas  paredes,  qua- 
drinhos de  mulheres  offerecendo  os  seios  á 
sucção  de  quem  nas  observa  —  bicos  de  gaz 
flambando  s*b  tulipas  de  loiça  pendentes  do 
taboado ;  e  por  entre  as  lilás  de  bancos  onde 
mal  cabe  a  perna  do  moço  que  foz  o  serviço, 
atravessa  de  quando  em  quando  uma  espé- 
cie de  rodeuse  da  rua  Suja,  chuchada,  vestida 
de  branco,  '•«nu  tamancos  nos  pés  e  lesmas 
de  cabello  ruivo  sobre  a  testa. 

—  Adeus  ó  avem ! 

—  Tó,  lambedor!  retruca  ella. 
Emquanto  a   sala,  súbito   hillariada   por 

aquelle  epitheto  de  vicio,  rompe  em  dichotes 
r  pisos  sobre  o  escadeirado  cocheiro  de  noite 
que  a  mulher  assim  classificou,  e  que  em  des- 
forço promette  rompcr-lhe  a  peida  com  chuli- 
|,,i.  em  a  apanhando  á  gandaia,  n'outro  sitio. 


li  os  ga ros 


-*^M 


Penetrando  a  garganta  estreita  do  café,  to- 
pa-se  á  esquerda,  n'uma  espécie  de  púlpito  de 
ripas,  um  piano  alugado,  comi  o  seu  indispen- 
sável cornaca,  o  pianista,  homem  balofo  e  d'o- 
culos,  os  queixos  presos  n'win  açaimo  de  bar- 
ba côr  de  coiro,  e  em  ioda  a  figura  a  desillu- 
são  d'um  professor  primário  demittido :  e  logo, 
entre  os  principaes  do  café,  typos  de  coco,  a 
unha  em  Indo,  o  olho  engenebrado,  segue 
iuiiiki  cadeira  d'almofada,  o  violoncellista.  En- 
tre violoncello  e  piano,  primeiro  que  o  con- 
certo parla,  ha  sempre  altercações  roufenhas 

sobre  0    bocado    a    lorar,  e  a  pouca  execução 

do  troca-teclas  encarregado  de  fazer  de  roda 
á  melodia  de  Sérgio,  o  acompanhamento. 
—  Homem,  diz  este,  apenas  o  pianista  zoa 

na   sala   OS    primeiros  compassos :   isso   não  é 


os  GA  ros 


15 


musica,  é  um  boi  •  i1"'  saltou  a  trincheira  do 
sol !  Ora  queira  embolar-se,  amigo  Pratas,  e 
fazer  lavor  de  seguir  o  que  lá  está. 

Lá  recomeçam.  <>  outro,  triste,  com  um  ca- 
chimbinho  de  raiz  posto  entre  os  dentes,  bebe 
um  trago  de  pintada  lentamente,  e  vè-se-lhe 
Q0  ;1||(,  d0  craneo  a  coroasinha  de  calva  bran- 
quejando, como  cortada  no  polo  d' uma  melan- 
cia sem  chorume. 

—Toquem  o  Chegadinho  faz,  faz,  diz  uma 
voz,  quando  o  pianista,   preoccupado  d'arte, 
faz  correr  uo  teclado  a  melodia  do  Fausto,  ua 
Ivermesse.   E  a  mão  de  Sérgio,   tremula   de 
çs,  dando  saltos  macabros,  cora  as  pontas 
dos  dedos  choreicos,  sobre  as  cordas,  súbito 
lixa-sc,  lança  uma  arcada  profunda,  decisiva, 
uitida  c  de  mestre,  uma  d'estas  arcadas  fris- 
sonantes,  onde  vão  quarenta  annos  de  musica 
e  d'ouvido,  d'aspirações,  de  sonhos,  de  traba- 
lhos, e  que  pela  expressão  pathetica  deixaram 
Ser  vibrações  de  cordas  sobre  cordas,  se- 
uâo  vozes  partidas  «I"  coração  da  angustia  hu- 
mana, Deus  o  sabe!  para  a  névoa  dos  proble- 
mas eternos  e  insondáveis. 

É  então  um  momento  typico,  oa  rastilhada 
,1,.  fumadores  e  bebedores  que  estão  confusa- 


16  os  GATOS 

mente,  emborcados  sobre  as  bancas  da  alfurja, 
bovinos,  broncos,  e  trescalando  o  rapozinho 
dos  seus  corpos  tisnados  pela  mnrraça  do  suor 
c  das  vestes  de  trabalho.  0  calor  asphixia,  um 
ralo  passa  nas  respirações  sustadas  para  ou- 
vir: e  cada  vez  mais  a  fumarada  dos  cachim- 
bos vae  relegando  para  planos  distantes,  os 
grupos  de  bebedores  que  estão  ao  fundo,  a 
rotula  onde  o  cafézeiro  entrega  as  bandejas  e 
dá  trocos,  e  a  encardida  silhouette  dos  mocos 
da  rosinha,  de  quando  em  quando  mordida 
pela  chanima  da  fornalha,  sobre  que  pulam,  em 
caldeiras  de  cobre,  cachões  de  beberagens.  Se 
alguma  voz  então  corta  o  silencio,  logo  as  ca- 
beças todas  se  levantam  n'mn  shul  !  de  cólera 
egoisla,  que  fecha  a  bocca  dos  mais  audacio- 
sos; e  o  violoncello  cala-se  ainda,  á  espera  de 
que  |iasse  na  sala  o  primeiro  calafrio  ^impa- 
ciência, iodo  elle  banhado  u'essa  onda  de  (luido 
emocional  que  cola  cTalma  a  alma,  engrossado 

pela  nervosidade  dos  mais  fraCOS,  e  revolu- 
teando d'entorno  ;i  indifferença  dos  rudes,  té 
conquistal-a  e  fundil-a,  como  uma  cera  molle, 
sob  a  conturbadora  volúpia  do  seu  spasino. 

rànlim  lá  cessa  o  piano  os  latidos  do  acom- 
panhamento: a  \o/  de  Sérgio  regouga  ainda 


os  GATOS  17 

contra  o  pianista  algum  dichote  verberando  a 
desfilada  pastosa  dos  acordes,  que  elle  com- 
para a  grasnidos  de  patos,  d' uma  poça  — 
quando  bruscamente,  a  melodia  dovioloncello 
esboça  as  primeiras  volutas,  pelo  ar '. 


4E 


li  vocês  repararam  porque  processo  os 
grandes  músicos  conseguem  fascinar  um  au- 
ditório, seja  d'artistas  ou  de  carregadores,  de 
cretinos  d'asylo  <>u  d'animaes  de  jaula,  carni- 
ceiros? Coisa  singular!  uão  é  tanto  pelos  ou- 
vidos que  essa  musica  dos  grandes  auditivos 
qos  doma,  é  pelos  olhos.  Ha  sons  <\\w  ferin- 
do o  tympano,  nos  fazem  gosar,  sem  duvida, 
mas  só  pela  vibração  rythmada  que  produ- 
zem, localmente.  Uma  tal  musica,  ao  ir  do  ou- 
vido ao  cérebro,  faz-se  emoção  por  certo,  mas 


IS  os   GATOS 

não  tem  poder  para  evocar  dentro  de  nós  es- 
tados plásticos,  sol»  cuia  martyrisante  acuida- 
de   OS   OUtrOS    sentidos    visionem   a   porção  de 

goso  que  a  alma  assimilou.  Copulado  por  cila, 
o  espirito  permanece  infecundo,  e  a  reminis- 
cência ao  repassar-lhe  os  bocados  transcenden- 
tes, não  sente  a  necessidade  de  os  repelir  em 
certos  e  determinados  togares,  ou  sob  o  domí- 
nio de  certos  e  determinados  estados  psycho- 
logicos. 

É  esla  a  musica  da  cabeça,  a  musica  escri- 
pta  ou  executada  sem  dor,  feita  pelo  maestro 
de  cor,  c  interpretada  pelo  artista  com  sabe- 
doria, mas  sem  alma.  Sempre  que  releio  Mas- 
senet,  ou  nico  tocar  o  Pablo  Sarrasate,  o  inte- 
resse domina-me,  mas  sem  nenhuma  espécie 
d'ideaçã0  embevecida.  Aipiiilo  será  bem  leito, 
ou  sábio,  correcto,  inimitável  :  emlanlo  eu  nào 
consigo,  durante  a  audição,  isolarr-me  de  mim 
próprio,  amordaçar  as  aniraalidades  do  meu 
ser:  e  aconteceu-ine  ter  fome,  ouvindo  Sarra- 
Sate  locar  pedaços  de  lleriol.  .  . 

Oh!  mas  outra  musica  lia  de  que  o  ouvido 
é  mero  receptáculo  instantâneo,  transmissor 
mudo;  outra  musica  que  a  imaginação  visual 
plasticisa  rápido,  em  imagens,  quasi   «pie  ia 


I»v     ,,   M'I)S 


19 


,-i  dizer  dotadas  d'existencia,  imagens  que  se 
vêem,  si>  palpam,  se  enlaçam,  soffrem  e  es- 
morecem, como  essas  apparições  translúcidas 
que  os  mediums  lheosophos  desagregam  de  si, 
e  deixam  no  ar,  pairando,  em  linhas  phos- 
phorentes,  feitas  d'um  íluido  astral,  e  repro- 
duzindo aos  olhos  d'um  circulo  de  crentes,  a 
physionomia  ou  a  figura  da  creatura  ausente 
ou  morta,  que  evocámos. 

Extraordinário  pheuomeno,  não  só  da  cor- 
respondência, mas  da  substituição  inconsciente, 
em  dadas  crises  psychicas,  d'uro  sentido  por 
nutro,  sem  ruptura  do  satuo  physiologico ! 

Os  contemporâneos,  Tschaikowski  e  Gou- 
noil  aparte,  substituíram  o  calculo  integral 
àquelle  divino  não  sei  que,  que  presta  ás  pa- 
ginas de  certos  velhos  symphonistas  a  melan- 
cholia  theogonica  de  Jehovahs  foragidos,  que 
soluçam.  A  musica  actual  é  cortez  e  fria,  mes- 
mo n  i  violência,  e  é  necessário  tornar  ã  mar- 
cha fúnebre  de  Beethoven,  na  Symphonia  li  - 
ir  exemplo,  á  walsa  de  Berlioz,  na 
Dainnação  do  Faurto,  e  âquella  melodia  rara 
de  violino,  que  anda  o  primeiro  tempo  no 
quinteto  celebre  de  Mendelssohn,  pr'a  smtir 
bater  o  c  'ii  plena  musica  visual,  pias- 


20  os  «.aios 

ticisante  —  d'essa  que  tem  a  imagem  como 
poder  supremo  d'expressào. 

Quem  alguma  vez  escutou  a  walsa  dos 
sylphos,  tocada  cm  surdina,  numa  orchestra 
de  mestres,  não  mais  esquece  a  paysagem  lu- 
nar que  viu  desenrolar-se-lhe  deante,  á  mar- 
gem (ruma  ribeira  trágica  e  (tarada,  onde  os 
cannaviaes  se  sublinham  apenas  na  noite,  em 
tons  (Ta/ul  e  phosphoro,  muito  vagos,  e  o 
diabo  passa,  de  pescoço  estendido,  as  azas 
lassas,  de  cocaras  quasi,  aos  pulos  sobre  a 
roca,  como  um  griffo  caduco  á  procura  d'al- 
ii ias  que  escorchar. 

E  sem  rumor,  d'entorno  aos  troncos,  ge- 
leiras, penedias,  começam  a  passar  de  vagar 
rondas  de  gnomos,  leves  como  luzeruas,  em- 
bryões  de  seres  inutihsados  na  officina  de 
Deus,  fugidos  do  barril  dos  restos  da  creaçâo, 
correndo  o  mundo,  incorpóreos  e  maus,  a 
impulsionai-  os  crimes  e  as  doenças...  ea 
cadeia    dYsses    pequenos    monstros    expirala, 

n'uma  dança  infectante,  ora  quebrando  a  bicha 

das  suas  formas  deliquesrentes,  deslazendo-se 
na  reverte  da  noite  hvperborea,  incognoscível, 
onde  as  coisas  lêem  formas  de  bailada  —  mm 
voltando   com   fermentações  de    larvas,   n  uma 


OS  G  MOS 


-21 


furia  ,|r  viver  febricitante, e  apenas  rythmada 
pelo  ting-ling  das  gottas  cahidas  da  folhagem. 
i;,.,n  depressa,  á  medida  que  o  lento  se  co- 
,,„.,..,  a  caracterisax  nos  violinos,  o  nosso  ou- 
vido pára,  toda  a  espécie  de  som  parece  que 
morreu,  mas  os  sentidos  fundem-se-nos  n'um 
único,  a  visão,  e  eil-a  seguindo  no  ar  8  turbi- 
lhão diaphano  ^espectros,  que  elia  invocou, 
,,,„•  cambiantes,  com  uma  sensação  de  relevo 
quasi  physica,  e  uma  magia  d'assombro  ex- 
traordinária! 


aJ^ 


Mas  assim  como  as  evocações  dos  mediums 
querem  penumbra  e  silencio  pr'a  travestirem 
materialisações  involucraes,  assim  as  imagens 
acordadas  pelos  músicos  reclamam  para  se 
produzir,  a  ausência  de  suggestões  que  des- 
viem o  espirito,  a  attenção,   d'outras  mate- 


--  OS  GATOS 


rias.  Um  salão  de  concerto,  com  a  polychromia 
dos  trajos,  as  distracções  da  belleza  feminina, 
a  affectação  dos  typos,  e  a  chateza  das  opi- 
niões pedantescamente  alardeadas,  raras  vezes 
'''  amphitheatro  attinente  á  transformação  do 
phenomeno  acústico  em  luminoso:  Tem  por 
demais  motivos  irritantes,  vindos  das  luzes, 
das  cores,  da  permutta  das  ideias  e  da  inten- 
sidade rubra  dos  desejos,  que  entram  em  nós 
'•nino  agentes  corrosivos  da  sutilima  trama 
mental  sob  que  poderia  dar-se  a  transposição 
sensória  que  lhes  disse. 

Tam  pouco  o  isolamento  absoluto  convém 
á  materialisação  (appliquemos  a  palavra  dos 
theosophos)  de  certos  trechos.  Meyerbeer  por 
exemplo,  não  é  musica  paca  se  ouvir  sósinho 
em  parte  alguma.  Pelo  contrario,  Ghopin,  que 
seria  ridiculo  de  dia,  ao  ar  livre,  readquire  na 
alma  o  sen  prestigio  doloroso,  quando  locado 
a  deshoras,  n  nina  alcova  de  mulher,  sobre  um 
jardim  d'esguias  arvores,  á  lua. 

Já  me    lenho  snrpreliendido  a  pensar  se  a 

questão  da  receptividade  psychica  para  a  mu- 
sica não  será  exclusivamente  um  caso  de  mo- 
mento. 0  som  (l'imi  harmónio,  por  exemplo, 
tocado  na  rua  por  um  cavallariço  estúpido  que 


OS    GATOS  -•"> 


passa,  consegue  às  vezes  orvalhar  de  sonho  a 
melancholia  d'um  artista,  cuja  nervosidade  em 
outras  boras  se  permittiria  desdenhar  ;i  mais 
correcta  musica  d'um  quarteto  de  mestres  eu- 
ropeus. Um  andaluz  extasia-se,  por  exemplo, 
como  qualquer  homem  do  uorte,  ante  a  chorai 
de  Luthero,  entoada  a  plenas  vozes  por  uma 
bancada  d'estudantes  teutões  d'olhos  azues :  e 
ril-o  abysmado,  elle  um  fogoso,  que  tem  sol 
liquido  por  sangue,  em  tudo  quanto  ha  de 
profundo  e  recôndito,  de  reflectido  e  de  sério, 
u'aquella  musica  de  bruma,  crepusculisada 
em  presentimentos  do  aurddá^  tão  peculiares 
ás  raças  metaphysicas.  E  eu  já  vi  unia  aldeia 
bronca  chorar  toda,  cavadores  e  mulheres  do 
campo,  ao  som  da  Ave-Maria  do  OtheUo  que 
ama  senhora  cantou  no  coro  d'uma  vetusta 
igreja  alemtejana. 

Logo,  ii. 'In  sempre  a  espécie  d'instrumento 
que  transmitte  a  musica,  nem  sempre  a  raça 
de  que  o  auditor  faz  parte,  aem  sempre  a 
educação,  nem  sempre  o  meio.  são  factores  in- 
dispensáveis á  justaposição  de  tal  trecho  a  tal 
sensibilidade. 

A  razão  da  idolatria  havida  por  certos 
compositores  e  instrumentistas,  está  oa  magia 


os  GATOS 


com  que  o  génio  (Telles  consegue  vir  identifi- 
car-se,  atravez  dos  séculos,  ao  nosso;  está  na 
eloquência  com  que  esses  grandes  consolado- 
res ,lns  contam,  pela  melodia  ouvida,  a  senti- 
ble™  pathetica,  a  felicidade,  a  negação,  o 
desespero,  que  contravieram  em  nós  numa 
hora  apathica  em  que,  sem  elles,  não  teríamos 
voz  com  que  reagirá  enervancia  d'aquelles  es- 
tados íntimos,  e  psychologia  ou  lucidez  com 
qae  julgal-os— está  na  bonhomia  emfim,  na 
sensitividade  rara,  com  que  elles  gravaram  na 
nossa  reminiscência,  para  sempre,  esses  esta- 
dos, com  o  fealhe  doce  d  uma  medalha  votiva  á 
quintessência  das  nossas  alegrias  e  das  nossas 
dores.  Cada  hora  da  vida  exige,  para  apasi- 
guar-se,  uma  musica  diversa,  como  cada 
enfermidade  reclama  uma  diversa  therapeu- 
tica.  A  alma  tem  crises,  resolúveis  somente 
aos  encantamentos  (ruma  ária  lenia  de  Glueck, 
sopros  d'epopeia  que  reclamam  Wagner  como 
interprete,  manhãs  de  névoa  em  que  lhe  é  -ra- 
lo exhalar-se  entre  uma  symphonia  de  Beetho- 
ven,  c  ihedios  cor  dé  tinta  nankin,  obsessões 
canalhas,  cabotinagens,  que  lhe  fazem  bater 
o  pé,  nada  menos  que  a  provocar  galopes 
d'Offenbach. 


os  gatos  ->; 


20 


É  por  esta  razão  que  num  concerto  publi- 
co, feito  de  bocados  heterogéneos,  apenas  se 
''  sensível  ao  trecho  que  vem  condizer  ao  nosso 
momento  psychologico,  e  que  o  mesmo  con- 
certante,  ouvido  .-,,111  indifferença  ou  enfado 
d'outras  vezes,  súbito,  ama  uoite,  se  aos  re- 
vela sob  um  aspecto  passional  que  nunca  lhe 
havíamos  podido  escortinar. 

Já  vocês  repararam  que  uma  ceia  com  mo- 
ças, n'um  cuté  de  rapazes,  pede  o  fedo,  e  que 
nâo  ha  rapariga  nenhuma  com  derriço,  que 
Qão  foque  ih.  piano  a  serenata  «Ir  Schuberl  ? 
Conhecem  por  certo  ;i  historia  do  general  Val- 
adas, commandante  <l;i  divisão  militar  «lo 
Alemtejo.  Homem  dureiro,  com  atonias  de 
tripa  superiores  talvez  ás  suas  atonias  de  cé- 
rebro, acontecia-lbe  fazer  das  defecações,  ver- 
dadeiros partos,  tamanhas  dores  lavravam  qo 
guerreiro,  ao  alijar  das  primeiras  cibalas  ma- 
linaes  ! 

Foram  contar  ao  arcebispo  de  Perga  estes 
martyrios;  e  monsenhor  Nunes,  verborrheico 
preclaro  «lo  púlpito  eborense,  sabendo  o  que 
custa  teruma  pessoa  vontade  e  não  poder,  vae 
•nselha  pr'aquilIo,  nada  menos  do  que  o 
hymno  da  Restauração. 


■j 


26  OS  GATOS 

Ali,  que  remédio!  Todas  as  manhãs  vaca 
charanga  em  grande  uniforme  cornetear-lhe  ao 

reverso,  o  drástico  famoso. 

Lusitanos  é  chegado 

O  dia  da  Restauração. . . 

c  ha  sele  mezes  que  por  efflcacia  d'elle  o  ge- 
neral remoça,  que  é  um  louvar  á  tripa...  ca- 
gaiteira.Em  Évora,  agora,  quando  ao  primeiro 

sol  o  forasteiro  intrigado  ouve  os  acordes  do 
resolvente  canto  patriótico,  ha  sempre  um  ebo- 
rense amável  que  lhe  explica  a  opportunidade 
d'essa  musica,  que  (ruma  banda  da  fronteira 
foz  fugir  de  pavor  os  castelhanos,  e  dar  de 
corpo  aos  generacs  — da  outra  banda. 


OS  GATOS  27 

Na  existência  actual  está  reservado  â  mu- 
sica pouco  mais  ou  menos  o  papel  que  a  reli- 
gião teve  na  antiga,  tia  árias  que  andam  ha 
séculos,  incomprehendidas,  pelo  mundo,  á 
procura  d'um  estado  affectivo  ou  intellectual 
qu'interpretar,  assim  como  ha  espiritos,  tris- 
tezas, sonhos,  que  ainda  não  acharam  musica 
que  lhes  sirva  de  lenith Pevangelho.  Evi- 
dentemente que  o  drama  visual  desenrolado 
aos  olhos  d'um  grupo,  pela  audição  d'um  nu- 
mero de  musica  escolhido,  raro  é  para  todos 
os  dilettantes  o  mesmo,  visto  como,  mesmo 
nos  phenomenos  ópticos  directos,  a  sensação 
chromatica,  posto  que  idêntica  em  todos,  nun- 
ca pôde  ser  mathematicamente  igual  de  retina 
para  retina. 

Ora,  são  os  infinitamente  pequenos  (Testas 
differenças  de  sensação  que  constituem  a  ori- 
ginalidade individual  dum  temperamento,  e 
elles  que,  no  campo  esthetico,  evocam  ás  \e- 
l'uin  mesmo  motivo  fixo,  qualquer  que 
elle  seja,  as  comprehensões  artísticas  mais  an- 
tipodaes. 

Todos  temos  ouvido  a  ária  das  Jóias  a  seis 
ou  oito  prima-donas  de  génio,  a  Patti,  a  Sem- 

brich,  a  Ti lorini,  a  Tetrasini,  a  Ván-Zandt, 

• 


js  os  GATOS 

a  Nevada  e  a  Devriés...  Digam-me  se  já  al- 
guma d'ellas  lhes  reminiscenciou  as  outras,  na 
interpretação  d'aquella  maravilha.  E  todavia 
o  respeito  ao  escripto  do  maestro  em  todas 
subsiste:  lá  está  a  cinzelura  para  assim  dizer 
arestal  do  relevo  musico  que  Gounod  lhe  deu, 
as  cadencias  que  elle  prefere,  a  nitidez  meló- 
dica que  tanto  o  caracterisa.. .  Só  a  alma  dó 
canto  é  diversa,  porque  essa  está  na  cantora, 
e  não  se  impõe. 

Com  os  músicos  instrumentistas  succede  o 
mesmo.  A  musica,  sendo  uma  linguagem  uni- 
versal i»«>sia  ao  serviço  d'uma  sensibilidade  uni- 
versal, logo  implicitamente  deixa  prever  como 
essa  linguagem  possa  por  na  mesma  phrase, 
conforme  a  pessoa  que  falia,  e  a  quem  se  fal- 
ia, cambiantes  de  ternura,  de  mysterio,  d'iro- 
nia,  de  brutalidade  ou  de  franqueza,  alterna- 
tivas—questão d'intuito  moral,  de  tom,  qi 

mais  grosseiro  instrumento  dá,  quando  vibra- 
do por  algum  grande  artista  em  inspiração. 
Porque  emfim,  interpretar  uma  obra  d'arte  é  tra- 
duzir em  vulgar  uma  sensibilidade,  dar  reper- 
cussão dentro  de  nós  a  unia  alma  idêntica  :  e 
uão  se  imagina  como  o  violoncello  de  Sérgio 
catechisa  a  alma  d'esses  ignorantes  plebeus, 


OS  GATOS  -_(| 

pela  emoção  pathetica  do  som,  que  lhes  pertur- 
ba a  rudeza  em  não  sei  que  melancholias  an- 
cestraes ! 

Na  primeira  noite  em  < { 1 1 < •  cu  fui,  vestido 
'l'1  saloio,  ao  botequim  de  fadistas  da  Carreiri- 
uli;i.  aconteceu-me  ouvir-lhe  a  serenata  do  Faus- 
to, por  uma  forma  que  jamais  na  minha  vida 
esquecerei. 

Entrara  no  caffé  uma  espécie  de  carreiro 
escanhoado  como  um  cónego,  reboludo  de 
músculos,  sanguíneo,  e  debordando  apetites 
sensuaes  :  d'estes  homenzarrões  de  Torres  que 
vem  trazer  vinho  cm  carros  o1'»  Alemtejo,  e  le- 
vam cm  deboches  a  noite,  pelos  alcouces  e  caffes 
musicaes  d'entre  a  Magdalena  e  o  Capellão. 

<>  homem  entreabriu  <»x  batentes  á  j<>ur  do 
botequim,  espreitara  um  momento,  de  charu- 
to na  bocca,  e  com  um  ar  decidido  dirigira- 
se  a  abancar  na  meza,  ao  pé  da  porta  ;  quan- 
do ai»  reparar  que  alguém  ficava  entre  portas, 
perplexa,  tornou  a  erguer-se,  vindo  parlamen- 
tar rã  fora  da  baiuca.  Cinco  minutos  depois 
voltava  elle,  conduzindo  ;i  força  quasi,  com 
palavras  mal  firmes,  para  um  logar  na  som- 
bra do  piano,  ama  saloiasita  receiosa,  toda 
confusa  das  ^-uir^  avinhadas,  da  incidência 


30  OS  GATOS 

das  luzes,  e  da  audácia  de  se  aventurar  assim 
innn  sitio  prohibido.  Os  dois  sentaram-se.  E 
ella  enfesada,  tremula,  n'um  delírio  de  corça 
surprehendida,  procurava  apagar-se  mais  na 
sombra  do  seu  canto:  linha  um  saiote  azul 
de  chita  pelos  hombros,  a  estamenha  amarel- 
la,  escorrida  ás  ancas,  debruada  de  preto  e 
muito  cúria,  o  lenço  atado  pelas  duas  pontas 
tendidas,  sobre  a  testa:  e  em  toda  a  sua  ado- 
lescência de  lavadeira,  a  exasperada  virgin- 
dade d'uma  cadella  ciosa  que  fugiu  da  estala- 
gem, attrahida  pelo  bulicio  orgiaco  do  bairro, 
emquanto  a  mãe  Bicava  a  roncar  talvez  sobre 
a  tarimba,  entre  trouxas  de  roupa,  ao  pó  dos 

burros. . . 

Primeiro  (pie  o  homenzarrão  conseguisse 
fazer-lhe  aceitar  qualquer  bebida,  foi  um  suor 
d'angustia,  uma  canceira,  durante  a  qual  umas 
poucas  de  vezes  a  rapariga  fez  com  a  espinha, 
o  sobresalto  ascencional  de  quem  se  vae  er- 
guer, para  outras  tantas  a  fascinação  do  ma. 
eho  a  esganar  alli  d'encontro  ao  muro,  sob  a 

avidez  sardónica  dos  homens,  e  as  delirantes 
febres  da  copula,  (pie  Ih."  vibravam  todas  no 
typo,  com  uma  espécie  ^animalidade  louca  e 
irresistivel. 


OS  GATOS  8i 

Erafim,  o  rapaz  trouxe  aguardente,  caffé. . . 
e  o  carrejão,  apenas  as  chicaras  foram  cheias, 
vasoo  ih»  d'ella  umcopasio  cheiosinho  d'aguar- 
dente.  Todo  o  seu  fito  por  certo  que  era  ir 
aquecendo  o  caco  á  raparigota  :  e  achegara-se, 
tocava-lhe  com  o  joelho  de  lado,  contra  a  coxa, 
tinha-a  mordida  em  diabólicos  circulos  de  pos- 
se, vivos  a  ponlo  que  ella  deixou  emfím  de  lhe 
poder  supportar  o  olhar  chispante,  e  começou 
de  responder  ás  suas  perguntas,  palavras  in- 
coherentes;    tremiam-lhe  as  pálpebras,   tre- 

iiii.ini-ll s  dedos;  os  cantos  da  sua  bocca 

tinham  paresias  spasmicas  p'ra  beijos,  e  den- 
tre as  roupinhas  do  vestido,  os  seios  erectis, 
crispados  como  ventres,  subiam  c  desciam, 
com  um  sofrear  toraxico  de  soluços. 


82  OS  GATOS 

A  brusca  entrada  (Telles  fizera  erguer  uma 
ou  outra  cabeça  preseatida.  o  cocheiro  de 
noite,  que  estava  em  successo  de  ridiculo, 
des'que  a  rapariga  ruiva  o  casquinara,  quiz 
descarregar  de  si  as  attençoes,  e  começou  a 
tossir  com  modos  ribaldeiros,  piscando  o  olho 
para  o  logar  onde  a  saloia  linha  ido  alojar-se. 
Já  de  todos  os  cantos,  os  risinhos  corriam, 
meias  vozes  no  ar  zombeteavam ;  e  por  ven- 
tura a  chacota  redundaria  em  apupo,  se  o  vio- 
loncello  de  repente  não  faz  voltar  as  attençoes 
dos  maltezes  para  os  primeiros  apellos  da  se- 
renata que  Mephistopheles  diz,  por  debaixo  do 
balcão  de  Margarida. 

É  uma  terrível  coisa,  vaga  a  principio, 
penetrante  e  glacida  a  um  tempo,  a  verter  de- 
líquio amoroso  por  todos  os  gemidos,  perversi- 
dade satânica  por  todas  as  rizadas,  c  com 
volutas  por  onde  sobem  e  descem  roldões  de 
desejos  e  ideias  que  contrastam,  injurias  que 
principiam  por  supplicas,  escarneos  que  vão 
acabar  cm  extasis  divinos. . . 

Assim  como  do  hymnario  dos  symphonistas 
primevos,  sobe  o  disco  vermelho  e  oiro  da 
aspiração  terrena  para  os  cimos,  assim  d'aquel- 
la  monstruosa  injuria  ^\o  diabo  á  innocencia, 


OS  C  IT8S  33 

uma  língua  de  víbora  rompe  a  imbuir  peço- 
nha em  iodas  as  almas,  do  preciso  instante 
de  as  prosternar,  estonteadas  de  paixão. 

M  i-  que  eternidade  viva  a  d'essa  musica  ! 
Que  intensa  alchimia  psychica  a  d'essa  sere- 
nata, de  cuja  fúria  corações  escarchados  pu- 
lam ainda,  com  virulências  d'amor  extra- 
animal  ! 

oh  como  o  possível  do  aú-ddá  estremece 
nos  sens  flancos,  e  como  os  seus  gemidos  fe- 
cundam a  culpada  terra  de  presagiosl  A  ras- 
tos do  seu  echo  vc-se  uma  aza  tremendo  ainda 
por  librar-se  aos  mundos  da  pureza,  quando 
já  um  caprino  pé  bate  compasso  ás  farandoles 
cynicas  do  vicio.  E  quando  finalmente  ella  se 
firma,  por  gradações  mal  sensíveis,  na  pertur- 
badora nupcia  d'aquelles  dois  sentimentos  an- 
úcos,  o  amor  e  <>  escarneo,  súbito,  o  ou- 
vido  perde  a  noção  do  instrumento  que  a 
nuança;  direis  que  falia  então  uma  bocca  de 

carne,  uma   DOCCa  de   mvllio,  em  que  um  dos 

lábios  fosse  d'anjo,  e  o  outro  lábio  tosse  de 

demónio. 


34  OS   GATOS 


E  começámos  a  revivera  scena  goethiana,o 

bandolim  do  diabo  desviando  Grctchen  da  pre- 
ce, a  rua  esconsa,  de  cidade  medieva,  nevoen- 
ta a  deshoras,  cheia  de  silencio  c  casas  de  gra- 
nito, nichos  fumosos,  lampeões  na  agonia... 
e  o  tentador  concitando  a  donzella  a  vir  escutar 
■a  serenata,  tendo  Fausto  na  sombra,  e  sobre 
o  gorro  as  duas  pennas  de  fogo  a  esgrimirem 
no  ar,  como  floretes.  Aquillo  rápido,  febril, 
relampagueante,  como  uni  illusionismo  de  vida 
desenrolado  n  um  cérebro  cataléptico,  mas  in- 
tenso, inolvidável,  profundo,  porque  a  virtuo- 
sidade do  artista  era  um  completo  prodígio 
d'intuição  psychologica,  e  havia  no  jogo  d'elle 
um  mordido  pictural,  a  restituir,  formidável  e 
completa,  a  impressão  dramática  que  o  toma- 
ra, á  simples  evocarão  mental  d'aquella  scena. 


OS  GATOS  35 

Ini];i  a  serenata  nem  esboçará  os  primeiros 
lineamentos  melódicos,  já  um  movimento  d'in- 
teresse  friccionava  o  dorso  de  todos  aquelles 
ásperos  matullos. 

A  rudeza  faz  com  que  os  homens  do  povo 
tenham  o  espirito  em  fragmentos,  mesmo  ape- 
zar  do  coração  lhes  bater  d'uma  só  peça.  Pela 
quasi  completa  carência  «l»1  methodisação  no 
pensamento,  a  imaginação  d'elles,  como  a  ra- 
zão, tem  grandes  ooites,  e  só  por  instantâneos 
relâmpagos  fulgura.  É  ouvil-os  fallar,  reco- 
nhecer nas  conversações  de  muitos,  pontos 
foeaes  de  rectidão,  bom  senso  e  intelligencia, 
grandiosos,  finuras  singulares,  isto  per- 
dido n'umossuario  <lii  disparatados  e  confusos 
solliloquios. 

Que  admira  pois  que  um  homem  culto  vi- 
sione a  musica  d'um  jacto,  emquanto  o  popu- 
lar exige  tempo  e  suggestões  exteriores  auxi- 
liares para  fazel-o?  Quando,  depois  da  phrase 
ma  Vamico  favorito,  os  dedos  de  Sérgio  foram 
por  cima  dos  bordões  do  violoncello,  a  imitar  o 
rir  do  diabo,  com  uma  malignidade  humana 
incomparável,  no  calafrio  «los  corpos  sentiu-se, 
como  no  ralo  oppresso  dos  gorjas,  e  no  galgão 
dos  hombros  movidos  para  o  mesmo  ponto 


36  OS  GATOS 

da  sala,  sentiu-se,  dizia  eu,  que  um  grande 
esforço  mental  se  estava  fazendo  em  todos  os 

francos,  c  que  esses  homens  do  povo  tenta- 
vam esfarrapar  interiormente  um  grande  cer- 
raceiro,  para  attingir  a  nitida  visão  d'essa  tra- 
gedia ({ue  a  mephistophelica  musica  interpre- 
tava. 

Do  que  elles  se  haviam  apercebido  logo  foi 
do  cynismo  da  gargalhada  lívida,  intercadean- 
do-se  aos  haustos  de  horrivel  magua,  que 
põem n'aquelle  canto,  como  uma  dolorosa  som- 
bra no  escarneo.  E  com  os  cotovellos  na  ban- 
ca elles  torciam-se,  pedindo  suggestões  ini- 
ciaes  d'onde  partir  pr'a  visualisação  :  e  bem 
depressa  uma  loucura  phosphorejava  nos  olhos 
de  todos;  raivas  nervosas  quebravam  as  unhas, 
como  animaes  de  preza,  d'encontro  á  impotên- 
cia do  esforço — até  que  de  repente  um  velho 
cor  de  bronze,  todo  rasgado  no  fato  como  um 
doido,  se  ergueu  de  sobre  o  banco  em  que 
estivera,  c  meio  bêbedo,  circumvagando  os 
olhos  (Vagida,  deu  com  o  idyllio  da  raparigo- 
ta  e  do  carreiro,  perdidos  na  sombra  que  o 
piano  deitava  sobre  o  canto  de  mesa  adjacen- 
te... 

O  rompante  d'esse  carregador  enorme  e  ju- 


os  GATOS  37 

piteriano,  levara  na  direcção  do  sen  olbar,  os 
mais  olhares ;  «'  àlli  se  fez  então,  ua  lucidez 
de  todos,  a  revelação  visual  da  serenata. 


Resvalado  assim  <l<>s  paramos  da  musica, 
para  o  real,  o  drama  de  seducção  plasticisou- 
se  desde  esse  instante,  nas  três  figuras  da 
saloita,  de  Sérgio  e  do  carreiro,  e  com  tão  vi- 
vo crescendo  d'impressão  do  auditório,  que 
Fausto  fugiu  logo  com  o  braço  ua  cintura  de 
Margarida,  desviando  as  pernas  tremulas  do 
calor  seminal  «las  suas  saias,  a  assoar-se  com 
grandes  roncos  de  disfarce,  emquanto  a  risada 
de  Mephistopheles  morria  em  echos  sardoni- 

pondo  o  mau  estar  d'uma  placa  que 
falso  sobre  a  mezinha  de  cabeceira  d' uma  pula. 

\o  contrario  do  que  haveria  succedido  an- 
tes do  violoncello   concitar    Margarida,  para 


38  OS  GATOS 

as  aphrodisias  toxicas  da  culpa,  lodo  o  bote- 
quim começou  a  murmurar  da  canalhice  de 
Fausto,  e  a  deixar  transparecer  pela  pequena 
simplesmente  uma  ironia  benigna,  misturada 

de  piedade  e  de  desejo.  Os  dois  agora,  lodo 
o  seu  desejo  era  siiiuirein-se  nas  profundezas 
da  terra,  escapar  áquella  infamante  exhibição 
dos  seus  arroubos,  sahir  da  kermesse  incólu- 
mes, sem  saraivada  d'apupos  e  assobios,  .lá 
elle  correra  a  aba  do  chapéu  p'ra  sobre  os 
olhos,  afogueado,  batendo  na  mezacoma  qui- 
na do  dinheiro,  prestes  a  sahir;  enupianlo  ella, 
meio  erguida,  eslralejava  os  dentes  de  terror 
d'encontro  á  chicara,  e  engolia  o  caffé  quasi 
a  ferver,  entornando-o  por  cima  das  roupi- 
uhas,  olíegaule,  o  olhar  descido,  OS  beiços 
brancos,  n'um  assomo  d'angustia  inexprimível. 

E  d'alli  a  bocado  clles  sahiram;  o  homem 
puxava  as  calças,  á  porta,  fingindo  um  dia- 
logo de  despedida  com  a  lavadeira.  Deram 
assim  alguns  passos  na  rua,  de  mãos  dadas, 
escutando  as  chuffas  que  a  partida  motivara, 
e  fugindo  ás  luxes,  com  uma  prestesa  de  (piem 
conseguiu  escapar-se  a  um  supplicio  atroz 
dVmpalaçào. 

Já  mais  além,  numa  ilha  de  sombra,  como 


OS  GATOS  39 

elle  a  conservara  presa  por  um  braço,  fallan- 
do-lhe  ao  pé  da  bocca,  com  a  solercia  da  sua 
bestial  virilidade,  eu  vi-a  de  repente  fazer  um 
safanão  para  fugir.  I»»1  novo,  um  tremor  ner- 
como  fazia  zig-zaguear  sobre  a  parede  ;i 
sua  silhoudie  devirgem  aymphomanica,  deba- 
tendo-se  entre  a  preconcepção  d'uma  hora  de 
deboche,  e  os  presagios  da  vóz  do  violon- 
cello,  cujo  diabólico  rir  lhe  historiava  talvez 
;i  vida  'In  prostíbulo,  e  as  agonias  sem  fim  do 
hospital. 

Estiveram  assim  por  muito  tempo:  ella  a 
fugir,  elle  agarrando-a :  e  pela  cadeia  das 
mãos  a  luxuria  do  homem  transflltrava-se 
toda,  por  desfallencias  hystericas,  ao  appare- 
|]k>  de  gozo  innato,  ao  útero  servido  por  or- 

-.  que  ella  era.  E  eu  vi-a  estortegar-se 
assim  mais  d'uma  hora,  como  uma  ciosa  gata 
que  se  esfrega,  em  delíquios,  por  um  sacco 
de  raiz  devaleriana...  Vi-a  voltar-lhe  as  costas 
dez  vezes,  já  livre,  e  outras  tantas  convergir 
como  sonâmbula,  á  perdição  de  lhe  sentir  a 
carne,  espedaçal-a  — e  agora  louca,  já  sem  re- 
ceio dos  apupos,  mostrando  <>  rosto,  e  convi- 
dando-o,  tentando-o,  na  esfuriada  obsci 
erótica  que  a  rola  ! 


'iD  OS  GATOS 

Evidentemente  que  se  eu  possuísse  a  ter- 
ceira vista  que  William  Crooks  diz  que  ha-de 
assistir  aos  últimos  homens,  quando  a  dege- 
nerescência houver  feito  dos  netos  dos  ne- 
vropathas  actuaes,  raehiticos  seres  com  cabe- 
ças il»1  génios  e  adivinhos,  môvendo-se  irres- 
ponsavelmente, por  suggestões  longínquas  e 
theogonicas,  sobre  um  cadáver  de  inundo  des- 

actuado  pela  fecundação  dos  raios  solares  :  essa 

terceira  vista  me  faria  ver  sem  duvida,  como 
ao  Macbeth  na  sala  do  banquete,  sahir  um  es- 
pectro da  terra,  Mephistopheles,  o  génio  adunco 
de  todas  as  malevolencias  psychologicas,  cor- 
lado  em  morcego  de  purpura,  e  descrevendo 
deredor  da  mulher  as  suas  grandes  espiraes 
funestas  d'impulsor. 

Mercê  do  endemoniuhamento  que  oviolon- 
cello  pozera  no  idyllio,  esse  Mephistopheles 
deveria  ter,  sol»  a  calote  de  fogo,  a  cabecinha 
estreita  de  Sérgio,  ioda  feita  d^accentos  cir- 
cumilexos,  e  espiritualisada  em  mascara  de 
bode  de  sabbat...  .lá  a  intervenção  d'este  ter- 
ceiro typ©,  na  scena,  me  trespassava,  não  sei, 
d'um  glacial  horror  té  á  medulla,  remexendo 
na  minha  razão  as  íundalhas  de  loucura    pen- 


OS  GATOS  1 1 

sanle  que  lá  vivem,  á  espreita  da  hora  em  que 
devam  precipitar-me  em  Rilhafolles. 

Mesmo,  houve  um  momento  em  que  eu  vi 
Positivamente  em  pó,  por  traz  da  rapariga,  o 
tentador  terrível  alongar  as  unhas,  como  de 
•l1"'"!  fosse  desencrasaHbe  do  seio  as  radicu- 
las  ultimas  do  remorso;  e  forçoso  me  foi  cha- 
mar  alguém,  Umto  a  allucinação  visual  entra- 
ra em  mim ! 

""!'■  tranquillo,  posso  analysar  sem  partir 
i  extraordinária  perturbação  mental  d'esse 
minuto.  Procederia  ella  da  tinta  delirante  sob 
'l,lr  eu  vejo,  de  na  uns  tempos  para  cá,  todas 
as  coisas  dramáticas  ou  triviaes  que  me  cir- 
cumdam  ? 

Emtanto  é  certo  que  eu  não  phantasio,  ao 
''  "ina  forma  escarlate  enredar 
nas  suas  espiras  sinistras,  a  mulher.  Explico 
0  phenomenoporuma  aberração  synergica  ^^ 
eixos  oculares,  resultante  da  fadiga  dos  glo- 
bos irritados  pelo  calor  do  eaffé,  pelo  reverbe- 
ro das  luzes,  pela  entoxicação  talvez  do  ramo 
,,n  tobaco,  e  mais  remotamente  ainda  pelo 
dvnamismo  anormal  em  que  a  musica  mepoze- 

cerebro,  bereditariamente  propenso  já  de 
si,  ás  meias-visões  macabras  da  alta  uevrose. 


.^2  OS  &ÀTOS 


^ 

M 


.Estou  a  vèr  o  carrejão  bovino  a  enlaçar 
nos  galfarros  dos  dedos  a  pequena,  este  grupo 
movendo-se  numa  reintrancia  de  beco  sem 
lampeões,  que  a  sombra  alaga,  por  entre  incer- 
tezas de  fundos  movediços,  e  perspectivas  fal- 
sas de  planos  e  d'arestas. 

Da  falta  de  luz  do  largo,  e  do  estado  efTe- 
ctivo  e  mórbido  da  minha  ideará.),  teria  re- 
sultado, supponho,  uma  de  duas : 

_0u  a  incoordenação  dos  meus  eixos  ópti- 
cos desdobrou  o  grupo  das  duas  figuras,  vendo 
eu  quatro,  uma  das  quaes  se  perderia  em  som- 
bra, cmquanto  a  outra,  tinta  na  purpura  «rum 
reverbero  de  camas  para  pernoitar,  pousava  a 
distancia,  como  uni  ser  de  verdade  e  expiação. 

—  Ou  a  percepção  real  do  grupo  amoroso 
me  serviu  simplesmente  para  evocar  imagens 


OS  GATOS  43 

cerebraes,  que  Be  objectivaram,  dando  nascida 
á  imagem  allucinatoria  do  diabo,  igualmente 
avermelhada,  pelo  clarão  da  lanterna  do  pros- 
tíbulo. 

Esta  visão  porém  fôra  instantânea,  e  rá- 
pido o  frio  da  aoite  restituirá  ao  meu  sèr  pen- 
sante a  integridade.  Atirei  o  charuto,  disposto 
;'  caminhar  p'ro  meu  destino,  quando  o  chu- 
visco engrossou  de  modo  que  tive  de  me  aco- 
lher, quinze  passos  além,  u'um  vão  de  porta. 
0  reverbero  da  hospedaria  era  fronteiro,  a  fil- 
trar coágulos  de  sangue  sobre  as  poças  da  rua 
lamacenta:  luz  sem  reflexos,  deixando  a  treva 
espojar-se  nos  pavimentos  baixos  do  prédio, 
como  um  animal  d'esponja  e  de  carvão. 

rânto  a  difiusão  da  luz  era  medíocre,  que 
os  meus  olhos  de  míope  não  poderam  discre- 
par «'ih  começo  mais  que  uma  brecha  de  som- 
bra na  sombra,  demarcando  o  portal  da  casa, 
e  sobre  a  lama  a  mancha  clara  d'um  gato  que 
atravessou  direito  a  ama  sargeta...  Mas  pouco 
;|  l"»1"'" ;|  pwpilla  acomodara-se-me  ao  bastidor 
de  noite  queera  esse  becco  de  viella  miserável, 
e  vi  que  sahia  um  pulso  do  portal,  um  pulso 
de  homem  comido  pela  treva  do  corredor  que 
dava  accesso  ao  valhacouto,  agitando  no  ex- 

* 


y  OS  GATOS 


tremo  ama  formidável  mão  toda  de  dedos,  re- 
sumo e  cúmplice  do  dono,  agarrada  á  saloia, 
nmi  uma  persistência  de  Liana  que  vive  e  me- 
dra peias  seivas  do  tronco  a  que  se  enrosca. 

o  movimento  de  sucção  e  de  palpar  des- 
ses dedos  de  carrejão  lascivo  (que  dir-se-hia 
ejacularem  spermas  de  gozo  por  cada  contacto 
de  papiua  nervosa  da  mulher)  é  uma  coisa  que 
jamais  em  minha  vida  esquecerei.  E  ella  cir- 
cumvagavao  olhar  de  corça  ao  de  redor,  de- 
batendo-se  já  sem  energia,  u'uma  nubilidade 
febril  debacora  ciosa,  e  exasperada,  quebra- 
da como  apetite  d'uma  arma  que  brutalmen- 
te a  rasgasse,  até  aos  mus  fundos  poceiroes 
,la  maternidade  o  do  prazer. 

Dois  minutos  aquella  mão  tateou  assim  - 
braço  .la  mulher,  que  se  deixou  tragar  final- 
mente pela  porta,  e  desapareceu  a  reboque  do 
pulso,  emquanto  o  mortiço  gaz  dava  a  rubes- 
eencia  «la  lanterna  as  contracções  d'um  útero 
titiiado,  e  o  violoncello  de  Sérgio  começava  a 
gemer  lá  longe  a  maldição  de  Mephistopheles. 

Souviens  toi  du  passe, 
Quand  sons  1'aile  des  anges 
Abritant  mu  bonhenr. .. 


os  ga  ros 


;:. 


A  pretexto  d'assistir  ao  baptisado  do  filho 
duques  d'Aos1 l,  foi  S.  \.  o  príncipe  real 
visitar  ;i  exposição.  Não  esquadrinharam  os  |or- 
riajaria  por  conta  própria,  ou  estipen- 
diado; nem  petos  telegrammas  se  infere  que 
;,  peregrinagem  d  i  príncipe  houvesse  outro  al- 
cance diplomático,  além  d'aquelle  que  põe  os 
patai  [  ios  ás  mezas  uns  dos  outros,  <•"  as 

gran-  .  a  permutar  dilates  n'es- 

rranciú  cosmopolita,  que  os  discursos  da 
1 1  classificam  depois  tf  estreitamento  à 

■ 
>r  porém  os  telegrammas  foram  parcos  em 
ilterar  a  avidez  justissima  <!<>  povo,  quanto 
á  missão  politic  l».  Carlos,  por  outro 

lado  exultem  o  que  elles  nos  dizem  «la 

attitude  mai  r  S.    \..  no  precurso  de 

todo  "  regabofe. 

indo  a  liavas-,  o  príncipe,  apenas  pôz 

o  pé  ii  i  '.  fez-si  logo  guiar  ao  bazar 

de  três  vinténs  do  Melicio,  no  pavilhão  das 

Artes,  onde  esteve  assentado;  e  em  seguida  ao 

arma  is  Caldas  '1"  Bordallo,  no 

esteve  sentado  também  ;  e 

i  ifl  '.  cm  cujos  andares, 

,  red       es  e  gabinetes,  com  hom- 


40  OS   GATOS 

bridade  egual  tomou  assento.  Recepção  da  co- 
lónia portugueza,  sentado.  Conversação  com 
o  língua  Marianno  Pina,  sentado.  Jantar  ao 
comité,  sentado.  Comédia  Franceza,  sentado. 

Sentado  recebe  as  felicitações  dos  enviados 
de  Carnòt,  sentado  dá  beija-mão  aos  lambedo- 
res  officiaes  d'estremidades,  sentado  deixa  a 
Franca,  sentado  chega  a  Itália,  sentado  assiste 
ao  baptisado  do  primo,  vae  esperar  a  tia  Mar- 
garide,  dorme,  esvida-se,  passeia... 

Por  esta  insistência  do  telegrapho,  parece 
•  pie  estar  sentado  foi  o  sacrifício  que  S.  A. 
houve  por  bem  fazer  lá  por  fora,  de  mais  ca- 
valleiroso  e  producente  ao  prestigio  europeu 
dos  seus  estados.  Não  é  por  tanto  um  prínci- 
pe, é  um  assento. 

.lá  um  fino  humorista,  ferido  pela  preferen- 
cia que  a  obesidade  dava,  em  S.  A.  a  mu  dis- 
tricto  do  corpo  onde  a  gordura  até  então  fora 
apanágio  exclusivo  da  Vénus  hottentote,  o  de- 
finiu nVstes  dizeres  —  pretexto  para  umas 
nádegas. 

\  accrescentar,  com  os  telegrammas  na 
mão— de  que  elle  por  signa!  abusa  um  pouco. 


OS  liATOS 


Al 


Vai  cm  dois  annns  que  o  Repórter  quoti- 
dianamente produz  um  boletim  sobre  <>s  fíga- 
dos dos  seus  co-proprietarios  e  redactores.  Se- 
gundas, quartas  e  sextas,  trezena  ã  hepatite  do 
dr.  Marçal  Pacheco,  mais  estremecida  hoje  nu 
Europa  do  que  as  varises  «las  pernas  de  Bis- 

marrk. 

.....  porque  "  nOSSO  glorioso  ami.ur<>,  inex- 
plicável parlamentar,  e  nunca  assa/,  chorado 
jornalista,  etc.,  'á  vai  indo  melhor  das  lalen- 
h.sissimiis  cacholas,  sim  senhor:  razão  por 
que  nos  trocou  hontem  pelo  Algarve,  para 
onde  partiu  a  dar  escoante  á  bilis  que  <>  Lam- 
busa.  Com  as  duas  mãos  no  coração,  d'aqui 
endereçamos  a  Pacheco,  uma  das  mais  lumi- 
nosas intelligencias  do  parlamenl las  pes- 
carias d"  Algarve,  votos  do  mais  sincero  ju- 
bilo, ele.  ...» 

Terças,  quintas  e  sabbados,  trezena  às  ca- 
chollas  «lo  <\v.  Alpoim,  com  ladainha  idêntica 
á>  melhoras,  e  os  mesmos  gloria  in  exeeUis  as 
qualidades  mentaes  do  viajor.  A  differença  do 
lausperenne  consiste  apenas,  para  os  dois,  na 
menção  <\>>  ponto  de  chegada,  e  no  qualificativo 
anteposto  á  intelligencia  de  cada  um.  Por  exem- 
plo, Marçal,  quer  vá  para  Paris,  quer  para  o 


''s  os  GATOS 

Algarve,  é  sempre  unia  das  mais  luminosas. 
Alpoim,  quer  tome  bilhete  para  Lamego,  quer 
para  as  Pedras  Salgadas,  nunca  deixa  de  ser 

uma  das  mais  esclarecidas.  Claro  está  que  este 
modesto  epitheto  desnivela  Alpoim,  de  Marçal, 
na  adjectivação  da  casa,  pelo  menos,  sem  lhe 
tirar  todavia  o  usufructo  do  cumprimento  em 
lettra  redonda,  escripto  á  partida  e  á  chegada, 
com  as  duos  mãos  no  coração  —  conseguinte- 
mente  com  os  pés. 

Esta  cantata  dos  fígados,  tracejada  pelo 
Repórter  como  pretexto  para  um  reclame  aos 
miolos,  dá  que  fallar  nào  só  por  Lamego  e 
Loulé,  como  pelo  restante  paiz  também,  onde 
os  fígados  dos  dois  conspícuos  parlamentares, 
mesmo  enfermiços,  quero  aventar  que  sejam 
talvez  ainda  mais  apreciados  do  que  as  iscas. 
Por  ventura  a  concorrência  dYsle  saboroso  pe- 
tisco, á  celebreira  visceral  dos  dois  preopinan- 
tes,  levaria  o  Repórter  a  atirar  assim  prodiga- 
mente ás  voracidades  da  turba,  com  ellas  ou 
sem  ellas,  o  cacholame  cirrotico  dos  seus... 

—  ínvio  periódico  que  dás  de  merenda  aos 
assignantes,  as  miudezas  da  tua  própria  redac- 
ção! Calumniado  Prometheu  que  jamais  em- 
palmaste do  ceu  o  fogo  sacro  —  tu  que  tens 


OS  GATOS  i't 

sacro,  é  certo,  mas  sem  outro  fogo  celeste 
além  do  hemorroidal ;  e  se  alguma  cousa  em- 
palmas, Dão  é  rogo,  bI oticias;  e  essas  ja- 
mais ;í  habitação  dos  deuzes,  mas  á  reportage 
dos  outros  camaradas ! 

Quando  nos  boletins  diários  da  tua  hepa- 
tite caseira,  oiço  gemer  o  coração  do  enterne- 
cido localista,  e  ao  Jornal  dosJornaesie  sinto 
a  língua,  vem-me  a  suspeita  de  que  tu  Dão 
sejas  talvez  como  jornal,  obra  d'espirito,  mas 
••••li!  esses  penduricalhos  de  Bgado,  coração  e 
língua,  pura  e  simplesmente  uma  esbeiçada 
loja  de  fressura. 

Ah  !  toma  lento,  Repórter,  toma  tento ! 

—  A  gloria,  que  levanta  estatuas  aos  que 
padecem  tTideaes  alevantados,  Dão  sei  por 
que,  esquece-se  quasi  sempre  de  registrar  o 
nome  dos  que  padecem  dMctericia. 


0  Daily  Telegraph  ofterece  á-  cogitações  do 
publico  britannico,  um  difllcil  problema,  qual 
o  de  se  averiguar  Be  as  mulheres  devem  fumar 
ou  não. 


50  OS  GATOS 

Chovem  rai-las  á  redacção  do  Daily  Tele- 
graph,  na  maioria  opinando  que  visto  ser  o 
tabaco  um  excitante  intellectivo,  e  equipara- 

rem-se  actualmente  os  dois  sexos  na  concor- 
rência à  lueta  pela  vida,  quer  por  via  da  scien- 
cia,  quer  por  via  da  industria,  quer  por  via  da 
arte,  nenhuma  razão  plausível  d'ora  avante  im- 
pedirá que  a  mulher  fume. 

Completamente  d'acordo.  Somente  na  pra- 
tica de  mais  este  vicio,  nós  quizeramos  que 
«lia  não  feminilisasse  o  tabaco,  attenuando-llie 
os  cfteitos  por  meio  de  macerações  mui  pro- 
longadas, e  só  levando  aos  lábios,  por  pura 
pose,  de  quando  em  quando,  uma  palliativa  e 
magra  cigarrilha.  Esta  pratica,  que  vem  per- 
turbar a  puresa  do  hálito  ás  senhoras,  nem  se- 
quer ao  menos  lhes  facilita,  pela  esthesia  ner- 
vosa, as  locubrações  do  pensamento.  Por  con- 
sequência, madamas,  ou  V.  E\.«  esquecem  o 
tabaco,  ou  então  passam  a  só  fumar  charutos 
de  homem. 

Em  19  de  outubro,  pelas  1 1  horas  e  5 
minutos  da  manhã,  morte  de  S.  M.  o  rei  D. 
Luiz,  no  palácio  de  Cascaes. 

Desde  muito  se  previa  desfecho  trágico  á 


os  BAT06  -<\ 

enfermidade  do  pobre  agonisante,  cujos  úl- 
timos mezes  foram  um  martyrio  cruel  de  to- 
das as  horas,  quer  Latejando  nas  garras  da 
tortura  physica,  quer  nas  da  intriga  palaciana, 
de  sobejo  por  elie  adivinhada  atravez  as  con- 
solações ambíguas  dos  fâmulos,  aborrecidos  já 
de  tantas  noites  perdidas  ao  de  redor  da  sua 
paralysia. 

A  doença  do  rei  foi  uma  coisa  obscura  para 
todos,  e  acerca  d'ella  mil  contradictorias  ver- 
beram correndo  as  folhas  dos  periódicos, 
wi-vr.cs  que  uns  attenuavam,  e  exageravam 
outros,  conforme  o  interesse  partidário  <>u  pes- 
soal ligado  á  conservação  ou  á  aniquilação  do 
soberano. 

Da  bocca  th^  facultativos  do  paço,  nem 
uma  palavra  coada  ;i  tal  respeito.  A  uma,  o 
segredo  profissional,  n'aquella  altura  solemne, 
mercê  da  hierarchia  altíssima  do  enfermo,  in- 
hibia-os  de  qualquer  informação  precisa  ou 
cathegorica.  \  outra,  a  policia  da  rainha, 
bre  sequestrar  <I<»  paço  os  indiscretos,  com 
tal  arte  assediava  os  assistentes,  <im'  lli«'s  ín- 
ria  pagar  com  o  desfavor  do  throno  a  m;iis  li- 
geira indiscreção  d'algum,  cá  fora,  aos  ouvidos 

imprensa  e  da  opinião. 


52  <>S  GATOS 

Comprehende-se  emtanto  a  anciedade  ge- 
ral, perante  aquella  mysteriosa  agonia  passeada 
de  palácio  era  palácio,  quando  entre  as  locaes 
optimistas  dos  jornaes  do  governo,  e  os  som- 
brios prognósticos  dos  jornaes  da  opposição 
(os  dois  jogando  os  dados  com  os  últimos  dias 
do  rei,  com  o  sentido  no  ganho  das  próximas 
eleições)  um  campo  de  cogitações  se  abria, 
enorme  e  vago,  aos  receios  de  uma  súbita  ca- 
tastrophe  que  alancearia  de  magua  o  espirito 
publico,  ainda  não  preparado  a  vèr  no  throno 
outra  cabeça  que  não  a  d'esse  bonacheirão  o 
sceptico  1>.  Luiz. 

Todos  á  unia,  incertos  da  duração  d'essa 
vida  de  rei,  previam  já  o  instante  em  que  a 
paralysia  das  pernas  lhe  subisse  aos  braços, 
em  que  a  sclerose  cerebro-espinhal  lhe  es- 
tendesse a  abolição  sensorial,  do  ouvido  aos 
olhos,  tornando  o  enfermo  n  uma  espécie  d'es- 
tranho  morto-vivo,  paralytico  e  cego,  gastral- 
gico  e  mudo,  consciente  e  deliranti — alimen- 
tado por  uma  sonda,  despejado  das  urinas  por 
outra,  parindo  as  teses  a  ferros,  phlyctenado, 
hediondo,  coberto  de  escaras,  e  contaminan- 
do-se,  pesadello  horrível!  d*essa  podridão  va- 
garosa, methodica,  generalisada,  atrocíssima, 


os  GATOS  ■'•• 

sem  pressa,  em  que  os  tecidos  eps  órgãos,  já 
decompostos,  ainda  para  assim  dizer  fingem  ler 
vida,  e  "mii  que  a  dor  remorde  o  intimo  do 
ser  continuamente,  mil  vezes  mais  fulgurante 
(|()  que  mm  organismo  integro— porque  o  sup- 
pliciado  tem  consciência  (fella,  e  já  nem  se- 
quer pode  jogar  a  voz  p'ra  se  queixar ! 

Em  tomo  á  cadeira  de  rodas  em  que  os 
lacaios  passeiam  da  alcova  para  o  terraço, 
este  cadáver  Incido  e  nostálgico,  reconstruir 
u,,,  drama  é  coisa  fácil,  a  quem  se  lembrar 
de  Frederico  n  d'Allemanha. 

os  velhos  servidores,  receosos  de  per- 
der o  prestigio  na  corte,  quando  esse  rei  sor- 
rir pela  ultima  vez,  pallidamente,  às  arttficio- 

consolações  que  lhe  trouxerem.  São  os 
ministros,  lívidos  como  grilhetas,  e  acossados 
como  cães,  n*um  canto  da  antecâmara,  a  du- 
vidar se  acharão  no  caracter  do  rei  novo, 
aquella  amável  tolerância  com  que  sempre  os 
recebera  o  rei  finado.  Sio  os  chefes  da  opposi- 
ção,  esfaimados  por  seis  annos  d'exilio,  circum- 

,,,,!,,  de  roda  ao  crepúsculo  real  as  cynicas 
figuras,  a  especular  chim  a  impaciência  febril 
do  herdeiro  do  tnrono,  cuja  memoria  é  boa, 
e  t;iii  presidente  de  consell [ue  primeiro 


Vi  OS  GATOS 

o  Iractar  por  magestade.  É  a  Igreja  que  Qão 
quer  perder  o  final  d'acto,  c  a  cada  momento 
espreita  á  poria,  impaciente,  com  as  sagradas 
vestes  n'uma  trouxa,  aguardando  a  hora  em 
que  naja  de  fazer  engulir  ao  viajante  o  pão 
ázimo,  como  um  bilhete  de  primeira  classe, 
para  a  viagem  das  siherieas  neves  do  outro 
mundo.  E  finalmente  a  rainha  —  ia  a  dizer  a 
imperatriz  Frederico  —  soberba  e  esculptúral 
nas  suas  grandes  roupas,  os  seus  olhos  ^es- 
tatua dolorosa,  a  pallidez  de  Juno  despenha- 
da, arrastando-se  sem  forças,  de  sophá  para 
sophá,  lassa  de  vigílias  sem  conta,  allucinada 
já  de  ciúmes  sem  refrigério,  agarram lo-se  a  to- 
das as  vergonteas  da  esperança,  pedindo  á 
sciencia  a  resurreição  d'esse  cadáver,  promet- 
tendoa  Deus  magnificas  offerendas;  e  logo  re- 
negando Heus  e  renegando  a  sciencia,  ao  sentir 
as  suas  lastimas  quebrarem-se  d'encontro  á  mão 
de  bronze  do  destino,  (pie  a  relega,  magnifica 
orgulhosa,  á  semi-sombra  (ruma  vida  subal- 
terna, tão  asphyxiadora  para  os  predominios 
theatraes  da  sua  grande  raça. 

E,  fatalidade  d' um  cargo  que  tantos  inve- 
jam como  supremo  pináculo  das  grandezas  da 
terra  !  —  fazendo   tremulo  ãquella  agonia  do 


OS   QAT8S  55 

monarcàa,  não  tia  talvez  uma  única  lagrima 
sincera,  uma  lagrima  só,  que  evaporada  deixe 
Q0  cadinho  outro  resíduo  além  dHmpuras  coi- 
sas, ambições  resvaladas,  prestígios  findos,  ia- 
voritismos  em  naufrágio — lagrima  que  refran- 
ger podesse  a  pura  essência  da  angustia  sem 
mistura,  essa  liqmfaceão  ternissima  da  alma, 
que  provocam  no  coração  dos  simples,  <>s  que- 
ridos mortos  que  d'este  mundo  se  vão  sem  blas- 
phemar.  Oh,  é  cruel,  pensar  que  mau  grado 
a  sincera  intenção  talvez  de  todos  os  come- 
diantes d'aqoelle  drama  lúgubre  que  linda,  ne- 
nhum d'elles  possa  exhimir-se  á  suspeita  de  ter 
vindo  alli  chorar  por  partí^prís,  apenas  a  me- 
lancholia  d'um,  poderia  mostrar-se  como  uma 
Goisa  isempta  d'egoismo:   mas  esse  reviravol- 
teavaem  velocípede,  sobre  a  esplanada  dopa- 
,-,..  qo  dia  em  que  os  médicos  tiravam  das 
pernas  de  seu  pae,  pedaços  de  tecido  em  gan- 
inrenal 


56  Q8  GATOS 

Fecha  os  olhos  o  rei,  e  o  panno  tomba  so- 
bre o  quadro  dos  physicos  que  lhe  agarram 
com  pinças,  sol»  uma  chuva  de  phenol,  na  car- 
ne que  vem  aos  bocados,  e  sobre  que  já  uão 
é  possível  produzir  a  mumificação  pelos  anti- 
putridos  e  balsâmicos  que  manda  a  pragmáti- 
ca. E  porque  se  desarma  o  tablado  dos  appa- 
relnos  fúnebres  do  cenotaphio,  quando  a  car- 
caça do  pobre  litterato  vai  engrossar  o  fumeiro 
real  de  S.  Vicente,  não  se  persuada  o  leitor 
•pie  o  drama  finda,  visto  como,  apenas  se 
representou  ainda  a  primeira  parle  d'uma  vi- 
brante e  grandiosa  triologia. 

Recompile  se  pode  a  summula  d'essa  pri- 
meira grande  peça  histórica,  que  leve  o  palá- 
cio d' Ajuda  por  scenario,  e  levou  vinte  e  oito 
annos  a  representar  em  Portugal. 

Logo  no  prologo  figura  um  rapazola,  loiro 
e  bonito,  bravo  c  leal  como  um  cadete,  que 
teve  d'abandonar  o  seu  navio  de  guerra, 
quando  uma  noite,  estando  a  jogar  com  ca- 
maradas, lhe  vieram  dizer  que  seu  irmão,  o 
rei,  tinha  morrido.  Nada  na  sua  vida  de  bordo 
attestaria  as  saburras  selectissimas  do  seu  san- 
gue, se  não  lura  o  tratamento  (Falteza  que  lhe 
davam,  tanto  a  sua  expansiva  gentileza,  a  cris- 


OS  G  kTOS  r»7 

talinidade,  a  graça,  Faziam  d'elle  um  doidiva- 
nas  d'escola,  um  jovial  fettow  de  convez,  cora 
a  paixão  das  viagens,  do  jogo,  do  vinho  edas 
mulheres. 

Em  Vngola,  onde  esteve  aguarellando  pal- 
meiras e  bebendo  cognac,  <,  governador  pre- 
parou-lhe  ama  espécie  de  revolta  com  solda- 
dos e  pretos  ensaiados,  persuadindo-o  de  ter 
sido  elle  o  abafador  da  sedição.  Ao  baccarat, 
muita  vez  lhe  succedia  perder  tudo,  e  pedir 
dinheiro  aos  mais  modestos  guarda-marinhas 
que  o  cercavam.  E  quanto  ao  amor,  o  adorá- 
vel rapaz  tanto  seguia  á  risca  os  preceitos  de 
I».  Sebastião  o  casto,  seu  parente,  que  até  lhe 
imitou  ;i  aventura  de  que  falia  picarescamente 
<>  chronista  *e  como  houvera  calornas  casas  da 
marqueza,  &  deect  i  rua  das  fermoeae 

de  quem  houve  molesti 

Para  o  Mn-.. um,  onde  o  assentou  a  morte 
d'um  rei  que  i;i  começar  a  ser  funesto,  eil-o 
trazendo  a  bonhomia  fundamental  da  sua  raça, 
qne  é  uma  espécie  d'atrophia  da  vontade, 
complicada  d'uma  espécie  de  velhacaria.  En- 
tretanto .1  sua  alegria  tempera-se,  a  sua  impe- 

•  •  offlcial  de  ma- 
rinha pandego  e  sensual,  d'essa  espécie  d*edi- 

4 


58  os  GATOS 

çãO  anterior  do  infante  D.  AlVonso,  brota  nin 
personagem  qovo  — o  estudioso  pachorrento, 
,»  sceptieo  risonho,  o  grande  corruptor  bem 
humorado,  que  estudou  nos  livros  a  lei  da 
reedição  periódica  dos  caracteres,  que  soube 
amaciar  as  verduras  juvenis  pelo  convívio  das 
artes  e  das  lellras,  que  aprendeu  a  procurar 
nos  homens  a  repercussão  do  mesmo  ponto 
fraco,  e  a  valer-se  dVlle  emtim  para  os  do- 
mar sem  ruido,  nem  apparente  esforço,  nem 
precipitações,  nem  compromissos. 

Aos  conselhos  de  nm  grande  homem  dVs- 
tado,  ([lie  o  adorava,  deveu  elle  o  levantar  0 
respeito  d»1  si  próprio  á  altura  de  uma  força 
inexpugnável,  e  o  desprezo  pelos  outros  a  ca- 
thegoria  d  nm  lemma  governativo,  inillndivel 
—o  todo  involiicrado  em  laes  formulas  d'afle- 
etuosidade  e  deferência,  que  mesmo  nas  snas 
crises  violentas  de  caracter,  jamais  alguém 
lhe  viu  nm  lie  que  atraiçoar  pudesse  os  exte- 
riores da  mais  correcta  inpersonalidade.  Poucos 
monarchas  haverão  seguido  mais  ao  rigor  as 
praxes  constitucionais,  que  fazem  do  rei  um 
ídolo  de  barro,  omnipotente  e  inútil,  sagrado 

e  subalterno,  investido  de  poderes  platónicos, 
quasi  sem  responsabilidade  nem  exercício,  as- 


06  G  I.TOS  59 

signando  de  cruz,  discursando  d'ouvido,  e  fa- 
zendo por  toda  ;i  parte  a  caricatura  d'um  Deus 
contemporâneo,  d'um  Deus  de  Roma,  que  falia 
aos  peccadores  p<  la  bocca  dos  seus  padres,  i 
nem  sequer  é  responsável  pelas  calamidades 
que  elles  acarretam. 

Sabendo  o  pi  eço  de  todos  aquelles  que  o 
cercavam,  e  adivinhando  pelos  sarilhos  jorna- 
lísticos nu  parlamentares  dos  que  ainda  vi- 
nham longe,  approxiroadamente  o  que  esses 
Ihr  viriam  a  custar,  era  exímio  em  receber- 
Ihes  os  botes  imj  assivel,  té  ao  momento  em 
que  <>  inimigo  se  lhe  tornasse  perigoso  ou  ne- 
cessário, e  urgisse,  para  montal-o  manso,  <in- 
gir-lhe  ao  dorso  uma  vistosa  albarda  <li'  mi- 
nistro. 

Das  três  gei  i  -  n  *as  politicas  sobre  <|in' 
assenta  a  constituição  do  estado,  a  represen- 
tação popular,  a  coroa  e  a  camará  alia.  todas 
file  pezou   ií  i  tra  sagacidade  d'alemtc- 

jano  «■  de  allemão,  loiro  e  sabido.  Posto  o  seu 
conhecimento  •  <  -  sen  ien  i  e  da  torpeza 
dos  homens,  p  isto  <>  inabalável  conceito  em 
que  se  tinha,  a  -  :onducta  'li'  rei  salta  il<- 
chofre:  lazer  das  duas  camarás  i"<la<lns  paia 
n  throno,  atrelar-lhe  os  ministi  >s  como  bri- 


f>0  OS  GATOS 

does  esparvonactos,  e  guiar  elle  mesmo  o  carro 
sósinho,  mas  sans  eu  avoirVair,  e  conservando 
aos  cavallos  a  illusão  de  serem  elles  os  co- 
cheiros. 


Este  domesticar  da  fera  humana,  pela  im- 
passibilidade risonha  d'um  só  homem,  cuja 
força  única  eslava  apenas  no  orgulho  hierar- 
chico,  ao  passo  que  faz  do  rei  um  dos  maio- 
res desprezadores  de  homens  que  tem  havido 
em  Portugal,  por  outro  lado  nobilita-o,  porque 
entre  a  jolda  de  gorilhas  cynicos  que  é  a  ca- 
mada dirigente  do  nosso  paiz,  aquella  figura 
era  das  poucas  que  parecia  marchar  na  vida, 
amparada  ao  respeito  inabalável  da  sua  mis- 
são. 

Na  sua  maneira  de  corromper  havia  ama 
suprema  finura  intelligente,  calculada  por  for- 


OS  GATOS  M 

ih  i  a  não  humilhar  jamais  o  corrompido,  e  •» 
deixar  pairar  fora  de  qualquer  suspeita  gros- 
seira, o  corruptor.  Por  occasião  do  snr.  Ma- 
rianno  de  Carvalho  escrever  no  Popular  :is 
catilinarias  celebres  da  capa  de  ladrões,  o  ca- 
ricaturista Bordallo  produziu  no  Álbum  das 
Glorias  uma  figura  do  rei,  que  aparte  o  pro- 
pósito satyrico,  visiona  aquella  particular  fei- 
ção do  seu  caracter.  Representa  ella  S.  M.  :i 
caricaturar  o  jornalista,  que  está  de  barrete 
phrygio,  em  mangas  de  camisa,  ;i  fumar  um 
cigarrinho:  e  sublinhando  o  desenho,  o  sor- 
riso do  rei  guarda  essa  expressão  indefinível, 
que  era  sempre  a  d'elle  em  publico,  riso  mor- 
to de  lábios  exangues,  lábios  franzidos,  riso 
p'ra  dentro,  que  podia  ser  tudo,  fastio,  bon- 
ilade,  lassidão,  firmeza  ou  comedella,  mas  que 
i  olhar  illucida  a'uma  palheta  de  reflexo 
insupportavel,  não  pela  agudeza,  ;i<»  contrario 
—  pela  proposital  vacuidade. 

M;ii<  tarde,  quando  já  o  pamphletario  'I" 
Popular  seguia  ;i  familia  real  na  viajem  ao 
norte,  ajaezado  n'essa  hrda  »l<'  castellos,  que 
é  a  camisola  de  forças  dos  furiosos  açulados 
contra  o  throoo,  aconteceu  passar  o  rei  no 
Uom  .1 1--. 1 1 - ,  por  entre  duas  cazotas  de  corpn- 


»'e2  os  GATOS 

lentos  cães  dinainarquezes.  Um  d'elles  magro, 
escanzelado,  formidavelmente  colérico  e  auda- 
cioso, começou  a  ladrai'  ao  rei  com  grandes 
vozes;  emquanto  o  outro  nédio,  tendo  acabado 

um  repasto  de  ministro,  se  viera  arrastando  a 
um  aceno  da  luva  moderadora,  ate  ás  grades 
da  jaula,  na  esperança  de  passar  a  língua  hu- 
mildemente, por  cima  d'aquillo  que  mais  con- 
dissesse á  vontade  real.  .  . 

Dizem  que  S.  M.  se  voltara  então  para  a 
rainha,  e  a  meia  voz  dissera,  apontando-lhe 
c'o  beiço  alternativamente  o  mastim  fero  e  o 
mastim  sarrafaçal : 

—  São  assim  todos,  antes  e  depois  de  co- 
mer.. .  na  Ajuda. 

Estahaveria  sido  talvez  a  única  palavra  on- 
de o  sarcasta  revelasse  a  convicção  da  sua  esma- 
gadora superioridade  moral  sobre  os  demais. 
Habitualmente  o  rei  comprazia-se  em  vencer 
sem  honras  de  guerra,  em  conquistar,  mas  sem 
exhibição  de  prisioneiros,  certo  de  que  quan- 
to mais  se  apagasse  por  traz  do  seu  biombo 
constitucional,  tanto  mais  a  influencia  da  co- 
roa iria  crescendo  sobre  a  matulla  dos  homens 
públicos  histriões  dos  seus  estados. 

Assim  elle  poude  ascender  som  protesto. 


(is  GATOS 


63 


lentamente,  seguramente,  de  simples  orago 
Dominai  da  egreja  politica,  á  <i":,si  omnipo- 
tência «rum  Jehovah  conciliador  mas  firme, 
bonacheirão  mas  gajo,  distribuidor  de  todas 
as  graças  e  fortunas  politicas,  mola  real  «I»1 
todos  os  manejos,  e  poder  occulto  de  todas  as 
situações.  Com  mais  rigor  ou  menos,  eu  po- 
deria dizer  «í1"'  "  Estado  foi  elle,  durante  os 
vinte  6  oito  annos  que  reinou. 

Não  que  parecesse  tolher  Q'alguma  coisa, 
a  observância  formal  da  constituição  que  re- 
ge as  attribuições  e  funcções  de  cada  poder  do 
Estado!  Não  que  jamais  cuidasse  em  facultar 
ou  impedira  este  ou  áquelle,  o  exercício  legal 
,l,i  auetoridade!  Nem  que  violado  bouvesse 
alguma  vez  o  património  commum  da  liber- 
dade, iM»  que  ella  tem  de  sagrado,  a  opinião, 
expressa  pelo  voto,  pela  palavra  ou  pela  es- 
cripta.  0  respeito  real  por  todas  aquellas  re- 
galias publicas,  a  que  está  >\>-  guarda  a  lei 
politica,  tinha  o  ar  de  ser  vivo  e  indiscutível. 
Era  um  escravo  da  formula.  Mas  contradicção 
estranha !  apezar  de  todos  os  seus  rigorismos 
de  praxista,  nem  sempre,  durante  o  seu  rei- 
nado, foi  a  constituição  o  Evangelho  do  po- 
der; oem  o  sunragio  quem  indigitou  sempre 


(,<  QS  GATOS 

os  homens  para  a  direcção  dos  negócios  pú- 
blicos; nem  o  mérito  quem  por  direito  de  9on- 
quista  se  revestiu  nos  cargos  de  importância ; 
nem  as  honradas  famas  que  atiraram  para  a 
•ainara  real,  os  conselheiros;  nem  tam  pouco 
o  culto  da  opinião  (piem  conservou  no  mando, 
••>  despeito  dos  clamores  geraes,  os  funcciona- 
rios  puídos  pela  suspeita  de  crimes  hediondos. 
Elle  affastava  ou  approximava  os  partidos, 
conforme  lhe  convinha;  prolongava  ou  encur- 
tava nas  mãos  d'um  grupo,  o  exercício  do  po- 
der, conforme  lhe  fazia  conta;  e  moderando  a 
impaciência  d'este  chefe,  com  deferências  do- 
seadas  sabiamente...  uma  partida  de  bilhar 
na  Ajuda,  meia  hora  de  conversação  n  um  Jo- 
gar publico...;  desviando  suspeitas  de  favori- 
tismo d'aqueiroutro,  por  uma  espécie  de  fuga 
simulada,   para  o  lado  da  facção  politica  con- 
traria;   contrabalançando    um    esbanjamento 
de  dinheiros  com  a  fundação  à'uma  obra  phi- 
lanfropica;   escamoteando  a  sentimentalidade 
publica  com   uma  visita  a  um  palco  de  misé- 
ria, a  instituição  d'um  premio  litterario,  meia 
dúzia  de  coisas  lacrimosas  escriplas  num  jor- 
nal d'incendiados,  ou  a  postura  d  um  crachá 
no  peito  d'um  comediante  em  ovação...  Sim» 


06  GATOS  ou 

o  Estado  foi  elle.  Nos  seus  mais  complicados 
fuDCcionalismos,  nas  suas  dependências  remo- 
tas, oas  suas  minuciosas  attribuições.  Foi  elle! 
Muito  embora  as  praxes  constitucionaes  não 
fossem  violentadas,  os  ministros  guardassem 
o  aplomb  de  verdadeiros  administradores,  e  a 
Carta  esfregasse,  por  debaixo  do  avental,  as 
mãos  de  satisfeita.  EUe  era  ao  mesmo  tempo 
poder  moderador,  suflragio  <i  camarás,  aca- 
demia das  sciencias,  ministério  de  beneficên- 
cia, exposição  de  carneiros  na  Tapada,  e 
exposição  de  chitas  na  Avenida.  Absorvia  in- 
do, substituia-se  a  tudo,  estava  por  detraz  de 
tudo.  E  n*iini  jantar  intimo,  pintando  a  um 
amigo  o  lastimoso  estado  do  paiz,  a  decadên- 
cia das  instituições,  a  feita  d'iniciativa,  o  res- 
valo da  probidade  cívica  •'  familial,  o  velho 
Rodrigues  de  Sampaio  disse  uma  vez: 

—  Portugal  boje,  é  o  rei. 

Ninguém  synthetisou  ainda   esta   choldra 
mais  fundo  nem  melhor ! 


66  OS   GATOS 


Dado  o  prematuro  fim  de  D.  Pedro  v,  po- 
deremos dizer  foi  1).  Luiz  o  nosso  primeiro 
rei  constitucional.  O  seu  reinado  é  a  adapta- 
ção infeliz  a  um  povo  de  mariolas,  d'um  d'es- 
ses  systhemas  políticos  theorioos  que  a  Ingla- 
terra impingiu,  nos  começos  do  século,  aos 
paizes  da  Europa  seus  subordinados,  sem  pri- 
meiro indagar  se  filhos  de  homens  governados 
a  podei'  de  chicote,  estariam  aptos  ;i  espojar 
sob  um  regimen  de  liberdade,  outro  modo  de 
vida  que  uào  fosse  o  do  desaforo  e  o  da  licença. 
É  o  tempo  em  que  uma  aristocracia  decrépita, 
copulada  por  uma  democracia  impúbere  e 
desorientada,  pare  de  si  um  estranho  mundo 
d'androgynos  e  de  frustes,  e  cm  que  os  mal- 
feitores fugidos  dos  pinhaes  já  não  atravessa- 
dos   por   seges   de    posta,  vem  de  casaca  e  de 

farda,   com  gran-cruzes  ao  peito,  roubar  no 
próprio  portal  das  instituições,  os  transeuntes. 


OS  GATOS 


67 


Por  toda  .1  parte  formulas  luminosas,  evo- 
hés  ao  direito,  estatuas  de  bronze  ao  devota- 
mente e  ao  martyrio,  hymnos  á  sciencia,  e  á 
ignorância  prédicas,  e  á  intelligencia  coroas  e 

>es. 

...  Em  1862,  abertura  da  Escola  Normal; 
exposição  do  Porto  em  65;  em  67  abolição  da 
pena  ultima;  em  69  abolição  da  escravatura; 
estatuas  a  poetas,  a  legisladores,  a  guerreiros, 
i  patriotas;  travessias  e  estações  civilisadoras 
m'  africa;  caminhos  de  ferro,  centenários,  fes- 
tas agrícolas...  Dir-se-hia  o  alvorecer  d'uma 
era  de  oiro.  este  reinado.  Uma  espécie  de  res- 
surreição 'I"  século  de  Péricles, em  que  os  ho- 
mens fazem  o  balanço  de  todas  as  ideias,  pro- 
mulgam em  dictadura  a  realisacão  de  todas 
as  utopias,  e  vão  lançando  o  veio  decisivo, 
sobre  os  que  bemereceram  da  pátria  e  da  hu- 
manidade. 

\  cada  momento  se  espera  ver  realisado 

aquelle  ideal  de  pau  qp -  Goncourts  so- 

nham  m'uma  sociedade  que  fosse  uma  aris- 
tocracia de  capacidades,  aberta  a  todos,  um 

rno  promulgando  ;i  extineção  da  miséria 
.•  da  valia  eommum,  decretando  a  religião  ea 
justiça   gratuitas,  instituindo  o  ministério  '!" 


68 


os  GATOS 


soffrimento  publico,  empenhado  cm  dar  á  in- 
validez c  á  doença,  uma  hospitalidade  admi- 
ra v<  d.» 

Oh,  mas  que  de  chimeras  e  mentiras ! 

Aquelles  ostentosos  credos  das  borras,  afi- 
nal não  vão  alem  dum  reclame  feito  a  publi- 
canos.  0  humanitarismo  romântico  dos  dis- 
cursos e  dos  livros,  não  passa  afinal  (rum 
travesti  ridículo  do  egoísmo.  Promulgam-se 
roi/as  sublimes,  mas  nunca  se  praticaram  coi- 
zas  mais  abomináveis.  Sim,  é  verdade,  nós 
sacrificamos  á  justiça,— o  que  nos  não  impede 
dYsperular  c'o  privilegio.  Exaltamos  a  intelli- 
gencia,  mas  vamos  deixando  ao  abandono  os 
sábios  e  os  artistas. 

Fundamos  asylos,  mas  prosliluiinos  as  mu- 
lheres, e  attentamos  contra  o  pudor  das  crean- 
cinhas.  Abriram-se  escolas—  magnifico  !  — 
mas  quem  está  ahi  que  saiba  ler?  Os  con- 
dcnmados  já  uào  padecem  a  pena  ultima  ; 
mas  padecem  a  penúltima,  que  lhes  prolonga 
0  marlyrio,  e  é  peor.  Não  lia  escravos  if.Vfri- 
ca  :  ha-os  mais  perto,  aqui  nas  ofíicinas  de 
Lisboa.  Estações  colonisadoras  no  Nyassa... 
que  é  uma  coisa  que  falia  ainda  nos  descam- 
pados do  Alenitejo  e  Traz-os-.Monles.  Caminhos 


os  GATOS 


69 


de  ferro  :  só  resta  agora  arranjar  mercadorias  e 
passageiros.  E  quanto  a  festas  agrícolas,  <inr 
bem  cabidas  seriam,  n'um  paiz  que  pelo  me- 
ãos tivesse,  agricultura  ! 

\  pavorosa  descrença  que  hoje  irapalluda 
tudo,  e  afugenta  os  tímidos  das  batalhas  da 
vida,  ao  conluiar-se  á  cubica,  ganha  uma  es- 
pécie d'audacia  fria  e  fauve,  que  desatréla  ua 
escalada  da  riqueza  <•  do  mando,  <>s  audacio- 
Vs  classes  dirigentes  povoam-se  de  theo- 
ricos  que  ninguém  ouve,  e  d'especuladores  e 
bandoleiros  que  todos  lemem. 

\  politica  é  o  balcão  em  que  se  vem  reba- 
ter por  cédulas  d'empregos  e  honrarias,  as 
mais  bellas  forças  creadoras  da  uação ;  e  mer- 
,\n  bom  preço  das  consciências,  n'aquelle 
mercado  d'estrume  contemporâneo,  eis-nos 
assistindo  á  deserção  dos  homens  cultos,  de 
todas  as  profissões  nobres  e  finas ;  eis-nos  tes- 
temunhas da  'mania  de  todas  as  actividades  so- 
s  iinlrii.ihl.-uir>.  sciencia  e  artes,  mercê 
dos  engajadores  políticos  que  todos  os  dias 
nol-as  desguarnecem  dos  engenhos  que  me- 
lhor poderiam  fazel-as  caminhar. 

quinze  annos,  a  ambicâ  •  de  nós  to- 
dos í  ser  rico,  seja  como  for :  e  ser  ri<"'>  em 


70 


OS   GATOS 


Portugal  é  hoje  quasi   tão  difíieil  como  ser 
honrado.   A  vida   eomplicou-se  d'exigencias, 
sem  grandemente  alargar  os  praseres  que  lhe 
deviam  de  ser  correlativos.  Subiu  o  preço  de 
tudo,  e  á  medida  que  o  struggh  se  faz  cada 
vez  mais  inquietante,  o  campo  em  que  elle  se 
exerce  cada  vez  é  mais  safaro  e  improductivo. 
Por  toda  a  parte,   a  pequena  industria  absor- 
vida pelo  monopólio;  a  posse  da  terra  resva- 
lando das  mãos  do  camponez  para  as  màos 
do  syndicato;  o  braço  da  machina  substituin- 
do o  braço  humano;  o  estrangeiro  senhor  dos 
nossos  portos,  dos  nossos  rendimentos  e  dos 
nossos  campos;  e  o  povo  emíim  explorado 
por  todos,   pelo   padre,   pelo   recebedor,  pelo 
deputado  e  pelo  rei,  sem  recursos  com  que 
valer  ás  plantações  phylloxeradas,  sem  igreja 
<»nde  a  religião  de  seus  pães  lhe  custe  apenas 
a  fé,  sem    lhear   que  o   vista,  sem  escola  que 
0  ensine,   sem   hospital  que  0  íracíe,  e  sem  a 
geira  de  terra  que  o  sustente. 

Nas  próprias  escolas  superiores,  a  mocida- 
de, perdido  o  sentimento  da  bierarchia  scien- 
fitica,  e  a  consciência  d  uma  missão  superior 
ás  pequenas  misérias  do  dinheiro,  segue  os 
cursos  sem  enthusiasmo,  só  pelo  fim  d'arran- 


OS  €  kTOS  ~\ 

}<ir-<i\  e  zombeteando  o  espirito  da  profissão 
,-i  que  esses  cursos  dão  direito. 

A  scteneia  resvalou  assim  do  seu  pontifi- 
cado espiritual  »'  supremo,  a  uma  espécie  de 
forja  onde  se  malham  em  vez  d'engenhei- 
e  legistas,  simplesmente  imberbes  aego- 
ciaveis,  particularmente  cynicos  e  servis,  arti- 
gos de  corruptella,  < [ nc  as  famílias  vão  empe- 
nhar depois  as  companhias  de  caminhos  <l«- 
ferro  e  aos  comités  eleitoraes  onde  aquella 
farraparia  tem  valor.  Coimbra  por  exemplo, 
tem  o  monopólio  dos  oradores  (a);  Lisboa  <v 


Só  na  legislatura  d'este  anno  vem  á  camará 
de  vinte  e  <>it"  ;i  trhita  bacharéis  novos  em 
folha,  e  ainda  nem  sequer  desencasqueados  das 
bencias  da  batina  universitária. 

É  conhecida  a  historia  do  conde  <l<-  Valbom  en- 
saiando o  filho,  nas  ferias  do  primeiro  anuo  de  'li- 
.1  discursar  contra  um  governo  imaginário, 

Fornecendo  elle  mes os  apartes,  para  acostumar 

sangue  frio.  Tanto  o  menino  estava 
certo  do  destino  alto  com  que  o  futuro  viria 
lardoal-o,  que  inda  de  fraldas . 

ira  que  anda  a  estudar  o  meu   lindinho? 
untou-lhe  uma  vez  o  conde  da  Figueira. 
—  V<<  minito. 


72 


OS  GATOS 


Porto  reservam-se  o  fabrico  de  financeiros  e 
jornalistas. 

E  sobre  estes  ires  typos  de  rufiões  era  vo- 
ga, o  agiota,  o  fallador,  e  o  artigoleiro,  é  que 
turbina,  graças  á  apathia  de  cinco  milhões  e 
meio  de  portuguezeSj  o  moinho  politico,  onde 
durante  vinte  e  oito  annos  i'ez  farinha  o  ex- 
ibido rei. 


Estabelecido  que  tudo  em  Portugal  corre 
ao  dinheiro,  não  vale  apontar  que  a  todos  so- 
breleve em  importância,  o  agiota,  e  este  tenha 
nas  suas  mãos  o  artigoleiro  eo  fallador,  tanto 
monta  dizer  a  imprensa  e  o  parlamento,  e 
atravez  d'elles,  negue  o  diabo  se  pôde  —  a  mo- 
uarchia. 

E  verosimilmente  o  que  acontece:  jornaes 
e  camarás,  quem  não  fôr  do  conde,  ser  do 


OS  GATOS  73 

marquez,  e  quem  Dão  fôr  Hersent,  ser  Bartis- 
sol.  Entanto  esta  batota  publica  sempre  leria 
ura  ar  menos  devasso,  se  as  cautellas  apa- 
nbadas  no  bolso  dos  políticos,  pour  la  reussi- 
/•  </.  Vaffaire,  traduzissem  ao  menos  o  advento 
de  capitães  portnguezes  á  execução  das  loucas 
obras  que  os  ministros  fazem  votar. . .  para  a 
i  dos  dotes  de  suas  (ilhas,  e  para  o  cos- 
teio dos  bric-â-bracs  de  suas  esposas.  Mas 
nem  sequer  esta   consolação  resta  ao  paiz ! 

A   iii la   empenhada  n'aquelle   phrenesi  de 

corromper  funccionarios,  para  construir  por- 
tos que  estragam  os  rios,  e  caminhos  de  ferro 
que  estragam  passageiros,  toda  ella  ou  qua- 
si  toda  vem  de  fora.  Mandam-na  as  judiarias 
de  Paris,  os  banqueiros  d'AHemanha,  eos  la- 
drões de  colónias  de  Inglaterra.  Ella  soa  nas 
do  parlamento,  nas  diatribes  dos 
periódicos,  e  nas  concessões  secretas  dos  mi- 
nistros; tremula  no  pau  de  fileira  d 
e  nos  formidáveis  titans  dos  novos  poi 
letra-se  na  magnificência  dos  contractadores 
d'emprestimos,  e  na  prodigalidade  insólita  de 
certos  jornalistas.  Funda  sem  escrúpulos,  por 
onde  quer  que  passe,  o  regimen  dos  trinta  di- 
nheiros, e  a  sua  tentação,  que  rola  dos  gene- 

5 


74  OS  GATOS 

raies  aos  mais  somenos  pows-íwows  do  exercito 
politico,  afunda  em  dilúvios  de  lama  as  sagra- 
das conquistas  da  liberdade,  e  o  luminoso 
prestigio  entre  que  devera  aureolar-se  a  ideia 

do  Poder ! 

A  citarão  de  fados  n'este  ponto,  além  de 
repisar  infâmias  conhecidas,  só  serviria  a  nos 
grangear  conflietos  pessoaes.  Quem  reler  os 
jornaes  dos  últimos  nove  annos,  quem  recor- 
daras legislaturas  dos  últimos  quatorze,  quem 
st>  fizer  dizer  ao  ouvido  os  preâmbulos  de 
certas  fortunas,  e  as  biographias  de  certos 
nomes,  por  demasia  se  illustra,  á  guiza  de 
concluir  que  nós  somos  verdadeiramente  os 
netos  dos  aventureiros  por  quem  o  snr.  I). 
Pedro  iv  repartiu,  como  recompensas  de  guer- 
ra, os  pedaços  do  reino  usurpado  á  progeni- 
tura, e  os  filhos  d'aquelles  deputados  que  Ro- 
drigo da  Fonseca  só  comprava  feitos,  pela  ra- 
zão de  lhe  sahírem  mais  baratos. 

D,,  resto,  é  um  contrasenso  exigir  que  os 
costumes  políticos  sejam  melhores  que  os  par- 
ticulares. 0  parlamentarismo  não  falhou  entre 
„ns,  por  mau  regimen,  mas  porque  não  ha 
formulas  efíicazes  para  nacionalidades  caducas 
como  a  nossa. 


S  GATOS 

Conclue-se  d'isto  a  deliquescenci  i  da  vida 
portugueza,  dos  seus  du]  los  aspectos  da  com  - 
ciência  e  da  moral.  Lá  começa  primeiro  uma 
separação  completa  e  desdenhosa  entre  os  in- 
teresses da  grossa  massa  da  população,  e  os 
da  matilha  que  reparte  entre  si  os  dinheiros 

rendas  publicas,  e  se  crapulisa  n;i  porfia 

adalosa  do  poder.  Vè-se  em  seguida  a  in- 
differença  publica  crescer  em  matéria  politica, 
os  jornaes  serem  lidos  só  por  passatempi 

remo  serem  mencionados  só  como 
uma  variante  d'anecdol  is  obscenas,  a  politica 
armar  em  profissão  sem  hombridade,  em  im- 
pune chantage,  e  jornalistas  e  homens  d'i 
do  enfileirarem,  uo  conceito  -  .  I  <>  em 
ratoneir  --'nus. 

Os  bem  intencionados  apressam-se  a  aban- 
d  mar  ao  seu  destino  a  causa  publica,  como 
\  icente  Monteiro  e  Consiglieri,  por  não  serem 

tes  oem  cúmplices  dos  crimes  de  leso-povo 
que  sob  a  égide  d'ella  se  commettem.  Virá  um 
dia  em  que  o  povo  desnaturado  por  todas 
aquellas  lições  de  compra  e  vend  .  farto  de 
ludíbrios  e  vexames,  abdique  por  fim  do  seu 
ideal  d'autonomia,  |  erca  .1  noção  de  solo,  en- 
cha  d'escremento  as  p  iginas  da  historia. . .  <• 


7(í  os   GATOS 

permitia  Deus  que  o  não  ouçamos  bramir,  com 
desesperada  voz,  aos  echos  da  fronteira : 

—  Livrem-me  d'esta  canalha  que  me  fez 
odiosa  a  liberdade,  que  em  paga  d'isso  aqai 
lhes  offereço  a  minha  servidão  ! 


Sobrepujante  á  sociedade  irremissivelmen- 
te  frasearia  que  pintei,  o  papel  politico  do  snr. 
D.  Luiz  haveria  por  força  que  seguir  alguma 
das  versões  que  vou  dizer. 

—  Ou  o  rei  se  tinha  proposto  a  corrigir 
autoritariamente  os  desmandos,  pondo  no 
throuo  uma  espécie  de  continuado  de  seu  ir- 
mão D.  Pedro  V  — Ou  participava  da  orgia 
dominante,  consentindo  nos  saques,  para  á 
sombra  d'elles  gastar  folgadamente  —  Ou  ten- 
do sondado  a  índole  do  povo,  c  os  caracteres 
dos  servidores  e  homens  públicos  que  o  cer- 


OS  GATOS  77 

cavam,  emprehen  lia,  como  elle  fez,  uma  obra 
d'absorpçâo  centrípeta,  matreira,  paciente,  en- 
tre os  differentes  círculos  da  vida  social  por- 
tugueza  e  «»  throno,  posto  como  um  foco  de 
crístallisação,  no  centro  d'ell< 

Nenhum  homem  fino,  está  claro,  haveria 
seguido  as  duas  primeiras.  A  da  violência, 
porque  ella  sobre  não  ter  fundado  nunca  uma 
obra  perdurável,  só  daria  de  si  a  formação 
quasi  instantânea  d'um  grande  partido  hostil 
á  realeza.  \  da  crápula,  porque  além  das  con- 
sequências vacticinadas  â  primeira,  acarretaria 
ella  mais  uma,  funestíssima  —  desgostar  a  Eu- 
ropa dos  Bragancas,  e  taeHhes  perder  as  ami- 
sades  que  sempre  teem  ligado  os  uossos  prín- 
cipes às  velhas  monarchias. 

Não  houvesse  outro  testemunho  das  facul- 
dades 'I"  monarcha  extincto,  a  simples  linha 
conductoríal  de  seu  reinado  bastaria  para  con- 
duzir o  medico  nevrista  nostico  d'um 
cérebro  archi-perfeito.  Era  um  intellectua! : 
demonstrai  a  sua  habilidade  politica,  revela- 
da pelo  modo  qne  atraz  ;  muito  melhor 
do  que  a  cobardia  physica  do  seu  animo,  do 
que  as  suas  aptidões  de  musi  :o,  do  que  <iv- 
seus                                     ii-!  i.  e  <1"  que  a 


78  OS  GATOS 

sua  prodigiosa  vocalisacão  de  polyglotta.  .Ja- 
mais esses  olhos  de  gomma,  esses  olhos  d'agua, 
sem  fixidez  de  pupilla,  esses  olhos  de  retrato 
e  dMdolo,  que  rolavam  o  olhar  sem  ponto  áti 
mira,  e  olhavam  p'ra  dentro,  p'ra  longe,  para 
toda  a  parte,  excepto  para  a  coisa  em  que 
apparentavam  tixar-se;  jamais  esses  olhos  ao 
envolver  um  homem,  deixaram  de  tirar  d'elle 
a  prova  real  d'um  talento  ou  d'um  caracter — 
e  em  qualquer  (Telles,  sendo  possível,  forcejava 
o  rei  por  abrir  um  canto  de  sympathia  onde 
installar-se,  como  senhor  ou  como  camarada. 

Tão  agudo  era  já  por  fim  este.  propósito 
seu  de  seducção,  qtíe  muita  vez  elle  dispensou 
OU  reduziu  a  etiqueta,  para  mais  directamente 
hvpnotisar,  por  via  democrática,  a  gratidão 
on  a  fraqueza  dos  indivíduos  de  quem  desejava 
approximar-se. 

A  collaboração  da  rainha  foi  neste  ponto 
d'iima  efficacia  suprema  e  incomparável.  Pou- 
cos mònarchas  da  Europa  haverão  tido  com- 
panheira mais  intelligente,  associada  mais  há- 
bil, e  comediante  mais  finamente  senhora  da 
marcação  thronicia,  e  da  mise-enrscene  dymnas- 
tica. 

No  jogo  d'ella,  nada  vtflgar,  nem  mesmo 


os  (.  VTOS 


79 


as  brasquerias,   Dera  mesmo  as  palavras  sol- 
.   nem  mesmo  as  toilettes  '  s  da  sua 

ultima  phase  de  mãe  de  filhos  homens.  Sobre 
um  throno  dMmperio,  esta  mulher  tiraria  sem 
duvida  como  um  modelo  de  grande  imperatriz. 
Dizem-no  a  sua  indiscutivel  grandeza  d'animo, 
a  sua  orgulhosa  comprehensâo  do  prestigio 
real,  a  transcendência  rara  do  seu  typo,  mol- 
dado para  o  throno  com  um  inolvidável  poder 
d'offuscação,  e  mais  que  tudo  as  suas  súbitas 
intuições  da  magestade  moderna,  que  é  ioda 
artificial  como  uma  creação  de  theatro,  e  no 
entanto  lá  continua  a  esmagar  ainda,  sob  as 
rodas  do  seu  carro,  as  desgraçadas  e  cegas 
multidões. 

Quantas  vezes,  o  animo  do  rei,  ao  ir  hu- 
milhar-se  e  transigir  perante  a  ameaça  d'uma 
conspiração  politica,  ou  d*um  violento  ataque 
dos  jorn  tes,  encontrou  a  seu  lado  essa  varo- 
nil figura  a  ordenar-lhe  energia,  e  a  sustentar 
ella  só  as  prerogativas  da  coroa  enxovalha- 
,1  r;  Em  !'•»  de  maio,  quando  <>  Saldanha  su- 
l,i.i  ,i  Vjuda,  acaudilhando  tropas  insurrectas, 
<■  terror  do  rei  f<>i  a  tal  ponto,  que  se  fechou 
i)'iini  cubículo  dn  paço,  sem  força  quasi  para 
articular  uma  palavra.  \  raiana  veio  ter  com 


80  OS    (ÍATOS 

o  marido,  incitou-o  a  resistir  contra  Iodas  as 
intimativas  que  representassem  menoscabo  á 
magestade;  c  vendo-o  passado,  branco,  gague- 
jante : 

—  O  senhor  é  um  m...  ai  quem  podesse 
descer  á  rua  com  unia  espada ! 

N'este  reinado  neutro  de  vinte  c  oito  an- 
nos,  podre  de  paz  e  de  costumes,  com  tam- 
pas il'oii'0  sobre  catacumbas  de  miséria,  e  vil- 
lanagens  odiosas  sob  apparencias  de  progres- 
so e  d'egualdade,  duas  figuras  apenas  conse- 
guem romper  a  chatinagem  commum,  aspirar 
á  consagração  da  estatuária,  e  adquirir  por 
vezes  a  grandeza  histórica  de  typos  domina- 
dores e  extranormacs.  São  a  rainha,  e  Fon- 
tes, os  dois  verdadeiros  mestres,  os  únicos 
sinceros  amigos  que  teve  S.  M.  o  rei  D.  Luiz. 

Maria  Pia  ensinou  o  marido  a  ser  rei.  Fon- 
tes Pereira  de  Mello  ensinou  seu  amo  a  ser 
politico.  Pelas  lições  do  ministro,  aprenderia 
o  monarcha  a  respeitar  as  apparencias  quanto 
á  lei,  e  a  substituir-se  aos  partidos,  no  ponto 
em  que  a  acção  dYlles  ia  sei'  nulla,  ou  amea- 
çava tornar-se  contraproducente  ou  perigosa: 
isto  sem  os  desprestigiar  jamais  á  face  da  na- 
ção.   Assim   cuidámos    ler    sido   governados, 


os  GATOS  84 

D'esses  vinte  e  oito  annos,  que  os  jornaes  of- 
Qciosos  chamam  progressivo*,  unicamente  | ><*1;» 
vontade  collectiva,  expressa  pelo  voto,  e  resu- 
mida aos  charivaris  do  parlamento,  e  nas 

nem  sempre  paciQcas  do  conselho  doestado 
—  quando  era  o  rei  quem  fazia  pender  a  ba- 
lança, as  mais  <  1 ; i s  vezes,  pondo  n'um  prato  o 
seu  veto  de  senhor  inexpugnável,  embora  bran- 
do de  gesto,  e  cordeal  e  meigo  de  sorriso. 

Com  os  seus  conselhos,  Fontes  deu-lhe 
força.  Com  r  sua  uobresa,  ;i  rainha  impòz-lhe 
auctoridade.  Expira  o  ministro,  mas  a  rainha 
fica,  e  é  ainda  ella  quem  galvanisa  esse  vale- 
tudinário cada  vez  mais  sceptico  dos  homens, 
que  de  bom  grado  passaria  o  resto  da  vida  a 
interpretar  Sakespeare  n'um  canto  de  biblio- 
theca,  ea  dar  vasante  pelo  amor  ou  pela  mu- 
sica, i  porção  de  sonho  que  d'Allemanha  lhe 
trouxera  o  romanesco  sangue  de  seu  pae.  Ex- 
pira o  ministro,  e  o  rei  então  comprehende 
que  se  a  vacuidade  ambiciosa  das  camarílhas 
politicas  que  o  cercam,   lhe  permiltira  arro- 

je  até  alii  o  papel  de  primeira  e  única  loi- 
ça inabalável  do  paiz,  é  essa  mesma  vacuida- 
de quem  d*ora  avante  o  impedirá  d'aglutinar 
os  homens  em  partidos  nítidos  e  estremados, 


<S^  os  GATOS 

de  fazer  mover  a  engrenagem  constitucional 
sobre  roldanas  solidas,  de  dar  á  representa- 
ção nacional  nina  sombra  sequer  de  legitimi- 
dade—porque se  esfarella  indo  em  igrejotas 

de  seis  e  sele,  postos  de  roda  d'um  balofo, 
proclamado  em  família  chefe  de  facção. 

Mercê  (Testa  dsgringolade  snccessivamcntc 
affirmada  em  quatro  annos  de  cadeiras  parti- 
das, de  discursos  pulhas,  e  de  composições  e  si- 
zões  para  a  direita  e  para  a  esquerda  do  antigo 
partido  fontista,  ahi  temos  thronando  um  dos 
compósitos  ministeriaes  mais  heterogéneos  e 
peores  que  leni  havido,  porque  governam  o 
paiz  as  esposas  e  as  filhas  dos  ministros,  em- 
quanto  <>s  maridos  e  <»s  pães  andam  pescan- 
do, nas  alias  e.  baixas  de  fundos  que  elles  mes- 
mos provocam,  a  fortunasinha  arranjada  de 
combinação  com  os  banqueiros. 

Tivesse  o  rei  escutado  a  voz  da  espo- 
sa, naquelle  memorável  conselho  de  mi- 
nistros, uma  tarde,  quando  o  gabinete  atur- 
dido ptdas  terríveis  accusaçòes  feitas  a  um 
dos  seus  membros,  ousou  supplicar  da  coroa, 
dizem,  a  iminediala  amputação  do  aceusado  : 
e  não  teríamos  assistido  a  essa  barafunda 
medonha    de    processos,    represálias    exerci- 


OS  GATOS  ,S'» 

das  contra  adversários,  sobre  o  testemunho 
de  minutas  duvidosas ;  de  copias  photographi- 

documentos  officiaes,  mandadas  tirar 
aos  volumes,  pelos  ministros,  como  arma  de 
vingança  contra  futuras  accusações;  e  a  toda 
insolente  prosápia  que  se  lhe  vem  seguin- 
do dopois,  fundada  na  impunidade  d' uma  pri- 
meira absolvição,  e  ameaçando  impor-se  em 
dictadura  á  do  rapazolla  recem-coroa- 

[ue  ahi  está  no  paço  de  Belém,  á  espera 
do  primeiro  ensejo  p'ra  debutar  com  uma  to- 
lice. 

untar-me-hão  agora  se  o  senhor  I». 
Luiz  foi  !>"ni  ou  mau,  como  soberano.  Bom, 
dada  a  espécie  de  gente  que  o  cercava.  Pe  - 
simo,  quanto  á  ruína  <1"  paiz,  que  o  seu  rei- 
nado adcantou  mais  què  uenhum. 

D'elle  se  conta  <ill('-  sabedor  <l;i^  eiupal- 
manças  que   lhe  fazia  o  medico,  u'uma  pre- 

i\n  de  charutos,  mandara  occultar- 
Ihe  na  tampa  um  apparelho  de  musica,  que 
desandou  a  tocar,  d' uma  vez  em  que  o  vicioso 
doutor  tentou  abril-a.  Isto  define  talvez  i  sua 
attitude  sobre  o  throno,  qne  foi  b  d'um  in- 
telligente  bem  intencionado,  frouxo  é  verdade, 
mas  eh  ;"  do  respeito  de  sen  cargo,  e  cons- 


84  96  BATdfl 

ciente  das  altíssimas  responsabilidades  que 
impendem  â  corna,  como  fiadora  das  institui- 
ções e  da  ordem  nacionaes.  infelizmente  elle 
Dão  podia  esconder  realejos  d'alarme  na  lam- 
pa de  Iodas  as  concessões  e  contratos  do  sen 
ministério,  attento  o  barulho  infernal  que  isso 
faria  a  Ioda  a  hora,  em  toda  a  parte,  e  por  to- 
dos elles.  Qualquer  linha,  de  condueta  diversa 
d'aquella  que  pessoalmente  seguiu,  haveria 
precipitado  irreparavelmente  a  nação  em  ban- 
carrota politica  e  financeira.  Entanto  o  seu  rei- 
nado escora  apenas  nina  obra  de  presente,  e 
não  deixa  um  raio  de  luz  que  atravessando  a 
historia,  vá  recordar  o  seu  nome  á  civilisação. 
Foi  ephemero,  deletério,  sem  ideal,  sem  hom- 
bridade. Do  seio  dos  costumes  políticos,  que  elle 
talvez  pretendesse  adoçar,  rebentam  cada  vez 
mais  paixões  ignóbeis.  E  d'aquelles  vinte  e  oito 
annosde  parlamentarismo  não  fica  um  orador; 
de  lautas  pugnas  jornalísticas  não  liça  um  ar- 
tigo; da  litteratura  que  elle  apadrinhou,  não 
lica  uma  pagina;  dos  artistas  que  protegeu,  não 
fica  um  quadro,  uma  estatua,  um  edificio;  e 
d'essa  alta  finança  emfim,  que  fez  no  seu  reina- 
do a  chuva  e  o  bom  tempo,  não  restará  sequer 
um  perdulário  de  gosto,  ou  um  philantropo. 


.is  ., nos  85 


Fechando  o  casa. 

0  rei  que  vem,  tergiversa  do  pae,  ou  con- 
tinua-o?  Saltando  para  a  tipóia  do  throno, 
eil-o  entra  na  Ajuda  governado  i><'l<>  snr.  José 
Luciano,  o  mesmo  sereno  que  .naba  '1*'  levar 
a   S.  Vicente  o  rei  finado.   É  mau  começo ! 

Emquanto  simples  janota,  o  snr.  I>.  Car- 
inha uma  certa  graça  ao  interpretar  a  co- 
roa como  uma  espécie  de  chapéu  de  coco,  em 
oii...  que  se  passeia  em  trens  de  pra 

,'i  catita  nos  beijamãos  de  que  reza  o  ka- 
íendario.  Mas  depois  d'aclamado,  o  caso  muda: 
;i  coroa  pesa,  e  o  janota,  ou  a  põe  como  deve, 
ou  '-  mbora.   Vida   nova   numa  Be  fez 

com  gente  velha. 


86  OS  GATOS 

Seguada-feira  -2!  d'outubro,  pelas  10  ho- 
ras da  Qoite,  foi  o  cadáver  do  rei  trazido  da 
alcova  mortuária  de  Cascaes  para  o  grande 
c  iche  que  devia  arrastal-o  até  aos  Jeronymos. 
Estava  uma  aoite  escura  e  tormentosa,  com 
ventania  e  chuviscos ;  por  forma  que  a  aba- 
lada da  cidadella,  á  luz  «los  brandões  e  dos 
archotes,  foi  uma  d'estas  grandes  pinturas  a 
dois  tons,  negro  e  vermelho,  magnificas  para 
gravar  no  espirito  a  nota  fúnebre,  e  para  tra- 
zer a  emotividade  publica  á  suasão  óptica 
(1'iiiiia  espécie  de  calastrophe  irreparável.  Sa- 
bido da  camará  ardente,  o  cortejo  desceu  as 
escadas  que  vem  da  bateria  ao  pateo  da  cida- 
della, desenrolando-se  lentamente,  em  sUhouet- 
tes  tenebrosas,  sobre  o  fundo  da  muralha 
lambida  pelo  sanguino  de  chamma  dos  luzei- 
ros. Vinha  adeante  um  monte  de  Sguras,  que 
me  disseram  ser  os  imarda-roupas,  os  moços 
de  camará,  particulares  e  reposteiros,  o>m 
brandões  que  derretiam  de  lado,  ao  revolu- 
teai' dos  fogachos  torcidos  pelas  inquietações 
da  ventania;  e  logo  apoz  o  grande  vulto  da 
tumba  coberta  de  velludõ  roçagante,  e  trazida 

cm    padiolla  por  archeiros  fardados  de  verme- 
lho e  d'amarello.  A<piel!e  enorme  caixão  vinha 


o-  GATOS 


S7 


sem  pressa,  e  d'aonde  eu  estava,  parecia  <in,> 
alguém  por  detraz  se  lhe  tinha  agarrado  á  ca- 
irá, como  quem  se  abraça,  desesperado, 
;i  uma  jangada  que  vem  de  rustilhão,  por  uma 
cheia. 

Era  a  rainha. 

Grande  e  de  negro,  com  uma  cauda  de 
lastima  e  um  grande  veu  de  musa  da  trage- 
dia, essa  mulher  tinha  no  porte  a  formidável 
rigidez  com  que  a  dor  cadaverisa  o  orgulho 
humano,  e  esse  prestigio  hierarchico,  araplis- 
simo,  grandioso,  que  mesmo  aos  sceptieos  se 
impõe  como  um  retoque  de  Deus  sagrando  as 
is  pre  lestinadas  a  eternamente  intervir 
nos  destinos  dos  homens  e  das  nações. 

An  lado  d  infante,  o  filho  amado,  o  queri- 
•  ib  <;  i,  o  mais  que  todos  real  e  galhardo 
gentilhomem  da  família — esse  de  roda  a  ruja 
impetuosa  mocidade,  franqueza  rude,  e  lim- 
pidez serena  de  caracter,  todas  as  sympathias 
acordam,  como  em  presença  d'uma  Ggura  des- 
herdada  por  engano  chronologico,  da  fortu- 
na politica  de  ser  rei. . .  E  vem  depois  minis- 
tros, açafatas,  padres,  gentishomens  :  aquil- 
lo  tudo  espalha-se  com  altitudes  phantasmati- 
iteo,  1111111  circuito  piedoso  que  é 


88  os  GATOS 

uni  drama  de  tinta  da  China  e  vermelhão,  á 
Luz  das  tochas  —  quando  de  vagar  um  coche 
avança,  os  padres  se  achegam  murmurando 
as  encommendações  do  ritual,  e  o  athaude 
entra  por  fim  dentro  do  cano,  qo  meio  da 
estropiada  da  cavallaria  que  se  põe  a  cami- 
nho, pela  estrada  de  Lisboa,  da  sotiirnidadc 
da  noite  (pie  amadorna  as  alturas,  da  impa- 
ciência do  vento  que  faz  bruxulear  as  cham- 
mas  dos  tocheiros,  e  da  melancholia  do  ocea- 
no, phosphorente,  alli  perto,  a  cantochar  o 
psalmo  das  grandes  agonias  apasiguadas  em- 
liui  no  seio  da  morte  ! 

Lenta,  mui  lenta,  a  procissão  caminha  pela 
estrada,  abandona  o  povoado,  entra  nos  cam- 
pos; a  rainha  fechou-se  n'um  landeau,  os  di- 
gnitários fizeram  o  mesmo;  só  os  eivados  vão 
de  roda  ao  carro  fúnebre,  espalhando  o  cre- 
púsculo das  luzes,  palmilhando  a  lama  de  bi- 
corne, vestidos  d'escarlate  e  d'amarello  co- 
mo arlequins.  A  cada  passo,  uma  casa  entre- 
mostra-se  nas  arvores,  um  portão  de  quinta 
entreabre-se,  luzes  avançam,  e  é  toda  uma  fa- 
mília <pie  desce  a  receber  o  enterro,  attonila 
da  mistura  de  grotesco  e  de  trágico  que  elle 
repercute.  Depois  percorrem-se  ainda  novos 


OS  GATOS  89 

campos  de  sombra,  atasqueiros  medonhos, 
miI.is  ásperas  entre  rochedos  e  muros :  e 
ouvem-se  <>s  cães  latir  funebremente,  ha  vozi- 
dos  de  mochos,  e  estrondos  de  canhões  longín- 
quos, que  vem  sobre  a  agua,  n'um  ullular 
oVespanto  e  de  pavor. 

A  estrada  é  difficil,  pedregosa,  ondulante, 
ora  a  eslreitar-se  entre  barreiras,  ora  a  des- 
cer  tumultuosamente  a  terrenos  do  leveda  e 
escusos  valles,  em  que  se  ouvem  gorgear  as 
lymphas  dos  barrancos. 

Nas  arvores  que  passam,  desconnexas  de 
forma,  em  grupos  umas,  outras  destacadas 
como  torres  e  monstros  na  côr  de  cinza  do 
ar,  ha  como  acenos  de  pantomima  e  de  ga- 
lhofo. As  rajadas  do  vento  trazem  do  largo 
rumores  não  se  sabe  de  que,  segredos,  bei- 
jos, imprecações,  misérias,  lastimas,  insultos 
—todas  as  vozes  das  coisas  em  que  ainda  ha 
consciência  e  restos  de  pessoas.  E  quando  se 
I11""'  o  ouvido  á  escuta,  ouvem-se  phrases  in- 
teiras, da  terra  que  tem  fome,  do  ar  que  tem 
miasmas,  das  arvores  que  uru»  querem  mais 
estar  captivas,  do  mar  que  pede  que  o  lar- 
guem, para  tragar  d*mn  gole  o  mundo  in- 
teiro ! 

i 


90  OS  GATOS 

A  obsessão  da  morte  paira  na  ideia  de  quan- 
tos alli  vão.  Raros  conseguem,  n'essa  aspérri- 
ma jornada,  fechar  olho;  é  uma  inquietação, 
uma  impaciência,  unia  angustia  de  lodos  os 
nervos  e  de  todos  os  suspiros,  que  parece  que 
se  tem  no  peito  a  pedra  d  um  sepulchro,  e 
que  todo  o  resto  da  vida  se  nade  passar  as- 
sim 11'aquella  treva  espessa,  empós  d'a<pie!!a 
rainha pallida,  comboiando  o  rei  morto,  como 
Joanna  a  doida,  atravez  as  solidões  dos  seus 
estados. 


.lá  não  tem  conta  as  vives  que  o  préstito 
fez  alto,  as  cabeças  vieram  espreitar  ás  vidra- 
ças dos  carros,  e  cravados  em  lama  até  ás  cur- 
vas, os  archeiros  se  uniram  p*ra  desencalhar 
dos  atascaes  o  coche  mortuário.  Longe,  n  uma 
zona  do  ar  que  deve  ser  a  cúpula  de  Lisboa, 
um  diiVnsivo  rubor  tinge  de  vivo  a  noite  lo- 


OS  GATOS  ÍU 

brega.  É  o  reverbero  do  gaz  d'encontro  ás  nu- 
vens. E  a  cada  instante,  fitando  âquella  aurora 
ephemera  e  movediça,  que  ll;m  avança,  nem 
se  caracterísa,  nem  se  alastra,  todos  pergun- 
tam se  falia  muito  ainda,  impacientes  porque 
lhes  finde  o  pezadelio. 

i  viuva  quer  que  esse  caminho  não  fin- 
de, que  essa  jornada  prosiga  sem  acabar  ja- 
mais, ao  vento,  ,'i  chuva,  entre  as  animalidades 
chimericas  que  a  imaginação  ergue  das  trevas, 
entre  os  soluços  da  sua  alma  ulcerada  demar- 
tyrios,  entre  a  agitação  dos  pânicos  tumulares, 
e  Iodas  as  grandes  illusões  crucificadas  e  des- 
feitas d'aquella  sua  ultima  noite  de  rainha. 
Dòr,  que  deliciosa  tu  és  para  essa  mulher 
que  ainda  tem  a  coroa  na  cabeça,  qu  nulo  cila 
ousa  comparar-te  ás  grandes  agonias  d'enve- 
Ihecer  amanhã  n'um  palácio  sem  c  >rte,  nem 
recepções,  nem  comitivas,  alli,  a  um  canto, 
longe  da  culminância  do  throno,  -  i  vohés 
•  la  imprensa,  dos  grandes  triumphos  scenicos 
de  roçagar  1 ;ados  e  velludo  cida  tal- 

vez pelos  próprios  miseráveis  que  ella  cobriu 
de  benefícios,  e  dos  dignitários  e  servidores 
que  fez  tremer  sob  a  imperii  estão  do 

seu  olhar ! 


92  OS  GATOS 

ol,  (.onio  ella  quizera  encher  esse  caminho 
de  círios  que  fossem  incêndios,  como  ella  qui- 
zera  tetanisar  esse  cadáver  de  gestos  que  fos- 
sem resurreições,  e  surgir  outra  vez  transfi- 
gurada ante  o  seu  povo,  reviver  a  existência 
altivola  d'outr'ora,  quando  em  S.  Carlos,  ves- 
tida  côr  de  malva,  os  cabellos  magnificos  em 
aureola,  via  as  mulheres  invejarem-lhe  o  pres- 
tigio, e  toda  a  gente  emover-se  á  incompará- 
vel distincção  da  sua  estatuária  ! 

I".  em  terríveis  golphões,  as  suas  lagrimas 
de  novo  a  asphixiam  :  a  camareira  toma-lhe  a 
cabeça,  de  joelhos  supplica-lhe  coragem:  ella 
alo  pôde,  ella  rebenta;  soluços  trágicos  der- 
rancam-lhe  aarchitectura  oobre  de  princeza,  o 
temperamento  hysterico  visiona-lhe  para  alem 
do  real,  as  contusões  da  sua  grande  queda,  f 
dos  gritos  da  garganta,  semi^roucos,  lè-se  a 
angustia  da  christã  que  não  p  l(  afogar  em 
si  ;i  cólera  da  rainha  impotente  para  mandar 
castigar  Deus,  fano  o  faria  a  qualquer  regici- 
da, seu  vassallo  ! 

\  cada  momento  o  infante,  Inquieto,  traz 
o  cavallo  á  portinhola  do  landeau,  bale  nos 
vidros:  os  dois  rostos  contemplam-se. 

—  Petite  mère,  vas  tu  bien  ! 


os  GATOS  98 

Oh,  se  ao  menos  este  filho  mais  novo  fosse 
o  rei ! .  . . 

Na  lama.  os  coches  ameaçam  ficar  despeda- 
çados,as  grandes  rodas aeravam-se  té  aos  eixos, 
rangem  as  correias,  o  gado  esfalfa-se,  e  a  fadi- 
ga dos  moços  é  pelo  menos  egual  á  dos  muares. 

Luzes  iiiiiii  vale.  Um  logarejo!  õ  caminho 
aplaina-se,  e  pela  primeira  vêz  podem  marchar 
em  préstito  ordenado. 

A  beira  da  estrada,  iUnminados  com  lâm- 
padas eléctricas,  chalets  anisam  no  cen  plum- 
os  cocurutos  d'ardozia:  ha  stores  de  co- 
res, salinhas  de  jantar  com  arbustos  de  luxo, 
pianos  abertos,  cristaes,  gaiolas  e  tons  claros; 
depois  cantos  de  parqui .  d'onde  sahe  um  bu- 
lício de  cascatas  e  de  folhas,  portões  senho- 
riaes,  alterosos  cancellos,  grandes  palácios 
mudos  como  fortalezas:  e  de  todos  os  recan- 
tos da  noite  chegam  tochas,  homens  e  senho- 
ras, creados  ainda  em  avental,  bebés  que 
trazem  na  bocca  uns  restos  de  bríoche  e  de 
torrada,  toda  uma  população  volúvel  de  praia 
que  tomou  chá  mais  cedo,  essa  noite,  e  vestiu 
;i  pressa  o  dominó  do  lucto  publico,  para  as- 
sistir entre  duas  walsas,  ao  que  ella  já  inti- 
tula — a  chegada  <lo  cirio  de  Casi 


94  OS   GATOS 

Á  passagem  do  féretro  alguns  inclinam-se, 
d  ura  murmúrio  d' avidez  passa  nas  boccas  —  é 
a  rainha,  é  a  rainha  —  quando  o  landeau  fe- 
chado entra  na  zona  luminosa  do  caminho. 
Todos  desejariam  vêr  o  rosto  d'ella,  tanto  a  me- 
moria do  publico  está  cheia  de  rumores  sen- 
timentaes.  .  a  sua  dedicação  magnifica,  as 
vigílias  no  quarto  do  marido,  e  das  palavras 
solemnes  que  ao  filho  disse,  hirta  e  de  negro, 
estendendo  a  mão,  já  sem  anneis,  sobre  o  ca- 
dáver. . .  Lamenta-se  em  geral  que  os  focos  elé- 
ctricos tenham  estragado  o  golpe  de  vista  fú- 
nebre das  tochas,  11  que  aos  iniciadores  da 
recepção  não  occorresse  mandar  parar  a  ma- 
china,  em  termos  «las  lâmpadas  ^incandes- 
cência não  acanalharem  âquelle  ponto,  o  ves- 
tuário d'entrudo  <los  archeiros. 

—  É  a  rainha!  é  a  rainha! — e  algumas 
tochas  quasi  lhe  vem  bater  nos  vidros  do 
landeau,  como  a  chamal-a,  para  que  venha 
agradecer  a  proscénio  aquella  manifestação  de 
sentimento.  Ella  não  sente,  ella  não  ouve  : 
passa  indifferente  a  algazarra  e  aos  commen- 
tarios. . .  é  que  o  seu  ouvido  bebe,  atravez  do 
brouhaha  d'esse  publico  grazina,  disfructador, 
postiço  e  miserável,  não  sei  que  som  de  pia- 


os  GATOS  95 

nu.  i,'i  longe,  lento  e  abafado  entre  os  arvore- 
s,  um  som  de  piano  hostil,  que  nem  á  pas- 
sagem do  rei  morto  <illiz  calar-se. 

j";  é-se  talvez  feliz  I  Srr  feliz. . .  aonde? 
como?  E  esta  ideia  molesta-a  por  fÔrma  que 
as  -nas  lagrimas  rompem  outra  vez,  u'um  cho- 
ro manso,  agora  sem  soluços,  sem  queixas, 
íuima  eflusão  de  ternura  súbita,  fundente, 
choro  de  mulher  emfim  desilludida  das  arti- 
Qciaes  condolências  de  quem,  mesmo  ao  inte- 
ir-se  por  lastimas  d'outrem,  por  mais  que 
queira,  Qca  totalmente  estranho  á  essência  del- 
ias. 

Oh  lagrimas  puras  de  rainha  desilludida, 
que  te  resolves  alfim  a  ser  mulher!  Deus  ha- 
verá pesado  essas  amaríssimas  horas  da  tua 
fraqueza,  e  permittido  que  tu,  não  podendo 
entrar  na  immortalidade  por  mercê  de  gran- 
.,  i  menos  Qques  na  memoria  dos 
artistas,  como  uma  translúcida  visão  '1"  femi- 
nino eterno  e  do  ireal ! 


%  OS  GATOS 


Outra  vez  o  cortejo  entra  na  noite,  e  pro- 
segue  entre  os  clarões  <]<>s  archotes,  a  sua  va- 
garosa marcha  mortuária.  Na  frente  ha  um 

esquadrão  de  soldados  a  eavallo,  moços  com 
fachos,  e  logo  em  seguida  os  trens  num  gran- 
de renque,  após  dos  quaes  vem  o  landeau  da 

rainha,  o  coche  fúnebre  e  o  carro  de  respeito, 
fechando  tudo  com  as  gentes  do  infante,  e 
outro  magote  ainda  de  creados  a  eavallo. 
AqiiHIa  lenta  cobra  engolpha-se,  coleando,  na 
escuridão  phantastica  da  estrada,  onde  o  cla- 
rão dos  fachos  deita  instantâneos  golpes  de 
vermelho.  Á  direita,  por  baixo  dos  taludes  da 
rocha,  o  rio  resfolga  :  é  uma  planura  densa  e 
alcatroada,    linhas  dYspunia  e  phosphoro  nas 

ondas,  fervores  e   fugas,  galgões,  açoites,  o 

para  além  d'agua,  uma  grande  barra  de  mon- 
tanhas, esbatida  a  nankim  sobre  um  cen  d'es- 


66  GATOS  97 

ponja,  onde  escorregam  franjas  gigantescas, 
em  todas  ;>s  gradações  do  cinzento  lívido  das 
nuvens  prenhes  d'agua.  Da  esquerda,  abruptos 
socalcos,  despenhadeiros  6  ranhuras  de  cal- 
vários, onde  alguma  arvore  se  estorce  às  ra- 
jadas do  vento.  E  para  além,  charnecas  ala- 
gadas de  tinta,  sem  luzes,  sem  perspectivas, 
sem  arvores,  d'uma  desolação  perplexa,  a  res- 
sumbrar nostalgias  d'ossuario.  Dir-se-hia  nina 
paysagem  do  rei  Lear,  a  três  cores  opacas  e 
infundiveis,  <»  negro,  o  vermelho  e  o  pardo, 
e  nenhum  horisonte  mais  que  a  névoa,  e  ne- 
nhuma decoração  além  d'aquellas  núpcias 
orgulho  e  da  morte,  arrastando-se  ao  passo 
dos  cavallos. 

Carcavellos.  A  estrada  internou-se  pela 
terra,  deixamos  d'ouvir  o  rio,  e  n'essa  cam- 
pina raza  ha  ura  silencio  de  campos  sem  cul- 
tura, que  o  latido  «los  cães  apenas  atormenta. 
Alguns  pinhaes  mais  além,  gemem  ao  longe; 
depois  a  estrada  enterra-se  entre  muros  de 
quinta,  galga  pontes  vetustas,  lançadas  por 
cima  «li1  riachos;  passa-se  o  arco,  e  Oeiras 
apparece.  Novos  archotes,  gente  ás  janellas, 
luzes,  magotes  de  povo  ao  longo  da  rua  irre- 
gular por  onde  o  enterro  passa. . .  Depois,  tor- 


98  us  GATOS 

nam-se  a  ouvir  os  marulhos  do  Tejo,  pela  di- 
reita, ;i  dois  tiros  d'espingarda,  e  alvejam  co- 
mo montanhas  d'ossos,  a  um  lado  e  outro  «lo 
caminho,  os  depósitos  de  pedra  dos  canteiros 
de  Lisboa.  Entra  a  chover.  A.s  grandes  franjas 
de  nuvem  que  zebram  o  ceu,  parece  que  se 
alongam  cada  vez  mais,  como  enormes  crepes. 
Por  momentos  dil-as-hieis  miragens  d'arvores 
gigantes,  cryptomerias,  copressos,  wellingto- 
uias,  todos  os  monstros  da  flora  anti-diluvial 
dos  velhos  continentes,  com  a  sua  sensação 
de  pesadello  subterrâneo  e  mina  de  hulha,  a 
sua  luz  hyperborea,  e  a  frialdade  medullar 
que  infundem  as  grandes  obras  da  natureza 
em  via  de  regressão  ao  eterno  nada.  Caxias, 
Gibalta,  Boa  Viagem. . .  já  uma  vida  começa 
a  trepidai'  a'esse  muda  longiquo  arrabalde  de 
Lisboa.  A  estrada  vae  quasi  toda  á  beira  rio. 
lia  poucos  arvoredos,  mas  os  jardins  abun- 
dam, fechados  em  muros  alvos,  os  chalets 
abrem  os  olhos  pelas  persianas   das  janellas, 

tornam-se  a  vèr  salinhas  confortáveis,  inte- 
riores de  família,  nurserys  claras  onde  as 
creanças  de  bibe  tomam  chá,  ou  adormeceram 

nos  braços  das  poltronas:  e  de  repente,  no 
alto  da  Boa  Viagem,  <>  panorama  do  rio  abre- 


06  GATOS  '•,'-> 

mi  leque,  na  aoite,  entre  Ires  fogos  <!»■ 
pharoes— Cacilhas,  S.  Julião,  e  Torre  de  Be- 
lém! 

Rembrandl  apenas,  ou  Domingos  Sequeira, 
poderiam  dar  n  impressão  do  que  me  passou 
pela  cabeça,  n'aquelle  morro  calado  sobre  <> 
mar,  às  duas  horas  d'aquella  madrugada  d'ou- 
tubro,  sol»  a  chuva  e  o  vento,  e  os  aspectos 
trágicos  da  natureza  e  dos  homens  conluiados 
na  mesma  conspiração  de  bello-horrivel.  É 
qaasi  certo  que  me  liei-de  rir  amanhã  d'estas 
visões,  cujo  fundo  d'assombro  não  existia  lal- 

senão  na  febre  gestadora  do  meu  cérebro: 
entanto  é  extraordinária  ;i  epilepsia  com  que 
a  imaginação  começa  a  esfuriar-se  em  certas 
lioras,  e  larga,  das  cavernas  do  medo,  <»  bes* 
tiario  ila  allucinação  doida  e  disforme ! 
Sobre  a  planura  d'agua,  lá  em  baixo,  nm 

imento  ascencional  d'ebullição  fazia-se  na 
sombra,  um  rumor  de  diluvio  —  mt  eut  — 
prestes  a  engulir  d'um  salto  a  costa  e  a  terra: 
aquillo  crescendo  em  vozidos  roucos,  da  bar- 
ra, como  um  tropel  de  loiros  furiosos:  quan- 
do por  cima,  nutro  bestiario  maior  rolava  já, 
<li'  nuvens  lobregas,  d'animaes-demonios,  de 

a  talhados  na  turgencia  da  deformidade, 


100  OS  GATOS 

larvas  e  sphinges,  morcegos  e  pantheras,  mis- 
turando espécies  incoherentes,  as  viscosas  ás 
córneas,  e  o  todo  a  esfarrapar-se  em  chuva 

SObre  a  cabeça  das  coisas  que  locava.    Aqui  e 

além,  fanaes  que  por  instantes  se  somem : 
phosphorencias  que  voam,  como  fogos-fatuos, 
sobre  a  crista  das  ondas;  ou  súbitos  relâm- 
pagos, a  que  succede  uma  Gada  d'estrondos 
de  canhão...  E  das  bandas  da  terra,  a  mes- 
ma indecisa  abundância  de  negrumes,  sem  si- 
lhouette,  imbricados  mis  nos  outros  como  ar- 
dósias, e  obliquando-se,  em  sinuosas  linhas, 
té  á  agua.  São  terras  lavradas,  parques,  fun- 
dões adormecidos,  charneca,  solidão  .  .  De- 
pois uma  serie  de  manchas  lívidas,  sobrancei- 
ras ás  informes  corcovas  d'essas  trevas,  a  tre- 
pidarem d'incertas  claridades:  e  por  ultimo  as 
raras,  as  fugitivas  zonas  luminosas...  o  re- 
verbero d  um  candieiro  ífuui  muro  branco,  o 
braço  (ruma  torre,  hirto  no  ar — aquillo  sus- 
penso em  attitudes  de  capricho,  e  entre  esse 
ruge-ruge  de  vida  invisível,  que  é  á  noite,  a 

respiração  dos  sítios  habitados. 

I)'ahi  por  deante,  é  já  Lisboa.  Successi- 
vamente  a  estrada  povoa-se  de  gente,  ha 
candieiros    de    petróleo  nas  janellas,    carro- 


OS  GATOS  101 

e  burros  de  lavadeiras  do  caminho,  po- 
li s  pateos,  nas  tabernas,  á  porta  das  estala- 

.    QS. 

Cruz  Quebrada:  nova  recepção  com  bran- 
s,  mi  bairro  dos  chalets.  Seguidamente  o 
c  >rtejo  faz  a  sua  entrada  no  Dafundo,  passa 
.  itre  o  jardim  publico  e  as  residências  de 
campo  que  alli  ha,  entra  em  Algés  ao  troar 
dos  canhões  da  bateria,  avança  ainda  pelo 
corredor  do  Bom  Successo,  e  vem  apontar  fi- 
nalmente ao  arco,  como  uma  scena  de  Hugo, 
interpretada  a  guache,  por  Gustavo  Doré. 


\  chegada  aos  Jeronymos  é   lúgubre,   o 
resmunga  :   ha   nevoeiros  que   fecham   o 
jonte,  e  envolvem  n'uina  gaze  alvacenta, 
•  g  lampeões ;  e  cada  vez  mais  o  ceu  rebate  sobre 
íCtos,  ventre  á  t>n- .  o  seu  chuvisco  fino  e 
enregelado!  Da  fachada  L.r<>iliie;i  da  igreja,  ama- 
n  Ho  ferrugem,  que  dir-se-hia  feita  d^ssos  ca- 
riados, apenas  se  lobrigam  na  luz  dúbia,  aos 
lados  do  pórtico,  grandes  janellas  esguias,  cu- 
jos vitraux  choram  vermelho  e  azul,  em  gran- 
gottas,  e  a   torre  bysanthina  de  Cinatti, 
i   no  angulo  solido  do  edifício,  como  a 


[02  os  &AT0S 

thiara  d'um  papa  sepultado  lá  dentro,  aos  pés 
do  altar. 

Do  sitio  em  que  eu  estou,  aquella  thiara 
immensa  occulta-me  as  primeiras  torres  dos 
dormitórios  da  Casa  Pia,  e  um  grande  bocado 
ainda  de  muralha:  e  só  vejo  lá  longe,  dois 
phantasticos  laivos  perderem-se  uo  ceu  cin- 
zento, brancos  e  linos,  que  são  as  outras  duas 
torrellas  octogonas  entre  que  se  abre  a  en- 
trada paia  o  Museu  Commercial. 


Dentro,  na  igreja  impossível  d'esclarecer 
cnii!  luzeiros  de  lâmpadas  e  Inchas,  uma  sa- 
grada penumbra  erra  nas  naves:  ha  pavores 
seculares,  restos  de  lendas  trazidas  das  via- 
gens, demoninharias  medievas,  nos  escani- 
nhos das  capellas  e  dos  nichos:  e  pela  abo- 
bada alta,  artezoada  em  caixões  de  bordos 
salientes,  figurando  rozaceas,  cruzes  e  xadre- 
zes, turvos  vapores  osciilam  como  incensos, 
apagando  os  relevos,  prolongando  mais  a  des- 
mesurada altura  tias  columnas,  e  locando  tudo 
do  quer  que  é  d'apotheotico  e  d 'incerto.  Aparte 
a  capella-mór,  todo  o  templo  está  limpo  de 
decorações  e  d'ornamentos,  e  conserva,  á  luz 


(iv  GATOS  103 

das  velas,  a  sua  Qudez monástica  ©grandiosa. 
E  é  magnifico  vèr  todos  esses  columnellos 
pallidos  subirem,  alados  quasi  á  força  de  li- 
geiros, té  ao  tecto,  a  destacar  sobre  <>  boquei- 
rão de  noite  que  é  ó  coro  ás  escuras,  aberto 
ao  vago,  e  em  cujo  mysterio  os  ckatom  da  ro- 
sácea pòem  como  dois  olhos  de  gato,  cor  de 
phosphoro. 


Kis  o  instante  do  cortejo  abordar  a  grada- 
ria externa  do  mosteiro.  Renques  de  povo  en- 
chem os  passeios  fronteiros  a  essa  grade,  e  é 
pelo  c  rredor  intermédio  que  <»s  lanceiros 
mi,  que  os  trens  desfillam,  e  os  homens 
de  vermelho  brandem  archotes,  como  velhos 
d'entrudo,  ao  de  redor  do  carro  fúnebre.  Vejo 
uma  procissão  de  tochas  golfar  então  da  por- 
taria dos  Jeronymos,  descer  á  rua,  envolver 
em  clarões  bruxuleantes  o  pórtico  e  todas  as 
incorpóreas  rendas  da  fachada  :  e  logo,  u 
circulo  de  chammas,  homens  d'escuro  virem 
ao  chão,  reverenciando  a  mulher  que  sahiu 
il(»  landeau,  e  que  parece  enorme  e  sphingica, 
n'aquella  postura  immovel,  entre  as  brumas 
do  veu,  como  uma  allegoria  de  dòr  e  expiação. 


un 


OS    GATOS 


.lá  prestes,  grandes  alas  se  abriram  para 
deixal-a  passar,  direito  á  igreja.  Porém  ella 
voltou-se,  alguma  coisa  lhe  falta,  abaixa  a 
vista;  c  a  camareira  comprehende... 

É  a  cauda,  que  convém  primeiro  despregar 
nas  lageas,  em  pregas  tnagestaticas,  uma  a 
uma,  não  vá  ella  estragar  a  sua  grande  en- 
trada d'atriz,  na  scenographia  gothica  da 
igreja. 


^3f%=. 


OS   GATOS 


FIALHO  IVALMEIDA 


OS  GATOS 


PUBLICAÇÃO  MENSAJ  . 

D*INQUERITO  Á   VTDA  PORTUGUEZA 


L°  3— Nff^mbro  de  1889  a  Fevereiro  de 


PORTO 

Casa  Editora  Au  mo  Aranha  &  C* 

Bua  ,;,,  Bonjardim,  86 

FILIAL  EM  LISBOA 
Bua  dos  i:  ~n 


PI  >RT<  I 
Typ.  da  Ernpreza  Litteraria  e  Typographica 

178,  Rua  de  D.  Pedro,  184 


SUMMARIO 


O  ENTERRO  DO  REI  D.  LUIZ  —  BANDEI- 
RAS A  MEIO  PAU,  VITRINES  A  MEIO  TAI- 
PAL, SALVAS  A  MEIA  PÓLVORA,  E  PA- 
TRIOTAS A  MEIA  LAGRIMA  — A  COMEDIA 
DA   DÒR:    JORNAES,    TALHOS   E  LOGISTAS 

—  OS  QUE  TRAFICAM  COM  A  MORTE  —  O 
NOBRE  ANCIÃO  QUE  AGRADECE  AS  DE- 
MONSTRAÇÕES DE  PEZAR  AOS  ESTRAN- 
GEIROS —  CORRELAÇÕES  MVSTERIOSAS 
ENTRE  0  CHAVELHO  E  O  LUCTO  —  LISBOA 
MACABRA— DE  COMO  NADA  A  DIVERTE 
MAIS  DO  QUE  LM  ENTERRO  —  PALA  A 
HISTORIA  DA  MINHA  AFFECTI VIDADE  — 
O  QUE  FOI  O  SAHIMENTO  FÚNEBRE  DO 
REI  — OS  MAGNATAS  TLLM  QUASI  TODOS 
CARAS    D'ESTUPIDOS    OU   DE  FACCINORAS 

—  RÁPIDO  ESBOÇO  DO  PRÉSTITO  —  POR 
QUEM   CHORA  ESSE  COCHEIRO  HE  PRAÇA? 

—  AS  DEPUTAÇÕES  POPULARES— O  REI 
EM    DUAS    PORÇÕES  —  PORQUE   NÃ<»    VEIO 


VI  SUMMARIO 

A  TERRA  O  D'EDIMBtrRGO  —  DE  COMO  O 
ENTERRO  DO  TIO  ACIRROU  NO  SOBRINHO 
IDEIAS  DE  PROPAGAÇÃO—  PEDE-SE  AO 
PUBLICO  QUE  VÁ  VISITAR  O  HOSPITAL  E 
A  ESCOLA  MEDICA  — AS  ENFERMARIAS, 
AS  AULAS,  E  O  RETRATO  DE  D.  JOÃO  VI 
—  DERROCADA  GERAL  —  O  DR.  THOMAZ 
DE  CARVALHO  DECRETA  A  ABOLIÇÃO  DO 
CAPILÉ  — REFORMAS  A  INTRODUZIR  NO 
CURSO  MEDICO  —  COMO  OS  GOVERNOS  CU- 
RAM DO  ALTO  ENSINO  —  D.  LUIZ  DECLA- 
RADO PAE  DA  MEDICINA  PORTUGUEZA  — 
RECEANDO  FICAR  SOB  OS  ESCOMBROS, 
ALGUNS  PROFESSORES  COMEÇAM  A  DAR 
AULA  NOS  JARDINS  — JOSÉ  LUCIANO  VI- 
SITANDO A  ESCOLA  MEDICA,  ASSUMPTO 
PARA  O  PRÓXIMO  CONCURSO  DE  PINTURA 
HISTÓRICA  — DO  RECEBIMENTO  QUE  POR 
BANDA  DOS  CATHEDRATICOS  HOUVE  — 
GUARDA-CHUVA  SYMIíOLICO,  E  DIALOGO 
EM  QUE  SE  RELATAM  PRODÍGIOS  D^CU- 
LISTICA  —  O  HOMEM  DOS  TRÊS  OLHOS  — 
O  CASO  DA  OPHTALMOLOGIA  FACULTATI- 
VA—JOSÉ LUCIANO,  ARBITRO  MÁXIMO 
DOS  DESTINOS  DA  FACULDADE  —  FORNA- 
DAS DE  LENTES  SEM  CONCURSO  —  MAN  Kl- 


SI  MMARIO  Ml 

ELA  PRATICA  D'AVERIGUAR  SE  UM  RATÃO 
É  CELTA  -  ÍNTERVIEW  COM  0  IMPERA- 
DOR DO  BRAZIL— A  BORDO  DO  «ALAGOAS  , 
DESAMPARADO  —  O  AMIGO  REPÓRTER  E 
0  AMIGO  DE  PENICHE  — A  ROUPA  SUJA 
PRÍNCIPES    NO  DESTINO  DAS  NAÇÕES 

—  DE    COMO    DEODORO    SABIA    QUE  O  IM- 
PERADOR USAVA    MKIAs   BORDADAS— AS 
LI  IAS  DE  BENJAMIM   CONSTANT  E  As  CE- 
LAS   DO    CONDE    D'EU  — O    EXERCITO 

VÊ  NAS  CEROULAS  UM  ANTAGONISMO  DE 
■  A,  i;  BEVOLTA-SE  —  DJEIAS  DE  D. 
PEDRO  II  SOBRE  A  BANDEIRA  DA  REPU- 
BLICA—A FARINHA  DE  PAU,  REFRIGE- 
RANTE DOS  ESTADISTAS  BRAZILEIROS — 
SINQULAB  MANEIRA  D 'ACABAR  UMA  IX- 
TERYIEW  —CARTA  A  D.  CARLOS  SOBRE 
AS  MAGNIFICÊNCIAS  DA  SUA  ACCLAMA- 
ÇÀO  —  SEMELHANÇA  ENTRE  S.  M.  E  O  CO- 
CHEIRO  DA  SNR.a  DUQUEZA  DE  PALMELLA 

—  NECESSIDADE  QUE  I  1IS  i;  AS 
COCOTTES  DE  SEREM  BELLOS  —  COMPU- 
TAM- FESTAS  REAES  •  CORTE- 
JOS ANTIGOS— CRITÉRIO  HISTÓRICO  DA 
REALEZA  —  AFINAL  DE  CONTAS,  QUEM  É 
V.  M.?  —GALERIA  DE  MONSTROS  BRIGAN- 


viu  sim  mm;  io 

TINOS  — O  PAÇO  É  UMA  DEPENDÊNCIA  DA 
LEGAÇÃO  BRITÂNICA— CHEGADA  DO  COR- 
TEJO AO  PALÁCIO  DAS  CORTES:  OS  ARAU- 
TOS, OS  COCHES,  E  AS  BARRIGAS  DAS  PER- 
NAS   DOS    REIS    D' ARMAS  — ASPECTO    DA 
SALA    DO    THRONO  —  O  NÚNCIO  DE  ROXO, 
E    (IRA VIDO  — O    COUPLE   REAL:    PEDEM- 
SE  UMAS  SAIAS   PARA  O  REI,  E  UM  BIGO- 
DE POSTIÇO   PARA   A   RAINHA— FOME  NO 
EXERCITO  E  INTERFERÊNCIA  DO  CIMONTE 
NO  GENERALATO  —  A  CORTE  EM  S.  DOMIN- 
GOS—D. CARLOS  I  E  ULTIMO  REI  DE  POR- 
TUGAL—O   BRAZIL    ENVIOU-NOS    O    SEU 
IMPERADOR  NO    «ALAGOAS»:    PAGUEMOS- 
LHE  A  OFFERTA,  ENYIANDO-LHE  CARPAS, 
N'UMA  BARRICA  DE  SALMOURA— HA  VIN- 
TE DIAS  QUE  O  PAIZ  NÃO  FAZ  SENÃO  GRI- 
TAR, VIVA  A  REPUBLICA!  —A  COROA  NÃO 
TEM    MAIS    QUEM    NA    DEFENDA:    TODO   O 
EXERCITO  É  REPUBLICANO  — O  SONHO  D'U- 
MA    GRANDE    FEDERAÇÃO   PENINSULAR  — 
AMANHÃ. 


Sabbado  26  cToutubro,  trasladação  da  ma- 
jestade extincta  para  o  carneiro  real  de  S. 
Vicente.  Foi  um  dia  feriado  em  toda  ;i  cidade. 
Quasi  todos  os  estabelecimentos  fecharam  as 
suas  portas.  Quasi  toda  a  gente  appareceu  de 
lucto  oas  ruas.  As  bandeiras  estiveram  a  meio 
pau.  I»»'  quarto  em  quarto  de  hora,  os  ca- 
chões das  fortalezas  e  navios  de  guerra  davam 
salvas.  E  os  jornaes  publicaram  retratos  do 
monarcha,  com  artigos  de  choro  em  verso  e 
prosa,  deplorando  aquella  perda  nacional. . . 

lá  quatro  dias  antes,  esta  jeremiada  co- 
meçara ;i  produzir  nos  ânimos  nm  vago  esta- 
do irritativo,  um  nojo  dos  homens,  e  um  asco 
:i  feira  das  vaidades,  sobremaneira  nocivos  á 
eclosão  de  qualquer  sentimento  sincero  e  des- 


•10  os  GATOS 

interessado.  Na  barafunda  de  todos  aquelles 
testemunhos  públicos  de  condolência  pelo  thro- 
no,  o  que  se  viu  foi  cada  qual  sacarrolhar  do 
caso  o  expediente  que  mais  rapidamente  lhe  po- 
desse  dar  dinheiro,  vangloria,  ou  probabilidades 
d'exito  em  qualquer  coisa.  A  comedia  da  dôr, 
representada  por  vinte  ou  trinta  cortezãos,  na 
alcova  mortuária  de  Cascaes,  viera-se  genera- 
lisando,  por  espirito  de  bugiaria,  de  zona  em 
zona,  fé  descambar  em  farçadas  de  rua,  mer- 
cê da  inconsciência  da  bestiola  popular  que 
macaqueia  o  que  vê,  sem  grandemente  pòr 
sombra  d'intuito  n'aquelles  actos  reflexos  do 

sen  eiXO  nervoso  amoltecido. 

Não  houve  em  Portugal  ninguém,  graças  a 
Deus,  que  não  violasse  o  respeito  da  magesta- 
de  morta,  talhando-o  em  taboleta  de  loja  de 
fazendas,  «mu  episodio  de  galhofa,  ou  em  thu- 
ribulo  infame  para  abjectos  Te  Deums  á  raa- 
gestade  viva  ! 

Brazões  d'ediíicios  públicos  e  lojas  de  cau- 
tellas,  cobriram-se  de  negro:  Os  jornaes  trafi- 
(.;ir;llll  com  a  agonia  real,  matando  o  senhor 
D.  Luiz  seis  horas  mais  cedo,  para  serem  os 
primeiros   a    vender  suppleinentos   .dioramin- 

gões.  Coronéis  fizeram-se  pagar  versos  na  im- 


OS  GATOS  I  I 

prensa,  dando  pezames  á  rainha,  e  de  cami- 
nho attestando  a  disciplina  dos  seus  regimen- 
tos. Nos  armazéns  de  modas,  exposições  de 
merinos  de  lucto,  onde  os  dísticos  dos  preços 
se  entrelaçavam  d'allusões  ao  chorado  mo 
cha.  Lojas  de  bugigangas,  armaram  a  frontaria 
de  crepes  e  pannos  mortuários,  como  se  os 
bonecos  de  porcelana  estivessem  lá  dentro  a  ce- 
lebrar exéquias  pelo  rei.  E  de  quarto  em  quar- 
to de  hora,  durante  três  dias,  os  cuvilheiros 
de  Belém  tiveram  alma  de  massacrar  os  leito- 
res do  Tempo  e  Novidades,  com  filetes  do  gran- 
de desgosto  em  que  tombara  a  l>.  Amélia,  ao 
saber  que  lhe  tinha  sahido  a...  sorte  grande  ! 

No  capitulo  das  manifestações  de  dòr  indi- 
vidual, chega  a  ser  clownico  o  sardonismo 
que  a  canalha  publica  fez  chispar  dolueto  de- 
cretado pelo  snr.  José  Luciano,  qo  Diari 

mo.  Homens  que  não  haviam  deitado 
lucto  pelos  pães,  cobriram-se  todos  de  fumo 
pelo  rei.  No  dia  do  enterro,  vi  eu  m 
descer  a  Rua  Nova  do  Carmo,  coberto  de  nojo, 
e  trazendo  uma  facha  de  crepe  enorme,  i;<» 
chapéu  de  chuva.  Outro,  já  velho,  d'aspecto 
aristocrático,  entrou  na  livraria  Feriu  lavado 
em  pranto,  e  dirigindo-se  :i  um  empregad  . 


[2  <>s  GATOS 

pediu-lhe  transmittisse  ao  cavalheiro  francez, 
dono  da  loja,  os  agradecimentos  queelle,  como 
lusitano  de  gemma,  lhe  trazia  al4i4  attenta  a 
prova  de  benevolência  que  a  França  dava  ao 
paiz,  conservando  meio  taipal  aparafusado  nas 
vitrines  do  estabelecimento  d'um  «los  sens  re- 
presentantes. 

E  para  cumulo  do  desaforo,  um  talho  que 
ahi  ha  p'ros  Romulares,  adornado  de  cabeças 
de  boi,  em  barro  e  gesso,  enramalhetou  os 
chavelhos  das  rezes(b)  com  louro  e  crepes 


(&/Esta  correlação  mystica entre  a  homenagem 
devida  aos  mortos,  e  o  corno,  é  uma  das  poucas 
características  sobreviventes  á  jâ  hoje  apagada  ín- 
dole portugueza.  Ahi  vâo  dois  exemplos.  Um  ga- 
,.  idero  do  Ribatejo,  a  quem  morrera  a  senhora,  a 
I  fimeira  vez  que,  depois  de  viuvo,  forneceu  curro 
para  uma  tourada  em  Santarém,  mandou  enfeitar 

-omilha  preta  os  paus  dos  bois.  Ao  fim  de  far- 
I  .ado  o  decimo  terceiro,  todo  o  mando  por  modos 
i  quiria,  como  era  crivei  ter  uma  só  mulher  abys 
,    ,,|n  em  tamanho  lucto,  quatorze  mandos! 

Ao  bandarilheiro  F...  homem  estimado,  d'uma 

occasiao  morreu-ll pae,  como  infelizmente  suc- 

c  «de  a  toda  a  gente.  A  morto  do  velho,  claro  está, 

nduzindo  o  orphão  a  apropinquar-se  na  Praça 
,i  ,  Campo  de  SanfAnna,  um  beneficio,  onde  elle  ap- 


(.v  GATOS  lá 

ondeantes,  três  dias — ao"  tempo  que  aprovei- 
tava aquelle  ensejo  de  magna,  para  augmcntar 
trinta  reis  tio  preço  das  mãosinhas  de  car- 
neiro. 


Ora,  uma  cidade  que  exteriorisa  o  respeito 
pelos  mortos  pela  clownesca  forma  que  viram, 
se  por  um  lado  tem  d'esse  respeito  uma  com- 
prehensão  semelhante  á  do  escarneo,  signal 
da  aniquilação  completa  do  caracter  civico; 
em  compensação  tira  do  fúnebre  um  riquíssi- 
mo filão  de  pittorescò,  que  pôde  até  inspirar 


eu  vestido  ;i  caracter,  mas  toda  a  farpei  la  pre- 
ta (fazeviche.  Abre-se  ><  curro,  um  toiro  espirra,  e 
ii>>  cachado  o  artista  galhardamente  lhe  crava  : 
quarteados,  ficando  erecto  na  arena,  e  com  um  ramo 
rte  perpetuas  em  cada  mão  que  escamoteara  de 
dentro  das  garrochaa  ' 


I l  OS  CA TOS 

uma  arte  nova,  st-  habilidosamente  o  canalisa- 
rem,  da  índole  avulsa  da  massa,  para  as  loeu- 
brações  dos  que  produzem  co'a  penna  c  c'o 
cinzel. 

Lisboa  è  singular ! 

Não  lhe  bastava  já  ter  do  amor  uma  noção 
invertida...  ou  duas,  senão  despolarisar  tam- 
bém a  tristeza  e  a  alegria,  dos  seus  focos  d'im- 
pressão  psychica  uormaes,  fazendo-nos  vêr  por 
exemplo  os  entrudos  em  fúnebre,  e  as  Sema- 
nas Santas  em  hillariante ;  os  baptismos  em 
lacrimoso,  e  os  enterros  em  humorístico.  E  o 
que  geralmente  se  dá.  Nada  nos  torna  mais 
bisonhos  do  que  um  baile  de  mascaras.  Nada 
restabelece  curso  ao  nosso  bom  humor  como 
um  enterro.  0  motivo  é  simples.  Geralmente, 
entre  nós,  o  mascarado  parece  um  morto,  ao 
passo  que  os  defunctos  Icem  quasi  sempre  o 
ar  de  mascarados. 

Um  companheiro  de  casa  que  eu  tive  em 
estudante,  jóia  entre  as  jóias,  meu  insepará- 
vel amigo  de  recreios  e  trabalhos,  Cinco  ân- 
uos, comette  um  dia  a  refinada  tolice  de  mor. 
rer.  Horas  e  horas,  0  meu  desespero  nào  co- 
nheceu calmante  ou  refrigério.  Doze  dias, 
febril,  velara  eu  ao  de  redor  da  sua  cabeceira, 


(In  GATOS  15 

e  depois  d'elle  morto  e  glacido  no  leito,  fui 
eu  ainda  quem  lhe  compoz  a  ultima  toUette, 
Alguém  que  vinha  ás  vezes,  acordando  na 
minha  fraqueza  orgânica,  cachetisada  por  três 
dias  da  mais  completa  abstinência,  lembrou-se, 
na  derradeira  noite  em  que  velámos,  d<-  me 
trazer  do  Baltresqui,  um  pacotesinho  de  san- 
dwiches.  Oh  torpeza  da  carne!  Tanto  bastou 
para  que  eu,  mesmo  sem  deixar  de  chorar, 
pensasse  menos  no  morto,  8  cada  vez  mais 
nas  sandwiches, 

A  proximidade  do  repasto  açulava-me  a 
fome,  que  a  presença  do  amigo  me  obrigava 
a   deixar  sem  victualhas.   Venceu  por  fim  a 

besta,  era  lalai  :  e  por  cansa  d'nma   pouca  de 

viiella  com  mostarda,  surprehendi-me  eu  a 
ter  ódio  aos  despojos  do  mais  fiel  companhei- 
ro da  minha  mocidade !  E  mais  este  era  um 
amigo:  que  será  então  com  os  que  a  gente 

Bem  conhece  ! . . . 

A  nossa  vida  é  lào  curta,  a  nossa  miséria 
tão  ínfima,  tão  deses]  erada  a  lueta  em  que 
qos  vamos,  que  no  que  se  pensa  ó  em  viver 
(tu  jmir  u  jour,  empenhado  em  dois  fitos  : 
fazer  oiro  de  meio  mundo,  e  guerrear  ou  es- 
carnecer do  outro  meio.   Ser  mau  tornou-se 


16  OS  GATOS 

uma  necessidade  contemporânea.  Ser  perverso 
um  ideal...  que  infelizmente  poucos  sabo- 
ream. 

o  homem  não  é  mais  irmão  do  homem,  ú 

seu  concorrente,  é  seu  rival.  A  fortuna  (Trile 
não  quer  dizer  o  premio  (rum  esforço  respei- 
tável :  representa  apenas  a  dentada  em  qui- 
nhão que  nos  pertence.    Por  cada    um   que 

morre,  menos  uma  bocca  esfomeada  a  defrau- 
dar-nos.  Acresce  além  <Tisso  que  os  poderosos 
representam  quasi  sempre,  apard'uma  concor- 
rência enérgica,  por  via  de  regra  uma  extorsão 
methodisada — e  legitimo  desforço  é  que  nos 
riamos  quando  elles  tombam,  e  u<>s  vinguemos 
(Telles,  apupando-os  depois  de  mortos,  uma 
vez  (pie  nos  foram  prejudiriaes. 

É  o  meio  termo  (Testa  represália  ferina  «pie 
se  dá,  sempre  que  Uslioa  assiste  ao  passa- 
mento d'algum  alio  personagem.  Esta  capital 

(Talcovileiras  e  de  gatOS  pingados,  de  homens 

com  apertos  e  mulheres  com  dilatações,  am- 
biciosa mas  inerte,  pobre  mas  nunca  resigna- 
da, quando  passa  um  enterro,  transfigura-se, 
e  eil-a  a  debitar  larachas  sobre  o  morto,  qual 

mais  sumarenta  de  velliararia  e  de  pilhé- 
ria ! 


os  GATOS  I  / 

lii  fúnebre,  a  maldita,  se  bem  que  quasi 
sempre  ria  justo.  Por  exemplo,  o  humorismo 
que  ella  desenvolveu  no  enterro  do  rei,  des- 
lumbraria o  próprio  Edgar  Põe,  si'  fosse  vivo. 
tquelle  estranho  cortejo  de  macacos  com  far- 
das e  de  mulheres  com  farrapos,  de  carros  fie 
llòres  e  berlindas  d'entrudo,  de  vendedores 
de  boquilhas  e  professoras  d' instrucção  prima- 
ria, de  bombeiros  d'Ajuda  e  de  meninos  en- 
geitados,  contentes  todos,  mirando-se,  lara- 
chando, detendo-se  a  comprar  pastellinhos,  a 
altercar  com  os  cocheiros,  a  fazer  adeusinho 
.,.  pel  ições ;  aquelle  cortejo  afinal  que  repre- 
senta '.' 

Ninguém  o  soube.  Não  teve  caracter.  Foi 
apenas  patusco,  <*  em  certas  passagens,  abje- 
cto. Podia  ter  sido  tudo...  a  coroação  da  rai- 
nha do  Gongo,  um  certameu  de  cretinos,  o 
casamento  Fernandes,  ou  a  batalha  das  flo- 
res... Tudo!  excepto  homenagem  prestada 
,-,  memoria  d'um  homem  que  l"< Ȓ  vinte  <i  oito 
unnos  nosso  rei  ! 


18  OS  GATOS 


0  senhor  1>.  Carlos,  esse  radiava,  laquei- 
la  sua  passeata  primeira  de  rei  posto — jubi- 
loso a  ponto  de  Dão  ter  ares  nenhuns  de  me- 
nino orphão,  e  ter  ao  contrario  todos,  de 
viuvo.  Em  torno  d'elle,  príncipes  e  embaixa- 
dores, moços  fidalgos,  moços  de  curro  e 
mocos  da  vida,  í';iziani-I hc  uma  espécie  de  ga- 
leria de  figuras  de  cera,  qual  mais  estupenda 
d 'insignificância. 

Porque  è  singular  como  as  physionomias 
da  maior  parte  dos  nossos  homens  públicos 
depõem  desagradavelmente  a  seu  favor! 

Em  poucos  ha  essa  aobreza  calma  de  li- 
nhas, essa  serenidade  profunda  de  olhar,  essa 
luminosa  architectura  moral  emíim,  que  conta 
as  luetas  da  intelligencia  d'um  homem,  "min- 


OS  GATOS  IV 

terrnptamente  servido  por  ama  consciência 
inviolável.  A  maior  parte  sào  pequenos  mons- 
tros de  olhar  strabico,  ou  vago,  ou  fugidio, 
ou  injectado;  caras  balofos,  olheirentas,  dessy- 
metricas,  com  um  stygma,  algumas,  «lo  quer 
que  é  de  inquietador,  que  ;i  gente  não  sabe  o 
que  seja,  mas  lá  está  ;i  servir  de  syndroma  ;'i 
manqueira  occulta,  e  a  prevenir  a  opinião 
contra  a  boa  fé  dos  esforços  d'elles,  em  prol 
da  causa  que  juraram  servir. 

Outro   detalhe:    assombra   o   predomiuio 

<|iic  <•  typo  estúpido  coi i  a  ganhar  na  com- 

l>ostura,  (exterior  pelo  menos)  dos  nossos 
grandes  funccionarios !  Ha  uma  mistura  de 
porc  de  fila,  de  mal  indro  e  de  titcre, 

em  muitas  d'aquellas  faces  de  primeiros  ofíi- 

-  de  secretaria,  de  governadores  civis,  de 
tenentes  coronéis,  de  generaes,  de  bispos,  de 
deputados,  de  conselheiros  d'estado  e  de  mi- 
nistros. Por  sobre  as  golas  das  fardas,  dos 
collarinhos  altos  de  cerimonia,  das  voltas  ro- 

symbolicos  das  sociedades 
sabias  e  das  ordens  militares,  as  papadas 
oleosas  dizem  nutrições  prevaricadas,  apople- 

-  de  bilis  odienta,  intrigas  rábidas,  cubi- 

salyriases  secretas  d'amor  e  vinho  a 


20  os   SÀTOS 

horas  perigosas.  Era  raros  as  feições  mantive- 
ram pela  vida  fora,  a  correcção  de  seres  su- 
periores, imraaculadamentc  votados  ao  marty- 

rio   tias   lides  cerebraes,    que    vesleiu   a  alma 

dos  homens,  rumo  a  figura,  u  uma  adolescên- 
cia perpetua  e  espiritual.  É  ver-lhes  o  riso, 
uma  careta,  estudada  ao  espelho,  para  cada 
effcito  scenico  da  vida  ;  ouvir-lhes  as  vozes, 

de  galãs  professos  ou  pães  nobres,  dislillando 
palavras  maravilhosas,  mas  sem  repercutir 
jamais  sineeridades ;  e  surprehendel-os  por 
liiu  quando  a  mascara  lhes  lomba,  e  por  de- 
traz  do  cortezão  surge  o  carnivoro*  tigre  ou 
byena,  que  do  seu  antro  segue  o  lio  d  um 
plano  tenebroso,  syndicato  ou  embuscada  po- 
litica, venda  de  penna  ou  venda  de  palavra... 
\  espécie  d'e.\ito  de  Ioda  esta  exhibiçào  de 
mascaras  e  bobos,   em    publico,    Irahe-se    nas 

chufas  e  arremedes  do  povoléu  contra  «is  mais 
(Telles.  Al  cada  momento,  um  brado  rompe  — 

(Ih  que  maroto! — é  algum  director  de  banco 

ou  politico  illustre  que  segue  no  préstito.  Os 
lampeões  do  gaz,  cobertos  de  crepe,  parecem 

inulatOS  ile  chapéu  alio,  alugados  para  locarem 

ganzá  no  precurso  do  enterro.  A  passagem  dos 

vj'ol<'scos  é  uma  ovação  macabra  e  ininterrupta. 


OS  GATOS 


-21 


o  visconde  \.,  brasileiro  moço  fidalgo,  so- 
liiv  haver  substituído  a  plumagem  branca  do 
bicorne,  por  outra  negra,  fez-lhe  coaer  um 
lençol  de  panno  preto  na  prezilha,  o  <[u;il  lhe 
,  como  o  d'uma  senhora  viuva,  té  lhe  dar 
duas  voltas  á  roda  <lo  cachaço. 

Yuiu  grande  carro  vae-se  o  Maria  Fer- 
nandes saracoteando,  a  mostrar  o  crachá  da 
casaca,  coberto  de  negro,  como  um  brazão  de 
cervejaria.  Defronte  da  casa  do  Restello,  pal- 
mas, galhofa:  S.  M.  nova  mesmo,  deita  a  ca- 
beça fora  do  coche,   para  sorrir.  As  janellas 
do  conde  estão  iodas  cobertas  de  cortes  de 
calças,   <i  ha  coroas  de   perpetuas  cosidas  a 
meio  da  grade  das  saccadas.  Engenhoso!  Pa- 
iiin  jazigo  de  família,  e  ha  a  vantagem 
de  se  aproveitarem  depois  as  perpetuas,  pr'a 
xarope.  No  coche  de  D.  João  v.  onde  o  rei 
todos  os  florões  dourados  do  tejadilho 
vãe  cobertos  de  fumo,  como  am  preservativo 
contra  as   moscas.  Uma  conversada,  uma  al- 
irra.  —  Adeus  ó  visconde!  —  Então  não 
vens?— Ai  que  massada! — vá  de  risota,  con- 
tar historias,  baforejar  fumaças   de  charuto 
pelas  portinholas  dos  coupés. . .  E  entre  tan- 
to, milhares  de  earas  joviaes,  faz  impressão  a 


22  OS  GATOS 

d'um  cocheiro  que  enxuga  as  lagrimas.  Um 
cocheiro  de  praça,  coitado!  a  amofmar-se 
pela  morte  do  rei.  Ora,  diabos  levem  o  rei! 

—  0  que  elte   vae   chorando,  é  a  morte 
d  um  cavallo. 


No  Terreiro  do  Paço  incorporam-se  as  de- 
putações populares.  É  a  parte  mais  seria  do 
cortejo.  .Mal  porém  o  elemento  grave  que  et  las 

melem  em  scena.  comera  a  impòr-se,  a  verve 
dos  espectadores  rebenta  de  seu  lado,  e  ah'1 
ao  fim,  não  lia  meio  de  fazei'  salgueiro  fúnebre 
com  lai  gente. 

Ás  jauellas  (rum  escriplorio  coiumerci.il 
do  Cães  Sodré,  damas  da  alia,  trajando  es- 
curo, e  formosíssimas,  caramba  !  passam  de 
mão  em  mão  um  cacho  (luvas,  que  todas  que- 


os  GATOS  -■"> 

ivm  debicar  como  calhandras,  disputando-sc 
o  cacho  entre  piruetas  de  grande  alacridade ; 
e  algumas  entreteem-se  mesmo  a  tamborilar 
com  bagos  sobre  as  cartollas  de  quem  vae 
iando.  Os  dois  carros  de  flores  recordam 
aos  dandys,  com  saudade,  os  carnavaes  de 
Nice:  e  uma  mulher  da  rua  exclama  ingenua- 
mente : 

—  Então  o  rei  vae  em  duas  porções?! 

A  cada  momento  ha  claros  no  cortejo,  pa- 
ragens em  que  se  intromette  o  homem  dos 
pasteis,  pondo  uma  nota  pelintra  d'arraial. 

Vozes  avulsas : 

—  Lá  vem  agora  a  commissão  <!as  cama- 
reras. . . 

— A  caixa  económica  dos  tacões  aos  domi- 
cílios. . . 

A  tropa  começa :  batalhões  onde  os  sol- 
dados teem  números  de  diversos  regimentos; 
coronéis,  <'ujns  estuques  se  fundem,  pingando 

o  gobre  os  crachás  dos  uniformes.  A  <j.\- 
bosidade  <1<>  si-,  general  <!•'  divisão  tem  um 
successo.  Um  diabo  grita-lhe :  estás  gravido, 
Miguel ! 

Outro  propõe-Jhe,  cosa  antes  as  medalhas 
nas  costas.  A  alein-ia  do  sr.  I>.  « '.-n l< >s  é  uma 


■i ;  OS  6AT0S 

coisa  em  verdade  esfusiante.  Que  affabilidade, 
que  verve:  até  parece  que  tem  menos  carne 
nos  sobr' olhos!  K  ifislo,  um  grito  : 

—  0  d'Edimburgo  não  veio! 

Estava  pr'a  vir,  mas  logo  pela  manhã  sen- 
tiu-se  incommodado.  Tanto,  que  apenas  al- 
moçou seis  garrafas  de  vinho  do  Porto,  e 
quando  ia  a  erguer-se  da  meza,  cahiu  com 
uniu  d'estas  syncopes  a  que  são  atreitos  em 
Portugal  os  marujos  e  os  príncipes  d'Ingla- 
terra. 

Mis  o  cadáver  chegado  a  S.  Vicente.  Os 
canhões  troam.  Dobres  ^  sinos.  Fuzilaria  nas 
ruas.  É  aquelle  0  momento  solemne,  defini- 
tivo, único,  em  que  o  rei  morto  despe  de  vez 
;i  sua  dalmatica  de  chefe,  para  transformar-se 
em  lixo  e  múmia  —  e  foi  esse  também  o  que  a 
Igreja  escolheu,  para  dizer  á  rainha  ipie  a  al- 
ma do  marido  devia  estar  áqnella  hora  a  cear 
com  Satanaz ! 

Por  forma  que  não  houve  injuria  que  a 
cabouqueira  do  bondoso  rei  uão  apanhasse. 
Príncipes  e  aulicos,  grandes  e  humildes,  indo 
lhe  ultrajou  a  memoria,  em  vez  de  venerar- 

llfa.  0  filho  rin-se  d'elle.  AntigOS  ministros 
chamarain-lhe    devasso  e  papas-molles.  O  pa- 


os  r.ATOS  25 

triaroha  compara-o  á  mulher  adultera.  K  já 
noite,  aquella  rustilhada  official,  batendo  em 
trens  vertiginosos,  <l'á  volta  de  S.  Vicente, 
aquella  rustilhada  tinha  o  ar  de  virar  as  cos- 
ta* ao  pae,  para  chegar  a  tempo  d'ainda  se 
poder  anichar  junto  do  íilho. 

Não  foi  d'esses  talvez  o  Hoenzollern,  a 
quem  se  partiu  o  coche  de  ceremonia,  e  que 
vindo  ao  Rocio  a  pé,  c'os  ajudantes,  largou 
d'ahi  n'um  calhambeque,  pr'a  casa  da  Carlota. 


Pede-se  aos  cidadãos  rpie  ainda  conser- 
vam algum  amor  ás  coisas  do  paiz,  vão  dar 
uma  vista  d'olhos  pelos  edifícios  da  Escola 
Medica,  e  pelo  chamado  Real  Hospital  de  S. 
Josó.  Dizemos-lhe  que  hão-de  gostar,  e  mais 
colherão  subsídios  para  fazer  uma  pequena 
manifestação  de  sympalhia  ao  sr.  José  Luciano, 
•i  primeira  vez  que  adreguem  vèl-o  passar,  de 
nariz  ao  vento,  em  qualquer  sitio  frequentado. 

I.á  verão  como  é  que  o  senhor  do  reino 
'•ura  os  interesses  do  povo,  e  como  é  que  os 
ministros  respondem  ás  sollicitaçòes  que  to- 
dos os  dias  lhes  estão  fazendo  os  funecionarios 


-20  OS  GATOS 

encarregados  de  zelar  a  medicina  o  a  beniíi- 
cencta  publica,  na  primeira  cidade  do  paiz. 

Comecem  pelo  hospital,  onde  continua  a 
não  haver  uma  sala  de  recepção  para  doentes, 
nem  salas  de  rechange  para  onde  fazer  o  tras- 
bordo d*enfermos  durante  a  desinfecção  das 
enfermarias  funecionantes,  nem  hospitalisações 
isoladas  para  doenças  de  contagio,  nem  servi- 
ços especiaes  de  maternidade,  nem  uma  ins- 
trumental completa  para  o  exercício  da  cirur- 
gia c  de  medicina,  nem  um  amphitheatro 
para  operações,  e  nem  sequer  um  quarto 
decente  onde  tratar  um  enfermo,  mediante 
estipendio  combinado.  Percorram,  atravez  um 
dédalo  inextricável  d'eseadinholas  e  corredo- 
res sinistros,  os  innumeros  andares  d'aquella 
incommensuravcl  arca  de  Noé  —  e  n'csses  an- 
dares as  enfermarias  innumeras,  atochadas 
dVnfermos  em  numero  triplo  ou  quádruplo 
do  da  sua  lotação  hygienica  e  normal. 

Estudem  a  capacidade  respiratória  dos  âm- 
bitos, a  altura  e  disposição  dos  tectos  d'umas 
enfermarias  que  ha  nos  forros  do  edifício,  a  dis- 
tribuição da  luz,  os  systhemas  de  ventilação  e 
aquecimento,  a  natureza  das  alfaias  que  giram 
no  serviço,  a  mobília  de  muitas  d'essas  enfer- 


•iv  GATOS  27 

marias,  <>  estado  carunchento  dos  solos,  a 
humidade  ressumbrante  de  certos  muros,  a 
capacidade  <la  massa  d'arvoredos  e  jardins:  c 
concluam  depois,  mesmo  sem  serem  médicos, 
como  é  que  aquillo  se  chama  o  Real  Hospitalt 
em  vez  de  se  chamar  por  exemplo  estrumeira 
ou  matadoiro.  Os  amigos  reporters,  que  lodos 
os  dias  crucitam  nas  gazetas,  quando  lhes  vão 
dizer  que  o  Banco  regeitou  a  deshoras  da  noi- 
te, algum  bêbado  escoriado  na  festa,  c  que 
recebido  iria  incommodar  na  enfermaria,  de- 
zenas e  dezenas  de  verdadeiros  doentes:  os 

amigos  reporto?  não  se  lembraram  ainda  d"en- 
trevistar  os  facultativos  de  S.  José,  ou  de  per- 
correr com  um  hygienista  disponível  (que  os 
ha  sempre  promptosadar  o  braço  a  qualquer 
teiro  que  lhes  offereça  publicidade)  todos 
aquelles  fundões  medonhos  do  Hospital,  onde 
a  viva  sollicitude  do  enfermeiro-mór,  e  os  dis- 
vellos  «los  clínicos  assistentes,  pouco  logram 
fazer,  attenta  a  vergonhosa  pobreza,  e  a  in- 
qualificável promiscuidade  em  que  tudo  jaz 
alli.  Com  o  edifício  da  Escola  Medica,  ainda 
peor. 

Desde  a  primitiva,  foi  esse  edifício  um  cha-' 
vasca!  indigno  dos  estudantes  e  pri  fessoreí 


-JS  os  GATOS 

que  alli  se  davam  rendez-vous.  Não  havia  unia 
aula  onde,  já  não  digo  coniinoda,  mas  decen- 
temente, um  escolar  podesse  ouvir  uma  pre- 
lecção.   Os  bancos   destinados   ao   auditório, 
além  de  não  possuirem  costas,  tinham  por  leito 
uma  taboa  de  dois  palmos,  de  pinho  tosco,  c 
nem  uma  carteira  por  deante,  um  púlpito  de 
musica,  um   pedaço  de   taboa  sequer,  sobre 
que  collocar  um  livro,  ou  escrever  a  lápis  um 
apontamento.    As    collecções    e    laboratórios 
(faualyses,  os  museus  especiacs   annexos  ás 
cadeiras  do  curso,  como  o  de  cirurgia  opera- 
tória, os  d'anatomia  pathologica  e  normal,  o 
de  histologia  e  histo-physiologia,  eram  corre- 
dores sem  luz  nem  pé  direito,  mobilados  igno- 
bilmente, com  armários  toscos,  onde  faltava 
tudo,  exemplares  e   instrumentos,  e  onde  os 
raros  espécimens  existentes,  estavam  para  alli 
com  um  ar  d'mstallaçãO  provisória,  á  espera 
de  que  nos  ministérios   sobrasse  verba,    das 
despezas  surdas  e  das  gratificações  escandalo- 
sas, para  então  se  prover  ao  abastecimento  d'a- 
quellas  secções  de  ensino  scicntiíico  c  profis- 
sional. Quanto  a  bibliotheca,  não  fal lemos :  é 
uma    ruma   ^alfarrábios  archeologicos,   res- 
guardada nas  estantes  por  meio  de  redes  de 


OS  GATOS  -20 

capoeira,  e  servida  aos  curiosos  em  mezas  de 
botequim  de  província. 

Ao  forasteiro  que  vindo  ao  Hospital  de  S. 

iis  annexos  escolares,  por  acaso  torcia 

o  nariz  perante  os  desconfortos  que  via,  já 

nas  enfermarias,  já  nas  salas  d'estudo,  nunca 

o  cicerone  deixava  d'observar : 

—  Confessemos  que  seja  um  pouco  magro 
tudo  isto  :  entretanto  v.  ex.a  vae  já  apreciai-  as 
duas  maravilhas  cá  da  casa  ! 

As  duas  maravilhas  eram,  no  andar  nobre; 
a  chamada  sala  do  conselho,  ornada  de  sa- 
nefas cor  de  sangue,  c  formando  em  ordem  de 
sumptuosidade,  logo  depois  das  famosas  ca- 
sas d'audiencia  do  tribunal  da  Boa  Hora;  e 
defronte  d'esta,  no  gabinete  de  histologia,  um 
retraio  a  óleo  do  sr.  D.  João  vi,  de  casaca 
verde  e  meias  de  linha,  hoje  apeado  a  um  can- 
to, c  servindo  d'alvo,  felizmente,  ás  inconti- 
nencias  d' uretra  da  rapaziada. 

Esta  installaçãó  não  eia,  como  se  vé,  lu- 
xuosíssima, e  n'esta  epocha  aperalvilhada,  cm 
(pie  tudo  mira  ao  confortável,  e  ale  nas  suas 
repartições  os  senhores  amanuenses  tecm  fo- 
gões  <•  parquets  nítidos,  dava  uma  impressão 
d'austeridade  ouvir  prelecciouar  Sousa  .Martins 


30  OS  GATOS 

tuim  telheiro  frio  e  desabrigado,  c  assistir  ás 
demonstrações  d'anatomia  de  Manoel  Bento, 
ínima  especíe  de  amphitheatro  de  palhaços, 
especado  por  traves  de  pinho,  immundo  como 
um  estabulo,  e  todo  cheio  ti*1  correntes  d'ar 
como  um  casebre. 

Um  dia  raiou  porem,  cm  que  á  falta  de 
conforto  e  â  falta  (Faceio,  veio  ajuntar-se  um 
factor  novo,  e  este  inquietante  :  a  falta  de  se- 
gurança !  Não  ter  caloriferos,  nem  fauteuils, 
nem  púlpitos  girantcs  nas  aulas,  nem  livros  mo- 
dernos nas  bibliothecas,  nem  apparelhos  espe- 
ciaes  nos  gabinetes,  era  já  triste;  mas  emfim, 
lá  estava  a  scieneia  dos  mestres  a  supprir 
aquellas  deflieieneias,  e  a  bemerecer  tão  duros 
sacrifícios.  Km  termos  que  aos  rapazes  conti- 
nuaria a  ser  grato  o  ir  bebei-  entre  aquellas 
unas  paredes  d'albergue,  as  cogitações  da  sa- 
bedoria, se  de  repente  não  entra  com  elles 
a  desconfiança  das  paredes  se  estarem  prepa- 
rando, para  uma  bella  manhã  lhes  cahirem 
em  cima  dos  costados.  De,  feito,  ou  porque  o 
solo  houvesse  oscillado,  desviando  comsigo, 
da  linha  de  prumo,  o  empedramento  dos  ali- 
cerces, ou  porque  as  paredes  da  Escola  Me- 
dica  começassem  a  embirrar,    tardiamente  ê 


OS  GATOS 


31 


certo,  com  o  patronato  do  sr.  D.  João  VI,  o 
certo  foi  que  o  casebre  desandou  a  esbeiçar  por 
todas  as  bandas,  e  a  exprimir  desejos  de  se  es- 
tiraçar  para  cima  dos  canteiros  racbiticos   do 

jardim. 

A    dtgringolade   começou    pela    biblioteca, 
que  houve  por  bem  mostrar  a  luz  atravez  as 
desinlersecções  dos  planos  sólidos,  súbito  -<■- 
parados,  ao  tempo  em  que  deixava  vergar  em 
papos  ameaçadores,  todos  os  madeiramentos 
do  tecto  e  do  soalho.  D'ahi  correu  aos  outros 
cantos  do  edifício,  e  houve  que  se  especar  os 
muros  d"  gabinete  de  histologia,  do  amphi- 
theatro  d*anatomia  e  da  aula  de  pharmacia, 
fugir  tias  aulas,  alliviar  os  madeiramentos  de 
lodo  o  peso  de  mobílias  e  alfaias  que  precipi- 
tar podessem  a  derrocada,  transportar  emfim 
osbocaes  dascollecções  e  a  instrumental  dos  la- 
boratórios, para  os  corredores  e  escaninhos 
do  andar  de  baixo,  onde  jazem  a  esmo,  que- 
brados muitos,  inutUisados  quasi  todos,  tfuma 
triía  de  ladra  a  lazer  corar  de  vergonha  e  de 
cólera,  lentes  c  discípulos. 

Por   falta  de  casas,  as  lições  começaram  a 

dar-se  um  pouco  em  toda  a  parte,  no  barra- 
cão das  autopsias,  dos  corredores  d'entrada  do 


•>-  OS  GATOS 

edifício,  sob  a  marqueza  que  antecede  a  Bata 

do  conselho,  nos  palcos  do  hospital,  ou  pelas 
clareiras  molhadas  do  jardim— e  assim,  á  min- 
gua ilc  dez  melros  de  soalho  firme,  onde  eol- 
locar  um  púlpito  e  quatro  bancos,  alguns  pro- 
fessores, receando  pelas  vidas  dos  seus  alum- 
nos,  pensam  em  dar  aula  nas  suas  próprias 
residências,  ollerecendo  á  sciencia  o  refugio 
que  o  Estado  lhe  nega,  mercê  da  rancorosa 
nullidade  do  mandarim  que  está  zelando  (zoi- 
lando  é  melhor)  estas  questões. 


E  todavia,  ha  trinta  annos  que  com  mais 
ou  menos  zelo  os  enfermeiros-móres  recla- 
mam perante  os  poderes  públicos,  remédio 
contra  as  deploráveis  condições  do  Hospital, 
agora  intoleráveis,  graças  á  afluência  d'enfer- 
mos  que  de  toda  a  parte  advém  ;  e  que  o  con- 
selho da  Escola  intenta  aperfeiçoar  e  comple- 


OS  GATOS  33 

lar  o  ensino  medico,  reclamando  dos  mesmos 
poderes  a  decretação  das  medidas  qne  adequa- 
das julgou  àquelle  intento.  A  resposta,  ou 
tem  sido  nulla,  ou  vae-se  mantendo  em  intér- 
minas promessas,  qual  mais  cynicamente  dei- 
xada por  cumprir. 

No  nez  de  novembro  ultimo,  a  afíluencia 
a  s.  José  foi  de  tal  ordem,  que  todas  as  en- 
fermarias tiveram  que  installar  leitos  em  tri- 
plicado, passando  os  doentes  que  ainda  assim 
sobraram  d'estas  palhotas  arranjadas  á  pressa, 
para  barraras  de  madeira,  mandadas  armar 
nos  jardins  do  Estephania.  Por  outro  lado,  o 
■ai  subalterno  das  enfermarias,   vilmente 
.  mal  escolhido,  sem  educação  proflssio- 
nal,  nem  garantias  de  vida,  é  cada  vez  mais 
i  assistir  a  todos  os  leitos,  com  a 
sollicilude  paciente,  a  regularidade  e  o  inte- 
resse que  deviam  convergir  n  uma  oceupação 
de  tanto  escrúpulo.  Não  ha  uma  irmã  que  ad- 
ministre um  remédio,  oa  diga  a  um  enfermo 

alguma  boa  palavra  de  conforto.  Nas  enfer- 
marias de  homens,  o  serviço  é  quasi  lodo  feito 
por  gallegos,  que  alem  de  poucos,  são  o  me- 
nos adaptáveis  possível  â  missão  de  carinho 
qne  são  chamados  a  preencher. 


34  os  cvrits 

Quanto  ao  serviçe  clinico,  se  é  verdade 
que  muitos  directores  d'enfermaria  fazem  o 
possível  para  prover  a  Iodas  as  urgências,  uão 

é  menos  certo  ser  incompatível  o  interesse, 

com  os  excessos  de  trabalho  a  que  os  mes- 
mos funcciona/ios  são  forçados.  No  espaço 
(ruma  ou  duas  horas  quotidianas,  que  lautas 
são  as  tpie  o  mais  excepcionalmente  zeloso 
medico  pôde  consagrará  sua  enfermaria,  como 
distribuir  a  attenção,  com  lucidez  egual,  por 
oitenta  ou  noventa  enfermidades  differentes, 
sotlVidas  por  indivíduos  que  por  via  de  regra 
nem  queixar-se  sabem? 

Ila-de  haver  ciuco  ânuos,  sendo  enferinei- 
ro-mór  o  dr.  Thomaz  de  Carvalho,  baixou  um 
ukase  mandando  suspender  nas  enfermarias 
as  libações  de  capilé,  medicamento  este  que 
Custava  sete  contos  amuiaes  ao  Hospital,  e  com 
que  os  enfermeiros  empanturravam  os  infelizes, 
dias  e  dias,  até  o  facultativo  ter  occasião  de 
os  examinar. 

Pelo  que  respeita  ao  zelo  do  Estado  pelos 
progressos  da  medicina  portugueza,  a  solli- 
. -ilude  tem-se  mantido,  perante  os  relatórios  e 
proleslos  da  Escola  .Medira  de  Lisboa,  á  mes- 
ma altura  de  farfalhice    inepta  e   de    besfiali- 


OS  GATOS  •"*•"> 

Inl.'  supina,  eomque  EUe  já  sé  havia  permit- 
tido  encarar  a  questão  do  Hospital  de  S.  José. 
Com  os  progressos  da  medicina  e  a  c>pe- 
ctalisaçào,  successlvamente  mais  nítida,  dos 
seos  diflerentes  ramos  de  sciencias  comple- 
mentares e  accessorias,  arge  cada  vez  mais 
desdobrar   cadeiras    fundar   cadeiras    novas, 
ampliar  o  programma  das  antigas,  e  enrique- 
cer emflm  de  subsídios  práticos,  quanto  mais 
abundantes  melhor,  a  aprendizagem  d'uma 
profissão  que  todos  os  dias  se  entremeia  de 
responsabilidades  e  de  perigos,  e  se  eonstitue 
em  arbitro  d'uraa  multidão  de  causas  sociaes 
escabrosas,  mercê  da  conversão  de  todos  os 
núcleos  de  humanidade,  em  agremiados  sem 
fim   de  diathesicos  e  de  psyeopathas.  N'es- 
ta   ordem  d*ideias,   tem  o   conselho  da   Es- 
cola resolvido  scindir  por  exemplo,  em  duas 
cadeiras,  o  estudo  «la  physiologia— a  primeira 
abrangendo  o  estudo  das  propriedades  vivas  da 
célula  e  dos  tecidos,  e  reservando-se  a  segun- 
da a  physiologia  mais  complexa,  dos  órgãos, 
e  •)  unisono  orgânico  emfim,  d*onde  resulta  o 
individuo  e  <»  ser— e  assim  lazer  professar  á 
parte  o  estudo  da  hygiene,  e  o  da  medicina 
legal,  seiencias  cada  vez  mais  complicadas,  e 


36  OS  GATOS 

ainda  hoje  reduzidas  na  Escola,  a  corriquei- 
ras noções  sem  solidez.  Tam  pouco  o  estudo 
da  anatomia  topographica  cabe  na  actual  ca- 
deira d'operações,  e  o  da  anatomia  pathologi- 

ca  pôde  continuar,  como  ate  hoje,  platónico  e 
murcho,  desajudado  das  luzes  dachimica  bio- 
lógica, e  truma  pratica  tenaz  no  laboratório. 
Egual mente  é  necessário  desdobrai-  as  patho- 
logias,  interna  e externa,  fundando  cadeiras  es- 
peciaes  d'aquelles  ramos  mórbidos,  que  por  sua 
importância  e  hodierno  progresso  mais  rega- 
lias teem  ganho  de  sciencias  autónomas.  K  por 
outro  lado  as  clinicas,  que  fazem  o  medico, 
posto  dirigidas  (como  de  rcslo  as  outras  ca- 
deiras theoricas)  com  uma  consciência  scienti- 
fica  que  faz  honra  ao  corpo  docente,  também 
não  podem,  como  estão,  ministrarão  estudan- 
te, n  um  tirocínio  de  dois  ânuos,  a  educação 
profissional  de  que  este  carece.  Seria  mister 
tornar  mais  aturada  a  frequência  do  escolar 
na  enfermaria,  pela  fundação  do  internato  e. 
a  superintendência  de  chefes  de  clinica:  des- 
centralisal-as,  separal-as  em  salas  especiaes, 
como  por  exemplo  a  das  doçuras  cutâneas  e 
syphiliticas,  a  das  doenças  nervosas,  a  d'ohptal- 
rnologia,  a  das  doenças  da  maternidade,  doeu- 


OS  GATOS  37 

ças  de  creanças,  etc.  com  laboratórios  anne- 
ko$,  onde  se  repetisse  i  anatomia  pathologi- 
câ,  a  physiologia  e  a  chimica  orgânica  particu- 
larmente referentes  ao  grupo  uosologico  a  en- 
carar. 


imo  os  governos  teem  comprehendido 
estas  necessidades,  já  dissemos.  Em  balde  a 
administração  dos  hospitaes  concita  os  minis- 
tros do  reino,  a  visitarem  <>s  serviços  clínicos 
i!as  differentes  casas  d'assistencia  publica,  á 
sua  guarda.  Em  balde  os  directores  da  Escola 
Medica,  nas  sessões  solemnes  <la  distribuição 
,1.-  prémios,  toem  chamado  aos  reis,  os  fami- 
liares de  todas  as  sciencias,  chegando  um  a 
arengar,  sem  vergonha  nenhuma,  que  I».  Luiz 
era  o  pae  da  medicina.  — Manteiga  inútil! 

Pela  simples  força  da  sua  importância,  um 
tal  problema  uri.»  consegue  interessar  os  ci- 
mos «la  politica,  que  entre  varias  razões  sobre- 
leva  esta :  a  de  não  ter  havido  nos  corpos  <li- 


;}8  os  GATOS 

rigentes  do  Hospital  e  da  Escola,  unia  loira 
d'intriga  eleitoral,  onde  a  teimosia  d'um  ho- 
mem pozesse  a  voz  que  a  simples  questão 

seientifíea  jamais  logrou  fazer  zoar,  ás  orelhas 
de  burro  do  governo,  lia  mais  de  eincoenta 
annos  que  o  hospital  de  S.  José  está  eondcm- 
nado,  e  outros  tantos  que  os  engenheiros  crea- 
ram  um  projecto  d'Escóla,  éscolhendo-se  local 
pr'a  fundação,  e  até  mandando-se  apontar  no 
orçamento  a  verba  costeadora. . .  que  a  trapa- 
ça ministerial  depois  sumiu  por  facturas  de 
casamentos  régios  e  baptisados,  por viajatas  de 
convalescença  a  capitães  de  luxo  e  de  prazer, 
e  por  desobriga  de  jóias  da  coroa,  nas  casas 
de  prego  onde  esses  adornos  teem  escrínio  cer- 
to lia  muito  tempo. 

Ha  cinco  mezcs,  quando  findo  o  anno  le- 
ctivo, o  conselho  da  Escola  Medica  attentou 
pela  millcssima  vez  na  impossibilidade  d'em 
pleno  inverno  preleccionar  aos  alumnos,  nos 
pateos  e  jardins  da  cerca  hospitalar  —  únicos 
logares  garantidos  contra  a  derrocada  —  foi  um 
professor  amigo  lembrar  timidamente  ao  snr. 
José  Luciano  o  bem  que  faria  uma  visita  d'el- 
le,  aos  restos  das  aulas  e  amphitheatros  pa- 
thologicos,  tanto  mais  que  pelo  lado  da  segu- 


(is  GATOS  30 

rança  individual,  não  havia  perigo:  a  rapazia- 
da toda  estava  a  férias,  e  o  caso  «la  autopsia 
á  Bemvinda  fora  um  episodio  que  a  cirurgia 
escolar  jurava  não  mais  repetir,  em  qualquer 
outro  microcephalo. 

Sobrerogado  poraquellas  palavras  amisto- 
sas, ti  ministro  murmurou  que  havia  d'ir,  va- 
gamente receando  ainda  <>  quer  que  fo 
uma  cilada,  cair-lhe  cm  cima  um  corredor  dos 
especados,  abater  o  soalho  sob  o  pesoarroba- 
ceo  da  sua  insignificância,  vir  um  magarefe  da 
sala  dos  cortes  e  marcal-o  —  todos  os  pusi- 
lânimes terrores  emfim,  dos  inconscientes  que 
prohibidos  organicamente  de  medir  o  alcance 
dos  seus  actos,  nunca  sabem  se  estão  puros  ou 
conspurcados. 

.lá  tranquillisado  d*esses  pavores,  avançou 
uma  manhã,  de  correio  atrás,  pela  poria  do 

Carro,  vindo  desabrochará  fachada  da  Escola, 

a  cujo  pórtico  o  conselho  Escolar  descera  a  re- 

celiel-o.  Aqui  calcou  os  inrvilaveis  SOCOS  de  bor- 
racha, symbolo  das  precauções  a  tomar  na  es- 
pinhosa senda  da  vida  publica,  paSSOU  ás  mâOS 

do  secretario  o  chapéu  de  chuva,  imagem  em 
volto  das  grandes  elocubrações  governativas  que 

0  linam  — dando  .10  nariz  a  iillima  esfregadella, 


10  OS  GATOS 

sobre  os  borbotões  homerrhoidarios  que  alli 
pegou  o  habito  de  continuamente  farejar  nas 
perfídias  dos  seus  irmãos  de  guerra. 

Cumprimentos  trocados,  quando  iam  a 
comboial-0  pela  escada,  direito  á  secretaria, 
s.  ex.a  recusou-se  a  entrar,  attenta  a  derro- 
cada presumível;  e  aos  repoupos,  como  um 
sendeiro  que  se  pega,  recuou  novamente  até 
ao  pateo,  circumscrevendo  pela  banda  de  fora 
ms  muros  do  casebre,  á  busca  d  uma  entrada 
segura  para  a  Escola,  que  não  achou  :  e  assim 
foi  indo,  pela  porta  de  grades,  até  dar  de  fo- 
cinhos com  a  lavanderia. 

—  Ora  aqui  está,  disse  o  snr.  José  Lucia- 
no, um  edifício  onde  os  senhores  podiam 
preleccionar  condignamente!  Ricos  salões!  A 
barrella  dos  enfermos  de  S.  José,  acaso  enoja- 
ria aos  convívios  da  sciencia? 

—  Fm  pouco  menos  do  que  a  enojaria  a 
barrella  dos  enfermos  de  S.  Bento.  Entanto, 
não  se  fizeram  as  cloacas  para  logares  d'cnsi- 
namento,  senão  no  caso  previsto  da  chimica 
do  esterco  ter  dYnsaiar  os  seus  reagentes,  na 
focinheira  dos  estadistas  mal  creados. 

—  É  uma  indirecta. . . 

—  Que  relembra  a  v.  ex.a  os  inconvenien- 


iis  GATOS  1 1 

tes  de  chalacear,  usando  assim  galochas  de 
cautchauc.  Ora  venha  d'ahi  vêr  o  casebre  on- 
de a  infâmia  dos  políticos  tem  esquecido,  ha 
cincoenta  annos,  o  mais  útil  e  o  mais  brilhan- 
te estabelecimento  scientifico  de  Portugal. 
Retrocederam  com  elle  quasi  aos  empur- 
.  fazendo-o  entrar  nas  ruínas  alfim,  onde 
o  seu  terror  era  drolatico,  taes  estrallos  lhe 
dava  ò  queixo  convulsivo,  e  tão  grotesca  a 
descorrelação  das  suas  abstractas  pernas  de 
fantoche,  recusando-se,  as  tristes,  a  amparal-o 
na  marcha,  mais  além.  Mostraram-lhe  tudo,  as 
paredes  fendidas,  <>s  tectos  descolados,  soa- 
lhos podres,  os  bocaes  do  museu  todos  parti- 
dos; e  uas  casinhotas  das  aulas,  madeiras 
soltas,  janellas  sem  vidros,  poeira,  lixo,  e  toda 
a  fedorenta  desolação  dos  sítios  onde  <»  tran- 
seunte se  agacha  em  altitudes  de  budha  es- 
tercorario.  Quando  ia  a  descer 

—  Mas  onde  é  a  Escola?  inquiriu  s.  ex.a 

—  É  o  qne  todos  os  visitantes  perguntam, 
e  nenhum  de  nós  lhe  sabe  responder. 

ii  snr.  José  Lnciano  recolheu-se  n'esta  res- 
i  alguns  minutos:  e  lembrava  assim  um 
pinto  morto,  boiando  na  sania  d'um  ovo  snl- 
íidrado. 

i 


42  <>s  GATOS 

—  De  feito,  é  indispensável  proceder  á 
reedificação,  e  sobro  planos  amplos,  e  des- 
de já. 

—  E  desde  já,  opinaram  todos,  animados. 

—  Vou  mandar  preparar  verba  ao  orça- 
mento. Aponte,  ó  Brito.  Vou  mandar  rever  o 
projecto  dos  engenheiros.  É  indispensável  dar 
á  sciencia  morada  condigna,  erguer  o  nivel 
scientifico,  preparar  a  medicina  d'ámanhã... 
Por  consequência,  senhores,  poder-nos-hemos 
entender.  Todos  aqui  são  homens  de  pala- 
vra? 

—  Todos  homens  de  palavra! 

—  Escripta  e  escarrada? 

—  A  nossa  escripta;  agora  escarrada,  a 
dos  collegas  de  v.  ex.a. 

—  Condiccionemos  pois.  Eu  dou  a  Escola. 
.Mas  os  senhores  hão-de-me  cá  metter  um  Lente 
sem  concurso. 

—  Regulamentos  e  dignidade  profissional 
nos  prohibem  de  transigir  com  essa  vellia- 
cada.  0  concurso  é  uma  instransmissivel  ga- 
rantia, sobre  que  a  Escola  estriba  a  legitimi- 
dade mais  ou  menos  inviolável  das  suas  anpii- 
sições.  Abolil-o  é  lazer  bancarrota  na  austeri- 
dade do  magistério,  pôr  a  educação  da  juven- 


os  GATOS  i  •'» 

tu. lo  ;'i  mercê  dos  valdevinos  sobrecellentes 
das  secretarias  e  «las  ftscalisações  aduaneiras 
e  ferro-viarias.  Sem  concurso,  quem  impedi- 
ria V.  Ex.a  de  nos  despachar  por  exemplo  o 
padre  Brandão,  professor  de  partos? 

—  0  meu  protegido  não  è  ahi  nenhum  in- 
truso em  artes  de  curar.  Facultativo  pela  Es- 
cola de  Lisboa,  foi  ao  estrangeiro  informar-se 
d' uma  especialidade  clinica  mimosa,  consti- 
tuindo-se  em  Vienna  d' Áustria  discípulo  ama- 
do dos  primeiros  ophtalmologistas  do  inundo, 
e  vindo  a  sagrar-se  professor  na  grande  uni- 
versidade d'll«'i  lelberg,  onde  por  signal,  Bis- 
marck. . . 

—  Já  conhecemos  o  truc,  nâo  insista. 

—  Deixar  partir  um  lai  homem,  si 
limiar  o  erro  histórico,  que  despedindo  Co- 
lombo, e  não  aceitando  oa  serviços  de  Stanley, 
machadou  mortalmente,  á  distancia  de  séculos, 
a  frondosissima  magnólia  da  eivilisaçã  i  conti- 
nental e  ultramarina  do  nosso  paus. 

—  E  aparb  !  motivos  philosophi 
não  terá  V.  Ex.a  outros,  de  natureza  mais  do- 
mestica, a  verramar-lhe  no  sestro  d.'  cá  met- 
ter  o  homem  ? 

—  A  verdade  é  que  um  afli  teu  sof- 

+ 


\  \  OS  GATOS 

fria  folhos.  En  cá  sou  franco !  Cataratas  aos 
olhos  pares,  um  dos  quaes  por  signa)  que 
e  .1  de  vidro,  »i  uma  espécie  de  conjunctivite 
no  olho  impar.  Ghama-se  o  especialista  ;  ope- 

i  i  "ni. . . 

—  E  o  doente  desandou  a  vêr. 

—  Por  todos  os  lados  ! 

—  Mesmo  do  olho  de  vidro? 

—  Mesmo  do  olho  impar.   Aquillo  havia 
er  pupilla  artificial  que  lhe  rasgaram.  Ali, 

viu  as  estrellas ! 

—  É  o  costume. 

—Mas  ficou  com  um  olho  admirável.   Air 
l  -;n  menina. 

— E  como  no  conto  do  macaco,  a  menina 

tem . . .  camisa? 

—  Em  termos  que  necessito  pagar  ao  dou- 
tor estes  serviços.  Dar-lhe  um  alfinete  de  pe- 
dras,  seria  galhardo  em  brazileiro;  mas  um 
presidente  de  conselho  necessita  de  savoir 
faire  com  mais  munificência.  Conto  portanto 
fázel-o  professor  da  stra  especialidade,  na  pri- 
meira escola  cirúrgica  do 'pai*.  É  negocio  sal- 
dado, e  o  edifício  da  Escola  far-se-ha,  <h><^ 

que  OS  senhores  digam  uma   palavra. 

—  Por  acquiescencla  nossa,  já  V.  Ex.a  sabe 


.is  GATOS 


i5 


que  não  dispensaremos  eoncurso  ao  sen  pu- 
pUlo.  E  as  razoes  são  flagrantes.  Para  receber 

,i  corpo  docente  um  individuo,  <i>ia  Casa 
aio  sabe  d'outras  proficiências,  alem  das  que 
perante  ella  vem  authenticar-se,  em  provas 
publicas.  Foi  por  concurso  que  todos  os  pro- 
n|ni  entraram.  Sr  elle  não  serve,  abu- 
lam-no  para  todos,  e  o  protegido  de  V.  Ex.a 
entre  depois.  Agora  se  elle  continua  a  ser  lei, 
▼enha  o  ophtalmologista  prestar  acto  «las  dis- 
ciplinas e  sciencias  que  propriamente  consti- 
tuem a  summula  <!<•  curso  geral  de  medicina, 
que  depois  d'isso,  o  nomeal-o  proprietário 
d'oma  cadeira,  sem  <>s  tramites  de  promi 
r  adjuvato  a  que  os  nossos  lentes  substituti  s 
-•  subjeitam,  annos  e  annos,  posto  represi 
ainda  ama  preferencia  escandalosa,  já  enl 
eoadunavel  a  amas  apparencias  de  justiça, 
mercê  dos  tstu<l<»s  especiaes  do  nomeado,  e 
,i,,  aparte  das  matérias  incluídas  no  plano  d  t 
eadeira  nova.    Esta  é  a  lei.   Tudo  quanto  V. 

fizer  fora  da  moldura  que  lhe  deixamos, 
importa,  eomo  disáe  B.  Raposo  no  seu  relató- 
rio ao  conselho  d'Instrucção  Publica,  w* 

onvt  niencku  do  ensino  t  da  causa 
publica,  ofensas  dt  principiai  •  '■ 


íli  OS  GATOS 

da  creação  e  provimento  das  cadeiras,  b  escar- 
neo  dos  direitos  adquiridos,  e  trabalhosamente 
consolidados  pelos  substitutos. 

De  mais,  á  Escola  repugnaria  qualquer  re- 
forma concebida  fora  âa  lógica  e  do  criterig 
scientifico  aconselhados  por  ella  em  mais 
d'uma  representação  aos  poderes  públicos. 
Estriba-se  a  aprendizagem  clinica,  que  é  a 
parte  útil  da  cirurgia  e  da  medicina,  cm  no- 
ções de  sciencia  geral,  que  o  alumno  aspira 
Mor  exemplo  do  estudo  da  anatomia,  da  phy- 

igia,  da  pathologia  geral,  da  hygiene  e  da 
matéria  medica,  e  sem  o  conhecimento  das 
quaes  a  missão  do  medico  á  cabeceira  do  enfer- 
mo, seria  a  d'um  curandeiro  empírico  e  pe- 
dante. D'onde  se  infere  que  toda  a  reorgani- 
sação  do  ensino  deverá  proceder  dos  funda- 
mentos para  as  cúpulas,  principiar  pelos  de- 
senvolvimentos, sizões  e  remodelações  pro- 
postas para  as  cadeiras  fundamentaes  acima 
ditas,  tocando-se  as  especialidades  por  ulti- 
mo, em  vez  de  se  andar  ás  cabriolas  pelos 
catitismos  da  sciencia,  como  essa  ophtalmolo- 
gia  que  é  para  assim  dizer  uma  prenda  de 
senhoras,  e  entre  as  cadeiras  de  creação  pro- 
posta, resahe  com  nma  importância  subalterna, 


OS  GATOS 


\~ 


visto  estudar-se  ella,  por  fragmentos  embora, 
a  differentes  alturas  do  curso  actual,  (c) 


* 


Taes  foram  as  objecções  oppostas  pelo 
corpo  docente  da  Escola,  aos  caprichos  mór- 
bidos '1"  sr.  ministro  do  reino,  que  se  retirou 


...  p  ,rque,  se  alguém  pensa  que,  até  hoje 
imnos  sabiam  das  escolas,  sem  noção  d'ophtal- 
tnologia,  redondamente  se  engana. 

icionavam  os  professores  de  anatomia  a 
dos  órgãos  da  visão?  Não  faziam  analogamente  os 
eg  de  physiologia?  Os  de  patholoj 
,gia,  além  de  outros  pontos  de  path 
.  monstravam  o  uso  do  respectivo  ar- 
\-,  i  tem  cabido  aos  de  patholo- 
.  eterna  e  anatomia  pathologica  tratarem  das 
■  Excloiu-ee  alguma  vez,  do  ensi- 
no da  medicina  operatória,   a    parte   respecl 
,s  e  operações   no   apparelho  visual?  N 
mostram  nas  clinicas  moléstias  dos  olhos?  E  ás  de- 
cadeiras  não  pertence,  a  cada  uma,  sua  quota 

parte  de  estudo  attinente  u  coisas  d íulistica?...» 

B.  Raposo.  R  latorio 


',s  OS  GATOS 

de  nariz  apopletico,  saccudindo  na  portada  do 
casebre,  á  maneira  d'invectiva,  o  po  das  suas 
sandálias  de  cautchauc. 

Logo  alli  se  futurou  que  o  descontenta- 
mento do  reformador  da  optalmologia  —que 
se  escamuge  ao  desembolso  dos  honorários 
do  medico,  lezando  as  prerogativas  de  toda 
uma  faculdade  —  fosse  embaraço  ao  começo 
das  obras  da  Escola  uova,  e  travão  ferrenho 
para  as  reformas  scientificas  reclamadas.  Erro 
tora  suppôr  alguém  que  os  institutos  onde  se 
prepara  o  posso;!!  superior  das  sociedades, 
pairassem  em  regiões  inacessíveis  aos  capri- 
chos asnaticos  dos  bonzos  que  aos  mandam, 
estribados  na  inania  physica  das  classes  eru- 
ditas, o  na  impunidade  de  prepotências  ante- 
riores. 

0  resultado  foi  ordenar  o  snr.  José  Lucia- 
no por  sua  conta  e  risco,  e  ao  inverso  do 
conselho  dos  entendidos,  a  creação  d'um  cur- 
so d'ophtalmologia,  funccionando  paralela- 
mente á  Escola  Medica,  mas  de  frequência 
facultativa  para  os  estudantes,  e  d'estipendio 
e  organisação  professoral  muito  diversos  dos 
observados  no  curso  ordinário. 

De  feito,  prefixa  o  decreto,  a  par  da  funda- 


os  GATOS 


','.> 


çao  da  cadeira  nova,  quem  determinadamente 
ha-d*  mt  o  professor,  e  desfecha  creando  um 
posto  d'ajudante,  de  provimento  fechado  á 
occalistica  nacional— pois  se  stereotypa  tfelle 
a  condição  do  candidato  ao  togar,  ser  estran- 
Só  em  ordenados  aufere  o  lente  imposto, 
annualmente  mais,  do  que  entre  ordenad 
gratificações  d'exercicio,  os  lentes  «I»-  concurso; 
e  assim  <>  adjunto  fica  em  situação  monetária 
sobrelevante  á  dos  pobres  professores  substi- 
tutos, que  se  arriscam  a  ganhar  durante  dez, 
quinze,  vinte  annos,  um  estipendio  em  ver- 
dade irrisório,  attentos  os  labores  terríveis 
que  tiveram  de  vencer  para  conquistar  o  seu 

togar. 

Sobre  estes  excessos,  acresce  ainda  o  de 
ser  a  cadeira  espúria,  a  unica  que  se  dá  o  lu- 
xo de  ler  ajudante  preparador  encartado.  Para 
as  mesmas  clinicas,  tão  trabalhosas,  não  houve 
anda  meio  de  se  ateancar  um  chefe  de  sala, 
,|in-  reforce  as  explicações  do  cathedratico,  »i 
ministre  aos  alumnos,  por  detalhe,  o  tão  In- 
dispensável tirocínio  das  minuciosas  coisas  de 
enfermagem  e  de  pequena  cirurgia. 

A  bofetada  do  ministro  estala  portanto  aqui 
com  lenâvel  fracasso,  nas  barbas  «ruma  cor- 


">(l  OS    (iATOS 

poração  que  se  não  quiz  dobrar  ás  collisões 
liystericas  e  domesticas  que  o  derrengam  ;i 
elle  —  e  calcula-se  pela  violência  do  acto,  o  pe- 
rigo em  que  incorrem  as  mais  graves  coisas 
do  paiz,  desde  que  um  tal  homem  pôde  revo- 
gar  códigos  e  preterir  direitos,  com  a  sua  sim- 
ples pennada  de  politico  gafo*  e  sem  que  nin- 
guem  desça  á  pua  a  escadeirar-lhe  o  despo- 
tismo. 

De  feito,  o  sr.  José  Luciano  não  se  impor- 
I  'ii  com  a  opinião  dos  entendidos;  não  quiz 
saber  das  Leis  que  a  prudência  poz  de  guarda 
á  soberania  do  alto  ensino  scienlilico  ;  desde- 
nhou a  razão  e  a  lógica  da  reforma  radical 
que  lhe  propunham — c  com  uma  insolência 
que  só  (em  similar  na  bestialidade,  emquanto 
o  estudo  da  physiologia  periga,  amontoado 
assim  nus  cento  e  vinte  lições  prováveis  d'um 
anno  lectivo;  emquanto  o  estudo  da  hygiene e 

o  da  medicina  legal  são  pura  hypolhrse;  em- 
quantoa  microscopia  mórbida  é  lettra  morta; 
emquanto  as  pathologias  e  as  clinicas  recla- 
mam ampli;ir-se;  e  o  edilicio  da  Escola  desa- 
ba, c  a  bibliotheca  envelhece,  c  os  museus 
cada  dia  estão  mais  pobres:  o  idiota,  em  vez 
de    remediar    d'uin    liauslo   eshis  misérias,  de 


08  C  LTQ6  51 

firmar  com  o  sea  nome  uma  obra  perdurável, 
so  xr  n;i  Escola  Medica  uma  repartição  de 
sorrelfas  plumitivos,  e  n'esta  um  escaninho 
onde  pôr  a  comer  tranquillamente  um  afi- 
lhado. 

Claro  vae  que  u'esta  reprknenda  nossa. 
Dão  entra  para  nada  o  nome  do  homem  estu- 
dioso a  quem  o  snr.  José  Luciano  deu,  com 
a  sua  arbitrariedade,  um  renome  diverso  do 
,,,„.  eiie  mais  tarde  vira  a  conquistar  talvez 
na  sciencia  portugueza.  <>  professor  avulso 
d'ophtalmologia  não  th'<vr,  a  nosso  vèr,  da 
sympathia  votada  aos  trabalhadores  e  aos  es- 
tudiosos,  |  elo  facto  d'um  guita  lhe  ter  aberto 
azinhaga  fácil  ;'•  tomadia  de  1000000  reis  men- 

..  sem  trabalho  nenhum— embora  pare- 
cendo duvidar,  com  o  supprimir-lhe  as  diffi- 
culdades  do  concurso,  das  suas  apregoadas 
aptidões  de  Babio  e  de  professor. 

Até  nós,  os  governos,  quando  apertados 
para    arranjar    um    poiso    de   favor   aos   scns 

mignons,  tinham  um  campo  d'accão  certo  <• 
sabido  onde  lançal-os— campo  de  responsabi- 
lidades modestas,  como  -\  burocracia,  as  admi- 
nistrações d,'  provinda,  oa  pequenos  consula- 
dos e  os  carj  ilternos  ^  legação— coisas 


Da  <>s  GATOS 

inofifensivas  erafira,  bem  ou  mal  pagas,  l»ri- 
Ihantes  quando  muito,  e  que  se  defraudavam 
o  erário,  nunca  vinham  a  perturbar  a  circu- 
lação das  ideias  e  dos  interesses  fundamentais 
da  sociedade.  Para  servir  uma  canja  ao  primo 
d  um  collega,  os  ministros  revolviam  tudo,  do 
pessoa]  das  repartições,  ao  pessoa]  das  embai- 
xadas, mas  paravam,  transidos  de  respeito, 
no  Limiar  de  certos  sanctuarios  por  sua  natu- 
reza inacessiveis  ás  polluções  da  cainçada  rw- 
cutiva. 

—  ingénuos  tempos ! 

Hoje  os  conselheiros  d'el-rei  arrogaram-se 
poderes  omniscientes,  invadiram  as  attribui- 
ções  dos  tribunaes  superiores,  c  entram  de 
chicote  e  esporas  nas  salas  dos  cursos,  pondo 
junto  ao  altar  da  sciencia,  em  vêz  de  tripode, 
um  mijadeiro.  0  que  indigna  não  é  tanto  o 
snr.  Gama  Pinto,  eathedratisado  de  graça,  no 
hemi-cyclo  professora]  da  Escola  Medica,  como 
o  snr.  José  Luciano  feito  arbitro  máximo  dos 
destinos  da  faculdade ! 

Se    o    caso    dVsIr    alropHIamcnlo    da    lei 

menoscabando  a  aristocracia  scientifica  (rum 
grupo,  em  vêz  de  partir  (rum  tal  typo,  hou- 
vesse partido  d  um  homem  de  talento,  íami- 


08  GA/TOS  •>;> 

liar  a  ia  os  altos  estudos,  entender-se-hia  que 

o  ministro  procedera  talvei  por  puro  fetchis- 

iin»  de  sciencia,  embora  mofando  as  formulas 

i  provisão.  Mas  uem  semelhante  liy- 

pothese  logra  dar-se,  viste  como,  em  primeiro 

logar  o  sr.  José  Luciano  é  cerebralmente  um 

csvasiado,  e  em  segundo,  o  snr.  Gama  Pinto 

não  paira  agora  tão   alto,  que   oão  podesse 

concorrer  á  ophtalmologia  com  o  snr.  Lou- 

.,    ,ia    Fonseca,   ou    com   o  snr.    Mello 

Vianna. 


Ora,  o  melhor. 

caso  da  provisão  d'um  lente  por  au- 

icia  exclusiva  d'um  ministro,  aão  é  des- 
graçadamente um  caso  avulso.  Tem  antece- 
dentes escandalosos  uo  Instituto  Industrial,  e 
vae  ter  consequentes  breve,  na  Escola  Medica 
e  ao  Curso  Superior  de  Lettras. 

Kmpóz  da  ophtalmologia,  e  antes  mesmo 
que  se  dé  principio  às  obras  da  Escola  e  á  re- 
forma geral  do  curso  de  cirurgia  e  medicina, 
hemos  que  vèr  creada  uma  cadeira  de  psy- 
chiatria,  eom  especiatisação  d?um  certo  ho- 
mem para  lente,  e  dispensa  do  concurso  im- 


•'  i  (is  GATOS 

plicita,  que  é  para  fechar  as  probabilidades 
da  nomeação  a  quaesquer  outros  candidatos. 
E  assim  a  respeito  do  Curso  Superior  de  Let- 
tras,  hoje  deserto,  se  projectam  remendos,  cm 
guiza  d'accommodal-o  a  uma  espécie  d'escola 
nonnal  para  professores  d'instruccão  secunda- 
ria, modilicando-se  o  programma  das  disci- 
plinas actuaes,  e  juntando-se-lhe  outras,  em 
cuja  provisão  medita  o  sf.  José  Luciano  aco- 
corar de  mão  beijada,  alguns  satélites  seus  e 
meninos  de  coro  descontentes. 

Ora,  é  necessário  rechassar  de  vez  estas 
exorbitâncias  infames  do  poder,  que  põem  as 
mais  nobres  actividades  do  espirito  á  mercê 
do  auctoritarismo  emphatico  dos  nullos,  e  in- 
troduzem nos  quadros  scientificoso  mistilbrio 
cm  que  asam  assalgalhar-se  entre  nós,  os 
quadros  aobiliarchicos.  É  necessário  que  esse 
tal  ministro  do  reino  d  ama  vez  perceba  que 
se  Dão  cathedratisam  doutores  pela  mesma 
receita  com  que  se  aviscondalham  brazileifos, 
<•  que  se  é  certo  que  a  toga  vestida  pelo  sr. 
Gama  Cinto  não  deshonra  felizmente  a  Escola 

.Medica,  mercê  dos  talentos  prováveis  do  neo- 
pliito,  nem  por  isso  O  perdão  d'aclo  deixa  de 
ser  uma  odiosa  esmola,   que  se  vinga  do  be- 


(is  GATOS 

aeficio  que  presta,  defraudando  a  altivez  de 
quem  ua  a  ceei  ta. 

Taes  concessões,  se  bem  que  U,I|;|  ml  ou" 
tra  fez  inoflensivas,  em  geral  só  costumam 
purgar  de  si  nefastos  resultados,  baixas  <l<> 
uivei  moral  e  mental  das  gerações  estudiosas, 
repulsa  dos  homens  de  valor  ao  magistério,  e 
desanimo  emfim  da  mocidade,  já  de  si  pro- 
pensa á  negação  de  todas  as  magistraturas 
contemporâneas. 

Evitem-nos  pois  o  espectáculo  do  ensino 
superior  gerido  por  curiosos,  e  acabe  a  pro- 
tecção do  Estado  aos  sabichões  sob  palavra 
de  honra,  como  esse  zoologo  que  exclamou 
uma  vez  na  Polytechnica 

—  As  rãs  são  lagartos  sem  rabo. 

Ou  como  ess'outro,  grande  esvurmador 
origens  étnicas  do  homem,  que  costumava  di- 
zer no  Curso  Superior  de  Lettras : 

—  Desabotoem  as  calças  d'nm  homem ;  se 
f0r  (|(.  febrica  coberta,  nâo  ha  que  errar— é 
celta  ! 


56  08  GATOS 

ínterview  com  o  imperador  do  Brazil. 

A  sua  chegada  a  Lisboa,  recambiado  do 
throno  pela  revolução  picaresca  de  15  de  ao- 
vembro,  o  imperador  do  Brazil  não  viu  á  ro- 
da de  si  senão  personagens  de  caracter  offi- 
cial,  e  Qoticiaristas  e  reporters  ávidos  de  im- 
vidades  com  que  fazer  aiijíiniMitar  a  venda  aos 
seus  jornaes.  Colónia  brazileira,  muito  pouca, 
e  essa  constrangida  e  remordendo  contra  o 
soberano  deposto  um  desdém,  que  nem  por 
ter  nascido  á  véspera,  deixava  de  ter  iodas  as 
apparencias  d'um  ódio  antigo  e  figadal. 

Comprehende-se  eiilaníi»  a  villania,  O  vc- 
Iho  príncipe,  que  protegera  e  acarinhara  mui- 
tos d'aquelles  egoístas,  auxiliando^-lhes  os 
accessos  para  a  riqueza  ou  para  oseargospu- 
blicos,  o  velho  príncipe  descia  a  Portugal 
exbautorado,  e  já  não  era  para  elles  no  im- 
pério o  esteio  da  Ordem,  já  não  garantia  com 
o  sen  governo  a  alia  de  fundos,  já  não  podia 
dar  pensões  a  estudantes  ea  escriplores,  já  não 

fazia  cônsules  nem  despachava  plenipotenciá- 
rios; e  desembarcando  pobre,  era  uma  espécie 
de  cousin  Pons,  de  cuja  eslima  nenhum  brazilei- 
)()  authentico,  ou  portuguez  abrazileirado, po- 
diam auferir  vangloria  ou  espórtula  de  vulto! 


os  ti  m<»s  57 

Km  termos  que  fora  do  carinhoso  circuito 
dos  três  ou  quatro  amigos  leaes  que  vinham 
;i  bordo,  a  família  imperial  só  achou  ao  des- 
embarcar em  Lisboa,  as  caras  de  cortiça  do 
séquito  do  sr.  I>.  Carlos,  e  a  refllante  mati- 
lha dos    reporters,   ávida  <l<'    conspurcar    a 

restade  do  infortúnio  com  a  inexprimível 
solercia  das  interviews,  obscenisada  por  essa 
absoluta  falta  de  pudor  dos  que  fazem  da  al- 
covitice  um  ganha  i>âo. 

Percorrer  as  reportages  il»1  fama,  durante 
os  primeiros  dez  dias  que  o  imperador  teve 
cm  Lisboa,  é  edificar-se  a  gente  ri' uma  mul- 
tidão de  mexeriquices,  de  parvoiçadas,  d'abu- 

de  confiança,  de  catumnias,  que  nem  por 
passarem  no  jornalismo  por  qualidades  repu- 
tadoras  de  mocinhos  talentosos,  deixam  <lc 
vir  íid  Código  como  outras  tantas  causas  de 
pronuncia. 

o  jornalismo  meudo  está  entre  nós  toman- 
do uma  feição  tão  pouco  nobre,  que  inutili- 
v.ii-u  seria  quasi  uma  obra  de  razão.  Mas  não 

rora  a  melhor  occasião  de  liquidar  esta 
pendência,  que  apenas  feri  para  dizer  que  não 
foram  intuitos  d'entrevisteiro,  nem  propósitos 
d'esclarecer  m   últimos  }Uicos  do 


58  (>s  GATOS 

Brazil,  quem  me  levou  lia  dias  ao  Braganza, 
com  uma  pouca  de  ternura  pelos  dois  uobi- 
lissimos  velhos  desthronados.  ía-me  pois  a 
acercar  do  snr.  D.  Pedro  II,  quando  subita- 
mente me  cortou  <>  passo  um  dos  taes  repor- 
ters,  precisamente  no  instante  de  se  annun- 
ciar  o  almoço  imperial. 

Á  vista  do  gazeteiro  intruso,  dos  seus  mo- 
vimentos de  fura-vidas,  da  sua  sem  ceremonia 
de  sachrista,  e  do  seu  collarinho  de  boi  racha., 
S.  M.,  que  ainda  não  dera  pela  minha  presença, 
mal  disfarçando  um  gesto  d'enfado,  estendeu 
a  mão  mollemente  ao  hoinemsinlio,  com  a  re- 
signada bondade  de  quem  de  lia  muito  se  entre- 
tém, como  Esopo,  a  fazer  fallar  os  animaes- 

—  ,lá  sei  a  que  vem,  disse  o  soberano  des- 
ilironado,  ao  gazeteiro-.  V.  quer  saber,  qual  o 
menu  do  meu  almoço,  o  maiére  d'kotdYd&  in- 
íormal-o...  pôde  dizer  que  Wt  substituir  o 
sauté  cVagneanr  aux  pois,  por  umas  iscas  de 
fígado  á  la  brandura  dos  nossos  costumes. .  . 
que  dei  além  d'isso  uma  audiência  de  meia 
hora  ao  pedicuro,  e  que  mudei  de  roupa 
branca  ao  levantar,  lla-de  querer  examinar 
talvez  a  roupa  suja  ?. . . 

—  A  roupa  suja!  disse  o  enlrevisleiro,  íaris- 


OS  OATOS  59 

cando.  I'.  um  pormenor  muito  interessante,  e 
em  que  nenhum  dos  nossos  collegas  tocou 
ainda.  A  minha  intervieic  d'amanhã  versará 
então  sobre  a  influencia  da  roupa  branca  n  » 
queda  das  dymnastias.  Diga-me  pois,  meu 
senhor,  quantas  vezes  por  semana  mudava  V. 
v|.  no  Brazil,  de  roupa  branca. 

—  Antes  de  vir  ;'i  Europa,  ires  vezes,  mas 
depois  das  viagens,  comecei  a  mudar  todos  os 
dias. 

—  K  á  medida  que  esse  requinte  d'aceio 
ganhava  publicidade,  acaso  notou  V.  M.  effer- 
vescencias  no  partido  republicano  ? 

—  De  quando  cm  quando  effectivamente, 
havia  nos  elubs  e  n<>s  jornaes,  rumores  d'  - 
meaça  contra  <»  throno,  mas  attribui-os  sem- 
pre a  factores  estranhos  ;'i  minha  renoi  i 
quotidiana  de  piu$ 

—  Pôde  V.  M.  informar-me,  se  usou  algu- 
ma vez  no  Brazil,  meias  bordadas? 

—  Em  dias  de  gala,  confesso;  mas  eram 
iodas  feitas  pela  imperatriz,  e  cm  nada  faziam 
exorbitar  a  lista  civil. 

—  E  Deodoro  sabia-o? 

— Não  posso  dizel-o.  Entanto  a  redaçã 
lançou-m'o  em  rosto,  para  concluir  d'es- 


60  <>s  GATOS 

ta  minha  concessão  á  moda,  o  que  ella  cha- 
mava as  demasias  <!<>  mni  poder  pessoal. 

E  todavia  eu  não  li/  mais  do  que  imitar, 
pela  adaptação  d'este  insignificante  artigo  de 
toilette,  a  elegância  dos  moços  do  Rio  e  Petró- 
polis, que  é  requintada  como  sabe,  e  vem  de 
Paris  directamente. 

—  Isso  o  perdeu!  aventurára-se  a  excla- 
mar o  entrevisteiro. 

—  Mas  desde  que  eu  me  esforcei,  durante 
quasi  meio  século  de  reinado,  por  adaptarão 
meu  paiz,  as  mais  amplas  conquistas  da  liber- 
dade e  da  civilisação,  que  mal  havia  em  in- 
troduzir na  corte,  um  poucochinho  do  luxo 
que  essa  civilisação  fomenta?  Benjamim  Cons- 
lant,  o  austero,  o  próprio  Benjamim,  usa  li- 
gas por  cima  do  joelho. . . 

—  Qual  era,  meu  senhor,  a  côr  habitual 
das  ceroulas  de  S.  A.  o  conde  d'Eu? 

—  Os    CÓzeS,    vermelhos,    o  que  lhe   valeu 

no  povo  uma  reputação  de  déspota  refece... 
as  pernas  brancas,  cor  da  bandeira  de  Hen- 
rique, e  com  uma  flor  de  li/  amarellada  so- 
bre  as  costuras  da  juneção. 

—  Os  senhores  d'escravos  sabiam  que  as 
ceroulas  de  s.  A.  tinham  cozes? 


08  GATOS  <»l 

—  É  i[ii;isi  certo.  Mas  foi  o  exercito,  que 
não  usa  ceroulas,  quem  primeiro  viu  mas  de 
meu  genro,  um  antagonismo  de  casta,  e  deci- 
diu insurgir-se,  antes  que  o  governo  as  fizes- 
se incluir  no  grande  uniforme. 

—  lie  modo  que  a  causa  fundamental  e 
remota  da  revolução  brazi leira,  oão  seria  tan- 
to o  descontentamento  pessoal  do  Deodoro, 
que  queria  a  presidência  do  conselho;  uem 
tampouco  os  vivas  á  republica  dos  alumnos 
da  Escola  Militar,  mas  pura  e  simplesmente 
o  uso  e  abuso  que  S.  A.  o  conde  d'Eu  fez  do 
Brazi I,  (fiiui  artigo  que  <i  amigo  Banana  cos- 
tumava vestir,  por  dentro  das  calças. 

—  Sem  tirar  nem  pôr !  Tanto  me  pareceu 
esta  .1  origem  histórica  da  transformação  po- 
litica porque  o  meu  paiz  acaba  de  passar,  que 

p  raphei  a  Beaurepaire  de  Rohan,  para  este 
expor  ao  governo  provisório  a  minha  con- 
cepção sobre  a  uova  bandeira.  Sabe  o  furor 
com  que  <"•■<  ha  duas  semanas,  se  entreteem 
por  lá  a  discutir  a  composição  do  novo  pavi- 
lhão. Pois  a  minha  ideia  é  simples.  Sobre  um 
fundo  listrado  a  mm-, ir  e  ouro,  mna-  ceroulas 
atravessadas  por  um  espadalhão . . .  As  cerou- 
las representariam  <>  nó  gordio  monarchico, 


62  OS  GATOS 

cortada  em  dois,  pela  espada  d' Alexandre 

Deodoro  da  Fonseca. 

—  .Mas  á  vista  dos  fados,  é  positivo  que  o 
governo  provisório  também  as  não  usa? 

S.  Magestade  redarguiu  : 

—  Nos  paizes  cálidos,  onde  o  suor  abunda, 
a  pouca  roupa  branca  é  um  signa!  d'austeri- 
dade. 

—  Nossa  Senhora!  como  no  tempo  quente, 
lodos  esses  grandes  homens  deverão  andar 
assados  ! 

—  Acaso  ignora,  que  uão  lia  estadista  bra- 
zileiro  que  não  polvilhe  as  regueifas  com  fart- 
nlia  de  pau?. .  . 

—  Oh  !  as  jovens  nacionalidades  ! . . .  Den- 
tro de  noventa  annos,  todo  o  Brazil  dirá: 
veneremos  a  memoria  de  nossos  maiores,  que 
se  republicanisaram  —  por  uma  questão  de 
trajos  menores. 

—  Vou  almoçar,  disse  o  imperador.  Que 
mais  deseja? 

—  Desejava...  desejava  que  V.  M.,  certo 
do  meu  profundo  /elo  á  sua  causa,  me  em- 
pregasse ahi  de/  tostões. 

—  Singulares,  estes  reporters !  Acabam 
lodos  as  ittíerviews  da  mesma  maneira. 


OS  OATOS  63 

_  i;  julga  V.  M.  que  uma  restauração  seja 

possível  ? 

li.  Pedro,  á  porta  da  casa  de  jantar,  e  des- 

pedindo-se  : 

—  Ai  de  mim !  rehaver  o  império  é  quasi 
tão  inverosímil,  como  rehaver  os  dez  tostões. 


Meu  senhor  D.  Carlos  de  Bragança  e  d'Or- 
leans  -muito  mais  d'Orleans,  que  <!<>  Bragança. 

A  reputação  que  por  Villa  Viçosa  haveis  <  1  *  • 
grande  e  sábio  príncipe,  alhada  ao  que  li»'i 
lido  <i;is  explendidas  alfaias  que  dizem  brilhar 
n, ,s  thi  souros  '1"  vosso  paço,  me  conduzi- 
ram da  pobre  herdade  onde  apascigo  gados  e 
agriculto  terras  p'ra  vos  pagar  <>  melhor  d»1 

vinte  ín las  de  Unta,  às  festas  da  vossa  co- 

ticunhadas  d'opiparas  uos  annuncios 
das  companhias  de  caminhos  de  ferro  —  por 
cujo  bilhete  d*ida  e  volta  me  desguarneci  de 
seis  mil  reis,  não  conl  indo  farnel,  e  um  va- 
rino estragado  pelos  gorgolejos  d'um  compa- 


64  os  GATOS 

nheiro  de  viajem  que  se  emborrachou  p'ra  vos 
dar  vivas. 

Do  meu  casalejo  trazia  em  Colha  uma  ad- 
mirarão de  saloio  p'ra  quanto  visse,  e  por  N, 
Senhora  do  Guadalupe  vos  juro  que  ninguém 
sentiu  ainda  melhor  vontade  de  crer  ua  pre- 
destinação divina  dos  reis  sobre  o  destino  dos 
povos,  e  na  omnisciência  da  vossa  missão  co- 
mo Dador  da  prosperidade  económica  c  social 
de  que  lauto  havemos  mister. 

Mau  grado  as  calumnias  espalhadas  ao  de 
redor  do  vosso  nome,  mau  grado  0  allianca- 
rem-me  amigos  vossos  a  exiguidade  da  vossa 
intelligencia  e  a  inverosimilhanca  da  vossa  pe- 
danteria ;  mau  grado  o  dizerem-me,  senhor, 
que  mentíeis  com  um  descaramento  inolvidá- 
vel, e  escarafuncháveis  nas  vénias  com  uma 
teimosia  imperecível,  todas  estas  asserções  eu 
referi  a  estímulos  de  corte,  a  mal  entendidos 
d'antecamara,  a  ciúmes  d'aulicos  e  a  interven- 
ções de republiqueiros.  E  repensando  na  estir- 
pe olympica  do  vosso  nome,  comigo  mesmo 
dizia,  ao  sentir-me  vencer  pela  suspeita  —  Ten- 
do este  rapaz  tão  glandes  vícios  na  ascendên- 
cia, como  é  possível  não  ser  elle  um  poço  de 
virtudes? ! 


06  GATOS  65 

Adquiri  n'uma  loja  um  retrato  vosso,  e 
contemplando-vos,  proseguia  <»  meu  sonho  de 
vos  glorificar  como  a  mu  enviado  do  Senhor. 
Gordo  de  mais  me  parecesteis  para  monarcha 
(rum  paiz  que  está  na  espinha,  e  immovel  e 
dura  se  me  affigurou  vossa  verónica,  onde  de- 
balde busquei  vislumbres,  verdade  seja,  d'a- 
quella  vossa  origem  superior.  Com  uma  ca- 
belleira  d'esparto  numa  cara  de  pecego,  «' 
dois  olhos  de  fayança  semelhantes  aos  cacos 

(Tiiiii  bispote,  antes  me  destes,  senhor,  a  ideia 

do  cocheiro  inglez  da  senhora  duqueza  de  Pal- 
mella,  do  que  a  alta  e  deslumbradora  visão 
da  auctoridade  real,  transfigurada  no  specimen 
Minis  puro  «la  helle/a  aperitiva  e  intangível, 
hoje  em  dia  ião  ulil  aos  príncipes  como  ás 
cocoUes,  attenta  a  circumstancta  d'ambos  terem 
de  fazer  com  elia,  «píer  dentro  da  Carta,  quer 
dentro  da  cama  —  ""  toa  </<  choses. 

Resiguar-me-hia  entretanto  a  dobrar  o  joe- 
lho aos  pés  do  throno,  impugnando  a  melho- 
ria do  que  vós  éreis,  e  que  o    iinliecil    pholo- 

grapho  talvez  houvesse  deturpado,  por  suges- 
tões do  feroz  Gonsiglieri— se  de  repente  não 

acorda  em  mim  a  profecia  sinistra  de  mie  os 
que  riem  no  lucto,  lifio-de  por  forca  derramar 


6t)  os  GATOS 

lagrimas  na  gala ;  e  o  presentimento  de  que 
vós,  senhor,  que  chalaceastes  no  coche  de  I». 
João  v,  no  dia  do  enterro,  os  venerandos  res- 
tos de  vosso  pae,  no  mesmo  carro  havíeis  de 

pagar  a  irreverência,  pelos  apupos  do  povo, 
ii()  próprio  dia  da  vossa  acelamação. 

De  feito  <pie  foi  ella,  a  vossa  acclaniacào, 
;|  mais  que  o  fiiíiMTo  ilo  prestigio  monarchico, 
amortalhado  em  velludilhos  de  magica,  e  se- 
guido por  macacos  trajando  á  corte,  acocora* 
dos  em  berlindas  de  carnaval?  Eu  quizera, 
senhor,  que  vós  n'esses  cortejos  antes  hou- 
vésseis feito  figurar  um  boneco  em  vosso  |<> 
gaF,  vindo  comigo  por  entre  a  turba  das  ruas, 
recolher  os  commenlarios  que  fazia  o  povo  á 
passagem  dos  carros  iriímipliaes.  Quizera  que 
avisado  da  preparação  lenia  mas  firme  do  es- 
pirito publico  para  nina  transformação  politica 
que  cada  vez  vos  cinge  de  mais  perlo,  aieada 
como  vae  pelas  manobras  da  colónia  do  Bra- 
zil,  e  pela  exosmose  politica  de  líespanha  — 
que  renegará  a  estrangeira,  mal  pereça  a  pe- 
quenina lesma  chamada  Aífonso  \m  —  come- 
çásseis a  preparai' com  tempo  as  vossas  inalas, 
;i  fazer  economias,  a  pòr  no  lianco  de  Lon- 
dres os  vossos  modestos  haveres  patrimoniaes, 


os  g  \  ros 


de  caminho  fazendo  praticar  as  línguas  b  i 
,  primogénito,  visto  como  o  elle  não  po- 
der succeder-vos  no  throno,  sob  <»  nome  de 
rei  Luiz  Filippe,  nã  i  é  razão  pr';i  que  não  ga- 
nhe a  sua  vida,  leccionando  francez,  sob  a  ta- 
boleta  modesta  de  Luiz  Filippe.. .  Leite.  Por- 
,|,„.  os  ,  i  tempo  deixaram  *  1  *  *  ser  desde 

hontem,  wna  revelação  do  incógnito  aos  vi- 
dentes-, pr*a  se  tornarem  n'uma  legenda  fatí- 
dica, que  todos  podem  soletrar  nitidamente. 
Seja  qual  fòr  a  formula  governativa  que  adve- 
nha, melhor  ou  peor,  mais  despótica  ou  mais 
livre,  os  dias  da  realeza  estão  contados,  pois 
seria  indigno  de  nós  o  conservarmos  por  che* 
fe  um  personagem  a  quem  vimos  de  desfei- 
tear  de  fond  en  comble. 

E  note  V.  M. !  não  foi  o  povo  quem  ini- 
ciou esse  acto  publico  de  chacota  á  monar- 
chia,  nem  os  republicanos  que  andaram  pelos 
grupos,  alliciando  chufas  dos  ânimos  descon- 
tentes. Foram  os  aulicos,  foram  os  ministros, 
foram  os  Íntimos,  foram  os  cavallariç 
servidores  de  V.  M.  «ill(>  °  provocaram.  EUes 
que  animados  de  propósitos  drolaticos,  e 
,  Mi,,  desdéns  de  mi*  uaes  aos  que 

está  lendo  a  administração  do  theatro  de  S. 


68  os  GATOS 

Carlos,  tornaram  as  festas  n'um  sorvedoi- 
ro  de  dinheiros  públicos,  eraquanto  iam  re- 
duzindo a  magnificência  real  a  uma  panto- 
mima de  chechés  vestidos  de  farrapos,  vergo- 
nhosa para  lodos,  e  a  transudar  grotesco  por 
iodas  as  costuras.  Elies  que  dictaram  o  estylo 
decorativo  das  salas  em  que  havíeis  de  cantar 
o  juramento,  os  pavilhões  da  parada  e  o  pro- 
gramma  da  vossa  procissão  pelas  ruas  da  ci- 
dade, só  comparável  ás  danças  de  carnaval, 
as  mais  immundas,  e  entestada  de  reis  d'ar- 
mas  com  as  barrigas  das  pernas  ao  contrario> 
c  passa  vantes  que  piscavam  o  olho  ás  ovari- 
nas,  dando,  no  transcurso  do  préstito,  com  as 
massas  de  prata  na  caberá  dos  gallegos. 


Ali,  como  os  monarchas  lusitanos  d'agora 
tergiversam,  mendigos  tontos,  da  estonteado- 
ra  pompa  das  coroações,  das  embaixadas,  das 
entradas  Iriumpliaes,  dos  cortejos  e  dos  sa- 
cres,  dos  seus  grandes  antecessores  da  Renas- 


os  GATOS 


69 


cença,  quando  as  riquezas  esbrazeavam  n<»s 
erários,  o  luxo  do  Oriente  e  da  Itália  ia  so- 
bredoirando  d'offuscantes  apotheoses  a  di 
obra  de  conquista  e  descoberta,  e  o  génio  da 
gloria  erguia  as  azas,  para  levar  ao  longe,  i»1- 
lo  terror  e  pela  audácia,  a  atoarda  dos  nossos 
commettimentos !    Basta   ler   em   Damião  de 
Góes  e  no  padre  Osório,  a  descripção  da  em- 
baixada de  D.  Manoel  a  Leão  \,  para  se  ajuizar 
da  magnificência  estridula  d'um  cortejo  portu- 
rniez  no  século  xvi,  e  repassar  pela  vista  <> 
que  'li/.   Fernão   Lopes  sobre  a   entrada  'l" 
mestre  d'  \\ix   no  Porto,  acclamado  rei,  para 
sem  mais  detonga  acquiescermos  na  consan- 
guineidade  profunda  d'aspiraçôes  e  interesses, 
que  jungia  a  investidura  do  rei,  á  grande  al- 
uiu pathetica  e  heróica  da  nai 

;ratissimo  e  invencivel  Cezar,  (rf)  ha 
poucos  dias  que  são  vindos  a  esta  cidade  de 
Roma  embaixadores  do   sereníssimo   rei   de 


Damião  de  Góes,  Ch.  Del-Rey  D.  K 

BISPO    DE    Si  LVE9,     F<  itOS    1  ' 


70  OS  GATOS 

Portugal,  a  dar  obediência  ao  nosso  santo  Pa- 
dre Leam.  Sun  entrada  foi  cousa  fermosa  pa- 
ra ver,  porque  eram  ires  embaixadores,  hum 
da  ordem  dos  Baroens,  que  tinham  o  primeiro 
logar,  e  os  outros  dois  doetores  em  leis,  os 
quaes  ira/iam  buma  magnifica  e  pomposa  com- 
panhia. Primeiramente  vinham  diante  seis 
trombetas  e  seis  charamelias ;  depois  hum  ín- 
dio sobre  aum  fermoso  cavallo  ornado  de 
huma  sella  da  índia,  o  qual  trazia  de  traz  de 

si    sobre    as   cubertas   das   ancas   do    cavallo, 

huma  besta  semeliavel  a  um  Leão  pardo,  mas 
de  menor  corpo,  e  mais  delicada,  e  de  muitas 
e  desvairadas  cores.  A  este  seguia  hum  Ele- 
phante  índio,  que  trazia  em  cima  de  si  hum 
cofre  com  um  rico  presente,  que  o  sereníssi- 
mo e  christianissimo  Príncipe  enviava  aos  san- 
Ctissimos  Padres,  S.  Pedro  e  S.  Paulo,  e  cm 
seu  nome  ao  mesmo  Saneio  Padre.  O  cofre 
era  cuberto  de  hum  panno  tecido  douro,  com 
as  armas  fleaes,  que  não  iam  somente  cubria 

o  COfre,  mas  ainda  todo  o  Klephanle,  em  cima 
do  qual  lua  outro  índio  vestido  de  huma  roupa 
douro  e  seda,  á  palavra  do  qual  o  Elephante 
obedecia,  caminhando  por  um  spaço;  e  logo 
após  elle  seguião  algumas  azemelas  mui  fermo- 


os  6AT0S  71 

300,  dizem  os  Innai  -  Histoiui  os)  cuber- 
,,:,,  reposteiros  de  raz  e  Beda,  de  diver- 
sas cores  e  insígnias.  Al  raz  destes  vinham  os 
criados  dos  embaixadores  mui  bem  ataviados, 
(tantos,  quantas  as  azemelas)  e  apóz  estes  a 
ordem  dos  nobres,  que  eram  em  numero  <l<i 
ciocoenta,  lodos  vestidos  de  pannos  douro  e 
.  com  colares  de  ouro,  não  menos  de  peso 
que  demostra,  de  que  os  mais  delles  davam 
grande  resplandor  por  caso  das  muitas  perlas 
e  pedras  de  que  eram  semeados;  e  entre  to- 
dos os  outros  num  filho  do  primeiro  embaixa- 
dor, ao  qual  seguia  o  Rey  d'armas  do  dito 
Rey,  vestido  de  huma  roupa  de  panno  douro, 
com  as  armas  do  reyno  coroadas,  e  cerca- 
das èm  torno  de  mui  formosas  perlas  e  ru- 
bis; e  lodos  em  briosos  ginetes  com  sellas, 

peitoraes,  caprazões  e  mais  arreios  dour a- 

ou  de  lavor,  esmaltados  de  perlas  e  pe- 
dras de  gran  preço.  Após  estes  vinham  os 
embaixadores  vestidos  magnificamente,  e  o  pri- 
meiro delles  trazia  bum  mui  rico  ehapeo  de 
perlas,  nãm  digo  somente  ornado,  mas  lodo 
coberto.  Depois  dos  embaixadores  vinha  muita 
gente  de  conselho,  de  grave  e  honrada  pre- 
i    qo  lim  i<»      a  turba  dos  familiares. 


7-2  OS  GATOS 

Saturara  a  receber  e  acompanhar  os  embaixa- 
dores  portuguezes,  <>s  do  imperador  e  dos  reis 
de  França,  Castella,  Polónia,  e  os  das  repu- 
blicas de  Veneza,  Sena  e  Bolonha,  hum  irmão 
do  duque  de  Milão,  e  outros  grandes  senhores 
prelados  com  suas  famílias,  a  que  se  ajunta- 
ram bizarramente  vestidos  os  portuguezes  cor- 
tezãos  que  andavam  em  Roma,  ecclesiasticos 
e  seculares,  o  que  indo  fazia  uma  representa*- 
(■.'ii)  numerosa  e  luzidissima.  o  Papa  com  mui- 
tos cardeaes  se  foi  ao  Castello  de  Sanfangelo, 

por  ver  passai"  os  embaixadores.  Todo  o  povo 
universal  de  lioma  correu  por  ver  esta  novi- 
dade, o  que  nam  lia  maravilha,  porque  pou- 
cas vezes,  ou  nunca  aconteceo  mandarem  os 
Príncipes  Christãos  legados  a  Roma  com  iam 
magnifico  aparato,  nem  Roma  no  tempo  pas- 
sado, quando  possuía  muitas  províncias,  posto 
que  visse  alguns  Elephantes  da  Ethiopia  e  de 
Africa,  nam  vio  nenhum  dos  das  índias,  o  qual 
Elephante  em  chegando  deante  da  janella  onde 
o   Papa   eslava  lhe  fez  reverencia,  pondo  os 

jeolhos  no  chão,  fazendo  além  d'isso  outras 
cousas  (pie  lhe  o  seu  redor  mandava.  Depois 
desla  primeira  vista  foi  assinado  dia,  no  qual 
os  embaixadores  forão  ao  Paço,  onde  fezerão 


mv  BAT08  7:5 

obediência  na  maneira  acostumada,  fazendo 
liiiin  delles  numa  arenga  mui  prudente,  em 
latim,  <'  digna  de  príncipe  christào.  Depois 
em  outro  dia  assignado  forao  a  Belveder, 
onde  o  Papa  eslava  acompanhado  de  todo- 
los  Gardeaes  e  embaixadores,  e  alli  lhe  apre- 
sentarão oa  does  que  lli»'  levavão,  não  menos 
sumptuosos,  que  religiosos,  dando-Jhe  pri- 
meiro unia  caria  d'aquelle  mui  poderoso  Rei, 
que  continha  em  poucas  palavras  o  seguinte. 
tile  offerecia  as  primícias  das  cousas  da 
índia  e  Ethiopia,  ao  nosso  muito  piedoso  Salva- 
dor, ■  a  Apóstolos,  S.  !'■  /'•"  e  S. 
Paulo,  t  ""  seu  Vigário   na  terra,  pedindo  a 

Sanei  iode  humildosamente,   que    aceitasse 

uetta  benigna  vontade, 

com  que  lhos  dl*   mandava.  Os  does  eram  as 

idas  vestiduras  tanto  para  os  ministros 

Como   para   OS  ClerígOS,    para   servirem  a    toda 

maneira  de  sacrifício,  e  tanto  ao  offieio  da 
Missa  como  ao  das  vésperas  -ás  quaes  cha- 
mam túnica,  aknategas,  casutia,  rapa.  d  assim 
ornamentos  de  Aliar.  Todas  estas  vestiduras 
eram  tecidas  douro,  e  tam  cobertas  de  pedras 
preciosas,  e  perlas,  que  em  poucos  togares  se 
podia  ver  o  ouro;  e  'Tam  as  perlas,  e  pedras 


74  <>s  CA  TOS 

postas  o  metidas  com  artificio  admirável,  per 
alguns  nos  entrelaçados  a  maneira  de  numa 
Romã,  o  qual  artificio  era  cousa  muito  para 
vèr,  porque  a  obra  era  maravilhosa,  sumptuo- 
sa, e  magnifica,  em  certos  lugares  era  como 
pintada  de  ouro  e  seda  a  face  de  nosso  Se- 
nhor, a  dos  Sanetos  dons  Apóstolos  distincta- 
mente,  ornados  de  muitas  perlas  e  pedras  pre- 
ciosas a  que  nós  chamamos  scravonetas  ou 
rubis,  nam  contra  feitos,  nem  polidos,  mas 
nulos  e  simples,  assim  como  se  trazem  dos 
lugares  em  que  se  achão,  com  seu  só  resplan- 
dor  natural,  tal  qual  se  deve  as  cousas  divi- 
nas, (pie  direi  mais  para  comprehender  tudo 
em  numa  palavra,  a  matéria  era  preciosa,  mas 
a  obra  a  sobrepujava  com  espanto.  Iam  tam- 
bém mitra,  bacio,  ancis,  cruzes,  cálices  e  thu- 
ribulos,  tudo  de  ouro  ao  martcllo,  cuberto  de 
pi^i Iraria,  e  muitas  moedas  de  ouro,  de  qui- 
nhentos cruzados  cada  uma,  tamanhas  como 
grandes  maças.  0  que  fez  dizer  ao  nosso  San- 
cto  Padre  Leam  —  certo,  assim  é  de  crer,  que  a 
nenhum  papa  da  Igreja  romana  foram  apre- 
sentados tam  ricos  presentes,  nem  iam  fermosos 
ornamentos,  nem  iam  prectosos.y 


os  ga  ros 


"...  o  qual  recebimento  ordenarom  f<  / 
d'esta  guisa.  Todalas  nãos,  que  erom  no  Rio, 
muito  cedo  pela  manham,  foram  apendoada 
bandeiras  e  estendartes,  e  postos  muitos  verdes 
ramos  em  certos  togares,  onde  cada  hum  en- 
tendia, que  podia  melhor  parecer.  Os  b 
delles  andavam  todos  enramados  com  trom- 
betas e  pendoens  davante  e  de  ré,  fornidos 
de  homens  que  bem  os  remavam,  delles  em 
camisas  com  sombreiros  de  rozas  e  outros 
de  libré  de  ramos  e  flores,  segundo  se  cada 
lnms  melhor  correger  podiam,  hs  gentes  da 
Cidade  carecétes  de  todo  nojo,  e  cõ  as  me- 
lhores vestiduras,  que  cada  hum  tinha  ;  fi  r- 
viam  andando  por  toda  a  parte,  trigando  de 
se  correger  tam  bem,  que  nom  podessem  ser 
prazmadas.  As  ruas  por  Ira  dle  avia  de  Ir,  atá 
aos  paços  Ira  avia  de  ponzar,  erom  estradas 
de  ramos  e  flores,  e  ervas  de  bons  cheiros 
guisa,  que  do  cham  nora  parecia  cousa  aenhu- 


(e)    Fernão  Lopi 


78  OS  GATOS 

ma.  As  porias  das  casas  destas  ruas  crmii  Io- 
das abertas  e  enramadas  de  louro  c  doutros 
frescos  ramos,  deUes,  que  pendiam  hú  com- 
pria,  outros  tecidos  iam  espessamête,  que  nõ 
leyxavam  Logar,  que  todo  nom  fosse  coberto 
de  seda  e  oiro  e  brocado,  e  esto  podiam  bem 
fazer  uaquelle  tempo,  que  era  qo  mes  de  Mayo; 
o  forçava-se  cada  bum  de  vencer  seu  vizinho 
por  corregimentG  de  portal,  e  sobrado,  poen- 
do  as  porias  defumuras  de  lautos  e  nobres 
cheiros,  que  bem  podiam  afugentar  qualquer 
mao  ar,  que  tosse  corrupto.  As  janellas  lan- 
çavam panos  e  mantas  e  outras  roupas,  de 
seda  e  linho  bordado,  que  afermosentavam 
muyto  as  ruas,  polas  quaes  andavam  certos 
homens,  que  desso  tinham  especial  carrego, 
fazendo  afastar  e  correger  toda  a  cousa  sobeja 
ou  mingoada,  que  trovar  podesse  sua  bòa  or- 
denança. As  janellas  das  casas  todas  erom 
acupadas  com  fermosas  donas  e  molheres  dou- 
tra condiçam,  com  gram  desejo  e  amor  de  o 
vêr,  assim  guarnecidas  de  taes.corregimeatos, 
que  fealdade  e  mao  parecer,  não  ousou  na- 
quelle  dia  entrar  na  cidade.  Km  certos  loca- 
res  avia    bandos   de    molheres   que  canlavam 

cantigas,  e  cordas  armadas  para  treparem  lio- 


OS  <"■  wos  i  • 

mens  que  bem  d  sabiom  fazer,  quando  El  Rey 
alli  chegasse,  los  misteres  <•  outra  moita  gente 
er0m  encommendadas  danças,  e  jogos  doutras 
maneiras,  em  que  andavam  velhos  e  mancebos 
todos  em  leda  vontade.  &s  molheres  isso  mes- 
mo em  sen  bando  fizerom  péllas  muyto  bem 
corregidas,  ;i^  quaes  acompanhavam  com  muy- 
1 1-  cantigas,  delias  feitas  em  louvor  Del  Rey, 
e  outras  acostumadas,  nom  somente  as  de 
menos  estado  e  condiçam,  mas  muytas  das 

-  ,1,1  Cidade  andavam  eom  ellas  por  honra 
da  resta.  A  porta  por  hu  El  Rey  avia  de  vir. 
estavam  muyto?  Cidadãos  honradamente  ves- 
tidos com  guarnimentos  douro  e  prata,  e  muito 
outro  pevo,  foram  com  a  insígnia  da  Cida  le, 
huns  com  varas  uas  mãos  pêra  reger  os  jogos, 
como  El  Rey  chegasse,  outros  pêra  ir  em  sua 
companhia  até  aos  Paços,  hu  avia  de  pousar. 
Nom  com  menos  sentido  de  o  receber  honra- 
damente se  fez  prestes  com  sua  cleresia  <> 
tjonrado  Dom  Johão  Bispo  desta  Cidade,  rica- 
mente em  Pontifical  vestido,  isso  mesmo  to- 
dolos  ootros  feativalmente,  com  os  melhores 
corregimentos  que  tinham,  e  sendo  todos  asei 
aguardando,  cada  hum  em  seu  lugar,  pareceo 

nte  Del  Rey  da  parte  dáiem  de  Gaya,  por 


78  os  GAT08 

liú  El  Rey  avia  de  vir,  e  os  bateis  que  anda- 
vam caleando  pek)  Rio,  foram  logo  alli  muy 
prestes  com  grandes  apupos,  e  grande  tanger 
de  trombetas,  mostrando  grande  lédice,  antre 
os  quaes  era  liimi  grande  e  fermoso  batei  rica* 
mente  corregido  e  toldado,  em  que  El  Rey  avia 
de  passar.  E  como  El  Rey  entrou  com  esses 
fidalgos  e  das  outras  gentes  quantas  poderem 
caber  naquelle  e  nos  outros  bateis,  começa- 
rom  lodos  ;i  bogar  ao  longo  do  Rio.  0  Del 
Rey  deante  muyto  apendoado,  e  os  outros  to- 
dos detraz  que  era  grande  prazer  de  vèr.  E  á 
porta  de  miragaya,  hú  o  estavam  attendendo, 
como  deaziamos,  sahio  El  Rey  em  terra  por 
húa  larga  e  espaçosa  prancha,  hú  o  beijar  da 
mão  e  mantenhamos  Deos,. Senhor,  era  tanto  que 
uniu  podiam  aver  vèz  de  cumprir  suas  vonta- 
des; 6  depois  de  bum  bom  espaço,  <"j.  se 
nisto  detiverom,  tallou  bum  Cidadão,  a  que 
desto  era  dado  carrego,  e  disse  : 

Senhor,  tomai  esta  insígnia  em  vossas  mãos^ 
<■  por  ella  nos  poemos  em  vosso  poder,  e  vos  fa- 
zemos }>reito,  e  menagem  de  uos  servir  com  os 
corpos  e  averes  atá  despender  as  vidas  por  hon- 
ra do  Eeyno  e  vosso  serviço. 

El-Rey,  em  quanto  elle  esto  disse,  leve  as 


OS  GATOS 


7!) 


m, ins  oa  baste  delia,  dizendo  Que  assi  era  ei- 
to prestes  para  despender  a  vida  e  corpo  por 
oonra  (|(,  Reyno,  e  defensam  deites,  <•  que  os 
avi;i  por  bons  e  leaes,  e  mes  feria  multas  mer- 
eés,  quando  lhe  per  elles  requeridas  tossem. 
KiiI.mii  começarom  a  regef  Buas  danças  e 
5,  nus  quaes  muy  a  miude,  em  muy  alta 
(>  clara  vôzbradavàa  dezendo  Vim  K  l;"j  iK 
Johamf  uivai 

El  Rey  liia  muito  passo  pola  Cidade,  que 
num  podia  (lontra  guisa,  porque  a  gente  era 
tanta  polas  ruas  polo  vèr  que  parecia  que  se 
queriam  afogar,  e  as  donas  que  estavãe  ás  ja- 
nellas,  folgavam  altamente  que  o  mantivesse 

I a  muitos  annos  e  bons,  e  que  muyta  fosse 

sua  vida,  e  boa,  e  outras  taes  razoens,  e  em 
dizendo  esto  lançavam  de  cima  muytas  rozas 
c  flores,  milho  e  trigo*  e  outras  cousas.  Aqual 
festa  e  recebimento  desta  guisa  feito,  demo- 
via muytas  d'ellaí  a  regar  suas  formosas  faces 
n,ii,  doces  e  aprazíveis  lagrimas,  e  assi  foi 
Kl  i;r\  levado  com  este  prazer  e  lédiee  aoa 
paços,  lni  avia  de  pousar,  e  as  gentes  ae  tor- 
uarom  festejando,  cada  nuns  para  suas  casas, 
e  em  esse  dia  depois  de  comer  lhe  foi  talar  a 
molher  do  Condestabre,  a  qual  elle  nunca  \i- 


80  OS  GATOS 

ia,  nem  cila  a  elle.  El  Rey  a  recebeo  niuy  bem, 
e  lho  fez  grande  agazalhado  e  honra;  e  som 
alguns  que  dizem  que  auteque  se  delle  partis- 
se lhe  fez  Kl  Rey  mercê  para  cila  e  para  seu 
rido,  de  Bouças  e  terra  de  Basto,  c  terra  de 
Pena,  e  de  Barroso,  e  mais  de  Barcellos,  e  de 
Penafiel  dv  Bastos;  e  que  de  todo  lhe  mandou 
logo  feizer  carias  c  privilégios*  quaes  pêra  es- 
to cumpriam:  Mas  nós  engeitamos  tal  opinião, 
e  aprovamos  aquella  que  diz  que  eslas  terras, 
e  outras  que  foram  dadas  ao  Condestabre 
quando  Kl  Rey  depois  da  Batalha  lhe  deu  o 
Condado  Dourem,  e  Barcellos,  como  depois 
ouvireis.» 


Está  V.  M.  a  entrever  como  estes  cortejos 
brotam  naturalmente  d' uma  plethora  domi- 
nante á  flor  das  duas  epochas :  na  de  D.  .Ma- 
noel a  riqueza,  (pie  passando  pelo  brazeiro 
d'Azia,  abre  o  Portugal  guerreiro  em  llòres 
de  maravilha  :  na  de  D.  João  I  o  amor  do  po- 
vo, que  farândola  com  elle  numa  ronda  de 
figurinhas  festivas,  ogivalmente  ingénuas,  co- 
mo as  que  se  veem  bailar  em  Westminster, 
de  ao  de  redor  certos  sarcophagos. 


OS  r.Aios  SI 

Ora,  se  V.  M.  arremedando  na  ridícula  or- 
denação do  seu  cortejo  acclamatorio,  a  pom- 
pt  Lithurgica  dos  nossos  reis  da  Edade  Me- 
ilia,  e  as  etiquetas  peralvilbas  das  antigas 
cortes  similares  da  de  Luii  hv,  teve  em  vis- 
ta revindicar  perante  o  povo,  o  descabido 
prestigio  do  seu  throno,  b  restabelecer  que 
a  realeza  se  estriba,  apesar  das  modernas 
ctmnistas  democráticas,  na  predestinação  «Ir 
origem  divina  d'onde  procede  para  os  reis  a 
aactoridade,  e  na  oAuscancia  do  cerimonial 
luxuoso,  de  qne  a  magestade  é  implícito  co- 
rollario,  o  meu  rei  desculpará  —  mas  devia 
i.t  mexido  naelboros  seus  pansinhos,  em  ter- 
mos '!•'  ser  ao  menos  digno,  <>  que  apenas  foi 
carnavali 

Nenhum  <1<-  nóe  Bstranbaria  que  <>  menar- 
eha  d'um  pai/,  pobre,  fosse  de  manto  e  see- 
ptro,  prestar  juramento  n'um  simples  landtau 
a  quatro  soltas,  b  sem  mais  cortejo  do  que 
meia  dúzia  de  coupés  levando  a  corte,  e  al- 
guns esquadrões  de  cavalleiros  no  couce  da 
romagem.  <»  povo  baveria  aceitado  esse  cor- 
tejo na  sua  expressão  de  seriedade  modesta, 
como  o  que  mais  discretamente  convinha  a 
imi  pai/  comido  de  dividas,  roubado  «•  escar- 


<VJ  os  GATOS 

necido  pelos  seus  adiados,  e  por  lodos  os  mo- 
tivos inhabil  para  acompanhar  a  Europa  nos 
seus  grandes  troles  de  progresso,  nas  suas 
epilepsias  de  novo,  e  nas  suas  remodelações 
de  civilisação. 

Gomprehende-se  que  D.  .Manoel,  sob  cujo 
sceptro  Portugal  houve  o  Brazii  e  metade  da 
índia,  grandes  retalhos  dWírira,  e  archipella- 
gos  no  tenebrosíssimo  mar  da  Oceania  —  que 
I».  Manoel  que  fez  d'este  filete  de  terra,  por 
um  Instante,  o  assombro  do  mundo,  e  o 
bazar  de  lulas  n>  civtttsações  velhas  e  novas, 
buscasse  estadear  luxo  atttnente  á  apotheose 
universal  de  que  ao  mesmo  tempo  se  consti- 
tuirá centro  e  propulsor  ! 

Eram  outros  os  tempos ! 

O  rei  que  aos  seus  títulos  agregava  o  se- 
nhorio das  cinco  partes  do  mundo,  (ira  de 
leito  o  suzerano  e  proprietário  d'esses  incom- 
mensuraveis  e  mysteriosos  domínios.  O  seu 
throno,  montões  de  pedraria  e  oiro,  que  trinta 
naus  lhe  carregavam  de  lodos  os  jazigos  do 
mundo;  e  o  seu  direito,  sobre  aascer  da  re- 
velação, como  o  de  Deus,  cscorava-se  a  mais 
num  espirito  de  conquista,  dYleiçào  e  de  cas- 
ta, <pie  imprimiam  á  dymnastia  uma  indizível 


feição  de   patriarchâdo.   Para  elle,    a  forca, 
quando  não  provinha  d'uma  superioridade  de 
Luzes  e  de  razão,  sorvia  alentos  n'essa  crença 
profunda  n'wna  magistratura  suprema,  que  ' 
a  primeira  condição  da  soberania.  Tudo  advi- 
nha a  engrandecer  e  ;i   revigorar  as  dymnas- 
ti.is...  a  tradicção,  <>  fetchismo  cego  do  povo, 
um  espirito  politico  superior  ;i<>  espirito  de 
consanguinidade  e  de  família,  ;i  incarnação  he- 
reditária providenciai  d'algum  grande  princi- 
pio  necessário  a  existência  <la>  sociedades; 
mil  cirGumstancias  emfira  que  ;is  faziam  in- 
substituíveis, como  introduetoras  da  humani- 
dade nos  iatormundios  da  civilisaçâo.   Fallar 
por  exemplo  na  creação  da  aacionalidade  fran- 
ceza,  é  fazer  a  historia  dos  Capelos :  evocar 
■I,,  dos  nossas  descobertas  e  conquistas,  é 
rificar  a  dymnastta  de  àviz. 
Comprehende-se  poisqueo  rei  da  terra,  uma 
vèz  definido  entre  «-sks  lermos,  carecesse  i 
isceus,  de  revelar-se  aos  mortaes  por  entre 

magníficos  invólucros^  ••  <| s  nimbos  d'oiro 

sob  que  se  n  is  revel  i  nas  cathedraes  a  Hóstia 

Santa,  desçam  do  alio.  para  vir  lantejoular  as 

dalmaticas  dos  conquistadores  e  dos  imperan- 

\  magnificência  não  é  aqui  um  aeceasorio 


8  í  OS  OATOS 

ephemero  do  costume,  senão  que  entra  a  três 
quartos  na  fascinação  que  a  realeza,  infallivel 
e  sagrada,  deve  produzir  na  turba  multa  dos 
mesteiraes  e  dos  homens  de  guerra. 

Se  D.  Manoel  em  vez  d'enviar  a  Leão  x  o 
seu  embaixador  Tristão  da  Cunha,  entre  o  cor- 
tejo veronésico  que  vimos,  simplesmente  o 
tem  remettido  a  Roma  u'um  Banimento  de  po- 
bres  atavios,  aquelle  senhor  do  mundo  seria 
pelo  menos  tão  reles  como  o  foi  V.  M.,  que 
sem  ser  senhor  de  coisa  nenhuma,  se  enlrajou 
ile  rei  de  coitas,  para  vir  n'um  carro  do  sé- 
culo xvm,  com  botas  á  frederica  e  mais  em- 
plumachado  do  que  uma  catatuà,  jurar  a 
constituição  inim  parlamento  que  parecia  uma 
barraca  de  leira,  e  n'uma  sala  de  município 
que  os  jornalistas  Irancezes  tomaram  por  uma 
capella  de  padres  jesuítas. 


Porque  atinai  de  contas,  quem  é  V.  ML?  A 
ultima   vergontea  reinante  d' uma  dymnastia 


.is  i,  nos 


85 


que  nascei  já  aorta,  e  cujo  advento  ao  thro- 
n  ,.   historiador  algum  poude  ainda  explicar 
por  iiin.i  qualidade  qualquer  extranormal,  di- 
reito de  conquista,  poderio  de  fortuna,  génio 
politico,  nu  qualquer  ínfimo  rasgo  de  valor. 
o  primeiro  rei  da  sua  casa  mi,  como  toda  a 
gente  sabe,  um  cagarola,  que  ainda  na  vés- 
pera do  dia  em  que  <>s  conspiradores  foram 
propor-lhe  a  coroa  a  Vilta  Viçosa,  se  dispu- 
,,li;i  ,i  figurar  no  séquito  do  hespanhol  Fillip- 
!„.  iv.  ,-  cu'].)  filho,  estancado  pelo  onanismo, 
expirou  In»  meio  de  santos,  n'um  delírio  mys- 
tico,  repellindo  a  família,  e  engulinde  hóstias 
de  quarto  em  quarto  «I»'  hora.    D'ahi  para  ci- 
ma é  tudo  um  fim  de  raea,  em  que  os  libidi- 
iutercalam  nos  freiraticos,  em  que  os 
cob  urdes  se  succedem  aos  impotentes,  e  em 
,|i,(.  os  doidos  dão  origem  aos  sachristães,  e 
estes  ain  la  aos  toureiros  e  ;h>^  usurpadores. 
Percorrer  a  galeria  real  da  casa   brigan- 
dna,  é  visionar  historicamente  a  synthese  fe- 
roz d'aquelle  jacobino  çue  exclamou  d'uma 
vez  ii  i  Convenção :  os  reis  são  na  ordem  mo- 
rai, o  que  ua  ordem  physica  si a  monstros. 

li,,  feito,  é  -"l>  :"  égide  de  Bragança  que  :i  rea- 
leza se  desintegra  em  Portugal  do  teu  papel  de 


86  OS   GATOS 

cornaca  dos  povos,  e  faz  estalar  as  lianas  que 
jungiam  o  throno  á  alma  publica,  cahindo  de 
tutora  em  filha  proéiga,  e  reduzindo  o  pontifi- 
cado real  a  uma  espécie  de  parasitismo.  De  1640 
a  1834,  o  espirito  dyoanastico  ainda  podia  ter 
sido  para  nós  um  instrumento  de  progresso, 
se  lhe  não  coartassem  a  acção,  as  dissoluções 
dos  antepassados  de  V.  M. 

E  se  o  meu  rei  duvida,  vamos  abrir  a  his- 
toria e  liquidar.  Fácil  tarda,  (pie  sobre  ser  he- 
dionda é  divertida  !  Ahi  vem  Afonso  vi,  de  que 
ioda  a  gente  conhece  o  famoso  processo,  filia- 
dor  das  suas  devassidões  entre  as  de  Luiz  XVI, 
sádico  e  impotente,  mandando  ás  amantes  dee 
boulex  de  la  crasse  de  ses  pieds  (f)  e  as  de  Henrique 
m,  que  se  vestia  de  noiva  para  attrahir  ao  leito 
os  seus  mignons.  Ahi  vem  D.  João  v,  sultão 
dos  conventos,  com  o  delírio  das  grandezas 
como  Luiz  ii  da  Baviera,  que  arruina  o  paiz 
pondo  boudoirs  de  duzentos  mil  cruzados  ás 
madres  Paulas,  c  quartos  de  cama  onde  os 
lençoes  são  perfumados  d'incenso,  antes  da 


(f)      JOURNAL  DES  GONCOURTS,  2."  V. 


os  QAT06  s' 

copula,  «'  os  penicos  de  prata  teem  por  azas, 
grupos  de  seraphins  em  oração.  A h i  vem  1>. 
José,  cuja  Imbecilidade  partilha  a  liugua,  en- 
tre travessas  de  doce,  «i  os  nombrís  das  fidal- 
gas a  quem  o  Marquez  mandava  perseguir  os 
filhos  e  os  maridos.  Depois  Maria  i,  a  doida 
aympbomauica,  de  saias  erguidas  no  meio  da 
ni;i,  ;i  unar  que  vê  o  pae  a  arder  dentro  do 
inferno,  e  a  dizer  obscenidades  no  meio  das 
aspersões  dos  padres  jezuitasJ  Depois  l>.  João 
vi.  trinta  vezes  chavelho  e  cantochista,  usan- 
do bofe  em  vez  de  papel,  no  water-doaet,  tra- 
hido  por  todos,  contradizendo-se  borrado  de 
medo,  fugindo  para  o  Brazil  com  os  thezou- 
roa  da  nação,  e  abandonando-nos,  canalha! 
ao  protectorado  de  Beresford  que  decretou  o 
martyrio  de  Gomes  Freire!  E  por  qui  fora., 
assim  chegamos,  eo/uinarta,  sem  alludir  a  l>. 
Miguel,  mu  moço  de  cocheira,  e  sem  mecher 
um  brazileiro  !».  Pedro,  um  tarímbão,  á  des- 
connexa  pessoa  de  V.  M. 

N'estea  250  annos  quantas  humilhações, 
quantas decadencias,  quantas  vergonhas!  Com 
os  Braganças,  Portugal  deixou  de  ter  nos  íris 
os  fiadores  da  sua  prosperidade  e  da  sua  glo- 
ria,   6   passou   a  atural-os   cOfflO   a  IVitnivs  <l 


88  OS  GATOS 

mastins  da  Gran-Bretanha.  0  paço  tornou-se 
a'uma  dependência  da  legação  britanniea:  os 
reis  de  Portugal,  bonecos  de  palha  dos  pleni- 
potenciários do  pai/  dos  bêbados,  das  prosti- 
tutas c  dos  ladrões. 

Uma  a  uma,  sob  o  regimen  deprimente  de 
taes  reis,  vemos  Portugal  entregar  as  terras 

(Talem  mar  por  elle  descobertas  ou  tomadas, 
perder  a  iniciativa  do  commercio  e  navegação 
dWzia  c  da  America,  desvinculara  forte  e  ca- 
valheirosa  nacionalidade  dos  séculos  anterio- 
res, e  receber  da  Inglaterra,  em  vergonhosís- 
simos tractados  de  commercio  e  diplomáticas 
chantages,  humilhações  só  comparáveis  ás  que 
as  nações  victoriosas  costumam  exigir,  pela 
força  da  guerra,  das  nações  humilhadas  e 
vencidas. 

Portanto  meu  senhor,  se  a  dymnastia  que 
V.  M.  representa,  nunca  teve  a  radical-a  no 
espirito  do  povo  uma  forte  corrente  de  tradi- 
cção  gloriosa,  nem  a  justitirar-lhe  o  advento 
um  principio  politico  indispensável  á  manu- 
tenção da  nossa  integridade  ;  se  está  provado 
que  nenhum  dos  reis  da  sua  casa  tem  sido 
na  evolução  da  vida  portugueza  um  instru- 
mento de  progresso,  e  se  todas  as  derrotas, 


os  g  wos  89 

todas  as  aítrontas,  todos  os  enfraquecimentos, 
todas  as  indignidades,  todas  as  vergonhas, 
andam  jungidas  á  Incúria  de  vos  termos  guar- 
dado até  agora  — a  vós,  reis  de  cartão  pin- 
tado, duas  vezes  estúpidos  e  rapaces,  liqui- 
dando em  corrupções  que  nós  lemos  pago 
com  o  suor  e  le  dos  tributos—  Be  todo 

isl  i  é  verdade,  como  explicar  ;i  mascarada  da 
i  acclamação  por  um  desejo  de  reembu- 
lir  no  antigo  prestigio  histórico  uma  realeza 
que  [amais  teve  prestigio,  e  d'alardear  magni- 
r,  cu  -i;i  uni  i  casa  real  que  até  compra  fiado 
o  champagne  com  que  nas  comidas  de  gala 
bebe  á  paz  da  Europa  ? 

Ainda  hoje  não  quero  crer  n'esse  cortejo 
apotheotico,  sujo,  arrastaido  o  seu  ar  de  ron- 
da mortuária,  e  a  cuja  ;iiiLrii>iinv;i  miséria  só 
faltou  uma  ponta  de  vinho,  p*ra  nos  lembrar 
o  cyrio  de  V  S.  do  Cabo.  K<»i  do  Largo  das 
Cortes  i|m'  "Mi  vi  chegar  essa  funérea  dança 
de  quinta-feira  gorda  —  um  piquete  de  caval- 
laria  na  frente,  quatro  chechés  d'amarello  <• 
rubro,  bicorne  e  vara,  a  figurarem  de  nwços 
d'estribetra,  e  muitos  gallegos  depois  trajando 
a  inn :i,  com  vestimentas  de  bailado  sobi i 

velludilho,  que  me  disseram  ser  os 

7 


00  OS  GATOS 

arautos,  reis  d'armas  e  passavantes,  gentes 
sem  sexo.  de  cujas  meias  sahiam,  pelos  ras- 
gões, rolos  de  trapo,  restos  de  buchadas  de 
pernas  que  esvidavam,  d'aborrecidas  co'as  tí- 
bias de  seus  donos. 

Toda  esta  cáfila  passou  em  cavados  de  car- 
roça, mal  arreados,  coxeando,  O  peito  hirsu- 
to, pondo  na  via  um  melaneholico  rastro  de 
bando  de  touros  e  d' arraial. 

Ao  cabo  de  meia  hora  d'espera,  disse  uma 
vóz  que  alii  vinham  os  coches.  A  municipal 
esbatia  sobre,  os  passeios  a  turba  dos  curio- 
sos, ensandwichando-a  contra  a  parede,  com 
a  ponta  dos  sabres,  e  espanejando-a  por  ul- 
timo, com  os  rabos  dos  cavallos.  O  primeiro 
coche  allim  surgiu  tropegamente,  no  alto  da 
nova  rua  que  atravessa  a  cerca  da  Esperança  : 
era  uma  coisa  corcunda  e  doirada,  a  gemer 
dos  calos  sobre  um  leito  de  carro  de  bois,  e 
que  infundia  o  aspecto  do  conselheiro  Naza- 
reth,  envidraçado  no  ventre  p'ra  se  lhe  vêr 
digerir  os  figurões  que  linha  comido.  Aquillo 
ia  puxado  á  sirga  por  calabres  de  linho  crú, 
como  uma  zorra  de  fabrica,  os  solas  rubros 
esporeando  cavalicóques  cheios  dVmplastros: 
e  por  traz,  na  taboa  cercada  de  talhas  de  ca- 


OS  G  MOS 


91 


pella,  figuras  d'anjos  raziam  motétes  de  pe- 
drastas  aos  sotas  do  churrião  que  sr  seguia. 
Assim  passaram  três  d'aquelles  monstros,  com 
velludos  sem  brilho,  velhos  oiros  comidos  aos 
detalhes,  levando  dentro  toda  a  casta  de  ber- 
bigões cobertos  de  placas  de  seguros,  e  re- 
puxando ao  alto  das  pinhas,  n'uma  infinida- 
de de  pennas  de  capão. 

Na  minha  simpleza  rústica,  atrevi-me  a  per- 
guntar a  una  cavalheiro,  se  seriam  velhos  do 
asylo. . • 

—  Na,  não  senhor.  Isto  é  a  casa  civil  de 
Sua  Magestade. 

—  E  que  serventia  dá  elle  a  esta  casa? 

—  É  conforme.  Uns  escrevem  nos  jornaes 
que  s.  M.  lé,  outros •applaudem  as  asneiras 
que  s.  M.  di/,  e  o  resto  está  encarregado  de 
II, r  repetir  que  o  povo  está  contente. 

—  E  S.  M.  acredita? 

—  Emquanto  lhe  pagarem.  • . 

Vou-me  d'ahi,  na  «nula.  até  ás  Cortes.  A  en- 
ii;i,l;i,  um  baldaquine  dlestofo  escarlate,  que 
a  ventania  rasgou,  deixando  as  taboas  uuas  á 
vela,  como  umas  nádegas  de  pedintes.    Pela 

|;ili;i    Ii;i    lima   |i;|vsideir:i   de   juta    drsrÚTa- 
d;i.    que    atravessa    0    veslilmlo    de    tijollO,    I 


Í>-J  OS  GATOS 

avança  pelo  corredor  do  claustro,  entre  po- 
lires vasos  com  cebolas  alvarrãs  e   ramas  de 

pinho   c    loiro    lanchadas,  a    fazer   (Tai-bnstos 

raros.  Depois  aa  escada  que  leva  á  sala  do 
throno,  estreita,  esconsa,  coberta  de  hera  co- 
mo a  da  rua  dos  Condes  no  beneficio  (lo  Sousa 
BaStOS,a  mesma  passadeira  guia-DOS,  espalma- 
da e  exangue  como  uma  tonia,  aos  intestinos 
da  representação  nacional.  O  ingresso  nas  tri- 
bunas é  vedado:  o  mulherio  invadiu  lodos  os 
cantos,  e  eu  desço,  e  escorregando,  intrujan- 
do, sempre  consigo  meter  um  pé  na  sala  da 
cerimonia. 

A  minha  primeira  ideia  é  que  vamos  assis- 
tir a  uma  ferra.  As  senhoras  teem  quasi  Iodas 
trajos  de  passeio,  chapéus  de  telha,  binóculos 
ao  travez,  vestões  abotoados;  e  em  baixo,  nas 
bancadas  do  circo,  alguns  deputados  e  pares 
teem  verdadeiramente  um  ar  de  bois.  Aqui  e 
alem,  no  pele-mele  das  carecas  e  das  fardas, 
duas  ou  três  leves  manchas  humorísticas:  o 
cipello  cramezi  do  (Ir.  Valle,  babujado  de  coi- 
tares i1  corações  de  filigrana,  faz  recordar  la- 
vradeiras  da  Maia,  pimponaças:  ao  fundo, 
enorme,  im movei  e  vermelho,  o  bispo  de 
Coimbra  parece  o  Hotel  Central:  e  ifnma  pol- 


OS  GATOS 


93 


trotil  ml,  o  m-.  presidente  da  Camará,  João 
Chrysostomo,  Becco,  esmoído,  entre  dois  me- 
ninos á  Lniz  w,  dá-me  a  visão  a"um  carapau 
rrito,  n'uma  malga  de  Coimbra— entre  dois 
dentes  d*a!ho. 

Ali  meu  senhor,  que  decoração  de  sala,  que 
alcatifas,  que  sanefas!  As  draperm  do  Ihrono 
velludo  d*algodão  esmaecido,  com  galões 
d'enterro  pobre.  Nos  degraus,  o  tapete  é  feito 
,1,.  bocados.   Não  ha  uma  bambinetla  fresca 
nas  tribunas,   occoltando  a   terrível  miséria 
dos  papeis  cebentos,  rotos,  sobrepostos,  ou 
sequer  um  fundo  d'estofo,  sobre  orae  fazer 
destacar  um  typd  de  mulher.  E  isto  entriste- 
porque  havia  perfis  diliciosos. 
_n  d'aqueHa  de  roxo  e  rendas  brancas, 
les  olhos  de  Gioconda,  um    bonnésinho 
roxo  nos  cabellos. . .   Coquetu  fêmea  !  e  que 
barriga  ! 
—  Mus  é  o  núncio. 
—Outra  vea  gravido? 
\,,  .,,iH  do  Hymno  da  Carta,  o  cortejo  en- 
tra. Adiante  os  arautos,  que  >('  bipartem  para 
09  dois  lados  do  throno:  depois  o  sr.  infante 
condestabre,  que  noa  degraus  se  vae  postar, 
d'estoque  erguido :  logo  os  gentis-homens  e  as 


9  í  (»S  (iATOS 

damas  do  séquito,  mal  amanhadas  nas  suas 
roupas  de  cerimonia  ;  e  por  ultimo  OS  reis, 
acertando  O  passo,  com  romeiras  de  pedes, 
mantos  roçagantes,  e  attonitos  de  ninguém  os 

mandar  recolher  ás  coloriages  dos  baralhos  de 
carias,  (Tonde  parecem  ter  saindo. 

Ainda  liem  as  figuras  se  não  lêem  innnolu- 

lisado  para  o  quadro  do  juramento,  já   duas 

coi/as  saltam,  deploráveis.  Primeira,  que  a 
gentilhomeria  da  corte  é  insufliciente  para  mn 
ensemble  dramático  de  geito,  e  fora  mellioi 
metter  na  sala  os  coros  de  S.  Carlos,  ensaia- 
dos de  mais  a  mais  para  <»  primeiro  acto  do 
Hamlet,  onde  ha  nina  entrada  de  reis,  com 
marcha,  toda  chie.  Segunda,  <||1('  sendo  V.  M. 
muito  mais  baixo  do  que  sua  esposa,  (g)  e  ur- 
gindo que  a  pessoa  que  perante  os  Estados 
vem  conslituir-se  fiadora  das  instituições,  ol- 
fereça  as  mais  soldadescas  garantias  de  segu- 


(g)  Esta  desproporção  dalturas  é  tão  extraor- 
dinária, que  sendo  ainda  lua  de  mel  no  Paço  de  Be- 
lém, um  reposteiro  ouviu  o  snr.  D.  Carlos  dizer  p'ra 
sua  esposa: 

tfélie,   pnnlia-tue  em  cima  da  meza,  (pie  lhe 
quero  fazer  olhos  gaiatos. 


os  GATOS 


95 


rança  e  de  força,  errado  andou  quem  lhes  não 
fez  iroear  os  vestuários,  nem  pediu  â  rainha 
o  sacrifleio,  d*a  bem  do  Estado,  ser  ella  quem 
lesse  o  juramento— com  nm  bigode  postiço. 
K  aqui  abro  parenthesis  para  lhe  lançar 
en  rosto  a  Rnoa  voz.  V.  M.  talvez  aão  seja 
bem  digno  d*um  throno,  mas  em  compensa- 
ção merece   um  palco.  A   escola  dramática, 
o  timbre  com  que  V.  M.  leu  o  juramento  ! 
H, ,;...  Olhando  a  postura   rígida  <1<>  infante, 
em  pé  sobre  os  degraus  do  throno,  e  com  o 
chanfalho  aberto  d<i  Nun'Alvares— do  bello 
infante  cocheiro,  em  cujo  peito  brilhava  pela 
primeira  vez  a  gran-craz  <1<>s  atropellamentos 
—todos  perguntavam  se  elle  nas  imposições 
do  seu  cargo  estaria  ali  a  lazer  guarda  de  hon- 
ra ao  monarcha,  ou  simplesmente  a  apresen- 
tar armas  ao  barytono.  Mas  meu  senhor,  como 
tudo  de  roda  de  V.  M.  <>>rt>rvr  uma  agonia  de 
fm  th  i"  fSn,  uma  enregelada  miséria  de  paiz 
dtarogne,  de  paiz  gasto,  de  paiz  morto,  de  paiz 
podre!  Nas  bancadas  da  sala,  pelas  tribunas,  ás 
portas,  todas  essas  figuras  lêem,  como  <»  paiz, 
um  ar  crivado  de  dividas:  os  fidalgos  são  pe- 
queninos, Bnlnhos,  com  um  ar  de  coelhos  e 
de  grooms.  Entre  as  damas  da  rainha,  que 


% 


os  GATOS 


são  oito,  tantas  quantas  as  províncias,  uma 
sem  nariz,  fcrunculosa,  é  talvez  a  allegoria  do 
Algarve,  E  como  a  pragmática  prescreve  que 
o  alferes  mor  chegue  á  varanda,  para  accla- 
mar  três  vezes,  á  multidãq  da  rua,  p  rei  de 
Portugal,  succedeu  que  a  sua  voa  cahiu  do 
alto,  sem  repercussão,  sobre  o  terrível  silen- 
cio do  Largo,  onde  alem  do  piquete  de  lancei- 
ros,  a  anica  multidãq  que  havia  era  o  popular 
José  Augusto, 


Percorrendo  a  cidade,  em  balde  uVHa  pro- 
curei signaes  de  festa.  Quasi  totfasas  lojas  es- 
tiveram abertas,  funccionaram  os  escriptorios 

de  ÇOmmercio,  e  a  população  que  nas  ruas  se 

agregou  a  vêr  passar  o  cortejo  tinha  um  ar 
d'enfado  e  de  birra,  um  ar  de  troça  e  descré- 
dito, que  nnpallidecerieis,  senhor,  se  a  liv<\>- 
scis  podido  ouvir  monosvllaliar. 


os  «.mos  97 

Na  travessia  dás  Cortes  para  S.  Domingos, 
emquanto  ieis  com  vossos  fardalhões  e  ou- 
rangos  titulados,  churriando  aos  solavancos 
das  snmptaosas  berlindas,  não  se  ouvia  senão 
futurar  coisas  anarchicas,  em  formulas  de 
desdém,  que  um  tribuno  audacioso  faeil  have- 
ria transmuttado  em  cólera  revolucionaria. 

\<  duas  bandas  da  rua,  os  regimentos 
postados,  feitos  de  contingentes  de  proveniên- 
cias diversas,  faziam  unia  salgalhada  d'uni- 
formes  e  números,  d'escandalisar  os  mais  in- 
difterentes  ás  questões  do  porte  militar.  A 
soldadesca  guarda  uma  apathia  marroquina, 
um  ar  uY  tristeza  penitenciaria,  a  fazer  lasti- 
ma. Na  cara  de  qaasi  todos  os  officiaes  ha 
privações.  Desengonçados  como  bonecos,  e 
seguros  nos  estribos  pelos  camaradas  à  pâi- 
zana,  os  coronéis  escarrancham-sé  com  dôr 
sobre  os  eavallos,  os  rins  quebrados,  ò  peito 

illejando  d'asthma  e  tosses  chronicas,  e 
tão  litteralmente  cobertos  de  medalhas,  que 
(lir-sc-iiia  terem  feito  da  ferda,  escarrador.  Ná 
roa  Augusta  vi  eu  uma  espécie  de  sagol  tra- 
jando i  generala  (um  (Testes  generaes  padei- 
ros, d' Administração  Militar  e  Sociedade  Primei- 
iode  Dezembro,com  cicatrizes  de  siphilts  e  car- 

> 


98  OS  GATOS 

min  na  orelha,  que  os  marujos  ingleses  pedem 
lh'os  deixem  levar  p'ra  bordo,  atados  a  cordéis) 
sacear  dos  coldres,  cuidareis  que  um  revolver, 
senhor?  —  uma  caixa  de  rapé  e  um  lenço 
d' Alcobaça.  Em  S.  Domingos,  a  mesma  miséria 
de  decorações,  a  mesma  indigna  pompa  de 
lausperenne  e  d'arraial,  e  a  mesma  troça  de 
burguezes  scepticos,  e  de  populares  desilmdi- 
dos.  Quando  o  cortejo  se  apeia  dos  coches, 
não  se  vêem  senão  fardas  cebosas  nos  cacha- 
ços, e  com  maculas  de  stearina  secca  e  cal- 
deirada. Quasi  todas  as  boccas  vão  a  mascar 
pastilhas  de  cantharidas,  e  á  passagem  d'al- 
guns  venerandos  sustentáculos  do  throno,  con- 
selheiros e  grãn-cruzes,  as  faniqueiras  que  se 
apinham  ao  guardâvento,  estendem  o  braço 
p'ra  lhes  puxar  os  rabos  das  fardas. 

—  Adeus  ó  catita  ! 

Á  altura  das  cornijas  passam,  em  peque- 
nos papos  d'estofo  vermelho  e  branco,  velhas 
sanefas  semelhantes  a  liadas  de  chouriços.  Ha 
grandes  palmas  por  todos  os  altares,  symbo- 
licas  talvez  das  extorsões  que  o  povo  tem  sof- 
frido,  sobre  o  altar  da  pátria  sacrificada  ao 
egoísmo  dos  reis. 

E  meu  bom  senhor—  se  podesseis  ter  vis- 


.is  CULTOS 

to  i  gente  que  a  S.  Domingos  foi  commnngar 
nos  louvores  da  igreja  á  vossa  coroação!  Se 
podesseis  ouvir  os  rumores  do  que  á  vos*  i 
passagem  sr  arengava  ! . . . 

Não,  não  era  o  moHtenhavos  Deos  que  o  |   - 
vii  dizia  no  Porto  ao  seu  camarada  <lc  guer- 
ra, d  mestre  d'Àviz,  a  saudação  patriótica 
▼os  ouvistes,  nem  rosas  o  que  vos  atiravam, 
nesfl  lagrimas  de  jubilo  as  que  a  cidade  i 
rou  ao  vms  ver  (lassar,  sagrado  rei!    Ao  des- 
gosto que  nos  inspira  o  parasitismo  dos  vos- 
i  nenhuma  espécie  d'apego  que  a  monar- 
chia  nos  desperta,  e  ao  vivo  ódio  que 
referve  no  peito  contra  todos  aquelles  que  nos 
teem   posto  n'este  estado  —  sejam   minisl 
d' Inglaterra  ou  sejam  ministros  de  Portu( 
príncipes  de  Bragança  ou  príncipes  da 
doa  Capellistas  —  veio  ajuntar-se  o  escai 
d'esse  cortejo   ignóbil,   bufonico,  estupend  i, 
que  sr  foi  digno  <l"  vós,   nem  por  is* 
ft-z  menos  vergonha,  visto  como  elle  achi 
lha  a  ideia  do  puder,  que  vós  tendes  oh 
ção  Ai'  respeitar  emquanto  fordes  o  chefi 
oaçlo. 

Tenho  ainda  nas  f;,,-rs  .1  ardência  da  alii 

ia  que  por  vós  Boffri  por  essas  ruas,  e  con 


100  OS   GATOS 

os  que  acompanharam  os  jornalistas  franceses 
e  hespanhoes,  do  rosto  d'elles  bebendo  ancio- 
samente  o  fel  d'uma  ironia  horrível,  que  se 
mercê  da   polidez  lhes  fechava  a  bocca,  nem 

por  isso  se  lhes  tralha  menos  no  faseias,  em 
alternativas  de  frouxo  e  crispação.— Não,  não 
foi  o  mantenhavos  Deos,  a  saudação  popular 
que  vós  ouvisleis,  mas  chufas,  apupos,  vaias: 
os  fadistas  que  vos  apontavam  ás  cigarreiras, 

—  Olha,  lá  \ae  o  canário. .  . 
os  conselheiros  ila  corna  que  vos  faziam  trai- 
ne,  (-(Mito  ralos  d'esgoto  ao  faro  d'uma  coslel- 
leia  de  cevado;  e  uo  coro  da  igreja  os  capa- 
dos góchinliando  o  seus  latins  de  festa,  d'onde 
pareciam  sabir  convites  para  prostituições  in- 
confessáveis; e  á  porta  os  moços  dVsíribeira, 
com  meias  (Kalgodao  e  a  barba  por  fazer,  ca- 
tando piolhos  de  redor  do  carro  1>.  João  v,  en- 
tre  um  regougar  de  velhas  macbethicas,  que 
pediam  esmola  p'ra  vos  pagar  um  vinho  de 
honra.  Tanto  era  fúnebre  o  aspecto  da  ceri- 
monia, que  um  homem  simples,  (pie  sem  du- 
vida checara,  como  eu,  da  sua  terra,  abor- 
dando um  archeiro,  lhe  perguntou  se  aquillo 
ainda  eram  exéquias  pelo  rei  ! 
—  Esl  is  agora  são  pelo  reinado. 


OS    GA  ["OS 


^r 


101 


Cançado  de  sustentar  uma  monarcliia  que 
o  não  acompanha  nas  suas  aspirações,  que 
marcha  diametralmente  opposl  i  aos  seus  in- 
teresses, que  aã  i  partilha  das  suas  alegrias, 
e  que  até  já  tem  escarnecido  os  seus  pesares, 
e  povo  desinteressoth-se  d'ella,  degredou-a  da 
cruzada  nacional,  começou  a  considerâl-a  co- 
mo uma  estrangeira  sospeita  que  se  lhe  abo- 
letou em  casa,  delegada  e  espia  d'essa  maço- 
naria de  reis  que  traz  jungida  a  si  a  Europa 
escrava,  e estanca e  bebeasseivas  das  nações. 

K  meu  senhor,  este  movimento  não  pára, 
esta  Bnspeiçâo  não  se  corrige.  Duzentos  e  rin- 
eoenta  anoos  de  miséria,  fizeram  do  povo  por- 
taguei  ama  lagoa  podre,  em  cujas  sanias  só  po- 
dem Tiver  e  medrar  as  carpas  coroadas.  \  draga 
que  limpar  o  pântano  dos  limos,  ha-de  pescar 


102  OS  GATOS 

as  carpas  orgulhosas,  e  envial-as  em  barricas 
de  salmoura,  quem  sabe!  a  qualquer  hotel  de. 
França  ou  d' Inglaterra,  E  essa  draga  está-se 
armando  entre  nós  ha  muito  tempo:  vêem- 
se-lhe  já  as  peças  formidáveis,  os  cyclopicos 
gonzos,  c  as  cadeias  de  bronze  humano  que 
lhe  circulam,  ululando,  pelo  meio  das  gotei- 
ras c  engrenagens. 

Podem  os  espiões  de  V.  M.  denunciar  ao 
]  ssaro  d'Arcos  as  isoladas  offtcinas  aonde  se 
está  acabando  de  bater  uma  ou  outra  peça 
-,'inidaria.  Podem  os  Irabuijueiros  dYI-rei 
mel  ter  as  sessentas  cargas  á  cara  d'alguns 
descuidosos  operários  que  se  repousam,  pondo 

►as  no  pedestal  da  estatua  dos  poetas,  e 
desforçam,  pondo  alhos  no  pedestal  da  es- 
tatua dos  monarchas.  Podem  os  Serpasitos,  os 
Lopositos,  os  Arroiositos,  arrasar  esta  ou 
aquellá  Forja  descoberta,  suspender  a  Pátria, 
fechar  0  Henriques  Nogueira,  ipierellar  do  Sé- 
culo e  dos  Debates. . .  Que  nos  faz  isso?  A  de- 
mocracia é  como  as  outras  febres;  um  bacil- 
lus  propaga-a,  e  do  cérebro  de  cada  affectado 
que  '•  despotismo  sequestra  á  liberdade,  mi- 
lhares de  germens  se  cvolam,  a  contaminar  ou- 
tros tanlos  reputados  immunes,  horas  antes. 


o>  GATOS 


108 


\s  ultimas  ebullições  anti-inglezas  recam- 
baram  do  pavilhão  monarchico  os  últimos 
fieis,  e  ha  vinte  dias  que  o  pak  Dâo  faz  senão 
gritar,  viva  a  republica ! 

Este  grito  propaga-se,  e  galvanisa  de  cada 
esperança  morta,  ama  aspiração  pujante  e  fe- 
cundíssima. Repetem-no  em  Coimbra  três  mil 
boccas  frementes  d*academicos ;   repetem-no 
,, ,  porto  oito  mil  rapazes  do  commercio  e  das 
repetem-no  em  Lisboa  as  cem  mil 
vozes  validas  das  classes  fortes,  activas,  cul- 
,;1  lerantes.  Os  lyceus  do  paiz,  é  ao 
som  d'elle  que  vão  pelas  mas  das  suas  cida- 
des,  pedir  esmola   para  comprar  ínvio-  dé 
guerra.   Os  municípios,  é  ao  sôm  d'elle  que 
votam  quantias  para  o  thesouro  de  defeza  na- 
cional.   \s  associações  de  commercio,  é  ao 
som  d'elle  que  juram  não  comprar  mais  nada 
ao  inglez.  N  is  aulas,  o  professorado  insmua-o. 
Nos  centros  militares  e  chefaturas  civis,  os 
1 1...  foncrionarios  acquiescem  a  admittil-o 
0  o  obre-U  >><'im<>  d'uma  Jerusalém  futura 
,•  libertada.  E  outros  signaes! 

Quando  lia  mu  mez  se  reuniram  no  salão 
da  Trindade,  eerea  «l*-  quinhentos  cidadãos  de 
igas  proveniências,  com  a  aristocraci 


o; 


OS  GATOS 


clero  na  vanguarda,  afim  de  subscreverem  os 

fundos  necessários  ao  armamento  nacional,  essa 
espécie  de  junta  de  salvação  publica  que  invo- 

cou  o  auxilio  de  ioda  a  gente,  não  pronunciou 

sequer  O  nome  de  V.  M.  Todos  os  jornaes  ino- 
narchlCOS,  sem  omissão  (rum  só,  vae  em  qua- 
renta dias  se  enlreteem  a  bosquejar,  sobre  as 
permissas  das  recentes  agitações  patrióticas, 
o  provável  futuro  politico  do  paiz:  e  todas  as 
hypotheses  essas  folhas  discutem  e  assigna- 
lam,  excepto  a  (rum  rei  no  throno  portuguez* 
Quem  nos  impedirá  então  de  pòr  escriptos  no 
Paço,  no  dia  em  que  o  Alagoas  chegue  a  este 
porto? 

0  exercito? 

V.  M.  já  mandou  indagar  (piem  especial- 
mente compra  e  lè  os  trinta  mil  exemplares 
(pie  o  Século  vende?  V.  M.  nunca  ouviu  fatiar 
nas  cinco  mil  Folhas  do  Poço  (pie  a  guarnição 
de  Lisboa  absorve  em  cada  dia?  Nas  Leituras 
de  propaganda  que  a  ofticialidade  inferior  dos 
regimentos  faz  nas  paradas  dos  quartéis,  á 
soldadesca? 

Oh,  já  nada,  já  nada  impedirá  a  draga  de 
revolver  o  fundo  da  lagoa,  muito  embora  as 
cadeias  partidas  deitem  sangue,   e  a  guarda 


08  GATOS  105 

inunici|i;il    traVB  uma  OU  outra  vez  a  macliina 

cyelopica.  Este  paiz  sem  industrias  metallur- 
gtcas,  tem  abertas  por  toda  a  parte  as  suas 
Corjas,  onde  dia  e  noite  martellam,  braços  de 
ferrreiroa  que  ignoram  o  cançaço.  Leve-nos 
muito  embora  o  Africa  dois  ou  três  :  vinte 
estão  prestes  a  retomar  o  malho  vigoroso,  e 

a  fazer  estriar,  sobre  a  bigorna  do  ódio,  os 
fundamentos  á'uma  existência  social  comple- 
tamente   inédita,  propulsora    da    scieucia  e  da 

riqueza,  remodeladora  das  instituições  e  dos 

COfetumes,  que  liberte  a  consciência  moral  e 
nacioualise  a  arte,  refaça  a  politica,  defenda 

a  terra,  E  acima   de  tudo  nos  desiUVoute. 

Por  ventura  lia  sido  uni  erro  de  propagan- 
da, eSSfl  democracia  tímida,  platónica,  strila- 
inente  pregada  intramuros  das  conveniências 
monarchicas;  e  haveria  produzido  resultados 
mais  decisivos  6  mais  fundos,  a  estatuição 
(1'uina  COBSptranda  permanente,  por  via  de 
sociedades  secretas,  que  desviassem  o  ppvo  da 
simples  espectação  rethorica,  armando-lhe  o 

braço,  e  repetindo-lhe  que  se  não  fazem  re- 
voluções sem  alguns  martyres. 

O   descuido    no   entanto  justilica-se.  Antes 
do  ultimalum  inglês  o  da  revolução  do  lirazil, 


106  os  <;atos 

raros  de  nós  poderiam  lazer  sondagens  certas 
na  profundeza  e  na  eftíeacia  da  cruzada  repu- 
blicana que  pregávamos:  e  mal  dispostos  con- 
da a  Hespanha,  menos  ainda  nos  sentíamos 
dispostos  a  enfunar  o  estandarte  da  ideia,  com 
correntes  d' opinião  sopradas  do  outro  lado  da 
fronteira. 

Agora  mudou  tudo.  Os  verdadeiros  inimi- 
gos de  Portugal  desmascararam-se.  A  linha 
que  nos  separa  de  Hespanha  é  apenas  uma 
illusão  óptica  de  políticos,  filha  d  um  erro  his- 
tórico ile  sete  séculos,  que  desviou  a  Pe- 
nínsula da  sua  missão  de  grande  potencia,  e 
tem  defraudado  a  família  latina  d' uma  força, 
que  virilisando-se,  poderia  ter  disputado, 
quem  sabe  !  a  hegemonia  do  mundo,  ás  raras 
loiras. 

Hoje,  a  Hespanha  deixou  de  ser  para  nós 
o  papão,  e  o  Brazil,  nosso  filho,  muito  bem 
pôde,  mercê  dos  300:000  portuguezes  que  lá 
temos,  ser  no  futuro  politico,  o  nosso  sugges- 
tor.  Desde  que  a  Hespanha  se  republicauise, 
teremos  Portugal  meltido  entre  dois  fogos,  e 
fácil  seria  então  tornar  viável  aquelle  grande 
sonho  d' uma  federação  peninsular,  que  ha  tan- 
to tempo  espelha  ao  longe,  entre  cerraceiros 


OS  GAT06  l(>" 

de  névoa  platónica,  a  soa  gigantesca  mancha 
de  nação. 

Esta*  v.  M.  i  ver  a  pujança  d'esta  espécie 
de  Rossia  do  oocidenle  que  seriam  <»>  anti- 
qoissimos  estados  da  Lusitânia  e  da  Ibéria, 
conluiados  para  a  Inata  da  vida,  em  pequenas 
republicas  solidarias  e  autónomas;  e  por  certo 
abrange  a  sofeerbia  da  formidável  potencia 
que  nós  fartamos,  portagdezes  e  hespanhoes, 
abertos  ao  mar  por  lodos  os  quadrantes,  com 
um  império  colonial  que  seria  o  segundo  na 
fortuna  territorial  «las  nações  da  Europa,  ma- 
gníficos portos,  esorodras  temerosas,  picto- 
rescas  cidades,  culturas,  minas,  e  Iodas  as  ri- 
quezas da  industria  e  da  arte,  fecundadas  por 
uma  raça  outra  vez  fuveneseida  petas  aguas 
lostraes  da  democracia  pura. 

\  omnipotência  d,esse  colosso  novo  sopésa- 

ionhando-0  ligado  á  França,  e  constituin* 

(|()  ,-,,,,,  eiia  um  novo  regulador  dos  destinos 

,1,,  niuinlo.  i;  o  expleador  da  sua  adolescência 

lecimstrue-se,    pondo    Lisboa   nas  unias  COBM 

,,,,,,-,  cidade  de  dois  milhões  de  habitantes, 
chave  do  Atlântico,  lerminus  dè  toda  a  rede 
ferro-viaria  da  Europa,  ponto  áa  convergência 
do  incalculável   eoÉunercio  americano. . .  —  c 


108  <»s  GAT96 

magnifica  de  grandeza,  coberta  d'estatuas  e 
palácios,  com  o  museu  de  .Madrid  nas  Janel- 
tas  Verdes,  mulheres  de  Hespanba  renovando 
o  typo  mórbido  das  nossas,  forasteiros  aos 
milhares,  parques  de  léguas  á  beira  do  rio 
amplíssimo  como  um  mar  —  e  a  par  do  luxo, 
um  alio  tom  de  civilisação  e  de  cultura,  a 
litteratura  opípara,  a  sciencia  seria,  uma  arte 
independente  — e  depois  ainda,  no  fim  de  tu- 
do, a  vingança. 

Oh,  a  vingança  ! 

Por  ventura  vem  longe  ainda  essa  condi- 
rão sine  qua  non  da  nossa  felicidade,  que  só 
uma  federação  peninsular  pode  trazer,  e  que 
começando  por  expulsar  o  dinheiro  tnglez  das 
nossas  necessidades  e  das  nossas  em  prezas, 
viesse  em  cuspir  de  Gibraltar  os  fardas  ver- 
melhas, em  correr  a  chicote  do  interior  d'. Afri- 
ca, esses  puritanos  meio  padres,  meio  gatu- 
nos, que  civilisam  o  negro  com  algemas  e 
ópio,  acabando  por  e\pulsal-os  enilim  da  ín- 
dia, e  por  lhes  estancar  a  iniciativa,  o  presti- 
gio e  a  força,  cm  todos  os  cantos  do  mundo 
onde  o  maldito  polvo  cuidasse  de  viver  sugan- 
do os  seus  irmãos. 

Vem  longe  de  certo!   Mas  nada  pode  des- 


OS  GATOS 


109 


viar  a  corrente,  embora  lenta,  embora  obscu- 
ra, da  convergência  politica  de  Portugal  para 
;i  Dação  irmã,  nem  contrariar  no  futuro  essa 
confederação   ideal   de   toda   a    ibéria,    base 

(ruma  era  de  Oiro,  »-m  que  OS  filhos  dos  nossos 

filhos,  senhor,  repassando  em  memoria  a  fiei- 
ra de  reis  da  casa  de  Bragança,  só  encontrarão 
para  V.  M.  estes  dizeres : 

—  Sim,  era  um  tal  Carlos,  sempre  cercado 
de  gastronomos  e  de  loureiros,  e  que  chamava 
pioihfira  ao  paiz  de  que  era  rei. 


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