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LIVRARIA DO CONDK DE CASTRO E SOU.A *
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OS GATOS
FIALHO D'ALMEIDA
OS GATOS
PUBLICAÇÃO MENSAL,
DINQUERTTO A VIDA PORTUGUEZA
N. i —Agosto de [889
PORTO
WHA {< C.
/ . 96
FILIAL EM LISBOA
*•- ~íf
SUMMAR10
MEUS SENHORES, AQUI ESTÃO OS GATOS !
- BRIC-Á-BRACOMANIA, COMO CULTURA E
COMO DOENÇA -OS GRANDES LARÁPIOS AR-
TISTAS, NAPOLEÃO, JUNOT, O «SOUTH-KEN-
SINGTON E OUTROS MAIS — AQUI d'f.L-REI
ONTRA OS CABIDOS, AS COLLEGIADAS, E AS
JUNTAS DE PAROCHIA QUE DEFRAUDAM 0
PAIZl — A INDIFFERENÇA DO ESTADO PERAN-
TE O OBJECTO d'aRTF. PRÍNCIPES ARTISTAS
B SUAS MATILHAS A CAÇA REAL AO BI-
BELOT — BARÃO dVm PRATO DAS CALDAS —
UM ALMOXARIFADO POR UM PENICO — •]
PO POVO EM CASA DOS REIS — UMA CAPEL-
LANIA DEFENDE OS SEUS MOVEIS Á BORDOA-
DA— OS TOCHEIROS DE MAFRA — COLLEí
DE RECEITAS PA KW SE SFR UM RFI VIRT1 -
— O ANJO E 0 VICE-ANJO PERFIL DO RFI D.
FERNANDO; SUAS VIRTUDES E PERRICES —
NOS TERRAÇOS DA PENA, VESTIDO DE MA-
LHA. A ( \NIAK DF BARÍTONO — O TESTA-
MENTO nV.LLE E A OPINIÃO PUBLICA EX PRES-
SA PELA GRANDE VOZ DAS NOVIDADES
AS COLLECÇÕES DAS NECESSIDADES SÂO NOS-
SAS, ! TO( \ A < REAR COM l LLAS LM MUSEU
\ ,
d'aRTES DECORATIVAS! — O SOUTH-KENSIN-
\ E O ENSINO [NDUSTRIAL DA GRAN-
BRETANHA- ROUBOS NOS CONVENTOS — SAN-
TA MARIA D'ALMOSTER -OS ARCHEOLOGOS
QUE SE CORTAM — ABADESSAS FRANDUNAS —
UM CELEBRE ACADÉMICO COLLECCIONADOR —
- NO PAÇO DE S. VICENTE — OS CA-
PELLÃES QUE VÃO EMPENHAR ALFAIAS AOS
ARMAZÉNS DE VELHARIAS — A ESTRELLA, OS
GRILLOS E SANTA MARTHA -LADRÕES, LA-
DRÕES, LADRÕES, NÃO DEVIA HAVER, NÃO
DEVIA HAVER! .. — COMO SE ORGANISA UM
MUSEU D'ARTE ORNAMENTAL, E SE DOTA O
ENSINO ARTÍSTICO, SEM AUGMENTO DE DES-
PI/X PARA O THESOURO — PUBLICAÇÕES DE
VRTE E COLLECÇÕES PROVINCIAES — O QUE
A COMMISSÃO ARTÍSTICA DA (AMARA DEVE
FAZER CARTA A S. M. SOBRE AS VANTA-
GENS DE SER ASSASSINAI)! I o REGICIDA DE
UNHA DE COMO O CULTIVO LAS BELLAS
LETTRAS NÀn LÁ IMMUNIDADE AOS MONAR-
CHAS, PARA AS AMEIXAS DOS CONSPIRADORES
QUE LHE CUSTA A V. M. APANHAR UM BA-
l ■■■ 5IO? — OFFERECE-SE UM REGICIDA COM
PRATICA NA PROVÍNCIA ANTÓNIO PEDRO E
0 THEATRO NACIONAL OS ACTORES DINS-
PIRAÇÃO E os ACTORES DE SAGACIDADE — A
PORTUGUEZA NO THEATRO — O QUE FICA DE-
3 DA LUCINDA. DE ROSA DAMASCENO E
D \ VIRGINI \ « ONCLUSÃO.
Deus fez o homem á sua imagem <•
semelhança, e Pez ocritico á semelhança
do gato.
A., critico deu elle, como ao gato, a
graça ondulosa <i o assopro, o rhon-rhon
e a garra, a lingua espinhosa e a cali-
nerie. Fel-o uervoso e ágil, reflectido e
preguiçoso; artista ;ií<; ao requinte, sar-
casta atéá tortura, e para os amigos bom
rapaz, desconfiado para os indifferentes,
e terrível cora agressores <v adversários.
—Um pouco lambareiro talvez perante
as bellas coisas, e ura quasi nada scepti-
co perante as coisas consagradas; achan-
\ III
doa quasi todos os deuses pés de barro,
ventre de giboia a quasi todos os liou hm is,
e a quasi iodos os tribunaes, portas tra-
vessas.- Amigo de íâzerjongleries com
;i primeira bolla de papel que alguém
lhe atii-e, ou seja um poema, ou seja
um tratado, ou seja um código. —Pa-
ciente em aguardar, manso e apagado,
(•mui um ar de mysterio, horas e horas,
a sortida (rum rato pelos interstícios
d'um tapume, e pelando-se, uma vez
cacada a preza, por fazer da agonia
d'ella, uma distracção; ora enrolando-a
como um cigarro, entre as patinhas de
velludo; ora fingindo (pie lhe concede
a liberdade, e atirando-a ao ar, rece-
bendo-a entre os dentes, roçando^se
por ella e moendo-a, té a deixai- n'um
picado ou a'um frangalho.
Desde (pie o QOSSO lempo englobou
os homens em ires cathegorias de bru-
tos, o burro, o cão e <> gato— isto <\
I\
M animal de trabalho, o animal d'atta-
que, e o animal de humor e phantasia
— porque não escolheremos nós o tra-
vesti do ultimo ? E o que se quadra
mais ao nosso typo, e aquelle que me-
lhor nos livrará da escravidão do asno, e
das dentadas famintas do cachorro.
Razão porque nos acharás aqui, lei-
tor, miando pouco, arranhando sempre
c não temendo nunca.
A paixão pelas obras cTarte, está entre os
particulares tomando tão grande espaço, que
seria justo suggerirmol-a aos poderes consti-
tuídos, na mira de vermos ingurgitados com
algumas acquisições, o museu nacional. Por
Ioda ;i banda o coMeccionador acorda, e <i*>
moveis d'esta selecção exótica <|in' lhe aguça
i sensibilidade, posto nem sempre venham
liliar-se n'um fervoroso culto d'arte pura, e
muitas \r/.r^ se expliquem pelo amor do ne-
gocio, por vaidade burgueza, por emulações
de família, <>u por doença, não obstante con-
vergem todos a um resultado nobre e salubcr-
rimo, qual <> de libertar da poeira é da ruina,
ijuaesquer destroços, minúsculos que sejam,
d'essa divina arte com que " Portugal >l" ve-
I-J
OS GATOS
lli«» tempo interpretou o conforto, e soube
poetisar os interiores — esses refúgios de paz
dos combatentes exhaustos pela fadiga das
\ iagens e das guerras.
De feito, não se sobe ;i uma residência
'I amanuense, de simples agente de leilões, ou
de boticário, sem depararmos na sala, no ga-
binete de trabalho ou no tottette, em núcleo
ainda, e mais ou menos risível pela prosápia
d'etalage3 a famosa, a lambida, a suspirada
collecção.
VentaroIIas e selins servidos, pratos das
Caldas e oleographias, indo serve a pôr n'es-
tes sanctuarios do medíocre, a mancha de côr
que faz entrar na casa o raio d'aregria por-
que todos os olhos amortecidos suspiram, ea
nota de bem estar que ás vezes falta na man-
teiga das torradas, no roupão de madame^
nas botinas tortas das creanças, e u<»s tresen-
los e cincoenta mil reis annuaes de monsieur.
os <■ \ I os
13
Cumpre entretanto encorajar no publi-
stes instinctos de pega, porque se o li<>-
ixiem pobre e deseducado collecciona far-
rapos, em vez de bibdots, ascendendo na
escala do eolleccionador, té á opulência, acha-
remos pelos palácios de Lisboa, em exhibições
de gosto, os mais impressivos e serpentinos
echantilloru dos grandes séculos da arte eu-
ropéa.
Demais que esta predilecção 'I" bello,
mesmo caraiba, sendo um syndroma de se-
riação cerebral d'ordera superior, consola n
critério, da opinião pessimista que elle se afi-
zera ;i formular sobre a decadência portu-
tíueza, ao mesmo lempo que irá precavendo
;i opinião contra as rapinancias e logros, com
que os grandes espertalhões cá da casa e lá
de fora, ha cincoenta annos exturquem o que
em Portugal havia de magnifico, em todos os
géneros de pintura e de cerâmica, mobília e
bordadura, ourivesaria e decoração. Como
quasi Iodas as collecções portuguezas (a de
li. Fernando aparte) são modernas, acontece
nós estarmos desde o principio <l<> século ;i
exportar para •» estrangeiro maravilhas, sem
a menor consciência d'esta sangria artística,
os GATOS
e sem o mais ligeiro esforço de reacção con-
tra ella, apesar dos gritos que vera ;i impren-
sa soltar de quando em quando, algumas vo-
zes bera intencionadas. Começou o saque com
a evasão franceza, onde soldados e capitães
carregaram para o seu paiz de França, o que
quizeram, destruindo velhacamente o que não
podiam levar. E d'esta infâmia guerreira, fi-
lha da cobiça mais áspera, deu exemplo o
próprio Bonaparte, que enviava no exercito,
delegações d'artistas e peritos, com ordem de
rapinar tudo o que de precioso houvesse, nos
edifícios das povoações invadidas, e antes de
concedido o saque á soldadesca. Só á sua
parte Juno! levou comsigo, entre sedas e qua-
dros, manuscriptos, gravuras, alfaias sagra-
das, moveis, jóias, armas, e maravilhosas
loiças do .lapão e da China, despojos duma
riqueza innarravel, como nenhum rei possua
hoje talvez ; e por lai forma abundantes, mie
Ires navios quasi não bastaram para os trans-
portar. Ainda lhe podemos arrancar a Biblia
dos Jeronymos, e não sei que outros monu-
mentos d'arte nacional, mercê (ruma recom-
pensa em dinheiro, de muito contos. Mas cal-
cula-se o destroço, dizendo que só em prata
OS GATOS
15
roubada, á sua banda, este bandido arrecadou
|,:li,, cima de trezentas arrobas.
Vcha-se graça a um chronista do Echo dt
Fbrâ, que escrevia lia dias a seguinte boutadt
feroz, a respeito da pobri :>/ do Low re : «o
mrii amor próprio sangra ainda, á recordação
das maravilhas que viu uo .Museu de Madrid.
_L otterra </< Hespariha não foi para nós tão fe-
liz, como as expedições </'Jt"/l<i >.— Que especta-
cuioso miserável !
í
Quando os francezes se foram, ficaram os
inglezes, «I»' rustilhada com alguns portugue-
jses, legítimos ou adoptivos, que se valeram do
oiro ou da omnipotência, para dos defrauda-
rem do ultimo quadro de mosteiro, e irem
lançando a unha á ultima bonbonniéré de fa-
mília arruinada.
II. i setenta annos qi Sotdh-Kensington-
Museum, de Londres, secretamente mantém
entre nós agentes seus, com ordem de vindi-
OS GATOS
marero d paiz de lodos os objectos cParte que
iippareçam. E esses homens, que de Portu-
gal lêem carregado para aquella espécie de
formidável ministério d'artes e sciencias, pelo
menos um decimo das preciosidades que elle
encerra, esses homens conhecem, como pro-
íissionaes, ponto por | to, a historia das
peças que ainda restam, pertencentes ao Es-
tado ou pertencentes ;i particulares, o seu va-
lor, os seus detalhes, as suas imperfeições, as
suas magnificências, os seus estragos ; e ini-
placavelmente, como famintos lobos, eil-os
espiam as necessidades de dinheiro dos pro-
prietários, até chegar o dia em que a venda
forçada lhes lance nas mãos algumas d'aquel-
las jóias, divinas e puras, que eiies enamo-
ram.
De roda aos agentes do South-Kensintgon
ponham-se os espertalhões «pie vem explorar
por conta dos grandes ha/ares da Europa...
frahcezes que compram para os judeus mil-
lionarios de Paris... americanos enviados de
Nova-York e S. Francisco, por conta dos ven-
dedores de cortumes, enriquecidos, e dos ne-
gociantes de loirinho nioiioni.iniaeos de l>ihelo-
'":/'■.. . Accrescentar a isto os espertalhõesi-
OS GATOS 17
nhos modestos da Rua do Alecrim e Moinho
de Vento, agentes de colleccionadores portu-
guezes; calcular ;i cifra das transacções an-
uuaes em seguida; tomar nota do tempo que
esta sangria tem durado; e admirar emfím o
manancial de riquezas decorativas, indescripti-
vel, ii1"' era Portugal !
Ai ! temos assistido impassíveis, como se
não se tractasse de coisas nossas, ;i esse des-
moronar cTalfaias e obras primas, tramado na
sombra pelas collegiadas soezes, por cabidos
indignos, e por audaciosos mordomos e in-
tendentes, que assim foram trespassando das
caixas fortes confiadas á sua guarda, para as
galerias dos príncipes e dos grandes, as peças
de valor histórico e artístico, sem o menor
temor de responsabilidades contrahidas, e ga-
bando-se do roubo, inda por cima, com a im-
pudência de pulhastros abroquellados sol» os
brazões reaes dos seus senhores.
Temos deixado vendei- sem reluctancia,
aos estrangeiros, obras únicas, maravilhas ex-
tremas d*;iriisi;is os m;iis celebres e os mais
deificados pela admiração universal, sem que
o Estado tenha offerecido á cubica de fora,
um esforcosinho de concorrência, tendente a
2
18 <>S GATOS
adquirir para as galerias nacionaes a obra em
almoeda : e sem uma reproducção sequer, mu
simples desenho, que ao menos nos conser-
vassem a silhouette d'aquellas maravilhas per-
didas para sempre (a).
E nas raras bibliotecas e ileposilos do rei-
no, as coisas guardadas jaziam a esmo, ainda
lia pouco, devoradas pela poeira e as rataza-
nas, e sem que nenhuma mào caridosa as
fosse de lá tirar, dando aos touristes, sob uma
luz favorável, o regalo d'admirar o pouco que
ainda resta.
(u) É conhecida a historia do jarro e da bacia <!<•
prata, cinzeladas eassignadas por Benvenuto Celini,
que o ourives Tavares, da Rua do Ouro, lanha com-
prado cremos que aos viscondes de Cintra, indo-as
offérecer mais tarde a l>. Fernando, que as recusou
por um mal entendido Ur preço, ridiculo quasi. Jar-
ro e bacia, que primitivamente haviam sido offer-
tados por pouco mais de meia dúzia de contos, fo-
ram comprados depois pelo liarão d'Alcochete, que
os vendeu em Paris por noventa e tantos: c aca-
bam, depois de peripécias varias nas niàus (los l»-ic-
á-bracquistas, de fazer a sua entrada solemne na
OS GATOS 19
Estas afirmativas demandara porém (ixar-
se na ideia com exemplos; diflicil caso n'um
paizito onde todos se conhecem e tractam por
cavalheiros, e onde o procedimento de muitos,
servos e bovardos, raro extravasa da m '
io cTourivesaria do South- Kensington-Mu*
Assim o refere o jorna] inglez, Decoration.
i • conde <ia Folgosa possuía duas terrinas
prata, assignadas Germain, queo inarquez d;
adquiriu por uma quantia oscill&nte entre onze e
quatorse contos, e que acabam de ser vendidas
. por quarenta, emos a quem.
Nenhuma d'esta
por conquistar, chegando o desleixo a não ficar
ta uma simples photographia, para os r» » -
- de Bellas
20 os GATOS
aceada eavalheirice. De portuguezes que ha
quarenta annos fizessem sombra aos prestima-
n >s britânicos, na arte d'empolgar um bibdot
;i preços irrisórios, valendo-se ua bestialidade
soez dos donos, o mais opíparo pairava, feliz-
mente para elle, D'uma altura em que a vontade
uão sofíre imposições, afeita ao mando supremo,
que se herda com os caprichos, mercê <IV>-
s.i excepção odiosa a que se chama dymnastia.
Fácil a este foi chamar aos seus museus
privados, muitas palhetas do filão riquissimo
que tínhamos, em preciosidades de todos os
géneros, pelos palácios e templos do paiz.
Os processos usados para este arrebanhar
de coisas raras, uão variou grandemente dos
que hoje estão sendo postos em pratica, pelos
banqueiros em fortuna, e por alguns dos
nossos políticos e jornalistas adoradores de
bric-à-brac. Lançavam-se pela província ava-
liadores de confiança, convividos no bibdot, e
jtrados secretamente uo manejo de verem o
que havia, sema primeiravista lhes parecerem
ligar grande importância. Estas creaturas, vista
,i j iia, punham-se a sondai' manhosamente as
necessidades do proprietário, as suas preoc-
ições, as suas ambições, as suas prosa-
os GATOS
21
pias — ,,v pontos vnlneraveis da confraria, da
parochia, ou da municipalidade possuidoras da
obra cubicada — e em m<'i:i nora concebia-se
o plano, 11 lançavam-se os primeiros lineamen-
tos para o cerco 1 Sc ;i peça era de vulto, um
desenhista enviado de Lisboa recambiava um
croquis na volta do correio, afim do Potentado
illustre decidir. Na manhã seguinte, os foras-
teiros debandavam, fingindo desdenhar um
(louco o mérito da obra — mas três ou quatro
mezes depois, tornava um, e earrement pn
ulia a compra, não se mencionando nunca,
n'essa primeira abonlagem, o nome il<> com-
prador, afim de Dão despertar suspeitas nem
cubicas.
Acontecia ás vezes o dono da coisa, não v< n-
der a dinheiro, i orque era rico.
ii remédio era offerecer-lhe á queima rou-
V2 os <;.\tos
l>;i uma venera, uma regalia qualquer cTordem
hierática, rei d'armas, barão, moço fidalgo .. .
Na minha aldeia fez-se um visconde por um
prato das Caldas, muito velho. Outro, argucioso,
veio ás Necessidades pedir a nomeação ^al-
moxarife, com um bispote na mão, que posto
exótico, era infamado já pelos trazeiros de
bastas gerações.
Para ocaso extremo da recusa de venda
ser formal, os louvados tinham ainda um
ultimo expediente: pediam o objecto ao pro-
prietário, e levavam-no para Lisboa, onde per-
manecia até se amollecer de lodo a resistên-
cia da collectividade ou do particular recalci-
trantes.
Grande porção d'obras d'arte, pertencentes
a instituições religiosas e pias, entraram por
este meio na capharnaum artística dos nossos
príncipes— consortes e governantes, como por
exemplo a custodia dos .leroiivnios, ha inimeii-
sos annos guardada no museu particular do
rei I). Luiz — as pratas da Sé, que SÓ por VO-
zidos da imprensa ha pouco tempo foram res-
tituídas ao cabido, e emtiin, o quadro de llnl-
beín, que a Academia das l!ell;is-.\rles cedeu a
I). Fernando, em deposito, e lá figura boje
os GATOS 23
nu inventario ilo príncipe, como coisa que le-
gitimamente lhe houvesse pertencido, (h)
(b) O snr. Rodrigues de Freitas, n'um artigo do
. BENS DO POVO DEPOSITADOS EM CASA DOS
ih [g, fere este i to, e amplifica :
«Seria ao rtado que também se tratasse de
i„ i- - nade deposito, exemplificado no qua-
dro de Holbein, com vantagem para a galeria de
D. Fernando, tem tido applicaçâo a muitos outros
objectos de arte, e em beneficio >\>- outras pessoas
idamente collocadas ; quem sabe .' Talvez a
collecçao de todos elles constituísse um museu di-
g le ser visitado por nacionaes e estrangeiros.
Dize s isto fundados n'uma grande serie de Ca-
im egaveis . é a 3erie longuissima das appa-
rentemente mysteriosas desapparições de tantissi-
moe objectos pertencentes aos conventos ; suspei-
tava-se geralmente que tivessem sido roubados, ou
dados; é muito possível que haja inteiro engano
->;
OS GATOS
Este capitulo das capellanras e irmandades
que presentearam os príncipes e os grandes,
«'"Ni objectos de que ellas eram simples usu-
fructuarias, meras vigias; este capitulo eslava
a exigirum inquérito minucioso e implacável,
que desconfiamos havia de descobrir muita
estorsão, e ferrafr com os costados de muita
gente fina no Limoeiro.
Junto a Óbidos lia uma capella, cujo nome
não colhe para aqui, cem cuja sachristia exis-
• 'iii tão atrevida hypothese; foram porventura depo-
sitados em casas d.' gente digna de os admirar. É
até provável que, se fossem quadros, os depositá-
rios mandassem pôr nos caixilhos respectivos o seu
brazSo, para melhor assignalarem a protecção que
davam a esses depósitos, e o zelo com que os guar-
davam. <> quadro de Holbein, por exemplo, podia
ter no caixilho as armas de Goburgo-Gotha. Quem
sabe? Talvez as tivesse.
ignoramos completamente como se fazem ou
se faziam estes depósitos; qual <> formulário da re-
messa e do reciho. . .
Quando falleceu D. Fernando, publicaram-se ar-
tigos vigorosos, nos quaes foi affirmado que muitos
objectos pertencentes ao estado figuravam na -alc-
eia particular do esposo de D. Maria II. A asserção
não foi desmentida, se liem nos lembramos; pedia
os <;.\ ros
ao
tiara (se existirão ainda?) algumas peças <1»1
mobília artística, maravilhosas .- . tambore-
tes turrados de coiro de Córdova, gravffréa de
dezenhoa soberbissimos, uma mcza com em-
butidos de marfim e ferrarias de cobre cinze-
lado, uma pequena credencia, etc., doações,
cremos <|llr da rainha I». Leonor, fundadora
ou protectora da capellania mencionada.
I». Fernando, que tivera noticia d'aquelles
objectos, ou passando por alli, lograra vel-os,
comtudo ser falsa; agora porém, se a.Aeademia de
Bellas .\ i-i. — fez aquelle pedido, não é sem funda-
mento a suspeita de que estava bem informado o
auctor dos artigos.
Mas realmente este deposito de um quadro attri-
buido a Holbein é um deposito de nova espécie ; a
pintura não foi levada para a habitação de D. Fer-
nando por não haver onde a guardar ; não seguiu
o caminho da régia galeria em virtude de uma or-
dem judiciaria; não entrou lã para ser submettida
ame de peritos, afim de sabiamente resolve-
rem quem flora o auctor d'ella : entrou por favor'?
salim da Bemposta paia a posse de D. Fernando,
poreffeitode alguma portaria amigavelmente surda'?
Este caso leva-nosa recordar mais uma vezo
que se passou cora a ramosa custodia de Belém;
esta na posse da Casa Real e comtudo pertence á
26 OS GATOS
fez diligencias furiosas para os alcançar, da
administração. Mas ;i todas as suggestões de
compra e troca, brinde ou deposito, os honra-
dos homens que geriam os bens da capella
responderam á cubica real, recusas firmes; e
os tamboretes e as me/as não figurarão oa
corbeUle viuvai da segunda mulher do rei ar-
tista !
Estes exemplos porem nfin são ínirtifrms,
e a mobília da capella .Tapar d'0bidos, se es-
nação; os documentos sobre este facto existem na
('.asa da Moeda; a Casa Real certamente não os
desconhece; ella não pôde ignorar que esse monu-
mento da ourivesaria foi dado em troca de uma
pouca de praia do palácio da Bemposta, avaliada
'■ih 3:648 #000 réis; importaram-se unicamente do
valor intrínseco da custodia, como se o artístico não
fosse O principal !
Também a prata que pertenceu á casa de Nossa
Senhora das Necessidades foi entregue a I». Ma-
ria II. Entrego u-se-lhe pelo mesmo tempo a de um
convento da ordem de S. Francisco; foram regula-
res estas entregas? Os documentos que conhece-
mos a este respeito, não dão resposta á nossa per*
-unta.
Desejaríamos egualmente conhecer o que foi lei-
to da livraria do convento das Necessidades ; parte
OS GATOS '->
capou ás garras do GoburgOj ainda vem a cahir
provavelmente nas dos srs. marqoeí da Foz
nu Marianno ti»1 Carvalho, que Deus guarde.
Na exposição portugueza d'arte ornamental,
aalla D. Fernando, vi eu uma grande vitrine
de carvalho negro, em talha salomoniea, cu-
jas hombrekase cimalhas, recamadas de gros-
sas esculpturas de pássaros, caçadores, gno-
d'clla terá ido para a Ajuda, como deposito análogo
ao do quadro de Holbein, ou passou toda para as
bibliothecas publicas? E a livraria de Mafra? <> au-
ctorda Vcscripção minuciosa do edifício d'este nome,
diz que na bibliotheca do anti:;" conveDto ba trinta
mil volu - escriptos em todas as línguas, e sobre
as sciencias, industrias, profissões, artes e
officios ; prehenchem 150 estantes collocadas sobre
,, pavimento e a galeria... Todas as obras estão sis-
tematicamente distribuídas por a e discipli-
e alpbabeticamente catalogadas. Notam-se es-
pecialmente entre ellas edições riquíssimas de 1 170
a ! ISO dos melhores clássicos latinos, e admiráveis
pela belleza d estampas. Encontram-se tam-
bém preciosas edições das nossas cbronii
tugal, Ck Luziadcu <1>> morgado de Matheus ; museus
de pintura, e 'ia- medalhas e moedas a- mais anti-
iriedadeecoll* bíblias anl
modernas em vários idiomas, enti — ia- a polyglot-
28
os GATOS
mos e folhagens, eram feitas nada menos que
das columnas d'uma capella alemtejana, amiga
minha d'infancia, que S. M. l-i teria mandado
buscar pelos seus espiões de bibdotoge, tudo
por comprazer ao seu papel de salvador da
arte antiga e das batatas.
S. M. a rainha i). Maria Pia levou de Ma-
fra, contaram os jomaes aqui ha tempos, para
ia. e alguns manuscriptos religiosos em pergaminho,
• •oiii lettras a capricho, perfeitamente illumina-
<!as.»
A quem pertence tudo isto? Parece-nos que per-
tence á nação; comtudo não tem servi, lo para ella.
Está na posse Ma rasa real, como o quadro de lloi-
bein esteve na posso .lo d. Fernando? Cumpre que
as auctoridades competentes o investiguem ; o que
Se taes riquezas são .lo povo, passem quanto antes
para bibliothecas publicas.
... Chegamos sempre a concluir que o Holbein
jamais deveria ter ido para a casa de l>. Fernando.
E embora não tenhamos tido a honra de examinar
a escripturação dos depósitos, parece-nos que se
pôde apostar 100 contra 1 que na lista dos deposi-
tários se não achará sequer um nome de artista
que seja poluo, por grande que seja o seu talento.
Assim prosperam as artes e os depositos.it
OS GATOS -'
oe seus aposentos da Ajmla. uns koeheiros de
bronie, esculptarados em magnifico estylo,
que segundo dos dizem, Qão voltaram ainda
ao seu logar.
Dezenas d'outros objectes d'arte, enfileira-
dos nas collecções de 1». Fernando e D. Lufe,
teem uma historia equivalente.
Daria um perfil bem extraordinário, na lúsr
loria da actual sociedade portugueza, se qui-
zessemos visional-o com brutalidade e sangue-
ntilhomem teutão que foi D. Fer-
nando, e que mesi imbevecido ao seu sonho
d'arte, linha tempo para ir lançando golpes de
vista frios, mercenários mesmo, sobre as coi-
,la vida pratica qu jercavam. Evidente-
II|t.Mit. que elle possuía muitos dotes de bon-
dade particular, todos sinceros, e destronca-
dos d'essas virtudes de cathalogo que os con-
m
OS GATOS
selhos d'estado impõem a. is governantes, e
n'elles sai» como que as ferramentas do officio
de reinar.
Povo nenhum da terra admlttiria boje por
exemplo, uma rainha, que (»s jornaes não
fetGhisassem como um water-doset de caridade
1,11 lll||;i vitri l'eleganeias, mi uma espécie de
realejo de sanctidades femininas e domesticas.
Ainda liem os herdeiros da coroa não apre-
sentam a cabeça, pelo postigo materno, ás ge-
nuflexões «la comadre, já os ministros lhes icem
costurada a fatiota de virtudes publicas com
•l1"1 elles lião-de mistificar o povo, ioda a vi-
,i;i: fatiota afinada ao sentimentalismo da epo-
clia, e ás tendências moraes e sociológicas da
geração que ha-de aturai-os. Na carte das vir-
tudes governativas dos Braganças, coube por
exemplo a D. Cedro v ,, papei d'um carneiri-
11,1,1 mandado fenecer antes d'armado, afim de
justificar o cognome cfEspercmçoso que o con-
selho resolveu que se lhe desse. D. Luiz veio
já numa epocha profusa em manifestações
d'ordem mental ; então ordenou-se-lhe cristal-
lisasse entre o violoncelio e Shakespeare, o
que elle fez, charivarisando com bonhomia
egual f^u>> dois infelizes martyrcs dos seus
OS GATOS
31
ócios... E aproveitando a crise agrícola, <»s go-
vernos suggerem agora ao snr. D. Carlos, que
paraa recolta da popularidade, S. A. amosende
nas predilecções fie lavrador, e vá de chapéu
á serrana, applaudir as asneiras dos congres-
sos. Jà aqui <> artificio resalta. Mas lia melhor!
\chando-se provido, na pessoa da actual rai-
,,!,;,, o logar de consoladora dos afflictos, e
tendo passado de moda o beaterio, está por
ag0ra ;, Snr.a duqueza de Bragança sem tra-
//s/; _ |.; ;l gente assiste todos os dias a esta
comediasinha da sogra e da nora que mutua-
mente se usurpam r iniciativa das kermcsses
e bazares de caridade — uma eom a chave do
cofre dos inundados na algibeira, coberta de
jóias, e de mão estendida, Sarah Bernbardl
da esmola, aos cinco-reisinhos de quem passa
;i outra, um pouco froissée do jogo scenico
,l;i primeira, e contentando-se, vice-anjo mal
ensaiado, em vir ás Cestas de caridade parti-
cular, nu aos bazares das meninas abandona-
das da província, repetir as creaeões mais ap-
plaudidaa do anjo topa a lado.
32
<»S GATOS
Paulo Bourgel diz qo Disciple, «é raro que
"m homem lançado na batalha das ideias, em
pouco tempo se não venha a tornar no come-
diante das suas próprias sinceridades.» — E
que esforços este I). Fernando não fez, para
guardar até á morte, na sympathia da cidade,
ò sen velho dichê de rei-artista, rei bonenfant,
apesar da interferência pessoal pouco correcta
que ás vezes se permittia ter nas coisas do
Estado, estando já recluido á vida de (amilia,
e apesar de seu morganático casamento, con-
traindo ih» meio do desagrado dos filhos, e
das ironias dos seus mais dedicados servido-
res !
Ramalho pinta-o como uma espécie de re-
quintado burgomestre, já no rãour da edade,
gosando a existência n'uma atmosphera con-
fortável e balsâmica, entre formas raras e
cambiantes de índio, vaporosas, lodo entregue
08 o. Mos •!-',>
;i vetteidades de dUettanH, <\\u> mereé da ins-
ciencia, percorriam quasi todas as especiali-
dades artísticas conhecidas, desde fazer gra-
vuras <li' saloios a afcua forle, e pintar loiça,
até andar com fatos da Lmcia, nos <li;is de
bruma, ;i roncar .mí.is pelos terraços de Cin-
tra, para se «lar a iilnsão d'um amor roma-
nesco — aos cincoenta annos !
Entanto, se por uma banda convém não
regatear as verdadeiras qualidades que elle
tinha, por outra cumpre pôr em equação os
defeitos justapostos i essas qualidades. Era
uma sensibilidade dPartista, desunida e mór-
bida portanto, propensa ao sonho da phan-
tasia que se ala, como ama borboleta de noite,
aos intermundios da belleza pura. Masaqnella
mesma sua convivência entre coisas d*arte
lhe fazia os nervos presentidos, ;< ponto de
se lhe produzirem intercadencias no caracter,
com grandes alternativas de bizarria e de sec-
cura. Deve-se-lhe quasi todo o miserável en-
sino artístico que hoje temos. Com o apoio
OU a iniciativa d*elle se levaram ;i cabo al-
gumas exposições de pintura 6 d'arte orna-
mental. Muitos dos nossos artistas agradecem
hoje .1 mensalidades d'elte, a educação rece-
;\\ os GATOS
bida nos ateliers de Paris e Roma. Os seus
gOStOS ifartisla, a sua imaginação visual ifal-
lemão contemplador, um raro senso evoca-
tivo da pureza das formas, originarias ou
typicas d'uma escola, duma nacionalidade
ou iruma epocba, davam ao esposo de D.
Maria II golpes de vista sagazes sobre muitos
ramos d'archeologia artística e (fartes deco-
raes: critério este mais d'instincto que d'eru-
dição, mas em todo o caso seguro e bem ali-
cerçado.
E sem a sua actividade, inteligente, sem o
seu ciúme de bric-á-brac(|iiisla, que o ía/.ia
policiar os manejos d'alguns larápios influen-
tes, e alguma vez rechaçou do campo das ac-
quisições, a concorrência estrangeira, Portu-
gal teria sido saqueado nos seus bibelots, nos
seus moveis, bibliotecas e loicarias, em muito
menos tempo do que o foi. Entretanto, nós já
fizemos sentir como esta interferência de D.
Fernando nas coisas estheticas de Portugal,
custava cara, e como elle se identificara ao
paiz adoptivo, a ponto de confundir os museus
públicos com as suas colleccões particulares,
e d'estabelecer com a maior sem cerimonia,
migrações de quadros, baixos relevos, bron-
OS GATOS 35
zes, dos nossos conventos para o seu palá-
cio real das Necessidades, alardeando *\\w os
salvava da cubica mercenária, em nome do
pOVO, «' vindo ;i ;il;i|;inl;ir-sc depois COm cl-
les, não sabemos em nome de que. Na genero-
sa franqueza com <|n«' lhe abríamos os braços,
e permittimos que elle fosse manuseando, co-
mo m'hs, objectos que jamais poderiam se-
questrar-se ã tutella do Estado, e á proprie-
dade e á posse do paiz^ ia para assim dizer
formulada a esperança de todos, em que o
príncipe legaria aos museus nacionaes, por
sua morte, os soberbos exemplares que lo-
grara reunir, graças ao dinheiro que nós lhe
demos, á situação moral <|in' lhe creamos, e
ao enternecimento, imperdoável, com que o
deixamos ir pelas nossas gavetas, ruínas e
sanctuarios, ;í basca de surprezas que apasi-
guassem ;i neuresthenia de bello que o es-
tortegava.
Por isso o seu testamento produziu no pu-
blico, estupor primeiro, depois incredulida-
de — e ódio por ultimo. Um ódio agreste, fais-
cando desdéns «• sedes de desforço, contra a
memoria d'elle, contra ;i sim probidade de ho-
mem, a Bua integridade de ser pensante, o seu
36 os RATOS
passado, e as affeieões que na vida mais o en-
terneciam, (c)
Os longos extractos que damos, do jornal
q ii' mais vivamente tractou a questão do tes-
(c) «.As Novidades ■ de 22 de dezembro de 1885:
«... Mas o príncipe era homem: HoWiq sum
i hil, etc. Ninguém, por mais elevado que seja, po-
de fugir a esta condirão. As fragilidades da natu-
reza humana dão-sr nos príncipes, como no com-
íniiin dos mortaes ; e a doença exerce sobre aquel-
les a mesma influencia nefasta, que sobre estes. O
cancro (pie se apossou dum coração, e o roeu com
aferro implacável, não pôde inspirar mais respeito
do que o cancro que dilacerou a face. A medicina
foi impotente para extirpar o shirro da cara, como
a luz da razão não pôde sarjar o outro, o que lhe
invadia o espirito. Essas duas impurezas liquidam-
se pela morte (!) Os physicos purificaram o cadáver
pelo embalsamamento, á luz tremula dos tocheiros
fúnebres os críticos teem de purificar a memoria
do príncipe, lavando-o do outro cancro, á grande
lu/. da opinião publica. Picará então, como deve II-
- «. \
lamento, se acaso espelham, como o jorna
ta pretende, ;i opinião, deixam-nos vèrqueel-
l;) considerava o amor do rei pela condessa,
como um cancro que lhe fez o coração cruel,
e lhe arrancou de lá o amor dos filhos, • o
respeito il<> seu passado e '1<> seu nome, aca-
rinhados durante quarenta annos pelo afecto
leal < r u ni povo inteiro. Mostram esses extractos
mais, «-..111 certidões de physicos, que era
.ar. honrado, respeitado i venerado, no panlheon
doa reis. Â opinião tem esta missão a cumpr
;,.,,, :, cumprir também e parallellamente a mi
de proteger a magestade do rei contra a piedade do
nu,,,. e •» expleodor da coroa, que é unia dymuastia
e uma instituição, contra as desfaUencias eauei
pelos afTectos de família, tanto mais vivos, quanto
mais se afogam em lagrimas de dor. . . Cá estamos,
e começaremos ãmanhl
\e dezembro de Í885. « l mesmo:
... i». Fernando morreu de dois cancros. < i da
face, revelava-o a intumescência e dilaceração dos
tecidas; o do coração maniíi stou-se em toda
profundidade e crueza, no testamento com que tal-
leceu. 0 testamento produziu no primeiro i nento
mm impi ral d estupor, que a breve l
.a a indignação profunda. Em nosa i op
nunca a opinião publica se aflirmou n'ui ia sol da-
38
os GATOS
vavel Dão gozar o rei de todas as suas facul-
dades, ao redigir do testamento com que mor-
reu, sendo natural que um tal documento lhe
fosse arrancado pela mão .ruma mulher devo-
rada ,,(' cubica, sem amor ao marido, e levan-
do o egoísmo até á infâmia de querer provocar
"m mcesto na família. E finalmente accrescen-
tam que se inutítise o testamento, confrontan-
do-o com outro que o rei Qzera em estado lu-
nedade tão forte, como agora. Como foi que a alma
delicada d'aquelle rei artista pôde subscrever um
tal testamento > Sem ter perdido o uso da razão,
que importa o desconcerto absoluto da vida, teria o
snr. D. Fernando perdido o vigor e a energia neces-
sarias para resistir a suggestr.es pérfidas e a amea-
insidiosas?
(Segue uma co iferenciacom um dos facultativos
que trataram o ei, e diz assim :)
"••• O tumor maligno da face não poupou os
nervos e artérias, produzindo até a decomposição
il. <)s progressos da doença irritaram necessa-
riamente as meninges, corromperam os vasos, e al-
teraram a circulação. 0 lóbulo anterior do cérebro
deve ter sido comprimido, o que a autopsia nao dei-
xaria de mostrar. Este lóbulo soffreu por tanto na
circulação, e assim na sua nutrição e regular func-
(is GATOS
m
eido; terminando por aconselhar que as col-
lecções artísticas do castello e Mda da Pena
e ,i() palácio das Necessieades, já minguadas
,1,. jóias e pratas em que firandulentamente se
substituíram monogramas, voltem ao Estado,
senão na totalidade, pelo menos em parte vis-
to como si,, do paiz muitas das preciosidades
artisticas que as compõem. Nós registramos
com jubilo esta impetuosa esfusiada de fran-
eiooamento. A doença teria alterado também o es-
tado plástico .1.» sangue, o que viria a influir no
modo de sef da actividade cerebral. Effeitos análo-
gos se registam nas cacbexias extremas, oos amol-
ecimentos cerebraes, etc. B de tudo isto se pôde
concluir com afoiteza, independentemente de qual-
quer exame especial, e só pela marcha geral da
doença, que o snr. 1». Fernando, som ter perdido o
cahira progressivamente num estado
em que as faculdades aflectivas levam racilmente de
vencida as faculdades intellectuaes. ■ .
«O tostam. mi t.. de l». Fernando data de 13 >\-
neiro de 1886, quando já ette estava irremediavel-
mente condemnado, e se sabia que a sua vida devia
durar apenas alguns mexes, ou mesmo dias, boras,
conforme, i » ensejo do testamento foi escolhido
conhecimento i, e desalmadamente aprovei-
tado. Tinha feito oatro antes, em 1880. Era o do ho-
40 OS GATOS
queza, que põea questão piara e virgineamente
aua dos véus hypocritas, eutre que os jornaes
usam [falar das grandes falcatruas. SódOHOSr
so applauso expulsaremos os trechos em que
se allude em termos pouco generosos ás qua-
lidades e intentos d'uma senhora, que seja o
que for não tem marido, e resgatara pela sua
alliança a um rei de Portugal, quaesquer som-
bras que podesse trazer da vida de tablado.
mem são. Para se ajuizar da perfeita Inteireza do li-
vre arbítrio do testador, seria necessário confrontar
entre si os dois testamentos. Assim se porá em me-
lhor evidencia o que pertence ás responsabilidades
do testador, e o que pertence á garra da harpia. É
preciso por tanto que o testamento de 1880 appa-
rcça. Não só para se liquidar de todo [observação d >
jornalista — para quem seja preciso, que não para
nós) este processo moral em que está interessada a
memoria de D. Fernando, mas também para se ins-
truir o processo legal do inventario, que em qual-
quer hypothese terá de fazer-se.
«... O testamento ultimo não é obra de D. Fer-
nando. Não o pôde ser, porque nem mesmo por um
egoismo feroz (que aliás nunca manifestou em vida
poderia ser explicado. É descaroavel demais até
paia isso. Está alli, sibilando em cada linha, o ran-
cor venenoso d'uma ambição que serpeou até aO£
OS GATOS ! I
Sobra a sua tiipidc/ tambem,poucos dados com-
provam, desde que essa mulher accedeu a des-
fazer-se da propriedade «la Pena, sem violência,
e abriu elle mesma ás indagações da justiça, as
coilecções adquiridas por herança. D'ahi, não
r necessário recorrer ;i harpia que se vinga com
•i mào do finado, nem á loucura Incida do prín-
cipe, paia explicar <» testamento, .lá desenhá-
mos a sensibilidade mórbida especial de D.
degraus do throao, e que 9e consummiii em esfor-
ços impotentes para ter assento n'elie.
.1 e.wTAiuNA procurou oingar-se rum a mV
finado... E está também retratada, com toda- as
suas unlias. a rapacidade implacável '|ur nem a po-
bre gratificação aos mais antigos servidores pou-
pa. . . 0 testa oto assim feito pôde ter como oom-
mentario a vibrante apostropbe de Tibullo, na ele-
gia iv. liv. u, á oortezã Nemesis.
— Ta cavas a concha da mão para arrebanhar
mais dinheiro.
< » poeta definiu a harpia com forma tiuma
94 dt dezembro de 1885. .1- Novidades*:
Nada temos particularmente ■■outra a snr." con-
a d'Edla, Não lhe arremesaamos injurias porque
é viuva, como lhe não arremessamos flores quando
■ gposa morganática dosar. i» Fernando. Nin-
guém no» viu por detrás dasjanellat >'" Poj d Ni
\'l OS (.AIOS
Fernando, que era a éftim príncipe, complica-
da da (rum artista; caprichosa, desegual, in-
transigente ena questões d'obediencia, cheia
de violências e dMnfantiHdades, e exteriormen-
te glacida e com deasás de bonhomia, como
deve ser a d'um allemào. Em typos (Testes, a
altivez, quando ferida, é rancorosa, e raro é
que não chegue a lançar mão da crueldade.
Ponham agora ao redor d'tim homem as-
cessidades, turvado* humildemente diante da snr.*
condessa, (inundo ella poisava << sim mão enluvada x<>
braço d'el-rei, porque nunca lá fomos; e ninguém
nos verá cá fora a apedrejar-lhe as janellas. . . que
nSo são suas — (allusão a um artigo do Correio da
Manhã.
Os nossos artigos são apenas um pallido reflexo
da explosão de cólera que rebentou em todas as
consciências. Somos apenas um ecoo e nada mais.
A opinião publica nunca se pronunciou com uma tal
intensidade, e uma tal unanimidade, sem ter por si
a justiça, e sem haver um grande malefício a vin-
gar. Os próprios que correm a estender o manto da
misericórdia sobre a desolada viuva (commentário do
jornalista — dedicatória de coroa fúnebre) reconhe-
cem e confessam que o (estamento d'el-rei D. Fer-
nando é um documento lastimoso, e que produziu a
mais deplorável impressão... 0 testador podia dis-
(>S GATOS Kl
>im susceptível, .1 família real que lhe não re-
cofthece oficialmente <> casamento, Maria r*i.i
que parte o oopo, iTum banquete, quando o
marido tem <» desceeo de propor um brinde ;i
condessa d'Edla, deante de toda a corte, — e
os seus sarcasmos quando lhe faliam na wgra,
e o seu ódio de princeza authentica, todos os
iiins froimé pela impertinência da cantora — e
accrescentem ainda, para acabar d'exasperal-o,
lo que era sen, como muito bem quizesse. Mas
fi Imprensa não pôde negar-se o direito dMnvestigar
se na herança do snr. D. Fernando est&o todos os
valores que lá devem estar. Não Falíamos <las in>-
cripções d'averbamento • ju<- se inverteram em títu-
lo portador, para poderem ser sonegadas á he-
a, nem nas Jóias de I>. Maria n. qne passaram
,-t . nitro oolo estas jóias, perguntamos nos, não per-
tencerão talvez á ror...!'' nem das preciosidades ar-
tísticas a que se mandoa razer um monogramma
d*usurpação, nem «las pratas em que se substituiu
por esse mesmo monogramma, a coroa real. ..» {o
Uista '"/'"' repete <> '/-"• mais d'uma >•<■:. '<<> de~
. ,in queêtão, tem procurado transfiltrar noespi-
,!,, feitor} íflo é, que /"<" cita. facto*, nem hieto-
,,, m episódios, /<"/■'/>'<■ "//"/ m coitas d'alto. I.
f /,/,-. insistindo em demonstrar </"<• a mr.* condessa
4 'Edla extorquira da razão vacillante do rei, o teeta-
i 1 OS CA TOS
o afastamento do povo, que recusa ao rei ar-
tista a sua antiga sympattóa, satyriBando-6 aos
jornaes e reuniões publicas, pelo facto d'aquel-
le matrimonio escandoloso, e elaro dando a
vèr <> quanto o melindrava a violação, pela
cabotine, do fauteuÚ em queoutr'ora se sentou
D. Maria II.
Ora, injurias assim não se perdoam ; quan-
do é impossível cevadas de prompto, o tempo,
mento supra, onde se uãn faliu da snr.* 1>. Maria
Pia, t/<h- tanto <> affeiçoava, e se mencionam secca-
mente as filhas por as infantes, >■ se irada a swr.*
condessa por minha muito QUERIDA E amada ES-
POSA.)
28 <!<■ dezembro <!>■ lss.~>. o mesmo jornal:
... 1 1 rei artista, que era amado do povo, com
o qual se misturava nos ajuntamentos e festivida-
des, viu-se que nada deixou para o adiantamento e
bem estar dos artistas, nem uma insignificante col-
lecção d'objectos d'arte para o estudo, o que pro-
duziu um arrefecimento súbito nas sympathias de
que gosava, e uma indignação vivissima coatra a
Egeria funesta que Ibe inspirou uma tal disposição
d'ultima vontade. . , bastaria entretanto que o tes-
tamento contivesse algumas boas palavras, etc...
bastaria que D, Fernando escrevesse o'elle uma dis-
posição que resalvasse para a coroa e para a nação
OS 6ATOS *0
em \«v. deaspuir, centuplica-Ilies os Ímpetos,
acoamtilanéo os dias de scínimento, em juros
d'odio, lê a<> momento em que a vingança
nos desforce integralmente. D. Fernando havia
de ter premeditado assim uma desforra, longo
tempo, sob as suggestôes e conselhos da espo-
sa, não tem duvida, mas por obsessões também
do seu próprio rancor de governante achinca-
lhado. Essa outorga de riquezas a uma mu-
a propriedade e regalia do Gastello da Pena, que lhe
rendido como monumento histórico (isto é, por
ii, na quantia mínima. que não podia por forma al-
guma significar cedência de propriedade) e que o
paiz se habituara a considerar como formosíssima
jóia sua. ..»
i8 de dezembro, 85.
.... vamos terminar esta primeira serie d'arti-
speito do testamento d'el-rei D. Fernando.
i das aa consciências pediam uma correcção «lura
.• um desagravo proporcional ao malifício; mas al-
ta vozes dizem já, basta ! e nós somos e quere-
ser apenas os executores da alta justiça popu-
lar. .1 segunda serie, }">•■< m. min $e demorará.. . se
for preciso. E será talvez ainda mais áspera do que
a primeira, e <'"m certeza muito mais interessante
-iK- ella. Porque haverá historias largas que con-
\ j.ii ,, articulista, <iu>- atrai dissera querer
Wi 08 CAI os
lher que apenas podia auferir d'ellas um gozo
egoísta e improductivo, nu detrimento d'um
P°vo, que pelo estudo saberia transformar
taes maravilhas em instrumentos de critica e
•I'1 cultura ; essa doação por certo foi uma vin-
gança de mercieiro casmurro, reles e mesqui-»
nha, mas devemos recordar que o rei não
tinha outra.
apenas encarar as coisas d'alto, refere a aventura de
uma sobrinha sem tia, que veio das Salezias para o
paço das Necessidades, <■ que parece a snr.» condessa
d'Edla quiz casar com osr. infante D. Augusto. Tem-
pos depois, esta menina desposava um oflicial de ma-
rinha, abandonando o paço bruscamente, só com ■>
roupa que trazia vestida '.
E continua :
«... esperamos que a sr.« condessa cTEdla se
poupará e nos poupará á segunda parte d'esta mis-
são dolorosa. Tratando o assumpto dalto, não qui-
zemos discutir n'esto momento as questões propria-
mente jurídicas que no testamento se ventilam. Ha-
vemos, porem, de as acompanhar com cuidado, por
que nem podemos resignar-nos a (pie o monumento
histórico da Pena saia da corda ou da família real
portugueza, nem podemos consenti» que a rapa-
cidade LEVE, ENGLOBADOS NA HERANÇA, PRECIO-
OS GATOS í-7
(Br
Sr faltando n<> testamento de l>. Fernando,
trasladámos os artigos das Novidades, foi para
somente d*elles fixarmos ;is ultimas linhas, que
SOS OBJECTOS D'ARTE QUE PERTENCEM AO ESTADO.
(Sublinhado por nós .»
Como se vê, este libello <las Novidades, tão ter-
rivelmente formulado em seis artigos editoi
procedia com methodo, e por series — conforme a
praxe. Man grado o nosso respeito pelos bomens
d'im prensa que tractam coisas d'alto, não descon-
remos a anciedade com que esperámos a se-
cunda serie promettida, mais <> seu supple nto de
contraprovas e historias, onde facilmente <» nosso
espirito beberia as excruciantes indignações da '»pi-
nião, contra a mão <\<> finado e a cantarína. Por
desgraça, que essa segunda serie nunca appareceu
— já porque a questão houvesse tomado directri-
mciliadoras, entre as diversas parles litigantes,
lendo a sr.* condi ssa em poupar talvez ao ar-
ticulista, a tal segunda parte doesta missão dolorosa,
i ih que ••lio falia; já porque muito pouco tempo de-
; da primeira serie apparecer nas Novida
sr. Emygdio Navarro era chamado a fazer parte do<
gabinete progressista, 'i1"' subiu.
»-N os GATOS
escriptas por uni ministro, quasi valem por
declarações de gabinete.
«... não podemos consentir que a rapacidade
leve, englobados na herança, preciosos objectos
d'arte que pertencem «o Estada. . .» Ousaríamos
completar o sentido do trecho, recapitulando
o que atraz deixamos dito, quanto aos meios
empregados por D. Fernando, para a amon-
toação dos thesouros artísticos que deixou.
Assim, S. M. teria adquirido muitos dYsses
thesouros por compra, nas províncias e casas
o|iiileiilas, mas por preços que alguma vez re-
presentaram apenas a crassa ignorância da
pessoa que vendia, e o perfeito conhecimento
do vaior da obra, por banda da pessoa que
comprava — aclo esle que os tribunaes punem
com o rigor que lhe assiste, (d) S. M. teria
(d) "... La théorie de la valeur èst la règle
des esprits civilisés, et qui la mèconnait apparait
comme an étre inférieur, stupide nu déraisonnable.
Ceei est tellement vrai qu'on ftnirait par arréter un
homme qui offrirait roille franes d'une image <l'Epi-
n.ii cotée 1111 sou, et qu'on finirait par 1'enfermer
comme fou. Le seul fait de ne pas avoir la notion du
prix siíffit, dans notre société actuelle, pour faire
retirer sa capacite juridique •■[ 1'usage de sa fortune
OS i.ATOS 49
ainda adquirido alguns, ;i titulo de simples
deposito, oomo no caso do quadro de Holbein,
que o snr. Rodrigues de Freitas verbera. Fi-
nalmente, haveria deslocado outros, sem au-
ctorisação nem direito, dos legares em que
ellee estavam, como por exemplo os Lucca
delia Robia do convento da Madre de Deus,
l>;ir;i os fixar nos seus salões da Pena e das
Necessidades, o que também constitue deli-
cio grave, e de sanha a fazer figurar na parte
de policia, qualquer desgraçado das ruas que
o commettesse.
Por consequência, as collecções d'elle per-
tencem-nos, são aossas; cumpre revindical-as
para a posse do Estado, e fazer d'ellas um nu-
cl Iii museu, indispensável não somente á
ostituição da historia portugueza, e ao es-
ludo da arte < • i \ i I e religiosa dos nossos gran-
à um bomme, en toate aatre ciroonstance eatimé ca-
pable mème dana lea aaaembléea parle-
meotairefl >-t de donner <!<•> loia a<» pays.
i i - ôc momiates detona lea temps et de tona les
d'Adam Smitb à Bastiat, et de Ricardo a J.-B.
S;iv. n BOnt I -aLtus sur 06 temia : la définitlOD de
la valtur. < » 1 1 n'ett poa encore arrivé á troover use
formule nre, • laire et precise. La vateor eat tonl à
i
;,(! os GATOS
des séculos— o que é o passado — senão lam-
bem á reorganisação do ensino artístico o in-
dustrial,—*» que é o futuro.
É forçoso aão dentar sahir do paiz nem
uma só das peças que compõem aquetias col-
lecções; evitar os leilões, que nol-as disper-
sariam pelas garras dos l)ric-á-l»rae< juistas de
todo o mundo, que estão á espreita ; e adqui-
ril-as em massa, quer pela aceào dos tribunaes,
quer por uma compra amigável, estabelecida
em cálculos lícitos, e paga por exemplo com
o dinheiro d'uma loteria patrocinada pelo Es-
tado.
A fundação d'um museu dYsla ordem, não
é hoje um simples luxo em paiz nenhum, mas
o repositório de motivos omamentaes, d'ins-
pirações (Farte pratica, supérflua ou familiar,
simplesmente exótica ou applicada ás indus-
la iois 1'utilité d'un objet particulier par rapport à
,m individu, ''i enmèmetempslapropriétéd'écban-
ger cet objet contre un autre d'une atilité sesabla-
ble. AopremieralM.nl, ['uiilité semblerait oréeraíule
la valeur et former L'étiage auquel cet objet peut
monter: la valeur d'an objet est dane toujoura rela-
tive, ainsi mi puita a moitíé tari, une maigre sour-
ce dans les plaines d'Algérie ont plus de valeur
06 GATOS :»|
tii;i<. ao qual deva prender-se o ensino offici-
nal, que lança os povoe no caminho da pros-
peridade e da fortuna. K necessário comple-
tar :i obra ihs escolas indnstriaes, fundadas
por Aguiar, pondo-lhe por cupnla um museu
d'aquelles, organisado segundo os planos do
South-Kensington.
Para se imaginar o que esse Sout-Ketmn-
gton seja, bastará dizer que elle contem para
mais de trinta milhões d'objectos d'arte, au-
thenticos e inéditos, de todas as epochas, gé-
neros, paizes e destinos; e um mimem ainda
maior de livros, estampas e manuscriptos,
cathalogados com methodo; e outros tantos
milhões de modelos d'arte industrial — e que
tudo isto faz annualmente ;i viagem dos gran-
des centros manufactureiros e estudiosos d'In-
giaterra, em series combinadas, que um em-
• luiiii abondanl ruisseaa dana Pile <!«• K rance: un
bifteck :'i bord da radeaa <!<• la Méduse valait plus
cher 'i"'»" diamant. Cest lararetéqui íntervient,
oompliquée da déslr. Ces deax mobiles ont an role
actif dana Ia ratear dea oeavres d'art Lea objets ar-
tisti<|iif> i»nt um caractere d'utilité incontestable pour
céus qni leaachètent, paiaqa'ila y trouvent desjouis*
sances cérébrales, dea modeles, dea stimulanta, des
52 OS GATOS
pi jgado do museu acompanha, com ordem de
preleccionar sobre o destino dos objectos que
passeia. Museus análogos foram estabelecidos,
em .Moscou, Vienna d'Austria, Berlim e S.
Petersburgo, ha muito tempo. Em 1885, dias
antes do jornal L'Ari, propor uma subscripção
publica em Paris, para a ereação d'um Musée
Arte Decoratifs, Ph. Burty escrevia estas
palavras :
"La France attend encore im musée analogue
au SOUTH-KENSINGTON. Lorsqu'eUe le tentero,
malgré les richesses dispersées dcms ses différentes
collections nationales, il será foreément bien in-
complet. Les étrangers ont ecrémé tout ce qui est
d'un interet supérieur, et la coneurrence a amené
les surencheres ruim uses. . .„
o museu de Paris foi creado em 1887, e
todos conhecem a historia da sua interferência
moj cus d'enseigne nt, ou tout simplement des oc-
casions ile savourer 1'orgueil de la possession et de
faire des enyieux. La science économique constate
les faits, .-nissi bien psychologiques «i1"' matériels,
sans l<-s apprécier au point de vue moral...»
(E. Lepelletier, artigo Justice dans Vart, do Echo
de Paris.)
OS GA ! - I
industrias francezas, que vem de dar na
Exposição uma tão brilhante prova <le vitali-
dade.
Th. Burty queixa-se dos estrangeiros que
expoliavara a França, pom dinheiro nas mãos,
dos seus thesouros. Pe quem nos queixaremos
nós então!?.,. Estrangeiros e nacionaes —
mais nacionaes agora do que estrangeiros —
avançando em quadrilhas, teem roubado in-
famemente o paiz das suas melhores alfaias e
bijoitx, i isto "'iii plena inania dos governos,
cujos membros condescendem por vezes, ver-
dade seja, a ter no roubo a parte do leão. E
quanto mais a fundação <1 um museu d
ornamental nos for tardando, tanto maiores
desfalques se hão-de fazer no pouco que nos
resta. Ás collccções de D. Fernando, umi
securas, viriam juntar-se os destroçados espó-
lios dos muitos conventos de freiras que i
fechando, ou fecharão, em breves «lias as suas
portas; e é provável que todos estes ilexpojos
reunidos lograssem dar de si um basar ainda
vasto, <!•• formosas ."i-.i-.
54
os GATOS
Só no districtpde Lisboa, conventos fecha-
dos contamos este anuo d' oito a nove ; e alguns
antigos, com tradicções históricas, fundações
de princezas, e restos de sumptuosidades devi-
das ao favor de reis e de rainhas. Em quasi
todos, sem que se soubesse em globo O qim
continham, era voz publica haver trabalhos
d'arte, em talhas, colchas, retábulos, lavran-
laria artística, mobílias, poterie$} estatuetas, e
azulejos: tudo restos d'opulencias passadas,
que os capellães-administradores, e as madres,
instadas por parentes, por funccionarios civis,
ou por simples trampoliueiros, foram vendendo
(>S (iATOS 55
.ilcavez dos tempos, por mn quasi nada mais
de tuita e meia. (e)
Um nosso amigo, que foi outro <lia ao
mosteiro de Santa .Maria d' Almoster, casa de
penitencia onde foram acabar infantas e man-
cebas de reis, e ainda aqui ha trinta annos
atolhada de preciosidades caras, voltou de lá
com ;i indignação inflada nas palavras, e ba-
rafustando contra o desleixo das auetoridades
que deixaram roubar estupidamente os san-
ctuarios, retalhar as pinturas, fazer fogueiras
com as estatuas dos santos e os cotomnellos
das capellas; b pennittiram, senão coUabora-
ram, nos roubos e salvagerias que vieram a
tornar aquella maravilhosa casa a'uma pocilga
de camponezes alvares, de sachristas gatunos,
(e) Se nos não falha a memoria, fez-se em 1868
om inventario geral aos conventos de religiosas.
Comparando os espólios d'agoracom as listas d'a-
quelle, fácil seria calcular o que Boi desviado, para
em seguida deitar a policia a rabo .los larápios. Que
governo ousaria porém vibrar esta justiça, sem
afoeinhar na escadaria dos paços, nas collecções
dos ricos, e ua desboora de muitos crismados por
ahi de veoeraveisl
56
OS GATOS
e de regedores leiloeiros e canalhas. De quando
em quando apparecia por Lá um d'estes velhos
-raves, d'oculos, diplomados pela Academia,
pela sociedade dos archeologos, ou pela com-
missão protectora dos monumentos, o qual a
titulo de salvai- a arte, trazia cemsigo o que
adregava, esquecendo-ae, poraffazeres, de res-
tituir essa colheita ás sociedades sal. ias que o
tinham commissionado.
.\'uni mosteiro de Beja, antiquisskno, cuja
fachada gothica, posta no alto «ruma escada-
ria de pedra, concita o forasteiro á contempla-
ção embevecida, conseraram-se, me disseram,
por muitos annos, preciosas recordações do
velho tempo. As ultimas freiras que lá houve,
já um pouco secularisadas pelos pagodes que
D. João v mandava ensinar ás suas colle^as
d'Odivellas, quando os amantes massadosnão
vinham ás entrevistas nocturnas, expediam-
Ihes por uma alcoviteira, sob a forma de brin-
de, algumas das bellas curiosidades do mos-
teiro, baixos relevos, colgaduras, trypticos,
gomis, painéis, e peças de mobília, em lermos
d'acenderem a carne aos machos lassos, pela
espórtula da bugiganga, paga adeantada. Ulti-
mamente, houve lá uma abbadessa, oavaquea-
OS 6 VtOS ."»/
dom dengosa e emérita magana, que convi-
dava oa ;ili<>s funccionarios civis a alegres me-
rendas* òYonde s.ihi;i bêbeda e Baltona, a
acompanhar no cravo versos de Bocage.
Conheci um secretario geral que lhe apa-
nhou magnificas prebendas, e um monsenhor,
bispo quasi, que não desdenhava fazer sentir
;i freira rábida, nas occasiões <l«i satyriase, o
quanto lhe agradaria avolumar a sua colteção,
com uma "li outra peça artística do convento.
\vxim foram abalando da casa as belias coi-
sas; creio que não lia em Beja homem ne-
nhum de setenta annos, que não possua no
ses gabinete, em paga d'uma noite, alguma re-
cordação da zorra professa.
Todo o Alemtejo baixo, na zf >n;i districtal
d*entre Évora e Beja, conhece um erudito
mazorro, estúpido e rapace, que unis d'uma
vei tem figurado em commissões de historia
c archeologia. Esse donato reles, que uma
academia e um governo, mais reles ainda, se
não envergonharam d'enviar ;n> desempenho
de missões de confiança, ••num inquéritos d'al-
faias em igrejas * I < - província, constatações il<'
relíquias mortuárias, relatórios d'arte e scien-
<-i:i histórica, ete., deixou pelos sítios de passa-
-xS OS (i.\Ti>S
gem a reputação (rum homem sem escrúpulos,
o mais cynicamente deshonesto de quantos mo-
nos fardados os governos costumam enviar ao
encontro das coisas a que não dão impor-
tância.
De todos os inventários que esse homem
lá fez, pelos conventos, revertia metade aos
caixotins do seu museu particular, intimidando
descaradamente a timidez das monjas e a bes-
tialidade dos administradores de concelho, ne-
gociando á má cara as peças que lhe recusa-
vam, e justificando enfim por toda a parte a
reputação d'um velho tonto, abraçado á velha-
caria d um gatuno exhaustinado. Tem um mu-
seu riquíssimo, este mariola, que fui sempre
pobre, e nunca esteve prezo, e possue a con-
sideração <le gregos e troianos. E com elle,
outros eruditos que fustigam na imprensa o
abandono dos monumentos, a pobreza dos mu-
seus, e ;i selvageria do povo, vão accumulando
á sombra das commissões que usufruem, èrtc-
à-braca roubados, indiscutivelmente roubados,
sem <pie uni ministro austero lhes peca contas
da villania com (pie elles se locupletam. Tod;i
a gente conhece ;i historia d' uns azulejos ce-
lebres, que um architecto possue nas suas col-
OS GATOS 59
lecções, e a d umas talhas de capella antiga,
que um funcckmario bestado arrematou por
20$000 reis, para a decoração d'uma casa de
campo. Querem mais factos?
Um cirurgião de cunho, amigo meu, costu-
mava comprar ;i um brfoú-braequistã hespa-
nhol, bocados d'arte com que ia ornamentando,
petit-i*petit, a sua rasa de residência. Aconte-
ceu comprar elle ae hespanhol umas cadeiras
de pau santo, trabalhadas; e tempos depois,
ao voltar do jardim zoológico, uma tarde, o
hespanhol que apparece. . . Havia entre os dois
pendente o contracto (ruma esculptura em
marfim, que obrigou o medico a acompanhar
o espertalhão. E c o o meu amigo passava
por mu convento fechado, o outro, súbito :
— Lembra-se V. Kx.;i d'aqueltas cadeiras?
Pertenciam aqui a este convento; comprei-as
cu ;i abbadessa. . . entravamos lá de coite, ves-
tidos de padres; a fazer negocio.
Por occasião de morrer o patriarcha Igna-
cio, antecessor do actual, desappareceu de S.
Vicente um quadro gothico, onde, n'um grupo
ajoelhado, se via um retrato do infante D. Hen-
rique, que passava por authentico. Esse qua-
dro está hoje na galeria d'ura titular Bnaucei-
(»(l 08 GATOS
ro, e ninguém lhe vae perguntar como foi que
elle o adquiriu. Já sol» o fcemporado do pa-
triarcha actual, roubaram <lc S. Vicente um
tapete persa, magnifico, que veio a sim- vendi-
do por 5:000 n'uma loja d'adelo, e está actual-
mente no gabinete de trabalho d'um homem
muito conhecido em Lisboa. Querem ainda
mais? Vão visitai- um dia os armazéns d'anti-
guidades de Lisboa ; e fmgindo-se interessa-
dos perante os objectos de caracter religioso
([lio virem, inquiram do judeu vendilhão a his-
toria d'elles.
Lá saberão que ha câpellães que vem á
noitinha com embrulhos nas algibeiras anaes
da sobrecasaca, negociar objectos de culto,
rolos de leias com pinturas de santos, frou-
taes o cazulas, miniaturas, pequeninas esta-
tuetas e vasos preciosos, por couta das freiras
que liquidam, e de conventos fechados aonde
o governo ainda não mandou fazer arrolamen-
tos.
0 museu das Janellas Verdes é pobre? A
Bibliothecá Publica está em risco de não ad-
quirir a folleccão Cifka, por falta d'um conto
e oitocentos (pie a pague aos herdeiros do col-
leccionador? O governo não tem dinheiro para
OS GATOS
Hl
acqui«çõe8? Não ha colleeções completas d'ar-
te industrial, religiosa, domestica, ornamen-
tal? Poderá! Sc as colleeções do paiz estão
sendo averbadas a beneficio dos herdeiros de
D. Fernando! Sc os commissarios enviados
aos inquéritos dos conventos, não zelam como
• levem a arrecadação <l<»s espólios, nem pro-
curam saber para onde se somem as coisas
que faltam ! Sc o paço d'Ajuda regorgita de
coisas desviadas do seu logar! Se os funecio-
aarios graúdos espreitam ;i agonia das monjas
Qonagenarias, para irem elles mesmos, marcar
as peças que desejam recambiar para os seus
palácios !
E é por isso que os Grillos fecham e não
se apura <lc lá coisa nenhuma de valor, para
auseus. Que a Estrella fecha, e o encarre-
i de trazer para a Academia objectos d*ar-
te, só encontra nos muros quadros reles, la-
vrantarias sornas, e paramentos banaes.
E em Santa Martha e na Esperança, e por
todos os mosteiros sellados, a mesma penúria,
a mesma pobreza, e a mesma abominável pou-
ca vergonha.
— Aqui (Tel-rei! isto é uma liquidação ge-
ral nos bens do povo; om saque trinta vezes
62
os GATOS
mais vil que o de Junot; uma epopeia de fur-
to, mais audaciosa do que a historia celebre
d'AUi-Baba, onde lambem figuram cavernas de
riquezas, um poderoso chefe, e quarenta la?
drões. Morreu o chefe, as preciosidades foram
arrola-las, mas os quarenta ladrões multipli-
(•aram-sc, e por alii continuam a saquear ali'
ao fim.
Movidos pelos alarmantes boatos d'essas
vendas fraudulentas, dYssas manhosas caça-
rias feitas por agentes suspeitos, ao Irem cul-
tual dos nossos templos, e ás baixellas e ador-
nos das rasas históricas necessitadas, dois
deputados ollereceram ao parlamento um pro-
jecto de lei, em que se prescreviam grossas
taxas dmnposto aos objectos d'arte que emi-
grassem do paiz.
Ora, deveremos dizer que uma semelhan-
te proposta, posto sincera lio intuito, lia-de
88 6AT8S 69
ser sempre incompleta nos resultados que pre-
tende.
Efe feito, não derivando ella d'um plano de
legislação que abranja todos <>s casos, fica de
>i impotente, a quando muito fera mal ;n»s
Hambrugers, ;i<>s agentes d'Ephrussi, dos Ro-
tschilds c «los Van-der-Bildt, que n'esta ultima
phase da dqringolade artística que vimos des-
crevendo, não passam e?uns inimigos nossos,
subalternos. Depois, sendo taes vendas feitas
em segredo, podendo ;i maior parte dos obje-
ctos d'arte occultar-se em pequenos volumes
de bagagem, e não havendo (iscalisacão rigo-
rosa sobre os volumes que sabem do paiz,
como é que o imposto aconselhado pelos dois
parlamentares, ha-de eobrar-se?
0 grande mal não vem agora dos compra-
dores estrangeiros: vem dos gatunos indíge-
nas, <l;i cobardia e da ignorância dos ministros,
incapazes de pedirem contas aos salafrários que
nos defraudam, <i emfim <1<is abusos da in<>-
narchia, que n'este rama se ha mostrado, já
dissemos, d'uma velhacaria incomparável. Êíão
desse ella o exemplo <l«' larga data, <i nos sa-
beríamos se os servidores graduados se arris-
cavam a andar por Odivellas arrancando os
64 08 GATOS
azulejos do claustro^ peto Alemtejo extór*
quindo baixos-relevos ás freiras, e pela Beira
Alta fazendo mão baixa nos celumnellos de
talha dos sanctuarios.
O governo de eerto tem eommissarios es*
portuládos paca a (iscalisação dos edifícios que
lhe pertencem. Que diabo faz a chamada Cóm-
missão dos Monumentos? A chamada Academia
das Bellas-Artes > A Sociedade promotora das
ditas/ A dos ArcheoJogos / A dos Architectos?
E a mirabolante Commissão artística da Cama-
rá Municipal t
Com foros d^gremiações patrocinadas pelo
Estado, ou com simples cédulas de sociedades
particulares, aquellas enfermarias de somuam-
bulos, de derreados, de preguiçosos e de pe-
dantes, tinham obrigação de regular entre si
a policia dos monumentos, do lhes vigiar ciu-
mentamente OS valores, e de se auxiliarem no
procurar dos objectos extraviados ou extor-
quidos—isto por dever de fundação ou por
simples fervor de patriotismo — e nada fazem!
Ninguém se importa. Naturalmente os das liei-
las Artes fazem costas, em quanto os dos .Mo-
mimentos fazem habilidades; e os da Archeo-
Jogia fazem escovinhas, emquantoos da Cama-
os gatos 65
r.i Municipal fazem concursos de pintura his-
tórica. — Sucia de mostrengos, acephalos e
inermes, cuja indifferenca criminosa infunde
uma tristissima ideia da austeridade cívica.
individual <>n collectiva, dos funccionarios do
qosso paiz !
lios sele conventos, ou oito, fechados du-
rante os últimos mezes, querem s;il>iic o que
o delegado il<» governo conseguiu apurar para
o» museus ? Nada.
n bric-á-brac das Janellas Verdes, que era
um punhado de loiças, esmaltes e tabaquei-
ras, foi adquirido no Luiz da Costa por
2:800$000 reis, ainda no tempo do marquez
de Souza Holstein; e d'então para cá, em quasi
nada ha sido acerescentado ! Morre a ultima
freira d'um recolhimento. . . quand lelega-
do do museu lá chega, ou já não encontra nada
que arrolar, ou recolhe apenas bugigangas e
tarecos velhos, sem valor — não sendo raro
que mesmo d'estes, a quantidade baixe, não
jabe entre mãos de quem, no trajecto d'uma
i para a outra.
66
(ts GATOS
Ao leitor enausea a lista dé proscripção
desdobrada por nós ao travez d'este fascículo,
que melhor soaria aos seus ócios, num cas-
calhar de trocas e piadas.
Haja paciência: o escarneo virá: mas já
lhe promettemos publicar todas as denuncias
provadas, que adregue de nos endereçar sobre
a questão dos museus nacionaes. Chega uma
hora difficil em que, sob pena d'um naufrá-
gio geral, é necessário corrermos a pon-
tapés os intrujões que se apoderaram dos ci-
mos, arrogando-se o titulo de chefes e dicta-
dores, em todos os ramos da administração e
da vida publica, e antepondo ao bem do Es-
tado a sua anciã de gosos e riquezas, trahida
em toda a linha por um banditismo que nem
sequer já perde tempo em disfarçar-se !
Porém esta nossa jeremiada vae longa, e
compilaremos rápido os pontos principaes da
exposição.
ns GATOS
67
Não temos um museu d*artes decorativas,
nem em embrião sequer, e é indispensável
creal-o, se com alguma seriedade cuidamos
de dar hausto, pelo levantamento do nivel es-
thetico quer no consummidor, quer no pro-
ductor, ;ios nossos antigos centros d'actividade
industrial. Não temos uma collecção de mo-
veis d'arte a que os artífices ignorantes se re-
portem, nós que possuímos dos primeiros
marceneiros e restauradores de moveis <lu
mundo. Não temos um gabinete de ourivesa-
rias, constituído com exemplares das nossas
officinas da Renascença, nós que ainda hoje
executamos com uma perfeição manual sur-
prehendente, os trabalhos mais arriscados de
lavrantaria e filigranagem. Senhores dos pri-
meiros canteiros do mundo, não possuímos,
sob a forma de collecções tf atelier, junto ;n»s
monumentos, exemplares catalogados consoan-
te ;i^ epochas, os destinos, e as deducções
ornamentistas derivadas das nervuras geraes
iriiin typo d'architectura civil ou religiosa.
Não ha collecções publicas d'estofos, de
rendas, e de bordados, n'um paiz que tem as
tecedeiras barbaras e geniaes das províncias
do Minho e Traz-os-Montes, as rendilheiras de
68 <»^ GATOS
Peniche e de Setúbal, e as maravilhosas bor-
dadoras das ilhas «los Acures e de certas po-
voações ruraes do Alemtejo. Nas aossas velhas
olarias d'Estremoz e das ilhas, onde a esta-
gnação multi-secular dos processos de fabrico,
produziu o milagre de se haverem mantido
entre as mãos d'esses rudes louceiros, sem
alteração, todas as linhas do etrusco, o mais
correcto; nas velhas fabricas de faiança das
Caldas da Rainha, que ha duzentos annos da-
vam o vidrado d'uma maneira unira, hoje per-
dida : nas serralherias dos arredores de Gui-
marães, onde camponios broncos ainda hoje
produzem á forja, sem instrumentos, ferragens
comparáveis ás melhores da Renascença fran-
Ceza e italiana — em todos estes fóCOS extiu-
ctos da arte industrial portugueza, não ha
um museu onde os arlistas estudem a archeo-
logia ilas suas profissões, as evoluções do pro-
diiclo, as intersecções e as influencias soffri-
das por suggestão estrangeira — ou sequer uma
COÍleCÇãO centra] que lhes expessa esses mo-
delos, por viagens circulatórias, como ;is que
o Kensington promove atravez as regiões of-
ficinaes da Gran-Bretanha.
É indispensável pois creir eSse museu, c
OS GATOS r,<''
por influencia d'elle depois, museus com sede
junto às escolas industriaes que estão funda-
das, mas onde os exemplares se renovem a
prazo, n'uma deslocação periódica e fructife-
ra. (f) <>s nirins práticos de havel-o, são em
I rjm dos primeiros actos do actual patriarcha
de Lisboa foi dirigir ao ministro da justiça e cultos,
um relatório muitissimo sensato, em que se propu-
nha a fundação de museus d'arte religiosa, n?
i(. do patriarchado, mas também na de todos
osbispadose arcebispados do paiz. Estes museus
exhibiriam os objectos pertencentes ás residências
prelaticias, e assim todas as alfaias e obras d'arte
das i( Lbricasannexas. Cada um d'ellesteria
um conservador estipendiado modestamente, e cre-
mos que ás 3uas collecções iria revertendoo espolio
dos conventos, na proporção em que estes fossem
acabando.
Escuso dizer qual tenha sido a resposta do go-
verno. Não lias ia dinheiro! «> sr. Silveira da Motta,
director da repartição d'estatistica, e erudito apai-
xonado pelas velhas coisas, declarou mesmo aosr.
encarregava de crear verba para cus-
teio dos museus religiosos, sem sensível augmento
d'encargos paia o Estado. Entanto, apesar d'esta
vontade, a questão foi atirada de vez ao esque-
cimento.
70 OS CA TOS
primeiro logar adquirir as collecções de J).
Fernando (</); e em segundo lançar mão do
que ha pelos conventos, palácios e quaesquer
outros edifícios públicos desoccupados.
Para a realisação do primeiro desideratum
lemos a chicana, que lia de pôr de nosso lado
a justiça, desde que se provem os poucos es-
crúpulos de S. M. o rei finado, o que com boa
vontade não ha-de ser talvez difficil ; ou recu-
sada a acção judicial, lançaríamos mão da
compra em massa das collecções, com dinhei-
ro obtido, já dissemos, por meio d uma gran-
fgj È uma das maiores, mais variadas e mais
completas que andam por mãos de particulares. A
secção das loiças é maravilhosa, pelos pratos árabes
que contem, e pelas fayanças portuguezas, allemãs
<• italianas. Em anuas, mobílias, bronzes, Saxes, é
também riquíssima; e assim em quadros antigos,
de auetores portuguezes e allemães, mencionada-
mente da idade gothica. A collecção de gravuras ii-
gura no inventario com um valor approximadn de
-13:000#00o réis, e consta de dezesete mil exempla-
res, dos quaes muitos raríssimos, assignados por
Durer, Rerabrandt, Callot, Ostade, Marco António,
Morgher, Vanteuil, Edelvisk, Drevet, Dirk-Stoop, Lu-
cas de Leyde, Goltzius, etc.
os GATOS
71
,1,. Loteria, exclusivamente consagrada ao ensi-
no artístico, como a da União Central das
Artes Decorativas, de Paris, que produziu einco
milhões de francos d'uma só vez. Lançado <>
museu, tractar-se-hia de o ir enriquecendo, a
pouco e pouco. E por que meios? Um já dis-
semos: a entrada immediata, nas salas das
Janellas Verdes, de todos os objectos de cara-
racter artístico sobre que o Estado tivesse di-
reitos reconhecidos, e que se achem dessimi-
Qados boje pelos edifícios públicos sem fun-
cção.
Dos outros meios, nlii vão alguns que nos
occorrera :
I.- — Compra de collecções particulares ne-
gociáveis, em detalhe ou em globo, cujos
proprietários desde agora dariam ao Estado
condições de preferencia, posto o projecto de
lei .los snrs. Fuschini e Consiglieri.
2>( _ Requisições d'objectos por troca, com
particulares e museus estrangeiros, de peças
que os nossos tivessem repetidas.
8.o_Acquisições decopiase modelos d*obje-
ctos (mencionadamente os que digam respeito
;-, arte portugueza e peninsular) «pie figurem
em museus estrangeiros, e de cuja reprodu-
"ri os i; aios
cção c estudo se possa tirar proveito pu-
blico.
i.° — Propostas de compra ás confrarias,
bospitaes, misericórdias, juntas de parochia,
etc., d'objectos d'arte que por sua antiguida-
de ou mau estado de conservação, hajam sido
desviados dos seus respectivos serviços e des-
tinos, e que constituindo exemplares dignos
d'apreço, andem pelos thesouros d'aquelks
corporações em eminente risco de perda oa
de ruina (h).
5.° Vigiar assiduamente as coisas que não
podessem logo reverter ao Estado, evitando
por Iodas as formas a sua dispersão, desde
ensinar o publico a zelar elle mesmo a con-
servação d'esses lhe/ouros, ale definir as
(h) Exemplo: as magnificas lanternas de prata
da igreja das Mercês, cinzeladas n'um estylo tão
puro como elegante, e muitas outras alfaias d'esta
igreja. Exemplo : as pinturas gothicas, sobre madei-
ra, que se guardam n um escaninho ignóbil da Ma-
dre de Deus, aos ratos, á poeira, e que o padre
Coentro mostra aos raros visitantes que se dignam
procural-o. Exemplo: um grandíssimo numero de
quadros, mobílias, e alfaias, que fazem parte do trem
patriarchalj etc.
OS GATOS 73
responsabilidades dos depositários, em bases
que (garantissem ao Estado a perfeita manu-
tenção e conservação dos objectos d'arte, e as-
sim .1 sua revertencia futura aos museus na-
cionaes.
Entre os meios práticos de conseguir esta
policia, mencionaríamos ainda — exposições
permanentes, n<> vestiário dos templos, de to-
dos os objectos d'arte que as uossas institui-
religiosas e pias possuam, e onde <i i»ii-
blico se acostume ;i ir reconhece 1-os, estudal-os,
e apreciar-lhes <> valor — fundação d'um grande
cathalogo geral das obras d'arte existentes no
paiz, já por mãos de particulares, já por mãos
de corporações, illustrado a grandes phototy-
pias, e contendo summariamente a biographia
de cada objecto, o resumo dos seus caracteres
pstheticos, menção d'escola eauthor, e emflm
,i maior somma de dados materiaes para um
computo rápido das nossas riquezas artísticas
— educação do gosto publico por via <l<i pu-
blicações análogas às da Biblioteque de l\
çnemeni de* Beaux Arts, de Paris, feitas por
conta da Camará Municipal ou da direcção ge-
ral «I"- museus, segundo nm plantologico, e
postas .1 concurso entre os escriptores de es-
i * os GATOS
pecialidade — e finalmente, reforma completa
no ensino das Bellas Artes, attendendp-se o
mais possível ao estudo do desenho, tão des-
curado em S. Francisco, e chamando-se á re-
gência dos cursos, mestres conhecedores da
sua arte, muito embora contractados no es-
trangeiro, (i)
(i) «Les expositions universelles on pose dans
tout sa rigueur, devant le public, la question de
l'enseignement pratique du dessin. En presence des
peuves éclatantes du concours apporté par cet ensei-
gnement á toutes les industries qui exigent un ef-
fort de l'imagination et une exécution supérieure,
les gouveruements de L'Europe ont compris qu'il fal-
lait 1'associer largement á celui des lettres et des
sciences.. .Des méthodes techniques ont eté propo-
sées á 1'éffet diuitier le plus grand nombre possi-
ble d'enfants aux élements du dessin et de Leur met-
tre ainsi dans la main un outil précieuxdans quel-
que carriére qu'ils abordent. II ne serait pas juste
d'attribuer ;i notre temps seu! Ia préoecupation de
faire, par 1'habitude du dessin, des mains plusihab-
(is GATOS y>
Desde que o sentimento do bello estivesse
na multidão, em via de cultura, veríamos
aquella exercer ella mesma sobre as obras
d'arte uma vigilância sollicita, e faculdades af-
fectivas que haviam d'obstar ao descaminho
,1,. muitos objectos para fora do reino. Veja-se
o exemplo de Paris, no Hotel Druot, ha mez
e meio, quando a collecção Sécretau disper-
sou! Entre as telas d'esse oiuseu havia <> án-
gdus, de Millet, scena emotiva, pintada n'uma
gamma de tons sombrios e fortes, que o pin-
tor vendera em 1867 a M. Feydeau por 1,800
; des v.-.ix pias judieieux. Les corporations,
jusqu'á la fin do kviii siéele, enseignaient a les
ouvriere le dessin professionel. Le grand siéele wni,
aaquel rien n'a ecbappé de ee qui peut former des
citoyens, avait cQmprise et agitée cette question ..
Léon ,|,. Laborde, dana son rapporl Bur la premiére
Esposition universelle de Londres, insista avec éner-
,,- ce point capitel: multiplier l'ins4raction des
artisans, entraver les faosses vocations. Cesl toul
le contraire de ceque proclame la doctrine académi-
que. Dansson livre Union de» arte eí de Vindustrie, il
ecrivatt de fins ta onze siécles de distaoce, U será
une loi qni ordonnera qu' en France, doréna-
vant, tont le monde saura dessíner, comi n 787,
Charlemagnie jetait, á 1'étonnement de ses vastes
/«> (ts CÍÀTOS
francos, que Feydeau vendeu em ISTO a um
Pierre Blanc por .'{,000, passando-a este por
5,000 a um certo Vau Pràet, ministro belga,
que a vendeu a outro, etc, etc. — té o Ange-
lus apparecer em 1881 na venda Jonh Wilson,
por 160,000 francos, e entrar para o Louvre
agora, peia quantia inverosímil de 553,000.
No leilão Secretan, muitos americanos e iu-
giezes vindos expressamente das suas cidades,
começaram a picar o quadro, decididos a cin-
polgal-o aos naturaes. Por iniciativa d' Antonin
Prousí formou-se immediatamente alli, nas
Etats, nu simple décret qui ordonnait qu' a partir
de cette dattechacunsutlire. La France de nosjours
peut voir avec douleur 1'ignorance de ses enfants
dans cette langue naturelle qui est la representatiou
iiaturelledes objects. » II conclui á Fenseignement du
dessin assimile strictement á celui de l'écriture. Cest
en effect ee qui se passe chez un peuple de d'ex-
trême Orient que nous traitons cavaliérement de
barbare, chez les Japonais.
Tout le monde y sait lire, écrire etdessiner. C est
avec le pinceau que les ambassadeura qui nous ont
visites récemment prenaient le plus souvent note
des objects qui frappaient leur attention.»
/'A. Burty (maitres et petits-maitres)
os GATOS ' i
salas do Hotel, uma sociedade patriótica, que
linha por fim rehaver o Angelus para o Lou-
vre, não importa a que preço. E essa socie-
dade instantânea* nascida d'uma embriaguez
(l'arte apenas perceptível em Portugal, arran-
cou o Millel das mãos estrangeiras, por um
preço archi-doido é certo, mas no meio da
mais phrenetica ovação que talvez se tenha
feito a uma pintura.
Outra vantagem do uivei esthetico subir,
seria, como succede lá fora, as doações ^obje-
ctos d'arte ao Estado, chance de que nós qua-
si por completo temos sido privados, e a que
mv nmsciis de França e d'Inglaterra devem
parte das maravilhas de que se orgulham.
Insistiríamos mais uma vez, sobre a ma-
nrii-;, ,|(. recolher os espólios das casas reli-
is. \ recolta devia fazer-se estugadamente
e porcompleto, não só nos conventos fechados,
mas em todas ;is easas conventuaes <im> llll,;l
teem gente; e fazer-se com methodo, energia,
prudência e sagacidade, escolhendo homens acti-
vos, novos, e venhamos n'isto — não coUecciona-
e8. 0 Estado carece d' alijar de si a velhada até
gora adstricta a estes serviços de confiança, e
que umas vezes por ignorância, por desma-
78 OS GATOS
zello outras, e algumas também por pouco es-
crúpulo, tem defraudado o paiz de copiosas
obras de valor.
Somos o paiz do general reformado. Á testa
de serviços em que se lia mister de braços
validos, de caberás claras, e de probidades
austeras, não raro é ver paralyticOS a difficul-
tarem O expediente, idiotas a exercei' no pessoal
pressões intoleráveis, e alipiiladores que por
desculpar as próprias rapinancias, abrem bal-
cão ás gatunices dos seus subordinados. A
contagem do mérito d'um homem, pelos ân-
uos de pascigo ás mangedouras do Estado, leva
aos cargos opíparos uma frandulagem de Mente,
(pie como os burros só tem de venerável o
orelliame, e unia ou outra vez, a assiduidade.
0 conselheiro Meiicio, espostejado em 77
nas Farpas, pelas ironias terríveis de Rama-
lho, acaso deixava então deletrear, na sua in-
significância de caguinchas, a nomeação de
commissario portuguez na Exposição Univer-
sal de 89?
Porque planaltos cortou esta figura, antes
de se alar a uma posição de tanta magnitude?
Simplesmente por este — a calvicia — sobre-
pujando esfoutro, a pontualidade.
OS G MOS
K a historia cTaquelle amanuense tísico, que
dizia aos collegas — rapaces! eu cá já podia
ser chefe de repartição, porque estou mhabi-
litado.
HL
N'outro ponto viemos sobre o costeio de
museus assim organisados, com as suas gran-
des compras de eollecções, os seus cathalogos
críticos, as suas publicações de livros d'arte,
e ;issiin o pessoal adstricto, e as viagens de
objectos atravez das escolas industriaes. Cer-
tamente que a realisaçâo d'uma tão bella obra
custa cara. Mas não pôde o governo fundar
uma loteria annual, com prémios <lc dinheiro
e obras d'arte, cujo producto convirja todo a
questões de bibliotheca e Bellas-Artes ? A
( ommissão Artística da Camará Municipal, por-
que não lama hombros á em preza, e vincula
;i sua boa vontade, se alguma tem, a esta
grande obra patriótica e alevantada ?
80 os GATOS
Na noite de 15 de julho ultimo, um portu-
guez d'apellido Valle disparou no Rio de Ja-
neiro um tiro de rewolver contra ;i carruagem
«lo imperador Pedro ti, quando este s;ilii;i do
theatro SanfAnna, acompanhado pela princeza
herdeira e a imperatriz.
o tiro perdeu-se" entre as cabeças da multi-
dão que estacionava à porta do theatro, sem
raspar chapéu OU muro, nem dar de si outro
signa! que não fosse a detonação, a qual nem
chegou a ser ouvida por Iodas as pessoas do
séquito imperial, incluindo a princeza.
Julgou-se em principio que o regicida fosse
um certo Hasslock, redactor d'um jornal re-
publicano, homem exaltado, e ao que parece
audaz, ti'1 á loucura. .Mas o delegado da policia,
Bernardino Pereira, que esfusiou nas ruas do
Ria, á mira de capturar o indigitado, ai» topar
este, recebeu d'um tal Eduardo Freitas, que
acompanhava Hasslock, e passa por amigo
particular do conde d'Eu, a denuncia de ter
sido Valle o verdadeiro auetor da tentativa.
Preso o assassino e reconhecido, a policia
interroga-o. É um rapaz imberbe quasi, de
physionomia inexpressiva, tez desbotada, e
vestiuios d'orgía na figura. Tem mau passado.
os GATOS 81
i' li/.rr dos jornaes Dão poucas vezes re-
correra, para viver, a expedientes. I>i> azedume
de aão achar na conducta medíocre que de-
seovoivera, a felicidade a que se julgaria com
direito, derivou talvez o republicanismo esiul-
i<> de que costumava lazer estardalhaço. Na
primeira entrevista com o director da policia,
<lr. Basson, Valle oega terminantemente que
seja elle o andor do crime : em caso contra-
rio, até o confessaria com orgulho, pois um
tal acto — declara — Dão faria senão nobilitar
pelo martyrio, o republicano que em terras
de Brazil o perpetrasse.
Estas declarações desmoronam-se porém,
des'que a policia chama a perguntas, pela se-
gunda vez, o regicida. E então elle confessa
que uni homem, cujo nome não disse, o con-
vidara a beber álcool num botequim, travan-
do-se entre os dois disputa accesa, no atinen-
te .i sinceridade <le convicções anti-monarchi-
cas de cada qual : onde o outro declarou ter
suspeitas de que em Valle não jogasse a alma
heróica (rum verdadeiro filho da republica.
Por aquelle tempo incendia o cognac o olhar
do rapazola, que dando murros oa meza, re-
forçava esbaforido os seus protestos de febre
«
g$ os GATOS
jacobina, emquauto o interlocutor, por contra-
prova, súbito propõe um tiro ue imperador
Pedro ii — ao que Valle accedeu, já esfuriado
em obsessões de bêbedo pimpão; Á meia noite,
os dois separam-se: é a hora de sahir gente
do theatro SanfAnna, a cuja recita o impera-
dor fora assistir, .lá 0 cedi»1 imperial aborda
o átrio, e a família do monarcha se lhe aco-
moda dentro, quando sob o látego do sota,
os muares destravam o carro, num arranco
enérgico de partida. E foi só então que Valle
desfechou, sem pontaria, como levando no tiro
,, propósito apenas do estrondo que chama-
ria sobre elle as attenções, Eazendo-lhe ganhar
a aposta, sem recorrência a derrames de san-
gue, que horrorisavam, parece, o seu espirito
inconsistente e aparvalhado.
Gomettido o feito, Valle corre atravez as
mas da cidade, sem jamais escolher as menos
frequentadas, nem procurar disfarcar-se entre
os passantes, mas delendo-se ao contrario a
cada passo, para mostrar aos conhecidos o
rewolver com o cartucho queimado, cujo des-
tino elle explica, alegre quasi, aos que se
achegam a lhe escutar os dizeres de gabazola.
OS 8ATOS 88
Estamos pois em face «ruiu regicídio pica-
resco, que salvaguardada a Ggura venerável
do monarcka brazileiro, tem diabólicos visos
de sceua encommeudada para emocionar thea*
trai mente ;i opinião, o regicida, que i<'in o
nome do nosso primeiro actor cómico, é con-
vidado á bebedeira por um personagem mys-
terioso, imiiii botequim d'alcunka romanesco,
Cafte de Londres, ao soai- a hora fatal da meia
noite.
Produz-se o tiro, que nem chega ;i ser ou-
vido por Iodas as prsso;ts da comitiva impe-
rial, não podendo o próprio andor d'elle in-
fonnar mesmo se o cartucho estaria embalado,
visto como, de carnifice que estava, nnn
sequer verificou o estado da arma «pie lhe
deram.
Aqui se deita o commissario Bernardino a
rabo d'ellc, reforçado d*um capitão que assi-
*
84 OS GATOS
gna Lyrio; e os dois d'esfusiote Lnquerem da
gentana das ruas, se acaso o regicida sinistro
alli passou.
De grupo em grupo, e esquina nu esquina,
lá vae a lei, de que é manitanço o Bernardino,
amparada na forra, que Lyrio exprime pelos
seus galões de capitão, seguindo o rastro da
fera pelos cheiretes de pólvora que por ven-
tura o cano da arma inda trescale (se outro
cheiro os não guia, muito mais fedorento e in-
dicador); e em tão boa hora caminham, que
vão aíocinhar os dois com o amigo particular do
conde d'Eu. Trava-se alarde. Bernardino viera
a farisear regicidio no republicanismo escamado
•rilasslock; Freitas porém salva o amigo da
injuria policial, produzindo a denuncia de co-
nhecer o sicário authentico . . . por signal que
ainda ha bocado vinha a brandir um rewol-
ver, rua acima, e ao passar perto dYlle, cs-
tendendo-lhe a mão, dissera até :
— Matei agora mesmo o imperador, seu
Freitas. É extraordinário como um regicidio
abre o apetite! .lá viu? . . . Vamos cear.
Ora, n'estas alturas do drama, tudo quanto
a effervencia monarchica do amigo particular
do genro, ponde fazer em desafronta á mages-
(ts GATOS 85
tade 'l" sogro imperial, foi recusar a offerta
da ceia, aão por horror á hediondez do assas-
sino que lhe fazia o convite, mas pela razão,
mais digestiva do que civica, de já ter ceado.
.Mas eil-o que vae depor ao tribunal; e diz
um jornal brazileiro do seu depoimento:
«Parece que as revelações d'Eduardo Frei-
tas são importantes, e que aão se limitou a
dizer o que viu, como também o que sabia
dos antecedentes do crime, e dos seus conse-
quentes, chegando a declarar o nome da pes-
soa a quem Adriano, depois de dados os ti-
ros, entregou o rewolver . . .»
Estranho amigo de príncipes, este Freitas
que passeia de noite com os republicanos
exaltados, e deixa fugir sem protesto os regi-
cidas, para, postado no caminho, os denun-
ciar depois aos Lyrios da iropn, e aos Bemar-
dinos esbodegados da policia! Estranho amigo
de príncipes, este que dá pormenores sobre
as conspirações tramadas contra o throno,
mas só no fim das conspirações terem gorado!
Elle sabe de tudo, conheci' tudo, os antece-
dentes do crime, o criminoso, as suas rela-
ções, as SUaS ideias, (piem lhe SUggeriu a
tentativa de i te, e quem lhe recebeu a ar-
86 08 catos
ma, depois d'essa tentativa malograda! Ea
policia, tão ávida em esquadrinhar de que
mansarda robespierriána teria sahido o re-
wolver carregado, a policia depois de o ouvir,
manda-o em paz, exactamente como faria a um
alguazil seu, ensaiado a capricho, n'este papel
de tyranno d'entremez. (k)
(k) «... Aqnella bala, disparada muito natural-
mente depois da partida do snr. D. Pedro n, muito
naturalmente disparada para o ar, serviu entretanto
paia eixo de toda a actual comedia. Ella serviu para
demonstrar o valor d'essas declarações de gente
que se offerece em holocausto á liberdade, e recla-
ma o primeiro logar somente quando se trata de fu-
gir a uma phantasmagoria d'attaque, ou a um man-
dado de prisão. Ella serviu também para que todos
os candidatos a baronias ou eommendas escovassem
os seus zelos monarchicos e as suas dedicações ao
imperador, e envergassem semelhantes vestuários
os GATOS
87
Todos conhecem a situação moral e politica
do lim/.il contemporâneo. K' a d'um povo jo-
ven, debatendo-se como um pássaro, na estrei-
ta gaiola d'um regimen caduco. Os últimos
trinta annostransformaram-no. Ks viagens abri-
ram aos homens de todas as cathegorias, hori-
sontes intérminos e profundos.
A mocidade veio á> escolas da Europa cor-
rigir os vicios da nica amollecida pelos ener-
vamentos do clima, e pela subserviência an-
cestral, herdada em hábitos timidos <i humil-
des, d'esses primeiros colonos grosseiros e
plebeus que nós lá pozémos.
De todos os ramos d^ctividade physica e
para a provisão de felicitações com que actualmen-
te andam a cumprimentar o snr. D. Pedro u.
Boa comedia! I!'»a e proveitosa para lições !.. •
que perdure toda essa comedia phantastica de regi-
ci<li>> Inspirado em reuniões secreta» ou inventado
pela policia, conform xplicar a voutade de
cada um. Não ha porém razão para fazer uma vi-
ctima, para Bervir á curiosidade publica i
colo compungente duma creança debatendo-se em
plena desgraça, e para maior gáudio de tercein
Pardal Mallet — Gazeta de ■ ju-
lho.)
88 OS GATOS
especulativa — do commercio, da sciencia, do
jornalismo, da politica e da arte — tirou o
Brazil delegados seus, <|uo envia quotidiana-
mente aos certamens de civilisação do velho
c novo mundo : e esses homens trazem ás
missões ardores insaciados, talentos cálidos,
curiosidades vividas e tenazes : e ao voltar ao
paiz, encontrando a rotina em cada braço da
especialidade professada, motejam-na, inves-
tem com ella, e por ultimo esmagain-na. Hoje,
essa vasta nação destinada a ser talvez para
o mundo, no século xx, o desdobramento d'a-
quillo que foi Portugal no século xvi, posto
não seja ainda uni compósito uniforme d'ele-
«... Se ao facto em questão applicassemos esto
critério e a hermenêutica juridico-penal, seriamos
lixados a suppor que o resumido attentado foi obra
de encommenda para reavivar a sympathia publica
pela causa monarehica e tornar odioso o partido re-
publicano.
Esse expediente, notório de uma raça sentimen-
talista como a nossa, no seio de um povo generoso
e de indole pacifica e branda como o povo brasilei-
ro, não deixaria de produzir effeito. ..»
(Quintino Bocayuva — O Paiz, artigo «Os dois
factos».)
os GATOS 69
mentos progressivos, marcha todavia a passos
de gigante para uma renascença de caracter
formidável, que ha-de comptetar-se a breve
trecho, mercê tios núcleos de civiiisação quo-
tidianamente fundados do precurso do império,
por esses innovadores que da Europa lhe che-
gam, devorados de iodas as sedes de reforma.
A sua sciencia repete as experiências e con-
firma as leis nos grandes laboratórios da Fran-
ca e d'Allemanha. V agricultura restaurasse,
amplia-se o commercio ; o capitai abre fontes
de credito, inexhauriveis, em lodos os manan-
eiaes sterlinos da Europa e da America do
Norte, d'onde jorram as grandes emprezas
d'industria, viação e alta finança. .Nascem as ar-
tes: a litteratura balbucia e tenta adaptar-se
ás formulas scientiflcas em voga, tendo na
frente uma poesia, que aparte a ingleza, é a
mais vehemente e a mais lyrica do mundo.
Porta-trombeta d'esta era nova que se res-
pira já por grande numero de cidades liia/.i-
leiras, o jornalismo transmuta-se, revestindo
a feição d'um grande campo de torneios, onde
os campeões vem luminosamente justar pelos
ideaes de liberdade, de pátria e de justiça. E
sempre que algum patriota, 0 imperador in-
96 09 8ÀT0S
cluido, eircumvaga os olhos á procura d'um
canto de terra, cuja felicidade aspirai' para o
Brazil, esse canto evocado por cada brazilei-
ro, em horas d'extasi, esse paiz modelo é sem-
pre o mesmo, os Estados-Unidos, com a mes-
ma forma de governo, o mesmo systhema
rápido e efficaz de colonisação, e o mesmo
aspecto de forra robusta e de consciência inex-
pugnável. .V hora presente, quasi se pôde di-
zer que ha no Brazil, entre os homens d'acção,
um único monarohieo, o imperador, e esse
por deveres de profissão, jamais por fé. No dia
da sua morte, a realeza, cuja actual manuten-
ção é uo Brazil simplesmente o acto de defe-
rência d um povo meigo ás caturrices dum ve-
lho philosopho bondoso, a realeza liquidará
em S. Christovam (!), vindo o d'Orleans agio-
(l) «... A situação presente e a impopularidade
do príncipe consorte, fazem-nos presentir que a ter-
ceira monarchia brazileira não tardará a vèr repro-
duzido em si o drama terrível de epie foi theatro a
França, durante e depois do reinado de Luiz \vt.
Que Deus inspire <> imperador e sua santa esposa,
fazendo-lhes entrever toda9 as tristezas, todas as
amarguras e todas as afflicções que parecem amea-
çal-os n'iniia epocha próxima!... Que os bomens
(is GATOS
íH
lár i>r';i junto do seu primo o colide de Paris,
o que talvez <> faça mais sympathico ;'i clien-
lella.
A abolição total da escravatura, eom que a
regente cuidava de sustar por longo tempo ain-
da, a invasão da ideia democrática; aabolição
não fez senão subir <> nível revolucionário, por-
que á iiiuii não recrutou complacências no parti-
do republicano, b á outra desviou da coroa os
fazendeiros, classe poderosa, privada por aquel-
I,. decreto dos serviços gratuitos de oitocentos
mil trabalhadores, e não indemnisada ao de-
pois, como pretendia, dos capitães fabulosos
que o mesmo decreto lhe arrancou.
Emquanto Pedro II andava por fora do im-
politicoe resgatem os seus erros, e qne o sen amor
ao poder desappareça perante a paixão do intei
nacional, e o devotamente á grandeza da pátria.. .1
zeta da Tarde, do Rio).
kA Republica Federativa Brasileira será porque
deve ser. Toda ;i solução do problema Be acha cir-
cumsoripta pela rida <l" soberano actual. Se l». Pe-
dro n entrevê os acontecimentos bumanoa i»'l"
prisma da intuição philoeophica que lhe atribuem,
elle será o primeiro, como ftiho da pátria, a applau-
92 OS GATOS
perio, os republicanos do Brazil, cuidando que
elle só voltasse á pátria, embalsamado, preci-
pitaram por tal forma ò movimento insurrecto,
que se chegou a temer pela segurança do Es-
tado. Tuia campanha intelligentemente condu-
zida, por homens que desmentindo a indolên-
cia lendária da terra, entrecruzavam por todos
os focos da vida civica e rural, a sua ivde te-
naz de propaganda, fazendo apostolagens nos
clubs e nas praças, nas fazendas e nas esco-
las, afizera o espirito ardente da joven nacio-
nalidade a dizer alto as suas angustias e os
seus sonhos, sem receio ás revindictas dym-
oasticas, impotentes de resto a amordaçal-a.
A ponto foi que os adeptos do turbilhão
dir do fundo da sua consciência, este despertar vi-
ril do povo generoso e grande que o protegeu quan-
do elle ci-a orphão, e que no decorrer da sua longa
vida, soube sempre testemunhar-lhe affeição e res-
peíto, apesar dos erros da sua politica, e dos maus
resultados da instituição fatal que elle representa.»
(Q. Bogayuva — Ao partido republicano brasilei-
ro, manifesto que se bem nos recorda, termina con-
vocando para .'50 d'agOSto um grande congresso fe-
deral republicano, na província de .Minas Geraes).
os GATOS
!U
revolucionário, centuplicaram de numero e
d'exaspero, graças á eloquência fogosa, barba-
ra, e um pouco emphatica, de cabecilhas como
Silva Jardim, Quintino Bocayuva, Lopes Tro-
vão, José do Patrocínio, etc.
A propaganda foi Iam rápida, enérgica e
fulgurante, que a breve trecho núcleos de sub-
versão romperam a harmonia factícia do im-
pério, quer pelos campos, quer pelas cidades
intellectuaes e commerciantes, fecundados pe-
los apóstolos videntes que dissemos ; sendo ne-
cessário que as auctoridades viessem reprimir
a eflervescencia dos ânimos, prohibindo comi-
cios, mettendo era processo jornaes e jorna-
listas, e ate valendo-se da forca armada muitas
vezes.
Desde que a realeza é pois no Brazil uma
agonia, o papel dos seus médicos -em espe-
rança, e dos seus lacaios -em esteio moral,
consistirá simplesmente cm transigir com «>
partido forte, revestindo a covardia <\<> acto
94 os GATOS
em europeis de cerimonial dymnastico, que já
nem sequer darão ao Estado um exterior da
antiga galhardia.
(» partido republicano escrevera no seu
programma a abolição total da escravatura:
veio a princeza e enfeitou com cila a sua re-
gência ! A restauração agrícola era egualmen-
le uni dos grandes problemas que a democra-
cia se propunha resolver: e o gabinete Affonso
Celso corre a empolgal-o !
Para inutilisar os galgões da onda revolu-
cionaria, o governo imperial que uão pôde
impòr-lhe diques d'ideias, manda ao seu en-
contro os esquadrões — e vem os conílictos de
Bagé, de Jundiahy, d'Itabapoana, de S. Paulo
e de .Minas (ieraes — encarrega a calumnia de
morder no calcanhar dos vencedores: e vem a
comedia do regicídio, á saliida do (healro de
SanfAnna.
Por mais que tenha feito ;t critica do Rio,
para varrei- da hombridade do actual ministé-
rio a suspeita (Testa tareada regicida, sempre
,-i opinião eonverge teimosamente a ella, por
encontrar porto bloqueado a qualquer outra
hypothese plausível, .lámais alguém pensou no
Brazil em attribuir o tiro d' Adriano do Vallea
os GATOS 95
suggestòes republicanas. A democracia brazn
leira bate de frente, sem recorrer como a nos-
sa, a chicanas, nem como a bespanhola, a liau-
ditismos. (»0
Ninguém pensa tão pouco em explicar o
tiro pela impulsão d'um degenerado e d'um
maníaco. Ninguém o explica por determinação
expontânea d'um arrebatado, filha d'um exas-
pero d'ideias de natureza politica ou philoso-
phica. E aquelle desconhecido que dá cognac
antes de suggerir a tentativa de morte ao ra-
pazola. . • aquelle conde d'Eu que faz postar
denunciantes no caminho <l<>s Bernardinos e
dos Ly rios... a teimosia «la policia em tor-
oar o assassínio cúmplice d'uma conspiração
republicana... todos estes episódios convém
.. . Seja qual IV» r a intensidade e a maivlia
erada da propaganda republicana, essa propa-
ganda visa um ideal politico e não se apoia senão
em princípios.
Na presumpção de interpretar os sentimentos
do partido politico que tenho a honra de represen-
tar, e fallando com a auetoridade que decorre do
mandato de que me acho investido, pi curar
que na propaganda do partido republicano não en-
►mo elemento, nem isto seria tolerado, o desi-
96 OS GATOS
gem diabolicamente a creditar a existência
d'uma pantomima ministro-policial, mal cons-
truída em verdade, e ainda peormente execu-
ta.la.
Logo em seguida ao attentado, o imperador
foi alvo d'ovações que se repetiram, no dia
seguinte e nos mais, por banda de Iodas as
colónias e coílectividades particulares e publi-
cas do império. Pedro 11 correspondia aos tes-
temunhos d'apreço com a sua habitual simple-
/a de grande velho conhecedor da giria dos
homens, contrafeita no intimo por servir de
joguete a estes passes forains do seu governo.
A frieza que elle apparentou desde a primeira
hora do crime, significa não lauto o desprezo
da vida, como o das illusorias festanças com
gnio de qualquer injuria ou offensa, moral ou ma-
terial, quer ao chefe do estado, quer ás pessoas da
sua família.
N'esta hirta incessante da politica, forte pelo
sen direito e pelas nobres qualidades que o impul-
sam, o partido republicano pôde, como tantos ou-
tros partidos em tantos diversos paizes, chegar até
ao extremo da revolução; mas não chegará nunca
até manchar-se com a ignominia, nem a deshon-
rar-se pelo desígnio de um crime.
OS GATOS 97
que os ministros publicamente !li<' detraem ;i
magestade luminosíssima dos trabalhos e dos
annos.
Teve, como monarcha, uma palavra que
rescende ligeiramente aos deveres scenogra-
phicos »la sua profissão, e que alvitraríamos lhe
houvesse sido aconselhada, se não fora sabida
a sua austeridade. Foi quando, chegado a
palácio, depois da scena do tiro, rende graças
por ter sido um estrangeiro, que não um filho
Ao Brazil, o auetor do attentado.
Esta phrase, repetida pelo commissario de
policia, imiiii officio ao paiz, e pelo presidente
<}n conselho depois, ao plenipotenciário argen-
tino, lembra um mot-cPordre de despeito ou
A violência nunca fundou Dada que fosse per-
dnravel. O crime nunca serviu, nem servirá de base
para sobre ''li'1 assei iiarem-se as fundações de ne-
nhuma obra ><>li'ia e correcta.
Victimar um homem não importa suffocar uma
idéa <»n destruir uma instituição.
Só as e;ui>;i> vencidas s os partidos desalenta-
dos podem recorrer, na cegueira do desespero, a
taes expedientes «•ondemnaveis...»
(Q. Bocayuva, artigo Vou» Factos, no Paiz).
7
98 <»s ('.AIOS
revindicta, injustamente vibrado á mais activa,
á mais intelligente e á mais prestante socie-
dade colonisadora do Brazil, a portugueza. (n)
Resabe vagamente á assafoetida d'uma inju-
ria, que enausea, mesmo quando á face da
critica, nem sequer represente a digestão d'um
dispauterio. As grandes virtudes que exalçam
o caracter d'um homem, podem muitas mv.cs
ser o reflexo das qualidades d'um povo; mas
(n) «... Primeiro que tudo, esse rapaz não é
propriamente estrangeiro, no sentido em que essa
qualidade podia servir de argumento para tirar va-
lor á tentativa. Veiu para o Brazil com 8 annos e
hoje tem 20; aqui se formou o seu espirito, e o que
sabe aqui o aprendeu; se alguma politica pude in-
fluir sobre o seu espirito— e todos os que o conhe-
cem dizem que elle nunca cogitou d'isso— é a poli-
tica desta terra, a unira que elle talvez conheça; e
que a conhece pouco, prova-o o facto de pensar que
pôde ser applaudido por alguém sendo grosseiro
com o Imperador, ou que podia ser agradável a al-
gum partido, deitando uma larga nódoa de sangue
em uma propaganda que tem sido sempre feita no
terreno pacifico das idéas...»
(Gazeta de Noticias, do Rio).
nv ,,\ ros 99
raro é que os malandros isolados refranjam ou-
tra coisa que Qão seja a maldade, fermentada
pelo meio moral em que elles vivem, ou a lou-
cura, que iicin sequer às vezes tem família,
quanto mais ter casta ou nacionalidade !
o conde de Mathosinhos, partido da sua
aldeia com um sacco de roupa e um chapéu
braguez, chegando á riqueza pela perseveran-
ça do seu esforço heróico e immaculado, e
constituindo-se — espécie de rei pastor (ruma
grande tribu d'obreiros incansáveis — em pro-
curador <lc lodos os desvalidos, sem discre-
pância de sei- ou de iiarào ; Ramalho Ortigão
e Eduardo Lemos, vindo pela Europa, até á
Rússia, abrir mercados para os prod.uctos
agrícolas do império, e installando a'um pa-
lácio magnifico o Qubineti Portuguez de Leitura,
a maior bibliotheca actual do Rio de .Iam iro:
o liarão do Alio Mearim, Martins do Pinho, fun-
dando e subsidiando " Liceu L/ftcrario Por-
tugue^ onde se faculta a instrucçãoa lodos os
indivíduos que a reclamem ; António de Mello,
o erudito r tino llielanr||olir<i, enlrelcildo com
Camillo polemicas litterarias do mais puro la-
vor; e como estes, duzentos mil portugueze .
do -"ii caracter ou do seu quilate, collabo-
*
IDO OSCATitS
rando infatigavelmente, com a honra mais al-
h), em prol da civilisação norte-americana —
ris quem pôde dar ao Brazil a imagem da alma
portugueza, de que a brazileira hoje exhala,
orgulho nosso, o mais divino quinhão da sua
essência ! Quanto a Adriano do Valle, não si-
gnifica nem dá coisa nenhuma, alem do exem-
plo triste do que pôde uma cabeça irara ao
serviço d'uma politica dissoluta.
Numa coisa somente os ensaiadores da
comedia foram babeis: a escolha do lyranno!
Esse paiz que tem no capoeira o assassino
ideal, scientifico, inverosimil, que abre ven-
tres a um tanto, sem perguntar o nome se-
quer de quem lhe paga, mais uma vez repul-
sou a industria nacional, neste ramo perfeita,
,i beneficio (rum titere de fora, assegurando
assim (pie a scena trágica não passaria duma
bufona imitação. Resta saber se na guerra que
as auctoridades fluminenses movem contra
Adriano, não irá mais do que o luxo empba-
tico d uma pavorosa politica que já rendeu pro-
moções e veneras, sobre distanciar o dMliieaus
cada vez mais, do sólio imperial. É natural
que os capoeiras despeitados da preferencia
dada a um estrangeiro, em matéria de serviço
o-. GATOS
official, busquem aziumar contra eUe a obses-
são dos magistrados, desforrando do inerme a
desconsideração vibrada á classe d'aquelles
;ili;i/ inimitáveis extirpadores.
Esta tragedia brazilica me põe de queixos,
meu senhor e rei de Portugal, a cogitar na
forma porque V. M. tem comprehendido até
o pesado encargo de reinar. A.té ao dia
15 de julho ainda havia no mundo dois mo-
narchas immunes para as tentativas d'assassi-
nato — V. M. e seu ii<> Pedro. Para qualquer
< !( is dois, ;i situação era deprimente, um pou-
cochinho. Reis 'i1"' ";m gramam chumbadas
do povo são como ;i> cigarreiras que nãoapa-
uli; cascudos dos amantes, umas lesmas a
cuja existência se perdeu <> interesse. Emtanto
;i desdita de VV. MM. lá ia tendo conforto no
próprio seio familial — V. M. consolando-se de
lhe não furarem ;^ costellas, na immunidade
ilr seu li" <» imperador ; este, illudindo as suas
bazoíias <\>- grande rei, c ;i integridade das
[02 OS GATOS
costellas de V. M. Uma tal miragem acaba
porem, senhor, d' evaporar-se. I). Pedro n já lá
tem a sua ameixa para a Historia: por signa]
que o caroço nunca appareceu! E ahi está V.
.M. agora sosinho a carregar com a ignominia
de nunca hiaver despertado ódio a ninguém.
Desde Alexandre da Rússia até Kalakana de
Sandwich, iodos os monarchas contemporâ-
neos hão bemerecido do povo, inequivocos tes-
temunhos d»1 respeito e d'afiecto, sol» a forma
de minas de dynamiir e de balazios — só
M. V., moita ! É indecente.
Perspicaz (-orno é, e delirando talvez por
cahir cm graça aos vindouros, mediante uma
façanha diversa da dom-juansextite chronica da
sua família, V. M. haverá predito a urgência
d'apropinquar á sua real pessoa uma tentativa-
sinha de regicídio, já não digo das grandes,
mas attinente emlim ás suas posses. Porque
ás transformações d'este tempo, nem escapam
íris nem patriarchas ; e se é certo que uns e
outros estejam dispensados d»' fazer as gran-
des guerras e de pregar as grandes cruzadas,
não pelo duvidoso tenho a instancia de cada
qual aproveitar a occasião de se fazer temido,
e sobrelevar ao vulgacho, por uma altiva bra-
os GATOS 103
\ uri ante os perigos — inda que sejam apocri-
phos, como <»s do tio de V. M.
Pintar <> gosto que todos teríamos, ven-
do V. M. emparceirar na escala do martyrio,
com outi - collegas, grous coroados,
graças á ferocidade d'um sicário, é coisa que
não pôde o colorido exangue d'esta penna,
afeita a chronicar discursos arroyanos, e a
aluar epitaphio ás artes fuschinisadas por es-
ses saguões - jardins-publicos iv paços conse-
Ihios. Mas calcularia V. mercê 0 are.» de tal
jubilo, meu senhor, abiscoitando uma ovação-
sinha galopinada cá pelo rapaz, e então me-
dindo a toda a grandeza histórica, a vergo-
nha de que libertava a monarchia, caso uma
inoffensiva bomba de dynamite viesse a re-
bentai- aos pés mais que tudo Raphaeis —
Gabrieis — d' Assis — Gonzagas, etc, de V. M. !
104 OS GATOS
Sobrevenho portanto, meu rei e padre,
com patrióticas instancias, a que V. M. se
deixe chumbar seja por que buraco fôr. Ah,
senhor meu, que rica coisa é um monarcha
que procura dar lustre ao seu reinado, vindo
ã estacada caçar lauréis e palmas, sem outra
defeza contra as jugatas da turba, além d'uma
inoffensiva camisola de flanella! No tocante a
armamentos, é singular que emquanto as ma-
chinas de guerra vão complicando a ferocida-
de das nações, e enfreando a sciencia ao ser-
viço da hecatombe, esteja a armadura dos
guerreiros reduzida ás formas simples da ca-
misa Jagger, dos suspensórios 1'ivei, e (ias
meias de borracha contra as varises das per-
nas. Denuncia islo que a coragem do homem
leni crescido, pois que elle dispensa o aço de
lhe proteger o cavername, e que V. M. evi-
tando dar motivo de zanga aos seus vassallos,
pelo receio pessoal (ruma agressão, baixa por
esie facto escandalosamente do uivei épico
aonde os reis devem moslrar-se, como em
obeliscos de gloria, para as ovações triumphaes
da posteridade. E islo me peza, senhor, que
possuindo V. mercê todos os attributOS (rum
grande e illustre rei, só de bravura esteja mal
os GATOS 105
servidOj a ponto de sujai- as ceroulas mal lhe
dizem que foi um camarada seu espingar-
deado. (o) Está puis V. M. um monarcha
aceado ! Pôde limpai' as ceroulas á parede !
Veja o imperador l>. Pedro, seu tio, que
o Dia pintou tomando d'assalto a fortale-
za d'Uruguayana, de chapéu desabado, e ruja
fria coragem o mesmo jornal assinala, con-
tando que ao ealiir ao mar, perto do raes, a
primeira coisa que fez foi descalçar as botas
—que homem! — e a segunda recusar o capi-
lé momo que lhe offereciam, á guiza de cal-
mante. Ta-- rasgos habilitariam por si sós,
epicamente, o Mo Pedro a um bronze he-
róico na Tijuca, quanto mais o saber-se com
que temeridade carlovingia elle levou a cabo
eu papel de naufrago, afastando o escal-
dão de pés prescripto pelos médicos, e appa-
iido em piugas á corte, que ao som d"
coro d'aventureiros <l> Guarany, se propunha
vasar-lhe copinhos de cognac.
o monarcha brazileiro lhe vem delineando
Marquez d'Alvito: el-rei d. luiz na inti-
midam, pag. I í.
106 os (JATOS
pois, meu senhor e rei, o curso de heroe que
V. M. terá de frequentar antes de constituir a
sua preciosa pelle em alvo á pontaria dos algo-
zes» É abrir matricula nas aulas de martyrio !
Imitar o outro. Ir por exemplo de coroa des-
abada conquistar o forte de Caxias, façanha
commoda, alli tão perlo do paço, e com ch«r-
á-banes Ires vezes ao dia. Cahir ao mar, como
o senhor D. Pedro, inda que tirando as babu-
chas, o povo lhe lobrigue por baixo, piugas de
cautchouc Oh meu senhor! fosse eu rei, e
■diabos me levem se não tinha já nomeado re-
gicida da minha real camará (sem perda de
direitos para o dr. .May figueira) o faccinora
mais catita, da Penitenciaria. A realeza carece
de sagrar-se no espirito da turba, pela espé-
cie d'aureola que põe n'um homem a realisa-
ção d um acto extraordinário. Por GOnsequen-
cia faca V. M. com que o escadeirem. Não
abrenuncie, por Deus, esta proposta., gritando
que se renta para os Meputas que lh'a alvi-
tram. A Razão d'Estado antes de tudo. É o
barbadão de Veiros que lhe acena. 1). João Y!
• pie do tumulo lhe diz: dei.xa-ie chumbar,
Lúlúsinho.
Porque emfim V. M. não tem agora tão
tis GATOS
grandes coisas do sen reinado que possa pres-
cindir assim dum regicidio. A nota <!<> ódio é
: ío aecessaria ao prestigio da sua coroa, como
a mota de vinte mil reis. Mesmo, n'essa dymnas-
tia de frustes que vae de 1>. Joào iv a D. João
vi. Dão apparece um anico rei com a bonho-
mia parrana de V. .M. D. João rv era um
polirão, mas emfim lá tinha a mulher. D. João
v, um femeeiro, mas propulsou as artes do
luxo a um explendor requintado e extraordl-
n irio. A Affonso vi faltava aquillo que Brown-
Secquard anda a restaurar uas regiões infra-um-
bilicaes dos homens velhos : emtanto elle con-
seguiu gastar a enclausura de Cintra, primeiro
que a prisão <> gastasse a elle.
E convenho mesmo que l>. José fosse
um maricas, que andava sempre a tasqui-
nhar barrigas de freira : mas, meu senhor, lá
o lemos em broDze do Terreiro do Paço,
porque teve a habilidade de arranjar um ter-
ramoto authentico, um ministro enérgico, e
uma tentativa de regicidio menos mal engeró-
cada.
N'este carnaval de Braganças, é poisV. St.
o único que intenta penetrar os humbraes da
Historia, sem bagagem— apenas coma sua tra-
108 OS GATOS
duçãosinha do JEfomtef, a greve dos chapellei-
ros, e i» sr. José Luciano preso por uma cor-
rente ao realejo constitucional onde ha vinte
e seis annos V. M. móe a sua própria marcha
fúnebre. Ah, que pobreza de feitos históricos !
que suppressão de vícios e manias! que au-
sência de vultos glorificadores da sua gover-
nação!... V. M. não tem a sen lado Luizas
de Gusmão; o luxo da sua corte infere-se pe-
las equipagens do sr. ex-conde de Mesqúitella
e pelas toilettes do .sr. Teixeira Lacrau ; V.
M. está como D. Affonso vi, e ainda não de-
liu que eu saiba, prisão nenhuma; e tendo
por barrigas de freira a glotoneria de l>. José,
llão leve ainda, nano elle, as compensações
do terramoto, do ministro, ou da tentativa de
regicídio. Como ha-de o reinado de V. .M. fazei'
fumo, se ninguém contra elle Inda fez fogo?
— E a decadência!... antigamente só emigra-
vam do paiz caixeiros de lenda, cavadores do
campo, e uma ou oulra aclrizita da Trindade.
Agora, até os regicidas.,, uns desgraçados
que a casa real deixa inaclivos (pouca vergo-
nha!) e que pia ganharem a vida, teem d'ir
trabalhar para o Brazil.
Recapitulo : V. M. tem tudo a ganhar em
OS GATOS
III!)
ser assassinado. Mecha os pausinhos p'ra isso,
despache-se ! Digne-se verter o seu sangue^
antes que a Historia, julgando-o, sollicite a
posteridade a verter aguas.
Convenhamos porem, que apesar do meu
dito, eu não fujo a reconhecer em V. M. al-
gumas preciosíssimas qualidades * 1 * ^ reinante.
E comigo o povo, real senhor. Lá quanto a
isso, em vefdade, muito obrigados lh'estamos.
por Dem da pátria, já V. M. traduziu tão mal
Shakespeare, que esfriou em nós o felichismo
pelas obras primas estrangeiras — subtil ma-
aeira esta de V. M. reconduzir o gosto á ex-
clusiva adoração das nacionaes ! — e este bello
exemplo, se Dão vate o das pingas de seu tio
Pedro, reveste pelo menos uma flamancia d'a-
inor pátrio, digna d'intervir nos desdéns anti-
MO OS GATOS
Lusitanos do venddo da vida Ramalho Ortigão.
Mas meu senhor, se o cultivo infeliz das bel-
las-lettras inhabilitasse os monarchas para as
ameixas dos sicários, estaria o imperador do
Brazil mais que nenhum outro livre e isempto
de taes fructos, em razão das esquirolas poéti-
cas i[iui intermitentemente exgrega pr'as ga-
zetas: e viu V. M. Como Adriano lhe aliníou
com um, sem grandemente acatar a sonetaria
imperial !
Sc Quincey rimou as excellencias do assas-
sinato como obra d'arte, V. M., assíduo inter-
prete da poesia trágica d'Alem-Mancha, podia
liem trazer a vernáculo este poema, preambu-
lando-o (Fuma falia em que enaltecesse o re-
gicídio como obra de politica. Era trabalho
onde o meu rei despejaria a contento geral
as asneiras que lhe tivessem sobrado dos seus
outros trabalhos litterarios, c que podia sug-
gerir talvez ao snr. Gualdino Comes, por via
do rancor plumitivo, o tirasio que V. Al. ja-
mais pechinchará do snr. Consiglieri Pedroso,
mercê do jacobino.
Oh meu senhor, habilite-se ! Uma reles
bomba que seja. Para o effeito moral até um
buscapés seria bastante. Não faça caso das
os GATOS
I I
l recauções da medicina, venha á cidade re-
pontar c'o zé povinho, chamar-nós typos, dar
canelões nas nossas mulheres — fazer emfim
pelo tirasio emquanto é tempo. N'estas coisas
de martyrio, só a primeira abordagem custa
um pouco. Que transtorno faria a V. M. um
balasio, sabendo a ovação que abichava fl»1-
pois de morto?
Ah, que vida monótona tem sido ;i de \ .
M. . . . jantarinhos de canja magra no quarto,
violoncello quando vão artistas de S. Carlos,
e como hors-d'(Buvre, a pouca vergonhasinha
extra-matrimonial ás quintas-feiras ! ... V. M.
carece de sahir quanto anteá d'essa apathia.
Iin brazileiro, senhor, não usufrue maior ri-
panso, do que o meu rei sentado n'esse throno,
,, com a marrafa a dividir-lhe o craneo em
duas metades parallellamente encarquilhadas.
E quando os republicanos cuspirem á face de
v. \|. os •>v»|> contos da sua dotação, como
ha-de V. M. justificar essa maquia auferida
dos erários, não tendo feito no decurso d'um
anno, outra coisa que não seja abrir e fechar
cortes, levar salvas a bordo, e tapar e desta-
par ladrões e tolos, consoante a matula dos
gabinetes que governam?
I 1 '1 OS GATOS
Com o tirasio era outro aceio. Pela tenta-
tiva de regicídio, disse Guizot, a inoffensivi-
dade dos reis cola-se á veneração dos povos,
como um rabotalho de trampa á barriga d'um
macaco: e os povos tanto esgatanham n'essa
veneração, que acabam por abrir-se o ventre,
Sem que a mistella de lá saia e deixe de feder.
Se por consequência, V. \\. está resolvido a
acceitar o alvitre da sua próxima eliminação,
porvia Lefaucheux, e Dão achar sicário idóneo
que lhe expeça um balasio aos quartos poste-
riores, d'aqui me offereço eu com toda a leal-
dade, certo de que V. M. não haverá que di-
zer do trabalhinho.
De mais, V. M. já me conhece. Ora se
não!... Eu era um que estava de chapéu de
coco, n'um dos bancos do Aterro, haverá seis
annos, uma tarde que V. M. passou de lunetas
fumadas, for signa! que até lhe mostrei o
Diário de Noticias. . .
Tenho vinte e cinco annos d'idade, lindo
talhe de lettra, e des'que me metteram o ler e
o escrever no corpo, ando mesmo hydrophobo
por espatifar um desavergonhado. Gontracte-me,
senhor ! lia em mim um sicário á altura da im-
portância européa de V. M. — E garantias! fui
os GATOS | l.í
eu que atirei a bomba ás janeilas do rei do
Porto, GSorreia de Barros, de combinação com
elle mesmo. Sou portanto um regicida com
pratica ua província, um regicida em segunda
mão, bem conservado, e podendo mostrar
abonacões como o primeiro, .luro que não fa-
rei questão <lc preço. Somente, como apesar
do meu ódio, eu nfio quero que V. Al. morra,
porque emfim podia vir outro peor, combina-
re s ;i conspirata por forma que eila revista
todas ;is apparencias de seria, sem todavia
deixar d'abexigar-se por dentro, com todas as
inoffensividades de jocosa. Eu lenho i,i em
casa um rewolver de uickel, muito lindo, e
que é por signal de cautchauc, onde, nos
meus intervallos <!»• faccinora, uso guardar pi-
cado de Kentuky. Se acordarmos em intrujar
;• Europa com a comediasinha d'onde \ . M.
ha-de sahir ovante e lieróicisado, pôde combi-
nar-se a coisa para <>< começos do inverno,
uma noite, ao acaba? do lheatro. . . Eu ponho
um estalo d*entrudo uo gatilho da arma ; V.
Al. mette oa bocca um zagalote; e quando, s,,l»
um jorro eléctrico, pozer o pé no estribo da
carruagem, eu de meu lado— pif! paf! <;
deito a fugir, ermraanto V, Al. cal i os bra-
9
144
os GATOS
cos dos seus officiaes, não sem primeiro en-
tornar sobre a camisa um frasquinho de tinta
carmezi.
Attenta a eòr da tinta, e o fado de V. M.
cuspir a bala no delíquio, os médicos não se
recusarão, creio eu, a jurar sobre <>s Evange-
lhos, que V. M. foi ferido... Emtanto, n'este
tão fácil plano, só um temor me alanceia :
— Com a bravura que todos lheconhecem,
V. M. é capaz de morrer de susto, mesmo
tendo a certeza de não ler morrido — <!<> tiro.
31 d'agosto i!e 1889.
OS GATOS
FIALHO JVALMEIDA
OS GATOS
PUBLICADA» ) MENSAL,
D'INQUERITO Á VIDA PORTUGUEZA
PORTO
(\^.\ Editora Alcino Aranha & C
llim ilo Bomjarditn, 96
FILIAL EM LISBOA
75, llua dos lie.li ozeiros, 7.~>
PORTO
Typ. da Empreza Litteraria e Typographica
178, Rua de D. Pedro, 184
SUMMARIO
0 VIOLINISTA SÉRGIO N'UM CAFFÉ DA
MOURARIA - O SEU TYPO, O SEU JOGO B
O SEI' BUMOR— ASPECTO DO BOTEQUIM
— MUSICA AUDITIVA E MUSICA «VISUAL»:
A SYMPHONIA HERÓICA, A DAMNAÇÃO DO
FAUSTO, E O QUINTETO DE MENDELSSOHN
— A RECEPTIVIDADE PARA A MUSICA É
UM CAsu DE MOMENTO — A HORA DE
GLUECK, A HORA DE WAGNER, A HORA
DE BEETHOVEN, E A HORA D'OFFEMBACH
— O ARCEBISPO DE PERCA RESTABELECE
MIRACULOSAMENTE A TIRAGEM INTESTI-
NAL DO GENERAL VALLADAS, GRAÇAS AO
is<> DE BEMI-CUPIOS MUSICAES ÉVORA
JUBILOSA POB ESTE PRODÍGIO DO PRÍN-
CIPE DA [GREJA, NUNES — MUSICAS IN-
COMPREHENDIDAS — A ÁRIA DAS JÓIAS,
A SUA tNTENÇÂO, A SUA ALMA, E OS
CAMBIANTES DA SUA INTERPRETAÇÃO NO
THEATRO — POR CAUSA DA MUSICA VI-
SIONANTE DESCOBRE-SE A POUCA VERGO-
NHA IiVm CARREJÂO— PARA QUE SERVE
VI
A SERENATA DO FAUSTO, NOS CAFFÉS DE
FADISTAS— 1DYLLIO RÚSTICO —SÉRGIO,
MEPHISTOPHELES — NA RUA: QUEM ME
DÁ UMA TERCEIRA. VISTA, OU OS ÓCULOS
VERDES DE BOCCACIO ? — INTERVÉM O
DIABO QUANDO ELLES SE RESOLVEM A
PROCRE AR — APONTAMENTOS PARA A HIS-
TORIA DAS NÁDEGAS DO REI NOVO — O
«REPÓRTER», LOJA DE FRESSURA — AS
MULHERES DEVEM FUMAR?— MORTE DE
S. M. O REI LUIZ — MYSTERIOS QUANTO
Á DIVULGAÇÃO DA DOENÇA — ÚLTIMOS
DIAS NO PAÇO DE CASCAES — AS LAGRI-
MAS D'0PFICI0 SÃO CUSPO MAL POSTO—
SYXTIIETISA-SE O REINADO TRANSACTO
— O REI GUARDA-MARINHA E O REI ES-
TUDIOSO: O SEU SYSTEMA DE CORRUPÇÃO
E A SUA SUPERIORIDADE MORAL SOBRE
OS DEMAIS — OS CÃES DO BOM JESUS DE
BRAGA E 0 SR. MINISTRO DA FAZENDA —
O REI FAZ-SF PODER OCCULTO DE TODAS
AS SITUAÇÕES — O ESTADO FOI ELLE —
REI PODER MODERADOR, REI ACADEMIA
REAL DAS SCIENCIAS, E REI EXPOSIÇÃO
DE SAPATOS I)'OURELLO NA AVENIDA —
O DITO DO VELHO SAMPAIO — O QUE É O
VI]
PARLAMENTARISMO NOS PAIZES CREADOS
\ CACETE - CONTRADICÇ lo ENTRE OS
NOSSOS DISCURSOS E OS NOSSOS ACTOS
MISÉRIA I". CRÁPULA DO PAIZ —AS ES-
COLAS BUPERIORES TRANSPORMAM-SE
EM OFFICINAS D^NGENHEIROS E BACHA-
RÉIS NEGOCIÁVEIS —O AGIOTA ,0 FAL-
LADHR K o VRTIClOLElRO , CONSIDERA-
DOS OS TRÊS RATAS DA SITUAÇÃO POLI-
TIC V ACTUAL 'Tl, MIN LNC1 \ SOCIAL DO
AGIOTA : QUEM N LO Ê D< i BURNAY, Ê
DO FÓZ; QUEM NÃO É I»1» HERSENT, !:: DO
BARTISSOL — AS GORGETAS POUR LA
REUSSITE DE L'AFFAIRE — DELIQUES-
< IA D \ VEDA PORTUGUEZ \. NOS SEUS
DUM. ms LSPECTO - D \ CONS 3IENC1 \ E DA
MORAL — DESPREZO PUBLICO POR TODOS
COMMENSAES DA ORGIA POLITICA —
OS QUE SE DESPEDEM, COMO VICENTE
MONTEIRO E CONSIGLIERI, SÃO APUPADOS
— PAPEL POLITICO DO REI: A SUA tNTEL-
LIGENCJ \. A se \ ESPERTEZ L, \ SUA M \-
NEIRA DE C LPTAR PERFIL D \ H \INIIA
PIA, E SU \ M LR LVILHOS L [NTUIÇÃO D \
M LGESTADE MODERN \ EM 19 DE M LIO
MARIA PI \ E FONTES FOR LM OS UNI
VIII
COS MESTRES B AMIGOS DO REI —PORTU-
GAL GOVERNADO PELAS ESPOSAS E FI-
LHAS DOS MINISTROS — UM CONSELHO
DISTADO MEMORÁVEL— AJTN AL D. LUIZ
FOI BOM OU MAU? — APOLOGO DA CAIXA
DE MUSICA NA CAIXA DE CHARUTOS — O
QUE FICA D'ESSES 28 ANNOS DE REINADO
— O REI NOVO — O PRÉSTITO FÚNEBRE
NA ESTRADA DE CASCAES A LISBOA, SOB
A NOITE — A Cl I E( 1 A DA AOS JERONYMOS :
ASPECTO DO TEMPLO— O TRUC DA CAU-
DA — CONCLUSÃO.
3|
5( rgio, primeiro violoncello de S. Carlos,
[ar concertos todas as noites a um café
de fadistas da ma Fernandes da Fonseca, an-
Carreirinha do Soccorro, mesmo defronte
da caixa do Príncipe Real.
É d'estes já raros artistas, irregulares por
herança mórbida, que passam a vida a cortar
as amarras que prendel-os possam a todas e
quaesquer conveniências da vida social, e cuja
acuidade esthetica se afusa na proporção da
ausência do senso moral, que dir-se-hia con-
trariar-lhes as rêveries do seu mundo interior.
■ de povo, alto, secco, avermelhado d*al-
cool, e com uma pequena cabeça de sargento
velho d'opera cómica, Sérgio é o typo d'<
decilitreiros que monologam de noite pelas
2
K) os GATOS
ruas, ás esquinas ladeirentas, às portas das
escadas, diante dos monumentos e dOS carta-
zes, pondo uma silhouette hoffmanica na bana-
lidade do fora de horas de Lisboa.
Jamais, na sua vida de violoncellista raro,
ora sollicitada pelas deferências dos convictos
admiradores da sua arcada, ora pela blandicia
d'esses parvenus que só querem tirar da convi-
vência com músicos e pintores, meros partidos
scenicos de dandysmo. . . jamais elle conseguiu
moedar-se ás formulas artificiaes da correcção,
sem a qual o mais bello espirito se arrisca a
passar nos saiões por um eivado, entre os
desdéns das mulheres, as jugatas dos sport-
men, e a iria insolência dos velhos pilotos do
cotillon.
Assim como Heine, que só admittia uma
classificação de plantas— as que se comem e
as que se não comem — Sérgio só conhece dos
homens duas cathegorias: com gravata, e sem
gravata.
No primeiro grupo põe elle os seres infe-
riores, os pedantes, os márOtOS, os intrujões,
os idiotas e OS vadios: sendo no segundo on-
de, esquadrinhando bem, ainda se pôde en-
contrar gente capa/.
os GATOS I [
l»a> suas relações com os gravatas, o artista
não tem tirado senão desaires, massadas e sem-
saborias, e por principio aborrece-os, muito
embora não recuse a mão a vários que lhe es-
tendem as (Telles, — do 'i1"' vae logo desin-
fectal-a com abiuções de canna branca, ao
i alcoólico mais a geito.
ÍBÍ
guindo esta lei zoológica das espécies
jantes descriminadas segundo o trapo que
trazem ou não trazem lacado á volta do pes-
coço, que Sérgio depois de ter bastos annos
convivido com pessoas de sociedade, mercê do
seu togar na orchestra de S. Carlos, i refere
i descer ás baixas espiraes de gente subal-
terna, onde os seus arrazoados impressionam,
iis ditos teem echo, e o seu divino instru-
| -J os GATOS
mento todas as noites o salva, pela virtuosidade
magnifica do estro, do grotesco naufrágio de
uma eamoeca apanhada Com grogs offerecidos
— como remember de preito — pelos admira-
dores em mangas de camisa e tamancos, que
para OUVil-O locar vem ao Café Iodas as noiles.
Ás oito horas, QO corredor estreito e com-
prido que é a sala do botequim de fadistas que
lhes disse, todo occupado com duas filas de
mezas onde os freguezes abancam, sentados
em mochos de pau, para saborear a pequenos
goles, uma cerveja que parece feita d'ourina
ãlbuminurica, ou qualquer chávena d'esse cate
aegro e pegajoso que a .Mouraria designa pelo
pittoresco nome de carocha; ás oito horas uào
ha no botequim um logar único, devoluto. Por
uma rotula de dois pórticos, ao fundo, inter-
calada de prateleiras de garrafas, d'onde se
franjam, por transparência, fogos de rubis de
Greme rosa e d'aguardente de ginjas, esmeral-
das de Kermann, grandes topasios de licor de
canélla e tangerina, pousa o busto docafézeiro,
em camisola, um gordanchudo, barbaceno e
alvar, que trata a freguezia por gajos, e coça
as piugas nos entreactos da confecção dos ca-
pilés. De roda, outros gallegOS ajudam, indo
(is (, \'|US 18
do fogão para <> balde das lavagens, da gaveta
das colheres para os trés-fonda da baiuca, d'on-
de aos intervallos de silencio vem um guin-
char d'enormes ratazanas. Nas paredes, qua-
drinhos de mulheres offerecendo os seios á
sucção de quem nas observa — bicos de gaz
flambando s*b tulipas de loiça pendentes do
taboado ; e por entre as lilás de bancos onde
mal cabe a perna do moço que foz o serviço,
atravessa de quando em quando uma espé-
cie de rodeuse da rua Suja, chuchada, vestida
de branco, '•«nu tamancos nos pés e lesmas
de cabello ruivo sobre a testa.
— Adeus ó avem !
— Tó, lambedor! retruca ella.
Emquanto a sala, súbito hillariada por
aquelle epitheto de vicio, rompe em dichotes
r pisos sobre o escadeirado cocheiro de noite
que a mulher assim classificou, e que em des-
forço promette rompcr-lhe a peida com chuli-
|,,i. em a apanhando á gandaia, n'outro sitio.
li os ga ros
-*^M
Penetrando a garganta estreita do café, to-
pa-se á esquerda, n'uma espécie de púlpito de
ripas, um piano alugado, comi o seu indispen-
sável cornaca, o pianista, homem balofo e d'o-
culos, os queixos presos n'win açaimo de bar-
ba côr de coiro, e em ioda a figura a desillu-
são d'um professor primário demittido : e logo,
entre os principaes do café, typos de coco, a
unha em Indo, o olho engenebrado, segue
iuiiiki cadeira d'almofada, o violoncellista. En-
tre violoncello e piano, primeiro que o con-
certo parla, ha sempre altercações roufenhas
sobre 0 bocado a lorar, e a pouca execução
do troca-teclas encarregado de fazer de roda
á melodia de Sérgio, o acompanhamento.
— Homem, diz este, apenas o pianista zoa
na sala OS primeiros compassos : isso não é
os GA ros
15
musica, é um boi • i1"' saltou a trincheira do
sol ! Ora queira embolar-se, amigo Pratas, e
fazer lavor de seguir o que lá está.
Lá recomeçam. <> outro, triste, com um ca-
chimbinho de raiz posto entre os dentes, bebe
um trago de pintada lentamente, e vè-se-lhe
Q0 ;1||(, d0 craneo a coroasinha de calva bran-
quejando, como cortada no polo d' uma melan-
cia sem chorume.
—Toquem o Chegadinho faz, faz, diz uma
voz, quando o pianista, preoccupado d'arte,
faz correr uo teclado a melodia do Fausto, ua
Ivermesse. E a mão de Sérgio, tremula de
çs, dando saltos macabros, cora as pontas
dos dedos choreicos, sobre as cordas, súbito
lixa-sc, lança uma arcada profunda, decisiva,
uitida c de mestre, uma d'estas arcadas fris-
sonantes, onde vão quarenta annos de musica
e d'ouvido, d'aspirações, de sonhos, de traba-
lhos, e que pela expressão pathetica deixaram
Ser vibrações de cordas sobre cordas, se-
uâo vozes partidas «I" coração da angustia hu-
mana, Deus o sabe! para a névoa dos proble-
mas eternos e insondáveis.
É então um momento typico, oa rastilhada
,1,. fumadores e bebedores que estão confusa-
16 os GATOS
mente, emborcados sobre as bancas da alfurja,
bovinos, broncos, e trescalando o rapozinho
dos seus corpos tisnados pela mnrraça do suor
c das vestes de trabalho. 0 calor asphixia, um
ralo passa nas respirações sustadas para ou-
vir: e cada vez mais a fumarada dos cachim-
bos vae relegando para planos distantes, os
grupos de bebedores que estão ao fundo, a
rotula onde o cafézeiro entrega as bandejas e
dá trocos, e a encardida silhouette dos mocos
da rosinha, de quando em quando mordida
pela chanima da fornalha, sobre que pulam, em
caldeiras de cobre, cachões de beberagens. Se
alguma voz então corta o silencio, logo as ca-
beças todas se levantam n'mn shul ! de cólera
egoisla, que fecha a bocca dos mais audacio-
sos; e o violoncello cala-se ainda, á espera de
que |iasse na sala o primeiro calafrio ^impa-
ciência, iodo elle banhado u'essa onda de (luido
emocional que cola cTalma a alma, engrossado
pela nervosidade dos mais fraCOS, e revolu-
teando d'entorno ;i indifferença dos rudes, té
conquistal-a e fundil-a, como uma cera molle,
sob a conturbadora volúpia do seu spasino.
rànlim lá cessa o piano os latidos do acom-
panhamento: a \o/ de Sérgio regouga ainda
os GATOS 17
contra o pianista algum dichote verberando a
desfilada pastosa dos acordes, que elle com-
para a grasnidos de patos, d' uma poça —
quando bruscamente, a melodia dovioloncello
esboça as primeiras volutas, pelo ar '.
4E
li vocês repararam porque processo os
grandes músicos conseguem fascinar um au-
ditório, seja d'artistas ou de carregadores, de
cretinos d'asylo <>u d'animaes de jaula, carni-
ceiros? Coisa singular! uão é tanto pelos ou-
vidos que essa musica dos grandes auditivos
qos doma, é pelos olhos. Ha sons <\\w ferin-
do o tympano, nos fazem gosar, sem duvida,
mas só pela vibração rythmada que produ-
zem, localmente. Uma tal musica, ao ir do ou-
vido ao cérebro, faz-se emoção por certo, mas
IS os GATOS
não tem poder para evocar dentro de nós es-
tados plásticos, sol» cuia martyrisante acuida-
de OS OUtrOS sentidos visionem a porção de
goso que a alma assimilou. Copulado por cila,
o espirito permanece infecundo, e a reminis-
cência ao repassar-lhe os bocados transcenden-
tes, não sente a necessidade de os repelir em
certos e determinados togares, ou sob o domí-
nio de certos e determinados estados psycho-
logicos.
É esla a musica da cabeça, a musica escri-
pta ou executada sem dor, feita pelo maestro
de cor, c interpretada pelo artista com sabe-
doria, mas sem alma. Sempre que releio Mas-
senet, ou nico tocar o Pablo Sarrasate, o inte-
resse domina-me, mas sem nenhuma espécie
d'ideaçã0 embevecida. Aipiiilo será bem leito,
ou sábio, correcto, inimitável : emlanlo eu nào
consigo, durante a audição, isolarr-me de mim
próprio, amordaçar as aniraalidades do meu
ser: e aconteceu-ine ter fome, ouvindo Sarra-
Sate locar pedaços de lleriol. . .
Oh! mas outra musica lia de que o ouvido
é mero receptáculo instantâneo, transmissor
mudo; outra musica que a imaginação visual
plasticisa rápido, em imagens, quasi «pie ia
I»v ,, M'I)S
19
,-i dizer dotadas d'existencia, imagens que se
vêem, si> palpam, se enlaçam, soffrem e es-
morecem, como essas apparições translúcidas
que os mediums lheosophos desagregam de si,
e deixam no ar, pairando, em linhas phos-
phorentes, feitas d'um íluido astral, e repro-
duzindo aos olhos d'um circulo de crentes, a
physionomia ou a figura da creatura ausente
ou morta, que evocámos.
Extraordinário pheuomeno, não só da cor-
respondência, mas da substituição inconsciente,
em dadas crises psychicas, d'uro sentido por
nutro, sem ruptura do satuo physiologico !
Os contemporâneos, Tschaikowski e Gou-
noil aparte, substituíram o calculo integral
àquelle divino não sei que, que presta ás pa-
ginas de certos velhos symphonistas a melan-
cholia theogonica de Jehovahs foragidos, que
soluçam. A musica actual é cortez e fria, mes-
mo n i violência, e é necessário tornar ã mar-
cha fúnebre de Beethoven, na Symphonia li -
ir exemplo, á walsa de Berlioz, na
Dainnação do Faurto, e âquella melodia rara
de violino, que anda o primeiro tempo no
quinteto celebre de Mendelssohn, pr'a smtir
bater o c 'ii plena musica visual, pias-
20 os «.aios
ticisante — d'essa que tem a imagem como
poder supremo d'expressào.
Quem alguma vez escutou a walsa dos
sylphos, tocada cm surdina, numa orchestra
de mestres, não mais esquece a paysagem lu-
nar que viu desenrolar-se-lhe deante, á mar-
gem (ruma ribeira trágica e (tarada, onde os
cannaviaes se sublinham apenas na noite, em
tons (Ta/ul e phosphoro, muito vagos, e o
diabo passa, de pescoço estendido, as azas
lassas, de cocaras quasi, aos pulos sobre a
roca, como um griffo caduco á procura d'al-
ii ias que escorchar.
E sem rumor, d'entorno aos troncos, ge-
leiras, penedias, começam a passar de vagar
rondas de gnomos, leves como luzeruas, em-
bryões de seres inutihsados na officina de
Deus, fugidos do barril dos restos da creaçâo,
correndo o mundo, incorpóreos e maus, a
impulsionai- os crimes e as doenças... ea
cadeia dYsses pequenos monstros expirala,
n'uma dança infectante, ora quebrando a bicha
das suas formas deliquesrentes, deslazendo-se
na reverte da noite hvperborea, incognoscível,
onde as coisas lêem formas de bailada — mm
voltando com fermentações de larvas, n uma
OS G MOS
-21
furia ,|r viver febricitante, e apenas rythmada
pelo ting-ling das gottas cahidas da folhagem.
i;,.,n depressa, á medida que o lento se co-
,,„.,.., a caracterisax nos violinos, o nosso ou-
vido pára, toda a espécie de som parece que
morreu, mas os sentidos fundem-se-nos n'um
único, a visão, e eil-a seguindo no ar 8 turbi-
lhão diaphano ^espectros, que elia invocou,
,,,„• cambiantes, com uma sensação de relevo
quasi physica, e uma magia d'assombro ex-
traordinária!
aJ^
Mas assim como as evocações dos mediums
querem penumbra e silencio pr'a travestirem
materialisações involucraes, assim as imagens
acordadas pelos músicos reclamam para se
produzir, a ausência de suggestões que des-
viem o espirito, a attenção, d'outras mate-
-- OS GATOS
rias. Um salão de concerto, com a polychromia
dos trajos, as distracções da belleza feminina,
a affectação dos typos, e a chateza das opi-
niões pedantescamente alardeadas, raras vezes
''' amphitheatro attinente á transformação do
phenomeno acústico em luminoso: Tem por
demais motivos irritantes, vindos das luzes,
das cores, da permutta das ideias e da inten-
sidade rubra dos desejos, que entram em nós
'•nino agentes corrosivos da sutilima trama
mental sob que poderia dar-se a transposição
sensória que lhes disse.
Tam pouco o isolamento absoluto convém
á materialisação (appliquemos a palavra dos
theosophos) de certos trechos. Meyerbeer por
exemplo, não é musica paca se ouvir sósinho
em parte alguma. Pelo contrario, Ghopin, que
seria ridiculo de dia, ao ar livre, readquire na
alma o sen prestigio doloroso, quando locado
a deshoras, n nina alcova de mulher, sobre um
jardim d'esguias arvores, á lua.
Já me lenho snrpreliendido a pensar se a
questão da receptividade psychica para a mu-
sica não será exclusivamente um caso de mo-
mento. 0 som (l'imi harmónio, por exemplo,
tocado na rua por um cavallariço estúpido que
OS GATOS -•">
passa, consegue às vezes orvalhar de sonho a
melancholia d'um artista, cuja nervosidade em
outras boras se permittiria desdenhar ;i mais
correcta musica d'um quarteto de mestres eu-
ropeus. Um andaluz extasia-se, por exemplo,
como qualquer homem do uorte, ante a chorai
de Luthero, entoada a plenas vozes por uma
bancada d'estudantes teutões d'olhos azues : e
ril-o abysmado, elle um fogoso, que tem sol
liquido por sangue, em tudo quanto ha de
profundo e recôndito, de reflectido e de sério,
u'aquella musica de bruma, crepusculisada
em presentimentos do aurddá^ tão peculiares
ás raças metaphysicas. E eu já vi unia aldeia
bronca chorar toda, cavadores e mulheres do
campo, ao som da Ave-Maria do OtheUo que
ama senhora cantou no coro d'uma vetusta
igreja alemtejana.
Logo, ii. 'In sempre a espécie d'instrumento
que transmitte a musica, nem sempre a raça
de que o auditor faz parte, aem sempre a
educação, nem sempre o meio. são factores in-
dispensáveis á justaposição de tal trecho a tal
sensibilidade.
A razão da idolatria havida por certos
compositores e instrumentistas, está oa magia
os GATOS
com que o génio (Telles consegue vir identifi-
car-se, atravez dos séculos, ao nosso; está na
eloquência com que esses grandes consolado-
res ,lns contam, pela melodia ouvida, a senti-
ble™ pathetica, a felicidade, a negação, o
desespero, que contravieram em nós numa
hora apathica em que, sem elles, não teríamos
voz com que reagirá enervancia d'aquelles es-
tados íntimos, e psychologia ou lucidez com
qae julgal-os— está na bonhomia emfim, na
sensitividade rara, com que elles gravaram na
nossa reminiscência, para sempre, esses esta-
dos, com o fealhe doce d uma medalha votiva á
quintessência das nossas alegrias e das nossas
dores. Cada hora da vida exige, para apasi-
guar-se, uma musica diversa, como cada
enfermidade reclama uma diversa therapeu-
tica. A alma tem crises, resolúveis somente
aos encantamentos (ruma ária lenia de Glueck,
sopros d'epopeia que reclamam Wagner como
interprete, manhãs de névoa em que lhe é -ra-
lo exhalar-se entre uma symphonia de Beetho-
ven, c ihedios cor dé tinta nankin, obsessões
canalhas, cabotinagens, que lhe fazem bater
o pé, nada menos que a provocar galopes
d'Offenbach.
os gatos ->;
20
É por esta razão que num concerto publi-
co, feito de bocados heterogéneos, apenas se
'' sensível ao trecho que vem condizer ao nosso
momento psychologico, e que o mesmo con-
certante, ouvido .-,,111 indifferença ou enfado
d'outras vezes, súbito, ama uoite, se aos re-
vela sob um aspecto passional que nunca lhe
havíamos podido escortinar.
Já vocês repararam que uma ceia com mo-
ças, n'um cuté de rapazes, pede o fedo, e que
nâo ha rapariga nenhuma com derriço, que
Qão foque ih. piano a serenata «Ir Schuberl ?
Conhecem por certo ;i historia do general Val-
adas, commandante <l;i divisão militar «lo
Alemtejo. Homem dureiro, com atonias de
tripa superiores talvez ás suas atonias de cé-
rebro, acontecia-lbe fazer das defecações, ver-
dadeiros partos, tamanhas dores lavravam qo
guerreiro, ao alijar das primeiras cibalas ma-
linaes !
Foram contar ao arcebispo de Perga estes
martyrios; e monsenhor Nunes, verborrheico
preclaro «lo púlpito eborense, sabendo o que
custa teruma pessoa vontade e não poder, vae
•nselha pr'aquilIo, nada menos do que o
hymno da Restauração.
■j
26 OS GATOS
Ali, que remédio! Todas as manhãs vaca
charanga em grande uniforme cornetear-lhe ao
reverso, o drástico famoso.
Lusitanos é chegado
O dia da Restauração. . .
c ha sele mezes que por efflcacia d'elle o ge-
neral remoça, que é um louvar á tripa... ca-
gaiteira.Em Évora, agora, quando ao primeiro
sol o forasteiro intrigado ouve os acordes do
resolvente canto patriótico, ha sempre um ebo-
rense amável que lhe explica a opportunidade
d'essa musica, que (ruma banda da fronteira
foz fugir de pavor os castelhanos, e dar de
corpo aos generacs — da outra banda.
OS GATOS 27
Na existência actual está reservado â mu-
sica pouco mais ou menos o papel que a reli-
gião teve na antiga, tia árias que andam ha
séculos, incomprehendidas, pelo mundo, á
procura d'um estado affectivo ou intellectual
qu'interpretar, assim como ha espiritos, tris-
tezas, sonhos, que ainda não acharam musica
que lhes sirva de lenith Pevangelho. Evi-
dentemente que o drama visual desenrolado
aos olhos d'um grupo, pela audição d'um nu-
mero de musica escolhido, raro é para todos
os dilettantes o mesmo, visto como, mesmo
nos phenomenos ópticos directos, a sensação
chromatica, posto que idêntica em todos, nun-
ca pôde ser mathematicamente igual de retina
para retina.
Ora, são os infinitamente pequenos (Testas
differenças de sensação que constituem a ori-
ginalidade individual dum temperamento, e
elles que, no campo esthetico, evocam ás \e-
l'uin mesmo motivo fixo, qualquer que
elle seja, as comprehensões artísticas mais an-
tipodaes.
Todos temos ouvido a ária das Jóias a seis
ou oito prima-donas de génio, a Patti, a Sem-
brich, a Ti lorini, a Tetrasini, a Ván-Zandt,
•
js os GATOS
a Nevada e a Devriés... Digam-me se já al-
guma d'ellas lhes reminiscenciou as outras, na
interpretação d'aquella maravilha. E todavia
o respeito ao escripto do maestro em todas
subsiste: lá está a cinzelura para assim dizer
arestal do relevo musico que Gounod lhe deu,
as cadencias que elle prefere, a nitidez meló-
dica que tanto o caracterisa.. . Só a alma dó
canto é diversa, porque essa está na cantora,
e não se impõe.
Com os músicos instrumentistas succede o
mesmo. A musica, sendo uma linguagem uni-
versal i»«>sia ao serviço d'uma sensibilidade uni-
versal, logo implicitamente deixa prever como
essa linguagem possa por na mesma phrase,
conforme a pessoa que falia, e a quem se fal-
ia, cambiantes de ternura, de mysterio, d'iro-
nia, de brutalidade ou de franqueza, alterna-
tivas—questão d'intuito moral, de tom, qi
mais grosseiro instrumento dá, quando vibra-
do por algum grande artista em inspiração.
Porque emfim, interpretar uma obra d'arte é tra-
duzir em vulgar uma sensibilidade, dar reper-
cussão dentro de nós a unia alma idêntica : e
uão se imagina como o violoncello de Sérgio
catechisa a alma d'esses ignorantes plebeus,
OS GATOS -_(|
pela emoção pathetica do som, que lhes pertur-
ba a rudeza em não sei que melancholias an-
cestraes !
Na primeira noite em < { 1 1 < • cu fui, vestido
'l'1 saloio, ao botequim de fadistas da Carreiri-
uli;i. aconteceu-me ouvir-lhe a serenata do Faus-
to, por uma forma que jamais na minha vida
esquecerei.
Entrara no caffé uma espécie de carreiro
escanhoado como um cónego, reboludo de
músculos, sanguíneo, e debordando apetites
sensuaes : d'estes homenzarrões de Torres que
vem trazer vinho cm carros o1'» Alemtejo, e le-
vam cm deboches a noite, pelos alcouces e caffes
musicaes d'entre a Magdalena e o Capellão.
<> homem entreabriu <»x batentes á j<>ur do
botequim, espreitara um momento, de charu-
to na bocca, e com um ar decidido dirigira-
se a abancar na meza, ao pé da porta ; quan-
do ai» reparar que alguém ficava entre portas,
perplexa, tornou a erguer-se, vindo parlamen-
tar rã fora da baiuca. Cinco minutos depois
voltava elle, conduzindo ;i força quasi, com
palavras mal firmes, para um logar na som-
bra do piano, ama saloiasita receiosa, toda
confusa das ^-uir^ avinhadas, da incidência
30 OS GATOS
das luzes, e da audácia de se aventurar assim
innn sitio prohibido. Os dois sentaram-se. E
ella enfesada, tremula, n'um delírio de corça
surprehendida, procurava apagar-se mais na
sombra do seu canto: linha um saiote azul
de chita pelos hombros, a estamenha amarel-
la, escorrida ás ancas, debruada de preto e
muito cúria, o lenço atado pelas duas pontas
tendidas, sobre a testa: e em toda a sua ado-
lescência de lavadeira, a exasperada virgin-
dade d'uma cadella ciosa que fugiu da estala-
gem, attrahida pelo bulicio orgiaco do bairro,
emquanto a mãe Bicava a roncar talvez sobre
a tarimba, entre trouxas de roupa, ao pó dos
burros. . .
Primeiro (pie o homenzarrão conseguisse
fazer-lhe aceitar qualquer bebida, foi um suor
d'angustia, uma canceira, durante a qual umas
poucas de vezes a rapariga fez com a espinha,
o sobresalto ascencional de quem se vae er-
guer, para outras tantas a fascinação do ma.
eho a esganar alli d'encontro ao muro, sob a
avidez sardónica dos homens, e as delirantes
febres da copula, (pie Ih." vibravam todas no
typo, com uma espécie ^animalidade louca e
irresistivel.
OS GATOS 8i
Erafim, o rapaz trouxe aguardente, caffé. . .
e o carrejão, apenas as chicaras foram cheias,
vasoo ih» d'ella umcopasio cheiosinho d'aguar-
dente. Todo o seu fito por certo que era ir
aquecendo o caco á raparigota : e achegara-se,
tocava-lhe com o joelho de lado, contra a coxa,
tinha-a mordida em diabólicos circulos de pos-
se, vivos a ponlo que ella deixou emfím de lhe
poder supportar o olhar chispante, e começou
de responder ás suas perguntas, palavras in-
coherentes; tremiam-lhe as pálpebras, tre-
iiii.ini-ll s dedos; os cantos da sua bocca
tinham paresias spasmicas p'ra beijos, e den-
tre as roupinhas do vestido, os seios erectis,
crispados como ventres, subiam c desciam,
com um sofrear toraxico de soluços.
82 OS GATOS
A brusca entrada (Telles fizera erguer uma
ou outra cabeça preseatida. o cocheiro de
noite, que estava em successo de ridiculo,
des'que a rapariga ruiva o casquinara, quiz
descarregar de si as attençoes, e começou a
tossir com modos ribaldeiros, piscando o olho
para o logar onde a saloia linha ido alojar-se.
Já de todos os cantos, os risinhos corriam,
meias vozes no ar zombeteavam ; e por ven-
tura a chacota redundaria em apupo, se o vio-
loncello de repente não faz voltar as attençoes
dos maltezes para os primeiros apellos da se-
renata que Mephistopheles diz, por debaixo do
balcão de Margarida.
É uma terrível coisa, vaga a principio,
penetrante e glacida a um tempo, a verter de-
líquio amoroso por todos os gemidos, perversi-
dade satânica por todas as rizadas, c com
volutas por onde sobem e descem roldões de
desejos e ideias que contrastam, injurias que
principiam por supplicas, escarneos que vão
acabar cm extasis divinos. . .
Assim como do hymnario dos symphonistas
primevos, sobe o disco vermelho e oiro da
aspiração terrena para os cimos, assim d'aquel-
la monstruosa injuria ^\o diabo á innocencia,
OS C IT8S 33
uma língua de víbora rompe a imbuir peço-
nha em iodas as almas, do preciso instante
de as prosternar, estonteadas de paixão.
M i- que eternidade viva a d'essa musica !
Que intensa alchimia psychica a d'essa sere-
nata, de cuja fúria corações escarchados pu-
lam ainda, com virulências d'amor extra-
animal !
oh como o possível do aú-ddá estremece
nos sens flancos, e como os seus gemidos fe-
cundam a culpada terra de presagiosl A ras-
tos do seu echo vc-se uma aza tremendo ainda
por librar-se aos mundos da pureza, quando
já um caprino pé bate compasso ás farandoles
cynicas do vicio. E quando finalmente ella se
firma, por gradações mal sensíveis, na pertur-
badora nupcia d'aquelles dois sentimentos an-
úcos, o amor e <> escarneo, súbito, o ou-
vido perde a noção do instrumento que a
nuança; direis que falia então uma bocca de
carne, uma DOCCa de mvllio, em que um dos
lábios fosse d'anjo, e o outro lábio tosse de
demónio.
34 OS GATOS
E começámos a revivera scena goethiana,o
bandolim do diabo desviando Grctchen da pre-
ce, a rua esconsa, de cidade medieva, nevoen-
ta a deshoras, cheia de silencio c casas de gra-
nito, nichos fumosos, lampeões na agonia...
e o tentador concitando a donzella a vir escutar
■a serenata, tendo Fausto na sombra, e sobre
o gorro as duas pennas de fogo a esgrimirem
no ar, como floretes. Aquillo rápido, febril,
relampagueante, como uni illusionismo de vida
desenrolado n um cérebro cataléptico, mas in-
tenso, inolvidável, profundo, porque a virtuo-
sidade do artista era um completo prodígio
d'intuição psychologica, e havia no jogo d'elle
um mordido pictural, a restituir, formidável e
completa, a impressão dramática que o toma-
ra, á simples evocarão mental d'aquella scena.
OS GATOS 35
Ini];i a serenata nem esboçará os primeiros
lineamentos melódicos, já um movimento d'in-
teresse friccionava o dorso de todos aquelles
ásperos matullos.
A rudeza faz com que os homens do povo
tenham o espirito em fragmentos, mesmo ape-
zar do coração lhes bater d'uma só peça. Pela
quasi completa carência «l»1 methodisação no
pensamento, a imaginação d'elles, como a ra-
zão, tem grandes ooites, e só por instantâneos
relâmpagos fulgura. É ouvil-os fallar, reco-
nhecer nas conversações de muitos, pontos
foeaes de rectidão, bom senso e intelligencia,
grandiosos, finuras singulares, isto per-
dido n'umossuario <lii disparatados e confusos
solliloquios.
Que admira pois que um homem culto vi-
sione a musica d'um jacto, emquanto o popu-
lar exige tempo e suggestões exteriores auxi-
liares para fazel-o? Quando, depois da phrase
ma Vamico favorito, os dedos de Sérgio foram
por cima dos bordões do violoncello, a imitar o
rir do diabo, com uma malignidade humana
incomparável, no calafrio «los corpos sentiu-se,
como no ralo oppresso dos gorjas, e no galgão
dos hombros movidos para o mesmo ponto
36 OS GATOS
da sala, sentiu-se, dizia eu, que um grande
esforço mental se estava fazendo em todos os
francos, c que esses homens do povo tenta-
vam esfarrapar interiormente um grande cer-
raceiro, para attingir a nitida visão d'essa tra-
gedia ({ue a mephistophelica musica interpre-
tava.
Do que elles se haviam apercebido logo foi
do cynismo da gargalhada lívida, intercadean-
do-se aos haustos de horrivel magua, que
põem n'aquelle canto, como uma dolorosa som-
bra no escarneo. E com os cotovellos na ban-
ca elles torciam-se, pedindo suggestões ini-
ciaes d'onde partir pr'a visualisação : e bem
depressa uma loucura phosphorejava nos olhos
de todos; raivas nervosas quebravam as unhas,
como animaes de preza, d'encontro á impotên-
cia do esforço — até que de repente um velho
cor de bronze, todo rasgado no fato como um
doido, se ergueu de sobre o banco em que
estivera, c meio bêbedo, circumvagando os
olhos (Vagida, deu com o idyllio da raparigo-
ta e do carreiro, perdidos na sombra que o
piano deitava sobre o canto de mesa adjacen-
te...
O rompante d'esse carregador enorme e ju-
os GATOS 37
piteriano, levara na direcção do sen olbar, os
mais olhares ; «' àlli se fez então, ua lucidez
de todos, a revelação visual da serenata.
Resvalado assim <l<>s paramos da musica,
para o real, o drama de seducção plasticisou-
se desde esse instante, nas três figuras da
saloita, de Sérgio e do carreiro, e com tão vi-
vo crescendo d'impressão do auditório, que
Fausto fugiu logo com o braço ua cintura de
Margarida, desviando as pernas tremulas do
calor seminal «las suas saias, a assoar-se com
grandes roncos de disfarce, emquanto a risada
de Mephistopheles morria em echos sardoni-
pondo o mau estar d'uma placa que
falso sobre a mezinha de cabeceira d' uma pula.
\o contrario do que haveria succedido an-
tes do violoncello concitar Margarida, para
38 OS GATOS
as aphrodisias toxicas da culpa, lodo o bote-
quim começou a murmurar da canalhice de
Fausto, e a deixar transparecer pela pequena
simplesmente uma ironia benigna, misturada
de piedade e de desejo. Os dois agora, lodo
o seu desejo era siiiuirein-se nas profundezas
da terra, escapar áquella infamante exhibição
dos seus arroubos, sahir da kermesse incólu-
mes, sem saraivada d'apupos e assobios, .lá
elle correra a aba do chapéu p'ra sobre os
olhos, afogueado, batendo na mezacoma qui-
na do dinheiro, prestes a sahir; enupianlo ella,
meio erguida, eslralejava os dentes de terror
d'encontro á chicara, e engolia o caffé quasi
a ferver, entornando-o por cima das roupi-
uhas, olíegaule, o olhar descido, OS beiços
brancos, n'um assomo d'angustia inexprimível.
E d'alli a bocado clles sahiram; o homem
puxava as calças, á porta, fingindo um dia-
logo de despedida com a lavadeira. Deram
assim alguns passos na rua, de mãos dadas,
escutando as chuffas que a partida motivara,
e fugindo ás luxes, com uma prestesa de (piem
conseguiu escapar-se a um supplicio atroz
dVmpalaçào.
Já mais além, numa ilha de sombra, como
OS GATOS 39
elle a conservara presa por um braço, fallan-
do-lhe ao pé da bocca, com a solercia da sua
bestial virilidade, eu vi-a de repente fazer um
safanão para fugir. I»»1 novo, um tremor ner-
como fazia zig-zaguear sobre a parede ;i
sua silhoudie devirgem aymphomanica, deba-
tendo-se entre a preconcepção d'uma hora de
deboche, e os presagios da vóz do violon-
cello, cujo diabólico rir lhe historiava talvez
;i vida 'In prostíbulo, e as agonias sem fim do
hospital.
Estiveram assim por muito tempo: ella a
fugir, elle agarrando-a : e pela cadeia das
mãos a luxuria do homem transflltrava-se
toda, por desfallencias hystericas, ao appare-
|]k> de gozo innato, ao útero servido por or-
-. que ella era. E eu vi-a estortegar-se
assim mais d'uma hora, como uma ciosa gata
que se esfrega, em delíquios, por um sacco
de raiz devaleriana... Vi-a voltar-lhe as costas
dez vezes, já livre, e outras tantas convergir
como sonâmbula, á perdição de lhe sentir a
carne, espedaçal-a — e agora louca, já sem re-
ceio dos apupos, mostrando <> rosto, e convi-
dando-o, tentando-o, na esfuriada obsci
erótica que a rola !
'iD OS GATOS
Evidentemente que se eu possuísse a ter-
ceira vista que William Crooks diz que ha-de
assistir aos últimos homens, quando a dege-
nerescência houver feito dos netos dos ne-
vropathas actuaes, raehiticos seres com cabe-
ças il»1 génios e adivinhos, môvendo-se irres-
ponsavelmente, por suggestões longínquas e
theogonicas, sobre um cadáver de inundo des-
actuado pela fecundação dos raios solares : essa
terceira vista me faria ver sem duvida, como
ao Macbeth na sala do banquete, sahir um es-
pectro da terra, Mephistopheles, o génio adunco
de todas as malevolencias psychologicas, cor-
lado em morcego de purpura, e descrevendo
deredor da mulher as suas grandes espiraes
funestas d'impulsor.
Mercê do endemoniuhamento que oviolon-
cello pozera no idyllio, esse Mephistopheles
deveria ter, sol» a calote de fogo, a cabecinha
estreita de Sérgio, ioda feita d^accentos cir-
cumilexos, e espiritualisada em mascara de
bode de sabbat... .lá a intervenção d'este ter-
ceiro typ©, na scena, me trespassava, não sei,
d'um glacial horror té á medulla, remexendo
na minha razão as íundalhas de loucura pen-
OS GATOS 1 1
sanle que lá vivem, á espreita da hora em que
devam precipitar-me em Rilhafolles.
Mesmo, houve um momento em que eu vi
Positivamente em pó, por traz da rapariga, o
tentador terrível alongar as unhas, como de
•l1"'"! fosse desencrasaHbe do seio as radicu-
las ultimas do remorso; e forçoso me foi cha-
mar alguém, Umto a allucinação visual entra-
ra em mim !
""!'■ tranquillo, posso analysar sem partir
i extraordinária perturbação mental d'esse
minuto. Procederia ella da tinta delirante sob
'l,lr eu vejo, de na uns tempos para cá, todas
as coisas dramáticas ou triviaes que me cir-
cumdam ?
Emtanto é certo que eu não phantasio, ao
'' "ina forma escarlate enredar
nas suas espiras sinistras, a mulher. Explico
0 phenomenoporuma aberração synergica ^^
eixos oculares, resultante da fadiga dos glo-
bos irritados pelo calor do eaffé, pelo reverbe-
ro das luzes, pela entoxicação talvez do ramo
,,n tobaco, e mais remotamente ainda pelo
dvnamismo anormal em que a musica mepoze-
cerebro, bereditariamente propenso já de
si, ás meias-visões macabras da alta uevrose.
.^2 OS &ÀTOS
^
M
.Estou a vèr o carrejão bovino a enlaçar
nos galfarros dos dedos a pequena, este grupo
movendo-se numa reintrancia de beco sem
lampeões, que a sombra alaga, por entre incer-
tezas de fundos movediços, e perspectivas fal-
sas de planos e d'arestas.
Da falta de luz do largo, e do estado efTe-
ctivo e mórbido da minha ideará.), teria re-
sultado, supponho, uma de duas :
_0u a incoordenação dos meus eixos ópti-
cos desdobrou o grupo das duas figuras, vendo
eu quatro, uma das quaes se perderia em som-
bra, cmquanto a outra, tinta na purpura «rum
reverbero de camas para pernoitar, pousava a
distancia, como uni ser de verdade e expiação.
— Ou a percepção real do grupo amoroso
me serviu simplesmente para evocar imagens
OS GATOS 43
cerebraes, que Be objectivaram, dando nascida
á imagem allucinatoria do diabo, igualmente
avermelhada, pelo clarão da lanterna do pros-
tíbulo.
Esta visão porém fôra instantânea, e rá-
pido o frio da aoite restituirá ao meu sèr pen-
sante a integridade. Atirei o charuto, disposto
;' caminhar p'ro meu destino, quando o chu-
visco engrossou de modo que tive de me aco-
lher, quinze passos além, u'um vão de porta.
0 reverbero da hospedaria era fronteiro, a fil-
trar coágulos de sangue sobre as poças da rua
lamacenta: luz sem reflexos, deixando a treva
espojar-se nos pavimentos baixos do prédio,
como um animal d'esponja e de carvão.
rânto a difiusão da luz era medíocre, que
os meus olhos de míope não poderam discre-
par «'ih começo mais que uma brecha de som-
bra na sombra, demarcando o portal da casa,
e sobre a lama a mancha clara d'um gato que
atravessou direito a ama sargeta... Mas pouco
;| l"»1"'" ;| pwpilla acomodara-se-me ao bastidor
de noite queera esse becco de viella miserável,
e vi que sahia um pulso do portal, um pulso
de homem comido pela treva do corredor que
dava accesso ao valhacouto, agitando no ex-
*
y OS GATOS
tremo ama formidável mão toda de dedos, re-
sumo e cúmplice do dono, agarrada á saloia,
nmi uma persistência de Liana que vive e me-
dra peias seivas do tronco a que se enrosca.
o movimento de sucção e de palpar des-
ses dedos de carrejão lascivo (que dir-se-hia
ejacularem spermas de gozo por cada contacto
de papiua nervosa da mulher) é uma coisa que
jamais em minha vida esquecerei. E ella cir-
cumvagavao olhar de corça ao de redor, de-
batendo-se já sem energia, u'uma nubilidade
febril debacora ciosa, e exasperada, quebra-
da como apetite d'uma arma que brutalmen-
te a rasgasse, até aos mus fundos poceiroes
,la maternidade o do prazer.
Dois minutos aquella mão tateou assim -
braço .la mulher, que se deixou tragar final-
mente pela porta, e desapareceu a reboque do
pulso, emquanto o mortiço gaz dava a rubes-
eencia «la lanterna as contracções d'um útero
titiiado, e o violoncello de Sérgio começava a
gemer lá longe a maldição de Mephistopheles.
Souviens toi du passe,
Quand sons 1'aile des anges
Abritant mu bonhenr. ..
os ga ros
;:.
A pretexto d'assistir ao baptisado do filho
duques d'Aos1 l, foi S. \. o príncipe real
visitar ;i exposição. Não esquadrinharam os |or-
riajaria por conta própria, ou estipen-
diado; nem petos telegrammas se infere que
;, peregrinagem d i príncipe houvesse outro al-
cance diplomático, além d'aquelle que põe os
patai [ ios ás mezas uns dos outros, <•" as
gran- . a permutar dilates n'es-
rranciú cosmopolita, que os discursos da
1 1 classificam depois tf estreitamento à
■
>r porém os telegrammas foram parcos em
ilterar a avidez justissima <!<> povo, quanto
á missão politic l». Carlos, por outro
lado exultem o que elles nos dizem «la
attitude mai r S. \.. no precurso de
todo " regabofe.
indo a liavas-, o príncipe, apenas pôz
o pé ii i '. fez-si logo guiar ao bazar
de três vinténs do Melicio, no pavilhão das
Artes, onde esteve assentado; e em seguida ao
arma is Caldas '1" Bordallo, no
esteve sentado também ; e
i ifl '. cm cujos andares,
, red es e gabinetes, com hom-
40 OS GATOS
bridade egual tomou assento. Recepção da co-
lónia portugueza, sentado. Conversação com
o língua Marianno Pina, sentado. Jantar ao
comité, sentado. Comédia Franceza, sentado.
Sentado recebe as felicitações dos enviados
de Carnòt, sentado dá beija-mão aos lambedo-
res officiaes d'estremidades, sentado deixa a
Franca, sentado chega a Itália, sentado assiste
ao baptisado do primo, vae esperar a tia Mar-
garide, dorme, esvida-se, passeia...
Por esta insistência do telegrapho, parece
• pie estar sentado foi o sacrifício que S. A.
houve por bem fazer lá por fora, de mais ca-
valleiroso e producente ao prestigio europeu
dos seus estados. Não é por tanto um prínci-
pe, é um assento.
.lá um fino humorista, ferido pela preferen-
cia que a obesidade dava, em S. A. a mu dis-
tricto do corpo onde a gordura até então fora
apanágio exclusivo da Vénus hottentote, o de-
finiu nVstes dizeres — pretexto para umas
nádegas.
\ accrescentar, com os telegrammas na
mão— de que elle por signa! abusa um pouco.
OS liATOS
Al
Vai cm dois annns que o Repórter quoti-
dianamente produz um boletim sobre <>s fíga-
dos dos seus co-proprietarios e redactores. Se-
gundas, quartas e sextas, trezena ã hepatite do
dr. Marçal Pacheco, mais estremecida hoje nu
Europa do que as varises «las pernas de Bis-
marrk.
..... porque " nOSSO glorioso ami.ur<>, inex-
plicável parlamentar, e nunca assa/, chorado
jornalista, etc., 'á vai indo melhor das lalen-
h.sissimiis cacholas, sim senhor: razão por
que nos trocou hontem pelo Algarve, para
onde partiu a dar escoante á bilis que <> Lam-
busa. Com as duas mãos no coração, d'aqui
endereçamos a Pacheco, uma das mais lumi-
nosas intelligencias do parlamenl las pes-
carias d" Algarve, votos do mais sincero ju-
bilo, ele. ...»
Terças, quintas e sabbados, trezena às ca-
chollas «lo <\v. Alpoim, com ladainha idêntica
á> melhoras, e os mesmos gloria in exeeUis as
qualidades mentaes do viajor. A differença do
lausperenne consiste apenas, para os dois, na
menção <\>> ponto de chegada, e no qualificativo
anteposto á intelligencia de cada um. Por exem-
plo, Marçal, quer vá para Paris, quer para o
''s os GATOS
Algarve, é sempre unia das mais luminosas.
Alpoim, quer tome bilhete para Lamego, quer
para as Pedras Salgadas, nunca deixa de ser
uma das mais esclarecidas. Claro está que este
modesto epitheto desnivela Alpoim, de Marçal,
na adjectivação da casa, pelo menos, sem lhe
tirar todavia o usufructo do cumprimento em
lettra redonda, escripto á partida e á chegada,
com as duos mãos no coração — conseguinte-
mente com os pés.
Esta cantata dos fígados, tracejada pelo
Repórter como pretexto para um reclame aos
miolos, dá que fallar nào só por Lamego e
Loulé, como pelo restante paiz também, onde
os fígados dos dois conspícuos parlamentares,
mesmo enfermiços, quero aventar que sejam
talvez ainda mais apreciados do que as iscas.
Por ventura a concorrência dYsle saboroso pe-
tisco, á celebreira visceral dos dois preopinan-
tes, levaria o Repórter a atirar assim prodiga-
mente ás voracidades da turba, com ellas ou
sem ellas, o cacholame cirrotico dos seus...
— ínvio periódico que dás de merenda aos
assignantes, as miudezas da tua própria redac-
ção! Calumniado Prometheu que jamais em-
palmaste do ceu o fogo sacro — tu que tens
OS GATOS i't
sacro, é certo, mas sem outro fogo celeste
além do hemorroidal ; e se alguma cousa em-
palmas, Dão é rogo, bI oticias; e essas ja-
mais ;í habitação dos deuzes, mas á reportage
dos outros camaradas !
Quando nos boletins diários da tua hepa-
tite caseira, oiço gemer o coração do enterne-
cido localista, e ao Jornal dosJornaesie sinto
a língua, vem-me a suspeita de que tu Dão
sejas talvez como jornal, obra d'espirito, mas
••••li! esses penduricalhos de Bgado, coração e
língua, pura e simplesmente uma esbeiçada
loja de fressura.
Ah ! toma lento, Repórter, toma tento !
— A gloria, que levanta estatuas aos que
padecem tTideaes alevantados, Dão sei por
que, esquece-se quasi sempre de registrar o
nome dos que padecem dMctericia.
0 Daily Telegraph ofterece á- cogitações do
publico britannico, um difllcil problema, qual
o de se averiguar Be as mulheres devem fumar
ou não.
50 OS GATOS
Chovem rai-las á redacção do Daily Tele-
graph, na maioria opinando que visto ser o
tabaco um excitante intellectivo, e equipara-
rem-se actualmente os dois sexos na concor-
rência à lueta pela vida, quer por via da scien-
cia, quer por via da industria, quer por via da
arte, nenhuma razão plausível d'ora avante im-
pedirá que a mulher fume.
Completamente d'acordo. Somente na pra-
tica de mais este vicio, nós quizeramos que
«lia não feminilisasse o tabaco, attenuando-llie
os cfteitos por meio de macerações mui pro-
longadas, e só levando aos lábios, por pura
pose, de quando em quando, uma palliativa e
magra cigarrilha. Esta pratica, que vem per-
turbar a puresa do hálito ás senhoras, nem se-
quer ao menos lhes facilita, pela esthesia ner-
vosa, as locubrações do pensamento. Por con-
sequência, madamas, ou V. E\.« esquecem o
tabaco, ou então passam a só fumar charutos
de homem.
Em 19 de outubro, pelas 1 1 horas e 5
minutos da manhã, morte de S. M. o rei D.
Luiz, no palácio de Cascaes.
Desde muito se previa desfecho trágico á
os BAT06 -<\
enfermidade do pobre agonisante, cujos úl-
timos mezes foram um martyrio cruel de to-
das as horas, quer Latejando nas garras da
tortura physica, quer nas da intriga palaciana,
de sobejo por elie adivinhada atravez as con-
solações ambíguas dos fâmulos, aborrecidos já
de tantas noites perdidas ao de redor da sua
paralysia.
A doença do rei foi uma coisa obscura para
todos, e acerca d'ella mil contradictorias ver-
beram correndo as folhas dos periódicos,
wi-vr.cs que uns attenuavam, e exageravam
outros, conforme o interesse partidário <>u pes-
soal ligado á conservação ou á aniquilação do
soberano.
Da bocca th^ facultativos do paço, nem
uma palavra coada ;i tal respeito. A uma, o
segredo profissional, n'aquella altura solemne,
mercê da hierarchia altíssima do enfermo, in-
hibia-os de qualquer informação precisa ou
cathegorica. \ outra, a policia da rainha,
bre sequestrar <I<» paço os indiscretos, com
tal arte assediava os assistentes, <im' lli«'s ín-
ria pagar com o desfavor do throno a m;iis li-
geira indiscreção d'algum, cá fora, aos ouvidos
imprensa e da opinião.
52 <>S GATOS
Comprehende-se emtanto a anciedade ge-
ral, perante aquella mysteriosa agonia passeada
de palácio era palácio, quando entre as locaes
optimistas dos jornaes do governo, e os som-
brios prognósticos dos jornaes da opposição
(os dois jogando os dados com os últimos dias
do rei, com o sentido no ganho das próximas
eleições) um campo de cogitações se abria,
enorme e vago, aos receios de uma súbita ca-
tastrophe que alancearia de magua o espirito
publico, ainda não preparado a vèr no throno
outra cabeça que não a d'esse bonacheirão o
sceptico 1>. Luiz.
Todos á unia, incertos da duração d'essa
vida de rei, previam já o instante em que a
paralysia das pernas lhe subisse aos braços,
em que a sclerose cerebro-espinhal lhe es-
tendesse a abolição sensorial, do ouvido aos
olhos, tornando o enfermo n uma espécie d'es-
tranho morto-vivo, paralytico e cego, gastral-
gico e mudo, consciente e deliranti — alimen-
tado por uma sonda, despejado das urinas por
outra, parindo as teses a ferros, phlyctenado,
hediondo, coberto de escaras, e contaminan-
do-se, pesadello horrível! d*essa podridão va-
garosa, methodica, generalisada, atrocíssima,
os GATOS ■'••
sem pressa, em que os tecidos eps órgãos, já
decompostos, ainda para assim dizer fingem ler
vida, e "mii que a dor remorde o intimo do
ser continuamente, mil vezes mais fulgurante
(|() que mm organismo integro— porque o sup-
pliciado tem consciência (fella, e já nem se-
quer pode jogar a voz p'ra se queixar !
Em tomo á cadeira de rodas em que os
lacaios passeiam da alcova para o terraço,
este cadáver Incido e nostálgico, reconstruir
u,,, drama é coisa fácil, a quem se lembrar
de Frederico n d'Allemanha.
os velhos servidores, receosos de per-
der o prestigio na corte, quando esse rei sor-
rir pela ultima vez, pallidamente, às arttficio-
consolações que lhe trouxerem. São os
ministros, lívidos como grilhetas, e acossados
como cães, n*um canto da antecâmara, a du-
vidar se acharão no caracter do rei novo,
aquella amável tolerância com que sempre os
recebera o rei finado. Sio os chefes da opposi-
ção, esfaimados por seis annos d'exilio, circum-
,,,,!,, de roda ao crepúsculo real as cynicas
figuras, a especular chim a impaciência febril
do herdeiro do tnrono, cuja memoria é boa,
e t;iii presidente de consell [ue primeiro
Vi OS GATOS
o Iractar por magestade. É a Igreja que Qão
quer perder o final d'acto, c a cada momento
espreita á poria, impaciente, com as sagradas
vestes n'uma trouxa, aguardando a hora em
que naja de fazer engulir ao viajante o pão
ázimo, como um bilhete de primeira classe,
para a viagem das siherieas neves do outro
mundo. E finalmente a rainha — ia a dizer a
imperatriz Frederico — soberba e esculptúral
nas suas grandes roupas, os seus olhos ^es-
tatua dolorosa, a pallidez de Juno despenha-
da, arrastando-se sem forças, de sophá para
sophá, lassa de vigílias sem conta, allucinada
já de ciúmes sem refrigério, agarram lo-se a to-
das as vergonteas da esperança, pedindo á
sciencia a resurreição d'esse cadáver, promet-
tendoa Deus magnificas offerendas; e logo re-
negando Heus e renegando a sciencia, ao sentir
as suas lastimas quebrarem-se d'encontro á mão
de bronze do destino, (pie a relega, magnifica
orgulhosa, á semi-sombra (ruma vida subal-
terna, tão asphyxiadora para os predominios
theatraes da sua grande raça.
E, fatalidade d' um cargo que tantos inve-
jam como supremo pináculo das grandezas da
terra ! — fazendo tremulo ãquella agonia do
OS QAT8S 55
monarcàa, não tia talvez uma única lagrima
sincera, uma lagrima só, que evaporada deixe
Q0 cadinho outro resíduo além dHmpuras coi-
sas, ambições resvaladas, prestígios findos, ia-
voritismos em naufrágio — lagrima que refran-
ger podesse a pura essência da angustia sem
mistura, essa liqmfaceão ternissima da alma,
que provocam no coração dos simples, <>s que-
ridos mortos que d'este mundo se vão sem blas-
phemar. Oh, é cruel, pensar que mau grado
a sincera intenção talvez de todos os come-
diantes d'aqoelle drama lúgubre que linda, ne-
nhum d'elles possa exhimir-se á suspeita de ter
vindo alli chorar por partí^prís, apenas a me-
lancholia d'um, poderia mostrar-se como uma
Goisa isempta d'egoismo: mas esse reviravol-
teavaem velocípede, sobre a esplanada dopa-
,-,.. qo dia em que os médicos tiravam das
pernas de seu pae, pedaços de tecido em gan-
inrenal
56 Q8 GATOS
Fecha os olhos o rei, e o panno tomba so-
bre o quadro dos physicos que lhe agarram
com pinças, sol» uma chuva de phenol, na car-
ne que vem aos bocados, e sobre que já uão
é possível produzir a mumificação pelos anti-
putridos e balsâmicos que manda a pragmáti-
ca. E porque se desarma o tablado dos appa-
relnos fúnebres do cenotaphio, quando a car-
caça do pobre litterato vai engrossar o fumeiro
real de S. Vicente, não se persuada o leitor
•pie o drama finda, visto como, apenas se
representou ainda a primeira parle d'uma vi-
brante e grandiosa triologia.
Recompile se pode a summula d'essa pri-
meira grande peça histórica, que leve o palá-
cio d' Ajuda por scenario, e levou vinte e oito
annos a representar em Portugal.
Logo no prologo figura um rapazola, loiro
e bonito, bravo c leal como um cadete, que
teve d'abandonar o seu navio de guerra,
quando uma noite, estando a jogar com ca-
maradas, lhe vieram dizer que seu irmão, o
rei, tinha morrido. Nada na sua vida de bordo
attestaria as saburras selectissimas do seu san-
gue, se não lura o tratamento (Falteza que lhe
davam, tanto a sua expansiva gentileza, a cris-
OS G kTOS r»7
talinidade, a graça, Faziam d'elle um doidiva-
nas d'escola, um jovial fettow de convez, cora
a paixão das viagens, do jogo, do vinho edas
mulheres.
Em Vngola, onde esteve aguarellando pal-
meiras e bebendo cognac, <, governador pre-
parou-lhe ama espécie de revolta com solda-
dos e pretos ensaiados, persuadindo-o de ter
sido elle o abafador da sedição. Ao baccarat,
muita vez lhe succedia perder tudo, e pedir
dinheiro aos mais modestos guarda-marinhas
que o cercavam. E quanto ao amor, o adorá-
vel rapaz tanto seguia á risca os preceitos de
I». Sebastião o casto, seu parente, que até lhe
imitou ;i aventura de que falia picarescamente
<> chronista *e como houvera calornas casas da
marqueza, & deect i rua das fermoeae
de quem houve molesti
Para o Mn-.. um, onde o assentou a morte
d'um rei que i;i começar a ser funesto, eil-o
trazendo a bonhomia fundamental da sua raça,
qne é uma espécie d'atrophia da vontade,
complicada d'uma espécie de velhacaria. En-
tretanto .1 sua alegria tempera-se, a sua impe-
• • offlcial de ma-
rinha pandego e sensual, d'essa espécie d*edi-
4
58 os GATOS
çãO anterior do infante D. AlVonso, brota nin
personagem qovo — o estudioso pachorrento,
,» sceptieo risonho, o grande corruptor bem
humorado, que estudou nos livros a lei da
reedição periódica dos caracteres, que soube
amaciar as verduras juvenis pelo convívio das
artes e das lellras, que aprendeu a procurar
nos homens a repercussão do mesmo ponto
fraco, e a valer-se dVlle emtim para os do-
mar sem ruido, nem apparente esforço, nem
precipitações, nem compromissos.
Aos conselhos de nm grande homem dVs-
tado, ([lie o adorava, deveu elle o levantar 0
respeito d»1 si próprio á altura de uma força
inexpugnável, e o desprezo pelos outros a ca-
thegoria d nm lemma governativo, inillndivel
—o todo involiicrado em laes formulas d'afle-
etuosidade e deferência, que mesmo nas snas
crises violentas de caracter, jamais alguém
lhe viu nm lie que atraiçoar pudesse os exte-
riores da mais correcta inpersonalidade. Poucos
monarchas haverão seguido mais ao rigor as
praxes constitucionais, que fazem do rei um
ídolo de barro, omnipotente e inútil, sagrado
e subalterno, investido de poderes platónicos,
quasi sem responsabilidade nem exercício, as-
06 G I.TOS 59
signando de cruz, discursando d'ouvido, e fa-
zendo por toda ;i parte a caricatura d'um Deus
contemporâneo, d'um Deus de Roma, que falia
aos peccadores p< la bocca dos seus padres, i
nem sequer é responsável pelas calamidades
que elles acarretam.
Sabendo o pi eço de todos aquelles que o
cercavam, e adivinhando pelos sarilhos jorna-
lísticos nu parlamentares dos que ainda vi-
nham longe, approxiroadamente o que esses
Ihr viriam a custar, era exímio em receber-
Ihes os botes imj assivel, té ao momento em
que <> inimigo se lhe tornasse perigoso ou ne-
cessário, e urgisse, para montal-o manso, <in-
gir-lhe ao dorso uma vistosa albarda <li' mi-
nistro.
Das três gei i - n *as politicas sobre <|in'
assenta a constituição do estado, a represen-
tação popular, a coroa e a camará alia. todas
file pezou ií i tra sagacidade d'alemtc-
jano «■ de allemão, loiro e sabido. Posto o seu
conhecimento • < - sen ien i e da torpeza
dos homens, p isto <> inabalável conceito em
que se tinha, a - :onducta 'li' rei salta il<-
chofre: lazer das duas camarás i"<la<lns paia
n throno, atrelar-lhe os ministi >s como bri-
f>0 OS GATOS
does esparvonactos, e guiar elle mesmo o carro
sósinho, mas sans eu avoirVair, e conservando
aos cavallos a illusão de serem elles os co-
cheiros.
Este domesticar da fera humana, pela im-
passibilidade risonha d'um só homem, cuja
força única eslava apenas no orgulho hierar-
chico, ao passo que faz do rei um dos maio-
res desprezadores de homens que tem havido
em Portugal, por outro lado nobilita-o, porque
entre a jolda de gorilhas cynicos que é a ca-
mada dirigente do nosso paiz, aquella figura
era das poucas que parecia marchar na vida,
amparada ao respeito inabalável da sua mis-
são.
Na sua maneira de corromper havia ama
suprema finura intelligente, calculada por for-
OS GATOS M
ih i a não humilhar jamais o corrompido, e •»
deixar pairar fora de qualquer suspeita gros-
seira, o corruptor. Por occasião do snr. Ma-
rianno de Carvalho escrever no Popular :is
catilinarias celebres da capa de ladrões, o ca-
ricaturista Bordallo produziu no Álbum das
Glorias uma figura do rei, que aparte o pro-
pósito satyrico, visiona aquella particular fei-
ção do seu caracter. Representa ella S. M. :i
caricaturar o jornalista, que está de barrete
phrygio, em mangas de camisa, ;i fumar um
cigarrinho: e sublinhando o desenho, o sor-
riso do rei guarda essa expressão indefinível,
que era sempre a d'elle em publico, riso mor-
to de lábios exangues, lábios franzidos, riso
p'ra dentro, que podia ser tudo, fastio, bon-
ilade, lassidão, firmeza ou comedella, mas que
i olhar illucida a'uma palheta de reflexo
insupportavel, não pela agudeza, ;i<» contrario
— pela proposital vacuidade.
M;ii< tarde, quando já o pamphletario 'I"
Popular seguia ;i familia real na viajem ao
norte, ajaezado n'essa hrda »l<' castellos, que
é a camisola de forças dos furiosos açulados
contra o throoo, aconteceu passar o rei no
Uom .1 1--. 1 1 - , por entre duas cazotas de corpn-
»'e2 os GATOS
lentos cães dinainarquezes. Um d'elles magro,
escanzelado, formidavelmente colérico e auda-
cioso, começou a ladrai' ao rei com grandes
vozes; emquanto o outro nédio, tendo acabado
um repasto de ministro, se viera arrastando a
um aceno da luva moderadora, ate ás grades
da jaula, na esperança de passar a língua hu-
mildemente, por cima d'aquillo que mais con-
dissesse á vontade real. . .
Dizem que S. M. se voltara então para a
rainha, e a meia voz dissera, apontando-lhe
c'o beiço alternativamente o mastim fero e o
mastim sarrafaçal :
— São assim todos, antes e depois de co-
mer.. . na Ajuda.
Estahaveria sido talvez a única palavra on-
de o sarcasta revelasse a convicção da sua esma-
gadora superioridade moral sobre os demais.
Habitualmente o rei comprazia-se em vencer
sem honras de guerra, em conquistar, mas sem
exhibição de prisioneiros, certo de que quan-
to mais se apagasse por traz do seu biombo
constitucional, tanto mais a influencia da co-
roa iria crescendo sobre a matulla dos homens
públicos histriões dos seus estados.
Assim elle poude ascender som protesto.
(is GATOS
63
lentamente, seguramente, de simples orago
Dominai da egreja politica, á <i":,si omnipo-
tência «rum Jehovah conciliador mas firme,
bonacheirão mas gajo, distribuidor de todas
as graças e fortunas politicas, mola real «I»1
todos os manejos, e poder occulto de todas as
situações. Com mais rigor ou menos, eu po-
deria dizer «í1"' " Estado foi elle, durante os
vinte 6 oito annos que reinou.
Não que parecesse tolher Q'alguma coisa,
a observância formal da constituição que re-
ge as attribuições e funcções de cada poder do
Estado! Não que jamais cuidasse em facultar
ou impedira este ou áquelle, o exercício legal
,l,i auetoridade! Nem que violado bouvesse
alguma vez o património commum da liber-
dade, iM» que ella tem de sagrado, a opinião,
expressa pelo voto, pela palavra ou pela es-
cripta. 0 respeito real por todas aquellas re-
galias publicas, a que está >\>- guarda a lei
politica, tinha o ar de ser vivo e indiscutível.
Era um escravo da formula. Mas contradicção
estranha ! apezar de todos os seus rigorismos
de praxista, nem sempre, durante o seu rei-
nado, foi a constituição o Evangelho do po-
der; oem o sunragio quem indigitou sempre
(,< QS GATOS
os homens para a direcção dos negócios pú-
blicos; nem o mérito quem por direito de 9on-
quista se revestiu nos cargos de importância ;
nem as honradas famas que atiraram para a
•ainara real, os conselheiros; nem tam pouco
o culto da opinião (piem conservou no mando,
••> despeito dos clamores geraes, os funcciona-
rios puídos pela suspeita de crimes hediondos.
Elle affastava ou approximava os partidos,
conforme lhe convinha; prolongava ou encur-
tava nas mãos d'um grupo, o exercício do po-
der, conforme lhe fazia conta; e moderando a
impaciência d'este chefe, com deferências do-
seadas sabiamente... uma partida de bilhar
na Ajuda, meia hora de conversação n um Jo-
gar publico...; desviando suspeitas de favori-
tismo d'aqueiroutro, por uma espécie de fuga
simulada, para o lado da facção politica con-
traria; contrabalançando um esbanjamento
de dinheiros com a fundação à'uma obra phi-
lanfropica; escamoteando a sentimentalidade
publica com uma visita a um palco de misé-
ria, a instituição d'um premio litterario, meia
dúzia de coisas lacrimosas escriplas num jor-
nal d'incendiados, ou a postura d um crachá
no peito d'um comediante em ovação... Sim»
06 GATOS ou
o Estado foi elle. Nos seus mais complicados
fuDCcionalismos, nas suas dependências remo-
tas, oas suas minuciosas attribuições. Foi elle!
Muito embora as praxes constitucionaes não
fossem violentadas, os ministros guardassem
o aplomb de verdadeiros administradores, e a
Carta esfregasse, por debaixo do avental, as
mãos de satisfeita. EUe era ao mesmo tempo
poder moderador, suflragio <i camarás, aca-
demia das sciencias, ministério de beneficên-
cia, exposição de carneiros na Tapada, e
exposição de chitas na Avenida. Absorvia in-
do, substituia-se a tudo, estava por detraz de
tudo. E n*iini jantar intimo, pintando a um
amigo o lastimoso estado do paiz, a decadên-
cia das instituições, a feita d'iniciativa, o res-
valo da probidade cívica •' familial, o velho
Rodrigues de Sampaio disse uma vez:
— Portugal boje, é o rei.
Ninguém synthetisou ainda esta choldra
mais fundo nem melhor !
66 OS GATOS
Dado o prematuro fim de D. Pedro v, po-
deremos dizer foi 1). Luiz o nosso primeiro
rei constitucional. O seu reinado é a adapta-
ção infeliz a um povo de mariolas, d'um d'es-
ses systhemas políticos theorioos que a Ingla-
terra impingiu, nos começos do século, aos
paizes da Europa seus subordinados, sem pri-
meiro indagar se filhos de homens governados
a podei' de chicote, estariam aptos ;i espojar
sob um regimen de liberdade, outro modo de
vida que uào fosse o do desaforo e o da licença.
É o tempo em que uma aristocracia decrépita,
copulada por uma democracia impúbere e
desorientada, pare de si um estranho mundo
d'androgynos e de frustes, e cm que os mal-
feitores fugidos dos pinhaes já não atravessa-
dos por seges de posta, vem de casaca e de
farda, com gran-cruzes ao peito, roubar no
próprio portal das instituições, os transeuntes.
OS GATOS
67
Por toda .1 parte formulas luminosas, evo-
hés ao direito, estatuas de bronze ao devota-
mente e ao martyrio, hymnos á sciencia, e á
ignorância prédicas, e á intelligencia coroas e
>es.
... Em 1862, abertura da Escola Normal;
exposição do Porto em 65; em 67 abolição da
pena ultima; em 69 abolição da escravatura;
estatuas a poetas, a legisladores, a guerreiros,
i patriotas; travessias e estações civilisadoras
m' africa; caminhos de ferro, centenários, fes-
tas agrícolas... Dir-se-hia o alvorecer d'uma
era de oiro. este reinado. Uma espécie de res-
surreição 'I" século de Péricles, em que os ho-
mens fazem o balanço de todas as ideias, pro-
mulgam em dictadura a realisacão de todas
as utopias, e vão lançando o veio decisivo,
sobre os que bemereceram da pátria e da hu-
manidade.
\ cada momento se espera ver realisado
aquelle ideal de pau qp - Goncourts so-
nham m'uma sociedade que fosse uma aris-
tocracia de capacidades, aberta a todos, um
rno promulgando ;i extineção da miséria
.• da valia eommum, decretando a religião ea
justiça gratuitas, instituindo o ministério '!"
68
os GATOS
soffrimento publico, empenhado cm dar á in-
validez c á doença, uma hospitalidade admi-
ra v< d.»
Oh, mas que de chimeras e mentiras !
Aquelles ostentosos credos das borras, afi-
nal não vão alem dum reclame feito a publi-
canos. 0 humanitarismo romântico dos dis-
cursos e dos livros, não passa afinal (rum
travesti ridículo do egoísmo. Promulgam-se
roi/as sublimes, mas nunca se praticaram coi-
zas mais abomináveis. Sim, é verdade, nós
sacrificamos á justiça,— o que nos não impede
dYsperular c'o privilegio. Exaltamos a intelli-
gencia, mas vamos deixando ao abandono os
sábios e os artistas.
Fundamos asylos, mas prosliluiinos as mu-
lheres, e attentamos contra o pudor das crean-
cinhas. Abriram-se escolas— magnifico ! —
mas quem está ahi que saiba ler? Os con-
dcnmados já uào padecem a pena ultima ;
mas padecem a penúltima, que lhes prolonga
0 marlyrio, e é peor. Não lia escravos if.Vfri-
ca : ha-os mais perto, aqui nas ofíicinas de
Lisboa. Estações colonisadoras no Nyassa...
que é uma coisa que falia ainda nos descam-
pados do Alenitejo e Traz-os-.Monles. Caminhos
os GATOS
69
de ferro : só resta agora arranjar mercadorias e
passageiros. E quanto a festas agrícolas, <inr
bem cabidas seriam, n'um paiz que pelo me-
ãos tivesse, agricultura !
\ pavorosa descrença que hoje irapalluda
tudo, e afugenta os tímidos das batalhas da
vida, ao conluiar-se á cubica, ganha uma es-
pécie d'audacia fria e fauve, que desatréla ua
escalada da riqueza <• do mando, <>s audacio-
Vs classes dirigentes povoam-se de theo-
ricos que ninguém ouve, e d'especuladores e
bandoleiros que todos lemem.
\ politica é o balcão em que se vem reba-
ter por cédulas d'empregos e honrarias, as
mais bellas forças creadoras da uação ; e mer-
,\n bom preço das consciências, n'aquelle
mercado d'estrume contemporâneo, eis-nos
assistindo á deserção dos homens cultos, de
todas as profissões nobres e finas ; eis-nos tes-
temunhas da 'mania de todas as actividades so-
s iinlrii.ihl.-uir>. sciencia e artes, mercê
dos engajadores políticos que todos os dias
nol-as desguarnecem dos engenhos que me-
lhor poderiam fazel-as caminhar.
quinze annos, a ambicâ • de nós to-
dos í ser rico, seja como for : e ser ri<"'> em
70
OS GATOS
Portugal é hoje quasi tão difíieil como ser
honrado. A vida eomplicou-se d'exigencias,
sem grandemente alargar os praseres que lhe
deviam de ser correlativos. Subiu o preço de
tudo, e á medida que o struggh se faz cada
vez mais inquietante, o campo em que elle se
exerce cada vez é mais safaro e improductivo.
Por toda a parte, a pequena industria absor-
vida pelo monopólio; a posse da terra resva-
lando das mãos do camponez para as màos
do syndicato; o braço da machina substituin-
do o braço humano; o estrangeiro senhor dos
nossos portos, dos nossos rendimentos e dos
nossos campos; e o povo emíim explorado
por todos, pelo padre, pelo recebedor, pelo
deputado e pelo rei, sem recursos com que
valer ás plantações phylloxeradas, sem igreja
<»nde a religião de seus pães lhe custe apenas
a fé, sem lhear que o vista, sem escola que
0 ensine, sem hospital que 0 íracíe, e sem a
geira de terra que o sustente.
Nas próprias escolas superiores, a mocida-
de, perdido o sentimento da bierarchia scien-
fitica, e a consciência d uma missão superior
ás pequenas misérias do dinheiro, segue os
cursos sem enthusiasmo, só pelo fim d'arran-
OS € kTOS ~\
}<ir-<i\ e zombeteando o espirito da profissão
,-i que esses cursos dão direito.
A scteneia resvalou assim do seu pontifi-
cado espiritual »' supremo, a uma espécie de
forja onde se malham em vez d'engenhei-
e legistas, simplesmente imberbes aego-
ciaveis, particularmente cynicos e servis, arti-
gos de corruptella, < [ nc as famílias vão empe-
nhar depois as companhias de caminhos <l«-
ferro e aos comités eleitoraes onde aquella
farraparia tem valor. Coimbra por exemplo,
tem o monopólio dos oradores (a); Lisboa <v
Só na legislatura d'este anno vem á camará
de vinte e <>it" ;i trhita bacharéis novos em
folha, e ainda nem sequer desencasqueados das
bencias da batina universitária.
É conhecida a historia do conde <l<- Valbom en-
saiando o filho, nas ferias do primeiro anuo de 'li-
.1 discursar contra um governo imaginário,
Fornecendo elle mes os apartes, para acostumar
sangue frio. Tanto o menino estava
certo do destino alto com que o futuro viria
lardoal-o, que inda de fraldas .
ira que anda a estudar o meu lindinho?
untou-lhe uma vez o conde da Figueira.
— V<< minito.
72
OS GATOS
Porto reservam-se o fabrico de financeiros e
jornalistas.
E sobre estes ires typos de rufiões era vo-
ga, o agiota, o fallador, e o artigoleiro, é que
turbina, graças á apathia de cinco milhões e
meio de portuguezeSj o moinho politico, onde
durante vinte e oito annos i'ez farinha o ex-
ibido rei.
Estabelecido que tudo em Portugal corre
ao dinheiro, não vale apontar que a todos so-
breleve em importância, o agiota, e este tenha
nas suas mãos o artigoleiro eo fallador, tanto
monta dizer a imprensa e o parlamento, e
atravez d'elles, negue o diabo se pôde — a mo-
uarchia.
E verosimilmente o que acontece: jornaes
e camarás, quem não fôr do conde, ser do
OS GATOS 73
marquez, e quem Dão fôr Hersent, ser Bartis-
sol. Entanto esta batota publica sempre leria
ura ar menos devasso, se as cautellas apa-
nbadas no bolso dos políticos, pour la reussi-
/• </. Vaffaire, traduzissem ao menos o advento
de capitães portnguezes á execução das loucas
obras que os ministros fazem votar. . . para a
i dos dotes de suas (ilhas, e para o cos-
teio dos bric-â-bracs de suas esposas. Mas
nem sequer esta consolação resta ao paiz !
A iii la empenhada n'aquelle phrenesi de
corromper funccionarios, para construir por-
tos que estragam os rios, e caminhos de ferro
que estragam passageiros, toda ella ou qua-
si toda vem de fora. Mandam-na as judiarias
de Paris, os banqueiros d'AHemanha, eos la-
drões de colónias de Inglaterra. Ella soa nas
do parlamento, nas diatribes dos
periódicos, e nas concessões secretas dos mi-
nistros; tremula no pau de fileira d
e nos formidáveis titans dos novos poi
letra-se na magnificência dos contractadores
d'emprestimos, e na prodigalidade insólita de
certos jornalistas. Funda sem escrúpulos, por
onde quer que passe, o regimen dos trinta di-
nheiros, e a sua tentação, que rola dos gene-
5
74 OS GATOS
raies aos mais somenos pows-íwows do exercito
politico, afunda em dilúvios de lama as sagra-
das conquistas da liberdade, e o luminoso
prestigio entre que devera aureolar-se a ideia
do Poder !
A citarão de fados n'este ponto, além de
repisar infâmias conhecidas, só serviria a nos
grangear conflietos pessoaes. Quem reler os
jornaes dos últimos nove annos, quem recor-
daras legislaturas dos últimos quatorze, quem
st> fizer dizer ao ouvido os preâmbulos de
certas fortunas, e as biographias de certos
nomes, por demasia se illustra, á guiza de
concluir que nós somos verdadeiramente os
netos dos aventureiros por quem o snr. I).
Pedro iv repartiu, como recompensas de guer-
ra, os pedaços do reino usurpado á progeni-
tura, e os filhos d'aquelles deputados que Ro-
drigo da Fonseca só comprava feitos, pela ra-
zão de lhe sahírem mais baratos.
D,, resto, é um contrasenso exigir que os
costumes políticos sejam melhores que os par-
ticulares. 0 parlamentarismo não falhou entre
„ns, por mau regimen, mas porque não ha
formulas efíicazes para nacionalidades caducas
como a nossa.
S GATOS
Conclue-se d'isto a deliquescenci i da vida
portugueza, dos seus du] los aspectos da com -
ciência e da moral. Lá começa primeiro uma
separação completa e desdenhosa entre os in-
teresses da grossa massa da população, e os
da matilha que reparte entre si os dinheiros
rendas publicas, e se crapulisa n;i porfia
adalosa do poder. Vè-se em seguida a in-
differença publica crescer em matéria politica,
os jornaes serem lidos só por passatempi
remo serem mencionados só como
uma variante d'anecdol is obscenas, a politica
armar em profissão sem hombridade, em im-
pune chantage, e jornalistas e homens d'i
do enfileirarem, uo conceito - . I <> em
ratoneir --'nus.
Os bem intencionados apressam-se a aban-
d mar ao seu destino a causa publica, como
\ icente Monteiro e Consiglieri, por não serem
tes oem cúmplices dos crimes de leso-povo
que sob a égide d'ella se commettem. Virá um
dia em que o povo desnaturado por todas
aquellas lições de compra e vend . farto de
ludíbrios e vexames, abdique por fim do seu
ideal d'autonomia, | erca .1 noção de solo, en-
cha d'escremento as p iginas da historia. . . <•
7(í os GATOS
permitia Deus que o não ouçamos bramir, com
desesperada voz, aos echos da fronteira :
— Livrem-me d'esta canalha que me fez
odiosa a liberdade, que em paga d'isso aqai
lhes offereço a minha servidão !
Sobrepujante á sociedade irremissivelmen-
te frasearia que pintei, o papel politico do snr.
D. Luiz haveria por força que seguir alguma
das versões que vou dizer.
— Ou o rei se tinha proposto a corrigir
autoritariamente os desmandos, pondo no
throuo uma espécie de continuado de seu ir-
mão D. Pedro V — Ou participava da orgia
dominante, consentindo nos saques, para á
sombra d'elles gastar folgadamente — Ou ten-
do sondado a índole do povo, c os caracteres
dos servidores e homens públicos que o cer-
OS GATOS 77
cavam, emprehen lia, como elle fez, uma obra
d'absorpçâo centrípeta, matreira, paciente, en-
tre os differentes círculos da vida social por-
tugueza e «» throno, posto como um foco de
crístallisação, no centro d'ell<
Nenhum homem fino, está claro, haveria
seguido as duas primeiras. A da violência,
porque ella sobre não ter fundado nunca uma
obra perdurável, só daria de si a formação
quasi instantânea d'um grande partido hostil
á realeza. \ da crápula, porque além das con-
sequências vacticinadas â primeira, acarretaria
ella mais uma, funestíssima — desgostar a Eu-
ropa dos Bragancas, e taeHhes perder as ami-
sades que sempre teem ligado os uossos prín-
cipes às velhas monarchias.
Não houvesse outro testemunho das facul-
dades 'I" monarcha extincto, a simples linha
conductoríal de seu reinado bastaria para con-
duzir o medico nevrista nostico d'um
cérebro archi-perfeito. Era um intellectua! :
demonstrai a sua habilidade politica, revela-
da pelo modo qne atraz ; muito melhor
do que a cobardia physica do seu animo, do
que as suas aptidões de musi :o, do que <iv-
seus ii-! i. e <1" que a
78 OS GATOS
sua prodigiosa vocalisacão de polyglotta. .Ja-
mais esses olhos de gomma, esses olhos d'agua,
sem fixidez de pupilla, esses olhos de retrato
e dMdolo, que rolavam o olhar sem ponto áti
mira, e olhavam p'ra dentro, p'ra longe, para
toda a parte, excepto para a coisa em que
apparentavam tixar-se; jamais esses olhos ao
envolver um homem, deixaram de tirar d'elle
a prova real d'um talento ou d'um caracter —
e em qualquer (Telles, sendo possível, forcejava
o rei por abrir um canto de sympathia onde
installar-se, como senhor ou como camarada.
Tão agudo era já por fim este. propósito
seu de seducção, qtíe muita vez elle dispensou
OU reduziu a etiqueta, para mais directamente
hvpnotisar, por via democrática, a gratidão
on a fraqueza dos indivíduos de quem desejava
approximar-se.
A collaboração da rainha foi neste ponto
d'iima efficacia suprema e incomparável. Pou-
cos mònarchas da Europa haverão tido com-
panheira mais intelligente, associada mais há-
bil, e comediante mais finamente senhora da
marcação thronicia, e da mise-enrscene dymnas-
tica.
No jogo d'ella, nada vtflgar, nem mesmo
os (. VTOS
79
as brasquerias, Dera mesmo as palavras sol-
. nem mesmo as toilettes ' s da sua
ultima phase de mãe de filhos homens. Sobre
um throno dMmperio, esta mulher tiraria sem
duvida como um modelo de grande imperatriz.
Dizem-no a sua indiscutivel grandeza d'animo,
a sua orgulhosa comprehensâo do prestigio
real, a transcendência rara do seu typo, mol-
dado para o throno com um inolvidável poder
d'offuscação, e mais que tudo as suas súbitas
intuições da magestade moderna, que é ioda
artificial como uma creação de theatro, e no
entanto lá continua a esmagar ainda, sob as
rodas do seu carro, as desgraçadas e cegas
multidões.
Quantas vezes, o animo do rei, ao ir hu-
milhar-se e transigir perante a ameaça d'uma
conspiração politica, ou d*um violento ataque
dos jorn tes, encontrou a seu lado essa varo-
nil figura a ordenar-lhe energia, e a sustentar
ella só as prerogativas da coroa enxovalha-
,1 r; Em !'•» de maio, quando <> Saldanha su-
l,i.i ,i Vjuda, acaudilhando tropas insurrectas,
<■ terror do rei f<>i a tal ponto, que se fechou
i)'iini cubículo dn paço, sem força quasi para
articular uma palavra. \ raiana veio ter com
80 OS (ÍATOS
o marido, incitou-o a resistir contra Iodas as
intimativas que representassem menoscabo á
magestade; c vendo-o passado, branco, gague-
jante :
— O senhor é um m... ai quem podesse
descer á rua com unia espada !
N'este reinado neutro de vinte c oito an-
nos, podre de paz e de costumes, com tam-
pas il'oii'0 sobre catacumbas de miséria, e vil-
lanagens odiosas sob apparencias de progres-
so e d'egualdade, duas figuras apenas conse-
guem romper a chatinagem commum, aspirar
á consagração da estatuária, e adquirir por
vezes a grandeza histórica de typos domina-
dores e extranormacs. São a rainha, e Fon-
tes, os dois verdadeiros mestres, os únicos
sinceros amigos que teve S. M. o rei D. Luiz.
Maria Pia ensinou o marido a ser rei. Fon-
tes Pereira de Mello ensinou seu amo a ser
politico. Pelas lições do ministro, aprenderia
o monarcha a respeitar as apparencias quanto
á lei, e a substituir-se aos partidos, no ponto
em que a acção dYlles ia sei' nulla, ou amea-
çava tornar-se contraproducente ou perigosa:
isto sem os desprestigiar jamais á face da na-
ção. Assim cuidámos ler sido governados,
os GATOS 84
D'esses vinte e oito annos, que os jornaes of-
Qciosos chamam progressivo*, unicamente | ><*1;»
vontade collectiva, expressa pelo voto, e resu-
mida aos charivaris do parlamento, e nas
nem sempre paciQcas do conselho doestado
— quando era o rei quem fazia pender a ba-
lança, as mais < 1 ; i s vezes, pondo n'um prato o
seu veto de senhor inexpugnável, embora bran-
do de gesto, e cordeal e meigo de sorriso.
Com os seus conselhos, Fontes deu-lhe
força. Com r sua uobresa, ;i rainha impòz-lhe
auctoridade. Expira o ministro, mas a rainha
fica, e é ainda ella quem galvanisa esse vale-
tudinário cada vez mais sceptico dos homens,
que de bom grado passaria o resto da vida a
interpretar Sakespeare n'um canto de biblio-
theca, ea dar vasante pelo amor ou pela mu-
sica, i porção de sonho que d'Allemanha lhe
trouxera o romanesco sangue de seu pae. Ex-
pira o ministro, e o rei então comprehende
que se a vacuidade ambiciosa das camarílhas
politicas que o cercam, lhe permiltira arro-
je até alii o papel de primeira e única loi-
ça inabalável do paiz, é essa mesma vacuida-
de quem d*ora avante o impedirá d'aglutinar
os homens em partidos nítidos e estremados,
<S^ os GATOS
de fazer mover a engrenagem constitucional
sobre roldanas solidas, de dar á representa-
ção nacional nina sombra sequer de legitimi-
dade—porque se esfarella indo em igrejotas
de seis e sele, postos de roda d'um balofo,
proclamado em família chefe de facção.
Mercê (Testa dsgringolade snccessivamcntc
affirmada em quatro annos de cadeiras parti-
das, de discursos pulhas, e de composições e si-
zões para a direita e para a esquerda do antigo
partido fontista, ahi temos thronando um dos
compósitos ministeriaes mais heterogéneos e
peores que leni havido, porque governam o
paiz as esposas e as filhas dos ministros, em-
quanto <>s maridos e <»s pães andam pescan-
do, nas alias e. baixas de fundos que elles mes-
mos provocam, a fortunasinha arranjada de
combinação com os banqueiros.
Tivesse o rei escutado a voz da espo-
sa, naquelle memorável conselho de mi-
nistros, uma tarde, quando o gabinete atur-
dido ptdas terríveis accusaçòes feitas a um
dos seus membros, ousou supplicar da coroa,
dizem, a iminediala amputação do aceusado :
e não teríamos assistido a essa barafunda
medonha de processos, represálias exerci-
OS GATOS ,S'»
das contra adversários, sobre o testemunho
de minutas duvidosas ; de copias photographi-
documentos officiaes, mandadas tirar
aos volumes, pelos ministros, como arma de
vingança contra futuras accusações; e a toda
insolente prosápia que se lhe vem seguin-
do dopois, fundada na impunidade d' uma pri-
meira absolvição, e ameaçando impor-se em
dictadura á do rapazolla recem-coroa-
[ue ahi está no paço de Belém, á espera
do primeiro ensejo p'ra debutar com uma to-
lice.
untar-me-hão agora se o senhor I».
Luiz foi !>"ni ou mau, como soberano. Bom,
dada a espécie de gente que o cercava. Pe -
simo, quanto á ruína <1" paiz, que o seu rei-
nado adcantou mais què uenhum.
D'elle se conta <ill('- sabedor <l;i^ eiupal-
manças que lhe fazia o medico, u'uma pre-
i\n de charutos, mandara occultar-
Ihe na tampa um apparelho de musica, que
desandou a tocar, d' uma vez em que o vicioso
doutor tentou abril-a. Isto define talvez i sua
attitude sobre o throno, qne foi b d'um in-
telligente bem intencionado, frouxo é verdade,
mas eh ;" do respeito de sen cargo, e cons-
84 96 BATdfl
ciente das altíssimas responsabilidades que
impendem â corna, como fiadora das institui-
ções e da ordem nacionaes. infelizmente elle
Dão podia esconder realejos d'alarme na lam-
pa de Iodas as concessões e contratos do sen
ministério, attento o barulho infernal que isso
faria a Ioda a hora, em toda a parte, e por to-
dos elles. Qualquer linha, de condueta diversa
d'aquella que pessoalmente seguiu, haveria
precipitado irreparavelmente a nação em ban-
carrota politica e financeira. Entanto o seu rei-
nado escora apenas nina obra de presente, e
não deixa um raio de luz que atravessando a
historia, vá recordar o seu nome á civilisação.
Foi ephemero, deletério, sem ideal, sem hom-
bridade. Do seio dos costumes políticos, que elle
talvez pretendesse adoçar, rebentam cada vez
mais paixões ignóbeis. E d'aquelles vinte e oito
annosde parlamentarismo não fica um orador;
de lautas pugnas jornalísticas não liça um ar-
tigo; da litteratura que elle apadrinhou, não
lica uma pagina; dos artistas que protegeu, não
fica um quadro, uma estatua, um edificio; e
d'essa alta finança emfim, que fez no seu reina-
do a chuva e o bom tempo, não restará sequer
um perdulário de gosto, ou um philantropo.
.is ., nos 85
Fechando o casa.
0 rei que vem, tergiversa do pae, ou con-
tinua-o? Saltando para a tipóia do throno,
eil-o entra na Ajuda governado i><'l<> snr. José
Luciano, o mesmo sereno que .naba '1*' levar
a S. Vicente o rei finado. É mau começo !
Emquanto simples janota, o snr. I>. Car-
inha uma certa graça ao interpretar a co-
roa como uma espécie de chapéu de coco, em
oii... que se passeia em trens de pra
,'i catita nos beijamãos de que reza o ka-
íendario. Mas depois d'aclamado, o caso muda:
;i coroa pesa, e o janota, ou a põe como deve,
ou '- mbora. Vida nova numa Be fez
com gente velha.
86 OS GATOS
Seguada-feira -2! d'outubro, pelas 10 ho-
ras da Qoite, foi o cadáver do rei trazido da
alcova mortuária de Cascaes para o grande
c iche que devia arrastal-o até aos Jeronymos.
Estava uma aoite escura e tormentosa, com
ventania e chuviscos ; por forma que a aba-
lada da cidadella, á luz «los brandões e dos
archotes, foi uma d'estas grandes pinturas a
dois tons, negro e vermelho, magnificas para
gravar no espirito a nota fúnebre, e para tra-
zer a emotividade publica á suasão óptica
(1'iiiiia espécie de calastrophe irreparável. Sa-
bido da camará ardente, o cortejo desceu as
escadas que vem da bateria ao pateo da cida-
della, desenrolando-se lentamente, em sUhouet-
tes tenebrosas, sobre o fundo da muralha
lambida pelo sanguino de chamma dos luzei-
ros. Vinha adeante um monte de Sguras, que
me disseram ser os imarda-roupas, os moços
de camará, particulares e reposteiros, o>m
brandões que derretiam de lado, ao revolu-
teai' dos fogachos torcidos pelas inquietações
da ventania; e logo apoz o grande vulto da
tumba coberta de velludõ roçagante, e trazida
cm padiolla por archeiros fardados de verme-
lho e d'amarello. A<piel!e enorme caixão vinha
o- GATOS
S7
sem pressa, e d'aonde eu estava, parecia <in,>
alguém por detraz se lhe tinha agarrado á ca-
irá, como quem se abraça, desesperado,
;i uma jangada que vem de rustilhão, por uma
cheia.
Era a rainha.
Grande e de negro, com uma cauda de
lastima e um grande veu de musa da trage-
dia, essa mulher tinha no porte a formidável
rigidez com que a dor cadaverisa o orgulho
humano, e esse prestigio hierarchico, araplis-
simo, grandioso, que mesmo aos sceptieos se
impõe como um retoque de Deus sagrando as
is pre lestinadas a eternamente intervir
nos destinos dos homens e das nações.
An lado d infante, o filho amado, o queri-
• ib <; i, o mais que todos real e galhardo
gentilhomem da família — esse de roda a ruja
impetuosa mocidade, franqueza rude, e lim-
pidez serena de caracter, todas as sympathias
acordam, como em presença d'uma Ggura des-
herdada por engano chronologico, da fortu-
na politica de ser rei. . . E vem depois minis-
tros, açafatas, padres, gentishomens : aquil-
lo tudo espalha-se com altitudes phantasmati-
iteo, 1111111 circuito piedoso que é
88 os GATOS
uni drama de tinta da China e vermelhão, á
Luz das tochas — quando de vagar um coche
avança, os padres se achegam murmurando
as encommendações do ritual, e o athaude
entra por fim dentro do cano, qo meio da
estropiada da cavallaria que se põe a cami-
nho, pela estrada de Lisboa, da sotiirnidadc
da noite (pie amadorna as alturas, da impa-
ciência do vento que faz bruxulear as cham-
mas dos tocheiros, e da melancholia do ocea-
no, phosphorente, alli perto, a cantochar o
psalmo das grandes agonias apasiguadas em-
liui no seio da morte !
Lenta, mui lenta, a procissão caminha pela
estrada, abandona o povoado, entra nos cam-
pos; a rainha fechou-se n'um landeau, os di-
gnitários fizeram o mesmo; só os eivados vão
de roda ao carro fúnebre, espalhando o cre-
púsculo das luzes, palmilhando a lama de bi-
corne, vestidos d'escarlate e d'amarello co-
mo arlequins. A cada passo, uma casa entre-
mostra-se nas arvores, um portão de quinta
entreabre-se, luzes avançam, e é toda uma fa-
mília <pie desce a receber o enterro, attonila
da mistura de grotesco e de trágico que elle
repercute. Depois percorrem-se ainda novos
OS GATOS 89
campos de sombra, atasqueiros medonhos,
miI.is ásperas entre rochedos e muros : e
ouvem-se <>s cães latir funebremente, ha vozi-
dos de mochos, e estrondos de canhões longín-
quos, que vem sobre a agua, n'um ullular
oVespanto e de pavor.
A estrada é difficil, pedregosa, ondulante,
ora a eslreitar-se entre barreiras, ora a des-
cer tumultuosamente a terrenos do leveda e
escusos valles, em que se ouvem gorgear as
lymphas dos barrancos.
Nas arvores que passam, desconnexas de
forma, em grupos umas, outras destacadas
como torres e monstros na côr de cinza do
ar, ha como acenos de pantomima e de ga-
lhofo. As rajadas do vento trazem do largo
rumores não se sabe de que, segredos, bei-
jos, imprecações, misérias, lastimas, insultos
—todas as vozes das coisas em que ainda ha
consciência e restos de pessoas. E quando se
I11""' o ouvido á escuta, ouvem-se phrases in-
teiras, da terra que tem fome, do ar que tem
miasmas, das arvores que uru» querem mais
estar captivas, do mar que pede que o lar-
guem, para tragar d*mn gole o mundo in-
teiro !
i
90 OS GATOS
A obsessão da morte paira na ideia de quan-
tos alli vão. Raros conseguem, n'essa aspérri-
ma jornada, fechar olho; é uma inquietação,
uma impaciência, unia angustia de lodos os
nervos e de todos os suspiros, que parece que
se tem no peito a pedra d um sepulchro, e
que todo o resto da vida se nade passar as-
sim 11'aquella treva espessa, empós d'a<pie!!a
rainha pallida, comboiando o rei morto, como
Joanna a doida, atravez as solidões dos seus
estados.
.lá não tem conta as vives que o préstito
fez alto, as cabeças vieram espreitar ás vidra-
ças dos carros, e cravados em lama até ás cur-
vas, os archeiros se uniram p*ra desencalhar
dos atascaes o coche mortuário. Longe, n uma
zona do ar que deve ser a cúpula de Lisboa,
um diiVnsivo rubor tinge de vivo a noite lo-
OS GATOS ÍU
brega. É o reverbero do gaz d'encontro ás nu-
vens. E a cada instante, fitando âquella aurora
ephemera e movediça, que ll;m avança, nem
se caracterísa, nem se alastra, todos pergun-
tam se falia muito ainda, impacientes porque
lhes finde o pezadelio.
i viuva quer que esse caminho não fin-
de, que essa jornada prosiga sem acabar ja-
mais, ao vento, ,'i chuva, entre as animalidades
chimericas que a imaginação ergue das trevas,
entre os soluços da sua alma ulcerada demar-
tyrios, entre a agitação dos pânicos tumulares,
e Iodas as grandes illusões crucificadas e des-
feitas d'aquella sua ultima noite de rainha.
Dòr, que deliciosa tu és para essa mulher
que ainda tem a coroa na cabeça, qu nulo cila
ousa comparar-te ás grandes agonias d'enve-
Ihecer amanhã n'um palácio sem c >rte, nem
recepções, nem comitivas, alli, a um canto,
longe da culminância do throno, - i vohés
• la imprensa, dos grandes triumphos scenicos
de roçagar 1 ;ados e velludo cida tal-
vez pelos próprios miseráveis que ella cobriu
de benefícios, e dos dignitários e servidores
que fez tremer sob a imperii estão do
seu olhar !
92 OS GATOS
ol, (.onio ella quizera encher esse caminho
de círios que fossem incêndios, como ella qui-
zera tetanisar esse cadáver de gestos que fos-
sem resurreições, e surgir outra vez transfi-
gurada ante o seu povo, reviver a existência
altivola d'outr'ora, quando em S. Carlos, ves-
tida côr de malva, os cabellos magnificos em
aureola, via as mulheres invejarem-lhe o pres-
tigio, e toda a gente emover-se á incompará-
vel distincção da sua estatuária !
I". em terríveis golphões, as suas lagrimas
de novo a asphixiam : a camareira toma-lhe a
cabeça, de joelhos supplica-lhe coragem: ella
alo pôde, ella rebenta; soluços trágicos der-
rancam-lhe aarchitectura oobre de princeza, o
temperamento hysterico visiona-lhe para alem
do real, as contusões da sua grande queda, f
dos gritos da garganta, semi^roucos, lè-se a
angustia da christã que não p l( afogar em
si ;i cólera da rainha impotente para mandar
castigar Deus, fano o faria a qualquer regici-
da, seu vassallo !
\ cada momento o infante, Inquieto, traz
o cavallo á portinhola do landeau, bale nos
vidros: os dois rostos contemplam-se.
— Petite mère, vas tu bien !
os GATOS 98
Oh, se ao menos este filho mais novo fosse
o rei ! . . .
Na lama. os coches ameaçam ficar despeda-
çados,as grandes rodas aeravam-se té aos eixos,
rangem as correias, o gado esfalfa-se, e a fadi-
ga dos moços é pelo menos egual á dos muares.
Luzes iiiiiii vale. Um logarejo! õ caminho
aplaina-se, e pela primeira vêz podem marchar
em préstito ordenado.
A beira da estrada, iUnminados com lâm-
padas eléctricas, chalets anisam no cen plum-
os cocurutos d'ardozia: ha stores de co-
res, salinhas de jantar com arbustos de luxo,
pianos abertos, cristaes, gaiolas e tons claros;
depois cantos de parqui . d'onde sahe um bu-
lício de cascatas e de folhas, portões senho-
riaes, alterosos cancellos, grandes palácios
mudos como fortalezas: e de todos os recan-
tos da noite chegam tochas, homens e senho-
ras, creados ainda em avental, bebés que
trazem na bocca uns restos de bríoche e de
torrada, toda uma população volúvel de praia
que tomou chá mais cedo, essa noite, e vestiu
;i pressa o dominó do lucto publico, para as-
sistir entre duas walsas, ao que ella já inti-
tula — a chegada <lo cirio de Casi
94 OS GATOS
Á passagem do féretro alguns inclinam-se,
d ura murmúrio d' avidez passa nas boccas — é
a rainha, é a rainha — quando o landeau fe-
chado entra na zona luminosa do caminho.
Todos desejariam vêr o rosto d'ella, tanto a me-
moria do publico está cheia de rumores sen-
timentaes. . a sua dedicação magnifica, as
vigílias no quarto do marido, e das palavras
solemnes que ao filho disse, hirta e de negro,
estendendo a mão, já sem anneis, sobre o ca-
dáver. . . Lamenta-se em geral que os focos elé-
ctricos tenham estragado o golpe de vista fú-
nebre das tochas, 11 que aos iniciadores da
recepção não occorresse mandar parar a ma-
china, em termos «las lâmpadas ^incandes-
cência não acanalharem âquelle ponto, o ves-
tuário d'entrudo <los archeiros.
— É a rainha! é a rainha! — e algumas
tochas quasi lhe vem bater nos vidros do
landeau, como a chamal-a, para que venha
agradecer a proscénio aquella manifestação de
sentimento. Ella não sente, ella não ouve :
passa indifferente a algazarra e aos commen-
tarios. . . é que o seu ouvido bebe, atravez do
brouhaha d'esse publico grazina, disfructador,
postiço e miserável, não sei que som de pia-
os GATOS 95
nu. i,'i longe, lento e abafado entre os arvore-
s, um som de piano hostil, que nem á pas-
sagem do rei morto <illiz calar-se.
j"; é-se talvez feliz I Srr feliz. . . aonde?
como? E esta ideia molesta-a por fÔrma que
as -nas lagrimas rompem outra vez, u'um cho-
ro manso, agora sem soluços, sem queixas,
íuima eflusão de ternura súbita, fundente,
choro de mulher emfim desilludida das arti-
Qciaes condolências de quem, mesmo ao inte-
ir-se por lastimas d'outrem, por mais que
queira, Qca totalmente estranho á essência del-
ias.
Oh lagrimas puras de rainha desilludida,
que te resolves alfim a ser mulher! Deus ha-
verá pesado essas amaríssimas horas da tua
fraqueza, e permittido que tu, não podendo
entrar na immortalidade por mercê de gran-
., i menos Qques na memoria dos
artistas, como uma translúcida visão '1" femi-
nino eterno e do ireal !
% OS GATOS
Outra vez o cortejo entra na noite, e pro-
segue entre os clarões <]<>s archotes, a sua va-
garosa marcha mortuária. Na frente ha um
esquadrão de soldados a eavallo, moços com
fachos, e logo em seguida os trens num gran-
de renque, após dos quaes vem o landeau da
rainha, o coche fúnebre e o carro de respeito,
fechando tudo com as gentes do infante, e
outro magote ainda de creados a eavallo.
AqiiHIa lenta cobra engolpha-se, coleando, na
escuridão phantastica da estrada, onde o cla-
rão dos fachos deita instantâneos golpes de
vermelho. Á direita, por baixo dos taludes da
rocha, o rio resfolga : é uma planura densa e
alcatroada, linhas dYspunia e phosphoro nas
ondas, fervores e fugas, galgões, açoites, o
para além d'agua, uma grande barra de mon-
tanhas, esbatida a nankim sobre um cen d'es-
66 GATOS 97
ponja, onde escorregam franjas gigantescas,
em todas ;>s gradações do cinzento lívido das
nuvens prenhes d'agua. Da esquerda, abruptos
socalcos, despenhadeiros 6 ranhuras de cal-
vários, onde alguma arvore se estorce às ra-
jadas do vento. E para além, charnecas ala-
gadas de tinta, sem luzes, sem perspectivas,
sem arvores, d'uma desolação perplexa, a res-
sumbrar nostalgias d'ossuario. Dir-se-hia nina
paysagem do rei Lear, a três cores opacas e
infundiveis, <» negro, o vermelho e o pardo,
e nenhum horisonte mais que a névoa, e ne-
nhuma decoração além d'aquellas núpcias
orgulho e da morte, arrastando-se ao passo
dos cavallos.
Carcavellos. A estrada internou-se pela
terra, deixamos d'ouvir o rio, e n'essa cam-
pina raza ha ura silencio de campos sem cul-
tura, que o latido «los cães apenas atormenta.
Alguns pinhaes mais além, gemem ao longe;
depois a estrada enterra-se entre muros de
quinta, galga pontes vetustas, lançadas por
cima «li1 riachos; passa-se o arco, e Oeiras
apparece. Novos archotes, gente ás janellas,
luzes, magotes de povo ao longo da rua irre-
gular por onde o enterro passa. . . Depois, tor-
98 us GATOS
nam-se a ouvir os marulhos do Tejo, pela di-
reita, ;i dois tiros d'espingarda, e alvejam co-
mo montanhas d'ossos, a um lado e outro «lo
caminho, os depósitos de pedra dos canteiros
de Lisboa. Entra a chover. A.s grandes franjas
de nuvem que zebram o ceu, parece que se
alongam cada vez mais, como enormes crepes.
Por momentos dil-as-hieis miragens d'arvores
gigantes, cryptomerias, copressos, wellingto-
uias, todos os monstros da flora anti-diluvial
dos velhos continentes, com a sua sensação
de pesadello subterrâneo e mina de hulha, a
sua luz hyperborea, e a frialdade medullar
que infundem as grandes obras da natureza
em via de regressão ao eterno nada. Caxias,
Gibalta, Boa Viagem. . . já uma vida começa
a trepidai' a'esse muda longiquo arrabalde de
Lisboa. A estrada vae quasi toda á beira rio.
lia poucos arvoredos, mas os jardins abun-
dam, fechados em muros alvos, os chalets
abrem os olhos pelas persianas das janellas,
tornam-se a vèr salinhas confortáveis, inte-
riores de família, nurserys claras onde as
creanças de bibe tomam chá, ou adormeceram
nos braços das poltronas: e de repente, no
alto da Boa Viagem, <> panorama do rio abre-
06 GATOS '•,'->
mi leque, na aoite, entre Ires fogos <!»■
pharoes— Cacilhas, S. Julião, e Torre de Be-
lém!
Rembrandl apenas, ou Domingos Sequeira,
poderiam dar n impressão do que me passou
pela cabeça, n'aquelle morro calado sobre <>
mar, às duas horas d'aquella madrugada d'ou-
tubro, sol» a chuva e o vento, e os aspectos
trágicos da natureza e dos homens conluiados
na mesma conspiração de bello-horrivel. É
qaasi certo que me liei-de rir amanhã d'estas
visões, cujo fundo d'assombro não existia lal-
senão na febre gestadora do meu cérebro:
entanto é extraordinária ;i epilepsia com que
a imaginação começa a esfuriar-se em certas
lioras, e larga, das cavernas do medo, <» bes*
tiario ila allucinação doida e disforme !
Sobre a planura d'agua, lá em baixo, nm
imento ascencional d'ebullição fazia-se na
sombra, um rumor de diluvio — mt eut —
prestes a engulir d'um salto a costa e a terra:
aquillo crescendo em vozidos roucos, da bar-
ra, como um tropel de loiros furiosos: quan-
do por cima, nutro bestiario maior rolava já,
<li' nuvens lobregas, d'animaes-demonios, de
a talhados na turgencia da deformidade,
100 OS GATOS
larvas e sphinges, morcegos e pantheras, mis-
turando espécies incoherentes, as viscosas ás
córneas, e o todo a esfarrapar-se em chuva
SObre a cabeça das coisas que locava. Aqui e
além, fanaes que por instantes se somem :
phosphorencias que voam, como fogos-fatuos,
sobre a crista das ondas; ou súbitos relâm-
pagos, a que succede uma Gada d'estrondos
de canhão... E das bandas da terra, a mes-
ma indecisa abundância de negrumes, sem si-
lhouette, imbricados mis nos outros como ar-
dósias, e obliquando-se, em sinuosas linhas,
té á agua. São terras lavradas, parques, fun-
dões adormecidos, charneca, solidão . . De-
pois uma serie de manchas lívidas, sobrancei-
ras ás informes corcovas d'essas trevas, a tre-
pidarem d'incertas claridades: e por ultimo as
raras, as fugitivas zonas luminosas... o re-
verbero d um candieiro ífuui muro branco, o
braço (ruma torre, hirto no ar — aquillo sus-
penso em attitudes de capricho, e entre esse
ruge-ruge de vida invisível, que é á noite, a
respiração dos sítios habitados.
I)'ahi por deante, é já Lisboa. Successi-
vamente a estrada povoa-se de gente, ha
candieiros de petróleo nas janellas, carro-
OS GATOS 101
e burros de lavadeiras do caminho, po-
li s pateos, nas tabernas, á porta das estala-
. QS.
Cruz Quebrada: nova recepção com bran-
s, mi bairro dos chalets. Seguidamente o
c >rtejo faz a sua entrada no Dafundo, passa
. itre o jardim publico e as residências de
campo que alli ha, entra em Algés ao troar
dos canhões da bateria, avança ainda pelo
corredor do Bom Successo, e vem apontar fi-
nalmente ao arco, como uma scena de Hugo,
interpretada a guache, por Gustavo Doré.
\ chegada aos Jeronymos é lúgubre, o
resmunga : ha nevoeiros que fecham o
jonte, e envolvem n'uina gaze alvacenta,
• g lampeões ; e cada vez mais o ceu rebate sobre
íCtos, ventre á t>n- . o seu chuvisco fino e
enregelado! Da fachada L.r<>iliie;i da igreja, ama-
n Ho ferrugem, que dir-se-hia feita d^ssos ca-
riados, apenas se lobrigam na luz dúbia, aos
lados do pórtico, grandes janellas esguias, cu-
jos vitraux choram vermelho e azul, em gran-
gottas, e a torre bysanthina de Cinatti,
i no angulo solido do edifício, como a
[02 os &AT0S
thiara d'um papa sepultado lá dentro, aos pés
do altar.
Do sitio em que eu estou, aquella thiara
immensa occulta-me as primeiras torres dos
dormitórios da Casa Pia, e um grande bocado
ainda de muralha: e só vejo lá longe, dois
phantasticos laivos perderem-se uo ceu cin-
zento, brancos e linos, que são as outras duas
torrellas octogonas entre que se abre a en-
trada paia o Museu Commercial.
Dentro, na igreja impossível d'esclarecer
cnii! luzeiros de lâmpadas e Inchas, uma sa-
grada penumbra erra nas naves: ha pavores
seculares, restos de lendas trazidas das via-
gens, demoninharias medievas, nos escani-
nhos das capellas e dos nichos: e pela abo-
bada alta, artezoada em caixões de bordos
salientes, figurando rozaceas, cruzes e xadre-
zes, turvos vapores osciilam como incensos,
apagando os relevos, prolongando mais a des-
mesurada altura tias columnas, e locando tudo
do quer que é d'apotheotico e d 'incerto. Aparte
a capella-mór, todo o templo está limpo de
decorações e d'ornamentos, e conserva, á luz
(iv GATOS 103
das velas, a sua Qudez monástica ©grandiosa.
E é magnifico vèr todos esses columnellos
pallidos subirem, alados quasi á força de li-
geiros, té ao tecto, a destacar sobre <> boquei-
rão de noite que é ó coro ás escuras, aberto
ao vago, e em cujo mysterio os ckatom da ro-
sácea pòem como dois olhos de gato, cor de
phosphoro.
Kis o instante do cortejo abordar a grada-
ria externa do mosteiro. Renques de povo en-
chem os passeios fronteiros a essa grade, e é
pelo c rredor intermédio que <»s lanceiros
mi, que os trens desfillam, e os homens
de vermelho brandem archotes, como velhos
d'entrudo, ao de redor do carro fúnebre. Vejo
uma procissão de tochas golfar então da por-
taria dos Jeronymos, descer á rua, envolver
em clarões bruxuleantes o pórtico e todas as
incorpóreas rendas da fachada : e logo, u
circulo de chammas, homens d'escuro virem
ao chão, reverenciando a mulher que sahiu
il(» landeau, e que parece enorme e sphingica,
n'aquella postura immovel, entre as brumas
do veu, como uma allegoria de dòr e expiação.
un
OS GATOS
.lá prestes, grandes alas se abriram para
deixal-a passar, direito á igreja. Porém ella
voltou-se, alguma coisa lhe falta, abaixa a
vista; c a camareira comprehende...
É a cauda, que convém primeiro despregar
nas lageas, em pregas tnagestaticas, uma a
uma, não vá ella estragar a sua grande en-
trada d'atriz, na scenographia gothica da
igreja.
^3f%=.
OS GATOS
FIALHO IVALMEIDA
OS GATOS
PUBLICAÇÃO MENSAJ .
D*INQUERITO Á VTDA PORTUGUEZA
L° 3— Nff^mbro de 1889 a Fevereiro de
PORTO
Casa Editora Au mo Aranha & C*
Bua ,;,, Bonjardim, 86
FILIAL EM LISBOA
Bua dos i: ~n
PI >RT< I
Typ. da Ernpreza Litteraria e Typographica
178, Rua de D. Pedro, 184
SUMMARIO
O ENTERRO DO REI D. LUIZ — BANDEI-
RAS A MEIO PAU, VITRINES A MEIO TAI-
PAL, SALVAS A MEIA PÓLVORA, E PA-
TRIOTAS A MEIA LAGRIMA — A COMEDIA
DA DÒR: JORNAES, TALHOS E LOGISTAS
— OS QUE TRAFICAM COM A MORTE — O
NOBRE ANCIÃO QUE AGRADECE AS DE-
MONSTRAÇÕES DE PEZAR AOS ESTRAN-
GEIROS — CORRELAÇÕES MVSTERIOSAS
ENTRE 0 CHAVELHO E O LUCTO — LISBOA
MACABRA— DE COMO NADA A DIVERTE
MAIS DO QUE LM ENTERRO — PALA A
HISTORIA DA MINHA AFFECTI VIDADE —
O QUE FOI O SAHIMENTO FÚNEBRE DO
REI — OS MAGNATAS TLLM QUASI TODOS
CARAS D'ESTUPIDOS OU DE FACCINORAS
— RÁPIDO ESBOÇO DO PRÉSTITO — POR
QUEM CHORA ESSE COCHEIRO HE PRAÇA?
— AS DEPUTAÇÕES POPULARES— O REI
EM DUAS PORÇÕES — PORQUE NÃ<» VEIO
VI SUMMARIO
A TERRA O D'EDIMBtrRGO — DE COMO O
ENTERRO DO TIO ACIRROU NO SOBRINHO
IDEIAS DE PROPAGAÇÃO— PEDE-SE AO
PUBLICO QUE VÁ VISITAR O HOSPITAL E
A ESCOLA MEDICA — AS ENFERMARIAS,
AS AULAS, E O RETRATO DE D. JOÃO VI
— DERROCADA GERAL — O DR. THOMAZ
DE CARVALHO DECRETA A ABOLIÇÃO DO
CAPILÉ — REFORMAS A INTRODUZIR NO
CURSO MEDICO — COMO OS GOVERNOS CU-
RAM DO ALTO ENSINO — D. LUIZ DECLA-
RADO PAE DA MEDICINA PORTUGUEZA —
RECEANDO FICAR SOB OS ESCOMBROS,
ALGUNS PROFESSORES COMEÇAM A DAR
AULA NOS JARDINS — JOSÉ LUCIANO VI-
SITANDO A ESCOLA MEDICA, ASSUMPTO
PARA O PRÓXIMO CONCURSO DE PINTURA
HISTÓRICA — DO RECEBIMENTO QUE POR
BANDA DOS CATHEDRATICOS HOUVE —
GUARDA-CHUVA SYMIíOLICO, E DIALOGO
EM QUE SE RELATAM PRODÍGIOS D^CU-
LISTICA — O HOMEM DOS TRÊS OLHOS —
O CASO DA OPHTALMOLOGIA FACULTATI-
VA—JOSÉ LUCIANO, ARBITRO MÁXIMO
DOS DESTINOS DA FACULDADE — FORNA-
DAS DE LENTES SEM CONCURSO — MAN Kl-
SI MMARIO Ml
ELA PRATICA D'AVERIGUAR SE UM RATÃO
É CELTA - ÍNTERVIEW COM 0 IMPERA-
DOR DO BRAZIL— A BORDO DO «ALAGOAS ,
DESAMPARADO — O AMIGO REPÓRTER E
0 AMIGO DE PENICHE — A ROUPA SUJA
PRÍNCIPES NO DESTINO DAS NAÇÕES
— DE COMO DEODORO SABIA QUE O IM-
PERADOR USAVA MKIAs BORDADAS— AS
LI IAS DE BENJAMIM CONSTANT E As CE-
LAS DO CONDE D'EU — O EXERCITO
VÊ NAS CEROULAS UM ANTAGONISMO DE
■ A, i; BEVOLTA-SE — DJEIAS DE D.
PEDRO II SOBRE A BANDEIRA DA REPU-
BLICA—A FARINHA DE PAU, REFRIGE-
RANTE DOS ESTADISTAS BRAZILEIROS —
SINQULAB MANEIRA D 'ACABAR UMA IX-
TERYIEW —CARTA A D. CARLOS SOBRE
AS MAGNIFICÊNCIAS DA SUA ACCLAMA-
ÇÀO — SEMELHANÇA ENTRE S. M. E O CO-
CHEIRO DA SNR.a DUQUEZA DE PALMELLA
— NECESSIDADE QUE I 1IS i; AS
COCOTTES DE SEREM BELLOS — COMPU-
TAM- FESTAS REAES • CORTE-
JOS ANTIGOS— CRITÉRIO HISTÓRICO DA
REALEZA — AFINAL DE CONTAS, QUEM É
V. M.? —GALERIA DE MONSTROS BRIGAN-
viu sim mm; io
TINOS — O PAÇO É UMA DEPENDÊNCIA DA
LEGAÇÃO BRITÂNICA— CHEGADA DO COR-
TEJO AO PALÁCIO DAS CORTES: OS ARAU-
TOS, OS COCHES, E AS BARRIGAS DAS PER-
NAS DOS REIS D' ARMAS — ASPECTO DA
SALA DO THRONO — O NÚNCIO DE ROXO,
E (IRA VIDO — O COUPLE REAL: PEDEM-
SE UMAS SAIAS PARA O REI, E UM BIGO-
DE POSTIÇO PARA A RAINHA— FOME NO
EXERCITO E INTERFERÊNCIA DO CIMONTE
NO GENERALATO — A CORTE EM S. DOMIN-
GOS—D. CARLOS I E ULTIMO REI DE POR-
TUGAL—O BRAZIL ENVIOU-NOS O SEU
IMPERADOR NO «ALAGOAS»: PAGUEMOS-
LHE A OFFERTA, ENYIANDO-LHE CARPAS,
N'UMA BARRICA DE SALMOURA— HA VIN-
TE DIAS QUE O PAIZ NÃO FAZ SENÃO GRI-
TAR, VIVA A REPUBLICA! —A COROA NÃO
TEM MAIS QUEM NA DEFENDA: TODO O
EXERCITO É REPUBLICANO — O SONHO D'U-
MA GRANDE FEDERAÇÃO PENINSULAR —
AMANHÃ.
Sabbado 26 cToutubro, trasladação da ma-
jestade extincta para o carneiro real de S.
Vicente. Foi um dia feriado em toda ;i cidade.
Quasi todos os estabelecimentos fecharam as
suas portas. Quasi toda a gente appareceu de
lucto oas ruas. As bandeiras estiveram a meio
pau. I»»' quarto em quarto de hora, os ca-
chões das fortalezas e navios de guerra davam
salvas. E os jornaes publicaram retratos do
monarcha, com artigos de choro em verso e
prosa, deplorando aquella perda nacional. . .
lá quatro dias antes, esta jeremiada co-
meçara ;i produzir nos ânimos nm vago esta-
do irritativo, um nojo dos homens, e um asco
:i feira das vaidades, sobremaneira nocivos á
eclosão de qualquer sentimento sincero e des-
•10 os GATOS
interessado. Na barafunda de todos aquelles
testemunhos públicos de condolência pelo thro-
no, o que se viu foi cada qual sacarrolhar do
caso o expediente que mais rapidamente lhe po-
desse dar dinheiro, vangloria, ou probabilidades
d'exito em qualquer coisa. A comedia da dôr,
representada por vinte ou trinta cortezãos, na
alcova mortuária de Cascaes, viera-se genera-
lisando, por espirito de bugiaria, de zona em
zona, fé descambar em farçadas de rua, mer-
cê da inconsciência da bestiola popular que
macaqueia o que vê, sem grandemente pòr
sombra d'intuito n'aquelles actos reflexos do
sen eiXO nervoso amoltecido.
Não houve em Portugal ninguém, graças a
Deus, que não violasse o respeito da magesta-
de morta, talhando-o em taboleta de loja de
fazendas, «mu episodio de galhofa, ou em thu-
ribulo infame para abjectos Te Deums á raa-
gestade viva !
Brazões d'ediíicios públicos e lojas de cau-
tellas, cobriram-se de negro: Os jornaes trafi-
(.;ir;llll com a agonia real, matando o senhor
D. Luiz seis horas mais cedo, para serem os
primeiros a vender suppleinentos .dioramin-
gões. Coronéis fizeram-se pagar versos na im-
OS GATOS I I
prensa, dando pezames á rainha, e de cami-
nho attestando a disciplina dos seus regimen-
tos. Nos armazéns de modas, exposições de
merinos de lucto, onde os dísticos dos preços
se entrelaçavam d'allusões ao chorado mo
cha. Lojas de bugigangas, armaram a frontaria
de crepes e pannos mortuários, como se os
bonecos de porcelana estivessem lá dentro a ce-
lebrar exéquias pelo rei. E de quarto em quar-
to de hora, durante três dias, os cuvilheiros
de Belém tiveram alma de massacrar os leito-
res do Tempo e Novidades, com filetes do gran-
de desgosto em que tombara a l>. Amélia, ao
saber que lhe tinha sahido a... sorte grande !
No capitulo das manifestações de dòr indi-
vidual, chega a ser clownico o sardonismo
que a canalha publica fez chispar dolueto de-
cretado pelo snr. José Luciano, qo Diari
mo. Homens que não haviam deitado
lucto pelos pães, cobriram-se todos de fumo
pelo rei. No dia do enterro, vi eu m
descer a Rua Nova do Carmo, coberto de nojo,
e trazendo uma facha de crepe enorme, i;<»
chapéu de chuva. Outro, já velho, d'aspecto
aristocrático, entrou na livraria Feriu lavado
em pranto, e dirigindo-se :i um empregad .
[2 <>s GATOS
pediu-lhe transmittisse ao cavalheiro francez,
dono da loja, os agradecimentos queelle, como
lusitano de gemma, lhe trazia al4i4 attenta a
prova de benevolência que a França dava ao
paiz, conservando meio taipal aparafusado nas
vitrines do estabelecimento d'um «los sens re-
presentantes.
E para cumulo do desaforo, um talho que
ahi ha p'ros Romulares, adornado de cabeças
de boi, em barro e gesso, enramalhetou os
chavelhos das rezes(b) com louro e crepes
(&/Esta correlação mystica entre a homenagem
devida aos mortos, e o corno, é uma das poucas
características sobreviventes á jâ hoje apagada ín-
dole portugueza. Ahi vâo dois exemplos. Um ga-
,. idero do Ribatejo, a quem morrera a senhora, a
I fimeira vez que, depois de viuvo, forneceu curro
para uma tourada em Santarém, mandou enfeitar
-omilha preta os paus dos bois. Ao fim de far-
I .ado o decimo terceiro, todo o mando por modos
i quiria, como era crivei ter uma só mulher abys
, ,,|n em tamanho lucto, quatorze mandos!
Ao bandarilheiro F... homem estimado, d'uma
occasiao morreu-ll pae, como infelizmente suc-
c «de a toda a gente. A morto do velho, claro está,
nduzindo o orphão a apropinquar-se na Praça
,i , Campo de SanfAnna, um beneficio, onde elle ap-
(.v GATOS lá
ondeantes, três dias — ao" tempo que aprovei-
tava aquelle ensejo de magna, para augmcntar
trinta reis tio preço das mãosinhas de car-
neiro.
Ora, uma cidade que exteriorisa o respeito
pelos mortos pela clownesca forma que viram,
se por um lado tem d'esse respeito uma com-
prehensão semelhante á do escarneo, signal
da aniquilação completa do caracter civico;
em compensação tira do fúnebre um riquíssi-
mo filão de pittorescò, que pôde até inspirar
eu vestido ;i caracter, mas toda a farpei la pre-
ta (fazeviche. Abre-se >< curro, um toiro espirra, e
ii>> cachado o artista galhardamente lhe crava :
quarteados, ficando erecto na arena, e com um ramo
rte perpetuas em cada mão que escamoteara de
dentro das garrochaa '
I l OS CA TOS
uma arte nova, st- habilidosamente o canalisa-
rem, da índole avulsa da massa, para as loeu-
brações dos que produzem co'a penna c c'o
cinzel.
Lisboa è singular !
Não lhe bastava já ter do amor uma noção
invertida... ou duas, senão despolarisar tam-
bém a tristeza e a alegria, dos seus focos d'im-
pressão psychica uormaes, fazendo-nos vêr por
exemplo os entrudos em fúnebre, e as Sema-
nas Santas em hillariante ; os baptismos em
lacrimoso, e os enterros em humorístico. E o
que geralmente se dá. Nada nos torna mais
bisonhos do que um baile de mascaras. Nada
restabelece curso ao nosso bom humor como
um enterro. 0 motivo é simples. Geralmente,
entre nós, o mascarado parece um morto, ao
passo que os defunctos Icem quasi sempre o
ar de mascarados.
Um companheiro de casa que eu tive em
estudante, jóia entre as jóias, meu insepará-
vel amigo de recreios e trabalhos, Cinco ân-
uos, comette um dia a refinada tolice de mor.
rer. Horas e horas, 0 meu desespero nào co-
nheceu calmante ou refrigério. Doze dias,
febril, velara eu ao de redor da sua cabeceira,
(In GATOS 15
e depois d'elle morto e glacido no leito, fui
eu ainda quem lhe compoz a ultima toUette,
Alguém que vinha ás vezes, acordando na
minha fraqueza orgânica, cachetisada por três
dias da mais completa abstinência, lembrou-se,
na derradeira noite em que velámos, d<- me
trazer do Baltresqui, um pacotesinho de san-
dwiches. Oh torpeza da carne! Tanto bastou
para que eu, mesmo sem deixar de chorar,
pensasse menos no morto, 8 cada vez mais
nas sandwiches,
A proximidade do repasto açulava-me a
fome, que a presença do amigo me obrigava
a deixar sem victualhas. Venceu por fim a
besta, era lalai : e por cansa d'nma pouca de
viiella com mostarda, surprehendi-me eu a
ter ódio aos despojos do mais fiel companhei-
ro da minha mocidade ! E mais este era um
amigo: que será então com os que a gente
Bem conhece ! . . .
A nossa vida é lào curta, a nossa miséria
tão ínfima, tão deses] erada a lueta em que
qos vamos, que no que se pensa ó em viver
(tu jmir u jour, empenhado em dois fitos :
fazer oiro de meio mundo, e guerrear ou es-
carnecer do outro meio. Ser mau tornou-se
16 OS GATOS
uma necessidade contemporânea. Ser perverso
um ideal... que infelizmente poucos sabo-
ream.
o homem não é mais irmão do homem, ú
seu concorrente, é seu rival. A fortuna (Trile
não quer dizer o premio (rum esforço respei-
tável : representa apenas a dentada em qui-
nhão que nos pertence. Por cada um que
morre, menos uma bocca esfomeada a defrau-
dar-nos. Acresce além <Tisso que os poderosos
representam quasi sempre, apard'uma concor-
rência enérgica, por via de regra uma extorsão
methodisada — e legitimo desforço é que nos
riamos quando elles tombam, e u<>s vinguemos
(Telles, apupando-os depois de mortos, uma
vez (pie nos foram prejudiriaes.
É o meio termo (Testa represália ferina «pie
se dá, sempre que Uslioa assiste ao passa-
mento d'algum alio personagem. Esta capital
(Talcovileiras e de gatOS pingados, de homens
com apertos e mulheres com dilatações, am-
biciosa mas inerte, pobre mas nunca resigna-
da, quando passa um enterro, transfigura-se,
e eil-a a debitar larachas sobre o morto, qual
mais sumarenta de velliararia e de pilhé-
ria !
os GATOS I /
lii fúnebre, a maldita, se bem que quasi
sempre ria justo. Por exemplo, o humorismo
que ella desenvolveu no enterro do rei, des-
lumbraria o próprio Edgar Põe, si' fosse vivo.
tquelle estranho cortejo de macacos com far-
das e de mulheres com farrapos, de carros fie
llòres e berlindas d'entrudo, de vendedores
de boquilhas e professoras d' instrucção prima-
ria, de bombeiros d'Ajuda e de meninos en-
geitados, contentes todos, mirando-se, lara-
chando, detendo-se a comprar pastellinhos, a
altercar com os cocheiros, a fazer adeusinho
.,. pel ições ; aquelle cortejo afinal que repre-
senta '.'
Ninguém o soube. Não teve caracter. Foi
apenas patusco, <* em certas passagens, abje-
cto. Podia ter sido tudo... a coroação da rai-
nha do Gongo, um certameu de cretinos, o
casamento Fernandes, ou a batalha das flo-
res... Tudo! excepto homenagem prestada
,-, memoria d'um homem que l"< Ȓ vinte <i oito
unnos nosso rei !
18 OS GATOS
0 senhor 1>. Carlos, esse radiava, laquei-
la sua passeata primeira de rei posto — jubi-
loso a ponto de Dão ter ares nenhuns de me-
nino orphão, e ter ao contrario todos, de
viuvo. Em torno d'elle, príncipes e embaixa-
dores, moços fidalgos, moços de curro e
mocos da vida, í';iziani-I hc uma espécie de ga-
leria de figuras de cera, qual mais estupenda
d 'insignificância.
Porque è singular como as physionomias
da maior parte dos nossos homens públicos
depõem desagradavelmente a seu favor!
Em poucos ha essa aobreza calma de li-
nhas, essa serenidade profunda de olhar, essa
luminosa architectura moral emíim, que conta
as luetas da intelligencia d'um homem, "min-
OS GATOS IV
terrnptamente servido por ama consciência
inviolável. A maior parte sào pequenos mons-
tros de olhar strabico, ou vago, ou fugidio,
ou injectado; caras balofos, olheirentas, dessy-
metricas, com um stygma, algumas, «lo quer
que é de inquietador, que ;i gente não sabe o
que seja, mas lá está ;i servir de syndroma ;'i
manqueira occulta, e a prevenir a opinião
contra a boa fé dos esforços d'elles, em prol
da causa que juraram servir.
Outro detalhe: assombra o predomiuio
<|iic <• typo estúpido coi i a ganhar na com-
l>ostura, (exterior pelo menos) dos nossos
grandes funccionarios ! Ha uma mistura de
porc de fila, de mal indro e de titcre,
em muitas d'aquellas faces de primeiros ofíi-
- de secretaria, de governadores civis, de
tenentes coronéis, de generaes, de bispos, de
deputados, de conselheiros d'estado e de mi-
nistros. Por sobre as golas das fardas, dos
collarinhos altos de cerimonia, das voltas ro-
symbolicos das sociedades
sabias e das ordens militares, as papadas
oleosas dizem nutrições prevaricadas, apople-
- de bilis odienta, intrigas rábidas, cubi-
salyriases secretas d'amor e vinho a
20 os SÀTOS
horas perigosas. Era raros as feições mantive-
ram pela vida fora, a correcção de seres su-
periores, imraaculadamentc votados ao marty-
rio tias lides cerebraes, que vesleiu a alma
dos homens, rumo a figura, u uma adolescên-
cia perpetua e espiritual. É ver-lhes o riso,
uma careta, estudada ao espelho, para cada
effcito scenico da vida ; ouvir-lhes as vozes,
de galãs professos ou pães nobres, dislillando
palavras maravilhosas, mas sem repercutir
jamais sineeridades ; e surprehendel-os por
liiu quando a mascara lhes lomba, e por de-
traz do cortezão surge o carnivoro* tigre ou
byena, que do seu antro segue o lio d um
plano tenebroso, syndicato ou embuscada po-
litica, venda de penna ou venda de palavra...
\ espécie d'e.\ito de Ioda esta exhibiçào de
mascaras e bobos, em publico, Irahe-se nas
chufas e arremedes do povoléu contra «is mais
(Telles. Al cada momento, um brado rompe —
(Ih que maroto! — é algum director de banco
ou politico illustre que segue no préstito. Os
lampeões do gaz, cobertos de crepe, parecem
inulatOS ile chapéu alio, alugados para locarem
ganzá no precurso do enterro. A passagem dos
vj'ol<'scos é uma ovação macabra e ininterrupta.
OS GATOS
-21
o visconde \., brasileiro moço fidalgo, so-
liiv haver substituído a plumagem branca do
bicorne, por outra negra, fez-lhe coaer um
lençol de panno preto na prezilha, o <[u;il lhe
, como o d'uma senhora viuva, té lhe dar
duas voltas á roda <lo cachaço.
Yuiu grande carro vae-se o Maria Fer-
nandes saracoteando, a mostrar o crachá da
casaca, coberto de negro, como um brazão de
cervejaria. Defronte da casa do Restello, pal-
mas, galhofa: S. M. nova mesmo, deita a ca-
beça fora do coche, para sorrir. As janellas
do conde estão iodas cobertas de cortes de
calças, <i ha coroas de perpetuas cosidas a
meio da grade das saccadas. Engenhoso! Pa-
iiin jazigo de família, e ha a vantagem
de se aproveitarem depois as perpetuas, pr'a
xarope. No coche de D. João v. onde o rei
todos os florões dourados do tejadilho
vãe cobertos de fumo, como am preservativo
contra as moscas. Uma conversada, uma al-
irra. — Adeus ó visconde! — Então não
vens?— Ai que massada! — vá de risota, con-
tar historias, baforejar fumaças de charuto
pelas portinholas dos coupés. . . E entre tan-
to, milhares de earas joviaes, faz impressão a
22 OS GATOS
d'um cocheiro que enxuga as lagrimas. Um
cocheiro de praça, coitado! a amofmar-se
pela morte do rei. Ora, diabos levem o rei!
— 0 que elte vae chorando, é a morte
d um cavallo.
No Terreiro do Paço incorporam-se as de-
putações populares. É a parte mais seria do
cortejo. .Mal porém o elemento grave que et las
melem em scena. comera a impòr-se, a verve
dos espectadores rebenta de seu lado, e ah'1
ao fim, não lia meio de fazei' salgueiro fúnebre
com lai gente.
Ás jauellas (rum escriplorio coiumerci.il
do Cães Sodré, damas da alia, trajando es-
curo, e formosíssimas, caramba ! passam de
mão em mão um cacho (luvas, que todas que-
os GATOS -■">
ivm debicar como calhandras, disputando-sc
o cacho entre piruetas de grande alacridade ;
e algumas entreteem-se mesmo a tamborilar
com bagos sobre as cartollas de quem vae
iando. Os dois carros de flores recordam
aos dandys, com saudade, os carnavaes de
Nice: e uma mulher da rua exclama ingenua-
mente :
— Então o rei vae em duas porções?!
A cada momento ha claros no cortejo, pa-
ragens em que se intromette o homem dos
pasteis, pondo uma nota pelintra d'arraial.
Vozes avulsas :
— Lá vem agora a commissão <!as cama-
reras. . .
— A caixa económica dos tacões aos domi-
cílios. . .
A tropa começa : batalhões onde os sol-
dados teem números de diversos regimentos;
coronéis, <'ujns estuques se fundem, pingando
o gobre os crachás dos uniformes. A <j.\-
bosidade <1<> si-, general <!•' divisão tem um
successo. Um diabo grita-lhe : estás gravido,
Miguel !
Outro propõe-Jhe, cosa antes as medalhas
nas costas. A alein-ia do sr. I>. « '.-n l< >s é uma
■i ; OS 6AT0S
coisa em verdade esfusiante. Que affabilidade,
que verve: até parece que tem menos carne
nos sobr' olhos! K ifislo, um grito :
— 0 d'Edimburgo não veio!
Estava pr'a vir, mas logo pela manhã sen-
tiu-se incommodado. Tanto, que apenas al-
moçou seis garrafas de vinho do Porto, e
quando ia a erguer-se da meza, cahiu com
uniu d'estas syncopes a que são atreitos em
Portugal os marujos e os príncipes d'Ingla-
terra.
Mis o cadáver chegado a S. Vicente. Os
canhões troam. Dobres ^ sinos. Fuzilaria nas
ruas. É aquelle 0 momento solemne, defini-
tivo, único, em que o rei morto despe de vez
;i sua dalmatica de chefe, para transformar-se
em lixo e múmia — e foi esse também o que a
Igreja escolheu, para dizer á rainha ipie a al-
ma do marido devia estar áqnella hora a cear
com Satanaz !
Por forma que não houve injuria que a
cabouqueira do bondoso rei uão apanhasse.
Príncipes e aulicos, grandes e humildes, indo
lhe ultrajou a memoria, em vez de venerar-
llfa. 0 filho rin-se d'elle. AntigOS ministros
chamarain-lhe devasso e papas-molles. O pa-
os r.ATOS 25
triaroha compara-o á mulher adultera. K já
noite, aquella rustilhada official, batendo em
trens vertiginosos, <l'á volta de S. Vicente,
aquella rustilhada tinha o ar de virar as cos-
ta* ao pae, para chegar a tempo d'ainda se
poder anichar junto do íilho.
Não foi d'esses talvez o Hoenzollern, a
quem se partiu o coche de ceremonia, e que
vindo ao Rocio a pé, c'os ajudantes, largou
d'ahi n'um calhambeque, pr'a casa da Carlota.
Pede-se aos cidadãos rpie ainda conser-
vam algum amor ás coisas do paiz, vão dar
uma vista d'olhos pelos edifícios da Escola
Medica, e pelo chamado Real Hospital de S.
Josó. Dizemos-lhe que hão-de gostar, e mais
colherão subsídios para fazer uma pequena
manifestação de sympalhia ao sr. José Luciano,
•i primeira vez que adreguem vèl-o passar, de
nariz ao vento, em qualquer sitio frequentado.
I.á verão como é que o senhor do reino
'•ura os interesses do povo, e como é que os
ministros respondem ás sollicitaçòes que to-
dos os dias lhes estão fazendo os funecionarios
-20 OS GATOS
encarregados de zelar a medicina o a beniíi-
cencta publica, na primeira cidade do paiz.
Comecem pelo hospital, onde continua a
não haver uma sala de recepção para doentes,
nem salas de rechange para onde fazer o tras-
bordo d*enfermos durante a desinfecção das
enfermarias funecionantes, nem hospitalisações
isoladas para doenças de contagio, nem servi-
ços especiaes de maternidade, nem uma ins-
trumental completa para o exercício da cirur-
gia c de medicina, nem um amphitheatro
para operações, e nem sequer um quarto
decente onde tratar um enfermo, mediante
estipendio combinado. Percorram, atravez um
dédalo inextricável d'eseadinholas e corredo-
res sinistros, os innumeros andares d'aquella
incommensuravcl arca de Noé — e n'csses an-
dares as enfermarias innumeras, atochadas
dVnfermos em numero triplo ou quádruplo
do da sua lotação hygienica e normal.
Estudem a capacidade respiratória dos âm-
bitos, a altura e disposição dos tectos d'umas
enfermarias que ha nos forros do edifício, a dis-
tribuição da luz, os systhemas de ventilação e
aquecimento, a natureza das alfaias que giram
no serviço, a mobília de muitas d'essas enfer-
•iv GATOS 27
marias, <> estado carunchento dos solos, a
humidade ressumbrante de certos muros, a
capacidade <la massa d'arvoredos e jardins: c
concluam depois, mesmo sem serem médicos,
como é que aquillo se chama o Real Hospitalt
em vez de se chamar por exemplo estrumeira
ou matadoiro. Os amigos reporters, que lodos
os dias crucitam nas gazetas, quando lhes vão
dizer que o Banco regeitou a deshoras da noi-
te, algum bêbado escoriado na festa, c que
recebido iria incommodar na enfermaria, de-
zenas e dezenas de verdadeiros doentes: os
amigos reporto? não se lembraram ainda d"en-
trevistar os facultativos de S. José, ou de per-
correr com um hygienista disponível (que os
ha sempre promptosadar o braço a qualquer
teiro que lhes offereça publicidade) todos
aquelles fundões medonhos do Hospital, onde
a viva sollicitude do enfermeiro-mór, e os dis-
vellos «los clínicos assistentes, pouco logram
fazer, attenta a vergonhosa pobreza, e a in-
qualificável promiscuidade em que tudo jaz
alli. Com o edifício da Escola Medica, ainda
peor.
Desde a primitiva, foi esse edifício um cha-'
vasca! indigno dos estudantes e pri fessoreí
-JS os GATOS
que alli se davam rendez-vous. Não havia unia
aula onde, já não digo coniinoda, mas decen-
temente, um escolar podesse ouvir uma pre-
lecção. Os bancos destinados ao auditório,
além de não possuirem costas, tinham por leito
uma taboa de dois palmos, de pinho tosco, c
nem uma carteira por deante, um púlpito de
musica, um pedaço de taboa sequer, sobre
que collocar um livro, ou escrever a lápis um
apontamento. As collecções e laboratórios
(faualyses, os museus especiacs annexos ás
cadeiras do curso, como o de cirurgia opera-
tória, os d'anatomia pathologica e normal, o
de histologia e histo-physiologia, eram corre-
dores sem luz nem pé direito, mobilados igno-
bilmente, com armários toscos, onde faltava
tudo, exemplares e instrumentos, e onde os
raros espécimens existentes, estavam para alli
com um ar d'mstallaçãO provisória, á espera
de que nos ministérios sobrasse verba, das
despezas surdas e das gratificações escandalo-
sas, para então se prover ao abastecimento d'a-
quellas secções de ensino scicntiíico c profis-
sional. Quanto a bibliotheca, não fal lemos : é
uma ruma ^alfarrábios archeologicos, res-
guardada nas estantes por meio de redes de
OS GATOS -20
capoeira, e servida aos curiosos em mezas de
botequim de província.
Ao forasteiro que vindo ao Hospital de S.
iis annexos escolares, por acaso torcia
o nariz perante os desconfortos que via, já
nas enfermarias, já nas salas d'estudo, nunca
o cicerone deixava d'observar :
— Confessemos que seja um pouco magro
tudo isto : entretanto v. ex.a vae já apreciai- as
duas maravilhas cá da casa !
As duas maravilhas eram, no andar nobre;
a chamada sala do conselho, ornada de sa-
nefas cor de sangue, c formando em ordem de
sumptuosidade, logo depois das famosas ca-
sas d'audiencia do tribunal da Boa Hora; e
defronte d'esta, no gabinete de histologia, um
retraio a óleo do sr. D. João vi, de casaca
verde e meias de linha, hoje apeado a um can-
to, c servindo d'alvo, felizmente, ás inconti-
nencias d' uretra da rapaziada.
Esta installaçãó não eia, como se vé, lu-
xuosíssima, e n'esta epocha aperalvilhada, cm
(pie tudo mira ao confortável, e ale nas suas
repartições os senhores amanuenses tecm fo-
gões <• parquets nítidos, dava uma impressão
d'austeridade ouvir prelecciouar Sousa .Martins
30 OS GATOS
tuim telheiro frio e desabrigado, c assistir ás
demonstrações d'anatomia de Manoel Bento,
ínima especíe de amphitheatro de palhaços,
especado por traves de pinho, immundo como
um estabulo, e todo cheio ti*1 correntes d'ar
como um casebre.
Um dia raiou porem, cm que á falta de
conforto e â falta (Faceio, veio ajuntar-se um
factor novo, e este inquietante : a falta de se-
gurança ! Não ter caloriferos, nem fauteuils,
nem púlpitos girantcs nas aulas, nem livros mo-
dernos nas bibliothecas, nem apparelhos espe-
ciaes nos gabinetes, era já triste; mas emfim,
lá estava a scieneia dos mestres a supprir
aquellas deflieieneias, e a bemerecer tão duros
sacrifícios. Km termos que aos rapazes conti-
nuaria a ser grato o ir bebei- entre aquellas
unas paredes d'albergue, as cogitações da sa-
bedoria, se de repente não entra com elles
a desconfiança das paredes se estarem prepa-
rando, para uma bella manhã lhes cahirem
em cima dos costados. De, feito, ou porque o
solo houvesse oscillado, desviando comsigo,
da linha de prumo, o empedramento dos ali-
cerces, ou porque as paredes da Escola Me-
dica começassem a embirrar, tardiamente ê
OS GATOS
31
certo, com o patronato do sr. D. João VI, o
certo foi que o casebre desandou a esbeiçar por
todas as bandas, e a exprimir desejos de se es-
tiraçar para cima dos canteiros racbiticos do
jardim.
A dtgringolade começou pela biblioteca,
que houve por bem mostrar a luz atravez as
desinlersecções dos planos sólidos, súbito -<■-
parados, ao tempo em que deixava vergar em
papos ameaçadores, todos os madeiramentos
do tecto e do soalho. D'ahi correu aos outros
cantos do edifício, e houve que se especar os
muros d" gabinete de histologia, do amphi-
theatro d*anatomia e da aula de pharmacia,
fugir tias aulas, alliviar os madeiramentos de
lodo o peso de mobílias e alfaias que precipi-
tar podessem a derrocada, transportar emfim
osbocaes dascollecções e a instrumental dos la-
boratórios, para os corredores e escaninhos
do andar de baixo, onde jazem a esmo, que-
brados muitos, inutUisados quasi todos, tfuma
triía de ladra a lazer corar de vergonha e de
cólera, lentes c discípulos.
Por falta de casas, as lições começaram a
dar-se um pouco em toda a parte, no barra-
cão das autopsias, dos corredores d'entrada do
•>- OS GATOS
edifício, sob a marqueza que antecede a Bata
do conselho, nos palcos do hospital, ou pelas
clareiras molhadas do jardim— e assim, á min-
gua ilc dez melros de soalho firme, onde eol-
locar um púlpito e quatro bancos, alguns pro-
fessores, receando pelas vidas dos seus alum-
nos, pensam em dar aula nas suas próprias
residências, ollerecendo á sciencia o refugio
que o Estado lhe nega, mercê da rancorosa
nullidade do mandarim que está zelando (zoi-
lando é melhor) estas questões.
E todavia, ha trinta annos que com mais
ou menos zelo os enfermeiros-móres recla-
mam perante os poderes públicos, remédio
contra as deploráveis condições do Hospital,
agora intoleráveis, graças á afluência d'enfer-
mos que de toda a parte advém ; e que o con-
selho da Escola intenta aperfeiçoar e comple-
OS GATOS 33
lar o ensino medico, reclamando dos mesmos
poderes a decretação das medidas qne adequa-
das julgou àquelle intento. A resposta, ou
tem sido nulla, ou vae-se mantendo em intér-
minas promessas, qual mais cynicamente dei-
xada por cumprir.
No nez de novembro ultimo, a afíluencia
a s. José foi de tal ordem, que todas as en-
fermarias tiveram que installar leitos em tri-
plicado, passando os doentes que ainda assim
sobraram d'estas palhotas arranjadas á pressa,
para barraras de madeira, mandadas armar
nos jardins do Estephania. Por outro lado, o
■ai subalterno das enfermarias, vilmente
. mal escolhido, sem educação proflssio-
nal, nem garantias de vida, é cada vez mais
i assistir a todos os leitos, com a
sollicilude paciente, a regularidade e o inte-
resse que deviam convergir n uma oceupação
de tanto escrúpulo. Não ha uma irmã que ad-
ministre um remédio, oa diga a um enfermo
alguma boa palavra de conforto. Nas enfer-
marias de homens, o serviço é quasi lodo feito
por gallegos, que alem de poucos, são o me-
nos adaptáveis possível â missão de carinho
qne são chamados a preencher.
34 os cvrits
Quanto ao serviçe clinico, se é verdade
que muitos directores d'enfermaria fazem o
possível para prover a Iodas as urgências, uão
é menos certo ser incompatível o interesse,
com os excessos de trabalho a que os mes-
mos funcciona/ios são forçados. No espaço
(ruma ou duas horas quotidianas, que lautas
são as tpie o mais excepcionalmente zeloso
medico pôde consagrará sua enfermaria, como
distribuir a attenção, com lucidez egual, por
oitenta ou noventa enfermidades differentes,
sotlVidas por indivíduos que por via de regra
nem queixar-se sabem?
Ila-de haver ciuco ânuos, sendo enferinei-
ro-mór o dr. Thomaz de Carvalho, baixou um
ukase mandando suspender nas enfermarias
as libações de capilé, medicamento este que
Custava sete contos amuiaes ao Hospital, e com
que os enfermeiros empanturravam os infelizes,
dias e dias, até o facultativo ter occasião de
os examinar.
Pelo que respeita ao zelo do Estado pelos
progressos da medicina portugueza, a solli-
. -ilude tem-se mantido, perante os relatórios e
proleslos da Escola .Medira de Lisboa, á mes-
ma altura de farfalhice inepta e de besfiali-
OS GATOS •"*•">
Inl.' supina, eomque EUe já sé havia permit-
tido encarar a questão do Hospital de S. José.
Com os progressos da medicina e a c>pe-
ctalisaçào, successlvamente mais nítida, dos
seos diflerentes ramos de sciencias comple-
mentares e accessorias, arge cada vez mais
desdobrar cadeiras fundar cadeiras novas,
ampliar o programma das antigas, e enrique-
cer emflm de subsídios práticos, quanto mais
abundantes melhor, a aprendizagem d'uma
profissão que todos os dias se entremeia de
responsabilidades e de perigos, e se eonstitue
em arbitro d'uraa multidão de causas sociaes
escabrosas, mercê da conversão de todos os
núcleos de humanidade, em agremiados sem
fim de diathesicos e de psyeopathas. N'es-
ta ordem d*ideias, tem o conselho da Es-
cola resolvido scindir por exemplo, em duas
cadeiras, o estudo «la physiologia— a primeira
abrangendo o estudo das propriedades vivas da
célula e dos tecidos, e reservando-se a segun-
da a physiologia mais complexa, dos órgãos,
e •) unisono orgânico emfim, d*onde resulta o
individuo e <» ser— e assim lazer professar á
parte o estudo da hygiene, e o da medicina
legal, seiencias cada vez mais complicadas, e
36 OS GATOS
ainda hoje reduzidas na Escola, a corriquei-
ras noções sem solidez. Tam pouco o estudo
da anatomia topographica cabe na actual ca-
deira d'operações, e o da anatomia pathologi-
ca pôde continuar, como ate hoje, platónico e
murcho, desajudado das luzes dachimica bio-
lógica, e truma pratica tenaz no laboratório.
Egual mente é necessário desdobrai- as patho-
logias, interna e externa, fundando cadeiras es-
peciaes d'aquelles ramos mórbidos, que por sua
importância e hodierno progresso mais rega-
lias teem ganho de sciencias autónomas. K por
outro lado as clinicas, que fazem o medico,
posto dirigidas (como de rcslo as outras ca-
deiras theoricas) com uma consciência scienti-
fica que faz honra ao corpo docente, também
não podem, como estão, ministrarão estudan-
te, n um tirocínio de dois ânuos, a educação
profissional de que este carece. Seria mister
tornar mais aturada a frequência do escolar
na enfermaria, pela fundação do internato e.
a superintendência de chefes de clinica: des-
centralisal-as, separal-as em salas especiaes,
como por exemplo a das doçuras cutâneas e
syphiliticas, a das doenças nervosas, a d'ohptal-
rnologia, a das doenças da maternidade, doeu-
OS GATOS 37
ças de creanças, etc. com laboratórios anne-
ko$, onde se repetisse i anatomia pathologi-
câ, a physiologia e a chimica orgânica particu-
larmente referentes ao grupo uosologico a en-
carar.
imo os governos teem comprehendido
estas necessidades, já dissemos. Em balde a
administração dos hospitaes concita os minis-
tros do reino, a visitarem <>s serviços clínicos
i!as differentes casas d'assistencia publica, á
sua guarda. Em balde os directores da Escola
Medica, nas sessões solemnes <la distribuição
,1.- prémios, toem chamado aos reis, os fami-
liares de todas as sciencias, chegando um a
arengar, sem vergonha nenhuma, que I». Luiz
era o pae da medicina. — Manteiga inútil!
Pela simples força da sua importância, um
tal problema uri.» consegue interessar os ci-
mos «la politica, que entre varias razões sobre-
leva esta : a de não ter havido nos corpos <li-
;}8 os GATOS
rigentes do Hospital e da Escola, unia loira
d'intriga eleitoral, onde a teimosia d'um ho-
mem pozesse a voz que a simples questão
seientifíea jamais logrou fazer zoar, ás orelhas
de burro do governo, lia mais de eincoenta
annos que o hospital de S. José está eondcm-
nado, e outros tantos que os engenheiros crea-
ram um projecto d'Escóla, éscolhendo-se local
pr'a fundação, e até mandando-se apontar no
orçamento a verba costeadora. . . que a trapa-
ça ministerial depois sumiu por facturas de
casamentos régios e baptisados, por viajatas de
convalescença a capitães de luxo e de prazer,
e por desobriga de jóias da coroa, nas casas
de prego onde esses adornos teem escrínio cer-
to lia muito tempo.
Ha cinco mezcs, quando findo o anno le-
ctivo, o conselho da Escola Medica attentou
pela millcssima vez na impossibilidade d'em
pleno inverno preleccionar aos alumnos, nos
pateos e jardins da cerca hospitalar — únicos
logares garantidos contra a derrocada — foi um
professor amigo lembrar timidamente ao snr.
José Luciano o bem que faria uma visita d'el-
le, aos restos das aulas e amphitheatros pa-
thologicos, tanto mais que pelo lado da segu-
(is GATOS 30
rança individual, não havia perigo: a rapazia-
da toda estava a férias, e o caso «la autopsia
á Bemvinda fora um episodio que a cirurgia
escolar jurava não mais repetir, em qualquer
outro microcephalo.
Sobrerogado poraquellas palavras amisto-
sas, ti ministro murmurou que havia d'ir, va-
gamente receando ainda <> quer que fo
uma cilada, cair-lhe cm cima um corredor dos
especados, abater o soalho sob o pesoarroba-
ceo da sua insignificância, vir um magarefe da
sala dos cortes e marcal-o — todos os pusi-
lânimes terrores emfim, dos inconscientes que
prohibidos organicamente de medir o alcance
dos seus actos, nunca sabem se estão puros ou
conspurcados.
.lá tranquillisado d*esses pavores, avançou
uma manhã, de correio atrás, pela poria do
Carro, vindo desabrochará fachada da Escola,
a cujo pórtico o conselho Escolar descera a re-
celiel-o. Aqui calcou os inrvilaveis SOCOS de bor-
racha, symbolo das precauções a tomar na es-
pinhosa senda da vida publica, paSSOU ás mâOS
do secretario o chapéu de chuva, imagem em
volto das grandes elocubrações governativas que
0 linam — dando .10 nariz a iillima esfregadella,
10 OS GATOS
sobre os borbotões homerrhoidarios que alli
pegou o habito de continuamente farejar nas
perfídias dos seus irmãos de guerra.
Cumprimentos trocados, quando iam a
comboial-0 pela escada, direito á secretaria,
s. ex.a recusou-se a entrar, attenta a derro-
cada presumível; e aos repoupos, como um
sendeiro que se pega, recuou novamente até
ao pateo, circumscrevendo pela banda de fora
ms muros do casebre, á busca d uma entrada
segura para a Escola, que não achou : e assim
foi indo, pela porta de grades, até dar de fo-
cinhos com a lavanderia.
— Ora aqui está, disse o snr. José Lucia-
no, um edifício onde os senhores podiam
preleccionar condignamente! Ricos salões! A
barrella dos enfermos de S. José, acaso enoja-
ria aos convívios da sciencia?
— Fm pouco menos do que a enojaria a
barrella dos enfermos de S. Bento. Entanto,
não se fizeram as cloacas para logares d'cnsi-
namento, senão no caso previsto da chimica
do esterco ter dYnsaiar os seus reagentes, na
focinheira dos estadistas mal creados.
— É uma indirecta. . .
— Que relembra a v. ex.a os inconvenien-
iis GATOS 1 1
tes de chalacear, usando assim galochas de
cautchauc. Ora venha d'ahi vêr o casebre on-
de a infâmia dos políticos tem esquecido, ha
cincoenta annos, o mais útil e o mais brilhan-
te estabelecimento scientifico de Portugal.
Retrocederam com elle quasi aos empur-
. fazendo-o entrar nas ruínas alfim, onde
o seu terror era drolatico, taes estrallos lhe
dava ò queixo convulsivo, e tão grotesca a
descorrelação das suas abstractas pernas de
fantoche, recusando-se, as tristes, a amparal-o
na marcha, mais além. Mostraram-lhe tudo, as
paredes fendidas, <>s tectos descolados, soa-
lhos podres, os bocaes do museu todos parti-
dos; e uas casinhotas das aulas, madeiras
soltas, janellas sem vidros, poeira, lixo, e toda
a fedorenta desolação dos sítios onde <» tran-
seunte se agacha em altitudes de budha es-
tercorario. Quando ia a descer
— Mas onde é a Escola? inquiriu s. ex.a
— É o qne todos os visitantes perguntam,
e nenhum de nós lhe sabe responder.
ii snr. José Lnciano recolheu-se n'esta res-
i alguns minutos: e lembrava assim um
pinto morto, boiando na sania d'um ovo snl-
íidrado.
i
42 <>s GATOS
— De feito, é indispensável proceder á
reedificação, e sobro planos amplos, e des-
de já.
— E desde já, opinaram todos, animados.
— Vou mandar preparar verba ao orça-
mento. Aponte, ó Brito. Vou mandar rever o
projecto dos engenheiros. É indispensável dar
á sciencia morada condigna, erguer o nivel
scientifico, preparar a medicina d'ámanhã...
Por consequência, senhores, poder-nos-hemos
entender. Todos aqui são homens de pala-
vra?
— Todos homens de palavra!
— Escripta e escarrada?
— A nossa escripta; agora escarrada, a
dos collegas de v. ex.a.
— Condiccionemos pois. Eu dou a Escola.
.Mas os senhores hão-de-me cá metter um Lente
sem concurso.
— Regulamentos e dignidade profissional
nos prohibem de transigir com essa vellia-
cada. 0 concurso é uma instransmissivel ga-
rantia, sobre que a Escola estriba a legitimi-
dade mais ou menos inviolável das suas anpii-
sições. Abolil-o é lazer bancarrota na austeri-
dade do magistério, pôr a educação da juven-
os GATOS i •'»
tu. lo ;'i mercê dos valdevinos sobrecellentes
das secretarias e «las ftscalisações aduaneiras
e ferro-viarias. Sem concurso, quem impedi-
ria V. Ex.a de nos despachar por exemplo o
padre Brandão, professor de partos?
— 0 meu protegido não è ahi nenhum in-
truso em artes de curar. Facultativo pela Es-
cola de Lisboa, foi ao estrangeiro informar-se
d' uma especialidade clinica mimosa, consti-
tuindo-se em Vienna d' Áustria discípulo ama-
do dos primeiros ophtalmologistas do inundo,
e vindo a sagrar-se professor na grande uni-
versidade d'll«'i lelberg, onde por signal, Bis-
marck. . .
— Já conhecemos o truc, nâo insista.
— Deixar partir um lai homem, si
limiar o erro histórico, que despedindo Co-
lombo, e não aceitando oa serviços de Stanley,
machadou mortalmente, á distancia de séculos,
a frondosissima magnólia da eivilisaçã i conti-
nental e ultramarina do nosso paus.
— E aparb ! motivos philosophi
não terá V. Ex.a outros, de natureza mais do-
mestica, a verramar-lhe no sestro d.' cá met-
ter o homem ?
— A verdade é que um afli teu sof-
+
\ \ OS GATOS
fria folhos. En cá sou franco ! Cataratas aos
olhos pares, um dos quaes por signa) que
e .1 de vidro, »i uma espécie de conjunctivite
no olho impar. Ghama-se o especialista ; ope-
i i "ni. . .
— E o doente desandou a vêr.
— Por todos os lados !
— Mesmo do olho de vidro?
— Mesmo do olho impar. Aquillo havia
er pupilla artificial que lhe rasgaram. Ali,
viu as estrellas !
— É o costume.
—Mas ficou com um olho admirável. Air
l -;n menina.
— E como no conto do macaco, a menina
tem . . . camisa?
— Em termos que necessito pagar ao dou-
tor estes serviços. Dar-lhe um alfinete de pe-
dras, seria galhardo em brazileiro; mas um
presidente de conselho necessita de savoir
faire com mais munificência. Conto portanto
fázel-o professor da stra especialidade, na pri-
meira escola cirúrgica do 'pai*. É negocio sal-
dado, e o edifício da Escola far-se-ha, <h><^
que OS senhores digam uma palavra.
— Por acquiescencla nossa, já V. Ex.a sabe
.is GATOS
i5
que não dispensaremos eoncurso ao sen pu-
pUlo. E as razoes são flagrantes. Para receber
,i corpo docente um individuo, <i>ia Casa
aio sabe d'outras proficiências, alem das que
perante ella vem authenticar-se, em provas
publicas. Foi por concurso que todos os pro-
n|ni entraram. Sr elle não serve, abu-
lam-no para todos, e o protegido de V. Ex.a
entre depois. Agora se elle continua a ser lei,
▼enha o ophtalmologista prestar acto «las dis-
ciplinas e sciencias que propriamente consti-
tuem a summula <!<• curso geral de medicina,
que depois d'isso, o nomeal-o proprietário
d'oma cadeira, sem <>s tramites de promi
r adjuvato a que os nossos lentes substituti s
-• subjeitam, annos e annos, posto represi
ainda ama preferencia escandalosa, já enl
eoadunavel a amas apparencias de justiça,
mercê dos tstu<l<»s especiaes do nomeado, e
,i,, aparte das matérias incluídas no plano d t
eadeira nova. Esta é a lei. Tudo quanto V.
fizer fora da moldura que lhe deixamos,
importa, eomo disáe B. Raposo no seu relató-
rio ao conselho d'Instrucção Publica, w*
onvt niencku do ensino t da causa
publica, ofensas dt principiai • '■
íli OS GATOS
da creação e provimento das cadeiras, b escar-
neo dos direitos adquiridos, e trabalhosamente
consolidados pelos substitutos.
De mais, á Escola repugnaria qualquer re-
forma concebida fora âa lógica e do criterig
scientifico aconselhados por ella em mais
d'uma representação aos poderes públicos.
Estriba-se a aprendizagem clinica, que é a
parte útil da cirurgia e da medicina, cm no-
ções de sciencia geral, que o alumno aspira
Mor exemplo do estudo da anatomia, da phy-
igia, da pathologia geral, da hygiene e da
matéria medica, e sem o conhecimento das
quaes a missão do medico á cabeceira do enfer-
mo, seria a d'um curandeiro empírico e pe-
dante. D'onde se infere que toda a reorgani-
sação do ensino deverá proceder dos funda-
mentos para as cúpulas, principiar pelos de-
senvolvimentos, sizões e remodelações pro-
postas para as cadeiras fundamentaes acima
ditas, tocando-se as especialidades por ulti-
mo, em vez de se andar ás cabriolas pelos
catitismos da sciencia, como essa ophtalmolo-
gia que é para assim dizer uma prenda de
senhoras, e entre as cadeiras de creação pro-
posta, resahe com nma importância subalterna,
OS GATOS
\~
visto estudar-se ella, por fragmentos embora,
a differentes alturas do curso actual, (c)
*
Taes foram as objecções oppostas pelo
corpo docente da Escola, aos caprichos mór-
bidos '1" sr. ministro do reino, que se retirou
... p ,rque, se alguém pensa que, até hoje
imnos sabiam das escolas, sem noção d'ophtal-
tnologia, redondamente se engana.
icionavam os professores de anatomia a
dos órgãos da visão? Não faziam analogamente os
eg de physiologia? Os de patholoj
,gia, além de outros pontos de path
. monstravam o uso do respectivo ar-
\-, i tem cabido aos de patholo-
. eterna e anatomia pathologica tratarem das
■ Excloiu-ee alguma vez, do ensi-
no da medicina operatória, a parte respecl
,s e operações no apparelho visual? N
mostram nas clinicas moléstias dos olhos? E ás de-
cadeiras não pertence, a cada uma, sua quota
parte de estudo attinente u coisas d íulistica?...»
B. Raposo. R latorio
',s OS GATOS
de nariz apopletico, saccudindo na portada do
casebre, á maneira d'invectiva, o po das suas
sandálias de cautchauc.
Logo alli se futurou que o descontenta-
mento do reformador da optalmologia —que
se escamuge ao desembolso dos honorários
do medico, lezando as prerogativas de toda
uma faculdade — fosse embaraço ao começo
das obras da Escola uova, e travão ferrenho
para as reformas scientificas reclamadas. Erro
tora suppôr alguém que os institutos onde se
prepara o posso;!! superior das sociedades,
pairassem em regiões inacessíveis aos capri-
chos asnaticos dos bonzos que aos mandam,
estribados na inania physica das classes eru-
ditas, o na impunidade de prepotências ante-
riores.
0 resultado foi ordenar o snr. José Lucia-
no por sua conta e risco, e ao inverso do
conselho dos entendidos, a creação d'um cur-
so d'ophtalmologia, funccionando paralela-
mente á Escola Medica, mas de frequência
facultativa para os estudantes, e d'estipendio
e organisação professoral muito diversos dos
observados no curso ordinário.
De feito, prefixa o decreto, a par da funda-
os GATOS
','.>
çao da cadeira nova, quem determinadamente
ha-d* mt o professor, e desfecha creando um
posto d'ajudante, de provimento fechado á
occalistica nacional— pois se stereotypa tfelle
a condição do candidato ao togar, ser estran-
Só em ordenados aufere o lente imposto,
annualmente mais, do que entre ordenad
gratificações d'exercicio, os lentes «I»- concurso;
e assim <> adjunto fica em situação monetária
sobrelevante á dos pobres professores substi-
tutos, que se arriscam a ganhar durante dez,
quinze, vinte annos, um estipendio em ver-
dade irrisório, attentos os labores terríveis
que tiveram de vencer para conquistar o seu
togar.
Sobre estes excessos, acresce ainda o de
ser a cadeira espúria, a unica que se dá o lu-
xo de ler ajudante preparador encartado. Para
as mesmas clinicas, tão trabalhosas, não houve
anda meio de se ateancar um chefe de sala,
,|in- reforce as explicações do cathedratico, »i
ministre aos alumnos, por detalhe, o tão In-
dispensável tirocínio das minuciosas coisas de
enfermagem e de pequena cirurgia.
A bofetada do ministro estala portanto aqui
com lenâvel fracasso, nas barbas «ruma cor-
">(l OS (iATOS
poração que se não quiz dobrar ás collisões
liystericas e domesticas que o derrengam ;i
elle — e calcula-se pela violência do acto, o pe-
rigo em que incorrem as mais graves coisas
do paiz, desde que um tal homem pôde revo-
gar códigos e preterir direitos, com a sua sim-
ples pennada de politico gafo* e sem que nin-
guem desça á pua a escadeirar-lhe o despo-
tismo.
De feito, o sr. José Luciano não se impor-
I 'ii com a opinião dos entendidos; não quiz
saber das Leis que a prudência poz de guarda
á soberania do alto ensino scienlilico ; desde-
nhou a razão e a lógica da reforma radical
que lhe propunham — c com uma insolência
que só (em similar na bestialidade, emquanto
o estudo da physiologia periga, amontoado
assim nus cento e vinte lições prováveis d'um
anno lectivo; emquanto o estudo da hygiene e
o da medicina legal são pura hypolhrse; em-
quantoa microscopia mórbida é lettra morta;
emquanto as pathologias e as clinicas recla-
mam ampli;ir-se; e o edilicio da Escola desa-
ba, c a bibliotheca envelhece, c os museus
cada dia estão mais pobres: o idiota, em vez
de remediar d'uin liauslo eshis misérias, de
08 C LTQ6 51
firmar com o sea nome uma obra perdurável,
so xr n;i Escola Medica uma repartição de
sorrelfas plumitivos, e n'esta um escaninho
onde pôr a comer tranquillamente um afi-
lhado.
Claro vae que u'esta reprknenda nossa.
Dão entra para nada o nome do homem estu-
dioso a quem o snr. José Luciano deu, com
a sua arbitrariedade, um renome diverso do
,,,„. eiie mais tarde vira a conquistar talvez
na sciencia portugueza. <> professor avulso
d'ophtalmologia não th'<vr, a nosso vèr, da
sympathia votada aos trabalhadores e aos es-
tudiosos, | elo facto d'um guita lhe ter aberto
azinhaga fácil ;'• tomadia de 1000000 reis men-
.. sem trabalho nenhum— embora pare-
cendo duvidar, com o supprimir-lhe as diffi-
culdades do concurso, das suas apregoadas
aptidões de Babio e de professor.
Até nós, os governos, quando apertados
para arranjar um poiso de favor aos scns
mignons, tinham um campo d'accão certo <•
sabido onde lançal-os— campo de responsabi-
lidades modestas, como -\ burocracia, as admi-
nistrações d,' provinda, oa pequenos consula-
dos e os carj ilternos ^ legação— coisas
Da <>s GATOS
inofifensivas erafira, bem ou mal pagas, l»ri-
Ihantes quando muito, e que se defraudavam
o erário, nunca vinham a perturbar a circu-
lação das ideias e dos interesses fundamentais
da sociedade. Para servir uma canja ao primo
d um collega, os ministros revolviam tudo, do
pessoa] das repartições, ao pessoa] das embai-
xadas, mas paravam, transidos de respeito,
no Limiar de certos sanctuarios por sua natu-
reza inacessiveis ás polluções da cainçada rw-
cutiva.
— ingénuos tempos !
Hoje os conselheiros d'el-rei arrogaram-se
poderes omniscientes, invadiram as attribui-
ções dos tribunaes superiores, c entram de
chicote e esporas nas salas dos cursos, pondo
junto ao altar da sciencia, em vêz de tripode,
um mijadeiro. 0 que indigna não é tanto o
snr. Gama Pinto, eathedratisado de graça, no
hemi-cyclo professora] da Escola Medica, como
o snr. José Luciano feito arbitro máximo dos
destinos da faculdade !
Se o caso dVsIr alropHIamcnlo da lei
menoscabando a aristocracia scientifica (rum
grupo, em vêz de partir (rum tal typo, hou-
vesse partido d um homem de talento, íami-
08 GA/TOS •>;>
liar a ia os altos estudos, entender-se-hia que
o ministro procedera talvei por puro fetchis-
iin» de sciencia, embora mofando as formulas
i provisão. Mas uem semelhante liy-
pothese logra dar-se, viste como, em primeiro
logar o sr. José Luciano é cerebralmente um
csvasiado, e em segundo, o snr. Gama Pinto
não paira agora tão alto, que oão podesse
concorrer á ophtalmologia com o snr. Lou-
., ,ia Fonseca, ou com o snr. Mello
Vianna.
Ora, o melhor.
caso da provisão d'um lente por au-
icia exclusiva d'um ministro, aão é des-
graçadamente um caso avulso. Tem antece-
dentes escandalosos uo Instituto Industrial, e
vae ter consequentes breve, na Escola Medica
e ao Curso Superior de Lettras.
Kmpóz da ophtalmologia, e antes mesmo
que se dé principio às obras da Escola e á re-
forma geral do curso de cirurgia e medicina,
hemos que vèr creada uma cadeira de psy-
chiatria, eom especiatisação d?um certo ho-
mem para lente, e dispensa do concurso im-
•' i (is GATOS
plicita, que é para fechar as probabilidades
da nomeação a quaesquer outros candidatos.
E assim a respeito do Curso Superior de Let-
tras, hoje deserto, se projectam remendos, cm
guiza d'accommodal-o a uma espécie d'escola
nonnal para professores d'instruccão secunda-
ria, modilicando-se o programma das disci-
plinas actuaes, e juntando-se-lhe outras, em
cuja provisão medita o sf. José Luciano aco-
corar de mão beijada, alguns satélites seus e
meninos de coro descontentes.
Ora, é necessário rechassar de vez estas
exorbitâncias infames do poder, que põem as
mais nobres actividades do espirito á mercê
do auctoritarismo emphatico dos nullos, e in-
troduzem nos quadros scientificoso mistilbrio
cm que asam assalgalhar-se entre nós, os
quadros aobiliarchicos. É necessário que esse
tal ministro do reino d ama vez perceba que
se Dão cathedratisam doutores pela mesma
receita com que se aviscondalham brazileifos,
<• que se é certo que a toga vestida pelo sr.
Gama Cinto não deshonra felizmente a Escola
.Medica, mercê dos talentos prováveis do neo-
pliito, nem por isso O perdão d'aclo deixa de
ser uma odiosa esmola, que se vinga do be-
(is GATOS
aeficio que presta, defraudando a altivez de
quem ua a ceei ta.
Taes concessões, se bem que U,I|;| ml ou"
tra fez inoflensivas, em geral só costumam
purgar de si nefastos resultados, baixas <l<>
uivei moral e mental das gerações estudiosas,
repulsa dos homens de valor ao magistério, e
desanimo emfim da mocidade, já de si pro-
pensa á negação de todas as magistraturas
contemporâneas.
Evitem-nos pois o espectáculo do ensino
superior gerido por curiosos, e acabe a pro-
tecção do Estado aos sabichões sob palavra
de honra, como esse zoologo que exclamou
uma vez na Polytechnica
— As rãs são lagartos sem rabo.
Ou como ess'outro, grande esvurmador
origens étnicas do homem, que costumava di-
zer no Curso Superior de Lettras :
— Desabotoem as calças d'nm homem ; se
f0r (|(. febrica coberta, nâo ha que errar— é
celta !
56 08 GATOS
ínterview com o imperador do Brazil.
A sua chegada a Lisboa, recambiado do
throno pela revolução picaresca de 15 de ao-
vembro, o imperador do Brazil não viu á ro-
da de si senão personagens de caracter offi-
cial, e Qoticiaristas e reporters ávidos de im-
vidades com que fazer aiijíiniMitar a venda aos
seus jornaes. Colónia brazileira, muito pouca,
e essa constrangida e remordendo contra o
soberano deposto um desdém, que nem por
ter nascido á véspera, deixava de ter iodas as
apparencias d'um ódio antigo e figadal.
Comprehende-se eiilaníi» a villania, O vc-
Iho príncipe, que protegera e acarinhara mui-
tos d'aquelles egoístas, auxiliando^-lhes os
accessos para a riqueza ou para oseargospu-
blicos, o velho príncipe descia a Portugal
exbautorado, e já não era para elles no im-
pério o esteio da Ordem, já não garantia com
o sen governo a alia de fundos, já não podia
dar pensões a estudantes ea escriplores, já não
fazia cônsules nem despachava plenipotenciá-
rios; e desembarcando pobre, era uma espécie
de cousin Pons, de cuja eslima nenhum brazilei-
)() authentico, ou portuguez abrazileirado, po-
diam auferir vangloria ou espórtula de vulto!
os ti m<»s 57
Km termos que fora do carinhoso circuito
dos três ou quatro amigos leaes que vinham
;i bordo, a família imperial só achou ao des-
embarcar em Lisboa, as caras de cortiça do
séquito do sr. I>. Carlos, e a refllante mati-
lha dos reporters, ávida <l<' conspurcar a
restade do infortúnio com a inexprimível
solercia das interviews, obscenisada por essa
absoluta falta de pudor dos que fazem da al-
covitice um ganha i>âo.
Percorrer as reportages il»1 fama, durante
os primeiros dez dias que o imperador teve
cm Lisboa, é edificar-se a gente ri' uma mul-
tidão de mexeriquices, de parvoiçadas, d'abu-
de confiança, de catumnias, que nem por
passarem no jornalismo por qualidades repu-
tadoras de mocinhos talentosos, deixam <lc
vir íid Código como outras tantas causas de
pronuncia.
o jornalismo meudo está entre nós toman-
do uma feição tão pouco nobre, que inutili-
v.ii-u seria quasi uma obra de razão. Mas não
rora a melhor occasião de liquidar esta
pendência, que apenas feri para dizer que não
foram intuitos d'entrevisteiro, nem propósitos
d'esclarecer m últimos }Uicos do
58 (>s GATOS
Brazil, quem me levou lia dias ao Braganza,
com uma pouca de ternura pelos dois uobi-
lissimos velhos desthronados. ía-me pois a
acercar do snr. D. Pedro II, quando subita-
mente me cortou <> passo um dos taes repor-
ters, precisamente no instante de se annun-
ciar o almoço imperial.
Á vista do gazeteiro intruso, dos seus mo-
vimentos de fura-vidas, da sua sem ceremonia
de sachrista, e do seu collarinho de boi racha.,
S. M., que ainda não dera pela minha presença,
mal disfarçando um gesto d'enfado, estendeu
a mão mollemente ao hoinemsinlio, com a re-
signada bondade de quem de lia muito se entre-
tém, como Esopo, a fazer fallar os animaes-
— ,lá sei a que vem, disse o soberano des-
ilironado, ao gazeteiro-. V. quer saber, qual o
menu do meu almoço, o maiére d'kotdYd& in-
íormal-o... pôde dizer que Wt substituir o
sauté cVagneanr aux pois, por umas iscas de
fígado á la brandura dos nossos costumes. . .
que dei além d'isso uma audiência de meia
hora ao pedicuro, e que mudei de roupa
branca ao levantar, lla-de querer examinar
talvez a roupa suja ?. . .
— A roupa suja! disse o enlrevisleiro, íaris-
OS OATOS 59
cando. I'. um pormenor muito interessante, e
em que nenhum dos nossos collegas tocou
ainda. A minha intervieic d'amanhã versará
então sobre a influencia da roupa branca n »
queda das dymnastias. Diga-me pois, meu
senhor, quantas vezes por semana mudava V.
v|. no Brazil, de roupa branca.
— Antes de vir ;'i Europa, ires vezes, mas
depois das viagens, comecei a mudar todos os
dias.
— K á medida que esse requinte d'aceio
ganhava publicidade, acaso notou V. M. effer-
vescencias no partido republicano ?
— De quando cm quando effectivamente,
havia nos elubs e n<>s jornaes, rumores d' -
meaça contra <» throno, mas attribui-os sem-
pre a factores estranhos ;'i minha renoi i
quotidiana de piu$
— Pôde V. M. informar-me, se usou algu-
ma vez no Brazil, meias bordadas?
— Em dias de gala, confesso; mas eram
iodas feitas pela imperatriz, e cm nada faziam
exorbitar a lista civil.
— E Deodoro sabia-o?
— Não posso dizel-o. Entanto a redaçã
lançou-m'o em rosto, para concluir d'es-
60 <>s GATOS
ta minha concessão á moda, o que ella cha-
mava as demasias <!<> mni poder pessoal.
E todavia eu não li/ mais do que imitar,
pela adaptação d'este insignificante artigo de
toilette, a elegância dos moços do Rio e Petró-
polis, que é requintada como sabe, e vem de
Paris directamente.
— Isso o perdeu! aventurára-se a excla-
mar o entrevisteiro.
— Mas desde que eu me esforcei, durante
quasi meio século de reinado, por adaptarão
meu paiz, as mais amplas conquistas da liber-
dade e da civilisação, que mal havia em in-
troduzir na corte, um poucochinho do luxo
que essa civilisação fomenta? Benjamim Cons-
lant, o austero, o próprio Benjamim, usa li-
gas por cima do joelho. . .
— Qual era, meu senhor, a côr habitual
das ceroulas de S. A. o conde d'Eu?
— Os CÓzeS, vermelhos, o que lhe valeu
no povo uma reputação de déspota refece...
as pernas brancas, cor da bandeira de Hen-
rique, e com uma flor de li/ amarellada so-
bre as costuras da juneção.
— Os senhores d'escravos sabiam que as
ceroulas de s. A. tinham cozes?
08 GATOS <»l
— É i[ii;isi certo. Mas foi o exercito, que
não usa ceroulas, quem primeiro viu mas de
meu genro, um antagonismo de casta, e deci-
diu insurgir-se, antes que o governo as fizes-
se incluir no grande uniforme.
— lie modo que a causa fundamental e
remota da revolução brazi leira, oão seria tan-
to o descontentamento pessoal do Deodoro,
que queria a presidência do conselho; uem
tampouco os vivas á republica dos alumnos
da Escola Militar, mas pura e simplesmente
o uso e abuso que S. A. o conde d'Eu fez do
Brazi I, (fiiui artigo que <i amigo Banana cos-
tumava vestir, por dentro das calças.
— Sem tirar nem pôr ! Tanto me pareceu
esta .1 origem histórica da transformação po-
litica porque o meu paiz acaba de passar, que
p raphei a Beaurepaire de Rohan, para este
expor ao governo provisório a minha con-
cepção sobre a uova bandeira. Sabe o furor
com que <"•■< ha duas semanas, se entreteem
por lá a discutir a composição do novo pavi-
lhão. Pois a minha ideia é simples. Sobre um
fundo listrado a mm-, ir e ouro, mna- ceroulas
atravessadas por um espadalhão . . . As cerou-
las representariam <> nó gordio monarchico,
62 OS GATOS
cortada em dois, pela espada d' Alexandre
Deodoro da Fonseca.
— .Mas á vista dos fados, é positivo que o
governo provisório também as não usa?
S. Magestade redarguiu :
— Nos paizes cálidos, onde o suor abunda,
a pouca roupa branca é um signa! d'austeri-
dade.
— Nossa Senhora! como no tempo quente,
lodos esses grandes homens deverão andar
assados !
— Acaso ignora, que uão lia estadista bra-
zileiro que não polvilhe as regueifas com fart-
nlia de pau?. . .
— Oh ! as jovens nacionalidades ! . . . Den-
tro de noventa annos, todo o Brazil dirá:
veneremos a memoria de nossos maiores, que
se republicanisaram — por uma questão de
trajos menores.
— Vou almoçar, disse o imperador. Que
mais deseja?
— Desejava... desejava que V. M., certo
do meu profundo /elo á sua causa, me em-
pregasse ahi de/ tostões.
— Singulares, estes reporters ! Acabam
lodos as ittíerviews da mesma maneira.
OS OATOS 63
_ i; julga V. M. que uma restauração seja
possível ?
li. Pedro, á porta da casa de jantar, e des-
pedindo-se :
— Ai de mim ! rehaver o império é quasi
tão inverosímil, como rehaver os dez tostões.
Meu senhor D. Carlos de Bragança e d'Or-
leans -muito mais d'Orleans, que <!<> Bragança.
A reputação que por Villa Viçosa haveis < 1 * •
grande e sábio príncipe, alhada ao que li»'i
lido <i;is explendidas alfaias que dizem brilhar
n, ,s thi souros '1" vosso paço, me conduzi-
ram da pobre herdade onde apascigo gados e
agriculto terras p'ra vos pagar <> melhor d»1
vinte ín las de Unta, às festas da vossa co-
ticunhadas d'opiparas uos annuncios
das companhias de caminhos de ferro — por
cujo bilhete d*ida e volta me desguarneci de
seis mil reis, não conl indo farnel, e um va-
rino estragado pelos gorgolejos d'um compa-
64 os GATOS
nheiro de viajem que se emborrachou p'ra vos
dar vivas.
Do meu casalejo trazia em Colha uma ad-
mirarão de saloio p'ra quanto visse, e por N,
Senhora do Guadalupe vos juro que ninguém
sentiu ainda melhor vontade de crer ua pre-
destinação divina dos reis sobre o destino dos
povos, e na omnisciência da vossa missão co-
mo Dador da prosperidade económica c social
de que lauto havemos mister.
Mau grado as calumnias espalhadas ao de
redor do vosso nome, mau grado 0 allianca-
rem-me amigos vossos a exiguidade da vossa
intelligencia e a inverosimilhanca da vossa pe-
danteria ; mau grado o dizerem-me, senhor,
que mentíeis com um descaramento inolvidá-
vel, e escarafuncháveis nas vénias com uma
teimosia imperecível, todas estas asserções eu
referi a estímulos de corte, a mal entendidos
d'antecamara, a ciúmes d'aulicos e a interven-
ções de republiqueiros. E repensando na estir-
pe olympica do vosso nome, comigo mesmo
dizia, ao sentir-me vencer pela suspeita — Ten-
do este rapaz tão glandes vícios na ascendên-
cia, como é possível não ser elle um poço de
virtudes? !
06 GATOS 65
Adquiri n'uma loja um retrato vosso, e
contemplando-vos, proseguia <» meu sonho de
vos glorificar como a mu enviado do Senhor.
Gordo de mais me parecesteis para monarcha
(rum paiz que está na espinha, e immovel e
dura se me affigurou vossa verónica, onde de-
balde busquei vislumbres, verdade seja, d'a-
quella vossa origem superior. Com uma ca-
belleira d'esparto numa cara de pecego, «'
dois olhos de fayança semelhantes aos cacos
(Tiiiii bispote, antes me destes, senhor, a ideia
do cocheiro inglez da senhora duqueza de Pal-
mella, do que a alta e deslumbradora visão
da auctoridade real, transfigurada no specimen
Minis puro «la helle/a aperitiva e intangível,
hoje em dia ião ulil aos príncipes como ás
cocoUes, attenta a circumstancta d'ambos terem
de fazer com elia, «píer dentro da Carta, quer
dentro da cama — "" toa </< choses.
Resiguar-me-hia entretanto a dobrar o joe-
lho aos pés do throno, impugnando a melho-
ria do que vós éreis, e que o iinliecil pholo-
grapho talvez houvesse deturpado, por suges-
tões do feroz Gonsiglieri— se de repente não
acorda em mim a profecia sinistra de mie os
que riem no lucto, lifio-de por forca derramar
6t) os GATOS
lagrimas na gala ; e o presentimento de que
vós, senhor, que chalaceastes no coche de I».
João v, no dia do enterro, os venerandos res-
tos de vosso pae, no mesmo carro havíeis de
pagar a irreverência, pelos apupos do povo,
ii() próprio dia da vossa acelamação.
De feito <pie foi ella, a vossa acclaniacào,
;| mais que o fiiíiMTo ilo prestigio monarchico,
amortalhado em velludilhos de magica, e se-
guido por macacos trajando á corte, acocora*
dos em berlindas de carnaval? Eu quizera,
senhor, que vós n'esses cortejos antes hou-
vésseis feito figurar um boneco em vosso |<>
gaF, vindo comigo por entre a turba das ruas,
recolher os commenlarios que fazia o povo á
passagem dos carros iriímipliaes. Quizera que
avisado da preparação lenia mas firme do es-
pirito publico para nina transformação politica
que cada vez vos cinge de mais perlo, aieada
como vae pelas manobras da colónia do Bra-
zil, e pela exosmose politica de líespanha —
que renegará a estrangeira, mal pereça a pe-
quenina lesma chamada Aífonso \m — come-
çásseis a preparai' com tempo as vossas inalas,
;i fazer economias, a pòr no lianco de Lon-
dres os vossos modestos haveres patrimoniaes,
os g \ ros
de caminho fazendo praticar as línguas b i
, primogénito, visto como o elle não po-
der succeder-vos no throno, sob <» nome de
rei Luiz Filippe, nã i é razão pr';i que não ga-
nhe a sua vida, leccionando francez, sob a ta-
boleta modesta de Luiz Filippe.. . Leite. Por-
,|,„. os , i tempo deixaram * 1 * * ser desde
hontem, wna revelação do incógnito aos vi-
dentes-, pr*a se tornarem n'uma legenda fatí-
dica, que todos podem soletrar nitidamente.
Seja qual fòr a formula governativa que adve-
nha, melhor ou peor, mais despótica ou mais
livre, os dias da realeza estão contados, pois
seria indigno de nós o conservarmos por che*
fe um personagem a quem vimos de desfei-
tear de fond en comble.
E note V. M. ! não foi o povo quem ini-
ciou esse acto publico de chacota á monar-
chia, nem os republicanos que andaram pelos
grupos, alliciando chufas dos ânimos descon-
tentes. Foram os aulicos, foram os ministros,
foram os Íntimos, foram os cavallariç
servidores de V. M. «ill(> ° provocaram. EUes
que animados de propósitos drolaticos, e
, Mi,, desdéns de mi* uaes aos que
está lendo a administração do theatro de S.
68 os GATOS
Carlos, tornaram as festas n'um sorvedoi-
ro de dinheiros públicos, eraquanto iam re-
duzindo a magnificência real a uma panto-
mima de chechés vestidos de farrapos, vergo-
nhosa para lodos, e a transudar grotesco por
iodas as costuras. Elies que dictaram o estylo
decorativo das salas em que havíeis de cantar
o juramento, os pavilhões da parada e o pro-
gramma da vossa procissão pelas ruas da ci-
dade, só comparável ás danças de carnaval,
as mais immundas, e entestada de reis d'ar-
mas com as barrigas das pernas ao contrario>
c passa vantes que piscavam o olho ás ovari-
nas, dando, no transcurso do préstito, com as
massas de prata na caberá dos gallegos.
Ali, como os monarchas lusitanos d'agora
tergiversam, mendigos tontos, da estonteado-
ra pompa das coroações, das embaixadas, das
entradas Iriumpliaes, dos cortejos e dos sa-
cres, dos seus grandes antecessores da Renas-
os GATOS
69
cença, quando as riquezas esbrazeavam n<»s
erários, o luxo do Oriente e da Itália ia so-
bredoirando d'offuscantes apotheoses a di
obra de conquista e descoberta, e o génio da
gloria erguia as azas, para levar ao longe, i»1-
lo terror e pela audácia, a atoarda dos nossos
commettimentos ! Basta ler em Damião de
Góes e no padre Osório, a descripção da em-
baixada de D. Manoel a Leão \, para se ajuizar
da magnificência estridula d'um cortejo portu-
rniez no século xvi, e repassar pela vista <>
que 'li/. Fernão Lopes sobre a entrada 'l"
mestre d' \\ix no Porto, acclamado rei, para
sem mais detonga acquiescermos na consan-
guineidade profunda d'aspiraçôes e interesses,
que jungia a investidura do rei, á grande al-
uiu pathetica e heróica da nai
;ratissimo e invencivel Cezar, (rf) ha
poucos dias que são vindos a esta cidade de
Roma embaixadores do sereníssimo rei de
Damião de Góes, Ch. Del-Rey D. K
BISPO DE Si LVE9, F< itOS 1 '
70 OS GATOS
Portugal, a dar obediência ao nosso santo Pa-
dre Leam. Sun entrada foi cousa fermosa pa-
ra ver, porque eram ires embaixadores, hum
da ordem dos Baroens, que tinham o primeiro
logar, e os outros dois doetores em leis, os
quaes ira/iam buma magnifica e pomposa com-
panhia. Primeiramente vinham diante seis
trombetas e seis charamelias ; depois hum ín-
dio sobre aum fermoso cavallo ornado de
huma sella da índia, o qual trazia de traz de
si sobre as cubertas das ancas do cavallo,
huma besta semeliavel a um Leão pardo, mas
de menor corpo, e mais delicada, e de muitas
e desvairadas cores. A este seguia hum Ele-
phante índio, que trazia em cima de si hum
cofre com um rico presente, que o sereníssi-
mo e christianissimo Príncipe enviava aos san-
Ctissimos Padres, S. Pedro e S. Paulo, e cm
seu nome ao mesmo Saneio Padre. O cofre
era cuberto de hum panno tecido douro, com
as armas fleaes, que não iam somente cubria
o COfre, mas ainda todo o Klephanle, em cima
do qual lua outro índio vestido de huma roupa
douro e seda, á palavra do qual o Elephante
obedecia, caminhando por um spaço; e logo
após elle seguião algumas azemelas mui fermo-
os 6AT0S 71
300, dizem os Innai - Histoiui os) cuber-
,,:,, reposteiros de raz e Beda, de diver-
sas cores e insígnias. Al raz destes vinham os
criados dos embaixadores mui bem ataviados,
(tantos, quantas as azemelas) e apóz estes a
ordem dos nobres, que eram em numero <l<i
ciocoenta, lodos vestidos de pannos douro e
. com colares de ouro, não menos de peso
que demostra, de que os mais delles davam
grande resplandor por caso das muitas perlas
e pedras de que eram semeados; e entre to-
dos os outros num filho do primeiro embaixa-
dor, ao qual seguia o Rey d'armas do dito
Rey, vestido de huma roupa de panno douro,
com as armas do reyno coroadas, e cerca-
das èm torno de mui formosas perlas e ru-
bis; e lodos em briosos ginetes com sellas,
peitoraes, caprazões e mais arreios dour a-
ou de lavor, esmaltados de perlas e pe-
dras de gran preço. Após estes vinham os
embaixadores vestidos magnificamente, e o pri-
meiro delles trazia bum mui rico ehapeo de
perlas, nãm digo somente ornado, mas lodo
coberto. Depois dos embaixadores vinha muita
gente de conselho, de grave e honrada pre-
i qo lim i<» a turba dos familiares.
7-2 OS GATOS
Saturara a receber e acompanhar os embaixa-
dores portuguezes, <>s do imperador e dos reis
de França, Castella, Polónia, e os das repu-
blicas de Veneza, Sena e Bolonha, hum irmão
do duque de Milão, e outros grandes senhores
prelados com suas famílias, a que se ajunta-
ram bizarramente vestidos os portuguezes cor-
tezãos que andavam em Roma, ecclesiasticos
e seculares, o que indo fazia uma representa*-
(■.'ii) numerosa e luzidissima. o Papa com mui-
tos cardeaes se foi ao Castello de Sanfangelo,
por ver passai" os embaixadores. Todo o povo
universal de lioma correu por ver esta novi-
dade, o que nam lia maravilha, porque pou-
cas vezes, ou nunca aconteceo mandarem os
Príncipes Christãos legados a Roma com iam
magnifico aparato, nem Roma no tempo pas-
sado, quando possuía muitas províncias, posto
que visse alguns Elephantes da Ethiopia e de
Africa, nam vio nenhum dos das índias, o qual
Elephante em chegando deante da janella onde
o Papa eslava lhe fez reverencia, pondo os
jeolhos no chão, fazendo além d'isso outras
cousas (pie lhe o seu redor mandava. Depois
desla primeira vista foi assinado dia, no qual
os embaixadores forão ao Paço, onde fezerão
mv BAT08 7:5
obediência na maneira acostumada, fazendo
liiiin delles numa arenga mui prudente, em
latim, <' digna de príncipe christào. Depois
em outro dia assignado forao a Belveder,
onde o Papa eslava acompanhado de todo-
los Gardeaes e embaixadores, e alli lhe apre-
sentarão oa does que lli»' levavão, não menos
sumptuosos, que religiosos, dando-Jhe pri-
meiro unia caria d'aquelle mui poderoso Rei,
que continha em poucas palavras o seguinte.
tile offerecia as primícias das cousas da
índia e Ethiopia, ao nosso muito piedoso Salva-
dor, ■ a Apóstolos, S. !'■ /'•" e S.
Paulo, t "" seu Vigário na terra, pedindo a
Sanei iode humildosamente, que aceitasse
uetta benigna vontade,
com que lhos dl* mandava. Os does eram as
idas vestiduras tanto para os ministros
Como para OS ClerígOS, para servirem a toda
maneira de sacrifício, e tanto ao offieio da
Missa como ao das vésperas -ás quaes cha-
mam túnica, aknategas, casutia, rapa. d assim
ornamentos de Aliar. Todas estas vestiduras
eram tecidas douro, e tam cobertas de pedras
preciosas, e perlas, que em poucos togares se
podia ver o ouro; e 'Tam as perlas, e pedras
74 <>s CA TOS
postas o metidas com artificio admirável, per
alguns nos entrelaçados a maneira de numa
Romã, o qual artificio era cousa muito para
vèr, porque a obra era maravilhosa, sumptuo-
sa, e magnifica, em certos lugares era como
pintada de ouro e seda a face de nosso Se-
nhor, a dos Sanetos dons Apóstolos distincta-
mente, ornados de muitas perlas e pedras pre-
ciosas a que nós chamamos scravonetas ou
rubis, nam contra feitos, nem polidos, mas
nulos e simples, assim como se trazem dos
lugares em que se achão, com seu só resplan-
dor natural, tal qual se deve as cousas divi-
nas, (pie direi mais para comprehender tudo
em numa palavra, a matéria era preciosa, mas
a obra a sobrepujava com espanto. Iam tam-
bém mitra, bacio, ancis, cruzes, cálices e thu-
ribulos, tudo de ouro ao martcllo, cuberto de
pi^i Iraria, e muitas moedas de ouro, de qui-
nhentos cruzados cada uma, tamanhas como
grandes maças. 0 que fez dizer ao nosso San-
cto Padre Leam — certo, assim é de crer, que a
nenhum papa da Igreja romana foram apre-
sentados tam ricos presentes, nem iam fermosos
ornamentos, nem iam prectosos.y
os ga ros
"... o qual recebimento ordenarom f< /
d'esta guisa. Todalas nãos, que erom no Rio,
muito cedo pela manham, foram apendoada
bandeiras e estendartes, e postos muitos verdes
ramos em certos togares, onde cada hum en-
tendia, que podia melhor parecer. Os b
delles andavam todos enramados com trom-
betas e pendoens davante e de ré, fornidos
de homens que bem os remavam, delles em
camisas com sombreiros de rozas e outros
de libré de ramos e flores, segundo se cada
lnms melhor correger podiam, hs gentes da
Cidade carecétes de todo nojo, e cõ as me-
lhores vestiduras, que cada hum tinha ; fi r-
viam andando por toda a parte, trigando de
se correger tam bem, que nom podessem ser
prazmadas. As ruas por Ira dle avia de Ir, atá
aos paços Ira avia de ponzar, erom estradas
de ramos e flores, e ervas de bons cheiros
guisa, que do cham nora parecia cousa aenhu-
(e) Fernão Lopi
78 OS GATOS
ma. As porias das casas destas ruas crmii Io-
das abertas e enramadas de louro c doutros
frescos ramos, deUes, que pendiam hú com-
pria, outros tecidos iam espessamête, que nõ
leyxavam Logar, que todo nom fosse coberto
de seda e oiro e brocado, e esto podiam bem
fazer uaquelle tempo, que era qo mes de Mayo;
o forçava-se cada bum de vencer seu vizinho
por corregimentG de portal, e sobrado, poen-
do as porias defumuras de lautos e nobres
cheiros, que bem podiam afugentar qualquer
mao ar, que tosse corrupto. As janellas lan-
çavam panos e mantas e outras roupas, de
seda e linho bordado, que afermosentavam
muyto as ruas, polas quaes andavam certos
homens, que desso tinham especial carrego,
fazendo afastar e correger toda a cousa sobeja
ou mingoada, que trovar podesse sua bòa or-
denança. As janellas das casas todas erom
acupadas com fermosas donas e molheres dou-
tra condiçam, com gram desejo e amor de o
vêr, assim guarnecidas de taes.corregimeatos,
que fealdade e mao parecer, não ousou na-
quelle dia entrar na cidade. Km certos loca-
res avia bandos de molheres que canlavam
cantigas, e cordas armadas para treparem lio-
OS <"■ wos i •
mens que bem d sabiom fazer, quando El Rey
alli chegasse, los misteres <• outra moita gente
er0m encommendadas danças, e jogos doutras
maneiras, em que andavam velhos e mancebos
todos em leda vontade. &s molheres isso mes-
mo em sen bando fizerom péllas muyto bem
corregidas, ;i^ quaes acompanhavam com muy-
1 1- cantigas, delias feitas em louvor Del Rey,
e outras acostumadas, nom somente as de
menos estado e condiçam, mas muytas das
- ,1,1 Cidade andavam eom ellas por honra
da resta. A porta por hu El Rey avia de vir.
estavam muyto? Cidadãos honradamente ves-
tidos com guarnimentos douro e prata, e muito
outro pevo, foram com a insígnia da Cida le,
huns com varas uas mãos pêra reger os jogos,
como El Rey chegasse, outros pêra ir em sua
companhia até aos Paços, hu avia de pousar.
Nom com menos sentido de o receber honra-
damente se fez prestes com sua cleresia <>
tjonrado Dom Johão Bispo desta Cidade, rica-
mente em Pontifical vestido, isso mesmo to-
dolos ootros feativalmente, com os melhores
corregimentos que tinham, e sendo todos asei
aguardando, cada hum em seu lugar, pareceo
nte Del Rey da parte dáiem de Gaya, por
78 os GAT08
liú El Rey avia de vir, e os bateis que anda-
vam caleando pek) Rio, foram logo alli muy
prestes com grandes apupos, e grande tanger
de trombetas, mostrando grande lédice, antre
os quaes era liimi grande e fermoso batei rica*
mente corregido e toldado, em que El Rey avia
de passar. E como El Rey entrou com esses
fidalgos e das outras gentes quantas poderem
caber naquelle e nos outros bateis, começa-
rom lodos ;i bogar ao longo do Rio. 0 Del
Rey deante muyto apendoado, e os outros to-
dos detraz que era grande prazer de vèr. E á
porta de miragaya, hú o estavam attendendo,
como deaziamos, sahio El Rey em terra por
húa larga e espaçosa prancha, hú o beijar da
mão e mantenhamos Deos,. Senhor, era tanto que
uniu podiam aver vèz de cumprir suas vonta-
des; 6 depois de bum bom espaço, <"j. se
nisto detiverom, tallou bum Cidadão, a que
desto era dado carrego, e disse :
Senhor, tomai esta insígnia em vossas mãos^
<■ por ella nos poemos em vosso poder, e vos fa-
zemos }>reito, e menagem de uos servir com os
corpos e averes atá despender as vidas por hon-
ra do Eeyno e vosso serviço.
El-Rey, em quanto elle esto disse, leve as
OS GATOS
7!)
m, ins oa baste delia, dizendo Que assi era ei-
to prestes para despender a vida e corpo por
oonra (|(, Reyno, e defensam deites, <• que os
avi;i por bons e leaes, e mes feria multas mer-
eés, quando lhe per elles requeridas tossem.
KiiI.mii começarom a regef Buas danças e
5, nus quaes muy a miude, em muy alta
(> clara vôzbradavàa dezendo Vim K l;"j iK
Johamf uivai
El Rey liia muito passo pola Cidade, que
num podia (lontra guisa, porque a gente era
tanta polas ruas polo vèr que parecia que se
queriam afogar, e as donas que estavãe ás ja-
nellas, folgavam altamente que o mantivesse
I a muitos annos e bons, e que muyta fosse
sua vida, e boa, e outras taes razoens, e em
dizendo esto lançavam de cima muytas rozas
c flores, milho e trigo* e outras cousas. Aqual
festa e recebimento desta guisa feito, demo-
via muytas d'ellaí a regar suas formosas faces
n,ii, doces e aprazíveis lagrimas, e assi foi
Kl i;r\ levado com este prazer e lédiee aoa
paços, lni avia de pousar, e as gentes ae tor-
uarom festejando, cada nuns para suas casas,
e em esse dia depois de comer lhe foi talar a
molher do Condestabre, a qual elle nunca \i-
80 OS GATOS
ia, nem cila a elle. El Rey a recebeo niuy bem,
e lho fez grande agazalhado e honra; e som
alguns que dizem que auteque se delle partis-
se lhe fez Kl Rey mercê para cila e para seu
rido, de Bouças e terra de Basto, c terra de
Pena, e de Barroso, e mais de Barcellos, e de
Penafiel dv Bastos; e que de todo lhe mandou
logo feizer carias c privilégios* quaes pêra es-
to cumpriam: Mas nós engeitamos tal opinião,
e aprovamos aquella que diz que eslas terras,
e outras que foram dadas ao Condestabre
quando Kl Rey depois da Batalha lhe deu o
Condado Dourem, e Barcellos, como depois
ouvireis.»
Está V. M. a entrever como estes cortejos
brotam naturalmente d' uma plethora domi-
nante á flor das duas epochas : na de D. .Ma-
noel a riqueza, (pie passando pelo brazeiro
d'Azia, abre o Portugal guerreiro em llòres
de maravilha : na de D. João I o amor do po-
vo, que farândola com elle numa ronda de
figurinhas festivas, ogivalmente ingénuas, co-
mo as que se veem bailar em Westminster,
de ao de redor certos sarcophagos.
OS r.Aios SI
Ora, se V. M. arremedando na ridícula or-
denação do seu cortejo acclamatorio, a pom-
pt Lithurgica dos nossos reis da Edade Me-
ilia, e as etiquetas peralvilbas das antigas
cortes similares da de Luii hv, teve em vis-
ta revindicar perante o povo, o descabido
prestigio do seu throno, b restabelecer que
a realeza se estriba, apesar das modernas
ctmnistas democráticas, na predestinação «Ir
origem divina d'onde procede para os reis a
aactoridade, e na oAuscancia do cerimonial
luxuoso, de qne a magestade é implícito co-
rollario, o meu rei desculpará — mas devia
i.t mexido naelboros seus pansinhos, em ter-
mos '!•' ser ao menos digno, <> que apenas foi
carnavali
Nenhum <1<- nóe Bstranbaria que <> menar-
eha d'um pai/, pobre, fosse de manto e see-
ptro, prestar juramento n'um simples landtau
a quatro soltas, b sem mais cortejo do que
meia dúzia de coupés levando a corte, e al-
guns esquadrões de cavalleiros no couce da
romagem. <» povo baveria aceitado esse cor-
tejo na sua expressão de seriedade modesta,
como o que mais discretamente convinha a
imi pai/ comido de dividas, roubado «• escar-
<VJ os GATOS
necido pelos seus adiados, e por lodos os mo-
tivos inhabil para acompanhar a Europa nos
seus grandes troles de progresso, nas suas
epilepsias de novo, e nas suas remodelações
de civilisação.
Gomprehende-se que D. .Manoel, sob cujo
sceptro Portugal houve o Brazii e metade da
índia, grandes retalhos dWírira, e archipella-
gos no tenebrosíssimo mar da Oceania — que
I». Manoel que fez d'este filete de terra, por
um Instante, o assombro do mundo, e o
bazar de lulas n> civtttsações velhas e novas,
buscasse estadear luxo atttnente á apotheose
universal de que ao mesmo tempo se consti-
tuirá centro e propulsor !
Eram outros os tempos !
O rei que aos seus títulos agregava o se-
nhorio das cinco partes do mundo, (ira de
leito o suzerano e proprietário d'esses incom-
mensuraveis e mysteriosos domínios. O seu
throno, montões de pedraria e oiro, que trinta
naus lhe carregavam de lodos os jazigos do
mundo; e o seu direito, sobre aascer da re-
velação, como o de Deus, cscorava-se a mais
num espirito de conquista, dYleiçào e de cas-
ta, <pie imprimiam á dymnastia uma indizível
feição de patriarchâdo. Para elle, a forca,
quando não provinha d'uma superioridade de
Luzes e de razão, sorvia alentos n'essa crença
profunda n'wna magistratura suprema, que '
a primeira condição da soberania. Tudo advi-
nha a engrandecer e ;i revigorar as dymnas-
ti.is... a tradicção, <> fetchismo cego do povo,
um espirito politico superior ;i<> espirito de
consanguinidade e de família, ;i incarnação he-
reditária providenciai d'algum grande princi-
pio necessário a existência <la> sociedades;
mil cirGumstancias emfira que ;is faziam in-
substituíveis, como introduetoras da humani-
dade nos iatormundios da civilisaçâo. Fallar
por exemplo na creação da aacionalidade fran-
ceza, é fazer a historia dos Capelos : evocar
■I,, dos nossas descobertas e conquistas, é
rificar a dymnastta de àviz.
Comprehende-se poisqueo rei da terra, uma
vèz definido entre «-sks lermos, carecesse i
isceus, de revelar-se aos mortaes por entre
magníficos invólucros^ •• <| s nimbos d'oiro
sob que se n is revel i nas cathedraes a Hóstia
Santa, desçam do alio. para vir lantejoular as
dalmaticas dos conquistadores e dos imperan-
\ magnificência não é aqui um aeceasorio
8 í OS OATOS
ephemero do costume, senão que entra a três
quartos na fascinação que a realeza, infallivel
e sagrada, deve produzir na turba multa dos
mesteiraes e dos homens de guerra.
Se D. Manoel em vez d'enviar a Leão x o
seu embaixador Tristão da Cunha, entre o cor-
tejo veronésico que vimos, simplesmente o
tem remettido a Roma u'um Banimento de po-
bres atavios, aquelle senhor do mundo seria
pelo menos tão reles como o foi V. M., que
sem ser senhor de coisa nenhuma, se enlrajou
ile rei de coitas, para vir n'um carro do sé-
culo xvm, com botas á frederica e mais em-
plumachado do que uma catatuà, jurar a
constituição inim parlamento que parecia uma
barraca de leira, e n'uma sala de município
que os jornalistas Irancezes tomaram por uma
capella de padres jesuítas.
Porque atinai de contas, quem é V. ML? A
ultima vergontea reinante d' uma dymnastia
.is i, nos
85
que nascei já aorta, e cujo advento ao thro-
n ,. historiador algum poude ainda explicar
por iiin.i qualidade qualquer extranormal, di-
reito de conquista, poderio de fortuna, génio
politico, nu qualquer ínfimo rasgo de valor.
o primeiro rei da sua casa mi, como toda a
gente sabe, um cagarola, que ainda na vés-
pera do dia em que <>s conspiradores foram
propor-lhe a coroa a Vilta Viçosa, se dispu-
,,li;i ,i figurar no séquito do hespanhol Fillip-
!„. iv. ,- cu'].) filho, estancado pelo onanismo,
expirou In» meio de santos, n'um delírio mys-
tico, repellindo a família, e engulinde hóstias
de quarto em quarto «I»' hora. D'ahi para ci-
ma é tudo um fim de raea, em que os libidi-
iutercalam nos freiraticos, em que os
cob urdes se succedem aos impotentes, e em
,|i,(. os doidos dão origem aos sachristães, e
estes ain la aos toureiros e ;h>^ usurpadores.
Percorrer a galeria real da casa brigan-
dna, é visionar historicamente a synthese fe-
roz d'aquelle jacobino çue exclamou d'uma
vez ii i Convenção : os reis são na ordem mo-
rai, o que ua ordem physica si a monstros.
li,, feito, é -"l> :" égide de Bragança que :i rea-
leza se desintegra em Portugal do teu papel de
86 OS GATOS
cornaca dos povos, e faz estalar as lianas que
jungiam o throno á alma publica, cahindo de
tutora em filha proéiga, e reduzindo o pontifi-
cado real a uma espécie de parasitismo. De 1640
a 1834, o espirito dyoanastico ainda podia ter
sido para nós um instrumento de progresso,
se lhe não coartassem a acção, as dissoluções
dos antepassados de V. M.
E se o meu rei duvida, vamos abrir a his-
toria e liquidar. Fácil tarda, (pie sobre ser he-
dionda é divertida ! Ahi vem Afonso vi, de que
ioda a gente conhece o famoso processo, filia-
dor das suas devassidões entre as de Luiz XVI,
sádico e impotente, mandando ás amantes dee
boulex de la crasse de ses pieds (f) e as de Henrique
m, que se vestia de noiva para attrahir ao leito
os seus mignons. Ahi vem D. João v, sultão
dos conventos, com o delírio das grandezas
como Luiz ii da Baviera, que arruina o paiz
pondo boudoirs de duzentos mil cruzados ás
madres Paulas, c quartos de cama onde os
lençoes são perfumados d'incenso, antes da
(f) JOURNAL DES GONCOURTS, 2." V.
os QAT06 s'
copula, «' os penicos de prata teem por azas,
grupos de seraphins em oração. A h i vem 1>.
José, cuja Imbecilidade partilha a liugua, en-
tre travessas de doce, «i os nombrís das fidal-
gas a quem o Marquez mandava perseguir os
filhos e os maridos. Depois Maria i, a doida
aympbomauica, de saias erguidas no meio da
ni;i, ;i unar que vê o pae a arder dentro do
inferno, e a dizer obscenidades no meio das
aspersões dos padres jezuitasJ Depois l>. João
vi. trinta vezes chavelho e cantochista, usan-
do bofe em vez de papel, no water-doaet, tra-
hido por todos, contradizendo-se borrado de
medo, fugindo para o Brazil com os thezou-
roa da nação, e abandonando-nos, canalha!
ao protectorado de Beresford que decretou o
martyrio de Gomes Freire! E por qui fora.,
assim chegamos, eo/uinarta, sem alludir a l>.
Miguel, mu moço de cocheira, e sem mecher
um brazileiro !». Pedro, um tarímbão, á des-
connexa pessoa de V. M.
N'estea 250 annos quantas humilhações,
quantas decadencias, quantas vergonhas! Com
os Braganças, Portugal deixou de ter nos íris
os fiadores da sua prosperidade e da sua glo-
ria, 6 passou a atural-os cOfflO a IVitnivs <l
88 OS GATOS
mastins da Gran-Bretanha. 0 paço tornou-se
a'uma dependência da legação britanniea: os
reis de Portugal, bonecos de palha dos pleni-
potenciários do pai/ dos bêbados, das prosti-
tutas c dos ladrões.
Uma a uma, sob o regimen deprimente de
taes reis, vemos Portugal entregar as terras
(Talem mar por elle descobertas ou tomadas,
perder a iniciativa do commercio e navegação
dWzia c da America, desvinculara forte e ca-
valheirosa nacionalidade dos séculos anterio-
res, e receber da Inglaterra, em vergonhosís-
simos tractados de commercio e diplomáticas
chantages, humilhações só comparáveis ás que
as nações victoriosas costumam exigir, pela
força da guerra, das nações humilhadas e
vencidas.
Portanto meu senhor, se a dymnastia que
V. M. representa, nunca teve a radical-a no
espirito do povo uma forte corrente de tradi-
cção gloriosa, nem a justitirar-lhe o advento
um principio politico indispensável á manu-
tenção da nossa integridade ; se está provado
que nenhum dos reis da sua casa tem sido
na evolução da vida portugueza um instru-
mento de progresso, e se todas as derrotas,
os g wos 89
todas as aítrontas, todos os enfraquecimentos,
todas as indignidades, todas as vergonhas,
andam jungidas á Incúria de vos termos guar-
dado até agora — a vós, reis de cartão pin-
tado, duas vezes estúpidos e rapaces, liqui-
dando em corrupções que nós lemos pago
com o suor e le dos tributos— Be todo
isl i é verdade, como explicar ;i mascarada da
i acclamação por um desejo de reembu-
lir no antigo prestigio histórico uma realeza
que [amais teve prestigio, e d'alardear magni-
r, cu -i;i uni i casa real que até compra fiado
o champagne com que nas comidas de gala
bebe á paz da Europa ?
Ainda hoje não quero crer n'esse cortejo
apotheotico, sujo, arrastaido o seu ar de ron-
da mortuária, e a cuja ;iiiLrii>iinv;i miséria só
faltou uma ponta de vinho, p*ra nos lembrar
o cyrio de V S. do Cabo. K<»i do Largo das
Cortes i|m' "Mi vi chegar essa funérea dança
de quinta-feira gorda — um piquete de caval-
laria na frente, quatro chechés d'amarello <•
rubro, bicorne e vara, a figurarem de nwços
d'estribetra, e muitos gallegos depois trajando
a inn :i, com vestimentas de bailado sobi i
velludilho, que me disseram ser os
7
00 OS GATOS
arautos, reis d'armas e passavantes, gentes
sem sexo. de cujas meias sahiam, pelos ras-
gões, rolos de trapo, restos de buchadas de
pernas que esvidavam, d'aborrecidas co'as tí-
bias de seus donos.
Toda esta cáfila passou em cavados de car-
roça, mal arreados, coxeando, O peito hirsu-
to, pondo na via um melaneholico rastro de
bando de touros e d' arraial.
Ao cabo de meia hora d'espera, disse uma
vóz que alii vinham os coches. A municipal
esbatia sobre, os passeios a turba dos curio-
sos, ensandwichando-a contra a parede, com
a ponta dos sabres, e espanejando-a por ul-
timo, com os rabos dos cavallos. O primeiro
coche allim surgiu tropegamente, no alto da
nova rua que atravessa a cerca da Esperança :
era uma coisa corcunda e doirada, a gemer
dos calos sobre um leito de carro de bois, e
que infundia o aspecto do conselheiro Naza-
reth, envidraçado no ventre p'ra se lhe vêr
digerir os figurões que linha comido. Aquillo
ia puxado á sirga por calabres de linho crú,
como uma zorra de fabrica, os solas rubros
esporeando cavalicóques cheios dVmplastros:
e por traz, na taboa cercada de talhas de ca-
OS G MOS
91
pella, figuras d'anjos raziam motétes de pe-
drastas aos sotas do churrião que sr seguia.
Assim passaram três d'aquelles monstros, com
velludos sem brilho, velhos oiros comidos aos
detalhes, levando dentro toda a casta de ber-
bigões cobertos de placas de seguros, e re-
puxando ao alto das pinhas, n'uma infinida-
de de pennas de capão.
Na minha simpleza rústica, atrevi-me a per-
guntar a una cavalheiro, se seriam velhos do
asylo. . •
— Na, não senhor. Isto é a casa civil de
Sua Magestade.
— E que serventia dá elle a esta casa?
— É conforme. Uns escrevem nos jornaes
que s. M. lé, outros •applaudem as asneiras
que s. M. di/, e o resto está encarregado de
II, r repetir que o povo está contente.
— E S. M. acredita?
— Emquanto lhe pagarem. • .
Vou-me d'ahi, na «nula. até ás Cortes. A en-
ii;i,l;i, um baldaquine dlestofo escarlate, que
a ventania rasgou, deixando as taboas uuas á
vela, como umas nádegas de pedintes. Pela
|;ili;i Ii;i lima |i;|vsideir:i de juta drsrÚTa-
d;i. que atravessa 0 veslilmlo de tijollO, I
Í>-J OS GATOS
avança pelo corredor do claustro, entre po-
lires vasos com cebolas alvarrãs e ramas de
pinho c loiro lanchadas, a fazer (Tai-bnstos
raros. Depois aa escada que leva á sala do
throno, estreita, esconsa, coberta de hera co-
mo a da rua dos Condes no beneficio (lo Sousa
BaStOS,a mesma passadeira guia-DOS, espalma-
da e exangue como uma tonia, aos intestinos
da representação nacional. O ingresso nas tri-
bunas é vedado: o mulherio invadiu lodos os
cantos, e eu desço, e escorregando, intrujan-
do, sempre consigo meter um pé na sala da
cerimonia.
A minha primeira ideia é que vamos assis-
tir a uma ferra. As senhoras teem quasi Iodas
trajos de passeio, chapéus de telha, binóculos
ao travez, vestões abotoados; e em baixo, nas
bancadas do circo, alguns deputados e pares
teem verdadeiramente um ar de bois. Aqui e
alem, no pele-mele das carecas e das fardas,
duas ou três leves manchas humorísticas: o
cipello cramezi do (Ir. Valle, babujado de coi-
tares i1 corações de filigrana, faz recordar la-
vradeiras da Maia, pimponaças: ao fundo,
enorme, im movei e vermelho, o bispo de
Coimbra parece o Hotel Central: e ifnma pol-
OS GATOS
93
trotil ml, o m-. presidente da Camará, João
Chrysostomo, Becco, esmoído, entre dois me-
ninos á Lniz w, dá-me a visão a"um carapau
rrito, n'uma malga de Coimbra— entre dois
dentes d*a!ho.
Ali meu senhor, que decoração de sala, que
alcatifas, que sanefas! As draperm do Ihrono
velludo d*algodão esmaecido, com galões
d'enterro pobre. Nos degraus, o tapete é feito
,1,. bocados. Não ha uma bambinetla fresca
nas tribunas, occoltando a terrível miséria
dos papeis cebentos, rotos, sobrepostos, ou
sequer um fundo d'estofo, sobre orae fazer
destacar um typd de mulher. E isto entriste-
porque havia perfis diliciosos.
_n d'aqueHa de roxo e rendas brancas,
les olhos de Gioconda, um bonnésinho
roxo nos cabellos. . . Coquetu fêmea ! e que
barriga !
— Mus é o núncio.
—Outra vea gravido?
\,, .,,iH do Hymno da Carta, o cortejo en-
tra. Adiante os arautos, que >(' bipartem para
09 dois lados do throno: depois o sr. infante
condestabre, que noa degraus se vae postar,
d'estoque erguido : logo os gentis-homens e as
9 í (»S (iATOS
damas do séquito, mal amanhadas nas suas
roupas de cerimonia ; e por ultimo OS reis,
acertando O passo, com romeiras de pedes,
mantos roçagantes, e attonitos de ninguém os
mandar recolher ás coloriages dos baralhos de
carias, (Tonde parecem ter saindo.
Ainda liem as figuras se não lêem innnolu-
lisado para o quadro do juramento, já duas
coi/as saltam, deploráveis. Primeira, que a
gentilhomeria da corte é insufliciente para mn
ensemble dramático de geito, e fora mellioi
metter na sala os coros de S. Carlos, ensaia-
dos de mais a mais para <» primeiro acto do
Hamlet, onde ha nina entrada de reis, com
marcha, toda chie. Segunda, <||1(' sendo V. M.
muito mais baixo do que sua esposa, (g) e ur-
gindo que a pessoa que perante os Estados
vem conslituir-se fiadora das instituições, ol-
fereça as mais soldadescas garantias de segu-
(g) Esta desproporção dalturas é tão extraor-
dinária, que sendo ainda lua de mel no Paço de Be-
lém, um reposteiro ouviu o snr. D. Carlos dizer p'ra
sua esposa:
tfélie, pnnlia-tue em cima da meza, (pie lhe
quero fazer olhos gaiatos.
os GATOS
95
rança e de força, errado andou quem lhes não
fez iroear os vestuários, nem pediu â rainha
o sacrifleio, d*a bem do Estado, ser ella quem
lesse o juramento— com nm bigode postiço.
K aqui abro parenthesis para lhe lançar
en rosto a Rnoa voz. V. M. talvez aão seja
bem digno d*um throno, mas em compensa-
ção merece um palco. A escola dramática,
o timbre com que V. M. leu o juramento !
H, ,;... Olhando a postura rígida <1<> infante,
em pé sobre os degraus do throno, e com o
chanfalho aberto d<i Nun'Alvares— do bello
infante cocheiro, em cujo peito brilhava pela
primeira vez a gran-craz <1<>s atropellamentos
—todos perguntavam se elle nas imposições
do seu cargo estaria ali a lazer guarda de hon-
ra ao monarcha, ou simplesmente a apresen-
tar armas ao barytono. Mas meu senhor, como
tudo de roda de V. M. <>>rt>rvr uma agonia de
fm th i" fSn, uma enregelada miséria de paiz
dtarogne, de paiz gasto, de paiz morto, de paiz
podre! Nas bancadas da sala, pelas tribunas, ás
portas, todas essas figuras lêem, como <» paiz,
um ar crivado de dividas: os fidalgos são pe-
queninos, Bnlnhos, com um ar de coelhos e
de grooms. Entre as damas da rainha, que
%
os GATOS
são oito, tantas quantas as províncias, uma
sem nariz, fcrunculosa, é talvez a allegoria do
Algarve, E como a pragmática prescreve que
o alferes mor chegue á varanda, para accla-
mar três vezes, á multidãq da rua, p rei de
Portugal, succedeu que a sua voa cahiu do
alto, sem repercussão, sobre o terrível silen-
cio do Largo, onde alem do piquete de lancei-
ros, a anica multidãq que havia era o popular
José Augusto,
Percorrendo a cidade, em balde uVHa pro-
curei signaes de festa. Quasi totfasas lojas es-
tiveram abertas, funccionaram os escriptorios
de ÇOmmercio, e a população que nas ruas se
agregou a vêr passar o cortejo tinha um ar
d'enfado e de birra, um ar de troça e descré-
dito, que nnpallidecerieis, senhor, se a liv<\>-
scis podido ouvir monosvllaliar.
os «.mos 97
Na travessia dás Cortes para S. Domingos,
emquanto ieis com vossos fardalhões e ou-
rangos titulados, churriando aos solavancos
das snmptaosas berlindas, não se ouvia senão
futurar coisas anarchicas, em formulas de
desdém, que um tribuno audacioso faeil have-
ria transmuttado em cólera revolucionaria.
\< duas bandas da rua, os regimentos
postados, feitos de contingentes de proveniên-
cias diversas, faziam unia salgalhada d'uni-
formes e números, d'escandalisar os mais in-
difterentes ás questões do porte militar. A
soldadesca guarda uma apathia marroquina,
um ar uY tristeza penitenciaria, a fazer lasti-
ma. Na cara de qaasi todos os officiaes ha
privações. Desengonçados como bonecos, e
seguros nos estribos pelos camaradas à pâi-
zana, os coronéis escarrancham-sé com dôr
sobre os eavallos, os rins quebrados, ò peito
illejando d'asthma e tosses chronicas, e
tão litteralmente cobertos de medalhas, que
(lir-sc-iiia terem feito da ferda, escarrador. Ná
roa Augusta vi eu uma espécie de sagol tra-
jando i generala (um (Testes generaes padei-
ros, d' Administração Militar e Sociedade Primei-
iode Dezembro,com cicatrizes de siphilts e car-
>
98 OS GATOS
min na orelha, que os marujos ingleses pedem
lh'os deixem levar p'ra bordo, atados a cordéis)
sacear dos coldres, cuidareis que um revolver,
senhor? — uma caixa de rapé e um lenço
d' Alcobaça. Em S. Domingos, a mesma miséria
de decorações, a mesma indigna pompa de
lausperenne e d'arraial, e a mesma troça de
burguezes scepticos, e de populares desilmdi-
dos. Quando o cortejo se apeia dos coches,
não se vêem senão fardas cebosas nos cacha-
ços, e com maculas de stearina secca e cal-
deirada. Quasi todas as boccas vão a mascar
pastilhas de cantharidas, e á passagem d'al-
guns venerandos sustentáculos do throno, con-
selheiros e grãn-cruzes, as faniqueiras que se
apinham ao guardâvento, estendem o braço
p'ra lhes puxar os rabos das fardas.
— Adeus ó catita !
Á altura das cornijas passam, em peque-
nos papos d'estofo vermelho e branco, velhas
sanefas semelhantes a liadas de chouriços. Ha
grandes palmas por todos os altares, symbo-
licas talvez das extorsões que o povo tem sof-
frido, sobre o altar da pátria sacrificada ao
egoísmo dos reis.
E meu bom senhor— se podesseis ter vis-
.is CULTOS
to i gente que a S. Domingos foi commnngar
nos louvores da igreja á vossa coroação! Se
podesseis ouvir os rumores do que á vos* i
passagem sr arengava ! . . .
Não, não era o moHtenhavos Deos que o | -
vii dizia no Porto ao seu camarada <lc guer-
ra, d mestre d'Àviz, a saudação patriótica
▼os ouvistes, nem rosas o que vos atiravam,
nesfl lagrimas de jubilo as que a cidade i
rou ao vms ver (lassar, sagrado rei! Ao des-
gosto que nos inspira o parasitismo dos vos-
i nenhuma espécie d'apego que a monar-
chia nos desperta, e ao vivo ódio que
referve no peito contra todos aquelles que nos
teem posto n'este estado — sejam minisl
d' Inglaterra ou sejam ministros de Portu(
príncipes de Bragança ou príncipes da
doa Capellistas — veio ajuntar-se o escai
d'esse cortejo ignóbil, bufonico, estupend i,
que sr foi digno <l" vós, nem por is*
ft-z menos vergonha, visto como elle achi
lha a ideia do puder, que vós tendes oh
ção Ai' respeitar emquanto fordes o chefi
oaçlo.
Tenho ainda nas f;,,-rs .1 ardência da alii
ia que por vós Boffri por essas ruas, e con
100 OS GATOS
os que acompanharam os jornalistas franceses
e hespanhoes, do rosto d'elles bebendo ancio-
samente o fel d'uma ironia horrível, que se
mercê da polidez lhes fechava a bocca, nem
por isso se lhes tralha menos no faseias, em
alternativas de frouxo e crispação.— Não, não
foi o mantenhavos Deos, a saudação popular
que vós ouvisleis, mas chufas, apupos, vaias:
os fadistas que vos apontavam ás cigarreiras,
— Olha, lá \ae o canário. . .
os conselheiros ila corna que vos faziam trai-
ne, (-(Mito ralos d'esgoto ao faro d'uma coslel-
leia de cevado; e uo coro da igreja os capa-
dos góchinliando o seus latins de festa, d'onde
pareciam sabir convites para prostituições in-
confessáveis; e á porta os moços dVsíribeira,
com meias (Kalgodao e a barba por fazer, ca-
tando piolhos de redor do carro 1>. João v, en-
tre um regougar de velhas macbethicas, que
pediam esmola p'ra vos pagar um vinho de
honra. Tanto era fúnebre o aspecto da ceri-
monia, que um homem simples, (pie sem du-
vida checara, como eu, da sua terra, abor-
dando um archeiro, lhe perguntou se aquillo
ainda eram exéquias pelo rei !
— Esl is agora são pelo reinado.
OS GA ["OS
^r
101
Cançado de sustentar uma monarcliia que
o não acompanha nas suas aspirações, que
marcha diametralmente opposl i aos seus in-
teresses, que aã i partilha das suas alegrias,
e que até já tem escarnecido os seus pesares,
e povo desinteressoth-se d'ella, degredou-a da
cruzada nacional, começou a considerâl-a co-
mo uma estrangeira sospeita que se lhe abo-
letou em casa, delegada e espia d'essa maço-
naria de reis que traz jungida a si a Europa
escrava, e estanca e bebeasseivas das nações.
K meu senhor, este movimento não pára,
esta Bnspeiçâo não se corrige. Duzentos e rin-
eoenta anoos de miséria, fizeram do povo por-
taguei ama lagoa podre, em cujas sanias só po-
dem Tiver e medrar as carpas coroadas. \ draga
que limpar o pântano dos limos, ha-de pescar
102 OS GATOS
as carpas orgulhosas, e envial-as em barricas
de salmoura, quem sabe! a qualquer hotel de.
França ou d' Inglaterra, E essa draga está-se
armando entre nós ha muito tempo: vêem-
se-lhe já as peças formidáveis, os cyclopicos
gonzos, c as cadeias de bronze humano que
lhe circulam, ululando, pelo meio das gotei-
ras c engrenagens.
Podem os espiões de V. M. denunciar ao
] ssaro d'Arcos as isoladas offtcinas aonde se
está acabando de bater uma ou outra peça
-,'inidaria. Podem os Irabuijueiros dYI-rei
mel ter as sessentas cargas á cara d'alguns
descuidosos operários que se repousam, pondo
►as no pedestal da estatua dos poetas, e
desforçam, pondo alhos no pedestal da es-
tatua dos monarchas. Podem os Serpasitos, os
Lopositos, os Arroiositos, arrasar esta ou
aquellá Forja descoberta, suspender a Pátria,
fechar 0 Henriques Nogueira, ipierellar do Sé-
culo e dos Debates. . . Que nos faz isso? A de-
mocracia é como as outras febres; um bacil-
lus propaga-a, e do cérebro de cada affectado
que '• despotismo sequestra á liberdade, mi-
lhares de germens se cvolam, a contaminar ou-
tros tanlos reputados immunes, horas antes.
o> GATOS
108
\s ultimas ebullições anti-inglezas recam-
baram do pavilhão monarchico os últimos
fieis, e ha vinte dias que o pak Dâo faz senão
gritar, viva a republica !
Este grito propaga-se, e galvanisa de cada
esperança morta, ama aspiração pujante e fe-
cundíssima. Repetem-no em Coimbra três mil
boccas frementes d*academicos ; repetem-no
,, , porto oito mil rapazes do commercio e das
repetem-no em Lisboa as cem mil
vozes validas das classes fortes, activas, cul-
,;1 lerantes. Os lyceus do paiz, é ao
som d'elle que vão pelas mas das suas cida-
des, pedir esmola para comprar ínvio- dé
guerra. Os municípios, é ao sôm d'elle que
votam quantias para o thesouro de defeza na-
cional. \s associações de commercio, é ao
som d'elle que juram não comprar mais nada
ao inglez. N is aulas, o professorado insmua-o.
Nos centros militares e chefaturas civis, os
1 1... foncrionarios acquiescem a admittil-o
0 o obre-U >><'im<> d'uma Jerusalém futura
,• libertada. E outros signaes!
Quando lia mu mez se reuniram no salão
da Trindade, eerea «l*- quinhentos cidadãos de
igas proveniências, com a aristocraci
o;
OS GATOS
clero na vanguarda, afim de subscreverem os
fundos necessários ao armamento nacional, essa
espécie de junta de salvação publica que invo-
cou o auxilio de ioda a gente, não pronunciou
sequer O nome de V. M. Todos os jornaes ino-
narchlCOS, sem omissão (rum só, vae em qua-
renta dias se enlreteem a bosquejar, sobre as
permissas das recentes agitações patrióticas,
o provável futuro politico do paiz: e todas as
hypotheses essas folhas discutem e assigna-
lam, excepto a (rum rei no throno portuguez*
Quem nos impedirá então de pòr escriptos no
Paço, no dia em que o Alagoas chegue a este
porto?
0 exercito?
V. M. já mandou indagar (piem especial-
mente compra e lè os trinta mil exemplares
(pie o Século vende? V. M. nunca ouviu fatiar
nas cinco mil Folhas do Poço (pie a guarnição
de Lisboa absorve em cada dia? Nas Leituras
de propaganda que a ofticialidade inferior dos
regimentos faz nas paradas dos quartéis, á
soldadesca?
Oh, já nada, já nada impedirá a draga de
revolver o fundo da lagoa, muito embora as
cadeias partidas deitem sangue, e a guarda
08 GATOS 105
inunici|i;il traVB uma OU outra vez a macliina
cyelopica. Este paiz sem industrias metallur-
gtcas, tem abertas por toda a parte as suas
Corjas, onde dia e noite martellam, braços de
ferrreiroa que ignoram o cançaço. Leve-nos
muito embora o Africa dois ou três : vinte
estão prestes a retomar o malho vigoroso, e
a fazer estriar, sobre a bigorna do ódio, os
fundamentos á'uma existência social comple-
tamente inédita, propulsora da scieucia e da
riqueza, remodeladora das instituições e dos
COfetumes, que liberte a consciência moral e
nacioualise a arte, refaça a politica, defenda
a terra, E acima de tudo nos desiUVoute.
Por ventura lia sido uni erro de propagan-
da, eSSfl democracia tímida, platónica, strila-
inente pregada intramuros das conveniências
monarchicas; e haveria produzido resultados
mais decisivos 6 mais fundos, a estatuição
(1'uina COBSptranda permanente, por via de
sociedades secretas, que desviassem o ppvo da
simples espectação rethorica, armando-lhe o
braço, e repetindo-lhe que se não fazem re-
voluções sem alguns martyres.
O descuido no entanto justilica-se. Antes
do ultimalum inglês o da revolução do lirazil,
106 os <;atos
raros de nós poderiam lazer sondagens certas
na profundeza e na eftíeacia da cruzada repu-
blicana que pregávamos: e mal dispostos con-
da a Hespanha, menos ainda nos sentíamos
dispostos a enfunar o estandarte da ideia, com
correntes d' opinião sopradas do outro lado da
fronteira.
Agora mudou tudo. Os verdadeiros inimi-
gos de Portugal desmascararam-se. A linha
que nos separa de Hespanha é apenas uma
illusão óptica de políticos, filha d um erro his-
tórico ile sete séculos, que desviou a Pe-
nínsula da sua missão de grande potencia, e
tem defraudado a família latina d' uma força,
que virilisando-se, poderia ter disputado,
quem sabe ! a hegemonia do mundo, ás raras
loiras.
Hoje, a Hespanha deixou de ser para nós
o papão, e o Brazil, nosso filho, muito bem
pôde, mercê dos 300:000 portuguezes que lá
temos, ser no futuro politico, o nosso sugges-
tor. Desde que a Hespanha se republicauise,
teremos Portugal meltido entre dois fogos, e
fácil seria então tornar viável aquelle grande
sonho d' uma federação peninsular, que ha tan-
to tempo espelha ao longe, entre cerraceiros
OS GAT06 l(>"
de névoa platónica, a soa gigantesca mancha
de nação.
Esta* v. M. i ver a pujança d'esta espécie
de Rossia do oocidenle que seriam <»> anti-
qoissimos estados da Lusitânia e da Ibéria,
conluiados para a Inata da vida, em pequenas
republicas solidarias e autónomas; e por certo
abrange a sofeerbia da formidável potencia
que nós fartamos, portagdezes e hespanhoes,
abertos ao mar por lodos os quadrantes, com
um império colonial que seria o segundo na
fortuna territorial «las nações da Europa, ma-
gníficos portos, esorodras temerosas, picto-
rescas cidades, culturas, minas, e Iodas as ri-
quezas da industria e da arte, fecundadas por
uma raça outra vez fuveneseida petas aguas
lostraes da democracia pura.
\ omnipotência d,esse colosso novo sopésa-
ionhando-0 ligado á França, e constituin*
(|() ,-,,,,, eiia um novo regulador dos destinos
,1,, niuinlo. i; o expleador da sua adolescência
lecimstrue-se, pondo Lisboa nas unias COBM
,,,,,,-, cidade de dois milhões de habitantes,
chave do Atlântico, lerminus dè toda a rede
ferro-viaria da Europa, ponto áa convergência
do incalculável eoÉunercio americano. . . — c
108 <»s GAT96
magnifica de grandeza, coberta d'estatuas e
palácios, com o museu de .Madrid nas Janel-
tas Verdes, mulheres de Hespanba renovando
o typo mórbido das nossas, forasteiros aos
milhares, parques de léguas á beira do rio
amplíssimo como um mar — e a par do luxo,
um alio tom de civilisação e de cultura, a
litteratura opípara, a sciencia seria, uma arte
independente — e depois ainda, no fim de tu-
do, a vingança.
Oh, a vingança !
Por ventura vem longe ainda essa condi-
rão sine qua non da nossa felicidade, que só
uma federação peninsular pode trazer, e que
começando por expulsar o dinheiro tnglez das
nossas necessidades e das nossas em prezas,
viesse em cuspir de Gibraltar os fardas ver-
melhas, em correr a chicote do interior d'. Afri-
ca, esses puritanos meio padres, meio gatu-
nos, que civilisam o negro com algemas e
ópio, acabando por e\pulsal-os enilim da ín-
dia, e por lhes estancar a iniciativa, o presti-
gio e a força, cm todos os cantos do mundo
onde o maldito polvo cuidasse de viver sugan-
do os seus irmãos.
Vem longe de certo! Mas nada pode des-
OS GATOS
109
viar a corrente, embora lenta, embora obscu-
ra, da convergência politica de Portugal para
;i Dação irmã, nem contrariar no futuro essa
confederação ideal de toda a ibéria, base
(ruma era de Oiro, »-m que OS filhos dos nossos
filhos, senhor, repassando em memoria a fiei-
ra de reis da casa de Bragança, só encontrarão
para V. M. estes dizeres :
— Sim, era um tal Carlos, sempre cercado
de gastronomos e de loureiros, e que chamava
pioihfira ao paiz de que era rei.
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