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Full text of "Os gatos, publicação mensal, d'inquerito á vida Portugueza"

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FIALHO  D'ALMEIDA 

OS  GATOS 

PUBLICAÇÃO  SEMANAL, 
d'inquerito  á  vida  POUTUGUEZA 


N."  14 — 6  de  Setembro  de  i8qo 


SUMMARIO 


9 


Suicídios    por    tolice  — caracteres  do  'X-^/^] 

ftlruijijle  MODERNO:  NA  VIDA  iNÃO  HA  LOGAR  ^  ' 
PARA  OS  TYPOS  INTERMÉDIOS! — ELIMINAÇÃO 
DOS  VENCIDOS  PELO  ÁLCOOL,  PELO  DEDOCHE  E 
PELA  MORTE  SUIilTA  —  LISBOA,  POLVO  DE  POR- 
TUGAL—AS MIGRAÇÕES  PROVINCIANAS  E  A  DE- 
CADÊNCIA AGRÍCOLA —  O  BRAZILEIRO  IV AGORA, 
E  SUA  TENDÊNCIA  PARA  SE  FIXAR  NOS  CENTROS 
DE  PRAZER  — GUERRA  DE  RAÇAS,  E  PIIVSIONO- 
MIA  HISTÓRICA  DOS  COMBATENTES  —  A  ARISTO- 
líiACIA  AUTHENTICA  E  A  ARISTOCRACIA  DO  PÉ 
IKESCO  —  UM    DITO   DO    MARQUEZ    DE  PENALVA 


II  os  GATOS 

—  O  SiNU.  VISCONDE  QUER  ALMOÇAR  !— lilLIIETE 

d'uma  recem-condessa  á  sua  costureira  — 
OS  que  ficam  pelo  camlmio,  arrebentados 

—  causas  FINAES  de  tudo  —  KERMESSES  D'AL- 
GÉS  E  CINTRA  —  A  CARIDADE-5JJ0í7,  SEGUIDA 
DA  INFLUENCIA  DE  VENDER  SORTES,  NO  IJirl. 
MÃES,  NOIVAS  E  FILHAS  —  TRÊS  LIBRAS  PARA 
FUNDAR  UM  HOSPITAL  —  IIEUNIÀO  DA  sociedade 
auti-esc.ravisla,  E  DA  badaiulerie  DOS  SEUS  SÓ- 
CIOS FUNDADORES — INDIFFEIíENÇA  PELA  ESCRA- 
VATURA BRANCA,  E  POSTURA  LYRICA  PERANTE 
AS  DESGRAÇAS  DO  PRETO  ANONYMO — O  HO- 
MEM DA  MINHA  TERRA  —  DEFINIÇÃO  DO  TALEN- 
TO DO  SNR.   HINTZE,    POR  VIA  D'UMA    ANEDOCTA 

—  OS  TRÊS  ARMELINS. 


31  d' Agosto. 


Ao  marlyrologio  dos  que  se  suicidam  por 
drama,  vem  acrescentar-se  o  d'aquellcs  que  se 
suicidam  por  tolice.  O  que  mais  complica  em 
Portugal  o  infortúnio,  é  a  fatalidade  de  quasL 
todos  os  desgraçados  serem  tolos.  Antigamen- 
te, quando  o  coração  d'um  homem  ainda  ba- 
tia por  um  ideal  alevantado,  apenas  eram  co- 
nhecidas três  ou  quatro  grandes  razões  capa- 
zes de  leval-o  a  abandonar  voluntariamente  a 
existência;  e  tão  poucas  vezes  succedia  trava- 
rem essas  razões  a  felicidade  do  pobre  diabo, 
que  raro  adregava  ter  de  se  voltar  a  cabeça 
ao  estrondo  d'ura  tiro  esmigalhando  o  craneo 
d'uni  vencido. 


Agora  lia  vida  acaboií-se  o  logar  i)r'()S  ty- 
pos  iiiUTiiindios,  c  o  justo  meio  termo  entre  o 
homem  audacioso  e  o  homem  paciente,  dei- 
xou de  fazer  maioria  entre  as  populações  que 
luctam  pr'a  comer.  Os  homens  partii-am-se  em 
dois  grandes  formigueiros  racioclnantes — os  vl- 
ctoriosos,  que  fingindo  acatar  os  direitos  com- 
muns,  só  realmente  vivem,  como  os  grandes 
carnívoros,  á  lei  da  força  brutal :  e  os  venci- 
dos, laca  inlViior  que  serve  de  presa  ao  de- 
vorismo  dos  primeiros,  e  que  dcsmoleculada 
pouco  a  pouco,  niercè  da  chimica  social  que 
não  consente  Inércias  espectantes,  irá  rarean- 
do da  hecatombe  dos  grandes  centi-os,  té  se 
perder,  como  certos  in(lios  d'America,  nos  re- 
cessos dos  mundos  mortos,  onde  algum  jar- 
dim zoológico  mandará  caçar  depois  os  exem- 
plares mais  piclorescos. 

A  lei  d'absorpção  (pie  mele  os  pequenos 
estados  na  circumscripção  politica  dos  gran- 
des, que  sacrifica  as  nacionalidades  exangues 
ao  egoísmo  das  nacionalidades  plethoricas  e 
bem  armadas,  não  é  senão  o  caso  amplifi- 
cado do  mesmo  signo  cruel,  que  põe  na  vida 
individual  o  pairão  rico  a  explorar  o  operá- 
rio  ]iobre,   o   drpuladi)  a   illiidir  a  liòafé  do 


os  GATOS  5 

rústico  eleitor,  o  graiule  burocrata  a  assignar 
com  o  seu  nome,  a  oiíra  tio  iiequeno  amanuen- 
se, o  padre  a  engordar  d'enterros,  e  o  gene- 
ral emíim  a  arrogar-se  victorias  qne  só  foram 
ganhas  pela  valentia  do  soldado. 

N'esla  injustiça  pois  de  prémios  e  destinos, 
emquanto  o  triumpho  centuplica  a  audácia  dos 
fortes,  vae  a  timidez  acachapando  cada  vez 
mais,  a  inania  dos  vencidos,  de  cujas  liquida- 
ções íinaes  são  testemunha  as  vendas  d'alcool, 
as  estatísticas  hospitalares  de  loucos  e  cardía- 
cos, os  casos  da  morte  súbita,  a  prostituição 
e  a  miséria,  (h)  que  tudo  isto  decuplica  em 
Portugal  d'anno  pr'a  anno  —  arcanjos  d'estre- 


(b)  A  estatística  de  1888  accusa  a  retensãode  382,  426 
piteireiros,  nos  calabouços  das  nossas  cidades  e  grandes 
villas  do  continente,  onde  a  organisação  da  policia  é  regu- 
lar. Só  a  capital  forneceu  á  sua  parte  6:540,  entre  captura- 
dos pela  policia  civil  e  guarda  municipal.  O  numero  de 
licenças  pedidas  em  Lisboa,  para  a  abertura  de  novas 
tabernas,  elevou-se  a  657,  no  anno  de  89.  Os  suicídios 
foram,  no  districto  de  Lisboa,  cerca  de  390,  entre  frustra- 
dos e  desfechando  pela  morte  —  mais  216  do  que  no  anno 
anterior  —  e  os  casos  conhecidos  de  morte  súbita,  eleva- 
ram-se  á  jocunda  somma  de  3:472,  nas  cidades  de  Lisboa 
e  Porto,  e  suas  inimediações. 

Foram  autoados  cm  Lisboa  por  transgressão  de  postu- 


6  os  GATOS 

minio,  revcrtcndo-nos  consoladoramente  ao  es- 
trumo (ronrlo  nunca  devêramos  ler  brotado! 


Por  não  ter  dados  (jiie  me  periniltam  des- 
crever, com  scieiíUíico  rigor,  os  tramites  d'es- 
ta  iiicta  entre  fracos  e  fortes,  entre  timidos  e 
audaciosos,  nas  dilTerentes  áreas  da  provincia, 
onde  elia  deve  dar-se,  como  em  Lisboa  —  di- 
verí,Mndo  em  cada  nma,  está  claro,  conforme 
a  natureza  e  a  intensidade  das  causas  e  dos  ef- 
feitos — circumscreverei  o  meu  estudo  particu- 
larmente á  capita],  onde  mercê  das  migrações 
que  a  provincia  quotidianamente  ahi  despeja, 
se  pôde  dizer  que  está  iioje  condensada  a  vida 


ras  municipaes,  19:341  indivíduos,  que  deixaram  na  Bôa 
Hora  40:019,5300  '■'^■is-  Houve  2,358  prisões  por  offensasá 
moral,  e  6,009  po""  nicndicancia  e  vadiagem. 

O  livro  das  mulheres  perdidas  archivou  6:014  nomes — 
mais  1:118  do  que  em  Sy!  D'aquelle  numero,  passante  de 
dois  terços  era  povo,  creadas  de  seivir,  costureiras,  cigar- 
reiras, filhas  de  pequenos  empregados,  e  854  mulheres 
d'especie  ovarina,  que  passa  pela  mais  honesta  e  laboriosa 
da  gente  pobre  de  Lisboa.  Em  compensação,  a  capital  de 
tantos  bêbedos,  de  tantos  mortos,  de  tantos  obscenos,  de 
tantas  prostitutas,  teve  apenas  que  registrar  146  desastres 
occorridos  no  trabalho ! 


os  GATOS  7 

do  paiz.  Essas  migrações,  escuso  (raccentuar, 
são  evidentes.  A  febre  de  civilisação  que  as 
estradas  e  os  caniinlios  de  ferro  levaram  á 
província,  encontraram  as  populações  n'uma 
crise  de  miséria  insolvavel,  vinda  da  decadên- 
cia agrícola,  que  é  em  todos  os  i)ontos  de  Por- 
tugal absoluta,  e  crearam  n'essas  ingénuas  fa- 
mílias, até  então  aferrados  á  tradícçào  territo- 
rial e  aos  ideaes  devida  primitiva,  necessidades, 
para  que  os  seus  bolsílhos  não  estavam  feitos, 
e  para  que  os  seus  campos  não  produziam 
costeio  sufficiente. 

Os  mais  ricos  entregaram  as  terras  a  admi- 
nistrações mercenárias,  e  vieram  para  Lisboa 
queimar  os  ullimos  cartuchos,  em  carruagens, 
especidaçòcs  de  fundos,  syndícatos  e  intrigas 
políticas.  Os  remediados,  arrefecida  a  paixão  do 
foco,  quebrado  o  elo  que  prendia,  pelo  amor 
do  lucro,  o  fdbo  do  proprietário  ao  quinteiro 
em  que  os  antepassados  medraram,  descami- 
nharam os  herdeiros  por  profissões  scientificas 
e  emprego-manias,  que  fizeram  d'elles  tristís- 
simos sábios,  prolematicos  estadistas,  e  am- 
biciosos sornas  e  desíllustres.  Finalmente,  os 
subalternos,  que  vivem  das  duas  primeiras  clas- 
ses, acossados  pela  fome,  vendo  as  suas  po- 


8  os  GATOS 

brcs  viulias  |)liylloxci'a(ias,  os  seus  soulos  mur- 
chos, os  seus  olivaes  ferrugentos,  as  industrias 
locaes  sem  procura,  em  ruinas  a  aldeia,  lá  de- 
bandaram também  por  sua  vez,  vindo  os  mais 
tímidos  trabalhar  [)or  serventes  e  carpinteiros, 
nas  obras  da  cidade,  e  liquidando  os  mais  am- 
biciosos, a  casa  paterna,  para  desertarem  da 
pátria,  caminho  do  Hrazil  c  das  rp|)ul)licas  llo- 
rescentes  do  Equador. 

A  expansão  pois  que  na  capital  se  nota, 
ha  dez  ânuos,  não  provem  tanto  (Fum  desen- 
volvimento de  riqueza,  como  d'um  trasbordo 
de  fugitivos  que  perderam  o  siso,  e  se  enfas- 
tiaram de  vegetar  sem  proveito,  no  remanso 
das  suas  quintas  devastadas. 

Lisboa  é  uma  cidade  que  se  está  doirando 
com  os  restos  da  i'i(pieza  de  trinta  ou  quaren- 
ta cidades:  uma  feira  das  vaidades  que  se  en- 
feita com  os  desmazellos  de  quatro  ou  cinco 
mil  fortunas  ruraes  comidas  de  hypotheca. 
Mesmo  o  Brazil,  a  quem  nós  devemos  tanto,  e 
que  é  ainda  hoje  a  única  llorescente  colónia 
portugueza — porque  nos  dá,  sem  despeza,  c 
beneíicia  o  paiz  com  o  melhor  de  trinta  ou 
quarenta  mil  coulos  aunuaes— o  Brazil,  quan- 
do outr'ora  nos  mandava,  em  commendadores 


os  GATOS  9 

millionarios,  os  polires  colonos  que  para  lá  iam 
trocar  por  iiioeda  os  nobiiissiinos  esforços  do 
seu  braço — lia  trinta  annos  ainda — em  vez  de 
fazer  parar  esses  benéficos  obreiros  nas  capi- 
tães de  prazer,  em  vez  de  lhes  engolpliar  os 
thesouros  nas  grandes  especidações  a  que  os 
governos  dão  ala,  com  previlegios  infames  e 
garantias  de  juro,  recambiava-os,  ingénuos  e 
nostálgicos,  aos  seus  campanários  d'origem, 
onde  a  agricultura  lhes  merecia  zelos,  ternu- 
ras, sacrifícios,  em  termos  d'elles  haverem  sido 
para  muitas  terras  do  norte  e  do  meio  dia,  os 
successores  dos  antigos  frades,  os  zeladores 
da  ordem  e  da  prosperidade  publica,  o  espi- 
rito de  progresso:  e  municípios,  bancos,  e 
juntas  de  parochia,  ao  mesmo  tempo! 

Leia-se  agora  o  registro  das  centenas  d"edi- 
ficações  a  construir  nas  ruas  de  í.isboa ;  mais 
de  metade  pertence  a  brazileiros.  Mas  em  com- 
pensação, não  ha  na  província  uma  única  ten- 
tativa de  restauração  viticula,  um  ensaio  de 
cultura  nova,  uma  empreza  d'arroteio  e  trans- 
formação de  terras  baldias,  uma  grande  rou- 
paria  ou  uma  granja  modelo,  a  que  esses  ar- 
gentarios  l(!nham  querido  entregar  o  seu  di- 
nheiro. 


10  os  GATOS 

Ainda  a  nossa  ca|)ilal  lucraria  com  abole- 
tar nos  seus  bairros,  psle  alluxo  de  gozadores 
e  de  necessitados,  que  atráz  disse,  se  por  ven- 
tura a  mór  parle  trouxesse  dos  seus  lares,  o 
aferro  incondicional  do  trabaliio,  o  espirito 
d'ordem,  o  sentimento  d'economia,  e  os  hábi- 
tos certos,  e  os  alTectos  familiares,  que  na  pro- 
vinda teem  quasi  lodos.  Uma  tal  invasão  cor- 
rigiria ao  menos  Lisboa,  que  é  ainda  hoje  a 
mais  desleixada,  a  mais  porca,  e  a  mais  arti- 
flcial  de  todas  as  capitães  do  universo.  Mas 
vae  que  a  passagem  d'essa  gente,  dos  seus'lo- 
garejos  nataes,  para  um  acampamento  promis- 
cuo,  como  este,  d'á  beira  Tejo  —  esta  passa- 
gem que  em  principio  só  lhe  deslumbra  sa- 
loiamente os  olhos  —  depois  tere-os  no  peito, 
entra  a  contaminal-os  de  todos  os  vicios  e  de 
todos  os  fastios  da  vida  alfacinha,  desencami- 
nha-os  da  sobriedade  primeva,  para  os  esgo- 
tos do  gozo  dia  a  dia,  e  completa  afinal  a 
sua  obra,  quando  lisboetisados  os  ricos  em  ja- 
notas, e  os  pobres  em  fadistas,  acaba  de  lhes 
tirar  o  pouco  que  elles  traziam  de  bom,  das 
suas  terras. 


os  GATOS  44 

Postas  estas  premissas,  vejamos  entre  que 
camadas  de  população  lisboeta,  sociologica- 
mente distinctas,  se  trava  a  guerra  de  raças 
que  atraz  disse.  E  evidente  que  tendo  essa 
guerra  por  fundamento  o  antagonismo  entre 
os  elementos  da  vida  antiga,  e  os  elementos 
da  vida  nova,  a  pugna  explosirá  todas  as  ve- 
zes f]ue  esses  elementos  se  interceptem  o  ca- 
minho, os  velhos  |)ara  defender  seus  foros  e 
tradicções,  os  novos  para  consquistar,  pela  for- 
ça da  audácia  sem  escrúpulos,  o  logar  dos  ve- 
lhos. Na  classe  aristocrática,  na  politica,  na 
burocracia,  no  commercio,  entre  a  industria, 
entre  o  povo,  desde  que  os  dois  grupos  anta- 
gónicos se  afrontam,  é  inevitável  o  choque,  e 
a  peleja  certa;  e  ou  se  suba  ou  se  desça  na 
escala  social,  a  altitude  dos  dois  grupos  belli- 
gerantes  é  idêntica.  Quero  dizer.  Do  lado  dos 
sectários  do  que  impropriamente,  á  falta  de 
termo,  chamarei  antigo  regimen,  um  aferro 
incondiccional  pelas  coisas  estabelecidas,  res- 
peito cego  á  lei,  um  orgulho  pelo  direito  de 
nascimento  e  d'eleição,  actividades  ronceiras 
mas  prudentes,  ideias  curtas  mas  firmes,  o 
horror  de  aventura,  um  ideal  politico  auctori- 
tario,  a  estima  da  riqueza  adquirida  de  vagar,  e 


12  os  GATOS 

lá  Licin  !i()  In  11(1(1  das  coiiscuMicias,  a  vaga  con- 
vicção de  que  o  paiz  é  uma  conesia  hereditá- 
ria e  impartiihavel  com  os  que  vieram  depois 
d'elles.  Estas  douctrinas,  o  grupo  dos  aventu- 
reiros novos  regeila-as,  e  para  annullal-as  to- 
dos os  recursos  lhe  servem,  e  todos  os  cam- 
pos de  batalha  lhe  são  fáceis.  Como  d'esta 
banda  não  lia  interesses  que  defender,  e  pelo 
contrario  tudo  a  conquistar,  os  combatentes 
escaraniu(;am  á  lei  de  mercenários,  negando 
tudo,  excepto  o  direito  de  saque  apóz  a  guer- 
ra, pregando  que  a  immohilidade  das  coisas 
deprava  os  homens,  c  (pie  só  das  renovações 
sociaes  violentas  podem  saliir  para  as  nações, 
validos  e  triumphantes  amanhãs.  Eis  o  que 
faz  o  recliaço  d'intcresses  e  d'id(!as  que  actual- 
mente vae  pelas  talhadas  d'esse  sorvado  fructo 
que  se  chama  a  população  de  Portugal,  e  da 
qual  Lisboa  nos  oflerece  á  vista  tão  condensa- 
dos specimens. 


Comece-se  pela  aristocracia.  A  genuina 
consta  d'iima  dúzia  ou  dúzia  e  meia  de  famí- 
lias d'oiide  a.  coroa  tira  o  seu  pessoal  fami- 
liar, e  que  (piasi  não  recebe,  não  priva,  nem 


os  GATOS  13 

vive  senão  comsiiío  própria,  regeitando  se  é 
rica,  como  os  Fronteiras  e  os  Palmeilas,  tudo 
quanto  cheire  a  nobreza  d'enxertia  e  d'arnia- 
zem,  e  recluindo-se,  se  pobre,  n'algum  can- 
to ignorado,  onde  passa  a  vida  a  evitar  os  pa- 
raleiios  humilliantes  e  os  contágios  vulgares, 
educando  os  fillios  em  officiaes  do  exercito,  e 
as  meninas  em  irmãs  da  caridade,  como  no 
■\ellio  tempo.  É  uma  classe  distincta,  um  pou- 
co banal  vista  por  dentro,  mas  enthronisada 
qnand  mêmc,  n'uma  altura  d'orgulho  que  a  de- 
fende contra  os  ferozes  cercos  da  sua  antago- 
nista, a  aristocracia  do  milhão,  a  aristocracia 
do  pé  fresco;  e  ((ue  mau  grado  as  capitula- 
ções a  que  i'-  forçada  n'iuna  ou  n'outra  família, 
por  falta  de  viveres,  ainda  agora  dá  typos  de 
certo  elleito  palaciano  e  decorai.  Todos  conhe- 
cem a  resposta  do  velho  1'enalva,  a  um  Arms- 
trong  que  folheava  deante  d'elle  um  livro  de 
linhagens. 

—  Pódedizer-me,  marquez,  onde  encontrar 
ireslc  livro,  os  antepassados  da  minha  esposa? 

—  Os  antepassados  de  sua  esposa  .  .  mm, 
min.  .  sim,  ella  devia  ter  antepassados,  sua 
esposa. . .  Olhe,  |)i'ocure  o  amigo  isso,  no  se- 
gundo volume. 


U  os  GATOS 

—  Mas  (lisscrain-me  (|iic  a  nbra  tiiilia  um 
só! 

—  Por  isso  mesmo,  por  isso  mesmo! 
Garrada  a  esta  nobreza  de  sangue,  e  que 

se  o  não  tem  puro  por  cruzamentos,  ao  menos 
o  tem  por  intransigência  de  conducl^i,  ha  uma 
outra  nobreza  saburrosa,  fillias  de  fidalgos 
casadas  com  filiiosde  tendciros  —  espertaliiões 
sem  pátria  galardoados  com  tituios  (pie  repre- 
sentam a  subserviência  dos  reis  e  dos  gover- 
nos perante  a  usura  dos  agiotas  que  lhes  ta- 
param as  faltas  de  dinheiro  —  projjrietarios  bo- 
çaes  a  quem  a  Avenida  csferveu  o  sangue 
de  cavadores,  e  que  julgaram  ler  liquidado 
os  calos  das  mãos,  no  dia  em  que  saliiram 
biscondes  ou  varões  do  próprio  ai)elli(lo:  uma 
nobreza  de  dúbios  e  de  tolos,  de  i)rosumpço- 
sos  e  de  typos  emfim,  na  qual  todos  os  esfor- 
ços miram  esta  ideia  deshonesta,  apagar  a  ori- 
gem, e  destruir  um  passado  incominodo  por 
qualquer  lilulo.  A  um  reccm-titular  que  eu 
visitei,  na  manhã  seguinte  ao  dia  em  que  a 
munificência  roal  o  aviscondalliára,  ouvi  dizer 
para  o  croado: 

—  O  snr.  visconde  quer  almoçar,  e  se  du- 
rante o  almoço  do  snr.  visconde,  alguém  pro- 


os  GATOS  15 

curar  o  snr.  visconde,  diga  que  o  snr.  viscon- 
de não  recebe. 

—  Sim,  senhor  Guimarães,  torna  o  crea- 
do. 

—  Guimarães?!  Upa!  Upa! 

Um  praticante  de  Restello  perguntava- 
Ihe: 

—  O' .patrão,  o  duque  de  Cadaval  tamisem 
teve  botica,  com'a  gente? 

E  ninguém  esqueceu  ainda  o  bilhete  d'a- 
quella  mulher  de  baiKiueiro  á  modista,  quan- 
do o  marido  subiu  a  titular  «mmha  amiga, 
venha  esta  tarde  sem  falta  tomar-me  medida 
d'um  vestido  de  condessa. . .« 

Entre  si,  estas  duas  aristocracias  detestam- 
se,  a  authentica  por  desprezo,  e  por  ciúme,  a 
outra.  Do  lado  da  authentica  não  se  perdoa 
uma  só  das  circumstancias  moraes  que  pos- 
sam pôr  em  cheque,  a  falsa.  É  a  recusa  sys- 
lliemalica  de  partilhar  com  ella  as  festas  de 
beneficência,  de  a  admittir  aos  seus  cenáculos 
Íntimos,  de  a  intronietter  nos  cargos  da  corte, 
de  fre((uentar  com  ella  os  sitios  de  villegiatu- 
ra  e  de  prazer.  .  .  Lá  onde  a  altivez  d"uma  du- 
queza  heredilaria  pôde  arranhar  o  madarnis- 
mo    d'uma    baroneza   episódica    eventual,  o 


i6  os   GATOS 

confliclo  é  certo,  e  a  comedia  em  todo  o  pon- 
to inimitável. 

Uma  famiiia  recem-tilulada  casou  ha  pou- 
cos ânuos  uma  das  suas  filhas,  com  o  filho 
d'um  dos  nossos  grandes  negociantes  de  fa- 
zendas, ellectuando-sc  a  benção  nupcial  no 
palácio  (fniii  iiliilai'  ([ue  residia  fronteiro  á 
casa  do  noivo,  e  cuja  esposa  commentava 
d'est'arte  a  cerimonia.  «Desde  a  casa  d'clles, 
até  a  minha  capella,  vinha  adeante  um  creado, 
desenrolando  um  tapete,  para  o  cortejo  passar, 
e  atraz  ia  outro,  enrolando  o  tapete,  depois 
do  cortejo  tei-  passado.  Ali,  foi  bonito !  o  ta- 
pete ficou  como  novo,  e  agora  ainda  o  podem 
vender,  no  armazém ...» 

Tanto  o  papel  social  d'esla  tropa  fandanga 
é  deletério,  (jue  a  aristocracia  e  a  burguezia 
fecham-lhe  as  poitas,  embora  cila  de  vez  em 
quando  lhe  metta  hombros,  e  penetre  á  força 
nos  salões  onde  ninguém  lhes  olferecera  um 
faitteiiil  d'intimidade.  .Mguma  vez  as  festas 
que  ella  dá,  estonteam  no  seu  orgulho  a  no- 
breza authenlica,  o  lado  feminino  sobretudo, 
que  apezar  do  rang  nem  sempre  tem  podido 
evitar  um  calafrio  de  ciúme  beliscado.  Entanto 
essas  exhibições,  que  os  reporters  descrevem 


os  GATOS  17 

com  a  mioleira  ainda  azuada  do  Champagne, 
e  cujo  secreto  intuito  apaga  o  que  n'eiias  po- 
desse  haver  de  delicado,  essas  exhibiçòes, 
morto  o  clarão  do  ultimo  lustre,  só  deixam 
empóz  si  um  vago  fétido  de  feira  e  baile  pu- 
Wico,  a  explosão  d'alguma  nova  tractada,  ou 
os  proclames  d'alguin  aparatoso  casamento. 
A  lucta  que  traz  esta  espécie  d'csi)ecula- 
dores  e  de  parvenus  nMima  continua  febre  de 
se  fazerem  logar  nos  salões  escrupulosos,  é 
uma  coisa  tão  complicada  e  tão  dura,  tão  pa- 
ciente e  tão  sutil,  que  se  faria  um  volume  só 
com  os  poiír-parlers  que  d'ella  correm,  em 
geito  de  se  provar  que  para  certos  ricos,  o 
slrugglc  é  bem  mais  cruel  do  que  para  certos 
pobres.  Todos  os  processos  são  achados  bons 
para  a  conquista  d'essa  almejada  e  nunca  ple- 
namente conseguida  intimidade:  kermesses  e 
bospitaes  de  meninos  orphàos,  arvores  do  Na- 
tal e  procissões  nos  claustros  dos  conventos, 
beneficência  e  subscripção  nacional,  regatas  e 
tiro  aos  pombos. . .  — e  sempre,  de  cada  vez 
que  seis  fidalgas  de  sangue  azul  fazem  um 
|iasso  para  uma  bella  obra,  logo  seiscentas 
outras,  de  calcanhar  rachado,  advém  co'a  bolsa 
aberta,  prestes  a  arruinarem  as  casas  de  banco 


18 


dos  maridos,  comtanfo  que  possam  mostrar, 
da  mar(|ii('za  ou  da  duqucza,  um  petil  billet 
para  os  seus  chás.  Ha  tempos,  começou  a  rai- 
nha a  reunir  em  Belem  algumas  pessoas  mais 
próximas:  immediatameule  empenhos  ás  cen- 
lonas,  de  pannudos  e  de  pannadas,  sollici- 
fando  entrada — sendo  o  picante,  (pie  esses 
ompenlios  não  miravam  taalo  a  lionra  da  re- 
cepção real,  como  o  desejo  d'aproveilal-a  em 
gazua  para  forçar  as  portas  (Fumas  tantas  ca- 
sas aiuda  impjacavcimcnte  aferrolhadas. 


Seria  um  inventaiúo  faslidiosissimo  a  his- 
loriação,  ponto  por  ponto,  d'esta  batalha  de 
guerrilhas  havida  nas  dilTerentes  camadas  da 
sociedade  portugueza,  e  que,  quer  se  peleje 
nas  alias,  quer  nas  baixas  classes,  tem  sem- 
pre por  causa  remota  o  mesmo  choque  de 
princi[)ios  que  atraz  puz,  e  por  determinante 
sempre  o  mesmo  jogo  de  ciúmes  e  d'inleres- 
ses  que  especifiquei  para  a  família  aristocrá- 
tica. Tão  perceptível  esta  lucta  é,  que  me  dis- 
penso de  a  detalhar  por  episódios,  (^wm  na 
([uizer  por  exemplo  vèr  latejar  na  politica,  per- 
gunte aos  velhos  parlamentares  do  tempo  de 


l(t 


Sá  (la  líaiiduira,  o  ijiip  pcusaiu  dos  inipelos 
do  snr.  Navarro,  e  das  manhas  jezuiticas  do 
snr.  Lopo  Vaz.  Quem  na  qnizer  sentir  no  exer- 
cito, consulte  o  snr.  Duval  Telles  a  respeito 
(las  qualidades  militares  do  snr.  José  Paulino. 
Ouem  na  qulzer  sentir  na  sciencia,  alcance  (pie 
o  snr.  José  Júlio  lhe  dè  a  sua  opinião  sobre  o 
(Ir.  Lourenço.  Quem  na  quizer  sentir  no  alto 
capitalismo,  falle  ao  snr.  Seixas  dos  processos 
de  fortuna  do  sm-.  Burnay.  Por  toda  a  banda 
enfim  onde  duas  creaturas  se  afrontem,  esse 
antaiionismo  resalta,  entre  o  velho  e  o  novo, 
(inlrc!  o  lunilem  e  o  amanhã,  sendo  inipossvicl 
dizer  se  ao  cabo  de  tanto  trabalhar,  ficará 
vencedor  alguém  capaz  d'imprimir  caracter  no 
Portugal  futuro,  e  de  garantir  á  sociedade  por- 
lugueza  uma  existência  autónoma,  a  despeito 
das  vicissitudes  e  dos  pessimismos  circum- 
danles.  Entretanto  esta  batalha  seria  talvez 
fértil,  como  renovação  d'energias  indómitas,  se 
mercê  de  debilidade  cougenta  do  sangue,  ou 
contrahida  pela  educa(;ão,  metade  dos  soldados 
não  ficassem  rebentados,  sem  baptismo  d(! 
guerra  sequer,  na  escarpa  do  primeiro  talude 
a  vencer,  de  bayoueta  cm  riste,  e  mochilla  ás 
costas.  Como  se  lodos  tivessem  nascido  para 


20  os  GATOS 

destinos  (le  príncipes,  o  monor  contratempo  des- 
illude  esses  inermes,  e  os  faz  desertar  da  mar- 
cha forçada  em  —  póz  da  fortuna  traiçoeira.  Á 
preguiça  que  lhes  deu  o  clima,  juntam  o  fatalis- 
mo sornaque  a  tradicção  histórica  lhes  deu,  e 
a  cobardia  physica,  vinda  da  dependência  estran- 
geira e  da  esmolante  miséria  em  que  Portugal 
tem  vivido,  desde  o  senhor  D.  João  IV.  Nenhum 
paiz  possue,  sob  este  ponto  de  vista,  mais  autó- 
matos. A  iniciativa  particular  escandalisa  a  nossa 
inércia.  Qualquer  vontade  medianamente  enér- 
gica nos  faz  medo.  E  d'aqni  dois  males  gra- 
ves. O  primeiro  ó  aguardarmos  toda  a  vida,  por 
um  fundo  sebaslianico  de  raça,  esse  protector 
myslerioso  que  n'uma  manhã  de  névoa  ha-de 
vir  pòr-nos  a  mèza,  arranjar-nos  o  emprego, 
laobilar-nos  a  casa,  casar-nos  rico,  e  que 
não  vindo  nunca,  constantemente  nos  impede 
de  ganhar  a  vida  por  um  trabalho  solido  e  hy- 
gienico.  O  segundo  ó  estarmos  ajitos  a  soflrer 
constantemente  o  jugo  d'um  subalterno  audaz 
que  qualquer  golpe  de  mão  leve  ao  pináculo, 
e  que  uma  vez  sagrado  chefe,  chicoteie  a  seu 
gosto  a  caterva  de  humildes  pulhas  que  nós 
somos.  Kstcs  dois  males  ponte-vistam  a  histo- 
ria de  todas  as  nossas  misérias  e  de  todas  as 


os  GATOS  21 

nossas  subserviencias,  internas  ou  externas, 
quaesquer  sejam,  e  vão-nos  approxiniando 
com  uma  accelcração  vertiginosa,  do  terrivel 
(lia  em  que  enfeudaremos  por  completo,  futu- 
ro e  casas,  ao  devorismo  da  primeira  potencia 
forte  que  nos  queira. 

E  o  que  mais  confrange,  é  esta  abdicação, 
no  Estado  como  no  individuo,  ser  feita  d'in- 
dolencia  estúpida,  de  desgoverno  insólito,  de 
falta  de  brio  civico.  Não  nos  cerceia  a  miséria 
filha  d'um  estancamento  completo  de  recursos: 
cerceia-nos  o  desleixo,  derivante  d'um  desca- 
minho de  força,  e  d'uma  applicação  viciada 
de  predilecções  e  faculdades.  A  maioria  das 
nossas  populações  é  feita  d'esses  typos  inter- 
médios, espectantes,  passivos,  cm  que  lhes 
fallei  no  começo  d'estas  notas,  que  os  fortes 
pisam  e  manietam  ao  seu  carro,  e  para  que 
não  lia  logar  na  vida  agitante  dos  nossos  dias. 
()  resultado  é  este:  em  cima,  o  paiz  gozado 
por  dez  ou  doze  charlatães,  de  parceria  com 
dez  ou  doze  bandidos,  o  todo  fazendo  permut- 
tações  d'infamias  e  jiga-jogas  de  negociatas, 
((ue  lhes  permitiam  aguentarem-se  alguns  me- 
zes  mais  no  tombadilho:  em  baixo  a  massa 
avulsa,  morrinhenta,  sórdida,  sem  força,  des- 


22  os  GATOS 

illiulida  de  fiulo,  irrnspeitosa  ile  Indo,  insu!- 
lando-sp  como  os  bêbedos,  soíTrendo  o  azorra- 
guc  como  os  cães,  vendo  passar  as  aflVontas 
iudiírercnte,  e  deixaiido-se  cabir  alfim  no  pró- 
prio vomito,  onde  a  letbargia  a  açovaca,  ti'; 
([ue  uma  cbicotada  nova  a  faça  outra  vez  es- 
írel)ucliar! 

Ponde  na  infei-ioridade  antropológica  do 
negro,  a  sordidez  dos  árabes  do  Cairo,  que  o 
ingiez  só  aproveita  como  engraixadores,  e  te- 
reis realisado  o  lypn  cdnnuum  das  nossas  ge- 
rações contemporâneas,  onde  se  perdeu  tudo 
(piauto  faz  do  Iiomumu,  não  já  uma  maciíina 
|HMisante,  mas  um  instrumento  automático  de 
traballio.  Foi  a  educação?  Seria.  Mas  é  i)rinci- 
palmontc  a  carie  peculiar  das  raças  ijue  iiijui- 
dam.  lia  noventa  annos  (pie  isto  vinba  princi- 
piado. iNós  somos  bem  os  íilbos  (Kesses  rufiões 
(jne  puxaram  o  carro  de  D.  João  VI,  e  para 
ffiiem  Pedro  IV,  de  bordo  do  cbaveco  ingiez 
Coiigress,  cercado  d'inglezes  bêbedos  que  lhe 
cbamavam  poriuijuczc  dog,  por  entre  os  acor- 
des do  Rnle  Ihihiunin,  enviou  esta  proclama- 
ção caracteristica  "uão  me  obrigueis  a  libertar- 
vos  á  paulada.» 

I  iiia  nu  outra  vèz,  n'este  agiuiisar  de  na- 


os  GATOS  23 

cionalidadfi  que  o  mesmo  bacillus  rúe  té  á  me- 
(lulla,  lá  vem  a  visita  da  saúde  aclarar  um 
instante  o  coma  publico:  vèem-se  então  mul- 
tidões migrar  das  suas  terras,  mais  por  té- 
dio do  que  por  fome,  pedirem  iiaturalisação  a 
j»aizes  estrangeiros,  desertarem  da  bandeira 
((ue  já  não  é  para  ellas  o  symbolo  de  nenhuma 
gloria,  mas  um  sudário  d'infamia  confessa: 
e  nas  cidades,  a  canalha  d'inernies,  arrastada 
pelo  remorso  ao  tribunal  das  suas  instantâ- 
neas consciências,  debater-se  entre  epliemeros 
Ijrotestos  de  vida  nova,  p'ra  que  já  não  ha  fé, 
nem  illusões,  nem  probidade,  e  prestes  amol- 
lecer  na  chufa,  indo  servir  de  pasto  ao  des- 
prezo da  Europa,  de  que  nós  somos  ao  mes- 
mo tempo  a  syphilis  e  a  latrina.  É  d'esse.5 
cntreactos  que  as  estatísticas  recolhem  então 
aos  mOMO  bêbados  errantes,  ás  20:000  ve- 
sânias obscenas,  exhibindo  poUuções  ignóbeis 
pelos  cantos,  aos  400  suicidas  fúteis,  estilha- 
çando os  craneos  por  namoros  infelizes  e  por 
botas  rotas,  e  ás  6:000  prostituições  de  rapari- 
gas enfim,  na  mór  parte  arrancadas  ás  antigas 
classes  de  trabalho. 

De  sorte  que  o  salve-se  quem  jjoder,  não 
deve  exprimir-se  no  momento  actual,  por  este 


M  os   GATOS 

grito :  (juem  nos  livra  dos  inglezes!  mas  por 
i  slc  outro — quem  nos  livra  de  nós  mesmos ! 


J  de  Sc  tem  hm. 

Kcrmesses  no  jardim  d"Algés,  c  no  terrei- 
ro dos  Pisões,  em  Cintra,  todas  as  (juintas- 
foiras  e  domingos.  As  senhoras  da  alta,  cuja 
piíilantropica  boa  fé  reverte  a  bons  desígnios, 
nos  inlervallos  que  a  vida  elegante  lhes  deixa 
para  pensar  nos  pobres,  parece  haverem  to- 
mado predilecção  por  estas  exhibiçòes  de  be- 
Hcíiccncia,  e  previsto  o  partido  a  tirar  d'um 
loilelle  fresco,  posto  ao  serviço  d'uma  inten- 
ção compadecida.  Duas  vezes  por  semana,  ás 
tardes,  quando  a  velligiatiira  d'aquellas  duas 
estancias  da  socéga  burocrática,  envergado  o 
vcston  de  tlanella,  e  o  vestido  de  surah  bor- 
dado [tor  i»aixo  com  ílòres  acpiaticas  e  emble- 
mas de  regala,  converge  em  ranchos  aos  lo- 
j;ares  de  passeio,  a  digerir  os  croquclles  do 
hotel,  é  para  as  gentis  vendedoras  de  sortes, 
todo  um  regalo  d'evideucia  ede  vangloria  femi- 
nina. Travestir-se  cm  muliicrinha  de  capcllis- 


os  GATOS  25 

ta,  só  pelo  prazer  de  sustentar  o  albergue  dos 
meninos  cegos:  que  evangelisaçâo  suprema  da 
bondade  e  da  moral  cliristãs! 

Trocar  por  papelinhos  enrolados,  o  vintém 
da  esmola  publica,  alli  bem  á  vista  dos  repor- 
fers  e  dos  noivos:  que  interpretaç<ão  sem  par 
na  arte  de  fazer  bem  I  Como  é  romanesco  con- 
tinuar S.  Francisco  de  Paula,  sob  uma  tenda  de 
lona,  ao  som  da  Porttigncza,  e  com  diamantes 
de  cem  libras  nas  orelhas!  E  o  prazer  virgi- 
nal das  que  conseguem  fazer  sahir  um  pali- 
terio  de  porcellana,  a  um  saloio  que  se  ache- 
ga com  um  tostão  na  ponta  de  dois  dedos — 

— Oh  senhora,  passe  p'ra  cá  cinco  sor- 
tes. .  .  agora  não  m'intruge! — d'essas  maio- 
res. 

A  alta  comedia  do  coquettismo,  que  todas 
representam  ao  balcão  da  barraca,  em  Rei- 
chembergs  consummadas,  e  que  rejuvenesce 
as  mães,  ao  tempo  que  dá  realço  á  gentileza 
pallida  das  fdhas,  bastaria  a  um  psychologo 
minúsculo,  para  a  factura  d'um  livro  raro  de 
confidencias  sobre  a  variabilidade  e  a  estra- 
nheza d'isso  que  tem  por  nome,  elerno  femi- 
nino. Nunca  como  hoje,  a  moral  de  Jesus  ser- 
viu de  disfarce  a  mais  iiuiocentes  falcatruas, 


2G  os  GATOS 

110  ponto  cm  qiie  a  religião  e  a  modista  se  '^'  > 
(I  braço  pai'a  a  mesma  conspiração  de  /L,  a 
niundanismo. 

Por  ventura  algiuna  vez  snccederá,  que  ao 
venderem  sortes  para  os  pobres,  muilasd'essas 
eucantad()i'as  kermesseiras  pensem  menos  nos 
pobres,  do  que  em  si  pnqjiias. 

—  Caridade  bem  entendida,  dizia  o  rifão... 
c  para  bastantes  rezulla  tornarem-se  os  me- 
innos  cegos  em  Santantoniidios  cazadoiros ;  a 
j)ontos  que  á  força  de  vendei-ein  sortes  bran- 
cas, uma  ou  outra  se  decide  a  dar-se  alfim 
ao  tostão  d'alguni  conqirador  mais  aprumado. 
Depois,  essa  pbilantropia  em  barracas  de  lona, 
ao  som  das  colondrinas  de  amor,  é  um  sport 
Ião  barato!  Com  um  par  de  jarras  das  Caldas, 
('  algumas  tardes  de  venda  na  kermesse,  qual- 
ipier  princezinlia  morena  on  loira,  dasgrandes 
lamilias,  se  arrisca  a  ganliar  pela  caridade,  o 
reino  do  cen,  e  pelas  locaes  mundanas  do  Luiz 
da  Costa  e  do  Alberto  liraga,  uma  celebreira- 
sinba  teri'ena,  das  mais  guapas.  E  celeste  e 
económico.  Maridos  e  jjapás  exultam  d'esta 
pratica  da  pbilantropia  a  preços  módicos.  E 
mesmo  (pie  as  |)rendas  não  saiam,  que  a  mu- 
sica não  chame,  (pie  a  gaveta  não  pingue,  e 


27 


<|ae  a  situarão  ilos  nieniiuis  cegos  não  melho- 
re, ao  fim  de  dias  e  dias  de  kermesse,  sem- 
pre uma  d'essas  elegantes  beneméritas  podo 
dizer  ás  suas  amigas,  alongando  o  momo  do 
lábio,  em  pinta  de  copas: 

—  Ali,  vocês  divertiram-se,  mas  eu!  Todo 
o  lempi)  da  vilhígiatura  a  vender  sortes.  Mas 
valeu  bem  a  pena!  Imagina  lu,  apurámos 
treze  mil  róis.  E  com  isto,  não  é  verdade? 
já  se  funda  um  liospilal.  .  . 


■í  de  Sclcnihro. 

Lá  reuniu  outra  vez  a  sociedade  auti-escra- 
visla,  e  como  no  principio,  poderia  alguém 
pensar  que  os  pliillanlmpos  agremiados  á  vóz 
do  snr.  infante  D.  Affonso,  antes  de  se  decidi- 
rem a  impedir  o  commercio  d'escravos  na 
costa  oriental  do  continente  africano,  restrin- 
gissem o  seu  raio  de  visão  até  outras  escra- 
vaturas  mais  perto,  c  que  sendo  brancas  e 
decorridas  nas  próprias  bochechas  da  civilisa- 
ção,  lograssem  tocar  de  preferencia  a  fibra  hu- 
manitária d'aquelles  nunca  assaz  sensíveis  pu- 
ritanos. 


28  os  GATOS 

Não  succedcu  assim  ponhn,  c  haveremos 
([ue  pasmar  das  gigantescas  labutas  da  nova 
sociedade,  que  com  duzentos  ou  trezentos  só- 
cios, alíacinlias  todos,  e  sabendo  a  geographia 
do  João  Félix  na  perfeição,  se  propõe  fazer 
guerra  ás  carregações  de  negreiros  zanzihari- 
tas,  medeante  o  capital  das  quotas  mensaes 
(cruzado  por  cabeça),  e  uma  entrada  extraor- 
dinária no  tempo  dds  banhos,  sem  pagamento 
de  jóia. 

Seja-nos  então  permittido  supplicar  a  Deus 
|)ara  que  com  a  sociedade  anti-escravisla  não 
vrnlia  a  siicceilcr  o  mesmo  do  que  com  a  so- 
ciedade protectora  dos  animaes  —  benemérita 
e  estimada  entre  os  seus  protegidos,  a  ponto 
de  não  haver  cão  que  se  não  atire  ás  cancUas 
do  primeiro  sócio  que  reconheça  na  rua;  e 
tão  ([uorida  dos  cavallos  de  carroça,  que  ne- 
nhum protector  confia  a  estes  aniiuaesinhos  o 
transporte  das  suas  mobilias,  nas  epochas  de 
villegiatura,  sem  passar  pelo  desgosto  de  as  vèr 
em  fanicos,  n'a!gurua  estrada  diis  arrabal- 
des. 

Kslou  a  ver  a  postura  lyrica  dos  membros 
da  nova  sociedade,  pei'ante  as  misérias  d'um 
preto  que  elles  nunca  viram  mais  gordo,  e 


os  GATOS  20 

não  posso  deixar  de  me  rir  quando  a  comparo 
á  rispidez  com  que  alguns  tractam  os  seus 
creados  e  subalternos,  e  á  absoluta  indifTeren- 
ça  com  que  todos  vão  consentindo  n'essa  es- 
cravatura de  portas  adentro,  que  os  trafican- 
tes d"emÍLírantes  exercem  em  pleno  dia,  em 
todas  as  povoações  de  Portugal. 

Que  farcista  está  sendo  entre  nós  esta  en- 
tidade que  se  chama  o  homem  publico  !  e  como 
lodos  os  seus  actos  obedecem  a  um  toque  de 
tambor  e  a  um  pregão  sonoro  de  barraca  de 
feira!  A  caridade  de  sua  mão  esquerda,  é  não 
só  conhecida  da  direita  (ao  contrario  do  que 
o  Evangelho  recommenda)  mas  de  todas  as 
mãos  e  pés  do  bairro  em  que  essa  mão  dei- 
xou cahir  o  pataco  da  commiseração,  na  ban- 
deija  de  prata  rejwussce  que  a  ministra  ou  a 
rainha  lhe  estenderam.  Fazem  o  bem,  não 
pelo  bem,  nias  como  preço  d'um  coupon  que 
lhes  é  descontado  depois,  em  moeda  de  metal 
.sonante,  ou  de  vaidade. 

Estes  anti-cscravistas  Icmbram-me  os  faias, 
que  espancam  as  mulheres  ligilimas,  e  andam 
pelas  tascas  lamentando  á  guitarra  as  tribula- 
ções da  Severa.  Diabos  me  levem  se  a  maior 
parte  d'estes  anjos  da  caridade  do  prelo,  não 


30 


regateia  do/  reis  iio  preço  das  camisas,  á  oii- 
goininadeira  pobre  e  carregada  de  filhos! 

São  pouco  mais  ou  monos  como  um  dcs- 
avcrgoiduulo  cpie  eu  coidioci  na  minha  terra, 
grande  egoísta,  abastado,  c  quo  deixava  o  ir- 
mão (|uazi  cachetico,  pedir  esmola  de  porta 
em  porta.  Todas  as  tardes,  á  chegada  do  coi-- 
reio,  ia  o  mariolão  de  casa  em  casa,  com  o 
Noticids  na  unlia,  o  ar  desoi'ientado,  a  lagri- 
ma latente,  a  voz  n'um  gorgolejo  de  soluços: 
(í  afrontando  os  amigos,  os  conhecidos,  os  sim- 
ples indiUereutes,  deixava-se  cahir  esmagado 
de  ilòr,  n'uma  cadeira. 

—  Ah,  meus  amigos !  que  desgraça,  ipic  gran- 
decissima  desgraça ! 

— Que  foi?  Querem  vòr  que  lhe  morreu  o 
mano,  coitadinho?! 

— É  aquelle  pobre  imperador  d'Allemanlia! 
o  Frederico!  que  por  modos  não  dá  esperan- 
ças nenhumas  de  vida.  .  . 


5  de  Siiriiiliro. 

—  O  siu'.  ilintze  Filbeiro :  espécie  de  cretino 
cego,  cujos  óculos  a  pDlilii-a  Ioukju  por  oi- 


gãos  visuaes.  .\  quando  estudante,  como  um 
dos  seus  intimes,  que  voltava  d'ltalia,  se  eu- 
tretivesse  a  discretear  sobre  se  a  inclinação 
da  torre  ile  Pisa  seria  proposital,  ou  devida 
a  qualquer  abalo  de  terra,  o  i;rande  liomcni 
interrompeu-o,  dizendo : 

— A  um  abalo  de  terra,  sem  duvida  !  Olhe 
as  pyramides  do  Egypto . .  . 


—  Armelim  Júnior,  escriplor  vuliíarisante, 
e  conforme  ellc  mesmo  declara,  humanitário, 
dando  a  lume  um  livro  de  Tabaco  e  iV álcool, 
põe-lhe  na  frente  esta  dedicatória  ao  seu  simi- 
lar Luciano  Cordeiro 

«ao  Jhn/anl  diis  lellrax  palrias» 

e  esfontra  ao  prestimoso  Costa  Godnlphim 

«ao  dos  mais  oriíjinal  ccunoin  isluspojiicjiiczcs. . .  •> 

Está  a  gente  a  ver  ctuno  estas  pécoras  se 
fazem  logar  na  capelía  mór,  umas  ás  outras, 
(ronde  melhor  possam  mosti'ar  as  mamas  aos 
freguezes.  Eh,  mulhcrsiuhas  !  Fora  d'ahi,  que 


32 


os  GATOS 


empulgam  os  tapetes.  Não  vêem  isto?  a  fazc- 
rem-sc  plongeons,  coino  diiiiuezas.  Ora  os  coi- 
ros ! 


FIALHO  D'ALMEIDA 


OS  GATOS 

PUIiLICAÇÀO  SEMANAL. 
D'lNnLEUlTO    Á    VIDA   POP.TLT.rEZA 


\.Mõ  — l^dfS. 


:'mi)rij 


SUMMARÍO 


A  ('Sj]oli;H'íio  i)oi1ii?iiit'Zíi  ihllit 

(PAMPHLETO  AOS  FRACOS) 


9  de  Setembro. 


Com  o  tralado  auglo-portugucz  de  -10  d'íi- 
gosto,  que  dois  imbecis  subscreveram  sob  as 
vistas  de  lord  Salisbury,  nas  condições  de  nem 
sequer  salvarem  para  o  paiz,  uma  apparencia 
de  vantagem,  embora  graphica  e  platónica,  ul- 
timam as  grandes  potencias  a  realisação  d'um 
ideal,  que  desde  o  começo  do  século  vinha 
formulado  pelos  seus  economistas  e  políticos 
— qual  o  de  se  destruir  a  primitividade  sim- 
ples do  negro  com  os  esplendores  factícios  da 
vida  velha,  e  de  se  talar  a  Africa  de  ponta  a 
ponta,  a  pretexto  de  civilisação,  com  os  fa- 
mintos que  perturbariam  na  Europa  o  syba- 
ritismo  dos  ricos,  e  com  os  excessos  de  pro- 


4  OS  GATOS 

ihicção  para  que  já  começavam  a  cscacear  mer- 
cados, na  restante  parte  solida  do  globo.  Esse 
myslerioso  recesso  de  bestas  síilvagens,  ás  por- 
ias da  Europa,  inacessível  quazi  por  espaço 
de  i[iiati-o  séculos  á  curiosidade  d'outros  au- 
dazes que  não  fossemos  nós,  só  logrou  estlie- 
siar  a  cubica  das  nações  expansivas,  quando 
os  mais  continentes  se  adiaram  impantes  da 
sua  coionisação  e  da  sua  actividade.  Emquanto 
110  resto  do  mundo  houve  continentes  onde 
lançar  fundamentos  de  civilisaçõcs  mcrcena- . 
rias,  terras  onde  semear  pão  p'rá  Europa 
egoista,  ílorestas  de  (|ue  lhe  construir  navios 
(!  casas,  minas  (ronde  lhe  saccar  o  o\vo  (pie 
faz  moeda,  portos  onde  fundar  cidades,  raças 
(jue  supprimir  e.jsnbjeitar  à  crueldade  branca 
(í  tenaz  do  homem  superior,  a  Africa  per^nia- 
iieceu  fechada  ás  invasões  dos  povos  marítimos 
modernos,  té  que  a  sciencia  interferiu  a  luz  dos 
seus  diclamcs  no  sentido  de  rasgar  aos  olhos 
(Tesscs  povos,  os  lendários  pavores  que  envol- 
viam o  incommensuravel  território,  para  olferc- 
(•erlli'o  como  ultimo  celeiro  *e  como  ultimo 
acampamento.  \  expedição  de  lionaparte  ao 
Egypto,  (Tonde  saliiram  as  explorações  subsc- 
qiientesdaAbyssinia, do Soldão Occidental  eme- 


os  GATOS  O 

ridioiíal,  e  niiiis  recentenienle,  da  abertura  do 
canal  de  Suez:  a  occupação  ingleza  do  Cabo 
(1815)  feita  á  custa  do  estreaiinio  completo  de 
duas  raças  aborigines,  a  cafre  e  a  bottenlote: 
a  conquista  dWrgelia  pela  França  (1830)  que 
custou  a  vida  a  milhões  d'arabes,  seus  anti- 
quissimos  possuidores;  as  explorações  france- 
zas  da  Senegambia :  as  tentativas  colonisantes 
da  higlaterra  no  Golpho  de  Guiné,  onde  o  mis- 
sionário Saker  tinha  fundado  desde  1858,  a  es- 
tação Victoria,  nas  faldas  vulcânicas  do  Gamc- 
roun;  e  as  tent;itivas  colonisantes  allemãs,  ta- 
teadas  ás  furladellas,  desde  1851,  na  província 
iTAdamaua  e  ribas  do  alto  Benué,  com  o  auxi- 
lio d'algunias  feitorias  haniburguezas,  etc,  etc, 
eis  as  primeiras  tentativas  serias  das  grandes 
nações  á  partilha  d' Africa  (é  claro  que  elimino 
a  occupação  porlugueza,  (|uc  esta,  além  d'an- 
tiga  e  fundada  em  descoberta,  foi  a  única  que 
pòz  a  Europa  no  rastro  na  sua  nova  presa), 
tentativas  quazi  todas  circumscriptas  á  costa, 
ou  se([uer  avançando  sem  metliodo,  n'um  meio 
hostil,  entre  populaças  hostis,  quando  já  nós 
vivíamos  e  pi-ocreavamos  em  toda  a  parte  d'A- 
frica,  e  (juando  já  os  nossos  negreiros  c  serta- 
nejos faziam  da  lingua  porlugueza,  uma  lin- 


o  os  GATOS 

i^ua  geral,  no  iulerior,  indo  de  costa  a  cos- 
ta, sem  receio  dos  massacres  ou  dos  panta- 
niis. 

Sij  nos  últimos  (juarcnla  aniios,  depois  dos 
missionários  e  traficantes  propalarem  a  opulên- 
cia interior  da  terra  negi'a,  é  cpie  o  mercanli 
lismo  da  Europa,  batido  pelas  crises  financiaes 
que  todos  couliecem,  caliiu  em  expedir-lhe 
nm  pessoal  scientifico,  e  em  lançar  com  me- 
thodn  as  grandes  linhas  d'uma  ex])loi'ação  for- 
in;d  e  producliva.  N'essas  expedições  ia  uni 
pouco  de  tudo:  o  missionário  adeanie  curava 
os  enfermos  c  dava  coitares  de  missanga  ás 
raparigas:  seguia-se  o  engenheiro  que  estudava 
os  caminhos,  o  geólogo  (juo  perscrutava  os 
terrenos,  o  botânico  que  recolhia  as  plantas, 
o  agente  commercial  que  suggeria  necessidades 
novas  aos  indígenas,  e  ia  estudando  a  possibi- 
lidade de  futuros  mercados;  e  finalmente  o 
enviado  politico,  que  achando  o  regulo  bêbe- 
do, a  mulher  contente,  e  o  povo  cheio  de  tan- 
gas novas,  fazia  aceitar  a  esses  pobres  diabos 
o  patronato  incondicional  da  nação  (pie  o  des- 
tacara até  alli. 

Mas  assim  como  no  domínio  costeiro  d'A- 
fi-ica  fomos  nós  os  primeiros  senhores,  e  houve 


os  GATOS  7 

(jiie  nos  pòr  fora,  quem  se  qiiiz  installar  de- 
pois, assim  nas  travessias  do  interior,  a  cada 
passo,  francezes,  inglezcs  e  allemães,  comnosco 
topavam,  já  aceitando  agazalho  e  guias  portu- 
guezes,  já  seguindo  as  caravanas  dos  nossos 
sertanejos,  passando  os  reinos  mais  ferozes 
sob  as  dobras  da  nossa  bandeira,  illudindo 
as  desconfianças  dos  régulos  com  interpretes 
que  llies  faiiavam  a  nossa  lingua  —  e  por  mais 
longes  terras  que  percorressem,  qualquer  o  raio 
do  quadrante  por  que  seguissem,  sempre  rninas 
de  fortes  nossos,  d'igrejas  nossas,  sensalas 
nossas,  padrões  de  posse  nossos  —  por  toda  a 
parte  o  nosso  génio,  a  nossa  lingua,  a  nossa 
|)liysionomia  antiga,  e  a  nossa  audácia!  Para 
aqueiles  aventureiros  orgulhosos,  a  principio, 
o  vestígio  europeu  do  nosso  passado,  é  como 
um  adeus  de  mão  hospitaleira,  dizendo-lhes 
que  entrem,  e  comam,  e  prosigam  socegados. 
Mas  as  primeiras  agruras  vencidas,  perdido  o 
medo,  esse  aspecto  da  nossa  grandeza  moral, 
único  fetiche  a  que  o  selvagem  d'Africa  ac- 
cende  lâmpada,  torna-se-lhes  n'uma  espécie 
(robsessão  antipathica,  n'um  fermento  d'inve- 
ja  rancorosa,  e  desespera-os,  e  vira-os  pouco 
a  pouco  contra  nós!  É  a  rasão  porque  o  tão 


8  os  GATOS 

miserável  quanto  afortunado  Stanley  falia  do 
nós  extático,  a  principio,  paru  nos  achar  de- 
pois um  povo  de  nei;reiros  e  bárbaros  dissolu- 
tos, e  porque  Camei'on,  iírazza,  e  o  próprio 
Livingstone,  tão  anianteticos  aijuando  fruindo 
os  beneíieios  da  nossa  iidlucncia  colonial,  des- 
trellani  a  nos  morder  como  mastins,  apenas 
logram  saccar  da  quusi  subserviente  boa  fé 
das  nossas  ancloridades  do  ultramar,  quanto 
lhes  pôde  servir  nas  suas  para  nós  traiçoei- 
ras travessias.  Ao  inglez  sobretudo,  estas  coi- 
sas irrit;ira-lhe  a  vaidade,  porque  nós  somos 
o  seu  remorso  vivo,  a  Irlanda  tropical  que 
elle  persegue  e  rouba  desde  o  reinado  d'Atlbn- 
so  V,  e  porque  o  nosso  abatimento  ao  fim  de 
(juatro  séculos  de  ciladas,  de  hy|)ocrisias  e  de 
traições,  é  obra  sua. 

De  longa  data  os  seus  corsários  seguiram  a 
rota  dos  nossos  galeões,  á  caça  de  terras  ({ue 
nós  descobriamos,  e  que  poi-  mal  guarneci- 
das, elles  muitas  vezes  assaltavam.  Qiumdo 
das  costas,  os  nossos  |)elouros  varriam  a  in- 
juria da  pirataria  arvoi'ada  em  fonte  de  receita 
official  da  rainha  Eiizabeth,  a  ladroagem  bie- 
tã  fazia-nos  esperas  nos  mares,  batendo  os  ga- 
leões que  vinham  da  Índia,  c  alardeando  pu- 


os  GATOS  l> 

blicameiíte  ostas  iiilaniias,  com  eiivaidecimeií- 
tos  de  ([iioin  celelira  feitos  prestigiosos,  (a) 
Knfraqiiecida  a  metrópole,  a  aiiloiiomia  e.\- 
lincta  em  lOiO,  por  factores  similares  dos  que 
nos  estão  cavando  a  sepultura,  o  inglez  acha 
o  nosso  império  colonial  ú  sua  espera,  e  alii 
se  installa,  como  hoje  está  fazendo  ao  que 
até'gora  conseguira  escapar  das  suas  repreza- 
lias.  Na  índia  como  na  America,  na  Oceania 
como  na  Africa,  o  seu  papel  consistiu  quasi 


(,i)  (c relbrçou-se  o  corso,  e  legalisou-st  a  pi- 
rataria n'estas  costas  pela  protecção  official  da  grande  Iza- 
bel.  E  quando  em  1580  o  colosso  portugiicz  baqueou,  en- 
fraquecendo-se  e  esfacelando-se  nas  mãos  da  Hcspanha,  a 
caça  e  a  ceva  no  commercio  e  navegação  nacionaes,  to- 
maram o  aspecto  furioso  d'uma  guerra  de  morte.  Assim 
cahiram  os  galeões  da  índia,  e  com  elles  a  riqueza  e  a  scien- 
cia  da  navegação  do  oriente,  nas  mãos  dos  Fenner,  Pos- 
ter, Whiddon.Dracke,  Bird,  Newton,  Cumberland,  Gren- 
will,  Flycke,  Frobisher,  Howard,  e  outros,  que  desde  1581 
a  1591,  sepultaram  nas  ondas  a  marinha  portugucza.  Con- 
ta Linschoten  que  só  no  anno  de  1589,  de  mais  de  du- 
zentos navios  que  então  recolhiam  a  Portugal  ou  á  Hes- 
panha,  apenas  quatorze  ou  quinze  escaparam  ao  furor  das 

ondas,  ou  ás  armas  dos  inimigos Esta  opposição,  se 

por  um  lado  os  demorava,  por  outro  os  enriquecia,  por- 
que os  obstáculos  que  desviaram  os  inglezes  da  índia, 


10  os  GATOS 

fxcliisivarniínie  cm  ospiar-iios  os  i)assos,  e  em 
se  apropriar  da  casa  feita.  Ouamlo  nos  viu 
i)em  (iespreziveis  de  fraqueza,  deu-nos  liypo- 
critanieiilo  o  braço,  como  faz  um  lierdeiro 
avulso  ao  sopezar  o  ultimo  alento  vital  d'um 
velho  millionario.  Assim,  cuidando  (pie  elle 
nos  amparava,  protegendo  essa  tolice  enorme 
da  llestauração  de  lOiO,  o  que  fizemos  foi 
l)crder  pela  segunda  vez  occasião  de  sermos 


cnini  largamente  recompensados  pelas  riquezas  que  arran- 
cavam aos  portuguezes.  Este  proveito  era  tão  real,  tão  se- 
guros eram  os  lucros,  que  se  o  negocio  dependesse  da  sua 
escolha,  a  Inglaterra,  diz  um  escriptor  britannico  (Hack- 
luyt)  teria  de  boa  vontade  renunciado  á  vantagem  de  for- 
mar estabelecimentos  na  índia,  contanto  que  lhe  fosse 
conservada  a  de  saquear  os  navios  portuguezes,  cuja  to- 
madia  se  avantajava  a  todos  os  lucros  do  commercio. 

E  continuou  saqueando-nos  até  1)9),  anno  em  que 
a  concorrência  da  Hollanda,  que  mandara  ao  oriente  a 
frota  de  Jehans  de  Molenaar,  por  ventura  determinou  a 
rainha  I/.abel  a  enviar  á  China  barcos  inglezes.  Entretanto 
mandavam-se  e  mantiiiham-se  espiões  muito  hábeis,  que 
partiram  mais  d'unia  vez  nos  próprios  navios  portuguezes, 
para  observar  o  estado  do  nosso  poderio  e  a  disposição 
dos  mares » 

(O  siir.  Carlos  de  Mdlo,  Os  inglezes  na  Africa  aus- 
tral, pag.  8.) 


os  GATOS  11 

Ibries,  embora  (routrem,  ecaliirnios  para  sera- 
|ii'e  nas  suas  garras  tralbatróz,  aceitando  o 
martyrio  de  quolidianamenle  lhe  abrirmos  as 
nossas  artérias,  porque  elle  beba  á  farta  o  san- 
gue estrangeiro  de  que  se  nutre.  Então  como 
b.oje,  o  seu  processo  comnosco,  não  tergiversa 
um  momento  do  desprezo  sardónico  que  um 
carrasco  vicioso  deve  ávictima,  e  da  carniceira 
rlnniU((je  com  que  um  ladrão  de  montanha  trá- 
cia um  viajante.  É  sempre  no  intuito  de  man- 
ter comnosco  cordenes  rcltições  ú'((mistíde,  que 
essa  desprezível  canalha  ingleza  nos  põe  a  faca 
aos  peitds.  Sempre  por  nos  dar  mais  um  pe- 
nhor da  sua  ternura  como  antiga  alliada,  que 
cila  se  decide  a  nos  roubar  annualmente  uma 
colónia.  Ameaça-nos  a  rir,  cava  a  nossa  ruina 
com  o  ar  de  lhe  íicai'mos  inda  por  cima  agra- 
decidos. 

E  eis  (jue  chegada  a  hura  de  partiliiar  de- 
finitivamente a  Africa,  a  Africa  de  que  nós 
éramos  não  já  um  senhorio,  mas  politicamen- 
te uma  dependência,  a  Africa  que  nós  mariti- 
mamente  tinhanuts  circumscripto,  descoberto, 
sulcado,  occupado,  civilisado,  a  Africa,  sonlio 
colonial  da  Kuropa  moderna,  ha  /tOO  annos 
nossa,  todas  as  naçues  marilimas  sentadas  de 


1  -2  os  GATOS 

roda  (lo  inappa,  talliaiii  a  seu  gosto  o  domí- 
nio qno,  nicllior  condiz  ás  suas  pretendidas 
aptidões  civiiisanlcs — a  Ilaiia  eonio  a  Kranea, 
a  llel.uica  como  a  Aiiemanlia — c  (piasi  todas  am- 
pliando á  custa  das  nossas,  as  suas  occupa- 
ções!  Só  por  niercc  de  (tmisade  Iri-secular  da 
ladra  (pie  o  protege,  Portugal  tem  d'assistii' 
ininiovel  a  este  pasto  de  feras,  consentindo  o 
leilão  do  seu  património  histórico,  e  snbjei- 
tando  o  que  lhe  íica  a  um  regimen  de  subser- 
viência, que  o  próprio  negro  repelliria  de  si 
com  indignação ! 


Ponjuc  é  de  saber  que  n'esla  [larlillia 
dWtrica,  Portugal  e.\|)ia  não  s6  os  desinazeilos 
e  os  erros  da  sua  incapacidade  colonial,  como 
lambem  paga  em  terras  e  dominios,  as  indein- 
nisações  impostas  á  Inglaterra  pelas  demais 
potencias,  ([ue  desde  18<S."$  lhe  teem  relreado 
as  sollVeguidões  africanistas.  A  nossa  inlamis- 
sima  alliada  é  como  estas  megeras  que  es- 
pancadas pelos  homens,  cevam  nas  creanças 
a  raiva  de  se  não  poderem  vingar  de  quem  nas 
agrediu.  Em  quatro  palavras  direi  do  modo 
porijue  as  suas  ukloria.^i  diplomáticas  na  par- 


os   GATOS  13 

tillia  (rAIVica.  lho  aziumaram  o  rancor  contra 
ti  nossa  peíiuenez.  Aijuellas  victorias  explicam 
de  feito  o  caracter  cruin  paiz  sem  dignidade, 
manhoso  c  mau,  usurário  e  poltrão,  que  ten- 
do como  raiz  histórica  o  latrocínio,  em  vòz 
(Toccultar  estes  atavismos  psychicos  d"origem, 
galanca  ao  contrario  na  cultura  d'elles,  man- 
(lando-os  publicar  pela  bocca  dos  seus  philo- 
sophos,  e  traduzir  oní  milhões,  pelos  golpes  de 
mão  dos  seus  políticos.  Todos  se  recordam 
talvez  da  questão  dos  Camarões,  desfechada 
cm  8.'3,  entre  a  Inglaterra  e  a  AUcmanha.  Os 
('amarõcs  são  um  território  dWfrica  Occiden- 
tal, no  fiiiido  do  golfo  da  Guiné,  onde  os  in- 
glezos  tinham  estabelecimentos  desde  1858. 

Ahi  estava  a  estação  Victoria,  hoje  allemã, 
fimdada  polo  missionário  Saker,  e  d'onde  sahi- 
rani  dezenas  e  dezenas  d'esses  fanáticos  esco- 
cezes,  que  conforme  lhes  serve,  accumulam  si- 
inultaneanionto  as  profissões  mais  antagónicas, 
desde  pregadores  alô  escravistas  e  caixeiros 
viajantes,  e  aos  quaes  a  Inglateri'a  deve  a  bem 
dizer  toda  a  sua  occupação  na  terra  d'Africa. 
No  paiz  jacente,  um  dos  mais  férteis  e  admi- 
ráveis do  mundo,  a  iniluoncia  brifaunica  fora 
definitivamente  lançada  desde  1880,  n'um  raio 


I  '(■  os  GATOS 

de  muitas  niillias,  graças  á  viagem  do  cnnsiil 
llevett,  oflicialmonte  investido  da  missão  de 
passear  a  ijaiidcira  nacional  por  toda  aquella 
zona,  o  de  distribuir  cartas  de  protectorado 
aos  chefes  bárbaros  que  assim  viessem  recla- 
mar. Vae,  quando  o  perimetro  da  nova  pos- 
sessão britannica  estava  sendo  demarcado,  os 
mastros  erguidos  nos  limites  do  campo,  os 
postos  militares  assentes,  eis  que  a  Aliema- 
nha  cliega  c  intima  á  Inglateira  o  despejo  do 
paiz,  allegando  titulos  á  província  dWdamaua, 
ao  rio  dos  Camarões,  e  a  grande  porção  de 
terras  circumvisinhas.  Alt'  á  dala  da  reclama- 
ção, a  Allemanlia  apenas  contava  n'aquclles 
sítios,  feitorias  de  casas  hambnrguezas,  d'al- 
guma  monta,  mas  isoladas,  isso  entretanto  não 
fez  fraquejar  a  exigência  de  Bismarck,  que  no 
mesmo  anno,  estando  as  negociações  inda  pen- 
dentes, expediu  para  o  paiz  cm  litigio  um  func- 
cionario  encarregado  de  negociar  protectora- 
dos com  os  indígenas  subjeitos  aos  inglezes, 
ultimando  a  demonstração  no  anno  seguinte, 
com  a  missão  do  dr.  .Naclitigal  (188i)  cujas 
instrucções  agora  visavam  não  já  somente  a 
annexação  d'Adamaua  áAllemanha,  como  tam- 
bém o  paiz  de  «Togo»,  todo  o  litoral  mcdeantc 


os  GATOS  15 

ontrc  o  delta  do  Xiger  c  o  Gabão,  na  baliia  de 
IJiafra,  c  assim  o  vastíssimo  districlo  d'Angra 
Pequena,  ao  sul  de  Mossamedes,  entre  o  Ca- 
bo Frio  e  o  rio  Orauge,  n'am  precurso  de  du- 
zentas léguas  sobre  o  mappa. 

Estas  instrucçõcs  foram  cumpridas  stricta- 
mente,  e  em  cada  ponto  onde  o  pavilbão  ger- 
mânico era  arvorado,  accorria  o  protesto  do 
cônsul  britanuico — sempre  Irop  t/ml!  Os  resul- 
tados da  expedição  Nachtigal  foram  conbeci- 
dos  na  Europa  em  agosto  de  188  i,  epoclia  em 
que  o  inglez  se  esfolfava  em  reclamar  para 
Berlim,  exigindo  não  com  ultímatitns  grossei- 
ros, mas  por  palacianas  formulas  de  cobardia, 
a  restituição  das  terras  que  a  Alleraanha  Ibe 
usurpara.  Exigências  baldadas,  como  as  nos- 
sas! Bismarck  respondia  sempre  que  a  AUe- 
manba  já  notificara  aos  governos  a  occupação 
da  bailia  de  Biafra  e  d'Angra  Pequena,  e  que 
o  pavilhão  do  seu  paiz,  uma  vèz  erguido,  não 
se  arreava  nunca.  Tudo  quanto  a  Inglater- 
ra conseguiu,  foi  uma  famosa  zona  de  respeito 
ao  deredor  da  estação  Victoria,  nos  Camarões, 
semelhante  á  que  nos  pòz  de  roda  do  Zumbo, 
c  um  pequenino  quadrado  de  terra  na  cosia 
d'Angra,  onde  ficaram  encravados  os  estabe- 


IO  os   GATOS 

l('i'imonlos  iiiglezes  de  Walfish-IJay,  de  pouca 
inonla.  Tudo  o  mais  íicou  germânico,  c  aqui 
está  o  Ireclio  do  despaelio  em  que  iord  Graii- 
viliesc  esparrailia,  em  nome  da  liiiílalerra  ba- 
tida, aos  pés  do  chauceller  »  .  .  ipiando  o  go- 
verno de  S.  .M.,  lajjorando  um  projecto  sns- 
lado  antes  de  conhecer  o  interesse  qne  pren- 
dia a  Allemanlia,  á  costa  Occidental  dWfrica, 
julgou  conveniente  collocar  sob  a  sua  sobera- 
nia OU  protecção,  os  territórios  d'entre  a  bahia 
dWnibas  e  os  limites  da  colónia  de  Lagos,  por 
ceiio  que  elle  )i('io  linha  n  menor  intenção  ou  de- 
sejo lie  se  interpor  ou  jieturlmr  a  e.rtensõo,  e  o  li- 
gitimo  acréscimo  das  acquisições  allemãs  nos 
('.amann^s.  ()  governo  de  S.  .M.  declara-se  pois 
mais  uma  vèz  disposto  a  regular  por  nni  ar- 
ranjo local,  as  fronteiras  dos  dois  estabeleci- 
mentos, e  prestur-se-liia  no  exame  da  questão 
no  sentido  d' um  espirito,  o  mais  amiqarel  e  con- 
ciliador. » 

O  e-spirilo  coiiriliinlor  da  Inglaterra  levou-a 
pois  a  sollrer  da  AlliMuanha,  na  Africa  Occi- 
dental, um  rude  elunpie,  com  o  sorriso  ama- 
rello  e  o  espiniiaço  curvo  dos  vis  animacs  que 
só  cadáveres  eslaçalbam. 

Vamos  vèr  agora  como  eila,  na  costa  oricn- 


os   GATOS  i7 

tal,  não  teve  mais  coragem.  Em  11  crabril  de 
1880,  três  allemãcs  enérgicos  fundaram  em 
Berlim  uma  sociedade  de  colonisação,  appro- 
ximadamente  pelos  moldes  e  intuitos  da  fa- 
mosa Sociedade  Colntiinl  Allewd,  a  que  líis- 
marckdéra,  desde  ^-2,  poderes  descricionarios. 
A  terra  namorada  para  campo  d'explorações, 
estendia-se  dos  limites  norle  de  Zanzibar,  té  ao 
Nyanza,  e  aos  campos  vagos  (jne  d'alii  por  dean- 
te  a  sociíNlade  podesse  ir  occupando.  Partiram 
em  setembro  d'essc  anno.  O  chefe  era  o  ilr. 
í*eters,  tendo  por  immedialos,  .liddke,  homem 
activo,  e  o  conde  Pfeil,  cujos  estudos  yXufri- 
cander  já  muito  antes  tinham  alcançado  noto- 
riedade. Internados  em  Zanzibar,  mau  grado 
as  difficuldades  impostas  pela  Inglaterra,  pro- 
tectora do  sultão,  em  alguns  mezes  conseguiam 
colher  vassalagem  dos  chefes  das  províncias 
norte,  tributarias  do  sultaiiato,  tomando  qua- 
tro, quero  dizer,  I.MliOOO  Uiloinetros  quadra- 
dos d'area,  para  o  senhorio  da  Alioinnnha  im- 
perial. Peters  veio  logo  a  llrrliiii  referendar 
os  tratados  dos  chefes  (era  iio  dia  seguinte  á 
assignatura  do  acto  geral  da  conferencia  do 
Congo)  c  tornou  a  Zaiizii)ar  munido  de  creden- 
cias, onde  o  imperador  Guilherme  conferia  ao 


-18  os  GATOS 

seu  eiiviíulo  auctorisação  p:ira  oslciidcr  a  sobe- 
rania allemã  a  todos  os  teiTi tórios  que  a  so- 
ciedade possuia,  ou  viesse  a  possuir,  na  Afri- 
ca oriental.  Esses  territórios  tomavam  de  mez 
pai'a  mez,  dimensões  extraordinárias,  e  como 
os  dominios  do  sultão  não  tinham  para  o  inte- 
rior, demaixação  digna  de  credito,  a  AUema- 
niia  reduziu-os,  por  uma  combinação  diplomá- 
tica complicada,  a  uma  estreita  facha  de  dezoi- 
tos léguas  de  largo,  com  as  ilhas  jacentes  à 
costa,  revindicando  o  resto.  Ora  esse  resto  é 
desconfoi-me.  Siiltanato  de  Witou,  costa  dos 
Somalis,  iiilfiliiiid  zanzibarila  indo  da  fóz  do 
Rovunia  ao  Nyanza,  ao  Xyassa,  ao  Tanganyka 
e  á  cordilheira  de  Kilimauiljai'0,  islo  é  duas 
Allemanhas  inteiras,  tudo  islo  ([ue  a  Inglaterra 
prolnjid,  ludo  a  Allemanlia  anuexou  a  si  tran- 
(piiilaniente!  A  (i  de  março  de  ISS."),  noia  de 
Hismarck  a  lonl  Ciranville,  coinmuuicando-lhe 
o  protectorado  allemão  das  quati'o  províncias 
a  oeste  de  Zanzibar,  e  reclamando  para  ellas 
«as  vantagens  assignadas  aos  territórios  inclu- 
sos nos  limites  da  bacia  convencional  do 
Congo,  pelo  capitulo  iii  do  acto  geral,  relativo 
â  neutralidade.»  Eia  pela  segunda  voz,  uma 
provocação  em  lermos  firmes,  resoluta,  como 


os  GATOS  19. 

que  ilistrahidamente  lançada,  e  a  esmagar  por 
isso  mesmo  o  orgulho  inglez  a  toda  a  altura. 
Uma  nação  generosa  levantaria  a  luva  para  ti- 
rar desforra  violenta.  Mas  a  Inglaterra  não  se 
bate.  E  lord  Granville,  uma  espécie  de  Ilintze 
líibeiro  inglez,  na  proza  d'escarros  enguli- 
dos  que  o  medo  dá  aos  diplomatas  derrota- 
dos «...  que  o  maior  desejo  do  governo  de 
S.  M.  era  evitar  conílictos  d'interesses,  como 
o  que  se  teria  dado  na  questão  d'Angra  Peque- 
na, se  a  Inglaterra  não  tem  corrido  a  apani- 
gual-o.» 

Poucos  annos  volvidos  sobre  os  factos  nar- 
rados, a  Africa  tornou-se,  já  disse,  o  grande 
campo  de  feira  da  futui'a  actividade  colonisan- 
te  da  Europa,  e  não  resta  d'ella  hoje  um  pal- 
mo de  terra  fértil,  onde  uma  potencia  colonial 
não  tenha  posto  a  sua  insígnia.  Platós  cen- 
traes,  costas,  montanhas,  rios,  lagoas,  tudo  a 
febricitante  cubica  de  três  ou  quatro  nações 
repartiu  entre  si  furiosamente,  pelos  recentes 
tratados  diplomáticos, — as  fortes  esgatanhando 
as  fortes,  com  as  patas  sobre  o  peito  das  mais 
fracas,  as  manhosas  deixando  ás  simples  a 
guarda  dos  bocados  que  ora  não  podem  abar- 
car, e  jungindo-as  a  si  de  pés  c  mãos,  té  ao 


20  os  GATOS 

(lia  iMii  (iiif  alijadas  de  inúres  encargos,  livre- 
nieule  possam  apropiíKjiiar-se  calão  esses  de- 
pósitos. Assim  a  Allemanha,  (pie  ha  dt^z  aii- 
nos  não  tinha  unia  pollegada  de  terreno  fora 
da  Kuropa,  depressa  ganhou  o  tempo  perdido. 
Talhou  para  si  na  Africa  oriental  e  central, 
entre  o  Oceano  indico  c  os  lagos  interiores, 
uin  magnifico  império.  É  senhora  do  caminho 
dos  grandes  lagos,  e  as  futuras  índias  africa- 
nas pertcnccm-lhe. 

A  Inglaterra,  installuda  no  Egypto,  q\ie  não 
abandonará,  adjudicou-se  o  immenso  valo  do 
Mio,  desde  a  nascente  até  á  foz,  desde  Ougaii- 
da  at(j  ao  .Mediterrâneo.  Tem  Zanzibar.  Domi- 
na em  toda  a  Africa  austral.  Vae  despojar 
Portugal  de  todas  as  suas  possessões  de  es- 
te a  oeste,  e  lançar  mão  ao  Zambeze.  O  Con- 
go, estado  independente  sob  a  sobenmia  do 
rei  dos  belgas,  pai-ece  destinado  a  caliir  tam- 
bém na  mão  da  Allemanha.  Deixarão  a  llalia, 
já  inslailada  em  Massouah,  apoderar-se  da 
Abyssinia  (piando  poder;  Marrocos  e  Tripoli 
são  territórios  reservados.  Um  convém  á  lles- 
panha,  outro  á  llalia.  A  Fran(;a,  essa  penetrou 
no  continente  africano  por  (piatro  pontos:  a 
Argélia,  o  Senegal,  a  costa  da  Ciuiné  e  (iaiião. 


os  GATOS  '21 

E  quanto  a  Portugal,  pelo  Irafado  de  ^0 
(fagosto,  fica  sendo  uma  feitoria  de  reserva, 
como  o  estado  do  Congo,  como  o  TranswaI, 
como  Zanzibar,  como  a  republica  d'Orange, 
até  que  a  Inglaterra  apanhando  as  collegas  a 
braços  c'as  primeiras  fadigas  da  sua  nova  exis- 
tência ultramarina,  encontre  ensejo  para  nos 
correr  de  Moçamliique  e  d'.\ngola,  a  pontapés. 


A  obra  africana  está  pois  lançada  em  vas- 
tos alicerces,  e  menos  de  seis  annos  bastaram 
ao  lançamento  dos  titans  que  a  vão  escorar. 
A  inecialiva  é  formidável,  e  pcrgunta-se  hoje 
de  quantos  séculos  leria  avançado  a  florescên- 
cia da  America,  se  uma  conferencia  de  Ber- 
lim tivesse  podido  presidir  aos  seus  destinos! 
Sem  perscrutar  agora  se  a  civilisação  europea 
será  proficua  ao  negro,  ou  se  eile  haverá  que 
ser  anitjuilado,  como  o  indígena  da  Austrália 
e  da  America,  sob  o  egoísmo  feroz  dos  inva- 
sores, é  evidente  que  a  partilha  d'Africa  en- 
tre as  potencias  deslocará  o  centro  de  gravi- 
dade dos  interesses  do  mundo,  para  este  ini- 
porio  novo,  cm  guiza  de  o  tornar  palco  d'unia 
acção  collectiva  estonteadora  de  pujança  iu- 


-211  os  GATOS 

(luslrial  c  fiiuiiiceira.  E  alliiii  |)eri;iiiila-se :  sa- 
hirá  cristo  a  redcinpção  (rum  coiUiiiente  e 
d'uma  raça?  É  problemático.  Mas  quando  sa- 
liisse,  a  apotheose  d'tuna  Ião  bella  obra  não 
deixaria  nunca  de  vir  polluida  na  origem,  pe- 
la brulalidade  insólita  dos  árbitros,  (|iie  só  se 
julgaram  satisfeitos  no  dia  em  que  negando  a 
I'orlugal  aptidões  civiiisautes,  llie  cercearam 
lerrilorios,  sem  res|)eito  aos  postulados  do  di- 
i'eilo,  e  Ibe  Cíiuipararam  a  sohcrauia  de  poten- 
cia ás  que  regulam  os  bárbaros  da  Matal)i'llia, 
da  i'epublica  d'Orange,  c  do  Zanzibai'. 

A  nenbnm  portugucz  cega  tanto  o  orguMu) 
IKitrio,  que  no  fundo  da  sua  consciência  se  não 
tenha  sentido  merecedor  d'este  castigo,  já 
pela  baixa  de  nivel  que  a  dissoluta  monarchia 
determinou,  de  1040  para  cá,  no  espirito  da 
nação,  já  pelo  advento  das  sciencias  e  artes 
(i"applicação  com  que  outras  nações  transfor- 
maram a  face  do  mundo,  emquanto  o  nosso 
génio  pai'ava,  e  a  tyrannia  ou  o  soborno  ré- 
gios abriam  as  veias  ao  que  nos  Testava  ainda 
(Tenergia.  A  grande  verdade  é  nós  sermos  hoje 
nWfrica  um  estorvo  para  toda  a  gente.  O  nos- 
so passado  humilha,  pela  avulsa  loucura  e 
pela  falia  de   plano  ulililariu,  o  caracter  de 


os  GATOS  23 

ilações  que  como  a  Inglaterra  e  a  Allemanha 
vsó  comprehendem  a  audácia  filha  d'um  cal- 
culo, e  a  heroicidade  como  receita  para  sa- 
quear um  povo,  ou  lançar  mão  ás  bagagens 
d'um  exercito.  O  nosso  desinteresse  eno- 
ja-os,  a  nossa  fra(|ueza  tenta-Ihes  a  cubica;  e 
persuadidos  de  que  o  nosso  papel  histórico 
termina,  do  que  tractam  é  de  nos  tomarem  o 
logar.  E  hemos  que  ser  expulsos  breve!  E 
urna  coisa  jurada  na  maçonaria  das  explora- 
ções que  talam  a  Africa,  nos  paragraphos  se- 
cretos dos  convénios  havidos  nas  capitães  eu- 
ropeas,  sob  a  égide  de  reis  e  chancelleres, 
nas  assembleas  das  parcerias  inglezas  e  alle- 
mães,  com  direitos  d"estado,  por  toda  a  parte 
enfim  onde  um  saxonio  e  um  teutão  minazes, 
assistem  nWfrica,  ao  esiireguiçar  d'um  portu- 
guez. 

De  sorte  ((uc  seria  muito,  aguardar  que  o 
talento  dos  nossos  estadistas  conseguisse  var- 
i'er  do  futuro  a  catastrophe  terminal,  prenun- 
ciada, visto  como  disse  um  delegado  belga  na 
conferencia  de  Derlim  «quem  pretende  fjivo- 
recer  uma  inércia  particular,  em  detrimento 
do  desenvolvimento  geral,  fere-se  a  si  mesmo, 
o  condemna-sc  a  morrer  de  morte  vil.»  Ouan- 


l'*  os  GATOS 

iloimiilo,  a  nossa  acção  diplomática,  o  que  po- 
deria fazer  era  relegar  para  mais  tardo  a  ex- 
piação, crear  um  inodii.-:  riremli,  sem  subser- 
viencias  nem  prosapias,  em  termos  do  tpio  o 
paiz  não  podendo  já  est;irrecor  o  mundo  por 
grandes  feitos,  se  limitasse  a  lhe  captar  a  sym- 
pathia,  á  força  de  dignidade  sabia  e  de  labor. 
O  que  acontece,  sabemol-o  todos,  e  para  se  ter 
a  medida  do  tratado  anglo-portugiiez  de  "20  d'a- 
gosto,  basta  dizer  que  o  snr.  Ilintze  Ribeiro  c 
o  snr.  Barjona  do  Freitas,  acceitaram  de  lord 
Salisbury  um  documento  que  este  foi  copiar, 
nas  suas  linhas  máximas,  ao  convénio  quo  o 
sultão  de  Zanzibar  arruinado,  acceitou  da  Bri- 
lisli  Ea.sl  Africain  Asiociatiou,  caíila  d'uzura- 
rios  reunida  para  fazer  dinheií-o  dos  deboxes 
do  tyranno,  tomando-lhe  de  penhor  os  seus 
estados.  Como  ó  presumível  quo  pouca  gente 
creia  no  meu  dito,  vou  ti-aduzir  d'Kmile  Ban- 
ning,  (IjJ  o  que  se  refere  ao  tal  conveiuo. 
llão-de  gosliir.  «.Vlguns  mezes  depois  da  tran- 
sação havida  com  a  .Ulemanha,  os  promo- 
tores da  expedição  de  soccorro  dirigida  por 
Stanley,  fundaram,  sob  o  titulo  The  British 


(h)     Le  parLigc  pohlique  Je  V Afrique,  pag.  56. 


os  GATOS  -ib 

E((st  Africain  Assúcialiou,  uma  companhia  des- 
tinada a  rivalisar  com  a  allemã.  Esla  socieda- 
de, cujos  primeiros  lineamentos  appareceram 
n'um  despacho  de  lord  (jranville,  em  maio  de 
1885,  tomara  por  hase  um  tratado  de  cessão 
que  Johnstone  concluía  a  27  de  septemhro  de 
188i,  com  os  chefes  do  paiz  de  Kiiimandjaro, 
tratado  enviado  por  elle  ao  presidente  da  ca- 
mará do  commercio  de  Manchester.  Munida 
d'este  titulo,  e  desenvencilhada  de  toda  e  qual- 
quer complicação  com  a  Allemanha,  por  ac- 
coi'do  de  -2U  d'outubro  de  1886,  a  nova  com- 
panhia decidiu  \o'^ú  assegurar-se  livre  accesso 
ao  (Jce<mo  Indico.  Em  maio  de  1887  alcançou 
do  sultão  uma  concessão  importante.  Em  vir- 
tude do  acto  assignado  enti'e  a  Inglaterra  e  a 
Allemanha,  este  princii)e  ficava  senhor,  desde 
o  líovuma  até  ao  Tana,  d'unia  facha  de  terra 
costeira,  de  18  léguas  de  profundidade.  A  sua 
auctoridade,  exercida  em  condições  pouco  elfi- 
cazes,  podia  em  certas  circumstancias  tornar- 
se  n'um  verdadeiro  obstáculo.  A  companhia 
pois,  que  fez?  SubsUtuiu-se  ao  sultão,  por  con- 
tracto de  "li  de  maio  de  1887!  Pelo  prazo  de 
50  annos,  ella  encarrega-se,  em  nome  e  sob 
o  pavilhão  de  S.  A.,  da  inteira  administração 


-m  os  GATOS 

<los  seus  (loiniiiiii?-.  A  soritMlado  podo  fazer 
leis  e  rogulanieutos,  estaholecer  impostos,  or- 
ganisar  a  força  publica,  crear  tribuuaes,  pro- 
ver sobre  a  navegação. . .  Nomeia  agentes,  co- 
mo juizes,  tracta  com  os  cbefes  indigcnas,  dis- 
põe das  terras,  fortes  e  edifícios  públicos,  tem 
a  aíbniiiistração  dos  portos,  fixa  as  tarifas  al- 
landc.yarias,  assim  como  outras  taxas  (salvo 
direitos  adquiridos  por  terceira  potencia)  e  re- 
coilie  as  rendas,  com  obrigação  de  lançar  no 
lliesouro  do  sultão  o  excedente  total  dos  direi- 
tos d'cntrada  actuaes,  com  mais  50  "/o  do 
[troducto  das  novas  taxas.  A  companliia  adqui- 
re prcvilegios  exclusivos  para  a  venda  ou  lo- 
cação de  terras,  pesquiza  ou  exploração  de 
minas  e  florestas,  construcções  d'estradas,  ca- 
naes,  caminhos  de  ferro,  ctc,  reservando-se 
a  faculdade  de  j)rolnbir  a  importação  de  certas 
mercadorias,  como  armas,  munições  de  guer- 
ra e  licores  embriagantes.  Passados  os  cin- 
coenta  annos  da  concessão,  o  sultão  ou  seus 
herdeiros  podem,  meilemtte  soilenm  (rtnbilros, 
retomar  os  estabelecimentos  que  havia  entre- 
gue á  coinijanhia.» 

A  área  d'acção  da  comiianliia  ingleza,  cs- 
tendia-se  entre  ^\'au^a  e  o  Kiiiini.  V.  como  tão 


os  GATOS  "-II 

exorl)it;mles  concessões escaiidalisanim  a  com- 
panhia colonial  allemã,  inimiga  d'ac[uella,  foi 
o  sultão  coagido  a  ceder  á  primeira,  os  privi- 
légios da  segunda,  nos  lerriforios  ainda  livres, 
isto  é,  n'unia  facha  costeira  de  18  idiometros, 
que  medeia  entre  Tungue  e  a  Wanga:  e  assim 
íicou  todo  o  Zanzibar,  ilhas  excepto,  acorren- 
tado ao  dominio  d'europeus ! 

Queiram  agora  pôr  a  par  os  dois  convé- 
nios, o  do  sultão  Bargash  com  as  duas  com- 
l»anhias  coloniaes  (que  pouco  tardará  sejam 
investidas  de  soberanos  poderes,  pelos  gover- 
nos das  nacionalidades  respectivas,  e  no  limi- 
te das  concessões  havidas  do  tyranno),  e  o  do 
sultão  Bragança  com  o  governo  inglez:  e  di- 
gam-me  depois  se  ambos  elles  não  são  con- 
cebidos no  mesmo  espirito  absorvente,  e  di- 
clados  do  mesmo  fundo  de  desprezo  abso- 
luto. 

Em  Moçandíique  como  em  Zanzibar,  é  o 
inglez  quem  dieta  a  viação,  com  engenheiros 
seus,  e  um  praso  iFespera  que  nem  chega 
para  o  transporte  do  mateiial:  é  o  inglez 
(piem  estipula  a  forma  de  percepção  e  a  cifra 
dos  impostos,  (piem  impõe  as  dilTerentes  li- 
berdades de  commercio,  (Fensino  e  de  reli- 


28  os  GATOS 

i^ião,  c  iiiiõin  fiiialmcnlo,  solirc  o  Icnilorio 
sem  fim  por  nós  possuído  ha  quatro  séculos, 
circuinscrcve,  n'unia  oila  (l"areia,  com  a  poula 
do  seu  chicote,  a  espécie  de  (juintalorio  (jue 
apenas  nos  quer  recouiiecei'. 

Com  a  dilTerença  que  para  ZanzilKir  o  con- 
vénio tem  vantagens,  pelo  menos  correspon- 
dentes aos  encargos  esmagadores  que  o  trata- 
do de  20  d'agosto  nos  acarreta. 

Lá  o  saltão  recehe  dos  arrendatários  di> 
seu  paiz,  uma  quantia  annual  mais  que  bas- 
tante ao  costeio  da  sua  pessoa,  guarda  e  bens. 
Não  faz  estradas,  não  i)aga  exércitos,  não  or- 
ganisa  policia,  nem  pensa  em  edifícios  públi- 
cos. Deixa  correr.  Km  Moçambiíjue,  nós  pa- 
garemos tudo,  faremos  tudo,  só  pai"a  a  Ingla- 
terra enthezourar.  Somos  portanto  vinte  vezes 
mais  espoliados  do  ([ue  esse  sultanato  bárba- 
ro, que  é  a  bestiaria  do  negro  na  vcrmiiia 
contaminadora  do  árabe.  Este  o  tratado  nas 
suas  consequências  inunediatas,  cuja  explana- 
ção já  demos  n'outro  numero.  Para  a  aprecia- 
ção das  consequências  remotas,  traduzirei  o 
que  o  Tifties  escreveu  (piando  em  87  chegou 
a  Londres  noticia  das  concessões  da  Brilish 

East  Affiniiii  A-'isorii(lÍUIl. 


os  GATOS  iiO 

É  illucidaiite,  c  escusa  a  gente  de  prozar 
iiiedilo  a  respeito  da  obra  Darjona-Fife  e  Ri- 
beiro de  .Melewen.  «...  as  coiiseciueiicias 
politicas  e  commerciaes  d'estas  transações  são 
evidentemente  o  ciiamaniento  de  mais  uma 
vasta  região  á  coroa  ingleza.  Findo  o  praso 
dos  cincoenta  annos,  a  que  não  é  temerário 
assignar  prorogação  illimitada,  a  soberania  do 
sultão  terá  cessado  de  se  exercer  directamen- 
te sobre  o  continente  africano,  e  ficará  redu- 
zida quando  muito  ás  ilhas,  té  ao  dia  em  que 
a  lunlaterra  se  lembre  de  lh'as  tirar.» 


De  certo.  A  liga  da  civilisação  para  a  con- 
quista do  continente  negro,  expulsa-nos  do 
si,  e  da  mesma  cornada  enrodilha-nos  com  os 
(3stados  bastiães  que  fazem  nódoa.  E  necessá- 
rio, diz  ella,  que  a  regeneração  do  selvagem 
<rAfrica  não  tenha  por  obstáculo  o  selvagem 
da  Europa,  (jue  nós  somos.  É  em  nome  da 
humanidade  que  a  Inglaterra  pede  aos  estados 
a  nossa  ruina,  e  os  estados  acquiescem,  con- 
vencidos de  ([ue  mesmo  prestando-se  a  locu- 
|)letal-a  co'a  nossa  herança,  servem  com  isto 
o  bem  da  luimanidade. 


30  os  GATOS 

Para  que  da  acrfio  solidaria  das  grandes- 
potencias  sahisse  uma  occupação  formal  de 
toda  a  Africa,  houve  que  perfurar  as  trevas 
lio  incommensuravel  continente,  como  se  per- 
furam os  túneis,  attacando  simultaneamente 
da  periferia  para  o  centro,  e  vice-versa,  por 
forma  a  encontrarem-seos  dois  partidos  d'obrei- 
ros,  n'um  cerlo  ponlo.  A  Iviropa  já  occupava 
a  bordadura  maritima.  D'uma  l)an<la  a  Fran- 
ça, a  Inglaterra,  a  llespauha,  a  Itália,  cingiam 
pelo  norte,  por  este  e  por  oeste,  o  desconforme 
plaino  sudanez.  D'outra  banda  a  Allemanha, 
a  Inglaterra  e  Portugal  curavam  d'atacar  a  pe- 
nínsula africo-austral  d'ao  sul  Zambeze.  Falta- 
va um  centro  d'acção  para  onde  fozer  conver- 
gir na  pêra  africana,  o  gorgulho  civiiisação 
ijiic  SC  llie  collára  á  superfície. 

Esse  centro  foi  o  estado  livre  do  Congo, 
outra  potencia  feita  de  restos  que  nos  rouba- 
i"im  a  França,  a  Allemanha  e  a  Inglaterra, 
conluiadas,  e  jiiular-se-lhe-ha  agora,  com  o 
tratado  de  riO  (Tagosto,  o  império  que  a  In- 
glaterra nos  sequestra,  paiz  fabuloso,  uma  se- 
gunda Austrália,  ou  seja  em  números  redon- 
dos "200:(I00  kilometros  de  ferras  sobre  qufr 
exercíamos  auctoi'ídade  e  occui)ação  ellectiva,. 


os  GATOS  .jI 

com  mais  130:000  d'esfera  irinfluoncui.  Para 
a  Inglaterra,  a  posse  d'esle  império  é  uma 
questão  de  vida  ou  de  morte,  porque  todo  o 
seu  empenho  é  contrabalançar  a  expansão  alle- 
raã,  que  será  prodigiosa  e  irresistível,  princi- 
palmente passando  o  Congo  belga  (questão 
(Valguns  ânuos)  ao  escrínio  imperial.  Quem 
procurar  no  mappa  lybico  as  possessões  fran- 
cezas,  italianas  e  hespanholas,  fácil  verá  que 
a  colonisação  africana  do  sul  e  do  meio-dia, 
verdadeira  sede  do  grande  empório  que  se 
prepara,  expulso  Portugal  das  duas  costas,  per- 
tence de  futuro  á  luglalerra  e  á  Allcmanha. 
Será  uma  lucta  extraordinária  e  gigantesca, 
acirrando  sob  o  clima  tórrido,  as  rivalidades 
d'esses  dois  povos  hegemónicos.  E  não  nos  il- 
ludamos  um  instante:  dez  annos  bastaram 
para  o  inglez  e  o  allemão  nos  desapossarem 
da  terra  negra,  pelo  menos  nas  zonas  que  por 
agora  mais  quadram  ás  suas  installações  fun- 
damentaes.  Pois  bem !  não  passarão  cinco  que 
clles  nos  não  tenham  desapossado  também  do 
amor  do  indígena,  sendo-lhes  fácil  desde  es- 
se dia  correr-nos  a  pontapés  de  toda  a  ban- 
da. O  plano  colonial  das  duas  potencias  (;  tão 
vasto.  Ião  poderosamente  escorado,  tão  Iogico> 


32  os  GATOS 

tantas  cabeças  solidas  o  cultivam,  tão  fortes 
braços  lhe  lançam  os  inicios,  tamanhos  fervo- 
res o  pregam  como  cruzada  santa,  ás  popula- 
ças sedentas,  ijue  pelo  que  nos  diz  respeito, 
só  um  gabinete  diplomático  gi>uial  como  o  d.^ 
liismarck,  fazendo  mover  um  povo  de  trabalha- 
dores com  a  tenacidade  escoceza  e  teutã,  fundi- 
da:; n'uma,  poderiam  salvar-nosda  vergonhosa 
retirada  que  o  principio  do  século  xx  nos  re- 
serva em  Africa. — E  esse  gabinete,  não  esque- 
çamos, c  o  do  snr.  José  Luciano  ou  o  do  sni'. 
Serpa  Pimentel,  e  esse  povo  é  a  preguiça,  o 
dcsmazello,  a  iudifferença  cinica  em  pessoa ! 
Especialmente  o  plano  inglez,  é  uma  obra 
sazonada  por  séculos  d'estudos,  de  combina- 
ções diplomáticas,  gastos  sem  conta,  sacrifí- 
cios. Foi  necessário  mascaral-o  de  dedicações 
humanitárias,  tingir  horror  pela  escravatura  e 
pela  barbaria,  provocar  conferencias,  refundir 
(I  dii'eito  internacional  de  fond-cn-comble.  E 
quando  elle  se  desenha  em  toda  a  sua  vastidão 
de  colosso  nascente,  quando  elle  brota  do  me- 
donho ossnario  dos  nossos  exploradores  e  dos 
nossos  missionários,  que  ninguém  conhece, 
apto  a  deslocar  a  fome  iugleza  pai'a  longe  da 
sua  illia  ncvociila,  i|uauilo  elle  se  antolha  aos 


os  GATOS  3.1 

economistas  da  Gran-Lirctanlia  coiiifi  um  sor- 
vodoiío  inédito  de  prodiicção  industrial,  ima- 
íiinaria  aiirnem  que  seriamos  nós,  povo  de  som- 
no,  ljisI)oiTÍas  sem  resistência  nem  vontade, 
que  entravai'iamos  a  marclia  do  elefante  inglez 
carregado  d'espingardas,  do  capas  de  bori-a- 
clia,  e  de  fardos  d^algodão?  !>onca  estnilicia! 
É  vèr  logo  na  origem  das  discussões  luso-in- 
glezas,  a  natureza  dos  motivos  (pie  as  duas 
partes  alegam  á  posse  dos  territórios  litigiados. 
A  Inglalei-ra  ipier  a  Mashona  e  o  Cliire  pelo 
futuro  de  alii  derramar  commercio,  fundai'  ci- 
dades, e  fazer  homens  activos.  Portugal  ipici'  ,i 
.Mashona  e  o  (Ihire,  principalmente  porque  alli 
pelejaram  os  seus  lieroes  do  século  xvi  e  xvii, 
isto  é,  pelo  passado.  Por  isso  affirmoi  que  nós 
somos  n'.\frica  um  estorvo  a  toda  a  gente,  {' 
que  imjirogressivos  e  orgulhosos,  hemos  íjuií 
ser  poutapisados  pela  hndalidade  dos  nossos 
competidores.  A  sentença  está  lavrada,  o  acor- 
do feito  enire  as  potencias,  e  foi  a  Inglateri^a, 
nossa  amiga,  ipiem  desde  longo  tenqio  se  of- 
fereceu  para  carrasco.  I!asta  vèr  os  tratados. 
F-m  8(1,  como  Andrade  Corvo  c  o  pefpieno  l!o- 
cage  delimitavam  em  Paris,  com  os  delegados 
francezes,  as  fronteiras  do  (longo  luso-franccz. 


preslou-sc  Porluiial  a  lecdiiliucci-  a  soljcraniít 
(la  Republica  sobre  os  teri-iiorios  da  Fouta- 
I>Íalloii,  ciestiiiados  a  ligar  o  Senegal  aos  rios 
(III  sul.  I>edia-se-IIieein  troca  aciiiiiesceacia para 
(IS  iiiiiiles  (Io  império Irans-contiiiental  que  ti- 
uliamos  em  vista,  e  vem  pouco  mais  ou  me- 
nos no  iHiijijiii  (vr  -/(.'  nizii.  (cj  \  Ki-an(;a  con- 
sentiu em  não  perturbar  com  tomadias  im  pro- 
tectorados, essa  immensa  região  do  nossa 
reserva;  salvaguardava  porem  os  direitos  de 
terceiras  potencias  (ijue  não  existiam)  e  ipiando 
se  tractou  de  juntar  ao  texto  do  tratado  a  des- 
crip(;ão  exacta  dos  limites  do  império  ipie  so- 
nhávamos, e  a  carta  representativa  (Teste,  re- 


(i)  Eis  os  limites,  mencionados  cm  nota  official  que 
foi  annexada,  em  dezembro  de  85,  ao  protocolo  iv  do 
tratado  Rialle-Corvo :  «...  ao  norte,  o  paralello  de 
Noqui,  até  á  sua  intersecção  com  o  rio  Cuango ;  logo  o 
Cuango  até  á  sua  origem,  e  a  partir  d'esta,  a  linha  que 
separa  a  bacia  do  Congo,  da  do  Zambeze,  até  ao  encontrO' 
d'este  ultimo  com  o  paralello  do  confluente  do  Lujenda 
com  o  Rovuma.  Ao  sul,  o  paralello  do  Cabo  Frio,  pro- 
longado á  fronteira  occidental  dos  Matabelles;  em  seguida 
esta  mesma  fronteira,  até  ao  curso  do  rio  dos  Crocodillos; 
o  curso  d"este  até  á  confiucncia  do  Pafori;  e  a  partir  d'este 
ponto,  a  fronteira  actual  das  possessões  poituguezas  e  da 
republica  do  Transwal.» 


os  GATOS  35 

cusou-se  tcrininanteiiiente  a  lazel-o,  porque  já 
o  miuisfi'0  iuglez  minara  o  terreno  das  nego- 
ciações, recordando  á  Republica,  que  o  seu  pro- 
tectorado em  Madagáscar  inda  não  tivera  o  re- 
conhecimento das  potencias.  Em  balde  os  nos- 
sos delegados  suppi içaram,  alegando  o  prece- 
dente da  conferencia  de  Berlim  ter  fixado  os 
limites  do  Congo  belga,  sobre  uma  carta  que 
servira  de  base  ás  convenções  entre  as  poten- 
cias, e  aquelle.  Tudo  foi  em  vão. 

Approximava-se  a  hora  da  Inglaterra  fazer  na 
questão  africana,  o  grande  jogo,  que  desde  as 
explorações  de  David  c  Carlos  Livingstone  preoc- 
cupavam  o  Foreign-Officc.  A  ohm  dos  lagos  pros- 
perava:  estações  civilisadoras,  sem  aspecto  oc- 
cnpante,  e  com  o  simples  ar  de  feitorias  iso- 
ladas, picavam  já  Blantyre,  os  bordos  do  alio 
Chiro,  c  a  riba  occidental  do  Nyassa. 

Aventureiros  do  Cabo,  atravez  os  campos 
d'oiro  do  TranswaI,  contaminavam  por  outro 
lado  a  Matabellia,  velozmente,  passando  armas 
a  Lubengula,  incilando-o  á  conquista  dos  Mas- 
honas,  e  a  correrias  nos  prazos  portuguezes 
de  Zumbo,  de  Manica  e  de  Sofála.  ftl)  E  no 


(d)   N'uma  communicação  feita  pelo  snr.  engenheiro 


rí(>  os  GATOS 

iiorle  como  uo  sul  (raqiu-llc  immeiíso  plaino, 
fiMlo  da  rciíião  dos  laiíos.soiiunada  ao ////(>(•/(/;((/ 
dWiii^ula  (■  de  Mo(;amlii(|iii',  a  alma  da  prnpa- 
líaiida  aiiti-|)oi'liiiíiiraa  que  lá  /.imi)rava  aos  ou- 
vidos do  ueiíPo,  o  demónio  do  ódio  (|up  dizia 
a  esse  inferior,  alTeito  a  não  pisar  nos  deser- 
tos, a  sombra  sequer  da  nossa  bandeira  —  in- 
surge-le!  desubedecc-lhe,  mii(a-u! — revestia  sem- 
pre o  mesmo  typo:  o  do  missionário  escocez, 
fanático  feroz,  tyranuo  intransigente,  mistu- 
i'ando  ao  lei  ror  de  llciis,  o  delírio  do  álcool,  e 


J.  MachaJo  á  Sociedade  de  Geographia,  e  publicada  por 
esta  sob  o  titulo  de  forneciíiieiHo  iVannas  aos  Matahelles, 
narra-sc  que  pelas  alturas  de  1888  (epocha  em  que  a  In- 
glaterra se  declarou  protectora  dos  Matabclles,  e  formulou 
pretensões  á  Mashona,  que  Lubengula  dizia  pretenccr-lhe) 
agentes  inglczes  vindos  do  Cabo,  em  grande  numero,  obti- 
veram do  Lubengula  permissão  d'explorar  os  jazigos  mi- 
neiros das  terras  sul  dos  seus  estados.  Estes  homens,  vin- 
dos como  particulares  d  exploração  dos  campos  d'oiro, 
bem  depressa  se  reconheceu  serem  agentes  do  governo 
britannico,  como  se  verá.  A  concessão  dos  jazigos  aurífe- 
ros fora  comprada  ao  Lubengula  por  i  :00o  carabinas  Mar- 
tini-Henrv,  e  cerca  de  5:000  cartuchos.  Este  armamento 
entrou  na  Matabellia  pela  colónia  do  Natal,  o  que  impor- 
tava a  violação  do  bloqueio  que  a  própria  Inglaterra  pro- 
vocara, com  o  apoio  da  Allemanha,  de  Portugal   e  de 


os  GATOS  o7 

a  retalluuliira  do  chicote.  Pois  se  a  Inglaterra 
mirava  em  ir  por  terrenos  seus,  do  Cabo  ao  Nyas- 
sa,  se  cila  n'essos  terrenos  estava  lançando,  a 
|)oder  de  traições  e  vilanias,  os  germens  d' uma 
definitiva  occuitação,  como  não  procuraria  com 
supremo  afinco  evitar  que  as  i)otencias  nos 
i'econhecessein  as  linhas  norte  e  sul  do  impé- 
rio trans-conlinental  com  que  sonhávamos?  A 
recusa  que  Andrade  Corvo  houve  de  França, 
no  respeitante  ás  delimitações  d'esse  dominio, 
a  Ailemanha  noi-a  lez  ouvir  pelas  mesmas  pa- 
lavras, quando  em  dezembro  de  188(1,  iden- 


Zanzibar,  no  próprio  anno  de  1888,  para  combater  o  tra- 
fico, e  a  importação  d'armamento,  seu  principal  auxiliar. 
O  facto  era  por  tal  forma  insólito  e  infamante,  que  uni 
Merriman,  membro  do  parlamento  inglez  do  Natal,  inter- 
pellou  o  governo,  por  inquirir  da  sua  A^eracid-ide.  A  prin- 
cipio, o  presidente  do  conselho,  sir  Gordon  Sprigg,  res- 
pondera neg.Mido,  mas  como  Merriman  teimasse,  ao  dia 
seguinte,  o  homem  confessou  toda  a  verdade.  De  feito 
1 :00o  carabinas,  com  5  :ooo  cartuchos,  vindas  d"Inglaterra 
com  destino  ao  Lubengula,  haviam  transitado  pela  colónia 
do  Gibo.  As  auctoridades  inglezas  só  haviam  consentido 
em  deixal-as  ir  ao  seu  destino,  em  presença  da  reclama- 
ção d'unital  Sydney  Shippard,  administrador  da  Betchuana- 
land  britannica,  funccioiíario  nomeado  pelo  gorenio  da  me- 
trópole, e  só  para  com  esse  govenio  responsável. 


38  os  GATOS 

lica  questão  ilie  foi  proposUi,  pelo  ministro  tios 
('sfrai)i;(Mros  líarros  Ciomos. 

A  fronteira  irésle,  pedida  pelo  governo 
])ortiigiiez  para  o  nosso  império  contracostei- 
ro,  era  como  todos  sabem,  uma  iiniia  que 
partindo  da  foz  do  Rovuma,  seguia  o  para- 
lello  correspondente,  cortando  o  Nyassa,  e  in- 
do até  aos  confins  d'Ango!a.  O  governo  alle- 
mão  porém  só  adniittia  a  iiniia  alé  á  margem 
oriental  do  lago:  detinlia-o  o  mesmo  pensa- 
ineiilo  reservado  da  hYaiica:  a  Inglaterra  se- 
gredara-llie  talvez  os  seus  projectos,  recorda- 
la-llie  talvez  as  suas  condescendências  na  ques- 
tão d'Angra  Pequena,  em  1881,  na  haliia 
dos  Camarões,  em  188.-),  e  no  acordo  relativo 
á  delimitação  de  Zanzibar,  cm  outubro  de 
1880  — dois  mezes  antes— acordo  que  prepa- 
rou da  iniluencia  alleniã  nWIVica  austral,  como 
explicámos. 


Kis  ,1  razão  ponpie  eu  escrevi  atraz,  que 
as  derrotas  da  diplomacia  britannica,  ante  os 
poderosos,  mais  llie  aziumavam  o  j-ancor 
contra  a  nossa  pequenez,  e  que  Portugal  es- 
lava condemnado  a  pagar  com  domínios  e  ter- 


os   GATOS  39 

ras,  as  indomnisações  que  á  sua  alliada  impu- 
nliam  essas  derrotas.  Com  as  transigências 
feitas  á  expansão  colonial  da  França  e  da  Al- 
lenianha,  a  Inglaterra  compra,  a  preço  de  ine- 
gualaveis  vergonhas,  embora !  o  silencio  d'es- 
sas  grandes  nações  perante  a  formidável  ex- 
torsão que  nos  prepara.  O  mundo  assistirá  á 
oxliautoração  mais  escruciante  que  se  terá 
visto,  depois  da  chacina  da  Polónia ;  e  na  hora 
terrível  em  que  os  cannibaes  se  lançarem  a  nós, 
nenhuma  mão  se  erguerá  para  dizer  basta !  ao 
nosso  algoz.  Seremos  escorchados  em  nome 
dos  mais  caros  interesses  da  humanidade,  an- 
nexados  por  incapazes  de  figurar  no  festim  das 
nações  civilisadas,  e  por  tal  forma  a  Inglater- 
ra nos  colloca  em  face  do  mundo,  que  o  nos- 
so desapparecimenlo  não  surprelicnderá  nem 
jirovocará  lamentos  de  ninguém.  De  feito,  a 
nossa  expulsão  (FAfrica,  rcalisada  com  homens 
differentes  dos  que  ahi  temos,  poderia  já  não 
digo  evitar-se,  mas  ser  recuada  nU:  um  prazo 
i II imitado,  podendo  ser  que  os  tramites  da  lu- 
cta  empregada  para  fugir  á  morte,  chamasse 
sobre  nós  o  apoio  das  nações  neo-romanticas, 
como  a  França,  que  está  sempre  ao  lado 
dos  que  pelejam  por  um  ideal,  embora  inexe- 


4.0  os  GATuS 

quivel.  Mas  é  (jiie  essa  oxixilsão  so  cslá  dando 
com  todas  as  agravantes  de  des[)rezivel  inépcia, 
de  cobardia  provada,  d'incapacidade  authenti- 
ca,  e  de  sardónica  puliiice,  de  que  nenliuma 
chancellaria  da  Europa  tomará  conta,  sem 
achar  o  castigo  inda  inferior  ás  nossas  culpas. 
Basta  ièi'  as  peças  do  Livro  Branco  recen- 
puljlicado  (e  inda  as  mais  graves  não  vieram 
a  iiune)  para  ac([uiescer  no  irreniessivel  fim 
de  Portugal.  Na  conducção  das  negociações 
afi'icanistas  do  paiz  com  a  Inglaterra,  o  papel 
dos  nossos  é  uma  serie  d'inepcias  sem  vislum- 
bre de  brio  ou  d'esperteza:  a  altitude  britau- 
nica,  uma  fustigada  continua  d'ordeus  impe- 
riosas, misturada  d'ameaças  e  de  chascos.  Na 
revisão  dos  processos  diplomáticos  que  a  Gran- 
Bretanha  houve  que  debater  co'as  nações  in- 
teressadas na  partilha  dWfrica,  uma  coisa  so- 
bretudo choca  o  observador,  e  vem  a  ser  o 
profundo  traço  (jue  demarca — para  a  direita, 
a  sua  maneira  de  tratiir  co'as  nações  (|ue  lhe 
merecem  conceito,  já  pela  respeitabilidade,  já 
pela  força  — para  a  es<(uerda,  a  sua  iulrausi- 
gente  crueldade,  a  despeito  do  direito  das  gen- 
tes, a  despeito  dos  convénios  anteriores,  a 
despeito  de  tudo,  para  com  as  nações  que  cila 


os  GATOS  41 

julga  necessário  expiíiigir  d:i  graúdo  obra.  As- 
sim por  exemplo,  os  Iratados  inglezes  com  a 
Allemanha,  coma  Itália,  e  com  a  França,  são 
peças  claras  e  simples,  reduzidas  a  meia  dú- 
zia d'arfigos  largos,  recíprocos,  concisos,  d'on- 
de  a  suspeita  é  varrida  em  toda  a  linha,  e 
(Tonde  a  equidade  ressumbra  em  formulas 
<ruma  lealdade  (juazi  primitiva.  Os  contratan- 
tes ahi  estão  á  vontade,  pactuam  entre  eguaes, 
sabedores  das  forças  que  de  cada  lado  guar- 
dam a  stricla  observância  dos  convénios.  Leiam- 
se  após  os  Iratados  da  lnglatei'ra  com  os  po- 
tcalados  inilifienits,  como  ella  lhes  chama,  que- 
rendo pela  palavra  dizer  antes,  selvagens.  Sabe 
o  leitor  ao  menos  quem  são  taes  potentados? 
É  a  rejjublica  (FOrange,  é  o  Transwal^  6 
a.Matabellia,  é  Zanzibar — e  somos  nós.  Todos 
os  convénios  feilos  pelos  inglezes  com  estas 
(juatro  victimas  promettidas  ila  sna  gula,  são 
idênticos  d'injuria,  traiçoeiros  d'essencia,  cor- 
tados de  caminhos  falsos,  tendentes  ao  prepa- 
ro de  lhes  inglezarem  lentamente  os  territó- 
rios, fej  e  de  lhes  arruinarem  as  finanças,  pe- 


(i)     —Pelo  tratado  de  24  de  maio  de  1887,  Zanzi- 
bar n.io  poderá  vèr-se  livre  do  convénio  feito  cora  a  'Bri- 


iá  os  GATOS 

los  angustiosos  encargos  que  Ilies  exigem,  a 
pretexto  da  suppressão  de  trafico,  de  civilisa- 
(ão  e  de  progresso:  até  (pie  ultimada  a  o])ra, 
a  mina  aberta,  esses  estados  farain  bancaro- 


tisb  East  Africaiii  Associulion,  senão  recorrendo  a  um  tri- 
bunal arbitral,  o  que  é  o  mesmo  que  di/.cr,  nunca. 

Outrosim,  o  sultão  se  obrigou  a  não  ceder  dos  terri- 
tórios que  as  potencias  lhe  reconheceram,  sem  prn'io  con- 
Sfiitimaito  da  Inglaterra,  ou  da  AUemanha,  conforme  a  zo- 
na em  que  o  caso  se  der. 

—  Pelo  tratado  de  5  de  junho  de  1888,  o  rei  dos  Ma- 
tabelles  não  poderá  alienar  territórios  seus,  ou  de  sua  in- 
fluencia, sem  prcfio  consentimento  da  Inglaterra. 

—  Pelo  tratado  de  27  de  fevereiro  de  1884,  o  Trans- 
wall  não  fará  tratados,  nem  poderd  tomar  compromissos 
com  potencia  alguma,  a  republica  d'Orange  excepto,  sem 
pre%'io  consentimento  da  Inglaterra. 

—  Pelo  tratado  de  20  d'agosto  de  1890,  Portugal  so- 
bre perder  350:000  kilometros  de  terras  suas,  não  poderá 
alienar  uma  pollegada  das  que  lhe  ficam,  sem  prévio  con- 
sentimento da  Inglaterra.  Este  tratado  além  d'isso,  pelas  in- 
fitmias  que  encerra  no  respeitante  ao  porto  franco  do  Chin- 
de,  ao  caminho  de  ferro  do  Pungue,  á  intervenção  do  tri- 
bunal arbitrai  em  toda  e  qualquer  questão  que  se  levante, 
á  limitação  das  taxas  sobre  mercadorias,  etc,  etc,  é  du- 
zentas vezes  mais  humilhante  para  nós,  paiz  civilisado,  do 
que  são  os  outros,  para  as  nações  selvagens  com  quem 
foram  acordados.  D'onde  re/.ulta  sermos  nós  a  barbaria 
d'Africa,  que  mais  desprezo  inspira  á  Gran-Brctanha ! 


os  GATOS 


ta,  c  a  anarcliia  sobrevciiha,  para  a  Inglaterra 
enlão  se  apoderar  cVelles,  como  fez  no  Egy- 
pfo,  cm  nome  da  humanidade,  e  a  salvaguar- 
da das   .  .  garantias  puropeas. 


Para  concluir. 

A  situação  politica  produzida  em  Africa 
pela  acção  symeirica  dos  grandes  estados  eu- 
ropeus, realisa  uma  ideia  que  desde  1870  vi- 
nha gestada,  e  (pie  ora  surge  como  solução 
(iitnra  do  mais  inquietante  problema  colonial 
do  nosso  tempo.  «Cada  nm  dos  principaes 
povos  maritimos  se  installou  na  região  que 
melhor  convinha  aos  seus  interesses  e  meios 
(facção;  cada  um  preenche  a  sua  missão  so- 
cial, espalha  germens  de  cultura,  e  cria  focos 
de  propaganda,  convergentes  todos  a  um  ideal 
conuuum  de  civilisação.  Mesmo  desígnio,  mes- 
mas tendencins,  dominam  as  ineciativas  par- 
ticulares, snbordinando-as  a  um  fim  superior.» 
lie  commum  acordo,  declaram  as  potencias 
pela  bocca  da  Inglaterra,  sermos  nós  o  en- 
trave principal  na  pliilmitropim  partilha  do 
sul  (FAfrica,  sendo  este  titulo  ominoso  o  ar- 
gumento (lidador  da  escorraçada  que  vão  dar- 


nos.  Pei'giiiita-s('  pois:  apesar  de  conliecido  o 
fim  qiie  hemos  de  ter,  apesar  de  nos  vermos 
sós  e  desarmados  conlra  as  aml)içues  da  In- 
glaterra, apesar  de  nos  sabermos  incapazes 
(Fum  |)apel  liislorieo  prolicuo  no  fuluro  dn 
mnndii,  hemos  d'aHeMar  por  isso,  sem  IVa- 
casso,  o  património  ganho  peia  nossa  activi- 
dade dos  secnlos  anteriores?  ()  tratado  de  ríH 
d'agosto,  qne  apressa  a  obra  d'absor|)(;ão  l)ri- 
tanuica,  meditada,  deve  aceitar-se  como  pri- 
meira sortida  da  civilisação  trinmphanle,  nu 
vilipendio  da  nossa  barbaria?  Por  Deus,  nãiv 
deve!  e  o  chacinar  até  ao  nilimo  dos  rufiões 
que  o  sanccionarem,  é  obrigação  de  qne  ne- 
nhum portuguez  pode  abdicar  n"esle  moinenlo. 
()l)poidiamos-llic  pois  com  todas  as  forras.  A 
formula  de  protesto  está  creada  :  ubaixo  o  fm- 
líido,  siicivda  (1  (jiic  siuiciler .' 


CAMILLO  CASTELLO  BRANCO 


AMOR    DE    PERDIÇÃO 

(MEMORIAS    D'UMA    FAMÍLIA) 


EDIÇÃO  MONUMENTAL 

Em  hoiihiuJí^ein  ao  onhwiitc  'Kjiniancista  'Pon'iig}ii\ 

CAxMILLO    CASTELLO    BRANCO 


EXRICLVECinA    COM    A   COLI.ABORAÇAO  TOS  NOTAVFIS  HOMENS  I 

MANfEL  PINHEIRO  CHAGAS,  RAMALHO  ORTIGÃO  e  THEOPHILO  BRAGA 

E   II-LUSTRADA    COM  SEIS  DKSUNHOS    DE  PAGINA  EXPRESSAMENTE  EXECUTADOS 
PELOS  NOSSOS  LAUREADOS  ACADÉMICOS 

J.  J.  DE  SOUZA  PINTO,  CAETANO  MOREIRA  DA  COSTA  l.IMA 
E  JOSÉ  D'AI.MEIDA  E  SILVA 

E  A  IMPRESSÃO  DAS  ILLUSTRAÇÕES  EM  PHOTOTYPIA  COXHIADA  Á  IMPORTANTE 
r.   REPUTADA  CASA  DE  L.   ROUILÈ,   DE   PARIS 


— .«fiíÇÍ— 


MA  das  mais  vivas  e  prestigiosas  figuras 
'a   moderna  litteratura  europeia  é  CA- 
I^J^Mçi  .MILLO  CASTELLO  BRANCO.  Natu- 
...v^^di^^H^I  j.g2a  profundamente  emocional,  propon- 


do todos  os  seus  problemas  em  collisões  de  senti- 
mento, allia  á  mais  alta  cultura  da  linguagem,  que 


ainda  appareceu  cm  cscriptor  portugiicz,  o  sciitinicnto 
fulgurante  de  um  vivo  protesto  contra  a  decadência 
que  nos  vae  avassallando,  aos  poucos,  na  arte  e  nos 
costumes  contemporâneos.  Absorvido  n'uma  forte 
elaboração  esthetica  e  fugindo  ás  tentações  da  poli- 
tica, que  tantas  boas-vontades  tem  anniquilado,  refu- 
giou-se  no  seu  trabalho  de  homem  de  lettras,  como 
Robinson  na  sua  ilha.  Dentro  d'esse  baluarte  inexpu- 
gnável, elle  tem  continuamente  erguido  os  seus  ty- 
pos  tradicionaes,  essas  altas  e  marmóreas  figuras  es- 
culpturaes,  escolhidas  entre  uma  fidalguia  decadente, 
que  vae  gradualmente  desapparecendo,  substituída 
pela  aristocracia  do  dinheiro,  e  os  typos  enérgicos  e 
viris  dos  homens  rudes  e  sãos,  de  quem  ainda  é  per- 
mittido  esperar  um  dique  á  corrente  que  passa.  E 
por  isso  que  a  obra  de  CAMILLO  é  uma  das  mais 
patrióticas,  sem  perder  comtudo  esse  caracter  a  um 
tempo  tão  litterario  e  tão  pitoresco,  que  sobremodo 
avulta  na  sua  linguagem;  o  observador  attento  en- 
contra n'aquelle  estylo  inimitável,  n'aquellas  descri- 
pções  encantadoras,  n'aquellas  paysagens  vibrantes 
de  realidade,  a  riquíssima  seiva  provincial,  que  é  um 
dos  mais  elevados  apanágios  deste  privilegiado  do 
talento. 

As  nações  que  merecem  sobre  modo  esse  nome 
são  aquellas  que  vinculam  em  monumentos  eternos 
a  lembrança  dos  seus  grandes  homens;  e  o  maior 
monumento  que  se  pôde  erguer  a  um  escriptor  do 
merecimento  de  CAMILLO  é  a  consagração  nacio- 


nal  da  sua  obra.  Por  isso,  emprehendemos  A  EDI- 
ÇÃO  MONUMENTAL  DO  AMOR  DE  PERDI- 
ÇAO,  a  obra  mais  caracteristica  por  certo  d'esse 
admirável  e  glorioso  obreiro  da  civilisação  portugue- 
za.  N'esta  homenagem  verdadeiramente  nacional  nos 
auxiliam  alguns  dos  mais  illustres  escriptores  do  nosso 
paiz;  e  é  assim  que  n'um  mesmo  livro  se  encontram 
ao  lado  de  CAMILLO  CASTELLO  BRANCO  os 
nomes  de  MANOEL  PINHEIRO  CHAGAS,  o  bri- 
lhante espirito  evidenciado  em  tantas  obras  tão  justa- 
mente celebradas.  RAMALHO  ORTIGÃO,  o  lucidis- 
simo  critico  das  FARPAS,  estylista  refulgente,  o  colo- 
rista  de  poderoso  e  singular  relevo  e  THEOPHILO 
BRAGA,  o  poeta  que  evocou  a  vida  histórica  das  so- 
ciedades mortas,  o  arrojado  crcador  da  HISTORIA  da 
litter  atura  portugucza. 

Os  trabalhos  com  que  tão  notáveis  escriptores 
honram  a  nossa  edição,  são  os  seguintes  : 

I — Contorno  biographico  de  Camillo  Castcllo  Bran- 
co— M.  Pinheiro  Chagas. 
II — O  seu  ambiente  social — A  sua  esthetica — A  sua 
critica  —  A  sua  forma  litter  ária  —  O  seu  tem- 
peramento artístico — Ramalho  Ortigão. 
III — O  romance  como  forma  definitiva  da  arte  mo- 
derna— Theophilo  Braga. 

A  dramatisação  da  obra  prima  de  Camillo  com- 
pendia lances  trágicos  de  tal  culminância  que  a  nossa 
edição  seria  muito  incompleta,  mesmo  com  as  coUa- 


borações  poderosas,  cuja  suminula  dcsen\ol\cmos,  se 
não  chamássemos  a  tomar  parte  n'ella  alguns  dos 
mais  genuínos  representantes  da  Arte  nacional  e  es- 
trangeira; e  é  assim  que  no  Amor  DE  Perdição  se 
juntam  os  nomes  laureados  de  J.  J.  de  Souza  Pinto,  Cae- 
tano Moreira  da  Costa  Lima  e  José  d'AImeida  e  Sil- 
va, de  par  com  a  importante  e  reputada  casa  de  L. 
Rouilc,  de  Paris,  cujo  nome  é  garantia  segura  do 
modo  superior  como  serão  reproduzidos  em  photo- 
typias  os  bellos  quadros,  que  o  romance  de  Ca- 
MILI.O  inspirou  a  tão  insignes  e  gloriosos  artistas. 

As  magnificas  illustrações  que  enriquecem   esta 
monumental  edição,  são  as  seguintes : 

/.  /.  nn  SOUSA  PIXrO      I— Rctmto  de  Cimillo  CastL-llo  Branco. 
II — O  assassinato  do  ferrador  João  da 
Cruz. 
CAnTAXO  MOREIRA    III— Simão  partindo  os  cântaros,  na  de- 
sordem do  chafiiriz. 
IV — O  morgado  de  Castro  Daire,  Bal- 
tliasar  Coutinho, é  assassinado  por 
Simão. 
V — Morte  de  Simão,  a  bordo  do  navio 
que  o  levava  ao  degredo. 
J.  WALMEIDA  ESILVA  Xl—Monu  de  Thereza,  no  convento 
de  Moncliique. 


EDIÇÃO  MOXLIENTAL 

a  |)i'i!iu'irii  lie  i|iiii!itiis  att'  liuji'  se  tfiii  leito  im  nosso  piiiz 


FIALHO  D' ALMEIDA 


OS  GATOS 

PUBLICAÇÃO  SEMANAL, 
d'l\querito  á  vida  PORTUGUEZA 

N.Mfi— 27  (Ic  Setembro  de  1890 


SUMMARIO 


As  responsabilidades  da  imprensa,  e  seu 

PAPEL  CONTRARIO  Á  MISSÃO  QUE  LHE  COJIPETE 
— DIFFAMAÇÃO  POR  VIA  DE  JORNAES — IMPOSSI- 
BILIDADE POR  BANDA  DOS  DIFl  AMADOS,  DE  PE- 
DIR CONTAS  AOS  DIFFAMADORES  —  O  QUE  É  A 
REDACÇÃO  D'UM  JORNAL  LISBONENSE— O  REPÓR- 
TER, BESTA  DE  CARGA  DO  JORNAL:  SUA  PYSIO- 
LOGIA,  CULTURA,  E  IMPORTÂNCIA  MORAL  —  DE 
COMO  ELLE  PROCEDE  PARA  ENCHER  COLUMNAS, 
E  DO  PERFEITO  CYNISMO  DO  SEU  PONTO  DE  VIS- 
TA COMO  INFORMADOR — CASAMENTO  SIMULADO: 
UMA  COMBORCA  TORNADA  A  VIRGEM   PELOS    FA- 


H  os  GATOS 

VORES  DA  reporkige — repoiiteus  entrevistei- 

ROS,  E  ANTIPATIIIA  PUBLICA  POR  ESTES  PERSO- 
NAGENS—A CAMPANHA  DE  DESCRÉDITO  CONTRA 
O  IMPERADOR  DO  BRAZIL  E  O  CONDE  D'EU  —  O 
CASO  DA  BIDLIOTIIECA,  E  CONSEQUÊNCIAS  D'UMA 
POUCO  SERIA  INFORMAÇÃO  —  REPORTERS-GATU- 
NOS,  E  NECESSIDADE  DE  OS  CORRER  DA  IMPREN- 
SA QUANTO  ANTES  — ATTENTADOS  AO  PUDOR: 
SUAS  DETERMINANTES  IIYGIENICAS  E  MENTAES 
—  CACIIEXIA  PRECOCE  DO  MACHO,  E  SENSUALI- 
DADE PRECOCE  DA  FÊMEA— A  CREANÇA  LISliOETA 
É  UMA  VELHINHA  DE  MAMA  —  EDUCAÇÃO  NAS 
OFFICINAS  E  NOS  COLLEGIOS  —AS  CAÇADORAS 
DE  CREANÇAS:  A  DESAVERGONHADA  DO  ARSENAL, 
A  VELHA  DAS  OLARIAS,  E  MÃES  QUE  PROSTITUEM 
PEQUENAS  DE  QUATRO  ANNOS — NECESSIDADES 
DE  REFAZER  A  RAÇA,  A  CIDADE  E  AS  INSTITUI- 
ÇÕES. CONCLUSÃO. 


20  de  Setembro. 


Grande  luunero  ilo  joniaes,  cedendo  a  um 
furor  d' informação  mais  atiçado  pelo  amor  do 
lucro,  do  que  investido  de  propósitos  justicei- 
ros, apenas  foi  produzida  ha  quinze  dias  a 
denuncia  d'estupro  em  que  se  inculpava  um 
oflicial  superior  do  nosso  exercito,  não  duvi- 
dou estampar  o  nome  d'csse  officiai  com  to- 
das as  Icttras,  sem  mór  devassa  previa  á  ve- 
racidade da  gravíssima  infâmia  (jue  uma  tal 
publicidade  ia  lançar  na  corporação.  Não  jiosso 
dizer  a  quem  compita  a  responsabilidade  re- 
mota do  vergonhoso  papel  qiic  quazi  Ioda  a 
imprensa  do  Lisboa  desempenhou  n'esto  episo- 
dio, dilVamando  publicamente  um  homem,  que 
Gá  annos  de  probidade  deviam  garantir  contra 


/j  os  GATOS 

a  suspeila  do  crinic-m-atuila,  polo  menos  atéá 
data  do  aiipai-ecimcnlo  das  piimeiras  noticias 
—assim  como  também  me  não  cabe  discutir  se 
os  funccionarios  de  justiça  encarregados  de 
lazer  luz  n'esles  sinistros  dramas,  devem  as- 
sim de  prompto  divulgal-os  aos  jornaes,  sabi- 
do como  a  opinião  retém  p'ra  logo  os  no- 
mes conspurcados,  sem  nunca  mais  indagar 
sç  o  viliocudio  é  ligitimo,  ou  não  passou  d  nm 
boato,  ijue  a  justiça  'ucfez  pouco  depois. 

Acareando  entretanto  as  noticias  cm  cpie 
os  (lilTerentes  jornaes  dp  IJsboa  !?iOccnparam 
no  mesmo  dia,  do  monstruoso  crime'!'--  f''" 
cil  SC  descobria  em  todos,  redacção  ideil.'C:i, 
ferindo  os  mesmos  pontos,  o  por  tal  IbrA^^* 
accentuando  o  caracter  de  chopa,  ijue  era  im- 
possivol  não  advir  nas  duas  soiíuintes  conclu- 
sões : 

—  ipie  era  o  m(>smo  imlividuo,  evidente- 
mente interessado  na  accusação,  quem  passa- 
va aos  jornaes  copia  do  mesmo  artigo,  (pie  lo- 
dos publicaram,  sem  escrúpulo  de  se  fazerem 
órgãos  d'alguma  secreta  roíijiiirn  contra  o  in- 
digitado destiorador. 

—  Ou  então  seria  o  mesmo  desleixo,  o 
mesmo  abuso  de  força  jornalística,  aileila  a 


os  GATOS  5 

esmagar  reputações  a  esmo,  quem,  trauscic- 
vendo  as  noticias  lidas  em  collegas,  le  coear 
leger  el  souriíint,  fazia  resvalar  a  missão  da 
imprensa  a  um  gabinete  negro  de  calumnia,  e 
a  obra  do  jornalista  delir-se,  em  pasquinagens 
cobardes  d'energumcnos. 

Ora,  qualquer  dos  casos  a  dar-se,  a  de- 
pi'essão  moral  do  jornalismo  portuguez  é  coi- 
za  assente,  e  urgiria  remodelar  os  processos 
de  fazer  jornal,  por  maneira  a  pedir  respon- 
sabilidade aos  escriptores  pelo  que  escrevem, 
e  a  subordinar  a  factura  geral  de  cada  nume- 
ro de  periódico,  ao  visto  do  redactor  princi- 
pal, único  fiador  perante  o  individuo,  ou  pe- 
rante a  serie,  de  todas  as  doutrinas  insertas 
n'elle.  O  que  ainda  assim  faz  conservar  al- 
gum prestigio  a  certas  redacções,  é  ignorar-se 
o  cahos  em  que  ellas  vivem,  e  da  qualidade 
dos  elementos  em  quem  ellas  delegam  a  par- 
te mais  delicada  dos  seus  inquéritos  jorna- 
lísticos. 

É  deplorável !  Tirante  a  redacção  politica, 
onde  se  agrega  o  melhor  do  pessoal  de  cada 
coió  d'imprensa,  o  resto,  salvo  excepções  ra- 
ríssimas, é  uma  piolbaria  d'irresponsaveis  que 
fazem  vida  d'aguardar  emprego,  e  cmquanio 


G  os  GATOS 

esperam,  jantam  e  ceiam  ci'andar  pela  cidade 
a  disputarem-se  uns  aos  outros  os  escândalos 
ocorridos,  a  vèr  qual  no  dia  seguinte  os  dará 
mais  picantes  de  nomes  e  detalhes.  A  falia 
d'uma  ingerência  superior  nos  actos  d'estes 
trota-partes-dc-policia  (cpu'  não  podo  haver 
em  redacções  gratuitas,  clieias  do  de/hils,  em 
i|ue  a  politica  absorve  todo  o  laI)or  dos  cére- 
bros lúcidos,  como  única  coisa  digna  de  culto) 
deixa  as  restantes  secções  do  jornal  á  mercê 
das  ankiloses  moraes  e  mentaes  do  pessoal 
inferior,  para  em  breve  tornal-o  n'nnia  espé- 
cie de  porto  franco  de  tolices,  d'inexactidões  e 
de  denuncias.  Esta  exclusiva  attenção  dada  pe- 
los redactores  |)riucipaes  á  defesa  ou  á  esca- 
lada d'um  governo,  o  esta  toniadia  do  jornal 
pelos  plumitivos  somenos,  tornaram  a  impren- 
sa de  Lisboa  n'uma  instituição quasi  odiosa  para 
o  publico,  (juo  so  arreceia  da  sua  espionagem, 
e  por  outro  lado  a  não  acata  como  tribunal  mo- 
ralisante.  Durante  (|uinze  annos,  a  pessoa  que 
escreve  estas  linhas  laborou  peias  secções  lit- 
terarias  e  thoatraes  das  folhas  diárias,  i>oden- 
do  ahi  analysar  á  vontade  a  anarchia  interior 
de  cada  uma.  .Na  mór  parte  das  vezos,  a  úni- 
ca influencia  (pie  o  redactor  em  chefe  tem 


os  GATOS  7 

sobre  o  (jnadrn  dos  seus  collaboradoros,  con- 
siste n'uiiia  adaplação  mais  ou  menos  bem 
parodiada,  da  linguagem  que  elle  emprega 
nos  artigos  do  fundo.  Ou  se  um  inol-d'ordre 
assiste  á  factura  da  folba,  á  guiza  de  piano 
pliilosopliico,  as  lettras  que  o  formulam  dei- 
xam ambiguamente  á  uesorientaçào  dos  subal- 
ternos, a  escollia  dos  meios  com  que  levar  a 
cabo  a  commettida. 

Percoiram-se  os  jornaes  que  actualmente 
correm  por  Lisboa.  Quasi  todos  poderiam  ex- 
tremar-se  p'ra  dois  campos:  o  dos  que  dão  p'ra 
baixo,  e  o  dos  que  não  querem  escandalisar 
o  assignante.  O  dos  vcrgaibos,  e  o  dos  meli- 
fluos.  No  fundo  porém,  é  a  mesma  furiosa  lu- 
cla  pela  vida,  sem  escrúpulo  nos  meios  de  fa- 
zer leitores,  e  ajienas  jogando  com  baralbos  de 
cartas  dillerenfes.  E  aqui  detenlio-me.  Onde 
escrevi  baralhos  de  cartas,  poço  (pie  leiam 
baralbos  de  rcpoilerx. 


O  que  é  o  repórter?  O  caixeiro  de  fora, 
do  jornal.  Um  receptor  e  um  transmissor  de 
casos,  sem  outra  missão  além  de  os  inquirir 


o  os  GATOS 

iiiiparcialmeiUe  no  local  oníie  eiles  se  produ- 
zem, e  de  os  trazei'  a  julgar  iieraale  o  critério 
do  corpo  de  redac(;ão. 

Pela  subalternidade  do  ofíicio,  e  pela  clas- 
se vaga  e  incompleta  d'individuos  d'onde  en- 
tre nós  o  repórter  é  tirado,  prcsupõe-se  que 
este  lunccionario  não  exceda  um  nivel  de  cul- 
tura abaixo  do  mediano,  nem  na  niór  parte 
dos  casos  possa  gabar-se  d'um  dom  de  pene- 
tração \)ár  hl  além.  Porque  enteudamo'-nos 
n'islo :  o  repórter  portugucz  não  corresponde 
nitidamente  ao  repórter  do  jornalismo  lá  de 
fora.  Sae  dos  declasxés  que  ás  escolas  regeita- 
ram,  e  dos  typos  frustes  (pie  se  quizcram  exi- 
mir ás  profissões  francamente  laboriosas  e 
correntes.  Não  é  um  liomem  de  leltras,  e  por 
outi'0  lado  falta-lhe  educação  que  o  transfor- 
me n'um  critico  incisivo  dos  acontecimentos 
que  destillam ;  e  lilleratiço  falho,  arligoleiro 
sem  predicados  de  nioi'alista,  a  posição  especial 
que  eile  se  fez  no  jurnalismo,  onde  ninguém 
tem  consciência  das  responsabilidades  do  seu 
papel,  permitte-llie  o  gozo  d'iminunidades  de 
que  elie  abusa,  e  dá  margem  a  exliorbilan- 
.cias  proíissiouaes  de  (pieelle  se  vangloria.  O  fa- 
cto d'elle  ti'aballiar  muito  eganJiar  pouco,  cons- 


US  GATOS  9 

titue  a  reilacção  no  dever  <le  lhe  deixar  passar 
os  dislates  e  os  excessos.  O  redactor  principal, 
entregue  á  politica,  é  uma  raridade  percorrer  o 
(pie  elle  escreve.  Os  immediatos,  reservando-se 
certas  especialidades,  descarregam-lhc  sobre 
as  costas  todo  o  lalior  de  que  deveriam  deseni- 
penhar-se.  E  é  o  repórter  afinal  quem  faz  o  jor- 
nal, senhor  do  campo,  sabendo-se  indispensá- 
vel, e  exigindo  em  largueza  d'oplniões,  o  que  a 
empreza  lhe  não  pôde  dar  em  libras  sterlinas. 
Que  admira  então  que  tirante  certas  secções  do 
periódico,  o  resto  seja  um  apontoado  d'incon- 
sequencias,  de  perfídias,  de  baixezas  e  de  ca- 
lumnias?  Do  que  se  trata  é  d'encher  o  nume- 
ro, custe  o  que  custar. 

Em  tal  dia  por  exemplo,  as  partes  de  poli- 
cia vem  magríssimas:  apenas  sete  prisões  por 
bebedeira,  e  três  facadas!  O  bombeiro  encar- 
regado de  fornecer  incêndios,  não  apparece.  As 
ruas  não  teem  drama.  Não  sahiu  ainda  a  ordem 
do  exercito.  O  informador  mundano  não  trouxe 
bailes  nem  casamentos.  Não  se  mata  ninguém; 
as  mulheres  casadas  não  se  deixam  surprehen- 
der  com  os  amantes...  Esta  só  pelo  diabo!  Mas 
o  peor  é  que  o  assignante  não  espera,  quer 
escândalos,  nomes  conhecidos,  primeiírs.  N'es- 


10  os  GATOS 

tas  alturas  (•  o  repórter  (iiiciii  salva  a  situa- 
rão. 

Diz  por  cxeiiii)lo  a  parte  de  policia  «Preso 
F.  (nome  toJo,  morada,  estado,  (|iiantos  fdlios 
c  profissão)  por  embriaguez  e  distúrbios,  na 
[lua  Xova  da  Palma,  ás  7  horas  da  noiíe.  Con- 
duzido á  esquadra,  resistiu,  etc,  etc.» 

Confessemos  que  para  enirelenga  do  leitor 
despreoccupado,  esta  simples  noticia  extracta- 
da  do  cadastro  bastaria,  riscando-llie,  claro  es- 
tá, o  nome  e  a  morada  do  preso,  que  nada 
acrescentam  ao  drama,  e  por  outro  lado  po- 
dem prejudicai'  {gravemente  uma  fimiilia.  Mas 
ao  repórter  nem  já  a  sim[)leza  rude  da  parte 
policial  basta  ao  furor  de  novidades  que  o  es- 
canzella.  Ouer  mais  thealral,  quer  mais  typi- 
co,  e  julgar-sc-liia  deslionrado  não  tirando 
d'essa  pobre  narração  de  rua,  um  grande  dra- 
ma cm  trcs  coluninas  cortadas  d'exageros  e 
falsidades.  Assim,  o  pobre  diabo  d'operario 
que  SC  embriagou  n'uma  hora  d'ocio,  passa 
logo  a  figurar  no  cabeçalho  da  noticia,  com 
o  titulo  íVAIcooUco  furioso,  e  osvurniados  os 
antecedentes  do  iiomem,  o  repórter  inventa- 
Ihe  liabitos  orgiacos  e  excessos  de  bebedeira 
inveterados,  diz  (|ue  elle  bate  na  mulher,  que 


os  GATOS  H 

não  trabalha,  que  é  um  conhecido  frequenla- 
Llor  de  calal}OÍços;  scgue-se  depois  a  scena  da 
prisão  —  «dizcm-nos  amigos  nossos,  que  F... 
j)i'etcndia  lançar-se  sobre  uma  dama  nuiilo  co- 
nliecida  na  alta  sociedade  de  Lisboa,  brandin- 
do uma  faca  de  ponta  c  mola,  de  que  é  esgri- 
mishi  confesso,  acorrendo  então  o  guarda  198, 
da  S.'\  que  digamol-o  aqui  muito  á  paridade, 
(n  bom  serviço». 


Vinte  e  quatro  horas  corridas  sobre  a  no- 
ticia do  jornal,  esse  bêbedo  d'uma  hora,  que 
ganhava  a  vida  em  operário  modesto,  por  en- 
tre a  estima  da  sua  officina  e  do  seu  bairro, 
esse  bêbedo  d'uma  hora  acorda  para  a  rua 
onde  reside,  para  a  fabrica  onde  trabalha,  i)ara 
o  niercieiro  e  para  o  padeiro  que  llie  fiam, 
um  incorregivel  sem  garantias,  safado  e  com- 
pletanieiitc  perdido  no  conceito  de  toda  a  gen- 
te. A  phaiitasia  ou  a  coscovilhice  odiosa  do  re- 
poi'ter  tomaram  a  reputação  do  miserável, 
como  um  trapo,  escornando-a,  e  transmuttan- 
do  cm  perpetua  infâmia  o  que  realmente  não 
ia  além  d'uma  esti'avagancia  inoffensiva.  Eis 


I"2  os  GATOS 

alii  geralmente  o  papel  da  imprensa  noticiosa, 
na  policia  dos  costumes:  vèr  pela  rama,  sa- 
crificar a  verdade  á  nota  pictoresca,  inventar 
sendo  preciso,  calumniar,  mentir,  sem  remor- 
so pelos  prejuízos  causados,  nem  maior  medo 
aos  desforços  exigidos  pelas  victimas.  Quoti- 
dianamente os  jornaes  vem  cheios  d'estas  tor- 
pezas, nomes  por  inteiro,  moradas  com  a 
designação  do  andar  e  do  lado,  e  descrijjções 
da  lamilia  e  da  casa,  computo  dos  teres  o  dos 
hábitos  Íntimos,  cinco  ou  seis  creaturas  avil- 
tadas ás  vezes  em  dez  ou  vinte  linhas,  e  tudo 
isto  pelo  simples  pretexto  d'euchcr  espaço,  de 
fazer  palpitante,  e  de  vender  o  género  ao  fre- 
guez  rapidamente. 

Ha  proximamente  dez  ânuos,  uns  estroi- 
nões  derara-se  o  desfastio  de  macaquear, 
n'uma  casa  de  prazer  qualquer,  ura  casamen- 
to. Um  fez  de  padre,  outro  de  noivo,  liavia 
padrinhos,  convidados,  c  a  noiva — que  zorra! 
—  appareccu  de  flores  de  larangcira.  Dada  a 
benção  nupcial  pelo  celebrante,  n'um  latim 
que  tresandava  diabolicamente  a  pouca  vergo- 
nha, foram  todos  banquelear-se  a  cahir  para 
um  rcstaurant  fora  de  portas.  Entre  o  magote 
havia,  parece,  ingénuos  ([ue  tinham  tomado 


os  GATOS  13 

O  caso  imiilo  ao  serio,  caliiiido  com  presen- 
tes, c  (jue  ao  verem-se  ludibriados,  em  vez 
de  rir,  foram  levar  o  caso  ao  commissario. 
Agora  vereis  os  estardalhaços  das  gazetas! 

As  mais  conspicuas,  por  exaltar  a  mons- 
truosidade do  seductor,  desataram  a  pintar  a 
noiva  como  uma  d"estas  ethereas  meninas,  que 
a  ideia  só  do  macho  faria  evaporar  para  as 
alturas.  Impressionou-me  o  caso,  e  da  primei- 
ra vez  (pic  topo  o  artigoleiro  mais  afervorado 
ás  virgiiidades  anlc,  da  noiva,  inijuiro  d'elle 
se  era  certo  o  que  da  desditosa  i)rinceza  se 
dizia.  E  insisto — ella  antes  do  casamento,  era 
realmente  uma  virgem,  ó  aquelle? 

O  homem  com  uma  piscadella  d'ollio,  redar- 
guin: 

—  Para  enterrarmos  o  grandecissimo  pa- 
tife, era  necessário  que  o  fosse.  Entretanto 
que  eu  saiba,  virgem  só  ella  está  de  quem  lhe 
n.ão  der  quatro  coroas. 

—  .Vias  então  as  tlòres  de  larangeira  do  tou- 
cado. .  . 

—  Sim,  confesso,  o  tjue  ella  devia  levar 
eram  laranjas. 

Á  virgindade  refeita  pelo  jornalismo  a  esta 
rcinadia,  correspondem  cenlenas  de  desllora- 


1  í  os  GATOS 

ções  com  (jiic  os  joriiacs  ilcsacrcdilain  aniiiial- 
nienlc  raparigas  lionoslas,  publicando  noticias 
(Ic  raptos,  c  dando  curso  a  toda  a  espécie  de 
denuncias  contra  o  pudor  d'inermes  creaturas. 
Esle  o  repórter  na  sua  feição  mais  quoti- 
diana de  chronista,  que  não  é  sempre  aqueiia 
que  os  de  maior  prosápia  preferem,  sendo  mes- 
mo vulgar  que  alguns  não  vejam  duvida  em  se 
atirar  a  funcções  de  mais  alto  pincho.  Aípii 
mencionei  sem  ([uerer  o  eiilrevislciív.  O  entre- 
vistelro  é  o  repórter  em  diplomata,  o  liomem 
encarregado  de  sulijcitar  a  um  questionário,  os 
heroes  do  dia,  e  d'inferir  das  respostas  obti- 
das, um  certo  numero  de  quesitos  fulgurantes. 
Para  o  desempenho  d'estas  altas  funcções,  ca- 
rece o  repórter  de  ter  figin^a,  um  certo  aploml> 
de  homem  batido,  monosyllabos  |)rofundos,  c 
mais  (|ue  tudo  apparencias  de  boa  sociedade. 
Mesmo  porém  que  elle  jwssua  qualidades  jjara 
sahir-se  bem  das  scenas  de  comedia-drama 
que  o  officio  exige,  nem  por  isso  deixa  de 
ser  para  o  publico  um  personagem  iníliiita- 
mente  antipatliico,  cnlre  o  policia  á  paisana  e 
o  official  de  deligencias,  assim  como  sõ  com 
trabalho  consegue  evitar  a  reputação  duvidosa 
(pie  inpllcilamentc  anda  ligada  áquelle  mister. 


os  GATOS  1.-1 

La  fóra  o  eiitrcvistLÚru  chega  a  ser  qiiasi  um 
typo  perigoso,  importuno,  que  se  laz  apre- 
sentar sem  dizer  quem  é,  que  se  insinua  co- 
mo amigo,  que  lisongea  os  fracos  dos  perso- 
nagens com  quem  falia,  e  quo.  uma  voz  cer- 
to d'ellps,  por  uma  parlenda  hábil,  subenten- 
dida, zigzagueante  por  todos  os  escusos  d'um 
problema  ou  d'nm  caracter,  lhes  consegue  ex- 
Irahir  por  confidencia,  tudo  quanto  os  in- 
ressados  a  sangue  frio  desejariam  ou  deve- 
riam sequestrar  á  publicidade.  Todos  se  lem- 
bram das  calumnias  publicadas  pelos  entrc- 
visteiros  fi'ancezes,  a  respeito  da  imperatriz 
Victoria  e  de  Bismarck,  a  quando  foi  da  doen- 
ça de  Frederico  II,  na  villa  Zirio.  O  explora- 
dor Stanley,  á  volta  d' Africa,  perguntado  pelo 
dono  do  hotel  francez  a  (pie  descera,  se  rece- 
beria alguém  que  o  procurasse,  exclamou  — 
Tudo,  menos  reporters! 

Perguntem  ao  imperador  do  brazil  e  ao 
conde  d'Eu,os  niartyrios  soUVidos  com  os  en- 
trevisteiros  portuguezes,  desde  o  desembanfue, 
até  á  sua  sabida  do  paiz,  e  dos  prejuízos  matc- 
riaes  e  moraes  <|ue  lhes  causaram  as  indiscii- 
ções  e  dislates  d"a([uelles  scnliores,  não  só 
junio  do  governo  provisório,  como  também 


16  os  GATOS 

pcrautc  a  opinião  (|iii'  no  lírazil  llios  liniia  fi- 
cado favorável. 

Entro  nós,  seja  dito,  a  imporlancia  pnbli- 
cante  do  entrcvisleiro,  é  menos  viva,  dada  a 
medíocre  estofa  de  (juasi  todos.  A  sagacidade 
no  nosso  jornalismo  médio  é  nnia  coiza  pelo 
menos  tão  geba  como  o  sen  toilette;  e  toda  a 
vida  me  lembrarei  d'aquelle  entrevisteiro  por- 
tuense, que  começava  o  artigo  sobre  um  fal- 
sario  celebre:  «Apezar  do  que  os  médicos  bojo 
em  dia  nos  contam  acerca  do  liypnotismo  (; 
da  suggestão,  não  creio  que  exista  isto  a  que 
certos  fatalistas  cliamam,  a  attra(;ào  irresistível 
do  jogo...» 


Não  se  entenda  que  ou  nogno  á  iinin^ensa, 
posto  isto,  o  direito  (|ue  ella  tem  (rillucidar  a 
opinião,  informando-a  quotidiananionle  do  que 
se  passa,  o  tirando  de  cada  episodio  o  remate 
moral  (pie  eile  suggira  ao  jornalista.  Mas  den- 
tro dos  limites  do  respeito  luimano,  e  excên- 
trico a  todos  os  exageros  d'analyse  e  a  todas 
as  minúcias  d'informação,  (pio  desviando  o 
jornalista  do  seu  papel  d'ediicador,  insensível- 


inonlc  o  ievem  a  lisongear  ceiias  curiosiiladiís 
mórbidas  do  publico,  fazendo  d'elle  iiin  insen- 
sato alcaiote,  e  um  capoeira  vil  pago  ao  arti- 
go. Insistindo  ainda  sobre  o  noticiário  avnlso, 
não  vejo  que  importância  tenliam  para  o  lei- 
tor os  nomes  e  as  moradas;  e  a  mim  mesmo 
jjcrgunlo  uorque  é  que  os  jornaes  se  não  con- 
tentam com  a  simples  menção  das  noticias 
consideradas  deprimentes  para  os  indivíduos 
que  n'ellas  figuram^  eliminando  o  titulo  das 
ruas,  c  substituindo  os  nomes,  poi-  iniciaes  de 
phantasia.  Avento  para  mim  se  não  seria  mais 
digno  pòr  de  reserva,  antes  da  pul)licidado, 
uns  tantos  boatos  respeitantes  a  casos  d'ini- 
portancia,  mal  averiguados,  phantasiosos  tal- 
vez, onde  ás  vezes  figuram  nomes  sem  macu- 
la, e  SC  arrastam  pela  lama  segredos  de  fami- 
liá,  unicamente  com  propósitos  d'escandalo, 
e  como  expediente  linal  de  chunUKjes  tenebro- 
sas. Por([ue  enfeudamo'-nos.  Generalisar  aos 
fuit-divers  do  jornal  as  virulências  que  os  ar- 
ticulislas  políticos  põem  nas  suas  luclas,  usar 
levianamente  a  tinta  typographíca  para  encher 
de  nódoas  a  reputação  dos  que  incidenlaímen- 
Ic  encontraram  a  polícia  no  caminho,  exage- 
rar, menlír,  só  pelo  prazer  de  noiiciar  coisas 


18  os  GATOS 

inéditas,  estaçalliar  com  a  mesma  scm-ceriíiio- 
nia  um  scellerado  e  um  homem  tlc  bem,  ludo 
islo  constituirá  quando  muito  o  plano  de  con- 
ducta  d'um  pullia  rcfece,  mas  não  pode  sei' 
nunca  o  ttuulus  vivcndi  d'um  verdadeiro  jorna- 
lista. [-AW  nenhum  caso  resaltam  mais  doloro- 
samente as  consequências  do  mal  entendido 
papel  da  imprensa,  como  no  seguinte  e|usodio 
de  que  eu  mesmo  fui  testenninha  presencial, 
ha  pouco  tempo. 

Um  rapaz  de  quatorze  ou  quinze  annos 
praticara  á  thczoura,  n'uma  estante  do  corre- 
dor que  antecede  a  grande  sala  da  biblioteca 
})ublica,  uin  corte  angular  sobre  a  rede  d'ara- 
me  que  protege  os  livros,  e  todos  os  dias  ao 
passar,  sublrahia  por  essa  abertura  occulla, 
um  ou  dois  volumes  da  obra  de  Camillo,  (pie 
rasgada  a  rubrica  da  casa,  ia  vender  jtor  qua- 
tro vinténs  a  um  ferro  velho  ipialquerdo  liairro 
.\lto.  .\vcriguada  a  falta  dos  livi-os,  pozeram- 
se  á  espreita  os  contínuos  da  biblioteca,  e  logo 
á  primeira  conseguiram  surpreliender  sem 
custo  o  ratoneiro.  Levado  ã  policia,  os  repor- 
lers  ápoderaram-se  do  caso,  e  eu  tenho  em 
meu  poder  o  numero  odioso  em  que  o  perió- 
dico iuhís  prudente  e  mais  pojíular  da  capital. 


os  GATOS  19 

não  só  progiiosiica,  sob  o  titulo  de  gatuno  in- 
corrigível e  precoce,  ao  pequeno,  uui  futuro 
(lo  crimes  insolvavcis,  como  também  desce  a 
iulbrmar  o  publico  dos  nomes  dos  pães,  da 
profrssào  e  da  edado  dos  irmãos,  da  morada 
da  familia,  do  que  a  visinhança  contava  acerca 
(Fella,  e  detalhe  horrível,  da  doença  do  avò 
materno,  paralytico  lia  sele  annos  n'uma  ca- 
deira de  rodas!  Ao  lodo,  dezeseis  pessoas  cons- 
purcadas, c  tudo  isto  a  propósito  d"uma  le- 
viandade de  creança,  que  duas  palmaloadas 
teriam  corrigido,  sem  necessidade  alguma  da 
policia,  das  alcovitagcns  da  imprensa,  e  dos 
jioiirparlers  da  opinião!  Passam  seis  annos,  o 
rapazelho  está  homem,  e  o  pae,  lioncstissimo 
velhote  que  eu  conheço,  não  podendo  já  fazer 
seguir  um  curso  a  este  filho,  resolve  ao  me- 
nos achar-lhe  poizo  onde  elle  ganhe  honesia- 
mente  a  sua  vida. 

Procuramos  então  pelos  escriptorios  e 
grandes  armazéns  da  iíaixa,  um  logar  vago,  le- 
mos cartas  de  recommendação  de  todo  o  mun- 
do, e  como  o  rapaz  é  iulelligentissimo,  brioso, 
cheio  d'actividade  e  de  valor,  nenhum  de  nós 
perde  a  esperança  do  lhe  arranjar  trabalho,  a 
pouco  trexo.   Kntrclanto  vão-se  passando  as 


^20 


semanas,  c  depois  das  seraauas,  mezos:  < 
promessas  uão  se  decidem,  os  logares  vagos 
piv.enciiem-se  sempre  anles  de  nós  clie.^íarmos, 
e  deniro  de  pouco  a  surda  má  vontade  geral 
comera  a  dar-me  angustias.  Um  dia.  insistindo 
eu  com  uni  mercador  de  confiança,  sol)i-c  os 
molivos  provavois  da  occulía  repulsa  (pie  o 
meu  protegido  parecia  despertar,  o  homem, 
depois  d'u!na  hesitação  d'alguiis  instantes,  li- 
rou  um  jornal  da  secretaria. 

—  Olhe  p'ra  isto. 

Ei'a  o  intime  papel  que  seis  annos  antes 
fizera  pidjlico  o  caso  da  l)ib!iotlieca,  ignomi- 
nando  ])ara  todo  o  sempre  o  pobre  rapaz.  E 
esse  pastpiim  detestado  adivinliei-o  eu  depois 
em  todas  as  gavetas,  era  conliecido  de  todos  os 
commerciantes,  e  fecliando  á  victima  as  poi'tas 
da  vida  lionesta,  avoejava  como  uma  Inienit- 
ilirhit  criminal,  por  sobre  o  seu  presente  afíli- 
clivo,  por  sobi-e  o  seu  futuro  predestinado. 


Volvenilo  agora  ao  caso  iTostupro  a  qiu' 
alludi  no  principio  (Kestas  reflexões,  clianio  a 
attencão  da  imprensa  para  outro  mal,  ])or  em- 


-21 


luilo  sporadico,  mas  uciii  por  isso  nieiios 
1.11'usivo  para  o  já  abalado  couccilo  que  a 
opinião  publica  começa  a  fazer  dos  jornalistas. 
Dias  depois  dos  joruacs  lançarem  os  primeiros 
sueltos  acerca  do  crime  attribuido  ao  militar 
que  todos  sabem,  parkimentarios  destacados 
da  baixa  malandragem  do  jornalismo  — Iodas 
'-:  profissões  teeni  d'estas  escorias,  o  exercito 
'ino  a  imprensa,  e  nem  poi"  isso  qualquer 
s-  classes  deixa  de  ser  um  pilar  das  socie- 
iiles  contemporâneas  —  começaram  a  rondar 
poria  do  accusado,  e  a  pedir-llie  audiência, 
•;i;ando  a  sua  qualidade  d'amanlcs  da  justi- 
ça, e  desforçadores  da  innocencia  enxovalha- 
da. O  primeiro  que  lá  foi,  depois  d'olTerecer 
a  sua  penna  ao  desagravo  do  dono  da  casa, 
lL've  meios  d'iidbrmar  que  estava  monlando 
uma  emprcza  de  grande  futuro,  para  cujo  cos- 
teio só  liie  faltavam  20S000  réis,  saliindo  n'is- 
to,  para  d'alii  a  pouco  mandar  saber  por  ter- 
ceiro, se  S.  Ex.-'  sempre  estaria  disposto  a  dar 
a  somma.  Muito  mais  fmorio,  o  segundo,  aprc- 
sentou-se  trajando  á  diplomata,  ar  convivido, 
o  masso  de  jornaes  premido  na  axilla;  e  af- 
fastados  os  officiacs  que  estavam  de  visita,  o 
publicisla  declarou  vir  alli  como  amigo,  la- 


±2  OS  GATOS 

montava  os  desmandos  do  jornalismo  contem- 
porâneo, e  todo  o  seu  desejo  seria  amorda- 
(;ai-os  (acredite  V.  Ex.^')  convindo  o  preço.  Para 
principiar,  trazia  alli  o  primeiro  artigo  d'nma 
serie  premeditada  com  destino  a  íiizcr  luz  so- 
bre a  innocencia  d'uma  pessoa  tão  illustre  co- 
mo o  cavalliciru  a  iiuem  liniia  a  iionra  d"es- 
tar  lallando  —  e  aqui  apresentou  um  jornal, 
desdobrado  —  E  poniue  os  amigos  de  S.  Ex.'' 
viessem  na  ideia  d'ainda  haver  jornalistas  aus- 
teros, alii  lhe  deixava  vinte  e  nove  numerus 
da  folha,  para  S.  Ex.<  distribuir.  .  .  e  mais 
este  |)apelinho. 

—  ()  papeliidio  que  vem  a  ser? 

—  O  recibo  dos  trinta  jornaesinhos,  (jua- 
renla  mil  réis,  não  é  pressa  nenlmma! 

E  como  estes  maifres-clKniteurx,  outros  que 
taes.  Ora,  sendo  inquestionável  que  semelhan- 
te gentallia  não  abate  do  sen  legitimo  presti- 
gio uma  corporação  benemérita,  como  a  dos 
jornalistas,  não  conviria  menos,  apezar  de  tu- 
do, extremal-a  por  todas  as  formas  d'expulsão 
o  de  denuncia,  por  modos  (pie  alguma  vez  não 
tivéssemos  de  corar  pela  |)arceria  d'esles  fal- 
sos camaradas. 


os   GATOS  23 


'24  de  Selem  Oro. 

Os  jornaes  noticiavam  lia  dias  dois  casos 
<le  violência  exercida  sobre  menores  do  sexo 
feminino,  accrescenlando  que  era  o  sexto  caso 
d'este  género  de  que  as  auctoridades  do  dis- 
li-i(-lo  tomavam  conhecimento,  durante  o  mez 
corrente.  Infâmias  de  egual  jaez  teem  os  perió- 
dicos de  Lisboa  descripto  e  commentado,  nos 
últimos  tempos — desde  a  mulher  da  rua  do 
Arsenal,  ([ue  ia  recoUar  pequenas  de  li  annos 
á  província,  para  o  trafico  do  amor  infame, 
até  á  d'aqnella  neta  que  a  avó  cedeu  á  mu- 
lher d'um  cocheiro,  a  qual  ia  todas  as  noites 
vendel-a,  por  essas  casas  de  passe,  aos  appe- 
tites  sádicos  de  meia  dúzia  de  velhos  devas- 
sos. Devemos  confessar  que  estas  monstruosi- 
dades não  eram  fi'equentes  aqui  ha  cincoenta 
annos,  como  agora,  em  Portugal,  aonde  o  ho- 
mem, mesmo  vicioso,  mantinha  a  virilidade  al- 
tiva da  raça,  contendo  os  seus  d(ísmandos  n"um 
cyclo  de  orgias,  (pie  raro  faziam  violência  á 
natureza. 

Não  o  seduziam,  como  agora,  estas  pullu- 


liiales  raivas  d'eslhesiar  a  fadiga  dos  iieni- 
vinda  dos  excessos  ou  dos  ânuos,  pela  m  i- 
deiiina  na  polpa  virgínea  e  branca  dos  tVuctos 
insazonados,  e  jicia  assaltada  à  innoccncia  cras- 
sas pequeninas  insexuaes,  cuja  divina  infiincia 
d(niM'a  adorar-se,  como  uma  das  mais  pnin-* 
(■  <  luradas  coisas  do  universo. 

l'or  quantas  e  quaes  deprimentes  cau.s;i>, 
secreta  e  lenlamenlc  evolucionadas,  diegamos 
nós  a  osÍkI  perversidade  no  amoi-? 

[Via  velhice  precoce,  radiaila  de  lactoiv 
diversos  —  desde  a  inania  licreditaria,  até  a 
insalubre  educação  das  eset)las  e  das  otiicinas 
—  que  aos  triída  ânuos  invalida  os  liabilantes 
das  nossas  cidades,  cuja  eneriíia  pliysica  se 
apagou  na  de|)ressão  do  meio,  na  falta  de  exer- 
cícios safubres,  de  hygiene  e  de  cultura  moral, 
c  cujo  systema  nervoso  se  foi  exasiierando 
até  aos  clowuismos  da  nevrose,  e  inveilendo 
a  polarisação  dos  aclos  vilães,  desde  as  finic- 
ções  das  vísceras  até  ás  funcções  do  caiacter, 
desde  as  sensações  até  aos  sentimentos,  desde  os 
actos  da  inlellígcnciaaté  aos  aclos  da  vontade. 

Mais  ou  menos,  ha  cm  cada  um  de  nós  ura 
Des  Esseiííh,  fruste  talvez,  e  ein  ccciosão  ape- 
nas, mas  absolutamente  inferior  como  indi- 


viduo,  ao  fypo  [juysiologico  do  iiuuiciii  vali- 
do e  do  homem  são.  Mas  ha  oiUro  faclor  tam- 
bém a  oppòr  á  senectude  do  homem.  E'  a  ex- 
traordinária precocidade  da  mulher. 


As  raças  reprimidas  eui  bairros-gaiolas, 
como  são  os  bairros  das  nossas  velhas  cida- 
des, em  casas  sem  sol,  entre  saguões  e  sar- 
gelas — pouca  agua,  ar  podre,  limpeza  nenhu- 
ma, escasso  alimento,  e  demasiadas  exigên- 
cias de  prazer  e  de  trabalho— deitam  rebentos, 
que  apenas  fugidos  dos  berços,  parecem  já 
mais  ou  menos  aptos  ao  exercício  d'artes  e 
funcções,  que  d'anles  eram  para  assim  dizer 
regalia  exclusiva  da  edade  forte.  É  encarar  o 
gaiato  de  Lisboa,  como  prototypo  dos  fdhos 
das  classes  trabalhadoras:  é  encarar  o  collè- 
gial,  como  specimen  de  progenilura  da  nossa 
classe  media.  Da  bocca  dos  mais  pequenos, 
dos  mais  innocentes,  da  crcança  que  apenas  fal- 
te, balbuciando  as  coisas  com  difficuldade,  rom- 
pem ás  vezes  palavras  que  em  si  condensam 
mais  de  trinta  annos  d'experiencia  e  de  ruse. 

Nas  frialdades  du  olhar  (nos  garotos  da  rua 


'lii  os   GATOS 

sobaiii(lo)  sccco  e  tenaz  por  entre  as  peque- 
ninas nigas  (las  palpei)ras  avermelliadas  d'o- 
phthalniia,  cnregelain-se  a  rcllexão  e  a  inso- 
lência de  sexagenários  que  viram  tudo,  assis- 
tiram a  tudo,  provaram  de  tudo,  e  para  os 
(piaes  o  mundo  já  não  contém  sui'pre/as  nem 
mysterios.  Observar  como  elles  correm  na 
rua,  ílanando  em  bandos— pequenos  mepliis- 
toplieles  do  enxurro  —  a  fazer  troça  á  mulher 
da  hortaliça  que  passa,  com  plirases  precoces 
de  voi/oiLs  iniciados  em  certos  cultos,  ou  indo 
i'cpetir  á  porta  dos  lojistas,  nos  bairros  lòbre- 
gos,  as  scies  desavergonhadas  com  que  certos 
lojistas  embirram  muito.  E  as  suas  conversas, 
em  que  ha  inimicas  de  macaco  e  aravias  cy- 
uicas  de  grilheta ! 

As  suas  chalaças,  (pie  brotam  culre  caniii- 
tonhas  macabras,  como  uma  revelação  do  Ins- 
lincto  cómico,  arguto  até  ao  sardonismo !  As 
suas  alegrias,  que  não  teem  saúde  no  rir  exan- 
gue da  bocca,  c  aos  doze  annos  vem  já  ator- 
mentadas por  uma  espécie  de  raiva  convulsi- 
va !  As  suas  cóleras,  inconsistentes,  por  acccs- 
sos,  que  tceni  da  inq)ulsão  monomaniaca  dos 
degenerados,  e  dos  contrasensos  brutaes  das 
bestas  carniceiras ! 


27 


Com  as  pcíjuenas,  o  mesmo.  A  natu- 
reza fal-as  mulheres,  quando  ellas  para  as- 
sim dizer,  nem  ainda  começaram  a  ser  crean- 
ças. 

.Mais  ou  menos,  são  quasi  todas  umas  ve- 
lliinhas  de  mama,  sem  infância,  sem  ingenui- 
dade, compostasiuhas,  tolasinhas,  já  scepticas 
e  maldizentes,  copiando  as  locuções  que  ou- 
vem, fazendo  esforços  de  perspicácia  para  adi- 
vinhar aquillo  que  não  comprehcndem,  subs- 
tituindo o  capricho  á  emoção,  a  eíTervescencia 
liysterica  á  livre  expansão  da  infância,  o  de- 
sejo do  maridinho  ao  desejo  da  boneca,  e  a 
conversa  com  liomens,  aos  turbulentos  brin- 
(piedos  com  as  demais  da  sua  edade,  pelas 
ruas  ensaibradas  d'um  jardim.  A  natureza  fal-as 
mulheres  quando  para  assim  dizer  ellas  ainda 
uein  creanças  entraram  a  ser.  Tudo  n'ellas, 
excepto  a  estatura,  condiz  ao  modelo  da  mu- 
lher mal  educada,  namoradeira,  vaidosa,  fú- 
til, embirrenta,  tão  vulgar  entre  as  mulheres 
de  Lisboa,  ou  sejam  senhoras  ou  cigarreiras, 
fdhas  de  carpinteiros,  ou  fdhas  de  capitalis- 
tas. .  .  A  mesma  loquella  descercbrada,  intro- 
metfendo-se  nas  conversas  com  uma  imperti- 
nência de  mau  gosto ;  o  mesmo  saracoteado 


2S 


1111  íiiiiiai,  i|iir  M'  in^[iira  !iii  jiui  iu  iia.-- ;;ciri/(,'S 

do  Priacipe  Ilcal,  ao  fazoi'cm  papeis  de  dii- 
ffueza,  e  no  iidleru  das  aamirems,  ao  caularem 
o  Semr  iikalde  mai/or:  a  mesma  cmiosidade 
inquietante  em  procurarem  o  convivio  de  pes- 
soas grandes,  como  para  iiies  ijoberem  nas 
conversações,  os  venenosos  suecos  de  certas 
palavras  c  certas  intenções — e  sobretudo  aquel- 
la  lebre,  aquelia  anciã  d'adivinliarem  por  bai- 
xo das  coisas  apparentes.  .  .  por  uma  palavra, 
um  olhar,  uma  iiudiicc  d'cxpressão.  .  .  alguma 
coisa  do  pandemonio  humano  que  ellas  des- 
confiam lhes  occultam,  e  que  as  tresvaira — 
pequeninas  perversas  inconscientes! — ao  pon- 
to de  as  fazer  saltar  dezenas  d'annos  na  evo- 
lução da  edade,  lornando-as  mulheres,  quando 
ellas  ás  vezes  nem  sequer  completaram  ainda 
a  primeira  dentição. 

Filhas  de  banqueiros  ou  fdhas  d'operarios, 
não  se  imagina  o  que  cilas  são  d'inquielado- 
ras,  aos  doze,  treze,  quatoi'ze  annos,  e  com 
que  felina  arte,  encantadora  e  abominável, 
muitas  (ressás  pequenas  sabem  fazer  a  corte 
aos  homens,  a  occultas  das  aias  e  das  mamãs. 
Desconhecidas  larvas,  rastejando-lhes  no  san- 
gue   mórbido    (jue  herdaram,  vem  produzir 


-2!) 


ii"a(|iK'll;i  crise  da  od;uie,  as  mais  singulares  o 
inconressavpís  pyxcrias. 

ílemetliadas  oii  ricas,  os  collegios  auxiliam, 
|ii'la  vida  coininum,  a  evolução  e  a  quiníessen- 
cia  d'esLis  estranhas  personalidades.  As  po- 
bres víio  para  a  officina  ou  vão  jiara  a  modis- 
ta, muilo  novas,  inipiibcros  quasi;  e  alli,  em- 
ífuanto  as  regentes  dormitam,  e  as  inachinas 
Iraballiain,  parallclamente  á  costura  c  aos  es- 
torces da  labuta  profissional,  scgiic-se  um 
curso  gradual  de  galantaria,  ensinado  pelas 
abellias-niesti-as  ás  jovens  niosquinhas-mortas 
entradas  de  novo,  um  curso  cocliichado  ao  o»i- 
A'ido,  entre  risinhos,  pequenos  beijos,  suspiros 
—  um  curso  de  galantaria  que  nem  sequer  ao 
menos  tem  a  livral-o  da  libertinagem,  uma  va- 
porosa aza  ponleaguda,  elysea  e  tremula,  de 
sentimento.  Nos  nossos  paizes  do  sol,  em 
que  a  bolleza  não  tem  a  oscudal-a,  a  torna!-a 
uma  coisa  solida  e  persistente,  os  relevos  ós- 
seos do  esifueleto,  e  é  feila  de  carne  apenas, 
de  frescuras  de  tinta,  brillio  d'ollios,  e  diaplia- 
neidades  mimosas  de  cútis,  a  nossa  mulher 
cedo  eininurclia,  e  eslá  fanada  aos  vinte  c 
cinco  ânuos,  ao  primeiro  désgostn,  á  primei- 
ra doença,  ou  ao  primeiro  filho. 


30  os  GATOS 

O  período  il'eflloresceucia  estlictica  ini- 
cia-se  para  ellas,  portanto,  logo  desde  os  co- 
meços da  adolencencia — o  que  se  cliania  a  bel- 
leza  do  diabo  —  quando  para  assim  dizer  o 
sexo  anatómico  inda  não  falia,  e  o  sexo  mo- 
ral já  tem  eloquências,  que  arrastam  o  outro, 
aihui-aihít,  empós  do  primeiro  idyllio  roma- 
nesco. 

A  rapariga  está  assim  doscíjuilibrada  luj 
mais  profundo  do  seu  sèr. 

A  degeneração  orgânica  da  casta,  e  a  vi- 
ciação do  meio  social,  tornaram-n'a  já  n'uma 
mulher  vorazmente  amorosa,  constantemente 
solicitada  pelo  mau  exemplo  e  pela  tentação, 
com  paixonetas  e  agasluras  hystericas,  ao  pas- 
so que  a  edade  e  a  miséria  eslructural,  her- 
dada ou  contraliida,  se  manteem  ainda  nas 
hesitações  e  tibiezas  da  creança.  N'clla,  o  es- 
pirito tem  todas  as  labaredas  d'um  facho,  em- 
(pianto  o  corpo  é  frágil  e  ondeante  como  uma 
gaze. 


N"eslas   alturas,  pois,    o  incêndio  é  uma 
coisa  inevitável. 


os   GATOS  ol 

Ponham-se  agora  aquelles  homens  que  eu 
disse,  precocemente  envelhecidos,  sein  api)e- 
tites  naturaes,  sem  saúde,  com  dyspepsias  no 
vicio  alterando-lhcs  os  desejos  em  exolicida- 
des  bizarras,  mancos  de  energias  physicas  que 
os  i'eintegrem  triumphanlemcnte  no  seu  papel 
de  niaclios  c  procreadorcs,  ao  lado  d'cstas  es- 
tranhas charmeuses  d'olhos  garços,  cabellos 
em  iliien,  bocca  enigmática,  mãos  exangues, 
seio  fino,  e  riso  dúbio — virgindades  sem  in- 
iiocencia,  que  teem  pressa  de  chegar  á  nu- 
bilidade  —  e  digam-me  depois  o  que  succe- 
derá. 

l:AÍdenlemente  a  desavergonhada  da  rua 
do  Arsenal  não  recrutai'ia  creanças  para  o  seu 
talho,  a  despeito  da  severidade  dos  regula- 
mentos policiaes,  se  essa  caminha  tenra,  bran- 
ca, assucarada,  cheirando  a  sol  e  a  biberoii, 
não  tivesse  procura,  e  liie  não  valesse  gorge- 
tas  anafadas. 

A  mulher  das  Olarias  já  teria  abandonado 
o  seu  systhema  de  visitas  nocturnas  aos  san- 
tuários de  Vénus,  com  a  pupilla,  se  todas  as 
tai'des  não  fosse  uma  velha  de  capote  e  lenço, 
com  um  bilhetinho  da  sacerdotisa  do  templo, 
a  D.   Isaura  ou  a  D.  bmocencia,  marcar-lhc 


3-2 


um  re)ide:-i'on.f  para  o  Gasiro  bexigoso,  ou 
para  o  Pimenta  dos  óculos. 

As  mães  não  envia i'iam  aos  cafés,  peque- 
nitas de  seis  o  selo  annos,  li':ijadas  com  certa 
yari'idico,  n  vender  cautelas  ou  a  pedir  esmo- 
la, com  um  s(írriso  de  fazer  frio  aos  menos 
l)ropcnsos  a  sentimentalidades,  se  lhes  não 
aguçasse  a  cubica,  as  esmolas  de  cinco  tos- 
tões com  ({ue  os.  francelhos  da  crapulosa  /■/- 
f/olade  de  Lisboa,  armam  isca,  aos  transvia- 
dos c  implumes  passaritos.  Logo  esta  industria 
infamo,  tem  procura,  c  vale  a  pena  de  ser 
exercida,  a  despeito  dos  perigos  de  ((ue  se 
cerca ! 

O  acto  é  por  tal  forma  monstruoso,  illogi- 
00,  e  extravasado  dos  processos  gcraes  da  jiliy- 
siologia  voluptuosa,  (pie  não  jwdc  explicar-se 
por  uma  sobrexcitaçãn  do  ap])etite  são,  se- 
não como  deficiência  do  substraclo  mental, 
que  a  prisão  não  corrige,  e  (pie  talvez  se  foi 
l)ouco  a  |)ouco  preparando,  em  parallelo  com 
outras  manqueiras  humanas,  á  niíídida  que  a 
i"iça  se  esgotava,  estcrilisando-se,  n"um  rom- 
mcncemciil  de  la  fin,  como  o  de  Homa,  no 
tempo  de  Calígula  e  Tibério,  que  o  diabo  te- 
idia.  Todos  os  esforços  dos  reformadores  de- 


os  GATOS  33 

verão  pois  recuar  para  mais  longe,  c  ir  refa- 
zer a  cidade,  não  a  sabor  do  empirismo  dos 
lunáticos,  que  investigam  da  felicidade  colle- 
cliva  por  palpite,  como  o  Fonseca  das  caute- 
las, mas  sob  os  respeitos  d"um  plano  vasto  e 
geral,  em  que  sejam  destruídas  todas  as  cau- 
sas averiguadas  d'envilecimento  orgânico  e 
moral  da  familia  portugueza,  e  sotopostos  em 
leis,  todos  os  pi'incipios  que  a  sciencia  apu- 
rou dos  seus  dois  séculos  d'investigaçôes,  c 
que  d'alguma  maneira  possam  auxiliar  ou  de- 
senvolver, aquella  felicidade. 

— Mas  esse  plano?  dirá  alguém. 

Esse  plano,  os  especialistas  que  o  fundam, 
que  o  redijam,  que  o  proponham,  e  que  o  dis- 
cutam. Us  elementos  abundam.  Pensam  os  se- 
nhores que  não  sei'ia  já  muito  o  alterar  com- 
jtletamente  o  systhema  d'edificações  em  que 
Lisboa  mora,  respira,  trabalha  e  solTre?  e  que 
sob  todos  os  respeitos,  são  a  coisa  mais  as- 
phy.xianle  e  deletéria  que  se  conhece? 

Nos  paizes  mais  adiantados  da  Europa, 
começa-se  já  a  pensar  n'este  problema  seria- 
mente; e  a  par  dos  esforços  tendentes  a  livra- 
rem os  ricos,  por  algum  tempo  ainda,  das 
vindictas  dos  trabalhadores,  pela  forjadura  de 


M  os  GATOS 

coiligos  regularisailores  ilu  Irabalho  e  do  lu- 
cro, capricham  os  estudiosos  cm  fazer  resur- 
gir  da  apalhia  pliysica,  as  popidações  vergas- 
tadas peia  miséria,  em  cuja  vida  o  pão  escas- 
seia, e  supcrahundam  os  desregramentos. 

Para  não  fallarmos  senão  da  França,  dire- 
mos que  no  espaço  dos  últimos  dois  annos, 
teem  as  sociedades  sabias  de  Paris,  Toui's, 
Montpellier,  Lyon,  etc,  discutido  pelo  menos 
uma  cincoenlcna  d'assumptos  concernenles 
á  remodelação  das  cidades,  desde  as  habitações 
até  aos  indivíduos,  pelos  pro('essos  quea  scicii- 
cia  experimental  dcliuilivainenle  acousollia. 

D'esses  problemas  citaremos  ao  acaso,  pro- 
hibidos  como  estamos,  de  detalhar  (jiuilquer 
episodio  especial: 

—  Siinnéiuujc  e  molmcinii/c  nas  escolas  e 
nas  olficinas. 

—  Regulação  du  trabalho  das  mulheres  e 
dos  menores,  quer  nas  escolas,  quer  nos  ale- 
liers — limite  máximo  d'edade  em  que  umas  e 
outras  devem  começar  a  trabalhar  —  numero 
de  horas  de  trabalho  quotidiano— regulamen- 
tos sol)re  o  trabalho  nocturno,  e  especificíiçào 
da  edadc  e  dos  mesteres  ein  que  esse  trabalho 
deva  ser  pcrmitlitlo. 


os  GATOS  35 

—  Ilygieue  obriííatoria  das  officinas,  lyceiís, 
miigasins,  egramles  fabricas^siia  capacidade, 
tiragem,  graduarão  de  luz,  etc. 

—  Ilygiene  na  coiistiiicção  das  residências, 
dimensões  de  ruas,  janollas,  e  exposição  e 
veiililação  dos  quartos. 

—  Ilygiene  da  alimentação  —  fiscalisação 
rigorosa  sobre  a  pureza  e  o  preço  dos  alimen- 
tos de  |)rinieira  instancia. 

—  Propliylaxia  das  doenças  contagiosas, 
especialisando  as  secretas,  que  estão  sujeitas 
a  nina  fiscalisação  sagacíssima,  por  banda  da 
|»olicia  sanitária. 

—  Distribuição  gratuita  de  regulamentos 
sanitários  pi'eventivos  da  infecção. 

—  Estabelecimento  de  banbos  públicos  gra- 
tuitos para  toda  a  gente,  por  conta  das  muni- 
cipalidades. 

— Creação  de  parques,  jogos  públicos  e  di- 
versões baratas,  aonde  os  operários  possam 
espairecer,  ao  fim  d'unia  semana  de  trabalho. 

—  Ilospilaes  para  creanças  rachilicas  e  es- 
crophulosas,  á  beira-mar. 

—  Fundação  de  Ooiirses  de  voyage  collecti- 
vas,  para  os  aiumnos  das  escolas  publicas  das 
cidades,  d'ambos  os  sexos,  com  o  fim  de  lhes 


36  os  GATOS 

proporcionar  viagens  de  recreio  ás  praias  e 
florestas  de  França,  duranie  as  ferias. 

—  Eslabelecinienlo  d'ofricinas  annexas  ás  es- 
colas, d'exercicios  militares,  gyninasios,  esco- 
las de  canto  ciioral,  esgrima,  nalarão  e  cano- 
tageni,  com  um  certo  niiinero  de  notas  de  fim 
d'anno,  que  entram  na  classificação  geral  do  cnr- 
so,  com  uni  valor  egual  aos  das  outras  aulas. 

—  A  mais  assidua  vigilância  sobre  a  saú- 
de, os  costumes,  os  hábitos  e  as  tendências 
da  infância,  gradual  e  amoravelniente  exerci- 
da, para  corrigir  n'estes  as  man((ueiras  lieie- 
ditarias,  e  attenuar  n'aíiuelles,  vivacidades  e 
violências  demasiosas,  já  não  aspliyxiando-as, 
mas  fazcndo-as  derivar  para  um  caminho  apro- 
veitável. 

—  Ilygicnc  da  niateiiiidade,  exposições  de 
creanças,  etc,  etc. 

E  por  idtinio,  accrescentaria  eu  a  toda  esta 
série  de  problemas  capiíaes  para  a  vida  con- 
temporânea, mais  um,  que  é  importante  aci- 
ma de  todos,  e  vem  a  ser,  a  intervenção  da 
policia  medica  nos  casamentos,  ponto  por  ago- 
ra theorico,  como  meio  de  prevenir  as  allian- 
ças  doentias  que  abastardam  a  descendência 
até  ao  extremo  Ínfimo  que  se  está  vendo. 


os  GATOS  37 

Pois  se  eu,  anles  de  comprar  o  cavallo  de 
que  preciso,  e  a  chnise-longue  em  que  me 
deilo,  investigo  primeiro  se  cavallo  e  chaixc- 
hiiffiie  não  teem  coisa  ncnliuma  partida,  por- 
que não  liei  de  fazer  o  mesmo  (en  mémificanl  la 
finisc)  á  mulher  com  quem  me  caso ;  ou  por- 
(pie  não  ha-de  essa  mulher  inquirir  da  minha 
saúde  e  da  minha  solidez,  sabendo  que  a  ca- 
sar com  um  invalido,  vae  crear-se  um  marty- 
rio  para  toda  a  vida? 

Talvez  porque  em  nossos  dias,  o  casamen- 
to seja  para  mulher  e  marido,  uma  espécie 
de  retirada  da  vida  alegre,  d'asylo  de  rheu- 
matismos  latentes  e  dyspepsias  contraliidas, 
(jue  os  ajuda  a  viver  mais  algum  tempo,  e  de 
que  os  fdhos  pagam  as  custas,  vindo  a  este 
mundo  já  derreados,  desforçando-se  porém  da 
inania  herdada,  pelo  prazer  d'amaldi(;oarem  a 
toda  a  hora  —  os  pães. 


EXPEDIENTE 


csaiiao 


Muito  brevemente  apresentaremos  os  pros- 
pectos para  a  pnblicação  d(!  uma  edição  >io- 
NUMEiNTAL  ilo  notavel  romance  AMOR  DE 
PERDIÇÃO,  do  príncipe  dos  escriptorcs  por- 
liigiiezos,  Camillo  Castello  Bn.VNCO,  o  ro- 
mancista de  impcrecivcl  renome  e  incgualavcl 
talento,  espciando  que  V.  Ex.»  nos  reservará 
a  sua  assignalura  para  tão  importante  pidili- 
cação.  A  edição  que  emprehendcmos  consti- 
tuirá um  verdadeiro  primor  de  bibliograpliia 
nacional,  pois  será  illustrada  com  magníficos 
desenhos  devidos  aos  reputados  e  laureados 
artistas  portuguezes — J.  J.  de  Souza  Pinto,  Cae- 
tano Moreira  da  Costa  Lima  e  J.  d'Almeida  c 
Silva,  inserindo  também  prefácios  e  estudos 
críticos  dos  nossos  notáveis  homens  de  letras 
—  Manuel  Pinheiro  Chagas,  Ramalho  Ortigão  e 
Tlieophilo  Braga,  trabalhos  feitos  expressamen- 
te para  esta  monumental  edtçào. 

Ucará,  assim,  pois,  esta  edição  especial  do 
notavel  romance  AMOR  DE  PERDIÇÃO  como 
um  monumento  perdiu'avel  em  iiuiira  do  seu 
iunuortal  auctor. 


Os  editores  oHereccm  a  todos  os  assigiiaii- 
les  d'esta  inoniiniental  edição  um  brinde  de 
um  grande  valor  artistico,  c  t;il  que  alú  hoje 
ainda  se  não  distriljuiu  no  paiz  brinde  de  va- 
lor comparável  a  este.  K  uma  soi)crl)a  oleo- 
grapliia,  finissinia,  de  grandes  dimens(jes,  e 
copia  do  notável  quadro  Uma  scoxt  de  Pom- 
peia, que  enri(|uece  um  dos  museus  da  Itália, 
c  que  é  devido  ao  pincel  do  celebre  artista 
italiano  L.  Crosio. 

E  tão  notável  esse  (juadro,  que  todas  as 
illustrações  estrangeiras  o  léni  reproduzido  em 
suas  pai,inas  em  biíllas  gravuras  dos  melhores 
artistas,  dedicando  áquelle  soberbo  trabalho 
notáveis  artigos  c  fozendo  os  maiores  elogios 
ao  auclor  do  quadro. 

Póde-sc  afoitamente  garantir  (|ue  o  valor 
real  do  brinde  é  de  metade  da  oiíka  que 
vamos  publicar. 

A  edição  acha-se  já  quasi  prompla,  faltan- 
do apenas  concluir  os  albuns-specimens,  pros- 
pectos e  cartazes;  e  a  publicação  regulai'  co- 
meçará brevemente,  sendo  antes  dMsso  exposto 
ao  publico  o  MAGNIFICO  brinde  que  oITerece- 
mos  gratuitamente  a  todos  os  assignantes. 


OS  EDITORES. 


FIALHO  D'ALMEIDA 


OS  GATOS 

PUBLICAÇÃO  SEMANAL, 
D'INQUERIT0   Á    VIDA   PORTUGUEZA 


ri7— lide 


SUMMARIO 


Em  que  se  pedem  illustraçOes  ao  livro 
branco,  para  explicação  das  nossas  der- 
rotas diplomáticas  —  diagnostico  da  di- 
plomacia actual,  e  necessidade  dos  embai- 
xadores se  não  parecerem  com  os  creados  de 
servir  —  o  snr.  rarjona  em  londres,  e  das 
suas  singulares  aptidões  africanistas — 
barjona  mul.\to  e  janota  :  necessidade  que 
teem  os  diplomatas  de  serem  bellos  e  bem 

NASCIDOS  —  RETRATO  D'UM  GERO,  E  SEU  ANTA- 
GONISMO C0'AS  raças  puras  — INCONTINÊNCIA 
DAS  SUAS  URINAS,  MOBILIDADE  DAS  SUAS  IDEIAS, 
E  DEMONSTRAÇÕES  INFERIORES  DO  SEU  HUMORIS- 
MO—DOIS DITOS  ERÓTICOS— FRAGILIDADES  D'UM 
HOMEM  CELEBRE:  O  SNR.  BARJONA  DANDV,  BRÉ- 


II  os  GATOS 

JEIROTE  DAS  PRAIAS,  E  FADISTA —  CHEGADA  A 
LONDRES,  E  RECEPÇÃO  DE  <es  (htmcs,  PELO  PES- 
SOAL DA  EMBAIXADA— DELÍQUIO  DA  EMBAIXATRIZ 
E  CORTEJO  cívico  Á  CLOACA  —  O  SNR.  BARJO.NA 
NO  Holel  Bristol:  GRANDE  vida  E  grande  RODA 

—  Ai    SC    camólt!  —  A    PRIMEIRA   CONFERENCIA 

NO  Foreign-Officc,  E  analogias  DO  embaixa- 
dor PORTUGUEZ  COM  CALISTO  ELOY  — COMO  S. 
EX.\  VAE  PREPARADO  PARA  BATER  A  LORD  SA- 
LISBURY  —  JANTAR  DE  GALA,  E  GENTILEZA  DO 
SNR.  BARJONA  A  LADV  SALISBURY  —  AYERIGUA- 
SE  QUE  É  INDECENTE,  E  TEM  A  PREOCCUPAÇÃO 
DOS  ALFAIATES  —  SIR  CURRIE  E  OS  BILHETINHOS 

—  PLENIPOTENCIÁRIO  PORTUGUEZ  CONTANDO 
AOS  LACAIOS  DO  Foreiíjll,  ANEDOCTAS  DE  FRA- 
DES—  ÓDIO  BRITANNICO  AOS  TVPOS  SUBALTER- 
NOS—  A  JULIANA  DO  PritHO  Itnsilio  EMPRESTA 
CARACTER  Á  LINGUAGEM  DE  CERTOS  TELEGRAM- 
MAS  DO  LIVRO  BRANCO — DEMONSTRAÇÕES  SER- 
VIS PERANTE  O  INGLEZ  —  O  SNR.  BARJONA  PELO 
BEIÇO  —  CONTRAPROVA  INSALUBRE  DAS  SUAS 
PAIXÕES  QUAZI  ANIMAES  —  PERDE-SE  MOÇAM- 
BIQUE POR  S.  EX.a  NUNCA  TER  TIDO  BONS  CASA- 
COS—  VALOR  DE  S.  M.  EM  KILOS  REDONDOS: 
OS  REIS  E  OS  PORCOS  —  CARICATURADA  VALEN- 
TIA ALFACINHA. 


29  de  Setembro. 


A  par  (lo  livro  branco,  expositor  dos  pla- 
nos africanistas  do  gabinete  que  vem  d'expi- 
rar,  como  o  pedrasta  do  conto  de  Ricliepin, 
n'uma  latrina,  deveria  a  nossa  chancellaria  ter 
dado  a  lume  uma  espécie  d'album  d'aguarellas, 
onde  a  posteridade  podesse  ver  bem  as  caras 
dos  negociadores,  e  os  toiletles  cm  que  o  snr. 
Barjona  de  Freitas,  enviado  extraordinai'io  do 
governo  porluguez,  entrou  no  Foreign-Of/ke, 
foi  aos  jantares  de  Windsor,  ou  assistiu  ás  re- 
cepções de  lord  Salisbury.  Mais  que  ncnliuma 
outra  espécie  de  documento,  esse  álbum  nos 
teria  explicado  as  derrotas  diplomáticas,  não  só 
por  uma  falta  de  lucidez  na  revindicação  dos 
nossos  direitos,  como  principalmente  pela  in- 


4  OS  GATOS 

verosiuiil  lidicularia  ila figura  que  a  Londres  foi 
justar  a  causa  portugueza. 

Bem  sei  que  os  owiddoa  de  hoje  não  são 
mais  os  pei'sonagens  supremos  de  lia  dois  sé- 
culos, e  que  as  negociações  entre  os  governos, 
perdendo  o  caracter  aventuroso  d'outr'ora, 
tendem  cada  vez  mais  a  suprimir  o  agente  di- 
plomático. Todavia  este  antigo  arl)itro  dos  des- 
tinos da  Euroi)a— no  tempo  em  (pie  a  politica 
era  apenas  o  diverliculo  das  casmurrices  ])cs- 
soaes  dos  reis,  e  dos  caprichos  liyslericos  das 
favoritas  c  das  solieranas — se  já  não  salva  nem 
perde  dyuastias,  só  pelo  prestigio  pessoal  da 
sua  helleza  ou  da  sua  argúcia,  nem  por  isso 
deixa  de  ser  nas  cortes  estrangeiras  como  uma 
syntliese  viva  dai^açaque  o  envia,  e  como  uma 
amostra  das  qualidades  e  dos  defeitos  do  paiz 
que  elle  tem  a  missão  de  representar. 

Hoje,  a  diplomacia  europea  é  conduzida  e 
dominada  pela  fataliilade  dos  factos,  e  a  opi- 
nião (!  a  única  soberana  (pie  ainda  alguma  vez 
pôde  contel-os.  Quatro  i-aças  disputam  entre  si 
a  hegemonia  do  uumdo,  e  todo  o  movimento 
das  cliancellarias  obedece  á  trepidação  (Fessas 
raças  rpie,  na  Eurojja  ou  lora  d'ella,  preten- 
ilem  tomnr  o  passo  umas  ás  outras,  for  forma 


os  GATOS  5 

que  tirada  ao  embaixailor  a  iniciativa  do  func- 
cionario  autónomo,  com  carta  branca  para  a 
escolha  dos  meios  de  dar  batallia,  que  elle  con- 
servava ainda  no  tempo  de  .1.  de  Maistre  e  do 
conde  de  Lavradio,  as  pendências  diplomáti- 
cas resolvem-se  directamente  entre  os  gabine- 
tes, sendo  o  embaixador  apenas  um  interme- 
diário para  o  apasiguar  dos  pequenos  inciden- 
tes. Vae,  por  isso  mesmo  que  o  seu  ofíicio 
baixa  em  profundeza,  deve  subir  a  míse-en- 
scene  inhcrente  á  ideia  de  ser  elle  o  represen- 
tante carnal  do  povo  (jue  o  envia,  e  não  con- 
vir jamais  entre  estrangeiros  abater  o  rang 
d'esse  povo,  até  ao  extremo  em  que  o  embai- 
xador se  confunde  com  o  creado  de  servir. 


Ora,  esfoçando  um  pouco  nos  predicados 
que  o  snr.  Hintze  achou  no  snr.  Barjona  para 
envial-o  como  representante  de  Portugal,  á 
corte  mais  requintada  e  formalista  do  mundo, 
vc-se  o  seguinte.  Como  (ifriconder,  o  snr.  Bar- 
jona  c  uma  bestinha  mansa  e  pegadiça,  sem 
entluisiasmo,  porque  nem  a  edade  nem  a  ín- 
dole permittem  que  elle  se  enthusiasme:  sem 
proficiência,  porque  tirante  escamoteações  fo- 


6  os  GATOS 

rcnses,  não  consta  (|ue  o  hoincmsinho  tomasse 
gosto  por  outras  (lucstôes  que  não  revistam  a 
forma  de  charutos  ile  seis  vinténs,  e  de  bai- 
xos ventres  de  sopeiras:  e  finalmente  sem  a 
menor  familiaridade  com  os  instrumentos  que 
poderiam  facililar-Ilie  a  tarefa,  verhi  gralia  o 
manejo  da  liri<;Ma  faltada  pelos  diplomatas  com 
quem  havia  (Tentender-se. 

Ajuslaram-no  á  tòa,  como  um  mergulhador 
inexperiente  do  officio,  o  sem  escaphandro  ex- 
pediram-no  para  as  profundezas  do  Foreirjn. 

Inutilisal-o  como  opposição  no  parlamento, 
compioniettel-o  como  negociador,  perante  o 
paiz,  taes  parecem  ter  sido  os  moveis  dos  seus 
noves  mezes  de  Londres,  ao  fim  dos  cpiaes  lord 
Salisbui'y  lhe  fez  parir  o  monstro  do  tratado. 
Elle  mesmo  pasma  de  o  terem  aciíado  bom 
para  uma  missão  de  tal  delicadeza,  e  no  livro 
branco,  a  cada  passo  acorda  o  seu  estribiiiio 
fúnebre  —  inijuield-me  a  ronfianai  do  (jovervio! 
— como  um  i-emorso  do  latrocínio  consentido. 

Inda  esta  ignorância  podia  escondei-se  em 
Londres  i)or  traz  (Tuus  monosyllahos  graves, 
peculiares  a  certos  dijjlomatas,  que  fazem  do 
grunhido  uma  eloquência,  e  ainda  esta  iudiífe- 
rença  podia  passar  por  aplomb  d'embaixador, 


os  GATOS  7 

se  acaso  o  snr.  Barjona  fosse  um  liomeni  do 
mundo,  e  competisse  em  goutilhomeria  de  ma- 
neiras, em  correcção  altiva  de  porte,  em  des- 
denhosa elegância,  em  espirito  vivido,  em  re- 
quinte, com  os  personagens  superiores,  com 
quem  no  decurso  da  sua  missão,  sem  duvida 
houve  que  conviver  e  descretear.  Porém  Lis- 
boa conhece  por  demais  o  illustre  esquerdo- 
g\'mnastista,  para  cuidar  que  elle  illudisse  o 
inglez  quanto  á  proveniência  duvidosa  das  suas 
poupas,  e  quanto  ao  selecled  dos  seus  arrotos 
durante  as  refeições. 


É  um  advogado  de  provincia  calcado  so- 
bre todas  as  pelintragens  da  vida  de  bohemio, 
acrescentadas  de  todas  as  licenças  da  vida  de 
solteiro.  D'uma  origem  plebea  — o  que  não  é 
indiíTerente  na  gestação  d'um  diplomata — toda 
a  vida  pobre,  e  com  pequenas  angustias  quo- 
tidianas de  cinco  libras  perdidas  á  batota,  elle 
acusa  nos  mais  pequenos  detalhes  do  seu  es- 
pirito e  da  sua  figura,  essas  saburras  intimas 
do  cavador  que  está  por  baixo  do  outro,  do 
homem  cultivado,  e  a  cada  instante  intervém 
para  o  amestpiiuhar,  seja  onde  fòr.  Mesmo  a 


o  os  GATOS 

sua  ligara  é  deplorável,  coiii  Iciçôcs  de  cigano 
e  sangue  de  mulato.  Xos  cabcllos  corredios, 
chorando  banha,  na  implantação  viciosíssima 
dos  dentes,  bordados  de  limugcns  perlo  da 
raiz,  na  bai'ba  rala,  empastada  de  herpes,  no 
prognatismo  da  niaxilla  inferior,  avançando 
obtusamente  com  uma  sensualidade  rude  de 
goi'illa,  no  feitio  da  bari'iga,  gastralgisada  por 
indigestões  de  comidas  ordinárias,  no  desenho 
das  mãos  rugosas,  com  palmouras,  dedos  cheios 
de  nós,  nnlias  cliatas,  estriadas  ao  travez  como 
a  dos  pobrcílòes  descalços,  no  rythmo  do  an- 
dar, cambaio,  como  quem  leva  um  frete,  no 
parenthesis  das  pernas,  no  feitio  do  cachaço, 
uma  inferioridade  atávica  rcsalta,  de  raça  es- 
púria, cruzamentos  (pie  aviltam  o  homem,  e 
o  desviam  do  typo  puro  de  <pie  certos  repre- 
sentantes (las  raças  loiras  parecem  ser  o  ideal 
ineaualavcl. 


Folheada  a  sua  vida,  justapõem-se  defeitos 
funccionaes  ás  imperfeições  orgânicas  que  vem 
de  ser  traçadas.  Conta  seu  tio,  que  até  cerca 
dos  quinze  annos  não  foi  possível  evitar  que 
elle  todas  as  noites  mijasse  na  cama,  nem  ti- 


os  GATOS  9 

rar-Ihc  da  cabeça  ainda  agora,  que  as  unhas 
dos  pés  são  coniestiveis.  Sem  delicadeza  al- 
guma no  caracter,  sem  fixidez  alguma  nas 
ideias,  nada  o  interessa  além  das  mulheres,  do 
jogo  e  da  comida,  únicas  coizas  de  que  elle 
abusa,  e  subordina  ao  sybaritismo  de  si  pró- 
prio, sem  lhe  dar  sequer  um  instanlc  d'alma 
agradecida.  Tam  pouco  o  seu  humor  provém 
da  bonhomia:  é  cynico,  erótico  (juazi,  radi- 
ca-se  no  desprezo  de  tudo,  vem  da  navegação 
de  tudo:  não  tem  amargura,  que  ainda  pre- 
supporia  veheniencia,  interesse,  mas  é  uma 
coisa  glacial  vinda  d'uma  alma  morta  para  as 
alvoradas  da  crença  e  para  as  i)rimaveras  da 
emoção.  Sendo  ministro,  um  deputado  exigen- 
te, cançado  de  lhe  pedir  não  sei  í(ue  logar  far- 
to, atreveu-se  a  dizer  que  se  a  pretensão  não 
visse  despacho,  elle  atiraria  com  a  albarda. 

—  Não  atire,  não  atire,  respondcu-lhe  fiar- 
jona,  que  eu  não  estou  acostumado  a  mon- 
tal-o  em  pcUo. 

D'outra  vez,  vindo  com  Sampaio  d'unia  re- 
cepção real,  no  mesmo  carro,  conversavam  os 
dois  sobre  a  ridícula  tarefa  de  genulleclir  pe- 
rante as  mageslades,  em  certas  epochas  mar- 
cadas p'lo  kalendario.  E  Sampaio,  resignado  — 


10  os  GATOS 

Einfim  os  salamaleiíucs  ao  rei  ficaram  feitos ; 
loca  a  ir  repetil-os  aiíora  ao  D.  Fernando. 

—  QuQ  qiicr  você?  disse-lho  o  outro.  De- 
pois da  ajuda  vem  sempre  as  necessidades. 


Vov  sob  aijuelle  vernis  de  politico,  e  a  de- 
sabusada iionrliiilnnre  d'estadista,  o  plebeu  que 
lhe  está  por  baixo  da  pelíe,  e  é  o  verdadeiro 
tíarjona  em  carne  e  osso,  compromctte-lhe  a 
allure  de  grande  homem,  ridicuiisa-o,  achinca- 
Iha-o,  é  o  seu  cari-asco  e  o  seu  suor  frio.  Tem 
secretamente  a  raiva  de  ser  gebo,  e  prascntei- 
ranicnle  liaveria  trocado  a  posição  culminante 
d'agora,  por  umas  tripas  que  dessem  menos  ron- 
cos, acrescendo  (pie  o  seu  ar  negligente  escon- 
de a  mais  terrivel  fascinação  p'los  que  vestem 
a  primor.  Todos  os  seus  amigos  conhecem  a 
sua  maneira  especial  de  tomar  o  braço,  belis- 
cando aiVectuosamente  a  polpa  do  biceps.  .\ 
primeir'a  vista,  parece  cordealidade,  mas  re- 
parando em  (pie  elle  só  belisca  os  bem  ves- 
tidos, advem-se  na  conclusão  de  que  o  faça 
anles  para  ajuizar  do  panno  das  sobrecasacas 
correctas,  que  são  o  desespero  da  sua  vida. 

De  feito  a  sua  manqueira  como  gentleman 


os  GATOS  H 

reveste  (|uazi  uma  feição  grotesca  de  morga- 
do de  Fale  e  de  Mr.  Perriclwn  cn  aJlanl  ti  la 
vore. 

É  um  apologista  dos  collarinhos  postiços, 
dos  peitilhos  de  borracha,  e  das  gravatinlias 
alfinetadas  de  jóias  duvidosas.  Tem  a  paixão 
da  melena  varrida  sobre  as  fontes,  das  po- 
madas cheirando  a  virilhas  de  magana,  dos 
grilhões  de  saloio,  com  meio  kilo  de  berlo- 
•(|ues,  pendulando.  No  fiira-bolos,  o  clássico  ca- 
chucho  de  guarda  municipal;  botpiilhas  compli- 
■cadas  de  caixeiro,  com  veados,  cupidos,  mu- 
lheres nuas — e  como  se  não  fora  já  typica  a  sua 
meia  de  linha,  e  o  sapato  de  peito  de  casimira, 
colchetado  á  banda  com  bonnets  de  jockey, 
tem  ainda  por  cima  o  mau  sestro  (Ventrapar  as 
pernas  com  cortes  llòr  d"alecrim  da  fabrica  d'Ar- 
rent('lla,  e  de  roer  as  unhas  em  sociedade, 
depois  que  as  adul)ou  co'a  murraça  herpetica 
<[ue  vae  raspar  ás  profundezas  da  gaforina. 

A  sua  chegada  a  I,ondi'es,  entre  o  cornaca 
Carrilho,  Qces  diimes,  é  uma  d'cstas  paginas  de 
cómico,  d'ondc  o  inverosímil  poreja  em  risos 
insustaveis,  tamanha  a  inventiva  expensa  na 
concepção  d'uma  tal  scena. 

Imaginc-se  o  pessoal  da  embaixada  todo 


1í2  os  GATOS 

na  gare,  em  loilclte—o  siir.  Luiz  Soveral  com 
o  ramo  de  rozas  i)rosles,  c  o  braço  em  arco, 
aguardando  ã  portinhola  do  wagon,  a  embai- 
xatriz—a porta  que  se  abre,  C.arriliio  o  pri- 
meiro que  ajiea,  carregado  como  um  ferro  ve- 
lho, caixas  de  chapéus,  dois  IVaidiíiueií-os,  mo- 
ringues  d'Ksti'emóz,  cabazes  de  mil  formas,  e 
por  cima  de  tudo  um  cobertor  da  Coviliiã,  que 
servira  ao  emljaixador  de  rourre-pieds . . .  De- 
pois, na  confusão  dos  balões  e  das  saias  de 
chita,  princezas  barbacenas  que  assomam,  com 
cintos  de  fivella,  maias  de  tapete,  embrulhos 
d'especiones,  e  todas  com  lenços  de  malha  ao 
pescoço,  capas  medonhas,  lenços  amarrados 
por  cima  dos  chapéus ;  e  espavoridas,  a  triguei- 
ra com  medo  de  seresfacpicada  por  Jack  o  estir- 
pador,  a  magricella  aos  vómitos,  com  o  estô- 
mago azedo  dos  tombos  do  comboyo,  a  gorda 
a  gemer  com  inllannuação  na  gengiva  d'um 
dente  cariado  —  e  por  alli  fora,  uma  inferneira 
de  cestos  de  provisões,  gaiolas  de  passarocos, 
galos  em  saccos,  chouriços  escondidos,  como 
se  tudo  atpiillo  reentrasse  d'um  arraial  portu- 
gucz,  fora  de  portas. 

Já  a  esse  tempo  o  amavioso  Soveral  tem 
crescido  sobre  a  (pie  lhe  pareceu  mais  grande 


os  GATOS  13 

muudo,  e  vae  para  oílerccer-llie  o  ramo  qiie 
trouxera;  mas  intervém  Barjona,  dizendo: 

— Essa  não,  que  é  a  Francisca. . .  a  (empo 
d'ainda  lhe  poder  empni^rar  o  braço  para  uma 
magra,  de  coita,  o  buço  forte,  e  cujo  chapéu 
de  pennas  verdes  e  encarnadas  liie  infunde  um 
ar  de  calatua  impaciente.  Ahi  se  engaclia  todo 
aqnelie  bello  sexo  nos  braços  da  embaixada 
contrafeita,  e  o  cortejo  atravessa  as  salas  n'unia 
ronda  d'escandaiisar  o  próprio  i)ilheteiro;  quan- 
do a  Francisca,  que  já  pelo  caminho  dera  mos- 
tras d'estorcida,  começa  d'esfusiar  pequenos 
ais,  que  o  seu  braceiro  interjireta  como  tes- 
temunhos de  ternura. 

—  Lon(h"cs,  minha  senhora,  é  todo  um 
mundo,  o  clima  frio,  mas  os  corações  aqui 
batem  depressa.  .  . 

E  a  dama,  pallida  —  Valha-me  nossa  Se- 
nhora! eu  já  não  posso! 

—  Portugal  fíiz-ihe  saudades,  prevejo,  mas 
encontrará  atpii  em  Londres  quem  lia-de  sa- 
ber comprchendel-a. 

Lá  desfallece  a  pobre  nos  braços  do  pre- 
cioso que  assim  falia,  rumor  na  sociedade,  co- 
pos d'agua  no  ar;  té  que  Barjona  chega  de 
sapatinhos  de  feltro,  bonnet  de  mercieiro,  es- 


1  í  os  GATOS 

capo  alfun  das  iiiilias  dos  policias,  (jue  [)re- 
teniliam  tomal-o  por  um  assassino  italiano.  De 
roda,  é  um  gastar  de  coudolcncias :  não  lia-de 
ser  nada,  delíquio  passageiro,  ellVíitos  do  ca- 
lor. .  .  quando  a  das  plumas  verdes  intervém 
—  Diz  com  franqueza,  menina,  o  que  tu  que- 
res é  dar  de  corpo.  .  . 

É  exactamente  o  que  ella  quer,  (illiOi<(r:si\- 
e  de  casaca,  expendendo  gra(,'as  Luiz  xv,  lodo 
aquelle  pessoal  de  legação,  vindo  p'ra  render 
homenagem  ao  seu  plenipotenciário,  acaba 
por  enfreiar  toilelte  e  espirito  ao  cortejo  dro- 
latico  d'uma  jeinie  personiie  que  destempei"a 
em  caganeira. 

...  o  álbum  para  annexar  ao  livro  branco, 
devia  começai'  por  esta  as  suas  aguarellas. 


A  segunda  aguarella  contaria  da  iustalla- 
çâo  do  enviado  portuguez  no  Hotel  Biistol, 
elle,  um  bohemio  de  casa  de  hospedes,  afeito 
a  fumar  charutos  de  couve,  e  a  ferrar  moucos 
no  calcanhar  das  pingas  servidas,  n'uma  hos- 
pedagem de  príncipe,  alcatifas,  tenlitre.^,  mobí- 
lias caras,  menus  e.xoticos,  confortos  desconhe- 
cidos, bidés  suporlluos,  banheiras  por  servir; 


os  GATOS  15 

c  servido  por  creados  (jue  a  cada  inslauíc  llie 
dariam  sem  querer,  lições  de  correcção.  Está 
a  gente  a  vel-o  entre  malas  abertas  e  pontas 
de  charuto  atiradas,  escarrando  como  um  tí- 
sico, p'ra  direita  e  p'ra  esquerda,  n'uma  atmos- 
phera  (restniiuio  ponctuada  d'aguas  de  coló- 
nia aviltantes:  e  a  cada  minuto  ccs  (lotne.s  pe- 
dindo pão  com  manteiga  ao  creado,  com  as- 
suadas  á'ai  se  camóii !  pelo  inglez  incomprelien- 
dido,  e  pragas  nacionaes  aos  papagaios  e  fral- 
diqueiros  que  vem  alliviar-se-lhe  nas  saias,  co- 
mo a  Francisca,  na  sccna  da  estação.  E  as  sur- 
prezas  d»  petite  [((iirillc  á  primeira  remessa  de 
camisas  finas,  os  seus  oks!  e  (í/í.?/  entrechoca- 
dos, quando  um  dos  l(t:000  Poois  c  .loulis  Mamb 
falsos  que  I.ondres  tem,  envia  para  sua  graça 
o  embaixador,  a  primeira  sobrecasaca  forrada  de 
setini!  E  na  manhã  da  primeira  visita  a  Salis- 
bnry,  dada  uma  ensaboadella  geral,  primeira  e 
única  da  sua  vida,  na  casa  de  banhos  do  ho- 
tel, quando  desencasqucado  o  snr.  Darjona 
rompe  das  espumas,  como  Vénus,  oh  surpreza 
convulsa! — nem  o  próprio  Carrilho  o  reconhe- 
ce. Tanto  o  aspecto  do  nosso  plenipotenciário 
mudou  c'o  banho,  que  depois  de  limpo  é  que 
verdadeiramente  parece  que  está  sujo ! 


10  os  GATOS 


Terceira  aguarella:  a  sua  entrada  no  Fo- 
reign-Office.  Quem  quizer  ter  a  psyclíologla 
do  snr.  IJarjona,  n'este  vertiginoso  instante  da 
sua  vida,  leia  a  carta  onde  o  Calisto  Eloy  da 
Quedit  d'nm  nnjo,  descreve  á  esposa  a  sua  pri- 
meira sessão  na  camará  dos  deputados. 

O  personagem  grotesco  de  Camillo  serve 
maravilliosamente  a  nos  visionar  o  patusco 
homem  de  pau  do  sin-.  Ilintze.  \\n\  Calisto  Eloy 
por  ventura  uma  intelligencia  menos  viva,  pos- 
to mais  útil,  e  a  austerisal-a,  um  sentimento 
de  conveniências  extra-gotliico,  <(nazi  escul- 
ptural. 

No  snr.  Fkirjona  do  Freitas,  a  sua  antiga 
cabeça  de  génio  coimbrão  (pie  estende  os  len- 
tes, mas  já  sem  viço,  n'uni  começo  de  deli- 
quescencia  encephalica  que  os  excessos  expli- 
cam, e  onde  sobrenadam  apenas  algumas  ane- 
doclas  de  frades,  e  algumas  doicrioradas  re- 
ceitas de  casuista. 

Em  par  d'esta  anticipada  provcctude,  a  sua 
insipidez  como  homem  de  sciencia,  que  mal 
sabe  onde  a  Africa  fica,  que  desconhece  os 
mais  rudimentares  prolegomenos  do  problema 


os  GATOS  17 

colonial,  c  vem  ao  acaso,  sem  plano  de  nego- 
ciações, nem  uma  base  sequer  p'ra  ponto  de 
partida — e  achincalhando  tudo,  pesando  sobre 
tudo,  aquella  sua  irreparável  condição  do  ho- 
mem grosseiro,  timido,  pobre,  endividado,  sem 
linha  fidalga,  nem  mãos  apresentáveis,  com  o 
ventre  hydropico,  pernas  de  feto,  chispes  de 
fadista,  e  todo  elie  ás  arrecnas,  mal  seguro 
de  si,  armado  no  ar,  compromettido,  com 
uma  vaga  consciência  de  fazer  junto  de  Salis- 
bury  a  figura  d'um  orango-tango  ao  pé  de  Jú- 
piter. 


(^luarta  aguarella:  o  snr.  Harjona  na  antecâ- 
mara de  lord  Salisbury,  depois  de  quatro  horas 
de  bilhetinhos,  recadiniios,  e  inúteis  tentativas 
para  que  o  orgulhoso  chanceller  britannico  o 
recebesse.  É  a  12  Wagosto:  os  corredoi^es  do 
Foreign  já  devem  conhecer  o  passinho  molle 
do  enviado  portiiguez,  as  fumaças  do  seu  cha- 
ruto enorme  de  couve  de  Hamburgo,  e  as  lon- 
gas horas  arrastadas  junto  dos  fogões,  a  con- 
versar com  os  ci'eados,  que  elle  a  principio  to- 
mou por  diplomatas,  e  a  que  depois  pòz  a  mão 
no  honibro,  tratando-os  povivisinhos,  com  ten- 


18  os  GATOS 

tativas  de  suborno,  de  cruzado,  a  ver  se  assim 
seria  recebido  mais  depressa.  De  conferencias 
e  jantares,  Salisbury  acabou  taniijcm  por  se 
fazer  conceito  nitido  acerca  do  estranho  ho- 
memsinho  em  quem  o  lillle  Porliir/al  delegou 
poderes  completos  para  a  partilha  da  Africa 
portugueza,  e  como  porteiros  c  contínuos, 
grandes  e  pequenos  empregados  do  ministério 
elle  está  senhor  dos  processos  e  dos  meios 
d'esse  picaresco  embaixador,  que  dir-se-hia  fugi- 
do das  operetas  da  Trindade.  Porque  a  todo  o  in- 
glez  feito  de  calculo  repugnem  as  longas  disser- 
tações e  as  hermenêuticas  de  pórtico,  resultou 
que  á  segunda  entrevista  já  Salisbury  manifesta- 
va pelo  nosso  enviado  uma  embirração  picada 
de  desprezo.  Porque  antes  de  politico,  Salisbury 
é  um  homem  de  corte,  fidalgamente  nado,  e 
afeito  a  tractar  gente  elevada,  e  a  estofa  ple- 
bea  do  nosso  ministro,  de  cachucho  no  dedo, 
pus  nas  gengivas,  olho  mortiço,  tartamudeando 
um  francez  de  phanlasia,  e  antepondo  aos  ar- 
gumentos práticos,  pequeninas  espcrtezas  ri- 
síveis de  casuista,  breve  o  desgosta,  á  medida 
que  o  cheiro  a  rapozínho  que  elle  exala,  sob 
os  perfumes,  que  o  riso  podre  dos  seus  den- 
tes  de  fumisla,  que  o  desenho  vicioso  dos 


os  GATOS  19 

seus  dedos,  que  a  leprosidadc  geral  de  toda  a 
sua  pessoa,  lhe  reconstituem  a  vida  passada 
d'esse  homem,  pintando-o  com  um  destroço 
humano,  em  regressão  ás  curiosidades  de  hos- 
pital. 

Desde  esse  dia,  Salisbury  não  se  sente  bem 
ao  lado  d'elle,  e  evita  senhoras  nos  jantares 
em  que  tenha  de  o  sentar  á  sua  mèza.  Porque 
não  ha  meio  de  o  fazer  conversar  duas  horas, 
sem  que  a  sua  bocca  vomite  alguma  facécia  bo- 
cagiana.  O  sadismo  estravasa  dos  menores  de- 
talhes da  sua  convivência:  não  ha  gesto  seu, 
por  cavalheiroso,  que  se  não  possa  interpretar 
por  um  manguito,  tic  de  pálpebras  que  se  não 
filie  no  subentendido  brejeiro  que  nós  outros 
conhecemos  pela  designação  de  piscudella  de 
luzio. 

Ahi  vae  uma  gentileza  a  lady  Salisbury,  no 
primeiro  jantar  que  esta  lhe  deu  —  M.""la  tnar- 
guise  a  poiír  servantes,  les  plus  belles  femmes 
du  monde!  Eu  cerilé  feu  rofole  de  coucher 
avec. . . 

D'outra  vez,  discutindo  uma  questão  de  li- 
mites, e  as  condições  de  construcção  do  ca- 
minho de  ferro  de  Pungue,  o  snr.  Barjona  su- 
bitamente possuído  da  sua  velha  adoração  pela 


20  os  GATOS 

;ilfaiuloi'ia  de  luxo,  lovoíi  a  mão  ao  braço  de 
Salisbury : 

— Mylord,  ({uaiito  llie  ciisloii  csla  sobre- 
casaca Ião  catita? 

O  presidente  do  conselho  começa  desde  en- 
tão a  lecusar-se  ás  suas  entrevistas,  a  fazel-o 
esperar  horas  e  horas  na  antecâmara,  a  discutir 
com  elie  por  intermédio  (h^  sir  Currie,  uma 
espécie  d'Orue!las  inglez,  de  monóculo,  vasio 
que  nem  uma  occariua.  E  a(pii  as  evasivas,  as 
phrases  seccas,  as  insolências  liumoristicas. 
Em  17  de  fevereiro  «le  jiosxé  est  jMssé,  le  temps 
esl  nn  ijmnd  moderateur».  Em  '21  de  março 
«Mais  uma  vez  fizemos  notar  (juc  o  Zambeze 
é  uma  via  internacional,  e  não  pôde  ser  con- 
siderado propriedade  exclusiva  d'uma  só  po- 
tencia. Se,  por  falta  d'esta  precaução  se  dér 
infelizmente  algum  conflicto,  a  responsabili- 
dade não  recahirá  sobre  o  governo  britnnni- 
co.»  O  nosso  direito  histórico,  fundado  na  oc- 
cupação  tri-secular  e  na  descoberta,  Salisbury 
chama-lhe  «pretençõesarclieologicas.»  Darjona 
communica  fielmente  ao  snr.  llintze  o  que  se 
passa;  e  quanto  mais  batido  pelo  ministro  in- 
glez, mais  fascinado !  Trechos  dos  seus  tele- 
grammas  referindo  enl.cvistas,  i)arccem  arran- 


os  GATOS  21 

cados  á  (Tcada  .Uiliana,  do  Primo  Daiilio.  «Ti- 
ve hoje  a  honra  de  ser  recehido  por  lord  Sa- 
lisbury, —  que  esteve  mais  d' uma  hora  a  fal lar 
comigo.» 

E  n'outro  ponto  «lord  Salisbury,  cujos 
bons  desejos  de  nos  ser  agradável  são  o  mais 
evidentes  possível.  .  »  E  mais  além  «a  sollici- 
tude  de  lord  Salisbury  para  comnosco  vaealém 
das  minhas  mais  carinhosas  supposições ...» 
llein? 

lia  n'estas  palavras,  adorações  de  mulato, 
feitas  de  baixeza  e  d' uma  espécie  de  desejo 
physico,  que  evidentemente  pòem  o  negocia- 
dor porluguez  na  subserviência  de  quem  as- 
sim o  fascinou.  No  momento  d'escrcver  o  (|ue 
acima  vimos,  o  snr.  Barjona  está  preparado 
para  ser  tudo  quanto  Salisbury  queira,  seu  pe- 
dicuro ou  seu  barbeiro,  e  para  escorchar  as 
aspirações  do  povo  porluguez  a  respeito  d'Afri- 
ca,  apenas  o  ministro  da  rainha  Vicloria  lenha 
um  gesto,  ou  se  digne  fazer-lhe  olhos  gaiatos. 
Salisbury  tornou-se  para  elle  um  não  me  to- 
ques: se  procurarem  bem  nas  malas  do  snr. 
Barjona,  encontrarão  uma  velha  ponta  de  cha- 
ruto, secretamente  apanhada  do  escarrador 
como  recordação  da  primeira  entrevista  no 


'i"!  os  GATOS 

Foreiíjn.  Fallcni-llie  cl'elle ;  porá  a  mão  no  pei- 
to, c  exclamará,  revirando  os  olhos  —  se  o 
vissem  !  que  regalo  de  homem  !  — confessando 
que  o  seu  desgosto  foi  não  lhe  ter  furtado  um 
lenço,  vèl-o  no  banho,  ou  constatado  a  còr  das 
suas  meias.  Esta  pachochice  é  conhecida  c  ó 
humana,  dando-se — e  é  o  caso— entre  um  typo 
de  raça  pura,  como  Salisbury,  e  um  lahróstc 
d'inlima  escuma  portugueza,  como  o  nosso  es- 
querdista. Não  ha  esforço  de  vontade  que  a 
inutilise,  abalo  que  a  suste:  o  homem  que 
uma  vez  a  experimentou,  vac  cegamente,  á 
mercê  do  outro,  n'uma  humildade  d'amaute  e 
n'uma  abjecção  d"escravo,  prestes  ás  maiores 
vergonhas,  por  comprazer  da  idolatria  qm;  o 
allucina. 

Tal  a  crise  i)sycliica  e  alTectiva  do  snr. 
Barjona  de  Freitas  pei^ante  os  provados  des- 
déns e  a  manifesta  i'ei)ulsa  com  que  o  minis- 
tro da  rainha  Vicloria  houve  por  bem  pôl-o  a 
distancia,  interpomlo  o  estafermo  de  sir  Cur- 
rie  por  medianeiro  de  negociações,  que  para 
nos  dcixaiem  com  honra,  deveriam  de  ser  tra- 
tadas verbalmente.  Nas  unhas  do  seu  déspota 
e  fetiche,  o  snr.  Barjona  é  uma  espécie  de 
coelho  (|ue  se  presta  aos  divertimentos  do  fu- 


os  GATOS  Í23 

rào,  um  saclirista  ranhoso  (jiie  assignade  cruz 
quanto  o  outro  quer,  e  ainda  mais  aquillo  que 
elle  não  quer. 

O  livro  branco  está  cheio  de  cessões  de 
territórios  e  regalias  á  Inglaterra,  sem  disputa 
quasi,  e  com  um  caracter  de  presente  de  nú- 
pcias manifesto,  que  dá  medida  do  preço  por- 
que o  nosso  enviado  comprava  os  sorrisos  do 
seu  chulo.  Xunca  em  verdade  a  intervenção 
d'um  homem  ordinário  foi  mais  funesta  em 
causas  diplomáticas ! 

»  Oiie  importa  que  Portugal  ceda  á  Inglater- 
ra 400:000  kilometros  quadrados  de  terras  au- 
ríferas, florestas,  cursos  d'agua?  Lord  Salis- 
bury  deixou-se  pisar  o  pé  pelo  snr.  Barjona. 
Que  importa  que  todas  as  clausulas  do  con- 
vénio de  iO  d'agosto,  sejam  a  projecção  na 
Africa  Portugueza,  das  tyrannias  que  o  senhor 
de  roça  impõe  ao  escravo?  Lord  Salisbury  di- 
gnou-se  dar  o  pé  ao  sen  humilde  seiTO  o  ple- 
nipotenciário portuguez ! 

E  eis  ahi  como,  aparte  as  irremessiveis  ra- 
zões que  a  nossa  fraqueza  traz  á  perda  d'Afri- 
ca,  outras  mais  próximas  querem  precipitar  a 
catastrophe  por  xafurdeiros  asquerosíssimos. 

Qual  a  do  snr.  Ilintze  nunca  ter  tido  ta- 


24  OS  GATOS 

lento.  Qual  a  ilo  snr.  Bai;jona  miiica  ler  fido 
casacos. 

E  n'este  ponto  fecharia  o  aiijiim  uma  agua- 
reiia  impressionista  :  o  snr.  Barjona  á  volta  de 
Londres,  puchado  a  bubões  caminho  de  Bem- 
íica,  veria  arder,  n'uma  hora  amarga,  algum 
d'aquelles  grandes  charutos  que  lentamente  o 
teeni  embrutecido.  E  á  guiza  de  legenda : 

—  A  minha  biographia  politica  é  este  cha- 
ruto, que  a  pouco  trexo  d'acceso,  liquida  em 
cinza,  fumo,  e  mau  cheiro. 


7  iVOulubm. 

—  Informas  do  D.  Illustnido  dão  102  kilos 
de  peso  a  S.  M.  el-rei,  no  estado  são.  Cento  e 
dois  kilos  é  já  uma  excellente  coisa  n'um  ce- 
vado, mas  n'um  monarcha,  caramba!  tire-se 
o  chapéu  ao  paiz  que  deu  tal  bicho.  Nunca  se 
agradecerá  sufficiente  ao  Illuslrado,  o  ter  in- 
trotluzido  no  computo  dos  merecimentos  de 
S.  M.  mais  este  factor  do  peso,  um  dos  pou- 
cos em  (pie  el-rei  se  avantaja  nobremente  aos 
seus  vassallos,  o  pelo  qual  muitos  antecesso- 
res seus  ficaram  na  historia,  dependurados 


os  GATOS  Í20 

pelos  pés,  com  a  tripalhada  a  seccar  nos  pa- 
negyricos  dos  chronistas.  Assim  pois,  não  nos 
cega  tanto  a  vesânia  politica,  (pie  ousemos 
pedir  a  expropriação  das  reaes  enxúndias,  para 
cora  ellas  atear  a  lâmpada  á  deusa  da  Repu- 
blica, 6  com  jubilo  garantiríamos  a  S.  M.  o 
usofruclo  dos  seus  reaes  cento  c  dois  kilos, 
se  não  fora  a  quantidade  d'obras  que  está  sendo 
preciso  fazer  pr'os  installar.  S.  M.,  quanto 
mais  redondo  vae  estando,  menos  estabilidade 
tem  n'um  paradouro.  São  comboios  expressos 
por  qualquer  coiza,  palácios  novos,  panjues 
lançados...  Em  verdade,  nunca  se  viu  lipoma 
mais  desinquieto! 


— Na  noite  em  que  explodiram  as  primei- 
ras rebelliões  contra  o  tratado,  um  homem  de- 
pois de  tomar  o  cliá  com  a  família,  pòz  os  dois 
sobrolhos  carrancudos,  levantou  a  gola  do  ca- 
saco, e  preparou-se  a  sahir  p'ras  barricadas. 
Sobresalfo  da  esposa,  que  branca  de  morte 
lhe  pergunta,  da  cancella,  o  que  vae  elle  fazer. 

— O  que  vou  fiizer?  ,(untar-me  aos  meus 
irmãos:  a  pátria  agonisa:  saberei  morrer,  se 
fôr  mister. 


t>u 


os   GATOS 


Kll;i  llio  siipplica  pola  Virgem,  (iiic  siilja,  »■ 
não  cxiionlia  o  repouso  dos  seus  filhos:  o  que 
ainda  mais  aziuma  o  ardor  mavortico  do  bra- 
vo. Mas  já  na  rua,  mirando  os  ares  nublados: 

—  Cuidas  então  tu  qne  isto  pôde  ficar  as- 
sim? Com  mil  demónios,  nunca!  Ouves?  Man- 
da-me  cá  abaixo  o  gnai'ila-cbuva. 

Kste  valente  podia  bem  cbamar-se  o  povo 
de  Lisboa. 


CAMILLO  CASTELLO  BRANCO 


AMOR   DE  PERDIÇÃO 

(MEMORIAS    D'UMA    FAMÍLIA) 


EDIÇÃO  MONUMENTAL 

EiH  honieiuigcin  ao  eiiiinentc  'Rj^iiuviciila  'Pciiugmx^ 

CAMILLO    CASTELLO    BRANCO 

MANLKI.  PINHEIRO  CHAGAS,  RAMALHO  ORTIGÃO  e  THEOPHILO  BRAGA 

:t  EXECUTADOS 


J.  J.  DE  SOUZA  PINTO,  CAETANO  MOREIRA  DA  COSTA  UMA 
F.  JOSÉ  D'ALMEIDA  E  SILVA 

E  A  IMPRESSÃO  lUS  ILLCSTRAÇÕES  EM  PHOTOTTWA  COKriAUA  À  IMPOKTASTh 
»  DE  L.  ROUILÉ,  DE  PARIS 


ri?l^*«  ^'  "^^^  ^^^  m3.\s  vivas  e  prestigiosas  figuras 
p-li^  ^^  da  moderna  litteratura  europeia  é  CA- 
t  r-H&Ki  j  MILLO  CASTELLO  BRANCO.  Natu- 
reza profundamente  emocional,  propon- 
do todos  os  seus  problemas  em  collisões  de  senti- 
mento, allia  á  mais  alta  cultura  da  linguagem,  que 
ainda  appareceu  em  escriptor  portuguez,  o  sentimento 
fulgurante  de  um  vivo  protesto  contra  a  decadência 
que  nos  vae  avassallando,  aos  poucos,  na  arte  e  nos 
costumes  contemporâneos.  Absorvido  n'uma  forte 
elaboração  esthetica  c  fugindo  ás  tentações  da  poli- 
tica, que  tantas  boas-vontades  tem  anniquilado,  refu- 


giou-sc  no  seu  trabalho  de  liomem  de  lettraí,  como 
Robinson  na  sua  ilha.  Dentro  desse  baluarte  inexpu- 
gnável, elle  tem  continuamente  erguido  os  seus  ty- 
pos  tradicionaes,  essas  altas  e  mármores  figuras  es- 
culpturaes,  escolhidas  entre  nma  fidalguia  decadente, 
que  vae  gradualmente  desapparecendo,  substiluida 
pela  aristocracia  do  dinheiro,  e  os  typos  enérgicos  e 
viris  dos  homens  rudes  e  sãos,  de  quem  ainda  é  per- 
mittido  esperar  um  dique  á  corrente  que  passa.  É 
por  isso  que  a  obra  de  CAMILLO  é  uma  das  mais 
patrióticas,  sem  perder  comtudo  esse  caracter  a  um 
tempo  tão  litterario  e  tão  pitoresco,  que  sobremodo 
avulta  na  sua  linguagem;  o  observador  attento  en- 
contra n'aquelle  estylo  inimitável,  n'aqucllas  descri- 
pçôes  encantadoras,  n'aquellas  paysagens  vibrantes 
de  realidade,  a  riquíssima  seiva  provincial,  que  é  um 
dos  mais  elevados  apanágios  d'este  priviligiado  do 
talento. 

As  nações  que  merecem  sobre  modo  este  nome 
são  aquellas  que  vinculam  em  monumentos  eternos 
a  lembrança  dos  seus  grandes  homens;  e  o  maior 
monumento  que  se  pôde  erguer  a  um  escriptor  do 
merecimento  de  CAÃIILLO  é  a  consagração  nacio- 
nal da  sua  obra.  Por  isso,  emprehendemos  A  EDI- 
ÇÃO  MONUMENTAL  DO  AMOR  DE  PERDI- 
ÇÃO, a  obra  mais  característica  por  certo  d'esse 
admirável  e  glorioso  obreiro  da  civilisação  portugue- 
za.  Nesta  homenagem  verdadeiramente  nacional  nos 
auxiliam  alguns  dos  mais  illustres  escriptores  do  nosso 
paiz;  e  c  assim  que  n'um  mesmo  Uvro  se  encontram 
ao  lado  de  CAMILLO  CASTELLO  BRANCO  os 
nomes  de  MANUEL  PLNHEIRO  CHAGAS,  o  bri- 
lhante espirito  evidenciado  em  tantas  obras  tào  justa- 
mente celebradas,  RAMALHO  ORTIGAO,  o  lucidis- 
simo  critico  das  FARTAS,  estylista  refulgente,  o  colo- 
rista  de  poderoso  c  singular  relevo  e  THEOPHILO 


BRAGA,  o  poda  que  evocou  a  vida  histórica  das  so- 
ciedades mortas,  o  arrojado  creador  da  HISTORIA  da 
littcratura  portugueza. 

Os  trabalhos  com  que  tão  notáveis  escriptores 
honram  a  nossa  edição,  são  os  seguintes: 

I — Contorno  biographico  de  Ca  mi  lio  Castello  Bran- 
co— M.  Pinheiro  Chagas. 
II — O  seu  ambiente  social — A  sua  estlietica — A  sua 
critica  —  A  sua  forma  litteraria  —  O  seu  tem- 
peramento artístico — Ramalho  Ortigão. 
III — O  romance  como  forma  definitiva  da  arte  mo- 
derna— Theophilo  Braga. 

A  dramatisação  da  obra  prima  de  Camillo  com- 
pendia lances  trágicos  de  tal  culminância  que  a  nossa 
edição  seria  muito  incompleta,  mesmo  com  as  coUa- 
borações  poderosas,  cuja  summula  desenvolvemos,  se 
não  chamássemos  a  tomar  parte  n'ella  alguns  dos 
mais  genuínos  representantes  da  Arte  nacional  e  es- 
trangeira; e  é  assim  que  no  AMOR  DE  Perdiç.vo  se 
juntam  os  nomes  laureados  de  J.  J.  de  Souza  Pinto,  Cae- 
tano Moreira  da  Costa  Lima  e  José  dAlmeida  e  Sil- 
va, de  par  com  a  importante  e  reputada  casa  de  L. 
Rouilé,  de  Paris,  cujo  nome  é  garantia  segura  do 
modo  superior  como  serão  reproduzidos  em  photo- 
typias  os  bellos  quadros,  que  o  romance  de  CA- 
MILLO inspirou  a  tão  insignes  e  gloriosos  artistas. 

As  magnificas  illustrações  que  enriquecem  esta 
monumental  edição,  são  as  seguintes : 

/.  /.  DE  SOUSA  PIXTO      I— Retrato  de  CamiUo  QistcIloBianco. 
II — O  assassinato  do  ferrador  João  da 
Cruz. 
CARTAXO  MOREIRA    III— Simão  partindo  os  cântaros,  iia  de- 
sordem do  chafariz. 
IV — O  morgado  de  Castro  Daire,  Bal- 


thasar  Coutinho, c  assassinado  por 
Siniào. 
V — Morto  de  Simão,  a  bordo  do  navio 
que  o  levava  ao  degredo. 
J.  D- ALMEIDA  ESILV.-l  \l-'S\onc  de  Thereza,  no  convento 
de  Moncliique. 


EDIÇÃO  MONUMENTAL 
a  primeira  k  (|iKiiitas  até  lidjc  se  \m  feito  no  nosso  paiz 


coNoif  s  u  immu 


Para  que  a  edição  monumental  do  AMOR  DE 
PERDIÇÃO,  se  torne  mais  accessivel  a  todas  as 
classes,  será  publicada  aos 

fascículos  SEMANAES  ou  aUlNZENAES 

(Â  VONTADE  DO  ASSIGNANTE) 

constando  cada  fascículo  de  2  folhas  de  4  paginas  e 
uma  soberbissima  phototypia,  impressa  em  folha 
separada  em  magnifico  papel,  ou  de  3  folhas  de  4 
paginas  quando  não  haja  estampa  a  distribuir,  em 
formato  grande,  in-folio,  constituindo  a  obra  um  SÓ 
volume  que  não  excederá  a  25  íasciculos. 

Se  por  qualquer  circumstancia  imprevista  a  obra 
exceder  os  25  fascículos  calculados,  distribuir-se-hão 
gratuitamente  aos  snrs.  assígnantes  os  fascículos  ex- 
cedentes. 


PORTO  E  LISBOA 

DISTRIBUIÇÃO 

SEMANAL  OU  QUINZENAL 

DE 

DM  fascículo  ao  PREÇO  DE 
200  REIS 

PAGOS  NO  ACTO  DA  ENTREGA 


províncias  e  ilhas 

A  assignatura  será  egualmente  paga  no  acto  da 
entrega  a 

220  reis  cada  fasciculo,  franco  de  porte 

Nas  localidades  onde  a  nossa  Casa  Editora  não 
tiver  agentes,  a  distribuição  far-se-ha  por  series  de 
dois,  três  ou  mais  fascículos,  pagos  adiantadamente. 

As  remessas  de  dinheiro  devem  ser  eftectuadas  em 
vales  do  correio,  lettras,  ordens  de  fácil  cobrança  so- 
bre Lisboa  e  Porto,  ou  em  estampilhas  expedidas  em 
carta  registada  e  nunca  em  sellos  forenses. 

Os  pedidos  que  não  forem  acompanhados  da  sua 
importância  não  serão  attendidos. 

As  capas  especiacs  para  a  encadernação,  em  per- 
calina,  são  inexcedwchnente  bcllas  c  executadas  ex- 
pressamente para  este  fim.  O  seu  preço  será  annun- 
ciado  opportunamente  e  desde  já  asseguramos  que 
será  módico  em  face  do  luxo  e  primor  artístico  de 
tão  notável  trabalho. 

Todas  as  pessoas  que  angariarem  dez  assignatu- 
ras.  responsahilisando-se  pelo  pagamento  e  distribui- 
ção dos  respectivos  fascículos,  tem  direito  a  um  exem- 
plar GRÁTIS. 


Os  editores  otTcrcccm  ;i  to-  j  t  tão  notável  esse  quadro, 
dos  os  assignantcs  d'esta  moiiu-  i  que  todas  as  revistas  illustradas 
mental  edição  uni  BRINDIi  de  estrangeiras  o  tC'm  reproduzido 
um  grande  valor  artístico,  e  tal  cm  suas  paginas,  em  bellas  gra- 
que  até  hoje  ainda  se  não  dis-  vuras  dos  melhores  artistas,  de- 
tribuiu  no  paiz  brinde  de  um  va-  dicando  ãquelle  soberbo  traba- 
lor  comparável  a  este.  É  uma  j  lho  notáveis  artigos  e  fazendo 
soberba  oleographia,  finíssima,  j  os  maiores  elogios  ao  auctor  do 
de  grandes  dimensões,  e  copia  j  quadro 
do  notável  quadro  «DMA  SCE- 

NA  DE  POMPEIA»,  que  enri-  Podemos  afoitamente  garan- 

quece  um  dos  museus  da  Itália,  í  tir  que  o  valor  real  do  brinde  é 
e  que  é  devido  ao  pincel  do  cc-  de  METADE  DA  OBRA  que 
lebre  artista  italiano  L.  Crosio.  |  publicamos. 

No  fim  do  corrente  mez  doutubro  achar-se-ha 
publicado  o  1."  fasciculo  e  em  poder  dos  nossos 
correspondentes  e  distribuidores  os  ALBUNS-SPE- 
CIMENS  com  o  começo  da  obra  e  algumas  photo- 
typias,  para  assim  mais  facilmente  se  avaliar  a 
importância  e  belleza  desta  monumental  edição 
bem  como  os  brindes  estarão  expostos. 


Depois  da  obra  completa  o  preço  avulso  da  gran- 
de edição  illustrada  do  notabilissimo  romance  o 
AMOR   DE  PERDIÇÃO  será  augmentado. 

NO  PORTO 

Os  pedidos  de  assignaturas  podem  ser  tcitos  á 
Casa  Kditora  ALCINO  AIIAMIA  \-  C' 
p>/,  Rua  do  Bomjardhn,  çj 

EM  LISBOA 

NA  KlLIAL  DA  C.\SA  Kditora  ALCINO  AIIANILV  \-  C.» 

Kiía  dos  Rctrozeiros  «."  7/ 


FIALHO  D' ALMEIDA 


OS   GATOS 

PUBLICAÇÃO  SEMANAL. 
D'liNQUERITO    Á    VIDA   PORTUGUEZA 


N.M8— 18de 


SUMMARIO 


Cachexia  monarciiica  e  infantilidade 
jacobina  —  martens  ferrão,  salvador  de 
roma  e  das  batatas — s.  joão  crysostiiomo, 
bocca  d'oiro,  ás  carreiriniias  —  incompati- 
bilidade dos  partidos  thronicios,  e  sipuilis 
moral  da  politica  contemporânea —os  ve- 
lhos são  ainda  os  umcos  cidadãos  vali- 
dos —  qualidades  dos  novos— a  moléstia  do 
somno,  na  rua  dos  mouros,  e  direcção  do 
partido  republicano  por  inválidos — ss.  mm.. 
primeiros  collaboradores  da  republica  — 

demissão!  demissão!  que  SE  FAZ  TARDE  — O 
REI  TEM  UMA  VISÃO  TERRÍVEL  NA  PENA  — PA Y- 
SAGEM   FÚNEBRE,  E  DESCIDA   ESPIRAL   AOS   DO- 


11  os  GATOS 

MINIOS  DE  PLUTÃO  — LM  MINISTÉRIO  D'ESPB- 
CXnOS,  COM  ÁVILA  NA  PRESIDÊNCIA,  E  ANTOMO 
MARIA  NA  PASTA  DOS  ESTRANGEIROS— FONTES 
D'ALÉM  tumulo,  E  suas  PREOCCUPAÇÕES  ANTI- 
GAS DE  CASQUILHO — O  DIALOGO  DOS  MORTOS — 
CONSELHO  DE  MINISTROS  NO  TERREIRO  DO  PAÇO 
—ALTERCAÇÃO  SOBRE  QUEM  TEM  MELHORES  ME- 
DALHAS—  A  MUITO  NODRE  ORDEM  DO  Eslas-le 
a  rir,  E  PROGRAMMA  DO  NOVO  MINISTÉRIO — DE 
COMO  ATÉ  OS  DEFUNTOS  ARANDONAM  O  SNR.  D. 
CARLOS,  E  SYNCOPE  DE  S.  M.  AO  PÉ  D'UM  OU- 
RINOL  —  AS  DECLARAÇÕES  DO  MINISTÉRIO  CRY- 
SOSTHOMO:  RECUSA  O  TRATADO,  E  FAZ  PROFIS- 
SÃO DE  FÉ  D'EC0N0MIAS:  BEM!— PEQUENINA  CAR- 
TEIRA DE  ESCÂNDALOS  OFFERECIDA  POR  NÓS  AO 
MINISTÉRIO — PEDE-SEA  DEMISSÃO  DOS  CONSE- 
LHEIROS D'lNSTRUCÇÃO  E  BELLAS  ARTES,  POR 
INCAPAZES  —  O  HISTORIADOR  AMORIM,  E  A  PHE- 
NIX  TEIXEIRA,  DEVORISTAS  —  HISTORIA  DA  SAL- 
VA, E  PROPOSTA  DE  SUBSTITUIÇÃO  —  NECESSI- 
DADE DE  RASGAR  O  TESTAMENTO  —  MIL  E  TRE- 
SENTOS  DESPACHOS  DO  SNR.  LOPO  VAZ :  FANTO- 
CHES DO  SNR.  HINTZE,  E  GAÚCHO  DO  SNR. 
AROUCA,  COM  UMA  PERNA  SÓ  —  ARROIO  NA  CA- 
SOTA  DO  GUARDA-PORTÃO :  DITO  PROFÉTICO:  FI- 
NAL. 


1-2  d' Outubro. 


À  hora  de  tomar  a  penna  para  a  chronica 
da  semana  que  principia,  duas  coisas  especial- 
mente surprezam  o  meu  animo,  e  vem  a  ser: 
o  desamparo  em  que  a  monarchia  tomba,  me- 
zes  depois  d'aventada  nos  partidos  a  ideia 
d'unia  concentração  monarchica ;  c  a  attitude 
ultrapacifica  do  povo,  perante  as  facilidades 
demagógicas  d'uma  situação  como  a  actual, 
em  que  seria  facílimo  a  trinta  vontades  resolu- 
tas o  mudar  n'um  minuto  a  faço  ás  institui- 
ções. Estes  dois  factos,  que  n'outro  paiz  se- 
riam antagónicos,  em  Portugal  afrontam-se  e 
toleram-se,  porque  a  monarchia  caduca,  quan- 
do a  bem  dizer  o  partido  republicano  inda  não 
tem  mobillsação  nem  regimento.  Os  últimos 


4  OS  GATOS 

vinte  e  cinco  dias  são  profiquos  em  lições  para 
todos,  e  nem  ao  maior  optimista  já  colite  affir- 
marque  o  que  estamos  vendo  não  seja  evidente- 
mente o  principio  do  fim.  Cliega  o  tempo  d'es- 
piar  as  deboxeiras  em  que  os  partidos  da  coroa 
transfoi-maram  a  politica  e  a  administração,  e 
preparemo'-nos  para  assistir  ao  epilogo  da  mais 
banal  e  da  mais  reimlsante  dynastia  que  tem 
atravessado  a  historia  dos  paizes  meridionaes. 

lia  quatro  semanas  que  os  servidores  do 
rei,  chamados  p'ra  resolver  a  crise  politica 
que  nos  cinge,  se  acercam  do  throno  com  ma- 
nifesta má  vontade,  e  debruçados  um  instante 
para  a  caverna  de  bandidos  de  que  esse  throno 
é  cúpula  e  coroamento  —  depois  de  haverem 
medido  a  profundeza  da  crápula  que  lá  ferve — 
se  declaram  impotentes  para  reintegrar  o  paiz 
na  ordem  e  na  paz  de  que  elle  lia  mister. 

Assim,  a  viagem  do  snr.  Martens  Ferrão, 
em  que  os  amigos  de  D.  Carlos  punham  tão 
grande  aprazimento,  tomando  o  antigo  aio  do 
rei,  por  uma  espécie  de  .Messias  ungido  pelo 
Papa,  a  viagem  do  snr.  Martens  afundou-se 
em  marés  de  ridículo  com  o  famoso  rescripto 
das  perdizes,  e  provon-se  mais  que  o  tal  Mes- 
sias  tinha  gallico,  pois  chamado  a  organisar 


os  GATOS  5 

um  governo  cujo  acto  inicial  seria  a  extirpa- 
ção de  todos  os  escândalos  pendentes,  a  pri- 
meira coisa  que  fez  foi  incluir  seu  filho  nos  be- 
nesses do  testamento  d'uni  malandrão  que  ahi 
dá  por  Lopo  Vaz.  Depois  de  Martens  veio  João 
Crysostliomo,  oitenta  annos  sagrados  por  uma 
honra  austera,  por  uma  intclligencia  bruxu- 
leante,  e  por  uma  algalia  que  tanto  pôde  ser- 
vir para  lhe  tirar  as  urinas,  como  para  o  pôr 
em  communicaçâo  com  a  Liga  Nacional.  Ven- 
cendo a  quebreira  dos  annos,  e  só  querendo 
ouvir  a  alta  razão  moral  que  aos  caracteres  de 
rija  stria  manda  cumprir  o  dever,  não  impor- 
ta a  que  preço,  o  sympathico  velhinho  ahi  se 
tem  arrastado  de  casa  em  casa,  á  recolta  d' um 
ministério,  que  mercê  das  difficuldades  que 
ha-de  encontrar  na  governação,  e  dos  antago- 
nismos profundos  que  o  minam,  não  é  prová- 
vel viva  mais  do  que  as  rosas  de  Malherbe. 
Progressistas,  regeneradores,  porto-franipiis- 
tas,  lodos  os  coiós  d'onde  é  licito  á  monarchia 
concertar  lacaios  seguros,  tudo  elle  tem  cons- 
cenciosamenle  espiolhado,  deligenciando  con- 
ciliar os  ânimos  n'uma  junta  de  salvação  em 
que  nenhum  d'ellcs  acquiesce,  e  impor  o  in- 
teresse patriótico  acima  das  solTrcguidòes  pes- 


6  OS  GATOS 

soaes,  únicas  que  o  egoísmo  compulsa  ao  so- 
pezar  a  pasta  ambicionada.  De  sorte  que  os 
acordos  até  agora  feitos,  são  brevíssimos,  e  os 
ministérios  organisados  de  manliã,  desorgani- 
samse  á  noite,  sem  garantias  de  vida  ou  es- 
tabilidade. Assim  o  porto-franco,  ((ue  só  conta 
no  paiz  três  partidários  e  um  terço,  puz  como 
condição  d'entrada  no  novo  ministei-io,  o  se- 
rem-ilie  cedidas  três  pastas,  entre  as  quaes  a 
do  reino,  que  <';  para  ver  se  pesca  na  popula- 
ridade, o  quarto  partidário. 

Os  regeneradores,  que  em  seis  inezes  lie  go- 
verno pozeram  o  paiz  n'uma  ruina  equivalente 
a  seis  séculos  de  desperdício  e  veniaga,  decla- 
ram que  só  auxiliarão  o  snr.  João  Grysostlio- 
mo,  sob  clausula  e.vpressa  de  se  manter  o  em- 
préstimo Burnay  (de  que  são  bases  de  contra- 
cto o  monopólio  dos  tabacos,  sem  concurso, 
e  o  pagamento  ilo  empréstimo  D.  Miguel)  o  de 
serem  respeitadas  as  disposições  infames  do 
testamento.  K  quanto  aos  progressistas,  não 
fazem  questão  de  pastas,  mas  amuaram  de 
não  lerem  sido  procurados  mais  cedo,  e  não 
querem  ouvir  fallar  no  testamento,  cujas  no- 
meações entendem  que  só  seriam  moraes  — 
feitas  por  elles. 


os  GATOS 


Todavia  estas  difficuUiades  de  juntar  n'um 
grupo,  indivíduos  pertencentes  a  partidos  di- 
versos, não  bastam  por  si  sós  a  explicar  ta- 
manha demora  na  formação  do  gabinete,  e  ha 
por  traz  d"ellas  alguma  coiza  mais  grave  e  ex- 
cêntrica aos  simples  antagonismos  de  program- 
ma  politico.  Esse  alguma  coisa  é  o  egoísmo 
dos  homens  públicos,  acostumados  a  fazer  da 
governação  uma  forma  de  dandysmo  ou  de 
negocio:  é  a  sua  indolência,  incapaz  de  sacrí- 
ficar-se  ao  labor  sem  tréguas  que  as  circums- 
tancias  actuaes  de  certo  iam  trazer:  é  a  sua 
ignorância,  tão  deploravelmente  provada  pela 
historia  politica  dos  últimos  annos;  e  acima 
de  tudo,  digamol-o,  a  sua  absoluta  má  fé,  a 
sua  falta  de  probidade  cívica,  a  sua  cobardia, 
entretida  a  fabricar  ciladas  aos  contrários,  re- 
cusando-se  a  arcar  co'as  responsabilidades  do 
actual  momento,  e  desamparando  o  rei,  quan- 
do elle  se  aclia  fraco  e  sem  recursos,  o  des- 
amparando o  paiz,  quando  elle  lhe  vae  pedir 
alguma  coiza  mais  do  que  eleições  e  transfe- 
rencias. A  hora  em  que  vamos,  todos  quantos 
problemas  podem  acabrunhar  um  estado,  lo- 


8  OS  GATOS 

dos  pczam  aspliixicainente  sobre  o  peito  do 
paiz.  A  situação  externa  é  cada  vez  mais  ten- 
sa, e  a  situarão  interna  cada  vez  mais  insolva- 
vel.  Estamos  á  mercê  da  primeira  praça  que 
SC  lembre  de  nos  promover  a  bancarrota.  A 
<luestão  colonial  é  o  nosso  desespero,  e  todos 
os  dias  a  agravamos  com  o  nosso  desleixo  e  a 
nossa  inhabilidade.  E  no  meio  do  credito  per- 
dido, das  instituições  prostibuladas,  da  activi- 
dade exJiausta,  da  honra  morta,  embalde  se 
procura  o  espirito  methodico,  a  energia  pru- 
dente que  haja  de  nos  arrancar  ao  sorvedou- 
ro. Ha  cincoenia  annos  que  Portugal  não  pro- 
duz um  homem,  c  que  os  partidos  se  fazem  e 
desfazem  de  roda  de  sexagenários  trôpegos  e 
de  conselheiros  Acacios  desmemoriados. 

Aos  novos,  quando  se  lhe  pede  uma  i)rova 
real  dos  seus  Uilentos,  vem  os  jilanos  finan- 
ceiros do  snr.  Franco^  as  politi(piices  reles  do 
snr.  Lopo ;  ou  são  as  bravatas  do  Navarro  nas 
Novidades,  e  as  asneiras  projilieticas  do  Maga- 
lhães Lima  no  rMfíé  Riclte.  Labor  incontestado, 
esforço  intelligentc  concentrando-se  na  inter- 
pretação d'um  problema  grave,  faculdades  de 
generalisaçâo  trahindo  espíritos  de  vista  lar- 
ga, predicados  d'organisador,  faros  de  governo, 


os  GATOS  9 

presciência  cm  matéria  legislativa  ou  diplomá- 
tica, eis  o  que  escaceia  n'essas  cabecinlias  de 
ijeiíios  locaes,  que  vão  a  S.  Dento  em  palmi- 
lhas, para  sahirem  de  lá  com  botas  e  esporas, 
feitos  ministros,  ás  cavallitas  no  snr.  Luciano 
on  no  snr.  Serpa.  Estes  pinponetes,  muitos, 
por  cima  d"insignificantes,  são  veliiacos !  Acre- 
ditará alguém  que  o  paiz  está  ha  vinte  e  nove 
dias  sem  governo,  por  causa  das  infrigalhas  de 
dois  ou  três  d'esses  intrusos? 


Mas  perguntará  alguém:  uma  vez  que  a 
monarchia  resvala,  abandonada  dos  seus  pró- 
prios coveiros,  porque  ressumbra  tão  pouco  a 
acção  republicana  no  paiz?  O  partido  republi- 
cano que  se  conta  por  quazi  toda  a  classe  po- 
pular e  pelo  alto  commercio  de  Lisboa,  e  que 
tão  populoso  é  no  norte  e  no  meio  dia,  acaso 
exita,  no  momento  de  realisar  a  sua  aspiração? 
Não  sentirá  elle  ainda  a  espinha  dorsal  bastante 
forte  para  se  apoderar  da  chefia  politica;  não 
conta  elle  acquisições  de  sobejo  valiosas  para 
viabilisar  n'um  programma  de  governo  os 
ideaes  porque  vem  luctando  ha  tanto  tempo? 
Redargue-se  a  estas  interrogações  nos  seguin- 


iO  os  GATOS 

tes  termos:  os  republicanos  teom  Janta  confiança 
nos  seus  chefes,  como  os  inonarchicos  no  seu 
rei.  Um  respeito  pela  velhice  tolhe  a  propa- 
ganda viril  que  n'este  instante  devera  ser  ine- 
ciada,  c  por  causa  d'elle  o  general  da  Bem- 
posta (jue  preside  aos  destinos  da  democracia, 
na  rua  dos  .Mouros,  lá  continua  aconselhando 
prudência  aos  que  estão  fartos  d'ella,  e  senii- 
cupios  d'alfavaca  aos  que  julgam  este  cacha- 
rolete  anal,  antagónico  da  revolução.  Parece 
mentira  mas  é  certo:  as  conspirações  que  se 
não  tentam  a  favor  d'uin  regimen,  nunca 
chegam  a  compromctter  a  patente  desIVuctada 
no  exercito  do  regimen  contrario,  e  a  isto  se 
chama  viver  entre  Deus  e  o  diabo,  comendo 
em  casa  d'um,  e  c. . .  em  casa  (Toutro.  De 
maneira  que  o  que  explica  o  avolumar  conti- 
nuo dos  ari'aiaes  contra-dynasticos,  não  são 
tanto  os  apóstolos  enviados  d'esse  arraial,  ao 
campo  gentílico,  como  as  torpezas  em  que  os 
partidos  do  rei  se  desacreditam  perante  o  tri- 
bunal da  opinião.  Lá  n'esse  ponto,  a  republica 
nunca  agradecerá  suficiente  ao  snr.  D.  Carlos  e 
ao  seu  defuncto  papá,  todas  as  sollicitudes  de 
propaganda  <jue  lhes  deve,  e  nunca  se  cançará 
d'at(irmar,  que  entre  os  artigos  do  snr.  Latino, 


os  GATOS  11 

e  as  bonitas  acções  do  snr.  Lopo,  são  estas 
ultimas  que  ella  prefere,  p'rá  conversão  dos 
fieis  á  sua  igreja. 

Porém,  se  ó  i)rovavel  que  este  estado  de 
coisas  baste  aos  ideaes  modestos  do  snr.  Elias 
Garcia  e  do  snr.  Bernardino  Pinheiro,  e  d'ai- 
gunia  maneira  entretenba  as  necessidades  do 
partido  republicano  portuguez,  emepocliasnor- 
maes,  cumpre  dizer  que  o  momento  é  dema- 
siado vibrante  para  consentir  nos  piatonismos 
d'aquelles  igregios  dorminhocos,  sem  liies  pe- 
dir iicen(;a  para  os  apear  da  supremacia  que 
no  partido  lhes  foi  dada,  e  de  que  s.  e\."\  di- 
gamol-o,  teem  usado  com  demasiada  parcimo- 
nia.  A  monarchia  está  como  os  figos,  de  pé 
torcido,  e  a  cahir  de  podre  da  arvore,  jiara  o 
alambiipie  do  aguardenteiro.  Já  que  os  repu- 
blicanos se  não  podem  gabar  de  ter  varejado 
a  figueira  a  quando  os  fructos  sãos,  ao  menos 
prepai-em-se  para  arrotear  o  terreno  de  roda, 
e  substituir  a  figueira  por  uma  arvore  menos 
predilecta  de  Judas.  Ora  não  lião-de  ser  vete- 
ranos nem  paralyticos,  os  cidadãos  que  o  par- 
tido, sob  pena  de  morte,  deve  investir  d'esse 
trabalho,  mas  hornens  robustos,  intelligencias 
inéditas,  organisações  d'elite  e  seducção.  Para 


12  os  GATOS 

commiiriicar  a  l'ó  nada  ha  semellianic  a  abra- 
zar  d'ella,  e  o  directório  republicano  é  uma 
patrullia  de  mortos  e  de  tontos.  —  Demissão! 
Demissão !  (jue  se  faz  tarde. 


14  irOutultro. 

N'nma  das  suas  ultimas  noites  da  Pena,  S.  M. 
o  rei  D.  Carlos,  preso  do  delirio  manso  da  fe- 
bre de  convalescença,  e  desalentado  pelas  dif- 
ficuldades  d'acliar  pessoal  idóneo,  a  quem  ves- 
tir a  farda  de  ministro,  teve  uma  singular 
ailucinação.  Fora  soturno  o  dia — soturno  e  car- 
regado de  presagios.  Na  imprensa  correra  a 
nova  dos  inglezcs  liavcreni  forçado  a  barra  do 
Zambeze,  de  Manica  estar  sendo  invadida  pe- 
los flibusteiros  de  Cecil  lUiodes;  e  apóz  a  men- 
ção d'estas  vinlencias,  cada  Jornal  rompendo 
em  diatribes,  atirava  á  cara  do  rei  com  os 
restos  do  vinho  que  lhe  ficara  nos  copos  depois 
de  redigido  o  article  à  sensation.  De  mais,  vin- 
te e  cinco  dias  tinham  passado  já  depois  da 
ovação  de  pés  com  (pie  o  parlamento  galar- 
doara o  diplomático  génio  do  snr.  llintze,  pon- 
do o  ministério  fora  por  indecente  e  má  figu- 


os  GATOS  13 

ra:  e  até  á  meia  uoile  (l'esse  dia,  por  mais 
voltas  que  o  Martens. . .  não  desse,  e  por  mais 
conferencias  que  S.  Joíío  Crysosthomo  convo- 
casse, inipossivel  topar  na  via  publica  seis  in- 
felizes a  quem  confiar  as  sete  pastas,  e  um 
Ijocadinho  de  comiseração  que  dar  em  premio 
ao  monarcha  por,  como  elle  á  Francisco  i 
muito  bem  disse  —  haver  chegado  tarde! 

Desamparado  por  todos,  na  silenciosa  ca- 
mará do  castello,  ás  mortas  horas,  S.  M.,  de- 
pois que  se  viu  sem  povo  e  sem  ministros, 
começou  a  descer  pelas  avenidas  da  Pena,  de 
lanterna  na  mão,  capa  nos  olhos,  direito  aos 
cemiterioj  de  Lisboa,  onde  dormem  os  restos 
dos  antigos  servidores  do  seu  papá.  Dizia  elle 
comsigo,  n'aquelle  lusco-fusco  d'espirito  que 
a  febre  pòe  nos  cerebi'os  pouco  lúcidos,  dizia 
comsigo  que  uma  vez  (jue  os  vivos  o  trahiara, 
só  lhe  restava  ir  buscar  o  apoio  i)olitico  dos 
mortos,  e  reportar-se  á  tradiccional  dedicação 
dos  antigos  trunfos  com  que  seu  pae,  o  dr. 
Tavares,  jogara  o  grande  jogo.  Era  uma  noite 
pallida  d'outono,  calada  e  sem  rumores  de 
vento  nos  eirados.  De  roda  da  Pena  os  pinhei- 
raes  dormiam,  sombras  de  ramas  moscjueavam 
a  giboia  d'areia  dos  caminhos,  c  nas  fontes  e 


14  os  GATOS 

nos  charcos  a  agua  dizia  umas  coizas  timidas 
e  antigas,  de  quando  as  filhas  de  D.  João  vi 
por  li  andavam  a  morder  os  bigodes  dos  Ijellos 
militares,  e  dos  secretários  estrangeiros  de  le- 
gação. E  o  rei  monologava — o  apoio  politico 
dos  mortos !  Que  espantará  isso,  sabido  o  ser- 
viço que  elles  costumam  prestar  nas  eleições? 
Organisarum  ministério  com  avantesmas!  Quem 
ousará  censurar  este  macabro  expediente,  ad- 
mittido  o  estado  pre-agonico  do  reino?  Por  to- 
do o  trajecto  até  Lisboa,  as  formas  tinham,  sob 
a  noite,  ares  de  regicídio  combinado:  elle  vi- 
nha sósinho,  pallido  de  morte,  a  lanterna  pen- 
dente, e  sem  olhar  para  traz,  nem  se  deler  um 
instante  no  caminho — a  não  ser  no  Cacem, 
onde  a  Maria  dos  Cós  lhe  fez  escorropichar 
dois  dedos  de  aguardente.  E  entrementes  que 
andava,  ia  dizendo,  que  n'uma  crise  assim 
grave,  com  dois  partidos  arrebentados  pela 
questão  ingleza,  nada  lhe  convinha  mais  que 
o  duque  d'Avila;  seu  nobre  pae  não  teria  cha- 
mado outro,  em  caso  idêntico.  O  caso  é  que 
elle  estejrf  ainda  em  estado  de  servir! 

E  n'esta  anciedade  lhe  foi  bater  á  porta 
do  jazigo. 

—  Ávila,  é  teu  rei. 


os  GATOS  15 

—  Aposto,  meu  senhor,  ganiu  de  dentro 
uma  voz  de  títere,  aposto  que  V.  M.  está  sem 
ministério.  Aposto  que  não  lia  dinheiro.  Apos- 
to que  ninguém  se  entende. 

— Sim,  venho  conflar-mc  á  tua  sciencia 
d'algibebe.  Vinte  e  quatro  horas  para  me  ta- 
lhares um  gabinete. 

—  Graças  a  Deus  que  mesmo  em  arenque 
fumado,  sou  prestante.  Uf !  começava  a  temer 
que  ninguém  já  se  lembrasse  do  que  foi,  e  ha 
de  ser,  de  V.  M.  attento  venerador,  António 
José  d'Avila. 

—  Vamos  depressa!  Emquanto  te  açaimas 
no  cache-nez,  vou-me  aqui  bater  ao  Fontes. 

—  Onde  terei  a  honra  de  beijar  as  mãos  de 
V.  M.? 

—  Lá  baixo,  no  Terreiro  do  Paço,  ao  pé  do 
kiosque,  antes  que  o  galo  cante. 


No  mausoléu  do  grande  António  Maria,  a 
mesma  scena. 

— Abre  depressa,  cavaileiro  do  Tosão. 
Cest  la  fortune  de  France!  (uma  vóz  dentro). 

—  Eu  corro  a  abrir,  senhor.  Mas  prometta 
primeiro  V.  M.  não  reparar  nos  meus  cabellos 


16  os  GATOS 

já  um  tanto  grizallios,  porque  no  oulro  mundo, 
com  os  direitos  de  barreira,  a  agua  circaciana 
está  pela  hora  da  morte. 

—  Sabe  que  o  meu  throno  ameaça  de  ser 
vendido  em  hasta  publica. 

— ^^Outrosim  V.  M.  se  dignará  dispor  da 
sua  real  benevolência  a  favor  do  meu  tronco 
ex-clegante,  e  ora  minado  por  vermes  tão  vora- 
zes, que  os  supponho  transmigrações  de  ba- 
charéis cevondo  o  seu  furor  d'emprego,  nas 
minhas  próprias  tripas. 

—  Veste  as  tuas  cuecas  de  guerra,  e  corre 
a  salvar-me.  Olha  que  a  monarchia  perde  o 
credito,  assim  como  o  povo  perdeu  aos  ho- 
mens públicos,  o  respeito.  Ah  Fontes,  Fontes! 
Os  teus  discípulos  deram  (juazi  todos  em  ga- 
tunos e  paroleiros.  O  partido  a  que  tu  deste  o 
nome,  acaba  de  comprar  cédulas  d'infamia 
para  a  execração  publica,  e  não  voltará  jamais 
a  governar. 

—  Senhor,  não  reparareis  se  eu  me  produzir 

no  conselho,  com  algodão  ijhenico  por  miolos, 

e  a  minha  farda  de  general,  comida  do  guzano? 

— Vem  mesmo  em  fralda  salvar  a  dynastia. 

—  E  se  eu  já  não  tiver  beiços  sequer,  p'ra 
vos  beijar  a  mão  poderosíssima? 


os  GATOS  17 

— A  tua  ossatura  me  basta,  se  me  promet- 
tes  acceitar  logar  no  ministério. 

—  Mas  se  o  meu  partido  não  mais  gover- 
nará, como  dizeis,  como  posso  ascender  a 
ministro,  ficando  honrado? 

—  É  um  ministério  de  conciliação  que  eu 
organiso.  Onze  de  janeiro  atirou  José  Luciano 
n'um  sacco,  ao  rio.  Vinte  d'agosto  atirou  Hin- 
tze  Ribeiro  n'uma  tigella  da  casa,  ao  enxurro. 
E  tudo  isto  porque  Moçambique  vae  partir 
para  os  inglczes,  sem  talvez  que  o  pranto! 
Inda  quiz  ver  se  arranjava  um  ministério  de 
restos,  p'ra  ir  tenteando  o  Salisbury  da  tia 
Victoria,  mas  ha  vinte  e  sete  dias  que  a  ve- 
Ihada  embalde  tenta  arrebanhar  coisa  que 
sirva!  É  uma  desgraça.  Fontes;  lodos  me  vol- 
tam as  costas.  Eis  porque  venho  ter  c'os  esque- 
letos. 

—  E  quanto  a  dinheiro.  .  . 

—  Minha  mulher  já  lava  os  cueiros  do  Ma- 
noel, só  para  riscarmos  da  lista  civil,  a  lava- 
deira. Só  o  Lopo  Vaz  assignou  á  sua  conta,  já 
demittido,  mil  e  trezentos  despachos.  O  inglez 
não  fia,  o  francez  não  se  fia,  e  a  alma  herói- 
ca do  paço  tem  sido  até  agora,  minha  mãe, 
Maria  Pia. 


18  os  GATOS 

—  Graves  coizas  me  contacs  sobre  as  pro- 
víncias lia  publica  atlmiiiistração,  c  razão  tive 
eu  em  morrer,  convencido  de  ser  insubslilui- 
vel.  Mas  o  peor,  seniior.  .  . 

— O  peor,  dizias? 

— É  que  não  aclio  a  minha  deiilad  ura  postiça. 

— Vejamos,  clianceller.  Oueni  me  aconse- 
lhas tu  que  chame?  Faliei  ao  Ávila.  Lembra- 
me  o  Corvo,  que  dizes  tu?  —  e  aquelle  pobre 
Barros  aud  Cunha .  . . 

—  Oh!  três  admiráveis  falsos  grandes  ho- 
mens. Podia-se  mesmo  dar  a  pasta  da  guerra 
ao  rio  Zêzere,  e  fazer  o  conselheiro  Arrobas 
ministro  da  instrucção.  Agora  quanto  á  fazen- 
da, o  Silva  Sanches.  . . 

7! 

—  Um  cavalheiro  que  foi  ministro  muitas 
vezes,  e  minca  ninguém  soube  se  existiu. 

—  Reservarei  n'esse  caso  a  justiça  para  o 
i\^artens;  verdade  é  que  elle  está  ainda  vivo, 
mas  muitíssimo  bem  morto,  sob  o  epitaphio 
celebre  das  perdizes.  E  instruído,  que  diabo! 

—  Decerto,  meu  senhor.  E  uma  bibliothe- 
ca  por  lèr. 

—  E  agora  o  ponto  escuro:  quem  enviare- 
mos nós  a  Londres,  tramar? 


os  GATOS  19 

—  O  duque  de  Saldiuilia,  i|ue  aléui  da  sua 
magestosa  presença,  inda  por  lá  deve  ter  accio- 
nistas do  C.  de  ferro  Larmanjat. 

—  Vou-nie  passar  palavra  aos  outros.  Eh! 
Eh !  Deve  ser  pandego,  governar  com  um  mi- 
nistério todo  de  mortos  (geslo  de  desenfado). 
Também,  a  que  mais  pode  aspirar  um  paiz 
que  não  está  vivo  ? 


D'a!li  a  pouco  estava  o  synhedrio  d'espe- 
ctros  reunido  no  Terreiro  do  Paço,  ao  pé  do 
kiosque — a  noite,  escura,  não  havia  policia — 
e  no  meio  d'elles  o  rei,  que  mantinha  sempre 
a  lanterna  accesa,  c  presistia  em  não  querer 
destapar  o  rosto.  Apenas  se  abriu  a  sessão, 
um  incidente  ameaçou  pôr  em  crise  o  minis- 
tério ainda  mal  formado,  rpiando  a  carcaça 
de  Fontes,  pedindo  a  palavra,  quiz  saber  a 
quem  seria  dada  a  presidência  do  conselho. 
S.  M.  lembrara  o  duque  d'Avila,  ponderando 
os  bons  serviços  que  este  illustre  boi  Apis  ti- 
nha por  uso  prestar  em  situações  politicas 
difficeis,  quando  todos  os  mais  valentões  es- 
bofavam  na  feira,  de  zurzidos.  .Mas  já  os  se- 
ctários de  Fontes  estrallejavam  d'impaciencia 


Í20  os  GATOS 

OS  OSSOS  descarnados,  querendo  o  penacho  por 
força,  para  o  seu  prestimoso  António  Maria. 

—  Não  sollicito  honrarias,  exclamou  rcsen- 
lidainente  o  veiiio  cachc-iiez  iegua  da  Povoa  — 
sete  palmos  de  terra  me  bastam — e  só  lembro 
a  V.  M.  que  lenho  no  peito  seis  mil  quatro- 
centas e  noventa  e  sete  grã-crnzes  e  commen- 
das,  entre  as  quaes  o  elefante  de  Sião,  e  o  co- 
lar do  verdadeiro  estás-te  a  rir  do  Império  do 
Meio,  e  ([ue  já  (juatorze  vezes  presidi  a  minis- 
térios que  tiveram  a  honra  de  salvar  da  ruí- 
na, a  pátria  e  a  monarchia. 

Acudiu  Fontes — a  hora  não  é  d'alegar  ser- 
viços. Acima  do  orgulho  pessoal,  a  nação,  e 
acima  de  tudo,  o  progresso!  E  fosse  o  caso 
de  medalhas,  senhor  duque;  eu  tenho  o  To- 
são d'Oiro! 

— De  certo,  de  certo,  bradou  n'um  falsete 
colérico,  o  interpellado.  V.  Ex.''  tem  o  Tosão... 
(i  inegavelmente  um  titulo  á  presidência.  Mas 
eu  estou  morto  ha  muito  mais  tempo.  Ora 
chuche! 

—  De  mais,  acudiu  S.  M.  com  voz  conci- 
liadora, a  presidência  do  conselho  pouco  im- 
porta n'este  caso.  l\o  gabinete  que  eu  preten- 
do, o  cargo  lie  honra,  meu  Fontes,  é  a  pasta 


os  GATOS  21 

dos  estrangeiros,  que  te  oflereço.  E  agora  diz- 
me:  és  fiel  ao  teu  antigo  programma? 

— Oli  mais  que  nunca!  Entendo  que  o  go- 
verno deve  sempre  fazer  caminhos  de  ferro, 
embora  não  havendo  que  trazer,  nem  que  le- 
var. Entendo  que  o  paiz  deve  pedir  empres- 
tado, sem  pagar  nunca.  Entendo  que  se  devem 
crear  togares  com  grandes  ordenados,  para  dar 
carriola  aos  nossos  sobrinhos.  E  finalmente  que 
se  deve  regar  com  libras  o  pé  de  todas  as  in- 
transigências, té  que  elle  apodreça,  e  venha  a 
nós. 

—  É  em  resumido,  o  programma  do  leu 
glorioso  discípulo  Lopo  Vaz. 

— Acto  adicional :  só  o  rei  é  grande,  e  de- 
pois d'elle,  o  seu  ministro  dos  negócios  es- 
trangeiros, ftosseãe  duque,  ac/juiscenciít  dos  ou- 
tros espantalhos.) 

—  Falias  como  um  leal  gentil  homem,  disse 
o  rei  enthusiasmado.  O  que  é  preciso  mais? 

—  Por  agora,  evitar  que  Portugal  ponha  a 
pontapés  os  seus  monarchas,  e  que  a  Inglater- 
ra ponha  Portugal  da  Africa,  a  pontapés.  Para 
conter  a  opinião  no  jugo  monarchico,  é  indis- 
pensável conservar  a  Africa  intacta,  embora 
não  saibamos  p'ra  que,  e  para  conter  a  Ingla- 


22  os  GATOS 

terra  cm  tolerância  coninosco,  é  indispensável 
partir  a  Africa. 

—  Mas  não  poderemos  lazer  ao  mesmo  tem- 
po as  duas  coizas. 

—  Quer  dizer  que  são  antagónicas  a  mo- 
narchia,  e  a  integridade  do  paiz.  Entretanto  é 
imprescindivei  tomar  rumo.  São  perigosíssimos 
ambos.  (Jual  é  o  menos?  Tem  a  palavra  o  snr. 
ministro  da  fazenda. 

Um  es(pieletosinlio  avançou,  muito  acaba- 
do, (leu  quatro  peidos,  e  declarou  qm  tinha 
concluido. 

—  A  assembléa  acaba  d'ouvir  da  bocca  do 
meu  collega,  o  periclitaute  estado  da  fazenda 
publica.  Não  ha  dinheiro,  e  é  urgente  atiral-o 
pelas  janellas,  para  distrahir  os  jornalistas  e 
os  oradores,  da  sua  obsessão  republicana. 
Apanhar  os  rapazes  de  talento  á  bocca  das  es- 
colas, compral-os. . .  Foi  sempre  o  meu  sys- 
Ihema :  sahem  mais  baratos !  Não  ha  dinheiro, 
mas  a  Inglaterra  empresta,  se  lhe  deixarmos 
cm  Moçambique  o  que  ella  (|uer.  Por  conse- 
quência, temos  a  questão  financeira  resol- 
vida. 

— Por  uma  indignidade,  rompe  o  presiden- 
te do  conselho,  do  seu  canto. 


os  GATOS)  2á 

opinião  do  rei  —  as  indignidades  que  o 
oiro  move,  são  nobrezas. 

lledargiiiu  Fontes — foi  a  razão  porque  eu 
dei  sempre  tiíulos  lionorificos  a  ladrões. 

—  E  agora,  apresente-se  o  meu  ministério 
ao  parlamento. 

—  Senlior,  vejo  um  perigo.  A  camará  actual 
deve-nos  ser  hostil.  Acautelem"o-nos. 

—  Dissolvam-na ! 

—  Hemos  mister  de  deputados  de  confian- 
ça, homens  do  nosso  ideal,  do  nosso  feitio, 
do  nosso  tempo;  n'uma  palavra,  um  parla- 
mento d'esqueletos. 

—  Deus!  que  exhumações  a  fazer! 

—  E  quem  elegerá  um  esqueleto,  deputa- 
do, senão  assembleias  eleitoraes  constantes  de 
defuntos,  que  será  necessário  ir  desenterrar 
aos  cemitérios,  e  que  depois  de  desenterrados, 
só  votarão  serviudo-lhes  nós  o  carneiro  com 
batatas  de  ha  cem  annos? 

Aqui  pareceu  S.  M.  cuidar  profundamente: 
era  toda  a  ressurreição  do  reino  e  do  reinado 
de  seu  pae,  o  dr.  Tavares,  que  esses  homens 
exigiam,  antes  de  começar,  tão  outros  tem- 
pos tinham  vindo,  e  tão  vertiginosos  abysmos 
agora  medeavam,  entre  a  realeza  e  a  opinião. 


íi  os  GATOS 

E  por  desgraça,  eram  o  reino  e  reinado  do 
dr.  Tavares  o  qiu!  o  snr.  D.  (-arios  mais  de- 
testara n'esta  vida ! 

A  alba  vinha,  e  uma  fda  interminável  de 
carroças  de  lixo,  cortava  n'esse  momento  por 
deante  do  Arco,  para  a  Rua  Nova  da  Alfande- 
ga, como  levando  a  S.  Vicente  os  restos  da 
monarchia.  E  esta  visão  d'enterro,  insul- 
tuosa, galvanisando  outra  vez  o  régio  desa- 
lento, |)òz  na  bocca  do  rei  palavras  impe- 
riosas. 

—  Pois  que  assim  c  preciso,  resurgi  dos 
covaes  a  gente  de  que  haveis  mister,  (jue  eu 
vos  offereço  o  exercito  como  penhor  de  que  se- 
reis acceites  e  acatados.  .Mas  sem  demora,  ou- 
vis? que  o  throno  oscilla.  Sou  eu,  D.  Carlos  de 
Ijragança,  que  vol-o  ordeno  em  nome  da  au- 
tonomia da  nação. 

E  S.  M.  desembuçara-se,  já  áquellas  pala- 
vras de  D.  Carlos  de  Bragança,  os  conjurados 
faziam  um  passo  para  traz,  mal  respirados  do 
assombro  em  (jue  semelhante  nome  os  tinha 
posto. 

—  Pois  (jue!  disseram  todos,  não  é  á  mui- 
to venerável  sombra  do  grande  i'ei  Luiz,  que 
estamos  falhindo?  Não  é  a  sua  afflicção  que 


os  GATOS 


nos  convoca,  não  é  o  seu  pão  que  nós  somos 
chamados  a  amassar? 

— Não,  rufiões  de  meu  pae!  (Jue  vos  faz 
o  nome  do  rei,  se  é  a  dynastia  que  importa 
perpetuar?  Recusareis  servir-me!  Olá,  matrul- 
la  ignara !  Vejo  que  me  não  perdoastes  a  irre- 
veiencia  com  que  eu,  infiinte,  aspergi  nas 
vossas  barbas,  em  nome  do  direito  divino,  a 
serosidade  verde  dos  meus  cueiros,  e  que  aiada 
depois  de  sombras  andais  resentidos  da  vez 
em  que,  mancebo  já,  vos  apodei  a  todos  d'i- 
diotas, 

—  Senhor,  não  vos  desmancheis,  por  Deus! 
que  o  gaio  canta,  disse  o  duque,  ^'olto  ao  se- 
puichro,  amortalliado  no  meu  derradeiro  m- 
rhe-nez.  Sou  d'oufro  tempo,  e  não  esífueço 
que  n'um  jantar  do  paço,  me  desiionrasteis 
publicamente,  besutando  as  minhas  seis  mil 
quatrocentas  e  noventa  e  sete  condecorações, 
com  compota  de  jinga,  e  chamando-me  pastei... 

E  lentamente  os  phantasmas  se  volveram 
a  roncar  o  somno  eterno,  deixando  o  rei  sup- 
plicante  ao  pé  d'unia  sargeta. 


26  os  GATOS 

10  liOulubnt. 

A  declaração  lida  lioulein  na  camará  dos 
deputados,  pelo  presidente  do  novo  conselho 
de  ministros,  João  Crysostlionio,  apesar  de 
restricta  a  i;eneralidades,  contém  lucidamente 
o  pro.ítranima  da  conducta  futura  do  governo. 
Reneija  por  exemplo  o  tratado,  posto  o  viesse 
a  aceitar  talvez,  com  ceilas  modiíicações,  e 
nos  paraiiraplios  allusivos  á  administração  in- 
terna «im|iòr-se-lia  o  severo  preceito  de  se 
abster  de  fiuaesijuer  despezas  que  não  sejam 
imprescindíveis,  e  de  roalisar  corajosamente 
todas  as  economias  perniittidas  jtelas  necessi- 
dades dos  serviços  ])ublicos,  e  i)elos  encargos 
essenciaes  da  civilisação.» 

Esta  declaração  põe  conseíiuentemente  o 
governo  no  dever  formal  de  desiçar  o  minis- 
tério d'instrucção  publica  das  nullidades  indi- 
gitadas para  lhe  occupareni  os  cargos  supe- 
riores (com  manifesta  fraude  dos  intuitos  para 
que  esse  ministério  foi  creado),  e  constitue-o 
ainda  mais  na  obrigação  de  rasgar  em  peda- 
ços o  testamento  dos  comi)anlieiros  do  snr. 
Serpa,  impedindo  assim  os  latrocínios  e  in- 
qualificáveis abusos  de  que  elie  é  porta-vóz. 


os  GATOS  27 

Assim,  na  instrucção  publica,  a  primeira  coi- 
sa que  o  snr.  António  Cândido  tem  a  fazer,  é 
deminir  o  snr.  Azevedo  Castello  Branco,  de  di- 
rector geral  das  Belias-Artes,  aljandonando-llie 
quando  muito  um  logar  de  segundo  official  ou 
d'amanuense,  e  entregando  a  directoria  a  al- 
guém que  possua  a  illustração,  a  inteliigencia, 
€  a  polarisação  esllietica,  de  que  s.  ex/'  o  conse- 
lheiro ó  incapaz.  A  esta  demissão  seguir-se-ha 
a  do  snr.  António  José  Tei.xeira,  da  chefia 
d'instrucção  superior :  pelas  seguintes  ra- 
sões. 

O  snr.  Teixeira  é,  ou  foi,  homem  de  mé- 
rito. Exerceu  bastos  annos  o  logar  de  profes- 
sor da  Universidade,  mas  completado  o  seu- 
tempo,  aposcntou-sc.  A  aposentadoria  significa 
sempre  incapacidade,  pelo  menos  perante  a  lei. 
S.  ex.'i  portanto  não  podia  exercer  mais  cargos 
pagos,  visto  já  receber  do  Estado  um  subsidio 
attiueute  á  sua  invalidez.  Mas  sempre  e.verceu, 
e  quem  não  podia  comsigo  para  lente,  foi  jul- 
gado soberbo  para  director  da  alfandega. 

Então  de  duas,  unia.  Ou  a  lazeira  alegada 
pelo  snr.  Teixeira,  a  quando  a  reforma  de 
professor,  foi  uma  historia,  ou  em  caso  con- 
trario, a  sua  nomeação  para  a  alfandega... 


28  os  GATOS 

neccbcr  dinheiro  por  dois  lados,  como  ve- 
terano e  coino  funccionario  activo,  cx.""'  snr., 
nunca  foi  límpido  —  desculpará  —  mórmenle 
sendo  nédias  as  propinas  dos  dois  cargos.  En- 
fim, passemos.  Mas  eis  que  poucos  annos  de- 
pois, pela  segunda  vez  o  snr.  Teixeira  se  apo- 
senta, em  director  da  alfandega,  e  calcular-se- 
ha  com  que  ordenado!  Não  fica  inda  por  qui 
o  iiomensinho,  e  ahi  o  temos  agora  n'uma  das 
dircctorias  gcraes  d'instrucção  publica,  com 
mais  hôOOSOOO  reis  para  juntar  á  maquia  das 
suas  duas  reformas  subsequentes.  De  sorte  que 
por  estas  series  alternadas  de  rejuvenescimen- 
tos  e  decrepitudes,  inda  lemos  no  Diário  a  no. 
meação  do  snr.  Teixeira,  para  patriarclia — em 
duas  vidas  —  quando  s.  ex.''  já  estiver  embal- 
samado. Terceira  exlioneração,  a  do  snr.  Amo- 
rim, um  dos  retrógrados  mais  acirrantes  da 
burocracia,  e  um  dos  carcereiros  nefastos  que 
entre  nós  tem  tido  a  Instrucçào.  O  snr.  Amo- 
rim percebe  do  seu  novo  logar,  cerca  de 'lOOSOOO 
mensaes,  ajuntando  a  indemnisação  que  lhe 
deram,  por  não  ter  sdlva  (depois  se  verá  o  que 
é),  e  ainda  HOSOOO  reis  pelo  encargo  d'escre- 
ver  a  «Historia  da  lustrucção  em  Portugal.» 
De  maneira  (pie  sendo  este  pateta  (piem  tem 


os  GATOS  29 

dado  cabo  da  instrucção,  é  também  elle  que 
lhe  escreve  o  necrológio. 

O  snr.  António  Cândido  desvie  (juanto  an- 
tes este  patarrêco  do  iogar  que  ora  preenche, 
transferindo-o,  como  ao  snr.  .losé  d'Azevedo, 
a  outro  mais  condizente  ao  complexo  das  suas 
inaptidões.  Possuidor  d'uma  excellentc  calli- 
graphia,  e  suficientemente  erudito  para  escre- 
ver monUmka  com  c  cedilhado,  o  conselheiro 
Amorim  dará  sem  duvida  um  copista  muito 
apreciável,  e  o  novo  ministro  dMnstrucção  pu- 
blica paga  generosamente  estas  habilidades, 
limitando  os  honorários  do  homem,  a  seis  li- 
bras por  mez  e  um  par  de  chinellos. 

Quanto  á  redacção  da  Historia,  dispensa- 
do. Porque  ou  o  trabalho  é  d'elle,  e  não  pres- 
ta, ou  tendo  algum  mérito,  é  com  certeza  es- 
cripto  pelo  creado. 

K  pois  que  é  ministro  do  reino  o  mesmo 
cavalheiro  que  occupa  a  pasta  dMnstrucção 
publica,  e  pois  que  o  governo  capricha  em 
cortar  rente  os  abusos,  vamos  dar-lhe  ensejo 
d'cxtinguir  um,  dos  mais  antigos.  E  o  episo- 
dio da  salvu,  que  já  anteriormente  referimos. 
A  salva  é  uma  espécie  de  pour-boire  que  o 
director  do  ministério  do  reino  percebe,  das 


■30  os  GATOS 

mãos  de  qualquer  pretendenle  ou  agraciado, 
no  instante  de  lhes  entregar  a  carta  refcrenda- 
tiva  de  ([ualquer  pretensão,  ou  de  qualquer 
mercê. 

Attenta  a  lotação  do  funccionario  a  (lueni 
a  gorgeta  é  dada,  rjuer  a  etiqueta  que  a  mes- 
ma não  seja  em  dinheiro,  senão  travista  outra 
forma  mais  artística,  como  seja  um  objecto 
d'ourivesaria,  em  prata  ou  ouro.  Habitual- 
mente é  uma  salva  de  prata. 

O  agraciado  compra  aípiillo  em  qualquer 
casa  de  lavrante,  leva-a  n'nm  papel  de  seda 
ao  director  do  ministério  do  reino,  que  a  re- 
bate depois  a  peso,  na  própria  loja  onde  foi 
ãdfpiirida.  D'esta  lorma  ha  salvas  que  vão 
trinta  e  quarenta  vezes  da  rua  da  Prata,  pai'a 
o  ministério,  e  d'esle  á  rua  da  Prata,  c  que 
se  (piizcssem  fallar,  refeririam  coisas  bem  ra- 
tonas. Como  passe  pela  directoria  do  ministé- 
rio do  reino,  não  só  o  género  d'cxpediente 
burocrático  que  tem  por  propina,  a  salva  de 
prata,  mas  assim  todas  as  coisas  concernen- 
tes á  alta  direcção  politica  do  paiz,  fica-se  em 
duvida  se  serão  só  os  viscondes  brazileiros 
os  incursos  na  despeza  do  brinde  supra,  ou 
se  este  é  extensivo  a  todo  e  qualquer  negocio 


os   GATOS  31 

que  impenda  da  directoria.  É  mais  que  certo 
que  o  não  seja,  mas  pôde  vir  a  sel-o,  e  o  snr. 
ministro  fará  bem  em  pòr  ponto  n'esta  gro- 
tesca antiguaiiia,  que  o  mau  costume  fez  lei, 
para  afinal  se  tornar  n'uma  verdadeira  explo- 
ração. Se  o  director  geral  do  ministério  do 
reino  gosta  de  ser  cumprimentado  pelas  mer- 
cês em  que  põe  o  visto,  em  vez  da  salva  de 
prata,  (|ue  uma  de  palmas  lhe  baste;  isto  sem 
nos  repugnar  que  s.  ex.'«,  ao  referendar  das 
grandes  graças,  apanhe  outra — de  vinte  e  um 
tiros. 


Entra-se  agora  na  testamentária  do  minis- 
tério transato,  e  o  novo  governo,  se  como  se 
afíiança  traz  foice  para  cegar  as  daninhas  lier- 
vas  que  a  testamentária  plantou,  queira  prin- 
cipiar a  sua  ceifa,  d'este  modo.  Entre  no  mi- 
nistério da  justiça,  e  annullc  á  má  cara  os 
I:3'i8  despachos  que  o  snr.  Lopo  Vaz  lá  fez, 
a  quando  demittido  já  do  cargo  de  ministro, 
visando  particularmente  os  19  cónegos,  os  103 
juizes,  os  91  delegados  sem  concurso,  os  13 
conservadores,  os  O  sub-delegados,  os  87  es- 
crivães e  tabelliães,  os  lá  ajudantes d'cscrivão, 


â"!  os  GATOS 

OS  48  contadores,  os  4  escrivães  de  julgados, 
os  â7  arbitradores,  ctc,  e  bem  assim  todas  as 
comarcas  novas  e  todos  os  compadrios  indecen- 
tes, a  que  o  deplorável  cynico  deu  sancção  — 
havendo  até  um  patusquinho  que  o  snr.  Lopo 
nomeou  p'ra  três  togares  ao  mesmo  tempo ! 

Entre  no  ministério  dos  estrangeiros,  e  faça 
abater  todos  os  secretários  d'cnibaixada,  todos 
os  cônsules,  todos  os  adidos  militares,  e  to- 
dos os  viajantes  subsidiados,  que  o  snr.  Hin- 
tze  Ribeiro  haja  expedido,  por  via  da  sua  pas- 
ta, para  os  coiós  pingues  onde  esta  gentinha 
se  refastela,  em  preço  de  serviços  com  (jue  o 
paiz  nada  lucra,  e  que  melhor  seria  que  s. 
ex.«  recompensasse,  pagando-lhes  do  seu  bolso 
a  espórtula  combinada.  Assim  por  exemplo,  é 
completamente  desnecessário  (pie  no  Ilavre 
haja  dois  cônsules,  um  de  primeira,  outro  de 
segunda  classe,  e  que  o  snr.  major  Cypriano 
Jardim  ande  no  Pratner,  com  três  contos  por 
anno,  a  fanicar  as  moças,  sob  desculpa  de  que 
o  faça  para  informar  o  ministério  da  guerra, 
das  manobras  austríacas. 

Assim  por  exemplo,  é  um  crime  de  lesa 
elegância  privar  a  Avenida  dos  seus  dandys, 
só  porque  o  snr.  Alfredo  Anjos,  aborrecido 


os  GATOS  33 

em  Berne,  reclama  por  secreUirios  d'embaixa- 
da,  os  seus  antigos  companheiros  de  pagode. 

O  estliesiante  Lamiel,  que  exorna  o  Portu- 
giiez,  porque  recambial-o  á  embaixada  d'algum 
paiz  onde  a  sua  defesa  do  tratado  não  seja 
compreliendida? 

Na  obra  publica,  a  testamentária  foi  me- 
nos profusa,  é  certo,  mas  nem  por  isso  o  pen- 
teado do  snr.  Arouca  pôde  orgulhar-se  da  vir- 
tude, abrindo  em  arco,  por  esse  facto,  o  seu 
topete  original  de  catatua. 

Para  não  sei  que  posto  hipico  do  reino, 
despachou  S.  Ex.a  um  individuo,  que  tendo 
por  missão  montar  cavallos,  sò  possue  para  o 
fazer,  a  perna  esquerda — circumstancia  esta 
que  não  garante  lá  muito  o  bom  serviço,  lia 
também  uns  fiscaes  do  caminho  de  ferro  da 
Beira  Caixa,  começando  a  vencer  desde  o  des- 
pacho, e  que  só  serão  chamados  a  trabalhar 
d'aqui  a  quinze  mezes.  E  os  engenheiros  do 
ministério  d'instrucção  publica?  Até  um  d'el- 
les,  Ravaglia,  italiano,  nem  sequer  teve  o  tra- 
balho de  se  procurar  cartas  de  naturalisa- 
ção;  entrou,  sentou-se:  e  o  snr.  João  Ar- 
roio, que  tem  o  faro  da  mise-en-scene  atinente 
aos  seus  papeis,  conta-se  lavrara  os  últimos 


Si  os  GATOS 

despachos  no  cacifro  do  giiarda-porlão  do  mi- 
nistério, já  despedido — e  sem  correio,  sem  lua, 
sem  nada — distribuindo  as  nomeações  como 
estas  esmolas  que  se  dão  na  escada,  antes  de 
sahir  o  enterro.  Viu  o  porteiro  a  humilhosa 
postura  do  ex-ministro,  e  homem  malicioso, 
com  sedes  de  dominio: 

—  Hoje  assigna  V.  Ex.a  no  meu  cubículo, 
observou-lhe.  O  destino  é  tão  vario,  senhor 
conselheiro !  Quem  sabe  se  eu  ainda  alguma 
vez  assignarei,  no  seu. 

Ilum !  posso  jurar  que  a  profecia  do  cer- 
bero  se  não  cumpre.  Mesmo  que  o  snr.  Ar- 
roio deixe  a  politica,  o  piano  se  encarregará 
de  lhe  oilerecer  uma  espécie  de  mediania  glo- 
riosa. Nos  calTés  cantantes  pagam  bem. 


EXPEDIENTE 


Muito  brevemente  apresentaremos  os  pros- 
pectos para  a  publicação  de  uma  edição  mo- 
numental do  notável  romance  AMOR  DE 
PERDIÇÃO,  do  principe  dos  escriptores  por- 
tu^uezes,  Camillo  Castello  Branco,  o  ro- 
mancista de  imperecível  renome  e  inegualavel 
talento,  esperando  que  V.  Ex.a  nos  reservará 
a  sua  assignatura  para  tão  importante  publi- 
cação. A  edição  que  emprehendemos  consti- 
tuirá um  verdadeiro  primor  de  bibliographia 
nacional,  pois  será  illustrada  com  magníficos 
desenhos  devidos  aos  reputados  e  laureados 
artistas  portuguezes — J.  J.  de  Souza  Pinto,  Cae- 
tano Moreira  da  Costa  Lima  e  J.  d'Ameída  e 
Silva,  inserindo  também  prefácios  e  estudos 
críticos  dos  nossos  notáveis  homens  de  letras 
— Manuel  Pinheiro  Chagas,  Ramalho  Ortigão  e 
Theophílo  Braga,  trabalhos  feitos  expressamen- 
te para  esta  monumental  edição. 

Ficará,  assim,  pois,  esta  edição  especial  do 
notável  romance  AMOR  DE  PERDIÇÃO  como 
um  monumento  perdurável  em  honra  do  seu 
ímmorlal  auctor. 


Os  editores  oITereccm  a  todos  os  assignan- 
tes  d'esta  momiiiieiUal  edição  um  krinde  de 
um  grande  valor  arlislico,  e  tal  que  até  hoje 
ainda  se  não  distribuiu  no  paiz  brinde  de  va- 
lor comparável  a  este.  É  uma  soberba  oleo- 
grapbia,  finíssima,  de  grandes  dimensões,  e 
copia  do  notável  quadro  Umn  scena  de  Pom- 
peia, que  enriquece  um  dos  museus  da  Itália, 
e  que  é  devido  ao  pincel  do  celebre  artista 
italiano  L.  Crosio. 

K  tão  notável  esse  í[uadro,  que  todas  as 
illustrações  estrangeiras  o  têm  reproduzido  em 
suas  paginas  em  bcUas  gravuras  dos  melhores 
artistas,  dedicando  áquelle  soberbo  trabalho 
notáveis  artigos  e  fazendo  os  maiores  elogios 
ao  auctor  do  quadro. 

Póde-se  afoilamcnte  garantir  que  o  valor 
real  do  brinde  é  de  metade  da  obra  que  va- 
mos publicar. 

A  edição  acha-sejá  quasi  prompta  faltando 
apenas  concluir  os  albuns-specimens,  pros- 
pectos e  cartazes;  e  a  publicação  regular  co- 
meçará brevemente,  sendo  antes  d'isso  exposto 
ao  publico  o  MAGNIFICO  nniNDE  que  offerece- 
mos  gratuitamente  a  todos  os  assignantes. 

OS  EDITORES. 


FIALHO  I)'ALMEIDA 


OS  GATOS 

PUI5L1CAÇÃ0  SEMANAL, 
D'lNnUERlTO    Á    YII).\   PORTUCÍIEZA 


N.M9— l(ieNoveiiil)roilcl8!)0 


SUMMARIO 


A  TRI1>L1CE-A[.LIANÇA  NO  COMXICTO  ANGLO- 
LUSO  — OS  VIAJORES  iMARTENS  FERRÃO  E  MA- 
GAEIIÀES  LIMA  —  POR  QUE  MÃOS  ANDA  A  DIGNI- 
DADE DO  PAIZ  —  MODO  DE  PROVER  OS  ALTOS 
CARGOS  —  PEDE-SE  AO  SNR.  liOCAGE  UMA  liE- 
VISTA  BURLESCA  DE  DIPLOMATAS  E  CÔNSULES, 
NA  AVENIDA  —  PSVCOLOGIA  DO  ADDIDO  D'EM- 
BAIXADA,  E  DESFILADA    DE  PLENIPOTENCIÁRIOS 

—  O  SNR.  CONDE  DE  VALENÇAS  É  UM  MAMÍFERO 

—  OS  CÔNSULES,  E  SUAS  PREDILECÇÕES  ANTI- 
PATRIÓTICAS—RAZÕES  PORQUE  O  NÍVEL  DES- 
CE, E   PORQUE  ESCACEIA  O  PESSOAL— PEDE-SE 


II  os  GATOS 

A  DEMOLIÇÃO  DO  CONDE  BURNAY,  R  DÃO-SE  AS 
líAZÕES  — É  O  SYLPIIO  DA  liAMlíOCHA  PUBLICA: 
abaixo!  — OS  DOIS  CIRCOS  DE  LISBOA,  E  ANA- 
LOGIAS DOS  títeres  com  OS  DEPUTADOS  E  PA- 
RES DO  REINO  —  ELEFANTES  E  LEÕES  —  VIVA 
MAGALHÃES  LIMA  !— O  JAPONEZ  AWATA,  E  SUG- 
GESTÒES  PROVOCADAS  PELA  SUA  CABAIA  — 
HISTORIA  DO  príncipe  D'AKÒ,  E  EPOPEIA  EX- 
TRAORDINÁRIA DOS  r0)lilis  —  ASCENDÊNCIA  IL- 
LUSTRE  D'UM  jonglcur,  E  IDENTIFICAÇÃO  DO 
EXOTISMO  D'ELLE  COM  O  MEU  PRÓPRIO  —  FRI- 
VOLISMO   COMO   BASE  DE  VIDA  RISONHA —/(//)(> 

nezeiie  for  ever! 


22  de  Outubro. 


A  estada  no  Tejo,  de  duas  esquadras  i)ei'- 
tencentes  a  narões  da  triplico  aliiança,  suggc- 
i-iu  a  suspeita  de  não  ser  inditlcrcnte  ás  mo- 
narciíias  da  Europa,  a  coalisão  republicana  que 
á  soml)ra  da  França  se  começa  a  agitar  p'la 
península.  Suppòz-se  que  a  Allemaniia,  a  Itá- 
lia, e  a  Áustria,  veriam  com  terror  a  approxi- 
mação  dos  povos  meridionaes,  n'Hnia  federa- 
ção latina  inexpugnável,  e  teve-se  esperança 
de  (pie  esta  ameaça,  bolindo  c'o  regimen  dy- 
nastico  d'aquellas  três  potencias,  houvesse  le- 
vado os  respectivos  soberanos  a  intercedei'ein 
por  nós  junto  da  biglaterra,  no  propósito  d'es- 
ta  nos  deixar  na  questão  d'Africa  uma  posição 
sobejamente  grata  ao  nosso  orgulho,  e  que 


4  OS  GATOS 

|)0i'  al.umn  luuipu  iiy;iiciiia.s.s('  íiiiida  ciilii'  nós 
o  Lragaiira  no  seu  llirono.  Coiwlissera  a  entra- 
da das  esipiadras  co'a  vinda  do  snr.  Marlens 
KeiTão,  trazendo  de  lloma,  dizia-se,  a  qnestào 
anglo-imiiniíneza  resolvida,  pelos  bons  anxi- 
lios  (lo  Capa:  e  esla  mediania  de  Leão  xiii,  aj)- 
proxiniada  do  espalliaialo  (pie  a  llniuis  eslava 
fazendo  co'a  via.nem  do  sni'.  Magalliães  Li- 
ma, dava  alé  cerlo  ponto  eolierencia  ao  i)oalo 
da  tripliee  alliança  se  resolver  a  trai>alliar, 
a  nosso  lavor. 

I'ela  sej^iinda  vez  portanto  si!  acercava  de 
nós  a  fortuna  no  seu  carro,  trazendo-nos  en- 
sejo de  revindicarmos  lionra  e  territórios  em 
litigio,  sendo  a  primeira  aipiella  em  que,  loyo 
depois  do  nltimatum,  nos  recusámos  a  apellar 
para  a  conlerencia  de  15erlini.  ilreve  |)orém  a 
illusão  durou,  porque  assim  como  da  primei- 
ra vez  os  nossos  homens  d'Estado  não  soid)e- 
ram  tirar  do  arti.uo  H  do  acto  jieral,  o  salva- 
tei'io  ipu!  elle  contintia,  assim  d'esta,  a  inter- 
venção anuiiavel  da  Iriplice  alliança,  gorada  fi- 
cou, por  culpa  d'elles  —  se  alginna  vez  cuidara 
em  ser-nos  ulil. 

Por  culpa  d'elles,  disse,  e  vou  proval-o.  Á 
uma,  esses  senliores,  em  vez  de  deixarem  vo- 


os  GATOS  i_) 

zear  nas  ruas  as  niaiiifeslações  republicanas 
—  inliinamente  inolTensivas,  sabomol-o,  mas 
exceilontes  como  texto  de  teiegi^animas,  para 
alarmar  lá  lora  a  Europa  monarcliica  —  trata- 
ram mas  Ibi  de  fazer  correr  que  metteriam  no 
Africa  os  que  fossem  apanhados  a  dar  vivas 
on  morras,  a  algiiem  ou  a  alguma  coisa.  Á  ou- 
tra, fizeram  desmentir  pelas  cliancellarias  a 
magnitude  do  loiro  Magalhães,  como  mmlhi 
da  crusada  jacobina,  traiiquillisando  d'cst'arlo 
os  i-eis  adiados,  quanto  aos  resultados  (ki  mis- 
são do  redactor  do  Século  pelos  restaurants 
latinos,  com  cluimpagne  falso  nos  toasts,  e 
Xaviercs  de  Carvalho  e  Zorrillas  nos  menus. 
E  a  força  moral  da  agitação  republicana 
cerceada  d'este  modo,  calmada  a  Eui'opa  sobre 
a  ridicularia  das  nossas  conspiratas,  os  eni- 
baixadoi"es  que  lá  fora  temos  deram  o  golpe 
de  misericórdia  na  intercessão  que  a  Kaiia,  a 
Allomanlia  e  a  Áustria  pareciam  decididas  a 
tentar,  junto  da  Inglaterra,  a  nosso  bom. 


Porque  o  mau  sestro  é  este :  ou  seja  dos 
homens,  ou  da  constituição  politica  reinante, 
é  certo  ([ue  o  alio  funccionalismo  baixa  entre 


o  os  GATOS 

nós  lornvflineiiU-,  a  poiílo  tias  altas  funcçõcs 
do  Kstado  estarem  enii-e  mãos  d'iuna  crelina- 
gem  que  faz  pejo,  nos  ciUreaclos  em  qiic  não 
é  o  asco  a  seiisa(;ão  dominante  que  ella  inspi- 
ra. Uma  vista  retrospectiva  sobre  oqnc  ján'ou- 
tros  números  traçamos,  intbimará  o  leitor 
d'algnns  dos  mais  salientes  aleijões  que  cons- 
tituem o  caracter  do  nosso  homem  politico,  (í 
de  caminlio  talvez  visione  o  processo  qne  tem 
entre  nós  a  politica  d'investir  os  seus  dilectos, 
como  senhora  despótica,  nos  logares  de  respon- 
sabilidade ou  de  confiança.  Já  por  mais  d'uma 
vez  exi)licánios  não  ser  ci-iteiio  usado  na  pro- 
visão dos  altos  cargos,  a  circinnstancia  d'elles 
convirem  aos  recursos  e  aptidões  do  candida- 
to, mas  tão  somente  se  fará  conta  a  este,  o 
rendimento  metallico  d'aqnelles.  Este  nefando 
systhema  tem  enchido  os  (|uadros,  de  sobri- 
nhos c  irmãos  de  ministros  o  directores  ge- 
raes,  qiiazi  Indo  crealurinhas  de  gozo  e  de 
(lei K INC,  incapazes  d'estudo,  sem  vislumbre  de 
cereliro,  nem  capacidade  alguma  de  trabalho,  e 
apenas  dispostas  a  fazerem  dos  logares  (pie 
lhes  dão,  conezias  rendosas  e  inactivas.  Km- 
quanto  a  politica  só  aproveitou  essa  cambada 
de  di>sfriictadores,  para  nioi)ilar  com  ella  os 


os   GATOS  / 

logares  infmios  e  médios  das  secretarias  e  da 
alfandega,  bem  foi  a  coiza :  mas  preencliida  a 
corredoira  burocrática,  de  bestas,  houve  que 
se  deshonrar  a  envergatura  moral  de  certos 
cargos  altos,  de  se  pòr  em  jogo  a  dignidade  e 
a  seriedade  de  certos  serviços,  para  dar  co- 
mida ás  restantes. 

Filhos  de  familiaíi  ricas  ou  illustres,  creti- 
nos insolvaveis  muitos  d'elles,  lá  vão  secretá- 
rios d'cmbaixada  e  cônsules  de  primeira  clas- 
se, para  essas  capitães  de  prazer,  onde  o  paiz 
lhes  espórtula  os  vicios  frustes,  a  ociosidade 
desdenhosa,  e  a  elegante  invalidez;  e  é  conhe- 
cel-os  p'ra  se  advir  na  opinião  de  que  poucos 
valem  o  dinheiro  que  custam,  ou  são  dignos 
da  investidura  ofticia!  que  representam.  O  snr. 
Bocage,  se  (piizesse  ofierecer  a  Lisboa  um  es- 
pectáculo lypico,  devia  mandar  vir  todo  o  pes- 
soal diplomático  que  temos  disperso  pelas  ca- 
pitães do  mundo,  annexar-lhe  os  cônsules  com 
as  suas  fardas,  e  fazer  uma  revista  de  tudo, 
na  Avenida.  Seria  d'um  grotesco  inolvidável — 
com  o  visconde  de  Faria  por  tambor-mór — e 
cada  um  de  nós  sabei'ia  altim  que  destino  teem 
em  Portugal  certos  janotas,  refugo  das  esco- 
las, quando  derretida  a  ultima  libra  na  bargn, 


8  OS  GATOS 

Lisboa  (leixa  do  llics  ouvir  o  calão  nos  gabi- 
netes (lo  Silva  e  lio  Tavares.  Vadio  de  bigodes 
torcidos,  nullo  pedante,  bacharel  puxado  a 
(piafro  juntas  (Pappellidos,  e  lendo  sido  o  Ca- 
lino da  sua  gerarão  universalaria,  sportraau 
com  dividas,  o  corredor  de  toiros  com  alnior- 
rodias,  tudo  ([uanto  as  populações  acephalas 
do  haltresíiui  e  do  Grémio,  das  cadeiras  de 
S.  (>arIos  e  das  casas  de  batota,  contam  de 
mais  arrombado  e  de  mais  tanco,  eis  o  viveiro 
aonde  a  diplomacia  portugueza  vae  escolher 
os  seus  melhores  auxiliares.  Paris  e  Londres, 
Vicmia  e  1'elcrsbourg  regorgitam  d'estes  por- 
([uinlios  da  índia  encasacados,  nem  sequer 
correctos,  e  quazi  sempre  ridículos,  por  entre 
cujas  mãos  jjassam,  nos  intervallos  do  jogo  e 
das  cocotles,  todas  as  melindrosas  coizas  que 
bolem  co'a  manutenção  do  nosso  decoro  in- 
ternacional. Os  embaixadores  ou  plenipoten- 
ciários que  entestam  com  este  batalhão  de 
pândegos  eméritos,  cumpre  dizer  (pie  estejam 
á  altura  da  soldadesca.  Tirante  o  snr.  Souto 
.Mayor,  que  continua  em  Stockolmo,  nonage- 
nario  (piazi,  a  sua  tradi(,'ão  de  homem  de  cor- 
te, e  o  snr.  Casal  Itibeiro,  (pie  lá  vae  aguen- 
tando em  Madrid  os  estragos  (pie  a  sua  vida 


os  GATOS  '.) 

excessiva  de  moço  determinou  no  seu  cérebro 
úii  joaissenr,  os  outros  representantes  de  Por- 
tugal no  estrangeiro  nem  se([uer  podem  Ja- 
ctar-se  de  possuii'  os  méritos  secundários  e  as 
iHiaiidades  comnnins  dos  homens  do  seu  offl- 
cio.  Está  em  Bruxeiias  o  snr.  IIenrir(uo  de  Ma- 
cedo, que  é  uma  espécie  de  tatu  desentluisias- 
mado  d'outra  posição  (pie  não  seja  a  iiorison- 
tal,  e  d'outra  lucidez  que  llie  não  venlia  das  que- 
breiras digestivas,  aos  roncos,  nas  poltronas 
das  casas  de  jantar.  ()uerem  fazer  d'csle  me- 
díocre o  sucessor  do  snr.  liaijona,  nas  novas 
negociações  com  Salisbury.  Vejam  (pie  lasti- 
ma! O  snr.  Henrique  de  Macedo  tem  (piazi 
todos  os  defeitos  públicos  do  snr.  flarjona, 
acrescentados  d'outros  que  por  bem  de  nós 
todos,  devem  pòl-o  a  cem  léguas  de  tal  car- 
go. Temos  em  Paris  o  snr.  Dantas,  um  excel- 
iente  homem,  (piebrado  e  velho  —  o  que  não 
basta.  Em  Berlim  está  o  snr.  manpiez  de  Pe- 
nafiel, sobre  cuja  saúde  cerebral  começa  a  ha- 
ver apprehensões.  Em  Pefersbourg,  o  ministro 
porlnguez  è  o  snr.  conde  de  S.  Miguel,  que  se 
icproduzir  o  dito  de  Clienier,  locando  a  fron- 
te, falta  á  verdade,  e  cujo  substituto,  nos  seis 
mezes  do  anno  em  que  s.  ex.'»  está  ausente 


10 


do  seu  |)Oslo,  é  o  siir.  Kzociiiiel  Prego,  Uiplo- 
nialiciíineute  fleíiuido  assim  —  o  siir.  conde  de 
S.  Mi.uiicl,  do  oittro  lado  do  relojíio. 

Temos  na  liava  o  snr.  Viceiílc  l'iiidelia, 
botas  iindissimas,  olhos  todavia  um  pouco 
menos  pcn(>ti'anles  do  (pie  o  vei'niz  das  gás- 
peas; temos  na  Suissa  o  snr.  Alfredo  Anjos — 
a  (piatro;  e  íinaimente  em  Viemia  o  nobre 
conde  de  Valenças,  cujos  méritos  julgamos  fi- 
xar, mencionando  a  única  coiza  que  de  posi- 
tivo se  sabe,  acerca  de  s.  e.\.'>  —  venho  a  dizer 
—  que  é  um  mamifero. 

Digam-me  pois  se  com  tul  (puulro,  algum 
governo  pôde  ter  sequer  um  serviço  dMnlbr- 
niação  e  de  policia  diplomática,  capaz,  e  se 
as  nossas  legações,  com  todos  os  seus  contos 
de  reis  de  costeio,  servem  para  mais  alguma 
coisa  do  (pie  dar  nicho  a  pregui(;osos,  e  pas- 
sar contrabando  nas  bagagens.  Durante  os  nie- 
zes  decorridos  des"que  o  contlicto  anglo-luso 
entreteve  ])ela  primeira  vez  a  curiosidade  da 
Kuropa,  jornacs  de  todas  as  nações,  occni)an- 
doseda  pendência,  com  pronunciada  intenção 
de  fazerem  justi(;a  aos  nossos  direitos,  deram 
sobre  ella  informações  e  detalhes  erróneos,  ar- 
gumentos contiaproducenles,  iilucidaçcles  sem 


US  O.UOí.  11 

dociiinentação  auclorisada,  afora  os  que  se  vi- 
ram forçados  a  deixar  o  assumpto,  no  calor 
da  actualidade,  por  falta  de  quem,  com  toda  a 
seriedade,  os  informasse.  Seria  aqui  a  vez  das 
nossas  legações  intervirem  discretamente,  dis- 
tribuindo mappas  e  informações  de  fonte  pura 
a  lodos  os  jornaes  europeus  e  americanos  que 
se  nos  mostravam  syinpathlcos,  e  mesmo  tor- 
nando esses  jornalistas,  por  via  d' uma  sngges- 
Jíio  amavelmente  liabil,  om  inslrumentos,  como 
direi?  obse(|uiosos,  dus  planos  coloniaes  do 
nosso  governo,  o  que  não  seria  tarefa  difficil, 
nasni;"iosd'iim  encarregado  de  negócios  arguto 
c  experimentado,  e  d'uin  pessoal  consular  alfe- 
clo  aos  interesses  ila  nação.  Ora,  é  escusadís- 
simo affirmar  que  sobn;  esta  questão  vital  para 
os  nossos  interesses  commnierciaes  e  políti- 
cos, nem  os  governos  deram  ordem  para  se 
instruir  a  imprensa  do  mundo,  quanto  ás  ra- 
zões históricas  ou  contemporâneas  das  preten- 
ções  ])orluguezas  á  Africa  austral,  nem  os  re- 
sidentes portuguezes  nas  cidades  da  Europa  c 
da  America — O  snr.  lialallia  lieis  o  Martens 
Ferrão  excepto  —  se  dignaram  deixar  caliír 
dos  seus  divinos  lábios,  palavras  que  corri- 
gir podessem,  de  longe  ou  de  perlo,  a  cor- 


12  os  GATOS 

rcria  por  vfzcs  pliaiiljisisla  dos  iiossus  (Iclcn- 
soros. 

K  as  razões  são  palonlcs,  iiuilil  dcsdo- 
bral-as.  A  uma,  na  (|ii('slão  alVicaiia,  os  mi- 
uisli'os  eram  os  pi'imeiros  a  i}iiioi'ai'  a  extensão 
e  a  importância  dos  maleriaes  om  lilit;io,  e 
lanio  sabiam  d"ella,  ([»e  o  próprio  llintzc  lU- 
boiro,  já  snbscripto  o  tratado  do  20  d'agoslo, 
apoipicnlava  pelo  teie.urapbo  o  snr.  Uarjona, 
sobi'e  a  maneira  d'enlcnder  as  mais  importan- 
tes clausulas  d'aquelle  inverosímil  dociunen- 
to!  Á  ontra,  ipie  haveria  a  esperar  da  sdllici- 
tude  privada  dos  nossos  cônsules  e  embaixa- 
dores, .ilícitos  ao  ripanso  do  rica  faire,  e 
recrutados  nas  castas  sceplicas  e  desmoralisa- 
das  (jue  atraz  disse?  Pedir  ao  sur.  Martins 
Dantas  qne  saia  de  casa  para  informar  as  re- 
dacções politicas  de  Paris,  não  como  embai- 
xador, mas  como  particular,  sobre  os  verda- 
deiros tramites  do  conlliclo  zambeziann;  esperar 
([ue  o  snr.  Alfredo  Anjos  caualise  diplomati- 
camente a  questão  do  caminlid  de  ferro  de 
Lourenço  Marques,  por  forma  ((ue  os  plenipo- 
tenciários inglez  e  americano  não  coajam  o 
tribunal  arbitral  suisso  a  nos  extorquir  ."J:()00 
contos  (rindenmisação,  por  uma  linha  ferroa 


que  nem  1:000  valo;  cuidar  (juc  o  Valeiíças, 
o  Penafiel,  e  o  Malliias  ile  Garvallio  sejam  ca- 
pazes (.rincliiiar  os  reis  da  Iriplice-alliança  para 
uma  iutervenção  favorável  à  nossa  causa,  tudo 
isto  seria  presumir  nos  nossos  representantes, 
abnegações  i|ue  os  governos  lhes  não  impõem, 
e  amores  de  pátria  que  a  ausência  amortece, 
e  as  ajudas  de  custo,  dada  a  pobreza  do  erá- 
rio, se  teem  esquecido  um  pouco  (Favivar.  A 
parle  máxima  das  legações  portuguezas  no  es- 
trangeiro são  pois  comedouros,  (|ue  não  postos 
de  guarda,  onde  os  aleijados  da  jxiliticae  onde 
os  j)obresiiilios  da  ele,nancia,  supportam,  n'es- 
sas  capitães  de  luxo,  o  desteri'o  d"uma  pátria 
que  elles  próprios  renegam,  e  de  que  elles  são 
os  primeiros  a  dizei-  mal. 

iJeinternar  no  reino  um  certo  numero  d"es- 
ses  Stenbokens  grotescos,  (pie  nem  sequer  sob 
o  ponto  de  vista  decorativo  nos  honram;  dar 
uma  varruscada  nos  adidos  tantoches,  e  nos 
secretários  d'end)aixada  risíveis  e  pedantes, 
que  lá  tora  creditam  mcidiocremeiUe  o  espi- 
rito e  a  helle  leinic  portuguezas,  e  nem  as  me- 
morias de  (>asanova  seriam  capazes  d'escrever; 
acabar  d'uma  vez  com  o  advento  do  fillio  do 
f/rtoiíle  liiunrm,  nos  cargos  qiui  o  nome  de  seu 


I  í  os  GATOS 

pao  quer  lazer  hereditários  na  faniilia,  eis  alii 
um  principio  ile  vida  nova  qne  a  bem  do  rei- 
no, o  ministério  devera  iniciar. 

Com  respeito  aos  consnlados,  idêntica  bar- 
rella!  Vae-se  por  esse  mundo,  e  acliar  os  côn- 
sules porlnguezes  no  seu  posto,  prestes  a  bem 
servir  os  forasteiros  t|ue  se  ilie  approxirnam, 
é  (juazi  tão  diflicil  como  jiistilicar  a  re|)uta(;ão 
))arlanienlar  do  snr.  Marçal  Padieco.  Al|ium 
matreiro  que  furtando  as  voltas,  conses;ue  che- 
gar á  presença  do  inlau.i;ivel  tiinccionario,  re- 
cebe em  plena  face  insolências  como  esta : 

—  É  porluguez,  isso  vè-se.  Kntão  como  vac 
por  lá  essa  piolheira? 

A  um  cretino  que  foi  cônsul  de  primeira 
classe,  para  a  America,  espécie  de  vencido  da 
vida  em  edição  só  para  homens,  ouvi  eu  ex- 
primir os  seus  desdéns  anti-portuguezes. 

— O  men  ideal  seria  viver  em  Paris,  e  ter 
uni  balão  dirigível :  todas  as  manhãs,  (piando 
me  desse  a  vontade,  vinha  a  Lisboa,  parava 
em  cima  do  Terreiro  do  Paço,  ezás! — depois 
do  que  voltava  paia  almoçar  no  C"//i'  niclte. 

Das  relações  (Kestes  preciosos  com  a  me- 
trópole, resulta  não  serem  elles  uns  emprega- 
dos do  Estado,  que  lhes  paga  por  bom  preço 


os  GATOS  15 

um  certo  piogramma  de  serviços,  senão  se 
depreliende  que  seja  o  Estado  uma  espécie  de 
subalterno  ou  feitor  investido  da  missão  de 
liies  vasar  dinheiro  nas  algibeiras.  Percorrem- 
se  os  relatórios  e  despachos  qne  os  nossos 
cônsules  enviam  ao  ministro,  a  qnando  coagi- 
dos, á  força  de  supplicas,  a  dar  informas  so- 
bre algum  ponto  commercial  ou  episodio  de- 
corrido na  ária  da  sua  inspectoria ;  e  adevi- 
nha-se  então  porque  é  que  nós  fazemos  trata- 
dos de  commercioque  só  servem  para  arruinar 
a  nossa  agricultura  e  a  nossa  industria,  e  por- 
que é  que  o  mundo  tem  um  risinho  sorna, 
quando  algum  portuguez  allude  á  antiga  hege- 
monia universal  do  seu  paiz.  Um  dos  primeiros 
cuidados  do  representante  de  Portugal  no  es- 
trangeiro, é,  salvo  excepções,  dcsnacioualisar  o 
typo,  apenas  chega,  talhando-se  a  barba  e  es- 
colhendo toiletle  que  lhe  desvirtuem  quanto 
possível  a  primitiva physionomia.  Alguns,  quan- 
do eá  voltam,  mesmo  sem  alijar  a  i-eputaçào 
de  homens  de  lettras  com  que  tinham  ido, 
começam  a  intrometter  na  conversa  palavras 
estrangeiras,  a  carroçar  os  /•/•  á  franceza,  a 
ter  sutaques  exóticos,  com  anojados  assopros 
contra  os  que  lhes  mandam  ver.       Palmella. 


16  .  OS  GATOS 

L'iii  cliainado  Ijarão  da  C-osla  ISicci,  ilire- 
clor  da  nossa  agencia  financial  de  Londres,  e 
que  enfi(]iieceu  à  custa  do  paiz,  gaba-se  pubii- 
camenle  de  ha  ti'inta  annos  não  vir  a  I'ortu- 
gal,  e  de  liaver  esquecido  coinplclaniente  o 
nosso  idioma.  Tanto  a  origem  altaciniia  liio 
faz  asco,  (|ue  sendo  trigueiro,  pinta  desde  tem- 
pos innnemoriaes  as  suissas,  de  loiro,  prohi- 
bindo  que  cm  sua  casa  se  falle  o  portuguez. 
De  sorle  ijue  as  filhas  não  conhecem  uma  pa- 
hivi-a  só  da  nossa  lingua,  e  teem  d(!  Poi'tugal 
a  suasão  de  que  é  um  sultanafo  onde  as  se- 
nhoras usam  pêra,  v,  os  cavalheiros  roubam 
as  diligencias  nos  piuhaes. 


A  favor  das  provisões  indevidas,  nos  cargos 
de  responsabilidade  e  representação,  como  ci- 
tei, argumentam  os  ministros  que  o  pessoal 
habilitado  escaceia,  e  que  o  nível  intelieetual 
e  moral  vae  entre  nós  declinando,  mais  e  mais. 
P^alla  pessoal  ponpie  os  governos  o  não  criam, 
persistindo  em  accumular  funcções  nas  ver- 
gonleas  de  meia  dúzia  de  iamilias  estancadas, 
e  fechando  a  porta  impiuienlemente  aos  que 
estão  longe  dos  coiós  onde  os  líocages  pulul- 


os  GATOS  17 

Iam,  os  Marleiís  foniieiitam,  v  os  Scrpas  e  os 
Barros  c  Sá  se  multiplicam. 

E  se  a  craveira  inteilectua!  c  moral  tciuio 
a  cahir,  pertence  ainda  aos  governos  a  culpa, 
sempre  a  elles!  Não  tlespachem  lentes  ás  forna- 
das, não  consintam  na  instrucção  chefias pifias, 
reformem  as  escolas  segundo  as  necessidades 
publicas,  e  não  para  anichar  eiifants  ijalês  — 
o  quando  a  opinião  publica  llies  disser  que  tal 
director  da  Alfandega  negoceia  os  empregos  da 
casa,  que  tal  orador  búxisla  vae  de  mão  co'as 
parcerias  náuticas  ([ue  pedem  subsidio,  que 
tal  prestamista  suborna  secretários  d'Estado 
p'ra  lhes  arrancar  concessões  escandalosas,  não 
deixem  dormir  estes  casos  na  iudilfereuça,  le- 
vantem a  luva,  inquiram  a  valei- as  fundações  de 
taes  historias — não  promovam  o  director  da  al- 
fiindega  a  novos  cargos,  como  recompensa  da 
sua  candonguice,  cuspam  o  parlamentar  para 
onde  não  haja  preciosidailes  por  cima  das  me- 
zas,  e  por  ultimo,  sendo  preciso,  enfonpiem 
o  prestamista,  e  tenham  coragem  para  correr 
com  o  secretario  d"Estado  a  pontapés. 


18  os  GATOS 

25  (1'OiUiibro. 

Enlre  as  precauções  sanitárias  ijue  o  mi- 
nistério conta  pôr  em  pratica,  pai'a  tlar  salu- 
bridade aos  negócios  pnblicos,  vem  já  citada 
iinia,  de  todo  o  ponto  enérgica  e  prestimosa. 
Parece  que  ha  ideia  de  correr  d'nma  vez  com 
o  snr.  Iturnay,  dos  cargos  de  liarnhum  e  d'cs- 
nioler  mór  (juc  elíe  ha  dez  ou  doze  ânuos  oc- 
cupa  no  reino,  junto  de  todas  as  situações 
governativas,  e  mais  se  diz  (|ue  esta  cxhautora- 
ção  será  de  grande  espectacido,  e  feita  na  pra- 
ça, ao  ar,  por(|uc  todos  conheçam  a  physiologia 
digestiva  d'estc  famoso  Moloch  das  receitas  pu- 
blicas. Justifica  a  medida,  reputada  dMustante 
á  luz  da  austeridade  que  este  governo  quer 
ostentar  nos  seus  dictames,  o  lerem  os  novos 
ministros  encontrado  vestígios  de  Burnaysia 
<>m  todas  as  pastas,  sol)  a  forma  de  contra- 
ctas c  escamoteações  por  lai  lorma  escusas, 
<|ue  não  se  i)ercebe  bem  como  é  que  os  col- 
legas  do  sni'.  Aidonio  de  Serpa  poderam  con- 
sentii-as,  ficando  co'a  consciência  socegada. 
l'ois  consentiam,  e  tomando  n'ellas  uma  tal  ou 
(piai  parceria  de  cumplicidade — consciente — 
tanto  assim  que  as  contractas  decori'iam  to- 


19 


(las  u'um  sviiillo  absolii(o,  prova  de  que  os 
negociadores  sq,  arreceavam  da  opinião.  As- 
sim, não  iiouve  por  esses  ministérios  liindo 
de  secretária,  algibeira  de  veliia  fiirda,  chi- 
iiello  es({uecido,  pasta  de  correio  a  cavallo, 
([ue  os  ministros  novos,  ao  tomar  posse  dos 
seus  cargos,  saccudissem,  sem  ver  saltar  o 
snr.  conde  Burnay,  sob  algum  dos  seus  tra- 
vestis mais  sylphicos,  de  preguista.  Elle  fez 
pulo  ao  snr.  Mello  Gouveia  (revestindo  a  fór- 
ina  d'um  empréstimo  de  tí.SiOOO  contos,  tendo 
por  luvas  o  monopólio  dos  tabacos  sem  con- 
curso, e  o  pagamento  do  empréstimo  D.  Mi- 
guel) quando  o  pobre  homem  abria,  nuiito 
descançado,  a  gaveta  do  seu  biirean  do  minis- 
tério da  fazenda,  para  iá  mettcr  uns  punhos 
novos  de  ministro,  uns  punhos  de  ver  a  Deus, 
em  caoutchouc.  Elle  saltou  ás  dragonas  do  snr. 
.loão  r.hrysosthomo,  sob  a  forma  d'uma  en- 
commenda  de  peças  Krupps  (o  caso  dos  900 
contos)  ((uando  no  ministério  da  guerra  o  ve- 
lho general  se  curvava,  para  embrulhar  com 
a  ponta  da  durindana  um  escarro,  na  serra- 
dura d'um  velho  escari-ador.  Elle  ficou  pen- 
dente da  pêra  do  snr.  Thomaz  Ribeiro  (disfar- 
çado na  proposta  d'uma  casa  franceza  para  a 


i20  os  GATUS 

coiislriiocão  (!u  calx)  suljiiiaiiiio  dos  Adores) 
110  uiumeiílo  oní  que  este  ivicioi  benu  iiarci- 
sava  as  suas  cabelliigcns  romaiUicas,  com  iim 
pente  (luc  servira  ao  seu  aiUecessof  Frederico 
Arouca. 

K  não  couteule  cuui  esles  acntljalisinos  ar- 
rojados, exliibia  iiicausavelnieule  outros  de 
louge,  como  tbsseui  piouiovei'  uas  pi^aças  es- 
trangcMias,  baixas  de  lundus,  auxiliar  em  Pa- 
i'is  as  i)asijuiuadas  do  empréstimo  I).  Miguei, 
melter.v(/c//(>.v  terroristas  contra  nós,  nos  jornaes 
de  França,  dMnglaterra,  e  tudo  isto  com  pati- 
ulias  tão  leves,  Ião  liiia  argúcia.  Ião  Ixmu  Im- 
iiiorada  perversidade,  que  não  liavia  remédio 
senão  recoidiecerinol-o  como  o  syljdio  da  barn- 
boclia  inonarchica,  e  o  diuhlediilin  da  nossa 
bancarota,  adejando  por  cima  do  tiirono  os 
seus  elycli'os  verde  e  oii-o,  vampiresco  e  ca- 
vallieiroso  a  um  tempo,  alma  d'iaiío,  na  abs- 
tracção ingénua  do  amoi-osu  Miguel  C.assio.  De- 
sinfectar o  estado  (Vesle  pulgão  |)olymorpbico  e 
sinistro,  prescindir  das  suas  ollertas  (pu^  suam 
ágio,  e  das  suas  facilidades  {\\w  resabem  a  ci- 
lada e  a  hypolbeca,  eis  um  admirável  debute 
para  governo  que  se  propõe  restabelecer  nos 
negócios  pul)licos,  a  moralidade  e  a  economia. 


os  GATOS  -I 

Aiiula  ha  pouco  os  jomaes  coularaiii  como  a 
poiicia  lançara  mão  a  duas  seresmas,  que 
contratadas  para  cuidar  d'uma  senhora  doente, 
a  tinbain  expedido  ao  hospital  sem  mais  de- 
longas, onde  a  pobre  espichou,  repartindo  as 
desavergonhadas  entre  si  o  espolio  da  defun- 
(ta.  ( )  snr.  Burnay  condensa  no  actual  momento, 
as  haliilidades  de  mãos  das  taes  velhacas.  K 
necessário  despedil-o  da  cabeceií^a  do  paiz  en- 
fermo, antes  que  o  enfermeiro  astuto,  sequioso 
do  esp<j|io,  pregue  com  elie  na  iitnrjinc  do  lios- 
piial. 


^20  <l'Oati(l>ro. 

Os  dois  circos  de  funambulos,  actualmente 
abertos,  acabam  de  pòr  os  thealros  ás  mos- 
cas, e  inauguram  em  pleno  lucto  pátrio,  um 
carnaval  d'exotico,  que  a  cidade  corre  a  ap- 
plaudir  todas  as  noites.  A  jonglcrie  dos  ho- 
mens elásticos,  e  os  discursos  esfridulos  dos 
momos,  mesmo  sem  tergiversarem  dos  pro- 
cessos d'escanioteação  já  conhecidos,  põem 
nas  ferias  parlamentares  um  interregno  ape- 
ritivo, ([ue  nos  faz  ver  nos  circos  da  Una  Nova 


±2  os  GATOS 

(la  I'.iliiia  e  das  Porias  de  Saiilo  Antão,  sob  a 
ivgeiícia  dos  manos  Kiaz,  os  funaniltiilos  de 
S.  Hcnio,  n'iini  livivcsti  em  ()iie  clles  não  cos- 
tumam moslrai-se,  a  (inaiido  |iresididos  pelo 
snr.  Pedro  de  (larvalho  o  Telles  de,  Vasconcel- 
los.  Por  mais  (|ue  elles  neguem,  não  lia  duvi- 
dar sejam  os  mesmos.  Ha  poucos  dias,  co- 
mo o  elefante  pequeno  do  (lolyseu  novo  se 
preparava  i)ara  voltear  na  arena,  c'os  seus  ca- 
maradas de  supplicio,  uma  chicotada  mais  in- 
justa o  lez  dizer — poço  a  palavra! — e  todos 
conheceram  a  voz  do  snr.  Martens  Ferrão.  Km 
certas  noites,  deputados  e  pares  fpie  não  to- 
mam parte  no  especlacido,  veom  todavia 
com  seus  trajes  civis,  aplaudir  dos  fmi- 
leuils,  os  collcgas;  o  cmpóz  d'csles  senhores, 
res  pelites  rluilles  (|ue  os  retpiestam,  das  gale- 
rias: d'onde  a  razão  ])or(pie  os  circos  sejam 
actualmente  os  inais  hem  IVeípienlados  toga- 
res da  capital. 

Kstão  em  moda  as  exibições  (Tanimaes 
habilidosos.  .Na  Una  Nova  da  I'alma,  por 
exemplo,  lia  uma  cadeija  contralto  (pie  faz 
positivamenie  a  iiiv(!Ja  das  prima-donas  que 
temos  lá  fora  a  estudar,  com  subsídios  do  go- 
verno,  e   por  cujas   nrininnlcrics  e  geilos  de 


±i 


cauda,  muitos  teem  querido  recouhecer  Sérgio 
de  Castro.  Ma  um  leão  decrépito,  que  salta 
d'uma  pranciía  elevada,  ao  dorso  d'um  cavai- 
lo,  e  que  muito  bem  pôde  ser  a  allegoria  do 
snr.  Maricas,  vindo  de  Roma  a  Lisboa,  como 
diz  o  Mardel,  bater  o  lado  também.  E  ainda 
no  mesmo  circo  enfim,  um  grupo  plástico, 
magnifico,  leito  d'um  elefiiute,  de  dois  cavai- 
los,  e  d'uns  cães  que  se  Ibe  encarrapitam  por 
cima,  com  ar  propagandista,  a  ponto  do  mais 
revolucionário  gritar — Viva  Magalbães  Lima! 
— o  que  (í  um  pretexto  para  se  exigir  de  pé, 
a  Portiifiuezii. 


27  lie  Oiiliiliro. 

Mas  iia  no  Colyseu  de  Santo  Antão  um 
jonf/leur  japonez,  delicioso,  e  que  eu  tcnlio 
grande  difficuldade  em  dctiiçar  d'um  Inbelol. 
Velho  e  meio  calvo,  franzino  como  um  ello, 
com  um  brunido  de  lacca  clara  na  cabeça,  e 
pompas  de  seda  bordada  a  matiz  e  oiro  nas 
pregas  da  cabaia,  essa  figurinha  tem  uma 
nervosidado  irónica,  um  souandiulismo  de  vi- 
da, que  nos  reportam  ás  edados  em  ipic  o  lio- 


'ii  os  GATOS 

nicin,  muito  perlo  .liuda  do  monstro,  ura  já 
es|iiri(iioso  e  iiiiflli.yoiilo,  posto  (pie  ainda  sem 
loiíiiidas  oracs  com  (pie  exprimir  o  sen  pcza- 
(ielio  interior.  Lembra-nic  mu  Jiakémono  da 
Míiiifiita  de  lloknsai,  nm  neisnké  de  Uilsuo, 
inn  d'estes  benignos  huddhas  doirados,  cpie  os 
viajantes  descoi)rem  nos  cacifros  das  torres 
de  madeira  dos  templos,  em  Kioto,  na  monla- 
iiiia  santa  de  Xikko,  ou  no  seio  dos  nichos 
funerários,  risonhos,  sentados  em  folhas  de  lo- 
llius,  com  o  ar  frivolo  e  mysterioso  de  chime- 
ras  e  forças  da  natureza,  ao  mesmo  tempo.  Do 
progi-aiama  da  noile,  é  elle  o  canto  aristo- 
crático, o  aparte  distinclo,  ponpie  a  sua  ^oít- 
;/leric  me  traz  a  ideia  d'um  povo  ao  longe, 
d'uma  nacionalidade  frívola  que  eu  não  conlie- 
ço,  e  da  (jual  por  afinidade  arlislica,  faço  par- 
te. Nada  tão  simples  como  o  seu  trabalho  — 
meia  dúzia  de  paulltos  e  hastes  de  madeira 
que  se  ajustam  pelas  pontas,  um  leque,  algu- 
mas bolas  de  caoutchouc,  um  parasol  de  seda 
l)ranca  e  uni  copo  d"agua,  eis  o  vocabular-io 
com  ipie  este  parnasiano  do  equilíbrio  cons- 
tròe  as  mais  bellas  estrofes  dos  seus  poemas 
—  e  não  obstante  a  futilidade  dos  fins  e  dos 
processos,  essa  obra  d'e(piilibrista  captiva-me, 


os  GATOS  ti.i 

poi'(|ue  (''  toda  uma  eslliclica  iiicdila  (jiie  passa, 
eiií  cada  um  dos  meneios  do  japonez! 

De  mais,  talvez  não  sail)am,  o  meu  Joií- 
gleni-  do  Goiyseu  tem  uma  epo|)eia  grandiosa 
na  íamiiia,  e  isto  lhe  condensa  o  encanto  exó- 
tico, e  lhe  amplifica  a  meus  olhos,  o  etVeito 
ilecoral.  Elle  descende  nada  menos  do  ipie  de 
Takonda,  um  dos  47  vuhuih  condemnados  á 
morte,  por  terem  vingado  a  honra  do  sen  se- 
nhor. É  uma  historia  de  fidelidade,  a  dos  ro- 
II i lis,  sem  precedentes  talvez  na  epopeia  lui- 
inana,  que  todo  o  Japfio  celchra  ha  duzentos 
annos,  em  pinturas  e  scenas  de  theatro,  e  de 
cujo  suhstracto  trágico  o  esci'iptor  Tamenaga 
Shounsoni  tez  um  romance,  de  cpie  a  traduc- 
çào  franceza  corre  as  livrarias  desde  i8S:í,  sob 
o  titido  de,  Lcs  /ideies  roíiins. 


Em  l()8."J,  um  daimio  por  uoineTakumi-no- 
Kami,  vindo  á  còrle  de  Vedo,  poi'tador  (Tuma 
mensagem,  Ibi  gravemenie  insultado  por  Ko- 
tsuké,  um  dos  grandes  funccionarios  do  sho- 
gun. 

Prohihido  de  vingar-se  ao  primeiro  irpou- 
po  da  honra  enxovalhada,  visto  como  a  afronta 


'Hi  os  GATOS 

se  dera  ii'um  vcstibulo  do  palácio  imperial,  e 
a  pragmática  prohibo  (juo  sob  pena  de  morte 
o  coiiliscação  de  bens,  alguém  puxe  do  sabre, 
intramuros  das  rezidencias  do  mikado,Takiimi 
tragou  a  injuria,  que  vindo  a  repetir-se  á  sa- 
bida da  audiência,  forçou  o  daimio  a  ferir  Ko- 
tsuké  com  o  wakizaslii,  ou  |)equeno  sabre  do 
ventre. 

Coii(leninaram-no  a  al)rir-se  o  aiidomcn, 
com  o  mesmo  wakizasjii  com  (pie  arranliára 
Kotsukó;  e  como  era  príncipe  crAkò,  foi-lhe 
o  castcilo  confiscado,  e  família  e  vassallos  re- 
duzidos á  miséria,  cabindo  estes  no  estado  de 
ruiiins,  que  (píer  dizer  maltrapilhos  errantes, 
pedintes,  pobretões.  Ora,  entre  as  gentes  do 
príncipe  havia  um  conselheiro  intimo,  ou  fa- 
vorito, Kuranosukt',  que  abrazado  em  furor 
santo,  reuniu  os  quarenta  e  sete  samourai  de 
servi(;o  em  Ak(),  fazendo  a  todos  jurar  (pie  vin- 
gariam a  memoria  de  seu  amo.  Kotsiiki'  poiíim 
não  ilescan(;ava :  poderosíssimo  e  astuto,  teve 
suspeitas  do  mal  (pie  Ibe  podia  vir  dos  nobres 
cavalleíros  (pie  reduzira  ao  inforiunío,  e  vigia- 
va-os,  i)erseguin(lo-llios  os  passos,  c  cercando- 
llies  as  casas  d'espiões  e  d'assassinos.  Abi  co- 
moçn  pois  uma  lucta  d'astucia,  entre  os  dois 


os  GATOS  2/ 

grupos  odientos.  .  .  Kolsukr  que  uiiilliplica  na 
sombra  os  seus  esculcas,  e  os  antigos  samou- 
rai,  que  para  adormecer  suspeitas,  se  disfar- 
<>am,  muitos,  nos  bairros  iobregos  de  Kioto, 
tomando  profissões  humildes,  emquauto  o  res- 
to deserta  i)or  desencontrados  caminhos,  indo 
viver  nas  tlorestns,  nas  piolharias  dos  templos, 
€  nas  tocas  dos  rochedos  que  avisinhani  a 
colina  da  Primavera,  onde  o  senhor  (rAkòjaz 
sepultado.  Kuranosnké,  o  chefe  dos  cavallei- 
ros  fieis  á  iionra  do  dainiio,  typo  de  campeão 
feudal,  cuja  estatura  épica  só  tem  rival  na  do 
portugnez  .Marlim  de  Freitas,  como  não  po- 
ilesse  deixar  Kioto  sem  riscos  d'excitar  contra 
si  as  curiosidades  do  inimigo,  e  fazer  falhar 
o  plano  de  vingança,  resolveu,  para  mellior 
illuilir  Kotsuké,  dar-se  a  deboxes  torvos,  si- 
mular a  embriaguez,  passar  as  noites  nas  ca- 
sas de  chá,  entre  vadios  e  prostitutas,  a  pon- 
to (juc  um  homem  de  Saty>uma,  topando-o  de 
bruços  n'nm  charco,  uma  noite,  pei'dido  de 
beliedo,  rompeu  a  dizer  que  era  bem  indigno 
<lo  titulo  de  samouraí,  quem  se  entregava  assim 
ao  vicio,  em  vez  de  lavar  o  ultraje  do  seu  se- 
iil,or. — E  de  desprezo,  o  liomem  empurrava-o 
na  lama,  mijando-lhe  p'ra  cima  ! 


28  os  GATOS 

Xuilos  c  iioiíos,  a  ciiladf  \\e  KidltJ,  ante  a 
(|iial  Si!  fizera  piililica  a  dcvassitlão  ilc  Kiii'a- 
iiosuki'!,  prcsciicoava  as  scciías  il'eml)riagiiez 
([lie  ellc  fazia,  eiilic  os  ilcsprczivtíis  da  sua 
laia,  tomada  (l'espaiilo  por  essa  mclamorpiíose 
siibila,  do  hoiiifiu  justo,  ein  nilião.  Kiiiiado 
em  casa,  Kui-aiiosiMu'-  espancava  a  iniiliíer, 
derribava  na  camará  interior,  o  altar  volado 
aos  antepassados,  piinlui  os  filhos  na  i'ua,  sem 
camisa,  ã  exposição  da  nove  o  das  ciiuvadas... 

Só  então  Kotsnké  descança  um  pouco,  e 
afrouxa  a  espionassem,  certo  de  (pie  a  virili- 
dade do  antigo  favorito,  amollecida  dMnlaniia, 
não  mais  cuidará  do  passado,  nem  já  leria 
prestigio  tam  pouco,  para  arrebanhar  os  ser- 
vidores dWkò  \\(\  encalço  da  sua  iudis|)utada 
sobranceria. 

Uma  noite  de  dezeudiro  (170!)  ilezoiío  an- 
nos  depois  da  morte  do  príncipe,  os  conjura- 
dos reuniram-se  emlim  sob  as  abadas  d'uiii 
templo  arruido,  em  sitio  solilario,  á  vóz  de  Ku- 
raiiosuké,  (pie  (bn-anie  todo  aquelle  tempo  não 
cessara  de  correspond(>i'-se  com  os  seus  ipia- 
renta  e  sete  bravos  companheiros.  Secretamen- 
te, o  fal.so  bêbedo  havia  feito  conduzir  para 
as  criptas  do  sanctnario,  as  couraças  e  as  ar- 


os  (;\TOS  23 

mas  iiccossarias :  o  l('in|ilu  ilesoilo,  tinha  á 
volta  nin  bosque  ile  codros  scciílaros,  por  toda 
a  parte  raniarias  conliísas,  lianas  tiii-iosas,  fo- 
liias  e  sombras  (ruma  tenebrosidade  imprati- 
cável ;  c  a  tormenta  de  neve  caliia  de  vagar 
pelas  clareiras,  amortalhava  os  monstros  das 
escadarias  alluidas,  fazia  gemer  as  traves  po- 
dres dos  pórticos,  curvando  os  bambus  das 
torrentes,  e  tamborilando,  com  vibrações  ve- 
ladas de  gong,  na  campânula  dos  sinos  sus- 
pensos como  corpos,  nas  grandes  forcas  de 
granito  dos  terraços.  Feita  a  oração  no  tem- 
plo, com  as  boccas  no  pó,  enKpianto  o  mais 
velho  dos  guerreii'Os  batia  as  palmas  para  acor- 
dar a  attenção  dos  deuses  distrahidos,  os 
quarenta  e  oito  homens  renovaram  deanle  do 
altar  o  juramento,  e  armados  de  sabres  e  de 
lanças,  justados  de  couraças,  e  revestidos  por 
cima,  d'uma  espécie  de  túnica  branca  e  preta, 
afim  de  se  reconhecerem  na  commettida,  eil-os 
se  dirigem  a  cautelosos  passos  para  o  Yashki, 
de  Kotsuké. 


Caliia    sempre  a    neve,   com   llocosidades 
opacas   que   restringiam  a   visão,    por    esses 


30  os  GATOS 

campos.  Ellos  marcliavain  cobertos  (Karo,  os 
capacetes  erriçados  de  crina,  com  oníaineiitos 
de  mudas  e  de  cornos  —  c  todos  de  lanternas 
á  cinta,  entre  campos  d'arroz  o  as  licrvas  al- 
tas dos  pântanos,  pareciam  espectros  de  deii- 
zes  levando  ao  longe  os  flagellos  da  morte, 
nas  dobras  brancas  e  pretas  das  suas  túnicas. 
Yadsuama,  o  mais  sábio,  tinha  n'uma  garrafa 
«com  ([ue  pensar  as  feridas  dos  combatentes, 
o  produzir  grandes  fogachos  para  afugentar  os 
transeuntes.»  (ii)  Adeanlc  Olibé,  o  homem  dos 
cabellos  de  Javali,  esclarecia  o  caminho  com 
duas  candeias  pendentes  (Tuma  canna  de  bam- 
bu. Masé  levava  um  odre  d'agua,  \)a\a  apagar 
no  palácio  de  Kotsukí',  os  brazeiros  e  as  lâm- 
padas esquecidas.  E  quanto  a  (Jtaka,  tinha  ao 
pescoço  um  apito  de  bronze,  com  que  daria 
três  silvos,  apenas  fosse  descoberto  o  miserá- 
vel. Todos  tinham  envolvido  as  cabeças  cm 
vens  de  seda  az(d,  qiu!  lhes  occultavam  o  ros- 
to, e  nos  peitos  honlailas  as  iniciaes  e  brazões 


(a)  Sei  tú  Guishi  deu  (05  amilkiros  do  ihwr  c  da  fi- 
iMidthk)  paginas  d'abum  onde  o  pintor  japonez  Kouni\-oshi 
representa  os  ronins  na  sua  embuscada  ao  Vashki  de 
Kotsuké. 


os  GATOS  S\ 

de  suas  casas,  no  bolso  o  Yatató,  ou  oscreva- 
ninlia  portátil,  e  um  pergaminho  na  manga 
finalmente,  explicando  as  razões  da  expedição. 
Duas  horas  da  manliã,  lioi'a  do  boi :  lá  baixo 
é  Kioto,  a  cidade  santa,  adormecida  no  lixo 
que  os  chacaes  sem  medo  vem  fossar — por 
toda  a  parte  o  silencio,  a  neve,  o  desamparo! 
—  sanctuarios  vetustos  nas  colinas,  com  as 
suas  florestais  e  os  seus  pórticos,  as  escadarias 
de  monstros  c  as  pontes  das  torrentes,  scis- 
mando  sob  a  neve,  nos  mysterios  da  impassí- 
vel divindade :  e  ao  alto,  no  crepúsculo  do 
ceu,  a  massa  dos  tectos,  boleada  em  crescen- 
tes nos  ângulos,  e  as  avenidas  de  túmulos, 
onde  os  mesmos  espantos  fazem,  pela  bocca 
dos  deuses  fúnebres,  a  mesma  caraníonha  e 
o  mesmo  calafrio. 

domo  sombras,  os  quarenta  e  oito  aborda- 
ram enfnn  a  palissada  do  jardim  de  Kotsuké, 
toda  fechada  em  redor  como  um  casteilo.  To- 
kouda,  que  era  o  mais  alto,  quazi  de  .sangue 
régio,  olíereceu  os  hombros  para  os  outros 
treparem :  e  estes,  sem  se  fazei'em  rogar,  su- 
biam-lhe  por  cima,  e  depois  que  se  viram  den- 
tro, todos  queriam  ser  os  primeiros  a  arrom- 
bar a  porta  do  jialacio. 


Si  ns  GATOS 

Mas  já  ás  primcir.is  |);iiic;iiliis  do  inarlello,  os 
sainouraís  (1(!  liolsiiUó  saltam  do  loilo:  trava- 
se  a  liicla,  (t  dcsespoi^ada,  mas  nem  iim  grilo 
—  c  bem  depressa  um  mar  d(!  sangue,  repu- 
xado dos  troncos  sem  cal>eea,  veste  de  i-nhro 
as  laccas  preciosas,  os  oii'os  bassos,  c  os  (Vi- 
sos esciiiptados  e  leves  dos  salões.  Kutre  os 
que  fogem,  alguns,  do  nmllier,  fazem  sorrir 
d'escarneo  os  samonraís  (TARò,  cuja  sede  de 
sangiu>  os  leva  dos  subtei'raneos  aos  traveja- 
mentos do  leclo,  á  jirocura  de  qnom  podesse 
ler-llu;  (iscapado  á  sanha  carniceira.  Mas  Ko- 
tsuké?  .Não  apparece.  Knranosnké  no  entanto, 
astucioso,  ao  mergulhar  as  mãos  no  leito  do 
potentado,  sentiu  (juenles  as  roupas.  Não  de- 
via estar  longe,  por  conseípuMicia. 

E  as  buscas  recomeçam.  Olibé  leva  as  duas 
lâmpadas  accesas  na  frente;  Tokonda  e  Õtaka 
rompem  as  laccas  dos  muros  a  g()l[)es  de  pu- 
nhal, emquanto  os  outros  correm  como  de- 
mónios, os  terraços  da  casa  e  os  urdinientos. 
Ouaiido  subitamente  o  apito  estruge.  .\  lança 
de  Vadsiiama,  casualmenie  metlida  por  enire 
o  carvão  d'uma  dorna,  nas  cosinhas,  acabava 
de  provocar  uma  (pH'i.\a  pallida;  e  o  Kotsukc 
apparece,     descalço,    tremulo,    septagonario 


os  GATOS  3.3 

qiiazi,  deante  dos  cavalleiros  constituidos  em 
tribunal  para  o  julgar.  Eslá  ferido  no  quadril, 
treme  de  medo,  e  o  sangue  lhe  macula  o  se- 
tim  branco  da  túnica,  que  tem  pintadas  no 
panno,  folhas  mortas  de  salgueiro,  e  por  bai- 
xo uma  bordadura  de  milhafres,  com  crysan- 
themos  nas  garras.  Kuranosuké  então  ajoelha, 
e  assim  lhe  falia  com  todos  os  respeitos  d'um 
mortal  de  casta  inferior. 

—  Senhor,  somos  os  homens  de  Takumi- 
no-Kami,  que  V.  Graça  fez  perecer  injusta- 
mente. Como  bons  e  fieis  vassallos  vos  conju- 
ramos a  honrar  a  memoria  do  nosso  amo,  fa- 
zendo o  hara-kiri  (abrir-se  o  ventre).  Servir- 
vos-hei  de  padrinho  n'este  acto,  e  depois  que 
tenhamos,  em  toda  a  humildade,  recolhido  a 
cabeça  de  V.  Graça,  iremos  depôl-a  como  of- 
ferenda,  no  tumulo  de  Takunii. 

Como  Kolsuké  se  recusasse  a  morte  de  ca- 
valleiro  que  lhe  propunham,  Kuranosuké  lhe 
decepou  a  cabeça  d'um  só  golpe,  e  ao  romper 
da  manhã  os  quarenta  e  oito  ronins  reunidos 
na  colina  da  Primavera,  em  torno  do  sepul- 
chro  d'.\kô,  despiam  piedosamente  as  coura- 
ças, depois  de  feitas  as  abluções  do  ritual;  e 
vestidos  de  festa,  offertaram  aos  manes  de  Ta- 


34  os  GATOS 

koumi  os  despojos  do  sen  implacável  inimi- 
go. (I>) 

Desoito  annos  de  vida  passada  eiilre  misé- 
rias e  vergonhas,  para  restaurar  a  nitidez  d'um 
nome  aliíeio,  e  morrer  no  dia  seguinte,  eis 
uma  li(;ão  de  nobreza  que  vae  além  da  mais 
pundonorosa  espectativa!  Ponjue  a  sorte  dos 
quarenta  e  oito  adevinha-se.  Kotsuké  era  um 
funecionario  omnipotente,  a  lei  protegia-o,  e  os 
samourais  d'Akò  foram  condemnados  a  extir- 
par-se,  o  que  cumpriram  nas  escadarias  do 
pagode,  depois  de  ler  pedido  aos  bonzos  que 
os  sepultassem  de  roda  do  tumulo  do  seu  se- 
nhor. 


O  joiíglcur  do  Colyseu  descende  realmente 
dos  ronius?  Pouco  me  importa.  Nem  por  se 
tratar  d'um  funambulo  de  circo,  a  heróica  as- 
cendência é  menos  verosímil.  A  uma,  no  Ja- 


(h)     «Cest  ici  que  la  tête  a  élclavà:  n'y  trempei  ni  vos 

pieds,  ni  vos  iimins.»  L'ócritcau  ne  dit  pas  quclle  est  cettc 

tête  coupce  qu'on  cst  venu  lavcr  dans  cette  eau  claire ;  il 

dit  seulement  idatète.»  Mais  tous  les  passants  le  savent . . . 

P.  Loti  (Japoncries  d'automne,  pag.  260) 


os  GATOS  35 

pão,  o  estado  d'artista  eiiiparellia  e  continua, 
em  jerarchia  illustre,  com  o  de  guerreiro  ou 
principe  de  sangue.  Á  outra,  quando  assim 
não  fosse,  a  dispersão  das  riquezas  dos  ronins, 
confiscadas  pelo  Estado,  podiam  ter  feito  li- 
quidar as  vergonteas  d'aquellas  nobiiissimas 
familias,  em  mesteres  da  ultima  inferioridade. 
Como  quer  que  seja,  esse  jonijlcur  seduz-me. 
Sou  eu,  funambulo  de  circo.  Acrescendo  que 
elle  synthetisa  alem  d'isso  a  indoie  e  a  graça 
d'esses  povos  perpetuamente  infantes,  que 
constroem  a  felicidade  sobre  meia  dúzia  de 
paulitos  em  equilibrio  n'um  beiço,  e  a  abri- 
gam, depois  de  construída,  sob  um  parasol 
de  seda  branca,  onde  perpetuamente  gira  uma 
bola  doirada  de  caoutchouc. 


FIALHO  D'ALMEIDA 

OS  GATOS 

rUDLICAÇÃO  SEMANAL, 
D"LNQUEniTO    Á   VIDA  POUTUGUEZA 


N."  20 — lõ  de  Novembro  de 


SUMMARIO 


A  CRISE  TllEATRAL  E  SEL"S  FACTORES— CIR- 
COS CHEIOS  E  TIIEATROS  VASIOS  —  RAZÃO  DA 
INDIFFERENÇA  DO  PUBLICO  PELOS  ESPECTÁCU- 
LOS PORTUGUEZES— CANTO  E  DECLAMAÇÃO  :  DE 
COMO  NOS  TIIEATROS  MNGUEM  FEZ  CONTA  COM 
O  POVO  —  O  QUE  É  A  «geral»  NAS  NOSSAS  PL,V- 
TEAS — NECESSIDADE  PUBLICA  DO  RISO  E  DO  MO- 
VIMENTO, E  INCAPACIDADE  DE  RIR  E  MECIIER  NAS 
SALAS  D"ESPECTACUL0  — OS  TIIEATROS  NACIO- 
NAES  SÃO  MONÓTONOS,  O  REPORTÓRIO  É  ESTRAN- 
CEIRO,  A  língua  USUAL  É  MACARRONICA — CAPA- 
CIDADE CRITICA  DAS  DIFFERENTES  CLASSES  D'ES- 


II  os  GATOS 

PECTADOnES     PERANTE     UMA     r.EPnESENTAÇÃO 

fallada — pudlico  certo  de  d.  maria  edo 
príncipe  real,  e  razão  porque  elle  volta 
costas  ao  theatro  —  o  que  fica  de  labiche 
e  dumas  filho,  nas  traducções  macarro 
nicas  do  gymnasio  e  de  d.  maria  —  dramas 
que  não  fallam  do  interesse  indígena,  e 
que  debatem  questões  com  que  o  publico 
nada  tem  —  o  «arreglador»,  personagem 
bifronte  — peças  originaes,  e  escriptores 
de  comedia  e  drama  portuguezes  —  caracter 
e  aptidões  dos  talentos  consagrados  ao 
tiieatro  — a  litteratura  drajlvtica  euro- 
peu não  acompanhou  a  evolução  scienti- 
fic.v  dos  outros  campos  da  arte  — de  como 
nunca  tivemos  litteratura  dramática,  mas 
vocações  isoladas  e  incompletas  — o  que 
falta  para  termos  escriptures  de  comedia 
o  que  falta  para  termos  escriptores  de  dra-j 
ma  — em  que  se  acaba  o  papel,  e  se  pede 

AO    LEITOR    RECOLHA    AS    CONCLUSÕES    D'ESTe| 
ESTUDO,  NO   NUMERO  SEGUINTE. 


3  de  Novembro. 


Com  a  abertura  do  novo  Colyseu  de  Santo 
Anlào,  tornaiam-se  afilictivas  as  condições 
d'existcncia  dos  nossos  theatros,  ellas  que  já 
estavam  singularmente  criticas  pela  concorrên- 
cia que  o  Colyseu  da  Una  Nova  da  Palma  lhes 
movia.  Por  mais  que  esses  pobres  proscénios 
aimunciem  em  cartazes  de  dois  metros,  os  seus 
jnelliores  trabalhos  de  comedia  e  drama,  o 
publico  evidentemente  desinteressa-sc,  deixa- 
llies  a  sala  ás  moscas,  e  corre  a  applaudir  as 
feras  c  os  homens  elásticos  dos  dois  circos. 
De  sorte  (jue  em  muitos  d'elies  é  inevitável  a 
bancarota,  se  acaso  as  receitas  do  anno  aferi- 
rem pelas  perdizes  do  principio. 


't  os  GATOS 

É  porlanlo  o  momoiilo  de  se  cslmlar  a 
(jucslão  com  soricdatlc,  c  de  se  csijuadriuhar 
se  bem  no  fundo  dos  motivos  que  o  publico 
leni  para  gostar  menos  de  trágicos,  do  que  de 
palhaços,  não  liaverá  alguns  que  dêem  razão 
ao  publico,  embora  á  cusia  do  orgidho  ariisíi- 
co  dos  trágicos. 

A  meu  vèr,  os  espectáculos  de  funambulos 
são  preferidos  aos  dos  outros  tlicatros,  princi- 
palmente por  trcs  causas: 

—  São  mais  baratos. 

— Divertem,  e  o  povo  prefere  sempre  o 
riso  ao  choro,  as  coizas  (|iie  disirahcm,  ás  coi- 
zas  que  concentram. 

—  Ultima.  Os  artistas  estrangeiros  que 
n'elles  tomam  parte,  são  mais  progressivos, 
mais  vai-iados,  mais  inventivos,  do  que  os  por- 
tsiguezes  occupados  na  interpretação  d'obras 
dramáticas. 


Vèr  a  primeira.  Lisljoa  ó  muito  pobre.  Toda 
a  gente  (jr.e  trabalha,  necessita  de  descançar  e 
distrabir-sc.  Ora  a  media  dos  salários  percebi- 
dos pehi  grossa  massa  da  população  trabalhado- 
ra—a  única  que,  S.  Carlos  aparte,  faz  a  chuva 


os   GATOS  5 

O  O  bom  tempo  na  caixa  forte  das  emprezas — 
regula  entre  dez  e  cinco  tostões  diários,  e  com- 
preliende-sc  (luc  distraliir  d'estcs  exiguos  ga- 
nhos, duzentos  réis,  para  nma  entrada  no  cir- 
co, represente  já  um  sacrifício,  ([iianlo  mais 
pagar  por  'lOO,  õOO,  700  e  800  réis  nni  iogar 
de  platoa,  que  tanto  custa  por  uma  noite  d'es- 
pcctaculo,  o  mais  vulgar  dos  nossos  Iheatros 
de  drama  c  d'opercia.  Ha,  é  certo,  n'uns  re- 
cantos escusos  da  sala.  Jogares  mais  cm  con- 
ta, mas  tão  mal  illiiminados,  tão  tristes,  tão 
degradantes,  que  frequcntal-os  é  quasi  abjec- 
ção: não  se  vc  nada,  as  palavras  dos  actores 
chegam  dillusas,  a  scena  vc-se  d'cscorço,  e  o  es- 
i)cctador  está  alll  constrangido,  mal  sentado, 
asphixiado,  entre  os  seus  companheiros  de 
iiuirtyrio!  É  reparar  por  exemplo  no  galli- 
nheii'0  c  na  geral  de  D.  Maria,  nos  des^mis  de 
baleou  do  theatro  da  Trindade,  devididos  por 
grades,  das  zonas  ricas,  acccntnando  liumilha- 
doramenle,  no  golpe  de  vista  geral  da  platea, 
o  seu  destino  d'estabulo,  de  coió,  d'alberguc 
da  gentalha,  e  por  isso  mesmo  contundindo  o 
orgulho,  tão  melindroso  sempre,  das  classes 
sidjalternas.  A  verdade  é  (jue  afora  os  circos, 
não  ha  cin  Lisboa  Ihoatro  onde  o  povo  tenha 


o  os  GATOS 

um  boin  logar.  Ninguém  fez  coiila  com  cllo, 
o  o  mesmo  tlieatro  onde  mais  conviria  que  o 
povo  fosse,  o  lliealro  de  D.  Maria,  fecliou-!lie 
as  suas  porias,  acabando  com  os  benefícios,  que 
llie  facultavam  a  enlrada  por  meios  preços. 
Tantas  vezes  se  tom  tallado  na  conslrucção  de 
Iheatros  populares,  grandes  salas  ligeiras,  cm 
ferro  e  alvenaria,  com  plateas-/'«»íí)/)\';,  pros- 
cénios amplos,  jardins  de  jogos,  corredores  de. 
tômbola  e  salas  d'exposições,  onde  por  um 
tostão  o  operário  tivesse  a  sua  noite  alegre,  o 
se  sentisse  o  rei,  vendo  quahjuer  bailado,  o])era 
bufa,  comedia-cliarivari,  ou  drama  bislorico 
de  grande  itiise-en-sreiíc.  .  .  —  tantas  vezes  se 
tem  faltado  n'isto!  — e  nenhuma  iniciativa  au- 
daz inda  surgiu  para  moler  liombros  este  lu- 
crativo, ({uanlo  cavalheiroso  cmpreliendimcnto! 
lia  vinte  annos  que  estamos  a  construir  e  u 
desmancliar  Iheatros,  c  lia  vinte  annos  que 
archilectos  e  cmpreza)'ios  collaboram  na  mo- 
laucholia  negra  da  nossa  raça,  encafuando  o 
publico  em  salas  d"especl;iculo  lúgubres,  mal 
])iuladas,  mal  illuminadas,  com  ressonância  c 
concnles  d"ar,  uns  verdadeiros  poços,  onde  ó 
supplicio  estar  vinte  segundos.  Digam-me  de 
thcalro  onde  haja  um  fresco  ou  decoração  d'ar- 


os   GATOS  7 

lista  verdadeiro.  São  barraqiiii)has  ridiculas, 
defeituosos  gaiolins  com  boqueirões  de  sombra 
nos  camarotes,  sobreceus  de  nuvens  pardas, 
a  papeis  de  forrar  casas,  baratos.  Tirante  D. 
Maria  e  S.  Carlos,  cujas  salas  d'espectaculo 
guardam,  sob  os  oiros  fanados,  uma  tal  ou 
qual  harmonia  archilectonica,  o  resto  é  deplo- 
rável, e  clieira  de  longe  a  falleucia  c  a  tasca 
í]ue  tem  diabo ! 


Segundo  ponto  —  o  publico  prefere  em  ge- 
ral os  espectáculos  cómicos,  aos  sérios,  e  sem 
duvida  c  necessário  transigir  com  elle.  Mas 
descriminando  primeiro  (jual  esse  publico  seja, 
e  fazendo  a  critica  dos  impulsos  inlellecluaes 
o  moraes  d'aqu:lla  preferencia.  Eu  sei  por 
exemplo  que  toda  a  pequena  burguezia  que  faz 
de  seis  a  dez  horas  de  trabalho  diário,  cm  es- 
paços confinados,  escriptorios,  balcões,  secre- 
tarias, depois  de  jantar,  chegada  a  noite,  o 
que  deseja  é  divertir-se  e  tomar  ar. 

Para  ella  está  pois  indicado  o  espectácu- 
lo de  circo,  com  o  seu  âmbito  formidável,  a 
arena,  os  ouropéis,  as  luzes,  o  tumulto,  c  li- 
Ijerdade  inteira  de  posição,   de  conversação 


8  os  GATOS 

e  loiktte.  E  eslão-llic  iiuliciulos  lambem  os 
theatros  de  revista,  comedia-farça  c  opera  có- 
mica. É  cila  o  publico  do  Gymnasio,  dos  Coly- 
scus,  o  da  Trindade;  c  o  tliealm  preferido 
será  aqueile  que  ofrercccndo-llie  espectáculos 
de  movimento,  ao  mesmo  tempo  lhe  consinta  a 
mais  completa  e  desabusada  noncludance.  Dar 
a  um  tal  publico  comedias  preciosas,  littera- 
turas  de  rcíjuinte,  dramas  de  sentimento  e  la- 
crimejo, é  obrigar  a  pensar  esses  cérebros  ve- 
getativos, cuja  fadiga  é  já  grande,  á  noite,  por 
todo  um  grande  dia  de  trabalho.  Certo,  este 
lypo  d'espcctador  é  incapnz  d'um  prazer  de  pura 
;u"te.  Não  coniprehcnderá  as  finuras  de  frase,  a 
subtileza  das  analyses  psychologicas,  a  audácia 
de  certas  ironias  e  de  certos  paradoxos.  Mas 
em  compensa(;ão  tem  outros  predicados,  que 
nem  por  serem  rudimentares,  desprezaremos. 
No  seu  espirito  ha  por  exemplo  uma  cu- 
riosidade vivíssima  pelo  entrecho,  uma  lúcida 
critica  da  coherencia  dos  diálogos,  e  uma  per- 
cepção arguta  c  irónica  das  allusões  e  pilhérias 
que  vão  direitas  a  alvo  certo.  Toda  a  obra  de 
Iheatro  que  lhes  consiga  afiar  estas  arestas, 
pòr  cm  secreção  estas  faculdades,  será  inevi- 
tavelmente coroada  de  succcsso,  o  mais  ligi- 


os  G.VTOS  9 

limo,  [Iorque  lisongcaiuio  asnpíidõcscerebraes 
d'unia  grande  massa,  corresponde  ijiso  facto 
a  uma  necessidade  conlemporanea. 

O  que  é  uma  peça  —  do  costumes,  suppò- 
nios  —  que  agradou?  É  a  fixação  n'inna  obra 
iilleraria,  da  media  d'opiniões  do  publico  pai'a 
quem  a  peça  foi  escripta. 

Os  cscriptores  de  força  c  do  comedia  le- 
riam portanto  farta  monção  d'app!auso  ás 
suas  obras  (caso  existissem,  e  fizessem  escola) 
escrevendo  comedia  e  fiirça  de  puro  travo  na- 
cional—  única  litteratura  que  entre  nós,  de- 
pois do  drama  histórico,  poderia  ser  inspirada 
n'um  riquíssimo  filão  tradiccional.  Não  exis- 
tem, sei,  de  maior  fôlego,  e  os  poucos  culto- 
i-es  anodynos  do  género,  uns  preferem  copiar 
os  imbroijlios  francezcs,  a  beber  nas  legendas 
cómicas  do  povo  o  entrecho  d'unia  composi- 
ção caraclerisíicamente  portugueza,  cmquanto 
outros  exorbitam  do  [lapel  de  safyricos  para 
o  d'croticos,  c  descambam  da  facaceia,  por 
uma  exploração  torpíssima,  na  libertinagem 
crua  e  estúpida,  o  que  é  o  caso  dos  nossos 
cscriptores  de  Uevistas  c  Aprojwailos. 

Pensará  talvez  alguém  que  eu,  fixando  esla 
necessidade  de  rir  que  tem  a  turba,  julgue  a  mis- 


10  os  GATOS 

são  do  drama  íiada  no  theatro,  c  ache  os  cs- 
liiictaciilos  dlmajiiiiarão,  como  a  magica,  o 
])ailadu,  c  as  miinicas  d^apparalo,  apeados  da 
imporlaiicia  que  haviam  anligamento?  Por  cer- 
to não.  E  a  prova  de  cpie  aimla  lia  publico,  por 
exemplo,  com  sensibilidade  prestes  a  vibrar  das 
i'('preseidaçôes  di'amaticas  (pie  bolem,  como  di- 
ria o  Ciislovam  de  Sá,  com  os  grandes  senlimen- 
los,  está  nos  benefícios  do  Príncipe  Real,  cheios 
à  cnnha,  d'espcctadores  de  blnsa  e  chapéu  lar- 
go, nas  ovações  delirantes  que  toda  essa  gente 
faz  ao  Álvaro  c  á  Amélia  Vieira,  e  emfim  nos 
apupos  verdadeiramente  indignados  com  que 
cm  certas  peças  é  recebido  o  actor  Gosta,  ha- 
bitualmente investido  dos  papeis  de  tyranno  c 
de  cynico,  n'a(piella  casa  d'espectaculos.  Es- 
tudem a  par  d'isso  a  sala  de  D.  Maria,  aos  do- 
mingos, sobretudo  indo  di-ama  de  guarda-rou- 
pa  e  situações  excepcionaes.  É  o  mesmo  pai- 
l)itantc  interesse  c  a  mesma  exponlaueidadc 
d'emoção,  temperados,  claro  está,  por  uma  pru- 
ilcncia  de  manifestações  externas,  em  harmo- 
nia com  a  educação  c  a  indole  dos  especta- 
dores (Fosse  theatro.  Que  gente  assiste  ao 
Príncipe  Ilcal  e  ás  recitas  do  domingo,  em  D. 
fiaria?  Vm  publico  certo  e  sempre  o  mesmo. 


os  GATOS  1  I 

Na  primeira  sala,  o  operariado  que  lè  roman- 
ces traveiituras,  (pie  faz  parle  ile  sol-e-dós  e 
«ocicilaties  dramalicas,  que  exprime  á  guitarra, 
pelo  fado,  o  atavismo  seulimental  das  luirnii- 
des  gerações  d'oiide  procede,  e  que  finalmente 
nos  comícios  da  Torrinha,  faz  ovações  ao  Ma- 
galhães e  ao  Arriaga. 

Na  segunda  sala,  a  burguezla  rica  ou  re- 
mediada, conunercio  cm  grosso,  mercadores, 
fabricantes,  lionicns  de  capital  á  antiga  portu- 
gueza,  gente  (pie  tom  o  seu  domingo  c  (pie  o 
aproveita,  de  tarde,  a  passear  em  trem  da  com- 
panliia,  com  a  familia  —  á  noite,  a  assistira 
algum  espectáculo  moral,  que  sendo  possível, 
ciisúir  alguma  coisa.  Nos  frequentadores  d'cstas 
duas  plainas  cncontivarenios  som  difficuldade, 
virtudes  idênticas,  c  necessidades  d"espirito  ap- 
proximadas.  K  a  mesma  castidade  profunda  de 
hábitos  e  d'inslinclos,  e  junto  a  um  grande  se- 
rio da  vida  moral,  uma  inteira  simplicidade  (ic 
coração.  Em  ambas,  o  csiunho  romântico  (\uc 
dizem  picar  o  calcanhar  da  alma  lusa,  a  cada 
instante  as  precipita  na  allucinação  sentimental, 
c  ponpic  an)l)as  guardaram  pela  vida  de  traba- 
lho, uma  h'cscura  d'ímpressões  quasi  infantil, 
cil-as  irmãs  nos  gostos  d'arle,  a  plalea  de  ]ki- 


\'2  os  GATOS 

Irões  c  a  jilatca  croporarios,  promplas  ambas 
a  SC  deixarem  empolgar  por  um  ([iiarto  acto 
onde  o  fyranuo  apanhe  a  sua  couta. 

Aiii  temos  nós  já  por  consequência,  para  os 
espectáculos  de  ribalta,  dois  públicos  certos, 
um  que  se  quer  divertir,  outro  que  se  quer 
impressionar.  E  estes  dois  públicos,  cujas  ne- 
cessidades artisticas  são  fixaSy  com  toda  a  cer- 
teza so])cjam  para  fazer  prosperar  na  nossa 
cidade,  theatros  de  drama  c  tlieatros  de  co- 
media. 

.  .  .  porém  todas  as  companhias  se  quei- 
xam de  ter  as  suas  salas  ás  moscas,  e  dos  Co- 
lyseus  lhes  roubarem  espectadores. 

Ueve  então  haver  uma  razão  venal,  uma 
razão  orgânica  c  probinda,  que  desvie  toda 
essa  gente  de  i)rnzeres  para  ([ue  ella  sempre 
leve  receptividade  e  preferencia,  ['ois  o  pu- 
blico annulor  de  comedias  recusa-sc  em  mas- 
sa, subitamente,  a  frciiuentar  theatros  de  co- 
media? Pois  o  publico  amador  de  violências 
dramáticas,  recusa-se  em  massa  a  frcfiuentar 
theatros  de  drama?  E  vae  aos  cavallinlios,  e 
vae  aos  pallineos!  Hum!  Conheço  a  multidão 
de  mais,  para  julgar  (juc  ella  abdique  assim 
de  gostos  lieredilarios,  só  porque  veio  a  Elvi- 


os  GATOS  13 

ra  Guerra  para  o  Colyseu  velho,  e  vieram  qua- 
tro clepliautcs  para  o  Colyseu  novo.  Não!  as 
razões  são  outras.  E  vou  continuar  a  esmiu- 
çal-as. 

4  de  Nofcmbro. 

Jã  fallei  dos  togares  caros,  mal  situados  c 
incommodos.  Vamos  agora  ao  estado  da  arte 
c  dos  artistas.  Se  lhes  parece,  começo  pelas 
peças,  reservando  para  a  girandola  final  os 
interpretes  e  os  críticos.  Todos  sabem  (pie  não 
lemos  litteratura  dramática,  e  que  da  meia  dú- 
zia d'originaes  portuguczes  que  sobem  á  sce- 
na  anuualmente,  pouco  ou  nada  se  dcstriça, 
capaz  se  arcliivar  como  obra  d'arte.  Em  toda 
a  linha,  vive  o  theatroportuguezde  traducçues, 
escolhidas  não  sob  o  ponto  de  vista  do  gozo 
osfhelico  que  proporcionam  ao  publico,  mas 
sob  os  respeitos  d'escandalo  pornograjdiico, 
de  palpite  financeiro,  ou  então  por  contarem 
um  ou  outro  papel  que  lisougeia  os  dotes  de 
tal  ou  tal  comediante.  É  o  reportório  francez 
liabitualmente  aquelle  que  mais  pruridos  d'ada- 
ptação  scenica  desperta  aos  traductores,  po- 


I  í  os  GATOS 

(lendo-sc  dizer  que  não  lia  peça  de  voga  em 
Paris,  que  não  veuiia  a  Lisboa,  em  edieão  ba- 
rata, tentar  vida.  N"essas  peeas,  como  em  to- 
das as  obras  origiiiaes,  ha  uuia  parle  typica, 
intraduzivei,  ipie  lhe  é  alma,  e  que  por  sua 
natureza  intima  só  pôde  ser  gostada  peio  pu- 
blico indígena  para  quem  foi  escripta  (kJ — no 
caso  supposto,  o  francez — parle  que  falhando 
na  versão,  falseia  por  força  o  intuito  e  o  mé- 
rito da  obra  :  e  ha  linalmenle  oulra  parle,  cos- 
mopolita a  commuui,  de  comprchensão  esten- 
sivel  ás  platcas  de  lodos  os  povos,  onde  por  via 
de  regra  só  conllagram  elementos  arlislicos  do 
cathegoria  subalterna,  como  sejam  os  artifícios 
niechanicos  do  enredo,  certas  passagens  cómi- 
cas mais  sal,  ele,  etc.  Tomemos  para  exem- 
plo as  comedias  de  Labiche.  A  platea  franceza 
verá  n'ellas,  apar  do  cuíòrogliu  hábil,  tinas  o 


00  Quand  on  dObirc  pOnOircr  dans  ses  sources  pro- 
fondes  une  ccuvre  drania;i.]ue,  il  faut  tout  dabord  se  dc- 
mander  pour  qucl  puhlic  elle  a  Otc  composOe  .  .  .  Le  but 
de  rccrivain  de  théatrc,  est  d'imposer  á  rattentioa  de  deux 
mil!e  per;onnes  réunies  dans  une  salle,  une  peinturc  de 
nioeurs  ou  de  passions.  Mcis  qudks  mcairs,  siiim  fi'/.Ví 
giie  louics  ca  pcrso;iiies  coiiiuiisseiit  1 

Taal  Boiírget. 


os  G.VTOS  15 

joviaes  cxhibições  salvricas  da  pequena  bur- 
guezia  de  Paris;  a  plafca  poitugueza  porém, 
desconhecendo  o  meio  em  que  essa  burgue- 
zia  espatina,  só  está  habilitada  a  apreciar  n'a- 
quelias  peças,  o  embroglio,  precisamente  a 
parte  comnium  do  theatro  de  Labiche. 

Sobe  o  valor  da  obra  dramática?  Ascende- 
se  de  Labiche,  a  Augier  e  a  Dumas  flilio?  Cada 
vez  a  parle  intraduzível  c  mais  forte  e  indis- 
pensável ao  computo  critico  do  ensemhle,  c 
cada  vez  o  espectador  portuguez  está  pois  mais 
longe  de  saborear  da  peça,  o  que  ella  precisat 
mente  tem  de  raro  e  finamente  original.  Certo, 
o  Dctni-.Monde  agradou  á  plalea  de  lidos  que 
foram  ao  Príncipe  Pieal  escutar  Lucinda  Si- 
mOes,  mas  attrahidos  uns  pela  graça  picante 
da  actriz — os  femeeiros — outros  pelo  para- 
doxo lilterario  de  certos  diálogos  —  os  littera- 
liços  —  e  que  eu  saiba,  nenhum  por  curiosi- 
dade scientifica  perante  a  palhologia  social  de 
que  essa  comedia  estranha  é  capitulo  e  rezn- 
nio.  A  conclusão  ô  a  seguinte.  A  qnazi  totali- 
dade das  traducçôes  servidas  ao  publico  pelas 
emprezas  dos  dilTercntes  palcos  de  Lisboa, 
fallece  de  condições  ligilimas  de  successo,  vis- 
to como  ella  nas  suas  linhas  máximas  não 


í(i  os  GATOS 

íalla  á  sonsibiliil;i(le  moral,  ás  convicçõPS,  ás 
lactas  c  ás  curiosidaílcs  qiio  agitam  a  cons- 
ciência nacional.  K  um  Ihealro  a  qno  se  não 
prende  nenhuma  forte  corrente  de  vida  indí- 
gena, e  (jue  apenas  se  liga  a  nós  por  um  en- 
canto episódico  dMnstanIe,  como  sejam  a 
verve  de  certos  diálogos,  o  imprevisto  de  cer- 
tos lances,  o  jogo  scenico  d'um  actor  estima- 
do, as  loileUes  d'uma  actriz,  ou  emfim,  quem 
sabe  lá?  o  portuguez  macarronico  da  traduc- 
rão. 

Os  iillimos  annos  de  iilleralura  dramática 
franceza  tomaram  a  lei  do  divorcio  para  as- 
sumpto e  mola  real  de  centenares  de  dramas 
e  comedias.  Foi  a  tliesc  obrigada  de  jocosos 
e  d'analyslas,  e  as  liypolheses  mais  extrava- 
gantes serviram  d'escora  no  tlieatro,  á  famosa 
questião,  que  se  por  um  lado  ameaçava  a  in- 
tegridade do  lar  e  da  familia,  era  necessária 
por  outro  á  ligeireza  d"alma  dos  francezes.  O 
divorcio  não  extravasou  porém  da  lei  parisien- 
se; de  sorte  que  as  comedias  e  dramas  que  o 
tomaram  por  base,  e  que  em  França  tinham 
um  valor  seguro  de  controvérsia,  só  podiam 
ser  apreciadas  por  nós,  como  anedocta  —  o 
que  não  impede  os  traductorcs  de  nos  conti- 


os  GATOS  17 

miarem  a  dar  divorcio  ainda  hoje,  com  Bea- 
triz e  com  Amélia  da  Silveira,  coni  Lucinda  e 
com  Pepa,  que  até  admira  não  ler  a  coisa  ins- 
tigado os  cabrões  da  magistratura,  a  introdu- 
zirem no  nosso  código,  aquelia  concessão  se- 
paratista. 

Não  so  exagere  entanto  o  sentido  critico 
das  minhas  palavras.  Eu  não  tenho  em  vista 
negar  o  valor  de  muitas  obi-as  dramáticas  que 
a  traducção  nos  importa  do  estrangeiro,  espe- 
cialmente sal)endo  que  não  ha  originaes  a  con- 
trapòr-Ihes.  Friso  só  isto:  o  valor  da  obra  lit- 
teraria  diminue  com  a  transplantarão,  de  nove 
décimos,  e  considerado  o  Iheafro  um  logar  de 
cultura  para  a  multidão  que  não  lè  c  pensa 
pouco,  o  decimo  de  suggestão  artística  e  pbi- 
losophica  que  fica,  nem  vale  o  preço  que  cus- 
ta, nem  tão  pouco  o  tempo  que  leva  a  absoi" 
ver.  Mais :  a  lingua  fatiada  n'essas  obras  é  uma 
coiza  aparte,  já  pela  porção  da  leitura  ante- 
rior que  presnppõe,  já  pela  estranheza  intei- 
ramente exótica  c  anli-portugueza  da  estni- 
ctura.  Á  uma,  os  traductores  officiaes  dos  nos- 
sos palcos,  sempre  os  mesmos,  assegurando- 
se  primeiro  da  benevolência  dos  jornaes,  raro 
í'  que  ponham  n'aque]le  seu  ganin-pão,  gran- 


18  os  GATOS 

(les  piirismos,  que  nem  a  educação  lilleraria 
lhes  pede,  nem  a  inerceiiagciii  da  tarefa  Ilies 
comporia.  Á  outra,  a  natureza  essencial  dos 
personagens  de  muitas  d'essas  peças,  exige  quo 
ellcs,  estrangeiros  por  sangue  e  por  caracter, 
nem  por  um  instante  percam  o  sulaque  d'o- 
rigeni  c  deixem  de  fallar  franccz,  mesmo  em 
portuguez,  só  porque  á  ultima  hora  o  Seguier 
ou  o  Gervásio  foram  a  Paris  engajal-os,  para 
a  colouisação  dos  palcos  alfacinhas. 


Entre  o  traductor  c  o  aucíor,  dar  fauteuil 
ao  arreglador,  um  grande  lypo!  Faltamlhc  tal- 
vez recursos  creadores,  mas  nem  por  isso  os 
seus  pruridos  d"auctor  são  menos  vivos.  Acha 
que  tiaduzir  é  uma  habilidade  apenas  infuna, 
e  incapaz  de  produzir  por  si,  eil-o  se  lança  a 
abocanhar  no  que  é  dos  outros. 

Para  este  homem  todas  as  peças  estran- 
geiras parecem  crivadas  do  defeitos.  Então 
emenda-as,  cortando  aqui,  juntando  além,  até 
que  o  todo  ganhe  a  seu  vèr,  uma  physionomia 
arlistica  apresentável.  Chama  elle  a  isto,  arre- 
glíir.  lia  verbos  gajos  !  Einfim,  lá  sobe  a  peça 
á  scena.  Dos  bocidos  bonitos  diz  o  arreglador.- 


os   GATOS  id 

são  moiis.  A,'.'ora  os  bocados  inassaníos,  iiiiu- 
ca  SC  esquece  (rcxplicur  ({iie  são  —  do  outro. 

6  de  Novembro. 

Os  originacs. 

O  divorcio  entre  os  homens  de  Icttras  c  a 
vida  nacional  é  cada  vez  mais  profundo  c  ir- 
revogável, porque  mercê  da  sua  educação  es- 
trangeira, do  baixo  nivel  mental  que  os  cara- 
ctcrisa,  os  homens  de  leltras  ou  derivam  na 
imitaç.ão  servil  das  obras  que  amam,  ou  fa- 
zem obras  que  pela  falia  d'opportunismo  e  de 
seiva,  não  conseguem  captar  grandemente  as 
curiosidades  da  multidão.  Vejam-se  as  gera- 
ções lilterarias  actuaes. 

Os  escriptores  que  pensam  e  escrevem  por- 
tuguez,  não  lêem  talento.  O  resto,  apezar  dos 
seus  recursos,  gallicisma  e  escabeccia.  A  edu- 
cação geral  é  deplorável,  e  a  profissão  liítera- 
ria,  passando  a  ser  um  logar  de  passagem  para 
a  burocracia,  tornou-se  numa  espécie  de  va- 
diagem encoberta,  para  onde  o  transeunte  deita 
olhares  oblíquos,  e  onde  só  se  demoram  os 
incorrigíveis  de  qualquer  outra  vocação. 


20  OS   GATOS 

Ilcsiilla  iVisto  sor  a  lilteralnra  feila  por 
curiosos,  iiicrcõ  das  exiguidatlos  do  salário,  c 
da  perfeita  al)jec(;ào  que  é  viver  consagrado  ao 
mesler  de  plumitivos.  A  consequência  natural 
d'esla  gafeira  é  os  liomons  de  leltras  d^officio 
liquidarem,  por  falta  de  procura  e  d'c3linia 
puljlica,  em  baixas  iocubraçõcs  servis,  para  co- 
mer, como  sejam  fazer  diccionurios,  Iraduc- 
ções  de  compêndios,  e  livros  pornographicos, 
c  é  a  arte  ser  exercida,  nos  intervallos  da  re- 
parliofio,  por  uns  estheticos  sonand)ulos,  que 
aos  prelos  trazem  as  mazorrices  fundainentaes 
da  manga  de  lustrina. 

De  sorte  que  ás  insufficiencias  liercditarias 
que  sempre  fizeram  de  nós,  como  povo  lille- 
rario,  uma  ramificação  somenos  do  espirito 
europeu — insufficiencias  d'imaginação,  de  gra- 
ça espiritual,  de  saroir  faire — ^,j un la m-se  agora 
Iodas  as  deploráveis  ignorâncias  e  obseca- 
ções  da  epoclia  moderna,  sendo  no  thealro  on- 
de a  nossa  lazeira  artística  mais  frisantemcnie 
se  patenteia.  De  feito,  não  temos  peças  que 
valham,  porque  mesmo  quando  lá  fora  o  Uiea- 
tro  eslava  cm  plena  efflorescencia,  nós  nunca 
soubemos  encontrar  n'csle  ramo  a  formula  ar- 
tística condizente  a  u;enio  da  nação.  Sem  du- 


21 


vida  houve  tenlalivas  avulsas,  com  (jil  Vicen- 
te, António  José,  Garrct,  e  poucos  mais,  mas 
são  óvulos  estéreis  crarte,  que  o  talento  dos 
contemporâneos  não  choca,  c  que  pelo  tempo 
lora  jamais  conseguiram  propagar-sc.  A  verda- 
de c  que  das  quatro  formas  d'imaginação  capa- 
zes d'impulsionara  arle  do  theatro,  a  forma  dra- 
mática, a  forma  romanesca,  a  forma  luimoris- 
lica,  e  a  forma  poclica,  nós  possuiremos  quan- 
do muito,  a  ultima,  e  n'um  grau  de  sonho, 
antagónico  da  acção  requerida  pela  litleratura 
de  proscénio.  Emquanlo  essa  imaginação  poé- 
tica bastou  á  illusão  das  plateas,  c  foi  de  mol- 
de aos  princípios  d'cscola  a  que  a  litleratura 
dramática  obedecia,  inda  ha  trinta  annos,  lá 
podemos  dar  no  tlicalro  uma  ou  outra  nótula 
artística  aceitável,  e  ahi  estão  peças  de  Men- 
des Leal,  de  Ricardo  Cordeiro,  de  Chagas,  etc. 
que  dada  a  cultura  lilteraria  do  tempo,  não 
deixam  cm  mau  pé  a  minha  observação.  En- 
Ira-sc  depois  no  periodo  moderno,  c  como 
é  a  sciencia  a  ideia  mãe  (jue  predomina  nas 
differeníes  applicaçòes  da  inteiligencia,  não 
pôde  a  littcratura  d'esse  periodo  deixar  de  ter 
uma  característica  scientifica.  O  gosto  da  an- 
notação  exacta  entra  portanto  na  obra  dos  es- 


22  os  GATOS 

criplorcs  coiilemporaiieos  —  fallo  agora  só  dos 
estrangeiros — que  assim  approximam  da  socio- 
logia o  romance  ile  costumes,  e  da  psycliologia 
o  romance  d'analyse.  Gomo  o  tlieatro  foi  con- 
siderado sempre  uma  pintura  viva  de  cara- 
cteres, pareceria  que  eile  devesse  acompanhar 
u'esle  novo  período,  as  outras  expansões  da 
arte  d'escrevcr.  Mas  não  tem  succedido  assim. 
Kutre  os  escriptorcs  do  livi'o  e  os  cscriplorcs 
de  palco,  uma  divergência  medeia,  intranspo- 
nível, c  a  evolução  sclenlifica  que  fez  do  ro- 
mance a  mais  triumpante  expressão  llttcraria 
do  nosso  tempo,  ao  topar  o  proscénio  estacou, 
o  não  foi  além.  (b)  D'aqui  tem  vindo  cscrc- 
ver-sc  que  o  tlieatro  é  uma  escola  morta,  unia 
arte  mumifeita,  que  está  a  viver  de  recorda- 
ções e  de  curiosidades,  e  cujo  audjilo  não  cor- 


(í<)  t'Lc  théátrc,  lui,  est  a!lc  se  rctrccissant  de  plus 
cii  plus,  niultipliaiu  á  rinfuii  !i;s  comWiiaisons  d'un  tout 
pctit  nombre  do  typcs  une  fois  découveits.  M.  Dumas  fils 
mis  d  part,  comme  un  novatcur  que  nul  n'a  suivi,  tous 
les  autres  auteurs  n'ont  su,  avec  cette  forme  rebslle,  qu'éta- 
blir  des  ceuvres  de  psjvhologic  moycnne,  comme  Ic 
Geiídre  de  Aí.  Poirier,  ou  qu'aboutir  á  des  soutcnances  de 
théses  e  d  des  escamotages  de  scéne  ...» 

P.  Boiírcel. 


os  G.VTOS  "-23 

responde   mais  ás  necessidades  arlisíicas  da 
epoclia. 

Se  isto  é  proplietico,  não  sei.  A  persistên- 
cia do  tlicatro  na  phase  romantico-caduca  de 
ha  trinta  annos,  emquanto  as  artes  similares 
fructificam  c  sasonam  em  pleno  naturalismo, 
pôde  ser  apenas  uma  parai ysia  á  friíjore,  tem- 
porária, sem  cansa  aírophica  incurável,  e  re- 
sultante talvez  d"uma  baixa  intellectual  que 
pôde  ser  remida  pelo  apparecimeato  d'uma 
camada  nova  d'escriptores,  e  também  um 
pouco  das  difficuldades  d'adaptação,  passa- 
geiras, dos  novos  melliodos  (Kescrever,  á  lit- 
teratura  de  Iheatro,  que  quando  bòa  é  a  mais 
melindrosa  c  artificial  que  se  conhece. 


Transporte-se  agora  o  sentido  das  consi- 
derações que  vem  de  Icr-se,  da  littcratura  dra- 
mática estrangeira,  para  a  nacional.  Eu  já 
accentuci  a  divergência  mortal  que  existe  en- 
tre os  nossos  homens  de  lettras,  e  o  publico; 
já  insinuei  que  nenhum  de  nós,  escriptores 
contemporâneos,  tem  a  faculdade  d'apaixonar 
a  gente  que  nos  lè,  ponjue  sobre  pouco  pers- 
picazes, somos  ignorantíssimos,  e  quazi  todos 


vivemos  ilc  reminisceucias  francczas,  e  de 
leituras  de  coinmix  voi/ngcur  e  de  coívlle.  E 
mais  escrevi,  (jiie  das  imaginações  rc(|aeridas 
para  o  Iheatro,  só  possiiiainos  a  poética,  e  essa 
com  um  caracter  de  dormência  pouco  adaptá- 
vel ú  energia  d'ac(;ão  (|ue  a  littcratura  di'ama- 
lica  reclama.  Hoje  mais  do  (pie  nunca  o  Ihea- 
tro reíjuer  vivacidades  que  nós  não  temos,  c 
uma  intensa  vida  psycliica  de  que  a  nossa  pre- 
guiça cerebral  nos  prohilje  de  ser  interpretes. 
Ilomanlica  ou  experimental,  toda  a  peça  de 
thealro  carece  dlnipeto,  de  concisão  laiscan- 
le,  e  d'in)placavel  lógica.  Nem  uma  scena  a 
mais,  no  conjuncto  das  que  a  carpiuteria  do 
mcticr  impòz  ã  rápida  evolução  de  todo  o  en- 
treclio.  Nem  uma  palavra  a  mais  do  que  as 
necessárias  ao  desenho  incisivo  dos  persona- 
gens. É  um  problema  d'algebra  social  que  se 
resolve,  (rj 


(c)  «...  rinvention  et  rimagination  Otant  inutiles 
au  théàtre,  la  qualitO  que  Dumas  fils  estime  par-dessus 
toutes,  celle  aussi  qu'il  a  au  plus  haut  degrc,  c'est  la  logi- 
que.  Realiste  par  le  clioi.x  de  ses  sujets  et  par  la  fr.-i.nchise 
avec  laquelle  il  Ics  traite,  il  nc  (.úx  aucune  eoncession  au 
réalisme  dans  tout  ce  qui  releve  de  la  coniposition  drama- 
tique.  Les  théoreciens  de  je  ne  sais  quel  «théàtre  natura- 


os  GATOS  "io 

Arreda  pois  coin  as  divagações  e  as  plira- 
ses  vagas !  E  agora  digam-me :  c  esta  unia 
arte  em  que  o  escripíor  portuguez  jiossa  bri- 
lliar  ?  Queiram  espalhar  a  vista  em  de  redor. 
Onde  um  homem  d'acção,  entre  os  que  escre- 
vem para  a  scena?  Somos  todos  apathicos. 
As  difficuldades  da  vida,  o  sedentarismo  ane- 
mico,  a  preguiça  do  clima  e  o  sccplicismo  ri- 
sonho dos  costumes,  transformaram,  em  qua- 
tro séculos  de  decadência  histórica,  os  portu- 
guezes  indómitos  d'outr"ora,  n'uns  molluscos 


liste»  lui  reprochcnt  de  mutilcr  Ia  rcalité  pour  renfcrmer 
dans  un  cadre  artificiei,  de  construirc  ses  piéces  commc 
des  théorémes,  de  monter,  ainsi  qu'on  fait  uu  ressort 
d"horloge,  des  personnages  qui  niarchent,  agissent  et  par- 
Icnt  en  automates  . . .  Mais,  si  la  vérité  ne  peut  être  abso- 
lue,  il  faut  que  la  logiquc  soit  rigoureuse,  et  nul  auttur 
dramatique  n'a  été  plus  implacable  logicien  que  Dumas. 
Pourquoi  doniie-t-il  ie  conseil  de  ne  commencer  sa  piéce 
que  lorsqu"on  a  la  scene,  !e  mouvement  et  le  mot  de  Ia 
fin?  Cest  parce  qu'il  considere  cette  fin  comme  un  but 
que  Tauteur  doit  poursuivre  dés  Ie  commencement.  Au 
départ  mcme,  il  a  les  yeux  fixes  sur  Ie  point  d'arrivée ;  il 
va  droit  son  cheniin  avec  une  rectitude  inficxible  sans  se 
peniietre  jamais  ni  haltc  ni  dctour.  Ce  qu'on  appelle  sa 
bruialité,  c"est  sa  logique  mênic.» 

Ccoixes  PclUssier. 


26  OS  GATOS 

timidos  c  doces,  n'uns  seres  de  contemplação 
e  reflexão,  n'uns  homens  que  perderam  a  som- 
bra, e  que  a  procuram,  olhando  constante- 
mente para  traz.  Pesa-nos  sobretudo  a  cons- 
ciência de  que  o  nosso  reino  já  não  seja  d'esto 
mundo.  K  com  islo,  a  energia  foi-se,  na  vida 
do  corpo  como  na  vida  do  cs]>irito,  na  circula- 
ção do  sangue  como  na  circulação  das  ideias. 

Somos  como  uns  animacs  domesticados, 
uns  seres  de  hábitos  certos,  com  horário  p'ra 
tudo,  c  faculdades  que  duvidam,  c  hesitações 
c  visões  que  liypnotisam. 

É  esta  a  razão  porque  d'enlre  Iodas  as  for- 
mas litterarias,  decahidas  cm  Portugal,  pre- 
sentemente, só  o  poema  lyrico  conserva  uma 
certa  fragrância  de  flor  fina,  pois  que  elle  é  a 
única  que  pôde  servir  d'cxpressão  ao  nosso 
Immielismo  ondeante  de  hoje,  e  que  se  com- 
praz co'as  meias  tintas  de  sentimento  e  sensa- 
ção que  nos  agitam. 

O  ({ue  ha-de  então  succedcr?  l!a-de  succc- 
dcr  que  todas  as  nossas  tentativas  dramáticas 
falharão,  e  que  nenluuiia  pôde  ficar  archivada 
como  um  solido  specimon  de  génio  litterario 
porliiguez.  Aqui  e  além,  nos  intervallos  da 
niadorna,  o  espirito  publico  inda  desperta,  é 


US  GATOS  27 

certo,  cm  csfiísiadas  d'ironia,  e  se  fossemos 
a  recoilier  do  filão  liumoristico  da  turba,  a 
dose  de  cliarge  em  que  ella  irrompe  ás  vezes, 
contra  quem  lhe  sonega  a  felicidade,  haveria 
matéria  em  barda  oom  que  escrever  come- 
dias deliciosas.  Mas  os  nossos  escriptores  de 
comedia  cada  vez  estão  mais  longe  da  alma 
publica,  e  por  demasia  occupados  a  urrcglar 
do  francez,  p"ra  que  algum  se  lembre  de  vir 
encher  o  seu  cântaro,  ao  manancial  do  riso 
indígena,  (d) 

Passando  da  comedia  ao  drama,  a  colheita 
ó  safara  ainda,  e  as  causacs  da  sua  decadên- 
cia permaiiecem,  como  para  aquella,  intrans- 
niutaveis.  É  a  mesma  escacez  d'aptidões  nati- 
vas, sublinhada  pela  mesma  ausência  de  cul- 


(d)  Xão  perco  e.-perança  de  ainda  n'este  mesmo  lo- 
gar  estudar  o  humorismo  critico  do  nosso  povo,  depois 
que  tenha  recolhido  elementos  completos  para  um  quadro. 

Os  que  se  perniittem  sorrir  quando  lhes  digo  que 
n'um  caflfj  de  Upcs,  aos  sabbados,  ha  mais  senso  cómico  e 
caricatural  do  que  o  que  n'uma  quinzena  se  recolhe,  por 
todos  os  centros  litterarios  de  Lisboa,  reconheccnâo  depois 
como  é  justificada  a  minha  preferencia  por  esses  reihh'1-vons 
de  plebe  que  rifoita,  e  cuja  larga  improvisação  não  ici^ 
ás  anedoaas  do  jornal  francez  lido  na  véspera. 


ídiS  os  GATOS 

fura  litíoraria  c  pliilosopliica.  Aqui  vem  jun- 
lar-se  ás  (juaiidades  negativas  ila  raça,  lodos 
os  prejuízos  que  uma  errada  educação  junjiii 
ao  meslor  d'ar(isla  c  homem  de  leltras.  Para 
a  factura  do  drama,  iiús  não  possuímos  sequer 
a  liaijilidade  mi.'clianica  da  intriga,  isto  ipie  os 
entendidos  ciiamam  a  inuininiidn)  dos  espaços, 
que  é  o  poder  d'evocar  as  tai)oas  do  proscé- 
nio no  momento  de  se  estar  reaiisaudo  a  obra 
tiramatiea,  e  assim  o  de  regular  as  idas  e  vin- 
das, as  entradas  e  sabidas  das  figuras,  a  ar- 
diifectiira  dos  grupos,  e  a  dislribuição  symc- 
Iricadas  scenas,  pelos  actos  de  sorte  que,  como 
<liz  Dumas  fdlio  n'nm  prefacio,  a  marclia  da 
peça  seja  «uma  progressão  malhcmatica  que 
multiplica  a  scena  pela  scena,  o  lance  pelo 
lance,  o  acto  pelo  acto,  e  que  se  cbegue  ao 
desfecho,  como  a  um  producto  inexorável  e 
fatal.» 

Tam  pouco  nos  podemos  gabar  da  nniKji- 
niirão  dos  sontiniciilos,  esse  supremo  dom  de 
creação  psycologica,  que  faz  com  ((ue  o  ro- 
mancista ou  o  dramal(U'go  encontrem  sessenta 
ou  setenia  formulas  diirerenles  para  expressão 
piclural  d'um  mesmo  sentimento  ou  movei 
d'acção  interior.  Por  exemplo,  as  amorosas  do 


os  GATOS  -1') 

Dumas,  no  ruiulo  filhas  do  mesmo  sentimento 
impulsivo,  comtuilo  travesfem  entre  si  expres- 
sões dramáticas  antípodas.  lialzac  tem  na  Co- 
media Humana  seis  ou  oito  avarentos,  cuja 
revestidura  exterior  lhes  tira  o  pareníescct. 
Onal  é  ahi  dos  nossos  dramaturgos  que  veja 
um  caracter,  ao  tractar  do  pôr  em  sccna  um 
manequim?  Hasta  analysar  o  dialogo  d'uma 
peca  portugueza,  para  se  advir  na  completa 
uuUidão  d'essa  litteratura  de  cordel.  Ou  esteja 
cm  scena  uma  adultera  ou  uma  virgem,  um 
industrial  ou  um  embaixador,  é  sempre  o  plu- 
mitivo (juem  falia  por  traz  dos  seus  fantoches, 
em  termos  dos  actores  poderem  trocar  os  pa- 
peis, fazer  a  adultera  d'cmbaixador,  e  o  in- 
dustrial de  virgem,  sem  que  a  catastrophe  fi- 
nal perigue,  ou  a  verosimilhança  da  acção 
sofTra  enxovalhos.  A  par  d'estas  irremessiveis 
lacunas,  tod'as  as  que  já  citei  um  pouco  atraz. 
De  não  termos  imaginação  dramática  (teem  re- 
parado que  eu  chamo  a  tudo  imaginaròes.  A 
palavra  não  faz,  e  se  lhes  aprouver,  subsli- 
tuam-na)  resulta  incorrermos  não  só  na  in- 
capacidade de  carpintcjar  o  entrecho  d'unia 
peça,  como  disse,  mas  ainda  na  de  nos  faltar 
lucidez   para   intrometter  figuras  concebidas 


30  os  GATOS 

iriiin  propósito  de  satyra  0!i  de  tlirsc  (pois 
(]ue  cu  não  comprehcndo  dramas  de  simples 
passatempo)  nas  trez  ou  (juatro  sceiías  mães 
d'essa  obra  dramalica,  isto  sem  as  falsear  da 
sua  psychologia  originaria. 

O  que  iia-de  pois  resultar? 

Resulta  que  se  juntarmos  ao  que  íica  dito, 
o  facto  de  muito  pouca  gente  entre  nós,  escre- 
ver prosa  limpamente,  e  de  ninguém  ter  na 
phrase  a  maleabilidade,  a  magia  gravada,  a  còr 
justa,  a  aresta,  requeridas  para  a  pholographia 
d'uma  alma,  atravez  o  dialogo  scenico,  tere- 
mos de  nos  desiiludir  quanto  á  possiliilidade 
de  ainda  vermos  a  litlcralura  nacional  na  con- 
(|uista  do  drama  contem[)oraneo,  do  drama 
d'analyse,  da  vivisecção  social  sangrenta  c  pal- 
pitante, d'esse  drama  para  (jue  o  periodo 
scientiíico  moderno  inda  não  soube  acliar  cm 
França  a  formula  precisa,  se  bem  que  haja 
vestígios  d"eHa  já  na  Parisieitne  de  llenri  Dec- 
que,  na  obra  de  Dumas  filho,  e  n'uma  ou 
ii'outra  comedia  d'Augier.  fc) 


(t)  Propositalmcnte  me  eximo  á  citação  das  ultimas 
peças  ponuguezas  d'este  género.  São  pueris  tentativas  que 
bó  servem  a  dar  justificação  ao  que  escrevi. 


os  GATOS  31 

AVISO 


Mas  por  desgraça  nossa  o  espaço  acaba,  e 
porque  a  questão  seja  frisante,  e  não  conve- 
nha deixar  passar  nem  um  só  dos  seus  quesi- 
tos, reservamo-nos  fechal-a  no  próximo  fasci- 
cnlo,  pela  conclusão  das  nossas  notas  a  res- 
peito do  drama  lyrico  e  do  drama  histórico, 
e  por  um  inquérito  meudo  ao  jogo  scenico 
dos  actores,  e  aos  processos  da  critica  jorna- 
lística. 


Terão  quando  muito,  n"um  circulo  dMntlmos,  quero 
crer,  valor  de  curiosidade  local,  elogiavel ;  mas  não  inte- 
ressam. O  publico  quer  obras  que  lhe  saccudam  os  nervos, 
que  lhe  sirvam  p'rá  vida,  que  lhe  dêem  sobre  alguma  das 
questões  contemporâneas,  a  opinião  que  ninguém  se  atreve 
;i  dizer,  e  que  no  entanto  cUe  sente  fluctuar  no  ar  da  epo- 
cha.  Obras  emfim  que  lhe  sejam  tão  necessárias  ao  espi- 
rito, como  o  vinho  e  a  carne  o  são  p'ro  corpo.  O  qiCcst- 
cc  que  cela  prouve  ?  d'aquelle  espectador  da  Alhilie,  continua 
a  ser  o  carrasco  feroz  d'estos  cscriptores  especiacs  de  peças 
abstractas. 


FIALHO  D'ALMEIDA 


OS  GATOS 


PUBLICAÇÃO  SEMANAL, 
D'LNQUER1T0    Á    VIDA   PORTUGUEZA 


SUMMARIO 


A  CRISE  THEATRAL  —  CONDEiNSA-SE  O  QUE 
FICOU  DITO  NO  NUMERO  ANTERIOR,  E  APPLICA- 
SE  A  RESENHA  AOS  ESCRIPTORES  DE  DRAMA 
HISTÓRICO  —  PREFACIO  DO  Civnwrll,  SANTO  PA- 
TRONO DOS  NOSSOS  POETAS  DRAMÁTICOS  —  A 
DRAMATURGIA  HISTÓRICA  NA  EDUCAÇÃO  DA  PLA- 
TEA  PORTUGUEZA  —  QUE  MINA  D'ASSUMPT0S  TRÁ- 
GICOS E  CÓMICOS  É  A  HISTORIA  DE  PORTUGAL  ! 
—  EM  QUE  SE  OFFERECE  AOS  POETAS  DE  TALEN- 
TO, ALGUNS  PLANOS  D'oBRAS  DRAMÁTICAS,  E 
SE  PROHIBE  AOS  POETAS  CHILROS  DE  TOCAREM 
NO  GRANDIOSO  DESSES  PLANOS  — O  QUE  FALTA 


/.(!J}|f/MGKiW$!J/ 


ApS  NOSSOS. PPETAS  DR^.MATICOS  ;  PREDiCADOS 
OBtÁw,  eVreLiCA^OS  PART^CUL^^a^H^I,  |RU- 
DIÇÍO  ÍIISTORICA.-BE  CaÍiA(ÍTER  PROI*RIA»rEME 
ARTÍSTICO  —  II,  VISÃO  DO  REAL  ÉPICO  —  III, 
FALTA  D'ESfYLÓ'''Í^fÍ0Í^ÍÓ  'r>C>á  ASSUMPOS,  E 
INHABlttóAbè   DÊ   éoSlMoVER '  fe   D^InViJRESSAR. 


,,ivi  .,i.  M,rni,.„,7  oí,  |K'..  ir   7 


01>lAMMUd 


a;jy  o  aa-AH/.a(iy:o:j— jAfiTAairr  ãf.ui:)  /. 
-/.nijTiA  :•!  ,jioi>iaT/;A  oiiaiíj/:  or.  otig  uooi  i 


/.KAíia  aa  ^siiovuirMH  aoA  /.H"(^a?:a/i  a  a?, 
/■i  otv:a>  \' .w„>  .,  ^  ou  oi:j/.H3>n  —  ooihot-iii 
/       'Oii  :ít>q   íoíísoi^  ?oa    o/;o/ir 

-/..l<i  /.(i  ii/,i/   .jM.i  /  r.  A.'Un(n>ílH  AIÍ)a'JTAK/!l(l 

-AfiT«0T'n(!j«HA'n  A/.iií  a'jo — /sajairríioq  /:ii' 
r.iAOjTíio'!  aa  AinoTi^iii  /.  .i  sooiítoo  a  f!(oi;i 
-y.Ji.iAi  aa  «ATaoq  f.»/.  :i;)aHa'i'io  m  ano  lía  — 

a    .^A.dTAMAfla    ÍÍAJIfl0'a    HO/JJM    ?í"/!UíUA    ,11 1 

u:inA:»OT  a<í  ^nn.mi:)  íiAraoo  80a  aaiiio;M  rv. 

'  i  I'  i  I  •'  i'i  «aaíi3'a  (i-^oia/i/fi;)  o/; 


iiii;iii!Í'i  .'■.(!jii'jiiii)ir>.  ;-.c[>  (ií:;>,iií^;);uii  t.  ).;ii)i^. 
!'  ')  ,(i\wiu!>'f)  f;iiiJi;!','}lii  í;miJ   r:vj  í)ij|i  oIíÍj 

■liilid   flIOt)  •ltilln!)r;'j[)   (íllflifi  f.'l'1(lr!0J:    ínilllll9ll 

II  li  ^o)i9(]fiTi  ao  doíí  ,K.7tfj  »;niii'íi  oíii;I(]  o 
'i;«iííiono*j'^  9111)  f.Kíuyj?.  'th  o!(i')ni(;sin')!ViJfif» 
■  !o    li    (ií'ininl^'ii)]j!.ié;   .í:íioj2i;ii(i>/j')(|    ;>   >íril'>i;l 

/Q  'ae  Novembro.         ,    .    .    .  ', 

;   cdidir/i    r.  ,(),';-)-ii;   f;il   ohfIirf!!ti>(Jf(H   'i  .'IBllol 

'>Uí;l!Jii:L;il"i-iq  );<u'iiJlii')yn.i;  .'il-ii;  iJ.  iJiii-j-iLl 
Pode  ser  que,  o  leitor  inda  se;  lembre  do 

mic  no  numero  anterior  dissemos,  a  rospoilo 

dé  dramas  e  dramaturgos  pMrtiiiiuczrs.  Tiuíia- 

riios  asscidado  em  (jiie  fallcciam  iias  nossas 

íícracõcs    contejnnoraiieas    ahsdliUameutc    os 

requisitos  ,  qiie .  a    litteratiira    dramalica    de- 

líianda,  ,com(j!ç^iido  pelos  congénitos,  e  al)nin- 

Íjendo  depois  todos  áqueiles  que  a  educação 
iUej'aria  e  piíilosopliica  pódè  dar.  Tinliamds 
dito,  por  exemplo  que  o  theatrò  era  lima  liíté- 
ratiira  (í"ac(;ão,  e  que  havia  no  caracter  poilú- 
guez  demasiadas  quebreiras  e  besit^ições  [lara 
o  dispêndio  da  energia  nervosa  que  essa  liltè- 
raLura  e^tá  pedindo-  Tinbamos  dito  que  era 
una^  jfjier^iui;^,  d'm^^ly,s^,  tanip  iflais  fina  .ijiiaii- 


4  OS  GATOS 

to  mais  perto  estávamos  da  phrase  moderna, 
e  que  nenhum  dos  nossos  dramaturgos  pos- 
suía a  imaginação  dos  sentimentos.  Tinhamos 
dito  (pie  era  uma  litteratura  (Venredo,  e  que 
nenhum  soubera  ainda  desenhar  com  nilidez, 
o  plano  d'uma  peça,  sob  os  respeitos  d'um 
entrccruzamento  de  scenas  que  ecouomisasse 
factos  e  personagens,  sequestrando  a  obra 
quanto  possivel  das  unidades  de  tempo  e  de 
iogar,  e  substituindo  na  acção,  a  escolha  re- 
flectida da  arte,  á  aventurosa  prodigalidade  da 
natureza.  E  pondo  em  evidencia  por  ultimo, 
as  qualidades  de  concisão  e  abreviação  que 
toda  a  obra  de  theatro  requer,  para  ser  fulmi- 
nante sobre  o  publico,  explicámos  —  confusa- 
mente embora  —  que  a  qualidade  discursiva  e 
superabundanlemente  relhorica  dos  homens 
de  lettras  portuguezes,  os  inhibia  de  juntar 
este  requisito  aos  demais,  citados  já:  defeitos 
estes  que  ainda  se  agravavam  pela  falta  de  es- 
tylo,  e  por  um  deplorável  afastamento  de  to- 
das as  coizas  que  podessem  bolir  com  os  in- 
teresses, alTectos,  e  propensões  naturaes  da 
multidão. 

Todas  estas  lacunas  inhibiam  por  conse- 
quência o  thealro  portuguez  de  se  lançar  no 


os   GATOS  O 

drama  <^xperimenlal,  que  Dumas  fill)o  prose- 
giie,  ha  longos  ânuos.  Vamos  agora  ver  o  que 
se  passa  dos  lados  do  drama  histórico  e  do 
drama  lyrico,  de  que  Ioda  a  gente  por  hi  se 
acostumou  a  saudar  a  rcvivixcencia.  Este  gé- 
nero de  drama,  pela  maneira  porque  usa  en- 
tre nós  ser  encarado,  é  fdho  adulterino  do 
Eraani  e  da  Torre  de  Nesk,  e  primo  c'o  irmão 
do  Severo  Torelli  de  Copée,  e  do  Drama  Novo 
d'Echegaray.  Deriva  do  prefacio  que  Victor 
Hugo  pòz  no  Cromwell  cm  18:27,  e  participa, 
é  natural,  das  pretensões  sob  que  o  roman- 
lismo  faz  a  sua  entrada  em  bastidores,  isto  é, 
deciaraudo-se  «o  liberalismo  na  arte»  c  dando 
a  sua  palavra  de  honra  em  como  vinha  «so- 
bresaltar  as  multidões,  e  alanceal-as  nas  suas 
mais  intimas  profundezas.» 

Poucas  formas  litterarias  conheço  tão  ca- 
pazes como  esta,  de  levar  empóz  si  o  publico 
portuguez,  se  os  dramaturgos  e  poetas  que  a 
cultivam,  sabido  houvessem,  por  via  da  arte, 
enraizar  a  paixão  da  historia  (isto  é,  o  passa- 
do) no  coração  d'um  povo,  que  sem  futuro,  é 
para  o  passado  que  se  volta  a  cada  instante. 
Para  mais,  a  historia  portugueza  é  um  inex- 
haurivel   jazigo   de  minérios   preciosos,    um 


os 


i"(ÍÍtoí;' 


nll 


mundo  emocional  riquissimo,  uiidc  tuilas  ;is 
fibras  da  alma  liiiiiiana  poileiifMir  achai'  scír 
excilantP,  das  poéticas  ás  perv.érsas,  das  cpi-' 
cas  às  grolescas— e  todo  esjç  colossal  nu liil Tm  i 
de  gemmas  e  carbúnculos,  isoladít  nocaniiin. 
á  espera  de  mineiros  e  lapidadores  shakc^pc  i- 
rianos  (jue  talhal-o  saibam,  resuscítaiíd(V  u'y. 
alni;(  de  cada  jóia  a  i)órçâd  (]e*  íí/í-í/pW '(j^íe 
lodos, os  cyclos  lieioicOs  enceirani!  '■■"^  '||' 
Otie  tragedia  não  tiraria  um  arfisla-(í4' 'ge-' 
nio,  ])or  cxeulpló,  (la  leuda  de  IgnfzVftíTlastrH,' 
visionando-a  á  luz  de  faculdades  pAychIcas bò'iii' 
robustecidas  d'èru(riçãp '  histórica,  e  ííos  S>e^ 
gredos  essenciaes  do  ■)«e</cr.' "Ou*-  ^^'ííii/eiidH' 
ávi\mi\  se  arrancava  d;V  jornada 'á^i^íii' galeão 
poriuguez,  de  voita  da  líidíaT  ÈyW  \1dá  do  rei 
D.  Fernando  i,  da  vidado  infáiitb  b.^Henriíjne 
em  Sagres,  lociil»rando  uíivegaçAeS  e  sciencia 
geograpliica,  indiUereule  á^  luCfas  da  piolitreiV 
intestina  — da  mocidade  de  J).  AfToiis'd"v^'.'díisi 
vidas  de  Damiabde  Góes,  ■de'nir  Vice'nt(\"d'e' 
Camões,  de  D.  João  ii  e  de  11.  João  ni.  do 
cardeal  rei,  ilo  prior  do  (a-alo,  de  I).  Seiiasllão 
é  (íe  ÍJ.  Miguel,  (piantos  Míagniflcos 'qiíadróy 


(Í'e  destino' ánfiôrósò,'  d'íntriga  jexnilfcari^t^We- 


de  corte  politica  c  avenluieira,  de  vida  tj-agicli,, 


os   GATOS  T''' 

roicidaiie  c  de  canalhice,  soterrados  na  nieia 
luz  cjyptoganiica  dos  clironicons  e  dos  banaes' 
panegyricos,  por  carência  de  escriptores  (pie^ 
desdenhando  a  gloriola  annual' d'iinia'  pêi^ái 
mascada  a  correr,. em  alexandrinos  occosvipcí^' 
los  nctores  de  D.  Maria,  se  atii-as8emí'furrosâ'A\ 
mente  á  compulsa  da  sciencia  histórica,  nier-*' 
gulhando  annos  de  vida  nos  ai'ohivos,e  forjando^ 
emfim  os  seus  elíeitos  the;itraes  n'tinja  des«8Í-' 
perada  procura  do  épico  real,  sangrento  áè' 
humanismo,  latej<\nte  de  febre  pátria^  que! 
desbridasse  largo  a  inércia  publica,  iíido  até'' 
aoiamago  tia  emotividade  sentimental  que  dia i 
6'  noite  está  a  ardei'  cm  nós,  homens  de  nosri 
talgia,  como  uma  votiva  lâmpada  aos  deiisesi 
idosli-Ora,  perante  laes  assumptos  do  quadròvi 
uma  restrict^via  feJe  impõe  antes  de  tudo,  e  vèm 
a  ser,  que  quem  entre  nós  houver  d'abordar  ^o 
drama  histórico,  necessita  primeiro  de  ter  os  re- 
cursos-que  eu  venho  de^  negar  aos  esciiptoréSi 
queime- consagram  aos  outros  gíeueros,  .drâma^*. 
tioosí  e  nece.ssita. depois  ter  outros ' que leiine»^ 
g(>'desde  já  aos  que.se. Icem  consagrado  a  es^i 
tevgeii«ro.  íPoif.exemplop  nijuiil^n--.  ■>!)  oíjvhkj  i, 

!,-li.ii^i:;)      .:|.„.,j    s><'t    ;>ir.(j<i[,    •|ft:<Hr.inB   ^i    .oi) 

-!iw  ..,   ,aoq'i03   ííi'« 


8  os  GATOS 

I  —  Não  se  concebe  um  pintor  de  historia 
sem  erudição  histórica,  já  não  digo  scicntifica, 
mas  d'uma  natureza  artislica  suprema,  (pie  ha- 
bilite o  pintor  a  integrar  os  i)ersonagens  do 
drama  no  meio  social  que  cl|c  evocuu,  e  a  fa- 
zel-os  fallar  e  pensar  ao  tom  da  epocha.  Não 
se  comprchenue  o  infante  D.  ilcnritpie  em  Sa- 
gres, modelado  pelo  Luciano  Cordeiro,  na  So- 
ciedade de  Geographia:  nem  Vasco  da  Gama 
chegando  da  índia,  a  bordo  da  nau  5.  Rn^iliael, 
modelado  pelo  Marianno  de  Carvalho,  chegan- 
do de  Moçambique  a  bordo  do  Mulaiuje.  Fazer 
um  drama  histórico  não  é  dialogar  sem  crité- 
rio, tampouco,  uma  lenda  de  chronicons,  e 
pòr-lhe  por  figuras  manequins  d^ateiier,  enca- 
bellados  de  postiço,  e  a  dizerem  de  si  mesmos 
—  Nós  cá,  homens  da  Edade  Media! .  .  Fazer 
um  drama  histórico  é  alguma  coisa  como  ir 
aos  craueiros  dos  templos  e  dos  claustros,  aos 
palácios  soterrados  pelas  convulsões  dos  ter- 
remotos, aos  galeões  calcileitos  pela  salsugem 
dos  fundos  do  oceano,  aos  armoriaes  e  aos  ar- 
chivos,  e  descriminar  da  poeira  dos  secidos, 
a  porção  de  sustancia  que  ficou  d'um  cerlo  cy- 
clo.  E  amassar  depois  essa  poeira,  moldal-a 
em  corpos,  nos  corpos  fazer  almas,  que  vol- 


os  GATOS  y 

(em  a  soíTrcr  e  a  amar  como  na  sua  passagem 
primeira  pola  terra.  E  esses  corpos  creados, 
vestil-os  por  maneira  que  elles  nem  um  ins- 
tante duvidem  da  contemporaneidaile  perfeita 
dos  trajos  ((ue  lhes  vestiram,  brocado  ou  fer- 
ro, capacete  ou  gorra  de  plumas...  E  essas  al- 
mas creadas,  sondal-as,  perguntando-lhes  as 
coisas  (jue  as  lancinam,  os  amores  ijue  as  ba- 
nham, e  as  gloriosas  violências  que  as  impel- 
lem.  Vac,  não  ficar  por  a(pii,  porque  isto  só 
seria  nobliftcar  figuras,  que  mesmo  vivendo 
em  e[)Ochas  heróicas,  certo  que  deveriam  ler 
mantpieiras  como  nós,  posto  d'outr'arte.  Isto 
só,  seria  sacrificar  a  realidade  histórica  a  es- 
se ideal  de  harmonia  nobre,  pomposo  e  au- 
gusto, (jne  domina  a  tragedia  clássica,  esque- 
cida. Não  ficar  por  aqui!  mas  fazer  o  claro  es- 
curo dos  personagens,  forral-os  dos  vicios  e 
dos  ridículos  com  que  a  historia  os  explica  e 
faz  humanos,  apeando-os  de  deuses  a  homens, 
nos  intervallos  em  que  elles  não  forem  domi- 
nados pelas  paixões  que  os  fizeram  celebres. 
Vão  dizer-me  talvez  que  isto  é  o  prefacio  do 
Cromwell  de  Victor  Hugo,  junjindo  o  grotesco 
ao  trágico,  e  suppondo  que  uma  tal  alliança 
basUiria   para  assemelhar  a  arte  á  vida.  É  o 


11)  08  0ATO8' 

fMTCiicio  i\oCr6mn<cll,  uujas  igrandôB  liiilias' 
fiindameiítaos,  coiitimiaiiT: a.sor  aiuda  as  taboas 
lia   l(íi  (lo  drama   irislqj'ico:«' K»  prefacia  do, 
Cromwell ,  <Á;  mas  apAiresoeiílado  [jelas  explaaa- 
ções  d'Alfm1a  íie;Vi}iiU''<(iutí!  exigia  que   «a 
adção  draiiiatica  arriístasseeni  volUi-do  si,  liu'- 
bilhws 'tio  ftic.tos^)  C' j aucrésceiUado  mais  [tei^ ^ 
aspii'a<>ão  critica 'do  SainteiBonvCíque; queria: 
stíntir  im  draiira,  ■«■^VTfKdtidào»  e  uma  acçãâi 
mnitifornip;  COTH  anv  voca})ulrtrio  niuitiftymie. : 
e'  irlleréssos  ;e  p.tixõeB  lão^  coiítplnx-as  como  ias- 
qtit?  se  rtos- diiíparam  na  vjd'a;  a  catkMpas^o. :  .' 
' ' '  Isto  ditO/ 011  tresíiKímoí!;  assum ptos  da  monUi 
dos-  rfiie'Se  empilhiitn  na  historia  portugueza, 
aOS' dramaturgos  roíiMiros  ffnc  por  iii  iia.  A 
vér'0  que  'ftllBS  fazem  !  Digamos  aos  coiUaoio*. 
res  d"al(txandriiv<)s  que^por  lii  ti,Mgedi;uaíi  liis-^ 
tOria   pátria,   tergiversam  iim  pouco  <la  arte 
eplHMíiera  de  fazer ínèver  barbaras  e  peidoiras<i' 
sob  titulos  de.'  i^ei»  ckle  rainhas;,  n'uiri  j)iiosce+' 
rrio  em  cujos  IjuKtitibres,  fantodiesi  soibenos 
se  encarregam  dé   lhes  dar-  as  dMxhs,  e  de 
proeiíclier  WKs  ■  vastos^  d'uiu;*  acção  dramática ' 
uniforme   e   tnonocíordiaJ '< Exijainos^lhes'  que* 
ríos  ■  dêem '  licMíoes  dej  ■  cal^nep  i  saugue,  ^doifica- 
dios iemborai. peias  nobidbsidados  liomprieaKdao 


leseuJ.i,  nimas  cpie  sejam  a-  syh'the'8é'tli(i'tíylíln| 
sbciíil  (Itniifo  de  (fíie  foram'  e^-ocaclas;  tiiim;<^'' 
hefoicòs  (iVmde  lampeje  o  Pspirito  d'^ssí\>i' tld^- 
s^cts  epocliri!;  guerfeiraS,'d<?boxadas,  oh  aiiio- 
rôsas'  d'oiitr'ora:  c  apar  de'ttidò  a  /í"ww7>íW'í<^' 
flriSpt'-ia  de  badafypo,' é  eSSa'  j^islapo^iràa  do 
p(*í[iipnn  no  líraiide',  efnfííYi',' ifi'i^''i"e'zos  'pérsO'- 
ífágtMis  verosimisi  e'  dá  ínfliiSíb  d(y'(-ehribcaT, 
ú\ú6-à  ai-te  ÃiisceptiVt?!  d'aliirda'  'tkWi>' Mh-M* 'êd 
g-óiiòá  plíteíiportugiimi. '■''■'*■''   ''  •''"""'  '"'•' 
^f''"'(í«è!!"^ói^''ilatí'!à(llváiti^'(iii'é  và'fei'ía  •iv\SetííV 
dÚh^rm-^WwTAii  iifis^{iJò'tàb'bélla,  aIjíWiVs  .iií4 
n(<i"de' Vidíi  lilter-ín-ía'?'  Nãò"átiíiàill''(iue  'é  obri- 
g:i(:fíd!d;\  cntcajusticéflt;  Ò'tev1tál''fíiie1tomen9 
sétk'-talcMito;''iieiii''^ííUido';'«lio{íatíhefri''<^sílitrt^' 
pWs'srtbre  que  Vlí^  pO(\êii\  tóv  Visdéstil-aiidioJ' 
sítív  resiu\c>^encias  gMiiiies^jeViXi^cÉíçfyèííiriísttí'' 
ric^s^'mai;iiincas?'    "'■  "''  ■''"'"''■  "   ^''"  '■''■"'''' 
N5'o  roiíiíiMiértH'érir íjlie-tiStt^ágaH-iJÒííi  'tirfW 
tV/i'iiv^dia  iiiá,  -env séii^  íiilfVliiííiíif^irtVtlií^rted^,  'iiW 
a"!í^iiiinptr)  da  pujan'^.ft''póf''e5íèmplo'drt'i'éhiãd(y 
do'(!àWr(íà'l; 'd<í'vrdh'(fó  iíífrthtè''I>i'1leiinirtii'er^^ 
d'AiYonSo  b  'goMÒ:  e  ''(íe '  PèdW"b''fcití','  .''■^iWi' 
t^fíVne  tâiV  bedirtiido,  iV  í;i(r  dírart^  tbihd  á  1';»^ 
c^dâ  justiça  á  libklinosídadt*  ffiie^lnft  fafcino- 


Il2  os  GATOS 

rain  olliar  a  serio  para  alguma  tTcssas  peças 
históricas  (iiio  I).  Maria  (tiin  levado,  dopoisdo 
Al fuymne  e  do  Frei  Lui:.  Em  prosa  ou  verso, 
com  mais  fogo  ou  menos  fogo,  mais  brilho 
ou  menos  brilho,  acpieilas  obras  são — certas 
passagens  do  Aljhitso  VI  exceptuadas  —  como 
uns  melancólicos  frescos  lunebres,  com  figu- 
ras (ie  lado,  que  teeni  as  mãos  espalmadas 
como  as  primitivas  pinturas  dos  egypcios,  o 
ollio  mollc,  a  bocca  hiante,  trágicas  e  terri- 
veisnão  do  terror  falidico  (|ue  exprimem,  pelo 
que  dizem,  senão  porque  se  diagnostica  n'el- 
las  o  symbolo  d'uma  arte  fruste,  balbuciante, 
que  quer  fallar  e  não  pôde,  que  quer  espavo- 
rir e  cahe  pr'o  lado,  á  punhalada,  ao  urro, 
ao  coice.  Onde  na  Leonor  Telles,  a  fusão  de 
cavalheirosidade  e  de  miséria  amorosa,  (pie 
devera  ser  o  timbre  do  rei  Fernando?  Mas  ó 
um  bonilVate  piegas,  esse  typol  Onde  a  alma  de 
cortezã  astuta,  finamente  coleante,  disfarçando 
as  ambições  thronicias  sob  appareucias  mei- 
gas de  bondade,  que  caiaclerisa  na  historia,  a 
amiga  do  formoso?  O  mestre  d'Aviz,  na  peça 
de  Mesquita,  é  um  boneco.  Andeiro  um  canna 
radiada.  E  o  infante  I).  l.uiz,  uma  espécie  de 
Magalhães  Lima  (jue  diz  coizas  com  fatos  d'en- 


os  GATOS  13 

trudo.  De  roda  das  figuras  principaes,  nada 
que  saiba  á  epocha.  A  corte  de  S.  Martinho  é 
uma  parceria  d'aniauuenses  que  vem  a  uma 
soirée  de  carnaval,  vestida  pelo  Kruz.  O  po- 
vo, que  representou  no  reinado  de  Fernando  I 
um  papel  tão  alta  e  significativamente  prepon- 
derante, não  existe  na  peça  senão  pela  tirada 
do  alfaiate,  e  por  uns  grunhidos  que  a  com- 
parsaria  solta,  nos  intervallos  em  que  se  não 
coça  nos  sovacos.  De  sorte  que  o  espectador 
sahe  do  theatro,  dizendo  comsigo: 

—  Se  esta  Leonor  Telles  dissesse  antes  o  pa- 
pel de  D.  Fernando,  e  D.  Fernando  o  d'ella ; 
se  os  versos  componentes  do  papel  do  infan- 
te, passassem  a  ser  papel  do  mestre  d'Aviz, 
indo  os  d'este  p'ra  aquelle;  se  os  homens  da 
peça  se  encarregassem  de  declamar  o  papel 
das  mulheres,  e  vice-versa,  pergunta-se:  a  co- 
herencia  do  drama  seria  perturbada,  a  trage- 
dia histórica  mudaria?  Resjjosta:  não. 

Agora  mais!  Transplant^ida  a  catastrophe 
da  Leonor  Telles-,  com  todas  as  suas  determi- 
nantes e  accessorios,  para  outro  paiz  e  outras 
figuras,  o  eiTeito  geral  da  obra  seria  prejudi- 
cado nos  seus  primores  de  concepção?  Res- 
posta: não  era. 


,.|,,  ,,LQg(),,eíti|:ili)it!  tlii.tlx)  PòkV  CvS;<,(;  (l|:;jin;;i,|CVf|a- 
|.e;ui  (jiie  ppile.a,  lill(!j;at,ii!;i  ,drap'aliip;i,,pf|i"i  ,çjH^ 
I  iflitÇ|i,;q;^^if  (í.v  ,)f)n^p,  DU,,ciç,ppi;to,  íis,  |Jií|(U'or)|^s 

-^h<JUe,  p,9,i:Uifl|piíííiO  |ú  bpr^i  pç||-tUí;ueííi,.;É  i|i|)a 
..ppçiu  dei|Sentina/2nti4t^.,fi^iyult||'íi"PSçs,  çíii,  ,mi|e 
epses,  ,^eillUii«/]los  iiãp  f;i?eia. , J^atei;  () .  cp!•,a(;^ãv• 
É  uma  pcçn,<rK(latJí;  Medja,  ^eifl  qime.íiov.ivis- 
^unjbi-p  I .^'Eiiailc  JJçiiKt í  fie ,?i)<^uarcliia  |)oilii- 
g^iqy^j.^squi  ijuoniirclia.s  j)|0|rtuyi!Cize!?;:   ijp  ,  pa- 
_ÍJ'iotisiiio,  sijiu  , calor,, p;UriOit,ico„  e  final [jipn^.^, 
(.(c  .Ultcralurjí,  !ft'ni  ,i,tlplit}adcs,,littei'ai;ias  (je 
,.iflaí<,u';iliausl«.,.QucjFp  iCjj^e  .^ni^  responda in;;,p^n 
\M\W<I  PMdft  ,4íí;i?i,, Jii,ltQnU|!!:iV.<?p.n>p,ies|a,  a/nir^Çífr 
,PPí;0; (^MmUf  pím/OM^^tt^r-^W^ií^niíf^Xii.?»? 
-■)i<,iyi\  i;  ,);lic.(iiiili'K|  i;!'!.'!*-,  juiíkmÍi  uIi  liiaii-irul 
.oÈn  :  );lfioqH.'iM  Vnhiduun  (í-.ií-uiJíííiI  nih 
iili|iril^i;lí;->   i;   i;lii;liii;l(|^.iiinT    ''Íkiii    iíio;./. 

.  in(li?p(;rKsayel  pps.siiii;  a  imagip^Ção  dps  .sen- 
timentos,. 4is.s(;nios.  AçGresceptííremos  agora : 
para  a  feiura  dp  diama  liislorico  é  indis- 
pensável possuir  essa  imaginação  em  ampj.i- 


ticad(),  'Q  vér  ■epmt)usemÍBBO(^rBr  pdiiiiíísojlio 
perigjo  de  véi'  falsoij  iEvidenteraei>te  o  menew- 
ponha,  pondo  n'nma  peça  de  íheatro,!  GnmS^es 
ou  B.  SebastiAo,  não  será  reduzir  acjuelJâs  figu- 
ras ifl!'banaes  personaiidades  contemporâneas, 
que-priocedaih  e  fallem  ao  gosto -chano, ido 
meH  tempo,  assim  como  iiiãO' fu-dfèi:teiii  tam- 
bém rCpreseiitJlUas  lia  impassibilidadehmorta 
dabsti-acçõèa,  como  ma  tragedia  antiga,  ftui 
(juei  os  personagens  não  teero  vida  «onípíetó, 
parecem  ignorar'  as 'necessidades -jaiifter^aessiie 
ser  insensíveis  (vdòrpliysicà.  .ii-ii II  'ih  iihr.] 
Mithridalbs,  ferido,'  expirn  a  dizer  cetitOie 
oincoenta  versos  d'uina  assentada,  académicos 
todos,  e'calmosv  ;É  absurdo !  1  -:  i;  .n  i,  .^i.! 

Compreliender-se-hia  (juei  um  poeta  feesse 
morrer  O  heroe,  por  es<a  forma  massíiute,  B'u- 
-mai  tragedia  ou  drama  histórico,  escjriptos  ho- 
je? Esse  Mithridates,  conio  todas  as  figuras, do 
-Iheatro  clássico,  não  é  um  individuo,  é  um 
s\Tnb()lo  em  cpie  a  paixão  se  manifesta  no  es- 
tado de  força  anonyma  e  insusceptível  de  ser 
modificada  pelo  temperamento.  ?<o  Ihealro 
clássico,  o  drama  falta  ainda^  a  còr  locíil  é  re- 
putadíí  inútil,  não  ha  perspectiva  aérea,  e  os 
personagens,  speclraes,  pegados  n'um  panno 


1(1  os  GATOS 

de  fundo,  exprimem  antes  o  terror  que  se 
passa  no  espirito  da  platea  ingénua  que  os 
observa,  do  que  propriamente  o  que  resulta  da 
energia  da  catastropiíe  em  que  eliesse  movem. 
Que  queimem?  O  convencionai  da  tragedia  bas- 
tava no  século  xvii  ás  necessidades  d'espirito 
da  multidão.  Os  trágicos  d'essc  tempo  eram 
moralistas,  como  os  dramaturgos  do  nosso 
são  historiadores.  Com  o  romantismo,  a  liis- 
toria  toma  posse  do  tlieatro,  e  o  scliema  cri- 
tico (jue  desenhámos  sobre  os  tópicos  do  pre- 
facio de  Hugo,  do  postulado  de  Saintc  lUnive, 
e  da  profissão  de  fé  de  Alfredo  de  Vigny,  pare- 
ce ser  lioje  mais  do  que  nunca,  para  o  di-ama 
histoi'ico,  a  forma  fixa.  Certo,  eu  quero  o  real 
no  drama  histórico,  mas  o  real  local,  o  real  his- 
tórico, o  real  épico,  que  faz  os  pei'sonagens 
humanos  sem  apagar  de  roda  d'elles  a  pho- 
tosphera  poética  da  lenda,  que  os  apea  da  nu- 
vem, certo,  mas  sem  lhes  roubar  na  pci'spe- 
ctiva  do  Iheatro,  o  gigantesco.  Livre-se  o  meu 
bondoso  Lopes  de  Mendonça  d'alguma  vt'z  me 
talhar  Afíbnso  d'Albuquerque,  nas  porporções 
do  general  Vasco  Guedes — que  o  enforco!  Fa- 
zer real  na  historia  tam  pouco  seria  emprestar 
ao  amor  de  Pedro  i  as  declarações  emphalicas 


os  GATOS  17 

d'iim  bacharel  namorista,  á  caça  de  herdeira 
nos  banhos  d'Espniho ;  ou  fazer  d'AfTonso  iv, 
cumpHce  no  assassínio  d'Ignez,  um  magarefe 
estúpido ;  ou  dar  a  D.  João  n  a  estortegadura 
monótona  d'um  sanguinário  d'officio,  cons- 
tantemente aos  berros  na  scena,  como  um 
bruto. 

Fazer  real  na  historia  é  descortinar  em 
cada  figura  as  extremes  linhas  do  caracter, 
justificar  essas  linhas  por  palavras  e  por  actos, 
e  sabel-as  manter  atravez  de  todas  as  situa- 
ções dramáticas  da  peça,  em  termos  que  esse 
Pedro  I,  amante  furioso  a  quando  viva  Ignez, 
seja  o  inicio  psychico  do  singular  allucinado 
que  comboia  o  féretro  d'ella  ati'avez  a  cam- 
pina deserta  d'Alcobaça,  pela  noite,  á  chuva, 
entie  as  rezas  dos  monges  e  as  tochas  dos  fi- 
dalgos—  e  que  este  espantoso  viuvo,  rei  Lear 
do  amor,  mesmo  depois  da  posse,  expli((uc  ás 
mil  maravilhas  depois,  pelos  ardores  epilépti- 
cos da  paixão  bramidora  que  o  devora,  o  seu 
primeiro  acto  de  rei,  que  é  desenterrar  a  aman- 
te já  corrupta,  e  fazel-a  sagrar  rainha  pelo  bei- 
jamão  incondicional  de  toda  a  corte.  De  roda 
d'este  typo,  sem  egual  na  historia  do  mundo, 
6  era  que  seria  regicídio  bolír,  não  se  possuindo 


18  os  GATOS 

O  gCJiio  barbai'o  (!  rugidor  ile  Sliakes|ie;irc  — 
fazer  real  na  liistoria  —  ó  visionar  us  rnais,  com 
a  mesma  sagacidade  epDpeica  e  a  mesma  lógica. 
N'aquclias  epoclias,  o  reino  tinha  os  olhos  sem- 
pre na  fronteira.  Castella  ej'a  o  pezadello  com- 
inum  de  reis  e  de  vassallos,  e  o  amor  da  in- 
dependência, (pie  vinculava  a  coroa  ao  amor  sub- 
misso do  povo,  o  grande  zelo  indómito  que  fazia 
heroes  dos  fracos,  e  guerreiros  titans,  de  to- 
dos os  pygnieus.  Ignez  de  Castro  pois,  liespa- 
nhola  de  sangue  real,  prendendo  o  coração  do 
infante,  constituira-se  por  isso  n'uma  ameaça 
futura  á  autonomia  do  reino:  logo,  cumpria 
afastal-a  —  ora  a  razão  d'Kstado  a  exigil-o  —  e 
os  porluguezes  com  ipiem  AlTonso  iv  decidiu 
em  conselho  o  assassínio  da  nora,  longe  de 
deverem  ser  explicados  pelos  dramaturgos,  co- 
mo faccionoras  mal  pagos,  acho  que  os  de- 
vamos (pelo  menos  na  arle)  noblificar  como 
dedicados  e  cegos  patriotas.  Eis  por  conse- 
(juencia  ahi  logo  uma  sccna  que  magnifica- 
mente prepara  o  espectíidor  para  a  tragedia 
dos  amores  de  Pedro  e  Ignez:  aquella  em  que 
os  conselheiros  d'Affonso  iv  coagem  o  velho 
heroe  do  Salado,  a  consentir  na  morte  da  hes- 
panhola,  que  ellc  para  mais  secretamente  ido- 


19 


lalra,  e  quo  a  razão  iTEslado  ilie  manda  sa- 
orilic-ir,  cmliora  sabendo  (pu;  toinaiá  con)  isso 
o  filho  lonco. 

D'esses  conselheiros,  <ine  foram  ao  mesmo 
tempo  executores  d'alta  justiça,  (|ue  maravi- 
lhosas evocações  de  patriotismo  antigo  a  f,ii'ar, 
que  bellas  almas  vibrateis  para  pôr  em  scena, 
e  despertar  corn  ellas  o  delirio  sentimental 
(fuma  plalea  nevraslhenica  como  a  nossa  !  Fa- 
zer real  na  historia  é  encontrar  o  qaantam  de 
poesia  épica  e  de  humanidade,  convenientes 
ao  fabrico  d'uma  liga  que  seja  carne  e  bronze 
ao  mesmo  tempo,  c  que  vasada  nos  moldes 
que  propuz,  deite  as  figuras  d'esses  conselhei- 
ros nuUadorcs  como  outras  tantas  seixous.se.s  do 
heróico,  attingindo  o  seu  máximo  em  íypo  hu- 
mano. O  processo  d'esquadrinhar  o  real,  na 
commettida  do  drama  contemporâneo,  e  na 
do  drama  histórico,  divergem  pois  fundamen- 
talmente. Um  psycliologo  perito  na  reconsti- 
tuição theatral  d'um  typo  moderno  complica- 
do—por exemplo,  o  do  bancjueiro  Lfurnay  — 
pôde  ser  inteiramente  falho  de  faculdades  para 
um  trabalho  idêntico  no  campo  histórico,  e 
vice-versa.  O  iheatro  de  Victor  Hugo  conta 
grandiosas  restaurações  do  typo  antigo,  e  lo- 


20 


davia  o  poota  seria  absolutamente  grotesco  na 
confecção  do  drama  de  costumes,  com  obser- 
vações meúdas,  e  uma  lingua  paradoxahneute 
irónica,  à  Dumas  fiibo.  O  motivo  d"isto  está 
talvez  na  abundância  ou  na  falta  d'imaginação 
poética,  que  amplifica  no  primeiro  caso  o  cam- 
po de  visão  té  para  além  do  limite  médio,  per- 
mittindo  ao  artista  resurgir  sem  esforço,  das 
edades  mortas,  e  em  todos  os  seus  torvelinhos 
e  caprichos,  o  mundo  especial  (jue  n'ellas  se 
agitou  —  e  que  no  segundo  o  restringe  por 
forma  a  só  dar  ao  escriptor  liberdade  d'acção 
dentro  d'uma  área  de  coizas  vistas,  e  a  revol- 
tal-o  contia  tudo  aquillo  de  que  os  seus  sen- 
tidos não  apercebam  o  contorno  geométrico, 
e  a  notação  positiva  e  inconfundível,  (aj 


(íi)  Dir-nie-ha  o  leitor  agora:  mas  foi  precisamente 
essa  imaginação  poética  a  única  faculdade  artistica  que  você 
resalvou  para  os  escriptores  de  theatro  em  Portugal,  e  se- 
gundo o  seu  verbo,  ebsa  faculdade  devia  ser  para  elles  um 
precioso  telescópio  aproximador  das  edades  recônditas  da 
historia,  e  um  inapreciável  meio  d'evocação  para  os  as- 
sumptos dramáticos  propostos.  Porque  acontece  ent.ão  que 
mau  grado  esta  faculdade,  os  nossos  dramas  históricos  ori- 
ginaes  sejam  tão  superficialmente  bebidos  na  historia,  dêem 
tão  pouco  a  illusão  do  antigo,  venham  tão  fragmentários 


lil  — o  esfylo. 

«R  verosimil,  diz  P.  Boiírgct,  de  ijiiem 
inaiormente  lenho  seguido  a  linha  critica,  n'este 
estudo  —  é  verosimil  que  o  dom  d'cscrever  se 
acompanhe  sempre  d'ess'outro  d'ouvir  uma 
pequena  voz  interior,  (pic  dieta  a  plu-ase.  Fa- 


como  cnseinhle  ou  pintura  d'epocha,  c  aparte  o  guarda-rou- 
pa,  possam  passar-se  em  todas  as  epochas,  c  ser  desfecha- 
dos cm  todos  os  cantos  do  universo,  sem  que  isso  lhes  com- 
prometta  maiormente  a  perspectiva  illusionista? 

—  Tudo  isso  é  verdade,  redarguiria  eu,  mas  que  faz  a 
imaginação  poética  sósinha  n'um  cérebro  falho  d'outros 
dons?  Em  que  auxiliaria  ella,  por  si  só,  um  dramaturgo, 
quo  ao  tratar  de  pôr  em  scena  por  exemplo,  a  mocidade  ou 
a  velhice  de  D.  João  v,  ignorasse  pela  base  o  seu  assum- 
pto, e  não  tivesse  feito,  antes  do  drama,  monographias  es- 
peciacs  sobre  cada  um  dos  figurantes?  Pôr  uma  madre 
Paula  qualquer,  a  receber  a  deshoras,  na  cela  d'um  con- 
vento dos  arrabaldes,  uin  fidalgo  de  casaca  de  lantejoulas 
e  bofes :  fa/.er  sahir  d'estes  amores  uma  menina,  que  no 
segundo  acto  c  entregue  a  um  jezuita,  para  ser  educada 
em  casa  d"uni  desembargador,  e  que  no  terceiro  apparece 
condessa  c  titular  mysteriosa,  n'uma  quinta  de  Bemfica, 
com  os  arcos  das  Aguas  Livres  ao  fundo,  vindo  a  saber-se 
no  quinto  que  a  fideputa  o  é  também  de  rei,  e  que  sua 
mãe  era  uma  fidalga  que  se  fizera  madre  por  causa  d'uraa 
cscorregadella  nos  degraus  do  throno  .  .  . — fizer  um  imbró- 
glio d'estes  em  verso  ou  prosa,  dialogado  todo  em  quin-dins 


22  os  (;atos 

zer  passar  o  acc«ínto  d'essa  voz,  nas  palavras, 
eis  o  (jue  ('•  ter  eslylo ;  estylo  qiio  assim  cnni- 
prelioiidido,  se  toma  para  a  critica,  n'nm  ele- 
mento d'exti"U)r(iiiiario  valor.»  Nada  aiitobio- 
graplia  tanto  o  escrijjtor  como  a  sua  forma 
lilteiaria.   Certas  phrascs  dos  Miiias,   com  a 


lamechas,  e  com  um  outeiro  no  meio  prá  còr  local  —  fazer 
isto,  digo,  e  cuidar  que  se  visionou  a  historia  a  primor 
d'inspiração  —  é,  meus  senhores,  o  mesmo  que  agarrar 
n'um  frade  de  pedra,  e  escrever-lhe  por  baixo:  ^ipoUo  de 
Belvedere  ! 

Evidentemente  se  não  houver  na  peça  um  sem  nu- 
mero de  promenores  e  illucidações  sobre  o  moral  e  o  phv- 
sico  da  epocha,  se  não  conflagrarem  no  quadro,  como 
lançadas  ao  acaso,  e  sem  propósito,  as  carecteristicas  d'a- 
quella  vida  frivola  e  galante,  piolhosa  e  doirada,  devassa  e 
mvstica,  que  foi  o  reinado  do  Luiz  xiv  portuguez — se  a 
madre  Paula  não  provar  na  peça,  por  uma  multidão  de 
pequenos  actos  inconscientes,  que  <í  uma  muUier  de  corte, 
grande  dama  apezar  do  burel,  e  fêmea  lasciva  apezar  dos 
cilícios  e  das  phrases  da  Iinitufilo  — se  o  desembargador  e  o 
jezuita  não  disserem  effeaivamente,  pelas  cambiantes  do 
typo,  pelo  tom  da  vóz,  escolha  dos  vocábulos,  linha  on- 
dulada ou  erudita  do  porte,  a  estofa  intima  das  suas  pessoas 
e  mesteres :  se  a  ordenação  das  scenas  em  que  a  intriga 
decorre,  não  fôr  aproveitada  para  cercar  essa  intriga  d"uma, 
orno  direi?  atmosphera  própria,  d'um  ar  do  tempo,  que 
cvcnha  de  tudo,  das  roupas,  do  scenario,  dos  modos  d'an- 


i:i 


sua  syulaxe  enervada  e  eynica,  são  Eça  de 
Queiruz  vivo  e  fallante.  Ha  synthaxes  miiscu- 
losas,  exemplo,  a  de  Ramalho.  Ha-as  violen- 
tas, ex,  a  de  Camillo.  De  collarinhos  postiços 
e  badine,  como  a  de  Chagas.  De  geleia  e  com 
jinjas  dentro,  a  fingir  rubis,  como  a  de  Lopes 
Mendonça. 


dar,  fallar,  bolir,  viver  —  se  todos  os  episódios,  typos,  ef- 
feitos  c  particularidades  da  peça  dita  liistorica,  emfini,  não 
convergirem  a  um  intuito  único,  qual  o  de  recompor  em 
quatro  horas,  restaurado  a  integro,  um  capitulo  da  passada 
vida  d'um  povo,  queiram  dizer-me  então  para  que  diabo 
serve  a  nossa  tão  fallada  dramaturgia  histórica  moderna,  e 
apontar-me  os  moti\'os  porque  eu  haja  de  saudar  nos  seus 
cultores, í/f j  nwgkiens  tics  Ictlres  sobrepujantes  á  mediocridade 
geral  dos  outros  plumitivos. 

X'este  ponto,  o  leitor  adcvinhará  facilmente  o  que  eu 
aqui  não  escrevo,  e  irá  applicando  a  douctrina  aos  dramas 
históricos  que  fôr  vendo  representar  n'esses  theatros.  Di- 
ga-mc  aqui  com  franqueza :  quando  vae  pr'a  casa,  depois 
de  ter  visto  em  D.  Maria  o  Duque  de  Vi\eu,  leva  no  espi- 
rito alguma  coisa  que  lhe  morda  ao  canto  a  figura  do  rei, 
do  duque,  e  da  donzella  Theodora  sua  amante  ?  Cheira- 
Ihe  a  edade  media,  aquillo?  .\  sua  alma  vibrou  d'alguma 
outra  coisa  que  não  fosse  o  prestigio  emphatico  que  ao  seu 
coração  de  meridional  produz  sempre  um  comediante  ves- 
tido de  vclludo,  espadalhado  e  iracundo,  a  debitar  tiladas 
d'orador  d'opposição  ?  O  seu  olho  mergulha  acaso  n'algum 


"li  os  GATOS 

Os  esciiplores  de  pulso,  de  que  o  Udento 
esclarece  a  razão  traiisfiguravel,  (luando  suc- 
cede  lerem  de  fazer  fallar  no  tlieatro  ou  no 
lomance,  um  personagem  concebido  sob  taes 
e  Uies  dados  psycliicos,  não  raras  vezes  tiave- 
rão  (jue  sacrificar  o  estylo  á  lógica  d'essas  fi- 
guras, na  mira  do  seguinte:  dar  a  cada  uma, 
pelo  dialogo,  uma  vida  independente — /içando 
elles  mesmos. 


desconhecido  mundo  de  creneis  e  couraças,  de  mysticis- 
mo  e  barbaria,  que  o  poeta  lhe  desenrola  deante?  Acaso 
o  seu  espirito  vae,  entre  tcrrifico  c  surpreso,  por  uma  ar- 
caria de  séculos,  té  aos  arcanos  da  epocha  que  o  drama- 
turgo lhe  tenta  visionar?  Pois  não  é  verdade  que  tudo 
aquillo  é  uma  pintura  de  muralha,  com  vermelhos  e  azues, 
esparsos  com  mão  destra,  acredito,  mas  mão  de  broxante, 
que  desconhece  por  completo  a  grande  arte,  e  Hilseia  as , 
perspectivas  da  vida  vigorosa  ?  O  leitor  gosta  da  peça. 
Palavra,  e  eu  também!  Mas  veja  como  isto  é  typico :  eu 
que  nunca  mais  posso  esquecer  o  final  do  primeiro  acto 
do  Frei  Lui;^,  e  a  scena  dos  retratos  no  palácio  d'apar  S. 
Domingos,  eu  que  me  não  lembro  do  Rei  Lear  sem  desar- 
ranjos de  vida  cerebral,  saio  sempre  dos  alexandrinos  dos 
nossos  dramaturgos  modernos,  com  vontade  de  cear — sem 
mais  me  lembrar  da  Leonor  Telles  servindo  marmellada 
aos  cortezãos,  nem  mais  querer  saber  d'aquelle  pobre  du- 
que de  Vizeu,  que  expiou  a  punhal,  coitado,  por  fallar 
tanto,  em  verso. 


os  GATOS  25 

lia  romances  de  Cainillo,  sem  ir  mais  lon- 
ge, os  Mijslerios  de  Fafe,  onde  creaturas  do 
povo  dialogam  entre  si  como  personalidades 
vivas  e  pensantes,  e  não  obstante,  marcadas  ao 
canto  com  a  garra  do  escriptor  genial  que  lhes 
deu  vida. 

O  dialogo  d'ellas  reproduz  maravilhosa- 
mente a  cathegoria  social  e  moral  a  ([ue  per- 
tencem—  sabe  á  profissão,  sabe  á  religião, 
sabe  á  paysageni,  sabe  ao  vocabulário  local  e 
ás  tradicções — mas  permanecendo  povo,  é  ain- 
da assim  litterario,  e  mais  ainda,  camillesco. 
Aqui,  a  personalidade  do  artista  é  tão  forte, 
que  mesmo  quando  ella  quer  apagar-se  por 
traz  das  almas  que  modela,  e  das  vozes  a  que 
dá  hausto,  lá  se  escuta  sempre,  em  surdina, 
aquella  mysteriosa  pe(|uena  voz  que  Bourget 
diz  se  transfilfra  ás  palavras,  no  acto  d'escre- 
ver.  Bem !  vamos  agora  ao  theatro,  e  dos  es- 
criptores  dramáticos  vivos,  venha  d"ahi  um 
que  tenha  estylo.  Queiram  lèr  as  peças  em 
prosa  de  Salvador  Marques,  de  Gervásio  Lo- 
bato, de  Marcellino  Mesquita  e  d'Abel  Acácio; 
e  dizer-me  depois,  se  da  obra  d'algum  dos 
quatro,  salta  coisa  que  cheire  á  consciência 
das  responsabilidades  do  escriptor,  u'este  ramo 


3t»  OS  GATOS 

especial  (la  arlc  (l'escrever.  Já  iiãu  digo  da  ve- 
rosimilliaiiça  psychologica  das  figuras,  que  isso 
ficou  tocado,  embora  ao  de  leve.  Balo  só  n'esle 
ponto:  se  os  escriptores  em  questíio,  e  outros 
que  me  esqueci  de  citar,  souberam,  nos  dramas 
e  comedias  dados  á  scena,  encontrar  o  estylo 
próprio  dos  seus  assumptos.  A  Pcrulu,  de 
Mesquita,  uma  l)oiiila  fracção  littoraria  da 
Dantd  diis  Cameiiiui,  é  tlialogada  toda  n'um  es- 
tylo tão  chronica  de  modas,  tão  ridum  roze, 
que  até  em  casa  da  snr.«  Kugenia  Smilli  faria 
riso. 

Na  ClfuiiliiKi  d'Abel  Acácio,  os  mais  insi- 
gnificantes |)crsonagens  dizem  pbrases  tão 
guind.ilas,  Ião  csrriplas,  que  o  próprio  Valen- 
ças  mal  ousaria  empregal-as  nos  seus  relató- 
rios dos  Albergues  Nocturnos.  E  se  acontece 
aquecei-  o  dialogo,  o  espectador  presta-Ihes 
ouvido,  mas  sem  se  illudir  com  a  identidade  dos 
personagens  dramáticos,  e  só  deliciando-se 
como  quem  assiste  a  um  debate  de  folhetinis- 
tas, no  Salão  da  Trindade.  (I>> 


(b)  Entre  estas  generalidades  ásperas,  ha  ainda  assim 
logar  para  alguns  apartes.  Ex:  nos  Dois  Dramas,  de  Lino 
d'Assumpção,  lia   uma  peça,  Eiui,  cuja  acção  não  tenho 


27 


Por  aqui  se  vé  quão  longe  os  escriptores 
de  theatro  vivem  da  sociedade  de  que  eiles 
pretendem  ser  os  censores  e  os  educadores,  e 
se  adevinha  tinão  ephemero  deva  ser  o  influxo 
morai  que  as  suas  obras  devam  de  produzir  na 
multidão.  O  theatro  assim  concebido,  como  uma 
instrumental  do  phrases  litlerarias,  tocada  n'imi 
teclado  de  figuras  de  pbantasia,  movendo-se 
n'um  fundo  d'eirabula(,"ão  sem  lógica  nem  cri- 
tica, o  theatro  quazi  que  não  passa  d'uma  en- 
tretenga  pueril  para  creanças,  facilmente  sub- 
stituível pela  mnrioDetle.  Hoje  o  talento  d'es- 
crever  (no  theatro  mais  do  que  em  qualquer 
outra  forma  litteraria)  rezide  todo  na  arte  do 
detalhe  justo,  que  só  é  completa  quando  a 
maior  somma  d'observação  psychologica  dire- 
cta, se  compendia  na  menor  somma  de  phra- 
se  escripla.  e  quando  a  saliência  muito  viva 
da  palavra  cede  antes  logar  a  uma  meia  tinta 
lúcida,    a    esse   sublinhamento   entre  doce  e 


presente,  mas  de  cujo  dialogo  me  íkaram  impressões  mo- 
delares, sob  os  respeitos  de  ser  um  justo  meio  termo  entre 
o  familiar  e  o  litterario,  entre  o  dialogo  tallado  e  o  dialogo 
escripto,  precisamente  o  ideal  da  Ibrma,  nas  peças  d'ob- 
servação. 


28  os  GATOS 

irónico,  que  tanto  se  comprnz  côas  complexas 
orsnnlsaçõcs  do  nosso  tempo.  Quem  percorrer 
o  llioatro  fraiicez  contemporâneo,  reconhece 
isto:  no  dialogo,  os  etíeitos  de  força  são  quazi 
sempre  etíeitos  de  mumce,  e  com  iim  adjectivo 
no  seu  logar,  uma  visão  resurge  na  mente  do 
espectador,  tão  desmesurada  e  trágica,  como 
se  o  artista  a  tivesse  feito  saltar  em  bandadas 
de  metaplioras  violentas. 

Abordando  as  peças  d'assunq)lo  épico,  his- 
tórico, ou  simplesmente  lyrico,  o  vicio  é  idên- 
tico: uma  superfectação  d'estylo,  que  não  con- 
segue disfarçar  a  pobreza  dos  meios  picturaes 
do  dramaturgo.  Tem-se  perguntíido  qual  a  ra- 
zão dos  nossos  dramaturgos  históricos  toma- 
rem de  preferencia  o  verso  para  expressão  dos 
seus  espantos  trágicos.  Não  é  por  certo  a  tra- 
dicção  que  os  força.  E  se  procurarem  bem, 
acharão  isto  —  uma  necessidade  instante  d'ar- 
tificio,  auxiliar  da  illusão  scenica,  que  a  prosa 
com  certeza  lhes  não  consentiria.  Com  as  tin- 
tinabulancias  da  rima,  a  catadupa  das  meta- 
plioras, e  a  largueza  do  alexandrino  puxando 
ás  parelhas,  a  tirada,  o  espectador  inal  tem 
tempo  para  se  aperceber  do  mais  que  lalta  à 
obra,  lie  verdadeiramente  artístico  e  inspirado. 


os  GATOS  29 

Queiram  percorrer  por  exemplo  aquelle  se- 
guiulo  acto  do  Duque  de  Vizeu,  em  que  se  trata 
da  conjuração  contra  o  monarcha.  Não  ha  uni 
só  d'aquelles  conspiradores,  o  mais  indómi- 
to, que  pareça  ter  consciência  do  perigo  que 
corre,  vindo  alii,  e  que  pareça  estar  ao  facto 
dos  gravissimos  assumptos  pendentes  das  re- 
soluções da  assemblea.  Tamanlia  paroiice  baba 
dos  lábios  de  todos,  e  tão  supérfluas  explana- 
ções litterarias  elles  teem,  ao  menor  pretexto, 
sobre  os  dotes  physicos  e  moraes  uns  dos  ou- 
tros, que  o  dramático  d'esse  acto  cessaria, 
apenas  os  homensinhos  se  decidissem  a  fallar 
em  pi'osa.  Já  lhes  disse  (c),  e  escuso  de  fi-isar 
mais  este  ponto,  que  em  assumptos  épicos,  a 
noção  do  real  não  corresponde  exactamente  á 
dos  assumptos  contemporâneos.  Aquelle  real, 
em  parte,  é  o  real  visto  nos  documentos  da 
epocba,  restaurado  á  custa  do  processo  liisto- 
rico,sem  duvida,  mas  accrescentado  por  ess'ou- 
tro,  o  real  épico,  que  é  a  amplificação,  por 
via  das  faculdades  poéticas,  de  personagens 
ou  de  factos  cuja  perspectiva  seja  necessano 
exagerar,  para  obter  no  quadro  eíTeitos  gran- 

(c)     Pag.  //. 


"30  os   GATOS 

iliosos,  isto  sem  falseio  ;i  loííica  da  acrão,  nem 
(liiebra  taiii  pouco  da  viMusiiiiilliaiiça  liistorica 
fias  figuras.  Obras  d'esU'  fôlego  leeni  todas 
nina  base  humana,  é  claro,  mas  não  podenn 
deixar  d'exhalar-sc  n'nm  vago  poético,  e  de 
respirar  uma  atniosphcra  d'epopeia,  absoluta- 
mente convencional  no  campo  arlislico.  O  es- 
tylo  (jue  pois  lhes  corresponde,  não  pôde  ser  o 
tecido  de  palavras  incisivas,  cort«do,  brusco, 
subentendido  «piasi,  resabendo  á  seccura  iró- 
nica (las  almas  de  hoje,  carregado  de  desdéns 
e  de  negócios,  (jne  tão  bem  traduz  nas  peças 
de  Dumas  filho,  o  espirito  scientifico  e  com- 
mercial  do  fim  do  sendo.  .Mesmo  fjiie  essas 
peças  se  escrevam  em  prosa,  ha-de  ser  um 
e.sti/lu  iioetko.  .Mas  poético,  como?  Ao  modo 
antigo,  deixando  a  rima  puxar  a  rima,  e  a 
apostroplie  rethorica  desencadear  vagalhões 
em  qne  a  intensidade  trágica  faz  naufrágio? 
Por  certo  não  :  o  successo  pallido  dos  últimos 
diamas  históricos,  (|ue  dtirnonslraram  a  exi- 
guidade de  recursos,  quer  psychologicos,  quer 
liltenuios,  dos  nossos  poetas  dramáticos,  é 
prova  cabal  de  que  os  antigos  artifícios  da 
forma  perdei^am  a  força,  e  nem  mesmo  já  são 
sup|»ortaveis  como  reminiscência  archeologica. 


06  GATOS  31 

A  educação  modificou  a  vibralilidade  interior 
dos  indivíduos ;  todos  os  antigos  meios  d'im- 
pressionar  perderam  a  efficacia.  O  riso  e  a  la- 
grima iuda  são  provocáveis  na  turba,  mas  por 
meios  diversos  da  tinida  antiga,  que  é  abso- 
tameníe  necessário  exhautorar.  Ora,  os  nossos 
dramaturgos  históricos  n'este  ponto  estão  ain- 
da no  ramerrào  discursivo  do  século  xvii  (em 
que  a  tragedia,  toda  narrada,  fazia  passar  os 
lances  de  forç^a  em  bastidores,  para  não  in- 
commodar  excessivamente  quem  assistia  á  re- 
presentação) e  cumpre  dizer  que  se  a  sua  fal- 
ta de  habilidade  é  flagrante,  no  apparelhar 
d'uma  peça  de  theatro,  a  sua  incultura  1  lite- 
rária, ao  vestil-a,  chega  a  ser  quasi  uma  ver- 
gonha. Façam-se  os  senhores  lèr  a  distancia, 
versos  de  três  ou  quatro  tragedias  porlugue- 
zas  modernas,  d'auctor  ditTerente,  e  vejam  se 
são  capazes  de  me  dizer  depois,  pelo  relevo 
esthetico  das  passagens  lidas,  o  nome  do  poe- 
ta dramático  a  quem  ellas  pertençam.  Por 
mim  confesso-me  incapaz  d'uma  tal  prova. 

Tanto  a  maneira  de  lançar  o  verso,  de  con- 
ceber a  metaphora,  incrustar  a  imagem,  achar 
a  rima,  são  idênticas,  incolores,  impessoaes, 
incaracteristicas,   que  impossível   se   me  faz 


32  os  GATOS 

reconhecer  a  dislancia.  o  aiictor  prcsumivel 
de  qualquer  d'a(|uellas  obras.  Dir-se-hia  que  ó 
um  poeta  único  que  as  escreve,  e  que  esse 
poeta  é — Ioda  a  gente. 


AVISO 


Ficará  no  próximo  fasciculo  concluí- 
do este  estudo  sobre  o  theatro.  A  ampli- 
tude d'elle,  não  nol-o  deixou  encerrar 
no  pequeno  espaço  de  32  paginas. 


FIALHO  DALMEIDA 


OS  GATOS 


PUBLICAÇÃO  SE5IANAL, 
DINQUERITO    Á    VIDA   PORTUGUEZA 


M"  22— 31  de  Dezembro  de 


SUMMARIO 


Ainda  o  estylo  em  litteratura  dramá- 
tica—  REQUISITOS  DO  ESTYLO  HISTÓRICO:  ERU- 
DIÇÃO, SENTIMENTO  DO  ANTIGO,  IDEAL  POÉTICO, 
E  SELECÇÕES  DE  CASTA  E  D'EXISTENCIA  —  DE 
COMO  OS  AMANUENSES  SUNCA  PODERÃO  SER 
VISIONÁRIOS  D'aLMAS  E  DE  COISAS— A  BELLEZA 
technica  no  THEATRO,  E  INAUDITISMOS  D'ELLA 
NA  POESIA  CONTEMPORÂNEA — OS  RENOVADORES 
DA  PHRASE  EM  PORTUGAL:  SUAS  ESCAPADAS  NO 
GALLICISMO,  E  ANTAGONISMO  FEROZ  C0'A  ES- 
COLA VERNÁCULA — MISSÃO  DO  ESTYLISTA  NO 
ACTUAL  MOMENTO — EVOLUÇÃO  DA  LÍNGUA  UT- 


II  os  GATOS 

TEBARIA,  EM  FACE  DAS  ACQUISIÇÕES  SCIENTIFI- 
CAS  MODERNAS,  E  SUA  NECESSIDADE  DE  FORÇAR 
A  SYNTHAXE  PARA  ATTINGIR  O  MÁXIMO  D'EX- 
PRESSÃO  —  DE  COMO  A  LÍNGUA  PORTUGUEZA  É 
DURA  E  POBRE,  E  NECESSIDADE  DE  A  desarli- 
CUlar,  SEM  PREOCCUPAÇÕES — TRANSITÓRIO  PA- 
PEL DOS  ESTYLISTAS:  BALSAC  E  OS  GONCOURTS, 
PRENUNCIANDO  A  MODERNA  PROSA  DE  ROMAN- 
CE— PALAYRAS  QUE  SE  GASTAM  E  PALAVRAS 
QUE  SE  DEFORMAM  —  VELHICE  PREMATURA  DE 
GARRET,  E  CREAÇÃO  D'UMA  POÉTICA  NOVA  — 
JUNQUEIRO,  CEZARIO  VERDE,  GOMES  LEAL,  AN- 
TÓNIO FEIJÓ— A  POESIA  EM  OBRAS  DE  PEQUENO 
FÔLEGO;  SUA  INCOMPATIBILIDADE  NAS  COMPO- 
SIÇÕES D'ENF0RMATURA  máxima,  COMO  O  DRA- 
MA HISTÓRICO — O  QUE  É  O  ACTOR?  COMO  SE 
ESTUDA  UM  PAPEL?  —  CONCEPÇÃO  MENTAL  DO 
PERSONAGEM,  E  SUA  RESTITUIÇÃO  SCENICA,  POR 
VIA  DE  MANOBRAS  EXTERIORES — DO  PIGTORESCO 
OU  ESTUDO  EXTERNO  DO  PERSONAGEM  :  VOZ, 
ARTICULAÇÃO,  DICÇÃO,  MOBILIDADE  E  PHISIOLO- 
GIA  ARTÍSTICA  DO  OLHAR,  ARTES  DE  CARACTE- 
RISAÇÃO  E  GUARDA-ROUPA,JOGO  DE  SCENA,  MÍ- 
MICA,   ETC. 


31  de  Dezembro. 

Porque  a  linguagem  do  theatro  histórico 
moderno,  fa)  nem  por  os  themas  que  elle  esco- 
lhe serem  recuados  e  lendários,  deve  deixar  de 
ser,  como  para  o  drama  de  costumes,  uma 
liugua  d'acção,  vivaz  e  cutilante,  embora  re- 
(luintatlaraente  technica  e  litteraria,  embora 
poética,  embora  épica.  Os  que  não  padecerem 
da  visão  interior  das  figuras  do  seu  drama, 
bem  grandiosa,  bem  mordente,  claro  está  que 
se  não  aperceberão  d'ellas  o  sufficiente  para 


(a)  Pede-se  ao  leitor,  queira  passar  pela  vista  as  pa- 
ginas do  fascículo  anterior,  que  faliam  do  estylo  em  thea- 
tro. As  que  vão  ler-se,  completam  a  minha  ideia,  sobre  o 
assumpto. 


;is  lazer  fallai-  c  actuar  como  seres  vivos.  Por- 
tanto, seiulo  a  concepção  liislorica  má,  comoaf- 
firmámos,  como  poderia  ser  excellenteo  eslylo, 
que  é  a  representação  fa liada  d'essa  concepção? 
De  mais,  logo  se  vé  que  não  podem  ser  me- 
dimiis  du  historia,  evocadores  d'epociias  de- 
sapparecidas,  Chi'istos  ressiirgislas  dos  gran- 
des Lázaros  trágicos  d'algum  dia,  creatiiras 
de  trabalho  e  domesticidade,  como  os  nossos 
actuaes  poetas  dramáticos,  qiiazi  todos  ama- 
nuenses e  alfacinhas,  eivados  de  peijucnas  es- 
treitezas  de  bolsa  e  de  morada,  e  rescendendo 
portanto  aos  pontos  de  vista  glabaros  do  ga- 
nha-pão.  Ê  vér  os  seus  prazeres  e  os  seus  es- 
tudos. Da  historia,  pouco  mais  conhecem  do 
que  o  .Moreira  de  Sú  e  o  iiispo  de  Silves.  Da 
natureza,  das  paysagens,  do  mar,  do  ceu,  dos 
homens,  aspiram  só  o  intluxo  esthelico  que 
lhes  olTerece  a  ílua  do  Ouro,  á  hora  da  bella 
sociedade  ir  p'ra  Avenida.  Inda  que  a  educa- 
ção lilteraria  d't!lles  fosse  prospera,  os  defeitos 
d'origem  negarlhes-hiam  sempre  uma  visão 
de  coizas,  fulgida;  seriam  almas  poéticas,  mas 
sem  problema,  sonhadores  de  mundos  sem  my- 
santropia  fecunda,  nem  mysterio,  burguezes 
incapazes  de  traduzir  as  violentas  damnações 


os   GATOS  5 

(los  lieroes  e  dos  tyrannos,  o  eiilhusiasmo  dos 
inartyies,  os  mysticisinos  medievos  do  amor 
sensual,  e  todo  o  sagrado  feivor  dos  grandes 
fanatismos ! 

Digam  a  um  caixeiro  de  tenda,  mesmo 
erudito,  (|ue  lhes  exprima  em  verso,  D.  João 
I.  Por  muito  talento  que  o  caixeiro  possua,  o 
seu  D.  João  I  ha-de  ser  por  força  o  elogio  his- 
toiico  do  patrão. 

Isto  peio  que  respeita  á  inlluencia  que  o 
assumpto  da  peça  tem  sobre  o  poder  convin- 
cente da  linguagem.  Mas  todos  sabem  que  a 
expressão  tem  duas  eloquências,  uma  que  o 
assumpto  lhe  presta,  outra  que  propriamente 
lhe  vem  da  aposição  tecimica  dos  lermos,  e 
da  sua  construcção  grammalical.  Ora,  (jueiram 
encarar  ainda  por  este  lado  profissional,  os 
poetas  dramáticos  que  ahi  temos.  Vimos  já 
como  elles  não  eram  visionários  d'almas  e  de 
coizas:  veremos  agora  como  tandjem  não  são 
visionários  de  palavras.  Todas  as  formas  d'arte 
teem  a  sua  belleza  tecimica.  Na  carpinteria  do 
Iheatro,  a  belieza  tecimica  pcu-  exemplo  con- 
siste n"uma  habilidade  especial  de  cortar  as 
situações,  e  de  regular  pelas  entradas  e  sabi- 
das dos  personagens,  não  somente  a  nitidez 


6  os  GATOS 

(los  grupos  plásticos  em  scena,  como  tmiibem 
a  coiulncçào  |)erlci(a  da  intriga  atravez  o  dia- 
logo fallado. 

Ha  nas  peças  de  Sardou  combinações  d'esta 
nalnreza,  (|ue  aos  profanos  escapam,  e  (]ue  os 
iniciailos  reputam  jjor  verdadeiras  obras  pri- 
mas (rofficio,  e  maravilhas  iinicas  de  snvoir 
fidre.  O  (pie  é  na  poesia  a  belleza  teclmica?  K 
a  sciencia  de  valores  euijlionicos,  a  arte  de  fa- 
zer as  cadencias  syllahicas,  de  contrapor  as  ri- 
mas, e  ifavivar  por  artilicios  de  syntbaxe  a  si- 
gnificação colorisla  das  palavras.  Toda  a  gente 
coidiece  os  schismas  a  ipie  a  belleza  technica 
modernamente  tem  levado  certos  poet;is  fran- 
cezes,  de  (pie  v.  correspondente  em  Coimbra  o 
meu  estravagante  amigo  Eugénio  de  Castro. 
Alguns,  de  preoccupados  co'a  nmsica  syllabi- 
ca,  d'enlretidos  a  caçar  sons  (pie  hypnotisem 
o  ouvido,  chegam  a  esí|uecer-se  de  (pie  a  toda 
a  phrase  corresponde  um  sentido,  e  de  (pie  as 
palavras  fossem  feitas  para  exprimir  ideias, 
(pie  não  effeitos  orcliestraes.  No  theatro,  uma 
tal  monomania  tem  levado  os  artistas  a  incrus- 
tar de  joalherias  raras,  figuras  de  (pie  elles 
mutilam  a  anal(miia,  de  pi-ojjosifo,  por  uma 
e|)liemera  homenagem  ao  loxr  de  force.  Claro 


os  GATOS  7 

está  que  isto  é  o  extremo  exagero  d'esse  furor 
de  perfeição  plástica  em  que  moiieruamente 
se  esgotam  os  homens  d'arte,  que  prohibidos 
de  visionar  a  vida,  nas  entranlias  d'uni  typo  ou 
d'um  grupo,  suprem  pelas  magniticencias  da 
revestidura  exterior,  o  que  lhes  falta  d'evoca- 
ção  psychoiogiea. 

Eutre  este  inauditismo  exótico  porem,  e  a 
forma  decrépita  e  chocha  dos  nossos  actuaes 
poetas  dramáticos,  sem  duvida  ha  logar  para 
uma  continua  e  fecunda  renovavão  da  lingua- 
gem, pelo  numero — pelo  numero,  que  não  é 
só  o  segredo  do  encanto  no  verso,  senão  está 
tíizendo  da  prosa  contemporânea,  exemplo  a 
de,  Flauhert,  uma  orchestra  magnifica  e  incom- 
parável. Exaltemos  todos  esse  furor  de  renova- 
ção, santelmo  d'arte,  sem  o  qual  de  ha  muito 
SI'  teriam  obcecado  as  gerações,  e  estaria  mor- 
ta a  arte  d'escrever. 

Kxaltemol-o  sobretudo  nas  lettras,  sem  dar 
ouvidos  aos  que  pregam  ([ue  o  primeiro  dever 
d'um  escriptor  nasc(>nte,  é  lèr  os  clássicos,  e 
cingir  alforma,  quanto  ])ossivel,  á  dos  antigos 
escriptores. 

Nada  nefasto  a  um  prosador  ou  a  um  poeta 
em  debute,  como  a  adopção  iucoudicional  d'este 


8 


conselho.  Os  qiio  o  lecm  fiado  ;i  mocidade,  cu 
são  cretinos  (|ue  trazem  dos  pães,  de  cór,  este 
fetichismo  banal  pelos  velhos  livros,  ou  então 
escriptoies  bictiosos,  incapazes  de  progresso, 
e  que  pretendem  amarrar  os  mais  á  manje- 
doura onde  elles  se  estiolam  a  rilhar  a  palha- 
da clássica.  Acresce  que  necessitando  a  littera- 
tura  dVibservar  e  retlectir  as  im|)ressões  da 
vida,  e  sendo  a  actual  uma  amalgama  d'inte- 
resses  e  luctas  d'antes  ignoradas,  uma  feií-a 
franca  d'industrias  c  sciencias  novas,  de  sen- 
sações antípodas,  dMdeaes  Ibrmilhantes  d'exo- 
tismo  —  conhecimentos,  aspirações,  moderni- 
dades emfim,  (pie  nós  não  inventámos,  e  cuja 
terminologia  foi  necessário  expropriar  dos  pai- 
zes  onde  ellas  nasceram  —  a  lingua  (}ue  neces- 
sariamente lia-de  ser  o  instrumento  d'expres- 
são  de  todo  aquelle  tumulto,  claro  que  não  pôde 
ser  bebida  no  vernáculo,  senão  incrustai'-S(% 
pelo  menos  por  agora,  d'estrangeirismos.  A 
fornia  eterna  não  existe.  Á  sensibilidade  de 
cíida  epoclia  correí;ponde  uma  lingua  e  uma 
technica  originaes,  tanto  mais  complicadas  e 
perfeitas,  (juaiito  mais  nos  approximemos  do 
presente.  A  este  respeito,  ([uaiido  os  conse- 
lheiros  da   litteratura  faliam  em   reformar  o 


os  GATOS  9 

thealro  portuguez,  pela  adaptação  de  Gil  Vicen- 
te á  scena  contemporânea,  a  minha  vontade  é 
correl-os  da  critica,  ao  ciichação,  porque  essas 
Ciivalgaduras,  ou  não  conhecem  o  espirito  do 
seu  tempo,  ou  não  leram  de  certo  Gil  Vicente. 
Uma  coisa  que  muitos  teem  pensado,  e 
poucos  dito,  é  a  seguinte:  a  antiga  língua  por- 
tugueza  é  mais  pobre  do  que  se  cuida.  Tem 
quando  muito,  synonymos,  mas  pouquíssi- 
mas qualidades  que  a  tornem  efficaz  para 
exprimir  um  certo  numero  d'eslados,  paysa- 
gens  e  emoções,  sem  recorrência  ás  línguas 
paralellas.  Por  exemplo,  carece  absolutamente 
de  maleabilidade,  e  como  cór,  se  vigorosíssi- 
ma para  os  etleitos  violentos,  e  para  os  con- 
trastes, é  impossível,  sem  a  desai-ticulai-,  obter 
com  ella  etTeitos  de  nuance,  os  mais  preciosos 
agora  em  bellas-lettras.  Comprehende  alguém 
uma  paysagem  de  hoje,  feita  á  maneira  das 
lambidas  descrípções  da  Historia  de  S.  Do- 
mingos de  Bemjicú'?  A  prosa  de  Lopo  de  Sousa 
Coutinho,  alguém  a  toleraria  hoje,  applícada  á 
consagração  das  façanhas  que  os  batalhões 
académicos  hão-de  pi-aticar,  salvo  contraor- 
dem,  em  Moçambique?  Que  se  respeite  quanto 
possível   o  fundo  étnico  da  língua,  nas  suas 


10  os  GATOS 

possíveis  relações  com  as  necessidades  da  ex- 
pressão contemporânea,  aceito  e  applaiido;mas 
som  sacrificar  um  só  instante  as  minudencias 
da  aiiaiyse,  e  o  pictoresco  da  visão  evocada  pe- 
las [laiavras,  ás  mesipiiidias  peias  da  ortoepia 
antiga,  (!  aos  na  sua  maior  parle  hnnaes  mode- 
los clássicos.  Percamos  por  algum  tempo  as 
preoccnpações  da  posteridade.  Estamos  n'um 
periodo  em  (pie  toda  a  obra  d'espii-ito  é  tran- 
sitória, porrpie  ella  é  ao  mesmo  tempo  o  fim 
(Vum  século,  e  o  começo  d'outro,  bem  diíle- 
renle.  Os  esforços  de  nós  outros,  sábios  e  ar- 
tistas, nada  podem  mirar  de  cristallograplnco 
e  d'eterno.  São  labores  de  trajjeiro,  lufa-lufas 
d'accumnlação  sem  reconip(Misa,  informes,  obs- 
curas, desesperadas,  archi-doid;is,  de  que  só 
as  gerações  vindoui-as  gozarão  fama  e  i)roveito. 
Deixem  portaido  entrar  na  lingua  poríugueza, 
pela  birra  d'alguns  trabalhadores  reputados  de 
não  (juererem  esci'ever  portiignez  correctamen- 
ti'.,  todo  esse  pandemonio  de  termos  arrevesa- 
dos,  d'expressôes  teclmicas  mas  sem  cartas  de 
naturalisacão  definidas  por  eniípianlo,  de  phra- 
ses  sem  eslructuragranunatical  colhida  nos  chro- 
nistas,  porque  esse  trabaliio  é  sagrado,  mesmo 
não  agradando  aos  puros  gulosos  do  portuguez 


os  GATOS  11 

sem  niacuia  nem  mistura.  Sim,  esse  trai)alho 
é  sagrado,  pelas  inexhauriveis  ri(|uezas  que  in- 
troduz nos  thezouros  da  expressão,  pela  varie- 
dade insólita  de  rythmos  novos  que  transfil- 
tra,  e  íinalniente  pela  maravilhosa  agilidade  e 
elegância  que  em  parte  já  conseguiu  meter  no 
periodo  portuguez,  originariamente  rigido  e 
monótono,  tornando-o  coUante  como  uma  pel- 
lica,  a  todas  as  cinzeluras  da  ideia,  c  a])to,  como 
clle  d'antes  não  era,  a  Iodas  as  mimicas  d  i 
alma,  e  a  todas  as  microscopias  d;i  impressão. 
Certo,  eu  não  me  illudo!  O  portuguez  lit- 
terario  de  hoje,  como  eu  o  entendo,  não  é  lín- 
gua em  que  se  escrevam  livros  para  escolas, 
nem  trabalhos  que  jimtar  aos  annaes  littera- 
rios  dos  grandes  séculos.  ÍMas  nem  por  isso 
os  afrancezados  que  actualmente  \\\e  prestam 
a  plasticidade  gracil  que  elle  não  tinha,  nem 
por  isso  os  pliantasistas  que  o  incrustam  de 
vocabulários  d'arles  novas,  sciencias  e  indus- 
trias novas,  devem  de  ser  postos  de  banda, 
como  charlatães  dignos  (Vapupo.  Quando  um 
dia  se  fizer  na  lingua  portugueza  a  transfusão 
juvenil  que  é  necessária,  e  (Tesse  cabos  que  é 
a  linguagem  de  hoje,  brotar  uma  lingua  nova, 
vigorosíssima,  alada,  cheia  de  buzinas  e  tlau- 


1-2 


tas,  de  tempestades  e  cicios,  então  se  verá  como 
o  papel  d'aquclles  oliscuros  obreiros  foi  cons- 
ciente, e  (jue  por(;ão  d'imaj;iuativa  e  ficção 
poética  eiies  lograram  transtiltar  na  antiga  lín- 
gua, mais  própria  para  discuisos,  do  ipie  para 
livros  d'analyse  e  de  visão. 

Todas  as  epochas  litteraiias  de  resto  teem 
lido  d'estes  incrnstadores  e  mosaistas,  seden- 
tos (riaedito.  (Juem  percorrer  as  Vingens  de 
Clarret,  reconheceu  légua,  na  ductilidade  ma- 
ravilhosa dos  seus  períodos,  na  diversidão  dos 
rythmos,  na  procura  fugaz  de  certos  modos  de 
dizer,  profundas  suggestões  da  litteratura  fraii- 
ceza  e  ingleza,  trazidas  do  exilio.  Quando 
em  Françíi  vieram  a  lume,  lia  trinta  annos,  os 
primeiros  romauces  dos  Goncourts,  a  sua  for- 
ma atormeutada,  a  sua  dolorosa  procura  do 
epitlieto  raro,  e  o  sen  tresvio  proposital  dos 
rythmos  consagrados  á  factura  excessivamente 
grammatica  do  período,  subleváramos  críticos, 
por  forma  ipn;  a  injuria  pessoal  supriu  apo- 
pleticamenle  a  discussão  scíentific^i,e  critico  ne- 
nhum, (jtu'  ao  mesmo  tempo  fosse  um  ((uazi 
nada  phihilogo,  soube  explicar  a([uelle  esforço 
(los  dois  artistas,  por  essa  lei  vital  da  lingua- 
gem (|ue  ensina  (pie  as  palavras  estão  snbjeiUís 


;i  deteriorações  ort;anicas,  como  coizas  vivas, 
lêem  periodos  de  plenitude  e  de  regresso,  e  que 
o  uso  as  púe,  e  a  velhice  lhes  faz  perder  o  va- 
lor circulante,  d'onde  a  necessidade  de  as  re- 
novar e  dispor  constantemente  em  grupos 
inéditos,  e  de  fazer  com  ellas  orpheons  que 
mordam  bem  no  ouvido.  Todos  se  recordam 
talvez  da  critica  de  Sainte  Beuve,  ao  livro  de 
lialsac:  Memoires  de  deuxjeunes  marees,  biblia 
d'amor  que  as  mulheres  devem  lèr  antes  da 
imitação  de  Christo,  e  acerca  de  cuja  essência 
poética  e  de  cujo  estylo,  não  ha  mais  contro- 
vérsias, lioje  em  dia.  É  imi  livro  de  coração  e 
de  linguagem  revelada.  Pode-se  escrever  mais 
pintado,  mas  a  perfeição  alli  chega,  e  aquillo 
V  eterno  como  o  mármore.  Pois  meus  amigos, 
a  opinião  da  critica  coeva  foi  que  o  assumpto 
(]as  Memoires  de  deux  jeiínes  mnriécos,  era  im- 
moral,  e  quanto  ao  estylo,  pura  aravia  de  co- 
cotte...  mulata!  Decorridos  trinta  annos,acha-se 
o  seguinte:  toda  a  moderna  prosa  de  romance, 
deriva  de  Balsac  e  dos  Goncourts,  em  linha 
recta,  como  de  renovadores  ubérrimos  e  magni- 
ficos.  Os  seus  exageros  tomaram  curso  na  lin- 
giia,  as  suas  phrases  arrevesadas,  a  sua  paixão 
do  termo  technico,  a  sua   monomania  do  de- 


14  os  GATOS 

Jalhfí  riifudu,  d  uulrance,  tudo  ishi  (|iie  d'an- 
tes  era  vicio  e  excrecencia,  campeia  ai^ora  en- 
tre os  mais  b(ilios  reriuisitos  tia  educarão  (Fum 
prosador,  e  mercê  dos  esforços  d'a(pielles  trcs 
grandes  visionisUis  da  palavra,  teem  os  fran- 
cezes  uma  lingua  rara,  desarticulada  até  -djan- 
i/lerie,  mordente  lí  viva,  e  |ireslando-se,  como 
neniiuma  outra,  admiravelmeide,  á  interpreta- 
ção dos  mais  subtis  camijiantes  do  pensamento. 

¥A\lre  nós,  alarga-se  o  horisonte  no  pro- 
cesso lillcrario,  a  observação  e  a  experiência 
são  proclamadas  meios  fundamentaes  da  con- 
cepção artística?  Pois  bem:  tanto  maior  ne- 
cessidade d'irmos  aos  mercados  da  Europa 
fazer  provisões  de  materiaes  reparadores,  vo- 
cabulário mais  technico,  e  typos  de  periodo 
mais  ligeiros  —  turbinas  e  cursores  emfim,  de 
que  a  nossa  prosa  ha  mister,  para  fazer  cur- 
vetear  sem  tropeço,  o  pensamento. 

É  por  exemplo  este  o  caso  d'Eça  de  Quei- 
roz, como  prozador  do  nosso  tempo.  Certo, 
não  é  propriamente  portuguez  o  que  elle  es- 
creve. Mas  em  que  lingua  queriam  os  senho- 
res que  elle  escrevesse  a  edição  definitiva  do  Pa- 
dre Amaro?  Na  prosa  de  Chagas,  na  prosa  de 
Latino  Coelho?  Os  (|ue  admittem  a  possibilidade 


os  GATOS  15 

(l'esle  absurdo,  não  fazem  a  menor  ideia  das 
incompatibilidades  recônditas  do  problema. 

Já  fiz  notar  que  as  palavras  se  gastara,  co- 
mo as  medalhas,  pelo  uso,  e  que  a  còr  das 
iibrases,  a  acção  do  tempo  a  dilue  c  murcha, 
coino  a  tinta  dos  estofos  e  dos  quadros.  Umas 
tornaram-se  bassas  e  soam  rachado,  outras 
tiirgeceram  de  sueco,  vaiãaram  outras  de  sen- 
tido, 6  enfim  algumas,  carregadas  de  nuances, 
furta-côres  como  certos  failles,  teem  de  ser 
usadas  só  de  longe  em  longe,  com  uma  estre- 
mada prudência  e  discrição.  De  vinte  em  vinte 
annos,  na  vertigem  de  vida  cerebral  que  tudo 
queima,  o  idioma  varia,  como  as  ideias,  ao 
sabor  de  milhares  de  correntes  indomáveis, 
vindas,  como  expliquei  já,  de  toda  a  banda,  da 
sciencia,  da  arte,  da  industria,  do  cosmopoli- 
tismo das  viagens,  dos  caprichos  da  moda,  das 
monomanias  gloticas  do  momento:  c  d'esta 
forma  não  ha  meio  de  sustar  que  entre  na 
lingua,  com  as  pérolas,  o  lodo  dos  enxurros, 
lodo  que  por  ser  lodo,  fertilisa  como  um  hú- 
mus, bem  apezar  dos  exorcismos  dos  gramma- 
ticos.  (b) 


(h)    A  vida  contemporânea,  com  os  seus  mixtos  de 
paixões  e  d'interesses,  com   as  suas  fortes  prcoccupaçõcs 


16  os  GATOS 

Quem  se  não  apercebeu  já,  lendo  por  exem- 
plo as  Folhas  Colndas  de  Garret,  ha  quinze 
annos  ainda  entre  nós  consideradas  como  a 
maravilha  lyriciJ  por  excellencia,  que  muitos 
(raquelles  versos  deixaram  de  ser  versos,  e 
([ue  foi  a  certeza  d'isso  que  deu  azo  á  forma- 
ção (fuma  poética  nova,  i-efulgente  nos  sone- 
tos d'Anthero,  nos  alexandrinos  de  Junqueiro, 
nas  descriptivas  de  Gomes  Leal  e  de  Cezario. 
nas  lyricas  de  António  Feijó  e  de  Queiroz  Ri- 
beiro, e  infinitamente  mais  longe  da  prosa  do 
que  a  poética  de  1830,  mais  escripta,  e  mais 
inacessível  portanto  ao  gosto  inculto  dos  que 
vivem  fora  d'uma  certa  iniciação?  f^:) 

Cada  vez  mais,  á  medida  que  esta  especia- 
lisação  da  lingua  poética  caminha,  o  vocábulo 


de  dinheiro,  tem  a  sua  melhor  forma  d'expressão  u'uma 
prosa  complíxa  e  multiplicf,  que  regi-tre  as  cifras  e  se  permil- 
ta  termos  ile  calão,  que  vd  ate  d  technicidade  scientifica,  e  no 
entretanto,  em  certos  momentos,  module  um  canto,  o;i  nos  mos- 
tre uma  paysagem.» 

P.  Botirgct. 

(c)  Os  elementos  d"esta  linguagem  especial  consistem 
principalmente  na  importância  da  rima,  e  na  v-ida  indepen- 
dente que  os  poetas  pretendem  dar  a  cada  um  dos  seu.-. 
versos. 


os   GATOS  17 

se  faz  raro,  e  o  rjihmo  libra  a  essência  do  ver- 
so, divorciando-o  da  prosa,  aos  transcenden- 
tes olympos  da  musica,  e  aos  processos  de 
relevo  da  pintura.  Ora,  qual  ha-de  ser  a  con- 
sequência lógica  d'estíi  marcha?  Ha-de  ser  a 
seguinte: 

—  Pelas  saliências  da  rima,  e  pelos  timbres 
exóticos  da  expressão,  a  poesia  torna-se,  ipso 
facto,  n'um  preciosíssimo  transmissor  d'obje- 
clos  visíveis:  e  eis  porque  os  paruazianos  t/(V- 
crevem  d'uma  maneira  tão  inimitável. 

—  Pelas  preciosidades  da  vunxce,  e  pel.is 
suggestões  patlieticas  em  que  o  espirito  do 
poeta  se  banha,  buscando  o  fdão  recôndito  da 
\ida,  a  poesia,  cessando  de  ver  largo,  para  vèr 
minucioso,  desvirilisa-se  ipso  facto,  e  como 
instrumento  d'indagação  psychologica,  só  pode 


«Quem  estudar  Victor  Hugo,  vê  que  as  palavras  es- 
senciaes  da  phrase,  collocadas  na  rima,  fazem  como  que 
uma  articulação  visível  ao  período  poético,  e  verá  também 
que  muitos  versos  formam  um  todo  isolado,  graças  ás  re- 
lações inesperadas  das  palavras,  á  harmonia  sabia  das  syl- 
labas,  e  á  escolha  d'um  vocabulário  mui  pictoresco.  São 
isto  processos  de  relevo,  que  refundem  o  velho  metal  da 
lingua  velha,  e  o  juvenescem  para  a  esculptura  da  poesia.» 

P.  'Bonreet. 


i8  os  GATOS 

applicar-se  á  dissecção  dos  pequeninos  pro- 
blemas interiores  —  razão  porque  os  nossos 
poetas  modernos,  os  maiores,  os  mais  divinos, 
só  estão  á  vontade  em  composições  de  poucas 
estrophes,  sempre  que  o  thema  d'ellas  seja 
psycliico. 

Comprehendcm  agora  como  estas  duas  pro- 
posições levam  a  esfoutra:  a  linguagem  poé- 
tica, pela  evolução  que  toma,  tornou-se  abso- 
lutamente incompatível  com  as  composições 
theatraes  de  grando  fôlego,  e  órgão  de  phan- 
tasia  e  de  capricho,  só  poderá  servir,  quando 
muito,  para  entreactos  de  frágil  mxabouço. 
Applicar  o  verso  moderno  á  litteratura  más- 
cula que  é  por  exemplo  o  drama  histórico,  de 
duas,  uma:  ou  é  dar  mostras  d'inconscicncia 
artística,  pela  mú  escolha  do  estylo,  e  pela  sua 
falta  d'adaptação  ao  assumpto;  ou  é  tomar  a 
poesia  como  artificio  distrahidor  de  faculdades 
dramáticas  que  faltam,  e  ficaram  ditas  no  fas- 
cículo anterior,  e  incorrer  por  consequência 
n'uma  suspeita  de  mesquinharia  e  má  fé,  in- 
dignas da  arte. 

E  assim,  ao  cabo  dVxplanações  já  longas 
para  as  dimensões  actuaes  d'este  pamphleto, 
e  que  ao  pueril  leitor  haverão  parecido  som- 


os  GATOS  19 

niferas,  chego  a  concluir  que  a  actual  littera- 
tura  dramática  original,  é,  no  flm  de  contai, 
quasi  tão  inferior  como  a  traduzida. 

O  afastamento  é  o  mesmo,  quer  na  coni- 
prehensão  do  assumpto,  quer  no  cultivo  da 
linguagem,  e  todo  o  meu  amor  das  lettras  pá- 
trias, posto  em  jogo,  pensando  bem  no  alcance 
d'essas  obras,  por  mais  que  faça,  não  tenho 
coragem  para  pedir  ao  publico  faça  por  ellas 
um  sacrifício.  A  primeira  coisa  que  lhes  falta 
é  o  talento,  e  depois  do  talento  falta-lhc  quazi 
tudo  o  mais.  Recapitulo  portanto  a  summula 
dos  fascículos  que  já  escrevi  sobre  o  theatro, 
e  concluo: 

—  Os  logares  são  mãos,  e  as  peças  são 
pcores.  Logo,  o  que  haveria  no  theatro  portu- 
guez  digno  d'interresse? 

— Haveria  os  actores. . . 

— Bem!  vamos  lá  aos  actores. 


O  que  é  um  actor?  O  esculptor  de  si  pró- 
prio, «um  pintor  de  retratos,  diz  Coquelin, 
que  depois  de  os  ter  pintado  com  a  sua  carne 
e  o  seu  sangue,  se  decide  alflm  a  animal-os  de 


20  os  GATOS 

vida  psycliica,  Iraiisfiltraniio-llies  nos  corpos  a 
sua  própria  alma.»  É  pur  coiisL'(|utMicia  o  actor 
um  ser  duplo,  licutro  de  cuja  carcaça  algnem 
concebe  o  personaiíein,  lai  como  elle  se  fez  no 
espirito  do  escriploi',  para  logo  outro  alguém 
traduzir  em  vulto,  a  concep(;ão,  serviudo-se 
para  isso  (raipiella  mesma  carcaça,  convenien- 
temente plasticisada  sob  os  seus  dedos  destros 
e  mandados.  É  um  ser  feito  de  dois,  e  vou  di- 
zer. Um  que  cria  e  ordena  como  mestre,  ow- 
tro  que  obedece  e  executa  como  servo.  Na 
creação  pois  d'um  typo  scenico,  ha  dois  labo- 
res inconfundíveis:  a  composição  mental  da 
figura,  e  a  modelação  e  restituição  d'ella  ao 
publico,  por  via  de  manobras  exteriores.  Se 
estudamos  o  primeiro,  liemos  (pie  desdobral-o 
ainda,  d'esla  forma : 

a  —  concepção  mental  do  personagem,  su- 
bordinando-a  ás  relações  e  afinidades  do  meio 
social  que  a  peça  synthetisa. 

b  —  concepção  do  personagem,  considerado 
em  si  e  isoladamente. 

Se  estudamos  o  segundo,  isto  é  a  restitui- 
ção da  figura  ao  publico,  o  papel  re])resentado, 
haveremos  que  considerar  lambem  os  seguin- 
tes pontos: 


os  GATOS  i2'l 

c  —  pictoresco,  ou  o  estudo  exierno  do  per- 
sonagem. 

(i — vóz,  articulação,  dicção,  e  olhar. 

e — caracterisação  e  vistuario. 

/"^jogo  de  scena,  mimica,  etc. 

g — justeza  e  unidade  no  personagem,  etc. 

O  especificar  detalhadamente  cada  um  d'es- 
tes  grupos  de  factores  artísticos,  a  que  o  actor 
tem  d'obedecer,  e  de  cuja  observância  total 
sae  a  creação  scenica,  inteira  e  ovante,  seria 
trabalho  digno  d'apaixonar  um  analysta  menos 
sacrificado  do  que  eu,  a  restringir,  por  falta 
d'espaço,  as  desinvoluções  e  subtilezas  que  o 
assumpto  comporta.  Infelizmente  porém  ag 
minhas  notas  haverão  que  ser  quazi  em  estylo 
de  telegrapho,  ficando  aqui,  em  vez  de  critica, 
apenas  um  esqueleto  ou  summario,  (|ue  outros 
desenvolverão  depois,  com  mais  vagar.  E  isto 
dito,  comecemos. 


J — concepção  mental  do  personagem,  em 
si,  e  nas  suas  relações  com  o  meio  fa  e  b). 

Por  si  só,  o  estudo  do  meio  social,  ensina 
ao  actor  a  natureza  histórica  e  moral  do  per- 
sonagem, cercando-o  logo  ifatmosphera  soe- 


^J2  OS   GATOS 

nica,  e  dcslacando-o  ifiim  fumld  (lefiuadro, 
([ue  quando  entrevisto  nitido  pelo  actor,  não 
mais  lhe  faz  perder  pé  na  interpretação  do  pa- 
pel. Como  entrever  então  esse  fundo  de  quadro? 
Estudando  o  actor  a  peça  inteira,  por  succes- 
sivas  leituras,  em  vez  de  restringir  o  seu  tra- 
!)alho  só  á  retentiva  da  parte  que  llie  foi  dis- 
1ril)uida,  como  entre  nós  succede.  O  contieci- 
mento  da  peça  por  completo,  fixará  no  espirito 
do  artista  as  linlias  mães  do  quadro  social  (|ue 
se  pretende,  com  as  suas  características  d'epo- 
cha  e  de  classe,  se  as  liouver,  tópicos  estes 
([ue  lhe  guiarão  o  senso  artístico  depois,  á  des- 
(■:iberta  das  outras  nervuras  principaes  do  per- 
sonagem. Estas  primeiras  noções  obtidas,  na- 
da impede  ipie  o  comediante  as  desenvolva  e 
aperfeiçoe  por  outras  vias,  livros  de  historia  e 
de  biographia,  de  memorias  e  d'anaiyse  sócia! 
complicanfes  c"o  assumpto,  ou  emfim,  obser- 
vações do  natural,  colhidas  nos  meios  que 
de  mais  perto  digam  c'o  meio  social  da  peça. 
É  este  também  o  traballu  diflkil,  e  as  induc- 
ções  (jue  elle  exige,  os  únicos  actos  mentaes  em 
que  se  toma  pulso  a  um  artista  superior.  Uma 
vez  conseguida  a  integração  da  figura  no  qua- 
dro, a  composição  mental  d'ella,  isolada,  é  pou- 


os  GATOS  á.-] 

ca  coiza,  e  mil  recursos  e  pequenos  artifícios 
scenicos  ahi  estão  p"ra  a  auxiliar.  Trata-se  de 
fazer  um  avarento,  llarpagon  por  exemplo.  O 
actor  escolherá  de  muitos  avarentos,  para  for- 
mar a  alma  d"este,  não  os  caracteres  seccun- 
darios  e  facilmente  anómalos,  de  todos,  senão 
os  caracteres  distinctivos,  fixos,  ou  como  se  diz 
na  classificação  zoológica,  dominadores.  O  seu 
conjuncto  dar-lhe-ha  então  a  concepção  do 
avarento  isolado,  do  avarento  em  geral,  que 
já  se  vè,  não  é  um  certo.  Mas  como  o  meio 
social  modifica  os  tj^pos  á  sua  feição,  o  avaren- 
to que  se  pretende  sae  da  figura  obtida  pelo 
processo  supra,  modificada  por  todas  as  con- 
diccionaes  (pie  o  estudo  cuidadoso  da  peça  for- 
necer, e  mais  por  aquellas  que  o  artista  colha 
em  flagrante,  observando  na  vida,lypos  simi- 
lares do  que  vae  crear.  D'esta  forma  já  o  pu- 
blico não  (lii'á,  vendo  Brazão  ou  Joaquim  de 
jVInieida  :  —  Bem  sei,  isto  é  Brazão!  Bem  sei, 
isto  é  ,loa(iuim  dWlmeida — nem  Iam  pouco: — 
Isto  é  Shyiloc,  on  é  isto  o  pae  Grande! .  • 

Mas  ha-de  dizer  por  força: 

— Isto  é  Harpagon  ! 

Tal  a  doutrina,  .\gora,  que  re  peito  in-^- 
pira  ella  em  palcos  portuguezes?  Eu  lhes  di- 


2*  OS  GATOS 

go.  Salvo  um  ou  outro  caso  raro,  não  iaspira 
respeito  nenhum.  O  estudo  dos  meios  sociaes 
é  iettra  morta,  a  cjuazi  totalidade  dos  nossos 
actores  nem  sabe  o  (jue  isso  seja,  e  é  a  razão 
porque  em  peças  de  guarda-roupa,  como  ainda 
ultimamente  na  Morkt,  cada  actor  se  vestiu 
como  lhe  aprouve,  e  caracterisou  e  exprimiu 
como  lhe  fez  conta. 

Em  pai1e,  a  culpa  ê  das  peças ;  nas  ori- 
ginaes,  ponjue  sendo  ellas  um  apontoado  de 
scenas  inventadas,  sem  observação,  nem  theze, 
nem  razão  pbilosopbica  tlagrante,  esse  meio 
não  existe,  ou  é  tão  vago  e  incongiiiente  (}ue 
não  vale  a  pena  o  actor  aíinal-o,  sob  pena  de 
parecer  mais  papista  do  que  o  próprio  drama- 
turgo ;  nas  traduzidas,  porque  esse  meio  es- 
capa ainda,  ou  mesmo  não  interessa,  estando 
portanto  o  actor  naturalmente  dispensado  de  o 
curar. 

Dir-nie-hiam  agora:  —  todas  essas  deficiên- 
cias d'estudo  do  actor,  podem  ser  supridas  pela 
explicação  dos  ensaiadores  e  dos  próprios  an- 
dores dramáticos,  os  quaes  por  via  d'ensaios 
repetidos,  e  conselhos,  restabeleçam  na  peça  a 
afinação  e  a  lógica  que  todo  o  desempenho 
quer,  p'ra  não  redundar  em  charivari.  Õra  isto 


25 


seria  bom,  se  os  nossos  ensaiadores  não  fos- 
sem actores  falhados,  que  as  eniprezas  mantém 
por  caridade,  e  se  os  actores  estivessem  dis- 
postos a  ouvir,  sem  desdenhosa  solercia,  as 
observações  dos  dramaturgos.  Todos  sabem 
como  se  faz,  por  exemplo  em  D.  Maria,  o  pre- 
paro d'uma  peça.  Os  actores  apoderam-se  dos 
papeis,  de  que  mais  gostam,  e  não  d'aquelles 
que  por  suas  desinvoluções  e  cambiantes  mais 
lhes  vão  ao  temperamento.  A  cada  momenío 
essas  tumultuosas  escolhas  dão  conflictos  en- 
tre empolgadores  do  publico,  rivaes,  actores 
e  actrizes:  e  ensaios  da  peça,  marcação  de 
scenas,  toiiettes,  tudo  é  subordinado  aos  aca- 
sos do  brilhante  que  o  galã  tal  e  o  centro  tal, 
contam  tirar  de  taes  e  taes  situações.  Por  ve- 
zes, quando  os  actores  se  lembram  d'achar  os 
papeis  paiiidos  ou  mes(|uinhos,  e  não  jiodem 
a  uma  cei'ta  altura  da  peça,  esmagar  o  rival, 
eil-os  exercendo  pressão  sobre  o  escriptor,  a 
que  este  amplie,  aqueça,  corte,  modifique,  as 
passagens  que  se  lhes  afiguraram  insufficien- 
tes  para  as  escamoteações  do  applauso  cubi- 
cado. Ha  assim  peças  que  ao  chegar  á  primeii"a 
noite,  já  não  conservam  da  factura  primeira, 
senão  bocados  descosidos,  ponpie  o  actor  pre- 


26  os  GATOS 

pondeiante  as  declarou  nos  ensaios,  som  con- 
dições, e  porque  o  dramaturgo  fransigente  o 
que  quer  é  ganhar  a  sua  vida.  Sei  que  isto  é 
muitas  vezes  motivado  pela  debilidade  technica 
das  peças,  pela  falta  d'espirito  e  viveza  nos 
diálogos,  e  pela  ausência  d'interesse  nos  en- 
redos, mas  não  posso  deixar  de  dizer  que  esta 
collalioiação  forçada  do  actor,  na  substancia 
lilteraria  (Taípiellas  obras,  destroe  completa- 
mente o  pi'esligio  do  escriptor  perante  o  actor, 
inal  dispondo  portanto  este,  p;ira  aceitar  d'a- 
([uelle,  objecções. 

D'esfa  maneii"i  afinailo,  sem  indagações  de 
caracter  psychico  por  banda  dos  artistas,  sem 
uma  adaptação  cuidadosa  da  Índole  dos  per- 
sonagens da  peça,  á  Índole  dos  comediantes, 
sem  explicadores  eruditos,  nem  cicerones  ex- 
perimentados, é  claro  que  o  desempenho  d'urna 
peça  jamais  logra  de  ser  uma  maravilha  de 
justeza.  Se  ella  ainda  tiver  predicados  de  fô- 
lego, lá  conseguirá  resistir  ás  arbitrariedades 
(pie  os  actores  lhe  fazem  sofTrer;  em  caso  con- 
trario o  desastre  é  eminente.  Se  já  viram  a 
Morta,  lião-de  reconhecer  a  Iristissima  razão 
do  que  estou  expondo.  Onde,  entre  os  nume- 
rosos papeis  d'aquella  tragedia,  um  desempe- 


os  GATOS  27 

nho  d'aclor,  um  só,  que  revele  a  coucepção 
mental  do  personagem?  e  onde  no  ensemble 
da  peça,  d'um  acto  único,  d'uma  scena,  coiza 
que  cheire  a  estudo  d'epocha,  e  a  uma  res- 
tíiuração  do  meio  social? 

Sabe-se  que  a  peça  é  medieva  por  os  acto- 
res vestirem  de  guarda-roupa,  fallarem  em 
verso,  e  atirarem  as  pernas  como  quem  faz 
girar,  sobre  uma  planta  de  casa  de  banhos, 
os  bicos  d'um  compasso.  Sabe-se  (|ue  João 
rioza  è  Pedro  primeiro,  por  lodos  lh'o  chama- 
rem, não  que  os  seus  fungos  de  choro  e  ber- 
ros de  vilello  visionem  o  lado  sentimental  e 
justiceiro  d'aquelle  rei.  Cada  qual  alli  vestiu-se 
como  quiz:  ha  fidalgos  contemporâneos  de 
ignez,  com  botas  (relastico ;  as  damas  somenos 
trazem  capirós  e  chailes  do  Grandella,  em- 
(juanlo  as  principaes  se  embuçam,  como  Vir- 
gínia na  scena  da  cripta,  em  sorties  de  bal  do 
ultimo  modelo  parisiense.  Por  qualquer  lado 
(pie  se  aprecie  o  desempenho  d'esla  obra,  a 
curta  vista  dos  actores  surge  a  momentos,  com 
verdoiros  parli-pris  d'irresponsabilidade  e  in- 
comprehensão,  só  comparáveis  á  ligeireza  d'al- 
ma  com  que  o  auclor  d'ella,  abordou,  em  ver- 
sos d'album,  um  assumpto  que  só  poderia  ter 


-28  os   GATOS 

VOZ  em  versos  de  Shakespeare.  O  que  lia-de 
ser,  senhores,  pois  se  elles  estudaram  lodos  a 
corte  de  Pedro  1,  nas  Doidas  em  Paris,  do  Monte- 
pin ! .  .  . 


II — (cj  suppòe-so  então  concebido  o  perso- 
nagem; trata-se  agora  de  lhe  dar  niaterialisa- 
ção  sobre  o  tablado.  Por(|ue  maneira?  lia  uma 
única:  adaptando  a  figura  do  actor,  quanto  pos- 
sivel,  á  representação  plástica  do  caracter  estu- 
dado. 

Já  fiz  sentir  como  o  actor  se  desdobrava, 
ou  devia  desdobrar,  n'um  que  via,  e  era  a 
alma,  e  n'outro,  o  corpo,  cuja  missão  estava 
em  cumprir  as  metamorphoses  exigidas  por 
aquella.  Acrescentarei:  quanto  maior  o  as- 
censo  psychico  d'um,  sobre  a  transformavel 
argilla  do  outro,  tanto  mais  bem  disposto  o 
artista  para  as  creações  da  scena.  O  ideai  se- 
ria que  o  seu  corpo,  como  uma  cera  molle, 
tomasse  sem  reacção  todas  as  formas  que  o  es- 
tudo interior  dos  papeis  llie  suggerisse.  Kntanto 
esta  harmonia  funccional  é  absolutamente  theo- 
rica,  assim  perfeita,  e  (piandon'aigum  homem 
de  theatro  chega  a  dar-so,  em  approximado,  o 


os  GATOS  -29 

artista  que  rezulta  éiima  crealiira  de  prodígio. 
O  frefiueiile  no  actor  é  algum  dos  dois  sobrele- 
var ao  outro,  em  certos  pontos.  Por  exemplo, 
António  Pedro,  que  era  o  specimen  do  génio 
inconsciente,  reagimlo  sobre  uma  figura  pas- 
siva de  macaco,  só  em  papeis  de  caracter  ma- 
cabro e  plebeamente  trágico,  como  o  de  pro- 
fundis  do  Sargento  mór  de  Vilar,  o  Paralytico, 
e  o  coveiro  do  Hamlet,  conseguia  ser  prodi- 
gioso, e  todos  os  papeis  de  homem  de  socie- 
dade lhe  falhavam. 

Esta  parcialidade  explica-se  por  uma  falha 
nos  meios  maleriacs  de  dar  vulto  ás  vi- 
sões do  génio  creador.  Por  idênticas  razões 
Coquelin  tem  levado  a  vida  a  evitar  os  galãs 
dramáticos,  e  Lucinda  deixa  completamente 
cm  branco  os  papeis  sentimentaes  e  apaixona- 
dos. É  o  temperamento,  a  educação,  os  late- 
jos Íntimos  da  indole,  os  recursos  externos  da 
figura,  do  olhar,  da  vóz,  etc,  a  lhes  prohibi- 
rem  de  visionar  certos  relances  da  existência, 
e  a  lhes  apontarem  outros,  dentro  de  cujo 
schemma  caibam  a  expansibilidade  e  a  porção 
de  sonho  que  os  anima.  Aqui  o  espirito  cria, 
mas  o  corpo  recusa-se  a  exprimir.  Pôde  acon- 
tecer também  o  caso  inverso,  isto  é,  ser  obe- 


30  os  GATOS 

(lientissirna  a  argilla  plástica,  e  não  l:,iver  to- 
davia sobranceira  a  eila,  nma  inlelligoucia  in- 
(lagante,  que  a  transfigure  e  domine,  a  seu 
mister.  Eis  a  caracteristica  dos  actores  de  meia 
tijella,  a  caracteristica  da  mór  plêiade  dos  nos- 
sos comediantes  actuaes,  que  faltos  d'estutlo 
ou  faltos  de  talento,  o  certo  é  que  não  curam 
da  psychologia  dos  papeis,  e  recorrem  a  arti- 
fícios sem  probidade,  como  certos  lies  de  ca- 
racterisação,  de  mimica,  vóz,  etc,  para  deita- 
rem poeira  nos  olhos  da  platea.  São  os  exclu- 
sivistas do  recorte  exterior  do  personagem,  os 
escamoteadores  do  pictoresco,  que  reprezen- 
tam  decalcando,  e  que  teem  restringido  a  arte 
de  reprezentar  a  meia  dúzia  de  receitas  d'al- 
manak. 

Entendamo'-nos  todavia:  é  necessário  não 
desleixar  o  estudo  externo  da  figura,  mas  sem 
fazer  d'ella  mola  real  de  qualquer  espécie  de 
sucesso  dramático,  (d) 


(d)  «...  eu  não  vou  contra  a  ideia  do  actor  colher 
na  natureza,  traços  paniculares  que  digam  o  homem  inte- 
rior, porque  é  um  dos  recursos  do  comediante,  surprehen- 
der  e  notar  de  passagem  os  signaes  e  particularidades  ex- 
ternas, dignos  da  scena.  Entanto  cuido  que  se  devem  co- 


os  GATOS  31 

Coquelin  já  tinha  escripto  «é  do  caracter 
(|ue  tudo  parte.  No  theatro,  como  na  vida,  a 
alma  é  que  dá  relevo  ao  corpo,  a  coiiformatiira 
lio  espirito  quem  amar(;inha  de  tal  e  tal  maneira, 
a  physionomia  e  a  estatura».  Vejam  as  com- 
|ianliias  de  quazi  todos  os  theatros  de  Lisboa, 
mencionadamente  as  do  Gynniasio  e  da  Trin- 
dade, eiias  permittindo-se  alterar  o  texto  dos 
papeis,  gaguejar  as  falias,  pôr  estribiliios  e 
trucs  de  seu  invento,  explorando  até  á  náusea 
o  sentido  duvidoso  das  reticencias,  deformando 
as  intenções,  insistindo  em  tics  de  mimica  e 
caracterisação  que  nem  palhaços.  .  .  e  para  cu- 
mulo de  miséria,  a  critica  dos  traductores  li- 
songeando-Ihes  quotidianamente  estes  baixís- 
simos processos  de  factura,  e  não  querendo 
vér  que  este  monstruoso  abuso  do  detalhe  ex- 
terior, sem  escoras  artísticas  d'outra  pujança, 


Iher  somente  os  traços  significativos,  e  adaptal-os  com 
discrição,  evitando  os  que  sejam  puramente  individuaes. 
Seria  por  exemplo  erro  palmar,  reproduzir  um  certo 
avarento,  conhecido  nosso,  ao  querer  mostrar  Harpagon 
ao  publico,  Harpagon  que  é  todos  os  avarentos,  e  de  que  o 
actor,  procedendo  como  acima,  só  conseguiria  dar  um  dos 
recantos  episódicos  do  caracter.-) 

Coquelin  ainé. 


:>'!  os  GATOS 

leva  forçosanienle  á  caricalni'a  e  á  marioiíette, 
e  corrompe  o  gosto,  por  forma  que  o  publico, 
perdida  a  noção  real  do  actor  e  da  arte  sce- 
nica,  vae  procurar  nos  palhaços  do  Colyseu, 
o  supremo  da  pochade  de  que  os  actores  por- 
tuguezes  lhe  forneceram  d'antemão  os  urdi- 
mcntos.  Quanto  á  porção  de  prazer  que  infunde 
no  auditório  esse  pictoresco  com  que  por  ahi 
se  intruja,  nada  eu  coniieço  de  mais  fugaz 
como  artificio.  O  espectador,  apenas  entrado 
o  actor  com  o  seu  tic,  não  pensa  mais  n'elle, 
ou  fatiga-se  e  enfurece-se,  no  caso  da  em- 
polgação  teimar  como  se  lhe  niet(!r  á  cara. 

Toda  a  creação  d'arte  scenica  externamente 
se  traduz,  dissemos,  por  processos  de  communi- 
cação  fallada,  mimada,  c  visuada — permitta-se. 

(d)  Depois  do  estudo  interior  do  persona- 
gem, o  preparo  da  vóz  (|ue  lhe  corresponde, 
será  o  primeiro  cuidado  do  actor  meticuloso. 
Pensar  (pie  o  artista  deva  applicar  á  scena,  a 
vóz  de  trazer  por  casa,  é  exhautorar  a  arte 
(Tum  dos  seus  mais  empolgantes  meios  <ie  ca- 
tchésc.  A  diversidade  é  uma  das  caracleristicas 
da  vida.  Duas  cabeças  não  pensam  egual,dnas 
sensibilidades  raro  teem  reacções  idênticas: 
assim  as  vozes  que  exprimem  as  ideias  de  duas 


os  GATOS  33 

cabeças,  e  as  reacções  de  duas  sensibilidades, 
não  podem  ter  valores  acústicos  e  qualidades 
d'estylo  similares.  Mil  determinantes  auxiliarão 
pois  o  artista  na  descoberta  da  vóz  conveniente 
ao  personagem.  Todos  sabemos  que  ba  vozes 
profissionaes :  a  do  boniem  do  mar  divergindo 
da  do  fadista,  a  do  negociante  destrinçando-se 
completamente  da  do  medico  e  da  do  orador. 
A  vóz  variará  também  na  proporção  das  deter- 
minantes psychicas  da  figura:  os  bypocritas 
não  faliam  como  os  francos,  os  simples  não 
articulam  como  os  cynicos,  os  audaciosos  teem 
um  timbre  diverso  dos  acanhados.  Ilamlet  não 
pode  ler  a  mesma  vóz  do  que  líomeo,  o  tim- 
l)i'e  d'Yago  deve  evitar  o  clanglor  vingativa- 
mente hei'oico  d'Otliello.  Cultura,  edade,  feitio 
intimo,  suggestões  de  meio,  factores  moraes, 
eis  os  pollegares  sob  cuja  pressão  o  filete  de 
vóz  molda  o  caracter,  como  um  macio  barro, 
d'onde  o  artista  fez  sahir,  alada,  uma  escul- 
plura. 

E  ao  sabor  d'estes  agentes,  não  é  só  a  qua- 
lidade dos  termos  que  muda,  mas  o  limbie, 
o  fôlego  articular,  a  maneira  d'emittir  e  pre- 
cipitar os  períodos  na  dicção,  e  toda  a  habi- 
lidade do  actor  estará  em  fallar  o  jiersonagem. 


34  os  GATOS 

dcsenhando-0,  profilando-o,  de  sorte  que  até 
os  cegos  possuin  vêl-o.  Ora  n'este  ponto,  eu  te- 
nho visto  fazer  cm  D.  Maria  papeis  de  scxa- 
genaiio,  com  timbres  de  capão,  e  vellias  priu- 
cezas  de  Dumas,  n'uma  preciosidade  tal  de  fal- 
ias, e  regateirismo  d'acccnto,  (jue  as  mata- 
ríeis logo  por  costureiras  e  patroas  de  casas 
de  hospedes,  viajando  incógnito. 


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