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FIALHO D'ALMEIDA
OS GATOS
PUBLICAÇÃO SEMANAL,
d'inquerito á vida POUTUGUEZA
N." 14 — 6 de Setembro de i8qo
SUMMARIO
9
Suicídios por tolice — caracteres do 'X-^/^]
ftlruijijle MODERNO: NA VIDA iNÃO HA LOGAR ^ '
PARA OS TYPOS INTERMÉDIOS! — ELIMINAÇÃO
DOS VENCIDOS PELO ÁLCOOL, PELO DEDOCHE E
PELA MORTE SUIilTA — LISBOA, POLVO DE POR-
TUGAL—AS MIGRAÇÕES PROVINCIANAS E A DE-
CADÊNCIA AGRÍCOLA — O BRAZILEIRO IV AGORA,
E SUA TENDÊNCIA PARA SE FIXAR NOS CENTROS
DE PRAZER — GUERRA DE RAÇAS, E PIIVSIONO-
MIA HISTÓRICA DOS COMBATENTES — A ARISTO-
líiACIA AUTHENTICA E A ARISTOCRACIA DO PÉ
IKESCO — UM DITO DO MARQUEZ DE PENALVA
II os GATOS
— O SiNU. VISCONDE QUER ALMOÇAR !— lilLIIETE
d'uma recem-condessa á sua costureira —
OS que ficam pelo camlmio, arrebentados
— causas FINAES de tudo — KERMESSES D'AL-
GÉS E CINTRA — A CARIDADE-5JJ0í7, SEGUIDA
DA INFLUENCIA DE VENDER SORTES, NO IJirl.
MÃES, NOIVAS E FILHAS — TRÊS LIBRAS PARA
FUNDAR UM HOSPITAL — IIEUNIÀO DA sociedade
auti-esc.ravisla, E DA badaiulerie DOS SEUS SÓ-
CIOS FUNDADORES — INDIFFEIíENÇA PELA ESCRA-
VATURA BRANCA, E POSTURA LYRICA PERANTE
AS DESGRAÇAS DO PRETO ANONYMO — O HO-
MEM DA MINHA TERRA — DEFINIÇÃO DO TALEN-
TO DO SNR. HINTZE, POR VIA D'UMA ANEDOCTA
— OS TRÊS ARMELINS.
31 d' Agosto.
Ao marlyrologio dos que se suicidam por
drama, vem acrescentar-se o d'aquellcs que se
suicidam por tolice. O que mais complica em
Portugal o infortúnio, é a fatalidade de quasL
todos os desgraçados serem tolos. Antigamen-
te, quando o coração d'um homem ainda ba-
tia por um ideal alevantado, apenas eram co-
nhecidas três ou quatro grandes razões capa-
zes de leval-o a abandonar voluntariamente a
existência; e tão poucas vezes succedia trava-
rem essas razões a felicidade do pobre diabo,
que raro adregava ter de se voltar a cabeça
ao estrondo d'ura tiro esmigalhando o craneo
d'uni vencido.
Agora lia vida acaboií-se o logar i)r'()S ty-
pos iiiUTiiindios, c o justo meio termo entre o
homem audacioso e o homem paciente, dei-
xou de fazer maioria entre as populações que
luctam pr'a comer. Os homens partii-am-se em
dois grandes formigueiros racioclnantes — os vl-
ctoriosos, que fingindo acatar os direitos com-
muns, só realmente vivem, como os grandes
carnívoros, á lei da força brutal : e os venci-
dos, laca inlViior que serve de presa ao de-
vorismo dos primeiros, e que dcsmoleculada
pouco a pouco, niercè da chimica social que
não consente Inércias espectantes, irá rarean-
do da hecatombe dos grandes centi-os, té se
perder, como certos in(lios d'America, nos re-
cessos dos mundos mortos, onde algum jar-
dim zoológico mandará caçar depois os exem-
plares mais piclorescos.
A lei d'absorpção (pie mele os pequenos
estados na circumscripção politica dos gran-
des, que sacrifica as nacionalidades exangues
ao egoísmo das nacionalidades plethoricas e
bem armadas, não é senão o caso amplifi-
cado do mesmo signo cruel, que põe na vida
individual o pairão rico a explorar o operá-
rio ]iobre, o drpuladi) a illiidir a liòafé do
os GATOS 5
rústico eleitor, o graiule burocrata a assignar
com o seu nome, a oiíra tio iiequeno amanuen-
se, o padre a engordar d'enterros, e o gene-
ral emíim a arrogar-se victorias qne só foram
ganhas pela valentia do soldado.
N'esla injustiça pois de prémios e destinos,
emquanto o triumpho centuplica a audácia dos
fortes, vae a timidez acachapando cada vez
mais, a inania dos vencidos, de cujas liquida-
ções íinaes são testemunha as vendas d'alcool,
as estatísticas hospitalares de loucos e cardía-
cos, os casos da morte súbita, a prostituição
e a miséria, (h) que tudo isto decuplica em
Portugal d'anno pr'a anno — arcanjos d'estre-
(b) A estatística de 1888 accusa a retensãode 382, 426
piteireiros, nos calabouços das nossas cidades e grandes
villas do continente, onde a organisação da policia é regu-
lar. Só a capital forneceu á sua parte 6:540, entre captura-
dos pela policia civil e guarda municipal. O numero de
licenças pedidas em Lisboa, para a abertura de novas
tabernas, elevou-se a 657, no anno de 89. Os suicídios
foram, no districto de Lisboa, cerca de 390, entre frustra-
dos e desfechando pela morte — mais 216 do que no anno
anterior — e os casos conhecidos de morte súbita, eleva-
ram-se á jocunda somma de 3:472, nas cidades de Lisboa
e Porto, e suas inimediações.
Foram autoados cm Lisboa por transgressão de postu-
6 os GATOS
minio, revcrtcndo-nos consoladoramente ao es-
trumo (ronrlo nunca devêramos ler brotado!
Por não ter dados (jiie me periniltam des-
crever, com scieiíUíico rigor, os tramites d'es-
ta iiicta entre fracos e fortes, entre timidos e
audaciosos, nas dilTerentes áreas da provincia,
onde elia deve dar-se, como em Lisboa — di-
verí,Mndo em cada nma, está claro, conforme
a natureza e a intensidade das causas e dos ef-
feitos — circumscreverei o meu estudo particu-
larmente á capita], onde mercê das migrações
que a provincia quotidianamente ahi despeja,
se pôde dizer que está iioje condensada a vida
ras municipaes, 19:341 indivíduos, que deixaram na Bôa
Hora 40:019,5300 '■'^■is- Houve 2,358 prisões por offensasá
moral, e 6,009 po"" nicndicancia e vadiagem.
O livro das mulheres perdidas archivou 6:014 nomes —
mais 1:118 do que em Sy! D'aquelle numero, passante de
dois terços era povo, creadas de seivir, costureiras, cigar-
reiras, filhas de pequenos empregados, e 854 mulheres
d'especie ovarina, que passa pela mais honesta e laboriosa
da gente pobre de Lisboa. Em compensação, a capital de
tantos bêbedos, de tantos mortos, de tantos obscenos, de
tantas prostitutas, teve apenas que registrar 146 desastres
occorridos no trabalho !
os GATOS 7
do paiz. Essas migrações, escuso (raccentuar,
são evidentes. A febre de civilisação que as
estradas e os caniinlios de ferro levaram á
província, encontraram as populações n'uma
crise de miséria insolvavel, vinda da decadên-
cia agrícola, que é em todos os i)ontos de Por-
tugal absoluta, e crearam n'essas ingénuas fa-
mílias, até então aferrados á tradícçào territo-
rial e aos ideaes devida primitiva, necessidades,
para que os seus bolsílhos não estavam feitos,
e para que os seus campos não produziam
costeio sufficiente.
Os mais ricos entregaram as terras a admi-
nistrações mercenárias, e vieram para Lisboa
queimar os ullimos cartuchos, em carruagens,
especidaçòcs de fundos, syndícatos e intrigas
políticas. Os remediados, arrefecida a paixão do
foco, quebrado o elo que prendia, pelo amor
do lucro, o fdbo do proprietário ao quinteiro
em que os antepassados medraram, descami-
nharam os herdeiros por profissões scientificas
e emprego-manias, que fizeram d'elles tristís-
simos sábios, prolematicos estadistas, e am-
biciosos sornas e desíllustres. Finalmente, os
subalternos, que vivem das duas primeiras clas-
ses, acossados pela fome, vendo as suas po-
8 os GATOS
brcs viulias |)liylloxci'a(ias, os seus soulos mur-
chos, os seus olivaes ferrugentos, as industrias
locaes sem procura, em ruinas a aldeia, lá de-
bandaram também por sua vez, vindo os mais
tímidos trabalhar [)or serventes e carpinteiros,
nas obras da cidade, e liquidando os mais am-
biciosos, a casa paterna, para desertarem da
pátria, caminho do Hrazil c das rp|)ul)licas llo-
rescentes do Equador.
A expansão pois que na capital se nota,
ha dez ânuos, não provem tanto (Fum desen-
volvimento de riqueza, como d'um trasbordo
de fugitivos que perderam o siso, e se enfas-
tiaram de vegetar sem proveito, no remanso
das suas quintas devastadas.
Lisboa é uma cidade que se está doirando
com os restos da i'i(pieza de trinta ou quaren-
ta cidades: uma feira das vaidades que se en-
feita com os desmazellos de quatro ou cinco
mil fortunas ruraes comidas de hypotheca.
Mesmo o Brazil, a quem nós devemos tanto, e
que é ainda hoje a única llorescente colónia
portugueza — porque nos dá, sem despeza, c
beneíicia o paiz com o melhor de trinta ou
quarenta mil coulos aunuaes— o Brazil, quan-
do outr'ora nos mandava, em commendadores
os GATOS 9
millionarios, os polires colonos que para lá iam
trocar por iiioeda os nobiiissiinos esforços do
seu braço — lia trinta annos ainda — em vez de
fazer parar esses benéficos obreiros nas capi-
tães de prazer, em vez de lhes engolpliar os
thesouros nas grandes especidações a que os
governos dão ala, com previlegios infames e
garantias de juro, recambiava-os, ingénuos e
nostálgicos, aos seus campanários d'origem,
onde a agricultura lhes merecia zelos, ternu-
ras, sacrifícios, em termos d'elles haverem sido
para muitas terras do norte e do meio dia, os
successores dos antigos frades, os zeladores
da ordem e da prosperidade publica, o espi-
rito de progresso: e municípios, bancos, e
juntas de parochia, ao mesmo tempo!
Leia-se agora o registro das centenas d"edi-
ficações a construir nas ruas de í.isboa ; mais
de metade pertence a brazileiros. Mas em com-
pensação, não ha na província uma única ten-
tativa de restauração viticula, um ensaio de
cultura nova, uma empreza d'arroteio e trans-
formação de terras baldias, uma grande rou-
paria ou uma granja modelo, a que esses ar-
gentarios l(!nham querido entregar o seu di-
nheiro.
10 os GATOS
Ainda a nossa ca|)ilal lucraria com abole-
tar nos seus bairros, psle alluxo de gozadores
e de necessitados, que atráz disse, se por ven-
tura a mór parle trouxesse dos seus lares, o
aferro incondicional do trabaliio, o espirito
d'ordem, o sentimento d'economia, e os hábi-
tos certos, e os alTectos familiares, que na pro-
vinda teem quasi lodos. Uma tal invasão cor-
rigiria ao menos Lisboa, que é ainda hoje a
mais desleixada, a mais porca, e a mais arti-
flcial de todas as capitães do universo. Mas
vae que a passagem d'essa gente, dos seus'lo-
garejos nataes, para um acampamento promis-
cuo, como este, d'á beira Tejo — esta passa-
gem que em principio só lhe deslumbra sa-
loiamente os olhos — depois tere-os no peito,
entra a contaminal-os de todos os vicios e de
todos os fastios da vida alfacinha, desencami-
nha-os da sobriedade primeva, para os esgo-
tos do gozo dia a dia, e completa afinal a
sua obra, quando lisboetisados os ricos em ja-
notas, e os pobres em fadistas, acaba de lhes
tirar o pouco que elles traziam de bom, das
suas terras.
os GATOS 44
Postas estas premissas, vejamos entre que
camadas de população lisboeta, sociologica-
mente distinctas, se trava a guerra de raças
que atraz disse. E evidente que tendo essa
guerra por fundamento o antagonismo entre
os elementos da vida antiga, e os elementos
da vida nova, a pugna explosirá todas as ve-
zes f]ue esses elementos se interceptem o ca-
minho, os velhos |)ara defender seus foros e
tradicções, os novos para consquistar, pela for-
ça da audácia sem escrúpulos, o logar dos ve-
lhos. Na classe aristocrática, na politica, na
burocracia, no commercio, entre a industria,
entre o povo, desde que os dois grupos anta-
gónicos se afrontam, é inevitável o choque, e
a peleja certa; e ou se suba ou se desça na
escala social, a altitude dos dois grupos belli-
gerantes é idêntica. Quero dizer. Do lado dos
sectários do que impropriamente, á falta de
termo, chamarei antigo regimen, um aferro
incondiccional pelas coisas estabelecidas, res-
peito cego á lei, um orgulho pelo direito de
nascimento e d'eleição, actividades ronceiras
mas prudentes, ideias curtas mas firmes, o
horror de aventura, um ideal politico auctori-
tario, a estima da riqueza adquirida de vagar, e
12 os GATOS
lá Licin !i() In 11(1(1 das coiiscuMicias, a vaga con-
vicção de que o paiz é uma conesia hereditá-
ria e impartiihavel com os que vieram depois
d'elles. Estas douctrinas, o grupo dos aventu-
reiros novos regeila-as, e para annullal-as to-
dos os recursos lhe servem, e todos os cam-
pos de batalha lhe são fáceis. Como d'esta
banda não lia interesses que defender, e pelo
contrario tudo a conquistar, os combatentes
escaraniu(;am á lei de mercenários, negando
tudo, excepto o direito de saque apóz a guer-
ra, pregando que a immohilidade das coisas
deprava os homens, c (pie só das renovações
sociaes violentas podem saliir para as nações,
validos e triumphantes amanhãs. Eis o que
faz o recliaço d'intcresses e d'id(!as que actual-
mente vae pelas talhadas d'esse sorvado fructo
que se chama a população de Portugal, e da
qual Lisboa nos oflerece á vista tão condensa-
dos specimens.
Comece-se pela aristocracia. A genuina
consta d'iima dúzia ou dúzia e meia de famí-
lias d'oiide a. coroa tira o seu pessoal fami-
liar, e que (piasi não recebe, não priva, nem
os GATOS 13
vive senão comsiiío própria, regeitando se é
rica, como os Fronteiras e os Palmeilas, tudo
quanto cheire a nobreza d'enxertia e d'arnia-
zem, e recluindo-se, se pobre, n'algum can-
to ignorado, onde passa a vida a evitar os pa-
raleiios humilliantes e os contágios vulgares,
educando os fillios em officiaes do exercito, e
as meninas em irmãs da caridade, como no
■\ellio tempo. É uma classe distincta, um pou-
co banal vista por dentro, mas enthronisada
qnand mêmc, n'uma altura d'orgulho que a de-
fende contra os ferozes cercos da sua antago-
nista, a aristocracia do milhão, a aristocracia
do pé fresco; e ((ue mau grado as capitula-
ções a que i'- forçada n'iuna ou n'outra família,
por falta de viveres, ainda agora dá typos de
certo elleito palaciano e decorai. Todos conhe-
cem a resposta do velho 1'enalva, a um Arms-
trong que folheava deante d'elle um livro de
linhagens.
— Pódedizer-me, marquez, onde encontrar
ireslc livro, os antepassados da minha esposa?
— Os antepassados de sua esposa . . mm,
min. . sim, ella devia ter antepassados, sua
esposa. . . Olhe, |)i'ocure o amigo isso, no se-
gundo volume.
U os GATOS
— Mas (lisscrain-me (|iic a nbra tiiilia um
só!
— Por isso mesmo, por isso mesmo!
Garrada a esta nobreza de sangue, e que
se o não tem puro por cruzamentos, ao menos
o tem por intransigência de conducl^i, ha uma
outra nobreza saburrosa, fillias de fidalgos
casadas com filiiosde tendciros — espertaliiões
sem pátria galardoados com tituios (pie repre-
sentam a subserviência dos reis e dos gover-
nos perante a usura dos agiotas que lhes ta-
param as faltas de dinheiro — projjrietarios bo-
çaes a quem a Avenida csferveu o sangue
de cavadores, e que julgaram ler liquidado
os calos das mãos, no dia em que saliiram
biscondes ou varões do próprio ai)elli(lo: uma
nobreza de dúbios e de tolos, de i)rosumpço-
sos e de typos emfim, na qual todos os esfor-
ços miram esta ideia deshonesta, apagar a ori-
gem, e destruir um passado incominodo por
qualquer lilulo. A um reccm-titular que eu
visitei, na manhã seguinte ao dia em que a
munificência roal o aviscondalliára, ouvi dizer
para o croado:
— O snr. visconde quer almoçar, e se du-
rante o almoço do snr. visconde, alguém pro-
os GATOS 15
curar o snr. visconde, diga que o snr. viscon-
de não recebe.
— Sim, senhor Guimarães, torna o crea-
do.
— Guimarães?! Upa! Upa!
Um praticante de Restello perguntava-
Ihe:
— O' .patrão, o duque de Cadaval tamisem
teve botica, com'a gente?
E ninguém esqueceu ainda o bilhete d'a-
quella mulher de baiKiueiro á modista, quan-
do o marido subiu a titular «mmha amiga,
venha esta tarde sem falta tomar-me medida
d'um vestido de condessa. . .«
Entre si, estas duas aristocracias detestam-
se, a authentica por desprezo, e por ciúme, a
outra. Do lado da authentica não se perdoa
uma só das circumstancias moraes que pos-
sam pôr em cheque, a falsa. É a recusa sys-
lliemalica de partilhar com ella as festas de
beneficência, de a admittir aos seus cenáculos
Íntimos, de a intronietter nos cargos da corte,
de fre((uentar com ella os sitios de villegiatu-
ra e de prazer. . . Lá onde a altivez d"uma du-
queza heredilaria pôde arranhar o madarnis-
mo d'uma baroneza episódica eventual, o
i6 os GATOS
confliclo é certo, e a comedia em todo o pon-
to inimitável.
Uma famiiia recem-tilulada casou ha pou-
cos ânuos uma das suas filhas, com o filho
d'um dos nossos grandes negociantes de fa-
zendas, ellectuando-sc a benção nupcial no
palácio (fniii iiliilai' ([ue residia fronteiro á
casa do noivo, e cuja esposa commentava
d'est'arte a cerimonia. «Desde a casa d'clles,
até a minha capella, vinha adeante um creado,
desenrolando um tapete, para o cortejo passar,
e atraz ia outro, enrolando o tapete, depois
do cortejo tei- passado. Ali, foi bonito ! o ta-
pete ficou como novo, e agora ainda o podem
vender, no armazém ...»
Tanto o papel social d'esla tropa fandanga
é deletério, (jue a aristocracia e a burguezia
fecham-lhe as poitas, embora cila de vez em
quando lhe metta hombros, e penetre á força
nos salões onde ninguém lhes olferecera um
faitteiiil d'intimidade. .Mguma vez as festas
que ella dá, estonteam no seu orgulho a no-
breza authenlica, o lado feminino sobretudo,
que apezar do rang nem sempre tem podido
evitar um calafrio de ciúme beliscado. Entanto
essas exhibições, que os reporters descrevem
os GATOS 17
com a mioleira ainda azuada do Champagne,
e cujo secreto intuito apaga o que n'eiias po-
desse haver de delicado, essas exhibiçòes,
morto o clarão do ultimo lustre, só deixam
empóz si um vago fétido de feira e baile pu-
Wico, a explosão d'alguma nova tractada, ou
os proclames d'alguin aparatoso casamento.
A lucta que traz esta espécie d'csi)ecula-
dores e de parvenus nMima continua febre de
se fazerem logar nos salões escrupulosos, é
uma coisa tão complicada e tão dura, tão pa-
ciente e tão sutil, que se faria um volume só
com os poiír-parlers que d'ella correm, em
geito de se provar que para certos ricos, o
slrugglc é bem mais cruel do que para certos
pobres. Todos os processos são achados bons
para a conquista d'essa almejada e nunca ple-
namente conseguida intimidade: kermesses e
bospitaes de meninos orphàos, arvores do Na-
tal e procissões nos claustros dos conventos,
beneficência e subscripção nacional, regatas e
tiro aos pombos. . . — e sempre, de cada vez
que seis fidalgas de sangue azul fazem um
|iasso para uma bella obra, logo seiscentas
outras, de calcanhar rachado, advém co'a bolsa
aberta, prestes a arruinarem as casas de banco
18
dos maridos, comtanfo que possam mostrar,
da mar(|ii('za ou da duqucza, um petil billet
para os seus chás. Ha tempos, começou a rai-
nha a reunir em Belem algumas pessoas mais
próximas: immediatameule empenhos ás cen-
lonas, de pannudos e de pannadas, sollici-
fando entrada — sendo o picante, (pie esses
ompenlios não miravam taalo a lionra da re-
cepção real, como o desejo d'aproveilal-a em
gazua para forçar as portas (Fumas tantas ca-
sas aiuda impjacavcimcnte aferrolhadas.
Seria um inventaiúo faslidiosissimo a his-
loriação, ponto por ponto, d'esta batalha de
guerrilhas havida nas dilTerentes camadas da
sociedade portugueza, e que, quer se peleje
nas alias, quer nas baixas classes, tem sem-
pre por causa remota o mesmo choque de
princi[)ios que atraz puz, e por determinante
sempre o mesmo jogo de ciúmes e d'inleres-
ses que especifiquei para a família aristocrá-
tica. Tão perceptível esta lucta é, que me dis-
penso de a detalhar por episódios, (^wm na
([uizer por exemplo vèr latejar na politica, per-
gunte aos velhos parlamentares do tempo de
l(t
Sá (la líaiiduira, o ijiip pcusaiu dos inipelos
do snr. Navarro, e das manhas jezuiticas do
snr. Lopo Vaz. Quem na qnizer sentir no exer-
cito, consulte o snr. Duval Telles a respeito
(las qualidades militares do snr. José Paulino.
Ouem na qulzer sentir na sciencia, alcance (pie
o snr. José Júlio lhe dè a sua opinião sobre o
(Ir. Lourenço. Quem na quizer sentir no alto
capitalismo, falle ao snr. Seixas dos processos
de fortuna do sm-. Burnay. Por toda a banda
enfim onde duas creaturas se afrontem, esse
antaiionismo resalta, entre o velho e o novo,
(inlrc! o lunilem e o amanhã, sendo inipossvicl
dizer se ao cabo de tanto trabalhar, ficará
vencedor alguém capaz d'imprimir caracter no
Portugal futuro, e de garantir á sociedade por-
lugueza uma existência autónoma, a despeito
das vicissitudes e dos pessimismos circum-
danles. Entretanto esta batalha seria talvez
fértil, como renovação d'energias indómitas, se
mercê de debilidade cougenta do sangue, ou
contrahida pela educa(;ão, metade dos soldados
não ficassem rebentados, sem baptismo d(!
guerra sequer, na escarpa do primeiro talude
a vencer, de bayoueta cm riste, e mochilla ás
costas. Como se lodos tivessem nascido para
20 os GATOS
destinos (le príncipes, o monor contratempo des-
illude esses inermes, e os faz desertar da mar-
cha forçada em — póz da fortuna traiçoeira. Á
preguiça que lhes deu o clima, juntam o fatalis-
mo sornaque a tradicção histórica lhes deu, e
a cobardia physica, vinda da dependência estran-
geira e da esmolante miséria em que Portugal
tem vivido, desde o senhor D. João IV. Nenhum
paiz possue, sob este ponto de vista, mais autó-
matos. A iniciativa particular escandalisa a nossa
inércia. Qualquer vontade medianamente enér-
gica nos faz medo. E d'aqni dois males gra-
ves. O primeiro ó aguardarmos toda a vida, por
um fundo sebaslianico de raça, esse protector
myslerioso que n'uma manhã de névoa ha-de
vir pòr-nos a mèza, arranjar-nos o emprego,
laobilar-nos a casa, casar-nos rico, e que
não vindo nunca, constantemente nos impede
de ganhar a vida por um trabalho solido e hy-
gienico. O segundo ó estarmos ajitos a soflrer
constantemente o jugo d'um subalterno audaz
que qualquer golpe de mão leve ao pináculo,
e que uma vez sagrado chefe, chicoteie a seu
gosto a caterva de humildes pulhas que nós
somos. Kstcs dois males ponte-vistam a histo-
ria de todas as nossas misérias e de todas as
os GATOS 21
nossas subserviencias, internas ou externas,
quaesquer sejam, e vão-nos approxiniando
com uma accelcração vertiginosa, do terrivel
(lia em que enfeudaremos por completo, futu-
ro e casas, ao devorismo da primeira potencia
forte que nos queira.
E o que mais confrange, é esta abdicação,
no Estado como no individuo, ser feita d'in-
dolencia estúpida, de desgoverno insólito, de
falta de brio civico. Não nos cerceia a miséria
filha d'um estancamento completo de recursos:
cerceia-nos o desleixo, derivante d'um desca-
minho de força, e d'uma applicação viciada
de predilecções e faculdades. A maioria das
nossas populações é feita d'esses typos inter-
médios, espectantes, passivos, cm que lhes
fallei no começo d'estas notas, que os fortes
pisam e manietam ao seu carro, e para que
não lia logar na vida agitante dos nossos dias.
() resultado é este: em cima, o paiz gozado
por dez ou doze charlatães, de parceria com
dez ou doze bandidos, o todo fazendo permut-
tações d'infamias e jiga-jogas de negociatas,
((ue lhes permitiam aguentarem-se alguns me-
zes mais no tombadilho: em baixo a massa
avulsa, morrinhenta, sórdida, sem força, des-
22 os GATOS
illiulida de fiulo, irrnspeitosa ile Indo, insu!-
lando-sp como os bêbedos, soíTrendo o azorra-
guc como os cães, vendo passar as aflVontas
iudiírercnte, e deixaiido-se cabir alfim no pró-
prio vomito, onde a letbargia a açovaca, ti';
([ue uma cbicotada nova a faça outra vez es-
írel)ucliar!
Ponde na infei-ioridade antropológica do
negro, a sordidez dos árabes do Cairo, que o
ingiez só aproveita como engraixadores, e te-
reis realisado o lypn cdnnuum das nossas ge-
rações contemporâneas, onde se perdeu tudo
(piauto faz do Iiomumu, não já uma maciíina
|HMisante, mas um instrumento automático de
traballio. Foi a educação? Seria. Mas é i)rinci-
palmontc a carie peculiar das raças ijue iiijui-
dam. lia noventa annos (pie isto vinba princi-
piado. iNós somos bem os íilbos (Kesses rufiões
(jne puxaram o carro de D. João VI, e para
ffiiem Pedro IV, de bordo do cbaveco ingiez
Coiigress, cercado d'inglezes bêbedos que lhe
cbamavam poriuijuczc dog, por entre os acor-
des do Rnle Ihihiunin, enviou esta proclama-
ção caracteristica "uão me obrigueis a libertar-
vos á paulada.»
I iiia nu outra vèz, n'este agiuiisar de na-
os GATOS 23
cionalidadfi que o mesmo bacillus rúe té á me-
(lulla, lá vem a visita da saúde aclarar um
instante o coma publico: vèem-se então mul-
tidões migrar das suas terras, mais por té-
dio do que por fome, pedirem iiaturalisação a
j»aizes estrangeiros, desertarem da bandeira
((ue já não é para ellas o symbolo de nenhuma
gloria, mas um sudário d'infamia confessa:
e nas cidades, a canalha d'inernies, arrastada
pelo remorso ao tribunal das suas instantâ-
neas consciências, debater-se entre epliemeros
Ijrotestos de vida nova, p'ra que já não ha fé,
nem illusões, nem probidade, e prestes amol-
lecer na chufa, indo servir de pasto ao des-
prezo da Europa, de que nós somos ao mes-
mo tempo a syphilis e a latrina. É d'esse.5
cntreactos que as estatísticas recolhem então
aos mOMO bêbados errantes, ás 20:000 ve-
sânias obscenas, exhibindo poUuções ignóbeis
pelos cantos, aos 400 suicidas fúteis, estilha-
çando os craneos por namoros infelizes e por
botas rotas, e ás 6:000 prostituições de rapari-
gas enfim, na mór parte arrancadas ás antigas
classes de trabalho.
De sorte que o salve-se quem jjoder, não
deve exprimir-se no momento actual, por este
M os GATOS
grito : (juem nos livra dos inglezes! mas por
i slc outro — quem nos livra de nós mesmos !
J de Sc tem hm.
Kcrmesses no jardim d"Algés, c no terrei-
ro dos Pisões, em Cintra, todas as (juintas-
foiras e domingos. As senhoras da alta, cuja
piíilantropica boa fé reverte a bons desígnios,
nos inlervallos que a vida elegante lhes deixa
para pensar nos pobres, parece haverem to-
mado predilecção por estas exhibiçòes de be-
Hcíiccncia, e previsto o partido a tirar d'um
loilelle fresco, posto ao serviço d'uma inten-
ção compadecida. Duas vezes por semana, ás
tardes, quando a velligiatiira d'aquellas duas
estancias da socéga burocrática, envergado o
vcston de tlanella, e o vestido de surah bor-
dado [tor i»aixo com ílòres acpiaticas e emble-
mas de regala, converge em ranchos aos lo-
j;ares de passeio, a digerir os croquclles do
hotel, é para as gentis vendedoras de sortes,
todo um regalo d'evideucia ede vangloria femi-
nina. Travestir-se cm muliicrinha de capcllis-
os GATOS 25
ta, só pelo prazer de sustentar o albergue dos
meninos cegos: que evangelisaçâo suprema da
bondade e da moral cliristãs!
Trocar por papelinhos enrolados, o vintém
da esmola publica, alli bem á vista dos repor-
fers e dos noivos: que interpretaç<ão sem par
na arte de fazer bem I Como é romanesco con-
tinuar S. Francisco de Paula, sob uma tenda de
lona, ao som da Porttigncza, e com diamantes
de cem libras nas orelhas! E o prazer virgi-
nal das que conseguem fazer sahir um pali-
terio de porcellana, a um saloio que se ache-
ga com um tostão na ponta de dois dedos —
— Oh senhora, passe p'ra cá cinco sor-
tes. . . agora não m'intruge! — d'essas maio-
res.
A alta comedia do coquettismo, que todas
representam ao balcão da barraca, em Rei-
chembergs consummadas, e que rejuvenesce
as mães, ao tempo que dá realço á gentileza
pallida das fdhas, bastaria a um psychologo
minúsculo, para a factura d'um livro raro de
confidencias sobre a variabilidade e a estra-
nheza d'isso que tem por nome, elerno femi-
nino. Nunca como hoje, a moral de Jesus ser-
viu de disfarce a mais iiuiocentes falcatruas,
2G os GATOS
110 ponto cm qiie a religião e a modista se '^' >
(I braço pai'a a mesma conspiração de /L, a
niundanismo.
Por ventura algiuna vez snccederá, que ao
venderem sortes para os pobres, muilasd'essas
eucantad()i'as kermesseiras pensem menos nos
pobres, do que em si pnqjiias.
— Caridade bem entendida, dizia o rifão...
c para bastantes rezulla tornarem-se os me-
innos cegos em Santantoniidios cazadoiros ; a
j)ontos que á força de vendei-ein sortes bran-
cas, uma ou outra se decide a dar-se alfim
ao tostão d'alguni conqirador mais aprumado.
Depois, essa pbilantropia em barracas de lona,
ao som das colondrinas de amor, é um sport
Ião barato! Com um par de jarras das Caldas,
(' algumas tardes de venda na kermesse, qual-
ipier princezinlia morena on loira, dasgrandes
lamilias, se arrisca a ganliar pela caridade, o
reino do cen, e pelas locaes mundanas do Luiz
da Costa e do Alberto liraga, uma celebreira-
sinba teri'ena, das mais guapas. E celeste e
económico. Maridos e jjapás exultam d'esta
pratica da pbilantropia a preços módicos. E
mesmo (pie as |)rendas não saiam, que a mu-
sica não chame, (pie a gaveta não pingue, e
27
<|ae a situarão ilos nieniiuis cegos não melho-
re, ao fim de dias e dias de kermesse, sem-
pre uma d'essas elegantes beneméritas podo
dizer ás suas amigas, alongando o momo do
lábio, em pinta de copas:
— Ali, vocês divertiram-se, mas eu! Todo
o lempi) da vilhígiatura a vender sortes. Mas
valeu bem a pena! Imagina lu, apurámos
treze mil róis. E com isto, não é verdade?
já se funda um liospilal. . .
■í de Sclcnihro.
Lá reuniu outra vez a sociedade auti-escra-
visla, e como no principio, poderia alguém
pensar que os pliillanlmpos agremiados á vóz
do snr. infante D. Affonso, antes de se decidi-
rem a impedir o commercio d'escravos na
costa oriental do continente africano, restrin-
gissem o seu raio de visão até outras escra-
vaturas mais perto, c que sendo brancas e
decorridas nas próprias bochechas da civilisa-
ção, lograssem tocar de preferencia a fibra hu-
manitária d'aquelles nunca assaz sensíveis pu-
ritanos.
28 os GATOS
Não succedcu assim ponhn, c haveremos
([ue pasmar das gigantescas labutas da nova
sociedade, que com duzentos ou trezentos só-
cios, alíacinlias todos, e sabendo a geographia
do João Félix na perfeição, se propõe fazer
guerra ás carregações de negreiros zanzihari-
tas, medeante o capital das quotas mensaes
(cruzado por cabeça), e uma entrada extraor-
dinária no tempo dds banhos, sem pagamento
de jóia.
Seja-nos então permittido supplicar a Deus
|)ara que com a sociedade anti-escravisla não
vrnlia a siicceilcr o mesmo do que com a so-
ciedade protectora dos animaes — benemérita
e estimada entre os seus protegidos, a ponto
de não haver cão que se não atire ás cancUas
do primeiro sócio que reconheça na rua; e
tão ([uorida dos cavallos de carroça, que ne-
nhum protector confia a estes aniiuaesinhos o
transporte das suas mobilias, nas epochas de
villegiatura, sem passar pelo desgosto de as vèr
em fanicos, n'a!gurua estrada diis arrabal-
des.
Kslou a ver a postura lyrica dos membros
da nova sociedade, pei'ante as misérias d'um
preto que elles nunca viram mais gordo, e
os GATOS 20
não posso deixar de me rir quando a comparo
á rispidez com que alguns tractam os seus
creados e subalternos, e á absoluta indifTeren-
ça com que todos vão consentindo n'essa es-
cravatura de portas adentro, que os trafican-
tes d"emÍLírantes exercem em pleno dia, em
todas as povoações de Portugal.
Que farcista está sendo entre nós esta en-
tidade que se chama o homem publico ! e como
lodos os seus actos obedecem a um toque de
tambor e a um pregão sonoro de barraca de
feira! A caridade de sua mão esquerda, é não
só conhecida da direita (ao contrario do que
o Evangelho recommenda) mas de todas as
mãos e pés do bairro em que essa mão dei-
xou cahir o pataco da commiseração, na ban-
deija de prata rejwussce que a ministra ou a
rainha lhe estenderam. Fazem o bem, não
pelo bem, nias como preço d'um coupon que
lhes é descontado depois, em moeda de metal
.sonante, ou de vaidade.
Estes anti-cscravistas Icmbram-me os faias,
que espancam as mulheres ligilimas, e andam
pelas tascas lamentando á guitarra as tribula-
ções da Severa. Diabos me levem se a maior
parte d'estes anjos da caridade do prelo, não
30
regateia do/ reis iio preço das camisas, á oii-
goininadeira pobre e carregada de filhos!
São pouco mais ou monos como um dcs-
avcrgoiduulo cpie eu coidioci na minha terra,
grande egoísta, abastado, c quo deixava o ir-
mão (|uazi cachetico, pedir esmola de porta
em porta. Todas as tardes, á chegada do coi--
reio, ia o mariolão de casa em casa, com o
Noticids na unlia, o ar desoi'ientado, a lagri-
ma latente, a voz n'um gorgolejo de soluços:
(í afrontando os amigos, os conhecidos, os sim-
ples indiUereutes, deixava-se cahir esmagado
de ilòr, n'uma cadeira.
— Ah, meus amigos ! que desgraça, ipic gran-
decissima desgraça !
— Que foi? Querem vòr que lhe morreu o
mano, coitadinho?!
— É aquelle pobre imperador d'Allemanlia!
o Frederico! que por modos não dá esperan-
ças nenhumas de vida. . .
5 de Siiriiiliro.
— O siu'. ilintze Filbeiro : espécie de cretino
cego, cujos óculos a pDlilii-a Ioukju por oi-
gãos visuaes. .\ quando estudante, como um
dos seus intimes, que voltava d'ltalia, se eu-
tretivesse a discretear sobre se a inclinação
da torre ile Pisa seria proposital, ou devida
a qualquer abalo de terra, o i;rande liomcni
interrompeu-o, dizendo :
— A um abalo de terra, sem duvida ! Olhe
as pyramides do Egypto . . .
— Armelim Júnior, escriplor vuliíarisante,
e conforme ellc mesmo declara, humanitário,
dando a lume um livro de Tabaco e iV álcool,
põe-lhe na frente esta dedicatória ao seu simi-
lar Luciano Cordeiro
«ao Jhn/anl diis lellrax palrias»
e esfontra ao prestimoso Costa Godnlphim
«ao dos mais oriíjinal ccunoin isluspojiicjiiczcs. . . •>
Está a gente a ver ctuno estas pécoras se
fazem logar na capelía mór, umas ás outras,
(ronde melhor possam mosti'ar as mamas aos
freguezes. Eh, mulhcrsiuhas ! Fora d'ahi, que
32
os GATOS
empulgam os tapetes. Não vêem isto? a fazc-
rem-sc plongeons, coino diiiiuezas. Ora os coi-
ros !
FIALHO D'ALMEIDA
OS GATOS
PUIiLICAÇÀO SEMANAL.
D'lNnLEUlTO Á VIDA POP.TLT.rEZA
\.Mõ — l^dfS.
:'mi)rij
SUMMARÍO
A ('Sj]oli;H'íio i)oi1ii?iiit'Zíi ihllit
(PAMPHLETO AOS FRACOS)
9 de Setembro.
Com o tralado auglo-portugucz de -10 d'íi-
gosto, que dois imbecis subscreveram sob as
vistas de lord Salisbury, nas condições de nem
sequer salvarem para o paiz, uma apparencia
de vantagem, embora graphica e platónica, ul-
timam as grandes potencias a realisação d'um
ideal, que desde o começo do século vinha
formulado pelos seus economistas e políticos
— qual o de se destruir a primitividade sim-
ples do negro com os esplendores factícios da
vida velha, e de se talar a Africa de ponta a
ponta, a pretexto de civilisação, com os fa-
mintos que perturbariam na Europa o syba-
ritismo dos ricos, e com os excessos de pro-
4 OS GATOS
ihicção para que já começavam a cscacear mer-
cados, na restante parte solida do globo. Esse
myslerioso recesso de bestas síilvagens, ás por-
ias da Europa, inacessível quazi por espaço
de i[iiati-o séculos á curiosidade d'outros au-
dazes que não fossemos nós, só logrou estlie-
siar a cubica das nações expansivas, quando
os mais continentes se adiaram impantes da
sua coionisação e da sua actividade. Emquanto
110 resto do mundo houve continentes onde
lançar fundamentos de civilisaçõcs mcrcena- .
rias, terras onde semear pão p'rá Europa
egoista, ílorestas de (|ue lhe construir navios
(! casas, minas (ronde lhe saccar o o\vo (pie
faz moeda, portos onde fundar cidades, raças
(jue supprimir e.jsnbjeitar à crueldade branca
(í tenaz do homem superior, a Africa per^nia-
iieceu fechada ás invasões dos povos marítimos
modernos, té que a sciencia interferiu a luz dos
seus diclamcs no sentido de rasgar aos olhos
(Tesscs povos, os lendários pavores que envol-
viam o incommensuravel território, para olferc-
(•erlli'o como ultimo celeiro *e como ultimo
acampamento. \ expedição de lionaparte ao
Egypto, (Tonde saliiram as explorações subsc-
qiientesdaAbyssinia, do Soldão Occidental eme-
os GATOS O
ridioiíal, e niiiis recentenienle, da abertura do
canal de Suez: a occupação ingleza do Cabo
(1815) feita á custa do estreaiinio completo de
duas raças aborigines, a cafre e a bottenlote:
a conquista dWrgelia pela França (1830) que
custou a vida a milhões d'arabes, seus anti-
quissimos possuidores; as explorações france-
zas da Senegambia : as tentativas colonisantes
da higlaterra no Golpho de Guiné, onde o mis-
sionário Saker tinha fundado desde 1858, a es-
tação Victoria, nas faldas vulcânicas do Gamc-
roun; e as tent;itivas colonisantes allemãs, ta-
teadas ás furladellas, desde 1851, na província
iTAdamaua e ribas do alto Benué, com o auxi-
lio d'algunias feitorias haniburguezas, etc, etc,
eis as primeiras tentativas serias das grandes
nações á partilha d' Africa (é claro que elimino
a occupação porlugueza, (|uc esta, além d'an-
tiga e fundada em descoberta, foi a única que
pòz a Europa no rastro na sua nova presa),
tentativas quazi todas circumscriptas á costa,
ou se([uer avançando sem metliodo, n'um meio
hostil, entre populaças hostis, quando já nós
vivíamos e pi-ocreavamos em toda a parte d'A-
frica, e (juando já os nossos negreiros c serta-
nejos faziam da lingua porlugueza, uma lin-
o os GATOS
i^ua geral, no iulerior, indo de costa a cos-
ta, sem receio dos massacres ou dos panta-
niis.
Sij nos últimos (juarcnla aniios, depois dos
missionários e traficantes propalarem a opulên-
cia interior da terra negi'a, é cpie o mercanli
lismo da Europa, batido pelas crises financiaes
que todos couliecem, caliiu em expedir-lhe
nm pessoal scientifico, e em lançar com me-
thodn as grandes linhas d'uma ex])loi'ação for-
in;d e producliva. N'essas expedições ia uni
pouco de tudo: o missionário adeanie curava
os enfermos c dava coitares de missanga ás
raparigas: seguia-se o engenheiro que estudava
os caminhos, o geólogo (juo perscrutava os
terrenos, o botânico que recolhia as plantas,
o agente commercial que suggeria necessidades
novas aos indígenas, e ia estudando a possibi-
lidade de futuros mercados; e finalmente o
enviado politico, que achando o regulo bêbe-
do, a mulher contente, e o povo cheio de tan-
gas novas, fazia aceitar a esses pobres diabos
o patronato incondicional da nação (pie o des-
tacara até alli.
Mas assim como no domínio costeiro d'A-
fi-ica fomos nós os primeiros senhores, e houve
os GATOS 7
(jiie nos pòr fora, quem se qiiiz installar de-
pois, assim nas travessias do interior, a cada
passo, francezes, inglezcs e allemães, comnosco
topavam, já aceitando agazalho e guias portu-
guezes, já seguindo as caravanas dos nossos
sertanejos, passando os reinos mais ferozes
sob as dobras da nossa bandeira, illudindo
as desconfianças dos régulos com interpretes
que llies faiiavam a nossa lingua — e por mais
longes terras que percorressem, qualquer o raio
do quadrante por que seguissem, sempre rninas
de fortes nossos, d'igrejas nossas, sensalas
nossas, padrões de posse nossos — por toda a
parte o nosso génio, a nossa lingua, a nossa
|)liysionomia antiga, e a nossa audácia! Para
aqueiles aventureiros orgulhosos, a principio,
o vestígio europeu do nosso passado, é como
um adeus de mão hospitaleira, dizendo-lhes
que entrem, e comam, e prosigam socegados.
Mas as primeiras agruras vencidas, perdido o
medo, esse aspecto da nossa grandeza moral,
único fetiche a que o selvagem d'Africa ac-
cende lâmpada, torna-se-lhes n'uma espécie
(robsessão antipathica, n'um fermento d'inve-
ja rancorosa, e desespera-os, e vira-os pouco
a pouco contra nós! É a rasão porque o tão
8 os GATOS
miserável quanto afortunado Stanley falia do
nós extático, a principio, paru nos achar de-
pois um povo de nei;reiros e bárbaros dissolu-
tos, e porque Camei'on, iírazza, e o próprio
Livingstone, tão anianteticos aijuando fruindo
os beneíieios da nossa iidlucncia colonial, des-
trellani a nos morder como mastins, apenas
logram saccar da quusi subserviente boa fé
das nossas ancloridades do ultramar, quanto
lhes pôde servir nas suas para nós traiçoei-
ras travessias. Ao inglez sobretudo, estas coi-
sas irrit;ira-lhe a vaidade, porque nós somos
o seu remorso vivo, a Irlanda tropical que
elle persegue e rouba desde o reinado d'Atlbn-
so V, e porque o nosso abatimento ao fim de
(juatro séculos de ciladas, de hy|)ocrisias e de
traições, é obra sua.
De longa data os seus corsários seguiram a
rota dos nossos galeões, á caça de terras ({ue
nós descobriamos, e que poi- mal guarneci-
das, elles muitas vezes assaltavam. Qiumdo
das costas, os nossos |)elouros varriam a in-
juria da pirataria arvoi'ada em fonte de receita
official da rainha Eiizabeth, a ladroagem bie-
tã fazia-nos esperas nos mares, batendo os ga-
leões que vinham da Índia, c alardeando pu-
os GATOS l>
blicameiíte ostas iiilaniias, com eiivaidecimeií-
tos de ([iioin celelira feitos prestigiosos, (a)
Knfraqiiecida a metrópole, a aiiloiiomia e.\-
lincta em lOiO, por factores similares dos que
nos estão cavando a sepultura, o inglez acha
o nosso império colonial ú sua espera, e alii
se installa, como hoje está fazendo ao que
até'gora conseguira escapar das suas repreza-
lias. Na índia como na America, na Oceania
como na Africa, o seu papel consistiu quasi
(,i) (c relbrçou-se o corso, e legalisou-st a pi-
rataria n'estas costas pela protecção official da grande Iza-
bel. E quando em 1580 o colosso portugiicz baqueou, en-
fraquecendo-se e esfacelando-se nas mãos da Hcspanha, a
caça e a ceva no commercio e navegação nacionaes, to-
maram o aspecto furioso d'uma guerra de morte. Assim
cahiram os galeões da índia, e com elles a riqueza e a scien-
cia da navegação do oriente, nas mãos dos Fenner, Pos-
ter, Whiddon.Dracke, Bird, Newton, Cumberland, Gren-
will, Flycke, Frobisher, Howard, e outros, que desde 1581
a 1591, sepultaram nas ondas a marinha portugucza. Con-
ta Linschoten que só no anno de 1589, de mais de du-
zentos navios que então recolhiam a Portugal ou á Hes-
panha, apenas quatorze ou quinze escaparam ao furor das
ondas, ou ás armas dos inimigos Esta opposição, se
por um lado os demorava, por outro os enriquecia, por-
que os obstáculos que desviaram os inglezes da índia,
10 os GATOS
fxcliisivarniínie cm ospiar-iios os i)assos, e em
se apropriar da casa feita. Ouamlo nos viu
i)em (iespreziveis de fraqueza, deu-nos liypo-
critanieiilo o braço, como faz um lierdeiro
avulso ao sopezar o ultimo alento vital d'um
velho millionario. Assim, cuidando (pie elle
nos amparava, protegendo essa tolice enorme
da llestauração de lOiO, o que fizemos foi
l)crder pela segunda vez occasião de sermos
cnini largamente recompensados pelas riquezas que arran-
cavam aos portuguezes. Este proveito era tão real, tão se-
guros eram os lucros, que se o negocio dependesse da sua
escolha, a Inglaterra, diz um escriptor britannico (Hack-
luyt) teria de boa vontade renunciado á vantagem de for-
mar estabelecimentos na índia, contanto que lhe fosse
conservada a de saquear os navios portuguezes, cuja to-
madia se avantajava a todos os lucros do commercio.
E continuou saqueando-nos até 1)9), anno em que
a concorrência da Hollanda, que mandara ao oriente a
frota de Jehans de Molenaar, por ventura determinou a
rainha I/.abel a enviar á China barcos inglezes. Entretanto
mandavam-se e mantiiiham-se espiões muito hábeis, que
partiram mais d'unia vez nos próprios navios portuguezes,
para observar o estado do nosso poderio e a disposição
dos mares »
(O siir. Carlos de Mdlo, Os inglezes na Africa aus-
tral, pag. 8.)
os GATOS 11
Ibries, embora (routrem, ecaliirnios para sera-
|ii'e nas suas garras tralbatróz, aceitando o
martyrio de quolidianamenle lhe abrirmos as
nossas artérias, porque elle beba á farta o san-
gue estrangeiro de que se nutre. Então como
b.oje, o seu processo comnosco, não tergiversa
um momento do desprezo sardónico que um
carrasco vicioso deve ávictima, e da carniceira
rlnniU((je com que um ladrão de montanha trá-
cia um viajante. É sempre no intuito de man-
ter comnosco cordenes rcltições ú'((mistíde, que
essa desprezível canalha ingleza nos põe a faca
aos peitds. Sempre por nos dar mais um pe-
nhor da sua ternura como antiga alliada, que
cila se decide a nos roubar annualmente uma
colónia. Ameaça-nos a rir, cava a nossa ruina
com o ar de lhe íicai'mos inda por cima agra-
decidos.
E eis (jue chegada a hura de partiliiar de-
finitivamente a Africa, a Africa de que nós
éramos não já um senhorio, mas politicamen-
te uma dependência, a Africa que nós mariti-
mamente tinhanuts circumscripto, descoberto,
sulcado, occupado, civilisado, a Africa, sonlio
colonial da Kuropa moderna, ha /tOO annos
nossa, todas as naçues marilimas sentadas de
1 -2 os GATOS
roda (lo inappa, talliaiii a seu gosto o domí-
nio qno, nicllior condiz ás suas pretendidas
aptidões civiiisanlcs — a Ilaiia eonio a Kranea,
a llel.uica como a Aiiemanlia — c (piasi todas am-
pliando á custa das nossas, as suas occupa-
ções! Só por niercc de (tmisade Iri-secular da
ladra (pie o protege, Portugal tem d'assistii'
ininiovel a este pasto de feras, consentindo o
leilão do seu património histórico, e snbjei-
tando o que lhe íica a um regimen de subser-
viência, que o próprio negro repelliria de si
com indignação !
Ponjuc é de saber que n'esla [larlillia
dWtrica, Portugal e.\|)ia não s6 os desinazeilos
e os erros da sua incapacidade colonial, como
lambem paga em terras e dominios, as indein-
nisações impostas á Inglaterra pelas demais
potencias, ([ue desde 18<S."$ lhe teem relreado
as sollVeguidões africanistas. A nossa inlamis-
sima alliada é como estas megeras que es-
pancadas pelos homens, cevam nas creanças
a raiva de se não poderem vingar de quem nas
agrediu. Em quatro palavras direi do modo
porijue as suas ukloria.^i diplomáticas na par-
os GATOS 13
tillia (rAIVica. lho aziumaram o rancor contra
ti nossa peíiuenez. Aijuellas victorias explicam
de feito o caracter cruin paiz sem dignidade,
manhoso c mau, usurário e poltrão, que ten-
do como raiz histórica o latrocínio, em vòz
(Toccultar estes atavismos psychicos d"origem,
galanca ao contrario na cultura d'elles, man-
(lando-os publicar pela bocca dos seus philo-
sophos, e traduzir oní milhões, pelos golpes de
mão dos seus políticos. Todos se recordam
talvez da questão dos Camarões, desfechada
cm 8.'3, entre a Inglaterra e a AUcmanha. Os
('amarõcs são um território dWfrica Occiden-
tal, no fiiiido do golfo da Guiné, onde os in-
glezos tinham estabelecimentos desde 1858.
Ahi estava a estação Victoria, hoje allemã,
fimdada polo missionário Saker, e d'onde sahi-
rani dezenas e dezenas d'esses fanáticos esco-
cezes, que conforme lhes serve, accumulam si-
inultaneanionto as profissões mais antagónicas,
desde pregadores alô escravistas e caixeiros
viajantes, e aos quaes a Inglateri'a deve a bem
dizer toda a sua occupação na terra d'Africa.
No paiz jacente, um dos mais férteis e admi-
ráveis do mundo, a iniluoncia brifaunica fora
definitivamente lançada desde 1880, n'um raio
I '(■ os GATOS
de muitas niillias, graças á viagem do cnnsiil
llevett, oflicialmonte investido da missão de
passear a ijaiidcira nacional por toda aquella
zona, o de distribuir cartas de protectorado
aos chefes bárbaros que assim viessem recla-
mar. Vae, quando o perimetro da nova pos-
sessão britannica estava sendo demarcado, os
mastros erguidos nos limites do campo, os
postos militares assentes, eis que a Aliema-
nha cliega c intima á Inglateira o despejo do
paiz, allegando titulos á província dWdamaua,
ao rio dos Camarões, e a grande porção de
terras circumvisinhas. Alt' á dala da reclama-
ção, a Allemanlia apenas contava n'aquclles
sítios, feitorias de casas hambnrguezas, d'al-
guma monta, mas isoladas, isso entretanto não
fez fraquejar a exigência de Bismarck, que no
mesmo anno, estando as negociações inda pen-
dentes, expediu para o paiz cm litigio um func-
cionario encarregado de negociar protectora-
dos com os indígenas subjeitos aos inglezes,
ultimando a demonstração no anno seguinte,
com a missão do dr. .Naclitigal (188i) cujas
instrucções agora visavam não já somente a
annexação d'Adamaua áAllemanha, como tam-
bém o paiz de «Togo», todo o litoral mcdeantc
os GATOS 15
ontrc o delta do Xiger c o Gabão, na baliia de
IJiafra, c assim o vastíssimo districlo d'Angra
Pequena, ao sul de Mossamedes, entre o Ca-
bo Frio e o rio Orauge, n'am precurso de du-
zentas léguas sobre o mappa.
Estas instrucçõcs foram cumpridas stricta-
mente, e em cada ponto onde o pavilbão ger-
mânico era arvorado, accorria o protesto do
cônsul britanuico — sempre Irop t/ml! Os resul-
tados da expedição Nachtigal foram conbeci-
dos na Europa em agosto de 188 i, epoclia em
que o inglez se esfolfava em reclamar para
Berlim, exigindo não com ultímatitns grossei-
ros, mas por palacianas formulas de cobardia,
a restituição das terras que a Alleraanha Ibe
usurpara. Exigências baldadas, como as nos-
sas! Bismarck respondia sempre que a AUe-
manba já notificara aos governos a occupação
da bailia de Biafra e d'Angra Pequena, e que
o pavilhão do seu paiz, uma vèz erguido, não
se arreava nunca. Tudo quanto a Inglater-
ra conseguiu, foi uma famosa zona de respeito
ao deredor da estação Victoria, nos Camarões,
semelhante á que nos pòz de roda do Zumbo,
c um pequenino quadrado de terra na cosia
d'Angra, onde ficaram encravados os estabe-
IO os GATOS
l('i'imonlos iiiglezes de Walfish-IJay, de pouca
inonla. Tudo o mais íicou germânico, c aqui
está o Ireclio do despaelio em que iord Graii-
viliesc esparrailia, em nome da liiiílalerra ba-
tida, aos pés do chauceller » . . ipiando o go-
verno de S. .M., lajjorando um projecto sns-
lado antes de conhecer o interesse qne pren-
dia a Allemanlia, á costa Occidental dWfrica,
julgou conveniente collocar sob a sua sobera-
nia OU protecção, os territórios d'entre a bahia
dWnibas e os limites da colónia de Lagos, por
ceiio que elle )i('io linha n menor intenção ou de-
sejo lie se interpor ou jieturlmr a e.rtensõo, e o li-
gitimo acréscimo das acquisições allemãs nos
('.amann^s. () governo de S. .M. declara-se pois
mais uma vèz disposto a regular por nni ar-
ranjo local, as fronteiras dos dois estabeleci-
mentos, e prestur-se-liia no exame da questão
no sentido d' um espirito, o mais amiqarel e con-
ciliador. »
O e-spirilo coiiriliinlor da Inglaterra levou-a
pois a sollrer da AlliMuanha, na Africa Occi-
dental, um rude elunpie, com o sorriso ama-
rello e o espiniiaço curvo dos vis animacs que
só cadáveres eslaçalbam.
Vamos vèr agora como eila, na costa oricn-
os GATOS i7
tal, não teve mais coragem. Em 11 crabril de
1880, três allemãcs enérgicos fundaram em
Berlim uma sociedade de colonisação, appro-
ximadamente pelos moldes e intuitos da fa-
mosa Sociedade Colntiinl Allewd, a que líis-
marckdéra, desde ^-2, poderes descricionarios.
A terra namorada para campo d'explorações,
estendia-se dos limites norle de Zanzibar, té ao
Nyanza, e aos campos vagos (jne d'alii por dean-
te a sociíNlade podesse ir occupando. Partiram
em setembro d'essc anno. O chefe era o ilr.
í*eters, tendo por immedialos, .liddke, homem
activo, e o conde Pfeil, cujos estudos yXufri-
cander já muito antes tinham alcançado noto-
riedade. Internados em Zanzibar, mau grado
as difficuldades impostas pela Inglaterra, pro-
tectora do sultão, em alguns mezes conseguiam
colher vassalagem dos chefes das províncias
norte, tributarias do sultaiiato, tomando qua-
tro, quero dizer, I.MliOOO Uiloinetros quadra-
dos d'area, para o senhorio da Alioinnnha im-
perial. Peters veio logo a llrrliiii referendar
os tratados dos chefes (era iio dia seguinte á
assignatura do acto geral da conferencia do
Congo) c tornou a Zaiizii)ar munido de creden-
cias, onde o imperador Guilherme conferia ao
-18 os GATOS
seu eiiviíulo auctorisação p:ira oslciidcr a sobe-
rania allemã a todos os teiTi tórios que a so-
ciedade possuia, ou viesse a possuir, na Afri-
ca oriental. Esses territórios tomavam de mez
pai'a mez, dimensões extraordinárias, e como
os dominios do sultão não tinham para o inte-
rior, demaixação digna de credito, a AUema-
niia reduziu-os, por uma combinação diplomá-
tica complicada, a uma estreita facha de dezoi-
tos léguas de largo, com as ilhas jacentes à
costa, revindicando o resto. Ora esse resto é
desconfoi-me. Siiltanato de Witou, costa dos
Somalis, iiilfiliiiid zanzibarila indo da fóz do
Rovunia ao Nyanza, ao Xyassa, ao Tanganyka
e á cordilheira de Kilimauiljai'0, islo é duas
Allemanhas inteiras, tudo islo ([ue a Inglaterra
prolnjid, ludo a Allemanlia anuexou a si tran-
(piiilaniente! A (i de março de ISS."), noia de
Hismarck a lonl Ciranville, coinmuuicando-lhe
o protectorado allemão das quati'o províncias
a oeste de Zanzibar, e reclamando para ellas
«as vantagens assignadas aos territórios inclu-
sos nos limites da bacia convencional do
Congo, pelo capitulo iii do acto geral, relativo
â neutralidade.» Eia pela segunda voz, uma
provocação em lermos firmes, resoluta, como
os GATOS 19.
que ilistrahidamente lançada, e a esmagar por
isso mesmo o orgulho inglez a toda a altura.
Uma nação generosa levantaria a luva para ti-
rar desforra violenta. Mas a Inglaterra não se
bate. E lord Granville, uma espécie de Ilintze
líibeiro inglez, na proza d'escarros enguli-
dos que o medo dá aos diplomatas derrota-
dos «... que o maior desejo do governo de
S. M. era evitar conílictos d'interesses, como
o que se teria dado na questão d'Angra Peque-
na, se a Inglaterra não tem corrido a apani-
gual-o.»
Poucos annos volvidos sobre os factos nar-
rados, a Africa tornou-se, já disse, o grande
campo de feira da futui'a actividade colonisan-
te da Europa, e não resta d'ella hoje um pal-
mo de terra fértil, onde uma potencia colonial
não tenha posto a sua insígnia. Platós cen-
traes, costas, montanhas, rios, lagoas, tudo a
febricitante cubica de três ou quatro nações
repartiu entre si furiosamente, pelos recentes
tratados diplomáticos, — as fortes esgatanhando
as fortes, com as patas sobre o peito das mais
fracas, as manhosas deixando ás simples a
guarda dos bocados que ora não podem abar-
car, e jungindo-as a si de pés c mãos, té ao
20 os GATOS
(lia iMii (iiif alijadas de inúres encargos, livre-
nieule possam apropiíKjiiar-se calão esses de-
pósitos. Assim a Allemanha, (pie ha dt^z aii-
nos não tinha unia pollegada de terreno fora
da Kuropa, depressa ganhou o tempo perdido.
Talhou para si na Africa oriental e central,
entre o Oceano indico c os lagos interiores,
uin magnifico império. É senhora do caminho
dos grandes lagos, e as futuras índias africa-
nas pertcnccm-lhe.
A Inglaterra, installuda no Egypto, q\ie não
abandonará, adjudicou-se o immenso valo do
Mio, desde a nascente até á foz, desde Ougaii-
da at(j ao .Mediterrâneo. Tem Zanzibar. Domi-
na em toda a Africa austral. Vae despojar
Portugal de todas as suas possessões de es-
te a oeste, e lançar mão ao Zambeze. O Con-
go, estado independente sob a sobenmia do
rei dos belgas, pai-ece destinado a caliir tam-
bém na mão da Allemanha. Deixarão a llalia,
já inslailada em Massouah, apoderar-se da
Abyssinia (piando poder; Marrocos e Tripoli
são territórios reservados. Um convém á lles-
panha, outro á llalia. A Fran(;a, essa penetrou
no continente africano por (piatro pontos: a
Argélia, o Senegal, a costa da Ciuiné e (iaiião.
os GATOS '21
E quanto a Portugal, pelo Irafado de ^0
(fagosto, fica sendo uma feitoria de reserva,
como o estado do Congo, como o TranswaI,
como Zanzibar, como a republica d'Orange,
até que a Inglaterra apanhando as collegas a
braços c'as primeiras fadigas da sua nova exis-
tência ultramarina, encontre ensejo para nos
correr de Moçamliique e d'.\ngola, a pontapés.
A obra africana está pois lançada em vas-
tos alicerces, e menos de seis annos bastaram
ao lançamento dos titans que a vão escorar.
A inecialiva é formidável, e pcrgunta-se hoje
de quantos séculos leria avançado a florescên-
cia da America, se uma conferencia de Ber-
lim tivesse podido presidir aos seus destinos!
Sem perscrutar agora se a civilisação europea
será proficua ao negro, ou se eile haverá que
ser anitjuilado, como o indígena da Austrália
e da America, sob o egoísmo feroz dos inva-
sores, é evidente que a partilha d'Africa en-
tre as potencias deslocará o centro de gravi-
dade dos interesses do mundo, para este ini-
porio novo, cm guiza de o tornar palco d'unia
acção collectiva estonteadora de pujança iu-
-211 os GATOS
(luslrial c fiiuiiiceira. E alliiii |)eri;iiiila-se : sa-
hirá cristo a redcinpção (rum coiUiiiente e
d'uma raça? É problemático. Mas quando sa-
liisse, a apotheose d'tuna Ião bella obra não
deixaria nunca de vir polluida na origem, pe-
la brulalidade insólita dos árbitros, (|iie só se
julgaram satisfeitos no dia em que negando a
I'orlugal aptidões civiiisautes, llie cercearam
lerrilorios, sem res|)eito aos postulados do di-
i'eilo, e Ibe Cíiuipararam a sohcrauia de poten-
cia ás que regulam os bárbaros da Matal)i'llia,
da i'epublica d'Orange, c do Zanzibai'.
A nenbnm portugucz cega tanto o orguMu)
IKitrio, que no fundo da sua consciência se não
tenha sentido merecedor d'este castigo, já
pela baixa de nivel que a dissoluta monarchia
determinou, de 1040 para cá, no espirito da
nação, já pelo advento das sciencias e artes
(i"applicação com que outras nações transfor-
maram a face do mundo, emquanto o nosso
génio pai'ava, e a tyrannia ou o soborno ré-
gios abriam as veias ao que nos Testava ainda
(Tenergia. A grande verdade é nós sermos hoje
nWfrica um estorvo para toda a gente. O nos-
so passado humilha, pela avulsa loucura e
pela falia de plano ulililariu, o caracter de
os GATOS 23
ilações que como a Inglaterra e a Allemanha
vsó comprehendem a audácia filha d'um cal-
culo, e a heroicidade como receita para sa-
quear um povo, ou lançar mão ás bagagens
d'um exercito. O nosso desinteresse eno-
ja-os, a nossa fra(|ueza tenta-Ihes a cubica; e
persuadidos de que o nosso papel histórico
termina, do que tractam é de nos tomarem o
logar. E hemos que ser expulsos breve! E
urna coisa jurada na maçonaria das explora-
ções que talam a Africa, nos paragraphos se-
cretos dos convénios havidos nas capitães eu-
ropeas, sob a égide de reis e chancelleres,
nas assembleas das parcerias inglezas e alle-
mães, com direitos d"estado, por toda a parte
enfim onde um saxonio e um teutão minazes,
assistem nWfrica, ao esiireguiçar d'um portu-
guez.
De sorte ((uc seria muito, aguardar que o
talento dos nossos estadistas conseguisse var-
i'er do futuro a catastrophe terminal, prenun-
ciada, visto como disse um delegado belga na
conferencia de Derlim «quem pretende fjivo-
recer uma inércia particular, em detrimento
do desenvolvimento geral, fere-se a si mesmo,
o condemna-sc a morrer de morte vil.» Ouan-
l'* os GATOS
iloimiilo, a nossa acção diplomática, o que po-
deria fazer era relegar para mais tardo a ex-
piação, crear um inodii.-: riremli, sem subser-
viencias nem prosapias, em termos do tpio o
paiz não podendo já est;irrecor o mundo por
grandes feitos, se limitasse a lhe captar a sym-
pathia, á força de dignidade sabia e de labor.
O que acontece, sabemol-o todos, e para se ter
a medida do tratado anglo-portugiiez de "20 d'a-
gosto, basta dizer que o snr. Ilintze Ribeiro c
o snr. Barjona do Freitas, acceitaram de lord
Salisbury um documento que este foi copiar,
nas suas linhas máximas, ao convénio quo o
sultão de Zanzibar arruinado, acceitou da Bri-
lisli Ea.sl Africain Asiociatiou, caíila d'uzura-
rios reunida para fazer dinheií-o dos deboxes
do tyranno, tomando-lhe de penhor os seus
estados. Como ó presumível quo pouca gente
creia no meu dito, vou ti-aduzir d'Kmile Ban-
ning, (IjJ o que se refere ao tal conveiuo.
llão-de gosliir. «.Vlguns mezes depois da tran-
sação havida com a .Ulemanha, os promo-
tores da expedição de soccorro dirigida por
Stanley, fundaram, sob o titulo The British
(h) Le parLigc pohlique Je V Afrique, pag. 56.
os GATOS -ib
E((st Africain Assúcialiou, uma companhia des-
tinada a rivalisar com a allemã. Esla socieda-
de, cujos primeiros lineamentos appareceram
n'um despacho de lord (jranville, em maio de
1885, tomara por hase um tratado de cessão
que Johnstone concluía a 27 de septemhro de
188i, com os chefes do paiz de Kiiimandjaro,
tratado enviado por elle ao presidente da ca-
mará do commercio de Manchester. Munida
d'este titulo, e desenvencilhada de toda e qual-
quer complicação com a Allemanha, por ac-
coi'do de -2U d'outubro de 1886, a nova com-
panhia decidiu \o'^ú assegurar-se livre accesso
ao (Jce<mo Indico. Em maio de 1887 alcançou
do sultão uma concessão importante. Em vir-
tude do acto assignado enti'e a Inglaterra e a
Allemanha, este princii)e ficava senhor, desde
o líovuma até ao Tana, d'unia facha de terra
costeira, de 18 léguas de profundidade. A sua
auctoridade, exercida em condições pouco elfi-
cazes, podia em certas circumstancias tornar-
se n'um verdadeiro obstáculo. A companhia
pois, que fez? SubsUtuiu-se ao sultão, por con-
tracto de "li de maio de 1887! Pelo prazo de
50 annos, ella encarrega-se, em nome e sob
o pavilhão de S. A., da inteira administração
-m os GATOS
<los seus (loiniiiiii?-. A soritMlado podo fazer
leis e rogulanieutos, estaholecer impostos, or-
ganisar a força publica, crear tribuuaes, pro-
ver sobre a navegação. . . Nomeia agentes, co-
mo juizes, tracta com os cbefes indigcnas, dis-
põe das terras, fortes e edifícios públicos, tem
a aíbniiiistração dos portos, fixa as tarifas al-
landc.yarias, assim como outras taxas (salvo
direitos adquiridos por terceira potencia) e re-
coilie as rendas, com obrigação de lançar no
lliesouro do sultão o excedente total dos direi-
tos d'cntrada actuaes, com mais 50 "/o do
[troducto das novas taxas. A companliia adqui-
re prcvilegios exclusivos para a venda ou lo-
cação de terras, pesquiza ou exploração de
minas e florestas, construcções d'estradas, ca-
naes, caminhos de ferro, ctc, reservando-se
a faculdade de j)rolnbir a importação de certas
mercadorias, como armas, munições de guer-
ra e licores embriagantes. Passados os cin-
coenta annos da concessão, o sultão ou seus
herdeiros podem, meilemtte soilenm (rtnbilros,
retomar os estabelecimentos que havia entre-
gue á coinijanhia.»
A área d'acção da comiianliia ingleza, cs-
tendia-se entre ^\'au^a e o Kiiiini. V. como tão
os GATOS "-II
exorl)it;mles concessões escaiidalisanim a com-
panhia colonial allemã, inimiga d'ac[uella, foi
o sultão coagido a ceder á primeira, os privi-
légios da segunda, nos lerriforios ainda livres,
isto é, n'unia facha costeira de 18 idiometros,
que medeia entre Tungue e a Wanga: e assim
íicou todo o Zanzibar, ilhas excepto, acorren-
tado ao dominio d'europeus !
Queiram agora pôr a par os dois convé-
nios, o do sultão Bargash com as duas com-
l»anhias coloniaes (que pouco tardará sejam
investidas de soberanos poderes, pelos gover-
nos das nacionalidades respectivas, e no limi-
te das concessões havidas do tyranno), e o do
sultão Bragança com o governo inglez: e di-
gam-me depois se ambos elles não são con-
cebidos no mesmo espirito absorvente, e di-
clados do mesmo fundo de desprezo abso-
luto.
Em Moçandíique como em Zanzibar, é o
inglez quem dieta a viação, com engenheiros
seus, e um praso iFespera que nem chega
para o transporte do mateiial: é o inglez
(piem estipula a forma de percepção e a cifra
dos impostos, (piem impõe as dilTerentes li-
berdades de commercio, (Fensino e de reli-
28 os GATOS
i^ião, c iiiiõin fiiialmcnlo, solirc o Icnilorio
sem fim por nós possuído ha quatro séculos,
circuinscrcve, n'unia oila (l"areia, com a poula
do seu chicote, a espécie de (juintalorio (jue
apenas nos quer recouiiecei'.
Com a dilTerença que para ZanzilKir o con-
vénio tem vantagens, pelo menos correspon-
dentes aos encargos esmagadores que o trata-
do de 20 d'agosto nos acarreta.
Lá o saltão recehe dos arrendatários di>
seu paiz, uma quantia annual mais que bas-
tante ao costeio da sua pessoa, guarda e bens.
Não faz estradas, não i)aga exércitos, não or-
ganisa policia, nem pensa em edifícios públi-
cos. Deixa correr. Km Moçambiíjue, nós pa-
garemos tudo, faremos tudo, só pai"a a Ingla-
terra enthezourar. Somos portanto vinte vezes
mais espoliados do ([ue esse sultanato bárba-
ro, que é a bestiaria do negro na vcrmiiia
contaminadora do árabe. Este o tratado nas
suas consequências inunediatas, cuja explana-
ção já demos n'outro numero. Para a aprecia-
ção das consequências remotas, traduzirei o
que o Tifties escreveu (piando em 87 chegou
a Londres noticia das concessões da Brilish
East Affiniiii A-'isorii(lÍUIl.
os GATOS iiO
É illucidaiite, c escusa a gente de prozar
iiiedilo a respeito da obra Darjona-Fife e Ri-
beiro de .Melewen. «... as coiiseciueiicias
politicas e commerciaes d'estas transações são
evidentemente o ciiamaniento de mais uma
vasta região á coroa ingleza. Findo o praso
dos cincoenta annos, a que não é temerário
assignar prorogação illimitada, a soberania do
sultão terá cessado de se exercer directamen-
te sobre o continente africano, e ficará redu-
zida quando muito ás ilhas, té ao dia em que
a lunlaterra se lembre de lh'as tirar.»
De certo. A liga da civilisação para a con-
quista do continente negro, expulsa-nos do
si, e da mesma cornada enrodilha-nos com os
(3stados bastiães que fazem nódoa. E necessá-
rio, diz ella, que a regeneração do selvagem
<rAfrica não tenha por obstáculo o selvagem
da Europa, (jue nós somos. É em nome da
humanidade que a Inglaterra pede aos estados
a nossa ruina, e os estados acquiescem, con-
vencidos de ([ue mesmo prestando-se a locu-
|)letal-a co'a nossa herança, servem com isto
o bem da luimanidade.
30 os GATOS
Para que da acrfio solidaria das grandes-
potencias sahisse uma occupação formal de
toda a Africa, houve que perfurar as trevas
lio incommensuravel continente, como se per-
furam os túneis, attacando simultaneamente
da periferia para o centro, e vice-versa, por
forma a encontrarem-seos dois partidos d'obrei-
ros, n'um cerlo ponlo. A Iviropa já occupava
a bordadura maritima. D'uma l)an<la a Fran-
ça, a Inglaterra, a llespauha, a Itália, cingiam
pelo norte, por este e por oeste, o desconforme
plaino sudanez. D'outra banda a Allemanha,
a Inglaterra e Portugal curavam d'atacar a pe-
nínsula africo-austral d'ao sul Zambeze. Falta-
va um centro d'acção para onde fozer conver-
gir na pêra africana, o gorgulho civiiisação
ijiic SC llie collára á superfície.
Esse centro foi o estado livre do Congo,
outra potencia feita de restos que nos rouba-
i"im a França, a Allemanha e a Inglaterra,
conluiadas, e jiiular-se-lhe-ha agora, com o
tratado de riO (Tagosto, o império que a In-
glaterra nos sequestra, paiz fabuloso, uma se-
gunda Austrália, ou seja em números redon-
dos "200:(I00 kilometros de ferras sobre qufr
exercíamos auctoi'ídade e occui)ação ellectiva,.
os GATOS .jI
com mais 130:000 d'esfera irinfluoncui. Para
a Inglaterra, a posse d'esle império é uma
questão de vida ou de morte, porque todo o
seu empenho é contrabalançar a expansão alle-
raã, que será prodigiosa e irresistível, princi-
palmente passando o Congo belga (questão
(Valguns ânuos) ao escrínio imperial. Quem
procurar no mappa lybico as possessões fran-
cezas, italianas e hespanholas, fácil verá que
a colonisação africana do sul e do meio-dia,
verdadeira sede do grande empório que se
prepara, expulso Portugal das duas costas, per-
tence de futuro á luglalerra e á Allcmanha.
Será uma lucta extraordinária e gigantesca,
acirrando sob o clima tórrido, as rivalidades
d'esses dois povos hegemónicos. E não nos il-
ludamos um instante: dez annos bastaram
para o inglez e o allemão nos desapossarem
da terra negra, pelo menos nas zonas que por
agora mais quadram ás suas installações fun-
damentaes. Pois bem ! não passarão cinco que
clles nos não tenham desapossado também do
amor do indígena, sendo-lhes fácil desde es-
se dia correr-nos a pontapés de toda a ban-
da. O plano colonial das duas potencias (; tão
vasto. Ião poderosamente escorado, tão Iogico>
32 os GATOS
tantas cabeças solidas o cultivam, tão fortes
braços lhe lançam os inicios, tamanhos fervo-
res o pregam como cruzada santa, ás popula-
ças sedentas, ijue pelo que nos diz respeito,
só um gabinete diplomático gi>uial como o d.^
liismarck, fazendo mover um povo de trabalha-
dores com a tenacidade escoceza e teutã, fundi-
da:; n'uma, poderiam salvar-nosda vergonhosa
retirada que o principio do século xx nos re-
serva em Africa. — E esse gabinete, não esque-
çamos, c o do snr. José Luciano ou o do sni'.
Serpa Pimentel, e esse povo é a preguiça, o
dcsmazello, a iudifferença cinica em pessoa !
Especialmente o plano inglez, é uma obra
sazonada por séculos d'estudos, de combina-
ções diplomáticas, gastos sem conta, sacrifí-
cios. Foi necessário mascaral-o de dedicações
humanitárias, tingir horror pela escravatura e
pela barbaria, provocar conferencias, refundir
(I dii'eito internacional de fond-cn-comble. E
quando elle se desenha em toda a sua vastidão
de colosso nascente, quando elle brota do me-
donho ossnario dos nossos exploradores e dos
nossos missionários, que ninguém conhece,
apto a deslocar a fome iugleza pai'a longe da
sua illia ncvociila, i|uauilo elle se antolha aos
os GATOS 3.1
economistas da Gran-Lirctanlia coiiifi um sor-
vodoiío inédito de prodiicção industrial, ima-
íiinaria aiirnem que seriamos nós, povo de som-
no, ljisI)oiTÍas sem resistência nem vontade,
que entravai'iamos a marclia do elefante inglez
carregado d'espingardas, do capas de bori-a-
clia, e de fardos d^algodão? !>onca estnilicia!
É vèr logo na origem das discussões luso-in-
glezas, a natureza dos motivos (pie as duas
partes alegam á posse dos territórios litigiados.
A Inglalei-ra ipier a Mashona e o Cliire pelo
futuro de alii derramar commercio, fundai' ci-
dades, e fazer homens activos. Portugal ipici' ,i
.Mashona e o (Ihire, principalmente porque alli
pelejaram os seus lieroes do século xvi e xvii,
isto é, pelo passado. Por isso affirmoi que nós
somos n'.\frica um estorvo a toda a gente, {'
que imjirogressivos e orgulhosos, hemos íjuií
ser poutapisados pela hndalidade dos nossos
competidores. A sentença está lavrada, o acor-
do feito enire as potencias, e foi a Inglateri^a,
nossa amiga, ipiem desde longo tenqio se of-
fereceu para carrasco. I!asta vèr os tratados.
F-m 8(1, como Andrade Corvo c o pefpieno l!o-
cage delimitavam em Paris, com os delegados
francezes, as fronteiras do (longo luso-franccz.
preslou-sc Porluiial a lecdiiliucci- a soljcraniít
(la Republica sobre os teri-iiorios da Fouta-
I>Íalloii, ciestiiiados a ligar o Senegal aos rios
(III sul. I>edia-se-IIieein troca aciiiiiesceacia para
(IS iiiiiiles (Io império Irans-contiiiental que ti-
uliamos em vista, e vem pouco mais ou me-
nos no iHiijijiii (vr -/(.' nizii. (cj \ Ki-an(;a con-
sentiu em não perturbar com tomadias im pro-
tectorados, essa immensa região do nossa
reserva; salvaguardava porem os direitos de
terceiras potencias (ijue não existiam) e ipiando
se tractou de juntar ao texto do tratado a des-
crip(;ão exacta dos limites do império ipie so-
nhávamos, e a carta representativa (Teste, re-
(i) Eis os limites, mencionados cm nota official que
foi annexada, em dezembro de 85, ao protocolo iv do
tratado Rialle-Corvo : «... ao norte, o paralello de
Noqui, até á sua intersecção com o rio Cuango ; logo o
Cuango até á sua origem, e a partir d'esta, a linha que
separa a bacia do Congo, da do Zambeze, até ao encontrO'
d'este ultimo com o paralello do confluente do Lujenda
com o Rovuma. Ao sul, o paralello do Cabo Frio, pro-
longado á fronteira occidental dos Matabelles; em seguida
esta mesma fronteira, até ao curso do rio dos Crocodillos;
o curso d"este até á confiucncia do Pafori; e a partir d'este
ponto, a fronteira actual das possessões poituguezas e da
republica do Transwal.»
os GATOS 35
cusou-se tcrininanteiiiente a lazel-o, porque já
o miuisfi'0 iuglez minara o terreno das nego-
ciações, recordando á Republica, que o seu pro-
tectorado em Madagáscar inda não tivera o re-
conhecimento das potencias. Em balde os nos-
sos delegados suppi içaram, alegando o prece-
dente da conferencia de Berlim ter fixado os
limites do Congo belga, sobre uma carta que
servira de base ás convenções entre as poten-
cias, e aquelle. Tudo foi em vão.
Approximava-se a hora da Inglaterra fazer na
questão africana, o grande jogo, que desde as
explorações de David c Carlos Livingstone preoc-
cupavam o Foreign-Officc. A ohm dos lagos pros-
perava: estações civilisadoras, sem aspecto oc-
cnpante, e com o simples ar de feitorias iso-
ladas, picavam já Blantyre, os bordos do alio
Chiro, c a riba occidental do Nyassa.
Aventureiros do Cabo, atravez os campos
d'oiro do TranswaI, contaminavam por outro
lado a Matabellia, velozmente, passando armas
a Lubengula, incilando-o á conquista dos Mas-
honas, e a correrias nos prazos portuguezes
de Zumbo, de Manica e de Sofála. ftl) E no
(d) N'uma communicação feita pelo snr. engenheiro
rí(> os GATOS
iiorle como uo sul (raqiu-llc immeiíso plaino,
fiMlo da rciíião dos laiíos.soiiunada ao ////(>(•/(/;((/
dWiii^ula (■ de Mo(;amlii(|iii', a alma da prnpa-
líaiida aiiti-|)oi'liiiíiiraa que lá /.imi)rava aos ou-
vidos do ueiíPo, o demónio do ódio (|up dizia
a esse inferior, alTeito a não pisar nos deser-
tos, a sombra sequer da nossa bandeira — in-
surge-le! desubedecc-lhe, mii(a-u! — revestia sem-
pre o mesmo typo: o do missionário escocez,
fanático feroz, tyranuo intransigente, mistu-
i'ando ao lei ror de llciis, o delírio do álcool, e
J. MachaJo á Sociedade de Geographia, e publicada por
esta sob o titulo de forneciíiieiHo iVannas aos Matahelles,
narra-sc que pelas alturas de 1888 (epocha em que a In-
glaterra se declarou protectora dos Matabclles, e formulou
pretensões á Mashona, que Lubengula dizia pretenccr-lhe)
agentes inglczes vindos do Cabo, em grande numero, obti-
veram do Lubengula permissão d'explorar os jazigos mi-
neiros das terras sul dos seus estados. Estes homens, vin-
dos como particulares d exploração dos campos d'oiro,
bem depressa se reconheceu serem agentes do governo
britannico, como se verá. A concessão dos jazigos aurífe-
ros fora comprada ao Lubengula por i :00o carabinas Mar-
tini-Henrv, e cerca de 5:000 cartuchos. Este armamento
entrou na Matabellia pela colónia do Natal, o que impor-
tava a violação do bloqueio que a própria Inglaterra pro-
vocara, com o apoio da Allemanha, de Portugal e de
os GATOS o7
a retalluuliira do chicote. Pois se a Inglaterra
mirava em ir por terrenos seus, do Cabo ao Nyas-
sa, se cila n'essos terrenos estava lançando, a
|)oder de traições e vilanias, os germens d' uma
definitiva occuitação, como não procuraria com
supremo afinco evitar que as i)otencias nos
i'econhecessein as linhas norte e sul do impé-
rio trans-conlinental com que sonhávamos? A
recusa que Andrade Corvo houve de França,
no respeitante ás delimitações d'esse dominio,
a Ailemanha noi-a lez ouvir pelas mesmas pa-
lavras, quando em dezembro de 188(1, iden-
Zanzibar, no próprio anno de 1888, para combater o tra-
fico, e a importação d'armamento, seu principal auxiliar.
O facto era por tal forma insólito e infamante, que uni
Merriman, membro do parlamento inglez do Natal, inter-
pellou o governo, por inquirir da sua A^eracid-ide. A prin-
cipio, o presidente do conselho, sir Gordon Sprigg, res-
pondera neg.Mido, mas como Merriman teimasse, ao dia
seguinte, o homem confessou toda a verdade. De feito
1 :00o carabinas, com 5 :ooo cartuchos, vindas d"Inglaterra
com destino ao Lubengula, haviam transitado pela colónia
do Gibo. As auctoridades inglezas só haviam consentido
em deixal-as ir ao seu destino, em presença da reclama-
ção d'unital Sydney Shippard, administrador da Betchuana-
land britannica, funccioiíario nomeado pelo gorenio da me-
trópole, e só para com esse govenio responsável.
38 os GATOS
lica questão ilie foi proposUi, pelo ministro tios
('sfrai)i;(Mros líarros Ciomos.
A fronteira irésle, pedida pelo governo
])ortiigiiez para o nosso império contracostei-
ro, era como todos sabem, uma iiniia que
partindo da foz do Rovuma, seguia o para-
lello correspondente, cortando o Nyassa, e in-
do até aos confins d'Ango!a. O governo alle-
mão porém só adniittia a iiniia alé á margem
oriental do lago: detinlia-o o mesmo pensa-
ineiilo reservado da hYaiica: a Inglaterra se-
gredara-llie talvez os seus projectos, recorda-
la-llie talvez as suas condescendências na ques-
tão d'Angra Pequena, em 1881, na haliia
dos Camarões, em 188.-), e no acordo relativo
á delimitação de Zanzibar, cm outubro de
1880 — dois mezes antes— acordo que prepa-
rou da iniluencia alleniã nWIVica austral, como
explicámos.
Kis ,1 razão ponpie eu escrevi atraz, que
as derrotas da diplomacia britannica, ante os
poderosos, mais llie aziumavam o j-ancor
contra a nossa pequenez, e que Portugal es-
lava condemnado a pagar com domínios e ter-
os GATOS 39
ras, as indomnisações que á sua alliada impu-
nliam essas derrotas. Com as transigências
feitas á expansão colonial da França e da Al-
lenianha, a Inglaterra compra, a preço de ine-
gualaveis vergonhas, embora ! o silencio d'es-
sas grandes nações perante a formidável ex-
torsão que nos prepara. O mundo assistirá á
oxliautoração mais escruciante que se terá
visto, depois da chacina da Polónia ; e na hora
terrível em que os cannibaes se lançarem a nós,
nenhuma mão se erguerá para dizer basta ! ao
nosso algoz. Seremos escorchados em nome
dos mais caros interesses da humanidade, an-
nexados por incapazes de figurar no festim das
nações civilisadas, e por tal forma a Inglater-
ra nos colloca em face do mundo, que o nos-
so desapparecimenlo não surprelicnderá nem
jirovocará lamentos de ninguém. De feito, a
nossa expulsão (FAfrica, rcalisada com homens
differentes dos que ahi temos, poderia já não
digo evitar-se, mas ser recuada nU: um prazo
i II imitado, podendo ser que os tramites da lu-
cta empregada para fugir á morte, chamasse
sobre nós o apoio das nações neo-romanticas,
como a França, que está sempre ao lado
dos que pelejam por um ideal, embora inexe-
4.0 os GATuS
quivel. Mas é (jiie essa oxixilsão so cslá dando
com todas as agravantes de des[)rezivel inépcia,
de cobardia provada, d'incapacidade authenti-
ca, e de sardónica puliiice, de que nenliuma
chancellaria da Europa tomará conta, sem
achar o castigo inda inferior ás nossas culpas.
Basta ièi' as peças do Livro Branco recen-
puljlicado (e inda as mais graves não vieram
a iiune) para ac([uiescer no irreniessivel fim
de Portugal. Na conducção das negociações
afi'icanistas do paiz com a Inglaterra, o papel
dos nossos é uma serie d'inepcias sem vislum-
bre de brio ou d'esperteza: a altitude britau-
nica, uma fustigada continua d'ordeus impe-
riosas, misturada d'ameaças e de chascos. Na
revisão dos processos diplomáticos que a Gran-
Bretanha houve que debater co'as nações in-
teressadas na partilha dWfrica, uma coisa so-
bretudo choca o observador, e vem a ser o
profundo traço (jue demarca — para a direita,
a sua maneira de tratiir co'as nações (|ue lhe
merecem conceito, já pela respeitabilidade, já
pela força — para a es<(uerda, a sua iulrausi-
gente crueldade, a despeito do direito das gen-
tes, a despeito dos convénios anteriores, a
despeito de tudo, para com as nações que cila
os GATOS 41
julga necessário expiíiigir d:i graúdo obra. As-
sim por exemplo, os Iratados inglezes com a
Allemanha, coma Itália, e com a França, são
peças claras e simples, reduzidas a meia dú-
zia d'arfigos largos, recíprocos, concisos, d'on-
de a suspeita é varrida em toda a linha, e
(Tonde a equidade ressumbra em formulas
<ruma lealdade (juazi primitiva. Os contratan-
tes ahi estão á vontade, pactuam entre eguaes,
sabedores das forças que de cada lado guar-
dam a stricla observância dos convénios. Leiam-
se após os Iratados da lnglatei'ra com os po-
tcalados inilifienits, como ella lhes chama, que-
rendo pela palavra dizer antes, selvagens. Sabe
o leitor ao menos quem são taes potentados?
É a rejjublica (FOrange, é o Transwal^ 6
a.Matabellia, é Zanzibar — e somos nós. Todos
os convénios feilos pelos inglezes com estas
(juatro victimas promettidas ila sna gula, são
idênticos d'injuria, traiçoeiros d'essencia, cor-
tados de caminhos falsos, tendentes ao prepa-
ro de lhes inglezarem lentamente os territó-
rios, fej e de lhes arruinarem as finanças, pe-
(i) —Pelo tratado de 24 de maio de 1887, Zanzi-
bar n.io poderá vèr-se livre do convénio feito cora a 'Bri-
iá os GATOS
los angustiosos encargos que Ilies exigem, a
pretexto da suppressão de trafico, de civilisa-
(ão e de progresso: até (pie ultimada a o])ra,
a mina aberta, esses estados farain bancaro-
tisb East Africaiii Associulion, senão recorrendo a um tri-
bunal arbitral, o que é o mesmo que di/.cr, nunca.
Outrosim, o sultão se obrigou a não ceder dos terri-
tórios que as potencias lhe reconheceram, sem prn'io con-
Sfiitimaito da Inglaterra, ou da AUemanha, conforme a zo-
na em que o caso se der.
— Pelo tratado de 5 de junho de 1888, o rei dos Ma-
tabelles não poderá alienar territórios seus, ou de sua in-
fluencia, sem prcfio consentimento da Inglaterra.
— Pelo tratado de 27 de fevereiro de 1884, o Trans-
wall não fará tratados, nem poderd tomar compromissos
com potencia alguma, a republica d'Orange excepto, sem
pre%'io consentimento da Inglaterra.
— Pelo tratado de 20 d'agosto de 1890, Portugal so-
bre perder 350:000 kilometros de terras suas, não poderá
alienar uma pollegada das que lhe ficam, sem prévio con-
sentimento da Inglaterra. Este tratado além d'isso, pelas in-
fitmias que encerra no respeitante ao porto franco do Chin-
de, ao caminho de ferro do Pungue, á intervenção do tri-
bunal arbitrai em toda e qualquer questão que se levante,
á limitação das taxas sobre mercadorias, etc, etc, é du-
zentas vezes mais humilhante para nós, paiz civilisado, do
que são os outros, para as nações selvagens com quem
foram acordados. D'onde re/.ulta sermos nós a barbaria
d'Africa, que mais desprezo inspira á Gran-Brctanha !
os GATOS
ta, c a anarcliia sobrevciiha, para a Inglaterra
enlão se apoderar cVelles, como fez no Egy-
pfo, cm nome da humanidade, e a salvaguar-
da das . . garantias puropeas.
Para concluir.
A situação politica produzida em Africa
pela acção symeirica dos grandes estados eu-
ropeus, realisa uma ideia que desde 1870 vi-
nha gestada, e (pie ora surge como solução
(iitnra do mais inquietante problema colonial
do nosso tempo. «Cada nm dos principaes
povos maritimos se installou na região que
melhor convinha aos seus interesses e meios
(facção; cada um preenche a sua missão so-
cial, espalha germens de cultura, e cria focos
de propaganda, convergentes todos a um ideal
conuuum de civilisação. Mesmo desígnio, mes-
mas tendencins, dominam as ineciativas par-
ticulares, snbordinando-as a um fim superior.»
lie commum acordo, declaram as potencias
pela bocca da Inglaterra, sermos nós o en-
trave principal na pliilmitropim partilha do
sul (FAfrica, sendo este titulo ominoso o ar-
gumento (lidador da escorraçada que vão dar-
nos. Pei'giiiita-s(' pois: apesar de conliecido o
fim qiie hemos de ter, apesar de nos vermos
sós e desarmados conlra as aml)içues da In-
glaterra, apesar de nos sabermos incapazes
(Fum |)apel liislorieo prolicuo no fuluro dn
mnndii, hemos d'aHeMar por isso, sem IVa-
casso, o património ganho peia nossa activi-
dade dos secnlos anteriores? () tratado de ríH
d'agosto, qne apressa a obra d'absor|)(;ão l)ri-
tanuica, meditada, deve aceitar-se como pri-
meira sortida da civilisação trinmphanle, nu
vilipendio da nossa barbaria? Por Deus, nãiv
deve! e o chacinar até ao nilimo dos rufiões
que o sanccionarem, é obrigação de qne ne-
nhum portuguez pode abdicar n"esle moinenlo.
()l)poidiamos-llic pois com todas as forras. A
formula de protesto está creada : ubaixo o fm-
líido, siicivda (1 (jiic siuiciler .'
CAMILLO CASTELLO BRANCO
AMOR DE PERDIÇÃO
(MEMORIAS D'UMA FAMÍLIA)
EDIÇÃO MONUMENTAL
Em hoiihiuJí^ein ao onhwiitc 'Kjiniancista 'Pon'iig}ii\
CAxMILLO CASTELLO BRANCO
EXRICLVECinA COM A COLI.ABORAÇAO TOS NOTAVFIS HOMENS I
MANfEL PINHEIRO CHAGAS, RAMALHO ORTIGÃO e THEOPHILO BRAGA
E II-LUSTRADA COM SEIS DKSUNHOS DE PAGINA EXPRESSAMENTE EXECUTADOS
PELOS NOSSOS LAUREADOS ACADÉMICOS
J. J. DE SOUZA PINTO, CAETANO MOREIRA DA COSTA l.IMA
E JOSÉ D'AI.MEIDA E SILVA
E A IMPRESSÃO DAS ILLUSTRAÇÕES EM PHOTOTYPIA COXHIADA Á IMPORTANTE
r. REPUTADA CASA DE L. ROUILÈ, DE PARIS
— .«fiíÇÍ—
MA das mais vivas e prestigiosas figuras
'a moderna litteratura europeia é CA-
I^J^Mçi .MILLO CASTELLO BRANCO. Natu-
...v^^di^^H^I j.g2a profundamente emocional, propon-
do todos os seus problemas em collisões de senti-
mento, allia á mais alta cultura da linguagem, que
ainda appareceu cm cscriptor portugiicz, o sciitinicnto
fulgurante de um vivo protesto contra a decadência
que nos vae avassallando, aos poucos, na arte e nos
costumes contemporâneos. Absorvido n'uma forte
elaboração esthetica e fugindo ás tentações da poli-
tica, que tantas boas-vontades tem anniquilado, refu-
giou-se no seu trabalho de homem de lettras, como
Robinson na sua ilha. Dentro d'esse baluarte inexpu-
gnável, elle tem continuamente erguido os seus ty-
pos tradicionaes, essas altas e marmóreas figuras es-
culpturaes, escolhidas entre uma fidalguia decadente,
que vae gradualmente desapparecendo, substituída
pela aristocracia do dinheiro, e os typos enérgicos e
viris dos homens rudes e sãos, de quem ainda é per-
mittido esperar um dique á corrente que passa. E
por isso que a obra de CAMILLO é uma das mais
patrióticas, sem perder comtudo esse caracter a um
tempo tão litterario e tão pitoresco, que sobremodo
avulta na sua linguagem; o observador attento en-
contra n'aquelle estylo inimitável, n'aquellas descri-
pções encantadoras, n'aquellas paysagens vibrantes
de realidade, a riquíssima seiva provincial, que é um
dos mais elevados apanágios deste privilegiado do
talento.
As nações que merecem sobre modo esse nome
são aquellas que vinculam em monumentos eternos
a lembrança dos seus grandes homens; e o maior
monumento que se pôde erguer a um escriptor do
merecimento de CAMILLO é a consagração nacio-
nal da sua obra. Por isso, emprehendemos A EDI-
ÇÃO MONUMENTAL DO AMOR DE PERDI-
ÇAO, a obra mais caracteristica por certo d'esse
admirável e glorioso obreiro da civilisação portugue-
za. N'esta homenagem verdadeiramente nacional nos
auxiliam alguns dos mais illustres escriptores do nosso
paiz; e é assim que n'um mesmo livro se encontram
ao lado de CAMILLO CASTELLO BRANCO os
nomes de MANOEL PINHEIRO CHAGAS, o bri-
lhante espirito evidenciado em tantas obras tão justa-
mente celebradas. RAMALHO ORTIGÃO, o lucidis-
simo critico das FARPAS, estylista refulgente, o colo-
rista de poderoso e singular relevo e THEOPHILO
BRAGA, o poeta que evocou a vida histórica das so-
ciedades mortas, o arrojado crcador da HISTORIA da
litter atura portugucza.
Os trabalhos com que tão notáveis escriptores
honram a nossa edição, são os seguintes :
I — Contorno biographico de Camillo Castcllo Bran-
co— M. Pinheiro Chagas.
II — O seu ambiente social — A sua esthetica — A sua
critica — A sua forma litter ária — O seu tem-
peramento artístico — Ramalho Ortigão.
III — O romance como forma definitiva da arte mo-
derna— Theophilo Braga.
A dramatisação da obra prima de Camillo com-
pendia lances trágicos de tal culminância que a nossa
edição seria muito incompleta, mesmo com as coUa-
borações poderosas, cuja suminula dcsen\ol\cmos, se
não chamássemos a tomar parte n'ella alguns dos
mais genuínos representantes da Arte nacional e es-
trangeira; e é assim que no Amor DE Perdição se
juntam os nomes laureados de J. J. de Souza Pinto, Cae-
tano Moreira da Costa Lima e José d'AImeida e Sil-
va, de par com a importante e reputada casa de L.
Rouilc, de Paris, cujo nome é garantia segura do
modo superior como serão reproduzidos em photo-
typias os bellos quadros, que o romance de Ca-
MILI.O inspirou a tão insignes e gloriosos artistas.
As magnificas illustrações que enriquecem esta
monumental edição, são as seguintes :
/. /. nn SOUSA PIXrO I— Rctmto de Cimillo CastL-llo Branco.
II — O assassinato do ferrador João da
Cruz.
CAnTAXO MOREIRA III— Simão partindo os cântaros, na de-
sordem do chafiiriz.
IV — O morgado de Castro Daire, Bal-
tliasar Coutinho, é assassinado por
Simão.
V — Morte de Simão, a bordo do navio
que o levava ao degredo.
J. WALMEIDA ESILVA Xl—Monu de Thereza, no convento
de Moncliique.
EDIÇÃO MOXLIENTAL
a |)i'i!iu'irii lie i|iiii!itiis att' liuji' se tfiii leito im nosso piiiz
FIALHO D' ALMEIDA
OS GATOS
PUBLICAÇÃO SEMANAL,
d'l\querito á vida PORTUGUEZA
N.Mfi— 27 (Ic Setembro de 1890
SUMMARIO
As responsabilidades da imprensa, e seu
PAPEL CONTRARIO Á MISSÃO QUE LHE COJIPETE
— DIFFAMAÇÃO POR VIA DE JORNAES — IMPOSSI-
BILIDADE POR BANDA DOS DIFl AMADOS, DE PE-
DIR CONTAS AOS DIFFAMADORES — O QUE É A
REDACÇÃO D'UM JORNAL LISBONENSE— O REPÓR-
TER, BESTA DE CARGA DO JORNAL: SUA PYSIO-
LOGIA, CULTURA, E IMPORTÂNCIA MORAL — DE
COMO ELLE PROCEDE PARA ENCHER COLUMNAS,
E DO PERFEITO CYNISMO DO SEU PONTO DE VIS-
TA COMO INFORMADOR — CASAMENTO SIMULADO:
UMA COMBORCA TORNADA A VIRGEM PELOS FA-
H os GATOS
VORES DA reporkige — repoiiteus entrevistei-
ROS, E ANTIPATIIIA PUBLICA POR ESTES PERSO-
NAGENS—A CAMPANHA DE DESCRÉDITO CONTRA
O IMPERADOR DO BRAZIL E O CONDE D'EU — O
CASO DA BIDLIOTIIECA, E CONSEQUÊNCIAS D'UMA
POUCO SERIA INFORMAÇÃO — REPORTERS-GATU-
NOS, E NECESSIDADE DE OS CORRER DA IMPREN-
SA QUANTO ANTES — ATTENTADOS AO PUDOR:
SUAS DETERMINANTES IIYGIENICAS E MENTAES
— CACIIEXIA PRECOCE DO MACHO, E SENSUALI-
DADE PRECOCE DA FÊMEA— A CREANÇA LISliOETA
É UMA VELHINHA DE MAMA — EDUCAÇÃO NAS
OFFICINAS E NOS COLLEGIOS —AS CAÇADORAS
DE CREANÇAS: A DESAVERGONHADA DO ARSENAL,
A VELHA DAS OLARIAS, E MÃES QUE PROSTITUEM
PEQUENAS DE QUATRO ANNOS — NECESSIDADES
DE REFAZER A RAÇA, A CIDADE E AS INSTITUI-
ÇÕES. CONCLUSÃO.
20 de Setembro.
Grande luunero ilo joniaes, cedendo a um
furor d' informação mais atiçado pelo amor do
lucro, do que investido de propósitos justicei-
ros, apenas foi produzida ha quinze dias a
denuncia d'estupro em que se inculpava um
oflicial superior do nosso exercito, não duvi-
dou estampar o nome d'csse officiai com to-
das as Icttras, sem mór devassa previa á ve-
racidade da gravíssima infâmia (jue uma tal
publicidade ia lançar na corporação. Não jiosso
dizer a quem compita a responsabilidade re-
mota do vergonhoso papel qiic quazi Ioda a
imprensa do Lisboa desempenhou n'esto episo-
dio, dilVamando publicamente um homem, que
Gá annos de probidade deviam garantir contra
/j os GATOS
a suspeila do crinic-m-atuila, polo menos atéá
data do aiipai-ecimcnlo das piimeiras noticias
—assim como também me não cabe discutir se
os funccionarios de justiça encarregados de
lazer luz n'esles sinistros dramas, devem as-
sim de prompto divulgal-os aos jornaes, sabi-
do como a opinião retém p'ra logo os no-
mes conspurcados, sem nunca mais indagar
sç o viliocudio é ligitimo, ou não passou d nm
boato, ijue a justiça 'ucfez pouco depois.
Acareando entretanto as noticias cm cpie
os (lilTerentes jornaes dp IJsboa !?iOccnparam
no mesmo dia, do monstruoso crime'!'-- f''"
cil SC descobria em todos, redacção ideil.'C:i,
ferindo os mesmos pontos, o por tal IbrA^^*
accentuando o caracter de chopa, ijue era im-
possivol não advir nas duas soiíuintes conclu-
sões :
— ipie era o m(>smo imlividuo, evidente-
mente interessado na accusação, quem passa-
va aos jornaes copia do mesmo artigo, (pie lo-
dos publicaram, sem escrúpulo de se fazerem
órgãos d'alguma secreta roíijiiirn contra o in-
digitado destiorador.
— Ou então seria o mesmo desleixo, o
mesmo abuso de força jornalística, aileila a
os GATOS 5
esmagar reputações a esmo, quem, trauscic-
vendo as noticias lidas em collegas, le coear
leger el souriíint, fazia resvalar a missão da
imprensa a um gabinete negro de calumnia, e
a obra do jornalista delir-se, em pasquinagens
cobardes d'energumcnos.
Ora, qualquer dos casos a dar-se, a de-
pi'essão moral do jornalismo portuguez é coi-
za assente, e urgiria remodelar os processos
de fazer jornal, por maneira a pedir respon-
sabilidade aos escriptores pelo que escrevem,
e a subordinar a factura geral de cada nume-
ro de periódico, ao visto do redactor princi-
pal, único fiador perante o individuo, ou pe-
rante a serie, de todas as doutrinas insertas
n'elle. O que ainda assim faz conservar al-
gum prestigio a certas redacções, é ignorar-se
o cahos em que ellas vivem, e da qualidade
dos elementos em quem ellas delegam a par-
te mais delicada dos seus inquéritos jorna-
lísticos.
É deplorável ! Tirante a redacção politica,
onde se agrega o melhor do pessoal de cada
coió d'imprensa, o resto, salvo excepções ra-
ríssimas, é uma piolbaria d'irresponsaveis que
fazem vida d'aguardar emprego, e cmquanio
G os GATOS
esperam, jantam e ceiam ci'andar pela cidade
a disputarem-se uns aos outros os escândalos
ocorridos, a vèr qual no dia seguinte os dará
mais picantes de nomes e detalhes. A falia
d'uma ingerência superior nos actos d'estes
trota-partes-dc-policia (cpu' não podo haver
em redacções gratuitas, clieias do de/hils, em
i|ue a politica absorve todo o laI)or dos cére-
bros lúcidos, como única coisa digna de culto)
deixa as restantes secções do jornal á mercê
das ankiloses moraes e mentaes do pessoal
inferior, para em breve tornal-o n'nnia espé-
cie de porto franco de tolices, d'inexactidões e
de denuncias. Esta exclusiva attenção dada pe-
los redactores |)riucipaes á defesa ou á esca-
lada d'um governo, o esta toniadia do jornal
pelos plumitivos somenos, tornaram a impren-
sa de Lisboa n'uma instituição quasi odiosa para
o publico, (juo so arreceia da sua espionagem,
e por outro lado a não acata como tribunal mo-
ralisante. Durante (|uinze annos, a pessoa que
escreve estas linhas laborou peias secções lit-
terarias e thoatraes das folhas diárias, i>oden-
do ahi analysar á vontade a anarchia interior
de cada uma. .Na mór parte das vezos, a úni-
ca influencia (pie o redactor em chefe tem
os GATOS 7
sobre o (jnadrn dos seus collaboradoros, con-
siste n'uiiia adaplação mais ou menos bem
parodiada, da linguagem que elle emprega
nos artigos do fundo. Ou se um inol-d'ordre
assiste á factura da folba, á guiza de piano
pliilosopliico, as lettras que o formulam dei-
xam ambiguamente á uesorientaçào dos subal-
ternos, a escollia dos meios com que levar a
cabo a commettida.
Percoiram-se os jornaes que actualmente
correm por Lisboa. Quasi todos poderiam ex-
tremar-se p'ra dois campos: o dos que dão p'ra
baixo, e o dos que não querem escandalisar
o assignante. O dos vcrgaibos, e o dos meli-
fluos. No fundo porém, é a mesma furiosa lu-
cla pela vida, sem escrúpulo nos meios de fa-
zer leitores, e ajienas jogando com baralbos de
cartas dillerenfes. E aqui detenlio-me. Onde
escrevi baralhos de cartas, poço (pie leiam
baralbos de rcpoilerx.
O que é o repórter? O caixeiro de fora,
do jornal. Um receptor e um transmissor de
casos, sem outra missão além de os inquirir
o os GATOS
iiiiparcialmeiUe no local oníie eiles se produ-
zem, e de os trazei' a julgar iieraale o critério
do corpo de redac(;ão.
Pela subalternidade do ofíicio, e pela clas-
se vaga e incompleta d'individuos d'onde en-
tre nós o repórter é tirado, prcsupõe-se que
este lunccionario não exceda um nivel de cul-
tura abaixo do mediano, nem na niór parte
dos casos possa gabar-se d'um dom de pene-
tração \)ár hl além. Porque enteudamo'-nos
n'islo : o repórter portugucz não corresponde
nitidamente ao repórter do jornalismo lá de
fora. Sae dos declasxés que ás escolas regeita-
ram, e dos typos frustes (pie se quizcram exi-
mir ás profissões francamente laboriosas e
correntes. Não é um liomem de leltras, e por
outi'0 lado falta-lhe educação que o transfor-
me n'um critico incisivo dos acontecimentos
que destillam ; e lilleratiço falho, arligoleiro
sem predicados de nioi'alista, a posição especial
que eile se fez no jurnalismo, onde ninguém
tem consciência das responsabilidades do seu
papel, permitte-llie o gozo d'iminunidades de
que elie abusa, e dá margem a exliorbilan-
.cias proíissiouaes de (pieelle se vangloria. O fa-
cto d'elle ti'aballiar muito eganJiar pouco, cons-
US GATOS 9
titue a reilacção no dever <le lhe deixar passar
os dislates e os excessos. O redactor principal,
entregue á politica, é uma raridade percorrer o
(pie elle escreve. Os immediatos, reservando-se
certas especialidades, descarregam-lhc sobre
as costas todo o lalior de que deveriam deseni-
penhar-se. E é o repórter afinal quem faz o jor-
nal, senhor do campo, sabendo-se indispensá-
vel, e exigindo em largueza d'oplniões, o que a
empreza lhe não pôde dar em libras sterlinas.
Que admira então que tirante certas secções do
periódico, o resto seja um apontoado d'incon-
sequencias, de perfídias, de baixezas e de ca-
lumnias? Do que se trata é d'encher o nume-
ro, custe o que custar.
Em tal dia por exemplo, as partes de poli-
cia vem magríssimas: apenas sete prisões por
bebedeira, e três facadas! O bombeiro encar-
regado de fornecer incêndios, não apparece. As
ruas não teem drama. Não sahiu ainda a ordem
do exercito. O informador mundano não trouxe
bailes nem casamentos. Não se mata ninguém;
as mulheres casadas não se deixam surprehen-
der com os amantes... Esta só pelo diabo! Mas
o peor é que o assignante não espera, quer
escândalos, nomes conhecidos, primeiírs. N'es-
10 os GATOS
tas alturas (• o repórter (iiiciii salva a situa-
rão.
Diz por cxeiiii)lo a parte de policia «Preso
F. (nome toJo, morada, estado, (|iiantos fdlios
c profissão) por embriaguez e distúrbios, na
[lua Xova da Palma, ás 7 horas da noiíe. Con-
duzido á esquadra, resistiu, etc, etc.»
Confessemos que para enirelenga do leitor
despreoccupado, esta simples noticia extracta-
da do cadastro bastaria, riscando-llie, claro es-
tá, o nome e a morada do preso, que nada
acrescentam ao drama, e por outro lado po-
dem prejudicai' {gravemente uma fimiilia. Mas
ao repórter nem já a sim[)leza rude da parte
policial basta ao furor de novidades que o es-
canzella. Ouer mais thealral, quer mais typi-
co, e julgar-sc-liia deslionrado não tirando
d'essa pobre narração de rua, um grande dra-
ma cm trcs coluninas cortadas d'exageros e
falsidades. Assim, o pobre diabo d'operario
que SC embriagou n'uma hora d'ocio, passa
logo a figurar no cabeçalho da noticia, com
o titulo íVAIcooUco furioso, e osvurniados os
antecedentes do iiomem, o repórter inventa-
Ihe liabitos orgiacos e excessos de bebedeira
inveterados, diz (|ue elle bate na mulher, que
os GATOS H
não trabalha, que é um conhecido frequenla-
Llor de calal}OÍços; scgue-se depois a scena da
prisão — «dizcm-nos amigos nossos, que F...
j)i'etcndia lançar-se sobre uma dama nuiilo co-
nliecida na alta sociedade de Lisboa, brandin-
do uma faca de ponta c mola, de que é esgri-
mishi confesso, acorrendo então o guarda 198,
da S.'\ que digamol-o aqui muito á paridade,
(n bom serviço».
Vinte e quatro horas corridas sobre a no-
ticia do jornal, esse bêbedo d'uma hora, que
ganhava a vida em operário modesto, por en-
tre a estima da sua officina e do seu bairro,
esse bêbedo d'uma hora acorda para a rua
onde reside, para a fabrica onde trabalha, i)ara
o niercieiro e para o padeiro que llie fiam,
um incorregivel sem garantias, safado e com-
pletanieiitc perdido no conceito de toda a gen-
te. A phaiitasia ou a coscovilhice odiosa do re-
poi'ter tomaram a reputação do miserável,
como um trapo, escornando-a, e transmuttan-
do cm perpetua infâmia o que realmente não
ia além d'uma esti'avagancia inoffensiva. Eis
I"2 os GATOS
alii geralmente o papel da imprensa noticiosa,
na policia dos costumes: vèr pela rama, sa-
crificar a verdade á nota pictoresca, inventar
sendo preciso, calumniar, mentir, sem remor-
so pelos prejuízos causados, nem maior medo
aos desforços exigidos pelas victimas. Quoti-
dianamente os jornaes vem cheios d'estas tor-
pezas, nomes por inteiro, moradas com a
designação do andar e do lado, e descrijjções
da lamilia e da casa, computo dos teres o dos
hábitos Íntimos, cinco ou seis creaturas avil-
tadas ás vezes em dez ou vinte linhas, e tudo
isto pelo simples pretexto d'euchcr espaço, de
fazer palpitante, e de vender o género ao fre-
guez rapidamente.
Ha proximamente dez ânuos, uns estroi-
nões derara-se o desfastio de macaquear,
n'uma casa de prazer qualquer, ura casamen-
to. Um fez de padre, outro de noivo, liavia
padrinhos, convidados, c a noiva — que zorra!
— appareccu de flores de larangcira. Dada a
benção nupcial pelo celebrante, n'um latim
que tresandava diabolicamente a pouca vergo-
nha, foram todos banquelear-se a cahir para
um rcstaurant fora de portas. Entre o magote
havia, parece, ingénuos ([ue tinham tomado
os GATOS 13
O caso imiilo ao serio, caliiiido com presen-
tes, c (jue ao verem-se ludibriados, em vez
de rir, foram levar o caso ao commissario.
Agora vereis os estardalhaços das gazetas!
As mais conspicuas, por exaltar a mons-
truosidade do seductor, desataram a pintar a
noiva como uma d"estas ethereas meninas, que
a ideia só do macho faria evaporar para as
alturas. Impressionou-me o caso, e da primei-
ra vez (pic topo o artigoleiro mais afervorado
ás virgiiidades anlc, da noiva, inijuiro d'elle
se era certo o que da desditosa i)rinceza se
dizia. E insisto — ella antes do casamento, era
realmente uma virgem, ó aquelle?
O homem com uma piscadella d'ollio, redar-
guin:
— Para enterrarmos o grandecissimo pa-
tife, era necessário que o fosse. Entretanto
que eu saiba, virgem só ella está de quem lhe
n.ão der quatro coroas.
— .Vias então as tlòres de larangeira do tou-
cado. . .
— Sim, confesso, o tjue ella devia levar
eram laranjas.
Á virgindade refeita pelo jornalismo a esta
rcinadia, correspondem cenlenas de desllora-
1 í os GATOS
ções com (jiic os joriiacs ilcsacrcdilain aniiiial-
nienlc raparigas lionoslas, publicando noticias
(Ic raptos, c dando curso a toda a espécie de
denuncias contra o pudor d'inermes creaturas.
Esle o repórter na sua feição mais quoti-
diana de chronista, que não é sempre aqueiia
que os de maior prosápia preferem, sendo mes-
mo vulgar que alguns não vejam duvida em se
atirar a funcções de mais alto pincho. Aípii
mencionei sem ([uerer o eiilrevislciív. O entre-
vistelro é o repórter em diplomata, o liomem
encarregado de sulijcitar a um questionário, os
heroes do dia, e d'inferir das respostas obti-
das, um certo numero de quesitos fulgurantes.
Para o desempenho d'estas altas funcções, ca-
rece o repórter de ter figin^a, um certo aploml>
de homem batido, monosyllabos |)rofundos, c
mais (|ue tudo apparencias de boa sociedade.
Mesmo porém que elle jwssua qualidades jjara
sahir-se bem das scenas de comedia-drama
que o officio exige, nem por isso deixa de
ser para o publico um personagem iníliiita-
mente antipatliico, cnlre o policia á paisana e
o official de deligencias, assim como sõ com
trabalho consegue evitar a reputação duvidosa
(pie inpllcilamentc anda ligada áquelle mister.
os GATOS 1.-1
La fóra o eiitrcvistLÚru chega a ser qiiasi um
typo perigoso, importuno, que se laz apre-
sentar sem dizer quem é, que se insinua co-
mo amigo, que lisongea os fracos dos perso-
nagens com quem falia, e quo. uma voz cer-
to d'ellps, por uma parlenda hábil, subenten-
dida, zigzagueante por todos os escusos d'um
problema ou d'nm caracter, lhes consegue ex-
Irahir por confidencia, tudo quanto os in-
ressados a sangue frio desejariam ou deve-
riam sequestrar á publicidade. Todos se lem-
bram das calumnias publicadas pelos entrc-
visteiros fi'ancezes, a respeito da imperatriz
Victoria e de Bismarck, a quando foi da doen-
ça de Frederico II, na villa Zirio. O explora-
dor Stanley, á volta d' Africa, perguntado pelo
dono do hotel francez a (pie descera, se rece-
beria alguém que o procurasse, exclamou —
Tudo, menos reporters!
Perguntem ao imperador do brazil e ao
conde d'Eu,os niartyrios soUVidos com os en-
trevisteiros portuguezes, desde o desembanfue,
até á sua sabida do paiz, e dos prejuízos matc-
riaes e moraes <|ue lhes causaram as indiscii-
ções e dislates d"a([uelles scnliores, não só
junio do governo provisório, como também
16 os GATOS
pcrautc a opinião (|iii' no lírazil llios liniia fi-
cado favorável.
Entro nós, seja dito, a imporlancia pnbli-
cante do entrcvisleiro, é menos viva, dada a
medíocre estofa de (juasi todos. A sagacidade
no nosso jornalismo médio é nnia coiza pelo
menos tão geba como o sen toilette; e toda a
vida me lembrarei d'aquelle entrevisteiro por-
tuense, que começava o artigo sobre um fal-
sario celebre: «Apezar do que os médicos bojo
em dia nos contam acerca do liypnotismo (;
da suggestão, não creio que exista isto a que
certos fatalistas cliamam, a attra(;ào irresistível
do jogo...»
Não se entenda que ou nogno á iinin^ensa,
posto isto, o direito (|ue ella tem (rillucidar a
opinião, informando-a quotidiananionle do que
se passa, o tirando de cada episodio o remate
moral (pie eile suggira ao jornalista. Mas den-
tro dos limites do respeito luimano, e excên-
trico a todos os exageros d'analyse e a todas
as minúcias d'informação, (pio desviando o
jornalista do seu papel d'ediicador, insensível-
inonlc o ievem a lisongear ceiias curiosiiladiís
mórbidas do publico, fazendo d'elle iiin insen-
sato alcaiote, e um capoeira vil pago ao arti-
go. Insistindo ainda sobre o noticiário avnlso,
não vejo que importância tenliam para o lei-
tor os nomes e as moradas; e a mim mesmo
jjcrgunlo uorque é que os jornaes se não con-
tentam com a simples menção das noticias
consideradas deprimentes para os indivíduos
que n'ellas figuram^ eliminando o titulo das
ruas, c substituindo os nomes, poi- iniciaes de
phantasia. Avento para mim se não seria mais
digno pòr de reserva, antes da pul)licidado,
uns tantos boatos respeitantes a casos d'ini-
portancia, mal averiguados, phantasiosos tal-
vez, onde ás vezes figuram nomes sem macu-
la, e SC arrastam pela lama segredos de fami-
liá, unicamente com propósitos d'escandalo,
e como expediente linal de chunUKjes tenebro-
sas. Por([ue enfeudamo'-nos. Generalisar aos
fuit-divers do jornal as virulências que os ar-
ticulislas políticos põem nas suas luclas, usar
levianamente a tinta typographíca para encher
de nódoas a reputação dos que incidenlaímen-
Ic encontraram a polícia no caminho, exage-
rar, menlír, só pelo prazer de noiiciar coisas
18 os GATOS
inéditas, estaçalliar com a mesma scm-ceriíiio-
nia um scellerado e um homem tlc bem, ludo
islo constituirá quando muito o plano de con-
ducta d'um pullia rcfece, mas não pode sei'
nunca o ttuulus vivcndi d'um verdadeiro jorna-
lista. [-AW nenhum caso resaltam mais doloro-
samente as consequências do mal entendido
papel da imprensa, como no seguinte e|usodio
de que eu mesmo fui testenninha presencial,
ha pouco tempo.
Um rapaz de quatorze ou quinze annos
praticara á thczoura, n'uma estante do corre-
dor que antecede a grande sala da biblioteca
})ublica, uin corte angular sobre a rede d'ara-
me que protege os livros, e todos os dias ao
passar, sublrahia por essa abertura occulla,
um ou dois volumes da obra de Camillo, (pie
rasgada a rubrica da casa, ia vender jtor qua-
tro vinténs a um ferro velho ipialquerdo liairro
.\lto. .\vcriguada a falta dos livi-os, pozeram-
se á espreita os contínuos da biblioteca, e logo
á primeira conseguiram surpreliender sem
custo o ratoneiro. Levado ã policia, os repor-
lers ápoderaram-se do caso, e eu tenho em
meu poder o numero odioso em que o perió-
dico iuhís prudente e mais pojíular da capital.
os GATOS 19
não só progiiosiica, sob o titulo de gatuno in-
corrigível e precoce, ao pequeno, uui futuro
(lo crimes insolvavcis, como também desce a
iulbrmar o publico dos nomes dos pães, da
profrssào e da edado dos irmãos, da morada
da familia, do que a visinhança contava acerca
(Fella, e detalhe horrível, da doença do avò
materno, paralytico lia sele annos n'uma ca-
deira de rodas! Ao lodo, dezeseis pessoas cons-
purcadas, c tudo isto a propósito d"uma le-
viandade de creança, que duas palmaloadas
teriam corrigido, sem necessidade alguma da
policia, das alcovitagcns da imprensa, e dos
jioiirparlers da opinião! Passam seis annos, o
rapazelho está homem, e o pae, lioncstissimo
velhote que eu conheço, não podendo já fazer
seguir um curso a este filho, resolve ao me-
nos achar-lhe poizo onde elle ganhe honesia-
mente a sua vida.
Procuramos então pelos escriptorios e
grandes armazéns da iíaixa, um logar vago, le-
mos cartas de recommendação de todo o mun-
do, e como o rapaz é iulelligentissimo, brioso,
cheio d'actividade e de valor, nenhum de nós
perde a esperança do lhe arranjar trabalho, a
pouco trexo. Kntrclanto vão-se passando as
^20
semanas, c depois das seraauas, mezos: <
promessas uão se decidem, os logares vagos
piv.enciiem-se sempre anles de nós clie.^íarmos,
e deniro de pouco a surda má vontade geral
comera a dar-me angustias. Um dia. insistindo
eu com uni mercador de confiança, sol)i-c os
molivos provavois da occulía repulsa (pie o
meu protegido parecia despertar, o homem,
depois d'u!na hesitação d'alguiis instantes, li-
rou um jornal da secretaria.
— Olhe p'ra isto.
Ei'a o intime papel que seis annos antes
fizera pidjlico o caso da l)ib!iotlieca, ignomi-
nando ])ara todo o sempre o pobre rapaz. E
esse pastpiim detestado adivinliei-o eu depois
em todas as gavetas, era conliecido de todos os
commerciantes, e fecliando á victima as poi'tas
da vida lionesta, avoejava como uma Inienit-
ilirhit criminal, por sobre o seu presente afíli-
clivo, por sobi-e o seu futuro predestinado.
Volvenilo agora ao caso iTostupro a qiu'
alludi no principio (Kestas reflexões, clianio a
attencão da imprensa para outro mal, ])or em-
-21
luilo sporadico, mas uciii por isso nieiios
1.11'usivo para o já abalado couccilo que a
opinião publica começa a fazer dos jornalistas.
Dias depois dos joruacs lançarem os primeiros
sueltos acerca do crime attribuido ao militar
que todos sabem, parkimentarios destacados
da baixa malandragem do jornalismo — Iodas
'-: profissões teeni d'estas escorias, o exercito
'ino a imprensa, e nem poi" isso qualquer
s- classes deixa de ser um pilar das socie-
iiles contemporâneas — começaram a rondar
poria do accusado, e a pedir-llie audiência,
•;i;ando a sua qualidade d'amanlcs da justi-
ça, e desforçadores da innocencia enxovalha-
da. O primeiro que lá foi, depois d'olTerecer
a sua penna ao desagravo do dono da casa,
lL've meios d'iidbrmar que estava monlando
uma emprcza de grande futuro, para cujo cos-
teio só liie faltavam 20S000 réis, saliindo n'is-
to, para d'alii a pouco mandar saber por ter-
ceiro, se S. Ex.-' sempre estaria disposto a dar
a somma. Muito mais fmorio, o segundo, aprc-
sentou-se trajando á diplomata, ar convivido,
o masso de jornaes premido na axilla; e af-
fastados os officiacs que estavam de visita, o
publicisla declarou vir alli como amigo, la-
±2 OS GATOS
montava os desmandos do jornalismo contem-
porâneo, e todo o seu desejo seria amorda-
(;ai-os (acredite V. Ex.^') convindo o preço. Para
principiar, trazia alli o primeiro artigo d'nma
serie premeditada com destino a íiizcr luz so-
bre a innocencia d'uma pessoa tão illustre co-
mo o cavalliciru a iiuem liniia a iionra d"es-
tar lallando — e aqui apresentou um jornal,
desdobrado — E poniue os amigos de S. Ex.''
viessem na ideia d'ainda haver jornalistas aus-
teros, alii lhe deixava vinte e nove numerus
da folha, para S. Ex.< distribuir. . . e mais
este |)apelinho.
— () papeliidio que vem a ser?
— O recibo dos trinta jornaesinhos, (jua-
renla mil réis, não é pressa nenlmma!
E como estes maifres-clKniteurx, outros que
taes. Ora, sendo inquestionável que semelhan-
te gentallia não abate do sen legitimo presti-
gio uma corporação benemérita, como a dos
jornalistas, não conviria menos, apezar de tu-
do, extremal-a por todas as formas d'expulsão
o de denuncia, por modos (pie alguma vez não
tivéssemos de corar pela |)arceria d'esles fal-
sos camaradas.
os GATOS 23
'24 de Selem Oro.
Os jornaes noticiavam lia dias dois casos
<le violência exercida sobre menores do sexo
feminino, accrescenlando que era o sexto caso
d'este género de que as auctoridades do dis-
li-i(-lo tomavam conhecimento, durante o mez
corrente. Infâmias de egual jaez teem os perió-
dicos de Lisboa descripto e commentado, nos
últimos tempos — desde a mulher da rua do
Arsenal, ([ue ia recoUar pequenas de li annos
á província, para o trafico do amor infame,
até á d'aqnella neta que a avó cedeu á mu-
lher d'um cocheiro, a qual ia todas as noites
vendel-a, por essas casas de passe, aos appe-
tites sádicos de meia dúzia de velhos devas-
sos. Devemos confessar que estas monstruosi-
dades não eram fi'equentes aqui ha cincoenta
annos, como agora, em Portugal, aonde o ho-
mem, mesmo vicioso, mantinha a virilidade al-
tiva da raça, contendo os seus d(ísmandos n"um
cyclo de orgias, (pie raro faziam violência á
natureza.
Não o seduziam, como agora, estas pullu-
liiales raivas d'eslhesiar a fadiga dos iieni-
vinda dos excessos ou dos ânuos, pela m i-
deiiina na polpa virgínea e branca dos tVuctos
insazonados, e jicia assaltada à innoccncia cras-
sas pequeninas insexuaes, cuja divina infiincia
d(niM'a adorar-se, como uma das mais pnin-*
(■ < luradas coisas do universo.
l'or quantas e quaes deprimentes cau.s;i>,
secreta e lenlamenlc evolucionadas, diegamos
nós a osÍkI perversidade no amoi-?
[Via velhice precoce, radiaila de lactoiv
diversos — desde a inania licreditaria, até a
insalubre educação das eset)las e das otiicinas
— que aos triída ânuos invalida os liabilantes
das nossas cidades, cuja eneriíia pliysica se
apagou na de|)ressão do meio, na falta de exer-
cícios safubres, de hygiene e de cultura moral,
c cujo systema nervoso se foi exasiierando
até aos clowuismos da nevrose, e inveilendo
a polarisação dos aclos vilães, desde as finic-
ções das vísceras até ás funcções do caiacter,
desde as sensações até aos sentimentos, desde os
actos da inlellígcnciaaté aos aclos da vontade.
Mais ou menos, ha cm cada um de nós ura
Des Esseiííh, fruste talvez, e ein ccciosão ape-
nas, mas absolutamente inferior como indi-
viduo, ao fypo [juysiologico do iiuuiciii vali-
do e do homem são. Mas ha oiUro faclor tam-
bém a oppòr á senectude do homem. E' a ex-
traordinária precocidade da mulher.
As raças reprimidas eui bairros-gaiolas,
como são os bairros das nossas velhas cida-
des, em casas sem sol, entre saguões e sar-
gelas — pouca agua, ar podre, limpeza nenhu-
ma, escasso alimento, e demasiadas exigên-
cias de prazer e de trabalho— deitam rebentos,
que apenas fugidos dos berços, parecem já
mais ou menos aptos ao exercício d'artes e
funcções, que d'anles eram para assim dizer
regalia exclusiva da edade forte. É encarar o
gaiato de Lisboa, como prototypo dos fdhos
das classes trabalhadoras: é encarar o collè-
gial, como specimen de progenilura da nossa
classe media. Da bocca dos mais pequenos,
dos mais innocentes, da crcança que apenas fal-
te, balbuciando as coisas com difficuldade, rom-
pem ás vezes palavras que em si condensam
mais de trinta annos d'experiencia e de ruse.
Nas frialdades du olhar (nos garotos da rua
'lii os GATOS
sobaiii(lo) sccco e tenaz por entre as peque-
ninas nigas (las palpei)ras avermelliadas d'o-
phthalniia, cnregelain-se a rcllexão e a inso-
lência de sexagenários que viram tudo, assis-
tiram a tudo, provaram de tudo, e para os
(piaes o mundo já não contém sui'pre/as nem
mysterios. Observar como elles correm na
rua, ílanando em bandos— pequenos mepliis-
toplieles do enxurro — a fazer troça á mulher
da hortaliça que passa, com plirases precoces
de voi/oiLs iniciados em certos cultos, ou indo
i'cpetir á porta dos lojistas, nos bairros lòbre-
gos, as scies desavergonhadas com que certos
lojistas embirram muito. E as suas conversas,
em que ha inimicas de macaco e aravias cy-
uicas de grilheta !
As suas chalaças, (pie brotam culre caniii-
tonhas macabras, como uma revelação do Ins-
lincto cómico, arguto até ao sardonismo ! As
suas alegrias, que não teem saúde no rir exan-
gue da bocca, c aos doze annos vem já ator-
mentadas por uma espécie de raiva convulsi-
va ! As suas cóleras, inconsistentes, por acccs-
sos, que tceni da inq)ulsão monomaniaca dos
degenerados, e dos contrasensos brutaes das
bestas carniceiras !
27
Com as pcíjuenas, o mesmo. A natu-
reza fal-as mulheres, quando ellas para as-
sim dizer, nem ainda começaram a ser crean-
ças.
.Mais ou menos, são quasi todas umas ve-
lliinhas de mama, sem infância, sem ingenui-
dade, compostasiuhas, tolasinhas, já scepticas
e maldizentes, copiando as locuções que ou-
vem, fazendo esforços de perspicácia para adi-
vinhar aquillo que não comprehcndem, subs-
tituindo o capricho á emoção, a eíTervescencia
liysterica á livre expansão da infância, o de-
sejo do maridinho ao desejo da boneca, e a
conversa com liomens, aos turbulentos brin-
(piedos com as demais da sua edade, pelas
ruas ensaibradas d'um jardim. A natureza fal-as
mulheres quando para assim dizer ellas ainda
uein creanças entraram a ser. Tudo n'ellas,
excepto a estatura, condiz ao modelo da mu-
lher mal educada, namoradeira, vaidosa, fú-
til, embirrenta, tão vulgar entre as mulheres
de Lisboa, ou sejam senhoras ou cigarreiras,
fdhas de carpinteiros, ou fdhas de capitalis-
tas. . . A mesma loquella descercbrada, intro-
metfendo-se nas conversas com uma imperti-
nência de mau gosto ; o mesmo saracoteado
2S
1111 íiiiiiai, i|iir M' in^[iira !iii jiui iu iia.-- ;;ciri/(,'S
do Priacipe Ilcal, ao fazoi'cm papeis de dii-
ffueza, e no iidleru das aamirems, ao caularem
o Semr iikalde mai/or: a mesma cmiosidade
inquietante em procurarem o convivio de pes-
soas grandes, como para iiies ijoberem nas
conversações, os venenosos suecos de certas
palavras c certas intenções — e sobretudo aquel-
la lebre, aquelia anciã d'adivinliarem por bai-
xo das coisas apparentes. . . por uma palavra,
um olhar, uma iiudiicc d'cxpressão. . . alguma
coisa do pandemonio humano que ellas des-
confiam lhes occultam, e que as tresvaira —
pequeninas perversas inconscientes! — ao pon-
to de as fazer saltar dezenas d'annos na evo-
lução da edade, lornando-as mulheres, quando
ellas ás vezes nem sequer completaram ainda
a primeira dentição.
Filhas de banqueiros ou fdhas d'operarios,
não se imagina o que cilas são d'inquielado-
ras, aos doze, treze, quatoi'ze annos, e com
que felina arte, encantadora e abominável,
muitas (ressás pequenas sabem fazer a corte
aos homens, a occultas das aias e das mamãs.
Desconhecidas larvas, rastejando-lhes no san-
gue mórbido (jue herdaram, vem produzir
-2!)
ii"a(|iK'll;i crise da od;uie, as mais singulares o
inconressavpís pyxcrias.
ílemetliadas oii ricas, os collegios auxiliam,
|ii'la vida coininum, a evolução e a quiníessen-
cia d'esLis estranhas personalidades. As po-
bres víio para a officina ou vão jiara a modis-
ta, muilo novas, inipiibcros quasi; e alli, em-
ífuanto as regentes dormitam, e as inachinas
Iraballiain, parallclamente á costura c aos es-
torces da labuta profissional, scgiic-se um
curso gradual de galantaria, ensinado pelas
abellias-niesti-as ás jovens niosquinhas-mortas
entradas de novo, um curso cocliichado ao o»i-
A'ido, entre risinhos, pequenos beijos, suspiros
— um curso de galantaria que nem sequer ao
menos tem a livral-o da libertinagem, uma va-
porosa aza ponleaguda, elysea e tremula, de
sentimento. Nos nossos paizes do sol, em
que a bolleza não tem a oscudal-a, a torna!-a
uma coisa solida e persistente, os relevos ós-
seos do esifueleto, e é feila de carne apenas,
de frescuras de tinta, brillio d'ollios, e diaplia-
neidades mimosas de cútis, a nossa mulher
cedo eininurclia, e eslá fanada aos vinte c
cinco ânuos, ao primeiro désgostn, á primei-
ra doença, ou ao primeiro filho.
30 os GATOS
O período il'eflloresceucia estlictica ini-
cia-se para ellas, portanto, logo desde os co-
meços da adolencencia — o que se cliania a bel-
leza do diabo — quando para assim dizer o
sexo anatómico inda não falia, e o sexo mo-
ral já tem eloquências, que arrastam o outro,
aihui-aihít, empós do primeiro idyllio roma-
nesco.
A rapariga está assim doscíjuilibrada luj
mais profundo do seu sèr.
A degeneração orgânica da casta, e a vi-
ciação do meio social, tornaram-n'a já n'uma
mulher vorazmente amorosa, constantemente
solicitada pelo mau exemplo e pela tentação,
com paixonetas e agasluras hystericas, ao pas-
so que a edade e a miséria eslructural, her-
dada ou contraliida, se manteem ainda nas
hesitações e tibiezas da creança. N'clla, o es-
pirito tem todas as labaredas d'um facho, em-
(pianto o corpo é frágil e ondeante como uma
gaze.
N"eslas alturas, pois, o incêndio é uma
coisa inevitável.
os GATOS ol
Ponham-se agora aquelles homens que eu
disse, precocemente envelhecidos, sein api)e-
tites naturaes, sem saúde, com dyspepsias no
vicio alterando-lhcs os desejos em exolicida-
des bizarras, mancos de energias physicas que
os i'eintegrem triumphanlemcnte no seu papel
de niaclios c procreadorcs, ao lado d'cstas es-
tranhas charmeuses d'olhos garços, cabellos
em iliien, bocca enigmática, mãos exangues,
seio fino, e riso dúbio — virgindades sem in-
iiocencia, que teem pressa de chegar á nu-
bilidade — e digam-me depois o que succe-
derá.
l:AÍdenlemente a desavergonhada da rua
do Arsenal não recrutai'ia creanças para o seu
talho, a despeito da severidade dos regula-
mentos policiaes, se essa caminha tenra, bran-
ca, assucarada, cheirando a sol e a biberoii,
não tivesse procura, e liie não valesse gorge-
tas anafadas.
A mulher das Olarias já teria abandonado
o seu systhema de visitas nocturnas aos san-
tuários de Vénus, com a pupilla, se todas as
tai'des não fosse uma velha de capote e lenço,
com um bilhetinho da sacerdotisa do templo,
a D. Isaura ou a D. bmocencia, marcar-lhc
3-2
um re)ide:-i'on.f para o Gasiro bexigoso, ou
para o Pimenta dos óculos.
As mães não envia i'iam aos cafés, peque-
nitas de seis o selo annos, li':ijadas com certa
yari'idico, n vender cautelas ou a pedir esmo-
la, com um s(írriso de fazer frio aos menos
l)ropcnsos a sentimentalidades, se lhes não
aguçasse a cubica, as esmolas de cinco tos-
tões com ({ue os. francelhos da crapulosa /■/-
f/olade de Lisboa, armam isca, aos transvia-
dos c implumes passaritos. Logo esta industria
infamo, tem procura, c vale a pena de ser
exercida, a despeito dos perigos de ((ue se
cerca !
O acto é por tal forma monstruoso, illogi-
00, e extravasado dos processos gcraes da jiliy-
siologia voluptuosa, (pie não jwdc explicar-se
por uma sobrexcitaçãn do ap])etite são, se-
não como deficiência do substraclo mental,
que a prisão não corrige, e (pie talvez se foi
l)ouco a |)ouco preparando, em parallelo com
outras manqueiras humanas, á niíídida que a
i"iça se esgotava, estcrilisando-se, n"um rom-
mcncemciil de la fin, como o de Homa, no
tempo de Calígula e Tibério, que o diabo te-
idia. Todos os esforços dos reformadores de-
os GATOS 33
verão pois recuar para mais longe, c ir refa-
zer a cidade, não a sabor do empirismo dos
lunáticos, que investigam da felicidade colle-
cliva por palpite, como o Fonseca das caute-
las, mas sob os respeitos d"um plano vasto e
geral, em que sejam destruídas todas as cau-
sas averiguadas d'envilecimento orgânico e
moral da familia portugueza, e sotopostos em
leis, todos os pi'incipios que a sciencia apu-
rou dos seus dois séculos d'investigaçôes, c
que d'alguma maneira possam auxiliar ou de-
senvolver, aquella felicidade.
— Mas esse plano? dirá alguém.
Esse plano, os especialistas que o fundam,
que o redijam, que o proponham, e que o dis-
cutam. Us elementos abundam. Pensam os se-
nhores que não sei'ia já muito o alterar com-
jtletamente o systhema d'edificações em que
Lisboa mora, respira, trabalha e solTre? e que
sob todos os respeitos, são a coisa mais as-
phy.xianle e deletéria que se conhece?
Nos paizes mais adiantados da Europa,
começa-se já a pensar n'este problema seria-
mente; e a par dos esforços tendentes a livra-
rem os ricos, por algum tempo ainda, das
vindictas dos trabalhadores, pela forjadura de
M os GATOS
coiligos regularisailores ilu Irabalho e do lu-
cro, capricham os estudiosos cm fazer resur-
gir da apalhia pliysica, as popidações vergas-
tadas peia miséria, em cuja vida o pão escas-
seia, e supcrahundam os desregramentos.
Para não fallarmos senão da França, dire-
mos que no espaço dos últimos dois annos,
teem as sociedades sabias de Paris, Toui's,
Montpellier, Lyon, etc, discutido pelo menos
uma cincoenlcna d'assumptos concernenles
á remodelação das cidades, desde as habitações
até aos indivíduos, pelos pro('essos quea scicii-
cia experimental dcliuilivainenle acousollia.
D'esses problemas citaremos ao acaso, pro-
hibidos como estamos, de detalhar (jiuilquer
episodio especial:
— Siinnéiuujc e molmcinii/c nas escolas e
nas olficinas.
— Regulação du trabalho das mulheres e
dos menores, quer nas escolas, quer nos ale-
liers — limite máximo d'edade em que umas e
outras devem começar a trabalhar — numero
de horas de trabalho quotidiano— regulamen-
tos sol)re o trabalho nocturno, e especificíiçào
da edadc e dos mesteres ein que esse trabalho
deva ser pcrmitlitlo.
os GATOS 35
— Ilygieue obriííatoria das officinas, lyceiís,
miigasins, egramles fabricas^siia capacidade,
tiragem, graduarão de luz, etc.
— Ilygiene na coiistiiicção das residências,
dimensões de ruas, janollas, e exposição e
veiililação dos quartos.
— Ilygiene da alimentação — fiscalisação
rigorosa sobre a pureza e o preço dos alimen-
tos de |)rinieira instancia.
— Propliylaxia das doenças contagiosas,
especialisando as secretas, que estão sujeitas
a nina fiscalisação sagacíssima, por banda da
|»olicia sanitária.
— Distribuição gratuita de regulamentos
sanitários pi'eventivos da infecção.
— Estabelecimento de banbos públicos gra-
tuitos para toda a gente, por conta das muni-
cipalidades.
— Creação de parques, jogos públicos e di-
versões baratas, aonde os operários possam
espairecer, ao fim d'unia semana de trabalho.
— Ilospilaes para creanças rachilicas e es-
crophulosas, á beira-mar.
— Fundação de Ooiirses de voyage collecti-
vas, para os aiumnos das escolas publicas das
cidades, d'ambos os sexos, com o fim de lhes
36 os GATOS
proporcionar viagens de recreio ás praias e
florestas de França, duranie as ferias.
— Eslabelecinienlo d'ofricinas annexas ás es-
colas, d'exercicios militares, gyninasios, esco-
las de canto ciioral, esgrima, nalarão e cano-
tageni, com um certo niiinero de notas de fim
d'anno, que entram na classificação geral do cnr-
so, com uni valor egual aos das outras aulas.
— A mais assidua vigilância sobre a saú-
de, os costumes, os hábitos e as tendências
da infância, gradual e amoravelniente exerci-
da, para corrigir n'estes as man((ueiras lieie-
ditarias, e attenuar n'aíiuelles, vivacidades e
violências demasiosas, já não aspliyxiando-as,
mas fazcndo-as derivar para um caminho apro-
veitável.
— Ilygicnc da niateiiiidade, exposições de
creanças, etc, etc.
E por idtinio, accrescentaria eu a toda esta
série de problemas capiíaes para a vida con-
temporânea, mais um, que é importante aci-
ma de todos, e vem a ser, a intervenção da
policia medica nos casamentos, ponto por ago-
ra theorico, como meio de prevenir as allian-
ças doentias que abastardam a descendência
até ao extremo Ínfimo que se está vendo.
os GATOS 37
Pois se eu, anles de comprar o cavallo de
que preciso, e a chnise-longue em que me
deilo, investigo primeiro se cavallo e chaixc-
hiiffiie não teem coisa ncnliuma partida, por-
que não liei de fazer o mesmo (en mémificanl la
finisc) á mulher com quem me caso ; ou por-
(pie não ha-de essa mulher inquirir da minha
saúde e da minha solidez, sabendo que a ca-
sar com um invalido, vae crear-se um marty-
rio para toda a vida?
Talvez porque em nossos dias, o casamen-
to seja para mulher e marido, uma espécie
de retirada da vida alegre, d'asylo de rheu-
matismos latentes e dyspepsias contraliidas,
(jue os ajuda a viver mais algum tempo, e de
que os fdhos pagam as custas, vindo a este
mundo já derreados, desforçando-se porém da
inania herdada, pelo prazer d'amaldi(;oarem a
toda a hora — os pães.
EXPEDIENTE
csaiiao
Muito brevemente apresentaremos os pros-
pectos para a pnblicação d(! uma edição >io-
NUMEiNTAL ilo notavel romance AMOR DE
PERDIÇÃO, do príncipe dos escriptorcs por-
liigiiezos, Camillo Castello Bn.VNCO, o ro-
mancista de impcrecivcl renome e incgualavcl
talento, espciando que V. Ex.» nos reservará
a sua assignalura para tão importante pidili-
cação. A edição que emprehendcmos consti-
tuirá um verdadeiro primor de bibliograpliia
nacional, pois será illustrada com magníficos
desenhos devidos aos reputados e laureados
artistas portuguezes — J. J. de Souza Pinto, Cae-
tano Moreira da Costa Lima e J. d'Almeida c
Silva, inserindo também prefácios e estudos
críticos dos nossos notáveis homens de letras
— Manuel Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão e
Tlieophilo Braga, trabalhos feitos expressamen-
te para esta monumental edtçào.
Ucará, assim, pois, esta edição especial do
notavel romance AMOR DE PERDIÇÃO como
um monumento perdiu'avel em iiuiira do seu
iunuortal auctor.
Os editores oHereccm a todos os assigiiaii-
les d'esta inoniiniental edição um brinde de
um grande valor artistico, c t;il que alú hoje
ainda se não distriljuiu no paiz brinde de va-
lor comparável a este. K uma soi)crl)a oleo-
grapliia, finissinia, de grandes dimens(jes, e
copia do notável quadro Uma scoxt de Pom-
peia, que enri(|uece um dos museus da Itália,
c que é devido ao pincel do celebre artista
italiano L. Crosio.
E tão notável esse (juadro, que todas as
illustrações estrangeiras o léni reproduzido em
suas pai,inas em biíllas gravuras dos melhores
artistas, dedicando áquelle soberbo trabalho
notáveis artigos c fozendo os maiores elogios
ao auclor do quadro.
Póde-sc afoitamente garantir (|ue o valor
real do brinde é de metade da oiíka que
vamos publicar.
A edição acha-se já quasi prompla, faltan-
do apenas concluir os albuns-specimens, pros-
pectos e cartazes; e a publicação regulai' co-
meçará brevemente, sendo antes dMsso exposto
ao publico o MAGNIFICO brinde que oITerece-
mos gratuitamente a todos os assignantes.
OS EDITORES.
FIALHO D'ALMEIDA
OS GATOS
PUBLICAÇÃO SEMANAL,
D'INQUERIT0 Á VIDA PORTUGUEZA
ri7— lide
SUMMARIO
Em que se pedem illustraçOes ao livro
branco, para explicação das nossas der-
rotas diplomáticas — diagnostico da di-
plomacia actual, e necessidade dos embai-
xadores se não parecerem com os creados de
servir — o snr. rarjona em londres, e das
suas singulares aptidões africanistas —
barjona mul.\to e janota : necessidade que
teem os diplomatas de serem bellos e bem
NASCIDOS — RETRATO D'UM GERO, E SEU ANTA-
GONISMO C0'AS raças puras — INCONTINÊNCIA
DAS SUAS URINAS, MOBILIDADE DAS SUAS IDEIAS,
E DEMONSTRAÇÕES INFERIORES DO SEU HUMORIS-
MO—DOIS DITOS ERÓTICOS— FRAGILIDADES D'UM
HOMEM CELEBRE: O SNR. BARJONA DANDV, BRÉ-
II os GATOS
JEIROTE DAS PRAIAS, E FADISTA — CHEGADA A
LONDRES, E RECEPÇÃO DE <es (htmcs, PELO PES-
SOAL DA EMBAIXADA— DELÍQUIO DA EMBAIXATRIZ
E CORTEJO cívico Á CLOACA — O SNR. BARJO.NA
NO Holel Bristol: GRANDE vida E grande RODA
— Ai SC camólt! — A PRIMEIRA CONFERENCIA
NO Foreign-Officc, E analogias DO embaixa-
dor PORTUGUEZ COM CALISTO ELOY — COMO S.
EX.\ VAE PREPARADO PARA BATER A LORD SA-
LISBURY — JANTAR DE GALA, E GENTILEZA DO
SNR. BARJONA A LADV SALISBURY — AYERIGUA-
SE QUE É INDECENTE, E TEM A PREOCCUPAÇÃO
DOS ALFAIATES — SIR CURRIE E OS BILHETINHOS
— PLENIPOTENCIÁRIO PORTUGUEZ CONTANDO
AOS LACAIOS DO Foreiíjll, ANEDOCTAS DE FRA-
DES— ÓDIO BRITANNICO AOS TVPOS SUBALTER-
NOS— A JULIANA DO PritHO Itnsilio EMPRESTA
CARACTER Á LINGUAGEM DE CERTOS TELEGRAM-
MAS DO LIVRO BRANCO — DEMONSTRAÇÕES SER-
VIS PERANTE O INGLEZ — O SNR. BARJONA PELO
BEIÇO — CONTRAPROVA INSALUBRE DAS SUAS
PAIXÕES QUAZI ANIMAES — PERDE-SE MOÇAM-
BIQUE POR S. EX.a NUNCA TER TIDO BONS CASA-
COS— VALOR DE S. M. EM KILOS REDONDOS:
OS REIS E OS PORCOS — CARICATURADA VALEN-
TIA ALFACINHA.
29 de Setembro.
A par (lo livro branco, expositor dos pla-
nos africanistas do gabinete que vem d'expi-
rar, como o pedrasta do conto de Ricliepin,
n'uma latrina, deveria a nossa chancellaria ter
dado a lume uma espécie d'album d'aguarellas,
onde a posteridade podesse ver bem as caras
dos negociadores, e os toiletles cm que o snr.
Barjona de Freitas, enviado extraordinai'io do
governo porluguez, entrou no Foreign-Of/ke,
foi aos jantares de Windsor, ou assistiu ás re-
cepções de lord Salisbury. Mais que ncnliuma
outra espécie de documento, esse álbum nos
teria explicado as derrotas diplomáticas, não só
por uma falta de lucidez na revindicação dos
nossos direitos, como principalmente pela in-
4 OS GATOS
verosiuiil lidicularia ila figura que a Londres foi
justar a causa portugueza.
Bem sei que os owiddoa de hoje não são
mais os pei'sonagens supremos de lia dois sé-
culos, e que as negociações entre os governos,
perdendo o caracter aventuroso d'outr'ora,
tendem cada vez mais a suprimir o agente di-
plomático. Todavia este antigo arl)itro dos des-
tinos da Euroi)a— no tempo em (pie a politica
era apenas o diverliculo das casmurrices ])cs-
soaes dos reis, e dos caprichos liyslericos das
favoritas c das solieranas — se já não salva nem
perde dyuastias, só pelo prestigio pessoal da
sua helleza ou da sua argúcia, nem por isso
deixa de ser nas cortes estrangeiras como uma
syntliese viva dai^açaque o envia, e como uma
amostra das qualidades e dos defeitos do paiz
que elle tem a missão de representar.
Hoje, a diplomacia europea é conduzida e
dominada pela fataliilade dos factos, e a opi-
nião (! a única soberana (pie ainda alguma vez
pôde contel-os. Quatro i-aças disputam entre si
a hegemonia do uumdo, e todo o movimento
das cliancellarias obedece á trepidação (Fessas
raças rpie, na Eurojja ou lora d'ella, preten-
ilem tomnr o passo umas ás outras, for forma
os GATOS 5
que tirada ao embaixailor a iniciativa do func-
cionario autónomo, com carta branca para a
escolha dos meios de dar batallia, que elle con-
servava ainda no tempo de .1. de Maistre e do
conde de Lavradio, as pendências diplomáti-
cas resolvem-se directamente entre os gabine-
tes, sendo o embaixador apenas um interme-
diário para o apasiguar dos pequenos inciden-
tes. Vae, por isso mesmo que o seu ofíicio
baixa em profundeza, deve subir a míse-en-
scene inhcrente á ideia de ser elle o represen-
tante carnal do povo (jue o envia, e não con-
vir jamais entre estrangeiros abater o rang
d'esse povo, até ao extremo em que o embai-
xador se confunde com o creado de servir.
Ora, esfoçando um pouco nos predicados
que o snr. Hintze achou no snr. Barjona para
envial-o como representante de Portugal, á
corte mais requintada e formalista do mundo,
vc-se o seguinte. Como (ifriconder, o snr. Bar-
jona c uma bestinha mansa e pegadiça, sem
entluisiasmo, porque nem a edade nem a ín-
dole permittem que elle se enthusiasme: sem
proficiência, porque tirante escamoteações fo-
6 os GATOS
rcnses, não consta (|ue o hoincmsinho tomasse
gosto por outras (lucstôes que não revistam a
forma de charutos ile seis vinténs, e de bai-
xos ventres de sopeiras: e finalmente sem a
menor familiaridade com os instrumentos que
poderiam facililar-Ilie a tarefa, verhi gralia o
manejo da liri<;Ma faltada pelos diplomatas com
quem havia (Tentender-se.
Ajuslaram-no á tòa, como um mergulhador
inexperiente do officio, o sem escaphandro ex-
pediram-no para as profundezas do Foreirjn.
Inutilisal-o como opposição no parlamento,
compioniettel-o como negociador, perante o
paiz, taes parecem ter sido os moveis dos seus
noves mezes de Londres, ao fim dos cpiaes lord
Salisbui'y lhe fez parir o monstro do tratado.
Elle mesmo pasma de o terem aciíado bom
para uma missão de tal delicadeza, e no livro
branco, a cada passo acorda o seu estribiiiio
fúnebre — inijuield-me a ronfianai do (jovervio!
— como um i-emorso do latrocínio consentido.
Inda esta ignorância podia escondei-se em
Londres i)or traz (Tuus monosyllahos graves,
peculiares a certos dijjlomatas, que fazem do
grunhido uma eloquência, e ainda esta iudiífe-
rença podia passar por aplomb d'embaixador,
os GATOS 7
se acaso o snr. Barjona fosse um liomeni do
mundo, e competisse em goutilhomeria de ma-
neiras, em correcção altiva de porte, em des-
denhosa elegância, em espirito vivido, em re-
quinte, com os personagens superiores, com
quem no decurso da sua missão, sem duvida
houve que conviver e descretear. Porém Lis-
boa conhece por demais o illustre esquerdo-
g\'mnastista, para cuidar que elle illudisse o
inglez quanto á proveniência duvidosa das suas
poupas, e quanto ao selecled dos seus arrotos
durante as refeições.
É um advogado de provincia calcado so-
bre todas as pelintragens da vida de bohemio,
acrescentadas de todas as licenças da vida de
solteiro. D'uma origem plebea — o que não é
indiíTerente na gestação d'um diplomata — toda
a vida pobre, e com pequenas angustias quo-
tidianas de cinco libras perdidas á batota, elle
acusa nos mais pequenos detalhes do seu es-
pirito e da sua figura, essas saburras intimas
do cavador que está por baixo do outro, do
homem cultivado, e a cada instante intervém
para o amestpiiuhar, seja onde fòr. Mesmo a
o os GATOS
sua ligara é deplorável, coiii Iciçôcs de cigano
e sangue de mulato. Xos cabcllos corredios,
chorando banha, na implantação viciosíssima
dos dentes, bordados de limugcns perlo da
raiz, na bai'ba rala, empastada de herpes, no
prognatismo da niaxilla inferior, avançando
obtusamente com uma sensualidade rude de
goi'illa, no feitio da bari'iga, gastralgisada por
indigestões de comidas ordinárias, no desenho
das mãos rugosas, com palmouras, dedos cheios
de nós, nnlias cliatas, estriadas ao travez como
a dos pobrcílòes descalços, no rythmo do an-
dar, cambaio, como quem leva um frete, no
parenthesis das pernas, no feitio do cachaço,
uma inferioridade atávica rcsalta, de raça es-
púria, cruzamentos (pie aviltam o homem, e
o desviam do typo puro de <pie certos repre-
sentantes (las raças loiras parecem ser o ideal
ineaualavcl.
Folheada a sua vida, justapõem-se defeitos
funccionaes ás imperfeições orgânicas que vem
de ser traçadas. Conta seu tio, que até cerca
dos quinze annos não foi possível evitar que
elle todas as noites mijasse na cama, nem ti-
os GATOS 9
rar-Ihc da cabeça ainda agora, que as unhas
dos pés são coniestiveis. Sem delicadeza al-
guma no caracter, sem fixidez alguma nas
ideias, nada o interessa além das mulheres, do
jogo e da comida, únicas coizas de que elle
abusa, e subordina ao sybaritismo de si pró-
prio, sem lhe dar sequer um instanlc d'alma
agradecida. Tam pouco o seu humor provém
da bonhomia: é cynico, erótico (juazi, radi-
ca-se no desprezo de tudo, vem da navegação
de tudo: não tem amargura, que ainda pre-
supporia veheniencia, interesse, mas é uma
coisa glacial vinda d'uma alma morta para as
alvoradas da crença e para as i)rimaveras da
emoção. Sendo ministro, um deputado exigen-
te, cançado de lhe pedir não sei í(ue logar far-
to, atreveu-se a dizer que se a pretensão não
visse despacho, elle atiraria com a albarda.
— Não atire, não atire, respondcu-lhe fiar-
jona, que eu não estou acostumado a mon-
tal-o em pcUo.
D'outra vez, vindo com Sampaio d'unia re-
cepção real, no mesmo carro, conversavam os
dois sobre a ridícula tarefa de genulleclir pe-
rante as mageslades, em certas epochas mar-
cadas p'lo kalendario. E Sampaio, resignado —
10 os GATOS
Einfim os salamaleiíucs ao rei ficaram feitos ;
loca a ir repetil-os aiíora ao D. Fernando.
— QuQ qiicr você? disse-lho o outro. De-
pois da ajuda vem sempre as necessidades.
Vov sob aijuelle vernis de politico, e a de-
sabusada iionrliiilnnre d'estadista, o plebeu que
lhe está por baixo da pelíe, e é o verdadeiro
tíarjona em carne e osso, compromctte-lhe a
allure de grande homem, ridicuiisa-o, achinca-
Iha-o, é o seu cari-asco e o seu suor frio. Tem
secretamente a raiva de ser gebo, e prascntei-
ranicnle liaveria trocado a posição culminante
d'agora, por umas tripas que dessem menos ron-
cos, acrescendo (pie o seu ar negligente escon-
de a mais terrivel fascinação p'los que vestem
a primor. Todos os seus amigos conhecem a
sua maneira especial de tomar o braço, belis-
cando aiVectuosamente a polpa do biceps. .\
primeir'a vista, parece cordealidade, mas re-
parando em (pie elle só belisca os bem ves-
tidos, advem-se na conclusão de que o faça
anles para ajuizar do panno das sobrecasacas
correctas, que são o desespero da sua vida.
De feito a sua manqueira como gentleman
os GATOS H
reveste (|uazi uma feição grotesca de morga-
do de Fale e de Mr. Perriclwn cn aJlanl ti la
vore.
É um apologista dos collarinhos postiços,
dos peitilhos de borracha, e das gravatinlias
alfinetadas de jóias duvidosas. Tem a paixão
da melena varrida sobre as fontes, das po-
madas cheirando a virilhas de magana, dos
grilhões de saloio, com meio kilo de berlo-
•(|ues, pendulando. No fiira-bolos, o clássico ca-
chucho de guarda municipal; botpiilhas compli-
■cadas de caixeiro, com veados, cupidos, mu-
lheres nuas — e como se não fora já typica a sua
meia de linha, e o sapato de peito de casimira,
colchetado á banda com bonnets de jockey,
tem ainda por cima o mau sestro (Ventrapar as
pernas com cortes llòr d"alecrim da fabrica d'Ar-
rent('lla, e de roer as unhas em sociedade,
depois que as adul)ou co'a murraça herpetica
<[ue vae raspar ás profundezas da gaforina.
A sua chegada a I,ondi'es, entre o cornaca
Carrilho, Qces diimes, é uma d'cstas paginas de
cómico, d'ondc o inverosímil poreja em risos
insustaveis, tamanha a inventiva expensa na
concepção d'uma tal scena.
Imaginc-se o pessoal da embaixada todo
1í2 os GATOS
na gare, em loilclte—o siir. Luiz Soveral com
o ramo de rozas i)rosles, c o braço em arco,
aguardando ã portinhola do wagon, a embai-
xatriz—a porta que se abre, C.arriliio o pri-
meiro que ajiea, carregado como um ferro ve-
lho, caixas de chapéus, dois IVaidiíiueií-os, mo-
ringues d'Ksti'emóz, cabazes de mil formas, e
por cima de tudo um cobertor da Coviliiã, que
servira ao emljaixador de rourre-pieds . . . De-
pois, na confusão dos balões e das saias de
chita, princezas barbacenas que assomam, com
cintos de fivella, maias de tapete, embrulhos
d'especiones, e todas com lenços de malha ao
pescoço, capas medonhas, lenços amarrados
por cima dos chapéus ; e espavoridas, a triguei-
ra com medo de seresfacpicada por Jack o estir-
pador, a magricella aos vómitos, com o estô-
mago azedo dos tombos do comboyo, a gorda
a gemer com inllannuação na gengiva d'um
dente cariado — e por alli fora, uma inferneira
de cestos de provisões, gaiolas de passarocos,
galos em saccos, chouriços escondidos, como
se tudo atpiillo reentrasse d'um arraial portu-
gucz, fora de portas.
Já a esse tempo o amavioso Soveral tem
crescido sobre a (pie lhe pareceu mais grande
os GATOS 13
muudo, e vae para oílerccer-llie o ramo qiie
trouxera; mas intervém Barjona, dizendo:
— Essa não, que é a Francisca. . . a (empo
d'ainda lhe poder empni^rar o braço para uma
magra, de coita, o buço forte, e cujo chapéu
de pennas verdes e encarnadas liie infunde um
ar de calatua impaciente. Ahi se engaclia todo
aqnelie bello sexo nos braços da embaixada
contrafeita, e o cortejo atravessa as salas n'unia
ronda d'escandaiisar o próprio i)ilheteiro; quan-
do a Francisca, que já pelo caminho dera mos-
tras d'estorcida, começa d'esfusiar pequenos
ais, que o seu braceiro interjireta como tes-
temunhos de ternura.
— Lon(h"cs, minha senhora, é todo um
mundo, o clima frio, mas os corações aqui
batem depressa. . .
E a dama, pallida — Valha-me nossa Se-
nhora! eu já não posso!
— Portugal fíiz-ihe saudades, prevejo, mas
encontrará atpii em Londres quem lia-de sa-
ber comprchendel-a.
Lá desfallece a pobre nos braços do pre-
cioso que assim falia, rumor na sociedade, co-
pos d'agua no ar; té que Barjona chega de
sapatinhos de feltro, bonnet de mercieiro, es-
1 í os GATOS
capo alfun das iiiilias dos policias, (jue [)re-
teniliam tomal-o por um assassino italiano. De
roda, é um gastar de coudolcncias : não lia-de
ser nada, delíquio passageiro, ellVíitos do ca-
lor. . . quando a das plumas verdes intervém
— Diz com franqueza, menina, o que tu que-
res é dar de corpo. . .
É exactamente o que ella quer, (illiOi<(r:si\-
e de casaca, expendendo gra(,'as Luiz xv, lodo
aquelle pessoal de legação, vindo p'ra render
homenagem ao seu plenipotenciário, acaba
por enfreiar toilelte e espirito ao cortejo dro-
latico d'uma jeinie personiie que destempei"a
em caganeira.
... o álbum para annexar ao livro branco,
devia começai' por esta as suas aguarellas.
A segunda aguarella contaria da iustalla-
çâo do enviado portuguez no Hotel Biistol,
elle, um bohemio de casa de hospedes, afeito
a fumar charutos de couve, e a ferrar moucos
no calcanhar das pingas servidas, n'uma hos-
pedagem de príncipe, alcatifas, tenlitre.^, mobí-
lias caras, menus e.xoticos, confortos desconhe-
cidos, bidés suporlluos, banheiras por servir;
os GATOS 15
c servido por creados (jue a cada inslauíc llie
dariam sem querer, lições de correcção. Está
a gente a vel-o entre malas abertas e pontas
de charuto atiradas, escarrando como um tí-
sico, p'ra direita e p'ra esquerda, n'uma atmos-
phera (restniiuio ponctuada d'aguas de coló-
nia aviltantes: e a cada minuto ccs (lotne.s pe-
dindo pão com manteiga ao creado, com as-
suadas á'ai se camóii ! pelo inglez incomprelien-
dido, e pragas nacionaes aos papagaios e fral-
diqueiros que vem alliviar-se-lhe nas saias, co-
mo a Francisca, na sccna da estação. E as sur-
prezas d» petite [((iirillc á primeira remessa de
camisas finas, os seus oks! e (í/í.?/ entrechoca-
dos, quando um dos l(t:000 Poois c .loulis Mamb
falsos que I.ondres tem, envia para sua graça
o embaixador, a primeira sobrecasaca forrada de
setini! E na manhã da primeira visita a Salis-
bnry, dada uma ensaboadella geral, primeira e
única da sua vida, na casa de banhos do ho-
tel, quando desencasqucado o snr. Darjona
rompe das espumas, como Vénus, oh surpreza
convulsa! — nem o próprio Carrilho o reconhe-
ce. Tanto o aspecto do nosso plenipotenciário
mudou c'o banho, que depois de limpo é que
verdadeiramente parece que está sujo !
10 os GATOS
Terceira aguarella: a sua entrada no Fo-
reign-Office. Quem quizer ter a psyclíologla
do snr. IJarjona, n'este vertiginoso instante da
sua vida, leia a carta onde o Calisto Eloy da
Quedit d'nm nnjo, descreve á esposa a sua pri-
meira sessão na camará dos deputados.
O personagem grotesco de Camillo serve
maravilliosamente a nos visionar o patusco
homem de pau do sin-. Ilintze. \\n\ Calisto Eloy
por ventura uma intelligencia menos viva, pos-
to mais útil, e a austerisal-a, um sentimento
de conveniências extra-gotliico, <(nazi escul-
ptural.
No snr. Fkirjona do Freitas, a sua antiga
cabeça de génio coimbrão (pie estende os len-
tes, mas já sem viço, n'uni começo de deli-
quescencia encephalica que os excessos expli-
cam, e onde sobrenadam apenas algumas ane-
doclas de frades, e algumas doicrioradas re-
ceitas de casuista.
Em par d'esta anticipada provcctude, a sua
insipidez como homem de sciencia, que mal
sabe onde a Africa fica, que desconhece os
mais rudimentares prolegomenos do problema
os GATOS 17
colonial, c vem ao acaso, sem plano de nego-
ciações, nem uma base sequer p'ra ponto de
partida — e achincalhando tudo, pesando sobre
tudo, aquella sua irreparável condição do ho-
mem grosseiro, timido, pobre, endividado, sem
linha fidalga, nem mãos apresentáveis, com o
ventre hydropico, pernas de feto, chispes de
fadista, e todo elie ás arrecnas, mal seguro
de si, armado no ar, compromettido, com
uma vaga consciência de fazer junto de Salis-
bury a figura d'um orango-tango ao pé de Jú-
piter.
(^luarta aguarella: o snr. Harjona na antecâ-
mara de lord Salisbury, depois de quatro horas
de bilhetinhos, recadiniios, e inúteis tentativas
para que o orgulhoso chanceller britannico o
recebesse. É a 12 Wagosto: os corredoi^es do
Foreign já devem conhecer o passinho molle
do enviado portiiguez, as fumaças do seu cha-
ruto enorme de couve de Hamburgo, e as lon-
gas horas arrastadas junto dos fogões, a con-
versar com os ci'eados, que elle a principio to-
mou por diplomatas, e a que depois pòz a mão
no honibro, tratando-os povivisinhos, com ten-
18 os GATOS
tativas de suborno, de cruzado, a ver se assim
seria recebido mais depressa. De conferencias
e jantares, Salisbury acabou taniijcm por se
fazer conceito nitido acerca do estranho ho-
memsinho em quem o lillle Porliir/al delegou
poderes completos para a partilha da Africa
portugueza, e como porteiros c contínuos,
grandes e pequenos empregados do ministério
elle está senhor dos processos e dos meios
d'esse picaresco embaixador, que dir-se-hia fugi-
do das operetas da Trindade. Porque a todo o in-
glez feito de calculo repugnem as longas disser-
tações e as hermenêuticas de pórtico, resultou
que á segunda entrevista já Salisbury manifesta-
va pelo nosso enviado uma embirração picada
de desprezo. Porque antes de politico, Salisbury
é um homem de corte, fidalgamente nado, e
afeito a tractar gente elevada, e a estofa ple-
bea do nosso ministro, de cachucho no dedo,
pus nas gengivas, olho mortiço, tartamudeando
um francez de phanlasia, e antepondo aos ar-
gumentos práticos, pequeninas espcrtezas ri-
síveis de casuista, breve o desgosta, á medida
que o cheiro a rapozínho que elle exala, sob
os perfumes, que o riso podre dos seus den-
tes de fumisla, que o desenho vicioso dos
os GATOS 19
seus dedos, que a leprosidadc geral de toda a
sua pessoa, lhe reconstituem a vida passada
d'esse homem, pintando-o com um destroço
humano, em regressão ás curiosidades de hos-
pital.
Desde esse dia, Salisbury não se sente bem
ao lado d'elle, e evita senhoras nos jantares
em que tenha de o sentar á sua mèza. Porque
não ha meio de o fazer conversar duas horas,
sem que a sua bocca vomite alguma facécia bo-
cagiana. O sadismo estravasa dos menores de-
talhes da sua convivência: não ha gesto seu,
por cavalheiroso, que se não possa interpretar
por um manguito, tic de pálpebras que se não
filie no subentendido brejeiro que nós outros
conhecemos pela designação de piscudella de
luzio.
Ahi vae uma gentileza a lady Salisbury, no
primeiro jantar que esta lhe deu — M.""la tnar-
guise a poiír servantes, les plus belles femmes
du monde! Eu cerilé feu rofole de coucher
avec. . .
D'outra vez, discutindo uma questão de li-
mites, e as condições de construcção do ca-
minho de ferro de Pungue, o snr. Barjona su-
bitamente possuído da sua velha adoração pela
20 os GATOS
;ilfaiuloi'ia de luxo, lovoíi a mão ao braço de
Salisbury :
— Mylord, ({uaiito llie ciisloii csla sobre-
casaca Ião catita?
O presidente do conselho começa desde en-
tão a lecusar-se ás suas entrevistas, a fazel-o
esperar horas e horas na antecâmara, a discutir
com elie por intermédio (h^ sir Currie, uma
espécie d'Orue!las inglez, de monóculo, vasio
que nem uma occariua. E a(pii as evasivas, as
phrases seccas, as insolências liumoristicas.
Em 17 de fevereiro «le jiosxé est jMssé, le temps
esl nn ijmnd moderateur». Em '21 de março
«Mais uma vez fizemos notar (juc o Zambeze
é uma via internacional, e não pôde ser con-
siderado propriedade exclusiva d'uma só po-
tencia. Se, por falta d'esta precaução se dér
infelizmente algum conflicto, a responsabili-
dade não recahirá sobre o governo britnnni-
co.» O nosso direito histórico, fundado na oc-
cupação tri-secular e na descoberta, Salisbury
chama-lhe «pretençõesarclieologicas.» Darjona
communica fielmente ao snr. llintze o que se
passa; e quanto mais batido pelo ministro in-
glez, mais fascinado ! Trechos dos seus tele-
grammas referindo enl.cvistas, i)arccem arran-
os GATOS 21
cados á (Tcada .Uiliana, do Primo Daiilio. «Ti-
ve hoje a honra de ser recehido por lord Sa-
lisbury, — que esteve mais d' uma hora a fal lar
comigo.»
E n'outro ponto «lord Salisbury, cujos
bons desejos de nos ser agradável são o mais
evidentes possível. . » E mais além «a sollici-
tude de lord Salisbury para comnosco vaealém
das minhas mais carinhosas supposições ...»
llein?
lia n'estas palavras, adorações de mulato,
feitas de baixeza e d' uma espécie de desejo
physico, que evidentemente pòem o negocia-
dor porluguez na subserviência de quem as-
sim o fascinou. No momento d'escrcver o (|ue
acima vimos, o snr. Barjona está preparado
para ser tudo quanto Salisbury queira, seu pe-
dicuro ou seu barbeiro, e para escorchar as
aspirações do povo porluguez a respeito d'Afri-
ca, apenas o ministro da rainha Vicloria lenha
um gesto, ou se digne fazer-lhe olhos gaiatos.
Salisbury tornou-se para elle um não me to-
ques: se procurarem bem nas malas do snr.
Barjona, encontrarão uma velha ponta de cha-
ruto, secretamente apanhada do escarrador
como recordação da primeira entrevista no
'i"! os GATOS
Foreiíjn. Fallcni-llie cl'elle ; porá a mão no pei-
to, c exclamará, revirando os olhos — se o
vissem ! que regalo de homem ! — confessando
que o seu desgosto foi não lhe ter furtado um
lenço, vèl-o no banho, ou constatado a còr das
suas meias. Esta pachochice é conhecida c ó
humana, dando-se — e é o caso— entre um typo
de raça pura, como Salisbury, e um lahróstc
d'inlima escuma portugueza, como o nosso es-
querdista. Não ha esforço de vontade que a
inutilise, abalo que a suste: o homem que
uma vez a experimentou, vac cegamente, á
mercê do outro, n'uma humildade d'amaute e
n'uma abjecção d"escravo, prestes ás maiores
vergonhas, por comprazer da idolatria qm; o
allucina.
Tal a crise i)sycliica e alTectiva do snr.
Barjona de Freitas pei^ante os provados des-
déns e a manifesta i'ei)ulsa com que o minis-
tro da rainha Vicloria houve por bem pôl-o a
distancia, interpomlo o estafermo de sir Cur-
rie por medianeiro de negociações, que para
nos dcixaiem com honra, deveriam de ser tra-
tadas verbalmente. Nas unhas do seu déspota
e fetiche, o snr. Barjona é uma espécie de
coelho (|ue se presta aos divertimentos do fu-
os GATOS Í23
rào, um saclirista ranhoso (jiie assignade cruz
quanto o outro quer, e ainda mais aquillo que
elle não quer.
O livro branco está cheio de cessões de
territórios e regalias á Inglaterra, sem disputa
quasi, e com um caracter de presente de nú-
pcias manifesto, que dá medida do preço por-
que o nosso enviado comprava os sorrisos do
seu chulo. Xunca em verdade a intervenção
d'um homem ordinário foi mais funesta em
causas diplomáticas !
» Oiie importa que Portugal ceda á Inglater-
ra 400:000 kilometros quadrados de terras au-
ríferas, florestas, cursos d'agua? Lord Salis-
bury deixou-se pisar o pé pelo snr. Barjona.
Que importa que todas as clausulas do con-
vénio de iO d'agosto, sejam a projecção na
Africa Portugueza, das tyrannias que o senhor
de roça impõe ao escravo? Lord Salisbury di-
gnou-se dar o pé ao sen humilde seiTO o ple-
nipotenciário portuguez !
E eis ahi como, aparte as irremessiveis ra-
zões que a nossa fraqueza traz á perda d'Afri-
ca, outras mais próximas querem precipitar a
catastrophe por xafurdeiros asquerosíssimos.
Qual a do snr. Ilintze nunca ter tido ta-
24 OS GATOS
lento. Qual a ilo snr. Bai;jona miiica ler fido
casacos.
E n'este ponto fecharia o aiijiim uma agua-
reiia impressionista : o snr. Barjona á volta de
Londres, puchado a bubões caminho de Bem-
íica, veria arder, n'uma hora amarga, algum
d'aquelles grandes charutos que lentamente o
teeni embrutecido. E á guiza de legenda :
— A minha biographia politica é este cha-
ruto, que a pouco trexo d'acceso, liquida em
cinza, fumo, e mau cheiro.
7 iVOulubm.
— Informas do D. Illustnido dão 102 kilos
de peso a S. M. el-rei, no estado são. Cento e
dois kilos é já uma excellente coisa n'um ce-
vado, mas n'um monarcha, caramba! tire-se
o chapéu ao paiz que deu tal bicho. Nunca se
agradecerá sufficiente ao Illuslrado, o ter in-
trotluzido no computo dos merecimentos de
S. M. mais este factor do peso, um dos pou-
cos em (pie el-rei se avantaja nobremente aos
seus vassallos, o pelo qual muitos antecesso-
res seus ficaram na historia, dependurados
os GATOS Í20
pelos pés, com a tripalhada a seccar nos pa-
negyricos dos chronistas. Assim pois, não nos
cega tanto a vesânia politica, (pie ousemos
pedir a expropriação das reaes enxúndias, para
cora ellas atear a lâmpada á deusa da Repu-
blica, 6 com jubilo garantiríamos a S. M. o
usofruclo dos seus reaes cento c dois kilos,
se não fora a quantidade d'obras que está sendo
preciso fazer pr'os installar. S. M., quanto
mais redondo vae estando, menos estabilidade
tem n'um paradouro. São comboios expressos
por qualquer coiza, palácios novos, panjues
lançados... Em verdade, nunca se viu lipoma
mais desinquieto!
— Na noite em que explodiram as primei-
ras rebelliões contra o tratado, um homem de-
pois de tomar o cliá com a família, pòz os dois
sobrolhos carrancudos, levantou a gola do ca-
saco, e preparou-se a sahir p'ras barricadas.
Sobresalfo da esposa, que branca de morte
lhe pergunta, da cancella, o que vae elle fazer.
— O que vou fiizer? ,(untar-me aos meus
irmãos: a pátria agonisa: saberei morrer, se
fôr mister.
t>u
os GATOS
Kll;i llio siipplica pola Virgem, (iiic siilja, »■
não cxiionlia o repouso dos seus filhos: o que
ainda mais aziuma o ardor mavortico do bra-
vo. Mas já na rua, mirando os ares nublados:
— Cuidas então tu qne isto pôde ficar as-
sim? Com mil demónios, nunca! Ouves? Man-
da-me cá abaixo o gnai'ila-cbuva.
Kste valente podia bem cbamar-se o povo
de Lisboa.
CAMILLO CASTELLO BRANCO
AMOR DE PERDIÇÃO
(MEMORIAS D'UMA FAMÍLIA)
EDIÇÃO MONUMENTAL
EiH honieiuigcin ao eiiiinentc 'Rj^iiuviciila 'Pciiugmx^
CAMILLO CASTELLO BRANCO
MANLKI. PINHEIRO CHAGAS, RAMALHO ORTIGÃO e THEOPHILO BRAGA
:t EXECUTADOS
J. J. DE SOUZA PINTO, CAETANO MOREIRA DA COSTA UMA
F. JOSÉ D'ALMEIDA E SILVA
E A IMPRESSÃO lUS ILLCSTRAÇÕES EM PHOTOTTWA COKriAUA À IMPOKTASTh
» DE L. ROUILÉ, DE PARIS
ri?l^*« ^' "^^^ ^^^ m3.\s vivas e prestigiosas figuras
p-li^ ^^ da moderna litteratura europeia é CA-
t r-H&Ki j MILLO CASTELLO BRANCO. Natu-
reza profundamente emocional, propon-
do todos os seus problemas em collisões de senti-
mento, allia á mais alta cultura da linguagem, que
ainda appareceu em escriptor portuguez, o sentimento
fulgurante de um vivo protesto contra a decadência
que nos vae avassallando, aos poucos, na arte e nos
costumes contemporâneos. Absorvido n'uma forte
elaboração esthetica c fugindo ás tentações da poli-
tica, que tantas boas-vontades tem anniquilado, refu-
giou-sc no seu trabalho de liomem de lettraí, como
Robinson na sua ilha. Dentro desse baluarte inexpu-
gnável, elle tem continuamente erguido os seus ty-
pos tradicionaes, essas altas e mármores figuras es-
culpturaes, escolhidas entre nma fidalguia decadente,
que vae gradualmente desapparecendo, substiluida
pela aristocracia do dinheiro, e os typos enérgicos e
viris dos homens rudes e sãos, de quem ainda é per-
mittido esperar um dique á corrente que passa. É
por isso que a obra de CAMILLO é uma das mais
patrióticas, sem perder comtudo esse caracter a um
tempo tão litterario e tão pitoresco, que sobremodo
avulta na sua linguagem; o observador attento en-
contra n'aquelle estylo inimitável, n'aqucllas descri-
pçôes encantadoras, n'aquellas paysagens vibrantes
de realidade, a riquíssima seiva provincial, que é um
dos mais elevados apanágios d'este priviligiado do
talento.
As nações que merecem sobre modo este nome
são aquellas que vinculam em monumentos eternos
a lembrança dos seus grandes homens; e o maior
monumento que se pôde erguer a um escriptor do
merecimento de CAÃIILLO é a consagração nacio-
nal da sua obra. Por isso, emprehendemos A EDI-
ÇÃO MONUMENTAL DO AMOR DE PERDI-
ÇÃO, a obra mais característica por certo d'esse
admirável e glorioso obreiro da civilisação portugue-
za. Nesta homenagem verdadeiramente nacional nos
auxiliam alguns dos mais illustres escriptores do nosso
paiz; e c assim que n'um mesmo Uvro se encontram
ao lado de CAMILLO CASTELLO BRANCO os
nomes de MANUEL PLNHEIRO CHAGAS, o bri-
lhante espirito evidenciado em tantas obras tào justa-
mente celebradas, RAMALHO ORTIGAO, o lucidis-
simo critico das FARTAS, estylista refulgente, o colo-
rista de poderoso c singular relevo e THEOPHILO
BRAGA, o poda que evocou a vida histórica das so-
ciedades mortas, o arrojado creador da HISTORIA da
littcratura portugueza.
Os trabalhos com que tão notáveis escriptores
honram a nossa edição, são os seguintes:
I — Contorno biographico de Ca mi lio Castello Bran-
co— M. Pinheiro Chagas.
II — O seu ambiente social — A sua estlietica — A sua
critica — A sua forma litteraria — O seu tem-
peramento artístico — Ramalho Ortigão.
III — O romance como forma definitiva da arte mo-
derna— Theophilo Braga.
A dramatisação da obra prima de Camillo com-
pendia lances trágicos de tal culminância que a nossa
edição seria muito incompleta, mesmo com as coUa-
borações poderosas, cuja summula desenvolvemos, se
não chamássemos a tomar parte n'ella alguns dos
mais genuínos representantes da Arte nacional e es-
trangeira; e é assim que no AMOR DE Perdiç.vo se
juntam os nomes laureados de J. J. de Souza Pinto, Cae-
tano Moreira da Costa Lima e José dAlmeida e Sil-
va, de par com a importante e reputada casa de L.
Rouilé, de Paris, cujo nome é garantia segura do
modo superior como serão reproduzidos em photo-
typias os bellos quadros, que o romance de CA-
MILLO inspirou a tão insignes e gloriosos artistas.
As magnificas illustrações que enriquecem esta
monumental edição, são as seguintes :
/. /. DE SOUSA PIXTO I— Retrato de CamiUo QistcIloBianco.
II — O assassinato do ferrador João da
Cruz.
CARTAXO MOREIRA III— Simão partindo os cântaros, iia de-
sordem do chafariz.
IV — O morgado de Castro Daire, Bal-
thasar Coutinho, c assassinado por
Siniào.
V — Morto de Simão, a bordo do navio
que o levava ao degredo.
J. D- ALMEIDA ESILV.-l \l-'S\onc de Thereza, no convento
de Moncliique.
EDIÇÃO MONUMENTAL
a primeira k (|iKiiitas até lidjc se \m feito no nosso paiz
coNoif s u immu
Para que a edição monumental do AMOR DE
PERDIÇÃO, se torne mais accessivel a todas as
classes, será publicada aos
fascículos SEMANAES ou aUlNZENAES
(Â VONTADE DO ASSIGNANTE)
constando cada fascículo de 2 folhas de 4 paginas e
uma soberbissima phototypia, impressa em folha
separada em magnifico papel, ou de 3 folhas de 4
paginas quando não haja estampa a distribuir, em
formato grande, in-folio, constituindo a obra um SÓ
volume que não excederá a 25 íasciculos.
Se por qualquer circumstancia imprevista a obra
exceder os 25 fascículos calculados, distribuir-se-hão
gratuitamente aos snrs. assígnantes os fascículos ex-
cedentes.
PORTO E LISBOA
DISTRIBUIÇÃO
SEMANAL OU QUINZENAL
DE
DM fascículo ao PREÇO DE
200 REIS
PAGOS NO ACTO DA ENTREGA
províncias e ilhas
A assignatura será egualmente paga no acto da
entrega a
220 reis cada fasciculo, franco de porte
Nas localidades onde a nossa Casa Editora não
tiver agentes, a distribuição far-se-ha por series de
dois, três ou mais fascículos, pagos adiantadamente.
As remessas de dinheiro devem ser eftectuadas em
vales do correio, lettras, ordens de fácil cobrança so-
bre Lisboa e Porto, ou em estampilhas expedidas em
carta registada e nunca em sellos forenses.
Os pedidos que não forem acompanhados da sua
importância não serão attendidos.
As capas especiacs para a encadernação, em per-
calina, são inexcedwchnente bcllas c executadas ex-
pressamente para este fim. O seu preço será annun-
ciado opportunamente e desde já asseguramos que
será módico em face do luxo e primor artístico de
tão notável trabalho.
Todas as pessoas que angariarem dez assignatu-
ras. responsahilisando-se pelo pagamento e distribui-
ção dos respectivos fascículos, tem direito a um exem-
plar GRÁTIS.
Os editores otTcrcccm ;i to- j t tão notável esse quadro,
dos os assignantcs d'esta moiiu- i que todas as revistas illustradas
mental edição uni BRINDIi de estrangeiras o tC'm reproduzido
um grande valor artístico, e tal cm suas paginas, em bellas gra-
que até hoje ainda se não dis- vuras dos melhores artistas, de-
tribuiu no paiz brinde de um va- dicando ãquelle soberbo traba-
lor comparável a este. É uma j lho notáveis artigos e fazendo
soberba oleographia, finíssima, j os maiores elogios ao auctor do
de grandes dimensões, e copia j quadro
do notável quadro «DMA SCE-
NA DE POMPEIA», que enri- Podemos afoitamente garan-
quece um dos museus da Itália, í tir que o valor real do brinde é
e que é devido ao pincel do cc- de METADE DA OBRA que
lebre artista italiano L. Crosio. | publicamos.
No fim do corrente mez doutubro achar-se-ha
publicado o 1." fasciculo e em poder dos nossos
correspondentes e distribuidores os ALBUNS-SPE-
CIMENS com o começo da obra e algumas photo-
typias, para assim mais facilmente se avaliar a
importância e belleza desta monumental edição
bem como os brindes estarão expostos.
Depois da obra completa o preço avulso da gran-
de edição illustrada do notabilissimo romance o
AMOR DE PERDIÇÃO será augmentado.
NO PORTO
Os pedidos de assignaturas podem ser tcitos á
Casa Kditora ALCINO AIIAMIA \- C'
p>/, Rua do Bomjardhn, çj
EM LISBOA
NA KlLIAL DA C.\SA Kditora ALCINO AIIANILV \- C.»
Kiía dos Rctrozeiros «." 7/
FIALHO D' ALMEIDA
OS GATOS
PUBLICAÇÃO SEMANAL.
D'liNQUERITO Á VIDA PORTUGUEZA
N.M8— 18de
SUMMARIO
Cachexia monarciiica e infantilidade
jacobina — martens ferrão, salvador de
roma e das batatas — s. joão crysostiiomo,
bocca d'oiro, ás carreiriniias — incompati-
bilidade dos partidos thronicios, e sipuilis
moral da politica contemporânea —os ve-
lhos são ainda os umcos cidadãos vali-
dos — qualidades dos novos— a moléstia do
somno, na rua dos mouros, e direcção do
partido republicano por inválidos — ss. mm..
primeiros collaboradores da republica —
demissão! demissão! que SE FAZ TARDE — O
REI TEM UMA VISÃO TERRÍVEL NA PENA — PA Y-
SAGEM FÚNEBRE, E DESCIDA ESPIRAL AOS DO-
11 os GATOS
MINIOS DE PLUTÃO — LM MINISTÉRIO D'ESPB-
CXnOS, COM ÁVILA NA PRESIDÊNCIA, E ANTOMO
MARIA NA PASTA DOS ESTRANGEIROS— FONTES
D'ALÉM tumulo, E suas PREOCCUPAÇÕES ANTI-
GAS DE CASQUILHO — O DIALOGO DOS MORTOS —
CONSELHO DE MINISTROS NO TERREIRO DO PAÇO
—ALTERCAÇÃO SOBRE QUEM TEM MELHORES ME-
DALHAS— A MUITO NODRE ORDEM DO Eslas-le
a rir, E PROGRAMMA DO NOVO MINISTÉRIO — DE
COMO ATÉ OS DEFUNTOS ARANDONAM O SNR. D.
CARLOS, E SYNCOPE DE S. M. AO PÉ D'UM OU-
RINOL — AS DECLARAÇÕES DO MINISTÉRIO CRY-
SOSTHOMO: RECUSA O TRATADO, E FAZ PROFIS-
SÃO DE FÉ D'EC0N0MIAS: BEM!— PEQUENINA CAR-
TEIRA DE ESCÂNDALOS OFFERECIDA POR NÓS AO
MINISTÉRIO — PEDE-SEA DEMISSÃO DOS CONSE-
LHEIROS D'lNSTRUCÇÃO E BELLAS ARTES, POR
INCAPAZES — O HISTORIADOR AMORIM, E A PHE-
NIX TEIXEIRA, DEVORISTAS — HISTORIA DA SAL-
VA, E PROPOSTA DE SUBSTITUIÇÃO — NECESSI-
DADE DE RASGAR O TESTAMENTO — MIL E TRE-
SENTOS DESPACHOS DO SNR. LOPO VAZ : FANTO-
CHES DO SNR. HINTZE, E GAÚCHO DO SNR.
AROUCA, COM UMA PERNA SÓ — ARROIO NA CA-
SOTA DO GUARDA-PORTÃO : DITO PROFÉTICO: FI-
NAL.
1-2 d' Outubro.
À hora de tomar a penna para a chronica
da semana que principia, duas coisas especial-
mente surprezam o meu animo, e vem a ser:
o desamparo em que a monarchia tomba, me-
zes depois d'aventada nos partidos a ideia
d'unia concentração monarchica ; c a attitude
ultrapacifica do povo, perante as facilidades
demagógicas d'uma situação como a actual,
em que seria facílimo a trinta vontades resolu-
tas o mudar n'um minuto a faço ás institui-
ções. Estes dois factos, que n'outro paiz se-
riam antagónicos, em Portugal afrontam-se e
toleram-se, porque a monarchia caduca, quan-
do a bem dizer o partido republicano inda não
tem mobillsação nem regimento. Os últimos
4 OS GATOS
vinte e cinco dias são profiquos em lições para
todos, e nem ao maior optimista já colite affir-
marque o que estamos vendo não seja evidente-
mente o principio do fim. Cliega o tempo d'es-
piar as deboxeiras em que os partidos da coroa
transfoi-maram a politica e a administração, e
preparemo'-nos para assistir ao epilogo da mais
banal e da mais reimlsante dynastia que tem
atravessado a historia dos paizes meridionaes.
lia quatro semanas que os servidores do
rei, chamados p'ra resolver a crise politica
que nos cinge, se acercam do throno com ma-
nifesta má vontade, e debruçados um instante
para a caverna de bandidos de que esse throno
é cúpula e coroamento — depois de haverem
medido a profundeza da crápula que lá ferve —
se declaram impotentes para reintegrar o paiz
na ordem e na paz de que elle lia mister.
Assim, a viagem do snr. Martens Ferrão,
em que os amigos de D. Carlos punham tão
grande aprazimento, tomando o antigo aio do
rei, por uma espécie de .Messias ungido pelo
Papa, a viagem do snr. Martens afundou-se
em marés de ridículo com o famoso rescripto
das perdizes, e provon-se mais que o tal Mes-
sias tinha gallico, pois chamado a organisar
os GATOS 5
um governo cujo acto inicial seria a extirpa-
ção de todos os escândalos pendentes, a pri-
meira coisa que fez foi incluir seu filho nos be-
nesses do testamento d'uni malandrão que ahi
dá por Lopo Vaz. Depois de Martens veio João
Crysostliomo, oitenta annos sagrados por uma
honra austera, por uma intclligencia bruxu-
leante, e por uma algalia que tanto pôde ser-
vir para lhe tirar as urinas, como para o pôr
em communicaçâo com a Liga Nacional. Ven-
cendo a quebreira dos annos, e só querendo
ouvir a alta razão moral que aos caracteres de
rija stria manda cumprir o dever, não impor-
ta a que preço, o sympathico velhinho ahi se
tem arrastado de casa em casa, á recolta d' um
ministério, que mercê das difficuldades que
ha-de encontrar na governação, e dos antago-
nismos profundos que o minam, não é prová-
vel viva mais do que as rosas de Malherbe.
Progressistas, regeneradores, porto-franipiis-
tas, lodos os coiós d'onde é licito á monarchia
concertar lacaios seguros, tudo elle tem cons-
cenciosamenle espiolhado, deligenciando con-
ciliar os ânimos n'uma junta de salvação em
que nenhum d'ellcs acquiesce, e impor o in-
teresse patriótico acima das solTrcguidòes pes-
6 OS GATOS
soaes, únicas que o egoísmo compulsa ao so-
pezar a pasta ambicionada. De sorte que os
acordos até agora feitos, são brevíssimos, e os
ministérios organisados de manliã, desorgani-
samse á noite, sem garantias de vida ou es-
tabilidade. Assim o porto-franco, ((ue só conta
no paiz três partidários e um terço, puz como
condição d'entrada no novo ministei-io, o se-
rem-ilie cedidas três pastas, entre as quaes a
do reino, que <'; para ver se pesca na popula-
ridade, o quarto partidário.
Os regeneradores, que em seis inezes lie go-
verno pozeram o paiz n'uma ruina equivalente
a seis séculos de desperdício e veniaga, decla-
ram que só auxiliarão o snr. João Grysostlio-
mo, sob clausula e.vpressa de se manter o em-
préstimo Burnay (de que são bases de contra-
cto o monopólio dos tabacos, sem concurso,
e o pagamento ilo empréstimo D. Miguel) o de
serem respeitadas as disposições infames do
testamento. K quanto aos progressistas, não
fazem questão de pastas, mas amuaram de
não lerem sido procurados mais cedo, e não
querem ouvir fallar no testamento, cujas no-
meações entendem que só seriam moraes —
feitas por elles.
os GATOS
Todavia estas difficuUiades de juntar n'um
grupo, indivíduos pertencentes a partidos di-
versos, não bastam por si sós a explicar ta-
manha demora na formação do gabinete, e ha
por traz d"ellas alguma coiza mais grave e ex-
cêntrica aos simples antagonismos de program-
ma politico. Esse alguma coisa é o egoísmo
dos homens públicos, acostumados a fazer da
governação uma forma de dandysmo ou de
negocio: é a sua indolência, incapaz de sacrí-
ficar-se ao labor sem tréguas que as circums-
tancias actuaes de certo iam trazer: é a sua
ignorância, tão deploravelmente provada pela
historia politica dos últimos annos; e acima
de tudo, digamol-o, a sua absoluta má fé, a
sua falta de probidade cívica, a sua cobardia,
entretida a fabricar ciladas aos contrários, re-
cusando-se a arcar co'as responsabilidades do
actual momento, e desamparando o rei, quan-
do elle se aclia fraco e sem recursos, o des-
amparando o paiz, quando elle lhe vae pedir
alguma coiza mais do que eleições e transfe-
rencias. A hora em que vamos, todos quantos
problemas podem acabrunhar um estado, lo-
8 OS GATOS
dos pczam aspliixicainente sobre o peito do
paiz. A situação externa é cada vez mais ten-
sa, e a situarão interna cada vez mais insolva-
vel. Estamos á mercê da primeira praça que
SC lembre de nos promover a bancarrota. A
<luestão colonial é o nosso desespero, e todos
os dias a agravamos com o nosso desleixo e a
nossa inhabilidade. E no meio do credito per-
dido, das instituições prostibuladas, da activi-
dade exJiausta, da honra morta, embalde se
procura o espirito methodico, a energia pru-
dente que haja de nos arrancar ao sorvedou-
ro. Ha cincoenia annos que Portugal não pro-
duz um homem, c que os partidos se fazem e
desfazem de roda de sexagenários trôpegos e
de conselheiros Acacios desmemoriados.
Aos novos, quando se lhe pede uma i)rova
real dos seus Uilentos, vem os jilanos finan-
ceiros do snr. Franco^ as politi(piices reles do
snr. Lopo ; ou são as bravatas do Navarro nas
Novidades, e as asneiras projilieticas do Maga-
lhães Lima no rMfíé Riclte. Labor incontestado,
esforço intelligentc concentrando-se na inter-
pretação d'um problema grave, faculdades de
generalisaçâo trahindo espíritos de vista lar-
ga, predicados d'organisador, faros de governo,
os GATOS 9
presciência cm matéria legislativa ou diplomá-
tica, eis o que escaceia n'essas cabecinlias de
ijeiíios locaes, que vão a S. Dento em palmi-
lhas, para sahirem de lá com botas e esporas,
feitos ministros, ás cavallitas no snr. Luciano
on no snr. Serpa. Estes pinponetes, muitos,
por cima d"insignificantes, são veliiacos ! Acre-
ditará alguém que o paiz está ha vinte e nove
dias sem governo, por causa das infrigalhas de
dois ou três d'esses intrusos?
Mas perguntará alguém: uma vez que a
monarchia resvala, abandonada dos seus pró-
prios coveiros, porque ressumbra tão pouco a
acção republicana no paiz? O partido republi-
cano que se conta por quazi toda a classe po-
pular e pelo alto commercio de Lisboa, e que
tão populoso é no norte e no meio dia, acaso
exita, no momento de realisar a sua aspiração?
Não sentirá elle ainda a espinha dorsal bastante
forte para se apoderar da chefia politica; não
conta elle acquisições de sobejo valiosas para
viabilisar n'um programma de governo os
ideaes porque vem luctando ha tanto tempo?
Redargue-se a estas interrogações nos seguin-
iO os GATOS
tes termos: os republicanos teom Janta confiança
nos seus chefes, como os inonarchicos no seu
rei. Um respeito pela velhice tolhe a propa-
ganda viril que n'este instante devera ser ine-
ciada, c por causa d'elle o general da Bem-
posta (jue preside aos destinos da democracia,
na rua dos .Mouros, lá continua aconselhando
prudência aos que estão fartos d'ella, e senii-
cupios d'alfavaca aos que julgam este cacha-
rolete anal, antagónico da revolução. Parece
mentira mas é certo: as conspirações que se
não tentam a favor d'uin regimen, nunca
chegam a compromctter a patente desIVuctada
no exercito do regimen contrario, e a isto se
chama viver entre Deus e o diabo, comendo
em casa d'um, e c. . . em casa (Toutro. De
maneira que o que explica o avolumar conti-
nuo dos ari'aiaes contra-dynasticos, não são
tanto os apóstolos enviados d'esse arraial, ao
campo gentílico, como as torpezas em que os
partidos do rei se desacreditam perante o tri-
bunal da opinião. Lá n'esse ponto, a republica
nunca agradecerá suficiente ao snr. D. Carlos e
ao seu defuncto papá, todas as sollicitudes de
propaganda <jue lhes deve, e nunca se cançará
d'at(irmar, que entre os artigos do snr. Latino,
os GATOS 11
e as bonitas acções do snr. Lopo, são estas
ultimas que ella prefere, p'rá conversão dos
fieis á sua igreja.
Porém, se ó i)rovavel que este estado de
coisas baste aos ideaes modestos do snr. Elias
Garcia e do snr. Bernardino Pinheiro, e d'ai-
gunia maneira entretenba as necessidades do
partido republicano portuguez, emepocliasnor-
maes, cumpre dizer que o momento é dema-
siado vibrante para consentir nos piatonismos
d'aquelles igregios dorminhocos, sem liies pe-
dir iicen(;a para os apear da supremacia que
no partido lhes foi dada, e de que s. e\."\ di-
gamol-o, teem usado com demasiada parcimo-
nia. A monarchia está como os figos, de pé
torcido, e a cahir de podre da arvore, jiara o
alambiipie do aguardenteiro. Já que os repu-
blicanos se não podem gabar de ter varejado
a figueira a quando os fructos sãos, ao menos
prepai-em-se para arrotear o terreno de roda,
e substituir a figueira por uma arvore menos
predilecta de Judas. Ora não lião-de ser vete-
ranos nem paralyticos, os cidadãos que o par-
tido, sob pena de morte, deve investir d'esse
trabalho, mas hornens robustos, intelligencias
inéditas, organisações d'elite e seducção. Para
12 os GATOS
commiiriicar a l'ó nada ha semellianic a abra-
zar d'ella, e o directório republicano é uma
patrullia de mortos e de tontos. — Demissão!
Demissão ! (jue se faz tarde.
14 irOutultro.
N'nma das suas ultimas noites da Pena, S. M.
o rei D. Carlos, preso do delirio manso da fe-
bre de convalescença, e desalentado pelas dif-
ficuldades d'acliar pessoal idóneo, a quem ves-
tir a farda de ministro, teve uma singular
ailucinação. Fora soturno o dia — soturno e car-
regado de presagios. Na imprensa correra a
nova dos inglezcs liavcreni forçado a barra do
Zambeze, de Manica estar sendo invadida pe-
los flibusteiros de Cecil lUiodes; e apóz a men-
ção d'estas vinlencias, cada Jornal rompendo
em diatribes, atirava á cara do rei com os
restos do vinho que lhe ficara nos copos depois
de redigido o article à sensation. De mais, vin-
te e cinco dias tinham passado já depois da
ovação de pés com (pie o parlamento galar-
doara o diplomático génio do snr. llintze, pon-
do o ministério fora por indecente e má figu-
os GATOS 13
ra: e até á meia uoile (l'esse dia, por mais
voltas que o Martens. . . não desse, e por mais
conferencias que S. Joíío Crysosthomo convo-
casse, inipossivel topar na via publica seis in-
felizes a quem confiar as sete pastas, e um
Ijocadinho de comiseração que dar em premio
ao monarcha por, como elle á Francisco i
muito bem disse — haver chegado tarde!
Desamparado por todos, na silenciosa ca-
mará do castello, ás mortas horas, S. M., de-
pois que se viu sem povo e sem ministros,
começou a descer pelas avenidas da Pena, de
lanterna na mão, capa nos olhos, direito aos
cemiterioj de Lisboa, onde dormem os restos
dos antigos servidores do seu papá. Dizia elle
comsigo, n'aquelle lusco-fusco d'espirito que
a febre pòe nos cerebi'os pouco lúcidos, dizia
comsigo que uma vez (jue os vivos o trahiara,
só lhe restava ir buscar o apoio i)olitico dos
mortos, e reportar-se á tradiccional dedicação
dos antigos trunfos com que seu pae, o dr.
Tavares, jogara o grande jogo. Era uma noite
pallida d'outono, calada e sem rumores de
vento nos eirados. De roda da Pena os pinhei-
raes dormiam, sombras de ramas moscjueavam
a giboia d'areia dos caminhos, c nas fontes e
14 os GATOS
nos charcos a agua dizia umas coizas timidas
e antigas, de quando as filhas de D. João vi
por li andavam a morder os bigodes dos Ijellos
militares, e dos secretários estrangeiros de le-
gação. E o rei monologava — o apoio politico
dos mortos ! Que espantará isso, sabido o ser-
viço que elles costumam prestar nas eleições?
Organisarum ministério com avantesmas! Quem
ousará censurar este macabro expediente, ad-
mittido o estado pre-agonico do reino? Por to-
do o trajecto até Lisboa, as formas tinham, sob
a noite, ares de regicídio combinado: elle vi-
nha sósinho, pallido de morte, a lanterna pen-
dente, e sem olhar para traz, nem se deler um
instante no caminho — a não ser no Cacem,
onde a Maria dos Cós lhe fez escorropichar
dois dedos de aguardente. E entrementes que
andava, ia dizendo, que n'uma crise assim
grave, com dois partidos arrebentados pela
questão ingleza, nada lhe convinha mais que
o duque d'Avila; seu nobre pae não teria cha-
mado outro, em caso idêntico. O caso é que
elle estejrf ainda em estado de servir!
E n'esta anciedade lhe foi bater á porta
do jazigo.
— Ávila, é teu rei.
os GATOS 15
— Aposto, meu senhor, ganiu de dentro
uma voz de títere, aposto que V. M. está sem
ministério. Aposto que não lia dinheiro. Apos-
to que ninguém se entende.
— Sim, venho conflar-mc á tua sciencia
d'algibebe. Vinte e quatro horas para me ta-
lhares um gabinete.
— Graças a Deus que mesmo em arenque
fumado, sou prestante. Uf ! começava a temer
que ninguém já se lembrasse do que foi, e ha
de ser, de V. M. attento venerador, António
José d'Avila.
— Vamos depressa! Emquanto te açaimas
no cache-nez, vou-me aqui bater ao Fontes.
— Onde terei a honra de beijar as mãos de
V. M.?
— Lá baixo, no Terreiro do Paço, ao pé do
kiosque, antes que o galo cante.
No mausoléu do grande António Maria, a
mesma scena.
— Abre depressa, cavaileiro do Tosão.
Cest la fortune de France! (uma vóz dentro).
— Eu corro a abrir, senhor. Mas prometta
primeiro V. M. não reparar nos meus cabellos
16 os GATOS
já um tanto grizallios, porque no oulro mundo,
com os direitos de barreira, a agua circaciana
está pela hora da morte.
— Sabe que o meu throno ameaça de ser
vendido em hasta publica.
— ^^Outrosim V. M. se dignará dispor da
sua real benevolência a favor do meu tronco
ex-clegante, e ora minado por vermes tão vora-
zes, que os supponho transmigrações de ba-
charéis cevondo o seu furor d'emprego, nas
minhas próprias tripas.
— Veste as tuas cuecas de guerra, e corre
a salvar-me. Olha que a monarchia perde o
credito, assim como o povo perdeu aos ho-
mens públicos, o respeito. Ah Fontes, Fontes!
Os teus discípulos deram (juazi todos em ga-
tunos e paroleiros. O partido a que tu deste o
nome, acaba de comprar cédulas d'infamia
para a execração publica, e não voltará jamais
a governar.
— Senhor, não reparareis se eu me produzir
no conselho, com algodão ijhenico por miolos,
e a minha farda de general, comida do guzano?
— Vem mesmo em fralda salvar a dynastia.
— E se eu já não tiver beiços sequer, p'ra
vos beijar a mão poderosíssima?
os GATOS 17
— A tua ossatura me basta, se me promet-
tes acceitar logar no ministério.
— Mas se o meu partido não mais gover-
nará, como dizeis, como posso ascender a
ministro, ficando honrado?
— É um ministério de conciliação que eu
organiso. Onze de janeiro atirou José Luciano
n'um sacco, ao rio. Vinte d'agosto atirou Hin-
tze Ribeiro n'uma tigella da casa, ao enxurro.
E tudo isto porque Moçambique vae partir
para os inglczes, sem talvez que o pranto!
Inda quiz ver se arranjava um ministério de
restos, p'ra ir tenteando o Salisbury da tia
Victoria, mas ha vinte e sete dias que a ve-
Ihada embalde tenta arrebanhar coisa que
sirva! É uma desgraça. Fontes; lodos me vol-
tam as costas. Eis porque venho ter c'os esque-
letos.
— E quanto a dinheiro. . .
— Minha mulher já lava os cueiros do Ma-
noel, só para riscarmos da lista civil, a lava-
deira. Só o Lopo Vaz assignou á sua conta, já
demittido, mil e trezentos despachos. O inglez
não fia, o francez não se fia, e a alma herói-
ca do paço tem sido até agora, minha mãe,
Maria Pia.
18 os GATOS
— Graves coizas me contacs sobre as pro-
víncias lia publica atlmiiiistração, c razão tive
eu em morrer, convencido de ser insubslilui-
vel. Mas o peor, seniior. . .
— O peor, dizias?
— É que não aclio a minha deiilad ura postiça.
— Vejamos, clianceller. Oueni me aconse-
lhas tu que chame? Faliei ao Ávila. Lembra-
me o Corvo, que dizes tu? — e aquelle pobre
Barros aud Cunha . . .
— Oh! três admiráveis falsos grandes ho-
mens. Podia-se mesmo dar a pasta da guerra
ao rio Zêzere, e fazer o conselheiro Arrobas
ministro da instrucção. Agora quanto á fazen-
da, o Silva Sanches. . .
7!
— Um cavalheiro que foi ministro muitas
vezes, e minca ninguém soube se existiu.
— Reservarei n'esse caso a justiça para o
i\^artens; verdade é que elle está ainda vivo,
mas muitíssimo bem morto, sob o epitaphio
celebre das perdizes. E instruído, que diabo!
— Decerto, meu senhor. E uma bibliothe-
ca por lèr.
— E agora o ponto escuro: quem enviare-
mos nós a Londres, tramar?
os GATOS 19
— O duque de Saldiuilia, i|ue aléui da sua
magestosa presença, inda por lá deve ter accio-
nistas do C. de ferro Larmanjat.
— Vou-nie passar palavra aos outros. Eh!
Eh ! Deve ser pandego, governar com um mi-
nistério todo de mortos (geslo de desenfado).
Também, a que mais pode aspirar um paiz
que não está vivo ?
D'a!li a pouco estava o synhedrio d'espe-
ctros reunido no Terreiro do Paço, ao pé do
kiosque — a noite, escura, não havia policia —
e no meio d'elles o rei, que mantinha sempre
a lanterna accesa, c presistia em não querer
destapar o rosto. Apenas se abriu a sessão,
um incidente ameaçou pôr em crise o minis-
tério ainda mal formado, rpiando a carcaça
de Fontes, pedindo a palavra, quiz saber a
quem seria dada a presidência do conselho.
S. M. lembrara o duque d'Avila, ponderando
os bons serviços que este illustre boi Apis ti-
nha por uso prestar em situações politicas
difficeis, quando todos os mais valentões es-
bofavam na feira, de zurzidos. .Mas já os se-
ctários de Fontes estrallejavam d'impaciencia
Í20 os GATOS
OS OSSOS descarnados, querendo o penacho por
força, para o seu prestimoso António Maria.
— Não sollicito honrarias, exclamou rcsen-
lidainente o veiiio cachc-iiez iegua da Povoa —
sete palmos de terra me bastam — e só lembro
a V. M. que lenho no peito seis mil quatro-
centas e noventa e sete grã-crnzes e commen-
das, entre as quaes o elefante de Sião, e o co-
lar do verdadeiro estás-te a rir do Império do
Meio, e ([ue já (juatorze vezes presidi a minis-
térios que tiveram a honra de salvar da ruí-
na, a pátria e a monarchia.
Acudiu Fontes — a hora não é d'alegar ser-
viços. Acima do orgulho pessoal, a nação, e
acima de tudo, o progresso! E fosse o caso
de medalhas, senhor duque; eu tenho o To-
são d'Oiro!
— De certo, de certo, bradou n'um falsete
colérico, o interpellado. V. Ex.'' tem o Tosão...
(i inegavelmente um titulo á presidência. Mas
eu estou morto ha muito mais tempo. Ora
chuche!
— De mais, acudiu S. M. com voz conci-
liadora, a presidência do conselho pouco im-
porta n'este caso. l\o gabinete que eu preten-
do, o cargo lie honra, meu Fontes, é a pasta
os GATOS 21
dos estrangeiros, que te oflereço. E agora diz-
me: és fiel ao teu antigo programma?
— Oli mais que nunca! Entendo que o go-
verno deve sempre fazer caminhos de ferro,
embora não havendo que trazer, nem que le-
var. Entendo que o paiz deve pedir empres-
tado, sem pagar nunca. Entendo que se devem
crear togares com grandes ordenados, para dar
carriola aos nossos sobrinhos. E finalmente que
se deve regar com libras o pé de todas as in-
transigências, té que elle apodreça, e venha a
nós.
— É em resumido, o programma do leu
glorioso discípulo Lopo Vaz.
— Acto adicional : só o rei é grande, e de-
pois d'elle, o seu ministro dos negócios es-
trangeiros, ftosseãe duque, ac/juiscenciít dos ou-
tros espantalhos.)
— Falias como um leal gentil homem, disse
o rei enthusiasmado. O que é preciso mais?
— Por agora, evitar que Portugal ponha a
pontapés os seus monarchas, e que a Inglater-
ra ponha Portugal da Africa, a pontapés. Para
conter a opinião no jugo monarchico, é indis-
pensável conservar a Africa intacta, embora
não saibamos p'ra que, e para conter a Ingla-
22 os GATOS
terra cm tolerância coninosco, é indispensável
partir a Africa.
— Mas não poderemos lazer ao mesmo tem-
po as duas coizas.
— Quer dizer que são antagónicas a mo-
narchia, e a integridade do paiz. Entretanto é
imprescindivei tomar rumo. São perigosíssimos
ambos. (Jual é o menos? Tem a palavra o snr.
ministro da fazenda.
Um es(pieletosinlio avançou, muito acaba-
do, (leu quatro peidos, e declarou qm tinha
concluido.
— A assembléa acaba d'ouvir da bocca do
meu collega, o periclitaute estado da fazenda
publica. Não ha dinheiro, e é urgente atiral-o
pelas janellas, para distrahir os jornalistas e
os oradores, da sua obsessão republicana.
Apanhar os rapazes de talento á bocca das es-
colas, compral-os. . . Foi sempre o meu sys-
Ihema : sahem mais baratos ! Não ha dinheiro,
mas a Inglaterra empresta, se lhe deixarmos
cm Moçambique o que ella (|uer. Por conse-
quência, temos a questão financeira resol-
vida.
— Por uma indignidade, rompe o presiden-
te do conselho, do seu canto.
os GATOS) 2á
opinião do rei — as indignidades que o
oiro move, são nobrezas.
lledargiiiu Fontes — foi a razão porque eu
dei sempre tiíulos lionorificos a ladrões.
— E agora, apresente-se o meu ministério
ao parlamento.
— Senlior, vejo um perigo. A camará actual
deve-nos ser hostil. Acautelem"o-nos.
— Dissolvam-na !
— Hemos mister de deputados de confian-
ça, homens do nosso ideal, do nosso feitio,
do nosso tempo; n'uma palavra, um parla-
mento d'esqueletos.
— Deus! que exhumações a fazer!
— E quem elegerá um esqueleto, deputa-
do, senão assembleias eleitoraes constantes de
defuntos, que será necessário ir desenterrar
aos cemitérios, e que depois de desenterrados,
só votarão serviudo-lhes nós o carneiro com
batatas de ha cem annos?
Aqui pareceu S. M. cuidar profundamente:
era toda a ressurreição do reino e do reinado
de seu pae, o dr. Tavares, que esses homens
exigiam, antes de começar, tão outros tem-
pos tinham vindo, e tão vertiginosos abysmos
agora medeavam, entre a realeza e a opinião.
íi os GATOS
E por desgraça, eram o reino e reinado do
dr. Tavares o qiu! o snr. D. (-arios mais de-
testara n'esta vida !
A alba vinha, e uma fda interminável de
carroças de lixo, cortava n'esse momento por
deante do Arco, para a Rua Nova da Alfande-
ga, como levando a S. Vicente os restos da
monarchia. E esta visão d'enterro, insul-
tuosa, galvanisando outra vez o régio desa-
lento, |)òz na bocca do rei palavras impe-
riosas.
— Pois que assim c preciso, resurgi dos
covaes a gente de que haveis mister, (jue eu
vos offereço o exercito como penhor de que se-
reis acceites e acatados. .Mas sem demora, ou-
vis? que o throno oscilla. Sou eu, D. Carlos de
Ijragança, que vol-o ordeno em nome da au-
tonomia da nação.
E S. M. desembuçara-se, já áquellas pala-
vras de D. Carlos de Bragança, os conjurados
faziam um passo para traz, mal respirados do
assombro em (jue semelhante nome os tinha
posto.
— Pois (jue! disseram todos, não é á mui-
to venerável sombra do grande i'ei Luiz, que
estamos falhindo? Não é a sua afflicção que
os GATOS
nos convoca, não é o seu pão que nós somos
chamados a amassar?
— Não, rufiões de meu pae! (Jue vos faz
o nome do rei, se é a dynastia que importa
perpetuar? Recusareis servir-me! Olá, matrul-
la ignara ! Vejo que me não perdoastes a irre-
veiencia com que eu, infiinte, aspergi nas
vossas barbas, em nome do direito divino, a
serosidade verde dos meus cueiros, e que aiada
depois de sombras andais resentidos da vez
em que, mancebo já, vos apodei a todos d'i-
diotas,
— Senhor, não vos desmancheis, por Deus!
que o gaio canta, disse o duque, ^'olto ao se-
puichro, amortalliado no meu derradeiro m-
rhe-nez. Sou d'oufro tempo, e não esífueço
que n'um jantar do paço, me desiionrasteis
publicamente, besutando as minhas seis mil
quatrocentas e noventa e sete condecorações,
com compota de jinga, e chamando-me pastei...
E lentamente os phantasmas se volveram
a roncar o somno eterno, deixando o rei sup-
plicante ao pé d'unia sargeta.
26 os GATOS
10 liOulubnt.
A declaração lida lioulein na camará dos
deputados, pelo presidente do novo conselho
de ministros, João Crysostlionio, apesar de
restricta a i;eneralidades, contém lucidamente
o pro.ítranima da conducta futura do governo.
Reneija por exemplo o tratado, posto o viesse
a aceitar talvez, com ceilas modiíicações, e
nos paraiiraplios allusivos á administração in-
terna «im|iòr-se-lia o severo preceito de se
abster de fiuaesijuer despezas que não sejam
imprescindíveis, e de roalisar corajosamente
todas as economias perniittidas jtelas necessi-
dades dos serviços ])ublicos, e i)elos encargos
essenciaes da civilisação.»
Esta declaração põe conseíiuentemente o
governo no dever formal de desiçar o minis-
tério d'instrucção publica das nullidades indi-
gitadas para lhe occupareni os cargos supe-
riores (com manifesta fraude dos intuitos para
que esse ministério foi creado), e constitue-o
ainda mais na obrigação de rasgar em peda-
ços o testamento dos comi)anlieiros do snr.
Serpa, impedindo assim os latrocínios e in-
qualificáveis abusos de que elie é porta-vóz.
os GATOS 27
Assim, na instrucção publica, a primeira coi-
sa que o snr. António Cândido tem a fazer, é
deminir o snr. Azevedo Castello Branco, de di-
rector geral das Belias-Artes, aljandonando-llie
quando muito um logar de segundo official ou
d'amanuense, e entregando a directoria a al-
guém que possua a illustração, a inteliigencia,
€ a polarisação esllietica, de que s. ex/' o conse-
lheiro ó incapaz. A esta demissão seguir-se-ha
a do snr. António José Tei.xeira, da chefia
d'instrucção superior : pelas seguintes ra-
sões.
O snr. Teixeira é, ou foi, homem de mé-
rito. Exerceu bastos annos o logar de profes-
sor da Universidade, mas completado o seu-
tempo, aposcntou-sc. A aposentadoria significa
sempre incapacidade, pelo menos perante a lei.
S. ex.'i portanto não podia exercer mais cargos
pagos, visto já receber do Estado um subsidio
attiueute á sua invalidez. Mas sempre e.verceu,
e quem não podia comsigo para lente, foi jul-
gado soberbo para director da alfandega.
Então de duas, unia. Ou a lazeira alegada
pelo snr. Teixeira, a quando a reforma de
professor, foi uma historia, ou em caso con-
trario, a sua nomeação para a alfandega...
28 os GATOS
neccbcr dinheiro por dois lados, como ve-
terano e coino funccionario activo, cx.""' snr.,
nunca foi límpido — desculpará — mórmenle
sendo nédias as propinas dos dois cargos. En-
fim, passemos. Mas eis que poucos annos de-
pois, pela segunda vez o snr. Teixeira se apo-
senta, em director da alfandega, e calcular-se-
ha com que ordenado! Não fica inda por qui
o iiomensinho, e ahi o temos agora n'uma das
dircctorias gcraes d'instrucção publica, com
mais hôOOSOOO reis para juntar á maquia das
suas duas reformas subsequentes. De sorte que
por estas series alternadas de rejuvenescimen-
tos e decrepitudes, inda lemos no Diário a no.
meação do snr. Teixeira, para patriarclia — em
duas vidas — quando s. ex.'' já estiver embal-
samado. Terceira exlioneração, a do snr. Amo-
rim, um dos retrógrados mais acirrantes da
burocracia, e um dos carcereiros nefastos que
entre nós tem tido a Instrucçào. O snr. Amo-
rim percebe do seu novo logar, cerca de 'lOOSOOO
mensaes, ajuntando a indemnisação que lhe
deram, por não ter sdlva (depois se verá o que
é), e ainda HOSOOO reis pelo encargo d'escre-
ver a «Historia da lustrucção em Portugal.»
De maneira (pie sendo este pateta (piem tem
os GATOS 29
dado cabo da instrucção, é também elle que
lhe escreve o necrológio.
O snr. António Cândido desvie (juanto an-
tes este patarrêco do iogar que ora preenche,
transferindo-o, como ao snr. .losé d'Azevedo,
a outro mais condizente ao complexo das suas
inaptidões. Possuidor d'uma excellentc calli-
graphia, e suficientemente erudito para escre-
ver monUmka com c cedilhado, o conselheiro
Amorim dará sem duvida um copista muito
apreciável, e o novo ministro dMnstrucção pu-
blica paga generosamente estas habilidades,
limitando os honorários do homem, a seis li-
bras por mez e um par de chinellos.
Quanto á redacção da Historia, dispensa-
do. Porque ou o trabalho é d'elle, e não pres-
ta, ou tendo algum mérito, é com certeza es-
cripto pelo creado.
K pois que é ministro do reino o mesmo
cavalheiro que occupa a pasta dMnstrucção
publica, e pois que o governo capricha em
cortar rente os abusos, vamos dar-lhe ensejo
d'cxtinguir um, dos mais antigos. E o episo-
dio da salvu, que já anteriormente referimos.
A salva é uma espécie de pour-boire que o
director do ministério do reino percebe, das
■30 os GATOS
mãos de qualquer pretendenle ou agraciado,
no instante de lhes entregar a carta refcrenda-
tiva de ([ualquer pretensão, ou de qualquer
mercê.
Attenta a lotação do funccionario a (lueni
a gorgeta é dada, rjuer a etiqueta que a mes-
ma não seja em dinheiro, senão travista outra
forma mais artística, como seja um objecto
d'ourivesaria, em prata ou ouro. Habitual-
mente é uma salva de prata.
O agraciado compra aípiillo em qualquer
casa de lavrante, leva-a n'nm papel de seda
ao director do ministério do reino, que a re-
bate depois a peso, na própria loja onde foi
ãdfpiirida. D'esta lorma ha salvas que vão
trinta e quarenta vezes da rua da Prata, pai'a
o ministério, e d'esle á rua da Prata, c que
se (piizcssem fallar, refeririam coisas bem ra-
tonas. Como passe pela directoria do ministé-
rio do reino, não só o género d'cxpediente
burocrático que tem por propina, a salva de
prata, mas assim todas as coisas concernen-
tes á alta direcção politica do paiz, fica-se em
duvida se serão só os viscondes brazileiros
os incursos na despeza do brinde supra, ou
se este é extensivo a todo e qualquer negocio
os GATOS 31
que impenda da directoria. É mais que certo
que o não seja, mas pôde vir a sel-o, e o snr.
ministro fará bem em pòr ponto n'esta gro-
tesca antiguaiiia, que o mau costume fez lei,
para afinal se tornar n'uma verdadeira explo-
ração. Se o director geral do ministério do
reino gosta de ser cumprimentado pelas mer-
cês em que põe o visto, em vez da salva de
prata, (|ue uma de palmas lhe baste; isto sem
nos repugnar que s. ex.'«, ao referendar das
grandes graças, apanhe outra — de vinte e um
tiros.
Entra-se agora na testamentária do minis-
tério transato, e o novo governo, se como se
afíiança traz foice para cegar as daninhas lier-
vas que a testamentária plantou, queira prin-
cipiar a sua ceifa, d'este modo. Entre no mi-
nistério da justiça, e annullc á má cara os
I:3'i8 despachos que o snr. Lopo Vaz lá fez,
a quando demittido já do cargo de ministro,
visando particularmente os 19 cónegos, os 103
juizes, os 91 delegados sem concurso, os 13
conservadores, os O sub-delegados, os 87 es-
crivães e tabelliães, os lá ajudantes d'cscrivão,
â"! os GATOS
OS 48 contadores, os 4 escrivães de julgados,
os â7 arbitradores, ctc, e bem assim todas as
comarcas novas e todos os compadrios indecen-
tes, a que o deplorável cynico deu sancção —
havendo até um patusquinho que o snr. Lopo
nomeou p'ra três togares ao mesmo tempo !
Entre no ministério dos estrangeiros, e faça
abater todos os secretários d'cnibaixada, todos
os cônsules, todos os adidos militares, e to-
dos os viajantes subsidiados, que o snr. Hin-
tze Ribeiro haja expedido, por via da sua pas-
ta, para os coiós pingues onde esta gentinha
se refastela, em preço de serviços com (jue o
paiz nada lucra, e que melhor seria que s.
ex.« recompensasse, pagando-lhes do seu bolso
a espórtula combinada. Assim por exemplo, é
completamente desnecessário (pie no Ilavre
haja dois cônsules, um de primeira, outro de
segunda classe, e que o snr. major Cypriano
Jardim ande no Pratner, com três contos por
anno, a fanicar as moças, sob desculpa de que
o faça para informar o ministério da guerra,
das manobras austríacas.
Assim por exemplo, é um crime de lesa
elegância privar a Avenida dos seus dandys,
só porque o snr. Alfredo Anjos, aborrecido
os GATOS 33
em Berne, reclama por secreUirios d'embaixa-
da, os seus antigos companheiros de pagode.
O estliesiante Lamiel, que exorna o Portu-
giiez, porque recambial-o á embaixada d'algum
paiz onde a sua defesa do tratado não seja
compreliendida?
Na obra publica, a testamentária foi me-
nos profusa, é certo, mas nem por isso o pen-
teado do snr. Arouca pôde orgulhar-se da vir-
tude, abrindo em arco, por esse facto, o seu
topete original de catatua.
Para não sei que posto hipico do reino,
despachou S. Ex.a um individuo, que tendo
por missão montar cavallos, sò possue para o
fazer, a perna esquerda — circumstancia esta
que não garante lá muito o bom serviço, lia
também uns fiscaes do caminho de ferro da
Beira Caixa, começando a vencer desde o des-
pacho, e que só serão chamados a trabalhar
d'aqui a quinze mezes. E os engenheiros do
ministério d'instrucção publica? Até um d'el-
les, Ravaglia, italiano, nem sequer teve o tra-
balho de se procurar cartas de naturalisa-
ção; entrou, sentou-se: e o snr. João Ar-
roio, que tem o faro da mise-en-scene atinente
aos seus papeis, conta-se lavrara os últimos
Si os GATOS
despachos no cacifro do giiarda-porlão do mi-
nistério, já despedido — e sem correio, sem lua,
sem nada — distribuindo as nomeações como
estas esmolas que se dão na escada, antes de
sahir o enterro. Viu o porteiro a humilhosa
postura do ex-ministro, e homem malicioso,
com sedes de dominio:
— Hoje assigna V. Ex.a no meu cubículo,
observou-lhe. O destino é tão vario, senhor
conselheiro ! Quem sabe se eu ainda alguma
vez assignarei, no seu.
Ilum ! posso jurar que a profecia do cer-
bero se não cumpre. Mesmo que o snr. Ar-
roio deixe a politica, o piano se encarregará
de lhe oilerecer uma espécie de mediania glo-
riosa. Nos calTés cantantes pagam bem.
EXPEDIENTE
Muito brevemente apresentaremos os pros-
pectos para a publicação de uma edição mo-
numental do notável romance AMOR DE
PERDIÇÃO, do principe dos escriptores por-
tu^uezes, Camillo Castello Branco, o ro-
mancista de imperecível renome e inegualavel
talento, esperando que V. Ex.a nos reservará
a sua assignatura para tão importante publi-
cação. A edição que emprehendemos consti-
tuirá um verdadeiro primor de bibliographia
nacional, pois será illustrada com magníficos
desenhos devidos aos reputados e laureados
artistas portuguezes — J. J. de Souza Pinto, Cae-
tano Moreira da Costa Lima e J. d'Ameída e
Silva, inserindo também prefácios e estudos
críticos dos nossos notáveis homens de letras
— Manuel Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão e
Theophílo Braga, trabalhos feitos expressamen-
te para esta monumental edição.
Ficará, assim, pois, esta edição especial do
notável romance AMOR DE PERDIÇÃO como
um monumento perdurável em honra do seu
ímmorlal auctor.
Os editores oITereccm a todos os assignan-
tes d'esta momiiiieiUal edição um krinde de
um grande valor arlislico, e tal que até hoje
ainda se não distribuiu no paiz brinde de va-
lor comparável a este. É uma soberba oleo-
grapbia, finíssima, de grandes dimensões, e
copia do notável quadro Umn scena de Pom-
peia, que enriquece um dos museus da Itália,
e que é devido ao pincel do celebre artista
italiano L. Crosio.
K tão notável esse í[uadro, que todas as
illustrações estrangeiras o têm reproduzido em
suas paginas em bcUas gravuras dos melhores
artistas, dedicando áquelle soberbo trabalho
notáveis artigos e fazendo os maiores elogios
ao auctor do quadro.
Póde-se afoilamcnte garantir que o valor
real do brinde é de metade da obra que va-
mos publicar.
A edição acha-sejá quasi prompta faltando
apenas concluir os albuns-specimens, pros-
pectos e cartazes; e a publicação regular co-
meçará brevemente, sendo antes d'isso exposto
ao publico o MAGNIFICO nniNDE que offerece-
mos gratuitamente a todos os assignantes.
OS EDITORES.
FIALHO I)'ALMEIDA
OS GATOS
PUI5L1CAÇÃ0 SEMANAL,
D'lNnUERlTO Á YII).\ PORTUCÍIEZA
N.M9— l(ieNoveiiil)roilcl8!)0
SUMMARIO
A TRI1>L1CE-A[.LIANÇA NO COMXICTO ANGLO-
LUSO — OS VIAJORES iMARTENS FERRÃO E MA-
GAEIIÀES LIMA — POR QUE MÃOS ANDA A DIGNI-
DADE DO PAIZ — MODO DE PROVER OS ALTOS
CARGOS — PEDE-SE AO SNR. liOCAGE UMA liE-
VISTA BURLESCA DE DIPLOMATAS E CÔNSULES,
NA AVENIDA — PSVCOLOGIA DO ADDIDO D'EM-
BAIXADA, E DESFILADA DE PLENIPOTENCIÁRIOS
— O SNR. CONDE DE VALENÇAS É UM MAMÍFERO
— OS CÔNSULES, E SUAS PREDILECÇÕES ANTI-
PATRIÓTICAS—RAZÕES PORQUE O NÍVEL DES-
CE, E PORQUE ESCACEIA O PESSOAL— PEDE-SE
II os GATOS
A DEMOLIÇÃO DO CONDE BURNAY, R DÃO-SE AS
líAZÕES — É O SYLPIIO DA liAMlíOCHA PUBLICA:
abaixo! — OS DOIS CIRCOS DE LISBOA, E ANA-
LOGIAS DOS títeres com OS DEPUTADOS E PA-
RES DO REINO — ELEFANTES E LEÕES — VIVA
MAGALHÃES LIMA !— O JAPONEZ AWATA, E SUG-
GESTÒES PROVOCADAS PELA SUA CABAIA —
HISTORIA DO príncipe D'AKÒ, E EPOPEIA EX-
TRAORDINÁRIA DOS r0)lilis — ASCENDÊNCIA IL-
LUSTRE D'UM jonglcur, E IDENTIFICAÇÃO DO
EXOTISMO D'ELLE COM O MEU PRÓPRIO — FRI-
VOLISMO COMO BASE DE VIDA RISONHA —/(//)(>
nezeiie for ever!
22 de Outubro.
A estada no Tejo, de duas esquadras i)ei'-
tencentes a narões da triplico aliiança, suggc-
i-iu a suspeita de não ser inditlcrcnte ás mo-
narciíias da Europa, a coalisão republicana que
á soml)ra da França se começa a agitar p'la
península. Suppòz-se que a Allemaniia, a Itá-
lia, e a Áustria, veriam com terror a approxi-
mação dos povos meridionaes, n'Hnia federa-
ção latina inexpugnável, e teve-se esperança
de (pie esta ameaça, bolindo c'o regimen dy-
nastico d'aquellas três potencias, houvesse le-
vado os respectivos soberanos a intercedei'ein
por nós junto da biglaterra, no propósito d'es-
ta nos deixar na questão d'Africa uma posição
sobejamente grata ao nosso orgulho, e que
4 OS GATOS
|)0i' al.umn luuipu iiy;iiciiia.s.s(' íiiiida ciilii' nós
o Lragaiira no seu llirono. Coiwlissera a entra-
da das esipiadras co'a vinda do snr. Marlens
KeiTão, trazendo de lloma, dizia-se, a qnestào
anglo-imiiniíneza resolvida, pelos bons anxi-
lios (lo Capa: e esla mediania de Leão xiii, aj)-
proxiniada do espalliaialo (pie a llniuis eslava
fazendo co'a via.nem do sni'. Magalliães Li-
ma, dava alé cerlo ponto eolierencia ao i)oalo
da tripliee alliança se resolver a trai>alliar,
a nosso lavor.
I'ela sej^iinda vez portanto si! acercava de
nós a fortuna no seu carro, trazendo-nos en-
sejo de revindicarmos lionra e territórios em
litigio, sendo a primeira aipiella em que, loyo
depois do nltimatum, nos recusámos a apellar
para a conlerencia de 15erlini. ilreve |)orém a
illusão durou, porque assim como da primei-
ra vez os nossos homens d'Estado não soid)e-
ram tirar do arti.uo H do acto jieral, o salva-
tei'io ipu! elle contintia, assim d'esta, a inter-
venção anuiiavel da Iriplice alliança, gorada fi-
cou, por culpa d'elles — se alginna vez cuidara
em ser-nos ulil.
Por culpa d'elles, disse, e vou proval-o. Á
uma, esses senliores, em vez de deixarem vo-
os GATOS i_)
zear nas ruas as niaiiifeslações republicanas
— inliinamente inolTensivas, sabomol-o, mas
exceilontes como texto de teiegi^animas, para
alarmar lá lora a Europa monarcliica — trata-
ram mas Ibi de fazer correr que metteriam no
Africa os que fossem apanhados a dar vivas
on morras, a algiiem ou a alguma coisa. Á ou-
tra, fizeram desmentir pelas cliancellarias a
magnitude do loiro Magalhães, como mmlhi
da crusada jacobina, traiiquillisando d'cst'arlo
os i-eis adiados, quanto aos resultados (ki mis-
são do redactor do Século pelos restaurants
latinos, com cluimpagne falso nos toasts, e
Xaviercs de Carvalho e Zorrillas nos menus.
E a força moral da agitação republicana
cerceada d'este modo, calmada a Eui'opa sobre
a ridicularia das nossas conspiratas, os eni-
baixadoi"es que lá fora temos deram o golpe
de misericórdia na intercessão que a Kaiia, a
Allomanlia e a Áustria pareciam decididas a
tentar, junto da Inglaterra, a nosso bom.
Porque o mau sestro é este : ou seja dos
homens, ou da constituição politica reinante,
é certo ([ue o alio funccionalismo baixa entre
o os GATOS
nós lornvflineiiU-, a poiílo tias altas funcçõcs
do Kstado estarem enii-e mãos d'iuna crelina-
gem que faz pejo, nos ciUreaclos em qiic não
é o asco a seiisa(;ão dominante que ella inspi-
ra. Uma vista retrospectiva sobre oqnc ján'ou-
tros números traçamos, intbimará o leitor
d'algnns dos mais salientes aleijões que cons-
tituem o caracter do nosso homem politico, (í
de caminlio talvez visione o processo qne tem
entre nós a politica d'investir os seus dilectos,
como senhora despótica, nos logares de respon-
sabilidade ou de confiança. Já por mais d'uma
vez exi)licánios não ser ci-iteiio usado na pro-
visão dos altos cargos, a circinnstancia d'elles
convirem aos recursos e aptidões do candida-
to, mas tão somente se fará conta a este, o
rendimento metallico d'aqnelles. Este nefando
systhema tem enchido os (|uadros, de sobri-
nhos c irmãos de ministros o directores ge-
raes, qiiazi Indo crealurinhas de gozo e de
(lei K INC, incapazes d'estudo, sem vislumbre de
cereliro, nem capacidade alguma de trabalho, e
apenas dispostas a fazerem dos logares (pie
lhes dão, conezias rendosas e inactivas. Km-
quanto a politica só aproveitou essa cambada
de di>sfriictadores, para nioi)ilar com ella os
os GATOS /
logares infmios e médios das secretarias e da
alfandega, bem foi a coiza : mas preencliida a
corredoira burocrática, de bestas, houve que
se deshonrar a envergatura moral de certos
cargos altos, de se pòr em jogo a dignidade e
a seriedade de certos serviços, para dar co-
mida ás restantes.
Filhos de familiaíi ricas ou illustres, creti-
nos insolvaveis muitos d'elles, lá vão secretá-
rios d'cmbaixada e cônsules de primeira clas-
se, para essas capitães de prazer, onde o paiz
lhes espórtula os vicios frustes, a ociosidade
desdenhosa, e a elegante invalidez; e é conhe-
cel-os p'ra se advir na opinião de que poucos
valem o dinheiro que custam, ou são dignos
da investidura ofticia! que representam. O snr.
Bocage, se (piizesse ofierecer a Lisboa um es-
pectáculo lypico, devia mandar vir todo o pes-
soal diplomático que temos disperso pelas ca-
pitães do mundo, annexar-lhe os cônsules com
as suas fardas, e fazer uma revista de tudo,
na Avenida. Seria d'um grotesco inolvidável —
com o visconde de Faria por tambor-mór — e
cada um de nós sabei'ia altim que destino teem
em Portugal certos janotas, refugo das esco-
las, quando derretida a ultima libra na bargn,
8 OS GATOS
Lisboa (leixa do llics ouvir o calão nos gabi-
netes (lo Silva e lio Tavares. Vadio de bigodes
torcidos, nullo pedante, bacharel puxado a
(piafro juntas (Pappellidos, e lendo sido o Ca-
lino da sua gerarão universalaria, sportraau
com dividas, o corredor de toiros com alnior-
rodias, tudo ([uanto as populações acephalas
do haltresíiui e do Grémio, das cadeiras de
S. (>arIos e das casas de batota, contam de
mais arrombado e de mais tanco, eis o viveiro
aonde a diplomacia portugueza vae escolher
os seus melhores auxiliares. Paris e Londres,
Vicmia e 1'elcrsbourg regorgitam d'estes por-
([uinlios da índia encasacados, nem sequer
correctos, e quazi sempre ridículos, por entre
cujas mãos jjassam, nos intervallos do jogo e
das cocotles, todas as melindrosas coizas que
bolem co'a manutenção do nosso decoro in-
ternacional. Os embaixadores ou plenipoten-
ciários que entestam com este batalhão de
pândegos eméritos, cumpre dizer (pie estejam
á altura da soldadesca. Tirante o snr. Souto
.Mayor, que continua em Stockolmo, nonage-
nario (piazi, a sua tradi(,'ão de homem de cor-
te, e o snr. Casal Itibeiro, (pie lá vae aguen-
tando em Madrid os estragos (pie a sua vida
os GATOS '.)
excessiva de moço determinou no seu cérebro
úii joaissenr, os outros representantes de Por-
tugal no estrangeiro nem se([uer podem Ja-
ctar-se de possuii' os méritos secundários e as
iHiaiidades comnnins dos homens do seu offl-
cio. Está em Bruxeiias o snr. IIenrir(uo de Ma-
cedo, que é uma espécie de tatu desentluisias-
mado d'outra posição (pie não seja a iiorison-
tal, e d'outra lucidez que llie não venlia das que-
breiras digestivas, aos roncos, nas poltronas
das casas de jantar. ()uerem fazer d'csle me-
díocre o sucessor do snr. liaijona, nas novas
negociações com Salisbury. Vejam (pie lasti-
ma! O snr. Henrique de Macedo tem (piazi
todos os defeitos públicos do snr. flarjona,
acrescentados d'outros que por bem de nós
todos, devem pòl-o a cem léguas de tal car-
go. Temos em Paris o snr. Dantas, um excel-
iente homem, (piebrado e velho — o que não
basta. Em Berlim está o snr. manpiez de Pe-
nafiel, sobre cuja saúde cerebral começa a ha-
ver apprehensões. Em Pefersbourg, o ministro
porlnguez è o snr. conde de S. Miguel, que se
icproduzir o dito de Clienier, locando a fron-
te, falta á verdade, e cujo substituto, nos seis
mezes do anno em que s. ex.'» está ausente
10
do seu |)Oslo, é o siir. Kzociiiiel Prego, Uiplo-
nialiciíineute fleíiuido assim — o siir. conde de
S. Mi.uiicl, do oittro lado do relojíio.
Temos na liava o snr. Viceiílc l'iiidelia,
botas iindissimas, olhos todavia um pouco
menos pcn(>ti'anles do (pie o vei'niz das gás-
peas; temos na Suissa o snr. Alfredo Anjos —
a (piatro; e íinaimente em Viemia o nobre
conde de Valenças, cujos méritos julgamos fi-
xar, mencionando a única coiza que de posi-
tivo se sabe, acerca de s. e.\.'> — venho a dizer
— que é um mamifero.
Digam-me pois se com tul (puulro, algum
governo pôde ter sequer um serviço dMnlbr-
niação e de policia diplomática, capaz, e se
as nossas legações, com todos os seus contos
de reis de costeio, servem para mais alguma
coisa do (pie dar nicho a pregui(;osos, e pas-
sar contrabando nas bagagens. Durante os nie-
zes decorridos des"que o contlicto anglo-luso
entreteve ])ela primeira vez a curiosidade da
Kuropa, jornacs de todas as nações, occni)an-
doseda pendência, com pronunciada intenção
de fazerem justi(;a aos nossos direitos, deram
sobre ella informações e detalhes erróneos, ar-
gumentos contiaproducenles, iilucidaçcles sem
US O.UOí. 11
dociiinentação auclorisada, afora os que se vi-
ram forçados a deixar o assumpto, no calor
da actualidade, por falta de quem, com toda a
seriedade, os informasse. Seria aqui a vez das
nossas legações intervirem discretamente, dis-
tribuindo mappas e informações de fonte pura
a lodos os jornaes europeus e americanos que
se nos mostravam syinpathlcos, e mesmo tor-
nando esses jornalistas, por via d' uma sngges-
Jíio amavelmente liabil, om inslrumentos, como
direi? obse(|uiosos, dus planos coloniaes do
nosso governo, o que não seria tarefa difficil,
nasni;"iosd'iim encarregado de negócios arguto
c experimentado, e d'uin pessoal consular alfe-
clo aos interesses ila nação. Ora, é escusadís-
simo affirmar que sobn; esta questão vital para
os nossos interesses commnierciaes e políti-
cos, nem os governos deram ordem para se
instruir a imprensa do mundo, quanto ás ra-
zões históricas ou contemporâneas das preten-
ções ])orluguezas á Africa austral, nem os re-
sidentes portuguezes nas cidades da Europa c
da America — O snr. lialallia lieis o Martens
Ferrão excepto — se dignaram deixar caliír
dos seus divinos lábios, palavras que corri-
gir podessem, de longe ou de perlo, a cor-
12 os GATOS
rcria por vfzcs pliaiiljisisla dos iiossus (Iclcn-
soros.
K as razões são palonlcs, iiuilil dcsdo-
bral-as. A uma, na (|ii('slão alVicaiia, os mi-
uisli'os eram os pi'imeiros a i}iiioi'ai' a extensão
e a importância dos maleriaes om lilit;io, e
lanio sabiam d"ella, ([»e o próprio llintzc lU-
boiro, já snbscripto o tratado do 20 d'agoslo,
apoipicnlava pelo teie.urapbo o snr. Uarjona,
sobi'e a maneira d'enlcnder as mais importan-
tes clausulas d'aquelle inverosímil dociunen-
to! Á ontra, ipie haveria a esperar da sdllici-
tude privada dos nossos cônsules e embaixa-
dores, .ilícitos ao ripanso do rica faire, e
recrutados nas castas sceplicas e desmoralisa-
das (jue atraz disse? Pedir ao sur. Martins
Dantas qne saia de casa para informar as re-
dacções politicas de Paris, não como embai-
xador, mas como particular, sobre os verda-
deiros tramites do conlliclo zambeziann; esperar
([ue o snr. Alfredo Anjos caualise diplomati-
camente a questão do caminlid de ferro de
Lourenço Marques, por forma ((ue os plenipo-
tenciários inglez e americano não coajam o
tribunal arbitral suisso a nos extorquir ."J:()00
contos (rindenmisação, por uma linha ferroa
que nem 1:000 valo; cuidar (juc o Valeiíças,
o Penafiel, e o Malliias ile Garvallio sejam ca-
pazes (.rincliiiar os reis da Iriplice-alliança para
uma iutervenção favorável à nossa causa, tudo
isto seria presumir nos nossos representantes,
abnegações i|ue os governos lhes não impõem,
e amores de pátria que a ausência amortece,
e as ajudas de custo, dada a pobreza do erá-
rio, se teem esquecido um pouco (Favivar. A
parle máxima das legações portuguezas no es-
trangeiro são pois comedouros, (|ue não postos
de guarda, onde os aleijados da jxiliticae onde
os j)obresiiilios da ele,nancia, supportam, n'es-
sas capitães de luxo, o desteri'o d"uma pátria
que elles próprios renegam, e de que elles são
os primeiros a dizei- mal.
iJeinternar no reino um certo numero d"es-
ses Stenbokens grotescos, (pie nem sequer sob
o ponto de vista decorativo nos honram; dar
uma varruscada nos adidos tantoches, e nos
secretários d'end)aixada risíveis e pedantes,
que lá tora creditam mcidiocremeiUe o espi-
rito e a helle leinic portuguezas, e nem as me-
morias de (>asanova seriam capazes d'escrever;
acabar d'uma vez com o advento do fillio do
f/rtoiíle liiunrm, nos cargos qiui o nome de seu
I í os GATOS
pao quer lazer hereditários na faniilia, eis alii
um principio ile vida nova qne a bem do rei-
no, o ministério devera iniciar.
Com respeito aos consnlados, idêntica bar-
rella! Vae-se por esse mundo, e acliar os côn-
sules porlnguezes no seu posto, prestes a bem
servir os forasteiros t|ue se ilie approxirnam,
é (juazi tão diflicil como jiistilicar a re|)uta(;ão
))arlanienlar do snr. Marçal Padieco. Al|ium
matreiro que furtando as voltas, conses;ue che-
gar á presença do inlau.i;ivel tiinccionario, re-
cebe em plena face insolências como esta :
— É porluguez, isso vè-se. Kntão como vac
por lá essa piolheira?
A um cretino que foi cônsul de primeira
classe, para a America, espécie de vencido da
vida em edição só para homens, ouvi eu ex-
primir os seus desdéns anti-portuguezes.
— O men ideal seria viver em Paris, e ter
uni balão dirigível : todas as manhãs, (piando
me desse a vontade, vinha a Lisboa, parava
em cima do Terreiro do Paço, ezás! — depois
do que voltava paia almoçar no C"//i' niclte.
Das relações (Kestes preciosos com a me-
trópole, resulta não serem elles uns emprega-
dos do Estado, que lhes paga por bom preço
os GATOS 15
um certo piogramma de serviços, senão se
depreliende que seja o Estado uma espécie de
subalterno ou feitor investido da missão de
liies vasar dinheiro nas algibeiras. Percorrem-
se os relatórios e despachos qne os nossos
cônsules enviam ao ministro, a qnando coagi-
dos, á força de supplicas, a dar informas so-
bre algum ponto commercial ou episodio de-
corrido na ária da sua inspectoria ; e adevi-
nha-se então porque é que nós fazemos trata-
dos de commercioque só servem para arruinar
a nossa agricultura e a nossa industria, e por-
que é que o mundo tem um risinho sorna,
quando algum portuguez allude á antiga hege-
monia universal do seu paiz. Um dos primeiros
cuidados do representante de Portugal no es-
trangeiro, é, salvo excepções, dcsnacioualisar o
typo, apenas chega, talhando-se a barba e es-
colhendo toiletle que lhe desvirtuem quanto
possível a primitiva physionomia. Alguns, quan-
do eá voltam, mesmo sem alijar a i-eputaçào
de homens de lettras com que tinham ido,
começam a intrometter na conversa palavras
estrangeiras, a carroçar os /•/• á franceza, a
ter sutaques exóticos, com anojados assopros
contra os que lhes mandam ver. Palmella.
16 . OS GATOS
L'iii cliainado Ijarão da C-osla ISicci, ilire-
clor da nossa agencia financial de Londres, e
que enfi(]iieceu à custa do paiz, gaba-se pubii-
camenle de ha ti'inta annos não vir a I'ortu-
gal, e de liaver esquecido coinplclaniente o
nosso idioma. Tanto a origem altaciniia liio
faz asco, (|ue sendo trigueiro, pinta desde tem-
pos innnemoriaes as suissas, de loiro, prohi-
bindo que cm sua casa se falle o portuguez.
De sorle ijue as filhas não conhecem uma pa-
hivi-a só da nossa lingua, e teem d(! Poi'tugal
a suasão de que é um sultanafo onde as se-
nhoras usam pêra, v, os cavalheiros roubam
as diligencias nos piuhaes.
A favor das provisões indevidas, nos cargos
de responsabilidade e representação, como ci-
tei, argumentam os ministros que o pessoal
habilitado escaceia, e que o nível intelieetual
e moral vae entre nós declinando, mais e mais.
P^alla pessoal ponpie os governos o não criam,
persistindo em accumular funcções nas ver-
gonleas de meia dúzia de iamilias estancadas,
e fechando a porta impiuienlemente aos que
estão longe dos coiós onde os líocages pulul-
os GATOS 17
Iam, os Marleiís foniieiitam, v os Scrpas e os
Barros c Sá se multiplicam.
E se a craveira inteilectua! c moral tciuio
a cahir, pertence ainda aos governos a culpa,
sempre a elles! Não tlespachem lentes ás forna-
das, não consintam na instrucção chefias pifias,
reformem as escolas segundo as necessidades
publicas, e não para anichar eiifants ijalês —
o quando a opinião publica llies disser que tal
director da Alfandega negoceia os empregos da
casa, que tal orador búxisla vae de mão co'as
parcerias náuticas ([ue pedem subsidio, que
tal prestamista suborna secretários d'Estado
p'ra lhes arrancar concessões escandalosas, não
deixem dormir estes casos na iudilfereuça, le-
vantem a luva, inquiram a valei- as fundações de
taes historias — não promovam o director da al-
fiindega a novos cargos, como recompensa da
sua candonguice, cuspam o parlamentar para
onde não haja preciosidailes por cima das me-
zas, e por ultimo, sendo preciso, enfonpiem
o prestamista, e tenham coragem para correr
com o secretario d"Estado a pontapés.
18 os GATOS
25 (1'OiUiibro.
Enlre as precauções sanitárias ijue o mi-
nistério conta pôr em pratica, pai'a tlar salu-
bridade aos negócios pnblicos, vem já citada
iinia, de todo o ponto enérgica e prestimosa.
Parece que ha ideia de correr d'nma vez com
o snr. Iturnay, dos cargos de liarnhum e d'cs-
nioler mór (juc elíe ha dez ou doze ânuos oc-
cupa no reino, junto de todas as situações
governativas, e mais se diz (|ue esta cxhautora-
ção será de grande espectacido, e feita na pra-
ça, ao ar, por(|uc todos conheçam a physiologia
digestiva d'estc famoso Moloch das receitas pu-
blicas. Justifica a medida, reputada dMustante
á luz da austeridade que este governo quer
ostentar nos seus dictames, o lerem os novos
ministros encontrado vestígios de Burnaysia
<>m todas as pastas, sol) a forma de contra-
ctas c escamoteações por lai lorma escusas,
<|ue não se i)ercebe bem como é que os col-
legas do sni'. Aidonio de Serpa poderam con-
sentii-as, ficando co'a consciência socegada.
l'ois consentiam, e tomando n'ellas uma tal ou
(piai parceria de cumplicidade — consciente —
tanto assim que as contractas decori'iam to-
19
(las u'um sviiillo absolii(o, prova de que os
negociadores sq, arreceavam da opinião. As-
sim, não iiouve por esses ministérios liindo
de secretária, algibeira de veliia fiirda, chi-
iiello es({uecido, pasta de correio a cavallo,
([ue os ministros novos, ao tomar posse dos
seus cargos, saccudissem, sem ver saltar o
snr. conde Burnay, sob algum dos seus tra-
vestis mais sylphicos, de preguista. Elle fez
pulo ao snr. Mello Gouveia (revestindo a fór-
ina d'um empréstimo de tí.SiOOO contos, tendo
por luvas o monopólio dos tabacos sem con-
curso, e o pagamento do empréstimo D. Mi-
guel) quando o pobre homem abria, nuiito
descançado, a gaveta do seu biirean do minis-
tério da fazenda, para iá mettcr uns punhos
novos de ministro, uns punhos de ver a Deus,
em caoutchouc. Elle saltou ás dragonas do snr.
.loão r.hrysosthomo, sob a forma d'uma en-
commenda de peças Krupps (o caso dos 900
contos) ((uando no ministério da guerra o ve-
lho general se curvava, para embrulhar com
a ponta da durindana um escarro, na serra-
dura d'um velho escari-ador. Elle ficou pen-
dente da pêra do snr. Thomaz Ribeiro (disfar-
çado na proposta d'uma casa franceza para a
i20 os GATUS
coiislriiocão (!u calx) suljiiiaiiiio dos Adores)
110 uiumeiílo oní que este ivicioi benu iiarci-
sava as suas cabelliigcns romaiUicas, com iim
pente (luc servira ao seu aiUecessof Frederico
Arouca.
K não couteule cuui esles acntljalisinos ar-
rojados, exliibia iiicausavelnieule outros de
louge, como tbsseui piouiovei' uas pi^aças es-
trangcMias, baixas de lundus, auxiliar em Pa-
i'is as i)asijuiuadas do empréstimo I). Miguei,
melter.v(/c//(>.v terroristas contra nós, nos jornaes
de França, dMnglaterra, e tudo isto com pati-
ulias tão leves, Ião liiia argúcia. Ião Ixmu Im-
iiiorada perversidade, que não liavia remédio
senão recoidiecerinol-o como o syljdio da barn-
boclia inonarchica, e o diuhlediilin da nossa
bancarota, adejando por cima do tiirono os
seus elycli'os verde e oii-o, vampiresco e ca-
vallieiroso a um tempo, alma d'iaiío, na abs-
tracção ingénua do amoi-osu Miguel C.assio. De-
sinfectar o estado (Vesle pulgão |)olymorpbico e
sinistro, prescindir das suas ollertas (pu^ suam
ágio, e das suas facilidades {\\w resabem a ci-
lada e a hypolbeca, eis um admirável debute
para governo que se propõe restabelecer nos
negócios pul)licos, a moralidade e a economia.
os GATOS -I
Aiiula ha pouco os jomaes coularaiii como a
poiicia lançara mão a duas seresmas, que
contratadas para cuidar d'uma senhora doente,
a tinbain expedido ao hospital sem mais de-
longas, onde a pobre espichou, repartindo as
desavergonhadas entre si o espolio da defun-
(ta. ( ) snr. Burnay condensa no actual momento,
as haliilidades de mãos das taes velhacas. K
necessário despedil-o da cabeceií^a do paiz en-
fermo, antes que o enfermeiro astuto, sequioso
do esp<j|io, pregue com elie na iitnrjinc do lios-
piial.
^20 <l'Oati(l>ro.
Os dois circos de funambulos, actualmente
abertos, acabam de pòr os thealros ás mos-
cas, e inauguram em pleno lucto pátrio, um
carnaval d'exotico, que a cidade corre a ap-
plaudir todas as noites. A jonglcrie dos ho-
mens elásticos, e os discursos esfridulos dos
momos, mesmo sem tergiversarem dos pro-
cessos d'escanioteação já conhecidos, põem
nas ferias parlamentares um interregno ape-
ritivo, ([ue nos faz ver nos circos da Una Nova
±2 os GATOS
(la I'.iliiia e das Porias de Saiilo Antão, sob a
ivgeiícia dos manos Kiaz, os funaniltiilos de
S. Hcnio, n'iini livivcsti em ()iie clles não cos-
tumam moslrai-se, a (inaiido |iresididos pelo
snr. Pedro de (larvalho o Telles de, Vasconcel-
los. Por mais (|ue elles neguem, não lia duvi-
dar sejam os mesmos. Ha poucos dias, co-
mo o elefante pequeno do (lolyseu novo se
preparava i)ara voltear na arena, c'os seus ca-
maradas de supplicio, uma chicotada mais in-
justa o lez dizer — poço a palavra! — e todos
conheceram a voz do snr. Martens Ferrão. Km
certas noites, deputados e pares fpie não to-
mam parte no especlacido, veom todavia
com seus trajes civis, aplaudir dos fmi-
leuils, os collcgas; o cmpóz d'csles senhores,
res pelites rluilles (|ue os retpiestam, das gale-
rias: d'onde a razão ])or(pie os circos sejam
actualmente os inais hem IVeípienlados toga-
res da capital.
Kstão em moda as exibições (Tanimaes
habilidosos. .Na Una Nova da I'alma, por
exemplo, lia uma cadeija contralto (pie faz
positivamenie a iiiv(!Ja das prima-donas que
temos lá fora a estudar, com subsídios do go-
verno, e por cujas nrininnlcrics e geilos de
±i
cauda, muitos teem querido recouhecer Sérgio
de Castro. Ma um leão decrépito, que salta
d'uma pranciía elevada, ao dorso d'um cavai-
lo, e que muito bem pôde ser a allegoria do
snr. Maricas, vindo de Roma a Lisboa, como
diz o Mardel, bater o lado também. E ainda
no mesmo circo enfim, um grupo plástico,
magnifico, leito d'um elefiiute, de dois cavai-
los, e d'uns cães que se Ibe encarrapitam por
cima, com ar propagandista, a ponto do mais
revolucionário gritar — Viva Magalbães Lima!
— o que (í um pretexto para se exigir de pé,
a Portiifiuezii.
27 lie Oiiliiliro.
Mas iia no Colyseu de Santo Antão um
jonf/leur japonez, delicioso, e que eu tcnlio
grande difficuldade em dctiiçar d'um Inbelol.
Velho e meio calvo, franzino como um ello,
com um brunido de lacca clara na cabeça, e
pompas de seda bordada a matiz e oiro nas
pregas da cabaia, essa figurinha tem uma
nervosidado irónica, um souandiulismo de vi-
da, que nos reportam ás edados em ipic o lio-
'ii os GATOS
nicin, muito perlo .liuda do monstro, ura já
es|iiri(iioso e iiiiflli.yoiilo, posto (pie ainda sem
loiíiiidas oracs com (pie exprimir o sen pcza-
(ielio interior. Lembra-nic mu Jiakémono da
Míiiifiita de lloknsai, nm neisnké de Uilsuo,
inn d'estes benignos huddhas doirados, cpie os
viajantes descoi)rem nos cacifros das torres
de madeira dos templos, em Kioto, na monla-
iiiia santa de Xikko, ou no seio dos nichos
funerários, risonhos, sentados em folhas de lo-
llius, com o ar frivolo e mysterioso de chime-
ras e forças da natureza, ao mesmo tempo. Do
progi-aiama da noile, é elle o canto aristo-
crático, o aparte distinclo, ponpie a sua ^oít-
;/leric me traz a ideia d'um povo ao longe,
d'uma nacionalidade frívola que eu não conlie-
ço, e da (jual por afinidade arlislica, faço par-
te. Nada tão simples como o seu trabalho —
meia dúzia de paulltos e hastes de madeira
que se ajustam pelas pontas, um leque, algu-
mas bolas de caoutchouc, um parasol de seda
l)ranca e uni copo d"agua, eis o vocabular-io
com ipie este parnasiano do equilíbrio cons-
tròe as mais bellas estrofes dos seus poemas
— e não obstante a futilidade dos fins e dos
processos, essa obra d'e(piilibrista captiva-me,
os GATOS ti.i
poi'(|ue ('' toda uma eslliclica iiicdila (jiie passa,
eiií cada um dos meneios do japonez!
De mais, talvez não sail)am, o meu Joií-
gleni- do Goiyseu tem uma epo|)eia grandiosa
na íamiiia, e isto lhe condensa o encanto exó-
tico, e lhe amplifica a meus olhos, o etVeito
ilecoral. Elle descende nada menos do ipie de
Takonda, um dos 47 vuhuih condemnados á
morte, por terem vingado a honra do sen se-
nhor. É uma historia de fidelidade, a dos ro-
II i lis, sem precedentes talvez na epopeia lui-
inana, que todo o Japfio celchra ha duzentos
annos, em pinturas e scenas de theatro, e de
cujo suhstracto trágico o esci'iptor Tamenaga
Shounsoni tez um romance, de cpie a traduc-
çào franceza corre as livrarias desde i8S:í, sob
o titido de, Lcs /ideies roíiins.
Em l()8."J, um daimio por uoineTakumi-no-
Kami, vindo á còrle de Vedo, poi'tador (Tuma
mensagem, Ibi gravemenie insultado por Ko-
tsuké, um dos grandes funccionarios do sho-
gun.
Prohihido de vingar-se ao primeiro irpou-
po da honra enxovalhada, visto como a afronta
'Hi os GATOS
se dera ii'um vcstibulo do palácio imperial, e
a pragmática prohibo (juo sob pena de morte
o coiiliscação de bens, alguém puxe do sabre,
intramuros das rezidencias do mikado,Takiimi
tragou a injuria, que vindo a repetir-se á sa-
bida da audiência, forçou o daimio a ferir Ko-
tsuké com o wakizaslii, ou |)equeno sabre do
ventre.
Coii(leninaram-no a al)rir-se o aiidomcn,
com o mesmo wakizasjii com (pie arranliára
Kotsukó; e como era príncipe crAkò, foi-lhe
o castcilo confiscado, e família e vassallos re-
duzidos á miséria, cabindo estes no estado de
ruiiins, que (píer dizer maltrapilhos errantes,
pedintes, pobretões. Ora, entre as gentes do
príncipe havia um conselheiro intimo, ou fa-
vorito, Kuranosukt', que abrazado em furor
santo, reuniu os quarenta e sete samourai de
servi(;o em Ak(), fazendo a todos jurar (pie vin-
gariam a memoria de seu amo. Kotsiiki' poiíim
não ilescan(;ava : poderosíssimo e astuto, teve
suspeitas do mal (pie Ibe podia vir dos nobres
cavalleíros (pie reduzira ao inforiunío, e vigia-
va-os, i)erseguin(lo-llios os passos, c cercando-
llies as casas d'espiões e d'assassinos. Abi co-
moçn pois uma lucta d'astucia, entre os dois
os GATOS 2/
grupos odientos. . . Kolsukr que uiiilliplica na
sombra os seus esculcas, e os antigos samou-
rai, que para adormecer suspeitas, se disfar-
<>am, muitos, nos bairros iobregos de Kioto,
tomando profissões humildes, emquauto o res-
to deserta i)or desencontrados caminhos, indo
viver nas tlorestns, nas piolharias dos templos,
€ nas tocas dos rochedos que avisinhani a
colina da Primavera, onde o senhor (rAkòjaz
sepultado. Kuranosnké, o chefe dos cavallei-
ros fieis á iionra do dainiio, typo de campeão
feudal, cuja estatura épica só tem rival na do
portugnez .Marlim de Freitas, como não po-
ilesse deixar Kioto sem riscos d'excitar contra
si as curiosidades do inimigo, e fazer falhar
o plano de vingança, resolveu, para mellior
illuilir Kotsuké, dar-se a deboxes torvos, si-
mular a embriaguez, passar as noites nas ca-
sas de chá, entre vadios e prostitutas, a pon-
to (juc um homem de Saty>uma, topando-o de
bruços n'nm charco, uma noite, pei'dido de
beliedo, rompeu a dizer que era bem indigno
<lo titulo de samouraí, quem se entregava assim
ao vicio, em vez de lavar o ultraje do seu se-
iil,or. — E de desprezo, o liomem empurrava-o
na lama, mijando-lhe p'ra cima !
28 os GATOS
Xuilos c iioiíos, a ciiladf \\e KidltJ, ante a
(|iial Si! fizera piililica a dcvassitlão ilc Kiii'a-
iiosuki'!, prcsciicoava as scciías il'eml)riagiiez
([lie ellc fazia, eiilic os ilcsprczivtíis da sua
laia, tomada (l'espaiilo por essa mclamorpiíose
siibila, do hoiiifiu justo, ein nilião. Kiiiiado
em casa, Kui-aiiosiMu'- espancava a iniiliíer,
derribava na camará interior, o altar volado
aos antepassados, piinlui os filhos na i'ua, sem
camisa, ã exposição da nove o das ciiuvadas...
Só então Kotsnké descança um pouco, e
afrouxa a espionassem, certo de (pie a virili-
dade do antigo favorito, amollecida dMnlaniia,
não mais cuidará do passado, nem já leria
prestigio tam pouco, para arrebanhar os ser-
vidores dWkò \\(\ encalço da sua iudis|)utada
sobranceria.
Uma noite de dezeudiro (170!) ilezoiío an-
nos depois da morte do príncipe, os conjura-
dos reuniram-se emlim sob as abadas d'uiii
templo arruido, em sitio solilario, á vóz de Ku-
raiiosuké, (pie (bn-anie todo aquelle tempo não
cessara de correspond(>i'-se com os seus ipia-
renta e sete bravos companheiros. Secretamen-
te, o fal.so bêbedo havia feito conduzir para
as criptas do sanctnario, as couraças e as ar-
os (;\TOS 23
mas iiccossarias : o l('in|ilu ilesoilo, tinha á
volta nin bosque ile codros scciílaros, por toda
a parte raniarias conliísas, lianas tiii-iosas, fo-
liias e sombras (ruma tenebrosidade imprati-
cável ; c a tormenta de neve caliia de vagar
pelas clareiras, amortalhava os monstros das
escadarias alluidas, fazia gemer as traves po-
dres dos pórticos, curvando os bambus das
torrentes, e tamborilando, com vibrações ve-
ladas de gong, na campânula dos sinos sus-
pensos como corpos, nas grandes forcas de
granito dos terraços. Feita a oração no tem-
plo, com as boccas no pó, enKpianto o mais
velho dos guerreii'Os batia as palmas para acor-
dar a attenção dos deuses distrahidos, os
quarenta e oito homens renovaram deanle do
altar o juramento, e armados de sabres e de
lanças, justados de couraças, e revestidos por
cima, d'uma espécie de túnica branca e preta,
afim de se reconhecerem na commettida, eil-os
se dirigem a cautelosos passos para o Yashki,
de Kotsuké.
Caliia sempre a neve, com llocosidades
opacas que restringiam a visão, por esses
30 os GATOS
campos. Ellos marcliavain cobertos (Karo, os
capacetes erriçados de crina, com oníaineiitos
de mudas e de cornos — c todos de lanternas
á cinta, entre campos d'arroz o as licrvas al-
tas dos pântanos, pareciam espectros de deii-
zes levando ao longe os flagellos da morte,
nas dobras brancas e pretas das suas túnicas.
Yadsuama, o mais sábio, tinha n'uma garrafa
«com ([ue pensar as feridas dos combatentes,
o produzir grandes fogachos para afugentar os
transeuntes.» (ii) Adeanlc Olibé, o homem dos
cabellos de Javali, esclarecia o caminho com
duas candeias pendentes (Tuma canna de bam-
bu. Masé levava um odre d'agua, \)a\a apagar
no palácio de Kotsukí', os brazeiros e as lâm-
padas esquecidas. E quanto a (Jtaka, tinha ao
pescoço um apito de bronze, com que daria
três silvos, apenas fosse descoberto o miserá-
vel. Todos tinham envolvido as cabeças cm
vens de seda az(d, qiu! lhes occultavam o ros-
to, e nos peitos honlailas as iniciaes e brazões
(a) Sei tú Guishi deu (05 amilkiros do ihwr c da fi-
iMidthk) paginas d'abum onde o pintor japonez Kouni\-oshi
representa os ronins na sua embuscada ao Vashki de
Kotsuké.
os GATOS S\
de suas casas, no bolso o Yatató, ou oscreva-
ninlia portátil, e um pergaminho na manga
finalmente, explicando as razões da expedição.
Duas horas da manliã, lioi'a do boi : lá baixo
é Kioto, a cidade santa, adormecida no lixo
que os chacaes sem medo vem fossar — por
toda a parte o silencio, a neve, o desamparo!
— sanctuarios vetustos nas colinas, com as
suas florestais e os seus pórticos, as escadarias
de monstros c as pontes das torrentes, scis-
mando sob a neve, nos mysterios da impassí-
vel divindade : e ao alto, no crepúsculo do
ceu, a massa dos tectos, boleada em crescen-
tes nos ângulos, e as avenidas de túmulos,
onde os mesmos espantos fazem, pela bocca
dos deuses fúnebres, a mesma caraníonha e
o mesmo calafrio.
domo sombras, os quarenta e oito aborda-
ram enfnn a palissada do jardim de Kotsuké,
toda fechada em redor como um casteilo. To-
kouda, que era o mais alto, quazi de .sangue
régio, olíereceu os hombros para os outros
treparem : e estes, sem se fazei'em rogar, su-
biam-lhe por cima, e depois que se viram den-
tro, todos queriam ser os primeiros a arrom-
bar a porta do jialacio.
Si ns GATOS
Mas já ás primcir.is |);iiic;iiliis do inarlello, os
sainouraís (1(! liolsiiUó saltam do loilo: trava-
se a liicla, (t dcsespoi^ada, mas nem iim grilo
— c bem depressa um mar d(! sangue, repu-
xado dos troncos sem cal>eea, veste de i-nhro
as laccas preciosas, os oii'os bassos, c os (Vi-
sos esciiiptados e leves dos salões. Kutre os
que fogem, alguns, do nmllier, fazem sorrir
d'escarneo os samonraís (TARò, cuja sede de
sangiu> os leva dos subtei'raneos aos traveja-
mentos do leclo, á jirocura de qnom podesse
ler-llu; (iscapado á sanha carniceira. Mas Ko-
tsuké? .Não apparece. Knranosnké no entanto,
astucioso, ao mergulhar as mãos no leito do
potentado, sentiu (juenles as roupas. Não de-
via estar longe, por conseípuMicia.
E as buscas recomeçam. Olibé leva as duas
lâmpadas accesas na frente; Tokonda e Õtaka
rompem as laccas dos muros a g()l[)es de pu-
nhal, emquanto os outros correm como de-
mónios, os terraços da casa e os urdinientos.
Ouaiido subitamente o apito estruge. .\ lança
de Vadsiiama, casualmenie metlida por enire
o carvão d'uma dorna, nas cosinhas, acabava
de provocar uma (pH'i.\a pallida; e o Kotsukc
apparece, descalço, tremulo, septagonario
os GATOS 3.3
qiiazi, deante dos cavalleiros constituidos em
tribunal para o julgar. Eslá ferido no quadril,
treme de medo, e o sangue lhe macula o se-
tim branco da túnica, que tem pintadas no
panno, folhas mortas de salgueiro, e por bai-
xo uma bordadura de milhafres, com crysan-
themos nas garras. Kuranosuké então ajoelha,
e assim lhe falia com todos os respeitos d'um
mortal de casta inferior.
— Senhor, somos os homens de Takumi-
no-Kami, que V. Graça fez perecer injusta-
mente. Como bons e fieis vassallos vos conju-
ramos a honrar a memoria do nosso amo, fa-
zendo o hara-kiri (abrir-se o ventre). Servir-
vos-hei de padrinho n'este acto, e depois que
tenhamos, em toda a humildade, recolhido a
cabeça de V. Graça, iremos depôl-a como of-
ferenda, no tumulo de Takunii.
Como Kolsuké se recusasse a morte de ca-
valleiro que lhe propunham, Kuranosuké lhe
decepou a cabeça d'um só golpe, e ao romper
da manhã os quarenta e oito ronins reunidos
na colina da Primavera, em torno do sepul-
chro d'.\kô, despiam piedosamente as coura-
ças, depois de feitas as abluções do ritual; e
vestidos de festa, offertaram aos manes de Ta-
34 os GATOS
koumi os despojos do sen implacável inimi-
go. (I>)
Desoito annos de vida passada eiilre misé-
rias e vergonhas, para restaurar a nitidez d'um
nome aliíeio, e morrer no dia seguinte, eis
uma li(;ão de nobreza que vae além da mais
pundonorosa espectativa! Ponjue a sorte dos
quarenta e oito adevinha-se. Kotsuké era um
funecionario omnipotente, a lei protegia-o, e os
samourais d'Akò foram condemnados a extir-
par-se, o que cumpriram nas escadarias do
pagode, depois de ler pedido aos bonzos que
os sepultassem de roda do tumulo do seu se-
nhor.
O joiíglcur do Colyseu descende realmente
dos ronius? Pouco me importa. Nem por se
tratar d'um funambulo de circo, a heróica as-
cendência é menos verosímil. A uma, no Ja-
(h) «Cest ici que la tête a élclavà: n'y trempei ni vos
pieds, ni vos iimins.» L'ócritcau ne dit pas quclle est cettc
tête coupce qu'on cst venu lavcr dans cette eau claire ; il
dit seulement idatète.» Mais tous les passants le savent . . .
P. Loti (Japoncries d'automne, pag. 260)
os GATOS 35
pão, o estado d'artista eiiiparellia e continua,
em jerarchia illustre, com o de guerreiro ou
principe de sangue. Á outra, quando assim
não fosse, a dispersão das riquezas dos ronins,
confiscadas pelo Estado, podiam ter feito li-
quidar as vergonteas d'aquellas nobiiissimas
familias, em mesteres da ultima inferioridade.
Como quer que seja, esse jonijlcur seduz-me.
Sou eu, funambulo de circo. Acrescendo que
elle synthetisa alem d'isso a indoie e a graça
d'esses povos perpetuamente infantes, que
constroem a felicidade sobre meia dúzia de
paulitos em equilibrio n'um beiço, e a abri-
gam, depois de construída, sob um parasol
de seda branca, onde perpetuamente gira uma
bola doirada de caoutchouc.
FIALHO D'ALMEIDA
OS GATOS
rUDLICAÇÃO SEMANAL,
D"LNQUEniTO Á VIDA POUTUGUEZA
N." 20 — lõ de Novembro de
SUMMARIO
A CRISE TllEATRAL E SEL"S FACTORES— CIR-
COS CHEIOS E TIIEATROS VASIOS — RAZÃO DA
INDIFFERENÇA DO PUBLICO PELOS ESPECTÁCU-
LOS PORTUGUEZES— CANTO E DECLAMAÇÃO : DE
COMO NOS TIIEATROS MNGUEM FEZ CONTA COM
O POVO — O QUE É A «geral» NAS NOSSAS PL,V-
TEAS — NECESSIDADE PUBLICA DO RISO E DO MO-
VIMENTO, E INCAPACIDADE DE RIR E MECIIER NAS
SALAS D"ESPECTACUL0 — OS TIIEATROS NACIO-
NAES SÃO MONÓTONOS, O REPORTÓRIO É ESTRAN-
CEIRO, A língua USUAL É MACARRONICA — CAPA-
CIDADE CRITICA DAS DIFFERENTES CLASSES D'ES-
II os GATOS
PECTADOnES PERANTE UMA r.EPnESENTAÇÃO
fallada — pudlico certo de d. maria edo
príncipe real, e razão porque elle volta
costas ao theatro — o que fica de labiche
e dumas filho, nas traducções macarro
nicas do gymnasio e de d. maria — dramas
que não fallam do interesse indígena, e
que debatem questões com que o publico
nada tem — o «arreglador», personagem
bifronte — peças originaes, e escriptores
de comedia e drama portuguezes — caracter
e aptidões dos talentos consagrados ao
tiieatro — a litteratura drajlvtica euro-
peu não acompanhou a evolução scienti-
fic.v dos outros campos da arte — de como
nunca tivemos litteratura dramática, mas
vocações isoladas e incompletas — o que
falta para termos escriptures de comedia
o que falta para termos escriptores de dra-j
ma — em que se acaba o papel, e se pede
AO LEITOR RECOLHA AS CONCLUSÕES D'ESTe|
ESTUDO, NO NUMERO SEGUINTE.
3 de Novembro.
Com a abertura do novo Colyseu de Santo
Anlào, tornaiam-se afilictivas as condições
d'existcncia dos nossos theatros, ellas que já
estavam singularmente criticas pela concorrên-
cia que o Colyseu da Una Nova da Palma lhes
movia. Por mais que esses pobres proscénios
aimunciem em cartazes de dois metros, os seus
jnelliores trabalhos de comedia e drama, o
publico evidentemente desinteressa-sc, deixa-
llies a sala ás moscas, e corre a applaudir as
feras c os homens elásticos dos dois circos.
De sorte (jue em muitos d'elies é inevitável a
bancarota, se acaso as receitas do anno aferi-
rem pelas perdizes do principio.
't os GATOS
É porlanlo o momoiilo de se cslmlar a
(jucslão com soricdatlc, c de se csijuadriuhar
se bem no fundo dos motivos que o publico
leni para gostar menos de trágicos, do que de
palhaços, não liaverá alguns que dêem razão
ao publico, embora á cusia do orgidho ariisíi-
co dos trágicos.
A meu vèr, os espectáculos de funambulos
são preferidos aos dos outros tlicatros, princi-
palmente por trcs causas:
— São mais baratos.
— Divertem, e o povo prefere sempre o
riso ao choro, as coizas (|iie disirahcm, ás coi-
zas que concentram.
— Ultima. Os artistas estrangeiros que
n'elles tomam parte, são mais progressivos,
mais vai-iados, mais inventivos, do que os por-
tsiguezes occupados na interpretação d'obras
dramáticas.
Vèr a primeira. Lisljoa ó muito pobre. Toda
a gente (jr.e trabalha, necessita de descançar e
distrabir-sc. Ora a media dos salários percebi-
dos pehi grossa massa da população trabalhado-
ra—a única que, S. Carlos aparte, faz a chuva
os GATOS 5
O O bom tempo na caixa forte das emprezas —
regula entre dez e cinco tostões diários, e com-
preliende-sc (luc distraliir d'estcs exiguos ga-
nhos, duzentos réis, para nma entrada no cir-
co, represente já um sacrifício, ([iianlo mais
pagar por 'lOO, õOO, 700 e 800 réis nni iogar
de platoa, que tanto custa por uma noite d'es-
pcctaculo, o mais vulgar dos nossos Iheatros
de drama c d'opercia. Ha, é certo, n'uns re-
cantos escusos da sala. Jogares mais cm con-
ta, mas tão mal illiiminados, tão tristes, tão
degradantes, que frequcntal-os é quasi abjec-
ção: não se vc nada, as palavras dos actores
chegam dillusas, a scena vc-se d'cscorço, e o es-
i)cctador está alll constrangido, mal sentado,
asphixiado, entre os seus companheiros de
iiuirtyrio! É reparar por exemplo no galli-
nheii'0 c na geral de D. Maria, nos des^mis de
baleou do theatro da Trindade, devididos por
grades, das zonas ricas, acccntnando liumilha-
doramenle, no golpe de vista geral da platea,
o seu destino d'estabulo, de coió, d'alberguc
da gentalha, e por isso mesmo contundindo o
orgulho, tão melindroso sempre, das classes
sidjalternas. A verdade é (jue afora os circos,
não ha cin Lisboa Ihoatro onde o povo tenha
o os GATOS
um boin logar. Ninguém fez coiila com cllo,
o o mesmo tlieatro onde mais conviria que o
povo fosse, o lliealro de D. Maria, fecliou-!lie
as suas porias, acabando com os benefícios, que
llie facultavam a enlrada por meios preços.
Tantas vezes se tom tallado na conslrucção de
Iheatros populares, grandes salas ligeiras, cm
ferro e alvenaria, com plateas-/'«»íí)/)\';, pros-
cénios amplos, jardins de jogos, corredores de.
tômbola e salas d'exposições, onde por um
tostão o operário tivesse a sua noite alegre, o
se sentisse o rei, vendo quahjuer bailado, o])era
bufa, comedia-cliarivari, ou drama bislorico
de grande itiise-en-sreiíc. . . — tantas vezes se
tem faltado n'isto! — e nenhuma iniciativa au-
daz inda surgiu para moler liombros este lu-
crativo, ({uanlo cavalheiroso cmpreliendimcnto!
lia vinte annos que estamos a construir e u
desmancliar Iheatros, c lia vinte annos que
archilectos e cmpreza)'ios collaboram na mo-
laucholia negra da nossa raça, encafuando o
publico em salas d"especl;iculo lúgubres, mal
])iuladas, mal illuminadas, com ressonância c
concnles d"ar, uns verdadeiros poços, onde ó
supplicio estar vinte segundos. Digam-me de
thcalro onde haja um fresco ou decoração d'ar-
os GATOS 7
lista verdadeiro. São barraqiiii)has ridiculas,
defeituosos gaiolins com boqueirões de sombra
nos camarotes, sobreceus de nuvens pardas,
a papeis de forrar casas, baratos. Tirante D.
Maria e S. Carlos, cujas salas d'espectaculo
guardam, sob os oiros fanados, uma tal ou
qual harmonia archilectonica, o resto é deplo-
rável, e clieira de longe a falleucia c a tasca
í]ue tem diabo !
Segundo ponto — o publico prefere em ge-
ral os espectáculos cómicos, aos sérios, e sem
duvida c necessário transigir com elle. Mas
descriminando primeiro (jual esse publico seja,
e fazendo a critica dos impulsos inlellecluaes
o moraes d'aqu:lla preferencia. Eu sei por
exemplo que toda a pequena burguezia que faz
de seis a dez horas de trabalho diário, cm es-
paços confinados, escriptorios, balcões, secre-
tarias, depois de jantar, chegada a noite, o
que deseja é divertir-se e tomar ar.
Para ella está pois indicado o espectácu-
lo de circo, com o seu âmbito formidável, a
arena, os ouropéis, as luzes, o tumulto, c li-
Ijerdade inteira de posição, de conversação
8 os GATOS
e loiktte. E eslão-llic iiuliciulos lambem os
theatros de revista, comedia-farça c opera có-
mica. É cila o publico do Gymnasio, dos Coly-
scus, o da Trindade; c o tliealm preferido
será aqueile que ofrercccndo-llie espectáculos
de movimento, ao mesmo tempo lhe consinta a
mais completa e desabusada noncludance. Dar
a um tal publico comedias preciosas, littera-
turas de rcíjuinte, dramas de sentimento e la-
crimejo, é obrigar a pensar esses cérebros ve-
getativos, cuja fadiga é já grande, á noite, por
todo um grande dia de trabalho. Certo, este
lypo d'espcctador é incapnz d'um prazer de pura
;u"te. Não coniprehcnderá as finuras de frase, a
subtileza das analyses psychologicas, a audácia
de certas ironias e de certos paradoxos. Mas
em compensa(;ão tem outros predicados, que
nem por serem rudimentares, desprezaremos.
No seu espirito ha por exemplo uma cu-
riosidade vivíssima pelo entrecho, uma lúcida
critica da coherencia dos diálogos, e uma per-
cepção arguta c irónica das allusões e pilhérias
que vão direitas a alvo certo. Toda a obra de
Iheatro que lhes consiga afiar estas arestas,
pòr cm secreção estas faculdades, será inevi-
tavelmente coroada de succcsso, o mais ligi-
os G.VTOS 9
limo, [Iorque lisongcaiuio asnpíidõcscerebraes
d'unia grande massa, corresponde ijiso facto
a uma necessidade conlemporanea.
O que é uma peça — do costumes, suppò-
nios — que agradou? É a fixação n'inna obra
iilleraria, da media d'opiniões do publico pai'a
quem a peça foi escripta.
Os cscriptores de força c do comedia le-
riam portanto farta monção d'app!auso ás
suas obras (caso existissem, e fizessem escola)
escrevendo comedia e fiirça de puro travo na-
cional— única litteratura que entre nós, de-
pois do drama histórico, poderia ser inspirada
n'um riquíssimo filão tradiccional. Não exis-
tem, sei, de maior fôlego, e os poucos culto-
i-es anodynos do género, uns preferem copiar
os imbroijlios francezcs, a beber nas legendas
cómicas do povo o entrecho d'unia composi-
ção caraclerisíicamente portugueza, cmquanto
outros exorbitam do [lapel de safyricos para
o d'croticos, c descambam da facaceia, por
uma exploração torpíssima, na libertinagem
crua e estúpida, o que é o caso dos nossos
cscriptores de Uevistas c Aprojwailos.
Pensará talvez alguém que eu, fixando esla
necessidade de rir que tem a turba, julgue a mis-
10 os GATOS
são do drama íiada no theatro, c ache os cs-
liiictaciilos dlmajiiiiarão, como a magica, o
])ailadu, c as miinicas d^apparalo, apeados da
imporlaiicia que haviam anligamento? Por cer-
to não. E a prova de cpie aimla lia publico, por
exemplo, com sensibilidade prestes a vibrar das
i'('preseidaçôes di'amaticas (pie bolem, como di-
ria o Ciislovam de Sá, com os grandes senlimen-
los, está nos benefícios do Príncipe Real, cheios
à cnnha, d'espcctadores de blnsa e chapéu lar-
go, nas ovações delirantes que toda essa gente
faz ao Álvaro c á Amélia Vieira, e emfim nos
apupos verdadeiramente indignados com que
cm certas peças é recebido o actor Gosta, ha-
bitualmente investido dos papeis de tyranno c
de cynico, n'a(piella casa d'espectaculos. Es-
tudem a par d'isso a sala de D. Maria, aos do-
mingos, sobretudo indo di-ama de guarda-rou-
pa e situações excepcionaes. É o mesmo pai-
l)itantc interesse c a mesma exponlaueidadc
d'emoção, temperados, claro está, por uma pru-
ilcncia de manifestações externas, em harmo-
nia com a educação c a indole dos especta-
dores (Fosse theatro. Que gente assiste ao
Príncipe Ilcal e ás recitas do domingo, em D.
fiaria? Vm publico certo e sempre o mesmo.
os GATOS 1 I
Na primeira sala, o operariado que lè roman-
ces traveiituras, (pie faz parle ile sol-e-dós e
«ocicilaties dramalicas, que exprime á guitarra,
pelo fado, o atavismo seulimental das luirnii-
des gerações d'oiide procede, e que finalmente
nos comícios da Torrinha, faz ovações ao Ma-
galhães e ao Arriaga.
Na segunda sala, a burguezla rica ou re-
mediada, conunercio cm grosso, mercadores,
fabricantes, lionicns de capital á antiga portu-
gueza, gente (pie tom o seu domingo c (pie o
aproveita, de tarde, a passear em trem da com-
panliia, com a familia — á noite, a assistira
algum espectáculo moral, que sendo possível,
ciisúir alguma coisa. Nos frequentadores d'cstas
duas plainas cncontivarenios som difficuldade,
virtudes idênticas, c necessidades d"espirito ap-
proximadas. K a mesma castidade profunda de
hábitos e d'inslinclos, e junto a um grande se-
rio da vida moral, uma inteira simplicidade (ic
coração. Em ambas, o csiunho romântico (\uc
dizem picar o calcanhar da alma lusa, a cada
instante as precipita na allucinação sentimental,
c ponpic an)l)as guardaram pela vida de traba-
lho, uma h'cscura d'ímpressões quasi infantil,
cil-as irmãs nos gostos d'arle, a plalea de ]ki-
\'2 os GATOS
Irões c a jilatca croporarios, promplas ambas
a SC deixarem empolgar por um ([iiarto acto
onde o fyranuo apanhe a sua couta.
Aiii temos nós já por consequência, para os
espectáculos de ribalta, dois públicos certos,
um que se quer divertir, outro que se quer
impressionar. E estes dois públicos, cujas ne-
cessidades artisticas são fixaSy com toda a cer-
teza so])cjam para fazer prosperar na nossa
cidade, theatros de drama c tlieatros de co-
media.
. . . porém todas as companhias se quei-
xam de ter as suas salas ás moscas, e dos Co-
lyseus lhes roubarem espectadores.
Ueve então haver uma razão venal, uma
razão orgânica c probinda, que desvie toda
essa gente de i)rnzeres para ([ue ella sempre
leve receptividade e preferencia, ['ois o pu-
blico annulor de comedias recusa-sc em mas-
sa, subitamente, a frciiuentar theatros de co-
media? Pois o publico amador de violências
dramáticas, recusa-se em massa a frcfiuentar
theatros de drama? E vae aos cavallinlios, e
vae aos pallineos! Hum! Conheço a multidão
de mais, para julgar (juc ella abdique assim
de gostos lieredilarios, só porque veio a Elvi-
os GATOS 13
ra Guerra para o Colyseu velho, e vieram qua-
tro clepliautcs para o Colyseu novo. Não! as
razões são outras. E vou continuar a esmiu-
çal-as.
4 de Nofcmbro.
Jã fallei dos togares caros, mal situados c
incommodos. Vamos agora ao estado da arte
c dos artistas. Se lhes parece, começo pelas
peças, reservando para a girandola final os
interpretes e os críticos. Todos sabem (pie não
lemos litteratura dramática, e que da meia dú-
zia d'originaes portuguczes que sobem á sce-
na anuualmente, pouco ou nada se dcstriça,
capaz se arcliivar como obra d'arte. Em toda
a linha, vive o theatroportuguezde traducçues,
escolhidas não sob o ponto de vista do gozo
osfhelico que proporcionam ao publico, mas
sob os respeitos d'escandalo pornograjdiico,
de palpite financeiro, ou então por contarem
um ou outro papel que lisougeia os dotes de
tal ou tal comediante. É o reportório francez
liabitualmente aquelle que mais pruridos d'ada-
ptação scenica desperta aos traductores, po-
I í os GATOS
(lendo-sc dizer que não lia peça de voga em
Paris, que não veuiia a Lisboa, em edieão ba-
rata, tentar vida. N"essas peeas, como em to-
das as obras origiiiaes, ha uuia parle typica,
intraduzivei, ipie lhe é alma, e que por sua
natureza intima só pôde ser gostada peio pu-
blico indígena para quem foi escripta (kJ — no
caso supposto, o francez — parle que falhando
na versão, falseia por força o intuito e o mé-
rito da obra : e ha linalmenle oulra parle, cos-
mopolita a commuui, de comprchensão esten-
sivel ás platcas de lodos os povos, onde por via
de regra só conllagram elementos arlislicos do
cathegoria subalterna, como sejam os artifícios
niechanicos do enredo, certas passagens cómi-
cas mais sal, ele, etc. Tomemos para exem-
plo as comedias de Labiche. A platea franceza
verá n'ellas, apar do cuíòrogliu hábil, tinas o
00 Quand on dObirc pOnOircr dans ses sources pro-
fondes une ccuvre drania;i.]ue, il faut tout dabord se dc-
mander pour qucl puhlic elle a Otc composOe . . . Le but
de rccrivain de théatrc, est d'imposer á rattentioa de deux
mil!e per;onnes réunies dans une salle, une peinturc de
nioeurs ou de passions. Mcis qudks mcairs, siiim fi'/.Ví
giie louics ca pcrso;iiies coiiiuiisseiit 1
Taal Boiírget.
os G.VTOS 15
joviaes cxhibições salvricas da pequena bur-
guezia de Paris; a plafca poitugueza porém,
desconhecendo o meio em que essa burgue-
zia espatina, só está habilitada a apreciar n'a-
quelias peças, o embroglio, precisamente a
parte comnium do theatro de Labiche.
Sobe o valor da obra dramática? Ascende-
se de Labiche, a Augier e a Dumas flilio? Cada
vez a parle intraduzível c mais forte e indis-
pensável ao computo critico do ensemhle, c
cada vez o espectador portuguez está pois mais
longe de saborear da peça, o que ella precisat
mente tem de raro e finamente original. Certo,
o Dctni-.Monde agradou á plalea de lidos que
foram ao Príncipe Pieal escutar Lucinda Si-
mOes, mas attrahidos uns pela graça picante
da actriz — os femeeiros — outros pelo para-
doxo lilterario de certos diálogos — os littera-
liços — e que eu saiba, nenhum por curiosi-
dade scientifica perante a palhologia social de
que essa comedia estranha é capitulo e rezn-
nio. A conclusão ô a seguinte. A qnazi totali-
dade das traducçôes servidas ao publico pelas
emprezas dos dilTercntes palcos de Lisboa,
fallece de condições ligilimas de successo, vis-
to como ella nas suas linhas máximas não
í(i os GATOS
íalla á sonsibiliil;i(le moral, ás convicçõPS, ás
lactas c ás curiosidaílcs qiio agitam a cons-
ciência nacional. K um Ihealro a qno se não
prende nenhuma forte corrente de vida indí-
gena, e (jue apenas se liga a nós por um en-
canto episódico dMnstanIe, como sejam a
verve de certos diálogos, o imprevisto de cer-
tos lances, o jogo scenico d'um actor estima-
do, as loileUes d'uma actriz, ou emfim, quem
sabe lá? o portuguez macarronico da traduc-
rão.
Os iillimos annos de iilleralura dramática
franceza tomaram a lei do divorcio para as-
sumpto e mola real de centenares de dramas
e comedias. Foi a tliesc obrigada de jocosos
e d'analyslas, e as liypolheses mais extrava-
gantes serviram d'escora no tlieatro, á famosa
questião, que se por um lado ameaçava a in-
tegridade do lar e da familia, era necessária
por outro á ligeireza d"alma dos francezes. O
divorcio não extravasou porém da lei parisien-
se; de sorte que as comedias e dramas que o
tomaram por base, e que em França tinham
um valor seguro de controvérsia, só podiam
ser apreciadas por nós, como anedocta — o
que não impede os traductorcs de nos conti-
os GATOS 17
miarem a dar divorcio ainda hoje, com Bea-
triz e com Amélia da Silveira, coni Lucinda e
com Pepa, que até admira não ler a coisa ins-
tigado os cabrões da magistratura, a introdu-
zirem no nosso código, aquelia concessão se-
paratista.
Não so exagere entanto o sentido critico
das minhas palavras. Eu não tenho em vista
negar o valor de muitas obi-as dramáticas que
a traducção nos importa do estrangeiro, espe-
cialmente sal)endo que não ha originaes a con-
trapòr-Ihes. Friso só isto: o valor da obra lit-
teraria diminue com a transplantarão, de nove
décimos, e considerado o Iheafro um logar de
cultura para a multidão que não lè c pensa
pouco, o decimo de suggestão artística e pbi-
losophica que fica, nem vale o preço que cus-
ta, nem tão pouco o tempo que leva a absoi"
ver. Mais : a lingua fatiada n'essas obras é uma
coiza aparte, já pela porção da leitura ante-
rior que presnppõe, já pela estranheza intei-
ramente exótica c anli-portugueza da estni-
ctura. Á uma, os traductores officiaes dos nos-
sos palcos, sempre os mesmos, assegurando-
se primeiro da benevolência dos jornaes, raro
í' que ponham n'aque]le seu ganin-pão, gran-
18 os GATOS
(les piirismos, que nem a educação lilleraria
lhes pede, nem a inerceiiagciii da tarefa Ilies
comporia. Á outra, a natureza essencial dos
personagens de muitas d'essas peças, exige quo
ellcs, estrangeiros por sangue e por caracter,
nem por um instante percam o sulaque d'o-
rigeni c deixem de fallar franccz, mesmo em
portuguez, só porque á ultima hora o Seguier
ou o Gervásio foram a Paris engajal-os, para
a colouisação dos palcos alfacinhas.
Entre o traductor c o aucíor, dar fauteuil
ao arreglador, um grande lypo! Faltamlhc tal-
vez recursos creadores, mas nem por isso os
seus pruridos d"auctor são menos vivos. Acha
que tiaduzir é uma habilidade apenas infuna,
e incapaz de produzir por si, eil-o se lança a
abocanhar no que é dos outros.
Para este homem todas as peças estran-
geiras parecem crivadas do defeitos. Então
emenda-as, cortando aqui, juntando além, até
que o todo ganhe a seu vèr, uma physionomia
arlistica apresentável. Chama elle a isto, arre-
glíir. lia verbos gajos ! Einfim, lá sobe a peça
á scena. Dos bocidos bonitos diz o arreglador.-
os GATOS id
são moiis. A,'.'ora os bocados inassaníos, iiiiu-
ca SC esquece (rcxplicur ({iie são — do outro.
6 de Novembro.
Os originacs.
O divorcio entre os homens de Icttras c a
vida nacional é cada vez mais profundo c ir-
revogável, porque mercê da sua educação es-
trangeira, do baixo nivel mental que os cara-
ctcrisa, os homens de leltras ou derivam na
imitaç.ão servil das obras que amam, ou fa-
zem obras que pela falia d'opportunismo e de
seiva, não conseguem captar grandemente as
curiosidades da multidão. Vejam-se as gera-
ções lilterarias actuaes.
Os escriptores que pensam e escrevem por-
tuguez, não lêem talento. O resto, apezar dos
seus recursos, gallicisma e escabeccia. A edu-
cação geral é deplorável, e a profissão liítera-
ria, passando a ser um logar de passagem para
a burocracia, tornou-se numa espécie de va-
diagem encoberta, para onde o transeunte deita
olhares oblíquos, e onde só se demoram os
incorrigíveis de qualquer outra vocação.
20 OS GATOS
Ilcsiilla iVisto sor a lilteralnra feila por
curiosos, iiicrcõ das exiguidatlos do salário, c
da perfeita al)jec(;ào que é viver consagrado ao
mesler de plumitivos. A consequência natural
d'esla gafeira é os liomons de leltras d^officio
liquidarem, por falta de procura e d'c3linia
puljlica, em baixas iocubraçõcs servis, para co-
mer, como sejam fazer diccionurios, Iraduc-
ções de compêndios, e livros pornographicos,
c é a arte ser exercida, nos intervallos da re-
parliofio, por uns estheticos sonand)ulos, que
aos prelos trazem as mazorrices fundainentaes
da manga de lustrina.
De sorte que ás insufficiencias liercditarias
que sempre fizeram de nós, como povo lille-
rario, uma ramificação somenos do espirito
europeu — insufficiencias d'imaginação, de gra-
ça espiritual, de saroir faire — ^,j un la m-se agora
Iodas as deploráveis ignorâncias e obseca-
ções da epoclia moderna, sendo no thealro on-
de a nossa lazeira artística mais frisantemcnie
se patenteia. De feito, não temos peças que
valham, porque mesmo quando lá fora o Uiea-
tro eslava cm plena efflorescencia, nós nunca
soubemos encontrar n'csle ramo a formula ar-
tística condizente a u;enio da nação. Sem du-
21
vida houve tenlalivas avulsas, com (jil Vicen-
te, António José, Garrct, e poucos mais, mas
são óvulos estéreis crarte, que o talento dos
contemporâneos não choca, c que pelo tempo
lora jamais conseguiram propagar-sc. A verda-
de c que das quatro formas d'imaginação capa-
zes d'impulsionara arle do theatro, a forma dra-
mática, a forma romanesca, a forma luimoris-
lica, e a forma poclica, nós possuiremos quan-
do muito, a ultima, e n'um grau de sonho,
antagónico da acção requerida pela litleratura
de proscénio. Emquanlo essa imaginação poé-
tica bastou á illusão das plateas, c foi de mol-
de aos princípios d'cscola a que a litleratura
dramática obedecia, inda ha trinta annos, lá
podemos dar no tlicalro uma ou outra nótula
artística aceitável, e ahi estão peças de Men-
des Leal, de Ricardo Cordeiro, de Chagas, etc.
que dada a cultura lilteraria do tempo, não
deixam cm mau pé a minha observação. En-
Ira-sc depois no periodo moderno, c como
é a sciencia a ideia mãe (jue predomina nas
differeníes applicaçòes da inteiligencia, não
pôde a littcratura d'esse periodo deixar de ter
uma característica scientifica. O gosto da an-
notação exacta entra portanto na obra dos es-
22 os GATOS
criplorcs coiilemporaiieos — fallo agora só dos
estrangeiros — que assim approximam da socio-
logia o romance ile costumes, e da psycliologia
o romance d'analyse. Gomo o tlieatro foi con-
siderado sempre uma pintura viva de cara-
cteres, pareceria que eile devesse acompanhar
u'esle novo período, as outras expansões da
arte d'escrevcr. Mas não tem succedido assim.
Kutre os escriptorcs do livi'o e os cscriplorcs
de palco, uma divergência medeia, intranspo-
nível, c a evolução sclenlifica que fez do ro-
mance a mais triumpante expressão llttcraria
do nosso tempo, ao topar o proscénio estacou,
o não foi além. (b) D'aqui tem vindo cscrc-
ver-sc que o tlieatro é uma escola morta, unia
arte mumifeita, que está a viver de recorda-
ções e de curiosidades, e cujo audjilo não cor-
(í<) t'Lc théátrc, lui, est a!lc se rctrccissant de plus
cii plus, niultipliaiu á rinfuii !i;s comWiiaisons d'un tout
pctit nombre do typcs une fois découveits. M. Dumas fils
mis d part, comme un novatcur que nul n'a suivi, tous
les autres auteurs n'ont su, avec cette forme rebslle, qu'éta-
blir des ceuvres de psjvhologic moycnne, comme Ic
Geiídre de Aí. Poirier, ou qu'aboutir á des soutcnances de
théses e d des escamotages de scéne ...»
P. Boiírcel.
os G.VTOS "-23
responde mais ás necessidades arlisíicas da
epoclia.
Se isto é proplietico, não sei. A persistên-
cia do tlicatro na phase romantico-caduca de
ha trinta annos, emquanto as artes similares
fructificam c sasonam em pleno naturalismo,
pôde ser apenas uma parai ysia á friíjore, tem-
porária, sem cansa aírophica incurável, e re-
sultante talvez d"uma baixa intellectual que
pôde ser remida pelo apparecimeato d'uma
camada nova d'escriptores, e também um
pouco das difficuldades d'adaptação, passa-
geiras, dos novos melliodos (Kescrever, á lit-
teratura de Iheatro, que quando bòa é a mais
melindrosa c artificial que se conhece.
Transporte-se agora o sentido das consi-
derações que vem de Icr-se, da littcratura dra-
mática estrangeira, para a nacional. Eu já
accentuci a divergência mortal que existe en-
tre os nossos homens de lettras, e o publico;
já insinuei que nenhum de nós, escriptores
contemporâneos, tem a faculdade d'apaixonar
a gente que nos lè, ponjue sobre pouco pers-
picazes, somos ignorantíssimos, e quazi todos
vivemos ilc reminisceucias francczas, e de
leituras de coinmix voi/ngcur e de coívlle. E
mais escrevi, (jiie das imaginações rc(|aeridas
para o Iheatro, só possiiiainos a poética, e essa
com um caracter de dormência pouco adaptá-
vel ú energia d'ac(;ão (|ue a littcratura di'ama-
lica reclama. Hoje mais do (pie nunca o Ihea-
tro reíjuer vivacidades que nós não temos, c
uma intensa vida psycliica de que a nossa pre-
guiça cerebral nos prohilje de ser interpretes.
Ilomanlica ou experimental, toda a peça de
thealro carece dlnipeto, de concisão laiscan-
le, e d'in)placavel lógica. Nem uma scena a
mais, no conjuncto das que a carpiuteria do
mcticr impòz ã rápida evolução de todo o en-
treclio. Nem uma palavra a mais do que as
necessárias ao desenho incisivo dos persona-
gens. É um problema d'algebra social que se
resolve, (rj
(c) «... rinvention et rimagination Otant inutiles
au théàtre, la qualitO que Dumas fils estime par-dessus
toutes, celle aussi qu'il a au plus haut degrc, c'est la logi-
que. Realiste par le clioi.x de ses sujets et par la fr.-i.nchise
avec laquelle il Ics traite, il nc (.úx aucune eoncession au
réalisme dans tout ce qui releve de la coniposition drama-
tique. Les théoreciens de je ne sais quel «théàtre natura-
os GATOS "io
Arreda pois coin as divagações e as plira-
ses vagas ! E agora digam-me : c esta unia
arte em que o escripíor portuguez jiossa bri-
lliar ? Queiram espalhar a vista em de redor.
Onde um homem d'acção, entre os que escre-
vem para a scena? Somos todos apathicos.
As difficuldades da vida, o sedentarismo ane-
mico, a preguiça do clima e o sccplicismo ri-
sonho dos costumes, transformaram, em qua-
tro séculos de decadência histórica, os portu-
guezes indómitos d'outr"ora, n'uns molluscos
liste» lui reprochcnt de mutilcr Ia rcalité pour renfcrmer
dans un cadre artificiei, de construirc ses piéces commc
des théorémes, de monter, ainsi qu'on fait uu ressort
d"horloge, des personnages qui niarchent, agissent et par-
Icnt en automates . . . Mais, si la vérité ne peut être abso-
lue, il faut que la logiquc soit rigoureuse, et nul auttur
dramatique n'a été plus implacable logicien que Dumas.
Pourquoi doniie-t-il ie conseil de ne commencer sa piéce
que lorsqu"on a la scene, !e mouvement et le mot de Ia
fin? Cest parce qu'il considere cette fin comme un but
que Tauteur doit poursuivre dés Ie commencement. Au
départ mcme, il a les yeux fixes sur Ie point d'arrivée ; il
va droit son cheniin avec une rectitude inficxible sans se
peniietre jamais ni haltc ni dctour. Ce qu'on appelle sa
bruialité, c"est sa logique mênic.»
Ccoixes PclUssier.
26 OS GATOS
timidos c doces, n'uns seres de contemplação
e reflexão, n'uns homens que perderam a som-
bra, e que a procuram, olhando constante-
mente para traz. Pesa-nos sobretudo a cons-
ciência de que o nosso reino já não seja d'esto
mundo. K com islo, a energia foi-se, na vida
do corpo como na vida do cs]>irito, na circula-
ção do sangue como na circulação das ideias.
Somos como uns animacs domesticados,
uns seres de hábitos certos, com horário p'ra
tudo, c faculdades que duvidam, c hesitações
c visões que liypnotisam.
É esta a razão porque d'enlre Iodas as for-
mas litterarias, decahidas cm Portugal, pre-
sentemente, só o poema lyrico conserva uma
certa fragrância de flor fina, pois que elle é a
única que pôde servir d'cxpressão ao nosso
Immielismo ondeante de hoje, e que se com-
praz co'as meias tintas de sentimento e sensa-
ção que nos agitam.
O ({ue ha-de então succedcr? l!a-de succc-
dcr que todas as nossas tentativas dramáticas
falharão, e que nenluuiia pôde ficar archivada
como um solido specimon de génio litterario
porliiguez. Aqui e além, nos intervallos da
niadorna, o espirito publico inda desperta, é
US GATOS 27
certo, cm csfiísiadas d'ironia, e se fossemos
a recoilier do filão liumoristico da turba, a
dose de cliarge em que ella irrompe ás vezes,
contra quem lhe sonega a felicidade, haveria
matéria em barda oom que escrever come-
dias deliciosas. Mas os nossos escriptores de
comedia cada vez estão mais longe da alma
publica, e por demasia occupados a urrcglar
do francez, p"ra que algum se lembre de vir
encher o seu cântaro, ao manancial do riso
indígena, (d)
Passando da comedia ao drama, a colheita
ó safara ainda, e as causacs da sua decadên-
cia permaiiecem, como para aquella, intrans-
niutaveis. É a mesma escacez d'aptidões nati-
vas, sublinhada pela mesma ausência de cul-
(d) Xão perco e.-perança de ainda n'este mesmo lo-
gar estudar o humorismo critico do nosso povo, depois
que tenha recolhido elementos completos para um quadro.
Os que se perniittem sorrir quando lhes digo que
n'um caflfj de Upcs, aos sabbados, ha mais senso cómico e
caricatural do que o que n'uma quinzena se recolhe, por
todos os centros litterarios de Lisboa, reconheccnâo depois
como é justificada a minha preferencia por esses reihh'1-vons
de plebe que rifoita, e cuja larga improvisação não ici^
ás anedoaas do jornal francez lido na véspera.
ídiS os GATOS
fura litíoraria c pliilosopliica. Aqui vem jun-
lar-se ás (juaiidades negativas ila raça, lodos
os prejuízos que uma errada educação junjiii
ao meslor d'ar(isla c homem de leltras. Para
a factura do drama, iiús não possuímos sequer
a liaijilidade mi.'clianica da intriga, isto ipie os
entendidos ciiamam a inuininiidn) dos espaços,
que é o poder d'evocar as tai)oas do proscé-
nio no momento de se estar reaiisaudo a obra
tiramatiea, e assim o de regular as idas e vin-
das, as entradas e sabidas das figuras, a ar-
diifectiira dos grupos, e a dislribuição symc-
Iricadas scenas, pelos actos de sorte que, como
<liz Dumas fdlio n'nm prefacio, a marclia da
peça seja «uma progressão malhcmatica que
multiplica a scena pela scena, o lance pelo
lance, o acto pelo acto, e que se cbegue ao
desfecho, como a um producto inexorável e
fatal.»
Tam pouco nos podemos gabar da nniKji-
niirão dos sontiniciilos, esse supremo dom de
creação psycologica, que faz com ((ue o ro-
mancista ou o dramal(U'go encontrem sessenta
ou setenia formulas diirerenles para expressão
piclural d'um mesmo sentimento ou movei
d'acção interior. Por exemplo, as amorosas do
os GATOS -1')
Dumas, no ruiulo filhas do mesmo sentimento
impulsivo, comtuilo travesfem entre si expres-
sões dramáticas antípodas. lialzac tem na Co-
media Humana seis ou oito avarentos, cuja
revestidura exterior lhes tira o pareníescct.
Onal é ahi dos nossos dramaturgos que veja
um caracter, ao tractar do pôr em sccna um
manequim? Hasta analysar o dialogo d'uma
peca portugueza, para se advir na completa
uuUidão d'essa litteratura de cordel. Ou esteja
cm scena uma adultera ou uma virgem, um
industrial ou um embaixador, é sempre o plu-
mitivo (juem falia por traz dos seus fantoches,
em termos dos actores poderem trocar os pa-
peis, fazer a adultera d'cmbaixador, e o in-
dustrial de virgem, sem que a catastrophe fi-
nal perigue, ou a verosimilhança da acção
sofTra enxovalhos. A par d'estas irremessiveis
lacunas, tod'as as que já citei um pouco atraz.
De não termos imaginação dramática (teem re-
parado que eu chamo a tudo imaginaròes. A
palavra não faz, e se lhes aprouver, subsli-
tuam-na) resulta incorrermos não só na in-
capacidade de carpintcjar o entrecho d'unia
peça, como disse, mas ainda na de nos faltar
lucidez para intrometter figuras concebidas
30 os GATOS
iriiin propósito de satyra 0!i de tlirsc (pois
(]ue cu não comprehcndo dramas de simples
passatempo) nas trez ou (juatro sceiías mães
d'essa obra dramalica, isto sem as falsear da
sua psychologia originaria.
O que iia-de pois resultar?
Resulta que se juntarmos ao que íica dito,
o facto de muito pouca gente entre nós, escre-
ver prosa limpamente, e de ninguém ter na
phrase a maleabilidade, a magia gravada, a còr
justa, a aresta, requeridas para a pholographia
d'uma alma, atravez o dialogo scenico, tere-
mos de nos desiiludir quanto á possiliilidade
de ainda vermos a litlcralura nacional na con-
(|uista do drama contem[)oraneo, do drama
d'analyse, da vivisecção social sangrenta c pal-
pitante, d'esse drama para (jue o periodo
scientiíico moderno inda não soube acliar cm
França a formula precisa, se bem que haja
vestígios d"eHa já na Parisieitne de llenri Dec-
que, na obra de Dumas filho, e n'uma ou
ii'outra comedia d'Augier. fc)
(t) Propositalmcnte me eximo á citação das ultimas
peças ponuguezas d'este género. São pueris tentativas que
bó servem a dar justificação ao que escrevi.
os GATOS 31
AVISO
Mas por desgraça nossa o espaço acaba, e
porque a questão seja frisante, e não conve-
nha deixar passar nem um só dos seus quesi-
tos, reservamo-nos fechal-a no próximo fasci-
cnlo, pela conclusão das nossas notas a res-
peito do drama lyrico e do drama histórico,
e por um inquérito meudo ao jogo scenico
dos actores, e aos processos da critica jorna-
lística.
Terão quando muito, n"um circulo dMntlmos, quero
crer, valor de curiosidade local, elogiavel ; mas não inte-
ressam. O publico quer obras que lhe saccudam os nervos,
que lhe sirvam p'rá vida, que lhe dêem sobre alguma das
questões contemporâneas, a opinião que ninguém se atreve
;i dizer, e que no entanto cUe sente fluctuar no ar da epo-
cha. Obras emfim que lhe sejam tão necessárias ao espi-
rito, como o vinho e a carne o são p'ro corpo. O qiCcst-
cc que cela prouve ? d'aquelle espectador da Alhilie, continua
a ser o carrasco feroz d'estos cscriptores especiacs de peças
abstractas.
FIALHO D'ALMEIDA
OS GATOS
PUBLICAÇÃO SEMANAL,
D'LNQUER1T0 Á VIDA PORTUGUEZA
SUMMARIO
A CRISE THEATRAL — CONDEiNSA-SE O QUE
FICOU DITO NO NUMERO ANTERIOR, E APPLICA-
SE A RESENHA AOS ESCRIPTORES DE DRAMA
HISTÓRICO — PREFACIO DO Civnwrll, SANTO PA-
TRONO DOS NOSSOS POETAS DRAMÁTICOS — A
DRAMATURGIA HISTÓRICA NA EDUCAÇÃO DA PLA-
TEA PORTUGUEZA — QUE MINA D'ASSUMPT0S TRÁ-
GICOS E CÓMICOS É A HISTORIA DE PORTUGAL !
— EM QUE SE OFFERECE AOS POETAS DE TALEN-
TO, ALGUNS PLANOS D'oBRAS DRAMÁTICAS, E
SE PROHIBE AOS POETAS CHILROS DE TOCAREM
NO GRANDIOSO DESSES PLANOS — O QUE FALTA
/.(!J}|f/MGKiW$!J/
ApS NOSSOS. PPETAS DR^.MATICOS ; PREDiCADOS
OBtÁw, eVreLiCA^OS PART^CUL^^a^H^I, |RU-
DIÇÍO ÍIISTORICA.-BE CaÍiA(ÍTER PROI*RIA»rEME
ARTÍSTICO — II, VISÃO DO REAL ÉPICO — III,
FALTA D'ESfYLÓ'''Í^fÍ0Í^ÍÓ 'r>C>á ASSUMPOS, E
INHABlttóAbè DÊ éoSlMoVER ' fe D^InViJRESSAR.
,,ivi .,i. M,rni,.„,7 oí, |K'.. ir 7
01>lAMMUd
a;jy o aa-AH/.a(iy:o:j— jAfiTAairr ãf.ui:) /.
-/.nijTiA :•! ,jioi>iaT/;A oiiaiíj/: or. otig uooi i
/.KAíia aa ^siiovuirMH aoA /.H"(^a?:a/i a a?,
/■i otv:a> \' .w„> ., ^ ou oi:j/.H3>n — ooihot-iii
/ 'Oii :ít>q íoíísoi^ ?oa o/;o/ir
-/..l<i /.(i ii/,i/ .jM.i / r. A.'Un(n>ílH AIÍ)a'JTAK/!l(l
-AfiT«0T'n(!j«HA'n A/.iií a'jo — /sajairríioq /:ii'
r.iAOjTíio'! aa AinoTi^iii /. .i sooiítoo a f!(oi;i
-y.Ji.iAi aa «ATaoq f.»/. :i;)aHa'i'io m ano lía —
a .^A.dTAMAfla ÍÍAJIfl0'a HO/JJM ?í"/!UíUA ,11 1
u:inA:»OT a<í ^nn.mi:) íiAraoo 80a aaiiio;M rv.
' i I' i I •' i'i «aaíi3'a (i-^oia/i/fi;) o/;
iiii;iii!Í'i .'■.(!jii'jiiii)ir>. ;-.c[> (ií:;>,iií^;);uii t. ).;ii)i^.
!' ') ,(i\wiu!>'f) f;iiiJi;!','}lii í;miJ r:vj í)ij|i oIíÍj
■liilid flIOt) •ltilln!)r;'j[) (íllflifi f.'l'1(lr!0J: ínilllll9ll
II li ^o)i9(]fiTi ao doíí ,K.7tfj »;niii'íi oíii;I(] o
'i;«iííiono*j'^ 9111) f.Kíuyj?. 'th o!(i')ni(;sin')!ViJfif»
■ !o li (ií'ininl^'ii)]j!.ié; .í:íioj2i;ii(i>/j')(| ;> >íril'>i;l
/Q 'ae Novembro. , . . . ',
; cdidir/i r. ,(),';-)-ii; f;il ohfIirf!!ti>(Jf(H 'i .'IBllol
'>Uí;l!Jii:L;il"i-iq );<u'iiJlii')yn.i; .'il-ii; iJ. iJiii-j-iLl
Pode ser que, o leitor inda se; lembre do
mic no numero anterior dissemos, a rospoilo
dé dramas e dramaturgos pMrtiiiiuczrs. Tiuíia-
riios asscidado em (jiie fallcciam iias nossas
íícracõcs contejnnoraiieas ahsdliUameutc os
requisitos , qiie . a litteratiira dramalica de-
líianda, ,com(j!ç^iido pelos congénitos, e al)nin-
Íjendo depois todos áqueiles que a educação
iUej'aria e piíilosopliica pódè dar. Tinliamds
dito, por exemplo que o theatrò era lima liíté-
ratiira (í"ac(;ão, e que havia no caracter poilú-
guez demasiadas quebreiras e besit^ições [lara
o dispêndio da energia nervosa que essa liltè-
raLura e^tá pedindo- Tinbamos dito que era
una^ jfjier^iui;^, d'm^^ly,s^, tanip iflais fina .ijiiaii-
4 OS GATOS
to mais perto estávamos da phrase moderna,
e que nenhum dos nossos dramaturgos pos-
suía a imaginação dos sentimentos. Tinhamos
dito (pie era uma litteratura (Venredo, e que
nenhum soubera ainda desenhar com nilidez,
o plano d'uma peça, sob os respeitos d'um
entrccruzamento de scenas que ecouomisasse
factos e personagens, sequestrando a obra
quanto possivel das unidades de tempo e de
iogar, e substituindo na acção, a escolha re-
flectida da arte, á aventurosa prodigalidade da
natureza. E pondo em evidencia por ultimo,
as qualidades de concisão e abreviação que
toda a obra de theatro requer, para ser fulmi-
nante sobre o publico, explicámos — confusa-
mente embora — que a qualidade discursiva e
superabundanlemente relhorica dos homens
de lettras portuguezes, os inhibia de juntar
este requisito aos demais, citados já: defeitos
estes que ainda se agravavam pela falta de es-
tylo, e por um deplorável afastamento de to-
das as coizas que podessem bolir com os in-
teresses, alTectos, e propensões naturaes da
multidão.
Todas estas lacunas inhibiam por conse-
quência o thealro portuguez de se lançar no
os GATOS O
drama <^xperimenlal, que Dumas fill)o prose-
giie, ha longos ânuos. Vamos agora ver o que
se passa dos lados do drama histórico e do
drama lyrico, de que Ioda a gente por hi se
acostumou a saudar a rcvivixcencia. Este gé-
nero de drama, pela maneira porque usa en-
tre nós ser encarado, é fdho adulterino do
Eraani e da Torre de Nesk, e primo c'o irmão
do Severo Torelli de Copée, e do Drama Novo
d'Echegaray. Deriva do prefacio que Victor
Hugo pòz no Cromwell cm 18:27, e participa,
é natural, das pretensões sob que o roman-
lismo faz a sua entrada em bastidores, isto é,
deciaraudo-se «o liberalismo na arte» c dando
a sua palavra de honra em como vinha «so-
bresaltar as multidões, e alanceal-as nas suas
mais intimas profundezas.»
Poucas formas litterarias conheço tão ca-
pazes como esta, de levar empóz si o publico
portuguez, se os dramaturgos e poetas que a
cultivam, sabido houvessem, por via da arte,
enraizar a paixão da historia (isto é, o passa-
do) no coração d'um povo, que sem futuro, é
para o passado que se volta a cada instante.
Para mais, a historia portugueza é um inex-
haurivel jazigo de minérios preciosos, um
os
i"(ÍÍtoí;'
nll
mundo emocional riquissimo, uiidc tuilas ;is
fibras da alma liiiiiiana poileiifMir achai' scír
excilantP, das poéticas ás perv.érsas, das cpi-'
cas às grolescas— e todo esjç colossal nu liil Tm i
de gemmas e carbúnculos, isoladít nocaniiin.
á espera de mineiros e lapidadores shakc^pc i-
rianos (jue talhal-o saibam, resuscítaiíd(V u'y.
alni;( de cada jóia a i)órçâd (]e* íí/í-í/pW '(j^íe
lodos, os cyclos lieioicOs enceirani! '■■"^ '||'
Otie tragedia não tiraria um arfisla-(í4' 'ge-'
nio, ])or cxeulpló, (la leuda de IgnfzVftíTlastrH,'
visionando-a á luz de faculdades pAychIcas bò'iii'
robustecidas d'èru(riçãp ' histórica, e ííos S>e^
gredos essenciaes do ■)«e</cr.' "Ou*- ^^'ííii/eiidH'
ávi\mi\ se arrancava d;V jornada 'á^i^íii' galeão
poriuguez, de voita da líidíaT ÈyW \1dá do rei
D. Fernando i, da vidado infáiitb b.^Henriíjne
em Sagres, lociil»rando uíivegaçAeS e sciencia
geograpliica, indiUereule á^ luCfas da piolitreiV
intestina — da mocidade de J). AfToiis'd"v^'.'díisi
vidas de Damiabde Góes, ■de'nir Vice'nt(\"d'e'
Camões, de D. João ii e de 11. João ni. do
cardeal rei, ilo prior do (a-alo, de I). Seiiasllão
é (íe ÍJ. Miguel, (piantos Míagniflcos 'qiíadróy
(Í'e destino' ánfiôrósò,' d'íntriga jexnilfcari^t^We-
de corte politica c avenluieira, de vida tj-agicli,,
os GATOS T'''
roicidaiie c de canalhice, soterrados na nieia
luz cjyptoganiica dos clironicons e dos banaes'
panegyricos, por carência de escriptores (pie^
desdenhando a gloriola annual' d'iinia' pêi^ái
mascada a correr,. em alexandrinos occosvipcí^'
los nctores de D. Maria, se atii-as8emí'furrosâ'A\
mente á compulsa da sciencia histórica, nier-*'
gulhando annos de vida nos ai'ohivos,e forjando^
emfim os seus elíeitos the;itraes n'tinja des«8Í-'
perada procura do épico real, sangrento áè'
humanismo, latej<\nte de febre pátria^ que!
desbridasse largo a inércia publica, iíido até''
aoiamago tia emotividade sentimental que dia i
6' noite está a ardei' cm nós, homens de nosri
talgia, como uma votiva lâmpada aos deiisesi
idosli-Ora, perante laes assumptos do quadròvi
uma restrict^via feJe impõe antes de tudo, e vèm
a ser, que quem entre nós houver d'abordar ^o
drama histórico, necessita primeiro de ter os re-
cursos-que eu venho de^ negar aos esciiptoréSi
queime- consagram aos outros gíeueros, .drâma^*.
tioosí e nece.ssita. depois ter outros ' que leiine»^
g(>'desde já aos que.se. Icem consagrado a es^i
tevgeii«ro. íPoif.exemplop nijuiil^n--. ■>!) oíjvhkj i,
!,-li.ii^i:;) .:|.„.,j s><'t ;>ir.(j<i[, •|ft:<Hr.inB ^i .oi)
-!iw .., ,aoq'i03 ííi'«
8 os GATOS
I — Não se concebe um pintor de historia
sem erudição histórica, já não digo scicntifica,
mas d'uma natureza artislica suprema, (pie ha-
bilite o pintor a integrar os i)ersonagens do
drama no meio social que cl|c evocuu, e a fa-
zel-os fallar e pensar ao tom da epocha. Não
se comprchenue o infante D. ilcnritpie em Sa-
gres, modelado pelo Luciano Cordeiro, na So-
ciedade de Geographia: nem Vasco da Gama
chegando da índia, a bordo da nau 5. Rn^iliael,
modelado pelo Marianno de Carvalho, chegan-
do de Moçambique a bordo do Mulaiuje. Fazer
um drama histórico não é dialogar sem crité-
rio, tampouco, uma lenda de chronicons, e
pòr-lhe por figuras manequins d^ateiier, enca-
bellados de postiço, e a dizerem de si mesmos
— Nós cá, homens da Edade Media! . . Fazer
um drama histórico é alguma coisa como ir
aos craueiros dos templos e dos claustros, aos
palácios soterrados pelas convulsões dos ter-
remotos, aos galeões calcileitos pela salsugem
dos fundos do oceano, aos armoriaes e aos ar-
chivos, e descriminar da poeira dos secidos,
a porção de sustancia que ficou d'um cerlo cy-
clo. E amassar depois essa poeira, moldal-a
em corpos, nos corpos fazer almas, que vol-
os GATOS y
(em a soíTrcr e a amar como na sua passagem
primeira pola terra. E esses corpos creados,
vestil-os por maneira que elles nem um ins-
tante duvidem da contemporaneidaile perfeita
dos trajos ((ue lhes vestiram, brocado ou fer-
ro, capacete ou gorra de plumas... E essas al-
mas creadas, sondal-as, perguntando-lhes as
coisas (jue as lancinam, os amores ijue as ba-
nham, e as gloriosas violências que as impel-
lem. Vac, não ficar por a(pii, porque isto só
seria nobliftcar figuras, que mesmo vivendo
em e[)Ochas heróicas, certo que deveriam ler
mantpieiras como nós, posto d'outr'arte. Isto
só, seria sacrificar a realidade histórica a es-
se ideal de harmonia nobre, pomposo e au-
gusto, (jne domina a tragedia clássica, esque-
cida. Não ficar por aqui! mas fazer o claro es-
curo dos personagens, forral-os dos vicios e
dos ridículos com que a historia os explica e
faz humanos, apeando-os de deuses a homens,
nos intervallos em que elles não forem domi-
nados pelas paixões que os fizeram celebres.
Vão dizer-me talvez que isto é o prefacio do
Cromwell de Victor Hugo, junjindo o grotesco
ao trágico, e suppondo que uma tal alliança
basUiria para assemelhar a arte á vida. É o
11) 08 0ATO8'
fMTCiicio i\oCr6mn<cll, uujas igrandôB liiilias'
fiindameiítaos, coiitimiaiiT: a.sor aiuda as taboas
lia l(íi (lo drama irislqj'ico:«' K» prefacia do,
Cromwell , <Á; mas apAiresoeiílado [jelas explaaa-
ções d'Alfm1a íie;Vi}iiU''<(iutí! exigia que «a
adção draiiiatica arriístasseeni volUi-do si, liu'-
bilhws 'tio ftic.tos^) C' j aucrésceiUado mais [tei^ ^
aspii'a<>ão critica 'do SainteiBonvCíque; queria:
stíntir im draiira, ■«■^VTfKdtidào» e uma acçãâi
mnitifornip; COTH anv voca})ulrtrio niuitiftymie. :
e' irlleréssos ;e p.tixõeB lão^ coiítplnx-as como ias-
qtit? se rtos- diiíparam na vjd'a; a catkMpas^o. : .'
' ' ' Isto ditO/ 011 tresíiKímoí!; assum ptos da monUi
dos- rfiie'Se empilhiitn na historia portugueza,
aOS' dramaturgos roíiMiros ffnc por iii iia. A
vér'0 que 'ftllBS fazem ! Digamos aos coiUaoio*.
res d"al(txandriiv<)s que^por lii ti,Mgedi;uaíi liis-^
tOria pátria, tergiversam iim pouco <la arte
eplHMíiera de fazer ínèver barbaras e peidoiras<i'
sob titulos de.' i^ei» ckle rainhas;, n'uiri j)iiosce+'
rrio em cujos IjuKtitibres, fantodiesi soibenos
se encarregam dé lhes dar- as dMxhs, e de
proeiíclier WKs ■ vastos^ d'uiu;* acção dramática '
uniforme e tnonocíordiaJ '< Exijainos^lhes' que*
ríos ■ dêem ' licMíoes dej ■ cal^nep i saugue, ^doifica-
dios iemborai. peias nobidbsidados liomprieaKdao
leseuJ.i, nimas cpie sejam a- syh'the'8é'tli(i'tíylíln|
sbciíil (Itniifo de (fíie foram' e^-ocaclas; tiiim;<^''
hefoicòs (iVmde lampeje o Pspirito d'^ssí\>i' tld^-
s^cts epocliri!; guerfeiraS,'d<?boxadas, oh aiiio-
rôsas' d'oiitr'ora: c apar de'ttidò a /í"ww7>íW'í<^'
flriSpt'-ia de badafypo,' é eSSa' j^islapo^iràa do
p(*í[iipnn no líraiide', efnfííYi',' ifi'i^''i"e'zos 'pérsO'-
ífágtMis verosimisi e' dá ínfliiSíb d(y'(-ehribcaT,
ú\ú6-à ai-te ÃiisceptiVt?! d'aliirda' 'tkWi>' Mh-M* 'êd
g-óiiòá plíteíiportugiimi. '■''■'*■'' '' •''"""' '"'•'
^f''"'(í«è!!"^ói^''ilatí'!à(llváiti^'(iii'é và'fei'ía •iv\SetííV
dÚh^rm-^WwTAii iifis^{iJò'tàb'bélla, aIjíWiVs .iií4
n(<i"de' Vidíi lilter-ín-ía'?' Nãò"átiíiàill''(iue 'é obri-
g:i(:fíd!d;\ cntcajusticéflt; Ò'tev1tál''fíiie1tomen9
sétk'-talcMito;''iieiii''^ííUido';'«lio{íatíhefri''<^sílitrt^'
pWs'srtbre que Vlí^ pO(\êii\ tóv Visdéstil-aiidioJ'
sítív resiu\c>^encias gMiiiies^jeViXi^cÉíçfyèííiriísttí''
ric^s^'mai;iiincas?' "'■ "'' ■''"'"''■ " ^''" '■''■"''''
N5'o roiíiíiMiértH'érir íjlie-tiStt^ágaH-iJÒííi 'tirfW
tV/i'iiv^dia iiiá, -env séii^ íiilfVliiííiíif^irtVtlií^rted^, 'iiW
a"!í^iiiinptr) da pujan'^.ft''póf''e5íèmplo'drt'i'éhiãd(y
do'(!àWr(íà'l; 'd<í'vrdh'(fó iíífrthtè''I>i'1leiinirtii'er^^
d'AiYonSo b 'goMÒ: e ''(íe ' PèdW"b''fcití',' .''■^iWi'
t^fíVne tâiV bedirtiido, iV í;i(r dírart^ tbihd á 1';»^
c^dâ justiça á libklinosídadt* ffiie^lnft fafcino-
Il2 os GATOS
rain olliar a serio para alguma tTcssas peças
históricas (iiio I). Maria (tiin levado, dopoisdo
Al fuymne e do Frei Lui:. Em prosa ou verso,
com mais fogo ou menos fogo, mais brilho
ou menos brilho, acpieilas obras são — certas
passagens do Aljhitso VI exceptuadas — como
uns melancólicos frescos lunebres, com figu-
ras (ie lado, que teeni as mãos espalmadas
como as primitivas pinturas dos egypcios, o
ollio mollc, a bocca hiante, trágicas e terri-
veisnão do terror falidico (|ue exprimem, pelo
que dizem, senão porque se diagnostica n'el-
las o symbolo d'uma arte fruste, balbuciante,
que quer fallar e não pôde, que quer espavo-
rir e cahe pr'o lado, á punhalada, ao urro,
ao coice. Onde na Leonor Telles, a fusão de
cavalheirosidade e de miséria amorosa, (pie
devera ser o timbre do rei Fernando? Mas ó
um bonilVate piegas, esse typol Onde a alma de
cortezã astuta, finamente coleante, disfarçando
as ambições thronicias sob appareucias mei-
gas de bondade, que caiaclerisa na historia, a
amiga do formoso? O mestre d'Aviz, na peça
de Mesquita, é um boneco. Andeiro um canna
radiada. E o infante I). l.uiz, uma espécie de
Magalhães Lima (jue diz coizas com fatos d'en-
os GATOS 13
trudo. De roda das figuras principaes, nada
que saiba á epocha. A corte de S. Martinho é
uma parceria d'aniauuenses que vem a uma
soirée de carnaval, vestida pelo Kruz. O po-
vo, que representou no reinado de Fernando I
um papel tão alta e significativamente prepon-
derante, não existe na peça senão pela tirada
do alfaiate, e por uns grunhidos que a com-
parsaria solta, nos intervallos em que se não
coça nos sovacos. De sorte que o espectador
sahe do theatro, dizendo comsigo:
— Se esta Leonor Telles dissesse antes o pa-
pel de D. Fernando, e D. Fernando o d'ella ;
se os versos componentes do papel do infan-
te, passassem a ser papel do mestre d'Aviz,
indo os d'este p'ra aquelle; se os homens da
peça se encarregassem de declamar o papel
das mulheres, e vice-versa, pergunta-se: a co-
herencia do drama seria perturbada, a trage-
dia histórica mudaria? Resjjosta: não.
Agora mais! Transplant^ida a catastrophe
da Leonor Telles-, com todas as suas determi-
nantes e accessorios, para outro paiz e outras
figuras, o eiTeito geral da obra seria prejudi-
cado nos seus primores de concepção? Res-
posta: não era.
,.|,, ,,LQg(),,eíti|:ili)it! tlii.tlx) PòkV CvS;<,(; (l|:;jin;;i,|CVf|a-
|.e;ui (jiie ppile.a, lill(!j;at,ii!;i ,drap'aliip;i,,pf|i"i ,çjH^
I iflitÇ|i,;q;^^if (í.v ,)f)n^p, DU,,ciç,ppi;to, íis, |Jií|(U'or)|^s
-^h<JUe, p,9,i:Uifl|piíííiO |ú bpr^i pç||-tUí;ueííi,.;É i|i|)a
..ppçiu dei|Sentina/2nti4t^.,fi^iyult||'íi"PSçs, çíii, ,mi|e
epses, ,^eillUii«/]los iiãp f;i?eia. , J^atei; () . cp!•,a(;^ãv•
É uma pcçn,<rK(latJí; Medja, ^eifl qime.íiov.ivis-
^unjbi-p I .^'Eiiailc JJçiiKt í fie ,?i)<^uarcliia |)oilii-
g^iqy^j.^squi ijuoniirclia.s j)|0|rtuyi!Cize!?;: ijp , pa-
_ÍJ'iotisiiio, sijiu , calor,, p;UriOit,ico„ e final [jipn^.^,
(.(c .Ultcralurjí, !ft'ni ,i,tlplit}adcs,,littei'ai;ias (je
,.iflaí<,u';iliausl«.,.QucjFp iCjj^e .^ni^ responda in;;,p^n
\M\W<I PMdft ,4íí;i?i,, Jii,ltQnU|!!:iV.<?p.n>p,ies|a, a/nir^Çífr
,PPí;0; (^MmUf pím/OM^^tt^r-^W^ií^niíf^Xii.?»?
-■)i<,iyi\ i; ,);lic.(iiiili'K| i;!'!.'!*-, juiíkmÍi uIi liiaii-irul
.oÈn : );lfioqH.'iM Vnhiduun (í-.ií-uiJíííiI nih
iili|iril^i;lí;-> i; i;lii;liii;l(|^.iiinT ''Íkiii iíio;./.
. in(li?p(;rKsayel pps.siiii; a imagip^Ção dps .sen-
timentos,. 4is.s(;nios. AçGresceptííremos agora :
para a feiura dp diama liislorico é indis-
pensável possuir essa imaginação em ampj.i-
ticad(), 'Q vér ■epmt)usemÍBBO(^rBr pdiiiiíísojlio
perigjo de véi' falsoij iEvidenteraei>te o menew-
ponha, pondo n'nma peça de íheatro,! GnmS^es
ou B. SebastiAo, não será reduzir acjuelJâs figu-
ras ifl!'banaes personaiidades contemporâneas,
que-priocedaih e fallem ao gosto -chano, ido
meH tempo, assim como iiiãO' fu-dfèi:teiii tam-
bém rCpreseiitJlUas lia impassibilidadehmorta
dabsti-acçõèa, como ma tragedia antiga, ftui
(juei os personagens não teero vida «onípíetó,
parecem ignorar' as 'necessidades -jaiifter^aessiie
ser insensíveis (vdòrpliysicà. .ii-ii II 'ih iihr.]
Mithridalbs, ferido,' expirn a dizer cetitOie
oincoenta versos d'uina assentada, académicos
todos, e'calmosv ;É absurdo ! 1 -: i; .n i, .^i.!
Compreliender-se-hia (juei um poeta feesse
morrer O heroe, por es<a forma massíiute, B'u-
-mai tragedia ou drama histórico, escjriptos ho-
je? Esse Mithridates, conio todas as figuras, do
-Iheatro clássico, não é um individuo, é um
s\Tnb()lo em cpie a paixão se manifesta no es-
tado de força anonyma e insusceptível de ser
modificada pelo temperamento. ?<o Ihealro
clássico, o drama falta ainda^ a còr locíil é re-
putadíí inútil, não ha perspectiva aérea, e os
personagens, speclraes, pegados n'um panno
1(1 os GATOS
de fundo, exprimem antes o terror que se
passa no espirito da platea ingénua que os
observa, do que propriamente o que resulta da
energia da catastropiíe em que eliesse movem.
Que queimem? O convencionai da tragedia bas-
tava no século xvii ás necessidades d'espirito
da multidão. Os trágicos d'essc tempo eram
moralistas, como os dramaturgos do nosso
são historiadores. Com o romantismo, a liis-
toria toma posse do tlieatro, e o scliema cri-
tico (jue desenhámos sobre os tópicos do pre-
facio de Hugo, do postulado de Saintc lUnive,
e da profissão de fé de Alfredo de Vigny, pare-
ce ser lioje mais do que nunca, para o di-ama
histoi'ico, a forma fixa. Certo, eu quero o real
no drama histórico, mas o real local, o real his-
tórico, o real épico, que faz os pei'sonagens
humanos sem apagar de roda d'elles a pho-
tosphera poética da lenda, que os apea da nu-
vem, certo, mas sem lhes roubar na pci'spe-
ctiva do Iheatro, o gigantesco. Livre-se o meu
bondoso Lopes de Mendonça d'alguma vt'z me
talhar Afíbnso d'Albuquerque, nas porporções
do general Vasco Guedes — que o enforco! Fa-
zer real na historia tam pouco seria emprestar
ao amor de Pedro i as declarações emphalicas
os GATOS 17
d'iim bacharel namorista, á caça de herdeira
nos banhos d'Espniho ; ou fazer d'AfTonso iv,
cumpHce no assassínio d'Ignez, um magarefe
estúpido ; ou dar a D. João n a estortegadura
monótona d'um sanguinário d'officio, cons-
tantemente aos berros na scena, como um
bruto.
Fazer real na historia é descortinar em
cada figura as extremes linhas do caracter,
justificar essas linhas por palavras e por actos,
e sabel-as manter atravez de todas as situa-
ções dramáticas da peça, em termos que esse
Pedro I, amante furioso a quando viva Ignez,
seja o inicio psychico do singular allucinado
que comboia o féretro d'ella ati'avez a cam-
pina deserta d'Alcobaça, pela noite, á chuva,
entie as rezas dos monges e as tochas dos fi-
dalgos— e que este espantoso viuvo, rei Lear
do amor, mesmo depois da posse, expli((uc ás
mil maravilhas depois, pelos ardores epilépti-
cos da paixão bramidora que o devora, o seu
primeiro acto de rei, que é desenterrar a aman-
te já corrupta, e fazel-a sagrar rainha pelo bei-
jamão incondicional de toda a corte. De roda
d'este typo, sem egual na historia do mundo,
6 era que seria regicídio bolír, não se possuindo
18 os GATOS
O gCJiio barbai'o (! rugidor ile Sliakes|ie;irc —
fazer real na liistoria — ó visionar us rnais, com
a mesma sagacidade epDpeica e a mesma lógica.
N'aquclias epoclias, o reino tinha os olhos sem-
pre na fronteira. Castella ej'a o pezadello com-
inum de reis e de vassallos, e o amor da in-
dependência, (pie vinculava a coroa ao amor sub-
misso do povo, o grande zelo indómito que fazia
heroes dos fracos, e guerreiros titans, de to-
dos os pygnieus. Ignez de Castro pois, liespa-
nhola de sangue real, prendendo o coração do
infante, constituira-se por isso n'uma ameaça
futura á autonomia do reino: logo, cumpria
afastal-a — ora a razão d'Kstado a exigil-o — e
os porluguezes com ipiem AlTonso iv decidiu
em conselho o assassínio da nora, longe de
deverem ser explicados pelos dramaturgos, co-
mo faccionoras mal pagos, acho que os de-
vamos (pelo menos na arle) noblificar como
dedicados e cegos patriotas. Eis por conse-
(juencia ahi logo uma sccna que magnifica-
mente prepara o espectíidor para a tragedia
dos amores de Pedro e Ignez: aquella em que
os conselheiros d'Affonso iv coagem o velho
heroe do Salado, a consentir na morte da hes-
panhola, que ellc para mais secretamente ido-
19
lalra, e quo a razão iTEslado ilie manda sa-
orilic-ir, cmliora sabendo (pu; toinaiá con) isso
o filho lonco.
D'esses conselheiros, <ine foram ao mesmo
tempo executores d'alta justiça, (|ue maravi-
lhosas evocações de patriotismo antigo a f,ii'ar,
que bellas almas vibrateis para pôr em scena,
e despertar corn ellas o delirio sentimental
(fuma plalea nevraslhenica como a nossa ! Fa-
zer real na historia é encontrar o qaantam de
poesia épica e de humanidade, convenientes
ao fabrico d'uma liga que seja carne e bronze
ao mesmo tempo, c que vasada nos moldes
que propuz, deite as figuras d'esses conselhei-
ros nuUadorcs como outras tantas seixous.se.s do
heróico, attingindo o seu máximo em íypo hu-
mano. O processo d'esquadrinhar o real, na
commettida do drama contemporâneo, e na
do drama histórico, divergem pois fundamen-
talmente. Um psycliologo perito na reconsti-
tuição theatral d'um typo moderno complica-
do—por exemplo, o do bancjueiro Lfurnay —
pôde ser inteiramente falho de faculdades para
um trabalho idêntico no campo histórico, e
vice-versa. O iheatro de Victor Hugo conta
grandiosas restaurações do typo antigo, e lo-
20
davia o poota seria absolutamente grotesco na
confecção do drama de costumes, com obser-
vações meúdas, e uma lingua paradoxahneute
irónica, à Dumas fiibo. O motivo d"isto está
talvez na abundância ou na falta d'imaginação
poética, que amplifica no primeiro caso o cam-
po de visão té para além do limite médio, per-
mittindo ao artista resurgir sem esforço, das
edades mortas, e em todos os seus torvelinhos
e caprichos, o mundo especial (jue n'ellas se
agitou — e que no segundo o restringe por
forma a só dar ao escriptor liberdade d'acção
dentro d'uma área de coizas vistas, e a revol-
tal-o contia tudo aquillo de que os seus sen-
tidos não apercebam o contorno geométrico,
e a notação positiva e inconfundível, (aj
(íi) Dir-nie-ha o leitor agora: mas foi precisamente
essa imaginação poética a única faculdade artistica que você
resalvou para os escriptores de theatro em Portugal, e se-
gundo o seu verbo, ebsa faculdade devia ser para elles um
precioso telescópio aproximador das edades recônditas da
historia, e um inapreciável meio d'evocação para os as-
sumptos dramáticos propostos. Porque acontece ent.ão que
mau grado esta faculdade, os nossos dramas históricos ori-
ginaes sejam tão superficialmente bebidos na historia, dêem
tão pouco a illusão do antigo, venham tão fragmentários
lil — o esfylo.
«R verosimil, diz P. Boiírgct, de ijiiem
inaiormente lenho seguido a linha critica, n'este
estudo — é verosimil que o dom d'cscrever se
acompanhe sempre d'ess'outro d'ouvir uma
pequena voz interior, (pic dieta a plu-ase. Fa-
como cnseinhle ou pintura d'epocha, c aparte o guarda-rou-
pa, possam passar-se em todas as epochas, c ser desfecha-
dos cm todos os cantos do universo, sem que isso lhes com-
prometta maiormente a perspectiva illusionista?
— Tudo isso é verdade, redarguiria eu, mas que faz a
imaginação poética sósinha n'um cérebro falho d'outros
dons? Em que auxiliaria ella, por si só, um dramaturgo,
quo ao tratar de pôr em scena por exemplo, a mocidade ou
a velhice de D. João v, ignorasse pela base o seu assum-
pto, e não tivesse feito, antes do drama, monographias es-
peciacs sobre cada um dos figurantes? Pôr uma madre
Paula qualquer, a receber a deshoras, na cela d'um con-
vento dos arrabaldes, uin fidalgo de casaca de lantejoulas
e bofes : fa/.er sahir d'estes amores uma menina, que no
segundo acto c entregue a um jezuita, para ser educada
em casa d"uni desembargador, e que no terceiro apparece
condessa c titular mysteriosa, n'uma quinta de Bemfica,
com os arcos das Aguas Livres ao fundo, vindo a saber-se
no quinto que a fideputa o é também de rei, e que sua
mãe era uma fidalga que se fizera madre por causa d'uraa
cscorregadella nos degraus do throno . . . — fizer um imbró-
glio d'estes em verso ou prosa, dialogado todo em quin-dins
22 os (;atos
zer passar o acc«ínto d'essa voz, nas palavras,
eis o (jue ('• ter eslylo ; estylo qiio assim cnni-
prelioiidido, se toma para a critica, n'nm ele-
mento d'exti"U)r(iiiiario valor.» Nada aiitobio-
graplia tanto o escrijjtor como a sua forma
lilteiaria. Certas phrascs dos Miiias, com a
lamechas, e com um outeiro no meio prá còr local — fazer
isto, digo, e cuidar que se visionou a historia a primor
d'inspiração — é, meus senhores, o mesmo que agarrar
n'um frade de pedra, e escrever-lhe por baixo: ^ipoUo de
Belvedere !
Evidentemente se não houver na peça um sem nu-
mero de promenores e illucidações sobre o moral e o phv-
sico da epocha, se não conflagrarem no quadro, como
lançadas ao acaso, e sem propósito, as carecteristicas d'a-
quella vida frivola e galante, piolhosa e doirada, devassa e
mvstica, que foi o reinado do Luiz xiv portuguez — se a
madre Paula não provar na peça, por uma multidão de
pequenos actos inconscientes, que <í uma muUier de corte,
grande dama apezar do burel, e fêmea lasciva apezar dos
cilícios e das phrases da Iinitufilo — se o desembargador e o
jezuita não disserem effeaivamente, pelas cambiantes do
typo, pelo tom da vóz, escolha dos vocábulos, linha on-
dulada ou erudita do porte, a estofa intima das suas pessoas
e mesteres : se a ordenação das scenas em que a intriga
decorre, não fôr aproveitada para cercar essa intriga d"uma,
orno direi? atmosphera própria, d'um ar do tempo, que
cvcnha de tudo, das roupas, do scenario, dos modos d'an-
i:i
sua syulaxe enervada e eynica, são Eça de
Queiruz vivo e fallante. Ha synthaxes miiscu-
losas, exemplo, a de Ramalho. Ha-as violen-
tas, ex, a de Camillo. De collarinhos postiços
e badine, como a de Chagas. De geleia e com
jinjas dentro, a fingir rubis, como a de Lopes
Mendonça.
dar, fallar, bolir, viver — se todos os episódios, typos, ef-
feitos c particularidades da peça dita liistorica, emfini, não
convergirem a um intuito único, qual o de recompor em
quatro horas, restaurado a integro, um capitulo da passada
vida d'um povo, queiram dizer-me então para que diabo
serve a nossa tão fallada dramaturgia histórica moderna, e
apontar-me os moti\'os porque eu haja de saudar nos seus
cultores, í/f j nwgkiens tics Ictlres sobrepujantes á mediocridade
geral dos outros plumitivos.
X'este ponto, o leitor adcvinhará facilmente o que eu
aqui não escrevo, e irá applicando a douctrina aos dramas
históricos que fôr vendo representar n'esses theatros. Di-
ga-mc aqui com franqueza : quando vae pr'a casa, depois
de ter visto em D. Maria o Duque de Vi\eu, leva no espi-
rito alguma coisa que lhe morda ao canto a figura do rei,
do duque, e da donzella Theodora sua amante ? Cheira-
Ihe a edade media, aquillo? .\ sua alma vibrou d'alguma
outra coisa que não fosse o prestigio emphatico que ao seu
coração de meridional produz sempre um comediante ves-
tido de vclludo, espadalhado e iracundo, a debitar tiladas
d'orador d'opposição ? O seu olho mergulha acaso n'algum
"li os GATOS
Os esciiplores de pulso, de que o Udento
esclarece a razão traiisfiguravel, (luando suc-
cede lerem de fazer fallar no tlieatro ou no
lomance, um personagem concebido sob taes
e Uies dados psycliicos, não raras vezes tiave-
rão (jue sacrificar o estylo á lógica d'essas fi-
guras, na mira do seguinte: dar a cada uma,
pelo dialogo, uma vida independente — /içando
elles mesmos.
desconhecido mundo de creneis e couraças, de mysticis-
mo e barbaria, que o poeta lhe desenrola deante? Acaso
o seu espirito vae, entre tcrrifico c surpreso, por uma ar-
caria de séculos, té aos arcanos da epocha que o drama-
turgo lhe tenta visionar? Pois não é verdade que tudo
aquillo é uma pintura de muralha, com vermelhos e azues,
esparsos com mão destra, acredito, mas mão de broxante,
que desconhece por completo a grande arte, e Hilseia as ,
perspectivas da vida vigorosa ? O leitor gosta da peça.
Palavra, e eu também! Mas veja como isto é typico : eu
que nunca mais posso esquecer o final do primeiro acto
do Frei Lui;^, e a scena dos retratos no palácio d'apar S.
Domingos, eu que me não lembro do Rei Lear sem desar-
ranjos de vida cerebral, saio sempre dos alexandrinos dos
nossos dramaturgos modernos, com vontade de cear — sem
mais me lembrar da Leonor Telles servindo marmellada
aos cortezãos, nem mais querer saber d'aquelle pobre du-
que de Vizeu, que expiou a punhal, coitado, por fallar
tanto, em verso.
os GATOS 25
lia romances de Cainillo, sem ir mais lon-
ge, os Mijslerios de Fafe, onde creaturas do
povo dialogam entre si como personalidades
vivas e pensantes, e não obstante, marcadas ao
canto com a garra do escriptor genial que lhes
deu vida.
O dialogo d'ellas reproduz maravilhosa-
mente a cathegoria social e moral a ([ue per-
tencem— sabe á profissão, sabe á religião,
sabe á paysageni, sabe ao vocabulário local e
ás tradicções — mas permanecendo povo, é ain-
da assim litterario, e mais ainda, camillesco.
Aqui, a personalidade do artista é tão forte,
que mesmo quando ella quer apagar-se por
traz das almas que modela, e das vozes a que
dá hausto, lá se escuta sempre, em surdina,
aquella mysteriosa pe(|uena voz que Bourget
diz se transfilfra ás palavras, no acto d'escre-
ver. Bem ! vamos agora ao theatro, e dos es-
criptores dramáticos vivos, venha d"ahi um
que tenha estylo. Queiram lèr as peças em
prosa de Salvador Marques, de Gervásio Lo-
bato, de Marcellino Mesquita e d'Abel Acácio;
e dizer-me depois, se da obra d'algum dos
quatro, salta coisa que cheire á consciência
das responsabilidades do escriptor, u'este ramo
3t» OS GATOS
especial (la arlc (l'escrever. Já iiãu digo da ve-
rosimilliaiiça psychologica das figuras, que isso
ficou tocado, embora ao de leve. Balo só n'esle
ponto: se os escriptores em questíio, e outros
que me esqueci de citar, souberam, nos dramas
e comedias dados á scena, encontrar o estylo
próprio dos seus assumptos. A Pcrulu, de
Mesquita, uma l)oiiila fracção littoraria da
Dantd diis Cameiiiui, é tlialogada toda n'um es-
tylo tão chronica de modas, tão ridum roze,
que até em casa da snr.« Kugenia Smilli faria
riso.
Na ClfuiiliiKi d'Abel Acácio, os mais insi-
gnificantes |)crsonagens dizem pbrases tão
guind.ilas, Ião csrriplas, que o próprio Valen-
ças mal ousaria empregal-as nos seus relató-
rios dos Albergues Nocturnos. E se acontece
aquecei- o dialogo, o espectador presta-Ihes
ouvido, mas sem se illudir com a identidade dos
personagens dramáticos, e só deliciando-se
como quem assiste a um debate de folhetinis-
tas, no Salão da Trindade. (I>>
(b) Entre estas generalidades ásperas, ha ainda assim
logar para alguns apartes. Ex: nos Dois Dramas, de Lino
d'Assumpção, lia uma peça, Eiui, cuja acção não tenho
27
Por aqui se vé quão longe os escriptores
de theatro vivem da sociedade de que eiles
pretendem ser os censores e os educadores, e
se adevinha tinão ephemero deva ser o influxo
morai que as suas obras devam de produzir na
multidão. O theatro assim concebido, como uma
instrumental do phrases litlerarias, tocada n'imi
teclado de figuras de pbantasia, movendo-se
n'um fundo d'eirabula(,"ão sem lógica nem cri-
tica, o theatro quazi que não passa d'uma en-
tretenga pueril para creanças, facilmente sub-
stituível pela mnrioDetle. Hoje o talento d'es-
crever (no theatro mais do que em qualquer
outra forma litteraria) rezide todo na arte do
detalhe justo, que só é completa quando a
maior somma d'observação psychologica dire-
cta, se compendia na menor somma de phra-
se escripla. e quando a saliência muito viva
da palavra cede antes logar a uma meia tinta
lúcida, a esse sublinhamento entre doce e
presente, mas de cujo dialogo me íkaram impressões mo-
delares, sob os respeitos de ser um justo meio termo entre
o familiar e o litterario, entre o dialogo tallado e o dialogo
escripto, precisamente o ideal da Ibrma, nas peças d'ob-
servação.
28 os GATOS
irónico, que tanto se comprnz côas complexas
orsnnlsaçõcs do nosso tempo. Quem percorrer
o llioatro fraiicez contemporâneo, reconhece
isto: no dialogo, os etíeitos de força são quazi
sempre etíeitos de mumce, e com iim adjectivo
no seu logar, uma visão resurge na mente do
espectador, tão desmesurada e trágica, como
se o artista a tivesse feito saltar em bandadas
de metaplioras violentas.
Abordando as peças d'assunq)lo épico, his-
tórico, ou simplesmente lyrico, o vicio é idên-
tico: uma superfectação d'estylo, que não con-
segue disfarçar a pobreza dos meios picturaes
do dramaturgo. Tem-se perguntíido qual a ra-
zão dos nossos dramaturgos históricos toma-
rem de preferencia o verso para expressão dos
seus espantos trágicos. Não é por certo a tra-
dicção que os força. E se procurarem bem,
acharão isto — uma necessidade instante d'ar-
tificio, auxiliar da illusão scenica, que a prosa
com certeza lhes não consentiria. Com as tin-
tinabulancias da rima, a catadupa das meta-
plioras, e a largueza do alexandrino puxando
ás parelhas, a tirada, o espectador inal tem
tempo para se aperceber do mais que lalta à
obra, lie verdadeiramente artístico e inspirado.
os GATOS 29
Queiram percorrer por exemplo aquelle se-
guiulo acto do Duque de Vizeu, em que se trata
da conjuração contra o monarcha. Não ha uni
só d'aquelles conspiradores, o mais indómi-
to, que pareça ter consciência do perigo que
corre, vindo alii, e que pareça estar ao facto
dos gravissimos assumptos pendentes das re-
soluções da assemblea. Tamanlia paroiice baba
dos lábios de todos, e tão supérfluas explana-
ções litterarias elles teem, ao menor pretexto,
sobre os dotes physicos e moraes uns dos ou-
tros, que o dramático d'esse acto cessaria,
apenas os homensinhos se decidissem a fallar
em pi'osa. Já lhes disse (c), e escuso de fi-isar
mais este ponto, que em assumptos épicos, a
noção do real não corresponde exactamente á
dos assumptos contemporâneos. Aquelle real,
em parte, é o real visto nos documentos da
epocba, restaurado á custa do processo liisto-
rico,sem duvida, mas accrescentado por ess'ou-
tro, o real épico, que é a amplificação, por
via das faculdades poéticas, de personagens
ou de factos cuja perspectiva seja necessano
exagerar, para obter no quadro eíTeitos gran-
(c) Pag. //.
"30 os GATOS
iliosos, isto sem falseio ;i loííica da acrão, nem
(liiebra taiii pouco da viMusiiiiilliaiiça liistorica
fias figuras. Obras d'esU' fôlego leeni todas
nina base humana, é claro, mas não podenn
deixar d'exhalar-sc n'nm vago poético, e de
respirar uma atniosphcra d'epopeia, absoluta-
mente convencional no campo arlislico. O es-
tylo (jue pois lhes corresponde, não pôde ser o
tecido de palavras incisivas, cort«do, brusco,
subentendido «piasi, resabendo á seccura iró-
nica (las almas de hoje, carregado de desdéns
e de negócios, (jne tão bem traduz nas peças
de Dumas filho, o espirito scientifico e com-
mercial do fim do sendo. .Mesmo fjiie essas
peças se escrevam em prosa, ha-de ser um
e.sti/lu iioetko. .Mas poético, como? Ao modo
antigo, deixando a rima puxar a rima, e a
apostroplie rethorica desencadear vagalhões
em qne a intensidade trágica faz naufrágio?
Por certo não : o successo pallido dos últimos
diamas históricos, (|ue dtirnonslraram a exi-
guidade de recursos, quer psychologicos, quer
liltenuios, dos nossos poetas dramáticos, é
prova cabal de que os antigos artifícios da
forma perdei^am a força, e nem mesmo já são
sup|»ortaveis como reminiscência archeologica.
06 GATOS 31
A educação modificou a vibralilidade interior
dos indivíduos ; todos os antigos meios d'im-
pressionar perderam a efficacia. O riso e a la-
grima iuda são provocáveis na turba, mas por
meios diversos da tinida antiga, que é abso-
tameníe necessário exhautorar. Ora, os nossos
dramaturgos históricos n'este ponto estão ain-
da no ramerrào discursivo do século xvii (em
que a tragedia, toda narrada, fazia passar os
lances de forç^a em bastidores, para não in-
commodar excessivamente quem assistia á re-
presentação) e cumpre dizer que se a sua fal-
ta de habilidade é flagrante, no apparelhar
d'uma peça de theatro, a sua incultura 1 lite-
rária, ao vestil-a, chega a ser quasi uma ver-
gonha. Façam-se os senhores lèr a distancia,
versos de três ou quatro tragedias porlugue-
zas modernas, d'auctor ditTerente, e vejam se
são capazes de me dizer depois, pelo relevo
esthetico das passagens lidas, o nome do poe-
ta dramático a quem ellas pertençam. Por
mim confesso-me incapaz d'uma tal prova.
Tanto a maneira de lançar o verso, de con-
ceber a metaphora, incrustar a imagem, achar
a rima, são idênticas, incolores, impessoaes,
incaracteristicas, que impossível se me faz
32 os GATOS
reconhecer a dislancia. o aiictor prcsumivel
de qualquer d'a(|uellas obras. Dir-se-hia que ó
um poeta único que as escreve, e que esse
poeta é — Ioda a gente.
AVISO
Ficará no próximo fasciculo concluí-
do este estudo sobre o theatro. A ampli-
tude d'elle, não nol-o deixou encerrar
no pequeno espaço de 32 paginas.
FIALHO DALMEIDA
OS GATOS
PUBLICAÇÃO SE5IANAL,
DINQUERITO Á VIDA PORTUGUEZA
M" 22— 31 de Dezembro de
SUMMARIO
Ainda o estylo em litteratura dramá-
tica— REQUISITOS DO ESTYLO HISTÓRICO: ERU-
DIÇÃO, SENTIMENTO DO ANTIGO, IDEAL POÉTICO,
E SELECÇÕES DE CASTA E D'EXISTENCIA — DE
COMO OS AMANUENSES SUNCA PODERÃO SER
VISIONÁRIOS D'aLMAS E DE COISAS— A BELLEZA
technica no THEATRO, E INAUDITISMOS D'ELLA
NA POESIA CONTEMPORÂNEA — OS RENOVADORES
DA PHRASE EM PORTUGAL: SUAS ESCAPADAS NO
GALLICISMO, E ANTAGONISMO FEROZ C0'A ES-
COLA VERNÁCULA — MISSÃO DO ESTYLISTA NO
ACTUAL MOMENTO — EVOLUÇÃO DA LÍNGUA UT-
II os GATOS
TEBARIA, EM FACE DAS ACQUISIÇÕES SCIENTIFI-
CAS MODERNAS, E SUA NECESSIDADE DE FORÇAR
A SYNTHAXE PARA ATTINGIR O MÁXIMO D'EX-
PRESSÃO — DE COMO A LÍNGUA PORTUGUEZA É
DURA E POBRE, E NECESSIDADE DE A desarli-
CUlar, SEM PREOCCUPAÇÕES — TRANSITÓRIO PA-
PEL DOS ESTYLISTAS: BALSAC E OS GONCOURTS,
PRENUNCIANDO A MODERNA PROSA DE ROMAN-
CE— PALAYRAS QUE SE GASTAM E PALAVRAS
QUE SE DEFORMAM — VELHICE PREMATURA DE
GARRET, E CREAÇÃO D'UMA POÉTICA NOVA —
JUNQUEIRO, CEZARIO VERDE, GOMES LEAL, AN-
TÓNIO FEIJÓ— A POESIA EM OBRAS DE PEQUENO
FÔLEGO; SUA INCOMPATIBILIDADE NAS COMPO-
SIÇÕES D'ENF0RMATURA máxima, COMO O DRA-
MA HISTÓRICO — O QUE É O ACTOR? COMO SE
ESTUDA UM PAPEL? — CONCEPÇÃO MENTAL DO
PERSONAGEM, E SUA RESTITUIÇÃO SCENICA, POR
VIA DE MANOBRAS EXTERIORES — DO PIGTORESCO
OU ESTUDO EXTERNO DO PERSONAGEM : VOZ,
ARTICULAÇÃO, DICÇÃO, MOBILIDADE E PHISIOLO-
GIA ARTÍSTICA DO OLHAR, ARTES DE CARACTE-
RISAÇÃO E GUARDA-ROUPA,JOGO DE SCENA, MÍ-
MICA, ETC.
31 de Dezembro.
Porque a linguagem do theatro histórico
moderno, fa) nem por os themas que elle esco-
lhe serem recuados e lendários, deve deixar de
ser, como para o drama de costumes, uma
liugua d'acção, vivaz e cutilante, embora re-
(luintatlaraente technica e litteraria, embora
poética, embora épica. Os que não padecerem
da visão interior das figuras do seu drama,
bem grandiosa, bem mordente, claro está que
se não aperceberão d'ellas o sufficiente para
(a) Pede-se ao leitor, queira passar pela vista as pa-
ginas do fascículo anterior, que faliam do estylo em thea-
tro. As que vão ler-se, completam a minha ideia, sobre o
assumpto.
;is lazer fallai- c actuar como seres vivos. Por-
tanto, seiulo a concepção liislorica má, comoaf-
firmámos, como poderia ser excellenteo eslylo,
que é a representação fa liada d'essa concepção?
De mais, logo se vé que não podem ser me-
dimiis du historia, evocadores d'epociias de-
sapparecidas, Chi'istos ressiirgislas dos gran-
des Lázaros trágicos d'algum dia, creatiiras
de trabalho e domesticidade, como os nossos
actuaes poetas dramáticos, qiiazi todos ama-
nuenses e alfacinhas, eivados de peijucnas es-
treitezas de bolsa e de morada, e rescendendo
portanto aos pontos de vista glabaros do ga-
nha-pão. Ê vér os seus prazeres e os seus es-
tudos. Da historia, pouco mais conhecem do
que o .Moreira de Sú e o iiispo de Silves. Da
natureza, das paysagens, do mar, do ceu, dos
homens, aspiram só o intluxo esthelico que
lhes olTerece a ílua do Ouro, á hora da bella
sociedade ir p'ra Avenida. Inda que a educa-
ção lilteraria d't!lles fosse prospera, os defeitos
d'origem negarlhes-hiam sempre uma visão
de coizas, fulgida; seriam almas poéticas, mas
sem problema, sonhadores de mundos sem my-
santropia fecunda, nem mysterio, burguezes
incapazes de traduzir as violentas damnações
os GATOS 5
(los lieroes e dos tyrannos, o eiilhusiasmo dos
inartyies, os mysticisinos medievos do amor
sensual, e todo o sagrado feivor dos grandes
fanatismos !
Digam a um caixeiro de tenda, mesmo
erudito, (|ue lhes exprima em verso, D. João
I. Por muito talento que o caixeiro possua, o
seu D. João I ha-de ser por força o elogio his-
toiico do patrão.
Isto peio que respeita á inlluencia que o
assumpto da peça tem sobre o poder convin-
cente da linguagem. Mas todos sabem que a
expressão tem duas eloquências, uma que o
assumpto lhe presta, outra que propriamente
lhe vem da aposição tecimica dos lermos, e
da sua construcção grammalical. Ora, (jueiram
encarar ainda por este lado profissional, os
poetas dramáticos que ahi temos. Vimos já
como elles não eram visionários d'almas e de
coizas: veremos agora como tandjem não são
visionários de palavras. Todas as formas d'arte
teem a sua belleza tecimica. Na carpinteria do
Iheatro, a belieza tecimica pcu- exemplo con-
siste n"uma habilidade especial de cortar as
situações, e de regular pelas entradas e sabi-
das dos personagens, não somente a nitidez
6 os GATOS
(los grupos plásticos em scena, como tmiibem
a coiulncçào |)erlci(a da intriga atravez o dia-
logo fallado.
Ha nas peças de Sardou combinações d'esta
nalnreza, (|ue aos profanos escapam, e (]ue os
iniciailos reputam jjor verdadeiras obras pri-
mas (rofficio, e maravilhas iinicas de snvoir
fidre. O (pie é na poesia a belleza teclmica? K
a sciencia de valores euijlionicos, a arte de fa-
zer as cadencias syllahicas, de contrapor as ri-
mas, e ifavivar por artilicios de syntbaxe a si-
gnificação colorisla das palavras. Toda a gente
coidiece os schismas a ipie a belleza technica
modernamente tem levado certos poet;is fran-
cezes, de (pie v. correspondente em Coimbra o
meu estravagante amigo Eugénio de Castro.
Alguns, de preoccupados co'a nmsica syllabi-
ca, d'enlretidos a caçar sons (pie hypnotisem
o ouvido, chegam a esí|uecer-se de (pie a toda
a phrase corresponde um sentido, e de (pie as
palavras fossem feitas para exprimir ideias,
(pie não effeitos orcliestraes. No theatro, uma
tal monomania tem levado os artistas a incrus-
tar de joalherias raras, figuras de (pie elles
mutilam a anal(miia, de pi-ojjosifo, por uma
e|)liemera homenagem ao loxr de force. Claro
os GATOS 7
está que isto é o extremo exagero d'esse furor
de perfeição plástica em que moiieruamente
se esgotam os homens d'arte, que prohibidos
de visionar a vida, nas entranlias d'uni typo ou
d'um grupo, suprem pelas magniticencias da
revestidura exterior, o que lhes falta d'evoca-
ção psychoiogiea.
Eutre este inauditismo exótico porem, e a
forma decrépita e chocha dos nossos actuaes
poetas dramáticos, sem duvida ha logar para
uma continua e fecunda renovavão da lingua-
gem, pelo numero — pelo numero, que não é
só o segredo do encanto no verso, senão está
tíizendo da prosa contemporânea, exemplo a
de, Flauhert, uma orchestra magnifica e incom-
parável. Exaltemos todos esse furor de renova-
ção, santelmo d'arte, sem o qual de ha muito
SI' teriam obcecado as gerações, e estaria mor-
ta a arte d'escrever.
Kxaltemol-o sobretudo nas lettras, sem dar
ouvidos aos que pregam ([ue o primeiro dever
d'um escriptor nasc(>nte, é lèr os clássicos, e
cingir alforma, quanto ])ossivel, á dos antigos
escriptores.
Nada nefasto a um prosador ou a um poeta
em debute, como a adopção iucoudicional d'este
8
conselho. Os qiio o lecm fiado ;i mocidade, cu
são cretinos (|ue trazem dos pães, de cór, este
fetichismo banal pelos velhos livros, ou então
escriptoies bictiosos, incapazes de progresso,
e que pretendem amarrar os mais á manje-
doura onde elles se estiolam a rilhar a palha-
da clássica. Acresce que necessitando a littera-
tura dVibservar e retlectir as im|)ressões da
vida, e sendo a actual uma amalgama d'inte-
resses e luctas d'antes ignoradas, uma feií-a
franca d'industrias c sciencias novas, de sen-
sações antípodas, dMdeaes Ibrmilhantes d'exo-
tismo — conhecimentos, aspirações, moderni-
dades emfim, (pie nós não inventámos, e cuja
terminologia foi necessário expropriar dos pai-
zes onde ellas nasceram — a lingua (}ue neces-
sariamente lia-de ser o instrumento d'expres-
são de todo aquelle tumulto, claro que não pôde
ser bebida no vernáculo, senão incrustai'-S(%
pelo menos por agora, d'estrangeirismos. A
fornia eterna não existe. Á sensibilidade de
cíida epoclia correí;ponde uma lingua e uma
technica originaes, tanto mais complicadas e
perfeitas, (juaiito mais nos approximemos do
presente. A este respeito, ([uaiido os conse-
lheiros da litteratura faliam em reformar o
os GATOS 9
thealro portuguez, pela adaptação de Gil Vicen-
te á scena contemporânea, a minha vontade é
correl-os da critica, ao ciichação, porque essas
Ciivalgaduras, ou não conhecem o espirito do
seu tempo, ou não leram de certo Gil Vicente.
Uma coisa que muitos teem pensado, e
poucos dito, é a seguinte: a antiga língua por-
tugueza é mais pobre do que se cuida. Tem
quando muito, synonymos, mas pouquíssi-
mas qualidades que a tornem efficaz para
exprimir um certo numero d'eslados, paysa-
gens e emoções, sem recorrência ás línguas
paralellas. Por exemplo, carece absolutamente
de maleabilidade, e como cór, se vigorosíssi-
ma para os etleitos violentos, e para os con-
trastes, é impossível, sem a desai-ticulai-, obter
com ella etTeitos de nuance, os mais preciosos
agora em bellas-lettras. Comprehende alguém
uma paysagem de hoje, feita á maneira das
lambidas descrípções da Historia de S. Do-
mingos de Bemjicú'? A prosa de Lopo de Sousa
Coutinho, alguém a toleraria hoje, applícada á
consagração das façanhas que os batalhões
académicos hão-de pi-aticar, salvo contraor-
dem, em Moçambique? Que se respeite quanto
possível o fundo étnico da língua, nas suas
10 os GATOS
possíveis relações com as necessidades da ex-
pressão contemporânea, aceito e applaiido;mas
som sacrificar um só instante as minudencias
da aiiaiyse, e o pictoresco da visão evocada pe-
las [laiavras, ás mesipiiidias peias da ortoepia
antiga, (! aos na sua maior parle hnnaes mode-
los clássicos. Percamos por algum tempo as
preoccnpações da posteridade. Estamos n'um
periodo em (pie toda a obra d'espii-ito é tran-
sitória, porrpie ella é ao mesmo tempo o fim
(Vum século, e o começo d'outro, bem diíle-
renle. Os esforços de nós outros, sábios e ar-
tistas, nada podem mirar de cristallograplnco
e d'eterno. São labores de trajjeiro, lufa-lufas
d'accumnlação sem reconip(Misa, informes, obs-
curas, desesperadas, archi-doid;is, de que só
as gerações vindoui-as gozarão fama e i)roveito.
Deixem portaido entrar na lingua poríugueza,
pela birra d'alguns trabalhadores reputados de
não (juererem esci'ever portiignez correctamen-
ti'., todo esse pandemonio de termos arrevesa-
dos, d'expressôes teclmicas mas sem cartas de
naturalisacão definidas por eniípianlo, de phra-
ses sem eslructuragranunatical colhida nos chro-
nistas, porque esse trabaliio é sagrado, mesmo
não agradando aos puros gulosos do portuguez
os GATOS 11
sem niacuia nem mistura. Sim, esse trai)alho
é sagrado, pelas inexhauriveis ri(|uezas que in-
troduz nos thezouros da expressão, pela varie-
dade insólita de rythmos novos que transfil-
tra, e íinalniente pela maravilhosa agilidade e
elegância que em parte já conseguiu meter no
periodo portuguez, originariamente rigido e
monótono, tornando-o coUante como uma pel-
lica, a todas as cinzeluras da ideia, c a])to, como
clle d'antes não era, a Iodas as mimicas d i
alma, e a todas as microscopias d;i impressão.
Certo, eu não me illudo! O portuguez lit-
terario de hoje, como eu o entendo, não é lín-
gua em que se escrevam livros para escolas,
nem trabalhos que jimtar aos annaes littera-
rios dos grandes séculos. ÍMas nem por isso
os afrancezados que actualmente \\\e prestam
a plasticidade gracil que elle não tinha, nem
por isso os pliantasistas que o incrustam de
vocabulários d'arles novas, sciencias e indus-
trias novas, devem de ser postos de banda,
como charlatães dignos (Vapupo. Quando um
dia se fizer na lingua portugueza a transfusão
juvenil que é necessária, e (Tesse cabos que é
a linguagem de hoje, brotar uma lingua nova,
vigorosíssima, alada, cheia de buzinas e tlau-
1-2
tas, de tempestades e cicios, então se verá como
o papel d'aquclles oliscuros obreiros foi cons-
ciente, e (jue por(;ão d'imaj;iuativa e ficção
poética eiies lograram transtiltar na antiga lín-
gua, mais própria para discuisos, do ipie para
livros d'analyse e de visão.
Todas as epochas litteraiias de resto teem
lido d'estes incrnstadores e mosaistas, seden-
tos (riaedito. (Juem percorrer as Vingens de
Clarret, reconheceu légua, na ductilidade ma-
ravilhosa dos seus períodos, na diversidão dos
rythmos, na procura fugaz de certos modos de
dizer, profundas suggestões da litteratura fraii-
ceza e ingleza, trazidas do exilio. Quando
em Françíi vieram a lume, lia trinta annos, os
primeiros romauces dos Goncourts, a sua for-
ma atormeutada, a sua dolorosa procura do
epitlieto raro, e o sen tresvio proposital dos
rythmos consagrados á factura excessivamente
grammatica do período, subleváramos críticos,
por forma ipn; a injuria pessoal supriu apo-
pleticamenle a discussão scíentific^i,e critico ne-
nhum, (jtu' ao mesmo tempo fosse um ((uazi
nada phihilogo, soube explicar a([uelle esforço
(los dois artistas, por essa lei vital da lingua-
gem (|ue ensina (pie as palavras estão snbjeiUís
;i deteriorações ort;anicas, como coizas vivas,
lêem periodos de plenitude e de regresso, e que
o uso as púe, e a velhice lhes faz perder o va-
lor circulante, d'onde a necessidade de as re-
novar e dispor constantemente em grupos
inéditos, e de fazer com ellas orpheons que
mordam bem no ouvido. Todos se recordam
talvez da critica de Sainte Beuve, ao livro de
lialsac: Memoires de deuxjeunes marees, biblia
d'amor que as mulheres devem lèr antes da
imitação de Christo, e acerca de cuja essência
poética e de cujo estylo, não ha mais contro-
vérsias, lioje em dia. É imi livro de coração e
de linguagem revelada. Pode-se escrever mais
pintado, mas a perfeição alli chega, e aquillo
V eterno como o mármore. Pois meus amigos,
a opinião da critica coeva foi que o assumpto
(]as Memoires de deux jeiínes mnriécos, era im-
moral, e quanto ao estylo, pura aravia de co-
cotte... mulata! Decorridos trinta annos,acha-se
o seguinte: toda a moderna prosa de romance,
deriva de Balsac e dos Goncourts, em linha
recta, como de renovadores ubérrimos e magni-
ficos. Os seus exageros tomaram curso na lin-
giia, as suas phrases arrevesadas, a sua paixão
do termo technico, a sua monomania do de-
14 os GATOS
Jalhfí riifudu, d uulrance, tudo ishi (|iie d'an-
tes era vicio e excrecencia, campeia ai^ora en-
tre os mais b(ilios reriuisitos tia educarão (Fum
prosador, e mercê dos esforços d'a(pielles trcs
grandes visionisUis da palavra, teem os fran-
cezes uma lingua rara, desarticulada até -djan-
i/lerie, mordente lí viva, e |ireslando-se, como
neniiuma outra, admiravelmeide, á interpreta-
ção dos mais subtis camijiantes do pensamento.
¥A\lre nós, alarga-se o horisonte no pro-
cesso lillcrario, a observação e a experiência
são proclamadas meios fundamentaes da con-
cepção artística? Pois bem: tanto maior ne-
cessidade d'irmos aos mercados da Europa
fazer provisões de materiaes reparadores, vo-
cabulário mais technico, e typos de periodo
mais ligeiros — turbinas e cursores emfim, de
que a nossa prosa ha mister, para fazer cur-
vetear sem tropeço, o pensamento.
É por exemplo este o caso d'Eça de Quei-
roz, como prozador do nosso tempo. Certo,
não é propriamente portuguez o que elle es-
creve. Mas em que lingua queriam os senho-
res que elle escrevesse a edição definitiva do Pa-
dre Amaro? Na prosa de Chagas, na prosa de
Latino Coelho? Os (|ue admittem a possibilidade
os GATOS 15
(l'esle absurdo, não fazem a menor ideia das
incompatibilidades recônditas do problema.
Já fiz notar que as palavras se gastara, co-
mo as medalhas, pelo uso, e que a còr das
iibrases, a acção do tempo a dilue c murcha,
coino a tinta dos estofos e dos quadros. Umas
tornaram-se bassas e soam rachado, outras
tiirgeceram de sueco, vaiãaram outras de sen-
tido, 6 enfim algumas, carregadas de nuances,
furta-côres como certos failles, teem de ser
usadas só de longe em longe, com uma estre-
mada prudência e discrição. De vinte em vinte
annos, na vertigem de vida cerebral que tudo
queima, o idioma varia, como as ideias, ao
sabor de milhares de correntes indomáveis,
vindas, como expliquei já, de toda a banda, da
sciencia, da arte, da industria, do cosmopoli-
tismo das viagens, dos caprichos da moda, das
monomanias gloticas do momento: c d'esta
forma não ha meio de sustar que entre na
lingua, com as pérolas, o lodo dos enxurros,
lodo que por ser lodo, fertilisa como um hú-
mus, bem apezar dos exorcismos dos gramma-
ticos. (b)
(h) A vida contemporânea, com os seus mixtos de
paixões e d'interesses, com as suas fortes prcoccupaçõcs
16 os GATOS
Quem se não apercebeu já, lendo por exem-
plo as Folhas Colndas de Garret, ha quinze
annos ainda entre nós consideradas como a
maravilha lyriciJ por excellencia, que muitos
(raquelles versos deixaram de ser versos, e
([ue foi a certeza d'isso que deu azo á forma-
ção (fuma poética nova, i-efulgente nos sone-
tos d'Anthero, nos alexandrinos de Junqueiro,
nas descriptivas de Gomes Leal e de Cezario.
nas lyricas de António Feijó e de Queiroz Ri-
beiro, e infinitamente mais longe da prosa do
que a poética de 1830, mais escripta, e mais
inacessível portanto ao gosto inculto dos que
vivem fora d'uma certa iniciação? f^:)
Cada vez mais, á medida que esta especia-
lisação da lingua poética caminha, o vocábulo
de dinheiro, tem a sua melhor forma d'expressão u'uma
prosa complíxa e multiplicf, que regi-tre as cifras e se permil-
ta termos ile calão, que vd ate d technicidade scientifica, e no
entretanto, em certos momentos, module um canto, o;i nos mos-
tre uma paysagem.»
P. Botirgct.
(c) Os elementos d"esta linguagem especial consistem
principalmente na importância da rima, e na v-ida indepen-
dente que os poetas pretendem dar a cada um dos seu.-.
versos.
os GATOS 17
se faz raro, e o rjihmo libra a essência do ver-
so, divorciando-o da prosa, aos transcenden-
tes olympos da musica, e aos processos de
relevo da pintura. Ora, qual ha-de ser a con-
sequência lógica d'estíi marcha? Ha-de ser a
seguinte:
— Pelas saliências da rima, e pelos timbres
exóticos da expressão, a poesia torna-se, ipso
facto, n'um preciosíssimo transmissor d'obje-
clos visíveis: e eis porque os paruazianos t/(V-
crevem d'uma maneira tão inimitável.
— Pelas preciosidades da vunxce, e pel.is
suggestões patlieticas em que o espirito do
poeta se banha, buscando o fdão recôndito da
\ida, a poesia, cessando de ver largo, para vèr
minucioso, desvirilisa-se ipso facto, e como
instrumento d'indagação psychologica, só pode
«Quem estudar Victor Hugo, vê que as palavras es-
senciaes da phrase, collocadas na rima, fazem como que
uma articulação visível ao período poético, e verá também
que muitos versos formam um todo isolado, graças ás re-
lações inesperadas das palavras, á harmonia sabia das syl-
labas, e á escolha d'um vocabulário mui pictoresco. São
isto processos de relevo, que refundem o velho metal da
lingua velha, e o juvenescem para a esculptura da poesia.»
P. 'Bonreet.
i8 os GATOS
applicar-se á dissecção dos pequeninos pro-
blemas interiores — razão porque os nossos
poetas modernos, os maiores, os mais divinos,
só estão á vontade em composições de poucas
estrophes, sempre que o thema d'ellas seja
psycliico.
Comprehendcm agora como estas duas pro-
posições levam a esfoutra: a linguagem poé-
tica, pela evolução que toma, tornou-se abso-
lutamente incompatível com as composições
theatraes de grando fôlego, e órgão de phan-
tasia e de capricho, só poderá servir, quando
muito, para entreactos de frágil mxabouço.
Applicar o verso moderno á litteratura más-
cula que é por exemplo o drama histórico, de
duas, uma: ou é dar mostras d'inconscicncia
artística, pela mú escolha do estylo, e pela sua
falta d'adaptação ao assumpto; ou é tomar a
poesia como artificio distrahidor de faculdades
dramáticas que faltam, e ficaram ditas no fas-
cículo anterior, e incorrer por consequência
n'uma suspeita de mesquinharia e má fé, in-
dignas da arte.
E assim, ao cabo dVxplanações já longas
para as dimensões actuaes d'este pamphleto,
e que ao pueril leitor haverão parecido som-
os GATOS 19
niferas, chego a concluir que a actual littera-
tura dramática original, é, no flm de contai,
quasi tão inferior como a traduzida.
O afastamento é o mesmo, quer na coni-
prehensão do assumpto, quer no cultivo da
linguagem, e todo o meu amor das lettras pá-
trias, posto em jogo, pensando bem no alcance
d'essas obras, por mais que faça, não tenho
coragem para pedir ao publico faça por ellas
um sacrifício. A primeira coisa que lhes falta
é o talento, e depois do talento falta-lhc quazi
tudo o mais. Recapitulo portanto a summula
dos fascículos que já escrevi sobre o theatro,
e concluo:
— Os logares são mãos, e as peças são
pcores. Logo, o que haveria no theatro portu-
guez digno d'interresse?
— Haveria os actores. . .
— Bem! vamos lá aos actores.
O que é um actor? O esculptor de si pró-
prio, «um pintor de retratos, diz Coquelin,
que depois de os ter pintado com a sua carne
e o seu sangue, se decide alflm a animal-os de
20 os GATOS
vida psycliica, Iraiisfiltraniio-llies nos corpos a
sua própria alma.» É pur coiisL'(|utMicia o actor
um ser duplo, licutro de cuja carcaça algnem
concebe o personaiíein, lai como elle se fez no
espirito do escriploi', para logo outro alguém
traduzir em vulto, a concep(;ão, serviudo-se
para isso (raipiella mesma carcaça, convenien-
temente plasticisada sob os seus dedos destros
e mandados. É um ser feito de dois, e vou di-
zer. Um que cria e ordena como mestre, ow-
tro que obedece e executa como servo. Na
creação pois d'um typo scenico, ha dois labo-
res inconfundíveis: a composição mental da
figura, e a modelação e restituição d'ella ao
publico, por via de manobras exteriores. Se
estudamos o primeiro, liemos (pie desdobral-o
ainda, d'esla forma :
a — concepção mental do personagem, su-
bordinando-a ás relações e afinidades do meio
social que a peça synthetisa.
b — concepção do personagem, considerado
em si e isoladamente.
Se estudamos o segundo, isto é a restitui-
ção da figura ao publico, o papel re])resentado,
haveremos que considerar lambem os seguin-
tes pontos:
os GATOS i2'l
c — pictoresco, ou o estudo exierno do per-
sonagem.
(i — vóz, articulação, dicção, e olhar.
e — caracterisação e vistuario.
/"^jogo de scena, mimica, etc.
g — justeza e unidade no personagem, etc.
O especificar detalhadamente cada um d'es-
tes grupos de factores artísticos, a que o actor
tem d'obedecer, e de cuja observância total
sae a creação scenica, inteira e ovante, seria
trabalho digno d'apaixonar um analysta menos
sacrificado do que eu, a restringir, por falta
d'espaço, as desinvoluções e subtilezas que o
assumpto comporta. Infelizmente porém ag
minhas notas haverão que ser quazi em estylo
de telegrapho, ficando aqui, em vez de critica,
apenas um esqueleto ou summario, (|ue outros
desenvolverão depois, com mais vagar. E isto
dito, comecemos.
J — concepção mental do personagem, em
si, e nas suas relações com o meio fa e b).
Por si só, o estudo do meio social, ensina
ao actor a natureza histórica e moral do per-
sonagem, cercando-o logo ifatmosphera soe-
^J2 OS GATOS
nica, e dcslacando-o ifiim fumld (lefiuadro,
([ue quando entrevisto nitido pelo actor, não
mais lhe faz perder pé na interpretação do pa-
pel. Como entrever então esse fundo de quadro?
Estudando o actor a peça inteira, por succes-
sivas leituras, em vez de restringir o seu tra-
!)alho só á retentiva da parte que llie foi dis-
1ril)uida, como entre nós succede. O contieci-
mento da peça por completo, fixará no espirito
do artista as linlias mães do quadro social (|ue
se pretende, com as suas características d'epo-
cha e de classe, se as liouver, tópicos estes
([ue lhe guiarão o senso artístico depois, á des-
(■:iberta das outras nervuras principaes do per-
sonagem. Estas primeiras noções obtidas, na-
da impede ipie o comediante as desenvolva e
aperfeiçoe por outras vias, livros de historia e
de biographia, de memorias e d'anaiyse sócia!
complicanfes c"o assumpto, ou emfim, obser-
vações do natural, colhidas nos meios que
de mais perto digam c'o meio social da peça.
É este também o traballu diflkil, e as induc-
ções (jue elle exige, os únicos actos mentaes em
que se toma pulso a um artista superior. Uma
vez conseguida a integração da figura no qua-
dro, a composição mental d'ella, isolada, é pou-
os GATOS á.-]
ca coiza, e mil recursos e pequenos artifícios
scenicos ahi estão p"ra a auxiliar. Trata-se de
fazer um avarento, llarpagon por exemplo. O
actor escolherá de muitos avarentos, para for-
mar a alma d"este, não os caracteres seccun-
darios e facilmente anómalos, de todos, senão
os caracteres distinctivos, fixos, ou como se diz
na classificação zoológica, dominadores. O seu
conjuncto dar-lhe-ha então a concepção do
avarento isolado, do avarento em geral, que
já se vè, não é um certo. Mas como o meio
social modifica os tj^pos á sua feição, o avaren-
to que se pretende sae da figura obtida pelo
processo supra, modificada por todas as con-
diccionaes (pie o estudo cuidadoso da peça for-
necer, e mais por aquellas que o artista colha
em flagrante, observando na vida,lypos simi-
lares do que vae crear. D'esta forma já o pu-
blico não (lii'á, vendo Brazão ou Joaquim de
jVInieida : — Bem sei, isto é Brazão! Bem sei,
isto é ,loa(iuim dWlmeida — nem Iam pouco: —
Isto é Shyiloc, on é isto o pae Grande! . •
Mas ha-de dizer por força:
— Isto é Harpagon !
Tal a doutrina, .\gora, que re peito in-^-
pira ella em palcos portuguezes? Eu lhes di-
2* OS GATOS
go. Salvo um ou outro caso raro, não iaspira
respeito nenhum. O estudo dos meios sociaes
é iettra morta, a cjuazi totalidade dos nossos
actores nem sabe o (jue isso seja, e é a razão
porque em peças de guarda-roupa, como ainda
ultimamente na Morkt, cada actor se vestiu
como lhe aprouve, e caracterisou e exprimiu
como lhe fez conta.
Em pai1e, a culpa ê das peças ; nas ori-
ginaes, ponjue sendo ellas um apontoado de
scenas inventadas, sem observação, nem theze,
nem razão pbilosopbica tlagrante, esse meio
não existe, ou é tão vago e incongiiiente (}ue
não vale a pena o actor aíinal-o, sob pena de
parecer mais papista do que o próprio drama-
turgo ; nas traduzidas, porque esse meio es-
capa ainda, ou mesmo não interessa, estando
portanto o actor naturalmente dispensado de o
curar.
Dir-nie-hiam agora: — todas essas deficiên-
cias d'estudo do actor, podem ser supridas pela
explicação dos ensaiadores e dos próprios an-
dores dramáticos, os quaes por via d'ensaios
repetidos, e conselhos, restabeleçam na peça a
afinação e a lógica que todo o desempenho
quer, p'ra não redundar em charivari. Õra isto
25
seria bom, se os nossos ensaiadores não fos-
sem actores falhados, que as eniprezas mantém
por caridade, e se os actores estivessem dis-
postos a ouvir, sem desdenhosa solercia, as
observações dos dramaturgos. Todos sabem
como se faz, por exemplo em D. Maria, o pre-
paro d'uma peça. Os actores apoderam-se dos
papeis, de que mais gostam, e não d'aquelles
que por suas desinvoluções e cambiantes mais
lhes vão ao temperamento. A cada momenío
essas tumultuosas escolhas dão conflictos en-
tre empolgadores do publico, rivaes, actores
e actrizes: e ensaios da peça, marcação de
scenas, toiiettes, tudo é subordinado aos aca-
sos do brilhante que o galã tal e o centro tal,
contam tirar de taes e taes situações. Por ve-
zes, quando os actores se lembram d'achar os
papeis paiiidos ou mes(|uinhos, e não jiodem
a uma cei'ta altura da peça, esmagar o rival,
eil-os exercendo pressão sobre o escriptor, a
que este amplie, aqueça, corte, modifique, as
passagens que se lhes afiguraram insufficien-
tes para as escamoteações do applauso cubi-
cado. Ha assim peças que ao chegar á primeii"a
noite, já não conservam da factura primeira,
senão bocados descosidos, ponpie o actor pre-
26 os GATOS
pondeiante as declarou nos ensaios, som con-
dições, e porque o dramaturgo fransigente o
que quer é ganhar a sua vida. Sei que isto é
muitas vezes motivado pela debilidade technica
das peças, pela falta d'espirito e viveza nos
diálogos, e pela ausência d'interesse nos en-
redos, mas não posso deixar de dizer que esta
collalioiação forçada do actor, na substancia
lilteraria (Taípiellas obras, destroe completa-
mente o pi'esligio do escriptor perante o actor,
inal dispondo portanto este, p;ira aceitar d'a-
([uelle, objecções.
D'esfa maneii"i afinailo, sem indagações de
caracter psychico por banda dos artistas, sem
uma adaptação cuidadosa da Índole dos per-
sonagens da peça, á Índole dos comediantes,
sem explicadores eruditos, nem cicerones ex-
perimentados, é claro que o desempenho d'urna
peça jamais logra de ser uma maravilha de
justeza. Se ella ainda tiver predicados de fô-
lego, lá conseguirá resistir ás arbitrariedades
(pie os actores lhe fazem sofTrer; em caso con-
trario o desastre é eminente. Se já viram a
Morta, lião-de reconhecer a Iristissima razão
do que estou expondo. Onde, entre os nume-
rosos papeis d'aquella tragedia, um desempe-
os GATOS 27
nho d'aclor, um só, que revele a coucepção
mental do personagem? e onde no ensemble
da peça, d'um acto único, d'uma scena, coiza
que cheire a estudo d'epocha, e a uma res-
tíiuração do meio social?
Sabe-se que a peça é medieva por os acto-
res vestirem de guarda-roupa, fallarem em
verso, e atirarem as pernas como quem faz
girar, sobre uma planta de casa de banhos,
os bicos d'um compasso. Sabe-se (|ue João
rioza è Pedro primeiro, por lodos lh'o chama-
rem, não que os seus fungos de choro e ber-
ros de vilello visionem o lado sentimental e
justiceiro d'aquelle rei. Cada qual alli vestiu-se
como quiz: ha fidalgos contemporâneos de
ignez, com botas (relastico ; as damas somenos
trazem capirós e chailes do Grandella, em-
(juanlo as principaes se embuçam, como Vir-
gínia na scena da cripta, em sorties de bal do
ultimo modelo parisiense. Por qualquer lado
(pie se aprecie o desempenho d'esla obra, a
curta vista dos actores surge a momentos, com
verdoiros parli-pris d'irresponsabilidade e in-
comprehensão, só comparáveis á ligeireza d'al-
ma com que o auclor d'ella, abordou, em ver-
sos d'album, um assumpto que só poderia ter
-28 os GATOS
VOZ em versos de Shakespeare. O que lia-de
ser, senhores, pois se elles estudaram lodos a
corte de Pedro 1, nas Doidas em Paris, do Monte-
pin ! . . .
II — (cj suppòe-so então concebido o perso-
nagem; trata-se agora de lhe dar niaterialisa-
ção sobre o tablado. Por(|ue maneira? lia uma
única: adaptando a figura do actor, quanto pos-
sivel, á representação plástica do caracter estu-
dado.
Já fiz sentir como o actor se desdobrava,
ou devia desdobrar, n'um que via, e era a
alma, e n'outro, o corpo, cuja missão estava
em cumprir as metamorphoses exigidas por
aquella. Acrescentarei: quanto maior o as-
censo psychico d'um, sobre a transformavel
argilla do outro, tanto mais bem disposto o
artista para as creações da scena. O ideai se-
ria que o seu corpo, como uma cera molle,
tomasse sem reacção todas as formas que o es-
tudo interior dos papeis llie suggerisse. Kntanto
esta harmonia funccional é absolutamente theo-
rica, assim perfeita, e (piandon'aigum homem
de theatro chega a dar-so, em approximado, o
os GATOS -29
artista que rezulta éiima crealiira de prodígio.
O frefiueiile no actor é algum dos dois sobrele-
var ao outro, em certos pontos. Por exemplo,
António Pedro, que era o specimen do génio
inconsciente, reagimlo sobre uma figura pas-
siva de macaco, só em papeis de caracter ma-
cabro e plebeamente trágico, como o de pro-
fundis do Sargento mór de Vilar, o Paralytico,
e o coveiro do Hamlet, conseguia ser prodi-
gioso, e todos os papeis de homem de socie-
dade lhe falhavam.
Esta parcialidade explica-se por uma falha
nos meios maleriacs de dar vulto ás vi-
sões do génio creador. Por idênticas razões
Coquelin tem levado a vida a evitar os galãs
dramáticos, e Lucinda deixa completamente
cm branco os papeis sentimentaes e apaixona-
dos. É o temperamento, a educação, os late-
jos Íntimos da indole, os recursos externos da
figura, do olhar, da vóz, etc, a lhes prohibi-
rem de visionar certos relances da existência,
e a lhes apontarem outros, dentro de cujo
schemma caibam a expansibilidade e a porção
de sonho que os anima. Aqui o espirito cria,
mas o corpo recusa-se a exprimir. Pôde acon-
tecer também o caso inverso, isto é, ser obe-
30 os GATOS
(lientissirna a argilla plástica, e não l:,iver to-
davia sobranceira a eila, nma inlelligoucia in-
(lagante, que a transfigure e domine, a seu
mister. Eis a caracteristica dos actores de meia
tijella, a caracteristica da mór plêiade dos nos-
sos comediantes actuaes, que faltos d'estutlo
ou faltos de talento, o certo é que não curam
da psychologia dos papeis, e recorrem a arti-
fícios sem probidade, como certos lies de ca-
racterisação, de mimica, vóz, etc, para deita-
rem poeira nos olhos da platea. São os exclu-
sivistas do recorte exterior do personagem, os
escamoteadores do pictoresco, que reprezen-
tam decalcando, e que teem restringido a arte
de reprezentar a meia dúzia de receitas d'al-
manak.
Entendamo'-nos todavia: é necessário não
desleixar o estudo externo da figura, mas sem
fazer d'ella mola real de qualquer espécie de
sucesso dramático, (d)
(d) «... eu não vou contra a ideia do actor colher
na natureza, traços paniculares que digam o homem inte-
rior, porque é um dos recursos do comediante, surprehen-
der e notar de passagem os signaes e particularidades ex-
ternas, dignos da scena. Entanto cuido que se devem co-
os GATOS 31
Coquelin já tinha escripto «é do caracter
(|ue tudo parte. No theatro, como na vida, a
alma é que dá relevo ao corpo, a coiiformatiira
lio espirito quem amar(;inha de tal e tal maneira,
a physionomia e a estatura». Vejam as com-
|ianliias de quazi todos os theatros de Lisboa,
mencionadamente as do Gynniasio e da Trin-
dade, eiias permittindo-se alterar o texto dos
papeis, gaguejar as falias, pôr estribiliios e
trucs de seu invento, explorando até á náusea
o sentido duvidoso das reticencias, deformando
as intenções, insistindo em tics de mimica e
caracterisação que nem palhaços. . . e para cu-
mulo de miséria, a critica dos traductores li-
songeando-Ihes quotidianamente estes baixís-
simos processos de factura, e não querendo
vér que este monstruoso abuso do detalhe ex-
terior, sem escoras artísticas d'outra pujança,
Iher somente os traços significativos, e adaptal-os com
discrição, evitando os que sejam puramente individuaes.
Seria por exemplo erro palmar, reproduzir um certo
avarento, conhecido nosso, ao querer mostrar Harpagon
ao publico, Harpagon que é todos os avarentos, e de que o
actor, procedendo como acima, só conseguiria dar um dos
recantos episódicos do caracter.-)
Coquelin ainé.
:>'! os GATOS
leva forçosanienle á caricalni'a e á marioiíette,
e corrompe o gosto, por forma que o publico,
perdida a noção real do actor e da arte sce-
nica, vae procurar nos palhaços do Colyseu,
o supremo da pochade de que os actores por-
tuguezes lhe forneceram d'antemão os urdi-
mcntos. Quanto á porção de prazer que infunde
no auditório esse pictoresco com que por ahi
se intruja, nada eu coniieço de mais fugaz
como artificio. O espectador, apenas entrado
o actor com o seu tic, não pensa mais n'elle,
ou fatiga-se e enfurece-se, no caso da em-
polgação teimar como se lhe niet(!r á cara.
Toda a creação d'arte scenica externamente
se traduz, dissemos, por processos de communi-
cação fallada, mimada, c visuada — permitta-se.
(d) Depois do estudo interior do persona-
gem, o preparo da vóz (|ue lhe corresponde,
será o primeiro cuidado do actor meticuloso.
Pensar (pie o artista deva applicar á scena, a
vóz de trazer por casa, é exhautorar a arte
(Tum dos seus mais empolgantes meios <ie ca-
tchésc. A diversidade é uma das caracleristicas
da vida. Duas cabeças não pensam egual,dnas
sensibilidades raro teem reacções idênticas:
assim as vozes que exprimem as ideias de duas
os GATOS 33
cabeças, e as reacções de duas sensibilidades,
não podem ter valores acústicos e qualidades
d'estylo similares. Mil determinantes auxiliarão
pois o artista na descoberta da vóz conveniente
ao personagem. Todos sabemos que ba vozes
profissionaes : a do boniem do mar divergindo
da do fadista, a do negociante destrinçando-se
completamente da do medico e da do orador.
A vóz variará também na proporção das deter-
minantes psychicas da figura: os bypocritas
não faliam como os francos, os simples não
articulam como os cynicos, os audaciosos teem
um timbre diverso dos acanhados. Ilamlet não
pode ler a mesma vóz do que líomeo, o tim-
l)i'e d'Yago deve evitar o clanglor vingativa-
mente hei'oico d'Otliello. Cultura, edade, feitio
intimo, suggestões de meio, factores moraes,
eis os pollegares sob cuja pressão o filete de
vóz molda o caracter, como um macio barro,
d'onde o artista fez sahir, alada, uma escul-
plura.
E ao sabor d'estes agentes, não é só a qua-
lidade dos termos que muda, mas o limbie,
o fôlego articular, a maneira d'emittir e pre-
cipitar os períodos na dicção, e toda a habi-
lidade do actor estará em fallar o jiersonagem.
34 os GATOS
dcsenhando-0, profilando-o, de sorte que até
os cegos possuin vêl-o. Ora n'este ponto, eu te-
nho visto fazer cm D. Maria papeis de scxa-
genaiio, com timbres de capão, e vellias priu-
cezas de Dumas, n'uma preciosidade tal de fal-
ias, e regateirismo d'acccnto, (jue as mata-
ríeis logo por costureiras e patroas de casas
de hospedes, viajando incógnito.
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