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FIyLHO D'ALMEIDA
os GATOS
PUBLICAÇÃO
DIXQUERITO Á VIDA PORT'JGUEZA .
1V.° íj— 20 (l(! Julho (ie {892
SUMMARIO
A MASCARADA DA MORTE TESTAMENTO DUM
CONTRACTADOR DE BENEFÍCIOS CORTEJOS FÚNE-
BRES d'aLUGUEL, E DEDICATÓRIAS NAS FITAS Á
VONTADE DO FREGUEZ AS COMMISSÕES DE CAN-
GALHICE VISITA AO CEMITÉRIO, E PHVSiONOMfA
BURLESCA DOS JAZIGOS OS DE CAMPAINHA ELKC-
TRICA, OS DE BANQUINHA DE CABECEIRA E TOLDOS
DE RAMAGí:M FERRAGEÍRO ESPIRITUALISTA, SEUS
DICTAMES EPITAPHIOS-TABOLETAS A INCONSOLÁ-
VEL DE TRÊS MARIDOS, SEGUIDA DE CONSELHOS
AOS QUE SE CASAM NO CEMITÉRIO DOS POBRES',
CAMPAS TREPIDANTES PSVCHOLOGIA DO TERROR
II os GATOS
— os EPiTAPHios humildes: Maria julia, ramei-
ra, E ROZA JOAQUINA, CREADA DE SERVIR O QUE
NUNCA FEZ MAL AO SEU SEMELHANTE, E e QUE PRES-
TOU SERVIÇOS Á INSTRUCÇÃO EPITAPHIOS EM VER-
SO E EPITAPHIOS FIGURADOS BRINDES d'anNOS
AOS DEFUNTOS INQUÉRITO DO FigaVO SOBr.E A
PSYCHOLOGIA DOS MACaCOS: SE DÃO GUINCHOS
d'aLEGRIA Á PAPAROCA ? SE MANIFESTAM POR GES-
TOS SENTIR A MUSICA ? CARACTER CATHEGORICO
DAS NOSSAS RESPOSTAS, COM EXEMPLOS DA HIS-
TORIA CONTEMPORÂNEA O FESTIM DA MADAMA CA-
NÁRIO, COM BREVÍSSIMOS APUNTOS QUANTO Á IN-
TELLIGENCIA DOS OUSTITIS EXPLICA-SE POR PSY-
CHOLOGIA O PKENOMENO DA AGUA NA BOCCA SO-
CIABILIDADE E JORNALISTICIDADE DOS ORANGOS
ESTUDOS EXPERIMENTAES DO DR. SOLLIER SOBRE
AS COMIDAS DE BORLA MACACOS MELOMANOS : O
VIOLINISTA SIVORI, E EFFBITOS CURIOSOS DO HYM-
NO REAL SOBRE O SR. JOSÉ LUCIANO — ORANGO AMO-
ROSO— VIAGEM REAL A COIMBRA, OU COMO SE CON-
QUISTAM AS CIDADES TELEGRAMMAS PARA OS
JORNAES — A ACADEMIA PERANTE AS MAGESTADES
AMANHÃ.
J:^^>-
2 de jitlho.
Foram segurameate as disposições testamen-
tárias do sior H., fuiaiio que no Bairro Alto ex-
plorava um commercio de vinhos e tabacos,
juntaraeiííe com a monomania da evidencia,
que me pozeram no eucalce das mascaradas
mortuárias de que hoje vou traçar a chrouica
estrava gante.
O sior H. quando chegou a um pé de rela-
ções com jornalistas, entrou a achar a quitan-
da dos vinhos pouco á altura dos seus méritos
=vender vinho é realmeute uma profissão em
que ninguém falia de nós — vae, meteu-se a
emprezario de toiros e a contractador de bene-
fícios, até que morto de fígado e tendo toma-
do gosto aos reclames dos jornaes, redigiu elle
mesmo, seis necrológios, para insei-ir no dia do
seu trespasse, em seis jornaes — seis vezes em
cada jornal — alternando-se os textos d'unsprós
outros, em lermos do pnblico se persuadii' de
4 OS GATOS
que em cada papel se tivessem occupado do
sior H., seis redactores.
Porem não fica n'isto a exliibicão do pifio
megalómano, que organisára as suas coisas por
guiza a ter na morte o melhor dia da sua vida,
ordenando aos lierdeiros cobrirem-lhe o caixão
com duas ou três dúzias de coroas, ricas todas,
e tendo nas fitas dedicatórias de clubs e figu-
rões mais em successo nos racontares da capi-
tal, acrescendo o encargo de o acompanharem
á cova alguns daquelles illustres personagens
(dizia os nomes), e mijarem-lhe discursos dois
€u três que fossem deputados e jornalistas — Ma-
galhãesLima em todo o caso — condição sem a
qual toda a herança ficaria sem valor.
Seguia-se uma Hsta de remunerações para
cada convidado^ por escalas de popularidade e
roupa branca, verba para tipóias e coroas voti-
vas, e emfim traslado do estylo em que cada
supposto offertante seria obrigado a exalçar, nos
baixos das fitas, a memoria do illustre cidadão
ftque todos deploramos»).
Na Rua Nova do Almada, esquina do Chiado,
o sior P. Z., com loja de pompas fúnebres, of-
ferecera ás famílias, dias antes, pelos annun-
cios dos jornaes, esta singular mistificação:
os GATOS 5^
transportar ao cemitério os defuntos com coroas
d'alugiiel, a preços Ínfimos, pondo-se-liies nas
fitas dedicatórias, d vontade do fregmz.
Espavoridos pelo terror de perder os contos
de réis testados pelo slor H., os herdeiros ti-
nham vindo ter com o negociante de homena-
gens fúnebres fingidas^ a pedir-lhe de mãos
postas que os salvasse, por forma ás disposições
testamentárias se cumprirem, sem menos cabo
das pessoas citadas a comparecer, pelo sior H.,
no seu enterro.
E á hora d'eu chegar á loja, graças ao espi-
rito inventivo do logista, quazi todas as difficul-
dades iam de vencida ; quero dizer, por uma
modesta espórtula, sociedades recreativas e
scientificas consentiam na burla de se deixarem
prestar honras fúnebres a um maluco que nem.
de vista conheciam: homens illustres de todos
os partidos aceitaram com alvoroço^ n'estas
epochas de crise, a proposta de seguirem o ■
comboio mortuário por meia libra, tipóia á par.
te ; quanto cãs coroas do féretro, combinou-se
que fossem d'aluguel, e com dedicatórias, que-
enterro findo, seriam descoladas das fachas, ser-
vindo para outros passamentos pelintras^ como
novas. A respeito de Magalhães. . .Eis onda-
6 OS GATOS
torcia a porca o rabo, precisamente porque o
illustre cosmopolitera pozera o d'elle á parede,
e liem como republicano, nem como amigo, ac-
ceõia a via toni troar na sepultura do defunto.
Era o diabo 1 Tinha-se-lhe já variado umas pou-
(^as de vezes os termos da escriptura, acrescen-
tado á esmola algumas cifras... explicaram-lhe
mesmo que o sior H., leitor assiduo do Século,
nove annos, permanecera democrata, apezar d'es-
sa leitura ; mas Magalhães Lima moita, moita I
([ue não ia e que não ia! e quanto mais lhe
retrucavam que havia d'ir, que havia d'ir !
mais beliscões lhe dava no cotovello, a que não
fosse, o Silva Graça ...
D"informa em informa, indagação em inda-
gação, cheravisco em charavisco, vim a apurar
sobre a comedia da morte ainda outras estra-
vagantes minudencias. Que ha académicos, ge-
neraes, conselheiros d'estado, directores de
banco, etc, cujos alfinetes costeia em parte a
gorgeta percebida de se alugarem ás agencias
fúnebres como figurantes de préstitos pompo-
sos.
A Academia Real das Sciencias, a Sociedade
de Geographia, a Maçonaria, a Casa Real, a Uni-
versidade, o Grémio Artístico, etc, incluem no
os GATOS 7
seu budget anniial, secretamente, a titulo de
proventos fixos^ verbas derivadas d'esta ganan-
cia, tirando-se á sorte, nas epochas de renova-
rão funccional, as cliamadas commissões de
cangalhice, especialmente encarregues d'este
particularíssimo mister de carpir em nome da
conectividade, o enxun-o pagante, por um inva-
riável preço de tabeliã.
Que a este engenhoso recurso financeiro dis
corporações e personagens illustres do reino
vinha correspondendo por banda do publico
uma procura successivamente augmentativa^
um paladar exhibicional que todos os dias se
requintava, por forma que o dinheiro outr'ora
gasto com pobres d'azylo, nos enterros, hoje
todo se polarisa no sentido de os substituir por
vultos d'importancia.
Era isto progresso ? A megalomania d'alon-
gar cortejos mortuários pela encadenção (factua-
hdades illustres, offei-endas, e estardalhaços
discursivos (que foi o que ficou do centenário
de Gamões, exaltado pelos philosophos como
um acordar de nacionahdade) a( aso revela um
8 OS GATOS
povo marchando para a civilisação n'um poean
de gymiiastas? Será preito á chimica dar por
I exemplo quinze tostões ao José Júlio, para este
^acompanhar ao cemitério o meu sapateiro, que
se imaginou um dia homem de sciencia, por
• chamar á graxa um preparado?
N" estas cogitações saio uma maiiliã té aos
Prazeres, a vêr se nas campas continuava a
-cangalhice grotesca dos trespasses, ou se os ho-
mens, varados de respeito, ha^^am estacado às
portas da podridão subterrânea, para ahi des-
ligar os mortos do entremez das exéquias der-
í radeiras. Pobre Hamlet gastralgico ! porque ou-
- sei eu julgar um instante, ermos de farça, esses
• ossuarios duma capital de lúgubres fantoches!
Os cemitérios de Lisboa não passam afinal de
.grandes feiras de chacota, onde a galhofa dos
vivos parece que se compraz a fazer surriada
aos que estão mortos. A chufa ahi reveste as
modalidades todas que vão do versículo biblico
• iíelebrando a castidade duma pecora, té à la-
pide commemorativa da philantropia evangeli-
sta d'um preguista. Oh céus, que troça! Nem
os aííectos de família escapam á assuada, a
própria tristeza chorando ramella, em vèz de
lagrimas.
os GATOS 9
«Este monumento encerra
Aquella que muito amei
E junto a ella virei
Descançar na mesma terra. . .
O seu nome eu vos direi
Para que também venereis
Os restos da que chorarei
Maria se chamava,
José era o sobrenome,
Peixoto se appelidava.»
Jacente á rotunda do mausoléu do chimico
Aguiar, o esposo a chorar a esposa, em verso :
«Levavas tudo na vida,
Esposa sempre adorada. . .»
e infinitos de quem a legenda diz «bom cida-
dão, bom pai, e M amigo» — o que é, do fu-
meiro do tumulo, estabelecer uma concorrên-
cia funesta ao bacalhau.
Ruas e ruas do Campo Santo se percorrem,
suiprehendido da analogia d'ellas com certos
arruamentos da Baixa: os sepulchros, como
lojas, metem-se grandellescamente á cara de
quem passa, cada proprietário chamando a
. attenção [tor qual mais mirabolante ètalage de
10 os GATOS
cliochiees, coroas, poesias, faianças coloridas,
ornatos de vidro, trabalhos de chroché, tape-
tes pés de leito — a confusão mais forte, quan-
to mais se approximam, com o exhibicionismo
de hoje, as inscripções tumulares, das taboletas.
E' o merceeirismo da rua alfacinha em mor-
to, o esgare da caveira em vèz da cara, o pos-
tiço da lagrima litteraria torcendo pelo senti-
mental a piedade, em chufa discursiva.
«...A' MEMORIA DE...
apenas crmdo o Banco *** foi eleito seu the-
zoureiro, cargo que sem interrupção exercitou
até ao fim da vida
CIDADÃO HONESTO NA VIDA PUBLICA E PRIVADA
morreu honrado sem honrarias do seu valimen-
to com os poderosos da terra, nada aproveitou
para si, muito para consolar alheios males
VIRTUOSO PAE DE FAMÍLIA
os affectos domesticas foram jjara a sua alma
pura uma aspiração do ceu.
os GATOS 11
MODELO D'A1ÁIZADE
os dtfros sacrifícios que ella ás vezes cjrige, lhe
pareceram sempre suaves
GENEROSO E BEMFAZEJO
fe: muitr>s ingratos. Deus não esquecerá, elc.>->
Ao pé dos bairros velhos, onde sepiílchros
tisnados pela edade^ esquecidos de coroas, e
com as inscripções delindo á lima do desleixo,
poisam entre os pontos d' admiração dos bons
cyprestes, outros bairros recentes, de pedras
brancas, legendas novas^ flores e passeios mar-
giuaes acabados de bater, emprestam á fúne-
bre colina um ar jocundo o prospero — jazigos
alinhados, com seus i)ortellos verdes, seus va-
sos de fayança, suas cruzes ornadas, e por
dentro um conforto de cubatas, uns gestos de
visinhança cavaqueadora, fazendo adeusinho,
onde pela expressão vivida das casas té admi-
ra que não passem na rua, hortaliceiros, e ás
esquinas não haja botequins.
Esta expressão tanto mais flagrante^ quan-
to jioi' certos detalhes se reconhece como nin-
guém já hoje abstrae da morte, a vida.
12 OS GATOS
A grotesca pergunta dos palhaços de circo,
na pantomima do enterro «primo, estás morto
on estás vivo ?» todos a temos ido fazer á boc-
ca dos caixões, como o prova os Prazeres, onde
não são raros os jazigos com campainha eléc-
trica, banca de cabeceira, e naturalmente, pot-
de-chambre.
Nos Douradores fmou-se um ferrageiro, gran-
de somitego, mas pelando-se pela immortalida-
de da alma. Ordem para os herdeiros todos os
mêzes lhe levarem ao jazigo, o balancete...
Reparem nos mausoléus dos logistas: não ha
um só que não tenha toldo, com manivela e lík
treiro das confecções ; e quazi se espera vel-os
lá dentro, em esqueleto, sentados, a fazerem gi-
rar os polegares, por entre arrotos.
Insisto na analogia que architectonicameu-
te o Campo Santo tem com a cidade. Quem
uma vèz divaga nos Prazeres, jamais se furta
á imperiosa obsessão d'este detalhe. Os bair-
i-os correspondem aos bairros, justapòem-se
— o cemitério possue a sua Baixa, o seu
Buenos-Ayres, o seu Campo d'Ourique, o seu
Bairro-Alto e a sua Alfama. Ha cazebres com
lucarna e fuligem nos muros, a placa do segu-
ro entre as janellas; ha o palacio-mansarda,
os GATOS 13
vindo a baixo^ com o seu brazão musgoso so-
bre a porta; ha os chaleís catitas, com dois
cães de fayança no vestibulo; os palacetes bur-
guezeSí jardins, vidros de cores, uma placa na
hombreira cjue diz «cartas» — e nos jazigos mu-
nicipaes, em commoda, encostados ao muro^ os
grandes prédios de seis andares p'ra poucos te-
res. Por mais se faça, não ha meio de n'esta
lerra curiosa estar acabrunliado um só momen-
to, uma ironia hygienica sae dos coizas, com
o azul do ar, as paysagens do rio, o carnaval
gritante das «homenagens derradeiras», e mais
que tudo a expressão habitada que sae de den-
tro de cada um d'esses sarcófagos. Lisboa, ca-
pital nostálgica, só verdadeiramente é Madiid,
depois de morta; e se assim explica como as
mais intransigentes viuvas saiam do cemitério —
todas casadas.
N'uma avenida nova, um ri(|uissimo jazigo
de lavrantaria gothica, com alllictas estatuas
guizando em pedra a magna do costume, tem,
sobre a porta, uma inscripção plangente de
viuva (^esta memoria voto ao meu chorado es-
poso D. X., modelo de virtudes, que Deus per-
mittiu deixar-me n'este mundo de martyrios^ a
soffrer sua ausência irreparável ...» Aos dois
14 OS GATOS
lados outras taboletas descendo, com intruji-
ces da velha a dois maridos mais, té na ulti-
ma se dizer enfim que o quarto resolve res-
tituii-a aos ires que ella espichou. D'estas pde-
lidades turgesce a ucharia dos Prazeres. Ai do
matrimonio se os namorados fossem gargarejar
aos cemitérios !
Encruzadas por series, as ruas quadriculam
para dentro dos seus maimoreos quarteirões
pequeninos quintaes de campas razas, núme-
ros bj'ancos com placas negras, cyprestes, ce-
dios, moitas d" arbustos, herva e jaziguiniios
de pobres com parapeitos de sacada. E' a ci-
dade obscura dos de caixões aterra, dospromet-
tidos das larvas, tragados por não poderem pa-
gar-se uma salgadeira de pedra com perpetui-
dade, longe dos roedores subterrâneos. Colai o
ouvido ao peito d"essas campas; se como di-
zem, o coração é o ultimo a morrer, talvez al-
gumas segredem a que ideal votaram a sua der-
radeira pulsação. Terra vibratil, conta se d'es-
ses mortos esquecidos, a quando os devoraste,
elles soffreram. De feito, inda não hou';e meio
os GATOS 15
(restabelecer a insensibilidade absoluta, post
mortem, e as affirnintivas scieniificas não bas-
tam para gaiantir o repouso eterno, promettido.
Alguma coiza d"espirito fica a bruxulear na car-
ne que apodrece, e por isso talvez a igreja inter-
diz a cremação, esse refugio dos torturados pe-
las apprehensões agonicas do au-dcli\!.
Até porque indo aos covaes reparar na dis-
posição da terra carnívora^ é impossível não
vèr signaes de lucta em toda a parte, Covei-
los que teem dormido a sésla sobre as covas,
constatam que a certas horas o chão trepida
no sentido do diâmetro vertical da sepultura^ e
por seiies de quatro ou cinco estremeções. São
bule-bules hgeiros, que podem explicar-se poi-
correntes electiicas desagi-egando-se da chimi-
ca sepulcbral, em plena actividade â hora áo
calor ; por deslocações de gazes fugando entre
as repas dos intestinos putrefactos, mas prin-
cipalmente, cuido, por contracturas musculares,
attenuadas embora, por onde a forma humana,
inda com instincíividades de vida, reage aos
primeiros assédios do minério . . .
Por instantes dir-se-hia se apercebem em cer-
tos aspectos de terra, pedaços de seres que esta-
mos a conhecer sem poder explicar d onde
16 OS GATOS
nem como. Essas porções de fluido vão-se iso-
lando por fim da argilla solta, e a poder d'es-
forços lá adquirem typos ondeantes : a gente
não os vè, mas elles segiiem-nos, a todo o ins-
tante parece que vão tomar-nos da manga e fa-
zer pst, e o seu hálito calafria d'um regelo dia-
bólico a nossa nuca, até que nos voltamos, e
ainda os vemos u'um recanto d'alea, fugindo
entre a sombra abafada dos, cyprestes.
Cada bairro de mármore quadricula um d"es-
tes melancholicos jardins de covas razas, onde
as mais ricas teem grades de pau, e leitos de
ferro entrelaçados de sardinheira e rosas de
toucar. Nomes sem títulos, epitaphios singelos,
memorias de povo envergonhadas de chorar
deante de quem passa.
«.4 Maria JuUa, morreu no hospital, edade
19 annoSj, olferecem as suas amigas : anuo de
1889 „. Escuso d"explicar a condição de Maria
Júlia, ou dizer que amigas são essas que pa-
gam coval aparte ás mortas do hospital. Ha só
uma classe de mulheres capaz d'esta admirável
misericórdia, que Jesus talvez adevinhasse
quando levantou da terra a Magdalena. A es-
paço uma ou outra pedra coberta de ferrugem,
atirada d'um antigo iraneiro p'ra outra cova,
os GATOS 17
lettras delidas, longínquas datas, 180S, 1814,
e a gente detem-se com uma saudade d'aquel-
les moitos mysteriosos que viram tantas coi-
zas^ e que distantes apenas d'um século, já nin-
guém sabe dizer donde vieram.
a Rosa Joaquina, do lofjcir cVÁlqueidão de San-
to AmarOj, foicreada de servir: este jazigo o man-
daram fazer em memoria da sua dedicaçãOj, bom
ser V iço j, e exemplar fidelidade „ E' um jaziguinho
muito pobre, por cima um cypreste inda novo
desgrenha a carapinha verde aos voos dos pás-
saros, em torno as gredas deram de si, deixan-
do á ílòr da terra uns côncavos de tumba, borbo-
letas en haustos, como almas corporisando em
insecto a sua anciã de voltar — e raizes fulvas
furando, para triturar lá baixo craneos d'ope-
rarios . . .
Voltando aos ricos.
Balaustrada de mármore circumtornando uma
eça com tocheiros «.aqui jaz. . . filho legitimo
do snr. . . e da sr.^. . . nasceu. . . sahiu de
casa de seus avôs onde fora educado^ na tenra
edad^ de 11 annos e 3 mezes, viveu sempre
18 OS GATOS
incogi/ito íJf seus parentes, viveu SíWjíre na
bua aniumia com gs seus semelhantes, não só
em Portugal, como no Brazil, como nas Amé-
ricas nespanholas, onde rezidiu por algmn tem-
po; nunca assignou papel algum, para perse-
guir o seu semelhante, cumprindo sempre com
a maior promptidão todos os seus pagamentos,
etc. . . »
Typo trepitapliio dictado pelo próprio, com
a basofia das naturezas envelhecidas no autonria-
tismo da iionra commercial. O nunca assignou
papel algum é d'uma alma aspirando a ura
préstito cívico de canzeiros. Adorável vaidoso I
De cpaantos encostos seria englobado esse espi-
rito de concórdia, tão digno da assimilação sen-
timental dos agiotas ? Estamos-te a vèr, velho
boníssimo, estamos-te a vèr co'a baiba em pas-
sa-piollio, aparando botes dos pedinchões, só
pelo prazer de te gabares depois de morto.
E admiras-te com essa forma de bondade, \i-
sinha da tolice, admiias-te de teres vivido era
boa paz com os teus «semelhantes 1» Semelhan-
tes em que, espécie dingenuo ? Na chuchadei-
ra de te não pagarem, tu que cumpriste sem-
pre com a maior promptidão, os teus pagamen-
tos?
os GATOS 19
Mas onde o aiito-exhibicionismo attiiige o
cumulo da inbofia é no in memoriam do histo-
riador Luz Soriano^ ditado por elle próprio ao
mausoléu com estatua de bronze, onde repou-
sa. ((Notável se tornou este cidadão entre os seus
contemporâneos, tanto pelo grande empenho com
que abraçou e defendeu a causa constitucional,
como pela sua dedicação ás lettras, tornando-se
escriptor distincto, e favorecedor benemérito da
instrucção primaria, e superior.,, Como repor-
tage é verídico^ mas não sei poi"que, acre-
ditam-se sempre estas coizas melhor por bocca
alheia.
Ha ainda outros, quiçá roidos do pulgão da
idiotia. Por exemplo, do mausoléu d'um profes-
sor da escola militar pende entre coroas, um pai-
nel singular: o retrato do extincto cercado das
noticias impressas por occasião do passamento,
o nome dos jornaes e a data á penna, e algu-
mas gottas de cola chorando por entre os re-
mendos d'esta estapafúrdia grosseria. Quenir
por acaso lê, não pôde evitar risos de môfa,-
0 Correio da Noite diz que o professor cahiu
de lesão cardíaca: o da Manhã attribue-lhe a
morte á diabetis : o Século a dar-lhe cincoents
annos, o Diário de Noticias a pôr mais dez : es-
20 OS GATOS
les^ como pi'ofe?sor, acham-' ío um excellente
díeíe de família^ aquellespara lhe enaltecer os
talentos militares dizem que estava á bica para
a promoção ao posto immediaío. E a pobre pho-
íographia triste, babando um risopalhdo entre
aquellas imbecis locaes da jornalice à pressa,
direis se queixa do derespeito hoirivel de que
é victima — ninguém a escuta^ um ramo de hera
apenas colea do pedestal, como a pedir mise-
ricórdia ao viandante.
Mausoléu com enigma, typo raro. «.aqui jaz A. F.
Pedrosa. . . », a palavra Pedrosa figurada numpé
humano^ n'um D, e numa rosa, tudo esculptado
na lapide, minuciosamente. Influencia do Al-
maimch de Lembranças ? Indubitável que alli
reside um incorrigível charadista. Quem passa^
«staca, e emquanto encommenda a Deus o mor-
tOj vae-lhe decifrando o apellido, para o man-
dar depois áquella parte. Em poesia abundam
specimens de fazer inveja ao syndicato Canta-
gallo.
«Calha- me a mim a sorte
De ser alvo da infelicidade
Vejo -me perdido e desgraçado
Na felôr da minha edade. . .
os GATOS 2í
Que linda mocidade eu passo,
Para a vista dos meus manos,
Estou farto de padecer,
Ha dois bem longos armos.
"Vim a este mundo
Para ser tão desgraçado !
Antes me tivessem á nascença
O pescoço apertado...»
em baixo a assigiiatura por inteiro.
Na occasião dos aimiversarios fúnebres, o
costume de dar presentes ao morto pareceu-
me ir revestindo o caracter dum a bufoneria ori-
ginal. O usual é trazer photographias, com al-
gumas linhas de texto alTectuoso — como se o
defunto viesse á noite, cá fora, tomar nota do
nome dos olTertantes, para lhes ir deixar cartões
ao outro dia, O espectáculo é quanto pode ser
d'estapafurdio : aqui e além, em bocetinhas
de folha, envidraçadas^ sobrecasacas risonhas
olham o espectador como a lhe perguntar se
vae meio litro — damas de broxe, a três quar.
tos, fazem mirada com um ar de gargarejo —
meninas de cabellos cabidos... e por entre fitas
com dedicatórias de lettras de papel, todos es-
tes clichés tirados para mais alegres destinos^
22 OS GATOS
espreitam^ volteiros, em grande pandega, em
galhofa, como uma nichada (ie cavallões jogando
os quatro cantinhos.
Vocês acham grotesco, e ainda por cima indi-
.í,mam-se comigo. Se eu lhes podesse dizer a in-
:Sondavel tristeza que me enluta! O culto aos mor-
tos, esse doloroso soluço da saudade perpetuan-
do a fé nas lapides das tumbas, eis em que o
tornaram as desmoralisadas raças lisboetas,
sem poesia domestica, sem laços de familia,
sem religiões, sem crenças, sem delicadeza
d'alma e sem caracter, gentes que atiram aos
mortos o escarneo da mais jogralesca litteratice,
^ondo na cidade d'espectros o mesmo cunho re-
les que a capital do paiz ha muito tem.
Para a diagnose do caracter collectivo, o mo-
ralista escusa pois de perscrutar os hábitos dos
homens. Tem nos Prazeres o tombo da banda-
lheira nacional.
7 de julho.
O Figaro, sobre variações d'um inquérito á
psychologia dos macacos, pôe aos seus leito-
jes um questionário a que apendicularei modes-
os GATOS 23
tameiite algumas notas observaes do meu res
tricto convívio com estes nossos desagradáveis
parents pauvres.
1.° — E' positivo que a macacaria faça ouvir
algum grito ou brado especial, semelhando lingua-
gem articulada, no momento em que se lhe apre-
senta paparoca ?
Leitoies e subscriptores do Figaro escrevem
ao estravagante jornal, que é positivo, mas fa-
zem a confii-mação summariamente^ e apenas
um repatriado do Borneoe Singapura, o sr. Gaetan
de Maulne, cuida ter conseguido fixar as primei-
ras palavras d' uma linguasimiesca, contando que
a sua macaíjuinha japoneza diz Wan-Ki! Wang-
Ki ! Wang-Kihi! quando tem fome, Hin-ouan !
ouan! Ouk-iko! quando tem sede^ Ki! KUpoulouki
Koukld! quando nos quer dirigir seus cumpri-
mentos, e uma multidão d'outras caballas leve-
ladoras nos macacos, d'uma intelligencia refle-
xiva, paredes meias da do homem, que é como
se sabe a flor do arbusto animal, selleccionado.
A minha proverbial modéstia e ignorância
24 OS GATOS
do íVaiufcz e.^ciiiu» inii^ecem-me ilelransmittir
á folha de Paris ii'este momento o apuro do
miiiío que [.odeiia dizer sobre a matéria; en-
tanto íoimiilarei d"aqui meu pasmo relativo ao
i;oiíco que se sa])e la fora sobre os mysterios da
alma macacal. Quando ha poucos dias madama
Canário, a illusti'e cabareteira do Chiado, servia
á imprensa da capital um bodo de honra, esca-
moteado em reclame^ graças a um vidro de mon-
tra por onde o publico viu jantar de graça os
jornalistas, fácil teria sido ao estudioso colher
da mimica e guturalidades diversas dos con-
vivas, signaes á farta para a confecção d'um
tratado da falia nos bugios.
De feito^ notou-se que a simples vista do
cartão do bodo determinava n'estes animaes a
principio, grande alvoroço, revelado em pinchos
e coirimento de baba aos cantos do focinho,
depois do que lhes refulgia no faseias (as es*
pecics que teem o faseias moveD um sudário
d" orgulho, como se o facto d'um jantar de bor-
la os elevasse mais que o diploma de sócios da
Academia. Repaie-se que sendo o festim da
madama Canário só para dois dias depois, os
actos que aponto não são de natureza a íiliar-
mol-os só no instincto animal de manducar —
os GATOS 25
como quando se api-eseala milho a imia galli-
nha — ha n'elles verdadeiras encadearões de
raciociíiios., actos <le memoria orgânica e adqui-
rida, e instantâneos d"intelligencia que i)arece-
riam inverosimis, dada a espécie inferior em
que foram observados. Porem não pára aqui a
surpreza do psychologo. A' medida (JUí; a hoi-a
de comer ia cliega.ndo, notou-se que em cada um
dos orangoSj genons e. oustitis que compunham
o rancho dos convivas, começava a surgir
phenomenos de social)il idade extraordinários.
Poi' exemplo alguns pozeram camisa lavada,
outros ornaram-^e de casacos de gala e cha-
péus de forma tubular: estes fpram ao Grandel
la comprar gravatas, luvas aquelles, e coiza
pasmosa ! três ou quatro das espécies mais
intelligentes, depois de jejuar três dias, foram
para lá chuchurubiando coizas que os Gaetan
de Maulne facilmente explicariam por francez.
Não fossem estes argumentos convincentes —
da própria scena do jantar infeiúria outi'OS, de
sua natureza iirespondiveis : por exem[»!o, ao
toasi, os brindes, perante os quaes, apezar das
asneiras, não podemos negar a estes bichos
uma espécie de linguagem aiticulada.
Se a amplitude do ponto o permittisse, ha-
26 OS GATOS
via cfexplanar aqui detalhes cliriosissimos, por
onde inferir té certo ponto a argúcia quazi hu-
mana dos macacos. Basta um detalhe. Consta-
tam as observações do dr. Paul Sollier (') que
nos chamados macacos jantareiros, á semelhan-
ça do que succede nos idiotas, os signaes d' ale-
gria augmentam quando a comida é de borla,
ou em casos pagantes, quando o creado do res-
taurant errou a conta para menos.
Mais: substituindo algum dos pratos, por pa-
lha, o animal dá profundos signaes d'irritação.
2.° — E' positivo que a macacaria manifeste
■perante a musica, quaesqiier signaes de prazer
ou (l" impaciência ?
Resposta. A attenção espontânea dos quadru-
manos para os sons era um facto já antiga-
mente verificado. Sobre a attenção voluntária
houvera controvérsias, porém Romanes acaba
d^estabelecer d"uma maneira positiva como ella
reveste o caracter d'um movimento intelli gente
seguido d'emoções de variada amplitude, con-
forme os sons se produzem com intermittencias
(') Psychologie de Vlãiot et de Vlmhècile— lib.
Félix Alcan, Paris, 1890.
os GATOS 27
e intervallos refilares, como na musica, ou não
passam de simples luidos ou continuidades do
mesmo acorde monotonamente ejaculado, como
no arroto e seus congéneres. O violinista Sivo-
ri gabava-se de ter fascinado macacos nas flo-
restas ameiicanas, e varias madamas pianivo-
ras, possuidoras de saguis^ registram em suas
memorias que estes animaes riem ou clioram,
batem as palmas, contradançam, pòem a mão
sobre o coração^ rolam os olhos, quando se
lhes faz musica, notando-se que o caracter ex-
pressivo d'esta esteja em unisooo com a sensi-
bilidade critica que o animalsinho deixa vèr. As
pessoas que vivem nos segredos da corte e in-
timidade do conselheiro José Luciano de Cas-
tro, muito bem sabem que este illustre esta-
dista, exemplar degenerativo dos dryopithevua,
gorillas broncos, cuja raça se julgava extincta,
não resiste a masturbar-se em ouvindo o hym-
no da Carta, facto este que o distancia do* go-
verno des'que S. M. adoptou para seu exclusi-
vo batuque, aquelle trecho. Ainda outros casos
precisam a aptencia da macacada para a mu-
sica. Um orango-tango que na Polytechnica
dava pelo nome de José Júlio, exemplar rarís-
simo de deptomano, ou macaco larapio, mau
28 OS GATOS
grado as bestialidades da casta, não era isem-
plo d'uma tal ou qual sensihlerie. D'uma vêz
tocaram-lhe a Sonâmbula. Poz-se a mecher as.
orelhas, nos duos d'aír»or.
11) iíe Jfilhr,.
SS. M)!. coíiíiuuam attacadas da monoraa-
nia das viagens, e nada parece as desviará da
re^abofe um só raomenlo. Ainda o anno passa-
do esba/ijaram as economias do Porto e Beira
Baixa inaugurando com as suas nunca assaz
auKiilas presenças a epocha d'indigencia que
aquelies laborioso> [lovos estão soflVendo — já ho-
je abrem licença nova a correrias, n'uma caça
de prestigio que pouco se lhes faz retrograde
os encargos dos municípios, e vá semeando a
fome entre as i»opulações esperdiçadas a Ihes-
deitar foguetaria.
Não sou dos que prescrevem os arraiaes en-
tre os deveres dos impeiantes, e paia mim
tenho que os deuses da terra, como os do ceu,
tudo teem a ganliar com viver na abstracção da
sua nuvem, especialmente quando a Providen-
cia os haja feito, em vêz d"ApolIos, cervejeiros.
os GATOS 29
A conquista das cidades já as não fazem pes-
soas, mas ideias^ e o acto de fomar posse, mes-
mo platónico, hoje só para o povo constitue mo-
tivo d^assuada.
Tudo entretanto passaiia á boa conta, se os
povos em vez d'esfomeados estivessem fartos,
se os governos em véz de politicos fossem na-
cionaes^ se as escolas e os celeiros regurgitas-
sem, se a agricultura florisse, e em toda a na-
ção emfim houvesse motivos pnia ser grato, ou
sequer benévolo, á monarcliia.
Dada esta plenitude da fortuna publica,
fossem embora podres os cimos, a corte igna-
ra, o burocracismo politico cupido e infama-
do, pouco se daria ao paiz a forma do gover-
no, sabido como nas nacionalidades dotadas
d'ineciativa não é exclusivamente d'ella (jue
impende, como outrora, a recta directriz do
seu destino histórico no mundo. Mas com-
nosco é differentissimo. Ha dois séculos que
perdemos a probidade civica e a consciência
d'uma missão qualquer na carta geographica :
a vontade nacional não se formula senão por
fragmentos de protestos irrisórios, onde o egois-
mo referve por detrás d'uma rethorica miserá-
vel; não ha fiar dos messias, que são valores'
30 OS GATOS
a rebater no dia seguinte áqaelle em que se
julgam populares. . .
De sorte que não havendo, na deliquescencia
actual, reacção organisada a neutralisar as in-
fluencias nefandas da podridão politica im-
perante, por pequena influencia que esta tenha,
comtudo sempre será bastante para dictar leis
a sabor da sua crápula, para ir sangrando os
pagantes a beneficio das coteries de chuchado-
res, para fazer pela fome o rapto dos que pro-
testam, e envinagrar emfim pela espionagem
e pela intriga, os cada véz mais raros intransi-
gentes. A esta certeza d'impunidade obedece
o plano das viagens realengas, sem fallar nos
quinhões de regiibofe e pagode naturaes em
pessoas novas, inconscientes do valor do di-
nheiro, e sem outra occupaç.ão a mais do que
entreter o tempo seja como fòr. A pretexto
d"infantis curiosidades, por fabricas, fogos de
vistas, azylos de cegos, descargas d'artilharia
e múmias de rainhas exhumadas, ahi vão SS.
MM. em salão doirado, pela província fora, com
uma penitenciaria de ministrelhos e reporters a
rabo, esvasiar os pés de meia dos municipios,
interromper a faina das cidades e dos campos,
incommodar toda a gente, só pelo afan dô
os GATOS 31
dizer gostámos muito a coisas de que ninguém
gosta^ e eslá muito bem a coizas de que toda a
gente diz, está muito mal ! Com a jornada de
Coimbra, as necessidades de pandega vão in-
quinadas^ parece, de tentativas de soborno.
Aguardou-se por exemplo que a epocha dos
exames, já no termo, dispersasse pelas casas
dos pães, os estudantes — mas havendo por Coim-
bra ainda alguns que os reclames das gazetas
affectas podessem especificarem globo por, Aca-
demia Coimbrã. D'esses poucos, os raros intro-
mettidos no preparo das festas, permittirão que
a reportage diga «os estudantes disputam se a
maneira de melhor engalanar a cidade^ e rece-
ber os régios papa-leguas>K Como Coimbra, ape-
zar de deserta de batinas, podia lembrar-se das
soluções que o governo deu á greve, ordem pa-
ra admittir a acto os recalcitrantes corajosos,
que entre a perda do anno e a perda do brio,
não hesitaram.
E assim estrumados os ânimos para na via
latina se abafarem os morras, e para na estação
velha se supprimirem os manguitos, podem os
conquistadores entrar pola cidade : o futrica é
benigno, os capellos não mordem, e Coimbra
emfim, que vive de hospedes, ha-de gostar im-
52 OS GATOS
trienso da frescata, Apezar irestrangeiras, SS.
M.vl. personificam já bem a impievidencia por-
lM<(ueza. . . gastar á foita, cliiicliiirubiar a nação
Dmquanto houver tutano. . . Amanhã? Oi'a adeus!
O conde de Paris tem massa, e o povo dorrni-
jilioco inda agora se voltou pr'ó outro lado.
FIALHO DALMEÍDA
os GATOS
PUBLICAÇÃO
d'inqueríto á vida PORTUGUEZA
N.M5 — 2deSepíeffi!)rodel892
SUMMARIO
Rescripto perdido no paço da Universi-
dade ; QUEM SEJA o SIGNATÁRIO ExPLICAÇÂO
DA VIAGEM REAL Á LuSA AtHENAS PaPEL
moderno DOS REIS E SUAS RESPONSABILIDADES Á
FACE DA CIVILISAGÃO PoRQUE SE DIZ TANTO
MAL DAS MONARGUIAS NoVO PROGRAMMA DE
CONDUCTA REGIA ! ABAIXO OS FINGIMENTOS !
Os MESUREIROS DA CORTE, OS POLÍTICOS E OS
PEDINCHÕES SEM TRABALHO De COMO O PAÇO
É A PRIMEIRA CASA POBRE DO PAIZ ReSENHA
DAS FESTAS DE OoiMBRA, PELO CAVALHEIRO FES-
II os GATOS
TEJADO As PHILARMONICAS FUTRICAS E OS
SETE PARTIDOS DE BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS
A FARDA DO GOVERNADOR CIVIL E AS FONTES-
MIRACULOSAS DE CERVEJA — VeREADORES, CA-
PELLOS, PADRES E BACOCOS CoSTA AlLEMÃO
ENTREGANDO AS CHAVES DA CIDADE GORTEJO
DA ESTAÇÃO VELHA PARA A SÉ, E IRREVERÊNCIA
AMOROSA d'uM CAVALLO FARTUNS DE POVO
SUJO E AR EMBIRRENTO DO CORPO CATHEDRATICO
PaLAOC REAL SEM REI NEM ROQUE Pst,
ó Dona Amélia ! — Alviçaras a quem achar
O CADERNO DOS PENSAMENTOS PROFUNDOS, PER-
DIDO POR S. M. ENTRE FORMOZELHA E VeRMOIL
— Ovações em bom uso — Baile tricano no
PATEO DA Universidade — A Farroupeira, o
Vira E o padre Chaves — Cantigas popula-
res, E DESCOBERTA DE SUISSAS NAS BAILARINAS
— Serenata no Mondego — O astrólogo
Peixoto ensina S. M. a Rainha a mecher nas
lunetas — Coimbra de noite, voluptuaria
irresistível das suas festas — A Universi-
dade MORTA E as línguas VIVAS DlSCURSO
do PAE PaUUNO acerca da CREAÇÃO DO MUNDO,
DO Bernardo Ayres, e do vinagre — Em con-
clusão, Dias Ferreira !
Meu caro Dias Ferreira.
Tinha-me promellido que se eu alijasse
do minislerio o Oliveira Martins, a jornada
de Coimbra seria excepcionalmente luzida
para os reis. Por mais d' uma vez lhe ouvi
jurar que a cidade estaria inteiramente ao
meu dispor, com o commercio prestes a pen-
durar a oeile nos galhardetes dos arcos trium-
phaes, com a Universidade decidida a es-
• Foi este manuscripto achado 2)or alguém no pateo
da Universidade de Coimbra, na manhã scguinlc ao dia
em que SS. MM. deixaram a Lusa Athenas — da Costa e
Silva. Damos-lhe publicidade pelo mordente interesse
das revelações que ahi se fazem ; mantem-se fielmente
o texto, apenas notando aqui e alem as descahidellas
ortographicas de que vinha recheado.
4 OS GATOS
tender os capellos no trole largo dos cavai-
los do meu carro, e com o bronco povo em-
fim, prosternadoe com palmas, a me sagrar
monarcha na helienica terra da arrefada e
da sebenta.
Confiado na cerleza das suas falias, ali-
jei o Martins, perdendo assim a inslrucliva
amizade dos vencidos j e condescendi a vir,
apezar do calor, pelo seu braço, a este pic-
loresco e sarnoso burgo universitário, terra
de resvalo para os Braganças, onde verdade
seja não fui mais feliz que os meus anteces-
sores. Como o desastre foi cerce, agora que
vou partir de Coimbra para nunca mais ahi
tornar, não me soíTre a paciência a sua são
de que me comam os papalvos, e para seu
castigo darei a conhecer as razões porque
você não estará presidente do conselho muito
tempo. Este rescripto lh'o envio na indigna-
ção das primeiras impressões, não em rei-
nante que as obrigações do cargo forçam ao
fingimento d'um jubilo pateta, mas tal como
o faria um particular perspicaz a quem meia
dúzia de paspalhões quizesse inpingir gato
por lebre. Aqui onde me vê, Zé Dias, í)ão
cuide que eu seja dos cegos que só apre-
os GATOS 6
ciam as coizas pelo palpér, e dos ingénuos
que se julgam amados só porque o minis-
tério das obras publicas expede ás cidades
cebo para fogaréus em tijellinhas.
Os monarchas do meu tempo provem lo-
dos d'uma escola d'adversidade que os pre-
dispõe desde o berço a chuchar os povos
com finura superior á que os povos dispen-
dem a chuchal-os a elles ; e se a nossa to-
lerância ás vezes parece de?dobrar-se em
magnanimidade ante as aíTrontas, não é que
nos íaile coragem pr'a sarjar as vaias dos re-
beldes, senão porque vislo ser ávida moder-
na lur^a chacina, é mais forte aquelle que no
síniggle conseguir mostrar maismalandrice.
Ora eu estou farto de conhecer a gente com
quem vivo, e de soletrar nos jornaes a mons-
truosa diíTamação do poder que represento.
As coroas quanto mais honorárias vão es-
tando, tanto mais responsáveis a opinião as
torna pelos desastres que a má cabeça dos
povos acarreia. Nas epochas religiosas Deus
pagava as favas das calamidades scfffidas
pelos homens: os tempos mudaram, e agora
é á cabeça dos reis que são allribuidas to-
das as faltas de juizo dos seus súbditos.
6 OS GATOS
Não deixarei passar portanto uma das
poucas occasiões que tenho tido para pôF
tudo em pratos limpos, e ao cabo d'apanhar
de contrários e meus, tão grandes sovas,
formularei aqui minhas censuras, como
se este libello houvesse de sahir na folha
official. Do questionário por mim enviado
aos imperadores e reis da velha Europa so-
bre as virtudes e trato de seus povos, a
quando pela questão ingleza me passou pela
cabeça abdicar, recapilula-se sobre rigoro-
síssimas eslatisticas que é no meu reino que
formilham, de cima a baixo, maiores e mais
cafrarias de malandros. Aos que pois me
lançam em roslo a dynaslia mórbida de D.
João IV e descendentes, contraporei ess'ou-
tras de polilicos inhabeis, de genlishomens
cynicos, de burguezia sorna e de plebe sem
vergonha, que éa historia da sociedade por-
tugueza de ha trezentos annos para cá. Po-
vos e reis, podemo-nos dar as mãos pelo
conjunclo homogéneo que fazemos, repartir
quinhões eguaes na gloria de havermos feito
d'este rectângulo de paysagem um dos ma-
nicomios mais typicos da degenerescência
humana em desfillada pr'á demência.
os GATOS 7
Bem sei que abrindo os livros da histo-
ria, toda a responsabilidade do mal é debi-
tada aos reis, e toda a causalidade do bem
pertence aos povos : o caso de resto expli-
ca-se por os monarchas não serem historia-
dores nem jornalistas, e por as casas reaes
serem já bastante pobres para poderem ar-
rematar a consciência dos Pluta^chos. Hoje
a questão é viver, e como somos na Europa
doze contra duzentos milhões, a nossa força
está apenas na impassibilidade de fingir que
somos ainda os proprietários da humanida-
de. Esta impassibilidade custa-nos, é certo,
innarraveis sacrificios — sacrificios d'orgu-
Iho, de dignidade, de dinheiro — sorrir a
tudo, dizer que sim a tcdo, pagar sem re-
gateio... e sobrelevando, a humilhação im-
posta de beber as affrontas dos jornaes sem
poder ir ás redacções dar bofetadas.
E' o que mais peza á minha esthesia
de homem, este marlyrio de toda a vida ter
que deixar a iíijiiria impune, e de como cal-
manle só me ser permiltido pela therapeu-
liça da Carta desviar para os pombos balas
que aproveitariam melhor abrindo ventila-
dores na cabeça dos jornalistas.
8 OS GATOS
Lá me resignaria á tolerância d'essa3
animadversões sem ódio, impressas unica-
menle como síratagema de raloneiros qi:e
sob pena de morle mandam os ricos depo-
sitar tantos conlos de réis na toca d'uma ar-
vore, se em taes adversários eu não ante-
sofresse já a abjecção de ter que os acceitar
depois como ministros, sustentáculos do
throno,e... confidentes. Eis a bistoria de lo-
dos os maraus meus partidários: é percorrer
os partidos, não se encontra um que não te-
nha começado vida a injuriar-me. A principio
a hombridade real inda reage, afastando os
mais porcos, e fazendo sentir uma ponta de
desprezo aos mais infames ; mas lá vem de-
pois a necessidade de transigir pr'a não fi-
car sósinho, e cercado de mariolas, che-
ga-se a velho tão descarado ou mais que
todos elles. Por exemplo, S. M. el-rei meu
pae morreu com fama de não acreditar na
honra de ninguém. Mas em vinte e oito an-
nos de candonga politica, em que demónio
havia d'elle acreditar?
Fique-se entanto sabendo que não de-
os GATOS 9
sejo seguir as pisadas do pobre sceplico let-
írado a quem devo a massadoria de ser rei,
eque tenciono inaugurar a todo o transe, no
meu programma de chefe, um systema bem
diverso d'aquelle por que elle julgava com-
prar os grandes, trazendo ao mesmo tempo
contentes os pequenos. Apezar de trineto de
D. João VI, o principe talú de quem reco-
lhi acorpaturaobesa e a beiçola cabida, gi-
ra-me nas veias o sangue de Sabóia, tenho o
nariz truffado de meu avô materno: não hei-
de pois ficar no tombo unicamente como um
exemplar de reinante manso, nem contrariar
jamais os meus Ímpetos victor-manuelescos,
deixando-me explorar como um dromedário
de caravana. Quero definilivamsnte tornar-
me um homem franco e enérgico, e repellir
de mim a subserviência hypocrila com que
nos paços porluguezes usam os reis fingir
de tolos. O ponto é diffici! e acarretar-me-ha
certas quisilias, porque o meu primeiro acto
vae ser pôr no olho da rua todos os maricas
e mesureiros que lá pelo paço enchem de
ihedio minha enclausura triste de reinante.
A' uma, a sensaboria d'elles desagrada-me, o
tormento dos reis sendo o convivio dos au-
10 os GATOS
licos sem mocidade : á outra, a escola lilte-
raria que elles formam pôe-me de mal com
o publico, que imagina talvez que eu inspire
as sensaborias que elles escrevem... de braço
dado.
Uma vez liberto d'esse viveiro de somni-
feros a quem devo mais horas de mau hu-
mor do que a todas as opiniões republica-
nas, alijarei por meu turno os trambolhos
politicos, mandando descançar os velhos, e
estampando na cara as incapacidades d'al-
guns novos. Estou farto a valer dos grandes
homens eleitoraes, que já não seduzem nin-
guém, porque em politica, como na Univer-
sidade, os accecit servem só para galardoar
bacharéis estupidarrões. Outra cáfila a zur-
zir seja a dos parasitas que de chapéu na
cabeça e memorial na mão, sabem ao cami-
nho dos reis com insaciabilidades d'atrevi-
dissimos malfeitores. Não ha philarmonica
de xarépes, kermesse de faniqueiras, filha
deheroe, familia liberal, e azylo de pucellas
arrependidas, que mensalmente se não per-
mitia vir-me furar o ventre da hsta civil, a
vêr se o milho corre da facada, e sem inda-
gar se a crise que os indigenta a elles, não
os GATOS 11
lerá feito do paço a primeira casa pobre do
paiz. A exploração loca por vezes raias de
chantage, com um descaro que a necessidade
explica menos do que certos instinctos de
parasitagem peculiares a este «cavalheiroso»
povo portuguez. Porque no fim de contas
que ganho eu em dar muito mais do que
recebo ? Popularidade ? Conheço-a, vae toda
do ministério do reino e obras publicas, para
as regiões que me decido a percorrer. A'
minha chegada todo o estimulo das cidades
é pedir-me dinheiro e mandar caiar as fron-
tarias. Os municipios querem madeiras e
colchas pr'ás tribunas, os particulares fi-
cam-me com a loiça e colchões que o almo-
xarifado expede pr'a meu uso, e para ser
completa a sovinice, até as aucloridades
roubam nos discursos a grammatica que
podem, ás tenças de não ser um género de
primeira necessidade, e serem os policias
já poucos para a físcalisação das padarias.
Todos podem gastar os rendimentos como
queiram, ler os filhos que fôr do seu agra-
do, fazer nos seus prédios as modificações
que lhes pareça, trajar ernfim, comer, be-
ber e dizer o que lhes venha á phanlasia.
lá os GATOS
Só OS pobres reis manietados ao figurino
constitucional que lhes dita uma mascara e
uma albarda para cada acto cómico da vida,
só elles hão-de permanecer constantemente
deante de tudo e de todos como uns bone-
cos de pau. sem emoções nem gestos expon-
tâneos, dando tudo a intrujões mais ricos
do que elles, ouvindo discursos parvos, visi-
tando fabricas e ateliers sem prodiicçãonem
meta industrial, regalando a progénie a sa-
bor do preço das inscripções, rezidindo em
cazebres sem luxo e sem contbrlo, prohibi-
dos de fazer troça, de rogar pragas, de jo-
gar á pancada, de sahir sós, andar de noite
ou ir ás taberninhas bebericar n'uma hora
de volage... E meu caro Dias Ferreira, es-
tou fartíssimo I Gomo posso eu ser rei, sem
ainda uma só yez ter sido homem? Os meus
ministros mostram-me apenas o que elles
querem que eu veja, isto é, a vida nacional
nos seus aspectos burocráticos, povoações
comprimidas por policia, monumentos cadu-
cos, azylos mal cheirosos, e pessoal cabis-
baixo que me cospe na mão beijos ensaia-
dos á pressa n'um manequim. Ora isto é a
parte resequida e chocha do meu reino, a
os GATOS 13
porção civilisada nos seus aspectos (i'incur-
valura d'espinha e falta de caracter, pois os
livros ensinam que a humanidade fecunda
é brutal, e era essa que eu necessitava de
vêr a todo o transe.
Será pois na qualidade exlra-official de
rei homem como os mais, de rei farto d'in-
bofias, farto de ministros, farto de conse-
lheiros, farto de governadores civis, farto de
corte, de bandeirolas, bombeiros, hymnos
e sécca3, que eu lhe vou criticar as festas
de Coimbra, e exprimir como gostaria de
vir á cidade do Mondego gozar detidamen-
te as maravilhas dos seus templos, as ce-
rimonias decrépitas da sua Universidade,
os beijos das suas tricanas, o ondeante idyl-
lico dos arrabaldes, e mesmo, podendo ser,
as sarrafuscas dos seus capas-e-batinas c'os
vacões. A primeira coiza onde ler mão, se-
ria a escolha das partes constitutivas do cor-
tejo que me viesse ao desembarque, e donde
eu baniria tudo o que de longe fedesse a
farroupagem. Philarmonicas por exemplo,
quatro pontapés no sêsso e rolhas nos
14 OS GATOS
trombones ! Nada como o hymno da Carta
para me fazer encavacar fora de portas. E
essas de Coimbra então tocavam-no d'uma
forma que parecia a Marselheza com gola
de velludo, tingida no Camburnac. Ahi es-
lão os inconvenientes de ter deixado saliir
o Arroyo da Universidade 1 Sobre os bom-
beiros não soíTrearei sequer os impropérios.
O meu ódio ao bombeiro vem das Cru-
zadas, e lurgeceu quando meu mano Affon-
so foi arvorado em commandante honorário
dos da Ajuda. Em Lisboa ainda se explicam ;
são frequentes os fogos, e apagar-se-hiam
logo se o bombeiro voluntário não existisse.
De sorte que para divertenga do publico,
necessário se faz deixal-os atrapalhar os ser-
viços d'extincção. Mas na provincial em
Coimbra, onde nem sequer comburesce a
mioleira dos mais sapientes cathedralicos,
como explicar tão variegados salvadores?
D'ahi, que typosl Verdadeiramente o futrica
só duas aptidões atavisticas possue: a d'ir-
nião do Santissimo, e a de levar lambada
do estudante.
Se o trajam de bombeiro, vejam-lhe o
capacete : é a caldeirinha das esmolas, em-
os GATOS 15
borcada ; observem-lhe a marcha niarcial,
são as gambaias doridas de quem se precave
contra uma chulipa vis a tergo. Na lista de
proscripção viriam depois dos bombeiros, as
auctoridades. A farda vermelha do gover-
nador civil inda hoje me faz ophtalmias. Qae
intensivo escarlate de fachada 1 Inda estive
em ver se o marquez d*Alvito, que é garoto,
lhe escrevia nas costas : ha dobrada, mas
estes nobres, verdade, teem tal repugnân-
cia em pintar as taboletas dos coUegas... Fe-
lizmente a rainha apertou-lhe o naris com
certa força (era a snrpreza) e em plena cal-
ma, com jubilo vimos o menstrual funccio-
nario principiar a deitar cerveja pela bicas
do chapéu armado.
E os vereadores, as caras dos capellos, o
reitor, o bispo e as gentes do meu séquito?!...
Não me tenho ainda da surpreza com que
ao chegar á estação velha, o presidente da
camará desata a parvoejar que a minha en-
trada na terra «assignala uma epocha inol-
vidável nos fastos da historia, e Coimbra se
sente feliz com o eu lhe entrar nos pene-
tracs — quanto lh'o permitlem as adensa-
das nuvens do ceu cahginoso da pátria.»
16 OS GATOS
Era de ver o ar funéreo dos munícipes pe-
rante a arenga do descompassado conse-
lheiro. Eu, furioso, porque escutar d'isto
emporcalha mais que uma nódoa de
gordura 1 E o homem tudo era que eu
acceitasse duas chaves de pasta doirada,
«as chaves d'este alcaçar da sciencia, fun-
didas no finissim^o ouro, que se acen-
dra no crysol das mais puras dedicações»
que uma espécie de gallego-pagem, cora
meias de linha e suissas^ estendia n'um
barranhão de follia, a geito de reféns. Em-
purrei o gallego com mau modo, e para ta-
par a hocca ao parvo, penduricalhei-o logo
alli com o habito da Conceição. Já tinha o
de dizer asneiras, e assim fica com dois.
Ahi se põe o cortejo a caminho da cida-
de, que de longe parece deserta e não pro-
gnoslicar nada de bom. Levo o coração cer-
rado de tristeza, em trezentas visitas offi-
ciaes a terras do meu reino., nem um só
íunccionario intelligente, physionomias cú-
pidas ou bestiaes por toda aparte, nenhum
expontâneo jubilo vindo a mim... A bisonhe-
ria dos que me cercam, communica-se-me ;
sinlo-merisivel, sem uma palavra, sem uma
os GATOS 17
ideia, com a saliva pegada no ceu da bocca.
O que eu daria por ser o rapaz que alli eslá
no passeio, parado, em vestão curto, a rir
da caramunlia que eu vou fazendo entre es-
tes brutos!
A cada instante, pára a carruagem, on-
das de povo fétido convergem das bocadas
das ruas, contra mim : é uma curiosidade
parada de gente que soffre e não tem valor
para se queixar... Vieram dos seus estábu-
los fétidos do Caramulo e da Bairrada, bi-
sonhos, caras rapadas de fradinhos, a tez côr
de cinabre, vestidos de burel, sem meias, a
ex{iressão fanática, os olhos jezuiticos, lendo
na phantasia, a arder, como na Covilhã, o
desejo d'um rei que fosse d'oiro, com ges-
tos d'ido!o, sobraçando cornucopias de li-
bras, em cascatas doiradas, sobre a turba.
O meu aspecto gordo desaponta-os; a fic-
ção que elles teem da magestade real não
é a que eu produzo, e vão-se com o meio
riso sorna do maioio ludibriado, batendo os
tamancos, sem resposta ao chapéu que em
vão lhes tiro, com o meu braço de pau mo-
vido por uma corda de relógio. Percorremos
um labyrintho infindável de ruellas, umas
18 OS GATOS
subindo, outras descendo, cobertas de ban-
deirolas ignóbeis, mastros de baile campes-
tre, tapises de rosmaninho e folhas de lou-
reiro. De sorte que se degladiam no ar três
cheiros typos : o cheiro a trampa, o cheiro
a Semana Santa, e o cheiro a escabeche.
Melhor: a universidade, o bispo e o João
das iscas, os Ires núcleos fundamentaes d'es-
te «alcaçar da sciencia» fedorento.
Eis-nos chegados á Feira sob um ca-
lor de trinta e oito graus — hymnos, fogue-
tes, e um povaréu no largo, que me pare-
ceu ser o da Covilhã inda com as camisas
e piugas das outras festas. Qualquer pobre
viajor chegado ao termo d'uma viajem lon-
ga, por um tempo de canicula, o que faria
era banhar-se e espairecer da travessia.
Para os pobres reis o banho substituc-se
porém pelo Te-Deiim, e em vez da socega
antes de jantar, n'uma rede de pennas com
mosqueiro de seda e leques d'aveslruz, vá
d'apanhar umas calças, Rua Larga, até á
Porta Férrea, debaixo do paHio, á pata, en-
tre matrullas irreverentes, traz d'uma pro-
cissão de coca-roxas. Felizmente que em
meio da solemne tristeza dos capellos deu
os GATOS 19
um cavallo a nota natural, um cavallo sem
curso nenhum, simples cavallo de soldado,
infinitamente saudável e expansivo, o qual
agradando-lhe as éguas d'um landeau, dei-
tou abaixo o cavalleiro e...
Eu corri logo a assistir ao lançamento
(estas coisas agradam sempre aos reis agri-
colas) e ainda vi bombeiros decepando a
machado o fogo do bucefalo, que um fâmulo
do bispo levou, fumegante, em salva de
prata, para o relicário das onze mil virgens,
em Santa Cruz.
Ao entrar debaixo do pallio a Universi-
dade, lembrei-me de Nosso Pae aos entre-
vados— e que entrevado moral este insti-
tuto 1 — e então pude ver n'um pateo de
quartel, derodeado d'edificios sem caracter,
uma alpendroada de pavilhão de caça por
frontaria, bem de face e a toda a altura das
suas vestes jezuilicas, parte d'esse corpo do-
cente universitário que tanto mal tem feito
impunemente.
Quasi tudo caras erabirrentas, sem a ar-
20 OS (JATOS
chiteclura d'officio, onde a rigidez substituiu
a mobilidade physionomica pela mascara.
Mesmo algumas dir-se-iam modeladas por
caricaturas cerâmicas do Bordallo, com as
maçãs do rosto furando pelles pergaminho-
sas, as lunetas paradas, e os craneos co-
bertos pela borla, no seu ar vasio de limpa-
pennas. Aqui e alem, cataduras marmóreas
de repontões praxistas, affeitos a thronar
despoticamente entre os rapazes, cabeças
peladas com a visão lateral perscrutadora,
passadas nos calcanhares, fincando firme,
pelo habito d'esmagar as resistências, e por
toda a parte esse insupporlavel ar absor-
vente de predominantes locaes, de senhores
da terra, que os pedantes lomam, á forçado
se sentirem cortejados.
Dizem que ha entre elles alguns de valor
indisputável, mas quantos sornas deletérios
rolinisando a mocidade á sombra d'uma le-
gislação escolar indigna de homens livres ?
Nada mais do que entrando os claustros
universitários, indo a certas aulas com púl-
pitos de sanefas de cyrio, se reconhece a
necessidade de derribar aquillo tudo a pi-
careta, para sobre as ruinas erguer uma
os GATOS 21
escola moderna, com um regimen libérrimo
como a Polylechnica de Lisboa, clara e ele-
ganle entre jardins e grandes ceos, sem
cárceres, nem foros, nem velharias medie-
vaes que façam do estudante a viclima do
mestre, e do magistério um ripanso de me-
diocridades.
Jantar de gala: inda esle marlyrio de
respirar o farlum de gente que só toma ba-
nhos de suorl Apenas enlro, começa-me a
faltar o ar na casa, as salas são pequenas,
os moveis grandes, as janellas estreitas, os
convivas mal cheirosos. Nas alcatifas cober-
tas de pingos de cera e nódoas de vómitos
prchistoricos, tropeçam-me as esporas de
generalissimo, e a cada trambulhão, verea-
dores abealados correm a mim dizendo, Do-
minas íecum.
Por toda a banda, nu paço, uma desor-
dem de gentes sem governo : dentro não ha-
via um tareco, um prato, um enxergão, uma
banheira (gabaram-me as bellas índias an-
tigas que um dos reilores aqui achou, e se
sumiram); de sorte que foi necessário man-
dar vir tudo dos palácios do Porto e de
Lisboa. Esse tudo nem mesmo chegava a
22 OS GATOS
ser o indispensável, e com os desleixos da
embalagem e as delongas portuguezas do
caminho, vieram as coisas aos poucos, parte
quebrou-se no comboio, e outra parte che-
gou só quando parliamos. Até por não che-
gar a loiça enxotámos convivas para a mesa
dos creados.
Ai Dias Ferreira, em que desagradável
batuque me veiu metterasuasemcerimonia
de presidente do conselho letlras gordas !
De que gente ordinária me cercou I Veja
como elles bebem o molho pelos pratos e
fazem caretas d'orangos a engulir a porção
fibrosa dos espargos. Se isto continua ver-
me-hei forçado a avisar o Gosta Allemão de
que se não á'\z pst, oh D. Amélia! á rai-
nha, nem é polido fazer pontaria com bolas
de pão aos meus carachás. Demais sinto-
me burro, e o culpado é você. Dias Ferrei-
ra, porque deixou em Lisboa o caderno dos
pensamentos prolundos,compromettendo-me
assim o successo da viagem. Sem o caderno
dos pensamentos profundos, que impressão
grandiosa heide eu deixar no espirito d'esla
gente ? Já reeditei três phrases celebres da
Covilhã; e se não fosse porquê, soltava uma
os GATOS 23
que agora me saiu, propia p'ra álbum. «A
faculdade de direito é o peor de todos os
cicios.» Hein? Mesmo catita, e com a van-
tagem de se poder dizer da ociosidade.
Papança finda, mostro desejos d'ouvir
dançar e cantar a tricanage, o que é o meio
de varrer a zoeira calhedratica que circula.
Levam-me á varanda que deita para o pa-
teo, e apenas entro, enthusiasmode palmas
e vivorio. D'onde demónio conheço eu este
enthusiasmo? Oh Nazareth, eu já paguei a
conta d'este enthusiasmo, n'alguma parte...
Vá indagar. Corre o palmipede, e averigua
que o que eu acabo de ter é uma ovação
velha, uma ovação reservada desde o anno
passado para quando o Magalhães Lima
viesse revolucionar o 23. Como não veio,
os iniciadores cstimularam-n'a com vinho
rascante, e deram-n'a de trespasse á casa
real, por meio preço. Emfim, vou estar em
face do verdadeiro povo, o ingénuo, o sim-
ples, o expansivo e cândido populacho das
veigas do Mondego ! Tricanas finas, cabecita
de rola e olhos de febre, a roupinha bran-
ca enfeitada de grega, a saia em pregas, os
pés na chinella de bico, pisando com mimo
24 OS GATOS
O chão poeiroso ! Por certo ides desenrolar
perante os vossos reis toda a rusticidade
encantada dos vossos bailes locaes, cheios
de requebros, que faliam da fonte, do S.
João, das descamisadas e dos beijos furta-
dos das vindimas, na embriaguez do mosto
e dos abraços. E' sem duvida o Vira, a Far-
roupeira, ou o Estaladinho, as rondas em que
vos requebrareis, mãos dadas co*s nossos
rapagões, denes'que as guitarras frun-fru-
nem, e a cantadeira desgrenhe a melopea
amorosa aos ares da noite. Começa o gui-
tarredo, os pares ordenam-se, e desço mais
uns degraus para vêr de perto esses rosti-
nhos brunos de vinte annos. . . A musica
tem um sabor d'operela onde não ha meio
de vêr desenhar-se um canto do paiz ; ares
de poika, coisas de passo ordinário, tudo
quanto emfim um maestro d'infanteria pode
applicar de moderno aos pulos dos labrós-
tes. Das cantigas cantadas, umas são do An-
tónio Nobre, outras do Fogaça, outras da
Amélia Jenny, todas litterarias, e absoluta-
mente nenhuma anonyma e popalar.Falseada
a proveniência da musica e da poesia, res-
tava ao menos a aulhenticidade das cacho-
os GATOS 25
pas ; quando subitamente a rainha solta um
grilo....
— Quel horreur ! Mais elles sont toiítes
barbues, ces femmes lá !
Quero defendel-as, desço ainda uns de-
graus para affirmar-me e vir bailar com el-
las, como Pedro I nas snas noites sem dor-
mir, e oh misericórdia! em vez de moças, de-
paro com calhedralicos em travesti de peco-
ras, mamas postiças, e calcanhares bambo-
leados. Este sediço burocracismo coimbrão
proposilaem me azedar o thedio até a náu-
sea, não contente de me enlaipar d'estupidez
com aranzeis e cerimoniaes da era dos con-
ventos, inda por cima me veda o contacto de
todas as coizas simples e robustas ; peço-lbe
académicos, dão-me o Bernardo Ayres, can-
tigas populares e servem-me a Amélia Jenny,
tricanas, tricanas, e surgem-me o padre Cha-
ves e o Paulino, de lavradeiras, aos estali-
nhos c'os dedos, eonalgatorio a suar na ce-
bollada do vira, por debaixo do saial da ca-
melote I Ah grandecissimas velhacas, que as
arrebento com dois pontapés na bocca do
corpo 1 Tira d'aqui mal-os marmanjões dos
bandurristas, que se as bispo outra vez neste
26 OS GATOS
disfarce, lhes farei vitriolar pelos bedéis, os
pontos mortos 1
Observatório, noile sem lua, eslrellas, e
Coimbra de redor toda em balões venezianos.
O meu martyrio segue n'um criveiro d'es-
topadas calhedraticas : por toda a parte o
lente obseda-me de niaiseries que eu não pos-
so crer provenham do universilarismo chocho
que domina os altos estudos d'esla terra. Qua-
zi chego apersuadir-me que os de talento se
afastaram de propósito, deixando a cicero-
nia da casa aos pataratas. Depois do Alves
de Sousa, nunca o crelinismo scienlifico re-
entrara em mim com um tal poder de em-
bestação. Ai Dias Ferreira! offego, oíTego,
pensando que o Rocha Peixoto — segundo
aslronomo, como elle próprio se diz —
poderia vir repetir-me as provações astro-
nómicas porque me fez passar na celebre
noite. Leia na Ordem o relato d'essas aven-
turas e perceberá que o homem não con-
tente de talhar para si um papel de lente
bi-concavo, inda por cima nos veste, a mi-
os GATOS 27
Ilha mulher e a mim, sanbenitos de tolos ca-
ricatos. ^ Em6m quando conseguimos fugir
a astrologia dos Peixolos e ouiros pislosgas
e mágicos dalmanack, nossos olhares volta-
dos para o rio, poderam ver toda a feeria
• o indigitado auctor d"este rescripto tem carradas c
can-adas de razão. As informações do astrónomo Pei-
xoto á Ordem, sâo d'mna inconveniência tanto mais
desacreditante para as regias pessoas, quanto maior a
lorpice com que vem stenographadas. Em cortezào
bacoco, Peixoto astrónomo, para creditar o berreiro que
fez á entrada dos reis no observatório, começa por pôr
em duvida a espontaneidade das outras ovações, e
"... pareceu-lhe que SS MM. nào esperavam aquella
manifestação, naturalmente porque nào tinha sido com-
binada, e porque não foi assim a da estação do cami-
nho de ferro. . . » Nào ha como um innocente para pôr
tudo em pratos limpos ! A sublinhar a perspicácia dos
soberanos, fal-o com a surjjreza de quem esperava
achar dois palerminhas «... a rainha foi para a va-
randa da rua da Trindade e á sua disposição puz logo
a melhor luneta terrestre, de que se serviu repetidas
vezes para observar os barcos e os balões. Como a
noite estava escura, não podia distinguir as pessoas
que iam nos barcos, e assim esteve entretida a obser-
var os barcos em passeio e com sensível agrado. Com
uma ligeira indicação que tive a honra de fornecer-lhe
para o uso da luneta, scrviu-se d'este instrumento com
promptidão e habilidade, que admirei, nem foi preciso
acrescentar-lhe eu mais indicações.-. Está a gente a
ver na noite escura a rainha a procurar as pessoas dos
barcos, toda contente jior nào vêr nada, e em compen-
sação saber mecher a hmeta, e Peixoto babando-se pe-
rante a argúcia com que a pobre senhora, quanto mais
lhe seguia os conselhos no tocante á mcchida da lu-
28 OS GATOS
do espectáculo que por nosso enfadonho
mister estávamos prohibidos de gozar. De
cima da espécie de torreão onde estávamos
presos, era para todos os lados uma monta-
nha de tectos e ruellas, fímbrias de luzes,
clarões de chapa viva sobre os muros, cima-
neta, tanto menos toscava dos pontos perscrutados.»
«Um episodio curioso, ajunta elle. Lembrou-me alguém
(com franqueza não sei quem) que preparasse a luneta
para S. M. ver e a acommodasse á sua vista, isto
quando expliquei como S. M. devia fazer para poder
vêr bem, quando lhe mostrei um botão de que tinha de
servir-se para este eflPeito, o que, repito, S. M. perce-
beu e logo executou com notável promptidào. E' claro
que eu podia dirigir a luneta convenientemente, como
dirigi, para o ponto que mais importava vèr-se bem, o
que logo tinha feito. Mas o que evidentemente eu não
podia fazer era acommodar a luneta ao olho de S. M.,
como pretendia o meu officioso iustructor. A' indica-
ção d'este sorriu-se a rainha, e perguntando eu então
a S. M. se era um pouco myope ou se via bem á dis-
tancia normal, respondeu-me logo que bem sabia que
só ella podia acommodar a luneta á sua vista. Tive,
como devia, o cuidado de mover eu mesmo lentamente
o botão até que S. M. visse bem pela luneta 5 e depois,
tendo sido por vezes desarranjada a luneta de que se
serviram outras pessoas, foi sempre S. M. quem a di-
rigiu para os barcos e a acoramodou aos seus olhos.»
Este segundo astrónomo é de cahir ! Se manusear 09
astros como manusea a synthaxe, deve ter descoberto
muita asneira no firmamento. Razão tinha o legista
que mandasse os professores de dez em dez annos pa-
ra os bancos dos rapazes, que sobre crescerem os
chumbos em instrucçâo primaria, livrar-se-hiam os es-
tabelecimentos do Estado d'estas pestes.
os GATOS 29
lhas e portaes resahindo a carvão de man-
chas claras, e assim té ao cães e á Porta-
gem, donde a maré popular fazia subir
té nós os marulhos da sua especlação. Além.
dos cães, o leito d'areias do Mondego, ris-
cado pela ponte e com sua regueira d'agua
banhando os choupos da margem fronteiriça,
o leito do xMondego eslendia-se como uma
vala commum, da Portella ás trevas do Chou-
pal, aqui e além pintalgado de tímidas lu-
zitas, de vagas muzicatas, e instantâneos me-
teoros de foguetes. Em Santa Clara e S.
Francisco, repiques de sinos, vozeios de pra-
zer nos bailaricos, e de toda a banda um
cheiro a raça voluptuosa que se entrega,
procurando as boscagens para as cabra-ce-
gas do amor, ciosa de contados. Você, Dias
Ferreira, por certo não perceberia no ar
cl'estes effluvios, os políticos deixam de ser
homens muito cedo; mas quando inda se
não fez vinte e oito annos, seja-se rei ou se-
ja-se cabreiro, o cheiro da femeína errante
em noites de festa, em chmas cálidos como
este, o cheiro da femeína ou alkaloide se-
xual da fêmea avulsa, enfia pela mufla d'um
homem e enrasca-o, co's diabosl se elle não
30 OS GATOS
enfia logo a rabo d'uma typa. Confesso, hou-
ve um momento em que a minha vontade foi
amolgar o telescópio na carapinha aérea do
Peixoto, pôr os outros sachristães na meri-
diana filar, pelo gasnete, e raspar-me para
a pandiga em companhia do Mário, de cha-
péu desabado e bocca de sino a dar e dar
nos tacões de prateleira. Veria você se o rei-
de Portugal, tão calumniado pelo sobrece-
nho que o medalhão da vida official lhe im-
põe continuamente, d'esta vez não arranca-
va ao povo das praças um movimento irre-
sislivel de sympathia e de calor, como ou-
tr'ora o tio Miguel no cercado de Muge, pe-
gando os ardentes bois da casa Cadaval.
Porque a verdade é esta, vocês querendo
formar um rei, tem-me exposto á multidão
como um pedante. Com a idade que eu le-
nho, a rigidez que me impõem só é natural
em jezuilas e hydrocephalos. Mas ouviram?
eu quero molhar os pés, já disse, quero ir
preso, quero deitar pontas de charutos nas
chancas dos gallegos, jogar á pancada, pôr
o relógio no prego e apanhar moléstias de
senhoras. Reclamo o tirocinio de rapaz que
me não deram, e sem o qual a vida adulta
os GATOS 31
perde o sabor eo tom d'experiencia. Já meia
noite. Esses barcos da serenata vem ou não
vem ? Gomo o Mondego não leva agua, afi-
xou a municipalidade um edital, dois dias
antes, mandando que os conimbricenses fos-
sem verter as suas á Lapa dos Esteios, d'on-
de pelas horas da serenata as soltariam, por
forma a produzirem no areal um simulacro-
sinho de corrente. Ora é meia noite, inda
faltam dois litros, e ahi ficamos nós á espe-
ra de que para se attingir o liquido de que
os barcos precisam, alguém tenha vontade!
Não vi Coimbra ao luar. Até n'isso, você,
Dias Ferreira, é desastrado. Mas deve ser
um espectáculo único de poesia e socego
adormecido. Ao amanhecer e entardecer,
que serenidade fina a da paisagem I mesmo
n'eslas epochas do calor a bruma paira, e
montes e arvores tomam travez d*ella uma
tonalidade gris perle, muito doce. As tran-
ças d'agua deixam os barcos vogar com uma
uma amorosa complacência, recolhem as la-
vadeiras, vozes apelam-se, pequenos luma-
reus para a ceia dos barqueiros, e vagas
velas quadradas, em guião de junco chinez,
vão ao de manso, rente co's chopos e sal-
32 OS GATOS
gueiros, perdendo-se nas sinuosidades da
oulra margem como espectros hydrophilos
regressando ás grutas das ondinas. Então o
coro das rãs acorda os socegos plácidos das
quintas (minha mulher ateima que é o con-
selho de decanos a ensaiar os latins para a
recepção do Bernardo Ayres) apellando-se
d'umas tribus para as oairas, a bruma es-
pessa mais, são nuvens, e borrifos de chu-
va enchem o ar d'uma frescura hilariante.
Sob o gaz, a cidade parece um bocado de
Lisboa, com casas braziíeiras, azulejos, sac-
cadas fundidas, quartos andares, trapeiras e
policias.
Tanto os monumentos velhos teem no-
breza, quanto os contemporâneos suam
chinfrinice. Das janellas do paço, ao acor-
dar, todas as manhãs nos riamos a vêr, fron-
teiro, o Pedro Penedo parado a meio do lar-
go, tendo o Guimarães Pedrosa pela mão.
Só hontem o funerareo reitor desvaneceu
nossa illusão, dizendo que o supposto par era
um monumento académico a Camões, figu-
rando o objecto mais alto um monolinlho, e
o mais pequeno um leão de bronze sem tes-
tículos, que symbohsará, supponho, a aca-
os GATOS 33
demia. Isto nos leva a observar qae em
Coimbra, alcaçar de sciencia, onde a moci-
dade e o saber ha séculos dominam, nem
d'uma nem d'oulra coisa ha vesligios d'ira-
mortalidade ou tradição, e tudo o que a ci-
dade possue de grande, ou traz a rubrica
dos frades ou traz a rubrica dos reis.
Mercê do regimen medieva! que ainda im-
pera, a acção do professor sobre o rapaz é
deprimente, e por outro lado não é melhor
a do rapaz sobre o resto da população. Coisa
singular! Com três mil varões das famílias
eleitas do paiz, todos na edade da força e
da saúde, Coimbra nem sequer é um posto
de padreação seleccionada. A raça indígena
é doentia e d'umaservilidade medrosa onde
se sente o despotismo da miséria vivendo
de sobras: nos rostos das serventes, lias, fi-
lhas e irmãs por bastardia dos primeiros no-
mes das classes cultivadas, os raros nimbos
de belleza teem a gafal-os a escrófula e a
anemia : apenas nas mãos, aqui e além, si-
gnaes de casta, e alguns olhos académicos,
envergonhados de brilhar em rostos de des-
calças.
34 OS GATOS
Abalo de Coimbra desesperado, a ceri-
monia do capello acabou de m^esgotar as
forças da paciência: uf! basta de lauspe-
rennes cathedra ticos, ou a hydrophobia do
latim meprohibirá de tão cedo ir ás egrejas.
Irra, camellos, que é muito abusar da fé
d'um pobre reil A' chegada, Te-Deum, latim;
em Santa Cruz, latim ; latim no almoço do
bispo; latim na abertura do tumulo em
Santa Clara; na capella da Universidade,
latim; lalim nocapello.lalim, latim, sempre
latim 1 Até me fizeram ler uma arenga lati-
na aos doutoraes. Devia ter dito mais bar-
baridades que o Paulino, mas relevem-se-me
as sensaborias oratórias, primeiro por não
serem minhas, segundo por eu não ter ca-
pello nem borla, implicando responsabilida-
des de sábio e expositor. Ha-de-me ficar de
memoria que nas minhas relações com a
Universidade, não fallou um só professor
sem se estender. Pobre Universidade mor-
ta I Comprehendo agora porque preferes o
latim ás linguas vivas. A asneira assim não
é tão accessivel, e a própria banalidade to-
os GATOS 3:)
ma foros de profundeza. Em resumo, Zé
Dias, o meu real desagrado tem suspenso
um cutello por sobre o seu pescoço. A sua
cabeça responde pelo insuccesso d'esla via-
jata, e haverá que rolar ignominosamente
no mesmo decreto em que eu, demillindo-o,
por desprezo mande subir o José Luciano á
presidência. Porque foi você o incitador e o
gerador d'este desastre, Obrigou-me a ac-
quiescer na vinda a Coimbra, jurando que
se acordara tudo sem difficuldade e sem
despeza, e pondo a jornada como um sello
de reconciliação entre a coroa e a juventu-
de estudiosa, malquistadas desde as primei-
ras sarrafuscas de ha três annos. Que os
rapazes viriam das suas terras estender-me
capas no caminho I Que o povo me beijaria
as roupas, de joelhos. E sem exigir mais
obras, Coimbra emGm, a cúpida estragada
a quem nada aproveita, esportularia dinhei-
ro como pródiga, só para eu ter recebimen-
los de Cezar e alelluias de deus transfigu-
rado. Gaio na arriosca de mais uma vez l^er
fé na solidez das suas combinatas ; despre-
venido e ingénuo, venho por ahi fora a pen-
sar nos vivas dos rapazes, a antever o mar
36 OS GATOS
de cabeças adolescentes, a febre das mãos
rufando palmas, o fogo dos olhos felichisa-
dos a um aceno do meu sceptro-pingalim —
e de solas novas, para nào sujar as capas
estendidas. 4' minha chegada vem as auclo-
ridades, vem os bedéis, vem os professores,
vem os bombeiros, vem os padres ; tudo
quanto recebe para ser fiel ás instituições.
O resto, m(5Íla I
Por consequência, amigo Zé Dias, faça
as suas malas para se pôr ao fresco antes
das eleições ....
FIALHO DALMEIDA
os GATOS
publicação
d'inquerito á vida PORTUGUEZA
N.°46 — 21 de Septembro de 1892
SUMMARIO
Os SYMBOLISTAS E DECADISTAS CÁ DE CASA ",
CONSTATAÇÃO DO CARACTER LITTERARIO PELO PAS-
CIAS, HEREDITARIEDADE, MEIO SOCIAL E EDUCA-
ÇÃO. PrOVA-SÈ a LNCAPaCIDADE DE SEREM OS
PORTA-BANDEIRAS DA POESIA DECADISTA, E COMO
A SUA OBRA NÃO PASSA d'uMA IMITAÇÃO GROS-
SEIRA DOS FRANCEZES. — ARGUMENTO MACARRO-
NICO d'uM POEMA, E DISCUSSÃO DAS BASOFIAS RE-
VOLUCIONARIAS d'um POETA. — A Epiphania dos
Licornes, ou contricçÃo d'um Figaro que se
TORNOU Basílio. — Génio da asneira e factu-
n os GATOS
RA DE REPUTAÇÕES PELO ESTROMBOTICO. OBS-
CURIDADES E CHATEZAS NEPHELIBATAS. Dom
Briolajija .so6 as côr de mosto, mais conhecida
POR COMPLICADAS DECORAÇÕES DE LEGENDA VE-
LHA,— BeLLEZA KiRIAL DESTE POEMA. EuGE-
NIO NAS SUAS JUSTAS PROPORÇÕES. — OaNDYSMO
POÉTICO d'Oliveira Soares, e caracter misti-
ficador DO Exame de consciência e Paraíso
Perdido. — Intervém uma dama com piada. —
Como aos vinte annos se é mystico, revista
DOS travestis do auctor p'rá galeria
Soares, poeta latino. — Necessidades d'e-
MOÇÃO NA poesia ; A LEI DE TyNDALL SOBRE O
rythmo, e sensibilidades peculiares de cada
estado poético. gomo os versejadores ma-
nuseam a rima rica. o que é a rima rica,
seu rapel depressor na poesia portugueza.
— Versos sem ideias, e grandíloquo, pato-
GNOMONico d'idiotia. — Não tenteis comprehen-
del-os, E QUE vão para a charrua. — Em con-
clusão.
Os symbolistas e decadistas cá de casa
são uns rapasinhos joviaes e bem portados,
com a digestão fácil, a alegria prompla, e o
coração sujeito a um tic-lac de que nenhu-
ma commoção violenta altera o rylhmo. A
sua historia pregressa dá-lhes um socego
de vida e uma benignidade deducação e de
leituras, que de forma alguma predispõem
á nevropathia seus encephalos d'adolescen-
tes. Isto se reconhece na maneira melhodi-
ca com que elles fazem já, sendo tão novos,
suas edições d'obras completas, no ideal de
conforto burguez, forrado a papel, que todos
teem da vida cívica, na forma correcta de
vestir e d'aparlar o cabello, e até na calcu-
4 OS GATOS
lada arlificiosidade com que aos vinte annos
(a edade das grandes fomes de Verlaine, e
das vagabundagens de Rimbaud alravéz de
lodos os acasos da bohemia mendicante das
velhas cidades de França e d'Allemanha)
elles buscam para propalar seus nomes uma
eslravagancia poética que os ponha em foco
nas esquinas da apalhia lilteraria da sua ge-
ração.
Hereditariamente nada conteêm tampou-
co que lhes desequilibre a funcção nervosa,
ou n'elles sublinhe sequer laivos de vesânia
d'onde tarde ou cedo venha a brotar uma
arte detraquée. São filhos de lentes, de mé-
dicos, de proprietários, a quem os estudos
profissionaes não prejudicaram a saúde e
a descendência, e que muito embora oc-
cupando, ou tendo occupado, na vida
scientifica ou burocrática, logares distin-
ctos, comtudo evitaram sempre queimar a
carcaça no auto-de-fé dos excessos de labor
cerebral, que vicia a propagação, e tanta vez
faz pagar aos filhos as dividas physiologicas
dos pães. Quem os encare de face, a san-
gue frio, logo n'elles reconhece organismos
de saúde, de formato pequeno mas relezo,
os GATOS 5
caras symelricas, craneos de typo tranqui-
lisador e olhar sereno, e mãos tão cuidadas,
dedos Ião direitos, movimentos tão pouco
desconnexos, impaciências Ião pouco adun-
cas, que não ha duvidar se esteja em pre-
sença de seres Íntegros, bem comidos e bem
tratados, d'intelligencias conspicuas, não
creadoras, senão repetidoras, d'artistas emfim
que embora aptos para fruir na arte uma
maneira de ser própria, jamais conseguirão
sahir da nobre mediania litteraria que o ta-
lento menstrua, mas onde raro o génio ma-
cabro erriça a sua careta hiante de hypo-
gripho.
Também a sociedade e o meio onde elles
pairam, a geração litteraria onde elles se fi-
zeram, não podiam compolir-lhes o savoir
faire de poetas para uma corrente d'inno-
vadores nephclibatas, porquanto nem essa
sociedade, nem essa geração, nem esse meio,
limitados e tranquillos, da vida universitária
e provincial, podiam trabalhal-os por forma
a desconjunctarem o justo equilibrio de fa-
culdades que já individualmente assignei
para os srs. Eugénio de Castro, Oliveira
Soares e João de Castro.
6 OS GATOS
De feito, que sabem esses rapazolas aos
20 annos, com mezadas de familia, cavaquei-
ra amena nas republicas escolásticas da alta,
tricanas prestes, paysagens remançosas, lim-
pidos céus, horisontes mnsicaes, e por toda
a parte promessas de fortuna e silhuetas de
salgueiros e monumentos históricos, que as
baladas do rio melancholisam, as guitarras
e as troças juvenescem d'um evohé de vida
inberbe — que sabem elles da grande vida
marlyrisante dos que não podem voar por
ter de pôr todos os dias a panella ao lu-
me, e dos que tendo-se feito ura nome, re-
bentam de marlyrio ignorado para o levarem
intacto té ao frontespicio d'um livro origi-
nal ?
Ingénuos como rapazinhos, bêbedos de
petulantes amanhãs como afilhados das on-
dinas, sem necessidades de metal, acordan-
do ás manhãs co'o habito fresco e a bocca
sem saburras, não sabendo se ha fígado, não
sabendo se ha talhos, mercearias e pulhas
que a gente tem de subornar para ir viven-
do— ignorando por cima, os felizes, quan-
tas humilhações custa aos trinta annos d'um
homem fanado, a noite d'amôr que uma
os GATOS 7
crealura gracil vende, a quem lh'a pede, em-
bora na divina lingua d'um poela grego ou
ílorenlinol — como podiam elles, esses sa-
dios e esses mansos, ser os portadores das
perversões d'este final de litteratura pessi-
mista, eroto-mystica, inconfidente, epilepti-
sada da dôr de viver, com desejos de morte
e terrores da sepuUura, vaidosa e pusilane,
pregando o amor sem posse e violentando
ao mesmo tempo a natureza, nihilista e egoís-
ta, hamlelica, impulsiva, escorrendo luz e
escorrendo pederastia ? 1
Claro eslá que todas as fontes da dôr mo-
derna, incomprehendidas, todos os seus pro-
fundos veios d'inspiração lhes ficam, por
esse tacto, sonegados : razão porque a poe-
sia dos srs. Castros e Soares não podia
deixar de ser o que é, uma imitação dos
defeitos grosseiros do decadismo, e uma
caricatura ridicula das estravagancias a que
alguns symbolistas malucos teem levado em
França e na Bélgica a arte de cantar. Não
é a acuidade evocativa de certas imagens e
S os GATOS
vocábulos, nem a estranheza hyslerica de
certos estados de razão ou d'alma que os
poetas das Horas, do Exame de consciência
e da Alma Posíhiima mais particularmen-
te sugaram dos seus modelos francezes, que
equivaleria isso a uma identificação moral ab-
soluta, cujo primeiro resultado seria sinceri-
sar a arte d'elles té aos exiremos d'uma auto-
biographia ingénua e apaixonada. O que esses
moçoilos com delicia copiam são os trucs, as
pochades meio arte, meio intrugice, os toni-
troantes vocábulos de significação obscura,
torcida, fora do seu lugar, o abuso das let-
tras maiúsculas, e a alteração proposital em-
fim de todas as regras poéticas que possam
pôr a metrificação ao abrigo das maluqueiras
de rapazes.Em prosa como em poesia, o sym-
bolismo d'elles não consiste, como Banville
diz, «em nunca ir á concepção da ideia em
si,» mas é uma serie d'omissões, inversões,
deducções, que tiram a clareza á phrase, á
ideia o seu declive limpido e synthetico, tor-
nando a litteratura n'uma espécie de palim-
pséste, meio obsceno, meio religioso, onde
o sentido é incomprehensivel por lhe falta-
rem palavras pelo meio. Querem uma pro-
os GATOS 9
va ? Ahi vae o argumento do livro Horas, do
sr. Eugénio de Castro.
«Silva esotérica para os Raros apenas :
abertas as eclusas, corvetas, como cathcdraes flu-
ctuantes, seguindo inéditos itenerarios por atlânticos
virgens ;
«terraço ladrilhado de cipolino e agatha, por onde o
Symbolo passeia, ai'chi-episcopal, arrastando flamman-
te simarra bordada de Suggestòes, que se alastra, oleo-
sa e polychroma, nas lisonjas ;
«concerto de adequadas musicas implorativas ou mo-
rosas, raro estridentes ;
• complicadas decorações de legenda velha mantelan-
do o pudor dos episódios simples ;
«preces d'um hereje arrependido, votos castos d'iun
antigo libidinoso, pesadelos e irreligiosas hesitações
d'um recente convertido ;
«Tal a obra que o poeta concebeu longe dos bárba-
ros, cujos inscientes apupos, — ai nâo é de esperar — •
n»o lograrão desvial-o do seu nobre e altivo desdém de
nephelibata.
« E se Deus todo pocUroso lhe der geuio e saúde,
para breve novas colheitas.»
Claro que isto não é prosa, nem program-
ma, nem argumento, nem coisa nenhuma ;
é uma trapalhada sem nexo, que se acredita
concebida longe dos bárbaros, por ter sabi-
do com certeza do hospital de RilhafoUes.
A par da escriptura macarronica, ha n*esla
silva p'ra raros, uma altivez de tal sanha in-
sulsa, uma pretensão do provar do fino em
10 os GATOS
tanta maneira solérte, que nem Victor Hugo
nem Junqueiro jamais do alto dos seus mon-
tes escreveram com tão chispantes raios, na
taboa eterna, alei mosaica para o povo prós-
ternado ao de redor. E nada menos do que
uma poética nova, do que um ideal novo, do
que uma lingua, uma imaginação, uma eu-
phonia e um rythmo inteiramente inéditos e
desconhecidos até hoje, o que alli se pro-
mette — o todo sobrepujado do extasi ceno-
bitico d'uma alma desilludida da carne, e
que refugia em Deus o seu terror da perfí-
dia humana. Enira-se no texto da obra, após
d'eslas estridulas promessas, e depara-se o
seguinte. Na Epiphania dos Licornes (epi-
phania dos hcornes não lembra ao diabo 1)
uma espécie de ladainha em que as remi-
niscências d'orações d'infancia ennastram
nas parvoices, e em que pedaços da Ave-
Maria confinam com recuas e recuas de pa-
lavras antigas, postas de propósito para bo-
qui-abrir d'espanto o pobre diabo, e com
imagens tiradas de leituras e factos de que
o sr. Eugénio de Castro nem sempre attin-
giu lucidamente a significação.
os GATOS 11
Kyrie cleison, Christe eleison,
Lua deitada, marinheiro a pé,
Lua deitada, marinheiro a pé,
Kyrie eleison, Christe eleison.
Hoje ha banzé.
«O toda vestida de Ihama, e luciolante de pedrarias,
O sempre em meio das sororaes polyphonias
Dos burcelins, das mibelias gementes, das violas,
O sempre Insinuante e Cardeal entre os turibulos acce-
sos,
Derramadora de eucharisticas esmolas,
Estrella dos Mareantes, das Orphaudades e dos Presos,
Consoladora dos que tombam do andaime
Da Illusão, Santa Maria, Màe de Deus, auxiliae-me !
«A minha Mocidade tem cabellos brancos :
Sou o menino, que, uma noite, os Saltimbancos
Roubaram, sou o Lis á janella d'um palácio em fogo,
E a Noiva Lilial n'uma casa de jogo.
«Que é dos idos explendores dos
Soes mortos ; noiva dos profanos em
relvas de pastoral, vinhos cascatan-
tes, horabros nympliaes, caravellas
aurifl amantes buscando chymericas
Américas ?
"Tive puniceo manto, que era, no chào, puniceo azeite ;
Adaga temperada de Nurcmberg,
Em cujo punho uma sai)hira, entre opalas de leite,
Era uma tulipa azul em Spitzberg.
«Tive falcões e falcoeiros,
E nas de por])hyro varandas
De meu castcllo, arrabilciros
Tocavam, resplendentes de opalandas ;
Tive castello de granito,
Granito rozeo de Syena,
12 OS GATOS
Tive taça d'ambar do Egypto,
E colchão d'eseolliida pena ;
Tive leito de faia (tal Salomão), sob cortinas
D'aiireos tissus, onde dormia adur
Geado d'alvas popelinas
E de bordaduras d'Assur ;
Auôes em seda alva de jaspe,
De meu eastello no átrio mudo
Sobre as lisonjas de diaspe,
Erguiam rios de velludo ;
Balsamyrrhando o manso ar,
Em de cobre babylonicas caçoilas.
Fumegavam rezinas de Madagáscar,
Do fogo entre as ruiuas cenoilas ;
N'um celleiro ladrilhado de sardonia
Tive tulhas de pedras raras :
Turquezas do Cairo e da Macedónia,
Diamantes frigidos, sem taras,
Peridotes, obsidianas,
Kubis de Dgiamschid, húmidos de siuopla,
Sueiras, esmeraldas de Juba, cymophanas,
Eozicléres de Yisapura, jacinthos de Constantinopla.
«Os francezes levaram-me tudo: a
adaga nurembergueza, a taça d'am-
bar do Egypto, os rubis de Dgiams-
chid e as torquezas da Macedónia.
Para quando o armistício, para
quando ?
«Tive um parque cheio de lagos
E de cegonhas brancas, como lythurgicas pratas,
Povoado de aromas vagos.
De murmurancias de cascatas,
E de figuras de basalto ;
Onde, em tanque d'agatha, um hydro
D'onyx vomitava alto
Uma girandola de vidro ;
os GATOS 13
E onde, soberbos como Núncios,
Com suas caudas d'oiro ardente,
Iam pavòes, sob quincuncios
De rhododendros, lentamente, lentamente, lentamen-
te.. . >*
E mais além
« . .Da cidade do Mal augmenta o estrépito
N'uma rubra heiuoptysia o Sol decrépito,
Golfeja sangue pelo ceo grisalho . .
Thuribulo da tarde um lago fuma,
E, na sua assumpção, a Lua é uma
Branca Primeira Communhào n'um Talho !
('Bárbaros : uma Voz de setim
branco chamou por mim. Todo ves-
tido de linho, vou para a Torre do
Conceito Puro. Fui o Fraco e o Ne-
gligente e o Diamante de Golconda
engastado em zinco : hoje sou o
Beato e o Mago. Não tenteis cora-
prehender-me : iião me comprehen-
derieis. Fazei clangorar o olifante
das Paixões ruins. Serei surdo. E
vinda a hora muito esperada, do li-
vramento.»
Hão-de concordar que o conjuncto é a
mais não disparatado, e que ha razões para
se contestar a mesma bôa fé d'esta poesia.
Na diversidão dos géneros litterarios, occu-
pa o ver^o já um tão minúsculo logar que
nâo valeria a pena fazer passal-o d'arle a um
14 OS GATOS
jogo de paciência, e a uma habilidadesinha
de serão. Porque, enlendamo-nos. Se a tal
Epiphania dos Licornes é o acto de conlric-
ção d'um antigo devasso (Fraco e Negli-
gente) qae tendo cedido ao peccado, conser-
vou todavia, a alma luminosa (diamante de
Golconda engastado em zinco), tornando-se
pelo arrependimento e exaltação extática em
Maria, no Beato e no Mago que vai para a
Torre do Conceituo Puro, surdo ao olifante
das Paixões Ruins, deve esse threno vir tres-
passado todo da emoção do acto, e conter
em si o reviramento psychologico que de-
terminou a conversão da alma do poeta. E
essa emoção onde estremece ? No Kyrie elei-
son da lua deitada e do marinheiro a pé?
Na confissão de que o sr. Castro seja a noi-
va lilial n'uma casa de jogo? No puniceo
manto que era no chão puniceo azeite ? Nos
arrabileiros e nos anões em seda alva de
jaspe? Nas lisonjas de diaspe, no «fogo en-
tre as «ruivas cenoilas» no «para quando o
armistício, para quando ?» no hydro vomi-
tando a girandola de vidro, ou na lua que
lembra ao poeta uma primeira branca com-
munhão n'um talho?
os GATOS 15
Pois não se eslá vendo que n'estes versos
onde palavras de cathecismo se misturam a
confissões de peccados não commeltidos, e
a suggeslão das imagens e credos deriva
d'um inconsciente folhear de livros de rezas
e folhas de bonecos da coloriage franceza
d'Epinal, não se está vendo que n'esta mi-
chorfada falta completamente o sentimento, e
não ha uncção nem perversidade, e tudo é
feito de cor para fazer o incauto dar cavaco ?
Por ventura a superabundância de descripti-
vos, com seus embutidos estapafúrdios de
quincuncios, licornos e olifantes, não lhes
incutiu já a suspeita de que o poeta procura
meterno livro, co'a maior somma de brilho,
a menor somma possivel de pensamento ? Es-
ta poesia dá-me a impressão d'uns meninos
de fraldinhas húmidas, a quem a ama en-
sinou mal as orações, que elles inda por ci-
ma deformam em versos errados, cuidando
rejuvenescer com isso a lei de Deus.
Fica entendido entanto que não é o deca-
dismo que eu vergasto — toda a forma d'arte
16 OS GATOS
é viável e fecunda, desde que seja a expres-
são sincera dum momento da vida — mas
certos decadistas francezes demasiado pre-
ciosos para serem os portadores d'alguma
ideia- mãe, e os seus macaqueadores de Por-
tugal, demasiado infantis para que o sorri-
so publico lhes não sublinhe galhofeiramente
as farfalhadas. Porque eu já disse : a deca-
dência dos srs. Castro e Soares não lhes
está no espirito, na lassidão enervada, na
saciedade, na maladie equivoque, ou na
pregação da inutilidade de tudo, como
no soneto de Verlaine que atraz citei, e que
é toda a autopsia d'uma geração. A deca-
dência está simples e puerilmenle em certoR
rebuscados de forma, vicios d'estructura
grammalical, e obscuridades de glossário,
que são o que os mestres francezes teem de
mais ridicuío e de peor. Lá vem por exem-
plo na Epiphania dos Licornes, o verso es-
trebuchando em melros diversos, a fingir que
deita sangue pela bocca de haver feito a
volta do mundo de todos os ideaes; lavem,
entrecortando series de quadras, onde as ri-
mas alternam geralmente, pequenos períodos
era prosa pretendendo imitar os famosos
os GATOS 17
versos livres que a Rimbaud foram suggeri-
dos pela «prosa poelica ou rythmada» de
Maria Krysinska, meio termo entre o verso
e a prosa, e que mais parecem rubrica no
poema do sr. Eugénio de Castro, do que
propriamente litteratura, accrescendo que
nem lêem estranho, nem originalidade, nem
préstimo ; e a par do catholicismo mystico
que não é de modo nenhum factor d'escola
adstricto ao decadismo, mas um caso parti-
cular de Verlaine que os poetas de cá
trasladaram para a sua copia, n'uma garo-
tada deplorável d'irrespeilo ; a par d'umas
exhibições de passado orgiaco, inteiramente
postiças, e onde não ha amargura, nem blas-
phemia, nem saudade, porque não existiu,
esse passado, apercebe a gente nos poetas,
mencionadamente no sr. Eugénio de Castro,
outra velleidade ainda, a do instnimentismo,
que é como já disse uma tendência para fa-
zer poesia provocando emoções não com o
sentido das palavras, que por fim é abolido,
mas com eíTeitos de sonoridade na maneira
de combinar as syllabas, identificando assim
a poesia á musica, isto é, liquidando d'uma
vez co'a poesia, o que deixa realmente os
18 OS GATOS
poetas n'Lima apalhia para e simples déreis
Lears crelinos.
O poemeto da Dona Briolanja, espécie de
fryptico em parelhas de yersos, onde se fi-
gura uma dama aguardando, ajaezada de ri-
quezas, o eleito, que alfim a leva á benção
nupcial, é no livro do sr. Castro um descri-
ptivo de côr Riais coherente, e que máo gra-
do o preciosismo da talha, todavia se rece-
be com uma porção de curiosidade enterne-
cida, prevenido como se é pelo poeta, á por-
ta do poema, de como este seja «complicadas
decorações de legenda velha mantelando o
pudor dos episódios simples.»
(fDona Briolanja vai com suas aias
Sob as côr de mosto vesperaes olayas.
Vae com suas ais, leva fino leque,
Cauda de velludo pallido de Utrecht.
Leva broche aonde sangra uma espinella,
Pende-lhe da cinta sonora escarcella.
Leva anneis de cobre com aventurinas,
Brincos de sueiras, manto de agnelinas.
Dona Briolanja vae com suas aias
Sob as côr de mosto vesperaes olayas...
Dá a impressão de ter sido inspirado
03 GATOS 19
n'uma illuminura, bárbaro e ritual como el-
la, e ressequido e ósseo sob'as pompas das
cores e a artificiosa decoração das palavras
dos chronicons.
«Toda, toda branca, toda em seda branca,
Sua cauda é lácteo tanque que se estanca.
Vae ajoelhar-se o bi-anco par noivai
N'uiii de rica Ihama rico sitiai.
Gemera os psalterios, gemem as violas,
Brilham as Casulas, brilham as Estólas.
Ciriaes de prata luzem sobre o altar,
Thuribulos d'oiro dançam pelo ar.
E o Bispo arrastando sua rubra capa
Lança aos dois esposos a benção do Papa.»
Hemos de confessar que isto é bonito, com
kyries de ladainha e rythmos de bailada :
mas sem phantaslico, d'um estranho posti-
ço e feito de propósito para enlarrecer a in-
genuidade dos leitores, e é o que me re-
volta !
Sempre porém que o sr. Eugénio de Castro
se resolve a abandonar as esquisitices de
glossário e as comparações de matoide em de-
manda de celebreira, o poeta que fica é d'uma
20 OS GATOS
infinita graça requintada, jungindo aos mo-
dernismos mais acres, arcaísmos cheios de
sabor de livros velhos, velhos estofos, velhos
baixos relevos, por onde aqui e alem bru-
xuleia um estrosinho de cândido namorado,
E' este, me parece, o Eugénio que registra-
rão para a historia do preciosismo lyrico
contemporâneo, os bibliophilos solicitos de
minúsculo, e ahi figurará no primeiro soclo
o nome do meu amigo, a quem os compul-
sadores censurarão ter sido um dos mais
incorrigiveis mistificadores da sua grei.
Procuro depois nos livros do sr. Oliveira
Soares, caracterislicas, siyos com que descri-
minar a sua poesia entre as dos Castros, e
á proporção que o leio desvanece-se-me o
intento de o pôr em oratório como patrono
d'uma arte original. Porque tudo nos versos
d'elle se funde em dandysmo e artificio, e á
parte uma estravagancia agradável de certos
detalhes postos de propósito para o hrouhaha
das gentes cândidas, nenhuma coisa mais ca-
pta a minha alma, des'que a emoção estáau-
os GATOS 21
sente e a sinceridade é ponto controverso.
Exame de consciência e Paraíso Perdido sâo
as duas espécies de smoking d'uma paixão
experimental, mandadas fazer ao talhe de
cinla e hombros d'uma alma irónica, por um
costureiro de certa habilidade. Opoelacor-
lou-os, provou-os, vesliu-os, e achando que
lhe ficavam bem. já não quer d'outros. Livros
modelados pelos de meditações dos antigos
ascetas, onde em vez de Jesus uma mulher,
e cada mcditnção repetindo as lithanias an-
teriores por oulras palavras, muitas letlras
maiúsculas e alguma impertinência. Certa
dama que os leu, diz lembrar-lhe Soa-
res um rapaz que depois d'um namoro
infeliz, ficasse tonto. E' formular a obsessão
do poeta em forma de chasco, mas verdade
que se não chega a fazer d'esse amor,
por aquelles livros, uma ideia lá muito in-
teressante. Em primeiro logar a figura da
dama não sahe nitidamente das muitíssimas
raridades que o poeta confusa e aristocrati-
camente lhe atlribue. Mesmo considerando
esse vulto apenas como synthese do femini-
no eterno condensado, as coisas que o sr.
Oliveira Soares divulga d'elle5 das suas mãos,
22 OS GATOS
dos seus vestidos, da sua belleza e da sua
raça, são tão vagas e externas que não ha
meio de descobrir por sob os véus da múmia
o principio intelligente que despertou no sr.
Oliveira Soares Ião grande amor. Ora preci-
samente esse principio é que daria o fer-
mento dramático do livro, não exclusivamen-
te por si, mas nas cambiantes psychicas que
a sua affectividade acordasse no espirito do
cantor. Em segundo logar, des'que no Exa-
me de consciência e Paraiso Perdido a alma
d^ella está ausente, o poeta, esfriado da exa-
cerbação que no homem amante causa
sempre o farisco da mulher amada, em
vez d'acciisar nos seus versos os ardores
d'uma imaginação viril, ébria de vida, o que
faz é atirar novenas para o vácuo, psalmo-
diar misereres sobre o cadáver d'uma paro-
dia de paixão; e n'este conjuncto de ladai-
nhas monótonas, d'uma religiosidade chei-
rando ainda aos desinfectantes da fronteira,
n*este breviário da insensibilidade gommo-
sa, travestida de levita, julgou o auclor
ter dado a nota do irreparável moder-
no, que desestriba o amor do «contacto
das mucosas», tão somente admittindo nu-
os GATOS 23
peias d'almas, e enlevos mysticos semelhan-
tes aos que fr. Thomé de Jesus linha pela
Virgem, nas suas noites de monge mutila-
do. A impressão que me produzem os ver-
sos do sr. Oliveira Soares é a d'um discí-
pulo do Conservatório fazendo as suas pro-
vas de galã de joelhos aos pés d'um mane-
quim. A dicção é lalvez elegante, a figura
distincla, a voz de boa agua : porem a cada
passo reflecte- se-lhe no jogo o manequim
que elle invectiva, de sorte que não ha meio
d'abstrahir o actor, da peça declamada. O
catholicismo é também ou Ira mistificação
em voga n'este grupo, e despega-se-lhe dos
versos apenas raspada a crosta exterior.
Frizei a insocíabilidade entre as caracterisli-
cas dos temperamentos lillerarios contempo-
râneos \ e nos nossos cephehbalas vemol-a
revestir um typo d'insoluncia que é o exa-
gero do orgulho infantil ao apropriar senti-
mentos que não peza. De feito, não tendo
os Ires poetas de quem fallo, signal algum
do génio degenerativo, decorrendo-lhes a vi-
da plácida e o ambiente iniellectivo pouco
1 Gatos, n.° 43, pag. 20.
24 OS GATOS
hostil, escrevendo elles livros medíocres e
sendo apenas uns neuraslhenicos simu-
lados, aqnella insociabilidade não pode ser
senão resultado do mimo, e por forma alguma
consciência da auctoria d'uma obra incom-
prehendida e superior. Existe n'elles, vê-se,
determinada porém por moveis pueris ; e
existindo, como harmonisal-a então com o
sentimento religioso, desde que a religião é
um sociomorpliismo cósmico, com a socia-
bilidade por laço aglutinativo do homem ás
forças do universo, ao universo depois, e ao
seu principio ?
A origem de toda a religião é o desejo ;
sem necessidades não haveria deuzes, e co-
mo as potencias de quem dependemos se
chamam divindades, incluiu o artista entre
as mais prestigiosas, a mulher. Porém a
mulher fonte da vida, vaso das gerações,
fecunda no riso como no amplexo — jamais
a virgem perpetua, a solteirona recusando o
flanco á perpetuidade das raças, symbolo
estéril da invalidez dos seres tresviados do
papel para que a natureza os foi formando.
Renovar o culto mórbido dos ascetas á fê-
mea intangivel, á fêmea insexual, mesmo
os GATOS 25
sob perfumarias de dandysmo e o docel
d'um ideal d'amor transfigurado, alem de
me parecer uma monstruosidade indigna
de homens validos, nem sequer para o caso
subjeito tressua o encanto da penitencia,,
porquanto os nephelibatas do meu conto são
gozadores da vida até á olheira, e a respeito
de crenças, baul baul troçariam Jesus se
elle voltasse.
Emfim o myslicismo do sr. Oliveira Soares
ainda podia ser um embuste sem raiz senti-
mental n'um coração com sopros d'agonia,
e a sua obra poética permanecer bella ape-
zar d'isso, perfeita e plástica como um baixo
relevo historiado ao deredord'um typo d'in-
sensivel. Infelizmente nem esse consolo fica
no enxoval do noivo mystico, cujos lithanias
por vezes se estafam em circumloquios fas-
tidiosos, e levam a excentricidade a porem
em rima os latins do Palito métrico:
«...Et floridas Hymnus virtutis,^
Cansa laetitiae Juventiitis,
Sinas dalcissirnus salatis...»
Pela physiologia se sabe que a lingua
rylhmica do verso, cujo fim é exprimir emo-
26 OS GATOS
ções antes de ludo, lera a mesma emoção
por causa prima. Tudo em nós se rythmisa
sob a influencia de sentimentos dominado-
res : rythmisa-se o gesto, rythmisa-se a vóz,
rythmisa- se o pensamento, porque a diffu-
são nervosa espargindo a excitação mental
travez dos membros, confirma a lei de Tyn-
dall e Spencer, segundo a qual toda a agi-
tação é transformada em movimento ondula-
tório regular. A cada estado de sensibilidade
deve então corresponder uma vóz do espirito
poético em acção — versos pallidos quando
a emoção é nulla, cheios de harmonia quan-
do o sentimento é forte e caloroso, ^ e estas
impressões pela lei do contagio sympathico
voam do verso, promovendo estados d'alma
idênticos entre o poeta e o seu leitor. Nos
versejadores fatigados ou insensíveis, a emo-
ção que é impossivel produzir pelo senti-
mento, tentam suppril-a por via d'excitantes
e artifícios (o papel das especiarias nas comi-
das sem sustancia nem tempero) e vem o caso
dos nephelibatas explorando a ênfase, os
1 «On pourrait definir le vers ideal: la forme qm
md á prendre toute pensée émue.»
M. GCTAU.
os GATOS 27
epilhetos eslrombolicos, as imagens archi-
destemperadas, e a intrujice da incompre-
hensibilidade edas letlras maiúsculas a que
me vim referindo mais atraz. Entre estes
apperitivos destaca principalmente a rima
rica, já explorada pelo romantismo, e cada
vez mais em voga para mascarar cretini-
sações de pensamento.
Scientificamente a rima não passa do meio
de tornar sensível o fecho do verso ; tem na
poesia um papel portanto limitado, embora
poetas d'ella se valham como dos alcatruzes
d'uma nora, para lhe sorver pelos furos a
inspiração. Se íazendo-a exhorbilar d'esta
medida, admiltirmos a escamoteação da
rima rica, iremos dar a um pormenor rela-
tivamente banal da poesia, valores que só
podem deslumbrar ouvidos rudes, e assim
terá retrocedido a arte, de qualro séculos, ao
tempo em que o publico ainda physiologi-
camente inhabil para a percepção do hiatus,
se comprazia na repetição dos mesmos sons
acompanhada de diíTerença de sentidos. A
poesia ficará pois reduzida, co'a rima rica,
como Banvilie diz, a «uma serie de harmo-
niosos calembúrs», e calcula-se o que fica-
28 OS GATOS
ria d'ella abatendo da pouquíssima impor-
tância que já tem no nosso século, a deses-
tima em que necessariamente cahirá se os
poetas liquidarem exclusivamunte em rima-
dores. Por desgraça é esta a tendência qua-
zi geral dos portuguezes, e o primeiro si-
gnal de decomposição d'uma reviviscencia
em que ha dez annos muitas pessoas che-
garam a ter fé.
Os eíTeitos depressores da rima rica, ou
substituição da ideia por aventuras conti-
gentes do mero encontro dos sons, esmiu-
çar-se-hão melhor pensando no seguinte :
!.• — nos poetas a exagerada procura da
rima vem a tocar com o tempo as raias da
mania, e d'esse instante não verão elles no
verso mais que pretextos para jogos mala-
bares. Consequências : a impossibilidade re-
mota ou próxima de desdobrar rigorosa e lo-
gicamente o fio do pensamento; desordens
psychicas vedando ao artista todos as leis
d'associação d'ideias ; dispersão das facul-
dades creadores, perda do sentimento da
côr e da proporção, e esgoto final por um
processo mechanico ou glu-glu continuo de
palavras cantantes, medeante o qual apõe-
os GATOS 29
sia acabará por se tornar n'uma esgalhada
(i'estravagantes bugigangas. Oaristos, Horas,
Exame de Consciência, Alma Posthuma, Bí-
blia do Sonho, Só, Livro d'Aglais, etc, lo-
dos os nfiodernos estão cheios d'eslas ape-
lintradas lafularias, signaes de miséria es-
tanque com que os mendigos doidos embru-
lhados na coberta da cama julgam fazer-se
passar por imperadores. 2." — eliminada do
verso, pelo escamoteio da rima rica, a ex-
pressão concisa e lapidar do pensamento, não
só o poeta desaprende de pensar, como de
fallar: o pensamento incha, diz Guyau, e
distende-se o palanfrorio de verso em ver-
so, té deparar a rima exótica que se procu-
ra. Começam então os saltos mortaes na cor-
da da metaphora e da periphrase, os inci-
dentes deslocando a nitidez das linhas mães
da composição, o relay paper do pitoresco
em galopados d'estravagancia atravez dos
cérebros vasios.
A's hypertrophias de linguagem succede
o adelgaçamento da ideia e a aniquilação
gradual do sentimento. Poeta morto em con-
clusão. O próprio azialismo da rima acaba
por lhes reduzir e empobrecer o vocabula-
30 OS GATOS
rio, que é já por fim um moinho de musica
trazendo ao ouvido do leitor os mesmos so-
los. Querem exemplos ? Vão aos chamados
poetas tropicaes, e ali encontrarão rimas de
tal maneira uniformes, que notadas duas ou
Ires, adevinham-se logo as outras, n'uma
invariável successão de zig-zagues.
Desnorteados em plena charneca árida
d'uma arte sem ideaes, nem seivas, nem phi-
losophia nem encanto, d'uma arte que elles
não crearam nem sentiram, esses rapazes
quando a consciência os saccode n'um vis-
lumbre mais lúcido, lançando -lhes em ros-
to a estúpida farça a que se prestam, esses
rapazes para esconder a litubiação apodam-
nos de bárbaros, dão-se altitudes myslerio-
sas, chamarrados de tilulos agaçantes. Não
tentei comprehender-me ; não me comprehen-
derieis! E o caso é que o publico embatuca
e não tem coragem para lhes chamar char-
latães.
Bem ao contrario, é n'esse momento que
a critica porlugueza começa a achal-os re-
volucionários e verdadeiramente criginaes.
Veda-lhes a paralysia psychica lucidez verbal
para um conceito ? Aos alinhaves de phra-
os GATOS 3Í
ses insulsas dão o nome de symbolos, e es-
tá promptoí A verborrhragia força-os a pala-
vrear a esmo inarticulados glus-glus de pa-
vões vaidosos? Ghamam-se então promposa-
mente instrumentistas, e cada uma d*estas
incapacidades origina por seu turno um mo-
vimento poético, que segue o seu caminho e
fez aíieptos. Ha bestas p'ra tudol No entre-
tanto os chefes permanecem rigidos e mitra-
dos nas hsonjas, onde se arrastam oleosos
e polychromos, com as puniceos mantos, os
qnincuncios e as noivas espirituaes das suas
almas viuvas. Teem uma coiza boa, não que-
rem agradar, nem ser comprehendidos, e só
escrevem versos para os raros. Alguma vèz,
vendo a maneira como se esgatanham uns
aos outros, como se descriminam em seitas,
se disputam o báculo primaz do movimtnto
poético iniciado, e a respeito de si próprios
escrevem, com diferentes pseudonymos, gro-
zas sem fim d'arligos laudatorios, alguma vez
poderia parecer que elles fossem gajos sabi-
dos na vidinha, cultivando o reclame como
o Fonseca das cautellas; jamais nephelibalas
isolados na nuvem, como deuzes. Mas é enga-
no ; o que elles pretendem não é chocalhar-
32 OS GATOS
se á aura publica, senão conseguir que as
suas doutrinas vinguem, chegado ao que tor-
narão á obscuridade honestamentCc Pois que
sobre myslicos são ao mesmo tempo mon-
ges do silencio,cumpra-se o fado — não se íal-
le mais na sua obra. Este irá para a torre
do Conceito Puro, aqueíle para o tumulo gla-
cial do seu desprezo altivo. Não tentemos com-
prehe?idel-os, não os comprehenderiamos. Quem
vae, vae, quem está, está.
^ ^
FIALHO DALMEIDA
OS GATOS
publicação
d'inquerito á vida portugueza
N.°47 — 5deODtDÍ)rodei892
SUMMARIO
Corridas de toiros no Campo Pequeno:
ESTADO DO TOUREIO NACIONAL. FaLTA DE
toiros e falta de toureiros ; razões. o que
rksta do antigo bandarilheiro portuguez.
Necessidade de contractar hespanhoes parà
TODAS as corridas, E INFLUENCIA DA ESCOLA
HESPANHOLA SOBRE OS NOSSOS ARTISTAS. Su-
BIDA DE NÍVEL DO TOUREIO : ABAIXO AS PEGAS,
VIVA A SORTE d'eSPADA ! As FERRAS DE GA-
DO, ESCOLA d'aTLETAS. MoRTE DO TOIRO CO-
MO REMATE HERÓICO DO TOUREIO. ReDONDEL
DO Campo Pequeno, exterior enganoso, mi-
séria CHINFRIM DA DECORAÇÃO. PlPEL DA
MULITDÃO nas CORRIDAS DE TOIROS. CaMA-
rotes, mulheres e toilettes. — Se haverá uma
n os GATOS
REPARTIÇÃO TECHNICA E ARTÍSTICA NA CaMARA
Municipal, e para que se lhe paga? — Como
os frequentadores da tourada lisboeta não
DÃO MANCHA, E NECESSIDADE DE RESTABELECER
OS PICTORESCOS TRAJOS NACIONAES. InYASÃO
HESPANHOLA NAS CASAS D*ESPÉCTACULO. Um
ARTIGO FEROZ DO Imparciãi — António Viço
NO GyMNASIO : PHYSIONOMIA do ACTOR EM VIL-
LEGIATURA, E ARTE DE BEM REPRESENTAR SEM
RECURSOS PHYSICOS. DRAMATURGIA PREDILECTA
DE ViCO : O MELODRAMA HESPANHOL, ESPOLIO DO
ROMANTISMO. — EcHEGARAY, ESCRIPTOR GENIAL
E EMPANTURRADO. CaRACTER ORATÓRIO DA SUA
OBRA. — Mala Raza, obra prima do theatro
MODERNO. — Intuição dramática de Viço, es-
crupuloso caracter das suas figuras. — A
corte diverte-se. — Em Cintra, gralhada
DE PEGAS SOBRE 0 ENGANO d'uM VÍS-á-VÍS. O
BAILE FeTRE E a FALTA DE DECORO. — CoMO O
ADMINISTRADOR DE CaSCAES EXPULSOU QUAREN-
TA HESPANHOLAS DOS SEUS DOMÍNIOS. AMAZO-
NAS PORTUGUEZAS TRIUMPHANTES. AsSEDIOS
MONARCHICOS MOTIVADOS POR AQUELLA EXPULSÃO.
CaSCAES de LUCTO, NOITES DE THEDIO E FAL-
TAS DE CARAMBA. PrOGNOSTICA-SE O REGRES-
SO DAS TRONCAS EM OITO DIAS. — CoNCLUSÃO,
Í7 de septemhro.
A paixão das touradas acaba de soffrer
em Lisboa uma recrudescência aguda desde
que se inaugurou no Campo Pequeno o no-
vo circo. Em velhos e novos crepila o phre-
nesi d'esse velho torneio tão historicamente
ligado aos regozijos nacionaes, e uma onda
de sangue forle, Irúzida da consciência ar-
dente da raça, de novo remeche no sentido
do toureio os antigos Ímpetos viris do povo
porliigupz.
Embalde alguns preciosos faniquenlos,lo-
mando por bondade d'indolf^, cachexias pas-
sivas de caracter, embalde elles tentaram
4 OS GATOS
pregar a selvageria das toiradas, explicando
o enlhusiasmo geral por ferocidade d'instin-
ctos, e sentimentalisando o boi com litha-
nias românticas de chóchinhas. Todas as
almas foram surdas á mariqueria d'esses
bóias, e ás invectivas d'elles pedindo a pro-
hibiçâo das corridas e a prorogaçãoao toiro
das regalias que a Carta Constitucional ga-
rante ao homem, um desusado clamor fre-
meu das boccas, e as trinta e sete praças de
Portugal oncheram-se de gente, a acclamar
fora de si toiros e toureiros.
De sorte que o veredicto publico está pro-
nunciado, e a corrente avoluma-se, inutili-
sando despedaçadoramente as ultimas bar-
reiras. () povo portuguez dispensa escolas,
jardins d'acclimação, industrias d'arte, go*
vernos sábios e géneros baratos ; não está
porém resolvido a privar-se de toiradas, e
haverão que fazer-lhe a vontade, e que aper-
feiçoar quanto pos?ivel o exercício do único
^ort que lhe faz bater o coração.
Assente pois que os toiros sejam a diver-
são que mais ebulliciona o sangue peninsu-
lar, e que todas as tentativas de substituil-a
ou attenual-a tenham de resvalar na violen-
os GATOS 5
cia dos apupos, vejamos um pouco o estado
actual do toureio poituguez. E' deplorável,
no respeitante a toiros e a toureiros. Pro-
priamente toiros, quasi que não existem no
paiz, onde nos últimos sessenta annos a rez
brava tem amoUecido quasi tão depressa
como o homem.
Alguma que aindr nos nossos circos, ar-
ranca, fal-o por favor especial ao nosso Bo-
tas, mas em arremedo apenas, e logo pedindo
desculpa ao toureador, se o oíTendeu. Todas
as formuzuras do antigo toiro indomável, da
fera clássica, insensivel ao cança»;o, magni-
fica de chispa, veloz como o relâmpago, cor-
pulenta 6 bufando a fúria em primorosissi-
mas investidas : lodos os altributos antigos
do boi estampa, fixando a musculatura, a li-
geireza, a synieiria lyrica dos cornos, a ana-
tomia do pé e a elasticidade do espinhaço,
hoje estão regressando á fealdade palurdia
das raças domesticadas, ao burguczismo
chato do boi servil, do boi de charrua, com
ideias conservadoras, educado no collegio de
Campolide, irresoluto, esbofante, que acceita
a farpa parado, e finge de terrivel raspando
com a ponta da sapata o chão da arena.
6 OS GATOS
As causas d'cste abastardamento, são diver-
sas, e entre as principaes deve contar-se a
estupidez do ganadeiro, que pouco a pouco
destruiu a selecção natural pela mistura de
sangues conspurcados, e baixou o toiro a
pastagens atravessadas por muita gente, fa-
miliarisando desfarte a rez com o homem.
e amollecendo portanto aquella para a lide,
Pelo que respeita a toureiros, aparte al-
guns novos, de cavallo, o resto são curiosos
sem experiência nem vocação para o tras-
leio, princípios d'artista esticados pela li-
sonja na monotonia dos primeiros passes,
ou esqueletos d'antigas mediocridades arvo-
radas em glorias da arena por mercê da
ignorância dos modernos. A esta lazeira das
quadrilhas se attribuirá t.imbem o abastar-
damento dos bois bravos, porque os maus
toureiros por via de regra são poltrões, e por
força hão-de preferir a bichos indomáveis,
os anemicos boisinhos de cartão que por to-
das as nossas praças temos visto. Porém,
não contentes de serem poucos e maus, inda
por cima os toureiros portuguezes por ahi
andam, á semelhança dos actores, desempar-
ceirados e dispersos. As praças da provin-
os GATOS 7
€Ía absorvem muitos que por falta d'uma
contrastaria critica intransigente, breve se
viciam e assapateiram, desviando-se das no-
bres prescripções do jugo puro, e trocando
na arena os dictames de Frascuelo eLagar-
lijo, pela tauromachia grotesca do pae Pau-
lino. Outros, sem coragem para cortar com
os preconceitos sociaes que põem o toureiro
d'officio n'uma meia ralé pouco estimável,
jogam de porta com a arte tauromachica,
pousando toda a vida em amadores por ob-
sequio, e evitando as responsabilidades do
cargo por uma espécie de dilettantismo que
nem lhes dá gloria, nem proveito, nem tão
pouco socialmente os cota mais acima. E
assim chegámos a não poder formar para o
Campo Pequeno uma genuína quadrilha
portugueza, d'algum fôlego, e nos arriscare-
mos a ver amanhã, como no theatro, a arte
nacional expirando sem herdeiros, ligitimos
ou bastardos, e as praças fechadas á mingua
d'artistas, parallelamente ao já terem de fe-
char por não haver ganadeiros conscencio-
sos.
os GATOS
Entretanto não se deixe morrer por falta
d*artistas a paixão toural dos portuguezes;
se não houver nacionaes, venham de Hes-
panha ; se as mediocridades de cá teimarem
em nada fazer de progressivo, a critica im-
parcial favorise a pauta lauromachica, e abra
a barreira aos estrangeiros illustres que pos-
sam e devam vir a Portugal fazer escola.
Desde que o publico paga sem regatear os
bons espectáculos, ás emprezas compete of-
ferecer-lh'GS na allura de darem brado, e de
o deixarem fremente d'emoção. A eífectivi-
dade de quadrilhas hespanholas na nossa
arena não pôde senão redundar em vanta-
gens impagáveis, como sejam: i.' — fazer
ganaderias, porque sendo a emoção do tou-
reio producto de dois factores, toiro e tou-
reiro, o facto de ser magnifico esle, consti-
tuirá os donos d'aquelle no firman de lhe
crear reputação equivalente. 2/ — fazer tou-
reiros, pela aprendizagem quotidiana e me-
ihodica, pelos estímulos do orgulho antago-
nista, e mais que lado per esse instincto
d'imitação sagaz dos portuguezes, ao qual
os GATOS 9
devemos quasi toda a nossa vida artislica e
industrial. 3.° — apurar o gosto das praças,
elevando-lhes o critério, lornando-as intran-
sigentes para todas as espécies de palhaça-
das^, e fornecendo enfi geral ao publico, para
a grande festa nacional, uma educação, co-
mo dizer? mais scienlifica.
Duvido mesmo já que os afficionados do
Campo Pequeno, pela maioria exigentes e
sabedores da tecímica taurina, se achem
dispostos a tolerar espectáculos só com por-
tuguezes, e viverá pouco quem não chegar
a vêr d'aquelle redondel não só expungidos
os maus artistas, como também ampliadas
e refeitas por completo as corridas de tou-
ros, que entre nós são ainda um espectáculo
branco e sem calastrophes. O que eu peço,
e todos apoiam de certo, é que as auctori-
dades consintam em collaborar com as em-
prezas na subida de nivcl das touradas, em
termos de n'esse deslumbrante jogo he-
• o boi para curiosos, os intermédios cómicos com
pretos, macacos, « bois que depois de corridos vem co-
mer á mão dos donos, todas estas exibições carnava-
lescas que deshonram o torneio, devem ser riscadas dos
regulamentos taurumachicos, e interdictas pela au-
etoridade até nos mais recônditos cerca dos de provinda.
10 os GATOS
roico se accumular a maior porção d*eslhe-
lica, com a menor somma possível de perigo.
Para se conseguir um tal desideratum,
proporiaeu na tourada portugueza a suppres-
são das pegas, e a immediata adopção da
morle do toiro em pleno circo. Para mim o
que ha nas nossas corridas d'estupido e
alarmante, é a pega. Não lhe diviso arte,
não lhe descubro vantagens, nem saberia
jamais juslificar o enlhusiasmo da multidão
por semelhante estupidez.
Se os moços de forcado para cada corrida
variassem, disputando-se os logares para
contraprovas publicas de força physica, lá
se justificariam os applausos pelas pegas
como um signal de nação valente, sagrando
no terreiro os seus atletas.
Sob este ponto de vista quasi me sinto
posto a desculpal-as nas ferras de gado,
porque ahi éa adolescência da aldeia luctan-
do toda com a adolescência das boiadas; e
assim as ferras tornam-se em grandes re-
vistas de força muscular, certamens de pul-
so e corno, d'onde o atletismo humano sae
radioso, entre as fremencias da justa e a
olympica vaidade de se ter sobrepujado a
os GATOS 11
fera, symbolica para o homem da natureza
hostil que o circumtnrna. Mas na praça de
toiros, tal não succede. Os moços de for-
cado são sempre os mesmos, homens tira-
dos das suas occupações de campo ou de
cidad-", mais ou menos alcoólicos, trocando
o ramerrâo do trabalho manso por uma vida
de boleus que ameiaedade osmalad'aneu-
risma, sem que pelo exemplo das suas proe-
zas elles estimulem algucm ao cultivo da
força e aos livres actos de bravura e de co-
ragem.
Entre a brutalidade inútil das nossas pe-
gas, e a immunda ferocidade dos cavallos
extirpados nas praças de Hespanha, franca-
mente não sei qual demonstre maior selva-
geria, pois entre nós a qualidade das victi-
mas compensa quasi n quanlidade das dos
nossos visinhos e cunhados. Quanto á morte
do toiro, é uma cousa absolutamente indis-
pensável no grande toureio d'uma nação pe-
ninsular. Abater a fera, eis o complemento
d'essa lucta cyclopica com o homem, o ul-
timo quadro da tragedia onde o tyranno ne-
gro esperece ás mãos do galã bordado a oi-
ro, d'espada alta, e apotheotico como o ar-
12 OS GATOS
chanjo Miguel sobre o diabo. Lisongeia o
orgulho, aquece os nervos, acordando os
instinctos d'acção pelo correr do sangue e o
espectáculo spasrnico da agonia.
Oh, é supremo I Todos os particulares do
toureio tendem a elle, evohitivamente, em
successivas cadencias d'arte e agilidade. Cor-
rer toiros sem morte é como vencer uma ba-
talha sem as honras do Iriumpho: o vence-
dor não exaltado, facilmente se confunde
co'o vencido, e esta nobre scena de desfor-
ço que os moleirões dos legistas vão aba-
tendo no homem, a pretexto de civihsal-o,
esta necessidade instante de \encer que em
nós existe, e de que a corrida de toiros é a
figuração peninsular mais altaneira, nada a
intensifica melhor que a rez tombando, com
a lingua traçada, aos pés de Guerrita im-
movel, todo nas pernas, em selim escarlate,
bello da deslumbrancia conlractil do anda-
luz no cheiro do sangue, e com a mão di-
reita inda erguida, da estocada mortal que
acaba de vibrar.
Pela prohibição formal das pegas e na-
cionalisação da sorte d'espada, a corrida de
touros portugueza, com os elementos nali-
os GATOS 13
VOS e tradiccionaes que já possue — as suas
sumptuosíssimas cortezias, o Irasteio de ca-
Tallo, a faina de capote ebandarilhas, — ter-
se-ha tornado na mais augusta, na mais des-
lumbrante ena mais grandiosa phantasia he*
roica que povo algum da terra, depois do
circo romano, inda creou ; e esse assom-
broso espectáculo não terá a manchal-o uma
particula só de barbaria, será antes um com-
pósito d'audacias e finezas estheticas, viril e
entretanto requintado, decorativo e dramáti-
co como nenhuma opera, e arrebatador té ao
paroxismo em que a perversidadehumanaes-
tonteia como um phillro, — sem traz de si dei-
xar manchas de crime ou soíTrimento,
Tudo está por fazer, repito ainda, e se
para o terreiro normal do Campo Pequeno
faltam artistas e bois do lypo inpeccavel, tão
pouco as pretenções ornamentae$ d'aquella
praça, e o aCBcionamento toural dos espe-
ctadores, estão á altura da supremacia orgu-
lhosa que conviria dar ás corridas de touros
da capital. Por emquanto o redondel do Cam-
U os GATOS
po Pequeno só exteriormente impõe certa
grandeza, e essa mesma arremedada ao es-
tylo macaco-arabe dos nossos amigos hespa-
nhoes. Por dentro é a miséria exigua e pe-
lintra dos janotas de fato rico e de tripa va-
sia, que a gente vê porhi palitando os den-
•es depois de terem bebido um copo d'agua.
Porque ainda que o drama taurino seja por
si só um espectáculo etnpolgante, é incon-
testável que a multidão tem no conjuncto
um dos papeis mais salientes. E' ella o di-
zeur da peça : necessário então se faz pôl-a
era evidencia, e Irajal-a com o pictoresco
que a sua verve requer á luz da rampa. Ora
no Campo Pequeno o espectador não tem
destaque, a praça come-o, reílue-o bisonha-
mente para o interior de cacifros d'eslabulo,
agglomera-o em pinhas incommodas oníle os
joelhos d'uns se enterram pelas costas dos
outros, e qualquer gesto mais vivo diverge
em sccco, pela compressão transversal, no
epigastro do parceiro que fica ao lado. A'parte
oslogares de bancada, os mais baratos e os
melhores de todo o circo, o resto ê uma ver-
dadeira peste, que nem deixa desfructar des-
embaraçadamente o panorama, nem prepara
os GATOS 15
tam pouco na mancha geral da enchente,
pontos de côr onde a pupilia se detenha. A'
pobreza verdadeiramente pulha da imagina-
ção que repartiu os logares, e pôz o risco
geral do amphitheatro, acresce ainda a por-
caria infame dos materiaes decorativos, a
absoluta carência de gosto, e a estupidez
compacta ressumbrante de cada promenor.
Logo á primeira vista, as altíssimas mu-
ralhas da praça, nuas e inúteis, dão a im-
pressão d'irmos vêr correr toiros dentro d'um
poço, e pergunta-se se aquella altura cyclo-
pica que deixa ás duas ordens de camaro-
tes, por fundo, grandes supeiGcies verlicaes
impossiveis de decorar, terá por fim prohi-
bir as entradas de borla até aos próprios
passarinhos. Os camarotes, onde é de sup-
por se instalem de preferencia as mulheres,
centro borboleante de todos os espectáculos,
e facha de resistência pois de toda a belleza
e de toda a côr, os camarotes que com a
polychromia dos vestidos, o passarinhar dos
leques, o rufiar das plumas e das fitas, a
impaciência dos gestos eo frenesi espiritual
dos focinhitos, deveriam ser como o arco iris
do amphitheatro, e avançar sobre a arena.
1« os GATOS
abrazando inda mais o toureio de tons ar-
dentes— os camarotes pôl-os o architecío á
sombra d'uma reles coliimnata de gare po-
bre, delgadinha, anemica, em ferro fundido,
semcapiíeis nem bases historiadas, sepa-
rando-os por baias de cavallariça, e pondo-
Ihes um balcão de quarto andar na diantei-
ra. E' verdadeiramente não ler faro nenhum
da distribuição compósita d'uma grande ca-
sa d'espectaculol A tribuna real deveria ser
por outro lado o centro de symetria artisli-
ca da praça, o remate decorativo a cujas
pontas viessem prender-se as duas ordens
de camarotes. Pois viram o que o architecto
d'ella fez no Campo Pequeno : uma espécie
de gaiola ou tronco de ferrador com des-
vãos lateraes onde mal pode installar-se uma
creança, fasqueados de trapeira no tecto,
papel de casa de hospedes, e columnatas e
rendinhas de ferro fundido no estylo muni-
cipal dos kiosques de verter aguas.
E' pifio, é indecente. Os toiros são o úni-
co espectáculo alegre do paiz, o único onde
o portuguez tem graça, e onde os seus ins-
tinctos satyricos, tomando forma d'insectos,
por toda aparte vão mordendo os cachaços
)
\
os GATOS 17
do ridículo, entre rizadas e bromas de ca-
hir. E' necessário por consequência não lhe
tirar esse caracter jovial, e bem ao contrario
fazer a alegria reflorir não só do aspecto ge-
ral do amphitheatro, como dos mais peque-
ninos valores da decoração.
Architeclura, pintura, desinvolução con-
cêntrica de bancadas, etc, tudo deve ten-
der a sublinhar o espectador, accnmulando
de roda d'elle colorações alegres, formas fle-
xuosas, magnificência e luz em jorros hilla-
riantes. R onde esiá isso no miserável redil
do Campo Pequeno? O corrimão por exem-
plo da trincheira falsa, em vez de ser feito
por uma balaustrada de mármore, é um po-
bre fio enfiado em supporles de ferro mal
batido; nas escadarias e patamares dos se-
ctores não ha logar para um vaso ou uma
estatua ; os fauttuih, que são dos logares
mais caros, alem d'incommodos e duros,
quazi não deixam fazer ao espectador ura
movimento. Eu não sei bem até que pontoa
auctoridade interfere no risco dos monu-
mentos levantados pelo dinheiro particular.
Deve existir talvez na Gamara uma reparti-
ção aferidora não só das condições de se-
18 OS GATOS
gurança, como lambem do gosto artístico. Que
essa repartição technica descura constante-
mente os seus deveres, permittindo que nas
melhores ruas de Lisboa se levantem bar-
racas ignóbeis, torres de dez andares en-
casquetadas de trapeiras, três e quatro se-
ries, ás cavallitas umas nas outras, não
causa espanto: é coqueluche velha, e burro
matreiro não tem emenda. Agora estender
esse desleixo a construcções da importância
do circo tauromachico, eis o que não pode
passar sem protesto violentol O municipio de
Lisboa necessita de reformar pela base a sua
engenheria, que é do século passado, e á
hora presente, alem de bastante cara, con-
tinua a fazer da capital um aldeão.
Outra coisa nos falia nas touradas, a toi-
letíe, e mais apparelhos accessorios d'esta
ordem d'espectaculos. Se o portuguez está
vinculado ás loiradas por uma ininterrupta
tradição de muitos séculos, onde collaborá-
mos todos, reis, ^ fidalgos, povo, saltando á
1 Desde a dynastia d'Aviz que a arte de picar toiros
os GATOS 19
praça 'a lidar rezes selvagens, se a corrida
de loiros é Gnal mente a grande festa, por-
que a não honraremos vestindo rigorosa-
mente para elia o noFSO bello trajo nacional ?
Que melhor occasião para resiiscilar o
costume que tão deslumbrantemente fica ao
portuguez? jaqueta justa ao tronco, larga-
mente debruada e com alamares de seda
pingando passamanerias caprichosas — cinta
vermelha ou azul, tonkin ou lã, cingindo
ventre e tronco, alê ao sterno, seus ca-
dilhos pendentes sobre a anca — a calça
d'alçapão, cerce na perna, modelando a
musculatura e terminando em pata d'ele-
fante — e sapato de prateleira emfim, ca-
misa molle com botões de cadeia, gravata
de côr viva, em nó corredio, e chapéu largo?
Não se pressente logo como o aspecto do
vem cultivada com phrenesi pelos filhos das mais illus-
tres casas do paiz. O senhor rei D. Sebastião, o aus-
tero, o casto 6 esbrazeado raata-mouros que dizia phra-
ses carnívoras junto dos túmulos d'Affonso Henriques
e João II, n'uma viagem que fez d'Evora para Faro,
com tornada do Algarve até ao paço de D. Constantino
de Bragança, em Villa Viçosa, assistiu e tomou parte
em cerca de trinta e oito touradas, d'envolta com bo-
bos e gentishomens da corte, chegando a matar de ca-
vallo, com o rojão, algumas feras.
20 OS GATOS
circo mudaria, e como essa turba-muha sem
palria que o atulha, logo tomava caractere
expressão regional ligada á diversão? Com
as mulheres, o mesmo rigor severo e abso-
luto. Ir a uma tourada, de chapéu, importa
a mesma quebra d'elegancia do que entrar
D*uma soirée com sapatos de praia, em coi-
ro cru. Tão pouco quadram os estofos som-
brios a esse ar de desenvoltura e expansão
juvenis, subentendidos na ideia da tourada.
Quem está triste vae para a egreja; quem
já se sente velha, fica em casa. Vestidos le-
ves, hillariantes, pintalgados de coisas d'a-
guarella; fichus de gaze com grandes flores
de retroz na cercadura ; cabeças leves, em
penteados deixando a nuca livre, e com um
molho de cravos ou geraneos por cocard ;
mangas Tosca, pufando largamente até ao
cotovello, e d'ahi para baixo cingindo o an-
tebraço, o punho, para colarem-se depois em
milene Recamier, até ao meio da mão : tudo
isto dictado n'um estylo pessoal, não pelas
modistas, mas pelas próprias clientes, a sa-
bor do tom mais condizente ao seu género
de belleza, nuances de cabello e grão de
pelle... Encham a praça d'espectadores ves-
os GATOS 21
tindo á porlugueza, ponham nos camarotes
mulheres de claro, com sombrinhas de ren-
da, os chalés de selim colgando vivamente
a amura dos balcões, e transformado lerão
por uma forma hillarianle e imprevista
áquella pobre praça de toiros, mazombia,
soturna, onde o elemenio femenino é rele-
gado para a sombra, onde as madamas vão
com fatos de pezame, e o publico em geral,
vestido de cinzento, a côr dos ursos, a ca-
beça encapsulada em cocos cosmopolitas,
lembra uma garrafeira com um ou outro
gargallo a espumar gazosa, em vez de Cham-
pagne fino.
iS de septembro.
Quasi todas as nossas casas d'espectacu-
lo, actualmente funcionantes, estiveram oc-
cupadas durante os mezes de verão por ar-
tistas hespanhoes — António Viço no Gym-
nasio ; a companhia infantil no Coiyseu;
MazanlinijCara-Ancha, Guerrila, Espartero
e Angelo Pastor no Campo Pequeno... Fre-
quência abundantissima, honorários á farla>
22 OS GATOS
e em toda a linha as ovações mais calorosas.
Tanto montou para o Imparcial de Ma-
drid garantir aos seus leitores que a histo-
ria do segundo premio de Badajoz pozera
os porlugnezes n'uma fúria perigosissima
contra os hespanhoes que se aventurassem,
desarmados, a vir passar algum tempo ás
nossas praias.
Claro que não sendo a parvoice previle-
gio especial dos plumitivos da nossa pátria,
o artigo do Imparcial em nada altera a re-
ciprocidade de sympathia artística dos dois
povos, devendo talvez attribuir-se a desforra
d'a]gum caballero madrileno a banhos na
Figueira, a quem o proprietário do hotel rou-
bou talvez na conta. Não sendo portanto fino
generalisar a um reino as galleguices banaes
d'um malcreado, voltemos costas ao caso, e
vejamos um pouco as artes de Madrid, no
ponto aliaz circumscripto do grande actor
que ao Gymnasio veio representar.
António Viço, que actualmente conta cin-
coentae quatro annos, cincoenta e quatro fi-
lhos, e cincoentae quatro rouquidões, hoje é
apenas um phantasma d'actor leonino, da
grande raça empolgante que o romantismo
os GATOS 23
fez no mundo inteiro. Na rua despersuade por
completo a estatura magnifica que se soube
fazer sobre o tablado. E' um homem balofo,
mortiço, barrigudo, d'olhar exlinclo, perfil
inexpressivo, andando em passinhos dúbios,
com uma expressão clerical de cocheiro de
casa rica, n'essa apathiad'animal noctivago
que só o gaz revivesce, e a nevrose da scena
consegue accordar do seu turpor. Pela con-
versa molle, pelo longínquo ar da attenção er-
rante em paizes de chimera, pela familiari-
dade exterior do tracto bom rapaz, dá o ty-
po usual do comediante no apogeu, do ho-
mem celebre representando a eterna farça
da modéstia melanchohca, que radica pela
bondade as admirações da galeria, e facilita
aos triumphos o caminho mimoso da aíTei-
ção.
Este conhecimento pratico da vida, jun-
gido ao que uma analyse minuciosa lhe apu-
ra do jogo scenico, breve permite reconsti-
tuir em António Viço um actor onde a ex-
periência collaborapor egual com o talento,
para a intensíssima impressão que elle pro-
duz. O que sobretudo ha n'este artista d'ex-
cellente, é que sendo elle ao mesmo tempo
24 OS GATOS
um hespanhol e um incarnador de drama-
turgias românticas, haja conseguido á força
d'esludo permanecer em scena, natural, de
todos os tempos — como hespanhol e como
actor. António Viço que ao cabo de vinte e
e cinco annos de palco doma perfeitamente
os escolhos da scena, acha-se hoje n'esse
principio da ruína em que a natureza torce
as voltas ao homem, quando a sciencia e a
arte tinham precisamente acabado de lhe dar
a ultima demão. D'aqui uma porção do cu-
rioso prazer de o ver representar guiando o
papel por caminhos onde os seus recursos
naturaes se esfalfem menos, apropriando a
vehemencia té onde a sua curta respiração
de cardíaco lhe não corte a expressão por
um accesso de tosse ou uma falha de laryn-
ge, substituindo muita vez o grito pelo ges-
to, completando a palavra comida pelo olhar
— n'uma palavra, compondo os lypos com
promenores tão subtis d'intelligencia, com
uma energia tal de personalidade, que afinal
lhe fazem perdoar o já não possuir em scena
juventude, desinvolturas de sangue, audácia
de recursos, as primeiras condições d*irre-
sistibilidade do actor especialisado, como
os GATOS 25
Lemailre diz, nos papeis de jeune prémier,
Apezar porem do talento grave que o do-
mina, e da experimentada certeza que lhe
honestisa tudo quanto faz, a escala de crea-
ções de Viço é, como a da maior parle dos
adores, mui limitada, e n'esía mesmo cam-
biantes ha de que elle só pallidamenle at-
tinge a trama interior. Além d'isso a litte-
ratura que o fez, nem sempre vem ca-
lafriada do grande sopro: muitas das peças
do seu reportório escreveu-as o pantafaçudo
Echegaray para no actor sublinhar alguns
recursos d'excepção... reproducções de sce-
nas de morte, narrativas estridentes de tom
épico, ou então desenlaces dramáticos á
hespanhola, venho a dizer com pouca lógi-
ca, rethorica estridente, e apropriações mo-
raes algo pedantes.
Sob este ponto de vista não temos senão
a censurar o artista, de tão má impressão
nos haver deixado sobre a lilteralura dra-
mática do seu paiz. MalaRaza aparte, e um
ou outro acto destroncado aquie além, tudo
o mais no reportório de Viço rescendia ao
melodrama para espavorir collegiaes, ao me-
lodrama onde os personagens marcham pelo
26 OS GATOS
caminho da catastrophe, um pouco em ca-
bra-cega, e sem saberem onde aquillo tudo
irá parar.
Uma tal lilteralura, ainda preponderante
em Hespanha, aoqueparece, mercê das pre-
dilecções oratórias do hespanhol, deve-se
considerar liquidação do romantismo, im-
mobilisada pelo orgulho d'esse povo inimi-
go figadal de toda a civilisação iniciada
pelos outros, patriota até á tolice, e muito
mais imbuído do quo nós nas prosapias do
seu antigo predomio universal. Certo, a dra-
maturgia moderna inda por muito tempo se-
rá romântica. O realismo, quazi morto no
romance, só conseguiu dar no theatro frias
comedias d'analyse e de salyra, e este ou
aquelle arreglo dramático sem sabor, sendo
natural que as suas tentativas fiquem por
ahi. Entanto comprehender-se-iano theatro
um romantismo modernisado, servido por
todas as subtis acquisições do pensamento
contemporâneo, verosimile lógico, qualquer
que seja o mundo em que se passe; jamais
o romantismo á Radcliffe, enphatico, monó-
tono, em ladainhadas lúgubres, jogando com
punhaes de folha e bexigas de porco, defor-
os GATOS 27
mando a estructura dos caracteres e o ry-
thmo da vida, e mesmo pelo lado da forma
litteraria, baixando a arte ;i uma vacuidade
imaginativa de malucos. Foi esta a impres-
são que me ficou da mor parte dos dramas
d'Echegaray que ouvi no Gymnasin : iheses
sem realidade, situações sem coherencia,
magnificas phrases sem maior rigor do pen-
samento, e aparte alguns momentos de gé-
nio, uma aridez d'interesse até á fadiga do-
lorosa. E' negar ao chefe dos dramaturgos
hespanhoes contemperaneos, valor corres-
pondente ao delirante enthusiasmo com que
as platéas visinhas o recebem?
Por certo não. O talento fogoso d'E(-he-
garay marca no ceu hespanhol uma orbita
fulgente, mas salvo uma ou outra peça, é
necessário para lhe vibrar da obra empha-
tica, ser castelhano de nação. Todos os ac-
tores hespanhoes que ouvi no Gymnasio
se resentem doesse exagero de corda, e teem,
para manter o diapasão d'essa lilleratura
castelariana, de por vezes deformar-se em
inverosimise plangentes griíadores. O úni-
co que resiste é António Viço, á uma por-
que os annos lhe quebraram a fogosidade
28 OS GATOS
indómita dos collegas, á outra porque a sua
experiência e iaiento scenicos sabem já cor-
rigir admiravelmente pelo trabalho do ac-
tor, as epilépticas rajadas do seu dramatur-
go predilecto. N'aquellas selvas de meta-
phoras scintillanles e de situações parado-
xaes sem profundeza, sakespereanas por fo-
ra, Viço intercala rasgos d'uma intuição sa-
gaz do trágico moderno, pedaços de com-
posição psychologica escrupulosamente fun-
didos gota a gota, ante os quaes o especta-
dor consciencioso lamenta que esse occaso
d'artista não tenha empregado o calor dos
seus últimos raios a illuminar só figuras
d'obras primas. Quem uma vez o ouviu na
Mala Baza, incondicionalmente admira uma
das mais completas organisações d'actor dra-
mático que ultimamente teem vindo a Por-
tugal.
25 íie sepiembro.
A corte villegia e balneia nos remanços
de Cintra e de Cascaes, d'onde me chegam
rumores das suas mais recentes aventuras. O
os GATOS 29
baile da rainha sogra, na sala das pegas do
paço de Cintra, trouxe o incidente do mi-
nistro da marinha tirar para par, vis-a-vis
do rei, em vez d'nma dama da rainha, como
a pragmática ordenava, certa outra que por
tal honra pareceu excepcionalmente favore-
cida do ministério, desandando as pegas da
sala logo a fallazarem do caso, a invectivar
a moral, e a chamarem escândalo ao que
afinal não passou d'um simples engano de
contradanças, quasi vulgar em reuniões on-
de os ministros não vêem bem, e a multidão
por outro lado quer vêr — de mais. A'illustre
e indignada senhora que nos escreve a pe-
dir cautério pr'o incidente, opinarei não ser
elle de trama a fazer cahir a dynastia
ou adeantar a putrefacção da sociedade.
Mudar a dama é muito menos inoffensivo do
que fazer cerco ao rei, e por Cascaes; ao
que se diz, ha quem lhe faça um cerco fu-
rioso. Tudo isto são minuscularias arranja-
das ao sabor da maledicência de quem não
tem mais nada que fazer. Peor caracter teve
o baile da embaixatriz d'Inglaterra, e toda-
via aristo algum, á hora do convite, sequiz
lembrar do ullimatum. Hemos nós d'exigir
30 OS GATOS
enlão que a austeridade de porte seja elás-
tica, e só lome caracter grave quando os
ministros se enganam na collocação dos
vis-á-vis ?
A guerra de Cascaes foi também outro
episodio galante da quinzena. A requeri-
mento do cônsul d'Hespanha foram expulsas
de Cascaes umas trinta ou quarenta Irongas
hespanholas, que para lá tinham ido ás so-
bras da genlilhomeria equestre e pedestre, e
que pelos modos, em amazonas intrépidas,
não contentes com terem tomado posse da
villa, já começavam a refilar osgatazios para
se apoderarem também da cidadella... Não
pareceu isto bem ás amazonas poríuguezas,
que escudadas na moral,e cônscias da priori-
dade que o principio da naturalisação deve
trazer á offerta, coagiram o administrador
do concelho a pôr fora de concurso as sale-
rosas, sob pretexto de não serem damas
comme il faiií, e não se precisar lá de cas-
telhanas para tomar castellos ás... francezas.
Ahi vem pois, caminho do exilio, essas re-
voluccionarias da alta escola, n'um esfusiar
de carambas e outros gritos de guerra
madrilenos, com os chapéus de pluma, ás
os GATOS 31
tres pancadas, as sobrancelha a despegar,
meias cabidas, pernas de vêr a Deus dentro
das malas, furiosissimas, rogando pragas, e
propositando adberir ao manifesto republi-
cano para dar nas instiluições, o golpe mes-
tre. E' muilo grave, e d'aqui apontamos a
insurreição da Antónia ás Novidades, por
que a denuncie ao governo com flamulencia
superior á que usa empregar para as as-
sembléas secretas dos sargentos.
Entretanto sou a dizer que a ordem d'ex-
pulsão senão manterá em Gascaes por mui-
lo tempo. Por todos os motivos. Primeiro,
ella retirou de Gascaes a alegria das noites,
quando depois de ceia e antes da balota, á
rapaziada occorre fazer sobre a areia da
praia, um pouco de sexo. Segundo, ás pró-
prias senhoras faz falta a caslelhanada d'es-
sas desbocadas raparigas, que vindas dos
prosíibulos médios de Madrid e das fabri-
cas de tabacos de Sevilha, em pouco tempo
acham meio de na boa roda, por intermédio
dos cavalheiros, interferir um pouco na so-
ciedade intima das madamas. b'aqui a oito
dias, quando Gascaes, tornada á piíysiono-
mià pot-au-feu que S. M. a rainha Amélia
32 OS GATOS
intenta dar-lhe, reconhecer como para as
raças ociosas évasia a vida honesta, eisem-
ptos d'aroína os beijos permillidos ; quando
homens e mulheres, fartos de thalamo, co-
meçaram a desejar freneticamente uns extra,
ás escondidas, mesmo que a auctoridade seja
inílexivel e os propósitos da soberana no-
bilissimos, mesmo que caia o ceu e o terra-
moto engula o mundo inteiro, não haverá
meio de desviar de Gascaeso turbilhão ma-
gnético do deboche, gémeo da ociosidade e
annulador benemérito de todas as predile-
ções humanas destreladas dos rails physio-
lógicos. Enião, ainda que se levantem as
pedras, o administrador achará meio de
readmittir o alegre bando de nereidas ; S.
A. o duque d'Orleans chegará a Cascaes
subitamente, e a villa cobrir-se-ha de col-
chas e arcos de triumpho, levantados pelos
mais estapafúrdios sócios do Sporting, ha-
vendo comboios expressos, vivas á Hespa-
nha e ao direito divino, e uma hespanhola
até, sorteada pela loteria da Misericórdia, o
que é o meio d^interessar todos no regabofe
que o descaramento e o dinheiro só folga-
damente permittem a dúzia e meia.
FIALHO D'ALMEIDA.
os GATOS
PUBLICAÇÃO
D'iNQUERITO i VIDA POETDGUEZA
r48 — 20deOutQbrodel892
SUMMARIO
Pequena romaria á fabrica de fayança de
BORDALLO, NAS CaLDAS DA lUlNHA. EsTADO
da fabrica e forque se não diz da l^uçaria.
— Aesculptura de Oordallo : talha manue-
lina E DESCRIPÇÃO minuciosa d'eSTA PEÇA.
Ornatos do galbo, motivos gothicos e pisca-
tórios QUE o CIRCUNTORNAM. — De GOMO O
gargallo é um vaso de partículas, lam-
boyante. — Analyse racional d'uma obra
decorativa, regras de harmonia entre a
forma e o motivo ornamental. — Vaso grego
II os GATOS
E ADORNOS MEDIEVAES, SUA AUSÊNCIA DE LÓGICA
E INCONGRUÊNCIAS, — TrABALHO CONCEPTIVO DA
TALHA, CISÃO MORTAL ENTRE A DECORAÇÃO E A
FORMA DO OBJECTO, SUA INSTABILIDADE E APPA-
RENCIA FRÁGIL DAS DUAS AZAS. VaLOR DA TA-
LHA, COMO TENTEIO DE CERÂMICA NOVA. — Ge-
NIO INTUITIVO DE UORDALLO E ESFORÇOS PARA
FUNDEAR A ARTE NACIONAL NO SUBSOLO DA TRA-
DICÇÃO HISTÓRICA E ANTIGAS MARAVILHAS MOS-
TEIRAES. íMiSULA E ESTATUETA DOINFANTE D.
Henrique. — Jarra Cunha Vasco. — U drama
DA Paixão para o Bussaco caracter clás-
sico das figuras ANTIGAS, SUA AUCTORIA E
DESTRUIÇÃO VANDALICA Á PEDRADA. JeSUS HO
olwal de Giietsmcmi. — Traição de Judas. —
Passagem do Cedron. — Pujança da scena
Em casa d^Annás ; o velho doutor da lei, e
GUARDAS DO TEMPLO ARRASTANDO O ReDEM-
PTOR. — Jesus blasphema Em casa de Cai-
pháS : TRES MAGISTRADOS EPILÉPTICOS, E EX^
PRESSÃO BESTIAL DOS PHARISEUS. Em CaSa
de Herodes. — Conclusão.
27 de septembro.
Pequena romaria á fabrica de fayanças
de Bordallo, nas Caldas da Rainha, para de
perlo estudar a gestação laboriosa d'um gé-
nio isolado, e a indifferença soez d'um pu-
blico cretino. A fabrica suspendeu por falta
de dinheiro : quando já estava cheio e acoa-
gulado de loiça um forno Minton, subita-
mente o cofre eslanca-se, e os accionistas
debandam, deixando Raphael Bordallo en-
tre um pessoal d'aprendizes e officiaes que
lhe pediam pão.
Não truxe das Caldas notas para dizer
da fabrica e da louçaria artística ou trivial
4 OS GATOS
que ella labora, e porque semelhante tra-
balho seja impossível d'esmiuçar á simples
reminiscência, reserval-o-hei para quando,
melhor ensinado, valha a pena informar o
leitor com probidade. O que por agora me
traz das Caldas ás pagina^í ásperas e repu-
tadamente hostis d'este pamphleto, é o de-
sejo de fixar uma expressão do génio de
Bordallo, que me parece ainda pouco co-
nhecida, e de fazer a exacta reportage d'u-
ma das obras mais estranhamente originaes
que ha muito tempo vêem luz na esculptura
do paiz, A coiza irá d'esta vez escorreita e
sem arrebicados, á uma porque o estylo ca-
seiro põe o escriptor desilludido ao nivel da
bestealidade do seu tempo, á outra porque
eu a respeito de primores de forma, saben-
do já que publico arremangado tenho á
perna, decido alfim não deitar pérolas a por-
cos.
A cerâmica de Bordallo abrange artefa-
ctos de loiça caseira ou decorativa, azule-
jos, telha de cores, etc, constituindo a
produção usual da fabrica, e obras d'es-
culptura, que são na dpsabrochante curva
da vida artistica do meu amigo a terceira
os GATOS 5
grande phase monumental do seu talento.
D'estas ultimas, que são o alvorecer na es-
culptura nacional d'uma era dramática só
episodicamente renovada depois de Macha-
do de Castro, por um ou outro artista mal
sazonado e pouco activo, salla com lampe-
jante evidencia uma comprehensão indivi-
dual de synthetisar a vida pela forma,
e uma evocação do antigo em tanta ma-
neira pujante, violenta, desenvolta, encyclo-
pedica, que esse amador cl'esculptura con-
seguiu em quatro annos d'ensimesmação
sobre dois livros, maravilhas como nenhum
profissional nosso, antigo e moderno, seria
capaz derealisar em quarenta de pencionis-
mo atravez os ateliers de Roma e de Paris.
O caso custa a roer n'uma affirmativa
simples de conversa, prevenido como se está
contra os exageros da amizade em caça de
cathedraes para os seus santos: mas vale
a pena ir ás Caldas só para modificar este
estado de descrença, e saudar em Raphael
Bordallo um dos génios creadores mais pro-
fundamente originaes do mundo contempo-
râneo.
os GATOS
Até á hora da minha estada nas Caldas,
a bagagem de grande esculptura de Bor-
dallo, constava do seguinte :
— Talha manuelina, sobre pedestal do
mesmo typo.
— Baídaquino e misnla gothica, com es-
tatueta do infante 13. Henrique.
— Scenas dramáticas da paixão de Je-
sus, para as capellas da matla do Bussaco.
Descrever uma por uma cada qual das
peças referidas, é um trabalho inglório, seja
qual fôr a lucidez dos planos descriptivos.
A mais imperfeita photographia sem duvida
excede, como justeza d'apunto, tudo quan-
to de mais rigoroso e methodico eu escre-
ver. Entanto, mau grado a exiguidade dos
meios de que disponho, não ha remédio se-
não aguar aqui algumas pallidas figurações
das peças cima ditas, e começarei pela ta-
lha manuelina, que o sr. D. Carlos acaba de
comprar. Tem o contorno da bilha portu-
gueza, o bojo em pêra invertida, estrangulada
bastante no gargalo e afusando airosamente
para o pé, que o esculptor perfilou numci-
os GATOS 7
po historiado. Na parte ornamental conta
três partes : bojo, gargalo e lampa, abraça-
das todas três n'uma cinzelaria golhica muito
doce, feita de motivos religiosos dos ve-
lhos túmulos d'Alcobaça e da Batalha, e al-
guns accessorios humildes da zona piscató-
ria portugueza, como sejam, entrançados de
canastra, redes, algas e roldanas. A deco-
ração do bojo é uma espécie de colar que
abraça a bilha pelo terço médio da redon-
deza, feito de cinco fiadas de motivos, a sa-
ber: de cima para baixo — 1.' corda em-
breada, cheia de nós e rodellas de cortiça,
firolongamento da que forma as azas da bi-
ha, e de que ao depois se dirá mais limpa-
mente— 2.' rede com peixes circuitando o
bojo n'uma espécie de lufo preso entre dois
pequenos frisos salientes — 3.°, grande ar-
caria golhica, columnellos e rozaceas, cerca
d'um palmo de largo, inspiração dos nobi-
líssimos estylos da Batalha — 4.°, cinto d'a-
zulejos em relevo, imitados dos sarcófagos
dos filhos de D. Ignez ; d'espaço a espaço
brazões pequenos de cinco quinas, sem coroa,
e circundados d'algas que os engastam, en-
cocharrando-se de dentro para fora — 5.®,
os GATOS
remate ou franja do colar, formado por
meios SS oppondo-se em pequeninos co-
rações de typo phantasioso.
Esta ornamentação é interrompida nos
quatro pontos cardeaes, por quatro baixos
relevos formando medalhões. Os que ficam
por baixo das azas da talha, representam
scenas de caravellas e naus proando a ter-
ras mysteriosas, onde a legenda gothica
á'India e Africa, explicativas. Os da pre-
pendicular á linha d'aquelles, dão os bustos
do infante D. Henrique e de Camões, com
Sbas legendas assi, e todos quatro em-
moldurando em folhas d'alga. As azas da
talha forma-as uma corda breada, com ro-
dellas de cortiça aqui e além, e que parecendo
nascer no platô do bojo, arma de cada lado
d'este, em oito de conta. Chegada porém á
guarnição, em vez de a interromper, a cor-
da passa por traz de dois brazões da rai-
nha Leonor, padroeira das Caldas e funda-
dora e doadora do seu benemérito hospital
e misericórdia, d'onde diverge apoz, pr'a se
ligar á que fazia o primeiro dos cinco cola-
res ornamentaes que atraz fallei, e que por
seu turno, chegando aos medalhões do in-
os GATOS 9
fanle e de Camões, arma em coruchéu ou
frontão, remalando pela esphera armilare a
cruz de Christo.
Se o leitor percebeu do meu discurso,
naturalmente calcula como esta decoração
lilhurgica epagã veste o corpo da talha n'u-
ma heráldica pompa de historia heróica e
plebeismo, onde os olhos se vão, babando o
romantismo das grandezas pátrias, abolidas.
Como lhes dar ideia agora do gargallo?
Imaginem que sobre um d'esses cânta-
ros que as raparigas de Coimbra levam á
fonte, bojudos, e comduasazitasempccento
circumflexo aos lados do boccal, alguém
coUocava a pixide gothica d'alguma das
nossas Sés monumentaes, uma pixide que
Gil Vicente tivesse feito sobre desenhos de
Garcia de Rezende, em golhico flamante — o
sextavado péd'esmaUe e rendas manuelinas,
burilado como o pé do cálix da Sé d'Evora;
e assente n'este, um edifício gothico de seis
pilares, acabando em espigões rendados d'al-
gas, e desligando de si, a meia altura, ramos
que divergissem para com os oppostos darem
seis coruchéus miniaturaes, d'uma invero-
símil expressão de custodia dos Jeronymos
10 os GATOS
e porta-paz da Casa da Moeda, sob que fi-
cassem, entre pilar e pilar,capellitas golhicas
com perspectivas de columnellos, e fandos
d'ogiva, ájour, mui delicados... N'essasca-
pellas ou nichos, abrigando-se, symetrica-
mente, os brazões das Caldas e de Lisboa,
os monogrammas da fabrica e do ceramista,
e emfim grupos d'eslatuetas microscópicas,
reproduzindo parte da esculptura que Bor-
dallo já fez para o Bussaco. A ponta dos co-
ruchéus projecta-se em espigão té ao re-
bordo do gargallo, esguia como a supplica
de dois braços elhicos, que se apoiassem,
sem valor, a uma ogiva em oitos de vitral,
sobranceira ás capellas e fazendo como uma
espécie de segundo pavimento do ediGcio.
Restaria fallar da tampa ou cobertura : é um
telhado de seis aguas, a cujos espigões sera-
fins chimericos voam, de mãos postas, e ten-
do no topo a esphera armilar e a cruz de
Ghristo.
A talha assenta n'um pedestal onde os
motivos ornamentaes fundem e derivam do
os GATOS 11
mesmo unisono d'inspiração religiosa e po-
pular. E' um cipo rectangular de metro e
tanto, carregado ao dorso de quatro leões
heráldicos, dormentes, como os que é uso
topar de guarda aos velhos túmulos. As
grandes faces mostram a alto relevo, ao
centro, n'um fundo d'azulejos mouriscos re-
produzidos da Batalha, as armas da rainha
Leonor, que fingem manter-se em posi-
ção por via da corda breada que vol-
teia e fura de cada banda, o cipo, cheia de
nós e rodellas de cortiça. Na face de cima,
torna-se a vêr a corda rodeando como uma
serpente symbolica a ara circular que jus-
tapõe ao pé da talha, e pequenos brazões
de cinco quinas, cercados d'algas e nós de
corda, formando como o coroamento das
grandes arestas verticaes do pedestal, que
são truncadas, e a truncatura vestida d' um
entrançado de canastra (industria local) co-
mo os que se vêem em certos detalhes da
Batalha e da Madre de Deus.
Não pude admirar esta maravilhosa peça
senão crua, e é de suppôr que a aposição
das tintas lhe transforme o contorno, e o ca-
racter até, completamente. Tal como a vi, se
12 OS GATOS
bem que n'ella eu reconheça fodos ou quasi
todos os caracteres d'uma obra máxima,
comtudo não deixarei de fixar alguns repa-
ros breves que o ohserval-a bem me sugge-
riu. Começarei por notar que toda a obra
d'arte obriga a manutenção d um accordo ló-
gico, imprescindivel, entre os seus elementos
constituitivos: no caso presente, entre a for-
ma, e os ornatos que a revestem, entre a fi-
liação d'aquella e a origem d'estes, devendo
esse accordo observar-se, para que ioda á
peça seja harmónica, não só na questão
d'adorno e forma, mas até nas relações com-
parativas, iniciaes, de hnha para linha.
Quando contemplo um objecto d'arte (um
vaso ornamental, seja o exemplo) o primeiro
acto do meu espirito é despir esse vaso de
todos os arrebiques que o enfeitam, e con-
siderar-lhe attentamente a íorma primitiva.
No caso Bordallo essa forma é, já disse, a da
bilha portugueza, isto é, um vaso grego da
primitiva e ingénua infância da olaria, com
seu caracter pagão accentuado, e purissimas
curvas, d'uma voluptuosa expansão de bus-
to virginal. Conhecido o contorno e perfil do
vaso simples, o meu segundo acto é depois
os GATOS 13
estudar o caracter dos adornos que o re-
restem : no caso Bordallo são elles na
maioria inspirados ou bebidos na epocha
golhica, d'uma arte já requinlada, sabia e
culminante, cujo caracter em Portugal foi
essencialmente religioso. Tratando de ver
depois se a decoração serve no vaso, no
ponto de vista do casamento e reciproco
accordo das linhas, do eslylo, do typo, e até
do destino social das duas coisas, averiguo
que estou deante d'um vaso simples, com
decorações mui complicadas, que tenho n'um
vaso pagão, decorações do typo catholico e
mystico, e tanto este conjuncto briga no meu
espirito, que eu não saberia pronunciar-me
lucidamente sobre o destino social da peça
resultante. E' um vaso religioso ? E' uma
peça de hall ? Não sei dizer ao certo, tanto
os seus elementos de formação provem de
fontes que vou a suppôr heterogéneas e an-
tagónicas.
Observe-se cuidadosamente a talha na sua
forma ingénua e desadornada, o galbo mol-
lemenle lascivo como um quadril de deuza
nua, o esvasado dos seusdechves voluptuo-
sos, todo elle carne e vida livre, trazendo a
14 OS GATOS
ideia d'uma nudez dançante e gargalhante,
em pleno sol d'Athenas, por occasião das
festas a Ceres... não lhes parece que os or-
namentos gothicos que a enfeitam, com suas
linhas rigidas e arestas cutilantes, seus
coruchéus em prece, de mãos postas, suas
arcarias de claustro, lembrando penitencia,
jejuns, pelles lividas, ossos de rojo ante os
aliares, mosteiros e sombra, entrechocam no
espirito dois estados moraes irreconciliáveis,
suggeridos pelas duas ideias de catholicis-
mo e paganismo, d'expansão vital e peni-
tencia, de volúpia ridente e maceração pe-
los flagicios?
Vamos depois ao trabalho propriamente
inventivo da lalha, e repara-se no seguinte:
que ella já não conserva sob a decoração as
linhas mães do vaso grego inicial ; ceifa-
ram-lhe o gargallo, substituindo-o por um
vaso de parliculas maravilhosa e genuina-
mente flamboyanle. E' um attentado ás leis
da decoração ? Os entendidos fallem. Pare-
ce-me todavia que uma vez passada em jul-
gado a possibilidade de juntar n'um produ-
cto decorativo, a ourivesaria de D. Manuel, á
bilha d'Extremoz, haveria talvez meio de go-
os GATOS 15
thicisar o collo da talha sem deformação ou
sequestro da sua forma primitiva. Pois não
é verdade ? Tudo estaria em tomar o mo-
tivo gothico ideal, núcleo da decoração, e
desenvolvel-o por forma a elle vestir o gar-
gallo da bilha, s«m lhe alterar as linhas prin-
cipaes. O sutaque religioso seria assim elimi-
nado, o contorno e perfil da obra ganhariam
assim graça mais leve, até porque a estabi-
lidade da talha augmenlaria. Porque, fixe-
mos outra coiza de passagem. Não basta
que o objecto d'arte seja estável, é absolu-
tamente necessário que o pareça, e logo ao
primeiro aspecto se imponha como tal. Ora
a talha de Bordallo dá um pouco a impres-
são de violar as leis do equilibrio, apparen-
temeníe, está dever, se se compara a exigui-
dade de diâmetro do pé, com o aliaz consi-
derável volume do gargallo e cobertura or-
nada que o remata. Por este lado ainda se
descobre melhor a cisão mortal entre a de-
coração e a forma do objecto, porque a ins-
tabilidade faz vêr na talha dois vasos so-
brepostos, e nunca um producto artislico
homogéneo, desabrochando fecundamente
dum motivo uno e logicamente indissolu-
1« os GATOS
vel. Ainda outro detalhe chocante: a fragi-
lidade e rígido perfil das ansas de corda,
partindo em oito de conia, da expansão
maior do galho, a fazer azas. Essa rigidez
diria por exemplo bem n'um gomil gothico,
de bojo secco e contorno ascético, genuino
e typico da epocha ; porém n'um vaso de
quadris cheios, agride avista, pelo despara-
lellismo de duas parles expansivas da talha,
azas e bojo, cujas curvas geradoras me pa-
rece deveriam ser do mesmo typo. Depois
esse grande vaso monumental realisado em
cerâmica por engano, pois tudo n'elle exige
uma versão definitiva em metal forte, esse
vaso monumental, posto não sirva, haverá
que ser transportado d'uma banda para a
outra; e que desastrado ousaria fazei -o pe-
las azas, sem arriscar-se a vêr pedaços no
solo uma obra de tão laboriosa e larga ges-
tação ?
Estas observações não constituem de mo-
do algum critica a uma obra que o cera-
mista concebeu e realisou dentro d'uma crise
eslhetica, cujas determinantes lhe são pes-
soaes, e impulsivas portanto da sua inspi-
ração, da sua educação e da sua índole. O
os GATOS 17
que eu estive a fazer foi anles o andaime do
meu sonho d'uma jarra ornamental, obede-
cendo a uma lógica d'arte que me pertence,
e fora da (jual não spí vibrar.
De resto, casmurro seria o que não
quizesse vêr na talha de Bordallo o grande
estylo d'uma intuição gt^nial buscando fun-
dear a arte hodierna nos subsolos fecundos
da tradição histórica e das antigas ma-
ravilhas mosleiraes ; idiola seria o que
pola supposta incongruência do critério de-
corativo do ceramista, pelo seu ar lé'agora
fragmentário e insubmisso, desvaliasse
aquella peça, em toda a parle rara, do ex-
traordinário valor que ella contem como ten-
teio de cerâmica nova ; e por criminoso te-
ria o que, reportado aos modelos tantas ve-
zes lambidos de estrangeiros, não sentisse
perante aquolle bocado nacional, tão nobre-
mente portuguez, esse novello d'emoção dos
desterrados ao avistarem por entre as cordas
da nau, a primeira fímbria da terra em que
nasceram/
• Eis ahi uma composição de jarra moderna, feita
por Bordallo a pedido do jornalista Cunha Vasco, que
me parece um primor d'elf!gaucia orni-manista. A fór-
1« os GATOS
A estatueta do infante D. Henrique, e ni-
cho gothico que lhe serve de supporle, é na
obra séria de Bordallo um entretém d'en-
cantadora contextura, posto entre a talha
manuelina e as figuras dramáticas do Bus-
saco. A figurinha pretende dar o tom secco,
um tanto hirto, mas naturalista já, da es-
culptura medieva em transição p'rá Renas-
cença. Tem o chapéu desabado que lhe
põem na cabeça as pinturas do tempo, o veu
ma do galbo é a do cântaro aleratejauo,mais alongado^
o colo, alto e com dez arestas nítidas delimitando su-
perfícies planas, á jour, como o gargallo do celebre vaso
d' Alhambra, que esteve em Lisboa na exposição das
Janellas Verdes ; o rebordo ou bocca, formado, no pon-
to em que as arestas findam, por dez abelhas era ati-
tude de caminharem para dentro da jarra, e no ponto
em que findam as facetas intermédias, por dez redue-
ções microscópicas dos pratos celebres da fabrica, que
assim cingem a bocca do vaso u'uma espécie d'aristo-
cratico circolí^ Duas azas em braços arqueados, cheias,
magnificas, feitas d'uma haste de girasol e uma haste
de papoula, cobertas de folhagem, e encostando as
grandes flores termiuaes, abertas, á nascença do gar-
gallo, uma por cada banda, por forma a adornal-o sem
prejuízo dos feitios originaes que elle já tinha.
Bojo e cori^o da jarra, tudo liso: só da banda do gi-
rasol uma rede com peixes, decorando ingenuamente
um pouco do primeiro, e da banda da papoula um me-
dalhão com a cabeça de Cunha Vasco, e um grande la-
garto, curioso, cuja cauda nervosamente ondula no se-
gundo.
os GATOS 19
descendo, a lhe dar umas poucas de voltas
ao pescoço, e uma roupa monástica, esguia,
cahindo quasi sem modelar o corpo, e amor-
talhando-o com uma rigidez de magistrado
e monge-cavalleiro. Com uma das mãos faz
viseira sobre a testa, e por baixo d'ella os
olhos altos teem o ar d'estar mirando ao
largo alguma caravella suspirada. No tra-
balho da misula e baldaquino, a mesma so-
lemne graça, religiosa e cantante, paten-
teada já nos motivos gothicos da jarra, e
que é o calafrio da Batalha na nervosidade
dum poeta assombrado por essa incompa-
rável obra prima. O baldaquino tem seis fa-
cetas, separadas por pilares, sobre que se
implantam pequenos obeli.^cos semelhantes
aos do gargallo da talha já descripla. Fa-
zendo platibanda, ornatos de corda, em ara-
besco, e nas facetas rozaceas com escudos
d'armas e monogrammas da fabrica e do es-
culplor. Sobranceira a estas, a cúpula, toda
enrocada á jour, com uma pinha por lan-
terna, e arcos-butantes fazendo a ligação
da pinha aos obeliscos. A misula figura uma
base de columna terminando por uma pinha
dalgas enroladas. Partindo d'essa base, um
20 OS GATOS
corpo de seis capellas ogivaes, em tudo se-
melhante ao do gargallo da talha manuelina,
só com a differença de cada capella ter
sobre o tope, n'umaespheraarmillar, a cruz
de Christo. As capellilas circuitam uma es-
pécie de peanha curta, simples, onde se
apruma a estatueta.
Entra-se agora na obra do Bussa^io, en-
commendada para substituir os antigos bar-
ros, alguns tão bellos, que povoavam as ca-
pellas dispersas pola malta, barros que
muitos attribuein a um monge do convento,
e de que ao ci?rto nunca se poude averiguar
a procedência, N^essas velhas esculpturas, o
modelador seguia um pouco a moda italia-
na, no arranjo clássico das roupas, no con-
vencionalismo parado dos gestos, e na egual-
dade desesperadoramente serena dos perfis.
A antiga Paixão do Bussaco, fosse de fra-
de, fosse de profissional, o certo é que se
resentia d'um espirito devoto e d'um cinzel
pouco nervoso ; o terreno escapara ao mo-
delador extático de celeste, e a emoção na-
os GATOS 21
turalisla da vida substiluiu-a elle por uma
espécie d'espiriíualisação pomposa, oratória,
que dava a toda essa obra tão longa, o as-
pecto glacido d'uma successão de quadros
vivos. Quando os frades se foram e a vene-
rável matia da serra (um dos pouquissimos
logares verdadeiramente sagrados de Portu-
gal, onde, em certas ruas, ninguém devia en-
trar senão descoberto e pensando em Deus)
ficou entregue ao comprazer dos carvoeiros
e salteadores foragidos da Bairrada, para as
estatuas de barro das capellas começou essa
escruciação terrivel d'apupos e pedradas que
á mesma hora ia afrontando as frontarias
dos mais conventos c oratórios abandona-
dos. Tão descarada bestealidade ficou moda
muilos annos ainda entre os mariolões e al-
fenis vindos de sucia, até á matta. Estudan-
tes de Coimbra, filhos- familias da Beira e
da Bairrada, toda a alimária rica e impune
a quem os pães instigavam contra os
frades depois de se terem locupletado nos
roubos dos conventos, para matar o tem-
po, antes ou depois dos pic-nics, lá iam
aos tropo-galljopos, borrachas sorvidas,
apontar aos narizes e aos dedos das figuras,
22 OS GATOS
arrazar até ao ultimo caco d'essa piedosa e
melancholica liturgia, e ainda por cima es-
crever na parede branca dos nichos, obsce-
nidades grosseiras d'energumenos. D'essa
infamissima campanha, se pela calissa dos
oratórios buscarem bem, hão-de apurar es-
tranhos documentos, porque muitos malan-
dros assignavam por baixo os seus dichotes,
e eu mesmo vi a lápis, ha três ou quatro an-
nos, n'uma das capellas da matla, a relação
d'apuro dum d'esses jogos de pedrada, onde,
adeante do nome d'um conhecido ministro
d'estado, magistrado integerritno e pol lição
Hberal de velha stirpe, então estudante, lhe
era contada uma devaslação de sele cabe-
ças de santos, e nove dedos polegares de
phariseus, com a nota de ganhou entre pa-
renthesis. A obra que Raphael Bordallo está
creando para substituir as exlinctas escul-
pluras, corre eminente risco de ser trucida-
da como a antiga, mercê da seWageria vil
d'um povo que o constitucionalismo des-
aprendeu da fé, sem lhe deixar sequer
emoção pr'ás formas d'arte. Não me compete
a mim codificar a morte para prophylaxia
d'estes entre nós continuados crimes de bom
os GATOS 2S
gosto, se bem tenha por certo que de ha
muito elles estariam exiinctos se cada vân-
dalo colhido em flagrante recebesse summa-
riamente, no posto de guarda próximo, um
razoável par de bastonadas. Até á minha vi-
sita ao atelier das Caldas, Bordallo tinha
promptas quarenta e sete figuras, de tama-
nho natural ou reduzidas, segundo o espaço
e o pé direito das capellas, com distribuição
por oito lances da tragedia christã, que voa
dizer.
No Horto: com uma figura única, a do
Christo ajoelhado, postura lassa, mão es-
querda sobre o peito, o braço direito n'um
toro adusto d'oliveira. Foi a primeira mode-
lação humana de Bordallo, e d'isso se atrai-
çoa, porque amosenda, não tem contempla-
ção dolorosa, nem espiritualisação nem ori-
gem divina, fallando-lhe até a expressão
própria d'essa desfallencia terrivel de quan-
do o hysterico judeu, prevendo a morte, du-
vida quasi da sua missão reveladora. O in-
terior do sanctuariosinho destinado a esta
figura, deverá ser povoado de troncos d'oli-
veira, nodosos, esgalhados, que já estão fei-
tos, sendo a parede do fundo envidraçada,
24 OS GATOS
para sobre o vidro se colorir um ceu crepus-
cular, umas ultimas ourellas de sol poslo, e
por entre os troncos o archanjo da allucina-
ção que teve o Redemptor n'aquella hora
de desalento.
Traição de Judas, no olival de Gelhsmani,
alguns momentos depois de Jesus estar posto
em oração. E' o momento clássico do beijo.
« Chegando- se Judas a Jesus, lhe disse, eu
vos saúdo, mestre, e o osculou. Ao mesmo
tempo aquella turba de homens armados,
lança mão de Jesus, e os discipulos aterra-
dos, desampararam-no e fugiram.» O grupo
é ainda um pouco magro, e sem grande ca-
racter a mimica do beijo, de resto diíBcil de
visionar por forma destoante das milhares
de versões conhecidas em pintura e escul-
ptura, d'esla passagem. Jesus tem a cabeça
coberta com o manto ; Judas approxima-lhe
da face os beiços trémulos, e com uma das
mãos segura a bolsa do dinheiro. Um guar-
da do templo á direita, arranca a espada;
por traz d'uma arvore um oulro coca, e pelo
fundo espalham-se diversos, n'uma attilude
lúgubre de cilada.
Passagem do Cedron, «aqui se consi-
os GATOS 26
dera, reza a legenda da antiga capella
do Bussaco, a ponte do Cedron por ondd
Christo N. Senhor passou, e os tyrannos o
lançaram abaixo sobre as pedras que estavam
no rio, e ficaram rignaes impressos como se
vêem no dia de hoje.» Duas figuras, S. Pedro
e S. João, o primfiro cabido de joelhos, a
mão esquerda apoiando o buslo meio ergui-
do, que se alonga, pondo a cabeça na pos-
tura da allenção varada d'atonia, e os olhos
sobre algumas poldras do rio, que a direita
aponta com os nodosos dedos de povo, pa-
ra os silios em que devem jazer signaes da
queda. Este S. Pedro é já um segurissimo
estudo d'expressão, com a esguia cabeça co-
berta do panno árabe, a barba hirsuta, o
perfil judaico doloroso, bem lançado nas flu-
ctuantes roupas do clima ardente, e com
dedos trémulos e roídos que dão a edade e
a angustia n'um admirável jacto de realida-
de. A figura de S. João vê- se de pé, curvada
para o sitio que o outro indica; tem a ca-
beça coberta pela capa, as madeixas cabi-
das, a face inberbe d'uma adolescência pu-
ra d'ephebo transido, e em todo esse corpo
modelarmente enroupado, d'uma silhueta
26 . OS GATOS
fremente, é ainda na physionomia das mãos
qae se concentra o espanto trágico do epi-
sodio. Nada de clássico ou convencional no
duo rezuhante ; é uma scena arrancada á
sensilividade creadora d'um génio esponta-
neamente intuitivo, simples e grande, envolta
no sentimento mystico d'um frei Bartholomeu
lido em Flaubert e nos livros de Renan.
Em casa d'Annàs: columnata ao fundo,
e sobre um tripé, da esquerda, uma bacia
de cobre com fogachos . Annás, sobre uma
espécie d'estrado, atlende Jesus que os guar-
das e servos arrastam para elle, entre inso-
lências. E um velho judeu de lypo octogená-
rio, a bocca de peixe babando caducamente
os sons tartamudeados, barbicha rara, e com
um grande nariz de pássaro carnívoro. . .
Quasi uma múmia, com o aprumo difiQcil da
cachexia senil que só a perversidade faná-
tica epileptisa. Tem o turbante árabe um
pouco á banda, o caftan aberto, e na cintura
d'especlro a facha lassa ; a mão direita apoia
na cadeira, vê-se-lhe a esquerda no ar co's
dedos chocalhantes, esbrugados, a unha era
garra — dedos d'animal de sangue frio, vis-
cosos da morte próxima, onde o gesto diz
os GATOS 27
lassidão e ódio entre a descoordenação dos
movimentos. Traz d'elle um árabe, de pé,
põe no turbante a mão esquerda, vê-se-lhe
ocotovello nu na manga larga, ossos de nis-
tico, e olha Jesus fazendo uma mimica d'es-
panto. N'um dos degraus do estrado, aos pés
d'Annás, um venerável judeu contempla o
nazareno austeramente, a mão direita per-
dida na grande barba em rio de magistrado,
e sobre a testa o cinphinin ou boceta de
coiro em que se guarda a lei de Deus, dis-
tioctivo dos doutores da lu, e geradora de
pensamentos justos. A cara é soberba, o ar
de grande raça, olhos cheios de venerabili-
dade e pensamento. Estas Ires figuras oc-
cupam o fundo da scena, onde no silencio
paira o quer que seja de terrivel, quando
Jesus avança, manietado, com a túnica em
pedaços, os cabellos cabidos, suando frio
na face esbofeada. Três judeus que o arras-
tam, põem na frialdade do âmbito a nota da
plebe lisongeada pela acquiescencia muda
dos mandões. Um d'elles, de capacete e
lança, apoia-se no hombro de Jesus, a lhe
segredar a ultima insolência. Outro levanta a
mão pr'alhe espalmar em cheio uma bofela-
28 OS GATOS
da; e em todos Ires o membrudo das linhas,
a deformação bestial das mascaras e dos
corpos, põem um contraste animal na ana-
tomia escolhida dos personagens superiores.
Em casa de Caiphás: tribunal, no mo-
mento em que Jesus perguntado se se sup-
põe o verdadeiro Deus, responde «que re-
construirá em três dias o templo do Senhor.»
Relruca-lhe Caiphás, que era summo sacer-
dote aquelle anno «Mas confirma, confirma
pelo Deus vivo, que és effectivamente Chris-
to, filho de Deus!» Jesus então «íw o dis-
seste, e mais vos digo que alguma vez ve-
reis o Filho do Homem sentado á direita da
magestade divina, e vindo sobre as nuvens
do ceu julgar o mundo.» A estas palavras
Caiphás rasgou os seus vestidos, um magis-
trado cobriu a cabeça com o manto, e ainda
ouiro, furioso, desceu o púlpito do tribunal
aos gritos de «blasphemou I merece a mor-
te.» No primeiro plaíio está de pé Jesus,
visto em perfil, serenissimo, direito, a cabeça
descoberta e a face pura, en^re dois esbir-
ros furiosos — um que o empurra, toman-
do-o pela ligadura das cordas que o manie-
tam, outro de taganle no ar, direito ao ros-
os GATOS 29
to, que o braço d'um terceiro defende, in-
terpondo-se á vergastada com um gesto de
rude misericórdia. Na concepção e realisa-
mento d'esta passagem, Ião profundamente
scenica, um tumulto de génio terrificante
passa, rajando e torcendo, como um simoun
do deserto, os personagens. Esses corpos de
padres fanáticos não são mais que os escra-
vos escruciados das impressões que os es-
furiam. Nos sacerdotes que julgam e nos es-
birros que arrastam o criminoso, o mesmo
assombro da blasphemia ouvida esparvona
em contorsões e esgares de raiva hysteri for-
me. Gaiphás é verdadeiramente uma figura
€m coíip de vent: a túnica de corda, a sa-
marra franjada de cainpainhas, o busto em
espiral sobre a cintura, a cabeça nos céus,
a bocca em gritos, rasgando o peito co'as
garras d'inquisidor cxhautorado — uma fi-
gura a que os olbos se pegam, mas onde se
não concentra o espanto todo da calastro-
phe, que rebenta lambam da damnação do
que cobre a cabeça, dilacerante de blasphe-
mia religiosa, n'uma attilude de fuga e ter-
ror que a casa venha a terra, e ainda do
movimento de rasgar das mãos do que des-
30 OS GATOS
ce a escada, tão fero d'energia, e eslranho,
e cómico, magro como um espectro, o pes-
coço ás cordas, a cara de gato bravo, a
bocca de Gorgona, barbicha ao vento, e o
grande nariz de pássaro carnívoro.
Em casa de Herodes, n'uma apparatosa
camará de príncipe oriental, cortinados, co-
lumnas, tapeçarias e tropheus. O déspota
acaba de fazer a sua toilelle, eetá deitado
n'Lim leito de cochins e estofos preciosos,
que as concubinas cercam, familiares, co-
bertas de joalheria e semi-nuas. N'uma do-
bra do tapeio, aos pés do leito, um dogue
acorrentado, com a cabeça chata e o olho
d'esguclha, em sangue, refilando — uma
pomba no ar, voando sobre o leito, e outra
no chão, ligeira, biqueteando aqui e além,
com geitos de vaidosa: depois no primeiro
plano o grupo tumultuoso dos judeus tra-
zendo a Jesus manietado, um grupo estu-
pendo de violência viril e brutalidade ple-
bea em gáudio de maldade. O contraste en-
tre as duas bandas do quadro, impõe-se
logo. Na pessoa de Herodes, leve vestido
n'um saião de brocado e pérolas e aljôfares,
braços e pernas nuas, manilhas d'oiro mas-
os GATOS 31
siço, anneis nos dedos, e cinturão de Iha-
ma com fecharias d'oiro cinzelado, lê-se a
enervancia dormente do devasso que mal
pode abrir as pálpebras, de deboche, o gesto
quebradiço do cynico sensual a quem tudo
é indifferente; mas simultaneamente esse
eífeminado lem chispas de chacina, o sar-
donismo de quem não exitaria em martyri-
sar pr'a se entreter, e a insolência preciosa,
mascada, do criminal alliando na alma cruel
a ideia da libidinosidade, á ideia da tortura.
Em torno as escravas parecem ser como el-
le, sensibilidades estanques pela copula ; da
esquerda uma mulata, aos pés do leito, tem
o corpo n'um panno de iistrões orientaes, a
cavapinha travada por uma banda de seda
que lhe mantém os bandós em posição, o
tronco nu, seios crespos como fructos, e
tantos braceletes, colares, pingentes e
amuletos, que ella recorda não sei porque
certas descripções de Salambô, nas festas
de Tannit. Outra, de pé, na cabeceira do
leito, traz uma ânfora nas mãos, e attenta
em Jesus a modo enternecida. E' uma sul-
tana do typo architectural das raças nobres,
de cabecinha pequena, perfil intelligente.
32 OS GATOS
toucada de luxo e explendida de jóias. E no
meio da scena Jesus temos olhos tristes do
revolucionário que vae entregar o seu san-
gue inutilmente: a physionomia pende-lhe de
paciência, lodos os sons da queixa proletá-
ria, eterna, gemem na sua bocca, entre os
baldões dos carrascos e a curiosidade ape-
nas pictoresca da canalha humana por quem
morre. Essa canalha tressua bem das figu-
ras dos três guardas do templo que o con-
duzem, e cuja força estupenda rompe do
barro n'uma incomparável animalidade de
músculos e gestos. A' esquerda um d'e!les
agarra Jesus pelo peito da túnica, avança a
perna esquerda, e pucha-o brutalmente
para o leito do autocrata : visto do costas o
seu arranco é da mais expressiva violência,
todos os músculos lhe jogam sob a túnica,
a perna direita inclina-se sob a pressão do
esforço, íirmando-se na ponta do pé, cujo
calcanhar erguido distende as correias da
sandália: eaquilloludo meche, ondula, ar-
ranca, musculatura, ossatura, aponevroses,
pelles, estofos de vestidos, fumegando a
expressão por cada dobra, dando a selva-
geria viril por cada slriadura.
FIALHO D'ALMEIDA
os GATOS
publicação
d'inqurito á vida portugueza
l
«."ig— 14(ielioíeiiibrodel892
SUMMARIO
Ainda as esculpturas do Bussaco, e de
COMO ESSA OBRA É TODA nanativa — Physio-
NOMIA DO GÉNIO DE BoRDALLO I AS IMPERFEIÇÕES
E AS PERFEIÇÕES PaRQUE E CHALET DA FA-
BRICA DE FAYANÇAS VlSITA ÁS OFFICINAS, DE
NOITE — Para a historia da tolice, entre-
ACTO cómico espairecido d'anedoctas — Tho-
MAZ Ribeiro, notas humorísticas d'um velho
parlamentar o THEATRO INFANTIL E A SUA
revista do ANNO D'ONDE VEM AS CREANÇAS
QUE REPRESENTAM EmBAVECIMENTO DOSPAES
II os GATOS
E TORMENTOS d'uMA EDUCAÇÃO MENTAL MUITO
PRECOCE — Surménage e faltas de hygiene
As ACTRIZINHAS CANTORAS, OS COROS, E QUA-
LIDADE LITTERaRIA das PEÇAS QuANTOS d'eS-
SES ACTORES CHEGAM AO FIM? — PrEDICADOS
SCENICOS AOS DEZ ANNOS ! VOZES, GESTOS, IN-
CONSCIÊNCIA DOS PAPEIS, E FADIGA PHYSICA ES-
MAGADORA — Lei sobre o trabalho dos me-
nores — Conclusão.
1 de novembro.
Viu o leitor no numero antecedente o des-
criplivo dos grupos plásticos destinados a vi-
sionar á contemplação dos forasteiros doBus-
saco, esse sympathico e suggeslivo marlyrio
d'um allucinadodo bem, sobre cuja memoria
o espirito humano desperta da barbaria anti-
ga, fundando sobre um madeiro de palibulo
uma nova moral e uma nova consciência. A
esculptura de Raphael Bordallo c toda nar-
rativa, nem outra concepção da christologia
era de suppôr gerasse uma cabeça d'artista,
pouco disposia a especulações de symbolo-
gia religiosa. Bordallo é sob o ponto de vista
é os GATOS
d'esles problemas difficeis,um ingénuo com-
mentador da fé da multidão, e como tal pos-
suído da crença corrente, e disposto a ex-
pressal-a por um critério naturalista, seme-
lhante ao que os flaubertianos empregam
para stenographar os dramas sociaes. Para
a sua arte, o caso de Jesus deu-se eíTectiva-
mente conforme a reportage e os commen-
tarios dos livros santos : Jesus é para elle
o Ghrislo das prophecias judaicas, o envia-
do directo do Deus grande, o espirito-carne
descendo ao mundo para ensinar o exemplo
da jusliça, da confraternidade e do perdão.
A obra do Bussaco é por consequência mais
do que uma arle de modelagem e estudo
d'atlitudes ; é um estado mental inconscien-
te, avocado das recordações catholicas dos
primeiros annos, e expresso pelas formulas
da escola lilleraria em que o artista des-
abrochou e se fez homem. Todavia estas
duas impulsivas nem sempre conseguem cer-
zir-se ao ponto de darem um todo homogé-
neo e sem ranhuras ; basta observar em
qualquer dos grupos passionaes que atraz
descrevo, o realismo franco, livre-pensador,
das figuras profanas, e a espécie de mystica
os GATOS 5
rigidez convencional do Christo, para advir
em que a inspiração de Bordallo passando
dos judeus ao redemptor, trepida, hesita, va-
rada do respeito da lenda, receosa d'ames-
quinhar-se dando ao filho de Deus allures
de condemnado; numa palavra, acobardan-
do-se de restituir a essa figura de nihihsta
manso, que pregou o desdém pelo Estado,
pela administração, pela justiça, pela fami-
lia, pela propriedade, pelo trabalho, por io-
das as engrenagens mães da vida social, em-
fim, a physionomia e a postura que uma re-
constituição scienlifica lhe fixou. Este con-
trasenso ingénuo não prejudica por forma
alguma o drama sacro, que de mais a mais
Bordallo formula para uma turba-multa de
forasteiros antes beatos do que analystas,
n'um paiz onde o chrislianismo continua a
ser intransigentemente semita, e onde nin-
guém vê no Christo o pretexto allegorico,
local, d'uma divinisação solar d'origem arica.
Temos pois d'encarar esse drama na poé-
tica e supersticiosa bonhomia de que o in-
pregnou o esculptor, qual dispensando-o da
intenção symbolica e philosophica, qual re-
duzindo-o a ura caso de tribunal, n'uma
6 OS GATOS
terra de fanáticos estreitos e aduncos pha-
riseus de gestos nevropathas. N'este campo
restricto, a obra de Raphael Bordallo é, sal-
vo as primeiras figuras da serie, que são
tentativas de quem subitamente acorda es-
tatuário, d'uma belleza e força d'expressão,
grandes e raras. Um génio ardente, sem edu-
cação profissional nem modelos prestes, des-
ajudado, aparte, falho d'applausos, com mi-
sérias de dinheiro e grandes anciãs de vida
d'espirito, em meios sumptuosos, arranca da
lama plástica rodilhões de formas truculen-
tas, fragmentarias por vezes, mas todas el-
las vibrantes e doidamente inventivas, d'u-
ma energia foetal d'almas de monstros, d'u-
ma perspicácia de creação cheia de sonhos ;
e mercê do estranho fogo conceptivo que o
domina, eil-o forjando n'esses barros iner-
mes uma humanidade diversa da contempo-
rânea, nervosa, sua, desarreigada do con-
vencional, hierática e feroz, subtil e bruta,
onde nos dessous se encordoam, o lineamento
d'uma raça, e inquietantes sensações rajan-
do ao travez d'almas conlusas e doentes.
Em certas figuras (exemplo Caiphás e os
dois magistrados que barafustam, quando Je-
os GATOS 7
SUS confessa ser o Chrislo ; exemplo o car-
rasco de Herodes e o doutor de barba mo-
saica, que está sentado á direita d'Annás) a
lucidez de Bordallo é d'um illuminismo tal,
á força d'arte, que o esculptor simplesmente
intuitivo parece desdobrar-se em erudito, e
este em psychologo, os dois approximando
de nós uma Judeia ritual, spectral, de pé,
longínqua de dois mil annos de civilisação,
e com os «tantes por cento j) de barbaria
allucinante que a antiguidade oriental tres-
sua dos escombros e textos litterarios que
nos deixou. Eu não poderia aílirmar que al-
guma vez, n'essa esculptura de curioso, fa-
lhas de modelagem não atraiçoem a ausên-
cia d'essas pequeninas sabedorias que as
pacientes lições de três annos d'escola en-
sinam aos esculplores de profissão, e elles
tanta vez manuseam para mascarar a au-
sência do talento. Convenho até que na obra
de Bordallo de quando em quando haja de-
formidades ou rudezas anatómicas : mas com
que ululante audácia, com que desespero
magnifico, com que revoltada eloquência,
esse excepcional aprendiz visiona os subma-
rinos da catastrophe christã tomada ao vi-
8 OS GA.TOS
vo ! dando direchercheáo movimento, da pai-
xão, da fé a toda a brida, com uma elasti-
cidade de factura, um calor d'enlaces, um
imprevisto de raccourcis, um ar respirante
emfim de historia domada, que é impossi-
vel não vêr por traz d'aque]la furiosa labuta
d*esgares, gritos, reviravoltas, tragedias, o
gérmen vivaz d'uma passionologia d'arle pes-
soal, inédita entre nós, e verdadeiramente
extraordinária em qualquer ponto do uni-
verso em que florisse. Não foi intento meu,
nem para illucidação do leitor valeria dar
aqui descripções minuciosas ; por isso omitto
a scena de Jesus no tribunal romano de
Gabbatha, deante de Pilatos, ainda em pre-
paro, e uma das que Bordallo compoz com
mais aprumo. Dos outros episódios, fiz a
correr a silhueta passional, como remember
para os que por acaso já tivessem visitado
o atelier das Caldas da Rainha, não me sendo
porem possivel em espaço tão curto promeno-
risar maquettes onde os estranhos possam
vêr d'aquella obra pujante, alguma coisa.
Lembro-me da impressão espavorida que
os GATOS 9
me causou o entrar no atelier d'esculplura
de Bordallo, uma noite, a primeira vez que
fui á fabrica. Tinhamos jantado juntos, Bor-
dallo e eu, n'uma immensa sala de hotel
quasi ás escuras, onde o artista referira os
contratempos e agonias dos ullimos mezes
da empreza cerâmica, parada em plena for-
ça, e aguardando um milagre de capital, ca-
da vez mais problemático. Para chegar do
hotel ás installações da fabrica do fayanças,
seguimos por um caminho silencioso, com
um ou outro lampeão mortiço, de petróleo;
depois, lá adeante adensava-se a treva, arvo-
res desconformes ás duas bandas das bar-
reiras, abobadando o alto n'um tunnel de
que não podíamos medira profundeza., so-
cego, espanto... té que de repente um latido
de rafeiro nos fez deter junto a uma cancella
rústica, que era a entrada do parque da fa-
brica, todo em sombra, somnolencia, e quie-
tação. N'uma clareira perto, alguns passos
além, uma sombra de casa rústica, com seu
quadrado destore illumiuado. Bordallo cha-
mou o guarda a que amainasse o cão, veio
uma lanterna, e trepando pela escadinhola
exterior do chalet, feita de toros de cortiça com
10 os GATOS
vasos de begónias e trepadeira, achámo-nos
n'uma espécie de cabana suspensa, conce-
bida n'uma original e campestre phantasia.
Tecto e paredes era tudo forrado d'esteiras
de labúa, das que a genle pobre aproveita
para dormir nos tempos de verão. A meio
da peça havia, desde a porta d'enlrada, um
biombo de papel aguarellado de rãs e plan-
tas d'agua, resguardando para a direita um
canto d'alcova, com o mosqueiro de cassa
de Malaca, tapetes caseiros, e grupos de
pbotographias queridas em Iropheu, e deli-
mitando para a esquerda o resto do espaço,
que era ao mesmo tempo sala, gabinete de
trabalho, casa de jantar, e toilette. Todas as
humbreirase cimos dejanellas e portas, fei-
tos d'entrançados de canastra, uma das enge-
nhosas industrias campestres da região, hoje
perdida; moveis de pinho, sem tinta nem
vernis, respeitando as formas tradiccionaes
do escabello e do tamborete detripeça, com
pinturas representando flores eanimaes, no
pinho cru : á altura da cimalha, prateleiras
com faianças portuguezas de Darque, Coim-
bra, Caldas e Lisboa ; vasos com flores no
lavatório e bancado trabalho Jivros disper-
os GATOS 11
SOS, e por cortinados e slores, pedaços d'al-
godoaria portugueza e oriental, cheios de
desenhinhos vermelhos, verdes e doirados,
d'uma época em que a estamparia e a arte
balbuciavam, com a graça das suas poíy-
chromias hirtas e voantes.
Era n'aquelle tugúrio a residência de Bor-
dallo, improvisada com nove libras e uma
pouca d'imaginação archi-estouvada, ao
mesmo tempo labrega e dislincla, entre as
arvores do parque esmorecidas de sede, e
aquella noite d'agosto, sem hálito, aboba-
dando os campos somnolentos. As officinas
e ateliers da fabrica de cerâmica ficam a meio
do parque, n'um alto que as terras fazem
a cerca d'uma centena de metros do cami-
nho. Estão espalhadas aqui e além, por dois
ou três corpos de conslrucção vaslissimos e
solidamente travejados, onde destaca o cor-
po principal, sobre uma escadaria d'azulejos
mouriscos, vasos exóticos, e monstros de
jardim de loiça polychroma. Tomando a
lanterna do guarda, Bordallo conduzia-me
pela ladeira, lançando o jorro de luz sobre
alguma magnólia ou palmeira mais esbelta,
e a obsessão da fabrica suspensa, desorien-
12 OS GATOS
tando-lhe as faculdades da aUenção para a
escrucianle ideia fixa de tanto trabalho em
raina, tanlo talento esparso a procurar en-
tre as reminiscências da obra alheia, e os do-
lorosos partos da concepção individual, fora
do tempo, o puro escorço da obra valida, da
forma pura, da linha ideal definitiva na ce-
râmica, d'inslanle a instante corlava-lhe o
dialogo, e era doloroso seguil-o por esses
plainos da invectiva e da queixa contra tu-
do, no isolamento d'um coração sumptuoso
que para gestar precisa, como o de todos os
grandes plásticos, circumjacencias de luxo,
calores de publico, e as homenagens eo oiro
dos magníficos senhores da Renascença. E
isto o que a multidão não comprehende, e
toda a gente imagina subjeitar os génios
creadores ao regimen económico e domestico
dos simples amanuenses, dos creados de ser-
vir, e dos vendedores de presunto, avaros e
limitados.
Bordallo avarento, videiro, arranjadinho,
far-me-hia no espirito um compósito em
verdade caricato, pelo que lhe sei da ima-
ginação cheia de hyperboles, pela variabili-
dade de humor inquieta e remordente, pela
os GATOS 18
inexhaurivel riqueza da plelhora, e terribiliíá
▼erliginal da concepção. Artistas d'este mol-
de não podem gerir-se mais por contas de
sommar, ter fundilhos nas calças, e contos
de réis a render no Monte-Pio. O quantum
de cerebralidade susceptivel de caber n'um
craneo funccionante, reverte para as facul-
dades estheticas a energia vital em que ne-
cessariamente dessangra as outras faculda-
des, e errado vae quem não quizer ver nos
grandes artistas, productos teratologicos do
espirito, razões prevaricantes, insensiveis a
umas sollicilações para que estão aptos os
cérebros normaes, e em compensação vi-
brando d'outras, com um poder de lucidez
innarravel. As coisas são o que são, e a ga-
leria bossal haverá que resignar-se e fazer
excepções pr'ás excepções.
No atelier d'esculptura, uma vez chega-
dos ao vastissimo hangar das officinas, uma
scena ph;inlaslica se desenrolou á minha
vista: o jorro da lanterna ia por um chari-
vari de braços e cabeças, umas vermelhas,
outras côr de cobre, desesperadas todas, e
infundindo pavor na carbonosa sombra do
ambiente. Por um instante, a minha mente
14 OS GATOS
altonita dil-a-heis arrastada a um pande-
monio de febre e pezadellos ; soldados, es-
birros, Chrislos, doutores da lei, ludo me-
chia, procurando justificar-se, vindo a mim
demaxillas convulsivas, com discursos apho-
nos, Iressuantes da angustia de não acharem
em mim justificação. O feixe da lanterna
esclarecia de cada qual o accenlo impetuoso,
fazendo-o saltar do fundo, correr nm ins-
tante á bocca do proscénio, depois do que
relegava-o á penumbra, correndo a outro,
como se tivesse pressa em o ouvir depor no
litigio travado entre Bordallo e a indiÍTeren-
ça do seu publico. D'este instantâneo phan-
tastico sob que eu vi pela primeira vez as
esculpturas do Bussaco, sahiu talvez a im-
pressão d'assombro sob que as descrevi, pa-
ginas atraz. Escuso dizer que não tenho por
definitivos os juizos que n'eslas paginas
exaro sobre as differentes questões que uma
vida estudiosa traz ao meu espirito. Mas do
que eu não abdico é de os exprimir tal qual
a minha rasão yibratil os entrevê no ins-
tante em que os defronta, e de os relevar
nos planos em que a justiça me aconselha
que os releve. Desattender a obra d'um ar-
os GATOS 15
tista a pretexto de que elle gasta quanto ga-
nha, enão soube ser o modelo dos guarda-
livros, é uma imbecilidade que sobre gro-
tesca tem o seu tanto ou quanto de velha-
ca. Não tenhamos sobre as obras d'arte as
opiniões dos agiotas. Os povos que apre-
ciam os productos do espirito pelo custo
metallico da factura, giram n'um espirito de
conservação que em vez de virtude é, pelo
contrario, egoismo, e este critério gordo, se
os aparentelha co's brutos, por certo lhes
não dá na civilisação direitos hegemónicos.
iO de Novembro.
Entre as chapas dilectas da tolice indí-
gena, uma conheço, a forma aphorislica, que
é a mais cultivada pelas populações bem
fallantes do paiz. A asneira lapidada em
sentença, tem para os tolos a vantagem de
parecer coisa profunda, e para os espertos
a desculpa de muitas vezes passar por ironia.
Doesta maneira foi augmentando para uns a
horda dos pensadores, epara outros a hor-
16 OS GATOS
da dos mordazes, quando, segundo a esla-
listica, sóadosidiolas ê que começa a estar
mais crescidinha. Quem de longe a longe
assiste á representação de comedias origi-
naes, fica assombrado da quantidade de pra-
zer que ao publico causa a baboseira em
forma de churrilho. Quanto menos sentido a
coisa faz, quanto mais disparatada é a arma-
ção da phrase insalsa, tanto mais parece que
o publico integra o espirituoso auctor no
olympo dos cerebraes com direitos a estatua
— como se essa obra calina fosse a ver-
dadeira Comedia Humana a escrever d'uma
sociedade de chanfrados e hydrocephalos.
Quando assim se perde a intellectualidade
do riso, eé abolida a ideia na contracção da
mascara physionomica, a policia só tem a
fazer uma coisa: encerrar os que riem eos
que fazem rir, n'um manicomio. Pela cida-
de, avulso, a cada instante ha chispas d'es-
sa cretinisação geral de que os humoristas
constituem o recanto divertido.
Varias causas concorrem para a emissão
da asneira em formas académicas : a pedan-
teria meriodinal de fallar bem é uma d'ellas,
e a segunda seja a convicção em que se está
os GATOS 17
de que a sonoridade noblifica tudo quanto
se diz sem ideia nem conceira. Ha dois do-
mingos ia eu pr'os loiros n'umchurriãodos
americanos, quando, nos bancos cheios, com
a alegria do sol e a perspectiva d'uma tarde
real com boas sortes, começou a se produ-
zir nos espectadores um desusado bem es-
tar, algo ruidoso. Paliavam todos, riam, con-
tentes, e um cavalheiro do commercio, que
levava um jornal, buscando a propósito, co-
meçou a descrever a outro os horrores de
Hamburgo invadida pelo cholera. Como a
sinistra narração não desse eíTeito, por uma
transposição, vistosa aliaz, o cavalheiro cita-
do começou então a applical-a, detalhe a de-
talhe, á capital : Lisboa em pânico, as egrejas
abertas, os enterros de noite, cadáveres e
doentes de rustilhão na mesma maca... Co-
meçava no carro já a movimentar-se um certo
espanto, pararam as conversas, e alguns
monosylabos de damas acabaram emfim
de levar para o narrador os restos d'olhos
que até ali tinham ficado distrahidos. Mo-
nologo findo, o segundo cavalheiro ergueu
a vista clara e imposante sobre os mais,
passou a mão pelos beiços, e com espaçada
18 OS GATOS
VOZ (l'auctoridade, deu o substracto philo-
sophico da coisa, n'este gosto :
— E' dictado antigo que a peste traz fo-
me e guerra...
Silencio profundo, todos suspensos, e o
cavalheiro correndo outra vez o olhar na as-
semblea, depois de se assegurar da impres-
são que estava produzindo : quanto a mim,
o cholera, fome pode trazer, sim... (nova
olhadella) agora guerra, o que se chama
guerra... não traz.
O assombro dos passageiros não se des-
creve: os olhos ficaram extáticos, parados
no orador como n'um deus, e alé ao Campo
Pequeno ninguém ousou mais abrir o bico,
ou perturbar sequer da besta o silencio au-
gurial.
Casos assim são aos milhares todos os
dias. No caminho de ferro iam dois jorna-
listas conversando; um d'e!les, a reler o re-
sumo do movimento annual de população
que o Noticias trazia, essa manhã, chegado
aos matrimónios, exclamara:
— Caramba ! muito se casa em Lisboa!
— Principalmente os homens, acudiu o
segundo, que é ministro d'estado, academi-
os GATOS 1»
CO, e oulras albardas de merilo, equivalentes.
No recinto de pesagem do hippodromo,
uma larde de corridas, cerlo genlleman de
sobrecasaca clara dizia ao companheiro:
— Vê lá se eu conhecerei fulano bem...
(pancadinha no hombro) andámos lisicos ao
mesmo lempol
Em S. Pedro d'Alcanlara, no terraço de
baixo, dois brazileiros n'um banco esbode-
gavam-se, n'essa lassidão cerebral que lêem
os ricos por muitos annos inactivos. Bem
vestidos de novo, pingados de berloques, 8
com diamantes de reis nos dedos de balcão,
os pobres homens buscavam no ar pretexto
para a reedição d'alguma antiga caturreira,
e era doloroso vel-os seguir o vôo das mos-
cas, passarem as creanças, ajoujarem-se
creadas e guardas municipaes, sem que
nenhum d'esles incidentes da vida de jar-
dim lograsse arrancal-os áquella amollecida
e eterna estupidez. Subitamente o gordo de-
cidiu-se, lançou a vista aos céus — linda
tarde, seu Borges 1
O Borges fez um gesto vago de cabeça,
e extenuado do esforço que fizera:
— Está... se a memoria me não falha.
20 OS GATOS
Referia eu a um espirituoso, e mesmo po-
deroso jornalista, antigo parlamentar batido
por Iodas as desillusões dos homens e das
coisas, esta espécie de cegueira que produz
n*um individuo, ou n'um grupo, em certos
casos, uma calinada em tom senteneioso,
quando elle para confirmar o dito pinturilou
a seguinte scena estravagante. Sendo mi-
nistro d'instrucção publica o conhecido Tho-
maz Ribeiro, apresentou-se uma reforma
multando os pães que não mandassem os fi-
lhos ás lições. No partido contrario contravie-
ram em bater a medida, porsysthema, e in-
timado pr'a isso á ultima hora o desenfas-
tiado parlamentar cima alludido, entrou este
na camará sem saber patavina da matéria.
Abriu-se a sessão, peço a palavra! discurso
largo e cheio d'apostrophes, ípie todos ap-
plaudiam, conforme é d'uso em S. Rente
quando os oradores não sabem o que di-
zem. Chegado ao capitulo das multas, o fun-
dibulario cruel, de punhos cerrados, fume-
gando do exilo oratório, cresceu para o mi-
os GATOS H
DÍstro uns quatro passos, e pôz-se a dizer:
— Quanto a miillar os pães, por qual pro-
cesso ousaríeis vós, senhor ministro, alten-
tar contra a liberdade da ignorância nas fa-
milias ?
— Pelo processo das coimas, disse Tha-
maz, varado, e com o lápis em flexa na pou-
pa de cabello dianteira.
— Pelo processo das coimas, céus que
vejol Estranha affirmalival Evasiva mes-
quinhai Por ventura v. ex.^ sabe juridica-
mente descriminar, coima, de multa?
Viu o Thomaz Ribeiro fazer-se branco,
abrir a bocca estanque d'argumentos, e ca-
hir na cadeira, espapaçado.
— E por meu turno, accrescentava o nar-
rador sinceramente, eu fiz o mesmo — por-
que também não sabia.
Com os homens succede o mesmo do que
com os toiros no trasteio. Ha um momento
em que elles ficam cegos, surdos, patetas,
deslumbrados. Póde-se-lhes dizer seja o que
fôr, porque a impressão é igualmente ful-
minante. Um marido cahindo em casa sobre
o espectáculo da mulher mail-o amante. Vera
a allucinação do revolver, o desgraçado vae
2a OS GATOS
esmigalhar a cabeça ao felizâo... Vae este,
berra-lhe :
— Cautella que assassinas o pae de teus
filhos I
Ora, sob a influencia hypnotica d*esla#
phrase, novenla e nove vezes por cem, o po-
bre diabo deixa cahir o revolver e começa
a gritar :
^Meu Deus que ia eu fazer I
porque aquella coisa do pae de seus flhos
acaba de lhe esmiolar a cabeça perturbada,
e na atrapalhação já não reflecte se o pae
é elle, se o pae é o outro, ou mesmo se o
verdadeiro marido foi, alguma vez, algum
dos dois.
[^ de Novembro.
Vae para dois annos que um emprezario
de Lisboa explora, ora n'ura iheatrinho pró-
prio, tamanho d'uma caixa, ora em mais
vastas scenas, os trabalhos de representa-
ção scenica d'uma companhia de creanças.
A' força de ver reclamar nos jornaes os pro-
os GATOS ^
digios d'arte do microscópico elenco, fui-me
á rua dos Condes escutal-o, sobreavisado
um pouco contra tão apregoada maravilha.
O espectáculo abriu por uma espécie de re-
vista politica, toda cheia d'allusões aos mais
escandalosos pratos de S. Bento. Um patar-
reco rachitico, com uma voz entrecortada,
fazia o Zé Povinho, guardando o passapio-
Iho, o chapéu braguez e o fato de saragoça
com que Raphael Bordallo o inventou. Uma
pequena triste, de capote e lenço, fazia a
velha dos Pontos nos ii, e no campo da ca-
ricatura pessoal, desde o Marianno até ao
Vallada, tudo alli tinha sua figuração inson-
sa e delambida, em figurinhas de bigodes
postiços e chapéu alto, papagueando slulli-
cias de jornal chalro, com o entono de quem
com razão não percebe absolutamente nada
do que diz. D'espaço a espaço, uma borbo-
letasinha de dez annos, bonita, galante, fa-
nada já por todos os saracoteios da diva em
botadella de luzio prós monsiús de bidro no
olho, entrava pelo fundo em diíTerenles dis-
farces, dengosa de cotovellos e com a bocca
sangrante de carmim, para vir cantar á boc-
ca de scena, n'um fio de voz angelical prós-
-24 OS GATOS
tiluida por trinados, arietas e coplas d'uma
ínoral cambaleante, onde a sua figurinha
triste resahia como uma flor molhada de de-
jectos. O coro respondia também por boccas
innocenles, vinte ou trinta creanças larvadas
de pobreza, olheirentas, com typos d'azyla-
das, coitadinhas, botando os versos no zan-
garreio do B-A-ba das antigas mestras de
leitura ; e entre essas trinta, duas ou três na
adolescência, e com todo o feitio do ralo de
bastidor mais inquietante.
O eífeito d'esla infância votada ao mar-
tyrio de decorar as a>neiras de peças que
até em iheatros de gente adulta se não po-
deriam supportar sem reprezalias, pode cal-
cular-se na proporção da melanchoha im-
Hiensa, varada, que alanceava os poucos es*
pectadores que havia pola sala. Prohibido
n'aquelle sitio, perante inconscientes crean-
cinhas, o direito de protesto — porque além
das intenções certo altruístas do emprezario,
todas as manifestações d'intelligencia pre-
coce fetichisam d'unia maneira doentia a
ternura sentimental da nossa Índole, e contra
si próprio vae quem pretenda reagir a tão
laxa inclinação — ficava-nos o recurso d'a-
os GATOí^ 25
companhar desconsoladamente o espectáculo
alé ao fim, e eu fui um d'elles, porque me
não restassem duvidas quando á legitimida-
de das pequenas considerações que vou fa-
zer. Perfeitamente sei d'onde procedem as
creancitas arregimentadas na desenxaliida e
precoce companhia. Quasi todas são filhas
da rua e da miséria, brotadas em lares on-
de escaceia o pão e sobram os tormentos,
onde o trabalhador não tem salário e a viu-
va rebenta a labutar para trazer illudida a
barriga, e agazalhado o corpo dos seus filhos.
A perspectiva d'uma diária, embora magra,
vinda da exploração dos talentos de pobres
monstrinhos que a oíBcina não quer ainda,
e a escola primaria tornaria talvez mais
ignorantes,tentasem duvida os pães, cujo mi-
serável dia a dia lhes não dá serenidade ou
lucidez para cogitarem no perigo de surmé-
najar assim rudimentares cerebrosinhos de
sete a nove annos. Essa diária trazida pe-
las creanças ao cabo da semana, provenien-
te d'um trabalho nobre, artista, ao passo
que beneficia a família, dá aos progenitores
uma espécie de basofia, iutelkctual, fidalga,
d'aquella de que o povo mais gosta, por-
36 OS GATOS
que ella representa uma passagem de nivel
da classe serva, para as chamadas clas-
ses superiores. Eslá-se a ver o triumpho
d'um d'esses pequerruchos, na sua casa, no
seu prédio, no dia seguinte ao d'um debute
auspicioso. Os jornaes a fallarera, visinhos
que foram ver, os companheiros da pedra
deslumbrados, os parabéns e os presentes,
todas essas mimosas victorias emfim que re-
frangidas da celebridade do joven actor, vão
alluminar também d'um raio immortal os
pobres diabos que o acaso investiu da missão
de o atirar cá para este mundo. Taes satisfa-
ções não se descrevem ; seja-se embora pre-
vidente ou cultivado, não ha pae nem mãe
que em face das contraprovas precoces do
seu menino, se não sinta disposto a lhe pedir
todos os dias mais esforços, e de maravilha
em maravilha, sem repararem na creança que
se definha, nos olhos que se acarneiram, na
viveza infantil que se adormenta, na sensi-
bilidade que se preverte, na innocenciaque
se vicia, os desgraçados progenitores, com
alguns annos d'esle regimen, onde julgavam
ter formado um vivo, não encontram talvez
mais do que um sonâmbulo, tanto os bal-
os GATOS 27
does da educação artificial dada á ereança
lhe foram liquidando o génio em idiotia.
Um cavalheiro lamentava deante de mim
o filho único que perdera, roído de consum-
pção á entrada da Escola Polytechnica. Es-
tou a ouvil-o dizer, limpando as lagrimas :
só um consolo me resta! é quecomquator-
ze annos apenas, o meu Arlhur levou á co-
va todos os preparatórios do lyceu, dois an-
nos de conservatório, e pratica de francez e
inglez na perfeição 1 Pois querem crer? Ne-
nhum de nós teve coragem para chamar as-
sassino a este allucinado da instrucção I
No caso sujeito já estou a ver as attenuan-
tes que a sensihlerie contraporá á manifesta
repugnância que me causa esta escamotea-
ção da infância pela arte.
Ao iheatrinho apendem, leio nos jornaes,
aulas de portuguez e francez, onde os pe-
quenos artistas se ingurgitam da cultura
mental preparatória da sua vida de futuros
comediantes. Esses bastidores de bonecas
onde elles e ellas vão desemburrando os ta-
28 OS GATOS
lentos scenicos innatos, lêem além d'isso
mira de fornecer ao theatro nacional a escola
pratica elementar que o conservatório nega
aos predestinados de proscénio, e todas es-
tas vantagens combinadas com ess'outra de
se arrancar á miséria pequenos que não sen-
do actores, seriam gaiatos, e que não acei-
tando a esmola do emprezario, teriam fome,
todas estas vantagens hão-de predispor a
pieguice do publico favoravelmente ás com-
panhias dramáticas decreanças. Semelhante
Denevolencia, repilo, é mister combatel-a vi-
vamente, já porque ella representa uma vio-
lação dos direitos da infância, a que está de
guarda a lei sobre a regulação do trabalho
dos menores, já porque por outro lado a
educação geral ou individual não ganha
absolutamente nada com o permitlir-se que
bebés de quatro a dez annos façam vida
d'aclores profissionaes. Inútil repelir aqui
todas as razões de physiologia e moral que
teem feito os educadores optar pelo desen-
volvimento espontoneo das creanças, des-
viando-lhes do caminho as sobrecargas com
que não pôde a sua resistência vital e a sua
edade, e ensinando- lhes, como diz Spencer,
os GATOS 3»
O menos possível, para as fazer achar o mais
possível. Gomo se Irata d'organismos ten-
ros, de funccíonalismosínhos friáveis, todo
o desenvolvimento da infância, que é muito
lento, carece de ser auxiliado exclusivamen-
te n'um sentido physico, por forma que os
trabalhos nem forcem nem attinjam sequer
os limites de resistência d'esse conjuncto de
vísceras para assim dizer em formação. Já
era uma emboscada á raça dar ás crean-
ças, nas officinas, trabalhos ínusculares
capazes de fatigar adultos robustíssimos, e
nas escolas primarias e secundarias exer-
cícios de memoria que tão terrivelmente o
paiz tem pago na baixa intellectual verda^
deiramenle assustadora das gerações dos
últimos trinta annos. Juntem-se os esgotos
das duas depressões, a psychica e a mus-
cular, e far-se-ha ideia do attentado que
é consentir que os pequerruchos repre-
sentem por oíBcío. A' tarefa verdadeira-
mente estarrecedora das recitas, quatro
horas a fallar n'um ambiente confinado,
em caracterisação, ás chammas da ribal-
ta, que desacomodam a vista, e no meio
de lonas desagregando de si princípios mi-
30 OS GATOS
neraes, ajuntar-se-hão durante o dia as es-
topadas dos ensaios e das lições (se acaso
algumas ha), o estado dos papeis, e infini-
tos d'esforço emfim, mais que neces?arios
para fazer do theatro um hospital, com to-
das as gafarias do internato o mais suspeito.
Examinar detalhadamente cada qual d'es-
sas figurinhas da revista... musculaturas
molles, orelhas despegadas da cabeça, o an-
dar derreado e carneirento, dedos renflés nas
extremidades das phalanges, incurvações
do systema ósseo provenientes do esforço
dos gestos repetidos e das attitudes conven-
cionaes que o palco quer... Metade da com-
panhia prepara-se para morrer de tisica
aos quinze annos, quando a outra metade,
para escapar á morte, venha para a rua ven-
der cautellas, ou resvalado haja a menos
decente occupação. A todos os signaes
d'uma fadiga que a debilidade congénita
ainda faz mais lastimável, outros dese-
quilíbrios acrescem, revelados em particu-
laridades de piso, de voz, de jogo scenico.
Fallei atraz das cabotinices e dengosidades
que em scena mostram algumas das figuras
principaes da companhia, o saracoteio dos
os GATOS 81
quadris, o jogo de hombros e a postura a
Ires quartos das cantoras... As vozes tendo
de ser emittidas, ou para cantar, ou para
fallar, n'uma altura de timbre accessivel á
massa geral d'espectadores, e de pronunciar
extensos periodos, muitos difficeis, e quasi
todos com recortes litterarios, a pouco tre-
cho oíTegam de cangaço, e sente-sea respi-
ração dos pobres pequenitos, curta e jacti-
tante, cortando as tiradas de fifias, e atrai-
çoando na vocalisação um esforço de laryn-
ges seccas e de linguas emperradas no tra-
balhar dos sons sem ideia, e dos eíTeitos
oratórios sem digestão mental do que elles
representam. D'este dizer de cór nasce tam-
bém um pouco a tristeza apathicaque lêem
na scena quasi todos. E que admira? Pri-
vando a creança dos conhecimentos próprios
da sua edade, e trocando-os por outros que
ella de forma alguma pode absorver, pro-
duz-se um estado de paragem cerebral que
a bestifica, e lhe vem ao rosto em depres-
sões de traços, em vacuidade d'olhos, e
abaixamento dos cantos da bocca, com que-
da do beiço exprimindo a estupidez. Consi-
derem-se um pouco as peças que lhes dão
«2 OS GATOS
para fazer; que obscenas trapalhadas, que
diálogos torcidos, que falta d'accessibi lida-
do aos cerebrosinhos de seis annos 1 Gomo
exigir d'esses bambinos o sentimento litte-
rario, e a desarticulação do ser a capricho
das coleanles nervuras do papel? como lhes
pedir espontaneidade, frescura, verve, no
estylo graphico de dizer, e o presentimento
dos motivos da acção, quando os papeis só
pelo lado da memoria os impressionam, e
os pobres diabos nem sequer podem ligar
duas ideias? Provem d'aqui o ar occo, au-
tomático, coado, com que elles impingem o
sermão que lhes ensinam, succedendo que
os gestos não tem correspondência com o
sentido dos discursos, que a voz é exangue
e sem cheios nos pontos em que a acção
mandava aquecer o timbre, o tom crescer ;
e a razão physiologica deprehende-se : as-
sim como para o olho das creanças, toda a
visibilidade apparece, por manchas, sem
perspectiva nem planos relevantes, assim
perante a sua inlelligencia também appare-
cem as ideias, rebatidas, de sorte que a voz
que as exprime não pode ter ainda inflexões
inlellectuaes, filhas do eu, senão aquellas
os GATOS 33
que o ensaiador lhe martella, e que ella
controverte e desloca a cada instante.
Resumo pois que as companhias infantis
nem como regalo artístico, nem como exer-
cício experimental, teem cabimento, e que a
policia sanitária comelte um crime assistin-
do impassivel a este martyrio da infância em
beneficio das distracções d'um publico bes-
tiaga, como o nosso. Não é negar que as
aprendizagens longas não façam os profis-
sionaes melhores e mais perfeitos. O homem
seria incapaz de qualquer esforço, se o não
habituassem desde a infância a trabalhar.
Entanto para as profissões intellectuaesnão
é aqueUa a edade; prodigios aos dezannos,
palermas aos quinze, e d'ahi para cima,
derreados I
^
FIALHO D'ALMEIDA
publicação
d'inque)íiito á vida PORTUGUEZA
N.°50 — 16 de Dezembro de 1892
SUMMARIO
Duas recepções de gare, espaventosas —
Chegada de Limita, e reclame monstro do
Século POR via d'uma carta de Salgado —
AdhesOes e mensagens dos nossos correligio-
nários — Viva o Garnot portuguez e hur-
RAH pelo futuro PRESIDENTE DA REPUBLICA I
— Limita em padiola, sua integração no Sé-
culo, E assignatura extraordinária sem pa-
gamento DE JÓIA — Recita de honra, hymno,
ALMOÇOS, E DO CARRASCÃO QUE SE BEBEU — LlMI-
TA força da natureza, E CAGAÇO do GOVERNO
II os GATOS
PERANTE UM TAL DEMOLIDOR — A MANIFESTAÇÃO
SUBVERSIVA DO MaTTOS MoREIRA, A PARTIDA
DOS REIS, E A CAPITAL EM ESTADO DE SITIO
O SR. CONDE DA FOLGOSA, PRESIDENTE DO CON-
SELHO A DIAS — Projecto d'uma recepção
REAL NUNCA SONHADA AJlSSÃO DIPLOMÁTICA
DE S. M. A REGENTE : VISITA AOS QUARTÉIS, ÁS
PRISÕES, ÁS SAPATARIAS E ÁS ESCOLAS PARA
QUE SERVEM AS ORDENS MILITARES MlSSÃO
DIPLOMÁTICA DE FoLGOSA — QuEM DIABO É, E
DONDE DEMÓNIO VEM? AsSEMBLÉA DOS ANI-
MÃES PARA ESCOLHER UM REI, OU DE COMO AS
PROJECTADAS MAGNIFICÊNCIAS DERAM n'uMA CAN-
GALHICE d'aRRAIAL LlMITA TRIUMPHANTE, E O
SEU BARRETE PHRYGIO DE DORMIR SAGACIDA-
DE d'um repórter DAS Novidcides. — Inquérito
Á CREADAGEM FoLGOSA SOBRE A BOMBA, E DE
COMO A EXPLOSÃO NÃO FOI NA CABEÇA DOS DRA-
MATURGOS — Gil Vicente e os damascos —
Desastres artificiaes do attentado, ou o
cocheiro ESCRIPTURADO PARA MORTO — En-
SAIO GERAL DAS VICTIMAS — GoNGLUSÃO.
5 de dezembro.
Esta foi na verdade a quinzena dos gro-
tescos, a paschoa dos purrios onde a cidade
abriu alas para substituir á vida seria, obs-
cenas cabriolas de macacos. A historia d'es-
te final da nacionalidade que eslá a pedir
incorporação provincial n'uma visinha forle
que lhe laganteos rins de prostituta — d'este
íinal de nacionalidade onde o povo repre-
senta um papel inda mais vergonhoso do
que os espantalhos e mandões que se laus-
perennam ahi cynicamenle — se no dia da ca-
taslrophe quizer exemplificar como senhores
e servos eram dignos da infâmia a que rola-
os GATOS
ram, baslar-lhe-ha detalhar ponlo por ponlo
os carnavaesa que vimos d'assislir. Tivemos
primeiro o tribuno Lima, caixeiro da demo-
cracia monopolisnda por acções a beneficio
d'uma empreza de noticias, cançado de par-
vajolar em almoços francezes e hespanhoes
a conhecida homiha do jesuita e do rei, de
dedo no ar e gaforina hirsuta a ferro quen-
te, á espera na fronteira que os emprezarios
lhe inventassem reclame para uma recep-
ção de gare, espaventosa. A diva torcia-se
em Madrid, ingurgitada d'acordos jacobinos,
cançada,como elle próprio dizia, d'aturar as
banalidades hespanholas, e emfim no ápice
da gloria, em lilhographia d'Epinal, amea-
çando a triplice-alliança com a confederação
latina nos gatazios. Esse reclame afinal sur-
giu fumante, e foi uma carta amarga de Sal-
gado,increpando Limita de deslealdades par-
tidárias, d'eslupidez vaidosa, e mesmo n'um
lance de paixão exagerando uma pbrase que
esciipta fora, sabem-no lodos, para não ser
tomada ao pé da lettra. Aquella carta, re-
cebida com protestos platónicos, em prosa e
verso, por muito povo, e a maioria dos nos-
sos collegas da imprensa, serviu para dia-
os GATOS 5
manlinisar ainda mais o caracter de Limi-
ta, porém ma! iria ao programma do Século
se elle a não transfizesse logo em fonte de
receita, abrindo suas columnas a Iodas as
sandices collectivas ou isoladas, epistolares
ou lelegraphicas que os admiradores do tri-
buno houvessem por bem mandar á redac-
ção— francas de porte e com a assignalura
d'anno adeantada.
D'esta forma se organisou umborborinho
de curiosidade de redor do agitador albino,
armado em victima, de sorte que annun-
ciada a sua vinda do estrangeiro, sempre
houve trezentos patetas com que lhe arranjar
uma claque (jiie o palmojou na gare do Ro-
cio, chamando-lhe futuro presidente da repu-
blica, Carnot portuguez, comer com asseio,
e outras inconsciencias broncas d'este lote.
A rara genlé séria que ainda excepcional-
mente grassa na cidade, ao saber d'esta fes-
tarola patusca, do género das que o Bap-
tista tem por Setúbal nos dias de jantar com
vinho a rodo, e das que a chorada Gecilia
Fernandes tanta vêz pagou á linha nas ga-
zetas, encolheu os hombros, benévola, e
comsigo admirando mais este expediente ad-
6 OS GATOS
ministralivo do hábil Silva Graça, com o di-
zer que hoje em dia todas as fundações são
licitas ao prestigio, havendo uns que o con-
quistam pelo talento e pelo estudo, e outros
que o vão simplesmente colher aos cartazes
das esquinas, e aos loasts dos banquetes
cosmopolitas, onde por ninguém se enten-
der, é facílimo aos parvos arrematar pal-
mas de heroes. Raríssimas pessoas real-
mente se sentiam dispostas a contrariar o
bródio d'esses quatrocentos caixeiros desem-
pregados, de roda do seu homem, cujo al-
cance politico^ poderá quando muito dar
nome a um fun-ga-ga fora de portas, a uma
aguardente pólvora, a um sabonete ou a
uma marca nova de bolachas, mas cujas qua-
lidades neutras o tornam de sua natureza
inoffensivo, e naturalmente propenso a viver
da democracia como outros por ahi virem
d'inscripções. Por consequência o cortejo
foi por alli fora, Limita em padiola, da es-
1 Próximo á revolta do Porto, esteve Limita em
Coimbra a conferenciar c'os estudantes, e vindo-se a
fdUar u'uina revolução provável para cedo, lembrou o
tribuno que se a coisa liouvesse de se fazer um dia,
escolhessem antes umas ferias, para se evitar aos re-
volucionários a perda d'auuo.
os GATOS 7
tacão doRccio para aruaFormoza, no meio
do riso publico, meio piedade meio troça,
sem que subissem por isso os fundos da re-
publica, descessem os fundos da monarchia,
a Batalha deitasse supplemento, ou pare-
cesse menos immaculado o caracter de Li-
mita, o seu olhar menos albino, e menos
diamantina a sua tempera, feita d'apertos de
mão 6 cartas de namoro. Os que a jantar
sentiram as palmas, disseram entre si: é Li-
mita qne chega, salero! como se diz aos sab-
bados, lá vae o bando dos toiros, quando se
ouve a corneta dar signal ; e absolutamente
ninguém mudou d'ideias, ou estragou por
isso a digestão.
Integrado o tribuno em sua ociosidade
aíTectuosa na testeira do Século, aviso novo
de que as columnas da folha ficavam aber-
tas ás parvoiçadas solrtarias ou collectivas,
epistolares ou telegraphicas que saudar vies-
sem o monumental recenchegado — francas
de porte, claro, e com a respectiva assigna-
tura d'anno em vales do correio. Esta cele-
breira condimentada em clienlella pagante,
valeu ao Secidonovos successos de tiragem,
dando de sobreselente para dois almoços de
8 OS GATOS
honra, com sauterie de damas castelhanas ^
Continuaram as festas por três dias, e houve
no Princine Real recita de ofala, estando Limi-
ta em camarim colgado de damascos, coroas
de buxo, e sendo-lhc tocado o hymno á en-
trada, de pé, no meio d'estrepilosas ovações.
Por esta occasião lhe chamou um, por car-
ta, o «homem de mais prestigio do partido
republicano», e Angelina Vidal, a pythonisa
vermelha do club Sola e Vira^ tomando o
verbo, lhe desferiu das varandas uma ode,
onde Limita ia ao par do arcanjo da Vi-
ctoria, complelando-sea allegoria com Gra-
• Extracto do próprio Se ido o raconto suinmario doa
banquetos : houve no primeiro vinte e sete saúdes, e
trinta e quatro no segando. Calculan>lo que cada con-
viva absorvesse a decilitro por saúde, tesnos que no fim
do primeiro almoço estava cada qual com dois litros e
sete di'CÍlitros de vinho no bucho, e três Htros e quatro
decilitros ao cabo do segando. Os speeehs entretanto
não fizeram a menor allusào ao advento da republica,
e mesmo ao cognac, que é (juando a paixão democrá-
tica mais se incende, os camaradas politicos de Limita
limi-taram-se a brindar pelas prosperidades do Século,
e pelas senlioras e meninos uns dos outros. Ia vi/m >e-
ritas. Se esses republicanos cuidassem na republica,
acaso teriam hesitado em proclamal-a, cora três litros
de vinho na barriga ? Outra v^-rsão talvez poréni se
nos imp'~o, e vem a ser que Silva G-raça por economia
aguasse o vinho, espichando o do pipóte d'oude tira a
politica chilra do jornal.
os GATOS
ça, de Mercúrio, e Silveira de bochechas
infladas, assoprando n'um cartucho de papel.
O leitor que olhou para esta choca apo-
theose, como para uma pandega de faias,
feita em familia, de banzaras, e sem propó-
sito algum d'escandaIo europeu, por certo
não está disposto a acredi!al-a emanação da
grossa massa seria do partido republic;ino,
partido de protesto, cada vez menos dis-
posto a render pleito aos Desmoulins cabel-
leireiros. Por consequência fez incluir como
devia a festarola a Limita entre as manifes-
tações da liberdade de fazer barulho por
pouca couza, indo mesmo á concordância
de que para o desfructe da estima publica
não ha nada como não se ter uma única
qualidade dominadora e superior.
Pois caro amigo I emquanto no seu espi-
rito a recepção a Limita era equiparada, sob
o ponto de vista da importância social, aos
mais minúsculos e inofensivos fait-divers
do dia a dia lisboeta, verhi-gralia, ao bando
dos touros, ás prisões dos padeiros, e á for-
10 os GATOS
mozura branca e á formozura corada do per-
fumista universal Pereira d'Al[neida o go-
verno do sr. Dias Ferreira, os partidos dy-
naslicos,a corte, transidas d'espanto,ao sentir
as palmas ao tribunojulgaram chegada a ho-
ra da matança, e eil-os tartamudeanles, ignó-
beis de cagaço,obsessionados de cárcere e de
degredo, lançando-se reciprocamente a culpa
das poucas-vergonhas próximas e remotas,
e sem atinar com parede onde arribar o nau-
frágio dos Irazeiros receosos de chinello. Este
terror subiu de pânico, quando da esquina do
Mattos Moreira,indo el-reygorditoyla mas sa-
lerosissima de las reinas dei mundo a embar-
car no expresso, para as festas colombinas,
quatro portugiiecitos, lhes gritaram, viva a
pátria! no que a policia achou, com razão,
motivos de captura, visto terem os defensores
da realeza tornado o viva a pátria n'um syno-
nymo integral d'abaixo a monarchia.
Levados os gritadores sicários para o se-
gredo, abalados para Madrid os reis, deli-
bera o conselho de ministros reunir-se em
sessão perpetua, declarando a capital em
estado de sitio, e pegando a decretar medi-
das d'espavenlo, em guisa de reverter a es-
os GATOS 11
fervencia revolucionaria mnaníe (palavras da
/?e/òrwa)n'umaoíTegaíile e a maviosa deaion-
slração d'amor aos soberanos portuguezes,
ao lempo synthetisados na illuslre princeza
que os pariu. Por que a reconquista de Lis-
boa fosse rápida, lançou-se a regente dona
Pia (madama havida por mui lo feslrjeira e
bailona no escamoteio das sympalhias po-
pulares) á pesca dos applausos, e foi nomea-
do um presidente de conselho a dias, um
tal Folgosa, homem da privança e créditos
do outro, e o qual por ser dono do Colyseu
chegou a imaginar que tinha nas mãos o
povo, que por ter sido furriel de lanceiros,
se attribuia domínio entre o exercito, e em-
fim que por basto chegado ao ministério,
era natural fosse querido entre a policia
secreta, especialmente encarregada de des-
tramar conspirações e votar no governo a
meios preços.
Ahi lemos pois o presidente de conselho
novo e a rainha velha, em peditório de sor-
risos de boila para a coroa, qual empenha-
do em acumular fallarios e pacotilha» por
forma que a espera a D. Carlos deixasse a
perder de vista a manifestação cagada a
12 OS GATOS
Magalhães. O mot d'ordre intransigente, in-
condicional, imperioso, era que se metesse
n'um chinello as demonslracções do club
Sola e Vira e da a^^sociação de recreio Mor-
talha e Onça na estação do Rocio, por traz
das quaes a candonguiceoííicial teimava em
vêruma pata da hydrarepiibliqiieira, amea-
çando: e que se não poupassem despezas,
o ponto sendo que ás tenças de marqueza-
dos e pariatos, de futuras concessões de for-
necimentos para o exercito, etc, os cavalhei-
ros promotores do batuque régio se dispo-
zessem a adeaníar as sommas necessárias,
de que se lhe pagaria depois juros e capi-
tal, sabe Deus como.
Começaram immediatamente as corruma-
ças. A regente, atacada d'uma romantite agi-
tante. Ião particularmente grave de prognos-
tico nas circumjacencias da menopausa,
inda os seus augustos filhos não tinham pas-
sado a fronteira, já n'uma espécie d'inquie-
tação espiral sahia a visitas officiaes por
asylos, cadeias e quartéis. Na penitencia-
ria, depois de fazer aos presos iodas as es-
pécies de perguntas contrarias á boa ordem
do estabelecimento, e de simular deante dos
os GATOS 13
assassinos e ladrões que alli definham, quan-
tidade d'aínicçõese misericonJias um pouco
descabidas, a lai ponto levou as demonstra-
■ções do seu siisceplibilismo, que se lhe não
abreviam a visita, teria mandado esvidar to-
da a cadeia. Amando a pompa, foi em galeota
dourada a bordo dos navios, eo espectáculo
das salvas, quo fazem, estardalhaço, como as
kermesses, resolvendo-se tudo em fumacei-
ra, o espectáculo das salvas e dos marujos
nas vergas, soltando vivas, coitados, para
não irem com ferros ao porão, galvanisou os
byslericos nervos de S. M.,como em tempo
algum succedera quando ella^Ta uma rainha
verdades. Vem nos jornaes o ar de profun-
do conhecimento com (jue assistiu ás mano-
bras da maruja, e os officiaes tantas coisas
technicas lhe ouviram sobre náutica, que
enlresuspeitam fosse ella quem inventasse os
barcos a vapor. Saltou d'ahi nas escolas
scienlificas, e na Polytechnica, estando o Pi-
na a mascar physica, com variações de cal-
culo infinitesimal, a rainha, escreve o Dia,
fez taes lregeitosd'olhos e de dedos, tantas
corcovas de górja, que sahimos todos con-
vencidos d'ella saber ainda mais que o pro-
14 OS GATOS
fessor. Pincha d'ahi na artilharia, e eslá tu-
do parvo c'os prodígios de valor e saber
que revelou. Agarrou em canhões, parliii
balas a murro, oíTereceu modelos seus de
lanternetas e pólvoras sem fumo, e deri-
vando Q^eslas competências athlelicas e
scientificas para pequenas argucias senso-
riaes de fino faro, teve artes d'adevinhar
pela prova do rancho quantas balatas ti-
nham cabido a menos no caldeiro, e de que
lavrador era o azeite que não tinha sido dei-
tado ao bacalhau. D'arlilharia faz-se trans-
portar pressurosa ao Limoeiro, d'aqui a sa-
padores, de sapadores á lia Lconarda, e por
toda a parle o seu ar entendido, o seu sorriso
crispado,e a toilelte fúnebre de santa captam-
Ihe a sympathia dos simples, que mal podem
comprehender como uma rainha desça de
palácio, com as azas enroladas em papel de
seda, n'uma caixa de rt beca, a pedir votos.
Em sete dias de regência (sempre se-
guindo as apotheoses dosjornaes) a sr/ D.
Maria Pia deu lições de governo ao filho
ausenie, na arte de ocomprcmetter perante
os siibditos, d'estragar dinheiro em gorge-
tas dobradas, que nós pagaremos como uns
os GATOS 15
parvos, e de que ella como cosluma lerá
feito mais um parafuso para as suas azas
(i'anjo carideiro. Também, consol-ímo-nos :
não lhe faltou visitar um estabelecimento,
meller o nariz n'uma marmita, dar razão a
uma queixa, ver um hospital, um quartel,
uma sapataria ou um hervanario, e por on-
de passou choveram feriados, salvas, me-
moriaes e gestos de hombros. Para a revista
do anno ser completa, até lhe arranjaram
um dia d'assignatura, que S. M. illustrou
nomeando ministro d'eslado honorário um
Terra Nova de palácio, e enrodilhando aos
cueiros dos netos as bandas de duas ordens
com que é costumo galardoar os que arris-
cam a vida n'Africa, pela pátria, e que os
pequenos terão mijado e borrado a esta hora
e com insouciance egual a quem lh'as deu.
Emquanto a excelsa princeza assim tro-
tava na popularidade, vestida de Senhor do s
Passos, ecomcabellos chimicos espavoridos
ás brizas philanlropicas, dizei-me ó numes
que mirabolantes projectos cachoavam por
16 OS GATOS
baixo da cabelleira do Folgosa ? Essa espé-
cie de Burriay do segundo turno, esse ino-
pinado presidente do conselho para pessoas
tristes, occupando mezes antes simplesmente
na vida a profissão modesta de consorte, por
quaes phiílros galvânicos o arvorou Zé Dias
em fogueteiro mor da realeza, e d'onde proce-
de a força que o alevanta de súbito á impo-
sanle posição de juiz de chegada, na corri-
da dos reis para Lisboa?
Vae uma pessoa ao Larousse e não lhe
topa sequer um dado biographico; não ha
menção d'elle nas escolas, nas academias,
nos cenáculos bancários, nas emprezas in-
duslriaes, nas pugnas de parlamento, e
quando m.uito lembra-se o Chagas de o ter
visto patrulhar Zé Dias no desterro, ou ha
memoria de o terem querido fazer juiz d'ir-
mandade na freguezia do Soccorro. Quem
sabe d'onde elle vem ? Quem me pode di-
zer p'ra onde elle vae? E entretanto o seu
valimento é de força a Zé Dias lhe entregar
á partida as chaves da cidade, pra que elle
ponha e disponha, dê ordens, especa oífi-
cios, despache com os directores geraes, ca-
nalise a seu gosto o movimento dos minis-
os GATOS 17
terios. mande a guarnição, amphibise a ma-
rinha, decrete a gala, e tudo isto d'uma ma-
neira tão natural e tão simples, que lodos
acham graça, e ninguém se sente disposto a
protestar 1 Apenas os reis dão ala pr'a Ma-
drid, e com elles Zé Dias, a conferenciar
com Sagasta sobre a importação crescente
de hespanholas, Folgosa, senhor do reino,
convoca ao seu roqueiro da rua da Palma,
uma côrle de sapateiros e mercadores apa-
niguados, para ahi se acordar sobre o rece-
bimento da volta, aos viajantes. Trovejaram
programmas nas discussões da assembléa :
alguns propunham imia demonstração na-
val junto á estação manuelina, espectáculo
inexequivel, por a companhia das aguas se
não prestar a innundar o Rocio gratuita-
mente ; de seu lado os mercadores apoia-
vam antes uma parada de cavallaria e in-
fantaria sobre o Tejo, facto imprevisto, e
com a vantagem de, estragando-se os far-
damentos com a agua, poderem os propo-
nentes impingirão governo outro fornecimen-
lo monstro de pannos podres, o que ainda
mais já se vê, reforçaria as suas convicções
ultra-monarchicas.
18 OS GATOS
No impossível de desdobrar as feslas com
magnificência reciproca pelo elemento soli-
do e liquido da Lisbia, por á ullima hora
um festeiro mais astuto descobrir que as ma-
nobras de cavâllaria no Tejo corriam risco
de metler no fundo alguns esquadrões, sem
mór proveito, foi a demonstração naval re-
duzida a um mastro de navio espetado no
Rocio, e preencheu-se o resto com a pom-
pa de bicos de gaz, bandeiras e areia en-
carnada, queé costume estatelar por agosto,
nas ruas pobres, á passagem dos cirios da
Atalaya. Indo estiveram em erguer arcos
Iriumphaes pintados por scenographos, por
onde os reis passassem, como oulr'ora Ge-
zar voltando da conquistadas Gallias; vae,
reliveram-se, porque das duzentas cartas
mandadas a ricaços, pedindo massa, sóqua-
torze ou quinze voltaram com duas de seis
e muitas adhesões. De mais, os arcos de
triumpho, além de caros, tinham a desvan-
tagem de presupôr no recemchegado um
triumphante, e a fallar a verdade nem os
mais ferventes mignons das Necessidades
ousariam impor o sr. D. Carlos, coitado, co-
mo tal. Sobrestiveram p3Ís os membros da
os GATOS 19
grande commissão, Folgosa á frente, em
reslringir o bródio, na medida dos pequenos
recursos subscriptos, ficando ludo no cesto
da gávea, n'um fogo de vistas, e n'um bodo
de tostão e duzentos grammas d'arroz a ca-
da pobre munido d'atteslado de pobreza...
que os parochos passam á razão de doze
vinténs, fora papel.
Gliegou-se a mandar aviso aos sportmen
da côrle, concitando-os a uma guarda de
honra de cavalleiros montados em corcéis
de grande preço, para fazerem cauda ao
landeau da míigestade, mas ninguém deu
de si, e os que accederam, pediam á com-
missão, pilecas d'emprestimo, e doze mi!
réis para desencaravilhar do Mó os trajos
de cerimonia. Da interferência do elemenlo
popular no grrande preslito, relata lambem
a chronica terem-se convidado alguns alum-
nosde Talma, a cooperativa pontas de cigar-
ro e artes correlativas, e a parturi'^nte-fu-
nebre-familiar d'Alcabideche, única que se
apresentou com musica,n'um Rippert ornado
d'alfavaca de cobra,e com dois bidés doirados
por cornija.
Durante todo este tempo a actividade de
2
^ os GATOS
Folgosa não socega, e eil-o pelos minisle-
rios, a requisitar, de chapéu na cabeça, imi-
tando os gestos do Burnay. A' ordem d'elle
o serviço do correio interrumpe-se, por lhe
serem os carteiros precisos para a corres-
pondência da manifestação espontânea ás
magestades. Os trens de praça estão todos
tomados, pelas esquinas, á espera que elle
passe d'uns pr'os outros, com a coroa de
conde alada á lapeJia por um elástico; aca-
bou-se a areia encarnada no mercado, a poli-
cia anda á paisana distribuindo bilhetes de
gare,comprando pombos,transportando ban-
deiras, fazendo cordas de buxo e outros ac-
cessorios inherenles á manutenção da ordem
publica ; quanto ao telegrapho, não ha meio
de fazer passar um lelegramma — vinte e
quatro horas que a chancellaria da Palma
notifica aos bilhares da província o advento
do seu homem a grão mestre de cerimonias,
o que faz dizer aos marcadores labregos, nO
inlervallo da coçadella dos piolhos: este e»-
íápor, caragOy é que tem xortel Prestes e sem
uma expediliva palavra que avise o intruso
d'estar sendo inconreniente, arsenaes, mu-
seus, jardins, quartéis, tudo se lhe abre,
os GATOS 21
para que dle tome rressa feira da ladra as
farraparias liisloricas que mór se Iheafigi;-
rem para exhibição no arraial judengo on-
de mais uma vez se cobrirá d'escarneo a
monarchia. E assim o exercito que lem uma
disciplina e uma hierarchia próprias, e as-
sim a marinha, cuja gloriosíssima liisloria,
afervorada por Iradicções de séculos d'es-
forço e abnegações incomparáveis, é sagra-
da até para os mais sceplicos, passam pela
vergonha de ser manuseados porum antigo
furriel armado em homem indispensável,
juntamente com a areia encarnada, os bicos
de gaz e os gallegos que espetrram os mas-
taréos, manuseados d'aIlo, a despeito das
praxes disciplinares, sem disfarces officiaes,
nem receio d'afrronla a duas corporações
que é indispensável reservar da corrosão de
troça que está deliquescendo tudo por ahi.
Elle tem carta branca para fazer de Lisboa
uma vilrine agradável ao seu real patrão. A
14 de novembro intima o almirantado, arran-
que do quartel dos marinheiros o grande
mastro do pateo, onde as praças íazemexer-
cicio, e o faça transportar e recompor, com
cesto de gavia e cordagens, para o pé da
'22 OS GATOS
estatua do do Mindello (se o Amaral recal-
citra, demiltido!) — ordem á escola naval a
qae os aspirantes se produzam na gare, a
17, para fazer guarda de honra a elle e ás
mageslades (quem não comparecer será ris-
cado!)— ordem á guarnição para formar
alas no transito do cortejo, ordem aos func-
cionarios, ordem á corte, feriados nas oíB-
cinas, grande gala no jornal ofBcial, com-
[»oios a preços reduzidos, interdição na gare
a pessoas sem jerarchia monarchica esla-
belecida — e tudo isto por deliberação d'el-
le, com severas penas, demissões, multas,
conselhos de guerra e bilhetes de borla
para o grande concerto de S. Carlos. . . A
tal ponto a omnipotência do seu vulto as-
soldadou Lisboa, sob a regência, que de-
pois dos Jeronymos inda se não vira cathe-
dral magestatica: s. ex.' mesmo persua-
dido de que as festas fossem para authen-
ticar a enxertia da sua coroa de conde, em
coroa de monarcha. Depois d'um largo dia
de fainas, chegada a noile, encontravam- se
no castello da Rua da Palma a rainha ve-
lha e o presidente do conselho novo, o re-
gente e a regente, e ciumentos da aura que
os GATOS 23
se julgavam usurpar na posse publica, in-
lerrogavam-se, aosrepellões, sobre o que ti-
nham arranjado de melhor para o cortejo.
Sobretudo o suppposto favor do antigo fur-
riel enlre o cxercilo, incommodava S. M.,
sempre empolgadora do prestigio, e que em
íillos brados lastimava o ter dado homem
por si no recrulamento. A' chegada dos reis,
limbos os dois, vendo no ocaso os seus sete
dias de governo, oíTereciam o maríyrio da
(íbscuridade próxima em holocausto ás pro?»^
peridades do throno e a bem da pátria, e
envaidecidos da sua propaganda, irrecusá-
veis d'exito, fechavam as mãos e diziam
«lemos o paiz aqui», fitando de seus palá-
cios o ponto hypothetico do horisonle em
(juesuppunham jazer o alcaçarde Limita, o
lerrivel fuliculario do «faz hoje annos o
nosso amigo...» o Carnot porluguez, o fu-
turo presidente da republica!
E inútil explicar as festas, depois d'i?to:
d'um lado um povo sem expansibihdade,
velhaco e parvo, em tudo adiando j-retexto
para vadiar no meio da rua: do outro al-
guns Barnhuns sem dinheiro nem influencia^
procurando aquecer gente morta com cabo-
24 OS GATOS
tinagens e fogueies, e em conclusão, nenhum
interesse nacional chispando do meio d'esle
pagode ! Não seria pois pelo simples redi-
culo episopico que eu me detivesse a des-
crever as pompas da chegada, tanto mais
que isso eslá feito para umas poucas de via-
gens realengas, e a chronicad'uma éa chro-
nica de todas, porque os festeiros são os mes-
mos, e a Índole sorna da multidão pouco varia
de provincia para provincia.A novidade does-
tas é outra, a capitulação vergonhosa do
governo perante um jolda de pândegos que
elle tomou pelo partido republicano, o ter-
ror que á coroa veio d'uma sublevação mo-
tivada por dois gritos, e tanta consciência
de fraqueza e insignificância, um tal desa-
nimo, um tal medo, que o próprio Magalhães
Lima recebe com as festas do regresso hon-
ras oíSciaes d'anlagonista do monarcha por-
luguez. De feito, a origem do charivari Foi-
gosa não foi outra senão o ciúme do rei pe-
lo commis, o desejo de mostrar que a coroa
vale ainda mais que o barrete phrygio, de
dormir; senão veja-se-lhe o aproposito, e
estudem-se os detalhes d'uma e d'oaIra re-
cepção. Realmente não seria por o monar-
os GATOS 25
cha ter ido a Madrid tramar uma alliança
que pode ser cara á nossa autonomia, que
se lhe fez á volta tamanho espalhafato. Tão
pouco seria pela adoração pessoal que S.
M. el-rei e sua esposa inspiram aos parti-
dários do regimen dynaslico, porque mau
grado a indiscutivel nobreza d'ambos, o seu
caracter leal e a sua gentileza, os monar-
chas bem sabem que não gosam entre essa
gente, adorações, estando sem amigos n'ura
paço onde os velhos conselheiros de D. Luiz
deram logar a ambiciosos velhacos e a wal-
sistas.
A opportiinidade das festas foi unicamen-
te uma ciumeira insidsa por Limita, filha
do governo ter tomado á leltra os vivas do
club Sola e Vira, e de desconfiar que o tri-
buno encarnasse o formidável partido de
desgostosos da realeza, ignorando, o desgra-
çado, que esse partido só pode proclamar a
republica depois de morto o ultimo republica-
no. N'esta illusão, trataram de justapor nu-
onero a numero, o programma da recepção
real, ao programma do recebimento a Ma-
galhães : mesmas scenas na gare, grande
cortejo até á residência, espectáculo de gala
26 OS GATOS
n'um theatro, e só os dois almoços do Século
substiluidos por um bodo no Aterro, onde
sobraram pobres e faltaram donativos.
Que irrisória e ignominosa fanlochada!
Ahi lemos no mesmo nível de cul-
minância politica, no mesmo prato da ba-
lança, equilibrando-se — d'um lado o rei
de Portugal e os seus partidos, defensores,
aulicos, exercito e marinha — de outro, Li-
mita e os trezentos palmistas da gare do
Rocio; d'um lado o poder consliluido, com
predominio assente na tradicção de mais
de sete séculos, e na posse real de toda a
espécie de força organisada, do outro laaa
uma parcella Ínfima da demagogia caseira,
inoffensiva, cambaia, para rir; e assistindo
a esta exhautoração formidável do poder,
cinco milhões d'almas emporcalhadas ein
plena face por um governo que nem sequer
exteriormente já reconhece a monarchia o
direito do mais forte I
Para a celebreira do emprezario ser com-
pleta, e a gratidão real ler ganchorras onde
os GATOS 27
prender veneras á vontade, até rebentou
uma dynamilada no solar do sr. conde da
Folgosa, de tal maneira anarchislica, assus-
tadora, destruidora, vingativa, que escutada
na redacção das Novidades, nem sequer in-
terrompeu o somno do guarda-portão que
adormecera a quatro melros do sinistro.
Como este phenomeno acústico se explica,
só inventando Tyndall e Helmollz uma ano-
malia nova ás leis da vibração, suppondo
na dynamite por exemplo faculdades de re-
pórter, e imaginando que apenas rebentada,
a bomba fosse á redacção das Novidades,
dar a noticia, para voltar depois ao ponto
de partida, a fazer damno. Interroga-se a
creadagem do palácio, e uma sopeira, es-
tando na cosinha, ouviu o tiro, emquanto
outra á janella não poude discernir se fora
tiro, ou se seria um traque da patrulha.
Embalde os peritos constatam que tendo a
dynamite uma força expansiva prodigiosa,
devendo seguir-se á explosão, estrondo hor-
ri.-íono, e o projéctil destroçar quanto lhe
estivesse adjacente, os simples factos da
creada ter duvidas, do guarda-port ão não
acordar, e de nem sequer a cpliça da mu-
2S OS GATOS
ralha do palácio ter cabido, logo á grossei-
ra analyse demonslram em vez da Índole
destruidora, antes a Índole pyrolechnica da
bomba, que a não ter sido rhelorica, foi com
certeza uma bomba... de pataco.
Porem o sr. conde quer por força ser vi-
ctima dos demagogos, faz-lhe conta o pa-
pel de marlyrdo throno, e então com umas
cascas d'auctoridade que lhe ficaram dos
festejos, sempre a ateimar que tem sicários
á perna, entrava por decreto as leis da chi-
mica, ordenando que a bomba seja para to-
dos os effeitos, dynamite, metendo-lhe o sr.
Dias Ferreira este perigo na conta dos ser-
tíços que o governo haverá que lhe pagar.
Chegado o estampido á redacção das No^
vidades, o esculca auricular que estava de fa-
china, tomando a direcção do som, averi-
guou que elle viera, na direcção do vento,
dos sitios do Intendente, e eil-o espavorido a
procurar na rua, informações. Gomo a ex-
plosão lhe parecesse provir da Rua da Pal-
ma (são as próprias informações das Novi-
dades), o esculca subiu o Chiado, desceu a
Rua do Alecrim, espraiando-se pelo Aterro,
onde os calraeiros, apezar da sua boa yon-
os GATOS 29
tade, lhe não poderam mostrar vestígios do
sinistro. Romulares. Terreiro do Paço, Riia
do Ouro, e emfim no Rocio nova admiração
do moço em não encontrar sequer no cesto
dagaveaas visceras estrompadas d'um:i vic-
tima. Chegou-se a D. Maria, e acercando-se
d'um dramamifero que sabia, com a coroa de
loiro ás três pancadas, pergunlou-llie, apon-
tando a massa do iheatro, se acaso houve-
ra lá dentro alguma coisa. O dramamifero,
baixando as pálpebras com peso, e os can-
tos da boccad'oiro com mysterio, fez o gesto
tolhido de quem não pode fallar, e acrescen-
tou. . que era segredo de coníissão. Já por es-
se tempo o thealro estava atochado dos da-
mascos que lhe iam sendo remettidos pela
estrada de Rraga, em carroça puxada por
seis girafas de smoking.
— Não ouviram um tiro? perguntava o
repórter a toda a gente.
Estava na columnata o damasqueiro re-
commendando a uns poucos de porquinhos
da índia, de nomes críticos, o reclame com-
mercia! da sua fructa, e o repórter das Novi-
dades revistando-lhe os craneos verificou quu
â explosão não podia ter-se dado n'el!es, pe-
30 OS GATOS
la razão de nem sequer terem miolos. Ví.ns
de cima do frontão, Gil Vicente que ouvira
a pergunta do tiro, respondfu brutal que
fora elle com uuia indigestão de damascos
que se cagava para todaaquella illustre as-
scmblea.
De canto em canto, de praça em praça,
de rua em rua, alii prosegue o pobre diabo
na faina d'atinar com o foco da noticia sen-
sacional do dia seguií)le, o caso da bomba,
a famosí» bomba do dynamite bonoraria,
sacramento da confirmação dos pinlale-
gretes que se querem fazer togar de gran-
des viillos. Quando os acasos da marcha
alfim o conduzem, esbofado de respiro, até
ao «local do incidente», já viu trotando
para as redacções dos jornaes muitos facto-
res que por ordem do sr. conde levavam o
caso tétrico ao commenlario dos plumitivos
«sequiosos de justiça». O jardim do solar
parcct-u-lhe fúnebre, com um chafariz ao
fundi», e por entre as moitas pccpienos mau-
soléus recordando o cemitério do Barba
o» Gatos 31
Azul. Na sala de despacho das festas, rez-
do-chão, onde o sr. conde estava acabando
de diclar as ul limas noticias, vários creados
jaziam sobre enxergas, com grandes feridas
pintadas expressamente nos membros, pelo
tronco, e ennodoando-lbes as roupas, san-
gueira á'. porco comprada ao litro ás fres-
sureiras. Tinham sido chamados a Ioda a
[)ressa dois pedreiros, com ordem de der-
rocar rapidamente a bombreira do palácio,
profundando o sinistro no ponto bypothe-
tico em que o sicário devera ter pousado a
dynamile, e o sr. conde, meltendo vinte e
cinco tostões no bolso do cocheiro, dava-lhe
as ordens: — depois de pintado e prompto,
deitas-le na porta, entendes ? c quando a
policia chamar por ti, diz que estás moito.
Este manejo açulara a curiosidade do
repórter, mas fizeram-no mudar de rumo
immediatamente, a pretexto de que indo-se
proceder ao ensaio geral dos feridos, não
convinha que elles se produzissem deante
da imprensa não sabendo bem os seus pa-
peis.
O sr. conde da Folgosa passou então
pelo questionário a que é uso os entrevistei-
32 OS GATOS
ros submetierem os «heroes do dia» : como
se chamava, o estado, os annos, as doen-
ças, e se ^-ípor acaso» sabia lêr e escrever?
Lá salisfez como ponde as indiscrições do
alviçareiro, e chegados ao capitulo da dy-
namite, o homemsinho, de carteira espal-
mada e molhando o lápis, pediu promeno-
res sobre a calastrophe.
— A respeito do estrondo, uns ouviram
de mais, outros de menos. V. ex.* que pen-
sa sobre o caso?
— Penso, respondeu com nobilissima
simpleza o nobre ex futuro marqnez do
Cesto da Garia, que o explosivo traiçoeira-
mente arrojado contra mim, fosse effectiva-
mente a dynamite, e em grande dose, como
se prova pela derrocada a que os pedreiros
estão acabando de dar a ultima demão. Se
o estrondo da bomba não esteve porem á
altura dos instinctos sanguinários dos meus
algozes, não se lhe attenuem por isso os ef-
feitos mortifero-escamados; ha agora umas
bombas de dynamite, medonhas, do peso de
sete kilos, que matam sem estrondo, e se
chamam por isso, silenciosas... de Singer.
— De Singer ? 1
os GATOS 33
— Bombas terriveis:incendian<lo-se, der-
rocam mundos: deixadas em casa, cosem
ceroulas que é uma perfeição.
— E quantas desgraças pessoaes daria a
bomba ?
— O que se chama pessoaes, deu a es-
quina do prédio, muitos feridos, 'e um morto
em postas, se o lempo o peimitlir.
— V. ex,* inlaclo, felizmente.
— Inlaclo? Ora essa ! Tenho uma ferida
grande sobre o sacro, uma echymose pro-
funda na cabeça, eparlida em cinco postas,
esía perna.
— E' então rabo, cabeça e postas. Mas
V. ex.*, se me não engano, equilibra-se em
pé famosamenle.
— Não vê que estas fracturas por alten-
tado politico só no dia seguinte é que ap-
parecem.
— Tão perigoso d'estado, ao menos res-
ta ao sr. conde a satisfação do martyrioci-
vico nobremente satisfeito, e a certeza de
que o governo não deixará sem recompensa
os seus serviços.
— Ah meu amigol Já ficava contente se me
dobrassem as rendas do potril. Só o que eu
34- OS GATOS
gastei em fogo preso 1 Convenho também
que um marquezado me assenta como o le-
treiro nas pilulas Dehaut. Mas de Ceslo da
Gávea, é caricato, e quanto a marquez da
Bomba, obseda-me o escrúpulo de todos os
dias ter que limpar ao Diário de Notwias, o
meu titulo...
FIALHO D'ALMEIDA
os GATOS
PUBLICAÇÃO
D 'inquérito á vida PORTUGUEZA
N.^õl — 7 de janeiro de 1893
SUMMARIO
Primeira representação da Estrada de
Damasco e parentesco d'ella com o On ne
badine pas avec Vamonr, de iMusset. — A
Egéria da peça e seus louvores — Reclames
preparatórios D'um «succESso*, ou como in-
tendem A arte os nossos collegas da imprensa.
— Inquérito dos amigos de Braga quanto
AOS motivos anti-gentlemanicos da rateada
— Sobre a influencia das redingotes no tem-
peramento litterario. — Alexandre Hercu-
lano E os fatos novos — De como a rateada
DA Estrada foi injusta. — Caracteres com-
pósitos d'uma peça : acção, convergência das
scenas ao desfecho, e requisitos artísticos
do dialago. — Applicada a doutrina ao Ss-
II os GATOS
gredo da Confissão e á Estrada de Damas-
co, imfere- se que não prestam para nada
Moveis secretos da critica optimista, e lista
das pôas que prohibem os reporters de thea-
tro de ser sinceros. llga aduaneira de
CRETINOS, AO DEREDOR DAS PEÇAS PÍFIAS 1n-
TIMA-SE A GENTE HONESTA E CULTA A QUE REA-
JA — Estado abjecto da litteratura con-
temporânea, E PERIGOS PÚBLICOS DE DEIXaR
SUBIR OS «ESPERANÇOSOS ESCRIPTORES)). TrA-
DICÇÕES E DEVERES DO NOSSO PRIMEIRO THEATRO
litterário. — O Frei Luiz de Sousa e a pa-
TEADA Á Sobrinha do Marquez. — Paralello
entre a PLATÉA de hoje E a PLATÉA DE HA
CINCOENTA ANNOS. CrETINISAÇÃO DOS ACTO-
RES PELOS DRAMATURGOS. QuEM NÃO SABE ES-
CREVER, APARA CALOS 1 — Missão depura-
DORA do GALLINHEIRO, QUALIDADE INTELLECTUAL
DOS FREQUENTADORES, E SUA CATHEGORICA IN-
TERVENÇÃO NAS GLORIAS DO THEATRO PORTU-
GUEz. — Tasso no Cego, e Emília das Neves
NO Gladiador de Ravena. — O grito, tirem
dalii o nome de Garret ! — Conclusão de
QUE É necessário PATEAR AS OBRAS MÁS PARA
escarmento dos asnos E RESSURREIÇÃO DO
gosto NACIONAL.
15 í/e dezembro.
Represenlou-se em D. Maria uma pecita
do sr. homem de leltras Alberto Braga, a
Estrada de Damasco, ullima d'uma triologia
de necedades a que a empreza tem recorri-
do para contento dos noticiaristas dos jor-
naes, de que ella depende, e principalmente
para armar á villania e estupidez do pu-
blico de Lisboa, chegada a um extremo que
se não pode abranger sem náuseas de des-
prezo. A Estrada de Damasco é um simula-
cro de namoro bastante estúpido, lardeado
de noticias do carnet mondain das Novida-
des^ sendo a catastrophe puxada pela fila
4 OS GATOS
d'um sapato. Gomo causa determinante ins-
piradora leve ama espécie de xarope James
que desagregou das cavernas psychicas do
auclor talento scenico avonde para a expe-
ctoração lilteraria de quatro actos — esse
xarope, lê-se n'um artigo do Popular, sendo
a leitura que o parisiense Pina lhe fez do
On ne badine pcis avec Vamour, de Musset.
Braga tão aparvalhado ticou com a lei-
tura que começou a fazer a Estrada
aos domingos, quando não tinha mais nada
que fazer. Ao fim d'um certo numero d'ocios
semanaes, a obrinha prestes, tornou o dra-
maturgo a abrir a porta á sua Egeria, e
appareceu esta de clamyde, com uma tuba
na dextra, a apreciar por junto a maravi-
lha que inspirara. Como houvesse doces
sobre a meza, a maganona tantos d^elles
filhou do papeluço, que ás duas por três,
sobre já não serem horas d'estar lúcida,
principiou a não poder estar também inde-
pendente. Por consequência traceja, na fe-
bre digestiva dos doces, para o Popular,
uma ladainha opipara á comedia, c dotada
de novas e preciosas qualidades, do mais
puro modernismo, e filiando-se no mesmo
os GATOS 5
género dramático a que pertence a Soiiris e
o Monde oú l'on sennuiAa Pailleron, as Pat-
(es de mouche de Sardou, a Francillon de
Dumas filho, o Pnrisien de Gondinet...» e
accrescentariaeu a grandessissima... se para
hombrear co'a gentilhomeria de tão illustre
salsa, não propositasse hoje escrever com
rendas nos manguitos.
Esta cantanta repeliu-se pelos jornaes
dias antes da Estrada em scena, em series
d'outras elogiosas parvoiçadas, onde esga-
niram quasi todos os cães vadios que desem-
penham pelos diários o papel de críticos de
ihealro. «Ha muito que uma platéa não ou-
ve prosa dramática conduzida com tamanha
naturalidade, com tanta verve, com tanto
espirito, e tão superior e litteraria compre-
hensão do que é o dialogo moderno dentro
d'uma sociedade moderna» dizia um. «A
peça do nosso collega, além de ser um ad-
mirável trabalho d'observação da parte da
sociedade porluguezamais difficil d'estudar,
contem ao mesmo tempo elementos litte-
rarios de tal valia que deve ficar no theatro
clássico, para exemplo...» dizia outro. E
por qui fora a enfieira de chalrices com que
6 OS GATOS
se protegem os nullos quando ha uma de
doze a ganhar co'a celebreira d'am pagante.
Subiu a Estrada á scena, e o gallinheiro en-
ihusiasmado pelos reclames que lhe prognos-
ticavam successos nunca vislos, ao escutar
esses pobres episódios descoloridos, vascon-
sos, com falia d'ar e a espinha sem concei-
ra, Ião pulhamenle se viu ludibriado, que
n'um generosissimo relâmpago d'equidade
paleou a peça, chufou a claque, e mesmo
entrecruzou lambada com alguns borlistas e
bufos daempreza, mais particularmente rai-
dosos de tornar publico o seu enlhusiasmo.
Este signal d'independencia do gallinheiro,
filho da liberdade d'opinião que os costumes
eleis garantem, e aauctoridade tem obriga-
ção de respeitar nos finaes d'acto, todas as
vezes que não interrompa a scena ou amea-
ce a bôa ordem da soirée, foi recebido pela
platéa entre insolências, e mesmo valeu ao
auctor, por banda dos analphabetos de mo-
nóculo que enchameavam a sala, alguns ap-
plausos que eu não desejaria ao mais im-
becil dos meus demolidores. A' testa do
Gomplot estavam os «críticos» que haviam
reclamado de véspera a Estrada de Damas-
os GATOS t
CO, estavam os amigos do aactor, coagidos
por educação a transformar o enterro em
baptisado, e ainda algans pobres ingénuos
patetas que o fauteuil de borla ou a opinião
do maior numero facilmente levam no enxur-
ro dos que pateam só... de luva branca. Esta
triste sociedade á qual o gallinheiro não
deslolera o direito d'applauso, sem discus-
são das impulsivas indecorosas ou piedosas
que possam motival-o, tão persuadida está
porém da sua culminância artistica, que já
nem reconhece direitos reciprocos aos con-
trários: em termos que em 0. Maria quem
dá pateada, é suspeito, e só quem applaudir
merece as honras d'apreciador imparcial e
justiceiro.
No dia seguinte á primeira representação
da Entrada de Damasco os destemperes dos
jornaes contra os pateanles, e os elogios á
peça, desembestaram por guiza a não selha
deixar de suppôr recebimento de gorgeta.
Os mais benignos declaram nos seus comte-
rendus da Estrada de Damasco que ha mui-
to se prepositara do gallinheiro um enxova-
lho ao sr. Braga, que a peça é deliciosa ou
nunciadora pelo menos d'um escriptor thea-
8 OS GATOS
Irai de grande marca, e que são desprezi*
veis anonymos e indignos sacripantas todos
os que para se pronunciar sobre uni caso
lilterario «occultam sua cobardia na sombra
onde se lhes não pode pedir responsabili-
dades.» Outros ainda a quem o talento dra-
mático de Braga não logra encegueirar tan-
to como as redingotes e peitilhos com que
os alfaiates e camiseiros fazem de simples
cabides, Paillerons, subscrevendo de cruz
quanlo á premeditação de desfeita ao dra-
maturgo, explicam-n'a todavia pelo natural
ciúme que a gentes pobres e cabaceas ins-
pira sempre um retezo peralta como Braga,
de quem o parisiense Pina diz «que sabe
vestir lindamente uma casaca, dar o laço da
gravala, calçar sapatos de vernis, e parado-
xar enlre dois goles de chá com figuronas
da melhor sociedade \)) Finalmente os ter-
1 E' curiosa a razão que fez dar com alguns noticia-
ristas cm fabricantes de peças de theatro. Inda ha pou-
co, dando conta da instantaneidade de factura d'uma
comedia aliás escripta com talento, diziam os jornaes,
«que o escriptor a fizera em dois mezes, para tapar a
bocca a alguns credores.» Frequentes vezes se lê nas
secções theatraes do syndicato. "O ilíustre F. começou
uma coisa de grande fôlego^ que destina ao theatro X.
para ser jeita pelo eminente ou pela eminente H., e que
os GATOS
riveis e auctoritarios ainda, como o Correio
da Maíihã e o Dia, não conlenles de pôr o
gallinheiro em cheque pelas más prendas e
anonymalo irresponsável que lhe outorgam,
inda por cima reclamam contra os protestos
estará impreterivelmente prompta no dia iul^ do mez se-
guinte.» Dir-me-hão se não vae n'esta noticia iinplicito
o descrédito da obra annunciada ! Está-se logo a ver
que o illustre F. é um rufiào sem escrúpulos nem brio,
porque em vez de, escrevendo, pairar no sonho cérulo
do bello, que abstrae do espaço e do tempo, abstrae do
individuo «um certO" para somente crear seres que são
rezumos de grupos, o que procura é fabricar sensabo-
rias para escamoteio d'um certo publico e exliibiçâo
dos recursos d'um certo artista, que ás vezes é o que
elle possue em scena de mais ordinário e de peor. Com
este mesquinho ideal de fazer massa com a paslnacei-
ra publica, produzindo peças á hora, para eiicadremeiít
de tal actriz, e aproveitamento d'um certo scenario ou
guarda-roupa da empreza., como é que pode alguém
dar no theatro obra durável ? Alexandre Dumas filho,
Augier, Sardou, e outros experimentados obreiros do
theatro moderno, com uma cultura litteraria completis-
sima, uma experiência de proscénio inegualavel, c re-
cursos d'ob8ervação e espirito sem rival na litteratura
dialogada contemporânea, a (juando prenhes de peça,
depois de cheios os seus cadernos de planos, monogra-
phias de typos, pontos culminantes de dialogo e para-
doxo, no dia cm que se resolvem a escrever a obra pla-
neada, apontada, carpintejada scena a scena, rctra-
hem-se meio anno nos seus gabinetes de trabalho, nas
suas casas de campo, sequestrados do convivio, e todos
absorvidos na communhJio suprema do seu talento á
meza da Arte. Verdade seja que aqucllcs mestres, apar
dos nossos dramamiferos contemporâneos sào umas po-
10 os GATOS
d'elle, correctivo (liein?), dizendo que a pa-
leada estugou do ódio de mucosas gástricas
famintas, maceradas por uma aguardente
emética de ginginha.
Ora eu não figurei na paleada do gal-
sitivas miUidades, e pov isso bastou ao sr. Braga não
sahir seis domingos para ter realisado uma obra que o
nosso Pina pôz entre a Soui-is c o Monde ou Von «'en-
TiMíV, de Pailleron.
Sobre a apreciação da Estrada pelas folhas, haveria
também coizas a explorar, divertidissimas. O Dia diz
que pelas alturas do segundo acto rebentara no galli-
nheiro uma tempestade fie paleada, e por seu lado es-
crevem as Novidades que foram só quatro os patean-
tes Quatro pateantes que fazem uma tempestade, ca-
ramba ! não são homens, sào elementos. <■ Porem esta
reacção foi reprimida logo pela platéa, que fez ao nos-
so amigo uma ovação delirante.»
Delirante n'este caso quer dizer, de delirium tremena.
Procedendo depois á votação dos actos em mérito
absoluto, um dos panegyristas da Estrada diz que o
primeiro francamente não presta, opina outro que o que
não presta é o segundo, e assim gagueja outro a respei-
to do terceiro, e emfim outro, do ultimo. Como os par-
voeirões são solidários, averigua-se pela cerzidura dos
quatro panegyricos que a Estrada de Damas^.o nào tem
uma unii*a palavra supportavel ; e ahi está como d'um
coro de jumentos sahe o verdadeiro juiz sobre a peça,
e a justificação formal da pateada !
Mais. Tratando-se d'um producto da intelligencia,
a pretendida inveja dos pateantes pelo auctor da Et-
trada de Damasco deveria mirar-lhe o talento de pre-
ferencia aos hábitos sportmanicos e elegância inflam-
matoria de vestir. Por consequência se os panegyi-is-
tas do seu Braga frizam na pateada o ciúme pelo sport-
os GATOS U
Unheiro, a noite da caballa, nem desfeitea-
ria Ião pouco a peça do sr. Braga, pois ten-
do-se dado em D. Maria trez, do mesmo
género, e não sendo aquella a mais tola,
forçoso seria conservar-me na Estrada so-
cegado, e só lastimando que a jiisliça não
man e deixam na sombra a emulação pelo escriptor, é
que n'este ultimo realmente não haverá de que ter ciú-
mes. D'onde se infere que o defendem,acquiescendo sem
restricçào na sua mediocridade — fideputas sào estes
defensores ! — e levando os azedumes da controvérsia
para um campo de modas d'onde o sr. Braga sahiria,
se nós quizessemos, atolado em ridículo até á nuca.
Infelizmente para o leitor, o sr. Braga nào tem culpa
da fascinação que o seu alfaiate exerce sobre a estu-
pidez dos seils adoradores, e até julgamos que o seu
bom senso de pobre rapaz na sessentena terá tremido
pelas responsabilidades inherentes ao papel de Brum-
inel que lhe querem fazer representar. Tanto a missão
toilettica do sr. Braga é subalterna e governada, que
escova elle próprio a sua roupa, usando para as suas
nódoas, benzina, e escolhendo fazendas com duas fren-
tes, para as mandar voltar de trinta em trinta mezes.
Eu mesmo lhe conheço umas calças de baile remen-
dadas com um artigo velho do sr. conde de Ficalho.
Quanto a «vestir bem uma casaca", é coisa que já tem
feito a fortuna de creados de meza. De dramaturgos,
nunca. Ibsen é corcunda, Sliakspeare e eu escrevemos
sempre em mangas de camisa. A elegância é uma vir-
tude litteraria tão subalterna, que uma vez manda-
ram de Londres, a Herculano, um fato rico ; vae elle
oíFcreceu-o ao gallego que o servia. Ora até ao pre-
sente nào consta que fosse o gallego o auetor da His-
toria de Furtugal.
12 OS GATOS
garrotasse antes do sr. Braga, os outros mal-
feitores.
Eniretanio, apezar dos pateantes do
gallinheiro votarem pelo desprezo as mise-
ráveis vaias dos maltrapilhos que os insul-
tam, eu, como escriptor e como publico é
que me não resolvo a assistir impassível
aos desconcertos d'este syndicato de direi-
tos d'auctor e outras mixordias indecenles,
e dissecarei o caso cerce, agora que cahiu a
Estrada,^ provado foi que o gallinheiro linha
razão. Como o assumpto é largo e a linha só
se traia por processos de medicina radical,
devidirei este discurso em Ires paragraphos:
o primeiro sobre os criticos nas suas rela-
ções com os actores e os dramaturgos : o
segundo sobre os espectadores e seus di-
reitos d'applauso ou de protesto, e o tercei-
ro emfim sobre a impreterível necessidade
de, para bem do paiz, a gente proba desa-
lojar de Ioda a parte os troca-tintas.
I í — Que vem a ser uma peça de thea-
tro?
os GATOS 13
E' qualquer eíTabulação ou crise psycho-
logica, desenvolvida ou commentada pelo
auclor em forma dialogai. Simples anedocla
ou problema moral de certo fôlego, a peça
exprime-se por um certo numero de scenas,
argumentadas em crescendo té um desfe-
cho que deve ser o motivo real de todo o
arcabouço. Estas scenas deverão desenvol-
ver-se e brotar umas das outros, reforçan-
do-se a cada instante com revelações soli-
darias dos personagens, e o dialogo que as
formula claro que só é bom quando cingir a
acção de perto, isto é, quando puzer a maior
somma de brilho na maior sòmma de curteza,
esta contendo a maior somma de documentos
jusiificalivos do valor moral ou simplesmente
imaginativo do desfecho. D'aqui se infere —
1." que toda a peça de iheatro necessita ab-
solutamente d'uma acção — 2.*, que todas
as scenas não convergentes ao desfecho, so-
bre contraproducentes na obra, devem ex-
plicar-se por debilidade mental do drama-
turgo— 3.°, que a formuzura ou viveza do
dialogo só é real quando a expressão gra-
vada da phrase provenha não da musica
simples das palavras, mas da eneri[ia ejus-
14 OS GATOS
teza que a própria força do assumpto em-
presta á linguagem do escriptor. Tomem-se
agora para texto de referencia d'estas con-
dições primordiaes de toda a obra scenica,
as borracheiras que D. Maria representou ul-
timamenle: vejam se são capazes de me dizer
qual seja o enredo do Segredo de Confissão
e da Estrada de Damasco, de me explicar a
desinvolução geométrica das suas scenas,
de me destrinçar a linha moral ou simples-
mente anedoclica de cada typo, ou de me
rezumir sequer em quatro palavras o intui-
to e o fim revelador de qualquer d'aquellas
miseráveis escrófulas litlerarias. Relativo a
enredo, assumpto, acção, tanto é coisa que
n'aquellas peças não existe, que a audição
pode começar indislinctamente por qualquer
dos actos, sem mor abalo na comprehensi-
bilidade final do espectador. A respeito de
sequencia e loojica de scenas, tanto quasi
todas são supérfluas, que o Segredo podia
ficar só com o quarto acto, fazendo-se pasta
dos mais p'ra malar moscas, e a Estrada
só poderia tornar-se aproveitável adiccio-
nando-se sem mais preâmbulos o casa-
mento da ingénua ao episodio do sa-
os GATOS 15
pato, e cahindo o panno ahi pelo meio do
segundo acto — o que linha a vantagem de
se sahir mais cedo, e haver tempo para di-
zer mal do dramaturgo na própria noite
d*elle nos ter moído a paciência. Ora fallin-
do as peças d'enredo e não se prestando a
situações a desinvolução concêntrica das
scenas, como é que uns idiotas d'uns criti-
licos dizem maravilhas do dialogo, preten-
dendo até impól-o na Estrada de Damasco
como um elemento certo de successo? A
scinlillancia lilteraria (dado o caso de a haver
na obra do sr. Braga, o que eu contesto) só
lem valor a quando refrangida do assum-
pto— a phrase pela phrase não tem mais
cabimento em parte alguma — e só se esses
patetas chamam belleza ao acaso d'aquelles
diálogos conterem todas as partes gramma-
licaes da oração, e em tal caso não valeria
a pena disculil-os, e acabava-se a turra
affastando-os pela gola do casaco.
São estas coizas d'uma intuição tão crys-
tallina, ha uma lógica tão rudimentar no
postulado d'eslhelica que as fomenta, que
mesmo lendo-se o cérebro d'um porco, a
ninguém é permittido incertezas sobre o va-
16 OS GATOS
lor artístico e dramático das peças altima-
mente dadas em D.Maria: semsaborias qae
não provam nada, não interessam nada, não
dizem nada, nem prestam para nadai Quem
as applaude pois, de duas, uma; ou é um
imbecil sem educação litteraria nem gosto
apresentável, ou ligado ao successo d'ellas
por uma razão de nalureza vergonhosa, é
um velhaco a quem cumpre esfolar sem
complacências. Se o leitor quizer ter o tra-
balho de se informar sobre os pollucionaes
que por essas folhas se occupam d'arlistas,
de representações dramáticas, e d'empre-
zas de theatros, e mais particularmente dos
que por se arrogar justiça do seu lado co-
brem d'insultos os espectadores não deci-
didos a claquear com elles torpezas como o
Segredo de Confissão e a Estrada de Damas -
CO, reconhecerá pouco mais ou menos o se-
guinte: 1.* — os patusquinhos atesta das
secções theatraes dos periódicos, e occupa-
dos da critica dramática, accumulam geral-
mente estas funcções com as de Iraducto-
res e auctores de peças cujo successo ou
resvalou pelo buraco do ponto, ou se en-
treteve no cartaz a poder d'arlificios de re-
os GATOS 17
clame. 2." — nenhum d'elles tem nome lit-
terario de valimento, e quasi todos são igno-
ranlissimos farçolas sabidos do noiiciario
dos fogos e parles de policia, género mal
pago, para a secção de bastidores, d*onde se
protegem ou alemorisam as emprezas, se
conquista o coração das actrizes e 4 sub-
serviência dos actores, e emfim se intruja o
publico inpingindo por obras primas as mais
insulsas e ignóbeis babozeiras. 3." — os
que por acaso não traduzem ou assignam
peças, teem da mesma forma notas suspei-
tas no cadastro, em virtude de serem os an-
tigos amantes ou pretendentes das actrizes,
cunhados, companheiros de caza ou deve-
dores insolvaveis dos dramaturgos, commen-
saes e convivas dos emprezarios, ou futuros
candidatos dramáticos preparando terreno
para a admissão d'alguma pecita a solo ou
em coilaboração com auctor feito. Mais ex-
plicado: esses senhores que nos mais lidos
jornaes de Lisboa ousaram duvidar da pro-
bidade e bôa fé dos pateantes do Segredo
de Confismo e da Estrada de Damasco, dis-
parando-llifs injurias que o maisrefece gal-
lego teria pejo d'assacar contra o freguez
2
18 OS GATOS
que lhe cerceasse a espórtula d'um frete,
alem d'intelleclualmente inaptos para em
qualquer assumpto (l'arte emittir juizo claro,
Ião pouco pelos seus precedentes péssimos e
esfacelo moral inplicilo n'algum dos para-
graphos cima ditos, lêem direito de voto sobre
questões em que a pardo valor mental prin-
cipalmente se requer lizura de caracter, e
abslração de toda e qualquer ideia de su-
borno.
E' positivissimo que grande numero d'el-
les parlicipa do syndicalo de direitos d'au-
lor que põe ultimatuns ás emprezas por via
dos periódicos, manusea os artistas a sabor
dos seus benesses, e descaradamente vae
roubando o publico por todos os artifícios
da chantage mais indigna, desde empurral-o
das peças boas para os seus arreglos de
sandices, té amordaçar pelo decredito a li-
vre voz dos que ás primeiras pegadas
da matrulla, desatam a gritar aqui d'el-
rei!
Estes cavalheiros pois para fazer opinião
manquejam de tudo quanto é capaz de
tornar uma opinião limpa e vivavel : co-
mo escriptores são umas bestas, como
os GATOS 19
indivíduos falta-lhes a seriedade que dá
o desinteresse e o credito anterior.
}i então o publico começa a perceber entre
que manejos de cáfila anda explorado, e por
que razão sahindo tanta vez das primeiras
representações furioso conlra a estupidez dos
auclores dramáticos «originaes», com pasmo
depara ao dia seguinte artigos de critica su-
blimando a peça que se lhe afigurara a
mais não chocha e imbecil. Já comprehen-
de também porque se chama ao gallinheiro
assalariado, anonymo, maltrapilho, bêbedo
e faminto; porque se explicam por ciúmes
de toilette desastres que se não poderiam
explicar por ciúmes de talento, e porque se
forjam emfim aureolas d'odio litterario de
roda de craneos que nenhum de nós dese-
jaria ter p'ra escarrador. E' necessário que
se livre pois da lutella d'esses chamorros
chalros cuja camisa limpa não desculpa a
alguns a estupidez mal reputada; é ne-
cessário que reaja com o seu próprio crité-
rio, o seu próprio gosto, a sua própria in-
20 OS GATOS
dependência, contra essa liga de sacripan-
las que fazem dinheiro com a ignorância e
a timidez das plateas, e vão reduzindo a
litteratura, expressão suprema da perfeição
moral e psychica d'um povo, a um vergo-
nhoso stadio de creiinismo e abjeçãode que
até se ri o brazileiro, desillndido do antigo
amor que lhe mereciam os nossos esforços
d'arlistas e buriladores da lingua mãe. A
tolice, mesmo de casaca, é tão despresivel
como a bebedeira. Não seja cúmplice da
beslificação nacional pela tolerância com que
vae deixando subir essa onda de mediocres;
em toda a parte o advento das bestas é fu-
nesto ; uma vez recebidos, a sua descarada
audácia ala-se a tudo: de dramamiferos to-
lerados passarão a directores de museus e
bibliothecas, a legisladores de instrucção,
reitores d'escolas, a directores geraes e en-
carregados de projectos — é a historia dos
grandes burocratas que depois da geração
de Garret inundaram os logares proeminen-
tes, e a quem só se deve a rebaixa actual
da administração publica em todos os ramos
— e se nós estamos quotidianamente a
amaldiçoar essa funesta camada que Irium-
os GATOS 21
phou por compadrio, como é que somos in-
coherentes ao ponlo de não ver que a nos-
sa tolerância lhe está preparando uma suc-
cessora inda mais pullia?
De mais, D. Maria lem tradições alga
ele\adas. e só ha pouco tempo cahiu na
albergaria d'engeilados e gagos que ora
está. Passou por ali uma aristocracia d'arte
elegantissima, escriplores e comediantes
que depois de mortos, por desgraça nos-
sa, parece que legaram o iheatro aos
seus porteiros. Alli viu luz o Frei Luiz
de Sousa, que o lúcido Quinet poe na tes-
teira da tragedia moderna, como incita-
mento aos génios debutantes ; ali subiram
á scena muitas comedias e dramas de escri-
ptores nacionaes, desorientados, certo, mas
com chispa; alli temos visto o melhor da
dramaturgia europea nova, e alguma anti-
ga; n'uma palavra, n'aquelle palco onde
hoje se toleram ratos finórios como o Segre-
do de Confissão e a Estrada de Damasco,
faz cincoenla annos que foi pateada a 5o-
brinhado Marquez, isto quando já Garret fora
sagrado o piimeiro escriptor do seu paiz.
Retrogradámos, ou a comedia do viscondes
22 OS GATOS
é de facto peor que a doLorjó ?Veja o pu-
blico a que vilipêndios me leva a sua cri-
minosissifna tolerância ! Compare n'um re-
lance essas duas plaléas separadas por um
abysmo de cincoenta annos, a que pateou a
Sobrinha, e a que fez desesete audições á
Confissão: a primeira feita de gente inculta
e ainda rude, tendo porem dalitteraturaum
ideal resplandecente, n'uma tpocha em que
as escolas inda não estavam produzindo
como hoje, tanta copia de monos sem espirito
e de cabeças sem força nem deliberação; a
segunda feita dos soit dizanh representan-
tes da alta cultura litteraria e scieniificado
paiz, uma plaléa de médicos, de engenhei-
ros, legistas, eruditos e homens d'arte, com
grandes sommas deleitura, pretensões, ares
de illustrada — e equiparando depois as res-
ponsabilidades artísticas d'uma e d'outra,
diga-me se lhe não dá vontade d'enxovalhar
em plena face essa engoiada e apathica so-
ciedade que se deixa empolgar na plalea
por meia dúzia de claquistas pagos, e outra
meia de críticos intrusos e suspeitos ? Per-
guntaria eu a esses cultivados que fazem o
grande fundo d'espectadores das premiares
os GATOS 23
de D. Maria, o qae é qne os interessa a elles
nolheatro, e p'ra que !hes tem servido tan-
tos annos perdidos sobre livros, se os seus
nervos de lama hão-de continuar a receber
com a mesma impassibilidade o Ami Fritz
e a Madrugada, as Pattes, de Mouche e di Es-
trada de Damasco, e se perante aíTrontas ao
gosto como certas permières originaes que
o iheatro dá, elles hão-de continuar mudos
e broncos a não reagir com a altivez dos
seus brios enxovaIhados,atirando as cadeiras
para o palco, obrigando os críticos a seguir
o caminho das cadeiras, e emfim correndo
com a tal dramaturgia original p'rô meio da
rua ?
Aconselharíamos também aos actores de
robustez, como Brazão, se não prestassem a
representar d'aquellas caçoadas. Dá caspa
cerebral decorar palavras d'imbecis. Por
mais talento que se tenha, sae-se de fazer
peças d'aquellas, n'um chinello. A estupi-
dez tem limites de tolerância; quem não
sabe escrever, apara callos, e não é por
sempre usar casaca que um dramamifero
sem talento c menos brulo.
24 OS GATOS
Provado pois que a platéa de D.Maria é
incoffipativel com a liberdade de critica e
voto sobre as peças, visto uns serem do
syndicalo dos direitos d'auctor, e acharem
outros anli-chic a paleada aos peceiros alei-
jados que nos chanlam, a quem fica reser-
vado o papel de jury n'essa audiência so-
lemne que é a primeira audição d'umaobra
scenica? Resposta simples: o papel de ju-
ry fica reservado ao gallinheiro, íjue de
resto em todos os iheatros litterarios do
mundo tem completa auctoridade para fa-
zer e desfazer reputações. Porque ahi não
subsistem as razões cohibitivas que vedam
cá baixo á platea a franqueza de se pro-
nunciar sinceramente sobre o valor d'uma
audição. Reparem nos frequentadores da
platéa: é a claque, são os «criticos», são
janotas e namorist;^s sem bestunto, e emfim
pessoas indecisas, sr^m predilecções dramá-
ticas averiguadas, indo ao theatro para se
mostrarem, ou fazer horas, que a claque fa-
cilmente empolga e qualquer opinião late-
os GATOS 25
ral imbecil deixa conlenle. Um regicídio,
deixar a litleralura á mercê d'estamixordiaI
Vejam-se agora os familiares do gallinheiro:
é a parte mais illustrada e culta das esco-
las, estudantes que miram largo, por cima
das lições, os mundos d'arte, vibrando dos
puros exlasis do génio, possuindo-se afun-
do das creações poéticas dos artistas ; são
os espirilos simples e fortes dos que sem
dinheiro nem camaraderiassociaescompro-
mettedoras, pedem ao iheatro as emoções
complexas da sua epocha, coisas que os fa-
çam sonhar, pensar, soíTrer, talentos d'es-
criptores e d'actores que faliam altg uma
lingua fremente que lhes visione um pouco
isso que «anda no ar do tempo», e elles
não sabem exprimir senão por anceios
?phonos,e escapadas hamlelicas d'espiritos
ainda em construcção. A par da sua fres-
cura d'alma e receptividade vivíssima para
o bello, esta luminosa família acha-se por
outro lado em excepcionaes condições de
pureza de critério, porque ella não tem re-
lações com escriptores, nem com actores,
nem janta em casa d'emprezarios, nem es-
creve para os jornaes, nem veste smokings
26 OS GATOS
comprados com o trabalho das actrizes; vae
para ali com o seu logarinho pago, o ouvi-
do altento e o caracter rebelde ás conspira-
tas, gozar a sua noite, sem se importar com o
que dirá o Jayme Victor, nem querer saber se
a pragmática permilte sobre a peça opiniões
alto e sonantes. O seu verediclum tem pois
privilégios entre os de todos os mais espe-
ctadores, porque espadana d'uma sinceri-
dade que se escora na justiça, e arranca
d'uma eloquência feita exclusivamente
d'intellectualidade e de paixão. Quem pode
deixar de ter por ella respeito ou sympathia,
se é o paladinismo eslhetico que falia em.
nome da emoção que classifica de trapos as
casacas, e só ao talento puro rende preito?
Das apreciações dramáticas dos microce-
phalos que fazem proteccionismo ás merca
dorias uns dos outros, o gallinheiro ri-se -
passa adeante, porque gente falhada não se
discute, e seria trabalho perdido incutie
ideaes d'arte em creaturas só preoccupadar
de dinheiro. Ora desde que os espectadores
da imperial afinquem na idéa de que o bas
ter dos seus pés é m.uitos milhões de veze-
superior, como juizo critico, a todas as batis-
os GATOS íi7
das de mãos da gataria pingada lá de bai-
xo, e de que o direito d'aprpciação perante a
obra d'arte é tanto mais livre quanto mais
culto o juizo e mais integro o caracter de
quem na fôr julgando; desde que os espe-
ctadores da imperial convenham n'isto, le-
rão elles creado por si sós, para as peças
de iheatro, uma temivel instancia lilteraria,
única capaz de sustar o diluvio de cretinice
que está cobrindo d'opprobrio os nossos
palcos.
Não é de hoje que a supremacia do gal-
linheiro ganhou foros d'avançada. Pergun-
tem aos velhos comediantes d'onde sahiu o
sacre para as grandes figuras litterarias ou
dramáticas da scena portugueza de ha
trinta annos. Evoquem os manes de Ma-
nuela Rey, d'Emilia das Neves, de Santos,
d'Epiphanio, de Roza pae,^ d*Antonio Pe-
dro, d'AImeida Garrett e de Mendes Leal,
e elles confessarão que ao gallinheiro de-
vem o melhor e mais transcendente nimbo
da sua gloria. Do gallinheiro foi que na ce-
lebre noite do Cego, em que o impeccavel
Tasso fazia um protagonista desgraçado,
uma vóz de mulher gritou entre soluços —
28 OS GATOS
abençoado o pão que ganha aquelle homem !
— e d'alli lambem que na primeira do
Gladiador de Ravenaj quando Emilia des-^
fechava a tragedia com um d'esses grilos
que lhe vinham do peito em borbotões de
génio allucinanle, chamado otraductor, La-
tino Coelho, os estudantes de medicina lhe
mandaram semi-loucos que a beijasse.
D'aquelle obscuro cacifro pois cheio de me-
morias, vibrante ainda dos refulgentes de-
lirios de nobilissimas gerações d'espectado-
res, Dodem continuar a sair movimentos
collectivos de justiça, porque o espirito é o
mesmo e a auctoridade artislica subsiste-
Ihe, muito embora a decadência vergonhosa
do theatro haja invertido o signa! ás ova-
ções. A vóz que ha vinte dias gritava na
primeira áâ Estrada de Damasco — risquem
d'aquelle panno o nome de Garrett! — é a
mesma que abençoou talvez na noite do
Cego, o Tasso, e que mandava Latino pros-
ternar-se ante o perfil olympico d'Emilia,
no grande e terrífico final do Gladiador. Se
depois d'isto a pelinlragem da «critica» ar-
ma ao descaro de reprehender labrega-
mente o gallinheiro, só porque elle na es-
os GATOS 29
cala das recompensas não equipara as re-
dingoles do Braga á massa encephalica do
Shakspeare, o gallinheiro sem responder
por um só gesto ás vaias d'essa tropa, cons-
tata todavia que o fado não é novo ; é co-
nhecida a algazarra que os patos antes e
depois das trovoadas, usam fazer, nas estru-
raeiras.
^
VIDA IRÓNICA
W
mtm
POR
Por todo o corrente niez de janeiro sairá a publi-
co, dos prelos da nossa casa, um volume d'oitavo, quatro-
centas e tantas paginas, edição de luxo, onde Fialho
d'Almeida traça o quadro, completo quasi, da vida de Lis
boa, durante o espaço d'alguns mezes, sem omissão de ne-
nhum promenor, caricatura, aspecto ou lance critico. A
Vida Irónica é o diário razonado d'um humorista raro dis-
posto a transigir com as amarguras ou petulâncias da sua
verve, e engloba sob uma forma fácil e impetuosa, tudo
quanto um pintor tem de mais fino, fluido e brutal nas
suas tintas. Physionomias litterarias, quadros de socieda-
de, aguarellas de rua e de café, theatro, dramaturgos, au-
etores, tudo ahi passa, e ninguém é poupado n'esse rodo-
pio de galhofti, de gentilezas, e de chicotadas.
O livro é além d'isso uma obra d'estylo largo e fácil
arcaboiço ; lê-se em três noites, sem mau humor, sendo
natural até que no fim da quarta todos achem razão ao
que por lá se diz de mal, de toda a gente.
Os Editokes.
Os pedidos podem desde já ser dirigidos a
MONTEIRO k C.\ Editores
Rixa, cios lietrozeií^os, 7'S, 1.°
LISBOA
os MYSTERIOS
FRANC-MACONARIA
LEO TAXIL
Versão do padre Francisco Correia de Portocarrero
Com ama dedicatória do auclor a
S. M. A RAINHA D. AMÉLIA
Esta obra, illustrada de mais de lOO gi*a>'vi-
rai*, compradas expressamente no estrangeiro, que
mereceu ao auctor um breve de S. S. O PAPA LEÃO
XIII, e foi louvada pelos principaes arcebispos e bis-
pos da Europa, constará de dous volumes sendo a dis-
tribuição feita em fascículos de 3í2 pag^iiias
de texto, com quatro ou mais gravuras.
HISTORIA
RMOLUcio nmíu
POR
Traduqãu de Maximiano Lemos Júnior
lUustrada com perto de OOO g-i^avuras —
as mesmas da edição franceza — e dividida era quatro
volumes distribuídos em fasciculos de 16 pag., em 4.»
Assignatura permanente para estas esplendidas pu-
blicações, em fasciculos semanaes ao preço de
100 Réis - Pagos no acto da entrega - RéíS 100
Ver os prospectos e fasciculos specimens na
AGENCIA IMYERSAL DE PLBLItAÇÕES
75, Bua dos Retrozeiros — LISBOA
FIALHO D'AyVIEIDA
os GATOS
publicação
d'jnquerito á vida PORTUGUEZA
N.' 52 — 24 de Fevereiro de 1893
SUMMARIO
Morte de Roza Araújo, sua historia pre-
GRESSA E origem COMMERGIAL DeSENHA-SE
o pastel cócó e reza- se da sua importância
histórica e effeitos psychologicos inter-
ferência do pastel no caracter lisboeta
Convívio litterario de Roza Araújo, e pre-
ço DAS RELAÇÕES SOBRELEVANTES Á PRIMITIVA
CONDIÇÃO SOCIAL RoZA AraUJO HOMEM PO-
LITICO, FIADOR E PRESTAMISTA CHRONICO DOS
CORRELIGIONÁRIOS AMIGOS DE COMER LiSBOA
VELHA E Lisboa nova — De como a Avenida
n os GATOS
SEJA UM CORREDOR CHEIO DE BURACOS — EXOR-
BITÂNCIAS DE CUSTO E CONTRASENSO ARCHITEC-
TONICO DESTA OBRA — Os PALÁCIOS, OS JAR-
DINS E OS CAZARÕES CoMO SE CRIA O ESTYLO
ARCHITECTONICO RoZA ArAUJO PHILANTRO-
PO, SUAS GENEROSIDADES PARTICULARES, E ACÇÃO
DA SUA BONDADE NA BENEFICÊNCIA PUBLICA
RozA Araújo grande homem popular — Gran-
deza, DECADÊNCIA, E MORTE DE CeZAR BiROT-
TEAU — A miséria CRESCENTE DE LiSBOA E IN-
POTENCIA DA CARIDADE PARA ESTA CHAGA SOCIAL
— Mendigas trágicas — As paralyticas, as
CEGAS, AS leprosas — LiSBOA DE NOITE Ca-
ridade meticulosa, e egoísmos terríveis que
ELLA ENCOBRE CoNCLUSiO.
iO de fevereiro.
Roza Araújo que uma apoplexia varreu
para assim dizer ás portas da miséria, teve
como homem particular e liouiem politico
uma historia sympathica, das mais tristes:
a d'um filho do povo percorrendo com uma
espécie de boa fé infantil, uma vereda as-
saltada de bandoleiros e rufiões. Seu pae
cursara toda a vida a pastellaria com suc-
cesso, angariando para esso filho único a
independência d'algumas centenas de con-
tos, juntados ao balcão, em chinellos de
trança e bonnésinho de seda, n'uaKi quoti-
diana assistência á venda das doçarias con-
4 OS GATOS
feccionadas na enireloja. O pastel que fi-
zera o segredo da sua forluna, acabara por
usurpar a alcunha de côcô ao bom do ve-
lho, e alastrado por Lisboa, terra de gulo-
sos, fizera-se uma das boas coisas da ter-
ra, ganhando direitos de preferencia em to-
das as bandejas de sobremeza e copos d'a-
gua. Já pelo aspecto ia direito á benevo-
lência dos freguezes, com o seu feitio d'al-
guidarinhode barro por vidrar, o typod'ul-
cera coberta de pomada, a pasta tenra, eo
o cheiro a canella, beato, infundindo uma
volúpia molle com regorgitações de saliva
sob a língua. Entre as curiosidades monu-
meniaes da capital á beira Tejo, começou o
pastel cócô a ter njenção admirativa no ma-
nual do viajanie, enfileirando entre os Je-
ronymos, a estatua equestre e a capella de
S. Roque, e impondo-se aos philosophos
como uma das mais salientes arestas do ain-
da mal interpretado génio lusitano. Tasqui-
nhado na escura e modesta loja da traves-
sa de S. Nicolau, com dois dedos de Car-
cavellos, á hora do lunch, não conseguia
elle maiormenle impor-se á cogitação pa-
ihetica dos pensadores, lanto o seu gosto
os GATOS 5
dulceroso adormecia o paladar n'um ar-
roubo carolla e sachristiaco. Mas pouco a
pouco essa dormente sensação começava a
desperlar na sensibilidade phenomenos gus-
tativos singulares; a impressão do pastel
comido produzia allucinações n'outros sen-
tidos, e entrando na torrente circulatória ia
a determinar estados d'espirilo, ou o que
é mais — estados de caracter. Quem se ap-
plicar um pouco ao estudo da interferência
das comidas na vagarosa formação do ser
moral, e souber da porção de pasteis com
que as creanças de Lisboa se ingurgitam,
não poderá negar, por mais que queira, fosse
o côcô, durante os últimos trinia ou qua-
renta annos, o principal regulador do ca-
racter lisboeta. Ao pastel como fundo ali-
mentar me persuado se deva atlribuir o ar
limido, languinhento, sem vontade, que
apanagia em Lisboa a adolescência mascu-
lina e feminina ; ao pastel a derreação dos
nossos rins, a tinta deslavada da pelle, a
emaciação muscular, a raridade de barba,
e a falta de pigmento e crespalura dos ca-
bellos. Quando com tal dieta o adolescente
ascende a homem, dado o caso da tuber-
4» OS GATOS
culose o não ter chapado antes de nul>il, o
ser resultante entra a desagregar de si uma
lazeira automática que o reproduz cm si-
mulacros d'acção dignos de dó : vomol-o
então suprir pelo namoro a expressão pas-
sional própria da edade, sahir chumbado
em francez, fugir ás responsabilidades do
estudo pela cabula, e contrahir emfim al-
guns vicios de que o mais inoíTensivo é
aprender a gastar, sem produzir.
Roza, Araújo filho foi talvez por esta die-
ta quotidiana do pastel, uma das primeiras
e das mais completas victimas de seu pae.
Inda sem barba, as suas predilecções fo-
ram-se desviando da cupidez da vida do
balcão, lãoseccamente pratica, que o velho
pasteleiro embirrava em lhe incutir para o
tornar n'um futuro milionário, direito a ou-
tras farofias abstractas que o haviam de
tornar n'um satélite d'astros políticos e lil-
terarios de meia linta, em cujo convivio a
sua medíocre cabeça sossobraria, pela bon-
dade irresoluta, n'uma perpetua victima
d'escamoteações pouco decentes. Ingénuo e
curto, sem qualidades de lucta, e com a ti-
midez titubiante dos ambiciosos a quem
os GATOS 7
falta uma directriz mental a lhe encorajar
a linha de conducta, o rapazola ao vêr de
perlo o ascenso dos jornalistas e meelin-
^ueiros que a fatalidade lhe dava por con-
vívio, quiz imilal-os um pouco nos succes-
sos, de sorte que muito cedo começou a
tratar mais d'eleições que de pasteis, e a
espargir no angario da popularidade ba-
rata das esquinas a dessorada energia que
Deus já lhe dera, manca de vontade, e que
bem empregada teria servido quando mui-
to para lhe trazer á clientella dos doces
mais algumas centenas de gulosos. Para
não ter o ar ridiculo n'esse cenáculo de
beaiix espriis onde as suas aspirações de
homem publico ardiam por brilhar, acos-
tumou-se a suprir com generosidades de di-
nheiro a lacuna das suas faculdades incul-
tas e reslrictas, e cedo a burra paterna co-
nheceu quanto custa a um papalvo cear á
meza dos deuses, e por que sangrias passa
um ingénuo, primeiro que conheça a fundo
a poilridão moral dos intelleclivos que o
desfiuctam. Como era rico e era bom,
d'cssa bondade irresolula onde entra como
factor principal o medo do ridiculo, apenas
8 OS GATOS
correu fama das snas primeiras largue-
zas, formou-se de roda d'elle uma espécie
de grande circulo d'assaUantes, e os correli-
gionários polilicosiam-lhe amortisando com
honrarias banaes o que particularmente lhe
pediam em soccorros de libras e fianças. Da-
tam d'aqui os seus primeiros triumphos ca-
marários, e a popularidade meio sympa-
ihica, meio bufona, que a sua regência do
municipio lisboeta lhe creou. Foi essa a
quadra das transformações fundamenlaes
da capital, a era dos bairros inteiros abai-
xo, das ruas de grande margem e arvores
no asphaito, a febre do monumental re-
pentino, sem plano, ao sabor das phanta-
sias do pastel, que tendo transformado, é
certo, para melhor a hygiene d'este grande
moitão de casas fétidas, comtudo não dei-
xou na sua restauração nem um só laivo
architectural digno d'applauso. Roza Araújo,
coitado, não tinha culpa. Para a sua mais
que modesta competência, o papel de de-
molidor já era muito, e Deus sabe quanta
actividade insólita para a sua gordura, e
quantos sacrifícios de dinheiro e credito
ruinosos para os seus haveres, particular-
os GATOS 9
mente lhe vinha custando a sua bella aspi-
ração de barão Haussmann alfacinha, de
marquez de Pombal sem terramoto, entre-
vendo n'um instincto de burguez precavido,
o futuro da capital, mas não podendo dar
corpo a esse grande sonho, por deficiência
mental, que demais a mais o pae lhe dei-
xara ficar incullivada. Mesmo em principio
aquella aspiração de reconstruir fora res-
tricta, taquanha quasi, porque ninguém
pensara em reedificar Lisboa por comple-
to, mas simplesmente em abrir entre o Ro-
cio e o arrabalde, um cano d'ar, a cujos
lados viesse colar-se o furor de construc-
ções que os brazileiros ricos começavam a
mostrar em tenebrosos prédios de seis an-
dares e aguas furtadas. Assim se fez a
Avenida, que é como se sabe um corredor
de cantaria, com altos muros cheios de bu-
racos, palmeiras de cabellos nas pernas, e
um obelisco-lhermometro marcando no pri-
meiro de Dezembro o zero da temperatura
patriótica. Uoza Araújo não teve a menor
responsabilidade ou ingerência nos typos
de construcção que os architeclos e mes-
tres d'obras adoptaram ; no entanto, agora
10 os GATOS
que a Avenida está toda bordada de casas,
olhem p'ra ella e digam-me se não parece
diclada pelo ideal paralcllepipedico d'um
confeiteiro I Proveio este desastre de Roza
Araújo não ter a seccundal-o um enge-
nheiro que fosse ao mesmo tempo homem
de génio e homem de gosto, e de tudo se
haver planeado e executado de rustilhão,
com pressa d'acabar. Não se calcula os en-
traves que o pobre homem soffreu antes de
dar na terra o primeiro tanchão de picare-
la. Apenas se faliou em deitar abaixo as
grades do Passeio, primeiro foi uma fúria,
depois foi uma guerra, depois foi uma tro-
ça.— O que elles querem é as grades, pa-
ra as vender, diziam os rapaces. A forçado
habito levara os velhos a imaginar que se
acabava o mundo no dia em que para aso-
cega do almoço lhes faltasse aquelle triste
redil arborisado. Uns por causa do ripan-
so, outros por causa das sopeiras, outros
por causa da musica, o certo é que nin-
guém queria consentir no sacrifício do Pas-
seio Publico á Avenida, e a par d'esta op-
posição pueril, a do ciúme e a do interes-
se : proprietários de prédios casmurros, do-
os GATOS 11
nos de hortas ainda não previstos na mina,
d'oiro a fazer co'as expropriações trama-
das ao ouvido, e inimizades politicas em-
fim, buscando intrigar uma obra que credi-
tava o auclor na gralidão dos mais intelli-
genles... A Avenida votada, outra campa-
nha começa, mais terrivel ! Não ha vintém,
é necessário pedir; e assim se estanca um
empréstimo, e outro, e outro, e tudo pere-
ce no sorvedoiro d'esse melhoramento par-
cial que ameaça arruinar o município, e
que negociado com socego, tomando por
base a expropriação por zonas, sahiria gra-
tuito, dando de sobejo para todas as phan-
tasias em que o arcliilecloe o jardineiro no
fim da obra quizessem derivar.
Insisto no que poderia ter dado a Aveni-
da, se a camará partindo d'um estudo de
transformação architectonica bem guiado, e
sabendo que para essa artéria convergiriam
todas as novas construcções luxuosas da
classe rica, dictasse a esta lypos de resi-
dência, não nos seus detalhes meúdos, que
isso seria um attentadoásleis da variedade,
mas dentro d'um quadro d'estylos subjeito
a um ensemble, e frizando o monumental da
12 OS GATOS
grande rua. Eis o que teria affaslado d'a-
quelle silio os prédios merceDarios, os pré-
dios commodas, com janellas de bico e pla-
tibaiidas de loiça para vidrar, e o que mul-
tiplicaria as perspectivas por uma diversi-
dade sem fim de typos palaciaes, dando a
esse eixo novo de Lisboa, a grandeza sce-
nograpliica que lhe falia, e o ar de grande
terra que já agora só com um terramoto
novo pôde ler. E' realmente magua olhar
da praça dos Restauradores, té á Peniten-
ciaria, o bisonho canal de casarões saloios
que arrolam sobre a via, chatos eallissimos,
com seus telhados opacos. Incarnas de ce-
leiro, magras varandas, e divisórias d'ala-
guer cheirando ásovinice dos senhorios. Uos
pouquissimos palácios que lá restam, apenas
o do marquez da Foz tem grande lypo, o
resto concebido n'um typo de cartonagem
chinfrinole, dizendo o desfructe ou a estu-
pidez do architeclo, a farofia paluda dos
donos, e a irremessivel chateza mercieiral
do nosso lempo. Gomo essa ambigua Lis-
boa nova é bem a Babylonia catita do Fon-
tes, e como se sente na sua recta banalida-
de o vasio da sociedade soez que o deificoul
os GATOS 13
Entendam que eu não exigiria queá voz de
Roza Araújo espaventasse da terra uma ar-
chitectura inédita, commemorativada edade
d'oiro dos syndicatos. Um eslylo não se in-
venta, é obra de séculos, começa por uni ca-
pricho d'arlista,que adequado ao destino da
pessoa ou coisa a que se adapta, consegue
calar na multidão sympalhicamenle. A gera-
ção seguinte contempla esse capricho e mo-
difica-o ; vem outra e faz o mesmo, e segui-
damente assim, té se obter por cristalli>a-
çõessuccessivaso resumo de perfeclibilidade
que o torna belleza lógica, belleza typica, e
o que é mais, belleza util.
A par das torturas soíTridas para levar a
cabo as obras da Avenida, o que para Roza
Araújo era a parte difficil da gloriola que
lanto prezava a sua innocente vaidade de
popular metido com magnatas, outros cui-
dados mais fáceis, mais ternos e harmonio-
sos com a sua fraqueza doce de bom ho-
mrm, lhe enchiam o coração de mimos evan-
gélicos, parecendo que elle se quizessejus-
14 OS GATOS
lificar d'aquella presidência camarária, pa-
ra que em sua consciência se julgava in-
compelenle, por aclos ignorados de philan-
Iropia, e protecções paternas aos infiniia-
menle humildes de Lisboa. E' assim quase
começa a vêr o nome d'el!e na fundação
d'asylos e de creches, e em obras de cari-
dade errática, onde a sua bolsa vasa conti-
nuamente o pecúlio dos contos de réis her-
dados de seu pae. Inexgotavel de boa fé,
cândido inalteravelmente apezar da reserva
melallica que lhe baixa, e das ingratidões
que mesmo no auge já começa a soffrer
dos biltres a quem serve, uma palavra basla,
da rainha, do rei, dos grandes influentes, mi-
nistros, jornalistas, para elie pôr fazenda e
tempo ao serviço seja do que fôr; e nas
subscripções para creches, albergues no-
cturnos, ampliação ou reforma d'um asylo,
levantadura d'uma estatua, Roza Araújo
deixa sempre por baixo da sua firma a cifra
em branco, sendo os iniciadores quem na
preenchem, talvez por cima mofando d'essa
encantadora basofia, ou prevendo sequer o
gáudio da debacle para abater as cristas do
irresoluto e obeso parvenu. Os jorndiQS n'este
os GTOS 15
comenos conseguiram tornal-o em typo
d'evidencia, a caricatura apoderou-se-lhe da
barriga, aquella barriga em forma de canto
de chaise-longue, posta ao travez das perni-
las bambaleantes, sobre que elle parecia
sentado, e que era um dos resultados da di-
latação estomacal a que o levara na moci-
dade o regimen do pastel. Uma vez popu-
lar, a malrulla dos canzoeiros impa sem
conta ; ja não eram sómenle os governado-
res civis sem cheia e furiosos de luxo e
meza lauta, já não sómenle os ministros
roídos de batota, os ex-governadores do ul-
tramar, as condessas-canaslras e as boas
mulheres desempregadas, quem, pretex-
tando camaraderias politicas e alrazo de
rendas, saccavam contra a burra d'elle a
descoberto. Eram lambem os jornalislasi-
nhos de noticias, as actrizes, os actores,
pastelleiros, camiseiros, retrozeiros, panto-
mineiros, amigos d'uns, p?rentes d'outros,
Ioda a cambada colossal que por Lisboa
respira, engorda e vive de calotes, forrando
ao trabalho a energia gasta nocturnamente
a emprehender quem ha-de cahir com bago
ao outro dia. Tornou-se moda encostal-o ;
16 OS GATOS
por fim eram já inimigos, desconhecidos,
sucia sabedora dos seus acanhamentos, que
o procurava na camará, na loja, pelas ruas,
e que olhando-o nas pupilla?, rudemente,
lhe pedia dinheiro como quem pede pontas
de cigarro. Roza Araújo por cobardia e
frescura d'alma, nunca í'oi capaz de recu-
sar: quem chegava via-lhe a mão estendi-
da, o riso Iristo, e o geslo da cabeçorra ac-
quiescendo aos pedidos mais disparatados.
Houve um momento em qne para assim di-
zer toda a gente lhe deveu dinheiro, ou ser-
viços de dinheiro, e cm que a sua gaspi-
Ihada fortuna, para sustentar o pé das ge-
nerosidades que não cessavam, e iam n'um
pavoroso vortilhão de desgovernos, houve
que valer-se do credito, e disfarçar a com-
pleta exhaustão com expedientes. Aos pri-
meiros alarmes da pobreza, Roza Araújo
nem quizera acreditar n'esse phantasma:
chegado aos pináculos da consideração e
do respeito, tendo uma rua crismada c'o
seu nome, presidente da camará n'umas
poucas de vereações laboriosas, fundador
de creches, the.-oureiro d'estaluas civicas,
popular, choraria talvez como Alexandre a
os GATOS 17
pequenez da lerra, inquirindo se haveria
m.'iis nome a conquistar. Havia, infelizmente,
o seu credito commercial compromettido, o
bem estar resultanie da certeza de ser rico,
e finalmente a revancheáos, seus demolidores
e adversários, que farejando a ruina, tinham
começado a levanlar-lhe barricadas e aen-
venenar-lhe as mais simples intenções. Elle
ainda doesta vez não queria crer. Pensava
que a todo o tempo lhe acudiriam os grandes
personagens por quem nos dias gordos fi-
zera sacrifícios, e que o seu prestigio poli-
tico e a memoria dos serviços civicos que
prestara, o livrariam do opprobrioda falên-
cia, intervindo na hora dolorosa, e arranjan-
do-lhe um niodus vivendi reparador dos des-
falques de tantos annos de mãos rotas. Lan-
çando um corajoso olhar ao destroço dos
seus bens, pensou nos successos que ás
vezes coroam um golpe de mão rápido e
audaz, e então esse commerciante que não
soubera dirigir nunca uma casa, empenhou
o ultimo credito para fazer abrir por essa
Baixa Ioda, cinco ou seis. Em menos de
dois mezes funccionavam por sua conta Ires
pastellarias, uma no Porto e duas em Lis-
2
18 OS GATOS
boa, uma camisaria, dois reslaurants, e lião
sei que outras locandas de retalho. «Loja
com uma só poria e o dono dentro», costu-
mava dizer o velho côcô, á guiza de prolo-
quio. As d'elle tinham, muitas porias, por-
tas talvez de mais para a cidade, e o luxo
do café-restauranl da Avenida, apreciado
em duas ou Ires dúzias de contos, coberto
d'espelhos, com salas vaslas e desafogos de
grande estabelecimcnlo, espavoria um pou-
co a rara clienlella, nmu local onde pela
força do habito não fazia apetite entrar para
comer. De mais, era inexperiente ou mar-
cenaria á gerência e direcção de todas es-
sas lojas, parecendo que não bolisse ao vi-
vo c'os sacrifícios terríveis de que o pobre
Rosa Araújo lançara mão para as montar;
de sorte que a pouco e pouco essas derra-
deiras esperanças de salvação foram rolando
em medonhos deficits, cada vez mais dififi-
cilmente cobertos, té lhe crearem uma ban-
carota inevitável.
N'esse dia tremendo. Rosa Araújo recor-
dando-se dos que salvara gratuitamente, em
tremendíssimas crises financeiras, correu a
expor sua deshonra a alguns que lhe de-
os GATOS 19
viam tudo, e que passado o perigo, oulra
vez na fortuna, se tinham esquecido de lhe
restituir, como cumpria, os capitães. En-
controu, já se vê, muitos braços abertos,
muitos suspiros condoídos, muitas disserta-
ções sobre a coragem, vagas promessas, pa-
lacuada, palanfrorio, mas nenhum dos an-
tigos devedores pareceu reparar fosse o di-
nheiro o único salvaterio para a afflicção
que trazia alli espavorido o pobre diabo. A
quantos pés se rojou, foram palavras o
máximo de soccorro que logrou trazer
d'essa tão vilipendiosa via-sacra. Gomo
sempre succede, eram os credores peque-
nos quem arremetera primeiro a importu-
nal-o. Roza Araújo deixou-se manielar por
elles como um pandilha insolvavcl, e para
as primeiras voracidades fechou o caffé-
reslaurant, leiloando a mobilia por um de-
cimo do valor. Ao mesmo tempo limitava
ao possível o tratamento das três ou qua-
tro casas que sustentava, despedia crea-
dos, reduzia pensões, e dava tudo á mati-
lha, ficando a dieta, e reconhecendo, tarde,
que por mais que desse, um sorvedoiro fica-
ria sempre hianlc a devoral-o. Ahi começa
kO os GATOS
a espiação d'esse homem justo, tremenda,
aspbixica, sem confidencias, cada vez mais
lorlurante á proporção que os dias passam,
pois elles approximam a dtshonra publica
a longos passos, e cairá o veu das suas ul-
ceras profundas, e esvair-se-ha,quem sabe,
a lenda cívica tão trabalhosamente adqui-
lida I Duzentas vezes vae renovar junto dos
poderosos a' sua imploração de homem per-
dido, feila em voz iimida, curvado e tor-
cendo as mãos de desespero ; mas agora que
elle já não serve, não empresla dinheiro,
nem faz eleições, nem dá janiares de borla,
nem serve de fiador aos valdevinos, os ami-
gos debandam-lhe á formiga, e os raros fii-is
apenas lugram, tão pobres como elle, alcan-
çar-lhe uma ou oulra delonga de prazo para
os débitos. Volla-se, e de lodos os lados lhe
cerceia o caminho a deirocada; obsedam-
no as contas por centenas, umas que elle
já linha psgo trez ou quatro vezes, outras
que elle não subscreveu, outras que julgava
pagas pelos debitanles. Para lodos os lados
o descrédito : o dos amigos que se justifi-
cam de o evitar, com reticencias ; o dos ini-
migos que lhe não perdoam as antigas vic-
os GATOS 21
lorias camarárias; o dos credores, a quem
o dinheiro cega, e a exhautoração da vic-
lima vae tardando. Apertado n'este circulo
de ferro, o desgraçado n<ão tem para os que
o abandonam uma só palavra de despeito ;
por ventura adviria na cilada em que cahira
a quando rico, tarde reconhecendo a estofa
dos canalhas que o tinham explorado e rou-
bado infamemenle — nenhuma d'estas trai-
ções porem ressumbram queixa dos seus
lábios, e a sua fidelidade d'alma é tão com-
pleta, que á hora das recriminações supre-
mas, accusado de n'um transe d'agonia ler
pago dividas com o pecúlio d'uma artista e
o dinheiro d'uma associação de beneficên-
cia, esse que para justificar-se poderia ter
revelado tantas fraudes, prefere curvar a
cabeça e deixar-se abysmar n'uma irreme-
diável perdição.
Desde essa hora, Roza Araújo não teve
mais ah'gria, e todas as lassidões da morte
moral dando pretexto ao corpo para se ex-
tinguir n'um prazo physiologíco, com<^çam
a lhe escavar rapidamente a sepultura.
Com o barrelinho de seda e o ventre flá-
cido, eil-o volta a vender pasteis na loja de
22 OS GATOS
seu pae, mas esse retorno humilde á vida
d'origem não faz senão culilar-lhe as tor-
turas interiores, mercê da suspeita horrível
d'em cadafreguez estar embuscado um mal-
dizente ou um credor. Como Cezar Birol-
leau no dia seguinte á fallencia, o pobre
diabo perdeu o dom de fitar quem se llie
achegue; tem a face cabida, o beiço inferior
n'um momo que é a bestialisação da ma-
gua nas pbysionomias pouco lúcidas; falia
sem pensamento, á flor dos lábios, n'um fio
de vóz a cada instante interrompido entre
as asphixias do respiro ; e ao longo dos
muros, na rua, de cabeça curvada, eil o es-
gueirando-se como um criminal confesso, las-
timável e alheio a toda a ideia de reintegra-
ção social ou de bem estar. Quotidianamente
os familiares assistem ao demudar da sua
face, n'ella deletreando esse «diagnoslic de
coup d*oeil» que certas doenças mortaes
revestem externamente; emtanto elle parece
não dar por males physicos. tanto o moral
se estorce n'um inferno de horríveis sobre-
saltos. N'esta lucta horrorosa resaltaria por
banda do vencido, uma innarravel anciã de
viver — de viver para oxigenar o seu caso
os GATOS 23
ante a cidade, para pagar integralmente as
suas contas, para se lavar, n'uma palavra, da
nódoa da fallencia, única que a consciência
do lojista não perdoa, quando essa forma
d'escrupulo radica na hereditariedade de
muitos séculos de honra de balcão. Infeliz-
mente, lançando calculo ao tempo necessá-
rio para, dados os recursos da casa, se po-
derem embolsar todas as partes reclaman-
tes dos seus débitos, achava-se que só
muitos annos volvidos Roza Araújo poderia
emfim rehaver a antiga integridade. E até
esse problemático restauro, necessário ve-
getar na sombra aviltante do caloteiro pu-
blicamente perseguido, servir pasteis á fre-
guezia, d'olhos no chão, tragando os chas-
cos d'uma cidade implacável para os timi-
dos, e emfim abdicar de vez aquella sua
gloriola de homem publico, aquella preoc-
cupacão immortal de vulto illustre, a bem
da qual a sua vaidade de burguez fizera
tanto, e a^jora alli jazia a seus pés, na lama,
como um dominó de setim, findo o entrudo.
Tamanhos sacrifícios se lhe afiguraram pre-
ço exorbitante para quo, depois das dificul-
dades vencidas, inda lhe restaria na vida a
24 OS GATOS
desfruclar ; de mais a doença cardíaca, agra-
vada pelas preoccupações moraes esmaga-
doras, ia-Ihe carceando curto a paciência,
cortando-lhe a respiração, curvando-lhe pa-
ra a sepultura o arcabouço, e foi assim
que a piedosa morte se amerceou do pobre
homem, precisamente quando tudo o mais
começava a abandonal-o.
15 áe fevereiro.
A miséria que ha poucos annos em Lis-
boa a bem dizer não passava da industria
d*a!guns vadios sem vocação para o traba-
lho, e d'algumas megeras em exploração
das crias pela esmola, começa a tomar na
capital caracter trágico, e a surgir como a
suppuração d'um descalabro social irrepa-
rável. A crise que em muito pouco prejudi-
cou a gente pobre da provincia, visto a sua
feição quasi exclusivamente industrial, ao
apanhar as classes serventuarias da capi-
tal, gente imprevidente e regalona, sem pé
de meia, afoita ao viver immoral do dia a
os GATOS 25
dia, Ião pela gorja as estrangula, que os
destroços de centenares de famílias por hi
andam na rua a pedir esmola, afora outros
que o suicídio e a doença lêem reduzido a
estrume nos covaes.Gomo a recolta dos derél-
sinhos pinga .constantemente nas mãos dos
mendicantes, e o acto de pedir esmola vem
a tornar-se, ao cabo dos primeiros ensaios,
n'um modo de vida infiniiamente malscom-
modo que o trabalho officinal, a mendicân-
cia para muitos deixa de ser o recurso ex-
tremo d'um instante de miséria, para, per-
dida a vergonha, se tornar alfim em pro-
fissão. Aos miseráveis por destino juntam-
se pois os miseráveis por expediente, aos
verdadeiros pobres, os malandros verdadei-
ros, e é o que mais fatiga a caridade, e faz
pagar aos infelizes as chantages dos vadios.
Do coro d^aquellas victimas um grupo salta
sobre todos, que me confrange a alma de
tristeza. E' a das velhitas que á noite,
quando o frio de janeiro regela mais, pas-
sam na semi-somhra dos prédios, entre as
cotovelladas dos felizes, vestidas d'escuroe
examines de vergonha, balbuciando suppli-
cas que são talvez restos de historias, eon-
26 OS GATOS
de á evocação de Deus, se juntará, quem
sabe? a desesperança dos que nem já de
Deus ousam esperar apelação. D'essas al-
cachinadas crealuras, algumas são verda-
deiramente os espantalhos d'antigos dra-
mas familiares, as espiadoras resignadas
dos inconfessáveis peccadosda sua geração,
e são as que se acobertam mais co'a som-
bra, as que supplicam com mais receio das
insolências, e as que, mesmo repellidas, bai-
xando a vista, tremulas do desaforo de le-
rem fome, inda por cima tentam abençoar
quem nas repelle. Desce a noite como um
capuz colossal sobre a cidade, amplificam-
se os bairros, os prédios crescem, e as ruas
se anastomosam em inextricáveis arboren-
cias, desconformes da sonolência trágica da
sombra. Já os operários passaram do tra-
balho, e o cen vem rente aos tectos afer-
rolhar as aspirações para as alturas. Nos
burgos pobres, socego, vultos com pressa,
o gaz babando clarões onde esses restos de
vida teem a incerteza de coizassem destino.
A hora em que os pobres ceiam e os ricos
jantam, a hora do peixe frito nas tascas,
dos clarões de gaz nos cafés ricos, e das
os GATOS 27
salinhas do jantar tressuando a cognac e a
fumos de charuto. Na humidade da noite,
rumores confusos, trepidações de febre,
americanos cheios em rails que nunca fin-
dam, coslureiritas seguidas, vitrines fiam-
mejanles, tipóias a galope, quatrocentas mil
almas que mastigam; e n'esse egoismo
monstro da digestão d'uma cidade, as po-
bres velhas, encostadas aos muros, resfo-
legando o esfacelo dos pulmões asthmaticos
do frio, as pobres velhas lá descem, coitadi-
nhas, dos bairros lúgubres, para vir esmo-
lar nos centros de concorrência. Algumas,
gordas, com restos de chailes amarfanha-
dos na cintura, teem a faceira enxundiacea
dos cardíacos, olhos de cinza, um fio de
voz na bocca endolorida ; e a espaços pa-
ram', esfalfadas do caminho, os chinellos na
lama, a falta d'ar no arquejo do respiro,
partilhadas entre a anciã de pão e a anciã
de reponzo. Greaturinhas sem interesse,
eil-as estendem a mão com medo que as
conheçam, balbuciando suas lastimas a
custo, e o transeunte aíTasta-se, seccado já
d'outros pedidos, e sem reconhecer n'essa
lúgubre carcaça a sua antiga patroa d'em
28 OS GATOS
esludanle, a pobro mãe cl'um camarada
morto, ama amiga d'oulr'ora ou uma pa-
renta. N'esla cidade tamanha, a desgraça
tem edições tão caprichosas I Aquella de
prelo, lenta, com as pálpebras lufadas d'e-
dema, a bocca parva e a mão estendida a
medo, é uma viuva que eu conheci conten-
te ha coisa de dez annos. O marido linha
uma pequena loja de tabacos, viviam bem,
adorando e vestindo de velludo um filho
que ha pouco lenjpo, já homem, indo fazer
a cobrança d'uma casa, fugiu para Hespa-
nha com o dinheiro e duas raparigas. O
velho para pagar vendeu a loja, e pouco
depois morreu de congestão. Ha-de haver
duas noites quiz interrogar a mendiga sobre
o destino que levara o rapazola; vaeella que
me via, baixou a vista, eafaslou-se a tremer
como uma hidra descoberta. A perturbação
da mulher alfinetara porem a minha rocam-
boleria mental de novellista, e vim a saber
que o filho vive pelos cafés de camareras,
nos chinquilhos d'Arroios, uma vida de sou-
tenêur larapio e desordeiro, e que é a po-
bre mãe quem no sustenta, cada vez mais
doida pelo pulha, á proporção que a rein-
os GATOS 29
cidencia d'elle loma o caracler moral d'in-
corregivel.
Oulra, hespanliola, que estaciona á poria
(lo Leão d' Oiro, sollicilando a piedade do
quem vae para jantar, tem uma historia ainda
mais desesperada. Tinha dois filhos ouiivos,
6 adoecendo d'um lypho, fora levada a tra-
tar pr'o hospital ; por lá esleve semanas, era
no fim do semestre, e quando sahin achou
a casa alugada, e nem filhos, nem uma en-
xerga sequer onde dormir. Principiou a in-
dagar pela visinhança o paradeiro dos dois
canalhas, vindo a saber que propositando
d'antemão que a pohre não escapasse, ha-
viam dividido os tarecos, jogado as cristas,
comido em pandegas o espolio; depois do
que fora o mais velho para o Porto, eslan-
do no Limoeiro o mais novo, por uma his-
toria de cumphcidade em notas falsas. His-
torias d'eslas contam-se ás series e enchem
Lisboa d'espectros esfaimados. Quem pas-
sar na rua do Ouro em certas noites, nos
baixos do Montepio Geral lobrigará, escoa-
do ao muro, um vulto negro, vulto sem cor-
po, apagando-se nos vaivéns da multidão
como uma sombra. Não se lhe vêem mãos
30 OS GATOS
imploralivas, ponla de rosto, hausto oa mur-
múrio por onde adevinhar um ser vivente.
Imraovel na vertical lucluosa dos seus tra-
pos, o pequeno espectro parece que dormi-
ta ; não pede esmola e é evidentemente uma
mendiga; ás vezes no torvelinho da mairulla
que tem pressa, um cotovello bruscamente
desloca-a da parede: ella remexe um mo-
mento, deita um suspiro, e ouira vêz recahe
na mesma quietação. Esse suspiro, porque
crises de martyrio augusto se transfillra, bom
Deus ! para exhalar-se assim pallido do co-
fre d'esse peito que por coração só tem re-
cordações ? Gomo a pobresinha não pede,
cada qual vae andando o seu caminho, e
noiles e noites passam sem que a miserável
logre ver recompensado o tormento de vir
alli expôr-seá multidão? O seu vulto porém
causa surpresa, com a cabeça no peito, as
mãos no chaile, incorpórea e semelhante a
uma escorridella de tinta sobre o muro.
Alguma compassiva dama varada pela atli-
tude glacida da pobre, busca na bolsa um
cobre bemfazejo, e do espantalho de trapos
uma mão tremulenta se destaca, uma mão
de velhinha torturada, d*ossilos débeis, pu-
os GATOS 31
nho esbrugado, branca da exanguidez das
velhas pelles que foram bem tratadas, e on-
de braceletes lelintaram, quem sabe, n'ou-
tro tempo... Ainda estas são as relativa-
mente queridas do destino, e bem que mi-
sérrimas, desfruclam por ventura d'uma
certa autonomia. Deus lhes consente ainda
que se arrastem pelos seus próprios pés, por
essas ruas, não façam nojo ao menos, e
possam fallar e mostrar o rosto triste á com-
paixão. Mas as enfermas, as paralyticas de
bocca torta, patetas, tartamudeando gague-
jos d'animaes desesperados ; as aleijadas,
grotescas, confeccionadas de restos que a
natureza amputou com vida, d'oulras crea-
ções sãs e perfeitas ; as cegas, de physiono-
mia hesitante, a tatear com gestos infantis,
no seu cárcere medonho, a perversidade hu-
mana que ri alto... Que humilhações nefan-
das que ellas sofrem, e como pagarão amar-
go a illusão de soccorro que a mendicidade
da rua lhes faculta I Não lhes bastava a des-
graça de lhes faltar o lume e o pão na casa
inhospita, e de terem de para comer, mostrar
seus males, senão que também se lhes volte
em asco a caridade, e lhes fuja do regaço a
32 OS GATOS
esmola que o bemfeitor evita, pelo agoiro de
lhes topar co's aleijões. Porque a verdade é
esta : noventa e nove vezes por cem, a com-
paixão do transeunte é simplesmente um ca-
so d'egoismo. O menor particular serve de
pretexto a uma recusa: tal que para esportu-
lar cinco réis, exige pobres de sobrecasaca e
chapéu alto ; outros que afinam com os cor-
cundas e os chaguentos, c muitos que ima-
ginam que todos os cegos são fingidos, e to-
dos os filhos das pobres tomados d'aluguel
a uma associação de compra-chicos. O egoís-
mo dos felizes até no acto de fazer bem mette
aggressões, e para elles a felicidade só é ver-
dadeiramente um gozo psychico quando dis-
posta de modo a fazer avivar pelo contraste
os martyrios d'esses dedassés de lodos os
festins.
FIALHO D'ALMEIDA
os GATOS
PUBLICAÇÃO
d'jNQUERITO Á vida P0RTU6UEZA
N.'53 — 15 de Abril de 1893
SUMMARIO
Leilão de D. Fernando e vida ephemera
DA OBRA d'aRTE CHIG — PlNTORES DO CYGLO
romântico: AnnunciaçÃo, Metrass, Lupi, e
AUSÊNCIA de quadros SEUS NO MUSEU DAS Ja-
nellas Verdes — Necessidade d'uma galeria
DE pintura moderna ONDE SE VÁ ESTUDAR A
MANEIRA DOS ARTISTAS NACIONAES Em QUE O
«SELECTED» ME APODA d'eSCRIPTOR LICENCIOSO
— Representação do «Parfum» pela Judic,
com assistência de toda a alta roda a
II os GATOS
PEÇA COMO LITTERATURA E COMO MORAL, COM
RECAPITULAÇÃO DE HAVER NO TAL «SELECTED»
UMA GRANDE FALTA DE PUDOR ExPOSIÇÃO DO
Grémio Artístico — As tristes málhoas —
Salgado e Silva Porto : estagnação da pay-
sagem no realismo pelintra de ha dez annos.
15 áe março.
O leilão do espolio de D. Fernando, que
se lem eslado a lealisar por estes dias, n'u-
ma dependência do paço das Necessidades,
dispersa ao vento dos negociantes e coUec-
cionadores uma considerável parle d'esse
mngot d'obras d'arte que foi o enlevo e o
sonho do pobre rei consorte. Não se pode
dizer seja um compósito de maravilhas, esse
espolio, podado como foi já pelos herdeiros,
das suas melhores peças de processo; en-
lanlo é curioso estudar pelos documentos á
vista a quantidade de pacotilha que os reis
são obrigados a pagar para animar as ar-
4 OS GATOS
tes, e por elles ver como o convencional en-
canece cedo a obra dos artistas. Esculptu-
rinhas românticas, quadros de fructa e com-
pota sobre fructeiros arrebicados, peixeiras
com caras de duqueza, scenas de campo
dramatisadas á guiza de scenario d'opera,
tentativas cerâmicas sem caracter, procuran-
do imitar escolas em vista — tudo quanto
n'uma palavra a engenhosidade cria de pi-
caresco, n'um paiz onde o génio artistico é
chifarica e as escolas d'arte nunca passaram
de tentativas officiaes sem valimento — tudo
alli mostra o seu faseias matuto e desyme-
trico, dizendo a desorientação da esthetica
porlugueza de ha trinta annos, e a quantia
de dinheiro esbanjado a abeberar rapazes
sem talento. Com os pintores portuguezes
d'esse tempo, que o fallecido rei D. Fernan-
de apadrinhou, e cujas obras-specimens se
podem ainda ver reunidas por alguns dias
no leilão das Necessidades, succedeu pouco
mais ou menos o que d'aqui a vinte annos
se dará com muitos d'esses cujos quadros
agora nos parecem conter em si caracteres
de coizas immortaes — isto é, dos debutan-
tes opimos d'agora, grande numero ficará
os GATOS 5
pelo caminho, e irá empallidecendo gradual-
mente a obra d'oulros, á medida que a oxi-
dação lhes embrunecer as tintas, e que a
ironia do tempo enfim, partindo do pretex-
to de que a melhor Iheoria d'arte é sempre
a ultima, pegar de lhes descolaras telas das
molduras, substituindo-as por novas, e ar-
remessando os auctores das velhas, d'uma
vfz, para o cemitério dos diccionarios d'eru-
dição. Entretanto apezar da inaptidão con-
génita da raça para conceber e crear obras
pujantes, apezar da duração transitória d'u-
ma pintura e escuiptura inquinadas por todas
as repercussões maniacas da moda, apezar
do ensino viciado dos artistas, e do despre-
zo do grosso publico pelas chamadas «obras
d'arle nacionaes» ainda d'aquella plêiade
dos nossos pintores românticos, buscando
bem, achariamos, n'esse leilão de casa real
que se esfacela, três ou quatro bocados me-
nos mortos com que fazel-a figurar nas Ja-
nellas Verdes, ao lado dos muitos que lá fi-
guram com menos direitos talvez de solo e
de nação. Temos deixado escaparem-se por
mãos anonymas todas as pinturas dos re-
presentantes do periodo romântico em Por-
6 OS OATOS
tugal, e a verdade é que o museu nacional
não possue um só dos quadros bons d'An-
nunciação, Christino, Metrass e Lupi, sendo
diíBcil hoje adquirir bocado que os exprima
a Ioda a altura.
O conto de reis que o governo destinara
a acquisições para o museu, gaslou-o o ins-
pector n'um par de jarras galeadas, n'umas
chapas d'espada ornamental, e n'uma salva
repousséê sem mor valor, e valha a verdade,
o museu não é tão rico em obras modernas,
que possa dispensar-se de dar guarida aos
poucos artistas nacionaes que conseguiram
transpor a mediocridade do seu tempo e
viver alem do elogio mutuo das exposições.
Supporiamos até dissesse bem, apoz de tan-
tas salas de pintura religiosa, fundo de re-
sistência de toda a quadraria das Janellas
Verdes, um ou dois salões contendo teias
portuguezas modernas, dignas d'essa honra,
atravez das quaes podessemos ver as im-
pulsivas e propulsivas d'um ramo d arte que
em sessenta annos já lem custado ao paiz
seu par de contos. Lupi e Annunciação so-
bretudo, vergonha é que não estejam no
museu com figuração condizente aos nomes
os GATOS 7
que deixaram; deixaram dispersar-lhes
o espolio, passarem os leilões onde a seu
lempo teria sido fácil gansar as telas typi-
cas, de sorte que quem vier ás Janellas Ver-
des só acha d'aquelles pintores nobilissimos,
bocadinhos, havendo que creditar-lhes os
méritos sob palavra de honra, falia d'outras
provas convincentes.
Outro tanto diríamos para um ou outro
quadro dos pintores contemporâneos. As Ja-
nellas Verdes possuem já d'esculptores re-
centes Ires ou quatro amostrinhas, adquiridas
como prova d'adeanlamento e premio de co-
ragem, mas nunca vi que o zelo dos gover-
nos tenha descido a honrar a modernissima
pintura porlugucza, pondo um Silva Porto
na galeria consagrada a pintores novos. Es-
tamos a visitar ha uns poucos d'annos expo-
sições de pintura em Lisboa e Porto, onde a
cifrado producção orça por duzentas ou tre-
zentas telas annuaes. Parte d'esta obra consi-
derável, sei-o perfeitamente, é pacotilha, mas
não havia meio de dar quinhentos ou seis-
centos mil réis pela compra do quadro melhor
de cada exposição, e iniciar com essas lentas
acquisições uma sala de novos no museu ?
os GATOS
ÍQ de março.
O meu amigo P., conspícuo moço, que
com o seu poucochinho de miolo tem sabi-
do fazer a vida lindamente, lembrou-se ha
dias de lançar sobre a minha obscuridade
o olhar commiserando, e d'amerciàl-a com
algumas palavras de louvor alternadas por
outras tantas condiccionaes ponderativas e
paternas. Abordando-me na rua, findo o
jantar, depois de me pôr fraternalmente a
mão no hombro, e de me anediar o pello
com alguns diminutivos carinhosos, come-
çou a desfazer-se em lastimas sobre a mi-
nha falta de geito para a vida, acolchoando
esses lamentos de conselhos que eu deveria
seguir para com brevidade romper a labo-
riosa miséria em que vegeto.
Depois de me conceder algumas aptidões
plumitivas que eu agradeci esforçando-me
o possível por ter um rubor de collegial na
face cândida, começou elle por verberar a
minha desorientada maledicência, filha d'u-
os GATOS 9
ma mysanlropia feroz que me não deixava
servir um grupo, nem ter fé n'um credo,
nem acceitar por bom nenhum trabalho fei-
to. Retrato d'esta deliquescencia interna, o
estylo em que eu escrevia, áspero, desagra-
dável e servido muitas vezes por um voca-
bulário de carroceiro. Como o estylo é o
homem, inferia o meu querido P. pela mi-
nha soltura da lingua o desescrupulo moral
impróprio d'um espirito elevado, e nada at-
tinente ás minhas aspirações de pamphleta-
rio flagelador.
Porquanto todas as coizas se podiam e
deviam tratar hoje de luva branca, e era
preciso ver pouco para não reconhecer que
o selected da sociedade portugueza, aquelle
que vae á frente, o que faz o nivel e a qua-
lidade da opinião preponderante, era um
corpo social digno de preito, impado d'illus-
tração e solidas virtudes e altruismos gera-
dores de luminosíssimos e espontâneos mo-
vimentos.
Eu, a sorrir, citei-lhe os casos da quin-
zena que desmentiam dos conceitos óptimos
o tal selected: mulheres fugidas aos mari-
dos, maridos auctorisando pelo seu despre-
10 os GATOS
zo as perdas das mulheres, recebedores ge-
raes e thezoureiros de companhias, no es-
trangeiro, a monte, depois d'uma limpeza
geral aos cofres fortes, e quanto á philan-
tropia da chamada classe preponderante,
quasi tudo exhibição d'egoismo e modos de
passatempo, sem alcance chrislão nem cari-
dade.
— Por consequência a moral. . .
Ia o Parfum, pela Judie, em ultima re-
cita de serie no ihealro da Trindade. En-
trámos precisamente quando subia o panno
e a orchestra dava o ultimo assoprão na tu-
bulagem dos clarinetes. Conte-se a peça. O
Parfum é um droguisla inventor de perfu-
marias, accummulando estas aptidões com
as de deputado e marido d'uma creaturinha
interessante, e que ha tempos anda a con-
feccionar e a espiar no fundo do seu labora-
tório a invenção gloriosa de certo perfume,
que será a sua obra prima, e revolucionará,
pela finura exótica, o mundo dos cheiros,
creando ao inventor reputação universal.
Precisamente essa tarde os distilladores
do perfumisla acabam de produzir na sua
forma definitiva a maravilha, que n'um ac-
os GATOS 11
cesso d'orgulho o auctor faz vir á sala, fu-
megante ainda, para azabumbar com ella,
não só a esposa, que o admira e adora, co-
mo lambem certo perfumisla rival que eslá
prezenle. Trazido o perfume, todos os na-
rizes se acurvam sobre o vaso, apercebendo
então em vêz do compósito d'essencias ra-
ras preconcebido pelo que se esperava da sa-
bedoria do perfumista, uma d'estas degene-
rações d'olfacto, complicadas, e mais próprias
para despertar a náusea do que para dar ideia
dos jardins orientaes. U perfume supremo,
pois, a obra prima do illustre cosinheiro d'es-
sencias, não passa d'uma fedentina de labo-
ratório, insupportavel, e n'esla apreciação das
ominisciencias chimicas do artista só um
continua illudido, é elle mesmo, e só outro
prosegue a ter ciúmes da volátil bernndaga :
é o perfumista rival, que a si mesmo jura
descobrir o preparo myslerioso de tão extra-
vagante porcaria. Horas do comboio para
Versailles ; necessário que o deputado corra
á sessão do parlamento, e eil-o alii parle,
depois dos parabéns da esposa e dos empre-
gados da officina, e das ovações do chimico
collcga, enauseados e affliclos lodos pelas
12 OS GATOS
emanações do horrível vapor que paira no
ambiente. Apenas os dois perfumistas de-
bandam, a caçarolla do cheiro é mandada
levar para o laboratório a toda a pressa:
vae a creada, ao passar com ella pela alco-
va, tropeça n'um fauteuil, entorna a mixor-
dia, putrifica-se o ar, e ahi fica a perfumista
prohibida d'essa noite dormir na cama con-
jugal, sob pena de morrer d'asphixia. Como
a casa é pequena, a pobre dama, forçada a
repudiar o thalamo, tem d'ir dormir para
um cacifro de creados, perto da escada, e
precisamente vago essa noite por se ter des-
pedido á ultima hora a cosinheira. Ora, uma
vêz a dona da casa deslocada do seu ninho,
as peripécias que rezultam, d'uma insolitez
cynica e porca, constituem todo o arcabou-
ço hillariante do entremez.
Começa o segundo acto por a perfumista
inquirir da creada de quarto ás quantas ho-
ras chegou de Versailles seu marido, e a
serva de responder que o deputado passou
a noite fora, devendo só ás dez da manhã
os GATOS 13
chegar a casa. Espanto da dama, que atei-
ma que elle entrou, visto razões... matrimo-
niaes, basto palpáveis e que não é licito ne-
gar, mesmo ás escuras. Porém a creada de
quarto, certíssima do que affirma, breve
convence a patroa de que o senhor não re-
colheu ; quanto ás razões documentaes, se
não foi pezadelo da senhora, é que ha lam-
bareiro mettido na funcção ! A semelhante
suspeita, a dona vae aos ares ; não, é uma
mulher honesta, uma esposa exemplar, e
por coiza alguma Irahiria a fidelidade ju-
rada ao perfumista. Entretanto, entretanto,
a terrível certeza errissa-lhe os cabellos ;
dormiu com um homem, é positivo, e não
sendo esse homem seu marido, então! en-
tão!... Ora, des'que o marido não foi, toca
a inquirir quem poderia ter vindo em seu
logar. Agora, á furiosa revolta do pudor es-
garçado, um estimulo novo açula a perfu-
mista, vêr bem de face o hospede com quem
praticou as leis da hospitalidade, saber se é
velho, novo, bonito, feio, discreto ou Im-
guareiro, e como o natural é começar pelo
principio, ella approxima-se do ajudante do
laboratório, galhardo moço, que em proble-
14 OS GATOS
mas de chimica mais d 'uma vêz lem feilo as
vezes do patrão. Effeclivamenle, depois d'a-
ma pratica bastante emmaranhada, o pobre
rapaz confessa ter dormido essa noite tora do
seu quarto; ajustara no primeiro acto certa
entrevista nocturna com a creada,e tateando o
cubiculo d^ella ás escuras, bem podia ser que
se tivesse enganado no caminlio. Scena de
lagrimas — que desgraçai um homem tão
bondoso 1 — e agora não ha remédio; uma vêz
que o mal está feilo, é prepararem as ma-
las e fugirem, para esconder o adultério em
qualquer parte. Quando já promplos para o
desterro os dois involuntários culpados teem
preparado as bagagens á pressa, averiguâ-
se que a porteira puxou o cordão a certo
retardatário que ás Ires horas da manhã ba-
tera á porta. Quem fosse, ignora, estremu-
nhada de somno como estava ; é natural po-
rém que o retardatário fosse o marido. Po-
réui o marido não apparece, logo foi outro
— e dois 1 — o que desespera cada vêz mais
a situação periclitante da perfumista, e dis-
pensa os fugitivos do desterro a que d'an-
lemão se haviam condemnado. Mas quem
poderia ser o intruso, quem? Eis o problema
os GATOS 15
novo que o ajudanle e a palrôa desde essa
hora s(i propõem resolver. Por uma serie de
peripécias complicadas, vem a saber-se qu€
o segundo perfumista, rival do inventor, pre-
meditando caçar o segredo do perfume ao seu
collega, se lhe introduzira em casa myslerio-
samente, podendo talvez serelle quem, ma-
drugada, puxasse o cordão da campainha. O
salafrário é casado e horrendo como um bo-
de ; imaginarão por tanto o asco e o horror da
bella perfumista... Mas a salgalhada não pára
n'este ponto, porque o segundo ajudante do
laboratório também consta que passou fora
de casa parte da noite; por consequência. ..
Ires! E de perder a cabeçal e quanto mais
elles procuram, hesitantes na escolha, tanto
mai^' diíficil se faz a averiguação «lo parti-
Ihador do thalamo conspurcado.
Finalmente ás dez horas da manhã entra
o marido, extenuado, derreado, respondendo
ás perguntas da esposa ambiguamente. Peri-
pécias novíssimas que o leitor me fará o pra-
zer de dispensar, ao fim das quaes o desfe-
cho da peça reata os seus episódios vis d'esta
maneira. O primeiro ajudante, tendo dado
rendez-voíis á creada de quarlo, passou o
16 OS GATOS
melhor da noite n'uma espécie de duo se-
xual, peccaminoso^ sob os ledos honestos do
patrão. O segundo ajudante, depois do chá,
foi dormir com a mulher do segundo perfa-
mista, o perfumisla rival, que assim foi cas-
tigado de dar caça ás invenções do seu col-
lega. E quanto á dona da casa, sob a emi-
nência de ler dormido com um dos três fre-
cheiros, á sorte, se conseguiu ficar incólu-
me, deve-o á confusão do marido, que ajus-
tando com a cosinheira uma noitada, fora a
deshoras metter-se-lhe na cama, onde em
yêz da cosinheira estava a esposa, devido
ao fracasso da caçarola do perfume.
Apreciaram da comedia pelo entrecho,
edificados de que assumpto assim dúbio lo-
grasse caplivar a inspiração do libretista.
Perdoar-se-lhe-hia entanto a obscenissima
embrulhada, se ella vestida fosse por uma
litteratura faiscante e explendidissima. Mas
nem tal desculpa subsiste, porque o Parfiim
é d'enire as borracheiras irancezaspara uso
das meretrizes e dos pulhastros viajantes, a
os GATOS 17
mais inqualiOcavelmenle ignóbil da serie,
escripla n'um estylo de latrina, arrevesado,
sórdido, insalubre, a insistir constantemenie
na torpeza, sem um dito subtil que orecom-
mendeá tolerância da policia, á misericórdia
da critica e ao pasí-atempo sequer do espe-
ctador.
N'um paiz em que a lettra dos costumes
fosse lida n'uma caitilha austera, por uma
sociedade cônscia do seu brio, canalhas que
se atrevessem a representar publicamente
uma infâmia d'aquellas receberiam a vergas-
ta nos lombos como ensino, e a expulsão da
fronteira, a pontapés. Certo ha em Paris
uns theatros, tolerados como casas de pas-
se, onde as mulheres perdidas vão fazer ca-
ça aos estrangeiros que vem á capital da
França despucellar-se. Gomo para o utili-
tarismo francez a corrupção é um género de
commercio como qualquer outro, a policia
dos costumes fecha os olhos e deixa que os
Parfums façam receita como chamariz dos
estróinas cosmopolitas, certa de que nenhum
francez que se preze ousaria lá levar a filha
ou a mulher. Dois ou três annos depois,os cai-
xeiros viajantes que sahem de Paris em giro
2
18 OS GATOS
de quinquilharias avariadas, chamem-se el-
les Judies ou Jules Jaluzols, ao aportar ás ca-
pitães de paizesexlinclos como o nosso, que
elles reputam terra de basbaques, despe-
jam-lhes nos armazéns toda a ucharia gro-
tesca das suas malas, desde as crinolinas
até ás tragedias, e a sociedade da moda, a
gente civilisada, o selected, lá corre ufano a
fazer successo ao article Paris que o velha-
co francez de propósito fabricara para en-
grolar o estrangeiro desmoralisado.
Descripta a peça, e delineado o valor lit-
terarioe moral do seu enlrecho, vamos dizer
dos que estavam a uuvil-a no iheatro da Trin-
dade. No camarote de honra, S. M. el-rei, far-
dado, e comas duas rainhas em grande ves-
tuário de soirée. Ao lado as damas de honor e
os oíBciaes da sua casa civil e militar. Na pri-
meira ordem e nas frisas, tudo quanto em
Lisboa vale, como diz o lUustrado, pela aris-
tocracia d'um espirito, pela celebridade d'um
nome ou pela douradura d'um milhão. Pre-
sidentes de conselho presentes, futuros e
pretéritos, banqueiros, capitalistas, alta búr-
guezia, aristocracia, corte, tudo, absoluta-
mente tudo o que em Lisboa gosta de ser
os GATOS 19
colado entre as siimmidades espirituaes da
roda dirigente, que dieta a lei e faz da «aus-
teridade moral» um lemma de brazão — tudo
lá estava, encasacado, de tira branca, luvas
bordadas a preto, meias de seda e pérolas
no peitilho. Uma selecção d'elegancia como
ha muito tempo não vi outra, e quem a fos-
se espreitar, descido o panno, imaginal-a-
hia na espectativa d'algum grande aconte-
cimento litterario nacional. Todos esses ca-
valheiros que representam o selected (sem-
pre o selected I) da sociedade portugueza, tão
desdenhosa sempre pelo vulgo, tão intole-
rante sempre pelos radicalismos lilterarios
que possam ferir-lhe a sensibilidade aristo-
crata, tão sabiamente altiva nas leis do gos-
to, tão exigente, tão formalista, tão deli-
quescente, tão desavergonhada e tão hypo-
crila — todos esses cavalheiros, não conten-
tes de dar á cidade o espectáculo d'applau-
dir sem rebuço uma comedia obscenissima,
inda por cima tinham acarretado á exhau-
loração a honra do seu lar, fazendo-a ou-
vir ás maninas e ás esposas, e apreciando-
Ihe os dichotes por entre estridolas e des-
honeslas gargalhadas. Os fauteuils do bal-
20 OS GATOS
cão estavam inleiramenle cheios de senho-
ras, as mais bellas, graciosas e inpeccaveis
que os salões de Lisboa fazem brilhar nos
seus chás das cinco horas, e algumas, ideaes,
com decoles quadrados, corpinhos directó-
rio, saias d'estofo aéreo, em tons suaves,
cobertas de jóias e com biquinhos d'esmal-
te inimilavel, tinham a rir das reticencias
pornographicas da peça, uma candura Ião
cysnea, lanla leviandade nos olhos, um des-
caramento casto por tal forma excitador,
que fosse eu o marido d'alguma, ficaria per-
plexo ao querer destriçar íentre esse extasi
immundo, minha mulher das outras creatu-
ras ? Findo o espectáculo, uma raparigui-
nha de fatos curtos, com um capuz de vel-
ludo carmezi, ia fazendo a critica da peça
ao seu papá — Meu Deus, é muito fresca...
e o papá fez bem em não ler deixado vir a
mana mais crescida!
N'este ponto espero que o leitor conclua
o que eu não lhe posso estar aqui a dizer
ponlo por ponto. Passo em revista as desa-
taviadas paginas que n'uma vida de chro-
os GATOS âl
nista já longa me tem sido dado traçar ao
acaso dos assumptos correntios, e por mais
que insista não descubro n'essa obra d'oc-
casião, fortuita e pallida, um só motivo, uma
só phrase, por onde caiba a fama d'escri-
ptor licencioso que me arrogam. Uma ou
outra vez irei buscar ao vocabulário plebeu,
convenho, epithetos que os chamados buri-
ladores de salão põem de parte, ou chico-
tadas e cautérios que de modo nenhum re-
presentam grosserias de propósito, senão
pura e simplesmente o gorgolejo que á mi-
nha indignada franqueza arrancam certos
assumptos sociaes colhidos em flagrante. De
sorte que «immoralidade», a havel-a, não é
a que rechina do verbo rude d'eslas chro-
nicas, salubre de resto, mas a que bortoeja
do flanco que uma sociedade corrupta ofiíe-
rece ao bistouri. Não ha palavras immoraes,
mesmo em pamplileto ; assumptos torpes
não podem ser tratados em linguagem vir-
ginal, e é bom que se saiba que quem ma-
neja uma penna deve ter do papel d'escri-
ptor noção mais estridente do que espremer
phrases cândidas para entretenimento de
madamas que vão á Trindade applaudir o
22 OS GATOS
Parfum, como cocottes. De mais, como ler fé
nas ausleridadeslillerarias á'umselectedque
faz ovações ao Parfum na noite do mesmo
dia em que me declara a mim licencioso? Li-
cencioso, porque eu lhes não ponho em pi oza
de cão fraldeiro, fedendo á leucorrhea .'ibs-
Irusa das alcovas adulterinas onde ellas in-
tercalam Bellot comas leituras dos livros de
orações, essas sensaborias mórbidas, esses
idyllios suspeitos a que as acostumaram os
escrevinhadores ataxicos da geração que vae
correndo. Licencioso porque se faz taboa
raza aqui da periphrase lamecha que ha cin-
coenla annos tresvia entre nós o espirito
litterario, que ou consiste em escrevern'un>
estylo de creanças, ou em occultar as ex-
pansões do estro humano n'uma aravia de
capangas onde a melifluidade não exclue a
bestiíicante hypocrisia. N'essa sociedade on-
de deliquesce tudo em podridões subcutâ-
neas, e onde o espirito da formula, a reli-
gião das apparencias nem chega a satisfa-
zer mesmo a illusão dos mais ingénuos, co-
mo aturar se exija para escriptores nacio-
naes a luva branca, quando não ha cabotino
f rancez que a não faça delirar, de luva pre-
os GATOS 23
ta? As filhas d'aquelle banqueiro e as cu-
nhadas d'aquelle general, esse antigo mi-
nistro, esse chefe de partido, esse polluido
deputado, todos os conspícuos P.P. emfim
da maçonaria de tartufos que acorrenta o
paiz ao snobismo das suas viciosas conve-
niências, todos esses me expliquem por qual
duplicidade repellem elles um escripio onde
no silencio do seu quarto toparam com uma
palavra «mal soante», e ao mesmo tempo
aceitam de mãos rotas uma comedia onde á
vista de todos andam em exhibição, três
horas, os órgãos genitaes de quatro malan-
drões e uma mulher. Não, não me dispenso
do vomito que esta moral intermiltente me
provoca, e se valesse a pena o desprezo, eu
explicaria a todas essas bonecas desdenho-
sas como é que o pudor assim interpretado
toma o caracter d'uma aberração nympho-
maniaca das mais tristes.
24 í/e março.
Ao fim de três exposições do Grémio Ar-
24 OS GATOS
íistico, sociedade organisada menos para fo-
mentar as artes do que para prover ao mé-
nage dos artistas, já se está vendo qual o
futuro provável do tal grémio, que será re-
trahir cada vez mais para mysantropias nos-
tálgicas os verdadeiros pintores, deixando
aos curiosos o furor de se exhibir. Esta ex-
posição é já de feito o symptoma prenunciai
do advento do curioso á gloria da publici-
dade, a feira franca da pintura conslituida
em prenda feminina, e inscripla no catalogo
das habilidades de mãos, ao lado do bor-
dado a torçal, das flores de sabugo e dos
lavores propios do sexo. Exhaulorado a tal
ponto um congresso d'arte cujos inicios, se-
não triumphantes, pelo menos deixavam
prever ao Grémio um futuro de conscencioso
esforço e honesta laboração, poucas sympa-
thias lhe restarão da critica imp:ircial : á uma
porque a ideia d'arte seja incompalivel com
a do negocio ao metro, á outra porque não
é mais possível tomar a serio certamens on-
de a pintura ameaça tornar-se em carta de
curso de meninas casadoiras. E' doloroso
assim vêr frustrado um tentamen sympathico
de regeneração picturial, e liquidarem em
os GATOS 25
apromptadores para exame, moços artistas
que o destii)0 fadara talvez para mais viris
reputações. A exposição actual offerece de
pictoresco esta imprevista nota de reclamo;
e vem a ser que ha discipulas assignando
com doze lições quadros que os mestres es-
pozeram no anno passado, e mestres que
para sublinhar os progressos das discipulas
não duvidaram subscrever como trabalhos
seus patacuadas que nenhuma d'ellas quiz
expor. Correndo as salas d'exposição uma
por uma, é-se ferido pela quantidade de
mercearia que ressumaa pintura portugue-
za, e pela paragem chalra de talento e de
processo em que a ciganice da venda para-
lysou a acção até dos mais conscenciosos
estylislas. Rarissimos, pode-se aíBrmar, pen-
sam em arrojar-se a uma elocubração de
sonho esthelico supremo, e em pôr o seu no-
me ao canto d'uma pintura com vislumbres
d'obra definitiva; ninguém progride, e o que
é mais terrível, quasi, quasi todos retrogra-
dam. Esta conclusão final é deplorável, e
escandalisa tanto mais, quanto é certo ter
o odioso retrocesso por movei causas que
deshonram profundamente o officio de pin-
26 OS OATOS
tar. Essas causas são de sobejo conhecidas
enão gastarei carvão para as ferver. A edu-
cação preliminar d aíeter foi em quasi lodos
os artistas descurada, raros desenham, poucos
conhecem de theoria sequer a sciencia dos
tons e perspectivas, rarissimos sabem obser-
var, e os que observam não concluem, do que
rezuha nenhum sentir o quadro, e conse-
quentemente sabel-o compor in mente, an-
tes de lhe dar realidade. A todas estas de-
sagradáveis desfallencias juntar-se-hão as
necessidades de dinheiro, levadas nos mais
reputados a uma cubica de vendilhões á coca
de se encher, e sobrelevando, o completo
desprezo que lhes merece o publico grossei-
ro, o publico pagante, incapaz de sentir as
obras pessoaes, de ser tocado por uma ex-
cepção de gosto tergiversante do ramerrão
banal oleographico, edesafiando-os por isso
mesmo, a elles, artistas, ao rien faire do qua-
drinho de dez libras, com duas bestas, um
parreiral, e a ponte d'Aigés onde na Judia
está Jerusalém.
Tenho medo d'apontar exemplares com-
provativos das insuíBciencias intellectuaese
moraes que atraz fixei, e pelas quaes vejo
os GATOS 27
apagar-se a febre d^arte sob que ha seis ou
sele annos se iniciara o grupo do Leão. Nos
artistas parados o melindre profissional é
uma ulcera dolorosa, tocar-lhe ó fazel-os
soffrer horrivelmente ; e de que serviria isso ?
— á hora em que vamos já não brotaria da
raclagem qualquer reacção salutar para a
pintura porlugueza.
Não poderão dizer os pintores queámin-
goa de publico lhes esmorecesse a antiga
actividade,porquanto mesmo nos annos maus
seguidamente o publico concorre a comprar
telas, fornindo áquelles garantias de vida
que elle sonega aos melhores dos seus mo-
dernos escriplores. Tão pouco alegarão lhes
tenha faltado o applauso da critica, os rui-
dos da voga e as sympalhias geraes da op-
nião. Tudo isso teem tido ás regaçadas, e
eis o que torna a sua apathia deshonesta,
porque na plena seiva em que estão parar
não é uma crise psychica da edade ; parar é
uma ronha de typos que se alapardam sob
o para-sol de nomes feitos, e querem intru-
jar o seu tempo com painelices pelintras e
leilõesinhos de pintura acarneirada. Pois não
é justo exigir á paleta d'arlistas superiores co-
28 OS GATOS
mo Silva Porto, cuja technica completa e cu-
ja sulil annolação não podem mais preoc-
cupal-o sobre os meios de fazer em que tro-
peçam os seus collegas, não é justo exigir,
dizia eu, d'essa surprehendente aptidão de
paysagista e animalista, de quando em em-
quando um quadro mestre, onde o seu estro
fique sobredoiíado na concepção immortal
d'uma obra prima? Vejam-se as suas ex-
posições de sete annos : é tudo ensaios,
apontamentos mais ou menos completos d'
uma obra de fôlego que o artista, com uma
cobardia singular, evita d'anno para anno,
preferindo viver aii joiír lejoiír do prestigio
que se fez na esperança desilludida sempre
do publico, e adiando para as kalendas gre-
gas a apotheose suprema a que tem jus.
Digani-me se não é realmente um crime
deixar dormir nas fáceis gloriolas do qua-
drinho ao alcance de todos esse pincel que
poderia sem grande esforço, quintessencian-
do um pouco as suas bellas faculdades poé-
ticas em gérmen, interpretar em três ou
quatro telas typicas as grandes commoções
da nossa vida rural, apercebendo d'esla não
o detalhe enterno, a nota anedocticaousen-
os GATOS 29
limental, que é o que Silva Porto explora e
pinia nos seus languores de poeta pregui-
çoso, mas as divinas núpcias e segredos Ín-
timos da terra, mãe benévola e pródiga, os
fecundos e maternos âmagos da paysagem,
a gynecologia esplendida do húmus, toda a
epopeia dos laços que prendem emfim a na-
tureza bruta ao ser, este á idêa, e a ideia ao
sonho immalerial.
Abanco em frente do grande quadro de
carneiros que passa por ser uma*das coisas
capitães de Silva Porto; bocado de dois
metros, onde, por uma azinhaga esboroenta
dos calores d'agoslo, vem uns carneiros, um
burro e um pastor. Na barreira da esquer-
da ha uns silvados, piteiras á direila, e aci-
ma d'estas uma oliveira ferrugenta, comida
de poeira, queimada dos ardores do sol e
pondo uma silhueta doente, hostil, n'um
ceu de trovoada. Toda a figuração da scena
é escrupulosamente composta do modelo, e
tão authenlica a poeira do fundo que uma
pessoa a chegar- se e a ficar com o casaco
branco d'ella. Pode-se estudar também cada
accessoriosinho da pintura, está tudo exacto,
no seu logar, com uma factura tão nilida.
30 OS GATOS
e uma consciência do minúsculo por tal
forma escrupulosa que é impossível destrin-
çar na lã dos carneiros fio que não seja pura
lã, e na ramada das silvas folha que não te-
nha sido vista a microscópio. Photographe-
se agora a tela, e tão exacta é a copia, que
pelo cliché não ha meio d'apurar se a ma-
china apontava a um quadro, ou se visou
realmente uma scena natural. Eis ahi, me
parece, a melhor critica aos carneiros de
Silva Porto, schemmados pela photographia
té uma copia banal do modelo morto, e au-
Ihenlicos ao ponto do artista abdicar do eu
sonhante, para n'essa obra depor apenas
como uma testemunha imparcial. Quando o
pincel assim se enfeuda á realidade por
uma forma tão árida, por mais valor que se
tenha o sacerdócio do ideal é lettra morta,
e d'esse instante, perdido o dom d'evocação
poética na arte, opaysagista não passa d'um
empalhador da natureza.
O Christo, de Salgado, me parece, ape-
zar da convenção theatral que o grava a
branco ii'uma serrania aspérrima em cre-
púsculo, a única tentativa de paysagem psy-
chologica que ainda me foi dado olhar nas
os GATOS 31
exposições do Grémio Artístico. Escuso-me
absolulamenle a vêr n'essa melodrama liça
phantasmagoriâ a revoada de talento origi-
nal que os fetichislas do auctor lhe outor-
gam um pouco á ladiable, e mesmo me pa-
rece qne suíTocada a estranheza da visão
primeira, gradualmente empallidece a im-
pressão do quadro no espirito já desalvoro-
çado de quem olha. Conhecem de certo a
tela, não me cangarei portanto a esquissal-a
em minudencias.
O Nazareno acaba de deixar no olival de
Guelhsmani os discipulos amadornados de
fadiga. E' a hora dos fortes que não tendo
mais a espreital-os, linguareiros, tiram de
súbito a mascara impassivel, ficando então
fracos e humanos na negação da sua origem
de seres excepcionaes. Prezo d'essa amar-
gura insondável dos remidores de mundos
frustrados pelo egoísmo estúpido da turba,
Jesus adentra-se sósinho pela charneca en-
sombrada, ella também, pelos pezadellos
violetas do crepúsculo. Não é uma paysa-
gem de vale, extensa, onde os pensamentos
vão como corcéis, o ermo onde o pintor pin-
tou o seu protogonista, mas uma espécie de
32 OS GATOS
resvaladeiro estreito, suffocante, com riban-
ceiras a pique, penedos, rosmaninhaes, for-
mas confusas, uma espécie de cuva trágica,
vidrada d'angustia, e reenviando aíflicla-
mente a alma do Redemptorao espectador.
A figura do Chrislo é posta n'uma das pon-
tas d'essa grande paysagem roxa de seis
metros; tem uma lunica branca em pregas
ílucluantes, illuminada por dentro á Jablo-
koff, e alça a cabeça com a expressão ita-
liana d'um tenor que fosse cantar o sonho
do Propheta. Por toda a tela se é ferido
pela quantidade de motivos grosseiros com
que ella arma á emoção desprevenida, e
pela factura berrante dos violentos contras-
tes em que é dada. A preoccupação moral
porém sobreleva em muito essa óptica de
theatro, e mau grado a mm-en-scène de
quadro dissolvente, a tela consegue impõr-
se por uma intenção profunda de conceito,
qual a de dar pela paysagem o estado mo-
ral do personagem, e fazer ler n'aquella pe-
nedia sinistra, como n'um espelho, a dolo-
rosa ulceração interior do Moralista divino
á hora do abandono.
FIALHO D'ALMEIDA
os GATOS
publicação
d'iiíquerito á vida portugueza
«." 54— 27àeJQDho(iel893
SUMMARIO
Cr-NTENARIO DO THEATRO DE S. CaRLOS
Seus pretextos, dispêndios e fins — O que
TEM sido o nosso THEATRO LYRICO Os «EN-
TENDIDOS» MUSICAES E CLASSIFICAÇÃO DOS ES-
PECTÁCULOS POR ORDEM DE LOCARES ENTRE-
VISTA COM Gervazio Lobato sobre a sua re-
tirada DO THEATRO T ALENTO SCENICO E PES-
CADA COSIDA — Uma opereta hillare sobre
OS duellos — Critica da peca e reparos >o-
bre a injustiça flagrante da sua satyra en-
2 OS GATOS
VOLVENTE KiM QUE SE PROPÕE UMA MODIFIGA-
ÇÃOSíNHA NO Fli\AL PoRQUE SE FECHOU A Ta-
PADA DA Ajuda — Palácio da exposição agrí-
cola, E DESLEIXO DOS PARQUES E JARDINS QUE O
circumdayam — Baldios onde SS. MM. melhor
PODEM ensaiar AS CRIAS DOS COELHOS— Em
Portugal todas as coisas roas são prohidi-
DAS — Bello Marreto, chronista de suas
REAES MaGESTADES.
30 de março.
No mez de julho próximo futuro comple-
ta-se cem annos que por iniciativa de Far-
robo foi inaugurado o thealro de S. Carlos,
e agora que ninguém pensou ainda em se-
riamente resolver a crise de Irabalbo que
recrudesce, as reclamações dos credores es-
trangeiros que balem á porta, a carestia da
alimentação e residência cada vez mais do-
lorosas par^ as chamadas classes depen-
dentes, jornaes, banqueiros e dilettanli gran-
des e pequenos, tudo é conluiarem-se, quo-
tisarem-so, reunirem-se. para que ao cen-
tenário da opera italiana não falte nenhum
4 OS GATOS
dos atiraclivos com que é uso celebrarem-
se os acontecimentos de luxo, quando os
escora a vaidade de dúzia e meia d'ociosos,
de braço dado com m.eia dúzia d'argenlarios.
Pouco importa que o pão falte cá dentro e
falte lá fora o credito e o bom nome, que os
cslabelecimentos de credito derruam, min-
gua d'amparo, e feneçam os estabelecimentos-
d'instrucção, mingua de zelo. A turba-multa
dos gozadores da capital tem musica estran-
geira ? Ha duas grozas de millionarios para
ostentar equipagens na Avenida e fazer
claque á pbilanlropia scenograpbica da
rainha? O resto é bagalella, e tudo está,
diz um jornal, em fazer o theatro de S.
Carlos «centro de concorrência para o fausto
e brios d'uma capital que se diz civilisada.»
]N'esta conformidade pois já se pensa em
pedir ao governo um crediío extraordinário
para tornar o centenário da inauguração de
S. Carlos uma obra de preceito, o consenso
unanime sendo que se não poupem despe-
zas para dar brado na Europa com tal fes-
ta. De toda a banda chovem alvitres, ideias
de pompa e pretextos d'esbanjar o dinheiro
do paiz em bagatellas. Toda a gente esque-
os GATOS 5
ceu de repente as agonias próximas e ins-
tantes, trocando a angustia da situação ac-
tual, desesperada, pela fascinação da festa
que ha-de ser essa noite de julho, relem-
bradora das tantas com que o iheatro de
S. Carlos mais d'uma vêz tem engordado as
casas de penhores. E no fim de contas,
mesmo sob o ponto de vista da musica, que
é apezar dos seus grandes foros d'arte se-
ria, um passatempo, qual tem sido o papel
de S. Carlos na desinvolução das artes na-
cionaes e no cultivo religioso da emoção ?
Acaso alguma vez se viu sob a influencia
de tantos annos de subsidios lyricos, surgir
entre os frequentadores de S. Carlos um
gosto fino, um critério acústico educado,
uma paixão philosophica e forte pela obra
genial dos grandes mestres? Em cem annos
d'exercicio, a historia das paixões musicaes
que S. Carlos tem abrigado, nunca passou
em bôa justiça de charivaris sem importân-
cia, iniciados pela claque, inspirados pela
sympathia pessoal d'um cantor pandego,
pela belleza d'uma prima-dona algo dengosa,
ou então pelos bilhetes de favor do empre-
zario.
6 OS GATOS
E percorrer em noites de semana, aht
do segundo para o terceiro aclo, a galeria
e disposição dos frequentadores habituaes
d'aquelle templo. A única emoção palpitante
está no gallinheiro, logar pobre, esconso e
recôndito, onde algum melomano extático,
d'olhos fechados, deixa librar a phantasia
a sabor da inspiração que a musica es-
pirala. D'ahi para baixo, quanto mais se
descer, menos se encontra ; uma ou outra
camará escura mental repintando aqui e
além pedaços melódicos, em coloridos pes-
soaes, poetisados ; alguma prima-dona de
terceiro andar, inédita e furiosa, fincando
as futuras glorias da sua estreia sobre os
fiascos dos cantores de profissão, e o resto
admirações e extasis sem alma, phrases de
cor a respeito da voz d'uma, do phrasear
d'outra, da nasalidade do barytono e da es-
cola melódica do maestro, tudo quanto em-
fim os Bedéckers do theatro lyrico aconse-
lham para na bôa roda se não passar por
japonez. Descendo á plateia, só visto . . .
Nas primeiras filas de faiiteuih, que eram
antigamente os logares caros, uma caterva
real d'individuos dedassés, sem domicilia
os GATOS 7
moral, ao fanico da ceia ou do emprego, co-
coties, janotas entretidos por níulheres, ve-
lhas sem sexo, jornalistas sem nexo, e an-
tigos solteirões sem dentes á procura d'um
meio de distracção. E' d'aqui que partem
os movimentos d'applauso ou de protesto,
os artigos criticos d'escacha, os rapapés ás
deusas e os bofetões por motivos de ciúme.
Para traz é massa avulsa, pés frescos, na-
moristas: os que ficam da esquerda, namo-
ram a segunda ordem da direita, e vice-ver-
sa, por forma que para estes a opera é sim-
plesmente um meio de distrahir a mamã ou
o marido, e ter quatro olhos piscanços sem
reparo da bella sociedade.
Tal é a sala que musicalmente dieta em
Portugal as leis do gosto, intimida os can-
tores, e tem pretenções de lá tora passar
por entendida. Gomo sob o ponto de vista
do utilitarismo reinante as instituições se
apreciam na rasão do proveito immediato
ou remoto que são capazes de dar aos fun-
dadores, perguntar-se-ha que benefícios au-
feriu a musica nacional n'estes cem annos,
com os enormes dispêndios que o theatro
de S. Carlos nos custou. Indo aos archivos
8 OS GATOS
da casa e historiando summariamente o
successo das ultimas operas nacionaes n'a-
qaelle palco, apura-se que os espectadores
de S. Carlos, escandalosamente benévolos
por mais d'uma vez com operas estrangei-
ras de nenhuma valia, se lêem mostrado in-
transigentes com os trabalhos de maestros
porluguezes, pateando o Eurico, paleando
o Arco de SanfAnna, pateando o Elixit da
Juventude, di Der elita, impedindo a represen-
tação do D. Bibas, recebendo de mau hu-
mor o Frei Luiz, desdenhando do valor da
Dona Branca^ e finalmente não dando o me-
nor signal d'inleresse quando ha poucos mè-
zes S. Carlos deu dois pontapés na Irene
d'Alfredo Keil, que a cidade de Turim acaba
de consagrar por entre ovações calorosíssi-
mas. E' d'uma pouca vergonha inqualificá-
vel! Conviríamos em que não seja d'aza-
bumbar o mundo o movimento musical por-
tuguez dos últimos vinte annos, todo elle no
estado de tentativa, como de reslo as outras
manifestações seriaes de bellas-artes ; mas
nem a creação da grande opera é coiza tão
fácil que possa estabelecer o precedente de
só se aturar o que é sublime, nem os gran-
os GATOS 9
dtís compositores abundam no mundo já fei-
tos, por forma a não valer a penna dar
hausto a debutantes. Em qualquer dos ca-
sos seria a platea de S. Carlos a ullicna a
quem de direito coubesse o pronunciar-se
sobre a musica nacional, acerbamente ; á
uma porque tralando-se duma obra porlu-
gueza, a sua obrigação moral fora applau-
dil-a; á outra porque dada a estupidez col-
iossal de que essa platea ha leito praça,
cumpria-lhe antes, em caso d'insuccesso,
manter-se em espectativa, que não afixar
ruidosamente opiniões sobre matérias para
que não tem cartas de guia.
Gehibrar por consequência o centenário
diurna casa que só tem dado lucros a es-
trangeiros, e só tem servido para enlreienga
de ricos e vadios, d'uma casa que nos custa
mais cara que uma escola e a quem a edu-
cação geral nada deve em prol do bem com-
mum, é sobre prova de snobismo estulto e
caricato, um signa! de desnacionalisação
para juntar aos mais que temos dado. U
centenário de S. Carlos ainda valeria como
começo de regeneração, se essa estapafúrdia
festa de janotas fosse o signal d'uma vida
10 os GATOS
futura mais adentrada aos interesses nacio-
naes. Temos por esse mundo uma alluvião
de cantores a fazer vida, e alguns magnífi-
cos, que muito conviria installar entre nós,
des'qne S. Carlos fosse, como devera ser, o
grande templo da opera portugueza. Não
digo que passássemos toda a epocha a ou-
vir o António d'Andrade, o Álvaro Roquelte e
a Júdice da Costa a gargantear um repor-
tório exclusivo d'Alfredos Keils, viscondes
do Arneiro, Noronhas e Miguel-Angelos.
Entanto esmaltando com a maioria d'aquel-
les nomes o elenco do iheatro, inscrevendo
no reportório com eíTectividade as operas
mais bellas, já assim se daria corpo a um
grupo d'apticiões abandonadas, e satisfação
ao patriótico desalento que allega que de
nenhum tentamen glorioso somos capazes.
1 de maio.
Deram os jornaes noticia de por desgos-
tos d'uma opereta da Rua dos Condes, ca-
bida em desagrado, se retirar do iheatro,
os GATOS 11
Gervazio, o libretislít hillare que Ião bem
recebido íoi em Portalegre aqui ha tempos.
O caso foi soado, e grande numero dos
que costumam rir das embrulhadas do
grande theatrista correram em massa, cho-
rosos, a lhe pedir sustasse a tétrica am^^aça,
e não fosse para Valle de Lobos um ho-
mem que se por um lado poucos contactos
tem com Herculano, por outro, como Rabe-
cão Grande só hyperbolicamente pode equi-
parar-se aos frescos de Pompeia.
Não vem a p^llo explicar o interesse in-
tenso que os trabalhos theatraes de Gerva-
zio despertam em geral, mas sempre direi
que ouvindo as folhas rosnar da abalada do
escriplor para o silencio, com grande grila
deplorei também, tão dura perda, d'alli pro-
posilando logo ir á Rua do Passadiço enlre-
vistal-o. Encontrei-o, já se vê, fecundo e fero,
largamente adiposo, sentado á banca com
uma careca de margrave, e repartindo a sua
aclividade entre uma opereta nova e uma
pescada cosida com batatas. Se era certo en-
tão não escrever mais ? Riu-se á Falslafl", e
com aquelle gaguejo cheio de bonhomia, es-
pécie de reticencia rida que tão bons direitos
12 OS GATOS
d'auclor lhe lem valido, concedeu-me dizer
que sem pescada cosida, viver não dava a
conla, e uma vez no bandulho a pescada, for-
çoso era resliluil-a... em peças de três actos.
Por consequência, sustada a tiragem lillera-
ria, como a pescada com batatas lhe fosse im-
preterivelínenle necessária ao temperamento,
entoxicar-lhe-hiam o sangue as ptomaíuas
theatraes que a pescada lhe fazia no intes-
tino, e d'ahi a morte, coisa do diabo para
um vivedor regalào como elle estava.
Apontando-rae a pescada e o caderno
novo da opereta: — hein? se não eslava
alli patenteado o seu processo de trabalho ?...
Por uma banda mascava a pescada, por ou-
tra banda deitava a peça: nada de peça
sem pescada, nada de pescada sem peça...
Em conclusão, não se retirava do thealro,
porquanto não podendo viver sem peixe co-
sido, não produzir theatro, era morrer.
— iVJas, disse eu, se está averiguado que
essa abundância de veia cómica provenha
especificamente do peixe, porque não subs-
litue V. a pescada antes por algum comes-
livel menos hillareaceo?
— Já experimentei o beef, mas é peor.
os GATOS 13
porque aveia cómica subslilue-se então veia
dramaiica.
— Realisa v. na verdade uma forma de
talento inexplicável, o talento por causa das
comidas. . . Experimentou já alguma vez
por acaso comer herva ?
— Oh, essa quasi que não tem influen-
cia sobre a qualidade especial das minhas
ideias, e se adrego a manducal-a, perco para
assim dizer a personalidade d'escriptor, e
nada escrevo.
— O caso é physiologico. Absorpção mais
fácil, quantidade menor de reziduos diges-
tivos. Mas derivando d'assumpto, que obri-
nha nova traz propositada hi no caderno ?
— Uma opereta hillare sobre os duellos.
— Que o assumpto é recente, e por certo
V. despejará no libretto copia das ptomainas
laes que a pescada cosida lhe diz faz. Já a
tem toda ?
— Um acto apenas, que me parece des-
tinado a um successo incomparável. Posso
conlar-lh'o a correr, se lhe dá gosto.
— Fu quasi que não ousava pedir tanto.
— Em cerla rua da Baixa dois sapateiros
teem questões por causa d'um seu collega
14 OS GATOS
da província. Um é da casa real, um sapa-
leirinho videiro, pondo bandeira nos dias de
gala, 6 trabalhando especialmente em forma
torla. Outro, o offendido, é uma espécie de
sapateiro associativo, mui democrático —
Ião democrático que sendo a loja d'elle ahi
para o pé do Carmo, umas vezes por outras
não se importa d'ir ate á rua dos Mouros,
d'avental.
— E vae, produzido o aggravo, o demo-
crata manda ao aristocrata testemunhas
— Duello á pistola, tiros pr'o ar a vinte
e cinco passos de distancia, com a clausula
feroz do combate seguir até ficar alguém es-
tendido morto.
— O theatro representa pois, estou a vêr,
os dois sapateiros no campo da honra.
— Que no caso subjeito accumula esta
funcção com a de Campo Pequeno. Ora o
adversário que primeiro chega, abanca
n'uma tasca a petiscar mal-a companha. Fal-
iam da pugna, e em vozes tão altas que o
taberneiro tudo percebe. Vae, como o taber-
neiro é ao mesmo tempo aucloridade
— Belloj Bello! Lá começa o enredo a
deitar as mãosinhas de fora.
os GATOS 15
— tendo já visto muitos duellos
desfechar por um almoço de reconciliação e
pescadinhas, em vez d'exercer sobre os ad-
versários a sua fiscalisação impeditiva e pa-
cifica de regedor, o que faz é ir renovando
o rascante das canecas, e passar lembrete
aos amigos a que venham depressa vêr a
pantomima.
— E' bem achado.
— Ahi chega ao campo o outro adversá-
rio, o sapateiro democrata, e quando o
que petiscava na tasca vae a pagar a conta
ao taberneiro, esquece-se de lhe gorgetear
pinguemente a discrição, o que esfuria o tra-
tante, que só n'esse momento se lembra do
seu papel de regedor.
— Estou a ouvir d'aqui a ária do taber-
neiro escamadissimo, detalhada na mu?ica
do Cyriaco
— Encontro dos duellistas, que se saú-
dam n'um motivo de rabecões muito gro-
tesco, e coro das testemuhas, occupadas a
medir o terreno e a carregar de bala os ca-
nos das pistolas. Quando já os adversários
postados em face, averigua Miguel Slrogoff
que não estão sendo observadas com{)leta-
Ib' os GATOS
mente as praxes do duello. O sapateiro aris-
tocraladista do seu rival vinte e cinco passos,
emquanto este se distancia d'aquelle, vinte e
seis. E sabedor das regras como poucos,
Miguel SlrogotT
— Miguel Slrogoff?
— Sim, o juiz do campo.
— Ah, o juiz do Campo Pequeno.
— Qual I o juiz da pugna, o que manda,
põe e dispõe as coisas do duello.
— Já comprehendo. E' o papel do baixo
cómico.
— Entrementes tem carregado as pisto-
las a fidalga d'Arronches.
— -A fidalga d'ArronchesI... Mas para
que diabo apparece como testemunha do
duello essa fidalga?
— Homem, como é duello d'um sapateiro
da casa real, e esta creação agradou nas mi-
nhas outras operetas O peor é que na
Rua dos Condes não haverá quem faça este
papel. Precisava d'um actor que como figura
correspondesse a isto: uma barriga com uma
pennaatraz da orelha. Você conhece algum ?
— Não lhe fazendo transtorno que a bar-
riga tenha algum cabello.
os GATOS 17
— Ora a fidalga d'Arronches que como
monarchica de gemina nulre pelo sapateiro
jacobino um o'dio assolapado, proposita fa-
zer marosca na carga das pistolas, e ás es-
condidas mete uma bala de miolo de pão na
destinada á barriga do seu cliente, ao passo
que envenena com óleo de mamona a des-
tinada a fazer espichar o adversário.
— iMuito catita!
— Prestes a ferir-se a lucta, entre a se-
gunda e a terceira palmada do juiz do
campo, vê-se uma chusma de gente arre-
bentar detraz de um muro, e romper o coro
Sustem por Deus as sanhas furibundas !
entrecortado pelo arioso
Presos estaes, presos estaes !
Olél Olé!
do taberneiro regedor, vindo a calrafilar os
rivaes em desforço da gorgeta recusada na
taberna.
Immediatamente coristas e comparsas
enchem a scena em gnão tumulto, armados
d'oculos, seringas, paus de vassoura e ou-
9
18 OS GATOS
Iros apetrechos guerreiros de presa e al-
cance, e todo este mundo faz cerco aos
duellistas, incilando-os com qss... qss.., de
grande alacridade. O inesperado porem sobe
de ponto quando entre repiques de sinos
surge o prior do sitio, todo em lalares ves-
tes, como uma branca communhão n'um ta-
lho, como diria o Eugénio de Castro, e no
meio das seringas volvendo respeitosas
á bainha, espórtula sua predica christã
sobro os duellos, citando aos duellistas
como exemplo os contendores do velha
e novo Testamento que em questões pes-
soacs preferiram antes esmurrar-se as
focinheiras do que lançar màos de pisla-
rólas assassinas. A predica parece exercer
grande pressão moral sobre os sanhudos
balalhistas, que saccam dos ranhosos para
enxugar as lagrimas de conversos, e entre-
mentes que o coro entoa o
Milagre ó céus, milagre è este que
sobre um motivo lento dos fagotes, o cura
tem coagido com citações latinas o juiz do
ampo ao descarrego das armas — sobre oc
os GATOS 19
que, reconhecida a aulhenlicidade do pão
ázimo no miolo das balas, vae a exigir que
cada qual dos sapateiros, em lestemunho
d'espirito religioso, commungue a que lhe
era destinada. Na confusão porem as balas
Irocam-se, indo a de miolo de pão parar ás
tripas do sapateiro republicano, e estando a
d'oleo de mamona eminenie nos dedos do
prior sobre a lingua estendida do sapateiro
aristocrata. E' n'este momento que a fidalga
d'Arronches reconhecendo o dedo de Deus
nas consequências nefandas do seu crime,
avança em grandes gestos de Lucrécia pela
scena, e leonina de remorsos, deila aos gor-
gomillos a pilula purgante, arrancada aos
galtarros do prior.
— Que maravilhosa scena, meu Gervásio !
e como essa pilula de ricino é o mundo so-
bre que se equilibra, tão lúcido, o principio
moral do bem sempre triumphaLite !
— Esta agonia é uma passagem seme-
lhante á de Valentim no Fausto de Gounod :
coristas de redor confeccionam papas de li-
nhaça, e a preghiera
Pela barriga morro , ú deus dos boticários !
20 OS GATOS
que a fidalga diz rasgando o falo, fecha os-
tentosamente a peça, no momento em que
os padrinhos declaram satisfeita a honra
dos clientes, e vem uma commissão em
nome da cidade fehcilar os heroes pela co-
ragem qne mostraram — ouvindo a pre-
dica do prior sem no correr.
— Lindo trabalho, esplendido Gervásio.
se bem que como satyra ao duello algo pi-
cado d'exageros que são profundas injus-
tiças. N'esle libreto pretende você mostrar
que os desafios polas armas, laes como en-
tre nós se interpretam, não vão além d'ar-
remedos grotescos tendendo a fazer com que
os adversários, por uma viagem d'ida e volla
ao chamado campo da honra, se despensem
realmente de desforçar a supradita no cha-
mado campo da lambada. Peço para refle-
ctir um pouco na calumnia assacada pela
sua obra sobre a valentia d'um povo que
desde as cruzadas vae á guerra. Supponha
que o duello tal como vossa mercê o enge-
ringonsa, em vêz de ler por gladiadores, dois
sapateiros, metia antes jornalistas. Acredita
que houvesse algum capaz d'enlregar ques-
tões de pundonor á confidencia d'ura tas-
os GATOS íl
queiro, e de consideral-as liquidadas pelo
discurso d'um padre e dois liros de pista-
róla para o ar ?
Gervásio redarguiu :
— Essa critica provém de você imaginar
o assumplo do meu libreto verosirnil, coisa
que jamais me passou pela cabeça, verdade,
verdade. A minha opereta não passa d'uma
charge, porque não iia meio de crer que sa-
pateiros se batam como eu pinto, quanto
mais transportar o caso a escrevinhadores
cujo papel, supponho, é dirigir a opinião.
— Que ? ! pois a arenga do prior, a pen-
dência de honra epilogando com uma salva
para as nuvens, os cumprimentos da com-
missão e as aclas dos padrinhos refazendo
uma consciência nova aos pislolistas, é tudo
brincadeira, charge, pura invenção jocosa
do seu caco ? Nada d'isso se deu por Lis-
boa, em tempo algum?
— Absolutamente nada, pois mais que
ninguém, amigo, persuadido estou da per-
feita seriedade do duello entre homens de
jornal. Ainda ha pouco tempo um houve,
sobejamente grave pelas circumstancias de
ferocidade em que foi feito. E se nenhum
22 OS GATOS
dos combatentes feneceu, é que ao menino
e ao borracho
— Muito me praz de lhe ouvir trovar Ião
justa homagem. Pode ser que a pescada co-
sida exagere a entrite cómica ao meu escri-
ptor, mas acquiesçamos em que lhe edulcóra
também divinamente as lealdades dalma e
coração.
— Em bôa bora o digal
— Por consequência não sendo a sua
peça, como diz, mais do que uma pyrote-
chnia hillare d'espirilo inventivo, não me
poderia você fazer cerla modificaçãosinha
no final ?
— An?
— Não poderia fazer, por exemplo, com
que a fidalga d'Arronches depois dos arran-
cos da pilula começasse a fazer, um depoi-
mento sobre o empréstimo de D. Miguel ?
25 de maio.
A pretexto de certa cacetada esgrimitia
por um faia á cabeça d'um guarda campes-
os GATOS 23
tre, acaba a administração da casa real de
prohibir as visitas á tapada d'Ajuda, salvo
nas quintas feiras, em que está publica, pa-
rece que por ser dia feriado entre os cace-
tes homicidas. Ignoro porque motivos se
veda ao publico uma propriedade que alem
de ser do Estado, isto é, de todos, pouco ou
nada contem dentro dos muros que possa
ser deteriorado pela visita livre do passante.
O antigo palácio da exposição agricola, em
vidro e ferro, ires pavilhões ligados por uma
espécie de galeria em meia lua, ficou depuis
da exposição fechado e entregue ao mais
criminoso e estúpido abandono, não se lhe
reparando os desastres da invernia, deixan-
do quebrarem-se-lhe os vidros, cair a ardó-
sia dos telhados, e só ha pouco recambian-
do-se para lá um certo museu agricola, que
no palácio do conde d'Almada dava bem
triste ideia da portugueza agricultura. Dos
barracões e hangares que conslituiam os
annexos da exposição, e custaram caríssimos,
ninguém mais tratou nem quiz saber. Foram
totalmente destruidos os jardins que alcati-
favam o montículo sobre que se erguia o pa-
lácio central da exposição. Grande parte das
24 OS GATOS
maltas plantadas por esse tempo, com ar-
vores de luxo, fracliferas e de sombra, co-
mo ninguém mais as tratou, seccaram-seoii
foram degenerando em rachilicas e cor-
cundas.
Finalmente aquelle recinto que na sua
parte accidentada e florestal poderia tor-
nar-se, com dispêndio pequeno, n'um es-
plendido parque a dez minutos de Lisboa,
mesmo sem sacrificio das terras d'onde a
casa real colhe a cevada e a fava que ha mis-
ter para seu uso, aquelle recinto pelo aban-
dono e o desleixo asselvajou-se, de sorte quo
não houve meio d'aproveilar a recreio publica
as profusas dezenas de contos alli gastas
por occasião do certa men agricola. Ora as
sollicitudes e disvellos que todas estas coi-
sas não lograram captar da administração
da casa real, emquânto fora mister olhar
por ellas seriamente, acaba de mereccl-as
uma réics, insignificante e daninha crea-
ção de coelhos bravos, com sede na região
montanhosa da propriedade, e que S. M.
cubica desenvolver para seus gozos de ca-
çador commodisla, á custa dos prazeres bu-
cólicos do pubhco, que já se ia afazendo a
os GATOS 25
ver na Tapada a mais deliciosa eslanciade
melancholia e flirlação.
Ignoro a qualidade dos Iranslornos que
a vedação d'aquelle passeio silencioso cause
ao povo. mas não me esquecerei de dizer
a inconsolável viuvez queelleintromeltenas
minhas ruminações mentaes darligoleiro.
De lodos os jardins e parques públicos de
Lisboa, nenhum como alapada lem estado
moral jusiaponente ao meu caracter. Enor-
me, deserto quasi, cheio d'escaninhos de
sombra e pellucias de ceara, olivaes, moitas
d'ulmeiro e pitospóro, madresilvas, favaes,
selvas d'aroeira e arbustos de charneca,
aquelle immenso cercado a dez minutos do
centro de Lisboa, era o meu jardim das oli-
veiras, o deserto nostálgico onde, três vezes
negado pelo publico, antes de cantar o Pi-
na, eu ia prosternar-me ao Deus dos my-
santropos, a lhe pedir desviasse de mim o
cálix onde no vinho rutilo da vida tinham
calíido moscas como o José Luciano e o
Hintze fiibeiro. Quantos milhares de ma-
nhãs e tardes, emboscado nas moitas, á
borda das rigueiras, de bruços sobre a her-
va, eu não li e reli livros amados, emquanto
26 OS GATOS
OS pardaes grazinavam «quem será este
maduro ?», — o rio espraiando a sua aguada
immaterial lé ao Bugio, e a massa da Ajuda,
com a torre de gallo dando quartos, os ca-
saes de Montes Claros, os moinhos e os ou-
teiros riscados de courellas, pondo no fundo
da vislaróla, cantante, uma nota de castello
solar em burgo lavrador. O solitário que
vindo do coração da cidade com a ca-
beça azoada do marulhar da vida lisboeta
logre peràer-se nos concentrados silêncios
da Tapada, e topar alnm com ulgum d'a-
quelles nichos de socego, á beira (l'um lago,
na meia laranja do observatório, na escada-
ria do palácio da exposição, ou mais sobran-
ceiro ainda, trepando a escarpa por detraz
das conslrucções, certo não pode furlar-se
á gratidão do Creador ter feito a natureza
Ião bonita, e ao borboleteante amor com
que Lisboa fanatisa plumitivos «desequili-
brados» a quem ella dá de comer o pão dos
cães e o caldo negro do.... Amorim. Que
projecto de livros, artigos, phantasias, eu
não tenho curtido por aquelles recantos bons
familiares, com o caderno de notas entre
os dedos, o cérebro longe, no erratismo li-
os GATOS 27
vre d'uma ave superior buscando os cimos !
Poucos passeios de Lisboa lerão como este,
ambiente de mais litilante e fidalga sug-
gestão, longe de parialos, litleratos, syndi-
catos e feijões carrapatos, ares de raelan-
cholia mais nobre, virtuosidades de tom
mais pitorescas.
JNa primavera, agora, certos dos seus si-
tios selvagens são verdadeiros bosques de
m^adresilvas onde teera conservatório os rou-
xinoes. Rouxinoes mysantropos, ronxinoes
orgulhosos, que não cantam em ouvindo
passar gente na estrada. Para escutal-os é
necessário ser amigo velho, ir devagarinho,
pé cá, pé lá, para lhes não assustar os filhos
na escola de solfejo, de sorte que elles te-
nham as mais exhuberantes provas do mimo
com que desejam ser tratados. Posto fora
d'estelogradoiro esquecido da grossa massa
dos passeadores que costumam prostituir
com a sua banalidade os silios poéticos, re-
legado pelos egoismos da realeza ciumenta
das crias de coelhos, para os passeios da
Lisboa central onde não ha meio de psycho-
logisar uma theoria artistica sem ter a as-
phixial-a logo a cara de manjar branco do
28 OS GATOS
Carlinhos Valbom, venho perante a admi-
nis Iração da casa real, como Diógenes^ recla-
ma r o sol que um principe mo tira, sob pre-
textos de caça, sabendo talvez que eu nada
mais possuo que eile me possa confiscar.
S.M.lem outros sitios mais próprios e me-
lhores do que a Tapada onde estabelecer o
quartel general das suas hecatombes. Tem
por exemplo a cabelleira do nobre conde
de Valtnças, tem o recinto Magalhães Lima,
tem Moçambique, tem os artigos políticos
do Melicio, tem os livros do Luciano e tem
o grémio artístico. Não ponha pois os caça-
dores de borboletas litterarias na contingên-
cia de deverem as suas innccentes ílirla-
ções a bilhetes de favor. Feche-lhes o par-
lamento embora, escorrace-os da Academia^
ponha baionetas caladas nos empregos que
elles alguma vez pretendam em detrimento
dos que desbarretam perante os quatro bu-
cefalos que na Avenida teem a honra de o
puxar. Eu cá por mim não me importo!
Mas quanto á Tapada, cuidado ! que eu sou
muito bom, mas quando me tocam nos meus
interesses, não é o primeiro que empandeiro
para o exilio. Realmente não ha nada inte-
os GATOS 2&
ressante em Portugal que não seja prohi-
bido. Alé para vender sapatos velhos na
feira da ladra é preciso licença especial.
Recantosinho piloresco por quem o foras-
teiro bohemio se enamore, vem logo quem
quer que seja dizer que não pode estar, que
é prohibido — e toca de pôr uma grade com
um soldado da guarda municipal. O admi-
rável parque da Pena, adquirido pelo Es-
tado para passeio publico dos que villegiam
por Cintra, terra onde tudo quanto é bom
está fechado a sete chaves, foi açambarcado
logo pela realeza regalona que o foi vedando
senão em todos, pelo menos em grande
parle dos seus alcandores e dependências.
A tapada das Necessidades, fechada. O rei
não quer! Os jardins de Belém, fechados.
O rei não dá licença ! Fechada a tapada
da Ajuda. O rei não tem coelhos. Ora não
ha maior pouca vergonha ! Por este cami-
nho ainda são capazes de fechar a cabeça
do Sérgio sob pretexto de S. M. querer fa-
zer lá dentro um viveiro d'ideias p'ra seu
uso.
30 OS GATOS
30 de maio.
S. M. a rainha, depois do que o Maneio
diz sobre os seus afagos aos boisinhos deve
desfazer se da ferradura apanhada em Ven-
das Novas, e pregar-lh'a ao pescoço, dnndo
assim preito ás lambiçocas do chronisla das
suas caricatas sensibleries.Q[\e\rii o leitor exa-
minar as velhacarias do periodo que trasla-
do, a vêr S8 n'outro paiz não era elle summu-
la para escadeirar o artista com meia dúzia
de fretes de changuiço. «A rainha saindo do
templo encaminhou-se para junto das car-
retas, e o mais desprelenciosamente possivel
começou acariciando os bois. Um murmúrio
d'admiração correu por lodo o largo comple-
tamente apinhado de povo, um frisson d'en-
ihusiasmo agitou lodos aquelles corações... »
Admiração ? Enthusiasmo? O Marrelinho
venha á barra explicar-se, quando não, não
abiscoita a ferradura de mérito agricola.
Porque emíim, dada essa coisa trivial que
é um afago a um boi, se realmente os de
S. M. alvoroçaram o povo alemtejano, certo
o alvoroço não proviria da caricia, mas do
sitio; quanto ao frisson d'enthusiasmo, ej-ijue-
os GATOS 31
ce-se o estafermo de que ha uma cornadura
nas armas da cidade. Foi por consequência
inconveniente duas vezes, inconveniente,
insolente, archi-indecenle — em recordar á
princeza equivocos ingénuos, e em recordar
aos maridos coisas tristes. Segue o [)ateta,
«ai a nossa rainha que não lem vergonha de
fazer festas aos boisinhos 1 dizia do nosso
lado uma rapariga do povo para um velho
que tentava occultar umas lagrimas que lhe
corriam pelas faces, servindo-se-lhe das ru-
gas, coms de rails, para mais íacilmenle
deslizarem. . . » Lagrimas deslisando pelos
rails das rugas. Que imagem ferro-viaria tão
catita ! Mais não diz se ao chegarem á es-
tação do Irazeiro, houve foguetes.
A dar credito aos madrigaes com que elle
bispolea á Luiz XV, as magestades, o povo
do Alemtejo seria uma espécie de bicho do
malto prestes a desatar-se em pranto de
cada vez que lhe passa á porta um estran-
geiro. Ora a verdade é que os alemtejanos
nunca choram, pelo menos por motivos in-
diíferenles, e que a visita dos reis em nada
lhes poderia espremer ao canto do luzio a
glândula da ternura, sabido na provincia
22 OS GATOS
que quando as mageslades viajam, os im-
postos augmentam — ou apparece algum
novo mal ás planiações.
«S. M. a rainha, fallando comigo ha
pouco, disse: creio que a minha visita a
Beja é um dos casos mais felizes da minha
vida.» E' a phrase da Covilhã, voltada na
costureira, e servindo nos batuques bejenses
como nova. Marreto, como todos os chronis-
las parvos, presta aos seus panegyrisados a
fajardiceda sua própria idiotia. Não ha meio
de se sahir esculptural da proza esconsa de
taes taii-bilatis. S. M se não diligenciar
precalar-se das entrevistas dos reporters af-
fectos á monarchia, deniro de pouco, sem o
sentir, terá ganho uma reputação d'infancia
cerebral Que será o successo cómico das suas
vellegialuras á pro^^incia. Em verdade <{ue
isto nos peza summamente, porque com a
sua formozura e a sua bondade, a illusire
princeza poderia crear-se na admiração do
povo um verdadeiro typo de rainha, se pro-
positasse emfim ter um ar mais de palácio,
apanhando menos ferraduras pela rua, afa-
gando menos boisinhos pelas praças, e di-
zendo pelos salões menos ingenuidades.
FIALHO D'ALMEIDA
OS C3JLTOS
INQUÉRITO Á VIDA PORTDGDEZA
A morle de Silva Porto trouxe ao enter-
necimento artístico dos que amaram a obra
e o homem, a ideia, tradiccional aliaz, de
se lhe fixar n'um monumento a gloria cân-
dida. Alvitres d'uns e d'outros precisando
o projecto, opinaram logo desde colocar-se-
Ihe a estatua ao centro d'uma praça, té re-
duzir-lhe as proporções d'immortahdade a
um simples busto sobreposto a uma espécie
de bloco de granito. Vou dizer o que me pa-
rece sobre o caso, suppondo que todos co-
nhecem a posição de Silva Porto na pintura
porlugueza, e a justiça que seja fazel-o lem-
brado ás gerações d'emocionaes. O estudo
da sua pintura, computado pouco mais ou
2 OS GATOS
menos em quatrocentos ou quinhentos qua-
dros, pela maior parte de pequenas dimen-
sões, reservo-o para quando discípulos e
adoradores levarem a feito a exposição da
obra completa, porque só ahi veremos em
toda a lucidez o corpo esthetico que a arte
de Silva Porto formava no seu espirito, e a
luminosa historia do seu sonho da paysagem,
tão organicamente ligado ao feitio physico
e á discreta penumÍDra em que o artista
sempre respirou. O que fragmentariamente
se poderia alvitrar sobre a natureza moral
nas suas relações com os productos da pal-
leta, já por varias vezes o escrevi n'este
pamphleto com a sinceridade e o ardor de
quem desejaria vel-o ascender depressa aos
cimos, e a impaciência de quem, sondando
o curto fôlego da vida, receava não ver ex-
ceder-se ao sublime essa admirável virgin-
dade de melanchohco pantheísta.
Está claro que dada a physionomia ar-
tistica de Porto e a qualidade especial da sua
obra, não são ellas d'estatura a atravancar c'
um bronze a praça publica, mesmo nos casos
da mais incondicional admiração: primeiro
porque o publico não poderia nunca admi-
os GATOS 3
ral-o como estatura dominante na vidacivica
do paiz, onde tantas grandes ligaras aguary
dam que a divida de homenagem lhes seja
paga: segundo porque realmente se não com-
padeçam com o penetrante perfume minúscu-
lo da obra, dum caracter tão intimo, tão para
poucos, os ambientes largos, frios, demo-
cráticos e banaes, por onde carroça a vida
pratica e tumultuaria da multidão. O monu-
mento tem de ser pois, não uma estatua colos-
so, á altura dos segundos andares, mas um
busto, collocado não n'um centro de largo,
mas n'um macisso de flores formando sqnare,
ou num^ pelouse orvalhada de jardim. Algu-
ma coisa de mimo, cinzelada pelos amigos,
collaborada por todos os discípulos, peque-
nina, graciosa, á altura dos beijos e dos
ramos., tocada como uma jóia e deante de
quem toda a gente pare e se enterneça.
Porque os monumentos grandes não são
para a adoração, mas para o respeito ou
para o enfado. Gomprehende-se que a es-
tatua d'um rei esteja alta, porque ninguém
necessita olhar para ella. Mas a efígie d'um
artista como Silva Porto, que legislou não
sobre oppressões mas sobre estados dalma,
4 OS GATOS
a bôa Ironte cândida desse commentador
amoravel da nossa vida rústica, tão nublada
de compassivas misericórdias pelas simples
coizas da aldeia e da boiada, essa deve~nos
estar perto da mão porque lhe enxuguemos
o suor agonico do olvido, perto da bocca
porque lhe beijemos a bocca pura d'evan-
gelista extático no bello, perto dos olhos por-
que todos os dias, na íianagem da tarde, ao
fim da hda, possamos ir vêl-a e dizer-lhe
t adeus, querido mestre!» Como Silva Porto
nunca foi popular e deve sel-o, pois os pínca-
ros da intelhgencia humana em todo o mundo
estão actualmente na arte e na sciencia — a
pohtica deixando de ser um pináculo para se
tornar n'uma caverna — não só a qualidade
do monumento será factor de propaganda,
como também o local onde o erigirem. Por
exemplo no largo da Bibliotheca, acho ab-
surdo: primeiro porque esse largo seja na
vida de Lisboa, um arrabalde: segundo por-
que elle de modo nenhum defronte com a
frontaria ou portada da Escola onde Silva
Porto professou. A Escola das Bellas Artes
não tem por emquanto frontaria, nem tão
pouco entrada, por emquanto. Não existe
(JS GATOS 5
como edifício. E' um cazarão provisório
que á Academia emprestou a Bibliotheca.
Em poucos armos ver-se-ha forçada a de-
sabelhar d'esse cacifro, e n'esse dia em que
desprezivo abandono íicaria coUocado o
pobre Silva Porto t . .
Já n'outro sitio, (aliando do gosto desas-
trado com que a merceeirice oílicial ia lan-
çando as bases monumentaes da Lisboa
nova, tive occasião d'alludir ao ridiculo es-
tylo das estatuas e á barafunda grotesca com
que as «commissões organisadoras de mo-
numentos» installavam estes no primeiro
saguão disponível, sem o menor respeito pe-
la magestade immortal dos seus heroes.
N'este momento Lisboa tem apenas dois
sitios que transformar em g;aleria de mortos
celebres; tem o Aterro para estatuas de na-
vegadores e grandes capitães, e tem a Ave-
nida para as estatuas dos modernos. «Quan-
do se fallou em levantar a Luiz de Camões
o bronze que todos conhecemos, escrevi eu
ba (inço annos, não sei onde, e se esco-
lheu para este auto-de-fé a angulosa e ar-
chi-torta praça do Loreto, uma obscura voz
que nenímm dos proeminentes quiz ouvir
6 <>S (MTOS
lembrou que o monumento do poeta devera
inaugurar entre nós um luminoso cyclo de
justiça, atravez do qual iriamos pagando,
pela consagração publica do mármore e do
bronze, a grande divida da gratidão portu-
gucza a todos os titans e semi-deuses
immortalisados nas estancias das Liiziadas.
O local mais adquado á exhibição d'essa
galeria vastissima de heroes e grandes gé-
nios — a começar por (jamões e a acabar no
infante D. Henrique — era o Aterro, e cum-
pria crear um typo de pedestal e de ta-
manho d'estatua que bem dissessem na fa-
cha de terra conquistada ao rio, entre as
arvores das alamedas e taboleiros de relva
sempre verde, em termos do estrangeiro
entrando o Tejo ser recebido na margem
por aquella guarda de honra de navegadores
e de poetas, matliematicos, chronistas, guer-
reiros, descobridores e grandes capitães que
fazem o mundo heróico do poema, e são o
orgulho da nossa historia, e por ventura já
hoje a razão de ser da nossa autonomia. » Não
supponha algum parvo que isto fosse decre-
tar de chapelada monumentos para todos
quantos desde o século X í V até ao X V í I
os GATOS 7
estão á espera d'elle. O rnunicipio faria,
cl'accordo com as sociedades sabias uma
espécie de resenlia chronologica de todos
os vultos dignos de homenagem, marcando
local para a estatua de cada, sobre a^pelou-
se dalameda ou jardim tomada ao rio, isto
no percurso kilometrico que vae da quazi
embocadura do Tejo, nas alturas d' Algés
ou pouco mais, até ao topo opposto da ci-
dade, ahi por Santa Apolónia, onde termi-
nam com as obras do porto os grandes
aterros destinados á avenida marginal. Pou-
co a pouco então o culto mais ou menos
fervido das commissões patrióticas iria er-
guendo, segundo as preferencias e os teres,
o monumento ao seu descobridor ou aven-
tureiro favorito, em sitio d'antemão marca-
do na grande fileira, e assim ao cabo d'an-
nos, completa a galeria, o espectáculo seria
quanto pode ser de feérico e magnifico — qual
na frente do histórico rio que viu tantas
grandezas, erecta em bronze a plêiade das
figuras colossaes que as emprehenderam,
contando no oiro das inscripções o passado
d'um povo sem competidor na historia ma-
ritima do universo!
8 OS (íaTOS
Da mesma forma opino que a Avenida
seja, sob o ponto de vista de monumentos,
exclusivamente uma galeria de modernos.
Fallo d'artistas, sábios, literatos, phylantro-
pos, e expulsaria os três ou quatro politi-
castros com que alguns querem já poUucio-
nar aquelle sitio. Lisboa começa a ter por
demais estatuas politicas, e infamante seria
que ella tolerasse a par de devassarrões an-
tigos, como o sr. D. José I e o sr. D. Pedro
IV, pantomimeiros somenos, ma\s modernos,
como o sr. Saldanha e o sr. Fontes, lem-
brando ás eras as deploráveis fontes de cor-
ruptella que a sua vara fez manar d'onde
tocou. Herculano, Garret, o grande Camillo,
Anthero do Quental, Soares dos Reis, Ce-
zario Verde, Annunciação, Silva Porto ser-
tanejo e Silva Porto paysagista, o chimico
Aguiar, António Pedro, Manuela Rey, Roza
pae, etc, toda a constellação esplendida de
nomes que fixaram na moderna civilisação
porlugueza um ponto d'avanço, escalando
á gloria n'um século onde o principio de
conducta é escalar ao syndicato, todos es-
ses leriam nos rei voes floridos da Avenida,
aos dois lados, por entre palmeiras e plan-
os GATOS 9
tas decorativas, galeria larguissima onde en-
fileirar seus vultos luminosos: o typo doestas
consagrações tomando formas originaes,
caracteres impecáveis d'obra prima, bustos
veliementes em pequenos sócios decorados,
estatuas em pcdesíaes mui baixos, reprodu-
zindo esses homens n*alguma das attitudes
familiares ou movimentos decisivos da exis-
tência. Monumentos pequenos, creados se-
gundo um tvpo de serie que tornasse harmo-
niosíssimas as perspectivas do conjuncto.
Porque o monumento grande vê-se mais pelos
caracteres d 'ostentação, que pela ideia; dis-
pendioso e de realisação diííicil, é um obs-
táculo á multiplicação d'estas homenagens,
isto a par de perder pelas proporções am-
phticadas o seu caracter humano e fallante,
e se tornar emfim n'um trambollio atravan-
cando a cidade para embasbacação do
forasteiro.
O commissario de policia expediu ha dias
para a fronteira um tal De Bassini, que no
10 05 GATOS
dizer das entrelinhas d uma noticia sensa-
cional das Novidades se propunha escrever
em Lisboa as memorias de Jacques Casa-
nova, sob pretexto de lições de canto ás se-
nhoras da alta sociedade.
Esse De Bassini era ainda aqui ha cinco
annos um tenor de meia sorte, e aconte-
ceu-lhe calhar no D. José da Cármen com
um successo de brilho que por Lisboa lhe
valeu notoriedade. Tendo perdido a voz, vi-
via actualmente de três notas que lhe fica-
ram para papeis de recados, apenas lhe
rendendo o preciso para se não dizer vives-
se d'outra coisa. Nos seus bilhetes de visita
de Paris, os que corriam mundo pelos en-
tresols onde Pransini macheava antes d'el-
le as metrites chronicas das 'tites chattes abor-
recidas do amor de chaise-longue, uma sin-
gularidade tornava-lhe o nome particular-
mente interessante
24 centimetios*
sendo pasmo de todos que esse tenor
os GATOS U
aphono jactanciasse (i'ainda possuir um ór-
gão tão extenso. Nominaes ou reaes emfmi,
estas qualidades métricas que haviam cons-
liluido a sua gloria no bel canto, de Bassi-
ni as quiz tornar em fonte de receita, e eil-o
buscando a protecção d'uma sua patrícia por
de mais celebre nas estroinices do sport
phillantropico, e que sem mais exame, dizem,
o annexou com dois mil francos d'entrada e
licença para escrever nas malas a designação
de cantor do séquito privado. Chegado a
Lisboa ao mesmo tempo que a noticia de qua-
trocentos contos de saques sobre o thezouro
portuguez, De Bassini não logrou escandali-
sar tanto as susceptibihdades patrióticas do
partido monarchico, como a conferencia de
Badajoz, convindo aquelle em que para os
créditos da nação era muito mais deletério
ir engajar lá fora a união ibérica do que os
tenores com vinte e quatro centímetros de
registro.
Mercê d'este critério recusou o sr. Fran-
co Castello Branco a proposta que lhe fize-
ram os repubhcanos d'uma segunda recita
d'aquella sessão parlamentar em que Val-
bom e Alpoim foram sublimes, e que d'esta
*2 os GATOS
vêz viria a molde como revindicação patrió-
tica onde Portugal mostrasse ao mundo os
numerosíssimos recursos de \inte e quatro
centímetros que possue, de ponta a ponta,
sem necessidade alguma de se deixar... inva-
div pelo estrangeiro. iVesta segunda audi-
ção é que verdadeiramente teriam cabimen-
to o viva do sr. Alpoim á independência
nacional, e a grande scena lyrica do orador
Valbonsinho, rebolando os olhos, agarrado
ao amor da pátria, sentimento pelo" qual o
liysterico vencido dizem sentir uma ternura
ancestral e posierior.
O caso do tenor não foi porem cifrado
pelos senhores monarchicos na lista dos de-
lictos merecedores do stygma de traição á
pátria, e permaneceria incólume se á ulti-
ma hora. já pagos os dois mil francos
darrhas, e divulgadas as primeiras basofias
do escripturado, o conselho de ministros
nao reconhecesse incompatibihdade em san-
grar do cofre das innundações a annuidade
de 800^000 réis que promettida lhe fora
por escriptura.
De mais esta intromettida súbita d'um
estrangeiro musico na vida da corte, ad-
os GATOS 13
vindo em epochas de pauta proteccionista,
começou d'oirender também gravemente os
instrumentistas uacionaes, e choveram re-
presentações ao governo pedindo concurso,
internacional sequer, com provas praticas,
d'onde apurar co'a máxima justiça as apti-
dões de cada candidato.
Semelhante concurso traria entanto coa-
lisões angustiosissimas ao muito nobre jury
que o julgasse, á uma por pôr a corte de
Lisboa em cheque com a Itália, potencia
amiga, á outra por não haver propriamente
diapasão afinado por lei para tal espécie
d'inslrumentos, sabido como o systhema mé-
trico não preceitua entre nós da unidade a
seguir n'este género secreto de medidas
d'extensão. Consultadas as instancias supe-
riores da industria e arte sobre o que hou-
vesse no paiz em antigo e moderno, nobre
ou plebeu, capaz de levar de vencida os
vinte e quatro centímetros de registro do te-
nor, responderam pela commissão de monu-
mentos o sr. Luciano (iOrdeiro, depois d'an-
dar pelos sarcófagos manuelinos, com uma
guita, a tirar números, eo dr. Joaquim Tello,
director da industria, ao cabo d'inquerito
14 OS GATOS
idêntico na exposição dos Jeronymos, que em
vista do atrazo manufatureiro nada havia
ainda portuguez a competir com o elemento
italiano, posto modernamente se tivesse já
crescido muito, sendo d'esperar que em
pouco tempo, puxando pela fibra do povo,
se conseguisse fazel-o egualar, senão exce-
der, o singular phenomeno contractado em
Paris para na corte dar lições de musica.
N'um manuscripto da Bibliotheca da Ajuda
é que, depois de grandes procuradas, pa-
rece que o notável investigador Ramos Coe-
lho chegara a apurar certa referencia ao
pagem Alcoforado, padreador da Senhora
Duqiieza, d'onde inferir suspeitas quanto á
desconforme extensão da sua voz; mas a
descoberta foi controvertida por Luciano
n'uma memoria, e a discussão augmentou
afinal a obscuridade, parecendo que se al-
guma grande coiza houve, sumiu-se tudo
nas entranhas da casa de Bragança.
Estas e outras graves cogitações levaram
o conselho de ministros a recuar perante o
fiasco do concurso, e estava redigido o de-
creto outorgando o exclusivo da musica
palaciana ao De Bassini, quando de repente
os GATOS i5
O ministro da fazenda lembrou que a Asso-
ciação Commercial podia erguer a voz se-
gunda vez. Foi por todas as sete pastas um
terror pânico, e a extirpação dos vinte e
quatro centimetros, do solo portuguez, foi
ordenada como razão d'Estado. em 8 ho-
las, sendo chamado á pressa o operador
Moraes Sarmento. . .
Ora emquanto estes successos tumultua-
vam entre os silêncios patrióticos dos srs.
Alpoim e Carlos Valbom, ílagelladores emé-
ritos das monstruosidades jacobinas, que
fazia De Bassini, a imbelle victima da sua
própria deformidade ? De Bassini, o musico
anormalissimo, auto-suggestionado de portu-
tuguez por pertencer congenitamente á Casa
dos Vinte e Quatro^ De Bassini exhaustos em
em comezanas de hotel os dois mil francos,
procurava trabalho, diz n'uma carta, tal
como uma ingénua menina de romance.
«... apenas vi que alguns jornaes critica-
vam a protecção que pretenderam dar me
as excelsas pessoas de quem na suppliquei,
resolvi-me a procurar lições de canto, nos
quinze dias que estive em Lisboa, e dada
a sympathia de que como artista gozo
16 OS GATOS
(...Vamonr est tm enfant de vingt quntre centimétres...)
já tinha encontrado bastantes, principalmen-
te entre as senhoras de Lisboa.»
A caridosa protectora dignara-se dizer-lhe
quando elle lhe fora pedir trabalho em Ro-
ma « vá para Lisboa e veremos. » Em Lisboa,
senhoras a quem fizera a honra d'offerecer
serviços músicos, quazi todas lhe disserau
também » vamos a vêr», revirando o cartão
de visita entre suspiros; e algumas depois
de visto, pediam espaço d uns dias, a mo-
dos d'abstractas, e mandavam-no lá lornar
«para vêr outra vêz.» Ao cabo de quinze
dias já tinha encontrado bastantes, acres-
centa elle ingenuamente. «Foi-me então
perguntado que logar tinha eu na corte.
Maravilhado que se soubesse uma coisa que
julgava ignorada por todos, respondi que
não sabia, mas esperava obtel-o a breve
trecho.» Recapitula «creio que esperar um
posto não é uma chantage nem um delicto! »
De certo não, mesmo porque até os postos
sejam entre nós coisa sanccionada por de-
cretos e planos do governo. Exemplo, o da
Fonte Bôa, e os postos de desinfecção, ca-
os GATOS 17
da vêz mais necessários para expurgar o
paiz (ias podridões doiradas que o infestam.
Pelos trechos da missiva transcripla, que
podem lêr-se de resto em quazi todos os
jornaes monarchicos da cidade, nem se preci-
sa quando as lições começassem, nem tão
pouco o preço poruiuzia, nem a duração, nem
a hora, nem sequer a maneira de as dar, do
professor. Por consequência haverá que se
dirigir consulta á epislolographia paralella,
muito em segredo catando-a dos promeno-
res musicaes que ella tiver. Ahi está por
exemplo um pequenino bilhete da viscon-
dessinha de X., uma das primeiras discipu-
las do portento, á sua amiga baroneza de
H., veraneando em Cintra e que pelo tele-
phone lhe pedia informações, -i De Bassini,
querida, leva quinhentos francos por lição,
o que é a ruina, dados os outros quinhentos
com que meu marido paga a lição d'elle.
Exige alem d'isso (como é bastante orgulho-
so) que as senhoras lhe estejam sempre de
joelhos, e a tal ponto esta exigência pare-
ceu excessiva que o visconde agora só lhe
aceita as explicações — voltando as costas.»
A generala de P., hna culévra, passionenta
18 OS GATOS
por musica á coalisão d'ella mesma soprar
concertantes nas protuberâncias do marido,
a generala de P., depois duns prologo-
menos : — «De Bassini, historias ! não se li-
ça sabendo nada. . . á uma é caro, e á ou-
tra não repete.»
O desavergonhado entanto, regorgitan-
te de cédulas por essas primeiras lições pa-
gas á bocca do . . . cofre, desenvolvera em
pleno iiotel uma magnificência pródiga e
sultana.
Quotidianamente almoços e jantares era
sala decorada com as pratas melhores, fru-
ctas de luxo e vinhos escolhidos, carruagens
e passeios aos sitios pictorescos, convites a
um. convites a outro, com meias reticen-
cias sobre o mysterio d'aquella insólita vo-
ga e d'aquella fortuna incomprehensivel.
Gomo todos os rufiões em posse de segre-
dos, De Bassini exagerava-lhes sempre que
podia a importância, estendendo a muitos
lares peccados authenticos apenas nos des-
regrados costumes de quatro ou cinco. Em
quinze dias não houve grande dama que
elle não ensinuasse aos amigos como discí-
pula sua na grande musica fin de siécle.
os GATOS i9
a quinhentos francos por lição, e a tal pon-
to o ciúme d"esses triumphos entrou d'aziu-
mar os professores portuguezes sem tra-
balho, que para os combater organisou-se
a liga dos alferes para pernoitar, sociedade
orpheonica para nacionaes maiores de vin-
te centimetros, com certamens ao ar livre, e
uma walsa a premio para o sócio de mais
infatigável. . . vocação.
Desde essa hora a guerra estuou sem tré-
guas, entre o orgulho lusitano espicaçado, e
esse vil estrangeiro que imaginara desmon-
tal-o com os seus desusados recursos mu-
sicaes. Se em questões de registro De Bas-
smi podia bellamenle levar de vencida a li-
ga dos alferes, o certo foi não conseguir
degladiar com elles quanto ao preço, pois
muitos até já de graça davam lições de con-
traponto, antepondo-se ao adversário por
todas as girias do reclame mais protervo,
desde sahirem á rua com pães de bico na
algibeira das calças, até pinlarem-se á gre-
ga na transparência das cartas de jogar.
Todavia este movimento de revindicação
patriótica não seria fecundo, como diria o
Alpoim, se a polilica não tenta absorvel-o,
20 OS GATOS
acaudilhando ao conselho de ministros todo
o orpheon d'alferes p'ra pernoitar. Foi então
que o aventuroso tenor se viu perdido, e
comegou d'emmurchecer melancholicamente
a sua (para que assim o digamos) inspira-
ção. Todas as protecções se lhe negaram de
repente, escamugiram-se-lhe as discipu-
las á formiga, faltou-lhe o dinheiro, fal-
tou-lhe o credito, emagreceu, cahiu, e tão
reduzido estava, que na suprema hora de
ser expulso, esse prostituto musico adstricto
aos mysterios nymphomaniacos da corte, bel
cavalier renegado por suas damas, ao chegar
á apalpadeira do governo civil, apenas dos
vinte e quatro centímetros lhe restariam uns
miseros quatorze.
Em quinze dias, dez pontos de descida. . .
Oh estes câmbios ! Pobre De bacio !
A 27 de Julho passado foram abertas
nas galerias a poente dos Jeronymos, uma
exposição de productos fabris, e uma ou-
tra das escolas industriaes, circunscripção
os GATOS 21
sul, esta ultima contendo provas do fim
d'anno, e algumas amostras, já anteriormente
vistas, do estado de certos ramos do ensino
officinal. A exposição industrial mirava, nos
dizeres do catalogo, apreciar a influencia
da pauta proteccionista sobre o desenvolvi-
mento ulterior de certas industrias portu-
guezas, provendo os redactores d'aquella
d'informações por onde se podesse experi-
mentalmente beneficiar ou desamparar as
industrias que valesse ou não valesse a pe-
na proteger; e mais mirava mostrar as excel-
lencias de fabrico e qualidade de grande nu-
mero de productos paralellos aos similares
até agora vindos do estrangeiro, vulgari-
sando por ultimo no sentido optimista o
adoantamento do fabrico portuguez compa-
rativamente ao revelado nas exposições an-
teriores. O catalogo não canta no pream-
bulo, do papel da exposição das escolas in-
dustriaes, a par da da industria, mas quem
duvida fosse para se apreciar da influencia
exercida pela educação artística e otíicinal
do operariado novo sobre diversas indus-
trias que na galeria dos Jeronymos se apre-
sentam com relativo brilho e luzimento ? Por
22 OS GATOS
consequência a primeira interrogação sug-
gerida no espirito do visitante, é se ao cabo
de nove annos d'ensino industrial começou
já de radiar alguma meilioria d'elle sobre a
industria portugueza; e seja a segunda o
discutir se a seis mezes d'applicação da
nova pauta já é licito tirar conclusões quan-
to ao desenvolvimento industrial que eila foi
chamada a fomentar. O primeiro problema
uma vez posto, escusado remirar com saga-
cidade a exposição das escolas industriaes,
para logo dizer que d'aquelles nove annos
d'ensino não ha na industria nacional três
mezes de diíTusão sequer, methodisada,
sendo verdadeira lastima tanto dinheiro
gasto para d'elle se tirar tão pouca utili-
dade.
As causas d'esta paralysia são diver-
sas, cabendo responsabihdade d'ellas a toda
a gente.
Por um lado os alumnos, filhos de gente
pobre, desfructadora e imprevidente, mal
frequentam com regularidade os cursos es-
colares, porque os pães apenas as creanças
podem trabalhar, enviam-nas para as obras,
trocando assim pelo magro salário que ellas
os GATOS 23
lhes possam ganhar, toda a possibihdade
d'uma educação artística completa, e pro-
ventos futuros necessariamente mais pingues
que d'ella rezultariam a quando o operário
formado pelo curso officinal da escola e co-
nhecimentos technicos que paralellamente
lhe fornece o curso scientifico.
Percorrendo os cadernos de matricula
das differentes escolas industriaes de Lisboa
e seus arrabaldes, facilmente se reconhece
í.", que os alumnos enviados á escola sem
frequência paralella n'alguma officina ou
fabrica, são raríssimos; 2.°, que a maior
parte segue os cursos industriaes depois
d'um dia de trabalho fatigante para ganhar
o pão quotidiano, o que sobre ser um argu-
mento a favor do dia normal de oito horas,
exphca por seu lado a espécie d'automa-
tismo e delhedio com que muitos vão ao es-
tudo, e a facilidade com que ao menor pre-
texto o interrompem; 3.°, que as matriculas
da escola industrial, abertas no começo do
anno com espantosa frequência, vão pouco
a pouco rareando, cá proporção que o tra-
balho na fabrica durante o dia accumula
cançaço de noite para noite, este alhando-se
24 OS GATOS
á indolência meridional de corpos mal ali-
mentados e propensos, naturalmente, pelas
enervancias do clima, ao rien faire e ás se-
ducções e devassidões da capital.
Daqui rezulta um terrível deficit datten-
ção, d'estudo, e de frescura de faculdades
assimilativas que dá de si retrocessos em
vez de progressos, e invalida por centenas
o futuro doperarios que em pouco tempo
seriam mestres magniíicos, se não fora o
mau sestro da surmáiage, e a viciosa situa-
ção que alem citei. Quem uma vez fallou
com os filhos do povo de Lisboa não pode
furtar-se a um sentimento d'admiração
perante as perceptivas extraordinárias da
sua intelligencia, tão subtilmente maleá-
veis, tão espontâneas, tão bellas, e duma
docilidade que é terreno propicio para n'ellas
se talharem corporações d'industria sem ri-
val. A par porem d'estes luminosíssimos
predicados, um defeito de raça inutilisa ir-
remessivelmente esta phalange, a falta de
tenacidade, a variabilidade de humor, a im-
paciência d esperar, o que faz com que to-
dos esgotem a energia nevrotica nos pri-
meiros esforços, e ao cabo d'elles se abor-
os GATOS 25
reçam, iniitilisando assim todo o trabalho
anterior. Jantar agora a este regimem falha-
do dos discípulos, as deíiciencias estructu-
raes da escola que o regimem das economias
successivamente vae amputando pela mão de
ministros incapazes, pela dictadura d'ins-
pectores cretinos, e indolência e inaptidão
technica d'um professorado analphabeto,
aparte um ou outro estrangeiro ou nacional
mais conscencioso. As reformas que as es-
colas industriaes teem soffrido nos últimos
annos, mirando ás ce^as um exclusivo pro-
gramma de mesquinharias económicas, não
fizeram senão estaçalhar o plano funda-
mental dos fundadores, plano lógico e in-
telligentemente scientiíico, que requeria ir-
se desenvolvendo num sentido pratico e
oííicinal a pouco e pouco, e que as successivas
mutilações charivarisaram até ao dispara-
tado cahos em que ora está.
Effectivamente seguindo as exposições
parciaes das differentes escolas repara-se
em que a par da imperfeição de muitos tra-
balhos, e da excessiva brunidura d'outros
que o professor corrigiu secretamente, tam
pouco estes façam serie por onde adevinhar
26 OS GATOS
as linhas directrizes de cada curso, e re-
compor n'um todo uniforme os estudos das
diíTereníes cadeiras e officinas de que a ex-
posição nos mostra aqui e alem apenas uma
ou outra prova fragmentaria. Ha uma tra-
palhada de desenhos, bordados, pinturas,
pespontos e planos de perspectiva, que dei-
xam o visiiante perplexo sobre a crislalo-
graphia dos programmas d'ensino, e ao
mesmo tempo acordam n'elle um sentimento
de desconfiança quanto á boa fé d'aquellas
exposições. Em muitos ramos da exposição
das escolas industriaes (por exemplo, no de
desenho industrial, o ramo ornamental) não
ha intermédios, e as aguarellas expostas ou
lêem a ingenuidade bronca que revela o es-
tudante tímido e sem regras, ou são bocados
magníficos onde o nome do alumno parece
apenas o pseudonymo do pincel do profes-
sor. A surpreza é por consequência enorme
e dolorosa quando uma observação demo-
rada, por mais que faça, não consegue des-
cobrir atravez d'aquelle montão de provas,
nos seus successivos planos de desenvolvi-
mento, o crescendo de progressos feito por
duas ou Ires gerações d'alumnos que venliam
os GATOS 27
seguindo, umas atraz d'outras. uma dada es-
pecialidade industrial, parecendo que essa
marcha gradual não exista nas escolas, e
tudo se reduza a uma apparente engrolação
do publico pacovio. Esta surpreza inda mais
se incende e desespera notando que lia
alumnos d'escolas industriaes a expor ha
trez annos as mesmas provas, e que o gosto
de certos modelos, sem duvida objectos
d'escolha dos professores, permanece bár-
baro e chato eternamente, escolhido a esmo
e sem a indispensável convergência a uma
tentativa d"estylo visando a originalisar, a
dar caracter de região, aos futuros productos
artísticos das industrias nacionaes. Esta ori-
ginahsação, nacionalisação ou como lhe quei-
ram chamar, seria o papel de prova d'um
inspector írés comme il faut, a sua inter-
ferência d'espirito superior na marcha do
ensino, e subentende-se por consequência
que semelhante cargo só possa ser exercido
por indivíduos d'educação artística requin-
tada, superiormente cuhos, escravisados por
Índole á paixão d'arte, e absolutamente fora
portanto dos moldes amanuensaes com ^\ue
o sr. Luciano Cordeiro, ou lá quem é, espar-
28 OS GATOS
lilha a vacuidade do seu caco e a merceei-
rice ridicula do seu gosto.
As razões pelas quaes nove annos d'en-
sino industrial não lograram ainda a mais
pequena ingerência esthetica na industria,
devem-se pois tirar do que atraz deixei es-
bridado a curtos golpes — venho a dizer que
não ha cordão umbilical ligando a escola á
officina, nem poderá haver tão cedo, porque
o operário massado, fica a meio caminho
dos cursos, porque as reformas absoluta-
mente idiotas dos últimos ministros ankylo-
saram a acção civilisadora da escola sobre
a industria, porque o professorado, muito,
é incompetente, e mesmo desleixado, e emfim
porque a inspectoria. . só á gargalhada.
Ignoro se os directores das escolas industriaes,
os dedicados, algo teem feito para contra-
balançar, na esfera de sua influencia, es-
tes entraves deploráveis. Na escola Marquez
de Pombal sei eu que o sr. Marques Leitão
tenha estabelecido aos aprendizes de certas
officinas, uma pequena diária, para os li-
xar á frequência escolar, vencendo assim a
cupidez ou miséria das íamilias que logo
cedo querem fazer dinheiro com o trabalho
os GATOS 29
das creanças. O mesmo ultima a coiistruc-
ção dos hangares annexos ao edifício da
escola, para onde serão trespassadas certas
officinas que asphixiavam em cacifros sem
capacidade para abrigar sequer os pouquís-
simos alumnos que lá iam. N'esla escola
professam professores da melhor capacida-
de, como o sr. Cezar lanz, homem laborio-
so e assiduo aos seus deveres, e o sr. For-
milli, artista de raça, cuja influencia seria
decisiva se a assiduidade lhe fosse na pro-
porção dos créditos de que goza, e se qui-
zesse fechar ouvidos ás machinações da
mediocridade indígena que uma ou outra vêz
descóca a pedir «a nacionalisacão do ensi-
no», isto é a expulsão do elemento estran-
geiro que lhe faz sombra, e onde o ensino
conta ainda assim alguns dos seus subsí-
dios professoraes de certa robustez.
Tam pouco, por culpa das inspectorias,
se tem procurado aquecer certos núcleos
de talento benehco surgidos na plena bana-
lidade do professorado «anonymo" do en-
sino industrial. Guiada por um critério d'ar-
tista inteligente, lembrára-se a Sr.^ D.
Maria Bordallo, a quando professora das
30 OS GATOS
rendeiras de Peniche, d'expiirgardaalmofada
das suas alumnas lodos os desenhos inca-
racterislicos, defeituosos, tortos e idiotas
que a ignorância, o desleixo e a desorien-
tação secular d'aquella industria portugue-
za decadente, pouco a pouco tinham intro-
duzido no fabrico, substituindo-cs ^^or pi-
ques organisados sobre correctos desenhos
da sua composição, esta subordinada ao
aproveitamento de velhos motivos nacionaes
decorativos, desde os peixes, as conchas, os
varechs e a«i algas costeiras da região, até
aos arabescados tão idealmente volitanles
do Convento de Thomar, dos Jeronymos e
da Batalha, e ás vermicellas, grinaldas e
chicoreasdo Luiz XIV freiratico e excessivo
que é costume nominar d'estylo D. João V.
Era uma tentativa de naturalisação da ren-
da nova aos infinitamente simples da natu-
reza pátria das rendeiras, e ao tradiccional
tão subhmemente afixado nas architecturas
gloriosas da grande epocha: as duas únicas
memorias capazes de fazer vibrar a alma
portugueza, assegurando caracteres de na-
ção a essa industria que sem elles facilmen-
te pareceria imitada das similares de Bru-
os GATOS 31
xellaS; Hesp>anha ou França, conforme a fi-
nura da teia e o estylo do canevas impresso
no pique. Emquanto isto fazia, [)rocurava a
Sr/ D. Maria Bordallo afeiçoar os bilros
das suas discipulas á confecção das rendas
finas, espumosas e leves como as de Bru-
xellas, com linhas de diametr® impercepli-
vel, que por signal então se não fabricavam
no paiz, conseguindo assim um núcleo de
rendeiras cujo trabalho logo á primeira ex-
posição captou a estima, pelo que deixava
aperceber d'uma direcção mirando os fins
mais elevados. Por uma fortuidade qual-
quer, nada para o caso, foi a illustre senhora
forçada a deixar a escola, e aquelle núcleo
d'esforço que bastaria desenvolver no seu
sentido primevo para talvez dentro de pou-
co vermos no mercado europeu e america-
no as rendas de Peniche, rivaesdasdeBru-
xellas na trama e apar d'isto inconfudi-
velmente portuguezas no modelo, aquelle
núcleo desdenharam-no por estupidez con-
génita, a successora, e por ignorância ou apa-
thia o encortiçado inspector que então gras-
sava nas escolas industriaes dacircumscri-
pção sul. O resultado é a actual exposição
32 OS GATOS
de rendas de Peniche, feita sobre modelos
da Moda lUustrada ou quer que o valha, e
contrastando a todos os respeitos com a
soberba prova que ainda ha pouco mezes
deram as novas discipulas da Sr.* D. Maria
Bordallo na exposição do armazém Barrei-
ra, que todos viram.
FIALHO D'ALMEIDA
OS C3-_A,TOS
INQUÉRITO Â VIDA POílTUGUfZA
No niiiiiero anterior, írizando as iililida-
des deinunstialivas da exposição dos Jcro-
iiyiiios, alviíiáuios que ella se leria organi-
sado provável e prineipalmenle p'ra dois
fins: iíiosliMr a acção de nove annos d"en-
sino industrial sobre as indusliias, eesludar
a iníluencia da pauía sol ire os progressos
industriaes de seis inezes de proieccionismo
rigoioso. Deixámos já n'a(|uelle [uimero es-
nierilliado o primeiro ponlo. mostrando não
liaver o ensino indusliial em nove annos
produzido a menor intluencia iicnelica so-
bre as industrias poiluguezas, mercê da
anaichia dos programmas, da deficiência
dos mestres e da falta d'appli('aeão dos es-
2 rsS GATOS
colares. Estudaremos agora um pouco al-
gumas exposições parciaesdindustriaspor-
tuguezas, aíim d'inquirir o caminho que ella?
seguem, e do como valha a pena prote-
gel-as ou deixal-as.
Quem alíentamente percorra as galerias
dos Jeronymos íacilmenie apercebe d'eníre
os artefactos patentes (juacs osquesãopro-
duclos únicos do curioso armado, para o
caso, em industrial, e quaes os que sejam
rcprezentanfes de géneros cí)mmerciaes ven-
dareis, d°oude o prodncfor (irou a esmo um
exemplar para amostra ou typo de fabrico.
Claro (pie no primeiro caso a industria
não existe, e o objecto exposto, frncto da
haiiilidosidade d'um operário ou pequena
oíBcina sem producção, por forma alguma
de\e reprezentar apeilo altendivel ao pro-
teccionismo da pauta, que augmentando os
direitos d'entrada para os artigos similares
do estrangeiro, lesa por esse facto o consu-
midor, sem dar fomento a industria que se
veja. E claríssimo também ({ue no segundo
a vida da industria só poderá ser apreciada
com lucidez e assomos de justiça, rjuando
ao exame lecimico do artefacto nas suas
os Gatos 3
qualidades de maleria )3rima o de mão
d'ohra, se ajunlar o computo da producção
aiinual, o numero de operários c macliinas
cm acção, e lambem principalmente as con-
dicções de preço, deduzidas do custo do
fabrico annexando-se-llie um premio de
trabalho equitativo. Ora na galeria dos Je-
ronymos as exposições de números únicos
abundam, e perante ellas, a seis mezes
apenas de pauta, o espectador não pode
descernir se laes ol)iectos são apenas ca-
prichos de curioso querendo mostrar que
cá tombem se faz, se mais do que isso, len-
tamens receosos d'industrias creadas sob
propósito de pouco a pouco se irem desen-
volvendo em escala commercial. Por conse-
quência a exposição não consegue provar
n'este ponto a(piillo que pretende, e por ex-
cessivamente têmpora apenas stereotypa uma
exhibição de vaidade burocrática dando ca-
ça a portarias de louvor.
Como os jornaes reclamam que tudo
aquillo se lez sem mói' acréscimo de des-
peza, deixe-se passar ovante o dr. Tcllo,
director da industria, sem agravar com isso
as responsabilidades que lhe inpendam de
4 OS GATOS
saber lanlo dlndiistria. romo nós sabemos
de rhinez, <^ sem regatear lambem o (jue de
louvável haja n'um esforço, (fiie embora fi-
liado f'm inslinríos d'imilação Inconsciente,
comtndo algum proveito traz sem{3re, agua-
do embora, para a vida económica do paiz.
A eN posição lem como disse um fundo
de pacotilha corriqueiro, já de resto conhe-
cido ('in iodas as nossas exposições indiiS-
triaes. mas ipie (Testa vèz surge d'um su-
bsolo suspeito, pedindo previlegios (pie
foi lastimável dar anies de se saber o que
os prodiictovp^ intentam íazer d'elles. Escla-
recerei com alguns casos saccados entre os
profusos de que está cheia a galeria. Toda
a gente se recorda de vêr pelos armazéns
de n)oveis um ivpo de cadeira-lamborete,
costas e assento d(^ cabedal envernisado
d'escm'o, pregaria de lalão sem cinzeluras.
e traballio nos paus ru<iimentarmente com-
posto (Talgumas voltas de toi'no e um ligei-
ro meio-tlerão no coroamento do espaldar.
Este objecto sem valor artistico. mas no en -
tanto agradável á vista, e mesmo elegante
e fino para o preço, era um dos diversos
que a marcenaria franctza popular cá nos
os GATOS .S
mandava, lillio dinduslrias a bem dizer só
exercidas para liiocinio d'a{)rendizcs ou
Dieslrcs marceneiros de íraea < nvergadura.
Os coiros eram uma simples gravura a
íogo. ou estampagem obtida pela baiedura
da pellc bumedeeida sobie os escavados e
os cbeios d"um modelo. A madcini. b!'am!a
do fibra, laia, eucalipliis ou ({ludípicr oulra
barata e íacil de l;dbar, peiíiiilfia ao arlili-
ce mais leigo, por meio de tornos aperfei-
çoados, uma produceào diária rápida e abun-
dante, poi- íorma que o ol»jeclo, l>aralo nas
suas matérias primas contbienles, bnralo
na nicão d'obra, eliegav;; ao coiísumidor de
Lisboa por duas libras, Ires libras o máxi-
mo, tendo sabido das olVicinas írancezns
por cinco ou seis mil réis a rebentar. A no-
va pauta, tendo em vista nacionalisar a in-
dustria das cadeiras-lamboretes. íecliou a
importarão íranceza correspondente, sem
indagar se no paiz baveria as industrias
iiuxiliares, as matérias primas e o expe-
diente do producção ollicinal capazes de
prover ás necessidades do consumo, em
condições de preço e pcrleição justilica-
doras do proteccionismo que Ibe pedia o
os GATOS
fabricante. Ora, cslá na galeria dos Jerony-
mos uma cadeira tamborete, f ibrico nacio-
nal, de modelo franccz, e não passando, já
se vê, duma servil imilação.
Madeira, coiros, pregaria, formato, soli-
dez, trabalho de marceneiro e estampador,
ludo é singelo, corrente, corriqueiro, e
aquillo pouco mais valerá que cinco ou s; is
mil réis. Pois querem saber quanto pede o
expositor por este mimo da industria nacio-
nal protegida a sete chaves? Trin/a e seis
mil réis, ou uma guarnição de casa de jan-
tar, áozQ cadeiras, 432^000 réis, preço
duma mobilia arlistica de pau santo! Gomo
tudo neste mundo é consequência do facto
anterior, e causa do posterior, fomos d'alli
consultar um iniciado no critério philoso-
phico da pauta, que nos explicou a exorbi-
tância do custo, n'estes teimos «não vê vo-
cê que em Portugal não ha por emquanto a
industria dos coiros trabalhados, por forma
que para estas cadeiras é preciso estampar
ou gravar os coiros expressamente, procu-
rando curtidor que nas horas de maré se
preste a tal serviço; porque elles, coitados,
teem mais que fazer. . Estampados os
os (ÍAKtS 7
foiíos, temos as inadeiías, carissinias, por-
(jue a verdade é nós não (ermos madei-
ras por em(|iianto. . . Sanadas porem es-
tas duas diííiculdades, o resto é bagatel-
la; ainda (jue. fazendo os nossos marcenei-
ros por dia apenas a falha d'nma cadeira,
só para elles é necessaiio dednzir do pre-
ço, entre (juinze tostões e dois mil réis.
Por({iie meu amigo, é triste dizei- o, masa(|iii
para nós, o pai? não tem por ('m(|nanío mar-
ceneiros. . .
— lJir-me-í)a n'esse caso o (pie Ivm por
eniípianfo o paiz, alem d'iima relinadis-
bima estupidez. Para lazer uín t;unboiete é
necessário coiros: não ha coiros. Necessá-
rio irtadeii'as: não ha madeiras. (Ipcraiios:
não lia (i()erarios! O (pie prolege pois a
paula n"esfe ramo? Simplesmente a dimi-
nuição dos direitos alfandegários, e a cupi-
<lez de meia dúzia de mariolas (pie sob o
nome de fabricantes (piei em fazer da \v'i
uma capa de ladrões.
Acode o meu interlocutor:
— Ha injiisti(;a. Pedir trinta e seis mil
réis por uma cadeira de seis mil, não me
parece revele inslinctos galunaes; ó antes
8 OS GATOS
uma maneira diplomalica cie dizer (jiie se
não quer produzir Irastes d'aquelles. Palie-
mos frio. O marceneiro pordigiiez é em ge-
ral filho dum pae que toda a vida passou
sem diluir os miolos na ideação de novida-
d(!S. Então acha deshonesto rene^^ar. a me-
moria dos seus, engerócando outra coisa
que não seja canapés de palhinha e bancas
de pé de gallo.
— Mas sendo esse industrial dos que
mais se esfalfaram a pedir protecção para as
industrias, é que tencionava fazer da cadei-
ra exposta o debute d'uma industria pro-
gressiva.
— Qual industria, senhor! Foi uma te-
lha. Evolutir de cadeiras, para que! se evo-
lução de Irazeiros é coiza que não ha nes-
te paiz?
— Olhe que lhe esqueceu o «por em-
quanto. •
— Ainda se o consumidor mordesse,
pagando o artefacto pela exorbitância das
oito libras marcadas na tabeliã, lá podia o
desvanecimento do artifice condescender a
reproduzil-o em series commerciaes. Mas
por desfnícte; que elle, interesseiro, não é.
os GATOS 9
Como não morde, embucha, o pobre diabo,
e assim o proleccionisino da paiila e o gra-
dual abandono da industria protegida, sup-
primindo pela .ausência do objecto, a neces-
sidade social (|ue llie corresponde, determi-
nam uma acção simplifica nle, salvoseja be-
netica para o liomem, visto regiessarem-no ás
edades em que elle, por só se sentar no chão,
havia um calo approxiinadamenle no si-
tio .
— Em (]ue o simplicador devia ter uma
bomba de pataco.
Eis ahi o espirito industrial de muitos
avocadores da nacionalisação do trabalho
pelo desterro da concorrência estrangeira
— da concorrência que em muitos casos,
longe d'invalidai'-lhe o futuro, o estimulava,
ao contrario, pertilando-se-lhe cá direita co-
mo um emulo. Não vender nem deixar ven-
der, tal é o Icmma, tjue já seria perverso
se peor não houvera no geniceu das indus-
trias nacionaes.
Toda a gente maior de vinte annos pos-
suiu ou possue ainda um d'aquelles guar-
10 os GATns
da-cliiivas inglezes ou íraiicezos, de bengala
fina e solida como ("erro. sem pezn quazi,
direita n'uma ponteira daço cónica e polida,
com seu castão de marfim, maçanela ou
cajado plaqneado de metal: e de varetas
finas, solidamcnle engrenadas, ílexiveis e
prendendo uma seda de negro azul mais
leve do que o ar. Este engenhoso instru-
mento que fechado e enrolado não faria
volume maior do que o duma bengala de
passeio, possuia a extiaordinaria virtude
de passar de familia a família, inalleravol,
sem descoser nem se lhe quebrarem as va-
reías, nem se lhe picar a seda nos vincos,
nem chuva ou sol lhe comerem a côr ao cabo
d í três ou quatro annos d^exercicio. Custaria
quando muito de quatro mil e quinhentos
a cinco mil réis, posto em Lisboa, e o seu
serviço d umbella e l)engala — conforme se
trazia aberto ou enrolado -constiluia-o n'uma
espécie de companheiro inseparável, d*amigo
quotidiano, doce de trazer pela rua, sem o
menor enfado do dono, com todas as modas,
Iodas as estações, estados d'espirilo e tons
de vestuário — representante ligitimo duma
industria seria, elegante, honrada, inalte-
os GATOS H
ravel, que desappareceu na onda d'explo-
ração galuna com que modernnmente o
induslrial dá caça ao dinheiro do comprador.
Pouco a pouco, á medida que o fabrico de
guarda-cliuvas adquiriu enire nós foros de
nação, esle maiavillioso iraste começou a
fugir sublilmentc das lojas, a rarear nas mãos
dos íranseunles, a (juadruplicar de preço,
e a ser desviado da circulação emfim pelo
fabricnnie alacinha proposiíando auferir
co"as suas imilações, ganhos mais pingues.
A industria em grande dos ,1'uarda-chuvas
de seda segm-amenle conia em Porlugal
quinze annos de cuHura, e «piem comparar
algum dos seus primeins exem[)lares com
os que modernamenie sahem das oííicinas
porluguezas, fácil reconhece que ao passo
que o preço augmcnia, a solidez e perfeição
do fabiico não (em fcilo senão retroceder.
Tome-se pai"a lermo d'exame um guar-
da-chuva de libra, fabrico nacional, dos (pie
a Rua Nova do Almada opiparamente clas-
sifica, (k primeira.
Supponha-se um dia de chuva em grossas
bátegas, rajada pelo vento encanado por uma
rua de prédios allos, Íngreme, e de quinze
12 OS GATOS
cm quinze melros corlada de travessas. Veiu
uma pessoa cora o guarda-chuvasiiiho aberto
á saliida da loja, catita, em folha, sentindo
um prazer em ouvir tamborilar a ciiuva sobre
o grão da seda nova, cantante e reteza nas
suas doze varetas de metal. Momentos de-
pois, ao estender a mão para aperiar a d'um
amigo, algumas gottas da bátega humedece-
ram-na, e como é a mão (|ue segura o guar-
da-chuva, d\ú começa o castão (reste a des~
tingir uma cola pegajosa e languinhenta^
<]ue arrasta a pintura comsigo, e fica nas
mãos em nodas d'ocre, e inicia a derrocada
enfim do famoso traste adquirido a preços
de ricaço. E' a primeira desillusão sobre a
autonomia da industria nacional, triumplia-
dora —operários que envernisam com gom-
ma arábica os castões dos guarda-chuvas
— mas a contrariedade, remediavel, e com
pequeno dispêndio o traste voltará a ser
uma perfeição. Vae, n'isto cogitando, á volta
do Pote das Almas, uma barba-clioca al)al-
rôa-nos, e em uivos de possessa desata con-
tra nós aqui del-rei. Reboliço medonho, um
formigueiro de povo, cotovelão, policias: é a
velha com u:!i olho vasado, e esse olho pinga
os GATOS 13
d'uina lias vajelas do nosso guaida-eliuva,
tal como uíii-buriié na ponta d'uiri palito!
Camiidio do governo civil examinamos então,
varados (resliipor. suceessivamente as doze
varetas uma a uma. Ha qualro (|ue reben-
taram logo da circumíerencia do panno, e
que resalieíu zagunclsanles. como ouiros
tantos lira-ollios; quanto ás outras oito, le-
varão caminho idêntico, porque íoram liga-
das á pressa, com linlia podre, e o mesmo
succede á seda. cujas costuras, alinhavadas
apenas, franjam o tecido, deixando ver pelos
buracos o ceu a íazer manguitos pai-a as lin-
dezas da industria nacional.
Noite no cagarrão. sinistra, obssedados
pela recordação da voz da barba-choca, com-
nosco ás turras em que lhe havemos de pa-
gar o olho dameixa, por um novo — e em
ponto granoe. Causa de tudo a(juillo, o guar-
da-chuva ouve a conversa, aberto :i seccar
n'um canio do calabouço infecto em que
jazemos. Reconhecer nx'ssc cangalho ignóbil,
o faful da véspera, coiza impossível, tanto o
castão sem vernis, as varetas a esmo no
panno deslinjido da agua, a bengala inchada
e torta para um lado, o ar pandilha e gingão
li os GATOS
de fadista cocho, desnalurisam o formato e o
destino d'esse objecto arlislico talhado para
companheiro d'um homem comme il faut.
Apen-is, fiança prestada, nos restituem
o hvre curso das pernas e dos braços, so-
braçamos d'um pincho o giiarda-chuva in-
vahdo, e em dez uTuiutos eis-nos caliidos no
patife do bengalcií^o que nol-o vendeu.
— Ollie praislo, seu pulha, ejusti(i([ue-se.
— Ah, o guar(hi-chu\a de honiiMii. Houve
grossa invernia lá por casa , . São vinte e
cinco tostões a mais pelo concerto.
A indignação da libra perdida substi-
tuc-nos a pahivra por uma espécie de cacarejo
phonelico d onde se vêem sahar chuveiros
de perdigotos.
O homem, branco. O guai'da-chuva entre-
nós coíDO um abysmo.
Até que afinal o constricto da raiva faz-
nos rebentar da bocca coizas feias. E'
um começo de volta á lucidez. E agarramos
no homensinho por um braço. — Uepare
n'csle castão que você mo impingiu por ma-
deira preciosa. E' cerejeira Lirunida com o
verniz das suas almorrodias. Agora siga pela
bengala fora, até á ponteira. Ande!
t>S GA'lí.>S i5
— Sinto eslar loila. diz com iiiii jíeslo de
pezames o méco, alapardando-se.
— Torla como você. n'um arco, quando
DOS qaer tirar uma libra da algibeira.
— O cavalheiro. . .
— -Agora o panno. E isto seda, é isto
tinturaria, é isto commercio? E as linhas
podres, e as varetas partidas
— Também [jara que havia do cavalheiro
cxpór o guarda-chuva assim a cargas d'agua?
— Oh animal, pois diga- me o destino so-
cial dum guarda-chuva . . .
— Ser, quando chove, um guarda sol.
Nem d'outro modo se com prebende a pro-
tecçãu a esta industria nacional. Pois o ca-
valheiro queria que ao íim de ijuinze annos
d*experiencias o fabricante porlugucz desse
um artefacto indifferente á agressão das in-
tempéries, n'uma epocha cm que a sensi-
bilidade é tudo em obra d arte?
— Mas em ultima analyse: para que de-
inonio serve ao compi-ador i:m traste d'esles?
A chuva entorta, ao vento (piebra, ao sol
dcstinge
— E coiza miraculosa! sem deixar de ser
por isso uma fonte de riqueza nacional
1í'' os GATOS
— Para o productor. Mas para o com-
prador?
— Ambos Icem a ganhar co's artefactos
de fraca duração. O productor por causa
das vendas, o consumidor por causa das
ínodas; e a circulação do dinheiro é o alcance
final de todas estas intrujices.
— O grandecissimo ladrão sae-se philo-
sopho. Parece o Marçal Pacheco a defender
os bonds Hersent.
— Diga também um [jouco hygienista.
DesVjue se perca a confiança em ai^azalhos,
menos se sahirá á rua em tempo mau, o que
pelo meno^ evita uma pessoa constipa r-se.
E cavalheiro, os defluxos são na pathogenia
das doenças agudas o que é o credito em
todas as desinvnluções de bancarota, uma
causa occasional que conduz á morte.
— Creditado em mais dois pontapés pela
consulta.
— Uma palavrinha: vae os vinte e cinco
tostões pelo concerto?
— Que remédio! se a missão da indus-
tria nacional é depennar-nos . . Entanto,
por precaução a incautos, não seria supér-
fluo escrever por cima d'algumas d'essasga-
os GATOS 17
lerias de productos indígenas, pegados com
cuspo, e armando á escamoteação do freguez
cynicamente, aquelie obsceno verso com que
já Bocag*^ diademára a industria nacional
do preto Ri liei ro
«Industria de mostrar, não de. . ■>
dizem o resto no Curso Superior de Lettras
a Ioda a pessoa que se aprezentar munida
d'atleslado.
Não se julgue porem o auctor d'estas notas
cancerado de pessimismos ao ponto denegar
os definitivos successos de muilos ramos do
trabalho portuguez. Em bastas industrias o
progresso é evidenie, e o escrúpulo do fa-
brico revela-se já na abundância da procura
e volimtaria convergência da sympathia pu-
blica a esses productos do typo forlc, liom-
breando com o estrangeiro de cabeça alta,
empenhados em bem servir (piem se lhe
achegue. Eslãon'estecaso grande numero de
fabricas de productos metallicos, fundições de
ferro e bronze, como a Promittente que pro-
duz machinas, como a Xavier C.Milho, que
18 OS GATUS
pruduz aliai;» agrícola,, como a Ferreira ácC*
que produz candieiros e suspensões, como
a Frederico Collares, Tliiago António da
Silva, Marcello G.^ Silva, Progresso Indus-
trial e Empreza Indusírial Lisbonense.
Aqui não ha já o caipirismo do productor
armando á ingenuidade lorpa do publico,
expondo o que não produz, occullando os
meios do como vive. No seu caminho anda-se
á vonlade, vê-se pular a mão d'obra, e o
industrial estimulado pela rivalidade dos
collcgas empenhar-sc n'uma incessante ba-
talha d'aperl*eiçoamenlo. quanto ao objecto e
quanto ao preço —o mais seguro penhor para
uma induslria attingir a edadeadulla e cons-
tituir uma honesta via de riqueza.
Estão n'este caso lambem algumas fabricas
de vidros, cerâmica, íayança, mobilias, algo-
dões, jutas, lanifícios, papeis pintados, arti-
gos de camisaria. calçado, encadernações,
e diversos artefactos de pesca, construcção
naval, selleiro c correeiro. Não é todavia dizer
que tenha sido tão ovante o jirogresso que a
ullima palavra esteja dita na impeccabilidade
fabril d'estes differenles ramos de trabalho.
De modo alguuj. Especialmente no segundo
os GATOS 19
grupo cl*industnas ha melancholicas nótulas
a pôr sobre o avafiço um pouco descoor-
dtnado em que vão indo. Accenlua-se
a falia d'in(uito commercial na maneira por-
que são feiías mailas d'aquellas exposições
parciaes, pois em quazi (odas íaltatn os
preços, e os objcclos andam a esmo, desse-
riados d'uma ordem regular que os exhiba
por escala d"usos práticos, e ascenso de
preços proporcional ás difliculdadcs do fa-
brico Esta classificação razonada, não seria
suporflun. como cuidam, porque serviria ao
publico de menemonica para fixar coizas
que clle d*outro modo es([uecc apenas volte
cosias ao producto. Também é descurado o
pictoresco, não sob o ponto de vista da ri-
queza (Vinvolucros, mas nestoutro mais mo-
derno do conjup.cto d accessorios que possam
dar á exposição parcial, valor eslafislico,
archilectonico, ou quahpier ouiro reprezen-
talivo da complexidade social da industria
exposla. Raríssimos induslriaes etíectiva-
mer.tc se lembraram de collocar a par dos
productos da sua fabrica, a pbotograpliia
d'csla, com as officinas, as machinas. o gru-
po d'operarios, e nas cosias do cartão de
20 OS GATOS
visita da casa, em quatro linhas, a historia
(ia fabrica desde a fundação, mencionando
os principaes productos fabricados, o numero
doperarios, a quantidade de Irabalho an-
nual, a media das jornas, o numero de
horas vahdas diárias, a estatistica da assi-
duidade e frequência á officina, e todos os
demais pormenores servindo emfim para a
historia da industria nas suas relações com
o proletário e o fabricante, sem esquecer as
escolas appensas á officina, os montepios,
as caixas daposentação e sociedades de re-
creio, no caso de as haver. A utilidade
d "uma revista d"induslrias assim feita salta
á intuição sem mais preparo; só d'esta for-
nia estatistica é que uma exposição é o in-
ventario do trabalho d'um povo, e só assim
ella conseguirá fazer de cada visitante um
crente e um patriota. A occullação dos pre-
ços importará a suspeita d'uma producção
irregular e intermittente, executada confor
me a offerta e a lorpice ou esperteza do
comprador, por contracto ao ouvido — o que
é mais que bastante para denunciar uma
industria sem confiança em si, e exploração
em vez de commeicio licito. E' o caso de
os GATOS 2{
muitas das fabricas (Je laniíicios. (|iie pro-
duzem dimilação. cnlaladas para viver nos
galíarros dos mercadores e nllaiates, o cu-
jo labor precisa se deslutelc das ladroeiras
d'estes intermediários parasitas (jue se en-
riíjuecem a roubar descaradamente o pu-
blico sem (|ue ninguém Ibes venlia á mão
por laes finezas. Por certo conbecem a his-
toria da acção coercitiva d'esles pulhas, e
apenas lha lembrarei como incidente. A
maior parle das fabricas de lanificios não
possue em Lisboa armazéns de venda a re-
talho onde o consumidor adíjuira o artefacto
ao preço da fabrica, o que faria descer o
custo do vestuário a metade quasi do <[ue
elle representa actualmente. A industria de
laiVificios que entre nós progrediu nos últi-
mos annos a grandes passos, pre< isou para
viver, ao iniciar-se em grande, de se enfeu-
dar por completo á maçonaria dos merca-
dores e alfaiates, os quaes, reconhecendo-
se indispensáveis, abusaram do produclor.
como é costume, policiando com olheiros
seus todas as portas por onde a industria
podes^e ler com o publico relações directas
e leaes. Chegada a hora da emancipação,
-22 OS GATOS
isto é, quando a arle íle tecer e tingir indele-
velmente os eslofos de lã tocara a meta de
podtT viver sobre si, mostrando productos
originais de valiosa e solida envergatura, o
mercador que desde muito a trazia escravi-
sada, -em vez de pa('tuar com cila um lucro
honesto, do que tratou foi d'aproveilar-llie
o trabidlio para um seiviço de falsificação
de fazendas estrangeiras, das que a moda
vulgarisa, e p;.ra toda a gente consliluem,
com o ( xliibicionismo de hoje, uma necessi-
dade inadiável superior talvez á de comer.
N'esta conformidade a pauta que por um
lado dava auxiho aos fabricantes de lanifí-
cios.livrando- os da concorrência dos grandes
centros productores, por outro ainda mais
os metia entre mfios do mercador e do al-
faiate, que á sondjra d"ella continuaram a
impingir casimiras francczas, cheviotes in-
glezes, flanellis alleuiãs, feitas todas em Al-
cântara, Arroios, Campe Grande, Arrentcl-
la, Alemquer e Covilhã, esobre cujo exclusivo
o intermediário exerce direito de senhor,
fdhando-as a módico custo, para as resti-
tuir depois ao consumo pelo preço das es-
trangeiras, agravado dos exorbitantes direi-
os GATOS %i
los da paulH piuleccioiíista. Todos possuí-
mos algum par d"essas ostenlosas calças em
locido de mallia ou enlrançado diagínial,
muito coneclo, com seu fio de seda reluzin-
do, e padrões salpimentando-se copurclji-
(ju)uienle de ties cores discrelas, em que
dominam o cinzento, o castanho ou o rubro
atijolado. Custa de seis ale nove mil réis.
conforme a reputação e os ares do alfaiate.
Se pretendendo minar a sutil trama do
estofo e filiação industrial em paralello
com a faroíia gallica ou lirilannica (|iie nos
bortoeja da tolice, olhamos o bilhclinlio do
corte, por inquirir a que terra d'alem Pyre-
neus daremos a honra de nos vestir as tí-
bias da girafa, logo anlecipando-se, m-.-stre-
ras-^a nol o fará reler collado cá ponta da
fazenda, em inglez ou em francez, com a
marca da alfandega e a factura até subscri-
pta pelo gerente da fabrica estrangeira d on-
de veio. Nada j)or consequência mats au-
tenticamente inglez ou francez do que este
trajjo, que entretanto nasceu a 1 'gua e meia
de Lisboa, n'um tear d'Arrentella, entre os
dedos d um tecelão de melenas o bocca de
sino, que o imitou á vista da amostra es-
Vi os GATOS
trangeira remellida pelo mercador ao geren-
te da fabrica, com um pedido certo de cor-
tes, a ti"es mil réis por cada, e proliibição
formal da fnbrica vender ao publico, o quo
transgredido imporlaria uma quebra formal
de relações. — Mas, dirá o leilor, e o bilhe-
tinho? a marca da Alfandeiía? a factura da
fabrica eslranwira asslí^nada o rubricada?
Vy ludo tcão verdadeiro como o cheviolc ou
a cazimira, e com a vantagem de durar ao
sol muito mais tempo.
Eu tive este inverno um falo (também os
lenho, e pela durnção forçada, ficam histó-
ricos, o que pelo menos n'islo se approxi-
ma a minha vida, da d'el-rei D. ,íoão VI)
d'um tecido avellã, rijo de tom, grave, en-
corpado, e que o alfaiate a muito custo ce-
deu, por ser para mim, á razão de vinte e
ci;:co mil réis, farpella inteira, com juras, já
se vê. de ser francez o estofo precioso,
d'uma fabrica que já não fazia mais, e cuja
factura me mostrou com sellos e carimbos.
Ha quatro dia^, parando na secção delani-
ficios deante da montra Alçada & C* Mou-
saco, da Covilhã, com surpreza se me de-
para a cazimira estrangeira do meu falo, a
os GATOS 25
lies mil réis por melro, da uual pedi amos-
tra, verificando enlão serem a porlngueza c
a IVanceza exackiínenle a mesma coisa. Oia
como Ires melros de cazimira vestem mn
liomem, ajnnkmdo aos nove mil reis do pan-
110, seis mil a mais para feitio e aviamentos,
recapilula-se (pie o meu falo avellã deveria
custar ípiinze mil réis o máximo, e cpie o
alfaiate porlanio colara na differença entre
^inle cinco mil, e (juinze mil, a miniia igno-
rância das suas prendas de descai-adissimo
gatuno dislarçado em ralé de mercador. Es-
te roubo não imaginem constitua um caso
extraordinário: é (pioíidiano na rua Augus-
ta, desde o Rocio ate ao Arco; sobe depois
a rua do Ouro. emporcnlha as lojas e arma-
zéns das travessas jacentes — depois do que
liépa ao Cbiado, para seguidamente alaslrar-
se por lodos os bairros onde não é costume
por oia andar em fralda. O con>umidor in-
feliz se alguma vez cuidar de reagir contra
essa cáfila de biltres, mais reincidentes no
crime ((uanlo mais completa a certeza de
cpie a judiciai-ia só se encoraja a montear
ladrões sem domicilio, perplexo St- adiará
sobre a eííicacia dos meios de defender-se;
2í» OS <iAT()S
0(1 iPÍFitegrar os ;ilfaiates no spulinu nto da
honra, pelo cão, ou só ir escolher íazen.las
armado de dois peritos, e um Irabuco — para
desempale. Perscrutarão depois qual o nio-
livo porque, accusadas de cumplicidade n'es-
les roubos de tantos milhares de contos, as
fabricas de lanifícios não protestam contra
elles distribuindo profusamente os seus ca-
íalogos de preços e amostras annuaes, abrin-
do venda a retaliio nos principaes centros
de consumo, e regulando finalmente o preço
lia ahaialaria com a estabelecida (foíficinas
lie corte por sua conta? ííonestamente só se
pode explicar por indolência, jamais pelos
desfalques que uma liga de iiiCicn<!ons e
ídfaiates lhes poderiam mover, sustando- lhes
a clienlella. Quanio mais ífe observa nas
suas dilTercntes secções a exposição, tanto
mais se soletra na chamada industria nacio-
nal, não uma expansão juvenil do trabalho
jungido generosamente em panóplias de pro-
gresso, (ierramando a lelicidade em cearas
para lodos, e adquirindo a riqueza por in-
peccaveis dons de lealdade; mas uma gene-
ralisação perversa da cilada armada ao ho-
Hiem, o torte ao fraco, o avaro ao perdula-
os GATOS 27
rio, O esperto ao idiola. De cada industria
iniciada, a intrujice, como uma videira de
rnoscalel, suspende os cacho.-: cola-seaboc-
ca sedenia, os bagos são doirados, mas que
quisilia! morde-os a gente e em vez de res-
cendenle mosto eslá vinagie. As que tentam
marchar direito são tão poucas, que a meio
caminlio apenas dez ou doze, esfalfadas na-
da mais que por liavercm caminhado vinte
passos, servindo-se da pauta á laia de muleta
lá vão claudicando pela proeirosa ladeira a
c<ijos bordos as outras pedem esmola, inca-
pazes de se levantar pelo seu pé. As mes-
mas grandes industrias nacionalisadas por
vinie, trinia annos d'installação no solo pá-
trio, acham-se presas pela ausência quasi
total de matérias [)rimas, indissoluvelmente,
ás industrias e culturas estrangeiras, de sor-
te que um bloqueio de certa latitude faria
em dois mezes fechar todas as fabricas. A
lã vem principalmente de llespanha e de
duas ou três republicas da America, pois a
nacional, altenla a má qualidade dos car-
neiros e suas alternativas de fartura c fome
na pastagem, oííerece no mesmo íio dois ou
três diâmetros ditíerentes, sendo nor isso
?8 OS GATOS
aproveilaila só (in obras de qualidade iiiíe-
rioi'. Os algodões, que nós já lecemos tão
l)em, vem da America ingleza e do Brazil.
e muilo pouco das nossas possessões d'AfVi-
ca, onde íacilimo íôra produzil-o em quan-
tidades colossaes. O trigo é pela m;iior parte
americano, russo ou mairoquiiiO; porque o
Alemlejo cm pousios apenas seive para liy-
polhecas no Credito Predial. O íerro vem
d'lnglaterra e da Suécia, o carvão d'Ingla-
lerra, as pelles do Brazil. (até os cornos,
parece incrível! vem de (ora)— e «pianlo :t
madeiras de conslrucção vamos buscal-ns a
lodn a parle, exce|)lo ãs nossas florcslas da
Africa e da índia, ou ás monlanhas e du-
nas porluguezas do continente, onde, pinhei-
ros aparte, os camponezes selvagens e os
agentes elcitoraes contrariados deiíam fogo
ás plantações (jue algum governo mais sivi-
cnltor se lembra de fazer. O único producto
ingenito do solo é o liometn. é esse (|ue nin-
guém cultiva, divide-se em trabalhadores e
mandriões — os trabalhadores vão para o
Brazil morrer a montes, c os mandriões
que eram antigamente amanuenses, agora
começaram a tornar-sc industriaes.
os GATOS 29
Se a mão d'obra caminhíi e a industria
protegida se divulga, de duas, uma: on pro-
segue a imitação litteral do artigo estran-
geiro, com uma pobreza d'ideaes que faz
quisilias: ou a viver a industria d"inventivns
próprias, saltacom dolorosa eloquenciaa falta
duma direcção artislica nacionalisadora do
producto, ea perfeita inutilidade que tem sido
até hoje a escola industrial para o opera-
riado portuguez. O desmantello ('• n'esle
ponto quanto pode ser de fnsligavel. Pro-
duz-se por exemplo em Portugal, desde a
tessitura aperfeiçoada dos algodões, chitas,
percales e adamascados muito hellos— e
n'outros ramos fabris, jutas, papeis pinta-
dos, hourretíef^ e mobiliário para lodos os
géneros e destinos. É uma alegria ver cres-
cer debaixo dos olhos tanta manipulação de
trabalho colleclivo. saber que tudo aípiillo
já. se faz em Portugal, só com este senão
algo irritante — o de não haver um bocadinho
só cheirando a portuguez. Para o caso das
chitas, indaguem n'uma fabrica amiga so-
bre os mechanismos e technica doesta in-
30 OS GATOS
dustria O algodão sobre que ha-dc ser es-
tampada a chila, vem dlnglalerra todo, te-
cido em peças; desenhos ou aguarellas de
padrões, vem dlngltlerra a amostra ao fa-
bricante, que escolhe d'esse refugo estran-
geiro o que lhe agrada, e encommenda de-
pois os cilindros gravados para cada côr
correspond' nte; as tintas são quasi todas
previlegio dos mestres da oííicina, inglezes
a duas libras diárias, que raros se desca-
hem a ensinar aos operários, tinturaria. To-
do o trabalho nacional no fabrico das chi-
las consiste pois em induzir o algodão in-
glez de preparo chimico para o obrigar a
receber fixamente as cores da estamparia,
na cilindragem d'esta, e talvez no fabrico
d'algumas cores rudimentares. O resto é tu-
do inglez. incluindo as drogas que ser\em no
preparado das tinturas; ' e ha nove annos
que temos nas escolas professores ensinando
^ Em Porluíiul só se tece o algodão dos itannos
crus c ubretaniiados, e o panno que serve na estam-
pagem da cliita azul ordinária, este em pequeníssima
quantidade. Casos de fabricante que envie de Portu-
gal uma aguarella para padrão de chita portugueza,
são raríssimos, porque mesmo não haveria quem nos
fizesse em condl^^ões de gosto original.
os rrATO:*; M
deseiilio ornarnental. gravura em inelaes e
não sei so lintiiraria e ciiimica industrial!
Por onde se Iresviarn os operários sabidos
d;) escola com a iniciação complela ou in-
completa d'estas artes? O que fazem os pro-
fessores que não dão mostrss de si n'esles
certamens, e S(> servem para expor, como
um da escola de Faro, vergonhosos crayons
de fazer riso a bf^hfvs do collegio Froebel?
Com as jut-is e papeis de forrai' succede o
mrsmo. execução correcta, cores excellen-
tes, padrões arabescados e vistosos, mas lá
eslá a ffriff^' do cosmopolitismo fabril na-
tnralisado á pressa para iritrujar a |)aula,
e impingir a um publico sensaborão restos
das novidddes industriaes inglezas e fran-
ce/.as d(í ba ipiirize annos. Insisto í»'esta des-
nacionalisação geral da industria nascente
on radicada por me parecer f(ue fora mis-
ter desvial-a dos pi-ocessos da copia servil,
pn'cisamente agora que a mão d'obra pro-
gride, e o publico parece disposto ;( accei-
tai- na manufactura uma porção de r)Ovo com
resaibos darte que lhe recordem typos na-
ciciiaes. Visitar poi* exemplo na galeria dos
Jetonymos, o mobiliiirio, é vir de lá com a
;i2 os GATOS
cabeça em agua de lauta amostrinha de mo-
veis gibosos, copiados dos álbuns france-
zes, e d'uma calilice a deixar vêr nos inte-
riores burguezes noções d'elegancia per-
íeiíaniente inspiradas, no copiirchiquismo
obsceno das cocotíes. E' por toda a par-
le fauleuih de bambu doirado, com da-
mascos verdes e azues, de ilôres escan-
dalosas, chaises-longues d'alcouce. razas ao
uivei do chão, como para exliibições sexuaes
depois de ceia, secretarias e bufetes de se-
nhora, género japonez d'armarios hudando
em tecto de pagode, relevados a fogo e com
vagos oiros pegados á pressa em madeiras
de caixa de cíiarutos. Duas ou (res vitri-
nes d"armadores, postas em estrados, ao fun-
do da galeria, e parecendo conter amosíra
dos trabalhos usuaes das casas exposiloras,
illucidam inquieladoramenle o publico sobre
o conforto das classes capitonadm, onde,
como não podia deixar de ser com taes mo-
bílias, o incesto e o adultério se estatelam
numa lista de monstruosidades pompeia-
nas.
E que admira? se por ventura as exposi-
ções de moveis a que a alludo synthetisam o
os GATOS 33
íypo usual rrinstalação duma família rica ou
lémediada, não ha n'essas casas um único
movei que aproveitado não suggira ao apro-
veitador uma ideia perversa, uma projecção
anatómica congestiva, e uma necessidade
pornographica ou estercoraria. Nos gabi-
netes cerceados de stores. vifraes, cortinas,
reposteiros, alcatifas, biombos, colchas, a
luz morre em crepúsculos que amollecem o
gesto, tirando-lhe a independência delibe-
rante. para o hypocrisiar em caricia e em
attracção ; o ar carbonifica-se d'uma espes-
sura acida, que pelas difficuldades de o
respirar propende á somnolencia; e como
os estofos amortecem a bulha dos passos e
das vrjzes, um mysterio sachristiaco desagre-
ga-se, d'onde a tendência de dizer ao pé da
bocca coizas que ganhariam em se não di-
zer mesmo em voz alta, na rua, sob as vis-
tas perscrutantes do total. A cerceação da
luz e a fermentação do ar ambiente deter-
minam já de si estado mental, e esse esta-
do converge a filo desde que o movei pela
sua forma e molleza dê a posição do corpo,
acirre á preguiça, e emhm conceiíe as con-
gestões erráticas parciaes. Não se imagine
34 OS GATOS
que isto é theoria. E a mobília e a casa
quem, mais que a educação, formam o ser,
e basta um exemplo, o de ter diminuido nas
cidades a proliferação humana des'que foi
inventada a chaise-longue. para se avaliar do
quanto cumpre fazer obedecer a linha do
movei a uma philosophia hygienica funda-
mente estudada nas suas relações com a fa-
mília e co'a moral.
Ora a exposição de moveis alem de não
conter nada que em artigos de conforto e
luxo exprima a elegância visionada por um
gosto serio, de gente limpa, tam pouco no
mobihario modesto, trivial, quotidiano, des-
venda coizas por onde fazer ideia da sala,
da casa de jantar e da alcova d uma famiha
pobre ou remediada. Ha moveis manuehnos
de que a gente ignora a serventia, contado-
res de prateleirinhas e balaustres, inventados
para papagaios fazerem habilidades, quar-
tos de dormir segundo estampas que o Ál-
bum de Vehenhte pour la Franee et pour l'é-
tranger classifica d'estylo Maria Antonieta, e
que teem tanto de caros como de ronflantes
— uma casa de jantar em nogueira, estylo
chato, francez, d'exportação, onde a hnha
os GATOg 35
recta agride a visla — e cabides, cadeiras,
sccrelarias, copias do inglcz pelos modelos
rígidos do Huíel Terminus — coizas avulsas,
tentativas ao acaso, rcpn dacção, repetição
automática, sabbatina par i mostraras pren-
das do árthta. bôa exeiução aqui c alem
lalvez, mas nenhuma li.:a tentativa para
com os elementos tradiccionaes se crear o
typo de mobília nacional para todos os pre-
ços, em madeiras das nossas terras, com-
posição dos nossos artistas, c reminiscên-
cia das nossas velhas artes d'esculptor. ' Está
claro que eu não ignoro as difficuldades a ven-
cer, para dapóz eruditas procuras se trans-
plantar alOm para o moderno um typo de mo-
bília porluguez. A' uma não abundam nos
museus os genuínos exemplares; cá outra,
especialmente em mobílias de luxo, nunca
o eslylo nacional foi uma coiza definida in-
(*) A casa Couto, do Porto, expoz na Avenida em
ti^mpos uma serie de mobiliário popular (^xtromu-
ineníe inlorossante, fio qual pnssno nm álbum com
desenhos e preços calculados ao sabor dos tercíí de
cada coujprador. Não era propiiamento mobilia de
caracter nacional, mas como tentativa anti-rotineira,
era sympalliica, pelo lado económico es|)ecialmente.
36 OS GATOS
teirnmente. Os lamborctes e traslnria de
torcidos que desde os scculos XV e XVI
enxamearam nas nossas ricas rezidencias,
vieram do paiz liollandez por muito tempo,
com o qual por via dos feitores faziainos um
commercio d'arle considerável. Com as via-
gens d AlVica e as descobertas da índia e
do Brazil começámos a reproduzir em ma-
deiras preciosas lodos os lypos usuaes da
mobília flamenga que importávamos, e assim
passámos á Europa trastes ccnliecidos por
porluguezes, como arcazes, bufetes, conta-
dores, a que quando muito tinliamos anne-
xado entre as minuscularias d'adorno, os
tremidos, e que não eram mais do que a reedi-
xão do flandrino em estofo rico. A lavran-
taria dos coiros servindo na revestidurados
bahús e tamboretes, foi por longos annos
também um artigo d*imporlação, expedido
de Hamburgo e Anveres para Lisboa; já
por fim iam de Portugal os desenhos para
gra\ar lá fora, o só nos meados do século
XVI a industria se implantou entre nós,
chegando a um estado dapuro e perfeição
surprehendentes. Com os cordovões ou coi-
ros de Córdova, de que ha spccimens tão
os GATOS 37
bellos em vermelho e preto, estampados a
oiro d'a!lo relevo, o mesmo suceedia.
Pri:)!Ílivameníe vieram deHespanha, mas
ao depois a industria aclimou-se e conse-
guiu viver de vida própria. Nas suas linhas
fundamenlaes porem nunca a mohilia flan-
drina se modificou pela aclimapícm porlu-
gueza, e apenas passando á índia, e entre-
chocaido-se com a arle indigena, originou
esses moveis d'embutidos microscópicos, em
marfim, madeiras de cores, tarlarugas, pra-
tas, de cpie são typo os contadores e as com-
modas apoiadas sobre monstros. Chega-se
á epocha de D. João V, e a revoada d'es-
culplura excessiva e solar que enche de su-
bhmes talhas d'oiro os sancluarios de cinco
mil igrejas e capellas, a renovação archile-
ctonic.t que transfigura a physionomia das
igrejas, fazendo maravilhas na decoração
interior dos grandes edificios, (ex. as três
salas d'entrada do Arsenal do Exercito, es-
pecialmente a se'gund;i, que é uma surpre-
hendcnte boceta de rei prednlario c requin-
tado) ao chegar á mobdia, apenas toca ori-
ginalmente alguns grandes leitos, uma ou
oulra cómoda que pode muiio bem passar
38 OS GATOS
por Luiz XIY abastardado, e por fim esmo-
rece na banalidade jezuilica, sem maiormen-
te assignalar-se em typos caraclerislicos.
De sorte que não existem na arle antiga do
paiz motivos tradiccionacs sobre que crear
um mobiliário de luxo inconfundivelmente
portugueZ; a menos que um archilecto ou
ebenista de génio, por selecções successi-
vas, por tentativas d'arrojo semelhanles ás
que a casa Leilão começou a fazer para in-
dividualisar na ourivesaria o eslylo D. João
V, consiga um dia extremar d'entre a mar-
cenaria espúria, o esqueleto ideal, flagrante,
inédito, dum mobiliário que derivando em-
bora dos contadores torcidos da Flandres
ou das vermiccllas e plumas frisadas do rei
sacrílego, comtudo divirja d'ellas no sen-
tido d'uma emancipação total do estrangei-
ro. Já não seria tão espinhosa a tarefa se
em vez de mobiliário rico, intentássemos re-
constituir sobre restos da antiga marcena-
ria nacional, um mobiliário de pouco preço.
Bastaria tomar para isso a antiga cadeira-
tripeça, o leito, a cadeira pintada d'Evora, e
a banca de pés divergentes, rústica, das ca-
banas do Alemtejo e Beira Baixa, para, ar-
os GATOS 39
tisticando um pouco estes modelos, lermos
um !ypo oti,ííinal d'uma mobilia de povo a
"AIAS, não linda. De feito, que falta ácadeira-
tripeça. tão giacilmente caprina, com seu
assento de [)au e o espaldar radiando em
lyra rústica, para se tornar n'um movei de
gabinete, de casa de jantar, ou de salão?
Um pouco de lorno nos pés, alguns aese-
nlios a fof^^o ou pinturinhas em etrusco ou
pastoral borboleleando nos clieios da ma-
deira, uma enccradura ou polidura a lhe dar
lom, e emlim qualquer ligeiro frontão d'es-
culptura esboçada, á maneira suissa. sobre
as vagas cimalhas do espaldar. A cadeira
pintada d"Evora, que é relativamente mo-
derna, dos fins do século passado o máxi-
mo, teve por antepassado a judia, mais fina
de madeira, lisa de pau> também, o assen-
to de tabúa,e pintada d'umacôr unida, avellã,
amarello salmão, azul dagua, sobre a ([ual,
destacante, um sulco a escuro, e nas guar-
das da espalda sua paysagensita ou gru-
po de figuras. A cadeira d'Evora é feita de
pinho verde e tabiia ordinária, pelos car-
pinteiros d'escada da cidade, e apóz vae a
pintar a óleo a uns certos troca-tintas, pia-
40 OS GATOS
tores populares sem instrucção nem disci-
plina, que sobre os costados lhe atiram co-
pia de flores de roza e d'eloendro — a flor
das ribeiras d'Africa e do Alemtejo —preen-
chendo o resto de vermelhos e azues muito
berrantes. Custa de deseseis a desoito vin-
téns, em qualquer feira do districlo, um tras-
te d'estes, que apezar de grosseiro é regio-
nal e encantador de pitoresco; e uma cama
larga, de pinho, alta de taboas, com sua
barra de rozas jovialmente toucada de duas
urnasinhas etruscas na cimalha, nunca vae
alem de três a cinco mil réis, na razão do
caminho a que está do centro productor. A
banca de pés divergentes, a banca-tripeça
de cozinha, feita dazinho, contemporânea
do sapateiro das cavernas(?) e que pode apre-
ciar-se de resto, já civilisada, em faia bran-
ca, com seu plateau d'azulejos, na mobi-
ha popular d'eslylo inglez, a prateleira
p'ra loiça, o oratório e a arca de ferrolho,
pintada de rozas, á moda d'Evora, eis ahi
lambem trastes primevos que bastaria cor-
rigir nos accessorios, escolhendo madeiras
seccas e mais finas, introduzindo aqui e
aleai formas elásticas, levezas de contorno,
os GATOS M
diminuição de pezo e alados de "pintura
ornemanista, para com pequeno dispêndio
e diversa educação do operário se conse-
guir em breve um mobiliário popular in-
comparavelmente alegre e original. Infeliz-
menle os cadeireiros dEvora não teem per
emquanlo escola industrial, e que a tives-
sem, ninguém Ines compelliria a instrucção
para estas fulricalhas!
Eis em resumo algumas notas á margem
sobre o que me pareceu surprehender de
miu na exposição industrial. Torno a dizer
que estas observações, filiadas de resto no
offegante desejo de vêr o trabalho nacional
medrar de vida própria, por forma alguma
querem dizer falia de fé no fuluro da in-
dustria inleUigínlemente protegida, e no
esforço sympalliico que é já esse montão
de coizas a esmo na galeria dos Jeronymos.
O que ellas representam apenas é impa-
ciência por tanto tempo perdido a vencer
diíTiculdades caricatas, a jactanciar trium-
plics que não são mais que deshonestas ar-
timanhas, e a espernear emfim entre diffi-
culdades derivando d'uma falta de plano
na reorganisação fabril da nossa teira.
SXJ]\J[]M^?LI^I<>
o thealro de D. Maria e a euliuda de Lucinda Si-
lufx'?. — Deilicagáo do actor [lelo ivdamo. — Os con-
sa}íiados do proscénio e suas birras, basofias e de-
f(-ifõs. — Brazão, o olympico. — Luciuda Siuiões, adi-
\iiia. — Augusto Hozii o iuiinitavel, t* João hoza, o
coiiceucioso. — Siltiiu-tci; d'esit'S artistas t- do tuaie que
s(' disser.
FIALHO D'ALMEIDA
OS (3-J^TOS
iíiU'ERlTO A' VIDA PORTUGUSZA
U desastre dos adores de 1). Maria no
Brazil, e uma (jnestão iiriíante (rescriplura
d.'aclrizes ijue ha pouco tempo cliouteava os
jornaes. esporeada a medo, pelos reporlers,
na ansencia dos dramalurp:os-criliros inte-
ressados pelos direilos d'aucloi' em manter
o estado-nnfe. de novo actualisa toda a serie
de ([uesilos que siiccessivamenle lemos pro-
[loslo sobre a situação cada vrz mais ron-
ceira do tíiealro poriujíuez
Já dispersamente dissemos o que nos
tinha parecido suprehendei' de mau nas
producções dramáticas originaes, e não é
azado reeditar vindictas que por certo lião-de
surgir. cenlu[dicadas de fúria, no anno dra-
os GAT(^S
malico (|uo começa. Simplesmente guiaremos
as curiosidades da Iribu artista para o (jiie
se passa em bastidores de D. Maria, acon-
selliarido aquella a que reaja, por bem de
todos, contra as prosapias do elenco nobre,
actual, da companhia.
O caso é áspero de pensar pelos proces-
sos simples das feridas contusas, n'uma
terra onde pela estreiteza do meio e a rede
dos interesses não pode havei- coizas autó-
nomas, e n'nma classe onde quanto não
seja elogio incondicional, é uma offensa,
a pagar-se em moeda d'odio vingativo. En-
tanto, como a companhia do theatro de D.
Maria é a questão do outono, e se falia
muito em dissolução de parlamentos, salubre
parece averiguar também se o ideal dramá-
tico pode governar com taes reprezentantes,
não vamos nós agora achar inulil o Fuschini
e bacoco o Bernardino, e envolvei' em ido-
latrias terríficas, cabotinos menos valiosos
e muito mais bem pagos. Demais, propondo
correcções hygienicas na casa de Garret, por
forma ala^uma miramos deilar-lhe abaixo os
pilares e inutilisar-lhe os colchões comple-
tamente: aquella hospedaria ainda tem tal-
os CrATns :\
vez inoveis iiiagiii ticos, praias arlislicas, c
loiças ({lie mesmo aniigas e radiadas, ainda
por longo lenipo, com alguns gatos, poderão
reíniregar o palácio na sua liabilual snmiuo-
sidade. N'esle sentido começaríim jornaes
uma cruzada (|uc logo ás primeiras cargas
produziu etíeitos primorosos, e Lucinda
Simões pode íelicitar-se de entre penetrar
no llieatro por uma portaria do ministro, e
uma demonstração sympatiiica da imprensa,
ter preferido a ultima, deixando a outra aos
estudantes cabulas a quem para a admissão
n'uma escola superior, íalta latim.
1']sta vjcloria porem, |iosto minúscula, tão
vaidosos deixou os assaltantes, (pie pelo si-
lencio d'esles vejo a campanlia terminada,
e islo surpreliende-me, porque a questão
do tliealro de D. Maria é mais complexa, e
em muilo pouco a resolve a escriptura
d'uma comediante que se resolvi; a acabar
os dias rruma cooperativa de velliice.
(Cooperativa de velhice é carregado:'
(Inido (juenão. Km arle,(piem pára, morre,
e lia (piantos annos olha a genie para D. Ma-
ria e vè os adores a íantocliinar no mesmo
silio'.' De mais a geração ipie succedeu á ro-
4 OS GATOS
nianiica, do leinpo dEmiiia das Neves, ti-
rante alguos momentos de Santos, onde pro-
duziu ella um artista verdadeirauíenle gran-
de e excepcional? O theatro moderno, litte-
rario de dialogo, sem catastroplies, alem d'ar-
rcfecer a alma, leve o mau sestro de traves-
tir de prodígios umas creaturas que mesmo
favoravelmente julgadas nunca passaram de
medianias doiradas e de correctns e esculptu-
raes mediocridades. Animal-as emquanto
persuadidos da sua possibilidade de progres-
so, il-as benevolamente tolerando, visto o des-
consolado argumento de não haver melhor no
alfobre nacional — perfeitamente — mas nun-
ca admittindo ^^ue ellas se imponham ao
critério geral como intangiveis, nem lhes
tomando a serio tam pouco a filáucia de
constituirem na arte um principado inde-
pendente. Desde porem que a arte de re-
prezentar se reduziu no theatro de D. Maria
a uma sinecura dartifices monocordios. ba-
tidos na repetição dos mesmos trucs, des-
naluralisando a dicção a sabor das suas
nielopeas aslhuialicas e d'uma falta de pes-
quisas onde a individualisação dos papeis
consiste em Ía/AT caliiar os typos no mesmo
os (;ato.-> li
auloinalo palliJo e cangado, é tlever de todos
os que criticam insurgir-se contra uni es-
tado de coizas (jue está fazendo da scena
poi'tiigueza uma oratória succursal do par-
lamento, e de seis ou sete comediantes o
alvo d'uma íoi'luna arlislica (jue necessai'ia-
menle lesa o gosto, e só tem servido \n\ra
engordar inexpressivos manequins.
N'esta conformidade daremos as i'apidas
silhuetas d'algu'is acloi"es e actrizes que
por sua posição no iheatro visam o pnpel
de modelos, e a (piem por isso mesmo cabem
responsabilidades inlierentes á região semi-
divinal em cpie se movem.
Eduanlo Brazão.
Figui'a d'aclor b-ancez. índole ardente,
braços descomnifinaes, e uma vóz sem lle-
xibilidade com tendência a eni'i(|uecei' o som
pelos rugidos. E' a íigui'a piiiR'i[)al d;i com-
panliia, e as suas btllas intrometidas, reve-
lando um buscador audaz de lances s.cenicos,
lá vão |)ercorrendo Ioda a escala de genei^os
onde o lado brilbante [)0ssa dar-l!ie ensejo
a elíeitos calorosos. A sua galeria é exien-
t) ÕS GATOb
sissima, e se não deixa um grande papet
scienliíicamenle composto, de lóra para den-
tro, á Goquelin, deverá isso atribiiir-se á
sua Índole oratória de porluguez desamorado
dos infinitamente pequenos da psvchologia,
e apenas vendo pela rorlicula emplialica,
creações destinadas a emocionar plateas que
não pensam. Tem na dislribuição dos pa-
peis, oiço dizer, a parle do leão, gostando
de confrontos, pouco, e evitando em scena
por isso todas as situações em que o*pul)lico
podia comparal-o desvantajosamenle a al-
gum dos mais. No Othello por exemplo, lago
irrita-o, por lhe parecer que os applausos
não visam exclusivamente o ciúme de moiro
([ue elle enrouquece a dai' nos possiveis da
sua artilicialidade de sceptico alfacinha.
Como todas as Índoles de proscénio, recebe
mal que se triumphe e medre ao lado d'elle;
a evidencia é uzeira e vezeira em sovinices
d'estas. e na vida de Iheatro a lucta pela
voga é uma coiza tão rude, íjue muitas vezes
os artistas gaslam em intrigalhas debaslidor
o talento que depois lhes vem a fazer falta
para o desempenho dos papeis. E' por isso
talvez que ha uns annos para cá quazi tcda
os GATOS 7
a coriipauliia estacionou, explorando j)elo
rodriguiniio a aflectividacie estúpida do vul-
go, e gaizando o reporlorio iiovo com os
Ires ou quatro nai-ises de cera creados pai-a.
o veliio. Ejla paragem não é apenas nociva
pelos entraves locaes ([iie determina, senão
poress'oulros ipic generalisa em Indo ipianto
tem relação com uma ideia de conjunclo.
No tlieati"0, como na rua. as liguras paradas
perturbam o livre transito; os indivíduos
activos veem-se obrigados a contornar esse
obstáculo, visto comO; sendo elle grande, lhe
não possam passar por cima, e ó o caso dos
actores novos, annos e anni^s á espera (pie
a policia da critica restabeleça a circidação
• pie um mal entendido orgulho se compraz
iiinterromper. Comparada á dos societários
seus colleiías. ainda assim a carreira de Hra-
zão não se pode dizer posesse ponto: pri-
meiro, é um talento tórrido, com accumula-
ções de seiva em plena floração; a edade
não lhe peza. ;i vida regorgila-lhe em bor-
botões da esbelteza dúctil da ligura. e yen-
do-o na scena repetir-se, explorar dos jxipeis
apenas a oratória, lançar tá vóz e os l)i'aços
em certa altura dos actos, como para salvar
8 OS GATOS
a nado a peça, o que se apercebe nào é
com cerleza no aríista iim lolo eslampie,
senão alguém que em face de broncos,
guarda o oiro de lei p'ra lhes lançar des-
prezivamente uns lenlos de laíão. D"estas
escamolearões somos lodos culpados, e não
só no Ihealro, mas em ludo, pois com o nos-
so ar de bonliomia sei'vil. d'enlhusiasmo
fingido, iudo nos é por egual indiííerente:
um individuo ou utn íaclo vivem no nosso
espirito apenas para o momento em que
apparecem; insistem, supponhamos. e logo
a íadÍLa que isto nos causa se iransíorma
rapidamente em irritação — do (jue acotilece
resolverem-se ás vezes peia irbçacoizas([ue
tinham entrado em nós pela ternura ou pelo
exlasi. Esta a falia d"lnteresse dasnalurezas
cachelicas de leitura, dos espirilos pairantes,
que em todos os meios intelligenles usam
ser os maioraes da opinião; suslada a sua
influencia na arte. ficarão as questões á mer-
cê das inslinclividades desordenadas da
turba, que assim achará tudo mau ou ludo
bom, conforme lhes bala ou não bata o
coração. D'esta soiie acontece ([ue os acto-
res poiluguezes sejam quazi todos feitos
^ÉiM^^^^^^^^ai^
os GATOS 9
pelo publico ordinário, que os ensaia a ti-
rante das suas apetencias grosseiras, lornan-
do-os em mei"OS figurinos d'unia sensiblerie
d'occasião. Não posso dizer se a edade, co-
berta d"experiencia, e apaziguada nas sedes
de brilhante que fazem o continuo anlielo do
actor cego de palmas, recapitulará um dia
em Eduardo Brazão as esperanças ma.\in)as
que alguns partidários seus pozeramnoseu
estro. E' possivel que abandonando os pa-
peis de galan, de linha janota, fatigada a
íarynge dos berros cavos que levanlam aos
domingos as plateas de caixeiros, e sazonado
o artista f)elos martyrios do estudo que á
hora dos cabellos biancos amoedam o ca-
racter n*um typo adentrado á cogitação das
modalidades do ser inlerioi-, d'esta ensi-
mesmação moral surja um actor verdadeira-
mente forte para nos dar centros de peças,
detalhados para dentro, já sem aspandilhi-
cí?s discursivas ipie são o fácil do olTicio, e
lie que todo o creador tem obrigação de fu-
gir como d'umaborloejadeshonesta. Em Edu-
ardo Bi'azão valeria a pena investir contra
esta bai'reira formidável, alem da .(piai só
se é verdadeiramente no iheatro um lypo
iO os GATOS
superior, porque depois dos aclurcs român-
ticos contemporâneos d^Emilia nenhum como
este se revelou mais bem dolado, sendo pena
que o publico lhe peça tão pouco, e que
elle, rom uma escala (raplidões tanto ao
moderno, não tenha feito por egualar-se aos
grandes comediantes, desprezando a pepi-
neira fácil dos applausos, desbridando o ta-
lento á custa de marlyrio, cravando as unhas
na alma té o sangue lhe espirrar na plasti-
cisação d'uma galeria esculplada com todas
as vesânias e resaibos da psychologia indi-
vidual conteiíiporanea. tão pathologica, tão
louca, e de que um grande observador faria
o laboratório de shakespearisacôes estranhas
e terríveis.
Lucmila Simões.
O alvo das idealisações Ifiealraes n'este
momento: Cleópatra no Nilo, lirada por tri-
tões que são dramaturi^os extáticos nos di-
reitos d'auctor que ella lhes renda, e não
vendo as provações funestas que lhe vae
acarretar a evidencia que se fez na ancie-
dade d'um publico seíjuioso d'ullra-chic.
os GATOS H
Cerlo, entra os liumbraes de D. Maria co-
roada de rainha, como se o lliealro não
fosse, á laia do paiz, pequenino de mais
para ler duas, e como se a viuva, mesmo
morganática, se resignasse a envelhecer íóra
do ihrono!
Ouando, ave migradora da scena por-
tugueza, suprema de juventude impassivel
como todas as creaturas que provaram do
amor apenas o pizzicalo. vinhn a Lisboa
repetir com seu marido o thcalro almiscarado
e nobre de Feuillet, tudo o que no seu jogo
havia d'esbalido e sem resaibo, resgalava-o
essa qualidade eterna, embevecente, a ado-
lescência da mulher bella de \inte annos,
pouco amorosa embora, spleenelica e su-
prindo nos nervos mortos facilmente a pai-
xão pela coquetice, e o deliquio sentimental
pela ironia. Das paixões poéticas que fez
alvorecer então, com a sua candura enig-
mática de sphinge, pupila do marido, nos
corações dos esludanleS; íar-se-hia uma jan-
gada a lhe dispensar o transatlântico de
regresso — oh sim, uma jangada viva d'in-
genuos platonismos! — enaslrando-as de
Lisboa ao Hrazil, por cima do mar, tantas e
íi (tS GATO?
lanlas, e onde os seus pés enxutos pisas-
sem, por toda essa intérmina distancia, uma
alcatifa de floritas feitas de lieijos sem hi-
^'0(1 e.
Deslas fugaces fugas pela pátria. Lucinda
Simões deixou na arlo uma impressão de
tina transcendência, e na plianfasia túrbida
dos novos alguma coiza de semelfiante á
passagem d'uma estatua levada em procis-
são por entre coros d'escravos deslumbrados.
As suas longas viagens, a sua belleza i-ai-a.
de busto um pouco forte, alta e com umcba-
peu Gainsbourougb de plumas pretas, a
castidade das suas mãos senhoriaes, puras
de pelle. um pouco largas de chave como
as de rainha D. Amélia, onde brilhavam
escudeles d'anneis na lassidão spleenelica
dos dedos— a sua voz de garganta, agacante
de todos os artifícios da preciosidade litte-
rariaque se enfuna — tudo isto concorria para
lhe nimbar a mocidade n'uma lenda de gé-
nio CUJO mysterio deixava no theatroum ras-
tro olympico, a ponto dos poetas se fazerem
por ella sapateiros — Fernando Caldeira,
f^xemplo, o pespontador dos Sapatinhoíi de
í^eíim. Voltou annos depois, senhora já, trin-
^
TvS GATO? í:í
tando irarltosíiinente entre dois tillios. e a
sua helleza. peidida ■d\i\\)oy')s'u]i\áee{hereal,
accentuava as ([ualidades mães (jue ;;nleiior-
mente deixara suspeitar. Kra agora uma
rnuilier lorle e eslylisada a primor no toHet-
(e^ o busto curto e os circuntornos da cinta
sem ampliora, como os das mullieres ple-
beas (jue amamentam, a cabeça grande e for-
temente articulada n'um pescoço, que para
phidiesco ser precisaria de pelo menos con-
tar mais duas vértebras. No C()rle do perfil
nenhuma atrevida aresta pondo alertas na
ondulatuia paiada das feições: naris pe(|ue-
no. de lóbulo redondo, baldaipiinancío uma
bocca de golpe, pródiga quanto pode ser
de commissui'as d'ironia: queixo sem (|ui-
llia. lindando uma lace commum de ser sem
luctas: e apenas nos olhos castanhos, lím-
pidos d'agua, ramudds de pestanas, a con-
rentração da vida preliensil (jue lhe íalta-
va íio resto da ligura. Fallei do seu buslo
sem esvasados, comendo-lhe a cintura e
dando á implantação do tronco nos (|iia-
dris uma linha sui'da de matrona: íallei
do pescoço cm-to. incapaz de continuar, sei-
pentinando, os coqueleios da c.ibeça — o
14 OS GATOS
<|ue é o [);ii-enlesco da mulher co's cvsnes
wagnerianos — e lodavia estes dois senões ca-
pilaes d*ai'c!iilcclura mal lhe prejudicam,
nos vestuários decotados, a estylisação im-
peccavel dos hombros c do peiio. a esculp-
tura dos braços, que são únicos, e o modelado
das espadoas, frio como pedra, evocação de
Praxilcles, á ílôr do qual papel algum cala-
íria um raslio de mors-amor. K e.sla frial-
dade de Juno sem desejos, ressumbranle
das feições, propagada á rythmia molle dos
gestos, que lhe transparece na vóz em pre-
guiçosos dialectos lilterarjos, onde um ou
outro desdém metallico transpira. D"a(|ui já
se infere portanto a qualidade de theatro que
mais se lhe coaduna e quadra ao tempera-
mento, e que deve ser um íhealro de dialogo
correcto e fabulisação paradoxal, um íhealro
fallado confortavelmente em salões cheios
de Stores, plantas carnosas c pufs de setini,
sabendo ás parabolisacões mordentes do
moderno, sem tumultos nem gritos, todo
sensações artificiaes, banhos de leite e taças
de Champagne, dehatendo requintes, trágico
a frio, escorando a sua anemia nos vicios
pallidos da moda, e incomprehensivel fora
í)S GATOS ^H
(lo ar lillerario <la e[iocha, da lilleralura
arialytica e dos íigurinos macabros da esla-
ção. Já adevinharam ({ue se estereolvpa assim
ama inoarnadoru do líiealro de Dtinias titlio,
de Vicloiieii Sardou. e porvenUirad*Aiigier,
se lhe exagerarmos um pouco recursos
dramalicos ate agora imperieilamente com-
provados nos successos surdos da Adriana
Lecouvreur, da Princeza deoryes e da The-
reza Rwjuin. E' uma actriz de comedia, mas
só d'alla comedia, e dentro d'esla ainda o
seu reportório perfeito é limitado. O ({ue é
que se lhe conhece na obra de verdadeira-
mente allivolo e superior? A Suzana do
Demi-Muiide, o primeiro acto da Tliereza
Raquin, e algumas scenas melhores do Di-
vorçons. O resto, para uma actriz sem nome,
era magnihco. mas tractando-se da sacerdo-
tisa cumpre encaral-a á labareda di) fogaréu
do génio que a sua reputarão C(mstante-
nienlf' tem d'atiçar no aliar da arte.
Por isso dissemos (|ue a protissão claus-
tral de Lucinda Simões em 0. Maria, tiran-
do-lhe o mirabolante das reapparições in-
tervaladas por grandes periodos d'ausencia
e de repouso, e pondo-a em quotidiano con-
16 OS GATOS
lacloco'a i'ilta!la,nocessariameiiloli;nerá((ije
trazer á caprichosa bobemia algumas dece-
pções cruéis dentro de pouco.
PrimeirO; constituída em figura principal
nos llieatriniios maus onde antigamente
apparecia, Lucinda Simões, semrivaes, ajías-
tava de si (juakjuer ideia de confronto.
Segundo, escolhia ella mesma as peças
onde se «jueria mostrar. S() apparecendo
em scena preparada por longas e estudiosas
pesquizas no papel, e isto se lhe não reme-
diava as incorrecções que a falta d'uni en-
saiador massacrante e auctoritario acirra
em todos os comediantes envaidecidos, atte-
nuava-lh'as pelo menos o possível para não
transparecerem nas suas creações os dispa-
rates de conjuncto que tão frequentes são
nos nossos palcos. Agora é diverso. Lucinda
Simões deixa de ser para muita gente a sem
rival; vae apparecer n'umtheatro onde cada
primeiro comediante não pensará senão em
distrahir do seu nome a effusão da platea
egoista e variável, comprometendo-lhe os
successos que, mesmo desastres, todavia
lhe ficavam no Príncipe Real. indiscutíveis.
E" uma actriz de comedia í' Pois approxi-
os GATOS 17
iiia-se a hora tie se suiiiirein de D. Mai-ia
as damas dramáticas, Virgínia poi- doente,
a Falco por cancada, e emparral-a-lião pa-
ra os papeis violentos, onde o seu tempera-
mento molle e a sua voz de cabeça, com fun-
dos duros, incapaz ifum soluço, d'um
spasmo, d"um grande movimento, llie pro-
vaião que em Iheatro os (jue não solírem,
não interessam. Terá de baixar a (•al)eça,
como de resto os demais seus coUegas do
elenco, ao jugo da tlisciplina do palco, todo
commercial, une manda acceitar os papeis
no ponto de vista das conveniências de .lo-
dos e nunca para lisonga exclusiva das vai-
dades senhoris dalta ou de l)ela— marcan-
do-os em duas sessões, obrigando a coin-
pòl-os e sal)el-os em quinze dias. e a repe-
til-os depois deante do publico, mal deta-
lhados, comidos, sem novidade, sem inven-
ção, sem psychologia. entre ciumentos col-
legas que lalseiam a deixa, ou levantam o
tom p'ra nos estender na altura em ijue o
publico poderia não applaudir senão a nós.
Ora para de todos estes recifes fazei um thro-
no, é necessário não só como intelligcncia
ser um cimo, senão também como esforço
18 OS (tATíIS
possuir uma extraordinária disciplina de
írahalho. E Lucinda Simões não a tem, e
como talento de scena, apezar de lli'o con-
lirmármos. não esquecer que ella é ha quin-
ze annos a actriz d'um S(') papel — o ([ue
francamente é pouco para astro.
Augusto Roza,
que é veidadeiramente um caracter de pal-
co, íadado. pelas etíeminações do luxo. pa-
ra os íogos latuos da scena, que o ponto
apvaga ou assopra, conforme— ^aconteceu-llie
íer tido talento umas quatro ou cinco vezes.
F()ra em rapaz uma figurita melódica de Vau
Reers, verde de pelle, o narisito no ar. bus-
cando caça, dois olhos côr de pombo, e uma
boquita em aro que lhe ficou assim das ex-
clamações do cidadão Tremnitz da Sr.^ An-
goí. Hoje, com quarenta e pico, da gentile-
za antiga resta o nariz, armado em ventas
pelo abuso das perfumarias que o enfras-
cam. os olhos C()r de pombo, um pouco ex-
tinctos: e quanto á boquita, posto inda em
aro, jtá por Lá conta o seu dente ou dois,
mais falsos do que Judas. Vestindo bem,
U> (iATOS VJ
gaslaiido na gravata inais lalenlo du com-
posição do (jiie na miíie-en-scéne. fallando
como quem gorgoleja as palavras na saliva,
lanlo goslo de si fazia em scena. que si) na
pintura dos ollios gastava todas as noites o
curso completo da Academia Real de liei-
las Artes. Debutou en\ D. Maria n'uma es-
pecialidade de papeis onde a sua Índole de
janota cinico^ coleava. com frivolidades fran-
cezas, sorvidas n'uma rápida assimilação
do que vira fazer •àc?>jeuneii-prcniier dramá-
ticos de Paris. A voz, d'uín timbre desegual.
quasi toda de cabeça, tornava-se impi-opiia.
como (piasi todas as dos seus collegas, pa-
ra a vilalisação dos relances palheticos, e
d'abi o sabir cantada e recomida no tim das
plirases, pela curleza asphixica do fôlego,
e o quebrar-se nas passagens de força —
d'onde a recorrência ás resonancias de gor-
ja sempre que o papel pedia vebemencias
e transfigurações passionaes de coração.
Tal o motivo j)0r(pie os seus papeis dramá-
ticos são i'idiculos. todos, e portpie os seus
galãs e meios centros d"alta comedia sejam
talvez das suas composições mais duradou-
ras. 1^] como Lucinda Simões, um artista edu-
20
OS GATOS
cado no lliealro de Sardou e de Dumas, e o
Septmoiilsda Estrangeira deu a revelação do
quanto poderia caiTiinharn'esíe ao direito, ca-
so annos depois não cristaUisass«. como Nar-
ciso, na adoração das próprias formosuras.
Não se lhe pode negar como artista, um gosto
innato. e certa intuição vivaz na perscruta
exterior dos personagens; figuras suas. co-
mo o D. Cezar de Bazan, o amigo Fritz da
primeira maneira, e certos bocados de pa-
peis a esmo pelos dramas históricos, teem
á primeira vista uma espécie de magnifi-
cência (|ue se impõe, victoriosa. estontean-
do a frieza da analyse. e alacrisando a phan-
tasia pelo picloresco intenso dos detalhes.
Quem lhe não conhece a famosa entrada de
costas do D. Cezar, e o sua mãe inda inve?.,.
da Estrangeira? Todavia, se para o gros-
so publico inculto e lorpa estes luzentes de-
calcos são tudo o (jue eile comprenhe e
aceita na fortuita psychologia dos persona-
gens de theatro. nem por isso os inquéri-
tos da critica terão que ficar perpetuamente
extasiados perante o artista que d'elles fez
cavallo de parada, ou desconvirão do prin-
cipio de que quanto mais altas as aptidões
HS (iATOS -Jl
do actor p'rá vida scenica, tanto inaior de-
va ser a tyrannia em do talento lhe arrancar
successivas e intensas creações. Augusto
Boza é um actor que (|uasi em plena ado-
lescência (Tarle engagueceu, como Rrazão,
á força d'esse orgulho estulto ({ue é o re-
zultado da bajulação tomada a sério, e mer-
cê da qual sossobram, em certas vaidosas
oi'ganisações de cabotinos, lodosos assomos
de lucidez — em termos do lalento degenerar
n'uma espécie de bugiaria inconsciente. A
necessidade de manter o publico n'uma em-
basbacação especlante que os seus recursos
naturaes poderiam estender, quando muito,
aos limites de quatro ou cinco foruuilas co-
nhecidas, levou-o, em certa altura da sua vi-
da iheatral, a forçar a corda, sahindo dos
papeis irónicos para o drama, e percorren-
do com a mesma monotonia enphalica todos
os géneros onde uma caraclerisação picto-
resca e accentos guturaes lhe poderiam fa-
zer reputação de hei esprif. Menino bonito
da empreza, aucloridade e voz em Iodas as
resoluções do grande conselho, tem nas
sessões voto dobrado — porque o mano João
nunca formula o seu. senão por monosylla-
ns GATOS
bos^e representa na harmonia da balança
o peso opposto ao que Roza Damasceno e
Brazão fazem pesar, no outro prato. Entre
estes dois grupos, o ciúme de palco, que o
publico só conhece por entre um simulacro
de fraternaes demonstrações, é um d'estes
sentimentos cauterisantes, coleantes, medro-
sos da publicidade e prohibidos d'explosão
directa, sob que rechina a vida do actor ad-
mirado, dia e noite em paralello continuo
c'o seu emulo. Toilos os principios d'epo-
cha, fins d'epocha. meados d'epocha, quan-
do na peça nova tem papel d'espavenlo al-
gum dos Rozas, corre o boato de (|ue o il-
luslre lírazão pensa em deixar o theatro,
por desgostos; ou se é Brazão (jue Irium-
pha, o mesmo boato esíumaceia, respeitan-
te aos manos descontentes. Com as patea-
das. idênticos regougos, prosapias d'insubs-
tituibilidade, ameaças de que se vão, que
não precisam, e depois d'elles o diluvio —
mas coiza singular! quanto mais co'a re-
tirada nos acenim, tanto com mais ferre-
nha gula se esbofam na guerreia dos pa-
peis, por disputar-se o favor da galeria. E
que admira? a pingadeira é rica e delicioso
■)S GATOS 2:;
e folgado o oíiicio a mais não ser. . Oan-
no passado, no íim da epocha, repartiram
por ({uatro, desoito contos: por conseguinte
não haja medo (jue abalem sem alguém os
pôr de lá p'ra fora, pois aquelles que a pai-
xão d'aclor não aparafusa ás ta boas do
prosceni.». lá teem a judiaria cúpida do di-
nheiro ;i junjil-os á panelinha de sabidos
compadres que se estão rentando para o
povo. D'aqui porlanto um modnsvivendicu-
jas concessões reciprocas, se nem sempre
teem podido evitar tentativas de quebra de
contracto, e ameaças de separação escanda-
losas, todavia permitle a ambos os grupos
o respirarem n'uma tal ou (jual autonomia.
D'uma banda Roza Damasceno, esquecida
da edade. agarrada ás ingénuas (|ue ella
aboneca co'as polichinelices d'uma voz en-
ferrujada, põe como condicção o não lhe es-
cripturarem senão divns rançosas, carcaças
de fêmeas que façam valer pelo absurdo o
({ue a interessante artista ainda possa exhi-
bir d'alerta e espevitado. D'outra banda.
Augusto Roza, desasocegado por ciiimeiras
idênticas, vigiando com desesperados olhos
a porta de scena por onde um faial acaso
á't US (iATUS
d'escnplLira íaça eulrai' o jiivenii galã (jue
lhe íierrole d'um pinclio os successos gutu-
raes dos ullimos seis annos. No fundo, es-
tes desesperos da evidencia na escalada
d'uma gloria fugitiva, lêem seu ressuino to-
cante, que pulsa de fraqueza humana, e é
natural na tiragem d'estas organisações ar-
tiíiciaes que vivem de brouhahas. Recom-
por o martyrio do comerliante amimado que
e'nvelliece á espreita (jue uma noite de de-
bute lhe derroque os trinta annos d'ovações
enthusiastas, é visionar nos seus sinistros re-
cessos esse calvário medonho onde vem a
morrer todas as celebridades fatiadas, acto-
res, oradores, por entre o encolher de hom-
bros da turba esquecida da emoção que el-
les lhe deram. Não é propriamente a doen-
ça do coração que ao cabo de delíquios que-
bra as molas do ser a esses desterraaos —
o abandono é que os rebenta, o silencio
glacial é que os acaba; novas glorias suc-
cedem e ninguém já tem uma palavra para
as nossas; os periódicos não nos incensam
mais as deslumbrantes noites de delirio. a
multidão não se volta se passamos: a obs-
curidade, que é de todos os insultos, o mais
lis (IA TOS áo.
cvnico, asphixia-nos, e seis mezes depois de
deixar a scena. o artista não lem já nome:
é um tal ou uma tal, (jue lizeiam chorar ou
rir nossos avós. . . . Gomprehende-se por-
tanto (jue sendo a gloria do actor uma let-
tra á vista, todos elles laçam, p'ra se não
submergii'. osíorços desesperados; mas este
capitulo (' historia sentimental, e a arte, que
é uma deusa, seria ridícula descendo do
carro jjara pôr rataplasinas nos aleijões das
suas victimas. Augusto Roza — tornando ao
velho tliema — é na moderna historia do
theatro de D. Maria cúmplice e reu de dois
deploráveis attentados. Reu, porque poden-
do ter sahido um artista fero, está reduzido
por basolia a uma simples utilidade black-
boulée d'applausos chalros, junant de chie
todos os papeis ipie o enamoram por (pial-
quer accidente estravagante. Cúmplice, por
com os outros societários do theatro só ter
pensado em si. e na arte, pouco, não Irans-
mittindo aos novos um conselho só da escola
adfjuirida, nem preparando Iam pouco gera-
ções successoras, pelo egoismo de se acha-
rem lun dia sós no campo das receitas. Estas
duas accusacões devem lancai-se em rosto
-26
(js gatos
de lodos os que em D. Maria se vangloriam
de sustentar as tradicções do theaíro por-
tngaez. Não ha um único comediante pela.
arte; é tudo actores pelo pul>lico e para o
publico — embaciado o brillio da juventude,
estafados os recursos physicos do debute,
quando estas coisas não contam mais para
a seducção da (urba lorpa. os pobres dia-
bos appa recém então como os espantalhos
de si próprios, não creando nada alem do
exagero do que fizera o successo das suas
noites de triumpho. Houve por exemplo
uma epocha em que Augusto, Roza não via
nos papeis i;enão Septmonts: pastelleiros,
janotas, boticários, tudo tinha a chancella do
famoso malandro ih Estrangeira. Quem não
conhece o ranço deixado pelo OlheUo nos
papeis dramáticos de Brazão ? e o da tilha
do Rei Caramba, nas rainhas de Roza Da-
masceno? Imaginam que estas repetições
cararterisem sempre pobreza d'invenção "^
D'uma vez, increpando ein palestra um dos
artistas, sobre a mania d'elle dar a toda uma
serie de papeis, o verniz d'um cerio em ([nc
ticára consagrado, redarguiu-me. sorrindo,
o dom tunante: você que quer? o publico
os GATOS 27
gostou . . . Agradar ao publico, eis a caria de
guia para a gloria. A' uma, é esla na arle
de representar, a poria íacil; á oulra, to-
mando por critério artislico toda e qualquer
lisonja servil ao idolo grosseiro, quanto n'a-
quella arle houver de profundo e raro, è
alijado ao mar como arrheologia caturra de
que só os eruditos mascam o inútil ponti-
lhado. Começa pela dicção, onde desde a
poncluação e do fôlego da phrase dando o
preí^ipilar ou o relentar do movimento, até
á sensibilidade da voz dando a vibração de
tal sentimento ou ideia transmissível, tudo
é falhado e interpretado ao capricho da au-
ra epiléptica do artista, constituido para o
caso em nevrostolo. Já havia a designação
de voz de theatro para exprimir certas gutu-
ralidades de bode emitidas por entre modu-
lados de bocca. fallando, como diz o povo,
à politica; de ha uns annos para cá. os
actores, [ireoccupados dachar uma algara-
via nova que picasse a curiosidade da gale-
ria, teem fabricado dentro daquella espé-
cie d'uivo ou miado, series d'oulras vozes
chérrotaníes, qual mais falsete, para occul-
tar estragos de larvnge que a asihma ou a
28 OS GATOS
edadellies Irazeni. depois de cada allaque de
labagismo ou dinílueuza. O etíeito d'esla
emissão vocal defeituosa, filha d achaques
ou de uiaus hábitos phonelicos determina-
dos por uma necessidade d'enphase com
que o actor portuguez supre a emotividade
de papeis que não entende, ou que não es-
tuda, clioca principalmente as pessoas de
gosto que vão ao theatro poucas vezes, e a
(|uem ellfts lodos dão uma impi'essão deber-
radores de club ou de fantoclies, e por imi-
tação determina na pronuncia e na falia lis-
boeta uma serie de modulações e defeitos
grammaticaes que desvirtuam o espirito da
lingua, e intiltram melopeas janotas na con-
versa das classes ditas «illustradas» da ci-
dade. Basta frequentar a meia tijella elegan-
te dos caifés e /ive 6 cloch para dentro da
preciosidade equivoca dos genlilhomens da
gomma, das demoizellas uterinas edas mada-
ma^litleraticicas, reconhecer os imitadores ex-
tasiados de Brazão, d'Augusto, daPiozaeda
Lucinda, e ter ganas de os saccudir alli mes-
mo, tesamente, com quatro chufas d'arriei-
ro. Mercê da dicção convencional, a ondu-
latura melódica que o auctor dera á sua pro-
US GAT(.>S 2ií
vSa, c alterada, preverlidu o sentiJo da lira-
da — umas passagens falham por excesso
de íorça dada á passagem anlerior— certos
detalhes não rendem o etfeito para que lia-
YÍam sido calculados, a linha do lypo que-
bra-se, e (juando a tirada atíecta para o eí-
feito dramático uma espécie de desordem,
o actor levado no clieio da oraloria, não
põe n'essa desordem, como devera, a har-
monia, embrnlha no mesmo tom impressões
distinclas. volta a explorar effeitos esgota-
dos, ignorando que «cm dicção é sobi'etndo
durante o repouso que se prepara o movi-
mento, isto é, (pie as evoluções de senti-
mento se produzem quasi sempre íóra do
texto. » e ipie «exprimir o que está escriplo,
nem sempre é no trabalho do actor, a coisa
principal. » E o caso é (|ue o publico é tão
lorpa, a critica tão cega, e de tão bòa boc-
ca os dramaturgos, que quanto mais aquel-
la escamoteação do títere é torpe, tanto nutis
deslumbrados os patetas licam deanle do
seu macaco predih'clo.
30 os (lATÕS
João Roza.
Decadência iilil. com uma caneira onde
vislumbraram aqui e alem ligm'as estimá-
veis. Ignoro se teve talento; conversado pa-
recia que não; representado ks vr^zes pare-
cia ((ue sim. e o cerlo ('■ (jue eu enfeixo as
minhas opiniões no cabaz onde a maioria
dos seus apreciadores pozeram conVas tlc
loiro, franjadas de exagero! Foi lia quinze
annos nos papeis de galã. um esbelto se-
ductor, d'essa viril ((ualidade portugueza,
cheia de musculo, de geslo quente e d'olhar
procreadoí'. que as anemicas das frisas, ca-
sadas com aranhiços, levavam idealmente
para casa, ao fim dos amorosos lances no-
l)res das comedias de Sardou e de Dumas.
O marquez de Prestes do Poirier, o Girard
da Estrangeira, o filho natural dos Foiír-
chariihauU. e outras figuras mais d'esta ana-
tomia cavalheiresca, constituem na sua pra-
leleira artistica a faiançaria mais cuidada,
e com effeilo são ellas hypotheses necessá-
rias emipianlo nas comedias para lamilias
fôr moda idealisar, em joguetes patheticos,
esse espirilo convencional do bem que é de
iodas as phantasmagorias litlerarias a que
os (iATOS M
mais losislenleinenle cilhoii na moral dos
lares l)Gm comidos. Tardo da íalla c com
amearos de gaguejo num ou n'oulro ai'i'an-
co de pronuncia. João lioza teve, para dis-
farçar esse defeilo. o trabalho paciente d'um
tisico (jue quer íazer-se á viva íorça n'uni
gymnasta. e esse lirocinio o salvou durante
tempo das difliculdades ingratas da sua ar-
te. n'um -género de papeis onde quíilrjuer
peijueno defeito seria um entrave dui'0 ao
seu presiigio de proscénio. A evoluçHo da
edade. accentu;iudo-llie os defeitos plione-
ticos, fel-o derivar, poi' uui atilado instincto
d'artis1a. para os centros de comedia e dra-
ma onde a composição interior do papel,
mais complicada, dispensa já os brilhos
plásticos do corpo, sobrelevando-os com o
estudo doulios detalhes psychicos, pelos
quaes o aclor se desdobra em typos, e a
oratória decorada e commum dos galãs />c^/-
hUres cede o passo talvez a creações. N'es-
la altura porém, João lioza, para triíuufdiar
do grande escolho careceria de faculdades
analyticas que nem a trama lianal dn sua
inlelligencia. nem oscabedaes da sua Icilu-
ra. lhe podi.-MVi fornir lucidamenl(\ e \)0\- is-
as '/S (.Aios
so íoi t|ut' os seu8 papeis de ceniro, raros
llie ticaram, esculpturaes. na galeria, sal-
vando-se apenas aíjuelles (jue. como o Luiz
XI e o Vago. pela abundância dos delallies
cortantes e das rubricas pitorescas, estavam
natuialmente dissecados no texto, não len-
do o actor que invenlar de sua cabeça se-
não trucs--onde doesta vez os defeitos de
João Ro?a condissei'am conj íuigurancias de
verdadeiras qualidades. Por estas razões íi-
cará na historia do thealro. como ora está
na companhia, em medalhão d'aclor cons-
cencioso — cons^cencioso de mais ás vozes, a
ponto da gente se chegar aaíiligir com tan-
ta consciência. Parecerá que gagueja os pa-
peis: não, é a sua maneira escrupidosa de
os detalhar. O escrúpulo, eis o seu lemma!
Um desenhisla que no jornal Pontos nos II
enchia os fundos das caricaturas de Bor-
dallo. a tal nonio levava o escrúpulo d'esla
iarefa. (pie d'uma v('z mandando-se-lhe co-
piar uma photographia onde um borrão
cahira. não só copiou a photographia, como
desenhou o borrão no silio próprio. Tal a
(idelidade de João Roza como actor. Dá a
[diolographia do typo que o dramaturgo p()z
■Ai'^Mm^^
na pí'rn, iruis dá o borrão Uimhein — por
convScifíiiciíí. Ks(jueci(lo. Pára-llic o ameri-
cano ;i poria e elle cuida (]iie o amigo é que
tem de sp apeai-. Nunca sabe de nada, diz
(|ue sim a ludo. e o resto é com o Augusto. -
(Jae pelo buraco do ponto peça sobre (pie
laça presagios íavoraveis, e o mesmo acon-
tece com ;)s actrizes, cujo talento só sf* com-
prova para, elle, lóra do tablado, liatào ne-
cessário, estimável como artista, e com mn
respeito symj)a(liico pela memoria do pae, de
quem elle julga seguir a escola (Mipliatica e
vibraíile. Tbeoricttmenle. é como lodos os
seus demais collegas. uma miséria, não len-
do um livro, não percebendo a linlia [)sy-
chologi<a dum papel, mas com uma esj)e-
cie d"instincto (pie por vezes llie supre o
(]ue lhe falta. Os seus padi'es são celebres;
tem uma maneira de os enlernecer entor-
tando a bocca. (í íallando de bochecha, que
é dos Irucs da scena o mais decrépito, e va-
lha a \erdade também, o mais gostado. Nos
intervallos dos padre.s deila-se aos reis da
historia portugiieza, por íorma a seguir os
lypos de íaccinora (pie nos dá o Manuel de
Macedo im JliMovui do {lhaga,s. gravados
u
os (iATOS
pelo Alberto. O sen í). João II do Duíjne de
F/2^í/ parece arrancailo a um theatro minho-
to, pelas íeslas da Pasclioa — por onde elíe
barafusta é um fedor ({ue tomba, a carne as-
pada.
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