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Full text of "Os gatos, publicação mensal, d'inquerito á vida Portugueza"

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FIyLHO  D'ALMEIDA 


os   GATOS 


PUBLICAÇÃO 
DIXQUERITO   Á   VIDA   PORT'JGUEZA  . 


1V.°  íj— 20  (l(!  Julho  (ie  {892 


SUMMARIO 


A   MASCARADA   DA    MORTE TESTAMENTO    DUM 

CONTRACTADOR    DE    BENEFÍCIOS  CORTEJOS    FÚNE- 
BRES   d'aLUGUEL,    E     DEDICATÓRIAS    NAS    FITAS    Á 

VONTADE     DO    FREGUEZ AS   COMMISSÕES    DE    CAN- 

GALHICE VISITA     AO     CEMITÉRIO,    E    PHVSiONOMfA 

BURLESCA   DOS  JAZIGOS OS   DE   CAMPAINHA    ELKC- 

TRICA,    OS    DE   BANQUINHA   DE    CABECEIRA  E  TOLDOS 

DE   RAMAGí:M FERRAGEÍRO   ESPIRITUALISTA,    SEUS 

DICTAMES EPITAPHIOS-TABOLETAS A   INCONSOLÁ- 
VEL    DE    TRÊS     MARIDOS,     SEGUIDA     DE    CONSELHOS 

AOS   QUE    SE    CASAM NO    CEMITÉRIO    DOS    POBRES', 

CAMPAS    TREPIDANTES PSVCHOLOGIA    DO    TERROR 


II  os  GATOS 

—  os  EPiTAPHios  humildes:  Maria  julia,  ramei- 
ra,   E  ROZA  JOAQUINA,   CREADA  DE  SERVIR O  QUE 

NUNCA  FEZ  MAL  AO  SEU  SEMELHANTE,  E  e  QUE  PRES- 
TOU SERVIÇOS  Á  INSTRUCÇÃO EPITAPHIOS  EM  VER- 
SO   E    EPITAPHIOS    FIGURADOS BRINDES   d'anNOS 

AOS    DEFUNTOS INQUÉRITO    DO    FigaVO   SOBr.E   A 

PSYCHOLOGIA  DOS  MACaCOS:  SE  DÃO  GUINCHOS 
d'aLEGRIA  Á  PAPAROCA  ?  SE  MANIFESTAM  POR  GES- 
TOS   SENTIR  A    MUSICA  ? CARACTER  CATHEGORICO 

DAS  NOSSAS  RESPOSTAS,  COM  EXEMPLOS  DA  HIS- 
TORIA CONTEMPORÂNEA O  FESTIM  DA  MADAMA  CA- 
NÁRIO, COM  BREVÍSSIMOS  APUNTOS  QUANTO  Á  IN- 
TELLIGENCIA  DOS  OUSTITIS EXPLICA-SE  POR  PSY- 
CHOLOGIA O  PKENOMENO  DA  AGUA  NA  BOCCA SO- 
CIABILIDADE E  JORNALISTICIDADE  DOS    ORANGOS 

ESTUDOS    EXPERIMENTAES     DO    DR.    SOLLIER    SOBRE 

AS  COMIDAS  DE  BORLA MACACOS   MELOMANOS  :   O 

VIOLINISTA  SIVORI,  E  EFFBITOS  CURIOSOS  DO  HYM- 
NO  REAL  SOBRE  O  SR.  JOSÉ  LUCIANO  — ORANGO  AMO- 
ROSO—  VIAGEM  REAL  A  COIMBRA,  OU  COMO  SE  CON- 
QUISTAM    AS     CIDADES TELEGRAMMAS     PARA     OS 

JORNAES  —  A  ACADEMIA  PERANTE  AS  MAGESTADES 
AMANHÃ. 


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2  de  jitlho. 

Foram  segurameate  as  disposições  testamen- 
tárias do  sior  H.,  fuiaiio  que  no  Bairro  Alto  ex- 
plorava um  commercio  de  vinhos  e  tabacos, 
juntaraeiííe  com  a  monomania  da  evidencia, 
que  me  pozeram  no  eucalce  das  mascaradas 
mortuárias  de  que  hoje  vou  traçar  a  chrouica 
estrava  gante. 

O  sior  H.  quando  chegou  a  um  pé  de  rela- 
ções com  jornalistas,  entrou  a  achar  a  quitan- 
da dos  vinhos  pouco  á  altura  dos  seus  méritos 
=vender  vinho  é  realmeute  uma  profissão  em 
que  ninguém  falia  de  nós  —  vae,  meteu-se  a 
emprezario  de  toiros  e  a  contractador  de  bene- 
fícios, até  que  morto  de  fígado  e  tendo  toma- 
do gosto  aos  reclames  dos  jornaes,  redigiu  elle 
mesmo,  seis  necrológios,  para  insei-ir  no  dia  do 
seu  trespasse,  em  seis  jornaes —  seis  vezes  em 
cada  jornal — alternando-se  os  textos  d'unsprós 
outros,  em  lermos  do  pnblico  se  persuadii'  de 


4  OS  GATOS 

que  em  cada  papel  se  tivessem  occupado  do 
sior  H.,  seis  redactores. 

Porem  não  fica  n'isto  a  exliibicão  do  pifio 
megalómano,  que  organisára  as  suas  coisas  por 
guiza  a  ter  na  morte  o  melhor  dia  da  sua  vida, 
ordenando  aos  lierdeiros  cobrirem-lhe  o  caixão 
com  duas  ou  três  dúzias  de  coroas,  ricas  todas, 
e  tendo  nas  fitas  dedicatórias  de  clubs  e  figu- 
rões mais  em  successo  nos  racontares  da  capi- 
tal,  acrescendo  o  encargo  de  o  acompanharem 
á  cova  alguns  daquelles  illustres  personagens 
(dizia  os  nomes),  e  mijarem-lhe  discursos  dois 
€u  três  que  fossem  deputados  e  jornalistas — Ma- 
galhãesLima  em  todo  o  caso — condição  sem  a 
qual  toda  a  herança  ficaria  sem  valor. 

Seguia-se  uma  Hsta  de  remunerações  para 
cada  convidado^  por  escalas  de  popularidade  e 
roupa  branca,  verba  para  tipóias  e  coroas  voti- 
vas, e  emfim  traslado  do  estylo  em  que  cada 
supposto  offertante  seria  obrigado  a  exalçar,  nos 
baixos  das  fitas,  a  memoria  do  illustre  cidadão 
ftque  todos  deploramos»). 

Na  Rua  Nova  do  Almada,  esquina  do  Chiado, 
o  sior  P.  Z.,  com  loja  de  pompas  fúnebres,  of- 
ferecera  ás  famílias,  dias  antes,  pelos  annun- 
cios  dos  jornaes,  esta  singular  mistificação: 


os  GATOS  5^ 

transportar  ao  cemitério  os  defuntos  com  coroas 
d'alugiiel,  a  preços  Ínfimos,  pondo-se-liies  nas 
fitas  dedicatórias,  d  vontade  do  fregmz. 

Espavoridos  pelo  terror  de  perder  os  contos 
de  réis  testados  pelo  slor  H.,  os  herdeiros  ti- 
nham vindo  ter  com  o  negociante  de  homena- 
gens fúnebres  fingidas^  a  pedir-lhe  de  mãos 
postas  que  os  salvasse,  por  forma  ás  disposições 
testamentárias  se  cumprirem,  sem  menos  cabo 
das  pessoas  citadas  a  comparecer,  pelo  sior  H., 
no  seu  enterro. 

E  á  hora  d'eu  chegar  á  loja,  graças  ao  espi- 
rito inventivo  do  logista,  quazi  todas  as  difficul- 
dades  iam  de  vencida ;  quero  dizer,  por  uma 
modesta  espórtula,  sociedades  recreativas  e 
scientificas  consentiam  na  burla  de  se  deixarem 
prestar  honras  fúnebres  a  um  maluco  que  nem. 
de  vista  conheciam:  homens  illustres  de  todos 
os  partidos  aceitaram  com  alvoroço^  n'estas 
epochas  de  crise,  a  proposta  de  seguirem  o  ■ 
comboio  mortuário  por  meia  libra,  tipóia  á  par. 
te  ;  quanto  cãs  coroas  do  féretro,  combinou-se 
que  fossem  d'aluguel,  e  com  dedicatórias,  que- 
enterro  findo,  seriam  descoladas  das  fachas,  ser- 
vindo para  outros  passamentos  pelintras^  como 
novas.   A  respeito  de  Magalhães. .  .Eis  onda- 


6  OS  GATOS 

torcia  a  porca  o  rabo,  precisamente  porque  o 
illustre  cosmopolitera  pozera  o  d'elle  á  parede, 
e  liem  como  republicano,  nem  como  amigo,  ac- 
ceõia  a  via  toni troar  na  sepultura  do  defunto. 
Era  o  diabo  1  Tinha-se-lhe  já  variado  umas  pou- 
(^as  de  vezes  os  termos  da  escriptura,  acrescen- 
tado á  esmola  algumas  cifras...  explicaram-lhe 
mesmo  que  o  sior  H.,  leitor  assiduo  do  Século, 
nove  annos,  permanecera  democrata,  apezar  d'es- 
sa  leitura  ;  mas  Magalhães  Lima  moita,  moita  I 
([ue  não  ia  e  que  não  ia!  e  quanto  mais  lhe 
retrucavam  que  havia  d'ir,  que  havia  d'ir ! 
mais  beliscões  lhe  dava  no  cotovello,  a  que  não 
fosse,  o  Silva  Graça ... 

D"informa  em  informa,  indagação  em  inda- 
gação, cheravisco  em  charavisco,  vim  a  apurar 
sobre  a  comedia  da  morte  ainda  outras  estra- 
vagantes  minudencias.  Que  ha  académicos,  ge- 
neraes,  conselheiros  d'estado,  directores  de 
banco,  etc,  cujos  alfinetes  costeia  em  parte  a 
gorgeta  percebida  de  se  alugarem  ás  agencias 
fúnebres  como  figurantes  de  préstitos  pompo- 
sos. 

A  Academia  Real  das  Sciencias,  a  Sociedade 
de  Geographia,  a  Maçonaria,  a  Casa  Real,  a  Uni- 
versidade, o  Grémio  Artístico,  etc,  incluem  no 


os  GATOS  7 

seu  budget  anniial,  secretamente,  a  titulo  de 
proventos  fixos^  verbas  derivadas  d'esta  ganan- 
cia,  tirando-se  á  sorte,  nas  epochas  de  renova- 
rão funccional,  as  cliamadas  commissões  de 
cangalhice,  especialmente  encarregues  d'este 
particularíssimo  mister  de  carpir  em  nome  da 
conectividade,  o  enxun-o  pagante,  por  um  inva- 
riável preço  de  tabeliã. 

Que  a  este  engenhoso  recurso  financeiro  dis 
corporações  e  personagens  illustres  do  reino 
vinha  correspondendo  por  banda  do  publico 
uma  procura  successivamente  augmentativa^ 
um  paladar  exhibicional  que  todos  os  dias  se 
requintava,  por  forma  que  o  dinheiro  outr'ora 
gasto  com  pobres  d'azylo,  nos  enterros,  hoje 
todo  se  polarisa  no  sentido  de  os  substituir  por 
vultos  d'importancia. 


Era  isto  progresso  ?  A  megalomania  d'alon- 
gar  cortejos  mortuários  pela  encadenção  (factua- 
hdades  illustres,  offei-endas,  e  estardalhaços 
discursivos  (que  foi  o  que  ficou  do  centenário 
de  Gamões,  exaltado  pelos  philosophos  como 
um  acordar  de  nacionahdade)  a(  aso  revela  um 


8  OS  GATOS 

povo  marchando  para  a  civilisação  n'um  poean 

de  gymiiastas?  Será  preito  á  chimica  dar  por 

I  exemplo  quinze  tostões  ao  José  Júlio,  para  este 

^acompanhar  ao  cemitério  o  meu  sapateiro,  que 

se  imaginou  um  dia  homem  de  sciencia,   por 

•  chamar  á  graxa  um  preparado? 

N" estas  cogitações  saio   uma  maiiliã  té  aos 
Prazeres,   a  vêr  se  nas  campas  continuava  a 
-cangalhice  grotesca  dos  trespasses,  ou  se  os  ho- 
mens, varados  de  respeito,  ha^^am  estacado  às 
portas  da  podridão  subterrânea,  para  ahi  des- 
ligar os  mortos  do  entremez  das  exéquias  der- 
í  radeiras.  Pobre  Hamlet  gastralgico !  porque  ou- 
-  sei  eu  julgar  um  instante,  ermos  de  farça,  esses 

•  ossuarios  duma  capital  de  lúgubres  fantoches! 
Os  cemitérios  de  Lisboa  não  passam  afinal  de 

.grandes  feiras  de  chacota,  onde  a  galhofa  dos 
vivos  parece  que  se  compraz  a  fazer  surriada 
aos  que  estão  mortos.  A  chufa  ahi  reveste  as 
modalidades  todas  que  vão  do  versículo  biblico 

•  iíelebrando  a  castidade  duma  pecora,  té  à  la- 
pide commemorativa  da  philantropia  evangeli- 
sta d'um  preguista.  Oh  céus,  que  troça!  Nem 
os  aííectos  de  família  escapam  á  assuada,  a 
própria  tristeza  chorando  ramella,  em  vèz  de 
lagrimas. 


os  GATOS  9 

«Este  monumento  encerra 
Aquella  que  muito  amei 
E  junto  a  ella  virei 
Descançar  na  mesma  terra. . . 

O  seu  nome  eu  vos  direi 
Para  que  também  venereis 
Os  restos  da  que  chorarei 

Maria  se  chamava, 
José  era  o  sobrenome, 
Peixoto  se  appelidava.» 

Jacente   á  rotunda  do  mausoléu  do  chimico 
Aguiar,  o  esposo  a  chorar  a  esposa,  em  verso : 

«Levavas  tudo  na  vida, 
Esposa  sempre  adorada. . .» 

e  infinitos  de  quem  a  legenda  diz  «bom  cida- 
dão, bom  pai,  e  M  amigo» — o  que  é,  do  fu- 
meiro do  tumulo,  estabelecer  uma  concorrên- 
cia funesta  ao  bacalhau. 

Ruas  e  ruas  do  Campo  Santo  se  percorrem, 
suiprehendido  da  analogia  d'ellas  com  certos 
arruamentos  da  Baixa:  os  sepulchros,  como 
lojas,  metem-se  grandellescamente  á  cara  de 
quem  passa,  cada  proprietário  chamando  a 
.  attenção  [tor  qual  mais  mirabolante  ètalage  de 


10  os  GATOS 

cliochiees,  coroas,  poesias,  faianças  coloridas, 
ornatos  de  vidro,  trabalhos  de  chroché,  tape- 
tes pés  de  leito  —  a  confusão  mais  forte,  quan- 
to mais  se  approximam,  com  o  exhibicionismo 
de  hoje,  as  inscripções  tumulares,  das  taboletas. 
E'  o  merceeirismo  da  rua  alfacinha  em  mor- 
to, o  esgare  da  caveira  em  vèz  da  cara,  o  pos- 
tiço da  lagrima  litteraria  torcendo  pelo  senti- 
mental a  piedade,  em  chufa  discursiva. 

«...A'  MEMORIA  DE... 

apenas  crmdo  o  Banco  ***  foi  eleito  seu  the- 
zoureiro,  cargo  que  sem  interrupção  exercitou 
até  ao  fim  da  vida 

CIDADÃO  HONESTO  NA  VIDA  PUBLICA  E  PRIVADA 

morreu  honrado  sem  honrarias  do  seu  valimen- 
to com  os  poderosos  da  terra,  nada  aproveitou 
para  si,  muito  para  consolar  alheios  males 

VIRTUOSO  PAE  DE  FAMÍLIA 

os  affectos  domesticas  foram  jjara  a  sua  alma 
pura  uma  aspiração  do  ceu. 


os  GATOS  11 

MODELO  D'A1ÁIZADE 

os  dtfros  sacrifícios  que  ella  ás  vezes  cjrige,  lhe 
pareceram  sempre  suaves 

GENEROSO  E  BEMFAZEJO 
fe:  muitr>s   ingratos.  Deus  não  esquecerá,  elc.>-> 

Ao  pé  dos  bairros  velhos,  onde  sepiílchros 
tisnados  pela  edade^  esquecidos  de  coroas,  e 
com  as  inscripções  delindo  á  lima  do  desleixo, 
poisam  entre  os  pontos  d' admiração  dos  bons 
cyprestes,  outros  bairros  recentes,  de  pedras 
brancas,  legendas  novas^  flores  e  passeios  mar- 
giuaes  acabados  de  bater,  emprestam  á  fúne- 
bre colina  um  ar  jocundo  o  prospero — jazigos 
alinhados,  com  seus  i)ortellos  verdes,  seus  va- 
sos de  fayança,  suas  cruzes  ornadas,  e  por 
dentro  um  conforto  de  cubatas,  uns  gestos  de 
visinhança  cavaqueadora,  fazendo  adeusinho, 
onde  pela  expressão  vivida  das  casas  té  admi- 
ra que  não  passem  na  rua,  hortaliceiros,  e  ás 
esquinas  não  haja  botequins. 

Esta  expressão  tanto  mais  flagrante^  quan- 
to jioi'  certos  detalhes  se  reconhece  como  nin- 
guém já  hoje  abstrae  da  morte,  a  vida. 


12  OS   GATOS 

A  grotesca  pergunta  dos  palhaços  de  circo, 
na  pantomima  do  enterro  «primo,  estás  morto 
on  estás  vivo  ?»  todos  a  temos  ido  fazer  á  boc- 
ca  dos  caixões,  como  o  prova  os  Prazeres,  onde 
não  são  raros  os  jazigos  com  campainha  eléc- 
trica, banca  de  cabeceira,  e  naturalmente,  pot- 
de-chambre. 

Nos  Douradores  fmou-se  um  ferrageiro,  gran- 
de somitego,  mas  pelando-se  pela  immortalida- 
de  da  alma.  Ordem  para  os  herdeiros  todos  os 
mêzes  lhe  levarem  ao  jazigo,  o  balancete... 
Reparem  nos  mausoléus  dos  logistas:  não  ha 
um  só  que  não  tenha  toldo,  com  manivela  e  lík 
treiro  das  confecções ;  e  quazi  se  espera  vel-os 
lá  dentro,  em  esqueleto,  sentados,  a  fazerem  gi- 
rar os  polegares,  por  entre  arrotos. 

Insisto  na  analogia  que  architectonicameu- 
te  o  Campo  Santo  tem  com  a  cidade.  Quem 
uma  vèz  divaga  nos  Prazeres,  jamais  se  furta 
á  imperiosa  obsessão  d'este  detalhe.  Os  bair- 
i-os  correspondem  aos  bairros,  justapòem-se 
—  o  cemitério  possue  a  sua  Baixa,  o  seu 
Buenos-Ayres,  o  seu  Campo  d'Ourique,  o  seu 
Bairro-Alto  e  a  sua  Alfama.  Ha  cazebres  com 
lucarna  e  fuligem  nos  muros,  a  placa  do  segu- 
ro entre  as  janellas;  ha  o  palacio-mansarda, 


os  GATOS  13 

vindo  a  baixo^  com  o  seu  brazão  musgoso  so- 
bre a  porta;  ha  os  chaleís  catitas,  com  dois 
cães  de  fayança  no  vestibulo;  os  palacetes  bur- 
guezeSí  jardins,  vidros  de  cores,  uma  placa  na 
hombreira  cjue  diz  «cartas» — e  nos  jazigos  mu- 
nicipaes,  em  commoda,  encostados  ao  muro^  os 
grandes  prédios  de  seis  andares  p'ra  poucos  te- 
res. Por  mais  se  faça,  não  ha  meio  de  n'esta 
lerra  curiosa  estar  acabrunliado  um  só  momen- 
to, uma  ironia  hygienica  sae  dos  coizas,  com 
o  azul  do  ar,  as  paysagens  do  rio,  o  carnaval 
gritante  das  «homenagens  derradeiras»,  e  mais 
que  tudo  a  expressão  habitada  que  sae  de  den- 
tro de  cada  um  d'esses  sarcófagos.  Lisboa,  ca- 
pital nostálgica,  só  verdadeiramente  é  Madiid, 
depois  de  morta;  e  se  assim  explica  como  as 
mais  intransigentes  viuvas  saiam  do  cemitério — 
todas  casadas. 

N'uma  avenida  nova,  um  ri(|uissimo  jazigo 
de  lavrantaria  gothica,  com  alllictas  estatuas 
guizando  em  pedra  a  magna  do  costume,  tem, 
sobre  a  porta,  uma  inscripção  plangente  de 
viuva  (^esta  memoria  voto  ao  meu  chorado  es- 
poso D.  X.,  modelo  de  virtudes,  que  Deus  per- 
mittiu  deixar-me  n'este  mundo  de  martyrios^  a 
soffrer  sua  ausência  irreparável ...»  Aos  dois 


14  OS  GATOS 

lados  outras  taboletas  descendo,  com  intruji- 
ces da  velha  a  dois  maridos  mais,  té  na  ulti- 
ma se  dizer  enfim  que  o  quarto  resolve  res- 
tituii-a  aos  ires  que  ella  espichou.  D'estas  pde- 
lidades  turgesce  a  ucharia  dos  Prazeres.  Ai  do 
matrimonio  se  os  namorados  fossem  gargarejar 
aos  cemitérios ! 


Encruzadas  por  series,  as  ruas  quadriculam 
para  dentro  dos  seus  maimoreos  quarteirões 
pequeninos  quintaes  de  campas  razas,  núme- 
ros bj'ancos  com  placas  negras,  cyprestes,  ce- 
dios,  moitas  d" arbustos,  herva  e  jaziguiniios 
de  pobres  com  parapeitos  de  sacada.  E'  a  ci- 
dade obscura  dos  de  caixões  aterra,  dospromet- 
tidos  das  larvas,  tragados  por  não  poderem  pa- 
gar-se  uma  salgadeira  de  pedra  com  perpetui- 
dade, longe  dos  roedores  subterrâneos.  Colai  o 
ouvido  ao  peito  d"essas  campas;  se  como  di- 
zem, o  coração  é  o  ultimo  a  morrer,  talvez  al- 
gumas segredem  a  que  ideal  votaram  a  sua  der- 
radeira pulsação.  Terra  vibratil,  conta  se  d'es- 
ses  mortos  esquecidos,  a  quando  os  devoraste, 
elles  soffreram.  De  feito,  inda  não  hou';e  meio 


os  GATOS  15 

(restabelecer  a  insensibilidade  absoluta,  post 
mortem,  e  as  affirnintivas  scieniificas  não  bas- 
tam para  gaiantir  o  repouso  eterno,  promettido. 
Alguma  coiza  d"espirito  fica  a  bruxulear  na  car- 
ne que  apodrece,  e  por  isso  talvez  a  igreja  inter- 
diz a  cremação,  esse  refugio  dos  torturados  pe- 
las apprehensões  agonicas  do  au-dcli\!. 

Até  porque  indo  aos  covaes  reparar  na  dis- 
posição da  terra  carnívora^  é  impossível  não 
vèr  signaes  de  lucta  em  toda  a  parte,  Covei- 
los  que  teem  dormido  a  sésla  sobre  as  covas, 
constatam  que  a  certas  horas  o  chão  trepida 
no  sentido  do  diâmetro  vertical  da  sepultura^  e 
por  seiies  de  quatro  ou  cinco  estremeções.  São 
bule-bules  hgeiros,  que  podem  explicar-se  poi- 
correntes  electiicas  desagi-egando-se  da  chimi- 
ca  sepulcbral,  em  plena  actividade  â  hora  áo 
calor ;  por  deslocações  de  gazes  fugando  entre 
as  repas  dos  intestinos  putrefactos,  mas  prin- 
cipalmente, cuido,  por  contracturas  musculares, 
attenuadas  embora,  por  onde  a  forma  humana, 
inda  com  instincíividades  de  vida,  reage  aos 
primeiros  assédios  do  minério . . . 

Por  instantes  dir-se-hia  se  apercebem  em  cer- 
tos aspectos  de  terra,  pedaços  de  seres  que  esta- 
mos  a   conhecer  sem  poder  explicar  d  onde 


16  OS  GATOS 

nem  como.  Essas  porções  de  fluido  vão-se  iso- 
lando por  fim  da  argilla  solta,  e  a  poder  d'es- 
forços  lá  adquirem  typos  ondeantes :  a  gente 
não  os  vè,  mas  elles  segiiem-nos,  a  todo  o  ins- 
tante parece  que  vão  tomar-nos  da  manga  e  fa- 
zer pst,  e  o  seu  hálito  calafria  d'um  regelo  dia- 
bólico a  nossa  nuca,  até  que  nos  voltamos,  e 
ainda  os  vemos  u'um  recanto  d'alea,  fugindo 
entre  a  sombra  abafada  dos,  cyprestes. 

Cada  bairro  de  mármore  quadricula  um  d"es- 
tes  melancholicos  jardins  de  covas  razas,  onde 
as  mais  ricas  teem  grades  de  pau,  e  leitos  de 
ferro  entrelaçados  de  sardinheira  e  rosas  de 
toucar.  Nomes  sem  títulos,  epitaphios  singelos, 
memorias  de  povo  envergonhadas  de  chorar 
deante  de  quem  passa. 

«.4  Maria  JuUa,  morreu  no  hospital,  edade 
19  annoSj,  olferecem  as  suas  amigas :  anuo  de 
1889 „.  Escuso  d"explicar  a  condição  de  Maria 
Júlia,  ou  dizer  que  amigas  são  essas  que  pa- 
gam coval  aparte  ás  mortas  do  hospital.  Ha  só 
uma  classe  de  mulheres  capaz  d'esta  admirável 
misericórdia,  que  Jesus  talvez  adevinhasse 
quando  levantou  da  terra  a  Magdalena.  A  es- 
paço uma  ou  outra  pedra  coberta  de  ferrugem, 
atirada  d'um  antigo  iraneiro  p'ra  outra  cova, 


os  GATOS  17 

lettras  delidas,  longínquas  datas,  180S,  1814, 
e  a  gente  detem-se  com  uma  saudade  d'aquel- 
les  moitos  mysteriosos  que  viram  tantas  coi- 
zas^  e  que  distantes  apenas  d'um  século,  já  nin- 
guém sabe  dizer  donde  vieram. 

a  Rosa  Joaquina,  do  lofjcir  cVÁlqueidão  de  San- 
to AmarOj,  foicreada  de  servir:  este  jazigo  o  man- 
daram fazer  em  memoria  da  sua  dedicaçãOj,  bom 
ser V iço j,  e  exemplar  fidelidade „  E'  um  jaziguinho 
muito  pobre,  por  cima  um  cypreste  inda  novo 
desgrenha  a  carapinha  verde  aos  voos  dos  pás- 
saros, em  torno  as  gredas  deram  de  si,  deixan- 
do á  ílòr  da  terra  uns  côncavos  de  tumba,  borbo- 
letas en  haustos,  como  almas  corporisando  em 
insecto  a  sua  anciã  de  voltar  —  e  raizes  fulvas 
furando,  para  triturar  lá  baixo  craneos  d'ope- 
rarios . . . 


Voltando  aos  ricos. 

Balaustrada  de  mármore  circumtornando  uma 
eça  com  tocheiros  «.aqui  jaz. . .  filho  legitimo 
do  snr. . .  e  da  sr.^. . .  nasceu. . .  sahiu  de 
casa  de  seus  avôs  onde  fora  educado^  na  tenra 
edad^  de  11  annos  e  3  mezes,  viveu  sempre 


18  OS  GATOS 

incogi/ito  íJf  seus  parentes,  viveu  SíWjíre  na 
bua  aniumia  com  gs  seus  semelhantes,  não  só 
em  Portugal,  como  no  Brazil,  como  nas  Amé- 
ricas nespanholas,  onde  rezidiu  por  algmn  tem- 
po; nunca  assignou  papel  algum,  para  perse- 
guir o  seu  semelhante,  cumprindo  sempre  com 
a  maior  promptidão  todos  os  seus  pagamentos, 
etc. . . » 

Typo  trepitapliio  dictado  pelo  próprio,  com 
a  basofia  das  naturezas  envelhecidas  no  autonria- 
tismo  da  iionra  commercial.  O  nunca  assignou 
papel  algum  é  d'uma  alma  aspirando  a  ura 
préstito  cívico  de  canzeiros.  Adorável  vaidoso  I 
De  cpaantos  encostos  seria  englobado  esse  espi- 
rito de  concórdia,  tão  digno  da  assimilação  sen- 
timental dos  agiotas  ?  Estamos-te  a  vèr,  velho 
boníssimo,  estamos-te  a  vèr  co'a  baiba  em  pas- 
sa-piollio,  aparando  botes  dos  pedinchões,  só 
pelo  prazer  de  te  gabares  depois  de  morto. 
E  admiras-te  com  essa  forma  de  bondade,  \i- 
sinha  da  tolice,  admiias-te  de  teres  vivido  era 
boa  paz  com  os  teus  «semelhantes  1»  Semelhan- 
tes em  que,  espécie  dingenuo  ?  Na  chuchadei- 
ra  de  te  não  pagarem,  tu  que  cumpriste  sem- 
pre com  a  maior  promptidão,  os  teus  pagamen- 
tos? 


os  GATOS  19 

Mas  onde  o  aiito-exhibicionismo  attiiige  o 
cumulo  da  inbofia  é  no  in  memoriam  do  histo- 
riador Luz  Soriano^  ditado  por  elle  próprio  ao 
mausoléu  com  estatua  de  bronze,  onde  repou- 
sa. ((Notável  se  tornou  este  cidadão  entre  os  seus 
contemporâneos,  tanto  pelo  grande  empenho  com 
que  abraçou  e  defendeu  a  causa  constitucional, 
como  pela  sua  dedicação  ás  lettras,  tornando-se 
escriptor  distincto,  e  favorecedor  benemérito  da 
instrucção  primaria,  e  superior.,,  Como  repor- 
tage  é  verídico^  mas  não  sei  poi"que,  acre- 
ditam-se  sempre  estas  coizas  melhor  por  bocca 
alheia. 

Ha  ainda  outros,  quiçá  roidos  do  pulgão  da 
idiotia.  Por  exemplo,  do  mausoléu  d'um  profes- 
sor da  escola  militar  pende  entre  coroas,  um  pai- 
nel singular:  o  retrato  do  extincto  cercado  das 
noticias  impressas  por  occasião  do  passamento, 
o  nome  dos  jornaes  e  a  data  á  penna,  e  algu- 
mas gottas  de  cola  chorando  por  entre  os  re- 
mendos d'esta  estapafúrdia  grosseria.  Quenir 
por  acaso  lê,  não  pôde  evitar  risos  de  môfa,- 
0  Correio  da  Noite  diz  que  o  professor  cahiu 
de  lesão  cardíaca:  o  da  Manhã  attribue-lhe  a 
morte  á  diabetis :  o  Século  a  dar-lhe  cincoents 
annos,  o  Diário  de  Noticias  a  pôr  mais  dez :  es- 


20  OS  GATOS 

les^  como  pi'ofe?sor,  acham-' ío  um  excellente 
díeíe  de  família^  aquellespara  lhe  enaltecer  os 
talentos  militares  dizem  que  estava  á  bica  para 
a  promoção  ao  posto  immediaío.  E  a  pobre  pho- 
íographia  triste,  babando  um  risopalhdo  entre 
aquellas  imbecis  locaes  da  jornalice  à  pressa, 
direis  se  queixa  do  derespeito  hoirivel  de  que 
é  victima — ninguém  a  escuta^  um  ramo  de  hera 
apenas  colea  do  pedestal,  como  a  pedir  mise- 
ricórdia ao  viandante. 

Mausoléu  com  enigma, typo  raro.  «.aqui  jaz  A.  F. 
Pedrosa. .  . »,  a  palavra  Pedrosa  figurada  numpé 
humano^  n'um  D,  e  numa  rosa,  tudo  esculptado 
na  lapide,  minuciosamente.  Influencia  do  Al- 
maimch  de  Lembranças  ?  Indubitável  que  alli 
reside  um  incorrigível  charadista.  Quem  passa^ 
«staca,  e  emquanto  encommenda  a  Deus  o  mor- 
tOj  vae-lhe  decifrando  o  apellido,  para  o  man- 
dar depois  áquella  parte.  Em  poesia  abundam 
specimens  de  fazer  inveja  ao  syndicato  Canta- 
gallo. 


«Calha- me  a  mim  a  sorte 
De  ser  alvo  da  infelicidade 
Vejo -me  perdido  e  desgraçado 
Na  felôr  da  minha  edade. . . 


os  GATOS  2í 

Que  linda  mocidade  eu  passo, 
Para  a  vista  dos  meus  manos, 
Estou  farto  de  padecer, 
Ha  dois  bem  longos  armos. 

"Vim  a  este  mundo 
Para  ser  tão  desgraçado ! 
Antes  me  tivessem  á  nascença 
O  pescoço  apertado...» 

em  baixo  a  assigiiatura  por  inteiro. 

Na  occasião  dos  aimiversarios  fúnebres,  o 
costume  de  dar  presentes  ao  morto  pareceu- 
me  ir  revestindo  o  caracter  dum  a  bufoneria  ori- 
ginal. O  usual  é  trazer  photographias,  com  al- 
gumas linhas  de  texto  alTectuoso  —  como  se  o 
defunto  viesse  á  noite,  cá  fora,  tomar  nota  do 
nome  dos  olTertantes,  para  lhes  ir  deixar  cartões 
ao  outro  dia,  O  espectáculo  é  quanto  pode  ser 
d'estapafurdio :  aqui  e  além,  em  bocetinhas 
de  folha,  envidraçadas^  sobrecasacas  risonhas 
olham  o  espectador  como  a  lhe  perguntar  se 
vae  meio  litro  —  damas  de  broxe,  a  três  quar. 
tos,  fazem  mirada  com  um  ar  de  gargarejo  — 
meninas  de  cabellos  cabidos...  e  por  entre  fitas 
com  dedicatórias  de  lettras  de  papel,  todos  es- 
tes clichés  tirados  para  mais  alegres  destinos^ 


22  OS  GATOS 

espreitam^  volteiros,  em  grande  pandega,  em 
galhofa,  como  uma  nichada  (ie  cavallões  jogando 
os  quatro  cantinhos. 

Vocês  acham  grotesco,  e  ainda  por  cima  indi- 
.í,mam-se  comigo.  Se  eu  lhes  podesse  dizer  a  in- 
:Sondavel  tristeza  que  me  enluta!  O  culto  aos  mor- 
tos, esse  doloroso  soluço  da  saudade  perpetuan- 
do a  fé  nas  lapides  das  tumbas,  eis  em  que  o 
tornaram  as  desmoralisadas  raças  lisboetas, 
sem  poesia  domestica,  sem  laços  de  familia, 
sem  religiões,  sem  crenças,  sem  delicadeza 
d'alma  e  sem  caracter,  gentes  que  atiram  aos 
mortos  o  escarneo  da  mais  jogralesca  litteratice, 
^ondo  na  cidade  d'espectros  o  mesmo  cunho  re- 
les  que  a  capital  do  paiz  ha  muito  tem. 

Para  a  diagnose  do  caracter  collectivo,  o  mo- 
ralista escusa  pois  de  perscrutar  os  hábitos  dos 
homens.  Tem  nos  Prazeres  o  tombo  da  banda- 
lheira nacional. 


7  de  julho. 

O  Figaro,  sobre  variações  d'um  inquérito  á 
psychologia  dos  macacos,  pôe  aos  seus  leito- 
jes  um  questionário  a  que  apendicularei  modes- 


os  GATOS  23 

tameiite  algumas  notas  observaes  do  meu  res 
tricto  convívio  com  estes  nossos  desagradáveis 
parents  pauvres. 


1.° — E'  positivo  que  a  macacaria  faça  ouvir 
algum  grito  ou  brado  especial,  semelhando  lingua- 
gem articulada,  no  momento  em  que  se  lhe  apre- 
senta paparoca  ? 


Leitoies  e  subscriptores  do  Figaro  escrevem 
ao  estravagante  jornal,  que  é  positivo,  mas  fa- 
zem a  confii-mação  summariamente^  e  apenas 
um  repatriado  do  Borneoe  Singapura,  o  sr.  Gaetan 
de  Maulne,  cuida  ter  conseguido  fixar  as  primei- 
ras palavras  d' uma  linguasimiesca,  contando  que 
a  sua  macaíjuinha  japoneza  diz  Wan-Ki!  Wang- 
Ki !  Wang-Kihi!  quando  tem  fome,  Hin-ouan ! 
ouan!  Ouk-iko!  quando  tem  sede^  Ki!  KUpoulouki 
Koukld!  quando  nos  quer  dirigir  seus  cumpri- 
mentos, e  uma  multidão  d'outras  caballas  leve- 
ladoras  nos  macacos,  d'uma  intelligencia  refle- 
xiva, paredes  meias  da  do  homem,  que  é  como 
se  sabe  a  flor  do  arbusto  animal,  selleccionado. 

A  minha  proverbial  modéstia  e  ignorância 


24  OS  GATOS 

do  íVaiufcz  e.^ciiiu»  inii^ecem-me  ilelransmittir 
á  folha  de  Paris  ii'este  momento  o  apuro  do 
miiiío  que  [.odeiia  dizer  sobre  a  matéria;  en- 
tanto íoimiilarei  d"aqui  meu  pasmo  relativo  ao 
i;oiíco  que  se  sa])e  la  fora  sobre  os  mysterios  da 
alma  macacal.  Quando  ha  poucos  dias  madama 
Canário,  a  illusti'e  cabareteira  do  Chiado,  servia 
á  imprensa  da  capital  um  bodo  de  honra,  esca- 
moteado em  reclame^  graças  a  um  vidro  de  mon- 
tra por  onde  o  publico  viu  jantar  de  graça  os 
jornalistas,  fácil  teria  sido  ao  estudioso  colher 
da  mimica  e  guturalidades  diversas  dos  con- 
vivas, signaes  á  farta  para  a  confecção  d'um 
tratado  da  falia  nos  bugios. 

De  feito^  notou-se  que  a  simples  vista  do 
cartão  do  bodo  determinava  n'estes  animaes  a 
principio,  grande  alvoroço,  revelado  em  pinchos 
e  coirimento  de  baba  aos  cantos  do  focinho, 
depois  do  que  lhes  refulgia  no  faseias  (as  es* 
pecics  que  teem  o  faseias  moveD  um  sudário 
d"  orgulho,  como  se  o  facto  d'um  jantar  de  bor- 
la os  elevasse  mais  que  o  diploma  de  sócios  da 
Academia.  Repaie-se  que  sendo  o  festim  da 
madama  Canário  só  para  dois  dias  depois,  os 
actos  que  aponto  não  são  de  natureza  a  íiliar- 
mol-os   só  no  instincto  animal  de  manducar — 


os  GATOS  25 

como  quando  se  api-eseala  milho  a  imia  galli- 
nha — ha  n'elles  verdadeiras  encadearões  de 
raciociíiios.,  actos  <le  memoria  orgânica  e  adqui- 
rida, e  instantâneos  d"intelligencia  que  i)arece- 
riam  inverosimis,  dada  a  espécie  inferior  em 
que  foram  observados.  Porem  não  pára  aqui  a 
surpreza  do  psychologo.  A'  medida  (JUí;  a  hoi-a 
de  comer  ia  cliega.ndo,  notou-se  que  em  cada  um 
dos  orangoSj  genons  e.  oustitis  que  compunham 
o  rancho  dos  convivas,  começava  a  surgir 
phenomenos  de  social)il idade  extraordinários. 
Poi'  exemplo  alguns  pozeram  camisa  lavada, 
outros  ornaram-^e  de  casacos  de  gala  e  cha- 
péus de  forma  tubular:  estes  fpram  ao  Grandel 
la  comprar  gravatas,  luvas  aquelles,  e  coiza 
pasmosa !  três  ou  quatro  das  espécies  mais 
intelligentes,  depois  de  jejuar  três  dias,  foram 
para  lá  chuchurubiando  coizas  que  os  Gaetan 
de  Maulne  facilmente  explicariam  por  francez. 

Não  fossem  estes  argumentos  convincentes — 
da  própria  scena  do  jantar  infeiúria  outi'OS,  de 
sua  natureza  iirespondiveis :  por  exem[»!o,  ao 
toasi,  os  brindes,  perante  os  quaes,  apezar  das 
asneiras,  não  podemos  negar  a  estes  bichos 
uma  espécie  de  linguagem  aiticulada. 

Se  a  amplitude  do  ponto  o  permittisse,  ha- 


26  OS   GATOS 

via  cfexplanar  aqui  detalhes  cliriosissimos,  por 
onde  inferir  té  certo  ponto  a  argúcia  quazi  hu- 
mana dos  macacos.  Basta  um  detalhe.  Consta- 
tam as  observações  do  dr.  Paul  Sollier  (')  que 
nos  chamados  macacos  jantareiros,  á  semelhan- 
ça do  que  succede  nos  idiotas,  os  signaes  d' ale- 
gria augmentam  quando  a  comida  é  de  borla, 
ou  em  casos  pagantes,  quando  o  creado  do  res- 
taurant  errou  a  conta  para  menos. 

Mais:  substituindo  algum  dos  pratos,  por  pa- 
lha, o  animal  dá  profundos  signaes  d'irritação. 

2.°  —  E'  positivo  que  a  macacaria  manifeste 
■perante  a  musica,  quaesqiier  signaes  de  prazer 
ou  (l" impaciência  ? 

Resposta.  A  attenção  espontânea  dos  quadru- 
manos  para  os  sons  era  um  facto  já  antiga- 
mente verificado.  Sobre  a  attenção  voluntária 
houvera  controvérsias,  porém  Romanes  acaba 
d^estabelecer  d"uma  maneira  positiva  como  ella 
reveste  o  caracter  d'um  movimento  intelli gente 
seguido  d'emoções  de  variada  amplitude,  con- 
forme os  sons  se  produzem  com  intermittencias 


(')  Psychologie  de  Vlãiot  et  de  Vlmhècile—  lib. 
Félix  Alcan,  Paris,  1890. 


os  GATOS  27 

e  intervallos  refilares,  como  na  musica,  ou  não 
passam  de  simples  luidos  ou  continuidades  do 
mesmo  acorde  monotonamente  ejaculado,  como 
no  arroto  e  seus  congéneres.  O  violinista  Sivo- 
ri  gabava-se  de  ter  fascinado  macacos  nas  flo- 
restas ameiicanas,  e  varias  madamas  pianivo- 
ras,  possuidoras  de  saguis^  registram  em  suas 
memorias  que  estes  animaes  riem  ou  clioram, 
batem  as  palmas,  contradançam,  pòem  a  mão 
sobre  o  coração^  rolam  os  olhos,  quando  se 
lhes  faz  musica,  notando-se  que  o  caracter  ex- 
pressivo d'esta  esteja  em  unisooo  com  a  sensi- 
bilidade critica  que  o  animalsinho  deixa  vèr.  As 
pessoas  que  vivem  nos  segredos  da  corte  e  in- 
timidade do  conselheiro  José  Luciano  de  Cas- 
tro, muito  bem  sabem  que  este  illustre  esta- 
dista, exemplar  degenerativo  dos  dryopithevua, 
gorillas  broncos,  cuja  raça  se  julgava  extincta, 
não  resiste  a  masturbar-se  em  ouvindo  o  hym- 
no  da  Carta,  facto  este  que  o  distancia  do*  go- 
verno des'que  S.  M.  adoptou  para  seu  exclusi- 
vo batuque,  aquelle  trecho.  Ainda  outros  casos 
precisam  a  aptencia  da  macacada  para  a  mu- 
sica. Um  orango-tango  que  na  Polytechnica 
dava  pelo  nome  de  José  Júlio,  exemplar  rarís- 
simo de  deptomano,  ou  macaco  larapio,  mau 


28  OS  GATOS 

grado  as  bestialidades  da  casta,  não  era  isem- 
plo  d'uma  tal  ou  qual  sensihlerie.  D'uma  vêz 
tocaram-lhe  a  Sonâmbula.  Poz-se  a  mecher  as. 
orelhas,  nos  duos  d'aír»or. 


11)  iíe  Jfilhr,. 

SS.  M)!.  coíiíiuuam  attacadas  da  monoraa- 
nia  das  viagens,  e  nada  parece  as  desviará  da 
re^abofe  um  só  raomenlo.  Ainda  o  anno  passa- 
do esba/ijaram  as  economias  do  Porto  e  Beira 
Baixa  inaugurando  com  as  suas  nunca  assaz 
auKiilas  presenças  a  epocha  d'indigencia  que 
aquelies  laborioso>  [lovos  estão  soflVendo — já  ho- 
je abrem  licença  nova  a  correrias,  n'uma  caça 
de  prestigio  que  pouco  se  lhes  faz  retrograde 
os  encargos  dos  municípios,  e  vá  semeando  a 
fome  entre  as  i»opulações  esperdiçadas  a  Ihes- 
deitar  foguetaria. 

Não  sou  dos  que  prescrevem  os  arraiaes  en- 
tre os  deveres  dos  impeiantes,  e  paia  mim 
tenho  que  os  deuses  da  terra,  como  os  do  ceu, 
tudo  teem  a  ganliar  com  viver  na  abstracção  da 
sua  nuvem,  especialmente  quando  a  Providen- 
cia os  haja  feito,  em  vêz  d"ApolIos,  cervejeiros. 


os  GATOS  29 

A  conquista  das  cidades  já  as  não  fazem  pes- 
soas, mas  ideias^  e  o  acto  de  fomar  posse,  mes- 
mo platónico,  hoje  só  para  o  povo  constitue  mo- 
tivo d^assuada. 

Tudo  entretanto  passaiia  á  boa  conta,  se  os 
povos  em  vez  d'esfomeados  estivessem  fartos, 
se  os  governos  em  véz  de  politicos  fossem  na- 
cionaes^  se  as  escolas  e  os  celeiros  regurgitas- 
sem, se  a  agricultura  florisse,  e  em  toda  a  na- 
ção emfim  houvesse  motivos  pnia  ser  grato,  ou 
sequer  benévolo,  á  monarcliia. 

Dada  esta  plenitude  da  fortuna  publica, 
fossem  embora  podres  os  cimos,  a  corte  igna- 
ra, o  burocracismo  politico  cupido  e  infama- 
do, pouco  se  daria  ao  paiz  a  forma  do  gover- 
no, sabido  como  nas  nacionalidades  dotadas 
d'ineciativa  não  é  exclusivamente  d'ella  (jue 
impende,  como  outrora,  a  recta  directriz  do 
seu  destino  histórico  no  mundo.  Mas  com- 
nosco  é  differentissimo.  Ha  dois  séculos  que 
perdemos  a  probidade  civica  e  a  consciência 
d'uma  missão  qualquer  na  carta  geographica : 
a  vontade  nacional  não  se  formula  senão  por 
fragmentos  de  protestos  irrisórios,  onde  o  egois- 
mo  referve  por  detrás  d'uma  rethorica  miserá- 
vel; não  ha  fiar  dos  messias,  que  são  valores' 


30  OS  GATOS 

a  rebater  no   dia  seguinte  áqaelle  em  que  se 
julgam  populares. . . 

De  sorte  que  não  havendo,  na  deliquescencia 
actual,  reacção  organisada  a  neutralisar  as  in- 
fluencias nefandas  da  podridão  politica  im- 
perante, por  pequena  influencia  que  esta  tenha, 
comtudo  sempre  será  bastante  para  dictar  leis 
a  sabor  da  sua  crápula,  para  ir  sangrando  os 
pagantes  a  beneficio  das  coteries  de  chuchado- 
res,  para  fazer  pela  fome  o  rapto  dos  que  pro- 
testam, e  envinagrar  emfim  pela  espionagem 
e  pela  intriga,  os  cada  véz  mais  raros  intransi- 
gentes. A  esta  certeza  d'impunidade  obedece 
o  plano  das  viagens  realengas,  sem  fallar  nos 
quinhões  de  regiibofe  e  pagode  naturaes  em 
pessoas  novas,  inconscientes  do  valor  do  di- 
nheiro, e  sem  outra  occupaç.ão  a  mais  do  que 
entreter  o  tempo  seja  como  fòr.  A  pretexto 
d"infantis  curiosidades,  por  fabricas,  fogos  de 
vistas,  azylos  de  cegos,  descargas  d'artilharia 
e  múmias  de  rainhas  exhumadas,  ahi  vão  SS. 
MM.  em  salão  doirado,  pela  província  fora,  com 
uma  penitenciaria  de  ministrelhos  e  reporters  a 
rabo,  esvasiar  os  pés  de  meia  dos  municipios, 
interromper  a  faina  das  cidades  e  dos  campos, 
incommodar  toda  a   gente,  só  pelo   afan   dô 


os  GATOS  31 

dizer  gostámos  muito  a  coisas  de  que  ninguém 
gosta^  e  eslá  muito  bem  a  coizas  de  que  toda  a 
gente  diz,  está  muito  mal !  Com  a  jornada  de 
Coimbra,  as  necessidades  de  pandega  vão  in- 
quinadas^ parece,  de  tentativas  de  soborno. 
Aguardou-se  por  exemplo  que  a  epocha  dos 
exames,  já  no  termo,  dispersasse  pelas  casas 
dos  pães,  os  estudantes — mas  havendo  por  Coim- 
bra ainda  alguns  que  os  reclames  das  gazetas 
affectas podessem  especificarem  globo  por,  Aca- 
demia Coimbrã.  D'esses  poucos,  os  raros  intro- 
mettidos  no  preparo  das  festas,  permittirão  que 
a  reportage  diga  «os  estudantes  disputam  se  a 
maneira  de  melhor  engalanar  a  cidade^  e  rece- 
ber os  régios  papa-leguas>K  Como  Coimbra,  ape- 
zar  de  deserta  de  batinas,  podia  lembrar-se  das 
soluções  que  o  governo  deu  á  greve,  ordem  pa- 
ra admittir  a  acto  os  recalcitrantes  corajosos, 
que  entre  a  perda  do  anno  e  a  perda  do  brio, 
não  hesitaram. 

E  assim  estrumados  os  ânimos  para  na  via 
latina  se  abafarem  os  morras,  e  para  na  estação 
velha  se  supprimirem  os  manguitos,  podem  os 
conquistadores  entrar  pola  cidade :  o  futrica  é 
benigno,  os  capellos  não  mordem,  e  Coimbra 
emfim,  que  vive  de  hospedes,  ha-de  gostar  im- 


52  OS  GATOS 

trienso  da  frescata,  Apezar  irestrangeiras,  SS. 
M.vl.  personificam  já  bem  a  impievidencia  por- 
lM<(ueza. . .  gastar  á  foita,  cliiicliiirubiar  a  nação 
Dmquanto  houver  tutano. . .  Amanhã?  Oi'a  adeus! 
O  conde  de  Paris  tem  massa,  e  o  povo  dorrni- 
jilioco  inda  agora  se  voltou  pr'ó  outro  lado. 


FIALHO   DALMEÍDA 


os  GATOS 


PUBLICAÇÃO 

d'inqueríto   á  vida   PORTUGUEZA 


N.M5  — 2deSepíeffi!)rodel892 


SUMMARIO 

Rescripto  perdido  no  paço  da  Universi- 
dade ;  QUEM  SEJA  o  SIGNATÁRIO ExPLICAÇÂO 

DA    VIAGEM    REAL    Á    LuSA  AtHENAS PaPEL 

moderno  DOS  REIS  E  SUAS  RESPONSABILIDADES  Á 

FACE  DA  CIVILISAGÃO  PoRQUE    SE  DIZ    TANTO 

MAL  DAS  MONARGUIAS NoVO    PROGRAMMA    DE 

CONDUCTA  REGIA  !    ABAIXO  OS    FINGIMENTOS  !  

Os    MESUREIROS    DA    CORTE,    OS    POLÍTICOS  E  OS 

PEDINCHÕES  SEM  TRABALHO  De  COMO  O  PAÇO 

É  A  PRIMEIRA  CASA  POBRE  DO  PAIZ  ReSENHA 

DAS  FESTAS  DE  OoiMBRA,  PELO  CAVALHEIRO  FES- 


II  os    GATOS 

TEJADO As    PHILARMONICAS    FUTRICAS    E    OS 

SETE    PARTIDOS  DE   BOMBEIROS    VOLUNTÁRIOS 

A  FARDA  DO  GOVERNADOR  CIVIL  E  AS  FONTES- 
MIRACULOSAS  DE    CERVEJA  —  VeREADORES,  CA- 

PELLOS,  PADRES  E  BACOCOS CoSTA  AlLEMÃO 

ENTREGANDO  AS  CHAVES  DA  CIDADE GORTEJO 

DA  ESTAÇÃO  VELHA  PARA  A  SÉ,  E   IRREVERÊNCIA 

AMOROSA    d'uM    CAVALLO FARTUNS    DE    POVO 

SUJO  E  AR  EMBIRRENTO  DO  CORPO  CATHEDRATICO 
PaLAOC  REAL  SEM  REI  NEM    ROQUE Pst, 

ó  Dona  Amélia !  —  Alviçaras  a  quem  achar 

O  CADERNO  DOS  PENSAMENTOS  PROFUNDOS,  PER- 
DIDO POR  S.  M.  ENTRE  FORMOZELHA  E  VeRMOIL 

—  Ovações  em  bom  uso  —  Baile  tricano  no 
PATEO  DA  Universidade  —  A  Farroupeira,  o 
Vira  E  o  padre  Chaves  —  Cantigas  popula- 
res, E  DESCOBERTA  DE  SUISSAS   NAS  BAILARINAS 

—  Serenata  no  Mondego  —  O  astrólogo 
Peixoto  ensina  S.  M.  a  Rainha  a  mecher  nas 
lunetas  —  Coimbra  de  noite,  voluptuaria 
irresistível  das  suas  festas  —  A  Universi- 
dade  MORTA    E  as  línguas  VIVAS DlSCURSO 

do  PAE  PaUUNO  acerca  da  CREAÇÃO  DO  MUNDO, 

DO  Bernardo  Ayres,  e  do  vinagre —  Em  con- 
clusão, Dias  Ferreira  ! 


Meu  caro  Dias  Ferreira. 


Tinha-me  promellido  que  se  eu  alijasse 
do  minislerio  o  Oliveira  Martins,  a  jornada 
de  Coimbra  seria  excepcionalmente  luzida 
para  os  reis.  Por  mais  d' uma  vez  lhe  ouvi 
jurar  que  a  cidade  estaria  inteiramente  ao 
meu  dispor,  com  o  commercio  prestes  a  pen- 
durar a  oeile  nos  galhardetes  dos  arcos  trium- 
phaes,  com  a  Universidade  decidida  a  es- 

•  Foi  este  manuscripto  achado  2)or  alguém  no  pateo 
da  Universidade  de  Coimbra,  na  manhã  scguinlc  ao  dia 
em  que  SS.  MM.  deixaram  a  Lusa  Athenas — da  Costa  e 
Silva.  Damos-lhe  publicidade  pelo  mordente  interesse 
das  revelações  que  ahi  se  fazem  ;  mantem-se  fielmente 
o  texto,  apenas  notando  aqui  e  alem  as  descahidellas 
ortographicas  de  que  vinha  recheado. 


4  OS    GATOS 

tender  os  capellos  no  trole  largo  dos  cavai- 
los  do  meu  carro,  e  com  o  bronco  povo  em- 
fim,  prosternadoe  com  palmas,  a  me  sagrar 
monarcha  na  helienica  terra  da  arrefada  e 
da  sebenta. 

Confiado  na  cerleza  das  suas  falias,  ali- 
jei o  Martins,  perdendo  assim  a  inslrucliva 
amizade  dos  vencidos j  e  condescendi  a  vir, 
apezar  do  calor,  pelo  seu  braço,  a  este  pic- 
loresco  e  sarnoso  burgo  universitário,  terra 
de  resvalo  para  os  Braganças,  onde  verdade 
seja  não  fui  mais  feliz  que  os  meus  anteces- 
sores. Como  o  desastre  foi  cerce,  agora  que 
vou  partir  de  Coimbra  para  nunca  mais  ahi 
tornar,  não  me  soíTre  a  paciência  a  sua  são 
de  que  me  comam  os  papalvos,  e  para  seu 
castigo  darei  a  conhecer  as  razões  porque 
você  não  estará  presidente  do  conselho  muito 
tempo.  Este  rescripto  lh'o  envio  na  indigna- 
ção das  primeiras  impressões,  não  em  rei- 
nante que  as  obrigações  do  cargo  forçam  ao 
fingimento  d'um  jubilo  pateta,  mas  tal  como 
o  faria  um  particular  perspicaz  a  quem  meia 
dúzia  de  paspalhões  quizesse  inpingir  gato 
por  lebre.  Aqui  onde  me  vê,  Zé  Dias,  í)ão 
cuide  que  eu  seja  dos  cegos  que  só  apre- 


os    GATOS  6 

ciam  as  coizas  pelo  palpér,  e  dos  ingénuos 
que  se  julgam  amados  só  porque  o  minis- 
tério das  obras  publicas  expede  ás  cidades 
cebo  para  fogaréus  em  tijellinhas. 

Os  monarchas  do  meu  tempo  provem  lo- 
dos d'uma  escola  d'adversidade  que  os  pre- 
dispõe desde  o  berço  a  chuchar  os  povos 
com  finura  superior  á  que  os  povos  dispen- 
dem  a  chuchal-os  a  elles ;  e  se  a  nossa  to- 
lerância ás  vezes  parece  de?dobrar-se  em 
magnanimidade  ante  as  aíTrontas,  não  é  que 
nos  íaile  coragem  pr'a  sarjar  as  vaias  dos  re- 
beldes, senão  porque  vislo  ser  ávida  moder- 
na lur^a  chacina,  é  mais  forte  aquelle  que  no 
síniggle  conseguir  mostrar  maismalandrice. 
Ora  eu  estou  farto  de  conhecer  a  gente  com 
quem  vivo,  e  de  soletrar  nos  jornaes  a  mons- 
truosa diíTamação  do  poder  que  represento. 
As  coroas  quanto  mais  honorárias  vão  es- 
tando, tanto  mais  responsáveis  a  opinião  as 
torna  pelos  desastres  que  a  má  cabeça  dos 
povos  acarreia.  Nas  epochas  religiosas  Deus 
pagava  as  favas  das  calamidades  scfffidas 
pelos  homens:  os  tempos  mudaram,  e  agora 
é  á  cabeça  dos  reis  que  são  allribuidas  to- 
das as  faltas  de  juizo  dos  seus  súbditos. 


6  OS    GATOS 

Não  deixarei  passar  portanto  uma  das 
poucas  occasiões  que  tenho  tido  para  pôF 
tudo  em  pratos  limpos,  e  ao  cabo  d'apanhar 
de  contrários  e  meus,  tão  grandes  sovas, 
formularei  aqui  minhas  censuras,  como 
se  este  libello  houvesse  de  sahir  na  folha 
official.  Do  questionário  por  mim  enviado 
aos  imperadores  e  reis  da  velha  Europa  so- 
bre as  virtudes  e  trato  de  seus  povos,  a 
quando  pela  questão  ingleza  me  passou  pela 
cabeça  abdicar,  recapilula-se  sobre  rigoro- 
síssimas eslatisticas  que  é  no  meu  reino  que 
formilham,  de  cima  a  baixo,  maiores  e  mais 
cafrarias  de  malandros.  Aos  que  pois  me 
lançam  em  roslo  a  dynaslia  mórbida  de  D. 
João  IV  e  descendentes,  contraporei  ess'ou- 
tras  de  polilicos  inhabeis,  de  genlishomens 
cynicos,  de  burguezia  sorna  e  de  plebe  sem 
vergonha,  que  éa  historia  da  sociedade  por- 
tugueza  de  ha  trezentos  annos  para  cá.  Po- 
vos e  reis,  podemo-nos  dar  as  mãos  pelo 
conjunclo  homogéneo  que  fazemos,  repartir 
quinhões  eguaes  na  gloria  de  havermos  feito 
d'este  rectângulo  de  paysagem  um  dos  ma- 
nicomios  mais  typicos  da  degenerescência 
humana  em  desfillada  pr'á  demência. 


os    GATOS  7 

Bem  sei  que  abrindo  os  livros  da  histo- 
ria, toda  a  responsabilidade  do  mal  é  debi- 
tada aos  reis,  e  toda  a  causalidade  do  bem 
pertence  aos  povos :  o  caso  de  resto  expli- 
ca-se  por  os  monarchas  não  serem  historia- 
dores nem  jornalistas,  e  por  as  casas  reaes 
serem  já  bastante  pobres  para  poderem  ar- 
rematar a  consciência  dos  Pluta^chos.  Hoje 
a  questão  é  viver,  e  como  somos  na  Europa 
doze  contra  duzentos  milhões,  a  nossa  força 
está  apenas  na  impassibilidade  de  fingir  que 
somos  ainda  os  proprietários  da  humanida- 
de. Esta  impassibilidade  custa-nos,  é  certo, 
innarraveis  sacrificios  —  sacrificios  d'orgu- 
Iho,  de  dignidade,  de  dinheiro  —  sorrir  a 
tudo,  dizer  que  sim  a  tcdo,  pagar  sem  re- 
gateio... e  sobrelevando,  a  humilhação  im- 
posta de  beber  as  affrontas  dos  jornaes  sem 
poder  ir  ás  redacções  dar  bofetadas. 

E'  o  que  mais  peza  á  minha  esthesia 
de  homem,  este  marlyrio  de  toda  a  vida  ter 
que  deixar  a  iíijiiria  impune,  e  de  como  cal- 
manle  só  me  ser  permiltido  pela  therapeu- 
liça  da  Carta  desviar  para  os  pombos  balas 
que  aproveitariam  melhor  abrindo  ventila- 
dores na  cabeça  dos  jornalistas. 


8  OS    GATOS 

Lá  me  resignaria  á  tolerância  d'essa3 
animadversões  sem  ódio,  impressas  unica- 
menle  como  síratagema  de  raloneiros  qi:e 
sob  pena  de  morle  mandam  os  ricos  depo- 
sitar tantos  conlos  de  réis  na  toca  d'uma  ar- 
vore, se  em  taes  adversários  eu  não  ante- 
sofresse  já  a  abjecção  de  ter  que  os  acceitar 
depois  como  ministros,  sustentáculos  do 
throno,e...  confidentes.  Eis  a  bistoria  de  lo- 
dos os  maraus  meus  partidários:  é  percorrer 
os  partidos,  não  se  encontra  um  que  não  te- 
nha começado  vida  a  injuriar-me.  A  principio 
a  hombridade  real  inda  reage,  afastando  os 
mais  porcos,  e  fazendo  sentir  uma  ponta  de 
desprezo  aos  mais  infames ;  mas  lá  vem  de- 
pois a  necessidade  de  transigir  pr'a  não  fi- 
car sósinho,  e  cercado  de  mariolas,  che- 
ga-se  a  velho  tão  descarado  ou  mais  que 
todos  elles.  Por  exemplo,  S.  M.  el-rei  meu 
pae  morreu  com  fama  de  não  acreditar  na 
honra  de  ninguém.  Mas  em  vinte  e  oito  an- 
nos  de  candonga  politica,  em  que  demónio 
havia  d'elle  acreditar? 


Fique-se  entanto  sabendo  que  não  de- 


os    GATOS  9 

sejo  seguir  as  pisadas  do  pobre  sceplico  let- 
írado  a  quem  devo  a  massadoria  de  ser  rei, 
eque  tenciono  inaugurar  a  todo  o  transe,  no 
meu  programma  de  chefe,  um  systema  bem 
diverso  d'aquelle  por  que  elle  julgava  com- 
prar os  grandes,  trazendo  ao  mesmo  tempo 
contentes  os  pequenos.  Apezar  de  trineto  de 
D.  João  VI,  o  principe  talú  de  quem  reco- 
lhi acorpaturaobesa  e  a  beiçola  cabida,  gi- 
ra-me  nas  veias  o  sangue  de  Sabóia,  tenho  o 
nariz  truffado  de  meu  avô  materno:  não  hei- 
de  pois  ficar  no  tombo  unicamente  como  um 
exemplar  de  reinante  manso,  nem  contrariar 
jamais  os  meus  Ímpetos  victor-manuelescos, 
deixando-me  explorar  como  um  dromedário 
de  caravana.  Quero  definilivamsnte  tornar- 
me  um  homem  franco  e  enérgico,  e  repellir 
de  mim  a  subserviência  hypocrila  com  que 
nos  paços  porluguezes  usam  os  reis  fingir 
de  tolos.  O  ponto  é  diffici!  e  acarretar-me-ha 
certas  quisilias,  porque  o  meu  primeiro  acto 
vae  ser  pôr  no  olho  da  rua  todos  os  maricas 
e  mesureiros  que  lá  pelo  paço  enchem  de 
ihedio  minha  enclausura  triste  de  reinante. 
A'  uma,  a  sensaboria  d'elles  desagrada-me,  o 
tormento  dos  reis  sendo  o  convivio  dos  au- 


10  os    GATOS 

licos  sem  mocidade :  á  outra,  a  escola  lilte- 
raria  que  elles  formam  pôe-me  de  mal  com 
o  publico,  que  imagina  talvez  que  eu  inspire 
as  sensaborias  que  elles  escrevem...  de  braço 
dado. 

Uma  vez  liberto  d'esse  viveiro  de  somni- 
feros  a  quem  devo  mais  horas  de  mau  hu- 
mor do  que  a  todas  as  opiniões  republica- 
nas, alijarei  por  meu  turno  os  trambolhos 
politicos,  mandando  descançar  os  velhos,  e 
estampando  na  cara  as  incapacidades  d'al- 
guns  novos.  Estou  farto  a  valer  dos  grandes 
homens  eleitoraes,  que  já  não  seduzem  nin- 
guém, porque  em  politica,  como  na  Univer- 
sidade, os  accecit  servem  só  para  galardoar 
bacharéis  estupidarrões.  Outra  cáfila  a  zur- 
zir  seja  a  dos  parasitas  que  de  chapéu  na 
cabeça  e  memorial  na  mão,  sabem  ao  cami- 
nho dos  reis  com  insaciabilidades  d'atrevi- 
dissimos  malfeitores.  Não  ha  philarmonica 
de  xarépes,  kermesse  de  faniqueiras,  filha 
deheroe,  familia  liberal,  e  azylo  de  pucellas 
arrependidas,  que  mensalmente  se  não  per- 
mitia vir-me  furar  o  ventre  da  hsta  civil,  a 
vêr  se  o  milho  corre  da  facada,  e  sem  inda- 
gar se  a  crise  que  os  indigenta  a  elles,  não 


os    GATOS  11 

lerá  feito  do  paço  a  primeira  casa  pobre  do 
paiz.  A  exploração  loca  por  vezes  raias  de 
chantage,  com  um  descaro  que  a  necessidade 
explica  menos  do  que  certos  instinctos  de 
parasitagem  peculiares  a  este  «cavalheiroso» 
povo  portuguez.  Porque  no  fim  de  contas 
que  ganho  eu  em  dar  muito  mais  do  que 
recebo  ?  Popularidade  ?  Conheço-a,  vae  toda 
do  ministério  do  reino  e  obras  publicas,  para 
as  regiões  que  me  decido  a  percorrer.  A' 
minha  chegada  todo  o  estimulo  das  cidades 
é  pedir-me  dinheiro  e  mandar  caiar  as  fron- 
tarias.  Os  municipios  querem  madeiras  e 
colchas  pr'ás  tribunas,  os  particulares  fi- 
cam-me  com  a  loiça  e  colchões  que  o  almo- 
xarifado expede  pr'a  meu  uso,  e  para  ser 
completa  a  sovinice,  até  as  aucloridades 
roubam  nos  discursos  a  grammatica  que 
podem,  ás  tenças  de  não  ser  um  género  de 
primeira  necessidade,  e  serem  os  policias 
já  poucos  para  a  físcalisação  das  padarias. 
Todos  podem  gastar  os  rendimentos  como 
queiram,  ler  os  filhos  que  fôr  do  seu  agra- 
do, fazer  nos  seus  prédios  as  modificações 
que  lhes  pareça,  trajar  ernfim,  comer,  be- 
ber e  dizer  o  que  lhes  venha  á  phanlasia. 


lá  os    GATOS 

Só  OS  pobres  reis  manietados  ao  figurino 
constitucional  que  lhes  dita  uma  mascara  e 
uma  albarda  para  cada  acto  cómico  da  vida, 
só  elles  hão-de  permanecer  constantemente 
deante  de  tudo  e  de  todos  como  uns  bone- 
cos de  pau.  sem  emoções  nem  gestos  expon- 
tâneos, dando  tudo  a  intrujões  mais  ricos 
do  que  elles,  ouvindo  discursos  parvos,  visi- 
tando fabricas  e  ateliers  sem  prodiicçãonem 
meta  industrial,  regalando  a  progénie  a  sa- 
bor do  preço  das  inscripções,  rezidindo  em 
cazebres  sem  luxo  e  sem  contbrlo,  prohibi- 
dos  de  fazer  troça,  de  rogar  pragas,  de  jo- 
gar á  pancada,  de  sahir  sós,  andar  de  noite 
ou  ir  ás  taberninhas  bebericar  n'uma  hora 
de  volage...  E  meu  caro  Dias  Ferreira,  es- 
tou fartíssimo  I  Gomo  posso  eu  ser  rei,  sem 
ainda  uma  só  yez  ter  sido  homem?  Os  meus 
ministros  mostram-me  apenas  o  que  elles 
querem  que  eu  veja,  isto  é,  a  vida  nacional 
nos  seus  aspectos  burocráticos,  povoações 
comprimidas  por  policia,  monumentos  cadu- 
cos, azylos  mal  cheirosos,  e  pessoal  cabis- 
baixo que  me  cospe  na  mão  beijos  ensaia- 
dos á  pressa  n'um  manequim.  Ora  isto  é  a 
parte  resequida  e  chocha  do  meu  reino,  a 


os    GATOS  13 

porção  civilisada  nos  seus  aspectos  (i'incur- 
valura  d'espinha  e  falta  de  caracter,  pois  os 
livros  ensinam  que  a  humanidade  fecunda 
é  brutal,  e  era  essa  que  eu  necessitava  de 
vêr  a  todo  o  transe. 


Será  pois  na  qualidade  exlra-official  de 
rei  homem  como  os  mais,  de  rei  farto  d'in- 
bofias,  farto  de  ministros,  farto  de  conse- 
lheiros, farto  de  governadores  civis,  farto  de 
corte,  de  bandeirolas,  bombeiros,  hymnos 
e  sécca3,  que  eu  lhe  vou  criticar  as  festas 
de  Coimbra,  e  exprimir  como  gostaria  de 
vir  á  cidade  do  Mondego  gozar  detidamen- 
te as  maravilhas  dos  seus  templos,  as  ce- 
rimonias decrépitas  da  sua  Universidade, 
os  beijos  das  suas  tricanas,  o  ondeante  idyl- 
lico  dos  arrabaldes,  e  mesmo,  podendo  ser, 
as  sarrafuscas  dos  seus  capas-e-batinas  c'os 
vacões.  A  primeira  coiza  onde  ler  mão,  se- 
ria a  escolha  das  partes  constitutivas  do  cor- 
tejo que  me  viesse  ao  desembarque,  e  donde 
eu  baniria  tudo  o  que  de  longe  fedesse  a 
farroupagem.  Philarmonicas  por  exemplo, 
quatro  pontapés   no  sêsso   e  rolhas   nos 


14  OS    GATOS 

trombones !  Nada  como  o  hymno  da  Carta 
para  me  fazer  encavacar  fora  de  portas.  E 
essas  de  Coimbra  então  tocavam-no  d'uma 
forma  que  parecia  a  Marselheza  com  gola 
de  velludo,  tingida  no  Camburnac.  Ahi  es- 
lão  os  inconvenientes  de  ter  deixado  saliir 
o  Arroyo  da  Universidade  1  Sobre  os  bom- 
beiros não  soíTrearei  sequer  os  impropérios. 

O  meu  ódio  ao  bombeiro  vem  das  Cru- 
zadas, e  lurgeceu  quando  meu  mano  Affon- 
so  foi  arvorado  em  commandante  honorário 
dos  da  Ajuda.  Em  Lisboa  ainda  se  explicam ; 
são  frequentes  os  fogos,  e  apagar-se-hiam 
logo  se  o  bombeiro  voluntário  não  existisse. 
De  sorte  que  para  divertenga  do  publico, 
necessário  se  faz  deixal-os  atrapalhar  os  ser- 
viços d'extincção.  Mas  na  provincial  em 
Coimbra,  onde  nem  sequer  comburesce  a 
mioleira  dos  mais  sapientes  cathedralicos, 
como  explicar  tão  variegados  salvadores? 
D'ahi,  que  typosl  Verdadeiramente  o  futrica 
só  duas  aptidões  atavisticas  possue:  a  d'ir- 
nião  do  Santissimo,  e  a  de  levar  lambada 
do  estudante. 

Se  o  trajam  de  bombeiro,  vejam-lhe  o 
capacete :  é  a  caldeirinha  das  esmolas,  em- 


os    GATOS  15 

borcada  ;  observem-lhe  a  marcha  niarcial, 
são  as  gambaias  doridas  de  quem  se  precave 
contra  uma  chulipa  vis  a  tergo.  Na  lista  de 
proscripção  viriam  depois  dos  bombeiros,  as 
auctoridades.  A  farda  vermelha  do  gover- 
nador civil  inda  hoje  me  faz  ophtalmias.  Qae 
intensivo  escarlate  de  fachada  1  Inda  estive 
em  ver  se  o  marquez  d*Alvito,  que  é  garoto, 
lhe  escrevia  nas  costas  :  ha  dobrada,  mas 
estes  nobres,  verdade,  teem  tal  repugnân- 
cia em  pintar  as  taboletas  dos  coUegas...  Fe- 
lizmente a  rainha  apertou-lhe  o  naris  com 
certa  força  (era  a  snrpreza)  e  em  plena  cal- 
ma, com  jubilo  vimos  o  menstrual  funccio- 
nario  principiar  a  deitar  cerveja  pela  bicas 
do  chapéu  armado. 

E  os  vereadores,  as  caras  dos  capellos,  o 
reitor,  o  bispo  e  as  gentes  do  meu  séquito?!... 
Não  me  tenho  ainda  da  surpreza  com  que 
ao  chegar  á  estação  velha,  o  presidente  da 
camará  desata  a  parvoejar  que  a  minha  en- 
trada na  terra  «assignala  uma  epocha  inol- 
vidável nos  fastos  da  historia,  e  Coimbra  se 
sente  feliz  com  o  eu  lhe  entrar  nos  pene- 
tracs  —  quanto  lh'o  permitlem  as  adensa- 
das nuvens  do  ceu  cahginoso  da  pátria.» 


16  OS    GATOS 

Era  de  ver  o  ar  funéreo  dos  munícipes  pe- 
rante a  arenga  do  descompassado  conse- 
lheiro. Eu,  furioso,  porque  escutar  d'isto 
emporcalha  mais  que  uma  nódoa  de 
gordura  1  E  o  homem  tudo  era  que  eu 
acceitasse  duas  chaves  de  pasta  doirada, 
«as  chaves  d'este  alcaçar  da  sciencia,  fun- 
didas no  finissim^o  ouro,  que  se  acen- 
dra  no  crysol  das  mais  puras  dedicações» 
que  uma  espécie  de  gallego-pagem,  cora 
meias  de  linha  e  suissas^  estendia  n'um 
barranhão  de  follia,  a  geito  de  reféns.  Em- 
purrei o  gallego  com  mau  modo,  e  para  ta- 
par a  hocca  ao  parvo,  penduricalhei-o  logo 
alli  com  o  habito  da  Conceição.  Já  tinha  o 
de  dizer  asneiras,  e  assim  fica  com  dois. 

Ahi  se  põe  o  cortejo  a  caminho  da  cida- 
de, que  de  longe  parece  deserta  e  não  pro- 
gnoslicar  nada  de  bom.  Levo  o  coração  cer- 
rado de  tristeza,  em  trezentas  visitas  offi- 
ciaes  a  terras  do  meu  reino.,  nem  um  só 
íunccionario  intelligente,  physionomias  cú- 
pidas ou  bestiaes  por  toda  aparte,  nenhum 
expontâneo  jubilo  vindo  a  mim...  A  bisonhe- 
ria  dos  que  me  cercam,  communica-se-me ; 
sinlo-merisivel,  sem  uma  palavra,  sem  uma 


os    GATOS  17 

ideia,  com  a  saliva  pegada  no  ceu  da  bocca. 
O  que  eu  daria  por  ser  o  rapaz  que  alli  eslá 
no  passeio,  parado,  em  vestão  curto,  a  rir 
da  caramunlia  que  eu  vou  fazendo  entre  es- 
tes brutos! 

A  cada  instante,  pára  a  carruagem,  on- 
das de  povo  fétido  convergem  das  bocadas 
das  ruas,  contra  mim :  é  uma  curiosidade 
parada  de  gente  que  soffre  e  não  tem  valor 
para  se  queixar...  Vieram  dos  seus  estábu- 
los fétidos  do  Caramulo  e  da  Bairrada,  bi- 
sonhos, caras  rapadas  de  fradinhos,  a  tez  côr 
de  cinabre,  vestidos  de  burel,  sem  meias,  a 
ex{iressão  fanática,  os  olhos  jezuiticos,  lendo 
na  phantasia,  a  arder,  como  na  Covilhã,  o 
desejo  d'um  rei  que  fosse  d'oiro,  com  ges- 
tos d'ido!o,  sobraçando  cornucopias  de  li- 
bras, em  cascatas  doiradas,  sobre  a  turba. 
O  meu  aspecto  gordo  desaponta-os;  a  fic- 
ção que  elles  teem  da  magestade  real  não 
é  a  que  eu  produzo,  e  vão-se  com  o  meio 
riso  sorna  do  maioio  ludibriado,  batendo  os 
tamancos,  sem  resposta  ao  chapéu  que  em 
vão  lhes  tiro,  com  o  meu  braço  de  pau  mo- 
vido por  uma  corda  de  relógio.  Percorremos 
um  labyrintho  infindável  de  ruellas,  umas 


18  OS    GATOS 

subindo,  outras  descendo,  cobertas  de  ban- 
deirolas ignóbeis,  mastros  de  baile  campes- 
tre, tapises  de  rosmaninho  e  folhas  de  lou- 
reiro. De  sorte  que  se  degladiam  no  ar  três 
cheiros  typos :  o  cheiro  a  trampa,  o  cheiro 
a  Semana  Santa,  e  o  cheiro  a  escabeche. 
Melhor:  a  universidade,  o  bispo  e  o  João 
das  iscas,  os  Ires  núcleos  fundamentaes  d'es- 
te  «alcaçar  da  sciencia»  fedorento. 

Eis-nos  chegados  á  Feira  sob  um  ca- 
lor de  trinta  e  oito  graus  —  hymnos,  fogue- 
tes, e  um  povaréu  no  largo,  que  me  pare- 
ceu ser  o  da  Covilhã  inda  com  as  camisas 
e  piugas  das  outras  festas.  Qualquer  pobre 
viajor  chegado  ao  termo  d'uma  viajem  lon- 
ga, por  um  tempo  de  canicula,  o  que  faria 
era  banhar-se  e  espairecer  da  travessia. 
Para  os  pobres  reis  o  banho  substituc-se 
porém  pelo  Te-Deiim,  e  em  vez  da  socega 
antes  de  jantar,  n'uma  rede  de  pennas  com 
mosqueiro  de  seda  e  leques  d'aveslruz,  vá 
d'apanhar  umas  calças,  Rua  Larga,  até  á 
Porta  Férrea,  debaixo  do  paHio,  á  pata,  en- 
tre matrullas  irreverentes,  traz  d'uma  pro- 
cissão de  coca-roxas.  Felizmente  que  em 
meio  da  solemne  tristeza  dos  capellos  deu 


os    GATOS  19 

um  cavallo  a  nota  natural,  um  cavallo  sem 
curso  nenhum,  simples  cavallo  de  soldado, 
infinitamente  saudável  e  expansivo,  o  qual 
agradando-lhe  as  éguas  d'um  landeau,  dei- 
tou abaixo  o  cavalleiro  e... 

Eu  corri  logo  a  assistir  ao  lançamento 
(estas  coisas  agradam  sempre  aos  reis  agri- 
colas)  e  ainda  vi  bombeiros  decepando  a 
machado  o  fogo  do  bucefalo,  que  um  fâmulo 
do  bispo  levou,  fumegante,  em  salva  de 
prata,  para  o  relicário  das  onze  mil  virgens, 
em  Santa  Cruz. 


Ao  entrar  debaixo  do  pallio  a  Universi- 
dade, lembrei-me  de  Nosso  Pae  aos  entre- 
vados—  e  que  entrevado  moral  este  insti- 
tuto 1 —  e  então  pude  ver  n'um  pateo  de 
quartel,  derodeado  d'edificios  sem  caracter, 
uma  alpendroada  de  pavilhão  de  caça  por 
frontaria,  bem  de  face  e  a  toda  a  altura  das 
suas  vestes  jezuilicas,  parte  d'esse  corpo  do- 
cente universitário  que  tanto  mal  tem  feito 
impunemente. 

Quasi  tudo  caras  erabirrentas,  sem  a  ar- 


20  OS    (JATOS 

chiteclura  d'officio,  onde  a  rigidez  substituiu 
a  mobilidade  physionomica  pela  mascara. 
Mesmo  algumas  dir-se-iam  modeladas  por 
caricaturas  cerâmicas  do  Bordallo,  com  as 
maçãs  do  rosto  furando  pelles  pergaminho- 
sas,  as  lunetas  paradas,  e  os  craneos  co- 
bertos pela  borla,  no  seu  ar  vasio  de  limpa- 
pennas.  Aqui  e  alem,  cataduras  marmóreas 
de  repontões  praxistas,  affeitos  a  thronar 
despoticamente  entre  os  rapazes,  cabeças 
peladas  com  a  visão  lateral  perscrutadora, 
passadas  nos  calcanhares,  fincando  firme, 
pelo  habito  d'esmagar  as  resistências,  e  por 
toda  a  parte  esse  insupporlavel  ar  absor- 
vente de  predominantes  locaes,  de  senhores 
da  terra,  que  os  pedantes  lomam,  á  forçado 
se  sentirem  cortejados. 

Dizem  que  ha  entre  elles  alguns  de  valor 
indisputável,  mas  quantos  sornas  deletérios 
rolinisando  a  mocidade  á  sombra  d'uma  le- 
gislação escolar  indigna  de  homens  livres  ? 
Nada  mais  do  que  entrando  os  claustros 
universitários,  indo  a  certas  aulas  com  púl- 
pitos de  sanefas  de  cyrio,  se  reconhece  a 
necessidade  de  derribar  aquillo  tudo  a  pi- 
careta, para  sobre  as  ruinas  erguer  uma 


os    GATOS  21 

escola  moderna,  com  um  regimen  libérrimo 
como  a  Polylechnica  de  Lisboa,  clara  e  ele- 
ganle  entre  jardins  e  grandes  ceos,  sem 
cárceres,  nem  foros,  nem  velharias  medie- 
vaes  que  façam  do  estudante  a  viclima  do 
mestre,  e  do  magistério  um  ripanso  de  me- 
diocridades. 

Jantar  de  gala:  inda  esle  marlyrio  de 
respirar  o  farlum  de  gente  que  só  toma  ba- 
nhos de  suorl  Apenas  enlro,  começa-me  a 
faltar  o  ar  na  casa,  as  salas  são  pequenas, 
os  moveis  grandes,  as  janellas  estreitas,  os 
convivas  mal  cheirosos.  Nas  alcatifas  cober- 
tas de  pingos  de  cera  e  nódoas  de  vómitos 
prchistoricos,  tropeçam-me  as  esporas  de 
generalissimo,  e  a  cada  trambulhão,  verea- 
dores abealados  correm  a  mim  dizendo,  Do- 
minas íecum. 

Por  toda  a  banda,  nu  paço,  uma  desor- 
dem de  gentes  sem  governo :  dentro  não  ha- 
via um  tareco,  um  prato,  um  enxergão,  uma 
banheira  (gabaram-me  as  bellas  índias  an- 
tigas que  um  dos  reilores  aqui  achou,  e  se 
sumiram);  de  sorte  que  foi  necessário  man- 
dar vir  tudo  dos  palácios  do  Porto  e  de 
Lisboa.  Esse  tudo  nem  mesmo  chegava  a 


22  OS    GATOS 

ser  o  indispensável,  e  com  os  desleixos  da 
embalagem  e  as  delongas  portuguezas  do 
caminho,  vieram  as  coisas  aos  poucos,  parte 
quebrou-se  no  comboio,  e  outra  parte  che- 
gou só  quando  parliamos.  Até  por  não  che- 
gar a  loiça  enxotámos  convivas  para  a  mesa 
dos  creados. 

Ai  Dias  Ferreira,  em  que  desagradável 
batuque  me  veiu  metterasuasemcerimonia 
de  presidente  do  conselho  letlras  gordas  ! 
De  que  gente  ordinária  me  cercou  I  Veja 
como  elles  bebem  o  molho  pelos  pratos  e 
fazem  caretas  d'orangos  a  engulir  a  porção 
fibrosa  dos  espargos.  Se  isto  continua  ver- 
me-hei  forçado  a  avisar  o  Gosta  Allemão  de 
que  se  não  á'\z  pst,  oh  D.  Amélia!  á  rai- 
nha, nem  é  polido  fazer  pontaria  com  bolas 
de  pão  aos  meus  carachás.  Demais  sinto- 
me  burro,  e  o  culpado  é  você.  Dias  Ferrei- 
ra, porque  deixou  em  Lisboa  o  caderno  dos 
pensamentos  prolundos,compromettendo-me 
assim  o  successo  da  viagem.  Sem  o  caderno 
dos  pensamentos  profundos,  que  impressão 
grandiosa  heide  eu  deixar  no  espirito  d'esla 
gente  ?  Já  reeditei  três  phrases  celebres  da 
Covilhã;  e  se  não  fosse  porquê,  soltava  uma 


os    GATOS  23 

que  agora  me  saiu,  propia  p'ra  álbum.  «A 
faculdade  de  direito  é  o  peor  de  todos  os 
cicios.»  Hein?  Mesmo  catita,  e  com  a  van- 
tagem de  se  poder  dizer  da  ociosidade. 

Papança  finda,  mostro  desejos  d'ouvir 
dançar  e  cantar  a  tricanage,  o  que  é  o  meio 
de  varrer  a  zoeira  calhedratica  que  circula. 
Levam-me  á  varanda  que  deita  para  o  pa- 
teo,  e  apenas  entro,  enthusiasmode  palmas 
e  vivorio.  D'onde  demónio  conheço  eu  este 
enthusiasmo?  Oh  Nazareth,  eu  já  paguei  a 
conta  d'este  enthusiasmo,  n'alguma  parte... 
Vá  indagar.  Corre  o  palmipede,  e  averigua 
que  o  que  eu  acabo  de  ter  é  uma  ovação 
velha,  uma  ovação  reservada  desde  o  anno 
passado  para  quando  o  Magalhães  Lima 
viesse  revolucionar  o  23.  Como  não  veio, 
os  iniciadores  cstimularam-n'a  com  vinho 
rascante,  e  deram-n'a  de  trespasse  á  casa 
real,  por  meio  preço.  Emfim,  vou  estar  em 
face  do  verdadeiro  povo,  o  ingénuo,  o  sim- 
ples, o  expansivo  e  cândido  populacho  das 
veigas  do  Mondego !  Tricanas  finas,  cabecita 
de  rola  e  olhos  de  febre,  a  roupinha  bran- 
ca enfeitada  de  grega,  a  saia  em  pregas,  os 
pés  na  chinella  de  bico,  pisando  com  mimo 


24  OS    GATOS 

O  chão  poeiroso !  Por  certo  ides  desenrolar 
perante  os  vossos  reis  toda  a  rusticidade 
encantada  dos  vossos  bailes  locaes,  cheios 
de  requebros,  que  faliam  da  fonte,  do  S. 
João,  das  descamisadas  e  dos  beijos  furta- 
dos das  vindimas,  na  embriaguez  do  mosto 
e  dos  abraços.  E'  sem  duvida  o  Vira,  a  Far- 
roupeira,  ou  o  Estaladinho,  as  rondas  em  que 
vos  requebrareis,  mãos  dadas  co*s  nossos 
rapagões,  denes'que  as  guitarras  frun-fru- 
nem,  e  a  cantadeira  desgrenhe  a  melopea 
amorosa  aos  ares  da  noite.  Começa  o  gui- 
tarredo,  os  pares  ordenam-se,  e  desço  mais 
uns  degraus  para  vêr  de  perto  esses  rosti- 
nhos  brunos  de  vinte  annos.  .  .  A  musica 
tem  um  sabor  d'operela  onde  não  ha  meio 
de  vêr  desenhar-se  um  canto  do  paiz ;  ares 
de  poika,  coisas  de  passo  ordinário,  tudo 
quanto  emfim  um  maestro  d'infanteria  pode 
applicar  de  moderno  aos  pulos  dos  labrós- 
tes.  Das  cantigas  cantadas,  umas  são  do  An- 
tónio Nobre,  outras  do  Fogaça,  outras  da 
Amélia  Jenny,  todas  litterarias,  e  absoluta- 
mente nenhuma  anonyma  e  popalar.Falseada 
a  proveniência  da  musica  e  da  poesia,  res- 
tava ao  menos  a  aulhenticidade  das  cacho- 


os    GATOS  25 

pas  ;  quando  subitamente  a  rainha  solta  um 
grilo.... 

—  Quel  horreur !  Mais  elles  sont  toiítes 
barbues,  ces  femmes  lá ! 

Quero  defendel-as,  desço  ainda  uns  de- 
graus para  affirmar-me  e  vir  bailar  com  el- 
las,  como  Pedro  I  nas  snas  noites  sem  dor- 
mir, e  oh  misericórdia!  em  vez  de  moças,  de- 
paro com  calhedralicos  em  travesti  de  peco- 
ras,  mamas  postiças,  e  calcanhares  bambo- 
leados. Este  sediço  burocracismo  coimbrão 
proposilaem  me  azedar  o  thedio  até  a  náu- 
sea, não  contente  de  me  enlaipar  d'estupidez 
com  aranzeis  e  cerimoniaes  da  era  dos  con- 
ventos, inda  por  cima  me  veda  o  contacto  de 
todas  as  coizas  simples  e  robustas ;  peço-lbe 
académicos,  dão-me  o  Bernardo  Ayres,  can- 
tigas populares  e  servem-me  a  Amélia  Jenny, 
tricanas,  tricanas,  e  surgem-me  o  padre  Cha- 
ves e  o  Paulino,  de  lavradeiras,  aos  estali- 
nhos c'os  dedos,  eonalgatorio  a  suar  na  ce- 
bollada  do  vira,  por  debaixo  do  saial  da  ca- 
melote  I  Ah  grandecissimas  velhacas,  que  as 
arrebento  com  dois  pontapés  na  bocca  do 
corpo  1  Tira  d'aqui  mal-os  marmanjões  dos 
bandurristas,  que  se  as  bispo  outra  vez  neste 


26  OS    GATOS 

disfarce,  lhes  farei  vitriolar  pelos  bedéis,  os 
pontos  mortos  1 


Observatório,  noile  sem  lua,  eslrellas,  e 
Coimbra  de  redor  toda  em  balões  venezianos. 
O  meu  martyrio  segue  n'um  criveiro  d'es- 
topadas  calhedraticas :  por  toda  a  parte  o 
lente  obseda-me  de  niaiseries  que  eu  não  pos- 
so crer  provenham  do  universilarismo  chocho 
que  domina  os  altos  estudos  d'esla  terra. Qua- 
zi  chego  apersuadir-me  que  os  de  talento  se 
afastaram  de  propósito,  deixando  a  cicero- 
nia  da  casa  aos  pataratas.  Depois  do  Alves 
de  Sousa,  nunca  o  crelinismo  scienlifico  re- 
entrara em  mim  com  um  tal  poder  de  em- 
bestação.  Ai  Dias  Ferreira!  offego,  oíTego, 
pensando  que  o  Rocha  Peixoto  —  segundo 
aslronomo,  como  elle  próprio  se  diz  — 
poderia  vir  repetir-me  as  provações  astro- 
nómicas porque  me  fez  passar  na  celebre 
noite.  Leia  na  Ordem  o  relato  d'essas  aven- 
turas e  perceberá  que  o  homem  não  con- 
tente de  talhar  para  si  um  papel  de  lente 
bi-concavo,  inda  por  cima  nos  veste,  a  mi- 


os    GATOS  27 

Ilha  mulher  e  a  mim,  sanbenitos  de  tolos  ca- 
ricatos. ^  Em6m  quando  conseguimos  fugir 
a  astrologia  dos  Peixolos  e  ouiros  pislosgas 
e  mágicos  dalmanack,  nossos  olhares  volta- 
dos para  o  rio,  poderam  ver  toda  a  feeria 

•  o  indigitado  auctor  d"este  rescripto  tem  carradas  c 
can-adas  de  razão.  As  informações  do  astrónomo  Pei- 
xoto á  Ordem,  sâo  d'mna  inconveniência  tanto  mais 
desacreditante  para  as  regias  pessoas,  quanto  maior  a 
lorpice  com  que  vem  stenographadas.  Em  cortezào 
bacoco,  Peixoto  astrónomo,  para  creditar  o  berreiro  que 
fez  á  entrada  dos  reis  no  observatório,  começa  por  pôr 
em  duvida  a  espontaneidade  das  outras  ovações,  e 
"...  pareceu-lhe  que  SS  MM.  nào  esperavam  aquella 
manifestação,  naturalmente  porque  nào  tinha  sido  com- 
binada, e  porque  não  foi  assim  a  da  estação  do  cami- 
nho de  ferro.  . . »  Nào  ha  como  um  innocente  para  pôr 
tudo  em  pratos  limpos  !  A  sublinhar  a  perspicácia  dos 
soberanos,  fal-o  com  a  surjjreza  de  quem  esperava 
achar  dois  palerminhas  «...  a  rainha  foi  para  a  va- 
randa da  rua  da  Trindade  e  á  sua  disposição  puz  logo 
a  melhor  luneta  terrestre,  de  que  se  serviu  repetidas 
vezes  para  observar  os  barcos  e  os  balões.  Como  a 
noite  estava  escura,  não  podia  distinguir  as  pessoas 
que  iam  nos  barcos,  e  assim  esteve  entretida  a  obser- 
var os  barcos  em  passeio  e  com  sensível  agrado.  Com 
uma  ligeira  indicação  que  tive  a  honra  de  fornecer-lhe 
para  o  uso  da  luneta,  scrviu-se  d'este  instrumento  com 
promptidão  e  habilidade,  que  admirei,  nem  foi  preciso 
acrescentar-lhe  eu  mais  indicações.-.  Está  a  gente  a 
ver  na  noite  escura  a  rainha  a  procurar  as  pessoas  dos 
barcos,  toda  contente  jior  nào  vêr  nada,  e  em  compen- 
sação saber  mecher  a  hmeta,  e  Peixoto  babando-se  pe- 
rante a  argúcia  com  que  a  pobre  senhora,  quanto  mais 
lhe  seguia  os  conselhos  no  tocante  á  mcchida  da  lu- 


28  OS    GATOS 

do  espectáculo  que  por  nosso  enfadonho 
mister  estávamos  prohibidos  de  gozar.  De 
cima  da  espécie  de  torreão  onde  estávamos 
presos,  era  para  todos  os  lados  uma  monta- 
nha de  tectos  e  ruellas,  fímbrias  de  luzes, 
clarões  de  chapa  viva  sobre  os  muros,  cima- 

neta,  tanto  menos  toscava  dos  pontos  perscrutados.» 
«Um  episodio  curioso,  ajunta  elle.  Lembrou-me  alguém 
(com  franqueza  não  sei  quem)  que  preparasse  a  luneta 
para  S.  M.  ver  e  a  acommodasse  á  sua  vista,  isto 
quando  expliquei  como  S.  M.  devia  fazer  para  poder 
vêr  bem,  quando  lhe  mostrei  um  botão  de  que  tinha  de 
servir-se  para  este  eflPeito,  o  que,  repito,  S.  M.  perce- 
beu e  logo  executou  com  notável  promptidào.  E'  claro 
que  eu  podia  dirigir  a  luneta  convenientemente,  como 
dirigi,  para  o  ponto  que  mais  importava  vèr-se  bem,  o 
que  logo  tinha  feito.  Mas  o  que  evidentemente  eu  não 
podia  fazer  era  acommodar  a  luneta  ao  olho  de  S.  M., 
como  pretendia  o  meu  officioso  iustructor.  A'  indica- 
ção d'este  sorriu-se  a  rainha,  e  perguntando  eu  então 
a  S.  M.  se  era  um  pouco  myope  ou  se  via  bem  á  dis- 
tancia normal,  respondeu-me  logo  que  bem  sabia  que 
só  ella  podia  acommodar  a  luneta  á  sua  vista.  Tive, 
como  devia,  o  cuidado  de  mover  eu  mesmo  lentamente 
o  botão  até  que  S.  M.  visse  bem  pela  luneta  5  e  depois, 
tendo  sido  por  vezes  desarranjada  a  luneta  de  que  se 
serviram  outras  pessoas,  foi  sempre  S.  M.  quem  a  di- 
rigiu para  os  barcos  e  a  acoramodou  aos  seus  olhos.» 
Este  segundo  astrónomo  é  de  cahir  !  Se  manusear  09 
astros  como  manusea  a  synthaxe,  deve  ter  descoberto 
muita  asneira  no  firmamento.  Razão  tinha  o  legista 
que  mandasse  os  professores  de  dez  em  dez  annos  pa- 
ra os  bancos  dos  rapazes,  que  sobre  crescerem  os 
chumbos  em  instrucçâo  primaria,  livrar-se-hiam  os  es- 
tabelecimentos do  Estado  d'estas  pestes. 


os    GATOS  29 

lhas  e  portaes  resahindo  a  carvão  de  man- 
chas claras,  e  assim  té  ao  cães  e  á  Porta- 
gem, donde  a  maré  popular  fazia  subir 
té  nós  os  marulhos  da  sua  especlação.  Além. 
dos  cães,  o  leito  d'areias  do  Mondego,  ris- 
cado pela  ponte  e  com  sua  regueira  d'agua 
banhando  os  choupos  da  margem  fronteiriça, 
o  leito  do  xMondego  eslendia-se  como  uma 
vala  commum,  da  Portella  ás  trevas  do  Chou- 
pal, aqui  e  além  pintalgado  de  tímidas  lu- 
zitas,  de  vagas  muzicatas,  e  instantâneos  me- 
teoros de  foguetes.  Em  Santa  Clara  e  S. 
Francisco,  repiques  de  sinos,  vozeios  de  pra- 
zer nos  bailaricos,  e  de  toda  a  banda  um 
cheiro  a  raça  voluptuosa  que  se  entrega, 
procurando  as  boscagens  para  as  cabra-ce- 
gas  do  amor,  ciosa  de  contados.  Você,  Dias 
Ferreira,  por  certo  não  perceberia  no  ar 
cl'estes  effluvios,  os  políticos  deixam  de  ser 
homens  muito  cedo;  mas  quando  inda  se 
não  fez  vinte  e  oito  annos,  seja-se  rei  ou  se- 
ja-se  cabreiro,  o  cheiro  da  femeína  errante 
em  noites  de  festa,  em  chmas  cálidos  como 
este,  o  cheiro  da  femeína  ou  alkaloide  se- 
xual da  fêmea  avulsa,  enfia  pela  mufla  d'um 
homem  e  enrasca-o,  co's  diabosl  se  elle  não 


30  OS    GATOS 

enfia  logo  a  rabo  d'uma  typa.  Confesso,  hou- 
ve um  momento  em  que  a  minha  vontade  foi 
amolgar  o  telescópio  na  carapinha  aérea  do 
Peixoto,  pôr  os  outros  sachristães  na  meri- 
diana  filar,  pelo  gasnete,  e  raspar-me  para 
a  pandiga  em  companhia  do  Mário,  de  cha- 
péu desabado  e  bocca  de  sino  a  dar  e  dar 
nos  tacões  de  prateleira.  Veria  você  se  o  rei- 
de  Portugal,  tão  calumniado  pelo  sobrece- 
nho  que  o  medalhão  da  vida  official  lhe  im- 
põe continuamente,  d'esta  vez  não  arranca- 
va ao  povo  das  praças  um  movimento  irre- 
sislivel  de  sympathia  e  de  calor,  como  ou- 
tr'ora  o  tio  Miguel  no  cercado  de  Muge,  pe- 
gando os  ardentes  bois  da  casa  Cadaval. 
Porque  a  verdade  é  esta,  vocês  querendo 
formar  um  rei,  tem-me  exposto  á  multidão 
como  um  pedante.  Com  a  idade  que  eu  le- 
nho, a  rigidez  que  me  impõem  só  é  natural 
em  jezuilas  e  hydrocephalos.  Mas  ouviram? 
eu  quero  molhar  os  pés,  já  disse,  quero  ir 
preso,  quero  deitar  pontas  de  charutos  nas 
chancas  dos  gallegos,  jogar  á  pancada,  pôr 
o  relógio  no  prego  e  apanhar  moléstias  de 
senhoras.  Reclamo  o  tirocinio  de  rapaz  que 
me  não  deram,  e  sem  o  qual  a  vida  adulta 


os    GATOS  31 

perde  o  sabor  eo  tom  d'experiencia.  Já  meia 
noite.  Esses  barcos  da  serenata  vem  ou  não 
vem  ?  Gomo  o  Mondego  não  leva  agua,  afi- 
xou a  municipalidade  um  edital,  dois  dias 
antes,  mandando  que  os  conimbricenses  fos- 
sem verter  as  suas  á  Lapa  dos  Esteios,  d'on- 
de  pelas  horas  da  serenata  as  soltariam,  por 
forma  a  produzirem  no  areal  um  simulacro- 
sinho  de  corrente.  Ora  é  meia  noite,  inda 
faltam  dois  litros,  e  ahi  ficamos  nós  á  espe- 
ra de  que  para  se  attingir  o  liquido  de  que 
os  barcos  precisam,  alguém  tenha  vontade! 
Não  vi  Coimbra  ao  luar.  Até  n'isso,  você, 
Dias  Ferreira,  é  desastrado.  Mas  deve  ser 
um  espectáculo  único  de  poesia  e  socego 
adormecido.  Ao  amanhecer  e  entardecer, 
que  serenidade  fina  a  da  paisagem  I  mesmo 
n'eslas  epochas  do  calor  a  bruma  paira,  e 
montes  e  arvores  tomam  travez  d*ella  uma 
tonalidade  gris  perle,  muito  doce.  As  tran- 
ças d'agua  deixam  os  barcos  vogar  com  uma 
uma  amorosa  complacência,  recolhem  as  la- 
vadeiras, vozes  apelam-se,  pequenos  luma- 
reus  para  a  ceia  dos  barqueiros,  e  vagas 
velas  quadradas,  em  guião  de  junco  chinez, 
vão  ao  de  manso,  rente  co's  chopos  e  sal- 


32  OS    GATOS 

gueiros,  perdendo-se  nas  sinuosidades  da 
oulra  margem  como  espectros  hydrophilos 
regressando  ás  grutas  das  ondinas.  Então  o 
coro  das  rãs  acorda  os  socegos  plácidos  das 
quintas  (minha  mulher  ateima  que  é  o  con- 
selho de  decanos  a  ensaiar  os  latins  para  a 
recepção  do  Bernardo  Ayres)  apellando-se 
d'umas  tribus  para  as  oairas,  a  bruma  es- 
pessa mais,  são  nuvens,  e  borrifos  de  chu- 
va enchem  o  ar  d'uma  frescura  hilariante. 
Sob  o  gaz,  a  cidade  parece  um  bocado  de 
Lisboa,  com  casas  braziíeiras,  azulejos,  sac- 
cadas  fundidas,  quartos  andares,  trapeiras  e 
policias. 

Tanto  os  monumentos  velhos  teem  no- 
breza, quanto  os  contemporâneos  suam 
chinfrinice.  Das  janellas  do  paço,  ao  acor- 
dar, todas  as  manhãs  nos  riamos  a  vêr,  fron- 
teiro, o  Pedro  Penedo  parado  a  meio  do  lar- 
go, tendo  o  Guimarães  Pedrosa  pela  mão. 
Só  hontem  o  funerareo  reitor  desvaneceu 
nossa  illusão,  dizendo  que  o  supposto  par  era 
um  monumento  académico  a  Camões,  figu- 
rando o  objecto  mais  alto  um  monolinlho,  e 
o  mais  pequeno  um  leão  de  bronze  sem  tes- 
tículos, que  symbohsará,  supponho,  a  aca- 


os    GATOS  33 

demia.  Isto  nos  leva  a  observar  qae  em 
Coimbra,  alcaçar  de  sciencia,  onde  a  moci- 
dade e  o  saber  ha  séculos  dominam,  nem 
d'uma  nem  d'oulra  coisa  ha  vesligios  d'ira- 
mortalidade  ou  tradição,  e  tudo  o  que  a  ci- 
dade possue  de  grande,  ou  traz  a  rubrica 
dos  frades  ou  traz  a  rubrica  dos  reis. 

Mercê  do  regimen  medieva!  que  ainda  im- 
pera, a  acção  do  professor  sobre  o  rapaz  é 
deprimente,  e  por  outro  lado  não  é  melhor 
a  do  rapaz  sobre  o  resto  da  população.  Coisa 
singular!  Com  três  mil  varões  das  famílias 
eleitas  do  paiz,  todos  na  edade  da  força  e 
da  saúde,  Coimbra  nem  sequer  é  um  posto 
de  padreação  seleccionada.  A  raça  indígena 
é  doentia  e  d'umaservilidade  medrosa  onde 
se  sente  o  despotismo  da  miséria  vivendo 
de  sobras:  nos  rostos  das  serventes,  lias,  fi- 
lhas e  irmãs  por  bastardia  dos  primeiros  no- 
mes das  classes  cultivadas,  os  raros  nimbos 
de  belleza  teem  a  gafal-os  a  escrófula  e  a 
anemia :  apenas  nas  mãos,  aqui  e  além,  si- 
gnaes  de  casta,  e  alguns  olhos  académicos, 
envergonhados  de  brilhar  em  rostos  de  des- 
calças. 


34  OS    GATOS 


Abalo  de  Coimbra  desesperado,  a  ceri- 
monia do  capello  acabou  de  m^esgotar  as 
forças  da  paciência:  uf!  basta  de  lauspe- 
rennes  cathedra ticos,  ou  a  hydrophobia  do 
latim  meprohibirá  de  tão  cedo  ir  ás  egrejas. 
Irra,  camellos,  que  é  muito  abusar  da  fé 
d'um  pobre  reil  A'  chegada,  Te-Deum,  latim; 
em  Santa  Cruz,  latim ;  latim  no  almoço  do 
bispo;  latim  na  abertura  do  tumulo  em 
Santa  Clara;  na  capella  da  Universidade, 
latim;  lalim  nocapello.lalim,  latim,  sempre 
latim  1  Até  me  fizeram  ler  uma  arenga  lati- 
na aos  doutoraes.  Devia  ter  dito  mais  bar- 
baridades que  o  Paulino,  mas  relevem-se-me 
as  sensaborias  oratórias,  primeiro  por  não 
serem  minhas,  segundo  por  eu  não  ter  ca- 
pello nem  borla,  implicando  responsabilida- 
des de  sábio  e  expositor.  Ha-de-me  ficar  de 
memoria  que  nas  minhas  relações  com  a 
Universidade,  não  fallou  um  só  professor 
sem  se  estender.  Pobre  Universidade  mor- 
ta I  Comprehendo  agora  porque  preferes  o 
latim  ás  linguas  vivas.  A  asneira  assim  não 
é  tão  accessivel,  e  a  própria  banalidade  to- 


os    GATOS  3:) 

ma  foros  de  profundeza.  Em  resumo,  Zé 
Dias,  o  meu  real  desagrado  tem  suspenso 
um  cutello  por  sobre  o  seu  pescoço.  A  sua 
cabeça  responde  pelo  insuccesso  d'esla  via- 
jata,  e  haverá  que  rolar  ignominosamente 
no  mesmo  decreto  em  que  eu,  demillindo-o, 
por  desprezo  mande  subir  o  José  Luciano  á 
presidência.  Porque  foi  você  o  incitador  e  o 
gerador  d'este  desastre,  Obrigou-me  a  ac- 
quiescer  na  vinda  a  Coimbra,  jurando  que 
se  acordara  tudo  sem  difficuldade  e  sem 
despeza,  e  pondo  a  jornada  como  um  sello 
de  reconciliação  entre  a  coroa  e  a  juventu- 
de estudiosa,  malquistadas  desde  as  primei- 
ras sarrafuscas  de  ha  três  annos.  Que  os 
rapazes  viriam  das  suas  terras  estender-me 
capas  no  caminho  I  Que  o  povo  me  beijaria 
as  roupas,  de  joelhos.  E  sem  exigir  mais 
obras,  Coimbra  emGm,  a  cúpida  estragada 
a  quem  nada  aproveita,  esportularia  dinhei- 
ro como  pródiga,  só  para  eu  ter  recebimen- 
los  de  Cezar  e  alelluias  de  deus  transfigu- 
rado. Gaio  na  arriosca  de  mais  uma  vez  l^er 
fé  na  solidez  das  suas  combinatas  ;  despre- 
venido e  ingénuo,  venho  por  ahi  fora  a  pen- 
sar nos  vivas  dos  rapazes,  a  antever  o  mar 


36  OS    GATOS 

de  cabeças  adolescentes,  a  febre  das  mãos 
rufando  palmas,  o  fogo  dos  olhos  felichisa- 
dos  a  um  aceno  do  meu  sceptro-pingalim  — 
e  de  solas  novas,  para  nào  sujar  as  capas 
estendidas.  4' minha  chegada  vem  as  auclo- 
ridades,  vem  os  bedéis,  vem  os  professores, 
vem  os  bombeiros,  vem  os  padres ;  tudo 
quanto  recebe  para  ser  fiel  ás  instituições. 
O  resto,  m(5Íla  I 

Por  consequência,  amigo  Zé  Dias,  faça 
as  suas  malas  para  se  pôr  ao  fresco  antes 
das  eleições .... 


FIALHO  DALMEIDA 


os  GATOS 


publicação 
d'inquerito  á  vida  PORTUGUEZA 


N.°46  — 21  de  Septembro  de  1892 


SUMMARIO 

Os  SYMBOLISTAS  E  DECADISTAS  CÁ  DE  CASA  ", 
CONSTATAÇÃO  DO  CARACTER  LITTERARIO  PELO  PAS- 
CIAS, HEREDITARIEDADE,  MEIO  SOCIAL  E  EDUCA- 
ÇÃO.  PrOVA-SÈ  a  LNCAPaCIDADE  DE  SEREM  OS 

PORTA-BANDEIRAS  DA  POESIA  DECADISTA,  E  COMO 
A  SUA  OBRA  NÃO  PASSA  d'uMA  IMITAÇÃO  GROS- 
SEIRA DOS  FRANCEZES. —  ARGUMENTO  MACARRO- 
NICO  d'uM  POEMA,  E  DISCUSSÃO  DAS  BASOFIAS  RE- 
VOLUCIONARIAS d'um  POETA. —  A  Epiphania  dos 
Licornes,  ou  contricçÃo  d'um  Figaro  que  se 
TORNOU  Basílio. — Génio  da  asneira  e  factu- 


n  os    GATOS 

RA  DE  REPUTAÇÕES  PELO  ESTROMBOTICO. OBS- 
CURIDADES E  CHATEZAS  NEPHELIBATAS. Dom 

Briolajija  .so6  as  côr  de  mosto,  mais  conhecida 

POR  COMPLICADAS  DECORAÇÕES  DE  LEGENDA  VE- 
LHA,— BeLLEZA  KiRIAL  DESTE  POEMA. EuGE- 

NIO  NAS  SUAS  JUSTAS  PROPORÇÕES. —  OaNDYSMO 

POÉTICO  d'Oliveira  Soares,  e  caracter  misti- 
ficador DO  Exame  de  consciência  e  Paraíso 
Perdido. — Intervém  uma  dama  com  piada. — 
Como  aos  vinte  annos  se  é  mystico,  revista 

DOS  travestis  do  auctor  p'rá  galeria 

Soares,  poeta  latino. —  Necessidades  d'e- 

MOÇÃO  NA  poesia  ;  A  LEI  DE  TyNDALL  SOBRE  O 

rythmo,  e  sensibilidades  peculiares  de  cada 

estado  poético. gomo  os  versejadores  ma- 

nuseam  a  rima  rica. o  que  é  a  rima  rica, 

seu  rapel  depressor  na  poesia  portugueza. 
—  Versos  sem  ideias,  e  grandíloquo,  pato- 
GNOMONico  d'idiotia. — Não  tenteis  comprehen- 
del-os,  E  QUE  vão  para  a  charrua. — Em  con- 
clusão. 


Os  symbolistas  e  decadistas  cá  de  casa 
são  uns  rapasinhos  joviaes  e  bem  portados, 
com  a  digestão  fácil,  a  alegria  prompla,  e  o 
coração  sujeito  a  um  tic-lac  de  que  nenhu- 
ma commoção  violenta  altera  o  rylhmo.  A 
sua  historia  pregressa  dá-lhes  um  socego 
de  vida  e  uma  benignidade  deducação  e  de 
leituras,  que  de  forma  alguma  predispõem 
á  nevropathia  seus  encephalos  d'adolescen- 
tes.  Isto  se  reconhece  na  maneira  melhodi- 
ca  com  que  elles  fazem  já,  sendo  tão  novos, 
suas  edições  d'obras  completas,  no  ideal  de 
conforto  burguez,  forrado  a  papel,  que  todos 
teem  da  vida  cívica,  na  forma  correcta  de 
vestir  e  d'aparlar  o  cabello,  e  até  na  calcu- 


4  OS    GATOS 

lada  arlificiosidade  com  que  aos  vinte  annos 
(a  edade  das  grandes  fomes  de  Verlaine,  e 
das  vagabundagens  de  Rimbaud  alravéz  de 
lodos  os  acasos  da  bohemia  mendicante  das 
velhas  cidades  de  França  e  d'Allemanha) 
elles  buscam  para  propalar  seus  nomes  uma 
eslravagancia  poética  que  os  ponha  em  foco 
nas  esquinas  da  apalhia  lilteraria  da  sua  ge- 
ração. 

Hereditariamente  nada  conteêm  tampou- 
co que  lhes  desequilibre  a  funcção  nervosa, 
ou  n'elles  sublinhe  sequer  laivos  de  vesânia 
d'onde  tarde  ou  cedo  venha  a  brotar  uma 
arte  detraquée.  São  filhos  de  lentes,  de  mé- 
dicos, de  proprietários,  a  quem  os  estudos 
profissionaes  não  prejudicaram  a  saúde  e 
a  descendência,  e  que  muito  embora  oc- 
cupando,  ou  tendo  occupado,  na  vida 
scientifica  ou  burocrática,  logares  distin- 
ctos,  comtudo  evitaram  sempre  queimar  a 
carcaça  no  auto-de-fé  dos  excessos  de  labor 
cerebral,  que  vicia  a  propagação,  e  tanta  vez 
faz  pagar  aos  filhos  as  dividas  physiologicas 
dos  pães.  Quem  os  encare  de  face,  a  san- 
gue frio,  logo  n'elles  reconhece  organismos 
de  saúde,  de  formato  pequeno  mas  relezo, 


os    GATOS  5 

caras  symelricas,  craneos  de  typo  tranqui- 
lisador  e  olhar  sereno,  e  mãos  tão  cuidadas, 
dedos  Ião  direitos,  movimentos  tão  pouco 
desconnexos,  impaciências  Ião  pouco  adun- 
cas, que  não  ha  duvidar  se  esteja  em  pre- 
sença de  seres  Íntegros,  bem  comidos  e  bem 
tratados,  d'intelligencias  conspicuas,  não 
creadoras,  senão  repetidoras,  d'artistas  emfim 
que  embora  aptos  para  fruir  na  arte  uma 
maneira  de  ser  própria,  jamais  conseguirão 
sahir  da  nobre  mediania  litteraria  que  o  ta- 
lento menstrua,  mas  onde  raro  o  génio  ma- 
cabro erriça  a  sua  careta  hiante  de  hypo- 
gripho. 

Também  a  sociedade  e  o  meio  onde  elles 
pairam,  a  geração  litteraria  onde  elles  se  fi- 
zeram, não  podiam  compolir-lhes  o  savoir 
faire  de  poetas  para  uma  corrente  d'inno- 
vadores  nephclibatas,  porquanto  nem  essa 
sociedade,  nem  essa  geração,  nem  esse  meio, 
limitados  e  tranquillos,  da  vida  universitária 
e  provincial,  podiam  trabalhal-os  por  forma 
a  desconjunctarem  o  justo  equilibrio  de  fa- 
culdades que  já  individualmente  assignei 
para  os  srs.  Eugénio  de  Castro,  Oliveira 
Soares  e  João  de  Castro. 


6  OS    GATOS 

De  feito,  que  sabem  esses  rapazolas  aos 
20 annos,  com  mezadas  de  familia,  cavaquei- 
ra amena  nas  republicas  escolásticas  da  alta, 
tricanas  prestes,  paysagens  remançosas,  lim- 
pidos  céus,  horisontes  mnsicaes,  e  por  toda 
a  parte  promessas  de  fortuna  e  silhuetas  de 
salgueiros  e  monumentos  históricos,  que  as 
baladas  do  rio  melancholisam,  as  guitarras 
e  as  troças  juvenescem  d'um  evohé  de  vida 
inberbe  —  que  sabem  elles  da  grande  vida 
marlyrisante  dos  que  não  podem  voar  por 
ter  de  pôr  todos  os  dias  a  panella  ao  lu- 
me, e  dos  que  tendo-se  feito  ura  nome,  re- 
bentam de  marlyrio  ignorado  para  o  levarem 
intacto  té  ao  frontespicio  d'um  livro  origi- 
nal ? 

Ingénuos  como  rapazinhos,  bêbedos  de 
petulantes  amanhãs  como  afilhados  das  on- 
dinas,  sem  necessidades  de  metal,  acordan- 
do ás  manhãs  co'o  habito  fresco  e  a  bocca 
sem  saburras,  não  sabendo  se  ha  fígado,  não 
sabendo  se  ha  talhos,  mercearias  e  pulhas 
que  a  gente  tem  de  subornar  para  ir  viven- 
do—  ignorando  por  cima,  os  felizes,  quan- 
tas humilhações  custa  aos  trinta  annos  d'um 
homem  fanado,  a  noite  d'amôr  que  uma 


os    GATOS  7 

crealura  gracil  vende,  a  quem  lh'a  pede,  em- 
bora na  divina  lingua  d'um  poela  grego  ou 
ílorenlinol  —  como  podiam  elles,  esses  sa- 
dios e  esses  mansos,  ser  os  portadores  das 
perversões  d'este  final  de  litteratura  pessi- 
mista, eroto-mystica,  inconfidente,  epilepti- 
sada  da  dôr  de  viver,  com  desejos  de  morte 
e  terrores  da  sepuUura,  vaidosa  e  pusilane, 
pregando  o  amor  sem  posse  e  violentando 
ao  mesmo  tempo  a  natureza,  nihilista  e  egoís- 
ta, hamlelica,  impulsiva,  escorrendo  luz  e 
escorrendo  pederastia  ?  1 


Claro  eslá  que  todas  as  fontes  da  dôr  mo- 
derna, incomprehendidas,  todos  os  seus  pro- 
fundos veios  d'inspiração  lhes  ficam,  por 
esse  tacto,  sonegados :  razão  porque  a  poe- 
sia dos  srs.  Castros  e  Soares  não  podia 
deixar  de  ser  o  que  é,  uma  imitação  dos 
defeitos  grosseiros  do  decadismo,  e  uma 
caricatura  ridicula  das  estravagancias  a  que 
alguns  symbolistas  malucos  teem  levado  em 
França  e  na  Bélgica  a  arte  de  cantar.  Não 
é  a  acuidade  evocativa  de  certas  imagens  e 


S  os    GATOS 

vocábulos,  nem  a  estranheza  hyslerica  de 
certos  estados  de  razão  ou  d'alma  que  os 
poetas  das  Horas,  do  Exame  de  consciência 
e  da  Alma  Posíhiima  mais  particularmen- 
te sugaram  dos  seus  modelos  francezes,  que 
equivaleria  isso  a  uma  identificação  moral  ab- 
soluta, cujo  primeiro  resultado  seria  sinceri- 
sar  a  arte  d'elles  té  aos  exiremos  d'uma  auto- 
biographia  ingénua  e  apaixonada. O  que  esses 
moçoilos  com  delicia  copiam  são  os  trucs,  as 
pochades  meio  arte,  meio  intrugice,  os  toni- 
troantes  vocábulos  de  significação  obscura, 
torcida,  fora  do  seu  lugar,  o  abuso  das  let- 
tras  maiúsculas,  e  a  alteração  proposital  em- 
fim  de  todas  as  regras  poéticas  que  possam 
pôr  a  metrificação  ao  abrigo  das  maluqueiras 
de  rapazes.Em  prosa  como  em  poesia,  o  sym- 
bolismo  d'elles  não  consiste,  como  Banville 
diz,  «em  nunca  ir  á  concepção  da  ideia  em 
si,»  mas  é  uma  serie  d'omissões,  inversões, 
deducções,  que  tiram  a  clareza  á  phrase,  á 
ideia  o  seu  declive  limpido  e  synthetico,  tor- 
nando a  litteratura  n'uma  espécie  de  palim- 
pséste,  meio  obsceno,  meio  religioso,  onde 
o  sentido  é  incomprehensivel  por  lhe  falta- 
rem palavras  pelo  meio.  Querem  uma  pro- 


os    GATOS  9 

va  ?  Ahi  vae  o  argumento  do  livro  Horas,  do 
sr.  Eugénio  de  Castro. 

«Silva  esotérica  para  os  Raros  apenas  : 

abertas  as  eclusas,  corvetas,  como  cathcdraes  flu- 
ctuantes,  seguindo  inéditos  itenerarios  por  atlânticos 
virgens ; 

«terraço  ladrilhado  de  cipolino  e  agatha,  por  onde  o 
Symbolo  passeia,  ai'chi-episcopal,  arrastando  flamman- 
te  simarra  bordada  de  Suggestòes,  que  se  alastra,  oleo- 
sa e  polychroma,  nas  lisonjas  ; 

«concerto  de  adequadas  musicas  implorativas  ou  mo- 
rosas, raro  estridentes ; 

•  complicadas  decorações  de  legenda  velha  mantelan- 
do  o  pudor  dos  episódios  simples ; 

«preces  d'um  hereje  arrependido,  votos  castos  d'iun 
antigo  libidinoso,  pesadelos  e  irreligiosas  hesitações 
d'um  recente  convertido  ; 

«Tal  a  obra  que  o  poeta  concebeu  longe  dos  bárba- 
ros, cujos  inscientes  apupos,  —  ai  nâo  é  de  esperar  — • 
n»o  lograrão  desvial-o  do  seu  nobre  e  altivo  desdém  de 
nephelibata. 

« E  se  Deus  todo  pocUroso  lhe  der  geuio  e  saúde, 
para  breve  novas  colheitas.» 

Claro  que  isto  não  é  prosa,  nem  program- 
ma,  nem  argumento,  nem  coisa  nenhuma ; 
é  uma  trapalhada  sem  nexo,  que  se  acredita 
concebida  longe  dos  bárbaros,  por  ter  sabi- 
do com  certeza  do  hospital  de  RilhafoUes. 
A  par  da  escriptura  macarronica,  ha  n*esla 
silva  p'ra  raros,  uma  altivez  de  tal  sanha  in- 
sulsa,  uma  pretensão  do  provar  do  fino  em 


10  os    GATOS 

tanta  maneira  solérte,  que  nem  Victor  Hugo 
nem  Junqueiro  jamais  do  alto  dos  seus  mon- 
tes escreveram  com  tão  chispantes  raios,  na 
taboa eterna, alei  mosaica  para  o  povo  prós- 
ternado  ao  de  redor.  E  nada  menos  do  que 
uma  poética  nova,  do  que  um  ideal  novo,  do 
que  uma  lingua,  uma  imaginação,  uma  eu- 
phonia  e  um  rythmo  inteiramente  inéditos  e 
desconhecidos  até  hoje,  o  que  alli  se  pro- 
mette  —  o  todo  sobrepujado  do  extasi  ceno- 
bitico  d'uma  alma  desilludida  da  carne,  e 
que  refugia  em  Deus  o  seu  terror  da  perfí- 
dia humana.  Enira-se  no  texto  da  obra,  após 
d'eslas  estridulas  promessas,  e  depara-se  o 
seguinte.  Na  Epiphania  dos  Licornes  (epi- 
phania  dos  hcornes  não  lembra  ao  diabo  1) 
uma  espécie  de  ladainha  em  que  as  remi- 
niscências d'orações  d'infancia  ennastram 
nas  parvoices,  e  em  que  pedaços  da  Ave- 
Maria  confinam  com  recuas  e  recuas  de  pa- 
lavras antigas,  postas  de  propósito  para  bo- 
qui-abrir  d'espanto  o  pobre  diabo,  e  com 
imagens  tiradas  de  leituras  e  factos  de  que 
o  sr.  Eugénio  de  Castro  nem  sempre  attin- 
giu  lucidamente  a  significação. 


os    GATOS  11 


Kyrie  cleison,  Christe  eleison, 
Lua  deitada,  marinheiro  a  pé, 
Lua  deitada,  marinheiro  a  pé, 
Kyrie  eleison,  Christe  eleison. 
Hoje  ha  banzé. 

«O  toda  vestida  de  Ihama,  e  luciolante  de  pedrarias, 
O  sempre  em  meio  das  sororaes  polyphonias 
Dos  burcelins,  das  mibelias  gementes,  das  violas, 
O  sempre  Insinuante  e  Cardeal  entre  os  turibulos  acce- 

sos, 
Derramadora  de  eucharisticas  esmolas, 
Estrella  dos  Mareantes,  das  Orphaudades  e  dos  Presos, 
Consoladora  dos  que  tombam  do  andaime 
Da  Illusão,  Santa  Maria,  Màe  de  Deus,  auxiliae-me ! 
«A  minha  Mocidade  tem  cabellos  brancos  : 
Sou  o  menino,  que,  uma  noite,  os  Saltimbancos 
Roubaram,  sou  o  Lis  á  janella  d'um  palácio  em  fogo, 
E  a  Noiva  Lilial  n'uma  casa  de  jogo. 

«Que  é  dos  idos  explendores  dos 
Soes  mortos  ;  noiva  dos  profanos  em 
relvas  de  pastoral,  vinhos  cascatan- 
tes,  horabros  nympliaes,  caravellas 
aurifl amantes  buscando  chymericas 
Américas  ? 


"Tive  puniceo  manto,  que  era,  no  chào,  puniceo  azeite  ; 

Adaga  temperada  de  Nurcmberg, 

Em  cujo  punho  uma  sai)hira,  entre  opalas  de  leite, 

Era  uma  tulipa  azul  em  Spitzberg. 

«Tive  falcões  e  falcoeiros, 

E  nas  de  por])hyro  varandas 

De  meu  castcllo,  arrabilciros 

Tocavam,  resplendentes  de  opalandas  ; 

Tive  castello  de  granito, 

Granito  rozeo  de  Syena, 


12  OS    GATOS 


Tive  taça  d'ambar  do  Egypto, 

E  colchão  d'eseolliida  pena  ; 

Tive  leito  de  faia  (tal  Salomão),  sob  cortinas 

D'aiireos  tissus,  onde  dormia  adur 

Geado  d'alvas  popelinas 

E  de  bordaduras  d'Assur  ; 

Auôes  em  seda  alva  de  jaspe, 

De  meu  eastello  no  átrio  mudo 

Sobre  as  lisonjas  de  diaspe, 

Erguiam  rios  de  velludo  ; 

Balsamyrrhando  o  manso  ar, 

Em  de  cobre  babylonicas  caçoilas. 

Fumegavam  rezinas  de  Madagáscar, 

Do  fogo  entre  as  ruiuas  cenoilas  ; 

N'um  celleiro  ladrilhado  de  sardonia 

Tive  tulhas  de  pedras  raras  : 

Turquezas  do  Cairo  e  da  Macedónia, 

Diamantes  frigidos,  sem  taras, 

Peridotes,  obsidianas, 

Kubis  de  Dgiamschid,  húmidos  de  siuopla, 

Sueiras,  esmeraldas  de  Juba,  cymophanas, 

Eozicléres  de  Yisapura,  jacinthos  de  Constantinopla. 

«Os  francezes  levaram-me  tudo:  a 
adaga  nurembergueza,  a  taça  d'am- 
bar  do  Egypto,  os  rubis  de  Dgiams- 
chid e  as  torquezas  da  Macedónia. 
Para  quando  o  armistício,  para 
quando  ? 

«Tive  um  parque  cheio  de  lagos 

E  de  cegonhas  brancas,  como  lythurgicas  pratas, 

Povoado  de  aromas  vagos. 

De  murmurancias  de  cascatas, 

E  de  figuras  de  basalto  ; 

Onde,  em  tanque  d'agatha,  um  hydro 

D'onyx  vomitava  alto 

Uma  girandola  de  vidro  ; 


os    GATOS  13 


E  onde,  soberbos  como  Núncios, 
Com  suas  caudas  d'oiro  ardente, 
Iam  pavòes,  sob  quincuncios 

De  rhododendros,  lentamente,  lentamente,  lentamen- 
te.. .  >* 


E  mais  além 


«    .  .Da  cidade  do  Mal  augmenta  o  estrépito 
N'uma  rubra  heiuoptysia  o  Sol  decrépito, 
Golfeja  sangue  pelo  ceo  grisalho   . . 
Thuribulo  da  tarde  um  lago  fuma, 
E,  na  sua  assumpção,  a  Lua  é  uma 
Branca  Primeira  Communhào  n'um  Talho  ! 


('Bárbaros  :  uma  Voz  de  setim 
branco  chamou  por  mim.  Todo  ves- 
tido de  linho,  vou  para  a  Torre  do 
Conceito  Puro.  Fui  o  Fraco  e  o  Ne- 
gligente e  o  Diamante  de  Golconda 
engastado  em  zinco  :  hoje  sou  o 
Beato  e  o  Mago.  Não  tenteis  cora- 
prehender-me  :  iião  me  comprehen- 
derieis.  Fazei  clangorar  o  olifante 
das  Paixões  ruins.  Serei  surdo.  E 
vinda  a  hora  muito  esperada,  do  li- 
vramento.» 


Hão-de  concordar  que  o  conjuncto  é  a 
mais  não  disparatado,  e  que  ha  razões  para 
se  contestar  a  mesma  bôa  fé  d'esta  poesia. 
Na  diversidão  dos  géneros  litterarios,  occu- 
pa  o  ver^o  já  um  tão  minúsculo  logar  que 
nâo  valeria  a  pena  fazer  passal-o  d'arle  a  um 


14  OS    GATOS 

jogo  de  paciência,  e  a  uma  habilidadesinha 
de  serão.  Porque,  enlendamo-nos.  Se  a  tal 
Epiphania  dos  Licornes  é  o  acto  de  conlric- 
ção  d'um  antigo  devasso  (Fraco  e  Negli- 
gente) qae  tendo  cedido  ao  peccado,  conser- 
vou todavia,  a  alma  luminosa  (diamante  de 
Golconda  engastado  em  zinco),  tornando-se 
pelo  arrependimento  e  exaltação  extática  em 
Maria,  no  Beato  e  no  Mago  que  vai  para  a 
Torre  do  Conceituo  Puro,  surdo  ao  olifante 
das  Paixões  Ruins,  deve  esse  threno  vir  tres- 
passado todo  da  emoção  do  acto,  e  conter 
em  si  o  reviramento  psychologico  que  de- 
terminou a  conversão  da  alma  do  poeta.  E 
essa  emoção  onde  estremece  ?  No  Kyrie  elei- 
son  da  lua  deitada  e  do  marinheiro  a  pé? 
Na  confissão  de  que  o  sr.  Castro  seja  a  noi- 
va lilial  n'uma  casa  de  jogo?  No  puniceo 
manto  que  era  no  chão  puniceo  azeite  ?  Nos 
arrabileiros  e  nos  anões  em  seda  alva  de 
jaspe? Nas  lisonjas  de  diaspe,  no  «fogo  en- 
tre as  «ruivas  cenoilas»  no  «para  quando  o 
armistício,  para  quando  ?»  no  hydro  vomi- 
tando a  girandola  de  vidro,  ou  na  lua  que 
lembra  ao  poeta  uma  primeira  branca  com- 
munhão  n'um  talho? 


os    GATOS  15 

Pois  não  se  eslá  vendo  que  n'estes  versos 
onde  palavras  de  cathecismo  se  misturam  a 
confissões  de  peccados  não  commeltidos,  e 
a  suggeslão  das  imagens  e  credos  deriva 
d'um  inconsciente  folhear  de  livros  de  rezas 
e  folhas  de  bonecos  da  coloriage  franceza 
d'Epinal,  não  se  está  vendo  que  n'esta  mi- 
chorfada  falta  completamente  o  sentimento,  e 
não  ha  uncção  nem  perversidade,  e  tudo  é 
feito  de  cor  para  fazer  o  incauto  dar  cavaco  ? 
Por  ventura  a  superabundância  de  descripti- 
vos,  com  seus  embutidos  estapafúrdios  de 
quincuncios,  licornos  e  olifantes,  não  lhes 
incutiu  já  a  suspeita  de  que  o  poeta  procura 
meterno  livro,  co'a  maior  somma  de  brilho, 
a  menor  somma  possivel  de  pensamento  ?  Es- 
ta poesia  dá-me  a  impressão  d'uns  meninos 
de  fraldinhas  húmidas,  a  quem  a  ama  en- 
sinou mal  as  orações,  que  elles  inda  por  ci- 
ma deformam  em  versos  errados,  cuidando 
rejuvenescer  com  isso  a  lei  de  Deus. 


Fica  entendido  entanto  que  não  é  o  deca- 
dismo  que  eu  vergasto — toda  a  forma  d'arte 


16  OS    GATOS 

é  viável  e  fecunda,  desde  que  seja  a  expres- 
são sincera  dum  momento  da  vida  —  mas 
certos  decadistas  francezes  demasiado  pre- 
ciosos para  serem  os  portadores  d'alguma 
ideia- mãe,  e  os  seus  macaqueadores  de  Por- 
tugal, demasiado  infantis  para  que  o  sorri- 
so publico  lhes  não  sublinhe  galhofeiramente 
as  farfalhadas.  Porque  eu  já  disse  :  a  deca- 
dência dos  srs.  Castro  e  Soares  não  lhes 
está  no  espirito,  na  lassidão  enervada,  na 
saciedade,  na  maladie  equivoque,  ou  na 
pregação  da  inutilidade  de  tudo,  como 
no  soneto  de  Verlaine  que  atraz  citei,  e  que 
é  toda  a  autopsia  d'uma  geração.  A  deca- 
dência está  simples  e  puerilmenle  em  certoR 
rebuscados  de  forma,  vicios  d'estructura 
grammalical,  e  obscuridades  de  glossário, 
que  são  o  que  os  mestres  francezes  teem  de 
mais  ridicuío  e  de  peor.  Lá  vem  por  exem- 
plo na  Epiphania  dos  Licornes,  o  verso  es- 
trebuchando em  melros  diversos,  a  fingir  que 
deita  sangue  pela  bocca  de  haver  feito  a 
volta  do  mundo  de  todos  os  ideaes;  lavem, 
entrecortando  series  de  quadras,  onde  as  ri- 
mas alternam  geralmente,  pequenos  períodos 
era   prosa  pretendendo  imitar  os  famosos 


os    GATOS  17 

versos  livres  que  a  Rimbaud  foram  suggeri- 
dos  pela  «prosa  poelica  ou  rythmada»  de 
Maria  Krysinska,  meio  termo  entre  o  verso 
e  a  prosa,  e  que  mais  parecem  rubrica  no 
poema  do  sr.  Eugénio  de  Castro,  do  que 
propriamente  litteratura,  accrescendo  que 
nem  lêem  estranho,  nem  originalidade,  nem 
préstimo ;  e  a  par  do  catholicismo  mystico 
que  não  é  de  modo  nenhum  factor  d'escola 
adstricto  ao  decadismo,  mas  um  caso  parti- 
cular de  Verlaine  que  os  poetas  de  cá 
trasladaram  para  a  sua  copia,  n'uma  garo- 
tada deplorável  d'irrespeilo ;  a  par  d'umas 
exhibições  de  passado  orgiaco,  inteiramente 
postiças,  e  onde  não  ha  amargura,  nem  blas- 
phemia,  nem  saudade,  porque  não  existiu, 
esse  passado,  apercebe  a  gente  nos  poetas, 
mencionadamente  no  sr.  Eugénio  de  Castro, 
outra  velleidade  ainda,  a  do  instnimentismo, 
que  é  como  já  disse  uma  tendência  para  fa- 
zer poesia  provocando  emoções  não  com  o 
sentido  das  palavras,  que  por  fim  é  abolido, 
mas  com  eíTeitos  de  sonoridade  na  maneira 
de  combinar  as  syllabas,  identificando  assim 
a  poesia  á  musica,  isto  é,  liquidando  d'uma 
vez  co'a  poesia,  o  que  deixa  realmente  os 


18  OS    GATOS 

poetas  n'Lima  apalhia  para  e  simples  déreis 
Lears  crelinos. 

O  poemeto  da  Dona  Briolanja,  espécie  de 
fryptico  em  parelhas  de  yersos,  onde  se  fi- 
gura uma  dama  aguardando,  ajaezada  de  ri- 
quezas, o  eleito,  que  alfim  a  leva  á  benção 
nupcial,  é  no  livro  do  sr.  Castro  um  descri- 
ptivo  de  côr  Riais  coherente,  e  que  máo  gra- 
do o  preciosismo  da  talha,  todavia  se  rece- 
be com  uma  porção  de  curiosidade  enterne- 
cida, prevenido  como  se  é  pelo  poeta,  á  por- 
ta do  poema,  de  como  este  seja  «complicadas 
decorações  de  legenda  velha  mantelando  o 
pudor  dos  episódios  simples.» 

(fDona  Briolanja  vai  com  suas  aias 
Sob  as  côr  de  mosto  vesperaes  olayas. 

Vae  com  suas  ais,  leva  fino  leque, 
Cauda  de  velludo  pallido  de  Utrecht. 

Leva  broche  aonde  sangra  uma  espinella, 
Pende-lhe  da  cinta  sonora  escarcella. 

Leva  anneis  de  cobre  com  aventurinas, 
Brincos  de  sueiras,  manto  de  agnelinas. 

Dona  Briolanja  vae  com  suas  aias 
Sob  as  côr  de  mosto  vesperaes  olayas... 

Dá  a  impressão  de  ter  sido   inspirado 


03    GATOS  19 

n'uma  illuminura,  bárbaro  e  ritual  como  el- 
la,  e  ressequido  e  ósseo  sob'as  pompas  das 
cores  e  a  artificiosa  decoração  das  palavras 
dos  chronicons. 

«Toda,  toda  branca,  toda  em  seda  branca, 
Sua  cauda  é  lácteo  tanque  que  se  estanca. 

Vae  ajoelhar-se  o  bi-anco  par  noivai 
N'uiii  de  rica  Ihama  rico  sitiai. 

Gemera  os  psalterios,  gemem  as  violas, 
Brilham  as  Casulas,  brilham  as  Estólas. 

Ciriaes  de  prata  luzem  sobre  o  altar, 
Thuribulos  d'oiro  dançam  pelo  ar. 

E  o  Bispo  arrastando  sua  rubra  capa 
Lança  aos  dois  esposos  a  benção  do  Papa.» 

Hemos  de  confessar  que  isto  é  bonito,  com 
kyries  de  ladainha  e  rythmos  de  bailada  : 
mas  sem  phantaslico,  d'um  estranho  posti- 
ço e  feito  de  propósito  para  enlarrecer  a  in- 
genuidade dos  leitores,  e  é  o  que  me  re- 
volta ! 

Sempre  porém  que  o  sr.  Eugénio  de  Castro 
se  resolve  a  abandonar  as  esquisitices  de 
glossário  e  as  comparações  de  matoide  em  de- 
manda de  celebreira,  o  poeta  que  fica  é  d'uma 


20  OS    GATOS 

infinita  graça  requintada,  jungindo  aos  mo- 
dernismos  mais  acres,  arcaísmos  cheios  de 
sabor  de  livros  velhos,  velhos  estofos,  velhos 
baixos  relevos,  por  onde  aqui  e  alem  bru- 
xuleia um  estrosinho  de  cândido  namorado, 
E'  este,  me  parece,  o  Eugénio  que  registra- 
rão para  a  historia  do  preciosismo  lyrico 
contemporâneo,  os  bibliophilos  solicitos  de 
minúsculo,  e  ahi  figurará  no  primeiro  soclo 
o  nome  do  meu  amigo,  a  quem  os  compul- 
sadores  censurarão  ter  sido  um  dos  mais 
incorrigiveis  mistificadores  da  sua  grei. 


Procuro  depois  nos  livros  do  sr.  Oliveira 
Soares,  caracterislicas,  siyos  com  que  descri- 
minar a  sua  poesia  entre  as  dos  Castros,  e 
á  proporção  que  o  leio  desvanece-se-me  o 
intento  de  o  pôr  em  oratório  como  patrono 
d'uma  arte  original.  Porque  tudo  nos  versos 
d'elle  se  funde  em  dandysmo  e  artificio,  e  á 
parte  uma  estravagancia  agradável  de  certos 
detalhes  postos  de  propósito  para  o  hrouhaha 
das  gentes  cândidas,  nenhuma  coisa  mais  ca- 
pta a  minha  alma,  des'que  a  emoção  estáau- 


os    GATOS  21 

sente  e  a  sinceridade  é  ponto  controverso. 
Exame  de  consciência  e  Paraíso  Perdido  sâo 
as  duas  espécies  de  smoking  d'uma  paixão 
experimental,  mandadas  fazer  ao  talhe  de 
cinla  e  hombros  d'uma  alma  irónica,  por  um 
costureiro  de  certa  habilidade.  Opoelacor- 
lou-os,  provou-os,  vesliu-os,  e  achando  que 
lhe  ficavam  bem.  já  não  quer  d'outros.  Livros 
modelados  pelos  de  meditações  dos  antigos 
ascetas,  onde  em  vez  de  Jesus  uma  mulher, 
e  cada  mcditnção  repetindo  as  lithanias  an- 
teriores por  oulras  palavras,  muitas  letlras 
maiúsculas  e  alguma  impertinência.  Certa 
dama  que  os  leu,  diz  lembrar-lhe  Soa- 
res um  rapaz  que  depois  d'um  namoro 
infeliz,  ficasse  tonto.  E'  formular  a  obsessão 
do  poeta  em  forma  de  chasco,  mas  verdade 
que  se  não  chega  a  fazer  d'esse  amor, 
por  aquelles  livros,  uma  ideia  lá  muito  in- 
teressante. Em  primeiro  logar  a  figura  da 
dama  não  sahe  nitidamente  das  muitíssimas 
raridades  que  o  poeta  confusa  e  aristocrati- 
camente lhe  atlribue.  Mesmo  considerando 
esse  vulto  apenas  como  synthese  do  femini- 
no eterno  condensado,  as  coisas  que  o  sr. 
Oliveira  Soares  divulga  d'elle5  das  suas  mãos, 


22  OS    GATOS 

dos  seus  vestidos,  da  sua  belleza  e  da  sua 
raça,  são  tão  vagas  e  externas  que  não  ha 
meio  de  descobrir  por  sob  os  véus  da  múmia 
o  principio  intelligente  que  despertou  no  sr. 
Oliveira  Soares  Ião  grande  amor.  Ora  preci- 
samente esse  principio  é  que  daria  o  fer- 
mento dramático  do  livro,  não  exclusivamen- 
te por  si,  mas  nas  cambiantes  psychicas  que 
a  sua  affectividade  acordasse  no  espirito  do 
cantor.  Em  segundo  logar,  des'que  no  Exa- 
me  de  consciência  e  Paraiso  Perdido  a  alma 
d^ella  está  ausente,  o  poeta,  esfriado  da  exa- 
cerbação que  no  homem  amante  causa 
sempre  o  farisco  da  mulher  amada,  em 
vez  d'acciisar  nos  seus  versos  os  ardores 
d'uma  imaginação  viril,  ébria  de  vida,  o  que 
faz  é  atirar  novenas  para  o  vácuo,  psalmo- 
diar  misereres  sobre  o  cadáver  d'uma  paro- 
dia de  paixão;  e  n'este  conjuncto  de  ladai- 
nhas monótonas,  d'uma  religiosidade  chei- 
rando ainda  aos  desinfectantes  da  fronteira, 
n*este  breviário  da  insensibilidade  gommo- 
sa,  travestida  de  levita,  julgou  o  auclor 
ter  dado  a  nota  do  irreparável  moder- 
no, que  desestriba  o  amor  do  «contacto 
das  mucosas»,  tão  somente  admittindo  nu- 


os    GATOS  23 

peias  d'almas,  e  enlevos  mysticos  semelhan- 
tes aos  que  fr.  Thomé  de  Jesus  linha  pela 
Virgem,  nas  suas  noites  de  monge  mutila- 
do. A  impressão  que  me  produzem  os  ver- 
sos do  sr.  Oliveira  Soares  é  a  d'um  discí- 
pulo do  Conservatório  fazendo  as  suas  pro- 
vas de  galã  de  joelhos  aos  pés  d'um  mane- 
quim. A  dicção  é  lalvez  elegante,  a  figura 
distincla,  a  voz  de  boa  agua :  porem  a  cada 
passo  reflecte- se-lhe  no  jogo  o  manequim 
que  elle  invectiva,  de  sorte  que  não  ha  meio 
d'abstrahir  o  actor,  da  peça  declamada.  O 
catholicismo  é  também  ou  Ira  mistificação 
em  voga  n'este  grupo,  e  despega-se-lhe  dos 
versos  apenas  raspada  a  crosta  exterior. 
Frizei  a  insocíabilidade  entre  as  caracterisli- 
cas  dos  temperamentos  lillerarios  contempo- 
râneos \  e  nos  nossos  cephehbalas  vemol-a 
revestir  um  typo  d'insoluncia  que  é  o  exa- 
gero do  orgulho  infantil  ao  apropriar  senti- 
mentos que  não  peza.  De  feito,  não  tendo 
os  Ires  poetas  de  quem  fallo,  signal  algum 
do  génio  degenerativo,  decorrendo-lhes  a  vi- 
da plácida  e  o  ambiente  iniellectivo  pouco 

1  Gatos,  n.°  43,  pag.  20. 


24  OS    GATOS 

hostil,  escrevendo  elles  livros  medíocres  e 
sendo  apenas  uns  neuraslhenicos  simu- 
lados, aqnella  insociabilidade  não  pode  ser 
senão  resultado  do  mimo,  e  por  forma  alguma 
consciência  da  auctoria  d'uma  obra  incom- 
prehendida  e  superior.  Existe  n'elles,  vê-se, 
determinada  porém  por  moveis  pueris ;  e 
existindo,  como  harmonisal-a  então  com  o 
sentimento  religioso,  desde  que  a  religião  é 
um  sociomorpliismo  cósmico,  com  a  socia- 
bilidade por  laço  aglutinativo  do  homem  ás 
forças  do  universo,  ao  universo  depois,  e  ao 
seu  principio  ? 

A  origem  de  toda  a  religião  é  o  desejo  ; 
sem  necessidades  não  haveria  deuzes,  e  co- 
mo as  potencias  de  quem  dependemos  se 
chamam  divindades,  incluiu  o  artista  entre 
as  mais  prestigiosas,  a  mulher.  Porém  a 
mulher  fonte  da  vida,  vaso  das  gerações, 
fecunda  no  riso  como  no  amplexo  — jamais 
a  virgem  perpetua,  a  solteirona  recusando  o 
flanco  á  perpetuidade  das  raças,  symbolo 
estéril  da  invalidez  dos  seres  tresviados  do 
papel  para  que  a  natureza  os  foi  formando. 
Renovar  o  culto  mórbido  dos  ascetas  á  fê- 
mea intangivel,  á  fêmea  insexual,   mesmo 


os    GATOS  25 

sob  perfumarias  de  dandysmo  e  o  docel 
d'um  ideal  d'amor  transfigurado,  alem  de 
me  parecer  uma  monstruosidade  indigna 
de  homens  validos,  nem  sequer  para  o  caso 
subjeito  tressua  o  encanto  da  penitencia,, 
porquanto  os  nephelibatas  do  meu  conto  são 
gozadores  da  vida  até  á  olheira,  e  a  respeito 
de  crenças,  baul  baul  troçariam  Jesus  se 
elle  voltasse. 

Emfim  o  myslicismo  do  sr.  Oliveira  Soares 
ainda  podia  ser  um  embuste  sem  raiz  senti- 
mental n'um  coração  com  sopros  d'agonia, 
e  a  sua  obra  poética  permanecer  bella  ape- 
zar  d'isso,  perfeita  e  plástica  como  um  baixo 
relevo  historiado  ao  deredord'um  typo  d'in- 
sensivel.  Infelizmente  nem  esse  consolo  fica 
no  enxoval  do  noivo  mystico,  cujos  lithanias 
por  vezes  se  estafam  em  circumloquios  fas- 
tidiosos, e  levam  a  excentricidade  a  porem 
em  rima  os  latins  do  Palito  métrico: 


«...Et  floridas  Hymnus  virtutis,^ 
Cansa  laetitiae  Juventiitis, 
Sinas  dalcissirnus   salatis...» 


Pela  physiologia  se  sabe  que  a  lingua 
rylhmica  do  verso,  cujo  fim  é  exprimir  emo- 


26  OS    GATOS 

ções  antes  de  ludo,  lera  a  mesma  emoção 
por  causa  prima.  Tudo  em  nós  se  rythmisa 
sob  a  influencia  de  sentimentos  dominado- 
res :  rythmisa-se  o  gesto,  rythmisa-se  a  vóz, 
rythmisa- se  o  pensamento,  porque  a  diffu- 
são  nervosa  espargindo  a  excitação  mental 
travez  dos  membros,  confirma  a  lei  de  Tyn- 
dall  e  Spencer,  segundo  a  qual  toda  a  agi- 
tação é  transformada  em  movimento  ondula- 
tório regular.  A  cada  estado  de  sensibilidade 
deve  então  corresponder  uma  vóz  do  espirito 
poético  em  acção  —  versos  pallidos  quando 
a  emoção  é  nulla,  cheios  de  harmonia  quan- 
do o  sentimento  é  forte  e  caloroso,  ^  e  estas 
impressões  pela  lei  do  contagio  sympathico 
voam  do  verso,  promovendo  estados  d'alma 
idênticos  entre  o  poeta  e  o  seu  leitor.  Nos 
versejadores  fatigados  ou  insensíveis,  a  emo- 
ção que  é  impossivel  produzir  pelo  senti- 
mento, tentam  suppril-a  por  via  d'excitantes 
e  artifícios  (o  papel  das  especiarias  nas  comi- 
das sem  sustancia  nem  tempero)  e  vem  o  caso 
dos  nephelibatas  explorando  a  ênfase,  os 

1  «On  pourrait  definir  le  vers   ideal:  la  forme  qm 
md  á  prendre  toute  pensée  émue.» 

M.  GCTAU. 


os    GATOS  27 

epilhetos  eslrombolicos,  as  imagens  archi- 
destemperadas,  e  a  intrujice  da  incompre- 
hensibilidade  edas  letlras  maiúsculas  a  que 
me  vim  referindo  mais  atraz.  Entre  estes 
apperitivos  destaca  principalmente  a  rima 
rica,  já  explorada  pelo  romantismo,  e  cada 
vez  mais  em  voga  para  mascarar  cretini- 
sações  de  pensamento. 

Scientificamente  a  rima  não  passa  do  meio 
de  tornar  sensível  o  fecho  do  verso ;  tem  na 
poesia  um  papel  portanto  limitado,  embora 
poetas  d'ella  se  valham  como  dos  alcatruzes 
d'uma  nora,  para  lhe  sorver  pelos  furos  a 
inspiração.  Se  íazendo-a  exhorbilar  d'esta 
medida,  admiltirmos  a  escamoteação  da 
rima  rica,  iremos  dar  a  um  pormenor  rela- 
tivamente banal  da  poesia,  valores  que  só 
podem  deslumbrar  ouvidos  rudes,  e  assim 
terá  retrocedido  a  arte,  de  qualro  séculos,  ao 
tempo  em  que  o  publico  ainda  physiologi- 
camente  inhabil  para  a  percepção  do  hiatus, 
se  comprazia  na  repetição  dos  mesmos  sons 
acompanhada  de  diíTerença  de  sentidos.  A 
poesia  ficará  pois  reduzida,  co'a  rima  rica, 
como  Banvilie  diz,  a  «uma  serie  de  harmo- 
niosos calembúrs»,  e  calcula-se  o  que  fica- 


28  OS    GATOS 

ria  d'ella  abatendo  da  pouquíssima  impor- 
tância que  já  tem  no  nosso  século,  a  deses- 
tima em  que  necessariamente  cahirá  se  os 
poetas  liquidarem  exclusivamunte  em  rima- 
dores.  Por  desgraça  é  esta  a  tendência  qua- 
zi  geral  dos  portuguezes,  e  o  primeiro  si- 
gnal  de  decomposição  d'uma  reviviscencia 
em  que  ha  dez  annos  muitas  pessoas  che- 
garam a  ter  fé. 

Os  eíTeitos  depressores  da  rima  rica,  ou 
substituição  da  ideia  por  aventuras  conti- 
gentes do  mero  encontro  dos  sons,  esmiu- 
çar-se-hão  melhor  pensando  no  seguinte : 
!.•  —  nos  poetas  a  exagerada  procura  da 
rima  vem  a  tocar  com  o  tempo  as  raias  da 
mania,  e  d'esse  instante  não  verão  elles  no 
verso  mais  que  pretextos  para  jogos  mala- 
bares. Consequências :  a  impossibilidade  re- 
mota ou  próxima  de  desdobrar  rigorosa  e  lo- 
gicamente o  fio  do  pensamento;  desordens 
psychicas  vedando  ao  artista  todos  as  leis 
d'associação  d'ideias ;  dispersão  das  facul- 
dades creadores,  perda  do  sentimento  da 
côr  e  da  proporção,  e  esgoto  final  por  um 
processo  mechanico  ou  glu-glu  continuo  de 
palavras  cantantes,  medeante  o  qual  apõe- 


os    GATOS  29 

sia  acabará  por  se  tornar  n'uma  esgalhada 
(i'estravagantes  bugigangas.  Oaristos,  Horas, 
Exame  de  Consciência,  Alma  Posthuma,  Bí- 
blia do  Sonho,  Só,  Livro  d'Aglais,  etc,  lo- 
dos os  nfiodernos  estão  cheios  d'eslas  ape- 
lintradas  lafularias,  signaes  de  miséria  es- 
tanque com  que  os  mendigos  doidos  embru- 
lhados na  coberta  da  cama  julgam  fazer-se 
passar  por  imperadores.  2." — eliminada  do 
verso,  pelo  escamoteio  da  rima  rica,  a  ex- 
pressão concisa  e  lapidar  do  pensamento,  não 
só  o  poeta  desaprende  de  pensar,  como  de 
fallar:  o  pensamento  incha,  diz  Guyau,  e 
distende-se  o  palanfrorio  de  verso  em  ver- 
so, té  deparar  a  rima  exótica  que  se  procu- 
ra. Começam  então  os  saltos  mortaes  na  cor- 
da da  metaphora  e  da  periphrase,  os  inci- 
dentes deslocando  a  nitidez  das  linhas  mães 
da  composição,  o  relay  paper  do  pitoresco 
em  galopados  d'estravagancia  atravez  dos 
cérebros  vasios. 

A's  hypertrophias  de  linguagem  succede 
o  adelgaçamento  da  ideia  e  a  aniquilação 
gradual  do  sentimento.  Poeta  morto  em  con- 
clusão. O  próprio  azialismo  da  rima  acaba 
por  lhes  reduzir  e  empobrecer  o  vocabula- 


30  OS    GATOS 

rio,  que  é  já  por  fim  um  moinho  de  musica 
trazendo  ao  ouvido  do  leitor  os  mesmos  so- 
los. Querem  exemplos  ?  Vão  aos  chamados 
poetas  tropicaes,  e  ali  encontrarão  rimas  de 
tal  maneira  uniformes,  que  notadas  duas  ou 
Ires,  adevinham-se  logo  as  outras,  n'uma 
invariável  successão  de  zig-zagues. 

Desnorteados  em  plena  charneca  árida 
d'uma  arte  sem  ideaes,  nem  seivas,  nem  phi- 
losophia  nem  encanto,  d'uma  arte  que  elles 
não  crearam  nem  sentiram,  esses  rapazes 
quando  a  consciência  os  saccode  n'um  vis- 
lumbre mais  lúcido,  lançando -lhes  em  ros- 
to a  estúpida  farça  a  que  se  prestam,  esses 
rapazes  para  esconder  a  litubiação  apodam- 
nos  de  bárbaros,  dão-se  altitudes  myslerio- 
sas,  chamarrados  de  tilulos  agaçantes.  Não 
tentei  comprehender-me ;  não  me  comprehen- 
derieis!  E  o  caso  é  que  o  publico  embatuca 
e  não  tem  coragem  para  lhes  chamar  char- 
latães. 

Bem  ao  contrario,  é  n'esse  momento  que 
a  critica  porlugueza  começa  a  achal-os  re- 
volucionários e  verdadeiramente  criginaes. 
Veda-lhes  a  paralysia  psychica  lucidez  verbal 
para  um  conceito  ?  Aos  alinhaves  de  phra- 


os    GATOS  3Í 

ses  insulsas  dão  o  nome  de  symbolos,  e  es- 
tá promptoí  A  verborrhragia  força-os  a  pala- 
vrear a  esmo  inarticulados  glus-glus  de  pa- 
vões vaidosos?  Ghamam-se  então  promposa- 
mente  instrumentistas,  e  cada  uma  d*estas 
incapacidades  origina  por  seu  turno  um  mo- 
vimento poético,  que  segue  o  seu  caminho  e 
fez  aíieptos.  Ha  bestas  p'ra  tudol  No  entre- 
tanto os  chefes  permanecem  rigidos  e  mitra- 
dos  nas  hsonjas,  onde  se  arrastam  oleosos 
e  polychromos,  com  as  puniceos  mantos,  os 
qnincuncios  e  as  noivas  espirituaes  das  suas 
almas  viuvas.  Teem  uma  coiza  boa,  não  que- 
rem agradar,  nem  ser  comprehendidos,  e  só 
escrevem  versos  para  os  raros.  Alguma  vèz, 
vendo  a  maneira  como  se  esgatanham  uns 
aos  outros,  como  se  descriminam  em  seitas, 
se  disputam  o  báculo  primaz  do  movimtnto 
poético  iniciado,  e  a  respeito  de  si  próprios 
escrevem,  com  diferentes  pseudonymos,  gro- 
zas  sem  fim  d'arligos  laudatorios,  alguma  vez 
poderia  parecer  que  elles  fossem  gajos  sabi- 
dos na  vidinha,  cultivando  o  reclame  como 
o  Fonseca  das  cautellas;  jamais  nephelibalas 
isolados  na  nuvem,  como  deuzes.  Mas  é  enga- 
no ;  o  que  elles  pretendem  não  é  chocalhar- 


32  OS    GATOS 

se  á  aura  publica,  senão  conseguir  que  as 
suas  doutrinas  vinguem,  chegado  ao  que  tor- 
narão á  obscuridade  honestamentCc  Pois  que 
sobre  myslicos  são  ao  mesmo  tempo  mon- 
ges do  silencio,cumpra-se  o  fado — não  se  íal- 
le  mais  na  sua  obra.  Este  irá  para  a  torre 
do  Conceito  Puro,  aqueíle  para  o  tumulo  gla- 
cial do  seu  desprezo  altivo.  Não  tentemos  com- 
prehe?idel-os,  não  os  comprehenderiamos. Quem 
vae,  vae,  quem  está,  está. 


^  ^ 


FIALHO   DALMEIDA 


OS  GATOS 

publicação 
d'inquerito  á  vida  portugueza 


N.°47  — 5deODtDÍ)rodei892 


SUMMARIO 

Corridas  de  toiros  no  Campo  Pequeno: 

ESTADO    DO    TOUREIO     NACIONAL. FaLTA     DE 

toiros  e  falta  de  toureiros  ;  razões. o  que 

rksta  do  antigo  bandarilheiro  portuguez. 

Necessidade  de  contractar  hespanhoes  parà 

TODAS    as    corridas,    E    INFLUENCIA  DA  ESCOLA 

HESPANHOLA  SOBRE  OS  NOSSOS  ARTISTAS. Su- 

BIDA  DE  NÍVEL  DO  TOUREIO  :  ABAIXO  AS  PEGAS, 
VIVA  A  SORTE  d'eSPADA  !  As  FERRAS  DE  GA- 
DO, ESCOLA  d'aTLETAS. MoRTE  DO  TOIRO  CO- 
MO REMATE  HERÓICO  DO  TOUREIO. ReDONDEL 

DO  Campo  Pequeno,  exterior  enganoso,  mi- 
séria   CHINFRIM    DA    DECORAÇÃO. PlPEL    DA 

MULITDÃO    nas  CORRIDAS  DE    TOIROS.  CaMA- 

rotes,  mulheres  e  toilettes. — Se  haverá  uma 


n  os    GATOS 

REPARTIÇÃO  TECHNICA  E  ARTÍSTICA  NA    CaMARA 

Municipal,  e  para  que  se  lhe  paga? — Como 
os  frequentadores  da  tourada  lisboeta  não 

DÃO  MANCHA,  E   NECESSIDADE  DE    RESTABELECER 

OS  PICTORESCOS  TRAJOS  NACIONAES. InYASÃO 

HESPANHOLA  NAS    CASAS    D*ESPÉCTACULO. Um 

ARTIGO  FEROZ  DO  Imparciãi — António  Viço 

NO  GyMNASIO  :  PHYSIONOMIA  do  ACTOR  EM  VIL- 
LEGIATURA,  E   ARTE    DE    BEM    REPRESENTAR  SEM 

RECURSOS  PHYSICOS. DRAMATURGIA  PREDILECTA 

DE  ViCO  :  O  MELODRAMA  HESPANHOL,  ESPOLIO  DO 
ROMANTISMO.  — EcHEGARAY,  ESCRIPTOR  GENIAL 
E  EMPANTURRADO. CaRACTER  ORATÓRIO  DA  SUA 

OBRA.  — Mala  Raza,  obra  prima  do  theatro 

MODERNO. — Intuição  dramática  de  Viço,  es- 
crupuloso caracter  das  suas  figuras. — A 
corte  diverte-se.  —  Em  Cintra,  gralhada 

DE  PEGAS  SOBRE  0  ENGANO  d'uM  VÍS-á-VÍS. O 

BAILE  FeTRE  E  a  FALTA  DE  DECORO. —  CoMO  O 
ADMINISTRADOR  DE  CaSCAES  EXPULSOU  QUAREN- 
TA HESPANHOLAS  DOS  SEUS  DOMÍNIOS. AMAZO- 
NAS    PORTUGUEZAS  TRIUMPHANTES. AsSEDIOS 

MONARCHICOS  MOTIVADOS  POR  AQUELLA  EXPULSÃO. 
CaSCAES  de  LUCTO,  NOITES  DE  THEDIO  E  FAL- 
TAS DE  CARAMBA. PrOGNOSTICA-SE  O  REGRES- 
SO DAS  TRONCAS  EM  OITO  DIAS. —  CoNCLUSÃO, 


Í7  de  septemhro. 

A  paixão  das  touradas  acaba  de  soffrer 
em  Lisboa  uma  recrudescência  aguda  desde 
que  se  inaugurou  no  Campo  Pequeno  o  no- 
vo circo.  Em  velhos  e  novos  crepila  o  phre- 
nesi  d'esse  velho  torneio  tão  historicamente 
ligado  aos  regozijos  nacionaes,  e  uma  onda 
de  sangue  forle,  Irúzida  da  consciência  ar- 
dente da  raça,  de  novo  remeche  no  sentido 
do  toureio  os  antigos  Ímpetos  viris  do  povo 
porliigupz. 

Embalde  alguns  preciosos  faniquenlos,lo- 
mando  por  bondade  d'indolf^,  cachexias  pas- 
sivas de  caracter,   embalde  elles  tentaram 


4  OS    GATOS 

pregar  a  selvageria  das  toiradas,  explicando 
o  enlhusiasmo  geral  por  ferocidade  d'instin- 
ctos,  e  sentimentalisando  o  boi  com  litha- 
nias  românticas  de  chóchinhas.  Todas  as 
almas  foram  surdas  á  mariqueria  d'esses 
bóias,  e  ás  invectivas  d'elles  pedindo  a  pro- 
hibiçâo  das  corridas  e  a  prorogaçãoao  toiro 
das  regalias  que  a  Carta  Constitucional  ga- 
rante ao  homem,  um  desusado  clamor  fre- 
meu  das  boccas,  e  as  trinta  e  sete  praças  de 
Portugal  oncheram-se  de  gente,  a  acclamar 
fora  de  si  toiros  e  toureiros. 

De  sorte  que  o  veredicto  publico  está  pro- 
nunciado, e  a  corrente  avoluma-se,  inutili- 
sando  despedaçadoramente  as  ultimas  bar- 
reiras. ()  povo  portuguez  dispensa  escolas, 
jardins  d'acclimação,  industrias  d'arte,  go* 
vernos  sábios  e  géneros  baratos ;  não  está 
porém  resolvido  a  privar-se  de  toiradas,  e 
haverão  que  fazer-lhe  a  vontade,  e  que  aper- 
feiçoar quanto  pos?ivel  o  exercício  do  único 
^ort  que  lhe  faz  bater  o  coração. 

Assente  pois  que  os  toiros  sejam  a  diver- 
são que  mais  ebulliciona  o  sangue  peninsu- 
lar, e  que  todas  as  tentativas  de  substituil-a 
ou  attenual-a  tenham  de  resvalar  na  violen- 


os    GATOS  5 

cia  dos  apupos,  vejamos  um  pouco  o  estado 
actual  do  toureio  poituguez.  E'  deplorável, 
no  respeitante  a  toiros  e  a  toureiros.  Pro- 
priamente toiros,  quasi  que  não  existem  no 
paiz,  onde  nos  últimos  sessenta  annos  a  rez 
brava  tem  amoUecido  quasi  tão  depressa 
como  o  homem. 

Alguma  que  aindr  nos  nossos  circos,  ar- 
ranca, fal-o  por  favor  especial  ao  nosso  Bo- 
tas, mas  em  arremedo  apenas,  e  logo  pedindo 
desculpa  ao  toureador,  se  o  oíTendeu.  Todas 
as  formuzuras  do  antigo  toiro  indomável,  da 
fera  clássica,  insensivel  ao  cança»;o,  magni- 
fica de  chispa,  veloz  como  o  relâmpago,  cor- 
pulenta 6  bufando  a  fúria  em  primorosissi- 
mas  investidas :  lodos  os  altributos  antigos 
do  boi  estampa,  fixando  a  musculatura,  a  li- 
geireza, a  synieiria  lyrica  dos  cornos,  a  ana- 
tomia do  pé  e  a  elasticidade  do  espinhaço, 
hoje  estão  regressando  á  fealdade  palurdia 
das  raças  domesticadas,  ao  burguczismo 
chato  do  boi  servil,  do  boi  de  charrua,  com 
ideias  conservadoras,  educado  no  collegio  de 
Campolide,  irresoluto,  esbofante,  que  acceita 
a  farpa  parado,  e  finge  de  terrivel  raspando 
com  a  ponta  da  sapata  o  chão    da  arena. 


6  OS    GATOS 

As  causas  d'cste  abastardamento,  são  diver- 
sas, e  entre  as  principaes  deve  contar-se  a 
estupidez  do  ganadeiro,  que  pouco  a  pouco 
destruiu  a  selecção  natural  pela  mistura  de 
sangues  conspurcados,  e  baixou  o  toiro  a 
pastagens  atravessadas  por  muita  gente,  fa- 
miliarisando  desfarte  a  rez  com  o  homem. 
e  amollecendo  portanto  aquella  para  a  lide, 
Pelo  que  respeita  a  toureiros,  aparte  al- 
guns novos,  de  cavallo,  o  resto  são  curiosos 
sem  experiência  nem  vocação  para  o  tras- 
leio,  princípios  d'artista  esticados  pela  li- 
sonja na  monotonia  dos  primeiros  passes, 
ou  esqueletos  d'antigas  mediocridades  arvo- 
radas em  glorias  da  arena  por  mercê  da 
ignorância  dos  modernos.  A  esta  lazeira  das 
quadrilhas  se  attribuirá  t.imbem  o  abastar- 
damento dos  bois  bravos,  porque  os  maus 
toureiros  por  via  de  regra  são  poltrões,  e  por 
força  hão-de  preferir  a  bichos  indomáveis, 
os  anemicos  boisinhos  de  cartão  que  por  to- 
das as  nossas  praças  temos  visto.  Porém, 
não  contentes  de  serem  poucos  e  maus,  inda 
por  cima  os  toureiros  portuguezes  por  ahi 
andam,  á  semelhança  dos  actores,  desempar- 
ceirados  e  dispersos.  As  praças  da  provin- 


os    GATOS  7 

€Ía  absorvem  muitos  que  por  falta  d'uma 
contrastaria  critica  intransigente,  breve  se 
viciam  e  assapateiram,  desviando-se  das  no- 
bres prescripções  do  jugo  puro,  e  trocando 
na  arena  os  dictames  de  Frascuelo  eLagar- 
lijo,  pela  tauromachia  grotesca  do  pae  Pau- 
lino. Outros,  sem  coragem  para  cortar  com 
os  preconceitos  sociaes  que  põem  o  toureiro 
d'officio  n'uma  meia  ralé  pouco  estimável, 
jogam  de  porta  com  a  arte  tauromachica, 
pousando  toda  a  vida  em  amadores  por  ob- 
sequio, e  evitando  as  responsabilidades  do 
cargo  por  uma  espécie  de  dilettantismo  que 
nem  lhes  dá  gloria,  nem  proveito,  nem  tão 
pouco  socialmente  os  cota  mais  acima.  E 
assim  chegámos  a  não  poder  formar  para  o 
Campo  Pequeno  uma  genuína  quadrilha 
portugueza,  d'algum  fôlego,  e  nos  arriscare- 
mos a  ver  amanhã,  como  no  theatro,  a  arte 
nacional  expirando  sem  herdeiros,  ligitimos 
ou  bastardos,  e  as  praças  fechadas  á  mingua 
d'artistas,  parallelamente  ao  já  terem  de  fe- 
char por  não  haver  ganadeiros  conscencio- 
sos. 


os    GATOS 


Entretanto  não  se  deixe  morrer  por  falta 
d*artistas  a  paixão  toural  dos  portuguezes; 
se  não  houver  nacionaes,  venham  de  Hes- 
panha  ;  se  as  mediocridades  de  cá  teimarem 
em  nada  fazer  de  progressivo,  a  critica  im- 
parcial favorise  a  pauta  lauromachica,  e  abra 
a  barreira  aos  estrangeiros  illustres  que  pos- 
sam e  devam  vir  a  Portugal  fazer  escola. 
Desde  que  o  publico  paga  sem  regatear  os 
bons  espectáculos,  ás  emprezas  compete  of- 
ferecer-lh'GS  na  allura  de  darem  brado,  e  de 
o  deixarem  fremente  d'emoção.  A  eífectivi- 
dade  de  quadrilhas  hespanholas  na  nossa 
arena  não  pôde  senão  redundar  em  vanta- 
gens impagáveis,  como  sejam:  i.'  —  fazer 
ganaderias,  porque  sendo  a  emoção  do  tou- 
reio producto  de  dois  factores,  toiro  e  tou- 
reiro, o  facto  de  ser  magnifico  esle,  consti- 
tuirá os  donos  d'aquelle  no  firman  de  lhe 
crear  reputação  equivalente.  2/ — fazer  tou- 
reiros, pela  aprendizagem  quotidiana  e  me- 
ihodica,  pelos  estímulos  do  orgulho  antago- 
nista, e  mais  que  lado  per  esse  instincto 
d'imitação  sagaz  dos  portuguezes,  ao  qual 


os    GATOS  9 

devemos  quasi  toda  a  nossa  vida  artislica  e 
industrial.  3.° — apurar  o  gosto  das  praças, 
elevando-lhes  o  critério,  lornando-as  intran- 
sigentes para  todas  as  espécies  de  palhaça- 
das^, e  fornecendo  enfi  geral  ao  publico,  para 
a  grande  festa  nacional,  uma  educação,  co- 
mo dizer?  mais  scienlifica. 

Duvido  mesmo  já  que  os  afficionados  do 
Campo  Pequeno,  pela  maioria  exigentes  e 
sabedores  da  tecímica  taurina,  se  achem 
dispostos  a  tolerar  espectáculos  só  com  por- 
tuguezes,  e  viverá  pouco  quem  não  chegar 
a  vêr  d'aquelle  redondel  não  só  expungidos 
os  maus  artistas,  como  também  ampliadas 
e  refeitas  por  completo  as  corridas  de  tou- 
ros, que  entre  nós  são  ainda  um  espectáculo 
branco  e  sem  calastrophes.  O  que  eu  peço, 
e  todos  apoiam  de  certo,  é  que  as  auctori- 
dades  consintam  em  collaborar  com  as  em- 
prezas  na  subida  de  nivcl  das  touradas,  em 
termos   de  n'esse  deslumbrante  jogo  he- 

•  o  boi  para  curiosos,  os  intermédios  cómicos  com 
pretos,  macacos,  «  bois  que  depois  de  corridos  vem  co- 
mer á  mão  dos  donos,  todas  estas  exibições  carnava- 
lescas que  deshonram  o  torneio,  devem  ser  riscadas  dos 
regulamentos  taurumachicos,  e  interdictas  pela  au- 
etoridade  até  nos  mais  recônditos  cerca  dos  de  provinda. 


10  os    GATOS 

roico  se  accumular  a  maior  porção  d*eslhe- 
lica,  com  a  menor  somma  possível  de  perigo. 

Para  se  conseguir  um  tal  desideratum, 
proporiaeu  na  tourada  portugueza  a  suppres- 
são  das  pegas,  e  a  immediata  adopção  da 
morle  do  toiro  em  pleno  circo.  Para  mim  o 
que  ha  nas  nossas  corridas  d'estupido  e 
alarmante,  é  a  pega.  Não  lhe  diviso  arte, 
não  lhe  descubro  vantagens,  nem  saberia 
jamais  juslificar  o  enlhusiasmo  da  multidão 
por  semelhante  estupidez. 

Se  os  moços  de  forcado  para  cada  corrida 
variassem,  disputando-se  os  logares  para 
contraprovas  publicas  de  força  physica,  lá 
se  justificariam  os  applausos  pelas  pegas 
como  um  signal  de  nação  valente,  sagrando 
no  terreiro  os  seus  atletas. 

Sob  este  ponto  de  vista  quasi  me  sinto 
posto  a  desculpal-as  nas  ferras  de  gado, 
porque  ahi  éa  adolescência  da  aldeia  luctan- 
do  toda  com  a  adolescência  das  boiadas;  e 
assim  as  ferras  tornam-se  em  grandes  re- 
vistas de  força  muscular,  certamens  de  pul- 
so e  corno,  d'onde  o  atletismo  humano  sae 
radioso,  entre  as  fremencias  da  justa  e  a 
olympica  vaidade  de  se  ter  sobrepujado  a 


os    GATOS  11 

fera,  symbolica  para  o  homem  da  natureza 
hostil  que  o  circumtnrna.  Mas  na  praça  de 
toiros,  tal  não  succede.  Os  moços  de  for- 
cado são  sempre  os  mesmos,  homens  tira- 
dos das  suas  occupações  de  campo  ou  de 
cidad-",  mais  ou  menos  alcoólicos,  trocando 
o  ramerrâo  do  trabalho  manso  por  uma  vida 
de  boleus  que  ameiaedade  osmalad'aneu- 
risma,  sem  que  pelo  exemplo  das  suas  proe- 
zas elles  estimulem  algucm  ao  cultivo  da 
força  e  aos  livres  actos  de  bravura  e  de  co- 
ragem. 

Entre  a  brutalidade  inútil  das  nossas  pe- 
gas, e  a  immunda  ferocidade  dos  cavallos 
extirpados  nas  praças  de  Hespanha,  franca- 
mente não  sei  qual  demonstre  maior  selva- 
geria,  pois  entre  nós  a  qualidade  das  victi- 
mas  compensa  quasi  n  quanlidade  das  dos 
nossos  visinhos  e  cunhados.  Quanto  á  morte 
do  toiro,  é  uma  cousa  absolutamente  indis- 
pensável no  grande  toureio  d'uma  nação  pe- 
ninsular.  Abater  a  fera,  eis  o  complemento 
d'essa  lucta  cyclopica  com  o  homem,  o  ul- 
timo quadro  da  tragedia  onde  o  tyranno  ne- 
gro esperece  ás  mãos  do  galã  bordado  a  oi- 
ro, d'espada  alta,  e  apotheotico  como  o  ar- 


12  OS    GATOS 

chanjo  Miguel  sobre  o  diabo.  Lisongeia  o 
orgulho,  aquece  os  nervos,  acordando  os 
instinctos  d'acção  pelo  correr  do  sangue  e  o 
espectáculo  spasrnico  da  agonia. 

Oh,  é  supremo  I  Todos  os  particulares  do 
toureio  tendem  a  elle,  evohitivamente,  em 
successivas  cadencias  d'arte  e  agilidade.  Cor- 
rer toiros  sem  morte  é  como  vencer  uma  ba- 
talha sem  as  honras  do  Iriumpho:  o  vence- 
dor não  exaltado,  facilmente  se  confunde 
co'o  vencido,  e  esta  nobre  scena  de  desfor- 
ço que  os  moleirões  dos  legistas  vão  aba- 
tendo no  homem,  a  pretexto  de  civihsal-o, 
esta  necessidade  instante  de  \encer  que  em 
nós  existe,  e  de  que  a  corrida  de  toiros  é  a 
figuração  peninsular  mais  altaneira,  nada  a 
intensifica  melhor  que  a  rez  tombando,  com 
a  lingua  traçada,  aos  pés  de  Guerrita  im- 
movel,  todo  nas  pernas,  em  selim  escarlate, 
bello  da  deslumbrancia  conlractil  do  anda- 
luz no  cheiro  do  sangue,  e  com  a  mão  di- 
reita inda  erguida,  da  estocada  mortal  que 
acaba  de  vibrar. 

Pela  prohibição  formal  das  pegas  e  na- 
cionalisação  da  sorte  d'espada,  a  corrida  de 
touros  portugueza,  com  os  elementos  nali- 


os    GATOS  13 

VOS  e  tradiccionaes  que  já  possue  —  as  suas 
sumptuosíssimas  cortezias,  o  Irasteio  de  ca- 
Tallo,  a  faina  de  capote  ebandarilhas, — ter- 
se-ha  tornado  na  mais  augusta,  na  mais  des- 
lumbrante ena  mais  grandiosa  phantasia  he* 
roica  que  povo  algum  da  terra,  depois  do 
circo  romano,  inda  creou ;  e  esse  assom- 
broso espectáculo  não  terá  a  manchal-o  uma 
particula  só  de  barbaria,  será  antes  um  com- 
pósito d'audacias  e  finezas  estheticas,  viril  e 
entretanto  requintado,  decorativo  e  dramáti- 
co como  nenhuma  opera,  e  arrebatador  té  ao 
paroxismo  em  que  a  perversidadehumanaes- 
tonteia  como  um  phillro, — sem  traz  de  si  dei- 
xar manchas  de  crime  ou  soíTrimento, 


Tudo  está  por  fazer,  repito  ainda,  e  se 
para  o  terreiro  normal  do  Campo  Pequeno 
faltam  artistas  e  bois  do  lypo  inpeccavel,  tão 
pouco  as  pretenções  ornamentae$  d'aquella 
praça,  e  o  aCBcionamento  toural  dos  espe- 
ctadores, estão  á  altura  da  supremacia  orgu- 
lhosa que  conviria  dar  ás  corridas  de  touros 
da  capital.  Por  emquanto  o  redondel  do  Cam- 


U  os     GATOS 

po  Pequeno  só  exteriormente  impõe  certa 
grandeza,  e  essa  mesma  arremedada  ao  es- 
tylo  macaco-arabe  dos  nossos  amigos  hespa- 
nhoes.  Por  dentro  é  a  miséria  exigua  e  pe- 
lintra dos  janotas  de  fato  rico  e  de  tripa  va- 
sia,  que  a  gente  vê  porhi  palitando  os  den- 
•es  depois  de  terem  bebido  um  copo  d'agua. 
Porque  ainda  que  o  drama  taurino  seja  por 
si  só  um  espectáculo  etnpolgante,  é  incon- 
testável que  a  multidão  tem  no  conjuncto 
um  dos  papeis  mais  salientes.  E'  ella  o  di- 
zeur  da  peça :  necessário  então  se  faz  pôl-a 
era  evidencia,  e  Irajal-a  com  o  pictoresco 
que  a  sua  verve  requer  á  luz  da  rampa.  Ora 
no  Campo  Pequeno  o  espectador  não  tem 
destaque,  a  praça  come-o,  reílue-o  bisonha- 
mente para  o  interior  de  cacifros  d'eslabulo, 
agglomera-o  em  pinhas  incommodas  oníle  os 
joelhos  d'uns  se  enterram  pelas  costas  dos 
outros,  e  qualquer  gesto  mais  vivo  diverge 
em  sccco,  pela  compressão  transversal,  no 
epigastro  do  parceiro  que  fica  ao  lado.  A'parte 
oslogares  de  bancada,  os  mais  baratos  e  os 
melhores  de  todo  o  circo,  o  resto  ê  uma  ver- 
dadeira peste,  que  nem  deixa  desfructar  des- 
embaraçadamente o  panorama,  nem  prepara 


os    GATOS  15 

tam  pouco  na  mancha  geral  da  enchente, 
pontos  de  côr  onde  a  pupilia  se  detenha.  A' 
pobreza  verdadeiramente  pulha  da  imagina- 
ção que  repartiu  os  logares,  e  pôz  o  risco 
geral  do  amphitheatro,  acresce  ainda  a  por- 
caria infame  dos  materiaes  decorativos,  a 
absoluta  carência  de  gosto,  e  a  estupidez 
compacta  ressumbrante  de  cada  promenor. 
Logo  á  primeira  vista,  as  altíssimas  mu- 
ralhas da  praça,  nuas  e  inúteis,  dão  a  im- 
pressão d'irmos  vêr  correr  toiros  dentro  d'um 
poço,  e  pergunta-se  se  aquella  altura  cyclo- 
pica  que  deixa  ás  duas  ordens  de  camaro- 
tes, por  fundo,  grandes  supeiGcies  verlicaes 
impossiveis  de  decorar,  terá  por  fim  prohi- 
bir  as  entradas  de  borla  até  aos  próprios 
passarinhos.  Os  camarotes,  onde  é  de  sup- 
por  se  instalem  de  preferencia  as  mulheres, 
centro  borboleante  de  todos  os  espectáculos, 
e  facha  de  resistência  pois  de  toda  a  belleza 
e  de  toda  a  côr,  os  camarotes  que  com  a 
polychromia  dos  vestidos,  o  passarinhar  dos 
leques,  o  rufiar  das  plumas  e  das  fitas,  a 
impaciência  dos  gestos  eo  frenesi  espiritual 
dos  focinhitos,  deveriam  ser  como  o  arco  iris 
do  amphitheatro,  e  avançar  sobre  a  arena. 


1«  os    GATOS 

abrazando  inda  mais  o  toureio  de  tons  ar- 
dentes— os  camarotes  pôl-os  o  architecío  á 
sombra  d'uma  reles  coliimnata  de  gare  po- 
bre, delgadinha,  anemica,  em  ferro  fundido, 
semcapiíeis  nem  bases  historiadas,  sepa- 
rando-os  por  baias  de  cavallariça,  e  pondo- 
Ihes  um  balcão  de  quarto  andar  na  diantei- 
ra. E'  verdadeiramente  não  ler  faro  nenhum 
da  distribuição  compósita  d'uma  grande  ca- 
sa d'espectaculol  A  tribuna  real  deveria  ser 
por  outro  lado  o  centro  de  symetria  artisli- 
ca  da  praça,  o  remate  decorativo  a  cujas 
pontas  viessem  prender-se  as  duas  ordens 
de  camarotes.  Pois  viram  o  que  o  architecto 
d'ella  fez  no  Campo  Pequeno :  uma  espécie 
de  gaiola  ou  tronco  de  ferrador  com  des- 
vãos lateraes  onde  mal  pode  installar-se  uma 
creança,  fasqueados  de  trapeira  no  tecto, 
papel  de  casa  de  hospedes,  e  columnatas  e 
rendinhas  de  ferro  fundido  no  estylo  muni- 
cipal dos  kiosques  de  verter  aguas. 

E'  pifio,  é  indecente.  Os  toiros  são  o  úni- 
co espectáculo  alegre  do  paiz,  o  único  onde 
o  portuguez  tem  graça,  e  onde  os  seus  ins- 
tinctos  satyricos,  tomando  forma  d'insectos, 
por  toda  aparte  vão  mordendo  os  cachaços 


) 
\ 


os    GATOS  17 

do  ridículo,  entre  rizadas  e  bromas  de  ca- 
hir.  E'  necessário  por  consequência  não  lhe 
tirar  esse  caracter  jovial,  e  bem  ao  contrario 
fazer  a  alegria  reflorir  não  só  do  aspecto  ge- 
ral do  amphitheatro,  como  dos  mais  peque- 
ninos valores  da  decoração. 

Architeclura,  pintura,  desinvolução  con- 
cêntrica de  bancadas,  etc,  tudo  deve  ten- 
der a  sublinhar  o  espectador,  accnmulando 
de  roda  d'elle  colorações  alegres,  formas  fle- 
xuosas,  magnificência  e  luz  em  jorros  hilla- 
riantes.  R  onde  esiá  isso  no  miserável  redil 
do  Campo  Pequeno?  O  corrimão  por  exem- 
plo da  trincheira  falsa,  em  vez  de  ser  feito 
por  uma  balaustrada  de  mármore,  é  um  po- 
bre fio  enfiado  em  supporles  de  ferro  mal 
batido;  nas  escadarias  e  patamares  dos  se- 
ctores não  ha  logar  para  um  vaso  ou  uma 
estatua ;  os  fauttuih,  que  são  dos  logares 
mais  caros,  alem  d'incommodos  e  duros, 
quazi  não  deixam  fazer  ao  espectador  ura 
movimento.  Eu  não  sei  bem  até  que  pontoa 
auctoridade  interfere  no  risco  dos  monu- 
mentos levantados  pelo  dinheiro  particular. 
Deve  existir  talvez  na  Gamara  uma  reparti- 
ção aferidora  não  só  das  condições  de  se- 


18  OS    GATOS 

gurança,  como  lambem  do  gosto  artístico. Que 
essa  repartição  technica  descura  constante- 
mente os  seus  deveres,  permittindo  que  nas 
melhores  ruas  de  Lisboa  se  levantem  bar- 
racas ignóbeis,  torres  de  dez  andares  en- 
casquetadas  de  trapeiras,  três  e  quatro  se- 
ries, ás  cavallitas  umas  nas  outras,  não 
causa  espanto:  é  coqueluche  velha,  e  burro 
matreiro  não  tem  emenda.  Agora  estender 
esse  desleixo  a  construcções  da  importância 
do  circo  tauromachico,  eis  o  que  não  pode 
passar  sem  protesto  violentol  O  municipio  de 
Lisboa  necessita  de  reformar  pela  base  a  sua 
engenheria,  que  é  do  século  passado,  e  á 
hora  presente,  alem  de  bastante  cara,  con- 
tinua a  fazer  da  capital  um  aldeão. 


Outra  coisa  nos  falia  nas  touradas,  a  toi- 
letíe,  e  mais  apparelhos  accessorios  d'esta 
ordem  d'espectaculos.  Se  o  portuguez  está 
vinculado  ás  loiradas  por  uma  ininterrupta 
tradição  de  muitos  séculos,  onde  collaborá- 
mos  todos,  reis,  ^  fidalgos,  povo,  saltando  á 

1  Desde  a  dynastia  d'Aviz  que  a  arte  de  picar  toiros 


os    GATOS  19 

praça 'a  lidar  rezes  selvagens,  se  a  corrida 
de  loiros  é  Gnal mente  a  grande  festa,  por- 
que a  não  honraremos  vestindo  rigorosa- 
mente para  elia  o  noFSO  bello  trajo  nacional  ? 

Que  melhor  occasião  para  resiiscilar  o 
costume  que  tão  deslumbrantemente  fica  ao 
portuguez?  jaqueta  justa  ao  tronco,  larga- 
mente debruada  e  com  alamares  de  seda 
pingando  passamanerias  caprichosas — cinta 
vermelha  ou  azul,  tonkin  ou  lã,  cingindo 
ventre  e  tronco,  alê  ao  sterno,  seus  ca- 
dilhos pendentes  sobre  a  anca  —  a  calça 
d'alçapão,  cerce  na  perna,  modelando  a 
musculatura  e  terminando  em  pata  d'ele- 
fante  —  e  sapato  de  prateleira  emfim,  ca- 
misa molle  com  botões  de  cadeia,  gravata 
de  côr  viva,  em  nó  corredio,  e  chapéu  largo? 

Não  se  pressente  logo  como  o  aspecto  do 


vem  cultivada  com  phrenesi  pelos  filhos  das  mais  illus- 
tres  casas  do  paiz.  O  senhor  rei  D.  Sebastião,  o  aus- 
tero, o  casto  6  esbrazeado  raata-mouros  que  dizia  phra- 
ses  carnívoras  junto  dos  túmulos  d'Affonso  Henriques 
e  João  II,  n'uma  viagem  que  fez  d'Evora  para  Faro, 
com  tornada  do  Algarve  até  ao  paço  de  D.  Constantino 
de  Bragança,  em  Villa  Viçosa,  assistiu  e  tomou  parte 
em  cerca  de  trinta  e  oito  touradas,  d'envolta  com  bo- 
bos e  gentishomens  da  corte,  chegando  a  matar  de  ca- 
vallo,  com  o  rojão,  algumas  feras. 


20  OS   GATOS 

circo  mudaria,  e  como  essa  turba-muha  sem 
palria  que  o  atulha,  logo  tomava  caractere 
expressão  regional  ligada  á  diversão?  Com 
as  mulheres,  o  mesmo  rigor  severo  e  abso- 
luto. Ir  a  uma  tourada,  de  chapéu,  importa 
a  mesma  quebra  d'elegancia  do  que  entrar 
D*uma  soirée  com  sapatos  de  praia,  em  coi- 
ro cru.  Tão  pouco  quadram  os  estofos  som- 
brios a  esse  ar  de  desenvoltura  e  expansão 
juvenis,  subentendidos  na  ideia  da  tourada. 
Quem  está  triste  vae  para  a  egreja;  quem 
já  se  sente  velha,  fica  em  casa.  Vestidos  le- 
ves, hillariantes,  pintalgados  de  coisas  d'a- 
guarella;  fichus  de  gaze  com  grandes  flores 
de  retroz  na  cercadura ;  cabeças  leves,  em 
penteados  deixando  a  nuca  livre,  e  com  um 
molho  de  cravos  ou  geraneos  por  cocard ; 
mangas  Tosca,  pufando  largamente  até  ao 
cotovello,  e  d'ahi  para  baixo  cingindo  o  an- 
tebraço, o  punho,  para  colarem-se  depois  em 
milene  Recamier,  até  ao  meio  da  mão :  tudo 
isto  dictado  n'um  estylo  pessoal,  não  pelas 
modistas,  mas  pelas  próprias  clientes,  a  sa- 
bor do  tom  mais  condizente  ao  seu  género 
de  belleza,  nuances  de  cabello  e  grão  de 
pelle...  Encham  a  praça  d'espectadores  ves- 


os  GATOS  21 

tindo  á  porlugueza,  ponham  nos  camarotes 
mulheres  de  claro,  com  sombrinhas  de  ren- 
da, os  chalés  de  selim  colgando  vivamente 
a  amura  dos  balcões,  e  transformado  lerão 
por  uma  forma  hillarianle  e  imprevista 
áquella  pobre  praça  de  toiros,  mazombia, 
soturna,  onde  o  elemenio  femenino  é  rele- 
gado para  a  sombra,  onde  as  madamas  vão 
com  fatos  de  pezame,  e  o  publico  em  geral, 
vestido  de  cinzento,  a  côr  dos  ursos,  a  ca- 
beça encapsulada  em  cocos  cosmopolitas, 
lembra  uma  garrafeira  com  um  ou  outro 
gargallo  a  espumar  gazosa,  em  vez  de  Cham- 
pagne  fino. 


iS  de  septembro. 

Quasi  todas  as  nossas  casas  d'espectacu- 
lo,  actualmente  funcionantes,  estiveram  oc- 
cupadas  durante  os  mezes  de  verão  por  ar- 
tistas hespanhoes  —  António  Viço  no  Gym- 
nasio ;  a  companhia  infantil  no  Coiyseu; 
MazanlinijCara-Ancha,  Guerrila,  Espartero 
e  Angelo  Pastor  no  Campo  Pequeno...  Fre- 
quência abundantissima,  honorários  á  farla> 


22  OS   GATOS 

e  em  toda  a  linha  as  ovações  mais  calorosas. 

Tanto  montou  para  o  Imparcial  de  Ma- 
drid garantir  aos  seus  leitores  que  a  histo- 
ria do  segundo  premio  de  Badajoz  pozera 
os  porlugnezes  n'uma  fúria  perigosissima 
contra  os  hespanhoes  que  se  aventurassem, 
desarmados,  a  vir  passar  algum  tempo  ás 
nossas  praias. 

Claro  que  não  sendo  a  parvoice  previle- 
gio  especial  dos  plumitivos  da  nossa  pátria, 
o  artigo  do  Imparcial  em  nada  altera  a  re- 
ciprocidade de  sympathia  artística  dos  dois 
povos,  devendo  talvez  attribuir-se  a  desforra 
d'a]gum  caballero  madrileno  a  banhos  na 
Figueira,  a  quem  o  proprietário  do  hotel  rou- 
bou talvez  na  conta.  Não  sendo  portanto  fino 
generalisar  a  um  reino  as  galleguices  banaes 
d'um  malcreado,  voltemos  costas  ao  caso,  e 
vejamos  um  pouco  as  artes  de  Madrid,  no 
ponto  aliaz  circumscripto  do  grande  actor 
que  ao  Gymnasio  veio  representar. 

António  Viço,  que  actualmente  conta  cin- 
coentae  quatro  annos,  cincoenta  e  quatro  fi- 
lhos, e  cincoentae  quatro  rouquidões,  hoje  é 
apenas  um  phantasma  d'actor  leonino,  da 
grande  raça  empolgante  que  o  romantismo 


os   GATOS  23 

fez  no  mundo  inteiro. Na  rua  despersuade  por 
completo  a  estatura  magnifica  que  se  soube 
fazer  sobre  o  tablado.  E'  um  homem  balofo, 
mortiço,  barrigudo,  d'olhar  exlinclo,  perfil 
inexpressivo,  andando  em  passinhos  dúbios, 
com  uma  expressão  clerical  de  cocheiro  de 
casa  rica,  n'essa  apathiad'animal  noctivago 
que  só  o  gaz  revivesce,  e  a  nevrose  da  scena 
consegue  accordar  do  seu  turpor.  Pela  con- 
versa molle,  pelo  longínquo  ar  da  attenção  er- 
rante em  paizes  de  chimera,  pela  familiari- 
dade exterior  do  tracto  bom  rapaz,  dá  o  ty- 
po  usual  do  comediante  no  apogeu,  do  ho- 
mem celebre  representando  a  eterna  farça 
da  modéstia  melanchohca,  que  radica  pela 
bondade  as  admirações  da  galeria,  e  facilita 
aos  triumphos  o  caminho  mimoso  da  aíTei- 
ção. 

Este  conhecimento  pratico  da  vida,  jun- 
gido ao  que  uma  analyse  minuciosa  lhe  apu- 
ra do  jogo  scenico,  breve  permite  reconsti- 
tuir em  António  Viço  um  actor  onde  a  ex- 
periência collaborapor  egual  com  o  talento, 
para  a  intensíssima  impressão  que  elle  pro- 
duz. O  que  sobretudo  ha  n'este  artista  d'ex- 
cellente,  é  que  sendo  elle  ao  mesmo  tempo 


24  OS    GATOS 

um  hespanhol  e  um  incarnador  de  drama- 
turgias românticas,  haja  conseguido  á  força 
d'esludo  permanecer  em  scena,  natural,  de 
todos  os  tempos  —  como  hespanhol  e  como 
actor.  António  Viço  que  ao  cabo  de  vinte  e 
e  cinco  annos  de  palco  doma  perfeitamente 
os  escolhos  da  scena,  acha-se  hoje  n'esse 
principio  da  ruína  em  que  a  natureza  torce 
as  voltas  ao  homem,  quando  a  sciencia  e  a 
arte  tinham  precisamente  acabado  de  lhe  dar 
a  ultima  demão.  D'aqui  uma  porção  do  cu- 
rioso prazer  de  o  ver  representar  guiando  o 
papel  por  caminhos  onde  os  seus  recursos 
naturaes  se  esfalfem  menos,  apropriando  a 
vehemencia  té  onde  a  sua  curta  respiração 
de  cardíaco  lhe  não  corte  a  expressão  por 
um  accesso  de  tosse  ou  uma  falha  de  laryn- 
ge,  substituindo  muita  vez  o  grito  pelo  ges- 
to, completando  a  palavra  comida  pelo  olhar 
— n'uma  palavra,  compondo  os  lypos  com 
promenores  tão  subtis  d'intelligencia,  com 
uma  energia  tal  de  personalidade,  que  afinal 
lhe  fazem  perdoar  o  já  não  possuir  em  scena 
juventude,  desinvolturas  de  sangue,  audácia 
de  recursos,  as  primeiras  condições  d*irre- 
sistibilidade  do  actor  especialisado,  como 


os   GATOS  25 

Lemailre  diz,  nos  papeis  de  jeune  prémier, 
Apezar  porem  do  talento  grave  que  o  do- 
mina, e  da  experimentada  certeza  que  lhe 
honestisa  tudo  quanto  faz,  a  escala  de  crea- 
ções  de  Viço  é,  como  a  da  maior  parle  dos 
adores,  mui  limitada,  e  n'esía  mesmo  cam- 
biantes ha  de  que  elle  só  pallidamenle  at- 
tinge  a  trama  interior.  Além  d'isso  a  litte- 
ratura  que  o  fez,  nem  sempre  vem  ca- 
lafriada  do  grande  sopro:  muitas  das  peças 
do  seu  reportório  escreveu-as  o  pantafaçudo 
Echegaray  para  no  actor  sublinhar  alguns 
recursos  d'excepção...  reproducções  de  sce- 
nas  de  morte,  narrativas  estridentes  de  tom 
épico,  ou  então  desenlaces  dramáticos  á 
hespanhola,  venho  a  dizer  com  pouca  lógi- 
ca, rethorica  estridente,  e  apropriações  mo- 
raes  algo  pedantes. 

Sob  este  ponto  de  vista  não  temos  senão 
a  censurar  o  artista,  de  tão  má  impressão 
nos  haver  deixado  sobre  a  lilteralura  dra- 
mática do  seu  paiz.  MalaRaza  aparte,  e  um 
ou  outro  acto  destroncado  aquie  além,  tudo 
o  mais  no  reportório  de  Viço  rescendia  ao 
melodrama  para  espavorir  collegiaes,  ao  me- 
lodrama onde  os  personagens  marcham  pelo 


26  OS   GATOS 

caminho  da  catastrophe,  um  pouco  em  ca- 
bra-cega,  e  sem  saberem  onde  aquillo  tudo 
irá  parar. 

Uma  tal  lilteralura,  ainda  preponderante 
em  Hespanha,  aoqueparece,  mercê  das  pre- 
dilecções oratórias  do  hespanhol,  deve-se 
considerar  liquidação  do  romantismo,  im- 
mobilisada  pelo  orgulho  d'esse  povo  inimi- 
go figadal  de  toda  a  civilisação  iniciada 
pelos  outros,  patriota  até  á  tolice,  e  muito 
mais  imbuído  do  quo  nós  nas  prosapias  do 
seu  antigo  predomio  universal.  Certo,  a  dra- 
maturgia moderna  inda  por  muito  tempo  se- 
rá romântica.  O  realismo,  quazi  morto  no 
romance,  só  conseguiu  dar  no  theatro  frias 
comedias  d'analyse  e  de  salyra,  e  este  ou 
aquelle  arreglo  dramático  sem  sabor,  sendo 
natural  que  as  suas  tentativas  fiquem  por 
ahi.  Entanto  comprehender-se-iano  theatro 
um  romantismo  modernisado,  servido  por 
todas  as  subtis  acquisições  do  pensamento 
contemporâneo,  verosimile  lógico,  qualquer 
que  seja  o  mundo  em  que  se  passe; jamais 
o  romantismo  á  Radcliffe,  enphatico,  monó- 
tono, em  ladainhadas  lúgubres,  jogando  com 
punhaes  de  folha  e  bexigas  de  porco,  defor- 


os   GATOS  27 

mando  a  estructura  dos  caracteres  e  o  ry- 
thmo  da  vida,  e  mesmo  pelo  lado  da  forma 
litteraria,  baixando  a  arte  ;i  uma  vacuidade 
imaginativa  de  malucos.  Foi  esta  a  impres- 
são que  me  ficou  da  mor  parte  dos  dramas 
d'Echegaray  que  ouvi  no  Gymnasin  :  iheses 
sem  realidade,  situações  sem  coherencia, 
magnificas  phrases  sem  maior  rigor  do  pen- 
samento, e  aparte  alguns  momentos  de  gé- 
nio, uma  aridez  d'interesse  até  á  fadiga  do- 
lorosa. E'  negar  ao  chefe  dos  dramaturgos 
hespanhoes  contemperaneos,  valor  corres- 
pondente ao  delirante  enthusiasmo  com  que 
as  platéas  visinhas  o  recebem? 

Por  certo  não.  O  talento  fogoso  d'E(-he- 
garay  marca  no  ceu  hespanhol  uma  orbita 
fulgente,  mas  salvo  uma  ou  outra  peça,  é 
necessário  para  lhe  vibrar  da  obra  empha- 
tica,  ser  castelhano  de  nação.  Todos  os  ac- 
tores hespanhoes  que  ouvi  no  Gymnasio 
se  resentem  doesse  exagero  de  corda,  e  teem, 
para  manter  o  diapasão  d'essa  lilleratura 
castelariana,  de  por  vezes  deformar-se  em 
inverosimise  plangentes  griíadores.  O  úni- 
co que  resiste  é  António  Viço,  á  uma  por- 
que os  annos  lhe  quebraram  a  fogosidade 


28  OS   GATOS 

indómita  dos  collegas,  á  outra  porque  a  sua 
experiência  e  iaiento  scenicos  sabem  já  cor- 
rigir admiravelmente  pelo  trabalho  do  ac- 
tor, as  epilépticas  rajadas  do  seu  dramatur- 
go predilecto.  N'aquellas  selvas  de  meta- 
phoras  scintillanles  e  de  situações  parado- 
xaes  sem  profundeza,  sakespereanas  por  fo- 
ra, Viço  intercala  rasgos  d'uma  intuição  sa- 
gaz do  trágico  moderno,  pedaços  de  com- 
posição psychologica  escrupulosamente  fun- 
didos gota  a  gota,  ante  os  quaes  o  especta- 
dor consciencioso  lamenta  que  esse  occaso 
d'artista  não  tenha  empregado  o  calor  dos 
seus  últimos  raios  a  illuminar  só  figuras 
d'obras  primas.  Quem  uma  vez  o  ouviu  na 
Mala  Baza,  incondicionalmente  admira  uma 
das  mais  completas  organisações  d'actor  dra- 
mático que  ultimamente  teem  vindo  a  Por- 
tugal. 


25  íie  sepiembro. 

A  corte  villegia  e  balneia  nos  remanços 
de  Cintra  e  de  Cascaes,  d'onde  me  chegam 
rumores  das  suas  mais  recentes  aventuras.  O 


os   GATOS  29 

baile  da  rainha  sogra,  na  sala  das  pegas  do 
paço  de  Cintra,  trouxe  o  incidente  do  mi- 
nistro da  marinha  tirar  para  par,  vis-a-vis 
do  rei,  em  vez  d'nma  dama  da  rainha,  como 
a  pragmática  ordenava,  certa  outra  que  por 
tal  honra  pareceu  excepcionalmente  favore- 
cida do  ministério,  desandando  as  pegas  da 
sala  logo  a  fallazarem  do  caso,  a  invectivar 
a  moral,  e  a  chamarem  escândalo  ao  que 
afinal  não  passou  d'um  simples  engano  de 
contradanças,  quasi  vulgar  em  reuniões  on- 
de os  ministros  não  vêem  bem,  e  a  multidão 
por  outro  lado  quer  vêr — de  mais.  A'illustre 
e  indignada  senhora  que  nos  escreve  a  pe- 
dir cautério  pr'o  incidente,  opinarei  não  ser 
elle  de  trama  a  fazer  cahir  a  dynastia 
ou  adeantar  a  putrefacção  da  sociedade. 
Mudar  a  dama  é  muito  menos  inoffensivo  do 
que  fazer  cerco  ao  rei,  e  por  Cascaes;  ao 
que  se  diz,  ha  quem  lhe  faça  um  cerco  fu- 
rioso. Tudo  isto  são  minuscularias  arranja- 
das ao  sabor  da  maledicência  de  quem  não 
tem  mais  nada  que  fazer.  Peor  caracter  teve 
o  baile  da  embaixatriz  d'Inglaterra,  e  toda- 
via aristo  algum,  á  hora  do  convite,  sequiz 
lembrar  do  ullimatum.  Hemos  nós  d'exigir 


30  OS   GATOS 

enlão  que  a  austeridade  de  porte  seja  elás- 
tica, e  só  lome  caracter  grave  quando  os 
ministros  se  enganam  na  collocação  dos 
vis-á-vis  ? 

A  guerra  de  Cascaes  foi  também  outro 
episodio  galante  da  quinzena.  A  requeri- 
mento do  cônsul  d'Hespanha  foram  expulsas 
de  Cascaes  umas  trinta  ou  quarenta  Irongas 
hespanholas,  que  para  lá  tinham  ido  ás  so- 
bras da  genlilhomeria  equestre  e  pedestre,  e 
que  pelos  modos,  em  amazonas  intrépidas, 
não  contentes  com  terem  tomado  posse  da 
villa,  já  começavam  a  refilar  osgatazios  para 
se  apoderarem  também  da  cidadella...  Não 
pareceu  isto  bem  ás  amazonas  poríuguezas, 
que  escudadas  na  moral,e  cônscias  da  priori- 
dade que  o  principio  da  naturalisação  deve 
trazer  á  offerta,  coagiram  o  administrador 
do  concelho  a  pôr  fora  de  concurso  as  sale- 
rosas,  sob  pretexto  de  não  serem  damas 
comme  il  faiií,  e  não  se  precisar  lá  de  cas- 
telhanas para  tomar  castellos  ás...  francezas. 
Ahi  vem  pois,  caminho  do  exilio,  essas  re- 
voluccionarias  da  alta  escola,  n'um  esfusiar 
de  carambas  e  outros  gritos  de  guerra 
madrilenos,  com  os  chapéus  de  pluma,  ás 


os   GATOS  31 

tres  pancadas,  as  sobrancelha  a  despegar, 
meias  cabidas,  pernas  de  vêr  a  Deus  dentro 
das  malas,  furiosissimas,  rogando  pragas,  e 
propositando  adberir  ao  manifesto  republi- 
cano para  dar  nas  instiluições,  o  golpe  mes- 
tre. E'  muilo  grave,  e  d'aqui  apontamos  a 
insurreição  da  Antónia  ás  Novidades,  por 
que  a  denuncie  ao  governo  com  flamulencia 
superior  á  que  usa  empregar  para  as  as- 
sembléas  secretas  dos  sargentos. 

Entretanto  sou  a  dizer  que  a  ordem  d'ex- 
pulsão  senão  manterá  em  Gascaes  por  mui- 
lo tempo.  Por  todos  os  motivos.  Primeiro, 
ella  retirou  de  Gascaes  a  alegria  das  noites, 
quando  depois  de  ceia  e  antes  da  balota,  á 
rapaziada  occorre  fazer  sobre  a  areia  da 
praia,  um  pouco  de  sexo.  Segundo,  ás  pró- 
prias senhoras  faz  falta  a  caslelhanada  d'es- 
sas  desbocadas  raparigas,  que  vindas  dos 
prosíibulos  médios  de  Madrid  e  das  fabri- 
cas de  tabacos  de  Sevilha,  em  pouco  tempo 
acham  meio  de  na  boa  roda,  por  intermédio 
dos  cavalheiros,  interferir  um  pouco  na  so- 
ciedade intima  das  madamas.  b'aqui  a  oito 
dias,  quando  Gascaes,  tornada  á  piíysiono- 
mià  pot-au-feu  que  S.  M.  a  rainha  Amélia 


32  OS    GATOS 

intenta  dar-lhe,  reconhecer  como  para  as 
raças  ociosas  évasia  a  vida  honesta,  eisem- 
ptos  d'aroína  os  beijos  permillidos ;  quando 
homens  e  mulheres,  fartos  de  thalamo,  co- 
meçaram a  desejar  freneticamente  uns  extra, 
ás  escondidas,  mesmo  que  a  auctoridade  seja 
inílexivel  e  os  propósitos  da  soberana  no- 
bilissimos,  mesmo  que  caia  o  ceu  e  o  terra- 
moto engula  o  mundo  inteiro,  não  haverá 
meio  de  desviar  de  Gascaeso  turbilhão  ma- 
gnético do  deboche,  gémeo  da  ociosidade  e 
annulador  benemérito  de  todas  as  predile- 
ções  humanas  destreladas  dos  rails  physio- 
lógicos.  Enião,  ainda  que  se  levantem  as 
pedras,  o  administrador  achará  meio  de 
readmittir  o  alegre  bando  de  nereidas  ;  S. 
A.  o  duque  d'Orleans  chegará  a  Cascaes 
subitamente,  e  a  villa  cobrir-se-ha  de  col- 
chas e  arcos  de  triumpho,  levantados  pelos 
mais  estapafúrdios  sócios  do  Sporting,  ha- 
vendo comboios  expressos,  vivas  á  Hespa- 
nha  e  ao  direito  divino,  e  uma  hespanhola 
até,  sorteada  pela  loteria  da  Misericórdia,  o 
que  é  o  meio  d^interessar  todos  no  regabofe 
que  o  descaramento  e  o  dinheiro  só  folga- 
damente permittem  a  dúzia  e  meia. 


FIALHO  D'ALMEIDA. 


os  GATOS 


PUBLICAÇÃO 
D'iNQUERITO    i  VIDA    POETDGUEZA 


r48  — 20deOutQbrodel892 


SUMMARIO 

Pequena  romaria  á  fabrica  de  fayança  de 

BORDALLO,  NAS  CaLDAS  DA  lUlNHA. EsTADO 

da  fabrica  e  forque  se  não  diz  da  l^uçaria. 
—  Aesculptura  de  Oordallo  :  talha  manue- 
lina E  DESCRIPÇÃO    minuciosa    d'eSTA  PEÇA. 

Ornatos  do  galbo,  motivos  gothicos  e  pisca- 
tórios   QUE    o    CIRCUNTORNAM. —  De    GOMO    O 

gargallo  é  um  vaso  de  partículas,  lam- 
boyante.  —  Analyse  racional  d'uma  obra 
decorativa,  regras  de  harmonia  entre  a 
forma  e  o  motivo  ornamental. — Vaso  grego 


II  os    GATOS 

E  ADORNOS  MEDIEVAES,  SUA  AUSÊNCIA  DE  LÓGICA 
E  INCONGRUÊNCIAS, — TrABALHO  CONCEPTIVO  DA 
TALHA,  CISÃO  MORTAL  ENTRE  A  DECORAÇÃO  E  A 
FORMA  DO  OBJECTO,  SUA  INSTABILIDADE  E  APPA- 
RENCIA  FRÁGIL  DAS  DUAS  AZAS. VaLOR  DA  TA- 
LHA, COMO  TENTEIO  DE  CERÂMICA  NOVA. —  Ge- 
NIO  INTUITIVO  DE  UORDALLO  E  ESFORÇOS  PARA 
FUNDEAR  A  ARTE  NACIONAL  NO  SUBSOLO  DA  TRA- 
DICÇÃO  HISTÓRICA  E  ANTIGAS  MARAVILHAS  MOS- 
TEIRAES. íMiSULA  E  ESTATUETA  DOINFANTE  D. 

Henrique. — Jarra  Cunha  Vasco. — U  drama 
DA  Paixão  para  o  Bussaco  caracter  clás- 
sico das  figuras  ANTIGAS,  SUA  AUCTORIA  E 
DESTRUIÇÃO  VANDALICA  Á  PEDRADA. JeSUS  HO 

olwal  de  Giietsmcmi. —  Traição  de  Judas. — 
Passagem  do  Cedron. —  Pujança  da  scena 
Em  casa  d^Annás ;  o  velho  doutor  da  lei,  e 

GUARDAS    DO    TEMPLO    ARRASTANDO    O     ReDEM- 

PTOR. —  Jesus  blasphema  Em  casa  de  Cai- 

pháS  :  TRES  MAGISTRADOS  EPILÉPTICOS,  E  EX^ 
PRESSÃO    BESTIAL    DOS    PHARISEUS. Em   CaSa 

de  Herodes. —  Conclusão. 


27  de  septembro. 

Pequena  romaria  á  fabrica  de  fayanças 
de  Bordallo,  nas  Caldas  da  Rainha,  para  de 
perlo  estudar  a  gestação  laboriosa  d'um  gé- 
nio isolado,  e  a  indifferença  soez  d'um  pu- 
blico cretino.  A  fabrica  suspendeu  por  falta 
de  dinheiro  :  quando  já  estava  cheio  e  acoa- 
gulado  de  loiça  um  forno  Minton,  subita- 
mente o  cofre  eslanca-se,  e  os  accionistas 
debandam,  deixando  Raphael  Bordallo  en- 
tre um  pessoal  d'aprendizes  e  officiaes  que 
lhe  pediam  pão. 

Não  truxe  das  Caldas  notas  para  dizer 
da  fabrica  e  da  louçaria  artística  ou  trivial 


4  OS    GATOS 

que  ella  labora,  e  porque  semelhante  tra- 
balho seja  impossível  d'esmiuçar  á  simples 
reminiscência,  reserval-o-hei  para  quando, 
melhor  ensinado,  valha  a  pena  informar  o 
leitor  com  probidade.  O  que  por  agora  me 
traz  das  Caldas  ás  pagina^í  ásperas  e  repu- 
tadamente  hostis  d'este  pamphleto,  é  o  de- 
sejo de  fixar  uma  expressão  do  génio  de 
Bordallo,  que  me  parece  ainda  pouco  co- 
nhecida, e  de  fazer  a  exacta  reportage  d'u- 
ma  das  obras  mais  estranhamente  originaes 
que  ha  muito  tempo  vêem  luz  na  esculptura 
do  paiz,  A  coiza  irá  d'esta  vez  escorreita  e 
sem  arrebicados,  á  uma  porque  o  estylo  ca- 
seiro põe  o  escriptor  desilludido  ao  nivel  da 
bestealidade  do  seu  tempo,  á  outra  porque 
eu  a  respeito  de  primores  de  forma,  saben- 
do já  que  publico  arremangado  tenho  á 
perna,  decido  alfim  não  deitar  pérolas  a  por- 
cos. 

A  cerâmica  de  Bordallo  abrange  artefa- 
ctos de  loiça  caseira  ou  decorativa,  azule- 
jos, telha  de  cores,  etc,  constituindo  a 
produção  usual  da  fabrica,  e  obras  d'es- 
culptura,  que  são  na  dpsabrochante  curva 
da  vida  artistica  do  meu  amigo  a  terceira 


os    GATOS  5 

grande  phase  monumental  do  seu  talento. 
D'estas  ultimas,  que  são  o  alvorecer  na  es- 
culptura  nacional  d'uma  era  dramática  só 
episodicamente  renovada  depois  de  Macha- 
do de  Castro,  por  um  ou  outro  artista  mal 
sazonado  e  pouco  activo,  salla  com  lampe- 
jante  evidencia  uma  comprehensão  indivi- 
dual de  synthetisar  a  vida  pela  forma, 
e  uma  evocação  do  antigo  em  tanta  ma- 
neira pujante,  violenta,  desenvolta,  encyclo- 
pedica,  que  esse  amador  cl'esculptura  con- 
seguiu em  quatro  annos  d'ensimesmação 
sobre  dois  livros,  maravilhas  como  nenhum 
profissional  nosso,  antigo  e  moderno,  seria 
capaz  derealisar  em  quarenta  de  pencionis- 
mo  atravez  os  ateliers  de  Roma  e  de  Paris. 
O  caso  custa  a  roer  n'uma  affirmativa 
simples  de  conversa,  prevenido  como  se  está 
contra  os  exageros  da  amizade  em  caça  de 
cathedraes  para  os  seus  santos:  mas  vale 
a  pena  ir  ás  Caldas  só  para  modificar  este 
estado  de  descrença,  e  saudar  em  Raphael 
Bordallo  um  dos  génios  creadores  mais  pro- 
fundamente originaes  do  mundo  contempo- 
râneo. 


os    GATOS 


Até  á  hora  da  minha  estada  nas  Caldas, 
a  bagagem  de  grande  esculptura  de  Bor- 
dallo,  constava  do  seguinte : 

—  Talha  manuelina,  sobre  pedestal  do 
mesmo  typo. 

—  Baídaquino  e  misnla  gothica,  com  es- 
tatueta do  infante  13.  Henrique. 

—  Scenas  dramáticas  da  paixão  de  Je- 
sus, para  as  capellas  da  matla  do  Bussaco. 

Descrever  uma  por  uma  cada  qual  das 
peças  referidas,  é  um  trabalho  inglório,  seja 
qual  fôr  a  lucidez  dos  planos  descriptivos. 
A  mais  imperfeita  photographia  sem  duvida 
excede,  como  justeza  d'apunto,  tudo  quan- 
to de  mais  rigoroso  e  methodico  eu  escre- 
ver. Entanto,  mau  grado  a  exiguidade  dos 
meios  de  que  disponho,  não  ha  remédio  se- 
não aguar  aqui  algumas  pallidas  figurações 
das  peças  cima  ditas,  e  começarei  pela  ta- 
lha manuelina,  que  o  sr.  D.  Carlos  acaba  de 
comprar.  Tem  o  contorno  da  bilha  portu- 
gueza,  o  bojo  em  pêra  invertida, estrangulada 
bastante  no  gargalo  e  afusando  airosamente 
para  o  pé,  que  o  esculptor  perfilou  numci- 


os    GATOS  7 

po  historiado.  Na  parte  ornamental  conta 
três  partes :  bojo,  gargalo  e  lampa,  abraça- 
das todas  três  n'uma  cinzelaria  golhica  muito 
doce,  feita  de  motivos  religiosos  dos  ve- 
lhos túmulos  d'Alcobaça  e  da  Batalha,  e  al- 
guns accessorios  humildes  da  zona  piscató- 
ria portugueza,  como  sejam,  entrançados  de 
canastra,  redes,  algas  e  roldanas.  A  deco- 
ração do  bojo  é  uma  espécie  de  colar  que 
abraça  a  bilha  pelo  terço  médio  da  redon- 
deza, feito  de  cinco  fiadas  de  motivos,  a  sa- 
ber: de  cima  para  baixo  —  1.'  corda  em- 
breada,  cheia  de  nós  e  rodellas  de  cortiça, 

firolongamento  da  que  forma  as  azas  da  bi- 
ha,  e  de  que  ao  depois  se  dirá  mais  limpa- 
mente—  2.'  rede  com  peixes  circuitando  o 
bojo  n'uma  espécie  de  lufo  preso  entre  dois 
pequenos  frisos  salientes  —  3.°,  grande  ar- 
caria golhica,  columnellos  e  rozaceas,  cerca 
d'um  palmo  de  largo,  inspiração  dos  nobi- 
líssimos estylos  da  Batalha  —  4.°,  cinto  d'a- 
zulejos  em  relevo,  imitados  dos  sarcófagos 
dos  filhos  de  D.  Ignez  ;  d'espaço  a  espaço 
brazões  pequenos  de  cinco  quinas,  sem  coroa, 
e  circundados  d'algas  que  os  engastam,  en- 
cocharrando-se  de  dentro  para  fora  —  5.®, 


os    GATOS 


remate  ou  franja  do  colar,  formado  por 
meios  SS  oppondo-se  em  pequeninos  co- 
rações de  typo  phantasioso. 

Esta  ornamentação  é  interrompida  nos 
quatro  pontos  cardeaes,  por  quatro  baixos 
relevos  formando  medalhões.  Os  que  ficam 
por  baixo  das  azas  da  talha,  representam 
scenas  de  caravellas  e  naus  proando  a  ter- 
ras mysteriosas,  onde  a  legenda  gothica 
á'India  e  Africa,  explicativas.  Os  da  pre- 
pendicular  á  linha  d'aquelles,  dão  os  bustos 
do  infante  D.  Henrique  e  de  Camões,  com 
Sbas  legendas  assi,  e  todos  quatro  em- 
moldurando  em  folhas  d'alga.  As  azas  da 
talha  forma-as  uma  corda  breada,  com  ro- 
dellas  de  cortiça  aqui  e  além,  e  que  parecendo 
nascer  no  platô  do  bojo,  arma  de  cada  lado 
d'este,  em  oito  de  conta.  Chegada  porém  á 
guarnição,  em  vez  de  a  interromper,  a  cor- 
da passa  por  traz  de  dois  brazões  da  rai- 
nha Leonor,  padroeira  das  Caldas  e  funda- 
dora e  doadora  do  seu  benemérito  hospital 
e  misericórdia,  d'onde  diverge  apoz,  pr'a  se 
ligar  á  que  fazia  o  primeiro  dos  cinco  cola- 
res ornamentaes  que  atraz  fallei,  e  que  por 
seu  turno,  chegando  aos  medalhões  do  in- 


os    GATOS  9 

fanle  e  de  Camões,  arma  em  coruchéu  ou 
frontão,  remalando  pela  esphera  armilare  a 
cruz  de  Christo. 

Se  o  leitor  percebeu  do  meu  discurso, 
naturalmente  calcula  como  esta  decoração 
lilhurgica  epagã  veste  o  corpo  da  talha  n'u- 
ma  heráldica  pompa  de  historia  heróica  e 
plebeismo,  onde  os  olhos  se  vão,  babando  o 
romantismo  das  grandezas  pátrias,  abolidas. 

Como  lhes  dar  ideia  agora  do  gargallo? 
Imaginem  que  sobre  um  d'esses  cânta- 
ros que  as  raparigas  de  Coimbra  levam  á 
fonte,  bojudos,  e  comduasazitasempccento 
circumflexo  aos  lados  do  boccal,  alguém 
coUocava  a  pixide  gothica  d'alguma  das 
nossas  Sés  monumentaes,  uma  pixide  que 
Gil  Vicente  tivesse  feito  sobre  desenhos  de 
Garcia  de  Rezende,  em  golhico  flamante — o 
sextavado  péd'esmaUe  e  rendas  manuelinas, 
burilado  como  o  pé  do  cálix  da  Sé  d'Evora; 
e  assente  n'este,  um  edifício  gothico  de  seis 
pilares,  acabando  em  espigões  rendados  d'al- 
gas,  e  desligando  de  si,  a  meia  altura,  ramos 
que  divergissem  para  com  os  oppostos  darem 
seis  coruchéus  miniaturaes,  d'uma  invero- 
símil expressão  de  custodia  dos  Jeronymos 


10  os    GATOS 

e  porta-paz  da  Casa  da  Moeda,  sob  que  fi- 
cassem, entre  pilar  e  pilar,capellitas  golhicas 
com  perspectivas  de  columnellos,  e  fandos 
d'ogiva,  ájour,  mui  delicados...  N'essasca- 
pellas  ou  nichos,  abrigando-se,  symetrica- 
mente,  os  brazões  das  Caldas  e  de  Lisboa, 
os  monogrammas  da  fabrica  e  do  ceramista, 
e  emfim  grupos  d'eslatuetas  microscópicas, 
reproduzindo  parte  da  esculptura  que  Bor- 
dallo  já  fez  para  o  Bussaco.  A  ponta  dos  co- 
ruchéus projecta-se  em  espigão  té  ao  re- 
bordo do  gargallo,  esguia  como  a  supplica 
de  dois  braços  elhicos,  que  se  apoiassem, 
sem  valor,  a  uma  ogiva  em  oitos  de  vitral, 
sobranceira  ás  capellas  e  fazendo  como  uma 
espécie  de  segundo  pavimento  do  ediGcio. 
Restaria  fallar  da  tampa  ou  cobertura :  é  um 
telhado  de  seis  aguas,  a  cujos  espigões  sera- 
fins chimericos  voam,  de  mãos  postas,  e  ten- 
do no  topo  a  esphera  armilar  e  a  cruz  de 
Ghristo. 


A  talha  assenta  n'um  pedestal  onde  os 
motivos  ornamentaes  fundem  e  derivam  do 


os    GATOS  11 

mesmo  unisono  d'inspiração  religiosa  e  po- 
pular. E'  um  cipo  rectangular  de  metro  e 
tanto,  carregado  ao  dorso  de  quatro  leões 
heráldicos,  dormentes,  como  os  que  é  uso 
topar  de  guarda  aos  velhos  túmulos.  As 
grandes  faces  mostram  a  alto  relevo,  ao 
centro,  n'um  fundo  d'azulejos  mouriscos  re- 
produzidos da  Batalha,  as  armas  da  rainha 
Leonor,  que  fingem  manter-se  em  posi- 
ção por  via  da  corda  breada  que  vol- 
teia e  fura  de  cada  banda,  o  cipo,  cheia  de 
nós  e  rodellas  de  cortiça.  Na  face  de  cima, 
torna-se  a  vêr  a  corda  rodeando  como  uma 
serpente  symbolica  a  ara  circular  que  jus- 
tapõe ao  pé  da  talha,  e  pequenos  brazões 
de  cinco  quinas,  cercados  d'algas  e  nós  de 
corda,  formando  como  o  coroamento  das 
grandes  arestas  verticaes  do  pedestal,  que 
são  truncadas,  e  a  truncatura  vestida  d' um 
entrançado  de  canastra  (industria  local)  co- 
mo os  que  se  vêem  em  certos  detalhes  da 
Batalha  e  da  Madre  de  Deus. 

Não  pude  admirar  esta  maravilhosa  peça 
senão  crua,  e  é  de  suppôr  que  a  aposição 
das  tintas  lhe  transforme  o  contorno,  e  o  ca- 
racter até,  completamente.  Tal  como  a  vi,  se 


12  OS    GATOS 

bem  que  n'ella  eu  reconheça  fodos  ou  quasi 
todos  os  caracteres  d'uma  obra  máxima, 
comtudo  não  deixarei  de  fixar  alguns  repa- 
ros breves  que  o  ohserval-a  bem  me  sugge- 
riu.  Começarei  por  notar  que  toda  a  obra 
d'arte  obriga  a  manutenção  d  um  accordo  ló- 
gico, imprescindivel,  entre  os  seus  elementos 
constituitivos:  no  caso  presente,  entre  a  for- 
ma, e  os  ornatos  que  a  revestem,  entre  a  fi- 
liação d'aquella  e  a  origem  d'estes,  devendo 
esse  accordo  observar-se,  para  que  ioda  á 
peça  seja  harmónica,  não  só  na  questão 
d'adorno  e  forma,  mas  até  nas  relações  com- 
parativas, iniciaes,  de  hnha  para  linha. 

Quando  contemplo  um  objecto  d'arte  (um 
vaso  ornamental,  seja  o  exemplo)  o  primeiro 
acto  do  meu  espirito  é  despir  esse  vaso  de 
todos  os  arrebiques  que  o  enfeitam,  e  con- 
siderar-lhe  attentamente  a  íorma  primitiva. 
No  caso  Bordallo  essa  forma  é,  já  disse,  a  da 
bilha  portugueza,  isto  é,  um  vaso  grego  da 
primitiva  e  ingénua  infância  da  olaria,  com 
seu  caracter  pagão  accentuado,  e  purissimas 
curvas,  d'uma  voluptuosa  expansão  de  bus- 
to virginal.  Conhecido  o  contorno  e  perfil  do 
vaso  simples,  o  meu  segundo  acto  é  depois 


os    GATOS  13 

estudar  o  caracter  dos  adornos  que  o  re- 
restem :  no  caso  Bordallo  são  elles  na 
maioria  inspirados  ou  bebidos  na  epocha 
golhica,  d'uma  arte  já  requinlada,  sabia  e 
culminante,  cujo  caracter  em  Portugal  foi 
essencialmente  religioso.  Tratando  de  ver 
depois  se  a  decoração  serve  no  vaso,  no 
ponto  de  vista  do  casamento  e  reciproco 
accordo  das  linhas,  do  eslylo,  do  typo,  e  até 
do  destino  social  das  duas  coisas,  averiguo 
que  estou  deante  d'um  vaso  simples,  com 
decorações  mui  complicadas,  que  tenho  n'um 
vaso  pagão,  decorações  do  typo  catholico  e 
mystico,  e  tanto  este  conjuncto  briga  no  meu 
espirito,  que  eu  não  saberia  pronunciar-me 
lucidamente  sobre  o  destino  social  da  peça 
resultante.  E'  um  vaso  religioso  ?  E'  uma 
peça  de  hall  ?  Não  sei  dizer  ao  certo,  tanto 
os  seus  elementos  de  formação  provem  de 
fontes  que  vou  a  suppôr  heterogéneas  e  an- 
tagónicas. 

Observe-se  cuidadosamente  a  talha  na  sua 
forma  ingénua  e  desadornada,  o  galbo  mol- 
lemenle  lascivo  como  um  quadril  de  deuza 
nua,  o  esvasado  dos  seusdechves  voluptuo- 
sos, todo  elle  carne  e  vida  livre,  trazendo  a 


14  OS    GATOS 

ideia  d'uma  nudez  dançante  e  gargalhante, 
em  pleno  sol  d'Athenas,  por  occasião  das 
festas  a  Ceres...  não  lhes  parece  que  os  or- 
namentos gothicos  que  a  enfeitam,  com  suas 
linhas  rigidas  e  arestas  cutilantes,  seus 
coruchéus  em  prece,  de  mãos  postas,  suas 
arcarias  de  claustro,  lembrando  penitencia, 
jejuns,  pelles  lividas,  ossos  de  rojo  ante  os 
aliares,  mosteiros  e  sombra,  entrechocam  no 
espirito  dois  estados  moraes  irreconciliáveis, 
suggeridos  pelas  duas  ideias  de  catholicis- 
mo  e  paganismo,  d'expansão  vital  e  peni- 
tencia, de  volúpia  ridente  e  maceração  pe- 
los flagicios? 

Vamos  depois  ao  trabalho  propriamente 
inventivo  da  lalha,  e  repara-se  no  seguinte: 
que  ella  já  não  conserva  sob  a  decoração  as 
linhas  mães  do  vaso  grego  inicial ;  ceifa- 
ram-lhe  o  gargallo,  substituindo-o  por  um 
vaso  de  parliculas  maravilhosa  e  genuina- 
mente flamboyanle.  E'  um  attentado  ás  leis 
da  decoração  ?  Os  entendidos  fallem.  Pare- 
ce-me  todavia  que  uma  vez  passada  em  jul- 
gado a  possibilidade  de  juntar  n'um  produ- 
cto  decorativo,  a  ourivesaria  de  D.  Manuel,  á 
bilha  d'Extremoz,  haveria  talvez  meio  de  go- 


os    GATOS  15 

thicisar  o  collo  da  talha  sem  deformação  ou 
sequestro  da  sua  forma  primitiva.  Pois  não 
é  verdade  ?  Tudo  estaria  em  tomar  o  mo- 
tivo gothico  ideal,  núcleo  da  decoração,  e 
desenvolvel-o  por  forma  a  elle  vestir  o  gar- 
gallo  da  bilha,  s«m  lhe  alterar  as  linhas  prin- 
cipaes.  O  sutaque  religioso  seria  assim  elimi- 
nado, o  contorno  e  perfil  da  obra  ganhariam 
assim  graça  mais  leve,  até  porque  a  estabi- 
lidade da  talha  augmenlaria.  Porque,  fixe- 
mos outra  coiza  de  passagem.  Não  basta 
que  o  objecto  d'arte  seja  estável,  é  absolu- 
tamente necessário  que  o  pareça,  e  logo  ao 
primeiro  aspecto  se  imponha  como  tal.  Ora 
a  talha  de  Bordallo  dá  um  pouco  a  impres- 
são de  violar  as  leis  do  equilibrio,  apparen- 
temeníe,  está  dever,  se  se  compara  a  exigui- 
dade de  diâmetro  do  pé,  com  o  aliaz  consi- 
derável volume  do  gargallo  e  cobertura  or- 
nada que  o  remata.  Por  este  lado  ainda  se 
descobre  melhor  a  cisão  mortal  entre  a  de- 
coração e  a  forma  do  objecto,  porque  a  ins- 
tabilidade faz  vêr  na  talha  dois  vasos  so- 
brepostos, e  nunca  um  producto  artislico 
homogéneo,  desabrochando  fecundamente 
dum  motivo  uno  e  logicamente  indissolu- 


1«  os    GATOS 

vel.  Ainda  outro  detalhe  chocante:  a  fragi- 
lidade e  rígido  perfil  das  ansas  de  corda, 
partindo  em  oito  de  conia,  da  expansão 
maior  do  galho,  a  fazer  azas.  Essa  rigidez 
diria  por  exemplo  bem  n'um  gomil  gothico, 
de  bojo  secco  e  contorno  ascético,  genuino 
e  typico  da  epocha  ;  porém  n'um  vaso  de 
quadris  cheios,  agride  avista,  pelo  despara- 
lellismo  de  duas  parles  expansivas  da  talha, 
azas  e  bojo,  cujas  curvas  geradoras  me  pa- 
rece deveriam  ser  do  mesmo  typo.  Depois 
esse  grande  vaso  monumental  realisado  em 
cerâmica  por  engano,  pois  tudo  n'elle  exige 
uma  versão  definitiva  em  metal  forte,  esse 
vaso  monumental,  posto  não  sirva,  haverá 
que  ser  transportado  d'uma  banda  para  a 
outra;  e  que  desastrado  ousaria  fazei -o  pe- 
las azas,  sem  arriscar-se  a  vêr  pedaços  no 
solo  uma  obra  de  tão  laboriosa  e  larga  ges- 
tação ? 

Estas  observações  não  constituem  de  mo- 
do algum  critica  a  uma  obra  que  o  cera- 
mista concebeu  e  realisou  dentro  d'uma  crise 
eslhetica,  cujas  determinantes  lhe  são  pes- 
soaes,  e  impulsivas  portanto  da  sua  inspi- 
ração, da  sua  educação  e  da  sua  índole.  O 


os    GATOS  17 

que  eu  estive  a  fazer  foi  anles  o  andaime  do 
meu  sonho  d'uma  jarra  ornamental,  obede- 
cendo a  uma  lógica  d'arte  que  me  pertence, 
e  fora  da  (jual  não  spí  vibrar. 

De  resto,  casmurro  seria  o  que  não 
quizesse  vêr  na  talha  de  Bordallo  o  grande 
estylo  d'uma  intuição  gt^nial  buscando  fun- 
dear a  arte  hodierna  nos  subsolos  fecundos 
da  tradição  histórica  e  das  antigas  ma- 
ravilhas mosleiraes ;  idiola  seria  o  que 
pola  supposta  incongruência  do  critério  de- 
corativo do  ceramista,  pelo  seu  ar  lé'agora 
fragmentário  e  insubmisso,  desvaliasse 
aquella  peça,  em  toda  a  parle  rara,  do  ex- 
traordinário valor  que  ella  contem  como  ten- 
teio de  cerâmica  nova ;  e  por  criminoso  te- 
ria o  que,  reportado  aos  modelos  tantas  ve- 
zes lambidos  de  estrangeiros,  não  sentisse 
perante  aquolle  bocado  nacional,  tão  nobre- 
mente portuguez,  esse  novello  d'emoção  dos 
desterrados  ao  avistarem  por  entre  as  cordas 
da  nau,  a  primeira  fímbria  da  terra  em  que 
nasceram/ 

•  Eis  ahi  uma  composição  de  jarra  moderna,  feita 
por  Bordallo  a  pedido  do  jornalista  Cunha  Vasco,  que 
me  parece  um  primor  d'elf!gaucia  orni-manista.  A  fór- 


1«  os    GATOS 

A  estatueta  do  infante  D.  Henrique,  e  ni- 
cho gothico  que  lhe  serve  de  supporle,  é  na 
obra  séria  de  Bordallo  um  entretém  d'en- 
cantadora  contextura,  posto  entre  a  talha 
manuelina  e  as  figuras  dramáticas  do  Bus- 
saco.  A  figurinha  pretende  dar  o  tom  secco, 
um  tanto  hirto,  mas  naturalista  já,  da  es- 
culptura  medieva  em  transição  p'rá  Renas- 
cença. Tem  o  chapéu  desabado  que  lhe 
põem  na  cabeça  as  pinturas  do  tempo,  o  veu 


ma  do  galbo  é  a  do  cântaro  aleratejauo,mais  alongado^ 
o  colo,  alto  e  com  dez  arestas  nítidas  delimitando  su- 
perfícies planas,  á  jour,  como  o  gargallo  do  celebre  vaso 
d' Alhambra,  que  esteve  em  Lisboa  na  exposição  das 
Janellas  Verdes  ;  o  rebordo  ou  bocca,  formado,  no  pon- 
to em  que  as  arestas  findam,  por  dez  abelhas  era  ati- 
tude de  caminharem  para  dentro  da  jarra,  e  no  ponto 
em  que  findam  as  facetas  intermédias,  por  dez  redue- 
ções  microscópicas  dos  pratos  celebres  da  fabrica,  que 
assim  cingem  a  bocca  do  vaso  u'uma  espécie  d'aristo- 
cratico  circolí^  Duas  azas  em  braços  arqueados,  cheias, 
magnificas,  feitas  d'uma  haste  de  girasol  e  uma  haste 
de  papoula,  cobertas  de  folhagem,  e  encostando  as 
grandes  flores  termiuaes,  abertas,  á  nascença  do  gar- 
gallo, uma  por  cada  banda,  por  forma  a  adornal-o  sem 
prejuízo  dos  feitios  originaes  que  elle  já  tinha. 

Bojo  e  cori^o  da  jarra,  tudo  liso:  só  da  banda  do  gi- 
rasol uma  rede  com  peixes,  decorando  ingenuamente 
um  pouco  do  primeiro,  e  da  banda  da  papoula  um  me- 
dalhão com  a  cabeça  de  Cunha  Vasco,  e  um  grande  la- 
garto, curioso,  cuja  cauda  nervosamente  ondula  no  se- 
gundo. 


os    GATOS  19 

descendo,  a  lhe  dar  umas  poucas  de  voltas 
ao  pescoço,  e  uma  roupa  monástica,  esguia, 
cahindo  quasi  sem  modelar  o  corpo,  e  amor- 
talhando-o  com  uma  rigidez  de  magistrado 
e  monge-cavalleiro.  Com  uma  das  mãos  faz 
viseira  sobre  a  testa,  e  por  baixo  d'ella  os 
olhos  altos  teem  o  ar  d'estar  mirando  ao 
largo  alguma  caravella  suspirada.  No  tra- 
balho da  misula  e  baldaquino,  a  mesma  so- 
lemne  graça,  religiosa  e  cantante,  paten- 
teada já  nos  motivos  gothicos  da  jarra,  e 
que  é  o  calafrio  da  Batalha  na  nervosidade 
dum  poeta  assombrado  por  essa  incompa- 
rável obra  prima.  O  baldaquino  tem  seis  fa- 
cetas, separadas  por  pilares,  sobre  que  se 
implantam  pequenos  obeli.^cos  semelhantes 
aos  do  gargallo  da  talha  já  descripla.  Fa- 
zendo platibanda,  ornatos  de  corda,  em  ara- 
besco, e  nas  facetas  rozaceas  com  escudos 
d'armas  e  monogrammas  da  fabrica  e  do  es- 
culplor.  Sobranceira  a  estas,  a  cúpula,  toda 
enrocada  á  jour,  com  uma  pinha  por  lan- 
terna, e  arcos-butantes  fazendo  a  ligação 
da  pinha  aos  obeliscos.  A  misula  figura  uma 
base  de  columna  terminando  por  uma  pinha 
dalgas  enroladas.  Partindo d'essa base,  um 


20  OS   GATOS 

corpo  de  seis  capellas  ogivaes,  em  tudo  se- 
melhante ao  do  gargallo  da  talha  manuelina, 
só  com  a  differença  de  cada  capella  ter 
sobre  o  tope,  n'umaespheraarmillar,  a  cruz 
de  Christo.  As  capellilas  circuitam  uma  es- 
pécie de  peanha  curta,  simples,  onde  se 
apruma  a  estatueta. 


Entra-se  agora  na  obra  do  Bussa^io,  en- 
commendada  para  substituir  os  antigos  bar- 
ros, alguns  tão  bellos,  que  povoavam  as  ca- 
pellas dispersas  pola  malta,  barros  que 
muitos  attribuein  a  um  monge  do  convento, 
e  de  que  ao  ci?rto  nunca  se  poude  averiguar 
a  procedência,  N^essas  velhas  esculpturas,  o 
modelador  seguia  um  pouco  a  moda  italia- 
na, no  arranjo  clássico  das  roupas,  no  con- 
vencionalismo parado  dos  gestos,  e  na  egual- 
dade  desesperadoramente  serena  dos  perfis. 
A  antiga  Paixão  do  Bussaco,  fosse  de  fra- 
de, fosse  de  profissional,  o  certo  é  que  se 
resentia  d'um  espirito  devoto  e  d'um  cinzel 
pouco  nervoso ;  o  terreno  escapara  ao  mo- 
delador extático  de  celeste,  e  a  emoção  na- 


os   GATOS  21 

turalisla  da  vida  substiluiu-a  elle  por  uma 
espécie  d'espiriíualisação  pomposa,  oratória, 
que  dava  a  toda  essa  obra  tão  longa,  o  as- 
pecto glacido  d'uma  successão  de  quadros 
vivos.  Quando  os  frades  se  foram  e  a  vene- 
rável matia  da  serra  (um  dos  pouquissimos 
logares  verdadeiramente  sagrados  de  Portu- 
gal, onde,  em  certas  ruas,  ninguém  devia  en- 
trar senão  descoberto  e  pensando  em  Deus) 
ficou  entregue  ao  comprazer  dos  carvoeiros 
e  salteadores  foragidos  da  Bairrada,  para  as 
estatuas  de  barro  das  capellas  começou  essa 
escruciação  terrivel  d'apupos  e  pedradas  que 
á  mesma  hora  ia  afrontando  as  frontarias 
dos  mais  conventos  c  oratórios  abandona- 
dos. Tão  descarada  bestealidade  ficou  moda 
muilos  annos  ainda  entre  os  mariolões  e  al- 
fenis  vindos  de  sucia,  até  á  matta.  Estudan- 
tes de  Coimbra,  filhos- familias  da  Beira  e 
da  Bairrada,  toda  a  alimária  rica  e  impune 
a  quem  os  pães  instigavam  contra  os 
frades  depois  de  se  terem  locupletado  nos 
roubos  dos  conventos,  para  matar  o  tem- 
po, antes  ou  depois  dos  pic-nics,  lá  iam 
aos  tropo-galljopos,  borrachas  sorvidas, 
apontar  aos  narizes  e  aos  dedos  das  figuras, 


22  OS   GATOS 

arrazar  até  ao  ultimo  caco  d'essa  piedosa  e 
melancholica  liturgia,  e  ainda  por  cima  es- 
crever na  parede  branca  dos  nichos,  obsce- 
nidades grosseiras  d'energumenos.  D'essa 
infamissima  campanha,  se  pela  calissa  dos 
oratórios  buscarem  bem,  hão-de  apurar  es- 
tranhos documentos,  porque  muitos  malan- 
dros assignavam  por  baixo  os  seus  dichotes, 
e  eu  mesmo  vi  a  lápis,  ha  três  ou  quatro  an- 
nos,  n'uma  das  capellas  da  matla,  a  relação 
d'apuro  dum  d'esses  jogos  de  pedrada,  onde, 
adeante  do  nome  d'um  conhecido  ministro 
d'estado,  magistrado  integerritno  e  pol lição 
Hberal  de  velha  stirpe,  então  estudante,  lhe 
era  contada  uma  devaslação  de  sele  cabe- 
ças de  santos,  e  nove  dedos  polegares  de 
phariseus,  com  a  nota  de  ganhou  entre  pa- 
renthesis.  A  obra  que  Raphael  Bordallo  está 
creando  para  substituir  as  exlinctas  escul- 
pluras,  corre  eminente  risco  de  ser  trucida- 
da como  a  antiga,  mercê  da  seWageria  vil 
d'um  povo  que  o  constitucionalismo  des- 
aprendeu da  fé,  sem  lhe  deixar  sequer 
emoção  pr'ás  formas  d'arte.  Não  me  compete 
a  mim  codificar  a  morte  para  prophylaxia 
d'estes  entre  nós  continuados  crimes  de  bom 


os   GATOS  2S 

gosto,  se  bem  tenha  por  certo  que  de  ha 
muito  elles  estariam  exiinctos  se  cada  vân- 
dalo colhido  em  flagrante  recebesse  summa- 
riamente,  no  posto  de  guarda  próximo,  um 
razoável  par  de  bastonadas.  Até  á  minha  vi- 
sita ao  atelier  das  Caldas,  Bordallo  tinha 
promptas  quarenta  e  sete  figuras,  de  tama- 
nho natural  ou  reduzidas,  segundo  o  espaço 
e  o  pé  direito  das  capellas,  com  distribuição 
por  oito  lances  da  tragedia  christã,  que  voa 
dizer. 

No  Horto:  com  uma  figura  única,  a  do 
Christo  ajoelhado,  postura  lassa,  mão  es- 
querda sobre  o  peito,  o  braço  direito  n'um 
toro  adusto  d'oliveira.  Foi  a  primeira  mode- 
lação humana  de  Bordallo,  e  d'isso  se  atrai- 
çoa, porque  amosenda,  não  tem  contempla- 
ção dolorosa,  nem  espiritualisação  nem  ori- 
gem divina,  fallando-lhe  até  a  expressão 
própria  d'essa  desfallencia  terrivel  de  quan- 
do o  hysterico  judeu,  prevendo  a  morte,  du- 
vida quasi  da  sua  missão  reveladora.  O  in- 
terior do  sanctuariosinho  destinado  a  esta 
figura,  deverá  ser  povoado  de  troncos  d'oli- 
veira,  nodosos,  esgalhados,  que  já  estão  fei- 
tos, sendo  a  parede  do  fundo  envidraçada, 


24  OS   GATOS 

para  sobre  o  vidro  se  colorir  um  ceu  crepus- 
cular, umas  ultimas  ourellas  de  sol  poslo,  e 
por  entre  os  troncos  o  archanjo  da  allucina- 
ção  que  teve  o  Redemptor  n'aquella  hora 
de  desalento. 

Traição  de  Judas,  no  olival  de  Gelhsmani, 
alguns  momentos  depois  de  Jesus  estar  posto 
em  oração.  E'  o  momento  clássico  do  beijo. 
« Chegando- se  Judas  a  Jesus,  lhe  disse,  eu 
vos  saúdo,  mestre,  e  o  osculou.  Ao  mesmo 
tempo  aquella  turba  de  homens  armados, 
lança  mão  de  Jesus,  e  os  discipulos  aterra- 
dos, desampararam-no  e  fugiram.»  O  grupo 
é  ainda  um  pouco  magro,  e  sem  grande  ca- 
racter a  mimica  do  beijo,  de  resto  diíBcil  de 
visionar  por  forma  destoante  das  milhares 
de  versões  conhecidas  em  pintura  e  escul- 
ptura,  d'esla  passagem.  Jesus  tem  a  cabeça 
coberta  com  o  manto ;  Judas  approxima-lhe 
da  face  os  beiços  trémulos,  e  com  uma  das 
mãos  segura  a  bolsa  do  dinheiro.  Um  guar- 
da do  templo  á  direita,  arranca  a  espada; 
por  traz  d'uma  arvore  um  oulro  coca,  e  pelo 
fundo  espalham-se  diversos,  n'uma  attilude 
lúgubre  de  cilada. 

Passagem  do    Cedron,    «aqui  se  consi- 


os   GATOS  26 

dera,  reza  a  legenda  da  antiga  capella 
do  Bussaco,  a  ponte  do  Cedron  por  ondd 
Christo  N.  Senhor  passou,  e  os  tyrannos  o 
lançaram  abaixo  sobre  as  pedras  que  estavam 
no  rio,  e  ficaram  rignaes  impressos  como  se 
vêem  no  dia  de  hoje.»  Duas  figuras,  S.  Pedro 
e  S.  João,  o  primfiro  cabido  de  joelhos,  a 
mão  esquerda  apoiando  o  buslo  meio  ergui- 
do, que  se  alonga,  pondo  a  cabeça  na  pos- 
tura da  allenção  varada  d'atonia,  e  os  olhos 
sobre  algumas  poldras  do  rio,  que  a  direita 
aponta  com  os  nodosos  dedos  de  povo,  pa- 
ra os  silios  em  que  devem  jazer  signaes  da 
queda.  Este  S.  Pedro  é  já  um  segurissimo 
estudo  d'expressão,  com  a  esguia  cabeça  co- 
berta do  panno  árabe,  a  barba  hirsuta,  o 
perfil  judaico  doloroso,  bem  lançado  nas  flu- 
ctuantes  roupas  do  clima  ardente,  e  com 
dedos  trémulos  e  roídos  que  dão  a  edade  e 
a  angustia  n'um  admirável  jacto  de  realida- 
de. A  figura  de  S.  João  vê- se  de  pé,  curvada 
para  o  sitio  que  o  outro  indica;  tem  a  ca- 
beça coberta  pela  capa,  as  madeixas  cabi- 
das, a  face  inberbe  d'uma  adolescência  pu- 
ra d'ephebo  transido,  e  em  todo  esse  corpo 
modelarmente  enroupado,   d'uma   silhueta 


26  .  OS   GATOS 

fremente,  é  ainda  na  physionomia  das  mãos 
qae  se  concentra  o  espanto  trágico  do  epi- 
sodio. Nada  de  clássico  ou  convencional  no 
duo  rezuhante ;  é  uma  scena  arrancada  á 
sensilividade  creadora  d'um  génio  esponta- 
neamente intuitivo,  simples  e  grande,  envolta 
no  sentimento  mystico  d'um  frei  Bartholomeu 
lido  em  Flaubert  e  nos  livros  de  Renan. 

Em  casa  d'Annàs:  columnata  ao  fundo, 
e  sobre  um  tripé,  da  esquerda,  uma  bacia 
de  cobre  com  fogachos .  Annás,  sobre  uma 
espécie  d'estrado,  atlende  Jesus  que  os  guar- 
das e  servos  arrastam  para  elle,  entre  inso- 
lências. E  um  velho  judeu  de  lypo  octogená- 
rio, a  bocca  de  peixe  babando  caducamente 
os  sons  tartamudeados,  barbicha  rara,  e  com 
um  grande  nariz  de  pássaro  carnívoro.  .  . 
Quasi  uma  múmia,  com  o  aprumo  difiQcil  da 
cachexia  senil  que  só  a  perversidade  faná- 
tica epileptisa.  Tem  o  turbante  árabe  um 
pouco  á  banda,  o  caftan  aberto,  e  na  cintura 
d'especlro  a  facha  lassa ;  a  mão  direita  apoia 
na  cadeira,  vê-se-lhe  a  esquerda  no  ar  co's 
dedos  chocalhantes,  esbrugados,  a  unha  era 
garra  —  dedos  d'animal  de  sangue  frio,  vis- 
cosos da  morte  próxima,  onde  o  gesto  diz 


os   GATOS  27 

lassidão  e  ódio  entre  a  descoordenação  dos 
movimentos.  Traz  d'elle  um  árabe,  de  pé, 
põe  no  turbante  a  mão  esquerda,  vê-se-lhe 
ocotovello  nu  na  manga  larga,  ossos  de  nis- 
tico,  e  olha  Jesus  fazendo  uma  mimica  d'es- 
panto.  N'um  dos  degraus  do  estrado,  aos  pés 
d'Annás,  um  venerável  judeu  contempla  o 
nazareno  austeramente,  a  mão  direita  per- 
dida na  grande  barba  em  rio  de  magistrado, 
e  sobre  a  testa  o  cinphinin  ou  boceta  de 
coiro  em  que  se  guarda  a  lei  de  Deus,  dis- 
tioctivo  dos  doutores  da  lu,  e  geradora  de 
pensamentos  justos.  A  cara  é  soberba,  o  ar 
de  grande  raça,  olhos  cheios  de  venerabili- 
dade  e  pensamento.  Estas  Ires  figuras  oc- 
cupam  o  fundo  da  scena,  onde  no  silencio 
paira  o  quer  que  seja  de  terrivel,  quando 
Jesus  avança,  manietado,  com  a  túnica  em 
pedaços,  os  cabellos  cabidos,  suando  frio 
na  face  esbofeada.  Três  judeus  que  o  arras- 
tam, põem  na  frialdade  do  âmbito  a  nota  da 
plebe  lisongeada  pela  acquiescencia  muda 
dos  mandões.  Um  d'elles,  de  capacete  e 
lança,  apoia-se  no  hombro  de  Jesus,  a  lhe 
segredar  a  ultima  insolência.  Outro  levanta  a 
mão  pr'alhe  espalmar  em  cheio  uma  bofela- 


28  OS   GATOS 

da;  e  em  todos  Ires  o  membrudo  das  linhas, 
a  deformação  bestial  das  mascaras  e  dos 
corpos,  põem  um  contraste  animal  na  ana- 
tomia escolhida  dos  personagens  superiores. 
Em  casa  de  Caiphás:  tribunal,  no  mo- 
mento em  que  Jesus  perguntado  se  se  sup- 
põe  o  verdadeiro  Deus,  responde  «que  re- 
construirá em  três  dias  o  templo  do  Senhor.» 
Relruca-lhe  Caiphás,  que  era  summo  sacer- 
dote aquelle  anno  «Mas  confirma,  confirma 
pelo  Deus  vivo,  que  és  effectivamente  Chris- 
to,  filho  de  Deus!»  Jesus  então  «íw  o  dis- 
seste, e  mais  vos  digo  que  alguma  vez  ve- 
reis o  Filho  do  Homem  sentado  á  direita  da 
magestade  divina,  e  vindo  sobre  as  nuvens 
do  ceu  julgar  o  mundo.»  A  estas  palavras 
Caiphás  rasgou  os  seus  vestidos,  um  magis- 
trado cobriu  a  cabeça  com  o  manto,  e  ainda 
ouiro,  furioso,  desceu  o  púlpito  do  tribunal 
aos  gritos  de  «blasphemou  I  merece  a  mor- 
te.» No  primeiro  plaíio  está  de  pé  Jesus, 
visto  em  perfil,  serenissimo,  direito,  a  cabeça 
descoberta  e  a  face  pura,  en^re  dois  esbir- 
ros furiosos  —  um  que  o  empurra,  toman- 
do-o  pela  ligadura  das  cordas  que  o  manie- 
tam, outro  de  taganle  no  ar,  direito  ao  ros- 


os  GATOS  29 

to,  que  o  braço  d'um  terceiro  defende,  in- 
terpondo-se  á  vergastada  com  um  gesto  de 
rude  misericórdia.  Na  concepção  e  realisa- 
mento  d'esta  passagem,  Ião  profundamente 
scenica,  um  tumulto  de  génio  terrificante 
passa,  rajando  e  torcendo,  como  um  simoun 
do  deserto,  os  personagens.  Esses  corpos  de 
padres  fanáticos  não  são  mais  que  os  escra- 
vos escruciados  das  impressões  que  os  es- 
furiam.  Nos  sacerdotes  que  julgam  e  nos  es- 
birros que  arrastam  o  criminoso,  o  mesmo 
assombro  da  blasphemia  ouvida  esparvona 
em  contorsões  e  esgares  de  raiva  hysteri for- 
me. Gaiphás  é  verdadeiramente  uma  figura 
€m  coíip  de  vent:  a  túnica  de  corda,  a  sa- 
marra franjada  de  cainpainhas,  o  busto  em 
espiral  sobre  a  cintura,  a  cabeça  nos  céus, 
a  bocca  em  gritos,  rasgando  o  peito  co'as 
garras  d'inquisidor  cxhautorado  —  uma  fi- 
gura a  que  os  olbos  se  pegam,  mas  onde  se 
não  concentra  o  espanto  todo  da  calastro- 
phe,  que  rebenta  lambam  da  damnação  do 
que  cobre  a  cabeça,  dilacerante  de  blasphe- 
mia religiosa,  n'uma  attilude  de  fuga  e  ter- 
ror que  a  casa  venha  a  terra,  e  ainda  do 
movimento  de  rasgar  das  mãos  do  que  des- 


30  OS   GATOS 

ce  a  escada,  tão  fero  d'energia,  e  eslranho, 
e  cómico,  magro  como  um  espectro,  o  pes- 
coço ás  cordas,  a  cara  de  gato  bravo,  a 
bocca  de  Gorgona,  barbicha  ao  vento,  e  o 
grande  nariz  de  pássaro  carnívoro. 

Em  casa  de  Herodes,  n'uma  apparatosa 
camará  de  príncipe  oriental,  cortinados,  co- 
lumnas,  tapeçarias  e  tropheus.  O  déspota 
acaba  de  fazer  a  sua  toilelle,  eetá  deitado 
n'Lim  leito  de  cochins  e  estofos  preciosos, 
que  as  concubinas  cercam,  familiares,  co- 
bertas de  joalheria  e  semi-nuas.  N'uma  do- 
bra do  tapeio,  aos  pés  do  leito,  um  dogue 
acorrentado,  com  a  cabeça  chata  e  o  olho 
d'esguclha,  em  sangue,  refilando  —  uma 
pomba  no  ar,  voando  sobre  o  leito,  e  outra 
no  chão,  ligeira,  biqueteando  aqui  e  além, 
com  geitos  de  vaidosa:  depois  no  primeiro 
plano  o  grupo  tumultuoso  dos  judeus  tra- 
zendo a  Jesus  manietado,  um  grupo  estu- 
pendo de  violência  viril  e  brutalidade  ple- 
bea  em  gáudio  de  maldade.  O  contraste  en- 
tre as  duas  bandas  do  quadro,  impõe-se 
logo.  Na  pessoa  de  Herodes,  leve  vestido 
n'um  saião  de  brocado  e  pérolas  e  aljôfares, 
braços  e  pernas  nuas,  manilhas  d'oiro  mas- 


os   GATOS  31 

siço,  anneis  nos  dedos,  e  cinturão  de  Iha- 
ma  com  fecharias  d'oiro  cinzelado,  lê-se  a 
enervancia  dormente  do  devasso  que  mal 
pode  abrir  as  pálpebras,  de  deboche,  o  gesto 
quebradiço  do  cynico  sensual  a  quem  tudo 
é  indifferente;  mas  simultaneamente  esse 
eífeminado  lem  chispas  de  chacina,  o  sar- 
donismo  de  quem  não  exitaria  em  martyri- 
sar  pr'a  se  entreter,  e  a  insolência  preciosa, 
mascada,  do  criminal  alliando  na  alma  cruel 
a  ideia  da  libidinosidade,  á  ideia  da  tortura. 
Em  torno  as  escravas  parecem  ser  como  el- 
le,  sensibilidades  estanques  pela  copula  ;  da 
esquerda  uma  mulata,  aos  pés  do  leito,  tem 
o  corpo  n'um  panno  de  iistrões  orientaes,  a 
cavapinha  travada  por  uma  banda  de  seda 
que  lhe  mantém  os  bandós  em  posição,  o 
tronco  nu,  seios  crespos  como  fructos,  e 
tantos  braceletes,  colares,  pingentes  e 
amuletos,  que  ella  recorda  não  sei  porque 
certas  descripções  de  Salambô,  nas  festas 
de  Tannit.  Outra,  de  pé,  na  cabeceira  do 
leito,  traz  uma  ânfora  nas  mãos,  e  attenta 
em  Jesus  a  modo  enternecida.  E'  uma  sul- 
tana do  typo  architectural  das  raças  nobres, 
de  cabecinha  pequena,  perfil  intelligente. 


32  OS    GATOS 

toucada  de  luxo  e  explendida  de  jóias.  E  no 
meio  da  scena  Jesus  temos  olhos  tristes  do 
revolucionário  que  vae  entregar  o  seu  san- 
gue inutilmente:  a  physionomia  pende-lhe  de 
paciência,  lodos  os  sons  da  queixa  proletá- 
ria, eterna,  gemem  na  sua  bocca,  entre  os 
baldões  dos  carrascos  e  a  curiosidade  ape- 
nas pictoresca  da  canalha  humana  por  quem 
morre.  Essa  canalha  tressua  bem  das  figu- 
ras dos  três  guardas  do  templo  que  o  con- 
duzem, e  cuja  força  estupenda  rompe  do 
barro  n'uma  incomparável  animalidade  de 
músculos  e  gestos.  A'  esquerda  um  d'e!les 
agarra  Jesus  pelo  peito  da  túnica,  avança  a 
perna  esquerda,  e  pucha-o  brutalmente 
para  o  leito  do  autocrata :  visto  do  costas  o 
seu  arranco  é  da  mais  expressiva  violência, 
todos  os  músculos  lhe  jogam  sob  a  túnica, 
a  perna  direita  inclina-se  sob  a  pressão  do 
esforço,  íirmando-se  na  ponta  do  pé,  cujo 
calcanhar  erguido  distende  as  correias  da 
sandália:  eaquilloludo  meche,  ondula,  ar- 
ranca, musculatura,  ossatura,  aponevroses, 
pelles,  estofos  de  vestidos,  fumegando  a 
expressão  por  cada  dobra,  dando  a  selva- 
geria  viril  por  cada  slriadura. 


FIALHO    D'ALMEIDA 


os  GATOS 


publicação 
d'inqurito  á  vida  portugueza 


l 


«."ig— 14(ielioíeiiibrodel892 


SUMMARIO 

Ainda  as  esculpturas  do  Bussaco,  e  de 
COMO  ESSA  OBRA  É  TODA  nanativa — Physio- 

NOMIA  DO  GÉNIO  DE  BoRDALLO  I  AS  IMPERFEIÇÕES 
E  AS  PERFEIÇÕES PaRQUE  E  CHALET  DA  FA- 
BRICA DE  FAYANÇAS VlSITA  ÁS  OFFICINAS,  DE 

NOITE  —  Para  a  historia  da  tolice,  entre- 
ACTO  cómico  espairecido  d'anedoctas  — Tho- 
MAZ  Ribeiro,  notas  humorísticas  d'um  velho 

parlamentar o  THEATRO  INFANTIL  E  A  SUA 

revista  do  ANNO D'ONDE  VEM    AS  CREANÇAS 

QUE  REPRESENTAM EmBAVECIMENTO  DOSPAES 


II  os    GATOS 

E    TORMENTOS   d'uMA    EDUCAÇÃO    MENTAL    MUITO 

PRECOCE  —  Surménage  e  faltas  de   hygiene 

As  ACTRIZINHAS  CANTORAS,  OS  COROS,  E  QUA- 
LIDADE LITTERaRIA  das  PEÇAS QuANTOS  d'eS- 

SES  ACTORES  CHEGAM  AO  FIM?  —  PrEDICADOS 
SCENICOS  AOS  DEZ  ANNOS  !  VOZES,  GESTOS,  IN- 
CONSCIÊNCIA DOS  PAPEIS,  E  FADIGA  PHYSICA  ES- 
MAGADORA —  Lei  sobre  o  trabalho  dos  me- 
nores —  Conclusão. 


1  de  novembro. 


Viu  o  leitor  no  numero  antecedente  o  des- 
criplivo  dos  grupos  plásticos  destinados  a  vi- 
sionar á  contemplação  dos  forasteiros  doBus- 
saco,  esse  sympathico  e  suggeslivo  marlyrio 
d'um  allucinadodo  bem,  sobre  cuja  memoria 
o  espirito  humano  desperta  da  barbaria  anti- 
ga, fundando  sobre  um  madeiro  de  palibulo 
uma  nova  moral  e  uma  nova  consciência.  A 
esculptura  de  Raphael  Bordallo  c  toda  nar- 
rativa, nem  outra  concepção  da  christologia 
era  de  suppôr  gerasse  uma  cabeça  d'artista, 
pouco  disposia  a  especulações  de  symbolo- 
gia  religiosa.  Bordallo  é  sob  o  ponto  de  vista 


é  os    GATOS 

d'esles  problemas  difficeis,um  ingénuo  com- 
mentador  da  fé  da  multidão,  e  como  tal  pos- 
suído da  crença  corrente,  e  disposto  a  ex- 
pressal-a  por  um  critério  naturalista,  seme- 
lhante ao  que  os  flaubertianos  empregam 
para  stenographar  os  dramas  sociaes.  Para 
a  sua  arte,  o  caso  de  Jesus  deu-se  eíTectiva- 
mente  conforme  a  reportage  e  os  commen- 
tarios  dos  livros  santos :  Jesus  é  para  elle 
o  Ghrislo  das  prophecias  judaicas,  o  envia- 
do directo  do  Deus  grande,  o  espirito-carne 
descendo  ao  mundo  para  ensinar  o  exemplo 
da  jusliça,  da  confraternidade  e  do  perdão. 
A  obra  do  Bussaco  é  por  consequência  mais 
do  que  uma  arle  de  modelagem  e  estudo 
d'atlitudes ;  é  um  estado  mental  inconscien- 
te, avocado  das  recordações  catholicas  dos 
primeiros  annos,  e  expresso  pelas  formulas 
da  escola  lilleraria  em  que  o  artista  des- 
abrochou e  se  fez  homem.  Todavia  estas 
duas  impulsivas  nem  sempre  conseguem  cer- 
zir-se  ao  ponto  de  darem  um  todo  homogé- 
neo e  sem  ranhuras ;  basta  observar  em 
qualquer  dos  grupos  passionaes  que  atraz 
descrevo,  o  realismo  franco,  livre-pensador, 
das  figuras  profanas,  e  a  espécie  de  mystica 


os    GATOS  5 

rigidez  convencional  do  Christo,  para  advir 
em  que  a  inspiração  de  Bordallo  passando 
dos  judeus  ao  redemptor,  trepida,  hesita,  va- 
rada do  respeito  da  lenda,  receosa  d'ames- 
quinhar-se  dando  ao  filho  de  Deus  allures 
de  condemnado;  numa  palavra,  acobardan- 
do-se  de  restituir  a  essa  figura  de  nihihsta 
manso,  que  pregou  o  desdém  pelo  Estado, 
pela  administração,  pela  justiça,  pela  fami- 
lia,  pela  propriedade,  pelo  trabalho,  por  io- 
das as  engrenagens  mães  da  vida  social,  em- 
fim,  a  physionomia  e  a  postura  que  uma  re- 
constituição scienlifica  lhe  fixou.  Este  con- 
trasenso  ingénuo  não  prejudica  por  forma 
alguma  o  drama  sacro,  que  de  mais  a  mais 
Bordallo  formula  para  uma  turba-multa  de 
forasteiros  antes  beatos  do  que  analystas, 
n'um  paiz  onde  o  chrislianismo  continua  a 
ser  intransigentemente  semita,  e  onde  nin- 
guém vê  no  Christo  o  pretexto  allegorico, 
local,  d'uma  divinisação  solar  d'origem  arica. 
Temos  pois  d'encarar  esse  drama  na  poé- 
tica e  supersticiosa  bonhomia  de  que  o  in- 
pregnou  o  esculptor,  qual  dispensando-o  da 
intenção  symbolica  e  philosophica,  qual  re- 
duzindo-o  a  ura  caso  de  tribunal,   n'uma 


6  OS    GATOS 

terra  de  fanáticos  estreitos  e  aduncos  pha- 
riseus  de  gestos  nevropathas.  N'este  campo 
restricto,  a  obra  de  Raphael  Bordallo  é,  sal- 
vo as  primeiras  figuras  da  serie,  que  são 
tentativas  de  quem  subitamente  acorda  es- 
tatuário, d'uma  belleza  e  força  d'expressão, 
grandes  e  raras.  Um  génio  ardente,  sem  edu- 
cação profissional  nem  modelos  prestes,  des- 
ajudado, aparte,  falho  d'applausos,  com  mi- 
sérias de  dinheiro  e  grandes  anciãs  de  vida 
d'espirito,  em  meios  sumptuosos,  arranca  da 
lama  plástica  rodilhões  de  formas  truculen- 
tas, fragmentarias  por  vezes,  mas  todas  el- 
las  vibrantes  e  doidamente  inventivas,  d'u- 
ma  energia  foetal  d'almas  de  monstros,  d'u- 
ma  perspicácia  de  creação  cheia  de  sonhos ; 
e  mercê  do  estranho  fogo  conceptivo  que  o 
domina,  eil-o  forjando  n'esses  barros  iner- 
mes uma  humanidade  diversa  da  contempo- 
rânea, nervosa,  sua,  desarreigada  do  con- 
vencional, hierática  e  feroz,  subtil  e  bruta, 
onde  nos  dessous  se  encordoam,  o  lineamento 
d'uma  raça,  e  inquietantes  sensações  rajan- 
do  ao  travez  d'almas  conlusas  e  doentes. 
Em  certas  figuras  (exemplo  Caiphás  e  os 
dois  magistrados  que  barafustam, quando  Je- 


os    GATOS  7 

SUS  confessa  ser  o  Chrislo ;  exemplo  o  car- 
rasco de  Herodes  e  o  doutor  de  barba  mo- 
saica, que  está  sentado  á  direita  d'Annás)  a 
lucidez  de  Bordallo  é  d'um  illuminismo  tal, 
á  força  d'arte,  que  o  esculptor  simplesmente 
intuitivo  parece  desdobrar-se  em  erudito,  e 
este  em  psychologo,  os  dois  approximando 
de  nós  uma  Judeia  ritual,  spectral,  de  pé, 
longínqua  de  dois  mil  annos  de  civilisação, 
e  com  os  «tantes  por  cento j)  de  barbaria 
allucinante  que  a  antiguidade  oriental  tres- 
sua  dos  escombros  e  textos  litterarios  que 
nos  deixou.  Eu  não  poderia  aílirmar  que  al- 
guma vez,  n'essa  esculptura  de  curioso,  fa- 
lhas de  modelagem  não  atraiçoem  a  ausên- 
cia d'essas  pequeninas  sabedorias  que  as 
pacientes  lições  de  três  annos  d'escola  en- 
sinam aos  esculplores  de  profissão,  e  elles 
tanta  vez  manuseam  para  mascarar  a  au- 
sência do  talento.  Convenho  até  que  na  obra 
de  Bordallo  de  quando  em  quando  haja  de- 
formidades ou  rudezas  anatómicas  :  mas  com 
que  ululante  audácia,  com  que  desespero 
magnifico,  com  que  revoltada  eloquência, 
esse  excepcional  aprendiz  visiona  os  subma- 
rinos da  catastrophe  christã  tomada  ao  vi- 


8  OS    GA.TOS 

vo !  dando  direchercheáo movimento,  da  pai- 
xão, da  fé  a  toda  a  brida,  com  uma  elasti- 
cidade de  factura,  um  calor  d'enlaces,  um 
imprevisto  de  raccourcis,  um  ar  respirante 
emfim  de  historia  domada,  que  é  impossi- 
vel  não  vêr  por  traz  d'aque]la  furiosa  labuta 
d*esgares,  gritos,  reviravoltas,  tragedias,  o 
gérmen  vivaz  d'uma  passionologia  d'arle  pes- 
soal, inédita  entre  nós,  e  verdadeiramente 
extraordinária  em  qualquer  ponto  do  uni- 
verso em  que  florisse.  Não  foi  intento  meu, 
nem  para  illucidação  do  leitor  valeria  dar 
aqui  descripções  minuciosas ;  por  isso  omitto 
a  scena  de  Jesus  no  tribunal  romano  de 
Gabbatha,  deante  de  Pilatos,  ainda  em  pre- 
paro, e  uma  das  que  Bordallo  compoz  com 
mais  aprumo.  Dos  outros  episódios,  fiz  a 
correr  a  silhueta  passional,  como  remember 
para  os  que  por  acaso  já  tivessem  visitado 
o  atelier  das  Caldas  da  Rainha,  não  me  sendo 
porem  possivel  em  espaço  tão  curto  promeno- 
risar  maquettes  onde  os  estranhos  possam 
vêr  d'aquella  obra  pujante,  alguma  coisa. 


Lembro-me  da  impressão  espavorida  que 


os    GATOS  9 

me  causou  o  entrar  no  atelier  d'esculplura 
de  Bordallo,  uma  noite,  a  primeira  vez  que 
fui  á  fabrica.  Tinhamos  jantado  juntos,  Bor- 
dallo e  eu,  n'uma  immensa  sala  de  hotel 
quasi  ás  escuras,  onde  o  artista  referira  os 
contratempos  e  agonias  dos  ullimos  mezes 
da  empreza  cerâmica,  parada  em  plena  for- 
ça, e  aguardando  um  milagre  de  capital,  ca- 
da vez  mais  problemático.  Para  chegar  do 
hotel  ás  installações  da  fabrica  do  fayanças, 
seguimos  por  um  caminho  silencioso,  com 
um  ou  outro  lampeão  mortiço,  de  petróleo; 
depois,  lá  adeante  adensava-se  a  treva,  arvo- 
res desconformes  ás  duas  bandas  das  bar- 
reiras, abobadando  o  alto  n'um  tunnel  de 
que  não  podíamos  medira  profundeza.,  so- 
cego,  espanto...  té  que  de  repente  um  latido 
de  rafeiro  nos  fez  deter  junto  a  uma  cancella 
rústica,  que  era  a  entrada  do  parque  da  fa- 
brica, todo  em  sombra,  somnolencia,  e  quie- 
tação. N'uma  clareira  perto,  alguns  passos 
além,  uma  sombra  de  casa  rústica,  com  seu 
quadrado  destore  illumiuado.  Bordallo  cha- 
mou o  guarda  a  que  amainasse  o  cão,  veio 
uma  lanterna,  e  trepando  pela  escadinhola 
exterior  do  chalet, feita  de  toros  de  cortiça  com 


10  os    GATOS 

vasos  de  begónias  e  trepadeira,  achámo-nos 
n'uma  espécie  de  cabana  suspensa,  conce- 
bida n'uma  original  e  campestre  phantasia. 
Tecto  e  paredes  era  tudo  forrado  d'esteiras 
de  labúa,  das  que  a  genle  pobre  aproveita 
para  dormir  nos  tempos  de  verão.  A  meio 
da  peça  havia,  desde  a  porta  d'enlrada,  um 
biombo  de  papel  aguarellado  de  rãs  e  plan- 
tas d'agua,  resguardando  para  a  direita  um 
canto  d'alcova,  com  o  mosqueiro  de  cassa 
de  Malaca,  tapetes  caseiros,  e  grupos  de 
pbotographias  queridas  em  Iropheu,  e  deli- 
mitando para  a  esquerda  o  resto  do  espaço, 
que  era  ao  mesmo  tempo  sala,  gabinete  de 
trabalho,  casa  de  jantar,  e  toilette.  Todas  as 
humbreirase  cimos  dejanellas  e  portas,  fei- 
tos d'entrançados  de  canastra,  uma  das  enge- 
nhosas industrias  campestres  da  região,  hoje 
perdida;  moveis  de  pinho,  sem  tinta  nem 
vernis,  respeitando  as  formas  tradiccionaes 
do  escabello  e  do  tamborete  detripeça,  com 
pinturas  representando  flores  eanimaes,  no 
pinho  cru :  á  altura  da  cimalha,  prateleiras 
com  faianças  portuguezas  de  Darque,  Coim- 
bra, Caldas  e  Lisboa ;  vasos  com  flores  no 
lavatório  e  bancado  trabalho Jivros  disper- 


os    GATOS  11 

SOS,  e  por  cortinados  e  slores,  pedaços  d'al- 
godoaria  portugueza  e  oriental,  cheios  de 
desenhinhos  vermelhos,  verdes  e  doirados, 
d'uma  época  em  que  a  estamparia  e  a  arte 
balbuciavam,  com  a  graça  das  suas  poíy- 
chromias  hirtas  e  voantes. 

Era  n'aquelle  tugúrio  a  residência  de  Bor- 
dallo,  improvisada  com  nove  libras  e  uma 
pouca  d'imaginação  archi-estouvada,  ao 
mesmo  tempo  labrega  e  dislincla,  entre  as 
arvores  do  parque  esmorecidas  de  sede,  e 
aquella  noite  d'agosto,  sem  hálito,  aboba- 
dando os  campos  somnolentos.  As  officinas 
e  ateliers  da  fabrica  de  cerâmica  ficam  a  meio 
do  parque,  n'um  alto  que  as  terras  fazem 
a  cerca  d'uma  centena  de  metros  do  cami- 
nho. Estão  espalhadas  aqui  e  além,  por  dois 
ou  três  corpos  de  conslrucção  vaslissimos  e 
solidamente  travejados,  onde  destaca  o  cor- 
po principal,  sobre  uma  escadaria  d'azulejos 
mouriscos,  vasos  exóticos,  e  monstros  de 
jardim  de  loiça  polychroma.  Tomando  a 
lanterna  do  guarda,  Bordallo  conduzia-me 
pela  ladeira,  lançando  o  jorro  de  luz  sobre 
alguma  magnólia  ou  palmeira  mais  esbelta, 
e  a  obsessão  da  fabrica  suspensa,  desorien- 


12  OS     GATOS 

tando-lhe  as  faculdades  da  aUenção  para  a 
escrucianle  ideia  fixa  de  tanto  trabalho  em 
raina,  tanlo  talento  esparso  a  procurar  en- 
tre as  reminiscências  da  obra  alheia,  e  os  do- 
lorosos partos  da  concepção  individual,  fora 
do  tempo,  o  puro  escorço  da  obra  valida,  da 
forma  pura,  da  linha  ideal  definitiva  na  ce- 
râmica, d'inslanle  a  instante  corlava-lhe  o 
dialogo,  e  era  doloroso  seguil-o  por  esses 
plainos  da  invectiva  e  da  queixa  contra  tu- 
do, no  isolamento  d'um  coração  sumptuoso 
que  para  gestar  precisa,  como  o  de  todos  os 
grandes  plásticos,  circumjacencias  de  luxo, 
calores  de  publico,  e  as  homenagens  eo  oiro 
dos  magníficos  senhores  da  Renascença.  E 
isto  o  que  a  multidão  não  comprehende,  e 
toda  a  gente  imagina  subjeitar  os  génios 
creadores  ao  regimen  económico  e  domestico 
dos  simples  amanuenses,  dos  creados  de  ser- 
vir, e  dos  vendedores  de  presunto,  avaros  e 
limitados. 

Bordallo  avarento,  videiro,  arranjadinho, 
far-me-hia  no  espirito  um  compósito  em 
verdade  caricato,  pelo  que  lhe  sei  da  ima- 
ginação cheia  de  hyperboles,  pela  variabili- 
dade de  humor  inquieta  e  remordente,  pela 


os    GATOS  18 

inexhaurivel  riqueza  da  plelhora,  e  terribiliíá 
▼erliginal  da  concepção.  Artistas  d'este  mol- 
de não  podem  gerir-se  mais  por  contas  de 
sommar,  ter  fundilhos  nas  calças,  e  contos 
de  réis  a  render  no  Monte-Pio.  O  quantum 
de  cerebralidade  susceptivel  de  caber  n'um 
craneo  funccionante,  reverte  para  as  facul- 
dades estheticas  a  energia  vital  em  que  ne- 
cessariamente dessangra  as  outras  faculda- 
des, e  errado  vae  quem  não  quizer  ver  nos 
grandes  artistas,  productos  teratologicos  do 
espirito,  razões  prevaricantes,  insensiveis  a 
umas  sollicilações  para  que  estão  aptos  os 
cérebros  normaes,  e  em  compensação  vi- 
brando d'outras,  com  um  poder  de  lucidez 
innarravel.  As  coisas  são  o  que  são,  e  a  ga- 
leria bossal  haverá  que  resignar-se  e  fazer 
excepções  pr'ás  excepções. 

No  atelier  d'esculptura,  uma  vez  chega- 
dos ao  vastissimo  hangar  das  officinas,  uma 
scena  ph;inlaslica  se  desenrolou  á  minha 
vista:  o  jorro  da  lanterna  ia  por  um  chari- 
vari de  braços  e  cabeças,  umas  vermelhas, 
outras  côr  de  cobre,  desesperadas  todas,  e 
infundindo  pavor  na  carbonosa  sombra  do 
ambiente.  Por  um  instante,  a  minha  mente 


14  OS     GATOS 

altonita  dil-a-heis  arrastada  a  um  pande- 
monio  de  febre  e  pezadellos ;  soldados,  es- 
birros, Chrislos,  doutores  da  lei,  ludo  me- 
chia,  procurando  justificar-se,  vindo  a  mim 
demaxillas  convulsivas,  com  discursos  apho- 
nos,  Iressuantes  da  angustia  de  não  acharem 
em  mim  justificação.  O  feixe  da  lanterna 
esclarecia  de  cada  qual  o  accenlo  impetuoso, 
fazendo-o  saltar  do  fundo,  correr  nm  ins- 
tante á  bocca  do  proscénio,  depois  do  que 
relegava-o  á  penumbra,  correndo  a  outro, 
como  se  tivesse  pressa  em  o  ouvir  depor  no 
litigio  travado  entre  Bordallo  e  a  indiÍTeren- 
ça  do  seu  publico.  D'este  instantâneo  phan- 
tastico  sob  que  eu  vi  pela  primeira  vez  as 
esculpturas  do  Bussaco,  sahiu  talvez  a  im- 
pressão d'assombro  sob  que  as  descrevi,  pa- 
ginas atraz.  Escuso  dizer  que  não  tenho  por 
definitivos  os  juizos  que  n'eslas  paginas 
exaro  sobre  as  differentes  questões  que  uma 
vida  estudiosa  traz  ao  meu  espirito.  Mas  do 
que  eu  não  abdico  é  de  os  exprimir  tal  qual 
a  minha  rasão  yibratil  os  entrevê  no  ins- 
tante em  que  os  defronta,  e  de  os  relevar 
nos  planos  em  que  a  justiça  me  aconselha 
que  os  releve.  Desattender  a  obra  d'um  ar- 


os    GATOS  15 

tista  a  pretexto  de  que  elle  gasta  quanto  ga- 
nha, enão  soube  ser  o  modelo  dos  guarda- 
livros,  é  uma  imbecilidade  que  sobre  gro- 
tesca tem  o  seu  tanto  ou  quanto  de  velha- 
ca. Não  tenhamos  sobre  as  obras  d'arte  as 
opiniões  dos  agiotas.  Os  povos  que  apre- 
ciam os  productos  do  espirito  pelo  custo 
metallico  da  factura,  giram  n'um  espirito  de 
conservação  que  em  vez  de  virtude  é,  pelo 
contrario,  egoismo,  e  este  critério  gordo,  se 
os  aparentelha  co's  brutos,  por  certo  lhes 
não  dá  na  civilisação  direitos  hegemónicos. 


iO  de  Novembro. 

Entre  as  chapas  dilectas  da  tolice  indí- 
gena, uma  conheço,  a  forma  aphorislica,  que 
é  a  mais  cultivada  pelas  populações  bem 
fallantes  do  paiz.  A  asneira  lapidada  em 
sentença,  tem  para  os  tolos  a  vantagem  de 
parecer  coisa  profunda,  e  para  os  espertos 
a  desculpa  de  muitas  vezes  passar  por  ironia. 
Doesta  maneira  foi  augmentando  para  uns  a 
horda  dos  pensadores,  epara  outros  a  hor- 


16  OS    GATOS 

da  dos  mordazes,  quando,  segundo  a  esla- 
listica,  sóadosidiolas  ê  que  começa  a  estar 
mais  crescidinha.  Quem  de  longe  a  longe 
assiste  á  representação  de  comedias  origi- 
naes,  fica  assombrado  da  quantidade  de  pra- 
zer que  ao  publico  causa  a  baboseira  em 
forma  de  churrilho.  Quanto  menos  sentido  a 
coisa  faz,  quanto  mais  disparatada  é  a  arma- 
ção da  phrase  insalsa,  tanto  mais  parece  que 
o  publico  integra  o  espirituoso  auctor  no 
olympo  dos  cerebraes  com  direitos  a  estatua 
—  como  se  essa  obra  calina  fosse  a  ver- 
dadeira Comedia  Humana  a  escrever  d'uma 
sociedade  de  chanfrados  e  hydrocephalos. 
Quando  assim  se  perde  a  intellectualidade 
do  riso,  eé  abolida  a  ideia  na  contracção  da 
mascara  physionomica,  a  policia  só  tem  a 
fazer  uma  coisa:  encerrar  os  que  riem  eos 
que  fazem  rir,  n'um  manicomio.  Pela  cida- 
de, avulso,  a  cada  instante  ha  chispas  d'es- 
sa  cretinisação  geral  de  que  os  humoristas 
constituem  o  recanto  divertido. 

Varias  causas  concorrem  para  a  emissão 
da  asneira  em  formas  académicas :  a  pedan- 
teria  meriodinal  de  fallar  bem  é  uma  d'ellas, 
e  a  segunda  seja  a  convicção  em  que  se  está 


os    GATOS  17 

de  que  a  sonoridade  noblifica  tudo  quanto 
se  diz  sem  ideia  nem  conceira.  Ha  dois  do- 
mingos ia  eu  pr'os  loiros  n'umchurriãodos 
americanos,  quando,  nos  bancos  cheios,  com 
a  alegria  do  sol  e  a  perspectiva  d'uma  tarde 
real  com  boas  sortes,  começou  a  se  produ- 
zir nos  espectadores  um  desusado  bem  es- 
tar, algo  ruidoso.  Paliavam  todos,  riam,  con- 
tentes, e  um  cavalheiro  do  commercio,  que 
levava  um  jornal,  buscando  a  propósito,  co- 
meçou a  descrever  a  outro  os  horrores  de 
Hamburgo  invadida  pelo  cholera.  Como  a 
sinistra  narração  não  desse  eíTeito,  por  uma 
transposição,  vistosa  aliaz,  o  cavalheiro  cita- 
do começou  então  a  applical-a,  detalhe  a  de- 
talhe, á  capital :  Lisboa  em  pânico,  as  egrejas 
abertas,  os  enterros  de  noite,  cadáveres  e 
doentes  de  rustilhão  na  mesma  maca...  Co- 
meçava no  carro  já  a  movimentar-se  um  certo 
espanto,  pararam  as  conversas,  e  alguns 
monosylabos  de  damas  acabaram  emfim 
de  levar  para  o  narrador  os  restos  d'olhos 
que  até  ali  tinham  ficado  distrahidos.  Mo- 
nologo findo,  o  segundo  cavalheiro  ergueu 
a  vista  clara  e  imposante  sobre  os  mais, 
passou  a  mão  pelos  beiços,  e  com  espaçada 


18  OS    GATOS 

VOZ  (l'auctoridade,  deu  o  substracto  philo- 
sophico  da  coisa,  n'este  gosto : 

— E'  dictado  antigo  que  a  peste  traz  fo- 
me e  guerra... 

Silencio  profundo,  todos  suspensos,  e  o 
cavalheiro  correndo  outra  vez  o  olhar  na  as- 
semblea,  depois  de  se  assegurar  da  impres- 
são que  estava  produzindo :  quanto  a  mim, 
o  cholera,  fome  pode  trazer,  sim...  (nova 
olhadella)  agora  guerra,  o  que  se  chama 
guerra...  não  traz. 

O  assombro  dos  passageiros  não  se  des- 
creve: os  olhos  ficaram  extáticos,  parados 
no  orador  como  n'um  deus,  e  alé  ao  Campo 
Pequeno  ninguém  ousou  mais  abrir  o  bico, 
ou  perturbar  sequer  da  besta  o  silencio  au- 
gurial. 

Casos  assim  são  aos  milhares  todos  os 
dias.  No  caminho  de  ferro  iam  dois  jorna- 
listas conversando;  um  d'e!les, a  reler  o  re- 
sumo do  movimento  annual  de  população 
que  o  Noticias  trazia,  essa  manhã,  chegado 
aos  matrimónios,  exclamara: 

—  Caramba  !  muito  se  casa  em  Lisboa! 

—  Principalmente  os  homens,  acudiu  o 
segundo,  que  é  ministro  d'estado,  academi- 


os     GATOS  1» 

CO,  e  oulras  albardas  de  merilo,  equivalentes. 
No  recinto  de  pesagem  do  hippodromo, 
uma  larde  de  corridas,  cerlo  genlleman  de 
sobrecasaca  clara  dizia  ao  companheiro: 

—  Vê  lá  se  eu  conhecerei  fulano  bem... 
(pancadinha  no  hombro)  andámos  lisicos  ao 
mesmo  lempol 

Em  S.  Pedro  d'Alcanlara,  no  terraço  de 
baixo,  dois  brazileiros  n'um  banco  esbode- 
gavam-se,  n'essa  lassidão  cerebral  que  lêem 
os  ricos  por  muitos  annos  inactivos.  Bem 
vestidos  de  novo,  pingados  de  berloques,  8 
com  diamantes  de  reis  nos  dedos  de  balcão, 
os  pobres  homens  buscavam  no  ar  pretexto 
para  a  reedição  d'alguma  antiga  caturreira, 
e  era  doloroso  vel-os  seguir  o  vôo  das  mos- 
cas, passarem  as  creanças,  ajoujarem-se 
creadas  e  guardas  municipaes,  sem  que 
nenhum  d'esles  incidentes  da  vida  de  jar- 
dim lograsse  arrancal-os  áquella  amollecida 
e  eterna  estupidez.  Subitamente  o  gordo  de- 
cidiu-se,  lançou  a  vista  aos  céus  —  linda 
tarde,  seu  Borges  1 

O  Borges  fez  um  gesto  vago  de  cabeça, 
e  extenuado  do  esforço  que  fizera: 

—  Está...  se  a  memoria  me  não  falha. 


20  OS   GATOS 


Referia  eu  a  um  espirituoso,  e  mesmo  po- 
deroso jornalista,  antigo  parlamentar  batido 
por  Iodas  as  desillusões  dos  homens  e  das 
coisas,  esta  espécie  de  cegueira  que  produz 
n*um  individuo,  ou  n'um  grupo,  em  certos 
casos,  uma  calinada  em  tom  senteneioso, 
quando  elle  para  confirmar  o  dito  pinturilou 
a  seguinte  scena  estravagante.  Sendo  mi- 
nistro d'instrucção  publica  o  conhecido  Tho- 
maz  Ribeiro,  apresentou-se  uma  reforma 
multando  os  pães  que  não  mandassem  os  fi- 
lhos ás  lições.  No  partido  contrario  contravie- 
ram  em  bater  a  medida,  porsysthema,  e  in- 
timado pr'a  isso  á  ultima  hora  o  desenfas- 
tiado  parlamentar  cima  alludido,  entrou  este 
na  camará  sem  saber  patavina  da  matéria. 
Abriu-se  a  sessão,  peço  a  palavra!  discurso 
largo  e  cheio  d'apostrophes,  ípie  todos  ap- 
plaudiam,  conforme  é  d'uso  em  S.  Rente 
quando  os  oradores  não  sabem  o  que  di- 
zem. Chegado  ao  capitulo  das  multas,  o  fun- 
dibulario  cruel,  de  punhos  cerrados,  fume- 
gando do  exilo  oratório,  cresceu  para  o  mi- 


os  GATOS  H 

DÍstro  uns  quatro  passos,  e  pôz-se  a  dizer: 
— Quanto  a  miillar  os  pães,  por  qual  pro- 
cesso ousaríeis  vós,  senhor  ministro,  alten- 
tar  contra  a  liberdade  da  ignorância  nas  fa- 
milias  ? 

—  Pelo  processo  das  coimas,  disse  Tha- 
maz,  varado,  e  com  o  lápis  em  flexa  na  pou- 
pa de  cabello  dianteira. 

—  Pelo  processo  das  coimas,  céus  que 
vejol  Estranha  affirmalival  Evasiva  mes- 
quinhai Por  ventura  v.  ex.^  sabe  juridica- 
mente descriminar,  coima,  de  multa? 

Viu  o  Thomaz  Ribeiro  fazer-se  branco, 
abrir  a  bocca  estanque  d'argumentos,  e  ca- 
hir  na  cadeira,  espapaçado. 

—  E  por  meu  turno,  accrescentava  o  nar- 
rador sinceramente,  eu  fiz  o  mesmo —  por- 
que também  não  sabia. 

Com  os  homens  succede  o  mesmo  do  que 
com  os  toiros  no  trasteio.  Ha  um  momento 
em  que  elles  ficam  cegos,  surdos,  patetas, 
deslumbrados.  Póde-se-lhes  dizer  seja  o  que 
fôr,  porque  a  impressão  é  igualmente  ful- 
minante. Um  marido  cahindo  em  casa  sobre 
o  espectáculo  da  mulher  mail-o  amante.  Vera 
a  allucinação  do  revolver,  o  desgraçado  vae 


2a  OS   GATOS 

esmigalhar  a  cabeça  ao  felizâo...  Vae  este, 
berra-lhe : 

— Cautella  que  assassinas  o  pae  de  teus 
filhos  I 

Ora,  sob  a  influencia  hypnotica  d*esla# 
phrase,  novenla  e  nove  vezes  por  cem,  o  po- 
bre diabo  deixa  cahir  o  revolver  e  começa 
a  gritar : 

^Meu  Deus  que  ia  eu  fazer  I 
porque  aquella  coisa  do  pae  de  seus  flhos 
acaba  de  lhe  esmiolar  a  cabeça  perturbada, 
e  na  atrapalhação  já  não  reflecte  se  o  pae 
é  elle,  se  o  pae  é  o  outro,  ou  mesmo  se  o 
verdadeiro  marido  foi,  alguma  vez,  algum 
dos  dois. 


[^  de  Novembro. 

Vae  para  dois  annos  que  um  emprezario 
de  Lisboa  explora,  ora  n'ura  iheatrinho  pró- 
prio, tamanho  d'uma  caixa,  ora  em  mais 
vastas  scenas,  os  trabalhos  de  representa- 
ção scenica  d'uma  companhia  de  creanças. 
A'  força  de  ver  reclamar  nos  jornaes  os  pro- 


os   GATOS  ^ 

digios  d'arte  do  microscópico  elenco,  fui-me 
á  rua  dos  Condes  escutal-o,  sobreavisado 
um  pouco  contra  tão  apregoada  maravilha. 
O  espectáculo  abriu  por  uma  espécie  de  re- 
vista politica,  toda  cheia  d'allusões  aos  mais 
escandalosos  pratos  de  S.  Bento.  Um  patar- 
reco  rachitico,  com  uma  voz  entrecortada, 
fazia  o  Zé  Povinho,  guardando  o  passapio- 
Iho,  o  chapéu  braguez  e  o  fato  de  saragoça 
com  que  Raphael  Bordallo  o  inventou.  Uma 
pequena  triste,  de  capote  e  lenço,  fazia  a 
velha  dos  Pontos  nos  ii,  e  no  campo  da  ca- 
ricatura pessoal,  desde  o  Marianno  até  ao 
Vallada,  tudo  alli  tinha  sua  figuração  inson- 
sa  e  delambida,  em  figurinhas  de  bigodes 
postiços  e  chapéu  alto,  papagueando  slulli- 
cias  de  jornal  chalro,  com  o  entono  de  quem 
com  razão  não  percebe  absolutamente  nada 
do  que  diz.  D'espaço  a  espaço,  uma  borbo- 
letasinha  de  dez  annos,  bonita,  galante,  fa- 
nada já  por  todos  os  saracoteios  da  diva  em 
botadella  de  luzio  prós  monsiús  de  bidro  no 
olho,  entrava  pelo  fundo  em  diíTerenles  dis- 
farces, dengosa  de  cotovellos  e  com  a  bocca 
sangrante  de  carmim,  para  vir  cantar  á  boc- 
ca de  scena,  n'um  fio  de  voz  angelical  prós- 


-24  OS    GATOS 

tiluida  por  trinados,  arietas  e  coplas  d'uma 
ínoral  cambaleante,  onde  a  sua  figurinha 
triste  resahia  como  uma  flor  molhada  de  de- 
jectos. O  coro  respondia  também  por  boccas 
innocenles,  vinte  ou  trinta  creanças  larvadas 
de  pobreza,  olheirentas,  com  typos  d'azyla- 
das,  coitadinhas,  botando  os  versos  no  zan- 
garreio  do  B-A-ba  das  antigas  mestras  de 
leitura ;  e  entre  essas  trinta,  duas  ou  três  na 
adolescência,  e  com  todo  o  feitio  do  ralo  de 
bastidor  mais  inquietante. 

O  eífeito  d'esla  infância  votada  ao  mar- 
tyrio  de  decorar  as  a>neiras  de  peças  que 
até  em  iheatros  de  gente  adulta  se  não  po- 
deriam supportar  sem  reprezalias,  pode  cal- 
cular-se  na  proporção  da  melanchoha  im- 
Hiensa,  varada,  que  alanceava  os  poucos  es* 
pectadores  que  havia  pola  sala.  Prohibido 
n'aquelle  sitio,  perante  inconscientes  crean- 
cinhas,  o  direito  de  protesto  —  porque  além 
das  intenções  certo  altruístas  do  emprezario, 
todas  as  manifestações  d'intelligencia  pre- 
coce fetichisam  d'unia  maneira  doentia  a 
ternura  sentimental  da  nossa  Índole,  e  contra 
si  próprio  vae  quem  pretenda  reagir  a  tão 
laxa  inclinação —  ficava-nos  o  recurso  d'a- 


os   GATOí^  25 

companhar  desconsoladamente  o  espectáculo 
alé  ao  fim,  e  eu  fui  um  d'elles,  porque  me 
não  restassem  duvidas  quando  á  legitimida- 
de das  pequenas  considerações  que  vou  fa- 
zer. Perfeitamente  sei  d'onde  procedem  as 
creancitas  arregimentadas  na  desenxaliida  e 
precoce  companhia.  Quasi  todas  são  filhas 
da  rua  e  da  miséria,  brotadas  em  lares  on- 
de escaceia  o  pão  e  sobram  os  tormentos, 
onde  o  trabalhador  não  tem  salário  e  a  viu- 
va rebenta  a  labutar  para  trazer  illudida  a 
barriga,  e  agazalhado  o  corpo  dos  seus  filhos. 
A  perspectiva  d'uma  diária,  embora  magra, 
vinda  da  exploração  dos  talentos  de  pobres 
monstrinhos  que  a  oíBcina  não  quer  ainda, 
e  a  escola  primaria  tornaria  talvez  mais 
ignorantes,tentasem  duvida  os  pães, cujo  mi- 
serável dia  a  dia  lhes  não  dá  serenidade  ou 
lucidez  para  cogitarem  no  perigo  de  surmé- 
najar  assim  rudimentares  cerebrosinhos  de 
sete  a  nove  annos.  Essa  diária  trazida  pe- 
las creanças  ao  cabo  da  semana,  provenien- 
te d'um  trabalho  nobre,  artista,  ao  passo 
que  beneficia  a  família,  dá  aos  progenitores 
uma  espécie  de  basofia,  iutelkctual,  fidalga, 
d'aquella  de  que  o  povo  mais   gosta,   por- 


36  OS   GATOS 

que  ella  representa  uma  passagem  de  nivel 
da  classe  serva,  para  as  chamadas  clas- 
ses superiores.  Eslá-se  a  ver  o  triumpho 
d'um  d'esses  pequerruchos,  na  sua  casa,  no 
seu  prédio,  no  dia  seguinte  ao  d'um  debute 
auspicioso.  Os  jornaes  a  fallarera,  visinhos 
que  foram  ver,  os  companheiros  da  pedra 
deslumbrados,  os  parabéns  e  os  presentes, 
todas  essas  mimosas  victorias  emfim  que  re- 
frangidas da  celebridade  do  joven  actor,  vão 
alluminar  também  d'um  raio  immortal  os 
pobres  diabos  que  o  acaso  investiu  da  missão 
de  o  atirar  cá  para  este  mundo.  Taes  satisfa- 
ções não  se  descrevem ;  seja-se  embora  pre- 
vidente ou  cultivado,  não  ha  pae  nem  mãe 
que  em  face  das  contraprovas  precoces  do 
seu  menino,  se  não  sinta  disposto  a  lhe  pedir 
todos  os  dias  mais  esforços,  e  de  maravilha 
em  maravilha,  sem  repararem  na  creança  que 
se  definha,  nos  olhos  que  se  acarneiram,  na 
viveza  infantil  que  se  adormenta,  na  sensi- 
bilidade que  se  preverte,  na  innocenciaque 
se  vicia,  os  desgraçados  progenitores,  com 
alguns  annos  d'esle  regimen,  onde  julgavam 
ter  formado  um  vivo,  não  encontram  talvez 
mais  do  que  um  sonâmbulo,  tanto  os  bal- 


os    GATOS  27 

does  da  educação  artificial  dada  á  ereança 
lhe  foram  liquidando  o  génio  em  idiotia. 

Um  cavalheiro  lamentava  deante  de  mim 
o  filho  único  que  perdera,  roído  de  consum- 
pção  á  entrada  da  Escola  Polytechnica.  Es- 
tou a  ouvil-o  dizer,  limpando  as  lagrimas  : 
só  um  consolo  me  resta!  é  quecomquator- 
ze  annos  apenas,  o  meu  Arlhur  levou  á  co- 
va todos  os  preparatórios  do  lyceu,  dois  an- 
nos de  conservatório,  e  pratica  de  francez  e 
inglez  na  perfeição  1  Pois  querem  crer?  Ne- 
nhum de  nós  teve  coragem  para  chamar  as- 
sassino a  este  allucinado  da  instrucção  I 


No  caso  sujeito  já  estou  a  ver  as  attenuan- 
tes  que  a  sensihlerie  contraporá  á  manifesta 
repugnância  que  me  causa  esta  escamotea- 
ção da  infância  pela  arte. 

Ao  iheatrinho  apendem,  leio  nos  jornaes, 
aulas  de  portuguez  e  francez,  onde  os  pe- 
quenos artistas  se  ingurgitam  da  cultura 
mental  preparatória  da  sua  vida  de  futuros 
comediantes.  Esses  bastidores  de  bonecas 
onde  elles  e  ellas  vão  desemburrando  os  ta- 


28  OS  GATOS 

lentos  scenicos  innatos,  lêem  além  d'isso 
mira  de  fornecer  ao  theatro  nacional  a  escola 
pratica  elementar  que  o  conservatório  nega 
aos  predestinados  de  proscénio,  e  todas  es- 
tas vantagens  combinadas  com  ess'outra  de 
se  arrancar  á  miséria  pequenos  que  não  sen- 
do actores,  seriam  gaiatos,  e  que  não  acei- 
tando a  esmola  do  emprezario,  teriam  fome, 
todas  estas  vantagens  hão-de  predispor  a 
pieguice  do  publico  favoravelmente  ás  com- 
panhias dramáticas  decreanças.  Semelhante 
Denevolencia,  repilo,  é  mister  combatel-a  vi- 
vamente, já  porque  ella  representa  uma  vio- 
lação dos  direitos  da  infância,  a  que  está  de 
guarda  a  lei  sobre  a  regulação  do  trabalho 
dos  menores,  já  porque  por  outro  lado  a 
educação  geral  ou  individual  não  ganha 
absolutamente  nada  com  o  permitlir-se  que 
bebés  de  quatro  a  dez  annos  façam  vida 
d'aclores  profissionaes.  Inútil  repelir  aqui 
todas  as  razões  de  physiologia  e  moral  que 
teem  feito  os  educadores  optar  pelo  desen- 
volvimento espontoneo  das  creanças,  des- 
viando-lhes  do  caminho  as  sobrecargas  com 
que  não  pôde  a  sua  resistência  vital  e  a  sua 
edade,  e  ensinando- lhes,  como  diz  Spencer, 


os  GATOS  3» 

O  menos  possível,  para  as  fazer  achar  o  mais 
possível.  Gomo  se  Irata  d'organismos  ten- 
ros, de  funccíonalismosínhos  friáveis,  todo 
o  desenvolvimento  da  infância,  que  é  muito 
lento,  carece  de  ser  auxiliado  exclusivamen- 
te n'um  sentido  physico,  por  forma  que  os 
trabalhos  nem  forcem  nem  attinjam  sequer 
os  limites  de  resistência  d'esse  conjuncto  de 
vísceras  para  assim  dizer  em  formação.  Já 
era  uma  emboscada  á  raça  dar  ás  crean- 
ças,  nas  officinas,  trabalhos  ínusculares 
capazes  de  fatigar  adultos  robustíssimos,  e 
nas  escolas  primarias  e  secundarias  exer- 
cícios de  memoria  que  tão  terrivelmente  o 
paiz  tem  pago  na  baixa  intellectual  verda^ 
deiramenle  assustadora  das  gerações  dos 
últimos  trinta  annos.  Juntem-se  os  esgotos 
das  duas  depressões,  a  psychica  e  a  mus- 
cular, e  far-se-ha  ideia  do  attentado  que 
é  consentir  que  os  pequerruchos  repre- 
sentem por  oíBcío.  A'  tarefa  verdadeira- 
mente estarrecedora  das  recitas,  quatro 
horas  a  fallar  n'um  ambiente  confinado, 
em  caracterisação,  ás  chammas  da  ribal- 
ta, que  desacomodam  a  vista,  e  no  meio 
de  lonas  desagregando  de  si  princípios  mi- 


30  OS   GATOS 

neraes,  ajuntar-se-hão  durante  o  dia  as  es- 
topadas dos  ensaios  e  das  lições  (se  acaso 
algumas  ha),  o  estado  dos  papeis,  e  infini- 
tos d'esforço  emfim,  mais  que  neces?arios 
para  fazer  do  theatro  um  hospital,  com  to- 
das as  gafarias  do  internato  o  mais  suspeito. 
Examinar  detalhadamente  cada  qual  d'es- 
sas  figurinhas  da  revista...  musculaturas 
molles,  orelhas  despegadas  da  cabeça,  o  an- 
dar derreado  e  carneirento,  dedos  renflés  nas 
extremidades  das  phalanges,  incurvações 
do  systema  ósseo  provenientes  do  esforço 
dos  gestos  repetidos  e  das  attitudes  conven- 
cionaes  que  o  palco  quer...  Metade  da  com- 
panhia prepara-se  para  morrer  de  tisica 
aos  quinze  annos,  quando  a  outra  metade, 
para  escapar  á  morte,  venha  para  a  rua  ven- 
der cautellas,  ou  resvalado  haja  a  menos 
decente  occupação.  A  todos  os  signaes 
d'uma  fadiga  que  a  debilidade  congénita 
ainda  faz  mais  lastimável,  outros  dese- 
quilíbrios acrescem,  revelados  em  particu- 
laridades de  piso,  de  voz,  de  jogo  scenico. 
Fallei  atraz  das  cabotinices  e  dengosidades 
que  em  scena  mostram  algumas  das  figuras 
principaes  da  companhia,  o  saracoteio  dos 


os   GATOS  81 

quadris,  o  jogo  de  hombros  e  a  postura  a 
Ires  quartos  das  cantoras...  As  vozes  tendo 
de  ser  emittidas,  ou  para  cantar,  ou  para 
fallar,  n'uma  altura  de  timbre  accessivel  á 
massa  geral  d'espectadores,  e  de  pronunciar 
extensos  periodos,  muitos  difficeis,  e  quasi 
todos  com  recortes  litterarios,  a  pouco  tre- 
cho oíTegam  de  cangaço,  e  sente-sea  respi- 
ração dos  pobres  pequenitos,  curta  e  jacti- 
tante,  cortando  as  tiradas  de  fifias,  e  atrai- 
çoando na  vocalisação  um  esforço  de  laryn- 
ges  seccas  e  de  linguas  emperradas  no  tra- 
balhar dos  sons  sem  ideia,  e  dos  eíTeitos 
oratórios  sem  digestão  mental  do  que  elles 
representam.  D'este  dizer  de  cór  nasce  tam- 
bém um  pouco  a  tristeza  apathicaque  lêem 
na  scena  quasi  todos.  E  que  admira?  Pri- 
vando a  creança  dos  conhecimentos  próprios 
da  sua  edade,  e  trocando-os  por  outros  que 
ella  de  forma  alguma  pode  absorver,  pro- 
duz-se  um  estado  de  paragem  cerebral  que 
a  bestifica,  e  lhe  vem  ao  rosto  em  depres- 
sões de  traços,  em  vacuidade  d'olhos,  e 
abaixamento  dos  cantos  da  bocca,  com  que- 
da do  beiço  exprimindo  a  estupidez.  Consi- 
derem-se  um  pouco  as  peças  que  lhes  dão 


«2  OS    GATOS 

para  fazer;  que  obscenas  trapalhadas,  que 
diálogos  torcidos,  que  falta  d'accessibi lida- 
do aos  cerebrosinhos  de  seis  annos  1  Gomo 
exigir  d'esses  bambinos  o  sentimento  litte- 
rario,  e  a  desarticulação  do  ser  a  capricho 
das  coleanles  nervuras  do  papel?  como  lhes 
pedir  espontaneidade,  frescura,  verve,  no 
estylo  graphico  de  dizer,  e  o  presentimento 
dos  motivos  da  acção,  quando  os  papeis  só 
pelo  lado  da  memoria  os  impressionam,  e 
os  pobres  diabos  nem  sequer  podem  ligar 
duas  ideias?  Provem  d'aqui  o  ar  occo,  au- 
tomático, coado,  com  que  elles  impingem  o 
sermão  que  lhes  ensinam,  succedendo  que 
os  gestos  não  tem  correspondência  com  o 
sentido  dos  discursos,  que  a  voz  é  exangue 
e  sem  cheios  nos  pontos  em  que  a  acção 
mandava  aquecer  o  timbre,  o  tom  crescer ; 
e  a  razão  physiologica  deprehende-se :  as- 
sim como  para  o  olho  das  creanças,  toda  a 
visibilidade  apparece,  por  manchas,  sem 
perspectiva  nem  planos  relevantes,  assim 
perante  a  sua  inlelligencia  também appare- 
cem  as  ideias,  rebatidas,  de  sorte  que  a  voz 
que  as  exprime  não  pode  ter  ainda  inflexões 
inlellectuaes,  filhas  do  eu,  senão  aquellas 


os   GATOS  33 

que  o  ensaiador  lhe  martella,  e  que  ella 
controverte  e  desloca  a  cada  instante. 

Resumo  pois  que  as  companhias  infantis 
nem  como  regalo  artístico,  nem  como  exer- 
cício experimental,  teem  cabimento,  e  que  a 
policia  sanitária  comelte  um  crime  assistin- 
do impassivel  a  este  martyrio  da  infância  em 
beneficio  das  distracções  d'um  publico  bes- 
tiaga,  como  o  nosso.  Não  é  negar  que  as 
aprendizagens  longas  não  façam  os  profis- 
sionaes  melhores  e  mais  perfeitos.  O  homem 
seria  incapaz  de  qualquer  esforço,  se  o  não 
habituassem  desde  a  infância  a  trabalhar. 
Entanto  para  as  profissões  intellectuaesnão 
é  aqueUa  a  edade;  prodigios  aos  dezannos, 
palermas  aos  quinze,  e  d'ahi  para  cima, 
derreados  I 


^ 


FIALHO   D'ALMEIDA 


publicação 
d'inque)íiito  á  vida   PORTUGUEZA 


N.°50  — 16  de  Dezembro  de  1892 


SUMMARIO 

Duas  recepções  de  gare,  espaventosas  — 
Chegada  de  Limita,  e  reclame  monstro  do 
Século  POR  via  d'uma  carta  de  Salgado  — 
AdhesOes  e  mensagens  dos  nossos  correligio- 
nários —  Viva  o  Garnot  portuguez  e  hur- 

RAH  pelo  futuro  PRESIDENTE  DA  REPUBLICA  I 

—  Limita  em  padiola,  sua  integração  no  Sé- 
culo, E  assignatura  extraordinária  sem  pa- 
gamento DE  JÓIA  —  Recita  de  honra,  hymno, 

ALMOÇOS,  E  DO  CARRASCÃO  QUE  SE  BEBEU  —  LlMI- 
TA  força  da  natureza,  E  CAGAÇO  do  GOVERNO 


II  os     GATOS 

PERANTE  UM  TAL  DEMOLIDOR  —  A  MANIFESTAÇÃO 
SUBVERSIVA    DO   MaTTOS    MoREIRA,  A    PARTIDA 

DOS   REIS,  E  A    CAPITAL  EM  ESTADO  DE  SITIO 

O  SR.  CONDE  DA  FOLGOSA,  PRESIDENTE  DO  CON- 
SELHO  A   DIAS  —  Projecto   d'uma    recepção 

REAL    NUNCA    SONHADA AJlSSÃO    DIPLOMÁTICA 

DE  S.  M.  A  REGENTE  :  VISITA  AOS  QUARTÉIS,  ÁS 

PRISÕES,  ÁS  SAPATARIAS  E  ÁS  ESCOLAS PARA 

QUE    SERVEM    AS    ORDENS    MILITARES  MlSSÃO 

DIPLOMÁTICA    DE  FoLGOSA  —  QuEM    DIABO  É,  E 

DONDE    DEMÓNIO    VEM? AsSEMBLÉA    DOS  ANI- 

MÃES  PARA  ESCOLHER  UM  REI,  OU  DE  COMO  AS 
PROJECTADAS  MAGNIFICÊNCIAS  DERAM  n'uMA  CAN- 

GALHICE  d'aRRAIAL LlMITA  TRIUMPHANTE,  E  O 

SEU  BARRETE  PHRYGIO  DE  DORMIR SAGACIDA- 
DE d'um  repórter  DAS  Novidcides. — Inquérito 

Á  CREADAGEM  FoLGOSA  SOBRE  A  BOMBA,  E  DE 
COMO  A  EXPLOSÃO  NÃO  FOI  NA  CABEÇA  DOS  DRA- 
MATURGOS —  Gil  Vicente  e  os  damascos  — 
Desastres  artificiaes  do  attentado,  ou  o 

cocheiro  ESCRIPTURADO  PARA  MORTO  —  En- 
SAIO  GERAL  DAS  VICTIMAS  —  GoNGLUSÃO. 


5  de  dezembro. 


Esta  foi  na  verdade  a  quinzena  dos  gro- 
tescos, a  paschoa  dos  purrios  onde  a  cidade 
abriu  alas  para  substituir  á  vida  seria,  obs- 
cenas cabriolas  de  macacos.  A  historia  d'es- 
te  final  da  nacionalidade  que  eslá  a  pedir 
incorporação  provincial  n'uma  visinha  forle 
que  lhe  laganteos  rins  de  prostituta — d'este 
íinal  de  nacionalidade  onde  o  povo  repre- 
senta um  papel  inda  mais  vergonhoso  do 
que  os  espantalhos  e  mandões  que  se  laus- 
perennam  ahi  cynicamenle — se  no  dia  da  ca- 
taslrophe  quizer  exemplificar  como  senhores 
e  servos  eram  dignos  da  infâmia  a  que  rola- 


os    GATOS 


ram,  baslar-lhe-ha  detalhar  ponlo  por  ponlo 
os  carnavaesa  que  vimos  d'assislir.  Tivemos 
primeiro  o  tribuno  Lima,  caixeiro  da  demo- 
cracia monopolisnda  por  acções  a  beneficio 
d'uma  empreza  de  noticias,  cançado  de  par- 
vajolar  em  almoços  francezes  e  hespanhoes 
a  conhecida  homiha  do  jesuita  e  do  rei,  de 
dedo  no  ar  e  gaforina  hirsuta  a  ferro  quen- 
te, á  espera  na  fronteira  que  os  emprezarios 
lhe  inventassem  reclame  para  uma  recep- 
ção de  gare,  espaventosa.  A  diva  torcia-se 
em  Madrid,  ingurgitada  d'acordos  jacobinos, 
cançada,como  elle  próprio  dizia,  d'aturar  as 
banalidades  hespanholas,  e  emfim  no  ápice 
da  gloria,  em  lilhographia  d'Epinal,  amea- 
çando a  triplice-alliança  com  a  confederação 
latina  nos  gatazios.  Esse  reclame  afinal  sur- 
giu fumante,  e  foi  uma  carta  amarga  de  Sal- 
gado,increpando  Limita  de  deslealdades  par- 
tidárias, d'eslupidez  vaidosa,  e  mesmo  n'um 
lance  de  paixão  exagerando  uma  pbrase  que 
esciipta  fora,  sabem-no  lodos,  para  não  ser 
tomada  ao  pé  da  lettra.  Aquella  carta,  re- 
cebida com  protestos  platónicos,  em  prosa  e 
verso,  por  muito  povo,  e  a  maioria  dos  nos- 
sos collegas  da  imprensa,  serviu  para  dia- 


os     GATOS  5 

manlinisar  ainda  mais  o  caracter  de  Limi- 
ta, porém  ma!  iria  ao  programma  do  Século 
se  elle  a  não  transfizesse  logo  em  fonte  de 
receita,  abrindo  suas  columnas  a  Iodas  as 
sandices  collectivas  ou  isoladas,  epistolares 
ou  lelegraphicas  que  os  admiradores  do  tri- 
buno houvessem  por  bem  mandar  á  redac- 
ção—  francas  de  porte  e  com  a  assignalura 
d'anno  adeantada. 

D'esta  forma  se  organisou  umborborinho 
de  curiosidade  de  redor  do  agitador  albino, 
armado  em  victima,  de  sorte  que  annun- 
ciada  a  sua  vinda  do  estrangeiro,  sempre 
houve  trezentos  patetas  com  que  lhe  arranjar 
uma  claque  (jiie  o  palmojou  na  gare  do  Ro- 
cio, chamando-lhe  futuro  presidente  da  repu- 
blica, Carnot  portuguez,  comer  com  asseio, 
e  outras  inconsciencias  broncas  d'este  lote. 
A  rara  genlé  séria  que  ainda  excepcional- 
mente grassa  na  cidade,  ao  saber  d'esta  fes- 
tarola  patusca,  do  género  das  que  o  Bap- 
tista tem  por  Setúbal  nos  dias  de  jantar  com 
vinho  a  rodo,  e  das  que  a  chorada  Gecilia 
Fernandes  tanta  vêz  pagou  á  linha  nas  ga- 
zetas, encolheu  os  hombros,  benévola,  e 
comsigo  admirando  mais  este  expediente  ad- 


6  OS    GATOS 

ministralivo  do  hábil  Silva  Graça,  com  o  di- 
zer que  hoje  em  dia  todas  as  fundações  são 
licitas  ao  prestigio,  havendo  uns  que  o  con- 
quistam pelo  talento  e  pelo  estudo,  e  outros 
que  o  vão  simplesmente  colher  aos  cartazes 
das  esquinas,  e  aos  loasts  dos  banquetes 
cosmopolitas,  onde  por  ninguém  se  enten- 
der, é  facílimo  aos  parvos  arrematar  pal- 
mas de  heroes.  Raríssimas  pessoas  real- 
mente se  sentiam  dispostas  a  contrariar  o 
bródio  d'esses  quatrocentos  caixeiros  desem- 
pregados, de  roda  do  seu  homem,  cujo  al- 
cance politico^  poderá  quando  muito  dar 
nome  a  um  fun-ga-ga  fora  de  portas,  a  uma 
aguardente  pólvora,  a  um  sabonete  ou  a 
uma  marca  nova  de  bolachas,  mas  cujas  qua- 
lidades neutras  o  tornam  de  sua  natureza 
inoffensivo,  e  naturalmente  propenso  a  viver 
da  democracia  como  outros  por  ahi  virem 
d'inscripções.  Por  consequência  o  cortejo 
foi  por  alli  fora,  Limita  em  padiola,  da  es- 

1  Próximo  á  revolta  do  Porto,  esteve  Limita  em 
Coimbra  a  conferenciar  c'os  estudantes,  e  vindo-se  a 
fdUar  u'uina  revolução  provável  para  cedo,  lembrou  o 
tribuno  que  se  a  coisa  liouvesse  de  se  fazer  um  dia, 
escolhessem  antes  umas  ferias,  para  se  evitar  aos  re- 
volucionários a  perda  d'auuo. 


os    GATOS  7 

tacão  doRccio  para  aruaFormoza,  no  meio 
do  riso  publico,  meio  piedade  meio  troça, 
sem  que  subissem  por  isso  os  fundos  da  re- 
publica, descessem  os  fundos  da  monarchia, 
a  Batalha  deitasse  supplemento,  ou  pare- 
cesse menos  immaculado  o  caracter  de  Li- 
mita, o  seu  olhar  menos  albino,  e  menos 
diamantina  a  sua  tempera,  feita  d'apertos  de 
mão  6  cartas  de  namoro.  Os  que  a  jantar 
sentiram  as  palmas,  disseram  entre  si:  é  Li- 
mita qne  chega,  salero!  como  se  diz  aos  sab- 
bados,  lá  vae  o  bando  dos  toiros,  quando  se 
ouve  a  corneta  dar  signal ;  e  absolutamente 
ninguém  mudou  d'ideias,  ou  estragou  por 
isso  a  digestão. 

Integrado  o  tribuno  em  sua  ociosidade 
aíTectuosa  na  testeira  do  Século,  aviso  novo 
de  que  as  columnas  da  folha  ficavam  aber- 
tas ás  parvoiçadas  solrtarias  ou  collectivas, 
epistolares  ou  telegraphicas  que  saudar  vies- 
sem o  monumental  recenchegado  —  francas 
de  porte,  claro,  e  com  a  respectiva  assigna- 
tura  d'anno  em  vales  do  correio.  Esta  cele- 
breira condimentada  em  clienlella  pagante, 
valeu  ao  Secidonovos  successos  de  tiragem, 
dando  de  sobreselente  para  dois  almoços  de 


8  OS    GATOS 

honra,  com  sauterie  de  damas  castelhanas  ^ 
Continuaram  as  festas  por  três  dias,  e  houve 
no  Princine  Real  recita  de  ofala,  estando  Limi- 
ta  em  camarim  colgado  de  damascos,  coroas 
de  buxo,  e  sendo-lhc  tocado  o  hymno  á  en- 
trada, de  pé,  no  meio  d'estrepilosas  ovações. 
Por  esta  occasião  lhe  chamou  um,  por  car- 
ta, o  «homem  de  mais  prestigio  do  partido 
republicano»,  e  Angelina  Vidal,  a  pythonisa 
vermelha  do  club  Sola  e  Vira^  tomando  o 
verbo,  lhe  desferiu  das  varandas  uma  ode, 
onde  Limita  ia  ao  par  do  arcanjo  da  Vi- 
ctoria,  complelando-sea  allegoria  com  Gra- 

•  Extracto  do  próprio  Se  ido  o  raconto  suinmario  doa 
banquetos  :  houve  no  primeiro  vinte  e  sete  saúdes,  e 
trinta  e  quatro  no  segando.  Calculan>lo  que  cada  con- 
viva absorvesse  a  decilitro  por  saúde,  tesnos  que  no  fim 
do  primeiro  almoço  estava  cada  qual  com  dois  litros  e 
sete  di'CÍlitros  de  vinho  no  bucho,  e  três  Htros  e  quatro 
decilitros  ao  cabo  do  segando.  Os  speeehs  entretanto 
não  fizeram  a  menor  allusào  ao  advento  da  republica, 
e  mesmo  ao  cognac,  que  é  (juando  a  paixão  democrá- 
tica mais  se  incende,  os  camaradas  politicos  de  Limita 
limi-taram-se  a  brindar  pelas  prosperidades  do  Século, 
e  pelas  senlioras  e  meninos  uns  dos  outros.  Ia  vi/m  >e- 
ritas.  Se  esses  republicanos  cuidassem  na  republica, 
acaso  teriam  hesitado  em  proclamal-a,  cora  três  litros 
de  vinho  na  barriga  ?  Outra  v^-rsão  talvez  poréni  se 
nos  imp'~o,  e  vem  a  ser  que  Silva  G-raça  por  economia 
aguasse  o  vinho,  espichando  o  do  pipóte  d'oude  tira  a 
politica  chilra  do  jornal. 


os    GATOS 


ça,  de  Mercúrio,  e    Silveira   de  bochechas 
infladas,  assoprando  n'um  cartucho  de  papel. 


O  leitor  que  olhou  para  esta  choca  apo- 
theose,  como  para  uma  pandega  de  faias, 
feita  em  familia,  de  banzaras,  e  sem  propó- 
sito algum  d'escandaIo  europeu,  por  certo 
não  está  disposto  a  acredi!al-a  emanação  da 
grossa  massa  seria  do  partido  republic;ino, 
partido  de  protesto,  cada  vez  menos  dis- 
posto a  render  pleito  aos  Desmoulins  cabel- 
leireiros.  Por  consequência  fez  incluir  como 
devia  a  festarola  a  Limita  entre  as  manifes- 
tações da  liberdade  de  fazer  barulho  por 
pouca  couza,  indo  mesmo  á  concordância 
de  que  para  o  desfructe  da  estima  publica 
não  ha  nada  como  não  se  ter  uma  única 
qualidade  dominadora  e  superior. 

Pois  caro  amigo  I  emquanto  no  seu  espi- 
rito a  recepção  a  Limita  era  equiparada,  sob 
o  ponto  de  vista  da  importância  social,  aos 
mais  minúsculos  e  inofensivos  fait-divers 
do  dia  a  dia  lisboeta,  verhi-gralia,  ao  bando 
dos  touros,  ás  prisões  dos  padeiros,  e  á  for- 


10  os    GATOS 

mozura  branca  e  á  formozura  corada  do  per- 
fumista  universal  Pereira  d'Al[neida  o  go- 
verno do  sr.  Dias  Ferreira,  os  partidos  dy- 
naslicos,a  corte,  transidas  d'espanto,ao  sentir 
as  palmas  ao  tribunojulgaram  chegada  a  ho- 
ra da  matança,  e  eil-os  tartamudeanles,  ignó- 
beis de  cagaço,obsessionados  de  cárcere  e  de 
degredo,  lançando-se  reciprocamente  a  culpa 
das  poucas-vergonhas  próximas  e  remotas, 
e  sem  atinar  com  parede  onde  arribar  o  nau- 
frágio dos  Irazeiros  receosos  de  chinello.  Este 
terror  subiu  de  pânico,  quando  da  esquina  do 
Mattos  Moreira,indo  el-reygorditoyla  mas  sa- 
lerosissima  de  las  reinas  dei  mundo  a  embar- 
car no  expresso,  para  as  festas  colombinas, 
quatro  portugiiecitos,  lhes  gritaram,  viva  a 
pátria!  no  que  a  policia  achou,  com  razão, 
motivos  de  captura,  visto  terem  os  defensores 
da  realeza  tornado  o  viva  a  pátria  n'um  syno- 
nymo  integral  d'abaixo  a  monarchia. 

Levados  os  gritadores  sicários  para  o  se- 
gredo, abalados  para  Madrid  os  reis,  deli- 
bera o  conselho  de  ministros  reunir-se  em 
sessão  perpetua,  declarando  a  capital  em 
estado  de  sitio,  e  pegando  a  decretar  medi- 
das d'espavenlo,  em  guisa  de  reverter  a  es- 


os     GATOS  11 

fervencia  revolucionaria  mnaníe  (palavras  da 
/?e/òrwa)n'umaoíTegaíile  e  a  maviosa  deaion- 
slração  d'amor  aos  soberanos  portuguezes, 
ao  lempo  synthetisados  na  illuslre  princeza 
que  os  pariu.  Por  que  a  reconquista  de  Lis- 
boa fosse  rápida,  lançou-se  a  regente  dona 
Pia  (madama  havida  por  mui  lo  feslrjeira  e 
bailona  no  escamoteio  das  sympalhias  po- 
pulares) á  pesca  dos  applausos,  e  foi  nomea- 
do um  presidente  de  conselho  a  dias,  um 
tal  Folgosa,  homem  da  privança  e  créditos 
do  outro,  e  o  qual  por  ser  dono  do  Colyseu 
chegou  a  imaginar  que  tinha  nas  mãos  o 
povo,  que  por  ter  sido  furriel  de  lanceiros, 
se  attribuia  domínio  entre  o  exercito,  e  em- 
fim  que  por  basto  chegado  ao  ministério, 
era  natural  fosse  querido  entre  a  policia 
secreta,  especialmente  encarregada  de  des- 
tramar  conspirações  e  votar  no  governo  a 
meios  preços. 

Ahi  lemos  pois  o  presidente  de  conselho 
novo  e  a  rainha  velha,  em  peditório  de  sor- 
risos de  boila  para  a  coroa,  qual  empenha- 
do em  acumular  fallarios  e  pacotilha»  por 
forma  que  a  espera  a  D.  Carlos  deixasse  a 
perder  de  vista  a  manifestação  cagada  a 


12  OS    GATOS 

Magalhães.  O  mot  d'ordre  intransigente,  in- 
condicional, imperioso,  era  que  se  metesse 
n'um  chinello  as  demonslracções  do  club 
Sola  e  Vira  e  da  a^^sociação  de  recreio  Mor- 
talha  e  Onça  na  estação  do  Rocio,  por  traz 
das  quaes  a  candonguiceoííicial  teimava  em 
vêruma  pata  da  hydrarepiibliqiieira,  amea- 
çando: e  que  se  não  poupassem  despezas, 
o  ponto  sendo  que  ás  tenças  de  marqueza- 
dos  e  pariatos,  de  futuras  concessões  de  for- 
necimentos para  o  exercito,  etc,  os  cavalhei- 
ros promotores  do  batuque  régio  se  dispo- 
zessem  a  adeaníar  as  sommas  necessárias, 
de  que  se  lhe  pagaria  depois  juros  e  capi- 
tal, sabe  Deus  como. 

Começaram  immediatamente  as  corruma- 
ças.  A  regente,  atacada  d'uma  romantite  agi- 
tante.  Ião  particularmente  grave  de  prognos- 
tico nas  circumjacencias  da  menopausa, 
inda  os  seus  augustos  filhos  não  tinham  pas- 
sado a  fronteira,  já  n'uma  espécie  d'inquie- 
tação  espiral  sahia  a  visitas  officiaes  por 
asylos,  cadeias  e  quartéis.  Na  penitencia- 
ria, depois  de  fazer  aos  presos  iodas  as  es- 
pécies de  perguntas  contrarias  á  boa  ordem 
do  estabelecimento,  e  de  simular  deante  dos 


os    GATOS  13 

assassinos  e  ladrões  que  alli  definham,  quan- 
tidade d'aínicçõese  misericonJias  um  pouco 
descabidas,  a  lai  ponto  levou  as  demonstra- 
■ções  do  seu  siisceplibilismo,  que  se  lhe  não 
abreviam  a  visita,  teria  mandado  esvidar  to- 
da a  cadeia.  Amando  a  pompa,  foi  em  galeota 
dourada  a  bordo  dos  navios,  eo  espectáculo 
das  salvas,  quo  fazem,  estardalhaço,  como  as 
kermesses,  resolvendo-se  tudo  em  fumacei- 
ra, o  espectáculo  das  salvas  e  dos  marujos 
nas  vergas,  soltando  vivas,  coitados,  para 
não  irem  com  ferros  ao  porão,  galvanisou  os 
byslericos  nervos  de  S.  M.,como  em  tempo 
algum  succedera  quando  ella^Ta  uma  rainha 
verdades.  Vem  nos  jornaes  o  ar  de  profun- 
do conhecimento  com  (jue  assistiu  ás  mano- 
bras da  maruja,  e  os  officiaes  tantas  coisas 
technicas  lhe  ouviram  sobre  náutica,  que 
enlresuspeitam  fosse  ella  quem  inventasse  os 
barcos  a  vapor.  Saltou  d'ahi  nas  escolas 
scienlificas,  e  na  Polytechnica,  estando  o  Pi- 
na a  mascar  physica,  com  variações  de  cal- 
culo infinitesimal,  a  rainha,  escreve  o  Dia, 
fez  taes  lregeitosd'olhos  e  de  dedos,  tantas 
corcovas  de  górja,  que  sahimos  todos  con- 
vencidos d'ella  saber  ainda  mais  que  o  pro- 


14  OS    GATOS 

fessor.  Pincha  d'ahi  na  artilharia,  e  eslá  tu- 
do parvo  c'os  prodígios  de  valor  e  saber 
que  revelou.  Agarrou  em  canhões,  parliii 
balas  a  murro,  oíTereceu  modelos  seus  de 
lanternetas  e  pólvoras  sem  fumo,  e  deri- 
vando Q^eslas  competências  athlelicas  e 
scientificas  para  pequenas  argucias  senso- 
riaes  de  fino  faro,  teve  artes  d'adevinhar 
pela  prova  do  rancho  quantas  balatas  ti- 
nham cabido  a  menos  no  caldeiro,  e  de  que 
lavrador  era  o  azeite  que  não  tinha  sido  dei- 
tado ao  bacalhau.  D'arlilharia  faz-se  trans- 
portar pressurosa  ao  Limoeiro,  d'aqui  a  sa- 
padores, de  sapadores  á  lia  Lconarda,  e  por 
toda  a  parle  o  seu  ar  entendido,  o  seu  sorriso 
crispado,e  a  toilelte  fúnebre  de  santa  captam- 
Ihe  a  sympathia  dos  simples,  que  mal  podem 
comprehender  como  uma  rainha  desça  de 
palácio,  com  as  azas  enroladas  em  papel  de 
seda,  n'uma  caixa  de  rt  beca,  a  pedir  votos. 
Em  sete  dias  de  regência  (sempre  se- 
guindo as  apotheoses  dosjornaes)  a  sr/  D. 
Maria  Pia  deu  lições  de  governo  ao  filho 
ausenie,  na  arte  de  ocomprcmetter  perante 
os  siibditos,  d'estragar  dinheiro  em  gorge- 
tas  dobradas,  que  nós  pagaremos  como  uns 


os    GATOS  15 

parvos,  e  de  que  ella  como  cosluma  lerá 
feito  mais  um  parafuso  para  as  suas  azas 
(i'anjo  carideiro.  Também,  consol-ímo-nos  : 
não  lhe  faltou  visitar  um  estabelecimento, 
meller  o  nariz  n'uma  marmita,  dar  razão  a 
uma  queixa,  ver  um  hospital,  um  quartel, 
uma  sapataria  ou  um  hervanario,  e  por  on- 
de passou  choveram  feriados,  salvas,  me- 
moriaes  e  gestos  de  hombros.  Para  a  revista 
do  anno  ser  completa,  até  lhe  arranjaram 
um  dia  d'assignatura,  que  S.  M.  illustrou 
nomeando  ministro  d'eslado  honorário  um 
Terra  Nova  de  palácio,  e  enrodilhando  aos 
cueiros  dos  netos  as  bandas  de  duas  ordens 
com  que  é  costumo  galardoar  os  que  arris- 
cam a  vida  n'Africa,  pela  pátria,  e  que  os 
pequenos  terão  mijado  e  borrado  a  esta  hora 
e  com  insouciance  egual  a  quem  lh'as  deu. 


Emquanto  a  excelsa  princeza  assim  tro- 
tava na  popularidade,  vestida  de  Senhor  do  s 
Passos,  ecomcabellos  chimicos  espavoridos 
ás  brizas  philanlropicas,  dizei-me  ó  numes 
que  mirabolantes  projectos  cachoavam  por 


16  OS    GATOS 

baixo  da  cabelleira  do  Folgosa  ?  Essa  espé- 
cie de  Burriay  do  segundo  turno,  esse  ino- 
pinado presidente  do  conselho  para  pessoas 
tristes, occupando  mezes  antes  simplesmente 
na  vida  a  profissão  modesta  de  consorte,  por 
quaes  phiílros  galvânicos  o  arvorou  Zé  Dias 
em  fogueteiro  mor  da  realeza, e  d'onde  proce- 
de a  força  que  o  alevanta  de  súbito  á  impo- 
sanle  posição  de  juiz  de  chegada,  na  corri- 
da dos  reis  para  Lisboa? 

Vae  uma  pessoa  ao  Larousse  e  não  lhe 
topa  sequer  um  dado  biographico;  não  ha 
menção  d'elle  nas  escolas,  nas  academias, 
nos  cenáculos  bancários,  nas  emprezas  in- 
duslriaes,  nas  pugnas  de  parlamento,  e 
quando  m.uito  lembra-se  o  Chagas  de  o  ter 
visto  patrulhar  Zé  Dias  no  desterro,  ou  ha 
memoria  de  o  terem  querido  fazer  juiz  d'ir- 
mandade  na  freguezia  do  Soccorro.  Quem 
sabe  d'onde  elle  vem  ?  Quem  me  pode  di- 
zer p'ra  onde  elle  vae?  E  entretanto  o  seu 
valimento  é  de  força  a  Zé  Dias  lhe  entregar 
á  partida  as  chaves  da  cidade,  pra  que  elle 
ponha  e  disponha,  dê  ordens,  especa  oífi- 
cios,  despache  com  os  directores  geraes,  ca- 
nalise  a  seu  gosto  o  movimento  dos  minis- 


os    GATOS  17 

terios.  mande  a  guarnição,  amphibise  a  ma- 
rinha, decrete  a  gala,  e  tudo  isto  d'uma  ma- 
neira tão  natural  e  tão  simples,  que  lodos 
acham  graça,  e  ninguém  se  sente  disposto  a 
protestar  1  Apenas  os  reis  dão  ala  pr'a  Ma- 
drid, e  com  elles  Zé  Dias,  a  conferenciar 
com  Sagasta  sobre  a  importação  crescente 
de  hespanholas,  Folgosa,  senhor  do  reino, 
convoca  ao  seu  roqueiro  da  rua  da  Palma, 
uma  côrle  de  sapateiros  e  mercadores  apa- 
niguados, para  ahi  se  acordar  sobre  o  rece- 
bimento da  volta,  aos  viajantes.  Trovejaram 
programmas  nas  discussões  da  assembléa  : 
alguns  propunham  imia  demonstração  na- 
val junto  á  estação  manuelina,  espectáculo 
inexequivel,  por  a  companhia  das  aguas  se 
não  prestar  a  innundar  o  Rocio  gratuita- 
mente ;  de  seu  lado  os  mercadores  apoia- 
vam antes  uma  parada  de  cavallaria  e  in- 
fantaria sobre  o  Tejo,  facto  imprevisto,  e 
com  a  vantagem  de,  estragando-se  os  far- 
damentos com  a  agua,  poderem  os  propo- 
nentes impingirão  governo  outro  fornecimen- 
lo  monstro  de  pannos  podres,  o  que  ainda 
mais  já  se  vê,  reforçaria  as  suas  convicções 
ultra-monarchicas. 


18  OS    GATOS 

No  impossível  de  desdobrar  as  feslas  com 
magnificência  reciproca  pelo  elemento  soli- 
do e  liquido  da  Lisbia,  por  á  ullima  hora 
um  festeiro  mais  astuto  descobrir  que  as  ma- 
nobras de  cavâllaria  no  Tejo  corriam  risco 
de  metler  no  fundo  alguns  esquadrões,  sem 
mór  proveito,  foi  a  demonstração  naval  re- 
duzida a  um  mastro  de  navio  espetado  no 
Rocio,  e  preencheu-se  o  resto  com  a  pom- 
pa de  bicos  de  gaz,  bandeiras  e  areia  en- 
carnada, queé  costume  estatelar  por  agosto, 
nas  ruas  pobres,  á  passagem  dos  cirios  da 
Atalaya.  Indo  estiveram  em  erguer  arcos 
Iriumphaes  pintados  por  scenographos,  por 
onde  os  reis  passassem,  como  oulr'ora  Ge- 
zar  voltando  da  conquistadas  Gallias;  vae, 
reliveram-se,  porque  das  duzentas  cartas 
mandadas  a  ricaços,  pedindo  massa,  sóqua- 
torze  ou  quinze  voltaram  com  duas  de  seis 
e  muitas  adhesões.  De  mais,  os  arcos  de 
triumpho,  além  de  caros,  tinham  a  desvan- 
tagem de  presupôr  no  recemchegado  um 
triumphante,  e  a  fallar  a  verdade  nem  os 
mais  ferventes  mignons  das  Necessidades 
ousariam  impor  o  sr.  D.  Carlos,  coitado,  co- 
mo tal.  Sobrestiveram  p3Ís  os  membros  da 


os    GATOS  19 

grande  commissão,  Folgosa  á  frente,  em 
reslringir  o  bródio,  na  medida  dos  pequenos 
recursos  subscriptos,  ficando  ludo  no  cesto 
da  gávea,  n'um  fogo  de  vistas,  e  n'um  bodo 
de  tostão  e  duzentos  grammas  d'arroz  a  ca- 
da pobre  munido  d'atteslado  de  pobreza... 
que  os  parochos  passam  á  razão  de  doze 
vinténs,  fora  papel. 

Gliegou-se  a  mandar  aviso  aos  sportmen 
da  côrle,  concitando-os  a  uma  guarda  de 
honra  de  cavalleiros  montados  em  corcéis 
de  grande  preço,  para  fazerem  cauda  ao 
landeau  da  míigestade,  mas  ninguém  deu 
de  si,  e  os  que  accederam,  pediam  á  com- 
missão, pilecas  d'emprestimo,  e  doze  mi! 
réis  para  desencaravilhar  do  Mó  os  trajos 
de  cerimonia.  Da  interferência  do  elemenlo 
popular  no  grrande  preslito,  relata  lambem 
a  chronica  terem-se  convidado  alguns  alum- 
nosde  Talma,  a  cooperativa  pontas  de  cigar- 
ro e  artes  correlativas,  e  a  parturi'^nte-fu- 
nebre-familiar  d'Alcabideche,  única  que  se 
apresentou  com  musica,n'um  Rippert  ornado 
d'alfavaca  de  cobra,e  com  dois  bidés  doirados 
por  cornija. 

Durante  todo  este  tempo  a  actividade  de 

2 


^  os   GATOS 

Folgosa  não  socega,  e  eil-o  pelos  minisle- 
rios,  a  requisitar,  de  chapéu  na  cabeça,  imi- 
tando os  gestos  do  Burnay.  A'  ordem  d'elle 
o  serviço  do  correio  interrumpe-se,  por  lhe 
serem  os  carteiros  precisos  para  a  corres- 
pondência da  manifestação  espontânea  ás 
magestades.  Os  trens  de  praça  estão  todos 
tomados,  pelas  esquinas,  á  espera  que  elle 
passe  d'uns  pr'os  outros,  com  a  coroa  de 
conde  alada  á  lapeJia  por  um  elástico;  aca- 
bou-se  a  areia  encarnada  no  mercado,  a  poli- 
cia anda  á  paisana  distribuindo  bilhetes  de 
gare,comprando  pombos,transportando  ban- 
deiras, fazendo  cordas  de  buxo  e  outros  ac- 
cessorios  inherenles  á  manutenção  da  ordem 
publica ;  quanto  ao  telegrapho,  não  ha  meio 
de  fazer  passar  um  lelegramma — vinte  e 
quatro  horas  que  a  chancellaria  da  Palma 
notifica  aos  bilhares  da  província  o  advento 
do  seu  homem  a  grão  mestre  de  cerimonias, 
o  que  faz  dizer  aos  marcadores  labregos,  nO 
inlervallo  da  coçadella  dos  piolhos:  este  e»- 
íápor,  caragOy  é  que  tem  xortel  Prestes  e  sem 
uma  expediliva  palavra  que  avise  o  intruso 
d'estar  sendo  inconreniente,  arsenaes,  mu- 
seus, jardins,  quartéis,  tudo  se  lhe  abre, 


os   GATOS  21 

para  que  dle  tome  rressa  feira  da  ladra  as 
farraparias  liisloricas  que  mór  se  Iheafigi;- 
rem  para  exhibição  no  arraial  judengo  on- 
de mais  uma  vez  se  cobrirá  d'escarneo  a 
monarchia.  E  assim  o  exercito  que  lem  uma 
disciplina  e  uma  hierarchia  próprias,  e  as- 
sim a  marinha,  cuja  gloriosíssima  liisloria, 
afervorada  por  Iradicções  de  séculos  d'es- 
forço  e  abnegações  incomparáveis,  é  sagra- 
da até  para  os  mais  sceplicos,  passam  pela 
vergonha  de  ser  manuseados  porum  antigo 
furriel  armado  em  homem  indispensável, 
juntamente  com  a  areia  encarnada,  os  bicos 
de  gaz  e  os  gallegos  que  espetrram  os  mas- 
taréos,  manuseados  d'aIlo,  a  despeito  das 
praxes  disciplinares,  sem  disfarces  officiaes, 
nem  receio  d'afrronla  a  duas  corporações 
que  é  indispensável  reservar  da  corrosão  de 
troça  que  está  deliquescendo  tudo  por  ahi. 
Elle  tem  carta  branca  para  fazer  de  Lisboa 
uma  vilrine  agradável  ao  seu  real  patrão.  A 
14  de  novembro  intima  o  almirantado,  arran- 
que do  quartel  dos  marinheiros  o  grande 
mastro  do  pateo,  onde  as  praças  íazemexer- 
cicio,  e  o  faça  transportar  e  recompor,  com 
cesto  de  gavia  e  cordagens,  para  o  pé  da 


'22  OS   GATOS 

estatua  do  do  Mindello  (se  o  Amaral  recal- 
citra, demiltido!)  — ordem  á  escola  naval  a 
qae  os  aspirantes  se  produzam  na  gare,  a 
17,  para  fazer  guarda  de  honra  a  elle  e  ás 
mageslades  (quem  não  comparecer  será  ris- 
cado!)—  ordem  á  guarnição  para  formar 
alas  no  transito  do  cortejo,  ordem  aos  func- 
cionarios,  ordem  á  corte,  feriados  nas  oíB- 
cinas,  grande  gala  no  jornal  ofBcial,  com- 
[»oios  a  preços  reduzidos,  interdição  na  gare 
a  pessoas  sem  jerarchia  monarchica  esla- 
belecida  —  e  tudo  isto  por  deliberação  d'el- 
le,  com  severas  penas,  demissões,  multas, 
conselhos  de  guerra  e  bilhetes  de  borla 
para  o  grande  concerto  de  S.  Carlos. . .  A 
tal  ponto  a  omnipotência  do  seu  vulto  as- 
soldadou  Lisboa,  sob  a  regência,  que  de- 
pois dos  Jeronymos  inda  se  não  vira  cathe- 
dral  magestatica:  s.  ex.'  mesmo  persua- 
dido de  que  as  festas  fossem  para  authen- 
ticar  a  enxertia  da  sua  coroa  de  conde,  em 
coroa  de  monarcha.  Depois  d'um  largo  dia 
de  fainas,  chegada  a  noile,  encontravam- se 
no  castello  da  Rua  da  Palma  a  rainha  ve- 
lha e  o  presidente  do  conselho  novo,  o  re- 
gente e  a  regente,  e  ciumentos  da  aura  que 


os    GATOS  23 

se  julgavam  usurpar  na  posse  publica,  in- 
lerrogavam-se,  aosrepellões,  sobre  o  que  ti- 
nham arranjado  de  melhor  para  o  cortejo. 
Sobretudo  o  suppposto  favor  do  antigo  fur- 
riel enlre  o  cxercilo,  incommodava  S.  M., 
sempre  empolgadora  do  prestigio,  e  que  em 
íillos  brados  lastimava  o  ter  dado  homem 
por  si  no  recrulamento.  A'  chegada  dos  reis, 
limbos  os  dois,  vendo  no  ocaso  os  seus  sete 
dias  de  governo,  oíTereciam  o  maríyrio  da 
(íbscuridade  próxima  em  holocausto  ás  pro?»^ 
peridades  do  throno  e  a  bem  da  pátria,  e 
envaidecidos  da  sua  propaganda,  irrecusá- 
veis d'exito,  fechavam  as  mãos  e  diziam 
«lemos  o  paiz  aqui»,  fitando  de  seus  palá- 
cios o  ponto  hypothetico  do  horisonle  em 
(juesuppunham  jazer  o  alcaçarde  Limita,  o 
lerrivel  fuliculario  do  «faz  hoje  annos  o 
nosso  amigo...»  o  Carnot  porluguez,  o  fu- 
turo presidente  da  republica! 

E  inútil  explicar  as  festas,  depois  d'i?to: 
d'um  lado  um  povo  sem  expansibihdade, 
velhaco  e  parvo,  em  tudo  adiando  j-retexto 
para  vadiar  no  meio  da  rua:  do  outro  al- 
guns Barnhuns  sem  dinheiro  nem  influencia^ 
procurando  aquecer  gente  morta  com  cabo- 


24  OS    GATOS 

tinagens  e  fogueies,  e  em  conclusão,  nenhum 
interesse  nacional  chispando  do  meio  d'esle 
pagode !  Não  seria  pois  pelo  simples  redi- 
culo  episopico  que  eu  me  detivesse  a  des- 
crever as  pompas  da  chegada,  tanto  mais 
que  isso  eslá  feito  para  umas  poucas  de  via- 
gens realengas,  e  a  chronicad'uma  éa  chro- 
nica  de  todas,  porque  os  festeiros  são  os  mes- 
mos, e  a  Índole  sorna  da  multidão  pouco  varia 
de  provincia  para  provincia.A  novidade  does- 
tas é  outra,  a  capitulação  vergonhosa  do 
governo  perante  um  jolda  de  pândegos  que 
elle  tomou  pelo  partido  republicano,  o  ter- 
ror que  á  coroa  veio  d'uma  sublevação  mo- 
tivada por  dois  gritos,  e  tanta  consciência 
de  fraqueza  e  insignificância,  um  tal  desa- 
nimo, um  tal  medo,  que  o  próprio  Magalhães 
Lima  recebe  com  as  festas  do  regresso  hon- 
ras oíSciaes  d'anlagonista  do  monarcha  por- 
luguez.  De  feito,  a  origem  do  charivari  Foi- 
gosa  não  foi  outra  senão  o  ciúme  do  rei  pe- 
lo commis,  o  desejo  de  mostrar  que  a  coroa 
vale  ainda  mais  que  o  barrete  phrygio,  de 
dormir;  senão  veja-se-lhe  o  aproposito,  e 
estudem-se  os  detalhes  d'uma  e  d'oaIra  re- 
cepção. Realmente  não  seria  por  o  monar- 


os   GATOS  25 

cha  ter  ido  a  Madrid  tramar  uma  alliança 
que  pode  ser  cara  á  nossa  autonomia,  que 
se  lhe  fez  á  volta  tamanho  espalhafato.  Tão 
pouco  seria  pela  adoração  pessoal  que  S. 
M.  el-rei  e  sua  esposa  inspiram  aos  parti- 
dários do  regimen  dynaslico,  porque  mau 
grado  a  indiscutivel  nobreza  d'ambos,  o  seu 
caracter  leal  e  a  sua  gentileza,  os  monar- 
chas  bem  sabem  que  não  gosam  entre  essa 
gente,  adorações,  estando  sem  amigos  n'ura 
paço  onde  os  velhos  conselheiros  de  D.  Luiz 
deram  logar  a  ambiciosos  velhacos  e  a  wal- 
sistas. 

A  opportiinidade  das  festas  foi  unicamen- 
te  uma  ciumeira  insidsa  por  Limita,  filha 
do  governo  ter  tomado  á  leltra  os  vivas  do 
club  Sola  e  Vira,  e  de  desconfiar  que  o  tri- 
buno encarnasse  o  formidável  partido  de 
desgostosos  da  realeza,  ignorando,  o  desgra- 
çado, que  esse  partido  só  pode  proclamar  a 
republica  depois  de  morto  o  ultimo  republica- 
no. N'esta  illusão,  trataram  de  justapor  nu- 
onero  a  numero,  o  programma  da  recepção 
real,  ao  programma  do  recebimento  a  Ma- 
galhães :  mesmas  scenas  na  gare,  grande 
cortejo  até á  residência,  espectáculo  de  gala 


26  OS   GATOS 

n'um  theatro,  e  só  os  dois  almoços  do  Século 
substiluidos  por  um  bodo  no  Aterro,  onde 
sobraram  pobres  e  faltaram  donativos. 

Que  irrisória  e  ignominosa  fanlochada! 

Ahi  lemos  no  mesmo  nível  de  cul- 
minância politica,  no  mesmo  prato  da  ba- 
lança, equilibrando-se — d'um  lado  o  rei 
de  Portugal  e  os  seus  partidos,  defensores, 
aulicos,  exercito  e  marinha  —  de  outro,  Li- 
mita e  os  trezentos  palmistas  da  gare  do 
Rocio;  d'um  lado  o  poder  consliluido,  com 
predominio  assente  na  tradicção  de  mais 
de  sete  séculos,  e  na  posse  real  de  toda  a 
espécie  de  força  organisada,  do  outro  laaa 
uma  parcella  Ínfima  da  demagogia  caseira, 
inoffensiva,  cambaia,  para  rir;  e  assistindo 
a  esta  exhautoração  formidável  do  poder, 
cinco  milhões  d'almas  emporcalhadas  ein 
plena  face  por  um  governo  que  nem  sequer 
exteriormente  já  reconhece  a  monarchia  o 
direito  do  mais  forte  I 


Para  a  celebreira  do  emprezario  ser  com- 
pleta, e  a  gratidão  real  ler  ganchorras  onde 


os    GATOS  27 

prender  veneras  á  vontade,  até  rebentou 
uma  dynamilada  no  solar  do  sr.  conde  da 
Folgosa,  de  tal  maneira  anarchislica,  assus- 
tadora, destruidora,  vingativa,  que  escutada 
na  redacção  das  Novidades,  nem  sequer  in- 
terrompeu o  somno  do  guarda-portão  que 
adormecera  a  quatro  melros  do  sinistro. 
Como  este  phenomeno  acústico  se  explica, 
só  inventando  Tyndall  e  Helmollz  uma  ano- 
malia nova  ás  leis  da  vibração,  suppondo 
na  dynamite  por  exemplo  faculdades  de  re- 
pórter, e  imaginando  que  apenas  rebentada, 
a  bomba  fosse  á  redacção  das  Novidades, 
dar  a  noticia,  para  voltar  depois  ao  ponto 
de  partida,  a  fazer  damno.  Interroga-se  a 
creadagem  do  palácio,  e  uma  sopeira,  es- 
tando na  cosinha,  ouviu  o  tiro,  emquanto 
outra  á  janella  não  poude  discernir  se  fora 
tiro,  ou  se  seria  um  traque  da  patrulha. 
Embalde  os  peritos  constatam  que  tendo  a 
dynamite  uma  força  expansiva  prodigiosa, 
devendo  seguir-se  á  explosão,  estrondo  hor- 
ri.-íono,  e  o  projéctil  destroçar  quanto  lhe 
estivesse  adjacente,  os  simples  factos  da 
creada  ter  duvidas,  do  guarda-port  ão  não 
acordar,  e  de  nem  sequer  a  cpliça  da  mu- 


2S  OS   GATOS 

ralha  do  palácio  ter  cabido,  logo  á  grossei- 
ra analyse  demonslram  em  vez  da  Índole 
destruidora,  antes  a  Índole  pyrolechnica  da 
bomba,  que  a  não  ter  sido  rhelorica,  foi  com 
certeza  uma  bomba...  de  pataco. 

Porem  o  sr.  conde  quer  por  força  ser  vi- 
ctima  dos  demagogos,  faz-lhe  conta  o  pa- 
pel de  marlyrdo  throno,  e  então  com  umas 
cascas  d'auctoridade  que  lhe  ficaram  dos 
festejos,  sempre  a  ateimar  que  tem  sicários 
á  perna,  entrava  por  decreto  as  leis  da  chi- 
mica,  ordenando  que  a  bomba  seja  para  to- 
dos os  effeitos,  dynamite,  metendo-lhe  o  sr. 
Dias  Ferreira  este  perigo  na  conta  dos  ser- 
tíços  que  o  governo  haverá  que  lhe  pagar. 

Chegado  o  estampido  á  redacção  das  No^ 
vidades,  o  esculca  auricular  que  estava  de  fa- 
china,  tomando  a  direcção  do  som,  averi- 
guou que  elle  viera,  na  direcção  do  vento, 
dos  sitios  do  Intendente,  e  eil-o  espavorido  a 
procurar  na  rua,  informações.  Gomo  a  ex- 
plosão lhe  parecesse  provir  da  Rua  da  Pal- 
ma (são  as  próprias  informações  das  Novi- 
dades), o  esculca  subiu  o  Chiado,  desceu  a 
Rua  do  Alecrim,  espraiando-se  pelo  Aterro, 
onde  os  calraeiros,  apezar  da  sua  boa  yon- 


os  GATOS  29 

tade,  lhe  não  poderam  mostrar  vestígios  do 
sinistro.  Romulares.  Terreiro  do  Paço,  Riia 
do  Ouro,  e  emfim  no  Rocio  nova  admiração 
do  moço  em  não  encontrar  sequer  no  cesto 
dagaveaas  visceras  estrompadas  d'um:i  vic- 
tima.  Chegou-se  a  D.  Maria,  e  acercando-se 
d'um  dramamifero  que  sabia,  com  a  coroa  de 
loiro  ás  três  pancadas,  pergunlou-llie,  apon- 
tando a  massa  do  iheatro,  se  acaso  houve- 
ra lá  dentro  alguma  coisa.  O  dramamifero, 
baixando  as  pálpebras  com  peso,  e  os  can- 
tos da  boccad'oiro  com  mysterio,  fez  o  gesto 
tolhido  de  quem  não  pode  fallar,  e  acrescen- 
tou. .  que  era  segredo  de  coníissão.  Já  por  es- 
se tempo  o  thealro  estava  atochado  dos  da- 
mascos que  lhe  iam  sendo  remettidos  pela 
estrada  de  Rraga,  em  carroça  puxada  por 
seis  girafas  de  smoking. 

—  Não  ouviram  um  tiro?  perguntava  o 
repórter  a  toda  a  gente. 

Estava  na  columnata  o  damasqueiro  re- 
commendando  a  uns  poucos  de  porquinhos 
da  índia,  de  nomes  críticos,  o  reclame  com- 
mercia!  da  sua  fructa,  e  o  repórter  das  Novi- 
dades revistando-lhe  os  craneos  verificou  quu 
â  explosão  não  podia  ter-se  dado  n'el!es,  pe- 


30  OS   GATOS 

la  razão  de  nem  sequer  terem  miolos.  Ví.ns 
de  cima  do  frontão,  Gil  Vicente  que  ouvira 
a  pergunta  do  tiro,  respondfu  brutal  que 
fora  elle  com  uuia  indigestão  de  damascos 
que  se  cagava  para  todaaquella  illustre  as- 
scmblea. 


De  canto  em  canto,  de  praça  em  praça, 
de  rua  em  rua,  alii  prosegue  o  pobre  diabo 
na  faina  d'atinar  com  o  foco  da  noticia  sen- 
sacional do  dia  seguií)le,  o  caso  da  bomba, 
a  famosí»  bomba  do  dynamite  bonoraria, 
sacramento  da  confirmação  dos  pinlale- 
gretes  que  se  querem  fazer  togar  de  gran- 
des viillos.  Quando  os  acasos  da  marcha 
alfim  o  conduzem,  esbofado  de  respiro,  até 
ao  «local  do  incidente»,  já  viu  trotando 
para  as  redacções  dos  jornaes  muitos  facto- 
res que  por  ordem  do  sr.  conde  levavam  o 
caso  tétrico  ao  commenlario  dos  plumitivos 
«sequiosos  de  justiça».  O  jardim  do  solar 
parcct-u-lhe  fúnebre,  com  um  chafariz  ao 
fundi»,  e  por  entre  as  moitas  pccpienos  mau- 
soléus   recordando   o  cemitério  do  Barba 


o»  Gatos  31 

Azul.  Na  sala  de  despacho  das  festas,  rez- 
do-chão,  onde  o  sr.  conde  estava  acabando 
de  diclar  as  ul limas  noticias,  vários  creados 
jaziam  sobre  enxergas,  com  grandes  feridas 
pintadas  expressamente  nos  membros,  pelo 
tronco,  e  ennodoando-lbes  as  roupas,  san- 
gueira  á'.  porco  comprada  ao  litro  ás  fres- 
sureiras.  Tinham  sido  chamados  a  Ioda  a 
[)ressa  dois  pedreiros,  com  ordem  de  der- 
rocar rapidamente  a  bombreira  do  palácio, 
profundando  o  sinistro  no  ponto  bypothe- 
tico  em  que  o  sicário  devera  ter  pousado  a 
dynamile,  e  o  sr.  conde,  meltendo  vinte  e 
cinco  tostões  no  bolso  do  cocheiro,  dava-lhe 
as  ordens: — depois  de  pintado  e  prompto, 
deitas-le  na  porta,  entendes  ?  c  quando  a 
policia  chamar  por  ti,  diz  que  estás  moito. 

Este  manejo  açulara  a  curiosidade  do 
repórter,  mas  fizeram-no  mudar  de  rumo 
immediatamente,  a  pretexto  de  que  indo-se 
proceder  ao  ensaio  geral  dos  feridos,  não 
convinha  que  elles  se  produzissem  deante 
da  imprensa  não  sabendo  bem  os  seus  pa- 
peis. 

O  sr.  conde  da  Folgosa  passou  então 
pelo  questionário  a  que  é  uso  os  entrevistei- 


32  OS    GATOS 

ros  submetierem  os  «heroes  do  dia»  :  como 
se  chamava,  o  estado,  os  annos,  as  doen- 
ças, e  se  ^-ípor  acaso»  sabia  lêr  e  escrever? 
Lá  salisfez  como  ponde  as  indiscrições  do 
alviçareiro,  e  chegados  ao  capitulo  da  dy- 
namite,  o  homemsinho,  de  carteira  espal- 
mada e  molhando  o  lápis,  pediu  promeno- 
res  sobre  a  calastrophe. 

—  A  respeito  do  estrondo,  uns  ouviram 
de  mais,  outros  de  menos.  V.  ex.*  que  pen- 
sa sobre  o  caso? 

—  Penso,  respondeu  com  nobilissima 
simpleza  o  nobre  ex  futuro  marqnez  do 
Cesto  da  Garia,  que  o  explosivo  traiçoeira- 
mente arrojado  contra  mim,  fosse  effectiva- 
mente  a  dynamite,  e  em  grande  dose,  como 
se  prova  pela  derrocada  a  que  os  pedreiros 
estão  acabando  de  dar  a  ultima  demão.  Se 
o  estrondo  da  bomba  não  esteve  porem  á 
altura  dos  instinctos  sanguinários  dos  meus 
algozes,  não  se  lhe  attenuem  por  isso  os  ef- 
feitos  mortifero-escamados;  ha  agora  umas 
bombas  de  dynamite,  medonhas,  do  peso  de 
sete  kilos,  que  matam  sem  estrondo,  e  se 
chamam  por  isso,  silenciosas...  de  Singer. 

—  De  Singer  ?  1 


os   GATOS  33 

—  Bombas  terriveis:incendian<lo-se,  der- 
rocam mundos:  deixadas  em  casa,  cosem 
ceroulas  que  é  uma  perfeição. 

—  E  quantas  desgraças  pessoaes  daria  a 
bomba  ? 

—  O  que  se  chama  pessoaes,  deu  a  es- 
quina do  prédio,  muitos  feridos, 'e  um  morto 
em  postas,  se  o  lempo  o  peimitlir. 

—  V.  ex,*  inlaclo,  felizmente. 

—  Inlaclo?  Ora  essa !  Tenho  uma  ferida 
grande  sobre  o  sacro,  uma  echymose  pro- 
funda na  cabeça,  eparlida  em  cinco  postas, 
esía  perna. 

—  E'  então  rabo,  cabeça  e  postas.  Mas 
V.  ex.*,  se  me  não  engano,  equilibra-se  em 
pé  famosamenle. 

—  Não  vê  que  estas  fracturas  por  alten- 
tado  politico  só  no  dia  seguinte  é  que  ap- 
parecem. 

—  Tão  perigoso  d'estado,  ao  menos  res- 
ta ao  sr.  conde  a  satisfação  do  martyrioci- 
vico  nobremente  satisfeito,  e  a  certeza  de 
que  o  governo  não  deixará  sem  recompensa 
os  seus  serviços. 

— Ah  meu  amigol  Já  ficava  contente  se  me 
dobrassem  as  rendas  do  potril.  Só  o  que  eu 


34-  OS    GATOS 

gastei  em  fogo  preso  1  Convenho  também 
que  um  marquezado  me  assenta  como  o  le- 
treiro nas  pilulas  Dehaut.  Mas  de  Ceslo  da 
Gávea,  é  caricato,  e  quanto  a  marquez  da 
Bomba,  obseda-me  o  escrúpulo  de  todos  os 
dias  ter  que  limpar  ao  Diário  de  Notwias,  o 
meu  titulo... 


FIALHO    D'ALMEIDA 


os  GATOS 

PUBLICAÇÃO 

D 'inquérito   á  vida  PORTUGUEZA 


N.^õl  — 7  de  janeiro  de  1893 


SUMMARIO 

Primeira  representação  da  Estrada  de 
Damasco  e  parentesco  d'ella  com  o  On  ne 
badine  pas  avec  Vamonr,  de  iMusset.  —  A 
Egéria  da  peça  e  seus  louvores  —  Reclames 
preparatórios  D'um  «succESso*,  ou  como  in- 
tendem A  arte  os  nossos  collegas  da  imprensa. 
—  Inquérito  dos  amigos  de  Braga  quanto 
AOS  motivos  anti-gentlemanicos  da  rateada 
— Sobre  a  influencia  das  redingotes  no  tem- 
peramento litterario.  —  Alexandre  Hercu- 
lano E  os  fatos  novos  —  De  como  a  rateada 
DA  Estrada  foi  injusta.  —  Caracteres  com- 
pósitos d'uma  peça  :  acção,  convergência  das 
scenas  ao  desfecho,  e  requisitos  artísticos 
do  dialago.  —  Applicada  a  doutrina  ao  Ss- 


II  os     GATOS 

gredo  da  Confissão  e  á  Estrada  de  Damas- 
co, imfere-  se  que  não  prestam  para  nada 

Moveis  secretos  da  critica  optimista,  e  lista 
das  pôas  que  prohibem  os  reporters  de  thea- 
tro  de  ser  sinceros. llga  aduaneira  de 

CRETINOS,   AO  DEREDOR  DAS  PEÇAS  PÍFIAS 1n- 

TIMA-SE  A  GENTE  HONESTA  E  CULTA  A  QUE  REA- 
JA —  Estado  abjecto  da  litteratura  con- 
temporânea,   E   PERIGOS    PÚBLICOS    DE    DEIXaR 

SUBIR  OS  «ESPERANÇOSOS  ESCRIPTORES)). TrA- 

DICÇÕES  E  DEVERES  DO  NOSSO  PRIMEIRO  THEATRO 

litterário. —  O  Frei  Luiz  de  Sousa  e  a  pa- 
TEADA  Á  Sobrinha  do  Marquez. —  Paralello 

entre  a  PLATÉA  de  hoje  E  a  PLATÉA  DE  HA 
CINCOENTA  ANNOS. CrETINISAÇÃO  DOS  ACTO- 
RES PELOS  DRAMATURGOS. QuEM  NÃO  SABE  ES- 
CREVER,  APARA    CALOS  1  —  Missão      depura- 

DORA  do  GALLINHEIRO,  QUALIDADE  INTELLECTUAL 
DOS  FREQUENTADORES,  E  SUA  CATHEGORICA  IN- 
TERVENÇÃO   NAS    GLORIAS    DO    THEATRO    PORTU- 

GUEz. —  Tasso  no  Cego,  e  Emília  das  Neves 
NO  Gladiador  de  Ravena. —  O  grito,  tirem 
dalii  o  nome  de  Garret !  —  Conclusão  de 

QUE  É  necessário  PATEAR  AS  OBRAS  MÁS  PARA 
escarmento  dos  asnos  E  RESSURREIÇÃO  DO 
gosto  NACIONAL. 


15  í/e  dezembro. 


Represenlou-se  em  D.  Maria  uma  pecita 
do  sr.  homem  de  leltras  Alberto  Braga,  a 
Estrada  de  Damasco,  ullima  d'uma  triologia 
de  necedades  a  que  a  empreza  tem  recorri- 
do para  contento  dos  noticiaristas  dos  jor- 
naes,  de  que  ella  depende,  e  principalmente 
para  armar  á  villania  e  estupidez  do  pu- 
blico de  Lisboa,  chegada  a  um  extremo  que 
se  não  pode  abranger  sem  náuseas  de  des- 
prezo. A  Estrada  de  Damasco  é  um  simula- 
cro de  namoro  bastante  estúpido,  lardeado 
de  noticias  do  carnet  mondain  das  Novida- 
des^ sendo  a  catastrophe  puxada  pela  fila 


4  OS      GATOS 

d'um  sapato.  Gomo  causa  determinante  ins- 
piradora leve  ama  espécie  de  xarope  James 
que  desagregou  das  cavernas  psychicas  do 
auclor  talento  scenico  avonde  para  a  expe- 
ctoração lilteraria  de  quatro  actos  —  esse 
xarope,  lê-se  n'um  artigo  do  Popular,  sendo 
a  leitura  que  o  parisiense  Pina  lhe  fez  do 
On  ne  badine  pcis  avec  Vamour,  de  Musset. 
Braga  tão  aparvalhado  ticou  com  a  lei- 
tura que  começou  a  fazer  a  Estrada 
aos  domingos,  quando  não  tinha  mais  nada 
que  fazer.  Ao  fim  d'um  certo  numero  d'ocios 
semanaes,  a  obrinha  prestes,  tornou  o  dra- 
maturgo a  abrir  a  porta  á  sua  Egeria,  e 
appareceu  esta  de  clamyde,  com  uma  tuba 
na  dextra,  a  apreciar  por  junto  a  maravi- 
lha que  inspirara.  Como  houvesse  doces 
sobre  a  meza,  a  maganona  tantos  d^elles 
filhou  do  papeluço,  que  ás  duas  por  três, 
sobre  já  não  serem  horas  d'estar  lúcida, 
principiou  a  não  poder  estar  também  inde- 
pendente. Por  consequência  traceja,  na  fe- 
bre digestiva  dos  doces,  para  o  Popular, 
uma  ladainha  opipara  á  comedia,  c  dotada 
de  novas  e  preciosas  qualidades,  do  mais 
puro  modernismo,  e  filiando-se  no  mesmo 


os    GATOS  5 

género  dramático  a  que  pertence  a  Soiiris  e 
o  Monde  oú  l'on  sennuiAa  Pailleron,  as  Pat- 
(es  de  mouche  de  Sardou,  a  Francillon  de 
Dumas  filho,  o  Pnrisien  de  Gondinet...»  e 
accrescentariaeu  a  grandessissima...  se  para 
hombrear  co'a  gentilhomeria  de  tão  illustre 
salsa,  não  propositasse  hoje  escrever  com 
rendas  nos  manguitos. 

Esta  cantanta  repeliu-se  pelos  jornaes 
dias  antes  da  Estrada  em  scena,  em  series 
d'outras  elogiosas  parvoiçadas,  onde  esga- 
niram  quasi  todos  os  cães  vadios  que  desem- 
penham pelos  diários  o  papel  de  críticos  de 
ihealro.  «Ha  muito  que  uma  platéa  não  ou- 
ve prosa  dramática  conduzida  com  tamanha 
naturalidade,  com  tanta  verve,  com  tanto 
espirito,  e  tão  superior  e  litteraria  compre- 
hensão  do  que  é  o  dialogo  moderno  dentro 
d'uma  sociedade  moderna»  dizia  um.  «A 
peça  do  nosso  collega,  além  de  ser  um  ad- 
mirável trabalho  d'observação  da  parte  da 
sociedade  porluguezamais  difficil  d'estudar, 
contem  ao  mesmo  tempo  elementos  litte- 
rarios  de  tal  valia  que  deve  ficar  no  theatro 
clássico,  para  exemplo...»  dizia  outro.  E 
por  qui  fora  a  enfieira  de  chalrices  com  que 


6  OS    GATOS 

se  protegem  os  nullos  quando  ha  uma  de 
doze  a  ganhar  co'a  celebreira  d'am  pagante. 
Subiu  a  Estrada  á  scena,  e  o  gallinheiro  en- 
ihusiasmado  pelos  reclames  que  lhe  prognos- 
ticavam successos  nunca  vislos,  ao  escutar 
esses  pobres  episódios  descoloridos,  vascon- 
sos,  com  falia  d'ar  e  a  espinha  sem  concei- 
ra,  Ião  pulhamenle  se  viu  ludibriado,  que 
n'um  generosissimo  relâmpago  d'equidade 
paleou  a  peça,  chufou  a  claque,  e  mesmo 
entrecruzou  lambada  com  alguns  borlistas  e 
bufos  daempreza,  mais  particularmente  rai- 
dosos  de  tornar  publico  o  seu  enlhusiasmo. 
Este  signal  d'independencia  do  gallinheiro, 
filho  da  liberdade  d'opinião  que  os  costumes 
eleis  garantem,  e  aauctoridade  tem  obriga- 
ção de  respeitar  nos  finaes  d'acto,  todas  as 
vezes  que  não  interrompa  a  scena  ou  amea- 
ce a  bôa  ordem  da  soirée,  foi  recebido  pela 
platéa  entre  insolências,  e  mesmo  valeu  ao 
auctor,  por  banda  dos  analphabetos  de  mo- 
nóculo que  enchameavam  a  sala,  alguns  ap- 
plausos  que  eu  não  desejaria  ao  mais  im- 
becil dos  meus  demolidores.  A'  testa  do 
Gomplot  estavam  os  «críticos»  que  haviam 
reclamado  de  véspera  a  Estrada  de  Damas- 


os    GATOS  t 

CO,  estavam  os  amigos  do  aactor,  coagidos 
por  educação  a  transformar  o  enterro  em 
baptisado,  e  ainda  algans  pobres  ingénuos 
patetas  que  o  fauteuil  de  borla  ou  a  opinião 
do  maior  numero  facilmente  levam  no  enxur- 
ro dos  que  pateam  só...  de  luva  branca.  Esta 
triste  sociedade  á  qual  o  gallinheiro  não 
deslolera  o  direito  d'applauso,  sem  discus- 
são das  impulsivas  indecorosas  ou  piedosas 
que  possam  motival-o,  tão  persuadida  está 
porém  da  sua  culminância  artistica,  que  já 
nem  reconhece  direitos  reciprocos  aos  con- 
trários: em  termos  que  em  0.  Maria  quem 
dá  pateada,  é  suspeito,  e  só  quem  applaudir 
merece  as  honras  d'apreciador  imparcial  e 
justiceiro. 

No  dia  seguinte  á  primeira  representação 
da  Entrada  de  Damasco  os  destemperes  dos 
jornaes  contra  os  pateanles,  e  os  elogios  á 
peça, desembestaram  por  guiza  a  não  selha 
deixar  de  suppôr  recebimento  de  gorgeta. 
Os  mais  benignos  declaram  nos  seus  comte- 
rendus  da  Estrada  de  Damasco  que  ha  mui- 
to se  prepositara  do  gallinheiro  um  enxova- 
lho ao  sr.  Braga,  que  a  peça  é  deliciosa  ou 
nunciadora  pelo  menos  d'um  escriptor  thea- 


8  OS    GATOS 

Irai  de  grande  marca,  e  que  são  desprezi* 
veis  anonymos  e  indignos  sacripantas  todos 
os  que  para  se  pronunciar  sobre  uni  caso 
lilterario  «occultam  sua  cobardia  na  sombra 
onde  se  lhes  não  pode  pedir  responsabili- 
dades.» Outros  ainda  a  quem  o  talento  dra- 
mático de  Braga  não  logra  encegueirar  tan- 
to como  as  redingotes  e  peitilhos  com  que 
os  alfaiates  e  camiseiros  fazem  de  simples 
cabides,  Paillerons,  subscrevendo  de  cruz 
quanlo  á  premeditação  de  desfeita  ao  dra- 
maturgo, explicam-n'a  todavia  pelo  natural 
ciúme  que  a  gentes  pobres  e  cabaceas  ins- 
pira sempre  um  retezo  peralta  como  Braga, 
de  quem  o  parisiense  Pina  diz  «que  sabe 
vestir  lindamente  uma  casaca,  dar  o  laço  da 
gravala,  calçar  sapatos  de  vernis,  e  parado- 
xar  enlre  dois  goles  de  chá  com  figuronas 
da  melhor  sociedade  \))  Finalmente  os  ter- 


1  E'  curiosa  a  razão  que  fez  dar  com  alguns  noticia- 
ristas cm  fabricantes  de  peças  de  theatro.  Inda  ha  pou- 
co, dando  conta  da  instantaneidade  de  factura  d'uma 
comedia  aliás  escripta  com  talento,  diziam  os  jornaes, 
«que  o  escriptor  a  fizera  em  dois  mezes,  para  tapar  a 
bocca  a  alguns  credores.»  Frequentes  vezes  se  lê  nas 
secções  theatraes  do  syndicato.  "O  ilíustre  F.  começou 
uma  coisa  de  grande  fôlego^  que  destina  ao  theatro  X. 
para  ser  jeita  pelo  eminente  ou  pela  eminente  H.,  e  que 


os    GATOS 


riveis  e  auctoritarios  ainda,  como  o  Correio 
da  Maíihã  e  o  Dia,  não  conlenles  de  pôr  o 
gallinheiro  em  cheque  pelas  más  prendas  e 
anonymalo  irresponsável  que  lhe  outorgam, 
inda  por  cima  reclamam  contra  os  protestos 


estará  impreterivelmente  prompta  no  dia  iul^  do  mez  se- 
guinte.» Dir-me-hão  se  não  vae  n'esta  noticia  iinplicito 
o  descrédito  da  obra  annunciada  !  Está-se  logo  a  ver 
que  o  illustre  F.  é  um  rufiào  sem  escrúpulos  nem  brio, 
porque  em  vez  de,  escrevendo,  pairar  no  sonho  cérulo 
do  bello,  que  abstrae  do  espaço  e  do  tempo,  abstrae  do 
individuo  «um  certO"  para  somente  crear  seres  que  são 
rezumos  de  grupos,  o  que  procura  é  fabricar  sensabo- 
rias para  escamoteio  d'um  certo  publico  e  exliibiçâo 
dos  recursos  d'um  certo  artista,  que  ás  vezes  é  o  que 
elle  possue  em  scena  de  mais  ordinário  e  de  peor.  Com 
este  mesquinho  ideal  de  fazer  massa  com  a  paslnacei- 
ra  publica,  produzindo  peças  á  hora,  para  eiicadremeiít 
de  tal  actriz,  e  aproveitamento  d'um  certo  scenario  ou 
guarda-roupa  da  empreza.,  como  é  que  pode  alguém 
dar  no  theatro  obra  durável  ?  Alexandre  Dumas  filho, 
Augier,  Sardou,  e  outros  experimentados  obreiros  do 
theatro  moderno,  com  uma  cultura  litteraria  completis- 
sima,  uma  experiência  de  proscénio  inegualavel,  c  re- 
cursos d'ob8ervação  e  espirito  sem  rival  na  litteratura 
dialogada  contemporânea,  a  (juando  prenhes  de  peça, 
depois  de  cheios  os  seus  cadernos  de  planos,  monogra- 
phias  de  typos,  pontos  culminantes  de  dialogo  e  para- 
doxo, no  dia  cm  que  se  resolvem  a  escrever  a  obra  pla- 
neada, apontada,  carpintejada  scena  a  scena,  rctra- 
hem-se  meio  anno  nos  seus  gabinetes  de  trabalho,  nas 
suas  casas  de  campo,  sequestrados  do  convivio,  e  todos 
absorvidos  na  communhJio  suprema  do  seu  talento  á 
meza  da  Arte.  Verdade  seja  que  aqucllcs  mestres,  apar 
dos  nossos  dramamiferos  contemporâneos  sào  umas  po- 


10  os   GATOS 

d'elle,  correctivo  (liein?),  dizendo  que  a  pa- 
leada estugou  do  ódio  de  mucosas  gástricas 
famintas,  maceradas  por  uma  aguardente 
emética  de  ginginha. 

Ora  eu  não  figurei  na  paleada  do   gal- 

sitivas  miUidades,  e  pov  isso  bastou  ao  sr.  Braga  não 
sahir  seis  domingos  para  ter  realisado  uma  obra  que  o 
nosso  Pina  pôz  entre  a  Soui-is  c  o  Monde  ou  Von  «'en- 
TiMíV,  de  Pailleron. 

Sobre  a  apreciação  da  Estrada  pelas  folhas,  haveria 
também  coizas  a  explorar,  divertidissimas.  O  Dia  diz 
que  pelas  alturas  do  segundo  acto  rebentara  no  galli- 
nheiro  uma  tempestade  fie  paleada,  e  por  seu  lado  es- 
crevem as  Novidades  que  foram  só  quatro  os  patean- 
tes  Quatro  pateantes  que  fazem  uma  tempestade,  ca- 
ramba !  não  são  homens,  sào  elementos.  <■  Porem  esta 
reacção  foi  reprimida  logo  pela  platéa,  que  fez  ao  nos- 
so amigo  uma  ovação  delirante.» 

Delirante  n'este  caso  quer  dizer,  de  delirium  tremena. 

Procedendo  depois  á  votação  dos  actos  em  mérito 
absoluto,  um  dos  panegyristas  da  Estrada  diz  que  o 
primeiro  francamente  não  presta,  opina  outro  que  o  que 
não  presta  é  o  segundo,  e  assim  gagueja  outro  a  respei- 
to do  terceiro,  e  emfim  outro,  do  ultimo.  Como  os  par- 
voeirões  são  solidários,  averigua-se  pela  cerzidura  dos 
quatro  panegyricos  que  a  Estrada  de  Damas^.o  nào  tem 
uma  unii*a  palavra  supportavel ;  e  ahi  está  como  d'um 
coro  de  jumentos  sahe  o  verdadeiro  juiz  sobre  a  peça, 
e  a  justificação  formal  da  pateada  ! 

Mais.  Tratando-se  d'um  producto  da  intelligencia, 
a  pretendida  inveja  dos  pateantes  pelo  auctor  da  Et- 
trada  de  Damasco  deveria  mirar-lhe  o  talento  de  pre- 
ferencia aos  hábitos  sportmanicos  e  elegância  inflam- 
matoria  de  vestir.  Por  consequência  se  os  panegyi-is- 
tas  do  seu  Braga  frizam  na  pateada  o  ciúme  pelo  sport- 


os  GATOS  U 

Unheiro,  a  noite  da  caballa,  nem  desfeitea- 
ria  Ião  pouco  a  peça  do  sr.  Braga,  pois  ten- 
do-se  dado  em  D.  Maria  trez,  do  mesmo 
género,  e  não  sendo  aquella  a  mais  tola, 
forçoso  seria  conservar-me  na  Estrada  so- 
cegado,  e  só  lastimando  que  a  jiisliça  não 


man  e  deixam  na  sombra  a  emulação  pelo  escriptor,  é 
que  n'este  ultimo  realmente  não  haverá  de  que  ter  ciú- 
mes. D'onde  se  infere  que  o  defendem,acquiescendo  sem 
restricçào  na  sua  mediocridade  —  fideputas  sào  estes 
defensores  !  —  e  levando  os  azedumes  da  controvérsia 
para  um  campo  de  modas  d'onde  o  sr.  Braga  sahiria, 
se  nós  quizessemos,  atolado  em  ridículo  até  á  nuca. 
Infelizmente  para  o  leitor,  o  sr.  Braga  nào  tem  culpa 
da  fascinação  que  o  seu  alfaiate  exerce  sobre  a  estu- 
pidez dos  seils  adoradores,  e  até  julgamos  que  o  seu 
bom  senso  de  pobre  rapaz  na  sessentena  terá  tremido 
pelas  responsabilidades  inherentes  ao  papel  de  Brum- 
inel  que  lhe  querem  fazer  representar.  Tanto  a  missão 
toilettica  do  sr.  Braga  é  subalterna  e  governada,  que 
escova  elle  próprio  a  sua  roupa,  usando  para  as  suas 
nódoas,  benzina,  e  escolhendo  fazendas  com  duas  fren- 
tes, para  as  mandar  voltar  de  trinta  em  trinta  mezes. 
Eu  mesmo  lhe  conheço  umas  calças  de  baile  remen- 
dadas com  um  artigo  velho  do  sr.  conde  de  Ficalho. 
Quanto  a  «vestir  bem  uma  casaca",  é  coisa  que  já  tem 
feito  a  fortuna  de  creados  de  meza.  De  dramaturgos, 
nunca.  Ibsen  é  corcunda,  Sliakspeare  e  eu  escrevemos 
sempre  em  mangas  de  camisa.  A  elegância  é  uma  vir- 
tude litteraria  tão  subalterna,  que  uma  vez  manda- 
ram de  Londres,  a  Herculano,  um  fato  rico  ;  vae  elle 
oíFcreceu-o  ao  gallego  que  o  servia.  Ora  até  ao  pre- 
sente nào  consta  que  fosse  o  gallego  o  auetor  da  His- 
toria de  Furtugal. 


12  OS    GATOS 

garrotasse  antes  do  sr.  Braga,  os  outros  mal- 
feitores. 

Eniretanio,  apezar  dos  pateantes  do 
gallinheiro  votarem  pelo  desprezo  as  mise- 
ráveis vaias  dos  maltrapilhos  que  os  insul- 
tam, eu,  como  escriptor  e  como  publico  é 
que  me  não  resolvo  a  assistir  impassível 
aos  desconcertos  d'este  syndicato  de  direi- 
tos d'auctor  e  outras  mixordias  indecenles, 
e  dissecarei  o  caso  cerce,  agora  que  cahiu  a 
Estrada,^  provado  foi  que  o  gallinheiro  linha 
razão.  Como  o  assumpto  é  largo  e  a  linha  só 
se  traia  por  processos  de  medicina  radical, 
devidirei  este  discurso  em  Ires  paragraphos: 
o  primeiro  sobre  os  criticos  nas  suas  rela- 
ções com  os  actores  e  os  dramaturgos :  o 
segundo  sobre  os  espectadores  e  seus  di- 
reitos d'applauso  ou  de  protesto,  e  o  tercei- 
ro emfim  sobre  a  impreterível  necessidade 
de,  para  bem  do  paiz,  a  gente  proba  desa- 
lojar de  Ioda  a  parte  os  troca-tintas. 


I  í  —  Que  vem  a  ser  uma  peça  de  thea- 
tro? 


os    GATOS  13 

E'  qualquer  eíTabulação  ou  crise  psycho- 
logica,  desenvolvida  ou  commentada  pelo 
auclor  em  forma  dialogai.  Simples  anedocla 
ou  problema  moral  de  certo  fôlego,  a  peça 
exprime-se  por  um  certo  numero  de  scenas, 
argumentadas  em  crescendo  té  um  desfe- 
cho que  deve  ser  o  motivo  real  de  todo  o 
arcabouço.  Estas  scenas  deverão  desenvol- 
ver-se  e  brotar  umas  das  outros,  reforçan- 
do-se  a  cada  instante  com  revelações  soli- 
darias dos  personagens,  e  o  dialogo  que  as 
formula  claro  que  só  é  bom  quando  cingir  a 
acção  de  perto,  isto  é,  quando  puzer  a  maior 
somma  de  brilho  na  maior  sòmma  de  curteza, 
esta  contendo  a  maior  somma  de  documentos 
jusiificalivos  do  valor  moral  ou  simplesmente 
imaginativo  do  desfecho.  D'aqui  se  infere — 
1."  que  toda  a  peça  de  iheatro  necessita  ab- 
solutamente d'uma  acção  —  2.*,  que  todas 
as  scenas  não  convergentes  ao  desfecho,  so- 
bre contraproducentes  na  obra,  devem  ex- 
plicar-se  por  debilidade  mental  do  drama- 
turgo—  3.°,  que  a  formuzura  ou  viveza  do 
dialogo  só  é  real  quando  a  expressão  gra- 
vada da  phrase  provenha  não  da  musica 
simples  das  palavras,  mas  da  eneri[ia  ejus- 


14  OS    GATOS 

teza  que  a  própria  força  do  assumpto  em- 
presta á  linguagem  do  escriptor.  Tomem-se 
agora  para  texto  de  referencia  d'estas  con- 
dições primordiaes  de  toda  a  obra  scenica, 
as  borracheiras  que  D.  Maria  representou  ul- 
timamenle:  vejam  se  são  capazes  de  me  dizer 
qual  seja  o  enredo  do  Segredo  de  Confissão 
e  da  Estrada  de  Damasco,  de  me  explicar  a 
desinvolução  geométrica  das  suas  scenas, 
de  me  destrinçar  a  linha  moral  ou  simples- 
mente anedoclica  de  cada  typo,  ou  de  me 
rezumir  sequer  em  quatro  palavras  o  intui- 
to e  o  fim  revelador  de  qualquer  d'aquellas 
miseráveis  escrófulas  litlerarias.  Relativo  a 
enredo,  assumpto,  acção,  tanto  é  coisa  que 
n'aquellas  peças  não  existe,  que  a  audição 
pode  começar  indislinctamente  por  qualquer 
dos  actos,  sem  mor  abalo  na  comprehensi- 
bilidade  final  do  espectador.  A  respeito  de 
sequencia  e  loojica  de  scenas,  tanto  quasi 
todas  são  supérfluas,  que  o  Segredo  podia 
ficar  só  com  o  quarto  acto,  fazendo-se  pasta 
dos  mais  p'ra  malar  moscas,  e  a  Estrada 
só  poderia  tornar-se  aproveitável  adiccio- 
nando-se  sem  mais  preâmbulos  o  casa- 
mento  da   ingénua    ao     episodio   do   sa- 


os     GATOS  15 

pato,  e  cahindo  o  panno  ahi  pelo  meio  do 
segundo  acto  —  o  que  linha  a  vantagem  de 
se  sahir  mais  cedo,  e  haver  tempo  para  di- 
zer mal  do  dramaturgo  na  própria  noite 
d*elle  nos  ter  moído  a  paciência.  Ora  fallin- 
do  as  peças  d'enredo  e  não  se  prestando  a 
situações  a  desinvolução  concêntrica  das 
scenas,  como  é  que  uns  idiotas  d'uns  criti- 
licos  dizem  maravilhas  do  dialogo,  preten- 
dendo até  impól-o  na  Estrada  de  Damasco 
como  um  elemento  certo  de  successo?  A 
scinlillancia  lilteraria  (dado  o  caso  de  a  haver 
na  obra  do  sr.  Braga,  o  que  eu  contesto)  só 
lem  valor  a  quando  refrangida  do  assum- 
pto—  a  phrase  pela  phrase  não  tem  mais 
cabimento  em  parte  alguma  —  e  só  se  esses 
patetas  chamam  belleza  ao  acaso  d'aquelles 
diálogos  conterem  todas  as  partes  gramma- 
licaes  da  oração,  e  em  tal  caso  não  valeria 
a  pena  disculil-os,  e  acabava-se  a  turra 
affastando-os  pela  gola  do  casaco. 

São  estas  coizas  d'uma  intuição  tão  crys- 
tallina,  ha  uma  lógica  tão  rudimentar  no 
postulado  d'eslhelica  que  as  fomenta,  que 
mesmo  lendo-se  o  cérebro  d'um  porco,  a 
ninguém  é  permittido  incertezas  sobre  o  va- 


16  OS    GATOS 

lor  artístico  e  dramático  das  peças  altima- 
mente  dadas  em  D.Maria:  semsaborias  qae 
não  provam  nada,  não  interessam  nada,  não 
dizem  nada,  nem  prestam  para  nadai  Quem 
as  applaude  pois,  de  duas,  uma;  ou  é  um 
imbecil  sem  educação  litteraria  nem  gosto 
apresentável,  ou  ligado  ao  successo  d'ellas 
por  uma  razão  de  nalureza  vergonhosa,  é 
um  velhaco  a  quem  cumpre  esfolar  sem 
complacências.  Se  o  leitor  quizer  ter  o  tra- 
balho de  se  informar  sobre  os  pollucionaes 
que  por  essas  folhas  se  occupam  d'arlistas, 
de  representações  dramáticas,  e  d'empre- 
zas  de  theatros,  e  mais  particularmente  dos 
que  por  se  arrogar  justiça  do  seu  lado  co- 
brem d'insultos  os  espectadores  não  deci- 
didos a  claquear  com  elles  torpezas  como  o 
Segredo  de  Confissão  e  a  Estrada  de  Damas  - 
CO,  reconhecerá  pouco  mais  ou  menos  o  se- 
guinte: 1.*  —  os  patusquinhos  atesta  das 
secções  theatraes  dos  periódicos,  e  occupa- 
dos  da  critica  dramática,  accumulam  geral- 
mente estas  funcções  com  as  de  Iraducto- 
res  e  auctores  de  peças  cujo  successo  ou 
resvalou  pelo  buraco  do  ponto,  ou  se  en- 
treteve no  cartaz  a  poder  d'arlificios  de  re- 


os    GATOS  17 

clame.  2."  —  nenhum  d'elles  tem  nome  lit- 
terario  de  valimento,  e  quasi  todos  são  igno- 
ranlissimos  farçolas  sabidos  do  noiiciario 
dos  fogos  e  parles  de  policia,  género  mal 
pago,  para  a  secção  de  bastidores,  d*onde  se 
protegem  ou  alemorisam  as  emprezas,  se 
conquista  o  coração  das  actrizes  e  4  sub- 
serviência dos  actores,  e  emfim  se  intruja  o 
publico  inpingindo  por  obras  primas  as  mais 
insulsas  e  ignóbeis  babozeiras.  3."  —  os 
que  por  acaso  não  traduzem  ou  assignam 
peças,  teem  da  mesma  forma  notas  suspei- 
tas no  cadastro,  em  virtude  de  serem  os  an- 
tigos amantes  ou  pretendentes  das  actrizes, 
cunhados,  companheiros  de  caza  ou  deve- 
dores insolvaveis  dos  dramaturgos,  commen- 
saes  e  convivas  dos  emprezarios,  ou  futuros 
candidatos  dramáticos  preparando  terreno 
para  a  admissão  d'alguma  pecita  a  solo  ou 
em  coilaboração  com  auctor  feito.  Mais  ex- 
plicado: esses  senhores  que  nos  mais  lidos 
jornaes  de  Lisboa  ousaram  duvidar  da  pro- 
bidade e  bôa  fé  dos  pateantes  do  Segredo 
de  Confismo  e  da  Estrada  de  Damasco,  dis- 
parando-llifs  injurias  que  o  maisrefece  gal- 
lego  teria  pejo  d'assacar  contra  o  freguez 
2 


18  OS    GATOS 

que  lhe  cerceasse  a  espórtula  d'um  frete, 
alem  d'intelleclualmente  inaptos  para  em 
qualquer  assumpto  (l'arte  emittir  juizo  claro, 
Ião  pouco  pelos  seus  precedentes  péssimos  e 
esfacelo  moral  inplicilo  n'algum  dos  para- 
graphos  cima  ditos,  lêem  direito  de  voto  sobre 
questões  em  que  a  pardo  valor  mental  prin- 
cipalmente se  requer  lizura  de  caracter,  e 
abslração  de  toda  e  qualquer  ideia  de  su- 
borno. 

E'  positivissimo  que  grande  numero  d'el- 
les  parlicipa  do  syndicalo  de  direitos  d'au- 
lor  que  põe  ultimatuns  ás  emprezas  por  via 
dos  periódicos,  manusea  os  artistas  a  sabor 
dos  seus  benesses,  e  descaradamente  vae 
roubando  o  publico  por  todos  os  artifícios 
da  chantage  mais  indigna,  desde  empurral-o 
das  peças  boas  para  os  seus  arreglos  de 
sandices,  té  amordaçar  pelo  decredito  a  li- 
vre voz  dos  que  ás  primeiras  pegadas 
da  matrulla,  desatam  a  gritar  aqui  d'el- 
rei! 

Estes  cavalheiros  pois  para  fazer  opinião 
manquejam  de  tudo  quanto  é  capaz  de 
tornar  uma  opinião  limpa  e  vivavel :  co- 
mo  escriptores   são    umas   bestas,  como 


os    GATOS  19 

indivíduos   falta-lhes  a  seriedade  que  dá 
o  desinteresse  e  o  credito  anterior. 


}i  então  o  publico  começa  a  perceber  entre 
que  manejos  de  cáfila  anda  explorado,  e  por 
que  razão  sahindo  tanta  vez  das  primeiras 
representações  furioso  conlra  a  estupidez  dos 
auclores  dramáticos «originaes», com  pasmo 
depara  ao  dia  seguinte  artigos  de  critica  su- 
blimando a  peça  que  se  lhe  afigurara  a 
mais  não  chocha  e  imbecil.  Já  comprehen- 
de  também  porque  se  chama  ao  gallinheiro 
assalariado,  anonymo,  maltrapilho,  bêbedo 
e  faminto;  porque  se  explicam  por  ciúmes 
de  toilette  desastres  que  se  não  poderiam 
explicar  por  ciúmes  de  talento,  e  porque  se 
forjam  emfim  aureolas  d'odio  litterario  de 
roda  de  craneos  que  nenhum  de  nós  dese- 
jaria ter  p'ra  escarrador.  E'  necessário  que 
se  livre  pois  da  lutella  d'esses  chamorros 
chalros  cuja  camisa  limpa  não  desculpa  a 
alguns  a  estupidez  mal  reputada;  é  ne- 
cessário que  reaja  com  o  seu  próprio  crité- 
rio, o  seu  próprio  gosto,  a  sua  própria  in- 


20  OS    GATOS 

dependência,  contra  essa  liga  de  sacripan- 
las  que  fazem  dinheiro  com  a  ignorância  e 
a  timidez  das  plateas,  e  vão  reduzindo  a 
litteratura,  expressão  suprema  da  perfeição 
moral  e  psychica  d'um  povo,  a  um  vergo- 
nhoso stadio  de  creiinismo  e  abjeçãode  que 
até  se  ri  o  brazileiro,  desillndido  do  antigo 
amor  que  lhe  mereciam  os  nossos  esforços 
d'arlistas  e  buriladores  da  lingua  mãe.  A 
tolice,  mesmo  de  casaca,  é  tão  despresivel 
como  a  bebedeira.  Não  seja  cúmplice  da 
beslificação  nacional  pela  tolerância  com  que 
vae  deixando  subir  essa  onda  de  mediocres; 
em  toda  a  parte  o  advento  das  bestas  é  fu- 
nesto ;  uma  vez  recebidos,  a  sua  descarada 
audácia  ala-se  a  tudo:  de  dramamiferos  to- 
lerados passarão  a  directores  de  museus  e 
bibliothecas,  a  legisladores  de  instrucção, 
reitores  d'escolas,  a  directores  geraes  e  en- 
carregados de  projectos  —  é  a  historia  dos 
grandes  burocratas  que  depois  da  geração 
de  Garret  inundaram  os  logares  proeminen- 
tes, e  a  quem  só  se  deve  a  rebaixa  actual 
da  administração  publica  em  todos  os  ramos 
—  e  se  nós  estamos  quotidianamente  a 
amaldiçoar  essa  funesta  camada  que  Irium- 


os    GATOS  21 

phou  por  compadrio,  como  é  que  somos  in- 
coherentes  ao  ponlo  de  não  ver  que  a  nos- 
sa tolerância  lhe  está  preparando  uma  suc- 
cessora  inda  mais  pullia? 

De  mais,  D.  Maria  lem  tradições  alga 
ele\adas.  e  só  ha  pouco  tempo  cahiu  na 
albergaria  d'engeilados  e  gagos  que  ora 
está.  Passou  por  ali  uma  aristocracia  d'arte 
elegantissima,  escriplores  e  comediantes 
que  depois  de  mortos,  por  desgraça  nos- 
sa, parece  que  legaram  o  iheatro  aos 
seus  porteiros.  Alli  viu  luz  o  Frei  Luiz 
de  Sousa,  que  o  lúcido  Quinet  poe  na  tes- 
teira da  tragedia  moderna,  como  incita- 
mento aos  génios  debutantes  ;  ali  subiram 
á  scena  muitas  comedias  e  dramas  de  escri- 
ptores  nacionaes,  desorientados,  certo,  mas 
com  chispa;  alli  temos  visto  o  melhor  da 
dramaturgia  europea  nova,  e  alguma  anti- 
ga; n'uma  palavra,  n'aquelle  palco  onde 
hoje  se  toleram  ratos  finórios  como  o  Segre- 
do de  Confissão  e  a  Estrada  de  Damasco, 
faz  cincoenla  annos  que  foi  pateada  a  5o- 
brinhado  Marquez,  isto  quando  já  Garret  fora 
sagrado  o  piimeiro  escriptor  do  seu  paiz. 
Retrogradámos,  ou  a  comedia  do  viscondes 


22  OS   GATOS 

é  de  facto  peor  que  a  doLorjó  ?Veja  o  pu- 
blico a  que  vilipêndios  me  leva  a  sua  cri- 
minosissifna  tolerância  !  Compare  n'um  re- 
lance essas  duas  plaléas  separadas  por  um 
abysmo  de  cincoenta  annos,  a  que  pateou  a 
Sobrinha,  e  a  que  fez  desesete  audições  á 
Confissão:  a  primeira  feita  de  gente  inculta 
e  ainda  rude,  tendo  porem  dalitteraturaum 
ideal  resplandecente,  n'uma  tpocha  em  que 
as  escolas  inda  não  estavam  produzindo 
como  hoje,  tanta  copia  de  monos  sem  espirito 
e de  cabeças  sem  força  nem  deliberação;  a 
segunda  feita  dos  soit  dizanh  representan- 
tes da  alta  cultura  litteraria  e  scieniificado 
paiz,  uma  plaléa  de  médicos,  de  engenhei- 
ros, legistas,  eruditos  e  homens  d'arte,  com 
grandes  sommas  deleitura,  pretensões,  ares 
de  illustrada — e  equiparando  depois  as  res- 
ponsabilidades artísticas  d'uma  e  d'outra, 
diga-me  se  lhe  não  dá  vontade  d'enxovalhar 
em  plena  face  essa  engoiada  e  apathica  so- 
ciedade que  se  deixa  empolgar  na  plalea 
por  meia  dúzia  de  claquistas  pagos,  e  outra 
meia  de  críticos  intrusos  e  suspeitos  ?  Per- 
guntaria eu  a  esses  cultivados  que  fazem  o 
grande  fundo  d'espectadores  das  premiares 


os   GATOS  23 

de  D.  Maria,  o  qae  é  qne  os  interessa  a  elles 
nolheatro,  e  p'ra  que  !hes  tem  servido  tan- 
tos annos  perdidos  sobre  livros,  se  os  seus 
nervos  de  lama  hão-de  continuar  a  receber 
com  a  mesma  impassibilidade  o  Ami  Fritz 
e  a  Madrugada,  as  Pattes,  de  Mouche  e  di  Es- 
trada de  Damasco,  e  se  perante  aíTrontas  ao 
gosto  como  certas  permières  originaes  que 
o  iheatro  dá,  elles  hão-de  continuar  mudos 
e  broncos  a  não  reagir  com  a  altivez  dos 
seus  brios  enxovaIhados,atirando  as  cadeiras 
para  o  palco,  obrigando  os  críticos  a  seguir 
o  caminho  das  cadeiras,  e  emfim  correndo 
com  a  tal  dramaturgia  original  p'rô  meio  da 
rua  ? 

Aconselharíamos  também  aos  actores  de 
robustez,  como  Brazão,  se  não  prestassem  a 
representar  d'aquellas  caçoadas.  Dá  caspa 
cerebral  decorar  palavras  d'imbecis.  Por 
mais  talento  que  se  tenha,  sae-se  de  fazer 
peças  d'aquellas,  n'um  chinello.  A  estupi- 
dez tem  limites  de  tolerância;  quem  não 
sabe  escrever,  apara  callos,  e  não  é  por 
sempre  usar  casaca  que  um  dramamifero 
sem  talento  c  menos  brulo. 


24  OS    GATOS 


Provado  pois  que  a  platéa  de  D.Maria  é 
incoffipativel  com  a  liberdade  de  critica  e 
voto  sobre  as  peças,  visto  uns  serem  do 
syndicalo  dos  direitos  d'auctor,  e  acharem 
outros  anli-chic  a  paleada  aos  peceiros  alei- 
jados que  nos  chanlam,  a  quem  fica  reser- 
vado o  papel  de  jury  n'essa  audiência  so- 
lemne  que  é  a  primeira  audição  d'umaobra 
scenica?  Resposta  simples:  o  papel  de  ju- 
ry fica  reservado  ao  gallinheiro,  íjue  de 
resto  em  todos  os  iheatros  litterarios  do 
mundo  tem  completa  auctoridade  para  fa- 
zer e  desfazer  reputações.  Porque  ahi  não 
subsistem  as  razões  cohibitivas  que  vedam 
cá  baixo  á  platea  a  franqueza  de  se  pro- 
nunciar sinceramente  sobre  o  valor  d'uma 
audição.  Reparem  nos  frequentadores  da 
platéa:  é  a  claque,  são  os  «criticos»,  são 
janotas  e  namorist;^s  sem  bestunto,  e  emfim 
pessoas  indecisas,  sr^m  predilecções  dramá- 
ticas averiguadas,  indo  ao  theatro  para  se 
mostrarem,  ou  fazer  horas,  que  a  claque  fa- 
cilmente empolga  e  qualquer  opinião  late- 


os   GATOS  25 

ral  imbecil  deixa  conlenle.  Um  regicídio, 
deixar  a  litleralura  á  mercê  d'estamixordiaI 
Vejam-se  agora  os  familiares  do  gallinheiro: 
é  a  parte  mais  illustrada  e  culta  das  esco- 
las, estudantes  que  miram  largo,  por  cima 
das  lições,  os  mundos  d'arte,  vibrando  dos 
puros  exlasis  do  génio,  possuindo-se  afun- 
do das  creações  poéticas  dos  artistas  ;  são 
os  espirilos  simples  e  fortes  dos  que  sem 
dinheiro  nem  camaraderiassociaescompro- 
mettedoras,  pedem  ao  iheatro  as  emoções 
complexas  da  sua  epocha,  coisas  que  os  fa- 
çam sonhar,  pensar,  soíTrer,  talentos  d'es- 
criptores  e  d'actores  que  faliam  altg  uma 
lingua  fremente  que  lhes  visione  um  pouco 
isso  que  «anda  no  ar  do  tempo»,  e  elles 
não  sabem  exprimir  senão  por  anceios 
?phonos,e  escapadas  hamlelicas  d'espiritos 
ainda  em  construcção.  A  par  da  sua  fres- 
cura d'alma  e  receptividade  vivíssima  para 
o  bello,  esta  luminosa  família  acha-se  por 
outro  lado  em  excepcionaes  condições  de 
pureza  de  critério,  porque  ella  não  tem  re- 
lações com  escriptores,  nem  com  actores, 
nem  janta  em  casa  d'emprezarios,  nem  es- 
creve para  os  jornaes,  nem  veste  smokings 


26  OS    GATOS 

comprados  com  o  trabalho  das  actrizes;  vae 
para  ali  com  o  seu  logarinho  pago,  o  ouvi- 
do altento  e  o  caracter  rebelde  ás  conspira- 
tas,  gozar  a  sua  noite,  sem  se  importar  com  o 
que  dirá  o  Jayme  Victor,  nem  querer  saber  se 
a  pragmática  permilte  sobre  a  peça  opiniões 
alto  e  sonantes.  O  seu  verediclum  tem  pois 
privilégios  entre  os  de  todos  os  mais  espe- 
ctadores, porque  espadana  d'uma  sinceri- 
dade que  se  escora  na  justiça,  e  arranca 
d'uma  eloquência  feita  exclusivamente 
d'intellectualidade  e  de  paixão.  Quem  pode 
deixar  de  ter  por  ella  respeito  ou  sympathia, 
se  é  o  paladinismo  eslhetico  que  falia  em. 
nome  da  emoção  que  classifica  de  trapos  as 
casacas,  e  só  ao  talento  puro  rende  preito? 
Das  apreciações  dramáticas  dos  microce- 
phalos  que  fazem  proteccionismo  ás  merca 
dorias  uns  dos  outros,  o  gallinheiro  ri-se  - 
passa  adeante,  porque  gente  falhada  não  se 
discute,  e  seria  trabalho  perdido  incutie 
ideaes  d'arte  em  creaturas  só  preoccupadar 
de  dinheiro.  Ora  desde  que  os  espectadores 
da  imperial  afinquem  na  idéa  de  que  o  bas 
ter  dos  seus  pés  é  m.uitos  milhões  de  veze- 
superior,  como  juizo  critico,  a  todas  as  batis- 


os  GATOS  íi7 

das  de  mãos  da  gataria  pingada  lá  de  bai- 
xo, e  de  que  o  direito  d'aprpciação  perante  a 
obra  d'arte  é  tanto  mais  livre  quanto  mais 
culto  o  juizo  e  mais  integro  o  caracter  de 
quem  na  fôr  julgando;  desde  que  os  espe- 
ctadores da  imperial  convenham  n'isto,  le- 
rão elles  creado  por  si  sós,  para  as  peças 
de  iheatro,  uma  temivel  instancia  lilteraria, 
única  capaz  de  sustar  o  diluvio  de  cretinice 
que  está  cobrindo  d'opprobrio  os  nossos 
palcos. 

Não  é  de  hoje  que  a  supremacia  do  gal- 
linheiro  ganhou  foros  d'avançada.  Pergun- 
tem aos  velhos  comediantes  d'onde  sahiu  o 
sacre  para  as  grandes  figuras  litterarias  ou 
dramáticas  da  scena  portugueza  de  ha 
trinta  annos.  Evoquem  os  manes  de  Ma- 
nuela Rey,  d'Emilia  das  Neves,  de  Santos, 
d'Epiphanio,  de  Roza  pae,^  d*Antonio  Pe- 
dro, d'AImeida  Garrett  e  de  Mendes  Leal, 
e  elles  confessarão  que  ao  gallinheiro  de- 
vem o  melhor  e  mais  transcendente  nimbo 
da  sua  gloria.  Do  gallinheiro  foi  que  na  ce- 
lebre noite  do  Cego,  em  que  o  impeccavel 
Tasso  fazia  um  protagonista  desgraçado, 
uma  vóz  de  mulher  gritou  entre  soluços  — 


28  OS   GATOS 

abençoado  o  pão  que  ganha  aquelle  homem  ! 
—  e  d'alli  lambem  que  na  primeira  do 
Gladiador  de  Ravenaj  quando  Emilia  des-^ 
fechava  a  tragedia  com  um  d'esses  grilos 
que  lhe  vinham  do  peito  em  borbotões  de 
génio  allucinanle,  chamado  otraductor,  La- 
tino Coelho,  os  estudantes  de  medicina  lhe 
mandaram  semi-loucos  que  a  beijasse. 
D'aquelle  obscuro  cacifro  pois  cheio  de  me- 
morias, vibrante  ainda  dos  refulgentes  de- 
lirios  de  nobilissimas  gerações  d'espectado- 
res,  Dodem  continuar  a  sair  movimentos 
collectivos  de  justiça,  porque  o  espirito  é  o 
mesmo  e  a  auctoridade  artislica  subsiste- 
Ihe,  muito  embora  a  decadência  vergonhosa 
do  theatro  haja  invertido  o  signa!  ás  ova- 
ções. A  vóz  que  ha  vinte  dias  gritava  na 
primeira  áâ  Estrada  de  Damasco  —  risquem 
d'aquelle  panno  o  nome  de  Garrett!  —  é  a 
mesma  que  abençoou  talvez  na  noite  do 
Cego,  o  Tasso,  e  que  mandava  Latino  pros- 
ternar-se  ante  o  perfil  olympico  d'Emilia, 
no  grande  e  terrífico  final  do  Gladiador.  Se 
depois  d'isto  a  pelinlragem  da  «critica»  ar- 
ma ao  descaro  de  reprehender  labrega- 
mente  o  gallinheiro,  só  porque  elle  na   es- 


os    GATOS  29 

cala  das  recompensas  não  equipara  as  re- 
dingoles  do  Braga  á  massa  encephalica  do 
Shakspeare,  o  gallinheiro  sem  responder 
por  um  só  gesto  ás  vaias  d'essa  tropa,  cons- 
tata todavia  que  o  fado  não  é  novo ;  é  co- 
nhecida a  algazarra  que  os  patos  antes  e 
depois  das  trovoadas,  usam  fazer,  nas  estru- 
raeiras. 


^ 


VIDA  IRÓNICA 


W 


mtm 


POR 


Por  todo  o  corrente  niez  de  janeiro  sairá  a  publi- 
co, dos  prelos  da  nossa  casa,  um  volume  d'oitavo,  quatro- 
centas e  tantas  paginas,  edição  de  luxo,  onde  Fialho 
d'Almeida  traça  o  quadro,  completo  quasi,  da  vida  de  Lis 
boa,  durante  o  espaço  d'alguns  mezes,  sem  omissão  de  ne- 
nhum promenor,  caricatura,  aspecto  ou  lance  critico.  A 
Vida  Irónica  é  o  diário  razonado  d'um  humorista  raro  dis- 
posto a  transigir  com  as  amarguras  ou  petulâncias  da  sua 
verve,  e  engloba  sob  uma  forma  fácil  e  impetuosa,  tudo 
quanto  um  pintor  tem  de  mais  fino,  fluido  e  brutal  nas 
suas  tintas.  Physionomias  litterarias,  quadros  de  socieda- 
de, aguarellas  de  rua  e  de  café,  theatro,  dramaturgos,  au- 
etores,  tudo  ahi  passa,  e  ninguém  é  poupado  n'esse  rodo- 
pio de  galhofti,  de  gentilezas,  e  de  chicotadas. 

O  livro  é  além  d'isso  uma  obra  d'estylo  largo  e  fácil 
arcaboiço  ;  lê-se  em  três  noites,  sem  mau  humor,  sendo 
natural  até  que  no  fim  da  quarta  todos  achem  razão  ao 
que  por  lá  se  diz  de  mal,  de  toda  a  gente. 

Os  Editokes. 

Os  pedidos  podem  desde  já  ser  dirigidos  a 

MONTEIRO   k  C.\  Editores 

Rixa,  cios  lietrozeií^os,  7'S,    1.° 

LISBOA 


os  MYSTERIOS 


FRANC-MACONARIA 


LEO   TAXIL 


Versão  do  padre  Francisco  Correia  de  Portocarrero 


Com    ama   dedicatória  do    auclor    a 


S.   M.    A    RAINHA   D.    AMÉLIA 


Esta  obra,  illustrada  de  mais  de  lOO  gi*a>'vi- 
rai*,  compradas  expressamente  no  estrangeiro,  que 
mereceu  ao  auctor  um  breve  de  S.  S.  O  PAPA  LEÃO 
XIII,  e  foi  louvada  pelos  principaes  arcebispos  e  bis- 
pos da  Europa,  constará  de  dous  volumes  sendo  a  dis- 
tribuição feita  em  fascículos  de  3í2  pag^iiias 
de  texto,  com  quatro  ou  mais  gravuras. 


HISTORIA 

RMOLUcio  nmíu 

POR 

Traduqãu  de  Maximiano  Lemos  Júnior 


lUustrada  com  perto  de  OOO  g-i^avuras  — 

as  mesmas  da  edição  franceza  —  e  dividida  era  quatro 
volumes  distribuídos  em  fasciculos  de  16  pag.,  em  4.» 


Assignatura  permanente  para  estas  esplendidas  pu- 
blicações, em  fasciculos  semanaes  ao  preço  de 

100    Réis  -  Pagos  no  acto  da  entrega  -  RéíS    100 
Ver  os  prospectos  e  fasciculos  specimens  na 

AGENCIA  IMYERSAL  DE  PLBLItAÇÕES 

75,  Bua  dos  Retrozeiros  — LISBOA 


FIALHO    D'AyVIEIDA 


os  GATOS 


publicação 
d'jnquerito   á  vida  PORTUGUEZA 


N.' 52  — 24  de  Fevereiro  de  1893 


SUMMARIO 

Morte  de  Roza  Araújo,  sua  historia  pre- 

GRESSA    E    origem    COMMERGIAL DeSENHA-SE 

o  pastel  cócó  e  reza- se  da  sua  importância 
histórica  e  effeitos  psychologicos inter- 
ferência do  pastel  no  caracter  lisboeta 

Convívio  litterario  de  Roza  Araújo,  e  pre- 
ço DAS  RELAÇÕES  SOBRELEVANTES  Á  PRIMITIVA 
CONDIÇÃO  SOCIAL RoZA  AraUJO  HOMEM  PO- 
LITICO, FIADOR  E  PRESTAMISTA  CHRONICO  DOS 
CORRELIGIONÁRIOS    AMIGOS  DE  COMER LiSBOA 

VELHA  E  Lisboa  nova  —  De  como  a  Avenida 


n  os     GATOS 

SEJA  UM  CORREDOR  CHEIO  DE  BURACOS  —  EXOR- 
BITÂNCIAS DE  CUSTO  E  CONTRASENSO  ARCHITEC- 
TONICO  DESTA  OBRA  —  Os  PALÁCIOS,  OS  JAR- 
DINS E  OS  CAZARÕES CoMO  SE  CRIA  O  ESTYLO 

ARCHITECTONICO RoZA    ArAUJO    PHILANTRO- 

PO,  SUAS  GENEROSIDADES  PARTICULARES,  E  ACÇÃO 
DA  SUA    BONDADE  NA  BENEFICÊNCIA    PUBLICA 

RozA  Araújo  grande  homem  popular  —  Gran- 
deza, DECADÊNCIA,  E  MORTE  DE  CeZAR  BiROT- 
TEAU  —  A  miséria  CRESCENTE  DE  LiSBOA  E  IN- 
POTENCIA  DA  CARIDADE  PARA  ESTA  CHAGA  SOCIAL 

—  Mendigas  trágicas  —  As  paralyticas,  as 

CEGAS,  AS  leprosas  —  LiSBOA  DE  NOITE Ca- 

ridade  meticulosa,  e  egoísmos  terríveis  que 

ELLA  ENCOBRE CoNCLUSiO. 


iO  de  fevereiro. 

Roza  Araújo  que  uma  apoplexia  varreu 
para  assim  dizer  ás  portas  da  miséria,  teve 
como  homem  particular  e  liouiem  politico 
uma  historia  sympathica,  das  mais  tristes: 
a  d'um  filho  do  povo  percorrendo  com  uma 
espécie  de  boa  fé  infantil,  uma  vereda  as- 
saltada de  bandoleiros  e  rufiões.  Seu  pae 
cursara  toda  a  vida  a  pastellaria  com  suc- 
cesso,  angariando  para  esso  filho  único  a 
independência  d'algumas  centenas  de  con- 
tos, juntados  ao  balcão,  em  chinellos  de 
trança  e  bonnésinho  de  seda,  n'uaKi  quoti- 
diana assistência  á  venda  das  doçarias  con- 


4  OS    GATOS 

feccionadas  na  enireloja.  O  pastel  que  fi- 
zera o  segredo  da  sua  forluna,  acabara  por 
usurpar  a  alcunha  de  côcô  ao  bom  do  ve- 
lho, e  alastrado  por  Lisboa,  terra  de  gulo- 
sos, fizera-se  uma  das  boas  coisas  da  ter- 
ra, ganhando  direitos  de  preferencia  em  to- 
das as  bandejas  de  sobremeza  e  copos  d'a- 
gua.  Já  pelo  aspecto  ia  direito  á  benevo- 
lência dos  freguezes,  com  o  seu  feitio  d'al- 
guidarinhode  barro  por  vidrar,  o  typod'ul- 
cera  coberta  de  pomada,  a  pasta  tenra,  eo 
o  cheiro  a  canella,  beato,  infundindo  uma 
volúpia  molle  com  regorgitações  de  saliva 
sob  a  língua.  Entre  as  curiosidades  monu- 
meniaes  da  capital  á  beira  Tejo,  começou  o 
pastel  cócô  a  ter  njenção  admirativa  no  ma- 
nual do  viajanie,  enfileirando  entre  os  Je- 
ronymos,  a  estatua  equestre  e  a  capella  de 
S.  Roque,  e  impondo-se  aos  philosophos 
como  uma  das  mais  salientes  arestas  do  ain- 
da mal  interpretado  génio  lusitano.  Tasqui- 
nhado  na  escura  e  modesta  loja  da  traves- 
sa de  S.  Nicolau,  com  dois  dedos  de  Car- 
cavellos,  á  hora  do  lunch,  não  conseguia 
elle  maiormenle  impor-se  á  cogitação  pa- 
ihetica   dos  pensadores,  lanto  o  seu  gosto 


os    GATOS  5 

dulceroso  adormecia  o  paladar  n'um  ar- 
roubo carolla  e  sachristiaco.  Mas  pouco  a 
pouco  essa  dormente  sensação  começava  a 
desperlar  na  sensibilidade  phenomenos  gus- 
tativos singulares;  a  impressão  do  pastel 
comido  produzia  allucinações  n'outros  sen- 
tidos, e  entrando  na  torrente  circulatória  ia 
a  determinar  estados  d'espirilo,  ou  o  que 
é  mais  —  estados  de  caracter.  Quem  se  ap- 
plicar  um  pouco  ao  estudo  da  interferência 
das  comidas  na  vagarosa  formação  do  ser 
moral,  e  souber  da  porção  de  pasteis  com 
que  as  creanças  de  Lisboa  se  ingurgitam, 
não  poderá  negar,  por  mais  que  queira,  fosse 
o  côcô,  durante  os  últimos  trinia  ou  qua- 
renta annos,  o  principal  regulador  do  ca- 
racter lisboeta.  Ao  pastel  como  fundo  ali- 
mentar me  persuado  se  deva  atlribuir  o  ar 
limido,  languinhento,  sem  vontade,  que 
apanagia  em  Lisboa  a  adolescência  mascu- 
lina e  feminina ;  ao  pastel  a  derreação  dos 
nossos  rins,  a  tinta  deslavada  da  pelle,  a 
emaciação  muscular,  a  raridade  de  barba, 
e  a  falta  de  pigmento  e  crespalura  dos  ca- 
bellos.  Quando  com  tal  dieta  o  adolescente 
ascende  a   homem,  dado  o  caso   da  tuber- 


4»  OS    GATOS 

culose  o  não  ter  chapado  antes  de  nul>il,  o 
ser  resultante  entra  a  desagregar  de  si  uma 
lazeira  automática  que  o  reproduz  cm  si- 
mulacros d'acção  dignos  de  dó :  vomol-o 
então  suprir  pelo  namoro  a  expressão  pas- 
sional  própria  da  edade,  sahir  chumbado 
em  francez,  fugir  ás  responsabilidades  do 
estudo  pela  cabula,  e  contrahir  emfim  al- 
guns vicios  de  que  o  mais  inoíTensivo  é 
aprender  a  gastar,  sem  produzir. 

Roza,  Araújo  filho  foi  talvez  por  esta  die- 
ta quotidiana  do  pastel,  uma  das  primeiras 
e  das  mais  completas  victimas  de  seu  pae. 
Inda  sem  barba,  as  suas  predilecções  fo- 
ram-se  desviando  da  cupidez  da  vida  do 
balcão,  lãoseccamente  pratica,  que  o  velho 
pasteleiro  embirrava  em  lhe  incutir  para  o 
tornar  n'um  futuro  milionário,  direito  a  ou- 
tras farofias  abstractas  que  o  haviam  de 
tornar  n'um  satélite  d'astros  políticos  e  lil- 
terarios  de  meia  linta,  em  cujo  convivio  a 
sua  medíocre  cabeça  sossobraria,  pela  bon- 
dade irresoluta,  n'uma  perpetua  victima 
d'escamoteações  pouco  decentes.  Ingénuo  e 
curto,  sem  qualidades  de  lucta,  e  com  a  ti- 
midez  titubiante  dos   ambiciosos   a  quem 


os    GATOS  7 

falta  uma  directriz  mental  a  lhe  encorajar 
a  linha  de  conducta,  o  rapazola  ao  vêr  de 
perlo  o  ascenso  dos  jornalistas  e  meelin- 
^ueiros  que  a  fatalidade  lhe  dava  por  con- 
vívio, quiz  imilal-os  um  pouco  nos  succes- 
sos,  de  sorte  que  muito  cedo  começou  a 
tratar  mais  d'eleições  que  de  pasteis,  e  a 
espargir  no  angario  da  popularidade  ba- 
rata das  esquinas  a  dessorada  energia  que 
Deus  já  lhe  dera,  manca  de  vontade,  e  que 
bem  empregada  teria  servido  quando  mui- 
to para  lhe  trazer  á  clientella  dos  doces 
mais  algumas  centenas  de  gulosos.  Para 
não  ter  o  ar  ridiculo  n'esse  cenáculo  de 
beaiix  espriis  onde  as  suas  aspirações  de 
homem  publico  ardiam  por  brilhar,  acos- 
tumou-se  a  suprir  com  generosidades  de  di- 
nheiro a  lacuna  das  suas  faculdades  incul- 
tas e  reslrictas,  e  cedo  a  burra  paterna  co- 
nheceu quanto  custa  a  um  papalvo  cear  á 
meza  dos  deuses,  e  por  que  sangrias  passa 
um  ingénuo,  primeiro  que  conheça  a  fundo 
a  poilridão  moral  dos  intelleclivos  que  o 
desfiuctam.  Como  era  rico  e  era  bom, 
d'cssa  bondade  irresolula  onde  entra  como 
factor  principal  o  medo  do  ridiculo,  apenas 


8  OS    GATOS 

correu  fama  das  snas  primeiras  largue- 
zas, formou-se  de  roda  d'elle  uma  espécie 
de  grande  circulo  d'assaUantes,  e  os  correli- 
gionários polilicosiam-lhe  amortisando  com 
honrarias  banaes  o  que  particularmente  lhe 
pediam  em  soccorros  de  libras  e  fianças.  Da- 
tam d'aqui  os  seus  primeiros  triumphos  ca- 
marários, e  a  popularidade  meio  sympa- 
ihica,  meio  bufona,  que  a  sua  regência  do 
municipio  lisboeta  lhe  creou.  Foi  essa  a 
quadra  das  transformações  fundamenlaes 
da  capital,  a  era  dos  bairros  inteiros  abai- 
xo, das  ruas  de  grande  margem  e  arvores 
no  asphaito,  a  febre  do  monumental  re- 
pentino, sem  plano,  ao  sabor  das  phanta- 
sias  do  pastel,  que  tendo  transformado,  é 
certo,  para  melhor  a  hygiene  d'este  grande 
moitão  de  casas  fétidas,  comtudo  não  dei- 
xou na  sua  restauração  nem  um  só  laivo 
architectural  digno  d'applauso.  Roza  Araújo, 
coitado,  não  tinha  culpa.  Para  a  sua  mais 
que  modesta  competência,  o  papel  de  de- 
molidor já  era  muito,  e  Deus  sabe  quanta 
actividade  insólita  para  a  sua  gordura,  e 
quantos  sacrifícios  de  dinheiro  e  credito 
ruinosos  para  os  seus  haveres,  particular- 


os    GATOS  9 

mente  lhe  vinha  custando  a  sua  bella  aspi- 
ração de  barão  Haussmann  alfacinha,  de 
marquez  de  Pombal  sem  terramoto,  entre- 
vendo n'um  instincto  de  burguez  precavido, 
o  futuro  da  capital,  mas  não  podendo  dar 
corpo  a  esse  grande  sonho,  por  deficiência 
mental,  que  demais  a  mais  o  pae  lhe  dei- 
xara ficar  incullivada.  Mesmo  em  principio 
aquella  aspiração  de  reconstruir  fora  res- 
tricta,  taquanha  quasi,  porque  ninguém 
pensara  em  reedificar  Lisboa  por  comple- 
to, mas  simplesmente  em  abrir  entre  o  Ro- 
cio e  o  arrabalde,  um  cano  d'ar,  a  cujos 
lados  viesse  colar-se  o  furor  de  construc- 
ções  que  os  brazileiros  ricos  começavam  a 
mostrar  em  tenebrosos  prédios  de  seis  an- 
dares e  aguas  furtadas.  Assim  se  fez  a 
Avenida,  que  é  como  se  sabe  um  corredor 
de  cantaria,  com  altos  muros  cheios  de  bu- 
racos, palmeiras  de  cabellos  nas  pernas,  e 
um  obelisco-lhermometro  marcando  no  pri- 
meiro de  Dezembro  o  zero  da  temperatura 
patriótica.  Uoza  Araújo  não  teve  a  menor 
responsabilidade  ou  ingerência  nos  typos 
de  construcção  que  os  architeclos  e  mes- 
tres d'obras  adoptaram ;  no  entanto,  agora 


10  os   GATOS 

que  a  Avenida  está  toda  bordada  de  casas, 
olhem  p'ra  ella  e  digam-me  se  não  parece 
diclada  pelo  ideal  paralcllepipedico  d'um 
confeiteiro  I  Proveio  este  desastre  de  Roza 
Araújo  não  ter  a  seccundal-o  um  enge- 
nheiro que  fosse  ao  mesmo  tempo  homem 
de  génio  e  homem  de  gosto,  e  de  tudo  se 
haver  planeado  e  executado  de  rustilhão, 
com  pressa  d'acabar.  Não  se  calcula  os  en- 
traves que  o  pobre  homem  soffreu  antes  de 
dar  na  terra  o  primeiro  tanchão  de  picare- 
la.  Apenas  se  faliou  em  deitar  abaixo  as 
grades  do  Passeio,  primeiro  foi  uma  fúria, 
depois  foi  uma  guerra,  depois  foi  uma  tro- 
ça.—  O  que  elles  querem  é  as  grades,  pa- 
ra as  vender,  diziam  os  rapaces.  A  forçado 
habito  levara  os  velhos  a  imaginar  que  se 
acabava  o  mundo  no  dia  em  que  para  aso- 
cega  do  almoço  lhes  faltasse  aquelle  triste 
redil  arborisado.  Uns  por  causa  do  ripan- 
so,  outros  por  causa  das  sopeiras,  outros 
por  causa  da  musica,  o  certo  é  que  nin- 
guém queria  consentir  no  sacrifício  do  Pas- 
seio Publico  á  Avenida,  e  a  par  d'esta  op- 
posição  pueril,  a  do  ciúme  e  a  do  interes- 
se :  proprietários  de  prédios  casmurros,  do- 


os   GATOS  11 

nos  de  hortas  ainda  não  previstos  na  mina, 
d'oiro  a  fazer  co'as  expropriações  trama- 
das ao  ouvido,  e  inimizades  politicas  em- 
fim,  buscando  intrigar  uma  obra  que  credi- 
tava o  auclor  na  gralidão  dos  mais  intelli- 
genles...  A  Avenida  votada,  outra  campa- 
nha começa,  mais  terrivel !  Não  ha  vintém, 
é  necessário  pedir;  e  assim  se  estanca  um 
empréstimo,  e  outro,  e  outro,  e  tudo  pere- 
ce no  sorvedoiro  d'esse  melhoramento  par- 
cial que  ameaça  arruinar  o  município,  e 
que  negociado  com  socego,  tomando  por 
base  a  expropriação  por  zonas,  sahiria  gra- 
tuito, dando  de  sobejo  para  todas  as  phan- 
tasias  em  que  o  arcliilecloe  o  jardineiro  no 
fim  da  obra  quizessem  derivar. 

Insisto  no  que  poderia  ter  dado  a  Aveni- 
da, se  a  camará  partindo  d'um  estudo  de 
transformação  architectonica  bem  guiado,  e 
sabendo  que  para  essa  artéria  convergiriam 
todas  as  novas  construcções  luxuosas  da 
classe  rica,  dictasse  a  esta  lypos  de  resi- 
dência, não  nos  seus  detalhes  meúdos,  que 
isso  seria  um  attentadoásleis  da  variedade, 
mas  dentro  d'um  quadro  d'estylos  subjeito 
a  um  ensemble,  e  frizando  o  monumental  da 


12  OS    GATOS 

grande  rua.  Eis  o  que  teria  affaslado  d'a- 
quelle  silio  os  prédios  merceDarios,  os  pré- 
dios commodas,  com  janellas  de  bico  e  pla- 
tibaiidas  de  loiça  para  vidrar,  e  o  que  mul- 
tiplicaria as  perspectivas  por  uma  diversi- 
dade sem  fim  de  typos  palaciaes,  dando  a 
esse  eixo  novo  de  Lisboa,  a  grandeza  sce- 
nograpliica  que  lhe  falia,  e  o  ar  de  grande 
terra  que  já  agora  só  com  um  terramoto 
novo  pôde  ler.  E'  realmente  magua  olhar 
da  praça  dos  Restauradores,  té  á  Peniten- 
ciaria, o  bisonho  canal  de  casarões  saloios 
que  arrolam  sobre  a  via,  chatos  eallissimos, 
com  seus  telhados  opacos.  Incarnas  de  ce- 
leiro, magras  varandas,  e  divisórias  d'ala- 
guer  cheirando  ásovinice  dos  senhorios.  Uos 
pouquissimos  palácios  que  lá  restam,  apenas 
o  do  marquez  da  Foz  tem  grande  lypo,  o 
resto  concebido  n'um  typo  de  cartonagem 
chinfrinole,  dizendo  o  desfructe  ou  a  estu- 
pidez do  architeclo,  a  farofia  paluda  dos 
donos,  e  a  irremessivel  chateza  mercieiral 
do  nosso  lempo.  Gomo  essa  ambigua  Lis- 
boa nova  é  bem  a  Babylonia  catita  do  Fon- 
tes, e  como  se  sente  na  sua  recta  banalida- 
de o  vasio  da  sociedade  soez  que  o  deificoul 


os    GATOS  13 

Entendam  que  eu  não  exigiria  queá  voz  de 
Roza  Araújo  espaventasse  da  terra  uma  ar- 
chitectura  inédita,  commemorativada  edade 
d'oiro  dos  syndicatos.  Um  eslylo  não  se  in- 
venta, é  obra  de  séculos,  começa  por  uni  ca- 
pricho d'arlista,que  adequado  ao  destino  da 
pessoa  ou  coisa  a  que  se  adapta,  consegue 
calar  na  multidão  sympalhicamenle.  A  gera- 
ção seguinte  contempla  esse  capricho  e  mo- 
difica-o  ;  vem  outra  e  faz  o  mesmo,  e  segui- 
damente assim,  té  se  obter  por  cristalli>a- 
çõessuccessivaso  resumo  de  perfeclibilidade 
que  o  torna  belleza  lógica,  belleza  typica,  e 
o  que  é  mais,  belleza  util. 


A  par  das  torturas  soíTridas  para  levar  a 
cabo  as  obras  da  Avenida,  o  que  para  Roza 
Araújo  era  a  parte  difficil  da  gloriola  que 
lanto  prezava  a  sua  innocente  vaidade  de 
popular  metido  com  magnatas,  outros  cui- 
dados mais  fáceis,  mais  ternos  e  harmonio- 
sos com  a  sua  fraqueza  doce  de  bom  ho- 
mrm,  lhe  enchiam  o  coração  de  mimos  evan- 
gélicos, parecendo  que  elle  se  quizessejus- 


14  OS    GATOS 

lificar  d'aquella  presidência  camarária,  pa- 
ra que  em  sua  consciência  se  julgava  in- 
compelenle,  por  aclos  ignorados  de  philan- 
Iropia,  e  protecções  paternas  aos  infiniia- 
menle  humildes  de  Lisboa.  E'  assim  quase 
começa  a  vêr  o  nome  d'el!e  na  fundação 
d'asylos  e  de  creches,  e  em  obras  de  cari- 
dade errática,  onde  a  sua  bolsa  vasa  conti- 
nuamente o  pecúlio  dos  contos  de  réis  her- 
dados de  seu  pae.  Inexgotavel  de  boa  fé, 
cândido  inalteravelmente  apezar  da  reserva 
melallica  que  lhe  baixa,  e  das  ingratidões 
que  mesmo  no  auge  já  começa  a  soffrer 
dos  biltres  a  quem  serve,  uma  palavra  basla, 
da  rainha,  do  rei,  dos  grandes  influentes,  mi- 
nistros, jornalistas,  para  elie  pôr  fazenda  e 
tempo  ao  serviço  seja  do  que  fôr;  e  nas 
subscripções  para  creches,  albergues  no- 
cturnos, ampliação  ou  reforma  d'um  asylo, 
levantadura  d'uma  estatua,  Roza  Araújo 
deixa  sempre  por  baixo  da  sua  firma  a  cifra 
em  branco,  sendo  os  iniciadores  quem  na 
preenchem,  talvez  por  cima  mofando  d'essa 
encantadora  basofia,  ou  prevendo  sequer  o 
gáudio  da  debacle  para  abater  as  cristas  do 
irresoluto  e  obeso parvenu.  Os jorndiQS  n'este 


os    GTOS  15 

comenos  conseguiram  tornal-o  em  typo 
d'evidencia,  a  caricatura  apoderou-se-lhe  da 
barriga,  aquella  barriga  em  forma  de  canto 
de  chaise-longue,  posta  ao  travez  das  perni- 
las  bambaleantes,  sobre  que  elle  parecia 
sentado,  e  que  era  um  dos  resultados  da  di- 
latação estomacal  a  que  o  levara  na  moci- 
dade o  regimen  do  pastel.  Uma  vez  popu- 
lar, a  malrulla  dos  canzoeiros  impa  sem 
conta ;  ja  não  eram  sómenle  os  governado- 
res civis  sem  cheia  e  furiosos  de  luxo  e 
meza  lauta,  já  não  sómenle  os  ministros 
roídos  de  batota,  os  ex-governadores  do  ul- 
tramar, as  condessas-canaslras  e  as  boas 
mulheres  desempregadas,  quem,  pretex- 
tando camaraderias  politicas  e  alrazo  de 
rendas,  saccavam  contra  a  burra  d'elle  a 
descoberto.  Eram  lambem  os  jornalislasi- 
nhos  de  noticias,  as  actrizes,  os  actores, 
pastelleiros,  camiseiros,  retrozeiros,  panto- 
mineiros,  amigos  d'uns,  p?rentes  d'outros, 
Ioda  a  cambada  colossal  que  por  Lisboa 
respira,  engorda  e  vive  de  calotes,  forrando 
ao  trabalho  a  energia  gasta  nocturnamente 
a  emprehender  quem  ha-de  cahir  com  bago 
ao  outro  dia.   Tornou-se  moda  encostal-o ; 


16  OS    GATOS 

por  fim  eram  já  inimigos,  desconhecidos, 
sucia  sabedora  dos  seus  acanhamentos,  que 
o  procurava  na  camará,  na  loja,  pelas  ruas, 
e  que  olhando-o  nas  pupilla?,  rudemente, 
lhe  pedia  dinheiro  como  quem  pede  pontas 
de  cigarro.  Roza  Araújo  por  cobardia  e 
frescura  d'alma,  nunca  í'oi  capaz  de  recu- 
sar: quem  chegava  via-lhe  a  mão  estendi- 
da, o  riso  Iristo,  e  o  geslo  da  cabeçorra  ac- 
quiescendo  aos  pedidos  mais  disparatados. 
Houve  um  momento  em  qne  para  assim  di- 
zer toda  a  gente  lhe  deveu  dinheiro,  ou  ser- 
viços de  dinheiro,  e  cm  que  a  sua  gaspi- 
Ihada  fortuna,  para  sustentar  o  pé  das  ge- 
nerosidades que  não  cessavam,  e  iam  n'um 
pavoroso  vortilhão  de  desgovernos,  houve 
que  valer-se  do  credito,  e  disfarçar  a  com- 
pleta exhaustão  com  expedientes.  Aos  pri- 
meiros alarmes  da  pobreza,  Roza  Araújo 
nem  quizera  acreditar  n'esse  phantasma: 
chegado  aos  pináculos  da  consideração  e 
do  respeito,  tendo  uma  rua  crismada  c'o 
seu  nome,  presidente  da  camará  n'umas 
poucas  de  vereações  laboriosas,  fundador 
de  creches,  the.-oureiro  d'estaluas  civicas, 
popular,  choraria  talvez  como  Alexandre  a 


os  GATOS  17 

pequenez  da  lerra,  inquirindo  se  haveria 
m.'iis  nome  a  conquistar.  Havia,  infelizmente, 
o  seu  credito  commercial  compromettido,  o 
bem  estar  resultanie  da  certeza  de  ser  rico, 
e  finalmente  a  revancheáos,  seus  demolidores 
e  adversários,  que  farejando  a  ruina,  tinham 
começado  a  levanlar-lhe  barricadas  e  aen- 
venenar-lhe  as  mais  simples  intenções.  Elle 
ainda  doesta  vez  não  queria  crer.  Pensava 
que  a  todo  o  tempo  lhe  acudiriam  os  grandes 
personagens  por  quem  nos  dias  gordos  fi- 
zera sacrifícios,  e  que  o  seu  prestigio  poli- 
tico e  a  memoria  dos  serviços  civicos  que 
prestara,  o  livrariam  do  opprobrioda  falên- 
cia, intervindo  na  hora  dolorosa,  e  arranjan- 
do-lhe  um  niodus  vivendi  reparador  dos  des- 
falques de  tantos annos de  mãos  rotas.  Lan- 
çando um  corajoso  olhar  ao  destroço  dos 
seus  bens,  pensou  nos  successos  que  ás 
vezes  coroam  um  golpe  de  mão  rápido  e 
audaz,  e  então  esse  commerciante  que  não 
soubera  dirigir  nunca  uma  casa,  empenhou 
o  ultimo  credito  para  fazer  abrir  por  essa 
Baixa  Ioda,  cinco  ou  seis.  Em  menos  de 
dois  mezes  funccionavam  por  sua  conta  Ires 
pastellarias,  uma  no  Porto  e  duas  em  Lis- 
2 


18  OS   GATOS 

boa,  uma  camisaria,  dois  reslaurants,  e  lião 
sei  que  outras  locandas  de  retalho.  «Loja 
com  uma  só  poria  e  o  dono  dentro»,  costu- 
mava dizer  o  velho  côcô,  á  guiza  de  prolo- 
quio.  As  d'elle  tinham,  muitas  porias,  por- 
tas talvez  de  mais  para  a  cidade,  e  o  luxo 
do  café-restauranl  da  Avenida,  apreciado 
em  duas  ou  Ires  dúzias  de  contos,  coberto 
d'espelhos,  com  salas  vaslas  e  desafogos  de 
grande  estabelecimcnlo,  espavoria  um  pou- 
co a  rara  clienlella,  nmu  local  onde  pela 
força  do  habito  não  fazia  apetite  entrar  para 
comer.  De  mais,  era  inexperiente  ou  mar- 
cenaria á  gerência  e  direcção  de  todas  es- 
sas lojas,  parecendo  que  não  bolisse  ao  vi- 
vo c'os  sacrifícios  terríveis  de  que  o  pobre 
Rosa  Araújo  lançara  mão  para  as  montar; 
de  sorte  que  a  pouco  e  pouco  essas  derra- 
deiras esperanças  de  salvação  foram  rolando 
em  medonhos  deficits,  cada  vez  mais  dififi- 
cilmente  cobertos,  té  lhe  crearem  uma  ban- 
carota  inevitável. 

N'esse  dia  tremendo.  Rosa  Araújo  recor- 
dando-se  dos  que  salvara  gratuitamente,  em 
tremendíssimas  crises  financeiras,  correu  a 
expor  sua  deshonra  a  alguns  que  lhe  de- 


os    GATOS  19 

viam  tudo,  e  que  passado  o  perigo,  oulra 
vez  na  fortuna,  se  tinham  esquecido  de  lhe 
restituir,  como  cumpria,  os  capitães.  En- 
controu, já  se  vê,  muitos  braços  abertos, 
muitos  suspiros  condoídos,  muitas  disserta- 
ções sobre  a  coragem,  vagas  promessas,  pa- 
lacuada,  palanfrorio,  mas  nenhum  dos  an- 
tigos devedores  pareceu  reparar  fosse  o  di- 
nheiro o  único  salvaterio  para  a  afflicção 
que  trazia  alli  espavorido  o  pobre  diabo.  A 
quantos  pés  se  rojou,  foram  palavras  o 
máximo  de  soccorro  que  logrou  trazer 
d'essa  tão  vilipendiosa  via-sacra.  Gomo 
sempre  succede,  eram  os  credores  peque- 
nos quem  arremetera  primeiro  a  importu- 
nal-o.  Roza  Araújo  deixou-se  manielar  por 
elles  como  um  pandilha  insolvavcl,  e  para 
as  primeiras  voracidades  fechou  o  caffé- 
reslaurant,  leiloando  a  mobilia  por  um  de- 
cimo do  valor.  Ao  mesmo  tempo  limitava 
ao  possível  o  tratamento  das  três  ou  qua- 
tro casas  que  sustentava,  despedia  crea- 
dos,  reduzia  pensões,  e  dava  tudo  á  mati- 
lha, ficando  a  dieta,  e  reconhecendo,  tarde, 
que  por  mais  que  desse,  um  sorvedoiro  fica- 
ria sempre  hianlc  a  devoral-o.  Ahi  começa 


kO  os    GATOS 

a  espiação  d'esse  homem  justo,  tremenda, 
aspbixica,  sem  confidencias,  cada  vez  mais 
lorlurante  á  proporção  que  os  dias  passam, 
pois  elles  approximam  a  dtshonra  publica 
a  longos  passos,  e  cairá  o  veu  das  suas  ul- 
ceras profundas,  e  esvair-se-ha,quem  sabe, 
a  lenda  cívica  tão  trabalhosamente  adqui- 
lida  I  Duzentas  vezes  vae  renovar  junto  dos 
poderosos  a' sua  imploração  de  homem  per- 
dido, feila  em  voz  iimida,  curvado  e  tor- 
cendo as  mãos  de  desespero ;  mas  agora  que 
elle  já  não  serve,  não  empresla  dinheiro, 
nem  faz  eleições,  nem  dá  janiares  de  borla, 
nem  serve  de  fiador  aos  valdevinos,  os  ami- 
gos debandam-lhe  á  formiga,  e  os  raros  fii-is 
apenas  lugram,  tão  pobres  como  elle,  alcan- 
çar-lhe  uma  ou  oulra  delonga  de  prazo  para 
os  débitos.  Volla-se,  e  de  lodos  os  lados  lhe 
cerceia  o  caminho  a  deirocada;  obsedam- 
no  as  contas  por  centenas,  umas  que  elle 
já  linha  psgo  trez  ou  quatro  vezes,  outras 
que  elle  não  subscreveu,  outras  que  julgava 
pagas  pelos  debitanles.  Para  lodos  os  lados 
o  descrédito :  o  dos  amigos  que  se  justifi- 
cam de  o  evitar,  com  reticencias ;  o  dos  ini- 
migos que  lhe  não  perdoam  as  antigas  vic- 


os   GATOS  21 

lorias  camarárias;  o  dos  credores,  a  quem 
o  dinheiro  cega,  e  a  exhautoração  da  vic- 
lima  vae  tardando.  Apertado  n'este  circulo 
de  ferro,  o  desgraçado  n<ão  tem  para  os  que 
o  abandonam  uma  só  palavra  de  despeito  ; 
por  ventura  adviria  na  cilada  em  que  cahira 
a  quando  rico,  tarde  reconhecendo  a  estofa 
dos  canalhas  que  o  tinham  explorado  e  rou- 
bado infamemenle  —  nenhuma  d'estas  trai- 
ções porem  ressumbram  queixa  dos  seus 
lábios,  e  a  sua  fidelidade  d'alma  é  tão  com- 
pleta, que  á  hora  das  recriminações  supre- 
mas, accusado  de  n'um  transe  d'agonia  ler 
pago  dividas  com  o  pecúlio  d'uma  artista  e 
o  dinheiro  d'uma  associação  de  beneficên- 
cia, esse  que  para  justificar-se  poderia  ter 
revelado  tantas  fraudes,  prefere  curvar  a 
cabeça  e  deixar-se  abysmar  n'uma  irreme- 
diável perdição. 

Desde  essa  hora,  Roza  Araújo  não  teve 
mais  ah'gria,  e  todas  as  lassidões  da  morte 
moral  dando  pretexto  ao  corpo  para  se  ex- 
tinguir n'um  prazo  physiologíco,  com<^çam 
a  lhe  escavar  rapidamente  a  sepultura. 
Com  o  barrelinho  de  seda  e  o  ventre  flá- 
cido, eil-o  volta  a  vender  pasteis  na  loja  de 


22  OS   GATOS 

seu  pae,  mas  esse  retorno  humilde  á  vida 
d'origem  não  faz  senão  culilar-lhe  as  tor- 
turas interiores,  mercê  da  suspeita  horrível 
d'em  cadafreguez  estar  embuscado  um  mal- 
dizente ou  um  credor.  Como  Cezar  Birol- 
leau  no  dia  seguinte  á  fallencia,  o  pobre 
diabo  perdeu  o  dom  de  fitar  quem  se  llie 
achegue;  tem  a  face  cabida,  o  beiço  inferior 
n'um  momo  que  é  a  bestialisação  da  ma- 
gua  nas  pbysionomias  pouco  lúcidas;  falia 
sem  pensamento,  á  flor  dos  lábios,  n'um  fio 
de  vóz  a  cada  instante  interrompido  entre 
as  asphixias  do  respiro ;  e  ao  longo  dos 
muros,  na  rua,  de  cabeça  curvada,  eil  o  es- 
gueirando-se  como  um  criminal  confesso, las- 
timável e  alheio  a  toda  a  ideia  de  reintegra- 
ção social  ou  de  bem  estar.  Quotidianamente 
os  familiares  assistem  ao  demudar  da  sua 
face,  n'ella  deletreando  esse  «diagnoslic  de 
coup  d*oeil»  que  certas  doenças  mortaes 
revestem  externamente;  emtanto  elle  parece 
não  dar  por  males  physicos.  tanto  o  moral 
se  estorce  n'um  inferno  de  horríveis  sobre- 
saltos.  N'esta  lucta  horrorosa  resaltaria  por 
banda  do  vencido,  uma  innarravel  anciã  de 
viver  —  de  viver  para  oxigenar  o  seu  caso 


os   GATOS  23 

ante  a  cidade,  para  pagar  integralmente  as 
suas  contas,  para  se  lavar,  n'uma  palavra,  da 
nódoa  da  fallencia,  única  que  a  consciência 
do  lojista  não  perdoa,  quando  essa  forma 
d'escrupulo  radica  na  hereditariedade  de 
muitos  séculos  de  honra  de  balcão.  Infeliz- 
mente, lançando  calculo  ao  tempo  necessá- 
rio para,  dados  os  recursos  da  casa,  se  po- 
derem embolsar  todas  as  partes  reclaman- 
tes dos  seus  débitos,  achava-se  que  só 
muitos  annos  volvidos  Roza  Araújo  poderia 
emfim  rehaver  a  antiga  integridade.  E  até 
esse  problemático  restauro,  necessário  ve- 
getar na  sombra  aviltante  do  caloteiro  pu- 
blicamente perseguido,  servir  pasteis  á  fre- 
guezia,  d'olhos  no  chão,  tragando  os  chas- 
cos  d'uma  cidade  implacável  para  os  timi- 
dos,  e  emfim  abdicar  de  vez  aquella  sua 
gloriola  de  homem  publico,  aquella  preoc- 
cupacão  immortal  de  vulto  illustre,  a  bem 
da  qual  a  sua  vaidade  de  burguez  fizera 
tanto,  e  a^jora  alli  jazia  a  seus  pés,  na  lama, 
como  um  dominó  de  setim,  findo  o  entrudo. 
Tamanhos  sacrifícios  se  lhe  afiguraram  pre- 
ço exorbitante  para  quo,  depois  das  dificul- 
dades vencidas,  inda  lhe  restaria  na  vida  a 


24  OS   GATOS 

desfruclar ;  de  mais  a  doença  cardíaca,  agra- 
vada pelas  preoccupações  moraes  esmaga- 
doras, ia-Ihe  carceando  curto  a  paciência, 
cortando-lhe  a  respiração,  curvando-lhe  pa- 
ra a  sepultura  o  arcabouço,  e  foi  assim 
que  a  piedosa  morte  se  amerceou  do  pobre 
homem,  precisamente  quando  tudo  o  mais 
começava  a  abandonal-o. 


15  áe  fevereiro. 

A  miséria  que  ha  poucos  annos  em  Lis- 
boa a  bem  dizer  não  passava  da  industria 
d*a!guns  vadios  sem  vocação  para  o  traba- 
lho, e  d'algumas  megeras  em  exploração 
das  crias  pela  esmola,  começa  a  tomar  na 
capital  caracter  trágico,  e  a  surgir  como  a 
suppuração  d'um  descalabro  social  irrepa- 
rável. A  crise  que  em  muito  pouco  prejudi- 
cou a  gente  pobre  da  provincia,  visto  a  sua 
feição  quasi  exclusivamente  industrial,  ao 
apanhar  as  classes  serventuarias  da  capi- 
tal, gente  imprevidente  e  regalona,  sem  pé 
de  meia,  afoita   ao  viver  immoral  do  dia  a 


os   GATOS  25 

dia,  Ião  pela  gorja  as  estrangula,  que  os 
destroços  de  centenares  de  famílias  por  hi 
andam  na  rua  a  pedir  esmola,  afora  outros 
que  o  suicídio  e  a  doença  lêem  reduzido  a 
estrume  nos  covaes.Gomo  a  recolta  dos  derél- 
sinhos  pinga  .constantemente  nas  mãos  dos 
mendicantes,  e  o  acto  de  pedir  esmola  vem 
a  tornar-se,  ao  cabo  dos  primeiros  ensaios, 
n'um  modo  de  vida  infiniiamente  malscom- 
modo  que  o  trabalho  officinal,  a  mendicân- 
cia para  muitos  deixa  de  ser  o  recurso  ex- 
tremo d'um  instante  de  miséria,  para,  per- 
dida a  vergonha,  se  tornar  alfim  em  pro- 
fissão. Aos  miseráveis  por  destino  juntam- 
se  pois  os  miseráveis  por  expediente,  aos 
verdadeiros  pobres,  os  malandros  verdadei- 
ros, e  é  o  que  mais  fatiga  a  caridade,  e  faz 
pagar  aos  infelizes  as  chantages  dos  vadios. 
Do  coro  d^aquellas  victimas  um  grupo  salta 
sobre  todos,  que  me  confrange  a  alma  de 
tristeza.  E'  a  das  velhitas  que  á  noite, 
quando  o  frio  de  janeiro  regela  mais,  pas- 
sam na  semi-somhra  dos  prédios,  entre  as 
cotovelladas  dos  felizes,  vestidas  d'escuroe 
examines  de  vergonha,  balbuciando  suppli- 
cas  que  são  talvez  restos  de  historias,  eon- 


26  OS    GATOS 

de  á  evocação  de  Deus,  se  juntará,  quem 
sabe?  a  desesperança  dos  que  nem  já  de 
Deus  ousam  esperar  apelação.  D'essas  al- 
cachinadas  crealuras,  algumas  são  verda- 
deiramente os  espantalhos  d'antigos  dra- 
mas familiares,  as  espiadoras  resignadas 
dos  inconfessáveis  peccadosda  sua  geração, 
e  são  as  que  se  acobertam  mais  co'a  som- 
bra, as  que  supplicam  com  mais  receio  das 
insolências,  e  as  que,  mesmo  repellidas,  bai- 
xando a  vista,  tremulas  do  desaforo  de  le- 
rem fome,  inda  por  cima  tentam  abençoar 
quem  nas  repelle.  Desce  a  noite  como  um 
capuz  colossal  sobre  a  cidade,  amplificam- 
se  os  bairros,  os  prédios  crescem,  e  as  ruas 
se  anastomosam  em  inextricáveis  arboren- 
cias,  desconformes  da  sonolência  trágica  da 
sombra.  Já  os  operários  passaram  do  tra- 
balho, e  o  cen  vem  rente  aos  tectos  afer- 
rolhar as  aspirações  para  as  alturas.  Nos 
burgos  pobres,  socego,  vultos  com  pressa, 
o  gaz  babando  clarões  onde  esses  restos  de 
vida  teem  a  incerteza  de  coizassem  destino. 
A  hora  em  que  os  pobres  ceiam  e  os  ricos 
jantam,  a  hora  do  peixe  frito  nas  tascas, 
dos  clarões   de  gaz  nos  cafés  ricos,  e  das 


os    GATOS  27 

salinhas  do  jantar  tressuando  a  cognac  e  a 
fumos  de  charuto.  Na  humidade  da  noite, 
rumores  confusos,  trepidações  de  febre, 
americanos  cheios  em  rails  que  nunca  fin- 
dam, coslureiritas  seguidas,  vitrines  fiam- 
mejanles,  tipóias  a  galope,  quatrocentas  mil 
almas  que  mastigam;  e  n'esse  egoismo 
monstro  da  digestão  d'uma  cidade,  as  po- 
bres velhas,  encostadas  aos  muros,  resfo- 
legando o  esfacelo  dos  pulmões  asthmaticos 
do  frio,  as  pobres  velhas  lá  descem,  coitadi- 
nhas, dos  bairros  lúgubres,  para  vir  esmo- 
lar nos  centros  de  concorrência.  Algumas, 
gordas,  com  restos  de  chailes  amarfanha- 
dos na  cintura,  teem  a  faceira  enxundiacea 
dos  cardíacos,  olhos  de  cinza,  um  fio  de 
voz  na  bocca  endolorida ;  e  a  espaços  pa- 
ram', esfalfadas  do  caminho,  os  chinellos  na 
lama,  a  falta  d'ar  no  arquejo  do  respiro, 
partilhadas  entre  a  anciã  de  pão  e  a  anciã 
de  reponzo.  Greaturinhas  sem  interesse, 
eil-as  estendem  a  mão  com  medo  que  as 
conheçam,  balbuciando  suas  lastimas  a 
custo,  e  o  transeunte  aíTasta-se,  seccado  já 
d'outros  pedidos,  e  sem  reconhecer  n'essa 
lúgubre  carcaça    a  sua  antiga  patroa  d'em 


28  OS    GATOS 

esludanle,  a  pobro  mãe  cl'um  camarada 
morto,  ama  amiga  d'oulr'ora  ou  uma  pa- 
renta. N'esla  cidade  tamanha,  a  desgraça 
tem  edições  tão  caprichosas  I  Aquella  de 
prelo,  lenta,  com  as  pálpebras  lufadas  d'e- 
dema,  a  bocca  parva  e  a  mão  estendida  a 
medo,  é  uma  viuva  que  eu  conheci  conten- 
te ha  coisa  de  dez  annos.  O  marido  linha 
uma  pequena  loja  de  tabacos,  viviam  bem, 
adorando  e  vestindo  de  velludo  um  filho 
que  ha  pouco  lenjpo,  já  homem,  indo  fazer 
a  cobrança  d'uma  casa,  fugiu  para  Hespa- 
nha  com  o  dinheiro  e  duas  raparigas.  O 
velho  para  pagar  vendeu  a  loja,  e  pouco 
depois  morreu  de  congestão.  Ha-de  haver 
duas  noites  quiz  interrogar  a  mendiga  sobre 
o  destino  que  levara  o  rapazola;  vaeella  que 
me  via,  baixou  a  vista,  eafaslou-se  a  tremer 
como  uma  hidra  descoberta.  A  perturbação 
da  mulher  alfinetara  porem  a  minha  rocam- 
boleria  mental  de  novellista,  e  vim  a  saber 
que  o  filho  vive  pelos  cafés  de  camareras, 
nos  chinquilhos  d'Arroios,  uma  vida  de  sou- 
tenêur  larapio  e  desordeiro,  e  que  é  a  po- 
bre mãe  quem  no  sustenta,  cada  vez  mais 
doida  pelo  pulha,  á  proporção  que  a  rein- 


os    GATOS  29 

cidencia  d'elle  loma  o  caracler  moral  d'in- 
corregivel. 

Oulra,  hespanliola,  que  estaciona  á  poria 
(lo  Leão  d' Oiro,  sollicilando  a  piedade  do 
quem  vae  para  jantar,  tem  uma  historia  ainda 
mais  desesperada.  Tinha  dois  filhos  ouiivos, 
6  adoecendo  d'um  lypho,  fora  levada  a  tra- 
tar pr'o  hospital ;  por  lá  esleve  semanas,  era 
no  fim  do  semestre,  e  quando  sahin  achou 
a  casa  alugada,  e  nem  filhos,  nem  uma  en- 
xerga sequer  onde  dormir.  Principiou  a  in- 
dagar pela  visinhança  o  paradeiro  dos  dois 
canalhas,  vindo  a  saber  que  propositando 
d'antemão  que  a  pohre  não  escapasse,  ha- 
viam dividido  os  tarecos,  jogado  as   cristas, 
comido  em  pandegas  o  espolio;   depois  do 
que  fora  o  mais  velho  para  o  Porto,  eslan- 
do  no  Limoeiro  o  mais  novo,  por  uma  his- 
toria de  cumphcidade  em  notas  falsas.  His- 
torias d'eslas  contam-se  ás  series  e  enchem 
Lisboa  d'espectros  esfaimados.  Quem  pas- 
sar na  rua  do  Ouro  em  certas  noites,  nos 
baixos  do  Montepio  Geral  lobrigará,  escoa- 
do ao  muro,  um  vulto  negro,  vulto  sem  cor- 
po, apagando-se  nos    vaivéns  da  multidão 
como  uma  sombra.  Não  se  lhe  vêem  mãos 


30  OS    GATOS 

imploralivas,  ponla  de  rosto,  hausto  oa  mur- 
múrio por  onde  adevinhar  um  ser  vivente. 
Imraovel  na  vertical  lucluosa  dos  seus  tra- 
pos, o  pequeno  espectro  parece  que  dormi- 
ta ;  não  pede  esmola  e  é  evidentemente  uma 
mendiga;  ás  vezes  no  torvelinho  da  mairulla 
que  tem  pressa,  um  cotovello  bruscamente 
desloca-a  da  parede:  ella  remexe  um  mo- 
mento, deita  um  suspiro,  e  ouira  vêz  recahe 
na  mesma  quietação.  Esse  suspiro,  porque 
crises  de  martyrio  augusto  se  transfillra,  bom 
Deus !  para  exhalar-se  assim  pallido  do  co- 
fre d'esse  peito  que  por  coração  só  tem  re- 
cordações ?  Gomo  a  pobresinha  não  pede, 
cada  qual  vae  andando  o  seu  caminho,  e 
noiles  e  noites  passam  sem  que  a  miserável 
logre  ver  recompensado  o  tormento  de  vir 
alli  expôr-seá  multidão? O  seu  vulto  porém 
causa  surpresa,  com  a  cabeça  no  peito,  as 
mãos  no  chaile,  incorpórea  e  semelhante  a 
uma  escorridella  de  tinta  sobre  o  muro. 
Alguma  compassiva  dama  varada  pela  atli- 
tude  glacida  da  pobre,  busca  na  bolsa  um 
cobre  bemfazejo,  e  do  espantalho  de  trapos 
uma  mão  tremulenta  se  destaca,  uma  mão 
de  velhinha  torturada,  d*ossilos  débeis,  pu- 


os    GATOS  31 

nho  esbrugado,  branca  da  exanguidez  das 
velhas  pelles  que  foram  bem  tratadas,  e  on- 
de braceletes  lelintaram,  quem  sabe,  n'ou- 
tro  tempo...  Ainda  estas  são  as  relativa- 
mente queridas  do  destino,  e  bem  que  mi- 
sérrimas, desfruclam  por  ventura  d'uma 
certa  autonomia.  Deus  lhes  consente  ainda 
que  se  arrastem  pelos  seus  próprios  pés,  por 
essas  ruas,  não  façam  nojo  ao  menos,  e 
possam  fallar  e  mostrar  o  rosto  triste  á  com- 
paixão. Mas  as  enfermas,  as  paralyticas  de 
bocca  torta,  patetas,  tartamudeando  gague- 
jos  d'animaes  desesperados ;  as  aleijadas, 
grotescas,  confeccionadas  de  restos  que  a 
natureza  amputou  com  vida,  d'oulras  crea- 
ções  sãs  e  perfeitas ;  as  cegas,  de  physiono- 
mia  hesitante,  a  tatear  com  gestos  infantis, 
no  seu  cárcere  medonho,  a  perversidade  hu- 
mana que  ri  alto...  Que  humilhações  nefan- 
das que  ellas  sofrem,  e  como  pagarão  amar- 
go a  illusão  de  soccorro  que  a  mendicidade 
da  rua  lhes  faculta  I  Não  lhes  bastava  a  des- 
graça de  lhes  faltar  o  lume  e  o  pão  na  casa 
inhospita,  e  de  terem  de  para  comer,  mostrar 
seus  males,  senão  que  também  se  lhes  volte 
em  asco  a  caridade,  e  lhes  fuja  do  regaço  a 


32  OS    GATOS 

esmola  que  o  bemfeitor  evita,  pelo  agoiro  de 
lhes  topar  co's  aleijões.  Porque  a  verdade  é 
esta  :  noventa  e  nove  vezes  por  cem,  a  com- 
paixão do  transeunte  é  simplesmente  um  ca- 
so d'egoismo.  O  menor  particular  serve  de 
pretexto  a  uma  recusa:  tal  que  para  esportu- 
lar  cinco  réis,  exige  pobres  de  sobrecasaca  e 
chapéu  alto ;  outros  que  afinam  com  os  cor- 
cundas e  os  chaguentos,  c  muitos  que  ima- 
ginam que  todos  os  cegos  são  fingidos,  e  to- 
dos os  filhos  das  pobres  tomados  d'aluguel 
a  uma  associação  de  compra-chicos.  O  egoís- 
mo dos  felizes  até  no  acto  de  fazer  bem  mette 
aggressões,  e  para  elles  a  felicidade  só  é  ver- 
dadeiramente um  gozo  psychico  quando  dis- 
posta de  modo  a  fazer  avivar  pelo  contraste 
os  martyrios  d'esses  dedassés  de  lodos  os 
festins. 


FIALHO   D'ALMEIDA 


os  GATOS 


PUBLICAÇÃO 
d'jNQUERITO    Á  vida    P0RTU6UEZA 


N.'53  — 15  de  Abril  de  1893 


SUMMARIO 

Leilão  de  D.  Fernando  e  vida  ephemera 

DA    OBRA    d'aRTE    CHIG  —  PlNTORES    DO   CYGLO 

romântico:  AnnunciaçÃo,  Metrass,  Lupi,  e 

AUSÊNCIA    de  quadros    SEUS  NO  MUSEU  DAS  Ja- 

nellas  Verdes  —  Necessidade  d'uma  galeria 

DE  pintura    moderna    ONDE    SE    VÁ  ESTUDAR  A 

MANEIRA  DOS  ARTISTAS  NACIONAES Em  QUE  O 

«SELECTED»   ME  APODA  d'eSCRIPTOR   LICENCIOSO 

—  Representação  do  «Parfum»  pela  Judic, 
com  assistência  de  toda  a  alta  roda a 


II  os    GATOS 

PEÇA  COMO  LITTERATURA  E  COMO  MORAL,  COM 
RECAPITULAÇÃO  DE  HAVER  NO  TAL  «SELECTED» 
UMA  GRANDE  FALTA  DE  PUDOR ExPOSIÇÃO  DO 

Grémio  Artístico  —  As  tristes  málhoas  — 
Salgado  e  Silva  Porto  :  estagnação  da  pay- 
sagem  no  realismo  pelintra  de  ha  dez  annos. 


15  áe  março. 

O  leilão  do  espolio  de  D.  Fernando,  que 
se  lem  eslado  a  lealisar  por  estes  dias,  n'u- 
ma  dependência  do  paço  das  Necessidades, 
dispersa  ao  vento  dos  negociantes  e  coUec- 
cionadores  uma  considerável  parle  d'esse 
mngot  d'obras  d'arte  que  foi  o  enlevo  e  o 
sonho  do  pobre  rei  consorte.  Não  se  pode 
dizer  seja  um  compósito  de  maravilhas,  esse 
espolio,  podado  como  foi  já  pelos  herdeiros, 
das  suas  melhores  peças  de  processo;  en- 
lanlo  é  curioso  estudar  pelos  documentos  á 
vista  a  quantidade  de  pacotilha  que  os  reis 
são  obrigados  a  pagar  para  animar  as  ar- 


4  OS    GATOS 

tes,  e  por  elles  ver  como  o  convencional  en- 
canece cedo  a  obra  dos  artistas.  Esculptu- 
rinhas  românticas,  quadros  de  fructa  e  com- 
pota sobre  fructeiros  arrebicados,  peixeiras 
com  caras  de  duqueza,  scenas  de  campo 
dramatisadas  á  guiza  de  scenario  d'opera, 
tentativas  cerâmicas  sem  caracter,  procuran- 
do imitar  escolas  em  vista  —  tudo  quanto 
n'uma  palavra  a  engenhosidade  cria  de  pi- 
caresco, n'um  paiz  onde  o  génio  artistico  é 
chifarica  e  as  escolas  d'arte  nunca  passaram 
de  tentativas  officiaes  sem  valimento  —  tudo 
alli  mostra  o  seu  faseias  matuto  e  desyme- 
trico,  dizendo  a  desorientação  da  esthetica 
porlugueza  de  ha  trinta  annos,  e  a  quantia 
de  dinheiro  esbanjado  a  abeberar  rapazes 
sem  talento.  Com  os  pintores  portuguezes 
d'esse  tempo,  que  o  fallecido  rei  D.  Fernan- 
de  apadrinhou,  e  cujas  obras-specimens  se 
podem  ainda  ver  reunidas  por  alguns  dias 
no  leilão  das  Necessidades,  succedeu  pouco 
mais  ou  menos  o  que  d'aqui  a  vinte  annos 
se  dará  com  muitos  d'esses  cujos  quadros 
agora  nos  parecem  conter  em  si  caracteres 
de  coizas  immortaes  —  isto  é,  dos  debutan- 
tes opimos  d'agora,  grande  numero  ficará 


os    GATOS  5 

pelo  caminho,  e  irá  empallidecendo  gradual- 
mente a  obra  d'oulros,  á  medida  que  a  oxi- 
dação lhes  embrunecer  as  tintas,  e  que  a 
ironia  do  tempo  enfim,  partindo  do  pretex- 
to de  que  a  melhor  Iheoria  d'arte  é  sempre 
a  ultima,  pegar  de  lhes  descolaras  telas  das 
molduras,  substituindo-as  por  novas,  e  ar- 
remessando os  auctores  das  velhas,  d'uma 
vfz,  para  o  cemitério  dos  diccionarios  d'eru- 
dição.  Entretanto  apezar  da  inaptidão  con- 
génita da  raça  para  conceber  e  crear  obras 
pujantes,  apezar  da  duração  transitória  d'u- 
ma  pintura  e  escuiptura  inquinadas  por  todas 
as  repercussões  maniacas  da  moda,  apezar 
do  ensino  viciado  dos  artistas,  e  do  despre- 
zo do  grosso  publico  pelas  chamadas  «obras 
d'arle  nacionaes»  ainda  d'aquella  plêiade 
dos  nossos  pintores  românticos,  buscando 
bem,  achariamos,  n'esse  leilão  de  casa  real 
que  se  esfacela,  três  ou  quatro  bocados  me- 
nos mortos  com  que  fazel-a  figurar  nas  Ja- 
nellas  Verdes,  ao  lado  dos  muitos  que  lá  fi- 
guram com  menos  direitos  talvez  de  solo  e 
de  nação.  Temos  deixado  escaparem-se  por 
mãos  anonymas  todas  as  pinturas  dos  re- 
presentantes do  periodo  romântico  em  Por- 


6  OS    OATOS 

tugal,  e  a  verdade  é  que  o  museu  nacional 
não  possue  um  só  dos  quadros  bons  d'An- 
nunciação,  Christino,  Metrass  e  Lupi,  sendo 
diíBcil  hoje  adquirir  bocado  que  os  exprima 
a  Ioda  a  altura. 

O  conto  de  reis  que  o  governo  destinara 
a  acquisições  para  o  museu,  gaslou-o  o  ins- 
pector n'um  par  de  jarras  galeadas,  n'umas 
chapas  d'espada  ornamental,  e  n'uma  salva 
repousséê  sem  mor  valor,  e  valha  a  verdade, 
o  museu  não  é  tão  rico  em  obras  modernas, 
que  possa  dispensar-se  de  dar  guarida  aos 
poucos  artistas  nacionaes  que  conseguiram 
transpor  a  mediocridade  do  seu  tempo  e 
viver  alem  do  elogio  mutuo  das  exposições. 
Supporiamos  até  dissesse  bem,  apoz  de  tan- 
tas salas  de  pintura  religiosa,  fundo  de  re- 
sistência de  toda  a  quadraria  das  Janellas 
Verdes,  um  ou  dois  salões  contendo  teias 
portuguezas  modernas,  dignas  d'essa  honra, 
atravez  das  quaes  podessemos  ver  as  im- 
pulsivas e  propulsivas  d'um  ramo  d  arte  que 
em  sessenta  annos  já  lem  custado  ao  paiz 
seu  par  de  contos.  Lupi  e  Annunciação  so- 
bretudo, vergonha  é  que  não  estejam  no 
museu  com  figuração  condizente  aos  nomes 


os    GATOS  7 

que  deixaram;  deixaram  dispersar-lhes 
o  espolio,  passarem  os  leilões  onde  a  seu 
lempo  teria  sido  fácil  gansar  as  telas  typi- 
cas,  de  sorte  que  quem  vier  ás  Janellas  Ver- 
des só  acha  d'aquelles  pintores  nobilissimos, 
bocadinhos,  havendo  que  creditar-lhes  os 
méritos  sob  palavra  de  honra,  falia  d'outras 
provas  convincentes. 

Outro  tanto  diríamos  para  um  ou  outro 
quadro  dos  pintores  contemporâneos.  As  Ja- 
nellas Verdes  possuem  já  d'esculptores  re- 
centes Ires  ou  quatro  amostrinhas, adquiridas 
como  prova  d'adeanlamento  e  premio  de  co- 
ragem, mas  nunca  vi  que  o  zelo  dos  gover- 
nos tenha  descido  a  honrar  a  modernissima 
pintura  porlugucza,  pondo  um  Silva  Porto 
na  galeria  consagrada  a  pintores  novos.  Es- 
tamos a  visitar  ha  uns  poucos  d'annos  expo- 
sições de  pintura  em  Lisboa  e  Porto,  onde  a 
cifrado  producção  orça  por  duzentas  ou  tre- 
zentas telas  annuaes.  Parte  d'esta  obra  consi- 
derável, sei-o  perfeitamente,  é  pacotilha,  mas 
não  havia  meio  de  dar  quinhentos  ou  seis- 
centos mil  réis  pela  compra  do  quadro  melhor 
de  cada  exposição,  e  iniciar  com  essas  lentas 
acquisições  uma  sala  de  novos  no  museu  ? 


os    GATOS 


ÍQ  de  março. 

O  meu  amigo  P.,  conspícuo  moço,  que 
com  o  seu  poucochinho  de  miolo  tem  sabi- 
do fazer  a  vida  lindamente,  lembrou-se  ha 
dias  de  lançar  sobre  a  minha  obscuridade 
o  olhar  commiserando,  e  d'amerciàl-a  com 
algumas  palavras  de  louvor  alternadas  por 
outras  tantas  condiccionaes  ponderativas  e 
paternas.  Abordando-me  na  rua,  findo  o 
jantar,  depois  de  me  pôr  fraternalmente  a 
mão  no  hombro,  e  de  me  anediar  o  pello 
com  alguns  diminutivos  carinhosos,  come- 
çou a  desfazer-se  em  lastimas  sobre  a  mi- 
nha falta  de  geito  para  a  vida,  acolchoando 
esses  lamentos  de  conselhos  que  eu  deveria 
seguir  para  com  brevidade  romper  a  labo- 
riosa miséria  em  que  vegeto. 

Depois  de  me  conceder  algumas  aptidões 
plumitivas  que  eu  agradeci  esforçando-me 
o  possível  por  ter  um  rubor  de  collegial  na 
face  cândida,  começou  elle  por  verberar  a 
minha  desorientada  maledicência,  filha  d'u- 


os    GATOS  9 

ma  mysanlropia  feroz  que  me  não  deixava 
servir  um  grupo,  nem  ter  fé  n'um  credo, 
nem  acceitar  por  bom  nenhum  trabalho  fei- 
to. Retrato  d'esta  deliquescencia  interna,  o 
estylo  em  que  eu  escrevia,  áspero,  desagra- 
dável e  servido  muitas  vezes  por  um  voca- 
bulário de  carroceiro.  Como  o  estylo  é  o 
homem,  inferia  o  meu  querido  P.  pela  mi- 
nha soltura  da  lingua  o  desescrupulo  moral 
impróprio  d'um  espirito  elevado,  e  nada  at- 
tinente  ás  minhas  aspirações  de  pamphleta- 
rio  flagelador. 

Porquanto  todas  as  coizas  se  podiam  e 
deviam  tratar  hoje  de  luva  branca,  e  era 
preciso  ver  pouco  para  não  reconhecer  que 
o  selected  da  sociedade  portugueza,  aquelle 
que  vae  á  frente,  o  que  faz  o  nivel  e  a  qua- 
lidade da  opinião  preponderante,  era  um 
corpo  social  digno  de  preito,  impado  d'illus- 
tração  e  solidas  virtudes  e  altruismos  gera- 
dores de  luminosíssimos  e  espontâneos  mo- 
vimentos. 

Eu,  a  sorrir,  citei-lhe  os  casos  da  quin- 
zena que  desmentiam  dos  conceitos  óptimos 
o  tal  selected:  mulheres  fugidas  aos  mari- 
dos, maridos  auctorisando  pelo  seu  despre- 


10  os  GATOS 

zo  as  perdas  das  mulheres,  recebedores  ge- 
raes  e  thezoureiros  de  companhias,  no  es- 
trangeiro, a  monte,  depois  d'uma  limpeza 
geral  aos  cofres  fortes,  e  quanto  á  philan- 
tropia  da  chamada  classe  preponderante, 
quasi  tudo  exhibição  d'egoismo  e  modos  de 
passatempo,  sem  alcance  chrislão  nem  cari- 
dade. 

—  Por  consequência  a  moral. . . 

Ia  o  Parfum,  pela  Judie,  em  ultima  re- 
cita de  serie  no  ihealro  da  Trindade.  En- 
trámos precisamente  quando  subia  o  panno 
e  a  orchestra  dava  o  ultimo  assoprão  na  tu- 
bulagem  dos  clarinetes.  Conte-se  a  peça.  O 
Parfum  é  um  droguisla  inventor  de  perfu- 
marias, accummulando  estas  aptidões  com 
as  de  deputado  e  marido  d'uma  creaturinha 
interessante,  e  que  ha  tempos  anda  a  con- 
feccionar e  a  espiar  no  fundo  do  seu  labora- 
tório a  invenção  gloriosa  de  certo  perfume, 
que  será  a  sua  obra  prima,  e  revolucionará, 
pela  finura  exótica,  o  mundo  dos  cheiros, 
creando  ao  inventor  reputação  universal. 

Precisamente  essa  tarde  os  distilladores 
do  perfumisla  acabam  de  produzir  na  sua 
forma  definitiva  a  maravilha,  que  n'um  ac- 


os   GATOS  11 

cesso  d'orgulho  o  auctor  faz  vir  á  sala,  fu- 
megante ainda,  para  azabumbar  com  ella, 
não  só  a  esposa,  que  o  admira  e  adora,  co- 
mo lambem  certo  perfumisla  rival  que  eslá 
prezenle.  Trazido  o  perfume,  todos  os  na- 
rizes se  acurvam  sobre  o  vaso,  apercebendo 
então  em  vêz  do  compósito  d'essencias  ra- 
ras preconcebido  pelo  que  se  esperava  da  sa- 
bedoria do  perfumista,  uma  d'estas  degene- 
rações d'olfacto,  complicadas, e  mais  próprias 
para  despertar  a  náusea  do  que  para  dar  ideia 
dos  jardins  orientaes.  U  perfume  supremo, 
pois,  a  obra  prima  do  illustre  cosinheiro  d'es- 
sencias,  não  passa  d'uma  fedentina  de  labo- 
ratório, insupportavel,  e  n'esla  apreciação  das 
ominisciencias  chimicas  do  artista  só  um 
continua  illudido,  é  elle  mesmo,  e  só  outro 
prosegue  a  ter  ciúmes  da  volátil  bernndaga  : 
é  o  perfumista  rival,  que  a  si  mesmo  jura 
descobrir  o  preparo  myslerioso  de  tão  extra- 
vagante porcaria.  Horas  do  comboio  para 
Versailles  ;  necessário  que  o  deputado  corra 
á  sessão  do  parlamento,  e  eil-o  alii  parle, 
depois  dos  parabéns  da  esposa  e  dos  empre- 
gados da  officina,  e  das  ovações  do  chimico 
collcga,  enauseados  e  affliclos  lodos  pelas 


12  OS    GATOS 

emanações  do  horrível  vapor  que  paira  no 
ambiente.  Apenas  os  dois  perfumistas  de- 
bandam, a  caçarolla  do  cheiro  é  mandada 
levar  para  o  laboratório  a  toda  a  pressa: 
vae  a  creada,  ao  passar  com  ella  pela  alco- 
va, tropeça  n'um  fauteuil,  entorna  a  mixor- 
dia,  putrifica-se  o  ar,  e  ahi  fica  a  perfumista 
prohibida  d'essa  noite  dormir  na  cama  con- 
jugal, sob  pena  de  morrer  d'asphixia.  Como 
a  casa  é  pequena,  a  pobre  dama,  forçada  a 
repudiar  o  thalamo,  tem  d'ir  dormir  para 
um  cacifro  de  creados,  perto  da  escada,  e 
precisamente  vago  essa  noite  por  se  ter  des- 
pedido á  ultima  hora  a  cosinheira.  Ora,  uma 
vêz  a  dona  da  casa  deslocada  do  seu  ninho, 
as  peripécias  que  rezultam,  d'uma  insolitez 
cynica  e  porca,  constituem  todo  o  arcabou- 
ço hillariante  do  entremez. 


Começa  o  segundo  acto  por  a  perfumista 
inquirir  da  creada  de  quarto  ás  quantas  ho- 
ras chegou  de  Versailles  seu  marido,  e  a 
serva  de  responder  que  o  deputado  passou 
a  noite  fora,  devendo  só  ás  dez  da  manhã 


os    GATOS  13 

chegar  a  casa.  Espanto  da  dama,  que  atei- 
ma que  elle  entrou,  visto  razões...  matrimo- 
niaes,  basto  palpáveis  e  que  não  é  licito  ne- 
gar, mesmo  ás  escuras.  Porém  a  creada  de 
quarto,  certíssima  do  que  affirma,  breve 
convence  a  patroa  de  que  o  senhor  não  re- 
colheu ;  quanto  ás  razões  documentaes,  se 
não  foi  pezadelo  da  senhora,  é  que  ha  lam- 
bareiro  mettido  na  funcção !  A  semelhante 
suspeita,  a  dona  vae  aos  ares ;  não,  é  uma 
mulher  honesta,  uma  esposa  exemplar,  e 
por  coiza  alguma  Irahiria  a  fidelidade  ju- 
rada ao  perfumista.  Entretanto,  entretanto, 
a  terrível  certeza  errissa-lhe  os  cabellos ; 
dormiu  com  um  homem,  é  positivo,  e  não 
sendo  esse  homem  seu  marido,  então!  en- 
tão!... Ora,  des'que  o  marido  não  foi,  toca 
a  inquirir  quem  poderia  ter  vindo  em  seu 
logar.  Agora,  á  furiosa  revolta  do  pudor  es- 
garçado, um  estimulo  novo  açula  a  perfu- 
mista, vêr  bem  de  face  o  hospede  com  quem 
praticou  as  leis  da  hospitalidade,  saber  se  é 
velho,  novo,  bonito,  feio,  discreto  ou  Im- 
guareiro,  e  como  o  natural  é  começar  pelo 
principio,  ella  approxima-se  do  ajudante  do 
laboratório,  galhardo  moço,  que  em  proble- 


14  OS    GATOS 

mas  de  chimica  mais  d 'uma  vêz  lem  feilo  as 
vezes  do  patrão.  Effeclivamenle,  depois  d'a- 
ma  pratica  bastante  emmaranhada,  o  pobre 
rapaz  confessa  ter  dormido  essa  noite  tora  do 
seu  quarto;  ajustara  no  primeiro  acto  certa 
entrevista  nocturna  com  a  creada,e  tateando  o 
cubiculo  d^ella  ás  escuras,  bem  podia  ser  que 
se  tivesse  enganado  no  caminlio.  Scena  de 
lagrimas  —  que  desgraçai  um  homem  tão 
bondoso  1 — e  agora  não  ha  remédio;  uma  vêz 
que  o  mal  está  feilo,  é  prepararem  as  ma- 
las e  fugirem,  para  esconder  o  adultério  em 
qualquer  parte.  Quando  já  promplos  para  o 
desterro  os  dois  involuntários  culpados  teem 
preparado  as  bagagens  á  pressa,  averiguâ- 
se  que  a  porteira  puxou  o  cordão  a  certo 
retardatário  que  ás  Ires  horas  da  manhã  ba- 
tera á  porta.  Quem  fosse,  ignora,  estremu- 
nhada de  somno  como  estava ;  é  natural  po- 
rém que  o  retardatário  fosse  o  marido.  Po- 
réui  o  marido  não  apparece,  logo  foi  outro 
—  e  dois  1  —  o  que  desespera  cada  vêz  mais 
a  situação  periclitante  da  perfumista,  e  dis- 
pensa os  fugitivos  do  desterro  a  que  d'an- 
lemão  se  haviam  condemnado.  Mas  quem 
poderia  ser  o  intruso,  quem?  Eis  o  problema 


os    GATOS  15 

novo  que  o  ajudanle  e  a  palrôa  desde  essa 
hora  s(i  propõem  resolver.  Por  uma  serie  de 
peripécias  complicadas,  vem  a  saber-se  qu€ 
o  segundo  perfumista,  rival  do  inventor,  pre- 
meditando caçar  o  segredo  do  perfume  ao  seu 
collega,  se  lhe  introduzira  em  casa  myslerio- 
samente,  podendo  talvez  serelle  quem,  ma- 
drugada, puxasse  o  cordão  da  campainha.  O 
salafrário  é  casado  e  horrendo  como  um  bo- 
de ;  imaginarão  por  tanto  o  asco  e  o  horror  da 
bella  perfumista...  Mas  a  salgalhada  não  pára 
n'este  ponto,  porque  o  segundo  ajudante  do 
laboratório  também  consta  que  passou  fora 
de  casa  parte  da  noite;  por  consequência. .. 
Ires!  E  de  perder  a  cabeçal e  quanto  mais 
elles  procuram,  hesitantes  na  escolha,  tanto 
mai^'  diíficil  se  faz  a  averiguação  «lo  parti- 
Ihador  do  thalamo  conspurcado. 

Finalmente  ás  dez  horas  da  manhã  entra 
o  marido,  extenuado,  derreado,  respondendo 
ás  perguntas  da  esposa  ambiguamente.  Peri- 
pécias novíssimas  que  o  leitor  me  fará  o  pra- 
zer de  dispensar,  ao  fim  das  quaes  o  desfe- 
cho da  peça  reata  os  seus  episódios  vis  d'esta 
maneira.  O  primeiro  ajudante,  tendo  dado 
rendez-voíis  á  creada  de  quarlo,  passou  o 


16  OS    GATOS 

melhor  da  noite  n'uma  espécie  de  duo  se- 
xual, peccaminoso^  sob  os  ledos  honestos  do 
patrão.  O  segundo  ajudante,  depois  do  chá, 
foi  dormir  com  a  mulher  do  segundo  perfa- 
mista,  o  perfumisla  rival,  que  assim  foi  cas- 
tigado de  dar  caça  ás  invenções  do  seu  col- 
lega.  E  quanto  á  dona  da  casa,  sob  a  emi- 
nência de  ler  dormido  com  um  dos  três  fre- 
cheiros, á  sorte,  se  conseguiu  ficar  incólu- 
me, deve-o  á  confusão  do  marido,  que  ajus- 
tando com  a  cosinheira  uma  noitada,  fora  a 
deshoras  metter-se-lhe  na  cama,  onde  em 
yêz  da  cosinheira  estava  a  esposa,  devido 
ao  fracasso  da  caçarola  do  perfume. 


Apreciaram  da  comedia  pelo  entrecho, 
edificados  de  que  assumpto  assim  dúbio  lo- 
grasse caplivar  a  inspiração  do  libretista. 
Perdoar-se-lhe-hia  entanto  a  obscenissima 
embrulhada,  se  ella  vestida  fosse  por  uma 
litteratura  faiscante  e  explendidissima.  Mas 
nem  tal  desculpa  subsiste,  porque  o  Parfiim 
é  d'enire  as  borracheiras  irancezaspara  uso 
das  meretrizes  e  dos  pulhastros  viajantes,  a 


os  GATOS  17 

mais  inqualiOcavelmenle  ignóbil  da  serie, 
escripla  n'um  estylo  de  latrina,  arrevesado, 
sórdido,  insalubre,  a  insistir  constantemenie 
na  torpeza,  sem  um  dito  subtil  que  orecom- 
mendeá  tolerância  da  policia,  á  misericórdia 
da  critica  e  ao  pasí-atempo  sequer  do  espe- 
ctador. 

N'um  paiz  em  que  a  lettra  dos  costumes 
fosse  lida  n'uma  caitilha  austera,  por  uma 
sociedade  cônscia  do  seu  brio,  canalhas  que 
se  atrevessem  a  representar  publicamente 
uma  infâmia  d'aquellas  receberiam  a  vergas- 
ta nos  lombos  como  ensino,  e  a  expulsão  da 
fronteira,  a  pontapés.  Certo  ha  em  Paris 
uns  theatros,  tolerados  como  casas  de  pas- 
se, onde  as  mulheres  perdidas  vão  fazer  ca- 
ça aos  estrangeiros  que  vem  á  capital  da 
França  despucellar-se.  Gomo  para  o  utili- 
tarismo francez  a  corrupção  é  um  género  de 
commercio  como  qualquer  outro,  a  policia 
dos  costumes  fecha  os  olhos  e  deixa  que  os 
Parfums  façam  receita  como  chamariz  dos 
estróinas  cosmopolitas,  certa  de  que  nenhum 
francez  que  se  preze  ousaria  lá  levar  a  filha 
ou  a  mulher.  Dois  ou  três  annos  depois,os  cai- 
xeiros viajantes  que  sahem  de  Paris  em  giro 
2 


18  OS   GATOS 

de  quinquilharias  avariadas,  chamem-se  el- 
les  Judies  ou  Jules  Jaluzols,  ao  aportar  ás  ca- 
pitães de  paizesexlinclos  como  o  nosso,  que 
elles  reputam  terra  de  basbaques,  despe- 
jam-lhes  nos  armazéns  toda  a  ucharia  gro- 
tesca das  suas  malas,  desde  as  crinolinas 
até  ás  tragedias,  e  a  sociedade  da  moda,  a 
gente  civilisada,  o  selected,  lá  corre  ufano  a 
fazer  successo  ao  article  Paris  que  o  velha- 
co francez  de  propósito  fabricara  para  en- 
grolar o  estrangeiro  desmoralisado. 

Descripta  a  peça,  e  delineado  o  valor  lit- 
terarioe  moral  do  seu  enlrecho,  vamos  dizer 
dos  que  estavam  a  uuvil-a  no  iheatro  da  Trin- 
dade. No  camarote  de  honra,  S.  M.  el-rei,  far- 
dado, e  comas  duas  rainhas  em  grande  ves- 
tuário de  soirée.  Ao  lado  as  damas  de  honor  e 
os  oíBciaes  da  sua  casa  civil  e  militar.  Na  pri- 
meira ordem  e  nas  frisas,  tudo  quanto  em 
Lisboa  vale,  como  diz  o  lUustrado,  pela  aris- 
tocracia d'um  espirito,  pela  celebridade  d'um 
nome  ou  pela  douradura  d'um  milhão.  Pre- 
sidentes de  conselho  presentes,  futuros  e 
pretéritos,  banqueiros,  capitalistas,  alta  búr- 
guezia,  aristocracia,  corte,  tudo,  absoluta- 
mente tudo  o  que  em  Lisboa  gosta  de  ser 


os    GATOS  19 

colado  entre  as  siimmidades  espirituaes  da 
roda  dirigente,  que  dieta  a  lei  e  faz  da  «aus- 
teridade moral»  um  lemma  de  brazão — tudo 
lá  estava,  encasacado,  de  tira  branca,  luvas 
bordadas  a  preto,  meias  de  seda  e  pérolas 
no  peitilho.  Uma  selecção  d'elegancia  como 
ha  muito  tempo  não  vi  outra,  e  quem  a  fos- 
se espreitar,  descido  o  panno,  imaginal-a- 
hia  na  espectativa  d'algum  grande  aconte- 
cimento litterario  nacional.  Todos  esses  ca- 
valheiros que  representam  o  selected  (sem- 
pre o  selected  I)  da  sociedade  portugueza,  tão 
desdenhosa  sempre  pelo  vulgo,  tão  intole- 
rante sempre  pelos  radicalismos  lilterarios 
que  possam  ferir-lhe  a  sensibilidade  aristo- 
crata, tão  sabiamente  altiva  nas  leis  do  gos- 
to, tão  exigente,  tão  formalista,  tão  deli- 
quescente,  tão  desavergonhada  e  tão  hypo- 
crila  —  todos  esses  cavalheiros,  não  conten- 
tes de  dar  á  cidade  o  espectáculo  d'applau- 
dir  sem  rebuço  uma  comedia  obscenissima, 
inda  por  cima  tinham  acarretado  á  exhau- 
loração  a  honra  do  seu  lar,  fazendo-a  ou- 
vir ás  maninas  e  ás  esposas,  e  apreciando- 
Ihe  os  dichotes  por  entre  estridolas  e  des- 
honeslas  gargalhadas.  Os  fauteuils  do  bal- 


20  OS    GATOS 

cão  estavam  inleiramenle  cheios  de  senho- 
ras, as  mais  bellas,  graciosas  e  inpeccaveis 
que  os  salões  de  Lisboa  fazem  brilhar  nos 
seus  chás  das  cinco  horas,  e  algumas,  ideaes, 
com  decoles  quadrados,  corpinhos  directó- 
rio, saias  d'estofo  aéreo,  em  tons  suaves, 
cobertas  de  jóias  e  com  biquinhos  d'esmal- 
te  inimilavel,  tinham  a  rir  das  reticencias 
pornographicas  da  peça,  uma  candura  Ião 
cysnea,  lanla  leviandade  nos  olhos,  um  des- 
caramento casto  por  tal  forma  excitador, 
que  fosse  eu  o  marido  d'alguma,  ficaria  per- 
plexo ao  querer  destriçar  íentre  esse  extasi 
immundo,  minha  mulher  das  outras  creatu- 
ras  ?  Findo  o  espectáculo,  uma  raparigui- 
nha de  fatos  curtos,  com  um  capuz  de  vel- 
ludo  carmezi,  ia  fazendo  a  critica  da  peça 
ao  seu  papá  —  Meu  Deus,  é  muito  fresca... 
e  o  papá  fez  bem  em  não  ler  deixado  vir  a 
mana  mais  crescida! 


N'este  ponto  espero  que  o  leitor  conclua 
o  que  eu  não  lhe  posso  estar  aqui  a  dizer 
ponlo  por  ponto.  Passo  em  revista  as  desa- 
taviadas paginas  que  n'uma  vida  de  chro- 


os    GATOS  âl 

nista  já  longa  me  tem  sido  dado  traçar  ao 
acaso  dos  assumptos  correntios,  e  por  mais 
que  insista  não  descubro  n'essa  obra  d'oc- 
casião,  fortuita  e  pallida,  um  só  motivo,  uma 
só  phrase,  por  onde  caiba  a  fama  d'escri- 
ptor  licencioso  que  me  arrogam.  Uma  ou 
outra  vez  irei  buscar  ao  vocabulário  plebeu, 
convenho,  epithetos  que  os  chamados  buri- 
ladores  de  salão  põem  de  parte,  ou  chico- 
tadas e  cautérios  que  de  modo  nenhum  re- 
presentam grosserias  de  propósito,  senão 
pura  e  simplesmente  o  gorgolejo  que  á  mi- 
nha indignada  franqueza  arrancam  certos 
assumptos  sociaes  colhidos  em  flagrante.  De 
sorte  que  «immoralidade»,  a  havel-a,  não  é 
a  que  rechina  do  verbo  rude  d'eslas  chro- 
nicas,  salubre  de  resto,  mas  a  que  bortoeja 
do  flanco  que  uma  sociedade  corrupta  ofiíe- 
rece  ao  bistouri.  Não  ha  palavras  immoraes, 
mesmo  em  pamplileto ;  assumptos  torpes 
não  podem  ser  tratados  em  linguagem  vir- 
ginal, e  é  bom  que  se  saiba  que  quem  ma- 
neja uma  penna  deve  ter  do  papel  d'escri- 
ptor  noção  mais  estridente  do  que  espremer 
phrases  cândidas  para  entretenimento  de 
madamas  que  vão  á  Trindade  applaudir  o 


22  OS  GATOS 

Parfum,  como  cocottes.  De  mais,  como  ler  fé 
nas  ausleridadeslillerarias  á'umselectedque 
faz  ovações  ao  Parfum  na  noite  do  mesmo 
dia  em  que  me  declara  a  mim  licencioso?  Li- 
cencioso, porque  eu  lhes  não  ponho  em  pi  oza 
de  cão  fraldeiro,  fedendo  á  leucorrhea  .'ibs- 
Irusa  das  alcovas  adulterinas  onde  ellas  in- 
tercalam Bellot  comas  leituras  dos  livros  de 
orações,  essas  sensaborias  mórbidas,  esses 
idyllios  suspeitos  a  que  as  acostumaram  os 
escrevinhadores  ataxicos  da  geração  que  vae 
correndo.  Licencioso  porque  se  faz  taboa 
raza  aqui  da  periphrase  lamecha  que  ha  cin- 
coenla  annos  tresvia  entre  nós  o  espirito 
litterario,  que  ou  consiste  em  escrevern'un> 
estylo  de  creanças,  ou  em  occultar  as  ex- 
pansões do  estro  humano  n'uma  aravia  de 
capangas  onde  a  melifluidade  não  exclue  a 
bestiíicante  hypocrisia.  N'essa  sociedade  on- 
de deliquesce  tudo  em  podridões  subcutâ- 
neas, e  onde  o  espirito  da  formula,  a  reli- 
gião das  apparencias  nem  chega  a  satisfa- 
zer mesmo  a  illusão  dos  mais  ingénuos, co- 
mo aturar  se  exija  para  escriptores  nacio- 
naes  a  luva  branca,  quando  não  ha  cabotino 
f  rancez  que  a  não  faça  delirar,  de  luva  pre- 


os   GATOS  23 

ta?  As  filhas  d'aquelle  banqueiro  e  as  cu- 
nhadas d'aquelle  general,  esse  antigo  mi- 
nistro, esse  chefe  de  partido,  esse  polluido 
deputado,  todos  os  conspícuos  P.P.  emfim 
da  maçonaria  de  tartufos  que  acorrenta  o 
paiz  ao  snobismo  das  suas  viciosas  conve- 
niências, todos  esses  me  expliquem  por  qual 
duplicidade  repellem  elles  um  escripio  onde 
no  silencio  do  seu  quarto  toparam  com  uma 
palavra  «mal  soante»,  e  ao  mesmo  tempo 
aceitam  de  mãos  rotas  uma  comedia  onde  á 
vista  de  todos  andam  em  exhibição,  três 
horas,  os  órgãos  genitaes  de  quatro  malan- 
drões  e  uma  mulher.  Não,  não  me  dispenso 
do  vomito  que  esta  moral  intermiltente  me 
provoca,  e  se  valesse  a  pena  o  desprezo,  eu 
explicaria  a  todas  essas  bonecas  desdenho- 
sas como  é  que  o  pudor  assim  interpretado 
toma  o  caracter  d'uma  aberração  nympho- 
maniaca  das  mais  tristes. 


24  í/e  março. 

Ao  fim  de  três  exposições  do  Grémio  Ar- 


24  OS   GATOS 

íistico,  sociedade  organisada  menos  para  fo- 
mentar as  artes  do  que  para  prover  ao  mé- 
nage  dos  artistas,  já  se  está  vendo  qual  o 
futuro  provável  do  tal  grémio,  que  será  re- 
trahir  cada  vez  mais  para  mysantropias  nos- 
tálgicas os  verdadeiros  pintores,  deixando 
aos  curiosos  o  furor  de  se  exhibir.  Esta  ex- 
posição é  já  de  feito  o  symptoma  prenunciai 
do  advento  do  curioso  á  gloria  da  publici- 
dade, a  feira  franca  da  pintura  conslituida 
em  prenda  feminina,  e  inscripla  no  catalogo 
das  habilidades  de  mãos,  ao  lado  do  bor- 
dado a  torçal,  das  flores  de  sabugo  e  dos 
lavores  propios  do  sexo.  Exhaulorado  a  tal 
ponto  um  congresso  d'arte  cujos  inicios,  se- 
não triumphantes,  pelo  menos  deixavam 
prever  ao  Grémio  um  futuro  de  conscencioso 
esforço  e  honesta  laboração,  poucas  sympa- 
thias  lhe  restarão  da  critica  imp:ircial :  á  uma 
porque  a  ideia  d'arte  seja  incompalivel  com 
a  do  negocio  ao  metro,  á  outra  porque  não 
é  mais  possível  tomar  a  serio  certamens  on- 
de a  pintura  ameaça  tornar-se  em  carta  de 
curso  de  meninas  casadoiras.  E'  doloroso 
assim  vêr  frustrado  um  tentamen  sympathico 
de  regeneração  picturial,  e  liquidarem  em 


os   GATOS  25 

apromptadores  para  exame,  moços  artistas 
que  o  destii)0  fadara  talvez  para  mais  viris 
reputações.  A  exposição  actual  offerece  de 
pictoresco  esta  imprevista  nota  de  reclamo; 
e  vem  a  ser  que  ha  discipulas  assignando 
com  doze  lições  quadros  que  os  mestres  es- 
pozeram  no  anno  passado,  e  mestres  que 
para  sublinhar  os  progressos  das  discipulas 
não  duvidaram  subscrever  como  trabalhos 
seus  patacuadas  que  nenhuma  d'ellas  quiz 
expor.  Correndo  as  salas  d'exposição  uma 
por  uma,  é-se  ferido  pela  quantidade  de 
mercearia  que  ressumaa  pintura  portugue- 
za,  e  pela  paragem  chalra  de  talento  e  de 
processo  em  que  a  ciganice  da  venda  para- 
lysou  a  acção  até  dos  mais  conscenciosos 
estylislas.  Rarissimos,  pode-se  aíBrmar,  pen- 
sam em  arrojar-se  a  uma  elocubração  de 
sonho  esthelico  supremo,  e  em  pôr  o  seu  no- 
me ao  canto  d'uma  pintura  com  vislumbres 
d'obra  definitiva;  ninguém  progride,  e  o  que 
é  mais  terrível,  quasi,  quasi  todos  retrogra- 
dam. Esta  conclusão  final  é  deplorável,  e 
escandalisa  tanto  mais,  quanto  é  certo  ter 
o  odioso  retrocesso  por  movei  causas  que 
deshonram  profundamente  o  officio  de  pin- 


26  OS    OATOS 

tar.  Essas  causas  são  de  sobejo  conhecidas 
enão  gastarei  carvão  para  as  ferver.  A  edu- 
cação preliminar  d  aíeter  foi  em  quasi  lodos 
os  artistas  descurada, raros  desenham, poucos 
conhecem  de  theoria  sequer  a  sciencia  dos 
tons  e  perspectivas,  rarissimos  sabem  obser- 
var, e  os  que  observam  não  concluem,  do  que 
rezuha  nenhum  sentir  o  quadro,  e  conse- 
quentemente sabel-o  compor  in  mente,  an- 
tes de  lhe  dar  realidade.  A  todas  estas  de- 
sagradáveis desfallencias  juntar-se-hão  as 
necessidades  de  dinheiro,  levadas  nos  mais 
reputados  a  uma  cubica  de  vendilhões  á  coca 
de  se  encher,  e  sobrelevando,  o  completo 
desprezo  que  lhes  merece  o  publico  grossei- 
ro, o  publico  pagante,  incapaz  de  sentir  as 
obras  pessoaes,  de  ser  tocado  por  uma  ex- 
cepção de  gosto  tergiversante  do  ramerrão 
banal  oleographico,  edesafiando-os  por  isso 
mesmo,  a  elles,  artistas,  ao  rien  faire  do  qua- 
drinho  de  dez  libras,  com  duas  bestas,  um 
parreiral,  e  a  ponte  d'Aigés  onde  na  Judia 
está  Jerusalém. 

Tenho  medo  d'apontar  exemplares  com- 
provativos das  insuíBciencias  intellectuaese 
moraes  que  atraz  fixei,  e  pelas  quaes  vejo 


os    GATOS  27 

apagar-se  a  febre  d^arte  sob  que  ha  seis  ou 
sele  annos  se  iniciara  o  grupo  do  Leão.  Nos 
artistas  parados  o  melindre  profissional  é 
uma  ulcera  dolorosa,  tocar-lhe  ó  fazel-os 
soffrer  horrivelmente  ;  e  de  que  serviria  isso  ? 
—  á  hora  em  que  vamos  já  não  brotaria  da 
raclagem  qualquer  reacção  salutar  para  a 
pintura  porlugueza. 

Não  poderão  dizer  os  pintores  queámin- 
goa  de  publico  lhes  esmorecesse  a  antiga 
actividade,porquanto  mesmo  nos  annos  maus 
seguidamente  o  publico  concorre  a  comprar 
telas,  fornindo  áquelles  garantias  de  vida 
que  elle  sonega  aos  melhores  dos  seus  mo- 
dernos escriplores.  Tão  pouco  alegarão  lhes 
tenha  faltado  o  applauso  da  critica,  os  rui- 
dos  da  voga  e  as  sympalhias  geraes  da  op- 
nião.  Tudo  isso  teem  tido  ás  regaçadas,  e 
eis  o  que  torna  a  sua  apathia  deshonesta, 
porque  na  plena  seiva  em  que  estão  parar 
não  é  uma  crise  psychica  da  edade ;  parar  é 
uma  ronha  de  typos  que  se  alapardam  sob 
o  para-sol  de  nomes  feitos,  e  querem  intru- 
jar o  seu  tempo  com  painelices  pelintras  e 
leilõesinhos  de  pintura  acarneirada.  Pois  não 
é  justo  exigir  á  paleta  d'arlistas  superiores  co- 


28  OS    GATOS 

mo  Silva  Porto,  cuja  technica  completa  e  cu- 
ja sulil  annolação  não  podem  mais  preoc- 
cupal-o  sobre  os  meios  de  fazer  em  que  tro- 
peçam os  seus  collegas,  não  é  justo  exigir, 
dizia  eu,  d'essa  surprehendente  aptidão  de 
paysagista  e  animalista,  de  quando  em  em- 
quando  um  quadro  mestre,  onde  o  seu  estro 
fique  sobredoiíado  na  concepção  immortal 
d'uma  obra  prima?  Vejam-se  as  suas  ex- 
posições de  sete  annos :  é  tudo  ensaios, 
apontamentos  mais  ou  menos  completos  d' 
uma  obra  de  fôlego  que  o  artista,  com  uma 
cobardia  singular,  evita  d'anno  para  anno, 
preferindo  viver  aii  joiír  lejoiír  do  prestigio 
que  se  fez  na  esperança  desilludida  sempre 
do  publico,  e  adiando  para  as  kalendas  gre- 
gas a  apotheose  suprema  a  que  tem  jus. 

Digani-me  se  não  é  realmente  um  crime 
deixar  dormir  nas  fáceis  gloriolas  do  qua- 
drinho  ao  alcance  de  todos  esse  pincel  que 
poderia  sem  grande  esforço,  quintessencian- 
do  um  pouco  as  suas  bellas  faculdades  poé- 
ticas em  gérmen,  interpretar  em  três  ou 
quatro  telas  typicas  as  grandes  commoções 
da  nossa  vida  rural,  apercebendo  d'esla  não 
o  detalhe  enterno,  a  nota  anedocticaousen- 


os    GATOS  29 

limental,  que  é  o  que  Silva  Porto  explora  e 
pinia  nos  seus  languores  de  poeta  pregui- 
çoso, mas  as  divinas  núpcias  e  segredos  Ín- 
timos da  terra,  mãe  benévola  e  pródiga,  os 
fecundos  e  maternos  âmagos  da  paysagem, 
a  gynecologia  esplendida  do  húmus,  toda  a 
epopeia  dos  laços  que  prendem  emfim  a  na- 
tureza bruta  ao  ser,  este  á  idêa,  e  a  ideia  ao 
sonho  immalerial. 

Abanco  em  frente  do  grande  quadro  de 
carneiros  que  passa  por  ser  uma*das  coisas 
capitães  de  Silva  Porto;  bocado  de  dois 
metros,  onde,  por  uma  azinhaga  esboroenta 
dos  calores  d'agoslo,  vem  uns  carneiros,  um 
burro  e  um  pastor.  Na  barreira  da  esquer- 
da ha  uns  silvados,  piteiras  á  direila,  e  aci- 
ma d'estas  uma  oliveira  ferrugenta,  comida 
de  poeira,  queimada  dos  ardores  do  sol  e 
pondo  uma  silhueta  doente,  hostil,  n'um 
ceu  de  trovoada.  Toda  a  figuração  da  scena 
é  escrupulosamente  composta  do  modelo,  e 
tão  authenlica  a  poeira  do  fundo  que  uma 
pessoa  a  chegar- se  e  a  ficar  com  o  casaco 
branco  d'ella.  Pode-se  estudar  também  cada 
accessoriosinho  da  pintura,  está  tudo  exacto, 
no  seu  logar,  com  uma  factura  tão  nilida. 


30  OS    GATOS 

e  uma  consciência  do  minúsculo  por  tal 
forma  escrupulosa  que  é  impossível  destrin- 
çar na  lã  dos  carneiros  fio  que  não  seja  pura 
lã,  e  na  ramada  das  silvas  folha  que  não  te- 
nha sido  vista  a  microscópio.  Photographe- 
se  agora  a  tela,  e  tão  exacta  é  a  copia,  que 
pelo  cliché  não  ha  meio  d'apurar  se  a  ma- 
china  apontava  a  um  quadro,  ou  se  visou 
realmente  uma  scena  natural.  Eis  ahi,  me 
parece,  a  melhor  critica  aos  carneiros  de 
Silva  Porto,  schemmados  pela  photographia 
té  uma  copia  banal  do  modelo  morto,  e  au- 
Ihenlicos  ao  ponto  do  artista  abdicar  do  eu 
sonhante,  para  n'essa  obra  depor  apenas 
como  uma  testemunha  imparcial.  Quando  o 
pincel  assim  se  enfeuda  á  realidade  por 
uma  forma  tão  árida,  por  mais  valor  que  se 
tenha  o  sacerdócio  do  ideal  é  lettra  morta, 
e  d'esse  instante,  perdido  o  dom  d'evocação 
poética  na  arte,  opaysagista  não  passa  d'um 
empalhador  da  natureza. 

O  Christo,  de  Salgado,  me  parece,  ape- 
zar  da  convenção  theatral  que  o  grava  a 
branco  ii'uma  serrania  aspérrima  em  cre- 
púsculo, a  única  tentativa  de  paysagem  psy- 
chologica  que  ainda  me  foi  dado  olhar  nas 


os   GATOS  31 

exposições  do  Grémio  Artístico.  Escuso-me 
absolulamenle  a  vêr  n'essa  melodrama  liça 
phantasmagoriâ  a  revoada  de  talento  origi- 
nal que  os  fetichislas  do  auctor  lhe  outor- 
gam um  pouco  á  ladiable,  e  mesmo  me  pa- 
rece qne  suíTocada  a  estranheza  da  visão 
primeira,  gradualmente  empallidece  a  im- 
pressão do  quadro  no  espirito  já  desalvoro- 
çado  de  quem  olha.  Conhecem  de  certo  a 
tela,  não  me  cangarei  portanto  a  esquissal-a 
em  minudencias. 

O  Nazareno  acaba  de  deixar  no  olival  de 
Guelhsmani  os  discipulos  amadornados  de 
fadiga.  E'  a  hora  dos  fortes  que  não  tendo 
mais  a  espreital-os,  linguareiros,  tiram  de 
súbito  a  mascara  impassivel,  ficando  então 
fracos  e  humanos  na  negação  da  sua  origem 
de  seres  excepcionaes.  Prezo  d'essa  amar- 
gura insondável  dos  remidores  de  mundos 
frustrados  pelo  egoísmo  estúpido  da  turba, 
Jesus  adentra-se  sósinho  pela  charneca  en- 
sombrada, ella  também,  pelos  pezadellos 
violetas  do  crepúsculo.  Não  é  uma  paysa- 
gem  de  vale,  extensa,  onde  os  pensamentos 
vão  como  corcéis,  o  ermo  onde  o  pintor  pin- 
tou o  seu  protogonista,  mas  uma  espécie  de 


32  OS    GATOS 

resvaladeiro  estreito,  suffocante,  com  riban- 
ceiras a  pique,  penedos,  rosmaninhaes,  for- 
mas confusas,  uma  espécie  de  cuva  trágica, 
vidrada  d'angustia,  e  reenviando  aíflicla- 
mente  a  alma  do  Redemptorao  espectador. 
A  figura  do  Chrislo  é  posta  n'uma  das  pon- 
tas d'essa  grande  paysagem  roxa  de  seis 
metros;  tem  uma  lunica  branca  em  pregas 
ílucluantes,  illuminada  por  dentro  á  Jablo- 
koff,  e  alça  a  cabeça  com  a  expressão  ita- 
liana d'um  tenor  que  fosse  cantar  o  sonho 
do  Propheta.  Por  toda  a  tela  se  é  ferido 
pela  quantidade  de  motivos  grosseiros  com 
que  ella  arma  á  emoção  desprevenida,  e 
pela  factura  berrante  dos  violentos  contras- 
tes em  que  é  dada.  A  preoccupação  moral 
porém  sobreleva  em  muito  essa  óptica  de 
theatro,  e  mau  grado  a  mm-en-scène  de 
quadro  dissolvente,  a  tela  consegue  impõr- 
se  por  uma  intenção  profunda  de  conceito, 
qual  a  de  dar  pela  paysagem  o  estado  mo- 
ral do  personagem,  e  fazer  ler  n'aquella  pe- 
nedia sinistra,  como  n'um  espelho,  a  dolo- 
rosa ulceração  interior  do  Moralista  divino 
á  hora  do  abandono. 


FIALHO    D'ALMEIDA 


os  GATOS 


publicação 
d'iiíquerito  á  vida  portugueza 


«."  54— 27àeJQDho(iel893 


SUMMARIO 

Cr-NTENARIO    DO   THEATRO  DE  S.  CaRLOS 

Seus  pretextos,  dispêndios  e  fins  —  O  que 

TEM  sido  o  nosso  THEATRO  LYRICO Os  «EN- 
TENDIDOS» MUSICAES  E  CLASSIFICAÇÃO  DOS  ES- 
PECTÁCULOS POR  ORDEM  DE  LOCARES ENTRE- 
VISTA COM  Gervazio  Lobato  sobre  a  sua  re- 
tirada DO  THEATRO T ALENTO  SCENICO  E  PES- 
CADA COSIDA  —  Uma  opereta  hillare  sobre 
OS  duellos  —  Critica  da  peca  e  reparos  >o- 
bre  a  injustiça  flagrante  da  sua  satyra  en- 


2  OS  GATOS 

VOLVENTE KiM  QUE  SE  PROPÕE  UMA  MODIFIGA- 

ÇÃOSíNHA  NO  Fli\AL PoRQUE  SE  FECHOU  A  Ta- 

PADA  DA  Ajuda  —  Palácio  da  exposição  agrí- 
cola, E  DESLEIXO  DOS  PARQUES  E  JARDINS  QUE  O 

circumdayam — Baldios  onde  SS.  MM.  melhor 

PODEM    ensaiar    AS    CRIAS    DOS   COELHOS—  Em 

Portugal  todas  as  coisas  roas  são  prohidi- 
DAS  —  Bello  Marreto,    chronista   de   suas 

REAES  MaGESTADES. 


30  de  março. 

No  mez  de  julho  próximo  futuro  comple- 
ta-se  cem  annos  que  por  iniciativa  de  Far- 
robo  foi  inaugurado  o  thealro  de  S.  Carlos, 
e  agora  que  ninguém  pensou  ainda  em  se- 
riamente resolver  a  crise  de  Irabalbo  que 
recrudesce,  as  reclamações  dos  credores  es- 
trangeiros que  balem  á  porta,  a  carestia  da 
alimentação  e  residência  cada  vez  mais  do- 
lorosas par^  as  chamadas  classes  depen- 
dentes, jornaes,  banqueiros  e  dilettanli  gran- 
des e  pequenos,  tudo  é  conluiarem-se,  quo- 
tisarem-so,  reunirem-se.  para  que  ao  cen- 
tenário da  opera  italiana  não  falte  nenhum 


4  OS  GATOS 

dos  atiraclivos  com  que  é  uso  celebrarem- 
se  os  acontecimentos  de  luxo,  quando  os 
escora  a  vaidade  de  dúzia  e  meia  d'ociosos, 
de  braço  dado  com  m.eia  dúzia  d'argenlarios. 
Pouco  importa  que  o  pão  falte  cá  dentro  e 
falte  lá  fora  o  credito  e  o  bom  nome,  que  os 
cslabelecimentos  de  credito  derruam,  min- 
gua d'amparo,  e  feneçam  os  estabelecimentos- 
d'instrucção,  mingua  de  zelo.  A  turba-multa 
dos  gozadores  da  capital  tem  musica  estran- 
geira ?  Ha  duas  grozas  de  millionarios  para 
ostentar  equipagens  na  Avenida  e  fazer 
claque  á  pbilanlropia  scenograpbica  da 
rainha?  O  resto  é  bagalella,  e  tudo  está, 
diz  um  jornal,  em  fazer  o  theatro  de  S. 
Carlos  «centro  de  concorrência  para  o  fausto 
e  brios  d'uma  capital  que  se  diz  civilisada.» 
]N'esta  conformidade  pois  já  se  pensa  em 
pedir  ao  governo  um  crediío  extraordinário 
para  tornar  o  centenário  da  inauguração  de 
S.  Carlos  uma  obra  de  preceito,  o  consenso 
unanime  sendo  que  se  não  poupem  despe- 
zas  para  dar  brado  na  Europa  com  tal  fes- 
ta. De  toda  a  banda  chovem  alvitres,  ideias 
de  pompa  e  pretextos  d'esbanjar  o  dinheiro 
do  paiz  em  bagatellas.  Toda  a  gente  esque- 


os  GATOS  5 

ceu  de  repente  as  agonias  próximas  e  ins- 
tantes, trocando  a  angustia  da  situação  ac- 
tual, desesperada,  pela  fascinação  da  festa 
que  ha-de  ser  essa  noite  de  julho,  relem- 
bradora  das  tantas  com  que  o  iheatro  de 
S.  Carlos  mais  d'uma  vêz  tem  engordado  as 
casas  de  penhores.  E  no  fim  de  contas, 
mesmo  sob  o  ponto  de  vista  da  musica,  que 
é  apezar  dos  seus  grandes  foros  d'arte  se- 
ria, um  passatempo,  qual  tem  sido  o  papel 
de  S.  Carlos  na  desinvolução  das  artes  na- 
cionaes  e  no  cultivo  religioso  da  emoção  ? 
Acaso  alguma  vez  se  viu  sob  a  influencia 
de  tantos  annos  de  subsidios  lyricos,  surgir 
entre  os  frequentadores  de  S.  Carlos  um 
gosto  fino,  um  critério  acústico  educado, 
uma  paixão  philosophica  e  forte  pela  obra 
genial  dos  grandes  mestres?  Em  cem  annos 
d'exercicio,  a  historia  das  paixões  musicaes 
que  S.  Carlos  tem  abrigado,  nunca  passou 
em  bôa  justiça  de  charivaris  sem  importân- 
cia, iniciados  pela  claque,  inspirados  pela 
sympathia  pessoal  d'um  cantor  pandego, 
pela  belleza  d'uma  prima-dona  algo  dengosa, 
ou  então  pelos  bilhetes  de  favor  do  empre- 
zario. 


6  OS  GATOS 

E  percorrer  em  noites  de  semana,  aht 
do  segundo  para  o  terceiro  aclo,  a  galeria 
e  disposição  dos  frequentadores  habituaes 
d'aquelle  templo.  A  única  emoção  palpitante 
está  no  gallinheiro,  logar  pobre,  esconso  e 
recôndito,  onde  algum  melomano  extático, 
d'olhos  fechados,  deixa  librar  a  phantasia 
a  sabor  da  inspiração  que  a  musica  es- 
pirala. D'ahi  para  baixo,  quanto  mais  se 
descer,  menos  se  encontra  ;  uma  ou  outra 
camará  escura  mental  repintando  aqui  e 
além  pedaços  melódicos,  em  coloridos  pes- 
soaes,  poetisados ;  alguma  prima-dona  de 
terceiro  andar,  inédita  e  furiosa,  fincando 
as  futuras  glorias  da  sua  estreia  sobre  os 
fiascos  dos  cantores  de  profissão,  e  o  resto 
admirações  e  extasis  sem  alma,  phrases  de 
cor  a  respeito  da  voz  d'uma,  do  phrasear 
d'outra,  da  nasalidade  do  barytono  e  da  es- 
cola melódica  do  maestro,  tudo  quanto  em- 
fim  os  Bedéckers  do  theatro  lyrico  aconse- 
lham para  na  bôa  roda  se  não  passar  por 
japonez.  Descendo  á  plateia,  só  visto . . . 
Nas  primeiras  filas  de  faiiteuih,  que  eram 
antigamente  os  logares  caros,  uma  caterva 
real  d'individuos  dedassés,  sem    domicilia 


os  GATOS  7 

moral,  ao  fanico  da  ceia  ou  do  emprego,  co- 
coties,  janotas  entretidos  por  níulheres,  ve- 
lhas sem  sexo,  jornalistas  sem  nexo,  e  an- 
tigos solteirões  sem  dentes  á  procura  d'um 
meio  de  distracção.  E'  d'aqui  que  partem 
os  movimentos  d'applauso  ou  de  protesto, 
os  artigos  criticos  d'escacha,  os  rapapés  ás 
deusas  e  os  bofetões  por  motivos  de  ciúme. 
Para  traz  é  massa  avulsa,  pés  frescos,  na- 
moristas:  os  que  ficam  da  esquerda,  namo- 
ram a  segunda  ordem  da  direita,  e  vice-ver- 
sa,  por  forma  que  para  estes  a  opera  é  sim- 
plesmente um  meio  de  distrahir  a  mamã  ou 
o  marido,  e  ter  quatro  olhos  piscanços  sem 
reparo  da  bella  sociedade. 

Tal  é  a  sala  que  musicalmente  dieta  em 
Portugal  as  leis  do  gosto,  intimida  os  can- 
tores, e  tem  pretenções  de  lá  tora  passar 
por  entendida.  Gomo  sob  o  ponto  de  vista 
do  utilitarismo  reinante  as  instituições  se 
apreciam  na  rasão  do  proveito  immediato 
ou  remoto  que  são  capazes  de  dar  aos  fun- 
dadores, perguntar-se-ha  que  benefícios  au- 
feriu a  musica  nacional  n'estes  cem  annos, 
com  os  enormes  dispêndios  que  o  theatro 
de  S.  Carlos  nos  custou.  Indo  aos  archivos 


8  OS  GATOS 

da  casa  e  historiando  summariamente  o 
successo  das  ultimas  operas  nacionaes  n'a- 
qaelle  palco,  apura-se  que  os  espectadores 
de  S.  Carlos,  escandalosamente  benévolos 
por  mais  d'uma  vez  com  operas  estrangei- 
ras de  nenhuma  valia,  se  lêem  mostrado  in- 
transigentes com  os  trabalhos  de  maestros 
porluguezes,  pateando  o  Eurico,  paleando 
o  Arco  de  SanfAnna,  pateando  o  Elixit  da 
Juventude,  di Der elita,  impedindo  a  represen- 
tação do  D.  Bibas,  recebendo  de  mau  hu- 
mor o  Frei  Luiz,  desdenhando  do  valor  da 
Dona  Branca^  e  finalmente  não  dando  o  me- 
nor signal  d'inleresse  quando  ha  poucos  mè- 
zes  S.  Carlos  deu  dois  pontapés  na  Irene 
d'Alfredo  Keil,  que  a  cidade  de  Turim  acaba 
de  consagrar  por  entre  ovações  calorosíssi- 
mas. E'  d'uma  pouca  vergonha  inqualificá- 
vel! Conviríamos  em  que  não  seja  d'aza- 
bumbar  o  mundo  o  movimento  musical  por- 
tuguez  dos  últimos  vinte  annos,  todo  elle  no 
estado  de  tentativa,  como  de  reslo  as  outras 
manifestações  seriaes  de  bellas-artes  ;  mas 
nem  a  creação  da  grande  opera  é  coiza  tão 
fácil  que  possa  estabelecer  o  precedente  de 
só  se  aturar  o  que  é  sublime,  nem  os  gran- 


os  GATOS  9 

dtís  compositores  abundam  no  mundo  já  fei- 
tos, por  forma  a  não  valer  a  penna  dar 
hausto  a  debutantes.  Em  qualquer  dos  ca- 
sos seria  a  platea  de  S.  Carlos  a  ullicna  a 
quem  de  direito  coubesse  o  pronunciar-se 
sobre  a  musica  nacional,  acerbamente ;  á 
uma  porque  tralando-se  duma  obra  porlu- 
gueza,  a  sua  obrigação  moral  fora  applau- 
dil-a;  á  outra  porque  dada  a  estupidez  col- 
iossal  de  que  essa  platea  ha  leito  praça, 
cumpria-lhe  antes,  em  caso  d'insuccesso, 
manter-se  em  espectativa,  que  não  afixar 
ruidosamente  opiniões  sobre  matérias  para 
que  não  tem  cartas  de  guia. 

Gehibrar  por  consequência  o  centenário 
diurna  casa  que  só  tem  dado  lucros  a  es- 
trangeiros, e  só  tem  servido  para  enlreienga 
de  ricos  e  vadios,  d'uma  casa  que  nos  custa 
mais  cara  que  uma  escola  e  a  quem  a  edu- 
cação geral  nada  deve  em  prol  do  bem  com- 
mum,  é  sobre  prova  de  snobismo  estulto  e 
caricato,  um  signa!  de  desnacionalisação 
para  juntar  aos  mais  que  temos  dado.  U 
centenário  de  S.  Carlos  ainda  valeria  como 
começo  de  regeneração,  se  essa  estapafúrdia 
festa  de  janotas  fosse  o  signal  d'uma  vida 


10  os  GATOS 

futura  mais  adentrada  aos  interesses  nacio- 
naes.  Temos  por  esse  mundo  uma  alluvião 
de  cantores  a  fazer  vida,  e  alguns  magnífi- 
cos, que  muito  conviria  installar  entre  nós, 
des'qne  S.  Carlos  fosse,  como  devera  ser,  o 
grande  templo  da  opera  portugueza.  Não 
digo  que  passássemos  toda  a  epocha  a  ou- 
vir o  António  d'Andrade,  o  Álvaro  Roquelte  e 
a  Júdice  da  Costa  a  gargantear  um  repor- 
tório exclusivo  d'Alfredos  Keils,  viscondes 
do  Arneiro,  Noronhas  e  Miguel-Angelos. 
Entanto  esmaltando  com  a  maioria  d'aquel- 
les  nomes  o  elenco  do  iheatro,  inscrevendo 
no  reportório  com  eíTectividade  as  operas 
mais  bellas,  já  assim  se  daria  corpo  a  um 
grupo  d'apticiões  abandonadas,  e  satisfação 
ao  patriótico  desalento  que  allega  que  de 
nenhum  tentamen  glorioso  somos  capazes. 


1  de  maio. 

Deram  os  jornaes  noticia  de  por  desgos- 
tos d'uma  opereta  da  Rua  dos  Condes,  ca- 
bida em  desagrado,  se  retirar  do  iheatro, 


os  GATOS  11 

Gervazio,  o  libretislít  hillare  que  Ião  bem 
recebido  íoi  em  Portalegre  aqui  ha  tempos. 
O  caso  foi  soado,  e  grande  numero  dos 
que  costumam  rir  das  embrulhadas  do 
grande  theatrista  correram  em  massa,  cho- 
rosos, a  lhe  pedir  sustasse  a  tétrica  am^^aça, 
e  não  fosse  para  Valle  de  Lobos  um  ho- 
mem que  se  por  um  lado  poucos  contactos 
tem  com  Herculano,  por  outro,  como  Rabe- 
cão Grande  só  hyperbolicamente  pode  equi- 
parar-se  aos  frescos  de  Pompeia. 

Não  vem  a  p^llo  explicar  o  interesse  in- 
tenso que  os  trabalhos  theatraes  de  Gerva- 
zio despertam  em  geral,  mas  sempre  direi 
que  ouvindo  as  folhas  rosnar  da  abalada  do 
escriplor  para  o  silencio,  com  grande  grila 
deplorei  também,  tão  dura  perda,  d'alli  pro- 
posilando  logo  ir  á  Rua  do  Passadiço  enlre- 
vistal-o.  Encontrei-o,  já  se  vê,  fecundo  e  fero, 
largamente  adiposo,  sentado  á  banca  com 
uma  careca  de  margrave,  e  repartindo  a  sua 
aclividade  entre  uma  opereta  nova  e  uma 
pescada  cosida  com  batatas.  Se  era  certo  en- 
tão não  escrever  mais  ?  Riu-se  á  Falslafl",  e 
com  aquelle  gaguejo  cheio  de  bonhomia,  es- 
pécie de  reticencia  rida  que  tão  bons  direitos 


12  OS  GATOS 

d'auclor  lhe  lem  valido,  concedeu-me  dizer 
que  sem  pescada  cosida,  viver  não  dava  a 
conla,  e  uma  vez  no  bandulho  a  pescada,  for- 
çoso era  resliluil-a...  em  peças  de  três  actos. 
Por  consequência,  sustada  a  tiragem  lillera- 
ria,  como  a  pescada  com  batatas  lhe  fosse  im- 
preterivelínenle  necessária  ao  temperamento, 
entoxicar-lhe-hiam  o  sangue  as  ptomaíuas 
theatraes  que  a  pescada  lhe  fazia  no  intes- 
tino, e  d'ahi  a  morte,  coisa  do  diabo  para 
um  vivedor  regalào  como  elle  estava. 

Apontando-rae  a  pescada  e  o  caderno 
novo  da  opereta:  —  hein?  se  não  eslava 
alli  patenteado  o  seu  processo  de  trabalho  ?... 
Por  uma  banda  mascava  a  pescada,  por  ou- 
tra banda  deitava  a  peça:  nada  de  peça 
sem  pescada,  nada  de  pescada  sem  peça... 
Em  conclusão,  não  se  retirava  do  thealro, 
porquanto  não  podendo  viver  sem  peixe  co- 
sido, não  produzir  theatro,  era  morrer. 

—  iVJas,  disse  eu,  se  está  averiguado  que 
essa  abundância  de  veia  cómica  provenha 
especificamente  do  peixe,  porque  não  subs- 
litue  V.  a  pescada  antes  por  algum  comes- 
livel  menos  hillareaceo? 

—  Já  experimentei  o  beef,  mas  é  peor. 


os  GATOS  13 

porque  aveia  cómica  subslilue-se  então  veia 
dramaiica. 

—  Realisa  v.  na  verdade  uma  forma  de 
talento  inexplicável,  o  talento  por  causa  das 
comidas.  .  .  Experimentou  já  alguma  vez 
por  acaso  comer  herva  ? 

—  Oh,  essa  quasi  que  não  tem  influen- 
cia sobre  a  qualidade  especial  das  minhas 
ideias,  e  se  adrego  a  manducal-a,  perco  para 
assim  dizer  a  personalidade  d'escriptor,  e 
nada  escrevo. 

—  O  caso  é  physiologico.  Absorpção  mais 
fácil,  quantidade  menor  de  reziduos  diges- 
tivos. Mas  derivando  d'assumpto,  que  obri- 
nha  nova  traz  propositada  hi  no  caderno  ? 

—  Uma  opereta  hillare  sobre  os  duellos. 

—  Que  o  assumpto  é  recente,  e  por  certo 
V.  despejará  no  libretto  copia  das  ptomainas 
laes  que  a  pescada  cosida  lhe  diz  faz.  Já  a 
tem  toda  ? 

—  Um  acto  apenas,  que  me  parece  des- 
tinado a  um  successo  incomparável.  Posso 
conlar-lh'o  a  correr,  se  lhe  dá  gosto. 

—  Fu  quasi  que  não  ousava  pedir  tanto. 

—  Em  cerla  rua  da  Baixa  dois  sapateiros 
teem  questões  por  causa  d'um  seu  collega 


14  OS  GATOS 

da  província.  Um  é  da  casa  real,  um  sapa- 
leirinho  videiro,  pondo  bandeira  nos  dias  de 
gala,  6  trabalhando  especialmente  em  forma 
torla.  Outro,  o  offendido,  é  uma  espécie  de 
sapateiro  associativo,  mui  democrático  — 
Ião  democrático  que  sendo  a  loja  d'elle  ahi 
para  o  pé  do  Carmo,  umas  vezes  por  outras 
não  se  importa  d'ir  ate  á  rua  dos  Mouros, 
d'avental. 

—  E  vae,  produzido  o  aggravo,  o  demo- 
crata manda  ao  aristocrata  testemunhas 

—  Duello  á  pistola,  tiros  pr'o  ar  a  vinte 
e  cinco  passos  de  distancia,  com  a  clausula 
feroz  do  combate  seguir  até  ficar  alguém  es- 
tendido morto. 

—  O  theatro  representa  pois,  estou  a  vêr, 
os  dois  sapateiros  no  campo  da  honra. 

—  Que  no  caso  subjeito  accumula  esta 
funcção  com  a  de  Campo  Pequeno.  Ora  o 
adversário  que  primeiro  chega,  abanca 
n'uma  tasca  a  petiscar  mal-a  companha.  Fal- 
iam da  pugna,  e  em  vozes  tão  altas  que  o 
taberneiro  tudo  percebe.  Vae,  como  o  taber- 
neiro é  ao  mesmo  tempo  aucloridade 

—  Belloj  Bello!  Lá  começa  o  enredo  a 
deitar  as  mãosinhas  de  fora. 


os  GATOS  15 

— tendo  já  visto  muitos  duellos 

desfechar  por  um  almoço  de  reconciliação  e 
pescadinhas,  em  vez  d'exercer  sobre  os  ad- 
versários a  sua  fiscalisação  impeditiva  e  pa- 
cifica de  regedor,  o  que  faz  é  ir  renovando 
o  rascante  das  canecas,  e  passar  lembrete 
aos  amigos  a  que  venham  depressa  vêr  a 
pantomima. 

—  E'  bem  achado. 

—  Ahi  chega  ao  campo  o  outro  adversá- 
rio, o  sapateiro  democrata,  e  quando  o 
que  petiscava  na  tasca  vae  a  pagar  a  conta 
ao  taberneiro,  esquece-se  de  lhe  gorgetear 
pinguemente  a  discrição,  o  que  esfuria  o  tra- 
tante, que  só  n'esse  momento  se  lembra  do 
seu  papel  de  regedor. 

—  Estou  a  ouvir  d'aqui  a  ária  do  taber- 
neiro escamadissimo,  detalhada  na  mu?ica 
do  Cyriaco 

—  Encontro  dos  duellistas,  que  se  saú- 
dam n'um  motivo  de  rabecões  muito  gro- 
tesco, e  coro  das  testemuhas,  occupadas  a 
medir  o  terreno  e  a  carregar  de  bala  os  ca- 
nos das  pistolas.  Quando  já  os  adversários 
postados  em  face,  averigua  Miguel  Slrogoff 
que  não  estão  sendo  observadas  com{)leta- 


Ib'  os  GATOS 

mente  as  praxes  do  duello.  O  sapateiro  aris- 
tocraladista  do  seu  rival  vinte e  cinco  passos, 
emquanto  este  se  distancia  d'aquelle,  vinte  e 
seis.  E  sabedor  das  regras  como  poucos, 
Miguel  SlrogotT 

—  Miguel  Slrogoff? 

—  Sim,  o  juiz  do  campo. 

—  Ah,  o  juiz  do  Campo  Pequeno. 

—  Qual  I  o  juiz  da  pugna,  o  que  manda, 
põe  e  dispõe  as  coisas  do  duello. 

—  Já  comprehendo.  E'  o  papel  do  baixo 
cómico. 

—  Entrementes  tem  carregado  as  pisto- 
las a  fidalga  d'Arronches. 

— -A  fidalga  d'ArronchesI...  Mas  para 
que  diabo  apparece  como  testemunha  do 
duello  essa  fidalga? 

—  Homem,  como  é  duello  d'um  sapateiro 
da  casa  real,  e  esta  creação  agradou  nas  mi- 
nhas outras  operetas O  peor  é  que  na 

Rua  dos  Condes  não  haverá  quem  faça  este 
papel.  Precisava  d'um  actor  que  como  figura 
correspondesse  a  isto:  uma  barriga  com  uma 
pennaatraz  da  orelha.  Você  conhece  algum  ? 

—  Não  lhe  fazendo  transtorno  que  a  bar- 
riga tenha  algum  cabello. 


os  GATOS  17 

—  Ora  a  fidalga  d'Arronches  que  como 
monarchica  de  gemina  nulre  pelo  sapateiro 
jacobino  um  o'dio  assolapado,  proposita  fa- 
zer marosca  na  carga  das  pistolas,  e  ás  es- 
condidas mete  uma  bala  de  miolo  de  pão  na 
destinada  á  barriga  do  seu  cliente,  ao  passo 
que  envenena  com  óleo  de  mamona  a  des- 
tinada a  fazer  espichar  o  adversário. 

—  iMuito  catita! 

—  Prestes  a  ferir-se  a  lucta,  entre  a  se- 
gunda e  a  terceira  palmada  do  juiz  do 
campo,  vê-se  uma  chusma  de  gente  arre- 
bentar detraz  de  um  muro,  e  romper  o  coro 

Sustem  por  Deus  as  sanhas  furibundas ! 

entrecortado  pelo  arioso 

Presos  estaes,  presos  estaes ! 
Olél  Olé! 

do  taberneiro  regedor,  vindo  a  calrafilar  os 
rivaes  em  desforço  da  gorgeta  recusada  na 
taberna. 

Immediatamente   coristas    e   comparsas 
enchem  a  scena  em  gnão  tumulto,  armados 
d'oculos,  seringas,  paus  de  vassoura  e  ou- 
9 


18  OS  GATOS 

Iros  apetrechos  guerreiros  de  presa  e  al- 
cance, e  todo  este  mundo  faz  cerco  aos 
duellistas,  incilando-os  com  qss...  qss..,  de 
grande  alacridade.  O  inesperado  porem  sobe 
de  ponto  quando  entre  repiques  de  sinos 
surge  o  prior  do  sitio,  todo  em  lalares  ves- 
tes, como  uma  branca  communhão  n'um  ta- 
lho, como  diria  o  Eugénio  de  Castro,  e  no 
meio  das  seringas  volvendo  respeitosas 
á  bainha,  espórtula  sua  predica  christã 
sobro  os  duellos,  citando  aos  duellistas 
como  exemplo  os  contendores  do  velha 
e  novo  Testamento  que  em  questões  pes- 
soacs  preferiram  antes  esmurrar-se  as 
focinheiras  do  que  lançar  màos  de  pisla- 
rólas  assassinas.  A  predica  parece  exercer 
grande  pressão  moral  sobre  os  sanhudos 
balalhistas,  que  saccam  dos  ranhosos  para 
enxugar  as  lagrimas  de  conversos,  e  entre- 
mentes que  o  coro  entoa  o 

Milagre  ó  céus,  milagre  è  este  que 


sobre  um  motivo  lento  dos  fagotes,  o  cura 
tem  coagido  com  citações  latinas  o  juiz  do 
ampo  ao  descarrego  das  armas  —  sobre  oc 


os    GATOS  19 

que,  reconhecida  a  aulhenlicidade  do  pão 
ázimo  no  miolo  das  balas,  vae  a  exigir  que 
cada  qual  dos  sapateiros,  em  lestemunho 
d'espirito  religioso,  commungue  a  que  lhe 
era  destinada.  Na  confusão  porem  as  balas 
Irocam-se,  indo  a  de  miolo  de  pão  parar  ás 
tripas  do  sapateiro  republicano,  e  estando  a 
d'oleo  de  mamona  eminenie  nos  dedos  do 
prior  sobre  a  lingua  estendida  do  sapateiro 
aristocrata.  E'  n'este  momento  que  a  fidalga 
d'Arronches  reconhecendo  o  dedo  de  Deus 
nas  consequências  nefandas  do  seu  crime, 
avança  em  grandes  gestos  de  Lucrécia  pela 
scena,  e  leonina  de  remorsos,  deila  aos  gor- 
gomillos  a  pilula  purgante,  arrancada  aos 
galtarros  do  prior. 

—  Que  maravilhosa  scena,  meu  Gervásio ! 
e  como  essa  pilula  de  ricino  é  o  mundo  so- 
bre que  se  equilibra,  tão  lúcido,  o  principio 
moral  do  bem  sempre  triumphaLite ! 

—  Esta  agonia  é  uma  passagem  seme- 
lhante á  de  Valentim  no  Fausto  de  Gounod  : 
coristas  de  redor  confeccionam  papas  de  li- 
nhaça, e  a  preghiera 

Pela  barriga  morro ,  ú  deus  dos  boticários ! 


20  OS  GATOS 

que  a  fidalga  diz  rasgando  o  falo,  fecha  os- 
tentosamente a  peça,  no  momento  em  que 
os  padrinhos  declaram  satisfeita  a  honra 
dos  clientes,  e  vem  uma  commissão  em 
nome  da  cidade  fehcilar  os  heroes  pela  co- 
ragem qne  mostraram  —  ouvindo  a  pre- 
dica do  prior  sem  no  correr. 

—  Lindo  trabalho,  esplendido  Gervásio. 
se  bem  que  como  satyra  ao  duello  algo  pi- 
cado d'exageros  que  são  profundas  injus- 
tiças. N'esle  libreto  pretende  você  mostrar 
que  os  desafios  polas  armas,  laes  como  en- 
tre nós  se  interpretam,  não  vão  além  d'ar- 
remedos  grotescos  tendendo  a  fazer  com  que 
os  adversários,  por  uma  viagem  d'ida  e  volla 
ao  chamado  campo  da  honra,  se  despensem 
realmente  de  desforçar  a  supradita  no  cha- 
mado campo  da  lambada.  Peço  para  refle- 
ctir um  pouco  na  calumnia  assacada  pela 
sua  obra  sobre  a  valentia  d'um  povo  que 
desde  as  cruzadas  vae  á  guerra.  Supponha 
que  o  duello  tal  como  vossa  mercê  o  enge- 
ringonsa,  em  vêz  de  ler  por  gladiadores,  dois 
sapateiros,  metia  antes  jornalistas.  Acredita 
que  houvesse  algum  capaz  d'enlregar  ques- 
tões de  pundonor  á  confidencia  d'ura  tas- 


os  GATOS  íl 

queiro,  e  de  consideral-as  liquidadas  pelo 
discurso  d'um  padre  e  dois  liros  de  pista- 
róla  para  o  ar  ? 
Gervásio  redarguiu : 

—  Essa  critica  provém  de  você  imaginar 
o  assumplo  do  meu  libreto  verosirnil,  coisa 
que  jamais  me  passou  pela  cabeça,  verdade, 
verdade.  A  minha  opereta  não  passa  d'uma 
charge,  porque  não  iia  meio  de  crer  que  sa- 
pateiros se  batam  como  eu  pinto,  quanto 
mais  transportar  o  caso  a  escrevinhadores 
cujo  papel,  supponho,  é  dirigir  a  opinião. 

—  Que  ? !  pois  a  arenga  do  prior,  a  pen- 
dência de  honra  epilogando  com  uma  salva 
para  as  nuvens,  os  cumprimentos  da  com- 
missão  e  as  aclas  dos  padrinhos  refazendo 
uma  consciência  nova  aos  pislolistas,  é  tudo 
brincadeira,  charge,  pura  invenção  jocosa 
do  seu  caco  ?  Nada  d'isso  se  deu  por  Lis- 
boa, em  tempo  algum? 

—  Absolutamente  nada,  pois  mais  que 
ninguém,  amigo,  persuadido  estou  da  per- 
feita seriedade  do  duello  entre  homens  de 
jornal.  Ainda  ha  pouco  tempo  um  houve, 
sobejamente  grave  pelas  circumstancias  de 
ferocidade  em  que  foi  feito.  E  se  nenhum 


22  OS  GATOS 

dos  combatentes  feneceu,  é  que  ao  menino 
e  ao  borracho 

—  Muito  me  praz  de  lhe  ouvir  trovar  Ião 
justa  homagem.  Pode  ser  que  a  pescada  co- 
sida exagere  a  entrite  cómica  ao  meu  escri- 
ptor,  mas  acquiesçamos  em  que  lhe  edulcóra 
também  divinamente  as  lealdades  dalma  e 
coração. 

—  Em  bôa  bora  o  digal 

—  Por  consequência  não  sendo  a  sua 
peça,  como  diz,  mais  do  que  uma  pyrote- 
chnia  hillare  d'espirilo  inventivo,  não  me 
poderia  você  fazer  cerla  modificaçãosinha 
no  final  ? 

—  An? 

—  Não  poderia  fazer,  por  exemplo,  com 
que  a  fidalga  d'Arronches  depois  dos  arran- 
cos da  pilula  começasse  a  fazer,  um  depoi- 
mento sobre  o  empréstimo  de  D.  Miguel  ? 


25  de  maio. 

A  pretexto  de  certa  cacetada  esgrimitia 
por  um  faia  á  cabeça  d'um  guarda  campes- 


os    GATOS  23 

tre,  acaba  a  administração  da  casa  real  de 
prohibir  as  visitas  á  tapada  d'Ajuda,  salvo 
nas  quintas  feiras,  em  que  está  publica,  pa- 
rece que  por  ser  dia  feriado  entre  os  cace- 
tes homicidas.  Ignoro  porque  motivos  se 
veda  ao  publico  uma  propriedade  que  alem 
de  ser  do  Estado,  isto  é,  de  todos,  pouco  ou 
nada  contem  dentro  dos  muros  que  possa 
ser  deteriorado  pela  visita  livre  do  passante. 
O  antigo  palácio  da  exposição  agricola,  em 
vidro  e  ferro,  ires  pavilhões  ligados  por  uma 
espécie  de  galeria  em  meia  lua,  ficou  depuis 
da  exposição  fechado  e  entregue  ao  mais 
criminoso  e  estúpido  abandono,  não  se  lhe 
reparando  os  desastres  da  invernia,  deixan- 
do quebrarem-se-lhe  os  vidros,  cair  a  ardó- 
sia dos  telhados,  e  só  ha  pouco  recambian- 
do-se  para  lá  um  certo  museu  agricola,  que 
no  palácio  do  conde  d'Almada  dava  bem 
triste  ideia  da  portugueza  agricultura.  Dos 
barracões  e  hangares  que  conslituiam  os 
annexos  da  exposição,  e  custaram  caríssimos, 
ninguém  mais  tratou  nem  quiz  saber.  Foram 
totalmente  destruidos  os  jardins  que  alcati- 
favam o  montículo  sobre  que  se  erguia  o  pa- 
lácio central  da  exposição.  Grande  parte  das 


24  OS    GATOS 

maltas  plantadas  por  esse  tempo,  com  ar- 
vores de  luxo,  fracliferas  e  de  sombra,  co- 
mo ninguém  mais  as  tratou,  seccaram-seoii 
foram  degenerando  em  rachilicas  e  cor- 
cundas. 

Finalmente  aquelle  recinto  que  na  sua 
parte  accidentada  e  florestal  poderia  tor- 
nar-se,  com  dispêndio  pequeno,  n'um  es- 
plendido parque  a  dez  minutos  de  Lisboa, 
mesmo  sem  sacrificio  das  terras  d'onde  a 
casa  real  colhe  a  cevada  e  a  fava  que  ha  mis- 
ter para  seu  uso,  aquelle  recinto  pelo  aban- 
dono e  o  desleixo  asselvajou-se,  de  sorte  quo 
não  houve  meio  d'aproveilar  a  recreio  publica 
as  profusas  dezenas  de  contos  alli  gastas 
por  occasião  do  certa men  agricola.  Ora  as 
sollicitudes  e  disvellos  que  todas  estas  coi- 
sas não  lograram  captar  da  administração 
da  casa  real,  emquânto  fora  mister  olhar 
por  ellas  seriamente,  acaba  de  mereccl-as 
uma  réics,  insignificante  e  daninha  crea- 
ção  de  coelhos  bravos,  com  sede  na  região 
montanhosa  da  propriedade,  e  que  S.  M. 
cubica  desenvolver  para  seus  gozos  de  ca- 
çador commodisla,  á  custa  dos  prazeres  bu- 
cólicos do  pubhco,  que  já  se  ia  afazendo  a 


os    GATOS  25 

ver  na  Tapada  a  mais  deliciosa  eslanciade 
melancholia  e  flirlação. 

Ignoro  a  qualidade  dos  Iranslornos  que 
a  vedação  d'aquelle  passeio  silencioso  cause 
ao  povo.  mas  não  me  esquecerei  de  dizer 
a  inconsolável  viuvez  queelleintromeltenas 
minhas  ruminações  mentaes  darligoleiro. 
De  lodos  os  jardins  e  parques  públicos  de 
Lisboa,  nenhum  como  alapada  lem  estado 
moral  jusiaponente  ao  meu  caracter.  Enor- 
me, deserto  quasi,  cheio  d'escaninhos  de 
sombra  e  pellucias  de  ceara,  olivaes,  moitas 
d'ulmeiro  e  pitospóro,  madresilvas,  favaes, 
selvas  d'aroeira  e  arbustos  de  charneca, 
aquelle  immenso  cercado  a  dez  minutos  do 
centro  de  Lisboa,  era  o  meu  jardim  das  oli- 
veiras, o  deserto  nostálgico  onde,  três  vezes 
negado  pelo  publico,  antes  de  cantar  o  Pi- 
na, eu  ia  prosternar-me  ao  Deus  dos  my- 
santropos,  a  lhe  pedir  desviasse  de  mim  o 
cálix  onde  no  vinho  rutilo  da  vida  tinham 
calíido  moscas  como  o  José  Luciano  e  o 
Hintze  fiibeiro.  Quantos  milhares  de  ma- 
nhãs e  tardes,  emboscado  nas  moitas,  á 
borda  das  rigueiras,  de  bruços  sobre  a  her- 
va,  eu  não  li  e  reli  livros  amados,  emquanto 


26  OS    GATOS 

OS  pardaes  grazinavam  «quem  será  este 
maduro  ?», —  o  rio  espraiando  a  sua  aguada 
immaterial  lé  ao  Bugio,  e  a  massa  da  Ajuda, 
com  a  torre  de  gallo  dando  quartos,  os  ca- 
saes  de  Montes  Claros,  os  moinhos  e  os  ou- 
teiros riscados  de  courellas,  pondo  no  fundo 
da  vislaróla,  cantante,  uma  nota  de  castello 
solar  em  burgo  lavrador.  O  solitário  que 
vindo  do  coração  da  cidade  com  a  ca- 
beça azoada  do  marulhar  da  vida  lisboeta 
logre  peràer-se  nos  concentrados  silêncios 
da  Tapada,  e  topar  alnm  com  ulgum  d'a- 
quelles  nichos  de  socego,  á  beira  (l'um  lago, 
na  meia  laranja  do  observatório,  na  escada- 
ria do  palácio  da  exposição,  ou  mais  sobran- 
ceiro ainda,  trepando  a  escarpa  por  detraz 
das  conslrucções,  certo  não  pode  furlar-se 
á  gratidão  do  Creador  ter  feito  a  natureza 
Ião  bonita,  e  ao  borboleteante  amor  com 
que  Lisboa  fanatisa  plumitivos  «desequili- 
brados» a  quem  ella  dá  de  comer  o  pão  dos 
cães  e  o  caldo  negro  do....  Amorim.  Que 
projecto  de  livros,  artigos,  phantasias,  eu 
não  tenho  curtido  por  aquelles  recantos  bons 
familiares,  com  o  caderno  de  notas  entre 
os  dedos,  o  cérebro  longe,  no  erratismo  li- 


os  GATOS  27 

vre  d'uma  ave  superior  buscando  os  cimos ! 
Poucos  passeios  de  Lisboa  lerão  como  este, 
ambiente  de  mais  litilante  e  fidalga  sug- 
gestão,  longe  de  parialos,  litleratos,  syndi- 
catos  e  feijões  carrapatos,  ares  de  raelan- 
cholia  mais  nobre,  virtuosidades  de  tom 
mais  pitorescas. 

JNa  primavera,  agora,  certos  dos  seus  si- 
tios  selvagens  são  verdadeiros  bosques  de 
m^adresilvas  onde  teera  conservatório  os  rou- 
xinoes.  Rouxinoes  mysantropos,  ronxinoes 
orgulhosos,  que  não  cantam  em  ouvindo 
passar  gente  na  estrada.  Para  escutal-os  é 
necessário  ser  amigo  velho,  ir  devagarinho, 
pé  cá,  pé  lá,  para  lhes  não  assustar  os  filhos 
na  escola  de  solfejo,  de  sorte  que  elles  te- 
nham as  mais  exhuberantes  provas  do  mimo 
com  que  desejam  ser  tratados.  Posto  fora 
d'estelogradoiro  esquecido  da  grossa  massa 
dos  passeadores  que  costumam  prostituir 
com  a  sua  banalidade  os  silios  poéticos,  re- 
legado pelos  egoismos  da  realeza  ciumenta 
das  crias  de  coelhos,  para  os  passeios  da 
Lisboa  central  onde  não  ha  meio  de  psycho- 
logisar  uma  theoria  artistica  sem  ter  a  as- 
phixial-a  logo  a  cara  de  manjar  branco  do 


28  OS  GATOS 

Carlinhos  Valbom,  venho  perante  a  admi- 
nis  Iração  da  casa  real,  como  Diógenes^  recla- 
ma r  o  sol  que  um  principe  mo  tira,  sob  pre- 
textos de  caça,  sabendo  talvez  que  eu  nada 
mais  possuo  que  eile  me  possa  confiscar. 
S.M.lem  outros  sitios  mais  próprios  e  me- 
lhores do  que  a  Tapada  onde  estabelecer  o 
quartel  general  das  suas  hecatombes.  Tem 
por  exemplo  a  cabelleira  do  nobre  conde 
de  Valtnças,  tem  o  recinto  Magalhães  Lima, 
tem  Moçambique,  tem  os  artigos  políticos 
do  Melicio,  tem  os  livros  do  Luciano  e  tem 
o  grémio  artístico.  Não  ponha  pois  os  caça- 
dores de  borboletas  litterarias  na  contingên- 
cia de  deverem  as  suas  innccentes  ílirla- 
ções  a  bilhetes  de  favor.  Feche-lhes  o  par- 
lamento embora,  escorrace-os  da  Academia^ 
ponha  baionetas  caladas  nos  empregos  que 
elles  alguma  vez  pretendam  em  detrimento 
dos  que  desbarretam  perante  os  quatro  bu- 
cefalos  que  na  Avenida  teem  a  honra  de  o 
puxar.  Eu  cá  por  mim  não  me  importo! 
Mas  quanto  á  Tapada,  cuidado !  que  eu  sou 
muito  bom,  mas  quando  me  tocam  nos  meus 
interesses,  não  é  o  primeiro  que  empandeiro 
para  o  exilio.  Realmente  não  ha  nada  inte- 


os  GATOS  2& 

ressante  em  Portugal  que  não  seja  prohi- 
bido.  Alé  para  vender  sapatos  velhos  na 
feira  da  ladra  é  preciso  licença  especial. 
Recantosinho  piloresco  por  quem  o  foras- 
teiro bohemio  se  enamore,  vem  logo  quem 
quer  que  seja  dizer  que  não  pode  estar,  que 
é  prohibido  —  e  toca  de  pôr  uma  grade  com 
um  soldado  da  guarda  municipal.  O  admi- 
rável parque  da  Pena,  adquirido  pelo  Es- 
tado para  passeio  publico  dos  que  villegiam 
por  Cintra,  terra  onde  tudo  quanto  é  bom 
está  fechado  a  sete  chaves,  foi  açambarcado 
logo  pela  realeza  regalona  que  o  foi  vedando 
senão  em  todos,  pelo  menos  em  grande 
parle  dos  seus  alcandores  e  dependências. 
A  tapada  das  Necessidades,  fechada.  O  rei 
não  quer!  Os  jardins  de  Belém,  fechados. 
O  rei  não  dá  licença !  Fechada  a  tapada 
da  Ajuda.  O  rei  não  tem  coelhos.  Ora  não 
ha  maior  pouca  vergonha !  Por  este  cami- 
nho ainda  são  capazes  de  fechar  a  cabeça 
do  Sérgio  sob  pretexto  de  S.  M.  querer  fa- 
zer lá  dentro  um  viveiro  d'ideias  p'ra  seu 
uso. 


30  OS  GATOS 

30  de  maio. 

S.  M.  a  rainha,  depois  do  que  o  Maneio 
diz  sobre  os  seus  afagos  aos  boisinhos  deve 
desfazer  se  da  ferradura  apanhada  em  Ven- 
das Novas,  e  pregar-lh'a  ao  pescoço,  dnndo 
assim  preito  ás  lambiçocas  do  chronisla  das 
suas  caricatas  sensibleries.Q[\e\rii  o  leitor  exa- 
minar as  velhacarias  do  periodo  que  trasla- 
do, a  vêr  S8  n'outro  paiz  não  era  elle  summu- 
la  para  escadeirar  o  artista  com  meia  dúzia 
de  fretes  de  changuiço.  «A  rainha  saindo  do 
templo  encaminhou-se  para  junto  das  car- 
retas, e  o  mais  desprelenciosamente  possivel 
começou  acariciando  os  bois.  Um  murmúrio 
d'admiração  correu  por  lodo  o  largo  comple- 
tamente apinhado  de  povo,  um  frisson  d'en- 
ihusiasmo  agitou  lodos  aquelles  corações... » 

Admiração  ?  Enthusiasmo?  O  Marrelinho 
venha  á  barra  explicar-se,  quando  não,  não 
abiscoita  a  ferradura  de  mérito  agricola. 
Porque  emíim,  dada  essa  coisa  trivial  que 
é  um  afago  a  um  boi,  se  realmente  os  de 
S.  M.  alvoroçaram  o  povo  alemtejano,  certo 
o  alvoroço  não  proviria  da  caricia,  mas  do 
sitio;  quanto  ao  frisson  d'enthusiasmo,  ej-ijue- 


os  GATOS  31 

ce-se  o  estafermo  de  que  ha  uma  cornadura 
nas  armas  da  cidade.  Foi  por  consequência 
inconveniente  duas  vezes,  inconveniente, 
insolente,  archi-indecenle —  em  recordar  á 
princeza  equivocos  ingénuos,  e  em  recordar 
aos  maridos  coisas  tristes.  Segue  o  [)ateta, 
«ai  a  nossa  rainha  que  não  lem  vergonha  de 
fazer  festas  aos  boisinhos  1  dizia  do  nosso 
lado  uma  rapariga  do  povo  para  um  velho 
que  tentava  occultar  umas  lagrimas  que  lhe 
corriam  pelas  faces,  servindo-se-lhe  das  ru- 
gas, coms  de  rails,  para  mais  íacilmenle 
deslizarem.  .  .  »  Lagrimas  deslisando  pelos 
rails  das  rugas.  Que  imagem  ferro-viaria  tão 
catita !  Mais  não  diz  se  ao  chegarem  á  es- 
tação do  Irazeiro,  houve  foguetes. 

A  dar  credito  aos  madrigaes  com  que  elle 
bispolea  á  Luiz  XV,  as  magestades,  o  povo 
do  Alemtejo  seria  uma  espécie  de  bicho  do 
malto  prestes  a  desatar-se  em  pranto  de 
cada  vez  que  lhe  passa  á  porta  um  estran- 
geiro. Ora  a  verdade  é  que  os  alemtejanos 
nunca  choram,  pelo  menos  por  motivos  in- 
diíferenles,  e  que  a  visita  dos  reis  em  nada 
lhes  poderia  espremer  ao  canto  do  luzio  a 
glândula  da  ternura,  sabido  na  provincia 


22  OS  GATOS 

que  quando  as  mageslades  viajam,  os  im- 
postos augmentam  —  ou  apparece  algum 
novo  mal  ás  planiações. 

«S.  M.  a  rainha,  fallando  comigo  ha 
pouco,  disse:  creio  que  a  minha  visita  a 
Beja  é  um  dos  casos  mais  felizes  da  minha 
vida.»  E'  a  phrase  da  Covilhã,  voltada  na 
costureira,  e  servindo  nos  batuques  bejenses 
como  nova.  Marreto,  como  todos  os  chronis- 
las  parvos,  presta  aos  seus  panegyrisados  a 
fajardiceda  sua  própria  idiotia.  Não  ha  meio 
de  se  sahir  esculptural  da  proza  esconsa  de 
taes  taii-bilatis.  S.  M  se  não  diligenciar 
precalar-se  das  entrevistas  dos  reporters  af- 
fectos  á  monarchia,  deniro  de  pouco,  sem  o 
sentir,  terá  ganho  uma  reputação  d'infancia 
cerebral  Que  será  o  successo  cómico  das  suas 
vellegialuras  á  pro^^incia.  Em  verdade  <{ue 
isto  nos  peza  summamente,  porque  com  a 
sua  formozura  e  a  sua  bondade,  a  illusire 
princeza  poderia  crear-se  na  admiração  do 
povo  um  verdadeiro  typo  de  rainha,  se  pro- 
positasse  emfim  ter  um  ar  mais  de  palácio, 
apanhando  menos  ferraduras  pela  rua,  afa- 
gando menos  boisinhos  pelas  praças,  e  di- 
zendo pelos  salões  menos  ingenuidades. 


FIALHO  D'ALMEIDA 


OS  C3JLTOS 

INQUÉRITO  Á  VIDA  PORTDGDEZA 


A  morle  de  Silva  Porto  trouxe  ao  enter- 
necimento artístico  dos  que  amaram  a  obra 
e  o  homem,  a  ideia,  tradiccional  aliaz,  de 
se  lhe  fixar  n'um  monumento  a  gloria  cân- 
dida. Alvitres  d'uns  e  d'outros  precisando 
o  projecto,  opinaram  logo  desde  colocar-se- 
Ihe  a  estatua  ao  centro  d'uma  praça,  té  re- 
duzir-lhe  as  proporções  d'immortahdade  a 
um  simples  busto  sobreposto  a  uma  espécie 
de  bloco  de  granito.  Vou  dizer  o  que  me  pa- 
rece sobre  o  caso,  suppondo  que  todos  co- 
nhecem a  posição  de  Silva  Porto  na  pintura 
porlugueza,  e  a  justiça  que  seja  fazel-o  lem- 
brado ás  gerações  d'emocionaes.  O  estudo 
da  sua  pintura,  computado  pouco  mais  ou 


2  OS  GATOS 

menos  em  quatrocentos  ou  quinhentos  qua- 
dros, pela  maior  parte  de  pequenas  dimen- 
sões, reservo-o  para  quando  discípulos  e 
adoradores  levarem  a  feito  a  exposição  da 
obra  completa,  porque  só  ahi  veremos  em 
toda  a  lucidez  o  corpo  esthetico  que  a  arte 
de  Silva  Porto  formava  no  seu  espirito,  e  a 
luminosa  historia  do  seu  sonho  da  paysagem, 
tão  organicamente  ligado  ao  feitio  physico 
e  á  discreta  penumÍDra  em  que  o  artista 
sempre  respirou.  O  que  fragmentariamente 
se  poderia  alvitrar  sobre  a  natureza  moral 
nas  suas  relações  com  os  productos  da  pal- 
leta,  já  por  varias  vezes  o  escrevi  n'este 
pamphleto  com  a  sinceridade  e  o  ardor  de 
quem  desejaria  vel-o  ascender  depressa  aos 
cimos,  e  a  impaciência  de  quem,  sondando 
o  curto  fôlego  da  vida,  receava  não  ver  ex- 
ceder-se  ao  sublime  essa  admirável  virgin- 
dade de  melanchohco  pantheísta. 

Está  claro  que  dada  a  physionomia  ar- 
tistica  de  Porto  e  a  qualidade  especial  da  sua 
obra,  não  são  ellas  d'estatura  a  atravancar  c' 
um  bronze  a  praça  publica,  mesmo  nos  casos 
da  mais  incondicional  admiração:  primeiro 
porque  o  publico  não  poderia  nunca  admi- 


os  GATOS  3 

ral-o  como  estatura  dominante  na  vidacivica 
do  paiz,  onde  tantas  grandes  ligaras  aguary 
dam  que  a  divida  de  homenagem  lhes  seja 
paga:  segundo  porque  realmente  se  não  com- 
padeçam com  o  penetrante  perfume  minúscu- 
lo da  obra,  dum  caracter  tão  intimo,  tão  para 
poucos,  os  ambientes  largos,  frios,  demo- 
cráticos e  banaes,  por  onde  carroça  a  vida 
pratica  e  tumultuaria  da  multidão.  O  monu- 
mento tem  de  ser  pois,  não  uma  estatua  colos- 
so, á  altura  dos  segundos  andares,  mas  um 
busto,  collocado  não  n'um  centro  de  largo, 
mas  n'um  macisso  de  flores  formando  sqnare, 
ou  num^  pelouse  orvalhada  de  jardim.  Algu- 
ma coisa  de  mimo,  cinzelada  pelos  amigos, 
collaborada  por  todos  os  discípulos,  peque- 
nina, graciosa,  á  altura  dos  beijos  e  dos 
ramos.,  tocada  como  uma  jóia  e  deante  de 
quem  toda  a  gente  pare  e  se  enterneça. 
Porque  os  monumentos  grandes  não  são 
para  a  adoração,  mas  para  o  respeito  ou 
para  o  enfado.  Gomprehende-se  que  a  es- 
tatua d'um  rei  esteja  alta,  porque  ninguém 
necessita  olhar  para  ella.  Mas  a  efígie  d'um 
artista  como  Silva  Porto,  que  legislou  não 
sobre  oppressões  mas  sobre  estados  dalma, 


4  OS  GATOS 

a  bôa  Ironte  cândida  desse  commentador 
amoravel  da  nossa  vida  rústica,  tão  nublada 
de  compassivas  misericórdias  pelas  simples 
coizas  da  aldeia  e  da  boiada,  essa  deve~nos 
estar  perto  da  mão  porque  lhe  enxuguemos 
o  suor  agonico  do  olvido,  perto  da  bocca 
porque  lhe  beijemos  a  bocca  pura  d'evan- 
gelista  extático  no  bello,  perto  dos  olhos  por- 
que todos  os  dias,  na  íianagem  da  tarde,  ao 
fim  da  hda,  possamos  ir  vêl-a  e  dizer-lhe 
t  adeus,  querido  mestre!»  Como  Silva  Porto 
nunca  foi  popular  e  deve  sel-o,  pois  os  pínca- 
ros da  intelhgencia  humana  em  todo  o  mundo 
estão  actualmente  na  arte  e  na  sciencia  —  a 
pohtica  deixando  de  ser  um  pináculo  para  se 
tornar  n'uma  caverna  —  não  só  a  qualidade 
do  monumento  será  factor  de  propaganda, 
como  também  o  local  onde  o  erigirem.  Por 
exemplo  no  largo  da  Bibliotheca,  acho  ab- 
surdo: primeiro  porque  esse  largo  seja  na 
vida  de  Lisboa,  um  arrabalde:  segundo  por- 
que elle  de  modo  nenhum  defronte  com  a 
frontaria  ou  portada  da  Escola  onde  Silva 
Porto  professou.  A  Escola  das  Bellas  Artes 
não  tem  por  emquanto  frontaria,  nem  tão 
pouco  entrada,  por  emquanto.  Não  existe 


(JS  GATOS  5 

como  edifício.  E'  um  cazarão  provisório 
que  á  Academia  emprestou  a  Bibliotheca. 
Em  poucos  armos  ver-se-ha  forçada  a  de- 
sabelhar  d'esse  cacifro,  e  n'esse  dia  em  que 
desprezivo  abandono  íicaria  coUocado  o 
pobre  Silva  Porto  t    .  . 

Já  n'outro  sitio,  (aliando  do  gosto  desas- 
trado com  que  a  merceeirice  oílicial  ia  lan- 
çando as  bases  monumentaes  da  Lisboa 
nova,  tive  occasião  d'alludir  ao  ridiculo  es- 
tylo  das  estatuas  e  á  barafunda  grotesca  com 
que  as  «commissões  organisadoras  de  mo- 
numentos» installavam  estes  no  primeiro 
saguão  disponível,  sem  o  menor  respeito  pe- 
la magestade  immortal  dos  seus  heroes. 
N'este  momento  Lisboa  tem  apenas  dois 
sitios  que  transformar  em  g;aleria  de  mortos 
celebres;  tem  o  Aterro  para  estatuas  de  na- 
vegadores e  grandes  capitães,  e  tem  a  Ave- 
nida para  as  estatuas  dos  modernos.  «Quan- 
do se  fallou  em  levantar  a  Luiz  de  Camões 
o  bronze  que  todos  conhecemos,  escrevi  eu 
ba  (inço  annos,  não  sei  onde,  e  se  esco- 
lheu para  este  auto-de-fé  a  angulosa  e  ar- 
chi-torta  praça  do  Loreto,  uma  obscura  voz 
que  nenímm  dos  proeminentes  quiz  ouvir 


6  <>S  (MTOS 

lembrou  que  o  monumento  do  poeta  devera 
inaugurar  entre  nós  um  luminoso  cyclo  de 
justiça,  atravez  do  qual  iriamos  pagando, 
pela  consagração  publica  do  mármore  e  do 
bronze,  a  grande  divida  da  gratidão  portu- 
gucza  a  todos  os  titans  e  semi-deuses 
immortalisados  nas  estancias  das  Liiziadas. 
O  local  mais  adquado  á  exhibição  d'essa 
galeria  vastissima  de  heroes  e  grandes  gé- 
nios —  a  começar  por  (jamões  e  a  acabar  no 
infante  D.  Henrique  —  era  o  Aterro,  e  cum- 
pria crear  um  typo  de  pedestal  e  de  ta- 
manho d'estatua  que  bem  dissessem  na  fa- 
cha de  terra  conquistada  ao  rio,  entre  as 
arvores  das  alamedas  e  taboleiros  de  relva 
sempre  verde,  em  termos  do  estrangeiro 
entrando  o  Tejo  ser  recebido  na  margem 
por  aquella  guarda  de  honra  de  navegadores 
e  de  poetas,  matliematicos,  chronistas,  guer- 
reiros, descobridores  e  grandes  capitães  que 
fazem  o  mundo  heróico  do  poema,  e  são  o 
orgulho  da  nossa  historia,  e  por  ventura  já 
hoje  a  razão  de  ser  da  nossa  autonomia. »  Não 
supponha  algum  parvo  que  isto  fosse  decre- 
tar de  chapelada  monumentos  para  todos 
quantos  desde  o  século  X  í  V  até  ao  X  V  í  I 


os  GATOS  7 

estão  á  espera  d'elle.  O  rnunicipio  faria, 
cl'accordo  com  as  sociedades  sabias  uma 
espécie  de  resenlia  chronologica  de  todos 
os  vultos  dignos  de  homenagem,  marcando 
local  para  a  estatua  de  cada,  sobre  a^pelou- 
se  dalameda  ou  jardim  tomada  ao  rio,  isto 
no  percurso  kilometrico  que  vae  da  quazi 
embocadura  do  Tejo,  nas  alturas  d' Algés 
ou  pouco  mais,  até  ao  topo  opposto  da  ci- 
dade, ahi  por  Santa  Apolónia,  onde  termi- 
nam com  as  obras  do  porto  os  grandes 
aterros  destinados  á  avenida  marginal.  Pou- 
co a  pouco  então  o  culto  mais  ou  menos 
fervido  das  commissões  patrióticas  iria  er- 
guendo, segundo  as  preferencias  e  os  teres, 
o  monumento  ao  seu  descobridor  ou  aven- 
tureiro favorito,  em  sitio  d'antemão  marca- 
do na  grande  fileira,  e  assim  ao  cabo  d'an- 
nos,  completa  a  galeria,  o  espectáculo  seria 
quanto  pode  ser  de  feérico  e  magnifico — qual 
na  frente  do  histórico  rio  que  viu  tantas 
grandezas,  erecta  em  bronze  a  plêiade  das 
figuras  colossaes  que  as  emprehenderam, 
contando  no  oiro  das  inscripções  o  passado 
d'um  povo  sem  competidor  na  historia  ma- 
ritima  do  universo! 


8  OS  (íaTOS 

Da  mesma  forma  opino  que  a  Avenida 
seja,  sob  o  ponto  de  vista  de  monumentos, 
exclusivamente  uma  galeria  de  modernos. 
Fallo  d'artistas,  sábios,  literatos,  phylantro- 
pos,  e  expulsaria  os  três  ou  quatro  politi- 
castros  com  que  alguns  querem  já  poUucio- 
nar  aquelle  sitio.  Lisboa  começa  a  ter  por 
demais  estatuas  politicas,  e  infamante  seria 
que  ella  tolerasse  a  par  de  devassarrões  an- 
tigos,  como  o  sr.  D.  José  I  e  o  sr.  D.  Pedro 
IV,  pantomimeiros  somenos,  ma\s  modernos, 
como  o  sr.  Saldanha  e  o  sr.  Fontes,  lem- 
brando ás  eras  as  deploráveis  fontes  de  cor- 
ruptella  que  a  sua  vara  fez  manar  d'onde 
tocou.  Herculano,  Garret,  o  grande  Camillo, 
Anthero  do  Quental,  Soares  dos  Reis,  Ce- 
zario  Verde,  Annunciação,  Silva  Porto  ser- 
tanejo e  Silva  Porto  paysagista,  o  chimico 
Aguiar,  António  Pedro,  Manuela  Rey,  Roza 
pae,  etc,  toda  a  constellação  esplendida  de 
nomes  que  fixaram  na  moderna  civilisação 
porlugueza  um  ponto  d'avanço,  escalando 
á  gloria  n'um  século  onde  o  principio  de 
conducta  é  escalar  ao  syndicato,  todos  es- 
ses leriam  nos  rei  voes  floridos  da  Avenida, 
aos  dois  lados,  por  entre  palmeiras  e  plan- 


os  GATOS  9 

tas  decorativas,  galeria  larguissima  onde  en- 
fileirar seus  vultos  luminosos:  o  typo  doestas 
consagrações  tomando  formas  originaes, 
caracteres  impecáveis  d'obra  prima,  bustos 
veliementes  em  pequenos  sócios  decorados, 
estatuas  em  pcdesíaes  mui  baixos,  reprodu- 
zindo esses  homens  n*alguma  das  attitudes 
familiares  ou  movimentos  decisivos  da  exis- 
tência. Monumentos  pequenos,  creados  se- 
gundo um  tvpo  de  serie  que  tornasse  harmo- 
niosíssimas as  perspectivas  do  conjuncto. 
Porque  o  monumento  grande  vê-se  mais  pelos 
caracteres  d 'ostentação,  que  pela  ideia;  dis- 
pendioso e  de  realisação  diííicil,  é  um  obs- 
táculo á  multiplicação  d'estas  homenagens, 
isto  a  par  de  perder  pelas  proporções  am- 
phticadas  o  seu  caracter  humano  e  fallante, 
e  se  tornar  emfim  n'um  trambollio  atravan- 
cando a  cidade  para  embasbacação  do 
forasteiro. 


O  commissario  de  policia  expediu  ha  dias 
para  a  fronteira  um  tal  De  Bassini,  que  no 


10  05  GATOS 

dizer  das  entrelinhas  d  uma  noticia  sensa- 
cional das  Novidades  se  propunha  escrever 
em  Lisboa  as  memorias  de  Jacques  Casa- 
nova, sob  pretexto  de  lições  de  canto  ás  se- 
nhoras da  alta  sociedade. 

Esse  De  Bassini  era  ainda  aqui  ha  cinco 
annos  um  tenor  de  meia  sorte,  e  aconte- 
ceu-lhe  calhar  no  D.  José  da  Cármen  com 
um  successo  de  brilho  que  por  Lisboa  lhe 
valeu  notoriedade.  Tendo  perdido  a  voz,  vi- 
via actualmente  de  três  notas  que  lhe  fica- 
ram para  papeis  de  recados,  apenas  lhe 
rendendo  o  preciso  para  se  não  dizer  vives- 
se d'outra  coisa.  Nos  seus  bilhetes  de  visita 
de  Paris,  os  que  corriam  mundo  pelos  en- 
tresols  onde  Pransini  macheava  antes  d'el- 
le  as  metrites  chronicas  das  'tites  chattes  abor- 
recidas do  amor  de  chaise-longue,  uma  sin- 
gularidade tornava-lhe  o  nome  particular- 
mente interessante 

24  centimetios* 

sendo   pasmo   de    todos    que   esse   tenor 


os  GATOS  U 

aphono  jactanciasse  (i'ainda  possuir  um  ór- 
gão tão  extenso.  Nominaes  ou  reaes  emfmi, 
estas  qualidades  métricas  que  haviam  cons- 
liluido  a  sua  gloria  no  bel  canto,  de  Bassi- 
ni  as  quiz  tornar  em  fonte  de  receita,  e  eil-o 
buscando  a  protecção  d'uma  sua  patrícia  por 
de  mais  celebre  nas  estroinices  do  sport 
phillantropico,  e  que  sem  mais  exame,  dizem, 
o  annexou  com  dois  mil  francos  d'entrada  e 
licença  para  escrever  nas  malas  a  designação 
de  cantor  do  séquito  privado.  Chegado  a 
Lisboa  ao  mesmo  tempo  que  a  noticia  de  qua- 
trocentos contos  de  saques  sobre  o  thezouro 
portuguez,  De  Bassini  não  logrou  escandali- 
sar  tanto  as  susceptibihdades  patrióticas  do 
partido  monarchico,  como  a  conferencia  de 
Badajoz,  convindo  aquelle  em  que  para  os 
créditos  da  nação  era  muito  mais  deletério 
ir  engajar  lá  fora  a  união  ibérica  do  que  os 
tenores  com  vinte  e  quatro  centímetros  de 
registro. 

Mercê  d'este  critério  recusou  o  sr.  Fran- 
co Castello  Branco  a  proposta  que  lhe  fize- 
ram os  repubhcanos  d'uma  segunda  recita 
d'aquella  sessão  parlamentar  em  que  Val- 
bom e  Alpoim  foram  sublimes,  e  que  d'esta 


*2  os  GATOS 

vêz  viria  a  molde  como  revindicação  patrió- 
tica onde  Portugal  mostrasse  ao  mundo  os 
numerosíssimos  recursos  de  \inte  e  quatro 
centímetros  que  possue,  de  ponta  a  ponta, 
sem  necessidade  alguma  de  se  deixar...  inva- 
div  pelo  estrangeiro.  iVesta  segunda  audi- 
ção é  que  verdadeiramente  teriam  cabimen- 
to o  viva  do  sr.  Alpoim  á  independência 
nacional,  e  a  grande  scena  lyrica  do  orador 
Valbonsinho,  rebolando  os  olhos,  agarrado 
ao  amor  da  pátria,  sentimento  pelo"  qual  o 
liysterico  vencido  dizem  sentir  uma  ternura 
ancestral  e  posierior. 

O  caso  do  tenor  não  foi  porem  cifrado 
pelos  senhores  monarchicos  na  lista  dos  de- 
lictos  merecedores  do  stygma  de  traição  á 
pátria,  e  permaneceria  incólume  se  á  ulti- 
ma hora.  já  pagos  os  dois  mil  francos 
darrhas,  e  divulgadas  as  primeiras  basofias 
do  escripturado,  o  conselho  de  ministros 
nao  reconhecesse  incompatibihdade  em  san- 
grar do  cofre  das  innundações  a  annuidade 
de  800^000  réis  que  promettida  lhe  fora 
por  escriptura. 

De  mais  esta  intromettida  súbita  d'um 
estrangeiro  musico  na  vida  da  corte,  ad- 


os  GATOS  13 

vindo  em  epochas  de  pauta  proteccionista, 
começou  d'oirender  também  gravemente  os 
instrumentistas  uacionaes,  e  choveram  re- 
presentações ao  governo  pedindo  concurso, 
internacional  sequer,  com  provas  praticas, 
d'onde  apurar  co'a  máxima  justiça  as  apti- 
dões de  cada  candidato. 

Semelhante  concurso  traria  entanto  coa- 
lisões  angustiosissimas  ao  muito  nobre  jury 
que  o  julgasse,  á  uma  por  pôr  a  corte  de 
Lisboa  em  cheque  com  a  Itália,  potencia 
amiga,  á  outra  por  não  haver  propriamente 
diapasão  afinado  por  lei  para  tal  espécie 
d'inslrumentos,  sabido  como  o  systhema  mé- 
trico não  preceitua  entre  nós  da  unidade  a 
seguir  n'este  género  secreto  de  medidas 
d'extensão.  Consultadas  as  instancias  supe- 
riores da  industria  e  arte  sobre  o  que  hou- 
vesse no  paiz  em  antigo  e  moderno,  nobre 
ou  plebeu,  capaz  de  levar  de  vencida  os 
vinte  e  quatro  centímetros  de  registro  do  te- 
nor, responderam  pela  commissão  de  monu- 
mentos o  sr.  Luciano  (iOrdeiro,  depois  d'an- 
dar  pelos  sarcófagos  manuelinos,  com  uma 
guita,  a  tirar  números,  eo  dr.  Joaquim  Tello, 
director  da  industria,  ao   cabo  d'inquerito 


14  OS  GATOS 

idêntico  na  exposição  dos  Jeronymos,  que  em 
vista  do  atrazo  manufatureiro  nada  havia 
ainda  portuguez  a  competir  com  o  elemento 
italiano,  posto  modernamente  se  tivesse  já 
crescido  muito,  sendo  d'esperar  que  em 
pouco  tempo,  puxando  pela  fibra  do  povo, 
se  conseguisse  fazel-o  egualar,  senão  exce- 
der, o  singular  phenomeno  contractado  em 
Paris  para  na  corte  dar  lições  de  musica. 
N'um  manuscripto  da  Bibliotheca  da  Ajuda 
é  que,  depois  de  grandes  procuradas,  pa- 
rece que  o  notável  investigador  Ramos  Coe- 
lho chegara  a  apurar  certa  referencia  ao 
pagem  Alcoforado,  padreador  da  Senhora 
Duqiieza,  d'onde  inferir  suspeitas  quanto  á 
desconforme  extensão  da  sua  voz;  mas  a 
descoberta  foi  controvertida  por  Luciano 
n'uma  memoria,  e  a  discussão  augmentou 
afinal  a  obscuridade,  parecendo  que  se  al- 
guma grande  coiza  houve,  sumiu-se  tudo 
nas  entranhas  da  casa  de  Bragança. 

Estas  e  outras  graves  cogitações  levaram 
o  conselho  de  ministros  a  recuar  perante  o 
fiasco  do  concurso,  e  estava  redigido  o  de- 
creto outorgando  o  exclusivo  da  musica 
palaciana  ao  De  Bassini,  quando  de  repente 


os  GATOS  i5 

O  ministro  da  fazenda  lembrou  que  a  Asso- 
ciação Commercial  podia  erguer  a  voz  se- 
gunda vez.  Foi  por  todas  as  sete  pastas  um 
terror  pânico,  e  a  extirpação  dos  vinte  e 
quatro  centimetros,  do  solo  portuguez,  foi 
ordenada  como  razão  d'Estado.  em  8  ho- 
las,  sendo  chamado  á  pressa  o  operador 
Moraes  Sarmento.  .  . 

Ora  emquanto  estes  successos  tumultua- 
vam entre  os  silêncios  patrióticos  dos  srs. 
Alpoim  e  Carlos  Valbom,  ílagelladores  emé- 
ritos das  monstruosidades  jacobinas,  que 
fazia  De  Bassini,  a  imbelle  victima  da  sua 
própria  deformidade  ?  De  Bassini,  o  musico 
anormalissimo,  auto-suggestionado  de  portu- 
tuguez  por  pertencer  congenitamente  á  Casa 
dos  Vinte  e  Quatro^  De  Bassini  exhaustos  em 
em  comezanas  de  hotel  os  dois  mil  francos, 
procurava  trabalho,  diz  n'uma  carta,  tal 
como  uma  ingénua  menina  de  romance. 
«...  apenas  vi  que  alguns  jornaes  critica- 
vam a  protecção  que  pretenderam  dar  me 
as  excelsas  pessoas  de  quem  na  suppliquei, 
resolvi-me  a  procurar  lições  de  canto,  nos 
quinze  dias  que  estive  em  Lisboa,  e  dada 
a  sympathia  de  que  como  artista  gozo 


16  OS  GATOS 

(...Vamonr  est  tm  enfant  de  vingt  quntre  centimétres...) 

já  tinha  encontrado  bastantes,  principalmen- 
te entre  as  senhoras  de  Lisboa.» 

A  caridosa  protectora  dignara-se  dizer-lhe 
quando  elle  lhe  fora  pedir  trabalho  em  Ro- 
ma « vá  para  Lisboa  e  veremos. »  Em  Lisboa, 
senhoras  a  quem  fizera  a  honra  d'offerecer 
serviços  músicos,  quazi  todas  lhe  disserau 
também  » vamos  a  vêr»,  revirando  o  cartão 
de  visita  entre  suspiros;  e  algumas  depois 
de  visto,  pediam  espaço  d  uns  dias,  a  mo- 
dos  d'abstractas,  e  mandavam-no  lá  lornar 
«para  vêr  outra  vêz.»  Ao  cabo  de  quinze 
dias  já  tinha  encontrado  bastantes,  acres- 
centa elle  ingenuamente.  «Foi-me  então 
perguntado  que  logar  tinha  eu  na  corte. 
Maravilhado  que  se  soubesse  uma  coisa  que 
julgava  ignorada  por  todos,  respondi  que 
não  sabia,  mas  esperava  obtel-o  a  breve 
trecho.»  Recapitula  «creio  que  esperar  um 
posto  não  é  uma  chantage  nem  um  delicto! » 
De  certo  não,  mesmo  porque  até  os  postos 
sejam  entre  nós  coisa  sanccionada  por  de- 
cretos e  planos  do  governo.  Exemplo,  o  da 
Fonte  Bôa,  e  os  postos  de  desinfecção,  ca- 


os  GATOS  17 

da  vêz  mais  necessários  para  expurgar  o 
paiz  (ias  podridões  doiradas  que  o  infestam. 
Pelos  trechos  da  missiva  transcripla,  que 
podem  lêr-se  de  resto  em  quazi  todos  os 
jornaes  monarchicos  da  cidade,  nem  se  preci- 
sa quando  as  lições  começassem,  nem  tão 
pouco  o  preço  poruiuzia,  nem  a  duração,  nem 
a  hora,  nem  sequer  a  maneira  de  as  dar,  do 
professor.  Por  consequência  haverá  que  se 
dirigir  consulta  á  epislolographia  paralella, 
muito  em  segredo  catando-a  dos  promeno- 
res  musicaes  que  ella  tiver.  Ahi  está  por 
exemplo  um  pequenino  bilhete  da  viscon- 
dessinha  de  X.,  uma  das  primeiras  discipu- 
las  do  portento,  á  sua  amiga  baroneza  de 
H.,  veraneando  em  Cintra  e  que  pelo  tele- 
phone  lhe  pedia  informações,  -i  De  Bassini, 
querida,  leva  quinhentos  francos  por  lição, 
o  que  é  a  ruina,  dados  os  outros  quinhentos 
com  que  meu  marido  paga  a  lição  d'elle. 
Exige  alem  d'isso  (como  é  bastante  orgulho- 
so) que  as  senhoras  lhe  estejam  sempre  de 
joelhos,  e  a  tal  ponto  esta  exigência  pare- 
ceu excessiva  que  o  visconde  agora  só  lhe 
aceita  as  explicações  —  voltando  as  costas.» 
A  generala  de  P.,  hna  culévra,  passionenta 


18  OS  GATOS 

por  musica  á  coalisão  d'ella  mesma  soprar 
concertantes  nas  protuberâncias  do  marido, 
a  generala  de  P.,  depois  duns  prologo- 
menos  :  —  «De  Bassini,  historias !  não  se  li- 
ça sabendo  nada.  .  .  á  uma  é  caro,  e  á  ou- 
tra não  repete.» 

O  desavergonhado  entanto,  regorgitan- 
te  de  cédulas  por  essas  primeiras  lições  pa- 
gas á  bocca  do .  .  .  cofre,  desenvolvera  em 
pleno  iiotel  uma  magnificência  pródiga  e 
sultana. 

Quotidianamente  almoços  e  jantares  era 
sala  decorada  com  as  pratas  melhores,  fru- 
ctas  de  luxo  e  vinhos  escolhidos,  carruagens 
e  passeios  aos  sitios  pictorescos,  convites  a 
um.  convites  a  outro,  com  meias  reticen- 
cias sobre  o  mysterio  d'aquella  insólita  vo- 
ga e  d'aquella  fortuna  incomprehensivel. 
Gomo  todos  os  rufiões  em  posse  de  segre- 
dos, De  Bassini  exagerava-lhes  sempre  que 
podia  a  importância,  estendendo  a  muitos 
lares  peccados  authenticos  apenas  nos  des- 
regrados costumes  de  quatro  ou  cinco.  Em 
quinze  dias  não  houve  grande  dama  que 
elle  não  ensinuasse  aos  amigos  como  discí- 
pula sua  na  grande  musica  fin  de  siécle. 


os  GATOS  i9 

a  quinhentos  francos  por  lição,  e  a  tal  pon- 
to o  ciúme  d"esses  triumphos  entrou  d'aziu- 
mar  os  professores  portuguezes  sem  tra- 
balho, que  para  os  combater  organisou-se 
a  liga  dos  alferes  para  pernoitar,  sociedade 
orpheonica  para  nacionaes  maiores  de  vin- 
te centimetros,  com  certamens  ao  ar  livre,  e 
uma  walsa  a  premio  para  o  sócio  de  mais 
infatigável.  .  .  vocação. 

Desde  essa  hora  a  guerra  estuou  sem  tré- 
guas, entre  o  orgulho  lusitano  espicaçado,  e 
esse  vil  estrangeiro  que  imaginara  desmon- 
tal-o  com  os  seus  desusados  recursos  mu- 
sicaes.  Se  em  questões  de  registro  De  Bas- 
smi  podia  bellamenle  levar  de  vencida  a  li- 
ga dos  alferes,  o  certo  foi  não  conseguir 
degladiar  com  elles  quanto  ao  preço,  pois 
muitos  até  já  de  graça  davam  lições  de  con- 
traponto, antepondo-se  ao  adversário  por 
todas  as  girias  do  reclame  mais  protervo, 
desde  sahirem  á  rua  com  pães  de  bico  na 
algibeira  das  calças,  até  pinlarem-se  á  gre- 
ga na  transparência  das  cartas  de  jogar. 
Todavia  este  movimento  de  revindicação 
patriótica  não  seria  fecundo,  como  diria  o 
Alpoim,  se  a  polilica  não  tenta  absorvel-o, 


20  OS  GATOS 

acaudilhando  ao  conselho  de  ministros  todo 
o  orpheon  d'alferes  p'ra  pernoitar.  Foi  então 
que  o  aventuroso  tenor  se  viu  perdido,  e 
comegou  d'emmurchecer  melancholicamente 
a  sua  (para  que  assim  o  digamos)  inspira- 
ção. Todas  as  protecções  se  lhe  negaram  de 
repente,  escamugiram-se-lhe  as  discipu- 
las  á  formiga,  faltou-lhe  o  dinheiro,  fal- 
tou-lhe  o  credito,  emagreceu,  cahiu,  e  tão 
reduzido  estava,  que  na  suprema  hora  de 
ser  expulso,  esse  prostituto  musico  adstricto 
aos  mysterios  nymphomaniacos  da  corte,  bel 
cavalier  renegado  por  suas  damas,  ao  chegar 
á  apalpadeira  do  governo  civil,  apenas  dos 
vinte  e  quatro  centímetros  lhe  restariam  uns 
miseros  quatorze. 

Em  quinze  dias,  dez  pontos  de  descida.  . . 
Oh  estes  câmbios !  Pobre  De  bacio ! 


A  27  de  Julho  passado  foram  abertas 
nas  galerias  a  poente  dos  Jeronymos,  uma 
exposição  de  productos  fabris,  e  uma  ou- 
tra das  escolas  industriaes,  circunscripção 


os  GATOS  21 

sul,  esta  ultima  contendo  provas  do  fim 
d'anno,  e  algumas  amostras,  já  anteriormente 
vistas,  do  estado  de  certos  ramos  do  ensino 
officinal.  A  exposição  industrial  mirava,  nos 
dizeres  do  catalogo,  apreciar  a  influencia 
da  pauta  proteccionista  sobre  o  desenvolvi- 
mento ulterior  de  certas  industrias  portu- 
guezas,  provendo  os  redactores  d'aquella 
d'informações  por  onde  se  podesse  experi- 
mentalmente beneficiar  ou  desamparar  as 
industrias  que  valesse  ou  não  valesse  a  pe- 
na proteger;  e  mais  mirava  mostrar  as  excel- 
lencias  de  fabrico  e  qualidade  de  grande  nu- 
mero de  productos  paralellos  aos  similares 
até  agora  vindos  do  estrangeiro,  vulgari- 
sando  por  ultimo  no  sentido  optimista  o 
adoantamento  do  fabrico  portuguez  compa- 
rativamente ao  revelado  nas  exposições  an- 
teriores. O  catalogo  não  canta  no  pream- 
bulo, do  papel  da  exposição  das  escolas  in- 
dustriaes,  a  par  da  da  industria,  mas  quem 
duvida  fosse  para  se  apreciar  da  influencia 
exercida  pela  educação  artística  e  otíicinal 
do  operariado  novo  sobre  diversas  indus- 
trias que  na  galeria  dos  Jeronymos  se  apre- 
sentam com  relativo  brilho  e  luzimento  ?  Por 


22  OS  GATOS 

consequência  a  primeira  interrogação  sug- 
gerida  no  espirito  do  visitante,  é  se  ao  cabo 
de  nove  annos  d'ensino  industrial  começou 
já  de  radiar  alguma  meilioria  d'elle  sobre  a 
industria  portugueza;  e  seja  a  segunda  o 
discutir  se  a  seis  mezes  d'applicação  da 
nova  pauta  já  é  licito  tirar  conclusões  quan- 
to ao  desenvolvimento  industrial  que  eila  foi 
chamada  a  fomentar.  O  primeiro  problema 
uma  vez  posto,  escusado  remirar  com  saga- 
cidade a  exposição  das  escolas  industriaes, 
para  logo  dizer  que  d'aquelles  nove  annos 
d'ensino  não  ha  na  industria  nacional  três 
mezes  de  diíTusão  sequer,  methodisada, 
sendo  verdadeira  lastima  tanto  dinheiro 
gasto  para  d'elle  se  tirar  tão  pouca  utili- 
dade. 

As  causas  d'esta  paralysia  são  diver- 
sas, cabendo  responsabihdade  d'ellas  a  toda 
a  gente. 

Por  um  lado  os  alumnos,  filhos  de  gente 
pobre,  desfructadora  e  imprevidente,  mal 
frequentam  com  regularidade  os  cursos  es- 
colares, porque  os  pães  apenas  as  creanças 
podem  trabalhar,  enviam-nas  para  as  obras, 
trocando  assim  pelo  magro  salário  que  ellas 


os  GATOS  23 

lhes  possam  ganhar,  toda  a  possibihdade 
d'uma  educação  artística  completa,  e  pro- 
ventos futuros  necessariamente  mais  pingues 
que  d'ella  rezultariam  a  quando  o  operário 
formado  pelo  curso  officinal  da  escola  e  co- 
nhecimentos technicos  que  paralellamente 
lhe  fornece  o  curso  scientifico. 

Percorrendo  os  cadernos  de  matricula 
das  differentes  escolas  industriaes  de  Lisboa 
e  seus  arrabaldes,  facilmente  se  reconhece 
í.",  que  os  alumnos  enviados  á  escola  sem 
frequência  paralella  n'alguma  officina  ou 
fabrica,  são  raríssimos;  2.°,  que  a  maior 
parte  segue  os  cursos  industriaes  depois 
d'um  dia  de  trabalho  fatigante  para  ganhar 
o  pão  quotidiano,  o  que  sobre  ser  um  argu- 
mento a  favor  do  dia  normal  de  oito  horas, 
exphca  por  seu  lado  a  espécie  d'automa- 
tismo  e  delhedio  com  que  muitos  vão  ao  es- 
tudo, e  a  facilidade  com  que  ao  menor  pre- 
texto o  interrompem;  3.°,  que  as  matriculas 
da  escola  industrial,  abertas  no  começo  do 
anno  com  espantosa  frequência,  vão  pouco 
a  pouco  rareando,  cá  proporção  que  o  tra- 
balho na  fabrica  durante  o  dia  accumula 
cançaço  de  noite  para  noite,  este  alhando-se 


24  OS  GATOS 

á  indolência  meridional  de  corpos  mal  ali- 
mentados e  propensos,  naturalmente,  pelas 
enervancias  do  clima,  ao  rien  faire  e  ás  se- 
ducções  e  devassidões  da  capital. 

Daqui  rezulta  um  terrível  deficit  datten- 
ção,  d'estudo,  e  de  frescura  de  faculdades 
assimilativas  que  dá  de  si  retrocessos  em 
vez  de  progressos,  e  invalida  por  centenas 
o  futuro  doperarios  que  em  pouco  tempo 
seriam  mestres  magniíicos,  se  não  fora  o 
mau  sestro  da  surmáiage,  e  a  viciosa  situa- 
ção que  alem  citei.  Quem  uma  vez  fallou 
com  os  filhos  do  povo  de  Lisboa  não  pode 
furtar-se  a  um  sentimento  d'admiração 
perante  as  perceptivas  extraordinárias  da 
sua  intelligencia,  tão  subtilmente  maleá- 
veis, tão  espontâneas,  tão  bellas,  e  duma 
docilidade  que  é  terreno  propicio  para  n'ellas 
se  talharem  corporações  d'industria  sem  ri- 
val. A  par  porem  d'estes  luminosíssimos 
predicados,  um  defeito  de  raça  inutilisa  ir- 
remessivelmente  esta  phalange,  a  falta  de 
tenacidade,  a  variabilidade  de  humor,  a  im- 
paciência d  esperar,  o  que  faz  com  que  to- 
dos esgotem  a  energia  nevrotica  nos  pri- 
meiros esforços,  e  ao  cabo  d'elles  se  abor- 


os  GATOS  25 

reçam,  iniitilisando  assim  todo  o  trabalho 
anterior.  Jantar  agora  a  este  regimem  falha- 
do dos  discípulos,  as  deíiciencias  estructu- 
raes  da  escola  que  o  regimem  das  economias 
successivamente  vae  amputando  pela  mão  de 
ministros  incapazes,  pela  dictadura  d'ins- 
pectores  cretinos,  e  indolência  e  inaptidão 
technica  d'um  professorado  analphabeto, 
aparte  um  ou  outro  estrangeiro  ou  nacional 
mais  conscencioso.  As  reformas  que  as  es- 
colas industriaes  teem  soffrido  nos  últimos 
annos,  mirando  ás  ce^as  um  exclusivo  pro- 
gramma  de  mesquinharias  económicas,  não 
fizeram  senão  estaçalhar  o  plano  funda- 
mental dos  fundadores,  plano  lógico  e  in- 
telligentemente  scientiíico,  que  requeria  ir- 
se  desenvolvendo  num  sentido  pratico  e 
oííicinal  a  pouco  e  pouco,  e  que  as  successivas 
mutilações  charivarisaram  até  ao  dispara- 
tado cahos  em  que  ora  está. 

Effectivamente  seguindo  as  exposições 
parciaes  das  differentes  escolas  repara-se 
em  que  a  par  da  imperfeição  de  muitos  tra- 
balhos, e  da  excessiva  brunidura  d'outros 
que  o  professor  corrigiu  secretamente,  tam 
pouco  estes  façam  serie  por  onde  adevinhar 


26  OS  GATOS 

as  linhas  directrizes  de  cada  curso,  e  re- 
compor n'um  todo  uniforme  os  estudos  das 
diíTereníes  cadeiras  e  officinas  de  que  a  ex- 
posição nos  mostra  aqui  e  alem  apenas  uma 
ou  outra  prova  fragmentaria.  Ha  uma  tra- 
palhada de  desenhos,  bordados,  pinturas, 
pespontos  e  planos  de  perspectiva,  que  dei- 
xam o  visiiante  perplexo  sobre  a  crislalo- 
graphia  dos  programmas  d'ensino,  e  ao 
mesmo  tempo  acordam  n'elle  um  sentimento 
de  desconfiança  quanto  á  boa  fé  d'aquellas 
exposições.  Em  muitos  ramos  da  exposição 
das  escolas  industriaes  (por  exemplo,  no  de 
desenho  industrial,  o  ramo  ornamental)  não 
ha  intermédios,  e  as  aguarellas  expostas  ou 
lêem  a  ingenuidade  bronca  que  revela  o  es- 
tudante tímido  e  sem  regras,  ou  são  bocados 
magníficos  onde  o  nome  do  alumno  parece 
apenas  o  pseudonymo  do  pincel  do  profes- 
sor. A  surpreza  é  por  consequência  enorme 
e  dolorosa  quando  uma  observação  demo- 
rada, por  mais  que  faça,  não  consegue  des- 
cobrir atravez  d'aquelle  montão  de  provas, 
nos  seus  successivos  planos  de  desenvolvi- 
mento, o  crescendo  de  progressos  feito  por 
duas  ou  Ires  gerações  d'alumnos  que  venliam 


os  GATOS  27 

seguindo,  umas  atraz  d'outras.  uma  dada  es- 
pecialidade industrial,  parecendo  que  essa 
marcha  gradual  não  exista  nas  escolas,  e 
tudo  se  reduza  a  uma  apparente  engrolação 
do  publico  pacovio.  Esta  surpreza  inda  mais 
se  incende  e  desespera  notando  que  lia 
alumnos  d'escolas  industriaes  a  expor  ha 
trez  annos  as  mesmas  provas,  e  que  o  gosto 
de  certos  modelos,  sem  duvida  objectos 
d'escolha  dos  professores,  permanece  bár- 
baro e  chato  eternamente,  escolhido  a  esmo 
e  sem  a  indispensável  convergência  a  uma 
tentativa  d"estylo  visando  a  originalisar,  a 
dar  caracter  de  região,  aos  futuros  productos 
artísticos  das  industrias  nacionaes.  Esta  ori- 
ginahsação,  nacionalisação  ou  como  lhe  quei- 
ram chamar,  seria  o  papel  de  prova  d'um 
inspector  írés  comme  il  faut,  a  sua  inter- 
ferência d'espirito  superior  na  marcha  do 
ensino,  e  subentende-se  por  consequência 
que  semelhante  cargo  só  possa  ser  exercido 
por  indivíduos  d'educação  artística  requin- 
tada, superiormente  cuhos,  escravisados  por 
Índole  á  paixão  d'arte,  e  absolutamente  fora 
portanto  dos  moldes  amanuensaes  com  ^\ue 
o  sr.  Luciano  Cordeiro,  ou  lá  quem  é,  espar- 


28  OS  GATOS 

lilha  a  vacuidade  do  seu  caco  e  a  merceei- 
rice  ridicula  do  seu  gosto. 

As  razões  pelas  quaes  nove  annos  d'en- 
sino  industrial  não  lograram  ainda  a  mais 
pequena  ingerência  esthetica  na  industria, 
devem-se  pois  tirar  do  que  atraz  deixei  es- 
bridado  a  curtos  golpes — venho  a  dizer  que 
não  ha  cordão  umbilical  ligando  a  escola  á 
officina,  nem  poderá  haver  tão  cedo,  porque 
o  operário  massado,  fica  a  meio  caminho 
dos  cursos,  porque  as  reformas  absoluta- 
mente idiotas  dos  últimos  ministros  ankylo- 
saram  a  acção  civilisadora  da  escola  sobre 
a  industria,  porque  o  professorado,  muito, 
é  incompetente,  e  mesmo  desleixado,  e  emfim 
porque  a  inspectoria.  .  só  á  gargalhada. 
Ignoro  se  os  directores  das  escolas  industriaes, 
os  dedicados,  algo  teem  feito  para  contra- 
balançar, na  esfera  de  sua  influencia,  es- 
tes entraves  deploráveis.  Na  escola  Marquez 
de  Pombal  sei  eu  que  o  sr.  Marques  Leitão 
tenha  estabelecido  aos  aprendizes  de  certas 
officinas,  uma  pequena  diária,  para  os  li- 
xar á  frequência  escolar,  vencendo  assim  a 
cupidez  ou  miséria  das  íamilias  que  logo 
cedo  querem  fazer  dinheiro  com  o  trabalho 


os  GATOS  29 

das  creanças.  O  mesmo  ultima  a  coiistruc- 
ção  dos  hangares  annexos  ao  edifício  da 
escola,  para  onde  serão  trespassadas  certas 
officinas  que  asphixiavam  em  cacifros  sem 
capacidade  para  abrigar  sequer  os  pouquís- 
simos alumnos  que  lá  iam.  N'esla  escola 
professam  professores  da  melhor  capacida- 
de, como  o  sr.  Cezar  lanz,  homem  laborio- 
so e  assiduo  aos  seus  deveres,  e  o  sr.  For- 
milli,  artista  de  raça,  cuja  influencia  seria 
decisiva  se  a  assiduidade  lhe  fosse  na  pro- 
porção dos  créditos  de  que  goza,  e  se  qui- 
zesse  fechar  ouvidos  ás  machinações  da 
mediocridade  indígena  que  uma  ou  outra  vêz 
descóca  a  pedir  «a  nacionalisacão  do  ensi- 
no», isto  é  a  expulsão  do  elemento  estran- 
geiro que  lhe  faz  sombra,  e  onde  o  ensino 
conta  ainda  assim  alguns  dos  seus  subsí- 
dios professoraes  de  certa  robustez. 

Tam  pouco,  por  culpa  das  inspectorias, 
se  tem  procurado  aquecer  certos  núcleos 
de  talento  benehco  surgidos  na  plena  bana- 
lidade do  professorado  «anonymo"  do  en- 
sino industrial.  Guiada  por  um  critério  d'ar- 
tista  inteligente,  lembrára-se  a  Sr.^  D. 
Maria  Bordallo,  a  quando  professora  das 


30  OS  GATOS 

rendeiras  de  Peniche,  d'expiirgardaalmofada 
das  suas  alumnas  lodos  os  desenhos  inca- 
racterislicos,  defeituosos,  tortos  e  idiotas 
que  a  ignorância,  o  desleixo  e  a  desorien- 
tação secular  d'aquella  industria  portugue- 
za  decadente,  pouco  a  pouco  tinham  intro- 
duzido no  fabrico,  substituindo-cs  ^^or  pi- 
ques organisados  sobre  correctos  desenhos 
da  sua  composição,  esta  subordinada  ao 
aproveitamento  de  velhos  motivos  nacionaes 
decorativos,  desde  os  peixes,  as  conchas,  os 
varechs  e  a«i  algas  costeiras  da  região,  até 
aos  arabescados  tão  idealmente  volitanles 
do  Convento  de  Thomar,  dos  Jeronymos  e 
da  Batalha,  e  ás  vermicellas,  grinaldas  e 
chicoreasdo  Luiz  XIV  freiratico  e  excessivo 
que  é  costume  nominar  d'estylo  D.  João  V. 
Era  uma  tentativa  de  naturalisação  da  ren- 
da nova  aos  infinitamente  simples  da  natu- 
reza pátria  das  rendeiras,  e  ao  tradiccional 
tão  subhmemente  afixado  nas  architecturas 
gloriosas  da  grande  epocha:  as  duas  únicas 
memorias  capazes  de  fazer  vibrar  a  alma 
portugueza,  assegurando  caracteres  de  na- 
ção a  essa  industria  que  sem  elles  facilmen- 
te pareceria  imitada  das  similares  de  Bru- 


os  GATOS  31 

xellaS;  Hesp>anha  ou  França,  conforme  a  fi- 
nura da  teia  e  o  estylo  do  canevas  impresso 
no  pique.  Emquanto  isto  fazia,  [)rocurava  a 
Sr/  D.  Maria  Bordallo  afeiçoar  os  bilros 
das  suas  discipulas  á  confecção  das  rendas 
finas,  espumosas  e  leves  como  as  de  Bru- 
xellas,  com  linhas  de  diametr®  impercepli- 
vel,  que  por  signal  então  se  não  fabricavam 
no  paiz,  conseguindo  assim  um  núcleo  de 
rendeiras  cujo  trabalho  logo  á  primeira  ex- 
posição captou  a  estima,  pelo  que  deixava 
aperceber  d'uma  direcção  mirando  os  fins 
mais  elevados.  Por  uma  fortuidade  qual- 
quer, nada  para  o  caso,  foi  a  illustre  senhora 
forçada  a  deixar  a  escola,  e  aquelle  núcleo 
d'esforço  que  bastaria  desenvolver  no  seu 
sentido  primevo  para  talvez  dentro  de  pou- 
co vermos  no  mercado  europeu  e  america- 
no as  rendas  de  Peniche,  rivaesdasdeBru- 
xellas  na  trama  e  apar  d'isto  inconfudi- 
velmente  portuguezas  no  modelo,  aquelle 
núcleo  desdenharam-no  por  estupidez  con- 
génita, a  successora,  e  por  ignorância  ou  apa- 
thia  o  encortiçado  inspector  que  então  gras- 
sava nas  escolas  industriaes  dacircumscri- 
pção  sul.  O  resultado  é  a  actual  exposição 


32  OS  GATOS 

de  rendas  de  Peniche,  feita  sobre  modelos 
da  Moda  lUustrada  ou  quer  que  o  valha,  e 
contrastando  a  todos  os  respeitos  com  a 
soberba  prova  que  ainda  ha  pouco  mezes 
deram  as  novas  discipulas  da  Sr.*  D.  Maria 
Bordallo  na  exposição  do  armazém  Barrei- 
ra, que  todos  viram. 


FIALHO  D'ALMEIDA 


OS  C3-_A,TOS 

INQUÉRITO  Â  VIDA  POílTUGUfZA 


No  niiiiiero  anterior,  írizando  as  iililida- 
des  deinunstialivas  da  exposição  dos  Jcro- 
iiyiiios,  alviíiáuios  que  ella  se  leria  organi- 
sado  provável  e  prineipalmenle  p'ra  dois 
fins:  iíiosliMr  a  acção  de  nove  annos  d"en- 
sino  industrial  sobre  as  indusliias,  eesludar 
a  iníluencia  da  pauía  sol  ire  os  progressos 
industriaes  de  seis  inezes  de  proieccionismo 
rigoioso.  Deixámos  já  n'a(|uelle  [uimero  es- 
nierilliado  o  primeiro  ponlo.  mostrando  não 
liaver  o  ensino  indusliial  em  nove  annos 
produzido  a  menor  intluencia  iicnelica  so- 
bre as  industrias  poiluguezas,  mercê  da 
anaichia  dos  programmas,  da  deficiência 
dos  mestres  e  da  falta  d'appli('aeão  dos  es- 


2  rsS  GATOS 

colares.  Estudaremos  agora  um  pouco  al- 
gumas exposições  parciaesdindustriaspor- 
tuguezas,  aíim  d'inquirir  o  caminho  que  ella? 
seguem,  e  do  como  valha  a  pena  prote- 
gel-as  ou  deixal-as. 

Quem  alíentamente  percorra  as  galerias 
dos  Jeronymos  íacilmenie  apercebe  d'eníre 
os  artefactos  patentes  (juacs  osquesãopro- 
duclos  únicos  do  curioso  armado,  para  o 
caso,  em  industrial,  e  quaes  os  que  sejam 
rcprezentanfes  de  géneros  cí)mmerciaes  ven- 
dareis, d°oude  o  prodncfor  (irou  a  esmo  um 
exemplar  para  amostra  ou  typo  de  fabrico. 

Claro  (pie  no  primeiro  caso  a  industria 
não  existe,  e  o  objecto  exposto,  frncto  da 
haiiilidosidade  d'um  operário  ou  pequena 
oíBcina  sem  producção,  por  forma  alguma 
de\e  reprezentar  apeilo  altendivel  ao  pro- 
teccionismo da  pauta,  que  augmentando  os 
direitos  d'entrada  para  os  artigos  similares 
do  estrangeiro,  lesa  por  esse  facto  o  consu- 
midor, sem  dar  fomento  a  industria  que  se 
veja.  E  claríssimo  também  ({ue  no  segundo 
a  vida  da  industria  só  poderá  ser  apreciada 
com  lucidez  e  assomos  de  justiça,  rjuando 
ao   exame   lecimico   do  artefacto  nas  suas 


os  Gatos  3 

qualidades  de  maleria  )3rima  o  de  mão 
d'ohra,  se  ajunlar  o  computo  da  producção 
aiinual,  o  numero  de  operários  c  macliinas 
cm  acção,  e  lambem  principalmente  as  con- 
dicções  de  preço,  deduzidas  do  custo  do 
fabrico  annexando-se-llie  um  premio  de 
trabalho  equitativo.  Ora  na  galeria  dos  Je- 
ronymos  as  exposições  de  números  únicos 
abundam,  e  perante  ellas,  a  seis  mezes 
apenas  de  pauta,  o  espectador  não  pode 
descernir  se  laes  ol)iectos  são  apenas  ca- 
prichos de  curioso  querendo  mostrar  que 
cá  tombem  se  faz,  se  mais  do  que  isso,  len- 
tamens  receosos  d'industrias  creadas  sob 
propósito  de  pouco  a  pouco  se  irem  desen- 
volvendo em  escala  commercial.  Por  conse- 
quência a  exposição  não  consegue  provar 
n'este  ponto  a(piillo  que  pretende,  e  por  ex- 
cessivamente têmpora  apenas  stereotypa  uma 
exhibição  de  vaidade  burocrática  dando  ca- 
ça a  portarias  de  louvor. 

Como  os  jornaes  reclamam  que  tudo 
aquillo  se  lez  sem  mói'  acréscimo  de  des- 
peza,  deixe-se  passar  ovante  o  dr.  Tcllo, 
director  da  industria,  sem  agravar  com  isso 
as  responsabilidades  que  lhe  inpendam  de 


4  OS  GATOS 

saber  lanlo  dlndiistria.  romo  nós  sabemos 
de  rhinez,  <^  sem  regatear  lambem  o  (jue  de 
louvável  haja  n'um  esforço,  (fiie  embora  fi- 
liado f'm  inslinríos  d'imilação  Inconsciente, 
comtndo  algum  proveito  traz  sem{3re,  agua- 
do embora,  para  a  vida  económica  do  paiz. 
A  eN posição  lem  como  disse  um  fundo 
de  pacotilha  corriqueiro,  já  de  resto  conhe- 
cido ('in  iodas  as  nossas  exposições  indiiS- 
triaes.  mas  ipie  (Testa  vèz  surge  d'um  su- 
bsolo suspeito,  pedindo  previlegios  (pie 
foi  lastimável  dar  anies  de  se  saber  o  que 
os  prodiictovp^  intentam  íazer  d'elles.  Escla- 
recerei com  alguns  casos  saccados  entre  os 
profusos  de  que  está  cheia  a  galeria.  Toda 
a  gente  se  recorda  de  vêr  pelos  armazéns 
de  n)oveis  um  ivpo  de  cadeira-lamborete, 
costas  e  assento  d(^  cabedal  envernisado 
d'escm'o,  pregaria  de  lalão  sem  cinzeluras. 
e  traballio  nos  paus  ru<iimentarmente  com- 
posto (Talgumas  voltas  de  toi'no  e  um  ligei- 
ro meio-tlerão  no  coroamento  do  espaldar. 
Este  objecto  sem  valor  artistico.  mas  no  en  - 
tanto  agradável  á  vista,  e  mesmo  elegante 
e  fino  para  o  preço,  era  um  dos  diversos 
que  a   marcenaria  franctza  popular  cá  nos 


os  GATOS  .S 

mandava,  lillio  dinduslrias  a  bem  dizer  só 
exercidas  para  liiocinio  d'a{)rendizcs  ou 
Dieslrcs  marceneiros  de  íraea  <  nvergadura. 
Os  coiros  eram  uma  simples  gravura  a 
íogo.  ou  estampagem  obtida  pela  baiedura 
da  pellc  bumedeeida  sobie  os  escavados  e 
os  cbeios  d"um  modelo.  A  madcini.  b!'am!a 
do  fibra,  laia,  eucalipliis  ou  ({ludípicr  oulra 
barata  e  íacil  de  l;dbar,  peiíiiilfia  ao  arlili- 
ce  mais  leigo,  por  meio  de  tornos  aperfei- 
çoados, uma  produceào  diária  rápida  e  abun- 
dante, poi-  íorma  que  o  ol»jeclo,  l>aralo  nas 
suas  matérias  primas  contbienles,  bnralo 
na  nicão  d'obra,  eliegav;;  ao  coiísumidor  de 
Lisboa  por  duas  libras,  Ires  libras  o  máxi- 
mo, tendo  sabido  das  olVicinas  írancezns 
por  cinco  ou  seis  mil  réis  a  rebentar.  A  no- 
va pauta,  tendo  em  vista  nacionalisar  a  in- 
dustria das  cadeiras-lamboretes.  íecliou  a 
importarão  íranceza  correspondente,  sem 
indagar  se  no  paiz  baveria  as  industrias 
iiuxiliares,  as  matérias  primas  e  o  expe- 
diente do  producção  ollicinal  capazes  de 
prover  ás  necessidades  do  consumo,  em 
condições  de  preço  e  pcrleição  justilica- 
doras   do   proteccionismo  que  Ibe  pedia  o 


os  GATOS 

fabricante.  Ora,  cslá  na  galeria  dos  Jerony- 
mos  uma  cadeira  tamborete,  f  ibrico  nacio- 
nal, de  modelo  franccz,  e  não  passando,  já 
se  vê,  duma  servil  imilação. 

Madeira,  coiros,  pregaria,  formato,  soli- 
dez, trabalho  de  marceneiro  e  estampador, 
ludo  é  singelo,  corrente,  corriqueiro,  e 
aquillo  pouco  mais  valerá  que  cinco  ou  s;  is 
mil  réis.  Pois  querem  saber  quanto  pede  o 
expositor  por  este  mimo  da  industria  nacio- 
nal protegida  a  sete  chaves?  Trin/a  e  seis 
mil  réis,  ou  uma  guarnição  de  casa  de  jan- 
tar, áozQ  cadeiras,  432^000  réis,  preço 
duma  mobilia  arlistica  de  pau  santo!  Gomo 
tudo  neste  mundo  é  consequência  do  facto 
anterior,  e  causa  do  posterior,  fomos  d'alli 
consultar  um  iniciado  no  critério  philoso- 
phico  da  pauta,  que  nos  explicou  a  exorbi- 
tância do  custo,  n'estes  teimos  «não  vê  vo- 
cê que  em  Portugal  não  ha  por  emquanto  a 
industria  dos  coiros  trabalhados,  por  forma 
que  para  estas  cadeiras  é  preciso  estampar 
ou  gravar  os  coiros  expressamente,  procu- 
rando curtidor  que  nas  horas  de  maré  se 
preste  a  tal  serviço;  porque  elles,  coitados, 
teem  mais  que  fazer.     .   Estampados  os 


os  (ÍAKtS  7 

foiíos,  temos  as  inadeiías,  carissinias,  por- 
(jue  a  verdade  é  nós  não  (ermos  madei- 
ras por  em(|iianto.  .  .  Sanadas  porem  es- 
tas duas  diííiculdades,  o  resto  é  bagatel- 
la;  ainda  (jue.  fazendo  os  nossos  marcenei- 
ros por  dia  apenas  a  falha  d'nma  cadeira, 
só  para  elles  é  necessaiio  dednzir  do  pre- 
ço, entre  (juinze  tostões  e  dois  mil  réis. 
Por({iie  meu  amigo,  é  triste  dizei- o,  masa(|iii 
para  nós,  o  pai?  não  tem  por  ('m(|nanío mar- 
ceneiros. .  . 

—  lJir-me-í)a  n'esse  caso  o  (pie  Ivm  por 
eniípianfo  o  paiz,  alem  d'iima  relinadis- 
bima  estupidez.  Para  lazer  uín  t;unboiete  é 
necessário  coiros:  não  ha  coiros.  Necessá- 
rio irtadeii'as:  não  ha  madeiras.  (Ipcraiios: 
não  lia  (i()erarios!  O  (pie  prolege  pois  a 
paula  n"esfe  ramo?  Simplesmente  a  dimi- 
nuição dos  direitos  alfandegários,  e  a  cupi- 
<lez  de  meia  dúzia  de  mariolas  (pie  sob  o 
nome  de  fabricantes  (piei em  fazer  da  \v'i 
uma  capa  de  ladrões. 

Acode  o  meu  interlocutor: 

—  Ha  injiisti(;a.  Pedir  trinta  e  seis  mil 
réis  por  uma  cadeira  de  seis  mil,  não  me 
parece  revele  inslinctos  galunaes;  ó  antes 


8  OS  GATOS 

uma  maneira  diplomalica  cie  dizer  (jiie  se 
não  quer  produzir  Irastes  d'aquelles.  Palie- 
mos frio.  O  marceneiro  pordigiiez  é  em  ge- 
ral filho  dum  pae  que  toda  a  vida  passou 
sem  diluir  os  miolos  na  ideação  de  novida- 
d(!S.  Então  acha  deshonesto  rene^^ar.  a  me- 
moria dos  seus,  engerócando  outra  coisa 
que  não  seja  canapés  de  palhinha  e  bancas 
de  pé  de  gallo. 

—  Mas  sendo  esse  industrial  dos  que 
mais  se  esfalfaram  a  pedir  protecção  para  as 
industrias,  é  que  tencionava  fazer  da  cadei- 
ra exposta  o  debute  d'uma  industria  pro- 
gressiva. 

—  Qual  industria,  senhor!  Foi  uma  te- 
lha. Evolutir  de  cadeiras,  para  que!  se  evo- 
lução de  Irazeiros  é  coiza  que  não  ha  nes- 
te  paiz? 

—  Olhe  que  lhe  esqueceu  o  «por  em- 
quanto.  • 

—  Ainda  se  o  consumidor  mordesse, 
pagando  o  artefacto  pela  exorbitância  das 
oito  libras  marcadas  na  tabeliã,  lá  podia  o 
desvanecimento  do  artifice  condescender  a 
reproduzil-o  em  series  commerciaes.  Mas 
por  desfnícte;  que  elle,  interesseiro,  não  é. 


os  GATOS  9 

Como  não  morde,  embucha,  o  pobre  diabo, 
e  assim  o  proleccionisino  da  paiila  e  o  gra- 
dual abandono  da  industria  protegida,  sup- 
primindo  pela  .ausência  do  objecto,  a  neces- 
sidade social  (|ue  llie  corresponde,  determi- 
nam uma  acção  simplifica  nle,  salvoseja  be- 
netica  para  o  liomem,  visto  regiessarem-no  ás 
edades  em  que  elle,  por  só  se  sentar  no  chão, 
havia  um  calo  approxiinadamenle  no  si- 
tio  . 

—  Em  (]ue  o  simplicador  devia  ter  uma 
bomba  de  pataco. 

Eis  ahi  o  espirito  industrial  de  muitos 
avocadores  da  nacionalisação  do  trabalho 
pelo  desterro  da  concorrência  estrangeira 
— da  concorrência  que  em  muitos  casos, 
longe  d'invalidai'-lhe  o  futuro,  o  estimulava, 
ao  contrario,  pertilando-se-lhe  cá  direita  co- 
mo um  emulo.  Não  vender  nem  deixar  ven- 
der, tal  é  o  Icmma,  tjue  já  seria  perverso 
se  peor  não  houvera  no  geniceu  das  indus- 
trias nacionaes. 


Toda  a  gente  maior  de  vinte  annos  pos- 
suiu ou  possue  ainda  um  d'aquelles  guar- 


10  os  GATns 

da-cliiivas  inglezes  ou  íraiicezos,  de  bengala 
fina  e  solida  como  ("erro.  sem  pezn  quazi, 
direita  n'uma  ponteira  daço  cónica  e polida, 
com  seu  castão  de  marfim,  maçanela  ou 
cajado  plaqneado  de  metal:  e  de  varetas 
finas,  solidamcnle  engrenadas,  ílexiveis  e 
prendendo  uma  seda  de  negro  azul  mais 
leve  do  que  o  ar.  Este  engenhoso  instru- 
mento que  fechado  e  enrolado  não  faria 
volume  maior  do  que  o  duma  bengala  de 
passeio,  possuia  a  extiaordinaria  virtude 
de  passar  de  familia  a  família,  inalleravol, 
sem  descoser  nem  se  lhe  quebrarem  as  va- 
reías,  nem  se  lhe  picar  a  seda  nos  vincos, 
nem  chuva  ou  sol  lhe  comerem  a  côr  ao  cabo 
d  í  três  ou  quatro  annos  d^exercicio.  Custaria 
quando  muito  de  quatro  mil  e  quinhentos 
a  cinco  mil  réis,  posto  em  Lisboa,  e  o  seu 
serviço  d  umbella  e  l)engala — conforme  se 
trazia  aberto  ou  enrolado  -constiluia-o  n'uma 
espécie  de  companheiro  inseparável,  d*amigo 
quotidiano,  doce  de  trazer  pela  rua,  sem  o 
menor  enfado  do  dono,  com  todas  as  modas, 
Iodas  as  estações,  estados  d'espirilo  e  tons 
de  vestuário  —  representante  ligitimo  duma 
industria   seria,   elegante,  honrada,  inalte- 


os  GATOS  H 

ravel,  que  desappareceu  na  onda  d'explo- 
ração  galuna  com  que  modernnmente  o 
induslrial  dá  caça  ao  dinheiro  do  comprador. 
Pouco  a  pouco,  á  medida  que  o  fabrico  de 
guarda-cliuvas  adquiriu  enire  nós  foros  de 
nação,  esle  maiavillioso  iraste  começou  a 
fugir  sublilmentc  das  lojas,  a  rarear  nas  mãos 
dos  íranseunles,  a  (juadruplicar  de  preço, 
e  a  ser  desviado  da  circulação  emfim  pelo 
fabricnnie  alacinha  proposiíando  auferir 
co"as  suas  imilações,  ganhos  mais  pingues. 
A  industria  em  grande  dos  ,1'uarda-chuvas 
de  seda  segm-amenle  conia  em  Porlugal 
quinze  annos  de  cuHura,  e  «piem  comparar 
algum  dos  seus  primeins  exem[)lares  com 
os  que  modernamenie  sahem  das  oííicinas 
porluguezas,  fácil  reconhece  que  ao  passo 
que  o  preço  augmcnia,  a  solidez  e  perfeição 
do  fabiico  não  (em  fcilo  senão  retroceder. 

Tome-se  pai"a  lermo  d'exame  um  guar- 
da-chuva  de  libra,  fabrico  nacional,  dos  (pie 
a  Rua  Nova  do  Almada  opiparamente  clas- 
sifica, (k  primeira. 

Supponha-se  um  dia  de  chuva  em  grossas 
bátegas,  rajada  pelo  vento  encanado  por  uma 
rua  de  prédios  allos,  Íngreme,  e  de  quinze 


12  OS  GATOS 

cm  quinze  melros  corlada  de  travessas.  Veiu 
uma  pessoa  cora  o  guarda-chuvasiiiho  aberto 
á  saliida  da  loja,  catita,  em  folha,  sentindo 
um  prazer  em  ouvir  tamborilar  a  ciiuva  sobre 
o  grão  da  seda  nova,  cantante  e  reteza  nas 
suas  doze  varetas  de  metal.  Momentos  de- 
pois, ao  estender  a  mão  para  aperiar  a  d'um 
amigo,  algumas  gottas  da  bátega  humedece- 
ram-na,  e  como  é  a  mão  (|ue  segura  o  guar- 
da-chuva,  d\ú  começa  o  castão  (reste  a  des~ 
tingir  uma  cola  pegajosa  e  languinhenta^ 
<]ue  arrasta  a  pintura  comsigo,  e  fica  nas 
mãos  em  nodas  d'ocre,  e  inicia  a  derrocada 
enfim  do  famoso  traste  adquirido  a  preços 
de  ricaço.  E'  a  primeira  desillusão  sobre  a 
autonomia  da  industria  nacional,  triumplia- 
dora  —operários  que  envernisam  com  gom- 
ma  arábica  os  castões  dos  guarda-chuvas 
—  mas  a  contrariedade,  remediavel,  e  com 
pequeno  dispêndio  o  traste  voltará  a  ser 
uma  perfeição.  Vae,  n'isto  cogitando,  á  volta 
do  Pote  das  Almas,  uma  barba-clioca  al)al- 
rôa-nos,  e  em  uivos  de  possessa  desata  con- 
tra nós  aqui  del-rei.  Reboliço  medonho,  um 
formigueiro  de  povo,  cotovelão,  policias:  é  a 
velha  com  u:!i  olho  vasado,  e  esse  olho  pinga 


os  GATOS  13 

d'uina  lias  vajelas  do  nosso  guaida-eliuva, 
tal  como  uíii-buriié  na  ponta  d'uiri  palito! 
Camiidio  do  governo  civil  examinamos  então, 
varados  (resliipor.  suceessivamente  as  doze 
varetas  uma  a  uma.  Ha  qualro  (|ue  reben- 
taram logo  da  circumíerencia  do  panno,  e 
que  resalieíu  zagunclsanles.  como  ouiros 
tantos  lira-ollios;  quanto  ás  outras  oito,  le- 
varão caminho  idêntico,  porque  íoram  liga- 
das á  pressa,  com  linlia  podre,  e  o  mesmo 
succede  á  seda.  cujas  costuras,  alinhavadas 
apenas,  franjam  o  tecido,  deixando  ver  pelos 
buracos  o  ceu  a  íazer  manguitos  pai-a  as  lin- 
dezas da  industria  nacional. 

Noite  no  cagarrão.  sinistra,  obssedados 
pela  recordação  da  voz  da  barba-choca,  com- 
nosco  ás  turras  em  que  lhe  havemos  de  pa- 
gar o  olho  dameixa,  por  um  novo — e  em 
ponto  granoe.  Causa  de  tudo  a(juillo,  o  guar- 
da-chuva  ouve  a  conversa,  aberto  :i  seccar 
n'um  canio  do  calabouço  infecto  em  que 
jazemos.  Reconhecer  nx'ssc  cangalho  ignóbil, 
o  faful  da  véspera,  coiza  impossível,  tanto  o 
castão  sem  vernis,  as  varetas  a  esmo  no 
panno  deslinjido  da  agua,  a  bengala  inchada 
e  torta  para  um  lado,  o  ar  pandilha  e  gingão 


li  os  GATOS 

de  fadista  cocho,  desnalurisam  o  formato  e  o 
destino  d'esse  objecto  arlislico  talhado  para 
companheiro  d'um  homem  comme  il  faut. 

Apen-is,  fiança  prestada,  nos  restituem 
o  hvre  curso  das  pernas  e  dos  braços,  so- 
braçamos d'um  pincho  o  giiarda-chuva  in- 
vahdo,  e  em  dez  uTuiutos  eis-nos  caliidos  no 
patife  do  bengalcií^o  que  nol-o  vendeu. 

—  Ollie  praislo,  seu  pulha,  ejusti(i([ue-se. 

— Ah,  o  guar(hi-chu\a  de  honiiMii.  Houve 
grossa  invernia  lá  por  casa  ,  .  São  vinte  e 
cinco  tostões  a  mais  pelo  concerto. 

A  indignação  da  libra  perdida  substi- 
tuc-nos  a  pahivra  por  uma  espécie  de  cacarejo 
phonelico  d  onde  se  vêem  sahar  chuveiros 
de  perdigotos. 

O  homem,  branco.  O  guai'da-chuva  entre- 
nós coíDO  um  abysmo. 

Até  que  afinal  o  constricto  da  raiva  faz- 
nos  rebentar  da  bocca  coizas  feias.  E' 
um  começo  de  volta  á  lucidez.  E  agarramos 
no  homensinho  por  um  braço.  —  Uepare 
n'csle  castão  que  você  mo  impingiu  por  ma- 
deira preciosa.  E'  cerejeira  Lirunida  com  o 
verniz  das  suas  almorrodias.  Agora  siga  pela 
bengala  fora,  até  á  ponteira.  Ande! 


t>S   GA'lí.>S  i5 

—  Sinto  eslar  loila.  diz  com  iiiii  jíeslo  de 
pezames  o  méco,  alapardando-se. 

— Torla  como  você.  n'um  arco,  quando 
DOS  qaer  tirar  uma  libra  da  algibeira. 

—  O  cavalheiro.  .  . 

—  -Agora  o  panno.  E  isto  seda,  é  isto 
tinturaria,  é  isto  commercio?  E  as  linhas 
podres,  e  as  varetas  partidas 

— Também  [jara  que  havia  do  cavalheiro 
cxpór  o  guarda-chuva  assim  a  cargas  d'agua? 

—  Oh  animal,  pois  diga- me  o  destino  so- 
cial dum  guarda-chuva .  .  . 

—  Ser,  quando  chove,  um  guarda  sol. 
Nem  d'outro  modo  se  com  prebende  a  pro- 
tecçãu  a  esta  industria  nacional.  Pois  o  ca- 
valheiro queria  que  ao  íim  de  ijuinze  annos 
d*experiencias  o  fabricante  porlugucz  desse 
um  artefacto  indifferente  á  agressão  das  in- 
tempéries, n'uma  epocha  cm  que  a  sensi- 
bilidade é  tudo  em  obra  d  arte? 

—  Mas  em  ultima  analyse:  para  que  de- 
inonio  serve  ao  compi-ador  i:m  traste  d'esles? 
A  chuva  entorta,  ao  vento  (piebra,  ao  sol 
dcstinge 

—  E  coiza  miraculosa!  sem  deixar  de  ser 
por  isso  uma  fonte  de  riqueza  nacional 


1í''  os  GATOS 

—  Para  o  productor.  Mas  para  o  com- 
prador? 

—  Ambos  Icem  a  ganhar  co's  artefactos 
de  fraca  duração.  O  productor  por  causa 
das  vendas,  o  consumidor  por  causa  das 
ínodas;  e  a  circulação  do  dinheiro  é  o  alcance 
final  de  todas  estas  intrujices. 

—  O  grandecissimo  ladrão  sae-se  philo- 
sopho.  Parece  o  Marçal  Pacheco  a  defender 
os  bonds  Hersent. 

—  Diga  também  um  [jouco  hygienista. 
DesVjue  se  perca  a  confiança  em  ai^azalhos, 
menos  se  sahirá  á  rua  em  tempo  mau,  o  que 
pelo  meno^  evita  uma  pessoa  constipa r-se. 
E  cavalheiro,  os  defluxos  são  na  pathogenia 
das  doenças  agudas  o  que  é  o  credito  em 
todas  as  desinvnluções  de  bancarota,  uma 
causa  occasional  que  conduz  á  morte. 

—  Creditado  em  mais  dois  pontapés  pela 
consulta. 

—  Uma  palavrinha:  vae  os  vinte  e  cinco 
tostões  pelo  concerto? 

—  Que  remédio!  se  a  missão  da  indus- 
tria nacional  é  depennar-nos .  .  Entanto, 
por  precaução  a  incautos,  não  seria  supér- 
fluo escrever  por  cima  d'algumas  d'essasga- 


os  GATOS  17 

lerias  de  productos  indígenas,  pegados  com 
cuspo,  e  armando  á  escamoteação  do  freguez 
cynicamente,  aquelie  obsceno  verso  com  que 
já  Bocag*^  diademára  a  industria  nacional 
do  preto  Ri  liei  ro 

«Industria  de  mostrar,  não  de. .   ■> 

dizem  o  resto  no  Curso  Superior  de  Lettras 
a  Ioda  a  pessoa  que  se  aprezentar  munida 
d'atleslado. 


Não  se  julgue  porem  o  auctor  d'estas  notas 
cancerado  de  pessimismos  ao  ponto  denegar 
os  definitivos  successos  de  muilos  ramos  do 
trabalho  portuguez.  Em  bastas  industrias  o 
progresso  é  evidenie,  e  o  escrúpulo  do  fa- 
brico revela-se  já  na  abundância  da  procura 
e  volimtaria  convergência  da  sympathia  pu- 
blica a  esses  productos  do  typo  forlc,  liom- 
breando  com  o  estrangeiro  de  cabeça  alta, 
empenhados  em  bem  servir  (piem  se  lhe 
achegue.  Eslãon'estecaso  grande  numero  de 
fabricas  de  productos  metallicos,  fundições  de 
ferro  e  bronze,  como  a  Promittente  que  pro- 
duz machinas,  como  a  Xavier  C.Milho,  que 


18  OS  GATUS 

pruduz  aliai;»  agrícola,,  como  a  Ferreira  ácC* 
que  produz  candieiros  e  suspensões,  como 
a  Frederico  Collares,  Tliiago  António  da 
Silva,  Marcello  G.^  Silva,  Progresso  Indus- 
trial e  Empreza  Indusírial  Lisbonense. 

Aqui  não  ha  já  o  caipirismo  do  productor 
armando  á  ingenuidade  lorpa  do  publico, 
expondo  o  que  não  produz,  occullando  os 
meios  do  como  vive.  No  seu  caminho  anda-se 
á  vonlade,  vê-se  pular  a  mão  d'obra,  e  o 
industrial  estimulado  pela  rivalidade  dos 
collcgas  empenhar-sc  n'uma  incessante  ba- 
talha d'aperl*eiçoamenlo.  quanto  ao  objecto  e 
quanto  ao  preço  —o  mais  seguro  penhor  para 
uma  induslria  attingir  a  edadeadulla  e  cons- 
tituir uma  honesta  via  de  riqueza. 

Estão  n'este  caso  lambem  algumas  fabricas 
de  vidros,  cerâmica,  íayança,  mobilias,  algo- 
dões, jutas,  lanifícios,  papeis  pintados,  arti- 
gos de  camisaria.  calçado,  encadernações, 
e  diversos  artefactos  de  pesca,  construcção 
naval,  selleiro  c  correeiro.  Não  é  todavia  dizer 
que  tenha  sido  tão  ovante  o  jirogresso  que  a 
ullima  palavra  esteja  dita  na  impeccabilidade 
fabril  d'estes  differenles  ramos  de  trabalho. 
De  modo  alguuj.  Especialmente  no  segundo 


os  GATOS  19 

grupo  cl*industnas  ha  melancholicas  nótulas 
a  pôr  sobre  o  avafiço  um  pouco  descoor- 
dtnado  em  que  vão  indo.  Accenlua-se 
a  falia  d'in(uito  commercial  na  maneira  por- 
que são  feiías  mailas  d'aquellas  exposições 
parciaes,  pois  em  quazi  (odas  íaltatn  os 
preços,  e  os  objcclos  andam  a  esmo,  desse- 
riados  d'uma  ordem  regular  que  os  exhiba 
por  escala  d"usos  práticos,  e  ascenso  de 
preços  proporcional  ás  difliculdadcs  do  fa- 
brico Esta  classificação  razonada,  não  seria 
suporflun.  como  cuidam,  porque  serviria  ao 
publico  de  menemonica  para  fixar  coizas 
que  clle  d*outro  modo  es([uecc  apenas  volte 
cosias  ao  producto.  Também  é  descurado  o 
pictoresco,  não  sob  o  ponto  de  vista  da  ri- 
queza (Vinvolucros,  mas  nestoutro  mais  mo- 
derno do  conjup.cto  d  accessorios  que  possam 
dar  á  exposição  parcial,  valor  eslafislico, 
archilectonico,  ou  quahpier  ouiro  reprezen- 
talivo  da  complexidade  social  da  industria 
exposla.  Raríssimos  induslriaes  etíectiva- 
mer.tc  se  lembraram  de  collocar  a  par  dos 
productos  da  sua  fabrica,  a  pbotograpliia 
d'csla,  com  as  officinas,  as  machinas.  o  gru- 
po d'operarios,  e  nas  cosias  do  cartão  de 


20  OS  GATOS 

visita  da  casa,  em  quatro  linhas,  a  historia 
(ia  fabrica  desde  a  fundação,  mencionando 
os  principaes  productos  fabricados,  o  numero 
doperarios,  a  quantidade  de  Irabalho  an- 
nual,  a  media  das  jornas,  o  numero  de 
horas  vahdas  diárias,  a  estatistica  da  assi- 
duidade e  frequência  á  officina,  e  todos  os 
demais  pormenores  servindo  emfim  para  a 
historia  da  industria  nas  suas  relações  com 
o  proletário  e  o  fabricante,  sem  esquecer  as 
escolas  appensas  á  officina,  os  montepios, 
as  caixas  daposentação  e  sociedades  de  re- 
creio, no  caso  de  as  haver.  A  utilidade 
d  "uma  revista  d"induslrias  assim  feita  salta 
á  intuição  sem  mais  preparo;  só  d'esta  for- 
nia estatistica  é  que  uma  exposição  é  o  in- 
ventario do  trabalho  d'um  povo,  e  só  assim 
ella  conseguirá  fazer  de  cada  visitante  um 
crente  e  um  patriota.  A  occullação  dos  pre- 
ços importará  a  suspeita  d'uma  producção 
irregular  e  intermittente,  executada  confor 
me  a  offerta  e  a  lorpice  ou  esperteza  do 
comprador,  por  contracto  ao  ouvido — o  que 
é  mais  que  bastante  para  denunciar  uma 
industria  sem  confiança  em  si,  e  exploração 
em  vez  de  commeicio  licito.  E'  o  caso  de 


os  GATOS  2{ 

muitas  das  fabricas  (Je  laniíicios.  (|iie  pro- 
duzem dimilação.  cnlaladas  para  viver  nos 
galíarros  dos  mercadores  e  nllaiates,  o  cu- 
jo labor  precisa  se  deslutelc  das  ladroeiras 
d'estes  intermediários  parasitas  (jue  se  en- 
riíjuecem  a  roubar  descaradamente  o  pu- 
blico sem  (|ue  ninguém  Ibes  venlia  á  mão 
por  laes  finezas.  Por  certo  conbecem  a  his- 
toria da  acção  coercitiva  d'esles  pulhas,  e 
apenas  lha  lembrarei  como  incidente.  A 
maior  parle  das  fabricas  de  lanificios  não 
possue  em  Lisboa  armazéns  de  venda  a  re- 
talho onde  o  consumidor  adíjuira  o  artefacto 
ao  preço  da  fabrica,  o  que  faria  descer  o 
custo  do  vestuário  a  metade  quasi  do  <[ue 
elle  representa  actualmente.  A  industria  de 
laiVificios  que  entre  nós  progrediu  nos  últi- 
mos annos  a  grandes  passos,  pre<  isou  para 
viver,  ao  iniciar-se  em  grande,  de  se  enfeu- 
dar por  completo  á  maçonaria  dos  merca- 
dores e  alfaiates,  os  quaes,  reconhecendo- 
se  indispensáveis,  abusaram  do  produclor. 
como  é  costume,  policiando  com  olheiros 
seus  todas  as  portas  por  onde  a  industria 
podes^e  ler  com  o  publico  relações  directas 
e  leaes.  Chegada  a  hora  da  emancipação, 


-22  OS  GATOS 

isto  é,  quando  a  arle  íle  tecer  e  tingir  indele- 
velmente os  eslofos  de  lã  tocara  a  meta  de 
podtT  viver  sobre  si,  mostrando  productos 
originais  de  valiosa  e  solida  envergatura,  o 
mercador  que  desde  muito  a  trazia  escravi- 
sada,  -em  vez  de  pa('tuar  com  cila  um  lucro 
honesto,  do  que  tratou  foi  d'aproveilar-llie 
o  trabidlio  para  um  seiviço  de  falsificação 
de  fazendas  estrangeiras,  das  que  a  moda 
vulgarisa,  e  p;.ra  toda  a  gente  consliluem, 
com  o  ( xliibicionismo  de  hoje,  uma  necessi- 
dade inadiável  superior  talvez  á  de  comer. 
N'esta  conformidade  a  pauta  que  por  um 
lado  dava  auxiho  aos  fabricantes  de  lanifí- 
cios.livrando- os  da  concorrência  dos  grandes 
centros  productores,  por  outro  ainda  mais 
os  metia  entre  mfios  do  mercador  e  do  al- 
faiate, que  á  sondjra  d"ella  continuaram  a 
impingir  casimiras  francczas,  cheviotes  in- 
glezes,  flanellis  alleuiãs,  feitas  todas  em  Al- 
cântara, Arroios,  Campe  Grande,  Arrentcl- 
la,  Alemquer  e  Covilhã,  esobre  cujo  exclusivo 
o  intermediário  exerce  direito  de  senhor, 
fdhando-as  a  módico  custo,  para  as  resti- 
tuir depois  ao  consumo  pelo  preço  das  es- 
trangeiras, agravado  dos  exorbitantes  direi- 


os  GATOS  %i 

los  da  paulH  piuleccioiíista.  Todos  possuí- 
mos algum  par  d"essas  ostenlosas  calças  em 
locido  de  mallia  ou  enlrançado  diagínial, 
muito  coneclo,  com  seu  fio  de  seda  reluzin- 
do, e  padrões  salpimentando-se  copurclji- 
(ju)uienle  de  ties  cores  discrelas,  em  que 
dominam  o  cinzento,  o  castanho  ou  o  rubro 
atijolado.  Custa  de  seis  ale  nove  mil  réis. 
conforme  a  reputação  e  os  ares  do  alfaiate. 
Se  pretendendo  minar  a  sutil  trama  do 
estofo  e  filiação  industrial  em  paralello 
com  a  faroíia  gallica  ou  lirilannica  (|iie  nos 
bortoeja  da  tolice,  olhamos  o  bilhclinlio  do 
corte,  por  inquirir  a  que  terra  d'alem  Pyre- 
neus  daremos  a  honra  de  nos  vestir  as  tí- 
bias da  girafa,  logo  anlecipando-se,  m-.-stre- 
ras-^a  nol  o  fará  reler  collado  cá  ponta  da 
fazenda,  em  inglez  ou  em  francez,  com  a 
marca  da  alfandega  e  a  factura  até  subscri- 
pta  pelo  gerente  da  fabrica  estrangeira  d  on- 
de veio.  Nada  j)or  consequência  mats  au- 
tenticamente inglez  ou  francez  do  que  este 
trajjo,  que  entretanto  nasceu  a  1  'gua  e  meia 
de  Lisboa,  n'um  tear  d'Arrentella,  entre  os 
dedos  d  um  tecelão  de  melenas  o  bocca  de 
sino,  que  o  imitou  á  vista  da  amostra  es- 


Vi  os  GATOS 

trangeira  remellida  pelo  mercador  ao  geren- 
te da  fabrica,  com  um  pedido  certo  de  cor- 
tes, a  ti"es  mil  réis  por  cada,  e  proliibição 
formal  da  fnbrica  vender  ao  publico,  o  quo 
transgredido  imporlaria  uma  quebra  formal 
de  relações. — Mas,  dirá  o  leilor,  e  o  bilhe- 
tinho? a  marca  da  Alfandeiía?  a  factura  da 
fabrica  eslranwira  asslí^nada  o  rubricada? 
Vy  ludo  tcão  verdadeiro  como  o  cheviolc  ou 
a  cazimira,  e  com  a  vantagem  de  durar  ao 
sol  muito  mais  tempo. 

Eu  tive  este  inverno  um  falo  (também  os 
lenho,  e  pela  durnção  forçada,  ficam  histó- 
ricos, o  que  pelo  menos  n'islo  se  approxi- 
ma  a  minha  vida,  da  d'el-rei  D.  ,íoão  VI) 
d'um  tecido  avellã,  rijo  de  tom,  grave,  en- 
corpado, e  que  o  alfaiate  a  muito  custo  ce- 
deu, por  ser  para  mim,  á  razão  de  vinte  e 
ci;:co  mil  réis,  farpella  inteira,  com  juras,  já 
se  vê.  de  ser  francez  o  estofo  precioso, 
d'uma  fabrica  que  já  não  fazia  mais,  e  cuja 
factura  me  mostrou  com  sellos  e  carimbos. 
Ha  quatro  dia^,  parando  na  secção  delani- 
ficios  deante  da  montra  Alçada  &  C*  Mou- 
saco,  da  Covilhã,  com  surpreza  se  me  de- 
para a  cazimira  estrangeira  do  meu  falo,  a 


os  GATOS  25 

lies  mil  réis  por  melro,  da  uual  pedi  amos- 
tra, verificando  enlão  serem  a  porlngueza  c 
a  IVanceza  exackiínenle  a  mesma  coisa.  Oia 
como  Ires  melros  de  cazimira  vestem  mn 
liomem,  ajnnkmdo  aos  nove  mil  reis  do  pan- 
110,  seis  mil  a  mais  para  feitio  e  aviamentos, 
recapilula-se  (pie  o  meu  falo  avellã  deveria 
custar  ípiinze  mil  réis  o  máximo,  e  cpie  o 
alfaiate  porlanio  colara  na  differença  entre 
^inle  cinco  mil,  e  (juinze  mil,  a  miniia  igno- 
rância das  suas  prendas  de  descai-adissimo 
gatuno  dislarçado  em  ralé  de  mercador.  Es- 
te roubo  não  imaginem  constitua  um  caso 
extraordinário:  é  (pioíidiano  na  rua  Augus- 
ta, desde  o  Rocio  ate  ao  Arco;  sobe  depois 
a  rua  do  Ouro.  emporcnlha  as  lojas  e  arma- 
zéns das  travessas  jacentes — depois  do  que 
liépa  ao  Cbiado,  para  seguidamente  alaslrar- 
se  por  lodos  os  bairros  onde  não  é  costume 
por  oia  andar  em  fralda.  O  con>umidor  in- 
feliz se  alguma  vez  cuidar  de  reagir  contra 
essa  cáfila  de  biltres,  mais  reincidentes  no 
crime  ((uanlo  mais  completa  a  certeza  de 
cpie  a  judiciai-ia  só  se  encoraja  a  montear 
ladrões  sem  domicilio,  perplexo  St-  adiará 
sobre  a  eííicacia  dos  meios  de  defender-se; 


2í»  OS  <iAT()S 

0(1  iPÍFitegrar  os  ;ilfaiates  no  spulinu nto  da 
honra,  pelo  cão,  ou  só  ir  escolher  íazen.las 
armado  de  dois  peritos,  e  um  Irabuco — para 
desempale.  Perscrutarão  depois  qual  o  nio- 
livo  porque,  accusadas  de  cumplicidade  n'es- 
les  roubos  de  tantos  milhares  de  contos,  as 
fabricas  de  lanifícios  não  protestam  contra 
elles  distribuindo  profusamente  os  seus  ca- 
íalogos  de  preços e amostras  annuaes, abrin- 
do venda  a  retaliio  nos  principaes  centros 
de  consumo,  e  regulando  finalmente  o  preço 
lia  ahaialaria  com  a  estabelecida  (foíficinas 
lie  corte  por  sua  conta?  ííonestamente  só  se 
pode  explicar  por  indolência,  jamais  pelos 
desfalques  que  uma  liga  de  iiiCicn<!ons  e 
ídfaiates  lhes  poderiam  mover,  sustando- lhes 
a  clienlella.  Quanio  mais  ífe  observa  nas 
suas  dilTercntes  secções  a  exposição,  tanto 
mais  se  soletra  na  chamada  industria  nacio- 
nal, não  uma  expansão  juvenil  do  trabalho 
jungido  generosamente  em  panóplias  de  pro- 
gresso, (ierramando  a  lelicidade  em  cearas 
para  lodos,  e  adquirindo  a  riqueza  por  in- 
peccaveis  dons  de  lealdade;  mas  uma  gene- 
ralisação  perversa  da  cilada  armada  ao  ho- 
Hiem,  o  torte  ao  fraco,  o  avaro  ao  perdula- 


os  GATOS  27 

rio,  O  esperto  ao  idiola.  De  cada  industria 
iniciada,  a  intrujice,  como  uma  videira  de 
rnoscalel,  suspende  os  cacho.-:  cola-seaboc- 
ca  sedenia,  os  bagos  são  doirados,  mas  que 
quisilia!  morde-os  a  gente  e  em  vez  de  res- 
cendenle  mosto  eslá  vinagie.  As  que  tentam 
marchar  direito  são  tão  poucas,  que  a  meio 
caminlio  apenas  dez  ou  doze,  esfalfadas  na- 
da mais  que  por  liavercm  caminhado  vinte 
passos,  servindo-se  da  pauta  á  laia  de  muleta 
lá  vão  claudicando  pela  proeirosa  ladeira  a 
c<ijos  bordos  as  outras  pedem  esmola,  inca- 
pazes de  se  levantar  pelo  seu  pé.  As  mes- 
mas grandes  industrias  nacionalisadas  por 
vinie,  trinia  annos  d'installação  no  solo  pá- 
trio, acham-se  presas  pela  ausência  quasi 
total  de  matérias  [)rimas,  indissoluvelmente, 
ás  industrias  e  culturas  estrangeiras,  de  sor- 
te que  um  bloqueio  de  certa  latitude  faria 
em  dois  mezes  fechar  todas  as  fabricas.  A 
lã  vem  principalmente  de  llespanha  e  de 
duas  ou  três  republicas  da  America,  pois  a 
nacional,  altenla  a  má  qualidade  dos  car- 
neiros e  suas  alternativas  de  fartura  c  fome 
na  pastagem,  oííerece  no  mesmo  íio  dois  ou 
três  diâmetros  ditíerentes,  sendo  nor  isso 


?8  OS  GATOS 

aproveilaila  só  (in  obras  de  qualidade  iiiíe- 
rioi'.  Os  algodões,  que  nós  já  lecemos  tão 
l)em,  vem  da  America  ingleza  e  do  Brazil. 
e  muilo  pouco  das  nossas  possessões  d'AfVi- 
ca,  onde  íacilimo  íôra  produzil-o  em  quan- 
tidades colossaes.  O  trigo  é  pela  m;iior  parte 
americano,  russo  ou  mairoquiiiO;  porque  o 
Alemlejo  cm  pousios  apenas  seive  para  liy- 
polhecas  no  Credito  Predial.  O  íerro  vem 
d'lnglaterra  e  da  Suécia,  o  carvão  d'Ingla- 
lerra,  as  pelles  do  Brazil.  (até  os  cornos, 
parece  incrível!  vem  de  (ora)— e  «pianlo  :t 
madeiras  de  conslrucção  vamos  buscal-ns  a 
lodn  a  parle,  exce|)lo  ãs  nossas  florcslas  da 
Africa  e  da  índia,  ou  ás  monlanhas  e  du- 
nas porluguezas  do  continente,  onde,  pinhei- 
ros aparte,  os  camponezes  selvagens  e  os 
agentes  elcitoraes  contrariados  deiíam  fogo 
ás  plantações  (jue  algum  governo  mais  sivi- 
cnltor  se  lembra  de  fazer.  O  único  producto 
ingenito  do  solo  é  o  liometn.  é  esse  (|ue  nin- 
guém cultiva,  divide-se  em  trabalhadores  e 
mandriões — os  trabalhadores  vão  para  o 
Brazil  morrer  a  montes,  c  os  mandriões 
que  eram  antigamente  amanuenses,  agora 
começaram  a  tornar-sc  industriaes. 


os  GATOS  29 


Se  a  mão  d'obra  caminhíi  e  a  industria 
protegida  se  divulga,  de  duas,  uma:  on  pro- 
segue  a  imitação  litteral  do  artigo  estran- 
geiro, com  uma  pobreza  d'ideaes  que  faz 
quisilias:  ou  a  viver  a  industria  d"inventivns 
próprias,  saltacom  dolorosa  eloquenciaa  falta 
duma  direcção  artislica  nacionalisadora  do 
producto,  ea  perfeita  inutilidade  que  tem  sido 
até  hoje  a  escola  industrial  para  o  opera- 
riado portuguez.  O  desmantello  ('•  n'esle 
ponto  quanto  pode  ser  de  fnsligavel.  Pro- 
duz-se  por  exemplo  em  Portugal,  desde  a 
tessitura  aperfeiçoada  dos  algodões,  chitas, 
percales  e  adamascados  muito  hellos—  e 
n'outros  ramos  fabris,  jutas,  papeis  pinta- 
dos, hourretíef^  e  mobiliário  para  lodos  os 
géneros  e  destinos.  É  uma  alegria  ver  cres- 
cer debaixo  dos  olhos  tanta  manipulação  de 
trabalho  colleclivo.  saber  que  tudo  aípiillo 
já.  se  faz  em  Portugal,  só  com  este  senão 
algo  irritante — o  de  não  haver  um  bocadinho 
só  cheirando  a  portuguez.  Para  o  caso  das 
chitas,  indaguem  n'uma  fabrica  amiga  so- 
bre os  mechanismos  e  technica  doesta  in- 


30  OS  GATOS 

dustria  O  algodão  sobre  que  ha-dc  ser  es- 
tampada a  chila,  vem  dlnglalerra  todo,  te- 
cido em  peças;  desenhos  ou  aguarellas  de 
padrões,  vem  dlngltlerra  a  amostra  ao  fa- 
bricante, que  escolhe  d'esse  refugo  estran- 
geiro o  que  lhe  agrada,  e  encommenda  de- 
pois os  cilindros  gravados  para  cada  côr 
correspond'  nte;  as  tintas  são  quasi  todas 
previlegio  dos  mestres  da  oííicina,  inglezes 
a  duas  libras  diárias,  que  raros  se  desca- 
hem  a  ensinar  aos  operários,  tinturaria.  To- 
do o  trabalho  nacional  no  fabrico  das  chi- 
las consiste  pois  em  induzir  o  algodão  in- 
glez  de  preparo  chimico  para  o  obrigar  a 
receber  fixamente  as  cores  da  estamparia, 
na  cilindragem  d'esta,  e  talvez  no  fabrico 
d'algumas  cores  rudimentares.  O  resto  é  tu- 
do inglez.  incluindo  as  drogas  que  ser\em  no 
preparado  das  tinturas;  '  e  ha  nove  annos 
que  temos  nas  escolas  professores  ensinando 


^  Em  Porluíiul  só  se  tece  o  algodão  dos  itannos 
crus  c  ubretaniiados,  e  o  panno  que  serve  na  estam- 
pagem da  cliita  azul  ordinária,  este  em  pequeníssima 
quantidade.  Casos  de  fabricante  que  envie  de  Portu- 
gal uma  aguarella  para  padrão  de  chita  portugueza, 
são  raríssimos,  porque  mesmo  não  haveria  quem  nos 
fizesse  em  condl^^ões  de  gosto  original. 


os  rrATO:*;  M 

deseiilio  ornarnental.  gravura  em  inelaes  e 
não  sei  so  lintiiraria  e  ciiimica  industrial! 
Por  onde  se  Iresviarn  os  operários  sabidos 
d;)  escola  com  a  iniciação  complela  ou  in- 
completa d'estas  artes?  O  que  fazem  os  pro- 
fessores que  não  dão  mostrss  de  si  n'esles 
certamens,  e  S(>  servem  para  expor,  como 
um  da  escola  de  Faro,  vergonhosos  crayons 
de  fazer  riso  a  bf^hfvs  do  collegio  Froebel? 
Com  as  jut-is  e  papeis  de  forrai'  succede  o 
mrsmo.  execução  correcta,  cores  excellen- 
tes,  padrões  arabescados  e  vistosos,  mas  lá 
eslá  a  ffriff^'  do  cosmopolitismo  fabril  na- 
tnralisado  á  pressa  para  iritrujar  a  |)aula, 
e  impingir  a  um  publico  sensaborão  restos 
das  novidddes  industriaes  inglezas  e  fran- 
ce/.as  d(í  ba  ipiirize  annos.  Insisto  í»'esta  des- 
nacionalisação  geral  da  industria  nascente 
on  radicada  por  me  parecer  f(ue  fora  mis- 
ter desvial-a  dos  pi-ocessos  da  copia  servil, 
pn'cisamente  agora  que  a  mão  d'obra  pro- 
gride, e  o  publico  parece  disposto  ;(  accei- 
tai-  na  manufactura  uma  porção  de  r)Ovo  com 
resaibos  darte  que  lhe  recordem  typos  na- 
ciciiaes.  Visitar  poi*  exemplo  na  galeria  dos 
Jetonymos,  o  mobiliiirio,  é  vir  de  lá  com  a 


;i2  os  GATOS 

cabeça  em  agua  de  lauta  amostrinha  de  mo- 
veis gibosos,  copiados  dos  álbuns  france- 
zes,  e  d'uma  calilice  a  deixar  vêr  nos  inte- 
riores burguezes  noções  d'elegancia  per- 
íeiíaniente  inspiradas,  no  copiirchiquismo 
obsceno  das  cocotíes.  E'  por  toda  a  par- 
le fauleuih  de  bambu  doirado,  com  da- 
mascos verdes  e  azues,  de  ilôres  escan- 
dalosas, chaises-longues  d'alcouce.  razas  ao 
uivei  do  chão,  como  para  exliibições  sexuaes 
depois  de  ceia,  secretarias  e  bufetes  de  se- 
nhora, género  japonez  d'armarios  hudando 
em  tecto  de  pagode,  relevados  a  fogo  e  com 
vagos  oiros  pegados  á  pressa  em  madeiras 
de  caixa  de  cíiarutos.  Duas  ou  (res  vitri- 
nes d"armadores,  postas  em  estrados,  ao  fun- 
do da  galeria,  e  parecendo  conter  amosíra 
dos  trabalhos  usuaes  das  casas  exposiloras, 
illucidam  inquieladoramenle  o  publico  sobre 
o  conforto  das  classes  capitonadm,  onde, 
como  não  podia  deixar  de  ser  com  taes  mo- 
bílias, o  incesto  e  o  adultério  se  estatelam 
numa  lista  de  monstruosidades  pompeia- 
nas. 

E  que  admira?  se  por  ventura  as  exposi- 
ções de  moveis  a  que  a  alludo  synthetisam  o 


os  GATOS  33 

íypo  usual  rrinstalação  duma  família  rica  ou 
lémediada,  não  ha  n'essas  casas  um  único 
movei  que  aproveitado  não  suggira  ao  apro- 
veitador uma  ideia  perversa,  uma  projecção 
anatómica  congestiva,  e  uma  necessidade 
pornographica  ou  estercoraria.  Nos  gabi- 
netes cerceados  de  stores.  vifraes,  cortinas, 
reposteiros,  alcatifas,  biombos,  colchas,  a 
luz  morre  em  crepúsculos  que  amollecem  o 
gesto,  tirando-lhe  a  independência  delibe- 
rante.  para  o  hypocrisiar  em  caricia  e  em 
attracção ;  o  ar  carbonifica-se  d'uma  espes- 
sura acida,  que  pelas  difficuldades  de  o 
respirar  propende  á  somnolencia;  e  como 
os  estofos  amortecem  a  bulha  dos  passos  e 
das  vrjzes,  um  mysterio  sachristiaco  desagre- 
ga-se,  d'onde  a  tendência  de  dizer  ao  pé  da 
bocca  coizas  que  ganhariam  em  se  não  di- 
zer mesmo  em  voz  alta,  na  rua,  sob  as  vis- 
tas perscrutantes  do  total.  A  cerceação  da 
luz  e  a  fermentação  do  ar  ambiente  deter- 
minam já  de  si  estado  mental,  e  esse  esta- 
do converge  a  filo  desde  que  o  movei  pela 
sua  forma  e  molleza  dê  a  posição  do  corpo, 
acirre  á  preguiça,  e  emhm  conceiíe  as  con- 
gestões erráticas  parciaes.  Não  se  imagine 


34  OS  GATOS 

que  isto  é  theoria.  E  a  mobília  e  a  casa 
quem,  mais  que  a  educação,  formam  o  ser, 
e  basta  um  exemplo,  o  de  ter  diminuido  nas 
cidades  a  proliferação  humana  des'que  foi 
inventada  a  chaise-longue.  para  se  avaliar  do 
quanto  cumpre  fazer  obedecer  a  linha  do 
movei  a  uma  philosophia  hygienica  funda- 
mente estudada  nas  suas  relações  com  a  fa- 
mília e  co'a  moral. 

Ora  a  exposição  de  moveis  alem  de  não 
conter  nada  que  em  artigos  de  conforto  e 
luxo  exprima  a  elegância  visionada  por  um 
gosto  serio,  de  gente  limpa,  tam  pouco  no 
mobihario  modesto,  trivial,  quotidiano,  des- 
venda coizas  por  onde  fazer  ideia  da  sala, 
da  casa  de  jantar  e  da  alcova  d  uma  famiha 
pobre  ou  remediada.  Ha  moveis  manuehnos 
de  que  a  gente  ignora  a  serventia,  contado- 
res de  prateleirinhas  e  balaustres,  inventados 
para  papagaios  fazerem  habilidades,  quar- 
tos de  dormir  segundo  estampas  que  o  Ál- 
bum de  Vehenhte  pour  la  Franee  et  pour  l'é- 
tranger  classifica  d'estylo  Maria  Antonieta,  e 
que  teem  tanto  de  caros  como  de  ronflantes 
—  uma  casa  de  jantar  em  nogueira,  estylo 
chato,  francez,  d'exportação,  onde  a  hnha 


os  GATOg  35 

recta  agride  a  visla  —  e  cabides,  cadeiras, 
sccrelarias,  copias  do  inglcz  pelos  modelos 
rígidos  do  Huíel  Terminus  —  coizas  avulsas, 
tentativas  ao  acaso,  rcpn  dacção,  repetição 
automática,  sabbatina  par  i  mostraras  pren- 
das do  árthta.  bôa  exeiução  aqui  c  alem 
lalvez,  mas  nenhuma  li.:a  tentativa  para 
com  os  elementos  tradiccionaes  se  crear  o 
typo  de  mobília  nacional  para  todos  os  pre- 
ços, em  madeiras  das  nossas  terras,  com- 
posição dos  nossos  artistas,  c  reminiscên- 
cia das  nossas  velhas  artes  d'esculptor. '  Está 
claro  que  eu  não  ignoro  as  difficuldades  a  ven- 
cer, para  dapóz  eruditas  procuras  se  trans- 
plantar alOm  para  o  moderno  um  typo  de  mo- 
bília porluguez.  A'  uma  não  abundam  nos 
museus  os  genuínos  exemplares;  cá  outra, 
especialmente  em  mobílias  de  luxo,  nunca 
o  eslylo  nacional  foi  uma  coiza  definida  in- 


(*)  A  casa  Couto,  do  Porto,  expoz  na  Avenida  em 
ti^mpos  uma  serie  de  mobiliário  popular  (^xtromu- 
ineníe  inlorossante,  fio  qual  pnssno  nm  álbum  com 
desenhos  e  preços  calculados  ao  sabor  dos  tercíí  de 
cada  coujprador.  Não  era  propiiamento  mobilia  de 
caracter  nacional,  mas  como  tentativa  anti-rotineira, 
era  sympalliica,  pelo  lado  económico  es|)ecialmente. 


36  OS  GATOS 

teirnmente.  Os  lamborctes  e  traslnria  de 
torcidos  que  desde  os  scculos  XV  e  XVI 
enxamearam  nas  nossas  ricas  rezidencias, 
vieram  do  paiz  liollandez  por  muito  tempo, 
com  o  qual  por  via  dos  feitores  faziainos  um 
commercio  d'arle  considerável.  Com  as  via- 
gens d  AlVica  e  as  descobertas  da  índia  e 
do  Brazil  começámos  a  reproduzir  em  ma- 
deiras preciosas  lodos  os  lypos  usuaes  da 
mobília  flamenga  que  importávamos,  e  assim 
passámos  á  Europa  trastes  ccnliecidos  por 
porluguezes,  como  arcazes,  bufetes,  conta- 
dores, a  que  quando  muito  tinliamos  anne- 
xado  entre  as  minuscularias  d'adorno,  os 
tremidos,  e  que  não  eram  mais  do  que  a  reedi- 
xão  do  flandrino  em  estofo  rico.  A  lavran- 
taria  dos  coiros  servindo  na  revestidurados 
bahús  e  tamboretes,  foi  por  longos  annos 
também  um  artigo  d*imporlação,  expedido 
de  Hamburgo  e  Anveres  para  Lisboa;  já 
por  fim  iam  de  Portugal  os  desenhos  para 
gra\ar  lá  fora,  o  só  nos  meados  do  século 
XVI  a  industria  se  implantou  entre  nós, 
chegando  a  um  estado  dapuro  e  perfeição 
surprehendentes.  Com  os  cordovões  ou  coi- 
ros de  Córdova,  de  que  ha  spccimens  tão 


os  GATOS  37 

bellos  em  vermelho  e  preto,  estampados  a 
oiro  d'a!lo  relevo,  o  mesmo  suceedia. 

Pri:)!Ílivameníe  vieram  deHespanha,  mas 
ao  depois  a  industria  aclimou-se  e  conse- 
guiu viver  de  vida  própria.  Nas  suas  linhas 
fundamenlaes  porem  nunca  a  mohilia  flan- 
drina  se  modificou  pela  aclimapícm  porlu- 
gueza,  e  apenas  passando  á  índia,  e  entre- 
chocaido-se  com  a  arle  indigena,  originou 
esses  moveis  d'embutidos  microscópicos,  em 
marfim,  madeiras  de  cores,  tarlarugas,  pra- 
tas, de  cpie  são  typo  os  contadores  e  as  com- 
modas  apoiadas  sobre  monstros.  Chega-se 
á  epocha  de  D.  João  V,  e  a  revoada  d'es- 
culplura  excessiva  e  solar  que  enche  de  su- 
bhmes  talhas  d'oiro  os  sancluarios  de  cinco 
mil  igrejas  e  capellas,  a  renovação  archile- 
ctonic.t  que  transfigura  a  physionomia  das 
igrejas,  fazendo  maravilhas  na  decoração 
interior  dos  grandes  edificios,  (ex.  as  três 
salas  d'entrada  do  Arsenal  do  Exercito,  es- 
pecialmente a  se'gund;i,  que  é  uma  surpre- 
hendcnte  boceta  de  rei  prednlario  c  requin- 
tado) ao  chegar  á  mobdia,  apenas  toca  ori- 
ginalmente alguns  grandes  leitos,  uma  ou 
oulra  cómoda  que  pode  muiio  bem  passar 


38  OS  GATOS 

por  Luiz  XIY  abastardado,  e  por  fim  esmo- 
rece na  banalidade  jezuilica,  sem  maiormen- 
te  assignalar-se  em  typos  caraclerislicos. 
De  sorte  que  não  existem  na  arle  antiga  do 
paiz  motivos  tradiccionacs  sobre  que  crear 
um  mobiliário  de  luxo  inconfundivelmente 
portugueZ;  a  menos  que  um  archilecto  ou 
ebenista  de  génio,  por  selecções  successi- 
vas,  por  tentativas  d'arrojo  semelhanles  ás 
que  a  casa  Leilão  começou  a  fazer  para  in- 
dividualisar  na  ourivesaria  o  eslylo  D.  João 
V,  consiga  um  dia  extremar  d'entre  a  mar- 
cenaria espúria,  o  esqueleto  ideal,  flagrante, 
inédito,  dum  mobiliário  que  derivando  em- 
bora dos  contadores  torcidos  da  Flandres 
ou  das  vermiccllas  e  plumas  frisadas  do  rei 
sacrílego,  comtudo  divirja  d'ellas  no  sen- 
tido d'uma  emancipação  total  do  estrangei- 
ro. Já  não  seria  tão  espinhosa  a  tarefa  se 
em  vez  de  mobiliário  rico,  intentássemos  re- 
constituir sobre  restos  da  antiga  marcena- 
ria nacional,  um  mobiliário  de  pouco  preço. 
Bastaria  tomar  para  isso  a  antiga  cadeira- 
tripeça,  o  leito,  a  cadeira  pintada  d'Evora,  e 
a  banca  de  pés  divergentes,  rústica,  das  ca- 
banas do  Alemtejo  e  Beira  Baixa,  para,  ar- 


os  GATOS  39 

tisticando  um  pouco  estes  modelos,  lermos 
um  !ypo  oti,ííinal  d'uma  mobilia  de  povo  a 
"AIAS,  não  linda.  De  feito,  que  falta  ácadeira- 
tripeça.  tão  giacilmente  caprina,  com  seu 
assento  de  [)au  e  o  espaldar  radiando  em 
lyra  rústica,  para  se  tornar  n'um  movei  de 
gabinete,  de  casa  de  jantar,  ou  de  salão? 
Um  pouco  de  lorno  nos  pés,  alguns  aese- 
nlios  a  fof^^o  ou  pinturinhas  em  etrusco  ou 
pastoral  borboleleando  nos  clieios  da  ma- 
deira, uma  enccradura  ou  polidura  a  lhe  dar 
lom,  e  emlim  qualquer  ligeiro  frontão  d'es- 
culptura  esboçada,  á  maneira  suissa.  sobre 
as  vagas  cimalhas  do  espaldar.  A  cadeira 
pintada  d"Evora,  que  é  relativamente  mo- 
derna, dos  fins  do  século  passado  o  máxi- 
mo, teve  por  antepassado  a  judia,  mais  fina 
de  madeira,  lisa  de  pau>  também,  o  assen- 
to de  tabúa,e  pintada  d'umacôr  unida,  avellã, 
amarello  salmão,  azul  dagua,  sobre  a  ([ual, 
destacante,  um  sulco  a  escuro,  e  nas  guar- 
das da  espalda  sua  paysagensita  ou  gru- 
po de  figuras.  A  cadeira  d'Evora  é  feita  de 
pinho  verde  e  tabiia  ordinária,  pelos  car- 
pinteiros d'escada  da  cidade,  e  apóz  vae  a 
pintar  a  óleo  a  uns  certos  troca-tintas,  pia- 


40  OS  GATOS 

tores  populares  sem  instrucção  nem  disci- 
plina, que  sobre  os  costados  lhe  atiram  co- 
pia de  flores  de  roza  e  d'eloendro — a  flor 
das  ribeiras  d'Africa  e  do  Alemtejo  —preen- 
chendo o  resto  de  vermelhos  e  azues  muito 
berrantes.  Custa  de  deseseis  a  desoito  vin- 
téns, em  qualquer  feira  do  districlo,  um  tras- 
te d'estes,  que  apezar  de  grosseiro  é  regio- 
nal e  encantador  de  pitoresco;  e  uma  cama 
larga,  de  pinho,  alta  de  taboas,  com  sua 
barra  de  rozas  jovialmente  toucada  de  duas 
urnasinhas  etruscas  na  cimalha,  nunca  vae 
alem  de  três  a  cinco  mil  réis,  na  razão  do 
caminho  a  que  está  do  centro  productor.  A 
banca  de  pés  divergentes,  a  banca-tripeça 
de  cozinha,  feita  dazinho,  contemporânea 
do  sapateiro  das  cavernas(?)  e  que  pode  apre- 
ciar-se  de  resto,  já  civilisada,  em  faia  bran- 
ca, com  seu  plateau  d'azulejos,  na  mobi- 
ha  popular  d'eslylo  inglez,  a  prateleira 
p'ra  loiça,  o  oratório  e  a  arca  de  ferrolho, 
pintada  de  rozas,  á  moda  d'Evora,  eis  ahi 
lambem  trastes  primevos  que  bastaria  cor- 
rigir nos  accessorios,  escolhendo  madeiras 
seccas  e  mais  finas,  introduzindo  aqui  e 
aleai  formas  elásticas,  levezas  de  contorno, 


os  GATOS  M 

diminuição  de  pezo  e  alados  de  "pintura 
ornemanista,  para  com  pequeno  dispêndio 
e  diversa  educação  do  operário  se  conse- 
guir em  breve  um  mobiliário  popular  in- 
comparavelmente alegre  e  original.  Infeliz- 
menle  os  cadeireiros  dEvora  não  teem  per 
emquanlo  escola  industrial,  e  que  a  tives- 
sem, ninguém  Ines  compelliria  a  instrucção 
para  estas  fulricalhas! 

Eis  em  resumo  algumas  notas  á  margem 
sobre  o  que  me  pareceu  surprehender  de 
miu  na  exposição  industrial.  Torno  a  dizer 
que  estas  observações,  filiadas  de  resto  no 
offegante  desejo  de  vêr  o  trabalho  nacional 
medrar  de  vida  própria,  por  forma  alguma 
querem  dizer  falia  de  fé  no  fuluro  da  in- 
dustria inleUigínlemente  protegida,  e  no 
esforço  sympalliico  que  é  já  esse  montão 
de  coizas  a  esmo  na  galeria  dos  Jeronymos. 
O  que  ellas  representam  apenas  é  impa- 
ciência por  tanto  tempo  perdido  a  vencer 
diíTiculdades  caricatas,  a  jactanciar  trium- 
plics  que  não  são  mais  que  deshonestas  ar- 
timanhas, e  a  espernear  emfim  entre  diffi- 
culdades  derivando  d'uma  falta  de  plano 
na  reorganisação  fabril  da  nossa  teira. 


SXJ]\J[]M^?LI^I<> 


o  thealro  de  D.  Maria  e  a  euliuda  de  Lucinda  Si- 
lufx'?.  —  Deilicagáo  do  actor  [lelo  ivdamo.  —  Os  con- 
sa}íiados  do  proscénio  e  suas  birras,  basofias  e  de- 
f(-ifõs.  —  Brazão,  o  olympico.  —  Luciuda  Siuiões,  adi- 
\iiia.  —  Augusto  Hozii  o  iuiinitavel,  t*  João  hoza,  o 
coiiceucioso.  — Siltiiu-tci;  d'esit'S  artistas  t-  do  tuaie  que 
s('  disser. 


FIALHO  D'ALMEIDA 


OS    (3-J^TOS 

iíiU'ERlTO  A'  VIDA  PORTUGUSZA 


U  desastre  dos  adores  de  1).  Maria  no 
Brazil,  e  uma  (jnestão  iiriíante  (rescriplura 
d.'aclrizes  ijue  ha  pouco  tempo  cliouteava  os 
jornaes.  esporeada  a  medo,  pelos  reporlers, 
na  ansencia  dos  dramalurp:os-criliros  inte- 
ressados pelos  direilos  d'aucloi'  em  manter 
o  estado-nnfe.  de  novo  actualisa  toda  a  serie 
de  ([uesilos  que  siiccessivamenle  lemos  pro- 
[loslo  sobre  a  situação  cada  vrz  mais  ron- 
ceira do  tíiealro  poriujíuez 

Já  dispersamente  dissemos  o  que  nos 
tinha  parecido  suprehendei'  de  mau  nas 
producções  dramáticas  originaes,  e  não  é 
azado  reeditar  vindictas  que  por  certo  lião-de 
surgir.  cenlu[dicadas  de  fúria,  no  anno  dra- 


os  GAT(^S 


malico  (|uo  começa.  Simplesmente  guiaremos 
as  curiosidades  da  Iribu  artista  para  o  (jiie 
se  passa  em  bastidores  de  D.  Maria,  acon- 
selliarido  aquella  a  que  reaja,  por  bem  de 
todos,  contra  as  prosapias  do  elenco  nobre, 
actual,  da  companhia. 

O  caso  é  áspero  de  pensar  pelos  proces- 
sos simples  das  feridas  contusas,  n'uma 
terra  onde  pela  estreiteza  do  meio  e  a  rede 
dos  interesses  não  pode  havei-  coizas  autó- 
nomas, e  n'nma  classe  onde  quanto  não 
seja  elogio  incondicional,  é  uma  offensa, 
a  pagar-se  em  moeda  d'odio  vingativo.  En- 
tanto, como  a  companhia  do  theatro  de  D. 
Maria  é  a  questão  do  outono,  e  se  falia 
muito  em  dissolução  de  parlamentos,  salubre 
parece  averiguar  também  se  o  ideal  dramá- 
tico pode  governar  com  taes  reprezentantes, 
não  vamos  nós  agora  achar  inulil  o  Fuschini 
e  bacoco  o  Bernardino,  e  envolvei'  em  ido- 
latrias terríficas,  cabotinos  menos  valiosos 
e  muito  mais  bem  pagos.  Demais,  propondo 
correcções  hygienicas  na  casa  de  Garret,  por 
forma  ala^uma  miramos  deilar-lhe  abaixo  os 
pilares  e  inutilisar-lhe  os  colchões  comple- 
tamente: aquella  hospedaria  ainda  tem  tal- 


os  CrATns  :\ 

vez  inoveis  iiiagiii ticos,  praias  arlislicas,  c 
loiças  ({lie  mesmo  aniigas  e  radiadas,  ainda 
por  longo  lenipo,  com  alguns  gatos,  poderão 
reíniregar  o  palácio  na  sua  liabilual  snmiuo- 
sidade.  N'esle  sentido  começaríim  jornaes 
uma  cruzada  (|uc  logo  ás  primeiras  cargas 
produziu  etíeitos  primorosos,  e  Lucinda 
Simões  pode  íelicitar-se  de  entre  penetrar 
no  llieatro  por  uma  portaria  do  ministro,  e 
uma  demonstração  sympatiiica  da  imprensa, 
ter  preferido  a  ultima,  deixando  a  outra  aos 
estudantes  cabulas  a  quem  para  a  admissão 
n'uma  escola  superior,  íalta  latim. 

1']sta  vjcloria  porem,  |iosto  minúscula,  tão 
vaidosos  deixou  os  assaltantes,  (pie  pelo  si- 
lencio d'esles  vejo  a  campanlia  terminada, 
e  islo  surpreliende-me,  porque  a  questão 
do  tliealro  de  D.  Maria  é  mais  complexa,  e 
em  muilo  pouco  a  resolve  a  escriptura 
d'uma  comediante  que  se  resolvi;  a  acabar 
os  dias  rruma  cooperativa  de  velliice. 
(Cooperativa  de  velhice  é  carregado:' 
(Inido  (juenão.  Km  arle,(piem  pára, morre, 
e  lia  (piantos  annos  olha  a  genie  para  D.  Ma- 
ria e  vè  os  adores  a  íantocliinar  no  mesmo 
silio'.'  De  mais  a  geração  ipie  succedeu  á  ro- 


4  OS  GATOS 

nianiica,  do  leinpo  dEmiiia  das  Neves,  ti- 
rante alguos  momentos  de  Santos,  onde  pro- 
duziu ella  um  artista  verdadeirauíenle  gran- 
de e  excepcional?  O  theatro  moderno,  litte- 
rario  de  dialogo,  sem  catastroplies,  alem  d'ar- 
rcfecer  a  alma,  leve  o  mau  sestro  de  traves- 
tir de  prodígios  umas  creaturas  que  mesmo 
favoravelmente  julgadas  nunca  passaram  de 
medianias  doiradas  e  de  correctns  e  esculptu- 
raes  mediocridades.  Animal-as  emquanto 
persuadidos  da  sua  possibilidade  de  progres- 
so, il-as  benevolamente  tolerando,  visto  o  des- 
consolado argumento  de  não  haver  melhor  no 
alfobre  nacional — perfeitamente — mas  nun- 
ca admittindo  ^^ue  ellas  se  imponham  ao 
critério  geral  como  intangiveis,  nem  lhes 
tomando  a  serio  tam  pouco  a  filáucia  de 
constituirem  na  arte  um  principado  inde- 
pendente. Desde  porem  que  a  arte  de  re- 
prezentar  se  reduziu  no  theatro  de  D.  Maria 
a  uma  sinecura  dartifices  monocordios.  ba- 
tidos na  repetição  dos  mesmos  trucs,  des- 
naluralisando  a  dicção  a  sabor  das  suas 
nielopeas  aslhuialicas  e  d'uma  falta  de  pes- 
quisas onde  a  individualisação  dos  papeis 
consiste  em  Ía/AT  caliiar  os  typos  no  mesmo 


os  (;ato.->  li 

auloinalo  palliJo  e  cangado,  é  tlever  de  todos 
os  que  criticam  insurgir-se  contra  uni  es- 
tado de  coizas  (jue  está  fazendo  da  scena 
poi'tiigueza  uma  oratória  succursal  do  par- 
lamento, e  de  seis  ou  sete  comediantes  o 
alvo  d'uma  íoi'luna  arlislica  (jue  necessai'ia- 
menle  lesa  o  gosto,  e  só  tem  servido  \n\ra 
engordar  inexpressivos  manequins. 

N'esta  conformidade  daremos  as  i'apidas 
silhuetas  d'algu'is  acloi"es  e  actrizes  que 
por  sua  posição  no  iheatro  visam  o  pnpel 
de  modelos,  e  a  (piem  por  isso  mesmo  cabem 
responsabilidades  inlierentes  á  região  semi- 
divinal  em  cpie  se  movem. 


Eduanlo  Brazão. 

Figui'a  d'aclor  b-ancez.  índole  ardente, 
braços  descomnifinaes,  e  uma  vóz  sem  lle- 
xibilidade  com  tendência  a  eni'i(|uecei'  o  som 
pelos  rugidos.  E'  a  íigui'a  piiiR'i[)al  d;i  com- 
panliia,  e  as  suas  btllas  intrometidas,  reve- 
lando um  buscador  audaz  de  lances  s.cenicos, 
lá  vão  |)ercorrendo  Ioda  a  escala  de  genei^os 
onde  o  lado  brilbante  [)0ssa  dar-l!ie  ensejo 
a  elíeitos  calorosos.  A  sua  galeria  é  exien- 


t)  ÕS  GATOb 

sissima,  e  se  não  deixa  um  grande  papet 
scienliíicamenle  composto,  de  lóra  para  den- 
tro, á  Goquelin,  deverá  isso  atribiiir-se  á 
sua  Índole  oratória  de  porluguez  desamorado 
dos  infinitamente  pequenos  da  psvchologia, 
e  apenas  vendo  pela  rorlicula  emplialica, 
creações  destinadas  a  emocionar  plateas  que 
não  pensam.  Tem  na  dislribuição  dos  pa- 
peis, oiço  dizer,  a  parle  do  leão,  gostando 
de  confrontos,  pouco,  e  evitando  em  scena 
por  isso  todas  as  situações  em  que  o*pul)lico 
podia  comparal-o  desvantajosamenle  a  al- 
gum dos  mais.  No  Othello  por  exemplo,  lago 
irrita-o,  por  lhe  parecer  que  os  applausos 
não  visam  exclusivamente  o  ciúme  de  moiro 
([ue  elle  enrouquece  a  dai'  nos  possiveis  da 
sua  artilicialidade  de  sceptico  alfacinha. 
Como  todas  as  Índoles  de  proscénio,  recebe 
mal  que  se  triumphe  e  medre  ao  lado  d'elle; 
a  evidencia  é  uzeira  e  vezeira  em  sovinices 
d'estas.  e  na  vida  de  Iheatro  a  lucta  pela 
voga  é  uma  coiza  tão  rude,  íjue  muitas  vezes 
os  artistas  gaslam  em  intrigalhas  debaslidor 
o  talento  que  depois  lhes  vem  a  fazer  falta 
para  o  desempenho  dos  papeis.  E'  por  isso 
talvez  que  ha  uns  annos  para  cá  quazi  tcda 


os  GATOS  7 

a  coriipauliia  estacionou,  explorando  j)elo 
rodriguiniio  a  aflectividacie  estúpida  do  vul- 
go, e  gaizando  o  reporlorio  iiovo  com  os 
Ires  ou  quatro  nai-ises  de  cera  creados  pai-a. 
o  veliio.  Ejla  paragem  não  é  apenas  nociva 
pelos  entraves  locaes  ([iie  determina,  senão 
poress'oulros  ipic  generalisa  em  Indo  ipianto 
tem  relação  com  uma  ideia  de  conjunclo. 
No  tlieati"0,  como  na  rua.  as  liguras  paradas 
perturbam  o  livre  transito;  os  indivíduos 
activos  veem-se  obrigados  a  contornar  esse 
obstáculo,  visto  comO;  sendo  elle  grande,  lhe 
não  possam  passar  por  cima,  e  ó  o  caso  dos 
actores  novos,  annos  e  anni^s  á  espera  (pie 
a  policia  da  critica  restabeleça  a  circidação 
•  pie  um  mal  entendido  orgulho  se  compraz 
iiinterromper.  Comparada  á  dos  societários 
seus  colleiías.  ainda  assim  a  carreira  de  Hra- 
zão  não  se  pode  dizer  posesse  ponto:  pri- 
meiro, é  um  talento  tórrido,  com  accumula- 
ções  de  seiva  em  plena  floração;  a  edade 
não  lhe  peza.  ;i  vida  regorgila-lhe  em  bor- 
botões da  esbelteza  dúctil  da  ligura.  e  yen- 
do-o  na  scena  repetir-se,  explorar  dos  jxipeis 
apenas  a  oratória,  lançar  tá  vóz  e  os  l)i'aços 
em  certa  altura  dos  actos,  como  para  salvar 


8  OS  GATOS 

a  nado  a  peça,  o  que  se  apercebe  nào  é 
com  cerleza  no  aríista  iim  lolo  eslampie, 
senão  alguém  que  em  face  de  broncos, 
guarda  o  oiro  de  lei  p'ra  lhes  lançar  des- 
prezivamente  uns  lenlos  de  laíão.  D"estas 
escamolearões  somos  lodos  culpados,  e  não 
só  no  Ihealro,  mas  em  ludo,  pois  com  o  nos- 
so ar  de  bonliomia  sei'vil.  d'enlhusiasmo 
fingido,  iudo  nos  é  por  egual  indiííerente: 
um  individuo  ou  utn  íaclo  vivem  no  nosso 
espirito  apenas  para  o  momento  em  que 
apparecem;  insistem,  supponhamos.  e  logo 
a  íadÍLa  que  isto  nos  causa  se  iransíorma 
rapidamente  em  irritação — do  (jue  acotilece 
resolverem-se  ás  vezes  peia  irbçacoizas([ue 
tinham  entrado  em  nós  pela  ternura  ou  pelo 
exlasi.  Esta  a  falia  d"lnteresse  dasnalurezas 
cachelicas  de  leitura,  dos  espirilos  pairantes, 
que  em  todos  os  meios  intelligenles  usam 
ser  os  maioraes  da  opinião;  suslada  a  sua 
influencia  na  arte.  ficarão  as  questões  á  mer- 
cê das  inslinclividades  desordenadas  da 
turba,  que  assim  achará  tudo  mau  ou  ludo 
bom,  conforme  lhes  bala  ou  não  bata  o 
coração.  D'esta  soiie  acontece  ([ue  os  acto- 
res poiluguezes  sejam  quazi  todos    feitos 


^ÉiM^^^^^^^^ai^ 


os  GATOS  9 

pelo  publico  ordinário,  que  os  ensaia  a  ti- 
rante das  suas  apetencias  grosseiras,  lornan- 
do-os  em  mei"OS  figurinos  d'unia  sensiblerie 
d'occasião.  Não  posso  dizer  se  a  edade,  co- 
berta d"experiencia,  e  apaziguada  nas  sedes 
de  brilhante  que  fazem  o  continuo  anlielo  do 
actor  cego  de  palmas,  recapitulará  um  dia 
em  Eduardo  Brazão  as  esperanças  ma.\in)as 
que  alguns  partidários  seus  pozeramnoseu 
estro.  E'  possivel  que  abandonando  os  pa- 
peis de  galan,  de  linha  janota,  fatigada  a 
íarynge  dos  berros  cavos  que  levanlam  aos 
domingos  as  plateas  de  caixeiros,  e  sazonado 
o  artista  f)elos  martyrios  do  estudo  que  á 
hora  dos  cabellos  biancos  amoedam  o  ca- 
racter n*um  typo  adentrado  á  cogitação  das 
modalidades  do  ser  inlerioi-,  d'esta  ensi- 
mesmação  moral  surja  um  actor  verdadeira- 
mente forte  para  nos  dar  centros  de  peças, 
detalhados  para  dentro,  já  sem  aspandilhi- 
cí?s  discursivas  ipie  são  o  fácil  do  olTicio,  e 
lie  que  todo  o  creador  tem  obrigação  de  fu- 
gir como  d'umaborloejadeshonesta.  Em  Edu- 
ardo Bi'azão  valeria  a  pena  investir  contra 
esta  bai'reira  formidável,  alem  da  .(piai  só 
se  é  verdadeiramente  no  iheatro  um  lypo 


iO  os  GATOS 

superior,  porque  depois  dos  aclurcs  român- 
ticos contemporâneos  d^Emilia  nenhum  como 
este  se  revelou  mais  bem  dolado,  sendo  pena 
que  o  publico  lhe  peça  tão  pouco,  e  que 
elle,  rom  uma  escala  (raplidões  tanto  ao 
moderno,  não  tenha  feito  por  egualar-se  aos 
grandes  comediantes,  desprezando  a  pepi- 
neira  fácil  dos  applausos,  desbridando  o  ta- 
lento á  custa  de  marlyrio,  cravando  as  unhas 
na  alma  té  o  sangue  lhe  espirrar  na  plasti- 
cisação  d'uma  galeria  esculplada  com  todas 
as  vesânias  e  resaibos  da  psychologia  indi- 
vidual conteiíiporanea.  tão  pathologica,  tão 
louca,  e  de  que  um  grande  observador  faria 
o  laboratório  de  shakespearisacôes  estranhas 
e  terríveis. 


Lucmila  Simões. 

O  alvo  das  idealisações  Ifiealraes  n'este 
momento:  Cleópatra  no  Nilo,  lirada  por  tri- 
tões que  são  dramaturi^os  extáticos  nos  di- 
reitos d'auctor  que  ella  lhes  renda,  e  não 
vendo  as  provações  funestas  que  lhe  vae 
acarretar  a  evidencia  que  se  fez  na  ancie- 
dade  d'um  publico   seíjuioso   d'ullra-chic. 


os  GATOS  H 

Cerlo,  entra  os  liumbraes  de  D.  Maria  co- 
roada de  rainha,  como  se  o  lliealro  não 
fosse,  á  laia  do  paiz,  pequenino  de  mais 
para  ler  duas,  e  como  se  a  viuva,  mesmo 
morganática,  se  resignasse  a  envelhecer  íóra 
do  ihrono! 

Ouando,  ave  migradora  da  scena  por- 
tugueza,  suprema  de  juventude  impassivel 
como  todas  as  creaturas  que  provaram  do 
amor  apenas  o  pizzicalo.  vinhn  a  Lisboa 
repetir  com  seu  marido  o  thcalro  almiscarado 
e  nobre  de  Feuillet,  tudo  o  que  no  seu  jogo 
havia  d'esbalido  e  sem  resaibo,  resgalava-o 
essa  qualidade  eterna,  embevecente,  a  ado- 
lescência da  mulher  bella  de  \inte  annos, 
pouco  amorosa  embora,  spleenelica  e  su- 
prindo nos  nervos  mortos  facilmente  a  pai- 
xão pela  coquetice,  e  o  deliquio  sentimental 
pela  ironia.  Das  paixões  poéticas  que  fez 
alvorecer  então,  com  a  sua  candura  enig- 
mática de  sphinge,  pupila  do  marido,  nos 
corações  dos  esludanleS;  íar-se-hia  uma  jan- 
gada a  lhe  dispensar  o  transatlântico  de 
regresso  —  oh  sim,  uma  jangada  viva  d'in- 
genuos  platonismos!  —  enaslrando-as  de 
Lisboa  ao  Hrazil,  por  cima  do  mar,  tantas  e 


íi  (tS  GATO? 

lanlas,  e  onde  os  seus  pés  enxutos  pisas- 
sem, por  toda  essa  intérmina  distancia,  uma 
alcatifa  de  floritas  feitas  de  lieijos  sem  hi- 
^'0(1  e. 

Deslas  fugaces  fugas  pela  pátria.  Lucinda 
Simões  deixou  na  arlo  uma  impressão  de 
tina  transcendência,  e  na  plianfasia  túrbida 
dos  novos  alguma  coiza  de  semelfiante  á 
passagem  d'uma  estatua  levada  em  procis- 
são por  entre  coros  d'escravos  deslumbrados. 
As  suas  longas  viagens,  a  sua  belleza  i-ai-a. 
de  busto  um  pouco  forte,  alta  e  com  umcba- 
peu  Gainsbourougb  de  plumas  pretas,  a 
castidade  das  suas  mãos  senhoriaes,  puras 
de  pelle.  um  pouco  largas  de  chave  como 
as  de  rainha  D.  Amélia,  onde  brilhavam 
escudeles  d'anneis  na  lassidão  spleenelica 
dos  dedos— a  sua  voz  de  garganta,  agacante 
de  todos  os  artifícios  da  preciosidade  litte- 
rariaque  se  enfuna  — tudo  isto  concorria  para 
lhe  nimbar  a  mocidade  n'uma  lenda  de  gé- 
nio CUJO  mysterio  deixava  no  theatroum  ras- 
tro olympico,  a  ponto  dos  poetas  se  fazerem 
por  ella  sapateiros  —  Fernando  Caldeira, 
f^xemplo,  o  pespontador  dos  Sapatinhoíi  de 
í^eíim.  Voltou  annos  depois,  senhora  já,  trin- 


^ 


TvS  GATO?  í:í 

tando  irarltosíiinente  entre  dois  tillios.  e  a 
sua  helleza.  peidida  ■d\i\\)oy')s'u]i\áee{hereal, 
accentuava  as ([ualidades  mães  (jue  ;;nleiior- 
mente  deixara  suspeitar.  Kra  agora  uma 
rnuilier  lorle  e  eslylisada  a  primor  no  toHet- 
(e^  o  busto  curto  e  os  circuntornos  da  cinta 
sem  ampliora,  como  os  das  mullieres  ple- 
beas  (jue  amamentam,  a  cabeça  grande  e  for- 
temente articulada  n'um  pescoço,  que  para 
phidiesco  ser  precisaria  de  pelo  menos  con- 
tar mais  duas  vértebras.  No  C()rle  do  perfil 
nenhuma  atrevida  aresta  pondo  alertas  na 
ondulatuia  paiada  das  feições:  naris  pe(|ue- 
no.  de  lóbulo  redondo,  baldaipiinancío  uma 
bocca  de  golpe,  pródiga  quanto  pode  ser 
de  commissui'as  d'ironia:  queixo  sem  (|ui- 
llia.  lindando  uma  lace  commum  de  ser  sem 
luctas:  e  apenas  nos  olhos  castanhos,  lím- 
pidos d'agua,  ramudds  de  pestanas,  a  con- 
rentração  da  vida  preliensil  (jue  lhe  íalta- 
va  íio  resto  da  ligura.  Fallei  do  seu  buslo 
sem  esvasados,  comendo-lhe  a  cintura  e 
dando  á  implantação  do  tronco  nos  (|iia- 
dris  uma  linha  sui'da  de  matrona:  íallei 
do  pescoço  cm-to.  incapaz  de  continuar,  sei- 
pentinando,   os  coqueleios  da  c.ibeça  —  o 


14  OS  GATOS 

<|ue  é  o  [);ii-enlesco  da  mulher  co's  cvsnes 
wagnerianos — e  lodavia  estes  dois  senões  ca- 
pilaes  d*ai'c!iilcclura  mal  lhe  prejudicam, 
nos  vestuários  decotados,  a  estylisação  im- 
peccavel  dos  hombros  c  do  peiio.  a  esculp- 
tura  dos  braços,  que  são  únicos,  e  o  modelado 
das  espadoas,  frio  como  pedra,  evocação  de 
Praxilcles,  á  ílôr  do  qual  papel  algum  cala- 
íria  um  raslio  de  mors-amor.  K  e.sla  frial- 
dade de  Juno  sem  desejos,  ressumbranle 
das  feições,  propagada  á  rythmia  molle  dos 
gestos,  que  lhe  transparece  na  vóz  em  pre- 
guiçosos dialectos  lilterarjos,  onde  um  ou 
outro  desdém  metallico  transpira.  D"a(|ui  já 
se  infere  portanto  a  qualidade  de  theatro  que 
mais  se  lhe  coaduna  e  quadra  ao  tempera- 
mento, e  que  deve  ser  um  íhealro  de  dialogo 
correcto  e  fabulisação  paradoxal,  um  íhealro 
fallado  confortavelmente  em  salões  cheios 
de  Stores,  plantas  carnosas  c  pufs  de  setini, 
sabendo  ás  parabolisacões  mordentes  do 
moderno,  sem  tumultos  nem  gritos,  todo 
sensações  artificiaes,  banhos  de  leite  e  taças 
de  Champagne,  dehatendo  requintes,  trágico 
a  frio,  escorando  a  sua  anemia  nos  vicios 
pallidos  da  moda,  e  incomprehensivel  fora 


í)S  GATOS  ^H 

(lo  ar  lillerario  <la  e[iocha,  da  lilleralura 
arialytica  e  dos  íigurinos  macabros  da  esla- 
ção.  Já adevinharam  ({ue se estereolvpa assim 
ama  inoarnadoru  do  líiealro  de  Dtinias  titlio, 
de  Vicloiieii  Sardou.  e  porvenUirad*Aiigier, 
se  lhe  exagerarmos  um  pouco  recursos 
dramalicos  ate  agora  imperieilamente  com- 
provados nos  successos  surdos  da  Adriana 
Lecouvreur,  da  Princeza  deoryes  e  da  The- 
reza  Rwjuin.  E'  uma  actriz  de  comedia,  mas 
só  d'alla  comedia,  e  dentro  d'esla  ainda  o 
seu  reportório  perfeito  é  limitado.  O  ({ue  é 
que  se  lhe  conhece  na  obra  de  verdadeira- 
mente allivolo  e  superior?  A  Suzana  do 
Demi-Muiide,  o  primeiro  acto  da  Tliereza 
Raquin,  e  algumas  scenas  melhores  do  Di- 
vorçons.  O  resto,  para  uma  actriz  sem  nome, 
era  magnihco.  mas  tractando-se  da  sacerdo- 
tisa cumpre  encaral-a  á  labareda  di)  fogaréu 
do  génio  que  a  sua  reputarão  C(mstante- 
nienlf'  tem  d'atiçar  no  aliar  da  arte. 

Por  isso  dissemos  (|ue  a  protissão  claus- 
tral  de  Lucinda  Simões  em  0.  Maria,  tiran- 
do-lhe  o  mirabolante  das  reapparições  in- 
tervaladas por  grandes  periodos  d'ausencia 
e  de  repouso,  e  pondo-a  em  quotidiano  con- 


16  OS  GATOS 

lacloco'a  i'ilta!la,nocessariameiiloli;nerá((ije 
trazer  á  caprichosa  bobemia  algumas  dece- 
pções cruéis  dentro  de  pouco. 

PrimeirO;  constituída  em  figura  principal 
nos  llieatriniios  maus  onde  antigamente 
apparecia,  Lucinda  Simões,  semrivaes,  ajías- 
tava  de  si  (juakjuer  ideia  de  confronto. 

Segundo,  escolhia  ella  mesma  as  peças 
onde  se  «jueria  mostrar.  S()  apparecendo 
em  scena  preparada  por  longas  e  estudiosas 
pesquizas  no  papel,  e  isto  se  lhe  não  reme- 
diava as  incorrecções  que  a  falta  d'uni  en- 
saiador massacrante  e  auctoritario  acirra 
em  todos  os  comediantes  envaidecidos,  atte- 
nuava-lh'as  pelo  menos  o  possível  para  não 
transparecerem  nas  suas  creações  os  dispa- 
rates de  conjuncto  que  tão  frequentes  são 
nos  nossos  palcos.  Agora é  diverso.  Lucinda 
Simões  deixa  de  ser  para  muita  gente  a  sem 
rival;  vae  apparecer  n'umtheatro  onde  cada 
primeiro  comediante  não  pensará  senão  em 
distrahir  do  seu  nome  a  effusão  da  platea 
egoista  e  variável,  comprometendo-lhe  os 
successos  que,  mesmo  desastres,  todavia 
lhe  ficavam  no  Príncipe  Real.  indiscutíveis. 
E"  uma  actriz  de  comedia  í'  Pois  approxi- 


os  GATOS  17 

iiia-se  a  hora  tie  se  suiiiirein  de  D.  Mai-ia 
as  damas  dramáticas,  Virgínia  poi-  doente, 
a  Falco  por  cancada,  e  emparral-a-lião  pa- 
ra os  papeis  violentos,  onde  o  seu  tempera- 
mento molle  e  a  sua  voz  de  cabeça,  com  fun- 
dos duros,  incapaz  ifum  soluço,  d'um 
spasmo,  d"um  grande  movimento,  llie  pro- 
vaião  que  em  Iheatro  os  (jue  não  solírem, 
não  interessam.  Terá  de  baixar  a  (•al)eça, 
como  de  resto  os  demais  seus  coUegas  do 
elenco,  ao  jugo  da  tlisciplina  do  palco,  todo 
commercial,  une  manda  acceitar  os  papeis 
no  ponto  de  vista  das  conveniências  de  .lo- 
dos e  nunca  para  lisonga  exclusiva  das  vai- 
dades senhoris  dalta  ou  de  l)ela—  marcan- 
do-os  em  duas  sessões,  obrigando  a  coin- 
pòl-os  e  sal)el-os  em  quinze  dias.  e  a  repe- 
til-os  depois  deante  do  publico,  mal  deta- 
lhados, comidos,  sem  novidade,  sem  inven- 
ção, sem  psychologia.  entre  ciumentos  col- 
legas  que  lalseiam  a  deixa,  ou  levantam  o 
tom  p'ra  nos  estender  na  altura  em  ijue  o 
publico  poderia  não  applaudir  senão  a  nós. 
Ora  para  de  todos  estes  recifes  fazei  um  thro- 
no,  é  necessário  não  só  como  intelligcncia 
ser  um  cimo,  senão  também  como  esforço 


18  OS  (tATíIS 

possuir  uma  extraordinária  disciplina  de 
írahalho.  E  Lucinda  Simões  não  a  tem,  e 
como  talento  de  scena,  apezar  de  lli'o  con- 
lirmármos.  não  esquecer  que  ella  é  ha  quin- 
ze annos  a  actriz  d'um  S(')  papel  —  o  ([ue 
francamente  é  pouco  para  astro. 


Augusto  Roza, 
que  é  veidadeiramente  um  caracter  de  pal- 
co, íadado.  pelas  etíeminações  do  luxo.  pa- 
ra os  íogos  latuos  da  scena,  que  o  ponto 
apvaga  ou  assopra,  conforme— ^aconteceu-llie 
íer  tido  talento  umas  quatro  ou  cinco  vezes. 
F()ra  em  rapaz  uma  figurita  melódica  de  Vau 
Reers,  verde  de  pelle,  o  narisito  no  ar.  bus- 
cando caça,  dois  olhos  côr  de  pombo,  e  uma 
boquita  em  aro  que  lhe  ficou  assim  das  ex- 
clamações do  cidadão  Tremnitz  da  Sr.^  An- 
goí.  Hoje,  com  quarenta  e  pico,  da  gentile- 
za antiga  resta  o  nariz,  armado  em  ventas 
pelo  abuso  das  perfumarias  que  o  enfras- 
cam.  os  olhos  C()r  de  pombo,  um  pouco  ex- 
tinctos:  e  quanto  á  boquita,  posto  inda  em 
aro,  jtá  por  Lá  conta  o  seu  dente  ou  dois, 
mais  falsos  do  que  Judas.  Vestindo  bem, 


U>  (iATOS  VJ 

gaslaiido  na  gravata  inais  lalenlo  du  com- 
posição do  (jiie  na  miíie-en-scéne.  fallando 
como  quem  gorgoleja  as  palavras  na  saliva, 
lanlo  goslo  de  si  fazia  em  scena.  que  si)  na 
pintura  dos  ollios  gastava  todas  as  noites  o 
curso  completo  da  Academia  Real  de  liei- 
las  Artes.  Debutou  en\  D.  Maria  n'uma  es- 
pecialidade de  papeis  onde  a  sua  Índole  de 
janota  cinico^  coleava.  com  frivolidades  fran- 
cezas,  sorvidas  n'uma  rápida  assimilação 
do  que  vira  fazer  •àc?>jeuneii-prcniier  dramá- 
ticos de  Paris.  A  voz,  d'uín  timbre  desegual. 
quasi  toda  de  cabeça,  tornava-se  impi-opiia. 
como  (piasi  todas  as  dos  seus  collegas,  pa- 
ra a  vilalisação  dos  relances  palheticos,  e 
d'abi  o  sabir  cantada  e  recomida  no  tim  das 
plirases,  pela  curleza  asphixica  do  fôlego, 
e  o  quebrar-se  nas  passagens  de  força  — 
d'onde  a  recorrência  ás  resonancias  de  gor- 
ja  sempre  que  o  papel  pedia  vebemencias 
e  transfigurações  passionaes  de  coração. 
Tal  o  motivo  j)0r(pie  os  seus  papeis  dramá- 
ticos são  i'idiculos.  todos,  e  portpie  os  seus 
galãs  e  meios  centros  d"alta  comedia  sejam 
talvez  das  suas  composições  mais  duradou- 
ras. 1^]  como  Lucinda  Simões,  um  artista  edu- 


20 


OS  GATOS 


cado  no  lliealro  de  Sardou  e  de  Dumas,  e  o 
Septmoiilsda  Estrangeira  deu  a  revelação  do 
quanto  poderia  caiTiinharn'esíe  ao  direito,  ca- 
so annos  depois  não  cristaUisass«.  como  Nar- 
ciso, na  adoração  das  próprias  formosuras. 
Não  se  lhe  pode  negar  como  artista,  um  gosto 
innato.  e  certa  intuição  vivaz  na  perscruta 
exterior  dos  personagens;  figuras  suas.  co- 
mo o  D.  Cezar  de  Bazan,  o  amigo  Fritz  da 
primeira  maneira,  e  certos  bocados  de  pa- 
peis a  esmo  pelos  dramas  históricos,  teem 
á  primeira  vista  uma  espécie  de  magnifi- 
cência (|ue  se  impõe,  victoriosa.  estontean- 
do a  frieza  da  analyse.  e  alacrisando  a  phan- 
tasia  pelo  picloresco  intenso  dos  detalhes. 
Quem  lhe  não  conhece  a  famosa  entrada  de 
costas  do  D.  Cezar,  e  o  sua  mãe  inda  inve?.,. 
da  Estrangeira?  Todavia,  se  para  o  gros- 
so publico  inculto  e  lorpa  estes  luzentes  de- 
calcos  são  tudo   o  (jue  eile  comprenhe  e 
aceita  na  fortuita  psychologia  dos  persona- 
gens de  theatro.  nem  por  isso  os  inquéri- 
tos da  critica  terão  que  ficar  perpetuamente 
extasiados  perante  o  artista  que  d'elles  fez 
cavallo  de  parada,  ou  desconvirão  do  prin- 
cipio de  que  quanto  mais  altas  as  aptidões 


HS  (iATOS  -Jl 

do  actor  p'rá  vida  scenica,  tanto  inaior  de- 
va ser  a  tyrannia  em  do  talento  lhe  arrancar 
successivas  e  intensas  creações.  Augusto 
Boza  é  um  actor  que  (|uasi  em  plena  ado- 
lescência (Tarle  engagueceu,  como  Rrazão, 
á  força  d'esse  orgulho  estulto  ({ue  é  o  re- 
zultado  da  bajulação  tomada  a  sério,  e  mer- 
cê da  qual  sossobram,  em  certas  vaidosas 
oi'ganisações  de  cabotinos,  lodosos  assomos 
de  lucidez — em  termos  do  lalento  degenerar 
n'uma  espécie  de  bugiaria  inconsciente.  A 
necessidade  de  manter  o  publico  n'uma  em- 
basbacação  especlante  que  os  seus  recursos 
naturaes  poderiam  estender,  quando  muito, 
aos  limites  de  quatro  ou  cinco  foruuilas  co- 
nhecidas, levou-o,  em  certa  altura  da  sua  vi- 
da iheatral,  a  forçar  a  corda,  sahindo  dos 
papeis  irónicos  para  o  drama,  e  percorren- 
do com  a  mesma  monotonia  enphalica  todos 
os  géneros  onde  uma  caraclerisação  picto- 
resca  e  accentos  guturaes  lhe  poderiam  fa- 
zer reputação  de  hei  esprif.  Menino  bonito 
da  empreza,  aucloridade  e  voz  em  Iodas  as 
resoluções  do  grande  conselho,  tem  nas 
sessões  voto  dobrado — porque  o  mano  João 
nunca  formula  o  seu.  senão  por  monosylla- 


ns  GATOS 


bos^e  representa  na  harmonia  da  balança 
o  peso  opposto  ao  que  Roza  Damasceno  e 
Brazão  fazem  pesar,  no  outro  prato.  Entre 
estes  dois  grupos,  o  ciúme  de  palco,  que  o 
publico  só  conhece  por  entre  um  simulacro 
de  fraternaes  demonstrações,  é  um  d'estes 
sentimentos  cauterisantes,  coleantes,  medro- 
sos da  publicidade  e  prohibidos  d'explosão 
directa,  sob  que  rechina  a  vida  do  actor  ad- 
mirado, dia  e  noite  em  paralello  continuo 
c'o  seu  emulo.  Toilos  os  principios  d'epo- 
cha,  fins  d'epocha.  meados  d'epocha,  quan- 
do na  peça  nova  tem  papel  d'espavenlo  al- 
gum dos  Rozas,  corre  o  boato  de  (|ue  o  il- 
luslre  lírazão  pensa  em  deixar  o  theatro, 
por  desgostos;  ou  se  é  Brazão  (jue  Irium- 
pha,  o  mesmo  boato  esíumaceia,  respeitan- 
te aos  manos  descontentes.  Com  as  patea- 
das.  idênticos  regougos,  prosapias  d'insubs- 
tituibilidade,  ameaças  de  que  se  vão,  que 
não  precisam,  e  depois  d'elles  o  diluvio  — 
mas  coiza  singular!  quanto  mais  co'a  re- 
tirada nos  acenim,  tanto  com  mais  ferre- 
nha gula  se  esbofam  na  guerreia  dos  pa- 
peis, por  disputar-se  o  favor  da  galeria.  E 
que  admira?  a  pingadeira  é  rica  e  delicioso 


■)S  GATOS  2:; 

e  folgado  o  oíiicio  a  mais  não  ser.  .  Oan- 
no  passado,  no  íim  da  epocha,  repartiram 
por  ({uatro,  desoito  contos:  por  conseguinte 
não  haja  medo  (jue  abalem  sem  alguém  os 
pôr  de  lá  p'ra  fora,  pois  aquelles  que  a  pai- 
xão d'aclor  não  aparafusa  ás  ta  boas  do 
prosceni.».  lá  teem  a  judiaria  cúpida  do  di- 
nheiro ;i  junjil-os  á  panelinha  de  sabidos 
compadres  que  se  estão  rentando  para  o 
povo.  D'aqui  porlanto  um  modnsvivendicu- 
jas  concessões  reciprocas,  se  nem  sempre 
teem  podido  evitar  tentativas  de  quebra  de 
contracto,  e  ameaças  de  separação  escanda- 
losas, todavia  permitle  a  ambos  os  grupos 
o  respirarem  n'uma  tal  ou  (jual  autonomia. 
D'uma  banda  Roza  Damasceno,  esquecida 
da  edade.  agarrada  ás  ingénuas  (|ue  ella 
aboneca  co'as  polichinelices  d'uma  voz  en- 
ferrujada, põe  como  condicção  o  não  lhe  es- 
cripturarem  senão  divns  rançosas,  carcaças 
de  fêmeas  que  façam  valer  pelo  absurdo  o 
({ue  a  interessante  artista  ainda  possa  exhi- 
bir  d'alerta  e  espevitado.  D'outra  banda. 
Augusto  Roza,  desasocegado  por  ciiimeiras 
idênticas,  vigiando  com  desesperados  olhos 
a  porta  de  scena  por  onde  um  faial  acaso 


á't  US  (iATUS 

d'escnplLira  íaça  eulrai'  o  jiivenii  galã  (jue 
lhe  íierrole  d'um  pinclio  os  successos  gutu- 
raes  dos  ullimos  seis  annos.  No  fundo,  es- 
tes desesperos  da  evidencia  na  escalada 
d'uma  gloria  fugitiva,  lêem  seu  ressuino  to- 
cante, que  pulsa  de  fraqueza  humana,  e  é 
natural  na  tiragem  d'estas  organisações  ar- 
tiíiciaes  que  vivem  de  brouhahas.  Recom- 
por o  martyrio  do  comerliante  amimado  que 
e'nvelliece  á  espreita  (jue  uma  noite  de  de- 
bute lhe  derroque  os  trinta  annos  d'ovações 
enthusiastas,  é  visionar  nos  seus  sinistros  re- 
cessos esse  calvário  medonho  onde  vem  a 
morrer  todas  as  celebridades  fatiadas,  acto- 
res, oradores,  por  entre  o  encolher  de  hom- 
bros  da  turba  esquecida  da  emoção  que  el- 
les  lhe  deram.  Não  é  propriamente  a  doen- 
ça do  coração  que  ao  cabo  de  delíquios  que- 
bra as  molas  do  ser  a  esses  desterraaos — 
o  abandono  é  que  os  rebenta,  o  silencio 
glacial  é  que  os  acaba;  novas  glorias  suc- 
cedem  e  ninguém  já  tem  uma  palavra  para 
as  nossas;  os  periódicos  não  nos  incensam 
mais  as  deslumbrantes  noites  de  delirio.  a 
multidão  não  se  volta  se  passamos:  a  obs- 
curidade, que  é  de  todos  os  insultos,  o  mais 


lis  (IA TOS  áo. 

cvnico,  asphixia-nos,  e  seis  mezes  depois  de 
deixar  a  scena.  o  artista  não  lem  já  nome: 
é  um  tal  ou  uma  tal,  (jue  lizeiam  chorar  ou 
rir  nossos  avós.  .  .  .  Gomprehende-se  por- 
tanto (jue  sendo  a  gloria  do  actor  uma  let- 
tra  á  vista,  todos  elles  laçam,  p'ra  se  não 
submergii'.  osíorços  desesperados;  mas  este 
capitulo  ('  historia  sentimental,  e  a  arte,  que 
é  uma  deusa,  seria  ridícula  descendo  do 
carro  jjara  pôr  rataplasinas  nos  aleijões  das 
suas  victimas.  Augusto  Roza — tornando  ao 
velho  tliema — é  na  moderna  historia  do 
theatro  de  D.  Maria  cúmplice  e  reu  de  dois 
deploráveis  attentados.  Reu,  porque  poden- 
do ter  sahido  um  artista  fero,  está  reduzido 
por  basolia  a  uma  simples  utilidade  black- 
boulée  d'applausos  chalros,  junant  de  chie 
todos  os  papeis  ipie  o  enamoram  por  (pial- 
quer  accidente  estravagante.  Cúmplice,  por 
com  os  outros  societários  do  theatro  só  ter 
pensado  em  si.  e  na  arte,  pouco,  não  Irans- 
mittindo  aos  novos  um  conselho  só  da  escola 
adfjuirida,  nem  preparando  Iam  pouco  gera- 
ções successoras,  pelo  egoismo  de  se  acha- 
rem lun  dia  sós  no  campo  das  receitas.  Estas 
duas  accusacões  devem  lancai-se  em  rosto 


-26 


(js  gatos 


de  lodos  os  que  em  D.  Maria  se  vangloriam 
de  sustentar  as  tradicções  do  theaíro  por- 
tngaez.  Não  ha  um  único  comediante  pela. 
arte;  é  tudo  actores  pelo  pul>lico  e  para  o 
publico — embaciado  o  brillio  da  juventude, 
estafados  os  recursos  physicos  do  debute, 
quando  estas  coisas  não  contam  mais  para 
a  seducção  da  (urba  lorpa.  os  pobres  dia- 
bos appa recém  então  como  os  espantalhos 
de  si  próprios,  não  creando  nada  alem  do 
exagero  do  que  fizera  o  successo  das  suas 
noites  de  triumpho.  Houve  por  exemplo 
uma  epocha  em  que  Augusto,  Roza  não  via 
nos  papeis  i;enão  Septmonts:  pastelleiros, 
janotas,  boticários,  tudo  tinha  a  chancella  do 
famoso  malandro  ih  Estrangeira.  Quem  não 
conhece  o  ranço  deixado  pelo  OlheUo  nos 
papeis  dramáticos  de  Brazão  ?  e  o  da  tilha 
do  Rei  Caramba,  nas  rainhas  de  Roza  Da- 
masceno? Imaginam  que  estas  repetições 
cararterisem  sempre  pobreza  d'invenção  "^ 
D'uma  vez,  increpando  ein  palestra  um  dos 
artistas,  sobre  a  mania  d'elle  dar  a  toda  uma 
serie  de  papeis,  o  verniz  d'um  cerio  em  ([nc 
ticára  consagrado,  redarguiu-me.  sorrindo, 
o  dom  tunante:  você  que  quer?  o  publico 


os  GATOS  27 

gostou .  .  .  Agradar  ao  publico,  eis  a  caria  de 
guia  para  a  gloria.  A'  uma,  é  esla  na  arle 
de  representar,  a  poria  íacil;  á  oulra,  to- 
mando por  critério  artislico  toda  e  qualquer 
lisonja  servil  ao  idolo  grosseiro,  quanto  n'a- 
quella  arle  houver  de  profundo  e  raro,  è 
alijado  ao  mar  como  arrheologia  caturra  de 
que  só  os  eruditos  mascam  o  inútil  ponti- 
lhado. Começa  pela  dicção,  onde  desde  a 
poncluação  e  do  fôlego  da  phrase  dando  o 
preí^ipilar  ou  o  relentar  do  movimento,  até 
á  sensibilidade  da  voz  dando  a  vibração  de 
tal  sentimento  ou  ideia  transmissível,  tudo 
é  falhado  e  interpretado  ao  capricho  da  au- 
ra epiléptica  do  artista,  constituido  para  o 
caso  em  nevrostolo.  Já  havia  a  designação 
de  voz  de  theatro  para  exprimir  certas  gutu- 
ralidades  de  bode  emitidas  por  entre  modu- 
lados de  bocca.  fallando,  como  diz  o  povo, 
à  politica;  de  ha  uns  annos  para  cá.  os 
actores,  [ireoccupados  dachar  uma  algara- 
via nova  que  picasse  a  curiosidade  da  gale- 
ria, teem  fabricado  dentro  daquella  espé- 
cie d'uivo  ou  miado,  series  d'oulras  vozes 
chérrotaníes,  qual  mais  falsete,  para  occul- 
tar  estragos  de  larvnge  que  a  asihma  ou  a 


28  OS  GATOS 

edadellies  Irazeni.  depois  de  cada  allaque  de 
labagismo  ou  dinílueuza.  O  etíeito  d'esla 
emissão  vocal  defeituosa,  filha  d  achaques 
ou  de  uiaus  hábitos  phonelicos  determina- 
dos por  uma  necessidade  d'enphase  com 
que  o  actor  portuguez  supre  a  emotividade 
de  papeis  que  não  entende,  ou  que  não  es- 
tuda, clioca  principalmente  as  pessoas  de 
gosto  que  vão  ao  theatro  poucas  vezes,  e  a 
(|uem  ellfts  lodos  dão  uma  impi'essão  deber- 
radores  de  club  ou  de  fantoclies,  e  por  imi- 
tação determina  na  pronuncia  e  na  falia  lis- 
boeta uma  serie  de  modulações  e  defeitos 
grammaticaes  que  desvirtuam  o  espirito  da 
lingua,  e  intiltram  melopeas  janotas  na  con- 
versa das  classes  ditas  «illustradas»  da  ci- 
dade. Basta  frequentar  a  meia  tijella  elegan- 
te dos  caifés  e  /ive  6  cloch  para  dentro  da 
preciosidade  equivoca  dos  genlilhomens  da 
gomma,  das  demoizellas  uterinas  edas  mada- 
ma^litleraticicas,  reconhecer  os  imitadores  ex- 
tasiados de  Brazão,  d'Augusto,  daPiozaeda 
Lucinda,  e  ter  ganas  de  os  saccudir  alli  mes- 
mo, tesamente,  com  quatro  chufas  d'arriei- 
ro.  Mercê  da  dicção  convencional,  a  ondu- 
latura  melódica  que  o  auctor  dera  á  sua  pro- 


US  GAT(.>S  2ií 

vSa,  c  alterada,  preverlidu  o  sentiJo  da  lira- 
da — umas  passagens  falham  por  excesso 
de  íorça  dada  á  passagem  anlerior— certos 
detalhes  não  rendem  o  etfeito  para  que  lia- 
YÍam  sido  calculados,  a  linha  do  lypo  que- 
bra-se,  e  (juando  a  tirada  atíecta  para  o  eí- 
feito  dramático  uma  espécie  de  desordem, 
o  actor  levado  no  clieio  da  oraloria,  não 
põe  n'essa  desordem,  como  devera,  a  har- 
monia, embrnlha  no  mesmo  tom  impressões 
distinclas.  volta  a  explorar  effeitos  esgota- 
dos, ignorando  que  «cm  dicção  é  sobi'etndo 
durante  o  repouso  que  se  prepara  o  movi- 
mento, isto  é,  (pie  as  evoluções  de  senti- 
mento se  produzem  quasi  sempre  íóra  do 
texto. »  e  ipie  «exprimir  o  que  está  escriplo, 
nem  sempre  é  no  trabalho  do  actor,  a  coisa 
principal. »  E  o  caso  é  (|ue  o  publico  é  tão 
lorpa,  a  critica  tão  cega,  e  de  tão  bòa  boc- 
ca  os  dramaturgos,  que  quanto  mais  aquel- 
la  escamoteação  do  títere  é  torpe,  tanto  nutis 
deslumbrados  os  patetas  licam  deanle  do 
seu  macaco  predih'clo. 


30  os  (lATÕS 

João  Roza. 

Decadência  iilil.  com  uma  caneira  onde 
vislumbraram  aqui  e  alem  ligm'as  estimá- 
veis. Ignoro  se  teve  talento;  conversado  pa- 
recia que  não;  representado  ks  vr^zes  pare- 
cia ((ue  sim.  e  o  cerlo  ('■  (jue  eu  enfeixo  as 
minhas  opiniões  no  cabaz  onde  a  maioria 
dos  seus  apreciadores  pozeram  conVas  tlc 
loiro,  franjadas  de  exagero!  Foi  lia  quinze 
annos  nos  papeis  de  galã.  um  esbelto  se- 
ductor,  d'essa  viril  ((ualidade  portugueza, 
cheia  de  musculo,  de  geslo  quente  e  d'olhar 
procreadoí'.  que  as  anemicas  das  frisas,  ca- 
sadas com  aranhiços,  levavam  idealmente 
para  casa,  ao  fim  dos  amorosos  lances  no- 
l)res  das  comedias  de  Sardou  e  de  Dumas. 
O  marquez  de  Prestes  do  Poirier,  o  Girard 
da  Estrangeira,  o  filho  natural  dos  Foiír- 
chariihauU.  e  outras  figuras  mais  d'esta  ana- 
tomia cavalheiresca,  constituem  na  sua  pra- 
leleira  artistica  a  faiançaria  mais  cuidada, 
e  com  effeilo  são  ellas  hypotheses  necessá- 
rias emipianlo  nas  comedias  para  lamilias 
fôr  moda  idealisar,  em  joguetes  patheticos, 
esse  espirilo  convencional  do  bem  que  é  de 
iodas  as  phantasmagorias  litlerarias  a  que 


os  (iATOS  M 

mais  losislenleinenle  cilhoii  na  moral  dos 
lares  l)Gm  comidos.  Tardo  da  íalla  c  com 
amearos  de  gaguejo  num  ou  n'oulro  ai'i'an- 
co  de  pronuncia.  João  lioza  teve,  para  dis- 
farçar esse  defeilo.  o  trabalho  paciente  d'um 
tisico  (jue  quer  íazer-se  á  viva  íorça  n'uni 
gymnasta.  e  esse  lirocinio  o  salvou  durante 
tempo  das  difliculdades  ingratas  da  sua  ar- 
te. n'um  -género  de  papeis  onde  quíilrjuer 
peijueno  defeito  seria  um  entrave  dui'0  ao 
seu  presiigio  de  proscénio.  A  evoluçHo  da 
edade.  accentu;iudo-llie  os  defeitos  plione- 
ticos,  fel-o  derivar,  poi'  uui  atilado  instincto 
d'artis1a.  para  os  centros  de  comedia  e  dra- 
ma onde  a  composição  interior  do  papel, 
mais  complicada,  dispensa  já  os  brilhos 
plásticos  do  corpo,  sobrelevando-os  com  o 
estudo  doulios  detalhes  psychicos,  pelos 
quaes  o  aclor  se  desdobra  em  typos,  e  a 
oratória  decorada  e  commum  dos  galãs />c^/- 
hUres  cede  o  passo  talvez  a  creações.  N'es- 
la  altura  porém,  João  lioza,  para  triíuufdiar 
do  grande  escolho  careceria  de  faculdades 
analyticas  que  nem  a  trama  lianal  dn  sua 
inlelligencia.  nem  oscabedaes  da  sua  Icilu- 
ra.  lhe  podi.-MVi  fornir  lucidamenl(\  e  \)0\-  is- 


as  '/S  (.Aios 

so  íoi  t|ut'  os  seu8  papeis  de  ceniro,  raros 
llie  ticaram,  esculpturaes.  na  galeria,  sal- 
vando-se  apenas  aíjuelles  (jue.  como  o  Luiz 
XI  e  o  Vago.  pela  abundância  dos  delallies 
cortantes  e  das  rubricas  pitorescas,  estavam 
natuialmente  dissecados  no  texto,  não  len- 
do o  actor  que  invenlar  de  sua  cabeça  se- 
não trucs--onde  doesta  vez  os  defeitos  de 
João  Ro?a  condissei'am  conj  íuigurancias  de 
verdadeiras  qualidades.  Por  estas  razões  íi- 
cará  na  historia  do  thealro.  como  ora  está 
na  companhia,  em  medalhão  d'aclor  cons- 
cencioso — cons^cencioso  de  mais  ás  vozes,  a 
ponto  da  gente  se  chegar  aaíiligir  com  tan- 
ta consciência.  Parecerá  que  gagueja  os  pa- 
peis: não,  é  a  sua  maneira  escrupidosa  de 
os  detalhar.  O  escrúpulo,  eis  o  seu  lemma! 
Um  desenhisla  que  no  jornal  Pontos  nos  II 
enchia  os  fundos  das  caricaturas  de  Bor- 
dallo.  a  tal  nonio  levava  o  escrúpulo  d'esla 
iarefa.  (pie  d'uma  v('z  mandando-se-lhe  co- 
piar uma  photographia  onde  um  borrão 
cahira.  não  só  copiou  a  photographia,  como 
desenhou  o  borrão  no  silio  próprio.  Tal  a 
(idelidade  de  João  Roza  como  actor.  Dá  a 
[diolographia  do  typo  que  o  dramaturgo  p()z 


■Ai'^Mm^^ 


na  pí'rn,  iruis  dá  o  borrão  Uimhein  — por 
convScifíiiciíí.  Ks(jueci(lo.  Pára-llic  o  ameri- 
cano ;i  poria  e  elle  cuida  (]iie  o  amigo  é  que 
tem  de  sp  apeai-.  Nunca  sabe  de  nada,  diz 
(|ue  sim  a  ludo.  e  o  resto  é  com  o  Augusto. - 
(Jae  pelo  buraco  do  ponto  peça  sobre  (pie 
laça  presagios  íavoraveis,  e  o  mesmo  acon- 
tece com  ;)s  actrizes,  cujo  talento  só  sf*  com- 
prova para,  elle,  lóra  do  tablado,  liatào  ne- 
cessário, estimável  como  artista,  e  com  mn 
respeito symj)a(liico  pela  memoria  do  pae,  de 
quem  elle  julga  seguir  a  escola  (Mipliatica  e 
vibraíile.  Tbeoricttmenle.  é  como  lodos  os 
seus  demais  collegas.  uma  miséria,  não  len- 
do um  livro,  não  percebendo  a  linlia  [)sy- 
chologi<a  dum  papel,  mas  com  uma  esj)e- 
cie  d"instincto  (pie  por  vezes  llie  supre  o 
(]ue  lhe  falta.  Os  seus  padi'es  são  celebres; 
tem  uma  maneira  de  os  enlernecer  entor- 
tando a  bocca.  (í  íallando  de  bochecha,  que 
é  dos  Irucs  da  scena  o  mais  decrépito,  e  va- 
lha a  \erdade  também,  o  mais  gostado.  Nos 
intervallos  dos  padre.s  deila-se  aos  reis  da 
historia  portugiieza,  por  íorma  a  seguir  os 
lypos  de  íaccinora  (pie  nos  dá  o  Manuel  de 
Macedo  im  JliMovui  do  {lhaga,s.   gravados 


u 


os  (iATOS 


pelo  Alberto.  O  sen  í).  João  II  do  Duíjne  de 
F/2^í/ parece  arrancailo  a  um  theatro  minho- 
to, pelas  íeslas  da  Pasclioa — por  onde  elíe 
barafusta  é  um  fedor  ({ue  tomba,  a  carne  as- 
pada. 


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