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Full text of "Os sonetos completos. Prefaciados por J.P. Oliveira Martins"

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I 


SONETOS 


Desta  edição  imprimiram-se  Soo  exemplares  em  papel  de  linho, 
numerados  e  rubricados  pelo  editor. 


os 

SONETOS 

COMPLETOS 


DE 


ANTHERO    DE    QUENTAL 

PREFACIADOS  POR 

J.  P.   OLIVEIRA  MARTINS 
NOVA   EDIÇÃO 


COIMBRA 

IMPRENSA    DA    UNIVERSIDADE 
1922 


04(^/7 


1125371 


ESCREVENDO  cstas  brcvcs  paginas  á  frente  dos 
Sonetos  de  Anthero  de  Quental  tenho  a  sa- 
tisfação intima  de  cumprir  o  dever  de  tornar 
conhecida  do  publico  a  figura  talvez  mais  caracte- 
ristica  do  mundo  litterario  portuguez,  e  decerto 
aquella  sobre  qne  a  lenda  mais  tem,  trabalhado. 
Estou  certo,  absolutamente  certo,  de  que  este  livro, 
embora  sem  écco  no  espirito  vulgar  que  faz  repu- 
tações e  dá  popularidade,  ha-de  encontrar  um  aco- 
lhimento amoroso  em  todas  as  almas  de  eleição,  e 
durar  emquanto  houver  corações  afflictos,  e  em- 
quanto  se  fallar  a  linguagem  portugueza. 

Procurarei,  no  que  vou  dizer,  guardar  para  mim 
aquillo  que  ao  publico  não  interessa :  a  viva  ami- 
sade,  a  estreita  communhão  de  sentimentos,  o  affecto 
quasi  fraterno  que  ha  perto  de  vinte  annos  nos  une, 
ao  poeta  e  ao  seu  critico  de  hoje,  fazendo  da  vida 
de  ambos  como  que  uma  única  alma,  misturando 
invariavelmente  as  nossas  breves  alegrias,  muitas 


6  OsSoíietos    cotnpl etos 

vezes  as  nossas  lagrimas,  sempre  as  nossas  dores 
e  os  nossos  enthusiasmos  ou  o  nosso  desalento. 

Discutindo  em  permanência,  discordando  frequen- 
temente, ralhando  a  miúdo,  zangando-nos  ás  vezes 
e  abraçando-nos  sempre :  assim  tem  decorrido  para 
nós  perto  de  vinte  annos.  Mas  o  leitor  é  que  nada 
tem  que  ver  com  esses  casos  particulares,  nem  com 
o  abraço  que  trocámos  no  dia  em  que  primeiro  nos 
conhecemos  e  que  só  terminará  n'aquelle  em  que 
um  de  nós,  ou  ambos  nós,  formos  descançar  para 
sempre  sob  meia  dúzia  de  pás  de  terra  fria. 


I 


Eu  não  conheço  phisionomia  mais  difficil  de  de- ! 
senhar,  porque  nunca  vi  natureza  mais  complexa- 
mente bem  dotada.  Se  fosse  possivel  desdobrar 
um  homem,  como  quem  desdobra  os  fios  de  um 
cabo,  Anthero  de  Quental  dava  alma  para  uma  fa- 
milia  inteira.  E  sabidamente  um  poeta  na  mais 
elevada  expressão  da  palavra;  mas  ao  mesmo  tempo 
é  a  intelligencia  mais  critica,  o  instincto  mais  pra- 
tico, a  sagacidade  mais  lúcida,  que  eu  conheço.  E 
um  poeta  que  sente,  mas  é  um  raciocínio  que 
pensa.     Pensa  o  que  sente;  sente' o  que  pensa. 

Inventa,  e  critica.  Depois,  por  um  movimento 
reflexo  da  intelligencia,  dá  corpo  ao  que  criticou, 
e  raciocina  o  que  imaginou.  —  O  seu  temperamento 


Prefacio  7 

apresenta  um  contraste  correlativo:  é  meigo  como 
uma  creança,  sensitivo  como  uma  mulher  nervosa, 
mas  intermittentemente  é  duro  e  violento. 

É  fraco,  portanto?  Não.  A  vontade,  em  obe- 
diência á  qual,  e  com  esforço,  se  faz  colérico,  fal-o 
também  forte  —  d'esta  força  persistente,  raciocinada 
e  na  apparencia  plácida,  como  a  superfície  do  mar 
em  dias  de  bonança.  O  Oceano,  porém,  é  inte- 
riormente agitado  pelo  gulf  stream  quente  e  invi- 
sível: também  ás  vezes  a  placidez  extrema  da  sua 
face  encobre  ondas  de  atflicção  que  sobem  até  aos 
olhos  e  rebentam  em  lagrimas  ardentes.  Sabe  cho- 
rar, como  todo  o  homem  digno  da  humanidade. 

É  d'estas  crises  que  nasceram  os  seus  versos, 
porque  Anthero  de  Quental  não  fa^  versos  á  ma- 
neira dos  litteratos:  nascem-lhe,  brotam-lhe  da  alma 
como  solluços  e  agonias.  Mas,  apezar  d'isso,  é  re- 
quintado e  exigente  como  um  artista:  as  suas  lagri- 
mas hão  de  ter  o  contorno  de  pérolas,  os  seus 
gemidos  hão  de  ser  musicaes.  As  faculdades  ar- 
tísticas geradoras  da  estatuária  e  da  symphonia  são 
as  que  vibram  na  sua  alma  esthetica.  A  noção  das 
formas,  das  linhas  e  dos  sons,  possue-a  n'um  gráo 
eminente:  não  já  assim  a  da  cor  nem  a  da  compo- 
sição. Aos  quadros  chama  painéis  com  desdém, 
e  por  isso  mesmo  tem  horror  á  descripção  e  ao 
pittoresco.  É  artista,  no  que  a  arte  contém  de 
mais  subjectivo.  A  sua  poesia  é  esculptural  e  hie- 
rática, e  por  isso  phantastica.     E  exclusivamente 


fi  o s    S oneíos    CO mp letos 

psvchologica  e  dantesca:  não  pode  pintar,  nem  des- 
crever: acha  isso  inferior  e  quasi  indigno. 

Os  seus  versos  são  sentidos,  são  vividos  como 
nenhuns ;  mas  o  sentir  e  o  viver  d'este  homem  é  de 
uma  natureza  especial  que  tem  por  fronteiras  phi- 
sicas  as  paredes  do  seu  craneo,  mas  que  não  tem 
fronteiras  no  mundo  real,  porque  a  sua  imaginação 
paira  librada  nas  azas  de  uma  razão  especulativa 
para  a  qual  não  ha  limites. 

O  poeta  é  por  isso  um  mystico,  e  o  critico  um 
philosopho.  O  mysticismo  e  a  metaphisica,  o  sen- 
timento e  a  razão,  a  sensibilidade  e  a  vontade,  o 
temperamento  e  a  intelligencia,  combatem-se,  ás 
vezes  dilacerando-se.  Eis  ahi  a  explicação  d'esta 
poesia  que  é  o  retrato  vivo  do  homem.  O  génio, 
esse  quid  divinatorio,  que  não  e'  honra  para  nenhuma 
creatura  possuir,  porque  só  nos  dá  merecimento 
aquillo  que  ganhámos  á  força  de  intelligencia  e  de 
vontade ;  o  génio,  que  é  uma  faculdade  tão  acci- 
dental  como  a  côr  dos  cabellos,  ou  o  desenho  da^ 
feições ;  o  génio,  que  pode  andar  ligado  a  uma  in- 
telligencia medíocre,  mas  que  o  não  anda  no  caso 
de  Anthero  de  Quental  —  é  o  predicado  particular 
e  a  chave  do  enygma  d'este  homem.  O  génio  pre- 
suppõe  a  intuição  de  uma  verdade  visceral  ou  fun- 
damental da  natureza.  Essa  intuição,  essa  aspi- 
ração absorvente,  e'  para  o  nosso  poeta  a  synthese 
da  verdade  racional  ou  positiva  e  do  sentimento 
mystico:  uma  poesia  que  exprima  o  raciocínio,  ou 


P r efa  cio  9 

antes  uma  philosophia  onde  caibam  todas  as  suas 
visões.  O  próprio  do  génio  é  querer  realisar  o 
irrealisavel ;  é  ser  chimerico,  no  sentido  critico  da 
palavra,  quando  por  chimera  entendemos  uma  ver- 
dade essencial  que  não  pode  todavia  reduzir-se  a 
formulas  comprehensiveis,  ou  uma  cousa  cuja  rea- 
lidade se  sente,  sem  se  poder  ver. 

Dos  aspectos  quasi  inexgotavelmente  variáveis 
d'esta  singular  phisionomia  de  homem,  d'esta  mis- 
tura excepcional  de  pensamentos  e  de  temperamen- 
tos n'um  mesmo  individuo,  resulta  porém  um  t3'po 
de  sinceridade  e  de  rectidão  mais  singular  ainda, 
porque  mais  facilmente  podia  resultar  d'ella  um 
grande  cynico.  E  sobretudo  um  stoico,  sem  deixar 
de  ter  bastante  de  sceptico;  é  um  mj^stico,  mas 
com  uma  forte  dose  de  ironia  e  humorismo;  é  um 
mysanthropo,  quando  não  é  o  homem  do  trato  mais 
affavel,  da  convivência  mais  alegre;  é  um  pessi- 
mista, que  todavia  acha  em  geral  tudo  óptimo. 
Intellectualmente  é  a  phisionomia  mais  dúbia,  com- 
plexa e  contradictoria  por  vezes;  moralmente  é  o 
caracter  mais  inteiro  e  melhor  que  existe.  A  sua 
intelligencia  encontra-se  permanentemente  no  es- 
tado de  alguém  que,  querendo  ir  para  um  sitio,  re- 
siste por  não  querer  ao  mesmo  tempo,  sem  todavia 
ter  rasÕes  bastantes  para  querer  nem  também  para 
não  querer.  O  núcleo  da  sua  personalidade,  se  a 
encaramos  pelo  lado  praticamente  humano,  está  na 
energia  do  seu  querer  moral,  e  não  na  lucidez  do 


IO  Os    Sonetos    completos 

seu  pensamento ;  embora  tenha  a  pretençao  de  jul- 
gar que  a  sua  vontade  obedece  sempre  á  sua  razão. 
É  verdade  que  dentro  de  si  tem  permanentemente 
um  espelho  facetado  que  representa  e  critica  as  mo- 
dalidades do  seu  pensamento;  mas,  por  isso  mesmo, 
vê  ou  inventa  faces  de  mais  ás  cousas,  e  também 
por  vezes  o  cristal  embacia.  O  que  nunca  esmo- 
rece é  a  bondade  luminosa  da  sua  alma.  E  um 
homem  fundamentalmente  bom. 

A  complexidade  do  seu  espirito  dá-lhe  uma  va- 
riedade de  aptidões  singular.  Conversador  como 
poucos,  fácil,  espontâneo,  original  e  suggestivo,  iró- 
nico, humorista,  espirituoso,  descendo  até  á  pró- 
pria c/zar^e,  não  ha  ninguém  como  elle  para  soltar 
o  carro  da  sua  phantasia  critica  na  ladeira  de  uma 
these,  e,  explorando-a  em  todos  os  sentidos,  archi- 
tectar  uma  theoria.  Os  seus  opúsculos  em  prosa 
(da  melhor  prosa  portugueza  d'este  tempo)  têm  em 
geral  este  caracter.  São  lógicos,  são  bem  dedu- 
zidos—  sem  serem  suííicientemente  pensados.  São 
fructos  da  imaginação;  são  conversas  escriptas, 
d'essas  conversas  que  durante  horas  seduzem  os 
que  o  ouvem  —  porque  é  um  charmeur. 

Elle  próprio  se  embriaga,  não  com  as  suas  pala- 
vras, mas  sim  com  aquella  theoria  passageira  que 
inventou  ad  hoc,  e,  quando  alguém  lhe  objecta  um 
pequeno  senão,  todavia  essencial  ao  seu  edifício  ló- 
gico, resiste,  defende-se,  irrita-se  ás  vezes,  mas  por 
fim  é  elle  próprio  que,  com  um  dito,  desfaz  toda  a 


P  r  e/a  cio  1 1 

construcção.  Seria  um  orador,  um  Jornalista  de 
primeira  ordem,  se  não  tomasse  apenas  a  sério  a 
sua  missão  de  poeta,  ou  antes  de  philosopho. 

Depois  de  tudo  isto  dirão  pessoas  pouco  dadas  ao 
estudo  do  animal  homem  que  Anthero  de  Quental 
é  um  assombro.  Longe  d'isso.  A  sua  força  é  a 
prodigalidade  com  que  a  natureza  dotou  o  seu 
espirito;  mas  essa  força  é  uma  fraqueza.  Tem 
demasiada  imaginação  para  ver  bem;  e  por  outro 
lado  o  raciocínio  critico  peia -lhe  os  voos  lumi- 
nosos da  phantasia.  Vê  de  mais  para  poder  ser 
activo,  ou  não  tem  a  energia  correspondente  á  sua 
visão.  Se  a  tivesse,  seria  verdadeiramente  um  as- 
sombro. A  imaginação  e  a  razão,  irreductiveis 
nos  cérebros  humanos  com  as  circumvoluçÕes  li- 
mitadas que  contêm,  são  egualmente  poderosas  no 
seu  cérebro  para  que  qualquer  d'ellas  domine.  Lu- 
ctam  em  permanência,  procurando  entender- se, 
combinar-se,  penetrar-se,  e,  no  desejo  chimerico 
da  synthese,  desequilibram  o  homem,  atrophiando- 
Ihe  a  energia  activa.  Ainda  assim,  felizes  d'aquelles 
cuja  inércia  desse  um  livro  comparável  a  este ! 

Mas  é  que  as  suas  paginas  foram  escriptas  com 
sangue  e  lagrimas !  E  doe  ver  a  vida  do  mais 
bello  espirito  consumir-se  em  agonias  de  uma  alma 
em  lucta  comsigo  mesmo !  O  commum  da  gente, 
ao  ler  as  paginas  d'este  volume,  dirá  então:  Quan- 
tas catastrophes,  que  desgraças,  este  homem  sof- 
freu!  que  singular  hostilidade  do  mundo  para  com 


12  Os    Sonetos   co7np l etos 

uma  creatura  humana !  —  E  todavia  o  mundo  nunca 
lhe  foi  propriamente  hostil,  nenhuma  desgraça  o 
acabrunhou;  a  sua  vida  tem  corrido  serena,  plá- 
cida, e  até  para  o  geral  da  gente  em  condições  de 
felicidade. 

E  que  o  geral  da  gente  não  sabe  que  as  tempes- 
tades da  im-aginação  são  as  mais  duras  de  passar! 
Não  ha  dores  tão  agudas  como  as  dores  imagina- 
rias. Não  ha  problemas  mais  difficeis  do  que  os 
problemas  do  pensamento,  nem  crises  mais  dolo- 
rosas do  que  as  crises  do  sentimento.  As  agonias 
dilacerantes  da  morte  com  as  anciãs  do  stertor,  os 
horrores  mais  inverosímeis  dos  crimes  monstruosos, 
as  afflicçÕes  mais  pungentes  da  saudade,  as  tris- 
tezas mais  dolorosas  da  solidão,  as  luctas  do  dever 
com  a  paixão,  os  gritos  do  homem  arruinado,  os 
ais  da  orphandade  faminta...  tudo,  tudo,  quanto 
no  mundo  pode  haver  de  doloroso,  desde  a  miséria 
até  á  prostituição,  desde  o  andrajo  até  ao  velludo 
arrastado  pela  immundicie,  desde  o  cardo  que  dila- 
cera os  pés  até  ao  punhal  que  rasga  o  coração: 
tudo  isso  é  menos,  do  que  a  agonia  de  um  poeta 
vendo  passar  diante  de  si,  em  turbilhão  medonho, 
as  lúgubres  misérias  do  mundo.  Todas  as  affli- 
cçÕes têm  o  seu  quê  de  imaginativas,  e  por  isso  ha 
apenas  uma  espécie  de  homens  que  não  sentem:  são 
os  cynicos,  esses  que  perderam  os  nervos  da  mo- 
ralidade, os  anesthesiados  do  sentimento. 

Quando  se  é  poeta  como  Anthero  de  Quental,  a 


Prefacio  i3 

imaginação  exacerbada  vibra  como  as  harpas  que 
os  gregos  expunham  ás  virações  da  brisa  nos  ra- 
mos das  arvores.  Nenhum  dedo  lhes  feria  as  cor- 
das, e  todavia  tocavam!  Nenhuma  d'essas  des- 
graças do  mundo  feriu  a  harpa  da  vida  do  poeta; 
e  todavia  essa  harpa  geme  e  chora,  solluça  e  grita, 
porque  pelas  suas  cordas  passa  o  vento  agreste  das 
idéas,  passa  o  écco  ullulante  do  egoismo  dos  ho- 
mens, atílictivo  como  os  uivos  de  uma  alcateia  de 
lobos  famintos. 


II 


Esta  collecção  de  Sonetos  é,  portanto,  ao  mesmo 
tempo  biographica  e  cyclica.  Conta-nos  as  tem- 
pestades de  um  espirito;  mas  essas  tempestades 
não  são  os  quaesquer  episódios  particulares  de  uma 
vida  de  homem:  são  a  refracção  das  agonias  mo- 
raes  do  nosso  tempo,  vividas,  porem,  na  imagi- 
nação de  um  poeta. 

O  primeiro  periodo,  de  1860-2,  contém  em  em- 
bryão  todos  os  successivos,  da  mesma  forma  que 
as  flores  incluem  em  si  a  substancia  dos  fructos. 
Denuncia  uma  alma  sensível,  mas  patenteia  já  a 
preoccupação  metaphisica  na  sua  phase  rudimentar 
de  duvida  theologica,  e  apresenta  uns  assomos  de 
tristeza  que  são  como  os  farrapos  de  nuvens  quando 
velam  intermittentemente  o  sol,  deixando  antever  a 
tempestade  para  o  dia  seguinte.     Estes  primeiros 


14  Os    Sonetos    completos 

sonetos  são  o  balbuciar  de  uma  creança.  Român- 
tica? De  modo  nenhum.  Este  poeta  não  se  filia 
em  escholas,  não  obedece  a  correntes  litterarias :  a 
sua  poesia  é  exclusivamente  pessoal.  Succedia, 
porem,  que  n'esse  tempo  já  os  nossos  bardos  clas- 
sicamente românticos  tinham  passado  de  moda;  e 
a  Coimbra  chegavam  por  via  de  Paris  os  éccos  do 
espirito  novo,  expresso  nas  obras  de  Michelet,  de 
Quinet,  de  Vera-Hegel,  etc. 

Tudo  isso  fermentava  no  cérebro  de  Anthero  de 
Quental,  mas  a  sua  personalidade  não  se  deixava 
absorver  pelo  optimismo  que,  depois  dos  românti- 
cos, se  espalhou  na  Europa,  lyricamente  ingénuo 
no  Occidente  afrancezado,  systematicamente  philo- 
sophico  na  Allemanha  hegeliana.  Schopenhauer, 
ninguém  o  lia.  Não  era  moda.  Pois  foi  essa  cor- 
rente, dominante  hoje,  aquella  em  que  o  nosso 
poeta,  espontaneamente,  por  um  movimento  do  seu 
temperamento,  se  achou  levado.  Aos  dezoito  ou 
vinte  annos,  ignorante  ainda,  mas  inquieto  e  pers- 
crutador, o  poeta  que  desdenha  sinceramente  da 
fama  e  da  gloria,  vê  no  eterno  feminino  de  que  nos 
falia  Goethe  a  synthese  da  existência.  Os  seus 
amores  já  são  phantasticos :  só  tem  realidade  no  ceu. 

Alli,  ó  lyrio  dos  celestes  valias, 
Tendo  seu  fim,  terão  o  seu  começo, 
Para  não  mais  findar,  nossos  amores. 

E  se  ainda  o  dia,  a  luz,  o  sol  esposo  amado,  têm 


Pr  efacio  i5 

O  condão  de  o  encher  de  enthusiasmo  é  mister  des- 
confiar de  um  homem  mais  caprichoso  do  que  todas 
as  mulheres,  porque 

Pedindo  á  forma,  em  vão^  a  idea  pura 
Tropeço,  em  sombras,  na  matéria  dura 
E  encontro  a  imperfeição  de  quanto  existe. 

Esta  nota  é  mais  constitucionalmente  verdadeira. 
«Seja  a  terra  degredo,  o  ceu  destino»  diz  n'um 
ponto ;  e  n'outro  : 

Minha  alma,  ó  Deus,  a  outros  céus  aspira: 
Se  um  momento  a  prendeu  mortal  belleza 
E  pela  eterna  pátria  que  suspira  . . . 

Não  acreditemos  também  demasiadamente  n'isto, 
porque  Deus  não  passa  ainda  de  uma  interrogação: 

Pura  essência  das  lagrima»)  que  choro 

E  sonho  dos  meus  sonhos!     Se  és  verdade, 

Descobre-te,  visão,  no  ceu  ao  menos! 

As  luctas  infantis  d'este  primeiro  periodo  para 
saber  se  Deus  é  ou  não  é  verdade,  bastam,  em  si 
mesmo  e  no  próprio  modo  por  que  estão  expressas, 
para  nos  mostrar  que  o  poeta  não  saiu  ainda  das 
espheras  da  representação  elementar  dos  seres, 
para  a  esphera  comprehensiva  das  abstracções  ra- 
cionaes.  Os  sonetos  d'esta  primeira  serie  desen- 
rolam-se  no  terreno  da  phantasmagoria  transcen- 


i6  Os   Sonetos   completos 

dente.     O  traço  mais   seguro  de  todos  e  o  mais 
significativo  está  n'este  verso : 

Que  sempre  o  mal  peior  é  ler  nascido. 

A  segunda  serie  tem  a  data  de  1862-6.  Psycho- 
logicamente  é  a  menos  original,  artisticamente  é  a 
mais  briliiante.  O  Sonho  oriental,  o  Idjllio,  o 
Palácio  da  Ventura,  são  obras  primas,  até  de  co- 
lorido. Talvez  por  isso  mesmo  que  o  estado  de 
espirito  do  poeta  o  não  obrigava  a  tirar  tanto  de 
si,  e  porque  n'esta  epocha  viveu  mais  á  lei  da  natu- 
reza; talvez  por  isso  mesmo  a  sentiu  e  pintou  me- 
lhor nas  suas  cores,  nas  suas  imagens. 

A  nebulose  do  primeiro  periodo  começava  a  re- 
solver-se  n'uma  tragedia  mental,  que  umas  vezes 
tem  os  sonhos  dos  que  mastigam  haschich,  outras 
vezes  fúrias  de  desespero,  ironias  como  punhaes  e 
gritos  lancinantes : 

Se  nada  ha  que  me  aqueça  esta  frieza, 
Se  estou  cheio  de  fel  e  de  tristeza, 
É  de  crer  que  só  eu  seja  o  culpado. 

Meu  pobre  amigo,  como  foi  amarga  esta  epocha! 
Outros  soffreram  também,  outros  penaram  eguaes 
dores,  sem  conseguirem  porem  estrangular  os  mons- 
tros que  defendem  os  áditos  do  templo  da  Sabedo- 
ria. Heine  e  Espronceda,  Nerval  e  Baudelaire  vi- 
veram vidas  inteiras  n'esse  estado  de  ironia  e  de 
sarcasmo,  de  desespero  e  de  raiva,  de  orgia, e  de 


Prefacio  \>j 

abatimento,  de  fúria  e  de  atonia,  que  para  ti  repre- 
sentam quatro  annos  apenas! 

Mas  e'  que  não  havia  em  nenhum  d'esses  homens 
a  semente  de  abstracção  que  se  descobre  no  Pa- 
lácio da  Ventura: 

Abrem-se  as  portas  d'ouro,  com  fragor... 
Mas  dentro  encontro  só,  cheio  de  dor, 
Silencio  e  escuridão  —  e  nada  mais  ! 

Os  românticos,  mais  ou  menos  satanistas  ou  sa- 
tanisados,  ficavam-se  por  aqui.  Achando  apenas 
silencio  e  escuridão  onde  tinham  sonhado  venturas, 
ou  davam  em  bêbedos  como  Espronceda,  ou  suici- 
davam-se  como  Nerval,  ou  faziam-se  cynicos,  á 
maneira  de  Baudelaire,  cultivando  com  amor  as 
Flores  do  Mal. 

De  1864  a  74,  n'esses  dez  annos  em  que  a  tem- 
pestade caminha,  vê-se  a  onda  negra  da  desolação 
espraiar-se ;  vê-se  o  «silencio  e  a  escuridão»  que 
antes  surgiam  como  surprezas  medonhas,  ganharem 
um  logar  apropriado,  embora  eminente,  no  regimen 
das  cousas ;  vê-se  o  espirito  do  philosopho  reagir 
sobre  o  temperamento  do  poeta,  e  tornar-se  sys- 
tema  o  que  ate'  ahi  era  fúria.     Bom  prenuncio. 

N'esta  epocha  Anthero  de  Quental  é  nihilista 
como  philosopho,  anarchista  como  politico:  é  tudo 
o  que  fôr  negativo,  é  tudo  o  que  fôr  excessivo;  e 
é-o  de  um  modo  tão  terminante,  tão  dogmático  e 
tão  affirmativo,  que  por  isso  mesmo  hesitamos  em 

X 


\&  Os    Sonetos   CO mp l eios 

crer  na  consciência  com  que  o  é.  Da  sinceridade 
não  é  licito  duvidar,  mas  contra  a  segurança  depõe 
a  própria  violência.  A  nevrose  contemporânea, 
que  produzira  n'elle  a  terceira  epocha,  dá  de  si 
ainda  a  quarta;  mas  se  poude  galgar  a  saltos  por 
entre  a  floresta  incendiada  que  devorou  e  consumiu 
os  satânicos,  não  poderá  também  sair  da  steppe  lú- 
gubre onde  apodrecem  os  pessimistas,  embriagados 
na  negação  universal,  sem  se  lembrarem  de  que  são 
contradictorios  no  próprio  facto  de  pregarem  o  que 
quer  que  seja? 

Ora  a  isto  responde  esta  própria  serie,  porque, 
ao  lado  dos  sonetos  crepuscularmente  desolados, 
levantam-se  como  auroras  os  sonetos  stoicos.  Para 
curar  o  poeta  da  vertigem  satânica  serviu-lhe  a  me- 
taphisica  pessimista;  para  o  curar  mais  tarde  d'essa 
metaphisica,  servir-lhe-ha  a  reacção  do  sentimento 
moral  sobre  a  razão  especulativa.  Quando  pede 
Mais  lií{,  quando  chama  ao  sol  «  O  claro  sol  amigo 
dos  heroes»,  quando  define  a  Idea  acabando  por 
estes  versos  diamantinos : 

A  Idea,  o  Summo  bem,  o  Verbo,  a  Essência, 
Só  se  revela  aos  homens  e  ás  nações 
No  ceu  incorruptível  da  Consciência! 

sentimo-nos  bem  distantes  das  phantasmagorias  do 
principio  e  das  loucuras  da  viagem,  que  todavia  o 
poeta  não  terminou  ainda. 

Luctando  furioso  contra  a  desillusao,  caindo  es- 


Prefacio  I9 

magado  pelo  anniquilamento,  Anthero  de  Quental 
ensiniisniou-se  (para  usar  de  uma  feliz  expressão 
hespanhola)  metteu-se  dentro  de  si,  a  sós  comsigo, 
apellou-  para  as  energias  do  seu  instincto  de  ho- 
mem, e  foi  isso  o  que  lhe  inspirou  o  bello  Hftnno 
á  Ra\ão. 

Porem  na  lucta  entre  o  temperamento  de  stoico  e 
a  imaginação  metaphisica,  o  seu  espirito  attribulado 
não  conseguiu  manter  o  equilibrio,  porque  as  suas 
exigências  de  critico  e  philosopho  (alimentadas 
agora  por  leituras  variadíssimas  e  profundas)  con- 
trariavam ou  contradiziam  as  suas  vizões  de  poeta. 
A  maneira  que  a  intelligencia  se  lhe  cultivava,  que 
o  saber  lhe  crescia,  que  a  experiência  o  educava 
com  mais  de  um  caso  doloroso  ou  apenas  triste  — 
apurava-se-lhe  a  imaginação  até  ao  ponto  de  ver 
claramente  o  que  para  o  commum  dos  espíritos  são 
apenas '  concepções  do  entendimento  abstracto.  A 
sua  poesia  despe-se  então  de  accessoriosrnãohaquasi 
uma  imagem;  ha  apenas  linhas,  mas  essas  linhas  de 
estatuas  incorpóreas  tem  uma  nitidez  dantesca. 

O  seu  pessimismo  torna-se  systematico:  e'  uma 
philosophia  inteira,  a  que  corresponde,  como  ex- 
pressão sentimental,  a  ironia  transcendente.  Na 
Disputa  em  Família,  Deus  responde  aos  atheus: 

Muito  antes  de  nascerem  vossos  pães 
D'um  barro  vil,  ridículas  creanças, 
Sabia  eu  tudo  isso  . . .  e  muito  maisl 


2o  Os    Sonetos    CO mp leios 

No  Inconsciente,  este  heroe  metaphisico,  diz 
assim : 

Chamam-me  Deus  ha  mais  de  dez  mil  annos  . . . 
Mas  eu  por  mim  não  sei  como  me  chamo. 

Na  Divina  Comedia  os  homens  queixam-se  aos 
deuses  do  que  soífrem,  invectivando-os  pelos  terem 
creado 

Mas  os  deuses  com  voz  ainda  mais  triste 
Dizem: — Homens!  porque  é  que  nos  creastes? 

Como  se  vê,  houve  um  progresso.  No  período 
anterior  a  negação  era  violenta  e  terminante;  agora 
tem  como  expressão  a  ironia  que  é  uma  das  formas 
conhecidas  do  saber,  e  uma  das  linguagens  da  ver- 
dade. Eis  ahi  o  que  a  reacção  moral  conseguiu, 
acompanhada  pelo  esclarecimento  da  razão,  da  in- 
telligencia  e  do  conhecimento.  O  antigo  poeta  sa- 
tânico, transformado  em  um  nihilista,  vemol-o  agora 
na  pelle  de  um  pessimista  systematico,  sorrindo  já 
bondosamente,  com  a  ironia  n'esses  próprios  lábios 
que,  primeiro  cobertos  de  espuma,  depois  nos  ap- 
pareciam  brancos  de  agonias. 

Não  tinha  eu  razão  para  chamar  cyclica  a  esta 
collecção  de  sonetos  ?  Não  tem  sido  este  o  movi- 
mento das  idéas,  a  evolução  do  pensamento  creador 
na  segunda  metade  do  nosso  século? 


Prefacio  21 


Quando   escreveu  o   primeiro  soneto  da  quarta 
serie  (1880-4) 

Já  socega,  depois  de  tanta  lucta, 
Já  me  descança  em  paz  o  coração  . . . 

Anthero  de  Quental  resolveu  destruir  todas  as  suas 
poesias  lúgubres.  Sentia  remorsos  por  alguma  vez 
ter  estado  n'uma  disposição  de  animo  que  agora 
considerava  com  horror.  Entendia  que  esses  ver- 
sos tétricos  não  podiam  consolar  ninguém,  e  fariam 
mal  a  muita  gente.  Destruiu-os,  pois,  com  aquella 
violência  própria  de  um  caracter  intermittentemente 
meigo  e  frenético  como  o  de  uma  mulher.  D'esse 
naufrágio  onde  se  perderam  verdadeiras  obras - 
primas,  salvei  eu  as  poesias  que  vão  no  fim  d'este 
ensaio;  e  salvei-as  porque  as  possuia  entre  os  ori- 
ginaes  remettidos  em  cartas,  e  mais  de  uma  vez 
como  texto  de  noticias  do  estado  do  seu  espirito,  ou 
cartas  rimadas. 

Que  espécie  de  paz  era  porem  essa  em  que  o  seu 
coração  descançava?     Era  o  Nirvana: 

E  quando  o  pensamento,  assim  absorto, 
Emerge  a  custo  d'esse  mundo  morto 
E  torna  a  olhar  as  cousas  naturaes, 

A  bella  luz  da  vida,  ampla,  infinita 
Só  vê  com  tédio  em  tudo  quanto  fita 
A  illusão  e  o  vasio  universaes. 


j2  Os    Sonetos   completos 

O  Nirvana  é  o  ceu  do  buddhismo,  a  religião 
mais  philosophica  e  menos  phàntasmagorica  inven- 
tada pelos  homens.  É  por  este  motivo  que  o  bud- 
dhismo attrae  hoje  em  dia  todos  os  espíritos  a  um 
tempo  racionalistas  e  mysticos,  d'esta  epocha  em 
tudo  similhante  á  alexandrina,  menos  no  volume 
do  saber  positivo  que  já  se  não  compadece  com 
muitas  das  theorias  sobre  que  os  néoplatonicos  es- 
peculavam. A  theoria  da  Substancia  levou-os  a 
elles  a  uma  concepção  do  Ser  que  produziu  o  mytho 
do  Verbo  christao,  encarnado  popularmente  em 
Jesus -Christo.  Ora  hoje  tudo  isso  vale  apenas 
como  documento  histórico,  e,  por  paradoxal  que 
isto  pareça,  o  Não-Ser  e',  segundo  a  metaphisica 
contemporânea,  a  essência  de  tudo  o  que  existe. 
O  Absoluto  é  o  Nada.  O  Universo,  a  realidade 
inteira,  são  modalidades,  aspectos  fugitivos,  que 
só  se  tornam  verdades  racionaes  quando  nos  appa- 
recem  despidas  de  todos  os  accidentes.  E  como  é 
pelos  accidentes  apenas  que  nós,  distinguindo-as, 
as  conhecemos,  a  realidade  verdadeiramente  e  em 
si  é  Nada. 

Religiosamente,  Nada  é  egual  a  Nirvana;  e  o 
buddhismo  é  a  única  religião  que  attingiu  esta  con- 
clusão, summaria  do  pensamento  scientifico  mo- 
derno. O  Nirvana  é  esse  estado  em  que  os  seres, 
despindo-se  de  todas  as  suas  modalidades  e  acci- 
dentes, de  todas  as  condições  de  realidade,  condi- 
ções que  os  limitam  distinguindo-os  entre  si,  adqui- 


P  r  e  fã  cio  23 

rem  a  níío-realidade  (o  não-contingente)  e  com  ella 
a  existência  absoluta  e  a  absoluta  liberdade.  Essa 
liberdade  é  o  typo  e  a  essência  da  vida  espiritual ; 
e  o  Nirvana,  puro  Não-ser  para  a  intelligencia,  é, 
para  o  sentimento  moral,  o  symbolo  e  o  vehiculo 
de  toda  a  perfeição  e  virtude: -radicalmente  nega- 
tivo na  esphera  da  razão,  é,  na  esphera  do  senti- 
mento, absolutamente  affirmativo.  O  pessimismo 
torna-se  d'esta  forma  um  optimismo  gigantesco ; 
toda  a  inércia  é  condemnada,  e  o  systema  das  cou- 
sas, agitando-se,  movendo-se  na  direcção  do  anni- 
quilamento  final,  move-se  e  agita-se  no  sentido  de 
uma  liberdade  evolutivamente  progressiva  até  attin- 
gir  a  plenitude.  O  Universo  é  uma  grande  vida 
que  tem,  no  termo,  o  termo  de  todas  as  vidas  —  a 
morte,  idealisada  agora  e  tornada  luminosa  e  appe- 
tecivel  por  essa  idealisação. 

Leiam-se  os  dois  sonetos  Redempção,  talvez  os 
mais  bellos  de  todo  o  livro,  e  comprehender-se-ha 
melhor  o  que  fica  dito.    Leia-se  o  Elogio  da  morte 

Dormirei  no  teu  seio  inalterável. 
Na  communhão  da  paz  universal, 
Morte  libertadora  e  inviolável ! 

e  ver-se-ha  quanto  estamos  longe  do  desespero  trá- 
gico de  outros  annos.     A  tempestade  acalmou. 

Na  esphera  do  invisível,  do  intangível, 
Sobre  desertos,  vácuo,  soledade, 
Vôa  e  paira  o  espirito  impassível 


24  Os    S onetos    CO mp l etos 

presidindo  á  evolução  dos  seres  (V.  o  soneto  Evo- 
lução) desde  a  rocha  até  ao  homem,  evolução  que 
seria  absolutamente  inexpressiva  se  não  tivesse  um 
destino,  um  fim,  um  ideal.  A  theoria  do  progresso 
indefinido  é,  com  eífeito,  racionalmente  absurda. 
Esse  destino,  para  os  neo-buddhistas,  é  o  Nada 
transcendente;  esse  ideal  é  a  Liberdade.  A  exis- 
tência está  pois  consagrada  .racionalmente:  falta 
consagral-a  sentimentalmente.  Falta  ainda  ao  sys- 
tema  um  medianeiro:  é  o  Amor, 

Porem  o  coração  feito  valente 

Na  escola  da  tortura  repetida, 

E  no  uso  do  penar  tornado  crente, 

Respondeu:  D'esta  altura  vejo  o  Amor! 
Viver  não  foi  em  vão,  se  é  isto  a  vida, 
Nem  foi  de  mais  o  desengano  e  a  dor. 

O  Universo  está  pois  construido  e  sanctificado 
na  mente  do  poeta  e  na  razão  do  philosopho.  Dir- 
scha  portanto  que  a  chimera  de  que  a  principio 
falíamos  ficou  desvendada,  o  problema  resolvido, 
conciliada  a  visão  com  a  razão,  e  que  nos  não  resta 
mais  do  que  fazermo-nos  todos  buddhistas  ?  Sup- 
prema  illusão !  Creia-o  embora  o  poeta;  eu,  como 
critico,  observando  que  o  pensamento  humano, 
desde  que  existe  e  trabalha,  progride  sempre,  com 
effeito,  mas  progride  em  três  estradas  parallelas 
que,   por   serem  parallelas,   nunca  podem   encon- 


Prefacio  2$ 

trar-se,  atrevo-me  a  affirmar  a  irreductibilidade  do 
mysticismo,  racional  ou  imaginativamente  conce- 
bido, e  do  naturalismo,  ponderada  ou  orgiacamente 
realisado.  Atrevo-me  a  dizer  que  estes  dois  feitios 
ou  temperamentos  são  constitucionaes  do  espirito 
humano,  e  que  da  coexistência  necessária  d'elles 
resulta  um  terceiro  —  o  sceptico,  o  critico,  o  que 
provêm  da  comparação  de  ambos,  e  por  isso  não 
tem  cor,  nem  é  affirmativo;  dando-se  melhor  com 
a  natureza  do  que  com  a  phantasmagoria,  prefe- 
rindo a  harmonia  mais  ou  menos  equilibrada,  ou 
mais  ou  menos  claudicante  do  hellenismo,  á  orgia 
desenfreada  dos  orientaes ;  considerando  a  exis- 
tência como  um  compromisso,  o  dever  como  uma 
condição  da  vida,  mas  também  a  fraqueza  como 
uma  condição  dos  homens.  Estes  três  tempera- 
mentos são  correspondentes  a  typos  eternos  e  irre- 
ductiveis  da  consciência  humana;  e,  se  o  buddhismo 
é  a  melhor  religião  para  um  mystico  do  século  xix, 
saturado  de  sciencia  e  derreado  de  cogitações,  o 
christianismo,  como  directo  herdeiro  do  hellenismo, 
ha-de  eternamente  satisfazer  melhor  os  scepticos  e 
os  naturalistas,  cujo  numero  é  e  foi  sempre  infini- 
tamente maior,  entre  os  europeos. 

« Um  hellenismo  coroado  por  um  buddhismo » 
eis  a  formula  com  que  mais  de  uma  vez  Anthero 
de  Quental  me  tem  exprimido  o  seu  pensamento 
—  a  sua  chimera!  Chimera,  digo,  porque  a  coroa 
não  nos  pódc  assentar  na  cabeça,  sob  pena  de  a 


20  Os    Sonetos   covipletos 

crivar  de  espinhos  e  de  a  deixar  escorrendo  sangue. 
Fundar  o  principio  da  acção  na  inércia  systematica, 
a  realidade  no  não-ser,  a  vida  no  anniquilamento, 
só  e  praticamente  acceitavel  para  o  commum  de  ho- 
mens quando  acreditem  na  metempsycose,  dogma 
tão  infantilmente  mythico  do  buddhismo  como  v.  g. 
o  inferno  do  christianismo.  Ao  christianismo,  po- 
rém, tirando-se-lhe  tudo  quanto  a  imaginação  se- 
mita deu  para  a  sua  formação,  fica  ainda  o  helle- 
nismo,  isto  é,  um  idealismo  mais  ou  menos  pan- 
theista  e  uma  theoria  moral  —  cousas  que  eu  não 
affirmo  que  resistam  a  uma  analyse  rigorosamente 
lógica,  por  isso  mesmo  que  todo  o  nosso  conheci- 
mento racional  das  cousas  assenta  apenas  sobre 
axiomas  do  senso  commum  —  ao  passo  que,  em  se 
tirando  a  metempsycose  ao  buddhismo,  o  bud- 
dhismo reduz-se  a  uma  névoa  de  abstracções. 

Pobre  humanidade,  se  se  visse  condemnada  á  co- 
roação buddhista !  Nós  europeos,  incapazes  de 
nos  sujeitarmos  ao  regime  da  contemplação  inerte, 
soífreriamos  as  agonias,  experimentariamos  as  afflic- 
ções  do  poeta  que,  tendo  no  peito  um  coração 
activo,  tem  na  cabeça  uma  imaginação  mystica,  e, 
para  obedecer  ao  pensamento,  tortura  o  coração, 
sem  poder  também  esmagal-o  sob  o  mando  da  in- 
telligencia. 

D'este  cruel  estado  vêm  os  documentos  que  attes- 
tam  a  transformação  soffrida  pela  ironia  dos  pe- 
ríodos anteriores.     Que  nome  se  ha-de  dar  ao  sen- 


P  r  efá  cio  27 

timento  que  inspira  os  sonetos  A  Virgem  Santíssima 
e  o  Na  mão  de  Deus  que  fecha  o  volume  ?  Eu  por 
mim  chamarei  humorismo  transcendente  a  essa  liga 
intima  da  piedade  e  da  ironia,  e  declaro  que  nunca 
vi  cousa  parecida  posta  em  verso.  Em  prosa,  ha 
mais  de  um  periodo  de  Renan  inspirado  por  um 
espirito  similhante,  embora  menos  agudo. 

O  visão,  visão  triste  e  piedosa! 
Fita-me  assim  calada,  assim  chorosa, 
E  deixa-me  sonhar  a  vida  inteira! 

A  visão  é  a  Virgem  Santissima,  e  a  poesia  é  tão 
sincera,  tão  verdadeira,  tão  cheia  de  piedade  e  un- 
cção,  que  eu  sei  de  mais  de  um  h'vro  de  resas  onde 
andam  copias  escriptas. 

Dorme  o  teu  somno  coração  liberto, 
Dorme  na  mão  de  Deus  eternamente! 

Um  monge  christão  escreveria  isto.  E  Anthero 
de  Quental  nem  é  christão,  nem  crê  em  Deus,  nem 
na  Virgem,  segundo  o  sentido  ordinário  da  palavra 
crer. 

Blasphemar  era  bom  n'outros  tempos ;  para  a 
ironia  também  a  idade  passou;  finalmente  para  o 
exercido  litterario  nunca  se  inclinou  a  penna  que 
o  poeta  molhou  sempre  no  seu  sangue.  Como  ex- 
plicar, pois,  o  phenomeno? 

Por  acaso  subiu  já  o  leitor  ao  cume  de  um  monte 
sufficientemente  alto  para  que  toda  a  paysagem  lhe 


28  Os   Sonetos   completos 

apparecesse  á  vista,  fundida  a  ponto  de  não  distin- 
guir uma  arvore  de  um  cazal,  nem  um  rio  de  um 
valle  sem  curso  de  agua?  Pois  succede  assim 
nas  campinas  da  liistoria  do  pensamento  humano, 
quarldo  as  olhamos  das  cumiadas  luminosas  da  cri- 
tica. Vêem-se  as  cousas  na  sua  essência,  não  im- 
portam os  accidentes.  O  fetiche  que  o  selvagem 
adora,  a  imagem  perante  a  qual  se  prostra  o  com- 
mum  dos  crentes,  o  architecto  universal  dos  pen- 
sadores livres,  e  finalmente  esse  quid  innominado  a 
que   a  philosophia  moderna   chamou   Inconsciente 

—  tudo  isso  é  egualmente  Deus :  somente  é  Deus 
percebido  pela  imaginação  infantil,  Deus  percebido 
pela  intelligencia  vulgar.  Deus  percebido  pelo  saber 
incipiente,  e  Deus  finalmente  incomprehendido,  mas 
sentido,  pela  sabedoria.  E  todas  essas  modali- 
dades de  uma  mesma  impressão,  recebida  e  repre- 
sentada de  forma  diversa,  consoante  a  natureza  e  o 
estado  de  educação  dos  homens,  são  egualmente 
verdadeiras,  egualmente  santas  e  egualmente  humo- 
rísticas, para  aquelle  que  tem  coração  para  sentir 
as  cousas  por  dentro,  e  olhos  para  as  ver  de  fora 

—  objectivamente,  como  os  allemães  dizem,  e  nós 
diremos  criticamente. 

Eis  ahi  a  suprema  liberdade  do  espirito,  o  Nir- 
vana apenas  intellectual,  a  que  eu  prefiro  chamar 
impassibilidade  subjectiva:  um  estado  que  permitte 
comprehender  todas  as  cousas,  analysando-as  e 
classificando-as,   sem  todavia  nos  transmittir  essa 


Prefacio  29 

espécie  de  frialdade  de  coração,  própria  dos  natu- 
ralistas quando  estudam  uma  rocha,  uma  planta  ou 
um  animal.  O  philosopho,  impassível  ao  analysar 
e  classificar  os  phenomenos  do  espirito  humano, 
ha-de  misturar  ao  sorriso  que  provocam  todas  as 
vaidades  e  illusÕes,  o  amor  que  merecem  todos  os 
sentimentos  ingénuos  e  fundamentalmente  bons ; 
ha-de  alliar  á  comprehensão  da  nullidade  extrínseca 
das  cousas,  a  comprehensão  da  sua  excellencia  in- 
trínseca; exigindo  que  o  homem  seja  activo,  porque 
a  actividade  é  boa  por  ser  indispensável  á  saúde  do 
espirito,  embora  os  objectos  da  actividade  sejam  as 
mais  das  vezes  irritos  e  nullos,  quando  conside- 
rados em  si  próprios  e  isoladamente. 

E  eis  ahi  as  razoes  porque  eu  não  sou  bud- 
dhista . . .  nem  Anthero  de  Quental  o  é,  embora 
julgue  sel-o.  A  evolução  dolorosa  que  terminou 
com  o  seu  ultimo  soneto,  esta  longa  e  tempestuosa 
viagem  atravez  do  mar  tenebroso  da  phantasia  me- 
taphisica,  parece  ter  concluído.  A  edade,  talvez, 
acima  de  tudo,  trouxe  ao  espirito  do  poeta  uma  paz 
illuminada  de  bondade  e  sabedoria,  e  como  a  sua 
alma  é  san  e  a  sua  intelligencia  firme  e  sempre 
activa,  é  mais  que  provável  que  o  declinar  da  vida 
de  Anthero  de  Quental  enriqueça  o  pecúlio  por  si- 
gnal  bem  pobre  da  philosophia  portugueza  com 
algum  trabalho  tão  digno  de  se  conservar  na  me- 
moria dos  tempos,  como  estes  Sonetos  que  são  as 
amargas  flores  de  uma  mocidade.     Esse  trabalho. 


3o  Os    Sonetos   completos 

porem,  não  será  um  cathecismo  buddhista,  não  pode 
ser  nenhuma  revelação  milagrosa  do  verdadeiro 
systema,  porque  a  sabedoria  nos  diz  que  toda  a 
pretenção  de  Verdade  é  illusoria,  pois  sendo  nós, 
a  nossa  intelligencia,  os  nossos  pensamentos,  sim- 
ples e  fugitivas  contingências,  é  loucura  pensar 
que  jamais  possamos  definir  o  Absoluto.  Cada 
qual  sente-o  a  seu  modo,  segundo  o  seu  tempe- 
ramento; e  sábio  é  aquelle  que  se  limita  a  regis- 
trar as  relações  das  cousas. 


III 


Quem  deante  d'estes  versos  não  sentir  elevar-se- 
Ihe  o  espirito,  como  n'uma  oração,  áquella  espécie 
de  Deus  que  é  compatível  com  o  seu  temperamento 
ou  com  o  estado  de  educação  do  seu  pensamento, 
é.por  que  tem  dentro  do  peito,  no  logar  do  cora- 
ção, um  seixo  polido  e  írio.  Quem,  no  meio  do 
lidar  da  vida,  roçando  os  braços  pelas  arestas  cor- 
tantes que  a  erriçam  de  ângulos,  pousar  o  olhar  da 
alma  sobre  um  d'estes  sonetos  e  não  sentir  o  que 
os  sequiosos  sentem  ao  encontrarem  um  arroio  de 
agua  límpida,  é  porque  tem  a  alma  feita  apenas  de 
egoismo.  Quem,  emergindo  dos  montões  de  pape- 
lada que  as  imprensas  vornitam  diariamente,  deitar 
os  olhos  sobre  estas  paginas,  e  não  sentir  o  des- 
lumbramento que  os  diamantes  produzem,  é  porque 


P  r  e/a  cio  3 1 

a  sua  vista  se  embaciou  com  o  exame  dos  livros 
grosseiros  em  todo  o  sentido,  e  a  sua  lingua  perdeu 
o  habito  de  fallar  portuguez. 

Um  dos  nossos  mais  queridos  amigos,  um  dos 
que  conhecem  de  perto  Anthero  de  Quental  —  e  so- 
mente o  conhece  quem  com  elle  viveu  largo  tempo 
na  intimidade  —  interroga -me  geralmente  d 'este 
modo:  «E  santo  Anthero,  come  vae?» 

Dil-o  com  a  convicção  quente  dos  artistas,  mas 
eu,  que  o  não  sou,  tenho  a  pôr  embargos,  porque  a 
santidade  não  é  planta  adequada  ao  clima  do  nosso 
tempo.  Exige  uma  porção  de  sentimento  ingénuo 
que  já  não  ha  nos  ares  que  respiramos. 

A  vida  contemplativa,  porem,  a  vida  asceta  in- 
clusivamente :  essa  virtude  austera  para  comsigo, 
tolerante  para  com  tudo  e  para  com  todos ;  esse 
observar  constante  de  si  próprio  e  o  dispensar  de 
um  sorriso  sempre  bom,  embora  indifferente  com 
frequência,  aos  que  alguma  vez  o  rodeiam;  a  cari- 
dade, o  amor,  a  abnegação,  as  tentações,  as  crises, 
as  lagrimas,  as  afflicçóes,  as  duvidas  cruciantes  e  as 
dores  angustiosas:  tudo  o  que,  reunido,  forma  uma 
alma  mystica  —  tudo  isso  mora  na  alma  d'este  poeta 
arrebatada  pela  visão  inextinguível  do  Bem. 

Só  no  meu  coração,  que  sondo  e  meço, 
Não  sei  que  voz,  que  eu  mesmo  desconheço, 
Em  segredo  protesta  e  affirma  o  Bem. 

E  para  nada  faltar  a  este  mystico,  anachronica- 


3á  Os    Sonetos   completos 

mente  perdido  no  meio  do  borborinho  de  um  século 
activo  até  á  demência,  tem  também  uma  fé  ardente 
—  uma  fé  buddhista.  Somente  o  seu  Deus,  Deus 
sem  vontade,  sem  intelligencia  e  sem  consciência, 
é,  para  nós  outros,  a  quem  são  vedados  os  myste- 
rios  da  metaphisica  buddhista,  igual  a  cousa  ne- 
nhuma. 

Este  homem,  fundamentalmente  bom,  se  tivesse 
vivido  no  século  vi  ou  no  século  xiii,  seria  um  dos 
companheiros  de  S.  Bento  ou  de  S.  Francisco  de 
Assis.  No  século  xix  é  um  excêntrico,  mas  d'esse 
feitio  de  excentricidade  que  é  indispensável,  porque 
a  todos  os  tempos  foram  indispensáveis  os  herejes, 
a  que  hoje  se  chama  dissidentes. 

Oliveira  Martins. 


OS  CAPTIVOS 

Encostados  ás  grades  da  prisão, 
Olham  o  céo  os  pallidos  captivos. 
Já  com  raios  obliquos,  fugitivos, 
Despede  o  sol  um  ultimo  clarão. 

Entre  sombras,  ao  longe,  vagamente, 
Morrem  as  vozes  na  extensão  saudosa. 
Cae  do  espaço,  pesada,  silenciosa, 
A  tristeza  das  cousas,  lentamente. 


Prefacio  33 

E  os  captivos  suspiram.    Bandos  de  aves 
Passam  velozes,  passam  apressados, 
Gomo  absortos  em  Íntimos  cuidados, 
Como  absortos  em  pensamentos  graves. 

E  dizem  os  captivos:  Na  amplidão 
Jamais  se  extingue  a  eterna  claridade... 
A  ave  tem  o  voo  e  a  liberdade... 
O  homem  tem  os  muros  da  prisão ; 

Aonde  ides?  qual  é  vossa  jornada? 

A  luz?  á  aurora?  á  immensidade?  aonde? 

—  Porem  o  bando  passa  e  mal  responde: 

A  noite,  á  escuridão,  ao  abysmo,  ao  nada!  — 

E  os  captivos  suspiram.    Surge  o  vento, 
Surge  e  perpassa  esquivo  e  inquieto, 
Como  quem  traz  algum  pezar  secreto. 
Como  quem  soffre  e  cala  algum  tormento  . . . 

E  dizem  os  captivos:  Que  tristezas, 
Que  segredos  antigos,  que  desditas. 
Caminheiro  de  estradas  infinitas. 
Te  levam  a  gemer  pelas  devezas? 

Tu  que  procuras?  que  visão  sagrada 
Te  acena  da  soidão  onde  se  esconde? 

—  Porem  o  vento  passa  e  só  responde: 

A  noite,  a  escuridão,  o  abysmo,  o  nadai  — 

E  os  captivos  suspiram  novamente. 
Como  antigos  pezares  mal  extinctos, 
Gomo  vagos  desejos  indistinctos. 
Surgem  do  escuro  os  astros,  lentamente. 


3 


Os    Sonetos   completos 

E  fitam-se,  em  silencio  indecifrável, 
Contemplam-se  de  longe,  mysteriosos, 
Como  quem  tem  segredos  dolorosos, 
Como  quem  ama  e  vive  inconsolável . . . 

E  dizem  os  captivos:  Que  problemas 
Eternos,  primitivos  vos  attrahem? 
Que  luz  fitaes  no  centro  d'onde  saem 
A  flux,  em  jorro,  as  intuições  supremas? 

Por  que  esperaes?  n'essa  amplidão  sagrada 
Que  soluções  esplendidas  se  escondem? 
—  Porem  os  astros  tristes  só  respondem : 
A  noite,  a  escuridão,  o  abysmo,  o  nada !  — 

Assim  a  noite  passa.  Rumorosos 
Susurram  os  pinhaes  meditativos. 
Encostados  ás  grades,  os  captivos 
Olham  o  céo  e  choram  silenciosos. 


OS  VENCIDOS 

Três  cavalleiros  seguem  lentamente 
Por  uma  estrada  erma  e  pedregosa. 
Geme  o  vento  na  selva  rumorosa, 
Cae  a  noite  do  céo,  pesadamente. 

Vacilam-lhes  nas  mãos  as  armas  rotas, 
Têm  os  corcéis  poentos  e  abatidos. 
Em  desalinho  trazem  os  vestidos. 
Das  feridas  lhes  cae  o  sangue,  em  golas. 


Prefacio  35 

A  derrota,  traiçoeira  e  pavorosa, 
As  frontes  lhes  curvou,  com  mfio  potente. 
No  horisonte  escuro  do  poente 
Destaca-se  uma  mancha  sanguinosa. 

E  o  primeiro  dos  três,  erguendo  os  braços, 
Diz  n'um  soluço:  «Amei  e  fui  amado! 
Levou-me  uma  visão,  arrebatado, 
Como  em  carro  de  luz,  pelos  espaços! 

Com  largo  vôo,  penetrei  na  esphera 
Onde  vivem  as  almas  que  se  adoram, 
Livre,  contente  e  bom,  como  os  que  moram 
Entre  os  astros,  na  eterna  primavera. 

Porque  irrompe  no  azul  do  puro  amor 
O  sopro  do  desejo  pestilente  í 
Ai  do  que  um  dia  recebeu  de  frente 
O  seu  hálito  rude  e  queimador! 

A  flor  rubra  e  olorosa  da  paixão 
Abre  languida  ao  raio  matutino, 
Mas  seu  profundo  cálix  purpurino 
Só  reçuma  veneno  e  podridão.  ' 

Irmãos,  amei  —  amei  e  fui  amado  . . . 
Por  isso  vago  incerto  e  fugitivo, 
E  corre  lentamente  um  sangue  esquivo 
Em  gotas,  de  meu  peito  alanceado. » 

Responde-lhe  o  segundo  cavalleiro, 
Com  sorriso  de  trágica  amargura: 
«Amei  os  homens  e  sonhei  ventura, 
Pela  justiça  heróica,  ao  mundo  inteiro. 


36  Os    Sonetos   completos 

Pelo  direito,  ergui  a  voz  ardente 
No  meio  das  revoltas  homicidas: 
Caminhando  entre  raças  opprimidas, 
Fil-as  surgir,  como  um  clarim  fremente. 

Quando  ha  de  vir  o  dia  da  justiça? 
Quando  ha  de  vir  o  dia  do  resgate? 
Trahio-me  o  gladio  em  meio  do  combate 
E  semeei  na  areia  movediça! 

As  nações,  com  sorriso  bestial, 
Abrem,  sem  ler,  o  livro  do  futuro. 
O  povo  dorme  em  paz  no  seu  monturo. 
Como  em  leito  de  purpura  real. 

Irmãos,  amei  os  homens  e  contente 
Por  elles  combati,  com  mente  justa... 
Por  isso  morro  á  mingoa  e  a  areia  adusta 
Bebe  agora  meu  sangue,  ingloriamente. » 

Diz  eiitão  o  terceiro  cavalleiro: 
a  Amei  a  Deus  e  em  Deus  puz  alma  e  tudo. 
Fiz  do  seu  nome  fortaleza  e  escudo 
No  combate  do  mundo  traiçoeiro. 

Invoquei-o  nas  horas  affrontosas 
Em  que  o  mal  e  o  peccado  dão  assalto. 
Procurei-o,  com  anciã  e  sobresalto. 
Sondando  mil  sciencias  duvidosas. 

Que  vento  de  ruina  bate  os  muros 
Do  templo  eterno,  o  templo  sacrosanto  ? 
Rolam,  desabam,  com  fragor  e  espanto, 
Os  astros  pelo  céo,  frios  e  escuros! 


Prefacio  Sy 

Vacila  o  sol  e  os  santos  desesperam  . . . 
Tédio  reçuma  a  luz  dos  dias  vãos  . . . 
Ai  dos  que  juntam  com  fervor  as  mãos! 
Ai  dos  que  crêem!  ai  dos  que  inda  esperam! 

Irmãos,  amei  a  Deus,  com  fé  profunda... 
Por  isso  vago  sem  conforto  e  incerto, 
Arrastando  entre  as  urzes  do  deserto 
Um  corpo  exangue  e  uma  alma  moribunda.» 

E  os  três,  unindo  a  voz  n'um  ai  supremo, 
E  deixando' pender  as  mãos  cançadas 
Sobre  as  armas  inúteis  e  quebradas, 
N'um  gesto  inerte  de  abandono  extremo, 

Sumiram-se  na  sombra  duvidosa 
Da  montanha  calada  e  formidável, 
Sumiram-se  nu.  selva  impenetrável, 
E  no  palor  da  noite  silenciosa. 


ENTRE   SOMBRAS 

Vem  ás  vezes  sentar-se  ao  pé  de  mim 

—  A  noite  desce,  desfolhando  as  rosas  - 
Vem  ter  commigo,  ás  horas  duvidosas, 
Uma  visão,  com  azas  de  setim  . . . 

Pousa  de  leve  a  delicada  mão 

—  Rescende  aroma  a  noite  socegada  — 
Pousa  a  mão  compassiva  e  perfumada 
Sobre  o  meu  dolorido  coração... 


38  Os    Sonetos    completos 

E  diz-me  essa  visão  compadecida 

—  Ha  suspiros  no  espaço  vaporoso  — 
Diz-me:  Porque  é  que  choras  silencioso? 
Porque  é  tão  erma  e  triste  a  tua  vida? 

Vem  commigo!    Embalado  nos  meus  braços 

—  Na  noite  funda  ha  um  silencio  santo  — 
N'um  sonho  feito  só  de  luz  e  encanto 
Transporás  a  dormir  esses  espaços... 

Porque  eu  habito  a  região  distante 

—  A  noite  exhala  uma  doçura  infinda  — 
Onde  ainda  se  crê  e  se  ama  ainda, 

Onde  uma  aurora  igual  brilha  constante . . . 

Habito  ali,  e  tu  virás  comraigo 

—  Palpita  a  noite  n'um  clarão  que  offusca  — 
Porque  eu  venho  de  longe,  em  tua  busca, 
Trazer-te  paz  e  alivio,  pobre  amigo  . . . 

Assim  me  fala  essa  visão  nocturna 

—  No  vago  espaço  ha  vozes  dolorosas  — 
São  as  suas  palavras  carinhosas 

Agua  correndo  em  crystalina  urna  . . . 

Mas  eu  escuto-a  immovel,  somnolento 

—  A  noite  verte  um  desconsolo  immenso  — 
Sinto  nos  membros  como  um  chumbo  denso, 
E  mudo  e  tenebroso  o  pensamento... 

Fito-a,  n'um  pasmo  doloroso  absorto 

—  A  noite  é  erma  como  campa  enorme  — 
Fiio-a  com  os  olhos  turvos  de  quem  dorme 
E  respondo:  Bem  sabes  que  estou  morto! 


P  r  efa  cio  3^ 


HYMNO  DA  MANHÃ 

Tu,  casta  e  alegre  luz  da  madrugada, 
Sobe,  cresce  no  céo,  pura  e  vibrante, 
E  enche  de  força  o  coração  triumpbante 
Dos  que  ainda  esperam,  luz  immaculada ! 

Mas  a  mim  p5es-me  tu  tristeza  immensa 
No  desolado  coração.   Mais  quero 
A  noite  negra,  irmã  do  desespero, 
A  noite  solitária,  immovel,  densa, 

O  vácuo  mudo,  onde  astro  náo  palpita, 
Nem  ave  canta,  nem  susurra  o  vento, 
E  adormece  o  próprio  pensamento. 
Do  que  a  luz  matinal...  a  luz  bemdita! 

Porque  a  noite  é  a  imagem  do  Não-Ser, 

Imagem  do  repouso  inalterável 

E  do  esquecimento  inviolável, 

Que  anceia  o  mundo,  farto  de  sotfrer... 

Porque  nas  trevas  sonda,  fixo  e  absorto, 
O  nada  universal  o  pensamento, 
E  despreza  o  viver  e  o  seu  tormento, 
E  olvida,  como  quem  está  já  morto  . . . 

E,  interrogando  intrépido  o  Destino, 
Como  reu  o  renega  e  o  condemna, 
E  virando-se,  fita  em  paz  serena 
O  va-cuo  augusto,  plácido  e  divino... 


40  Os    Sonetos   CO mp letos 

Porque  a  noite  é  a  imagem  da  Verdade, 
Que  está  alem  das  cousas  transitórias, 
Das  paixões  e  das  formas  illusorias, 
Onde  somente  ha  dor  e  falsidade... 

Mas  tu,  radiante  luz,  luz  gloriosa, 
De  que  és  symbolo  tu?  do  eterno  engano, 
Que  envolve  o  mundo  e  o  coração  humano 
Em  rede  de  mil  malhas,  mysteriosa! 

Symbolo,  sim,  da  universal  traição, 
D'uma  promessa  sempre  renovada 
E  sempre  e  eternamente  perjurada. 
Tu,  mãe  da  Vida  e  mãe  da  Illusao . . . 

Outros  estendam  para  ti  as  mãos, 
Supplicantes,  com  íé,  com  esperança... 
Ponham  outros  seu  bem,  sua  confiança 
Nas  promessas  e  a  luz  dos  dias  vãos... 

Eu  não!    Ao  ver-te,  penso:  Que  agonia 
E  que  tortura  ainda  não  provada 
Hoje  me  ensinará  esta  alvorada? 
E  digo :  Porque  nasce  mais  um  dia? 

Antes  tu  nunca  fosses,  luz  formosa! 
Antes  nunca  existisses!  e  o  Universo 
Ficasse  inerte  e  eternamente  immerso 
Do  possivel  na  névoa  duvidosa! 

O  que  trazes  ao  mundo  em  cada  aurora? 
O  sentimento  só,  só  a  consciência 
D'uma  eterna,  incurável  impotência. 
Do  insaciável  desejo,  que  o  devora! 


Prefacio  41 

De  que  são  feitos  os  mais  bellos  dias? 
De  combates,  de  queixas,  de  terrores! 
De  que  são  feitos?  de  illusÕeá,  de  dores, 
De  misérias,  de  maguas,  de  agonias! 

O  sol,  inexorável  semeador, 
Sem  jamais  se  cançar,  percorre  o  espaço, 
E  em  borbotões  lhe  jorram  do  regaço 
As  sementes  innumeras  da  Dor! 

Oh!  como  cresce,  sob  a  luz  ardente, 
A  seara  maldita!  como  freme 
Sob  os  ventos  da  vida  e  como  geme 
N'um  susurro  monótono  e  plangente! 

E  cresce  e  alastra,  em  ondas  voluptuosas. 
Em  ondas  de  cruel  fecundidade, 
Com  a  força  e  a  subtil  tenacidade 
Invencivel  das  plantas  venenosas! 

De  podridões  antigas  se  alimenta, 
Da  antiga  podridão  do  chão  fatal... 
Uma  fragancia  mórbida,  mortal 
Lhe  reçuma  da  seiva  peçonhenta... 

E  é  esse  aroma  languido  e  profundo, 
Feito  de  seducçÕes  vagas,  magnéticas, 
De  ardor  carnal  e  de  attracçÕes  poéticas, 
É  esse  aroma  que  envenena  o  mundo! 

Como  um  clarim  soando  pelos  montes, 
A  aurora  acorda,  plácida  e  inflexível, 
As  misérias  da  terra :  e  a  hoste  horrível, 
Enchendo  de  clamor  os  horisontes, 


42  Os    S onctos    completos 

Torva,  cega,  colérica,  faminta, 
Surge  mais  uma  vez  e  arma-se  á  pressa 
Para  o  bruto  combate,  que  não  cessa, 
Onde  é  vencida  sempre  e  nunca  extincta! 

Quantos  erguem  n'esta  hora,  com  esforço. 
Para  a  luz  matinal  as  armas  novas. 
Pedindo  a  lucta  e  as  formidáveis  provas, 
Alegres  e  cruéis  e  sem  remorso. 

Que  esta  tarde  ha-de  ver,  no  duro  chão 
Cabidos  e  sangrentos,  vomitando 
Contra  o  céo,  com  o  sangue  miserando. 
Uma  extrema  e  impotente  imprecação! 

Quantos  também,  de  pé,  mas  esquecidos, 
Ha-de  a  noite  encontrar,  sós  e  encostados 
A  algum  marco,  chorand  j  aniquilados 
As  lagrimas  caladas  dos  vencidos! 

E  porque?  para  que?    Para  que  os  chamas. 

Serena  luz,  ó  luz  inexorável, 

A  vida  incerta  e  á  lucta  inexpiavel, 

Com  as  falsas  visões,  com  que  os  inflamas? 

Para  serem  o  brinco  d'um  só  dia 
Na  mão  indifferente  do  Destino  . . . 
Clarão  de  fogo-fatuo  repentino. 
Cruzando  entre  o  nascer  e  a  agonia... 

Para  serem,  no  páramo  enfadonho, 
A  luz  de  astros  malignos  e  enganosos, 
Como  um  bando  de  espectros  lastimosos, 
Como  sombras  correndo  atraz  d'um  sonho . 


Prefacio  4^ 

Oh!  não!  luz  gloriosa  e  triumphante! 
Sacode  embora  o  encanto  e  as  seducç5es, 
Sobre  mim,  do  teu  manto  de  illusões: 
A  meus  olhos,  és  triste  e  vacillante .. . 

A  meus  olhos,  és  baça  e  luctuosa 
E  amarga  ao  coração,  ó  luz  do  dia, 
Como  tocha  esquecida  que  allumia 
Vagamente  uma  crypta  mons;ruosa  . . . 

Surges  em  vão,  e  em  vão,  por  toda  a  parte, 
Me  envolves,  me  penetras,  com  amor  . . . 
Gausas-me  espanto  a  mim,  causas-me  horror, 
E  não  te  posso  amar  — não  quero  amar-te ! 

Symbolo  da  Mentira  universal, 
Da  apparencia  das  cousas  fugitivas, 
Que  esconde,  nas  moventes  perspectivas, 
Sob  o  eterno  sorriso  o  eterno  Mal, 

Symbolo  da  lUusáo,  que  do  infinito 
Fez  surgir  o  Universo,  já  marcado 
Para  a  dor,  para  o  mal,  para  o  peccado, 
Symbolo  da  existência,  sê  maldito! 


A  FADA  NEGRA 

Uma  velha  de  olhar  agudo  e  frio. 
De  olhos  sem  cor,  de  lábios  glaciaes, 
Tomou-me  nos  seus  braços  sepulcraes, 
Tomou-me  sobre  o  seio  ermo  e  vasio, 


44  Os    Sonetos    CO  mp  l  etos 

E  beijou-me  em  silencio,  longamente, 
Longamente  me  unio  á  face  fria  . . . 
Oh!  como  a  minha  alma  se  estorcia 
Sob  os  seus  beijos,  dolorosamente! 

Onde  os  lábios  pousou,  a  carne  logo 
Myrrou-se  e  encaneceu-se-me  o  cabello. 
Meus  ossos  confrangeram-se.   O  gelo 
Do  seu  bafo  seccava  mais  que  o  fogo. 

Com  seu  olhar  sem  cor,  que  me  fitava, 
A  Fada  negra  me  qualhou  o  sangue. 
Dentro  em  meu  coração  inerte  e  exangue 
Um  silencio  de  morte  se  engolfava. 

E  volvendo  em  redor  olhos  absortos, 
O  mundo  pareceu-me  uma  visão. 
Um  grande  mar  de  névoa,  de  illusão, 
E  u  luz  do  sol  como  um  luar  de  mortos . . . 

Como  o  espectro  d'um  mundo  já  defuncto. 

Um  farrapo  de  mundo,  novoento, 

Ruina  aérea  que  sacode  o  vento, 

Sem  cor,  sem  consistência,  sem  conjuncto... 

E  quanto  adora  quem  adora  o  njundo. 
Brilho  e  ventura,  esperar,  sorrir, 
Eu  vi  tudo  oscilar,  pender,  cahir. 
Inerte  e  já  da  cor  d'um  moribundo. 

Dentro  em  meu  coração,  n'esse  momento, 
Fez-se  um  buraco  enorme  —  e  n'esse  abysmo 
Senti  ruir  não  sei  que  cataclismo, 
Como  um  universal  desabamento... 


Prefacio  ^5 

Razão!  velha  de  olhar  agudo  e  cru 
E  de  hálito  mortal  mais  do  que  a  peste! 
Pelo  beijo  de  gelo  que  me  deste, 
Fada  negra,  bemdita  sejas  tu ! 

Bemdita  sejas  tu  pela  agonia 
E  o  lucto  funeral  d'aquella  hora 
Em  que  eu  vi  baquear  quanto  se  adora. 
Vi  de  que  noite  é  feita  a  luz  do  dia! 

Pelo  pranto  e  as  torturas  bemfazejas 
Do  desengano...  pela  paz  austera 
D'um  morto  coração,  que  nada  espera, 
Nem  deseja  também  . . .  bemdita  sejas ! 


i8óo-i8Ó2 


IGNOTO   DEO 


Que  balleza  mortal  se  te  assemelha, 
O  sonhada  visão  d'esta  alma  ardente, 
Que  reflectes  em  mim  teu  brilho  ingente, 
Lá  como  sobre  o  mar  o  sol  se  espelha? 


O  mundo  é  grande  —  e  esta  anciã  me  aconselha 
A  buscar-te  na  terra:  e  eu,  pobre  crente,. 
Pelo  mundo  procuro  um  Deus  clemente, 
Mas  a  ara  só  lhe  encontro...  nua  e  velha... 


Não  é  mortal  o  que  eu  em  li  adoro. 
Que  és  tu  aqui?  olhar  de  piedade. 
Gota  de  mel  em  taça  de  venenos . . . 


Pura  essência  das  lagrimas  que  choro 
E  sonho  dos  meus  sonhos!  se  és  verdade, 
Descobre-te,  visão,  no  céo  ao  menos! 


LAMENTO 


Um  diluvio  de  luz  cae  da  montanha: 
Eis  o  dia!  eis  o  sol!  o  esposo  amado! 
Onde  ha  por  toda  a  terra  um  só  cuidado 
Que  não  dissipe  a  luz  que  o  mundo  banha  ? 

Flor  a  custo  medrada  em  erma  penha, 
Revolto  mar  ou  golfo  congelado, 
Aonde  ha  ser  de  Deus  tão  olvidado 
Para  quem  paz  e  alivio  o  céo  não  tenha? 

Deus  é  Pae!  Pae  de  toda  a  creatura: 

E  a  todo  o  ser  o  seu  amor  assiste: 

De  seus  filhos  o  mal  sempre  é  lembrado... 

Ah!  se  Deus  a  seus  filhos  dá  ventura 
N'esta  hora  santa...  e  eu  só  posso  ser  triste 
Serei  filho,  mas  filho  abandonado! 


A   M.  C. 


Poz-te  Deus  sobre  a  fronte  a  mão  piedosa: 
O  que  fada  o  poeta  e  o  soldado 
Volveu  a  ti  o  olhar,  de  amor  velado, 
E  disse-te :  «  vae,  filha,  sê  formosa!» 


E  tu,  descendo  na  onda  harmoniosa, 
Pousaste  n'este  solo  angustiado, 
Estrella  envolta  n'um  clarão  sagrado, 
Do  teu  limpido  olhar  na  luz  radiosa... 

Mas  eu...  posso  eu  acaso  merecer-te.'' 
Deu-te  o  Senhor,  mulher!  o  que  é  vedado, 
Anjo!  deu-te  o  Senhor  um  mundo  á  parte. 

E  a  mim,  a  quem  deu  olhos  para  ver-te, 
Sem  poder  mais ...  a  mim  o  que  me  ha  dado  ? 
Voz,  que  te  cante,  e  uma  alma  para  amar-te! 


À 

SANTOS    VALENTE 


Estreita  é  do  prazer  na  vida  a  taça: 
Largo,  como  o  oceano  é  largo  e  fundo, 
E  como  elle  em  venturas  infecundo, 
O  cális  amargoso  da  desgraça. 


E  comtudo  nossa  alma,  quando  passa 
Incerta  peregrina,  pelo  mundo, 
Prazer  só  pede  á  vida,  amor  fecundo, 
É  com  essa  esperança  que  se  abraça. 

É  lei  de  Deus  este  aspirar  immenso  . . . 
E  comtudo  a  illusão  impoz  á  vida, 
E  manda  buscar  luz  e  dá-nos  treva! 


Ah!  se  Deus  accendeu  um  foco  intenso 
De  amor  e  dor  em  nós,  na  ardente  lida, 
Porque  a  miragem  cria...  ou  porque  a  leva? 


TORMENTO  DO   IDEAL 


Conheci  a  Belleza  que  não  morre 
E  fiquei  triste.    Como  quem  da  serra 
Mais  alta  que  haja,  oliiando  aos  pés  a  terra 
E  o  mar,  vê  tudo,  a  maior  nau  ou  torre, 


Minguar,  fundir-se,  sob  a  luz  que  jorre; 
Assim  eu  vi  o  mundo  e  o  que  elle  encerra 
Perder  a  côr,  bem  como  a  nuvem  que  erra 
Ao  pôr  do  sol  e  sobre  o  mar  discorre. 


Pedindo  á  fcjrma,  em  vão,  a  idea  pura, 
Tropeço,  em  sombras,  na  matéria  dura, 
E  encontro  a  imperfeição  de  quanto  existe. 


Recebi  o  baptismo  dos  poetas, 

E  assentado  entre  as  formas  incompletas 

Para  sempre  fiquei  pallido  e  triste. 


ASPIRAÇÃO 


Meus  dias  vão  correndo  vagarosos 
Sem  prazer  e  sem  dôr,  e  até  parece 
Que  o  foco  interior  já  desfallece 
E  vacilla  com  raios  duvidosos. 


É  bella  a  vida  e  os  annos  são  formosos, 
E  nunca  ao  peito  amante  o  amor  fallece... 
Mas,  se  a  belleza  aqui  nos  apparece, 
Logo  outra  lembra  de  mais  puros  gosos. 

Minh'alma,  ó  Deus!  a  outros  céos  aspira: 
Se  um  momento  a  prendeu  mortal  belleza, 
É  pela  eterna  pátria  que  suspira... 

Porém  do  presentir  dá-me  a  certeza, 
Dá-ma!  e  sereno,  embora  a  dôr  me  fira, 
Eu  sempre  bemdirei  esta  tristeza! 


A 

FLORIDO    TELLES 


Se  comparo  poder  ou  ouro  ou  fama, 
Venturas  que  em  si  têm  occulto  o  damno, 
Com  aquelle  outro  affecto  soberano, 
Que  amor  se  diz  e  é  luz  de  pura  chama. 


Vejo  que  são  bem  como  arteira  dama. 
Que  sob  honesto  riso  esconde  o  engano, 
E  o  que  as  segue,  como  homem  leviano 
Que  por  um  vão  prazer  deixa  quem  o  ama. 

Nasce  do  orgulho  aquelle  estéril  goso 
E  a  gloria  d'elle  é  cousa  fraudulenta. 
Como  quem  na  vaidade  tem  a  palma: 


Tem  na  paixão  seu  brilho  mais  formoso 
E  das  paixões  também  some-o  a  tormenta. 
Mas  a  sloria  do  amor...  essa  vem  d'alma! 


P  S  A  L  M  o 


Esperemos  em  Deus!  Elle  ha  tomado 
Em  suas  mãos  a  massa  inerte  e  fria 
Da  matéria  impotente  e,  n'um  só  dia, 
Luz,  movimento,  acção,  tudo  lhe  ha  dado. 


Elle,  ao  mais  pobre  de  alma,  ha  tributado 
Desvelo  e  amor:  elle  conduz  á  via 
Segura  quem  lhe  foge  e  se  extravia, 
Quem  pela  noite  andava  desgarrado. 

E  a  mim,  que  aspiro  a  elle,  a  mim,  que  o  amo, 
Que  anceio  por  mais  vida  e  maior  brilho, 
Ha-de  negar-me  o  termo  d'este  anceio? 

Buscou  quem  o  não  quiz;  e  a  mim,  que  o  chamo, 

Ha-de  fugir-me,  como  a  ingrato  filho? 

O  Deus,  meu  pae  e  abrigo!  espero!...  eu  creio! 


IO 


A    M.  C. 


No  céo,  se  existe  um  céo  para  quem  chora, 
Céo,  para  as  magoas  de  quem  soffre  tanto... 
Se  é  lá  do  amor  o  foco,  puro  e  santo, 
Chama  que  brilha,  mas  que  não  devora... 

No  céo,  se  uma  alma  n'esse  espaço  mora, 
Que  a  prece  escuta  e  enchuga  o  nosso  pranto . 
Se  ha  Pae,  que  estenda  sobre  nós  o  manto 
Do  amor  piedoso...  que  eu  não  sinto  agora.. 

No  céo,  ó  virgem!  findarão  meus  males: 
Hei-de  lá  renascer,  eu  que  pareço 
Aqui  ter  só  nascido  para  dores. 

Ali,  ó  lyrio  dos  celestes  valles! 
Tendo  seu  fim,  terão  o  seu  começo, 
Para  não  m.ais  findar,  nossos  amores. 


A 

JOÃO    DE    DEUS 


Se  é  lei,  que  rege  o  escuro  pensamento, 
Ser  vã  toda  a  pesquiza  da  verdade, 
Em  vez  da  luz  achar  a  escuridade, 
Sqr  uma  queda  nova  cada  invento; 

E  lei  também,  embora  cru  tormento. 
Buscar,  sempre  buscar  a  claridade, 
E  só  ter  como  certa  realidade 
O  que  nos  mostra  claro  o  entendimento. 

O  que  ha-de  a  alma  escolher,  em  tanto  engano? 
Se  uma  hora  crê  de  fé,  logo  duvida; 
Se  procura,  só  acha ...  o  desatino ! 

Só  Deus  pôde  acudir  em  tanto  damno : 
Esperemos  a  luz  d'uma  outra  vida, 
Seja  a  terra  degredo,  o  céo  destino. 


A 

ALBERTO    TELLES 


Só!  —  Ao  ermita  sósinho  na  montanha 
Visita-o  Deus  e  dá-lhe  confiança: 
No  mar,  o  nauta,  que  o  tufão  balança, 
Espera  um  sopro  amigo  que  o  céo  tenha . . . 

Só!  —Mas  quem  se  assentou  em  riba  estranha, 
Longe  dos  seus,  lá  tem  inda  a  lembrança; 
E  Deus  deixa-lhe  ao  menos  a  esperança 
Ao  que  á  noite  soluça  em  erma  penha... 

Só !  —  Não  o  é  quem  na  dor,  quem  nos  cançaços, 
Tem  um  laço  que  o  prenda  a  este  fadário, 
Uma  crença,  um  desejo  . . .  e  inda  um  cuidado  . . . 

Mas  cruzar,  com  desdém,  inertes  braços, 
Mas  passar,  entre  turbas,  solitário, 
Isto  é  ser  só,  é  ser  abandonado! 


i3 


J.   FÉLIX   DOS    SANTOS 


Sempre  o  futuro,  sempre!  e  o  presente 
Nunca !  Que  seja  esta  hora  em  que  se  existe 
De  incerteza  e  de  dor  sempre  a  mais  triste, 
E  só  farte  o  desejo  um  bem  ausente! 


Ai!  que  importa  o  futuro,  se  inclemente 
Essa  hora,  em  que  a  esperança  nos  consiste, 
Chega...  é  presente...  e  só  á  dor  assiste?... 
Assim,  qual  é  a  esperança  que  não  mente? 


Desventura  ou  delirio?...    O  que  procuro, 

Se  me  foge,  é  miragem  enganosa, 

Se  me  espera,  peor,  espectro  impuro... 


14 


Assim  a  vida  passa  vagarosa: 

O  presente,  a  aspirar  sempre  ao  futuro: 

O  futuro,  uma  sombra  mentirosa. 


A   M.  C. 


Porque  descrês,  mulher,  do  amor,  da  vida? 
Porque  esse  Hermon  transformas  em  Calvário? 
Porque  deixas  que,  aos  poucos,  do  sudário 
Te  aperte  o  seio  a  dobra  humedecida? 


Que  visão  te  fugio,  que  assim  perdida 
Buscas  em  vão  n'este  ermo  solitário? 
Que  signo  obscuro  de  cruel  fadário 
Te  faz  trazer  a  fronte  ao  chão  pendida? 


Nenhum!  intacto  o  bem  em  ti  assiste: 
Deus,  em  penhor,  te  deu  a  formosura; 
Bênçãos  te  manda  o  céo  em  cada  hora. 

E  descrês  do  viver? ...    E  eu,  pobre  e  triste, 

Que  só  no  teu  olhar  leio  a  ventura, 

Se  tu  descrês,  em  que  hei-de  eu  crer  agora? 


i5 


A 
ALBERTO    SAMPAIO 


Não  me  fales  de  gloria:  é  outro  o  altar 
Onde  queimo  piedoso  o  meu  incenso, 
E  animado  de  fogo  mais  intenso, 
De  fé  mais  viva,  vou  sacrificar. 

A  gloria!  pois  que  ha  n'ella  que  adorar? 
Fumo,  que  sobre  o  abysmo  anda  suspenso  . 
Que  vislumbre  nos  dá  do  amor  immenso? 
Esse  amor  que  ventura  faz  gosar? 

Ha  outro  mais  perfeito,  único  eterno, 
Farol  sobre  ondas  tormentosas  firme, 
De  immoto  brilho,  poderoso  e  terno... 

Só  esse  hei-de  buscar,  e  confundir-me 
Na  essência  do  amor  puro,  sempiterno... 
Quero  só  n'esse  fogo  consumir-me! 


i6 


A 

G  E  R  iM  ANO    M  EYRELLES 


Só  males  são  reaes,  só  dor  existe; 
Ppazeres  só  os  gera  a  phantasia; 
Em  nada,  um  imaginar,  o  bem  consiste, 
Anda  o  mal  em  cada  hora  e  instante  e  dia. 


Se  buscamos  o  que  é,  o  que  devia 

Por  natureza  ser  não  nos  assiste; 

Se  fiamos  n'um  bem,  que  a  mente  cria. 

Que  outro  remédio  ha  ahi  senão  ser  triste? 


Oh!  quem  tanto  pudera,  que  passasse 
A  vida  em  sonhos  só,  e  nada  vira... 
Mas,  no  que  se  não  vê,  labor  perdido! 

Quem  fora  tão  ditoso  que  olvidasse... 
Mas  nem  seu  mal  com  elle  então  dormira. 
Que  sempre  o  mal  peor  é  ter  nascido! 


»7 


A    M.   C. 


Não  busco  n'esta  vida  gloria  ou  fama: 
Das  turbas  que  me  importa  o  vão  ruido? 
Hoje,  deus...  e  amanhã,  já  esquecido 
Como  esquece  o  clarão  de  extincta  chama! 


Foco  incerto,  que  a  luz  já  mal  derrama, 
Tal  é  essa  ventura:  echo  perdido, 
Quanto  mais  se  chamou,  mais  escondido 
Ficou  inerte  e  mudo  á  voz  que  o  chama. 


D'essa  coroa  é  cada  flor  um  engano, 
E  miragem  em  nuvem  illusoria, 
E  mote  vão  de  fabuloso  arcano. 


Mas  coroa-me  tu;  na  fronte  inglória 
Ginge-me  tu  o  louro  soberano . . . 
Verás,  verás  então  se  amo  essa  gloria! 


18 


AD   AMIGOS 


Em  vão  luctamos.    Gomo  névoa  baça, 

A  incerteza  das  cousas  nos  envolve. 

Nossa  alma,  em  quanto  cria,  em  quanto  volve, 

Nas  suas  próprias  redes  se  embaraça. 

O  pensamento,  que  mil  planos  traça, 
É  vapor  que  se  esvae  e  se  dissolve; 
E  a  vontade  ambiciosa,  que  resolve, 
Gomo  onda  entre  rochedos  se  espedaça. 

Filhos  do  Amor,  nossa  alma  é  como  um  hymno 
Á  luz,  á  liberdade,  ao  bem  fecundo, 
Prece  e  clamor  d'um  presentir  divino; 

Mas  n'um  deserto  só,  árido  e  fundo, 
Ecchoam  nossas  vozes,  que  o  Destino 
Paira  mudo  e  impassível  sobre  o  mundo. 


19 


A   UM   CRUCIFIXO 


Ha  mil  annos,  bom  Christo,  ergueste  os  magros  braços 
E  clamaste  da  cruz:  ha  Deus!  e  olhaste,  ó  crente, 
O  horizonte  futuro  e  viste,  em  tua  mente, 
Um  alvor  ideal  banhar  esses  espaços! 


Porque  morreu  sem  eccho  o  eccho  de  teus  passos, 
E  de  tua  palavra  (ó  Verbo!)  o  som  fremente? 
Morreste...  ah!  dorme  em  paz!  não  volvas,  que  descrente 
Arrojaras  de  novo  á  campa  os  membros  lassos... 


Agora,  como  então,  na  mesma  terra  erma, 

A  mesma  humanidade  é  sempre  a  mesma  enferma, 

Sob  o  mesmo  ermo  céo,  frio  como  um  sudário... 


E  agora,  como  então,  viras  o  mundo  exangue, 
E  ouviras  perguntar  —  de  que  sérvio  o  sangue 
Com  que  regaste,  ó  Christo,  as  urzes  do  Calvário?  — 

ao 


DESESPERANÇA 


Vae-te  na  aza  negra  da  desgraça, 
Pensamento  de  amor,  sombra  d'uma  hora, 
Que  abracei  com  delirio,  vae-te,  embora, 
Como  nuvem  que  o  vento  impelle...  e  passa. 


Que  arrojemos  de  nós  quem  mais  se  abraça, 
Com  mais  anciã,  á  nossa  alma!  e  quem  devora 
D'essa  alma  o  sangue,  com  que  mais  vigora, 
Como  amigo  commungue  á  mesma  taça! 

Que  seja  sonho  apenas  a  esperança, 
Emquanto  a  dor  eternamente  assiste, 
E  só  engane  nunca  a  desventura! 


Se  em  silencio  soffrer  fora  vingança! ... 
Envolve-te  em  ti  mesma,  ó  alma  triste, 
Talvez  sem  esperança  haja  ventura! 


21 


BEATRICE 


Depois  que  dia  a  dia,  aos  poucos  desmaiando, 
Se  foi  a  nuvem  d'ouro  ideal  que  eu  vira  erguida; 
Depois  que  vi  descer,  baixar  no  céo  da  vida 
Cada  estrella  e  fiquei  nas  trevas  laborando : 

Depois  que  sobre  o  peito  os  braços  apertando 

Achei  o  vácuo  só,  e  tive  a  luz  sumida 

Sem  ver  já  onde  olhar,  e  em  todo  vi  perdida 

A  flor  do  meu  jardim,  que  eu  mais  andei  regando : 

Retirei  os  meus  pés  da  senda  dos  abrolhos, 
Virei-me  a  outro  céo,  nem  ergo  já  meus  olhos 
Senão  á  estrella  ideal,  que  a  luz  d'amor  contém . , . 


Não  temas  pois  —  Oh  vem!  o  céo  é  puro,  e  calma 
E  silenciosa  a  terra,  e  doce  o  mar,  e  a  alma... 
A  aima!  não  a  vês  tu?  mulher,  mulher!  oh  vem! 


22 


i8Ó2-i8óó 


AMOR   VIVO 


Amar!  mas  d'um  amor  que  tenha  vida... 
Não  sejam  sempre  tímidos  harpejos, 
Não  sejam  só  delírios  e  desejos 
D'uma  douda  cabeça  escandecída  . . . 

Amor  que  viva  e  brilhe!  luz  fundida 
Que  penetre  o  meu  ser  —  e  não  só  beijos 
Dados  no  ar  —  delírios  e  desejos  — 
Mas  amor...  dos  amores  que  têm  vida... 

Sim,  vivo  e  quente!  e  já  a  luz  do  dia 
,Não  virá  díssipal-o  nos  meus  braços 
Como  névoa  da  vaga  phantasia... 

Nem  murchará  do  sol  á  chama  erguida.., 
Pois  que  podem  os  astros  dos  espaços 
Contra  uns  débeis  amores . , .  ^e  têm  vida? 


23 


VISITA 


Adornou  o  meu  quarto  a  flor  do  cardo, 
Perfumei-o  de  almiscar  recendente; 
Vesti-me  com  a  purpura  fulgente, 
Ensaiando  meus  cantos,  como  um  bardo: 

Ungi  as  mãos  e  a  face  com  o  nardo 
Crescido  nos  jardins  do  Oriente, 
A  receber  com  pompa,  dignamente, 
Mysteriosa  visita  a  quem  aguardo. 

Mas  que  filha  de  reis,  que  anjo  ou  que  fada 

Era  essa  que  assim  a  mim  descia. 

Do  meu  casebre  á  húmida  pousada?... 


26 


Nem  princezas,  nem  fadas.   Era,  flor, 

Era  a  tua  lembrança  que  batia 

As  portas  de  ouro  e  luz  do  meu  amor! 


PEQUENINA 


Eu  bem  sei  que  te  chamam  pequenina 
E  ténue  como  o  véo  solto  na  dança, 
Que  és  no  juizo  apenas  a  criança, 
Pouco  mais,  nos  vestidos,  que  a  tnenina . 

Que  és  o  regato  de  agua  mansa  e  fina, 
A  folhinha  do  til  que  se  balança, 
O  peito  que  em  correndo  logo  cança, 
A  fronte  que  ao  soffrer  logo  se  inclina .  < 

Mas,  filha,  lá  nos  montes  onde  andei. 
Tanto  me  enchi  de  angustia  e  de  receio 
Ouvindo  do  infinito  os  fundos  ecchos. 


Que  não  quero  imperar  nem  já  ser  rei 
Senão  tendo  meus  reinos  em  teu  seio 
E  súbditos,  criança,  em  teus  bonecos! 


27 


A   SULAMITA 


Ego  dormio,  et  cor  meum  vigilat 
Cântico  dos  Cânticos. 


Quem  anda  lá  por  fora,  pela  vinha, 
Na  sombra  do  luar  meio  encoberto, 
Sutil  nos  passos  e  espreitando  incerto, 
Com  brando  respirar  de  criancinha? 


Um  sonho  me  accordou  . . .  não  sei  que  tinha . . , 
Pareceu-me  sentil-o  aqui  tão  perto... 
Seja  alta  noite,  seja  n'um  deserto. 
Quem  ama  até  em  sonhos  adivinha. .. 


Moças  da  minha  terra,  ao  meu  amado 
Correi,  dizei-lhe  que  eu  dormia  agora, 
Mas  que  pôde  ir  contente  e  descançado, 

Pois  se  tão  cedo  adormeci,  conforme 
É  meu  costume,  olhae,  dormia  embora, 
Porque  o  meu  coração  é  que  não  dorme,. 


?8 


SONHO   ORIENTAL 


Sonho-me  ás  vezes  rei,  n'alguma  ilha, 
Muito  longe,  nos  mares  do  Oriente, 
Onde  a  noite  é  balsâmica  e  fulgente 
E  a  lua  cheia  sobre  as  aguas  brilha... 


O  aroma  da  magnólia  e  da  baunilha 
Paira  no  ar  diaphano  e  dormente... 
Lambe  a  orla  dos  bosques,  vagamente, 
O  mar  com  íinas  ondas  de  escumilha... 


E  emquanto  eu  na  varanda  de  marfim 

Me  encosto,  absorto  n'um  scismar  sem  fim, 

Tu,  meu  amor,  divagas  ao  luar, 


Do  profundo  jardim  pelas  clareiras. 
Ou  descanças  debaixo  das  palmeiras, 
Tendo  aos  pé  ura  leão  familiar, 


29 


QUINZE   ANNOS 


Eu  amo  a  vasta  sombra  das  montanhas, 
Que  estendem  sobre  os  largos  continentes 
Os  seus  braços  de  rocha  negra,  ingentes, 
Bem  como  braços  colossaes  de  aranhas. 


D'ali  o  nosso  olhar  vê  tão  estranhas 
Cousas,  por  esse  céo!  e  tão  ardentes 
Visões,  lá  n'esse  mar  de  ondas  trementes ! 
E  ás  estrellasj  d'ali,  vê-as  tamanhas! 

Amo  a  grandeza  mysteriosa  e  vasta,.. 
A  grande  idea,  como  a  flor  e  o  viço 
Da  arvore  colossal  que  nos  domina... 

Mas  tu,  criança,  sê  tu  boa  . . .  e  basta : 
Sabe  amar  e  sorrir...  é  pouco  isso? 
Mas  a  ti  só  te  quero  pequenina! 


3o 


IDYLLIO 


Quando  nós  vamos  ambos,  de  mãos  dadas, 
Colher  nos  valles  lyrios  e  boninas, 
E  galgamos  d'um  fôlego  as  colinas 
Dos  rocios  da  noite  inda  orvalhadas; 


Ou,  vendo  o  mar,  das  ermas  cumiadas, 
Contemplamos  as  nuvens  vespertinas, 
Que  parecem  phantasticas  ruinas 
Ao  longe,  no  horisonte,  amontoadas: 


Quantas  vezes,  de  súbito,  emmudeces! 
Não  sei  que  luz  no  teu  olhar  fluctua; 
Sinto  tremer-te  a  mão,  e  empallideces. 


O  vento  e  o  mar  murmuram  orações, 
E  a  poesia  das  cousas  se  insinua 
Lenta  e  amorosa  em  nossos  corações. 


3i 


NOCTURNO 


Espirito  que  passas,  quando  o  vento 
Adormece  no  mar  e  surge  a  lua, 
Filho  esquivo  da  noite  que  fluctua, 
Tu  só  entendes  bem  o  meu  tormento, 


Gomo  um  canto  longinquo  —  triste  e  lento- 
Que  voga  e  sutilmenle  se  insinua, 
Sobre  o  meu  coração,  que  tumultua, 
Tu  vertes  pouco  a  pouco  o  esquecimento. 

A  li  confio  o  sonho  em  que  me  leva 
Um  instincto  de  luz,  rompendo  a  treva, 
Buscando,  entre  visões,  o  eterno  Bem. 

E  tu  entendes  o  meu  mal  sem  nome, 

A  febre  de  Ideal,  que  me  consome. 

Tu  só,  Génio  da  Noite,  e  mais  ninguém! 


3a 


SONHO 


Sonhei  —  nem  sempre  o  sonho  é  cousa  vã  — 
Que  um  vento  me  levava  arrebatado, 
Atravez  d'esse  espaço  constellado 
Onde  uma  aurora  eterna  ri  louçã... 


As  estrellas,  que  guardam  a  manhã, 
Ao  verem-me  passar  triste  e  calado, 
Olhavam-me  e  diziam  com  cuidado: 
Onde  está,  pobre  amigo,  a  nossa  irmã? 

Mas  eu  baixava  os  olhos,  receoso 

Que  trahissem  as  grandes  magoas  minhas, 

E  passava  furtivo  e  silencioso. 

Nem  ousava  contar-lhes,  ás  estrellas, 

Contar  ás  tuas  puras  irmansinhas 

Quanto  és  falsa,  meu  bem,  e  indigna  d'ellas! 


33 


AMARITUDO 


Só  por  ti,  astro  ainda  e  sempre  occulto, 
Sombra  do  Amor  e  sonho  da  Verdade, 
Divago  eu  pelo  mundo  e  em  anciedade 
Meu  próprio  coração  em  mim  sepulto. 


De  templo  em  templo,  em  vão,  levo  o  meu  culto. 
Levo  as  flores  d'uma  intima  piedade. 
Vejo  os  votos  da  minha  mocidade 
Receberem  somente  escarneo  e  insulto. 


A  beira  do  caminho  me  assentei... 
Escutarei  passar  o  agreste  vento, 
Exclamando:  assim  passe  quanto  amei! 

Oh  minh'alma,  que  creste  na  virtudel 

O  que  será  velhice  e  desalento, 

Se  isto  se  chama  aurora  e  juventude? 


34 


ABNEGAÇÃO 


Chovam  lyrios  e  rosas  no  teu  collo! 
Chovam  hymnos  de  gloria  na  tua  alma! 
Hymnos  de  gloria  e  adoração  e  calma, 
Meu  amor,  minha  pomba  e  meu  consolo! 

Dê-te  estrellas  o  céo,  flores  o  solo, 
Cantos  e  aroma  o  ar  e  sombra  a  palma, 
E  quando  surge  a  lua  e  o  mar  se  acalma, 
Sonhos  sem  fim  seu  preguiçoso  rolo! 

E  nem  sequer  te  lembres  de  que  eu  choro... 

Esquece  até,  esquece,  que  te  adoro... 

E  ao  passares  por  mim,  sem  que  me  olhes, 

Possam  das  minhas  lagrimas  cruéis 
Nascer  sob  os  teus  pés  flores  fieis, 
Que  pises  distrahida  ou  rindo  esfolhes! 


35 


APPARIÇAO 


Um  dia,  meu  amor  (e  talvez  cedo, 
Que  já  sinto  estalar-me  o  coração!) 
Recordarás  com  dor  e  compaixão 
As  ternas  juras  que  te  fiz  a  medo... 

Então,  da  casta  alcova  no  segredo, 
Da  lamparina  ao  tremulo  clarão, 
Ante  ti  surgirei,  espectro  vão, 
Larva  fugida  ao  sepulcral  degredo... 

E  tu,  meu  anjo,  ao  ver-me,  entre  gemidos 
E  afflictos  ais,  estenderás  os  braços 
Tentando  segurar-te  aos  meus  vestidos.,. 


—  «  Ouve !  espera !  »  —  Mas  eu,  sem  te  escutar, 
Fugirei,  como  um  sonho,  aos  teus  abraços 
E  como  fumo  sumir-me-hei  no  ar! 


36 


ACGORDANDO 


Em  sonho,  ás  vezes,  se  o  sonhar  quebranta 
Este  meu  vão  soflfrer,  esta  agonia, 
Como  sobs  cantando  a  cotovia. 
Para  o  céo  a  minh'alma  sobe  e  canta. 


Canta  a  luz,  a  alvorada,  a  estrella  santa, 
Que  ao  mundo  traz  piedosa  mais  um  dia... 
Canta  o  enlevo  das  cousas,  a  alegria 
Que  as  penetra  de  amor  e  as  alevanta... 

Mas,  de  repente,  um  vento  húmido  e  frio 

Sopra  sobre  o  meu  sonho:  um  calafrio 

Me  accorda.  —  A  noite  é  negra  e  muda:  a  dor 


Cá  vela,  como  d'antes,  ao  meu  lado.. 
Os  meus  cantos  de  luz,  anjo  adorado, 
São  sonho  só,  e  sonho  o  meu  amor! 


MAE 


Mãe  —  que  adormente  este  viver  dorido, 
E  me  vele  esta  noite  de  tal  frio, 
E  com  as  mãos  piedosas  ate  o  íio 
Do  meu  pobre  existir,  meio  partido... 

Que  me  leve  comsigo,  adormecido, 
Ao  passar  pelo  sitio  mais  sombrio... 
Me  banhe  e  lave  a  alma  lá  no  rio 
Da  clara  luz  do  seu  olhar  querido... 

Eu  dava  o  meu  orgulho  de  homem  —  dava 
Minha  estéril  sciencia,  sem  receio, 
E  em  débil  criancinha  me  tornava. 


Descuidada,  feliz,  dócil  também, 

Se  eu  podesse  dormir  sobre  o  teu  seio, 

Se  tu  fosses,  querida,  a  minha  mãe! 


38 


NA   CAPELLA 


Na  capella,  perdida  entro  a  folhagem, 
O  Christo,  lá  no  fundo,  agonisava  . . . 
Oh!  como  intimamente  se  casava 
Com  minha  dor  a  dor  d'aquella  imagem! 

Filhos  ambos  do  amor,  igual  miragem 
Nos  roçou  pela  fronte,  que  escaldava  . ., 
Igual  traição,  que  o  affecto  mascarava. 
Nos  deu  supplicio  ás  mãos  da  villanagem.., 

E  agora,  ali,  em  quanto  da  floresta 
A  sombra  se  infiltrava  lenta  e  mesta, 
Vencidos  ambos,  martyres  do  Fado, 

Fitavamo-nos  mudos  —  dor  igual!  — 
Nem,  dos  dois,  saberei  dizer-vos  qual 
Mais  pallido,  mais  triste  e  mais  cançado... 


39 


VELUT   UMBRA 


Fumo  e  scismo.    Os  castellos  do  horizonte 
Erguem-se,  á  tarde,  e  crescem,  de  mil  cores, 
E  ora  espalham  no  céo  vivos  ardores, 
Ora  fumam,  vulcões  de  estranho  monte... 


Depois,  que  formas  vagas  vem  defronte. 
Que  parecem  sonhar  loucos  amores? 
Almas  que  vão,  por  entre  luz  e  horrores, 
Passando  a  barca  d'esse  aéreo  Acheronte.. 


Apago  o  meu  charuto  quando  apagas 
Teu  facho,  oh  sol . . .  ficamos  todos  sós . . . 
É  n'esta  solidão  que  me  consumo! 


Oh  nuvens  do  Occidente,  oh  cousas  vagas. 
Bem  vos  entendo  a  cor,  pois,  como  a  vós, 
Belleza  e  altura  se  me  vão  em  fumo! 


40 


MEA   CULPA 


Não  duvido  que  o  mundo  no  seu  eixo 
Gire  suspenso  e  volva  em  harmonia; 
Que  o  homem  suba  e  vá  da  noite  ao  dia, 
E  a  homem  vá  subindo  insecto  e  seixo. 


Não  chamo  a  Deus  tyranno,  nem  me  queixo, 
Nem.  chamo  ao  céo  da  vida  noite  fria: 
Não  chamo  á  existência  hora  sombria; 
Acaso,  á  ordem;  nem  á  lei  desleixo. 

A  Natureza  é  minha  mãe  ainda  . . . 

É  minha  mãe...    Ah,  se  eu  á  face  linda 

Não  sei  sorrir;  se  estou  desesperado; 


Se  nada  ha  que  me  aqueça  esta  frieza; 
Se  estou  cheio  de  fel  e  de  tristeza . . . 
É  de  crer  que  só  eu  seja  o  culpado! 


4» 


o   PAL.A.CIO   DA  VENTURA 


Sonho  que  sou  um  cavalleiro  andante. 
Por  desertos,  por  soes,  por  noite  escura, 
Paladino  do  amor,  busco  anhelante 
O  palácio  encantado  da  Ventura! 

Mas  já  desmaio,  exhausto  e  vacillante, 
Quebrada  a  espada  já,  rota  a  armadura., 
E  eis  que  súbito  o  avisto,  fulgurante 
Na  sua  pompa  e  aérea  formosura! 


Com  grandes  golpes  bato  á  porta  e  brado; 
Eu  sou  o  Vagabundo,  o  Desherdado  . . . 
Abri-vos,  portas  d'ouro,  ante  meus  ais!J 


4í 


Abrem-se  as  poitas  dVjuro,  com  fragor. 
Mas  dentro  encontro  só,  cheio  de  dor, 
Silencio  e  escuridão  —  e  nada  mais! 


JURA 


Pelas  rugas  da  fronte  que  medita... 

Pelo  olhar  que  interroga  —  e  não  vê  nada, 

Pela  miséria  e  pela  mão  gelada 

Que  apaga  a  estrella  que  nossa  alma  fita.. 

Pelo  estertor  da  chama  que  crepita 

No  ultimo  arranco  d'uma  luz  minguada... 

Pelo  grito  feroz  da  abandonada 

Que  um  momento  de  amante  fez  maldita. 


Por  quanto  ha  de  fatal,  por  quanto  ha  mixto 
De  sombra  e  de  pavor  sob  uma  lousa  . . . 
Oh  pomba  meiga,  pomba  da  esperança! 

Eu  t'o  juro,  menina,  tenho  visto 
Cousas  terríveis  —  mas  jamais  vi  cousa 
Mais  feroz  do  que  um  riso  dç  criança! 


43 


IDEAI^ 


Aquella,  que  eu  adoro,  não  é  feita 
De  lyrios  nem  de  rosas  purpurinas, 
Não  tem  as  formas  languidas,  divinas 
Da  antiga  Vénus  de  cintura  estreita.., 


Não  é  a  Circe,  cuja  mão  suspeita 
Compõe  filtros  mortaes  entre  ruinas, 
Nem  a  Amazona,  que  se  agarra  ás  crinas 
D'um  corcel  e  combate  satisfeita... 


A  mim  mesmo  pergunto,  e  não  atino 

Com  o  nome  que  dê  a  essa  visão, 

Que  ora  amostra  ora  esconde  o  meu  destino 


É  como  uma  miragem,  que  entrevejo, 

Ideal,  que  nasceu  na  solidão, 

Nuvem,  sonho  impalpável  do  Desejo.,, 


M 


EMQUANTO   OUTROS  COMBATEM 


Empunhasse  eu  a  espada  dos  valentes! 
Impellisse-me  a  acção,  embriagado, 
Por  esses  campos  onde  a  Morte  e  o  Fado 
Dão  a  lei  aos  reis  trémulos  e  ás  "entes! 


Respirariam  meus  pulmões  contentes 
O  ar  de  fogo  do  circo  ensanguentado.. . 
Ou  cahira  radioso,  amortalhado 
Na  fulva  luz  dos  gládios  reluzentes! 

Já  não  veria  dissipar-se  a  aurora 
De  meus  inúteis  annos,  sem  uma  hora 
Viver  mais  que  de  sonhos  e  anciedade! 

Jã  não  veria  em  minhas  mãos  piedosas 
Desfolhar- se,  uma  a  uma,  as  tristes  rosas 
D'esta  palHda  e  estéril  mocidade! 


DESPONDENCY 


Dtixal-a  ir,  a  ave,  a  quem  roubaram 
Ninho  e  filhos  e  tudo,  sem  piedade.., 
Que  a  leve  o  ar  sem  fim  da  soledade 
Onde  as  azas  partidas  a  levaram... 


Deixal-a  ir,  a  vela,  que  arrojaram 
Os  tufões  pelo  mar,  na  escuridade, 
Quando  a  noite  surgio  da  immensidade, 
Quando  os  ventos  do  Sul  se  levantaram, 


Deixal-a  ir,  a  alma  lastimosa. 

Que  perdeu  fé  e  paz  e  confiança, 

A  morte  queda,  á  morte  silenciosa.., 


46 


Deixal-a  ir,  a  nota  desprendida 

D'um  canto  extremo...  e  a  ultima  esperança 

E  a  viJa.. .  e  o  amor,. .  deixal-a  ir,  a  vida! 


DAS   UNNENNBARE 


Oh  chimera,  que  passas  embalada 
Na  onda  de  meus  sonhos  dolorosos, 
E  roças  co'os  vestidos  vaporosos 
A  minha  fronte  pallida  e  cançada! 

Leva-te  o  ar  da  noite  socegada... 
Pergunto  em  vão,  com  olhos  anciosos, 
Que  nome  é  que  te  dão  os  venturosos 
No  teu  paiz,  mysteriosa  fada! 

Mas  que  destino  o  meu!  e  que  luz  baça 
A  d'esta  aurora,  igual  á  do  sol  posto, 
Quando  só  nuvem  livida  esvoaça! 

Que  nem  a  noite  uma  illusão  consinta! 
Que  só  de  longe  e  em  sonhos  te  presinta... 
E  nem  em  sonhos  possa  ver-te  o  rosto! 


47 


METEMPSYCHOSE 


Ardentes  filhas  do  prazer;  dizei-me! 
Vossos  sonhos  quaes  são,  depois  da  orgia? 
Acaso  nunca  a  imagem  fugidia 
Do  que  fostes,  em  vós  se  agita  e  freme? 


N'outra  vida  e  outra  esphera,  aonde  geme 
Outro  vento,  e  se  accende  um  outro  dia, 
Que  corpo  tinheis?  que  matéria  fria 
Vossa  alma  incendiou,  com  fogo  estreme? 

Vós  fostes  nas  florestas  bravas  feras, 

Arrastando,  leoas  ou  pantheras, 

De  dentadas  de  amor  um  corpo  exangue.., 

Mordei  pois  esta  carne  palpitante, 
Feras  feitas  de  gaze  fluctuante  . . . 
Lobas!  leoas!  sim,  bebei  meu  sangue! 


48 


UMA   AMIGA 


Aquelles,  que  eu  amei,  não  sei  que  vento 
Os  dispersou  no  mundo,  que  os  não  vejo, 
Estendo  os  braços  e  nas  trevas  beijo 
Visões  que  á  noite  evoca  o  sentimento  . . . 


Outros  me  causam  mais  cruel  tormento 
Que  a  saudade  dos  mortos  . . .  que  eu  In  /ejo , 
Passam  por  mim,  mas  como  que  têm  pejo 
Da  minha  soledade  e  abatimento! 


D'aquella  primavera  venturosa 

Não-  resta  uma  flor  só,  uma  só  rosa  . . , 

Tudo  o  vento  varreu,  queimou  o  gelo ! 


Tu  só  foste  fiel  —  tu,  como  d'antes, 
Inda  volves  teus  olhos  radiantes  . . . 
Para  ver  o  meu  mal . . .  e  escarnecel-o  ! 


49 


A   UMA  MULHER 


Para  tristezas,  para  dor  nasceste. 
Podia  a  sorte  por-te  o  berço  estreito 
N'algum  palácio  e  ao  pé  de  régio  leito, 
Em  vez  d'este  areal  onde  cresceste: 


Podia  abrir-te  as  flores  —  com  que  veste 
As  ricas  e  as  felizes  —  n'esse  peito;" 
Fazer-te ...  o  que  a  Fortuna  ha  sempre  feito  . 
Terias  sempre  a  sorte  que  tiveste  I^ 

Tinhas  de  ser  assim...    Teus  olhos  fitos, 
Que  não  são  d'este  mundo  e  onde  eu  leio 
Uns  mysterios  tão  tristes  e  infinitos, 

Tua  voz  rara  e  esse  ar  vago  e  esquecido. 
Tudo  me  diz  a  mim,  e  assim  o  creio, 
Que  para  isto  só  tinhas  nascido! 


5o 


voz  DO   OUTOMNO 


Ouve  tu,  meu  cançado  coração, 
O  que  te  diz  a  voz  da  Natureza; 
—  «  Mais  te  valera,  nú  e  sem  defeza, 
Ter  nascido  em  aspérrima  soidão, 

Ter  gemido,  ainda  infante,  sobre  o  chão 
Frio  e  cruel  da  mais  cruel  deveza, 
Do  que  emballar-te  a  Fada  da  Belleza, 
Como  emballou,  no  berço  da  Illusão! 

Mais  valera  á  tua  alma  visionaria 

Silenciosa  e  triste  ter  passado 

Por  entre  o  mundo  hostil  e  a  turba  varia, 


(Sem  ver  uma  só  flor,  das  mil,  que  amaste) 
Com  ódio  e  raiva  e  dor...  que  ter  sonhado 
Os  sonhos  ideaes  que  tu  sonhaste!  »  — 


5i 


SEPULTURA   ROMÂNTICA 


Ali,  onde  o  mar  quebra,  n'um  cachão 
Rugidor  e  monótono,  e  os  ventos 
Erguem  pelo  areal  os  seus  lamentos, 
Ali  se  ha-de  enterrar  meu  coração. 


Queimem-no  os  soes  da  adusta  solidão 
Na  fornalha  do  estio,  em  dias  lentos: 
Depois,  no  inverno,  os  sopros  violentos 
Lhe  revolvam  em  torno  o  árido  chão.. 


Até  que  se  desfaça  e,  já  tornado 

Em  impalpável  pó,  seja  levado 

Nos  turbilhões  que  o  vento  levantar . , , 

Com  suas  luctas,  seu  cançado  anceio, 
Seu  louco  amor,  dissolva-se  no  seio 
D'esse  infecundo,  d'esse  amargo  mar! 


53 


864-1874 


A   IDEA 


Pois  que  os  deuses  antigos  e  os  antigos 
Divinos  sonhos  por  esse  ar  se  sonnem, 
E  á  luz  do  altar  da  fé,  em  Templo  ou  Dolmen, 
A  apagaram  os  ventos  inimigos; 

Pois  que  o  Sinai  se  ennubla  e  os  seus  pacigos, 
Seccos  á  mingua  de  agua,  se  consomôm, 
E  os  prophetas  d'outrora  todos  dormem 
Esquecidos,  em  terra  sem  abrigos; 

Pois  que  o  céo  se  fechou  e  já  não  desce 
Na  escada  de  Jacob  (na  de  Jesus  ^) 
Um  só  anjo,  que  acceite  a  nossa  prece; 

É  que  o  lyrio  da  Fé  já  não  renasce: 
Deus  tapou  com  a  mão  a  sua  luz 
E  ante  os  homens  velou  a  sua  face ! 


55 


11 


Pallido  Christo,  oh  conductor  divino! 
A  custo  agora  a  tua  mão  tão  doce 
Incerta  nos  conduz,  como  se  fosse 
Teu  grande  coração  perdendo  o  tino., 


A  palavra  sagrada  do  Destino 
Na  bocca  dos  oráculos  seccou-se: 
A  luz  da  sarça  ardente  dissipou-se 
Ante  os  olhos  do  vago  peregrino! 


Ante  os  olhos  dos  homens  —  porque  o  mundo 
Desprendido  rolou  das  mãos  de  Deus, 
Como  uma  cruz  das  mãos  d'um  moribundo! 


Porque  já  se  não  lê  seu  nome  escrito 
Entre  os  astros...  e  os  astros,  como  atheus, 
Já  não  querem  mais  lei  que  o  infinito! 


56 


I 


IH 


Força  é  pois  ir  buscar  outro  caminho! 
Lançar  o  arco  de  outra  nova  ponte 
Por  onde  a  alma  passe  —  e  um  alto  monte 
Aonde  se  abra  á  luz  o  nosso  ninho. 


Se  nos  negam  aqui  o  pão  e  o  vinho, 
Avante!  é  largo,  immenso  esse  horizonte... 
Não,  não  se  fecha  o  mundo '  e  alêm,  defronte, 
E  em  toda  a  parte  ha  luz,  vida  e  carinho ! 


I 


Avante!  os  mortos  ficarão  sepultos... 
Mas  os  vivos  que  sigam,  sacudindo 
Como  o  pó  da  estrada  os  velhos  cultos! 


Doce  e  brando  era  o  seio  de  Jesus... 

Que  importa?  havemos  de  passar,  seguindo, 

Se  alêm  do  seio  d'e!le  houver  mais  luz! 


IV 


Conquista  pois  sósinlio  o  teu  futuro, 
Já  que  os  celestes  guias  te  hão  deixado, 
Sobre  uma  terra  ignota  abandonado, 
Homem  —  proscrito  rei  —  mendigo  escuro! 

Se  não  tens  que  esperar  do  céo  (tão  puro, 
Mas  tão  cruel!)  e  o  coração  magoado 
Sentes  já  de  illusÕes  desenganado. 
Das  illusóes  do  antigo  amor  perjuro; 

Ergue-ie,  então,  na  magestade  estóica 
D'uma  vontade  solitária  e  altiva, 
N'um  esforço  supremo  de  alma  heróica! 


58 


Faze  um  templo  dos  muros  da  cadeia. 
Prendendo  a  immensidade  eterna  e  viva 
No  circulo  de  luz  da  tua  Idea! 


Mas  a  Idea  quem  é  ?  quem  foi  que  a  vio, 
Jamais,  a  essa  encoberta  peregrina? 
Quem  lhe  beijou  a  sua  mão  divina? 
Com  seu  olhar  de  amor  quem  se  vestio? 


Pallida  imagem,  que  a  agua  de  algum  rio, 
Reflectindo,  levou...  incerta  e  fina 
Luz,  que  mal  bruxulêa  pequenina... 
Nuvem,  que  trouxe  o  ar,  e  o  ar  sumio . . . 

Estendei,  estendei-lhe  os  vossos  braços, 
Magro  da  febre  d'um  sonhar  profundo, 
Vós  todos  que  a  seguis  n'esses  espaços! 

E  emtanto,  oh  alma  triste,  alma  chorosa, 
Tu  não  tens  outra  amante  em  todo  o  mundo 
Mais  que  essa  fria  virgem  desdenhosa! 


^ 


VI 


Outra  amante  não  ha!  não  ha  na  vida 
Sombra  a  cobrir  melhor  nossa  cabeça, 
Nem  bálsamo  mais  doce,  que  adormeça 
Em  nós  a  antiga,  a  secular  ferida! 

Quer  fuja  esquiva,  ou  se  oífereça  erguida, 
Como  quem  sabe  amar  e  amar  confessa. 
Quer  nas  nuvens  se  esconda  ou  appareça, 
Será  sempre  ella  a  esposa  promettida! 

Nossos  desejos  para  ti,  oh  fria, 

Se  erguem,  bem  como  os  braços  do  proscrito 

Para  as  bandas  da  pátria,  noite  e  dia. 

Podes  fugir...  nossa  alma,  delirante, 
Seguir-te-ha  a  travez  do  infinito, 
Até  voltar  comtigo,  triumphante! 


60 


VII 

Oh!  o  noivado  bárbaro!  o  noivado 
Sublinne!  aonde  os  céos,  os  céos  ingentes, 
Serão  leito  de  amor,  tendo  pendentes 
Os  astros  por  docel  e  cortinado! 

As  bodas  do  Desejo,  embriagado 

De  ventura,  a  final!  visões  ferventes 

De  quem  nos  braços  vae  de  ideaes  ardentes 

Por  espaços  sem  termo  arrebatado! 

Lá,  por  onde  se  perde  a  phantasia 

No  sonho  da  belleza;  lá,  aonde 

A  noite  tem  mais  luz  que  o  nosso  dia; 


Lá,  no  seio  da  eterna  claridade. 
Aonde  Deus  á  humana  voz  responde; 
É  que  tê  havemos  abraçar,  Verdade! 


6i 


VIU 

Lá!    Mas  aonde  é  là?  aonde?  —  Espera, 
Coração  indomado  1  o  céo,  que  anceia 
A  alma  fiel,  o  céo,  o  céo  da  Ideia, 
Em  vão  o  buscas  n'essa  immensa  esphera! 

O  espaço  é  mudo :  a  immensidade  austera 
De  balde  noite  e  dia  se  incendeia  . . . 
Em  nenhum  astro,  em  nenhum  sol  se  alteia 
A  rosa  ideal  da  eterna  primavera! 


O  Paraiso  e  o  templo  da  Verdade, 

Oh  mundos,  astros,  soes,  constellações! 

Nenhum  de  vós  o  tem  na  immensidade.. 


A  Idea,  o  summo  Bem,  o  Verbo,  a  Essência, 
Só  se  revela  aos  homens  e  ás  nações 
No  céo  incorruptível  da  Consciência! 


62 


A   UM   CRUCIFIXO 

Lendo,  passados  12  annos,  o  soneto  da  parte  i.* 
que  tem  o  mesmo  titulo 


Não  se  perdeu  teu  sangue  generoso, 

Nem  padeceste  em  vão,  quem  quer  que  foste, 

Plebeu  antigo,  que  amarrado  ao  poste 
Morreste  como  vil  e  faccioso. 


D'esse  sangue  maldito  e  ignominioso 
Surgio  armada  uma  invencivel  hoste... 
Paz  aos  homens  e  guerra  aos  deuses!  —  poz-te 
Em  vão  sobre  um  altar  o  vulgo  ocioso... 


Do  pobre  que  protesta  foste  a  imagem: 
Um  povo  em  ti  começa,  um  homem  novo: 
De  ti  data  essa  trágica  linhagem. 

Por  isso  nós,  a  Plebe,  ao  pensar  n'isto, 
Lembraremos,  herdeiros  d'esse  povo, 
Que  entre  nossos  avós  se  conta  Christo. 


$3. 


DIALOGO 


A  cruz  dizia  á  terra  onde  assentava, 
Ao  valle  obscuro,  ao  monte  áspero  e  mudo 
—  Que  és  tu,  abysmo  e  jaula,  aonde  tudo 
Vive  na  dor  e  em  lucta  cega  e  brava? 


Sempre  em  trabalho,  condemnada  escrava, 
Que  fazes  tu  de  grande  e  bom,  comtudo? 
Resignada,  és  só  lodo  informe  e  rudo; 
Revoltosa,  és  só  fogo  e  hórrida  lava... 

Mas  a  mim  não  ha  alta  e  livre  serra 
Que  me  possa  igualar! ...  amor,  firmeza, 
Sou  eu  só;  sou  a  paz,  tu  és  a  guerra! 

Sou  o  espirito,  a  luz! ...  tu  és  tristeza, 
Oh  Iodo  escuro  e  vil!  —  Porém  a  terra 
Respondeu:  Cruz,  eu  sou  a  Natureza! 


64 


MAIS   LUZ! 

(a    guilherme   de   AZEVEDO) 


Amem  a  noite  os  magros  crapulosos, 
E  os  que  sonham  com  virgens  impossíveis, 
E  os  que  se  inclinam,  mudos  e  impassíveis, 
A  borda  dos  abysmos  silenciosos... 


Tu,  lua,  com  teus  raios  vaporosos, 
Cobre-os,  tapa-os  e  torna-os  insensíveis, 
Tanto  aos  vícios  cruéis  e  inextinguíveis. 
Como  aos  longos  cuidados  dolorosos! 


Eu  amarei  a  santa  madrugada, 
E  o  meio-dia,  em  vida  refervendo, 
E  a  tarde  rumorosa  e  repousada. 

Viva  e  trabalhe  em  plena  luz:  depois, 
Seja-me  dado  ainda  ver,  morrendo, 
O  claro  sol,  amigo  dos  heroes! 


65 


THESE   E  ANTITHESE 


Já  não  sei  o  que  vale  a  nova  idea, 
Quando  a  vejo  nas  ruas  desgrenhada, 
Torva  no  aspecto,  á  luz  da  barricada, 
Como  bacchante  após  lúbrica  ceia... 


Sanguinolento  o  olhar  se  lhe  incendeia; 
Respira  fumo  e  fogo  embriagada: 
A  deusa  de  alma  vasta  e  socegada 
Eil-a  presa  das  fúrias  de  Medea! 

Um  século  irritado  e  truculento 

Chama  á  epilepsia  pensamento, 

Verbo  ao  estampido  de  pelouro  e  obuz . . 

Mas  a  idea  é  n'um  mundo  inalterável, 
N'um  crystallino  céo,  que  vive  estável... 
Tu,  pensamento,  não  és  fogo,  és  luz! 


60 


II 


N'um  céo  intemerato  e  crystallino 
Pôde  habitar  talvez  um  Deus  distante, 
Vendo  passar  em  sonho  cambiante 
O  Ser,  como  espectáculo  divino. 

Mas  o  homem,  na  terra  onde  o  destino 
O  lançou,  vive  e  agita-se  incessante: 
Enche  o  ar  da  terra  o  seu  pulmão  possante.. 
Cá  da  terra  blasphema  ou  ergue  um  hymno. 


A  idea  encarna  em  peitos  que  palpitam : 
O  seu  pulsar  são  chamas  que  crepitam, 
Paixões  ardentes  como  vivos  soes! 


Combatei  pois  na  terra  árida  e  bruta, 
Té  que  a  revolva  o  remoinhar  da  lucta, 
Té  que  a  fecunde  o  sangue  dos  haroes! 


9 


67 


JUSTITIA  MATER 


Nas  florestas  solemnes  ha  o  culto 
Da  eterna,  intima  força  primitiva: 
Na  serra,  o  grito  audaz  da  alma  captiva, 
Do  coração,  em  seu  combate  inulto: 


No  espaço  constellado  passa  o  vulto 
Do  innominado  Alguém,  que  os  soes  aviva: 
No  mar  ouve-se  a  voz  grave  e  afflictiva 
D'um  deus  que  lucta,  poderoso  e  inculto. 

Mas  nas  negras  cidades,  onde  solta 
Se  ergue,  de  sangue  mádida,  a  revolta. 
Como  incêndio  que  um  vento  bravo  atiça, 

Ha  mais  alta  missão,  mais  alta  gloria: 
O  combater,  á  grande  luz  da  historia, 
Os  combates  eternos  da  Justiçai 


68 


PALAVRAS  D'UM   CERTO   MORTO 


Ha  mil  annosj  e  mais,  que  aqui  estou  morto, 
Posto  sobre  um  rochedo,  á  chuva  e  ao  vento: 
Não  ha  como  eu  espectro  macilento, 
Nem  mais  disforme  que  eu  nenhum  aborto... 


Só  o  espirito  vive:  vela  absorto 

N'um  fixo,  inexorável  pensamento: 

«Morto,  enterrado  em  vida!  u  o  meu  tormento 

É  isto  só  . . .  do  resto  não  me  importo  . . . 


Que  vivi  sei-o  eu  bem . . .  mas  foi  um  dia, 

Um  dia  só  —  no  outro,  a  Idolatria 

Deu-me  um  altar  e  um  culto...  ai!  adoraram-me, 


Como  se  eu  fosse  alguém  I  como  se  a  Vida 
Podesse  ser  alguém  l  —  logo  em  seguida 
Disseram  que  era  um  Deus...  e  amortalharam-me! 

69 


A   UM  POETA 


Surge  et  ambulaf 


Tu,  que  dormes,  espirito  sereno, 
Posto  á  sombra  dos  cedros  seculares, 
Como  um  levita  á  sombra  dos  altares. 
Longe  da  lucta  e  do  fragor  terreno, 

Accorda!  é  tempo!    O  sol,  já  alto  e  pleno, 
Afugentou  as  larvas  tumulares . . . 
Para  surgir  do  seio  d'esses  mares, 
Um  mundo  novo  espera  só  um  aceno... 

Escuta!  é  a  grande  voz  das  multidões! 

São  teus  irmãos,  que  se  erguem!  são  canções, 

Mas  de  guerra . . .  e  são  vozes  de  rebate! 


Ergue-te  pois,  soldado  do  Futuro, 
E  dos  raios  de  luz  do  sonho  puro, 
Sonhador,  (aze  espada  de  combate! 


70 


HYMNO   A   RAZÃO 


Razão,  irmã  do  Amor  e  da  Justiça, 
Mais  uma  vez  escuta  a  minha  prece. 
É  a  voz  d'um  coração  que  te  appetece, 
D'uma  alma  livre,  só  a  ti  submissa. 


Por  ti  é  que  a  poeira  movediça 
De  astros  e  soes  e  mundos  permanece ; 
E  é  por  ti  que  a  virtude  prevalece, 
E  a  flor  do  heroísmo  medra  e  viça. 


Por  ti,  na  arena  trágica,  as  nações 

Buscam  a  liberdade,  entre  clarões; 

E  os  que  olham  o  futuro  e  scismam,  mudos. 


Por  ti,  podem  soffrer  e  não  se  abatem. 
Mãe  de  filhos  robustos,  que  combatem 
Tendo  o  teu  nome  escrito  em  seus  escudos! 


7» 


1874-1^^^ 


HOMO 


Nenhum  de  vós  ao  certo  me  conhece, 
Astros  do  espaço,  ramos  do  arvoredo, 
Nenhum  adivinhou  o  meu  segredo, 
Nenhum  interpretou  a  minha  prece... 

Ninguém  sabe  quem  sou . . .  e  mais,  parece 
Que  ha  dez  mil  annos  já,  neste  degredo, 
Me  vê  passar  o  mar,  vê-me  o  rochedo 
E  me  contempla  a  aurora  que  alvorece... 

Sou  um  parto  da  Terra  monstruoso; 
Do  húmus  primitivo  e  tenebroso 
Geração  casual,  sem  pae  nem  mãe... 

Mixto  infeliz  de  trevas  e  de  brrlho, 
Sou  talvez  Satanaz;  —  talvez  um  filho 
Bastardo  de  Jehovah;  —  talvez  ninguém! 


DISPUTA   EM   família 

Dixit  insipiens  in  corde  suo:  non  est  Deus 


Sae  das  nuvens,  levanta  a  fronte  e  escuta 
O  que  dizem  teus  filhos  rebellados, 
Velho  Jehovah  de  longa  barba  hirsuta, 
Solitário  em  teus  Géos  acastellados: 


«  —  Gessou  o  império  emfim  da  força  bruta! 
Não  soffreremos  mais,  emancipados, 
O  tyranno,  de  mão  tenaz  e  astuta,  ] 
Que  mil  annos  nos  trouxe  arrebanhados! 


«  Emquanto  tu  dormias  impassível, 
Topámos  no  caminho  a  liberdade 
Que  nos  sorrio  com  gesto  indefinivel.. 


«Já  provámos  os  fructos  da  verdade... 

O  Deus  grande,  ó  Deus  forte,  ó  Deus  terrível, 

Não  passas  d'uma  van  banalidade!  — » 


76 


Mas  o  velho  tyranno  solitário, 
De  coração  austero  e  endurecido, 
Que  um  dia,  de  enjoado  ou  distrahido, 
Deixou  matar  seu  filho  no  Calvário, 


Sorrio  com  rir  extranho,  ouvindo  o  vario 
Tumultuoso  coro  e  alarido 
Do  povo  insipiente,  que,  atrevido, 
Erguia  a  voz  em  grita  ao  seu  sacrário : 

« — Vanitas  vanitatum!  (disse).   É  certo 
Que  o  homem  vão  medita  mil  mudanças. 
Sem  achar  mais  do  que  erro  e  desacerto. 


«Muito  antes  de  nascerem  vossos  pães 
D'um  barro  vil,  ridículas  crianças. 
Sabia  eu  tudo  isso . . .  e  muito  mais  I  —  » 


77 


MORS    LIBERATRIX 
(a  bulhão  pato) 


Na  tua  mão,  sombrio  cavalleiro, 
Cavalleiro  vestido  de  armas  pretas, 
Brilha  uma  espada  feita  de  cometas, 
Que  rasga  a  escuridão,  como  um  luzeiro. 


Caminhas  no  teu  curso  aventureiro. 
Todo  involto  na  noite  que  projectas  ., 
Só  o  gladio  de  luz  com  fulvas  betas 
Emerge  do  sinistro  nevoeiro. 


—  «Se  esta  espada  que  empunho  é  coruscante, 
(Responde  o  negro  cavalleiro-andante) 
E  porque  esta  é  a  espada  da  Verdade. 


Firo,  mas  salvo...  Prosto  e  desbarato, 
Mas  consolo...  Subverto,  mas  resgato, 
E,  sendo  a  Morte,  sou  a  Liberdade.» 


78 


o    INCONSCIENTE 


O  espectro  familiar  que  anda  commigo, 
Sem  que  podesse  ainda  ver-lhe  o  rosto; 
Que  umas  vezes  encaro  com  desgosto 
E  outras  muitas  ancioso  espreito  e  sigo, 

E  um  espectro  mudo,  grave,  antigo. 
Que  parece  a  conversas  mal  disposto... 
Ante  esse  vulto,  ascético  e  composto 
Mil  vezes  abro  a  bocca...  e  nada  digo. 


Só  uma  vez  ousei  interrogal-o : 

Quem  és  (lhe  perguntei  com  grande  abalo) 

Phantasma  a  quem  odeio  e  a  quem  amo? 

Teus  irmãos  (respondeu)  os  vãos  humanos, 
Chamam-me  Deus,  ha  mais  de  dez  mil  annos . . . 
Maa  eu  por  mim  não  sei  como  me  chamo... 


19 


MORS-AMOR 

(a   LUIZ   DE   MAGALHÃES) 


Esse  negro  corcel,  cujas  pussadas 
Escuto  em  sonhos,  quando  a  sombra  desce, 
E,  passando  a  galope,  me  apparece 
Da  noite  nas  phantasticas  estradas, 

D'onde  vem  elle?  Que  regiões  sagradas 
E  terríveis  cruzou,  que  assim  parece 
Tenebroso  e  sublime,  e  lhe  estremece 
Não  sei  que  horror  nas  crinas  agitadas? 

Um  cavalleiro  de  expressão  potente, 
Formidável,  mas  plácido,  no  porte, 
Vestido  de  armadura  reluzente. 


Cavalga  a  fera  extranha  sem  temor. 

E  o  corcel  negro  diz:  «Eu  sou  a  Morte!» 

Responde  o  cavalleiro:  «Eu  sou  o  Amor!» 


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ESTOICISMO 

(a  MANOEL  DUARTE  DE  ALMEIDA) 


Tu  que  não  cies,  nem  annas,  nem  esperas, 

Espirito  de  eterna  negação, 

Teu  hálito  gelou-me  o  coração 

E  destroçou-me  da  alma  as  primaveras... 


Atravessando  regiões  austeras, 
Cheias  de  noite  e  cava  escuridão, 
Como  n'um  sonho  mau,  só  oiço  unri  não, 
Que  eternamente  ecchoa  entre  as  espheras , 

—  Porque  suspiras,  porque  te  lamentas, 
Cobarde  coração?  Debalde  intentas 
Oppor  á  Sorte  a  queixa  do  egoismo... 

Deixa  aos  timidos,  deixa  aos  sonhadores 
A  esperança  van,  seus  vãos  fulgores... 
Saba  tu  encarar  sereno  o  abysmo! 


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ANIMA  MEA 


Estava  a  Morte  alli,  em  pé,  diante, 
Sim,  diante  de  mim,  como  serpente 
Que  dormisse  na  estrada  e  de  repente 
Se  erguesse  sob  os  pés  do  caminhante. 

Era  de  ver  a  fúnebre  bacchante! 
Que  torvo  olhar!  que  gesto  de  demente! 
E  eu  disse-lhe:  «Que  buscas,  impudente, 
Loba  faminta,  pelo  mundo  errante?» 

—  Não  temas,  respondeu  (e  uma  ironia 
Sinistramente  estranha,  atroz  e  calma, 
Lhe  torceu  cruelmente  a  bocca  fria). 

Eu  não  busco  o  teu  corpo  . . .    Era  um  tropheu 
Glorioso  de  mais  .. .    Busco  a  tua  alma  — 
Respondi-lhe;  «A  minha  alma  já  morreu I» 


Bi 


DIVINA   COMEDIA 
(ao  dr.  JOSÉ  falcão) 


Erguendo  os  braços  para  o  céo  distante 
E  apostrophando  os  deuses  invisíveis, 
Os  homens  clamam:  —  «Deuses  impassiveis, 
A  quem  serve  o  destino  triumphante, 


Porque  é  que  nos  criastes?!    Incessante 
Corre  o  tempo  e  só  gera,  inextinguíveis, 
Dor,  peccado,  illusão,  luctas  horríveis, 
N'um  turbilhão  cruel  e  delirante... 


Pois  não  era  melhor  na  paz  clemente 
Do  nada  e  do  que  ainda  não  existe. 
Ter  ficado  a  dormir  eternamente? 


Porque  é  que  para  a  dor  nos  evocastes?» 

Mas  os  deuses,  com  voz  inda  mais  triste. 

Dizem:  —  «Homens!  porque  é  que  nos  criastes?» 

9 


ESPIRITUALISMO 


Como  um  vento  de  morte  e  de  mina, 
A  Duvida  soprou  sobre  o  Universo. 
Fez-se  noite  de  súbito,  immerso 
O  mundo  em  densa  e  algida  neblina. 

Nem  astro  já  reluz,  nem  ave  trina, 
Nem  flor  sorri  no  seu  aéreo  berço. 
Um  veneno  sutil,  vago,  disperso. 
Empeçonhou  a  criação  divina. 

E,  no  meio  da  noite  monstruosa, 

Do  silencio  glacial,  que  paira  e  estende 

O  seu  sudário,  d'onde  a  morte  pende. 


Só  uma  flor  humilde,  mysteriosa, 
Como  um  vago  protesto  da  existência, 
Desabroxa  no  fundo  da  Consciência. 


84 


II 


Dorme  entre  os  gelos,  flor  immaculada! 
Lucta,  pedindo  um  ultimo  clarão 
Aos  soes  que  ruem  pela  immensidão, 
Arrastando  uma  aureola  apagada... 

Em  vão!    Do  abysmo  a  bocca  escancarada 
Chama  por  ti  na  gélida  amplidão... 
Sobe  do  poço  eterno,  em  turbilhão, 
A  treva  primitiva  conglobada  . . . 

Tu  morrerás  também.    Um  ai  supremo, 
Na  noite  universal  que  envolve  o  mundo, 
Ha-de  echoar,  e  teu  perfume  extremo 


No  vácuo  eterno  se  esvahirá  disperso, 
Gomo  o  alento  final  d'um  moribundo, 
Como  o  ultimo  suspiro  do  Universo. 


85 


o   CONVERTIDO 

(a  GONÇALVES  CRESPO) 


Entre  os  filhos  d'um  século  maldito 
Tomei  também  logar  na  impia  meza, 
Onde,  sob  o  folgar,  geme  a  tristeza 
D'uma  anciã  impotente  do  infinito. 

Como  os  outros,  cuspi  no  altar  avito 
Um  rir  feito  de  fel  e  de  impureza... 
Mas,  um  dia,  abalou-se-me  a  firmeza, 
Deu-me  rebate  o  coração  contrito! 

Erma,  cheia  de  tédio  e  de  quebranto, 
Rompendo  os  diques  ao  represo  pranto, 
Virou-se  para  Deus  minha  alma  triste! 


Amortalhei  na  fé  o  pensamento, 

E  achei  a  paz  na  inércia  e  esquecimento 

Só  me  falta  saber  se  Deus  existe! 


86 


ESPECTROS 


Espectros  que  veles,  emquanto  a  custo 
Adormeço  um  momento,  e  que  inclinados 
Sobre  os  meus  somnos  curtos  e  cançados 
Me  encheis  as  noites  de  agonia  e  susto! ... 


De  que  me  vale  a  mim  ser  puro  e  justo, 
E  entre  combates  sempre  renovados 
Disputar  dia  a  dia  á  mão  das  Fados 
Uma  parcella  do  saber  augusto, 

Se  a  minh'alma  ha-de  ver,  sobre  si  fitos. 
Sempre  esses  olhos  trágicos,  malditos! 
Se  até  dormindo,  com  angustia  immensa. 

Bem  os  sinto  verter  sobre  o  meu  leito, 
Uma  a  uma  verter  sobre  o  meu  peito 
As  lagrimas  geladas  da  descrença! 


87 


A   VIRGEM   santíssima 

Cheia  de  Graça,  Mãe  de  Misericórdia 


N'um  sonho  todo  feito  de  incerteza, 
De  nocturna  e  indizível  anciedade, 
É  que  eu  vi  teu  olhar  de  piedade 
E  (mais  que  piedade)  de  tristeza... 

Não  era  o  vulgar  brilho  da  belleza, 
Nem  o  ardor  banal  da  mocidade... 
Era  outra  luz,  era  outra  suavidade, 
Que  até  nem  sei  se  as  ha  na  natureza 


Um  mystico  sofFrer...  uma  ventura 
Feita  só  do  perdão,  só  da  ternura 
E  da  paz  da  nossa  hora  derradeira.., 


Ó  visão,  visão  triste  e  piedosa! 
Fita-me  assim  calada,  assim  chorosa. 
E  deixa-me  sonhar  a  vida  inteira! 


88 


NOX 

(a  FERNANDO  KEAL) 


Noite,  vão  para  ti  meus  pensamentos, 
Quando  olho  e  vejo,  á  luz  cruel  do  dia, 
Tanto  estéril  luctar,  tanta  agonia, 
E  inúteis  tantos  ásperos  tormentos... 

Tu,  ao  menos,  abafas  os  lamentos, 

Que  se  e.xhalam  da  trágica  enxovia... 

O  eterno  Mal,  que  ruge  e  desvaria, 

Em  ti  descança  e  esquece,  alguns  momentos 


Oh!  antes  tu  também  adormecesses 
Por  uma  vez,  e  eterna,  inalterável, 
Cahindo  sobre  o  mundo,  te  esquecesses, 

E  elle,  o  mundo,  sem  mais  luctar  nem  ver. 
Dormisse  no  teu  seio  inviolável. 
Noite  sem  termo,  noite  do  Náo-ser! 


«9 


EM    VIAGEM 


Pelo  caminho  estreito,  aonde  a  custo 
Se  encontra  uma  só  flor,  ou  ave,  ou  fonte, 
Mas  só  bruta  aridez  de  áspero  monte 
E  os  soes  e  a  febre  do  areal  adusto, 


Pelo  caminho  estreito  entrei  sem  susto 
E  sem  susto  encarei,  vendo-os  defronte, 
Phantasmas  que  surgiam  do  horizonte 
A  accommetter  meu  coração  robusto... 

Quem  sois  vós,  peregrinos  singulares? 
Dor,  Tédio,  Desenganos  e  Pesares  . . . 
Atraz  d'elles  a  Morte  espreita  ainda... 

Conheço-vqs.    Meus  guias  derradeiros 
Sereis  vós.    Silenciosos  companheiros, 
Bemvindos,  pois,  e  tu,  Morte,  bemvinda! 


go 


QUIA    /ETERNUS 

(a  JOAQUIM  DE  ARAU'0) 


Não  morreste,  por  mais  que  o  brade  á  gente 
Uma  orgulhosa  e  van  philosophia  . . . 
N<ão  se  sacode  assim  tão  facilmente 
O  jugo  da  divina  tyrannia! 

Clamam  em  vão,  e  esse  triumpho  ingente 
Com  que  a  Razão  —  coitada!  —  se  inebria, 
É  nova  forma,  apenas,  mais  pungente, 
Da  tua  eterna,  trágica  ironia. 


Não,  não  morreste,  espectro!  o  Pensamento 
Como  d'antes  te  encara,  e  és  o  tormento 
De  quantos  sobre  os  livros  desfallecem. 


E  os  que  folgam  na  orgia  impia  e  devassa 
Ai!  quantas  vezes,  ao  erguer  a  taça. 
Param,  e  estremecendo,  empallidecem! 


9« 


NO    TURBILHÃO 
(a  jayme  batalha  reis) 


No  meu  sonho  desfilam  as  visões, 
Espectros  dos  meus  próprios  pensamentos, 
Como  um  bando  levado  pelos  ventos, 
Arrebatado  em  vastos  turbilhões... 


N'uma  espiral,  de  estranhas  contorsÕes, 
E  d'onde  saem  gritos  e  lamentos, 
Vejo-os  passar,  em  grupos  nevoentos, 
Distingo-lhes,  a  espaços,  as  feições . . . 

—  Phantasmas  de  mim  mesmo  e  da  minha  alma. 
Que  me  fitaes  com  formidável  calma. 
Levados  na  onda  turva  do  escarceo, 

Quem  sois  vós,  meus  irmãos  e  meus  algozes? 
Quem  sois,  visões  misérrimas  e  atrozes? 
Ai  de  mim !  ai  de  mim  !  e  quem  sou  eu?  ! . . . 


92 


IGNOTUS 

(a  SALOMÃO  SÁRAGGA) 


Onde  te  escondes?  Eis  que  em  vão  clamamos, 
Suspirando  e  erguendo  as  mãos  em  vão! 
Já  a  voz  enrouquece  e  o  coração 
Está  cançado  —  e  já  desesperamos  . . . 


Por  céo,  por  mar  e  terras  procuramos 
O  Espirito  que  enche  a  solidão, 
E  só  a  própria  voz  na  imniensidão 
Fatigada  nos  volve...  e  não  te  achamos! 

Céos  e  terra,  clamai,,  aonde?  aonde?  — 
Mas  o  Espirito  antigo  só  responde, 
Em  tom  de  grande  tédio  e  de  pezar: 


—  Não  vos  queixeis,  ó  filhos  da  anciedade, 
Que  eu  mesmo,  desde  toda  a  eternidade. 
Também  me  busco  a  mim...  sem  me  encontrar! 


93 


NO    CIRCO 

'a   JOÃO    DE   deus) 


Muito  longe  d'aqui,  nem  eu  sei  quando, 
Nem  onde  era  esse  mundo,  em  que  eu  vivia , 
Mas  tão  longe...  que  até  dizer  podia 
Que  emquanto  lá  andei,  andei  sonhando... 

Porque  era  tudo  ali  aéreo  e  brando, 

E  lúcida  a  existência  amanhecia  . . . 

E  eu...  leve  como  a  luz...  até  que  um  dia 

Um  vento  me  tomou,  e  vim  rolando  . . . 


Cahi  e  achei-me,  de  repente,  involto 
Em  lucta  bestial,  na  arena  fera, 
Onde  um  bruto  furor  bramia  solto. 


Senti  um  monstro  em  mim  nascer  n'essa  hora, 
E  achei-me  de  improviso  feito  fera  . . . 
—  É  assim  que  rujo  entre  leÕes  ago>ra ! 


94 


NIRVANA 

(a  guerra  JUNQUEIRO) 


Para  além  do  Universo  luminoso, 
Cheio  de  formas,  de  rumor,  de  lida, 
De  forças,  de  desejos  e  de  vida, 
Abre-se  como  um  vácuo  tenebroso. 


A  onda  d'esse  mar  tumultuoso 
Vem  ali  expirar,  esmaecida . . . 
N'uma  immobilidade  indefinida 
Termina  ali  o  ser,  inerte,  ocioso  . . . 

E  quando  o  pensamento,  assim  absorto, 
Emerge  a  custo  d'esse  mundo  morto 
E  torna  a  olhar  as  cousas  naturaes, 


A  bella  luz  da  vida,  ampla,  infinita, 
Só  vê  com  tédio,  em  tudo  quanto  fita, 
A  illusâo  e  o  vasio  universaes. 


95 


CONSULTA 

(a   ALBERTO    SAMPAIO) 


Chamei  em  volta  do  meu  frio  leito 
As  memorias  melhores  de  outra  edade, 
Formas  vagas,  que  ás  noites,  com  piedade, 
Se  inclinam,  a  espreitar,  sobre  o  meu  peito... 

E  disse-lhes:  —  No  mundo  immenso  e  estreito 
Valia  a  pena,  acaso,  em  anciedade 
Ter  nascido?  di^ei-mo  com  verdadç. 
Pobres  memorias  que  eu  ao  seio  estreito... 

Mas  ellas  perturbaram-se  —  coitadas! 
E  empallideceram,  contristadas, 
Ainda  a  mais  feliz,  a  mais  serena... 


E  cada  uma  d'ellas,  lentamente, 
Com  um  sorriso  mórbido,  pungente, 
Me  respondeu:  —  Não,  não  valia  a  pena! 


96 


VISÃO 

(a  J.  M.  EÇA  DE  QUEIROZ) 


Eu  vi  O  Amor  —  mas  nos  seus  olhos  baços 

Nada  sorria  já:  só  fixo  e  lento 

Morava  agora  ali  um  pensamento 

De  dor  sem  tregoa  e  de  íntimos  cansaços. 


Pairava,  como  espectro,  nos  espaços, 
Todo  envolto  n'um  nimbo  pardacento  . 
Na  attitude  convulsa  do  tormento, 
Torcia  e  retorcia  os  magros  braços... 


E  arrancava  das  azas  destroçadas 
A  uma  e  uma  as  pennas  maculadas, 
Soltando  a  espaços  um  soluço  fundo. 


Soluço  de  ódio  e  raiva  impenitentes.. 
E  do  phantasma  as  lagrimas  ardentes 
Cahiam  lentamente  sobre  o  mundo! 


97 


880-1884 


to 


TRANSCENDENTAL IS  MO 

(a  J.  P.   OLiVEIRA  MARTINS) 


Já  socega,  depois  de  tanta  lucta, 
Já  me  descança  em  paz  o  coração. 
Cahi  na  conta,  emfim,  de  quanto  é  vão 
O  bem  que  ao  Mundo  e  á  Sorte  se  disputa. 


Penetrando,  com  fronte  não  enxuta. 
No  sacrário  do  templo  da  Illusão, 
Só  encontrei,  com  dor  e  confusão, 
Trevas  e  pó,  uma  matéria  bruta... 

Não  é  no  vasto  mundo  —  por  immenso 
Que  elle  pareça  á  nossa  mocidade  — 
Que  a  alma  sacia  o  seu  desejo  intenso. 

Na  esphera  do  invisível,  do  intangivel, 
Sobre  desertos,  vácuo,  soledade, 
Vôa  e  paira  o  espirito  impassivel! 


lOf 


EVOLUÇÃO 

(a  santos  valente) 


Fui  rocha,  em  tempo,  e  fui,  no  mundo  antigo, 
Tronco  ou  ramo  na  incógnita  floresta... 
Onda,  espumei,  quebrando-me  na  aresta 
Do  granito,  antiquissimo  inimigo... 

Rugi,  fera  talvez,  buscando  abrigo 
Na  caverna  que  ensombra  urze  e  giesta; 
Ou,  monstro  primitivo,  ergui  a  testa 
No  limoso  paul,  glauco  pacigo... 

Hoje  sou  homem  —  e  na  sombra  enorme 
Vejo,  a  meus  pés,  a  escada  multiforme. 
Que  desce,  em  espiraes,  na  immensidade... 


Interrogo  o  infinito  e  ás  vezes  choro... 
Mas,  estendendo  as  mãos  no  vácuo,  adoro 
E  aspiro  unicamente  á  liberdade. 


loa 


ELOGIO   DA    MORTE 


Morrer  é  ser  iniciado. 
Anthologia  grega. 


0 
Altas  horas  da  noite,  o  Inconsciente 

Sacode-me  com  força,  e  accórdo  em  susto. 

Como  se  o  esmagassem  de  repente, 

Assim  me  pára  o  coração  robusto. 

\ 

Não  que  de  larvas  me  povoe  a  mente 
Esse  vácuo  nocturno,  mudo  e  augusto, 
Ou  forceje  a  razão  por  que  afugente 
Algum  remorso,  com  que  encara  a  custo.. 


Nem  phantasmas  nocturnos  visionários, 

Nem  desfilar  de  espectros  mortuários, 

Nem  dentro  em  mim  terror  de  Deus  ou  Sorte . . . 


Nada!  o  fundo  d'um  poço,  húmido  e  morno. 
Um  muro  de  silencio  e  treva  em  torno, 
E  ao  longe  os  passos  sepulcraes  da  Morte. 


io3 


Na  floresta  dos  sonhos,  dia  a  dia, 
Se  interna  meu  dorido  pensamento, 
Nas  regiões  do  vago  esquecimento 
Me  conduz,  passo  a  passo,  a  phantasia. 


Atravesso,  no  escuro,  a  névoa  fria 
D'um  mundo  estranho,  que  povoa  o  vento, 
E  meu  queixoso  e  incerto  sentimento 
Só  das  visões  da  noite  se  confia. 


Que  mysticos  desejos  me  enlouquecem? 
Do  Nirvana  os  abysmos  apparecem 
A  meus  olhos,  na  muda  immensidadel 


N'esta  viagem  pelo  ermo  espaço. 

Só  busco  o  teu  encontro  e  o  teu  abraço. 

Morte!  irman  do  Amor  e  da  Verdade! 


104 


Ill 


Eu  não  sei  quem  tu  és  —  mas  não  procuro 
(Tal  é  minha  confiança)  devassal-o. 
Basta  sentir-te  ao  pé  de  mim,  no  escuro, 
Entre  as  formas  da  noite,  com  quem  falo. 


Atravez  do  silencio  frio  e  obscuro 
Teus  passos  vou  seguindo,  e,  sem  abalo, 
No  cairel  dos  abysmos  do  Futuro 
Me  inclino  á  tua  voz,  para  sondal-o. 

Por  ti  me  engolfo  no  nocturno  mundo 
Das  visões  da  região  innominada, 
A  ver  se  fixo  o  teu  olhar  profundo . . . 


Fixai  o,  comprehendel-o,  basta  uma  hora, 
Funérea  Beatriz  de  mão  gelada... 
Mas  única  Beatriz  consoladora! 


io5 


IV 


Longo  tempo  ignorei  (mas  que  cegueira 
Me  trazia  este  espirito  ennublado!) 
Quem  fosses  tu,  que  andavas  a  meu  lado, 
Noite  e  dia,  impassivel  companheira... 

Muitas  vezes,  é  certo,  na  canceira, 
No  tédio  extremo  d'um  viver  maguado, 
Para  ti  levantei  o  olhar  turbado, 
Invocando-te,  amiga  derradeira... 

Mas  não  te  amava  então  nem  conhecia: 

Meu  pensamento  inerte  nada  lia 

Sobre  essa  muda  fronte,  austera  e  calma. 


io6 


Luz  intima,  afinal,  alumiou-me. .. 
Filha  do  mesmo  pae,  já  sei  teu  nome, 
Morte,  irman  coeterna  da  minha  alma! 


Que  nome  te  darei,  austera  imagem, 
Que  avisto  já  n'um  angulo  da  estrada, 
Quando  me  desmaiava  a  alma  prostrada 
Do  cahçaço  e  do  tédio  da  viagem  ? 


Em  teus  olhos  vê  a  turba  uma  voragem, 
Cobre  o  rosto  e  recua  apavorada... 
Mas  eu  confio  em  ti,  sombra  velada, 
E  cuido  perceber  tua  linguagem... 


Mais  claros  vejo,  a  cada  passo,  escritos. 
Filha  da  noite,  os  lemmas  do  Ideal, 
Nos  teus  olhos  profundos  sempre  fitos.. 


Dormirei  no  teu  seio  inalterável. 
Na  communháo  da  paz  universal. 
Morte  libei-tadora  e  inviolável! 


107 


VI 


Só  quem  teme  o  Não-ser  é  que  se  assusta 
Com  teu  vasto  silencio  mortuário, 
Noite  sem  fim,  espaço  solitário, 
Noite  da  Morte,  tenebrosa  e  augusta. t. 


Eu  não:  minh'alma  humilde  mas  robusta 
Entra  crente  em  teu  átrio  funerário: 
Para  os  mais  és  um  vácuo  cinerario, 
A  mim  sorri-me  a  tua  face  adusta. 


A  mim  seduz-me  a  paz  santa  e  ineffavel 

E  o  silencio  sem  par  do  Inalterável, 

Que  envolve  o  eterno  amor  no  eterno  luto. 


io8 


Talvez  seja  peccado  procurar-te, 
Mas  não  sonhar  comtigo  e  adorar-te, 
Não-ser,  que  és  o  Ser  único  absoluto. 


CONTEMPLAÇÃO 

(a  FRANCISCO  MACHADO  DE  FARIA  E  MAIA) 


Sonho  de  olhos  abertos,  caminhando 
Não  entre  as  formas  já  e  as  apparencias, 
Mas  vendo  a  face  immovel  das  essências, 
Entre  ideas  e  espiritos  pairando... 

Que  é  o  mundo  ante  mim?  fumo  ondeando, 
Visões  sem  ser,  fragmentos  de  existências  . . . 
Uma  névoa  de  enganos  e  impotencias 
Sobre  vácuo  insondável  rastejando... 


E  d'entre  a  névoa  e  a  sombra  universaes 
Só  me  chega  um  murmúrio,  feito  de  ais. 
É  a  queixa,  o  profundíssimo  gemido 


Das  cousas,  que  procuram  cegamente 
Na  sua  noite  e  dolorosamente 
Outra  luz,  outro  fim  só  preseniido  . .. 


109 


LAGRIMA    RERUM 
(a  tommaso  cannizzaro) 


Noite,  irmã  da  Razão  e  irmã  da  Morte, 
Quantas  vezes  tenho  eu  interrogado 
Teu  verbo,  teu  oráculo  sagrado, 
Confidente  e  interprete  da  Sorte! 

Aonde  vão  teus  soes,  como  cohorte 

De  almas  inquietas,  que  conduz  o  Fado? 

E  o  homem  porque  vaga  desolado 

E  em  vão  busca  a  certeza,  que  o  conforte? 


Mas,  na  pompa  de  immenso  funeral, 
Muda,  a  noite,  sinistra  e  triumphal. 
Passa  volvendo  as  horas  vagarosas.. 


É  tudo.  em  torno  a  mim,  duvida  e  luto; 
E,  perdido  n'um  sonho  immenso,  escuto 
O  suspiro  das  cousas  tenebrosas.  . . 


I  IO 


REDEMPÇAO 

(Á  EX."*  SNR*  D.   CELESTE  C.  B.  R.) 


Vozes  do  mar,  das  arvores^  do  vento! 
Quando  ás  vezes,  n'um  sonho  doloroso, 
Me  embala  o  vosso  canto  poderoso, 
Eu  julgo  igual  ao  meu  vosso  tormento.. 


Verbo  crepuscular  e  intimo  alento 
Das  cousas  mudas;  psalmo  mysterioso; 
Não  serás  tu,  queixume  vaporoso, 
O  suspiro  do  mundo  e  o  seu  lamento? 


Um  espirito  habita  a  immensidade: 
Uma  anciã  cruel  de  liberdade 
Agita  e  abala  as  formas  fugitivas. 

E  eu  comprehendo  a  vossa  lingua  estranha, 
Vozes  do  mar,  da  selva,  da  montanha... 
Almas  irmans  da  minha,  almas  captivas! 

Ill 


II 


Não  choreis,  ventos,  arvores  e  mares. 
Coro  antigo  de  vozes  rumorosas, 
Das  vozes  primitivas,  dolorosas 
Como  um  pranto  de  larvas  tumulares, 


Da  sombra  das  visões  crepusculares 
Rompendo,  um  dia,  surgireis  radiosas 
D'esse  sonho  e  essas  anciãs  affrontosas. 
Que  exprimem  vossas  queixas  singulares 


Almas  no  limbo  ainda  da  existência, 
Accordareis  um  dia  na  Consciência, 
E  pairando,  já  puro  pensamento. 

Vereis  as  Formas,  filhas  da  Illusão, 
Cahir  desfeitas,  como  um  sonho  vão. 
E  acabará  por  fim  vosso  tormento. 


112 


I 


voz    INTERIOR 

(a  JOÃO  DE  deus) 


Embebido  n'um  sonho  doloroso, 
Que  atravessam  phantasticos  clarões, 
Tropeçando  n'um  povo  de  visões, 
Só  agita  meu  pensar  tumultuoso... 


Com  um  bramir  de  mar  tempestuoso 
Que  até  aos  céos  arroja  os  seus  cachões, 
Atravez  d'uma  luí  de  exhalaçÕes, 
Rodeia-me  o  Universo  monstruoso... 


Um  ai  sem  termo,  um  trágico  gemido 
Echoa  sem  cessar  ao  meu  ouvido, 
Com  horrivel,  monótono  vaivém... 


Só  no  meu  coração,  que  sondo  e  meço, 
Não  sei  que  voz,  que  eu  mesmo  desconheço, 
Em  segredo  protesta  e  affirma  o  Bem! 


ii3 


LUCTA 


Fluxo  e  refluxo  eterno. 
João  de  Deus. 


Dorme  a  noite  encostada  nas  colinas. 
Como  um  sonho  de  paz  e  esquecimento 
Desponta  a  lua.    Adormeceu  o  vento, 
Adormeceram  valles  e  campinas... 

Mas  a  mim,  cheia  de  attracções  divinas, 
Dá-me  a  noite  rebate  ao  pensamento. 
Sinto  em  volta  de  mim,  tropel  nevoento, 
Os  Destinos  e  as  Almas  peregrinas! 

Insondável  problema! . . .  Apavorado 
Recua  o  pensamento ! . . .    E  já  prostrado 
E  estúpido  á  força  de  fadiga. 

Fito  inconsciente  as  sombras  visionarias, 
Emquanto  pelas  praias  solitárias 
Echoa,  ó  mar,  a  tua  voz  antiga. 


114 


LOGOS 

(ao   SNR.  d.  NICOLAS  SALMERON) 


Tu,  que  eu  não  vejo,  e  estás  ao  pé  de  mim 

E,  o  que  é  mais,  dentro  em  mim  —  que  me  rodeias 
Com  um  nimbo  de  affectos  e  de  ideias, 
Que  são  o  meu  principio,  meio  e  fim . . . 

Que  estranho  ser  és  tu  (se  és  ser)  que  assim 

Me  arrebatas  comtigo  e  me  passeias 

Em  regiões  innominadas,  cheias 

De  encanto  e  de  pavor ...  de  não  e  sim . . . 

És  um  reflexo  apenas  da  minha  alma, 
E  em  vez  de  te  encarar  com  fronte  calma 
Sobresalto-me  ao  ver-te,  e  tremo  e  exoro-te... 

Falo-te,  calas...  calo,  e  vens  attento... 
És  um  pae,  um  irmão,  e  é  um  tormento 
Ter-te  a  meu  lado ...  és  um  tyranno,  e  adoro-te! 

it5 


COM   OS    MORTOS 


Os  que  amei,  onde  estão?  idos,  dispersos, 
Arrastados  no  gyro  dos  tufões. 
Levados,  como  em  sonho,  entre  visões, 
Na  fuga,  no  ruir  dos  universos... 

•> 
E  eu  mesmo,  com  os  pés  também  immersos 

Na  corrente  e  á  mercê  dos  turbilhões, 

Só  vejo  espuma  livida,  em  cachões, 

E  entre  ella,  aqui  e  ali,  vultos  submersos... 


Mas  se  paro  um  momento,  se  consigo 

Fechar  os  olhos,  sinto-os  a  meu  lado 

De  novo,  esses  que  amei:  vivem  commigo, 

Vejo-os,  ouço-os  e  ouvem-me  também. 
Juntos  no  antigo  amor,  no  amor  sagrado, 
Na  communháo  ideal  do  eterno  Bem. 


ii6 


OCEANO  NOX 

(a  a.  de  AZEVEDO  CASTELLO  BRANCO) 


Junto  do  mar,  que  erguia  gravemente 
A  trágica  voz  rouca,  em  quanto  o  vento 
Passava  como  o  vôo  d'um  pensamento 
Que  busca  e  hesita,  inquieto  e  intermittente, 


Junto  do  mar  sentei-me  tristemente, 
Olhando  o  céo  pesado  e  nevoento, 
E  interroguei,  scismando,  esse  lamento 
Que  sabia  das  cousas,  vagamente... 

Que  inquieto  desejo  vos  tortura. 
Seres  elementares,  força  obscura? 
Em  volta  de  que  idea  gravitaes?  — 

Mas  na  immensa  extensão,  onde  se  esconde 
O  Inconsciente  immortal,  só  me  responde 
Um  bramido,  um  queixume,  e  nada  mais... 


117 


COMMUNHAO 

(ao  SNR.  JOÃO  LOBO  DE  MOURA) 


Reprimirei  meu  pranto!...    Considera 
Quantos,  minWalma,  antes  de  nós  vagaram, 
Quantos  as  mãos  incertas  levantaram 
Sob  este  mesmo  céo  de  luz  austera!... 


—  Luz  morta!  amarga  a  própria  primavera !- 
Mas  seus  pacientes  corações  luctaram, 
Crentes  só  por  instincto,  e  se  apoiaram 
Na  obscura  e  heróica  fé,  que  os  retempera... 


E  sou  eu  mais  do  que  elles?  igual  fado 
Me  prende  á  lei  de  ignotas  multidões. — 
Seguirei  meu  caminho  confiado, 

Entre  esses  vultos  mudos,  mas  amigos. 
Na  humilde  fé  de  obscuras  gerações, 
Na  communhão  dos  nossos  pães  antigos. 


ii8 


SOLEMNIA   VERBA 


Disse  ao  meu  coração:  Olha  por  quantos 
Caminhos  vãos  andámos!    Considera 
Agora,  d'esta  altura  fria  e  austera, 
Os  ermos  que  regaram  nossos  prantos... 

Pó  e  cinzas,  onde  houve  flor  e  encantos! 
E  noite,  onde  foi  luz  de  primavera! 
Olha  a  teus  pés  o  mundo  e  desespera 
Semeador  de  sombras  e  quebrantos!  — 

Porem  o  coração,  feito  valente 

Na  escola  da  tortura  repetida, 

E  no  uso  do  penar  tornado  crente, 

Respondeu:  D'esta  altura  vejo  o  Amor! 
Viver  não  foi  em  vão,  se  é  isto  a  vida. 
Nem  foi  de  mais  o  desengano  e  a  dor. 


119 


o    QUE   DIZ   A   MORTE 


Deixai-os  vir  a  mim,  os  que  lidaram; 
Deixai-os  vir  a  mim,  os  que  padecem; 
E  os  que  cheios  de  magua  e  tédio  encaram 
As  próprias  obras  vans,  de  que  escarnecem, 

Em  mim,  os  Soffrimentos  que  não  saram, 
Paixão,  Duvida  e  Mal,  se  desvanecem. 
As  torrentes  da  Dor,  que  nunca  param, 
Como  n'um  mar,  em  mim  desapparecem,  — 

Assim  a  Morte  diz.   Verbo  velado. 
Silencioso  interprete  sagrado 
Das  cousas  invisíveis,  muda  e  fria, 

É,  na  sua  mudez,  mais  retumbante 
Que  o  clamoroso  mar;  mais  rutilante, 
Na  sua  noite,  do  que  a  luz  do  dia. 


NA   MÃO   DE   DEUS 

(Á  EX.*"  SNR*  D.  VICTORIA  DE  O.  M.) 


Na  mão  de  Deus,  na  sua  mão  direita, 
Descançou  a  final  meu  coração. 
Do  palácio  encantado  da  lUusão 
Desci  a  passo  e  passo  a  escada  estreita. 

Como  as  flores  mortaes,  com  que  se  enfeita 
A  ignorância  infantil,  despojo  vão, 
Depuz  do  Ideal  e  da  Paixão 
A  forma  transitória  e  imperfeita. 

Como  criança,  em  lobrega  jornada, 
Que  a  mãe  leva  ao  coUo  agasalhada 
E  atravessa,  sorrindo  vagamente, 


Selvas,  mares,  areias  do  deserto... 
Dorme  o  teu  somno,  coração  liberto, 
Dorme  na  mão  de  Deus  eternamente! 


121 


índice 


Pag. 

A  cruz  dizia  á  terra,  onde  assentava 64 

Adornou  o  meu  quarto  a  flor  do  cardo 26 

Ali,  onde  o  mar  quebra,  n'um  cachão 52 

Altas  horas  da  noite,  o  Inconsciente io3 

Amar  I  mas  d'um.  amor  que  tenha  vida r.5 

Amem  a  noite  os  magros  crapulosos 65 

Aquella,  que  eu  adoro,  não  é  feita 44 

Aquelles,  que  eu  amei,  não  sei  que  vento 49 

Ardentes  filhas  do  prazer,  dizei-me 48 

Chamei  em  volta  do  meu  frio  leito 96 

Chovam  lyrios  e  rosas  no  teu  collo 35 

Como  um  vento  de  morte  e  de  ruina 84 

Conheci  a  belleza  que  náo  morre 7 

Conquista  pois  sósinho  o  teu  futuro 58 

Deixae-os  tir  a  mim,  os  que  lidaram 120 

Deixal-a  ir,  a  ave,  a  quem  roubaram 46 

Depois  que  dia  a  dia,  aos  poucos  desmaiando 22 

Disse  ao  meu  coração  :  Olha  por  quantos 119 

Dorme  a  noite  encostada  nas  colinas 114 

Dorme  entre  os  gelos,  flor  immaculada 85 

Embebido  n'um  sonho  doloroso ii3 

Empunhasse  eu  a  espada  dos  valentes! 45 

Em  sonho,  ás  vezes,  se  o  sonhar  quebranta 3^ 

Em  vão  luctamos!   Como  névoa  baça 19 

Entre  os  filhos  d'um  século  maldito 86 

Erguendo  os  braços  para  o  céo  distante 83 

Espectros  que  velaes,  em  quanto  a  custo 87 

Esperemos  em  Deus !   Elle  ha  tomado 10 

Espirito  que  passas,  quando  o  vento 32 

Esse  negro  corcel,  cujas  passadas 80 

Estava  a  morte  ali,  em  pé,  deante 82 

123 


Pag. 

Estreita  é  do  prazer  na  vida  a  taça 6 

Eu  amo  a  vasta  sombra  das  montanhas 3o 

Eu  bem  sei  que  te  chamam  pequenina 27 

Eu  não  sei  quem  tu  és,  mas  não  procuro io5 

Eu  vi  o  Amor  —  mas  nos  seus  olhos  baços 97 

Força  é  pois  ir  buscar  outro  caminho! 57 

Fui  rocha,  em  tempo,  e  fui,  no  mundo  antigo 102 

Fumo  e  scismo.   Os  castellos  do  horizonte 40 

Ha  mil  annos,  bom  Christo,  ergueste  os  magros  braços 20 

Ha  mil  annos,  e  mais,  que  aqui  estou  morto 69 

Já  não  sei  o  que  vale  a  nova  idea 66 

Já  socega,  depois  de  tanta  lucta loi 

Junto  do  mar,  que  erguia  gravemente 117 

Lá  1  mas  aonde  é /á  ?  aonde?  Espera 62 

Longo  tempo  ignorei  —  mas  que  cegueira 106 

Máe,  que  adormente  este  viver  dorido 38 

Mas  a  Idea  quem  é?  quem  foi  que  a  vio 59 

Mas  o  velho  tyranno  solitário 77 

Meus  dias  vão  correndo  vagarosos •     .     .     .     .  8 

Muito  longe  daqui,  nem  eu  sei  quando 94 

Na  capella,  perdida  entre  a  folhagem 39 

Na  floresta  dos  sonhos,  dia  a  dia 104 

Na  mão  de  Deus,  na  sua  mão  direita 121 

Na  tua  mão,  sombrio  cavalleiro 78 

Nas  florestas  solemnes  ha  o  culto 68 

Não  busco  n'esta  vida  gloria  ou  fama 18 

Não  duvido  que  o  mundo  no  seu  eixo 41 

Não  choreis,  ventos,  arvores  e  mares 112 

Não  morreste,  por  mais  que  o  brade  á  gente 91 

Não  se  perdeu  teu  sangue  generoso 63 

Não  me  fales  de  gloria:  é  outro  o  altar 16 

No  ceo,  se  existe  um  céo  para  quem  chora 11 

Nenhum  de  vós  ao  certo  me  conhece 75 

Noite,  irmã  da  Razão  e  irmã  da  Morte no 

Noite,  vão  para  ti  meus  pensamentos 89 

No  meu  sonho  desfilam  as  visões 92 

N'um  céo  intemerato  e  crystalljno 67 

N'um  sonho  todo  feito  de  incerteza 88 

O  espectro  familiar,  que  anda  commigo 79 

Oh  chimera,  que  passas  embalada • 47 

Oh!  o  noivado  bárbaro!  o  noivado 61 

Onde  te  escondes?  eis  que  em  vão  clamamos q3 

Os  que  amei,  onde  estão?  idos,  dispersos 116 

Outra  amante  não  ha!  não  ha  na  vida • 60 

Í24 


Pag. 

Ouve  tu,  meu  cançado  coração 5i 

Pallido  Christo,  oh  conductor  divino  ! 56 

Para  além  do  Universo  luminoso gb 

Para  tristezas,  para  dor  nasceste 5o 

Pelas  rugas  da  fronte  que  medita 43 

Pelo  caminho  estreito,  aonde  a  custo. 90 

Pofs  que  os  deuses  antigos  e  os  antigos 55 

Porque  descrês,  mulher,  do  amor,  da  vida? i5 

Poz-te  Deus  soItc  a  fronte  a  mão  piedosa 5 

Quando  nós  vamos  ambos,  de  mãos  dadas 3i 

Que  belleza  mortal  se  te  assemeliia -3 

Que  nome  te  darei,  austera  imagem 107 

Quem  anda  lá  por  fora,  pela  vinha 28 

Kazáo,  irmã  do  Amor  e  da  Justiça 71 

Reprimirei  meu  pranto!. . .   Considera 118 

Sáe  das  nuvens,  levanta  a  fronte  e  escuta 76 

Se  comparo  poder,  ou  ouro,  ou  fama 9 

Se  é  lei,  que  rege  o  escuro  pensamento 12 

Sempre  o  futuro,  sempre  1  e  o  presente 14 

Sói   Ao  eremita  sósinho  na  montanha i3 

Só  males  são  reaes,  só  dor  existe 17 

Só  quem  teme  o  Não-Ser  é  que  se  assusta 108 

Só  por  ti,  astro  ainda  e  sempre  occulto 34 

Sonho-me  ás  vezes  rei,  n'alguma  ilha 29 

Sonhei  —  nem  sempre  o  sonho  é  cousa  vá 33 

Sonho  de  olhos  abertos,  caminhando 109 

Sonho  que  sou  um  cavalleiro  andante 42 

Tu,  que  eu  não  vejo  e  estás  ao  pé  de  mim ii5 

Tu,  que  dormes,  espirito  sereno 70 

Tu,  que  não  crês,  nem  amas,  nem  esperas 81 

Um  dia,  meu  amor,  e  talvez  cedo 39 

Um  diluvio  de  luz  cáe  da  montanha 4 

Vae-te  na  aza  negra  da  desgraça 21 

Vozes  do  mar,  das  arvores,  do  vento iii 


123 


BINDIMG  C^^.ZT.  FEB  8  -  1967 


9261 

Q4A17 

1922 


Quental,    Anthero    de, 
1842-1891 

Os    sonetos?- completos. 
Nova    edicao 

Colm^bra,    Impr. 
da   Universidade      (l922) 


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