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Full text of "Poesia amorosa do povo português"

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POESIA  AMOROSA  DO  POVO  PORTUGUÊS 


POESIA 


AMOROSA 


DO 


POVO  PORTUGUÊS 


BREVE  ESTUDO  E  COLLECÇÂO 

POR 

J.  Leite  de  Vasconcellos 

Medico,  professor  na  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa, 
conservador  da  mesma  Bibliotheca,  e  redactor  da  Revista  Lusitana 


Lisboa 

Viuva  Berirand  L  C.^  Successores  Carvalho  k  C 

73,  Rua  Garrett,  75 
1890 


AO  MEU  PREZADO  TIO  PATERNO 


^nt^íniíí  ^^iu  4^uúm  ft^mi^  M  %t\u 


Em  lembrança  da  muita  gratidão  que  lhe  devo 


Typ.  do  Instituto  Geographico  Portuguez 

Palácio  de  Santo  Amaro  —  Alcântara 


Prologo 


o  presente  volume  tem  duas  partes:  na 
primeira  faço  algumas  observações  geraes 
sobre  a  natureza,  forma  e  importância  da 
poesia  lyrica  do  nosso  povo,  juntando  ao 
mesmo  tempo  várias  indicações  bibliogra- 
phico-criticas;  na  segunda  ofFereço  aos  lei- 
tores uma  collecção  selecta  de  cantigas  de 
amor,  dispostas  por  ordem. 

Reconheço  que  a  primeira  parte  está 
muito  incompleta,  porque  não  tratei  de  to- 
das as  questões  que  o  assumpto  envolve; 
mas  não  me  accuse  por  isto  a  critica,  pois, 
tendo  sido  primitivamente  destinado  este 
livro  a  fazer  parte  de  uma  collecção  de  volu- 
mes de  numero  de  paginas  fixo,  (na  qual  po- 
rém não  chegou  a  sahir),  e  tencionando  eu 


ainda  voltar  a  occupar-me  detidamente  d'esta 
matéria,  quando  o  seguimento  dos  meus  es- 
tudos m'o  permittisse,  limitei-me  a  apresen- 
tar algumas  considerações  com  que  eu  mos- 
trasse a  leitores  menos  práticos  como  de  da- 
dos na  apparencia  tão  humildes  e  vulgares, 
quaes  são  as  cantigas  que  toda  a  gente  canta, 
se  pode  fazer  assumpto  sério  de  uma  disser- 
tação scientifica. 

Com  relação  á  segunda  parte,  escusado 
será  dizer  que  toda  essa  coUecção  foi  feita 
com  escrupulosa  fidelidade;  apenas  na 
transcripção  não  obedeci  geralmente  á  pro- 
nuncia popular,  e  tratei  quasi  só  de  represen- 
tar os  vocábulos  com  a  orthographia  usual, 
para  assim  a  leitura  ser  mais  agradável  ao 
commum  das  pessoas.  Essa  transcripção  pho- 
netica  rigorosa  reservo-a  eu  para  outros  tra- 
balhos de  caracter  mais  restricto,  e  mais 
accentuadamente  philologicos  do  que  este. 


Lisboa,  1 887-1  > 


PRIMEIRA  PARTE 


Algumas    observações    geraes 


§  1."  —  Natureza  da  poesia  popular 

A  poesia  em  geral.  —  A  poesia  popular  portuguesa.  —  O  amor  nas  can- 
tigas do  povo.  —  Subjectividade  e  objectividade  do  sentimento. 

A  poesia  é  uma  necessidade  da  alma.  Se, 
pela  Índole  dos  assumptos  de  que  trata,  ella 
pôde  ser  um  instrumento  do  Progresso,  e  é 
em  todo  o  caso  um  documento  da  intelligencia 
humana,  —  pela  sua  forma,  em  que  o  rythmo 
se  allia  á  vivacidade  e  exuberância  do  estylo, 
é  um  dos  melhores  meios  de  expressão  das 
emoções  :  por  isso  ella  deve  collocar-se  entre 
a  linguagem  ordinária  e  a  musica.  A  linguagem 
fallada  não  faz  apenas  as  vezes  de  um  simples 
apparelho-registador  das  idéas  :  modificada 
pelas  diversas  qualidades  da  voz,  timbre,  al- 
tura, força,  velocidade;  auxiliada  pelos  gestos. 


IO  POESIA  AMOROSA 


que  variam  muito  segundo  os  povos  e  as  cir- 
cumstancias, —  ella  serve  em  alto  grau  também 
para  traduzir,  como  a  musica,  os  sentimentos, 
porque  os  sentimentos,  num  momento  dado, 
põem  em  jogo  a  actividade  muscular,  e  a  lin- 
guagem em  ultima  analyse  reduz-se  a  modali- 
dades de  movimento  de  músculos. 

Todos  somos  pois  artistas,  em  maior  ou 
menor  escala;  na  alma  de  cada  um  existe  sem- 
pre uma  corda  que  vibra  sob  a  influencia  de 
determinados  estimulos.  E  o  verdadeiro  poeta, 
na  accepção  usual  do  vocábulo,  não  constitue 
um  ser  á  parte,  extraordinário  e  sobrenatural: 
distingue-se  somente  por  ter  um  systema  ner- 
voso mais  impressionavel,  em  certo  sentido, 
do  que  o  restante  dos  homens,  mas  obedece, 
como  estes,  ás  condições  mesologicas,  que 
actuam  fatalmente  nelle,  dirigindo-o,  educan- 
do-©, transformando-o. 

Para  se  encontrar  poesia  perfeita,  não  é  pre- 
ciso folhear  os  grandes  poemas,  essas  conce- 
pções ora  arrojadas,  ora  delicadissimas,  que 
são  a  gloria  e  o  orgulho  das  litteraturas : 
basta  interrogar  o  povo. 

Não  ha  povo  sem  poesia.  Paliando  especial- 
mente do  nosso:  apparece  nelle  um  rico  thc- 
souro,  de  que  com  este  livrinho  se  tem  em 
vista  dar  uma  pequena  amostra  no  que  res- 
peita principalmente  á  poesia  do  amor. 

Essa  poesia  amorosa  d  vivamente  sentida,  cm- 


DO   POVO   PORTUGUÊS  II 

bora  os  sentimentos  que  traduz  sejam  em  geral 
simples,  vagos,  quasi  só  os  elementares  :  a  sym- 
pathia  deante  de  uma  mulher  formosa,  que  se 
descreve  a  largos  traços,  com  dois  adjectivos 
vibrantes  e  duas  comparações ;  depois  o  des- 
pontar da  paixão,  e  a  incerteza  em  que  se 
está  de  se  ser  ou  não  correspondido;  vem 
finalmente  o  desejado  sun,  o  poeta  todo  se 
perturba,  mas  nuns  desejos  innocentes  e  cas- 
tos, contentando-se  ás  vezes  apenas  com  a 
ninharia  de  um  abraço  ou  de  um  beijo. 

Depois  da  certeza  da  correspondência  da 
paixão,  apparecem  as  mil  peripécias  de  todo 
o  namoro:  as  entrevistas  na  fonte,  que  é  nas  al- 
deias o  ponto  de  reunião  obrigado  das  moças  á 
tardinha^  as  idas  ás  romarias;  os  olhares  na 
igreja  durante  a  missa-,  as  cartas,  os  anneis  e 
ramos  que  mutuamente  se  dão  ;  os  gargarejos 
ao  luar;  outras  vezes  as  perplexidades,  filhas 
já  do  acanhamento,  já  da  intensidade  da  paixão, 
que,  assim  como  ás  vezes  leva  aos  maiores 
arrebatamentos,  também  não  raro  contém 
mudos,  extáticos,  um  deante  do  outro,  dois 
corações  que  se  amam. 

De  tudo  isso  se  encontram  numerosos  e 
VIVOS  espécimens  nas  nossas  canções  popu- 
lares. 

Em  seguida  ao  idyllio  surgem  os  arrufos, 
motivados  pelas  pieguices  d'elle  ou  pelos  ca- 
prichos d*ella:  não  ha  ironia  que  não  se  joguem, 


I  2  POESIA  AMOROSA 

nome  feio  que  se  não  dirijam.  São  dois  gatos 
assanhados  :  passam  um  pelo  outro  como  se 
se  não  vissem,  fingem  que  se  não  olham,  estão 
verdadeiramente  despeitados.  Quem  viu  aquel- 
les  corações  outr'ora  em  fogo,  agora  mais 
frios  do  que  o  gelo  !  Vá  um  homem  fiar-se 
nas  juras  de  uma  mulher...  vá  uma  mulher 
entregar  o  cofre  dos  seus  affectos  aos  sarcas- 
mos de  um  homem. . . 

—  Aquella  menina  pensa 
Que  não  ha  outra  no  mundo. 
Não  é  o  poço  tão  alto, 

Que  se  lhe  não  ache  fundo  ! 

—  Cuidavas,  por  me  deixares, 
Que  eu  cortava  o  meu  cabello ; 
Mas  cada  vez  mais  penteada 
Me  hei-de  vestir  de  vermelho . . . 

Comtudo,  ira  amanthim  furor  brevis.  Os 
arrufos  vão-se  prolongando;  o  coração  já  não 
pôde  com  a  saudade,  estala  de  mágoa,  e  eis 
que  se  desata  em  lamentos  intensíssimos,  que 
mais  parece  feito  de  lagrimas,  do  que  de  fibras 
musculares.  Gomo  o  povo  é  triste!  Quando 
elle  vibra  a  lyra  da  dor,  é  que  o  seu  estro  se 
acha  mais  á  vontade.  As  poesias  mais  senti- 
das d'este  volume  são  exactamente  as  que  ser- 
vem de  expressão  á  tristeza. 

A  ordem  que  segui  na  disposição  das  can- 


DO  POVO   PORTUGUÊS  l3 

tigas  foi  pois  esta:  uma  pequena  introducçao 
ao  assumpto  (prelúdio)-,  as  esperanças;  os  ar- 
rufos; os  desalentos. 

O  nosso  povo  nas  suas  quadras  amorosas 
não  canta  em  geral  o  trabalho,  os  encantos 
domésticos,  o  lar  com  as  creanças  em  volta; 
não  é  nada  pratico,  é  todo  idealista,  mas  de 
um  idealismo  puro,  em  que  paira  o  amor  na 
sua  essência  prima,  platonicamente.  Se  qui- 
zermos  conhecer  completamente  a  sua  vida 
moral,  os  seus  usos,  superstições  e  crenças,  a 
sua  lucta  pela  existência,  temos  de  recorrer 
aos  outros  géneros  poéticos,  que  nestes  só  de 
longe  em  longe  apparece  uma  allusão  rápida ; 
tudo  vem  como  incidente,  e  não  como  fim. 
Parece  que  o  povo  não  ama  para  constituir 
familia,  propagar  a  espécie,  e  sim  unicamente 
para  satisfazer  o  vácuo  da  sua  alma,  ou  as  im- 
pulsões momentâneas  do  ser  physico;  ama  para 
amar,  não  tem  outra  ambição. 

Habituado  a  ver  o  seu  eu  em  toda  a  parte, 
e  a  julgar  o  exterior  por  si,  o  povo  personi- 
fica a  Natureza  a  cada  passo  nas  cantigas  : 
invoca  os  astros,  os  rios,  os  montes,  os  valles; 
attribue  ás  flores  uma  vida  como  a  d'elle, 
identifica  com  ellas  a  pessoa  amada,  e  con- 
ta-lhes  os  soffrimentos  e  segredos  próprios-, 
convive  com  os  animaes,  chama  pelos  peixes, 
falia  familiarmente  aos  bois,  e  ás  horas  mor- 
tas da  noite  dirige-se  assim  ao  rouxinol  : 


14  POESIA  AMOROSA 

Rouxinol  das  pennas  de  ouro, 
Deixa  a  baga  do  loureiro, 
Deixa  dormir  a  menina 
Que  está  no  somno  primeiro. 

A  Natureza  toda  é  um  grande  scenario  de 
que  se  elle  aproveita  quando  precisa. 

O  artista  e  o  ethnologo,  que  se  encarre- 
gassem de  coordenar,  em  um  quadro  seguido, 
todos  esses  retalhos  do  coração  do  nosso  po- 
vo, fariam  um  rico  monumento  ao  mesmo  tem- 
po esthetico  e  artistico. 

-^^^ 
§  2."  —  Morphologia  das  cantigas  populares 

Razão  dl  belleza  das  cantigas.  —  O  que  é  poesia  collectiva.  —  Forma 
das  cantigas.  —  Desafios  dos  cantadores.  —  Improvisos,  descantes.  — 
Dichotomia  das  quadras  (antilhese,  comparação,  absorpcão;  obscu- 
recimento gradual  do  sentido,  obscurecimento  total).  —  As  variantes. 
—  As  repetições.  —  Espécies  de  rima.  —  O  cancioneiro  liispanhol  e 
o  português.  —  O  metro. —A  estrophe.  —  Phonetica  das  cantigas 
populares. 

Se  do  assumpto  passamos  á  forma,  que  na- 
turalidade e  graça  no  dizer! 

Não  se  encontra,  ou  raro  se  encontrará, 
um  verso  forçado,  uma  inversão  anormal ; 
quanto  se  exprime  em  verso,  tudo  se  podia 
exprimir  quasi  pelo  mesmo  modo  em  prosa. 

As  cantigas  populares  oííerecem  ordinaria- 
mente uma  extraordinária  belleza,  o  que  se 
deve  a  serem  ellas  pela  maior  parte  antiquis- 


DO  POVO  PORTUGUÊS  I5 

simas  e  terem  corrido  umas  poucas  de  gera- 
ções, que,  á  proporção  que  as  vão  cantando, 
as  vão  sempre  amoldando  aos  próprios  senti- 
mentos, e  aperfeiçoando,  —  como  um  seixo 
rolado  pelas  aguas,  que  a  pouco  e  pouco  se 
torna  mais  polido  e  luzidio.  Este  processo  de 
modificação  observa-se  bem  em  certas  poesias 
de  auctor  conhecido,  as  quaes,  passando  para 
a  boca  do  povo,  logo  se  alteram  consoante 
alguns  dos  principios  indicados.  A  linguagem 
litteraria,  quando  passa  para  o  povo,  também 
se  modifica,  porque  fica  em  condições  mesolo- 
gicas  diversas  das  que  tinha. 

O  que  se  dá  com  a  forma,  dá-se  ao  mesmo 
tempo  com  a  idéa.  Pois  não  é  para  notar  o 
facto  de  o  povo  analphabeto  e  rude  exprimir 
poeticamente  sentimentos  tão  delicados  como 
os  que  por  toda  a  presente  coUecção  se  encon- 
tram? Eu  já  disse  a  cima  que  todos  esses  sen- 
timentos erão  simples:  a  saudade,  a  dor,  o 
enfado,  etc.  Ora  nós  nos  próprios  animaes  os 
vemos  ás  vezes;  por  isso  não  se  deve  estra- 
nhar que  no  povo,  em  um  ou  outro  individuo 
de  systema  nervoso  mais  impressionavel,  elles 
appareçam  muito  vivos;  depois  as  quadras, 
correndo  de  boca  em  boca,  purificam-se  ainda 
mais,  como  com  relação  á  forma,  e  chegam  a 
alto  grau  de  perfeição. 

Assim  se  refuta  triumphantemente  a  opinião 
d'aquelles  que  dizem  que  no  povo  bruto  e  igno- 


l6  POESIA  AMOROSA 

rante  não  pôde  haver  cousa  aproveitável,  di- 
gna de  figurar  ao  lado  das  producçÕes  dos  lit- 
teratos.  Tal  opinião  é  filha  de  completa  falta 
de  observação;  resulta  de  ignorância  ainda 
maior  que  a  do  próprio  povo. 

Embora  as  canções  tenham  origem  num  só 
individuo,  ellas  depois  soífrem  a  coUaboração  de 
todos,  e  é  neste  sentido  que  se  chamam  poe- 
sia collectiva,  pois  não  se  pode  comprehender 
que  na  origem  se  juntassem  uns  poucos  de  m- 
dividuos  e  ao  mesmo  tempo  as  compuzessem, 
como  alguns  philosophos  absurdamente  sup- 
puzeram  que  succedêra  a  respeito  da  creação 
da  linguagem.  Se  uma  canção  individual  é  effe- 
ctivamente  rude  de  forma  e  tosca  de  sentido, 
a  canção  coUectiva  pode  não  apresentar  esses 
defeitos,  porque  nem  todos  os  individuos  pen- 
sam do  mesmo  modo  ou  tem  aptidões  esthe- 
ticas  e  sentimentos  iguaes,  e  assim  introdu- 
zem lentamente  no  producto  primitivo  as  mo- 
dificações que  mais  tarde  lhe  dão  um  aspecto 
novo,  muito  superior  ao  primeiro.  Este  espi- 
rito collectivo  é  o  que  os  allemães  chamam 
Allgeist  e  Volkgeist,  e  tem  merecido  estudos 
profundos  da  parte  de  alguns  pensadores, 
como  por  exemplo  Lazarus  e  Steinthal,  que, 
com  a  fundação  da  Zeitschrift  fiir  Volkerpsj- 
chologie  imd  Spraduvissenchaft  em  1859,  abri- 
ram á  sciencia  caminho  novo,  estudando 
a   poesia  popular,   a  origem  dos  mythos,  o 


DO  POVO   PORTUGUÊS 


desenvolvimento  da  linguagem,  —  todas  essas 
formas  espontâneas  da  actividade  psychologi- 
ca.  A  collectividade  não  é  uma  simples  aggre- 
gação  de  individualidades:  estas  unindo-se, 
adquirem  certos  caracteres  novos  que  merecem 
um  estudo  á  parte,  que  constitue  o  objecto  da 
Psychologia  etimológica,  ou  Demopsychologia, 
—  ainda  no  que  respeita  ás  cousas  portuguesas 
muito  atrasada. 

A  poesia  do  povo  é  de  natureza  emi- 
nentemente apaixonada.  Herbart  explica  esta 
natureza  dizendo  que  a  falta  de  educação  in- 
tellectual  faz  com  que  as  ideias  que  ficam 
isoladas  actuem  mais  fortemente  de  per  si  e 
despertem  apenas  aquellas  com  que  ellas 
se  podem  facilmente  combinar.  O  nosso  povo 
absorve-se  todo  na  paixão:  a  sua  poesia  não 
tem  nada  de  descriptiva,  é  unicamente  dramá- 
tica; o  geral  das  quadras  são  apostrophes  vio- 
lentas. Assim  a  poesia  adquire  mais  vida,  por 
mais  directa.  A  Natureza  apparece  nellas  quasi 
sempre  a  titulo  de  comparação  ou  fixação  de 
ideias-,  o  povo  não  narra  situações,  apresen- 
ta-as  de  cara.  Isto  está  em  harmonia  com  o 
que  se  passa  na  linguagem  quotidiana:  os  nos- 
sos aldeões,  quando  estão  conversando  ou  dan- 
do algum  recado,  servem-sc  de  ordinário  do 
discurso  directo  e  quasi  nunca  do  indirecto; 
as  phrases  que  nos  querem  transmittir  de  ou- 
tra pessoa  são   repetidas  ipsís  verbis,  pondo 

POESIA  AMOROSA  2 


POESIA  AMOROSA 


deante  de  nós  essa  pessoa  a  fallar.  Só  assim 
imaginam  que  se  exprimem  com  clareza.  Na- 
turezas eífectivas,  onde  a  intelligencia  é  sup- 
plantada  pelo  sentimento,  elles  não  sabem 
contar^  e  sim  somente  pintar  ao  vivo. 

As  situações  dramáticas  da  nossa  poesia 
popular  encontram  a  mais  completa  represen- 
tação nos  desafios. 

O  verdadeiro  desafio  é  aquelle  que  se  rea- 
lisa  entre  dois  cantadores^  que  para  isso,  em 
algumas  aldeias  do  Minho  por  exemplo,  são 
rogados  e  assalariados, — e  nesse  caso  as  can- 
tigas offerecem  o  cunho  do  improviso;  no  em- 
tanto  o  povo  sabe  já  de  cór  inúmeras  qua- 
dras próprias  para  desafios,  que  são  antigas 
e  por  isso  muito  correctas.  Convém  ter  pre- 
sente ao  espirito  esta  distincção,  que  é  funda- 
mental para  o  perfeito  conhecimento  da  litte- 
ratura  vulgar.  Os  desafios  realisam-se  de  or- 
dinário no  fim  de  uma  festa  de  igreja  ou 
de  qualquer  divertimento  profano,  como  eu  já 
tenho  observado.  Não  posso  transcrever  aqui 
nenhumas  quadras  improvisadas,  colhidas  em 
flagrante,  mas   dou  algumas  tradicionaes. 

Estas  são  do  concelho  de  Paredes : 


—  Tu  de  lá  e  cu  de  cá, 
Dois  ouriços  numa  cesta: 
Nunca  venceste  demanda, 
Nem  agora  vences  esta. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  I9 

—  Tu  de  lá  e  eu  de  cá, 
Pelo  meio  vae  o  rio: 
Muito  hade  ter  que  ver 
Este  nosso  desafio ... 

—  Se  eu  soubera  tu  que  vinhas, 
Antoninho  carpinteiro, 
Tinha-te  a  casa  varrida 

Cum  raminho  de  pinheiro. 

Os  cantadores  vão  passando  de  assumpto 
para  assumpto,  ao  capricho  da  phantasia. 
Torna-se  notável  nestes  desafios  a  sátira  pes- 
soal e  ás  vezes  fina  ou  mordente  que  o  can- 
tador dirige  á  cantadeira. 

As  seguintes  foram  colhidas  em  Tras-os- 
Montes  como  sendo  cantigas  ao  desafio;  quasi 
constituem  "um  romance: 

—  O  mentrasto  é  cuidoso, 
Vós  bem  cuidado  me  daes; 
Bem  pensei,  minha  menina, 
Que  vós  me  queríeis  mais. 

—  Eu.  . .  querer- vos  bem  vos  quero, 
Da  raiz  do  coração, 

Mas  não  quero,  nem  por  quanto. 
Que  me  vós  ponhaes  a  mão. 

—  Eu  a  mão  não  vo-la  ponho. 
Nem  sequer  bulo  comvoscoj 
Só  d'estar  á  vossa  beira, 
Nisso  faço  grande  gosto. 


POESIA  AMOROSA 


—  Bello  gosto  e  prazer. . . 
Venho  aqui  por  vida  nossa: 
Esta  rosa  que  aqui  vedes, 
EUa  é  d'outro,  não  é  vossa. 

—  Se  ella  é  de  outro,  não  é  minha, 
Ainda  espero  de  o  ser. . . 

Vá  chamar  o  padre  cura. 
Que  nos  venha  arreceber. 

—  Falle  baixo,  não  acorde 

O  meu  pae  que  está  a  dormir, 
Tenha  muita  cautellinha, 
Porque  elle  pode  cá  vir. . . 

—  Se  elle  vier,  eu  aqui 

Meu  sogro  lh'hei-de  chamar. . . 

—  Eu  sou  rapariga  nova, 
Casa  não  sei  governar. 

—  Outras  ainda  mais  novas 
São  casadas,  tem  marido: 
Também  vós,  minha  menina. 
Podereis  casar  comigo. 

Já  as  cantigas  improvisadas  na  occasião  não 
são  geralmente  tão  perfeitas;  falta-lhes  ainda 
o  retoque  que  só  o  povo  em  commum  lhes  pode 
dar,  apresentam  apenas  o  pensamento  indivi- 
dual, mal  definido  e  incorrectamente  enunciado 
no  repente  do  desafio. 

No  nosso  povo  ha  diversos  improvisadores, 
que  apparecem  não  só  nos  desafios  como  nos 
descantes.  No  meu  cAfinuario  das  tradições  po- 


DO  POVO   PORTUGUÊS  21 

pulares  portugue:{as^  Porto  1882,  pag.  40-46, 
publiquei  umas  notas  sobre  o^  poetas  populares 
portugueses  (e  improvisadores). 

As  cantigas  nos  descantes  são  cantadas  ao 
som  de  musica.  Um  descante^  na  Beira-Alta, 
é  um  ajuntamento  de  povo  que  geralmente 
dança  a  chula  ao  som  da  rabeca,  da  viola,  dos 
fèrrinhos  e  do  bombo.  Quem  canta  é  o  da  vio- 
la ou  alguém  de  fora.  O  povo  estende-se  em 
duas  alas  parallelas,  uma  de  rapazes,  outra 
de  mulheres;  ao  fim  a  musica.  Vão  assim  dan- 
çando e  andando  por  toda  a  povoação. 

A  poesia  popular  acompanha  o  povo  em 
todos  os  actos  da  vida,  embora  as  cantigas 
sejão  muitas  vezes  as  mesmas.  Ha  apenas  al- 
gumas secções  especiaes:  as  poesias  do  ber- 
ço, as  poesias  sagradas,  etc.  O  que  mais  ordi- 
nariamente se  canta  são  poesias  de  amor. 

O  pensamento  de  cada  quadra  é  em  geral 
muito  simples,  como  a  alma  que  o  enuncia ; 
por  isso  a  canção  precisa  de  ter  principalmen- 
te forma,  e  esta  adquire-se  com  uma  antime- 
tabole  vulgar,  uma  repetição,  um  trocadilho, 
uma  palavra  onomatopaica  ás  vezes  sem  sen- 
tido,—  o  que  tudo  se  dá  na  linguagem  fami- 
liar, de  que  a  poesia  popular  não  é  senão  uma 
variante  especial. 

Grandissimo  número  de  cantigas  tem  duas 
partes  morphologicamente  distinctas :  uma, 
constituida    pelos    dois    primeiros   versos;    a 


22 


POESIA  AMOROSA 


outra,  pelos  dois  últimos.  A  distincção  ap- 
parece  muito  nitida  em  certas  comparações  e 
antitheses,  menos  exacta  noutros  casos.  O  pri- 
meiro grupo  encerra  ordinariamente  um  sen- 
tido geral,  tirado  quasi  sempre  das  cousas  natu- 
raes;  o  segundo,  um  sentido  particular,  com 
applicação  a  dado  facto.  Exemplos: 


^  A  oliveira  pequena 
\  Que  azeite  pôde  dar  ? 

{ Sou  filha  d'um  homem  pobre, 
\  Que  amores  posso  tomar  ? 


Quem  quizer  que  a  relva  cresça, 
Ponha-a  no  alto  vallado; 

,  Quem  quizer  o  amor  firme, 
Traga-o  bem  'scandalisado. 


(i  A  rosa,  para  ser  rosa, 
/  Deve  ser  d'AIexandria  ; 

l  A  mulher  p'ra  ser  mulher, 
\  Deve-se  chamar  Maria. 


I Delicado  é  o  fumo 

( Que  passa  a  telha  dobrada; 

\  Delicados  são  os  olhos 

/  Que  namoram  por  pancada. 


^Inda  que  o  lume  se  apague, 
ÍNa  cinza  fica  o  calor; 

\Inda  que  o  amor  s'ausente, 
(  No  coração  fica  a  dôr. 


I  Candeia  que  não  dá  luz 
(  Não  se  espeta  na  parede ; 

( O  amor  que  não  é  firme 
/  Não  se  taz  mais  caso  d'elle. 


É  facillimo  em  cada  uma  destas  cantigas 
estabelecer  a  comparação  (noutras  a  antithe- 
se)  entre  o  primeiro  grupo  de  dois  versos  e  o 
segundo.  Por  exemplo  na  primeira  quadra  te- 
mos: asswi  como  a  oliveira  pequena  não  dá 
a:[eite^  —  assim  eUj  que  sou  filha  de  um  pobre, 
não  posso  aspirar  a  grandes  amores. 

O  primeiro  grupo  é  uma  espécie  de  logar 
commum  em  que  a  Musa  se  fixa  antes  de  sol- 
tar o  seu  voo,  que  constitue  o  segundo. 


DO    POVO  PORTUGUÊS  23 

Uma  vez  ou  outra  a  dichotomia  não  é  muito 
regular,  como  neste  exemplo  : 


O  amor  é  forte  e  não  quebra, 
O  rio  corre  e  não  cança  : 
Quem  me  dera  adivinhar 
Se  me  trazes  na  lembrança  ! 


não  é  regular  no  pensamento;  todavia  o  povo 
faz '  sempre  pausa  no  segundo  verso,  o  que 
prova  que  elle  tem  consciência  da  divisão  mor- 
phologica.  Este  facto  é  importante,  porque, 
como  se  sabe,  em  várias  litteraturas  os  disti- 
cos  (estrophes  de  dois  versos)  resultam  do 
desdobramento  de  uma  quadra,  cada  dois  ver- 
sos da  qual  deu  um  d'aquelles. 

As  vezes  a  comparação  é  tão  completa, 
que  chega  a  ser  absorpção  (imagem),  como 
nesta  conceituosissima  cantiga  em  que  a  mu- 
lher amada,  mas  inaccessivel,  se  identifica 
com  uma  flor: 


Oh  que  linda  rosa  branca 
Aquella  roseira  tem  ! 
Debaixo  ninguém  lhe  chega, 
Lá  cima  não  vai  ninguém. 


Neste  caso,  a  absorpção  dos  dois  termos  da 
comparação  (a  mulher  e  a  jlòr)  podia  ser  tal- 
vez em  algumas  situações  especiaes  motivada 


24  POESIA  AMOROSA 


pelo  nome  próprio  Rosa^  vindo  assim  a  qua- 
dra, pela  sua  forma,  a  tornar-se  um  trocadi- 
lho, como  o  povo  usa  muito  e  se  vê  mais  nes- 
tes exemplos: 

o  papel  com  que  te  escrevo  Se  eu  soubesse  que,  voando, 

Sae-me  da  palma  da  máo.  Alcançava  o  que  desejo, 

A  tinta  sae-me  dos  olhos.  Mandava  fazer  as  asas, 

A  penna  do  coração.  Que  as  pennas  são  de  sobejo. 

Se  os  passarinhos  vendessem  Náo  ha  flor  como  o  suspiro 

As  pennas  que  Deus  lhe  deu.  Para  minha  estimação: 

Eu  também  vendia  as  minhas,  Todas  as  flores  se  vendem. 

Que  ninguém  tem  mais  do  que  eu  1  Só  os  suspiros  se  dão  !  (i) 

Na  cantiga  i.^  o  equivoco  resulta  da  ho- 
mophonia  QntVQ  penna  de  escrever  q  pena  (sen- 
timento), e  na  2.''  e  3.^  entre  pena  (senti- 
mento) e  penna  de  ave;  o  povo  regula-se  pelo 
ouvido,  e  é  por  isso  que  para  os  olhos  as  can- 
tigas não  são  tão  bellas,  pois  cada  uma  das 
palavras  tem  a  sua  orthographia.  Na  cantiga 
4."^  o  equivoco  resulta  da  homophonia  entre 
suspiro  (flor)  e  suspiro  (acto  respiratório),  bem 
como  do  facto  de  a  gente  dizer  ordinariamente 
dar  mn  suspiro  em  vez  de  suspirar;  quem  não 
estiver  bem  ao  íacto  da  linguagem  vulgar  não 
percebe  a  fina  delicadeza  d'estese  semelhantes 
versos. 

Eis  mais  alguns  exemplos  de  absorpção: 

(i)  Vid.  mais  exemplos  de  trocadilhos  em  Th.  Braga, 
Cancioneiro  popular  (Porto  18G7),  pag.  69,  74  e  128,  —  e 
em  Adelino  das  Neves,  Musicas  e  canções,  pag.  32, 41  e  90. 


DO  POVO  PORTUGUÊS 


1.  Anda  comigo,  ó  rosa, 
Deixa  ficar  a  roseira, 
Andarás  p'r  ond'eu  andar, 
Serás  minha  companheira. 

2.  Rosa  que  estás  na  roseira, 
Fechadinha  no  botão, 
Deixa-te  lá  'star,  ó  rosa, 
Que  lá  te  procurarão. 

3.  Minha  mãe  é  uma  rosa, 
Eu  sou  filha  da  roseira  : 
Nunca  me  apartarei  d'ella, 
Inda  que  a  vontade  queira. 

4.  O  ladrão  do  negro  melro 
Toda  a  noite  assobiou; 
Pela  fresca  madrugada. 
Bateu  as  asas,  voou. 

5.  O  ladrão  do  negro  melro 
Onde  foi  fazer  o  ninho  ! 
Lá  pVós  lados  de  Vianna, 

No  mais  baixo  pinheirinho. 

6.  Silva  verde,  não  me  prendas. 
Olha  que  me  não  seguras, 
Olha  que  tenho  quebrado 
Outras  algemas  mais  duras. 

7.  Silva  verde,  não  me  prendas, 
Que  não  tenho  quem  me  corte; 
Não  sejas  tu,  silva  verde, 

A  causa  da  minha  morte. 


20  POESIA  AMOROSA 


8.     Quem  quer  vender,  que  eu  compro, 
Um  limão  por  um  vintém, 
Para  tirdr  uma  nódoa 
Que  o  meu  corarão  tem  ? 

Nas  cantigas  i/,  2.^  e  3^  a  imagem  pode 
resultar  ainda  do  nome  Rosa^  que  é  popularis- 
simo  entre  nós;  nas  cantigas  4.^  e  5.^  ha 
identificação  entre  o  melro  e  o  rapa:^  vadio 
ou  inconstante,  o  que  se  observa  ainda  noutras 
canções  em  que  entram  aves  (i).Nas  cantigas 
6/  e  7.^5  onde  o  símile  é  feito  entre  a  silva  e 
o  amor^  que,  como  ella,  também  prende,  pode 
ao  repente  parecer  que  o  appellido  vulgaris- 
simo  Silva  deu  causa  a  esse  símile^  mas  as 
cantigas  populares  não  costumam  ser  feitas  a 
appellidos  e  só  sim  a  nomes  próprios,  pois- 
que  o  povo  de  ordinário,  no  seu  tracto  fami- 
liar, não  emprega  também  os  appellidos,  e 
prefere  servir-se  de  uma  alcunha  frisante  a 
servir-se  de  um  appellido,  —  como  se  assim 
simplificasse  e  ao  mesmo  tempo  vivificasse  o 
seu  dizer,  e  como  se  o  nome,  por  ser  imposto 
no  baptismo,  e  tirado  de  um  santo,  tivesse  por 
isso  um  certo  caracter  sagrado  que  o  fizesse 
usar  de  preferencia  a  outro  (2).  Na  cant.  8.^ 

(i)  Vid.  por  ex.  as  minhas  Trad.  pop.  de  Portugal, 
pag.  161,  a  respeito  do  rouxinol. 

(2)  Com  o  fim  de  fixar  melhor  as  ideias,  o  povo  per- 
sonifica-se  a  cada  passo  nas  cantigas ;  alguns  dos  nomes 
mais  vulgares,  como  Manoel,  José,  António,  João,  Maria, 


DO   POVO   PORTUGUÊS  27 

a  nódoa  do  coração  é  a  mágoa  que  o  cantador 
sente. 

Nas  cantigas  transcriptas  ha  pois  mais  do 
que  simples  allegorias. 

Ainda  que  umas  vezes  a  comparação  é  per- 
feitamente clara,  embora  quasi  nunca  introdu- 

Anna,  Rosa,   andam  sempre  na  balda,  conforme  as  cir 
cumstancias. 

O  Diabo  leve  os  homens  António,  meu  oratório, 

Enfiados  num  cordel ;  Espelho  do  meu  vestir  ; 

O  primeiro  seja  António,  Quem  tem  amores  com  António 

O  segando  Manoel.  Vae  ao  ceu  e  torna  a  vir. 

Fui  á  fonte  com  Maria,  Chamaste  me  triste,  triste 

Encontrei-me  com  Manoel,  Como  a  folha  do  limão  ; 

Foi  a  coisa  como  eu  queria,  Eu  sou  triste  para  ti, 

Cahiu  a  sopa  no  mel.  Alegre  para  João. 

José  amo,  José  quero,  Maria,  minha  Maria, 

José  trago  no  sentido  ;  Meu  rosário,  meu  botão, 

Por  amor  de  ti,  José,  Meu  oratório  de  vidro 

Trago  o  meu  somno  perdido.  Adonde  eu  faço  oração. 

Mangerona,  bate  á  porta, 
Alecrim,  vae  ver  quem  é, 
Se  é  o  cravo,  se  é  rosa. 
Se  é  o  meu  amor  José. 

Do  mesmo  modo  se  applicam  também  as  cantigas  a 
varias  terras.  Ás  vezes  a  mesma  cantiga  pôde  convir  a 
muitas  localidades,  como 

Adeus,  adeus (o  nome  da  terra) 

As  costas  te  vou  virando, 
Minha  boca  se  vae  rindo. 
Meus  olhos  ficam  chorando. 

E  como  esta  ha  muitas  mais. 


28  POESIA  AMOROSA 


zida  pelas  fórmulas  como,  qual,  etc,  e  outras 
vezes  ella  c  tão  intima  que  ha  identificação  ou 
absorpçáo,  acontece  porém,  não  raro,  que  a 
relação  dos  dous  teTmos  comparados  deixa 
de  ser  nitida,  percebendo-se  apenas  o  sentido 
por  modo  um  pouco  vago  e  geral,  como  : 

Cortei  o  elo  ú  couve, 
E  pu-lo  a  semear  : 
Andavas  muito  doidinho, 
Dei-te  tempo  de  asseiítar. . . 

isto  é:  «assim  como  á  couve  se  dá  tempo  para 
crescer  e  desenvolver-se,  assim  te  dei  tempo 
a  ti  para  teres  tino». 

Embora  a  noção  da  divisão  dichotomica  da 
quadra  nunca  se  perca  no  espirito  do  canta- 
dor, dá-se  ás  vezes  o  caso  de  a  cantiga  não  se 
entender,  como: 

Não  ha  roxo  como  o  verde, 
Nem  verde  como  a  ortiga: 
Eu'desejo-te  encontrar, 
Inda  que  nada  te  diga . . . 

na  qual  o  segundo  distico  se  não  liga  com  o 
primeiro.  Onde  este  processo  de  obscureci- 
mento de  sentido  se  observa  bem  e  nas  can- 
tigas seguidas,  que  começam  por  exprimir 
pensamentos    harmónicos,    que     a    pouco    c 


DO  POVO  PORTUGUÊS  2Q 

pouco  se  vão  tornando  cada  vez  mais  diffe- 
rentes. 

Vê-se  pois  que  a  evolução  do  processo  foi 
esta:  a  principio  a  quadra  offerece  nos  dois 
primeiros  versos  um  sentido  geral,  e  quasi  sem- 
pre tirado  da  Natureza,  com  o  qual  se  compara 
o  pensamento  particular  do  segundo  distico; 
em  seguida  a  ligação  d'aquclle  distico  com  este 
obscurece-se  um  pouco,  em  virtude  da  preoccu- 
pação  do  poeta  em  se  concentrar  no  segundo 
distico  que  contém  as  ideias  fundamentaes; 
por  íim  a  ligação  rompe-se  de  todo,  e  os  dois 
primeiros  versos  servem  apenas  de  arrimo 
phonetico  aos  segundos  (i). 

Em  todos  os  ramos  da  litteratura  popular, 
contos,  romances,  adivinhas,  ensalmos,  etc. 
ha  de  local  para  local  variantes  do  mesmo 
thema,  ao  mesmo  tempo  que  se  dão  confu- 
sões nas  passagens  e  situações  semelhantes. 
Este  phenomeno  é  devido  não  só  á  tendência 
assimiladora  do  povo,  e  ao  seu  acanhamento 
intellectual,  mas  ao  facto  d'essa  litteratura  ser 
oral,  e  por  tanto  nao-fixa.  Nas  cantigas  encon- 
tramos também  numerosas   variantes,  como  : 

Amar  e  saber  amar. . . 
Ensinou-me  quem  sabia: 
Amar,  foi  a  Natureza, 
Saber  foi  a  sympathia . . . 

(i)  Tratei  d'este  ponto  um  pouco  mais  desenvolvi- 
damente na  Revista  Lusitana,  I,  143-157. 


3o  POESIA  AMOROSA 


A  amar  e  a  escolher  amor 
^  Ensinou-me  quem  podia: 

A  amar  foi  a  Natureza, 
A  escolher,  a  sympathia. . . 

e  numerosos   casos   de  versos   communs  em 
assumptos  differentes,  como  : 

O  Villa-Real  alegre, 
Provincia  de  Tras-os-Montes: 
No  dia  que  te  não  vejo, 
Meus  olhos  são  duas  fontes. 

Solipanta  da  solipanta, 
Solipanta  meu  ai  Jesus: 
No  dia  que  te  não  vejo, 
Nem  o  sol  me  quer  dar  luz. . . 

Dá-se  até  ás  vezes  o  caso  de  confusão  de 
cantigas  profanas  com  cantigas  religiosas. 

Assim  como  na  linguagem  corrente  se  em- 
pregam a  cada  passo  expressões  que  não  tem 
um  sentido  real  para  a  comprehensão  total  da 
phrase,  mas  são  ou  verdadeiros  automatismos, 
ou  meros  espaços  (i),  assim  também  muitas 
vezes  succede  que  as  poesias  populares,  em 
vez  de  pensamentos,  contém  só  palavras.  Go- 
mo já  notou  o  sr.  prof.  Adolpho  Coelho,  «a 
lyrica  popular  tem  em  geral  curto  alento.  As 
ideias  e  sentimentos,  que  nellas  se  exprimem, 
oflerece  um  quadro  sufficiente,  na  grande  maio- 

(i)  Cfr.  a  minha  Evolução  da  linguagem,  p.  46-47. 


DO   POVO  PORTUGUÊS  3I 

ria  de  casos,  a  estrophe  de  quatro  versos:  mui- 
tas vezes  até  esse  quadro  é  já  de  si  largo,  de  mo- 
do que  é  mister  adoptar  versos  bordões,  repeti- 
ções de  palavras  ou  de  versos  para  conseguir 
encher  o  quadro»  (i).  Vou  dar  alguns  exem- 
plos de  cantigas  com  repetições: 

Tenho  corrido  mil  terras, 
Mil  terras  tenho  corrido: 
Muito  cão  me  tem  ladrado. 
Mas  nenhum  me  tem  mordido. .  . 

Salsa  da  beira  do  rio, 
Da  beira  do  rio  salsa: 
Mais  vale  uma  feia  lisa. 
Do  que  uma  bonita  falsa  (2). 

Nestas  duas  quadras,  á  antithese  de  phrase, 
ou  antimetabole,  dos  dois  primeiros  versos, 
corresponde  perfeitamente,  em  cada  quadra, 
a  antithese  de  sentido  dos  dois  últimos.  Aqui 
a  razão  não  depende  pois  só  do  facto  mecâni- 
co de  completar  as  quadras. 

Vejamos  outros  exemplos: 

Viola,  minha  viola, 
Bandurra,  minha  bandurra: 
Heide  fazer  um  vestido, 
Do  coiro  da  minha  burra  (3). 

(i)  In  Jornal  do  Commercio,  n.»  9:085. 

(2)  In  Rev.  do  Minho,  I,  19.  Gfr.  uma  variante  em  Ade- 
lino das  Neves,  Mus.  e  canç.,  p.  37. 

(3)  In  Rev.  do  Minho,  I,  p.  19. 


POESIA  AMOROSA 


Lòreiro  que  bate,  que  bate, 
Lòreiro  que  já  bateu: 
Lòreiro  que  bate,  bate, 
Num  amor  que  já  foi  meu  (i). 

Nestas  quadras  ha  de  facto  varias  repeti- 
ções para  encher;  de  mais  a  mais  vê-se  clara- 
mente que  ellas  foram  feitas  para  serem  can- 
tadas, e  então  quasi  só  bastavam  rimas,  em- 
bora as  quadras  ficassem  sem  sentido. 

Nas  cantigas  populares  encontram-se  por 
tanto  grandes  recursos  de  expressão  (figuras 
de  rhetorica)  mais  ou  menos  espontâneos,  que 
ás  vezes  são  aproveitados  de  um  modo  cons- 
ciente e  artificioso  nas  obras  dos  litteratos.  A 
facilidade  e  simplicidade  das  cantigas  depen- 
dem não  raro  d'esses  jogos  de  palavras  tão 
communs,  como  eu  já  disse,  na  linguagem  fa- 
miliar. O  que  é  triste  é  quando  os  poetas  pro- 
priamente ditos  abusam  d'isto.  Bocage  e  os 
seus  sequazes  foram  d'esse  número.  Toda  a 
gente  sabe  que  a  eschola  elmanista  se  fundava 
principalmente  no  artificio  dos  versos:  repeti- 
ções constantes,  antitheses,  symetrias,  etc, 
por  ex. : 

Na  voz  terrivel,  nos  terriveis  olhos 
Que  arremeçam  trovões,  que  accendem  raios: 
Soffre  o  duro  oppressor  do  aéreo  campo, 
vSoffre  o  silencio  e  a  paz (2). 

(i)  In  Rev.  do  Minho,  I,  p.  80. 

(2)  Bocage,  Obras  (ed.  da  Actualidade),  IV,  p.  9. 


DO  POVO   PORTUGUÊS 


Seus  destinos  vereis,  vereis  seus  dias  (pag.  Sj) 

Graças,  numen  clemente,  eu  corro,  eu  corro   (pag.  39) 

Lysia,  Lysia  feliz !  comigo  exulta  (ib) 

Além  do  firmamento,  além  do  espaço  (pag.  40) 

Qual  no  ceu  reluziu,  reluz  na  terra  (pag.  44) 

Dá  materno  favor,  materno  ouvido  (ib) 

O  sol  benignos  lumes  espraiava, 
Benignos  lumes,  como  espraia  a  lua  (ib) 

Feliz  meu  coração !  feliz  meu  rogo !  (pag.  63) 

Doce  filha  do  céo,  doce  harmonia !  (pag.  99) 

Fujam  teus  olhos,  teus  sentidos  fujam  (pag.  181). 


As  repetições,  as  symetrias,  as  antitheses, 
etc,  teem  ás  vezes  por  fim  frisar  certas  ideias, 
e  a  linguagem  vulgar  faz  até  d'isso  grande  uso, 
como  quando  dizemos  «adeus,  adeus!»,  «se  tu 
não  queres,  quero  eu»,  etc,  mas  tudo  o  que  c 
exaggerado  enfada,  —  por  isso,  a  eschola  elma- 
nistã  morreu;  e  se  houve  um  artista  eminente 
como  Garrett,  que  num  dos  seus  primeiros 
ensaios  (Retrato  de  Vénus)  a  adoptou  em  parte, 
como  se  vê  aqui: 

POESIA  AMOROSA  3 


34  POESIA   AMOROSA 


E  no  centro  de  Roma,  a  Roma  busca  (i) 
Com  que  olhos  fitará  maternos  olhos  (pag.  3o) 


Quanta  gloria  Fernando  ao  sábio  mestre, 
Quantos  louvores  grangeou  ! . . ,  (pag.  48) 

Salve  !  eis  novo  clarão,  eis  novos  louros  (pag.  5o) 


elle  mesmo  em  obras  posteriores  a  abando- 
nou de  todo.  A  facilidade  dos  improvisos  de 
Bocage  dependia  grandemente,  quanto  a  mim, 
d'esta  forma  de  versejar,  que  auxiliava  immen- 
50  já  a  rima,  já  a  metrificação.  Todas  as  pes- 
soas, que  alguma  vez  metrificaram  muito,  po- 
dem confirmar  por  experiência  própria  isto 
que  aqui  digo. 


A  rima  adoptada  nas  cantigas  populares 
portuguesas  é  a  consoante,  o  que  não  quer  di- 
zer que  uma  ou  outra  vez  não  appareçam 
rimas  toantes,  mas  nestes  casos  é  por  ex- 
trema necessidade  ou  por  causa  do  mau  ou- 
vido, e  não  porque  o  espirito  do  nosso  povo 
não  attingisse  já  aquelle  grau  perfeito  da  evo- 
lução da  rima  (2).  Ha  aqui  uma  differença  ca- 


(i)  Ed.  de  1867,  pag.  25. 

(2)  Mostra-se  tal  ou  qual  consciência  do  facto  no  pró- 
prio povo;  uma  cantiga  diz: 


DO  POVO  PORTUGUÊS  35 

pitai  a  respeito  das  cantigas  populares  hispa- 
nholas,  que  são  geralmente  em  toantes,  e  onde 
a  rima  consoante  é  que  é  a  excepção.  A  evo- 
lução do  nosso  lyrismo  popular  está  a  par  da 
do  lyrismo  culto:  de  facto,  nenhum  poeta  por- 
tuguês emprega  hoje  rimas  toantes,  ao  passo 
que  em  epochas  mais  antigas,  no  tempo  da 
chamada  eschola  hispanhola  (sec.  xvii),  isso 
era  frequente;  pelo  contrario  os  poetas  de 
Hispanha  fazem  ainda  grande  uso  das  toantes. 
Um  facto  que  torna  bem  saliente  que  as  rimas 
toantes  das  nossas  cantigas  populares  provém 
da  necessidade  ou  de  mau  ouvido  é  que,  ale'm  de 
serem  relativamente  em  pequeno  numero,  e  de 
nessas  rimas  haver  completa  concordância  en- 
tre as  vogaes  postonicas,  as  consoantes  são  ás 
vezes  da  mesma  classe,  por  ex.:  viola-namorãj 
velhas-ellas^  cabello-medo^  alegre-leve^  sol-me- 
Uior,  carvalho-boticairo^  rôta-estopa^  Vianna- 
ama^  corre-dorme^  chumbo-mwido^  amai^ello- 
querOj  viola-noi^a^  telhado-Tiago^  lodo-novo.Bra- 
iH-ir^    terra-janella^    airepa-brecãj    verde-sede^ 


Cantigas  ao  consoante 
Sáo  custosas  d'alcançar ; 
Joeliios  á  terra  lanço 
Para  as  tuas  máos  beijar. 

(Pires,  Cant.  pop.  do  Alemíejo,  n.°  jj3). 

E'  claro  que  nesta  quadra  a  phrase  ao  consoante,  não 
significa  d  lettra  rima  consoante,  mas  sim  unicamente  em 
rima. 


36  POESIA  AMOROSA 


rato-buraco^  bôlo-fôrno^  convertidas-raparigas^ 
barviga-cahida^  parcdes-meses^  choca-porta^  dia- 
bo-endiabrado^  damas-Annas^  sombra-escondãj 
matto-farto^  roíipa-pouca.  Vê-se  pois  que  as 
formulas  aqui  são  as  seguintes  em  relação  ás 
vogaes:  d-<2=d-a,  ô-a=ô-a^  é-a-^é-a^  é-o^é-Oj 
(í-e=é-e,  ó'e=ó-e^  e-o=e-o,  á-o=á-o^  â-a=â-a^  ú-o= 
ú-o^  i'a=í-a,ê-e=ê-e,ô'0='ô-o.  Em  relação  ás  con- 
soantes: l-r,  Ih-l^  l-d,  Ih-r,  n-m,  m-7i,  rr-l,  rd-d, 
l-rn,  d-^^  t-rt.  As  outras  consoantes  não  concor- 
dam tanto.  Estes  exemplos  forão  tirados  de  uma 
collecção  de  167  cantigas  minhctas:  nessa  série 
a  proporção  das  rimas  toantes  para  as  con- 
soantes é  de  29 :  i38,  notando-se  ainda  que  ahi  a 
assonancia  se  aproxima  bastante  da  consonân- 
cia por  causa  da  homophonia  das  vogaes  e  da 
paridade  das  lettras  consoantes.  Nas  cantigas 
gallegas  as  toantes  são  em  maior  número, 
creio  eu,  do  que  nas  portuguesas,  mas  já  em 
menor  número  do  que  nas  hispanholas:  ha 
meio  termo;  pelo  menos  em  uma  collecção 
de  167  cantigas  gallegas  achei  que  a  propor- 
ção das  toantes  para  as  consoantes  era  de 
39  :  128,  e  numa  igual  collecção  de  estrophes  his- 
panholas, nas  mesmas  condições  que  as  galle- 
gas e  portuguesas,  essa  proporção  era  de  72 :  95. 
Não  é  preciso  porém  recorrer  a  estatisticas; 
basta  ter  uso  d'estas  três  litteraturas  popula- 
res para  se  ver  a  verdade  do  que  affirmo.  As 
toantes  hispanholas  são  muito  menos  perfei- 


DO  POVO  PORTUGUÊS  37 

tas  que  as  portuguesas;  naquellas  coUecçÕes, 
ha  por  exemplo  estas  rimas:  ales-arde^  atos- 
al^os^  adre-ape^  acia-arta^  onja-oja^  arle-an^  osa- 
oja^  olvo-ojos^  ancha-arga^  etc.  E'  para  notar 
que  na  poesia  gallega  ha  uma  vez  ou  outra  in- 
fluencia da  poesia  castelhana,  e  que  muitas  can- 
tigas gallegas  são  exactamente  iguaes  ás  portu- 
guesas. Comparando  as  nossas  com  aqueirou- 
tras,  vê-se  porém  ás  vezes  que  nas  mesmas  can- 
tigas as  de  cá  attingiram  já  a  forma  consoante, 
ao  passo  que  as  da  Galliza  e  Hispanha  não: 


i)  Gallega: 


Silva  verde,  non  me  prendas, 
que  non  son  da  tua  terra, 
nunca  silva  me  prendeu, 
que  non  m'apartase  d'ela.  (i) 


Portuguesa: 


O' 


Silva  verde,  não  me  prendas, 
Olha  que  me  não  seguras, 
Olha  que  tenho  quebrado 
Outras  algemas  mais  duras. 

2)  Hispanhola  (andaluza): 

Tu  cayC  (calle)  traigo  por  cama. 
Por  cabesera  un  ladriyo  (ladrilho); 
Con  las  esquinas  me  abraso, 
Pensando  qu'  estoy  contigo. 


(1)  Bibl.  de  las  trad.  pop.  espaúolas,  vii,  175. 


38  POESIA  AMOROSA 


Portuguesa: 


Anoiteceu-me  na  serra, 
Das  estrellas  fiz  abrigo; 
Abracei-me  a  uma  penlia, 
Pensando  que  era  comtigo. 


3)  Hispanhola: 


Yo  siempre  te  he  de  adorar, 
Cueste-me  lo  que  me  cueste ; 
De  tu  querer  no  me  aparto, 
Aunque  viniera  la  muerte. 


Portuguesa: 


Apesar  da  triste  morte, 
Eu  sempre  te  hei-de  adorar; 
Custe  o  sangue,  custe  a  vida, 
Custe,  amor,  o  que  custar. 


4)  Hispanhola: 


i  Qué  bonita  está  un  granado 
Con  las  granadas  abiertas  ! 
i  Qué  bonita  está  una  dama 
Con  su  galan  á  la  puerta  ! 


Portuguesa: 


Muito  brilha  o  branco  branco, 
Ao  pé  do  branco  lavado ; 
Muito  brilha  uma  menina 
Ao  pé  do  seu  namorado  ! 


DO  POVO  PORTUGUÊS  39 


5)  Hispanhola: 


Guarda  con  gran  cuidado 
Tu  honor,  senora, 
Que  es  vidrio  y  si  se  rompe 
Ya  no  se  solda 


Portuguesa 


Oh  rapazes  e  cachopas, 
Vede  lá  por  onde  andaes  ; 
Que  a  honra  é  como  o  vidro, 
Se  quebra,  não  pega  mais. 


6)  Hispanhola: 


La  mujer  que  quiso  à  un  hombre, 
Guando  le  ha  querido  bien, 
Aunque  la  amistá  se  acabe, 
Siempre  hace  memoria  de  el. 

Gallega: 

Mais  o  que  ben  quixo  un  dia 
Se  a  querer  ten  aficion. 
Sempre  He  queda  una  magoa 
Dentro  do  seu  corazon.  (i) 

Não  me   esquecerei   de  notar  que  também 
existem  cantos  com  as  mesmas  rimas  nas  três 

(i)  Estas  canções  são  extrahidas  dos  Cantos pop.  esp. 
de  F.  R.  Marin,  vol.  11  e  iv. 


40  POESIA  AMOROSA 


litteraturas  mencionadas,  e  que  podia  succe- 
der  que,  se  se  obtivessem  outras  variantes,  se 
encontrassem   versões   mais  próximas;   com- 
tudo  os  casos  isolados  não  destruiriam  a  re- 
gra geral,  e  a  leitura  de  uma  grande  collecçao 
de  cantigas  nas  três  linguas  leva  ao  resultado 
que  apontei  acima.  E  provável  que  muitas  das 
nossas  cantigas  nos  chegassem  cá  por  inter- 
médio da  Hispanha,  como  aconteceu  com  os 
romances;  nessas,   a  comparação    das   rimas 
toantes  de  umas  com  as  das  outras  é  que  se- 
ria eloquente,  por  se  verem  os  esforços  (alte- 
rações de  versos,  modificações  de  themas)  em- 
pregados pelo  nosso  povo  para  substituir  uma 
rima  por  outra.  Por  outro  lado  também,  deve 
admittir-se  que  muitas    cantigas   portuguesas 
tenham  passado  para  a  Hispanha.  As  cantigas 
são  pequenissimas  composições,  cachos  (peda- 
ços), como  lhes  chamam  em  Tras-os-Montes, 
e  por  tanto  voam  facilmente,  e  são  também 
mais  facilmente  modificadas  por  quem  as  canta. 
Nos  nossos  romances  ou  xacaras,  que  são  mais 
fixos,  por  serem  mais  extensos,  e  ter  cada  um 
d'elles  um  enredo   que  se  não  pode  destruir 
sem  grande  custo,  ha  mais  rimas  toantes  cor- 
respondentes ás  toantes  das  versões  hispanho- 
las  de  que  elles  provêem. 

Disse  eu  acima  que  as  toantes  das  nossas 
cantigas  resultavam  de  uma  extrema  necessi- 
dade ou  de  mau  ouvido,  e  não  de  que  o  nosso 


DO  POVO  PORTUGUÊS  41 

povo  ainda  estivesse  na  phase  das  toantes  ou 
na  transição  d'estas  para  as  consoantes*,  não 
admira  que  isto  succeda  no  povo,  quando 
succede  nos  próprios  poetas,  naquelles  mes- 
mos que  occupam  logares  proeminentes  na 
litteratura,  como  vou  mostrar. 

Nos  Sonetos  completos  de  Anthero  de  Quen- 
tal (Porto  1866,  pag.  55)  ha  estas  rimas: 
somem  —  dolmen  —  dormem,  já  vindas  das  Odes 
modernas  do  mesmo  auctor,  onde  o  soneto  a 
que  pertencem  foi  primeiro  publicado ;  nesta 
ultima  obra  (2.^  ed.',  pag.  79)  ha  uma  simples 
quadra  em  que  se  tenta  úmd,v  combate — partel 
No  Ramo  de  Flores  de  João  de  Deus  (Porto, 
1869)  fazem-se  rimar:  foi — suppóe  (pag.  5),  tu 
—  concluo  (pag.  29);  o  mesmo  auctor  nas  Flo- 
res do  Campo  (i.^  ed.,  pag.  i52)  tem  justiça 
— pinça,  e  nesse  mesmo  livro  ha  em  vários 
logares  pallidas — mádidas^  exalta-se — dilata-se^ 
confesso  —  immenso^  outro  —  encontro^  prega  — 
negra^  etc.  O  sr.  Theophilo  Braga  nas  Mira- 
gens Seculares  (Lisboa  1884)  pretende  fazer 
rimar  continua  —  imia  (pag.  198);  e  o  sr.  Go- 
mes Leal,  na  Historia  de  Jesus  (Lisboa  i883) 
faz  rimar  Virgem  —  origem  (pag.  9  e  69)  ^  vir- 
gens—  origens  (pag.  36,  50,  54  e  73).  Percor- 
rendo toda  a  litteratura,  ou  pelo  menos  mais 
alguns  livros,  seria  fácil  accumular  grande  nú- 
mero de  exemplos-,  os  que  ahi  ficam,  porém, 
bastam  já  para  o  intento.  Escolhi  estes,  que 


42  POESIA  AMOROSA 


são  propriamente  erros  de  versificação,  por- 
quanto nos  mesmos  poetas  ha  ainda  muitas 
outras  rimas  que  commummente  se  não  empre- 
gam, como:  diíei-me — freme  (nos  Sonetos  com- 
pieios^pag.  48),  doce — seccou-se — dissipou-se  (ib., 
pag.  56),  repouso  —  desciiidoso  (nas  Miragens  Se- 
culares^ pag.  70),  sede  —  hei-de  (no  Ramo  de  Flo- 
res^ pag.  11),  cálix  —  vales  (ib.  pag.  5i),  ouro  — 
choro  (ib.  pag.  64),  deixe — feche^  queime  —  geme^ 
inteiro — quero ^  sede — hei-de^  gera — inteira  (nas 
Flores  do  Campo^  passim),  coro  —  om^o  (na  Hist. 
de  Jesus^  pag.  6),  choro  —  ouro  (ib.,  pag.  26), 
cálix  —  males  (ib.,  pag.  lo^)^  passou-se — fosse 
(ib.,  pag.  120);  mas  estas  rimas  podem  expli- 
car-se  por  influencias  dialectaes,  quer  da  na- 
turalidade dos  auctores,  quer  do  ponto  em  que 
elles  escreveram.  E  assim  também  que  me  não 
refiro  acima  ás  rimaiS  palavra — abra  (nas  Mira- 
gens Seculares^  pag.  i25)  nem  a  Rubens  — 
nuvens  (que  apparece  em  muitos  poetas),  por- 
que em  algumas  regiões  do  país  confunde-se 
o  b  com  o  v;  igualmente  deixei  sem  menção 
as  rimas /r/o  —cobriu  (nas  Miragens^  pag.  216), 
Chio  —  reflectiu  (nas  Tempestades  sonoras^  pag. 
93),  mãe  —  Jerusalém  (na  Hist.  de  Jesus^  pag.  6), 
pelo  facto  de  se  ellas  darem  effectivamente  na 
pronúncia  vulgar  de  certas  localidades.  Toda- 
via nas  obras  litterarias  a  critica  poderá  censu- 
rar com  razão  alguns  d'esses  factos,  poisque  ou 
bem  que  se  escreve  em  lingua  culta  ou  em  dia- 


DO  POVO  PORTUGUÊS  43 

lecto.  E  só  alguém  demasiadamente  timido 
duvidaria  notar  tão  leves  senões,  ainda  em 
poetas  de  reconhecido  mérito,  como  aquelles 
cujos  nomes  citei. 

Nas  cantigas  populares  succede  uma  vez  ou 
outra  que  uma  palavra  rime  comsigo  mesma, 
como: 

Se  tu  queres,  e  eu  quero, 
Temos  o  contracto  feito  : 
Não  venha  cá  pae  nem  mãe 
Desmanchar  o  que  está  feito. 

O  cravo  tem  vinte  folhas, 
A  rosa  tem  vinte  e  uma : 
Anda  o  cravo  em  demanda 
Por  a  rosa  ter  mais  jama. 

Dei  um  beijo  numa  negra, 
Catixa  !  não  quero  mais  ! 
Antes  quero  d'uma  branca, 
Inda  que  me  custe  mais. 

Que  passarinho  é  aquelle 
Q'anda  no  lóreiro  verde  ? 
Não  é  passVo,  não  é  nada, 
É  a  raiz  da  canna  verde. 


O  meu  menino  tem  somno, 
Tem  somno  e  quer  dormir. 
Venham  os  anjos  do  ceu 
Ajudá-lo  a  dormir. 


44  POESIA  AMOROSA 


O  meu  amor  é  José, 
S.  José  venha  com  elle, 
E  o  traga  a  esta  terra, 
Para  me  namorar  d'elle. 


Coração,  não  gostes  d'ella, 
Que  ella  não  gosta  de  ti : 
Não  estejas  coração, 
Tape,  tepe,  tepe,  ti. 

Por  te  amar  deixei  a  Deus, 
E  Deus  me  deixou  a  mim ; 
Não  quero  ficar  sem  Deus, 
Fica  tu,  amor,  sem  mim. 

Esta  noite  hei-de  ir  ás  ginjas, 
Esta  noite  hei-de  ir  a  ellas ; 
Quem  tiver  as  filhas  guarde-as, 
Que  não  me  hei-de  guardar  d'ellas. 

Com  licença  dos  senhores. 
Nossa  Senhora  da  Guia  ! 
Perguntarei  ao  mancebo 
Se  vem  por  alguma  guia. 

Açucena  com  pé  n'agua 
Está  verde  quarenta  dias, 
Eu  sem  ti  nem  uma  hora, 
Tu  sem  mim  annos  e  dias. 


Alguns  d'esses  factos  explicam-se  psycholo- 
gicamente,  porque  as  mesmas  palavras  em  func- 


DO  POVO  PORTUGUÊS  45 

ção  grammatical  diíTerente  adquirem  para  a 
consciência  do  povo  a  feição  de  palavras  novas, 
assim:  com  elle  —  d'elle^  a  mim  —  sem  mim^  a 
ellas  —  d'ellas;  muitas  das  phrases  S3i0  pJwases 
feitas^  e  por  tanto  estão  no  mesmo  caso,  como: 
vinte  e  iima^  não  quero  mais^  canna  verde^  Se- 
nhora da  Guia^  annos  e  dtasj  contracto  feito. 
Outras  vezes  não  negarei  que  são  verdadeiros 
defeitos,  como  dormir  numa  das  cantigas  tran- 
scriptas;  ainda  assim  porém  é  necessário  com- 
parar mais  versões  do  mesmo  thema,  para  ver 
se  o  defeito  é  só  individual  ou  geral.  Numa 
d'essas  cantigas  rima  ti  (pronome)  com  // 
(onomatopeia),  e  aqui  a  consciência  de  que 
as  palavras  são  duas  distinctas  não  soffre  du- 
vida. Notarei  mais  que  essas  rimas  dão-se 
muito,  como  se  ve  dos  exemplos  precedentes, 
entre  palavras  banaes,  por  ex.:  elle^  mim,  ti, 
uma,  mais,  *sto  é,  advérbios,  pronomes  pes- 
soaes,  etc,  que,  pelas  necessidades  do  dis- 
curso, se  combinam  grammaticalmente  de  mui- 
tos modos  :  estas  diversas  combinações  fazem, 
como  disse,  com  que  se  considerem  palavras 
ou  phrases  de  sentido  novo. 

Nos  poetas  acham-se  também  casos  seme- 
lhantes. Anthero  de  Quental  nas  Odes  moder- 
nas, 2.^  ed.,  pag.  12,  tem  a  rimar  aonde  com 
d'onde;  Camões,  nos  Lusiadas,  VIII,  94,  tem 
pai  (no  sentido  de  t^alor  real)  a  rimar  com  vai 
(no  sentido  de  valor  moral),  e  tem  alem  d'isso 


46  POESIA  AMOROSA 


d' este  geito  covcv  de  geito  (I,  81),  de  tão  longe 
com  a  longe  (ÍV,  loi)  (i). 

O  que  é  bastante  frequente  nos  poetas  é  fa- 
zerem rimar  palavras  homonymas,  homopho- 
nas  ou  mesmo  paronymas,  e  forçarem  as  vo- 
gaes,  como:  j^ócha  —  roxa  (nas  Miragens  secu- 
lares^ pag.  220),  péiles  —  êlles  (ib.,  pag.  3i), 
banquete — prométte  (ib.,  pag.  ji)^pô:{-te — pósie 
— fôsie  (nos  Sonetos  completos^  pag.  63),  era 
(verbo)  com  era  (substantivo),  etc,  etc.  —  O 
povo  em  geral  não  costuma  forçar  as  vogaes, 
porque  se  regula  pelo  ouvido,  e  não  pela  vista 
ou  pela  analyse  lexicologica,  como  os  poe- 
tas, que  nisto  erram  mais  que  o  povo. 

O  metro  quasi  exclusivamente  usado  nas 
cafitigas  populares  é  o  de  redondilha  maior; 
também  porém  se  encontra  ás  vezes  em  certas 
canções  seguidas  o  de  seis  syllabas,  como: 

1)  A  entrada  d'Elvas 
Achei  um  anel 
Com  letras  que  dizem  : 
—  Viva  D.  Miguel. 

(i)  Estes  factos  não  são  bem  iguaes  a  outros  que  se 
dão  frequentemente  também  na  poesia  litteraria,  como 
quando  se  faz  rimar  um  substantivo  com  um  verbo  da 
mesma  forma,  etc,  por  ex.  em  Cdimõts^  Lusíadas:  estima 
(II,  86),  e  parte  (VII,  23).  —  Cfr.  A.  F.  de  Castilho,  Re- 
sumo do  tractado  de  versijic.  port.  no  Dicc.  de  rimas  do 
sr.  Eugénio  de  Castilho,  Lisboa  1886,  pag.  26.  Igualmente 
Camões  tem  a  v\m^  parte  (=  vae)  comparte  (=  separa)- 


DO  POVO  PORTUGUÊS  47 

2)  Eu  tenho  um  cãozinho, 
Você  tem  dois . . . 
Adeus,  amorzinho, 
Até  ao  despois. 

O  verso  natural  das  cantigas  verdadeiras  é 
todavia  o  de  redondilha  maior,  e  este  é  tam- 
bém aquelle  a  que  melhor  se  adapta  a  nossa 
língua  (i). 


(i)  Sobre  elle  cfr.  o  meu  Romanceiro  Português,  pag.  6, 
e  a  minha  Evolução  da  linguagem,  pag.  lo-ii.  —  No  seu 
art.  A  poesia  popular  alemtejana  (in  Folha  de  Elvas,  an- 
no  de  1889)  diz  o  sr.  Soeiro  de  Brito  o  seguinte:  «Diver- 
sos metros. ...  se  empregam  no  Alemtejo  desde  o  verso 
de  duas  syllabas  até  ao  de  onze  syllabas»  (n.°  204).  Não 
duvido  da  affirmação  do  Sr.  Soeiro  de  Brito;  mas  creio 
que  o  emprego  de  outro  metro  diverso  do  de  redondilha 
maior,  e  em  certos  casos  do  de  seis,  deve  ser  extrema- 
mente raro  em  cantigas,  e  apenas  limitado  a  cantigas  de 
occasiâo,  não  tradicionaes.  —  Em  uma  espécie  de  can- 
tos tradicionaes  que  eu  descobri  em  Tras-os-Montes  e 
se  cantam  por  occasiâo  das  segadas  (cfr.  o  meu  Annuario 
das  trad.  pop.y  pag.  19;  conservo  inéditas  outros  mais)  ha 
também  um  metro  que  não  é  o  de  oito  syllabas;  mas  isto 
tem  uso  muito  restricto.  De  passagem  notarei  que  o 
sr.  Theophilo  Braga  achou  rigorosas  relações  entre  a  for- 
ma estrophica  d'essas  poesias  que  eu  descobri  em  Rebor- 
dainhos,  e  a  dos  cantos  accádicos  e  chineses  (O  Povo 
Português,  II,  4o3);  é  esta  uma  das  muitas  affirmaçóes  va- 
gas do  sr.  Theophilo  Braga.  Por  outro  lado  o  mesmo  au- 
ctor,  transcrevendo  essas  poesias  transmontanas  na  Rev. 
de  estudos  livres,  III,  pag.,  122,  não  só  transtornou  a  dispo- 
sição estrophica  que  o  povo  usa,  mas  ainda  me  accusou  de 


48  POESIA  AMOROSA 


A  estrophe  natural  das  cantigas  é  tambeiiij 
como  se  tem  visto,  a  quadra  (i). 

Tanto  o  metro  como  a  estrophe  estabelecem 
grande  diíferença  entre  as  cantigas  portugue- 
sas e  as  hispanholas;  nestas,  alem  das  qua- 
dras como  as  nossas,  ha  umas  estrophes  es- 
peciaes  de  três  versos  denominadas  soleares 

a  eu  não  ter  comprehendido.  Ora,  que  eu  a  comprehendi, 
prova-o  a  comparação  que  fiz  no  Annuario,  pag.  20,  com 
as  poesias  portuguesas  antigas,  como  o  sr.Theophilo  Braga 
também  fez;  se  porém  as  não  dispus  no  sentido  que  elle 
indica,  é  porque  ao  collector  das  tradições  populares  não 
é  licito  alterar  o  que  recolhe. 

(i)  O  sr.  Soeiro  de  Brito  diz  que  no  Alemtejo  o  verso 
de  redondilha  maior  é  usado  em  quadras,  decimas,  oita- 
vas, sextilhas,  quintilhas  e  tercetos  (ib.,  ib.);  noutro  ponto, 
affirma  mesmo:  «as  decimas  são  a  verdadeira  poesia  po- 
pular» (ib.,  n.''  210),  Como  succede  com  os  versos  de  mais 
de  sete  syllabas,  parece-me  a  mim  que  estas  estrophes, 
exceptuando  a  quadra,  e  talvez  o  terceto,  se  não  encon- 
trarão na  poesia  tradicional,  embora  os  poetas  e  impro- 
visadores da  aldeia  as  saibam  empregar.  Quando  se  trata 
de  poesia  popular,  convém  estabelecer  diíferença  entre  o 
que  é  tradicional,  e  portanto  característico  e  de  raiz  an- 
tiga, e  o  que  é  meramente  individual  ou  local.  A  respeito 
das  cantigas  em  tercetos  escreve  também  o  sr.  Theophiio 
Braga  que  apenas  as  tem  encontrado  no  Minho  (O  Poyo 
Português,  II,  404-405);  mas  devem  ser  muito  raras.  — 
Noutras  espécies  poéticas,  como  os  adágios,  adivinhas,  ri- 
mas infantis,  e  mesmo  certas  canções  especiaes  (por  ex. 
ao  S.  João,  no  Porto  e  arredores)  ha  varias  espécies  de 
estrophes;  mas  fora  da  quadra,  o  que  supponho  ser  mais 
vulgar  é  o  distico. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  49 

OU  tríades,  e  outras  de  sete,  que  não  se  en- 
contram geralmente  (a  segunda  espécie,  isto  é, 
a  septilha,  nunca  a  encontrei)  nas  nossas-, 
exemplo: 

i)  Donde  hay  gusto  no  hay  disgusto : 
Yo  quiero  aqueya  morena 
Que  está  bestía  de  luto. 

Anda  y  que  te  den  un  tiro . . . 
Con  pórbora  de  mis  ojos, 
Balitas  de  mis  suspiros. 

2)  Yo  bien  sé  que  tu  quieres 
A  quien  te  engana, 
Y  no  á  mi,  que  te  llevo 
Siempre  en  el  alma. 
Mas  me  consuela 
Que  no  has-de  encontrar  nunca 
Quien  más  te  quiera. 

Morenito  és  mi  amante, 

Morenita  yo  ; 
Color  de  chocolate 

Tenemos  los  dos. 

;  Biba  quien  tiene 
Color  de  chocolate, 

Que  nunca  pierde  ! 

Nestas  ultimas  estrophes  a  regra  é  ser  o  i.% 
o  3.°  e  o  6.°  de  sete  syllabas,  e  os  outros  de 
cinco  (i). 

(i)  Vid.  algumas  observações,  sobre  esta  forma  estro- 
phica  hispanhola,  num  artigo  do  sr.  Adolpho  Coelho,  in 
Jornal  do  Commercio  n.°  9085. 

POESU  AMOROSA  4 


50  POESIA  AMOROSA 

Além  d'estas  diíferenças  morphologicas  en- 
tre as  cantigas  de  Hispanha  e  as  de  Portugal, 
existem  ainda  outras  (i). 

Como  o  povo  se  regula  pelo  ouvido,  e  não 
pela  vista,  o  que  ás  vezes  succede  nos  poetas 
litterarios,  segue-se  que  na  contagem  das  syl- 
labas  devemos  ter  em  vista  a  phonetica  vulgar, 
para  não  irmos  ás  vezes  taxar  de  erro  aquillo 
que  em  rigor  o  não  é;  —  o  que  não  quer  di- 
zer que  o  povo  seja  sempre  fiel  a  este  princi- 
pio. Assim  na  cantiga  minhota 

Já  cortei  o  meu  cabello, 
Já  lá  vae  a  minha  gala. . . 
A  culpa  tive-a  eu : 
Dar  ouvidos  a  quem  falia 

03.®  verso  deve  ler-se  a  culpa  tivi-a-i-eu^  onde 
o  /  da  pronuncia  corrente  evita  o  hiato;  na 
cantiga 

(i)  É  claro  que,  se  existem  diíferenças  entre  as  nossas 
cantigas  e  as  de  Hispanha,  muitas  analogias  ha  também 
ás  vezes;  mas  estas  analogias,  com  quanto  aqui  sejam 
mais  íntimas,  por  causa  da  vizinhança  dos  p;iises  e  do  pa- 
rentesco dos  povos  e  das  linguas,  também  se  dão  com  a 
poesia  de  outras  nações.  A  quadra,  por  exemplo,  tão 
vulgar  em  Portugal  e  Hispanha,  encontra-se  como  forma 
popular,  e  até  improvisada,  nos  habitantes  dopais  de  Gal- 
les  ;  igualmente  apparece  a  quadra  na  Itália,  na  Grécia, 
onde  deu  origem  ao  distico,  nos  Alpes  allemães^  no  Friul. 
Cfr.  F.  A.  Coelho,  art.  cit.,  e  H.  Schuchardt,  in  El  Folk- 
Lore  andalu{,  pag.  260. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  5I 

Que  passarinho  é  aquelle 
Q'anda  no  lóreiro  verde  ? 
Não  é  pássaro,  não  é  nada, 
É  a  raiz  da  canna  verde 

O  I  °  verso  deve  ler-se  que  passarinho  eqiielle^ 
o  3.°  num  é  passro  num  é  nada^  o  4.°  e  rai:{  da 
canna  verde^  pois  assim  pronuncia  o  povo ;  na 

cantiga 

—  Minha  mãe,  tomei  amores.  . . 

—  O  filha,  dize-me  com  quem? 

—  Tomei-os  com  um  alfaiate. . . 

—  O  filha,  cozia  bem  ? 

O  2.°  deve  ler-se  ójilha  di^-me  com  quem^  e  o 
3.°  tomei-os  c'um  alfaiate.  Mas,  como  disse,  o 
povo  afasta-se  muitas  vezes  da  regra;  ainda 
assim,  para  se  fazer  uma  apreciação  segura, 
é  preciso  recolher  muitas  versões  de  cada  can- 
tiga, pois  a  mim  tem-me  succedido  não  raro 
no  meio  de  todas  essas  versões  encontrar 
umas  erradas  e  outras  não.  O  facto  de  se  o 
povo  afastar  da  regra  é  também  ás  vezes 
apparente,  porque,  como  as  cantigas  são  des- 
tinadas ao  canto,  na  occasiao  d'este  fazem-se 
certas  pausas,  e  assignalam-se  ou  modificam-se 
certos  sons,  contrariamente  ao  que  na  reci- 
tação ordinária  succederia  (i). 

(i)  Notarei  a  propósito  que  na  enunciação  das  nossas 
poesias  populares  pôde  haver  diversos  graus:  recitação 
simplesmente  narrada  (como  nas  adivinhas,  nos  provér- 
bios e  ás  vezes  nos  romances),  cantilena  (como  nas  fór- 


52  POESIA  AMOROSA 


§  III.  —  Importância  da  poesia  do  povo 

A  vida  domestica.  —  A  vida  social.  —  Influencia  da  litteratura  popular  na 
litteratura  erudita.  —  A  arte.  —  A  satyra.  —  Poesia  histórica.  —  As 
tradições  em  geral. 

Vejamos  agora  a  importância  da  poesia  po- 
pular. Depois  dos  profundos  estudos  já  publi- 
cados sobre  o  assumpto  em  toda  a  parte,  e 
das  riquíssimas  coUecçÕes  que  estão  nasbiblio- 
thecas  de  todos  os  estudiosos,  parecerá  por 
ventura  ocioso  vir  ainda  fallar  da  importância 
da  poesia  popular;  mas  ao  lado  das  intelligen- 
cias  cultas  ha  sempre  os  cretinos,  a  par  dos 
trabalhadores  sinceros  e  devotados  não  deixam 
nunca  de  surgir  os  zoilos,  que  para  todas  as 
coisas  sérias  tem  sorrisos  de  zombaria,  pelo 
simples  facto  de  serem  incapazes  da  compre- 
hensão  de  qualquer  problema,  ou  de  se  ergue- 
rem um  pouco  acima  do  estreito  horisonte 
em  que  se  circumscreveram:  por  isso  permit- 
ta-se-me  o  que  vou  dizer. 

Encarando  a  poesia  popular  pelo  lado  his- 

mulas  da  chuva,  do  nevoeiro,  do  arco-iris,  que  teem 
melopeia  especial),  e  canto  propriamente  dito  (nas  cantigas 
e  outras  vezes  nos  romances).  A  cada  um  d'estes  graus 
correspondem  commummente  poesias  próprias:  assim, as 
adivinhas  nunca  são  cantadas,  e  as  cantigas  são  originaria- 
mente destinadas  ao  canto.  ~  Cfr.  G.  Nigra,  Lapoes.pop. 
iíai,  in  Romania,  V,  417. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  53 

torico,  ella  revela-nos  interessantíssimos  da- 
dos que  muitas  vezes  só  por  meio  d'ella  nos 
são  conhecidos;  encarando-a  pelo  lado  esthe- 
tico,  a  nossa  alma  vibra  de  emoção,  —  tal  é 
a  magia  intima  que  em  versos  de  apparencia 
tão  tosca  se  contém.  Não  me  refiro  exclusiva- 
mente ás  cantigas  ;  abranjo  também  na  deno- 
minação de  «poesia  popular»  as  rimas  infan- 
tis, os  ensalmos,  as  adivinhas,  as  orações  e 
esconjuros,  os  romances  ou  xacaras,  e  ainda 
os  adágios. 

Diz-se  vulgarmente:  —  isto  não  passa  de  fri- 
volidades. Sim,  são  frivolidades;  mas  o  homem 
não  as  dispensa  jamais.  Quem  é  que  se  não 
lembra  com  saudade  das  canções  que  ouviu 
na  sua  terra,  á  tarde,  á  hora  em  que  o  pastor 
recolhe  os  gados;  á  noite,  nos  animados  se- 
rões das  mulheres;  a  todo  o  momento,  nos 
campos,  nos  lavadoiros,  nas  eiras  ?.  . .  Emba- 
lam-nos  no  berço  ao  som  de  cantigas  ternas  e 
maviosas;  quando  já  somos  maioreszinhos, 
exercitamos  as  nossas  faculdades  intellectuaes 
decifrando  as  adivinhações  ou  repetindo  de  cor 
sentidos  romances  que  a  nossa  avó  ou  a  nossa 
tia  nos  ensinou;  depois  de  homens  feitos,  tra- 
duzimos as  verdades  moraes  ou  os  principaes 
phenomenos  agrícolas  ou  meteorológicos  por 
meio  de  rifões.  Não  nos  acompanha  con- 
stantemente a  poesia  popular?  És  crente, — 
ahi  tens  innúmeras   rezas   com  que  te  podes 


54  POESIA  AMOROSA 


dirigir  aos  teus  santos;  és  fraco  de  espirito  e 
supersticioso,  —  lança  mão  d'essas  fórmulas 
magicas,  que  te  satisfarão  ;  és  poeta,  —  bebe 
no  mellifluo  veio  da  musa  do  povo  a  tua  inspi- 
ração mais  viva.  Quem  se  ri  da  poesia  popu- 
lar, ri-se  de  si  mesmo,  está  em  contradicção 
comsigo,  porque  não  ha  ninguém,  embora 
bronco  e  rude,  que  um  minuto  na  vida  não 
precise  de  se  soccorrer  de  um  provérbio,  de 
uma  rima  tradicional.  Por  aqui  se  vê  que  ávida 
particular  do  homem  se  acha  essencialmente 
impregnada  da  poesia  popular.  O  que  seria 
do  nosso  povo  se  não  cantasse!  Como  lhe 
correria  triste  e  desolada  a  existência,  se  os 
seus  lábios  não  soubessem  repetir  ao  menos 
uma  singela  quadra,  um  innocente  estribilho! 
A  prova  mais  frisante  do  valor  e  merecimento 
da  poesia  popular  está  em  que  ella  se  mani- 
festa em  todos  os  actos  da  vida  e  em  todas 
as  classes.  O  marinheiro,  o  lavrador,  o  al- 
mocreve, o  soldado...  todos  cantam,  uns 
para  se  distrahirem  e  o  trabalho  lhes  custar 
menos,  outros  para  se  estimularem.  Grande 
parte  do  serviço  campestre  passa-se  ao  som 
de  canções,  como  as  vindimas  no  Douro,  as 
segadas  do  centeio  e  do  trigo  em  Tras-os- 
Montes,  as  debulhas  na  Beira.  A  este  respeito 
ha  também  povoações  mudas  ou  quasi.  Devo 
dizer  que  vivi  perto  de  um  anno  no  Cadaval, 
percorrendo  constantemente  todo  o  concelho 


DO   POVO  PORTUGUÊS  55 


no   exercício   da  clinica,   e  que  só  raríssimas 
vezes  lá  ouvi  cantar. 

Que  ardor  não  desperta  o  hymno  patrió- 
tico (tornado  popular)  da  oMaria  da  Fontel 

Eia  avante,  Portugueses, 
Eia  avante,  não  temer. . . 
Pela  nossa  liberdade 
Batalhar  até  morrer! 

Tanto  vigor  épico  em  tão  poucas  palavras! 

Na  poesia  popular  é  que  os  poetas  mais 
verdadeiros  vão  retemperar  o  seu  estro.  Mui- 
tos dos  nossos  poetas  o  tem  feito.  A  natura- 
lidade e  graça  dos  versos  de  João  de  Deus 
deriva  em  grande  parte  da  exacta  compre- 
hensão  do  estylo  e  da  verdade  da  poesia  do 
povo ;  quantas  vezes  elle  não  occulta  a  vulga- 
ridade do  pensamento  num  dizer  simples  e 
suave  que  nos  encanta  a  todos  que  o  lemos  ? 
Pois  o  característico  dos  versos  de  João  de 
Deus  não  está  nos  grandes  raptos  de  imagina? 
ção,  mas  sim  o  sentimento  e  a  singeleza  de 
que  reveste  tudo  o  que  escreve,  e  até  parece 
que  quanto  mais  simples  d  a  idéa,  mais  brilha 
a  forma,  que  elle  nunca  ou  quasi  nunca  força 
e  pelo  contrário  aproxima  da  linguagem  cor- 
rente. O  mesmo  acontece  na  poesia  popular. 
Que  expressão  pôde  haver  mais  bem  tradu- 
zida do  que  esta  ?  : 


56  POESIA  AMOROSA 

Oh  !  o  seu  nome 
Como  eu  o  digo 
E  me  consola  ! 
Nem  uma  esmola 
Dada  ao  mendigo 
Morto  de  fome  ! 

(Tiamo  deflores,  pag.  44). 

Que  se  deve  também  exigir  mais  da  musa 
popular  na  seguinte  cantiga? : 

Não  ha  nome  de  que  eu  goste 
Como  o  nome  de  Maria. . . 
Quem  te  deu  tão  lindo  nome, 
Já  meu  segredo  sabia. . . 

Algumas  das  quadras  mais  deliciosas  da 
Morte  de  ^.  João  de  Guerra  Junqueiro  são 
imitação  ou  reminiscência  do  estylo  da  poesia 
do  povo,  como  a  pag.  56  e  67,  i.*  ed.: 

Passei-te  rente  ao  mirante 
E  dei  de  cara  comtigo, 
E  tu  lançaste  ao  mendigo 
O  teu  olhar  —  um  diamante. 

Meu  coração  é  quadrante, 
Quadrante  do  meu  desejo  : 
Nas  horas  em  que  te  vejo, 
Não  marca  mais  que  um  instante. 

Que  diíferença  entre  esta  poesia  graciosa,  e 
essas  monstruosidades  de  phantasia  doente, 
com  que  elle  ás  vezes  se  apraz,  num  ardor 


DO  POVO  PORTUGUÊS  57 

bombástico,  fóra  de  todos  os  limites  do 
senso  critico,  e  que  dão  a  tantas  das  suas 
composições  feição  gongorica  de  nova  es- 
pécie ! 

Ainda  outros  poetas  tem  aproveitado  a 
inspiração  popular,  como  Simões  Dias  nas 
Peninsulares,  e  Anthero  de  Quental  nas  Pri- 
maveras Romajiticas.  Já  tenho  ouvido  cantar 
ao  povo  versos  de  L.  A.  Palmeirim,  e  elle 
mesmo  introduziu  nas  suas  Poesias  (pag.  3i5 
e  36o,  ed.  de  Lisboa,  i85i)  estas  duas  qua- 
dras populares : 

Foge  d'ahi,  lobishomem, 
De  cima  d'esse  telhado, 
Deixa  dormir  o  menino, 
Deixa-o  dormir  descançado. 

S.  Gonçalo  d'Amarante, 
Casamenteiro  das  velhas, 
Porque  não  casaes  as  moças  ? 
Que  mal  vos  fizeram  ellas  ? 

que  se  cantam  em  muitas  partes  com  levissi- 
mas  variantes.  Se  remontamos  mais  longe, 
não  nos  será  difficil  encontrar  em  Bernaldim 
Ribeiro  e  mesmo  em  Camões,  etc,  vestígios 
da  influencia  do  povo.  No  Cancioneiro  da  Va- 
ticana,  que  encerra  composições  dos  primei- 
ros séculos  da  nossa  litteratura,  ha  também, 
ao  que  parece,  vestígios  de  influencia  popular. 


58  POESIA  AMOROSA 


E  Gil  Vicente  ?  Basta  abrir  os  seus  Autos  para 
igualmente  os  encontrar,  em  abundância (i). 

A  poesia  do  povo  é  a  reproducção  fiel  das 
idéas  e  tradições  que  constituem  uma  das 
bases  da  nossa  nacionalidade.  O  historiador, 
que  nos  seus  estudos  a  despresar,  fará  por 
força  obra  incompleta.  Pois,  como  se  ha-de 
apreciar  devidamente  a  psychologia  da  nossa 
raça,  se  se  náo  tomar  nota  das  suas  ten- 
dências poéticas,  se  se  não  conhecer  o  seu 
fôlego  para  o  lyrismo  ou  para  a  epopeia,  se 
se  não  julgar  o  seu  gosto  artístico?  Depois, 
a  grande  maioria  das  composições  que  se 
repetem    entre    os    aldeões   portugueses   não 

(i)  Além  da  poesia  popular  propriamente  dita,  que  é 
anonyma  e  tradicional,  ha  a  poesia  feita  por  um  ou  outro 
individuo  de  veia  poética,  embora  sahido  da  classe  do 
povo  (são  estes  os  puetas  populares,  cfr.  supra,  pag.  20  21; 
e  a  sua  poesia  póde-se  chamar  semi-popular);  ha  ainda  a 
poesia  feita  para  o  povo  pelos  litteratos  (por  ex.  certas 
Loas  do  Sr.  João  de  Deus)  ou  pseudo-litteratos  (o  que  en- 
tra na  litteratura  de  cordel;)  mas  o  povo  pôde  também 
aprender  poesias  que  originariamente  lhe  náo  forão  des- 
tinadas, ainda  que  o  facto  é  mais  raro,  com  quanto  eu 
já  tenha  ouvido  cantar  nas  ruas  O  noivado  do  sepulcro  de 
Soares  de  Passos.  Gomo  é  frequente  cantarem-se  nas  salas 
das  pessoas  educadas  certas  canções  em  jogos  ou  com 
acompanhamento  de  guitarra,  violão,  etc,  a  pouco  e 
pouco  estas  canções  se  podem  propugar,  primeiro  pelas 
creadas,  depois  pelos  serviçaes  de  fora,  etc.  É  presiso  po- 
rém que  essas  canções  cultas  quadrem  com  o  génio  po- 
pular, o  que  nem  sempre  succede. 


I 


DO  POVO  PORTUGUÊS  59 

são  património  exclusivo  delles,  encontram-se 
noutros  paizes,  que  as  receberam  da  mesma 
fonte  commum  d'onde  o  nosso  as  recebeu,  ou 
no'-las  communicaram,  —  e  em  qualquer  dos 
casos  se  vê  bem  que  número  de  questões  his- 
tóricas ellas  levantam,  e  como  convêm  reco- 
lhe-las, compará-las,  discuti-las.  Ser-me-hia 
muito  fácil  reunir  aqui  innúmeras  variantes 
estrangeiras  de  canções,  rimas,  xacaras,  eni- 
gmas, annexins,  etc.  análogas  ás  que  se  dizem 
cá;  mas  como  este  opúsculo  é  um  trabalho  li- 
geiro, apenas  uma  contribuição  para  um  traba- 
lho maior,  limito-me  a  remetter  o  leitor  para  os 
livros  especiaes  onde  encontrará  matéria  de  so- 
bra para  se  convencer  do  que  digo,  se  por  acaso 
não  acredita  nas  minhas  palavras.  Essas  com- 
posições communs,  pore'm,  aclimando-se  no 
nosso  solo,  tornando-se  interpretes  da  alma 
das  multidões,  podem  chamar-se  portuguesas 
na  sua  forma  actual;  e  é  por  isso  que  eu  affir- 
mo  que  o  seu  estudo  ê  indispensável  para  a 
recta  apreciação  do  nosso  génio. 

Olhando  agora  as  cousas  mais  de  perto,  e 
considerando  as  cantigas  unicamente  como 
documentos  artisticos,  não  é  tão  grato  aos 
espíritos  sentimentaes  lê-las  e  até  decorá-las  ? 
Não  sei  que  poeta  algum  faça,  ao  mesmo 
assumpto,  melhores  quadras  do  que  essas  que 
aqui  transcrevo : 


6o  POESIA  AMOROSA 


Eu  fui  o  que  disse  ao  sol 
Que  não  tornasse  a  nascer  : 
A'  vista  d'esses  teus  olhos, 
Que  vem  o  sol  cá  fazer  ? 

Annel  d'ouro,  annel  d'ouro, 
Salta  fora  do  meu  dedo, 
Que  tu  foste  o  causador 
De  me  eu  cativar  tão  cedo. 

Lá  vae  o  sol  p'r-ó  deserto 
Dizer  as  penas  que  tem. 
Quem  me  dera  ir  com  elle 
Cobrir  as  minhas  também  ! 

Tendes  um  lindo  cabello, 
Pelas  costas  ao  comprido  : 
Parecem-me  fios  d'ouro 
Ao  martello  rebatido. 

D'aqui  d'onde  estou  bem  vejo 
Olhos  que  me  estão  matando: 
Matae-me  de  vagarinho, 
Que  eu  quero  morrer  penando. 

Costumei  tanto  os  meus  olhos 
A  namorarem  os  teus, 
Que,  de  tanto  confundidos. 
Nem  já  sei  quaes  são  os  meus. 

E  como  esta  podiam  transcrever-se  muitas 
mais.  Os  pensamentos  são  ás  vezes  vulgares; 
mas  a  graça  está  em  os  enunciar  por  meio  de 


DO  POVO  PORTUGUÊS  6l 

uma  fórma  simples  e  bella,  de  modo  que  elles 
parecem  novos  (i). 

Uma  feição  curiosa  da  litteratura  poética  do 
nosso  povo  é  a  satyra.  Que  chiste  se  não 
revela  nas  seguintes  canções ! 

Não  cortes  a  videirinha, 
Nem  a  raiz  á  serralha, 
Que  é  o  sustento  dos  homens 
Nos  annos  de  pouca  palha. 

Homem  casado,  és  tolo, 
Para  que  tocas  viola  ? 
As  cordas  custam  dinheiro, 
A  ti  ninguém  te  namora. 

Menina,  case  comigo, 

Não  tenha  medo  á  fome : 

O  meu  pae  tem  uma  «quinta»  (2), 

Que  sustenta  a  quem  não  come. 

Adeus,  adeus,  cantadeira, 
Adeus,  adeus,  regalar : 
Nunca  vi  morrer  em  pé 
Senão  as  velas  do  altar. 


(i)  Gomo  todas  as  coisas  tem  excepção,  não  quero  di- 
zer que  muitas  vezes  se  não  encontrem  também  poesias 
populares  péssimas  quanto  á  arte,  e  em  comparação  com 
as  poesias  litterarias  ou  mesmo  com  outras  populares. 
Mas  na  litteratura  mais  rica  que  haja,  e  no  próprio  poeta 
mais  perfeito  que  appareça,  succederá  o  mesmo.  Uns  fa- 
ctos não  destroem  os  outros. 

(2)  A  quiiita-feira. 


Ò2  POESIA  AMOROSA 


Eu  quero  cantar  baixinho, 
Que  me  não  ouça  o  vigário ; 
Não  quero  levar  peccados 
Aos  pés  do  confessionário. 

Andas  para  me  enganar, 
Tira  de  mim  o  sentido ; 
Muitos  cães  me  tem  ladrado, 
Poucos  me  teem  mordido. 

Menina  não  se  namore 
De  homem  que  já  viuvou; 
Não  queira  criar  os  pintos 
Que  outra  gallinha  chocou. 

O  povo,  por  causa  da  sua  imaginação  viva, 
precisa  de  se  valer  de  metaphoras  arrojadas, 
de  allegorias,  de  comparações  frisantes.  E  o 
que  se  vê,  por  exemplo,  nestes  versos : 

No  meio  d'aquelle  mar 
Está  um  barco  de  cortiça ; 
Se  és  casado,  arreda,  arreda, 
Se  és  solteiro,  atiça,  atiça. 

Fechei  a  porta  á  desgraça, 
Entrou-me  pela  janella ; 
Quem  nasce  para  a  desgraça 
Não  pode  fugir  a  ella  ! 

Apesar  de  se  dizer  frequentemente  que  o 
nosso  povo  perdeu  as  suas  tradições  históri- 
cas, isto  não  é  de  todo  exacto,  porque,  pro- 
curando bem,  alguma  cousa  se  encontra  nesse 


DO  POVO   PORTUGUÊS  63 

sentido.  A  própria  poesia  popular  revela  um 
certo  numero  de  factos.  A  mais  antiga  allusão 
que  actualmente  se  pode  descobrir  é  a  de  pa- 
gãos, escondida  em  algumas  formulas  poéti- 
cas (i).  Era  esta  uma  expressão  vaga  que  a  Igre- 
ja contrapunha  a  todos  aquelles  que  não  erao 
christãos.  Na  linguagem  corrente  ha  a  expres- 
são 110  tempo  dos  Mouros,  para  indicar  um  pas- 
sado muito  remoto.  O  povo  esquece  facilmente 
os  factos  históricos  nos  seus  pormenores,  por- 
que lhe  falta  o  estímulo  das  fontes  escritas; 
mas  quando  aquelles  são  de  natureza  gran- 
diosa, e  exerceram  acção  profunda,  então 
ficam  na  tradição  a  titulo  de  reminiscên- 
cias. O  povo  não  se  importa  com  a  chrono- 
logia,  nem  com  a  geographia,  nem  com  o  ri- 
gor lógico:  tudo  para  elle  é  vago.  Os  Mouros 
erão  muitos  ricos,  deixaram  immensos  thesou- 
ros,  e  faziam  cousas  maravilhosas.  Nesta  cren- 
ça não  ha  nada  mais  indeterminado.  Qualquer 
edificação  antiga,  que  pela  suas  ruinas  impres- 

(i)  O  que  primeiro  se  dizia  dos  Pagãos  disse-se  de- 
pois dos  Mouros:  este  nome  substituiu  pois  aquelle.  Gfr. 
um  art.  do  Sr.  Martins  Sarmento  a  este  respeito,  in  Pan- 
íheon,  Porto  1 880-1 881,  pag.  io5  e  121. — Deram-se  factos 
semelhantes  noutros  paises.  Na  litteratura  medieval  Sar- 
racenos  e  Turcos  designavam  todos  os  inimigos  da  chris- 
tandade,  quer  elles  fossem  Ingleses,  quer  Normandos,  etc. 
Simrock  disse  também  :  «entre  pagãos  e  Turcos  não 
havia  differença»  (Deutsche  Mythologie,  p.  584,  apud  Le 
moyen  âge^  I,  246). 


04  POESIA  AMOROSA 


sione  a  imaginação,  era  dos  Mouros;  qualquer 
esculptura  ou  pintura  menos  vulgar,  qualquer 
penedo  ou  gruta^  de  proporções  fora  do  com- 
mum,  pertencia  a  essa  estranha  gente.  Os 
mouros  eram  da  Mourama^  e  a  Mourama  era 
uma  terra  muito  longe;  e  nada  mais  se  conta  da 
posição  d'esse  phantastico  país,  ao  qual  a 
imaginação  attribue  quantas  maravilhas  e  gran- 
dezas pode  sonhar  (i).  Outra  designação  po- 
pular é  o  tempo  dos  Affonsinhos.  A  este  propó- 
sito diz  o  sr.  Th.  Braga:  «Sob  os  reis  D.  Af- 
fonso  I  a  D.  Aífonso  III  a  sociedade  portuguesa 
organisou-se  pelo  estabelecimento  dos  Foraes, 
reconhecendo  a  independência  dos  Concelhos; 
é  crivei  que  sob  o  despotismo  monarchico  es- 
sas liberdades  locaes  fossem  designadas  irri- 
soriamente  como  uma  cousa  do  tempo  dos 
Affonsinhos)^  (2).  Não  me  parece  provável  que 
se  desse  um  deminutivo  aos  nomes  dos  pri- 
meiros reis.  A  explicação  que  supponho  mais 
natural  da  phrase  é  esta.  Nos  primeiros  sécu- 
los da  monarchia  correu  uma  espécie  de  moe- 
da denominada  nos  documentos  escritos  di- 

(i)  A  Moirama  entra  também  nas  cantigas: 

Fostes  ao  Senhor  da  Serra, 
Nem  um  annel  me  trouvestes, 
Nem  CS  Moiros  da  Moirama 
Fizeram  o  que  tu  fizestes. 


(2)  O  povo  português,  II,  496. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  65 

nheiro  alfonsim',  no  feminino  dizia-se,  segundo  os 
mesmos  documentos,  moeda  alfonsina.  É  possi- 
vel  que  ao  lado  de  alfonsim  se  dissesse  popular- 
mente affonsinho^  pela  alternação  nos  suffixos 
-im  e  -inho,  e  pelo  mesmo  motivo  pelo  qual  de 
Alfonso  se  fez  Affonso.  Assim,  no  tempo  dos 
Affonsinhos  viria  a  significar:  «no  tempo  em 
que  se  usavam  os  affonsinhos  ou  alfo7isins;)^  da 
mesma  maneira  hoje  dizemos  7to  tempo  dos  pin- 
tos^ no  tempo  do  arro^  de  iS^  e  já  se  começa  a 
dizer  no  tempo  dos  patacos.  —  Outra  designa- 
ção genérica  é  esta:  do  tempo  dos  Franceses^ 
que  começa  a  substituir-se  d  do  tempo  dos  Mou- 
ros. Os  Franceses  foram  os  últimos  invasores; 
pelo  seu  aspecto  physico,  pelo  seu  trajo,  pela 
sua  lingua,  divergiam  inteiramente  de  nós;  por 
isso,  e  pelo  terror  que  com  as  suas  devastações 
e  crimes  de  toda  a  ordem  espalharam  pelo 
país,  causaram  profunda  impressão  nas  po- 
pulações, que  os  não  puderam  ainda  esque- 
cer e  a  quem  elles  servem  para  designar  uma 
epocha  medonha.  Rigorosamente  fallando,  os 
dois  meios  mais  populares  para  designar  um 
tempo  afastado  são  apenas :  os  oMouros  e  os 
Franceses.  Os  Ingleses  também  deixaram  na 
lingua  a  palavra  ingresia  (de  ingres=inglcs) 
para  designar  balbúrdia.  Tanto  na  tradição 
moderna,  como  nos  AA.  antigos,  transpare- 
cem allusões  a  vários  factos  intermediários 
áquelles,  ou  posteriores.  No  trabalho  que  cs- 

POESU  AMOROSA  3 


66  POESIA  AMOROSA 


tou  fazendo  não  me  posso  alargar  sobre  o  as- 
sumpto; alem  disso  elle  já  foi  tractado  em  parte 
pelo  sr.  Theophilo  Braga  no  seu  pequeno  es- 
tudo A  historia  de  Portugal  na  vo^  do  povo^ 
reproduzido  in  O  Povo  Português^  vol.  II;  pelo 
sr.  A.  Thomás  Pires  nas  suas  Cantigas  histó- 
ricas recolhidas  da  tradição  oral  na  provinda 
do  Alemtejo  (publicadas  no  periódico  O  El- 
vense);  e  pelo  Sr.  Alberto  Pimentel  na  Oáusa 
das  Revoluções,  a  que  adeante  me  torno  a  re- 
ferir.— Em  geral  o  espirito  que  domina  nas  nos- 
sas poesias  populares  históricas  é  o  do  epi- 
gramma  e  da  zombaria: 

O  Junot  foi  aos  infernos 
Buscar  duas  testemunhas: 
Achou  as  portas  fechadas, 
Pôs  se  a  esgravatar  co'as  unhas 

O  Junot  e  o  Maneta 
Fizeram  uma  funcção : 
O  Maneta  deu  o  braço, 
O  Junot  o  coração. 

Olha  a  condessa  da  Ega 
Que  anda  a  cavallo  no  cão: 
Pedindo  ao  ladrão  Junot 
Que  lhe  dê  a  sua  mão. 

Assim  se  refere  o  povo  ao  teinpo  dos  Franceses. 
De  D.  Miguel  diz  elle: 


I 


DO   POVO  PORTUGUÊS  6j 


D.  Miguel  quando  chegou 
A'  barra  de  Lisboa, 
Disseram  logo  os  malhados: 
—  Esta  obra  não  está  boa. 


Nas  seguintes  quadras  a  oMarta  da  Fonte  é 
admiravelmente  caracterisada : 

ol  A  Maria  da  Fonte 

^ç  E'  uma  grande  matrona: 

Passou  revista  á  tropa, 

Vestida  de  amazona. 
i-A. 

A  Maria  da  Fonte  / 

E'  uma  guerreira  boa:  *. 

OíD/Zi  Jurou  á  sua  tropa 

De  entrar  em  Lisboa. 

A  Maria  da  Fonte 
E'  uma  mulher  guerreira: 
Bateu-se  co'o  Saldanha 
Na  provinda  da  Beira. 

A  Maria  da  Fonte 
Co  a  sua  espada  na  mão 
Jurou  vencer 
Toda  a  nação. 

Fallou  á  sua  tropa: 
«Vamos  para  a  frente 
«Bater  o  Saldanha 
«E  cortar-lhe  a  frente. 

As  poesias  históricas  das  três  guerrasj/?e;n'«- 
sular,  liberal  e  da  patuleia  não  são  tão  populares 


68  POESIA  AMOROSA 


como  as  cantigas  dos  outros  géneros,  porque  são 
mais  modernas,  com  um  cunho  individual 
mais  pronunciado;  devem  pois  mais  rigorosa- 
mente denominar-se  semt-populares.  Não  andão 
ainda  no  país  todo,  e  são  principalmente  os 
veteranos  e  um  ou  outro  enthusiasta  quem 
mais  as  sabe.  Antes  de  receberem  a  verdadei- 
ra feição  popular,  ellas  provavelmente,  no  todo 
ou  em  parte,  esquecer-se-hão  na  memória  do 
vulgo.  E'  notável  que  o  período  brilhante  das 
nossas  descobertas  e  conquistas  ultramarinas 
quasi  não  deixasse  vestígios  na  tradição  oral. 
Apenas  hoje  ha  referencias,  e  estas  numerosas, 
ao  Brazil,  mas  isto  é  por  causa  da  emigração 
que  constantemente  se  faz  para  lá.  Uma  es- 
pécie de  tradições  históricas  menos  mal  repre- 
sentada é  a  que  tem  por  assumpto  as  lendas  de 
santos,  como  S.  Gonçalo  de  Amarante,  S.  Antó- 
nio de  Lisboa,  etc,  para  o  que  concorre  a 
influencia  ecclesiastica.  Nas  cantigas,  romances, 
etc.  ha  diversas  allusões  a  paises  estrangei- 
ros, como  Roma,  AUemanha,  França,  etc.  Es- 
pero reunir  num  trabalho  posterior  tudo  o  que 
a  respeito  das  Tradições  populares  históricas  eu 
tenho  encontrado  no  nosso  país,  e  então  en- 
trarei em  desenvolvimentos  em  que  aqui  não 
posso  entrar. 

Além  dos  dados  históricos  que  as  cantigas 
nos  fornecem,  e  que  nos  elucidam  bastante 
acerca  dos  caracteres  do  nosso  povo,  ellas  con- 


DO  POVO  PORTUGUÊS  69 

tém  aqui  e  alem  indicações  de  usos,  costumes, 
superstições  e  adágios,  o  que  muitas  vezes 
nos  prova  a  vitalidade  d'estes  e  a  importância 
de  que  gosam  no  povo.  Gfr.  o  que  se  disse  a 
cima,  a  pag.  i3. 

Seria  um  nunca  acabar,  se  eu  tentasse  in- 
dicar todos  os  pontos  por  onde  a  poesia  po- 
pular merece  as  attenções  da  sciencia.  E  a 
propósito  de  sciencia,  citarei  aqui  as  palavras 
de  um  bom  mestre  :  «11  y  a  encore  des  per- 
sonnes  qui  s'étonnent  de  voir  ce  gros  mot  á 
propôs  de  choses  en  apparence  si  frivoles  et 
vulgaires;  mais  il  n'en  estpas  moins  vrai  que 
la  poésie  populaire  a  un  intérêt  scientifique 
des  plus  grands,  tellement  qu'une  science  à 
part  est  en  train  de  se  constituer  autour  d'el- 
le»  (i).  Esta  sciencia  está  hoje  já  constituida. 

^^ 
§  4.  —  Bibliographia  do  assumpto 

Allusóes  em  obras  antigas  ás  cantigas  populares  portuguesas.  —  Collec- 
çóes  modernas.  —  A  bailada  (sic)  da  Serra  da  Estrella.  —  Cupido  nas 
tradições  poéticas. 

As  collecçÕes  de  cantigas  populares  são  mo- 
dernas ;  nos  AA.  e  documentos  antigos  ape- 
nas se  encontram  allusões  a  ellas.  Desenvolver 
este  assumpto  fica  para  outro  logar;  aqui  li- 

(i)  Gaston  Paris,  —  in  Melusine,  1877,  I,  col.  2.* 


70  POESIA  AMOROSA 

mito-me  a  curtas  notas.  As  Constituições  dos 
bispados  e  os  concílios  prohibem  já  emepochas 
muito  remotas  que  se  cante  nas  igrejas:  isto 
prova  a  existência  de  canções.  Em  Gil  Vi- 
cente não  faltam  também  indicações  d'ellas. 
Num  auctor  do  século  xvii,  Villas  Boas  e 
Sampaio,  ha  vestígios  de  cantigas  populares 
que  eu  completei  num  artigo  publicado  in  En- 
cydopedia  Republicana^  Lisboa  1882,  pag.  100 
sqq.,  e  reproduzido  in  Revista  do  Minho,  I,  41, 
sqq.  Num  auctor  do  século  xvii,  o  dr.  Manuel 
da  Silva  Leitão,  encontram-se  as  seguintes 
cantigas  populares: 

Dizei-me,  minha  menina, 
Com  que  fazeis  o  carão. . . 
Com  sopinhas  da  panella 
E  com  vinho  de  tostão  (i). 

Toda  a  mulher  que  não  dorme 
Quando  o  homem  vem  dos  bois, 
Ou  ella  hade  dormir  d'antes, 
Ou  ha-de  dormir  depois  (2). 

Em  um  reino  não  ha  dous  reis, 
Em  um  coração  dous  amores; 
Nunca  pôde  servir  bem 
Um  servo  a  dous  senhores  (3). 

(i)  Arte  com  vida  ou  vida  com  arte,  Lisboa  1738^  pag.  23. 

(2)  Ib.,  pag.,  3 18. 

(3)  Ib.,  pag.,  36o.  —  Estas  indicações  devo-as  ao  meu 
amigo  e  antigo  professor  o  sr.  dr.  José  Carlos  Lopes,  que, 


DO  POVO  PORTUGUÊS  7I 

O  mesmo  medico  traz  o  dictado 

Olhos  verdes 

Em  poucas  caras  os  vedes  (i) 

que  se  completa  hoje  com  a  seguinte  cantiga 
modern»: 

Olhos  pretos,  olhos  brancos, 

Olhos  azues,  olhos  verdes: 

Estas  quatro  castas  d'olhos 

Em  poucas  caras  as  vedes. 

Em  1864  publicou  o  dr.  Christ.  Fr.  Beller- 
mann  em  Leipzig  a  seguinte  obra:  Portiigie- 
siscJie  Volkslieder  iind  Roman^en,  —  Portugie- 
sisch  iind  deutsch — ,  mit  oAumei^kiingen  (Can- 
tigas e  romances  populares  portugueses,  em 
português  e  allemao,  com  annotaçÕes).  Esta 
collecção  também  contém  musicas.  Alguma 
das  poesias  não  sao  populares.  A  obra  é  po- 
rém interessante  (2). 

A  primeira  collecção  portuguesa  regular  de 
cantigas  populares,  em  ordem  de  data,  é  a  que 
se  intitula  Cancioneiro  popular,  publicada  pelo 
sr.  dr.  Theophilo  Braga  no  Porto  em  1867. 

ao  mesmo  tempo  que  é  um  distincto  lente  na  Escola  medi- 
ca do  Porto,  possue  profundos  conhecimentos  de  biblio- 
graphia  portuguesa,  incluindo  a  parte  que  se  refere  á 
nossa  medicina. 

(i)  Loc.  cit.,  pag.  49. 

(2)  Cf.  um  art.  in  Romania,  II,  125-126  (de  Morei  Fa- 
tio), e  o  meu  Romanceiro  português  (n.^  121  da  Bibl.  do 
Povo),  pag.  10. 


72  POESIA  AMOROSA 

Como  já  passaram  por  ella  22  annos,  o  auctor 
de  certo  lhe  faria  modificações  se  a  reimpri- 
misse hoje.  Nella  figura  ainda,  como  authentico, 
o  Poema  da  Cava,  e  as  Canções  de  Egas  Mo- 
niz e  Gonçalo  Hermigues,  bem  como  a  Elegia 
de  D.  Mendo  Vasquez  (que  Fr.  Fortunato  de 
S.  Boaventura  publicou  na  Hist.  chroji.  dcAlcob. 
—  Provas  e  addições  — ,pag.  64), —  o  que  tu- 
do tem  todos  os  visos  de  apocrypho.  Sobre  as 
poesias  do  Condestavel,  que  lá  estão,  publica- 
rei, logo  que  possa,  um  estudo  critico.  Ou- 
tras composições  d'essa  collecçao  tem  auctor  co- 
nhecido. Uma  ou  outra  mais  devem  ser  conside- 
radas como  não-populares,  por  exemplo  algu- 
mas de  pag.  1 53.  Apesar  d'esses  defeitos,  o  Can- 
cioneiro popular  tem  muito  valor,  não  só  pelo 
que  encerra,  como  pelo  caminho  que  abriu  (i). 
Este  caminho  estava  já  porem  indicado  por 
Almeida  Garrett  no  prologo  da  2.*  ed.  do  seu 
Romanceiro:  «Resolvi,  sob  nova  denominação 
de  Romanceiro  e  Cancioneiro  Geral^  reunir  todos 
os  documentos  que  eu  pudesse  para  a  histo- 
ria da  nossa  poesia  popular,  desde  onde  me- 
morias ou  conjecturas  ha,  até  á  epocha  actual, 
acompanhando-os  de  explicações  e  glossas, 
que  vão  servindo  de  nexo,  que  sejam  como  a 
liaça,  o  nastro,  que  áte  estes  pergaminhos». 

(i)    Vid.   a  seu   respeito    uma    apreciação  critica  de 
Morei  Fatio  in  ^{pmania,  II,  127-128. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  7^ 

Garrett  não  chegou  a  publicar  o  Cancioneiro. 
Como  trabalho  de  synthese  publicou  Garrett 
um  estudo  intitulado  Da  poesia  popular  em 
Portugal y  que  sahiu  in  T{epista  Universal  Lis- 
bonense^ \o\.  V,  1 845-1 846,  pag.  439, 450, 4605 
473,  483.  Este  trabalho  comprehende  três  ca- 
pítulos, sendo  um  de  introducção.  Nella  as- 
senta Garrett  que  a  litteratura  pátria  se  de- 
ve inspirar  no  sentimento  e  nas  tradições  da 
nacionalidade:  «O  tom  e  o  espirito  verdadei- 
ro português  esse  é  forçoso  estuda-lo  no  gran- 
de livro  nacional,  que  é  o  povo  e  as  suas  tra- 
dições, e  as  suas  virtudes,  e  os  seus  vicios,  e 

as  suas  crenças,  e  os  seus  erros Reunir  e 

restaurar,  com  este  intuito,  as  canções  popu- 
lares, xacaras,  romances  ou  rimances,  solaos, 
ou  como  lhe  queiram  chamar,  é  um  dos  pri- 
meiros trabalhos,  que  precisamos»  (pag.  441). 
Depois  esboça  a  historia  dos  estudos  acerca 
da  poesia  popular  realisados  na  Europa. 
—  No  cap.  II  tracta  das  origens  da  poesia 
popular  nas  nações  modernas. — No  cap.  III  tra- 
cta da  poesia  popular  de  Portugal  e  suas  diver- 
sas epochas.Sob  cl dQnomimçao áepoesiapopular 
ou  poesia  origiiial  portuguesa,  elle  comprehen- 
de: i)  a  poesia  aborígene  (resto  da  poesia  dos 
Lusitanos);  2)  a  poesia  provençal;  3)  a  poesia 
mixta. —  Não  é  possível  discutir  aqui  todos 
esses  pontos;  basta  que  diga  que  Garrett  en- 
tra também  em  considerações  com  a  poesia 


74  POESIA  AMOROSA 


erudita,  e  que  a  respeito  da  popular  falia  prin- 
cipalmente dos  romances ;  muitas  das  suas 
affirmações  carecem  hoje  de  correção.  Já  po- 
rém enuncia  a  these  da  separação  que  se 
deu  em  grande  parte  da  nossa  litteratura  en- 
tre os  escriptores  e  o  povo,  —  these  que  o  sr. 
prof.  Th.  Braga  depois  desenvolveu. 

De  1869  são  os  Cantos  popular^ es  do  archipe- 
jago  açoreano,  do  mesmo  sr.  Theophilo  Bra- 
ga, onde  ha  uma  valiosa  collecção  de  canti- 
gas (i). 

Em  1871  publicou-se  no  Porto  o  i.°vol.  do 
Cancioneiro  do  povo  portiigiih^  contendo  Can- 
tigas populares^  coUigido  pelo  sr.  Francisco 
Xavier  da  Silva.  Muitas  das  cantigas  são  ge- 
nuinamente populares;  noutras  creio  ter  havido 
retoque. 

O  sr.  Adelino  António  das  Neves  e  Mello 
(filho)  publicou  em  Lisboa  em  1872  umas  Mu- 
sicas e  canções  populares  colligidas  da  tradição^ 
—  seguindo  o  caminho  traçado  por  Th.  Braga. 
A  collecção  é  geralmente  fiel  (2). 

Nas  collecções  publicadas  pelo  sr.  Adolpho 
Coelho  in  Zeilschrift  f.  rom.  Phil,  de  Grõber, 
III,  61-72,  e  in  Romania  (1874),  não  ha  pro- 

(i)  Sobre  estes  Cant.  pop.  vid.  uma  critica  do  sr.  Olivei- 
ra Martins  in  Rev.  critica  de  litteratura  mod.,  Lisboa  1869, 
n.o  2. 

"    (2)  Cfr.  Bibliographia  critica  de  Ad.  Coelho  (art.  de 
Th.  Braga),  pag.  204  sqq^*í-ÍJi-i.' 


DO  POVO  PORTUGUÊS  'jS 

priamente  cantigas  populares,  mas  sim  rimas 
infantis,  orações  e  ensalmos.  Cfr.  o  meu  Ro- 
manceiro  Português^  pag.  lo-ii. 

Em  1879  publicou-se  em  Lisboa  uma  Col- 
lecção  de  cantigas  populares  colhidas  em  dife- 
rentes terras  das  provindas  e  ilhas  adjacentes 
(folheto  de  85  pag.  Anonymo).  Tem  algumas 
canções  verdadeiramente  populares;  tem  ou- 
tras retocadas-,  tem  outras  porém  nao-popu- 
lares. 

Na  Romania,  x,  100-116  (o  art.  tem  a  data 
de  Março  de  1880),  publicou  o  sr.  Z.  Consi- 
glieri  Pedroso  umas  Contribuições  para  um  ro- 
manceiy^o  e  cancioneiro  popular  português,  onde 
se  conteem  estes  assumptos: 

Uma  pequena  introducção ; 
I.  Romances; 
II.  O  Natal  (Janeiras) ; 

III.  Os  Reis ; 

IV.  Orações; 

V.  Cantigas  a  S.  João  ; 
VI.  Parlengas  infantis  e  jogos  populares; 
VII.  Enigmas  populares. 

Tem  alem  d'isso  no  fim  das  pag.  algumas  no- 
tas comparativas  e  explicativas. —  Cfr.  o  An- 
nuario  das  trad.  pop.  port.,  i.°  anno,  pag.  74. 
A  collecção  mais  numerosa  é  a  do  sr.  Antó- 
nio Thomás  Pires,  a  qual  conta  já  uns  poucos 
de  milhares  de  canções,  distribuídas  por  va- 


/ 


76  POESIA  AMOROSA 

rios  jornaes,  como  a  Sentinella  da  Fronteira 
(onde  tem  sabido  os  Cantos  populares  do  Alemte- 
jo),  o  Ehense,  Jorvial  da  Manhã,  etc.  Poucas  ve- 
zes se  vê,  como  nesses  trabalhos  do  tão  intelli- 
gente  quão  modesto  investigador,  tamanha  de- 
dicação e  amor  perseverante  pelas  tradições 
populares.  Logo  que  o  sr.  Pires  possa  coordenar 
e  classificar  num  volume  ou  volumes  tudo  o  que 
traz  disperso  pelos  periódicos  e  revistas,  de 
certo  terá  erguido  um  bello  monumento  artís- 
tico em  honra  do  povo  português, — sem  fal- 
lar  do  inexgotavel  auxilio  que  as  poesias  e 
mais  tradições  reunidas  por  elle  prestam  desde 
já  á  philologia  e  ethnographia  nacionaes.  A 
propósito  dos  Cantos  populares  insertos  nsi  Se7i- 
tinella  da  Fronteira  disse  com  razão  o  illustre 
G.  Pitrè : « . . .  importante  raccolta,  laquale  pub- 
blicata  a  parte  (e  lo  merita  davvero)  sara  do- 
cumento delia  poesia  popolare  in  Portogal- 
lo»  (i). 

Posso  também  mencionar  neste  logar  os  Can- 
tos populares  do  Bra:{il  do  sr.  dr.  Sylvio  Ro- 
méro,  Lisboa  i883,  2  vol.,  pois  que  a  tradição 
portuguesa  se  propagou  ao  Brazil.  Nessa  col- 
lecção  ha  muitas  cantigas,  e  algumas  musi- 
cas (2). 

Em   1885   (Lisboa)   publicou  o  sr.  Alberto 

(i)  In  Archivio  per  le  tradiponi  popolari,  11,  626. 
(2)  Vid.  a  minha  critica  in  Revista  de  estudos  livres, 
i883.  .Jjii;^.; 


DO  POVO  PORTUGUÊS  77 

Pimentel  A  Musa  das  revoluções,  —  memoria 
sobre  a  poesia  popular  portuguesa  nos  acon- 
tecimentos políticos — onde,  como  o  auctor 
confessa,'  ao  lado  das  composições  propria- 
mente de  caracter  popular,  ha  muitas  de  ori- 
gem erudita  (como  por  ex.  os  hymnos patrióti- 
cos) e  outras  de  procedência  incerta.  Este  li- 
vro encerra  muitos  factos  interessantes,  e  é 
um  dos  mais  valiosos  do  sr.  Pimentel.  Como 
não  posso  dedicar-lhe  agora  uma  critica  ex- 
tensa, limito  as  minhas  observações  apenas  a 
dois  pontos.  A  pag.  44  sqq.  insere  o  sr.  Al- 
berto Pimentel  uns  versos  que  elle  denomina 
Bailada  da  Serra  da  Estreita,  mas  cujo  sentido 
diz  que  não  entende;  esses  versos  forão  escritos 
de  memoria  por  um  velho  octogenário  da  Bei- 
ra-Baixa.  Tenham  elles  a  origem  que  tiverem, 
vê-se  que,  quem  os  fez,  desejou  representar  as 
luctas  do  tempo  de  Viriato,  que,  segundo  a 
lenda,  era  um  pastor  dos  Herminios.  Uma 
das  estrophes  é: 

Romanos  avançam 
Ao  cume  da  serra, 
E  o  luso  se  passa 
Para  detrás  d'ella. 

Bastava  isto  para  refutar  a  authenticidade 
da  Bailada,  quero  dizer,  para  provar  que  ella 
não  tem  nada  de  popular  nem  de  antigo.  Com 
effeito,  a  palavra  Romanos,  se  se  houvesse  con- 


78  POESIA  AMOROSA 


servado  na  tradição  oral  da  Serra  da  Estrella, 
estava  transformada  em  romãos  ou  romóes  (cfr. 
S.  ^omão  =  5.  Romano,  invocado  na  mesma 
bailada);  em  vez  de  ao  cume  da  serra  o  povo 
beirão  diria  antes  ao  alto,  ao  cruto  (=coruto), 
á  cruta,  etc;  a  palavra  luso  não  é  popular,  e 
é  além  d'isso  uma  palavra  forjada  unicamente 
pelos  nossos  eruditos,  pois  não  se  encontra 
nos  AA.  clássicos,  latinos  e  gregos,  que  tra- 
ctaram  da  Lusitânia;  o  termo  correspondente, 
empregado  por  elles,  é  lusitano  (e  liisitanicd). 
A  analyse  grammatical  de  outros  trechos  leva 
ao  mesmo  resultado.  O  povo  não  diria  cer- 
tanemte  íngreme  (em  alguns  portos  do  sul 
diz-se  ingríme),  nem  separaria  assim  o  senti- 
do de  um  verso: 

A  gente  do  velho 
Maioral 

nem  faria  uma  interrupção  como  se  aqui  vê : 

na  frente, 

Co'o  peso  d'annos  andando, 
Do  triste  rebanho. . . 

nem  diria  a  rir  ou  chorando,  mas  sim  rindo  ou 
chorando  (ou  a  rir  ou  a  chorar),  nem  ainda  em- 
pregaria o  termo  óptima  e  a  phrase  magna  turba 
(na  Beira  dir-se-hia  antes:  gentiaga,  etc).  Mas 
ao  mesmo  tempo  que  estes  factos  denunciam 
completamente  a  origem  erudita,  ha  outros 


DO  POVO  PORTUGUÊS  7Õ 

que  parece  revelarem  que  houve  influencia  po- 
pular, verdadeira  ou  imitada,  na  poesia,  por- 
que esta  encerra  rimas  toantes,  e  até  uma 
curiosa  quadra 

S.*  do  Desterro 
Bemdita  sejaes 
Inda  hoje  no  templo 
Nos  ouviraes, 

onde  ouviraes,  por  ouvireis,  foi  pedido  pela  ri- 
ma, como  no  romance  de  Santa  Iria  (versão 
beirã)  se  diz  também: 

Pastores  do  monte 
Que  gado  guardaes, 


Que' ermida  é  aquella  ''"*    \   ' 

Que  alem  branquejaes  (  =  branqueja)? 


OU  então 


Pastorinho 

Que  no  monte  andaes, 
Que  ermida  é  aquella 
Que  alem  alvejaes  (i)? 

Não  me  é  licito  duvidar  da  veracidade  da 
informação  colhida  pelo  sr.  Pimentel,  por  isso 
eu  não  digo  que  a  poesia  foi  feita  ad  hoc,  mas 
o  que  sustento  é  que  ella  é  de  origem  erudita 


(i)    Apud  os   meus   Romances  pop.  port.,   Barcellos 
1881,  n.«  34. 


8o  POESIA  AMOROSA 


muito  recente,  e  que,  quando  muito,  teria  ser- 
vido para  alguns  jogos,  festas  ou  cavalhadas 
populares,  como  se  usa  em  varias  terras.  As- 
sim fica  resolvido  em  parte  o  problema  que  o 
sr.  A.  Pimentel  propôs  no  seu  livro.  —  A 
pag.  46  o  sr.  Pimentel  traz  outra  poesia,  tira- 
da do  Arco  de  SanfAnna  de  Garrett  (II,  93, 
3.^  ed.),  de  cuja  aiithenticidade  elle  suspeita. 
Aqui  não  deve  haver  dúvida  nenhuma.  Esta 
poesia  foi  feita  por  Garrett  de  propósito  para 
o  romance,  como  também  Herculano  fez  os 
versos  da  Dama  pé  de  ca^y^iy  que  inseriu  nas 
Lendas  e  narrativas,  II,  37  e  41,  5.^  ed.,  não 
obstante  lhe  chamar  «cantiga  de  bruxas»;  mas 
elle  aqui  falia  como  romancista  e  não  como 
historiador. 

Entre  os  collectores  das  tradições  popula- 
res portuguesas  merece  também  menção  o  sr. 
José  da  Silva  Vieira,  pela  sua  Revista  do  õMi- 
nlio,  que  se  consagra  exclusivamente  a  esse  as- 
sumpto. O  sr.  Vieira  publicou  mais  dois 
opusculozinhos  intitulados  —Ramalhete  de  can- 
ções populares  colhidas  no  concelho  de  Esposende 
(1887)  e  õMateriaes  para  a  hist.  das  trad.  pop, 
do  concelho  de  Esposende,  I,  Cancioneiro,  Espo- 
sende 1888  (i),  ambos  fieis,  embora  ahi  se  ve-r 

(i)  Sobre  este  ultimo  vid.  uma  critica  in  Cowiw^rc/o 
de  Portugal^  de  Lisboa,  n.°  2800,  de  1888,  pelo  sr.  Armando 
da  Silva,  moço  de  innegavel  vomadc  e  enthusiasmo  pelos 
estudos  ethnographicos,  nos  quaes  só  porém  irá  longe  se 


DO  POVO  PORTUGUÊS  8l 

ja  que  ao  coUector  falta  ainda  certa  orienta- 
ção. 

Na  Folha  d'Elvas,  do  anno  de  1889,  tem 
publicado  o  sr.  Soeiro  de  Brito  uma  série  de 
artigos  curiosos  com  o  titulo  de  oA  poesia  po- 
pular alemtejana,  onde  o  A.  se  occupa  ao  mes- 
mo tempo  das  danças  populares  da  província. 
A  este  art.  já  me  referi  acima,  pg.  47  e  48  e 
notas.  O  sr.  Soeiro  de  Brito  estuda  especial- 
mente a  poesia  de  occasião,  que,  embora  po- 
pular e  também  importante,  convém  distinguir 
sempre  da  tradicional. 

Como  trabalhos  syntheticos  refiro  aqui,  alem 
dos  artigos  de  Garret  tpublicados  in  Rev.  Unip. 
Lisb.,  e  mencionados  acima  (pag.  73),  mais  os 
seguintes: 

a)  A  poesia  popular  nos  campos  por  L.  A. 
Palmeirim.  In  Archivo  ^ittoresco,  VIII  (i865), 
pag.  138,  etc;  reproduzido,  segundo  me  dizem, 
num  folheto,  e  mais  tarde  publicado  como 
appenso  ao  volume  Galeria  de  figuras  con- 
temporâneas com  o  titulo  de  A  poesia  popular  nos 
campos^  Porto  1879*,  d'aqui  foi  transcripto  na^^e- 
vista  do  Minho^  vol.  ii-iii,  e  creio  que  ainda  nou- 
tros jornaes.  O  artigo  é  em  forma  de  folhe- 
tim romântico,  como  em  1882  fez  Francisco 


souber  primeiro  que  tudo  fortificar-se  com  severa  edu- 
cação scientiíica. 

POESU  AMOROSA  6 


82  POESIA  AMOROSA 

Rodriguez  Marin  no  seu  opúsculo  Juan  dei 
Piieblo.  Tem  algumas  observações  exactas, 
embora  ligeiras  e  superficiaes,  mas  também 
tem  várias  affirmaçÕes  menos  conformes.  As- 
sim por  ex.  diz  o  sr.  Palmeirim:  «Desconhe- 
cedora  das  tradições  pagãs,  a  gente  do  campo 
nega-as  por  instincto,  e  mata  a  sede  poética 
na  fonte  pura  da  Natureza».  Ora  isto  não  é 
verdade,  porque  a  máxima  parte  das  tradi- 
ções populares  actuaes  é  de  origem  pagã.  Ou 
então  o  A.  não  se  exprimiu  bem.  Continua 
elle:  «Cupido,  o  clássico  e  brincalhão  Cupido, 
é  para  os  poetas  da  aldeia  um  rapazote  sem 
importância.  O  deus  vendado  não  tem  entre 
elles  aras  nem  culto: 


Quem  pintou  o  amor  cego 
Não  no  soube  bem  pintar. 
O  amor  nasce  na  vista, 
Quem  não  vê,  não  pôde  amar». 

{Ar eh.  Pitt.,  ib.,  14Ò). 

,  Nesta  mesma  quadra  se  prova  que  o  povo 
repete,  embora  inconscientemente,  a  tradição 
de  Cupido,  pois  se  serve  da  periphrase  amor 
cego.  Mas  eu  conheço  muitas  canções  com  o 
nome  de  Cupido: 


DO  POVO  PORTUGUÊS  8^ 


Se  me  não  sabes  amar, 
Vem  cá,  que  eu  te  ensinarei; 
O  meu  mestre  foi  Cupido, 
Vê  lá  se  não  saberei,  (i) 

Hei-de  escrever  a  Cupido 
Mandando-lhe  perguntar 
Se  um  coração  offendido 
Tem  obrigação  de  amar.  (2) 

Chamaste  ao  meu  cabello 

Cannavial  de  Cupido, 

Também  eu  chamei  ao  teu 

Laços  que  me  tem  prendido.  (3)  » 

Na  eschola  de  Cupido 
Para  te  amar  aprendi ; 
Para  bem  de  te  fallar, 
Uma  carta  te  escrevi.  (4) 

No  tribunal  de  Cupido 
Me  fizeram  julgador ; 
Não  sei  como  haja  quem  de 
Sentenças  contra  o  amor.  (5) 

(i)  Th.  Braga,  Canc.  pop.^  1867,  pag.  93. 

(2)  Id.  ib.  pag.  109. 

(3)  Adelino  das  Neves,  Music.  e  canç.  pop.,  1872,  pag. 
72.  Cfr.  A.  Th.  Pires,  Cant.  pop.  do  Alemtejo,  n.»  387,  —  e 
estas  variantes: 

Chamastes  ao  meu  cabello  Chamastes  ao  meu  cabello 

Cannavial  de  Vianna;  Dobadoura  de  dobar; 

Eu  também  chamo  ao  teu  Eu  também  chamo  ao  teu 

—  A  deshonra  de  quem  ama.  —  Sarilho  de  ensarilhar. 

{"Rev.  do  Minho,  I,  18.) 

(4)  Th.  Braga,  Cant.  do  archipelago,  1869,  pag.  i35. 

(5)  A.  Thomás  Pires,  Cant.  pop.  do  Alemtejo,  n.°  3o5, 
(in  Sentinella  da  Fronteira). 


84  POESIA  AMOROSA 


Cupido  é  quartel-mestre, 

Dá  quartel  aos  seus  soldados : 

Bem  puderas  tu,  Cupido, 

Dar  quartel  aos  meus  cuidados,  (i) 

Cupido  doe-se  d'uma  asa, 
D'uma  penna  que  perdeu  : 
Cupido  sempre  dá  penas 
A  quem  sem  penas  nasceu.  (2) 

O  Cupido  me  mandou-o 
De  Lisboa  'ma  fitinha, 
Para  prender  as  meninas 
Que  usam  saia  sem  bainha  (3). 

No  Brazil  colheu  o  sr.  Sylvio  Romero  as 
seguintes  quadras: 

Cupido,  rei  dos  amantes, 
Só  Cupido  soube  amar; 
Ainda  depois  de  morto 
Do  amor  se  quiz  lembrar. 

Topei  Cupido  chorando, 
Perguntei  si  era  dor ; 
Cupido  me  respondeu 
Que  era  paixão  de  amor. 

Topei  Cupido  em  desprêso, 
Cousa  que  nunca  pensei ! 
Deitadinho  pelo  chão. . . 
Até  c'os  pés  lhe  pisei ! 

(i)  Id.  ib.,  n.o  719. 

(2)  Da  Madeira.  Rev.  do  Minho,  I,  48. 

(3)  Soeiro  de  Brito,  A  pões.  pop.  alemiej.  (in  Folha  de 
Elvas,  n.°  2o5). 


DO  POVO  PORTUGUÊS  S5 

Cupido  subiu  ao  monte, 
Fazendo  grilhões  de  prata, 
Para  prender  todo  aquelle 
Que  tem  paixão  por  mulata. 

Cupido,  Cupido,  aquieta, 
Não  esperdices  tua  prata, 
Que  é  de  bem  que  não  se  prenda 
Quem  tem  paixão  por  mulata. 

Na  eschola  de  Cupido 
Eu  fui  o  decurião  : 
Aprendi  mais  que  Cupido, 
Vejam  lá  si  sei  ou  não.  (i) 

Estrellinhas  meudinhas, 
Escadinhas  de  Cupido, 
Ou  matae-me  aquelle  ingrato, 
Ou  tirae-m'o  do  sentido.  (2) 

Cupido,  por  ser  lettrado, 
Aprendeu  a  cravador: 
Elle  cravou  diamantes 
No  peito  do  seu  amor,  (3) 

Eu  vi  Cupido  montado 
No  seu  cavallo  picaço, 
De  bolas  e  tirador, 
Faca,  rebenque  e  laço.  (4) 


(i)  Cant.  pop.  do  Brapl  (i883),  I,  207. 

(2)  Ib.,  ib.,  221. 

(3)  Ib.,  II,  9. 

(4)  Ib.,  ib.,  33. 


86  POESIA  AMOROSA 


Cupido  subiu  ao  throno, 

Descalço,  pisando  em  flores, 

Dizendo  :  —  viva  quem  amo 

Morra  quem  não  tem  amor  (amores),  (i) 

Cupido,  o  rei  dos  amantes 
Monarcha  mui  atrevido, 
Na  serra  do  infernilho 
Fez  corcoviar  um  novilho  (2). 

Eu  também  tenho  colhido  directamente  na 
tradição  popular  algumas  cantigas  em  que  se 
falia  de  Cupido.  Veja-se  ainda  zMiscellanea 
folklorica  de  A.  Th.  Pires,  (in  Elvensé)^  XXV, 
—  Conceito  popular  de  Cupido,  onde  se  reúnem 
14  canções  em  honra  do  «rei  dos  amantes». 

Todos  estes  factos  provam  bem  contra  o 
asserto  do  Sr.  Palmeirim.  Com  quanto  não 
haja  dados  para  poder  filiar  directamente,  sem 
interrupção,  a  tradição  moderna  de  Cupido 
na  Mythologia  pagã,  todavia  não  se  deve 
negar  que  Cupido  gosa  de  grande  popula- 
ridade na  poesia  amorosa.  Essa  populari- 
dade deduz-se  ainda  de  que  o  nosso  po- 
vo identificou  Cupido  com  a  vida  real : 
chama-lhe  mestre,  e  falia  por  vezes  na  sua  es- 
cola, dá-lhe  um  tribunal,  e  um  throno,  trata-o 
familiarmente  por  quartel-mestre  (3)  e  cravador, 

(\)  Ib.,  ib.,  48. 
{2)  Ib.  ib.,  64. 

(3)  Numa  canção  alemtejana.  Ella  foi  certamente  reco- 
lhida em  Elvas  (residência  do  sr.  A.  Th.  Pires),  praça  d'ar- 


DO  POVO  PORTUGUÊS  87 

e  falia  com  graça  no  seu  camiavial,  como  um 
poeta  clássico  faria,  pinta-o  com  asas,  a  pren- 
der os  homens  com  grilhões  de  prata,  e  con- 
sidera-o  como  rei  dos  amantes,  ou  deitadinho 
pelo  chão  a  chorar  com  uma  grande  paixão  de 
amor. 

Percorrendo  as  collecções  estrangeiras,  en- 
contramos ainda  lá  o  deus  do  amor: 

Cupido,  como  nino 
Se  lamentaba: 

Y  Vénus  como  diosa, 
Le  consolaba. 
Hazlo  conmigo, 

Y  tu  serás  lá  diosa 

Y  yo  Cupido  (i). 

Cupidillo  no  gastes 

Chanzas  conmigo, 

Que  si  no  tengo  amores 

Los  he  tenido; 

Conmigo  chanzas, 

Que  si  no  tengo  amores, 

Tengo  esperanzas  (2). 

Cupido  me  ensenó  á  amar 
Yo  como  nino  aprendi ; 
Cupido  fué  mi  maestro, 
Yo  su  discípulo  fui  (3). 

mas  onde  a  vida  militar  se  reflecte  a  cada  passo  nas  tradi- 
ções populares. 

(i)  F.  Rodriguez  Marin,  Caní.  pop,  esp.,  II,  n."  1867. 

(2)  Id.,  ib.,  n.o  1868. 

(3)  n.o  2189. 


88  POESIA  AMOROSA 


En  la  escuda  de  Cupido 
Tengo  de  tomar  leccion, 
Por  ver  si  encontro  en  el  mundo, 
Quién  te  quiéra  más  que  yo.  (i) 

Dices  que  no  te  tengo 
Mucho  carino; 
Preguntarselo  puedes, 
Al  Dios  Cupido. 
Porque  sin  duda 
Dirdme  hirió  con  flecha, 
La  màs  aguda.  (2) 

No  vayas  á  la  tienda 

Del  Dios  Cupido; 

Que  por  cualquier  deleite 

Lleva  un  sentido. 

Vé  con  cautela, 

No  cambies  los  sentidos 

Por  bagatelas.  (3) 


Numa  d'esses  cantigas  falla-se  também  da 
eschola  como  numa  das  nossas;  a  influencia 
erudita  é  porém  mais  clara  nas  hispanholas  do 
que  nas  portuguesas,  porque  naquellas  entra 
também  Vénus,  dá-se  a  Cupido  o  nome  de 
dios,  representam-no  com  flechas,  etc. 

Em  canções  populares  italianas  acho  tam- 
bém (dialecto  de  Roma): 


1 


(i)  n.o  2191. 

(2)  n.o  2396. 

(3)  n.o  5982  (vol.  IV).  I 


DO  POVO  PORTUGUÊS  89 

Pò'  té  mannò  da  Cupid'  a  'mpáràne 
E  r  imparássi  li  versi  d'amore; 
Qudnno  commincia'ssi  a  ccompitáne 
Venissi,  bbélla,  e  m'  arubbàssi  ér  còr.  (i) 

Nestes  versos  apparece  ainda  a  ideia  da  es- 
cola, revelada  nas  palavras  imparam  (apren- 
der) e  ccompitáne  (soletrar). 

Noutra  canção  lê-se: 

L'  amór  é  ccièco  e  nun  cé  vede  lume, 

verso  com  que  o  coUector  compara  uma 
phrase  que  se  encontra  num  ms.  do  sec.  XVII 
Uamore  è  cieco  e  non  conosce  íume  (2). 

Se  a  tradição  de  Cupido  remontasse  no  nos- 
so povo  ao  paganismo,  havia  de  haver  allu- 
sões  a  ella  noutras  partes  (em  superstições, 
etc.),e  o  nome  devia  ter  outra  forma;  como  elle 
só  apparece  na  poesia,  eu  concluo  que  tem  ori- 
gem erudita  mais  moderna,  embora  não  muito 
próxima  de  nós. 

Mas  volto  ao  artigo  do  Sr.  Palmeirim. 

Este  A.  não  se  propôs  tratar  o  assumpto 
scientificamente,  e  quis  apenas  tratá-lo  como  ar- 
tista, num  simples  devaneio  litterario;  claro 
está  por  tanto  que  a  minha  crítica  não  deve 
ser  muito  exigente. 

(i)  Sabatini,   Saggio  di  cant.  popol.  romani,  Roma 
1878,  p.  27. 
(2)  Id.,  ib.,  ib. 


90  POESIA  AMOROSA 


b)  Historia  da  poesia  popular  portuguesa,  por 
Theophilo  Braga,  Porto  1867,  221  pag.  A 
apreciação  de  todo  o  volume  não  é  trabalho 
para  uma  simples  nota  como  esta,  tanto  mais 
que  o  livro,  por  causa  da  sua  data,  está  evi- 
dentemente hoje  atrasado.  No  meio  de  muitas 
affirmações  phantasiosas,  e  apesar  da  pouca 
ordem  das  matérias,  ha  porém  bastantes 
observações  finas  no  decurso  da  obra,  e  no- 
ta-se,  da  parte  do  auctor,  certo  sentimento 
poético  que  quadra  bem  com  o  assumpto  (i). 
Podem  ver-se  outros  estudos  syntheticos 
do  sr.  Th.  Braga  nos  prólogos  que  tem  feito, 
quer  a  livros  seus,  quer  aos  de  outros,  como 
os  Cantos  pop.  do  Brazil,  de  Silvio  Romero,  e  o 
Cancioneiro  pop.  gallego,  de  Ballesteros;  cfr. 
ainda  O  povo  português  do  mesmo  auctor,  vol. 
I  e  II  em  vários  logares.  No  Parnaso  Port.  mod. 
do  mesmo  A.  ha  pequenas  coUecçÕes  de  poe- 
sias populares  gallegas,  ás  quaes  elle  consa- 
gra na  introducção  da  obra  algumas  paginas. 

c)  A  poesia  popular  no  Braiil  por  Silvio  Ro- 
mero (in  Revista  Bra^ileira.^  vol.  i,  11,  iii,  v,  vi 
e  vii).  Como  o  titulo  indica,  o  trabalho  refe- 
re-se  particularmente  á  tradição  brazileira,  e 
por  tanto  sae,  em  parte,  fora  do  meu  plano. 
Eis  os  titulos  dos  capítulos:  /  Caracter  dapoe- 

(i)  Sobre  a  Hist.  da  poesia  pop.  port.^  de  Th.  Braga, 
vid.  uma  critica  de  Oliveira  Martins,  in  ^ev.  critica  de 
liUerat.  moderna,  n.°  2,  Lisboa  1869. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  9I 

sia popular'  brasileira,  o  povo,  seus  costumes  e  fes- 
tas, suas  cantigas  e  historias ;  II  Philosophia  de 
'Buckie  e  o  atraso  do  povo  brasileiro;  III-V  Ana- 
lyse  dos  escriptores  nacionaes  que  trataram  da 
poesia  popular  do  Brasil,  —  onde  o  A.  se  refere 
com  especial  individualização  a  Celso  de  Ma- 
galhães, José  de  Alencar  e  Carlos  Koseritz; 
VI  As  miilhei^es  e  creanças  como  factores  da  poe- 
sia popular,  as  sandes  da  mesa;  VII  Origens; 
VIII  Transformações  da  lingiia  portuguesa  na 
Qámeiica;  IX  As  modinhas  e  lunduns,  littera- 

TURA  DE  CORDEL,   O   PEREGRINO  DA  AmERICA,   O   Cy- 

clo  provável  dos  Bandeirantes;  X Falta  de  ca- 
racter^ ethnico  original.  —  O  sr.  Silvio  Romero 
é  um  critico  enérgico,  investigador  diligente, 
e  deseja  seguir  o  bom  caminho;  comtudo,  ás 
vezes  arrebata-se  e  cae  em  exaggeros  filhos 
da  precipitação,  ou  da  sua  natureza  de  fogo. 
Terei  muitas  occasiões  de  analysar  algumas 
das  ide'as  expendidas  nestes  artigos. 

Entendi  que  devia  fazer  todas  essas  obser- 
vações bibliographicas,  já  porque  hoje  não 
existe  sciencia  sem  critica,  já  porque  o  leitor 
fica  assim  melhor  orientado :  em  tudo  quanto 
se  escreve,  deve  haver  a  máxima  cautella  em 
não  propagar  noções  erradas.  E  certo  que  não 
existe  ninguém  infallivel ;  mas  empregue  cada 
um  os  máximos  esforços  por  acertar,  que  terá 
cumprido  a  sua  obrigação. 


92  POESIA   AMOROSA 


Além  do  que  ahi  fica  apontado,  como  col- 
lecções  ou  trabalhos  especiaes,  —  podem  ain- 
da encontrar-se  muitas  cantigas  populares  por- 
tuguesas, tanto  nas  revistas  do  género,  nacio- 
naes  e  estrangeiras  (Rev.  de  etimologia  e  de  glot- 
tologia,  Annuario  das  tradições  populares  por- 
tuguesas, Revista  do  oMinho,  Revista  Lusitana, 
Archivio  delle  tradiíioni  popolari,  El  folk-lore 
betico- extremem,  etc),  como  nos  próprios  jor- 
naes  litterarios  e  politicos  do  país  ou  do  Bra- 
zil,  por  ex.  diário  Illustrado,  Commercio  portu- 
guês, Jornal  da  Manhã,  Aurora  do  Capado^ 
Gaveta  Litteraria  do  Rio  de  Janeiro,  etc.  Tem 
sido  mesmo  moda  ultimamente  publicar  can- 
ções populares  nas  folhas  periódicas  (i). 

O  estudo  scientifico  do  cancioneiro  popu- 
lar do  nosso  país  está  pois  definitivamente 
inaugurado.  Oxalá  que  o  modesto  volume  que 
hoje  sae  á  luz  possa  contribuir  de  algum  mo- 
do para  o  progresso  d'elle! 


(i)  Como  appenso  ao  estudo  da  poesia  popular  portu- 
guesa, podia-se  tractar  da  gallega,  pois  que  os  gallegos  são 
o  mesmo  povo  que  nós,  ethnica  e  linguisticamente;  mas, 
como  já  disse  a  respeito  da  poesia  brazileira,  isso  sahia 
um  pouco  fora  do  meu  plano  primitivo.  Sobre  a  Galliza 
cfr.  porém  supra,  a  pag.  90, 


SEGUNDA  PARTE 


Collecção  selecta  de  poesias  de  amor 


Não  canto  por  bem  cantar. 
Nem  por  ter  falias  de  amante: 
Canto  só  para  dar  gosto 
A  quem  me  pede  que  eu  cante. 

Não  canto  por  bem  cantar, 
Nem  por  bem  cantar  o  digo: 
Só  canto  para  alliviar 
Penas  que  trago  comigo. 

O  cantar  é  dom  dos  anjos; 
O  bailar,  dos  namorados; 
A  alegria,  dos  solteiros; 
A  tristeza,  dos  casados. 

O  cantar  é  para  os  tristes, 
Quem  o  pôde  duvidar? 
Quantas  vezes  cantarei 
Com  vontade  de  chorar. 


94  POESIA  AMOROSA 


Quem  canta^  seu  mal  espanta, 
Quem  chora,  mais  o  augmenta 
Eu  canto  por  espalhar 
A  paixão  que  me  atormenta. 

Quem  canta  seu  mal  espanta. 
Quem  murmura,  penas  tem: 
Vale  mais  andar  cantando, 
Que  murmurar  de  ninguém. 


Janella  sobre  janella, 
Janella  rente  no  chão ; 
Tanta  menina  bonita. 
Nenhuma  na  minha  mão  ! 

A  rosa,  para  ser  rosa. 
Deve  ser  d'Alexandria ; 
A  mulher,  p'ra  ser  mulher, 
Deve-se  chamar  Maria. 

Maria,  minha  Maria, 
Meu  rosário,  meu  botão, 
Meu  oratório  de  vidro 
Aonde  eu  faço  oração. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  95 

Maria,  minha  Maria, 
Tu  és  o  meu  ai-Jesus  ; 
Nos  dias  que  te  não  vejo, 
Nem  o  sol  me  quer  dar  luz. 

Meu  coração  é  relógio, 
Meu  peito  dá  badaladas : 
Nos  dias  que  eu  te  não  vejo, 
Trago-te  as  horas  contadas. 

Manuel,  tão  lindas  moças. . . 
Manuel,  tão  lindas  são. . . 
Quero-te  bem,  Manuel, 
Da  raiz  do  coração. 

O  meu  amor  é  um  anjo, 
Deu-m'o  Deus  e  eu  não  no  mVeço: 
Todos  m'o  querem  comprar. . . 
Anjos  do  ceu  não  tem  preço. 

O  meu  amor  é  da  rua, 
Cá  fora  ninguém  o  sabe : 
Tem  o  andar  meudinho. 
Tem  o  passear  tão  grave. . . 

O  meu  amor  é  da  rua, 
Eu  no  andar  o  conheço: 
Tem  o  andar  meudinho. 
Como  a  folha  do  codêco. 


96  POESIA  AMOROSA 


Oh  que  rua  tão  escura, 
Não  vejo  nada  por  ella: 
Bem  puderas  tu,  menina, 
Pôr  candeias  á  janella. .  ♦ 

Pus-me  a  contar  as  estrellas, 
Só  a  do  Norte  deixei, 
E  por  ser  a  mais  bonita 
Eu  comtigo  a  comparei. 

Oh  minha  estrella  do  Norte, 
Agulha  de  marear, 
Eu  por  ella  me  governo, 
Quando  te  quero  fallar. 

Oh  luar  da  meia-noite. 
Tu  és  o  meu  inimigo: 
Stou  á  porta  de  quem  amo, 
E  não  posso  entrar  comtigo. 

Menina  do  amarello, 
Diga-me  quanto  custou, 
Que  me  quero  vestir  d'elle. 
Já  que  tanto  me  agradou. 

A  amar  e  a  escolher  amante 
Ensinou-me  quem  podia: 
A  amar  foi  a  natureza, 
A  escolher,  a  sympathia. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  (jy 

Que  lindo  botão  de  rosa 
Aquella  roseira  tem! 
De  baixo  ninguém  lhe  chega, 
Lá  cima  não  vae  ninguém. 

Bem  sei  que  sou  atrevido, 
E  de  atrevido  passei. 
Em  deitar  os  meus  sentidos 
Tão  alto  como  deitei. 

Assubi  á  amendoeira. 
Toda  me  enchi  de  flores  : 
Ainda  sou  tão  novinha. 
Já  me  pretendem  d'amores! 

Quem  diz  que  o  amar  enfada. 
De  certo  que  nunca  amou: 
Eu  amei  e  fui  amado. 
Nunca  o  amar  me  enfadou. 

A  perpétua,  se  cheirasse, 
Era  a  rainha  das  flores : 
Mas  a  perpétua  não  cheira, 
Por  isso  não  tem  amores. 

Eu  queria  ser  ourives. 
Do  oiro  que  vem  de  fora ; 
Queria  doirar  os  dedos 
Ao  tocador  da  viola. 


POESIA    AMOROSA 


C)8  POESIA  AMOROSA 


Uma  silva  me  prendeu, 
Uma  silva  pequenina : 
Não  ha  coisa  que  mais  prenda 
Que  os  olhos  de  uma  menina. 

Silva  verde,  não  me  prendas, 
Olha  que  me  não  seguras, 
Olha  que  eu  tenho  quebrado 
Outras  algemas  mais  duras. 

Os  teus  olhos  me  prenderam 
Logo  da  primeira  vista : 
Quem  tem  olhinhos  que  prendem, 
De  casa  tem  a  justiça. 

Meu  amor,  se  te  prenderem, 
Deixa-te  dar  á  prisão : 
O  annel  que  tu  me  deste 
Será  a  tua  livraçao. 

Tendes  dois  olhos  na  cara, 
Que  parecem  dois  ladrões : 
EUes  andam  pelo  mundo 
Para  roubar  corações. 

Tendes  os  olhinhos  pretos, 
Inda  agora  reparei : 
Se  reparasse  ha  mais  tempo, 
Não  amava  a  quem  amei. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  99 

Tu  tens  os  olhinhos  pretos, 
Como  o  retroz  de  cozer. 
Nascemos  um  para   o  outro... 
Que  lhe  havemos  de  fazer? 

Delicado  é  o  fumo 
Que  passa  a  telha  dobrada; 
Delicados  são  teus  olhos, 
Que  namoram  por  pancada. 

O  coração  e  os  olhos 
São  dois  amantes  leaes  : 
Quando  o  coração  tem  pena, 
Logo  os  olhos  dão  signaes. 

Olhos,  que  de  ver  se  entendem. 
Devem  de  andar  amestrados  : 
Deram  tempo  ao  officio. 
Ou  nasceram  ensinados. 

Costumei  tanto  os  meus  olhos 
A  namorarem  os  teus. 
Que,  de  tanto  confundidos. 
Nem  já  sei  quaes  são  os  meus. 

Ó  senhor  juiz-de-fóra, 
Ponha  justiça  na  terra, 
Prenda-me    aquelles  dois   olhos, 
Que  estão  àquella  janélla. 


100  POESIA  AMOROSA 

Eu  fui  O  que  disse  ao  sol 
Que  não  tornasse  a  nascer: 
A  vista  d'esses  teus  olhos 
Que  vem  o  sol  cá  fazer  ? 

Tendes  um  lindo  cabello 
Pelas  costas  ao  comprido: 
Parecem-me  fios  de  ouro 
Ao  martello  rebatido. 

O  teu  cabello,  menina, 
Mette-te  infinita  graça: 
Parece  meadas  de  ouro 
Adonde  o  sol  se  embaraça. 

Já  não  tenho  coração, 
Já  m'o  tiraram  do  peito: 
Onde  eu  tinha  o  coração, 
Nasceu-me  um  amor-perfeito. 

O  meu  amor  da  minha  alma, 
Quanto  tenho  tudo  é  teu, 
Só  a  minha  alma  não, 
Que  hei-de  dá-la  a  quem  m'a  deu. 

Pedrinhas  da  minha  rua, 
Hei-de-vos  mandar  picar 
Com  biquinhos  de  alfinetes 
Para  o  meu  amor  passar. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  lOI 

VÓS,  menina^  sois  a  neve, 
Vosso  pae  é  o  calor: 
Vosso  pae  derrete  a  neve, 
Vós  derreteis  o  amor. 

Hei-de-te  amar  tantos  annos, 
Gomo  folhas  tem  o  vime: 
Quero  ver  em  tantos  annos 
Qual  de  nós  será  mais  firme. 

As  telhas  do  teu  telhado, 
As  pedras  do  teu  balcão. 
Essas  te  podem  dizer 
Se  te  sou  leal  ou  não. 

Déste-me  alecrim  por  prenda, 
Por  ter  a  folha  meuda: 
Quiseste-me  exprimentar.  . . 
Amor  firme  não  se  muda. 

Amar  e  saber  amar, 
Qualquer  amante  faz  isso; 
Amar-te  com  lealdade. 
Só  eu  nasci  para  isso. 

Debaixo  da  madre  silva 
Anda  o  meu  bem  encoberto: 
Anda  o  mundo  suspeitoso, 
Ninguém  o  sabe  de  certo. 


02  POESIA  AMOROSA 


Aperta-me  a  minha  mão, 
Que  é  um  signal  encoberto: 
Antes  que  (i)  o  mundo  murmure, 
Ninguém  o  sabe  de  certo. 

Debaixo  da  malva  roxa 
Tenho  um  segredo  escondido: 
Todos  sabem  que  eu  namoro, 
Ninguém  sabe  o  meu  sentido. 

Coitadinho  de  quem  tem 
Seus  amores  em  segredo: 
Passa  por  elles  na  rua, 
Não  lhe  falia,  que  tem  medo. 

Debaixo  da  ponte  nasce 
Agua  clara  sem  lodo: 
Sempre  é  muito  adivinhar 
O  amor  por  quem  eu  morro! 

Fiz  a  cama  no  loureiro, 
Cuidando  que  era  calado: 
Loureiro  é  chocalheiro. 
Tudo  traz  assoalhado. 


(i)  =  Ainda  que. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  IO3 

Minha  maça  vermelhinha 
Navega,  não  vae  ao  fundo: 
Inda  que  eu  queira,  não  posso. 
Tapar  as  bocas  ao  mundo. 

Debaixo  das  frias  ondas 
Cança  o  peixe  de  nadar; 
Só  eu  não  canço,  menina, 
De  te  querer  e  adorar. 

Amor  com  amor  se  paga, 
Nunca  vi  coisa  mais  justa: 
Paga-me  comtigo  mesma, 
Meu  amor,  pouco  te  custa. 

Amor  com  amor  se  paga, 
Porque  não  pagas,  amor? 
Olha  que  Deus  não  perdoa 
A  quem  é  mau  pagador. 

Vem  cá  tu,  meu  cravo  branco. 
Tão  branquinho  como  a  neve: 
De  Deus  será  castigado 
Quem  não  pagar  o  que  deve. 

Quando  te  eu  vi,  logo  disse: 
—  Lindos  olhos  para  amar! 
Que  linda  boca  p'ra  beijos! 
Oh  quem  t'os  pude'ra  dar! 


104  POESIA  AMOROSA 


Dá-me  um  beijo,  dou-te  dois, 
Dou-te  assim  paga  dobrada: 
E  stylo  de  quem  namora 
Não  ficar  a  dever  a  nada. 

Quem  me  dera  ser  ditoso 
Como  o  linho  que  fiaes ! 
Quem  me   dera  esses   beijinhos 
Como  vós  no  Hnho  daes ! 

Dá-me  da  pêra  a  perada, 
Da  maçã  um  bocadinho. 
Da  laranja  só  um  gomo, 
Da  tua  boca  um  beijinho. 

Menina  que  está  á  janella. 
Quisera  ser  o  seu  leito, 
Só  para  a  ver  debruçada, 
No  peitoril  do  meu  peito. 

Fui  ao  jardim  do  teu  peito 
Para  colher  uma  flor: 
Não  achei  amor-perfeito, 
Mas  achei  perfeito  amor. 

As  estrellas  do  ceu  correm 
Todas- numa  carreirinha: 
Assim  corre  o  meu  amor 
Da  tua  porta  p'rá  minha. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  IO5 

Ferros  de  el-rei  (i)  são  prisões, 
Mas  o  amor  é  mais  forte: 
Para  os  ferros  inda  ha  lima. 
Para  o  amor  ha  só  a  morte. 

Cum  fio  de  retroz  verde 
Quero,  amor,  que  me  cosaes 
O  meu  coração  ao  vosso, 
Que  se  não  desate  mais. 

A  flor  da  malva  é  roxa, 
O  verde  lhe  dá  virtude: 
Eu  passei  por  ti  doente, 
Agora  levo  saúde. 

Quem  quer  bem,  dorme  na  rua, 
A'  porta  do  seu  amor: 
Das  pedras  faz  cabeceira, 
Das  estrellas  cobertor. 

Cortei  o  bico  á  rola, 
E  mais  a  espiga  ao  centeio. 
Quem  tem  seu  amor  bonito 
Ri-se  de  quem  o  tem  feio. 


(i)    É    expressão  antiga   para   designar  a   cadeia   ou 
prisão. 


06  POESIA  AMOROSA 


Tenho  dentro  do  meu  peito 
Um  escriptorio  de  vidro. 
Com  chaves  de  diamante 
Para  me  fechar  comtigo. 

Eu  já  morri  uma  vez. 
Achei  o  morrer  tão  doce. . . 
Inda  tornava  a  morrer. 
Se  por  tua  causa  fosse! 

Não  morras,  amor,  não  morras. 
Que  quem  morreu,  acabou! 
Eu  também  morro  por  ti, 
Olha  da  sorte  que  eu  sou. . . 

Oh  meu  amor,  quem  te  disse, 
Que  eu  a  dormir  suspirava? 
Quem  t'o  disse  não  mentiu. 
Que  eu  alguns  suspiros  dava. . . 

Já  passei  o  mar  a  nado 
Nas  ondas  do  teu  cabello: 
Agora  posso  dizer 
Que  passei  o  mar  sem  medo. 

Fui  assentar-me  entre  as  nuvens, 
De  uma  estrella  fiz  encosto: 
Abracei-me  a  uma  d'ellas. 
Cuidando  que  era  o  teu  rosto. 


I 


DO  POVO   PORTUGUÊS  IO7 

Eu  quebrei  o  cantarinho 
A  porta  do  meu  amor: 
Mandou-me  apanhar  os  cacos 
E  tornou-o  a  compor. 

Não  ha  pão  como  o  pão  branco, 
Nem  carne  como  o  carneiro, 
Nem  vinho  como  o  maduro, 
Nem  amor  como  o  primeiro. 

O  cravo  branco  é  firme, 

Até  no  cheirar  é  doce: 

Não  ha  amor  como  o  primeiro, 

Inda  que  elle  vário  fosse! 

Não  ha  cravo  como  o  branco. 
Nem  verde  como  a  ortiga: 
Sempre  gosto  de  te  ver, 
Inda  que  nada  te  diga. 

Eu  não  sei  que  sympathia 
Meus  olhos  comtigo  tem... 
Quando  estou  á  tua  beira  (i) 
Não  me  lembra  mais  ninguém. 


(i)  A  tua  beira  por  ao  teu  lada.  Vulgar  no  Minho,  on- 
de esta  cantiga  foi  colhida. 


08  POESIA  AMOROSA 


O  serpão  nesse  teu  peito 
Enverdece  está  a  crescer: 
Também  eu  á  tua  vista, 
Me  sustento  sem  comer. 

Eu  queria-te  fallar, 
Mas  tenho  guardas  de  fronte, 
Que  me  trazem  em  vigia 
Gomo  o  coelho  no  monte. 

O  meu  coração  é  terra, 
Hei-de-o  mandar  lavrar, 
Para  semear  desejos 
Que  tenho  de  te  fallar. 

O.  meu  amor  me  disse  hoje 
Que  domingo  fallaremos; 
A  semana  tem  seis  dias, 
Mas  eu  inda  quero  menos. . . 

Amanhã  é  dia  santo, 
Hei-de  ir  á  missa  do  dia, 
Para  ver  o  meu  amor 
A'  porta  da  sacristia. 

Se  fores  domingo  á  missa, 
Põe-te  em  parte  onde  te  eu  veja. 
Não  faças  andar  meus  olhos 
Em  leilão  por  toda  a  igreja. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  IO9 

Adeus,  ó  rua  da  igreja, 
Tão  comprida  como  as  mais: 
No  meio  tem  altas  torres, 
D'onde  combatem  meus  ais. 

O  loureiro  é  páo  verde, 
Chega  ao  lume,  logo  estala: 
Assim  é  meu  coração. 
Quando  comtigo  não  falia. 

Fui  á  fonte  por  te  ver, 
Ao  rio  por  te  fallar: 
Nem  na  fonte,  nem  no  rio 
Nunca  te  pude  encontrar. 

Assubi  á  amendoeira, 

Pus  o  pé  na  estacaria: 

Ai!  Jesus,  que  estou  ausente 

De  um  bem  que  tanto  queria. 

Meu  amor  lá  de  tão  longe,  ' 
Chega-te  cá  para  perto. 
Que  me  doe  o  coração 
De  te  ver  nesse  deserto. 

O  meu  amor  lá  de  longe. 
Perde  um  dia  vem-me  ver : 
Qiiem  não  appai^ece,  esquece, 
Também  eu  posso  esquecer. 


no  POESIA  AMOROSA 

Vae-te,  carta  venturosa, 

Ver  um  bem  que  Deus  me  deu : 

Antes  tu,  carta,  ficaras, 
No  teu  logar  fora  eu ! 

Carta,  vae  onde  te  mando. 
Responde  e  sabe  fallar : 
Dize  que  viste  meus  olhos 
Maguados  de  chorar. 

O  meu  amor  de  tão  longe, 
Resolve-te,  vem-me  a  ver; 
As  cartas  não  valem  nada, 
Para  mim  que  não  sei  lêr. 

Ausência  tem  uma  filha 
Que  se  chama  .  . .  saudade: 
Eu  sustento  mãe  e  filha 
Bem  contra  a  minha  vontade. 

O  roxo  é  sentimento. 
Eu  só  sinto  não  te  ver: 
Sinto  mais  a  tua  ausência 
Que  a  hora  em  que  hei-de  morrer. 

Ao  tempo  que  te  não  vi. 
Já  o  caminho  tem  hervas : 
O  bem  que  tu  me  querias 
Tu   diz'-me  se  inda  o  conservas. 


DO   POVO  PORTUGUÊS  III 

Quatro  com  cinco  são  nove, 
Para  doze  faltam  três: 
Se  algum  dia  te  faltei, 
Aqui  me  tens  outra  vez. 

Meu  amor,  vieste  tarde, 
Não  te  estou  agradecido: 
Vieste  por  outra  banda, 
Tinhas-me  o  amor  perdido. 

Minha  mãe  mandou-me  á  herva, 
Eu  á  herva  não  hei-de  ir: 
O  lameiro  tem  buracos, 
Tenho  medo  de  cahir. 

Minha  mãe  mandou-me  á  herva, 
Eu  herva  não  sei  segar; 
Mandou-me  fallar  d'amores, 
Eu  d'amores  sei  fallar. 

Abre-te,  janella  d'ouro. 
Coração,  salta  cá  fora: 
Anda  ver  o  teu  amor, 
Que  chegou  aqui  agora. 

O  amor,  quando  se  encontra. 
Causa  penas,  e  dá  gosto: 
Sobresalta  o  coração. 
Sobem  as  cores  ao  rosto. 


I  12  POESIA  AMOROSA 

Fui  á  fonte  dos  amores. 
Passei  pela  dos  cuidados, 
Enchi  o  cantVo  de  rosas, 
Fiz  a  rodilha  de  cravos. 

Fui  á  fonte  dos  amores, 
Bebi,  tornei  a  beber: 
Stava  o  meu  amor  defronte, 
Regalei-me  de  o  ver. 

Entre  cannas  e  canninhas, 
Agua  deve  de  nascer: 
Menina,  que  está  na  fonte, 
Dê-me  agoa,  quero  beber. 

Minhas  idas,  minhas  vindas, 
Minhas  idas  ao  serão  (i): 
Foi  o  meu  tempo  perdido, 
Minhas  passadas  em  vão. 

Fostes  ao  Senhor  da  Serra, 
Nem  um  annel  me  trouxestes; 
Nem  os  mouros  da  Mourama 
Fazem  o  que  vós  fizestes. 


(i)  Nas  aldeias  do  Norte,  pelo  menos  nas  da  Beií-a- Alta, 
é  costume  em  certos  meses  do  Inverno  juntarem-se  as 
mulheres  á  noute  numa  saia  ou  loja  para  trabalharem  em 


DO    POVO  PORTUGUÊS 


113 


O  amor  é  um  regalo 
Para  quem  se  sabe  avir: 
Acceitar  e  não  dar  nada, 
Ser  liberal  no  pedir. 

O  sol  prometteu  á  lua 
Uma  fita  de  mil  cores: 
Quando  o  sol  promette  prendas, 
Que  fará  quem  tem  amores? 

O  annel  que  tu  me  de'ste, 
Quarta-feira  do  Senhor, 
Era'-me  largo  no  dedo, 
Apertadinho  no  amor. 

Meu  annel  das  sete  pedras, 
Salta  fora  do  meu  dedo, 
Que  tu  foste  o  causador. 
De  eu  tomar  amor's  tão  cedo! 

Minha  maçã  vermelhinha, 
Não  a  comi,  nem  a  dei: 
Tenho-a  na  minha  caixa. 
Com  ella  te  pagarei. 


commum,  á  luz  de  uma  candeia  paga  por  todas.  Chama-se 
a  isto  o  serão,  que  dura  em  geral  até  á  meia-noute.  E' 
ponto  obrigado  também  para  os  namorados. 

POESIA  AMOROSA  3 


14  POESIA  AMOROSA 


Vem  tu  cá,  esmalte  verde, 
Diamante  na  valia: 
Cada  vez  te  quero  mais, 
Isto  foi  feitiçaria. . . 

A  silva  nasce  da  silva, 
A  silva  nasce  do  chão: 
O  amor  nasce  da  alma, 
Da  raiz  do  coração. 

Da  palmeira  nasce  a  palma, 
A  palma  nasce  do  chão: 
O  querer-bem  nasce  da  alma, 
Quero-te  bem  do  coração. 

O  limão  talha  o  fastio, 
A  laranja  o  bem-querer. . . 
Tira  de  mim  o  sentido. 
Se  me  queres  ver  morrer. 

Já  te  quis  um  bem  tamanho. 
Com  outro  mais  pequeninho;(i) 
Quero-te  coma  (2)  mim  mesmo, 
Que  mais  queres,  meu  bemzinho? 


(i)  Esta  cantiga  foi  colhida  no  Entre-Douro  e-Minho, 
onde  o  deminutivo  de  pequeno  é  pequeninho. 

(2)  Coma  por  çomo  ç  forma  archaica,  ainda  hoje 
muito  popular. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  Il5 

Se  eu  te  não  quero  bem, 
Deus  do  ceu  me  não  escute; 
As  estrellas  me  não  vejam, 
A  terra  me  não  sepulte. 

Eu  não  perdia  o  meu  somno, 
Por  mais  amor's  que  tivesse.  . . 
Quem  tem  amor's,  não  dorme, 
Quem  os  não  tem,  adormece. 

Quem  tem  amores  não  dorme, 
Quem  não  dorme  está  acordado; 
Mas  se  dormir  é  não  tê-los, 
Deus  me  dê  somno  pesado. 

Dizem  que  o  amor  é  morte, 
Oh  quem  me  dera  morrer! 
Mais  vale  morrer  d'amores 
Do  que  sem  elles  viver. 

Até  os  peixes  no  mar, 
Aquelles  lá  mais  no  fundo. 
Também  tem  os  seus  amores 
Como  nós  cá  neste  mundo. 

Botei  o  limão  corrente, 
A'  tua  porta  parou: 
Quando  o  limão  te  quer  bem. 
Que  fará  quem  o  botou? 


Il6  POESIA  AMOROSA 

O  rouxinol  canta  alegre. 
Por  ter  a  dama  no  ninho. 
Olha  como  é  constante 
O  amor  de  um  passarinho! 

A  roseira  com  suas  rosas 
Toda  se  humilha  no  chão: 
Quando  a  roseira  se  humilha, 
Que  fará  meu  coração! 

Vós,  menina,  sois  a  arvore 
Onde  se  enxerta  o  amor: 
Quem  vae  tarde,  colhe  a  rama, 
Quem  vae  cedo,  colhe  a  flor. 

Assubi  á  oliveira, 
Colhi  flores  ao  desdém: 
A  todos  digo  que  morro. 
Só  a  ti  digo  por  quem. 

Eu  subi  ao  limoeiro, 
Colhi  uma  só  vergasta: 
O  amor  que  é  entendido, 
Meia  palavra  lhe  basta  (i). 


(i )  Cfr.  o  dito  vulgar:  para  bom  entendedor  meia  pala- 
vra basta. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  II7 

Não  te  lembras,  ó  menina, 
D'aquella  noite  de  verão? 
Tu  a  contar  as  estrellas, 
Eu  as  pedrinhas  do  chão. . . 

Meu  amor,  meu  amorzinho, 
Quem  te  atirara  mil  tiros, 
Cuma  pistola  de  prata, 
Carregada  de  suspiros! 

Esta  noite  cahiu  neve 
Numa  folhinha  de  couve: 
Oh  quem  me  dera  cahir 
Nos  braços  de  quem  me  ouvel 

O  amor  é  forte  e  não  quebra, 
O  rio  corre  e  não  cança: 
Quem  me  dera  adivinhar 
Se  me  trazes  na  lembrança  I 

Oh!  que  pinheiro  tão  alto, 
Que  tão  alto  comprimento! 
Quem  dera  que  os  braços  fossem 
Onde  vae  meu  pensamento! 

Debaixo  d'esta  ramada 
Nem  chove,  nem  faz  orvalho; 
Menina,  se  ha-de  ser  minha. 
Não  me  dê  tanto  trabalho. 


POESIA  AMOROSA 


Atira-te  d*ahi  abaixo, 
Que  eu  já  d'ahi  me  deitei: 
Aventura-te,  ó  menina, 
Gomo  eu  me  aventurei. 

A  folha  da  oliveira 
E  mais  comprida  que  estreita; 
Desengana  o  teu  amor, 
Não  o  tragas  em  suspeita. 

Atiraste-me  c'um  cravo, 
Cuma  folha  me  feriste; 
Viste-me  correr  o  sangue. 
Nem  por  isso  me  acudiste. . . 


Suspiros  e  ais  e  dores, 
Imaginações  e  cuidados. 
São  o  manjar  dos  amantes, 
Quando  andam  arrufados. 

Suspirando,  dando  ais. 
Anda  o  amor  pela  rua; 
Suspira  quanto  quiesres, 
Que  eu  nunca  hei-de  ser  tua! 


DO  POVO   PORTUGUÊS  II9 

O'  ingrata,  tu  já  dormes, 
Dormes  e  não  suspiras... 
Se  me  tu  quiseras  bem. 
Suspiraras,  não  dormiras. 

O  meu  amor,  a  quem  deste 
O  teu  lenço  de  pintinhas? 
Com  quem  foste  repartir 
O  amor  que  tu  me  tinhas? 

O  annel  que  tu  me  deste. 
Era  de  vidro,  quebrou-se: 
O  amor  que  tu  me  tinhas 
Era  pouco  e  acabou-se. 

Candeia  que  não  dá  luz, 
Não  se  espeta  na  parede: 
O  amor  que  não  é  firme, 
Não  se  faz  cabedal  d'elle. 

O  meu  amor  ^da  a  lanços. 
Anda  a  lanços^^.  cidade: 
Já  não  ha  quem  rínce  nelle 
Cinco  reis  de  lealdade. 

Coração  que  a  dois  ama, 
Com  elle  não  tenho  fé: 
O  teu  amor  é  partido, 
Mas  o  meu  inteiro  é. 


120  POESIA  AMOROSA 

Quem  tiver  dois  corações, 
Dê-me  um,  que  bem  o  emprega: 
Eu  tinha  só  um,  e  dei-o 
A  quem  agora  m'o  nega. 

O'  coração  retrahido, 
O'  cara  cheia  de  enganos, 
Olha  a  paga  que  me  deste 
De  te  eu  amar  tantos  annos! 

Desgraçado  é  quem  ama, 
Sem  primeiro  ser  amado! 
Fica  c'o  tempo  perdido, 
O  coração  magoado. 

Eu  corri  o  mar  á  roda, 
Cuma  vela  branca  accesa: 
Em  todo  o  mar  achei  fundo, 
Só  em  ti  pouca  firmeza! 

Todo  o  mar  alumiei 
Cuma  vela  branca  accesa: 
Em  todo  o  mar  achei  fundo 
Só  em  ti  pouca  firmeza  (i). 


( i)  Uma  variante  do  i.°  verso  c  como  se  viu  na  quadra 
anterior:  Eu  corri  o  mar  á  roda.  Convém  fazer  aqui 
uma  observação  importante.  Evidentemente  uma  vela  ac- 
cesa   a  correr    o  mar    é    extravagância,  mas   o    povo 


DO  POVO  PORTUGUÊS  121 

Já  O  mar  anda  de  luto, 
Também  as  embarcações: 
Já  se  não  pagam  amores 
Senão  com  ingratidões. 

A'  minha  porta  está  lama, 
A'  tua  está  um  lameiro: 
Quando  de  mim  fallares, 
Olha  para  ti  primeiro. 

Eu  culpada,  tu  culpado. 
Venham  as  culpas  á  mesa. 
Eu  culpada  por  ser  firme. 
Tu  pela  pouca  firmeza. 

Agua,  sustém-te  nos  valles, 
Não  sejas  tão  corredia: 
Jã  não  ha  amores  leaes 
Gomo  noutro  tempo  havia. 

A  canna  verde  no  mar, 
A  canna  verde  na  areia.  . . 
Sou  leal  a  todo  o  mundo, 
Todo  o  mundo  me  falseia. 


foi  levado  a  ella  em  virtude  da  perda  do  sentido  primordial 
de  yela  de  embarcação  que  foi  confundida  phoneticamen- 
te  com  vela  combustivel;  perdida  assim  a  significação,  o 
phantasioso  povo  caminhou  mais  longe  ainda,  alargando 


122  POESIA  AMOROSA 

Os  presos  contam  as  horas, 
Os  degradados  os  annos: 
Como  não  contarei  eu, 
Menina. . .  os  teus  enganos? 

Hei- de  fazer  um  vestido 
De  malva  roxa  do  chão, 
Para  ver  se  te  resolvo, 
O'  ingrato  coração. 

Torno  de  novo  a  queixar-me. 
Meus  ais  não  fazem  effeito: 
Podem  abrandar  as  rochas, 
Mas  não  abrandam  teu  peito. 

Eu  hei-de  amar  uma  pedra, 
Deixar  o  teu  coração  . . . 
Se  uma  pedra  não  me  deixa, 
Deixas-me  tu  sem  razão! 

Loureiro,  verde  loureiro, 
Vós  que  daes  a  baga  branca. 
Não  posso  mostrar  carinhos 
A  quem  me  mostra  carranca. 


a  sua  ideia,  porque  o  poeta  agora  não  se  contenta  só  em 
correr  o  mar,  mas  alumia-o  também.  Provavelmente  na 
forma  primitiva  da  cantiga  entrava  a  vela  branca  apenas, 
sem  mais  acessórios  que  a  fizessem  assimilar  á  luz. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  I 23 

Bem  tolo  é  quem  se  mata, 
Quem  por  amor  se  empenha, 
Sem  primeiro  reparar 
Em  que  matto  corta  a  lenha. 

Hei-de-te  vir  a  deixar 
Onde  o  rio  faz  a  volta: 
O  amor  que  não  é  firme, 
Deixá-lo!  pouco  me  importa. 

Arriguei(i)o  rosmaninho, 
Arriguei,  está  arrigado: 
Tira  de  mim  o  sentido, 
Que  eu  em  ti  já  o  não  trago. 

Tu  cuidavas  em  me  eu  rir 
Que  já  me  tinhas  na  mão: 
Eu  não  sou  tão  rabaceira 
Que  coma  a  fructa  do  chão! 

Altas  torres  tem  teu  peito, 
Nas  mais  altas  já  me  eu  vi* 
Não  se  me  dá  que  outrem  suba 
Escadas  que  eu  já  desci. 


(i)  =  oArranquei. 


124  POESIA  AMOROSA 

A  madre-silva  é  cheirosa,, 
Amargosa  na  raiz : 
Não  te  gabes  que  me  deixas. 
Pois  fui  eu  que  te  não  quis. 

Nem  tanto  estar  á  janella, 
Nem  tanto  olhar  para  o  chão; 
Nem  tanto  tirar  o  lenço 
Da  algibeira  para  a  mão. 

Cuidavas,  por  me  deixares, 
Que  eu  de  paixão  morreria : 
Foi-se  um  amor,  ficou  outro, 
Vivo  na  mesma  alegria. 

Cuidavas  por  me  deixares, 
Que  por  ti  deitava  dó: 
Bem  fraco  é  o  navio 
Que  tem  uma  amarra  só. 

Cuidavas,  por  me  deixares, 
Que  eu  cortava  o  meu  cabello:  (i ) 
Mas  cada  vez  mais  penteada 
Me  hei-de  vestir  de  vermelho.  (2) 


(1)  Ha  aqui  demonstração  de  lucto.] 

(2)  Este  verso  está  nos  meus  mss.  com  a  forma 

Hei -de  vestir-me  de  vermelho  ; 


DO   POVO  PORTUGUÊS  125 

Aquella  menina  pensa 
Que  não  ha  outra  no  mundo. 
Não  é  o  poço  tão  alto, 
Que  se  lhe  não  ache  fundo. 

Hei-de  amar  o  junco  verde, 
Em  quanto  tiver  verdura: 
Mas  o  teu  coração  não, 
Inda  não  fiz  escriptura. 

Já  cortei  o  meu  cabello. 
Já  lá  vai  a  minha  gala: 
A  culpa  tive-a  eu, 
Dar  ouvidos  a  quem  falia. 


O  amor  é  grande  mal. 
Não  amar  é  mal  maior; 
Mas  amar  sem  ser  amado 
É  dos  males  o  peor. 


mas  emendei-o  assim  por  me  parecer  que  ficava  mais 
em  harmonia  com  a  linguagem  corrente,  e  alem  d'isso  me- 
tricamente  certo. 


126  POESIA   AMOROSA 

Por  te  amar  deixei  a  Deus, 
Vê  lá  que  gloria  perdi! 
Agora  vejo-me  só, 
Sem  Deus,  sem  gloria,  sem  ti! 

Se  eu  tivera  que  dar,  dera*, 
Não  tenho  que  dar,  acceito: 
Acceito  penas  e  dores 
Causados  por  teu  respeito. 

O  jasmim  cahiu  do  ceu, 
.    Quebrou  o  pé  á  açucena. 
Não  ha  gosto  sem  desgosto, 
Que  logo  não  cause  pena. 

Abre-te,  janella  d'ouro, 
Da  mais  íina  pedraria: 
Tu  fostes  a  causadora 
De  eu  padecer  algum  dia. 

Assubi  ao  limoeiro. 
Cheguei  ao  meio,  cahi; 
Dizem  que  o  limoeiro  é  morte, 
Eu  para  morrer  nasci. 

Hei-de  subir  ao  loureiro, 
E  de  lá  hei-de  clamar 
Que  me  fugiu  a  ventura 
Na  maior  força  d'amar. 


DO  POVO  PORTUGUÊS 


Ondas  do  mar  abrandae, 
Que  eu  quero  pescar  um   peixe, 
Eu  quero  deixar  o  mundo 
Antes  que  o  mundo  me  deixe. 

Meu  lenço  de  cercadura, 
Hei-de-te  pisar  aos  pés; 
Antes  que  saiba  que  morro,  (i) 
Hei-de  saber  quem  tu  és. 

Meu  lenço  de  cercadura, 
Toda  me  vejo  cercada: 
Só  da  vista  dos  teus  olhos 
Me  vejo  desamparada. 

Meu  lenço  de  cercadura, 
Todo  aos  ramos,  aos  ramos: 
A  maior  pena  que  tenho. 
Não  o  rompermos  nós  ambos.  (2) 


(1)  Neste  verso  a  expressão  autcs  que  está  em  vez  de 
aÍ7ída  que,  como  é  frequentíssimo  no  fallar  popular. 

(2)  A  rima  nesta  quadra  é,  como  se  vê,  toante;  toda- 
via a  palavra  ambos  em  linguagem  rápida  e  desaffectada. 
e  com  especialidade  numa  phrase  em  que  í7;;ií?osseja  pro- 
clitica,  pôde  pronunciar-se  at7ios,  c  então  a  rima  ficaria 
consoante. 


128  POESIA  AMOROSA 


O  tempo  que  te  eu  amei 
Melhor  fora  estar  doente. . . 
Tempo  tão  mal  empregado, 
Dado  de  tão  boa  mente! 

O  altos  montes,  ouvi-me, 
Tende  de  mim  piedade: 
Roubaram-me  o  meu  amor 
Na  flor' da  minha  idade! 

Quem  me  quer  vender,  que  eu  compro, 
Um  limão  por  um  vintém. 
Para  tirar  uma  nódoa 
Que  o  meu  coração  tem? 

Quando  eu  aqui  cheguei, 
Dei  um  ai,  tremeu  a  terra, 
Recolheram-se  as  estrellas, 
Sahiu  o  sol  á  janella! 

Já  lá  vae  o  sol  abaixo. 
Já  não  nasce  onde  nascia: 
Já  não  dou  as  minhas  falias 
A  quem  as  dava  algum  dia. 

Já  não  sou  quem  d'antes  era, 
Nem  quem  d'antes  se  dizia: 
Já  quebraram  as  vidraças 
Do  espelho  d'onde  eu  me  via. 


DO   POVO   PORTUGUÊS  I 29 

Fui  ao  jardim  do  teu  peito. 
Achei  o  jardim  fechado; 
O  jardim  também  se  fecha 
Para  quem  é  desgraçado ! 

Quando  o  rouxinol  padece, 
Uma  ave  tão  pequena, 
Que  fará  meu  coração 
Mettido  em  tanta  pena!  (i) 

D'aqui  d'onde  estou  bem  vejo 
Olhos  que  me  estão  matando: 
Matae-me  de  vagarinho, 
Que  eu  quero  morrer  penando. 

Tenho  o  meu  coração  triste, 
Sempre  prompto  p'ra  chorar, 
Só  por  não  saber  a  sorte 
Que  Deus  tem  para  me  dar. 

Fechei    a  porta  á  desgraça, 
Entrou-me  pela  janella: 
Quem  nasce  com  má  sorte. 
Não  pôde  fugir  a  ella. 


(i)  Aqui  ha  um  trocadilho  entre  pena,  sentimento,  e  as 
pennas  do  rouxinol. 

POESIA  AMOROSA  Q 


130  POESIA  AMOROSA 


Eu  sou  sol  e  tu  és  sombra, 
Qual  de  nós  será  mais  íirme? 
Eu,  como  sol  a  buscar-te, 
Tu,  como  sombra  a  fugir-me ! 

Que  me  quererá  a  desgraça, 
Que  atrás  de  mim  corre  tanto? 
Hei-de  parar  e  dizer-lhe 
Que  eu  de  a  ver  me  não  espanto. 

As  pennas  de  uma  pombinha 
Contadas  são  vinte  e  cinco; 
Mas  as  penas  que  eu  padeço 
Conta-as  Deus,  e  eu  as  sinto. 

O' triste  sombra,  acompanha-me, 
Desgraçados  dae-me  a  mão  : 
Venha  tudo  o  que  for  triste 
Affligir  meu  coração! 

Quando  eu  te  não  amava, 
Contente,  alegre  vivia ; 
Roubaste-me  o  meu  socêgo, 
Ai  Jesus,  quem  tal  diria  ! 

Toda  a  minha  vida  trouxe 
Fita  verde  no  chapéu: 
Agora  trago  cilicios 
Para  ver  se  alcanço  o  ceu... 


DO  POVO  PORTUGUÊS  l3 

Com  as  lagrimas  fiz  contas, 
Pus-me  a  rezar  ás  escuras!. , . 
O  morte,  que  tanto  tardas, 
O  vida,  que  tanto  duras! 

Nunca  pensei  nesta  vida 
Que  por  meu  amor  chorasse: 
Agora  choro  por  elle.  .  . 
Ninguém  sabe  p'ra  o  que  nasce! 

Passarinho,  que  cantaes 
Nesse  raminho  de  flores: 
Cantae  vós,  chorarei  eu.  . . 
Assim  faz  quem  tem  amores. 

Eu  tenho  á  minha  janella 
Um  cravo  roixo  pintado, 
Regado  com  aguas  finas 
Que  meus  olhos  tem  chorado. 

Tenho  chorado  ao  dia 
Lagrimas  mais  de  noventa : 
Quem  canta  seu  mal  espanta. 
Quem  chora  seu  mal  augmenta. 

Se  ouvires  tocar  os  sinos. 
Não  cuides  que  são  trindades : 
Sou  eu  que  me  estou  morrendo. 
Pelas  tuas  saudades. 


132  POESIA  AMOROSA 

Fui-me  ao  jardim  passear, 
E  achei  um  lenço  dobrado, 
Cheio  de  lagrimas  tristes 
Que  por  ti  tenho  chorado. 

Neste  lenço  deposito 
Tristes  lagrimas  que  eu  choro, 
Por  eu  não  poder  voar 
Aos  braços  de  quem  adoro. 

Os  meus  olhos  são  dois  peixes 
Que  nadam  numa  lagoa: 
Choram  lagrimas  de  sangue 
Por  uma  certa  pessoa. . . 

Ai!  meu  Deus,  ai!  quem  acode 
A  quem  não  sabe  nadar! 
Ás  meninas  dos  meus  olhos 
Que  se  afogam  a  chorar! 

Inda  hoje  não  comi 
Senão  lagrimas  com  pão, 
Que  estes  são  os  alimentos 
Que  os  meus  amores  me  dão. 

Lagrimas  são  meu  almoço 
Janto  suspiros  e  dores, 
Á  tarde  merendo  ais, 
Á  noite  ausência  d'amores. 


DO  POVO  PORTUGUÊS  I33 

Se  pedras  fossem  as  lagrimas 
Que  eu  por  ti  tenho  chorado, 
Mandava  fazer  um  forte 
No  meio  do  mar  sagrado. 

Já  as  hervas  do  campo  choram, 
Já  as  flores,  de  mim  tem  dor, 
Só  por  ver  a  crueldade 
Com  que  me  tratas,  amor. 

Tenho  dentro  do  meu  peito 
Um  cravo  branco-dourado. 
Salpicado  d'aguas  tristes, 
Que  eu  por  ti  tenho  chorado. 

Não  sei  que  mal  fiz  ao  sol. 
Que  não  dá  na  minha  rua; 
Vou-me  vestir  de  preto. 
Que  de  branco  anda  a  lua. 

Tenho  á  minha  janella 
Um  ramo  de  violetas  : 
Por  amor  de  ti,  menina. 
As  minhas  galas  são  pretas. 

Com  minhas  lagrimas  tristes 
Estes  sitios  vou  regando... 
Oh!  quem  é  tão  infeliz. 
Só  sente  allivio  chorando! 


l34  POESIA  AMOROSA 


Os  meus  olhos,  de  chorar, 
Já  nenhuma  graça  tem; 
Tenho-lhes  dito  mil  vezes 
Que  não  chorem  por  ninguém. 

O  olho  da  vide  chora 
Lagrimas  de  seis  a  seis; 
Também  os  meus  olhos  choram . . 
A  causa  bem  a  sabeis. 

Dizem  que  o  chorar  que  tira 
As  penas  ao  coração: 
Tanto  tenho  eu  chorado, 
E  as  penas  inda  cá  estão. 

Chorae  olhos,  chorae  olhos, 
Que  o  chorar  não  é  desprêso: 
Também  a  Virgem  chorou 
Quando  viu  seu  filho  preso. 

Ninguém  descubra  o  seu  peito, 
Por  maior  que  seja  a  dor: 
Quem  o  seu  peito  descobre 
A  si  mesmo  é  traidor. 

O  cravo,  depois  de  roxo, 
Foi-se  queixar  ao  jardim; 
A  rosa  lhe  respondeu : 
—  Tudo  por  tempo  tem  fim! 


DO  POVO  PORTUGUÊS  l35 

Adeus,  ó  tempo  passado, 
Já  por  cá  não  tornarás: 
Quem  com  lagrimas  fizera 
Que  elle  tornasse  a  trás! 

Adeus,  caminiio  da  fonte, 
Já  de  mim  não  és  seguido: 
Já  quebraram  as  vidraças 
Onde  eu  trazia  o  sentido! 

Adeus,  chafariz  da  praça. 
Onde  a  agua  sobe  e  desce; 
Nem  a  agua  me  mata  a  cede, 
Nem  o  teu  amor  me  esquece. 

Inda  que  o  lume  se  apague, 
Na  cinza  fica  o  calor: 
Inda  que  o  amor  se  ausente. 
No  coração  fica  a  dor. 

Atirei  c'uma  laranja 
Da  Ribeira-Nova  ao  cães. 
Para  ver  se  me  esquecias. . . 
Cada  vez  me  lembras  mais. 

Meu  amor,  que  estás  tão  triste, 
Diz-me  lá  quem  te  morreu? 
—  Que  alegria  pôde  ter 
Quem  o  seu  amor  perdeu? 


l36  POESIA  AMOROSA 

Laranjeira  do  pé  d'ouro, 
Deita  raminhos  de  prata: 
O  tomar  amores  não  custa, 
O  deixá-los  é  que  mata. 

Hei-de  subir  ao  teu  peito 
Por  uma  escada  de  prata.    . 
Tomar  amores  não  custa, 
O  deixá-los  é  que  mata. 

Se  passares  pelo  adro 
No  dia  do  meu  enterro, 
Pede  á  terra  que  não  coma 
As  tranças  do  meu  cabello. 

Vou-te  dar  a  despedida, 
Minha  laranja  redonda; 
Que  eu  hoje  não  canto  mais, 
Por    agora  —  bonda,  bonda,  (i) 

Vou  deitar  a  despedida. . . 
Por  hoje  não  canto  mais: 
Já  me  doe  o  céu  da  boca, 
E  o  coração  inda  mais. 

(i)  Bondar  (  =  lat.  abundare)  significa  bastar. 


NOTA  FINAL 


Em  1882  comecei  a  publicar  a  Bibliotheca  ethnogra- 
phtca  portuguesa,  de  que  sahiu  este  volume : 

I.  TRADIÇÕES  POPULARES  DE  PORTUGAL,  que 
servia  como  que  de  introducção  geral  á  serie  toda,  e 
onde  eu,  por  isso,  e  porque  logo  previ  que  os  restantes 
volumes  tardariam  a  apparecer  a  lume,  recolhi  muitos  fac- 
tos que  tinham  cabimento  nos  outros. 

No  meu  plano  de  colleção  geral  das  tradições  popu- 
lares do  nosso  país  entram  ainda  os  seguintes  volumes, 
cujos  materiaes  estão  jd  ha  muito  reunidos  por  mim,  e 
de  que  por  vezes,  em  jornaes  ou  folhetos,  tenho  dado 
amostras  : 

II.  SUPERSTIÇÕES.  Como  a  maior  parte  do  vol.  pu- 
blicado com  o  titulo  de  Tradições  populares  de  Portugal 
encerra  superstições,  aqui  tenho  que  incluir  principal- 
mente as  que  recolhi  depois.  O  caracter  d'este  volume  é 
religioso,  tanto  em  sentido  pre-christão,  como  christão. 
Entram  aqui  também  as  lendas  locaes,  e  deviam  entrar 
os  ensalmos,  orações  e  certas  fórmulas  supersticiosas,  se 
não  ficassem  melhor  na  secção  da  Litteratura.  Igualmente 
é  aqui  o  logar  dos  amuletos. 


138  POESIA  AMOROSA 

III.  FASTOS.  Incluo  aqui  as  festas  de  caracter  popu- 
lar, e  as  tradições  em  relação  com  o  tempo.  O  assumpto 
d'este  vol.  pertence  rigorosamente  ao  antecedente;  mas, 
em  virtude  do  desenvolvimento  que  toma,  pôde  constituir 
um  vol.  separado,  embora  a  seguir.  Em  parte  liga-se 
também  com  os  outros. 

IV.  COSTUMES.  Gomprehenderei  aqui  os  jogos,  as 
bellas-artes  (musica,  dança,  iconographia,  etc),  as  indus- 
trias, os  trajos,  a  vida  domestica  e  rural,  com  a  descri- 
pção  dos  vários  instrumentos  d'esta,  como  já  fiz  no  Estudo 
ethnographico  a  propósito  dos  jugos  e  cangas  dos  bois  no  En- 
tre-Douro-e-oMinho ;  comprehenderei  ainda  a  descripçâo 
dos  gestos  populares,  dos  namoros,  casamentos,  funeraes, 
modos  de  passa-tempo  com  adivinhações,  etc.  É  claro 
que  muitas  vezes  tenho  de  abrir  aqui  a  secção,  e  dar-lhe 
desenvolvimento  noutro  logar ;  assim,  por  exemplo,  as 
adivinhas  hão-de  ir  na  Litteratura,  adeante. 

V.  LITTERATURA.  Conforme  a  linguagem  é  ou  não 
sujeita  a  certas  condições  rigorosas  de  harmonia  (medida, 
accentuaçâo  ou  quantidade,  e  ás  vezes  rima),  assim  se 
denomina  prosaica  ou  poética,  podendo  ainda  estabele- 
cer-se  graus  intermédios,  do  que  resulta  a  prosa  poética, 
como  vemos  por  exemplo  em  certos  capitulos  do  Eurico 
de  A.  Herculano.  Com  quanto  se  conceba  que  todos  os 
assumptos  que  se  tratam  em  prosa  se  possam  tratar 
em  verso,  tem-se  porém  destinado  este  para  certos  assum- 
ptos em  especial;  d'aqui  o  dividirem-se  as  composições 
litterarias  em  duas  grandes  classes  principaes :  poesia  e 
prosa.  O  mesmo  se  pôde  fazer  em  relação  á  litteratura 
popular. 

I.  Poesia.  Já  vimos  que  a  poesia  tem  de  entrar  nou- 
tras secções  mais  ou  menos.  Aqui  considera-la-hei  no 
seu  conjuncto,  e  por  isso  constituo  as  seguintes  secções: 

A)     Lyrica.  Nesta  secção  incluo  : 


DO    POVO  PORTUGUÊS  I  Sq 

a)  Poesia  do  berço  ; 

b)  Rimas  infantis^  comprehendendo  também  certas 
fórmulas  (contra  o  nevoeiro,  etc)  ; 

c)  Adivinhas,  também  chamadas  adivinhações ; 

d)  Poesia  amorosa^  dispondo  as  cantigas  segundo  a 
ordem  natural  por  que  se  succedem  os  sentimentos  que 
as  produzem  ; 

e)  Poesia  saíirica.  Parodia.  Em  parte  entram  no  §  an- 
tecedente ; 

f)  Desafos,  que  também  em  parte  entram  nos  §§ 
d-e; 

g)  Ensalmos  (cfr.  vol.  II).  Também  aqui  deviam  en- 
trar na  origem  certas  fórmulas  do  §  b,  mas  perderam  já 
em  parte  o  caracter  religioso; 

h)  Orações  e  varias  outras  fórmulas.  Como  algumas 
orações,  etc.  são  em  prosa,  devem  ir  na  respectiva  sec- 
ção; 

i)  Adagies.  Esta  parte  fica  indicada  aqui,  mas  de- 
ve ir  na  secção  mixta,  pois  que  ha  adágios  em  prosa  e 
verso.  Os  adágios  são  de  muitas  espécies :  topographicos 
ou  tópicos  (geralmente  em  forma  de  apodo  aos  habitan- 
tes de  certas  localidades),  meteorológicos,  a  gr  i  colas,  mo- 
raes,  etc; 

j)     Poesia  histórica; 

k)  Cantos  das  más  (Reis,  Janeiras,  Maias,  romarias, 
ladainhas,  etc),  que  entram  também  no  vol.  dos  Fastos; 

1)     'Poesias  varias  (ex. :  vestígios  das  choradeiras,  etc). 

B)  Épica.  Entram  nesta  secção  os  romances  ou  xaca- 
ras,  que  são  também  de  varias  espécies  (sagrados,  histó- 
ricos, etc).  Ás  vezes  é  difficil  decidir  se  uma  composição 
deve  ser  coUocada  aqui, ou  nas  orações  (por  exemplo  o  rí?s- 
ponso  de  St.°  António),  ou  nas  cantigas  históricas.  Por 
outro  lado  os  romances  que  degeneraram  em  prosa,  pas- 
sando á  classe  de  contos,  pertencem  a  outra  secção. 

C)  Dramática.  Também  em  parte  é  em  prosa.  Esta  sec- 
ção é  a  mais  pobre  da  litteratura  oral.  Composições  drama- 


140  POESIA  AMOROSA 

ticas  extensas,  verdadeiramente  tradicionaes,  ha  poucas,  ou 
não  as  ha  mesmo,  porque  as  que  se  usam  teem  caracter 
individual.  Ha  porém  rudimentos:  assim  podem  conside- 
rar-se  como  taes  o  julgamento  do  gallo,  e  outros  julga- 
mentos que  se  fazem  em  certas  occasióes  (Entrudo,  etc), 
as  /oj5,  certos  jogos  e  coros  (nos  Reis,  etc).  No  conti- 
nente, pelo  menos  na  Beira-Alta,  o  povo  chama  entreme- 
ses  ás  composições  propriamente  dramáticas.  —  Na  mi- 
nha infância  vi  naquella  provincia  um  pequeno  manu- 
scripto  com  letra,  talvez,  do  sec.  xviii,  copiado  por  um 
frade,  e  em  que  havia  versos  da  corrida  do  gallo. 

2.  Prosa.  As  composições  prosaicas  formam  certas 
classes,  segundo  a  sua  forma  e  o  seu  assumpto,  embora  to- 
dos os  assumptos  se  possam  tratar  pela  mesma  forma. 
Nos  nossos  compêndios  de  rhetorica  destinados  ás  aulas 
despreza-se  sempre  este  principio,  e  assim  é  vulgar  ver 
na  mesma  linha,  ao  lado  do  discurso  oratório,  por  exem- 
plo o  discurso  histórico,  como  se  a  historia  se  não  pu- 
desse tratar  em  forma  de  conferencia.  Segundo  a  forma, 
creio  que  as  composições  litterarias  em  prosa  se  devem 
classificar  assim: 

a)  narrativas  propriamente  ditas,  se  o  auctor  expõe  o 
seu  assumpto  ao  correr,  —  por  exemplo  um  jornal,  um 
diccionario,  etc; 

b)  dialogadas,  se  o  auctor  desapparece,  e  apenas  in 
troduz  personagens  que  faliam  entre  si,  —  por  exemplo 
um  drama,  e  esses  numerosos  hvros  que  possuimos  com 
o  próprio  titulo  de  Diálogos; 

c)  narrativo-dialogadas  ou  [românticas],  se  ha  combi- 
nação dos  dois  géneros  precedentes, — por  exemplo  a  no- 
vella; 

d)  oratórias,  se  o  auctor  falia  a  um  auditório, — por  ex- 
emplo os  sermões,  brindes,  lições,  conferencias,  etc; 

e)  epistolares,  se  o  auctor  trata  com  pessoas  ausentes 
quasi  como  se  estivessem  presentes,  e  por  tanto  se  lhes 
dirige  directamente. 


DO  POVO   PORTUGUÊS  I4I 

É  claro  que  ainda  uma  carta  ou  um  discurso  oratório 
podem  fazer  parte,  quer  de  uma  narração  ou  de  um  dialo- 
go, quer  de  uma  composição  narrativo-dialogada;  mas 
isso  é  um  incidente,  não  constitue  ahi  espécie  definida. 
—  Qualquer  assumpto  de  sciencia  pôde  ser  tratado  por 
todas  aquellas  formas:  assim  é  que  se  tem  escrito  cartas 
sobre  a  Mathematica  (ex.  as  de  Euler),  romances  com  ca- 
racter scientifico  (á  Julio-Verne)  ou  histórico,  etc. — Classi- 
ficar as  composições  litterarias  quanto  ao  assumpto  é  o 
mesmo  que  fazer  a  classificação  das  sciencias;  por  tanto 
não  é  trabalho  para  aqui.  Qualquer  dos  assumptos 
pôde  ser  explanado  com  extensão,  ou  apenas  em  trata- 
dos^ memorias,  dissertações,  etc,  ou  ainda  com  o  feitio  de 
critica^  quando  se  não  expõe  uma  doutrina  seguida,  mas 
se  tem  de  apreciar  pontos  já  expostos. 

A  litteratura  exclusivamente  prosaica  do  nosso  povo 
offerece  em  especial  á  consideração  os  contos  q  facécias, 
e  certos  modismos,  como  por  exemplo  as  comparações 
(«verde  como  as  hervas»,  «preto  como  o  carvão»,  etc.;, 
de  que  o  Sr.  A.  Thomás  Pires  publicou  numerosos  es- 
pécimes. 

3.  Género  mixto.  Não  quero  significar  com  esta  expres- 
são a  prosa  poética,  de  que  fallei  acima  (d'esta  não  co- 
nheço exemplos  na  litteratura  popular),  mas  quero  refe- 
rir-me  ás  composições  que  tanto  podem  ser  em  prosa 
como  em  verso,  e  àquelloutras  de  que  ha  exemplos  com 
as  duas  formas,  a  saber:  romances  degenerados,  orações, 
entremeses,  adágios,  etc.  Também  já  tenho  ouvido  con- 
tar em  forma  de  conto  romances  que  porém  não  perde- 
ram ainda  a  forma  poética. 

Com  estes  materiaes,  e  com  os  outros  recolhidos  pe- 
los diversos  investigadores  portugueses,  os  Srs.  Theophilo 
Braga,  Adolpho  Coelho,  António  Thomás  Pires,  Consi- 
glieri  Pedroso,  etc,  é  que  se  ha  de  proceder  ao  estudo 
completo  da  historia  e  significação  das  nossas  tradições, 


142  POESIA  AMOROSA 

como  já  em  parte  tem  sido  ensaiado.  —  As  tradições 
populares  não  nos  dão  só  ideia  do  estado  mental  do  povo 
que  actualmente  as  conserva,  dão-no-la  também  a  res- 
peito do  passado,  quando  a  significação  antiga  d'ellas  se 
determina,  e  servem  para  mostrar  as  relações  entre  os 
povos  que  as  propagaram  e  que  as  receberam,  —  alem  de 
esclarecerem  ainda  outras  questões. 

Na  lista  summaria  que  acima  fiz  dos  volumes  que  te- 
nho para  publicar  não  foi  meu  intento  referir-me  senão 
aos  materiaes  propriamente  ditos,  i.  é,  considerados  em  si, 
independentes  de  todo  o  trabalho  de  apreciação,  compa- 
ração e  investigação  genética.  Este  trabalho,  como  disse, 
diífere  do  primeiro,  e  só  por  partes  se  pôde  fazer. 

O  volume  que  hoje  oftereço  ao  publico  é  uma  d'essas 
partes,  embora  acanhada,  pelas  razões  que  dei  no  pro- 
logo. 


índice 


Prologo 


PRIMEIRA  PARTE 


§  1. — Natureza  da  poesia  popular: — A  poesia  em  ge- 
ral. —  A  poesia  popular  portuguesa.  —  O 
amor  nas  cantigas  do  povo.  —  Subjectivi- 
dade e  objectividade  do  sentimento.    9 

§2.   —  MORPHOLOGIA      DAS     CANTIGAS     POPULARES!   — 

Razão  da  belleza  das  cantigas.  —  O  que  é 
poesia  collectiva.  —  Forma  das  cantigas.  — 
Desafios  dos  cantadores.  —  Improvisos,  des- 
cantes. —  Dichotomia  das  quadras  (antithe- 
se,  comparação,  absorpçáo;  obscurecimento 
gradual  do  sentido,  obscurecimento  total). — 
Espécies  de  rima.  —  O  cancioneiro  hispa- 
nhol  e  o  português.  —  O  metro.  —  Phone- 
tica  das  cantigas  populares 14 

§3.  —  Importancl\  da  poesia  do  povo  :  —  A  vida  do- 
mestica. —  A  vida  social.  —  Influencia  da 
litteratura  popular  na  litteratura  erudita.  — 
A  arte.  —  A  sátira.  —  Poesia  histórica.  —  As 
tradições  em  geral 52 


PAG. 

§  4.  —  BiBLioGRAPHiA  DO  ASSUMPTO  :  —  Allusócs  em 
obras  antigas  ás  cantigas  populares  portu- 
guesas.—  Collecçóes  modernas.  —  A  baila- 
da (sic)  da  Serra  da  Estrella.  —  Cupido  nas 
tradições  poéticas ...     69 

SEGUNDA  PARTE 
Preludio 93 

As  ESPERANÇAS 94 

Os  ARRUFOS I  l8 

Os  DESALENTOS 125 

Nota  final 1 3/ 


ERRATAS 

PAG. 

LINHA 

EM   VEZ  DE 

LEDE 

l8 

3 

effectivas 

affectivas 

78 

M 

portos 

pontos 

90 

19 

pequeiias  collecçóes 

uma  pequena  collecçáo 

107 

nota 

a  tua  beira  e  lada 

á  tua  beira  e  lado 

*• 

Estas 

são  as  mais  importantes 

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PQ  Leite  de  Vasconcellos  Pereira 

V^l6l  de  Mel 2^    José 

L7L^  Poe^a  sunorosa  do  povo 

português