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PRINCETON . NEW JERSEY
PRESENTED BY
The Author
Al. Alie.
/
PRIMEIRA EPÍSTOLA
DE PAULO
AOS
CORÍNTIOS
PRIMEIRA EPÍSTOLA
DE PAULO
AOS
CORINTIOS
(E X p o s i f á o)
P o r
C H A R L ES R. E R D M A N
Professor de Teología Prática, do Seminário
Teológico de Princeton, New Jersey (E. U. A.),
e Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana da
mesma cidade.
(Tradufáo de D. A. M.)
Rúa Helvetia, 737 — Subsolo
SAo Paulo
19 5 6
PREFACIO
A Igreja de Cristo é a sociedade mais significativa e de
maior importancia que já se estabeleceu entre os homens. Nem
todo o mundo a aprecia déste modo. Também nem sempre a
conduta dos seus membros corresponde á sua orígem divina e á
sua missáo impar. Entretanto, os que adoram como seu Senhor
o Fundador da Igreja e créem que, por ela. Cristo está realizando
o seu gracioso propósito de redimir o mundo, ésses vdo ler com
interésse, profundo e constante, a carta de que nos propomos
fazer uma exposigáo neste livrinho. Foi escrita pelo Apostólo
Vaulo aos cristáos de Corinto e trata de questoes de vital im<
portáncia ligabas á vida, ao ministerio e á mensagem da Igreja.
As circunstancias que deram lugar as questoes levantadas
foram em grande parte locáis e temporarias, contudo a maneira
eomo o apostólo as encara é de interésse imediato e de valor
permanente, visto como discute cada uma á luz de algum priu'
cípio sempre atual. Todos quantos se interessam pela paz,
pureza e progresso da Igreja devem procurar aplicar ésses prin-
cipios na solugáo dos problemas urgentes da atualidade.
DO Autor
INTRODUCÁO
A cidade de Corinto está se desenterrando do pó em que
ficou sepultada. Pelo menos é certo que escavacoes recentes
estáo fazendo essa velha cidade grega reviver diante dos olhos,
no pensamento e na imaginacáo do mundo. Fitar seu grande
teatro, 1er a inscricáo ainda existente na "Sinagoga dos
Judeus", passear peío pavimento de m^osaicos de suas "vilas"
imperiais, e visitar o fórum onde funcionou o tribunal de Gálio
é como lancar uma ponte por cima dos séculos que decor-
reram daquela época até hoje; é viver as cenas de um pas-
sado morto e esquecido.
Noutro sentido, porém, Corinto nao morreu jamáis.
Duas breves cartas, escritas pelo Apostólo Paulo, a um grupo
de cristáos daquela cidade, conseguiram fazer que incontá-
veis leitores seus se familiarizassem com ela através de su-
cessivas geracoes. Na memoria désses leitores, Corinto
nunca deixou de existir. Por outro lado, á luz de recentes
descobertas alí realizadas, essas epístolas de Paulo se tém
tornado mais expressivas, mais vitáis, mais dignas de fé e
mais reais do que durante todos estes séculos.
No tempo do apostólo, Corinto era a cidade mais impor-
tante da Grécia. Atenas, nao há dúvida, era um centro
maior de cultura e mais gloriosamente refulgía ñas páginas
da historia. Corinto, entretanto, era a capital da provincia
romana da Acaia e sobrepujava a todas as outras cidades em
importancia política e comercial. Destruida por Múmio, ge-
neral romano, em 146 A. C, foi reconstruida um século mais
tarde por ordem de Júlio César, recuperando logo e até ul-
trapassando sua condigáo anterior de riqueza, beleza, esplen-
dor e poder.
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CHARLES R. ERDMAN
Seu rápido crescimento foi devido, em grande parte, á
sua localizagáo. Situava-se no estreito istmo que ligava o
Peloponeso ao continente grego e separava os mares Jónio
e Egeu. Para o oeste ficava o porto de Liqueu; para leste,
Cencréia. Devido a essa situagáo foi chamada "sl Cidade dos
Dois Mares". Situava-se pois na rota principal que ligava
o Oriente ao Ocidente e tornou-se o principal emporio entre
a Asia e Roma.
A riqueza da cidade era enorme. Em populagáo prova-
velmente ocupava o quarto lugar entre as cidades do Império
Romano. Seus habitantes inicialmente foram colonos, a
maioria dos quais eram libertos romanos. A descendencia
désses colonos juntou-se uma torrente de gregos nativos.
Afora isso, Corinto atraíra grandes levas de estrangeiros,
tanto do Oriente como do Ocidente. Essa gente enchera a
cidade e adotara a língua e os costumes dos gregos. Como
na maioria das cidades, havia também lá grande colonia
judaica que mantinha suas crengas e seu culto distintivos.
Seguramente metade da populagáo era de escravos.
Apesar de seu comércio, Corinto orgulhava-se de sua
cultura. Por toda parte viam-se oficinas de artistas, sal5es
onde se praticava a retórica e escolas de filosofía. A cidade,
todavía, nao tinha apenas fama de riqueza e cultura; também
se tornou famosa em maldade e corrupgáo moral. Era sede
de uma aviltante modalidade de culto a Venus, bem como de
outros cultos licenciosos originarios do Egito e da Asia.
"Viver á corintia" ou "corintizar" queria djzer, nos dias de
Paulo, viver em luxúria e licenciosidade. Tornaram-se igual-
mente proverbiáis expressoes tais como "banquete corintio"
e "bebedores corintios".
A fundacáo de uma igreja crista em tal ambiente foi
prova notávei do poder do evangelho e uma das mais assi-
naladas Vitorias do apostolado de Paulo. Foi um triunfo
arrancado á fórca em meio a ameacas de fracasso. O apos-
tólo chegara alí abatido ,desanimado e sozinho. Fazia sua
Segunda e grande Viagem Missionária. Partindo de Antio-
quia, viajara em direcáo do oeste, a Tróade. Correspondendo
a um chamado divino, atravessara o mar, rumo á Europa
onde, em Filipos e Atenas, fundou igrejas, passando ao sul
da Grécia. Em Atenas teve recepgáo fría e desalentadora.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
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Voltou a Corinto, chegando alí como estrangeiro desconhe-
cido, sem companheiros, desprovido de recursos, sem amigos
e sentindo um peso no coragáo á vista da impiedade, da im-
pureza e do vicio que alí campeavam. Comecou a pregar
sentindo fraqueza, temor e muito tremor, mas determinado
a ser fiel á mensagem de Cristo e sua cruz.
Acamaradou-se logo com dois judeus — Áquila e Frisca,
que havia pouco tinham sido expulsos de Roma e que se ha-
viam estabelecido em Corinto como fabricantes de tendas.
Como Paulo fósse da mesma raca e do mesmo ramo de ne-
gocio, foi por éles recebido com prazer em casa. Paulo achou-
os dóceis quando Ihes falou de Cristo. Logo mais recebeu
nova dose de animacáo com a chegada de seus amigos Silas
e Timoteo. Resultado: passou a anunciar o Evangelho com
desusado poder e vantagem. Seus primeiros auditorios fo-
ram na sinagoga, mas por causa da exasperacáo e feroz opo-
sicáo de seus adversários judeus, abandonou a sinagoga e
^ fundou uma assembléia crista na casa contigua, de Tito
;; Justo. Éste, prosélito dos judeus, cu jo nome dá a entender
V era cidadáo romano, pode oferecer a Paulo um refúgio hon-
roso e serviu de estímulo ao grupo crescente dos que se con-
vertiam. Entre estes, que se reuniam na casa de Justo, estava
Crispo, principal da sinagoga, sua familia e mais outras
pessoas importantes. O grosso dos convertidos, porém, saiu
de classes mais humildes, até dentre os libertos e escravos.
Alguns eram judeus, mas a maioria era de gentíos. Nessa
^cém-fundada sociedade nao havia muitos que se tivessem
ducado em escolas, nem dignitários, nem poderosos, nem
aristócratas de nascimento. Entre éles via-se o contraste da
iqueza e da pobreza, da alta e da baixa sociedade. Os po-
ras e de baixa extragáo, porém, formavam a maioria naquela
assembléia crista. Muitos haviam sido arrebatados dos mais
profundos abismos da luxúria paga.
Por ésse tempo o coracáo do apostólo recebeu o grande
lento de uma visáo noturna, na qual o Senhor Ihe ordenou
falasse intrépidamente, assegurando-lhe protecáo e éxito.
Paulo obedeceu: ficou dezoito meses alí, pregando principal-
mente a gentíos e estabelecendo uma animada comunidade
crista. Movidos de inveja e odio, os judeus sublevaram o povo
e arrastaram o apostólo ao tribunal do procónsul Gáüo. Éste
nobre romano, irmáo do filósofo Séneca, recusou-se desde-
nhosamente a apreciar as acusagoes de heresia que os judeus
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CHARLES R. ERDMAN
centavam levantar contra Paulo. Expulsou-os do tribunal e
deixou que os gregos espancassem Sostenes, principal da
sinagoga. Parece que ele considerou essa atitude dos gregos
um ímpeto de bem merecida justica e um sinal de que o
povo apoiava sua atuagáo no caso. A atitude de Gálio com
írequéncia tem sido interpretada como indicativa de indi-
ferenga religiosa. Mais própriamente devia ser considerada
um exemplo de tolerancia religiosa e como um aviso de que
o Govérno Romano sancionava a proclamagáo do evangelho
na Grécia. Assim, quando mais tarde Paulo encerrou suas
atividades em Corinto e viajou para Jerusalém e Antioquia,
deixou alí uma igreja forte e florescente, práticamente sob
a protegáo de Roma e capacidade a prosseguir na evangeli-
zagáo de toda a provincia da Acaia.
Em sua Terceira Viagem Missionária, durante a longa
permanencia de tres anos em Éfeso, Paulo manteve cons-
tantes relagóes com a jovem igreja de Corinto que ficava a
oeste, do outro lado do mar Egeu. Foram trocadas cartas
entre o apostólo e seus convertidos corintios. Há indicacoes
de que ele fez rápida visita áquela cidade, retornando mais
uma vez a Éfeso. Logo ao chegar ai parece que recebeu uma
noticia agradável das condigoes da igreja, isso por intermédio
de Tito, a quem Paulo enviara com o fim de cientificar os
corintios do plano que tinha para socorrer os irmáos pobres
de Jerusalém, e de obter a simpatía e o apóio déles. Depois
disso o eloquente evangelista Apolo, após um ano de trabalho
frutífero em Corinto, juntou-se a Paulo em Éfeso, quando
Ihe levou noticias dos irmáos na Grécia. Mais tarde chega-
ram-lhe informagoes pouco lisonjeiras dessa igreja, cujas
condigoes eram entristecedoras Além do que, uma delegagáo
de tres membros distintos da mesma cruzou o mar e foi ter
com o apostólo para uma consulta. Outras informagoes claras
llie foram prestadas por membros da familia de Cloe.
De todas estas fontes Paulo recebeu seguras e completas
noticias da situagáo em Corinto. Os fatos eram quase todos
alarmantes. A igreja estava dividida em partidos e desgra-
gadamente a disciplina se havia relaxado. Os irmáos con-
tendiam uns com os outros, levando suas questoes aos tribu-
nais pagaos, enquanto toleravam grosseiras imoralidades em
sua vida social. Queriam ser instruidos com relagáo ao ca-
samento e mais quanto ao uso de alimentos oferecidos aos
ídolos e quanto ao devido emprégo dos dons espirituais. Nao
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
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mantinham ordem na celebragáo da Ceia do Senhor e alguns
até chegavam a negar a doutrina da ressurreiQáo dos mortos.
Com habilidade de mestre consumado, Paulo escreve-
-Ihes esta carta, onde trata de todos estes problemas. Em vez
de responder cada pergunta ordenando com autoridade ou
estabelecendo uma regra arbitrária, ele firma o principio
envolvido em cada questáo e déste modo oferece uma solucáo
de valor permanente. Sim, porque se as condigoes de hoje
diferem daquelas de Corinto, os problemas no entanto sao
análogos, servindo para a sua solugáo os principios aqui apre-
sentados por Paulo. As questoes diferem na forma, mas na
esséncia sao as mesmas, donde se vé que os principios evan-
gélicos que elas envolvem nao perdem sua validade.
Paulo arranja em ordem lógica os problemas que Ihe pro-
puseram. Alguns leitores de I Corintios pensam de modo
diferente. Nao véem ai nem ordem, nem método, nem uni-
dade. Existe um crítico severo que até chega a avangar o
seguinte: Paulo "nao tinha a necessária paciencia para es-
crever e era incapaz de usar método". Por outro lado, um
comentador moderno, dos mais autorizados, diz a respeito
desta carta: "Jamáis um edificio intelectual foi mais admi-
ravelmente plañe jado e executado, embora com materiais
muitíssimo diversos". Os assuntos, com efeito, sao variados
e heterogéneos. Comumente sao agrupados em número de
dez, a saber: partidos na igreja, escándalos, questoes judi-
ciais, impureza, casamento, alimentos oferecidos em sacrificio,
comportamento da mulher no culto público, administragáo
dos sacramentos, dons espirituais, e ressurreigáo dos mortos.
Postos nessa ordem, vé-se que Paulo trata primeiro de
urna questáo eclesiástica, ou sejam divisoes na igreja. Se-
uem-se tres questoes moráis: o caso de disciplina, litigios
perante os tribunais, e a impureza na vida social. Vém após
duas questoes dependentes das circunstancias, isto é, o casa-
mento e o uso de carnes oferecidas aos Ídolos. Adiante con-
sidera tres questoes litúrgicas: a maneira de a mulher se
portar durante o culto, a administragáo da Ceia do Senhor,
e o exercício ordeiro dos dons espirituais. Por fim, uma ques-
táo de ordem doutrinária: a ressurreigáo.
12
CHARLES R. ERDMAN
Quanto mais cuidadosamente se considere o arranjo
déstes assuntos desconexos, tanto mais se apreciará a sar
bedoria da ordem adotada pelo apostólo.
Nos nove versículos do coméco da carta, Paulo se detém
em considerar a relacáo que há entre o crente e Cristo. Esta
relacáo vital é que faz da epístola um todo harmónico. Seu
conteúdo pode ser sumariado assim: A uniáo com Cristo é
desabonada pelas faccoes ou partidos, caps. 1 a 4; é destruida
pela impureza, caps. 5 e 6; é enaltecida e ilustrada pelo ca-
samento, cap. 7; é profanada pela idolatría, caps. 8 a 10; é
simbolizada pela Ceia do Senhor, cap. 11; é aviltada pela de-
sordem, caps. 12 a 14; é consumada na ressurreigáo, cap. 15.
O capítulo final dá instrucoes a respeito da coleta em
favor dos eren tes pobres de Jerusalém, contendo aínda re-
ferencias e saudacoes pessoaís. Um esbógo mais compreensivo
e pormenorizado da epístola se verá ñas páginas a seguir.
NOTA : O texto portugués da I Epístola de Paulo aos Corintios, usado nesta obra,
« o da Versáo Revista de Almeida, da Sociedade Bíblica d© Brasil.
I. Saudagáo e Agáo de gragas. I Cor. 1:1-9.
1 Paulo, chamado pela vontade de Deus, para ser
apostólo de Jesús Cristo, e o irmáo Sostenes, 2 á igre-
ja de Deus que está em Corinto, aos santificados em
Cristo Jesús, vocacionados para ser Santos, com todos
os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor
Jesús Cristo, Senhor déles e nosso; 3 graga a vos outros
e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesús
Cristo.
4 Sempre dou gragas a Deus a vosso respeito, a
propósito da sua graga, que vos foi dada em Cristo; 5
porque em tudo fóstes enriquecidos néle, em toda pa-
lavra e em todo o conhecimento; 6 assim como o tes-
temunho de Cristo tem sido confirmado em vos; 7 de
maneira que nao vos falte nenhum dom, aguardando
vos a revelagáo de nosso Senhor Jesús Cristo; 8 o qual
também vos confirmará até ao fim, para serdes irre-
preensiveis no dia de nosso Senhor Jesús Cristo. 9
Fiel é Deus, pelo qual fóstes chamados á comunháo de
seu Filho Jesús Cristo nosso Senhor.
As palavras com que Paulo comeca suas epístolas sao de
muita importancia. É certo que essa maneira de comecar
cartas nao era exclusividade déle; naquela época era ésse o
estilo adotado geralmente. Entretanto nao sao fórmulas va-
zias de sentido: significam muito mais do que a simples de-
signagáo do autor e daquéles a quem se destinam. A sau-
da^áo nada tem de convencional. Tais fórmulas introdutó-
rias condizem com o teor das cartas a que pertegam e em
alguns casos quase qué encerram um sumário dessas cartas.
Assim, pois, na introdugáo desta, que consiste numa sau-
dacáo e num agradecimento a Deus, Paulo menciona os
grandes temas que irá desenvolver, isto é, a unidade da Igre-
14
CHARLES R. ERDMAN
ja, sua pureza, seus dons espirituais e sua gloria futura. Os
primeiros quatro capítulos que se seguem ocupam-se das
dissencoes partidarias que estavam destruindo a unidade
crista. Os sete subsequentes discutem a pureza e a santidade
da Igreja, que estavam perigando. Os caps. 12 e 14 tratan
dos dons espirituais que enriqueciam aquela Igreja. O cap.
15 focaliza a gloria da ressurreicáo que iremos gozar "no dia
de nosso Senhor Jesús Cristo". "
Paulo ainda fere outra nota ñas primeiras palavras da
saudagáo: é a sua autoridade apostólica, de que certas pessoas
ousavam duvidar. Comega, pois, lembrando aos leitores a
comissáo divina que recebeu, quando se declara "apostólo de
Jesús Cristo". Tal condigáo de apostólo resultou de uma
chamada definida e estava de acordó com a "vontade de
Deus". A intimagao soara-lhe aos ouvidos quando no cami-
nho de Damasco, e depois em Jerusalém. Ésse apelo divino
mudara-lhe o curso da vida e descortinara-lhe o panorama
de um trabalho mundial, que seria um testemunho vasto em
prol de Cristo, para o qual houvera ele sido ordenado pelo
eterno propósito de Deus. A íntima convicgáo de ter sido
chamado por Deus sempre foi uma inspiragáo para ésse po-
deroso mensageiro da cruz. Uma convicgáo igual deve digni-
ficar e enobrecer o servigo do mais humilde seguidor de Cristo,
que aceite uma tarefa, suporte provagoes e trabalhos, sempre
submisso á vontade do Mestre.
Paulo, porém, nao fóra intimado a realizar um trabalho
comum. Declara-se "apóstolo" e com isso quer dizer que ocupa
a posicáo de testemunha oficial, especialmente escolhido e
revestido de poder, de modo que as mensagens que passa a
transmitir revestem-se da própria autoridade de Cristo.
Ao seu próprio nome associa o de Sostenes, a quem dis-
tingue nao por chamá-lo apóstolo, mas "irmao", isto é,
membro da irmandade crista, o qual era bem conhecido dos
crentes corintios. Désse conhecimento, porém, nao partilha-
mos. Lucas, nos "Atos", menciona certo Sostenes que era
principal da sinagoga de Corinto e que foi espancado pelos
gregos diante do tribunal de Gálio, depois de Paulo ter sido
salvo da fúria dos judeus pelo governador romano. Se se
trata do mesmo Sóstenes, inimigo da fé agora convertido em
seguidor de Cristo, nada se sabe ao certo. Basta-lhe a glória
de ter o seu nome associado ao de Paulo. Para nós igual-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
15
mente, é bastante a distingáo de sermos contados entre os
verdadeiros irmáos de nosso Senhor.
A carta é enderegada "á igreja de Deus que está em Co-
rinto". Eis ai urna afirmacáo tremenda: a Igreja é uma ins-
tituigáo divina; foi estabelecida por Deus e Ihe pertence. É
o instrumento de Deus, o meio de Ele agir no mundo. Éste
pode menosprezá-la, escarnecé-la, difamá-la, mas foi no céu
que ela te ve sua orígem. A Igreja é imortal. Seu destino
é glorioso. Em sua luz todas as nagóes se alegraráo um día.
E essa Igreja estendera-se até mesmo a Corinto. Nisso
é que estava a maravilha. Mesmo naquela cidade paga, no
meio de seu orgulho, de sua impureza, da ansia absorvente
com que se atirava aos prazeres e as riquezas, alí uma irman-
dade de crentes se formara. E nao há na térra um lugar,
por maior que se ja a depravagáo de seus costumes e sua
perdigáo moral, onde a Igreja de Deus nao se possa esta-
belecer.
Tal igreja, em Corinto, Paulo a descreve sendo formada
de ''santificados em Cristo Jesús". E diz mais que seus
membros sao "santos" em consequéncia de um chamado di-
vino. Ser santificado é ser separado do pecado para o ser-
vico de Deus, consequentemente para ser puro e santo. Tais
pessoas se designam como "santos"; sua condigáo e caráter
se devem ao fato de haverem obedecido ao chamado para se
tornarem seguidores de Cristo. Por conseguinte, todos os
crentes sao santos. Que a santificacao déles nao é perfeita
evidencia-se dos capítulos seguintes que descrevem os "san-
tos" de Corinto. Todavía possuem a faculdade de ^erem
santos, estao sendo transformados pelo Espirito de Cristo
para se conformarem com Éle. Algum dia, pois, seráo seme-
Ihantes a Cristo, quando O contemplarem como Éle é.
Essa irmandade de santos nao se limita a determinados
lugares. Paulo dirige sua carta nao sómente aos de Corinto,
mas a todos quantos "invocam o nome de nosso Senhor Jesús
Cristo". E era a essa nota de unidade que os cristáos co-
rintios precisavam muito de atender. O espirito de partido
e5tava-os dividindo em grupos que se degladiavam; uma
preocupagáo orgulhosa de si mesmos fazia-os olvidar outras
igrejas e alhear-se délas, de suas práticas e crencas. Assim,
16
CHARLES R. ERDMAN
pois, nesta sentenga do principio de sua carta, Paulo asse-
gura a seus leitores que todos os cristáos de Corinto formam
um corpo de crentes. Ésse corpo une-se a urna irmandade
universal, composta de ''todos os que invocam o nome de
nosso Senhor Jesús Cristo".
Ésse "invocar" do nome de Cristo é o brado de fé que se
ergue do coragáo que eré. Ao clamor do Espirito responde-se
com uma confianga salvadora. Assim, pois, em todos os lu-
gares e tempos, nós que pertencemos a Cristo estamos inse-
paravelmente ligados a todos os outros crentes, visto como
reconhecemos um só Senhor, "déles e nosso". Portanto, esta
carta, embora enderezada á igreja de Corinto, também a
nós se dirige. Seu escopo é orientar e inspirar os membros
de qualquer igreja, até á consumagáo dos séculos.
A Igreja universal, e mais especificadamente aos santos
de Corinto, Paulo envia sua saudagáo costumeira e signifi-
cativa: "Graga a vós outros e paz da parte de Deus nosso
Pai e do Senhor Jesús Cristo". Graca quer dizer o favor ime-
recido de Deus, e alude á fonte de toda béngáo espiritual.
Paz é a experiencia que resulta de se abrir o coragáo pela fé
para receber tudo quanto Deus oferece em Cristo e por meio
de Cristo. Era muito comum os gregos saudarem-se com
a palavra "graga". Já entre os judeus a palavra empre-
gada era "paz". Os cristáos uniram uma á outra e Ihes
aeram um brilho novo. A saudagáo de Paulo é uma oragáo.
E em nossos lábios bem pode expressar a súplica de uns em
íavor dos outros, e de nós próprios.
Como costumava fazer, Paulo acrescenta á saudagáo um
agradecimento. Mostra-se reconhecido pela graga já mani-
festa aos de Corinto e especificadamente pelos dons espiri-
tuais de que tinham sido enriquecidos; dons, aliás, de que se
orgulhavam. No entanto, ésses dons eram reais e preciosos.
Nao importa que mais adiante, nesta mesma carta, ele pre-
cise instruí-los quanto ao valor relativo dessas faculdades e
censurá-los pelo seu abuso. Náo obstante, a carta comega com
uma expressáo de sincero reconhecimento pela concessáo
désses dons. Se os corintios tinham facilidade de expressáo
no testemunho que davam de Cristo, ao lado de um "conhe-
cimento" profundo da verdade cristá, deviam isso aos dons
com que foram agraciados. Eram ésses dons, além do mais,
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 17
a corroboragáo do testemunho em prol de Cristo que Paulo
Ihes dera.
Táo abundante fóra a graga recebida que os cristaos de
Corinto nao careciam de nenhum dom espiritual necessário
á promogáo da vida e á animagáo de seu trabalho, enquanto
aguardavam a vinda de Cristo. E Paulo expressa a confianga
jubilosa de que, até á vinda de Jesús, o Espirito de Cristo
continuará a suprir as necessidades de seus seg-uidores, de
modo que a despeito de provas e tentagoes, éles seráo "irre-
preensíveis" no "dia" de sua vinda. A confianga de que a
santidade dos crentes será mantida baseia-se nao em algo de
om que ha ja em a natureza humana, mas na fidelidade de
_jeus que nos chamou á comunháo com Cristo. Pela fé tor-
namo-nos participantes de sua vida. Como crentes, pois, de-
vemos partilhar da gratidáo aqui expressa por Paulo, ale-
grando-nos porque pelo Espirito de Cristo todo dom e graga
necessária nos será proporcionada, a nós que pertencemos
a Cristo.
Devemos também participar daquela antecipagáo da glo-
ria do céu, sentimento éste que mantinha firmes os cristaos
de Corinto. Éles "aguardavam a revelagáo de nosso Senhor
Jesús Cristo", e esperavam o aperfeicoamento do espirito e
do corpo, no dia do Senhor, assunto de que Paulo se ocupa
no cap. quinze desta epístola. A segunda vinda de Cristo,
sua aparicáo gloriosa, deve constituir-se urna esperanca vital
a animar cada seguidor do Mestre.
Passando em revista a introdugáo, veremos que o nome
de Cristo é que fornece unidade e sentido a cada sentenga
tía mesma. Nove vézes, nestes nove curtos versículos, o nome
tíe Jesús é mencionado. Para ser seu apostólo, Paulo fóra
chamado. Em comunháo com Éle, os crentes sao santifi-
cados, assim como, por invocá-lO, sao salvos. NÉle, como em
Deus Pai, está a orígem da graga e paz. Por Éle se concedem
os dons espirituais que confirmam o testemunho de Paulo e
?apacitam seus companheiros cristaos a uma vida de servigo.
m sua segunda vinda centralizam-se todas as esperangas
déles. No dia dessa aparigáo será consumada a alegría de
~3us coragoes. A participagáo da vida de Cristo é a esséncia
da experiéncia déles, a explicagáo de seu caráter, e a se-
/aranga de seu destino.
18
CHARLES R. ERDMAN
Sem nenhuma dúvida, para os que sao membros de sua
Igreja, Cristo deve tornar-se, sempre e cada vez mais, tudo
em todos.
II. Os Problemas da Igreja. Caps. 1:10 a 15:58.
A. Divisoes. Caps. 1:10 a 4:21.
1. Exortagáo á Unidade. Cap. 1:10-17.
10 Rogo -vos, irmáos, pelo nome de nosso Seniior
Jesús Cristo, que faleis todos a mesma coisa, e que nao
haja entre vos divisoes; antes sejais inteiramente uni-
dos, na mesma atitude mental e no mesmo parecer. 11
Pois a vosso respeito, meus irmáos, fui informado, pe-
los da casa de Cloe, de que há contendas entre vós. 12
Refiro-me ao fato de cada um de vós dizer: Eu sou
de Paulo, e eu de Apolo, e eu de Cefas, e eu de Cristo, i'ó
Acaso Cristo está dividido? foi Paulo crucificado em
favor de vós, ou fóstes, porventura, batizados em nome
de Paulo? 14 Dou grabas porque a nenhum de vós ba-
tizei, excet^ Crispo e Gaio; 15 para que ninguém diga
que fóstes batizados em meu nome. 16 Batizei tam-
bém a casa de Estéfanas; além déstes náo me lembro
se batizei algum outro. 17 Porque náo me enviou Cris-
to para batizar, mas para pregar o evangelho; náo
com sabedoria de palavra, para que se náo anule a
cruz de Cristo.
Paulo torna a dirigir-se á Igreja, e sua primeira palavra
é urna exortagáo á unidade crista. Possivelmente é esta a
primeira necessidade da igreja mesmo em nossos dias. A
falha mais berrante numa igreja sao suas divisoes: seu fra-
•asso em apresentar ao mundo uma frente unida^ uma men-
sagem harmoniosa ou um panorama de entendimento fra-
terno.
O apostólo faz a exortagáo "pelo nome de nosso Senhor
Jesús Cristo". O nome de uma pessoa é que a faz conhecida,
ou é aquilo que déla se conhece. O nome de Cristo, pois,
indica tudo quanto dÉle sabemos, como Salvador, Senhor
e Mestre. Visto como todos os crentes Lhe pertencem e estáo
sob seu poder e diregáo, a simples mencáo de seu nome su-
gere a existencia de uma unidade espiritual a que se precisa
dar expressáo exterior.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 19
Espera-se dos crentes que "todos falem a mesma coisa".
Paulo nao podia esperar que todos os cristáos se unissem
numa declara^áo formal de fé, mas roga-lhes que haja tal
unanimidade em torno dos fatos essenciais que se evitem
divisoes ou cismas no corpo de Cristo. Os membros déste corpo
devem estar "inteiramente unidos" ou "ajustados uns aos
outros" (coesos), tendo as mesmas convicQoes intelectuais e
opinioes, unificados assim na fé, na esperanga e no amor.
O que ocasionou essa exortagáo á unidade foi uma no-
ticia que Paulo recebera por meio de alguns parentes ou
servos de Cloe, sendo éste evidentemente uma figura de re-
levo na Igreja daquela cidade. Segundo essa noticia, havia
graves "contendas" entre os cristáos alí. Nao é preciso pen-
sar que houvesse partidos organizados dentro da igreja, ou
uma fragmentagáo da corporagáo dos crentes em grupos es-
tanques. Mas havia-se manifestado uma tendéncia para a
divisáo, segundo a qual alguns estavam renunciando sua
lealdade a Paulo, declarando-se seguidores de Apolo, ou de
Pedro, ou de Cristo. Quais eram as razoes dessas preferén-
cias, ou o motivo dessa diferenciagao, nao se sabe; o que se
disser a respeito nao passará de simples conjecturas. Possi-
velmente os que se jactavam de pertencer a Paulo, com jus-
tiga reconheciam-no fundador da igreja e defendiam estre-
nuamente as doutrinas da Graga, expendidas na sua maneira
simples de apresentar o evangelho. Os adeptos do talentoso
alexandrino Apolo podiam ter-se deixado cativar ela filoso-
fía e pela retórica do eminente orador. Aquéles que tomavam
Cefas ou Pedro como líder, talvez o fizessem bascados no
fato de ser éste o apostólo de maior evidéncia, ou porque se
mostrasse ainda inclinado as formalidades e cerimónias do
Judaismo. O partido de Cristo talvez protestarse nao se sub-
meter a nenhum mestre humano, mas só possuir um credo:
as palavras do próprio Cristo, segundo a interpretagáo que
éles mesmos Ihes davam. Todos éstes partidos afimavam-se
cristáos, ao mesmo tempo em que cada qual se opunha aos
outros com maior ou menor tenacidade. Todos éles tém
sucessores na Igreja de hoje.
Uns sao inflamados de zélo evangelístico; apelam as
emogoes; alardeiam pregar "o simples evangelho". Sao lou-
vavelmente ativos na conquista de almas. A ordem de suas
idéias é um tanto acanhada. Suas formas de expressáo, con-
20
CHARLES R. ERDMAN
vencionais. Simpatizam muito pouco com as pessoas cuja
experiencia espiritual difere da sua, Faltam até com a de-
vida cortezia aqueles que divergem de suas fórmulas especí-
ficas de fé.
Outros preferem uma exposigáo mais filosófica da ver-
dade. Apelam ao intelecto. Tém muito gósto com sistemas
de teología e se deleitam com especulacoes abstrusas. Outros
acham delicia em ritos e cerimónias, que apelam aos sentidos,
ao gósto e ao sentimento. Dáo énfase á organizagáo eclesiás-
tica. Gostam de buscar a orígem da autoridade de sua igreja
em papas e apostólos e mesmo em Pedro. Ésses tais nao
admitem "meios de graga" fora de tempos marcados e in-
dependente de cerimónias e fórmulas estabelecidas. Ainda
outros há que repelem toda cerimónia e qualquer autoridade
humana. Alegam crer sómente na Biblia e só obedecer a
Cristo. Procuram combater qualquer seita, assim formando
outras para formar as suas. Todas estas sao verdadeiramente
cristas; há lugar para cada qual na Igreja de Cristo.
Enquanto a natureza humana fór o que é, enquanto o
conhecimento que tivermos fór limitado e os gostos variados,
difícilmente há de se esperar unanimidade de crenca, unidade
de organizacáo, ou uniformidade de culto. As "denomina-
goes" continuaráo a existir, mas estas podem trabalhar em
harmonia. Cada qual pode contribuir com algum beneficio
temporal. O que se deplora é o "espirito de partido" (seita) ,
expresso em rivalidades, ciumes, amarguras e orgulho.
É tal espirito que Paulo censura fazendo uma pergunta
incisiva: "Acaso Cristo está dividido?" Se todos os crentes
pertencemos a Cristo, cumpre que formemos um corpo. Se
nos dividimos e ainda pretendemos estar ligados a Cristo,
entáo Cristo precisa estar fragmentado, o que é absurdo.
Sómente Cristo pode ser a verdadeira cabega de qualquer
corporagáo de crentes. "Foi Paulo crucificado em favor de
vós?" pergunta o apostólo. Se os crentes tiverem na lem-
branca quem foi que morreu por éles e a quem, pois, per-
tencem, nao teráo essa preocupagáo de dizer que sao de
Paulo, de Apolo ou Cefas.
"Fóstes batizados em nome de Paulo?" O que éles sela-
ram e significaram pelo batismo foi a fé em Cristo e nao em
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
21
homem algum, e essa fé os pos em relacáo vital com Cristo.
Ora, devotar-se agora cada um déles a um líder humano,
ao ponto de se ver apartado de outros crentes cuja vida espi-
ritual se prende á fonte comum, Cristo, é negar essa fé e
renunciar essa relacáo.
Paulo nao sómente censura o espirito de partido, mas
frisa um ponto, a saber, tal espirito nao surgiu no meio déles
por culpa sua nem por alguma peculiaridade do seu ministé-
rio. O fato era que éle próprio se abstivera de administrar
batismos, para que ninguém suspeitasse néle a preocupagáo
de vincular de um modo assim especial os crentes a si, em
prejuizo da relacáo vital com Cristo. Batizara, sim, a Crispo,
principal da sinagoga, e também Gaio, o generoso benfeitor
dos crentes daquela cidade. Igualmente "a casa de Estéfa-
nas". Mas náo Ihe ocorria houvesse batizado outros, do
grande número que havia conduzido aos pés de Cristo. Ti-
nha bem vivo na lembranca que a tarefa suprema que o
Mestre Ihe impusera foi pregar o evangelho e náo administrar
sacramentos, por mais importante que isto pudesse ser. Além
do mais, sabia em que devia consistir sua pregacáo: apre-
sentar com clareza "a cruz de Cristo", e jamáis obscurecer
esta sublime realidade fósse pela forma da pregagáo, fósse
por especular com o seu fato central e supremo.
Nem sempre os ministros evangélicos se compenetram de
que sua tarefa máxima náo é administrar finangas nem or-
ganizar igrejas, mas pregar o evangelho. E náo se aperce-
bem da possibilidade que há de ganharem seguidores para
si e náo para Cristo, além do perigo a que se expóem de
deixar eclipsada a grande e essencial mensagem da salvacáo
com a eloquéncia que exibam e com discussoes eruditas em
torno de assuntos correlatos.
2. O Evangelho — manifestagáo da Sabedoria e do
Poder de Deus. Cap. 1:18-31.
18 Certamente a palavra da cruz é loucura para os
que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder
de Deus. 19 Pois está escrito: Destruirei a sabedoria
dos sábios, e aniquilare! a inteligencia dos entendidos.
20 Onde está o sábio? onde o escriba? onde o inquirí-
22
CHARLES R. ERDMAN
dor déste século? Porventura nao tornou Deus louca
a sabedoria do mundo? 21 Visto como, na sabedoria
de Deus, o mundo nao o conheceu por sua própria sa-
bedoria, aprouve a Deus salvar aos que créem, pela
loucura da prega^áo. 22 Porque tanto os judeus pe-
dem sinais, como os gregos buscam sabedoria; 23 mas
nós pregamos a Cristo crucificado, escándalo para os
judeus, loucura para os gentíos; 24 mas para os que
foram chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo,
poder de Deus e sabedoria de Deus. 25 Porque a lou-
cura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fra-
queza de Deus é mais forte que os homens.
26 Iimiáos, reparai, pois, na vossa vocagáo; visto
que nao foram chamados muitos sábios segundo a car-
ne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nas-
cimento; 27 pelo contfrário, Deus escolheu as coisas
loucas do mundo para envergonhar os sábios, e esco-
lheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as
fortes; 28 e Deus escolheu as coisas humildes do mun-
do, e as desprezadas, e aquelas que nao sao, para re-
duzir a nada as que sao; 29 a fim de que ninguém se
vanglorie na presenta de Deus. 30 Mas vos sois déle,
em Cristo Jesús, o qual se nos tornou da parte de Deus
sabedoria, e justi^a, e santificagáo, e reden^áo, 31 para
que, como está escrito: Aquéle que se gloria, glorie-se
no Senhor.
Paulo viu que o espirito de partido na Igreja de Corinto
surgirá de um conceito erróneo do evangelho e do ministé-
rio cristáo. Esforgou-se entáo por combater e dissipar ésse
espirito, apresentando a verdadeira natureza do evangelho
e do ministério sagrado. A cada um déstes assuntos val de-
dicar dois capítulos de sua carta.
É bem significativo, atualmente, que os que procurara
"reunir a Cristandade"., o tratam de fazer chegando todos a
urna compreensáo unánime, déstes mesmos assuntos. Por
isso estáo conferenciando sobre F,é e Ordem, dois assuntos
que se relacionam com a matéria de que Paulo vai tratar
agora. Haveria possibilidade quase nenhuma de divisoes
na Igreja se os crentes alcangassem o sentido do evangelho
pregado por Paulo e do ministério exemplificado por ele.
Conforme ele diz, o evangelho é urna revelaQáo divina
manifestando o poder e a sabedoria de Deus. Caps. 1:18 a 2:5.
E mais: sómente pela interpretagáo que o Espirito de Deus
Ihe dá é que pode ser compreendido. Caps. 2:6 a 3:4. Sendo
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 23
pois O que é, o evangelho nao dá lugar á glorificacáo de nin-
guém. Era portante um absurdo os crentes se declararem
pertencentes a Paulo, a Apolo, a Cefas ou a Cristo, visto que
o evangelho era um só, nao proveniente de homens, mas
de Deus.
Censurando essa estulticia partidária, Paulo declara que
na pregacáo tinha evitado qualquer manifestacáo de saber
humano, para que nao ficasse empanada a esséncia do evan-
gelho. Esta ele havia ido buscar na doutrina da cruz de Cris-
to. A "palavra da cruz", diz ele, é "loucura" aos olhos dos
reputados sábios do mundo, os quais, nao obstante, estao pe-
recendc. Mas, para os "salvos" é manifestamente "o poder de
Deus". Sua eficácia divina poe em relevo a loucura e a fu-
tilidade das tentativas do homem para conseguir salvacáo por
si próprio. Essa mesma eficácia Isaías notara em conexáo
com outra manifestacáo do poder de Deus. Compadecendo-
-se da fraqueza do homem e na iminéncia de manifestar a
sua onipoténcia divina, Jeová parecía pelo profeta dizer:
"Destruirei a sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligencia
dos entendidos".
Contrastando-os, pois, com o seu divino evangelho, Deus
tem feito que pareca absurda toda a sabedoria do homem, e
impotente todo o seu poder. ''Onde está o sábio?", indaga,
"onde o escriba? onde o inquiridor déste mundo?" Nao con-
verteu o Senhor em estulticia a sabedoria do século quando
fez que se proclamasse a salvacáo mediante Cristo?
Prossegue Paulo na explicacáo de como o evangelho tem
feito a sabedoria secular parecer doidice. Em sua sapientissi-
ma providencia, Deus permitiu que os sábios do mundo pro-
curassem por sí sós o caminho da vida e um conhecimento
salvador acerca de Deus, mas o fracasso foi completo. "Nao
conheceram a Deus". Assim pois teve Ele agora o prazer de
uma iniciativa sua: proporcionar-nos, pela pregacáo da cruz,
o meio de Salvacáo dos que créem em Cristo.
Quando, pois, Paulo fala em "loucura da pregacáo" nin-
guém pense que ele está recomendando pregagáo de tolices,
nem mesmo está se referindo á pregagáo em si, como um dos
meics de propagar a verdade. Antes, ele alude á substancia
da mensagem, á "coisa pregada", isto é, "a cruz de Cristo".
É isto que ao mundo parece doidice, mas na realidade é uma
expressáo da própria sabedoria de Deus.
24
CHARLES R. ERDMAN
Nem judeus nem gregos estao dispostos a receber tal
mensagem, dí-lo o apóstolo. Uns e outros estáo cegos por
suas próprias idéias pre-concebidas. Os "judeus pedem si-
nais", alguma manifestagáo portentosa e espetacular no céu,
talvez alguns distintivos ou sinais da realeza de Jesús, urna
prova concreta de seu poder político, algumas credenciais
que O acreditem como um potentado terreno. Só assim éles
creráo que é seu verdadeiro Messias ésse Cristo de quem
se fala.
Os "gregos buscam sabedoria".. Acreditam que o cami-
nho por onde se vai as culmináncias de urna verdadeira vida
deve ser contiguo ao da cultura intelectual e deve orientar-se
por preceitos de alguma filosofia humana. O apóstolo, en-
tretanto, convictamente proclama como único Salvador o
Cristo que foi crucificado, sendo tal mensagem, evidentemen-
te, uma pedra de tropégo, um escándalo, para os judeus que
alimentam a esperanga errónea de um Messias político. Para
os gentíos era "tolice", pois só confiavam em sua própria
sabedoria. Para nós, todavía, que aceitámos seu convite e O
seguimos, sejamos judeus ou gregos, Cristo tem-se tornado
"o poder de Deus e a sabedoria de Deus". Porque, de fato,
éste divino caminho de salvacáo que aos homens se afigura
uma "tolice", é mais sábio do que a sabedoria déles, e isto
que Ihes parece "fraqueza" é mais forte do que qualquer
poder humano.
Nao vamos supor nem por um momento que Paulo atri-
bue qualquer "loucura" a Deus, nem que ele sonhe em com-
parar esta suposta loucura com a sabedoria do homem. Nao.
O que ele emprega ai é uma linguagem irónica, frisando que
um meio de salvagáo que o homem considera fraco e tólo,
é na realidade um meio da sabedoria e do poder divinos.
O apóstolo acrescenta um exemplo oportuno do falso ra-
ociocínio do homem néste particular. Lembra aos corintios o
juizo errado que o mundo faz déles e daí mostra como Deus
realiza grandes feitos por meio daquilo que o mundo despreza:
"Irmáos, reparai, pois, na vossa vocagáo, visto que nao
foram chamados muitos sabios segundo a carne, nem muitos
poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário,
Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar
os sabios". Os havidos como "loucos" ou malucos acharam
em Cristo uma riqueza de sabedoria espiritual e um conhe-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
25
cimento salvador acérca de Deus, conhecimento que, pósto
em confronto com a sabedoria do mundo fé-la parecer total-
mente absurda.
Assim foi que Deus escolheu aos que o mundo considerou
fracos e Ihes deu, mediante a fé em Cristo, uma forca moral
que em face do poder natural do homem fe-lo parecer fra-
queza. Do mesmo modo Deus escolhe homens e mulheres
havidos pelo mundo como vis e desprezíveis, sim, até mesmo
aqueles que á vista do mundo nem existem, a fim de fazer
déles e por éles santos, mártires e herois, uma verdadeira
élite diante da qual o mundo foge envergonhado de si mesmo.
Quis Deus que a orígem da maioria dos crentes corintios fósse
humilde — diz Paulo — para que, salvando-os, nenhuma
ocasiáo tivessem de vanglória. Pelo poder de Deus e me-
diante a fé em Cristo Jesús, aqueles crentes apagados e in-
significantes se tornaram o que nao teriam sido jamáis pelo
poder e sabedoria humanos.
Para éles, pois. Cristo se havia tornado "sabedoria da
parte de Deus".~ Era Jesús a Sabedoria déles, de sorte que em
Cristo acharam tais tesouros de conhecimentos e táo grande
cabedal de compreensáo espiritual que nos dominios do mun-
do os homens nao alcangam nem por sonho. Cristo veio a
ser também a "justiga" déles, isto é, em Jesús haviam alcan-
cado o perdáo dos pecados, o cancelamento das culpas e
aquela paz de consciéncia que o mundo desconhece. Jesús
tornou-se igualmente a ''santificacáo" déles, pois no Salvador
encontraram uma pureza e uma santidade de vida que nunca
o mundo experimentou. Tornou-se-lhes também Jesús em
^'redengáo", porque nao sómente pagou "o preco do pecado",
como se levantou dentre os mortos, assegurando assim a seus
seguidores uma redengáo que, no final de tudo, há de atingir
o corpo tanto quanto já hoje alcanga a alma. Á vista de táo
grande salvacáo que a graca divina torna certa e segura,
e fazendo insignificante a sabedoria humana Paulo pode
muito bem concluir fazendo uma citagáo conhecida: "Aquéle
que se gloria, glorie-se no Senhor".
Tudo isto, porém, que acaba de Ihes dizer está em íntima
relagáo com a censura que faz do espirito de partido existente
entre éles. Se a salvagáo procede inteiramente de Deus, se
o evangelho é táo singularmente uma mensagem e de uma
revelagáo da graga divina, onde achar desculpa para a divi-
26
CHARLES R. ERDMAN
sao dos crentes, ou onde buscar justificativa para um dizer
"Eu sou de Paulo", e outro "Eu sou de Apolo"? Por que os
crentes haveriam de gloriar-se nos homens? Um conheci-
mento exato do evangelho torna absurdo o sectarismo e uni-
fica em Cristo todos os crentes.
3. O Método de Paulo anunciar o Evangelho. Cap.
2:1-5.
1 Eu, irmáos, quando fui ter convosco, anunciando-
vos o testemunho de Deus, nao o fiz com ostentagáo
de linguagem, ou de sabedoria. 2 Porque decid! nada
saber entre vós, senáo a Jesús Cristo, e éste crucificado.
3 E foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu
estive entre vós. 4 A minha palavra e a minha pre-
gagáo nao consistiram em linguagem persuasiva dfe
sabedoria, mas em demonstracáo do Espirito e de po-
der, 5 para que a vossa fé nao se apoiasse em sabedoria
humana; e, sim, no poder de Deus.
Se a igreja de Corinto estava desunida por um espirito
de cisma ou facgáo — "Eu sou de Paulo", "Eu de Apolo",
"Eu de Cefas", "Eu de Cristo" — Paulo frisa que a culpa nao
era sua. No cap. precedente chamou atencáo para o fato de
se haver abstido de administrar batismos, a fim de que nin-
guém supusesse ser aquéle um meio de arranjar seguidores
para si ou membros para uma igreja Paulistana. Aqui declara
que, até no modo de pregar havia evitado ocasiáo a quem
quer que fósse de se ufanar de o ter como líder. O evangelho
era uma mensagem divina; se assim fósse compreendido nao
haveria de dar ensancha á operagáo de tal espirito de partido
na igreja. Cuidara o apostólo de pregar de tal modo que
o caráter e a origem divina de sua mensagem nao fossem
escurecidas pela demonstragáo de sabedoria humana. Dian-
te déles, pois, nao havia brilhado como orador que arre-
batasse pela eloquéncia, nem quis passar como filósofo, no
testemunho da graga salvadora de Deus em Cristo Jesús.
Simples, modesta fóra sua tarefa entre éles, e definido
seu propósito. Determinara só saber uma coisa — Jesús
Cristo; conhecé-lO e proclamá-lO do modo menos aceitável
á sabedoria do mundo, isto é, apresentando Jesús abismado
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
27
na deshonra da morte de cruz. Cristo e sua obra expiatoria,
nao qualquer filosofia humana de salvacáo, constituira-se a
suma e a substáncia da mensagem de Paulo.
Dizendo ele ter sido éste o único propósito seu entre os
corintios, alguns querem ver nisso a confissáo tácita de que,
entre os atenienses, onde ministrava antes fóra outro o seu
desiderato. O fracasso do ministério de Paulo em Atenas é,
entáo, atribuido ao fato de se ter, ai preocupado com poetas
e sábios gregos. Diz-se que fracassou porque no discurso pro-
ferido no Areópago tivera acentuado sabor filosófico. Mas
aqueles que pensam déste modo compreendem mal a men-
sagem de Atenas e nao descobrem o verdadeiro sentido das
presentes palavras dirigidas á Igreja de Corinto.
Paulo pregou Cristo em Atenas, mas o método ai usado
foi conciliatório e prudente, defendendo o apóstolo com elo-
quéncila, fidelidade e poder os direitos de seu Senhor ressus-
citado. Sua mensagem adaptou-se perfeitamicnte ao tipo de
ouvintes que ai encontrón. Se houve fracasso deveu-se ao
orgulho intelectual dos ouvintes, antes que a alguma falha
do pregador.
O- contraste a sublinhar aqui nao é o que pudesse haver
entre uma e outra mensagem, a de Atenas e a de Corinto,
mas é o que ressalta de uma comparacáo da pregacáo de
Paulo ccm a de outros mais filosóficos no argumentar, e que
tinham empolgado por tal forma os ouvintes que éstes se
deixaram arrastar por éles, ao ponto de se declararem seus
adeptos ou simpatizantes, perdendo de vista o seu Salvador.
Foi éste mesmo perigo que o apóstolo quis evitar quando re-
solveu ser simples em seus discursos e claro em sua pregacáo.
Confessa que esteve entre éles "em fraqueza", o que se
pode entender no sentido de uma enfermidade física, que o
abatesse e humilhasse, constituindo-se para o grande após-
tolo uma provacáo dolorosa. Ou talvez queira se referir a
uma perturbacáo mental, ou depressáo espiritual, a par do
"temor" e "grande tremor" que fizeram de sua primeira es-
tada em Corinto um dissabor sem precedente. Vira-se de-
solado, sozinho, no meio da grande cidade, ansiando pela
chegada de seus cooperadores Silas e Timóteo. O ambiente
pesado de um paganismo grosseiro deprimia-o. O orgulho,
aquela auto-suficiéncia dos corintios desalentava-o. Sentia
28
CHARLES R. ERDMAN
asco pelas impurezas e corrucáo moral ambiente. Como so-
brecarga de tudo, entristecia-o a oposicáo maligna e blasfema
de seus mesmos patricios, os judeus.
Foi quando o Senhor Ihe aparecen de noite, em visáo,
para llie dizer: "Nao temas; pelo contrário, fala e nao te
cales: visto que eu estou contigo e ninguém ousará fazer-te
mal, pois tenho muito povo nesta cidade". Com esta visáo
Paulo se dispós a depender de Cristo, rnais do que antes. Nao
se preocupou mais tanto consigo, com a sua apresentagáo ou
com a forma de sua pregacáo. Sua "palavra" e sua "prega-
cao", pois, nao consistiram em "linguagem persuasiva" de
humana "sabedoria". Nao obstante, foram acompanhadas
pela demonstragáo do Espirito e pelo seu poder. Tudo isto
de acordó com o propósito divino, para que os ouvintes nao
depositassem sua fé em qualquer aparato de sabedoria huma-
na, mas no poder manifestó de Deus.
Á vista disso, portanto, quáo absurdos e pecaminosos nao
eram aqueles movimentos partidários que dividiam a igreja,
ocasionados por preferencias a mestres humanos e por uma
admiracáo jactanciosa dos talentos e das habilidades de po-
bres criaturas mortais.
O evangelho, sendo como é um recado divino, focaliza a
pessoa de Cristo, aliás num Cristo que foi crucificado. A
mazela das divisóes entre os crentes serial debelada se os
filhos de Deus se preocupassem mais com o seu divino Se-
nhor e sua graga redentora, e tratassem menos das especu-
lacoes, teorías e fórmulas humanas.
Por outro lado também os ministros do evangelho devem
atentar cuidadosamente no conteúdo de suas pregacoes, que
fatos merecem a devida énfase, e mesmo para suas maneiras
de expressáo, de modo que fagam jus ao título de verdadeiros
pregadores de "Jesús Cristo, e éste crucificado".
4. O Espirito de Deus, intérprete do Evangelho. Cap.
2:6-16.
6 Entretanto, expomos sabedoria entre os experi-
mentados; nao, porém, a sabedoria déste século, nem
a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada;
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 29
7 mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, ou-
trora oculta, a qual Deus preordenou desde a etemi-
dade para a nossa gloria; 8 sabedoria essa que nenhum
dos poderosos déste século conheceu; porque, se a ti-
vessem conhecido, jamáis teriam crucificado o Senhor
da gloria; 9 mas, como está escrito; Nem olhos vi-
ram, nem ouvidos ouviram, nem jamáis penetrou em
cora^áo humano, o que Deus tem preparado para aque-
les que o amam. 10 Mas Deus no-lo revelou pelo Espi-
rito; porque o Espirito a todas as coisas perscruta, até
mesmo as profundezas de Deus. 11 Porque, qual dos
homens sabe as coisas do homem, senáo o seu próprio
espirito que néle está? assim também as coisas de
Deus ninguém as conhece, senáo o Espirito de Deus.
12 Ora, nós nao temos recebido o espirito do mundo, e,
sim, o Espirito que vem de Deus, para que conhecamos
o que por Deus nos foi dado gratuitamente. 13 Disto
também falamos, nao em palavras ensinadas pela sa-
bedoria humana, mas ensinadas pelo Espirito, confe-
rindo coisas espirituais com espirituais. 14 Ora, o ho-
mem natural nao aceita as coisas do Espirito de Deus,
porque Ihe sao loucura; e nao pode entendé-las porque
elas se discernem espiritualmente. 15 Porém o homem
espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo nao é
julgado por ninguém. 16 Pois, quem conheceu a mente
do Senhor, que o possa insíiruir? Nós, porém, temos
a mente de Cristo.
Algumas vézes ouvimos alusoes á simplicidade do evan-
gelho. A expressáo é bastante apropriada, se quer dizer men-
sagem crista, livre de quaisquer acréscimos e corrutelas. Num
sentido mais verdadeiro, porém, o evangelho nao tem nada
de simples, pois envolve a filosofia mais profunda com que
já se deparou o intelecto do homem. Originou-se na mente
e no coragáo de Deus. É táo sutil e misterioso, sobrepuja
por tal forma as mais alcandoradas criacoes da razáo huma-
na que ninguém o compreende ou déle faz uma idéia corre ta
se o Espirito de Deus nao vier em auxilio.
É isto o que Paulo afirma: embora possa parecer "lou-
cura" ao homem, e ainda que, na sua proclamagáo, tivesse
fúgido a aparatos filosóficos e a qualquer exibigáo de huma-
na sabedoria, nao obstante isso o evangelho é verdadeira
"sabedoria", reconhecido como tal pelos "experimentados"
ou amadurecidos espiritualmente. Todavía, nao é "sabedo-
ria déste século, nem a dos poderosos desta época", que
se estáo reduzindo "a nada", visto como sua suposta sabe-
30
CHARLES R. ERDMAN
doria está aos poucos se desacreditando, em virtude de sua
incapacidade moral e pelo manifestó poder do evangelho.
Com efeito, o que Paulo anuncia é a "sabedoria de Deus".
Esta esteve "em mistério", na acepgáo neo-testamentária do
termo, o que indica nao algo impossível de se compreender,
mas aquilo que a razáo humana por si jamáis podia ter des-
coberto, ou seja um fato posto em perfeita evidencia somente
pelo Espirito de Deus. É ésse mistério que Paulo ai descreve
como ''sabedoria outrora oculta", v. 7, cujo conteúdo o Se-
nhor nos revelou "pelo Espirito".
Tal sabedoria, aliás o plano eterno da salvagáo por Cristo,
esteve oculta do homem. Nenhum gigante do pensamento
ou da política a descobriu, pois "se a tivessem conhecido,
jamáis teriam crucificado o Senhor da gloria". Os contem-
poráneos de Cristo nao tinham qualquer vlsáo espiritual.
Nao sabiam o que era verdadeira virtude e santidade; nao
eram capazes de apreciar o* amor divino, porque tudo isso,
estando corporificado no Salvador, éles rejeitaram, crucifi-
cando a Jesús. O meio de salvagáo que Deus, em sua graga,
preparara nao foi descoberto pelo homem, nem o podia ser,
salvo pela revelagáo do Espirito de Deus.
Uma citagáo de Isaías vem corroborar esta declaragáo do
apostólo. Náo é feita literalmente, mas o pensamento central
é apresentado. Sublinha-se ai a incapacidade do homem
para desvendar aquilo que somente Deus pode revelar:
"Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram,
Nem jamáis penetrou em coragáo humano
O que Deus tem preparado para aqueles que O amam".
Náo se alude ai as glorias desconhecidas do céu, como em
geral se pensa, mas a referencia é ao meio de salvagáo que
Deus preparou pela vida, morte, ressurreigáo e poder salva-
dor de Cristo. O olho de ninguém jamáis o descobriu, nem
ouvido humano o percebeu, nem coragáo de carne o conce-
beu. É divino em sua origem. Saiu da excogitagáo do Es-
pirito de Deus. Náo diz respeito simplesmente a um estado
futuro de existencia, mas é ura fato que já agora se pode
conhecer e experim.entar. Paulo o declara, por dizer: "Mas
Deus no-lo reveiou pelo Espirito; porque o Espirito a todas
as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus".
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
31
De sorte que o evangelho nao sómente é divino em sua
origem como também o é em sua íntima natureza, visto como
sem o auxilio do Espirito de Deus nao pode ser compreendido.
Dizendo que o Espirito a tudo perscruta nao se deve dai
inferir um conhecimento parcial que necessite de aperfeigoar-
mento, mas trata-se de um conhecimento profundo e minu-
cioso, como quando se diz que Deus perscruta os coragoes.
E ésse conhecimento Paulo o compara á consciéncia que
todas as pessoas tém de si. Só o espii'ito do homem pode
saber o que se passa no seu íntimo, ou o que existe em sua
mente ou no seu ccracáo. Assim, só o Espirito de Deus
pode alcancar os profundos designios, os planos e a sabe-
doria de Deus, tudo isto com efeito coi-porificado no evange-
lho de Cristo. Para que compreendamos ésse evangelho, de-
clara o apestólo, Deus nos esclarece com uma luz que difere
da inteligencia comum dos sábios do século, ou seja um de-
terminado discernimento espiritual que provém totalmente
do Espirito de Deus. Recebemos ésse Espirito para nos ca-
pacitarmos a compreender a mensagem da graca, disso mesmo
"que por Deus nos é dado gratuitamente".
É esta a mensagem de que Paulo se declara portador, a
qual consiste ''nao em palavras ensinadas pela sabedoria
humana, mas ensinadas pelo Espirito, conferindo coisas es-
pirituais com espirituais". Esta última cláusula pode querer
dizer — "interpretando coisas espirituais para pessoas espi-
rituais", ou "apresentando verdades espirituais por meio de
palavras fornecidas pelo Espirito".
Nao é estranhável, pois, que o evangelho parega rema-
tada loucura as pessoas do mundo, ao homem "natural", nao
espiritual, cuja capacidade de apreensáo nao se estende além
da esfera do intelecto. Isto porque o evangelho se ocupa de
verdades que pertencem ao reino do espirito, só podendo ser
compreendidas por pessoas "espirituais". O que ele ai cha-
ma "espirito" é o espirito humano influenciado pelo Espirito
de Deus, e homem espiritual é aquéle que está sob a influen-
cia do Espirito de Deus. Evidencia-se entáo a causa pela qual
"o homem natural nao aceita as coisas do Espirito de Deus"
e por que estas Ihe parecem loucura e nao as pode entender.
Sao coisas que se julgam ou apreciam espiritualmente. O
incrédulo, o "homem natural", nao iluminado pelo Espirito
de Cristo, nao está aparelhado para apreciar ou perscrutar e
32
CHARLES R. ERDMAN
muito menos compreender o evangelho. Ao passo que "o
homem espiritual julga todas as coisas", até o que os olhos
humanos nao discernem, nem os ouvidos ouvem, nem o es-
pirito concebe, até mesmo aquelas coisas profundas relacio-
nadas com o divino. Pode ser inculto, segundo o critério de
o mundo julgar cultura, pode ser rude ou falho de inteligen-
cia no entender dos homens, mas é capaz de aprender ver-
dades que o mais sábio e mais arguto homem natural nao
pode perceber. E ele mesmo é um mistério para o homem
natural. Nao há ninguém no mundo que possa compreender
um eren te: "ele mesmo nao é julgado por ninguém".
Por outra parte, nós que aceitámos o evangelho e temos
a iluminagáo do Espirito, "nós temos a mente de Cristo".
Nao quer isto dizer que a tempera moral do crente seja tao
perfeita como a de seu Senhor, nem significa seja sobrehu-
mano o conhecimento que tem. Quer dizer que, debaixo da
influencia do Espirito Santo, suas faculdades moráis e inte-
lectuais recebem tal despertamento, vitalidade ou esclareci-
mento que ele pode entender o meio de salvagáo proclamado,
operado, aprovado por Cristo e posto ao alcance da inteli-
gencia dos homens pelo Espirito de Cristo.
Entáo, se o evangelho tem essa orígem e natureza di-
vinas, aqueles que o aceitam por que haveriam de permitir
divisoes em seu meio, ocasionadas pelos que o anunciam?
Se da parte déstes houver lealdade a ésse evangelho único,
os que o aceitam conviráo néle e andaráo concordes; se os
que o pregam forem fiéis ao seu ministério, nao permitiráo
que o brilho de sua mensagem seja obscurecido pelos artifi-
cios da retórica e de uma filosofía humana. O seg;rédo de
uma igreja unida, coesa, está na iluminagáo do Espirito de
Cristo que faz seja compreendido pelos eren tes o evangelho
do mesmo Senhor Jesús.
5. Espirito de partido, prova de imaturidade espiritual.
Cap. 3:1-4.
1 Eu, porém, irmáos, nao vos pude falar como a
espirituais e sim como a carnais, como a criangas em
Cristo. 2 Leite vos dei a beber, nao vos del alimento
sólido; porque ainda nao podieis suportá-lo. Nem
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
33
ainda agora podéis, 3 porque aínda sois camais. Por-
quauto, havendo entre vós ciúmes e contendas, nao é
assim que sois carnais e andáis segundo o homem? 4
Quando, pois, alguém diz: Eu sou de Paulo; e outro:
Eu, de Apolo; nao é evidente que andáis segundo os
homens?
Nada pode ser mais infantil nos crentes e que mais indi-
que atraso espiritual como andarem divididos, em rivalidades
denominacionais ou dominados por espirito faccioso. Assim
é que, censurando nos corintios seu espirito sectário, decla-
ra-lhes que se estáo mostrando com isso ser simples "criancas
em Cristo" e agindo á maneira de quem ainda nao provou
a regeneracáo.
Foi multo bem calculada a censura, porque os corintios
se envaideciam de seus dons e de sua capacidade de realiza-
goes, enquanto alguns faziam pouco de Paulo, desdenhando
da simplicidade de seu ensino. O apostólo redargüí, dizendo
que a sua simplicidade no caso correspondía á imaturidade
déles. Apenas procurara adaptar-se á incapacidade de seus
ouvintes. Como espiritual, nao Ihes pudera falar como a
espirituais, pela simples razáo de nao serem capazes de com-
preendé-lo nem de aceitar um ensino mais adiantado. "O
homem natural nao aceita as coisas do Espirito de Deus
porque Ihe sao loucura, e nao podem entendé-las porque elas
se discernem espiritualmente".
Com isto nao quer dizer que nao eram crentes, mas ve-
rificou o apostólo que ainda estavam na sua infancia espiri-
tual. Já haviam passado pela experiencia do novo nascimento,
mas a velha natureza e as antigás propensoes da carne cer-
ceavam néles a acáo do Espirito. Nao se haviam desenvolvido
e, pois, eram "criangas em Cristo".
De certo que nao é vergonha ser crianga, mas permane-
cer crianga toda a vida, parar de desenvolver-se, é coisa digna
de lástima. Regeneragáo nao significa perfeigáo moral, senáo
o comégo de nova vida. E há multo caminho a andar, do
bergo á maturidade.
Considerando a condigáo dos corintios, de falta de ma-
dureza espiritual, havia-os alimentado com "leite" e nao Ihes
dera ^'alimento sólido". Ministrava-lhes o que convinha a
criangas. Ensinara-lhes sómente as verdades rudimentares
34 CHARLES R. ERDMAN
do evangelho, pois verificara que nao eram capazes de receber
e assimilar alimento pesado, isto é, doutrinas mais difíceis
e mais ayancadas. Pregara-lhes "Jesús Cristo, e éste cruci-
ficado", mas nésse mister limitara-se a formas elementares
e aplicacoes mais simples da mensagem evangélica.
Há tempo e lugar oportunos para essa pregagáo. Todos
precisam saber acerca do perdáo, da paz e poder que resultam
da fé no Cristo crucificado e redivivo. Aceitar ésse Cristo
como Senhor e Mestre, e passar pela experiencia do novo
nascimento, é comegar uma vida nova.
E nisto é que consiste o desenvolvimento espiritual:
apreciar tais verdades, viver por elas, aplicá-las a cada uma
das necessidades da vida e entáo ser capaz de receber e apre-
ciar outras matérias mais adiantadas do ensino cristáo. Mas
nisto é que os corintios falharam. Nao se haviam desenvol-
vido, continuavam como criangas em Cristo, e ainda eram
incapazes de digerir alimento sólido. Ainda eram "carnais",
isto é, néles a "carne" sobrepunha-se ao espirito, a velha
natureza com suas ruins inclinagoes mantinha ascendencia
sobre a nova. Via-se que éles andavam "segundo o homem",
como aqueles que de Deus ainda nao tinham recebido nova
vida, tais quais os irregenerados do mundo.
E a prova dessa falta de madureza, désse raquitismo es-
piritual, estava ñas invejas, ñas contendas e divisoes. O
simples fato de haver desuniáo entre éles já era prova de
imaturidade espiritual, enquanto os ciúmes e intrigas, que.
originavam e mais agravavam tal desuniáo, eram outras
tantas indicacoes de falta de desenvolvimento e prova de
uma condicáo carnal.
Muitos crentes há que se ufanam de pertencer a certas
correntes de opiniáo dentro de sua igreja, quando a própria
existéncia de tais correntes diversificadas e opostas sao uma
desgraga e vergonha. Quando existe tal espirito faccioso no
meio do povo de Deus, tem-se ai uma demonstragáo lasti-
mável de falta de compreensáo do evangelho de Cristo. Os
crentes amadurecidos, "espirituais", regozijam-se na unidade
da Igreja. A éles o Espirito Santo há revelado as profunde-
zas de Deus e os tem feito sentir e gozar a doce realidade de
os filhos de Deus constituirern um corpo único. E porque o
sentem e gozam, procuram guardar e manifestar essa uni-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 35
dade que o Espirito opera servindo-se éles do vínculo ou dos
elos da paz, "até que todos cheguemos á unidade da fé e do
pleno conhecimento do Filho de Deus, á perfeita varonilidade,
á medida da estatura da plenitude de Cristo".
6. Os Ministros sao Servos de Deus, nao Senhores dos
Homens. Cap. 3:5-9.
5 Quem é Apolo? e quem é Paulo? Servos por meio
de quem créstes, e isto conforme o Senhor concedeu a
cada um. 6 Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimen-
to veio de Deus. 7 De modo que nem o que planta é
alguma coisa, nem o que rega, mas Deus que dá o
crescimento. 8 Ora, o que planta e o que rega sao um;
e cada um receberá o seu galardáo, segundo o seu pró-
prio trabalho. 9 Porque de Deus somos cooperadores;
lavoura de Deus, edificio de Deus sois vos.
Paulo mostrou que o espirito de seita na igreja podia ser
corrigido á luz do evangelho, considerado éste como mensa-
gem da parte de Deus, revelada pelo Espirito Santo. Éste
conceito do evangelho torna impossivel que nos gloriemos no
homem, ou torna impraticável a divisáo da igreja em parti-
dos antagónicos que se manifestam em predilegáo a deter-
minados líderes.
Agora éle procura mostrar que tal espirito sectário se
corrige também por uma apreciacáo correta do que seja um
ministro do evangelho, que é servo de Deus e nao dominador
de homens. A palavra ''ministro" tem sua beleza e é suges-
tiva. Significa "servo" e é éste o seu sentido no Novo Testa-
mento. Nunca significa pastor de igreja ou chefe de uma
congregacáo, como na linguagem moderna comumente quer
dizer. Paulo declara que éle, Apolo e outros mensageiros do
evangelho nao passam de servos que pertencem a Deus, sendo
absurdo os crentes corintios dividirem-se em correntes de
opiniáo a respeito de homens que Deus enviou para serví-los.
Tais mensageiros sao propriedade de Deus, e aquéles que re-
ceberam sua mensagem igualmente o sao, pelo que se devem
mostrar agradecidos ao Senhor em face do servico que assim
Ihes é prestado. Nada de orgulho ou ciúme a propósito dos
vários beneficios que tais obreiros proporcionam. Sob éste
36
CHARLES R. ERDMAN
ponto de vista o ministério deve antes congracar os crentes
numa gratidáo unánime e jamáis dividí-los ou provocar entre
éles rivalidades e emulagoes.
"Quem é Apolo e quem é Paulo", pergunta. Certamente
nao tiveram a pretensáo de fundar partidos ou seitas, com
ares de quem queria dominá-los. Sao servos cujo único dé-
se jo foi o de estabelecerem lá uma igreja unida e forte,
constituida de todos os seguidores de Cristo. Sao ministros
por meio de quem os corintios foram levados á fé. Cada qual
vai executando a tarefa que o Senhor Ihes assinou. Paulo
semeia, Apolo rega, mas é Deus quem faz crescer a planta.
Paulo, é verdade, comegou o trabalho entre éles; depois veio
Apolo e continuou a obra. Mas nem um nem outro é alguma
coisa, porque o éxito de ambos veio sómente da béngáo de
Deus. Em si ou de si mesmos nada sao, muito menos na
presenta de Deus, de cuja boa providéncia depende o cres-
cimento do trabalho.
O interessante, além do mais, é que Paulo e Apolo nao
sao rivais. Ninguém pois os considere chefes de seitas. Sao
diferentes as tarefas que realizam, mas estáo unidos quanto
ao alvo que tém sob as vistas. "O que planta e o que rega
sao um". Só aspiram a uma coisa na vida: o progresso da
Igreja. Cooperagao e nao competigáo. As oportunidades e
responsabilidades de ambos variam, porisso também a remu-
neracáo que váo receber será variada, todavía proporcionada
á diligéncia e á fidelidade que um e outro tiver mostrado na
obra: "Cada um receberá seu galardáo, segundo o seu pró-
prio trabalho".
Ninguém deve alegar superioridade de um trabalho sobre
outro, como justificativa de predilegáo por A ou B. Tais pre-
feréncias sao de todo destituidas de razáo, atendendo-se a
que "nós" ministros evangélicos, "nós" mensageiros de boas
noticias, *'nós" servos da Igreja, todos somos "cooperadores
de Deus". Nao quer dizer que operamos com Deus. Nao é
éste o sentido do apostólo. Somos operadores em companhia
de outros, e todos pertencemos a Deus. Como servos do Se-
nhor cabe-nos uma tarefa comum, que é laborar no campo
de propriedade divina, na Igreja, na térra lavrada onde um
langa a sementé que outro logo mais vem regar. Mudando
a figura de linguagem, somos operários ocupados na cons-
trugáo do grande templo que se destina á habitagáo de Deus.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
37
Enquanto nós somos cooperadores de Deus, diz o apostólo,
por outro lado "vós sois lavoura de Deus e edificio de Deus".
Esta conceituagáo do ministério sagrado assegura uni-
dade á Igreja e promove um espirito de humildade e de sim-
patía entre os que servem ao Senhor.
7. A Responsabilidade dos Ministros. Cp. 3:10-17.
10 Segundo a gra?a de Deus que me foi dada, lan-
cci o fundamento como prudente construtor; e outro
edifica sobre ele. Porém cada um veja como edifica.
11 Porque ninguém pode lanzar outro fundamento,
além do que foi posto, o qual é Jesús Cristo. 12 Con-
tudo, se o que alguém edifica sobre o fundamento é
ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, paina, 13
manifesta se tornará a obra de cada um; pois o dia a
demonstrará, porque está sendo revelada pelo fogo; e
qual seja a obra de cada um o próprio fogo o provará.
14. Se permanecer a obra de alguém que sobre o tunda-
damento edificou, ésse receberá galardáo; 15 se a obra
de alguém se queimar, sofrerá ele daño; mas ésse
mesmo será salvo, todavía, como que através do fogo.
16 Nao sabéis que sois santuarios de Deus, e que o
Espirito de Deus habita em vós? 17 Se alguém des-
truir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o
santuário de Deus, que sois vós, é sagrado.
Se as tarefas sao diferentes, diferentes também sao os
servos a quem elas sao distribuidas, mas todos sao igualmente
responsáveis pela qualidade do servigo que prestar em. Essa
variedade de trabalho na Igreja, Paulo acabou de ilustrá-la
com a figura do campo, onde um planta e outro rega a se-
menté que germina. Mas, para melhor atingir o fim em
vista, ele agora troca a figura e passa a falar de um templo.
Os ministros evangélicos sao companheiros de trabalho. Ca-
da um tem sua parte na edificagáo désse templo, e todos sao
responsabilizados pelo tipo de material que emprega e pela
maneira de executar o trabalho. Todos se devem esforgar
para que a sua construgáo suporte o teste da apreciacáo de
Cristo, e assim receba o galardáo.
No que Ihe diz respeito, Paulo assevera que agiu como
um construtor entendido no seu mister. Resguarda-se de
parecer vaidoso e presungoso declarando logo que a sabedo-
38
CHARLES R. ERDMAN
ría com que agiu deveu-a á "graga de Deus". Nao havia pois
nada de merecimento no seu traballio. Langou o fundamento,
o coméco da igreja em Corinto, e tudo quanto outros mestres
estavam fazendo agora era edificar sobre essa fundagáo. Que
se acautelen!, pois, e atentem no que fazem. De urna coisa
fiquem cientes: se ja qual for o trabalho que estejam reali-
zando, de outra fundacáo é que nao devem cogitar. O Fun-
damento lancado foi Cristo. Foi com o anúncio de seu Se-
nhor crucificado, ressurto e outra vez esperado do céu que
se fundou a igreja alí. O próprio Deus, com efeito, dera ésse
Fundamento á Igreja, de sorte que nao houvesse dúvida so-
bre isto: "ninguém pode lancar outro fundamento, além do
que foi posto, o qual é Jesús Cristo".
Todavía é possível levantar sobre essa fundagáo estrutu-
ras de materiais diversos. Um constroi com elementos custo-
sos e duráveis, como o ouro, a prata e as pedras preciosas.
Outro emprega materiais que se deterioram com o tempo
tais a madeira, o feno e a palha. Nao estamos certos sobre
aquilo a que exatamente correspondiam ésses variados mate-
riais da comparagáo do apostólo. Pensam alguns que se re-
fere a doutrinas, umas falsas e outras verdadeiras. Há os
que querem seja a referencia a pessoas, umas chelas de bon-
dade e servigais, outras sem nenhum préstimo, que estavam
ingressando na Igreja visível. Ainda outros supoem que o
apostólo alude aos frutos moráis e espirituais do trabalho de
certos mestres cristáos, frutos que apareciam na vida e no
caráter de seus discípulos. Sao tres pontos de vista aparen-
temente discrepantes, mas que se completam. As sás dou-
trinas moldam o caráter e determinam a conduta, ao passo
que ensinos erróneos, mediocres, tolos levam a profissoes de
fé vazias de sentido, de modo que as igrejas se enchem fácil-
mente e chegam a dar a impressáo de ser grandes e fortes,
todavía incapazes de resistir a prova do tempo ou o julgamen-
to de Cristo.
Ésse dia de prova e de revelagáo vai chegar, sem nenhu-
ma dúvida. "Manifesta se tornará a obra de cada um", ou
seja a sua verdadeira natureza. "O dia" da segunda vinda
de Cristo "o demonstrará", ésse dia glorioso ainda futuro,
quando o Senhor há de dar recompensa a seus servos. O
julgamento será como fogo, que experimentará o real valor
da obra de cada um. A mediocridade e vaidade de alguns
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
39
trabalhos seráo reveladas; outros se mostraráo de valor per-
manente. Receberá galardáo aquéle cuja obra fór aprovada,
e deixará de recebé-lo quem nao o fór. Todavía nao perderá
a alma. Se tiver edificado sobre o fundamento que é Cristo,
será salvo, embora perdendo o trabalho que realizou. Seráo
semelhantes a quem consegue escapar, a muito custo, de uma
casa incendiada. "Ele mesmo será salvo, todavía como que
através do fogo". Torncu-se proverbial esta expressáo para
significar um escape difícil e arriscado. Também pode ter o
sentido de uma vergonha profunda, uma desílusáo tremenda
e um rem.orso intenso, que há de sentir o ministro que apa-
rentemente teve um ministérío bem sucedido, mas que afínal
se manifestou sem solidez, mediocre, de aparéncía engañosa.
Tudo isto está em íntima relacáo com o tema do comégo
da epístola — divisoes na igreja — e é de muito valor prático
a igreja de nossos días sabé-lo. Primeiro, só há e só pode
haver um Fundamento; todos quantos estáo unidos a Cristo
constituem um só edificio. Só pode haver uma Igreja Crista.
Partidos e seitas, evidentem.ente, sao uma negagáo de tudo
isso. Segundo, se Paulo fundara a igreja com a pregacáo
de Cristo exclusivamente, os que se diziam adeptos de algum
outro pregador nao apenas, com essa atitude, se afastavam
de Paulo, mas do Cristo que ele anunciava. Repudiar a Paulo
era abandonar a Cristo. Em terceiro lugar, se alguns mestres
gozavam de muita popularidade e se os seus adeptos blasona-
vam désse fato, a prova real do servigo déles nao estava no
louvor dos hornens, mas no julgamento de Cristo. Alguns
daquéles que recebiam louvacoes as custas de Paulo ficaráo
desapontados um día na presenca de Cristo, em sua vinda.
Nao seráo afastadcs da presenga de Deus, é certo, mas qual-
quer premio de servigo Ihes será negado.
Paulo encerra esta parte com um aviso solene e apro-
priado. As divisoes causam daño, prejuízo, ao santuário de
Deus, profanam-no, destroem-no — santuário que deve ser
inviolável, a Igreja de Jesús Cristo, constituida dos crentes,
como pedras vivas. Este santuário apoia-se no divino Filho
de Deus e é ocupado pelo Espirito Santo. Se alguém, por seu
espirito faccioso, por orgulho ou vaidade causa cisoes na
Igreja, ésse tal sofrerá castigo de Deus. "Se alguém destruir
o santuário de Deus, Deus o destruirá, porque o santuário de
Deus, que sois vos, é sagrado".
40
CHARLES R. ERDMAN
8. Dividir a Igreja é próprio de insensatos. Cap. 3:18-23.
18 Ninguém se engañe a si mesmo: se alguém
dentre vós se tem por sábio neste sáculo, faga-se es-
tulto para se tornar sábio. 19 Porque a sabedoria déste
mundo é loucura diante de Deus; porquanto está escri-
to: Éle apanha os sábios na própria astucia déles. ZO
E outra vez: O Senhor conhece os pensamentos dos
sábios, que sao pensamentos vaos. 21 Portanto, nin-
guém se glorie nos homens; porque tudo é vosso: 2Z
seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja
a vida, seja a morte, sejam as coisas presentes, sejam
as futuras, tudo é vosso. 23 E vós de Cristo, e Cristo
de Deus.
Os que provocam cisoes na Igreja geralmente o fazem
movidos de vaidade e orgulho. Em qualquer caso, sao culpa-
dos de um ato de loucura, visto se sobreporem aos demais,
defraudando-os por privá-los do convivio e da instrugáo que
outros líderes Ihes possam proporcionar e a que todos os dis-
cípulos de Cristo tém direito.
Paulo insiste em demonstrar que essa tendencia para de-
savengas seria em grande parte corrigida por um conceito
exato do ministério cristáo, ministério que existe para servir
a Igreja toda e nao a grupos separados dentro déla.
*'Ninguém se engañe", adverte. Ninguém se envaidega,
julgando possuir maior clarividencia relativamente ao plano
de salvagáo, ou quanto a um exato conhecimento de Deus, o
que só se obtem no evangelho e na prédica da cruz. Mas,
como mostrou no primeiro cap., isso afigura-se loucura aos
sábios do mundo, embora seja de fato a própria sabedoria
de Deus. Portanto, insiste o apostólo, quem quer que se tenha
por sábio, segundo o critério do mundo, deve fazer-se estulto
aos olhos déste século pela aceitagáo do evangelho de Cristo.
Déste modo tornar-se-á verdadeiro sábio. "Porque a sabe-
doria déste mundo é loucura diante de Deus". A palavra de
Jó vem confirmar éste asserto. — "Éle apanha os sábios na
própria astúcia déles" — sendo ai a referéncia á futilidade
do engenho humano e á sua incapacidade de alcangar os fins
que se propoe. Também o salmista vem confirmar esta ver-
dade. — "O Senhor conhece os pensamentos dos sábios, que
sao pensamentos vaos". A idéia é que a sabedoria humana
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 41
é oca, vazia, va, nao sómente quanto aos seus efeitos mas
na sua própria esséncia.
Compreenda-se que Paulo está apreciando a sabedoria
humana do ponto de ^ vista de sua incapacidade de acertar
com a salvagáo e de alcangá-la. Todas as verdades da ciencia
e da filosofia, assim como todo progresso em qualquer que
seja o ramo do saber humano, sao louváveis e devem ser
aceitos com gratidáo, como presentes de Deus. Mas o evan-
gelho da salvagáo é sabedoria de Deus, superior a todas as
filosofías da térra. Teve sua génese no pensamento de Deus
Pal, relaciona-se com o Filho e é revelado pelo Espirito Santo.
"Portan to, ninguém se glorie nos homens". Cesse toda
jactancia, vaidosa e egoísta, que faz preferir-se na igreja um
mestre por outro. Ninguém se julgue honrado por pertencer
a A ou B, seus preceptores. Éles é que pertencem a todos,
como servos que sao de todos. Tenha-se na lembranga que
tudo é nosso, se pertencemos a Cristo.
Paulo passa a fazer um como inventário de tudo isso que
diz ser nosso, de toda essa riqueza que os filhos de Deus
possuem. Os ministros sao nossos: Paulo, com o conhecimen-
to incomparável que tem do evangelho, com o seu inigua-
lável zélo e fervor missionário; Apolo, com todo o seu pro-
fundo conhecimento das Escrituras e sua arrebatadora elo-
quéncia; Pedro, com aquela santa experiencia de seu contacto
pessoal com o Senhor. Todos estes sao nossos. Nao vamos
dizer que pertencemos a éles; pelo contrário, éles é que sao
nosso patrimonio. Pertencendo-nos, pertencem de igual modo
a todos os cristáos. Nao nos privemos de nenhum bem; nao
defraudemos a Igreja com as nossas divisoes. Temos o di-
reito de privar nao sómente com os mestres favoritos, mas
com todos, e receber de todos a influéncia de seu ensino.
Se Paulo, Apolo e Cefas sao nossos, nossa também é a
Igreja que representam. O mesmo se diga do mundo. Tudo
quanto existe no universo para nosso proveito foi ordenado.
"Todas as coisas se combinam para o bem dos que amam a
Deus". A vida e a morte sao nossas. É sómente Cristo que
dá sentido á vida e faz que valha a pena ser vivida. É tolice
querer negar a realidade dos sofrimentos e dissabores da vida
— amargos e crueis que sao. Todavía déles procede algum
bem permanente, aqui e agora, ou depois. A morte é tam-
42
CHARLES R. ERDMAN
bém nossa. É nossa servente, ainda quando parega domina-
dora. É verdade que anda vestida de negro e acompanhada
de terror e espanto. Um dia, porém, vé-la-emos remover
a cortina e abrir-nos o caminho para outra vida que é ra-
diante de gloria e de alegria. "As coisas presentes, como as
futuras" também nos pertencem. Todas as condlcoes de
existencia e todas as oportunidades que nos chegam com o
tempo, tudo pertence ao crente. O presente no-lo dá o Senhor
com vibracoes de vitória na luta de cada dia; o futuro nós
o temos revestido dos fulgores da esperanza.
"Tudo é vosso", repete o apostólo, mas logo acrescenta
que tudo é nosso sob a condicáo de sermos do Senhor — "e
vos de Cristo". Se Ele é mesmo nosso Mestre e Senhor, nada
se constituí para nós um prejuízo permanente. Nada nos
pode ser contrário. Tudo se converte ern ajuda e estímulo
para nós e está ao nosso servigo. Tudo nos pertence, está de
nosso lado, a nosso favor, porque somos de Cristo, e Cristo
é de Deus. A Igreja possui tudo em razáo de estar sujeita a
Cristo e sob a dependencia de quem a tudo preside e governa.
Cristo, por sua vez, tem tal poder universal porque é sujeito
ao Pai e dÉle depende.
Ninguém veja nesta submissáo do Filho ao Pai uma ne-
gagáo da divindade de Jesús. Pelo contrário, esta submissáo
é uma verdade que nos habilita a imaginar em que consiste
a unidade das Tres Pessoas na Trindade Santissima. A so- í
berania universal do Filho de Deus funda-se em sua filial
submissáo ao Pai. Igualmente, a unidade, santidade e subli-
midade da Igreja decorrem de sua submissáo e obediencia a
Cristo. Como servos de Cristo, por conseguinte, tornamo-nos
herdeiros de tudo.
A vista de tais inter-relagoes ou dependencia, como pode
a Igreja permitir divisoes em seu seio? Que valor tem a van-
glória de alguém? Que significa sua submissáo a mestres hu-
manos? Qualquer crente possui "tudo", inclusive- os próprios
mestres que na Igreja servem por um mandato divino. Sua
gloria, sua ufania, suas riquezas estáo em Cristo, em quem
todos os crentes participam de uma felicidade que Ihes é co-
mum, e na companhia de quem adquirem dignidade e apren-
dem a viver.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
43
9. Os Ministros sao Responsáveis diante de Deus.
Cap. 4:1-5.
1 Assim, pois, importa que os homens nos consi-
deren! como ministros de Cristo, e despenseiros dos
mistérios de Deus. 2 Ora, além disso, o que se requer
dos despenseiros é que cada um déles seja encontrado
fiel. 3 Todavía, a mim mui pouco se me dá de ser
julgado por vós, ou por tribunal humano; nem eu táo
pouco julgo a mim mesmo. 4 Porque de nada me argúi
a consciéncia; contudo, nem por isso me dou por jus-
tificado, pois quem me Julga é o Senhor. 5 Portanto,
nada julgueis antes de tempo, até que venha o Senhor,
o qual nao sómente trará á plena luz as coisas ocultas
das trevas, mas também manifestará os designios dos
coracoes; e entáo cada um receberá o seu louvor da
parte de Deus.
É duro alguém ser mal compreendido e condenado, quan-
do se esforca em cumprir seus deveres da melhor maneira
possível, e quando, por "outra parte, vé ser elogiado quem nao
o merece. Foi essa injustica de que Paulo estava sendo ví-
tima, e o responsável era aquéle espirito sectário dos corintios,
manifestó naquelas predilecoes por certos mestres. Essa par-
cialidade, nao sómente prejudicava a igreja, privando seus
membros de beneficios a que todos tinham direito, como jus-
tamente o apostólo fez sentir, mas era um agravo aos minis-
tros que existiam para serví-la. Eram de fato servos da igreja,
mas isto nao queria dizer que a Igreja fósse senhora déles.
Responsáveis eram, mas perante Deus, a quem serviam. Po-
risso nao eram cabíveis as críticas descaridosas que Ihes fa-
ziam, nem os crentes deviam servir-se déles para provocarem
aquéle dissídio desnecessário na Igreja, que tanto a estava
prejudicando.
E assim prossegue aqui na censura daquéle estado de
coisas, mas o faz exatarnente como no principio de cada cap.
precedente. Em todos os trés casos aplica as suas relacoes
pessoais com a igreja as verdades anteriormente iá apresen-
tadas. Aqui, depois de haver discutido a pcsicáo dos minis-
tros como servos da Igreja, volt a a considerar os que minis-
travam em Corinto e particularmente seu próprio caso e ex-
periencia em relagáo com aquela comunidade "Assim, pois,
importa que os homens nos considerem como ministros de
Cristo". Como querendo dizer: Somos de fato servidores da
44
CHARLES R. ERDMAN
igreja, contudo esta nao deve julgar-nos e condenar-nos,
usando de favoritismo com alguns de nós, em prejuízo dos
demais, como se fóra senhora ou dominadora nossa. Somos
"despenseiros dos mistérios de Deus". A palavra "despen-
seiro" empregava-se para designar "um escravo de confianza,
incumbido pelo senhor de dirigir a casa, e a quem de modo
particular confiava a distribuicáo de tarefas e provisoes aos
demais servos". Os ministros evangélicos sao, portanto, des-
penseiros e ministradores das verdades divinas. Nao é aos
seus companheiros de servico que tém de dar contas, mas ao
próprio Deus. Váo aonde sao mandados e reparte com todos
o que Ihes tem sido revelado. Fidelidade ao seu Senhor e á
sua missáo, eis tudo quanto se Ihes pede. Aceitar a um déstes
despenseiros e reieitar os demais é dar a entender que aquéle
é mais fiel do que estes, constituindo-se juiz déles quem assim
procede, funcáo que é privativa do Senhor.
Paulo vé-se diante désse juíz supremo e ¡declara que
pouco se Ihe dá do que os homens julguem a seu respeito.
Táo pouco teria importancia o que Paulo julgasse de si pró-
prio. Se nao o acusava a consciéncia de nenhuma infidelida-
de no servico, nem por isso ia ele repousar nessa complacen-
cia do íntimo tribunal, nem se achava livre de cuidados.
Era o Senhor quem o julg^va.
Paulo, pois, concita aqueles irmáos a que abandonem a
prática de julgar prematura e oficiosamente os seus mestres,
o que tem redundado em desavengas e separacoes. Quando
o Senhor vier, entao "trará á plena luz" todos os atos ocultos
da nossa vida e revelará os motivos secretos de nossos cora-
coes. O louvor que todos e cada um merecer, há de recebé-lo
da parte de Deus, justo e infalível Juíz, e nao da parte de
sectaristas ignorantes e impertinentes. Tais palavras do apos-
tólo encerram um sábio conselho. Sejamos tardos e humildes
no julgamento dos outros, particularmente no que diz res-
peito aos ministros do evangelho. Afastemos de nós a inveja
e o desalentó na execucáo das tarefas recebidas, e procure-
mos ser fiéis em tudo. Nao nos acabrunhe o que por acaso
pensem de nós. Um día de ajuste de contas chegará para
todos. 'Terto está o Senhor".
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 45
10. Reprova-se o orgulho, causador de dissengoes. Cap.
4:6-13.
6 Estas coisas, irmáos, apliquei-as figuradamente
a mim mesmo e a Apolo por vossa causa, para que por
nosso exemplo aprendáis isto: Nao ultrapasseis o que
está escrito; a fim de que ninguém se ensoberbe^a a
favor de um em detrimento do outro. 7 Pois quem é
que te faz sobressair? e que tens tu que nao tenhas
recebido? e, se recebeste, por que te vanglorias, como
se o nao tiveras recebido? 8 Já estáis fartos, já estáis
ricos; chegastes a reinar sem nós; sim, oxalá reinás-
seis, para que também nós viéssemos a reinar convosco.
9 Porque a mim me parece que Deus nos pos, os apos-
tólos, em último lugar, como se fóssemos condenados á
morte; porque nos tornamos espetáculo ao mundo,
tanto a anjos, como a homens. 10 Nós somos loncos
por causa de Cristo, e vós sabios em Cristo; nós f ráeos,
e vós fortes; vós nobres, e nós desprezíveis. 11 Até á
presente hora sof remos fome, e sede, e nudez; e somos
esbofeteados, e nao temos morada certa, 12 e nos afa-
dígamos, trabalhando com as nossas próprias máos.
Quando somos injuriados, bendizemos; quando perse-
guidos, suportamos; 13 quando caluniados, procura-
mos conciliacáo: até agora temos chegado a ser con-
siderados lixo do mundo, escóría de todos.
Mais de urna vez Paulo tem feito sentir que as dissencoes
entre os corintios sao o resultado e urna prova da vaidade e
orgulho déles. Agora passa a censurar ésse gósto extrava-
gante, contrastando sua mesma experiencia de apostólo com
a vanglória e auto-satisfacáo dos corintios. Pois éles proce-
diam como se já estivessem no pleno gozo do Reino futuro e
perfeito de Cristo, enquanto Paulo, como gladiador na
arena, condenado á morte, sofria os extremos opostos da ca-
lúnia, vivia angustiado, atormentado e envergonhado.
"Estas coisas, irmáos", isto é, tudo quanto acabou de di-
zer sobre a insensatez dos dissídios na igreja, "apliquei-as fi-
guradamente a mim mesmo e a Apolo", ainda que os princi-
pios apresentados tenham aplicacáo mais vasta e se refiram
á atitude que os corintios mantinham para com todos os seus
mestres. Nao dissera aquilo para se defender, mas por causa
déles. Esforcava-se por Ihes ensinar urna ligáo de humildade,
para que pelo exemplo déles ambos e pela insisténcia com
que Ihes inculcava uma atitude correta para com ele e seu
46
CHARLES R. ERDMAN
colega, OS corintios aprendessem a nao ir além do que se
achava escrito ñas Escrituras. Paulo nao se quer referir a
passagens bíblicas especiáis, mas ao ensino geral das Escri-
turas a respeito do orgulho pessoal e da auto-suficiencia.
Queria que os corintios evitassem o orgulho e a parcialidade
implícitos ñas preferencias pessoais; que ninguém se enso-
berbecesse, ninguém se metesse em porfías, exaltando um
mestre para humilhagáo de outro. Tal atitude, no caso, nao
queria dizer lealdade ou homenagem agradecida as pessoas
visadas. Éles com isso apenas alimentavam seu próprio or-
gulho. As dissengoes só serviam á vaidade déles, e além disso
partiam de um sentimento de presungáo; com elas só se per-
día tempo. "Quem é que te faz sobressair?" Cada qual
procurava aparecer, sobressair aos outros, aderindo á sua pró-
pria corrente de opiniáo. Mas a ingratidáo era patente: "Que
tens tu que nao tenhas recebido?" As próprias excelencias
de fulano ou sicrano, que se tomavam como razáo do dissi-
dio, eram dádivas do céu. Deviam pois ser motivo de gra-
tidáo, e nao de orgulho, visto como tinham sido recebidas.
Mas a jactancia daquéles irmáos era ilimitada. Paulo
a descreve com bastante ironía: ''Já estáis f artos"! Como
se já gozassem dos beneficios do futuro Reino da gloria. *'Já
estáis ricos!" — sem esperar por nós, apostólos, já ascendes-
tes a vossos tronos! E quiséramos que reinásseis mesmo,
para reinarmos convosco.
Contrastando com essas infantilidades estava a lastimá-
vel realidade da situagáo dos apostólos, só comparável á dos
criminosos condenados á morte e que chegavam ao anfiteatro
por último, quando os espectadores já se impacienta vam de
presenciar lutas pouco sangrentas e, portanto, sem muita
relevancia para éles. Os que chegavam no fim eram, porisso,
acossados a lutar desarmados com as feras. Para os tais nao
havia esperanga de escaparem com a vida. Os apóstolos
assemelhavam-se a ésses gladiadores que entravam na arena
sabendo que dalí só saíriam mortos. Já se haviam despe-
dido dos amigos e saudado o imperador, á vista da morte:
"Porque a mim me parece que Deus nos pos a nós, os apósto-
los, em último lugar, como se fossemos condenados á morte:
porque nos tornamos espetáculo ao mundo, tanto a anjos,
como a homens".
E outra véz se dirige aqueles irmáos, agora com sarcas-
' mo: em particular aos chefes de grupos na igreja, mas de
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
47
igual modo a todos os seus sequazes. "Nós somos loncos por
causa de Cristo". Custou-lhes essa pecha de loucos o serem
leáis ao evangelho que os entendidos do mundo consideravam
loucura< ''Mas vós sois sabios em Cristo" — tendes apren-
dido um método táo eficiente de pregagáo do evangelho que
isso vos tem valido um renome extraordinário, tal a sabedoria
e a compreensáo que demonstráis. "Nós somos fracos, e vós
fortes" — fazeis os vossos discursos públicos com bastante
aprumo e seguranga, mas nós nao possuimos ésse ar de su-
perioridade que ostentáis na tribuna, antes aparecemos com
temor e grande tremor. "Vós sois nobres, e nós desprezíveis"
— a vós recebem com discursos laudatórios e adulagáo, mas
nós recebemos afrontas e desprézo.
E estende-se nesse contraste patético, descrevendo o que
sofrem os apóstolos por amor de Cristo. Para éles a vida se
agrava mais e mais. "Até á presente hora sofremos fome e
sede". Possuimos pouco para que imaginemos já haver soado
a hora do triunfo, o momento augusto da coroagáo. E mais:
"Sofremos nudez, somos esbofeteados e nao temos morada
certa. Afadigamo-nos, trabalhando com as nossas próprias
máos". Portam-se, entretanto, com paciencia e humildade.
As zombarias respondem abengoando. Contém-se diante das
perseguigoes, sem emitirem uma só palavra de queixa. Re-
plicam as calúnias convidando todos ao arrependimento e a
voltarem para Cristo. E porque se comportam dessa forma
dáo lugar aínda a maiores injúrias: "Até agora temos che-
gado a ser considerados lixo do mundo, escoria de todos".
Ora, se Paulo e seus companheiros apóstolos eram tidos e
havidos assim pelo mundo, era absurdo imaginarem aqueles
irmáos teriam melhor sorte seguindo um ou outro daquéles
desprezados líderes. Se a situagáo déstes era vexatória, de
que haveriam de blasonar seus aderentes? Portanto, o orgu-
Iho que cindia aquela igreja oarecia de sentido, era uma
estupidez sem alma e de todo absurdo.
11. Paulo admoesta paternalmente. Cap. 4:14-21.
14 Nao vos escrevo estas coisas para vos envergo -
nhar; pelo contrario, para vos admoestar como a fi-
Ihos meus amados. 15 Porque ainda que tivésseis mi-
Ihares de preceptores em Cristo, nao terieis, contudo,
48
CHARLES R. ERDMAN
muitos pais; pois eu pelo evangelho vos gerei em Cris-
to Jesús. 16 Admoesto-vos, portanto, a que sejais meus
imitadores. 17 Por esta causa vos mandei Timoteo,
que é meu filho amado e fiel no Senhor, o qual vos
lembrará os meus caminhos em Cristo Jesús, como por
toda parte ensino em cada igreja. 18 Alguns se enso-
berbeceram, como se eu nao tivesse de ir ter convosco;
19 mas em breve irei visitar-vos, se o Senhor quiser,
e entáo conhecerei nao a palavra, mas o poder dos en-
soberbecidos. 20 Porque o reino de Deus consiste, nao
em palavra, mas em poder. 21 Que preferís? Irei a
vos outros com vara, ou com amor e espirito de man-
sidáo?
Paulo encerra sua Iqnga discussáo fazendo um apelo de
pai. As divisoes da Igra ja ocuparam os quatro primeiros
caps, da carta. O caso era de tal modo sério que no último pa-
rágrafo aínda se sentiu constrangido a empregar um misto
de ironía e repreensáo. Agora, súbitamente, Paulo altera suas
maneiras de expressáo, como era próprio do seu estilo, e faz
um apelo cheio de ternura e simpatía, contudo sem amenizar
o tom severo, preparando assím seus leitores para outra ma-
téria grave, objeto do cap. seguinte.
Explica o alcance da linguagem que empregou. Em tudo
o que expendeu a respeito das dissengoes na igreja, no que
sentiu necessidade de censurá-los acremente, só procurou o
maior bem para éles. "Nao vos escrevo estas coisas para vos
envergonhar, pelo contrário, para vos admoestar como a fi-
Ihos meus amados". E éles eram mesmo do apostólo. Per-
tenciam-lhe como a nenhum outro mestre ou líder. Grande
número de novos preceptores (tutores) podía surgir, mas
aínda que os tivessem aos milhares, só podiam contar com
um pai espiritual, que era ele, Paulo. Em comunháo com
Cristo e pela prédica do evangelho infudira-lhes uma nova
vida. Muito a propósito, pois, concita-os a que o imitem na
sua humildade, no desprendímento do seu servigo, e a que re-
velem a natural parecenca com o pai, afastando dojseu meio
o espirito de orgulho, os dissídios e toda a presungáo. Para
ajudá-los a acabar com aquelas desavengas, envíara-lhes Ti-
móteo, seu "filho amado e fiel no Senhor", que igualmente se
convertera por sua influencia. Timóteo era para éles, pois,
como irmáo mais velho, e neste caráter é que devia ser por
éles recebído, afetuosa e confiantemente. Sua missáo entre
éles seria a de lembrar-lhes os "caminhos" de Paulo, isto é,
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
49
sua maneira de agir, o que éle ensinava em todas as igrejas,
sua humildade, abnegacáo e devotamente ao Senhor, Tudo
isso que éle sempre ensinou e praticou ñas igrejas.
Mas ninguém compreendesse que, por Ihes enviar Ti-
moteo, nao estava disposto a ir até lá pessoalmente. Alguns
adversários seus estavam pensando assim. Com certo ar de
triunfo, inchados de vangória, propalavam que Paulo estava
enviando Timoteo porque éle mesmo nao queria ir lá. Na
ausencia do apostólo aquéles mestres perniciosos se haviam
tornado importantes. E a propósito da ida de Timoteo estavam
se assanhando e se tornando ainda mais insolentes. Possi-
velmente interpretavam o fato como médo que Paulo tinha
déles. ''Alguns se ensoberbeceram (andam inchados), como
se eu nao tivesse de ir ter convosco. Mas em breve irei visitar-
-vos, se o Senhor quiser, e entáo conhecerei nao a palavra,
mas o poder dos ensoberbecidos". Paulo iria descobrir e por
á mostra a "fórga" de seus enfatuados oponentes, se eram
mesmo o que pretendiam ser, com toda aquela empáfia elo-
quente. Porque o Reino de Deus que vai ser estabelecido,
e portanto os meios empregados neste sentido, como o ser-
vigo e a autoridade dos apostólos, nao consiste em palavras,
mas em fatos, em "poder". Quando Paulo aparecer entre
éles nao se limitará a palavras, a ensinamentos e censuras.
Éle vai agir. Como? A resposta dependerá únicamente dos
corintios. Se continuarem brigando e se dividindo, como
meninos levados e insubmissos, seráo castigados. Se pelo
contrário se juntarem e se mostrarem camaradas que se es-
timam, Paulo agirá como pai amoroso e perdoador. "Que
preferís? Irei a vós outros com vara, ou com amor e espirito
de mansidáo?"
Assim é que nestes quatro prim_eiros caps. Paulo procu-
rou corrigir ésse espirito faccioso dos corintios e recambiá-los
á uniáo de vistas. Foi o primeiro mal que procurou sanar,
visto que sómente a uma igreja unida, que o reconhecesse
como seu fundador, podia expedir as ordens enérgicas e mi-
nistrar autoritariamente os ensinos que viriam logo mais.
Hoje em día também, onde quer que exista uma igreja agi-
tada pelas ruins suspeitas, pelo orgulho e por ésse espirito
faccioso, é necessário antes do mais que se acalme essa agi-
tagáo, unindo-se todos em amor e compreensáo, para que se
50
CHARLES R. ERDMAN
consiga progresso, seja na vida crista, seja na instrugáo re-
ligiosa e seja no servigo de evangelizagáo.
B. DISCIPLINA. Cap. 5.
1 Geralmente se ouve que há entre vos imoralidade
tal, como nem mesmo entre os gentíos, isto é, haver
Quem se atreva a possiiir a mulher de seu próprio pai.
2 E, contudo, andáis vés ensoberbecidos, e nao chegas-
tes a lamentar, para que fósse tirado do vosso meio
quem tamanho ultraje praticou? 3 Eu, na verdade,
ainda que ausente em pessoa, mas presente no espirito,
já sentenciei, como se estivesse presente, que o autor
de tal infamia seja, 4 em nome do Senhor Jesús, reu-
nidos vós e o meu espirito, com o poder de Jesús, nosso
Senhor, 5 entregue a Satanás para a destruigáo da
carne, a fim de que o espirito seja salvo no dia do Se-
nhor. 6 Nao é boa a vossa jactancia. Nao sabéis que
um pouco de fermento leveda a massa toda? 7 Langa!
fora o velho fermento, para que sejais uma nova
massa, como sois de fato sem fermento. Pois também
Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado. 8 Por isso
celebremos a festa, nao com o velho fermento, nem
com o fermento de maldade e da malicia; e, sim, com
os asmos da sinceridade e da verdade. 9 Já em carta
vos escrevi que nao vos associásseis com os impuros;
10 refiro-me com isto nao própriamente aos impuros
désíe mundo, ou aos avarentos, ou roubadores, ou idó-
latras; pois, neste caso, teríeis de sair do mundo. 11
Mas agora vos escrevi que nao vos associeis com al-
guém que, dizendo-se irmáo, fór impuro, ou avarento,
ou idólatra, cu maldizente, ou beberráo, ou roubador;
com ésse tal nem ainda comáis. 12 Pois com que direito
haveria eu de julgar os de fora? Nao julgais vós os
de dentro? 13 Os de fora, porém, Deus os julgará. Ex-
pulsa!, pois, de entre vós o malfeitor.
Segundo os rumores que havia, os corintios toleravam
em seu meio um caso de grosseira imoralidade. Assim, pois,
passa o apostólo a tratar dessa questáo, insistindo que a di-
ciplina se aplique ao membro faltoso. Embora fósse éste o
caso mais sério submetido á sua apreciagáo, nao Ihe pode dar
prioridade porque era necessário assegurar primeiro a uni-
dade da igreja, antes de Ihe impor qualquer delibera^áo drás-
tica para o referido caso. De outro modo, nao havendo uniáo
de vistas, as providencias teriam de partir de um dos grupos
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
51
da igreja, com o resultado de se cavar mais fundo a sua
divisáo.
A administragáo da disciplina, pois, em certo sentido, é
matéria pertinente á própria vida da igreja, á sua organizagáo
e expansáo. Relaciona-se intimamente, como questao ecle-
siástica, ao problema do dissídio que a precedeu. Está em
jógo, portanto, agora, uma grave falta moral, cuja discussáo,
com propriedade, serv^e de introducáo as outras questoes mo-
ráis que se seguiráo, a saber, os litigios judiciais e a impureza
privada. Como se vé, a ordem adotada pelo apostólo, na dis-
cussáo dos assuntos, é rigorosamente lógica, constituindo-se
os primeiros seis caps, da carta uma só unidade.
1. Merecido rigor. Cap. 5:1-5.
A falta era gravíssima. O ofensor vivia maritalmente
com a própria madrasta. Crime desta natureza, mesmo entre
os pagaos, de baixo nivel moral, nao seria tolerado. No en-
tanto os cristáos corintios, indiferentes ao escándalo, anda-
vam ainda se vangloriando de seus líderes prediletos, chelos
de orgulho, complacentes com a situacáo. O contrário é que
devia suceder: encherem-se mas era de vergonha e langar
fora de sua comunháo o culpado de tamanha vileza. Deviam
compreender que a verdadeira gloria da Igreja Crista con-
siste, nao na eloquéncia de seus pregadores, nem no talento
de seus mestres eminentes, mas na pureza moral e na vida
exemplar de seus membros.
Paulo, porém, já resolverá o que era cabível no caso e
estava certo como procedería, se presente estivera na congre-
gacáo. E, de fato, ele descreve o ato solene da disciplina como
já estando a realizar-se: "Considerai-me, pois, presente no
vosso meio, a sentenciar, em nome de Cristo e com a vossa
aquiescencia, a excomunháo do autor da infamia, bem como
a entrega do mesmo a Satanás, para que Ihe imponha sofri-
mentos capazes de quebrar a fórca de sua cobica pecaminosa,
e, assim, venha a sentir arrependimento, seja restaurado á
condigáo anterior, e se salve no dia do Senhor".
É digno de nota que Paulo nao arrebata da igreja o po-
der de exercer sua própria disciplina. O govérno é demo-
52
CHARLES R. ERDMAN
orático; a imposigáo de penalidades nao compete a um oficial
seu ou a urna ordem sacerdotal. Note-se aínda que na as-
sembléia, além da presenca simbólica ou espiritual de Paulo,
preside um terceiro Espirito, supremo, de quem procede a
autoridade da acáo disciplinar.
Nao se deve supor que éste incidente, algo obscuro, da
historia da Igreja Primitiva, sancione a imposicáo de casti-
gos corporais como instrumento de disciplina eclesiástica.
Sob a direcáo de um apostólo inspirado e estando envolvido
na questáo o poder dos milagres, parece que a sentenca pro-
ferida no caso determinou uma doenca ou sofrimentos físi-
cos. Isto naquela época. Em todos os outros casos posteriores
de disciplina eclesiástica, de que há noticia, nao se sabe de
nada parecido.
O que mais importa, porém, é observar que o sofrimento,
de qualquer que fósse a natureza e a procedencia, teve como
escopo reconduzir o culpado ao arrependimento, como uma
advertencia de que o alvo supremo de qualquer agáo disci-
plinar na igreja é a rehabilitagáo dos ofensores.
2. Indiferenga Pecaminosa. Cap. 5:6-8..
Paulo detem-se a considerar a negligencia criminosa dos
corintios, que deixavam aquéle escándalo sem a necessária
reprimenda, para aludir a outro designio importante da dis-
ciplina, que é a defesa da vida moral da igreja. "Nao é boa
a vossa jactancia" — cegueira e estupidez é blasonardes dos
vossos preceptores e das vossas realizacoes, enquanto por ou-
tro lado ides tolerando um pecado assim vergonhoso. "Nao
sabéis que um pouco de fermento leveda a massa toda?" É
conhecida esta figura de linguagem. Um pouco de levedura.
em um nada de tempo, toma Qonta da massa inteira. E é
assim que a menor cumplicidade no moral, a tolerancia do
pecado, a dissimulacáo da impureza, afetam a vida moral da
igreja toda. Rebaixa-lhe a tonalidade moral e estimula a
prática de outros deslises, ainda que menos flagrantes.
"Lancai fora o velho fermento^ para que sejais uma nova
massa, como sois de fato sem fermento" — expulsa! dos vossos
coracóes toda disposigáo má e dése jo ruim, próprios da velha
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
53
vida, de quando ainda nao conhecíeis Cristo, para que como
igreja vos caracterize agora urna nova vida e se jais na reali-
dade e por experiencia o que como cristáos deveis ser, e o
que, de certo, sois no espirito e na intengáo divina.
Como refórgo déste preceito Paulo emprega uma figura,
bela e incisiva. Na véspera do primeiro dia de festa pascoal,
os israelitas eram obrigados a retirar de suas casas todo o
fermento que ai houvesse. E a partir da imolacáo do cor-
deiro pascoal no Templo, e enquanto durasse a festa, o pao
de fermento era banido das refeicoes. Ora, Cristo é nosso
Cordeiro Pascoal. Sendo assim, a vida des que O seguem é
uma festa sagrada. Logo, devemos excluir de nossa vida todo
pecado, todo "velho fermento" que nos caracterizava antes
de sermos de Cristo, "toda maldade e malicia", e entáo cum-
pre que em nós transpareca a sinceridade, a verdade e rea-
lidade de nossa profissáo evangélica.
3. Por que disciplina e onde se exerce. Cap. 5:9-13.
Em carta anterior, Paulo já os havia advertido vigorosa-
mente contra a camaradagem contagiante dos impuros. Fóra
aliás m^al compreendido, pois entenderam que Ihes proibira
qualquer relacáo com pessoas imorais, regra que éles denun-
ciaram como impossível de ser observada. É provável que
essa má interpretacáo servisse de pretexto para nada faze-
rem no tocante aos membros faltosos da igreja. Paulo es-
clarece, entáo, o sentido da advertencia anterior e insiste no
dever da disciplina. A substancia do seu pensamento é o
seguinte:
"Em carta passada avisei-vos que nao vos associásseis
com gente do tipo do escandaloso já mencionado. Mas nao
quis dizer que nao tivésseis contacto social com tal gente, os
gananciosos, lascivos e idólatras. Seria impossível, como
aliás sugerís, evitar qualquer contacto com éles. Para isso
teríeis que sair do mundo. O que eu quis dizer e agora
repito é que, se algum cristáo professo é culpado de tama-
nhas faltas, deveis evitar toda convivencia com ele. Nem
sequer comáis em sua companhia. Nao me cabe ditar re-
gras ao mundo néste particular. Contento-me em olhar pela
Igreja, para que seja irrepreensível, e é éste o vosso mesmo
54
CHARLES R. ERDMAN
dever. Nossa disciplina, pois, nao se estende aos de fora da
Igreja. A éstes cumpre deixar que Deus os julgue. Já disse
o bastante. Excomungai — langai fora de vossa comunháo
— a ésse malfeitor".
É evidente que Paulo, aqui, nao recomenda relagoes ou
intimidades dos crentes com os mundanos, se puderem ser
evitadas. Na carta seguinte tratará específicamente do perigo
de se ficar preso, em jugo desigual, com os incrédulos. É
ainda evidente que o designio da disciplina eclesiástica é nao
sómente reformar os ofensores e preservar a pureza moral
da Igreja, como, em terceiro lugar, é defender a reputagáo da
mesma. Todo empenho se deve ter em mostrar ao mundo
que a Igreja de Cristo nao tolera a maldade moral dentro de
suas fronteiras. Possivelmente há chegado o tempo, e é
agora, de a Igreja zelar por sua disciplina, nao só á vista dos
culpados de pecados grosseiros, como os de que se ocupa o
apostólo nesta seccáo de sua carta, mas também á vista dos
"gananciosos" ou ávidos de grandes lucros, dos "extorcioná-
rios" e propagandistas mentirosos. Se a disciplina se esten-
desse a essa classe de gente haveria reboligo na Igreja déstes
nossos dias, táo complacente que é diante de casos tais. Mas
os reflexos dessa atitude desassombrada, surpreendente e
avivadora se fariam sentir no mundo incrédulo.
C. QUEST6ES JUDICIAIS. Cap. 6:1-11.
1 Aventura-se algum de vos, tendo questáo contra
outro, a submeté-la a juizo perante os injustos e nao
perante os santos? 2 Ou nao sabéis que os santos háo
de julgar o mundo? Ora, se o mundo deverá ser jul-
gado por vós, sois acaso indignos de julgar as coisas
mínimas? 3 Nao sabéis que havemos de julgar os pró-
prios anjos; quanto mais as coisas desta vida? 4 En-
tretanto, vós, quando tendes a julgar negocios terre-
nos, constituis um tribunal daquéles que nao tém ne-
nhuma aceitacáo na igreja! 5 Para vergonha vo-lo
digo. Nao há^ porventura, nem ao menos um sábio
entre vós, que possa julgar no meio da irmandade? 6
Mas irá um irmáo a juizo contra outro irmáo, e isto
perante incrédulos? 7 O só existir entre vós demandas
já é completa derrota para vós outros. Por que nao
sofreís antes a injusti§a? por que nao sofreís antes o
daño? 8 Mas vós mesmos fazeis a injusti^a e fazeis o
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
55
daño, e isto aos próprios irmáos. 9 Ou nao sabéis qu«
os injustos nao herderáo o reino de Deus? Nao vos
engranéis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros,
nem efeminados, nem sodomitas, 10 nem ladroes, nem
avarentos, nem bébados, nem maldizentes, nem rouba-
dores herdaráo o reino de Deus. 11 Tais fostes alguns
de vos; mas vos vos lavastes, mas fóstes santificados,
mas fóstes justificados, em o nome do Senhor Jesús
Cristo e no Espirito do nosso Deus.
Paulo acabara de declarar a necessidade que a igreja
tinha de julgar e excluir de seu meio o membro ofensor. Com
naturalidade, pois, passa a considerar agora urna falta que
esta va se generalizando entre os cristáos corintios, qual a
de levarem suas questoes aos tribunais civis. Tal prática re-
petia-se com tanta frequéncia que iá se constituía um es-
cándalo público.
É fácil compreender como, tratando-se de gregos, apre-
ciadores da oratoria, dos debates tribunicios, de tórnelos sen-
sacionais, tivessem uma inclinacáo natural para os litigios.
Paulo, porém, dá a entender que os litigantes eram multas
vézes impulsionados por motivos menos dignos. Serviam-se
de tais demandas como um meio de fraudar ou lesar outros
crentes, seus irmáos. O apostólo, entáo, firma dois principios:
primeiro — era vergonhoso estarem os crentes a contender
constantemente perante juízes pagáos, vs. 1-6; segundo —
as demandas judiciais entre os crentes assinalam falta de
justica e de amor no meio déles, vs. 8-11.
"Aventura-se algum de vos, tendo questáo contra outro,
a submeté-la a juizo perante os injustos e náo perante os
santos?" A vergonha de remeterem semelhantes questoes aos
jm'zes pagáos é posta em relevo por dois fatos: a elevada po-
sicáo e predestinacáo dos crentes, e o conceito pouco lison-
jeiro que a Igreja faz de juízes daqueia categoría. "Náo sa-
béis que os santos háo de julgar o mundo. . . Náo sabéis que
havemos de julgar os próprios anjos?" É ocioso querer espe-
cular a época referida ai pelo apostólo, as condicoes exa-
tas désse tempo, ou se ja a natureza désse estado futuro
quando os crentes seráo elevados a tamanha dignidade e au-
toridade. É característica de Paulo a maneira inesperada de
introduzir, no assunto de que se ocupa, verdades plenas de
mistério e de elevado alcance. A referencia que de passagem
e multo por alto ai faz de um estado futuro, leva-nos a cal-
56
CHARLES R. ERDMAN
cular, posto que muito imperfeitamente, a giória vindoura.
Temos ai urna indica^áo de que os crentes, longe de se tor-
naren! anjos, seráo superiores" a éles. Partilharáo com Cristo
do govérno de um mundo renovado. Se esta é a verdade,
entáo devem ser competentes para, já agora, resolver entre si
questoes triviais, relacionadas com a vida presente.
É deprimente, nao há dúvida, pessoas tais levarem suas
demandas á decisáo de juízes pagaos que nao tém essa voca-
cáo e predestinagáo honrosa dos crentes, e nem gozam da
aceitacáo da igreja. ''Certo que deve existir", concluí o apos-
tólo, "alguém na vossa congregacáo que se ja capaz de resol-
ver tais pendencias; nao tendes necessidade de recorrer aos
tribunais pagaos". As dificuldades entre os crentes devem
ser resolvidas pela arbitragem.
Paulo nao quer dizer que o crente nao deve nunca re-
correr aos tribunais civis, nem que jamáis terá necessidade
de requerer a protegáo das leis de seu país. "As potestades
que há sao de ordenagao divina", e o povo de Deus tem pleno
direito de aceitar qualquer beneficio que Ihe advenha de um
govérno seguro e das leis justas de sua patria. Entretanto o
que Paulo faz aquí é firmar uma regra. Querelas de crentes
e demandas perante os tribunais públicos dáo lugar a escán-
dalos e devem ser evitadas. O apostólo chega mesmo a avan-
gar que tais querelas sao pecaminosas. "O só existir entre
vós demandas já é completa derrota para vós outros". E a
idéia é esta mésmo: derrota. Os querelantes sao derrotados
antes mesmo de comparecerem as audiencias nos tribunais.
O simples fato de surgirem disputas entre éles e de chegarem
elas áquele ponto é uma evidéncia de derrota moral.
O apostólo atribuí a causa e a malignidade de semelhan-
tes litigios á determinacáo de certos crentes de lesarem ou
fraudarem irmáos seus, ou ainda as atribuí ao ressentimento
amargo e ao dése jo de vinganga das partes prejudicadas. Tais
litigios sao, portanto, pecaminosos. Será melhor, entáo, evi-
tá-los completamente do que se verem presos ñas malhas
désse pecado, porque, como adverte aos leitores, "os injustos
nao herdaráo o reino de Deus".
Os que usam de tais expedientes, para lesar irmáos seus,
merecem ser nivelados aos impuros, avarentos e pervertidos,
gente essa que está excluida do Reino. Com aquelas deman-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 57
das malignas os corintios manifestavam o mesmo espirito do
mundo, de que haviam sido libertos. Acabem, pois, com tais
expedientes e conduzam-se como pessoas que ja foram puri-
ficadas de toda mancha, separados para serem santos, decla-
rados justos, em o nome do Senhor Jesús Cristo e mediante
o Espirito de nosso Deus.
D. IMPUREZA. Cap. 6:12-20.
12 Todas as coisas me sao lícitas, mas nem todas
convém. Todas as coisas me sao lícitas, mas eu nao
me deixarei dominar por nenhuma délas. 13 Os ali-
mentos sao para o estómago e o estómago para os
alimentos; mas Deus destruirá tanto estes como aqué-
le. Porém o corpo nao é para a impureza, mas para
o Senhor, e o Senhor para o corpo. 14 Deus ressusci-
tou ao Senhor, e também nos ressuscitará a nos pelo
seu poder. 15 Nao sabéis que os vossos corpos sao
membros de Cristo? E eu, porventura, tomaría os
membros de Cristo e os faria membros de meretriz?
Absolutamente, nao. 16 Cu nao sabéis que o homem
que se une á prostituta, forma um só corpo com ela?
porque, como se diz, seráo os dois uma só carne. 17
Mas aquéle que se une ao Senhor é um espirito com
ele. 18 Fugi da impureza! Qualquer cutro pecado que
uma pessoa cometer, é fora do corpo; mas aquéle que
pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo. 19
Acaso nao sabéis que o vosso corpo é santuário do Es-
pirito Santo que está em vós, o qual tendes da parte
de Deus, e que nao sois de vós mesmos? 20 Porque
fóstes comprados por pre^o. Agora, pois, glorificai a
Deus no vosso corpo.
A terceira questáo moral que o apostólo passa a discutir
relaciona-se com a impureza. Mostrou ser pecaminoso o ex-
pediente de se servirem alguns de questoes nos tribunais para
fraudarem e lesarem outros, no que manifestavam um espi-
rito injusto, isso mesmo que os pagaos revelavam naquéles
vicios de que os cristáos se haviam redimido. Acha, pois, o
momento azado para referir o mais prevalecente désses vicios,
a impureza.
"Viver á moda corintia", nos dias de Paulo, era uma ex-
pressáo proverbial, reveladora de uma vida imoral e impura.
A prática da impureza era peculiar ao próprio culto dos
58
CHARLES R. ERDMAN
ídolos. Nao era, pois, nenhuma surpresa que até alguns eren-
tes daquela igreja concluíssem nada importar, moralmente
falando, o comer do oferecido aos ídolos e também cometer
imoralidades.
Paulo Ihes propusera a doutrina da liberdade crista. In-
sistirá que o cristáo podia ou nao observar os dias santos dos
antigos hebreus, e que igualmente podia usar ou recusar ali-
mentos que houvessem servido no culto dos ídolos. Eram
casos de consciéncia, em que podia liaver diversidade de pa-
recer, e tais questóes ele as discute largamente no oitavo,
nono e décimo caps, desta carta. Éste principio de liberdade
crista, evidentemente, tinha sido alegado por éles como ex-
cusa da prática da impureza. Paulo mantem o principio,
mas estabelece algumas restrigóes, para depois negar sua
aplicacáo num caso que, referentemente á moral, nao era in-
diferente, senáo um pecado odioso.
Como primeira restrigáo, estabelece que, embora seja lí-
cito ao crente tudo quanto, moralmente falando, é indiferente,
nem tudo, porém, quanto recebe esta classificacáo é conve-
niente ou vantajoso. "Todas as coisas me sao lícitas, mas
nem todas convém". Mesmo que a impureza nao fósse proi-
bida expressarnente na lei de Deus, podia-se provar que é pre-
judicial.
Em segundo lugar, se bem que o crente possa entregar-se
ao que é indiferente, do ponto de vista moral, o hábito de
ceder voluntariamente a tais práticas pode converter-se em
escravidáo espiritual. "Todas as coisas me sao lícitas, mas
eu nao me deixarei dominar por nenhuma délas". Um há-
bito qualquer, aínda que nao possa classificar-se de imoral,
pode escravisar. Porisso que nao sossega enquanto nao é
satisfeito. Aínda que a impureza nao fósse abertamente imo-
ral, como é, sua fórga escravizadora nao tem igual e jamáis
pode ser cohonestada as custas da liberdade crista. "O em-
prégo racional de minha liberdade nao pode ir a tal ponto
que me veja ameagado de perdé-la".
Observadas as duas restrigoes retro-referidas, a questáo
de usar os variados alimentos que existem nao interessa á
moral. A impureza, porém, já é um caso muito diferente. É
violagáo direta de uma lei divina, específica, e nao pode ser
alegada como satisfagáo inocente de um apetite natural.
í
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 59
Paulo nao reprova ésse pecado apenas sob éste aspecto de
quebra do Sétimo Mandamento, aspecto que interessa á hu-
manidade em geral, mas sob um outro ainda mais elevado,
qual seja o da relagáo que o crente mantem com Cristo, seu
Senhor. No caso dos alimentos, estes foram destinados ao
estomago e o estómago foi formado para recebé-los e digerí-
los. Nem uma nem outra coisa pretende para si uma fi-
nalidade mais alta, nem quer pertencer a outra ordem de
coisas mais elevada, porém seu escopo é servir as nossas
presentes necessidades e género de vida. Nosso corpo, en-
tretanto, em sua inteireza, instrumento que é de nossas almas
imortais, nao se destinou á impureza, porém muito ao con-
trário disso — foi destinado "para o Senhor, e o Senhor
para o corpo" — e para sempre.
O corpo é "para o Senhor". Foi projetado para ésse
mesmo fim. O Senhor encontra néle o instrumento de que
precisa. Reconhece-o como seu e serve-se déle como habita-
gao. Pagou o prego de sua redencáo e um dia o transfigurará
enchendo-o de gloria.
"O Senhor é para o corpo". É Éle quem instruí quanto
á diregáo correta a dar aos seus impulsos e faculdades natu-
rais. Sem éle o corpo jamáis alcangará sua natural dignidade
e seu imortal destino. Esta relagáo de nossos corpos com
Cristo prolonga-se pela eternidade. "Deus ressuscitou ao Se-
nhor, e também nos ressuscitará a nós pelo seu poder". No
cap. quinze desta carta o apostólo irá deter-se, com mais va-
gar, sobre éste assunto. Como vai ser conservada a identidade
de nosso corpo na ressurreigáo, ou em que consistirá essa
identidade, Paulo nao explica. Mas que o corpo se destina
a ésse fim imortal e glorioso o apostólo o declara bascado fir-
memente na ressurreigáo de Cristo.
Os corpos dos crentes, pois, pertencem a Cristo. Sao quais
membros do seu corpo. Acaso se concebe que ésses membros
de Cristo possam servir á prostituigáo? As unioes impuras,
pelo fato de serem impuras nao deixam de ser unioes, tanto
por sua natureza com por seus efeitos, e sao, porisso, táo
verdadeiras como a de nossos primeiros pais no Edén. Náo é
menos real a uniáo que conjuga o crente ao seu Senhor. A
impureza ou prostituigáo em que esteja envolvido um mem-
bro de Cristo é deslealdade e traigáo contra Cristo.
Fugi désse pecado, escreve o apostólo. Náo sómente com-
batei-o, mas evitai suas ocasioes, porque a impureza, mais
60 CHARLES R. ERDMAN
do que outro qualquer pecado, profana o corpo. É um pe-
cado eminentemente contra o corpo. O do crente, porém, é
consagrado a Deus. Ninguém tem o direito de profaná-lo. A
impureza ou prostituigáo era, nao raro, urna das partes inte-
grantes do culto dos ídolos, nos templos pagaos. Com os
cristáos sucede o contrário, seus corpos se devem conservar
puros como templos que sao do Espirito de Deus.
Além disso, os crentes nao se pertencem a si mesmos.
Foram comprados pelo precioso sangue de Cristo. Devem,
pois, pela pureza e santidade de suas vidas, honrar Aquéle a
quem pertencem. Esta passagem fornece-nos o ensinamento
que só o Cristianismo apresenta, isto é, a dignidade e san-
tidade do corpo humano. Nao se deve entender a liberdade
crista como íicenga para a pessoa entregar-se espontanea-
mente a pecados da carne. Ñem as mais agigantadas reali-
zacoes espirituais compensam os prejuízos da negligencia e
do abuso do corpo. Éste precisa ser visto como instrumento
do Senhor Jesús, como templo santo reservado á morada do
Espirito de Deus.
A última frase do apostólo ilustra sua habilidade de ex-
por as mais belas verdades como joias que cintilam sobre o
fundo negro de pecados tais quais aqueles de que trata, bem
assim a sua capacidade de aproveitar as realidades mais
transcentes, como incentivo das mais elementares virtudes
moráis. Assim é que discutindo a questáo da disciplina, das
demandas judiciais e da impureza, e apesar de serem tais
assuntos bastante ingratos e nao pouco delicados, ele ainda
acha oportunidade de intercalar a tocante exortagáo: Cris-
to, nosso Cordeiro pascoal, foi imolado por nós, porisso ce-
lebremos a festa . . . com os asmos da sinceridade e da ver-
dade". Condenando querelas de cristáos perante tribunais
pagaos, lembra que os crentes váo ser juízes do mundo e
dos anjos. Advertindo contra a impureza, faz uma afirmagáo
magnífica: nossos corpos sao templos do Espirito Santo.
E. CASAMENTO. Cap. 7.
Certo número de problemas havia sido proposto, por
carta, á apreciagáo do apostólo. Entre éles figurava um
questionário relativo ao casamento. Acabando de considerar
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 61
O assunto de urna vida social que devia ser decente, o após-
telo, numa sequéncia lógica, passa a responder o citado ques-
tionário, visto como ele via, na instituicáo do casamento, uma
salvaguarda da pureza privada e coletiva, ou social.
Deve-se notar, entretanto, que nao discute o casamento
do ponto de vista de sua moral, mas da sua conveniencia. E
para isto observe-se que ele nunca insiste em que as pessoas
se casem, nem que deixem de se casar, permitindo ver que
essa questáo deve ser encarada do ponto de vista das condi-
goes ou do temperam.ento de cada um. As questoes pertinen-
tes á disciplina eclesiástica, as demandas em juizo e á pu-
reza pessoal foram questoes de ordem moral; mas o que
agora entra a apreciar sao dois assuntos morataente indife-
rentes — o casamento e o consumo de carnes sacrificadas aos
ídolos. E assim, a nova seccáo, posto que intimamente rela-
cionada com a precedente, marca uma divisáo bem nítida na
carta.
Muita crítica severa tem caído em cima do apostólo por
causa do que ele ai declara acerca do casamento. É muito
fácil, entretanto, compreendé-lo mal. Dois ou tres fatos con-
vem guardar na memória. Primeiro, ele está respondendo a
perguntas definidas, cu jo conteúdo exato nao chegou ao nosso
conhecimento. Se a discussáo versasse sobre o casamento
como instituicáo, encarando-se o assunto de todos os seus^
lados, teria sido muito diferente o seu depoímento. Seus
aspectos mais interessantes e sua importancia espiritual sao
objeto de atencao do apóstolo em outras cartas que escreveu.
Segundo, o método de encarar o assunto e os argumentos
especiáis empregados só poderiam ser bem apreciados se sou-
béssemos que opinioes erróneas os coríntios mantinham em
torno da matéria. Acontece, porém, que nao temos informa-
coes completas sóbre isso. Pelo menos parece que alguns
crentes tinham o casamento como de absoluta obrigagáo.
Outros o consideravam como moralmente inferior, uma es-
pécie de concessáo feita aos baixcs instintos da natureza.
Ainda outros eram de parecer que, uma vez o individuo se
convertendo a Cristo, todas as suas relacoes sociais, inclusive
a do casamento, se dissolviam.
Em terceiro lugar, deve-se ver que Paulo escreve refe-
rindo condigoes que eram puramente locáis e temporarias.
Se tivéssemos de aplicar, literalmente, a cada crente, de
62
CHARLES R. ERDMAN
qualquer época, todas as injungóes do apostólo ai apresen-
tadas, seria um desastre. Os principios pelos quais ele se
orienta sao invariáveis. Comumente nao é muito difícil
distinguir o que se aplica diretamente a condigoes transito-
rias e a verdade constante, invariável, que serve de base ao
seu ensino. Quando se interpretam corretamente estas ins-
trugoes relativas ao casamento, é inevitável reconhecé-las real-
mente sensatas e bem calculadas, encerrando em si principios
que sao de valor atual e permanente.
Paulo nao esgota o assunto, mas considera-o ñas quatro
seguintes relagoes: casamento e celibato, vs. 1-9; casamento e
divorcio, vs. 10-24; casamento e servigo cristáo, vs. 25-38; casa-
mento "no Senhor", vs. 39-40.
1. Casamento e Celibato. Cap. 7: 1-9.
1 Quanto ao que me escrevestes, é bom que o ho-
mem nao toque mulher; 2 mas, por causa da impureza,
cada um tenha a sua própria esposa e cada uma o
seu próprio marido. 3 O marido conceda á esposa o
que Ihe é devido, e também semelhantemente a esposa
ao seu marido. 4 A mulher nao tem poder sobre o seu
próprio corpo, e, sim, o marido; e também, semelhan-
temente, o marido nao tem poder sobre o seu próprio
corpo, e, sim, a mulher. 5 Nao vos privéis um ao outro,
salvo talvez por mutuo consentimento, por algum tem-
po, para vos dedicardes á oracáo e novamente vos ajun-
tardes, para que Satanás nao vos tente por causa da
incontinencia. 6 E isto vos digo como concessáo e nao
por mandamento. 7 Quero que todos os homens sejam
tais como também eu sou; no entanto cada um tem
de Deus o seu próprio dom; um, na verdade, de um
modo, outro de outro. 8 E aos solteiros e viúvos digo
que Ihes seria bom se permanecessem no estado em
que também eu vivo. 9 Caso, porém, nao se dominem,
que se casem; porque é melhor casar do que viver
abrasado.
Tem-se compreendido mal ao apostólo, vendo-se néle um
asceta que nao dava á mulher seu devido valor e desaconse-
Ihava o casamento. Mas, pelo contrário, éle tem o casamento
como regra para todos os crentes e nao vé no celibato nenhu-
ma virtude para sobrepor-se ao casamento. Devemos ter esta
verdade fundamental presente na memoria se quisermos in-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
63
terpretar bem tudo quanto éle escreve neste cap. sobre o
assunto.
Se o casamento é a regra geral, por outro lado o apostólo
frisa que o celibato é um estado honroso. ''É bom que o ho-
mem nao toque mulher". Nenhuma virtude especial existe
no matrimonio e Paulo com isto procura defender o celibato
da pecha de prejudicial e anticristáo. Efetivamente, o celiba-
to tem suas vantagens, e Paulo as menciona adiante, vs, 25-38.
Nao obstante, a regra deve ser casar. Mas entende-se que
se trata de verdadeiro casamento, ou seja a uniáo permanen-
te, durável, de um homem e uma mulher: ''Cada um tenha a
sua própria esposo e cada uma o seu próprio marido. Tal pro-
videncia ajuda na preservacáo da pureza moral sobre que se
deve apoiar uma sociedade organizada. Opinioes livres so-
bre o casamento sao uma ameaca de morte á instituigáo da
familia e á conservagáo da ordem social. Aqueles mestres
corintios que enalteciam sobremaneira o celibato ao ponto
de matarem todo o estímulo do casamento, precisavam de
um corretivo. O casamento foi instituido por Deus no Edén,
santificado pela presenca graciosa de Cristo, em Caná da
Galiléia, e pela generosidade com que operou alí, numa festa
de casamento, seu primeiro sinal. E, por fim, é sancionado
por Paulo como instituigáo crista.
Mas havia outro erro sustentado pela maioria dos crentes
corintios. Diziam que o estado matrimonial era de tal modo
inferior ao celibato que valia a pena os crentes casados se se-
pararem, sendo até meritorio fazé-lo. Paulo corrige ésse erro.
Tal prática Ihes ensejaria tentagoes desnecessárias. Maridos
e mulheres devem cumprir suas obrigagoes mútuas. Se por
algum tempo se abstém disso, nao é por mérito que ha ja
nessa atitude, mas por consentimento mútuo e por alguma
razáo ponderável, qual seja a observancia de períodos espe-
ciáis de oragáo.
Declara que, se estabelece o casamento como regra entre
os crentes, só o faz "como concessáo e nao por mandamento".
Isto tem levado alguns a interpretá-lo falsamente, pois que-
rem ver nesta declaragáo um indicio de que nao estava escre-
vendo sob a diregáo divina. Mas o que realmente quer dizer
é que o seu inspirado conselho com relagáo ao casamento nao
deve ser entendido como mandamento, antes como permis-
64
CHARL-ES R. ERDMAN
sao. Toda pessoa é livre para proceder de acórdo com as
circunstancias que a cercam e segundo sua própria disposicáo.
Entretanto o apostólo declara sua preferencia pelo esta-
do de solteiro, se é que, nao casando, o individuo gpze urna
vida mais sossegada e mais contente. Embora declare exce-
lente o celibato, reconhece que a capacidade para viver sol-
teiro é um dom especial. Os que nao possuem ésse dom de-
vem casar-se. É claro que a doutrina de Paulo é boa e razoá-
vel. Seria absurdo querer que todo o mundo se casasse, pois
existem alguns que podem ser mais felizes e realizar sua
missáo nesta vida mais desafogadamente e com maior con-
tentamento permanecendo solteiros. A regra comum, toda-
vía, é casar. O nao casar admite-se como excegáo. Tal o
caso de Paulo. É insensatez alguém fazer voto de celibato, a
menos que possua o dom e a capacidade natural para
cumprí-lo.
2. Casamento e Divorcio. Cap. 7:10-24.
10 Ora, aos casados, ordeno, nao eu mas o Senhor,
que a mulher nao se separe do marido, 11 (se, porém,
ela vier a separar-se, que nao se case, ou que se recon-
cilie com seu marido); e que o marido nao se aparte
de sua mulher. 12 Aos mais digo eu, nao o Senhor:
Se algum irmáo tem mulher incrédula, e esta consente
em morar com ele, nao abandone; 13 e a mulher que
tem marido incrédulo, e éste consente em viver com
ela, nao deixe o marido. 14 Porque o marido incré-
dulo é santificado no convivio da esposa e a esposa
incrédula é santificada no convivio do marido crente.
Doutra sorte os vossos filhos seriam impuros; porém,
agora, sao santos. 15 Mas, se o descrente quiser apar-
tar-se, que se aparte; em tais casos nao fica su jeito á
servidáo, nem o irmáo, nem a irmá; Deus vos tem
chamado á paz. 16 Pois, como sabes, ó mulher, se sal-
varás a teu marido? ou como sabes, ó marido, se sal-
varás a tua mulher? 17 Ande cada um conforme o Se-
nhor Ihe tem distribuido, cada um conforme Deus o
tem chamado. É assim que ordeno em todas as igre-
jas. 18 Foi alguém chamado, estando circunciso? nao
desfaca a circuncisáo. Foi alguém chamado estando
incircunciso? nao se fa?a circuncidar. 19 A circuncisáo
em si nao é nada; a incircuncisáo também nada é,
mas o que vale é guardar as ordenanzas de Deus. 20
Cada um permane?a na voca^áo em que foi chamado.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
65
21 Fóste chamado sendo escravo? nao te preocupes
com isso; mas, se aínda podes tornar-te livre, apro-
veita a oportunidade. 2Z Porque o que foi chamado no
Senhor, sendo escravo, é liberto do Senhor; semelhan-
temente o que foi chamado, sendo livre, é escravo de
Cristo. 23 Por prego fóstes comprados; nao vos tor-
néis escravos de homens. 24 Irmáos, cada um perma-
ne?a diante de Deus naquilo em que foi chamado.
Observa-se que na igreja de Corinto havia pessoas con-
victas de que, com a aceitagáo do evangelho, desfaziam-se
automáticamente todos os lacos que prendiam o convertido á
sociedade, inclusive o vínculo do casamento. Pensando assim,
certos cr entes achavam necessário que os conjuges cristáos se
separassem e adotassem o celibato. Outros ainda eram de
parecer que, se um esposo pagáo se convertesse e a mulher
nao o seguisse néste passo, devia ele divorciar-se da esposa
descrente. O mesmo devia fazer a esposa convertida, relati-
vamente ao esposo impenitente. Paulo estabelece uma regra
para os dois casos, a qual serve de norma reguladora de
quaisquer que sejam as relagoes e condigoes sociais. "Cada
um permanega na vocagáo em que foi chamado". As rela-
goes sociais nao devem sofrer abalo e muito menos desfazer-se
pelo fato de se aceitar Cristo como Senhor. Muito ao con-
trário, devem ser sublimadas por ésse mesmo fato.
Quanto ao primeiro parecer ácima referido Paulo Ihes
lembra o preceito expresso do Senhor contra o divorcio, salvo
em casos de iniidelidade. "Aos casados, ordeno, nao eu, mas
o Senhor, que a mulher nao se separe do marido. . . e que o
marido nao se aparte de sua mulher". Acrescenta, entre-
tanto, que havendo separagáo nao é permitido um novo ca-
samento. Os cristáos que se separassem deviam permanecer
solteiros, ou procurar reconciliagáo.
Paulo ainda se refere "aos mais", ou sejam os envolvidos
em casamentos mistos. O expediente a seguir nestes casos
é mais difícil de fixar, vs. 12-16. Quando um dos conjuges
se convertía, nao era essa mudanga de confissáo religiosa uma
razáo bastante para divórcio? Devia um espóso ou esposa
crente sentir-se na obrigagáo de viver com o outro conjuga
que era pagáo? Jesús Cristo nada deixou explícito sobre éste
caso, mas o apostólo, sob a inspiragáo divina, oferece uma
solugáo. Náo nega essa inspiragáo, antes reveste o seu pa-
recer da mesma autoridade do preceito de Cristo atrás refe-
66
CHARLES R. ERDMAN
rido. o que ele quer dizer é que nao tem urna palavra ex-
pressa de Cristo, de que possa fazer citagáo; contudo nao
deixa de ter urna orientagáo para o caso: "Aos mais digo eu,
nao o Senhor".
Resume-se o seu parecer no seguinte: a conversáo de um
dos cónjuges nao é razáo suficiente para divorcio, nem o deve
ser a incredulidade de um déles. "Cada um permanega na
vocagáo em que foi chamado", ordena formalmente. Se hou-
ver separacáo, seja por iniciativa da parte descrente. Se o
incrédulo consente em viver com o crente, éste nao deve pro-
curar separar-se. A parte infiel e os filhos désse consorcio
estáo sob a influéncia santificadora de uma vida crista. Isto,
entretanto, nao significa aprovacáo de casamentos mistos.
Pelo contrário, o apostólo desaconselha tais casamentos, II
Cor.. 6:14. Sua doutrina cifra-se nisto: pela conversáo de
um dos consortes a familia passa a gozar de uma atmosfera
de santidade e das vantagens de um lar cristáo.
Todavía, se um dos consortes, por ser descrente, insiste
em separar-se, o crente nao deve fazer objecáo. Querer por
fórga que continui essa relagáo conjulgal em tais circunstan-
cias, será dar ocasiáo a contendas domésticas. O crente "nao
está sujeito á servidao" em tais casos. Uma separagáo ai é
aconselhável. "Deus nos tem chamado á paz". Naturalmente
que seria possível, continuando unidos, a parte infiel acabar
se convertendo. Mas isto é problemático. As vantagens da
separagáo, sendo mais próximas e evidentes, superam essa
probabilidade remota.
É preciso notar que nada se diz aquí sobre o direito de
casar de novo. Como Paulo declarou há pouco ser inadmissí-
vel novo casamento para os crentes que se separam, tal proi-
bigáo parece naturalmente implícita no caso de um conjuge
fiel separar-se do incrédulo, visto como nao se aduz coisa
alguma em contrário. Além do mais, é muitíssimo imprová-
vel que Paulo contradiga o preceito expresso de Cristo, que
permitiu o divorcio e novo casamento apenas na hipótese de
adultério. Se um marido ou mulher descrente, que tenha
provocado a separagáo, vier a contrair novas núpcias, entáo,
de acorde com o ensino de nosso Senhor, a parte abandonada
ficará absolutamente livre para casar outra vez, agora com
um crente.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 67
Aínda que tais separagoes sejam permitidas e até neces-
sárias, de modo nenhum o apóstelo as estimula ou aconselha.
Em regra as relagoes conjugáis nao devem ser desfeitas com
facilidade. Cada qual deve cumprir todos os de veres do es-
tado em que providencialmente foi colocado e em que se
achava quando ouviu o chamado divino: "Ande cada um
conforme o Senhor Ihe tem distribuido, cada um conforme
Deus o tem chamado".
Paulo aplica éste principio as duas principáis catego-
rías políticas e sociais do seu tempo. Se um judeu se tornasse
cristáo dever-se-ia contentar em ser um judeu cristáo. Aos
crentes nao importam muito as discriminagoes nacionais,
senáo a obediencia a Deus, e isto é tudo. Nao é do papel do
Cristianismo desfazer tais discriminacoes, nacionais e sociais.
Se um escravo se tornasse cristáo, sua condigáo inferior nao
devia apoquentá-lo. Cumpria-lhe continuar escravo, mas
agora com atitudes cristas, sem procurar libertar-se pelo fato
de agora ser crente. Em Cristo as distingoes sociais desapa-
recem, confundidas ou amalgamadas em uma unidade supe-
perior, a sua. O escravo cristáo é liberto de Cristo; de Cristo
é escravo o liberto que se converteu. Fomos comprados por
elevado prego e pertencemos a um Senhor. Náo nos devemos
tornar, por conseguinte, escravos de ninguém, cedendo as
suas opinióes e caprichos e procurando alterar a condicáo
em que a vocagáo de Cristo nos encontrón. Seja qual fór essa
condigáo, social ou política, o cuidado que devemos ter é o
de nossas relagoes com Deus.
3. Casamento e Servigo Cristáo. Cap. 7:25-38.
25 Com respeito as virgens, nao tenho mandamen-
to do Senhor; porém dou mínha opiniáo como tendo
recebido do Senhor a misericordia de ser fiel. 26 Con-
sidero, por causa da angustiosa situagáo presente, ser
bom para o homem permanecer assim como está. 27
Estás casado? náo procures separar-te; estás livre de
mulher? náo procures casamento. 28 Mas, se te can-
sares, com isto náo pecas; e também se a virgem se
casar, por isso náo peca. Ainda assim, tais pessoas
sofreráo angústia na carne, e eu quisera poupar-vos.
29 Isto, porém, vos digo, irmáos: o tempo se abrevia; o
que resta é que náo só os casados sejam como se o
náo fóssem; 30 mas também os que choram, como se
68
CHARLES R. ERDMAN
nao chorassem; e os que se alegram, como se nao se
alegrassem; e os que compram, como se nada possuis-
sem; 31 e os que se utilizam do mundo, como se déle
nao usassem; porque a aparéncia déste mundo passa.
32 O que realmente eu quero é que este jais livres de
preocupa?oes. Quem nao é casado cuida das coisas do
Senhor, de como agradar ao Senhor; 33 mas o que se
casou cuida das coisas do mundo, de como agradar á
esposa, 34 e assim está dividido. Também a mulher,
tanto a viúva como a virgem, cuida das coisas do Se-
nhor, para ser santa, assim no corpo como no espirito;
a que se casou, porém, se preocupa com as coisas do
mundo, de como agradar ao marido. 35 Digo isto em
favor dos vossos próprios interésses; nao que eu pre-
tenda enredar-vos, mas sómente para o que é decoroso
e vos facilite o consagrar-vos, desimpedidamente^ ao
Senhor. 36 Entretanto, se alguém julga que trata sem
decoro a sua filha, estando já a passar-lhe a flor da
idade, e as circunstancias o exigem, fa?a o que quiser.
Náo peca; que se casem. 37 Todavia, o que está firme
em seu cora^áo, náo tendo necessidade, mas dominio
sobre o seu próprio arbitrio, e isto bem firmado no seu
ánimo, para conservar virgem a sua filha, bem fará.
38 E assim quem casa a sua filha virgem faz bem;
quem náo a casa fará melhor.
Haviam pedido um conselho a Paulo sobre como deviam
proceder os pais relativamente as filhas solteiras. Deviam
dá-las em casamento, ou negar-lhes consentimento para isso?
Quanto a éste assunto ele diz que náo tem nenhum manda-
mento do Senhor. Significa inexistir para o caso um ensi-
namento expresso de Cristo, como também quer dizer aue
sua resposta ou parecer náo deve ser encarado como regu-
lamento, ou exigéncia, senáo como conselho, no qual os pais
poderáo convir se quiserem, de acordó com as circunstáncias
de cada caso. Náo nega a inspiracáo de suas palavras, porém
falando assim afirma-se digno de confianga.
A substancia de sua resposta é o seguinte: Consideran-
do as presentes asperezas e dificuldades da vida, será mais
prudente ñcar solteiro. Assim se evitaráo angústias e o
trabalho evangélico encontrará menos empecilhos. No en-
tanto a questáo ai náo é de ser certo ou errado casar; náo se
trata disto, mas da conveniéncia de cada um, como cada
pessoa queira e resolva.
Sublinham-se tres elementos na resposta de Paulo. Pri-
meiro, "por causa da angustiosa situacáo j^resente" é bom
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
69
permanecer solteiro, ou, se casar, dispor-se a aceitar com pa-
ciencia as responsabilidades que ésse estado acarreta. Esta
vida OU a era presente cedo acabará. Esta expectagáo absor-
vente da vinda de Cristo chegará ao fim. Os padecimentos
atuais dos crentes podem bem ser aqueles que foram preditos
como íiavendo de preceder imediatamente a vinda do Senhor.
Porisso o casamento e outras preocupagoes humanas nao de-
vem empolgar-nos de tal manelra que nos causem desneces-
sária ansiedade. Os país nao devem julgar que o casamento
aas filhas é a coisa mais importante déste mundo.
Nao se devem tirar conclusoes exageradas do que o apos-
tólo acabou de dizer. Nao afirmou que a vinda de Cristo se
daria imediatamente, nem disse que os crentes menospre-
zassem as obrigagoes normáis da vida e suas sagradas reía-
goes. Se o afirmasse estarla em contradigao com o que de-
ciarou no resto déste cap. e em outras partes desta epístola.
Mas o que ele dése ja é que seus leitores vejam as coisas como
aevem ser, guardadas suas devidas proporcoes. E visto como
a oraem presente das coisas déste mundo nao é aquela que
vaí perdurar para sempre, os crentes nao se preocupem assim
aesmedidamente com estas condigoes e relacoes que em breve
deíxaráo de existir. Quer que se utilizem do mundo, mas nao
de um modo absorvente: "Porque a aparéncia déste mundo
passa", vs. 26-31.
Em segundo lugar declara que, tendo-se em vista a tri-
bulacáo que assoberbava a Igreja, havia vantagem no celi-
bato. O solteiro estava em muito melhores condicoes de
prestar servigo cristáo sob variadas formas, e possivelmente
era menos tentado e perturbado por distragoes seculares. O
que éle visa com éste seu conselho é ficarem os crentes
"livres de cuidados". O maior proveito dos leitores é o alvo de
sua admoestagáo. Nao tem a intengáo de restringir-lhes a
liberdade, senáo ajudá-los a buscar o que é conveniente, a
fim de que possam servir ao Senhor sern desviar disso a
atengáo.
Em terceiro lugar frisa bem que a atitude de um pai com
referencia ao casamento de urna filha é pura questáo de con-
veniéncia e de circunstancias. Se o pai entende que nao age
decorosamente ou elegantemente com relagáo á filha solteira,
especialmente se ela já nao está mais na flor da idade, e se
é patente a necessidade de se casar, nao tenha dúvida; con-
70
CHARLES R. ERDMAN
sinta no casamento. Nao cometerá nenhuma falta. Mas,
contrariamente, se recusar consentir no casamento, devem
ser as circunstancias tais que nao déem lugar á menor dú-
vida de ser prudente e acertada esta resolucáo. Também é
preciso que nao haja nenhum impedimento ponderável para
esta resolucáo, como por exemplo o caso de a filha já ter
sido prometida, ou outra circunstancia que a isso o tenha
levado. O pai deve ter o direito legal e moral de opor seu
embargo no caso. Tal direito nem sempre foi reconhecido
sob a vigencia das leis romanas, isto em virtude dos cos-
tumes sociais daquela época. Porisso que, se a decisáo paterna
fósse contrária ao casamento, deveria sé-lo por uma delibera-
gao pessoal e independente.
Entáo, observadas todas estas circunstancias, pode ser
melhor, em dias de apérto e aflicáo, tom.ar o pai a decisáo de
negar consentimento ao casamento de uma filha. Nao obs-
tante, "quem casa a sua filha virgem faz bem". Náo faz
nenhum mal. Contudo, pode haver circunstancias e condi-
c5es tais que, permanecendo solteira, o servigo de Cristo ñas
suas rnáos prospere mais e o seu caráter cristáo mais se de-
senvolva e se firme.
4. Casamento "no Senhor'\ Cap. 7:39-40.
39 A mulher está ligada enquanto vive o marido;
contudo, se falecer o marido, fica livre para casar com
quem quiser, mas somente no Senhor. 40 Todavia se-
rá mais feliz se permanecer viúva, segundo a minha
opiniáo; e pensó que também eu t'enho o Espirito de
Deus.
Ernbora o caso das viúvas tenha sido indiretamente con-
templado ñas instrucoes anteriores, Paulo Ihe faz uma refe-
rencia direta na conclusáo de sua resposta ao questionário
proposto sobre o casamento. A morte dissolve o vínculo ma-
trimonial, declara o apostólo. Assim, morrendo o marido, a
viúva "fica livre para casar com quem quiser". Paulo náo
quer dizer que se ja ilícito, inconveniente do ponto de vista
moral ou anticristáo contrair segundas núpcias, pois albures
insiste que as viúvas jovens se casem: "Quero, portan to, que
as viúvas mais novas se casem, criem filhos, sejam boas donas
de casa e náo déem ao adversário ocasiáo favorável de male-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 71
dicéncia" (I Tim. 5:14). Todavía, por falar agora em tempes
difíceis que a Igreja está enfrentando, afirma que apesar de
qualquer viúva estar livre para casar de novo, seu parecer é
que será mais feliz se permanecer assim. É de se notar, no
entanto, que Paulo nao sómente está escrevendo éste cap. á
vista de circunstancias angustiosas de perseguigáo que todos
os cristáos enfrentavam, como está insistindo sempre ser a
questáo do casamento uma questáo de conveniencia pessoal.
Se convém ou nao convém casar, sejam as circunstancias e
condicoes particulares de cada um que decidam.
Por outro lado é também evidente que Paulo permite
novas núpcias mas nao no caso de divorcio; apenas por morte
do marido. É o que diz: "A mulher está ligada enquanto
vive o marido".
Entretanto, o ponto a sublinhar nesta instrucáo refe-
rente ao casamento de viúvas está naquela frase: "Sómente
no Senhor". É claro que o apostólo nao aconselha nem apoia
o casamento de crentes com incrédulos. Que quer dizer essa
restricáo imposta por ele ao casamento de viúvas — casar
no Senhor? Quer dizer que nao sómente os novos maridos
devem ser crentes, mas que haja motivos cristáos para ésses
novos consorcios, de modo a poderem receber a aprovagáo
de Cristo.
O apóstolo conclúi éste longo cap., táo chelo de sábios
conselhos, com uma afirmacáo que deve ser guardada na
memoria de quantos neguem^ a inspiragáo de Paulo, á vista
de certas expressoes suas anteriores. "Pensó [digam lá de
mim o que quiserem] que também eu tenho [a inspiracáo do]
o Espíi'ito de Deus", afirma éle.
Éste cap. nao é para se 1er as pressas e por alto. Demanda
cuidadoso estudo para nao ser mal interpretado. Pode haver
néle referéncias a condicoes puramente passageiras e que
de fato teráo passado, mas será proveitoso a todo crente pon-
derar seriamente os principios básicos estabelecidos ai pelo
apóstolo. Tais principios sao aplicáveis a muitos problemas
serissimos da atualidade. Podem se tornar padrees dema-
siadamente altos para a sociedade de hoje, de costumes re-
laxados, porém nao mais altos do que os principios que todo
seguidor de Cristo deve acatar. As reflexoes e ensinamentos
que constam déste cap. nao sao opinioes transitórias de um
72
CHARLES R. ERDMAN
escritor antigo e já fora de moda. Quem ai falou e expenden
advertencias tao bem equilibradas nao as atribuiu simples-
mente ao seu parecer de homem falível, mas acreditou-se
aprovado pelo Espirito Santo naquilo que escreveu.
F. ALIMENTOS OFERECIDOS AOS ÍDOLOS. Caps.
8:1 a 11:1.
Há coisas que todo o mundo vé logo que é bom e razoável;
porisso logram sua imediata aprovacáo. Outras, porque sao
evidentemente erróneas, sao condenadas geralmente. Mas
existe um terceiro grupo ou categoría de atos e práticas,
acerca de cujo valor moral as opinióes divergem. Repugnam
á consciéncia de alguns, mas por outras pessoas, igualmente
criteriosas, sao aceitos. Tal a questáo que surgiu na igreja
de Corinto, referente ao consumo de comidas previamente
oferecidas em sacrificios aos deuses pagaos. Muitos cristáos
viam na idolatría mera superstigáo, e sabiam que a carne
que tivesse servido em cerimónias do culto pagáo nao tinha,
por isso, sofrido nenhuma transformagáo intima, mas era
igual a qualquer outra que nao o tivesse sido. A outros, po-
rém, parecía que consumir alimentos naquelas condigoes era
acumpliciar-se com a idolatría. Consideravam, pois, seme-
Ihante conduta moralmente má.
Sao desta categoría os conflitos de consciéncia que ainda
os crentes de hoje enfrentam, pois se afiguram a alguns
como moralmente indiferentes, ou que nao importam á mo-
ral. Para outros no entanto sao questoes serias que impli-
cam o bem ou o mal. Sao, por exemplo, os problemas ati-
nentes á guarda do domingo, sao os divertimentos sociais, sao
certos gastos supérfluos que algumas pessoas se permitem.
Para os cristáos de Corinto a coisa se revestia da maior
gravidade. Práticas supersticiosas, idolátricas, permeavam
quase todos os costumes naquela época, fossem costumes do-
mésticos ou privados, fossem públicos ou sociais, ou ainda
os relacionados com a política. Carnes dos sacrificios que se
realizavam nos templos eram servidas em tódas as festas
sociais. Era o que se expunha a venda nos agougues. E em
casa, por ocasiáo das refeigoes, tais carnes eram servidas aos
hóspedes que houvesse e que pudessem aparecer de momento.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 73
Era, pois, iim problema muito difícil e delicado, éste que os
amigos de Paulo em Corinto Ihe apresen taram, dése j osos de
urna solucáo.
O apostólo podia ter apelado para a decisáo do Concilio
de Jerusalém, o qual se manifestara contrário ao consumo de
tais carnes. Tal decisáo, contudo, parece que teve aplicagáo
local e temporária. Além disso a imposicáo de regras taxa-
tivas era contrária ao método de Paulo tratar os problemas
daquela Igreja. O que ele fazia era apresentar principios
que os leitores apiicassem na solucáo dos seus variados pro-
blemas. É exatamente éste método que empresta á epístola
que estudamos um valor permanente. Estes mesmos princi-
pios que ele apresenta referentemente ao consumo das so-
breditas carnes, aplicam-se hoje na solugao de todos os con-
flitos de consciéncia e nos orientam na resolugáo de algumas
das mais prementes dificuldades com que aínda hoje es-
barramos.
Em cap. anterior, tratando de assuntos alheios ou indi-
ferentes á moral, declarou que até mesmo nos casos em que
podia prevalecer a liberdade cristá, ele náo se deixava escra-
vizar por nenhum hábito, aínda que inocente: "Todas as
coisas me sáo lícitas, mas eu náo me deixarei dominar por
nenhuma délas". Além do que, na Epístola aos Romanos
(14:1 a 15:13), instruí relativamente a estes mesmos proble-
mas. Contudo, é nos tres caps, seguintes, desta carta que
ora estudamos, que ele examina exaustivamente estas difi-
culdades. Os principios expendidos podem ser esbogados em
cinco ítens:
— O ato espontáneo de quem se entrega a tais práticas
discutidas pode constituir-se um perigp para os fracos. A
liberdade, pois, deve ser regulada pelo amor. Cap. 8.
— Tais práticas podem estorvar o trabalho cristáo. De-
vemos entáo ser tudo para todos. Cap. 9.
— Podem fazer perigar a alma. Acautelemo-nos, por-
tanto, para que náo caíamos. Cap. 10:1-13.
— Possívelmente nos ídentificam com o mundo. Náo
provoquemos, entáo, ciúmes nAquéle de quem somos. Cap.
10:14-22.
74
CHARLES R. ERDMAN
— Atendamos ao que convem e edifica, tudo fazenc
para a gloria de Deus. Caps. 10:23 a 11:1.
1. O Problema em si. Cap. 8.
1 No que se refere as coisas sacrificadas a ídolos,
é notorio que todos somos senhores do saber. O saber
ensoberbece, mas o amor edifica. 2 Se alguém julga
saber alguma coisa, com efeito nao aprendeu aínda
como convém saber. 3 Mas se alguém ama a Deus,
ésse é conhecido por ele. 4 No tocante á comida sa-
crificada a ídolos, sabemos que o ídolo de si mesmo
nada é no mundo, e que nao há senáo um só Deus. 5
Porque, aínda que haja também alguns que se chamem
deuses, quer no céu, ou sobre a térra, como há muitos
deuses e muitos senhores, 6 todavía, para nós há um
só Deus, o Pai, de quem sao todas as coisas e para
quem existimos; e um só Senhor, Jesús Cristo, pelo
qual sao todas as coisas, e nós também por ele. 7 En-
tretanto, nao há ésse conhecimento em todos; porque
alguns, por efeito da familiaridade até agora com o
ídolo, aínda comem como a ele sacrificadas; e a cons-
ciéncía déstes, por ser fraca, vem a contaminar-se. 8
Nao é a. comida que nos recomendará a Deus, poís nada
perderemos se nao comermos, e nada ganharemos se
comermos. 9 Vede, porém, que esta vossa liberdade nao
venha de algum modo a ser tropéco para os fracos. 10
Porque, se alguém te vír, a ti, que és dotado de saber,
á mesa, em templo de ídolo, nao será a consciéncia do
que é fraco índuzida a participar de comidas sacrifi-
cadas a ídolos? 11 E assim, por causa do teu saber,
perece o irmáo fraco, pelo qual Cristo morreu. 12 E
déste modo, pecando contra os irmáos, golpeando-lhes
a consciéncia fraca, é contra Cristo que pecáis. 13 E
por isso, se a comida serve de escándalo a meu irmáo,
nunca mais comereí carne, para que nao venha a es-
candalízá-lo.
Tratando de questoes indiferentes quanto á moral, acerca
das quais crentes igualmente criteriosos podem divergir de
opinláo, Paulo em teoria ou de um modo geral defende a li-
berdade crista, mas na prática, ou atendendo a casos parti-
culares, impoe-lhe severas restrigoes. É assim aqui. Depois
de expor o problema das viandas oferecidas a ídolos, firma
o primeiro grande principio: a liberdade precisa ser restrin-
gida pelo amor. Frisa bem que as questoes difíceis e delicadas
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 75
que ésse caso envolve nao podem ser resolvidas á base de
conhecimentos ou de ilustragáo que se acompanha de seus
direitos, mas precisara ser postas em equagáo pelo amor e
suas obrigagoes.
Quanto ao consumo de carnes de animáis mortos em
sacrificios idolátricos, declara que os cristáos esclarecidos
sabem nao produzirem tais carnes nenhuma contaminagáo.
Entretanto, na vida crista, é o amor e nao o saber o guia mais
seguro. O saber incha, ou enche de soberba, enquanto o amor
edifica, A pessoa que presume saber alguma coisa com per-
feigáo ainda nao possui um dos elementos essenciais do ver-
dadeiro saber. E aquéle que resolve agir exclusivamente de
acordó com a teoria que tem acerca do que é e do que nao
é permitido, ainda nao decobriu a maneira de viver crista-
mente. Mas se alguém ama a Deus, é dÉle perf eitamente
conhecido, partilhando de sua divina companhia. A respeito
de comer o que foi sacrificado a ídolos, diz Paulo saberem os
cristáos que o "ídolo de si mesmo nada é no mundo". É
simples produto de imaginagáo e assunto para entreter su-
persticiosos. O cristáo sabia existir um só Deus, enquanto
as religioes pagás se apresentavam com numerosas divinda-
des, falsamente assim chamadas. O único Deus é a Orígem
e o Fim de tudo. É o Criador de todas as coisas. Os cristáos
existem para servi-lO e glorificá-lO. Há apenas um Senhor,
Jesús Cristo, por meio de quem tudo foi criado e nós, cris-
táos, conduzidos ao servigo de Deus.
Todavía nem todo o mundo tem éste mesmo grau de
conhecimento. Alguns cristáos, de fé imperfeita, e que se
haviam criado e crescido com a nogáo de que as divindades
pagás eram mesmo dotadas de poder, ésses náo podiam se
desvencilhar da idéia de que as viandas, usadas nos sacrifi-
cios pagáos, haviam-se contaminado com alguma influencia
oculta irradiada dos ídolos. E, por esta razáo, tais viandas
náo prestavam, eram improprias para cristáos. Sabemos
que a nossa aceitagáo por parte de Deus náo depende destas
coisas. ''A questáo de usar tais alimentos ou deixar de usá-
-los náo influí rnoralmente. Mas se alguém é livre para fazer,
neste particular, o que entender, deve por outro lado consi-
derar se o seu ato afeta outras pessoas. E entáo precisa
graduar o uso de sua liberdade, condicionando-o ao bem
geral". Convém acautelar-se para que nenhum ato seu pro-
76
CHARLES R. ERDMAN
duza o efeito de um tropégo posto no caminho daquéles cuja
consciéncia é menos esclarecida.
Suponha-se, por exemplo, que alguém assim fraco na fé
presencie um outro crente, que nao ligue aos seus escrúpulos,
participar de uma festa idolátrica. Nao será isto um incen-
tivo para que ele também participe de tais festas, que sua
consciéncia reprova? Com isso nao criará ánimo para fazer
o que considera erro? A ilustragáo ostensiva do que se julga
mais adiantado em conhecimentos, e o egoísmo com que usa
de liberdade levam á ruina o outro irmáo por quem Cristo
igualmente morreu. De modo que o uso da liberdade, em
si mesmo permissível, pode tomar-se um meio de destruigáo
de crentes menos adiantados na fé. Agir, pois, assim, des-
considerando a fraqueza e a ignorancia de outros, é causar-
Ihes grande prejuízo moral e violar a lei de Cristo.
Entáo, concluí o apostólo, se o consumo de tais alimentos
oferecidos a ídolos leva um irmáo a tropegar e cair, éle, Paulo,
está disposto a jamáis servir-se de tais comidas enquanto
viver, a fim de nao causar táo grande mal.
A fraqueza de que fala nao é o estado da pessoa que fá-
cilmente se deixa influenciar para o mal. Mas é fraqueza
de fé, na pessoa ultra-escrupulosa, que nao entende o sentido
da liberdade crista e, pois, nao percebe que o consumo de
tais alimentos é matéria que nada tem a ver com a condigáo
de nosso espirito perante Deus — é matéria indiferente.
De tudo quanto o apostólo acaba de dizer ressalta uma
verdade: a consciéncia deve ser obedecida sempre. Seus es-
crúpulos ou exigéncias podem ás vézes parecer absurdos, mas
nao convém desatendé-los. Cumpre informemos nossa cons-
ciéncia, acrescentando mais luzes ás que já tenha. Nunca
devemos violar seu recato ou suas suscetibilidades. Nessas
questoes em que o bem e o mal estáo envolvidos, e sobre as
quais haja divergencia de parecer entre os crentes, algumas
vézes escrúpulos tolos podem ser superados com reflexoes,
conselhos e o exemplo de determinadas pessoas. Entretanto,
nao devem ser seguidos tais exemplos, consideragoes ou con-
selhos antes de a consciéncia convir néles ou aprová-los.
Por outra parte, jamáis devemos insistir com alguém
para que proceda contra sua consciéncia. Nem, por nosso
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
77
exemplo, devemos cientemente estimular outros a agir dessa
forma. Antes, devemos dispor-nos a evitar o que se nos afi-
gure inocente, se estamos certos de que nosso exemplo pode
influenciar outras pessoas para fazer o que elas consideram
errado e mau. Todavía, nao convém evitá-lo, se por alguma
razáo, a nossa consciéncia reprova esta atitude. Mas se o
assunto, a nosso ver, é dos tais que nao interessam moral-
mente, entáo o amor é que decide. "Até um certo limite de-
vemos regular nossa conduta pela estreiteza mental dos ou-
tros, por seus escrúpulos, preconceitos e fraqueza de com-
preensáo". Cada qual se esforcé por "acertar o passo com a
comunidade crista de que faz parte".
E é assim que Paulo apresenta éste importante principio
atinente aos conflitos de consciéncia: Atos espontáneos, do
livre arbitrio cristáo, podem fazer periclitar os f ráeos; a
liberdade, pois, há de ser regulada pelo amor.
2. O Exemplo de Paulo. Cap. 9.
Vimos o primeiro grande principio estabelecido por
Paulo no tocante a assuntos que nao interessem á moral, e
em torno dos quais haja divergéncia de parecer: a liberdade
há de ser regulada pelo amor. Ele mesmo se submetia a ésse
principio, declarando-se disposto a nunca mais na vida co-
mer carne se, com isso, viesse a causar tropégo a um irmáo.
Agora firma um segundo principio, destinado ainda a
orientar a conduta dos crentes em tais casos de consciéncia,
apresentando-se ele mesmo como exemplo. Refere seu pro-
cedimento em Corinto, bem conhecido de todos, a saber, re-
cusara aceitar qualquer remuneragáo pelo seu trabalho na-
quela igreja, para que ninguém o interpretasse mal quanto
aos motivos que o impeliam a trabalhar, ficando assim pre-
judicada sua influéncia. Em outras cidades sua atitude fóra
diferente, pois recebera com prazer a remuneragáo de seus
servicos, pelo menos como incentivo para sua luta espiritual.
Em Corinto procederá de um modo, em outras partes agirá
de outro, tudo por amor do trabalho em que estava empe-
nhado. Com isto éle dava um exemplo de como aplicar o
importante principio discutido neste cap. nove de sua carta,
a saber: o ato espontáneo de quem se entrega a urna prática
78
CHARLES R. ERDMAN
controvertida pode servir de estórvo ao trabalho cristáo.
Portanto, devemo-nos fazer "tudo para com todos".
É bom lembrar que Paulo ainda discute o problema do
consumo de carnes oferecidas na idolatría. O principio, que
ele ilustra com seu próprio exemplo de renúncia a sustento
financeiro por parte dos corintios, aplica-se antes de tudo a
ésse problema. Assim como se dispusera a sacrificar sua re-
muneragao por amor do evangelho, do mesmo modo deviam
estar prontos a se abster do consumo de tais carnes, caso
verificassem que, usando-as, a influencia déles junto a outros
irmáos vinha de qualquer modo a enfraquecer.
A nós, que estudamos esta epístola, cabe o dever de fazer
idéntica aplicacáo prática déste principio aos casos de cons-
ciéncia com que nos defrontamos constantemente. Devemos
dispor-nos a sacrificar muita coisa do que nos pareca ino-
cente, no caso de sua prática vir de qualquer forma preju-
dicar nosso trabalho por Cristo.
a. Sacrificio por amor do Evangelho. Cap. 9:1-18.
1 Nao sou eu, porventura, livre? nao sou apostólo?
nao tenho visto a Jesús, nosso Senhor? acaso nao sois
fruto do meu trabalho no Senhor? 2 Se nao sou apos-
tólo para outros, certamente o sou para vos; porque
vós sois o sélo do meu apostolado no Senhor. 3 A mi-
nha defesa perante os que me interpelam é esta: 4
Nao temos nós, porventura, o direito de comer e beber?
5 E também o de fazer-nos acompanhar de esposa
érente, como fazem os demais apostólos, e os irmáos
do Senhor, e Cefas? 6 Cu sómente eu e Barnabé nao
temos direito de deixar de trabalhar? 7 Quem jamáis
vai á guerra á sua própria custa? Quem planta a
vinha e nao come do seu fruto? Ou quem apascenta
um rebanho e nao se alimenta do leite do rebanho?
8 Porventura falo isto como homem, ou nao o diz tam-
bém a lei? 9 Porque na lei de Moisés está escrito: Nao
atarás a boca do boi que debulha. Acaso é de bois que
Deus se preocupa? 10 Ou é seguramente por nós que
ele o diz? Certo que é por nós que está escrito; pols
o que lavra, cumpre fazé-lo com esperanza; o que
debulha, faga-o na esperanza de reeeber a parte que
Ihe é devida. 11 Se nós vos semeamos as coisas espiri-
tuais, será muito recolhermos de vós bens materiais?
12 Se outros participam désse direito sobre vós, nao o
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temos nós em maior medida? Entretanto nao usamos
désse direito; antes suportamos tudo, para nao criar-
mos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo. 13 Nao
sabéis vos que os que prestam servicos sagrados, do
próprio templo se alimentam; e quem serve ao altar,
do altar tira o seu sustento? 14 Assim ordenou tam-
bém o Senhor aos que pregam o evangelho, que vivam
do evangelho; 15 eu, porém, nao me tenho servido de
nenhuma destas coisas, e nao escrevo isto para que
assim se faca comigo; porque melhor me fóra morrer
antes que alguém me anule esta gloria. 16 Se anuncio
o evangelho, nao tenho de que me gloriar, pois sobre
mim pesa essa obriga^áo; porque ai de mim se nao
prégar o evangelho! 17 Se o fa^o de livre vontade, te-
nho galardáo; mas, se constrangido, é, entáo, a res-
ponsabilidade de despenseiro que me está confiada. 18
Nésse caso, cual é o meu galardáo? É Que, evange-
lizando, proponha de graca o evangelho, para nao me
valer de todo o direito que ele me dá.
Recusando sustento financeiro da igra ja de Corinto,
Paulo com isto nao quis negar o direito que assiste aos mi-
nistros evangélicos de receberem salário para sua manuten-
cao e de suas familias. Pelo contrário, afirmou éste direito,
declarando que sua recusa, neste caso particular, tinha uma
finalidade única, que era o progresso de seu trabalho, ou
antes o fizera pelo recelo de que, aceitando salário, isto se
constituisse um embaraco para as suas atividades. É o que
ele declara: "Para nao criarmos qualquer obstáculo ao
evangelho de Cristo", v. 12.
O direito que o ministro do evangelho tinha de receber
ou solicitar sustento centava com quatro ou cinco fundamen-
tos iniludíveis. Primeiro: Paulo era um apostólo e, sendo-o,
tinha direito a tudo quanto era concedido, sem questao, a
outros obreiros seus colegas. Seu apostolado estava garantido
pelo fato de ter visto a Jesús. Nao queria se referir a uma
simples experiéncia espiritual que tivesse de Cristo, nem a
visoes que tivera em éxtases experimentados durante o seu
ministéric. Referia-se a uma contemplagáo real da pes^oa
humana e glorificada do Salvador, privilégio que Ihe fóra
concedido na estrada de Damasco. Ésse apostolado fóra se-
lado ou declarado auténtico pela sua atuacáo em Corinto.
Se cristáos houvesse que pusessem em dúvida ou negassem
a legitimidade do apostolado de Paulo, certamente que nao
seriam os corintios, porque fóra por sua instrumentalidade
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que ésses corintios vieram a existir como igreja: "Vós sois o
sélo do meu apostolado no Senhor".
Por conseguinte, sendo apostólo, Paulo tinha direito ao
sustento que outros apostólos estavam recebendo. Tinha
também o privilégio, se déle quisesse usar, de se casar e de
levar consigo a esposa em suas viagens apostólicas, como era
o caso dos irmáos de Jesús e de Pedro. Paulo e seu compa-
nheiro Barnabé teriam toda a razáo se recusassem se entre-
gar a trabalhos manuais para se manterem, porque o pri-
meiro, pelo menos, por sua qualidade de apostólo, tinha di-
reito a sustento.
Em segundo lugar: ésse direito ainda é defensável á i
vista do que acontece comumente na sociedade humana. O
soldado, o viticultor, o pastor de ovelhas, todos recebem paga
do seu trabalho. Por que, entáo, excetuar o ministro do
evangelho? Mas ainda que alguém objete, alegando que isto
acontece no mundo, em negocios seculares, pode-se apelar
para a Lei de Moisés. Que provisáo é a sua, relativamente
aos bois ocupados em trilhar cercáis? "Nao atarás a boca i
do boi que debulha", diz a lei. Nao eram apenas os bois que
o supremo Legislador tinha em mente. Seu intuito foi en-
sinar o principio da remuneragáo aos que trabalham, de i
modo a fazé-los participar do fruto de seus labores, sejam ^
estes quais íorem. Era pois natural que Paulo recebesse
sustento material daquela igreja, fruto que era de sua se-
menteira espiritual.
E prossegue ele na defesa dos seus direitos alegando que
aquela igreja estava mantendo outros obreiros cristáos.
Certo que ninguém mais do que éle podia merecer tal ma-
nut^ngáo, visto que fóra o fundador daquela comunidade.
Todavía, enquanto ésses outros eram pesados á igreja, Paulo ^
renunciara seus direitos, suportando diíiculdades e privaQoes '
para nao dar a ninguém ocasiáo de crítica ou queixa, que
podiam resultar em embarago para seu trabalho.
E ainda mais: o direito que o ministério tem de auxilio
financeiro baseia-se igualmente no fato de os sacerdotes ju-
deus terem sido mantidos pelas ofertas que se levavam ao
Templo, recebendo cada qual uma porcáo de carne dos ani-
máis sacrificados. E o mais importante de tudo é que Cristo
perpetuou essa lei, em sua relagáo com o ministério sagrado,
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ordenando expressamente "aos que prégam o evangelho que
vivam do evangelho".
Pois foi um direito assim, firme e divinamente estabele-
cido, que Paulo renunciara. Nao o defendía agora como para
exigir que fósse respeitado: "Nao me tenho servido de ne-
nhuma destas coisas, e nao escrevo isto para que assim se
faca comigo". Prefería morrer a perder o gozo de pregar o
evangelho sem pedir troco. A satisfagáo de pregar sem re-
muneragáo já de si era uma excelente paga, um verdadeiro
salário. Nenhuma recompensa ele podía aceitar pelo servigo
da prégagáo, porque éste era de sua estrita obrigagáo, de seu
próprio mister de despenseiro. Ai déle se nao prégasse o
evangelho. Entretanto nao fóra por isso que recusara re-
muneragáo. A satisfagáo recompensadora que Ihe enchia o
peito fundava-se em saber que essa recusa prevenía qualquer
crítica e evitava empegos na marcha do trabalho.
É assim que Paulo exemplifica, em parte, a aplicagáo do
grande principio que apresenta, isto é, que por insistir em
seus direitos a pessoa pode comprometer o éxito do servigo
que empreende. A prática de certas agóes julgadas inocentes
pode anular a influéncia de seu agente em relagáo a outras
pessoas. O fim especial da fixagáo déste principio é responder
aínda á pergunta que Ihe fizeram a respeito das carnes ofe-
recidas a ídolos. Expunha-se abertamente a censuras o cris-
táo que se utilizasse de tais comidas, embora fósse esta prá-
tica de si mesma inofensiva. Devia pois ponderar seriamente
essa possibilidade de censura, antes de tomar decisoes.
É dever dos crentes de hoje aplicarem escrupulosamente
éste principio na resolugáo dos seus casos de consciéncia. O
obreiro cristáo precisa ver nao sómente se o seu procedimento
é correto, em tese ou de um ponto de vista teórico, mas pre-
cisa atender se, embora inocente em si mesmo, ésse procedi-
mento nao se expoe a censuras francas ou públicas, contri-
buindo assim para por em risco ou anular seu trabalho. No
cap. precedente Paulo insistiu na cbrigagáo de se evitarem
determinadas coisas indiferentes quanto á m.oral, e isto em
consideracáo a irmáos mais fracos. Agora insiste no dever
dessa abstencáo, em certas ocasioes, por amor ao trabalho
evangélico.
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b. Tornar-se tudo para com todos. Cap. 9:19-23.
19 Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de
todos, a fim de ganhar o maior número possivel. '¿O
Procedí, para com os judeus, como judeu, a fim de
gan,har os judeus; para os que vivem sob o regime da
leí, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os
que vivem debaixo da lei, embora nao esteja eu de-
baixo da leí. 21 Aos sem lei, como se eu mesmo o fósse,
nao estando sem lei para com Deus, mas debaixo da
lei de Cristo, para ganhar os que vivem tora do
regime da lei. 22 Fiz-me fraco para com os fracos, com
o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com
todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns.
23 Tudo fago por causa do evangelho, com o fim de me
tornar cooperador com ele.
Dos cristáos de Corinto, Paulo nao exigirá sustento ma-
terial, nem salário, nem qualquer gratificacáo pelos seus
servigos. E a razáo fóra querer evitar que o interpretassem
mal e o seu trabalho assim viesse a ser prejudicado. Mas ele
tivera sua recompensa e esta consistirá naquéle sentimento
de independencia, naquéle prazer de pregar sem gratificacáo,
naquéle gozo de nao dar lugar á pecha de mercenário. En-
tretanto, Paulo nao foi egoísta no uso de sua liberdade. Pelo
contrario, livre de qualquer coagáo humana, fazia-se escra-
vo de todos na esperanga de ganhar alguns para Cristo. Es-
tava livre de escrúpulos mesquinhos, mas permitía que seus
movimentos ou sua liberdade fósse cerceada pela fraqueza
dos outros, para no fim de tudo ter a alegría de trazé-los ao
gozo da liberdade crista que éle táo bem compreendia. Em
lugar de aproveitar-se de seus direitos, de fazé-los valer, fez
toda concessáo possivel onde quer que percebesse uma possi-
bilidade de trazer almas a Cristo. Pois aquéles direitos eram
uma idéia, uma abstragáo, nao podendo competir com o fato
concreto da conquista de almas. Como éle mesmo disse:
"Sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ga-
nhar o maior número possivel".
Com os judeus proceden como judeu, guardando suas
f estas e jejuns, observando seus costumes e cumprindo seus
votos. A vida dos gentíos, que nao tinham lei, procurou adap-
tar-se, nao exigindo déles a adogáo das cerimónias judaicas,
fazendo citacoes de escritores seus, quando Ihes prégava, e
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até se servindo da inscrigáo que vira em um dos altares déles,
fato que ocorreu em Atenas.
Abre um como paréntese para explicar que, acomodan-
do-se com os judeus, nao dava um passo atrás em sua orto-
doxia, para se colocar sob a lei judaica e fazer disso uma
base de salvagáo. Nao, mas que observava essa lei apenas
por motivo de sociabilidade e em deferencia aos costumes de
sua nagáo. Também com isso queria evitar escándalo des-
necessário para os judeus. Entre os gentíos, embora nao
exigindo déstes a aceitagáo da lei cerimonial dos judeus, nao
estava "sem lei" em relagáo a Deus, mas sob a lei de Cristo.
E mais: para os f ráeos, ultra-escrupulosos e tímidos féz-
se fraco, contemporizando com os escrúpulos déles e fazendo
concessoes aos seus preconceitos. Em suma, sua maneira de
proceder está expressa na frase: "Fiz-me tudo para com
todos". Esta expressáo de Paulo significa exatamente o
oposto do sentido que tem na linguagem comum de nossos
dias, como soa aos nossos ouvidos. Nao se trata de moleza
de caráter que faz a pessoa dobrar-se a tudo quanto exista
de práticas imorais. Éle nao sanciona aquéle adágio, que
diz: "Em casa de sapo, de cócoras com éle". O que refere
sao assuntos indiferentes á moral, sao preconceitos sem base,
sao escrúpulos tolos. Está respondendo ainda a pergunta
referente ao consumo de carnes oferecidas a ídolos. Sabe
que o culto dos ídolos nao corresponde a nenhuma realidade
espiritual, e eré, por isso, que o comer tais carnes nao é uma
questáo de bem ou de mal. Entretanto, a um prégador do
evangelho convém abster-se de algumas destas coisas, ino-
centes em si, de modo a evitar escándalos que trazem pre-
juízo ao trabalho evangélico.
É um principio seu, éste da adaptagáo as necessidades,
preconceitos e fraquezas de todas as classes de pessoas, de
modo a se poder levar alguns a Cristo. Tudo isto que faz
é por amor do evangelho, cuja plenitude de béngáos éle quer
dividir com todos.
Éste principio do apostólo deve orientar com maior fre-
quéncia todos os seguidores de Cristo e particularmente
todos quantos se esforgam em guiar outros na vida crista.
Multas práticas inocentes precisam ser postas de lado á vista
dos preconceitos e opinióes de outras pessoas. Se se trata
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de agoes pecaminosas, entáo nem se fale. Além destas, po-
rém, há que considerar os possíveis efeitos ou repercussoes
de atos moralmente indiferentes ou neutros. Relativamente
a casos de consciéncia é necessário acatar éste segundo im-
portante principio formulado pelo apostólo, a saber: Tais
acoes, moralmente neutras, a que alguém se entregue, po-
dem fazer periclitar o trabalho evangélico; devemos entáo
fazer-nos "tudo para com todos".
c. A ¡uta á vista do premio. Cap. 9:24-27.
24 Nao sabéis vós que os correm no estádio, todos,
na verdade, correm, mas um só leva o premio? Correi
de tal maneira que o alcancéis. 25 Todo atleta em tu-
do se domina; aqueles para alcanzar urna corroa cor-
ruptível; nós, porém, a incorruptível. 26 Assím corro
também eu, nao sem meta; assim luto, nao como des-
ferindo golpes no ar. 27 Mas esmurro o meu corpo, e
o reduzo á escravidáo, para que, tendo pregado a ou-
tros, nao venha eu mesmo a ser desqualificado.
Paulo gostava de ilustrar a vida crista com certos fatos
da vida esportiva dos gregos. Aqui refere competigoes ou
tórnelos déles para frisar a necessidade de dominio próprio
e de abnegagáo, mesmo tratando-se de assuntos moralmente
neutros. Respondendo á pergunta acérca das comidas ofer-
tadas a ídolos, insistiu na necessidade de abstengáo do que
em si mesmo é inocente, caso a prática destas coisas sirva de
embarago ao trabalho evangélico. Fizera regra sua tornar-se
"tudo para com todos", isto é, acomodar-se com os precon-
ceitos e escrúpulos dos outros, de forma a poder conquistá-los
para Cristo e fazé-los partilhar com éle da plenitude de bén-
gáos do evangelho. Outra véz, agora, insiste que todos quan-
tos tém de repartir com outros ésse cabedal de felicidade pre-
cisam igualmente de limitar sua liberdade e impor-se aquela
mesma abnegagáo que éle, Paulo, impunha a si próprio.
Provavelmente refere-se aos Jogos ístmicos, assim cha-
mados pelo fato de Corinto ficar situada num istmo. Essas
competigoes esportivas, assim como os Jogos Olímpicos, os
Píticos e os Nemeus, constituíam-se um grandioso festival
cívico-religioso que de dois em dois anos atraía a Corinto
multidoes de aficionados. Só os socialmente livres podiam
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tomar parte nesses jogos, e deviam dar prova suficiente de
que durante dez meses haviam recebido o treinamento pre-
liminar. Exigia-se dos candidatos que durante trinta dias,
antes das competicoes, se submetessem a exercícios no giná-
sio, e sómente quando satisfaziam plenamente estas condi-
qdes eram aceitos para se exibirem diante das multidoes de
espectadores. Um arauto proclamava o nome e a nacionali-
dade de cada competidor, assim como também do vencedor,
que era entáo coroado com uma grinalda de ramos de pinheiro
ou de salsa ou ainda de hera. A familia do vencedor era olha-
da com respeito e honra e quando ele regressava á sua cidade
natal abria-se uma brecha no muro que a circundava para
que por alí passasse. A significacáo désse ato era que a cida-
de, que tinha dentro de si um cidadáo de tanto valor, nao
precisava de muros para sua defesa. O heroi era imortaliza-
do em versos e, em todas as competicoes futuras, destinavam-
Ihe um lugar bem á frente de todos, onde se sentava para
assistir.
Referindo ésses jogos, Paulo apresen ta dois pontos de
contraste. Ñas competigoes gregas, embora todos os joga-
dores corressem no estádio, um sómente ganhava a coroa.
Mas na vida crista todos podem concorrer ao premio e ganhá-
-lo, e devem esforgar-se para isso, uma vez que está prometido.
Segundo: ñas competigoes gregas o premio era "uma coroa
corruptível", um simples e murchoso festáo de folhas de oli-
veira ou de pinheiro, enquanto que, como seguidores de Cristo,
lutamos por uma coroa que nao murchará jamáis, coroa de
vida, diadema de justiga, grinalda de alegría e de gloria. A
vista de uma coroa assim, Paulo insiste com todos os cristáos
para que satisfagam as condigces que se impunham aos atle-
tas lutadores, e ele mesmo se apresenta como exemplo de
quem se esforga para alcangar o cobigado galardáo. Sao
claras essas condigoes. Primeiro de tudo, é preciso que haja
esfórgo e denodo. Ninguém pense que a vida crista é fácil
ou pode ser levada com indiferenga, como brincadeira, mesmo
tratando-se de questces em que nao esteja envolvido positi-
vamente o bem ou o mal. Um esfórgo continuo há de se fazer
para que a conduta seja tal que nao escandalize os f ráeos na
fé, os críticos e ultra-escrupuiosos.
Em segundo lugar, deve-se ser definido nos esforgos.
Dizia Paulo que nao lutava "como desferindo golpes no ar".
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CHA Pw LES R. ERDMAN
Como crentes, precisamos encarar ésses casos de consciéncia
de um modo definido, claro. E importa que os resolvamos
com a determinagáo e firmeza. dos que lutam tendo diante
dos olhos um alvo certo, u'a meta fixa. Assim como precisa-
mos exercer dominio próprio, até nésses casos em que a opi-
niáo dos crentes esteja dividida. Temos de nos acostumar
ao sacrificio de nossos pontos de vista. O treinamento rigo-
roso que se exigia dos atletas gregos era uma ilustracáo da
severidade a que o cristáo precisa submeter nao o corpo, mas
os apetites ou dése jos déle. A linguagem ai é figurada: es-
murrar o corpo, dar bofetadas na cara, levar o corpo ao canto
do muro, como fazem os boxeadores com os adversários ven-
cidos. É com esta figura viva, dramática, que éle mostra a
necessidade de disciplina, de subjugacáo de todos os apetites,
os quais, se nao foram contidos assim, poderáo levar á ruina
moral e fazer que se perca a coroa.
Diz Paulo que se esforga com tal denodo, agindo como
arauto que convoca os competidores ao campo da luta, para
que éle mesmo nao venha a ficar desqualificado, como aqué-
les que nao se submetiam as regras do jógo. Tendo diante
dos olhos um prémio táo glorioso, todos quantos tém ouvido
a convocagáo do evangelho, com igual tenacidade, abnegagáo
e auto-disciplina devem procurar correr no estadio, combater
o bom combate, a fim de que também recebam a coroa
imarcescível.
3. O perigo dos hábitos. Cap. 10:1-13.
1 Ora, irmáos, nao quero que ignoréis que nossos
pais estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram
pelo mar, 2 tendo sido todos batizados, assim na nu-
vem, como no mar, com respeito a Moisés. 3 Todos
éles comeram de um só manjar espiritual, 4 e beberam
da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma
pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo.
5 Entretanto, Deus nao se agradou da maioria déles,
razáo por que ficaram prostrados no deserto. 6 Ora,
estas coisas se tornaram exemplos para nós, a fim de
que nao cobicemos as coisas más, como éles cobi?a-
ram. 7 Nao vos fa^a^is, pois, idólatiras, como alguns
déles; porquanto está escrito: O povo assentou-se
para comer e beber, e levantou-se para divertir-se. 8
E nao pratiquemos imoralidade, como alguns déles o
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fizeram, e caíram num só dia vinte e tres mil. 9 Nao
ponhamos o Senhor á prova, como alguns déles já fi-
zeram, e pereceram pelas mordeduras das serpentes.
10 Nem murmuréis como alguns déles murmuraram, e
foram destruidos pelo exterminador.il Estas coisas Ihes
sobrevieram como exemplos, e foram escritas para ad-
verténcia, nossa de nós sobre quem os fins dos secuios
tém chegado. 12 Aquéle, pois, que pensa estar em pé, veja
que nao caia. 13 Nao vos sobrevoló tentacáo que nao
fósse humana; mas Deus é fiel, e nao permitirá que
sejais tentados além das vossas forjas; pelo contrario,
juntamente com a tentacáo, vos proverá livramento,
de sorte que a podereis suportar.
Paulo já mostrcu que a prática voluntariosa de atos
controvertidos ou discutíveis pode levar pessoas a tropecar e,
depois, pode servir de estórvo ao trabalho cristáo. Agora é
a vez de propor um terceiro principio: Tais práticas podem
fazer perigar a alma; portanto, "o que pensa estar em pé,
veja que nao caia".
Vem a propósito o exemplo dos filhos de Israel, os quais,
a despeito de seus grandes privilégios e vantagens, caíram
em graves pecados. A vista do que, o apostólo adverte seus
leitores e depois acrescenta uma palavra de animagáo.
Nesta referencia á historia dos judeus, declara que seus
pais "foram batizados para Moisés (com respeito a) assim
na nuvem, como no mar". Obedecendo á diregáo daquela
nuvem gloriosa e passando pelo meio do mar incólumes, re-
conheceram em Moisés seu libertador divinamente designado
e comprometeram-se a seguí-lo. Além disso comeram do
maná que do céu Ihes era dado e beberam da água que, mais
de uma vez, brotou da rocha. Esta nao fóra de Cristo apenas
um símbolo. Paulo identifica-a com o Salvador. Completa-
mente incógnito dos israelitas, Cristo estivera com éles no
deserto. Fóra o divino Agente que ministrara as necessidades
déles. Assim, pois, ésse alimento e essa água foram espirituais
e sacramentáis, dádivas que foram da misericórdia divina.
Do mesmo modo os cristáos corintios, pelo batismo, haviam-
-se comprometido a ser seguidores de Cristo; e na Ceia do
Senhor tinham-se tornado participantes de sua graga.
Entretanto, a despeito de sua posigáo privilegiada e das
singulares misericórdias de que foram objeto, os israelitas
agiram com deslealdade: "Deus nao se agradou da maioria
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CHARLES R. ERDMAN
déles, razáo por que ficaram prostrados no deserto*'. Daí
Paulo advertir seus leitores que a prática de comer do ofere-
cido a ídolos, posto que em si mesma inocente, pode dar lugar
a veemente tentagáo, a que éles acabaráo cedendo. O mesmo
pode acontecer a todos os crentes: o hábito de se entregarem
a prá ticas discutidas, que de si mesmas nao sao más, pode
tornar-se ocasiáo de tentagoes muito sutis para serem re-
sistidas. Daí podem nascer dése jos e ansiedades pecaminosas;
portanto "nao cobicemos as coisas más, como éles cobiga-
ram". Nao acóntela venhamos, com tais hábitos, desconsi-
derar ao Senhor, objeto que é de nossa suprema satisfagáo e
de nosso culto absoluto: "Nao vos fagáis idólatras como
alguns déles".
Além disto, nossa sociedade com os que se entregam a
tais hábitos pode arrastar-nos a pecados da impureza, ou
pelo menos levar-nos á amizade do mundo e áquela desleal-
dade a Deus que no Antigo Testamento foi representada sob
a figura de prostituigáo (imoralidade) .
"Nao ponhamos o Senhor á prova, como alguns déles já
fizeram, e pereceram pelas mordeduras das serpentes". A
prática habitual de atos duvidosos pode levar-nos a fazer
uma idéia errónea da tolerancia de Deus; pode acender em
nós o déselo de experimentar até que ponto podemos ir sem
cair, ou o desejo de por o Senhor á prova, para sabermos até
onde Éle nos deixa ir, sem nos castigar ou reprovar. As
murmuragoes de Israel, finalmente, culminaram em verda-
deira rebeliáo e na impiedade de uma provocagáo ou desafio
a Deus. O costume de a pessoa entregar-se a certas diversoes,
nao pecaminosas em si, e a certas práticas que outros acham
inofensivas, pode provocar em nós um sentimento de sensa-
boria da vida que levamos, de moralidade mais rígida, até
que, persistindo ésse desprazer, a situagáo descambe para a
deslealdade e finde em verdadeira provocagáo ao Senhor.
Paulo prossegue, dizendo que toda essa experiéncia de
Israel serve de instrugáo para nós que vivemos numa época
ou em condigoes diferentes e, para dizer melhor, na última
era do m.undo, a que vai servir de epílogo a todo éste drama.
De modo particular essa experiéncia de Israel encerra um
solene aviso contra a presungáo, essa confianga em nós
mesmos, e contra a suposigáo Imbécil de que, pelo fato de
sermos batizados e de participarmos da Ceia do Senhor, es-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 89
tamos moralmente seguros. "Aquéle, pois, que pensa estar
em pé, veja que nao caia".
Feito éste solene aviso, o apostólo, nao obstante, encerra
o parágrafo com urna palavra de animacáo. Embora Israel
se afastasse de Deus, e aínda que tenhamos o senso doloroso
de nossas fraquezas, nao é necessário cair, nao vamos cair
e ficar prostrados. As tentagoes nao nos querem dar tre-
gua, é verdade, mas nao há fado ruim nem mau destino que
nos corte o caminho da fuga ou do escape. Deus permite que
nos encontremos rodeados de circunstancias que determinam
essas íentaQoes fortes, mas Éle sempre nos prové um meio de
escaparmos. Certo é que nao nos devemos colocar, desneces-
sária e voluntariamente, em situacoes perigosas. Nao deve-
mos contemporizar com hábitos discutidos ou duvidosos. Te-
mos de nos devotar com afinco as tarefas que saibamos nos
competirem. Com pertinácia e entusiasmo cumpre que en-
veredemos por estradas que sabemos serem certas. Sobre-
tudo, importa que vivamos por Cristo, para Éle, e procuremos
andar em sua companhia. Sómente procedendo assim é que
estaremos absolutamente seguros.
4. É vedado participar de festas idolátricas. Cap.
10:14-22.
14 Portante, meiis amados, fugi da idolatría. 15
Falo como a critcriosos, jiilgai vos mesmos o que digo.
16 Porventura o cálice da béncáo que aben^oamos, nao
é a comunháo do sangue de Cristo? O pao que par-
timos, nao é a comunháo do corpo de Cristo? 17 i:*or-
que nós, embora muitos, somos únicamente um pao,
um só corpo; porque todos participamos do único pao.
18 Considerai o Israel segundo a carne; nao é certo
que aqueles que se alimentam dos sacrificios sao par-
ticipantes do altar? 19 Que digo, pois? que o sacrifi-
cado ao ídolo é alguma coisa? ou que o próprio ídolo
tem algum valor? 20 Antes digo que as coisas que éles
sacrificam, é a demonios que as sacrificam, e nao a
Deus; e eu nao quero que vos tornéis associados aos
demonios. Zl Nao podéis beber o cálice do Senhor e o
cálice dos demonios: nao podéis ser participantes da
mesa do Senhor e da mesa dos demonios. ZZ Ou pro-
vocaremos zelos no Senhor? somos acaso mais fortes
do que éle?
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Comer do oferecido a ídolos podía ser inocente. No má-
ximo podia ser considerado assunto em que a consciéncia
crista estava livre para convir ou nao. Agora, usar de tais
alimentos em templo de ídolo e na companhia de idólatras,
como a participar com éles de uma festa ao ídolo, isto era mul-
to diferente. De idolatría, pura e líquida, os cristáos tém de
fugir. Nao Ihes compete ver ou experimentar até que ponto
podem contemporizar com ela sem participarem realmente
do ato idolátrico. Mas o que devem fazer é verificar até onde
podem ir, cada vez mais longe, de sua prática. De qualquer
modo, nao devem permitir-se nenhuma participagáo em tais
festas. E vem Paulo, agora, com o seu quarto e grande prin-
cipio. A participagáo voluntariosa nesses atos de culto iden-
tifica-nos com o mundo; portanto, nao provoquemos o Senhor
a ter ciúmes de nós.
Nao é difícil aplicar éste principio na soluQáo dos pro-
blemas de hoje. Certos hábitos que, em determinadas cir-
cunstancias, sao, no máximo, discutíveis, em outras circuns-
tancias sao realmente hábitos maus. Em si mesmos podem
ser neutros moralmente, todavía se praticados na companhia
de pessoas impías e em lugares associados ou reservados á
prática do mal, identificam por tal forma o cristáo com os
inimigos de Cristo que o coragáo de seu amado Senhor senté
com isso verdadeiro pesar.
Como reforgo dessa proibigáo de participar de festas ido-
látricas, o apostólo passa a argumentar com a relacáo que a
Santa Ceia estabelece entre o fiel e Cristo, e mais com a
ímpossibílidade moral de unir-se tal pessoa á de seu Senhor
e ao mesmo tempo ligar-se íntimamente aos demonios que
se supunha representados pelos ídolos e que como tais eram
reconhecidos no culto que Ihes era prestado.
A particípacáo de pao e vinho na Ceia do Senhor é
símbolo da participagáo, pelo crente, em todos os beneficios
da obra expiatoria de Cristo, e da vida espiritual que o Se-
nhor infunde em quantos se unem a Éle pela fé. Do mesmo
modo, a participagáo coletiva no trabalho e na vida de Cristo
pelos crentes faz de todos estes uma unidade — ficando
constituidos em um pao, em um só corpo. Dessa unidade
a Ceia do Senhor é sempre um símbolo.
Assim é que, no caso dos sacrificios judaicos, seus par-
ticipantes partilhavam de tudo quanto o altar significava.
i
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
91
Ora, se bem que as divindades pagas nao existam realmente
e a idolatría nao passe de ilusáo, contudo atrás dos ídolos
estáo os demonios por éles representados, aliás, digamos fi-
guradamente, os demonios da concupiscencia, da crueldade
e da ignorancia, com os quais se identifica o culto dos ídolos.
Concebe-se porventura que alguém se identifique a um só
tempo com ésses demonios e com Cristo? Nao é antes abso-
lutamente necessário decidir entre aqueles e éste? Nao é
claro que participar da idolatría é "provocar zelos no Se-
nhor"? Atrever-nos-emos a desafiar sua ira? Seremos capa-
zes de fugir as consequéncías de seu desagrado?
A prática de acoes discutíveis pode identificar-se de tal
forma ao espirito de cobica, de egoísmo e de impiedade que
adotá-la será negar o Mestre, o seu dominio sobre nós, e
maguar-lhe o coracáo que tanto nos ama.
5. Principios Essenciais. Cap. 10:23 a 11:1.
23 Todas as coisas sao lícitas, mas nem todas con-
vém; todas sao lícitas, mas nem todas edificam. 24
Ninguém busque o seu próprio interésse; e, sim, o de
outrem. 25 Comei de tudo o que se vende no mercado,
sem nada perguntardes por motivo de consciéncia; 26
porque do Senhor é a térra e a sua plenitude. 27 Se
algum dentre os incrédulos vos convidar, e quiserdes
ir, comei de tudo o que fór posto diante de vós, sem
nada perguntardes por motivo de consciéncia. 28 Po-
rém, se alguém vos disser: Isto é coisa sacrificada a
ídolos, nao comáis, por causa daquéle que vos advertiu,
e por causa da consciéncia; 29 consciéncia, digo, nao a
tua própriamente, mas a do outro. Pois por que há de
ser julgada a minha liberdade pela consciéncia alheia?
30 Se eu participo com acáo de gracas, por que hei de
ser vituperado por causa daquilo de que dou gracas? 31
Portanto, quer comáis, quer bebáis, ou fagáis outra
coisa qualquer, fazei tudo para a gloria de Deus. 32
Nao vos tornéis causa de tropéco nem para judeus,
nem para gentíos, nem táo pouco para a igreja de
Deus, 33 assim como também eu procuro em tudo ser
agradável a todos, nao buscando o meu próprio inte-
résse, mas o de muitos, para que sejam salvos. 1 Sede
meus imitadores, como também eu sou de Cristo.
Paulo agora encerra e sumaría a longa díscussáo do uso
de carnes oferecídas a ídolos, firmando os grandes e com-
92
CHARLES R. ERDMAN
preensivos principios que os cristaos devem aplicar na solugáo
de todos os seus casos de consciéncia: Considerai aquilo que
fór conveniente e edificante, e tudo fazei para a gloria
de Deus
Comega repentindo o grande principio ou lei da liberdade
crista: "Todas as coisas sao lícitas". Parece que éles usa-
vam esta frase como máxima, na defesa tanto do uso daquelas
comidas como de outros hábitos. No cap. sexto insistiu o
apostólo em que a liberdade fósse usada pelos leitores, mas
no próprio beneficio déles. Agora bate-se no sentido de tam-
bém ser limitada ao bem dos outros. E torna a ferir o ponto
que serviu de partida á discussáo: a supremacía do amor.
De fato, afirma que o cristáo tem o direito abstrato ou ideal
de fazer tudo quanto em si mesmo nao se ja pecaminoso;
mas, considerando a conveniencia e o bem-estar dos outros,
há de impor limites práticos a essa liberdade. Algumas coisas,
em si mesmas permJssiveis, podem nao ser proveitosas; ou-
tras, inocentes em si, podem nao concorrer para a edificacáo
do caráter cristáo. Nao se há de olhar sómente o lado per-
missível das coisas, mas o lado do proveito: ''nao adianta
que alguma coisa se ja corre ta ou justa, se ao mesmxO tempo
nao fór conveniente". E nenhuma coisa será conveniente,
ainda que inocente, se for prejudicial aos outros ou estiver
sujeita a mai-en tendidos. Um cristáo nao tem que ver só-
mente o seu interésse particular, mas igualmente o dos de-
mais: "Ninguém busque o seu próprio interésse; e, sim, o
de outrem".
Éste principio ou lei geral vai ilustrado com o uso das
carnes de sacrificio. Paulo aconselha aos cristaos que com-
prem do que se expoe a venda no mercado, sem perguntarem
nada e sem ficarem suspensos, em dúvida, se aquilo foi ou
nao foi usado antes na idolatría, o que é multo diferente
de servir-se da mesma comida mas em templo de ídolos. O
que se adquire no mercado adquire-se náo como parte que
tenha sido de sacrificio, mas como alimento que Deus em sua
graca nos prodigaliza. "Do Senhor é a térra e a sua pleni-
tude", por conseguinte todo alimento que a térra produza
é dom de Deus e deve ser recebido com gratidáo.
Se uma outra pessoa, porém, fór escrúpulosa, a situagáo
já muda de figura. Suponha-se, por exemplo, que alguém
é convidado a jantar em casa de um incrédulo e que aceita
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
93
o convite. Tem o direito de aceitá-lo e de servir-se do que
Ihe oferecerem, sem perguntar nada, para que a consciéncia
nao venha a a tormén tá-lo. Todavía, se alguém lembrar que
foi sacrificado no templo aquilo de que vai servir-se, deve
recusá-lo, em deferencia á pessoa que o lembrou e por causa
da consciéncia — nao sua, mas a consciéncia do outro, que
fará do conviva, indiferente á questáo, um juizo injusto.
As razoes por que deve proceder assim sao duas, sendo
a principal esta: só prejuízo adviria de nao fazer caso do
que o outro lembrou. A liberdade com que agisse ficaria
suleita a condenacao por parte da consciéncia do outro. Se-
gunda: provavelmente a alegagáo que fizesse de sua liber-
dade para proceder como entendesse no caso e isto em face
de urna censura conscienciosa do seu ato, resultarla em pre-
juízo certo, porque os outros, vendo-o invocar a béngáo de
Deus sobre um alimento considerado sacrifical, denunciariam
éste ato como sacrilego e escandaloso. Por que expor-se a
pessoa a um mal-entendido déstes sem necessidade? Paulo
entáo concluí — "Portanto, quer comáis, quer bebáis, ou
facais outra coisa qualquer, fazei tudo para a gloria de Deus"
— Evitai que qualquer embarago moral se coloque á frente
de iudeus ou gregos ou membros da Igreja de Deus. Adotai
meu principio, diz éle, pois renuncio toda vantagem e di-
reito pessoal, procurando em tudo nao meu proveito, mas o
do maior número possível de pessoas, a fim de que se salvem".
Termina éle esta exortacao com o versículo que, indevi-
damente, foi colocado como primeiro do cap. seguinte: "Séde
meus imitadores, como também eu sou de Cristo".
G. USO DE VÉU NO CULTO PÚBLICO Cap. 11:2-16.
2 De fato eu vos louvo porque em tudo vos lem-
brais de mim, e retendes as tradicóes assim como vo-Ias
entregue!. 3 Quero, entretanto, que saibais ser Cristo
o cabera de todo homem, e o homem o cabera da
mulher, e Deus o cabera de Cristo. 4 Todo homem que
ora, ou profetiza, tendo a cabega coberta, desonra a
sua própria cabera. 5 Toda mulher, porém, que ora,
ou profetiza, com a cabeca sem véu, desonra a sua,
própria cabeca, porque é como se a tivesse rapada. 6
Portanto, se a mulher nao usa véu, nesse caso que
rape o cábelo. Mas, se Ihe é vergonhoso o tosquiar-se,
94
CHARLES R. ERDMAN
ou rapar -se, cumpre-lhe usar véu. 7 Porque, na ver-
dade, o homem nao deve cobrir a cabeca por ser ele
imagem e gloria de Deus, mas a mulher é gloria do
homem. 8 Porque o homem nao foi feito da mulher; e,
sim, a mulher, do homem; 9 porque também o homem
nao foi criado por causa da mulher; e, sim, a mulher,
por causa do homem. 10 Portanto, deve a mulher, por
causa dos anjos, trazer véu na cabega, como sinal de
autoridade. 11 No Senhor, todavía, nem a mulher é
independente do homem, nem o homem, independente
da mulher. 12 Porque, como provém a mulher do ho-
mem, assim também o homem é nascido da mulher;
e tudo vem de Deus. 13 Julgai entre vos mesmos: é
próprio que a mulher ore a Deus sem trazer o véu? 14
Ou nao vos ensina a própria natureza ser desonroso
para o homem usar cábelo comprido? 15 E que, tra-
tando-se da mulher, é para ela uma gloria? pois o
cábelo Ihe foi dado em lugar de mantilha. 16 Contudo,
se alguém quer ser contencioso, saiba que nós nao te-
mos tal costume, nem as igrejas de Deus.
É possível que algum dia se reconhega o apostólo Paulo
como o campeáo que se bateu pela emancipagáo da mulher
6 a defendeu. O Cristianismo contrasta vivamente com ou-
tras religi5es pela posigáo que concede á mulher e pela de-
claracáo que faz de sua dignidade e de seus direitos. Deve-se
isto em larga escala á influencia de Paulo, aos seus ensinos
acerca da liberdade e igualdade cristas, á énfase que deu ao
fato de nao haver, sob Cristo, nenhuma distingáo entre ju-
deu e grego, escravo ou livre, macho ou fémea, e de se cons-
tituírem todos UM, nos privilégios, ñas oportunidades espi-
rituais, tanto quanto em sua posigáo diante de Deus.
Entretanto, modernamente há uma jbpiniáo diferente.
Paulo é apresentado como inimigo da mulher. Pelos proceres
de todos os movimentos feministas ele é visto com horror
e repugnancia. A razáo disso está, em grande parte, naquilo
que nesta epístola escreveu a respeito do casamento, como
vimos, e também no que agora declara relativamente á su-
bordinagao das mulher es a seus maridos.
Todos háo de convir que a maior parte do que éle diz
aqui se relaciona com u'a moda ou maneira de vestir mera-
mente local e temporária. Ninguém hoje insistiría em que as
mulheres se apresentassem cobertas de véu por ocasiáo do
culto. Entretanto, os oponentes de Paulo nao concordam é
com o principio em que éle básela sua orientagáo. Contra-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 95
riamente, é ésse principio que no parecer dos defensores ds
Paulo faz que a diretriz ai tragada tenha importancia atual
e valor permanente. Sua esséncia é o seguinte: A igualdade
intelectual, moral e espiritual dos dois sexos combina com
a dependencia da mulher relativamente ao seu esposo e tam-
bém com a sua submissáo e obediencia afetuosa a ele.
Foi exatamente éste ensino de Paulo, a respeito da igual-
dade, que ocasionou certa confusáo em Corinto. Foi mal
compreendido por algumas mulheres cristas, as quais, do
que Paulo Ihes ensinara sobre éste assunto concluíram que
dalí por diante deviam considerar-se independentes dos seus
maridos. E assim, abolindo um costume aceito por judeus e
cristáos, proscreveram o uso do véu e comecaram a aparecer
descobertas ñas assembléias públicas. O véu tinha sido con-
siderado por elas como símbolo de dependencia e submissáo.
Deixando de usá-lo, declaravam com isto que sua nova po-
sigáo em Cristo desfazia a relagáo anterior mantida para
com os esposos, tornando-as livres e independentes, como des-
ligadas dos votos matrimoniáis. Presentemente é possível
que uma interpretagáo errónea do principio da igualdade
nao sómente esteja causando perturbagáo como até se cons-
tituindo um sério perigo. Certa énfase, indébita, sobre a
independencia das mulheres está ameagando a vida da fa-
milia e colocando, sobre os ombros délas, cargas que nao
convém nunca forgá-las a levar.
A dificuldade em Corinto, por alguns aspectos, nao era
grave. Paulo apenas está procurando conservar, no culto
público, um velho costume que tinha a virtude de fazer dis-
tingáo entre os sexos, e porisso mesmo era reclamado pela
decéncia. Insiste na sua conservagáo principalmente por
causa do equívoco que dera lugar á sua aboligáo.
Comega o exame do caso usando um preámbulo concilia-
torio ou apaziguador dos ánimos. Está passando a uma
série de assuntos bem diferentes. Comegou a epístola cen-
surando nos leítores seu espirito sectário. Depois entrou a
apreciar trés questoes moráis, a que se seguiram duas outras
moralmente neutras, isto é, o casamento e as comidas sacri-
ficadas na idolatría. Vai agora considerar trés questoes re-
lacionadas com o culto público, a saber, o uso do véu pelas
mulheres, a observancia da Ceia do Senhor, e o emprégo dos
96
CHARLES R. ERDMAN
dons espirituais. O estudo déstes assuntos referentes ao culto
cristáo segue-se á secgáo em que se ocupou da idolatría e do
uso de comidas relacionadas com ela. Sabe que vai ser ne-
cessário passar algumas repreensoes severas e, portanto, co-
mega iouvando seus leitores por causa de algumas informa-
Qoes favoráveis que Ihe prestaram a respeito déles. É que se
tém lembrado do velho apostólo e obedecido as suas doutrinas.
Há contudo uma falha, um.a prática menos própria, que é pre-
ciso corrigir, e é esta: estarem as mulheres deixando de usar
véu, especialmente quando tomam parte no culto público, na
igreja. S se isto é feito em sinal de independencia e insu-
bordinagáo das esposas em relagáo a seus esposos, está essa
novidade em contradigáo com uma ordem divinamente esta-
belecida.
As partes de que a sociedade se compóe, segundo o apos-
tólo, sao as familias, e nao os individuos; e o chefe natural
de cada familia é o marido. Todavía o exercicio dessa chefia
há de ser orientado sómente pelo amor, com simpatía e de-
votamento cristáo. "Quero, entretanto, que saibais ser Cristo
o cabega de todo homem, e o homem o cabega da mulher,
e Deus o cabega de Cristo". Afirmando assim o principio de
subordinagáo, Paulo afasta logo a idéia de tiranía, egoísmo
ou crueldade. Do mesmo modo como o Filho divino é de-
dendente do Pai e a Éle sujeit-o, assim os maridos estáo su-
bordinados a Cristo e, semelhantemente, as mulheres a seus
esposos. Esta subordinagáo náo envolve nenhuma humilha-
gáo, nern injustiga, nem qualquer mal. É a maneira de reco-
nhecer fungoes e responsabilidades diferentes, excluindo no
no entanto todo egoísmo, aspereza ou indelicadeza. Se o
esposo tiver em mente a relagáo em que está para com Cristo,
náo abusará das suas para com a esposa, que a ele cumpre
honrar, sustentar, proteger e amar.
Lembrou o apostólo que éste principio ou leí de subordi-
nagáo estava reconhecido no costume, adotado geralmente,
de as mulheres velarem a cabega. Náo foi ele quem estabele-
ceu ésse costume, nem Ihe deu a significagáo que tinha. Se
a sua significagáo era esta, entáo era decente para o homem
participar do culto com a cabega descoberta, enquanto a
mulher devia té-la velada. Mas se a mulher punha de lado
o véu, no propósito de mostrar que náo aceitava a subordina-
gáo significada por éle, por que náo ia adiante? Por que náo
descobria de vez a cabega? Por que náo Ihe cortava o cábelo
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
97
e nao a trazia rapada? Isto, sim, seria urna pro va maior de
independencia e de insubordinagáo ao marido, porque se o
cábelo cortado em urna mulher era sinal de viuvez, rapar a
cabega era o costume daquelas que menosprezavam o casa-
mento, nao o considerando sagrado.
É bom lembrar que Paulo está escrevendo a respeito de
cristáos e de mulheres casadas. Que trata de mulheres ca-
sadas torna-se ainda mais evidente quando passa a ilustrar
o ponto com a historia da criagáo, conforme nos é narrada
no Velho Testamento. O homem foi criado em primeiro lu-
gar, "á imagem de Deus", e sómente depois foi a mulher
tirada do homem. Éste é a coroa da criacáo e reflete a gloria
de Deus. A mulher, uma vez que foi tirada dó homem, é a
gloria déste. "O homem nao foi criado por causa da mulher;
e, sim, a mulher, por causa do homem". Assim raciocinando,
Paulo concluí que a mulher de ve usar véu, visto ser éste o
sinal geralmente reconhecido da autoridade do homem sobre
ela, especialmente em reunioes públicas de culto, porque ai,
segundo comumente se acreditava, os anjos observavam lá de
cima como procediam os cristáos.
Todavía deve-se particularmente notar que Paulo acres-
centa logo nao ser esta subordinacáo das mulheres aos ma-
ridos contrária á igualdade de pessoas, pois se a dependencia
é um fato real, nao deixa entretanto de ser mútua, e para
isto se vé que, se a mulher foi feita para o homem — diz o
apostólo — o homem por seu lado nasce da mulher, toman-
do-se ambos, nessas relagoes mútuas e fungoes diferentes,
igualmente dependentes de Deus. Ora, náo é humilhante
para o homem o ser subordinado a Deus. Logo, tanto esta
subordinacáo como aqueloutra sao igualmente honrosas.
Paulo, finalmente, defende o principio em apreco basca-
do em certo instinto do homem e num.a intuicáo sua do que
Ihe seja conveniente. O senso natural que o homem tem do
que Ihe é adequado ou do que Ihe convém, fá-lo sentir a
impropriedade de cábelos ccmpridos em si, enquanto que
para a mulher isso é uma gloria. Se, pois, o cábelo náo deve
ser tirado as mulheres, muito menos o véu de que o cábelo
é símbolo.
Entretanto, termina o apostólo, se alguém é contencioso,
dado á contradigáo, ele mesmo náo tem tal costume e, porisso,
98
CHARLES R. ERDMAN
nao insistirá mais no que disse. O fato é que essa praxe de
abolir o véu nao contava com a aprovacáo dos apostólos, nem
era observada em nenhuma igreja.
É interessante observar que, embora o hábito de a mu-
Iher velar a cabeca, durante o culto público, nao passasse de
um eos turne trivial, corriqueiro que no tempo de Paulo estava
generalizado, ainda hoje é observado pela Igreja Romana e
entre certos grupos de cristáos. Seu verdadeiro significado,
porém, nao é percebido e pouco falta para cair no olvido. E
mais: o importante principio figurado por ésse hábito nos
tempos antigos, hoje em toda parte é discutido ou impugna-
do, no interésse, como se alega, dos direitos e liberdades fe-
minis. Parece que há essa tendencia em a natureza humana,
de reter e valorizar formas vazias de sentido, etiquetas e re-
grinhas fúteis, e por outra parte menosprezar ou abandonar
principios ou leis importantes que convém perpetuar e seguir.
H. A OBSERVANCIA DA CEIA DO SENHOR. Cap.
11:17-34.
17 Nisto, porém, que vos prescrevo, nao vos louvo,
porquanto vos a juntáis, nao para melhor; e, sim, para
pior. 18 Porque, antes de tudo, estou informado haver
divisoes entre vós quando vos reunis na igreja; e eu
em parte o creio. 19 Porque até mesmo importa que naja
partidos entre vós, para que também os aprovados se
tornem conhecidos em vosso meio. 20 Quando, pois, vos
reunis no mesmo lugar, nao é a ceia do Senhor que
coméis. 21 Porque, ao comerdes, cada um toma ante-
cipadamente a sua própria ceia; e há quem tenha
fome, ao passo que há também quem se embriague,
22 Nao tendes, porventura, casas onde comer e beber?
Ou menosprezais a igreja de Deus, e envergonhais os
que nada tém? Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto
certamente nao vos louvo. 23 Porque eu recebi do Se-
nhor o que também vos entreguei: que o Senhor Je-
sús, na noite em que foi traido, tomou o pao; 24 e,
tendo dado gragas, o partiu e disse: Isto é o meu corpo,
que é of crecido em favor de vós; fazei isto em memó-
ria de mim. 25 Por semelhante modo, depois de haver
ceado, tomou também o cálice, dizendo: Éste cálice é
a nova alianca no meu sangue; fazei isto, todas as
vézes que o beberdes, em memória de mim. 26 Porqu»
todas as vézes que comerdes éste pao e beberdes o
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
99
cálice, anunciáis a morte do Senhor, até que ele venha.'
27 Por isso, aquéle que comer o pao ou beber o cálice
do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do san-
gue do Senhor. 28 Examine-se, pois, o homem a si
mesmo, e assim coma do pao e beba do cálice; 29 pois
quem come e bebe, sem discernir o corpo, come e bebe
juízo para si. 30 Eis a razáo por que há entre vos
muitos f ráeos e doentes, e nao poucos que dormem. 31
Porque, se nos julgássemos a nós mesmos, nao seria-
mos julgados. 32 Mas, quando julgados, somos disci-
plinados pelo Senhor, para nao sermos condenados com
o mundo. 33 Assim, pois, irmáos meus, quando vos reu-
nis para comer, esperai uns pelos outros. 34 Se alguém
tem fome, coma em casa, a fim de nao vos reunirdes
para juízo. Quanto as demais coisas, eu as ordenare!
quando fór ter convosco.
Nunca será demais saiientar dois métodos, característi-
cos de Paulo, de examinar as questoes que Ihe propuseram
os de Corinto. O primeiro é o seu hábito de relacionar os
assuntos, ainda que insignificantes e passageiros, com os
principios que Ihes correspondem, de valor permanente. O
segundo é a sua habilidade, mesmo tratando de matéria de-
licadíssima, aflitiva e desagradável, de afirmar certas ver-
dades em termos extremamente belos, fazendo-as parecer
joias caríssimas num engaste rústico, digamos, de barro.
Assim é que, passando a censurar os sérios abusos rela-
cionados com a celebracáo da Ceia do Senhor, apresenta farto
material bíblico na discussáo da orígem, natureza e signifi-
cacáo désse sacramento. Demais disso, recorda a instituicáo
da Ceia em termos táo belos que práticamente todos os cris-
táos citam suas palavras quando celebram ésse festim sagrado.
Eram extremamente graves os abusos que Paulo procurou
sanar. Dera-lhes ocasiáo o costume de os corintios unirem
a celebracáo do sacramento a uma "festa de amor" ou refeicáo
em comum, de que os cristáos usualmente participavam e
que se realizava na abertura de suas reunioes'de culto. Era
praxe cada pessoa levar provisoes para aqueles repastos de
acordó com as suas posses. Os ricos levavam muito, enquanto
os pobres, pouco ou nada. Ésses fomecimentos de comestí-
veis eram feitos em proveito de todos, e pelo fato de todos
participarem ncsses repastos sociais, tais ceias festivas ad-
quiriram um aspecto sacramental. Entretanto, ou no comégo
da festa ou no fim, seus participantes celebravam, de modo
100
CHARLES R. ERDMAN
muito singelo o Memorial da morte do Senhor, como por
Éste fóra instituido. Os corintios, porém, levados por aquéle
seu espirito faccioso, acabaram fomentando divisoes até
mesmo dentro daquelas sacramentáis "f estas de amor". Ao
'invés de repartirem uns com os outros suas provisoes, os ricos
se mostravam glutoes e bebiam demais, até á embriaguez,
enquanto os pobres nada recebiam e, porisso, ficavam priva-
dos da festa. Tal profanacáo da Ceia do Senhor era triste-
mente escandalosa; Paulo acliou que uma correcao daquéle
sério abuso se impunha a todo o custo. Entretanto, sua lin-
guagem é comedida. Declara que acredita só em parte na
iniormacáo dolorosa que Ihe prestaram a respeito. Reco-
nhece até que um propósito divino é manifestó naquelas di-
visoes, porque em tal situagáo os que sao leáis a Cristo se
faráo conhecidos mais prontamente. Lembra-lhes, contudo,
que tamanhas rivalidades e táo grosseiros excessos tornavam
impossível para éles uma observáncia condigna da Ceia do
Senhor, em sua verdadeira significacáo. Frisa bem que, se
o propósito déles, quando se juntam, é apenas saciar seu
apetite voraz, entáo será melhor que fiquem em casa. Cen-
sura-lhes severamente a falta de consideracáo aos pobres,
toda a indecéncia de táo vergonhoso comportamento.
Mas o modo que ele acha mais correto de sanar a clamo-
rosa irregularidade é lembrar-lhes a instituícáo da Santa Ceia,
que éles profanavam, vs. 23-26. Adianta que éle mesmo re-
cebeu do Senhor a sagrada tradicáo referente á orígem do
sacramento que fóra instituido naquela noite solene em que
Cristo se deixara trair. Servia éste mesmo fato para dar én-
fase ao amor de Cristo pelos discípulos, amor aue se esauece
de si em beneficio dos outros. Já sentindo projetar-se sobre
Éle a sombra da cruz, tomou Jesús o páo e o vinho e instituiu
éste sagrado rito. "Tendo dado gracas", partiu o páo, de-
clarando aos discípulos que aquilo era símbolo de seu corpo
que seria partido por éles. De igual modo tomou o cálice,
depois de cear, afirmando que simbolizava o novo concérto
que ia ser selado com seu sangue, concérto novo em sua na-
tureza, conteúdo e alcance, pois asseguraria perdáo pleno dos
pecados e uma durável renovacáo espiritual. Os discípulos
deviam observar esta sagrada cerimonia, e todas as vézes que
o fizessem, fa-lo-iam em memoria de seu Senhor, como lem-
branga dos seus sofrimentos e morte por éles. Cumpria-lhes
ceiebrá-la sempre, até que Éle, o Senhor, voltasse.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
101
E Paulo acrescenta um solene aviso a essa impressionante
narracáo da orígem do sacramento: "Por isso, aquéle que
comer o pao ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será
réu do corpo e do sangue do Senhor". O que Paulo quer
dizer é que aquele procedimento vergonlioso dos corintios,
atrás referido, era verdadeira profanacáo désse festim sa-
grado: era uma demonstracao de que nao viam no mesmo um
memorial da morte de Cristo; era um insulto ao corpo e ao
sangue do Senhor, sim_bolizados nos elementos da Ceia. Paulo
nao visa, com esta advertencia, afastar da Santa Ceia pessoas
indignas. Algumas vézes isto pode ser necessário, mas é erro
introduzir agora essa idéia, que o apostólo nao tem na mente.
O resultado dessa interpretacáo errónea de suas palavras
tem dado lugar a que multas pessoas inocentes se afastem
da mesa do Senhor e há motivado perplexidades desnecessá-
rias. Paulo nao está discutindo o caráter pessoal dos par-
ticipantes da Ceia, mas o modo como se conduzem durante
sua celebracáo. É como acertadamente declarou um dos an-
tigos intérpretes das Escrituras: "A indignidade dos partici-
pantes é uma coisa; a maneira indigna da participacáo é ou-
tra muita diferente" ("alia est indignitas edentis, alia esus").
Muí tos julgam que, pelo fato de a consciéncia acusá-los de
faltas, nao convém aproximarem-se da mesa do Senhor. Mas
saibam que, por maiores que sejam essas faltas, todos sao
benvindos á mesa, se a ela se chegarem verdadeiramente ar-
rependidos e desejosos de reencetarem uma vida de consa-
gracáo e santidade. Nao era o intento de Paulo causar de-
sassosségo as consciéncias delicadas e sensíveis. O que pro-
curou corrigir foi a grosseria do procedimiento de seus lei-
tores, frisando que a celebracáo da Ceia do Senhor nao devia
dar lugar a glutonaria nem a bebedeiras.
Hoje em dia há muito pouca probabilidade de se darem
tais escándalos. Nao obstante, convém acatar a admoes-
tacáo do apostólo: "Examine-se o homem a si mesmo" —
esteja certo da significacáo dessa festa sagrada; certifique-se
que está apercebido da grande importancia désse culto, "e
assim coma do pao e beba do cálice". É notável que Paulo
nao corrige os sérios abusos daquela igreja abolindo a sua
"festa de amor", ou impondo a adocáo de vinho fraco, nao
fermentado, ou limitando aos clérigos a participacáo do vi-
nho eucarístico, ou ainda tornando menos frequente a comu-
nháo; nada disto. Procura antes corrigí-los, advertindo os co-
102 CHARLES R. ERDMAN
mungantes a que considerem cuidadosamente a santidade e
a significagáo salvadora da morte do Senhor.
Adianta ainda que semelhantes abusos vinham sendo
punidos com doenga e morte entre os membros daquela igre-
ja. Qual fósse a verdadeira natureza désse castigo, nao está
explicado. Mas afirma que nao era um juízo de Deus, se-
melhante aos que ocorrem comumente. Era antes uma dis-
ciplina com um propósito definido, qual o de levar os corintios
ao arrependimento e á salvacáo final. Os que participassem
da Ceia do Senhor deviam examinar-se a si mesmos quanto
aos motivos que os levavam áquéle ato e quanto ao estado de
seus coracoes. Por ésse exame ou iulgamento íntimo livrar-se-
iam do julgamento e da disciplina com que o Senhor visita
os irreverentes e profanos.
E termina a apreciagáo do caso com uma exortacáo prá-
tica. Quando os crentes se reunissem para aquéle repasto em
com.um, deviam esperar "uns pelos outros". Se alguém sen-
tisse fome, fósse comer em casa, antes de se encaminhar á
reuniáo na igreja. Deviam advertir bem que a Ceia do Se-
nhor nao foi destinada a matar a fome de ninguém, antes a
simbolizar uma relacáo espiritual com Cristo. Todos quantos
se acercam da mesa sagrada, sentindo sinceramente seus pe-
cados e desejando ardentemente novas f oreas espirituais, po-
dem aproximar-se sem médo, confiados de que o Senhor, em
cuja presenga real estáo chelos de gozo, pronto está para
receber a todos, perdoá-los e comunicar-lhes nova vida e re-
novada fórga.
I. O EMPRÉGO DOS DONS ESPIRITUAIS. Caps.
12 a 14.
Multa gente há de convir que os dons espirituais, a que
Paulo se refere em suas cartas, foram certas habilidades tem-
porárias e sobrenaturais, concedidas aos primitivos cristáos
com o fim de ajudá-los ou assistir a éles na fundagáo da Igreja.
Tais dons podem nao existir mais hoje. Entretanto, os prin-
cipios ou regras que Paulo apresenta na discussáo désses
dons aplicam-se por igual aos talentos cu habilidades na-
turais e providenciáis que Deus concede hoje visando ao
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 103
nosso aparelhamento ou adestramento para a propagacáo do
evangelho e para a edificagao e extensáo da Igreja.
Deve-se a maneira pela qual o apóstelo discute aqui o
assunto as circunstancias especiáis existentes em Corinto.
Ésses dons ou habilidades sobrenaturais estavam sendo con-
siderados pelos cristáos corintios como fins em si mesmos.
Estavam sendo usados para envaidecimento e prazer dos que
os possuíam. Os mais vistosos daquéles dons, ou se ja os que
mais chamavam atengao sem que ao mesmo tempo fóssem
os mais úteis, eram os mais valorizados pelos corintios; daí
o exercício désses dons provocar invejas, envaidecimento e
divisoes. Com o fito de corrigir ésses abusos, Paulo mostra,
no cap. 12, que o propósito dos dons espirituais é a edifica-
gao da Igreja. No cap. 13 indica o amor como elemento que
dirige ou orienta o exercício désses dons. No cap. 14 mostra
que o valor relativo déles afere-se pelo grau de sua utilidade
á Igreja.
1. O propósito dos Dons Espirituais. Cap. 12.
a. Como aferir as influencias espirituais. Cap. 12:1-3.
1 A respeito dos dons espirituais, nao quero, ir-
máos, que sejais ignorantes. 2 Sabéis que, outrora,
quando éreis gentios, deixáveis conduzir-vos aos ídolos
mudos, conforme éreis guiados. 3 Por isso vos faQO
compreender que ninguém que fala pelo Espirito de
Deus afirma: anátema Jesús! por outro lado, ninguém
pode dizer: Senhor Jesús! senáo pelo Espirito Santo.
O emprégo dos dons espirituais é a terceira questáo re-
lacionada com o culto público, apreciada pelo apostólo; das
trés é a mais difícil e a de maior importancia. O uso de véu
pelas muiheres e uma observancia condigna da Santa Ceia
eram matéria de decoro público e diziam respeito á ordem
externa do culto na igreja; enquanto os dons do Espirito
Santo eram experiéncias sobrenaturais, misteriosas e pes-
soais, intimamente ligadas e indispensáveis á vida e ao cres-
cimento da Igreja. Comega o apostólo lembrando a seus
leitores que, antes de se haverem convertido a Cristo, estive-
ram su jeitos a certas fórgas espirituais que os impeliam ao
culto dos ídolos. Éstes eram imagens mudas, sem vida e
104
CHARLES R. ERDMAN
indefesas, tais quais os falsos deuses que representa vam.
Convertendo-se, porém, os cristáos tinham sido guiados pelo
Espirito Santo a prestar culto ao Deus vivo e verdadeiro que,
nao sómente podia falar e agir, como por seu Espirito podia
conceder aos homens urna capacidade misteriosa de expressáo,
assim como, do tesouro de sua graga, liberalizava outras fa-
culdades ou talentos, necessários ao servigo de seu Filho.
No entanto, os adoradores daquelas falsas divindades,
juntamente com cristáos e judeus, acreditavam que uma
pessoa qualquer podia vir a ser possuída de outro espirito
além do seu próprio, o qual passava a empregjá-la como seu
instrumento, servindo-se para isso das faculdades dessa
pessoa, cujos movimentos eram por ele dirigidos. Corinto
vivia repleta de adivinhos e sacerdotes que, nao ficando atrás
dos apostólos cristáos, proclamavam-se dotados de inspiragáo
divina e de poderes sobrenaturais.
Iniciando, pois, sua dissertagáo sobre os dons espirituals,
Paulo sentiu a necessidade de sugerir a seus leitores a ma-
neira como podiam distinguir entre as manifestagoes do Es-
pirito de Deus e o palavrório e extravagancias inerentes- as
práticas e crendices dos pagáos. Apresenta um excelente mé-
todo de teste dos espirites, a saber, a lealdade a Cristo. Essa
lealdade será a característica de toda palavra ou mensagem
que provenha do Espirito de Deus.
Há um segundo teste, de que o apostólo se ocupa a se-
guir: o teste ou exame de sanidade. Temos que mencioná-lo
aqui porque foi por nao compreenderem a vantagem déste
exame que havia tanta confusáo na igreja de Corinto. Os
adivinhos ou prognosticadores gregos expressavam a inspira-
gáo de que se diziam cheios com um estranho delirio ou fre-
nesí. E chegavam mesmo a gabar-se da completa loucura
que se apoderava déles. Pronunciavam, entáo, seus oráculos
**^tal qual a Pitonisa, escumando e com os cábelos desgre-
nhados". Porisso os cristáos corintios inclinavam-se a acre-
ditar que, quanto mais a pessoa se alienava ou endoidecia,
perdendo consciéncia de si mesma, tanto mais era certo
estar sob o poder e influéncia do Espirito de Deus. Ésse érro
explica, em parte, por que ésses cristáos foram levados a
preferir os dons ou habilidades mais espetaculares, e despre-
zar outros mais práticos e mais úteis. Paulo parece Indicar
que o Espirito Santo opera servindo-se da mente do crente,
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
105
por Éle esclarecida, de sua visao despertada ou vivificada, e
de sua capacidade de raciocinar, sendo que, no caso de ver-
dadeira inspiragáo, "os espirites dos profetas estáo sujeitos
aos próprios profetas".
Vejamos entáo o primeiro teste ou prova da operagáo do
Espirito, de que Paulo se ocupa agora, a saber, a absoluta
lealdade a Cristo: ''Ninguém que fala pelo Espirito de Deus
afirma: anátema Jesús! por outro lado, ninguém pode dizer:
Senhor Jesús! senáo pelo Espirito Santo". "Anátema Jesús"
ou "amaldigoado", e "Jesús é Senhor" eram duas exclama-
goes contrárias, dois brados inconfundíveis e inconciliáveis
que se erguiam dos dois lados em que a sociedade humana
se dividía — os fiéis e os infléis, os cristáos e os pagaos e
eram dois infalíveis sinais: o primeiro, da atuagáo do espirito
do mal; o outro, indicio certo da influencia do Espirito de
Deus. A primeira exclamagáo, quem sabe? talvez partisse
de um individuo qualquer, todo agitado, a tremer, inimigo
da cruz, que lá um dia penetrou na assembléia dos cristáos
para perturbá-los. Mas, fosse qual fósse a causa de sua alu-
cinagáo, procedesse de onde procedesse o espirito de que
estava possesso, o fato é que nao podia ser um agente do
Espirito Santo. Por outro lado, por mais humálde que fósse
o cristáo, por mais obscura que fósse a sua condigáo na igreja,
e por mais comuns que fóssem os seus dotes espirituais, era
um verdadeiro instrumento do Espirito de Deus se, humilde
mas sinceramente podia confessar — "Jesús é meu Senhor!"
O valor desta doutrina, nos dias que correm, é inestimá-
vel. Há, hoje, multas experiencias e dons que se dizem es-
pirituais, aos quais se deve aplicar o teste ou exame de sa-
nidade crista. Sem dúvida que o Espirito Santo pode falar
aos seguidores de Cristo e Ihes comunicar talentos ou habi-
lidades necessários ao servigo de Deus. A sua influencia
devem ser atribuidos impulsos misteriosos e frequentes, e ao
seu poder, o éxito de muitos trabalhos evangelísticos. To-
davía, ésses dons, impulsos ou orientagoes que se supoem
procedentes do Espirito devem ser sempre submetidos a pro-
vas e justificagoes no tribunal da razáo e do senso-comum.
Quanto mais alguém estiver sob o poder do Espirito Santo,
tanto mais suas faculdades mentáis e seu poder de raciocinio
estaráo atívos e vígUantes.
De sorte que a atitude que alguém mantiver para com
Cristo deverá servir de critério no julgamento do seu estado
106
CHARLES R. ERDMAN
espiritual. Ninguém, por mais culto que for, por maiores que
puderem ser os seus predicados pode com justica ser cha-
mado espiritual ou piedoso, se blasfema de Jesús Cristo.
Evidencia-se, entáo, déste ensino do apostólo, que o Es-
pirito Santo está de continuo presente em cada seguidor de
Cristo. Sem o seu poder ninguém com sinceridade chega a
confessar a Jesús como Senhor. Se o crente é capaz de fazer
tal confissáo, deve ter isto como consoladora prova de que
o Espirito Ihe comunicou nova vida e está disposto a tomá-lo
como seu instrumento na edificagáo da Igreja de Cristo.
Além do que, nao se deve julgar a espiritualidade dos
obreiros cristáos pelas aparéncias. Os dons naturais, é ver-
dade, variam de pessoa para pessoa. Popularidade, elogios
algumas vézes sao conquistados por individuos cuja vida es-
piritual é precária e ilusoria. A verdadeira prova é a devocáo
a Cristo. E na maioria dos casos, aqueles que se devotam a
seu Salvador vivem incógnitos, seus esforcos e suas lutas por
Cristo quase nao aparecem, nao sao corihecidos. Contudo,
a consagracáo déles ao servigo de seu Senhor é um fato. Nao
há nenhuma dúvida que tais pessoas vivem chelas do Espi-
rito Santo.
b. Os Dons sao Diversos. Cap. 12:4-11.
4 Ora, os dons sao diversos, mas o Espirito é o
mesmo. 5 E também há diversidade nos servidos, mas
o Senhor é o mesmo. 6 E há diversidade ñas realiza-
qoes, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em tocios.
7 A manifestagáo do Espirito é concedida a cada um,
visando um fim proveitoso. 8 Porque a um é dada, me-
diante o Espirito, a palavra da sabedoria; e a outro,
segundo o mesmo Espirito, a palavra do conhecimen-
to; 9 a outro, no mesmo Espirito, fé; e a outro, no
mesmo Espirito, dons de curar; 10 a outro, opera?5es
de milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento
de espíritos; a um, variedade de línguas; e a outro,
capacidade para interpretá-las. 11 Mas um só e o
mesmo Espirito realiza todas estas coisas, distribuindo-
as, como Ihe apraz, a cada um, individualmente.
Os dons concedidos á Igreja de Corinto foram muitos e
variados, mas todos oriundos de uma fonte divina e destina-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 107
dos ao bem comum dos fiéis. Por consegulnte, haviam todos
de ser considerados dons de Deus, e tinham de ser usados
com sabedoria, segundo a intengáo de quem os concedia, que
era o bem geral da igreja e dos estranhos a ela.
Indicando a Orígem divina désses dons, Paulo menciona
Deus o Pai, Deus o Filho, e Deus o Espirito Santo, as tres
pessoas da Trindade Augusta, como um só Deus, iguais todas
elas em sua esséncia e nos seus atributos. A cada pessoa da
Trindade ele associa um aspecto désses dons espirituais.
Quanto á natureza e á sua orígem, sao concessoes da graga
divina, sao talentos ou habilidades. Quanto ao seu fim ou
propósito, sao "ministérios" destinados a servir, a ajudar e a
fortalecer a igreja. Quanto aos seus efeitos, sao operagoes ou
manifestacoes de poder divino.
Constituem ésses dons uma unidade, apesar de sua va-
riedade, e isto em razáo de procederem de uma fonte única,
e também pelo fato de a palavra "diversidade" também sig-
nificar ''distribuicáo", ou, como Paulo acrescenta, cada qual
é u'a manifestacáo do Espirito. A unidade existe ainda pelo
fato de todos servirem a uma finalidade comum, que é a
prcmogáo do bem ou dos interésses da igreja. "A manifes-
tacáo do Espirito é concedida a cada um, visando um fim
proveitoso".
Sendo dons espirituais, por tanto, nao se destinam ao uso
particular com que se envaidecam os seus possuidores; e, sim,
ao aproveitamento de todos os fiéis.
Em seguida Paulo enumera ésses dons. É lícito supor
que éles podem ser divididos em trés classes. Nao há nada
de fantasía nisto, como alguns declaram. A primeira classe
estarla associada particularmente com o intelecto; a segunda,
com a vontade; e a terceira, com as emogoes. A palavra da
sabedoria e a palavra do conhecimento sao faculdades por
Deus concedidas; aquela diz respeito a descobertas ou pes-
quisas, e esta refere-se a aplicagoes práticas da verdade. É
de notar que ambas encabegam a lista dos dons, como sendo
os mais importantes, todavía para os corintios eram os úl-
timos^ os de menor valia. Acreditavam éles que, quanto mais
a razáo e a consciéncia enfraqueciam ou deixavam de fun-
cionar, tanto mais o Espirito operava no individuo. Mas o
apostólo indica o contrário: os dons mais excelentes eram
108
CHA Pw LES R. ERDMAN
exercidos em paralelo e na mesma intensidade com que a
razáo e a inteligencia funcionassem.
Entre os dons que se relacionam de modo especial com a
vontade, Paulo menciona a fé. Naturalmente nao quer sig-
nificar a "fé salvadora", porque esta nao é um dom especial,
antes é comum a todos os fiéis. A fé salvadora é a raiz
mesma da vida crista; nao é um de seus frutos. O que ele,
pois, refere aqui é aquela "firmeza em Deus", aquelas "ou-
sadia heroica", aquela fé que "transporta montanhas".
Esta, sim, é produzida pela presenta e pelo poder do Espirito
Santo no coragáo.
A seguir vém os dons de curar, que entendem com a mi-
raculosa habilidade de curar diferentes classes de doengas,
Também alude a "operacoes de milagres", com o que prova-
velmente indica o poder de ressuscitar mortos, de expulsar
demonios, de infligir castigo aos adversários da fé, de que o
apostólo dera exemplo em suas viagens missionárias.
Quanto ao dom de profecía e o outro de discernimento
de espíritos, Paulo se refere, antes do mais, a uma capacidade
miraculosa de expressáo, visto como, segundo alguém já disse,
"a profecía nao nasce de uma resolugáo ou de reflexáo pró-
pria do profeta, senáo de um poder que independe déle, poder
que se assenhoreia do seu espirito e indú-lo a falar de modo
a impressionar vivamente es ouvintes". Entretanto, como
é fato existirem falsos profetas no meio dos verdadeiros, ha-
via o dom correlato ao de profecía, ésse de "discernir" espíri-
tos, o qual consistía na habilidade de se descobrir, para pro-
veito da igreja, se alguém, declarado profeta, era dirigido por
qualquer mau espirito, ou se era inspirado por Deus.
No final da lista vem o dom de línguas e o outro, de
"interpretagáo de língua". Tem havido multa especulagáo
em torno da natureza des tes dois últimos. É de todo provável
que o dom de línguas, aqui mencionado, nao era idéntico
ao que se manifestou no Dia de Pentecostés. Provavelmente
nao consistía na capacidade de falar línguas conhecidas; era
antes uma "influencia ou fórga superior, sobrehumana, que
empolgava e emocionava profundamente", e capacitava o in-
dividuo a "orar, cantar, ou dar gragas numa linguagem
extática e ininteligível aos que nao estivessem dominados
da mesma emocáo". Néste caso o dom em aprego entende
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 109
própriamente com os sentimentos ou emogoes, e pouco in-
teressa o intelecto ou a vontade, os quais durante o tempo
de sua manifestagáo, ficam suspensos ou inativos.
As emogoes que fóssem causadas pura e simplesmente
pelo Espirito e expressas em fala ou discurso misterioso, só
podiam ser compreendidas por alguém posto, pelo mesmo.
Espirito, em comunháo mental com o que falasse. Seria
entáo necessário que alguém, assim capacitado, interpretasse
o que se tinha dito. O Espirito habilita va-o a traduzir em
linguagem clara e corrente as expressoes extáticas de quem
possuisse o dom de línguas.
É notável como Paulo coloca no último lugar os dons a
que os corintios davam prim.azia e m.ais cobigavam. Os mais
emocionantes, espetaculares, estavam muito longe de ser os
mais úteis á igreja, para sua edificagáo. Nao devemos con-
siderar estes dons como variadas aptidoes naturais, senáo
como verdadeiras habilidades sobrenaturais. Pode acontecer
que hoje Deus nao os conceda mais aos crentes, todavía, em
compensagáo, há vários e variados talentos que Éle concede
aos que seguem a Cristo. Ésses talentos tém, igualmente,
sua orígem comum na munificiéncia providencial de Deus;
sua finalidade é também comum — servir á Igreja. O fato
de provirem de Deus e de ser uma só a sua finalidade deve
afastar dos que os possuem toda vaidade e orgulho e fazé-los
sentir sua imensa responsabilidade em procurar o bem co-
mum, o proveito geral da Igreja.
c. A Unidade da Igreja. Cap. 12:12-31.
12 Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos
membros, e todos os membros, senáo muiíos, consti-
tuem um só corpo, assim também com respeito a Cris-
to. 13 Pois. em um só Espirito, todos nós tomos bali-
zados em um corpo, quer judeus, quer gregos, que escra-
vos, quer livres. E a todos nós fci dado a beber de
um só Espirito. 14 Porque também o corpo nao é um
só membro, mas muitos. 15 Se disser o pé: rorque nao
sou máo, nao sou do corpo; nem por isso deixa de ser do
corpo, 16 Se o ouvido disser; Porque nao sou dliio, nao
sou do corpo; nem por isso deixa de o ser. 17 Se
todo o corpo fósse ólho, ,onde estaría o ouvido? Se todo
fósse ouvido, onde o olfato? 18 Mas Deus dispos es
110
CHARLES R. ERDMAN
membros, colocando cada um déles no corpo, como ine
aprouve. 19 Se todos, porém, fossem um só membro,
onde estaría o corpo? 20 O certo é que há muitos
membros, mas um só corpo. 21 Nao podem os olhos
dizer á máo: Nao precisamos de ti; nem aínda a ca-
beca, aos pés: Nao preciso de vós. 22 Pelo contrarío,
os membros do corpo que parecem ser mais fracos, sao
neeessários; 23 e os que nos parecem menos dignos no
corpo, a estes damos muito maior honra; também os
que em nós nao sao decorosos, revestimos de especial
honra. 24 Mas os nossos membros nobres nao tém ne-
cessidade disso. Contudo Deus coordenou o corpo, con-
cedendo muito mais honra áquilo que menos tinha, 25
para que nao ha ja divisáo no corpo; pelo contrário,
cooperem os membros, com igual cuidado, em favor
uns dos outros. 26 De maneira que, se um membro
sofre, todos sofrem com ele; e, se um déles é hon-
rado, com ele todos se regozijam. 27 Ora, vós sois cor-
po de Cristo; e, individualmente, membros désse corpo.
28 A uns estabeleceu Deus na igreja, primeiramente
apostólos, em segundo lugar profetas, em terceiro lu-
gar mestres, depois operadores de milagres, depois dons
de curar, socorros, governos, variedades de iinguas. 29
Porventura sao todos apóstolos? ou profetas todos? sao
todos mest«res? ou operadores de milagres? 30 Tém
todos dons de curar? falam todos em outras Iinguas?
interpretam-nas todos? 31 Entretanto, procura!, com
zélo, os melhores dons. E éu passo a mostrar-vos
aínda um caminho sobremodo excelente.
A grande diversidade de dons concedidos aos crentes nao
discrepava da unidade da Igreja; pelo contrário, assegurava-
Ihe essa unidade, visto como cada urna daquelas aptidoes
se destinava a prestar um servico que era necessário á vida
comum da Igreja e ao seu crescimento. Para ilustrar esta
im.portante verdade Paulo emprega a conhecida figura ou
parábola do corpo humano. Os escritores gregos tinham-na
usado com frequéncia, referindo-se ao Estado ou "corpo po-
lítico". É de muito efeito o seu emprégo aqui pelo apostólo.
A Igreja é o corpo espiritual de Cristo. De fato, Paulo
chega a avanzar mais: identifica a Igreja com Cristo: "Assim
como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os
mem.bros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim tam-
bém com respeito a Cristo", v. 12. Nao se podia declarar,
com maior énfase, a unidade da Igreja Crista, como o faz
o apostólo, a seguir: "Em um só Espirito todos nós fomos
batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escra-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
111
VOS, quer livres. E a todos nós foi dado a beber de um só
Espirito", V. 13. Até mesmo certas distincoes, aparentemente
insuperáveis, existentes no mundo antigo, como a que havia
entre judeus e gentíos, entre escravos e livres, desaparece-
ram todas sob o influxo do Espirito de Deus, formando todos
os cristács um corpo pela influencia do mesmo Espirito, que
os levava a participar de uma vida comum.
Muita gente, hoje em dia, emprega a frase ''batismo do
Espirito" para indicar uma nova experiencia que é possivel
vir depois da conversáo, ou para expressar novos aumentos
de peder espiritual. É provavelmente mais biblico definir
tais experiencias com estoutra expressáo — "Encher-se do
Espiiito". Pode a pessoa "encher-se" multas vézes, porém
batizar-se com o Espirito Santo isto só pode ocorrer uma vez
na vida do individuo. O batismo é essa atividade inicial do
Espirito Santo, pela qual o crente é levado a unir-se ao corpo
único e indivisível de Cristo, a saber, a Igreja Crista, á qual
todos os cr entes pertencem.
Paulo mostra que a Igreja é um organismo vivo, tal qual
o corpo humano. Muitos sao os seus membros, mas cada qual
é necessário á vida e ao bem-estar de todos os demais. Perder
qualquer um déles é mutilar o corpo.
Deve ser lembrado que o apostólo está encarando um
problem.a particular daquela igreja. Os corintios exageravam
a importancia de certos dons espirituais, particularmente o
de falar linguas. Os que nao possuíam. ésses dons mais am-
bicionados eram tentados a ficar descontentes e a privar a
igreja dos seus servicos, que, se nao davam tanto ñas vistas,
também nao deixavam de ser necessários como os outros.
Por outro lado, os que possuiam ésses dons de m.aior sen-
sacáo inclinavam-se a monopolizar os lugares de mais evi-
dencia ñas reunioes da igreja, humilhando assim e afastando
os outros, que nao podiam competir com éles em tanto brí-
Iho e importancia.
Paulo, pois, corrige essas faltas empregando a parábola
do coi-po. Quáo absurdo seria um membro, digamos, o pé
ou a máo, recusar-se a funcionar, a agir, como se nao per-
tencesse ao corpo, só porque sua funcáo diferia da funcáo de
outro. Pois é igualmente absurdo um m.embro da igreja
invejar o dom que nao tem e recusar prestar á igreja o ger-
vigo que está em suas fórcas realizar.^ Vs. 14-20.
112
CHARLES R. ERDMAN
A segunda falta é rematada loucura. Um órgáo do corpo
nao pode despiezar os outros, declarando nao precisar déles,
porque todos, formosos ou nao, sao partes integrantes do
corpo, dependendo a saúde déste da funcáo regular de cada
um. É estulticia, igualmente, qualquer membro da igreja
desprezar outros menos aquinhoados, supondo que sua pró-
pria vida espiritual nao vai sofrer se ele continuar menos-
cabando os que brilham menos, ou os que sao menos admi-
rados do que ele. Vs. 21-25.
É obvio que vale a pena aplicar estes principios á Igreja
de hoje. Mostram-nos éles que é tolice invejarmos os dons
que nao temos, ou desdenharmos dos que nao tém os nossos.
O apostólo que deixar bem gravada sua doutrina, de modo
que, no resto do cap., menciona de novo os vários dons do
Espirito, reforjando assim a mesma licáo para os leitores.
A nova lista de dons difere algo da apresentada nos vs.
8-10. Agora a ordem nao é ditada pela natureza íntima déles,
de modo a se relacionarem com o intelecto, com a vontade
ou com as emogoes, mas atende antes á importancia relati-
va déles na obra e na edificagáo da Igreja. Na dianteira
vém os "apostólos", comissionados diretamente por Cristo e
incumbidos da suprema tarefa da fundagáo da Igreja. Em.
segundo lugar, os "profetas", que recebiam revelacoes da
parte de Deus, e cujo ministério era itinerante, entre as igre-
jas. Terceiro, "mestres", que expunham a doutrina do evan-
gelho, explicando-a e aplicando suas verdades á vida prática.
Seguiam-se ministérios menos importantes, como o da ope-
ragáo de "milagres", relacionando-se estes particularmente
com a cura de doengas físicas; "socorros", que ministravam
aos pobres e órfáos, aos enfermos e estrangeiros, ajudando-os
em suas necessidades; "govemos", aqueles que se encarrega-
vam própriamente dos negocios eclesiásticos. Em último
lugar, como de menor importancia, vinha "variedades de
línguas".
Esta ordem, em que sao novamente apresentados os dons
espirituais, deve ter valido como censura aos corintios, pelo
desacato com que tratavam Paulo, desdenhando de seus
dons e enaltecendo, quais criancas, a aptidáo espetacular de
falar línguas. Quando o apostólo declara que todos éles
sao concessoes soberanas de Deus, quer com isso ensinar que
ninguém deixa de ser necessário á vida da igreja, por menor
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
113
que seja o dom que recebeu. Vs. 26-28. Éstes ensino é aiiida
reforcado por nova enumeracáo dos dons, agora em forma de
perguntas: Como foi que Deus os distribuiu? Deu-os todos
a cada pessoa? Absolutamente nao, porque, se o fizesse, cada
membro seria completo em si e seria independente dos ou-
tros. Dar-se-ia neste caso a destruicáo do próprio corpo.
Paulo, pois, frisa esta segunda verdade: nenhum membro
da igreja se basta a si mesmo, por mais importantes que
sejam suas aptidoes. Vs. 29-30. Fica, portanto, bem esclare-
cida a dependencia mútua dos membros da igreja, em vista
dos seus diferentes dons e talentos, assim como nao resta
mais dúvida quanto ao dever de cada um exercer com fide-
lidade o seu, seja éste qual fór.
Paulo, no entanto, termina esta dissertagáo exortando
seus leitores a que procurem, zelosamente, "os melhores
dons". Mas, se éles sao dádivas soberanas de Deus, como
afirmou, esta excrtacáo só pode ter o seguinte sentido: Aca-
tando, valorizando os dons recebidos e usando-os com fideli-
dade, os crentes podem assim ficar habilitados a receber
maiores aptidoes e se tornaráo mais úteis no exercício da-
quelas que já possuem. Provavelmente Paulo, com isso, quer
se referir aos "dons melhores" da profecía e do ensino (mes-
tres), com os quais se ocupará adiante, cap. 14. Antes, po-
rém, vai fazer uma pausa, para referir, numa imortal passa-
gem sua, o "caminho sobremodo excelente", ou seja o mé-
todo de conseguir e exercer todos os dons proveitosamente
— é o caminho ou o método do amor, cap. 13.
2. O Método do Amor. Cap. 13.
A incomparável passagem de Paulo a respeito do "ca-
minho" ou método de exercer os dons espirituais é táo su-
blime e arrebatadora em sua substancia, foi escrita com tanto
ritmo e poesia, que se tornou conhecida como "Hiño ao
Amor". Alguns se surpreendem com o fato de haver Paulo
escrito esta passagem,"sendo ele quem era. Mas isto apenas
revela que nao compreendem o apostólo. Pois o Paulo que
conhecem é o escritor sagaz de inteligencia, inexorável na
lógica, severo, frió, insensível e austero. Entretanto o ver-
dadeiro Paulo era também um homem de emocoes profun-
114
CHARLES R. ERDMAN
das, de verdadeira sensibilidade, devotado aos amigos, hu-
mano, compassivo, terno até as lágrimas. Se nao soubesse
simpatizar, se fósse incapaz de sentir afeicoes, nunca teria ,
conquistado, como conquistou, a admiracáo de multidoes, nem I
teria podido compor a maicr poesia lírica que éste mundo já |
viu, éste cap. 13 de sua primeira Carta aos Corintios. t
Outros nao tém podido atinar com a razáo de ter sido
esta passagem escrita pelo "apóstolo ou campeáo da fé",
e nao pelo "apostólo do amor", Joáo evangelista. Deve ser
lembrado, no entanto, que nao havia antagonismo entre éles ^
dois; cada qual podia escrever sobre uma ou outra das re-
feridas virtudes, para Ihes frisar a importancia, e por isso
é que Joáo também escreveu sobre a "vitória que vence o
mundo, a nossa fé", e Paulo, por seu lado, chegou a fazer
aquela afirmacáo profunda, de sentido vasto: "O amor é o
cumprimento da lei".
Com efeito, Paulo apresenta-nos agora o amor como vir- ¡
tude ou graga, e náo como aptidáo ou dom espiritual. Já '
considerou as "línguas", a "profecia", as "curas" e outros
miraculosos dons concedidos á Igreja Primitiva. Agora vai j
mostrar o caminho, o meio de usar ésses dons e, déste modo, i
como aproveitar a vida crista em todos os seus aspectos e
em toda a sua plenitude.
A virtude, considerada aqui, náo é o amor para com
Deus, que é a mais elevada forma de amor. Náo é o amor
para com os que nos sáo caros, o que seria mera emogáo,
egoística e sensual. Mas é a atitude do coracáo e do espirito
que devemos cultivar para com a humanidade inteira. Se o
empolgante discurso de Paulo em torno desta virtude fór con-
siderado como hiño, pode ser dividido em trés estrofes, corres-
pondendo á necessidade, á natureza e á perenidade do amor.
a. O Amor é Indispensável: Cap. 13:1-3.
1 Aínda que eu fale as línguas dos homens e dos
anjos, se náo tiver amor, serei como o bronze que soa,
ou como o címbalo que retine. 2 Aínda que eu tenha
o dom de profetizar e conhe^a todos os místérios e
toda a ciencia; aínda que eu tenha tamanha fé ao
ponto de transportar montes, se náo tiver amor, na-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 115
^
da serei. 3 E aínda que eu distribua todos os meus
bens entre os pobres^ e aínda que entregue o mea
próprío corpo para ser queimado, se nao tíver amor,
nada dísso me aproveitará.
Antes de mais nada, o amor é absolutamente indispensá-
vel. Paulo mostra-o em relagáo com o exercício dos "dons"
espirituais, e é ainda indispensável o amor em qualquer das
atividades e relagoes da vida. Para os cristáos corintios o
dom mais apreciável, devido á sensagáo que produzia, era o
de "línguas", a habilidade de ficar em éxtase e emitir pa-
lavras só compreendidas por aqueles que tivessem o dom
correspondente da interpretagáo. Ainda que alguém possuísse
ésse dom, a mais sublimada forma de linguagem, e falasse as
"línguas" que foi concedido algumas vézes aos homens falar,
ou mesmo as línguas dos anjos, a própria linguagem do céu,
se nao fósse animado pelo amor, seu discurso seria apenas
um barulho sem sentido, ''como o bronze que soa, ou como
o címbalo que retine".
Os cristáos corintios corriam o risco de produzir pala-
vrórios sem sentido por causa do espirito de partido, de
ciúme e vaidade prevalecente no meio déles. Mesmo hoje,
certos prégadores e defensores da fé, embora eloquentes, al-
gumas vézes, no púlpito, se esquecem da simpatía crista, da
cortezia, do amor, de modo que suas prégagoes sao rispidas,
estridentes, metálicas. Perdem com isso sua utilidade e seu
poder de persuasáo.
Do mesmo modo, se alguém tivesse o dom de profetizar,
essa capacidade especial de interpretar as verdades mais pro-
fundas e mesmo de predizer acontecimentos; e ainda que,
para exercer ésse dom, fósse capaz de compreender todos os
"mistérios" da revelagáo divina, e possuísse toda a "ciéncia"
déles; ainda mesmo que tivesse o dom da fé que opera mi-
lagres, ésse poder que nosso Senhor referiu como capaz de
remover montanhas; se tivesse tudo isso mas sem a inspi-
ragáo do amor, seu caráter cristáo seria falho.
Pode acontecer, hoje, alguém possuir o conhecimento
da verdade divina, aer hábil na exposigáo das Escrituras e
demonstrar a mais firme fé em Deus, e ainda carecer de
amor. Néste caso nao será um exemplo de vida crista; nao
é nada.
116
CHARLES R. ERDMAN
Mais ainda: pode alguém ser caridoso, ao ponto de dar
aos pobres tudo quanto possua; pode deixar-se arrastar á
fogueira, como mártir da fé; se nao fór animado pelo amor,
nenhum galardáo recebará. Sua caridade poderá ter nascido
da esperanga de recompensa ou louvor, do desejo de ser visto;
a morte no fogo pode ter sido motivada por mero fanatismo,
pela ambigáo de ser considerado santo, por obstinagáo ou
soberba.
Paulo emprega uma énfase admirável nestas frases su-
cessivas, em que acentúa a inutilidade da profecía e da fé,
da caridade e do sacrificio da vida, a menos que o motivo
de tudo se ja o amor. O dom de línguas nao quer dizer nada.
A influencia da profecía ou da fé nenhum valor tem. A
oferenda dos dons, e até o martirio, nao garantem nada.
Para que a vida, em qualquer de suas esferas, tenha valor,
proveito ou significagáo, é de absoluta necessidade que seja
informada pelo amor. Sem o amor nenhum dom poderá
ser exercido de modo próprio, nenhum talento poderá ser
bem empregado. Sem ele a profissáo da fé crista nao passa
de pretensáo, o servigo na igreja é infrutífero. Sem ele todas
as relagoes da vida sao imperfeitas, toda as suas atividades
carecentes de motivo, fúteis e ocas. No sentido mais pro-
fundo, deixar de amar é deixar de viver, é extinguir-se.
b. Como se manifesta o Amor. Cap. 13:4-7.
4 o amor é paciente, é benigno, o amor náo arde
em ciúmes, nao se ufana, nao se ensoberbece, 5 nao
se conduz inconvenietemente, nao procura os seus
iníerésses, nao se exaspera, nao se ressente do mal; 6
nao se alegra com a injusti^a, mas regozija-se com a
verdade; 7 tudo sofre, tudo eré, tudo espera, tudo
suporta.
Pode ser difícil definir o amor; discerní-lo ou descobrí-lo
é que nao o é. Paulo nao ensaia nenhuma definigáo, análise
ou'descrigáo déle. O que faz é tragar-lhe os movimentos, a
agáo. Mostra o que o amor faz e senté, assim também o que
foge de fazer. Recorda os modos pelos quais se manifesta.
E enquanto faz isso, vai aplicando essas manifestagoes do
amor ao caso concreto que tem diante de si, isto é, vai pro-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 117
curando a solugáo de um problema particular, qual seja o
dos corintios. É no interésse dessa igreja que ele escreve,
Igreja conturbada e dividida exatamente pelo modo como
encara seus dons espirituais e como os exerce ou emprega.
Paulo já disse que, sem o amor, de nada servem os dons.
Mostra, agora, como haveriam de pensar e proceder os seus
possuídores se fóssem animados pelo amor. Já demonstrou
que o amor é indispensável; agora é a vez de mostrar que é
reconhecível ou iniludível. Que é necessário, iá o declarou;
vai agora revelar sua insigne beleza, sua intrínseca excelen-
cia e seu encanto. Nao é do amor como abstracáo que o
apostólo escreve; nem é sua pretensáo fornecer um sumário
completo de suas qualidades ou elementos. Nao obstante,
o que ai expende é o mais perfeito panegírico do amor que já
se escreveu. Embora procure apenas sanar as discordias,
divisoes e lutas que agitam a igreja de Corinto, demonstra,
como nenhum escritor antes nem depois jamáis conseguiu,
o de que é capaz o amor se Ihe derem permissáo de governar
os coragoes, os lares, quaisquer ajuntamentos de pessoas,
igrejas, seja qual fór a comunidade, em qualquer lugar do
mundo. Em quinze frases de beleza incomum o apostólo, em
traeos bem vivos, descreve como opera um principio ou re-
gra que tem poder para transformar toda a vida humana.
"O amor é paciente (sofre), é benigno". Em duas curtas
sentencas está descrita a esséncia do amor, ou em que con-
siste sua operagáo. Éle nos faz pacientes no sofrer o mal,
ativos no conferir béncáos. O mal a que se faz referencia
ai é o que decorre da provocacáo e da injúria. O amor é
magnánimo em suportar ésses maleficios. Nao permite que
a amargura e a ira operem. Tem firmeza de ánimo em
sofrer afrontas. Nao dá guarida a ressentimentos. Perdoa
— nao sómente sete vézes, mas setenta vézes sete.
Nao paga o mal com outro mal. É benigno. Nao é
meramente passivo; está ativamente ocupado com fazer o
bem. Usa de finezas. Seu espirito benévolo está expresso
numa conhecida regra do bom viver: "Por esta vida só
passarei esta vez. Assim, pois, todo o bem de que sou capaz,
todo obséquio que puder dispensar a qualquer ser humano,
quero hoje realizar. Nao o deixarei para amanhá, nao o
negligenciarei, e por esta razáo: nao passarei por aquí
outra vez".
118
CHARLES R. ERDMAN
"O amor nao arde em ciúmes" (náo é invejoso). De si
mesmo generoso, nao se deixa ralar pelos talentos de outrem.
E se alguma vez for superado por um competidor, nao se
irrita, nao se aflige. Nada de ciúme, se o rival levar o premio.
"Nao se ufana". É humilde, nao é presungoso. Nao tem
aparatos, nao anseia fazer demonstragoes de seus dons su-
periores ou tornar-se alvo de admiragáo imerecida. É isto o
amor. Nao é arrogante para com os inferiores — nao se
ensoberbece. Nunca se torna ridículo por falta de modéstia,
por irreverencia, por assumir um aspecto de superioridade,
ou manifestar importancia pessoal.
"Nao se conduz inconvenientemente"; é todo cortezia.
A arte da polidez nao se aprende sómente em livros de eti-
quetas sociais. Brota do íntimo. Inspira-se em simpatía e
é orientada pelo acatamento aos sentimentos alheios. Co-
mumente é a falta de amor, antes que de ciencia ou de edu-
cagáo, que leva aos maus modos, as inconveniencias, as gros-
serias. Sem dúvida que nao há receita para se fabricar
cavalheirismo e cortezia, que nao emanagoes naturais de um
coragáo simpático. O amor nao pode ferir, nem causar des-
gostos, nem criar situagoes embaragosas. Éle é contrário a
toda contenda inconveniente. As dissengoes que transtor-
navam a Igreja de Corinto nao eram fruto da cortezia do
amor, porque esta, por sua própria natureza, se dá logo a
conhecer e isto na maneira como os cristáos comegam a tra-
tar aqueles de quem divergem.
O amor "nao procura os seus interésses". É eminente-
mente altruista. Nao é sinal de amor, isso de andar a pessoa
insistindo sempre nos seus direitos. O amor é retraído, nao
exige precedencia para si, reconhecimento, aplausos, nem
mesmo a consideragáo que possa parecer de pleno direito,
visto como o amor é mais profundo do que a justiga.
Tem bom humor, é jovial; "nao se exaspera". Nunca
o amor é irritável. A facilidade de zangar-se, o mau humor,
que se costuma chamar "o vicio dos virtuosos", muitas vézes
é o único sério defeito de um caráter que, sem éle, seria
excelente. E quando acontece que um caráter excelente se
deixa macular tristemente por essa falha, a situagáo da
pessoa torna-se deveras lamentável, porque ésse defeito cos-
tuma causar indiscrítível infelicidade e sofrimentos. Contu-
raiMKIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
119
do, há um meio excelentíssimo de prevenir tamanho desas-
tre: a cura infalível de um temperamento irritável, que se
revela na imposicáo da vontade do individuo, na énfase á
sua dignidade — está em cultivar perseverantemente o
amor altruista, que se consagra aos outros.
O amor ''nao se ressente do mal", déle nao faz conta.
Acumular no coracao a memoria de maleficios recebidos, de
ingratidóes, de queixas, de agravos, de golpes moráis; manter
um como registro rigorosamente exato das injúrias sofridas
de outrem — isso nao sao maneiras do amor inspirado por
Cristo. O amor nao somente é capaz de perdoar, como tam-
bém de esquecer completamente.
O amor nos faz caridosos para com as faltas e fracassos
do próximo. ''Nao se alegra com a injustica", nunca se re-
gozija quando os outros váo mal, á maneira de uma desforra.
Nao fica satisfeito, lá no seu íntimo, com as fraquezas mo-
ráis, com as maldades ocultas de um rival; nao tem interésse
em espalhar más noticias, boatos maliciosos; nao se gloria
com a prevaléncia do mal.
"Regozija-se com a verdade". Quando a verdade triunfa,
o amor compartilha as suas alegrías. Se quiserem ver ai
uma referencia á verdade do evangelho, entáo é fato que o
amor se deleita com seu progresso, com sua afirmacáo e de-
fesa. Mas se aceitarmos para essa "verdade" outro sentido
mais provável, qual seja o oposto de falsidade, do erro, e se
considerarmos justica como antónimo de iniquidade, ainda
assim vibraremos de júbilo com a vitória do amor. O amor
exulta quando a verdade desbarata a calúnia, quando a sus-
peita se prova infundada, quando o prejuízo e o mal sao des-
feitos, e o direito prevalece. "O amor alegra-se com o bem".
Sempre está pronto a excusar os outros . Cobre com um
manto de boa vontade todas as faltas do próximo. Tudo ele
"suporta". "Tudo eré", acredita que tudo é bom. Nutre
confianca até para com os suspeitos. Capacita-nos a ter fé
no próximo e dar as suas atitudes sempre o mais alto e o
melhor sentido. Essa dem.onstracáo de confianca multas
vézes traz logo sua recompensa; faz que até nos individuos
mais depravados se revelem qualidades boas, virtudes de
cuja existencia ninguém suspeitava antes.
120
CHARLES R. ERDMAN
Mas, como se há de comportar o amor nos dias maus,
quando se perde toda a confianza nos homens, quando aquilo
que antes apenas se suspeitara ruim, agora está descoberto,
agora paténtela toda a sua maldade, que já nao se pode
encobrir — como se há de comportar o amor em siutagoes
tais? Mesmo em crises desta ordem o amor nao desespera.
Se nao há mais esperanza de uma justificagáo para o mal
cometido, se ele é notorio e indescuipável — o amor ainda
tem confianca, ainda é impelido a acreditar na possibilidade
de uma reforma, numa rehabilitagáo, e apela para mais uma
tentativa, crendo na vitória final. Porque "o amor tudo
espera".
E "tudo suporta", sem desanimar, indefesso até ao fim.
Paciente, nao apenas por alguns momentos, mas por longos
dias, durante anos a fio, quando a esperanza vai vendo sem-
pre adiado aquilo que espera, ele, o amor, nao se cansa ja-
máis. Sob o fardo pesado de uma prolongada dem_ora ele
se firma e sustenta, sempre esperando, com bravura perse-
verando e corajosamente suportando.
Sao estas, entáo, algumas das manif estagoes da virtude
que conhecemos sob a denominagáo de amor. É difícil de
ser imitada, falsificada, ou escondida. É mais desejável que
todos os dons, ainda que estes se apresentem com o encanto
das maravilhas, com a seriedade dos mistérios, e com a au-
réola dos milagres. Mais do que estes, a operag^o do amor
contribuí para a unidade e edificagáo da Igreja de Cristo.
Sob o seu completo dominio a vida mais obscura torna-se
um trepidante manancial de fórga, a prestar servigos e a
promover concordia. Pela fórga do amor imperando vito-
rioso nos coragoes, Jesús Cristo, ai entronizado, fará que o
mundo, aflito e em expectagáo, alcance a idade de ouro e de
gloria para a qual está destinado.
c. A perenidade do Amor. Cap. 13:8-13.
8 O amor jamáis acaba; mas, havendo profecías,
seráo aniquiladas; havendo línguas, cessaráo; havendo
ciencia, passará; 9 porque em parte conhecemos, e em
parte profetizamos. 10 Quando, porém, vier o que é
perfeito, entáo o que é em parte será aniquilado. 11
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 121
Quando eu era menino, falava como menino, sentía
como menino, pensava com menino; quando cheguei
a ser homem, desistí das coisas próprias de menino.
12 Porque agora vemos como em espélho, obscura-
mente, entáo veremos face a face; agora conhe^o em
parte, entáo conhecerei como também sou conhecido.
13 Agora, pois, permanecem a fé, a esperanza e o
amor, estes tres: porém o maior déstes é o amor.
O amor é imorredouro. Contrastando com os dons e
talentos, que tém seu lugar e sua finalidade no tempo apenas,
o amor é uma virtude que por toda a eternidade continuará
manifestando seu glorioso poder. Paulo continua tecendo-
Ihe louvores e tem agora oportunidade de contrastá-lo, de
maneira definida com os dons de profecías de línguas e da
ciencia, outorgados que foram para fortalecimento e orien-
tagáo da Igreja dos corintios.
No exercício désses dons nao se dispensa o amor, mos-
trou-o Paulo, e mais: a posse dos mesmos deve dar ótima
oportunidade a espléndidas manifestagoes do amor. Entoa
agora nova estrofe do Hiño. Canta o apostólo que esta vir-
tude perdurará depois que todos ésses dons virem passar
sua oportunidade. "O amor jamáis acaba; mas, havendo pro-
fecías, seráo aniquiladas; havendo línguas, cessarao; haven-
do ciencia, passará".
''Seráo aniquiladas". Concedamos que os dons espiri-
tuais, outorgados á Igreja dos corintios, limitaram-se á Era
Apostólica. Ainda que Paulo nao o afirme aqui, essa limita-
gao era um fato provável. Pelo menos é certo que ésses dons,
exatamente como os houve em Corinto, nao existem mais.
Contudo o contraste que Paulo apresenta nao é entre os
fatos da Era Apostólica e os do tempo presente, senáo entre
os do presente, considerado de um modo geral e incluindo,
portanto, a idade apostólica, e os da idade futura que se ini-
ciará com a vinda de Cristo. Os dons espirituais foram con-
cedidos, na melhor hipótese, apenas para uma época caracte-
rizada por sua imperfeigáo, época preparatoria; mas o amor,
éste há de continuar, há de perdurar, será indispensável
ainda mesmo "quando vier o que é perfeito".
Seja no tempo, seja na eternidade, o amor nao deixará
de existir. É imperecível. "Havendo profecías, seráo aniqui-
ladas" — nao porque sejam falsas em si ou nada conformes
com a verdade, senáo porque já teráo sido perfeitamente rea-
122
CHARLES R. ERDMAN
lizadas e porque, na era vindoura, nao haverá ocasiáo nem
necessidade de qualquer dom profético. Mas "o amor jamáis
acaba".
"Havendo línguas, cessaráo", nao porém o amor. A fina-
lidade do ambicionadíssimo dom de línguas foi apenas pro-
duzir um efeito passageiro, e auxiliar na fundagáo da
Primitiva Igreja. Mas sua necessidade, hoje, passou, e cer-
tamente, no porvir, essa capacidade aparentemente misteriosa
de proferir discursos ininteligíveis nao será mais desejada.
Contudo, "o amor jamáis acaba".
"Havendo ciencia, passará". Como e por que passará,
Paulo o diz com vivacidade e clareza: ao aparecimento de
Cristo, o que agora é parcial e imperfeito se desvanecerá,
inevitavelmente, diante do perfeito e completo. Toda a nossa
ciencia, mesmo a que se concedeu aos primitivos cristáos,
gragas a uma especial iluminacáo de seus espíritos, é frag-
mentária, temporária, provisoria: "Ha vendo ciencia, passa-
rá". Mas "o amor jamáis acaba".
Néste ponto o inspirado compositor acrescenta alguns
versos extras a esta estrofe do seu Hiño ao Amor. Com o fim
de esclarecer o sentido em que os dons temporários se desva-
neceráo, emprega duas comparacoes: o conhecimento infan-
til e os reflexos de um espélho. Como sabe todo adulto ajuí-
zado, a percepgáo limitada que as criangas revelam das
coisas, no devido tempo cederá lugar á compreensáo mais
perfeita da idade madura: "Quando eu era menino, falava
como menino, sentia como menino, pensava como menino;
quando cheguei a ser homem, desistí das coisas próprias de
menino". O ser humano normal cresce, progride, desenvolve-
-se. A mudanga que ésse desenvolvimento acarreta, seia nos
modos de falar, se ja ñas íntimas disposigoes, se ja na menta-
lidade — transformagoes estas que o apostólo mesmo expe-
rimentou quando se foi tornando homem — é um retrato
vivo da transitoriedade dos conhecimentos imperfeitos que
hoje temos das coisas, os quais iráo crescendo até atingirem
o grau da perfeita madureza, o que se verificará nésse dia
alegre da revelagáo de Cristo em sua gloria. Entáo, nossos
olhos se abriráo para ver aquilo que é permanente e eterno.
O que é do tempo cessará de existir, mas "o amor jamáis
acaba".
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 123
Quem náo percebe o significado da segunda comparacáo?
A imagem de um rosto amigo refletida num espélho para nós
é imperfeita e nao nos satisfaz de modo algum; o que quere-
mos é vé-lo face a face, queremos désse rosto ter urna visáo
imediata e perfeita! "Agora vemos como em espélho, obs-
curamente, entáo veremos face a face". Enquanto a situacáo
fór a atual, só poderá ser indireta, um tanto imprecisa, a
apreensáo das realidades divinas. Esquemas falhos, impres-
soes foscas, vagas, sombreadas, reflexos torcidos ou defor-
mados — tudo isso contrasta vividamente com aquela in-
tuigáo direta, aquéle conhecimento instantáneo e perfeito
que haveremos de ter e gozar na gloria futura!
Com referencia a espelhos e seus defeitos, Corinto os
conhecia. De fato, cidade antiga, era afamada por seus es-
pelhos feitos de metal polido, muito aperfeicoados para aquela
época. Nao obstante, por mais fiéis que fóssem as imagens
por éles refletidas, nao chegávam a ser nítidas, eram som-
breadas, em comparagáo com a visáo direta dos objetos.
Assim, o conhecimento que temos atualmente de Deus é de
igual modo obscuro, mercé dos mistérios que topamos a cada
passo. Hoje vemos "obscuramente", como através de quebra-
-cabega ou enigma; logo mais, porém, veremos o Senhor ime-
diatamente, sem a interferencia de meios, assim como Éle nos
vé agora. É verdade que jamáis o conhecimento que dÉle
tivermos será completo como o seu, mas será conhecimento
direto, sem mais a interferéncia de nada, tal qual o seu a
nosso respeito. Hoje, o conhecimento que temos de Deus
contrasta com o que Éle tem de nós, mas um dia será digno
de comparar-se com o conhecimento que tem atualmente de
nós: "Agora conhego em parte, entáo conhecerei como tam-
bém sou conhecido". O conhecimento de hoje, parcial, pas-
sará um dia, mas "o amor jamáis acaba".
Por ser incompleto e parcial ésse conhecimento, nao
vamos cair no érro fatal de, por isso, julgá-lo engañoso ou
váo ou inútil. Posto que imperfeito, diz respeito a grandes
realidades que sáo objeto de nossa fé e fundamento de
nossas eternas esperangas. Por ser imperfeito nao é que nos
possa engañar. Aquilo que Deus nos concede deve ser rece-
bido com gratidáo, desenvolvido continuamente e usado com
sabedoria. Viver k meia-luz désse pouco recebido é a única
condigáo de se ficar preparado para receber mais ampios
124
CHARLES R. ERDMAN
conhecimentos e mais claras visoes do pleno dia celestial.
Para as nossas presentes necessidades é suficiente.
E ainda: táo imperfeitos sao nossos conhecimentos atuais
que nunca se deveráo tornar motivo de tola ufania, de pre-
sumida superioridade, de orgulho, de contenda. Com todas
as suas limitacoes e imperfeigoes, nao devem nunca dar lugar
a ciúmes, vaidades, divisóes e porfías. Por que haveríamos
de nos alegrar tanto com elogios a ésses dons temporários,
que em breve desapareceráo? Antes cultivemos, demonstre-
mos essa virtude que sobreviverá ao tempo, que torna capazes
seus possuídores para o mais elevado servigo de Deus.
O que é parcial desaparecerá, mas o que é perfeito con-
tinuará sempre triunfante em sua obra — "..o amor jamáis
acaba".
Com justiga tem-se chamado o amor "a coisa mais im-
portante desta vida", e também é a que mais resplandece
na gloria do céu. Que há de sobreviver aos dons temporá-
rios, afirmou-o Paulo; mas agora vai dizer que o amor ultra-
passa em importancia as virtudes eternas. Nao supera so-
mente as coisas perecíveis; o amor tem supremacía entre
aqueias outras que permanecem. Das trés virtudes cardiais
do Cristianismo, o amor é e sempre será a principal. "Agora
permanecem a fé, a esperanga e o amor, estes trés: porém o
maior déstes é o amor". Com esta nota de exultagáo e de
plena certeza o apostólo atinge o ápice do arrebatamento,
para encerrar o seu hiño belíssimo.
"O maior déstes ..." — em que é, entáo, que consiste
esta supremacía? Nao, certamente, por ser mais durável o
amor do que a f é e a esperanca. Algumas pessoas que tém
estudado éste Hiño entendem que o advérbio "agora", usa-
do néste último versículo, quer dizer que na era atual per-
manecem a fé, a esperanga e o amor, mas na era futura a
fé e a esperanga deixaráo de existir, ficando só o amor.
Multo pelo contrário, Paulo afirma que os trés váo perma-
necer, mas o amor, entre éles, terá preeminéncia. Por que
é preeminente o amor, Paulo nao se detem a explicar. No
comégo do hiño sugeriu uma razáo: a fé sem o amor é im-
perfeita — nao passa de um assentimento frió do intelecto,
uma submissáo passiva da vontade, e carece do calor da de-
vogáo de que o coragáo é capaz. A esperanga sem o amor
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 125
será egocéntrica, será impura. Mas a verdadeira fé e a le-
gítima esperanga completam-se no amor, verdadeiro e per-
feito. O amor é o fim último délas duas, sua *realizagáo
plena, seu alvo mais alto, sua meta final. É o mais abengoado
fruto da fé e o maior bem antecipado pela esperanga.
Acresce que, contrastando com a fé e a esperanga, o amor
tem um lado que se inclina para o que é humano. A fé nos
poe em justas relagoes com Deus; a esperanga nos coloca
numa atitude correta para com o futuro; mas o amor faz-nos
entrar em relagoes perfeitas com os nossos semelhantes. Tem
seu valor na vida particular de cada um, mas também apro-
veita á coletividade, fortalece a Igreja, faz raiar luz e ale-
gría para a térra inteira. Verdadeiramente o amor é o que
de maior existe no mundo.
Que necessidade haverá de procurar outras explicagoes
para a supremacía do amor, se basta saber que, sobre todas
as coisas, o amor participa da própria natureza de Deus?
A fé, a esperanga e o amor sao todos imortais, mas o amor
é divino. A fé e a esperanga ajustam nossas relagoes com
Deus, mas o amor é da própria esséncia da divindade. Deus
nao eré, Deus nao espera, mas Éle ama. O amor é supremo
por uma única razáo, a seguinte: "Deus é Amor".
Em conhecermos Deus, em reconhecermos seu amor por
nós é que se origina e se firma o amor que a Éle dedicamos
e ao nosso próximo. "Amamos porque Éle nos amou pri-
meiro". Aqueles que continuamente estudam e pesquisam
o amor, para Ihe descobrirem as origens, a natureza e as
manifestagoes, esta preciosa sentenga da Primeira Epístola
de Joáo fornece a pista que leva ao desejado fim. O próprio
Deus nos chama para que empreendamos essa pesquisa e
fagamos essa descoberta. Éste incomparável hiño que ai te-
mos, da autoría de Paulo, nao foi escrito apenas para deleitar
os que apreciam o belo, nem para censurar nossa vida vazia
de amor, nem aínda para despertar em nós qualquer senti-
mentalismo ou pieguice em face desta virtude crista que é
o amor. Nada disto, mas foi escrito para nos incitar á agáo,
imediata e constante. A conclusáo inevitável a que chegamos
com o estudo déste Hiño é que devemos procurar o amor,
com urgencia e sem esmorecimentos, e andar néle, na cer-
teza de que é "um caminho sobremodo excelente".
126
CHARLES R. ERDMAN
Tornemos a pesquisá-lo. Nenhum busca ou inquirigáo,
nenhuma aventura a que o homem se lance em toda a sua
vida será mais nobre, de maior valor, mais compensadora do
que esta. Porque no tempo como na eternidade nao haverá
nada assim grandioso, nem melhor, nem mais refulgente do
que o amor.
3. Os Valores Comparados e o devido emprégo dos Dons
Cap. 14.
O dom de línguas é ambicionado, e defendida a sua legi-
timidade, por muitos cristáos da atualidade. Se essas línguas
sao reais, se o respectivo dom é legítimo e outorgado por
Deus, isso é uma questáo de fato que precisa de ser resol-
vida com provas. A maior parte das pessoas, porém, está
convencida de que nunca houve prova bastante de ser o fe-
nómeno em aprégo a manifestagáo de um verdadeiro dom.
Créem que se trata antes de uma forma de histeria, de uma
experiencia que engaña pelas aparéncias. Em qualquer caso,
é bom lembrar que Paulo considera as línguas pelo menos
como o último dos dons do Espirito a serem desejados. E
viu a necessidade de advertir os cristáos corintios contra o
abuso do mesmo e o aprégo exagerado em que o tinham.
O que parece é que o dom em lide nao era idéntico ao
que se manifestou no Dia de Pentecostés, pois o que houve
naquela ocasiáo foi a capacidade de falar línguas estran-
geiras, Hnguas vivas e conhecidas no mundo, e por isso
mesmo foram compreendidas pelos que as ouviram. Mas o
dom de que Paulo trata agora manifestava-se, sob a influen-
cia de um éxtase, na prolagáo de sons que eram enten-
didos, nem pela pessoa que falava, nem pelos que a ouviam,
a nao ser que um dos presentes, que possuísse o dom de
interpretagáo, traduzisse aqueles discursos. Quem daquéle
modo falava, fazia-o para Deus. Dominado por emogáo pro-
funda, possivelmente orava, cantava ou dava gragas á ma-
neira de quem pronunciava palavras, mas sem que ele mesmo
entendesse o que dizia.
íntimamente relacionado com ésse dom, havia o outro
de profecía. Em ambos os casos quem falava era movido pelo
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
127
Espirito Santo, mas o profeta se dirigía ao povo, fazendo urna
revelagáo. Transmitía a todos uma mensagem que Deus Ihe
segredara ao coragáo. A predicáo de acontecimentos nao era
parte essencial de seu ministério. Podía fazer e deixar de
fazer parte de suas mensagens. Mas tudo quanto dizia era
em linguagem clara, por todos compreendia. O apostólo vai
mostrar agora que o dom de profetizar é muito superior ao
de línguas, e dá instrucoes sobre o exercício de ambos.
Estas instrucoes baseiam-se nos fatos apresentados nos
dois caps, precedentes. O primeiro déles mostrou que todos
os dons foram destinados á edificagáo da Igreja; o segundo,
que todos os dons devem ser exercídos sob a influencia do
amor. A finalidade déste cap. 14 é mostrar que o amor ao
próximo há de influir na escolha de um dom que mais^con-
tribua para a edificacáo, e éste é o de profecía, de preferéncía
ao de língua, e que o amor há de inspirar, igualmente, u'a
maneira própría e decente de empregar tanto um como o
outro.
a. Profetizar é preferível a falar Línguas. Cap. 14:1-25.
1 Seguí o amor, e procura! com zélo os dons espiri-
tuais, mas princijpalmente que profetizeis. 2 Pois quem
fala em outira língua, nao fala a homens, senáo a
Deus, visto que ninguém o entende, e em espirito fala
mistéríos. 3 Mas o que profetiza, fala aos homens, edi-
ficando, exortando e consolando. 4 O que fala em ou-
tra língua a si mesmo se edifica, mas o que profetiza
edifica a igreja. 5 Eu quisera que vos todos falásseis em
outras línguas; muito maís, porém, que profetizásseis;
pois quem profetiza é superior ao que fala em outras
línguas, salvo se as interpretar para que a igreja re-
ceba edificacáo. 6 Agora, porém, irmáos, se eu fór ter
convosco falando em outras línguas, em que vos apro-
veitarei, se vos nao falar por meio de revelagáo, ou de
ciencia, ou de profecía, ou de doutrina? 7 É assim que
instrumentos inanimados, como a flauta, ou a cítara,
quando emitem sons, se nao os derem bem distintos,
como se reconhecerá o que se toca na flauta, ou cítara?
8 Pois também se a trombeta der som incerto, quem
se preparará para a batalha? 9 Assim vos, se, com a
língua, nao disserdes palavra compreensível, como s«
entenderá o que dizeis? porque estaréis como se falás-
seis ao ar. 10 Há sem dúvida, muitos tipos de vozes no
mundo, nenhum déles, contudo, sem sentido. 11 Se eu,
128
CHARLES R. ERDMAN
pois, ignorar a significagáo da voz, serei estrangeiro
para aquéle que fala; e éle, estrangeiro para mim. 12
Assim também vos, posto que desejais com ardor dons
espirituais, procurai progredir, para a edificaeao da
igreja. 13 Pelo que, o que fala em outra lingua, ore
para que a possa interpretar. 14 Porque, se eu orar em
outra lingua, o meu espirito ora de fato, mas a minha
mente fica infrutífera. 15 Que farei, pois? Orarei com
o espirito, mas também orarei com a mente; cantarei
com o espirito, mas também cantarei com a mente. 16
E se tu bendísseres apenas em espirito, como dirá o in-
douto o amém depois da tua acáo de grabas? visto que
nao entende o que dizes; 17 porque tu de fato dás
bem as grabas, mas o outro nao é edificado. 18 Dou
gracas a Deus, porque falo em outras linguas mais do
que todos vós. 19 Contudo, prefiro falar na igreja
cinco palavras com o meu entendimento, para instruir
outros, a falar dez mil palavras em outra lingua. 20
Irmáos, nao sejais meninos no juízo; na malicia, sim,
sede crianzas; quanto ao juízo, sede homens amadure-
cidos. 21 Na lei está escrito: Falarei a éste povo por
homens de outras linguas e por lábios de outros povos,
e nem assim me ouviráo, diz o Senhor. 22 De sorte
que as linguas constituem um sinal, nao para os eren-
tes, mas para os incrédulos; mas a profecía nao é para
os incrédulos, e, sim, para os que créem. 23 Se, pois,
toda a igreja se reunir no mesmo lugar, e todos se
puserem a falar em outras linguas, no caso de entra-
rem indoutos ou incrédulos, nao diráo porventura que
estáis loucos? 24 Porém, se todos profetizarem, e en-
trar algum incrédulo, ou indouto, é éle por todos con-
vencido, e por todos julgado; 25 tornam-se-lhe rna-
nifestos os segredos do coragáo, e, assim prostrando-se
com a face em térra, adorará a Deus, testemunñando
que Deus está de fato no meio de vós.
Duas razoes Paulo apresenta da necessidade de o amor
inspirar a escoiha do dom de profecia, antes que o de linguas.
A primeira é a consideragáo que se deve ter aos irmáos, vs.
1-19; a segunda é o deseio de que os incrédulos se convertam,
vs. 20-25.
"Diligenciai seguir éste Caminho do Amor que vos acabo
de indicar", diz éle. "O resultado será dése j ardes mais e
mais os dons do Espirito, particularmente o de profetizar,
de preferencia ao de linguas, e isto porque a profecia edifica
a todos, ao passo que o de linguas só aproveita a quem fala.
Quem se externa em lingua desconhecida, é a Deus que fala,
e nao aos homens. Ninguém o compreende, embora, em
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
129
seu espirito, fale segredos que da parte de Deus Ihe foram
revelados. Mas o que profetiza, fala para edificacáo, anima-
gao e conforto de todos. Aquéle pode beneficiar-se, mas éste
edifica a Igreja. Ora, eu gostaria que todos vós falásseis
em línguas, porém muito mais estimaria que todos profe-
tizásseis. Éste último dom de profecia é, portan to, o preferí-
vel, a nao ser que a pessoa que fale em línguas se ja capaz
de interpretar o que diz para proveito espiritual da Igreja.
Que vantagem haveria se eu vos falasse debaixo da influen-
cia de um éxtase, se ao mesmo tempo nao juntasse ao meu
discurso alguma palavra de sentido claro, palavra de reve-
lagáo, de ciencia, de profecia ou de doutrina?" Vs. 1-6.
Como ilustragáo da inutilidade das línguas que nao se
interpretam, Paulo emprega duas comparagoes, uma de ins-
trumentos musicais, e a outra da linguagem humana: "Se,
por exemplo, numa orquestra os instrumentos nao emitirem
sons distintos, notas afinadas, como se saberá o que é que se
toca? Assim, se a trombeta nao der som claro de se com-
preender, quem se aprestará para a batalha? Do mesmo mo-
do, as vossas falas espirituais seráo de nenhum proveito se
nao forem claras e inteligíveis. O mesmo se diga dos idio-
mas: cada qual tem seu sentido, mas se alguém nao entende
a língua em que Ihe falam, nenhuma idéia colhe do que
ouve. Portanto, se apreciáis e cultiváis os dons espirituais,
julgai-os do ponto de vista de sua utilidade e do auxilio que
podem prestar". Vs. 7-12.
Insta o apostólo para que, se alguém fala em determina-
da língua, ore pedindo o dom da interpretacáo. Poe em
relevo a superioridade do culto inteligente sobre o que é me-
ramente emocional. E afirma que se ele ora em língua des-
conhecida, seu espirito fica inativo, porque nao acompanha
o que diz, preferindo ele orar e louvar a Deus com o pensa-
mento a sentir meras emogóes. "Se a oragáo é fervorosa, ex-
citada e nao inteligível, como pode o incapaz de Ihe inter-
pretar o sentido fazé-la sua dizendo Amém á vossa agáo de
gragas? Se é sincero tal culto, nao aproveita aos ouvintes.
Nao subestimo o dom de línguas, porque eu mesmo o possuo
no mais alto grau. Todavía, ñas reunioes da Igreja prefiro
falar cinco palavras e ser entendido pelos outros e assim
instruí-los, a falar dea mil e nao ser compreendido". Vs. 13-19.
Havia algo de infantilidade no prazer que os corintios
sentiam quando estavam naquéles arroubos linguareiros e
130
CHARLES R. ERDMAN
ininteligíveis. Oxalá fóssem meras criancas com relagáo ao
conhecimento e á experiencia do mal; no espirito, na ca-
pacidade de fazer distincáo entre o útil e o inútil, íossem
adultos.
Que vantagem havia naquéles palavrórios extáticos? Nao
edificavam os crentes, nem levavam nenhum incrédulo á
conversáo. Esta segunda razáo da inferioñdade das línguas, ]
comparadas com a profecía, é frisada por uma citacáo do
Antigo Testamento. Quando os israelitas, dados ao vicio da '
embriaguez, zombaram da mensagem simples de Deus trans- !
mitida por Isaías, considerando-a apropriada sómente para
criangas, o profeta advertiu-os que o Senhor Ihes falaria de
outra maneira. Dar-lhes-ia uma licáo pelos labios dos inva-
sores e conquistadores assirios. A linguagem déstes expres-
saria a condenacáo de Judá. Deus falaria, entáo, retribuindo
á maldade de seu povo, numa língua estranha e de estran-
geiros, nao para Ihe despertar a fé, senáo para Ihes con-
firmar e consumar a incredulidade.
De igual modo, o dom de línguas tinha o mesmo designio
fatídico relativamente aos que rejeitavam o simples evange-
Iho de Cristo. Nao se destinava a conduzí-los ao arrependi- |
mentó, antes confirmava-os na incredulidade, com o que éles
tinham de assentir. Ésse fenómeno evocava expressoes do
desprézo déles votado á Igreja e as suas mensagens. A pro-
fecía, entretanto, destinava-se a reacender os ánimos e a
fortalecer a fé. Vs. 20-23.
Ainda para ilustrar essa inferioridade do dom de línguas,
Paulo figura uma reuniáo da Igreja, quando todos os miem-
bros a um só tempo falassem línguas. Suponha-se entáo
que um individuo entrasse pela primeira vez alí, sem co-
nhecer nada de cristianismo, ou alguém que se obstinasse
no erro, náo querendo aceitar a verdade. Qual seria a im-
pressao recebida? Náo haveria de pensar que entrara sem
o saber numa roda de doidos? Se o dom de línguas fósse o
mais importante que um crente pudesse exercer, s^undo o
parecer dos corintios, podia o seu exercício, por todos os
crentes, redundar em um desastre desta ordem? Por outro
lado, suponha-se que todos na reuniáo estivessem profeti-
zando, quando entrasse o incrédulo ou alguém que náo pos-
suísse qualquer dom. Qual o resultado? Todos o levariam a
convencer-se da verdade, todos Ihe esquadrinhariam os sen-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 131
timentos, os segredos de seu coragáo se revelariam, e ele cai-
ria sobre o seu rosto e adoraría a Deus, dizendo: "Na ver-
dade, o Senhor está no meio de vós".
Por conseguinte, o dom de profetizar é superior ao de
línguas, nao sómente porque, como já foi dito, edifica a
igreja e interessa a razáo, ao invés de só provocar emocoes,
mas também porque, como agora se acabou de ilustrar, pode
ser exercido com seguranga por toda a igreja, e por causa
de resultar na conversáo de incrédulos.
Aplicando estes principios as condigoes atuais, ninguém
se sentirá impulsionado a dése jar nem o dom de profetizar,
nem o de línguas, mas a procurar um conhecimento mais
nítido da relativa importancia das emocoes e do raciocinio
na vida e no servico cristáo. É possívei haver muito fervor
e excitamento religioso em alguns, nao em muitos, ajunta-
mentos de cristáos. A maioria das igrejas precisa orar fer-
ventemente por um novo movimento e nova orientagáo do
Espirito Santo, para que os que adoram a Deus conhecam
algo da paixáo, do gozo, do arrebatamento, da exultagáo, da
esperanga triunfante que comumente eram experimentados
pelos primitivos cristáos, até mesmo em Corinto.
Por outra parte, se os pecadores tém de ser conquistados
para Cristo, o apelo aprecisa ser feito nao só as emocoes,
como igualmente ao intelecto. Nada de desejar línguas que
ninguém entenda; nada de procurar revelagoes prof éticas
de verdades que nao se achem ñas Escrituras. O que deve
haver é uma solicitude persistente por novas visoes de Cristo
e de sua graga, e oragoes incessantes no sentido de o Espirito
Santo capacitar para o ministério evangélico homens de zélo
e paixáo apostólica, cujas mensagens sejam táo simples que
o menos douto as compreenda, todavía táo convincentes, táo
sábias, táo lógicas e táo inteligentes que ínter essem os mais
cultos e os mais bem informados.
b. Regras para o exercício dos Dons. Cap. 14:26-40.
26 Que pois fazer, irmáos? Quando vos reunís, um
tem salmo, outiro doutrina, éste traz revela^áo, aquéle
outra língua, e aínda outro interpreta^áo. Seja tudo
feito para edificacáo. 27 No caso de alguém falar em
132
CHARLES R. ERDMAN
outra lingua, que nao sejam mais do que dois ou quan-
do muito tres, e isto sucessivamente, e haja quem in-
terprete. 28 Mas, nao havendo intérprete, fique calado
na igreja, falando consigo mesmo e com Deus 29 Tra-
tando-se de profetas, falem apenas dois ou tres, e os
outros julguem. 30 Se, porém, vier revelagáo a outrem
que esteja assentado, cale-se o primeiro. 31 Porque
todos podereis profetizar, um após outro, para todos
aprenderem e serem consolados. 32 Os espíritos dos
profetas estáo su jeitos aos próprios profetas; 33 por-
que Deus nao é de confusáo; e, sim, de paz. Como em
todas as igrejas dos santos, 34 conservem-se as mulhe-
res caladas ñas igrejas, porque nao Ihes é permitido
falar; mas estejam submissas como também a lei o
determina. 35 Se, porém, querem aprender alguma
coisa, interroguem, em casa, a seus próprios maridos;
porque para a mulher é indecoroso falar na igreja. 36
Porventura a palavra de Deus se originou no meio de
vos, ou veio ela exclusivamente para vós? 37 Se alguém
se considera profeta, ou espiritual, reconhe?a ser
mandamento do Senhor o que vos escrevo. 38 E se
alguém o ignorar, será ignorado. 39 Portanto, meus
irmáos, procurai com zélo o dom de profetizar, e nao
proibais o falar em outras linguas. 40 Tudo, porém, se-
ja feito com decencia e ordem.
Paulo dá a entender que o principio que determina o va-
lor relativo do dom de profecía e o de linguas deve ser apli-
cado na justa avaliacáo de todos os outros. Trata-se do
principio ou regra da utilidade e da edificagáo. Os dons
mais apreciados devem ser justamente os mais úteis á Igreja
e ao próximo. A luz déste principio Paulo agora oferece
algumas instrugoes práticas relativas ao emprégo dos dons
espirituais no culto público. Refere-se de modo especial, pri-
meiro ao uso de linguas, vs. 26-28, depois ao exercício da pro-
fecía, vs. 29-36, para terminar mencionando a autoridade que
tem para dar essas normas reguladoras do exercício de todos
os dons, vs. 37-40.
Estas instrugoes especiáis sao necessárias á vista da pro-
fusáo de dons existentes na igreja de Corinto. Suas reunioes
podiam degenerar em desordem e confusáo, o que seria um
perigo. Quando reunidos, cada qual ficava ansioso por de-
sempenhar uma parte no culto. Éste queria entoar um
salmo de louvor, outro desejava pregar um sermáo, aquéle
procurava comunicar uma revelagáo, aqueloutro, em transe,
queria prorromper no palavrório de uma língua, e ainda outro
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
133
estava ansioso para nao perder urna oportunidade de inter-
pretar qualquer coisa. E todos queriam falar ao mesmo
tempo, inclusive as mulheres. Era urna desordem horrível.
Do pior da confusáo eram as línguas as responsáveis, e
isto porque vários membros, exuberantes de entusiasmo, que-
riam ser ouvidos a um tempo só. Paulo, pois, precisa repe-
tir-lhes a sua regra fundamental relativa ao emprégo de to-
dos os dons: "Seja tudo feito para edificacáo". Quanto ao
emprégo de línguas, determina que apenas tres pessoas, no
máximo, se facam ouvir em cada culto. Além disso, o que
se disser deverá ser explicado á congregacáo. E se nao houver
intérprete presente, guardem siléncio os capazes de falar em
línguas. Calados tenham sua própria comunháo com Deus.
Mesmo que se trate do superior dom de profetizar, se-
menté duas ou tres pessoas se facam ouvir em cada culto.
Se outros profetas estiverem presentes, provem sua inspira-
cao julgando, em siléncio, se o que se diz procede ou nao do
Espirito de Deus.
Se enquanto um está talando, algum outro, que nao se
espera que fale, recebe uma revelacáo, cale-se o primeiro,
porque se cada um der, assim, preferéncia a outro, todos
poderáo ser ouvidos e todos se beneficiaráo. Ninguém deve
alegar que está sendo impulsionado por Deus e que, por isso,
nao pode resistir ao desejo de profetizar. Éste dom de pro-
fecía está sempre sujeito á vontade do profeta. Se é o caso
de uma verdadeira inspiracáo que venha de Deus, o dom
será exercido discretamente e com amor fraternal; porque
os espíritos dos profetas sujeitam-se a éles. Mas, se aquela
segunda revelacáo vier de fato interromper a primeira, e se
ésse segundo profeta estiver mesmo inspirado por Deus, te-
remos uma confusáo causada pelo Espirito Santo, o que nao
se pode admitir, porque Deus nao é de confusáo senáo de paz.
Mulheres casadas nao devem exercer públicamente o
dom de profetizar. Paulo já teve ocasiáo de corrigir certas
anomalías com referéncía á maneira de vestir, e agora men-
ciona algurrias inconveniéncias, relativas ao dom da palavra,
que surgiram naquela igreja. E o ponto em que se baseia é o
mesmo anterior, a saber, o marido é o cabeca da familia,
e a mulher é dependente do marido. A autorídade de ensinar
na igreja e o exercício público da profecía cabiam aos ma-
134
CHARLES R. ERDMAN
ridos e nao ás mulheres. Estas nem deviam interromper o
culto sob o pretexto de fazer perguntas. Se quisessem per-
guntar alguma coisa que o fizessem em casa, a seus esposos.
Era improprio para mulheres casadas tomarem o lugar de
seus maridos no desempenho do oficio de profeta na igreja.
Paulo concluí insistindo com veeméncia na autoridade
de suas instrugoes. Se os corintios nao se quisessem submeter
a elas, por que motivo seria? pergunta. Por acaso se iulga-
vam os inventores do Cristianismo? Era a religiáo de Cristo
propriedade exclusiva déles? Nao era antes o Cristianismo
que tinha o direito de estabelecer suas próprias regras, suas
exigencias, como entendía que fósse de justica? Além do que,
acresceríta, a melhor pro va de que alguém é profeta ou de-
tentor de outros dons espirituais é o fato de reconhecer, como
mandamentos de Cristo, tudo quanto Paulo está escrevendo.
Se, entretanto, por motivo de ignorancia, vaidade e rivali-
dade, alguém deliberadamente rejeita as instrugoes ácima
ministradas, o apostólo recusa-se a discutir com ésse tal.
Assuma ele a responsabilidade e as consequéncias de sua
ignorancia. "Se alguém, porém, o ignora, ignore", fique
ignorante.
Quanto á questáo da relativa importancia das línguas
e da profecía, aquelas nao eram para ser preteridas ou des-
prezadas, embora se devesse desejar mais ardentemente a pro-
fecía. Mas, qualquer que fósse o caso, a grande regra dos
cultos na igreja é esta: "Tudo se ja feito com decencia e
ordem".
Admita-se que o dom de línguas haja cessado e que o de
profetizar tenha visto passar sua oportunidade, contudo as
instrugoes e ordens de Paulo a respeito déste assunto encer-
ram verdades de valor permanente. Por um lado há o pe-
rigo de que alguém, no desempenho de seu oficio pastoral,
deixe de procurar o desenvolvimento das aptidoes de pessoas
que podem ser multo úteis na igreja. Por outro lado, em-
bora ao culto público, por ésse motivo, falte maior entusiasmo
e emocáo, deve sempre ser governado pela razáo, caracte-
rizado pela decéncia, e dignificado pela ordem.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
135
J. A RESSURREigAO DOS MORTOS. Cap. 15.
A mentalidade dos filósofos gregos a simples idéia de
ressurreicáo do corpo afigurava-se grotesca e absurda. Quan-
(Jo Paulo, em Atenas, no discurso que alí proferiu, tocou néste
assunto, foi ridicuiarizado, e parece que em Corinto aconte-
ceu a mesma ccisa. Pelo menos havia na igreja desta última
cidade alguns que negavam a doutrina da ressurreicáo do
corpo. Quase que somos gratos por essa manifestacáo de
incredulidade, visto como deu ocasiáo a que Paulo escrevesse
o cap. que agora temos diante dos olhcs — uma das mais
brilhantes realizacoes suas, que ao mesm.o tempo é uma das
mais admiráveis obras-primas de literatura.
Lendo-se éste cap., dois ou tres fatos devem estar pre-
sentes á memoria. Primeiro: Paulo discute aqui a ressur-
reicáo do corpo e nao a imortalidade da alma. Éste último
fato é dado como admitido pelas Escrituras, e igualmente
por Paulo, néste capítulo. A ressurreicáo e a imortalidade
sáo fatos intimamente relacionados entre si. Se a primeira
é verdadeira, a segunda dispensa provas, sendo que nesta
dissertacáo de Paulo é dado como aceito que a ressurreicáo
do corpo implica a consciente e feliz imortalidade da alma.
Náo obstante, os dois fatos sáo distintos. Os gregos, em co-
mum com todos os povos e racas, criam que a alma estava
viva no além-túmulo, mas náo tinham idéia alguma de res-
surreicáo. É doutrina peculiar, exclusiva do Cristianismo
que a alma, separando-se do corpo, na morte, revestir-se-á
outra véz de um corpo imortal, que será sua nova habitacáo.
É uma crenca que absolutamente nada tem que ver corn a
crendice da transmigracáo das almas, ensinada por outras
religioes, nem com aquéles indecisos fantasmas do além-
-túmulo, em que os gregos acreditavam. Néste cap., Paulo
náo discute se a alma sobrevive ou náo á morte, mas trata
do retorno dos espíritos, que reanimaráo os corpos.
Em segundo lugar, convém lembrar que Paulo, aqui, trata
da ressurreicáo dos crentes e náo dos incrédulos. Como nosso
Senhor ensinou claramente, "todos os que se acham nos tú-
mulos ouviráo a sua voz e sairáo: os que tiverem feito o bem,
para a ressurreicáo da vida; e os que tiverem praticado o
mal, para a ressurreicáo do juizo". Ou como Paulo disse:
"Haverá ressurreicáo, tanto de justos como de injustos". Tem
136
CHARLES R. ERDMAN
sido objeto de discussao se as duas ressurreigóes seráo simul-
táneas ou nao. Mas Paulo aqui ocupa-se apenas com a res-
surreigáo dos que sao de Cristo "na sua vinda". Aliás é
éste o terceiro fato importante a considerar néste cap.: o
apostólo refere um acontecimento que ocorrerá na Segunda
Vinda, com a reaparicáo pessoal de Cristo. As Escrituras
silenciam completamente em tomo da experiencia ou si-
tuacáo dos fiéis entre a morte e a ressurreicáo. É difícil,
se nao impossível, fazer idéia de um espirito fora do corpo.
Todavía sabemos que estar "ausente do corpo" é estar "pre-
sente com o Senhor". Ainda somos assegurados que "deixar o
corpo" é "estar com Cristo, o que é incomparavelmente me-
Ihor". Entretanto ésse estado dos espirites fora do corpo
nao é final nem perfeito. Na vinda de Cristo as almas dos
fiéis seráo revestidas de um corpo imortal, á semelhanga do
corpo glorioso de Cristo ressuscitado e elevado aos céus, onde
está á direita do Pai. Esta doutrina, por conseguinte, difere
daquela segundo a qual as almas dormem desde a morte até
ao dia da ressurreicáo. Corrige igualmente uma outra con-
cepgáo que por ai existe, de que na morte as almas trocam
seus corpos mortais por outros imortais. Quando morrem,
os fiéis entram num estado de bem-aventuranga e ficam em
comunháo consciente com o seu Salvador. Todavía a gloria
désse estado será consumada ou aperfeicoada na vinda do
Senhor e com a ressurreigáo dos corpos.
Discorrendo sobre esta doutrina, Paulo se detém primeiro
a considerar o fato ou a realidade da ressurreigáo, vs. 1-34;
depois, trata do modo como se dará, ou seja a sua natureza,
vs. 35-58.
Como fundamento do fato, ele apresenta a ressurreicáo
de Cristo, vs. 1-11. Afirmando-a, mostra que ela torna ine-
gável o fato da ressurreigáo, vs. 12-19, assegura a ressurreigáo
dos crentes, vs. 20-28, e também produz seus efeitos práticos
na vida de todos éles, vs. 29-34.
Tratando do modo como se dará a ressurreigáo, primeiro
discute sua natureza, vs. 35-49, para depois discorrer sobre
a mudanga que se verificará nos vivos e nos mortos á vinda
de Cristo, vs. 50-58.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
137
1. A Rcalidade da Ressurreigao. Cap. 15:1-34.
a. A Ressurreigáo de Cristo. Cap. 15:1-11.
1 Irmáos, venho lem.brar-vos o evangelho que vos
anunciei, o qual recebestes e no qual ainda perseve-
ráis; 2 por ele também sois salvos, se retiverdes a pa-
lavra tal como vo-la préguei, a menos que tenhais
crido em váo. 3 Antes de tudo vos entregue! o que tam-
bém recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados,
segundo as Escrituras, 4 e que foi sepultado, e ressus-
citou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, 5 e apa-
receu a Cefas, e, depois, aos doze. 6 Depois foi visto
por mais de quinhentos irmáos de uma só vez, dos
quais a maioria sobrevive até agora, porém alguns já
dormem. 7 Depois foi visto por Tiago, mais tarde por
todos os apostólos, 8 e, afinal, depois de todos, foi visto
também por mim, como por um abortivo. 9 Porque eu
sou o menor dos apostólos, que mesmo nao sou digno
de ser chamado apostólo, pois perseguí a igreja de
Deus. 10 Mas, pela graga de Deus, sou o que sou; e a
sua graga, que me foi concedida, nao se tornou va, antes
trabalhei muito mais do que todos éles; todavía nao
eu, mas a graca de Deus comigo. 11 Portanto, seja eu,
ou sejam éles, assim pregamos e assim créstes.
Afirmando a doutrina da ressurreigáo dos mortos, Paulo
apoia toda a sua argumentagáo no fato indisputado da res-
surreigáo do Senhor. Tem de lembrar éste fato aos corintios,
fazendo-os ver sua relagáo com outras grandes verdades da
fé crista e especialmente com a da ressurreigáo dos corpos.
Estas verdades, declara ele, sao elementos essenciais do evan-
gelho que Ihes pregara e que por éles fóra recebido, evangelho
que ainda retém e do qual, se é evangelho genuino, depende
a salvagáo déles.
Entre éstes fatos salientam-se os seguintes, que foram
recebidos pelo apostólo, fósse por tradigáo oral, fósse por
meio de revelagáo: a morte de Cristo por nossos pecados, se-
gundo as Escrituras; seu sepultamento; sua ressurreigáo ao
terceiro dia, como predito ainda pelas Escrituras; e suas apa-
rigoes a testemunhas escolhidas.
Paulo sublinha o fato de haver Jesús morrido "por nossos
pecados", isto é, a favor déles, para expiá-los, a fim de que se
tornasse possível o seu perdáo e déles nos pudéssemos livrar.
Éstes fatos foram preditos pelas Escrituras, através da lin-
guagem figurada daquéles sacrificios e instituigoes, assim
138
CHARLES R. ERDMAN
como em salmo e em profecía. O fato da sepultura de Jesús
é mencionado de propósito, tanto para indicar a realidade
de sua morte, como para salientar que Éle ressurgiu real-
mente. Os leitores, déste modo, sao colocados diante do tú-
mulo vazio, fato que só pode ser explicado pela ressurreicáo.
Nao foi um desmaio aquilo que Jesús experimentou na cruz.
Foi verdadeira morte: "Cristo morreu". Se nao tornou, a
viver, se foi mentira ou ilusáo o seu levantamento dentre os
mortos, por que nao se achou seu corpo no túmulo onde fóra
sepultado?
"Ressuscitou ao terceiro dia", como fóra predito pela Es-
critura, e segundo o testificaram testemunhas competentes
e em número suficiente. Das aparicoes de Cristo redivivo a
essas testemunhas, o apóstolo menciona seis. Omite o nome
de María de Magdala e apresenta em primeiro lugar Pedro,
visto ser éste mais largamente conhecido e de modo especial
em Corinto. A Pedro que o negara, a Pedro antes que aos
outros, a Pedro sózinho apareceu Cristo ressurto. Nao se
sabe o que Ihe disse Jesús nessa ocasiáo, nem o tempo e
nem o lugar dessa aparigáo. Um silencio sagrado envolve
éste episodio. Deve entretanto Ihe ter f ala do Jesús palavras
de perdáo. Néste caso, tal experiencia concorreu mais para
transformá-lo de Simáo em Pedro, o homem rijo como
''pedra", do que todos aquéles anos que antes levara na com-
panhia de seu Salvador. Pelo menos é o que se infere do fato
de ser aqui chamado ''Cefas", o nome prof ético recebido
de Cristo.
Em seguida Paulo menciona "os doze", reunidos no ce-
náculo, Tomé ausente. Foi quando Jesús comeu com os dis-
cípulos, assegurando-lhes que nao estavam diante de um es-
pirito desencarnado, senáo perante um corpo que realmente
ressurgira dos mortos.
"Depois foi visto por mais de quinhentos irmáos de uma
só véz", em um monte da Galiléia, naquéle encontró que,
antes de morrer, prometerá ter com os discípulos no referido
local. E foi alí que éles receberam a grande comissáo de
fazer discípulos de todas as nacoes.
Um homem do tipo de Pedro admite-se que podía ser
vi tima de um sonho ou ilusáo, julgando-se na presenta de
Jesús ressuscitado. É muito menos possível que os Doze se
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
139
enganassem. E quando "mais de quinhentos" homens apre-
sentam seu testemunho unánime sobre éste fato, entáo nao
há mais alimentar dúvida razoável sobre o mesmo.
"Depois foi visto por Tiago", o próprio irmáo de Jesús,
que antes nao cria nÉle, e cujo testemunho, por esta razáo,
é tanto m.ais valioso. A posicáo de lideranca que veio a
ocupar na igreja de Jerusalém paténtela o poder transforma-
dor da confianca em um Cristo redivivo.
"Mais tarde por todos os apostólos" foi visto Jesús, es-
tando Tomé presente — o discípulo duvidador, patrono de
todos os cépticos, cuja obstinacáo em duvidar tem sido sanada
pela visao de Cristo ressurto, na presenca de quem fazem eco
as palavras désse apostólo: "Senhor meu e Deus meu".
"Depois de todos", escreve Paulo, "foi visto também por
mim". Isto se deu quando se dirigía a Damasco. Essa apa-
ricáo, corporal como todas as outras, táo de súbito trans-
mudou o Saulo perseguidor em Paulo que ele se compara a
"um abortivo". É que contrasta seu caso com os dos outros,
pois estes foram gradual e normalmente se desenvolvendo,
do estado de simples discípulos até chegarem á madureza do
apostolado, á perfeita condicáo de mensageiros de Cristo.
Rememorando seu passado de perseguidor da Igreja,
Paulo declara-se "o menor dos apostólos", "indigno de ser
chamado apostólo". Todavía está presente á sua lembranca
que, pela graca divina, seus labores apostólicos ultrapassa-
ram os de todos os colegas. Nao é menos decisivo aqui seu
testemunho a favor da ressurreicáo de Cristo. É de fato o
mais eloquente de todos os testemunhos, pelos dois motivos
que apresenta: Primeiro, fóra perseguidor da Igreja. Como
explicar, razoavelmente, o fato público e notorio de comecar,
de repente, a pregar ésse evangelho que combateu, e a es-
tender a Igreja que antes procurara exterminar? Segundo:
como explicar que o perseguidor ultrapassasse todos os ou-
tros em fervor apostólico e no éxito dos trabalhos? Só existe
uma explicacáo: a visao que teve do Senhor redivivo.
O testemunho produzido com referéncia á ressurreicáo
de Cristo é absolutamente unánime. "Portante, seja eu, ou
sejam éles, assim pregamos e assim créstes". Nenhum fato
podia ser mais bem atestado nem mais razoavelmente crido.
Pois é tal o fato da ressurreicáo — está no fundamento, na
140 CHARLES R. ERDMAN
base do evangelho pregado pelos apostólos e crido sempre
pela Igreja Crista.
b. O despropósito de se recusar a Ressurreigáo. Cap.
15:12-19.
12 Ora, se é corrente prégar-se que Cristo ressus-
citou dentre os mortos, como, pois, afirmam alguns
dentre vós que nao há ressurreigáo de mortos? 13 E,
se nao há ressurreicáo de mortos, entáo Cristo náo
ressuscitou. 14 E, se Cristo náo ressuscitou, é va a
nossa prégagáo e vá a vossa fé; 15 e somos tidos por
falsas testemunhas de Deus, porque temos asseverado
contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, ao qual ele
náo ressuscitou, se é certo que os mortos náo ressusci-
tam. 16 Porque, se os mortos náo ressuscitam, tam-
bém Cristo náo ressuscitou. 17 E, se Cristo náo ressus-
citou, é vá a vossa fé, e ainda permanecéis nos vossos
pecados. 18 E ainda mais: os que dormiram em Cristo,
pereceram. 19 Se a nossa esperanza em Cristo se li-
mita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de
todos os homens.
Nao é certo que algum dos cristáos corintios negasse a
ressurreigáo de Cristo, mas o acervo de provas dessa dou-
trina, apresentadas aqui por Paulo, dá a entender que se
fazia necessário um reforgo da mesma. Entretanto, havia
alguns entre éles que negavam a ressurreicáo dos crentes.
Ora, se negavam isto, recusavam na verdade a idéia de qual-
quer ressurreigáo. E por isso, quando o apostólo demonstra
que a ressurreigáo de Cristo foi uma realidade, mostra ao
mesmo tempo que é impossível crer néste fato e asseverar
por outro lado que náo há ressurreigáo, porque "se náo há
ressurreigáo de mortos, entáo Cristo náo ressuscitou". E
mais: negar a ressurreigáo de Cristo será declarar mentiroso
o testemunho dos apostólos a respeito désse fato. E náo só
isto como será também desabonar o inteiro sistema da fé
cristá.
Pormenorizando as consequéncias dessa negagáo, Paulo
declara (1) que ela invalida a mensagem do evangelho, "a
nossa prégagáo", que néste caso fica vazia, sem conteúdo,
visto como a ressurreigáo de Cristo é a própria substancia
das Boas Novas. Sem conteúdo, toma-se ''falsa". Depois (2)
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 141
a fé crista apresentar-se-ia engañosa, "va", sem substancia;
edificada sobre o alegado fato da ressurreicáo de Cristo, ca-
recería de alicerce em que se apoiasse, serla minada em
sua base.
Consequentemente, (3) ficaria provado que os apostólos
eram "falsas testemunhas" e da pior espécie, porque esta-
riam apresentando um testemunho aleivoso acerca de Deus
e, por isso, contra Ele — a mais horrível forma de impostura
— visto como Paulo atribula ao poder de Deus a ressurreicáo
de Cristo. E nao só isto, como também (4) a nossa fé seria
"va", nao sómente no sentido de carecer de conteúdo, como
no de ser fútil, ineficaz. Se a ressurreicáo de Cristo fósse
irreal, também os efeitos que Ihe sáo atribuidos náo existi-
riam. Os crentes náo estariam salvos. Falando mais claro
(5) , ainda estariam nos seus pecados, porque, se Cristo náo
ressuscitou, é, néste caso, um Cristo que foi e permanece
condenado; náo é um Cristo justificado, e por certo que náo
pode garantir a justificacáo dos crentes. Seguir-se-ia, entáo
(6) que os que morreram "pereceram". Dormiram confiando
em Cristo e certos de uma feliz imortalidade, mas acordaram
daí para sentir-se perdidos, sob a condenacáo de Deus.
Por fim (7), com referencia aos crentes ainda vivos, se
com todos os seus sacrificios e privacoes o que éles possuem
nesta vida é apenas uma esperanca depositada em Cristo,
mas esperanca sómente e nada mais, esperanca que nunca
há de ver realizado o que espera, falsa esperanga de uma sal-
vacáo presente e de uma gloria futura — sáo tais crentes, de
todos os homens, os mais dignos de lástima.
Vé-se, pois, que a ressurreicáo dos mortos náo é mero
sonho, nem é para ser recusada esta doutrina assim leviana-
mente. Se náo a aceitamos, teremos de recusar com ela a
ressurreicáo de Cristo e a salvagáo que ela nos garante: ruirá
por térra todo o sistema da fé cristá. Mas, recolocando no
seu lugar o alicerce désse sistema, cuja remocáo Paulo fi-
gurou por um momento, toma o apostólo a levantar sobre
ele a majestosa estrutura da fé, que se eleva as alturas, pe-
netrando ñas nuvens da bem-aventuranca infinita e eterna
que ela tem reservada para os crentes e para todo o uni-
verso de Deus.
142
CHARLES R. ERDMAN
c. Garantida a Ressurreigáo dos Crentes. Cap. 15:20-28.
20 Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos,
sendo ele as primicias dos que dormem. 21 Visto que
a morte veio por um homem, também por um homem
veio a ressurreicáo dos mortos. 22 Porque assim como
em Adáo todos morrem, assim também todos seráo vi-
vificados em Cristo. 23 Cada um, porém, por sua pró-
pria ordem: Cristo, as primicias; depois os que sao de
Cristo, na sua vinda. 24 E entáo virá o fim, quando ele
entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destrui-
do todo dominio, bem como toda autoridade e poder.
25Porque convém que ele reine até que haja posto todos
os inimigos debaixo dos seus pés. 26 O último inimigo
a ser destruido é a morte. 27 Porque todas as coisas su-
jeitou debaixo dos seus pés. E quando diz que todas as
coisas Ihe estáo sujeitas, certamente exclui aquéle que
tudo Ihe subordinou. 28 Quando, porém, todas as coisas
Ihe estiverem sujeitas, entáo o próprio Filho também
se sujeitará aquéle que todas as coisas Ihe sujeitou,
para que Deus seja tudo em todos.
É com urna nota de triunfo que o apostólo passa ao lado
positivo de sua argumentagáo. Em contraste com a suposi-
cáo tremenda do que seria se nao houvera ressurreicáo, ele
agora firma as benditas consequéncias da ressurreigáo de
Cristo. É que ela garante a ressurreigáo dos crentes e o cum-
primento de todo o propósito redentor de Deus.
Cristo é ai declarado "as primicias dos que dormem". Os
primeiros graos amadurecidos ou o primeiro feixe de espigas
— as primicias — que se apresentava a Deus pela páscoa, era
o penhor e uma amostra da colheita que se avizinhava,
Assim, Cristo ressuscitado foi apenas o primeiro de uma enor-
me multidáo que se há de levantar dentre os mortos. Sua
ressurreigáo vale por uma promessa divina de que os crentes
ressurgiráo também, e dessa ressurreicáo é ela o exemplo.
Diz Paulo que "dormem" os crentes que morreram. É alusác
ao sonó do corpo na morte. A alma náo dorme, mas perma-
nece em comunháo consciente com Cristo. O apostólo, aqui,
está tratando é da ressurreicáo do corpo. Esta se verificará
pelo poder de Cristo e em virtude da reiagáo dos crentes com
Éle. Do mesmo modo como estáo sujeitos á morte todos
quantos procedem de Adáo, assim quantos pela fé estáo uni-
dos a Cristo recebem a garantía de se libertar do poder dessa
mesma morte. Esta náo é apresentada aqui pelo apostólo
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
143
como de necessidade para os seres finitos que somos, senáo
como uma calamidade que o homem atraiu sobre si, da qual
precisa livrar-se, e isto pelo poder da vitória de Cristo em
sua ressurreigáo.
"A sequéncia estabelecida por Deus é esta: Primeiro, a
ressurreicáo de Cristo, tipo e penhor de nossa ressurreigáo;
depois, a ressurreigáo dos que o seguem, e isto na sua vinda.
Após virá o fim, quando Éle apresentará ao Pai o reino con-
sumado". Dizendo Paulo "cada um por sua ordem", empre-
ga uma enérgica expressáo militar. Cada soldado marcha
em seu próprio regimentó, indo á frente o grande Coman-
dante; passa a gloriosa companhia de seus seguidores e, por
fim, o restante dos mortos.
"Entáo virá o fim", nao simultáneamente com a apa-
rigáo de Cristo, mas em seguimento a esta. "Logp mais vem
o fim". Será o tempo em que Éle entregará "o reino ao Deus
e Pai, quando houver destruido todo dominio, bem como
toda autoridade e poder". "No intervalo entre a Segunda
Vinda e o fim" o Reino de Cristo será consumado. "Devemos,
pois, considerar sob o reinado de Cristo tudo quanto ocorrer
desde sua aparigáo até á época chamada fim. Haverá tam-
bém uma sequéncia na ressurreigáo dos mortos. . . (1) Cris-
to, as primicias; (2) os crentes em Cristo na sua vinda; (3)
todo o resto da humanidade no fim, quando ocorrerá o juízo
final".
O reinado de Cristo consumar-se-á, chegará á sua pleni-
tude, na ressurreigáo dos mortos. "O último inimigo a ser
destruido é a morte". Apresentou-se a morte, antes, como
servente dos fiéis, cap. 3:22; agora como inimiga. Ela é uma
e outra coisa. A morte afasta a cortina e leva a alma á pre-
senga do Senhor. Entretanto é inimiga, porque seu triunfo
sobre os nossos corpos dá lugar a angústias, a separagoes, a
lágrimas. Na ressurreigáo, porém, "quando éste corpo cor-
ruptível se revestir de incorruptibilidade", há de com certeza
a morte ser "tragada pela vitória". A ressurreicáo destruí-la-á.
A entrega do Reino a Deus e a sujeigáo do Filho ao Pai
náo significam, de modo nenhum, que Cristo deixará de
reinar, ou que náo é divino. "A sujeigáo de que se trata é
apenas aquela que sua condigáo de Filho implica. Náo sig-
nifica inferioridade de natureza, nem abdicagáo de autori-
144
CHARLES R. ERDMAN
dade. É antes a livre submissáo do amor, esséncia do espi-
rito filial".
A morte de Cristo, como sua ressurreiQáo e seu reinado,
tudo isto está nos planos divinos para que o propósito re-
dentor do Pai chegue a ser consumado, em virtude do qual
somos levados á comunháo com Ele que em toda parte está
presente, cuja vontade é suprema em todo o tempo, Éle o
Deus que é "tudo em todas as coisas".
d. A doutrina na prática. Cap. 15:29-34.
29 Doutra maneira, que faráo os que se batizam
por causa dos morios? Se absolutamente os mortos
nao ressuscitam, por que se batizam por causa déles?
30 £ por que também nós nos expomos a perigos a
toda hora? 31 Día após día morro! Eu o protesto, ir-
máos, pela gloria que tenho em vós outros, em Cristo
Jesús nosso Senhor. 32 Se, como homem, lutei em
Éfeso com feras, que me aproveita isso? Se os mor-
tos nao ressuscitam, comamos e bebamos, que amanhá
morreremos. 33 Nao vos engañéis: as más conversa-
qoes corrompem os bons costumes. 34 Tornai-vos á so-
briedade, como é justo, e nao pequéis; porque alguns
ainda nao tém conhecimento de Deus; isto digo para
vergonha vossa.
Uma vez firmada a doutrina da ressurreigáo, Paulo agora
se detém um pouco para aplicá-la aos leitores, lembrando-
-Ihes que essa doutrina está vinculada as suas mais sagradas
esperanzas. Outra vez adota o método de indicar o que é
que se perde recusando-se a ressurreigáo. As aplicagoes prá-
ticas desta verdade podem ser mencionadas como segué: (1)
O batismo pelos mortos tem sua razáo de ser; (2) o sacrificio
feito no trabalho evangélico nao é perdido; (3) o sensualis-
mo é fruto da falta de bom-senso; (4) é perigoso conviver
com os que duvidam dessa doutrina.
Com referencia ao batismo pelos, ou por causa dos mortos
há enorme diversidade de opinioes. Muito difícilmente que-
rerá dizer batismo vicário, de alguém que confessasse o nome
de Cristo visando com isso salvar um amigo que morrera
incrédulo. Nem se trata de batismo que alguém aceitasse em
lugar de um crente que morresse sem éste sacramento. Nao
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
145
há prova alguma de que tais práticas fóssem correntes nos
dias de Paulo. A interpretagáo mais provável é a seguinte:
quando pessoas descrentes viam morrer entes queridos, na
sua grande dor e desolagáo voltavam-se para Cristo, levadas
pela esperanga de se encontraren! de novo com os seus ama^
dos na bem-aventuranga da ressurreicáo. E, de fato, nao
Ihes seria frustrada essa expectativa. O batismo de tais
pessoas, que antes de tudo era motivado por urna forte afeigáo
humana, nao deixava de ser uma prova comovente de fé na
vida futura, vida que é inseparável da ressurreigáo.
A vista dessa bendita certeza nao era de estranhar que
os obreiros cristáos se expusessem continuamente a perigos
e morte. Era o caso de Paulo. Dia após dias a ameaga de
morte pairava sobre éle, tantos eram os perigos e dificul-
dades que o rodeavam. Se nao houvesse recompensas futu-
ras, nem uma feliz imortalidade, por que, do ponto de vista
himiano, tinha éle lutado "em Éfeso com feras"? É muito
improvável que lá o houvessem langado á arena; o mais certo
é que fóra compelido a contender com individuos ferozes e
sanguissedentos. Onde estarla a recompensa de tamanha
luta, se a ressurreigáo fósse um sonho ilusorio? Se o fósse,
haveria razáo para se adotar a estúpida filosofía do sen-
sualismo: "Comamos e bebamos, que amanhá morreremos".
Era comum ouvir dizer isto em Corinto, e ainda hoje é má-
xima corren te: "Da vida nada se leva", logo — concluem
gozemo-la quanto possível. A luz da imortalidade e da glo-
ria vindoura é patente a insensatez dessa filosofía.
Muitos corintios parece que se deixaram influenciar por
essas idéias epicuristas, devido á sua convivencia com pagáos.
Porisso é que Paulo adverte os leitores contra o perigo de
associarem-se aqueles que punham em dúvida as verdades
essenciais do Cristianismo, como por exemplo a ressurreigáo.
"As más conversagoes corrompem os bons costumes", diz o
apostólo, citando, ao que parece, um provérbio corrente na-
quela época. Como que diz: "Despertai do torpor que a ne-
gagáo desta verdade há produzido. Nao vos deixeis levar
pelas más influéncias daquéles que tém posto em dúvida
esta doutrina. A sabedoria enfatuada dos tais nao passa de
ignoráncia: "ainda nao tém conhecimento de Deus". O
apostólo quis, dessarte, lancar-lhes em rosto a vergonha do
procedimento de alguns déles que ousavam duvidar de táo
importante verdade. E déste modo realga que é essencial
146
CHARLES R. ERDMAN
crer na ressurreigáo. É bom, portante, advertir que a fé de-
termina a conduta. Os que desejam conservar-se de todo
cientes e compenetrados de Deus precisam firmar-se ñas
verdades que Éle nos tem revelado.
2. A Natureza da Ressurreigáo. Cap 15:35-58.
a. Como seráo os corpos redivivos. Cap. 15:35-49.
35 Mas algruém dirá: Como ressuscitam os mortos?
e em que forma de corpo vém? 36 Insensato! o que
semeias nao nasce, se primeiro nao morrer; 37 e
quando semeias, nao semeias o corpo que há de ser,
mas o simples grao, como de trigo, ou de qualquer ou-
tra sementé. 38 Mas Deus Ihe dá corpo como Ihe
aprouve dar, e a cada uma das sementes o seu corpo
apropriado. 39 Nem toda carne é a mesma; porém uma
é a carne dos homens, outra a dos animáis, outra a
das aves e outra a dos peixes. 40 Também há corpos
celestiais e corpos terrestres; e, sem dúvida, uma é a
gloria dos celestiais e outra a dos terrestres. 41 üma
é a gloria do sol, outra a gloria da lúa, e outra a das
esírélas; porque até entre estréla e estréla há dif éren-
las de esplendor. 42 Pois assim também é a ressurrei-
Qáo dos mortos. Semeia-se o corpo na corrupgáo, res-
suscita na incorrup^áo. Semeia-se em desonra, ressus-
cita em gloria. 43 Semeia-se em fraqueza, ressuscita
em poder. 44 Semeia-se corpo natural, ressuscita cor-
po espiritual. Se há corpo natural, há também corpo
espiritual. 45 Pois assim está escrito: O primeiro ho-
mem, Adáo, foi feito ser vivente. O último Adáo, po-
rém, é espirito vivificante. 46 Mas nao é primeiro o
espiritual, e, sim, o natural; depois o espiritual. 47 O
primeiro homem, formado da térra, é terreno; o se-
gundo homem é do céu. 48 Como foi o primeiro ho-
mem, o terreno, tais sao também os demais homens
terrenos; e como é o homem celestial, tais também os
celestiais. 49 E, assim como trouxemos a imagem do
que é terreno, devemos trazer também a imagem do
celestial.
Paulo já afirmou a certeza da ressurreicáo. Agora passa
a considerar a sua natureza ou a maneira como se efetuará.
Primeiro trata do caráter ou constituigáo dos corpos na
ressurreigáo; depois considera a mudanga que se operará nos
corpos dos vivos e dos mortos, na vinda de Cristo.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 147
Abre a discussáo com duas perguntas que talvez fóssem
formuladas pelos que recusavam a dou trina, ou possivel
por algumas pessoas sinceras que desejavam esciar eciinento
a respeito do assunto: "Como ressuscitam os mortos? e em
que forma de corpo vém?" A primeira pergunta sugere que
a ressurreicáo é impossível; a segunda, que é inconcebível.
O apostólo responde ao inquiridor chamando-o "insensato"
ou irrefletido. Bastava que desejasse usar seu raciocinio para
encontrar resposta até nos campos de lavoura. Cada sementé
primeiro morre, deixa de ser o que é, para tornar-se planta,
adquirindo assim uma forma mais elevada de existencia. É
verdade que as sementes nao morrem assim literalmente
como os corpos, mas deixam de existir como sementes para
assumirem a forma de planta ou árvore frutífera.
Esta analogía nao prova a ressurreicáo. O que faz é
responder á dificuldade proposta, mostrando o processo pelo
qual Deus realiza o que parece impossível, fazendo, que con-
forme as leis por Éle estabelecidas, a mesma vida surja sob
outro aspecto mais glorioso.
Adiante Paulo mostra a grande variedade de formas sob
as quais se manifesta a vida animal. Declara que existe
igualmente grande diferenca entre os corpos dos celícolas e
dos que habitam na térra, assim. como difere o esplendor
solar do brilho da lúa e das estrélas. Deus, portanto, é capaz
de prover aquela forma de corpo que se adapte as necessi-
dades da alma imortal.
O apostólo nao tenta descrever a natureza íntima de
um corpo ressurto, mas do que éle diz aqui e do que se segué
evidencia-se (1) que existe uma diferenca entre o corpo que
ressurge e aquéle que morreu e foi sepultado. Nao há nada
que indique se ja o corpo redivivo composto das mesmas par-
tículas materiais do que morreu. O que Paulo ensina é exa-
tamente o contrario. Há de ser muito mais glorioso. O corpo
natural está su jeito a ruina, a perder a graga, a enfraque-
cer-se, enquanto o corpo ressurto estará livre de todas estas
limitacoes e imperfeigoes, será corpo glorioso, perfeitamente
adequado as necessidades do espirito glorificado, assim como
o corpo mortal foi feito de modo a servir as necessidades da
vida presente.
O semear na "corrup^áo. . . em desonra. . . em fraque-
za" nao se refere ao sepultamento. A presente vida é já a
148
CHARLES R. ERDMAN
época da sementeira; o corpo mortal de onde, após a morte,
vai surgir outro diferente, já se acha em ponto de germinar.
(2) O corpo redivivo, portanto, ainda que diferente do que
morreu, será idéntico a éle. Nao diz o apostólo como ou até
onde será preservada a identidade. Talvez haja disso urna
analogía na identidade que há entre o corpo de um menino e
éste mesmo corpo quando na idade adulta. Cada partícula ou
molécula foi substituida por outras e, nao obstante, o corpo é
o mesmo. Assim é com os corpos na ressurreigáo: "diferentes
e todavía os mesmos, ai está um dos paradoxos da fé crista".
Ver-se-á que os corpos gloriosos retrataráo os corpos mortais,
conservando-lhes as respectivas características pelas quais se
reconheceráo. Ainda que perfeitos e imortais, a natureza
déles corresponderá, de alguma forma, á dos corpos corruptí-
veis e fracos, do primitivo estado. Paulo nao trata de nova
criacáo, mas de ressurreigáo, renascimento, reaparigáo.
(3) Os corpos na ressurreigáo seráo produzidos pelo poder
de Cristo e háo de trazer estampada em si a imagem do Sal-
vador. Nao seráo corpos mortais reconstruidos, nem serao o
desenvolvimento de um germe indestrutível que os "corpos
naturais" ora contenham em si; nem seráo o produto de uma
fórga natural que presentemente resida no corpo humano,
nem ainda seráo um etéreo "corpo astral" que atualmente ha-
bite no corpo natural. Nada disto. Os corpos na ressurreigáo
seráo produto do poder divino, uma reprodugáo dos corpos
que foram sepultados; déles possuimos um modélo ou exem-
plar no corpo de Cristo ressurto e glorificado.
O primeiro Adáo, por um ato criador de Deus, tornou-se
"ser vívente"; o último Adáo, Jesús Cristo, em virtude de sua
ressurreigáo, tornou-se "espirito vivificante". É esta ordem a
que também aquí se observa: primeiro, como descendentes de
Adáo, fomos feitos, á sua semelhanga, seres viventes que habi-
tamos corpos mortais e trazemos a imagem de nosso pai ter-
restre; mas, como seguidores de Cristo, havemos ainda de ser
revestidos de corpos imortais e traremos estampada em nosso
ser a imagem de nosso Senhor celestial.
b. A Transformasao dos Morios e dos Vivos. Cap.
15:50-58.
50 Isto afirmo, irmáos, que carne e sangue nao
podem herdar o reino de Deus, nem a corrup§áo her-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 149
dar a incorrup?áo. 51Eis que vos digo um mistério:
Nem todos dormiremos, mas transformados seremos-
todos, 52 num momento, num abrir e fechar dos olhos,
ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os
mortos ressascitaráo incorruptíveis, e nós seremos
transformados. 53 Porque é necessário que éste corpo
corruptível se revista da incorruptibilidade, e que o
corpo mortal se revista da imortalidade. 54 E, quando
éste corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade,
e o que é mortal se revestir de imortalidade, entáo se
cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a
morte pela vitória. 55 Onde está, ó morte, a tua vitó-
ría? onde está, ó morte, o teu aguiiháo? 56 O aguilháo
da morte é o pecado, e a fórca do pecado é a lei. 57
Gracas a Deus que nos dá a vitória por intermédio de
nosso Senhor Jesús Cristo. 58 Portanto, meus amados
irmáos, sede firmes, inabaláveis, e sempre abundantes
na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso tra-
balho nao é váo.
Tratando da ressurreicáo dos fiéis, Paulo discute um
acontecimento que ocorrerá, nao por ocasiáo da morte, mas na
vinda de Cristo. Resta, pois, uma pergunta a responder:
Quando Cristo voltar, qual será a sorte dos que estiverem
vivos? Precisaráo morrer, para que possam partilhar da bem-
-aventuranca dos que ressuscitarem?
Os corpos dos que estiverem vivos nessa ocasiáo certa-
mente seráo transformados. Asseverando isto o apostólo co-
meca novo parágrafo: "Carne e sangue nao podem herdar o
reino de Deus", isto é, o corpo humano, cuja substancia é
carne e cujo elemento vivificante é o sangue, nao é adap-
tável ao futuro estado, nao convirá ao mundo celeste. E
acrescenta: "Nem a corrupcáo pode herdar a incorrupcáo".
Um cadáver, certamente, nao pode ser lugar de habitacáo para
para uma alma imortal. Destarte, para se adaptar á gloria
futura é mister que o corpo sofra uma transformacáo, trata-se
de vivos ou de mortos.
Relativamente á transformacáo dos vivos, Paulo decla-
ra que tem uma revelacáo. "Eis que vos digo um mistério".
Mistérfo, entretanto, na linguagem do apostólo náo quer
dizer algo oculto, mas aquilo culo conhecimento esteve antes
vedado mas agora está revelado. "Nem todos dormiremos".
Os crentes todos náo váo morrer. Alguns estaráo vivos quan-
do Cristo vier. Seus corpos seráo transformados. A mudanga
será instantánea, como o movimento das pálpebras. Será
150
CHARLES R. ERDMAN
anunciada pelo som da "última trombeta". Naturalmente o
apostólo nao quer se referir a urna trombeta de verdade, nern
as trombetas apocalípticas. Nao há quem possa saber em que
consistirá éste sinal divino. Na Primeira Carta aos Tessa-
lonicenses apresenta-se associado á *'voz do arcanjo": "Por-
quanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida
a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos
céus, e os mortos em Cristo ressuscitaráo primeiro; depois
nós, os vivos os que ñcarmos, seremos arrebatados junta-
mente com éles, entre nuvens, para o encontró do Senhor
nos ares".
Torna o apostólo a afirmar a necessidade desta transfor-
magáo dos vivos e dos mortos, declarando cimiprir-se na
mesma a profecía bíblica referente ao livramento final, triun-
fante do povo de Deus: "porque é necessário que éste corpo
corruptível [o corpo que está morto] se revista da incorrupti-
bilidade, e que o corpo mortal [o corpo vivo] se revista da
imortalidade". "Entáo se cumprirá a palavra que está escrita:
Tragada foi a morte pela vitória". Entáo, mas nao agora,
falaremos em vitória que o será de fato. Durante certo
tempo, por ora, a morte vai alcangando seus triunfos. Nao
adianta negá-lo. A morte é uma realidade e é inimiga; vence
e destroi. Sua vitória, no entanto, é passageira, durante certo
tempo. Quando Cristo vier, ao ressurgirem os mortos e se
transformar em os vivos, entáo, em toda a realidade, a morte
será tragada pela vitória.
"O aguilháo (ferráo) da morte é o pecado". É o pecado
que faz amarga a morte, que Ihe empresta o caráter de pena-
lidade ou castigo. É o pecado que a torna dolorosa, uma
verdadeira desgrana. "A fórca do pecado é a lei", porque esta
é que Ihe dá a fórga que tem. Sempre foi da experiencia
humana que as exigéncias da lei e suas ameagas apenas exas-
peram e arrastam a alma para deslises cada véz mais graves.
Por meio de Cristo, Deus livra o crente destas duas fórgas
adversárias, removendo de seu coragáo o sentimento de culpa
e o pavor do juízo. Por seu Espirito concede-lhe o poder de
realizar o que a lei exige. Aliás, éste livramento já agora nos
é concedido; mas, quando formos livres de todas aquelas
preocupagoes pesadas, das perdas, dos pesares que a morte
tem ocasionado; quando conhecermos a legítima liberdade
dos filhos de Deus e acharmos na retidáo continuo prazer, e
isto no lar celestial de nosso Pai, entáo com alegría mais pura
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS COPwINTIOS
151
uniremos nossa voz ao coro universal — "Gragas a Deus
que nos dá a vitória".
Colocando, assim, os leitores diante da visáo da gloria
inefável que os aguarda, como revelada néste capítulo, nao
admira que o apestólo ponha o ponto final nesta preciosa
dissertacáo fazendo-lhes uma exortacáo prática: "Portanto,
meus amados irmáos, sede firmes, inabaláveis, e sempre
abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o
vosso trabalho nao é váo".
III. CONCLUSÁO Cap. 16
A. A Coleta em Favor dos Pobres de Jerusalém. Cap.
16:1-4.
1 Quanto á coleta para os santos, fazei vos tam-
bém como ordenei as igrejas da Galácia. 2 No primeiro
día da semana cada um de vós ponha de parte, em
casa, conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para
que se nao fagam coletas quando eu fór. 3 E, quando
tiver chegado, enviarei, com cartas, para levarem as
vossas dádivas a Jerusalém, aqueles que aprovardes. 4
4 Se convier que eu também vá, éles iráo comigo.
Nao vale a pena discutir se as instrucóes dadas, aquí,
com referencia as ofertas para os cristáos pobres de Jerusa-
lém devem ser consideradas como décimo-primeiro e último
tópico desta epístola, ou se constituem o primeiro parágrafo
de seu capítulo final. A mente do apostólo, pelo menos, essa
coleta se apresentava como da maior importancia, nao sendo
difícil descobrir a razáo do seu profundo interesse no caso.
Antes de tudo, a simpatía crista levava-o a procurar alivio
para seus irmáos e companheiros, particularmente por se
tratar de patricios seus. Aliás, no Concilio de Jerusalém, ao
aceitar o encargo de evangelizar o mundo gentílico, prome-
terá lembrar-se daquéles crentes pobres. Seu principal mo-
tivo, pcrém, era o desejo de congracar os dois elementos da
Igreja, gentíos e judeus, por ésse ato de caridade que, para
estes últimos, seria expressáo da simpatía dos cristáos gentíos
por éles, bem como sinal da genuinídade de sua fé.
152
CHARLES R. ERDMAN
É fácil também saber por que havia tantos pobres entre
os cristáos de Jerusalém. A única razáo nao foi, como alguns
tém dito, aquéle ensaio pouco prudente de comunismo cristáo
a que éles se aventuraram. A comunidade de bens fora só
temporária, ocasional e voluntária. A causa mais provável
e constante fóra a perseguicáo e o ostracismo social sofridos
pelos cristáos em Jerusalém da parte de seus concidadáos.
A prosperidade económica daquela cidade dependía em larga
escala dos ritos e cerimonias do Judaismo. É claro, pois, que
os convertidos ao Cristianismo só podiam encontrar alí di-
ficuldades para arranjar trabalho que Ihes garantisse a sub-
sistencia. De qualquer modo, as aperturas daquéles cristáos
eram bem grandes. Para socorré-los Paulo envidou esforgos,
procurando angariar ofertas em todas as igrejas que havia
fundado.
Tratou-se do caso com os corintios, mas pouco fizeram.
Porisso é que Paulo Ihes repete agora as instrugoes que, a
respeito, dera as igrejas da Galácia. Tais instrucoes, de gran-
díssimo valor para as igrejas de hoje, encerram a maior parte
das regras necessárias ao exercício da beneficencia crista e
á administracáo das finanzas da Igreja.
(1) As ofertas seráo feitas por cada membro da congre-
gagáo. ''Cada um de vós ponha de parte, em casa". Ricos e
pobres, velhos e mogos, todos devem entrar com sua parte
neste servigo.
(2) As ofertas seráo sistemáticas. Cada um deverá con-
tribuir, e isto semanalmente. "O primeiro dia da semana'*
já era reconhecido no tempo de Paulo como o dia do Senhor,
dia da ressurreicáo. É um dia conveniente para atos regu-
lares, como éste, de culto cristáo — contribuir para o sus-
tento da obra do Senhor.
(3) Ainda uma terceira regra, a da proporcionalidade.
Alguns podem dar mais, outros daráo menos. Cada um de-
verá dar "conforme a sua prosperidade". Um modo de siste-
matizar as ofertas de beneficéncia é entrar com uma parte
certa, definida, como por exemplo o décimo da renda. As
quantias entregues com regularidade crescem de volume,
tomando-se menor a carga para todos, o que nao sucede
quando as contribuigóes se fazem extemporánea e irregu-
larmente.
(4) Náo deve ser necessário usar apelos ocasionáis e
emocionantes, para que os crentes contribuam. Paulo ex-
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 153
pressou o dése jo de que nao se fizessem coletas quando éle
chegasse, pois quería devotar-se á instrugáo dos corintios e
nao ocupar seu tempo com essa arrecadacáo de dinheiro. Sua
visita poderia dar oportunidade a que se levantasse grande
soma, mas éle queria que éste assunto se resolvesse antes de
sua chegada.
(5) Quando se fazem apelos de ve haver os mais elevados
motivos. É natural, entáo, que muitos opinem que éste pará-
grafo relativo as ofertas se ja posto no fim do cap. precedente,
como parte integrante do "assunto ai tratado. Depois de se
deter por longo tempo apreciando a gloria da ressurreicáo
e da vida futura, Paulo acrescenta inopinadamente: "Quanto
á coleta para os santos ..." A ressurreicáo seria um motivo
de contribuicáo. Essa coleta seria parte da "obra do Senhor"
em que os fiéis deviam ser abundantes á vista da vitória que
Ihes pertencia "por intermédio de nosso Senhor Jesús Cristo".
(6) Os fundos de beneficéncia devem ser administrados
cuidadosamente. Cumpria aos corintios nomear uma comis-
sáo de financas, uma junta administrativa, que zelasse pelas
ofertas. Aquéles que fóssem cuidadosamente escolhidos, ao
chegar, daria cartas de recomendacáo para a igreja de Jeru-
salém. Existe algo de tocante nessa providéncia. Os intuitos
de Paulo tinham sido mal interpretados. Insinuacoes ma-
liciosas tinham sido feitas em torno de um pretenso interésse
pessoal do apostólo naquelas ofertas. Éle, entáo, procura
precatar-se contra o menor fundamento de suspeita. Entre-
tanto, essa providéncia deve sempre ser tomada relativamente
á administracáo de fundos de beneficéncia. Deve-se manter
uma escrituragáo regular de todo o movimento, para se pre-
venir qualquer suspeita de peculato.
(7) As ofertas de beneficéncia devem ser bastante gene-
rosas para que sejam dignas de Cristo e de seus servos. Paulo
dá a entender que éle irá levar a Jerusalém as ofertas das
igrejas, se elas forem bastante vultosas para atribuir impor-
tancia a essa viagem. Se convier que vá, os mensageiros da
parte da igreja o acompanharáo.
Algumas ofertas se tornam despreziveis nao por serem
pequeñas, mas porque ficam muito aquém do que podem
ser. Sáo uma vergonha para a Igreja e para aquéles que a
representam. Tem-se acanhamento de prestar relatório de
quantias táo mesquinhas. As ofertas dos crentes devem cor-
154
CHARLES R. ERDMAN
responder á profissáo que éles fazem de desapego ás ooisas
da térra, e de serem hefdeiros do celestial Reino de Cristo.
B. As Visitas de Paulo, Timoteo e Apolo. Cap. 16:5-12.
5 Irei ter convosco por ocasiáo da minha passa-
gem pela Macedónia, porque devo percorrer a Mace-
dónia. 6 E bem pode ser que convosco me demore, ou
mesmo passe o invernó, para que me encaminheis ñas
viagens que eu tenha de fazer. 7 Porque nao quero
agora ver-vos apenas de passagem, pois espero perma-
necer convosco algum tempo, se o Senhor o permitir.
8 Ficarei, porém, em Éfeso até ao Pentecoste; 9 por-
que urna porta grande e oportuna para o trabalho se
me abriu; e há muitos adversários. 10 E, se Timoteo
fór, vede que esteja sem receio entre vos, porque traba-
Iha na obra do Senhor, como tambcm eu; 11 ninguém,
pois, o despreze. Mas encaminhai-o em paz, para que
venha ter comigo, visto que o espero com os irmáos.
12 Acerca do irmáo Apolo, muito Ihe tenho recomen-
dado que fósse ter convosco em companhia dos irmáos,
mas de modo algum era a vontade déle ir agora; irá,
porém, quando se Ihe deparar boa oportunidade.
Mencionando a oferta em favor dos pobres, Paulo referiu
sua próxima visita a Corinto. Agora detem-se a esclarecer
mais os planos que visa executar. Em vez de deixar Éfeso
mais cedo e viajar diretamente, rumo ao ocidente, a Corinto,
acha necessário prolongar sua estada alí, propondo-se agora
ir via Macedónia. Frisa o fato de que deverá "percorrer a
Macedónia", seja para indicar uma modificagáo em seu pla-
no, seja para mostrar, como alguns supoem, que sua viagem
será uma excursáo evangelística, visando com ela completar
o trabalho comegado em sua primeira missáo.
Há outra razáo para demorar-se em Éfeso. Se fór imedia-
tamente a Corinto, terá de tratar com severidade os membros
daquela igreja. Deseja dar-lhes tempo bastante para resolve-
rem alguns dos problemas sérios a que se referiu. Mas a causa
principal da demora em Éfeso é que alí se oferecia agora, ao
trabalho de evangelizagáo, boa oportunidade: "porque uma
porta grande e oportuna para o trabalho se me abriu". Além
disso, havia "muitos adversários", o que era mais uma razáo
para se demorar lá, visto precisar combater ésses inimigos
no interésse da obra.
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS 155
Embora protele assim a sua viagem a Corinto, sua visita
a esta cidade nao será feita as pressas. Nao dése ja apenas
passar pela cidade, mas permanecer lá por algum tempo.
Os negocios da igreja alí demandam muita cautela, agáo
ponderada e nao de afogadilho. Pode até passar o invernó
lá e dar-lhes oportunidade a que o encaminhem ñas viagens
que tenha de fazer, seja em demanda de Jerusalém, se ficar
decidido, seja em diregáo do ocidente, a Roma, o que ele
tanto almeja.
Timoteo fóra enviado a Corinto. Nao se sabe ao certo o
tempo em que alí chegou, nem coisa alguma dessa visita.
Se vier, pede o apostólo que o recebam cordialmente. Sua
mocidade, sua natural timidez e sensibilidade, possivelmente
sua falta de cultura podiam induzir os corintios a tratá-lo
com descortezia. Lembra-lhes o apostólo que Timoteo está
empenhado no servigo de Cristo, tanto quanto ele, e assim
é digno da maior consideragáo. Sua missáo entre éles era
delicada e difícil, porisso o apostólo insiste em que o man-
dem de volta em paz.
Paulo gostaria de enviar-lhes um mensageiro mais idoso,
como Apolo. Havia até instado com éste a que fósse. Mas
Apolo recusou-se terminantemente. Parece que estava muito
desgostoso com aquelas dissengoes partidárias em Corinto, as
quais davam a entender ser ele rival de Paulo. Nada tinha
a ver com essa rivalidade e porisso insistía em ir adiando sua
visita áquela igreja até que a situagáo amainasse e se mos-
trasse mxais favorável. Nésse ínterim Timoteo foi enviado.
É com profunda solicitude que Paulo aguarda o relatório
que ele e seus companheiros Ihe traráo.
C. Exortagoes e Saudagoes Fináis. Cap. 16:13-24.
13 Sede vigilantes, permanecei firmes na fé, por-
tai-vos varonilmente, fortalecei-vos. 14 Todos os vossos
atos sejam feitos com amor. 15 E agora, irmáos, eu vos
pe?o o seguinte: (sabéis que a casa de Estéfanas é as
primicias da Acaia, e que se consagraram ao servido
dos santos), 16 que também vos sujeiteis a esses
tais, como também a todo aquéle que é cooperador e
obreiro. 17 Alegro-me com a vinda de Estéfanas, e de
Fortunato e de Acaico; porque estes supriram o que da
vossa parte faltava. 18 Porque trouxeram refrigério ao
156
CHARLES R. ERDMAN
meu espirito e ao vosso. Recoiihecei, pois, a homens
como estes. 19 As igrejas da Asia vos saúdam. No Se-
nhor muito vos saúdam Aquila e Priscila e, bem assim,
a igreja que está na casa déles. 20 Todos os irmáos
vos saúdam. Saiidai-vos uns aos outros com ósculo
santo. 21 A saudagáo, escrevo-a eu, Paulo, de próprio
punho. 22 Se alguém nao ama ao Senhor, seja anáte-
ma. Maranata! 23 A graca do Senhor Jesús seja con-
vosco. 24 O meu amor seja com todos vós em Cristo
Jesús.
Chegando ao ponto em que vai encerrar sua epístola,
Paulo faz exortagoes concisas, de sentido bem claro, como se
foram ordens a soldados: vigiai, estai firmes, sede corajosos,
fortes, bondosos. Expressa o imenso prazer e o grande alivio
que experimentou com a presenga e as mensagens dos dele-
gados de Corinto. Menciona particularmente Estéfanas que,
juntamente com sua familia, fóra o primeiro grego convertido
a Cristo e que se devotara em servir á Igreja. Paulo insiste
que tais homens sao dignos de toda a deferencia. Podem
ser ouvidos e obedecidos sem recelo algum.
A primeira das saudagoes fináis procede das igrejas da
Asia; nao sómente de Éfeso, como de toda a provincia. Paulo
nao visitara todas aquelas comunidades cristas, todavía es-
tava rodeado de representantes seus e, destarte, conhecia
como aquelas igrejas simpa tiza vam com os corintios. Paulo
gostava de enlagar assim as igrejas, servindo-se de expressoes
chelas de amor. A segunda saudacáo enderegam-na Aquila e
Prisca, amigos pessoais do apostólo. Devem os corintios lem-
brar que éste casal hospedou a Paulo, enquanto lá esteve.
Depois, haviam arriscado a vida por ele. A saudagáo de Aquila
e Prisca junta-se a de toda a sua familia e de todos os cristáos
efésios que, na sua casa hospitaleira, se reunem para o culto.
Segue-se a saudagáo de toda a irmandade de Éfeso: "Todos
os irmáos vos saúdam".
Quando ouvissem 1er estas saudagoes de afeto espiritual,
os corintios estavam convidados a expressar, por sua vez, seu
companheirismo em Cristo, mediante a saudagáo cerimonial
do "ósculo santo".
E chega o momento de Paulo, com solenidade, apor ao
manuscrito o sinal de próprio punho, sua saudagáo autogra-
fada. Esta consiste (1) no título: "A saudagáo, escrevo-a eu,
Paulo, de próprio punho". (2) Segue-se um duplo moto, cuja
PRIMEIRA EPISTOLA DE PAULO AOS CORINTIOS
157
primeira cláusula declara maldito, "anátema", quem quer
que professe crer em Cristo, mas nao sinta por Éle real
afeicáo. A segunda cláusula consiste em duas palavras ara-
maicas — "Maraña tha" — multas vézes traduzidas: "ó
Senhor, vem!" Traz isto á lembranga a súplica final do Apo-
calipse: "Vem, Senhor Jesús". Há, por outro lado, quem
entenda essa expressáo aramaica como significando urna pro-
messa profética: "O Senhor vem", "sua volta se aproxima",
''perto está o Senhor", "Maraña tha".
(3) Havendo declinado a grande senha da Igreja, usada
nesta expectativa da vinda do Senhor, Paulo acrescenta sua
béncáo, e o faz empregando suas palavras favoritas de des-
pedida: "A graca do Senhor Jesús seja convosco". E como
nao fez em nenhuma outra de suas epístolas, poe o ponto
final com palavras de ternura e amor. Fóra compelido a
censurar severamente os leitores, por causa de suas desaven-
gas, mas agora assegura a todos éles o seu afeto: "O meu
amor seja com todos vos em Cristo Jesús. Amém".
F I M
Éste liyro foi composto e impresso
em Dezembro de 1956. ñas oficinas
GRÁFICA MERCÚRIO S. A.
Al. Cleveland. 3^3 - Sao Paulo - BraaU
I