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Full text of "Primeira epístola de Paulo aos Coríntios (Exposição)"

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tihvary  ofChe  t:heolo0ícal  ^tmimry 

PRINCETON  .  NEW  JERSEY 
PRESENTED  BY 

The  Author 

Al.  Alie. 


/ 


PRIMEIRA  EPÍSTOLA 
DE  PAULO 

AOS 
CORÍNTIOS 


PRIMEIRA  EPÍSTOLA 
DE  PAULO 

AOS 

CORINTIOS 


(E  X  p  o  s  i  f  á  o) 
P  o  r 

C  H  A  R  L  ES    R.    E  R  D  M  A  N 

Professor  de  Teología  Prática,  do  Seminário 
Teológico  de  Princeton,  New  Jersey  (E.  U.  A.), 
e  Pastor  da  Primeira  Igreja  Presbiteriana  da 
mesma  cidade. 

(Tradufáo  de  D.  A.  M.) 


Rúa  Helvetia,  737  —  Subsolo 
SAo  Paulo 
19  5  6 


PREFACIO 


A  Igreja  de  Cristo  é  a  sociedade  mais  significativa  e  de 
maior  importancia  que  já  se  estabeleceu  entre  os  homens.  Nem 
todo  o  mundo  a  aprecia  déste  modo.  Também  nem  sempre  a 
conduta  dos  seus  membros  corresponde  á  sua  orígem  divina  e  á 
sua  missáo  impar.  Entretanto,  os  que  adoram  como  seu  Senhor 
o  Fundador  da  Igreja  e  créem  que,  por  ela.  Cristo  está  realizando 
o  seu  gracioso  propósito  de  redimir  o  mundo,  ésses  vdo  ler  com 
interésse,  profundo  e  constante,  a  carta  de  que  nos  propomos 
fazer  uma  exposigáo  neste  livrinho.  Foi  escrita  pelo  Apostólo 
Vaulo  aos  cristáos  de  Corinto  e  trata  de  questoes  de  vital  im< 
portáncia  ligabas  á  vida,  ao  ministerio  e  á  mensagem  da  Igreja. 

As  circunstancias  que  deram  lugar  as  questoes  levantadas 
foram  em  grande  parte  locáis  e  temporarias,  contudo  a  maneira 
eomo  o  apostólo  as  encara  é  de  interésse  imediato  e  de  valor 
permanente,  visto  como  discute  cada  uma  á  luz  de  algum  priu' 
cípio  sempre  atual.  Todos  quantos  se  interessam  pela  paz, 
pureza  e  progresso  da  Igreja  devem  procurar  aplicar  ésses  prin- 
cipios na  solugáo  dos  problemas  urgentes  da  atualidade. 

DO  Autor 


INTRODUCÁO 


A  cidade  de  Corinto  está  se  desenterrando  do  pó  em  que 
ficou  sepultada.  Pelo  menos  é  certo  que  escavacoes  recentes 
estáo  fazendo  essa  velha  cidade  grega  reviver  diante  dos  olhos, 
no  pensamento  e  na  imaginacáo  do  mundo.  Fitar  seu  grande 
teatro,  1er  a  inscricáo  ainda  existente  na  "Sinagoga  dos 
Judeus",  passear  peío  pavimento  de  m^osaicos  de  suas  "vilas" 
imperiais,  e  visitar  o  fórum  onde  funcionou  o  tribunal  de  Gálio 
é  como  lancar  uma  ponte  por  cima  dos  séculos  que  decor- 
reram  daquela  época  até  hoje;  é  viver  as  cenas  de  um  pas- 
sado  morto  e  esquecido. 

Noutro  sentido,  porém,  Corinto  nao  morreu  jamáis. 
Duas  breves  cartas,  escritas  pelo  Apostólo  Paulo,  a  um  grupo 
de  cristáos  daquela  cidade,  conseguiram  fazer  que  incontá- 
veis  leitores  seus  se  familiarizassem  com  ela  através  de  su- 
cessivas  geracoes.  Na  memoria  désses  leitores,  Corinto 
nunca  deixou  de  existir.  Por  outro  lado,  á  luz  de  recentes 
descobertas  alí  realizadas,  essas  epístolas  de  Paulo  se  tém 
tornado  mais  expressivas,  mais  vitáis,  mais  dignas  de  fé  e 
mais  reais  do  que  durante  todos  estes  séculos. 

No  tempo  do  apostólo,  Corinto  era  a  cidade  mais  impor- 
tante da  Grécia.  Atenas,  nao  há  dúvida,  era  um  centro 
maior  de  cultura  e  mais  gloriosamente  refulgía  ñas  páginas 
da  historia.  Corinto,  entretanto,  era  a  capital  da  provincia 
romana  da  Acaia  e  sobrepujava  a  todas  as  outras  cidades  em 
importancia  política  e  comercial.  Destruida  por  Múmio,  ge- 
neral romano,  em  146  A.  C,  foi  reconstruida  um  século  mais 
tarde  por  ordem  de  Júlio  César,  recuperando  logo  e  até  ul- 
trapassando  sua  condigáo  anterior  de  riqueza,  beleza,  esplen- 
dor e  poder. 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


Seu  rápido  crescimento  foi  devido,  em  grande  parte,  á 
sua  localizagáo.  Situava-se  no  estreito  istmo  que  ligava  o 
Peloponeso  ao  continente  grego  e  separava  os  mares  Jónio 
e  Egeu.  Para  o  oeste  ficava  o  porto  de  Liqueu;  para  leste, 
Cencréia.  Devido  a  essa  situagáo  foi  chamada  "sl  Cidade  dos 
Dois  Mares".  Situava-se  pois  na  rota  principal  que  ligava 
o  Oriente  ao  Ocidente  e  tornou-se  o  principal  emporio  entre 
a  Asia  e  Roma. 

A  riqueza  da  cidade  era  enorme.  Em  populagáo  prova- 
velmente  ocupava  o  quarto  lugar  entre  as  cidades  do  Império 
Romano.  Seus  habitantes  inicialmente  foram  colonos,  a 
maioria  dos  quais  eram  libertos  romanos.  A  descendencia 
désses  colonos  juntou-se  uma  torrente  de  gregos  nativos. 

Afora  isso,  Corinto  atraíra  grandes  levas  de  estrangeiros, 
tanto  do  Oriente  como  do  Ocidente.  Essa  gente  enchera  a 
cidade  e  adotara  a  língua  e  os  costumes  dos  gregos.  Como 
na  maioria  das  cidades,  havia  também  lá  grande  colonia 
judaica  que  mantinha  suas  crengas  e  seu  culto  distintivos. 
Seguramente  metade  da  populagáo  era  de  escravos. 

Apesar  de  seu  comércio,  Corinto  orgulhava-se  de  sua 
cultura.  Por  toda  parte  viam-se  oficinas  de  artistas,  sal5es 
onde  se  praticava  a  retórica  e  escolas  de  filosofía.  A  cidade, 
todavía,  nao  tinha  apenas  fama  de  riqueza  e  cultura;  também 
se  tornou  famosa  em  maldade  e  corrupgáo  moral.  Era  sede 
de  uma  aviltante  modalidade  de  culto  a  Venus,  bem  como  de 
outros  cultos  licenciosos  originarios  do  Egito  e  da  Asia. 
"Viver  á  corintia"  ou  "corintizar"  queria  djzer,  nos  dias  de 
Paulo,  viver  em  luxúria  e  licenciosidade.  Tornaram-se  igual- 
mente proverbiáis  expressoes  tais  como  "banquete  corintio" 
e  "bebedores  corintios". 

A  fundacáo  de  uma  igreja  crista  em  tal  ambiente  foi 
prova  notávei  do  poder  do  evangelho  e  uma  das  mais  assi- 
naladas  Vitorias  do  apostolado  de  Paulo.  Foi  um  triunfo 
arrancado  á  fórca  em  meio  a  ameacas  de  fracasso.  O  apos- 
tólo chegara  alí  abatido  ,desanimado  e  sozinho.  Fazia  sua 
Segunda  e  grande  Viagem  Missionária.  Partindo  de  Antio- 
quia,  viajara  em  direcáo  do  oeste,  a  Tróade.  Correspondendo 
a  um  chamado  divino,  atravessara  o  mar,  rumo  á  Europa 
onde,  em  Filipos  e  Atenas,  fundou  igrejas,  passando  ao  sul 
da  Grécia.    Em  Atenas  teve  recepgáo  fría  e  desalentadora. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


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Voltou  a  Corinto,  chegando  alí  como  estrangeiro  desconhe- 
cido,  sem  companheiros,  desprovido  de  recursos,  sem  amigos 
e  sentindo  um  peso  no  coragáo  á  vista  da  impiedade,  da  im- 
pureza e  do  vicio  que  alí  campeavam.  Comecou  a  pregar 
sentindo  fraqueza,  temor  e  muito  tremor,  mas  determinado 
a  ser  fiel  á  mensagem  de  Cristo  e  sua  cruz. 

Acamaradou-se  logo  com  dois  judeus  —  Áquila  e  Frisca, 
que  havia  pouco  tinham  sido  expulsos  de  Roma  e  que  se  ha- 
viam  estabelecido  em  Corinto  como  fabricantes  de  tendas. 
Como  Paulo  fósse  da  mesma  raca  e  do  mesmo  ramo  de  ne- 
gocio, foi  por  éles  recebido  com  prazer  em  casa.  Paulo  achou- 
os  dóceis  quando  Ihes  falou  de  Cristo.    Logo  mais  recebeu 
nova  dose  de  animacáo  com  a  chegada  de  seus  amigos  Silas 
e  Timoteo.   Resultado:  passou  a  anunciar  o  Evangelho  com 
desusado  poder  e  vantagem.    Seus  primeiros  auditorios  fo- 
ram  na  sinagoga,  mas  por  causa  da  exasperacáo  e  feroz  opo- 
sicáo  de  seus  adversários  judeus,  abandonou  a  sinagoga  e 
^  fundou  uma  assembléia  crista  na  casa  contigua,  de  Tito 
;;  Justo.   Éste,  prosélito  dos  judeus,  cu  jo  nome  dá  a  entender 
V  era  cidadáo  romano,  pode  oferecer  a  Paulo  um  refúgio  hon- 
roso  e  serviu  de  estímulo  ao  grupo  crescente  dos  que  se  con- 
vertiam.  Entre  estes,  que  se  reuniam  na  casa  de  Justo,  estava 
Crispo,  principal  da  sinagoga,  sua  familia  e  mais  outras 
pessoas  importantes.   O  grosso  dos  convertidos,  porém,  saiu 
de  classes  mais  humildes,  até  dentre  os  libertos  e  escravos. 
Alguns  eram  judeus,  mas  a  maioria  era  de  gentíos.  Nessa 
^cém-fundada  sociedade  nao  havia  muitos  que  se  tivessem 
ducado  em  escolas,  nem  dignitários,  nem  poderosos,  nem 
aristócratas  de  nascimento.  Entre  éles  via-se  o  contraste  da 
iqueza  e  da  pobreza,  da  alta  e  da  baixa  sociedade.   Os  po- 
ras e  de  baixa  extragáo,  porém,  formavam  a  maioria  naquela 
assembléia  crista.  Muitos  haviam  sido  arrebatados  dos  mais 
profundos  abismos  da  luxúria  paga. 

Por  ésse  tempo  o  coracáo  do  apostólo  recebeu  o  grande 
lento  de  uma  visáo  noturna,  na  qual  o  Senhor  Ihe  ordenou 
falasse  intrépidamente,  assegurando-lhe  protecáo  e  éxito. 
Paulo  obedeceu:  ficou  dezoito  meses  alí,  pregando  principal- 
mente a  gentíos  e  estabelecendo  uma  animada  comunidade 
crista.  Movidos  de  inveja  e  odio,  os  judeus  sublevaram  o  povo 
e  arrastaram  o  apostólo  ao  tribunal  do  procónsul  Gáüo.  Éste 
nobre  romano,  irmáo  do  filósofo  Séneca,  recusou-se  desde- 
nhosamente  a  apreciar  as  acusagoes  de  heresia  que  os  judeus 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


centavam  levantar  contra  Paulo.  Expulsou-os  do  tribunal  e 
deixou  que  os  gregos  espancassem  Sostenes,  principal  da 
sinagoga.  Parece  que  ele  considerou  essa  atitude  dos  gregos 
um  ímpeto  de  bem  merecida  justica  e  um  sinal  de  que  o 
povo  apoiava  sua  atuagáo  no  caso.  A  atitude  de  Gálio  com 
írequéncia  tem  sido  interpretada  como  indicativa  de  indi- 
ferenga  religiosa.  Mais  própriamente  devia  ser  considerada 
um  exemplo  de  tolerancia  religiosa  e  como  um  aviso  de  que 
o  Govérno  Romano  sancionava  a  proclamagáo  do  evangelho 
na  Grécia.  Assim,  quando  mais  tarde  Paulo  encerrou  suas 
atividades  em  Corinto  e  viajou  para  Jerusalém  e  Antioquia, 
deixou  alí  uma  igreja  forte  e  florescente,  práticamente  sob 
a  protegáo  de  Roma  e  capacidade  a  prosseguir  na  evangeli- 
zagáo  de  toda  a  provincia  da  Acaia. 

Em  sua  Terceira  Viagem  Missionária,  durante  a  longa 
permanencia  de  tres  anos  em  Éfeso,  Paulo  manteve  cons- 
tantes relagóes  com  a  jovem  igreja  de  Corinto  que  ficava  a 
oeste,  do  outro  lado  do  mar  Egeu.  Foram  trocadas  cartas 
entre  o  apostólo  e  seus  convertidos  corintios.  Há  indicacoes 
de  que  ele  fez  rápida  visita  áquela  cidade,  retornando  mais 
uma  vez  a  Éfeso.  Logo  ao  chegar  ai  parece  que  recebeu  uma 
noticia  agradável  das  condigoes  da  igreja,  isso  por  intermédio 
de  Tito,  a  quem  Paulo  enviara  com  o  fim  de  cientificar  os 
corintios  do  plano  que  tinha  para  socorrer  os  irmáos  pobres 
de  Jerusalém,  e  de  obter  a  simpatía  e  o  apóio  déles.  Depois 
disso  o  eloquente  evangelista  Apolo,  após  um  ano  de  trabalho 
frutífero  em  Corinto,  juntou-se  a  Paulo  em  Éfeso,  quando 
Ihe  levou  noticias  dos  irmáos  na  Grécia.  Mais  tarde  chega- 
ram-lhe  informagoes  pouco  lisonjeiras  dessa  igreja,  cujas 
condigoes  eram  entristecedoras  Além  do  que,  uma  delegagáo 
de  tres  membros  distintos  da  mesma  cruzou  o  mar  e  foi  ter 
com  o  apostólo  para  uma  consulta.  Outras  informagoes  claras 
llie  foram  prestadas  por  membros  da  familia  de  Cloe. 

De  todas  estas  fontes  Paulo  recebeu  seguras  e  completas 
noticias  da  situagáo  em  Corinto.  Os  fatos  eram  quase  todos 
alarmantes.  A  igreja  estava  dividida  em  partidos  e  desgra- 
gadamente  a  disciplina  se  havia  relaxado.  Os  irmáos  con- 
tendiam  uns  com  os  outros,  levando  suas  questoes  aos  tribu- 
nais  pagaos,  enquanto  toleravam  grosseiras  imoralidades  em 
sua  vida  social.  Queriam  ser  instruidos  com  relagáo  ao  ca- 
samento e  mais  quanto  ao  uso  de  alimentos  oferecidos  aos 
ídolos  e  quanto  ao  devido  emprégo  dos  dons  espirituais.  Nao 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


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mantinham  ordem  na  celebragáo  da  Ceia  do  Senhor  e  alguns 
até  chegavam  a  negar  a  doutrina  da  ressurreiQáo  dos  mortos. 

Com  habilidade  de  mestre  consumado,  Paulo  escreve- 
-Ihes  esta  carta,  onde  trata  de  todos  estes  problemas.  Em  vez 
de  responder  cada  pergunta  ordenando  com  autoridade  ou 
estabelecendo  uma  regra  arbitrária,  ele  firma  o  principio 
envolvido  em  cada  questáo  e  déste  modo  oferece  uma  solucáo 
de  valor  permanente.  Sim,  porque  se  as  condigoes  de  hoje 
diferem  daquelas  de  Corinto,  os  problemas  no  entanto  sao 
análogos,  servindo  para  a  sua  solugáo  os  principios  aqui  apre- 
sentados  por  Paulo.  As  questoes  diferem  na  forma,  mas  na 
esséncia  sao  as  mesmas,  donde  se  vé  que  os  principios  evan- 
gélicos que  elas  envolvem  nao  perdem  sua  validade. 

Paulo  arranja  em  ordem  lógica  os  problemas  que  Ihe  pro- 
puseram.  Alguns  leitores  de  I  Corintios  pensam  de  modo 
diferente.  Nao  véem  ai  nem  ordem,  nem  método,  nem  uni- 
dade.  Existe  um  crítico  severo  que  até  chega  a  avangar  o 
seguinte:  Paulo  "nao  tinha  a  necessária  paciencia  para  es- 
crever  e  era  incapaz  de  usar  método".  Por  outro  lado,  um 
comentador  moderno,  dos  mais  autorizados,  diz  a  respeito 
desta  carta:  "Jamáis  um  edificio  intelectual  foi  mais  admi- 
ravelmente  plañe  jado  e  executado,  embora  com  materiais 
muitíssimo  diversos".  Os  assuntos,  com  efeito,  sao  variados 
e  heterogéneos.  Comumente  sao  agrupados  em  número  de 
dez,  a  saber:  partidos  na  igreja,  escándalos,  questoes  judi- 
ciais,  impureza,  casamento,  alimentos  oferecidos  em  sacrificio, 
comportamento  da  mulher  no  culto  público,  administragáo 
dos  sacramentos,  dons  espirituais,  e  ressurreigáo  dos  mortos. 

Postos  nessa  ordem,  vé-se  que  Paulo  trata  primeiro  de 
urna  questáo  eclesiástica,  ou  sejam  divisoes  na  igreja.  Se- 
uem-se  tres  questoes  moráis:  o  caso  de  disciplina,  litigios 
perante  os  tribunais,  e  a  impureza  na  vida  social.  Vém  após 
duas  questoes  dependentes  das  circunstancias,  isto  é,  o  casa- 
mento e  o  uso  de  carnes  oferecidas  aos  Ídolos.  Adiante  con- 
sidera tres  questoes  litúrgicas:  a  maneira  de  a  mulher  se 
portar  durante  o  culto,  a  administragáo  da  Ceia  do  Senhor, 
e  o  exercício  ordeiro  dos  dons  espirituais.  Por  fim,  uma  ques- 
táo de  ordem  doutrinária:  a  ressurreigáo. 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


Quanto  mais  cuidadosamente  se  considere  o  arranjo 
déstes  assuntos  desconexos,  tanto  mais  se  apreciará  a  sar 
bedoria  da  ordem  adotada  pelo  apostólo. 

Nos  nove  versículos  do  coméco  da  carta,  Paulo  se  detém 
em  considerar  a  relacáo  que  há  entre  o  crente  e  Cristo.  Esta 
relacáo  vital  é  que  faz  da  epístola  um  todo  harmónico.  Seu 
conteúdo  pode  ser  sumariado  assim:  A  uniáo  com  Cristo  é 
desabonada  pelas  faccoes  ou  partidos,  caps.  1  a  4;  é  destruida 
pela  impureza,  caps.  5  e  6;  é  enaltecida  e  ilustrada  pelo  ca- 
samento, cap.  7;  é  profanada  pela  idolatría,  caps.  8  a  10;  é 
simbolizada  pela  Ceia  do  Senhor,  cap.  11;  é  aviltada  pela  de- 
sordem,  caps.  12  a  14;  é  consumada  na  ressurreigáo,  cap.  15. 

O  capítulo  final  dá  instrucoes  a  respeito  da  coleta  em 
favor  dos  eren  tes  pobres  de  Jerusalém,  contendo  aínda  re- 
ferencias e  saudacoes  pessoaís.  Um  esbógo  mais  compreensivo 
e  pormenorizado  da  epístola  se  verá  ñas  páginas  a  seguir. 


NOTA :    O  texto  portugués  da  I  Epístola  de  Paulo  aos  Corintios,  usado  nesta  obra, 
«  o  da  Versáo  Revista  de  Almeida,  da  Sociedade  Bíblica  d©  Brasil. 


I.  Saudagáo  e  Agáo  de  gragas.  I  Cor.  1:1-9. 


1  Paulo,  chamado  pela  vontade  de  Deus,  para  ser 
apostólo  de  Jesús  Cristo,  e  o  irmáo  Sostenes,  2  á  igre- 
ja  de  Deus  que  está  em  Corinto,  aos  santificados  em 
Cristo  Jesús,  vocacionados  para  ser  Santos,  com  todos 
os  que  em  todo  lugar  invocam  o  nome  de  nosso  Senhor 
Jesús  Cristo,  Senhor  déles  e  nosso;  3  graga  a  vos  outros 
e  paz  da  parte  de  Deus  nosso  Pai  e  do  Senhor  Jesús 
Cristo. 

4  Sempre  dou  gragas  a  Deus  a  vosso  respeito,  a 
propósito  da  sua  graga,  que  vos  foi  dada  em  Cristo;  5 
porque  em  tudo  fóstes  enriquecidos  néle,  em  toda  pa- 
lavra  e  em  todo  o  conhecimento;  6  assim  como  o  tes- 
temunho  de  Cristo  tem  sido  confirmado  em  vos;  7  de 
maneira  que  nao  vos  falte  nenhum  dom,  aguardando 
vos  a  revelagáo  de  nosso  Senhor  Jesús  Cristo;  8  o  qual 
também  vos  confirmará  até  ao  fim,  para  serdes  irre- 
preensiveis  no  dia  de  nosso  Senhor  Jesús  Cristo.  9 
Fiel  é  Deus,  pelo  qual  fóstes  chamados  á  comunháo  de 
seu  Filho  Jesús  Cristo  nosso  Senhor. 

As  palavras  com  que  Paulo  comeca  suas  epístolas  sao  de 
muita  importancia.  É  certo  que  essa  maneira  de  comecar 
cartas  nao  era  exclusividade  déle;  naquela  época  era  ésse  o 
estilo  adotado  geralmente.  Entretanto  nao  sao  fórmulas  va- 
zias  de  sentido:  significam  muito  mais  do  que  a  simples  de- 
signagáo  do  autor  e  daquéles  a  quem  se  destinam.  A  sau- 
da^áo  nada  tem  de  convencional.  Tais  fórmulas  introdutó- 
rias  condizem  com  o  teor  das  cartas  a  que  pertegam  e  em 
alguns  casos  quase  qué  encerram  um  sumário  dessas  cartas. 

Assim,  pois,  na  introdugáo  desta,  que  consiste  numa  sau- 
dacáo  e  num  agradecimento  a  Deus,  Paulo  menciona  os 
grandes  temas  que  irá  desenvolver,  isto  é,  a  unidade  da  Igre- 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


ja,  sua  pureza,  seus  dons  espirituais  e  sua  gloria  futura.  Os 
primeiros  quatro  capítulos  que  se  seguem  ocupam-se  das 
dissencoes  partidarias  que  estavam  destruindo  a  unidade 
crista.  Os  sete  subsequentes  discutem  a  pureza  e  a  santidade 
da  Igreja,  que  estavam  perigando.  Os  caps.  12  e  14  tratan 
dos  dons  espirituais  que  enriqueciam  aquela  Igreja.  O  cap. 
15  focaliza  a  gloria  da  ressurreicáo  que  iremos  gozar  "no  dia 
de  nosso  Senhor  Jesús  Cristo".  " 

Paulo  ainda  fere  outra  nota  ñas  primeiras  palavras  da 
saudagáo:  é  a  sua  autoridade  apostólica,  de  que  certas  pessoas 
ousavam  duvidar.  Comega,  pois,  lembrando  aos  leitores  a 
comissáo  divina  que  recebeu,  quando  se  declara  "apostólo  de 
Jesús  Cristo".  Tal  condigáo  de  apostólo  resultou  de  uma 
chamada  definida  e  estava  de  acordó  com  a  "vontade  de 
Deus".  A  intimagao  soara-lhe  aos  ouvidos  quando  no  cami- 
nho  de  Damasco,  e  depois  em  Jerusalém.  Ésse  apelo  divino 
mudara-lhe  o  curso  da  vida  e  descortinara-lhe  o  panorama 
de  um  trabalho  mundial,  que  seria  um  testemunho  vasto  em 
prol  de  Cristo,  para  o  qual  houvera  ele  sido  ordenado  pelo 
eterno  propósito  de  Deus.  A  íntima  convicgáo  de  ter  sido 
chamado  por  Deus  sempre  foi  uma  inspiragáo  para  ésse  po- 
deroso mensageiro  da  cruz.  Uma  convicgáo  igual  deve  digni- 
ficar e  enobrecer  o  servigo  do  mais  humilde  seguidor  de  Cristo, 
que  aceite  uma  tarefa,  suporte  provagoes  e  trabalhos,  sempre 
submisso  á  vontade  do  Mestre. 

Paulo,  porém,  nao  fóra  intimado  a  realizar  um  trabalho 
comum.  Declara-se  "apóstolo"  e  com  isso  quer  dizer  que  ocupa 
a  posicáo  de  testemunha  oficial,  especialmente  escolhido  e 
revestido  de  poder,  de  modo  que  as  mensagens  que  passa  a 
transmitir  revestem-se  da  própria  autoridade  de  Cristo. 

Ao  seu  próprio  nome  associa  o  de  Sostenes,  a  quem  dis- 
tingue nao  por  chamá-lo  apóstolo,  mas  "irmao",  isto  é, 
membro  da  irmandade  crista,  o  qual  era  bem  conhecido  dos 
crentes  corintios.  Désse  conhecimento,  porém,  nao  partilha- 
mos.  Lucas,  nos  "Atos",  menciona  certo  Sostenes  que  era 
principal  da  sinagoga  de  Corinto  e  que  foi  espancado  pelos 
gregos  diante  do  tribunal  de  Gálio,  depois  de  Paulo  ter  sido 
salvo  da  fúria  dos  judeus  pelo  governador  romano.  Se  se 
trata  do  mesmo  Sóstenes,  inimigo  da  fé  agora  convertido  em 
seguidor  de  Cristo,  nada  se  sabe  ao  certo.  Basta-lhe  a  glória 
de  ter  o  seu  nome  associado  ao  de  Paulo.    Para  nós  igual- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


15 


mente,  é  bastante  a  distingáo  de  sermos  contados  entre  os 
verdadeiros  irmáos  de  nosso  Senhor. 

A  carta  é  enderegada  "á  igreja  de  Deus  que  está  em  Co- 
rinto".  Eis  ai  urna  afirmacáo  tremenda:  a  Igreja  é  uma  ins- 
tituigáo  divina;  foi  estabelecida  por  Deus  e  Ihe  pertence.  É 
o  instrumento  de  Deus,  o  meio  de  Ele  agir  no  mundo.  Éste 
pode  menosprezá-la,  escarnecé-la,  difamá-la,  mas  foi  no  céu 
que  ela  te  ve  sua  orígem.  A  Igreja  é  imortal.  Seu  destino 
é  glorioso.  Em  sua  luz  todas  as  nagóes  se  alegraráo  um  día. 

E  essa  Igreja  estendera-se  até  mesmo  a  Corinto.  Nisso 
é  que  estava  a  maravilha.  Mesmo  naquela  cidade  paga,  no 
meio  de  seu  orgulho,  de  sua  impureza,  da  ansia  absorvente 
com  que  se  atirava  aos  prazeres  e  as  riquezas,  alí  uma  irman- 
dade  de  crentes  se  formara.  E  nao  há  na  térra  um  lugar, 
por  maior  que  se  ja  a  depravagáo  de  seus  costumes  e  sua 
perdigáo  moral,  onde  a  Igreja  de  Deus  nao  se  possa  esta- 
belecer. 

Tal  igreja,  em  Corinto,  Paulo  a  descreve  sendo  formada 
de  ''santificados  em  Cristo  Jesús".  E  diz  mais  que  seus 
membros  sao  "santos"  em  consequéncia  de  um  chamado  di- 
vino. Ser  santificado  é  ser  separado  do  pecado  para  o  ser- 
vico  de  Deus,  consequentemente  para  ser  puro  e  santo.  Tais 
pessoas  se  designam  como  "santos";  sua  condigáo  e  caráter 
se  devem  ao  fato  de  haverem  obedecido  ao  chamado  para  se 
tornarem  seguidores  de  Cristo.  Por  conseguinte,  todos  os 
crentes  sao  santos.  Que  a  santificacao  déles  nao  é  perfeita 
evidencia-se  dos  capítulos  seguintes  que  descrevem  os  "san- 
tos" de  Corinto.  Todavía  possuem  a  faculdade  de  ^erem 
santos,  estao  sendo  transformados  pelo  Espirito  de  Cristo 
para  se  conformarem  com  Éle.  Algum  dia,  pois,  seráo  seme- 

Ihantes  a  Cristo,  quando  O  contemplarem  como  Éle  é. 

Essa  irmandade  de  santos  nao  se  limita  a  determinados 
lugares.  Paulo  dirige  sua  carta  nao  sómente  aos  de  Corinto, 
mas  a  todos  quantos  "invocam  o  nome  de  nosso  Senhor  Jesús 
Cristo".  E  era  a  essa  nota  de  unidade  que  os  cristáos  co- 
rintios precisavam  muito  de  atender.  O  espirito  de  partido 
e5tava-os  dividindo  em  grupos  que  se  degladiavam;  uma 
preocupagáo  orgulhosa  de  si  mesmos  fazia-os  olvidar  outras 
igrejas  e  alhear-se  délas,  de  suas  práticas  e  crencas.  Assim, 


16 


CHARLES  R.  ERDMAN 


pois,  nesta  sentenga  do  principio  de  sua  carta,  Paulo  asse- 
gura  a  seus  leitores  que  todos  os  cristáos  de  Corinto  formam 
um  corpo  de  crentes.  Ésse  corpo  une-se  a  urna  irmandade 
universal,  composta  de  ''todos  os  que  invocam  o  nome  de 
nosso  Senhor  Jesús  Cristo". 

Ésse  "invocar"  do  nome  de  Cristo  é  o  brado  de  fé  que  se 
ergue  do  coragáo  que  eré.  Ao  clamor  do  Espirito  responde-se 
com  uma  confianga  salvadora.  Assim,  pois,  em  todos  os  lu- 
gares e  tempos,  nós  que  pertencemos  a  Cristo  estamos  inse- 
paravelmente  ligados  a  todos  os  outros  crentes,  visto  como 
reconhecemos  um  só  Senhor,  "déles  e  nosso".  Portanto,  esta 
carta,  embora  enderezada  á  igreja  de  Corinto,  também  a 
nós  se  dirige.  Seu  escopo  é  orientar  e  inspirar  os  membros 
de  qualquer  igreja,  até  á  consumagáo  dos  séculos. 

A  Igreja  universal,  e  mais  especificadamente  aos  santos 
de  Corinto,  Paulo  envia  sua  saudagáo  costumeira  e  signifi- 
cativa: "Graga  a  vós  outros  e  paz  da  parte  de  Deus  nosso 
Pai  e  do  Senhor  Jesús  Cristo".  Graca  quer  dizer  o  favor  ime- 
recido  de  Deus,  e  alude  á  fonte  de  toda  béngáo  espiritual. 
Paz  é  a  experiencia  que  resulta  de  se  abrir  o  coragáo  pela  fé 
para  receber  tudo  quanto  Deus  oferece  em  Cristo  e  por  meio 
de  Cristo.  Era  muito  comum  os  gregos  saudarem-se  com 
a  palavra  "graga".  Já  entre  os  judeus  a  palavra  empre- 
gada  era  "paz".  Os  cristáos  uniram  uma  á  outra  e  Ihes 
aeram  um  brilho  novo.  A  saudagáo  de  Paulo  é  uma  oragáo. 
E  em  nossos  lábios  bem  pode  expressar  a  súplica  de  uns  em 
íavor  dos  outros,  e  de  nós  próprios. 

Como  costumava  fazer,  Paulo  acrescenta  á  saudagáo  um 
agradecimento.  Mostra-se  reconhecido  pela  graga  já  mani- 
festa  aos  de  Corinto  e  especificadamente  pelos  dons  espiri- 
tuais  de  que  tinham  sido  enriquecidos;  dons,  aliás,  de  que  se 
orgulhavam.  No  entanto,  ésses  dons  eram  reais  e  preciosos. 
Nao  importa  que  mais  adiante,  nesta  mesma  carta,  ele  pre- 
cise instruí-los  quanto  ao  valor  relativo  dessas  faculdades  e 
censurá-los  pelo  seu  abuso.  Náo  obstante,  a  carta  comega  com 
uma  expressáo  de  sincero  reconhecimento  pela  concessáo 
désses  dons.  Se  os  corintios  tinham  facilidade  de  expressáo 
no  testemunho  que  davam  de  Cristo,  ao  lado  de  um  "conhe- 
cimento"  profundo  da  verdade  cristá,  deviam  isso  aos  dons 
com  que  foram  agraciados.  Eram  ésses  dons,  além  do  mais, 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  17 


a  corroboragáo  do  testemunho  em  prol  de  Cristo  que  Paulo 
Ihes  dera. 

Táo  abundante  fóra  a  graga  recebida  que  os  cristaos  de 
Corinto  nao  careciam  de  nenhum  dom  espiritual  necessário 
á  promogáo  da  vida  e  á  animagáo  de  seu  trabalho,  enquanto 
aguardavam  a  vinda  de  Cristo.  E  Paulo  expressa  a  confianga 
jubilosa  de  que,  até  á  vinda  de  Jesús,  o  Espirito  de  Cristo 
continuará  a  suprir  as  necessidades  de  seus  seg-uidores,  de 
modo  que  a  despeito  de  provas  e  tentagoes,  éles  seráo  "irre- 
preensíveis"  no  "dia"  de  sua  vinda.  A  confianga  de  que  a 
santidade  dos  crentes  será  mantida  baseia-se  nao  em  algo  de 
om  que  ha  ja  em  a  natureza  humana,  mas  na  fidelidade  de 
_jeus  que  nos  chamou  á  comunháo  com  Cristo.  Pela  fé  tor- 
namo-nos  participantes  de  sua  vida.  Como  crentes,  pois,  de- 
vemos  partilhar  da  gratidáo  aqui  expressa  por  Paulo,  ale- 
grando-nos porque  pelo  Espirito  de  Cristo  todo  dom  e  graga 
necessária  nos  será  proporcionada,  a  nós  que  pertencemos 
a  Cristo. 

Devemos  também  participar  daquela  antecipagáo  da  glo- 
ria do  céu,  sentimento  éste  que  mantinha  firmes  os  cristaos 
de  Corinto.  Éles  "aguardavam  a  revelagáo  de  nosso  Senhor 
Jesús  Cristo",  e  esperavam  o  aperfeicoamento  do  espirito  e 
do  corpo,  no  dia  do  Senhor,  assunto  de  que  Paulo  se  ocupa 
no  cap.  quinze  desta  epístola.  A  segunda  vinda  de  Cristo, 
sua  aparicáo  gloriosa,  deve  constituir-se  urna  esperanca  vital 
a  animar  cada  seguidor  do  Mestre. 

Passando  em  revista  a  introdugáo,  veremos  que  o  nome 
de  Cristo  é  que  fornece  unidade  e  sentido  a  cada  sentenga 
tía  mesma.  Nove  vézes,  nestes  nove  curtos  versículos,  o  nome 
tíe  Jesús  é  mencionado.  Para  ser  seu  apostólo,  Paulo  fóra 
chamado.  Em  comunháo  com  Éle,  os  crentes  sao  santifi- 
cados, assim  como,  por  invocá-lO,  sao  salvos.  NÉle,  como  em 
Deus  Pai,  está  a  orígem  da  graga  e  paz.  Por  Éle  se  concedem 
os  dons  espirituais  que  confirmam  o  testemunho  de  Paulo  e 
?apacitam  seus  companheiros  cristaos  a  uma  vida  de  servigo. 

m  sua  segunda  vinda  centralizam-se  todas  as  esperangas 
déles.  No  dia  dessa  aparigáo  será  consumada  a  alegría  de 
~3us  coragoes.  A  participagáo  da  vida  de  Cristo  é  a  esséncia 
da  experiéncia  déles,  a  explicagáo  de  seu  caráter,  e  a  se- 

/aranga  de  seu  destino. 


18 


CHARLES  R.  ERDMAN 


Sem  nenhuma  dúvida,  para  os  que  sao  membros  de  sua 
Igreja,  Cristo  deve  tornar-se,  sempre  e  cada  vez  mais,  tudo 
em  todos. 


II.  Os  Problemas  da  Igreja.  Caps.  1:10  a  15:58. 
A.  Divisoes.  Caps.  1:10  a  4:21. 

1.  Exortagáo  á  Unidade.  Cap.  1:10-17. 

10  Rogo -vos,  irmáos,  pelo  nome  de  nosso  Seniior 
Jesús  Cristo,  que  faleis  todos  a  mesma  coisa,  e  que  nao 
haja  entre  vos  divisoes;  antes  sejais  inteiramente  uni- 
dos, na  mesma  atitude  mental  e  no  mesmo  parecer.  11 
Pois  a  vosso  respeito,  meus  irmáos,  fui  informado,  pe- 
los da  casa  de  Cloe,  de  que  há  contendas  entre  vós.  12 
Refiro-me  ao  fato  de  cada  um  de  vós  dizer:  Eu  sou 
de  Paulo,  e  eu  de  Apolo,  e  eu  de  Cefas,  e  eu  de  Cristo,  i'ó 
Acaso  Cristo  está  dividido?  foi  Paulo  crucificado  em 
favor  de  vós,  ou  fóstes,  porventura,  batizados  em  nome 
de  Paulo?  14  Dou  grabas  porque  a  nenhum  de  vós  ba- 
tizei,  excet^  Crispo  e  Gaio;  15  para  que  ninguém  diga 
que  fóstes  batizados  em  meu  nome.  16  Batizei  tam- 
bém  a  casa  de  Estéfanas;  além  déstes  náo  me  lembro 
se  batizei  algum  outro.  17  Porque  náo  me  enviou  Cris- 
to para  batizar,  mas  para  pregar  o  evangelho;  náo 
com  sabedoria  de  palavra,  para  que  se  náo  anule  a 
cruz  de  Cristo. 

Paulo  torna  a  dirigir-se  á  Igreja,  e  sua  primeira  palavra 
é  urna  exortagáo  á  unidade  crista.  Possivelmente  é  esta  a 
primeira  necessidade  da  igreja  mesmo  em  nossos  dias.  A 
falha  mais  berrante  numa  igreja  sao  suas  divisoes:  seu  fra- 
•asso  em  apresentar  ao  mundo  uma  frente  unida^  uma  men- 
sagem  harmoniosa  ou  um  panorama  de  entendimento  fra- 
terno. 

O  apostólo  faz  a  exortagáo  "pelo  nome  de  nosso  Senhor 
Jesús  Cristo".  O  nome  de  uma  pessoa  é  que  a  faz  conhecida, 
ou  é  aquilo  que  déla  se  conhece.  O  nome  de  Cristo,  pois, 
indica  tudo  quanto  dÉle  sabemos,  como  Salvador,  Senhor 
e  Mestre.  Visto  como  todos  os  crentes  Lhe  pertencem  e  estáo 
sob  seu  poder  e  diregáo,  a  simples  mencáo  de  seu  nome  su- 
gere  a  existencia  de  uma  unidade  espiritual  a  que  se  precisa 
dar  expressáo  exterior. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  19 


Espera-se  dos  crentes  que  "todos  falem  a  mesma  coisa". 
Paulo  nao  podia  esperar  que  todos  os  cristáos  se  unissem 
numa  declara^áo  formal  de  fé,  mas  roga-lhes  que  haja  tal 
unanimidade  em  torno  dos  fatos  essenciais  que  se  evitem 
divisoes  ou  cismas  no  corpo  de  Cristo.  Os  membros  déste  corpo 
devem  estar  "inteiramente  unidos"  ou  "ajustados  uns  aos 
outros"  (coesos),  tendo  as  mesmas  convicQoes  intelectuais  e 
opinioes,  unificados  assim  na  fé,  na  esperanga  e  no  amor. 

O  que  ocasionou  essa  exortagáo  á  unidade  foi  uma  no- 
ticia que  Paulo  recebera  por  meio  de  alguns  parentes  ou 
servos  de  Cloe,  sendo  éste  evidentemente  uma  figura  de  re- 
levo na  Igreja  daquela  cidade.    Segundo  essa  noticia,  havia 
graves  "contendas"  entre  os  cristáos  alí.  Nao  é  preciso  pen- 
sar que  houvesse  partidos  organizados  dentro  da  igreja,  ou 
uma  fragmentagáo  da  corporagáo  dos  crentes  em  grupos  es- 
tanques.   Mas  havia-se  manifestado  uma  tendéncia  para  a 
divisáo,  segundo  a  qual  alguns  estavam  renunciando  sua 
lealdade  a  Paulo,  declarando-se  seguidores  de  Apolo,  ou  de 
Pedro,  ou  de  Cristo.   Quais  eram  as  razoes  dessas  preferén- 
cias,  ou  o  motivo  dessa  diferenciagao,  nao  se  sabe;  o  que  se 
disser  a  respeito  nao  passará  de  simples  conjecturas.  Possi- 
velmente  os  que  se  jactavam  de  pertencer  a  Paulo,  com  jus- 
tiga  reconheciam-no  fundador  da  igreja  e  defendiam  estre- 
nuamente as  doutrinas  da  Graga,  expendidas  na  sua  maneira 
simples  de  apresentar  o  evangelho.  Os  adeptos  do  talentoso 
alexandrino  Apolo  podiam  ter-se  deixado  cativar  ela  filoso- 
fía e  pela  retórica  do  eminente  orador.  Aquéles  que  tomavam 
Cefas  ou  Pedro  como  líder,  talvez  o  fizessem  bascados  no 
fato  de  ser  éste  o  apostólo  de  maior  evidéncia,  ou  porque  se 
mostrasse  ainda  inclinado  as  formalidades  e  cerimónias  do 
Judaismo.  O  partido  de  Cristo  talvez  protestarse  nao  se  sub- 
meter  a  nenhum  mestre  humano,  mas  só  possuir  um  credo: 
as  palavras  do  próprio  Cristo,  segundo  a  interpretagáo  que 
éles  mesmos  Ihes  davam.   Todos  éstes  partidos  afimavam-se 
cristáos,  ao  mesmo  tempo  em  que  cada  qual  se  opunha  aos 
outros  com  maior  ou  menor  tenacidade.     Todos  éles  tém 
sucessores  na  Igreja  de  hoje. 

Uns  sao  inflamados  de  zélo  evangelístico;  apelam  as 
emogoes;  alardeiam  pregar  "o  simples  evangelho".  Sao  lou- 
vavelmente  ativos  na  conquista  de  almas.  A  ordem  de  suas 
idéias  é  um  tanto  acanhada.  Suas  formas  de  expressáo,  con- 


20 


CHARLES  R.  ERDMAN 


vencionais.  Simpatizam  muito  pouco  com  as  pessoas  cuja 
experiencia  espiritual  difere  da  sua,  Faltam  até  com  a  de- 
vida cortezia  aqueles  que  divergem  de  suas  fórmulas  especí- 
ficas de  fé. 

Outros  preferem  uma  exposigáo  mais  filosófica  da  ver- 
dade.  Apelam  ao  intelecto.  Tém  muito  gósto  com  sistemas 
de  teología  e  se  deleitam  com  especulacoes  abstrusas.  Outros 
acham  delicia  em  ritos  e  cerimónias,  que  apelam  aos  sentidos, 
ao  gósto  e  ao  sentimento.  Dáo  énfase  á  organizagáo  eclesiás- 
tica. Gostam  de  buscar  a  orígem  da  autoridade  de  sua  igreja 
em  papas  e  apostólos  e  mesmo  em  Pedro.  Ésses  tais  nao 
admitem  "meios  de  graga"  fora  de  tempos  marcados  e  in- 
dependente  de  cerimónias  e  fórmulas  estabelecidas.  Ainda 
outros  há  que  repelem  toda  cerimónia  e  qualquer  autoridade 
humana.  Alegam  crer  sómente  na  Biblia  e  só  obedecer  a 
Cristo.  Procuram  combater  qualquer  seita,  assim  formando 
outras  para  formar  as  suas.  Todas  estas  sao  verdadeiramente 
cristas;  há  lugar  para  cada  qual  na  Igreja  de  Cristo. 

Enquanto  a  natureza  humana  fór  o  que  é,  enquanto  o 
conhecimento  que  tivermos  fór  limitado  e  os  gostos  variados, 
difícilmente  há  de  se  esperar  unanimidade  de  crenca,  unidade 
de  organizacáo,  ou  uniformidade  de  culto.  As  "denomina- 
goes"  continuaráo  a  existir,  mas  estas  podem  trabalhar  em 
harmonia.  Cada  qual  pode  contribuir  com  algum  beneficio 
temporal.  O  que  se  deplora  é  o  "espirito  de  partido"  (seita) , 
expresso  em  rivalidades,  ciumes,  amarguras  e  orgulho. 

É  tal  espirito  que  Paulo  censura  fazendo  uma  pergunta 
incisiva:  "Acaso  Cristo  está  dividido?"  Se  todos  os  crentes 
pertencemos  a  Cristo,  cumpre  que  formemos  um  corpo.  Se 
nos  dividimos  e  ainda  pretendemos  estar  ligados  a  Cristo, 
entáo  Cristo  precisa  estar  fragmentado,  o  que  é  absurdo. 

Sómente  Cristo  pode  ser  a  verdadeira  cabega  de  qualquer 
corporagáo  de  crentes.  "Foi  Paulo  crucificado  em  favor  de 
vós?"  pergunta  o  apostólo.  Se  os  crentes  tiverem  na  lem- 
branca  quem  foi  que  morreu  por  éles  e  a  quem,  pois,  per- 
tencem,  nao  teráo  essa  preocupagáo  de  dizer  que  sao  de 
Paulo,  de  Apolo  ou  Cefas. 

"Fóstes  batizados  em  nome  de  Paulo?"  O  que  éles  sela- 
ram  e  significaram  pelo  batismo  foi  a  fé  em  Cristo  e  nao  em 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


21 


homem  algum,  e  essa  fé  os  pos  em  relacáo  vital  com  Cristo. 
Ora,  devotar-se  agora  cada  um  déles  a  um  líder  humano, 
ao  ponto  de  se  ver  apartado  de  outros  crentes  cuja  vida  espi- 
ritual se  prende  á  fonte  comum,  Cristo,  é  negar  essa  fé  e 
renunciar  essa  relacáo. 

Paulo  nao  sómente  censura  o  espirito  de  partido,  mas 
frisa  um  ponto,  a  saber,  tal  espirito  nao  surgiu  no  meio  déles 
por  culpa  sua  nem  por  alguma  peculiaridade  do  seu  ministé- 
rio.  O  fato  era  que  éle  próprio  se  abstivera  de  administrar 
batismos,  para  que  ninguém  suspeitasse  néle  a  preocupagáo 
de  vincular  de  um  modo  assim  especial  os  crentes  a  si,  em 
prejuizo  da  relacáo  vital  com  Cristo.  Batizara,  sim,  a  Crispo, 
principal  da  sinagoga,  e  também  Gaio,  o  generoso  benfeitor 
dos  crentes  daquela  cidade.  Igualmente  "a  casa  de  Estéfa- 
nas".  Mas  náo  Ihe  ocorria  houvesse  batizado  outros,  do 
grande  número  que  havia  conduzido  aos  pés  de  Cristo.  Ti- 
nha  bem  vivo  na  lembranca  que  a  tarefa  suprema  que  o 
Mestre  Ihe  impusera  foi  pregar  o  evangelho  e  náo  administrar 
sacramentos,  por  mais  importante  que  isto  pudesse  ser.  Além 
do  mais,  sabia  em  que  devia  consistir  sua  pregacáo:  apre- 
sentar  com  clareza  "a  cruz  de  Cristo",  e  jamáis  obscurecer 
esta  sublime  realidade  fósse  pela  forma  da  pregagáo,  fósse 
por  especular  com  o  seu  fato  central  e  supremo. 

Nem  sempre  os  ministros  evangélicos  se  compenetram  de 
que  sua  tarefa  máxima  náo  é  administrar  finangas  nem  or- 
ganizar igrejas,  mas  pregar  o  evangelho.  E  náo  se  aperce- 
bem  da  possibilidade  que  há  de  ganharem  seguidores  para 
si  e  náo  para  Cristo,  além  do  perigo  a  que  se  expóem  de 
deixar  eclipsada  a  grande  e  essencial  mensagem  da  salvacáo 
com  a  eloquéncia  que  exibam  e  com  discussoes  eruditas  em 
torno  de  assuntos  correlatos. 


2.  O  Evangelho  —  manifestagáo  da  Sabedoria  e  do 
Poder  de  Deus.  Cap.  1:18-31. 

18  Certamente  a  palavra  da  cruz  é  loucura  para  os 
que  se  perdem,  mas  para  nós,  que  somos  salvos,  poder 
de  Deus.  19  Pois  está  escrito:  Destruirei  a  sabedoria 
dos  sábios,  e  aniquilare!  a  inteligencia  dos  entendidos. 
20  Onde  está  o  sábio?  onde  o  escriba?  onde  o  inquirí- 


22 


CHARLES  R.  ERDMAN 


dor  déste  século?  Porventura  nao  tornou  Deus  louca 
a  sabedoria  do  mundo?  21  Visto  como,  na  sabedoria 
de  Deus,  o  mundo  nao  o  conheceu  por  sua  própria  sa- 
bedoria, aprouve  a  Deus  salvar  aos  que  créem,  pela 
loucura  da  prega^áo.  22  Porque  tanto  os  judeus  pe- 
dem  sinais,  como  os  gregos  buscam  sabedoria;  23  mas 
nós  pregamos  a  Cristo  crucificado,  escándalo  para  os 
judeus,  loucura  para  os  gentíos;  24  mas  para  os  que 
foram  chamados,  tanto  judeus  como  gregos,  é  Cristo, 
poder  de  Deus  e  sabedoria  de  Deus.  25  Porque  a  lou- 
cura de  Deus  é  mais  sábia  do  que  os  homens;  e  a  fra- 
queza  de  Deus  é  mais  forte  que  os  homens. 

26  Iimiáos,  reparai,  pois,  na  vossa  vocagáo;  visto 
que  nao  foram  chamados  muitos  sábios  segundo  a  car- 
ne, nem  muitos  poderosos,  nem  muitos  de  nobre  nas- 
cimento;  27  pelo  contfrário,  Deus  escolheu  as  coisas 
loucas  do  mundo  para  envergonhar  os  sábios,  e  esco- 
lheu as  coisas  fracas  do  mundo  para  envergonhar  as 
fortes;  28  e  Deus  escolheu  as  coisas  humildes  do  mun- 
do, e  as  desprezadas,  e  aquelas  que  nao  sao,  para  re- 
duzir  a  nada  as  que  sao;  29  a  fim  de  que  ninguém  se 
vanglorie  na  presenta  de  Deus.  30  Mas  vos  sois  déle, 
em  Cristo  Jesús,  o  qual  se  nos  tornou  da  parte  de  Deus 
sabedoria,  e  justi^a,  e  santificagáo,  e  reden^áo,  31  para 
que,  como  está  escrito:  Aquéle  que  se  gloria,  glorie-se 
no  Senhor. 

Paulo  viu  que  o  espirito  de  partido  na  Igreja  de  Corinto 
surgirá  de  um  conceito  erróneo  do  evangelho  e  do  ministé- 
rio  cristáo.  Esforgou-se  entáo  por  combater  e  dissipar  ésse 
espirito,  apresentando  a  verdadeira  natureza  do  evangelho 
e  do  ministério  sagrado.  A  cada  um  déstes  assuntos  val  de- 
dicar dois  capítulos  de  sua  carta. 

É  bem  significativo,  atualmente,  que  os  que  procurara 
"reunir  a  Cristandade".,  o  tratam  de  fazer  chegando  todos  a 
urna  compreensáo  unánime,  déstes  mesmos  assuntos.  Por 
isso  estáo  conferenciando  sobre  F,é  e  Ordem,  dois  assuntos 
que  se  relacionam  com  a  matéria  de  que  Paulo  vai  tratar 
agora.  Haveria  possibilidade  quase  nenhuma  de  divisoes 
na  Igreja  se  os  crentes  alcangassem  o  sentido  do  evangelho 
pregado  por  Paulo  e  do  ministério  exemplificado  por  ele. 

Conforme  ele  diz,  o  evangelho  é  urna  revelaQáo  divina 
manifestando  o  poder  e  a  sabedoria  de  Deus.  Caps.  1:18  a  2:5. 
E  mais:  sómente  pela  interpretagáo  que  o  Espirito  de  Deus 
Ihe  dá  é  que  pode  ser  compreendido.  Caps.  2:6  a  3:4.  Sendo 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  23 


pois  O  que  é,  o  evangelho  nao  dá  lugar  á  glorificacáo  de  nin- 
guém.  Era  portante  um  absurdo  os  crentes  se  declararem 
pertencentes  a  Paulo,  a  Apolo,  a  Cefas  ou  a  Cristo,  visto  que 
o  evangelho  era  um  só,  nao  proveniente  de  homens,  mas 
de  Deus. 

Censurando  essa  estulticia  partidária,  Paulo  declara  que 
na  pregacáo  tinha  evitado  qualquer  manifestacáo  de  saber 
humano,  para  que  nao  ficasse  empanada  a  esséncia  do  evan- 
gelho. Esta  ele  havia  ido  buscar  na  doutrina  da  cruz  de  Cris- 
to. A  "palavra  da  cruz",  diz  ele,  é  "loucura"  aos  olhos  dos 
reputados  sábios  do  mundo,  os  quais,  nao  obstante,  estao  pe- 
recendc.  Mas,  para  os  "salvos"  é  manifestamente  "o  poder  de 
Deus".  Sua  eficácia  divina  poe  em  relevo  a  loucura  e  a  fu- 
tilidade  das  tentativas  do  homem  para  conseguir  salvacáo  por 
si  próprio.  Essa  mesma  eficácia  Isaías  notara  em  conexáo 
com  outra  manifestacáo  do  poder  de  Deus.  Compadecendo- 
-se  da  fraqueza  do  homem  e  na  iminéncia  de  manifestar  a 
sua  onipoténcia  divina,  Jeová  parecía  pelo  profeta  dizer: 
"Destruirei  a  sabedoria  dos  sábios  e  aniquilarei  a  inteligencia 
dos  entendidos". 

Contrastando-os,  pois,  com  o  seu  divino  evangelho,  Deus 
tem  feito  que  pareca  absurda  toda  a  sabedoria  do  homem,  e 
impotente  todo  o  seu  poder.  ''Onde  está  o  sábio?",  indaga, 
"onde  o  escriba?  onde  o  inquiridor  déste  mundo?"  Nao  con- 
verteu  o  Senhor  em  estulticia  a  sabedoria  do  século  quando 
fez  que  se  proclamasse  a  salvacáo  mediante  Cristo? 

Prossegue  Paulo  na  explicacáo  de  como  o  evangelho  tem 
feito  a  sabedoria  secular  parecer  doidice.  Em  sua  sapientissi- 
ma  providencia,  Deus  permitiu  que  os  sábios  do  mundo  pro- 
curassem  por  sí  sós  o  caminho  da  vida  e  um  conhecimento 
salvador  acerca  de  Deus,  mas  o  fracasso  foi  completo.  "Nao 
conheceram  a  Deus".  Assim  pois  teve  Ele  agora  o  prazer  de 
uma  iniciativa  sua:  proporcionar-nos,  pela  pregacáo  da  cruz, 
o  meio  de  Salvacáo  dos  que  créem  em  Cristo. 

Quando,  pois,  Paulo  fala  em  "loucura  da  pregacáo"  nin- 
guém  pense  que  ele  está  recomendando  pregagáo  de  tolices, 
nem  mesmo  está  se  referindo  á  pregagáo  em  si,  como  um  dos 
meics  de  propagar  a  verdade.  Antes,  ele  alude  á  substancia 
da  mensagem,  á  "coisa  pregada",  isto  é,  "a  cruz  de  Cristo". 
É  isto  que  ao  mundo  parece  doidice,  mas  na  realidade  é  uma 
expressáo  da  própria  sabedoria  de  Deus. 


24 


CHARLES  R.  ERDMAN 


Nem  judeus  nem  gregos  estao  dispostos  a  receber  tal 
mensagem,  dí-lo  o  apóstolo.  Uns  e  outros  estáo  cegos  por 
suas  próprias  idéias  pre-concebidas.  Os  "judeus  pedem  si- 
nais",  alguma  manifestagáo  portentosa  e  espetacular  no  céu, 
talvez  alguns  distintivos  ou  sinais  da  realeza  de  Jesús,  urna 
prova  concreta  de  seu  poder  político,  algumas  credenciais 
que  O  acreditem  como  um  potentado  terreno.  Só  assim  éles 
creráo  que  é  seu  verdadeiro  Messias  ésse  Cristo  de  quem 
se  fala. 

Os  "gregos  buscam  sabedoria"..  Acreditam  que  o  cami- 
nho  por  onde  se  vai  as  culmináncias  de  urna  verdadeira  vida 
deve  ser  contiguo  ao  da  cultura  intelectual  e  deve  orientar-se 
por  preceitos  de  alguma  filosofia  humana.  O  apóstolo,  en- 
tretanto, convictamente  proclama  como  único  Salvador  o 
Cristo  que  foi  crucificado,  sendo  tal  mensagem,  evidentemen- 
te, uma  pedra  de  tropégo,  um  escándalo,  para  os  judeus  que 
alimentam  a  esperanga  errónea  de  um  Messias  político.  Para 
os  gentíos  era  "tolice",  pois  só  confiavam  em  sua  própria 
sabedoria.  Para  nós,  todavía,  que  aceitámos  seu  convite  e  O 
seguimos,  sejamos  judeus  ou  gregos,  Cristo  tem-se  tornado 
"o  poder  de  Deus  e  a  sabedoria  de  Deus".  Porque,  de  fato, 
éste  divino  caminho  de  salvacáo  que  aos  homens  se  afigura 
uma  "tolice",  é  mais  sábio  do  que  a  sabedoria  déles,  e  isto 
que  Ihes  parece  "fraqueza"  é  mais  forte  do  que  qualquer 
poder  humano. 

Nao  vamos  supor  nem  por  um  momento  que  Paulo  atri- 
bue  qualquer  "loucura"  a  Deus,  nem  que  ele  sonhe  em  com- 
parar esta  suposta  loucura  com  a  sabedoria  do  homem.  Nao. 
O  que  ele  emprega  ai  é  uma  linguagem  irónica,  frisando  que 
um  meio  de  salvagáo  que  o  homem  considera  fraco  e  tólo, 
é  na  realidade  um  meio  da  sabedoria  e  do  poder  divinos. 

O  apóstolo  acrescenta  um  exemplo  oportuno  do  falso  ra- 
ociocínio  do  homem  néste  particular.  Lembra  aos  corintios  o 
juizo  errado  que  o  mundo  faz  déles  e  daí  mostra  como  Deus 
realiza  grandes  feitos  por  meio  daquilo  que  o  mundo  despreza: 

"Irmáos,  reparai,  pois,  na  vossa  vocagáo,  visto  que  nao 
foram  chamados  muitos  sabios  segundo  a  carne,  nem  muitos 
poderosos,  nem  muitos  de  nobre  nascimento;  pelo  contrário, 
Deus  escolheu  as  coisas  loucas  do  mundo  para  envergonhar 
os  sabios".  Os  havidos  como  "loucos"  ou  malucos  acharam 
em  Cristo  uma  riqueza  de  sabedoria  espiritual  e  um  conhe- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


25 


cimento  salvador  acérca  de  Deus,  conhecimento  que,  pósto 
em  confronto  com  a  sabedoria  do  mundo  fé-la  parecer  total- 
mente absurda. 

Assim  foi  que  Deus  escolheu  aos  que  o  mundo  considerou 
fracos  e  Ihes  deu,  mediante  a  fé  em  Cristo,  uma  forca  moral 
que  em  face  do  poder  natural  do  homem  fe-lo  parecer  fra- 
queza.  Do  mesmo  modo  Deus  escolhe  homens  e  mulheres 
havidos  pelo  mundo  como  vis  e  desprezíveis,  sim,  até  mesmo 
aqueles  que  á  vista  do  mundo  nem  existem,  a  fim  de  fazer 
déles  e  por  éles  santos,  mártires  e  herois,  uma  verdadeira 
élite  diante  da  qual  o  mundo  foge  envergonhado  de  si  mesmo. 
Quis  Deus  que  a  orígem  da  maioria  dos  crentes  corintios  fósse 
humilde  —  diz  Paulo  —  para  que,  salvando-os,  nenhuma 
ocasiáo  tivessem  de  vanglória.  Pelo  poder  de  Deus  e  me- 
diante a  fé  em  Cristo  Jesús,  aqueles  crentes  apagados  e  in- 
significantes se  tornaram  o  que  nao  teriam  sido  jamáis  pelo 
poder  e  sabedoria  humanos. 

Para  éles,  pois.  Cristo  se  havia  tornado  "sabedoria  da 
parte  de  Deus".~  Era  Jesús  a  Sabedoria  déles,  de  sorte  que  em 
Cristo  acharam  tais  tesouros  de  conhecimentos  e  táo  grande 
cabedal  de  compreensáo  espiritual  que  nos  dominios  do  mun- 
do os  homens  nao  alcangam  nem  por  sonho.  Cristo  veio  a 
ser  também  a  "justiga"  déles,  isto  é,  em  Jesús  haviam  alcan- 
cado  o  perdáo  dos  pecados,  o  cancelamento  das  culpas  e 
aquela  paz  de  consciéncia  que  o  mundo  desconhece.  Jesús 
tornou-se  igualmente  a  ''santificacáo"  déles,  pois  no  Salvador 
encontraram  uma  pureza  e  uma  santidade  de  vida  que  nunca 
o  mundo  experimentou.  Tornou-se-lhes  também  Jesús  em 
^'redengáo",  porque  nao  sómente  pagou  "o  preco  do  pecado", 
como  se  levantou  dentre  os  mortos,  assegurando  assim  a  seus 
seguidores  uma  redengáo  que,  no  final  de  tudo,  há  de  atingir 
o  corpo  tanto  quanto  já  hoje  alcanga  a  alma.  Á  vista  de  táo 
grande  salvacáo  que  a  graca  divina  torna  certa  e  segura, 
e  fazendo  insignificante  a  sabedoria  humana  Paulo  pode 
muito  bem  concluir  fazendo  uma  citagáo  conhecida:  "Aquéle 
que  se  gloria,  glorie-se  no  Senhor". 

Tudo  isto,  porém,  que  acaba  de  Ihes  dizer  está  em  íntima 
relagáo  com  a  censura  que  faz  do  espirito  de  partido  existente 
entre  éles.  Se  a  salvagáo  procede  inteiramente  de  Deus,  se 
o  evangelho  é  táo  singularmente  uma  mensagem  e  de  uma 
revelagáo  da  graga  divina,  onde  achar  desculpa  para  a  divi- 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


sao  dos  crentes,  ou  onde  buscar  justificativa  para  um  dizer 
"Eu  sou  de  Paulo",  e  outro  "Eu  sou  de  Apolo"?  Por  que  os 
crentes  haveriam  de  gloriar-se  nos  homens?  Um  conheci- 
mento  exato  do  evangelho  torna  absurdo  o  sectarismo  e  uni- 
fica em  Cristo  todos  os  crentes. 


3.  O  Método  de  Paulo  anunciar  o  Evangelho.  Cap. 
2:1-5. 

1  Eu,  irmáos,  quando  fui  ter  convosco,  anunciando- 
vos  o  testemunho  de  Deus,  nao  o  fiz  com  ostentagáo 
de  linguagem,  ou  de  sabedoria.  2  Porque  decid!  nada 
saber  entre  vós,  senáo  a  Jesús  Cristo,  e  éste  crucificado. 
3  E  foi  em  fraqueza,  temor  e  grande  tremor  que  eu 
estive  entre  vós.  4  A  minha  palavra  e  a  minha  pre- 
gagáo  nao  consistiram  em  linguagem  persuasiva  dfe 
sabedoria,  mas  em  demonstracáo  do  Espirito  e  de  po- 
der, 5  para  que  a  vossa  fé  nao  se  apoiasse  em  sabedoria 
humana;  e,  sim,  no  poder  de  Deus. 

Se  a  igreja  de  Corinto  estava  desunida  por  um  espirito 
de  cisma  ou  facgáo  —  "Eu  sou  de  Paulo",  "Eu  de  Apolo", 
"Eu  de  Cefas",  "Eu  de  Cristo"  —  Paulo  frisa  que  a  culpa  nao 
era  sua.  No  cap.  precedente  chamou  atencáo  para  o  fato  de 
se  haver  abstido  de  administrar  batismos,  a  fim  de  que  nin- 
guém  supusesse  ser  aquéle  um  meio  de  arranjar  seguidores 
para  si  ou  membros  para  uma  igreja  Paulistana.  Aqui  declara 
que,  até  no  modo  de  pregar  havia  evitado  ocasiáo  a  quem 
quer  que  fósse  de  se  ufanar  de  o  ter  como  líder.  O  evangelho 
era  uma  mensagem  divina;  se  assim  fósse  compreendido  nao 
haveria  de  dar  ensancha  á  operagáo  de  tal  espirito  de  partido 
na  igreja.  Cuidara  o  apostólo  de  pregar  de  tal  modo  que 
o  caráter  e  a  origem  divina  de  sua  mensagem  nao  fossem 
escurecidas  pela  demonstragáo  de  sabedoria  humana.  Dian- 
te déles,  pois,  nao  havia  brilhado  como  orador  que  arre- 
batasse  pela  eloquéncia,  nem  quis  passar  como  filósofo,  no 
testemunho  da  graga  salvadora  de  Deus  em  Cristo  Jesús. 

Simples,  modesta  fóra  sua  tarefa  entre  éles,  e  definido 
seu  propósito.  Determinara  só  saber  uma  coisa  —  Jesús 
Cristo;  conhecé-lO  e  proclamá-lO  do  modo  menos  aceitável 
á  sabedoria  do  mundo,  isto  é,  apresentando  Jesús  abismado 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


27 


na  deshonra  da  morte  de  cruz.  Cristo  e  sua  obra  expiatoria, 
nao  qualquer  filosofia  humana  de  salvacáo,  constituira-se  a 
suma  e  a  substáncia  da  mensagem  de  Paulo. 

Dizendo  ele  ter  sido  éste  o  único  propósito  seu  entre  os 
corintios,  alguns  querem  ver  nisso  a  confissáo  tácita  de  que, 
entre  os  atenienses,  onde  ministrava  antes  fóra  outro  o  seu 
desiderato.  O  fracasso  do  ministério  de  Paulo  em  Atenas  é, 
entáo,  atribuido  ao  fato  de  se  ter,  ai  preocupado  com  poetas 
e  sábios  gregos.  Diz-se  que  fracassou  porque  no  discurso  pro- 
ferido no  Areópago  tivera  acentuado  sabor  filosófico.  Mas 
aqueles  que  pensam  déste  modo  compreendem  mal  a  men- 
sagem de  Atenas  e  nao  descobrem  o  verdadeiro  sentido  das 
presentes  palavras  dirigidas  á  Igreja  de  Corinto. 

Paulo  pregou  Cristo  em  Atenas,  mas  o  método  ai  usado 
foi  conciliatório  e  prudente,  defendendo  o  apóstolo  com  elo- 
quéncila,  fidelidade  e  poder  os  direitos  de  seu  Senhor  ressus- 
citado.  Sua  mensagem  adaptou-se  perfeitamicnte  ao  tipo  de 
ouvintes  que  ai  encontrón.  Se  houve  fracasso  deveu-se  ao 
orgulho  intelectual  dos  ouvintes,  antes  que  a  alguma  falha 
do  pregador. 

O-  contraste  a  sublinhar  aqui  nao  é  o  que  pudesse  haver 
entre  uma  e  outra  mensagem,  a  de  Atenas  e  a  de  Corinto, 
mas  é  o  que  ressalta  de  uma  comparacáo  da  pregacáo  de 
Paulo  ccm  a  de  outros  mais  filosóficos  no  argumentar,  e  que 
tinham  empolgado  por  tal  forma  os  ouvintes  que  éstes  se 
deixaram  arrastar  por  éles,  ao  ponto  de  se  declararem  seus 
adeptos  ou  simpatizantes,  perdendo  de  vista  o  seu  Salvador. 
Foi  éste  mesmo  perigo  que  o  apóstolo  quis  evitar  quando  re- 
solveu  ser  simples  em  seus  discursos  e  claro  em  sua  pregacáo. 

Confessa  que  esteve  entre  éles  "em  fraqueza",  o  que  se 
pode  entender  no  sentido  de  uma  enfermidade  física,  que  o 
abatesse  e  humilhasse,  constituindo-se  para  o  grande  após- 
tolo uma  provacáo  dolorosa.  Ou  talvez  queira  se  referir  a 
uma  perturbacáo  mental,  ou  depressáo  espiritual,  a  par  do 
"temor"  e  "grande  tremor"  que  fizeram  de  sua  primeira  es- 
tada em  Corinto  um  dissabor  sem  precedente.  Vira-se  de- 
solado, sozinho,  no  meio  da  grande  cidade,  ansiando  pela 
chegada  de  seus  cooperadores  Silas  e  Timóteo.  O  ambiente 
pesado  de  um  paganismo  grosseiro  deprimia-o.  O  orgulho, 
aquela  auto-suficiéncia  dos  corintios  desalentava-o.  Sentia 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


asco  pelas  impurezas  e  corrucáo  moral  ambiente.  Como  so- 
brecarga de  tudo,  entristecia-o  a  oposicáo  maligna  e  blasfema 
de  seus  mesmos  patricios,  os  judeus. 

Foi  quando  o  Senhor  Ihe  aparecen  de  noite,  em  visáo, 
para  llie  dizer:  "Nao  temas;  pelo  contrário,  fala  e  nao  te 
cales:  visto  que  eu  estou  contigo  e  ninguém  ousará  fazer-te 
mal,  pois  tenho  muito  povo  nesta  cidade".  Com  esta  visáo 
Paulo  se  dispós  a  depender  de  Cristo,  rnais  do  que  antes.  Nao 
se  preocupou  mais  tanto  consigo,  com  a  sua  apresentagáo  ou 
com  a  forma  de  sua  pregacáo.  Sua  "palavra"  e  sua  "prega- 
cao",  pois,  nao  consistiram  em  "linguagem  persuasiva"  de 
humana  "sabedoria".  Nao  obstante,  foram  acompanhadas 
pela  demonstragáo  do  Espirito  e  pelo  seu  poder.  Tudo  isto 
de  acordó  com  o  propósito  divino,  para  que  os  ouvintes  nao 
depositassem  sua  fé  em  qualquer  aparato  de  sabedoria  huma- 
na, mas  no  poder  manifestó  de  Deus. 

Á  vista  disso,  portanto,  quáo  absurdos  e  pecaminosos  nao 
eram  aqueles  movimentos  partidários  que  dividiam  a  igreja, 
ocasionados  por  preferencias  a  mestres  humanos  e  por  uma 
admiracáo  jactanciosa  dos  talentos  e  das  habilidades  de  po- 
bres criaturas  mortais. 

O  evangelho,  sendo  como  é  um  recado  divino,  focaliza  a 
pessoa  de  Cristo,  aliás  num  Cristo  que  foi  crucificado.  A 
mazela  das  divisóes  entre  os  crentes  serial  debelada  se  os 
filhos  de  Deus  se  preocupassem  mais  com  o  seu  divino  Se- 
nhor e  sua  graga  redentora,  e  tratassem  menos  das  especu- 
lacoes,  teorías  e  fórmulas  humanas. 

Por  outro  lado  também  os  ministros  do  evangelho  devem 
atentar  cuidadosamente  no  conteúdo  de  suas  pregacoes,  que 
fatos  merecem  a  devida  énfase,  e  mesmo  para  suas  maneiras 
de  expressáo,  de  modo  que  fagam  jus  ao  título  de  verdadeiros 
pregadores  de  "Jesús  Cristo,  e  éste  crucificado". 


4.  O  Espirito  de  Deus,  intérprete  do  Evangelho.  Cap. 
2:6-16. 

6  Entretanto,  expomos  sabedoria  entre  os  experi- 
mentados; nao,  porém,  a  sabedoria  déste  século,  nem 
a  dos  poderosos  desta  época,  que  se  reduzem  a  nada; 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  29 


7  mas  falamos  a  sabedoria  de  Deus  em  mistério,  ou- 
trora  oculta,  a  qual  Deus  preordenou  desde  a  etemi- 
dade  para  a  nossa  gloria;  8  sabedoria  essa  que  nenhum 
dos  poderosos  déste  século  conheceu;  porque,  se  a  ti- 
vessem  conhecido,  jamáis  teriam  crucificado  o  Senhor 
da  gloria;  9  mas,  como  está  escrito;  Nem  olhos  vi- 
ram,  nem  ouvidos  ouviram,  nem  jamáis  penetrou  em 
cora^áo  humano,  o  que  Deus  tem  preparado  para  aque- 
les que  o  amam.  10  Mas  Deus  no-lo  revelou  pelo  Espi- 
rito; porque  o  Espirito  a  todas  as  coisas  perscruta,  até 
mesmo  as  profundezas  de  Deus.  11  Porque,  qual  dos 
homens  sabe  as  coisas  do  homem,  senáo  o  seu  próprio 
espirito  que  néle  está?  assim  também  as  coisas  de 
Deus  ninguém  as  conhece,  senáo  o  Espirito  de  Deus. 
12  Ora,  nós  nao  temos  recebido  o  espirito  do  mundo,  e, 
sim,  o  Espirito  que  vem  de  Deus,  para  que  conhecamos 
o  que  por  Deus  nos  foi  dado  gratuitamente.  13  Disto 
também  falamos,  nao  em  palavras  ensinadas  pela  sa- 
bedoria humana,  mas  ensinadas  pelo  Espirito,  confe- 
rindo  coisas  espirituais  com  espirituais.  14  Ora,  o  ho- 
mem natural  nao  aceita  as  coisas  do  Espirito  de  Deus, 
porque  Ihe  sao  loucura;  e  nao  pode  entendé-las  porque 
elas  se  discernem  espiritualmente.  15  Porém  o  homem 
espiritual  julga  todas  as  coisas,  mas  ele  mesmo  nao  é 
julgado  por  ninguém.  16  Pois,  quem  conheceu  a  mente 
do  Senhor,  que  o  possa  insíiruir?  Nós,  porém,  temos 
a  mente  de  Cristo. 

Algumas  vézes  ouvimos  alusoes  á  simplicidade  do  evan- 
gelho.  A  expressáo  é  bastante  apropriada,  se  quer  dizer  men- 
sagem  crista,  livre  de  quaisquer  acréscimos  e  corrutelas.  Num 
sentido  mais  verdadeiro,  porém,  o  evangelho  nao  tem  nada 
de  simples,  pois  envolve  a  filosofia  mais  profunda  com  que 
já  se  deparou  o  intelecto  do  homem.  Originou-se  na  mente 
e  no  coragáo  de  Deus.  É  táo  sutil  e  misterioso,  sobrepuja 
por  tal  forma  as  mais  alcandoradas  criacoes  da  razáo  huma- 
na que  ninguém  o  compreende  ou  déle  faz  uma  idéia  corre  ta 
se  o  Espirito  de  Deus  nao  vier  em  auxilio. 

É  isto  o  que  Paulo  afirma:  embora  possa  parecer  "lou- 
cura" ao  homem,  e  ainda  que,  na  sua  proclamagáo,  tivesse 
fúgido  a  aparatos  filosóficos  e  a  qualquer  exibigáo  de  huma- 
na sabedoria,  nao  obstante  isso  o  evangelho  é  verdadeira 
"sabedoria",  reconhecido  como  tal  pelos  "experimentados" 
ou  amadurecidos  espiritualmente.  Todavía,  nao  é  "sabedo- 
ria déste  século,  nem  a  dos  poderosos  desta  época",  que 
se  estáo  reduzindo  "a  nada",  visto  como  sua  suposta  sabe- 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


doria  está  aos  poucos  se  desacreditando,  em  virtude  de  sua 
incapacidade  moral  e  pelo  manifestó  poder  do  evangelho. 
Com  efeito,  o  que  Paulo  anuncia  é  a  "sabedoria  de  Deus". 
Esta  esteve  "em  mistério",  na  acepgáo  neo-testamentária  do 
termo,  o  que  indica  nao  algo  impossível  de  se  compreender, 
mas  aquilo  que  a  razáo  humana  por  si  jamáis  podia  ter  des- 
coberto,  ou  seja  um  fato  posto  em  perfeita  evidencia  somente 
pelo  Espirito  de  Deus.  É  ésse  mistério  que  Paulo  ai  descreve 
como  ''sabedoria  outrora  oculta",  v.  7,  cujo  conteúdo  o  Se- 
nhor  nos  revelou  "pelo  Espirito". 

Tal  sabedoria,  aliás  o  plano  eterno  da  salvagáo  por  Cristo, 
esteve  oculta  do  homem.  Nenhum  gigante  do  pensamento 
ou  da  política  a  descobriu,  pois  "se  a  tivessem  conhecido, 
jamáis  teriam  crucificado  o  Senhor  da  gloria".  Os  contem- 
poráneos de  Cristo  nao  tinham  qualquer  vlsáo  espiritual. 
Nao  sabiam  o  que  era  verdadeira  virtude  e  santidade;  nao 
eram  capazes  de  apreciar  o*  amor  divino,  porque  tudo  isso, 
estando  corporificado  no  Salvador,  éles  rejeitaram,  crucifi- 
cando a  Jesús.  O  meio  de  salvagáo  que  Deus,  em  sua  graga, 
preparara  nao  foi  descoberto  pelo  homem,  nem  o  podia  ser, 
salvo  pela  revelagáo  do  Espirito  de  Deus. 

Uma  citagáo  de  Isaías  vem  corroborar  esta  declaragáo  do 
apostólo.  Náo  é  feita  literalmente,  mas  o  pensamento  central 
é  apresentado.  Sublinha-se  ai  a  incapacidade  do  homem 
para  desvendar  aquilo  que  somente  Deus  pode  revelar: 

"Nem  olhos  viram,  nem  ouvidos  ouviram, 

Nem  jamáis  penetrou  em  coragáo  humano 

O  que  Deus  tem  preparado  para  aqueles  que  O  amam". 

Náo  se  alude  ai  as  glorias  desconhecidas  do  céu,  como  em 
geral  se  pensa,  mas  a  referencia  é  ao  meio  de  salvagáo  que 
Deus  preparou  pela  vida,  morte,  ressurreigáo  e  poder  salva- 
dor de  Cristo.  O  olho  de  ninguém  jamáis  o  descobriu,  nem 
ouvido  humano  o  percebeu,  nem  coragáo  de  carne  o  conce- 
beu.  É  divino  em  sua  origem.  Saiu  da  excogitagáo  do  Es- 
pirito de  Deus.  Náo  diz  respeito  simplesmente  a  um  estado 
futuro  de  existencia,  mas  é  ura  fato  que  já  agora  se  pode 
conhecer  e  experim.entar.  Paulo  o  declara,  por  dizer:  "Mas 
Deus  no-lo  reveiou  pelo  Espirito;  porque  o  Espirito  a  todas 
as  coisas  perscruta,  até  mesmo  as  profundezas  de  Deus". 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


31 


De  sorte  que  o  evangelho  nao  sómente  é  divino  em  sua 
origem  como  também  o  é  em  sua  íntima  natureza,  visto  como 
sem  o  auxilio  do  Espirito  de  Deus  nao  pode  ser  compreendido. 

Dizendo  que  o  Espirito  a  tudo  perscruta  nao  se  deve  dai 
inferir  um  conhecimento  parcial  que  necessite  de  aperfeigoar- 
mento,  mas  trata-se  de  um  conhecimento  profundo  e  minu- 
cioso, como  quando  se  diz  que  Deus  perscruta  os  coragoes. 
E  ésse  conhecimento  Paulo  o  compara  á  consciéncia  que 
todas  as  pessoas  tém  de  si.  Só  o  espii'ito  do  homem  pode 
saber  o  que  se  passa  no  seu  íntimo,  ou  o  que  existe  em  sua 
mente  ou  no  seu  ccracáo.  Assim,  só  o  Espirito  de  Deus 
pode  alcancar  os  profundos  designios,  os  planos  e  a  sabe- 
doria  de  Deus,  tudo  isto  com  efeito  coi-porificado  no  evange- 
lho de  Cristo.  Para  que  compreendamos  ésse  evangelho,  de- 
clara o  apestólo,  Deus  nos  esclarece  com  uma  luz  que  difere 
da  inteligencia  comum  dos  sábios  do  século,  ou  seja  um  de- 
terminado discernimento  espiritual  que  provém  totalmente 
do  Espirito  de  Deus.  Recebemos  ésse  Espirito  para  nos  ca- 
pacitarmos  a  compreender  a  mensagem  da  graca,  disso  mesmo 
"que  por  Deus  nos  é  dado  gratuitamente". 

É  esta  a  mensagem  de  que  Paulo  se  declara  portador,  a 
qual  consiste  ''nao  em  palavras  ensinadas  pela  sabedoria 
humana,  mas  ensinadas  pelo  Espirito,  conferindo  coisas  es- 
pirituais  com  espirituais".  Esta  última  cláusula  pode  querer 
dizer  —  "interpretando  coisas  espirituais  para  pessoas  espi- 
rituais", ou  "apresentando  verdades  espirituais  por  meio  de 
palavras  fornecidas  pelo  Espirito". 

Nao  é  estranhável,  pois,  que  o  evangelho  parega  rema- 
tada loucura  as  pessoas  do  mundo,  ao  homem  "natural",  nao 
espiritual,  cuja  capacidade  de  apreensáo  nao  se  estende  além 
da  esfera  do  intelecto.  Isto  porque  o  evangelho  se  ocupa  de 
verdades  que  pertencem  ao  reino  do  espirito,  só  podendo  ser 
compreendidas  por  pessoas  "espirituais".  O  que  ele  ai  cha- 
ma "espirito"  é  o  espirito  humano  influenciado  pelo  Espirito 
de  Deus,  e  homem  espiritual  é  aquéle  que  está  sob  a  influen- 
cia do  Espirito  de  Deus.  Evidencia-se  entáo  a  causa  pela  qual 
"o  homem  natural  nao  aceita  as  coisas  do  Espirito  de  Deus" 
e  por  que  estas  Ihe  parecem  loucura  e  nao  as  pode  entender. 
Sao  coisas  que  se  julgam  ou  apreciam  espiritualmente.  O 
incrédulo,  o  "homem  natural",  nao  iluminado  pelo  Espirito 
de  Cristo,  nao  está  aparelhado  para  apreciar  ou  perscrutar  e 


32 


CHARLES  R.  ERDMAN 


muito  menos  compreender  o  evangelho.  Ao  passo  que  "o 
homem  espiritual  julga  todas  as  coisas",  até  o  que  os  olhos 
humanos  nao  discernem,  nem  os  ouvidos  ouvem,  nem  o  es- 
pirito concebe,  até  mesmo  aquelas  coisas  profundas  relacio- 
nadas com  o  divino.  Pode  ser  inculto,  segundo  o  critério  de 
o  mundo  julgar  cultura,  pode  ser  rude  ou  falho  de  inteligen- 
cia no  entender  dos  homens,  mas  é  capaz  de  aprender  ver- 
dades que  o  mais  sábio  e  mais  arguto  homem  natural  nao 
pode  perceber.  E  ele  mesmo  é  um  mistério  para  o  homem 
natural.  Nao  há  ninguém  no  mundo  que  possa  compreender 
um  eren  te:  "ele  mesmo  nao  é  julgado  por  ninguém". 

Por  outra  parte,  nós  que  aceitámos  o  evangelho  e  temos 
a  iluminagáo  do  Espirito,  "nós  temos  a  mente  de  Cristo". 
Nao  quer  isto  dizer  que  a  tempera  moral  do  crente  seja  tao 
perfeita  como  a  de  seu  Senhor,  nem  significa  seja  sobrehu- 
mano o  conhecimento  que  tem.  Quer  dizer  que,  debaixo  da 
influencia  do  Espirito  Santo,  suas  faculdades  moráis  e  inte- 
lectuais  recebem  tal  despertamento,  vitalidade  ou  esclareci- 
mento  que  ele  pode  entender  o  meio  de  salvagáo  proclamado, 
operado,  aprovado  por  Cristo  e  posto  ao  alcance  da  inteli- 
gencia dos  homens  pelo  Espirito  de  Cristo. 

Entáo,  se  o  evangelho  tem  essa  orígem  e  natureza  di- 
vinas, aqueles  que  o  aceitam  por  que  haveriam  de  permitir 
divisoes  em  seu  meio,  ocasionadas  pelos  que  o  anunciam? 
Se  da  parte  déstes  houver  lealdade  a  ésse  evangelho  único, 
os  que  o  aceitam  conviráo  néle  e  andaráo  concordes;  se  os 
que  o  pregam  forem  fiéis  ao  seu  ministério,  nao  permitiráo 
que  o  brilho  de  sua  mensagem  seja  obscurecido  pelos  artifi- 
cios da  retórica  e  de  uma  filosofía  humana.  O  seg;rédo  de 
uma  igreja  unida,  coesa,  está  na  iluminagáo  do  Espirito  de 
Cristo  que  faz  seja  compreendido  pelos  eren  tes  o  evangelho 
do  mesmo  Senhor  Jesús. 


5.   Espirito  de  partido,  prova  de  imaturidade  espiritual. 
Cap.  3:1-4. 

1  Eu,  porém,  irmáos,  nao  vos  pude  falar  como  a 
espirituais  e  sim  como  a  carnais,  como  a  criangas  em 
Cristo.  2  Leite  vos  dei  a  beber,  nao  vos  del  alimento 
sólido;   porque  ainda  nao  podieis  suportá-lo.  Nem 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


33 


ainda  agora  podéis,  3  porque  aínda  sois  camais.  Por- 
quauto,  havendo  entre  vós  ciúmes  e  contendas,  nao  é 
assim  que  sois  carnais  e  andáis  segundo  o  homem?  4 
Quando,  pois,  alguém  diz:  Eu  sou  de  Paulo;  e  outro: 
Eu,  de  Apolo;  nao  é  evidente  que  andáis  segundo  os 
homens? 

Nada  pode  ser  mais  infantil  nos  crentes  e  que  mais  indi- 
que atraso  espiritual  como  andarem  divididos,  em  rivalidades 
denominacionais  ou  dominados  por  espirito  faccioso.  Assim 
é  que,  censurando  nos  corintios  seu  espirito  sectário,  decla- 
ra-lhes  que  se  estáo  mostrando  com  isso  ser  simples  "criancas 
em  Cristo"  e  agindo  á  maneira  de  quem  ainda  nao  provou 
a  regeneracáo. 

Foi  multo  bem  calculada  a  censura,  porque  os  corintios 
se  envaideciam  de  seus  dons  e  de  sua  capacidade  de  realiza- 
goes,  enquanto  alguns  faziam  pouco  de  Paulo,  desdenhando 
da  simplicidade  de  seu  ensino.  O  apostólo  redargüí,  dizendo 
que  a  sua  simplicidade  no  caso  correspondía  á  imaturidade 
déles.  Apenas  procurara  adaptar-se  á  incapacidade  de  seus 
ouvintes.  Como  espiritual,  nao  Ihes  pudera  falar  como  a 
espirituais,  pela  simples  razáo  de  nao  serem  capazes  de  com- 
preendé-lo  nem  de  aceitar  um  ensino  mais  adiantado.  "O 
homem  natural  nao  aceita  as  coisas  do  Espirito  de  Deus 
porque  Ihe  sao  loucura,  e  nao  podem  entendé-las  porque  elas 
se  discernem  espiritualmente". 

Com  isto  nao  quer  dizer  que  nao  eram  crentes,  mas  ve- 
rificou  o  apostólo  que  ainda  estavam  na  sua  infancia  espiri- 
tual. Já  haviam  passado  pela  experiencia  do  novo  nascimento, 
mas  a  velha  natureza  e  as  antigás  propensoes  da  carne  cer- 
ceavam  néles  a  acáo  do  Espirito.  Nao  se  haviam  desenvolvido 
e,  pois,  eram  "criangas  em  Cristo". 

De  certo  que  nao  é  vergonha  ser  crianga,  mas  permane- 
cer crianga  toda  a  vida,  parar  de  desenvolver-se,  é  coisa  digna 
de  lástima.  Regeneragáo  nao  significa  perfeigáo  moral,  senáo 
o  comégo  de  nova  vida.  E  há  multo  caminho  a  andar,  do 
bergo  á  maturidade. 

Considerando  a  condigáo  dos  corintios,  de  falta  de  ma- 
dureza  espiritual,  havia-os  alimentado  com  "leite"  e  nao  Ihes 
dera  ^'alimento  sólido".  Ministrava-lhes  o  que  convinha  a 
criangas.    Ensinara-lhes  sómente  as  verdades  rudimentares 


34  CHARLES  R.  ERDMAN 


do  evangelho,  pois  verificara  que  nao  eram  capazes  de  receber 
e  assimilar  alimento  pesado,  isto  é,  doutrinas  mais  difíceis 
e  mais  ayancadas.  Pregara-lhes  "Jesús  Cristo,  e  éste  cruci- 
ficado", mas  nésse  mister  limitara-se  a  formas  elementares 
e  aplicacoes  mais  simples  da  mensagem  evangélica. 

Há  tempo  e  lugar  oportunos  para  essa  pregagáo.  Todos 
precisam  saber  acerca  do  perdáo,  da  paz  e  poder  que  resultam 
da  fé  no  Cristo  crucificado  e  redivivo.  Aceitar  ésse  Cristo 
como  Senhor  e  Mestre,  e  passar  pela  experiencia  do  novo 
nascimento,  é  comegar  uma  vida  nova. 

E  nisto  é  que  consiste  o  desenvolvimento  espiritual: 
apreciar  tais  verdades,  viver  por  elas,  aplicá-las  a  cada  uma 
das  necessidades  da  vida  e  entáo  ser  capaz  de  receber  e  apre- 
ciar outras  matérias  mais  adiantadas  do  ensino  cristáo.  Mas 
nisto  é  que  os  corintios  falharam.  Nao  se  haviam  desenvol- 
vido, continuavam  como  criangas  em  Cristo,  e  ainda  eram 
incapazes  de  digerir  alimento  sólido.  Ainda  eram  "carnais", 
isto  é,  néles  a  "carne"  sobrepunha-se  ao  espirito,  a  velha 
natureza  com  suas  ruins  inclinagoes  mantinha  ascendencia 
sobre  a  nova.  Via-se  que  éles  andavam  "segundo  o  homem", 
como  aqueles  que  de  Deus  ainda  nao  tinham  recebido  nova 
vida,  tais  quais  os  irregenerados  do  mundo. 

E  a  prova  dessa  falta  de  madureza,  désse  raquitismo  es- 
piritual, estava  ñas  invejas,  ñas  contendas  e  divisoes.  O 
simples  fato  de  haver  desuniáo  entre  éles  já  era  prova  de 
imaturidade  espiritual,  enquanto  os  ciúmes  e  intrigas,  que. 
originavam  e  mais  agravavam  tal  desuniáo,  eram  outras 
tantas  indicacoes  de  falta  de  desenvolvimento  e  prova  de 
uma  condicáo  carnal. 

Muitos  crentes  há  que  se  ufanam  de  pertencer  a  certas 
correntes  de  opiniáo  dentro  de  sua  igreja,  quando  a  própria 
existéncia  de  tais  correntes  diversificadas  e  opostas  sao  uma 
desgraga  e  vergonha.  Quando  existe  tal  espirito  faccioso  no 
meio  do  povo  de  Deus,  tem-se  ai  uma  demonstragáo  lasti- 
mável  de  falta  de  compreensáo  do  evangelho  de  Cristo.  Os 
crentes  amadurecidos,  "espirituais",  regozijam-se  na  unidade 
da  Igreja.  A  éles  o  Espirito  Santo  há  revelado  as  profunde- 
zas  de  Deus  e  os  tem  feito  sentir  e  gozar  a  doce  realidade  de 
os  filhos  de  Deus  constituirern  um  corpo  único.  E  porque  o 
sentem  e  gozam,  procuram  guardar  e  manifestar  essa  uni- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  35 


dade  que  o  Espirito  opera  servindo-se  éles  do  vínculo  ou  dos 
elos  da  paz,  "até  que  todos  cheguemos  á  unidade  da  fé  e  do 
pleno  conhecimento  do  Filho  de  Deus,  á  perfeita  varonilidade, 
á  medida  da  estatura  da  plenitude  de  Cristo". 

6.  Os  Ministros  sao  Servos  de  Deus,  nao  Senhores  dos 
Homens.  Cap.  3:5-9. 

5  Quem  é  Apolo?  e  quem  é  Paulo?  Servos  por  meio 
de  quem  créstes,  e  isto  conforme  o  Senhor  concedeu  a 
cada  um.  6  Eu  plantei,  Apolo  regou;  mas  o  crescimen- 
to  veio  de  Deus.  7  De  modo  que  nem  o  que  planta  é 
alguma  coisa,  nem  o  que  rega,  mas  Deus  que  dá  o 
crescimento.  8  Ora,  o  que  planta  e  o  que  rega  sao  um; 
e  cada  um  receberá  o  seu  galardáo,  segundo  o  seu  pró- 
prio  trabalho.  9  Porque  de  Deus  somos  cooperadores; 
lavoura  de  Deus,  edificio  de  Deus  sois  vos. 

Paulo  mostrou  que  o  espirito  de  seita  na  igreja  podia  ser 
corrigido  á  luz  do  evangelho,  considerado  éste  como  mensa- 
gem  da  parte  de  Deus,  revelada  pelo  Espirito  Santo.  Éste 
conceito  do  evangelho  torna  impossivel  que  nos  gloriemos  no 
homem,  ou  torna  impraticável  a  divisáo  da  igreja  em  parti- 
dos antagónicos  que  se  manifestam  em  predilegáo  a  deter- 
minados líderes. 

Agora  éle  procura  mostrar  que  tal  espirito  sectário  se 
corrige  também  por  uma  apreciacáo  correta  do  que  seja  um 
ministro  do  evangelho,  que  é  servo  de  Deus  e  nao  dominador 
de  homens.  A  palavra  ''ministro"  tem  sua  beleza  e  é  suges- 
tiva. Significa  "servo"  e  é  éste  o  seu  sentido  no  Novo  Testa- 
mento. Nunca  significa  pastor  de  igreja  ou  chefe  de  uma 
congregacáo,  como  na  linguagem  moderna  comumente  quer 
dizer.  Paulo  declara  que  éle,  Apolo  e  outros  mensageiros  do 
evangelho  nao  passam  de  servos  que  pertencem  a  Deus,  sendo 
absurdo  os  crentes  corintios  dividirem-se  em  correntes  de 
opiniáo  a  respeito  de  homens  que  Deus  enviou  para  serví-los. 
Tais  mensageiros  sao  propriedade  de  Deus,  e  aquéles  que  re- 
ceberam  sua  mensagem  igualmente  o  sao,  pelo  que  se  devem 
mostrar  agradecidos  ao  Senhor  em  face  do  servico  que  assim 
Ihes  é  prestado.  Nada  de  orgulho  ou  ciúme  a  propósito  dos 
vários  beneficios  que  tais  obreiros  proporcionam.    Sob  éste 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


ponto  de  vista  o  ministério  deve  antes  congracar  os  crentes 
numa  gratidáo  unánime  e  jamáis  dividí-los  ou  provocar  entre 
éles  rivalidades  e  emulagoes. 

"Quem  é  Apolo  e  quem  é  Paulo",  pergunta.  Certamente 
nao  tiveram  a  pretensáo  de  fundar  partidos  ou  seitas,  com 
ares  de  quem  queria  dominá-los.    Sao  servos  cujo  único  dé- 
se jo  foi  o  de  estabelecerem  lá  uma  igreja  unida  e  forte, 
constituida  de  todos  os  seguidores  de  Cristo.    Sao  ministros 
por  meio  de  quem  os  corintios  foram  levados  á  fé.  Cada  qual 
vai  executando  a  tarefa  que  o  Senhor  Ihes  assinou.  Paulo 
semeia,  Apolo  rega,  mas  é  Deus  quem  faz  crescer  a  planta. 
Paulo,  é  verdade,  comegou  o  trabalho  entre  éles;  depois  veio 
Apolo  e  continuou  a  obra.  Mas  nem  um  nem  outro  é  alguma 
coisa,  porque  o  éxito  de  ambos  veio  sómente  da  béngáo  de 
Deus.    Em  si  ou  de  si  mesmos  nada  sao,  muito  menos  na 
presenta  de  Deus,  de  cuja  boa  providéncia  depende  o  cres- 
cimento  do  trabalho. 

O  interessante,  além  do  mais,  é  que  Paulo  e  Apolo  nao 
sao  rivais.  Ninguém  pois  os  considere  chefes  de  seitas.  Sao 
diferentes  as  tarefas  que  realizam,  mas  estáo  unidos  quanto 
ao  alvo  que  tém  sob  as  vistas.  "O  que  planta  e  o  que  rega 
sao  um".  Só  aspiram  a  uma  coisa  na  vida:  o  progresso  da 
Igreja.  Cooperagao  e  nao  competigáo.  As  oportunidades  e 
responsabilidades  de  ambos  variam,  porisso  também  a  remu- 
neracáo  que  váo  receber  será  variada,  todavía  proporcionada 
á  diligéncia  e  á  fidelidade  que  um  e  outro  tiver  mostrado  na 
obra:  "Cada  um  receberá  seu  galardáo,  segundo  o  seu  pró- 
prio  trabalho". 

Ninguém  deve  alegar  superioridade  de  um  trabalho  sobre 
outro,  como  justificativa  de  predilegáo  por  A  ou  B.  Tais  pre- 
feréncias  sao  de  todo  destituidas  de  razáo,  atendendo-se  a 
que  "nós"  ministros  evangélicos,  "nós"  mensageiros  de  boas 
noticias,  *'nós"  servos  da  Igreja,  todos  somos  "cooperadores 
de  Deus".  Nao  quer  dizer  que  operamos  com  Deus.  Nao  é 
éste  o  sentido  do  apostólo.  Somos  operadores  em  companhia 
de  outros,  e  todos  pertencemos  a  Deus.  Como  servos  do  Se- 
nhor cabe-nos  uma  tarefa  comum,  que  é  laborar  no  campo 
de  propriedade  divina,  na  Igreja,  na  térra  lavrada  onde  um 
langa  a  sementé  que  outro  logo  mais  vem  regar.  Mudando 
a  figura  de  linguagem,  somos  operários  ocupados  na  cons- 
trugáo  do  grande  templo  que  se  destina  á  habitagáo  de  Deus. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


37 


Enquanto  nós  somos  cooperadores  de  Deus,  diz  o  apostólo, 
por  outro  lado  "vós  sois  lavoura  de  Deus  e  edificio  de  Deus". 

Esta  conceituagáo  do  ministério  sagrado  assegura  uni- 
dade  á  Igreja  e  promove  um  espirito  de  humildade  e  de  sim- 
patía entre  os  que  servem  ao  Senhor. 


7.  A  Responsabilidade  dos  Ministros.  Cp.  3:10-17. 

10  Segundo  a  gra?a  de  Deus  que  me  foi  dada,  lan- 
cci  o  fundamento  como  prudente  construtor;  e  outro 
edifica  sobre  ele.  Porém  cada  um  veja  como  edifica. 
11  Porque  ninguém  pode  lanzar  outro  fundamento, 
além  do  que  foi  posto,  o  qual  é  Jesús  Cristo.  12  Con- 
tudo,  se  o  que  alguém  edifica  sobre  o  fundamento  é 
ouro,  prata,  pedras  preciosas,  madeira,  feno,  paina,  13 
manifesta  se  tornará  a  obra  de  cada  um;  pois  o  dia  a 
demonstrará,  porque  está  sendo  revelada  pelo  fogo;  e 
qual  seja  a  obra  de  cada  um  o  próprio  fogo  o  provará. 
14.  Se  permanecer  a  obra  de  alguém  que  sobre  o  tunda- 
damento  edificou,  ésse  receberá  galardáo;  15  se  a  obra 
de  alguém  se  queimar,  sofrerá  ele  daño;  mas  ésse 
mesmo  será  salvo,  todavía,  como  que  através  do  fogo. 
16  Nao  sabéis  que  sois  santuarios  de  Deus,  e  que  o 
Espirito  de  Deus  habita  em  vós?  17  Se  alguém  des- 
truir o  santuário  de  Deus,  Deus  o  destruirá;  porque  o 
santuário  de  Deus,  que  sois  vós,  é  sagrado. 

Se  as  tarefas  sao  diferentes,  diferentes  também  sao  os 
servos  a  quem  elas  sao  distribuidas,  mas  todos  sao  igualmente 
responsáveis  pela  qualidade  do  servigo  que  prestar  em.  Essa 
variedade  de  trabalho  na  Igreja,  Paulo  acabou  de  ilustrá-la 
com  a  figura  do  campo,  onde  um  planta  e  outro  rega  a  se- 
menté que  germina.  Mas,  para  melhor  atingir  o  fim  em 
vista,  ele  agora  troca  a  figura  e  passa  a  falar  de  um  templo. 
Os  ministros  evangélicos  sao  companheiros  de  trabalho.  Ca- 
da um  tem  sua  parte  na  edificagáo  désse  templo,  e  todos  sao 
responsabilizados  pelo  tipo  de  material  que  emprega  e  pela 
maneira  de  executar  o  trabalho.  Todos  se  devem  esforgar 
para  que  a  sua  construgáo  suporte  o  teste  da  apreciacáo  de 
Cristo,  e  assim  receba  o  galardáo. 

No  que  Ihe  diz  respeito,  Paulo  assevera  que  agiu  como 
um  construtor  entendido  no  seu  mister.  Resguarda-se  de 
parecer  vaidoso  e  presungoso  declarando  logo  que  a  sabedo- 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


ría  com  que  agiu  deveu-a  á  "graga  de  Deus".  Nao  havia  pois 
nada  de  merecimento  no  seu  traballio.  Langou  o  fundamento, 
o  coméco  da  igreja  em  Corinto,  e  tudo  quanto  outros  mestres 
estavam  fazendo  agora  era  edificar  sobre  essa  fundagáo.  Que 
se  acautelen!,  pois,  e  atentem  no  que  fazem.  De  urna  coisa 
fiquem  cientes:  se  ja  qual  for  o  trabalho  que  estejam  reali- 
zando, de  outra  fundacáo  é  que  nao  devem  cogitar.  O  Fun- 
damento lancado  foi  Cristo.  Foi  com  o  anúncio  de  seu  Se- 
nhor  crucificado,  ressurto  e  outra  vez  esperado  do  céu  que 
se  fundou  a  igreja  alí.  O  próprio  Deus,  com  efeito,  dera  ésse 
Fundamento  á  Igreja,  de  sorte  que  nao  houvesse  dúvida  so- 
bre isto:  "ninguém  pode  lancar  outro  fundamento,  além  do 
que  foi  posto,  o  qual  é  Jesús  Cristo". 

Todavía  é  possível  levantar  sobre  essa  fundagáo  estrutu- 
ras  de  materiais  diversos.  Um  constroi  com  elementos  custo- 
sos  e  duráveis,  como  o  ouro,  a  prata  e  as  pedras  preciosas. 
Outro  emprega  materiais  que  se  deterioram  com  o  tempo 
tais  a  madeira,  o  feno  e  a  palha.  Nao  estamos  certos  sobre 
aquilo  a  que  exatamente  correspondiam  ésses  variados  mate- 
riais da  comparagáo  do  apostólo.  Pensam  alguns  que  se  re- 
fere a  doutrinas,  umas  falsas  e  outras  verdadeiras.  Há  os 
que  querem  seja  a  referencia  a  pessoas,  umas  chelas  de  bon- 
dade  e  servigais,  outras  sem  nenhum  préstimo,  que  estavam 
ingressando  na  Igreja  visível.  Ainda  outros  supoem  que  o 
apostólo  alude  aos  frutos  moráis  e  espirituais  do  trabalho  de 
certos  mestres  cristáos,  frutos  que  apareciam  na  vida  e  no 
caráter  de  seus  discípulos.  Sao  tres  pontos  de  vista  aparen- 
temente discrepantes,  mas  que  se  completam.  As  sás  dou- 
trinas moldam  o  caráter  e  determinam  a  conduta,  ao  passo 
que  ensinos  erróneos,  mediocres,  tolos  levam  a  profissoes  de 
fé  vazias  de  sentido,  de  modo  que  as  igrejas  se  enchem  fácil- 
mente e  chegam  a  dar  a  impressáo  de  ser  grandes  e  fortes, 
todavía  incapazes  de  resistir  a  prova  do  tempo  ou  o  julgamen- 
to  de  Cristo. 

Ésse  dia  de  prova  e  de  revelagáo  vai  chegar,  sem  nenhu- 
ma  dúvida.  "Manifesta  se  tornará  a  obra  de  cada  um",  ou 
seja  a  sua  verdadeira  natureza.  "O  dia"  da  segunda  vinda 
de  Cristo  "o  demonstrará",  ésse  dia  glorioso  ainda  futuro, 
quando  o  Senhor  há  de  dar  recompensa  a  seus  servos.  O 
julgamento  será  como  fogo,  que  experimentará  o  real  valor 
da  obra  de  cada  um.    A  mediocridade  e  vaidade  de  alguns 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


39 


trabalhos  seráo  reveladas;  outros  se  mostraráo  de  valor  per- 
manente. Receberá  galardáo  aquéle  cuja  obra  fór  aprovada, 
e  deixará  de  recebé-lo  quem  nao  o  fór.  Todavía  nao  perderá 
a  alma.  Se  tiver  edificado  sobre  o  fundamento  que  é  Cristo, 
será  salvo,  embora  perdendo  o  trabalho  que  realizou.  Seráo 
semelhantes  a  quem  consegue  escapar,  a  muito  custo,  de  uma 
casa  incendiada.  "Ele  mesmo  será  salvo,  todavía  como  que 
através  do  fogo".  Torncu-se  proverbial  esta  expressáo  para 
significar  um  escape  difícil  e  arriscado.  Também  pode  ter  o 
sentido  de  uma  vergonha  profunda,  uma  desílusáo  tremenda 
e  um  rem.orso  intenso,  que  há  de  sentir  o  ministro  que  apa- 
rentemente teve  um  ministérío  bem  sucedido,  mas  que  afínal 
se  manifestou  sem  solidez,  mediocre,  de  aparéncía  engañosa. 

Tudo  isto  está  em  íntima  relacáo  com  o  tema  do  comégo 
da  epístola  —  divisoes  na  igreja  —  e  é  de  muito  valor  prático 
a  igreja  de  nossos  días  sabé-lo.  Primeiro,  só  há  e  só  pode 
haver  um  Fundamento;  todos  quantos  estáo  unidos  a  Cristo 
constituem  um  só  edificio.  Só  pode  haver  uma  Igreja  Crista. 
Partidos  e  seitas,  evidentem.ente,  sao  uma  negagáo  de  tudo 
isso.  Segundo,  se  Paulo  fundara  a  igreja  com  a  pregacáo 
de  Cristo  exclusivamente,  os  que  se  diziam  adeptos  de  algum 
outro  pregador  nao  apenas,  com  essa  atitude,  se  afastavam 
de  Paulo,  mas  do  Cristo  que  ele  anunciava.  Repudiar  a  Paulo 
era  abandonar  a  Cristo.  Em  terceiro  lugar,  se  alguns  mestres 
gozavam  de  muita  popularidade  e  se  os  seus  adeptos  blasona- 
vam  désse  fato,  a  prova  real  do  servigo  déles  nao  estava  no 
louvor  dos  hornens,  mas  no  julgamento  de  Cristo.  Alguns 
daquéles  que  recebiam  louvacoes  as  custas  de  Paulo  ficaráo 
desapontados  um  día  na  presenca  de  Cristo,  em  sua  vinda. 
Nao  seráo  afastadcs  da  presenga  de  Deus,  é  certo,  mas  qual- 
quer  premio  de  servigo  Ihes  será  negado. 

Paulo  encerra  esta  parte  com  um  aviso  solene  e  apro- 
priado.  As  divisoes  causam  daño,  prejuízo,  ao  santuário  de 
Deus,  profanam-no,  destroem-no  —  santuário  que  deve  ser 
inviolável,  a  Igreja  de  Jesús  Cristo,  constituida  dos  crentes, 
como  pedras  vivas.  Este  santuário  apoia-se  no  divino  Filho 
de  Deus  e  é  ocupado  pelo  Espirito  Santo.  Se  alguém,  por  seu 
espirito  faccioso,  por  orgulho  ou  vaidade  causa  cisoes  na 
Igreja,  ésse  tal  sofrerá  castigo  de  Deus.  "Se  alguém  destruir 
o  santuário  de  Deus,  Deus  o  destruirá,  porque  o  santuário  de 
Deus,  que  sois  vos,  é  sagrado". 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


8.  Dividir  a  Igreja  é  próprio  de  insensatos.  Cap.  3:18-23. 

18  Ninguém  se  engañe  a  si  mesmo:  se  alguém 
dentre  vós  se  tem  por  sábio  neste  sáculo,  faga-se  es- 
tulto para  se  tornar  sábio.  19  Porque  a  sabedoria  déste 
mundo  é  loucura  diante  de  Deus;  porquanto  está  escri- 
to: Éle  apanha  os  sábios  na  própria  astucia  déles.  ZO 
E  outra  vez:  O  Senhor  conhece  os  pensamentos  dos 
sábios,  que  sao  pensamentos  vaos.  21  Portanto,  nin- 
guém se  glorie  nos  homens;  porque  tudo  é  vosso:  2Z 
seja  Paulo,  seja  Apolo,  seja  Cefas,  seja  o  mundo,  seja 
a  vida,  seja  a  morte,  sejam  as  coisas  presentes,  sejam 
as  futuras,  tudo  é  vosso.  23  E  vós  de  Cristo,  e  Cristo 
de  Deus. 

Os  que  provocam  cisoes  na  Igreja  geralmente  o  fazem 
movidos  de  vaidade  e  orgulho.  Em  qualquer  caso,  sao  culpa- 
dos de  um  ato  de  loucura,  visto  se  sobreporem  aos  demais, 
defraudando-os  por  privá-los  do  convivio  e  da  instrugáo  que 
outros  líderes  Ihes  possam  proporcionar  e  a  que  todos  os  dis- 
cípulos de  Cristo  tém  direito. 

Paulo  insiste  em  demonstrar  que  essa  tendencia  para  de- 
savengas seria  em  grande  parte  corrigida  por  um  conceito 
exato  do  ministério  cristáo,  ministério  que  existe  para  servir 
a  Igreja  toda  e  nao  a  grupos  separados  dentro  déla. 

*'Ninguém  se  engañe",  adverte.  Ninguém  se  envaidega, 
julgando  possuir  maior  clarividencia  relativamente  ao  plano 
de  salvagáo,  ou  quanto  a  um  exato  conhecimento  de  Deus,  o 
que  só  se  obtem  no  evangelho  e  na  prédica  da  cruz.  Mas, 
como  mostrou  no  primeiro  cap.,  isso  afigura-se  loucura  aos 
sábios  do  mundo,  embora  seja  de  fato  a  própria  sabedoria 
de  Deus.  Portanto,  insiste  o  apostólo,  quem  quer  que  se  tenha 
por  sábio,  segundo  o  critério  do  mundo,  deve  fazer-se  estulto 
aos  olhos  déste  século  pela  aceitagáo  do  evangelho  de  Cristo. 
Déste  modo  tornar-se-á  verdadeiro  sábio.  "Porque  a  sabe- 
doria déste  mundo  é  loucura  diante  de  Deus".  A  palavra  de 
Jó  vem  confirmar  éste  asserto.  —  "Éle  apanha  os  sábios  na 
própria  astúcia  déles"  —  sendo  ai  a  referéncia  á  futilidade 
do  engenho  humano  e  á  sua  incapacidade  de  alcangar  os  fins 
que  se  propoe.  Também  o  salmista  vem  confirmar  esta  ver- 
dade.  —  "O  Senhor  conhece  os  pensamentos  dos  sábios,  que 
sao  pensamentos  vaos".   A  idéia  é  que  a  sabedoria  humana 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  41 


é  oca,  vazia,  va,  nao  sómente  quanto  aos  seus  efeitos  mas 
na  sua  própria  esséncia. 

Compreenda-se  que  Paulo  está  apreciando  a  sabedoria 
humana  do  ponto  de  ^  vista  de  sua  incapacidade  de  acertar 
com  a  salvagáo  e  de  alcangá-la.  Todas  as  verdades  da  ciencia 
e  da  filosofia,  assim  como  todo  progresso  em  qualquer  que 
seja  o  ramo  do  saber  humano,  sao  louváveis  e  devem  ser 
aceitos  com  gratidáo,  como  presentes  de  Deus.  Mas  o  evan- 
gelho  da  salvagáo  é  sabedoria  de  Deus,  superior  a  todas  as 
filosofías  da  térra.  Teve  sua  génese  no  pensamento  de  Deus 
Pal,  relaciona-se  com  o  Filho  e  é  revelado  pelo  Espirito  Santo. 

"Portan to,  ninguém  se  glorie  nos  homens".  Cesse  toda 
jactancia,  vaidosa  e  egoísta,  que  faz  preferir-se  na  igreja  um 
mestre  por  outro.  Ninguém  se  julgue  honrado  por  pertencer 
a  A  ou  B,  seus  preceptores.  Éles  é  que  pertencem  a  todos, 
como  servos  que  sao  de  todos.  Tenha-se  na  lembranga  que 
tudo  é  nosso,  se  pertencemos  a  Cristo. 

Paulo  passa  a  fazer  um  como  inventário  de  tudo  isso  que 
diz  ser  nosso,  de  toda  essa  riqueza  que  os  filhos  de  Deus 
possuem.  Os  ministros  sao  nossos:  Paulo,  com  o  conhecimen- 
to  incomparável  que  tem  do  evangelho,  com  o  seu  inigua- 
lável  zélo  e  fervor  missionário;  Apolo,  com  todo  o  seu  pro- 
fundo conhecimento  das  Escrituras  e  sua  arrebatadora  elo- 
quéncia;  Pedro,  com  aquela  santa  experiencia  de  seu  contacto 
pessoal  com  o  Senhor.  Todos  estes  sao  nossos.  Nao  vamos 
dizer  que  pertencemos  a  éles;  pelo  contrário,  éles  é  que  sao 
nosso  patrimonio.  Pertencendo-nos,  pertencem  de  igual  modo 
a  todos  os  cristáos.  Nao  nos  privemos  de  nenhum  bem;  nao 
defraudemos  a  Igreja  com  as  nossas  divisoes.  Temos  o  di- 
reito  de  privar  nao  sómente  com  os  mestres  favoritos,  mas 
com  todos,  e  receber  de  todos  a  influéncia  de  seu  ensino. 

Se  Paulo,  Apolo  e  Cefas  sao  nossos,  nossa  também  é  a 
Igreja  que  representam.  O  mesmo  se  diga  do  mundo.  Tudo 
quanto  existe  no  universo  para  nosso  proveito  foi  ordenado. 
"Todas  as  coisas  se  combinam  para  o  bem  dos  que  amam  a 
Deus".  A  vida  e  a  morte  sao  nossas.  É  sómente  Cristo  que 
dá  sentido  á  vida  e  faz  que  valha  a  pena  ser  vivida.  É  tolice 
querer  negar  a  realidade  dos  sofrimentos  e  dissabores  da  vida 
—  amargos  e  crueis  que  sao.  Todavía  déles  procede  algum 
bem  permanente,  aqui  e  agora,  ou  depois.   A  morte  é  tam- 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


bém  nossa.  É  nossa  servente,  ainda  quando  parega  domina- 
dora. É  verdade  que  anda  vestida  de  negro  e  acompanhada 
de  terror  e  espanto.  Um  dia,  porém,  vé-la-emos  remover 
a  cortina  e  abrir-nos  o  caminho  para  outra  vida  que  é  ra- 
diante de  gloria  e  de  alegria.  "As  coisas  presentes,  como  as 
futuras"  também  nos  pertencem.  Todas  as  condlcoes  de 
existencia  e  todas  as  oportunidades  que  nos  chegam  com  o 
tempo,  tudo  pertence  ao  crente.  O  presente  no-lo  dá  o  Senhor 
com  vibracoes  de  vitória  na  luta  de  cada  dia;  o  futuro  nós 
o  temos  revestido  dos  fulgores  da  esperanza. 

"Tudo  é  vosso",  repete  o  apostólo,  mas  logo  acrescenta 
que  tudo  é  nosso  sob  a  condicáo  de  sermos  do  Senhor  —  "e 
vos  de  Cristo".  Se  Ele  é  mesmo  nosso  Mestre  e  Senhor,  nada 
se  constituí  para  nós  um  prejuízo  permanente.  Nada  nos 
pode  ser  contrário.  Tudo  se  converte  ern  ajuda  e  estímulo 
para  nós  e  está  ao  nosso  servigo.  Tudo  nos  pertence,  está  de 
nosso  lado,  a  nosso  favor,  porque  somos  de  Cristo,  e  Cristo 
é  de  Deus.  A  Igreja  possui  tudo  em  razáo  de  estar  sujeita  a 
Cristo  e  sob  a  dependencia  de  quem  a  tudo  preside  e  governa. 
Cristo,  por  sua  vez,  tem  tal  poder  universal  porque  é  sujeito 
ao  Pai  e  dÉle  depende. 

Ninguém  veja  nesta  submissáo  do  Filho  ao  Pai  uma  ne- 
gagáo  da  divindade  de  Jesús.  Pelo  contrário,  esta  submissáo 
é  uma  verdade  que  nos  habilita  a  imaginar  em  que  consiste 
a  unidade  das  Tres  Pessoas  na  Trindade  Santissima.  A  so-  í 
berania  universal  do  Filho  de  Deus  funda-se  em  sua  filial 
submissáo  ao  Pai.  Igualmente,  a  unidade,  santidade  e  subli- 
midade  da  Igreja  decorrem  de  sua  submissáo  e  obediencia  a 
Cristo.  Como  servos  de  Cristo,  por  conseguinte,  tornamo-nos 
herdeiros  de  tudo. 

A  vista  de  tais  inter-relagoes  ou  dependencia,  como  pode 
a  Igreja  permitir  divisoes  em  seu  seio?  Que  valor  tem  a  van- 
glória  de  alguém?  Que  significa  sua  submissáo  a  mestres  hu- 
manos? Qualquer  crente  possui  "tudo",  inclusive- os  próprios 
mestres  que  na  Igreja  servem  por  um  mandato  divino.  Sua 
gloria,  sua  ufania,  suas  riquezas  estáo  em  Cristo,  em  quem 
todos  os  crentes  participam  de  uma  felicidade  que  Ihes  é  co- 
mum,  e  na  companhia  de  quem  adquirem  dignidade  e  apren- 
dem  a  viver. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


43 


9.  Os  Ministros  sao  Responsáveis  diante  de  Deus. 
Cap.  4:1-5. 

1  Assim,  pois,  importa  que  os  homens  nos  consi- 
deren! como  ministros  de  Cristo,  e  despenseiros  dos 
mistérios  de  Deus.  2  Ora,  além  disso,  o  que  se  requer 
dos  despenseiros  é  que  cada  um  déles  seja  encontrado 
fiel.  3  Todavía,  a  mim  mui  pouco  se  me  dá  de  ser 
julgado  por  vós,  ou  por  tribunal  humano;  nem  eu  táo 
pouco  julgo  a  mim  mesmo.  4  Porque  de  nada  me  argúi 
a  consciéncia;  contudo,  nem  por  isso  me  dou  por  jus- 
tificado, pois  quem  me  Julga  é  o  Senhor.  5  Portanto, 
nada  julgueis  antes  de  tempo,  até  que  venha  o  Senhor, 
o  qual  nao  sómente  trará  á  plena  luz  as  coisas  ocultas 
das  trevas,  mas  também  manifestará  os  designios  dos 
coracoes;  e  entáo  cada  um  receberá  o  seu  louvor  da 
parte  de  Deus. 

É  duro  alguém  ser  mal  compreendido  e  condenado,  quan- 
do  se  esforca  em  cumprir  seus  deveres  da  melhor  maneira 
possível,  e  quando,  por  "outra  parte,  vé  ser  elogiado  quem  nao 
o  merece.  Foi  essa  injustica  de  que  Paulo  estava  sendo  ví- 
tima,  e  o  responsável  era  aquéle  espirito  sectário  dos  corintios, 
manifestó  naquelas  predilecoes  por  certos  mestres.  Essa  par- 
cialidade,  nao  sómente  prejudicava  a  igreja,  privando  seus 
membros  de  beneficios  a  que  todos  tinham  direito,  como  jus- 
tamente o  apostólo  fez  sentir,  mas  era  um  agravo  aos  minis- 
tros que  existiam  para  serví-la.  Eram  de  fato  servos  da  igreja, 
mas  isto  nao  queria  dizer  que  a  Igreja  fósse  senhora  déles. 
Responsáveis  eram,  mas  perante  Deus,  a  quem  serviam.  Po- 
risso  nao  eram  cabíveis  as  críticas  descaridosas  que  Ihes  fa- 
ziam,  nem  os  crentes  deviam  servir-se  déles  para  provocarem 
aquéle  dissídio  desnecessário  na  Igreja,  que  tanto  a  estava 
prejudicando. 

E  assim  prossegue  aqui  na  censura  daquéle  estado  de 
coisas,  mas  o  faz  exatarnente  como  no  principio  de  cada  cap. 
precedente.  Em  todos  os  trés  casos  aplica  as  suas  relacoes 
pessoais  com  a  igreja  as  verdades  anteriormente  iá  apresen- 
tadas.  Aqui,  depois  de  haver  discutido  a  pcsicáo  dos  minis- 
tros como  servos  da  Igreja,  volt  a  a  considerar  os  que  minis- 
travam  em  Corinto  e  particularmente  seu  próprio  caso  e  ex- 
periencia em  relagáo  com  aquela  comunidade  "Assim,  pois, 
importa  que  os  homens  nos  considerem  como  ministros  de 
Cristo".  Como  querendo  dizer:    Somos  de  fato  servidores  da 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


igreja,  contudo  esta  nao  deve  julgar-nos  e  condenar-nos, 
usando  de  favoritismo  com  alguns  de  nós,  em  prejuízo  dos 
demais,  como  se  fóra  senhora  ou  dominadora  nossa.  Somos 
"despenseiros  dos  mistérios  de  Deus".  A  palavra  "despen- 
seiro"  empregava-se  para  designar  "um  escravo  de  confianza, 
incumbido  pelo  senhor  de  dirigir  a  casa,  e  a  quem  de  modo 
particular  confiava  a  distribuicáo  de  tarefas  e  provisoes  aos 
demais  servos".  Os  ministros  evangélicos  sao,  portanto,  des- 
penseiros  e  ministradores  das  verdades  divinas.  Nao  é  aos 
seus  companheiros  de  servico  que  tém  de  dar  contas,  mas  ao 
próprio  Deus.  Váo  aonde  sao  mandados  e  reparte  com  todos 
o  que  Ihes  tem  sido  revelado.  Fidelidade  ao  seu  Senhor  e  á 
sua  missáo,  eis  tudo  quanto  se  Ihes  pede.  Aceitar  a  um  déstes 
despenseiros  e  reieitar  os  demais  é  dar  a  entender  que  aquéle 
é  mais  fiel  do  que  estes,  constituindo-se  juiz  déles  quem  assim 
procede,  funcáo  que  é  privativa  do  Senhor. 

Paulo  vé-se  diante  désse  juíz  supremo  e  ¡declara  que 
pouco  se  Ihe  dá  do  que  os  homens  julguem  a  seu  respeito. 
Táo  pouco  teria  importancia  o  que  Paulo  julgasse  de  si  pró- 
prio. Se  nao  o  acusava  a  consciéncia  de  nenhuma  infidelida- 
de  no  servico,  nem  por  isso  ia  ele  repousar  nessa  complacen- 
cia do  íntimo  tribunal,  nem  se  achava  livre  de  cuidados. 
Era  o  Senhor  quem  o  julg^va. 

Paulo,  pois,  concita  aqueles  irmáos  a  que  abandonem  a 
prática  de  julgar  prematura  e  oficiosamente  os  seus  mestres, 
o  que  tem  redundado  em  desavengas  e  separacoes.  Quando 
o  Senhor  vier,  entao  "trará  á  plena  luz"  todos  os  atos  ocultos 
da  nossa  vida  e  revelará  os  motivos  secretos  de  nossos  cora- 
coes.  O  louvor  que  todos  e  cada  um  merecer,  há  de  recebé-lo 
da  parte  de  Deus,  justo  e  infalível  Juíz,  e  nao  da  parte  de 
sectaristas  ignorantes  e  impertinentes.  Tais  palavras  do  apos- 
tólo encerram  um  sábio  conselho.  Sejamos  tardos  e  humildes 
no  julgamento  dos  outros,  particularmente  no  que  diz  res- 
peito aos  ministros  do  evangelho.  Afastemos  de  nós  a  inveja 
e  o  desalentó  na  execucáo  das  tarefas  recebidas,  e  procure- 
mos ser  fiéis  em  tudo.  Nao  nos  acabrunhe  o  que  por  acaso 
pensem  de  nós.  Um  día  de  ajuste  de  contas  chegará  para 
todos.   'Terto  está  o  Senhor". 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  45 


10.  Reprova-se  o  orgulho,  causador  de  dissengoes.  Cap. 
4:6-13. 

6  Estas  coisas,  irmáos,  apliquei-as  figuradamente 
a  mim  mesmo  e  a  Apolo  por  vossa  causa,  para  que  por 
nosso  exemplo  aprendáis  isto:  Nao  ultrapasseis  o  que 
está  escrito;  a  fim  de  que  ninguém  se  ensoberbe^a  a 
favor  de  um  em  detrimento  do  outro.  7  Pois  quem  é 
que  te  faz  sobressair?  e  que  tens  tu  que  nao  tenhas 
recebido?  e,  se  recebeste,  por  que  te  vanglorias,  como 
se  o  nao  tiveras  recebido?  8  Já  estáis  fartos,  já  estáis 
ricos;  chegastes  a  reinar  sem  nós;  sim,  oxalá  reinás- 
seis,  para  que  também  nós  viéssemos  a  reinar  convosco. 
9  Porque  a  mim  me  parece  que  Deus  nos  pos,  os  apos- 
tólos, em  último  lugar,  como  se  fóssemos  condenados  á 
morte;  porque  nos  tornamos  espetáculo  ao  mundo, 
tanto  a  anjos,  como  a  homens.  10  Nós  somos  loncos 
por  causa  de  Cristo,  e  vós  sabios  em  Cristo;  nós  f ráeos, 
e  vós  fortes;  vós  nobres,  e  nós  desprezíveis.  11  Até  á 
presente  hora  sof remos  fome,  e  sede,  e  nudez;  e  somos 
esbofeteados,  e  nao  temos  morada  certa,  12  e  nos  afa- 
dígamos,  trabalhando  com  as  nossas  próprias  máos. 
Quando  somos  injuriados,  bendizemos;  quando  perse- 
guidos, suportamos;  13  quando  caluniados,  procura- 
mos conciliacáo:  até  agora  temos  chegado  a  ser  con- 
siderados lixo  do  mundo,  escóría  de  todos. 

Mais  de  urna  vez  Paulo  tem  feito  sentir  que  as  dissencoes 
entre  os  corintios  sao  o  resultado  e  urna  prova  da  vaidade  e 
orgulho  déles.  Agora  passa  a  censurar  ésse  gósto  extrava- 
gante, contrastando  sua  mesma  experiencia  de  apostólo  com 
a  vanglória  e  auto-satisfacáo  dos  corintios.  Pois  éles  proce- 
diam  como  se  já  estivessem  no  pleno  gozo  do  Reino  futuro  e 
perfeito  de  Cristo,  enquanto  Paulo,  como  gladiador  na 
arena,  condenado  á  morte,  sofria  os  extremos  opostos  da  ca- 
lúnia,  vivia  angustiado,  atormentado  e  envergonhado. 

"Estas  coisas,  irmáos",  isto  é,  tudo  quanto  acabou  de  di- 
zer  sobre  a  insensatez  dos  dissídios  na  igreja,  "apliquei-as  fi- 
guradamente a  mim  mesmo  e  a  Apolo",  ainda  que  os  princi- 
pios apresentados  tenham  aplicacáo  mais  vasta  e  se  refiram 
á  atitude  que  os  corintios  mantinham  para  com  todos  os  seus 
mestres.  Nao  dissera  aquilo  para  se  defender,  mas  por  causa 
déles.  Esforcava-se  por  Ihes  ensinar  urna  ligáo  de  humildade, 
para  que  pelo  exemplo  déles  ambos  e  pela  insisténcia  com 
que  Ihes  inculcava  uma  atitude  correta  para  com  ele  e  seu 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


colega,  OS  corintios  aprendessem  a  nao  ir  além  do  que  se 
achava  escrito  ñas  Escrituras.  Paulo  nao  se  quer  referir  a 
passagens  bíblicas  especiáis,  mas  ao  ensino  geral  das  Escri- 
turas a  respeito  do  orgulho  pessoal  e  da  auto-suficiencia. 
Queria  que  os  corintios  evitassem  o  orgulho  e  a  parcialidade 
implícitos  ñas  preferencias  pessoais;  que  ninguém  se  enso- 
berbecesse,  ninguém  se  metesse  em  porfías,  exaltando  um 
mestre  para  humilhagáo  de  outro.  Tal  atitude,  no  caso,  nao 
queria  dizer  lealdade  ou  homenagem  agradecida  as  pessoas 
visadas.  Éles  com  isso  apenas  alimentavam  seu  próprio  or- 
gulho. As  dissengoes  só  serviam  á  vaidade  déles,  e  além  disso 
partiam  de  um  sentimento  de  presungáo;  com  elas  só  se  per- 
día tempo.  "Quem  é  que  te  faz  sobressair?"  Cada  qual 
procurava  aparecer,  sobressair  aos  outros,  aderindo  á  sua  pró- 
pria  corrente  de  opiniáo.  Mas  a  ingratidáo  era  patente:  "Que 
tens  tu  que  nao  tenhas  recebido?"  As  próprias  excelencias 
de  fulano  ou  sicrano,  que  se  tomavam  como  razáo  do  dissi- 
dio,  eram  dádivas  do  céu.  Deviam  pois  ser  motivo  de  gra- 
tidáo,  e  nao  de  orgulho,  visto  como  tinham  sido  recebidas. 

Mas  a  jactancia  daquéles  irmáos  era  ilimitada.  Paulo 
a  descreve  com  bastante  ironía:  ''Já  estáis  f artos"!  Como 
se  já  gozassem  dos  beneficios  do  futuro  Reino  da  gloria.  *'Já 
estáis  ricos!"  —  sem  esperar  por  nós,  apostólos,  já  ascendes- 
tes  a  vossos  tronos!  E  quiséramos  que  reinásseis  mesmo, 
para  reinarmos  convosco. 

Contrastando  com  essas  infantilidades  estava  a  lastimá- 
vel  realidade  da  situagáo  dos  apostólos,  só  comparável  á  dos 
criminosos  condenados  á  morte  e  que  chegavam  ao  anfiteatro 
por  último,  quando  os  espectadores  já  se  impacienta vam  de 
presenciar  lutas  pouco  sangrentas  e,  portanto,  sem  muita 
relevancia  para  éles.  Os  que  chegavam  no  fim  eram,  porisso, 
acossados  a  lutar  desarmados  com  as  feras.  Para  os  tais  nao 
havia  esperanga  de  escaparem  com  a  vida.  Os  apóstolos 
assemelhavam-se  a  ésses  gladiadores  que  entravam  na  arena 
sabendo  que  dalí  só  saíriam  mortos.  Já  se  haviam  despe- 
dido dos  amigos  e  saudado  o  imperador,  á  vista  da  morte: 
"Porque  a  mim  me  parece  que  Deus  nos  pos  a  nós,  os  apósto- 
los, em  último  lugar,  como  se  fossemos  condenados  á  morte: 
porque  nos  tornamos  espetáculo  ao  mundo,  tanto  a  anjos, 
como  a  homens". 

E  outra  véz  se  dirige  aqueles  irmáos,  agora  com  sarcas- 
'  mo:  em  particular  aos  chefes  de  grupos  na  igreja,  mas  de 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


47 


igual  modo  a  todos  os  seus  sequazes.  "Nós  somos  loncos  por 
causa  de  Cristo".  Custou-lhes  essa  pecha  de  loucos  o  serem 
leáis  ao  evangelho  que  os  entendidos  do  mundo  consideravam 
loucura<  ''Mas  vós  sois  sabios  em  Cristo"  —  tendes  apren- 
dido um  método  táo  eficiente  de  pregagáo  do  evangelho  que 
isso  vos  tem  valido  um  renome  extraordinário,  tal  a  sabedoria 
e  a  compreensáo  que  demonstráis.  "Nós  somos  fracos,  e  vós 
fortes"  —  fazeis  os  vossos  discursos  públicos  com  bastante 
aprumo  e  seguranga,  mas  nós  nao  possuimos  ésse  ar  de  su- 
perioridade  que  ostentáis  na  tribuna,  antes  aparecemos  com 
temor  e  grande  tremor.  "Vós  sois  nobres,  e  nós  desprezíveis" 
—  a  vós  recebem  com  discursos  laudatórios  e  adulagáo,  mas 
nós  recebemos  afrontas  e  desprézo. 

E  estende-se  nesse  contraste  patético,  descrevendo  o  que 
sofrem  os  apóstolos  por  amor  de  Cristo.  Para  éles  a  vida  se 
agrava  mais  e  mais.  "Até  á  presente  hora  sofremos  fome  e 
sede".  Possuimos  pouco  para  que  imaginemos  já  haver  soado 
a  hora  do  triunfo,  o  momento  augusto  da  coroagáo.  E  mais: 
"Sofremos  nudez,  somos  esbofeteados  e  nao  temos  morada 
certa.  Afadigamo-nos,  trabalhando  com  as  nossas  próprias 
máos".  Portam-se,  entretanto,  com  paciencia  e  humildade. 
As  zombarias  respondem  abengoando.  Contém-se  diante  das 
perseguigoes,  sem  emitirem  uma  só  palavra  de  queixa.  Re- 
plicam  as  calúnias  convidando  todos  ao  arrependimento  e  a 
voltarem  para  Cristo.  E  porque  se  comportam  dessa  forma 
dáo  lugar  aínda  a  maiores  injúrias:  "Até  agora  temos  che- 
gado  a  ser  considerados  lixo  do  mundo,  escoria  de  todos". 
Ora,  se  Paulo  e  seus  companheiros  apóstolos  eram  tidos  e 
havidos  assim  pelo  mundo,  era  absurdo  imaginarem  aqueles 
irmáos  teriam  melhor  sorte  seguindo  um  ou  outro  daquéles 
desprezados  líderes.  Se  a  situagáo  déstes  era  vexatória,  de 
que  haveriam  de  blasonar  seus  aderentes?  Portanto,  o  orgu- 
Iho  que  cindia  aquela  igreja  oarecia  de  sentido,  era  uma 
estupidez  sem  alma  e  de  todo  absurdo. 


11.  Paulo  admoesta  paternalmente.  Cap.  4:14-21. 

14  Nao  vos  escrevo  estas  coisas  para  vos  envergo - 
nhar;  pelo  contrario,  para  vos  admoestar  como  a  fi- 
Ihos  meus  amados.  15  Porque  ainda  que  tivésseis  mi- 
Ihares  de  preceptores  em  Cristo,  nao  terieis,  contudo, 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


muitos  pais;  pois  eu  pelo  evangelho  vos  gerei  em  Cris- 
to Jesús.  16  Admoesto-vos,  portanto,  a  que  sejais  meus 
imitadores.  17  Por  esta  causa  vos  mandei  Timoteo, 
que  é  meu  filho  amado  e  fiel  no  Senhor,  o  qual  vos 
lembrará  os  meus  caminhos  em  Cristo  Jesús,  como  por 
toda  parte  ensino  em  cada  igreja.  18  Alguns  se  enso- 
berbeceram,  como  se  eu  nao  tivesse  de  ir  ter  convosco; 
19  mas  em  breve  irei  visitar-vos,  se  o  Senhor  quiser, 
e  entáo  conhecerei  nao  a  palavra,  mas  o  poder  dos  en- 
soberbecidos. 20  Porque  o  reino  de  Deus  consiste,  nao 
em  palavra,  mas  em  poder.  21  Que  preferís?  Irei  a 
vos  outros  com  vara,  ou  com  amor  e  espirito  de  man- 
sidáo? 

Paulo  encerra  sua  Iqnga  discussáo  fazendo  um  apelo  de 
pai.  As  divisoes  da  Igra  ja  ocuparam  os  quatro  primeiros 
caps,  da  carta.  O  caso  era  de  tal  modo  sério  que  no  último  pa- 
rágrafo aínda  se  sentiu  constrangido  a  empregar  um  misto 
de  ironía  e  repreensáo.  Agora,  súbitamente,  Paulo  altera  suas 
maneiras  de  expressáo,  como  era  próprio  do  seu  estilo,  e  faz 
um  apelo  cheio  de  ternura  e  simpatía,  contudo  sem  amenizar 
o  tom  severo,  preparando  assím  seus  leitores  para  outra  ma- 
téria  grave,  objeto  do  cap.  seguinte. 

Explica  o  alcance  da  linguagem  que  empregou.  Em  tudo 
o  que  expendeu  a  respeito  das  dissengoes  na  igreja,  no  que 
sentiu  necessidade  de  censurá-los  acremente,  só  procurou  o 
maior  bem  para  éles.  "Nao  vos  escrevo  estas  coisas  para  vos 
envergonhar,  pelo  contrário,  para  vos  admoestar  como  a  fi- 
Ihos  meus  amados".  E  éles  eram  mesmo  do  apostólo.  Per- 
tenciam-lhe  como  a  nenhum  outro  mestre  ou  líder.  Grande 
número  de  novos  preceptores  (tutores)  podía  surgir,  mas 
aínda  que  os  tivessem  aos  milhares,  só  podiam  contar  com 
um  pai  espiritual,  que  era  ele,  Paulo.  Em  comunháo  com 
Cristo  e  pela  prédica  do  evangelho  infudira-lhes  uma  nova 
vida.  Muito  a  propósito,  pois,  concita-os  a  que  o  imitem  na 
sua  humildade,  no  desprendímento  do  seu  servigo,  e  a  que  re- 
velem  a  natural  parecenca  com  o  pai,  afastando  dojseu  meio 
o  espirito  de  orgulho,  os  dissídios  e  toda  a  presungáo.  Para 
ajudá-los  a  acabar  com  aquelas  desavengas,  envíara-lhes  Ti- 
móteo,  seu  "filho  amado  e  fiel  no  Senhor",  que  igualmente  se 
convertera  por  sua  influencia.  Timóteo  era  para  éles,  pois, 
como  irmáo  mais  velho,  e  neste  caráter  é  que  devia  ser  por 
éles  recebído,  afetuosa  e  confiantemente.  Sua  missáo  entre 
éles  seria  a  de  lembrar-lhes  os  "caminhos"  de  Paulo,  isto  é, 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


49 


sua  maneira  de  agir,  o  que  éle  ensinava  em  todas  as  igrejas, 
sua  humildade,  abnegacáo  e  devotamente  ao  Senhor,  Tudo 
isso  que  éle  sempre  ensinou  e  praticou  ñas  igrejas. 

Mas  ninguém  compreendesse  que,  por  Ihes  enviar  Ti- 
moteo, nao  estava  disposto  a  ir  até  lá  pessoalmente.  Alguns 
adversários  seus  estavam  pensando  assim.  Com  certo  ar  de 
triunfo,  inchados  de  vangória,  propalavam  que  Paulo  estava 
enviando  Timoteo  porque  éle  mesmo  nao  queria  ir  lá.  Na 
ausencia  do  apostólo  aquéles  mestres  perniciosos  se  haviam 
tornado  importantes.  E  a  propósito  da  ida  de  Timoteo  estavam 
se  assanhando  e  se  tornando  ainda  mais  insolentes.  Possi- 
velmente  interpretavam  o  fato  como  médo  que  Paulo  tinha 
déles.  ''Alguns  se  ensoberbeceram  (andam  inchados),  como 
se  eu  nao  tivesse  de  ir  ter  convosco.  Mas  em  breve  irei  visitar- 
-vos,  se  o  Senhor  quiser,  e  entáo  conhecerei  nao  a  palavra, 
mas  o  poder  dos  ensoberbecidos".  Paulo  iria  descobrir  e  por 
á  mostra  a  "fórga"  de  seus  enfatuados  oponentes,  se  eram 
mesmo  o  que  pretendiam  ser,  com  toda  aquela  empáfia  elo- 
quente.  Porque  o  Reino  de  Deus  que  vai  ser  estabelecido, 
e  portanto  os  meios  empregados  neste  sentido,  como  o  ser- 
vigo  e  a  autoridade  dos  apostólos,  nao  consiste  em  palavras, 
mas  em  fatos,  em  "poder".  Quando  Paulo  aparecer  entre 
éles  nao  se  limitará  a  palavras,  a  ensinamentos  e  censuras. 
Éle  vai  agir.  Como?  A  resposta  dependerá  únicamente  dos 
corintios.  Se  continuarem  brigando  e  se  dividindo,  como 
meninos  levados  e  insubmissos,  seráo  castigados.  Se  pelo 
contrário  se  juntarem  e  se  mostrarem  camaradas  que  se  es- 
timam,  Paulo  agirá  como  pai  amoroso  e  perdoador.  "Que 
preferís?  Irei  a  vós  outros  com  vara,  ou  com  amor  e  espirito 
de  mansidáo?" 

Assim  é  que  nestes  quatro  prim_eiros  caps.  Paulo  procu- 
rou  corrigir  ésse  espirito  faccioso  dos  corintios  e  recambiá-los 
á  uniáo  de  vistas.  Foi  o  primeiro  mal  que  procurou  sanar, 
visto  que  sómente  a  uma  igreja  unida,  que  o  reconhecesse 
como  seu  fundador,  podia  expedir  as  ordens  enérgicas  e  mi- 
nistrar autoritariamente  os  ensinos  que  viriam  logo  mais. 
Hoje  em  día  também,  onde  quer  que  exista  uma  igreja  agi- 
tada pelas  ruins  suspeitas,  pelo  orgulho  e  por  ésse  espirito 
faccioso,  é  necessário  antes  do  mais  que  se  acalme  essa  agi- 
tagáo,  unindo-se  todos  em  amor  e  compreensáo,  para  que  se 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


consiga  progresso,  seja  na  vida  crista,  seja  na  instrugáo  re- 
ligiosa e  seja  no  servigo  de  evangelizagáo. 


B.  DISCIPLINA.  Cap.  5. 

1  Geralmente  se  ouve  que  há  entre  vos  imoralidade 
tal,  como  nem  mesmo  entre  os  gentíos,  isto  é,  haver 
Quem  se  atreva  a  possiiir  a  mulher  de  seu  próprio  pai. 
2  E,  contudo,  andáis  vés  ensoberbecidos,  e  nao  chegas- 
tes  a  lamentar,  para  que  fósse  tirado  do  vosso  meio 
quem  tamanho  ultraje  praticou?  3  Eu,  na  verdade, 
ainda  que  ausente  em  pessoa,  mas  presente  no  espirito, 
já  sentenciei,  como  se  estivesse  presente,  que  o  autor 
de  tal  infamia  seja,  4  em  nome  do  Senhor  Jesús,  reu- 
nidos vós  e  o  meu  espirito,  com  o  poder  de  Jesús,  nosso 
Senhor,  5  entregue  a  Satanás  para  a  destruigáo  da 
carne,  a  fim  de  que  o  espirito  seja  salvo  no  dia  do  Se- 
nhor. 6  Nao  é  boa  a  vossa  jactancia.  Nao  sabéis  que 
um  pouco  de  fermento  leveda  a  massa  toda?  7  Langa! 
fora  o  velho  fermento,  para  que  sejais  uma  nova 
massa,  como  sois  de  fato  sem  fermento.  Pois  também 
Cristo,  nosso  Cordeiro  pascal,  foi  imolado.  8  Por  isso 
celebremos  a  festa,  nao  com  o  velho  fermento,  nem 
com  o  fermento  de  maldade  e  da  malicia;  e,  sim,  com 
os  asmos  da  sinceridade  e  da  verdade.  9  Já  em  carta 
vos  escrevi  que  nao  vos  associásseis  com  os  impuros; 
10  refiro-me  com  isto  nao  própriamente  aos  impuros 
désíe  mundo,  ou  aos  avarentos,  ou  roubadores,  ou  idó- 
latras; pois,  neste  caso,  teríeis  de  sair  do  mundo.  11 
Mas  agora  vos  escrevi  que  nao  vos  associeis  com  al- 
guém  que,  dizendo-se  irmáo,  fór  impuro,  ou  avarento, 
ou  idólatra,  cu  maldizente,  ou  beberráo,  ou  roubador; 
com  ésse  tal  nem  ainda  comáis.  12  Pois  com  que  direito 
haveria  eu  de  julgar  os  de  fora?  Nao  julgais  vós  os 
de  dentro?  13  Os  de  fora,  porém,  Deus  os  julgará.  Ex- 
pulsa!, pois,  de  entre  vós  o  malfeitor. 

Segundo  os  rumores  que  havia,  os  corintios  toleravam 
em  seu  meio  um  caso  de  grosseira  imoralidade.  Assim,  pois, 
passa  o  apostólo  a  tratar  dessa  questáo,  insistindo  que  a  di- 
ciplina  se  aplique  ao  membro  faltoso.  Embora  fósse  éste  o 
caso  mais  sério  submetido  á  sua  apreciagáo,  nao  Ihe  pode  dar 
prioridade  porque  era  necessário  assegurar  primeiro  a  uni- 
dade  da  igreja,  antes  de  Ihe  impor  qualquer  delibera^áo  drás- 
tica para  o  referido  caso.  De  outro  modo,  nao  havendo  uniáo 
de  vistas,  as  providencias  teriam  de  partir  de  um  dos  grupos 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


51 


da  igreja,  com  o  resultado  de  se  cavar  mais  fundo  a  sua 
divisáo. 

A  administragáo  da  disciplina,  pois,  em  certo  sentido,  é 
matéria  pertinente  á  própria  vida  da  igreja,  á  sua  organizagáo 
e  expansáo.  Relaciona-se  intimamente,  como  questao  ecle- 
siástica, ao  problema  do  dissídio  que  a  precedeu.  Está  em 
jógo,  portanto,  agora,  uma  grave  falta  moral,  cuja  discussáo, 
com  propriedade,  serv^e  de  introducáo  as  outras  questoes  mo- 
ráis que  se  seguiráo,  a  saber,  os  litigios  judiciais  e  a  impureza 
privada.  Como  se  vé,  a  ordem  adotada  pelo  apostólo,  na  dis- 
cussáo dos  assuntos,  é  rigorosamente  lógica,  constituindo-se 
os  primeiros  seis  caps,  da  carta  uma  só  unidade. 


1.  Merecido  rigor.  Cap.  5:1-5. 

A  falta  era  gravíssima.  O  ofensor  vivia  maritalmente 
com  a  própria  madrasta.  Crime  desta  natureza,  mesmo  entre 
os  pagaos,  de  baixo  nivel  moral,  nao  seria  tolerado.  No  en- 
tanto  os  cristáos  corintios,  indiferentes  ao  escándalo,  anda- 
vam  ainda  se  vangloriando  de  seus  líderes  prediletos,  chelos 
de  orgulho,  complacentes  com  a  situacáo.  O  contrário  é  que 
devia  suceder:  encherem-se  mas  era  de  vergonha  e  langar 
fora  de  sua  comunháo  o  culpado  de  tamanha  vileza.  Deviam 
compreender  que  a  verdadeira  gloria  da  Igreja  Crista  con- 
siste, nao  na  eloquéncia  de  seus  pregadores,  nem  no  talento 
de  seus  mestres  eminentes,  mas  na  pureza  moral  e  na  vida 
exemplar  de  seus  membros. 

Paulo,  porém,  já  resolverá  o  que  era  cabível  no  caso  e 
estava  certo  como  procedería,  se  presente  estivera  na  congre- 
gacáo.  E,  de  fato,  ele  descreve  o  ato  solene  da  disciplina  como 
já  estando  a  realizar-se:  "Considerai-me,  pois,  presente  no 
vosso  meio,  a  sentenciar,  em  nome  de  Cristo  e  com  a  vossa 
aquiescencia,  a  excomunháo  do  autor  da  infamia,  bem  como 
a  entrega  do  mesmo  a  Satanás,  para  que  Ihe  imponha  sofri- 
mentos  capazes  de  quebrar  a  fórca  de  sua  cobica  pecaminosa, 
e,  assim,  venha  a  sentir  arrependimento,  seja  restaurado  á 
condigáo  anterior,  e  se  salve  no  dia  do  Senhor". 

É  digno  de  nota  que  Paulo  nao  arrebata  da  igreja  o  po- 
der de  exercer  sua  própria  disciplina.    O  govérno  é  demo- 


52 


CHARLES  R.  ERDMAN 


orático;  a  imposigáo  de  penalidades  nao  compete  a  um  oficial 
seu  ou  a  urna  ordem  sacerdotal.  Note-se  aínda  que  na  as- 
sembléia,  além  da  presenca  simbólica  ou  espiritual  de  Paulo, 
preside  um  terceiro  Espirito,  supremo,  de  quem  procede  a 
autoridade  da  acáo  disciplinar. 

Nao  se  deve  supor  que  éste  incidente,  algo  obscuro,  da 
historia  da  Igreja  Primitiva,  sancione  a  imposicáo  de  casti- 
gos corporais  como  instrumento  de  disciplina  eclesiástica. 
Sob  a  direcáo  de  um  apostólo  inspirado  e  estando  envolvido 
na  questáo  o  poder  dos  milagres,  parece  que  a  sentenca  pro- 
ferida no  caso  determinou  uma  doenca  ou  sofrimentos  físi- 
cos. Isto  naquela  época.  Em  todos  os  outros  casos  posteriores 
de  disciplina  eclesiástica,  de  que  há  noticia,  nao  se  sabe  de 
nada  parecido. 

O  que  mais  importa,  porém,  é  observar  que  o  sofrimento, 
de  qualquer  que  fósse  a  natureza  e  a  procedencia,  teve  como 
escopo  reconduzir  o  culpado  ao  arrependimento,  como  uma 
advertencia  de  que  o  alvo  supremo  de  qualquer  agáo  disci- 
plinar na  igreja  é  a  rehabilitagáo  dos  ofensores. 


2.  Indiferenga  Pecaminosa.  Cap.  5:6-8.. 

Paulo  detem-se  a  considerar  a  negligencia  criminosa  dos 
corintios,  que  deixavam  aquéle  escándalo  sem  a  necessária 
reprimenda,  para  aludir  a  outro  designio  importante  da  dis- 
ciplina, que  é  a  defesa  da  vida  moral  da  igreja.  "Nao  é  boa 
a  vossa  jactancia"  —  cegueira  e  estupidez  é  blasonardes  dos 
vossos  preceptores  e  das  vossas  realizacoes,  enquanto  por  ou- 
tro lado  ides  tolerando  um  pecado  assim  vergonhoso.  "Nao 
sabéis  que  um  pouco  de  fermento  leveda  a  massa  toda?"  É 
conhecida  esta  figura  de  linguagem.  Um  pouco  de  levedura. 
em  um  nada  de  tempo,  toma  Qonta  da  massa  inteira.  E  é 
assim  que  a  menor  cumplicidade  no  moral,  a  tolerancia  do 
pecado,  a  dissimulacáo  da  impureza,  afetam  a  vida  moral  da 
igreja  toda.  Rebaixa-lhe  a  tonalidade  moral  e  estimula  a 
prática  de  outros  deslises,  ainda  que  menos  flagrantes. 

"Lancai  fora  o  velho  fermento^  para  que  sejais  uma  nova 
massa,  como  sois  de  fato  sem  fermento"  —  expulsa!  dos  vossos 
coracóes  toda  disposigáo  má  e  dése  jo  ruim,  próprios  da  velha 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


53 


vida,  de  quando  ainda  nao  conhecíeis  Cristo,  para  que  como 
igreja  vos  caracterize  agora  urna  nova  vida  e  se  jais  na  reali- 
dade  e  por  experiencia  o  que  como  cristáos  deveis  ser,  e  o 
que,  de  certo,  sois  no  espirito  e  na  intengáo  divina. 

Como  refórgo  déste  preceito  Paulo  emprega  uma  figura, 
bela  e  incisiva.  Na  véspera  do  primeiro  dia  de  festa  pascoal, 
os  israelitas  eram  obrigados  a  retirar  de  suas  casas  todo  o 
fermento  que  ai  houvesse.  E  a  partir  da  imolacáo  do  cor- 
deiro  pascoal  no  Templo,  e  enquanto  durasse  a  festa,  o  pao 
de  fermento  era  banido  das  refeicoes.  Ora,  Cristo  é  nosso 
Cordeiro  Pascoal.  Sendo  assim,  a  vida  des  que  O  seguem  é 
uma  festa  sagrada.  Logo,  devemos  excluir  de  nossa  vida  todo 
pecado,  todo  "velho  fermento"  que  nos  caracterizava  antes 
de  sermos  de  Cristo,  "toda  maldade  e  malicia",  e  entáo  cum- 
pre  que  em  nós  transpareca  a  sinceridade,  a  verdade  e  rea- 
lidade  de  nossa  profissáo  evangélica. 


3.  Por  que  disciplina  e  onde  se  exerce.  Cap.  5:9-13. 

Em  carta  anterior,  Paulo  já  os  havia  advertido  vigorosa- 
mente contra  a  camaradagem  contagiante  dos  impuros.  Fóra 
aliás  m^al  compreendido,  pois  entenderam  que  Ihes  proibira 
qualquer  relacáo  com  pessoas  imorais,  regra  que  éles  denun- 
ciaram  como  impossível  de  ser  observada.  É  provável  que 
essa  má  interpretacáo  servisse  de  pretexto  para  nada  faze- 
rem  no  tocante  aos  membros  faltosos  da  igreja.  Paulo  es- 
clarece, entáo,  o  sentido  da  advertencia  anterior  e  insiste  no 
dever  da  disciplina.  A  substancia  do  seu  pensamento  é  o 
seguinte: 

"Em  carta  passada  avisei-vos  que  nao  vos  associásseis 
com  gente  do  tipo  do  escandaloso  já  mencionado.  Mas  nao 
quis  dizer  que  nao  tivésseis  contacto  social  com  tal  gente,  os 
gananciosos,  lascivos  e  idólatras.  Seria  impossível,  como 
aliás  sugerís,  evitar  qualquer  contacto  com  éles.  Para  isso 
teríeis  que  sair  do  mundo.  O  que  eu  quis  dizer  e  agora 
repito  é  que,  se  algum  cristáo  professo  é  culpado  de  tama- 
nhas  faltas,  deveis  evitar  toda  convivencia  com  ele.  Nem 
sequer  comáis  em  sua  companhia.  Nao  me  cabe  ditar  re- 
gras  ao  mundo  néste  particular.  Contento-me  em  olhar  pela 
Igreja,  para  que  seja  irrepreensível,  e  é  éste  o  vosso  mesmo 


54 


CHARLES  R.  ERDMAN 


dever.  Nossa  disciplina,  pois,  nao  se  estende  aos  de  fora  da 
Igreja.  A  éstes  cumpre  deixar  que  Deus  os  julgue.  Já  disse 
o  bastante.  Excomungai  —  langai  fora  de  vossa  comunháo 
—  a  ésse  malfeitor". 

É  evidente  que  Paulo,  aqui,  nao  recomenda  relagoes  ou 
intimidades  dos  crentes  com  os  mundanos,  se  puderem  ser 
evitadas.  Na  carta  seguinte  tratará  específicamente  do  perigo 
de  se  ficar  preso,  em  jugo  desigual,  com  os  incrédulos.  É 
ainda  evidente  que  o  designio  da  disciplina  eclesiástica  é  nao 
sómente  reformar  os  ofensores  e  preservar  a  pureza  moral 
da  Igreja,  como,  em  terceiro  lugar,  é  defender  a  reputagáo  da 
mesma.  Todo  empenho  se  deve  ter  em  mostrar  ao  mundo 
que  a  Igreja  de  Cristo  nao  tolera  a  maldade  moral  dentro  de 
suas  fronteiras.  Possivelmente  há  chegado  o  tempo,  e  é 
agora,  de  a  Igreja  zelar  por  sua  disciplina,  nao  só  á  vista  dos 
culpados  de  pecados  grosseiros,  como  os  de  que  se  ocupa  o 
apostólo  nesta  seccáo  de  sua  carta,  mas  também  á  vista  dos 
"gananciosos"  ou  ávidos  de  grandes  lucros,  dos  "extorcioná- 
rios"  e  propagandistas  mentirosos.  Se  a  disciplina  se  esten- 
desse  a  essa  classe  de  gente  haveria  reboligo  na  Igreja  déstes 
nossos  dias,  táo  complacente  que  é  diante  de  casos  tais.  Mas 
os  reflexos  dessa  atitude  desassombrada,  surpreendente  e 
avivadora  se  fariam  sentir  no  mundo  incrédulo. 


C.  QUEST6ES  JUDICIAIS.  Cap.  6:1-11. 

1  Aventura-se  algum  de  vos,  tendo  questáo  contra 
outro,  a  submeté-la  a  juizo  perante  os  injustos  e  nao 
perante  os  santos?  2  Ou  nao  sabéis  que  os  santos  háo 
de  julgar  o  mundo?  Ora,  se  o  mundo  deverá  ser  jul- 
gado  por  vós,  sois  acaso  indignos  de  julgar  as  coisas 
mínimas?  3  Nao  sabéis  que  havemos  de  julgar  os  pró- 
prios  anjos;  quanto  mais  as  coisas  desta  vida?  4  En- 
tretanto, vós,  quando  tendes  a  julgar  negocios  terre- 
nos, constituis  um  tribunal  daquéles  que  nao  tém  ne- 
nhuma  aceitacáo  na  igreja!  5  Para  vergonha  vo-lo 
digo.  Nao  há^  porventura,  nem  ao  menos  um  sábio 
entre  vós,  que  possa  julgar  no  meio  da  irmandade?  6 
Mas  irá  um  irmáo  a  juizo  contra  outro  irmáo,  e  isto 
perante  incrédulos?  7  O  só  existir  entre  vós  demandas 
já  é  completa  derrota  para  vós  outros.  Por  que  nao 
sofreís  antes  a  injusti§a?  por  que  nao  sofreís  antes  o 
daño?  8  Mas  vós  mesmos  fazeis  a  injusti^a  e  fazeis  o 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


55 


daño,  e  isto  aos  próprios  irmáos.  9  Ou  nao  sabéis  qu« 
os  injustos  nao  herderáo  o  reino  de  Deus?  Nao  vos 
engranéis:  nem  impuros,  nem  idólatras,  nem  adúlteros, 
nem  efeminados,  nem  sodomitas,  10  nem  ladroes,  nem 
avarentos,  nem  bébados,  nem  maldizentes,  nem  rouba- 
dores  herdaráo  o  reino  de  Deus.  11  Tais  fostes  alguns 
de  vos;  mas  vos  vos  lavastes,  mas  fóstes  santificados, 
mas  fóstes  justificados,  em  o  nome  do  Senhor  Jesús 
Cristo  e  no  Espirito  do  nosso  Deus. 

Paulo  acabara  de  declarar  a  necessidade  que  a  igreja 
tinha  de  julgar  e  excluir  de  seu  meio  o  membro  ofensor.  Com 
naturalidade,  pois,  passa  a  considerar  agora  urna  falta  que 
esta  va  se  generalizando  entre  os  cristáos  corintios,  qual  a 
de  levarem  suas  questoes  aos  tribunais  civis.  Tal  prática  re- 
petia-se  com  tanta  frequéncia  que  iá  se  constituía  um  es- 
cándalo público. 

É  fácil  compreender  como,  tratando-se  de  gregos,  apre- 
ciadores da  oratoria,  dos  debates  tribunicios,  de  tórnelos  sen- 
sacionais,  tivessem  uma  inclinacáo  natural  para  os  litigios. 
Paulo,  porém,  dá  a  entender  que  os  litigantes  eram  multas 
vézes  impulsionados  por  motivos  menos  dignos.  Serviam-se 
de  tais  demandas  como  um  meio  de  fraudar  ou  lesar  outros 
crentes,  seus  irmáos.  O  apostólo,  entáo,  firma  dois  principios: 
primeiro  —  era  vergonhoso  estarem  os  crentes  a  contender 
constantemente  perante  juízes  pagáos,  vs.  1-6;  segundo  — 
as  demandas  judiciais  entre  os  crentes  assinalam  falta  de 
justica  e  de  amor  no  meio  déles,  vs.  8-11. 

"Aventura-se  algum  de  vos,  tendo  questáo  contra  outro, 
a  submeté-la  a  juizo  perante  os  injustos  e  náo  perante  os 
santos?"  A  vergonha  de  remeterem  semelhantes  questoes  aos 
jm'zes  pagáos  é  posta  em  relevo  por  dois  fatos:  a  elevada  po- 
sicáo  e  predestinacáo  dos  crentes,  e  o  conceito  pouco  lison- 
jeiro  que  a  Igreja  faz  de  juízes  daqueia  categoría.  "Náo  sa- 
béis que  os  santos  háo  de  julgar  o  mundo. . .  Náo  sabéis  que 
havemos  de  julgar  os  próprios  anjos?"  É  ocioso  querer  espe- 
cular a  época  referida  ai  pelo  apostólo,  as  condicoes  exa- 
tas désse  tempo,  ou  se  ja  a  natureza  désse  estado  futuro 
quando  os  crentes  seráo  elevados  a  tamanha  dignidade  e  au- 
toridade.  É  característica  de  Paulo  a  maneira  inesperada  de 
introduzir,  no  assunto  de  que  se  ocupa,  verdades  plenas  de 
mistério  e  de  elevado  alcance.  A  referencia  que  de  passagem 
e  multo  por  alto  ai  faz  de  um  estado  futuro,  leva-nos  a  cal- 


56 


CHARLES  R.  ERDMAN 


cular,  posto  que  muito  imperfeitamente,  a  giória  vindoura. 
Temos  ai  urna  indica^áo  de  que  os  crentes,  longe  de  se  tor- 
naren! anjos,  seráo  superiores" a  éles.  Partilharáo  com  Cristo 
do  govérno  de  um  mundo  renovado.  Se  esta  é  a  verdade, 
entáo  devem  ser  competentes  para,  já  agora,  resolver  entre  si 
questoes  triviais,  relacionadas  com  a  vida  presente. 

É  deprimente,  nao  há  dúvida,  pessoas  tais  levarem  suas 
demandas  á  decisáo  de  juízes  pagaos  que  nao  tém  essa  voca- 
cáo  e  predestinagáo  honrosa  dos  crentes,  e  nem  gozam  da 
aceitacáo  da  igreja.  ''Certo  que  deve  existir",  concluí  o  apos- 
tólo, "alguém  na  vossa  congregacáo  que  se  ja  capaz  de  resol- 
ver tais  pendencias;  nao  tendes  necessidade  de  recorrer  aos 
tribunais  pagaos".  As  dificuldades  entre  os  crentes  devem 
ser  resolvidas  pela  arbitragem. 

Paulo  nao  quer  dizer  que  o  crente  nao  deve  nunca  re- 
correr aos  tribunais  civis,  nem  que  jamáis  terá  necessidade 
de  requerer  a  protegáo  das  leis  de  seu  país.  "As  potestades 
que  há  sao  de  ordenagao  divina",  e  o  povo  de  Deus  tem  pleno 
direito  de  aceitar  qualquer  beneficio  que  Ihe  advenha  de  um 
govérno  seguro  e  das  leis  justas  de  sua  patria.  Entretanto  o 
que  Paulo  faz  aquí  é  firmar  uma  regra.  Querelas  de  crentes 
e  demandas  perante  os  tribunais  públicos  dáo  lugar  a  escán- 
dalos e  devem  ser  evitadas.  O  apostólo  chega  mesmo  a  avan- 
gar  que  tais  querelas  sao  pecaminosas.  "O  só  existir  entre 
vós  demandas  já  é  completa  derrota  para  vós  outros".  E  a 
idéia  é  esta  mésmo:  derrota.  Os  querelantes  sao  derrotados 
antes  mesmo  de  comparecerem  as  audiencias  nos  tribunais. 
O  simples  fato  de  surgirem  disputas  entre  éles  e  de  chegarem 
elas  áquele  ponto  é  uma  evidéncia  de  derrota  moral. 

O  apostólo  atribuí  a  causa  e  a  malignidade  de  semelhan- 
tes  litigios  á  determinacáo  de  certos  crentes  de  lesarem  ou 
fraudarem  irmáos  seus,  ou  ainda  as  atribuí  ao  ressentimento 
amargo  e  ao  dése  jo  de  vinganga  das  partes  prejudicadas.  Tais 
litigios  sao,  portanto,  pecaminosos.  Será  melhor,  entáo,  evi- 
tá-los  completamente  do  que  se  verem  presos  ñas  malhas 
désse  pecado,  porque,  como  adverte  aos  leitores,  "os  injustos 
nao  herdaráo  o  reino  de  Deus". 

Os  que  usam  de  tais  expedientes,  para  lesar  irmáos  seus, 
merecem  ser  nivelados  aos  impuros,  avarentos  e  pervertidos, 
gente  essa  que  está  excluida  do  Reino.  Com  aquelas  deman- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  57 


das  malignas  os  corintios  manifestavam  o  mesmo  espirito  do 
mundo,  de  que  haviam  sido  libertos.  Acabem,  pois,  com  tais 
expedientes  e  conduzam-se  como  pessoas  que  ja  foram  puri- 
ficadas de  toda  mancha,  separados  para  serem  santos,  decla- 
rados justos,  em  o  nome  do  Senhor  Jesús  Cristo  e  mediante 
o  Espirito  de  nosso  Deus. 


D.  IMPUREZA.  Cap.  6:12-20. 

12  Todas  as  coisas  me  sao  lícitas,  mas  nem  todas 
convém.  Todas  as  coisas  me  sao  lícitas,  mas  eu  nao 
me  deixarei  dominar  por  nenhuma  délas.  13  Os  ali- 
mentos sao  para  o  estómago  e  o  estómago  para  os 
alimentos;  mas  Deus  destruirá  tanto  estes  como  aqué- 
le.  Porém  o  corpo  nao  é  para  a  impureza,  mas  para 
o  Senhor,  e  o  Senhor  para  o  corpo.  14  Deus  ressusci- 
tou  ao  Senhor,  e  também  nos  ressuscitará  a  nos  pelo 
seu  poder.  15  Nao  sabéis  que  os  vossos  corpos  sao 
membros  de  Cristo?  E  eu,  porventura,  tomaría  os 
membros  de  Cristo  e  os  faria  membros  de  meretriz? 
Absolutamente,  nao.  16  Cu  nao  sabéis  que  o  homem 
que  se  une  á  prostituta,  forma  um  só  corpo  com  ela? 
porque,  como  se  diz,  seráo  os  dois  uma  só  carne.  17 
Mas  aquéle  que  se  une  ao  Senhor  é  um  espirito  com 
ele.  18  Fugi  da  impureza!  Qualquer  cutro  pecado  que 
uma  pessoa  cometer,  é  fora  do  corpo;  mas  aquéle  que 
pratica  a  imoralidade  peca  contra  o  próprio  corpo.  19 
Acaso  nao  sabéis  que  o  vosso  corpo  é  santuário  do  Es- 
pirito Santo  que  está  em  vós,  o  qual  tendes  da  parte 
de  Deus,  e  que  nao  sois  de  vós  mesmos?  20  Porque 
fóstes  comprados  por  pre^o.  Agora,  pois,  glorificai  a 
Deus  no  vosso  corpo. 

A  terceira  questáo  moral  que  o  apostólo  passa  a  discutir 
relaciona-se  com  a  impureza.  Mostrou  ser  pecaminoso  o  ex- 
pediente de  se  servirem  alguns  de  questoes  nos  tribunais  para 
fraudarem  e  lesarem  outros,  no  que  manifestavam  um  espi- 
rito injusto,  isso  mesmo  que  os  pagaos  revelavam  naquéles 
vicios  de  que  os  cristáos  se  haviam  redimido.  Acha,  pois,  o 
momento  azado  para  referir  o  mais  prevalecente  désses  vicios, 
a  impureza. 

"Viver  á  moda  corintia",  nos  dias  de  Paulo,  era  uma  ex- 
pressáo  proverbial,  reveladora  de  uma  vida  imoral  e  impura. 
A  prática  da  impureza  era  peculiar  ao  próprio  culto  dos 


58 


CHARLES  R.  ERDMAN 


ídolos.  Nao  era,  pois,  nenhuma  surpresa  que  até  alguns  eren- 
tes  daquela  igreja  concluíssem  nada  importar,  moralmente 
falando,  o  comer  do  oferecido  aos  ídolos  e  também  cometer 
imoralidades. 

Paulo  Ihes  propusera  a  doutrina  da  liberdade  crista.  In- 
sistirá que  o  cristáo  podia  ou  nao  observar  os  dias  santos  dos 
antigos  hebreus,  e  que  igualmente  podia  usar  ou  recusar  ali- 
mentos que  houvessem  servido  no  culto  dos  ídolos.  Eram 
casos  de  consciéncia,  em  que  podia  liaver  diversidade  de  pa- 
recer, e  tais  questóes  ele  as  discute  largamente  no  oitavo, 
nono  e  décimo  caps,  desta  carta.  Éste  principio  de  liberdade 
crista,  evidentemente,  tinha  sido  alegado  por  éles  como  ex- 
cusa da  prática  da  impureza.  Paulo  mantem  o  principio, 
mas  estabelece  algumas  restrigóes,  para  depois  negar  sua 
aplicacáo  num  caso  que,  referentemente  á  moral,  nao  era  in- 
diferente, senáo  um  pecado  odioso. 

Como  primeira  restrigáo,  estabelece  que,  embora  seja  lí- 
cito ao  crente  tudo  quanto,  moralmente  falando,  é  indiferente, 
nem  tudo,  porém,  quanto  recebe  esta  classificacáo  é  conve- 
niente ou  vantajoso.  "Todas  as  coisas  me  sao  lícitas,  mas 
nem  todas  convém".  Mesmo  que  a  impureza  nao  fósse  proi- 
bida  expressarnente  na  lei  de  Deus,  podia-se  provar  que  é  pre- 
judicial. 

Em  segundo  lugar,  se  bem  que  o  crente  possa  entregar-se 
ao  que  é  indiferente,  do  ponto  de  vista  moral,  o  hábito  de 
ceder  voluntariamente  a  tais  práticas  pode  converter-se  em 
escravidáo  espiritual.  "Todas  as  coisas  me  sao  lícitas,  mas 
eu  nao  me  deixarei  dominar  por  nenhuma  délas".  Um  há- 
bito qualquer,  aínda  que  nao  possa  classificar-se  de  imoral, 
pode  escravisar.  Porisso  que  nao  sossega  enquanto  nao  é 
satisfeito.  Aínda  que  a  impureza  nao  fósse  abertamente  imo- 
ral, como  é,  sua  fórga  escravizadora  nao  tem  igual  e  jamáis 
pode  ser  cohonestada  as  custas  da  liberdade  crista.  "O  em- 
prégo  racional  de  minha  liberdade  nao  pode  ir  a  tal  ponto 
que  me  veja  ameagado  de  perdé-la". 

Observadas  as  duas  restrigoes  retro-referidas,  a  questáo 
de  usar  os  variados  alimentos  que  existem  nao  interessa  á 
moral.  A  impureza,  porém,  já  é  um  caso  muito  diferente.  É 
violagáo  direta  de  uma  lei  divina,  específica,  e  nao  pode  ser 
alegada  como  satisfagáo  inocente  de  um  apetite  natural. 


í 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  59 


Paulo  nao  reprova  ésse  pecado  apenas  sob  éste  aspecto  de 
quebra  do  Sétimo  Mandamento,  aspecto  que  interessa  á  hu- 
manidade  em  geral,  mas  sob  um  outro  ainda  mais  elevado, 
qual  seja  o  da  relagáo  que  o  crente  mantem  com  Cristo,  seu 
Senhor.  No  caso  dos  alimentos,  estes  foram  destinados  ao 
estomago  e  o  estómago  foi  formado  para  recebé-los  e  digerí- 
los.  Nem  uma  nem  outra  coisa  pretende  para  si  uma  fi- 
nalidade  mais  alta,  nem  quer  pertencer  a  outra  ordem  de 
coisas  mais  elevada,  porém  seu  escopo  é  servir  as  nossas 
presentes  necessidades  e  género  de  vida.  Nosso  corpo,  en- 
tretanto, em  sua  inteireza,  instrumento  que  é  de  nossas  almas 
imortais,  nao  se  destinou  á  impureza,  porém  muito  ao  con- 
trário  disso  —  foi  destinado  "para  o  Senhor,  e  o  Senhor 
para  o  corpo"  —  e  para  sempre. 

O  corpo  é  "para  o  Senhor".  Foi  projetado  para  ésse 
mesmo  fim.  O  Senhor  encontra  néle  o  instrumento  de  que 
precisa.  Reconhece-o  como  seu  e  serve-se  déle  como  habita- 
gao.  Pagou  o  prego  de  sua  redencáo  e  um  dia  o  transfigurará 
enchendo-o  de  gloria. 

"O  Senhor  é  para  o  corpo".  É  Éle  quem  instruí  quanto 
á  diregáo  correta  a  dar  aos  seus  impulsos  e  faculdades  natu- 
rais.  Sem  éle  o  corpo  jamáis  alcangará  sua  natural  dignidade 
e  seu  imortal  destino.  Esta  relagáo  de  nossos  corpos  com 
Cristo  prolonga-se  pela  eternidade.  "Deus  ressuscitou  ao  Se- 
nhor, e  também  nos  ressuscitará  a  nós  pelo  seu  poder".  No 
cap.  quinze  desta  carta  o  apostólo  irá  deter-se,  com  mais  va- 
gar, sobre  éste  assunto.  Como  vai  ser  conservada  a  identidade 
de  nosso  corpo  na  ressurreigáo,  ou  em  que  consistirá  essa 
identidade,  Paulo  nao  explica.  Mas  que  o  corpo  se  destina 
a  ésse  fim  imortal  e  glorioso  o  apostólo  o  declara  bascado  fir- 
memente na  ressurreigáo  de  Cristo. 

Os  corpos  dos  crentes,  pois,  pertencem  a  Cristo.  Sao  quais 
membros  do  seu  corpo.  Acaso  se  concebe  que  ésses  membros 
de  Cristo  possam  servir  á  prostituigáo?  As  unioes  impuras, 
pelo  fato  de  serem  impuras  nao  deixam  de  ser  unioes,  tanto 
por  sua  natureza  com  por  seus  efeitos,  e  sao,  porisso,  táo 
verdadeiras  como  a  de  nossos  primeiros  pais  no  Edén.  Náo  é 
menos  real  a  uniáo  que  conjuga  o  crente  ao  seu  Senhor.  A 
impureza  ou  prostituigáo  em  que  esteja  envolvido  um  mem- 
bro  de  Cristo  é  deslealdade  e  traigáo  contra  Cristo. 

Fugi  désse  pecado,  escreve  o  apostólo.  Náo  sómente  com- 
batei-o,  mas  evitai  suas  ocasioes,  porque  a  impureza,  mais 


60  CHARLES  R.  ERDMAN 


do  que  outro  qualquer  pecado,  profana  o  corpo.  É  um  pe- 
cado eminentemente  contra  o  corpo.  O  do  crente,  porém,  é 
consagrado  a  Deus.  Ninguém  tem  o  direito  de  profaná-lo.  A 
impureza  ou  prostituigáo  era,  nao  raro,  urna  das  partes  inte- 
grantes do  culto  dos  ídolos,  nos  templos  pagaos.  Com  os 
cristáos  sucede  o  contrário,  seus  corpos  se  devem  conservar 
puros  como  templos  que  sao  do  Espirito  de  Deus. 

Além  disso,  os  crentes  nao  se  pertencem  a  si  mesmos. 
Foram  comprados  pelo  precioso  sangue  de  Cristo.  Devem, 
pois,  pela  pureza  e  santidade  de  suas  vidas,  honrar  Aquéle  a 
quem  pertencem.  Esta  passagem  fornece-nos  o  ensinamento 
que  só  o  Cristianismo  apresenta,  isto  é,  a  dignidade  e  san- 
tidade do  corpo  humano.  Nao  se  deve  entender  a  liberdade 
crista  como  íicenga  para  a  pessoa  entregar-se  espontanea- 
mente  a  pecados  da  carne.  Ñem  as  mais  agigantadas  reali- 
zacoes  espirituais  compensam  os  prejuízos  da  negligencia  e 
do  abuso  do  corpo.  Éste  precisa  ser  visto  como  instrumento 
do  Senhor  Jesús,  como  templo  santo  reservado  á  morada  do 
Espirito  de  Deus. 

A  última  frase  do  apostólo  ilustra  sua  habilidade  de  ex- 
por  as  mais  belas  verdades  como  joias  que  cintilam  sobre  o 
fundo  negro  de  pecados  tais  quais  aqueles  de  que  trata,  bem 
assim  a  sua  capacidade  de  aproveitar  as  realidades  mais 
transcentes,  como  incentivo  das  mais  elementares  virtudes 
moráis.  Assim  é  que  discutindo  a  questáo  da  disciplina,  das 
demandas  judiciais  e  da  impureza,  e  apesar  de  serem  tais 
assuntos  bastante  ingratos  e  nao  pouco  delicados,  ele  ainda 
acha  oportunidade  de  intercalar  a  tocante  exortagáo:  Cris- 
to, nosso  Cordeiro  pascoal,  foi  imolado  por  nós,  porisso  ce- 
lebremos a  festa . . .  com  os  asmos  da  sinceridade  e  da  ver- 
dade".  Condenando  querelas  de  cristáos  perante  tribunais 
pagaos,  lembra  que  os  crentes  váo  ser  juízes  do  mundo  e 
dos  anjos.  Advertindo  contra  a  impureza,  faz  uma  afirmagáo 
magnífica:  nossos  corpos  sao  templos  do  Espirito  Santo. 

E.  CASAMENTO.  Cap.  7. 

Certo  número  de  problemas  havia  sido  proposto,  por 
carta,  á  apreciagáo  do  apostólo.  Entre  éles  figurava  um 
questionário  relativo  ao  casamento.  Acabando  de  considerar 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  61 


O  assunto  de  urna  vida  social  que  devia  ser  decente,  o  após- 
telo, numa  sequéncia  lógica,  passa  a  responder  o  citado  ques- 
tionário,  visto  como  ele  via,  na  instituicáo  do  casamento,  uma 
salvaguarda  da  pureza  privada  e  coletiva,  ou  social. 

Deve-se  notar,  entretanto,  que  nao  discute  o  casamento 
do  ponto  de  vista  de  sua  moral,  mas  da  sua  conveniencia.  E 
para  isto  observe-se  que  ele  nunca  insiste  em  que  as  pessoas 
se  casem,  nem  que  deixem  de  se  casar,  permitindo  ver  que 
essa  questáo  deve  ser  encarada  do  ponto  de  vista  das  condi- 
goes  ou  do  temperam.ento  de  cada  um.  As  questoes  pertinen- 
tes á  disciplina  eclesiástica,  as  demandas  em  juizo  e  á  pu- 
reza pessoal  foram  questoes  de  ordem  moral;  mas  o  que 
agora  entra  a  apreciar  sao  dois  assuntos  morataente  indife- 
rentes —  o  casamento  e  o  consumo  de  carnes  sacrificadas  aos 
ídolos.  E  assim,  a  nova  seccáo,  posto  que  intimamente  rela- 
cionada com  a  precedente,  marca  uma  divisáo  bem  nítida  na 
carta. 

Muita  crítica  severa  tem  caído  em  cima  do  apostólo  por 
causa  do  que  ele  ai  declara  acerca  do  casamento.  É  muito 
fácil,  entretanto,  compreendé-lo  mal.  Dois  ou  tres  fatos  con- 
vem  guardar  na  memória.  Primeiro,  ele  está  respondendo  a 
perguntas  definidas,  cu  jo  conteúdo  exato  nao  chegou  ao  nosso 
conhecimento.  Se  a  discussáo  versasse  sobre  o  casamento 
como  instituicáo,  encarando-se  o  assunto  de  todos  os  seus^ 
lados,  teria  sido  muito  diferente  o  seu  depoímento.  Seus 
aspectos  mais  interessantes  e  sua  importancia  espiritual  sao 
objeto  de  atencao  do  apóstolo  em  outras  cartas  que  escreveu. 

Segundo,  o  método  de  encarar  o  assunto  e  os  argumentos 
especiáis  empregados  só  poderiam  ser  bem  apreciados  se  sou- 
béssemos  que  opinioes  erróneas  os  coríntios  mantinham  em 
torno  da  matéria.  Acontece,  porém,  que  nao  temos  informa- 
coes  completas  sóbre  isso.  Pelo  menos  parece  que  alguns 
crentes  tinham  o  casamento  como  de  absoluta  obrigagáo. 
Outros  o  consideravam  como  moralmente  inferior,  uma  es- 
pécie  de  concessáo  feita  aos  baixcs  instintos  da  natureza. 
Ainda  outros  eram  de  parecer  que,  uma  vez  o  individuo  se 
convertendo  a  Cristo,  todas  as  suas  relacoes  sociais,  inclusive 
a  do  casamento,  se  dissolviam. 

Em  terceiro  lugar,  deve-se  ver  que  Paulo  escreve  refe- 
rindo  condigoes  que  eram  puramente  locáis  e  temporarias. 
Se  tivéssemos  de  aplicar,  literalmente,  a  cada  crente,  de 


62 


CHARLES  R.  ERDMAN 


qualquer  época,  todas  as  injungóes  do  apostólo  ai  apresen- 
tadas,  seria  um  desastre.  Os  principios  pelos  quais  ele  se 
orienta  sao  invariáveis.  Comumente  nao  é  muito  difícil 
distinguir  o  que  se  aplica  diretamente  a  condigoes  transito- 
rias e  a  verdade  constante,  invariável,  que  serve  de  base  ao 
seu  ensino.  Quando  se  interpretam  corretamente  estas  ins- 
trugoes  relativas  ao  casamento,  é  inevitável  reconhecé-las  real- 
mente sensatas  e  bem  calculadas,  encerrando  em  si  principios 
que  sao  de  valor  atual  e  permanente. 

Paulo  nao  esgota  o  assunto,  mas  considera-o  ñas  quatro 
seguintes  relagoes:  casamento  e  celibato,  vs.  1-9;  casamento  e 
divorcio,  vs.  10-24;  casamento  e  servigo  cristáo,  vs.  25-38;  casa- 
mento "no  Senhor",  vs.  39-40. 

1.  Casamento  e  Celibato.  Cap.  7:  1-9. 

1  Quanto  ao  que  me  escrevestes,  é  bom  que  o  ho- 
mem  nao  toque  mulher;  2  mas,  por  causa  da  impureza, 
cada  um  tenha  a  sua  própria  esposa  e  cada  uma  o 
seu  próprio  marido.  3  O  marido  conceda  á  esposa  o 
que  Ihe  é  devido,  e  também  semelhantemente  a  esposa 
ao  seu  marido.  4  A  mulher  nao  tem  poder  sobre  o  seu 
próprio  corpo,  e,  sim,  o  marido;  e  também,  semelhan- 
temente, o  marido  nao  tem  poder  sobre  o  seu  próprio 
corpo,  e,  sim,  a  mulher.  5  Nao  vos  privéis  um  ao  outro, 
salvo  talvez  por  mutuo  consentimento,  por  algum  tem- 
po,  para  vos  dedicardes  á  oracáo  e  novamente  vos  ajun- 
tardes,  para  que  Satanás  nao  vos  tente  por  causa  da 
incontinencia.  6  E  isto  vos  digo  como  concessáo  e  nao 
por  mandamento.  7  Quero  que  todos  os  homens  sejam 
tais  como  também  eu  sou;  no  entanto  cada  um  tem 
de  Deus  o  seu  próprio  dom;  um,  na  verdade,  de  um 
modo,  outro  de  outro.  8  E  aos  solteiros  e  viúvos  digo 
que  Ihes  seria  bom  se  permanecessem  no  estado  em 
que  também  eu  vivo.  9  Caso,  porém,  nao  se  dominem, 
que  se  casem;  porque  é  melhor  casar  do  que  viver 
abrasado. 

Tem-se  compreendido  mal  ao  apostólo,  vendo-se  néle  um 
asceta  que  nao  dava  á  mulher  seu  devido  valor  e  desaconse- 
Ihava  o  casamento.  Mas,  pelo  contrário,  éle  tem  o  casamento 
como  regra  para  todos  os  crentes  e  nao  vé  no  celibato  nenhu- 
ma  virtude  para  sobrepor-se  ao  casamento.  Devemos  ter  esta 
verdade  fundamental  presente  na  memoria  se  quisermos  in- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


63 


terpretar  bem  tudo  quanto  éle  escreve  neste  cap.  sobre  o 
assunto. 

Se  o  casamento  é  a  regra  geral,  por  outro  lado  o  apostólo 
frisa  que  o  celibato  é  um  estado  honroso.  ''É  bom  que  o  ho- 
mem  nao  toque  mulher".  Nenhuma  virtude  especial  existe 
no  matrimonio  e  Paulo  com  isto  procura  defender  o  celibato 
da  pecha  de  prejudicial  e  anticristáo.  Efetivamente,  o  celiba- 
to tem  suas  vantagens,  e  Paulo  as  menciona  adiante,  vs,  25-38. 
Nao  obstante,  a  regra  deve  ser  casar.  Mas  entende-se  que 
se  trata  de  verdadeiro  casamento,  ou  seja  a  uniáo  permanen- 
te, durável,  de  um  homem  e  uma  mulher:  ''Cada  um  tenha  a 
sua  própria  esposo  e  cada  uma  o  seu  próprio  marido.  Tal  pro- 
videncia ajuda  na  preservacáo  da  pureza  moral  sobre  que  se 
deve  apoiar  uma  sociedade  organizada.  Opinioes  livres  so- 
bre o  casamento  sao  uma  ameaca  de  morte  á  instituigáo  da 
familia  e  á  conservagáo  da  ordem  social.  Aqueles  mestres 
corintios  que  enalteciam  sobremaneira  o  celibato  ao  ponto 
de  matarem  todo  o  estímulo  do  casamento,  precisavam  de 
um  corretivo.  O  casamento  foi  instituido  por  Deus  no  Edén, 
santificado  pela  presenca  graciosa  de  Cristo,  em  Caná  da 
Galiléia,  e  pela  generosidade  com  que  operou  alí,  numa  festa 
de  casamento,  seu  primeiro  sinal.  E,  por  fim,  é  sancionado 
por  Paulo  como  instituigáo  crista. 

Mas  havia  outro  erro  sustentado  pela  maioria  dos  crentes 
corintios.  Diziam  que  o  estado  matrimonial  era  de  tal  modo 
inferior  ao  celibato  que  valia  a  pena  os  crentes  casados  se  se- 
pararem,  sendo  até  meritorio  fazé-lo.  Paulo  corrige  ésse  erro. 
Tal  prática  Ihes  ensejaria  tentagoes  desnecessárias.  Maridos 
e  mulheres  devem  cumprir  suas  obrigagoes  mútuas.  Se  por 
algum  tempo  se  abstém  disso,  nao  é  por  mérito  que  ha  ja 
nessa  atitude,  mas  por  consentimento  mútuo  e  por  alguma 
razáo  ponderável,  qual  seja  a  observancia  de  períodos  espe- 
ciáis de  oragáo. 

Declara  que,  se  estabelece  o  casamento  como  regra  entre 
os  crentes,  só  o  faz  "como  concessáo  e  nao  por  mandamento". 
Isto  tem  levado  alguns  a  interpretá-lo  falsamente,  pois  que- 
rem  ver  nesta  declaragáo  um  indicio  de  que  nao  estava  escre- 
vendo  sob  a  diregáo  divina.  Mas  o  que  realmente  quer  dizer 
é  que  o  seu  inspirado  conselho  com  relagáo  ao  casamento  nao 
deve  ser  entendido  como  mandamento,  antes  como  permis- 


64 


CHARL-ES  R.  ERDMAN 


sao.  Toda  pessoa  é  livre  para  proceder  de  acórdo  com  as 
circunstancias  que  a  cercam  e  segundo  sua  própria  disposicáo. 

Entretanto  o  apostólo  declara  sua  preferencia  pelo  esta- 
do de  solteiro,  se  é  que,  nao  casando,  o  individuo  gpze  urna 
vida  mais  sossegada  e  mais  contente.  Embora  declare  exce- 
lente o  celibato,  reconhece  que  a  capacidade  para  viver  sol- 
teiro é  um  dom  especial.  Os  que  nao  possuem  ésse  dom  de- 
vem  casar-se.  É  claro  que  a  doutrina  de  Paulo  é  boa  e  razoá- 
vel.  Seria  absurdo  querer  que  todo  o  mundo  se  casasse,  pois 
existem  alguns  que  podem  ser  mais  felizes  e  realizar  sua 
missáo  nesta  vida  mais  desafogadamente  e  com  maior  con- 
tentamento  permanecendo  solteiros.  A  regra  comum,  toda- 
vía, é  casar.  O  nao  casar  admite-se  como  excegáo.  Tal  o 
caso  de  Paulo.  É  insensatez  alguém  fazer  voto  de  celibato,  a 
menos  que  possua  o  dom  e  a  capacidade  natural  para 
cumprí-lo. 


2.  Casamento  e  Divorcio.  Cap.  7:10-24. 

10  Ora,  aos  casados,  ordeno,  nao  eu  mas  o  Senhor, 
que  a  mulher  nao  se  separe  do  marido,  11  (se,  porém, 
ela  vier  a  separar-se,  que  nao  se  case,  ou  que  se  recon- 
cilie com  seu  marido);  e  que  o  marido  nao  se  aparte 
de  sua  mulher.  12  Aos  mais  digo  eu,  nao  o  Senhor: 
Se  algum  irmáo  tem  mulher  incrédula,  e  esta  consente 
em  morar  com  ele,  nao  abandone;  13  e  a  mulher  que 
tem  marido  incrédulo,  e  éste  consente  em  viver  com 
ela,  nao  deixe  o  marido.  14  Porque  o  marido  incré- 
dulo é  santificado  no  convivio  da  esposa  e  a  esposa 
incrédula  é  santificada  no  convivio  do  marido  crente. 
Doutra  sorte  os  vossos  filhos  seriam  impuros;  porém, 
agora,  sao  santos.  15  Mas,  se  o  descrente  quiser  apar- 
tar-se,  que  se  aparte;  em  tais  casos  nao  fica  su  jeito  á 
servidáo,  nem  o  irmáo,  nem  a  irmá;  Deus  vos  tem 
chamado  á  paz.  16  Pois,  como  sabes,  ó  mulher,  se  sal- 
varás a  teu  marido?  ou  como  sabes,  ó  marido,  se  sal- 
varás a  tua  mulher?  17  Ande  cada  um  conforme  o  Se- 
nhor Ihe  tem  distribuido,  cada  um  conforme  Deus  o 
tem  chamado.  É  assim  que  ordeno  em  todas  as  igre- 
jas.  18  Foi  alguém  chamado,  estando  circunciso?  nao 
desfaca  a  circuncisáo.  Foi  alguém  chamado  estando 
incircunciso?  nao  se  fa?a  circuncidar.  19  A  circuncisáo 
em  si  nao  é  nada;  a  incircuncisáo  também  nada  é, 
mas  o  que  vale  é  guardar  as  ordenanzas  de  Deus.  20 
Cada  um  permane?a  na  voca^áo  em  que  foi  chamado. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


65 


21  Fóste  chamado  sendo  escravo?  nao  te  preocupes 
com  isso;  mas,  se  aínda  podes  tornar-te  livre,  apro- 
veita  a  oportunidade.  2Z  Porque  o  que  foi  chamado  no 
Senhor,  sendo  escravo,  é  liberto  do  Senhor;  semelhan- 
temente  o  que  foi  chamado,  sendo  livre,  é  escravo  de 
Cristo.  23  Por  prego  fóstes  comprados;  nao  vos  tor- 
néis escravos  de  homens.  24  Irmáos,  cada  um  perma- 
ne?a  diante  de  Deus  naquilo  em  que  foi  chamado. 

Observa-se  que  na  igreja  de  Corinto  havia  pessoas  con- 
victas de  que,  com  a  aceitagáo  do  evangelho,  desfaziam-se 
automáticamente  todos  os  lacos  que  prendiam  o  convertido  á 
sociedade,  inclusive  o  vínculo  do  casamento.  Pensando  assim, 
certos  cr entes  achavam  necessário  que  os  conjuges  cristáos  se 
separassem  e  adotassem  o  celibato.  Outros  ainda  eram  de 
parecer  que,  se  um  esposo  pagáo  se  convertesse  e  a  mulher 
nao  o  seguisse  néste  passo,  devia  ele  divorciar-se  da  esposa 
descrente.  O  mesmo  devia  fazer  a  esposa  convertida,  relati- 
vamente ao  esposo  impenitente.  Paulo  estabelece  uma  regra 
para  os  dois  casos,  a  qual  serve  de  norma  reguladora  de 
quaisquer  que  sejam  as  relagoes  e  condigoes  sociais.  "Cada 
um  permanega  na  vocagáo  em  que  foi  chamado".  As  rela- 
goes sociais  nao  devem  sofrer  abalo  e  muito  menos  desfazer-se 
pelo  fato  de  se  aceitar  Cristo  como  Senhor.  Muito  ao  con- 
trário,  devem  ser  sublimadas  por  ésse  mesmo  fato. 

Quanto  ao  primeiro  parecer  ácima  referido  Paulo  Ihes 
lembra  o  preceito  expresso  do  Senhor  contra  o  divorcio,  salvo 
em  casos  de  iniidelidade.  "Aos  casados,  ordeno,  nao  eu,  mas 
o  Senhor,  que  a  mulher  nao  se  separe  do  marido. . .  e  que  o 
marido  nao  se  aparte  de  sua  mulher".  Acrescenta,  entre- 
tanto, que  havendo  separagáo  nao  é  permitido  um  novo  ca- 
samento. Os  cristáos  que  se  separassem  deviam  permanecer 
solteiros,  ou  procurar  reconciliagáo. 

Paulo  ainda  se  refere  "aos  mais",  ou  sejam  os  envolvidos 
em  casamentos  mistos.  O  expediente  a  seguir  nestes  casos 
é  mais  difícil  de  fixar,  vs.  12-16.  Quando  um  dos  conjuges 
se  convertía,  nao  era  essa  mudanga  de  confissáo  religiosa  uma 
razáo  bastante  para  divórcio?  Devia  um  espóso  ou  esposa 
crente  sentir-se  na  obrigagáo  de  viver  com  o  outro  conjuga 
que  era  pagáo?  Jesús  Cristo  nada  deixou  explícito  sobre  éste 
caso,  mas  o  apostólo,  sob  a  inspiragáo  divina,  oferece  uma 
solugáo.  Náo  nega  essa  inspiragáo,  antes  reveste  o  seu  pa- 
recer da  mesma  autoridade  do  preceito  de  Cristo  atrás  refe- 


66 


CHARLES  R.  ERDMAN 


rido.  o  que  ele  quer  dizer  é  que  nao  tem  urna  palavra  ex- 
pressa  de  Cristo,  de  que  possa  fazer  citagáo;  contudo  nao 
deixa  de  ter  urna  orientagáo  para  o  caso:  "Aos  mais  digo  eu, 
nao  o  Senhor". 

Resume-se  o  seu  parecer  no  seguinte:  a  conversáo  de  um 
dos  cónjuges  nao  é  razáo  suficiente  para  divorcio,  nem  o  deve 
ser  a  incredulidade  de  um  déles.  "Cada  um  permanega  na 
vocagáo  em  que  foi  chamado",  ordena  formalmente.  Se  hou- 
ver  separacáo,  seja  por  iniciativa  da  parte  descrente.  Se  o 
incrédulo  consente  em  viver  com  o  crente,  éste  nao  deve  pro- 
curar separar-se.  A  parte  infiel  e  os  filhos  désse  consorcio 
estáo  sob  a  influéncia  santificadora  de  uma  vida  crista.  Isto, 
entretanto,  nao  significa  aprovacáo  de  casamentos  mistos. 
Pelo  contrário,  o  apostólo  desaconselha  tais  casamentos,  II 
Cor..  6:14.  Sua  doutrina  cifra-se  nisto:  pela  conversáo  de 
um  dos  consortes  a  familia  passa  a  gozar  de  uma  atmosfera 
de  santidade  e  das  vantagens  de  um  lar  cristáo. 

Todavía,  se  um  dos  consortes,  por  ser  descrente,  insiste 
em  separar-se,  o  crente  nao  deve  fazer  objecáo.  Querer  por 
fórga  que  continui  essa  relagáo  conjulgal  em  tais  circunstan- 
cias, será  dar  ocasiáo  a  contendas  domésticas.  O  crente  "nao 
está  sujeito  á  servidao"  em  tais  casos.  Uma  separagáo  ai  é 
aconselhável.  "Deus  nos  tem  chamado  á  paz".  Naturalmente 
que  seria  possível,  continuando  unidos,  a  parte  infiel  acabar 
se  convertendo.  Mas  isto  é  problemático.  As  vantagens  da 
separagáo,  sendo  mais  próximas  e  evidentes,  superam  essa 
probabilidade  remota. 

É  preciso  notar  que  nada  se  diz  aquí  sobre  o  direito  de 
casar  de  novo.  Como  Paulo  declarou  há  pouco  ser  inadmissí- 
vel  novo  casamento  para  os  crentes  que  se  separam,  tal  proi- 
bigáo  parece  naturalmente  implícita  no  caso  de  um  conjuge 
fiel  separar-se  do  incrédulo,  visto  como  nao  se  aduz  coisa 
alguma  em  contrário.  Além  do  mais,  é  muitíssimo  imprová- 
vel  que  Paulo  contradiga  o  preceito  expresso  de  Cristo,  que 
permitiu  o  divorcio  e  novo  casamento  apenas  na  hipótese  de 
adultério.  Se  um  marido  ou  mulher  descrente,  que  tenha 
provocado  a  separagáo,  vier  a  contrair  novas  núpcias,  entáo, 
de  acorde  com  o  ensino  de  nosso  Senhor,  a  parte  abandonada 
ficará  absolutamente  livre  para  casar  outra  vez,  agora  com 
um  crente. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  67 


Aínda  que  tais  separagoes  sejam  permitidas  e  até  neces- 
sárias,  de  modo  nenhum  o  apóstelo  as  estimula  ou  aconselha. 
Em  regra  as  relagoes  conjugáis  nao  devem  ser  desfeitas  com 
facilidade.  Cada  qual  deve  cumprir  todos  os  de  veres  do  es- 
tado em  que  providencialmente  foi  colocado  e  em  que  se 
achava  quando  ouviu  o  chamado  divino:  "Ande  cada  um 
conforme  o  Senhor  Ihe  tem  distribuido,  cada  um  conforme 
Deus  o  tem  chamado". 

Paulo  aplica  éste  principio  as  duas  principáis  catego- 
rías políticas  e  sociais  do  seu  tempo.  Se  um  judeu  se  tornasse 
cristáo  dever-se-ia  contentar  em  ser  um  judeu  cristáo.  Aos 
crentes  nao  importam  muito  as  discriminagoes  nacionais, 
senáo  a  obediencia  a  Deus,  e  isto  é  tudo.  Nao  é  do  papel  do 
Cristianismo  desfazer  tais  discriminacoes,  nacionais  e  sociais. 
Se  um  escravo  se  tornasse  cristáo,  sua  condigáo  inferior  nao 
devia  apoquentá-lo.  Cumpria-lhe  continuar  escravo,  mas 
agora  com  atitudes  cristas,  sem  procurar  libertar-se  pelo  fato 
de  agora  ser  crente.  Em  Cristo  as  distingoes  sociais  desapa- 
recem,  confundidas  ou  amalgamadas  em  uma  unidade  supe- 
perior,  a  sua.  O  escravo  cristáo  é  liberto  de  Cristo;  de  Cristo 
é  escravo  o  liberto  que  se  converteu.  Fomos  comprados  por 
elevado  prego  e  pertencemos  a  um  Senhor.  Náo  nos  devemos 
tornar,  por  conseguinte,  escravos  de  ninguém,  cedendo  as 
suas  opinióes  e  caprichos  e  procurando  alterar  a  condicáo 
em  que  a  vocagáo  de  Cristo  nos  encontrón.  Seja  qual  fór  essa 
condigáo,  social  ou  política,  o  cuidado  que  devemos  ter  é  o 
de  nossas  relagoes  com  Deus. 


3.  Casamento  e  Servigo  Cristáo.  Cap.  7:25-38. 

25  Com  respeito  as  virgens,  nao  tenho  mandamen- 
to  do  Senhor;  porém  dou  mínha  opiniáo  como  tendo 
recebido  do  Senhor  a  misericordia  de  ser  fiel.  26  Con- 
sidero, por  causa  da  angustiosa  situagáo  presente,  ser 
bom  para  o  homem  permanecer  assim  como  está.  27 
Estás  casado?  náo  procures  separar-te;  estás  livre  de 
mulher?  náo  procures  casamento.  28  Mas,  se  te  can- 
sares, com  isto  náo  pecas;  e  também  se  a  virgem  se 
casar,  por  isso  náo  peca.  Ainda  assim,  tais  pessoas 
sofreráo  angústia  na  carne,  e  eu  quisera  poupar-vos. 
29  Isto,  porém,  vos  digo,  irmáos:  o  tempo  se  abrevia;  o 
que  resta  é  que  náo  só  os  casados  sejam  como  se  o 
náo  fóssem;  30  mas  também  os  que  choram,  como  se 


68 


CHARLES  R.  ERDMAN 


nao  chorassem;  e  os  que  se  alegram,  como  se  nao  se 
alegrassem;  e  os  que  compram,  como  se  nada  possuis- 
sem;  31  e  os  que  se  utilizam  do  mundo,  como  se  déle 
nao  usassem;  porque  a  aparéncia  déste  mundo  passa. 
32  O  que  realmente  eu  quero  é  que  este  jais  livres  de 
preocupa?oes.  Quem  nao  é  casado  cuida  das  coisas  do 
Senhor,  de  como  agradar  ao  Senhor;  33  mas  o  que  se 
casou  cuida  das  coisas  do  mundo,  de  como  agradar  á 
esposa,  34  e  assim  está  dividido.  Também  a  mulher, 
tanto  a  viúva  como  a  virgem,  cuida  das  coisas  do  Se- 
nhor, para  ser  santa,  assim  no  corpo  como  no  espirito; 
a  que  se  casou,  porém,  se  preocupa  com  as  coisas  do 
mundo,  de  como  agradar  ao  marido.  35  Digo  isto  em 
favor  dos  vossos  próprios  interésses;  nao  que  eu  pre- 
tenda enredar-vos,  mas  sómente  para  o  que  é  decoroso 
e  vos  facilite  o  consagrar-vos,  desimpedidamente^  ao 
Senhor.  36  Entretanto,  se  alguém  julga  que  trata  sem 
decoro  a  sua  filha,  estando  já  a  passar-lhe  a  flor  da 
idade,  e  as  circunstancias  o  exigem,  fa?a  o  que  quiser. 
Náo  peca;  que  se  casem.  37  Todavia,  o  que  está  firme 
em  seu  cora^áo,  náo  tendo  necessidade,  mas  dominio 
sobre  o  seu  próprio  arbitrio,  e  isto  bem  firmado  no  seu 
ánimo,  para  conservar  virgem  a  sua  filha,  bem  fará. 
38  E  assim  quem  casa  a  sua  filha  virgem  faz  bem; 
quem  náo  a  casa  fará  melhor. 

Haviam  pedido  um  conselho  a  Paulo  sobre  como  deviam 
proceder  os  pais  relativamente  as  filhas  solteiras.  Deviam 
dá-las  em  casamento,  ou  negar-lhes  consentimento  para  isso? 
Quanto  a  éste  assunto  ele  diz  que  náo  tem  nenhum  manda- 
mento  do  Senhor.  Significa  inexistir  para  o  caso  um  ensi- 
namento  expresso  de  Cristo,  como  também  quer  dizer  aue 
sua  resposta  ou  parecer  náo  deve  ser  encarado  como  regu- 
lamento,  ou  exigéncia,  senáo  como  conselho,  no  qual  os  pais 
poderáo  convir  se  quiserem,  de  acordó  com  as  circunstáncias 
de  cada  caso.  Náo  nega  a  inspiracáo  de  suas  palavras,  porém 
falando  assim  afirma-se  digno  de  confianga. 

A  substancia  de  sua  resposta  é  o  seguinte:  Consideran- 
do as  presentes  asperezas  e  dificuldades  da  vida,  será  mais 
prudente  ñcar  solteiro.  Assim  se  evitaráo  angústias  e  o 
trabalho  evangélico  encontrará  menos  empecilhos.  No  en- 
tanto  a  questáo  ai  náo  é  de  ser  certo  ou  errado  casar;  náo  se 
trata  disto,  mas  da  conveniéncia  de  cada  um,  como  cada 
pessoa  queira  e  resolva. 

Sublinham-se  tres  elementos  na  resposta  de  Paulo.  Pri- 
meiro,  "por  causa  da  angustiosa  situacáo  j^resente"  é  bom 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


69 


permanecer  solteiro,  ou,  se  casar,  dispor-se  a  aceitar  com  pa- 
ciencia as  responsabilidades  que  ésse  estado  acarreta.  Esta 
vida  OU  a  era  presente  cedo  acabará.  Esta  expectagáo  absor- 
vente  da  vinda  de  Cristo  chegará  ao  fim.  Os  padecimentos 
atuais  dos  crentes  podem  bem  ser  aqueles  que  foram  preditos 
como  íiavendo  de  preceder  imediatamente  a  vinda  do  Senhor. 
Porisso  o  casamento  e  outras  preocupagoes  humanas  nao  de- 
vem  empolgar-nos  de  tal  manelra  que  nos  causem  desneces- 
sária  ansiedade.  Os  país  nao  devem  julgar  que  o  casamento 
aas  filhas  é  a  coisa  mais  importante  déste  mundo. 

Nao  se  devem  tirar  conclusoes  exageradas  do  que  o  apos- 
tólo acabou  de  dizer.  Nao  afirmou  que  a  vinda  de  Cristo  se 
daria  imediatamente,  nem  disse  que  os  crentes  menospre- 
zassem  as  obrigagoes  normáis  da  vida  e  suas  sagradas  reía- 
goes.  Se  o  afirmasse  estarla  em  contradigao  com  o  que  de- 
ciarou  no  resto  déste  cap.  e  em  outras  partes  desta  epístola. 
Mas  o  que  ele  dése  ja  é  que  seus  leitores  vejam  as  coisas  como 
aevem  ser,  guardadas  suas  devidas  proporcoes.  E  visto  como 
a  oraem  presente  das  coisas  déste  mundo  nao  é  aquela  que 
vaí  perdurar  para  sempre,  os  crentes  nao  se  preocupem  assim 
aesmedidamente  com  estas  condigoes  e  relacoes  que  em  breve 
deíxaráo  de  existir.  Quer  que  se  utilizem  do  mundo,  mas  nao 
de  um  modo  absorvente:  "Porque  a  aparéncia  déste  mundo 
passa",  vs.  26-31. 

Em  segundo  lugar  declara  que,  tendo-se  em  vista  a  tri- 
bulacáo  que  assoberbava  a  Igreja,  havia  vantagem  no  celi- 
bato. O  solteiro  estava  em  muito  melhores  condicoes  de 
prestar  servigo  cristáo  sob  variadas  formas,  e  possivelmente 
era  menos  tentado  e  perturbado  por  distragoes  seculares.  O 
que  éle  visa  com  éste  seu  conselho  é  ficarem  os  crentes 
"livres  de  cuidados".  O  maior  proveito  dos  leitores  é  o  alvo  de 
sua  admoestagáo.  Nao  tem  a  intengáo  de  restringir-lhes  a 
liberdade,  senáo  ajudá-los  a  buscar  o  que  é  conveniente,  a 
fim  de  que  possam  servir  ao  Senhor  sern  desviar  disso  a 
atengáo. 

Em  terceiro  lugar  frisa  bem  que  a  atitude  de  um  pai  com 
referencia  ao  casamento  de  urna  filha  é  pura  questáo  de  con- 
veniéncia  e  de  circunstancias.  Se  o  pai  entende  que  nao  age 
decorosamente  ou  elegantemente  com  relagáo  á  filha  solteira, 
especialmente  se  ela  já  nao  está  mais  na  flor  da  idade,  e  se 
é  patente  a  necessidade  de  se  casar,  nao  tenha  dúvida;  con- 


70 


CHARLES  R.  ERDMAN 


sinta  no  casamento.  Nao  cometerá  nenhuma  falta.  Mas, 
contrariamente,  se  recusar  consentir  no  casamento,  devem 
ser  as  circunstancias  tais  que  nao  déem  lugar  á  menor  dú- 
vida  de  ser  prudente  e  acertada  esta  resolucáo.  Também  é 
preciso  que  nao  haja  nenhum  impedimento  ponderável  para 
esta  resolucáo,  como  por  exemplo  o  caso  de  a  filha  já  ter 
sido  prometida,  ou  outra  circunstancia  que  a  isso  o  tenha 
levado.  O  pai  deve  ter  o  direito  legal  e  moral  de  opor  seu 
embargo  no  caso.  Tal  direito  nem  sempre  foi  reconhecido 
sob  a  vigencia  das  leis  romanas,  isto  em  virtude  dos  cos- 
tumes  sociais  daquela  época.  Porisso  que,  se  a  decisáo  paterna 
fósse  contrária  ao  casamento,  deveria  sé-lo  por  uma  delibera- 
gao  pessoal  e  independente. 

Entáo,  observadas  todas  estas  circunstancias,  pode  ser 
melhor,  em  dias  de  apérto  e  aflicáo,  tom.ar  o  pai  a  decisáo  de 
negar  consentimento  ao  casamento  de  uma  filha.  Nao  obs- 
tante, "quem  casa  a  sua  filha  virgem  faz  bem".  Náo  faz 
nenhum  mal.  Contudo,  pode  haver  circunstancias  e  condi- 
c5es  tais  que,  permanecendo  solteira,  o  servigo  de  Cristo  ñas 
suas  rnáos  prospere  mais  e  o  seu  caráter  cristáo  mais  se  de- 
senvolva  e  se  firme. 


4.  Casamento  "no  Senhor'\  Cap.  7:39-40. 

39  A  mulher  está  ligada  enquanto  vive  o  marido; 
contudo,  se  falecer  o  marido,  fica  livre  para  casar  com 
quem  quiser,  mas  somente  no  Senhor.  40  Todavia  se- 
rá mais  feliz  se  permanecer  viúva,  segundo  a  minha 
opiniáo;  e  pensó  que  também  eu  t'enho  o  Espirito  de 
Deus. 

Ernbora  o  caso  das  viúvas  tenha  sido  indiretamente  con- 
templado ñas  instrucoes  anteriores,  Paulo  Ihe  faz  uma  refe- 
rencia direta  na  conclusáo  de  sua  resposta  ao  questionário 
proposto  sobre  o  casamento.  A  morte  dissolve  o  vínculo  ma- 
trimonial, declara  o  apostólo.  Assim,  morrendo  o  marido,  a 
viúva  "fica  livre  para  casar  com  quem  quiser".  Paulo  náo 
quer  dizer  que  se  ja  ilícito,  inconveniente  do  ponto  de  vista 
moral  ou  anticristáo  contrair  segundas  núpcias,  pois  albures 
insiste  que  as  viúvas  jovens  se  casem:  "Quero,  portan to,  que 
as  viúvas  mais  novas  se  casem,  criem  filhos,  sejam  boas  donas 
de  casa  e  náo  déem  ao  adversário  ocasiáo  favorável  de  male- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  71 


dicéncia"  (I  Tim.  5:14).  Todavía,  por  falar  agora  em  tempes 
difíceis  que  a  Igreja  está  enfrentando,  afirma  que  apesar  de 
qualquer  viúva  estar  livre  para  casar  de  novo,  seu  parecer  é 
que  será  mais  feliz  se  permanecer  assim.  É  de  se  notar,  no 
entanto,  que  Paulo  nao  sómente  está  escrevendo  éste  cap.  á 
vista  de  circunstancias  angustiosas  de  perseguigáo  que  todos 
os  cristáos  enfrentavam,  como  está  insistindo  sempre  ser  a 
questáo  do  casamento  uma  questáo  de  conveniencia  pessoal. 
Se  convém  ou  nao  convém  casar,  sejam  as  circunstancias  e 
condicoes  particulares  de  cada  um  que  decidam. 

Por  outro  lado  é  também  evidente  que  Paulo  permite 
novas  núpcias  mas  nao  no  caso  de  divorcio;  apenas  por  morte 
do  marido.  É  o  que  diz:  "A  mulher  está  ligada  enquanto 
vive  o  marido". 

Entretanto,  o  ponto  a  sublinhar  nesta  instrucáo  refe- 
rente ao  casamento  de  viúvas  está  naquela  frase:  "Sómente 
no  Senhor".  É  claro  que  o  apostólo  nao  aconselha  nem  apoia 
o  casamento  de  crentes  com  incrédulos.  Que  quer  dizer  essa 
restricáo  imposta  por  ele  ao  casamento  de  viúvas  —  casar 
no  Senhor?  Quer  dizer  que  nao  sómente  os  novos  maridos 
devem  ser  crentes,  mas  que  haja  motivos  cristáos  para  ésses 
novos  consorcios,  de  modo  a  poderem  receber  a  aprovagáo 
de  Cristo. 

O  apóstolo  conclúi  éste  longo  cap.,  táo  chelo  de  sábios 
conselhos,  com  uma  afirmacáo  que  deve  ser  guardada  na 
memoria  de  quantos  neguem^  a  inspiragáo  de  Paulo,  á  vista 
de  certas  expressoes  suas  anteriores.  "Pensó  [digam  lá  de 
mim  o  que  quiserem]  que  também  eu  tenho  [a  inspiracáo  do] 
o  Espíi'ito  de  Deus",  afirma  éle. 

Éste  cap.  nao  é  para  se  1er  as  pressas  e  por  alto.  Demanda 
cuidadoso  estudo  para  nao  ser  mal  interpretado.  Pode  haver 
néle  referéncias  a  condicoes  puramente  passageiras  e  que 
de  fato  teráo  passado,  mas  será  proveitoso  a  todo  crente  pon- 
derar seriamente  os  principios  básicos  estabelecidos  ai  pelo 
apóstolo.  Tais  principios  sao  aplicáveis  a  muitos  problemas 
serissimos  da  atualidade.  Podem  se  tornar  padrees  dema- 
siadamente altos  para  a  sociedade  de  hoje,  de  costumes  re- 
laxados, porém  nao  mais  altos  do  que  os  principios  que  todo 
seguidor  de  Cristo  deve  acatar.  As  reflexoes  e  ensinamentos 
que  constam  déste  cap.  nao  sao  opinioes  transitórias  de  um 


72 


CHARLES  R.  ERDMAN 


escritor  antigo  e  já  fora  de  moda.  Quem  ai  falou  e  expenden 
advertencias  tao  bem  equilibradas  nao  as  atribuiu  simples- 
mente  ao  seu  parecer  de  homem  falível,  mas  acreditou-se 
aprovado  pelo  Espirito  Santo  naquilo  que  escreveu. 


F.  ALIMENTOS  OFERECIDOS  AOS  ÍDOLOS.  Caps. 
8:1  a  11:1. 

Há  coisas  que  todo  o  mundo  vé  logo  que  é  bom  e  razoável; 
porisso  logram  sua  imediata  aprovacáo.  Outras,  porque  sao 
evidentemente  erróneas,  sao  condenadas  geralmente.  Mas 
existe  um  terceiro  grupo  ou  categoría  de  atos  e  práticas, 
acerca  de  cujo  valor  moral  as  opinióes  divergem.  Repugnam 
á  consciéncia  de  alguns,  mas  por  outras  pessoas,  igualmente 
criteriosas,  sao  aceitos.  Tal  a  questáo  que  surgiu  na  igreja 
de  Corinto,  referente  ao  consumo  de  comidas  previamente 
oferecidas  em  sacrificios  aos  deuses  pagaos.  Muitos  cristáos 
viam  na  idolatría  mera  superstigáo,  e  sabiam  que  a  carne 
que  tivesse  servido  em  cerimónias  do  culto  pagáo  nao  tinha, 
por  isso,  sofrido  nenhuma  transformagáo  intima,  mas  era 
igual  a  qualquer  outra  que  nao  o  tivesse  sido.  A  outros,  po- 
rém,  parecía  que  consumir  alimentos  naquelas  condigoes  era 
acumpliciar-se  com  a  idolatría.  Consideravam,  pois,  seme- 
Ihante  conduta  moralmente  má. 

Sao  desta  categoría  os  conflitos  de  consciéncia  que  ainda 
os  crentes  de  hoje  enfrentam,  pois  se  afiguram  a  alguns 
como  moralmente  indiferentes,  ou  que  nao  importam  á  mo- 
ral. Para  outros  no  entanto  sao  questoes  serias  que  impli- 
cam  o  bem  ou  o  mal.  Sao,  por  exemplo,  os  problemas  ati- 
nentes á  guarda  do  domingo,  sao  os  divertimentos  sociais,  sao 
certos  gastos  supérfluos  que  algumas  pessoas  se  permitem. 

Para  os  cristáos  de  Corinto  a  coisa  se  revestia  da  maior 
gravidade.  Práticas  supersticiosas,  idolátricas,  permeavam 
quase  todos  os  costumes  naquela  época,  fossem  costumes  do- 
mésticos ou  privados,  fossem  públicos  ou  sociais,  ou  ainda 
os  relacionados  com  a  política.  Carnes  dos  sacrificios  que  se 
realizavam  nos  templos  eram  servidas  em  tódas  as  festas 
sociais.  Era  o  que  se  expunha  a  venda  nos  agougues.  E  em 
casa,  por  ocasiáo  das  refeigoes,  tais  carnes  eram  servidas  aos 
hóspedes  que  houvesse  e  que  pudessem  aparecer  de  momento. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  73 


Era,  pois,  iim  problema  muito  difícil  e  delicado,  éste  que  os 
amigos  de  Paulo  em  Corinto  Ihe  apresen  taram,  dése j  osos  de 
urna  solucáo. 

O  apostólo  podia  ter  apelado  para  a  decisáo  do  Concilio 
de  Jerusalém,  o  qual  se  manifestara  contrário  ao  consumo  de 
tais  carnes.  Tal  decisáo,  contudo,  parece  que  teve  aplicagáo 
local  e  temporária.  Além  disso  a  imposicáo  de  regras  taxa- 
tivas era  contrária  ao  método  de  Paulo  tratar  os  problemas 
daquela  Igreja.  O  que  ele  fazia  era  apresentar  principios 
que  os  leitores  apiicassem  na  solucáo  dos  seus  variados  pro- 
blemas. É  exatamente  éste  método  que  empresta  á  epístola 
que  estudamos  um  valor  permanente.  Estes  mesmos  princi- 
pios que  ele  apresenta  referentemente  ao  consumo  das  so- 
breditas  carnes,  aplicam-se  hoje  na  solugao  de  todos  os  con- 
flitos  de  consciéncia  e  nos  orientam  na  resolugáo  de  algumas 
das  mais  prementes  dificuldades  com  que  aínda  hoje  es- 
barramos. 

Em  cap.  anterior,  tratando  de  assuntos  alheios  ou  indi- 
ferentes á  moral,  declarou  que  até  mesmo  nos  casos  em  que 
podia  prevalecer  a  liberdade  cristá,  ele  náo  se  deixava  escra- 
vizar  por  nenhum  hábito,  aínda  que  inocente:  "Todas  as 
coisas  me  sáo  lícitas,  mas  eu  náo  me  deixarei  dominar  por 
nenhuma  délas".  Além  do  que,  na  Epístola  aos  Romanos 
(14:1  a  15:13),  instruí  relativamente  a  estes  mesmos  proble- 
mas. Contudo,  é  nos  tres  caps,  seguintes,  desta  carta  que 
ora  estudamos,  que  ele  examina  exaustivamente  estas  difi- 
culdades. Os  principios  expendidos  podem  ser  esbogados  em 
cinco  ítens: 

—  O  ato  espontáneo  de  quem  se  entrega  a  tais  práticas 
discutidas  pode  constituir-se  um  perigp  para  os  fracos.  A 
liberdade,  pois,  deve  ser  regulada  pelo  amor.    Cap.  8. 

—  Tais  práticas  podem  estorvar  o  trabalho  cristáo.  De- 
vemos  entáo  ser  tudo  para  todos.  Cap.  9. 

—  Podem  fazer  perigar  a  alma.  Acautelemo-nos,  por- 
tanto,  para  que  náo  caíamos.  Cap.  10:1-13. 

—  Possívelmente  nos  ídentificam  com  o  mundo.  Náo 
provoquemos,  entáo,  ciúmes  nAquéle  de  quem  somos.  Cap. 
10:14-22. 


74 


CHARLES  R.  ERDMAN 


—  Atendamos  ao  que  convem  e  edifica,  tudo  fazenc 
para  a  gloria  de  Deus.  Caps.  10:23  a  11:1. 


1.  O  Problema  em  si.  Cap.  8. 

1  No  que  se  refere  as  coisas  sacrificadas  a  ídolos, 
é  notorio  que  todos  somos  senhores  do  saber.  O  saber 
ensoberbece,  mas  o  amor  edifica.  2  Se  alguém  julga 
saber  alguma  coisa,  com  efeito  nao  aprendeu  aínda 
como  convém  saber.  3  Mas  se  alguém  ama  a  Deus, 
ésse  é  conhecido  por  ele.  4  No  tocante  á  comida  sa- 
crificada a  ídolos,  sabemos  que  o  ídolo  de  si  mesmo 
nada  é  no  mundo,  e  que  nao  há  senáo  um  só  Deus.  5 
Porque,  aínda  que  haja  também  alguns  que  se  chamem 
deuses,  quer  no  céu,  ou  sobre  a  térra,  como  há  muitos 
deuses  e  muitos  senhores,  6  todavía,  para  nós  há  um 
só  Deus,  o  Pai,  de  quem  sao  todas  as  coisas  e  para 
quem  existimos;  e  um  só  Senhor,  Jesús  Cristo,  pelo 
qual  sao  todas  as  coisas,  e  nós  também  por  ele.  7  En- 
tretanto, nao  há  ésse  conhecimento  em  todos;  porque 
alguns,  por  efeito  da  familiaridade  até  agora  com  o 
ídolo,  aínda  comem  como  a  ele  sacrificadas;  e  a  cons- 
ciéncía  déstes,  por  ser  fraca,  vem  a  contaminar-se.  8 
Nao  é  a.  comida  que  nos  recomendará  a  Deus,  poís  nada 
perderemos  se  nao  comermos,  e  nada  ganharemos  se 
comermos.  9  Vede,  porém,  que  esta  vossa  liberdade  nao 
venha  de  algum  modo  a  ser  tropéco  para  os  fracos.  10 
Porque,  se  alguém  te  vír,  a  ti,  que  és  dotado  de  saber, 
á  mesa,  em  templo  de  ídolo,  nao  será  a  consciéncia  do 
que  é  fraco  índuzida  a  participar  de  comidas  sacrifi- 
cadas a  ídolos?  11  E  assim,  por  causa  do  teu  saber, 
perece  o  irmáo  fraco,  pelo  qual  Cristo  morreu.  12  E 
déste  modo,  pecando  contra  os  irmáos,  golpeando-lhes 
a  consciéncia  fraca,  é  contra  Cristo  que  pecáis.  13  E 
por  isso,  se  a  comida  serve  de  escándalo  a  meu  irmáo, 
nunca  mais  comereí  carne,  para  que  nao  venha  a  es- 
candalízá-lo. 

Tratando  de  questoes  indiferentes  quanto  á  moral,  acerca 
das  quais  crentes  igualmente  criteriosos  podem  divergir  de 
opinláo,  Paulo  em  teoria  ou  de  um  modo  geral  defende  a  li- 
berdade crista,  mas  na  prática,  ou  atendendo  a  casos  parti- 
culares, impoe-lhe  severas  restrigoes.  É  assim  aqui.  Depois 
de  expor  o  problema  das  viandas  oferecidas  a  ídolos,  firma 
o  primeiro  grande  principio:  a  liberdade  precisa  ser  restrin- 
gida pelo  amor.  Frisa  bem  que  as  questoes  difíceis  e  delicadas 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  75 


que  ésse  caso  envolve  nao  podem  ser  resolvidas  á  base  de 
conhecimentos  ou  de  ilustragáo  que  se  acompanha  de  seus 
direitos,  mas  precisara  ser  postas  em  equagáo  pelo  amor  e 
suas  obrigagoes. 

Quanto  ao  consumo  de  carnes  de  animáis  mortos  em 
sacrificios  idolátricos,  declara  que  os  cristáos  esclarecidos 
sabem  nao  produzirem  tais  carnes  nenhuma  contaminagáo. 
Entretanto,  na  vida  crista,  é  o  amor  e  nao  o  saber  o  guia  mais 
seguro.  O  saber  incha,  ou  enche  de  soberba,  enquanto  o  amor 
edifica,  A  pessoa  que  presume  saber  alguma  coisa  com  per- 
feigáo  ainda  nao  possui  um  dos  elementos  essenciais  do  ver- 
dadeiro  saber.  E  aquéle  que  resolve  agir  exclusivamente  de 
acordó  com  a  teoria  que  tem  acerca  do  que  é  e  do  que  nao 
é  permitido,  ainda  nao  decobriu  a  maneira  de  viver  crista- 
mente.  Mas  se  alguém  ama  a  Deus,  é  dÉle  perf eitamente 
conhecido,  partilhando  de  sua  divina  companhia.  A  respeito 
de  comer  o  que  foi  sacrificado  a  ídolos,  diz  Paulo  saberem  os 
cristáos  que  o  "ídolo  de  si  mesmo  nada  é  no  mundo".  É 
simples  produto  de  imaginagáo  e  assunto  para  entreter  su- 
persticiosos. O  cristáo  sabia  existir  um  só  Deus,  enquanto 
as  religioes  pagás  se  apresentavam  com  numerosas  divinda- 
des,  falsamente  assim  chamadas.  O  único  Deus  é  a  Orígem 
e  o  Fim  de  tudo.  É  o  Criador  de  todas  as  coisas.  Os  cristáos 
existem  para  servi-lO  e  glorificá-lO.  Há  apenas  um  Senhor, 
Jesús  Cristo,  por  meio  de  quem  tudo  foi  criado  e  nós,  cris- 
táos, conduzidos  ao  servigo  de  Deus. 

Todavía  nem  todo  o  mundo  tem  éste  mesmo  grau  de 
conhecimento.  Alguns  cristáos,  de  fé  imperfeita,  e  que  se 
haviam  criado  e  crescido  com  a  nogáo  de  que  as  divindades 
pagás  eram  mesmo  dotadas  de  poder,  ésses  náo  podiam  se 
desvencilhar  da  idéia  de  que  as  viandas,  usadas  nos  sacrifi- 
cios pagáos,  haviam-se  contaminado  com  alguma  influencia 
oculta  irradiada  dos  ídolos.  E,  por  esta  razáo,  tais  viandas 
náo  prestavam,  eram  improprias  para  cristáos.  Sabemos 
que  a  nossa  aceitagáo  por  parte  de  Deus  náo  depende  destas 
coisas.  ''A  questáo  de  usar  tais  alimentos  ou  deixar  de  usá- 
-los  náo  influí  rnoralmente.  Mas  se  alguém  é  livre  para  fazer, 
neste  particular,  o  que  entender,  deve  por  outro  lado  consi- 
derar se  o  seu  ato  afeta  outras  pessoas.  E  entáo  precisa 
graduar  o  uso  de  sua  liberdade,  condicionando-o  ao  bem 
geral".  Convém  acautelar-se  para  que  nenhum  ato  seu  pro- 


76 


CHARLES  R.  ERDMAN 


duza  o  efeito  de  um  tropégo  posto  no  caminho  daquéles  cuja 
consciéncia  é  menos  esclarecida. 

Suponha-se,  por  exemplo,  que  alguém  assim  fraco  na  fé 
presencie  um  outro  crente,  que  nao  ligue  aos  seus  escrúpulos, 
participar  de  uma  festa  idolátrica.  Nao  será  isto  um  incen- 
tivo para  que  ele  também  participe  de  tais  festas,  que  sua 
consciéncia  reprova?  Com  isso  nao  criará  ánimo  para  fazer 
o  que  considera  erro?  A  ilustragáo  ostensiva  do  que  se  julga 
mais  adiantado  em  conhecimentos,  e  o  egoísmo  com  que  usa 
de  liberdade  levam  á  ruina  o  outro  irmáo  por  quem  Cristo 
igualmente  morreu.  De  modo  que  o  uso  da  liberdade,  em 
si  mesmo  permissível,  pode  tomar-se  um  meio  de  destruigáo 
de  crentes  menos  adiantados  na  fé.  Agir,  pois,  assim,  des- 
considerando a  fraqueza  e  a  ignorancia  de  outros,  é  causar- 
Ihes  grande  prejuízo  moral  e  violar  a  lei  de  Cristo. 

Entáo,  concluí  o  apostólo,  se  o  consumo  de  tais  alimentos 
oferecidos  a  ídolos  leva  um  irmáo  a  tropegar  e  cair,  éle,  Paulo, 
está  disposto  a  jamáis  servir-se  de  tais  comidas  enquanto 
viver,  a  fim  de  nao  causar  táo  grande  mal. 

A  fraqueza  de  que  fala  nao  é  o  estado  da  pessoa  que  fá- 
cilmente se  deixa  influenciar  para  o  mal.  Mas  é  fraqueza 
de  fé,  na  pessoa  ultra-escrupulosa,  que  nao  entende  o  sentido 
da  liberdade  crista  e,  pois,  nao  percebe  que  o  consumo  de 
tais  alimentos  é  matéria  que  nada  tem  a  ver  com  a  condigáo 
de  nosso  espirito  perante  Deus  —  é  matéria  indiferente. 

De  tudo  quanto  o  apostólo  acaba  de  dizer  ressalta  uma 
verdade:  a  consciéncia  deve  ser  obedecida  sempre.  Seus  es- 
crúpulos ou  exigéncias  podem  ás  vézes  parecer  absurdos,  mas 
nao  convém  desatendé-los.  Cumpre  informemos  nossa  cons- 
ciéncia, acrescentando  mais  luzes  ás  que  já  tenha.  Nunca 
devemos  violar  seu  recato  ou  suas  suscetibilidades.  Nessas 
questoes  em  que  o  bem  e  o  mal  estáo  envolvidos,  e  sobre  as 
quais  haja  divergencia  de  parecer  entre  os  crentes,  algumas 
vézes  escrúpulos  tolos  podem  ser  superados  com  reflexoes, 
conselhos  e  o  exemplo  de  determinadas  pessoas.  Entretanto, 
nao  devem  ser  seguidos  tais  exemplos,  consideragoes  ou  con- 
selhos antes  de  a  consciéncia  convir  néles  ou  aprová-los. 

Por  outra  parte,  jamáis  devemos  insistir  com  alguém 
para  que  proceda  contra  sua  consciéncia.    Nem,  por  nosso 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


77 


exemplo,  devemos  cientemente  estimular  outros  a  agir  dessa 
forma.  Antes,  devemos  dispor-nos  a  evitar  o  que  se  nos  afi- 
gure  inocente,  se  estamos  certos  de  que  nosso  exemplo  pode 
influenciar  outras  pessoas  para  fazer  o  que  elas  consideram 
errado  e  mau.  Todavía,  nao  convém  evitá-lo,  se  por  alguma 
razáo,  a  nossa  consciéncia  reprova  esta  atitude.  Mas  se  o 
assunto,  a  nosso  ver,  é  dos  tais  que  nao  interessam  moral- 
mente,  entáo  o  amor  é  que  decide.  "Até  um  certo  limite  de- 
vemos  regular  nossa  conduta  pela  estreiteza  mental  dos  ou- 
tros, por  seus  escrúpulos,  preconceitos  e  fraqueza  de  com- 
preensáo".  Cada  qual  se  esforcé  por  "acertar  o  passo  com  a 
comunidade  crista  de  que  faz  parte". 

E  é  assim  que  Paulo  apresenta  éste  importante  principio 
atinente  aos  conflitos  de  consciéncia:  Atos  espontáneos,  do 
livre  arbitrio  cristáo,  podem  fazer  periclitar  os  f ráeos;  a 
liberdade,  pois,  há  de  ser  regulada  pelo  amor. 


2.  O  Exemplo  de  Paulo.  Cap.  9. 

Vimos  o  primeiro  grande  principio  estabelecido  por 
Paulo  no  tocante  a  assuntos  que  nao  interessem  á  moral,  e 
em  torno  dos  quais  haja  divergéncia  de  parecer:  a  liberdade 
há  de  ser  regulada  pelo  amor.  Ele  mesmo  se  submetia  a  ésse 
principio,  declarando-se  disposto  a  nunca  mais  na  vida  co- 
mer carne  se,  com  isso,  viesse  a  causar  tropégo  a  um  irmáo. 

Agora  firma  um  segundo  principio,  destinado  ainda  a 
orientar  a  conduta  dos  crentes  em  tais  casos  de  consciéncia, 
apresentando-se  ele  mesmo  como  exemplo.  Refere  seu  pro- 
cedimento  em  Corinto,  bem  conhecido  de  todos,  a  saber,  re- 
cusara aceitar  qualquer  remuneragáo  pelo  seu  trabalho  na- 
quela  igreja,  para  que  ninguém  o  interpretasse  mal  quanto 
aos  motivos  que  o  impeliam  a  trabalhar,  ficando  assim  pre- 
judicada  sua  influéncia.  Em  outras  cidades  sua  atitude  fóra 
diferente,  pois  recebera  com  prazer  a  remuneragáo  de  seus 
servicos,  pelo  menos  como  incentivo  para  sua  luta  espiritual. 
Em  Corinto  procederá  de  um  modo,  em  outras  partes  agirá 
de  outro,  tudo  por  amor  do  trabalho  em  que  estava  empe- 
nhado.  Com  isto  éle  dava  um  exemplo  de  como  aplicar  o 
importante  principio  discutido  neste  cap.  nove  de  sua  carta, 
a  saber:  o  ato  espontáneo  de  quem  se  entrega  a  urna  prática 


78 


CHARLES  R.  ERDMAN 


controvertida  pode  servir  de  estórvo  ao  trabalho  cristáo. 
Portanto,  devemo-nos  fazer  "tudo  para  com  todos". 

É  bom  lembrar  que  Paulo  ainda  discute  o  problema  do 
consumo  de  carnes  oferecidas  na  idolatría.  O  principio,  que 
ele  ilustra  com  seu  próprio  exemplo  de  renúncia  a  sustento 
financeiro  por  parte  dos  corintios,  aplica-se  antes  de  tudo  a 
ésse  problema.  Assim  como  se  dispusera  a  sacrificar  sua  re- 
muneragao  por  amor  do  evangelho,  do  mesmo  modo  deviam 
estar  prontos  a  se  abster  do  consumo  de  tais  carnes,  caso 
verificassem  que,  usando-as,  a  influencia  déles  junto  a  outros 
irmáos  vinha  de  qualquer  modo  a  enfraquecer. 

A  nós,  que  estudamos  esta  epístola,  cabe  o  dever  de  fazer 
idéntica  aplicacáo  prática  déste  principio  aos  casos  de  cons- 
ciéncia  com  que  nos  defrontamos  constantemente.  Devemos 
dispor-nos  a  sacrificar  muita  coisa  do  que  nos  pareca  ino- 
cente, no  caso  de  sua  prática  vir  de  qualquer  forma  preju- 
dicar  nosso  trabalho  por  Cristo. 


a.  Sacrificio  por  amor  do  Evangelho.  Cap.  9:1-18. 

1  Nao  sou  eu,  porventura,  livre?  nao  sou  apostólo? 
nao  tenho  visto  a  Jesús,  nosso  Senhor?  acaso  nao  sois 
fruto  do  meu  trabalho  no  Senhor?  2  Se  nao  sou  apos- 
tólo para  outros,  certamente  o  sou  para  vos;  porque 
vós  sois  o  sélo  do  meu  apostolado  no  Senhor.  3  A  mi- 
nha  defesa  perante  os  que  me  interpelam  é  esta:  4 
Nao  temos  nós,  porventura,  o  direito  de  comer  e  beber? 
5  E  também  o  de  fazer-nos  acompanhar  de  esposa 
érente,  como  fazem  os  demais  apostólos,  e  os  irmáos 
do  Senhor,  e  Cefas?  6  Cu  sómente  eu  e  Barnabé  nao 
temos  direito  de  deixar  de  trabalhar?  7  Quem  jamáis 
vai  á  guerra  á  sua  própria  custa?  Quem  planta  a 
vinha  e  nao  come  do  seu  fruto?  Ou  quem  apascenta 
um  rebanho  e  nao  se  alimenta  do  leite  do  rebanho? 
8  Porventura  falo  isto  como  homem,  ou  nao  o  diz  tam- 
bém a  lei?  9  Porque  na  lei  de  Moisés  está  escrito:  Nao 
atarás  a  boca  do  boi  que  debulha.  Acaso  é  de  bois  que 
Deus  se  preocupa?  10  Ou  é  seguramente  por  nós  que 
ele  o  diz?  Certo  que  é  por  nós  que  está  escrito;  pols 
o  que  lavra,  cumpre  fazé-lo  com  esperanza;  o  que 
debulha,  faga-o  na  esperanza  de  reeeber  a  parte  que 
Ihe  é  devida.  11  Se  nós  vos  semeamos  as  coisas  espiri- 
tuais,  será  muito  recolhermos  de  vós  bens  materiais? 
12  Se  outros  participam  désse  direito  sobre  vós,  nao  o 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


79 


temos  nós  em  maior  medida?  Entretanto  nao  usamos 
désse  direito;  antes  suportamos  tudo,  para  nao  criar- 
mos  qualquer  obstáculo  ao  evangelho  de  Cristo.  13  Nao 
sabéis  vos  que  os  que  prestam  servicos  sagrados,  do 
próprio  templo  se  alimentam;  e  quem  serve  ao  altar, 
do  altar  tira  o  seu  sustento?  14  Assim  ordenou  tam- 
bém  o  Senhor  aos  que  pregam  o  evangelho,  que  vivam 
do  evangelho;  15  eu,  porém,  nao  me  tenho  servido  de 
nenhuma  destas  coisas,  e  nao  escrevo  isto  para  que 
assim  se  faca  comigo;  porque  melhor  me  fóra  morrer 
antes  que  alguém  me  anule  esta  gloria.  16  Se  anuncio 
o  evangelho,  nao  tenho  de  que  me  gloriar,  pois  sobre 
mim  pesa  essa  obriga^áo;  porque  ai  de  mim  se  nao 
prégar  o  evangelho!  17  Se  o  fa^o  de  livre  vontade,  te- 
nho galardáo;  mas,  se  constrangido,  é,  entáo,  a  res- 
ponsabilidade  de  despenseiro  que  me  está  confiada.  18 
Nésse  caso,  cual  é  o  meu  galardáo?  É  Que,  evange- 
lizando, proponha  de  graca  o  evangelho,  para  nao  me 
valer  de  todo  o  direito  que  ele  me  dá. 

Recusando  sustento  financeiro  da  igra  ja  de  Corinto, 
Paulo  com  isto  nao  quis  negar  o  direito  que  assiste  aos  mi- 
nistros evangélicos  de  receberem  salário  para  sua  manuten- 
cao  e  de  suas  familias.  Pelo  contrário,  afirmou  éste  direito, 
declarando  que  sua  recusa,  neste  caso  particular,  tinha  uma 
finalidade  única,  que  era  o  progresso  de  seu  trabalho,  ou 
antes  o  fizera  pelo  recelo  de  que,  aceitando  salário,  isto  se 
constituisse  um  embaraco  para  as  suas  atividades.  É  o  que 
ele  declara:  "Para  nao  criarmos  qualquer  obstáculo  ao 
evangelho  de  Cristo",  v.  12. 

O  direito  que  o  ministro  do  evangelho  tinha  de  receber 
ou  solicitar  sustento  centava  com  quatro  ou  cinco  fundamen- 
tos iniludíveis.  Primeiro:  Paulo  era  um  apostólo  e,  sendo-o, 
tinha  direito  a  tudo  quanto  era  concedido,  sem  questao,  a 
outros  obreiros  seus  colegas.  Seu  apostolado  estava  garantido 
pelo  fato  de  ter  visto  a  Jesús.  Nao  queria  se  referir  a  uma 
simples  experiéncia  espiritual  que  tivesse  de  Cristo,  nem  a 
visoes  que  tivera  em  éxtases  experimentados  durante  o  seu 
ministéric.  Referia-se  a  uma  contemplagáo  real  da  pes^oa 
humana  e  glorificada  do  Salvador,  privilégio  que  Ihe  fóra 
concedido  na  estrada  de  Damasco.  Ésse  apostolado  fóra  se- 
lado  ou  declarado  auténtico  pela  sua  atuacáo  em  Corinto. 
Se  cristáos  houvesse  que  pusessem  em  dúvida  ou  negassem 
a  legitimidade  do  apostolado  de  Paulo,  certamente  que  nao 
seriam  os  corintios,  porque  fóra  por  sua  instrumentalidade 


80 


CHARLES  R.  ERDMAN 


que  ésses  corintios  vieram  a  existir  como  igreja:   "Vós  sois  o 
sélo  do  meu  apostolado  no  Senhor". 

Por  conseguinte,  sendo  apostólo,  Paulo  tinha  direito  ao 
sustento  que  outros  apostólos  estavam  recebendo.  Tinha 
também  o  privilégio,  se  déle  quisesse  usar,  de  se  casar  e  de 
levar  consigo  a  esposa  em  suas  viagens  apostólicas,  como  era 
o  caso  dos  irmáos  de  Jesús  e  de  Pedro.  Paulo  e  seu  compa- 
nheiro  Barnabé  teriam  toda  a  razáo  se  recusassem  se  entre- 
gar a  trabalhos  manuais  para  se  manterem,  porque  o  pri- 
meiro,  pelo  menos,  por  sua  qualidade  de  apostólo,  tinha  di- 
reito a  sustento. 

Em  segundo  lugar:  ésse  direito  ainda  é  defensável  á  i 
vista  do  que  acontece  comumente  na  sociedade  humana.  O 
soldado,  o  viticultor,  o  pastor  de  ovelhas,  todos  recebem  paga 
do  seu  trabalho.    Por  que,  entáo,  excetuar  o  ministro  do 
evangelho?  Mas  ainda  que  alguém  objete,  alegando  que  isto 
acontece  no  mundo,  em  negocios  seculares,  pode-se  apelar 
para  a  Lei  de  Moisés.    Que  provisáo  é  a  sua,  relativamente 
aos  bois  ocupados  em  trilhar  cercáis?    "Nao  atarás  a  boca  i 
do  boi  que  debulha",  diz  a  lei.  Nao  eram  apenas  os  bois  que 
o  supremo  Legislador  tinha  em  mente.    Seu  intuito  foi  en- 
sinar  o  principio  da  remuneragáo  aos  que  trabalham,  de  i 
modo  a  fazé-los  participar  do  fruto  de  seus  labores,  sejam  ^ 
estes  quais  íorem.    Era  pois  natural  que  Paulo  recebesse 
sustento  material  daquela  igreja,  fruto  que  era  de  sua  se- 
menteira  espiritual. 

E  prossegue  ele  na  defesa  dos  seus  direitos  alegando  que 
aquela  igreja  estava  mantendo  outros  obreiros  cristáos. 
Certo  que  ninguém  mais  do  que  éle  podia  merecer  tal  ma- 
nut^ngáo,  visto  que  fóra  o  fundador  daquela  comunidade. 
Todavía,  enquanto  ésses  outros  eram  pesados  á  igreja,  Paulo  ^ 
renunciara  seus  direitos,  suportando  diíiculdades  e  privaQoes  ' 
para  nao  dar  a  ninguém  ocasiáo  de  crítica  ou  queixa,  que 
podiam  resultar  em  embarago  para  seu  trabalho. 

E  ainda  mais:  o  direito  que  o  ministério  tem  de  auxilio 
financeiro  baseia-se  igualmente  no  fato  de  os  sacerdotes  ju- 
deus  terem  sido  mantidos  pelas  ofertas  que  se  levavam  ao 
Templo,  recebendo  cada  qual  uma  porcáo  de  carne  dos  ani- 
máis sacrificados.  E  o  mais  importante  de  tudo  é  que  Cristo 
perpetuou  essa  lei,  em  sua  relagáo  com  o  ministério  sagrado, 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


81 


ordenando  expressamente  "aos  que  prégam  o  evangelho  que 
vivam  do  evangelho". 

Pois  foi  um  direito  assim,  firme  e  divinamente  estabele- 
cido,  que  Paulo  renunciara.  Nao  o  defendía  agora  como  para 
exigir  que  fósse  respeitado:  "Nao  me  tenho  servido  de  ne- 
nhuma  destas  coisas,  e  nao  escrevo  isto  para  que  assim  se 
faca  comigo".  Prefería  morrer  a  perder  o  gozo  de  pregar  o 
evangelho  sem  pedir  troco.  A  satisfagáo  de  pregar  sem  re- 
muneragáo  já  de  si  era  uma  excelente  paga,  um  verdadeiro 
salário.  Nenhuma  recompensa  ele  podía  aceitar  pelo  servigo 
da  prégagáo,  porque  éste  era  de  sua  estrita  obrigagáo,  de  seu 
próprio  mister  de  despenseiro.  Ai  déle  se  nao  prégasse  o 
evangelho.  Entretanto  nao  fóra  por  isso  que  recusara  re- 
muneragáo.  A  satisfagáo  recompensadora  que  Ihe  enchia  o 
peito  fundava-se  em  saber  que  essa  recusa  prevenía  qualquer 
crítica  e  evitava  empegos  na  marcha  do  trabalho. 

É  assim  que  Paulo  exemplifica,  em  parte,  a  aplicagáo  do 
grande  principio  que  apresenta,  isto  é,  que  por  insistir  em 
seus  direitos  a  pessoa  pode  comprometer  o  éxito  do  servigo 
que  empreende.  A  prática  de  certas  agóes  julgadas  inocentes 
pode  anular  a  influéncia  de  seu  agente  em  relagáo  a  outras 
pessoas.  O  fim  especial  da  fixagáo  déste  principio  é  responder 
aínda  á  pergunta  que  Ihe  fizeram  a  respeito  das  carnes  ofe- 
recidas  a  ídolos.  Expunha-se  abertamente  a  censuras  o  cris- 
táo  que  se  utilizasse  de  tais  comidas,  embora  fósse  esta  prá- 
tica de  si  mesma  inofensiva.  Devia  pois  ponderar  seriamente 
essa  possibilidade  de  censura,  antes  de  tomar  decisoes. 

É  dever  dos  crentes  de  hoje  aplicarem  escrupulosamente 
éste  principio  na  resolugáo  dos  seus  casos  de  consciéncia.  O 
obreiro  cristáo  precisa  ver  nao  sómente  se  o  seu  procedimento 
é  correto,  em  tese  ou  de  um  ponto  de  vista  teórico,  mas  pre- 
cisa atender  se,  embora  inocente  em  si  mesmo,  ésse  procedi- 
mento nao  se  expoe  a  censuras  francas  ou  públicas,  contri- 
buindo  assim  para  por  em  risco  ou  anular  seu  trabalho.  No 
cap.  precedente  Paulo  insistiu  na  cbrigagáo  de  se  evitarem 
determinadas  coisas  indiferentes  quanto  á  m.oral,  e  isto  em 
consideracáo  a  irmáos  mais  fracos.  Agora  insiste  no  dever 
dessa  abstencáo,  em  certas  ocasioes,  por  amor  ao  trabalho 
evangélico. 


82 


CHARLES  R.  ERDMAN 


b.  Tornar-se  tudo  para  com  todos.  Cap.  9:19-23. 

19  Porque,  sendo  livre  de  todos,  fiz-me  escravo  de 
todos,  a  fim  de  ganhar  o  maior  número  possivel.  '¿O 
Procedí,  para  com  os  judeus,  como  judeu,  a  fim  de 
gan,har  os  judeus;  para  os  que  vivem  sob  o  regime  da 
leí,  como  se  eu  mesmo  assim  vivesse,  para  ganhar  os 
que  vivem  debaixo  da  lei,  embora  nao  esteja  eu  de- 
baixo  da  leí.  21  Aos  sem  lei,  como  se  eu  mesmo  o  fósse, 
nao  estando  sem  lei  para  com  Deus,  mas  debaixo  da 
lei  de  Cristo,  para  ganhar  os  que  vivem  tora  do 
regime  da  lei.  22  Fiz-me  fraco  para  com  os  fracos,  com 
o  fim  de  ganhar  os  fracos.  Fiz-me  tudo  para  com 
todos,  com  o  fim  de,  por  todos  os  modos,  salvar  alguns. 
23  Tudo  fago  por  causa  do  evangelho,  com  o  fim  de  me 
tornar  cooperador  com  ele. 

Dos  cristáos  de  Corinto,  Paulo  nao  exigirá  sustento  ma- 
terial, nem  salário,  nem  qualquer  gratificacáo  pelos  seus 
servigos.  E  a  razáo  fóra  querer  evitar  que  o  interpretassem 
mal  e  o  seu  trabalho  assim  viesse  a  ser  prejudicado.  Mas  ele 
tivera  sua  recompensa  e  esta  consistirá  naquéle  sentimento 
de  independencia,  naquéle  prazer  de  pregar  sem  gratificacáo, 
naquéle  gozo  de  nao  dar  lugar  á  pecha  de  mercenário.  En- 
tretanto, Paulo  nao  foi  egoísta  no  uso  de  sua  liberdade.  Pelo 
contrario,  livre  de  qualquer  coagáo  humana,  fazia-se  escra- 
vo de  todos  na  esperanga  de  ganhar  alguns  para  Cristo.  Es- 
tava  livre  de  escrúpulos  mesquinhos,  mas  permitía  que  seus 
movimentos  ou  sua  liberdade  fósse  cerceada  pela  fraqueza 
dos  outros,  para  no  fim  de  tudo  ter  a  alegría  de  trazé-los  ao 
gozo  da  liberdade  crista  que  éle  táo  bem  compreendia.  Em 
lugar  de  aproveitar-se  de  seus  direitos,  de  fazé-los  valer,  fez 
toda  concessáo  possivel  onde  quer  que  percebesse  uma  possi- 
bilidade  de  trazer  almas  a  Cristo.  Pois  aquéles  direitos  eram 
uma  idéia,  uma  abstragáo,  nao  podendo  competir  com  o  fato 
concreto  da  conquista  de  almas.  Como  éle  mesmo  disse: 
"Sendo  livre  de  todos,  fiz-me  escravo  de  todos,  a  fim  de  ga- 
nhar o  maior  número  possivel". 

Com  os  judeus  proceden  como  judeu,  guardando  suas 
f estas  e  jejuns,  observando  seus  costumes  e  cumprindo  seus 
votos.  A  vida  dos  gentíos,  que  nao  tinham  lei,  procurou  adap- 
tar-se,  nao  exigindo  déles  a  adogáo  das  cerimónias  judaicas, 
fazendo  citacoes  de  escritores  seus,  quando  Ihes  prégava,  e 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


83 


até  se  servindo  da  inscrigáo  que  vira  em  um  dos  altares  déles, 
fato  que  ocorreu  em  Atenas. 

Abre  um  como  paréntese  para  explicar  que,  acomodan- 
do-se  com  os  judeus,  nao  dava  um  passo  atrás  em  sua  orto- 
doxia, para  se  colocar  sob  a  lei  judaica  e  fazer  disso  uma 
base  de  salvagáo.  Nao,  mas  que  observava  essa  lei  apenas 
por  motivo  de  sociabilidade  e  em  deferencia  aos  costumes  de 
sua  nagáo.  Também  com  isso  queria  evitar  escándalo  des- 
necessário  para  os  judeus.  Entre  os  gentíos,  embora  nao 
exigindo  déstes  a  aceitagáo  da  lei  cerimonial  dos  judeus,  nao 
estava  "sem  lei"  em  relagáo  a  Deus,  mas  sob  a  lei  de  Cristo. 

E  mais:  para  os  f ráeos,  ultra-escrupulosos  e  tímidos  féz- 
se  fraco,  contemporizando  com  os  escrúpulos  déles  e  fazendo 
concessoes  aos  seus  preconceitos.  Em  suma,  sua  maneira  de 
proceder  está  expressa  na  frase:  "Fiz-me  tudo  para  com 
todos".  Esta  expressáo  de  Paulo  significa  exatamente  o 
oposto  do  sentido  que  tem  na  linguagem  comum  de  nossos 
dias,  como  soa  aos  nossos  ouvidos.  Nao  se  trata  de  moleza 
de  caráter  que  faz  a  pessoa  dobrar-se  a  tudo  quanto  exista 
de  práticas  imorais.  Éle  nao  sanciona  aquéle  adágio,  que 
diz:  "Em  casa  de  sapo,  de  cócoras  com  éle".  O  que  refere 
sao  assuntos  indiferentes  á  moral,  sao  preconceitos  sem  base, 
sao  escrúpulos  tolos.  Está  respondendo  ainda  a  pergunta 
referente  ao  consumo  de  carnes  oferecidas  a  ídolos.  Sabe 
que  o  culto  dos  ídolos  nao  corresponde  a  nenhuma  realidade 
espiritual,  e  eré,  por  isso,  que  o  comer  tais  carnes  nao  é  uma 
questáo  de  bem  ou  de  mal.  Entretanto,  a  um  prégador  do 
evangelho  convém  abster-se  de  algumas  destas  coisas,  ino- 
centes em  si,  de  modo  a  evitar  escándalos  que  trazem  pre- 
juízo  ao  trabalho  evangélico. 

É  um  principio  seu,  éste  da  adaptagáo  as  necessidades, 
preconceitos  e  fraquezas  de  todas  as  classes  de  pessoas,  de 
modo  a  se  poder  levar  alguns  a  Cristo.  Tudo  isto  que  faz 
é  por  amor  do  evangelho,  cuja  plenitude  de  béngáos  éle  quer 
dividir  com  todos. 

Éste  principio  do  apostólo  deve  orientar  com  maior  fre- 
quéncia  todos  os  seguidores  de  Cristo  e  particularmente 
todos  quantos  se  esforgam  em  guiar  outros  na  vida  crista. 
Multas  práticas  inocentes  precisam  ser  postas  de  lado  á  vista 
dos  preconceitos  e  opinióes  de  outras  pessoas.    Se  se  trata 


84 


CHARLES  R.  ERDMAN 


de  agoes  pecaminosas,  entáo  nem  se  fale.  Além  destas,  po- 
rém,  há  que  considerar  os  possíveis  efeitos  ou  repercussoes 
de  atos  moralmente  indiferentes  ou  neutros.  Relativamente 
a  casos  de  consciéncia  é  necessário  acatar  éste  segundo  im- 
portante principio  formulado  pelo  apostólo,  a  saber:  Tais 
acoes,  moralmente  neutras,  a  que  alguém  se  entregue,  po- 
dem  fazer  periclitar  o  trabalho  evangélico;  devemos  entáo 
fazer-nos  "tudo  para  com  todos". 


c.  A  ¡uta  á  vista  do  premio.  Cap.  9:24-27. 

24  Nao  sabéis  vós  que  os  correm  no  estádio,  todos, 
na  verdade,  correm,  mas  um  só  leva  o  premio?  Correi 
de  tal  maneira  que  o  alcancéis.  25  Todo  atleta  em  tu- 
do  se  domina;  aqueles  para  alcanzar  urna  corroa  cor- 
ruptível;  nós,  porém,  a  incorruptível.  26  Assím  corro 
também  eu,  nao  sem  meta;  assim  luto,  nao  como  des- 
ferindo  golpes  no  ar.  27  Mas  esmurro  o  meu  corpo,  e 
o  reduzo  á  escravidáo,  para  que,  tendo  pregado  a  ou- 
tros,  nao  venha  eu  mesmo  a  ser  desqualificado. 

Paulo  gostava  de  ilustrar  a  vida  crista  com  certos  fatos 
da  vida  esportiva  dos  gregos.  Aqui  refere  competigoes  ou 
tórnelos  déles  para  frisar  a  necessidade  de  dominio  próprio 
e  de  abnegagáo,  mesmo  tratando-se  de  assuntos  moralmente 
neutros.  Respondendo  á  pergunta  acérca  das  comidas  ofer- 
tadas a  ídolos,  insistiu  na  necessidade  de  abstengáo  do  que 
em  si  mesmo  é  inocente,  caso  a  prática  destas  coisas  sirva  de 
embarago  ao  trabalho  evangélico.  Fizera  regra  sua  tornar-se 
"tudo  para  com  todos",  isto  é,  acomodar-se  com  os  precon- 
ceitos  e  escrúpulos  dos  outros,  de  forma  a  poder  conquistá-los 
para  Cristo  e  fazé-los  partilhar  com  éle  da  plenitude  de  bén- 
gáos  do  evangelho.  Outra  véz,  agora,  insiste  que  todos  quan- 
tos  tém  de  repartir  com  outros  ésse  cabedal  de  felicidade  pre- 
cisam  igualmente  de  limitar  sua  liberdade  e  impor-se  aquela 
mesma  abnegagáo  que  éle,  Paulo,  impunha  a  si  próprio. 

Provavelmente  refere-se  aos  Jogos  ístmicos,  assim  cha- 
mados pelo  fato  de  Corinto  ficar  situada  num  istmo.  Essas 
competigoes  esportivas,  assim  como  os  Jogos  Olímpicos,  os 
Píticos  e  os  Nemeus,  constituíam-se  um  grandioso  festival 
cívico-religioso  que  de  dois  em  dois  anos  atraía  a  Corinto 
multidoes  de  aficionados.    Só  os  socialmente  livres  podiam 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


85 


tomar  parte  nesses  jogos,  e  deviam  dar  prova  suficiente  de 
que  durante  dez  meses  haviam  recebido  o  treinamento  pre- 
liminar. Exigia-se  dos  candidatos  que  durante  trinta  dias, 
antes  das  competicoes,  se  submetessem  a  exercícios  no  giná- 
sio,  e  sómente  quando  satisfaziam  plenamente  estas  condi- 
qdes  eram  aceitos  para  se  exibirem  diante  das  multidoes  de 
espectadores.  Um  arauto  proclamava  o  nome  e  a  nacionali- 
dade  de  cada  competidor,  assim  como  também  do  vencedor, 
que  era  entáo  coroado  com  uma  grinalda  de  ramos  de  pinheiro 
ou  de  salsa  ou  ainda  de  hera.  A  familia  do  vencedor  era  olha- 
da  com  respeito  e  honra  e  quando  ele  regressava  á  sua  cidade 
natal  abria-se  uma  brecha  no  muro  que  a  circundava  para 
que  por  alí  passasse.  A  significacáo  désse  ato  era  que  a  cida- 
de, que  tinha  dentro  de  si  um  cidadáo  de  tanto  valor,  nao 
precisava  de  muros  para  sua  defesa.  O  heroi  era  imortaliza- 
do  em  versos  e,  em  todas  as  competicoes  futuras,  destinavam- 
Ihe  um  lugar  bem  á  frente  de  todos,  onde  se  sentava  para 
assistir. 

Referindo  ésses  jogos,  Paulo  apresen  ta  dois  pontos  de 
contraste.  Ñas  competigoes  gregas,  embora  todos  os  joga- 
dores  corressem  no  estádio,  um  sómente  ganhava  a  coroa. 
Mas  na  vida  crista  todos  podem  concorrer  ao  premio  e  ganhá- 
-lo,  e  devem  esforgar-se  para  isso,  uma  vez  que  está  prometido. 
Segundo:  ñas  competigoes  gregas  o  premio  era  "uma  coroa 
corruptível",  um  simples  e  murchoso  festáo  de  folhas  de  oli- 
veira  ou  de  pinheiro,  enquanto  que,  como  seguidores  de  Cristo, 
lutamos  por  uma  coroa  que  nao  murchará  jamáis,  coroa  de 
vida,  diadema  de  justiga,  grinalda  de  alegría  e  de  gloria.  A 
vista  de  uma  coroa  assim,  Paulo  insiste  com  todos  os  cristáos 
para  que  satisfagam  as  condigces  que  se  impunham  aos  atle- 
tas lutadores,  e  ele  mesmo  se  apresenta  como  exemplo  de 
quem  se  esforga  para  alcangar  o  cobigado  galardáo.  Sao 
claras  essas  condigoes.  Primeiro  de  tudo,  é  preciso  que  haja 
esfórgo  e  denodo.  Ninguém  pense  que  a  vida  crista  é  fácil 
ou  pode  ser  levada  com  indiferenga,  como  brincadeira,  mesmo 
tratando-se  de  questces  em  que  nao  esteja  envolvido  positi- 
vamente o  bem  ou  o  mal.  Um  esfórgo  continuo  há  de  se  fazer 
para  que  a  conduta  seja  tal  que  nao  escandalize  os  f ráeos  na 
fé,  os  críticos  e  ultra-escrupuiosos. 

Em  segundo  lugar,  deve-se  ser  definido  nos  esforgos. 
Dizia  Paulo  que  nao  lutava  "como  desferindo  golpes  no  ar". 


86 


CHA  Pw  LES  R.  ERDMAN 


Como  crentes,  precisamos  encarar  ésses  casos  de  consciéncia 
de  um  modo  definido,  claro.  E  importa  que  os  resolvamos 
com  a  determinagáo  e  firmeza. dos  que  lutam  tendo  diante 
dos  olhos  um  alvo  certo,  u'a  meta  fixa.  Assim  como  precisa- 
mos exercer  dominio  próprio,  até  nésses  casos  em  que  a  opi- 
niáo  dos  crentes  esteja  dividida.  Temos  de  nos  acostumar 
ao  sacrificio  de  nossos  pontos  de  vista.  O  treinamento  rigo- 
roso que  se  exigia  dos  atletas  gregos  era  uma  ilustracáo  da 
severidade  a  que  o  cristáo  precisa  submeter  nao  o  corpo,  mas 
os  apetites  ou  dése  jos  déle.  A  linguagem  ai  é  figurada:  es- 
murrar  o  corpo,  dar  bofetadas  na  cara,  levar  o  corpo  ao  canto 
do  muro,  como  fazem  os  boxeadores  com  os  adversários  ven- 
cidos. É  com  esta  figura  viva,  dramática,  que  éle  mostra  a 
necessidade  de  disciplina,  de  subjugacáo  de  todos  os  apetites, 
os  quais,  se  nao  foram  contidos  assim,  poderáo  levar  á  ruina 
moral  e  fazer  que  se  perca  a  coroa. 

Diz  Paulo  que  se  esforga  com  tal  denodo,  agindo  como 
arauto  que  convoca  os  competidores  ao  campo  da  luta,  para 
que  éle  mesmo  nao  venha  a  ficar  desqualificado,  como  aqué- 
les  que  nao  se  submetiam  as  regras  do  jógo.  Tendo  diante 
dos  olhos  um  prémio  táo  glorioso,  todos  quantos  tém  ouvido 
a  convocagáo  do  evangelho,  com  igual  tenacidade,  abnegagáo 
e  auto-disciplina  devem  procurar  correr  no  estadio,  combater 
o  bom  combate,  a  fim  de  que  também  recebam  a  coroa 
imarcescível. 


3.  O  perigo  dos  hábitos.  Cap.  10:1-13. 

1  Ora,  irmáos,  nao  quero  que  ignoréis  que  nossos 
pais  estiveram  todos  sob  a  nuvem,  e  todos  passaram 
pelo  mar,  2  tendo  sido  todos  batizados,  assim  na  nu- 
vem, como  no  mar,  com  respeito  a  Moisés.  3  Todos 
éles  comeram  de  um  só  manjar  espiritual,  4  e  beberam 
da  mesma  fonte  espiritual;  porque  bebiam  de  uma 
pedra  espiritual  que  os  seguia.  E  a  pedra  era  Cristo. 
5  Entretanto,  Deus  nao  se  agradou  da  maioria  déles, 
razáo  por  que  ficaram  prostrados  no  deserto.  6  Ora, 
estas  coisas  se  tornaram  exemplos  para  nós,  a  fim  de 
que  nao  cobicemos  as  coisas  más,  como  éles  cobi?a- 
ram.  7  Nao  vos  fa^a^is,  pois,  idólatiras,  como  alguns 
déles;  porquanto  está  escrito:  O  povo  assentou-se 
para  comer  e  beber,  e  levantou-se  para  divertir-se.  8 
E  nao  pratiquemos  imoralidade,  como  alguns  déles  o 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  87 


fizeram,  e  caíram  num  só  dia  vinte  e  tres  mil.  9  Nao 
ponhamos  o  Senhor  á  prova,  como  alguns  déles  já  fi- 
zeram, e  pereceram  pelas  mordeduras  das  serpentes. 
10  Nem  murmuréis  como  alguns  déles  murmuraram,  e 
foram  destruidos  pelo  exterminador.il  Estas  coisas  Ihes 
sobrevieram  como  exemplos,  e  foram  escritas  para  ad- 
verténcia,  nossa  de  nós  sobre  quem  os  fins  dos  secuios 
tém  chegado.  12  Aquéle,  pois,  que  pensa  estar  em  pé,  veja 
que  nao  caia.  13  Nao  vos  sobrevoló  tentacáo  que  nao 
fósse  humana;  mas  Deus  é  fiel,  e  nao  permitirá  que 
sejais  tentados  além  das  vossas  forjas;  pelo  contrario, 
juntamente  com  a  tentacáo,  vos  proverá  livramento, 
de  sorte  que  a  podereis  suportar. 

Paulo  já  mostrcu  que  a  prática  voluntariosa  de  atos 
controvertidos  ou  discutíveis  pode  levar  pessoas  a  tropecar  e, 
depois,  pode  servir  de  estórvo  ao  trabalho  cristáo.  Agora  é 
a  vez  de  propor  um  terceiro  principio:  Tais  práticas  podem 
fazer  perigar  a  alma;  portanto,  "o  que  pensa  estar  em  pé, 
veja  que  nao  caia". 

Vem  a  propósito  o  exemplo  dos  filhos  de  Israel,  os  quais, 
a  despeito  de  seus  grandes  privilégios  e  vantagens,  caíram 
em  graves  pecados.  A  vista  do  que,  o  apostólo  adverte  seus 
leitores  e  depois  acrescenta  uma  palavra  de  animagáo. 

Nesta  referencia  á  historia  dos  judeus,  declara  que  seus 
pais  "foram  batizados  para  Moisés  (com  respeito  a)  assim 
na  nuvem,  como  no  mar".  Obedecendo  á  diregáo  daquela 
nuvem  gloriosa  e  passando  pelo  meio  do  mar  incólumes,  re- 
conheceram  em  Moisés  seu  libertador  divinamente  designado 
e  comprometeram-se  a  seguí-lo.  Além  disso  comeram  do 
maná  que  do  céu  Ihes  era  dado  e  beberam  da  água  que,  mais 
de  uma  vez,  brotou  da  rocha.  Esta  nao  fóra  de  Cristo  apenas 
um  símbolo.  Paulo  identifica-a  com  o  Salvador.  Completa- 
mente incógnito  dos  israelitas,  Cristo  estivera  com  éles  no 
deserto.  Fóra  o  divino  Agente  que  ministrara  as  necessidades 
déles.  Assim,  pois,  ésse  alimento  e  essa  água  foram  espirituais 
e  sacramentáis,  dádivas  que  foram  da  misericórdia  divina. 
Do  mesmo  modo  os  cristáos  corintios,  pelo  batismo,  haviam- 
-se  comprometido  a  ser  seguidores  de  Cristo;  e  na  Ceia  do 
Senhor  tinham-se  tornado  participantes  de  sua  graga. 

Entretanto,  a  despeito  de  sua  posigáo  privilegiada  e  das 
singulares  misericórdias  de  que  foram  objeto,  os  israelitas 
agiram  com  deslealdade:   "Deus  nao  se  agradou  da  maioria 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


déles,  razáo  por  que  ficaram  prostrados  no  deserto*'.  Daí 
Paulo  advertir  seus  leitores  que  a  prática  de  comer  do  ofere- 
cido  a  ídolos,  posto  que  em  si  mesma  inocente,  pode  dar  lugar 
a  veemente  tentagáo,  a  que  éles  acabaráo  cedendo.  O  mesmo 
pode  acontecer  a  todos  os  crentes:  o  hábito  de  se  entregarem 
a  prá ticas  discutidas,  que  de  si  mesmas  nao  sao  más,  pode 
tornar-se  ocasiáo  de  tentagoes  muito  sutis  para  serem  re- 
sistidas. Daí  podem  nascer  dése  jos  e  ansiedades  pecaminosas; 
portanto  "nao  cobicemos  as  coisas  más,  como  éles  cobiga- 
ram".  Nao  acóntela  venhamos,  com  tais  hábitos,  desconsi- 
derar ao  Senhor,  objeto  que  é  de  nossa  suprema  satisfagáo  e 
de  nosso  culto  absoluto:  "Nao  vos  fagáis  idólatras  como 
alguns  déles". 

Além  disto,  nossa  sociedade  com  os  que  se  entregam  a 
tais  hábitos  pode  arrastar-nos  a  pecados  da  impureza,  ou 
pelo  menos  levar-nos  á  amizade  do  mundo  e  áquela  desleal- 
dade  a  Deus  que  no  Antigo  Testamento  foi  representada  sob 
a  figura  de  prostituigáo  (imoralidade) . 

"Nao  ponhamos  o  Senhor  á  prova,  como  alguns  déles  já 
fizeram,  e  pereceram  pelas  mordeduras  das  serpentes".  A 
prática  habitual  de  atos  duvidosos  pode  levar-nos  a  fazer 
uma  idéia  errónea  da  tolerancia  de  Deus;  pode  acender  em 
nós  o  déselo  de  experimentar  até  que  ponto  podemos  ir  sem 
cair,  ou  o  desejo  de  por  o  Senhor  á  prova,  para  sabermos  até 
onde  Éle  nos  deixa  ir,  sem  nos  castigar  ou  reprovar.  As 
murmuragoes  de  Israel,  finalmente,  culminaram  em  verda- 
deira  rebeliáo  e  na  impiedade  de  uma  provocagáo  ou  desafio 
a  Deus.  O  costume  de  a  pessoa  entregar-se  a  certas  diversoes, 
nao  pecaminosas  em  si,  e  a  certas  práticas  que  outros  acham 
inofensivas,  pode  provocar  em  nós  um  sentimento  de  sensa- 
boria  da  vida  que  levamos,  de  moralidade  mais  rígida,  até 
que,  persistindo  ésse  desprazer,  a  situagáo  descambe  para  a 
deslealdade  e  finde  em  verdadeira  provocagáo  ao  Senhor. 

Paulo  prossegue,  dizendo  que  toda  essa  experiéncia  de 
Israel  serve  de  instrugáo  para  nós  que  vivemos  numa  época 
ou  em  condigoes  diferentes  e,  para  dizer  melhor,  na  última 
era  do  m.undo,  a  que  vai  servir  de  epílogo  a  todo  éste  drama. 
De  modo  particular  essa  experiéncia  de  Israel  encerra  um 
solene  aviso  contra  a  presungáo,  essa  confianga  em  nós 
mesmos,  e  contra  a  suposigáo  Imbécil  de  que,  pelo  fato  de 
sermos  batizados  e  de  participarmos  da  Ceia  do  Senhor,  es- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  89 


tamos  moralmente  seguros.  "Aquéle,  pois,  que  pensa  estar 
em  pé,  veja  que  nao  caia". 

Feito  éste  solene  aviso,  o  apostólo,  nao  obstante,  encerra 
o  parágrafo  com  urna  palavra  de  animacáo.  Embora  Israel 
se  afastasse  de  Deus,  e  aínda  que  tenhamos  o  senso  doloroso 
de  nossas  fraquezas,  nao  é  necessário  cair,  nao  vamos  cair 
e  ficar  prostrados.  As  tentagoes  nao  nos  querem  dar  tre- 
gua, é  verdade,  mas  nao  há  fado  ruim  nem  mau  destino  que 
nos  corte  o  caminho  da  fuga  ou  do  escape.  Deus  permite  que 
nos  encontremos  rodeados  de  circunstancias  que  determinam 
essas  íentaQoes  fortes,  mas  Éle  sempre  nos  prové  um  meio  de 
escaparmos.  Certo  é  que  nao  nos  devemos  colocar,  desneces- 
sária  e  voluntariamente,  em  situacoes  perigosas.  Nao  deve- 
mos contemporizar  com  hábitos  discutidos  ou  duvidosos.  Te- 
mos de  nos  devotar  com  afinco  as  tarefas  que  saibamos  nos 
competirem.  Com  pertinácia  e  entusiasmo  cumpre  que  en- 
veredemos por  estradas  que  sabemos  serem  certas.  Sobre- 
tudo,  importa  que  vivamos  por  Cristo,  para  Éle,  e  procuremos 
andar  em  sua  companhia.  Sómente  procedendo  assim  é  que 
estaremos  absolutamente  seguros. 


4.  É   vedado   participar   de   festas   idolátricas.  Cap. 
10:14-22. 


14  Portante,  meiis  amados,  fugi  da  idolatría.  15 
Falo  como  a  critcriosos,  jiilgai  vos  mesmos  o  que  digo. 
16  Porventura  o  cálice  da  béncáo  que  aben^oamos,  nao 
é  a  comunháo  do  sangue  de  Cristo?  O  pao  que  par- 
timos, nao  é  a  comunháo  do  corpo  de  Cristo?  17  i:*or- 
que  nós,  embora  muitos,  somos  únicamente  um  pao, 
um  só  corpo;  porque  todos  participamos  do  único  pao. 
18  Considerai  o  Israel  segundo  a  carne;  nao  é  certo 
que  aqueles  que  se  alimentam  dos  sacrificios  sao  par- 
ticipantes do  altar?  19  Que  digo,  pois?  que  o  sacrifi- 
cado ao  ídolo  é  alguma  coisa?  ou  que  o  próprio  ídolo 
tem  algum  valor?  20  Antes  digo  que  as  coisas  que  éles 
sacrificam,  é  a  demonios  que  as  sacrificam,  e  nao  a 
Deus;  e  eu  nao  quero  que  vos  tornéis  associados  aos 
demonios.  Zl  Nao  podéis  beber  o  cálice  do  Senhor  e  o 
cálice  dos  demonios:  nao  podéis  ser  participantes  da 
mesa  do  Senhor  e  da  mesa  dos  demonios.  ZZ  Ou  pro- 
vocaremos zelos  no  Senhor?  somos  acaso  mais  fortes 
do  que  éle? 


90 


CHARLES  R.  ERDMAN 


Comer  do  oferecido  a  ídolos  podía  ser  inocente.  No  má- 
ximo podia  ser  considerado  assunto  em  que  a  consciéncia 
crista  estava  livre  para  convir  ou  nao.  Agora,  usar  de  tais 
alimentos  em  templo  de  ídolo  e  na  companhia  de  idólatras, 
como  a  participar  com  éles  de  uma  festa  ao  ídolo,  isto  era  mul- 
to diferente.  De  idolatría,  pura  e  líquida,  os  cristáos  tém  de 
fugir.  Nao  Ihes  compete  ver  ou  experimentar  até  que  ponto 
podem  contemporizar  com  ela  sem  participarem  realmente 
do  ato  idolátrico.  Mas  o  que  devem  fazer  é  verificar  até  onde 
podem  ir,  cada  vez  mais  longe,  de  sua  prática.  De  qualquer 
modo,  nao  devem  permitir-se  nenhuma  participagáo  em  tais 
festas.  E  vem  Paulo,  agora,  com  o  seu  quarto  e  grande  prin- 
cipio. A  participagáo  voluntariosa  nesses  atos  de  culto  iden- 
tifica-nos com  o  mundo;  portanto,  nao  provoquemos  o  Senhor 
a  ter  ciúmes  de  nós. 

Nao  é  difícil  aplicar  éste  principio  na  soluQáo  dos  pro- 
blemas de  hoje.  Certos  hábitos  que,  em  determinadas  cir- 
cunstancias, sao,  no  máximo,  discutíveis,  em  outras  circuns- 
tancias sao  realmente  hábitos  maus.  Em  si  mesmos  podem 
ser  neutros  moralmente,  todavía  se  praticados  na  companhia 
de  pessoas  impías  e  em  lugares  associados  ou  reservados  á 
prática  do  mal,  identificam  por  tal  forma  o  cristáo  com  os 
inimigos  de  Cristo  que  o  coragáo  de  seu  amado  Senhor  senté 
com  isso  verdadeiro  pesar. 

Como  reforgo  dessa  proibigáo  de  participar  de  festas  ido- 
látricas, o  apostólo  passa  a  argumentar  com  a  relacáo  que  a 
Santa  Ceia  estabelece  entre  o  fiel  e  Cristo,  e  mais  com  a 
ímpossibílidade  moral  de  unir-se  tal  pessoa  á  de  seu  Senhor 
e  ao  mesmo  tempo  ligar-se  íntimamente  aos  demonios  que 
se  supunha  representados  pelos  ídolos  e  que  como  tais  eram 
reconhecidos  no  culto  que  Ihes  era  prestado. 

A  particípacáo  de  pao  e  vinho  na  Ceia  do  Senhor  é 
símbolo  da  participagáo,  pelo  crente,  em  todos  os  beneficios 
da  obra  expiatoria  de  Cristo,  e  da  vida  espiritual  que  o  Se- 
nhor infunde  em  quantos  se  unem  a  Éle  pela  fé.  Do  mesmo 
modo,  a  participagáo  coletiva  no  trabalho  e  na  vida  de  Cristo 
pelos  crentes  faz  de  todos  estes  uma  unidade  —  ficando 
constituidos  em  um  pao,  em  um  só  corpo.  Dessa  unidade 
a  Ceia  do  Senhor  é  sempre  um  símbolo. 

Assim  é  que,  no  caso  dos  sacrificios  judaicos,  seus  par- 
ticipantes partilhavam  de  tudo  quanto  o  altar  significava. 


i 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


91 


Ora,  se  bem  que  as  divindades  pagas  nao  existam  realmente 
e  a  idolatría  nao  passe  de  ilusáo,  contudo  atrás  dos  ídolos 
estáo  os  demonios  por  éles  representados,  aliás,  digamos  fi- 
guradamente, os  demonios  da  concupiscencia,  da  crueldade 
e  da  ignorancia,  com  os  quais  se  identifica  o  culto  dos  ídolos. 
Concebe-se  porventura  que  alguém  se  identifique  a  um  só 
tempo  com  ésses  demonios  e  com  Cristo?  Nao  é  antes  abso- 
lutamente necessário  decidir  entre  aqueles  e  éste?  Nao  é 
claro  que  participar  da  idolatría  é  "provocar  zelos  no  Se- 
nhor"?  Atrever-nos-emos  a  desafiar  sua  ira?  Seremos  capa- 
zes  de  fugir  as  consequéncías  de  seu  desagrado? 

A  prática  de  acoes  discutíveis  pode  identificar-se  de  tal 
forma  ao  espirito  de  cobica,  de  egoísmo  e  de  impiedade  que 
adotá-la  será  negar  o  Mestre,  o  seu  dominio  sobre  nós,  e 
maguar-lhe  o  coracáo  que  tanto  nos  ama. 

5.  Principios  Essenciais.  Cap.  10:23  a  11:1. 

23  Todas  as  coisas  sao  lícitas,  mas  nem  todas  con- 
vém;  todas  sao  lícitas,  mas  nem  todas  edificam.  24 
Ninguém  busque  o  seu  próprio  interésse;  e,  sim,  o  de 
outrem.  25  Comei  de  tudo  o  que  se  vende  no  mercado, 
sem  nada  perguntardes  por  motivo  de  consciéncia;  26 
porque  do  Senhor  é  a  térra  e  a  sua  plenitude.  27  Se 
algum  dentre  os  incrédulos  vos  convidar,  e  quiserdes 
ir,  comei  de  tudo  o  que  fór  posto  diante  de  vós,  sem 
nada  perguntardes  por  motivo  de  consciéncia.  28  Po- 
rém,  se  alguém  vos  disser:  Isto  é  coisa  sacrificada  a 
ídolos,  nao  comáis,  por  causa  daquéle  que  vos  advertiu, 
e  por  causa  da  consciéncia;  29  consciéncia,  digo,  nao  a 
tua  própriamente,  mas  a  do  outro.  Pois  por  que  há  de 
ser  julgada  a  minha  liberdade  pela  consciéncia  alheia? 
30  Se  eu  participo  com  acáo  de  gracas,  por  que  hei  de 
ser  vituperado  por  causa  daquilo  de  que  dou  gracas?  31 
Portanto,  quer  comáis,  quer  bebáis,  ou  fagáis  outra 
coisa  qualquer,  fazei  tudo  para  a  gloria  de  Deus.  32 
Nao  vos  tornéis  causa  de  tropéco  nem  para  judeus, 
nem  para  gentíos,  nem  táo  pouco  para  a  igreja  de 
Deus,  33  assim  como  também  eu  procuro  em  tudo  ser 
agradável  a  todos,  nao  buscando  o  meu  próprio  inte- 
résse, mas  o  de  muitos,  para  que  sejam  salvos.  1  Sede 
meus  imitadores,  como  também  eu  sou  de  Cristo. 

Paulo  agora  encerra  e  sumaría  a  longa  díscussáo  do  uso 
de  carnes  oferecídas  a  ídolos,  firmando  os  grandes  e  com- 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


preensivos  principios  que  os  cristaos  devem  aplicar  na  solugáo 
de  todos  os  seus  casos  de  consciéncia:  Considerai  aquilo  que 
fór  conveniente  e  edificante,  e  tudo  fazei  para  a  gloria 
de  Deus 

Comega  repentindo  o  grande  principio  ou  lei  da  liberdade 
crista:  "Todas  as  coisas  sao  lícitas".  Parece  que  éles  usa- 
vam  esta  frase  como  máxima,  na  defesa  tanto  do  uso  daquelas 
comidas  como  de  outros  hábitos.  No  cap.  sexto  insistiu  o 
apostólo  em  que  a  liberdade  fósse  usada  pelos  leitores,  mas 
no  próprio  beneficio  déles.  Agora  bate-se  no  sentido  de  tam- 
bém  ser  limitada  ao  bem  dos  outros.  E  torna  a  ferir  o  ponto 
que  serviu  de  partida  á  discussáo:  a  supremacía  do  amor. 
De  fato,  afirma  que  o  cristáo  tem  o  direito  abstrato  ou  ideal 
de  fazer  tudo  quanto  em  si  mesmo  nao  se  ja  pecaminoso; 
mas,  considerando  a  conveniencia  e  o  bem-estar  dos  outros, 
há  de  impor  limites  práticos  a  essa  liberdade.  Algumas  coisas, 
em  si  mesmas  permJssiveis,  podem  nao  ser  proveitosas;  ou- 
tras,  inocentes  em  si,  podem  nao  concorrer  para  a  edificacáo 
do  caráter  cristáo.  Nao  se  há  de  olhar  sómente  o  lado  per- 
missível  das  coisas,  mas  o  lado  do  proveito:  ''nao  adianta 
que  alguma  coisa  se  ja  corre  ta  ou  justa,  se  ao  mesmxO  tempo 
nao  fór  conveniente".  E  nenhuma  coisa  será  conveniente, 
ainda  que  inocente,  se  for  prejudicial  aos  outros  ou  estiver 
sujeita  a  mai-en tendidos.  Um  cristáo  nao  tem  que  ver  só- 
mente o  seu  interésse  particular,  mas  igualmente  o  dos  de- 
mais:  "Ninguém  busque  o  seu  próprio  interésse;  e,  sim,  o 
de  outrem". 

Éste  principio  ou  lei  geral  vai  ilustrado  com  o  uso  das 
carnes  de  sacrificio.  Paulo  aconselha  aos  cristaos  que  com- 
prem  do  que  se  expoe  a  venda  no  mercado,  sem  perguntarem 
nada  e  sem  ficarem  suspensos,  em  dúvida,  se  aquilo  foi  ou 
nao  foi  usado  antes  na  idolatría,  o  que  é  multo  diferente 
de  servir-se  da  mesma  comida  mas  em  templo  de  ídolos.  O 
que  se  adquire  no  mercado  adquire-se  náo  como  parte  que 
tenha  sido  de  sacrificio,  mas  como  alimento  que  Deus  em  sua 
graca  nos  prodigaliza.  "Do  Senhor  é  a  térra  e  a  sua  pleni- 
tude",  por  conseguinte  todo  alimento  que  a  térra  produza 
é  dom  de  Deus  e  deve  ser  recebido  com  gratidáo. 

Se  uma  outra  pessoa,  porém,  fór  escrúpulosa,  a  situagáo 
já  muda  de  figura.  Suponha-se,  por  exemplo,  que  alguém 
é  convidado  a  jantar  em  casa  de  um  incrédulo  e  que  aceita 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


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o  convite.  Tem  o  direito  de  aceitá-lo  e  de  servir-se  do  que 
Ihe  oferecerem,  sem  perguntar  nada,  para  que  a  consciéncia 
nao  venha  a  a  tormén  tá-lo.  Todavía,  se  alguém  lembrar  que 
foi  sacrificado  no  templo  aquilo  de  que  vai  servir-se,  deve 
recusá-lo,  em  deferencia  á  pessoa  que  o  lembrou  e  por  causa 
da  consciéncia  —  nao  sua,  mas  a  consciéncia  do  outro,  que 
fará  do  conviva,  indiferente  á  questáo,  um  juizo  injusto. 

As  razoes  por  que  deve  proceder  assim  sao  duas,  sendo 
a  principal  esta:  só  prejuízo  adviria  de  nao  fazer  caso  do 
que  o  outro  lembrou.  A  liberdade  com  que  agisse  ficaria 
suleita  a  condenacao  por  parte  da  consciéncia  do  outro.  Se- 
gunda: provavelmente  a  alegagáo  que  fizesse  de  sua  liber- 
dade para  proceder  como  entendesse  no  caso  e  isto  em  face 
de  urna  censura  conscienciosa  do  seu  ato,  resultarla  em  pre- 
juízo certo,  porque  os  outros,  vendo-o  invocar  a  béngáo  de 
Deus  sobre  um  alimento  considerado  sacrifical,  denunciariam 
éste  ato  como  sacrilego  e  escandaloso.  Por  que  expor-se  a 
pessoa  a  um  mal-entendido  déstes  sem  necessidade?  Paulo 
entáo  concluí  —  "Portanto,  quer  comáis,  quer  bebáis,  ou 
facais  outra  coisa  qualquer,  fazei  tudo  para  a  gloria  de  Deus" 
—  Evitai  que  qualquer  embarago  moral  se  coloque  á  frente 
de  iudeus  ou  gregos  ou  membros  da  Igreja  de  Deus.  Adotai 
meu  principio,  diz  éle,  pois  renuncio  toda  vantagem  e  di- 
reito pessoal,  procurando  em  tudo  nao  meu  proveito,  mas  o 
do  maior  número  possível  de  pessoas,  a  fim  de  que  se  salvem". 

Termina  éle  esta  exortacao  com  o  versículo  que,  indevi- 
damente,  foi  colocado  como  primeiro  do  cap.  seguinte:  "Séde 
meus  imitadores,  como  também  eu  sou  de  Cristo". 


G.  USO  DE  VÉU  NO  CULTO  PÚBLICO  Cap.  11:2-16. 

2  De  fato  eu  vos  louvo  porque  em  tudo  vos  lem- 

brais  de  mim,  e  retendes  as  tradicóes  assim  como  vo-Ias 
entregue!.  3  Quero,  entretanto,  que  saibais  ser  Cristo 
o  cabera  de  todo  homem,  e  o  homem  o  cabera  da 
mulher,  e  Deus  o  cabera  de  Cristo.  4  Todo  homem  que 
ora,  ou  profetiza,  tendo  a  cabega  coberta,  desonra  a 
sua  própria  cabera.  5  Toda  mulher,  porém,  que  ora, 
ou  profetiza,  com  a  cabeca  sem  véu,  desonra  a  sua, 
própria  cabeca,  porque  é  como  se  a  tivesse  rapada.  6 
Portanto,  se  a  mulher  nao  usa  véu,  nesse  caso  que 
rape  o  cábelo.   Mas,  se  Ihe  é  vergonhoso  o  tosquiar-se, 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


ou  rapar -se,  cumpre-lhe  usar  véu.  7  Porque,  na  ver- 
dade,  o  homem  nao  deve  cobrir  a  cabeca  por  ser  ele 
imagem  e  gloria  de  Deus,  mas  a  mulher  é  gloria  do 
homem.  8  Porque  o  homem  nao  foi  feito  da  mulher;  e, 
sim,  a  mulher,  do  homem;  9  porque  também  o  homem 
nao  foi  criado  por  causa  da  mulher;  e,  sim,  a  mulher, 
por  causa  do  homem.  10  Portanto,  deve  a  mulher,  por 
causa  dos  anjos,  trazer  véu  na  cabega,  como  sinal  de 
autoridade.  11  No  Senhor,  todavía,  nem  a  mulher  é 
independente  do  homem,  nem  o  homem,  independente 
da  mulher.  12  Porque,  como  provém  a  mulher  do  ho- 
mem, assim  também  o  homem  é  nascido  da  mulher; 
e  tudo  vem  de  Deus.  13  Julgai  entre  vos  mesmos:  é 
próprio  que  a  mulher  ore  a  Deus  sem  trazer  o  véu?  14 
Ou  nao  vos  ensina  a  própria  natureza  ser  desonroso 
para  o  homem  usar  cábelo  comprido?  15  E  que,  tra- 
tando-se  da  mulher,  é  para  ela  uma  gloria?  pois  o 
cábelo  Ihe  foi  dado  em  lugar  de  mantilha.  16  Contudo, 
se  alguém  quer  ser  contencioso,  saiba  que  nós  nao  te- 
mos tal  costume,  nem  as  igrejas  de  Deus. 

É  possível  que  algum  dia  se  reconhega  o  apostólo  Paulo 
como  o  campeáo  que  se  bateu  pela  emancipagáo  da  mulher 
6  a  defendeu.  O  Cristianismo  contrasta  vivamente  com  ou- 
tras  religi5es  pela  posigáo  que  concede  á  mulher  e  pela  de- 
claracáo  que  faz  de  sua  dignidade  e  de  seus  direitos.  Deve-se 
isto  em  larga  escala  á  influencia  de  Paulo,  aos  seus  ensinos 
acerca  da  liberdade  e  igualdade  cristas,  á  énfase  que  deu  ao 
fato  de  nao  haver,  sob  Cristo,  nenhuma  distingáo  entre  ju- 
deu  e  grego,  escravo  ou  livre,  macho  ou  fémea,  e  de  se  cons- 
tituírem  todos  UM,  nos  privilégios,  ñas  oportunidades  espi- 
rituais,  tanto  quanto  em  sua  posigáo  diante  de  Deus. 

Entretanto,  modernamente  há  uma  jbpiniáo  diferente. 
Paulo  é  apresentado  como  inimigo  da  mulher.  Pelos  proceres 
de  todos  os  movimentos  feministas  ele  é  visto  com  horror 
e  repugnancia.  A  razáo  disso  está,  em  grande  parte,  naquilo 
que  nesta  epístola  escreveu  a  respeito  do  casamento,  como 
vimos,  e  também  no  que  agora  declara  relativamente  á  su- 
bordinagao  das  mulher  es  a  seus  maridos. 

Todos  háo  de  convir  que  a  maior  parte  do  que  éle  diz 
aqui  se  relaciona  com  u'a  moda  ou  maneira  de  vestir  mera- 
mente local  e  temporária.  Ninguém  hoje  insistiría  em  que  as 
mulheres  se  apresentassem  cobertas  de  véu  por  ocasiáo  do 
culto.  Entretanto,  os  oponentes  de  Paulo  nao  concordam  é 
com  o  principio  em  que  éle  básela  sua  orientagáo.  Contra- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  95 


riamente,  é  ésse  principio  que  no  parecer  dos  defensores  ds 
Paulo  faz  que  a  diretriz  ai  tragada  tenha  importancia  atual 
e  valor  permanente.  Sua  esséncia  é  o  seguinte:  A  igualdade 
intelectual,  moral  e  espiritual  dos  dois  sexos  combina  com 
a  dependencia  da  mulher  relativamente  ao  seu  esposo  e  tam- 
bém  com  a  sua  submissáo  e  obediencia  afetuosa  a  ele. 

Foi  exatamente  éste  ensino  de  Paulo,  a  respeito  da  igual- 
dade, que  ocasionou  certa  confusáo  em  Corinto.  Foi  mal 
compreendido  por  algumas  mulheres  cristas,  as  quais,  do 
que  Paulo  Ihes  ensinara  sobre  éste  assunto  concluíram  que 
dalí  por  diante  deviam  considerar-se  independentes  dos  seus 
maridos.  E  assim,  abolindo  um  costume  aceito  por  judeus  e 
cristáos,  proscreveram  o  uso  do  véu  e  comecaram  a  aparecer 
descobertas  ñas  assembléias  públicas.  O  véu  tinha  sido  con- 
siderado por  elas  como  símbolo  de  dependencia  e  submissáo. 
Deixando  de  usá-lo,  declaravam  com  isto  que  sua  nova  po- 
sigáo  em  Cristo  desfazia  a  relagáo  anterior  mantida  para 
com  os  esposos,  tornando-as  livres  e  independentes,  como  des- 
ligadas dos  votos  matrimoniáis.  Presentemente  é  possível 
que  uma  interpretagáo  errónea  do  principio  da  igualdade 
nao  sómente  esteja  causando  perturbagáo  como  até  se  cons- 
tituindo  um  sério  perigo.  Certa  énfase,  indébita,  sobre  a 
independencia  das  mulheres  está  ameagando  a  vida  da  fa- 
milia e  colocando,  sobre  os  ombros  délas,  cargas  que  nao 
convém  nunca  forgá-las  a  levar. 

A  dificuldade  em  Corinto,  por  alguns  aspectos,  nao  era 
grave.  Paulo  apenas  está  procurando  conservar,  no  culto 
público,  um  velho  costume  que  tinha  a  virtude  de  fazer  dis- 
tingáo  entre  os  sexos,  e  porisso  mesmo  era  reclamado  pela 
decéncia.  Insiste  na  sua  conservagáo  principalmente  por 
causa  do  equívoco  que  dera  lugar  á  sua  aboligáo. 

Comega  o  exame  do  caso  usando  um  preámbulo  concilia- 
torio ou  apaziguador  dos  ánimos.  Está  passando  a  uma 
série  de  assuntos  bem  diferentes.  Comegou  a  epístola  cen- 
surando nos  leítores  seu  espirito  sectário.  Depois  entrou  a 
apreciar  trés  questoes  moráis,  a  que  se  seguiram  duas  outras 
moralmente  neutras,  isto  é,  o  casamento  e  as  comidas  sacri- 
ficadas na  idolatría.  Vai  agora  considerar  trés  questoes  re- 
lacionadas com  o  culto  público,  a  saber,  o  uso  do  véu  pelas 
mulheres,  a  observancia  da  Ceia  do  Senhor,  e  o  emprégo  dos 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


dons  espirituais.  O  estudo  déstes  assuntos  referentes  ao  culto 
cristáo  segue-se  á  secgáo  em  que  se  ocupou  da  idolatría  e  do 
uso  de  comidas  relacionadas  com  ela.  Sabe  que  vai  ser  ne- 
cessário  passar  algumas  repreensoes  severas  e,  portanto,  co- 
mega  iouvando  seus  leitores  por  causa  de  algumas  informa- 
Qoes  favoráveis  que  Ihe  prestaram  a  respeito  déles.  É  que  se 
tém  lembrado  do  velho  apostólo  e  obedecido  as  suas  doutrinas. 
Há  contudo  uma  falha,  um.a  prática  menos  própria,  que  é  pre- 
ciso corrigir,  e  é  esta:  estarem  as  mulheres  deixando  de  usar 
véu,  especialmente  quando  tomam  parte  no  culto  público,  na 
igreja.  S  se  isto  é  feito  em  sinal  de  independencia  e  insu- 
bordinagáo  das  esposas  em  relagáo  a  seus  esposos,  está  essa 
novidade  em  contradigáo  com  uma  ordem  divinamente  esta- 
belecida. 

As  partes  de  que  a  sociedade  se  compóe,  segundo  o  apos- 
tólo, sao  as  familias,  e  nao  os  individuos;  e  o  chefe  natural 
de  cada  familia  é  o  marido.  Todavía  o  exercicio  dessa  chefia 
há  de  ser  orientado  sómente  pelo  amor,  com  simpatía  e  de- 
votamento  cristáo.  "Quero,  entretanto,  que  saibais  ser  Cristo 
o  cabega  de  todo  homem,  e  o  homem  o  cabega  da  mulher, 
e  Deus  o  cabega  de  Cristo".  Afirmando  assim  o  principio  de 
subordinagáo,  Paulo  afasta  logo  a  idéia  de  tiranía,  egoísmo 
ou  crueldade.  Do  mesmo  modo  como  o  Filho  divino  é  de- 
dendente  do  Pai  e  a  Éle  sujeit-o,  assim  os  maridos  estáo  su- 
bordinados a  Cristo  e,  semelhantemente,  as  mulheres  a  seus 
esposos.  Esta  subordinagáo  náo  envolve  nenhuma  humilha- 
gáo,  nern  injustiga,  nem  qualquer  mal.  É  a  maneira  de  reco- 
nhecer  fungoes  e  responsabilidades  diferentes,  excluindo  no 
no  entanto  todo  egoísmo,  aspereza  ou  indelicadeza.  Se  o 
esposo  tiver  em  mente  a  relagáo  em  que  está  para  com  Cristo, 
náo  abusará  das  suas  para  com  a  esposa,  que  a  ele  cumpre 
honrar,  sustentar,  proteger  e  amar. 

Lembrou  o  apostólo  que  éste  principio  ou  leí  de  subordi- 
nagáo estava  reconhecido  no  costume,  adotado  geralmente, 
de  as  mulheres  velarem  a  cabega.  Náo  foi  ele  quem  estabele- 
ceu  ésse  costume,  nem  Ihe  deu  a  significagáo  que  tinha.  Se 
a  sua  significagáo  era  esta,  entáo  era  decente  para  o  homem 
participar  do  culto  com  a  cabega  descoberta,  enquanto  a 
mulher  devia  té-la  velada.  Mas  se  a  mulher  punha  de  lado 
o  véu,  no  propósito  de  mostrar  que  náo  aceitava  a  subordina- 
gáo significada  por  éle,  por  que  náo  ia  adiante?  Por  que  náo 
descobria  de  vez  a  cabega?  Por  que  náo  Ihe  cortava  o  cábelo 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


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e  nao  a  trazia  rapada?  Isto,  sim,  seria  urna  pro  va  maior  de 
independencia  e  de  insubordinagáo  ao  marido,  porque  se  o 
cábelo  cortado  em  urna  mulher  era  sinal  de  viuvez,  rapar  a 
cabega  era  o  costume  daquelas  que  menosprezavam  o  casa- 
mento, nao  o  considerando  sagrado. 

É  bom  lembrar  que  Paulo  está  escrevendo  a  respeito  de 
cristáos  e  de  mulheres  casadas.  Que  trata  de  mulheres  ca- 
sadas torna-se  ainda  mais  evidente  quando  passa  a  ilustrar 
o  ponto  com  a  historia  da  criagáo,  conforme  nos  é  narrada 
no  Velho  Testamento.  O  homem  foi  criado  em  primeiro  lu- 
gar, "á  imagem  de  Deus",  e  sómente  depois  foi  a  mulher 
tirada  do  homem.  Éste  é  a  coroa  da  criacáo  e  reflete  a  gloria 
de  Deus.  A  mulher,  uma  vez  que  foi  tirada  dó  homem,  é  a 
gloria  déste.  "O  homem  nao  foi  criado  por  causa  da  mulher; 
e,  sim,  a  mulher,  por  causa  do  homem".  Assim  raciocinando, 
Paulo  concluí  que  a  mulher  de  ve  usar  véu,  visto  ser  éste  o 
sinal  geralmente  reconhecido  da  autoridade  do  homem  sobre 
ela,  especialmente  em  reunioes  públicas  de  culto,  porque  ai, 
segundo  comumente  se  acreditava,  os  anjos  observavam  lá  de 
cima  como  procediam  os  cristáos. 

Todavía  deve-se  particularmente  notar  que  Paulo  acres- 
centa  logo  nao  ser  esta  subordinacáo  das  mulheres  aos  ma- 
ridos contrária  á  igualdade  de  pessoas,  pois  se  a  dependencia 
é  um  fato  real,  nao  deixa  entretanto  de  ser  mútua,  e  para 
isto  se  vé  que,  se  a  mulher  foi  feita  para  o  homem  —  diz  o 
apostólo  —  o  homem  por  seu  lado  nasce  da  mulher,  toman- 
do-se  ambos,  nessas  relagoes  mútuas  e  fungoes  diferentes, 
igualmente  dependentes  de  Deus.  Ora,  náo  é  humilhante 
para  o  homem  o  ser  subordinado  a  Deus.  Logo,  tanto  esta 
subordinacáo  como  aqueloutra  sao  igualmente  honrosas. 

Paulo,  finalmente,  defende  o  principio  em  apreco  basca- 
do em  certo  instinto  do  homem  e  num.a  intuicáo  sua  do  que 
Ihe  seja  conveniente.  O  senso  natural  que  o  homem  tem  do 
que  Ihe  é  adequado  ou  do  que  Ihe  convém,  fá-lo  sentir  a 
impropriedade  de  cábelos  ccmpridos  em  si,  enquanto  que 
para  a  mulher  isso  é  uma  gloria.  Se,  pois,  o  cábelo  náo  deve 
ser  tirado  as  mulheres,  muito  menos  o  véu  de  que  o  cábelo 
é  símbolo. 

Entretanto,  termina  o  apostólo,  se  alguém  é  contencioso, 
dado  á  contradigáo,  ele  mesmo  náo  tem  tal  costume  e,  porisso, 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


nao  insistirá  mais  no  que  disse.  O  fato  é  que  essa  praxe  de 
abolir  o  véu  nao  contava  com  a  aprovacáo  dos  apostólos,  nem 
era  observada  em  nenhuma  igreja. 

É  interessante  observar  que,  embora  o  hábito  de  a  mu- 
Iher  velar  a  cabeca,  durante  o  culto  público,  nao  passasse  de 
um  eos  turne  trivial,  corriqueiro  que  no  tempo  de  Paulo  estava 
generalizado,  ainda  hoje  é  observado  pela  Igreja  Romana  e 
entre  certos  grupos  de  cristáos.  Seu  verdadeiro  significado, 
porém,  nao  é  percebido  e  pouco  falta  para  cair  no  olvido.  E 
mais:  o  importante  principio  figurado  por  ésse  hábito  nos 
tempos  antigos,  hoje  em  toda  parte  é  discutido  ou  impugna- 
do, no  interésse,  como  se  alega,  dos  direitos  e  liberdades  fe- 
minis.  Parece  que  há  essa  tendencia  em  a  natureza  humana, 
de  reter  e  valorizar  formas  vazias  de  sentido,  etiquetas  e  re- 
grinhas  fúteis,  e  por  outra  parte  menosprezar  ou  abandonar 
principios  ou  leis  importantes  que  convém  perpetuar  e  seguir. 


H.  A  OBSERVANCIA  DA  CEIA  DO  SENHOR.  Cap. 
11:17-34. 

17  Nisto,  porém,  que  vos  prescrevo,  nao  vos  louvo, 
porquanto  vos  a  juntáis,  nao  para  melhor;  e,  sim,  para 
pior.  18  Porque,  antes  de  tudo,  estou  informado  haver 
divisoes  entre  vós  quando  vos  reunis  na  igreja;  e  eu 
em  parte  o  creio.  19  Porque  até  mesmo  importa  que  naja 
partidos  entre  vós,  para  que  também  os  aprovados  se 
tornem  conhecidos  em  vosso  meio.  20  Quando,  pois,  vos 
reunis  no  mesmo  lugar,  nao  é  a  ceia  do  Senhor  que 
coméis.  21  Porque,  ao  comerdes,  cada  um  toma  ante- 
cipadamente  a  sua  própria  ceia;  e  há  quem  tenha 
fome,  ao  passo  que  há  também  quem  se  embriague, 
22  Nao  tendes,  porventura,  casas  onde  comer  e  beber? 
Ou  menosprezais  a  igreja  de  Deus,  e  envergonhais  os 
que  nada  tém?  Que  vos  direi?  Louvar-vos-ei?  Nisto 
certamente  nao  vos  louvo.  23  Porque  eu  recebi  do  Se- 
nhor o  que  também  vos  entreguei:  que  o  Senhor  Je- 
sús, na  noite  em  que  foi  traido,  tomou  o  pao;  24  e, 
tendo  dado  gragas,  o  partiu  e  disse:  Isto  é  o  meu  corpo, 
que  é  of crecido  em  favor  de  vós;  fazei  isto  em  memó- 
ria  de  mim.  25  Por  semelhante  modo,  depois  de  haver 
ceado,  tomou  também  o  cálice,  dizendo:  Éste  cálice  é 
a  nova  alianca  no  meu  sangue;  fazei  isto,  todas  as 
vézes  que  o  beberdes,  em  memória  de  mim.  26  Porqu» 
todas  as  vézes  que  comerdes  éste  pao  e  beberdes  o 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


99 


cálice,  anunciáis  a  morte  do  Senhor,  até  que  ele  venha.' 
27  Por  isso,  aquéle  que  comer  o  pao  ou  beber  o  cálice 
do  Senhor,  indignamente,  será  réu  do  corpo  e  do  san- 
gue  do  Senhor.  28  Examine-se,  pois,  o  homem  a  si 
mesmo,  e  assim  coma  do  pao  e  beba  do  cálice;  29  pois 
quem  come  e  bebe,  sem  discernir  o  corpo,  come  e  bebe 
juízo  para  si.  30  Eis  a  razáo  por  que  há  entre  vos 
muitos  f ráeos  e  doentes,  e  nao  poucos  que  dormem.  31 
Porque,  se  nos  julgássemos  a  nós  mesmos,  nao  seria- 
mos julgados.  32  Mas,  quando  julgados,  somos  disci- 
plinados pelo  Senhor,  para  nao  sermos  condenados  com 
o  mundo.  33  Assim,  pois,  irmáos  meus,  quando  vos  reu- 
nis  para  comer,  esperai  uns  pelos  outros.  34  Se  alguém 
tem  fome,  coma  em  casa,  a  fim  de  nao  vos  reunirdes 
para  juízo.  Quanto  as  demais  coisas,  eu  as  ordenare! 
quando  fór  ter  convosco. 

Nunca  será  demais  saiientar  dois  métodos,  característi- 
cos de  Paulo,  de  examinar  as  questoes  que  Ihe  propuseram 
os  de  Corinto.  O  primeiro  é  o  seu  hábito  de  relacionar  os 
assuntos,  ainda  que  insignificantes  e  passageiros,  com  os 
principios  que  Ihes  correspondem,  de  valor  permanente.  O 
segundo  é  a  sua  habilidade,  mesmo  tratando  de  matéria  de- 
licadíssima,  aflitiva  e  desagradável,  de  afirmar  certas  ver- 
dades em  termos  extremamente  belos,  fazendo-as  parecer 
joias  caríssimas  num  engaste  rústico,  digamos,  de  barro. 

Assim  é  que,  passando  a  censurar  os  sérios  abusos  rela- 
cionados com  a  celebracáo  da  Ceia  do  Senhor,  apresenta  farto 
material  bíblico  na  discussáo  da  orígem,  natureza  e  signifi- 
cacáo  désse  sacramento.  Demais  disso,  recorda  a  instituicáo 
da  Ceia  em  termos  táo  belos  que  práticamente  todos  os  cris- 
táos  citam  suas  palavras  quando  celebram  ésse  festim  sagrado. 

Eram  extremamente  graves  os  abusos  que  Paulo  procurou 
sanar.  Dera-lhes  ocasiáo  o  costume  de  os  corintios  unirem 
a  celebracáo  do  sacramento  a  uma  "festa  de  amor"  ou  refeicáo 
em  comum,  de  que  os  cristáos  usualmente  participavam  e 
que  se  realizava  na  abertura  de  suas  reunioes'de  culto.  Era 
praxe  cada  pessoa  levar  provisoes  para  aqueles  repastos  de 
acordó  com  as  suas  posses.  Os  ricos  levavam  muito,  enquanto 
os  pobres,  pouco  ou  nada.  Ésses  fomecimentos  de  comestí- 
veis  eram  feitos  em  proveito  de  todos,  e  pelo  fato  de  todos 
participarem  ncsses  repastos  sociais,  tais  ceias  festivas  ad- 
quiriram  um  aspecto  sacramental.  Entretanto,  ou  no  comégo 
da  festa  ou  no  fim,  seus  participantes  celebravam,  de  modo 


100 


CHARLES  R.  ERDMAN 


muito  singelo  o  Memorial  da  morte  do  Senhor,  como  por 
Éste  fóra  instituido.  Os  corintios,  porém,  levados  por  aquéle 
seu  espirito  faccioso,  acabaram  fomentando  divisoes  até 
mesmo  dentro  daquelas  sacramentáis  "f estas  de  amor".  Ao 
'invés  de  repartirem  uns  com  os  outros  suas  provisoes,  os  ricos 
se  mostravam  glutoes  e  bebiam  demais,  até  á  embriaguez, 
enquanto  os  pobres  nada  recebiam  e,  porisso,  ficavam  priva- 
dos da  festa.  Tal  profanacáo  da  Ceia  do  Senhor  era  triste- 
mente escandalosa;  Paulo  acliou  que  uma  correcao  daquéle 
sério  abuso  se  impunha  a  todo  o  custo.  Entretanto,  sua  lin- 
guagem  é  comedida.  Declara  que  acredita  só  em  parte  na 
iniormacáo  dolorosa  que  Ihe  prestaram  a  respeito.  Reco- 
nhece  até  que  um  propósito  divino  é  manifestó  naquelas  di- 
visoes, porque  em  tal  situagáo  os  que  sao  leáis  a  Cristo  se 
faráo  conhecidos  mais  prontamente.  Lembra-lhes,  contudo, 
que  tamanhas  rivalidades  e  táo  grosseiros  excessos  tornavam 
impossível  para  éles  uma  observáncia  condigna  da  Ceia  do 
Senhor,  em  sua  verdadeira  significacáo.  Frisa  bem  que,  se 
o  propósito  déles,  quando  se  juntam,  é  apenas  saciar  seu 
apetite  voraz,  entáo  será  melhor  que  fiquem  em  casa.  Cen- 
sura-lhes  severamente  a  falta  de  consideracáo  aos  pobres, 
toda  a  indecéncia  de  táo  vergonhoso  comportamento. 

Mas  o  modo  que  ele  acha  mais  correto  de  sanar  a  clamo- 
rosa irregularidade  é  lembrar-lhes  a  instituícáo  da  Santa  Ceia, 
que  éles  profanavam,  vs.  23-26.  Adianta  que  éle  mesmo  re- 
cebeu  do  Senhor  a  sagrada  tradicáo  referente  á  orígem  do 
sacramento  que  fóra  instituido  naquela  noite  solene  em  que 
Cristo  se  deixara  trair.  Servia  éste  mesmo  fato  para  dar  én- 
fase  ao  amor  de  Cristo  pelos  discípulos,  amor  aue  se  esauece 
de  si  em  beneficio  dos  outros.  Já  sentindo  projetar-se  sobre 
Éle  a  sombra  da  cruz,  tomou  Jesús  o  páo  e  o  vinho  e  instituiu 
éste  sagrado  rito.  "Tendo  dado  gracas",  partiu  o  páo,  de- 
clarando aos  discípulos  que  aquilo  era  símbolo  de  seu  corpo 
que  seria  partido  por  éles.  De  igual  modo  tomou  o  cálice, 
depois  de  cear,  afirmando  que  simbolizava  o  novo  concérto 
que  ia  ser  selado  com  seu  sangue,  concérto  novo  em  sua  na- 
tureza,  conteúdo  e  alcance,  pois  asseguraria  perdáo  pleno  dos 
pecados  e  uma  durável  renovacáo  espiritual.  Os  discípulos 
deviam  observar  esta  sagrada  cerimonia,  e  todas  as  vézes  que 
o  fizessem,  fa-lo-iam  em  memoria  de  seu  Senhor,  como  lem- 
branga  dos  seus  sofrimentos  e  morte  por  éles.  Cumpria-lhes 
ceiebrá-la  sempre,  até  que  Éle,  o  Senhor,  voltasse. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


101 


E  Paulo  acrescenta  um  solene  aviso  a  essa  impressionante 
narracáo  da  orígem  do  sacramento:  "Por  isso,  aquéle  que 
comer  o  pao  ou  beber  o  cálice  do  Senhor,  indignamente,  será 
réu  do  corpo  e  do  sangue  do  Senhor".  O  que  Paulo  quer 
dizer  é  que  aquele  procedimento  vergonlioso  dos  corintios, 
atrás  referido,  era  verdadeira  profanacáo  désse  festim  sa- 
grado: era  uma  demonstracao  de  que  nao  viam  no  mesmo  um 
memorial  da  morte  de  Cristo;  era  um  insulto  ao  corpo  e  ao 
sangue  do  Senhor,  sim_bolizados  nos  elementos  da  Ceia.  Paulo 
nao  visa,  com  esta  advertencia,  afastar  da  Santa  Ceia  pessoas 
indignas.  Algumas  vézes  isto  pode  ser  necessário,  mas  é  erro 
introduzir  agora  essa  idéia,  que  o  apostólo  nao  tem  na  mente. 
O  resultado  dessa  interpretacáo  errónea  de  suas  palavras 
tem  dado  lugar  a  que  multas  pessoas  inocentes  se  afastem 
da  mesa  do  Senhor  e  há  motivado  perplexidades  desnecessá- 
rias.  Paulo  nao  está  discutindo  o  caráter  pessoal  dos  par- 
ticipantes da  Ceia,  mas  o  modo  como  se  conduzem  durante 
sua  celebracáo.  É  como  acertadamente  declarou  um  dos  an- 
tigos  intérpretes  das  Escrituras:  "A  indignidade  dos  partici- 
pantes é  uma  coisa;  a  maneira  indigna  da  participacáo  é  ou- 
tra  muita  diferente"  ("alia  est  indignitas  edentis,  alia  esus"). 
Muí  tos  julgam  que,  pelo  fato  de  a  consciéncia  acusá-los  de 
faltas,  nao  convém  aproximarem-se  da  mesa  do  Senhor.  Mas 
saibam  que,  por  maiores  que  sejam  essas  faltas,  todos  sao 
benvindos  á  mesa,  se  a  ela  se  chegarem  verdadeiramente  ar- 
rependidos  e  desejosos  de  reencetarem  uma  vida  de  consa- 
gracáo  e  santidade.  Nao  era  o  intento  de  Paulo  causar  de- 
sassosségo  as  consciéncias  delicadas  e  sensíveis.  O  que  pro- 
curou  corrigir  foi  a  grosseria  do  procedimiento  de  seus  lei- 
tores,  frisando  que  a  celebracáo  da  Ceia  do  Senhor  nao  devia 
dar  lugar  a  glutonaria  nem  a  bebedeiras. 

Hoje  em  dia  há  muito  pouca  probabilidade  de  se  darem 
tais  escándalos.  Nao  obstante,  convém  acatar  a  admoes- 
tacáo  do  apostólo:  "Examine-se  o  homem  a  si  mesmo"  — 
esteja  certo  da  significacáo  dessa  festa  sagrada;  certifique-se 
que  está  apercebido  da  grande  importancia  désse  culto,  "e 
assim  coma  do  pao  e  beba  do  cálice".  É  notável  que  Paulo 
nao  corrige  os  sérios  abusos  daquela  igreja  abolindo  a  sua 
"festa  de  amor",  ou  impondo  a  adocáo  de  vinho  fraco,  nao 
fermentado,  ou  limitando  aos  clérigos  a  participacáo  do  vi- 
nho eucarístico,  ou  ainda  tornando  menos  frequente  a  comu- 
nháo;  nada  disto.  Procura  antes  corrigí-los,  advertindo  os  co- 


102  CHARLES  R.  ERDMAN 


mungantes  a  que  considerem  cuidadosamente  a  santidade  e 
a  significagáo  salvadora  da  morte  do  Senhor. 

Adianta  ainda  que  semelhantes  abusos  vinham  sendo 
punidos  com  doenga  e  morte  entre  os  membros  daquela  igre- 
ja.  Qual  fósse  a  verdadeira  natureza  désse  castigo,  nao  está 
explicado.  Mas  afirma  que  nao  era  um  juízo  de  Deus,  se- 
melhante  aos  que  ocorrem  comumente.  Era  antes  uma  dis- 
ciplina com  um  propósito  definido,  qual  o  de  levar  os  corintios 
ao  arrependimento  e  á  salvacáo  final.  Os  que  participassem 
da  Ceia  do  Senhor  deviam  examinar-se  a  si  mesmos  quanto 
aos  motivos  que  os  levavam  áquéle  ato  e  quanto  ao  estado  de 
seus  coracoes.  Por  ésse  exame  ou  iulgamento  íntimo  livrar-se- 
iam  do  julgamento  e  da  disciplina  com  que  o  Senhor  visita 
os  irreverentes  e  profanos. 

E  termina  a  apreciagáo  do  caso  com  uma  exortacáo  prá- 
tica.  Quando  os  crentes  se  reunissem  para  aquéle  repasto  em 
com.um,  deviam  esperar  "uns  pelos  outros".  Se  alguém  sen- 
tisse  fome,  fósse  comer  em  casa,  antes  de  se  encaminhar  á 
reuniáo  na  igreja.  Deviam  advertir  bem  que  a  Ceia  do  Se- 
nhor nao  foi  destinada  a  matar  a  fome  de  ninguém,  antes  a 
simbolizar  uma  relacáo  espiritual  com  Cristo.  Todos  quantos 
se  acercam  da  mesa  sagrada,  sentindo  sinceramente  seus  pe- 
cados e  desejando  ardentemente  novas  f oreas  espirituais,  po- 
dem  aproximar-se  sem  médo,  confiados  de  que  o  Senhor,  em 
cuja  presenga  real  estáo  chelos  de  gozo,  pronto  está  para 
receber  a  todos,  perdoá-los  e  comunicar-lhes  nova  vida  e  re- 
novada fórga. 


I.  O  EMPRÉGO  DOS  DONS  ESPIRITUAIS.  Caps. 
12  a  14. 

Multa  gente  há  de  convir  que  os  dons  espirituais,  a  que 
Paulo  se  refere  em  suas  cartas,  foram  certas  habilidades  tem- 
porárias  e  sobrenaturais,  concedidas  aos  primitivos  cristáos 
com  o  fim  de  ajudá-los  ou  assistir  a  éles  na  fundagáo  da  Igreja. 
Tais  dons  podem  nao  existir  mais  hoje.  Entretanto,  os  prin- 
cipios ou  regras  que  Paulo  apresenta  na  discussáo  désses 
dons  aplicam-se  por  igual  aos  talentos  cu  habilidades  na- 
turais  e  providenciáis  que  Deus  concede  hoje  visando  ao 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  103 


nosso  aparelhamento  ou  adestramento  para  a  propagacáo  do 
evangelho  e  para  a  edificagao  e  extensáo  da  Igreja. 

Deve-se  a  maneira  pela  qual  o  apóstelo  discute  aqui  o 
assunto  as  circunstancias  especiáis  existentes  em  Corinto. 
Ésses  dons  ou  habilidades  sobrenaturais  estavam  sendo  con- 
siderados pelos  cristáos  corintios  como  fins  em  si  mesmos. 
Estavam  sendo  usados  para  envaidecimento  e  prazer  dos  que 
os  possuíam.  Os  mais  vistosos  daquéles  dons,  ou  se  ja  os  que 
mais  chamavam  atengao  sem  que  ao  mesmo  tempo  fóssem 
os  mais  úteis,  eram  os  mais  valorizados  pelos  corintios;  daí 
o  exercício  désses  dons  provocar  invejas,  envaidecimento  e 
divisoes.  Com  o  fito  de  corrigir  ésses  abusos,  Paulo  mostra, 
no  cap.  12,  que  o  propósito  dos  dons  espirituais  é  a  edifica- 
gao  da  Igreja.  No  cap.  13  indica  o  amor  como  elemento  que 
dirige  ou  orienta  o  exercício  désses  dons.  No  cap.  14  mostra 
que  o  valor  relativo  déles  afere-se  pelo  grau  de  sua  utilidade 
á  Igreja. 

1.  O  propósito  dos  Dons  Espirituais.  Cap.  12. 

a.  Como  aferir  as  influencias  espirituais.  Cap.  12:1-3. 

1  A  respeito  dos  dons  espirituais,  nao  quero,  ir- 
máos,  que  sejais  ignorantes.  2  Sabéis  que,  outrora, 
quando  éreis  gentios,  deixáveis  conduzir-vos  aos  ídolos 
mudos,  conforme  éreis  guiados.  3  Por  isso  vos  faQO 
compreender  que  ninguém  que  fala  pelo  Espirito  de 
Deus  afirma:  anátema  Jesús!  por  outro  lado,  ninguém 
pode  dizer:  Senhor  Jesús!  senáo  pelo  Espirito  Santo. 

O  emprégo  dos  dons  espirituais  é  a  terceira  questáo  re- 
lacionada com  o  culto  público,  apreciada  pelo  apostólo;  das 
trés  é  a  mais  difícil  e  a  de  maior  importancia.  O  uso  de  véu 
pelas  muiheres  e  uma  observancia  condigna  da  Santa  Ceia 
eram  matéria  de  decoro  público  e  diziam  respeito  á  ordem 
externa  do  culto  na  igreja;  enquanto  os  dons  do  Espirito 
Santo  eram  experiéncias  sobrenaturais,  misteriosas  e  pes- 
soais,  intimamente  ligadas  e  indispensáveis  á  vida  e  ao  cres- 
cimento  da  Igreja.  Comega  o  apostólo  lembrando  a  seus 
leitores  que,  antes  de  se  haverem  convertido  a  Cristo,  estive- 
ram  su  jeitos  a  certas  fórgas  espirituais  que  os  impeliam  ao 
culto  dos  ídolos.    Éstes  eram  imagens  mudas,  sem  vida  e 


104 


CHARLES  R.  ERDMAN 


indefesas,  tais  quais  os  falsos  deuses  que  representa vam. 
Convertendo-se,  porém,  os  cristáos  tinham  sido  guiados  pelo 
Espirito  Santo  a  prestar  culto  ao  Deus  vivo  e  verdadeiro  que, 
nao  sómente  podia  falar  e  agir,  como  por  seu  Espirito  podia 
conceder  aos  homens  urna  capacidade  misteriosa  de  expressáo, 
assim  como,  do  tesouro  de  sua  graga,  liberalizava  outras  fa- 
culdades  ou  talentos,  necessários  ao  servigo  de  seu  Filho. 

No  entanto,  os  adoradores  daquelas  falsas  divindades, 
juntamente  com  cristáos  e  judeus,  acreditavam  que  uma 
pessoa  qualquer  podia  vir  a  ser  possuída  de  outro  espirito 
além  do  seu  próprio,  o  qual  passava  a  empregjá-la  como  seu 
instrumento,  servindo-se  para  isso  das  faculdades  dessa 
pessoa,  cujos  movimentos  eram  por  ele  dirigidos.  Corinto 
vivia  repleta  de  adivinhos  e  sacerdotes  que,  nao  ficando  atrás 
dos  apostólos  cristáos,  proclamavam-se  dotados  de  inspiragáo 
divina  e  de  poderes  sobrenaturais. 

Iniciando,  pois,  sua  dissertagáo  sobre  os  dons  espirituals, 
Paulo  sentiu  a  necessidade  de  sugerir  a  seus  leitores  a  ma- 
neira  como  podiam  distinguir  entre  as  manifestagoes  do  Es- 
pirito de  Deus  e  o  palavrório  e  extravagancias  inerentes-  as 
práticas  e  crendices  dos  pagáos.  Apresenta  um  excelente  mé- 
todo de  teste  dos  espirites,  a  saber,  a  lealdade  a  Cristo.  Essa 
lealdade  será  a  característica  de  toda  palavra  ou  mensagem 
que  provenha  do  Espirito  de  Deus. 

Há  um  segundo  teste,  de  que  o  apostólo  se  ocupa  a  se- 
guir: o  teste  ou  exame  de  sanidade.  Temos  que  mencioná-lo 
aqui  porque  foi  por  nao  compreenderem  a  vantagem  déste 
exame  que  havia  tanta  confusáo  na  igreja  de  Corinto.  Os 
adivinhos  ou  prognosticadores  gregos  expressavam  a  inspira- 
gáo  de  que  se  diziam  cheios  com  um  estranho  delirio  ou  fre- 
nesí. E  chegavam  mesmo  a  gabar-se  da  completa  loucura 
que  se  apoderava  déles.  Pronunciavam,  entáo,  seus  oráculos 
**^tal  qual  a  Pitonisa,  escumando  e  com  os  cábelos  desgre- 
nhados".  Porisso  os  cristáos  corintios  inclinavam-se  a  acre- 
ditar que,  quanto  mais  a  pessoa  se  alienava  ou  endoidecia, 
perdendo  consciéncia  de  si  mesma,  tanto  mais  era  certo 
estar  sob  o  poder  e  influéncia  do  Espirito  de  Deus.  Ésse  érro 
explica,  em  parte,  por  que  ésses  cristáos  foram  levados  a 
preferir  os  dons  ou  habilidades  mais  espetaculares,  e  despre- 
zar  outros  mais  práticos  e  mais  úteis.  Paulo  parece  Indicar 
que  o  Espirito  Santo  opera  servindo-se  da  mente  do  crente, 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


105 


por  Éle  esclarecida,  de  sua  visao  despertada  ou  vivificada,  e 
de  sua  capacidade  de  raciocinar,  sendo  que,  no  caso  de  ver- 
dadeira  inspiragáo,  "os  espirites  dos  profetas  estáo  sujeitos 
aos  próprios  profetas". 

Vejamos  entáo  o  primeiro  teste  ou  prova  da  operagáo  do 
Espirito,  de  que  Paulo  se  ocupa  agora,  a  saber,  a  absoluta 
lealdade  a  Cristo:  ''Ninguém  que  fala  pelo  Espirito  de  Deus 
afirma:  anátema  Jesús!  por  outro  lado,  ninguém  pode  dizer: 
Senhor  Jesús!  senáo  pelo  Espirito  Santo".  "Anátema  Jesús" 
ou  "amaldigoado",  e  "Jesús  é  Senhor"  eram  duas  exclama- 
goes  contrárias,  dois  brados  inconfundíveis  e  inconciliáveis 
que  se  erguiam  dos  dois  lados  em  que  a  sociedade  humana 
se  dividía  —  os  fiéis  e  os  infléis,  os  cristáos  e  os  pagaos  e 
eram  dois  infalíveis  sinais:  o  primeiro,  da  atuagáo  do  espirito 
do  mal;  o  outro,  indicio  certo  da  influencia  do  Espirito  de 
Deus.  A  primeira  exclamagáo,  quem  sabe?  talvez  partisse 
de  um  individuo  qualquer,  todo  agitado,  a  tremer,  inimigo 
da  cruz,  que  lá  um  dia  penetrou  na  assembléia  dos  cristáos 
para  perturbá-los.  Mas,  fosse  qual  fósse  a  causa  de  sua  alu- 
cinagáo,  procedesse  de  onde  procedesse  o  espirito  de  que 
estava  possesso,  o  fato  é  que  nao  podia  ser  um  agente  do 
Espirito  Santo.  Por  outro  lado,  por  mais  humálde  que  fósse 
o  cristáo,  por  mais  obscura  que  fósse  a  sua  condigáo  na  igreja, 
e  por  mais  comuns  que  fóssem  os  seus  dotes  espirituais,  era 
um  verdadeiro  instrumento  do  Espirito  de  Deus  se,  humilde 
mas  sinceramente  podia  confessar  —  "Jesús  é  meu  Senhor!" 

O  valor  desta  doutrina,  nos  dias  que  correm,  é  inestimá- 
vel.  Há,  hoje,  multas  experiencias  e  dons  que  se  dizem  es- 
pirituais, aos  quais  se  deve  aplicar  o  teste  ou  exame  de  sa- 
nidade  crista.  Sem  dúvida  que  o  Espirito  Santo  pode  falar 
aos  seguidores  de  Cristo  e  Ihes  comunicar  talentos  ou  habi- 
lidades necessários  ao  servigo  de  Deus.  A  sua  influencia 
devem  ser  atribuidos  impulsos  misteriosos  e  frequentes,  e  ao 
seu  poder,  o  éxito  de  muitos  trabalhos  evangelísticos.  To- 
davía, ésses  dons,  impulsos  ou  orientagoes  que  se  supoem 
procedentes  do  Espirito  devem  ser  sempre  submetidos  a  pro- 
vas  e  justificagoes  no  tribunal  da  razáo  e  do  senso-comum. 
Quanto  mais  alguém  estiver  sob  o  poder  do  Espirito  Santo, 
tanto  mais  suas  faculdades  mentáis  e  seu  poder  de  raciocinio 
estaráo  atívos  e  vígUantes. 

De  sorte  que  a  atitude  que  alguém  mantiver  para  com 
Cristo  deverá  servir  de  critério  no  julgamento  do  seu  estado 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


espiritual.  Ninguém,  por  mais  culto  que  for,  por  maiores  que 
puderem  ser  os  seus  predicados  pode  com  justica  ser  cha- 
mado espiritual  ou  piedoso,  se  blasfema  de  Jesús  Cristo. 

Evidencia-se,  entáo,  déste  ensino  do  apostólo,  que  o  Es- 
pirito Santo  está  de  continuo  presente  em  cada  seguidor  de 
Cristo.  Sem  o  seu  poder  ninguém  com  sinceridade  chega  a 
confessar  a  Jesús  como  Senhor.  Se  o  crente  é  capaz  de  fazer 
tal  confissáo,  deve  ter  isto  como  consoladora  prova  de  que 
o  Espirito  Ihe  comunicou  nova  vida  e  está  disposto  a  tomá-lo 
como  seu  instrumento  na  edificagáo  da  Igreja  de  Cristo. 

Além  do  que,  nao  se  deve  julgar  a  espiritualidade  dos 
obreiros  cristáos  pelas  aparéncias.  Os  dons  naturais,  é  ver- 
dade,  variam  de  pessoa  para  pessoa.  Popularidade,  elogios 
algumas  vézes  sao  conquistados  por  individuos  cuja  vida  es- 
piritual é  precária  e  ilusoria.  A  verdadeira  prova  é  a  devocáo 
a  Cristo.  E  na  maioria  dos  casos,  aqueles  que  se  devotam  a 
seu  Salvador  vivem  incógnitos,  seus  esforcos  e  suas  lutas  por 
Cristo  quase  nao  aparecem,  nao  sao  corihecidos.  Contudo, 
a  consagracáo  déles  ao  servigo  de  seu  Senhor  é  um  fato.  Nao 
há  nenhuma  dúvida  que  tais  pessoas  vivem  chelas  do  Espi- 
rito Santo. 


b.  Os  Dons  sao  Diversos.  Cap.  12:4-11. 

4  Ora,  os  dons  sao  diversos,  mas  o  Espirito  é  o 
mesmo.  5  E  também  há  diversidade  nos  servidos,  mas 
o  Senhor  é  o  mesmo.  6  E  há  diversidade  ñas  realiza- 
qoes,  mas  o  mesmo  Deus  é  quem  opera  tudo  em  tocios. 
7  A  manifestagáo  do  Espirito  é  concedida  a  cada  um, 
visando  um  fim  proveitoso.  8  Porque  a  um  é  dada,  me- 
diante o  Espirito,  a  palavra  da  sabedoria;  e  a  outro, 
segundo  o  mesmo  Espirito,  a  palavra  do  conhecimen- 
to;  9  a  outro,  no  mesmo  Espirito,  fé;  e  a  outro,  no 
mesmo  Espirito,  dons  de  curar;  10  a  outro,  opera?5es 
de  milagres;  a  outro,  profecia;  a  outro,  discernimento 
de  espíritos;  a  um,  variedade  de  línguas;  e  a  outro, 
capacidade  para  interpretá-las.  11  Mas  um  só  e  o 
mesmo  Espirito  realiza  todas  estas  coisas,  distribuindo- 
as,  como  Ihe  apraz,  a  cada  um,  individualmente. 

Os  dons  concedidos  á  Igreja  de  Corinto  foram  muitos  e 
variados,  mas  todos  oriundos  de  uma  fonte  divina  e  destina- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  107 


dos  ao  bem  comum  dos  fiéis.  Por  consegulnte,  haviam  todos 
de  ser  considerados  dons  de  Deus,  e  tinham  de  ser  usados 
com  sabedoria,  segundo  a  intengáo  de  quem  os  concedia,  que 
era  o  bem  geral  da  igreja  e  dos  estranhos  a  ela. 

Indicando  a  Orígem  divina  désses  dons,  Paulo  menciona 
Deus  o  Pai,  Deus  o  Filho,  e  Deus  o  Espirito  Santo,  as  tres 
pessoas  da  Trindade  Augusta,  como  um  só  Deus,  iguais  todas 
elas  em  sua  esséncia  e  nos  seus  atributos.  A  cada  pessoa  da 
Trindade  ele  associa  um  aspecto  désses  dons  espirituais. 
Quanto  á  natureza  e  á  sua  orígem,  sao  concessoes  da  graga 
divina,  sao  talentos  ou  habilidades.  Quanto  ao  seu  fim  ou 
propósito,  sao  "ministérios"  destinados  a  servir,  a  ajudar  e  a 
fortalecer  a  igreja.  Quanto  aos  seus  efeitos,  sao  operagoes  ou 
manifestacoes  de  poder  divino. 

Constituem  ésses  dons  uma  unidade,  apesar  de  sua  va- 
riedade,  e  isto  em  razáo  de  procederem  de  uma  fonte  única, 
e  também  pelo  fato  de  a  palavra  "diversidade"  também  sig- 
nificar ''distribuicáo",  ou,  como  Paulo  acrescenta,  cada  qual 
é  u'a  manifestacáo  do  Espirito.  A  unidade  existe  ainda  pelo 
fato  de  todos  servirem  a  uma  finalidade  comum,  que  é  a 
prcmogáo  do  bem  ou  dos  interésses  da  igreja.  "A  manifes- 
tacáo do  Espirito  é  concedida  a  cada  um,  visando  um  fim 
proveitoso". 

Sendo  dons  espirituais,  por  tanto,  nao  se  destinam  ao  uso 
particular  com  que  se  envaidecam  os  seus  possuidores;  e,  sim, 
ao  aproveitamento  de  todos  os  fiéis. 

Em  seguida  Paulo  enumera  ésses  dons.  É  lícito  supor 
que  éles  podem  ser  divididos  em  trés  classes.  Nao  há  nada 
de  fantasía  nisto,  como  alguns  declaram.  A  primeira  classe 
estarla  associada  particularmente  com  o  intelecto;  a  segunda, 
com  a  vontade;  e  a  terceira,  com  as  emogoes.  A  palavra  da 
sabedoria  e  a  palavra  do  conhecimento  sao  faculdades  por 
Deus  concedidas;  aquela  diz  respeito  a  descobertas  ou  pes- 
quisas, e  esta  refere-se  a  aplicagoes  práticas  da  verdade.  É 
de  notar  que  ambas  encabegam  a  lista  dos  dons,  como  sendo 
os  mais  importantes,  todavía  para  os  corintios  eram  os  úl- 
timos^ os  de  menor  valia.  Acreditavam  éles  que,  quanto  mais 
a  razáo  e  a  consciéncia  enfraqueciam  ou  deixavam  de  fun- 
cionar, tanto  mais  o  Espirito  operava  no  individuo.  Mas  o 
apostólo  indica  o  contrário:  os  dons  mais  excelentes  eram 


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CHA  Pw  LES  R.  ERDMAN 


exercidos  em  paralelo  e  na  mesma  intensidade  com  que  a 
razáo  e  a  inteligencia  funcionassem. 

Entre  os  dons  que  se  relacionam  de  modo  especial  com  a 
vontade,  Paulo  menciona  a  fé.  Naturalmente  nao  quer  sig- 
nificar a  "fé  salvadora",  porque  esta  nao  é  um  dom  especial, 
antes  é  comum  a  todos  os  fiéis.  A  fé  salvadora  é  a  raiz 
mesma  da  vida  crista;  nao  é  um  de  seus  frutos.  O  que  ele, 
pois,  refere  aqui  é  aquela  "firmeza  em  Deus",  aquelas  "ou- 
sadia  heroica",  aquela  fé  que  "transporta  montanhas". 
Esta,  sim,  é  produzida  pela  presenta  e  pelo  poder  do  Espirito 
Santo  no  coragáo. 

A  seguir  vém  os  dons  de  curar,  que  entendem  com  a  mi- 
raculosa  habilidade  de  curar  diferentes  classes  de  doengas, 
Também  alude  a  "operacoes  de  milagres",  com  o  que  prova- 
velmente  indica  o  poder  de  ressuscitar  mortos,  de  expulsar 
demonios,  de  infligir  castigo  aos  adversários  da  fé,  de  que  o 
apostólo  dera  exemplo  em  suas  viagens  missionárias. 

Quanto  ao  dom  de  profecía  e  o  outro  de  discernimento 
de  espíritos,  Paulo  se  refere,  antes  do  mais,  a  uma  capacidade 
miraculosa  de  expressáo,  visto  como,  segundo  alguém  já  disse, 
"a  profecía  nao  nasce  de  uma  resolugáo  ou  de  reflexáo  pró- 
pria  do  profeta,  senáo  de  um  poder  que  independe  déle,  poder 
que  se  assenhoreia  do  seu  espirito  e  indú-lo  a  falar  de  modo 
a  impressionar  vivamente  es  ouvintes".  Entretanto,  como 
é  fato  existirem  falsos  profetas  no  meio  dos  verdadeiros,  ha- 
via  o  dom  correlato  ao  de  profecía,  ésse  de  "discernir"  espíri- 
tos, o  qual  consistía  na  habilidade  de  se  descobrir,  para  pro- 
veito  da  igreja,  se  alguém,  declarado  profeta,  era  dirigido  por 
qualquer  mau  espirito,  ou  se  era  inspirado  por  Deus. 

No  final  da  lista  vem  o  dom  de  línguas  e  o  outro,  de 
"interpretagáo  de  língua".  Tem  havido  multa  especulagáo 
em  torno  da  natureza  des  tes  dois  últimos.  É  de  todo  provável 
que  o  dom  de  línguas,  aqui  mencionado,  nao  era  idéntico 
ao  que  se  manifestou  no  Dia  de  Pentecostés.  Provavelmente 
nao  consistía  na  capacidade  de  falar  línguas  conhecidas;  era 
antes  uma  "influencia  ou  fórga  superior,  sobrehumana,  que 
empolgava  e  emocionava  profundamente",  e  capacitava  o  in- 
dividuo a  "orar,  cantar,  ou  dar  gragas  numa  linguagem 
extática  e  ininteligível  aos  que  nao  estivessem  dominados 
da  mesma  emocáo".    Néste  caso  o  dom  em  aprego  entende 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  109 


própriamente  com  os  sentimentos  ou  emogoes,  e  pouco  in- 
teressa  o  intelecto  ou  a  vontade,  os  quais  durante  o  tempo 
de  sua  manifestagáo,  ficam  suspensos  ou  inativos. 

As  emogoes  que  fóssem  causadas  pura  e  simplesmente 
pelo  Espirito  e  expressas  em  fala  ou  discurso  misterioso,  só 
podiam  ser  compreendidas  por  alguém  posto,  pelo  mesmo. 
Espirito,  em  comunháo  mental  com  o  que  falasse.  Seria 
entáo  necessário  que  alguém,  assim  capacitado,  interpretasse 
o  que  se  tinha  dito.  O  Espirito  habilita va-o  a  traduzir  em 
linguagem  clara  e  corrente  as  expressoes  extáticas  de  quem 
possuisse  o  dom  de  línguas. 

É  notável  como  Paulo  coloca  no  último  lugar  os  dons  a 
que  os  corintios  davam  prim.azia  e  m.ais  cobigavam.  Os  mais 
emocionantes,  espetaculares,  estavam  muito  longe  de  ser  os 
mais  úteis  á  igreja,  para  sua  edificagáo.  Nao  devemos  con- 
siderar estes  dons  como  variadas  aptidoes  naturais,  senáo 
como  verdadeiras  habilidades  sobrenaturais.  Pode  acontecer 
que  hoje  Deus  nao  os  conceda  mais  aos  crentes,  todavía,  em 
compensagáo,  há  vários  e  variados  talentos  que  Éle  concede 
aos  que  seguem  a  Cristo.  Ésses  talentos  tém,  igualmente, 
sua  orígem  comum  na  munificiéncia  providencial  de  Deus; 
sua  finalidade  é  também  comum  —  servir  á  Igreja.  O  fato 
de  provirem  de  Deus  e  de  ser  uma  só  a  sua  finalidade  deve 
afastar  dos  que  os  possuem  toda  vaidade  e  orgulho  e  fazé-los 
sentir  sua  imensa  responsabilidade  em  procurar  o  bem  co- 
mum, o  proveito  geral  da  Igreja. 


c.  A  Unidade  da  Igreja.  Cap.  12:12-31. 

12  Porque,  assim  como  o  corpo  é  um,  e  tem  muitos 
membros,  e  todos  os  membros,  senáo  muiíos,  consti- 
tuem  um  só  corpo,  assim  também  com  respeito  a  Cris- 
to. 13  Pois.  em  um  só  Espirito,  todos  nós  tomos  bali- 
zados em  um  corpo,  quer  judeus,  quer  gregos,  que  escra- 
vos,  quer  livres.  E  a  todos  nós  fci  dado  a  beber  de 
um  só  Espirito.  14  Porque  também  o  corpo  nao  é  um 
só  membro,  mas  muitos.  15  Se  disser  o  pé:  rorque  nao 
sou  máo,  nao  sou  do  corpo;  nem  por  isso  deixa  de  ser  do 
corpo,  16  Se  o  ouvido  disser;  Porque  nao  sou  dliio,  nao 
sou  do  corpo;  nem  por  isso  deixa  de  o  ser.  17  Se 
todo  o  corpo  fósse  ólho,  ,onde  estaría  o  ouvido?  Se  todo 
fósse  ouvido,  onde  o  olfato?  18  Mas  Deus  dispos  es 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


membros,  colocando  cada  um  déles  no  corpo,  como  ine 
aprouve.  19  Se  todos,  porém,  fossem  um  só  membro, 
onde  estaría  o  corpo?  20  O  certo  é  que  há  muitos 
membros,  mas  um  só  corpo.  21  Nao  podem  os  olhos 
dizer  á  máo:  Nao  precisamos  de  ti;  nem  aínda  a  ca- 
beca,  aos  pés:  Nao  preciso  de  vós.  22  Pelo  contrarío, 
os  membros  do  corpo  que  parecem  ser  mais  fracos,  sao 
neeessários;  23  e  os  que  nos  parecem  menos  dignos  no 
corpo,  a  estes  damos  muito  maior  honra;  também  os 
que  em  nós  nao  sao  decorosos,  revestimos  de  especial 
honra.  24  Mas  os  nossos  membros  nobres  nao  tém  ne- 
cessidade  disso.  Contudo  Deus  coordenou  o  corpo,  con- 
cedendo  muito  mais  honra  áquilo  que  menos  tinha,  25 
para  que  nao  ha  ja  divisáo  no  corpo;  pelo  contrário, 
cooperem  os  membros,  com  igual  cuidado,  em  favor 
uns  dos  outros.  26  De  maneira  que,  se  um  membro 
sofre,  todos  sofrem  com  ele;  e,  se  um  déles  é  hon- 
rado, com  ele  todos  se  regozijam.  27  Ora,  vós  sois  cor- 
po de  Cristo;  e,  individualmente,  membros  désse  corpo. 
28  A  uns  estabeleceu  Deus  na  igreja,  primeiramente 
apostólos,  em  segundo  lugar  profetas,  em  terceiro  lu- 
gar mestres,  depois  operadores  de  milagres,  depois  dons 
de  curar,  socorros,  governos,  variedades  de  iinguas.  29 
Porventura  sao  todos  apóstolos?  ou  profetas  todos?  sao 
todos  mest«res?  ou  operadores  de  milagres?  30  Tém 
todos  dons  de  curar?  falam  todos  em  outras  Iinguas? 
interpretam-nas  todos?  31  Entretanto,  procura!,  com 
zélo,  os  melhores  dons.  E  éu  passo  a  mostrar-vos 
aínda  um  caminho  sobremodo  excelente. 

A  grande  diversidade  de  dons  concedidos  aos  crentes  nao 
discrepava  da  unidade  da  Igreja;  pelo  contrário,  assegurava- 
Ihe  essa  unidade,  visto  como  cada  urna  daquelas  aptidoes 
se  destinava  a  prestar  um  servico  que  era  necessário  á  vida 
comum  da  Igreja  e  ao  seu  crescimento.  Para  ilustrar  esta 
im.portante  verdade  Paulo  emprega  a  conhecida  figura  ou 
parábola  do  corpo  humano.  Os  escritores  gregos  tinham-na 
usado  com  frequéncia,  referindo-se  ao  Estado  ou  "corpo  po- 
lítico".  É  de  muito  efeito  o  seu  emprégo  aqui  pelo  apostólo. 

A  Igreja  é  o  corpo  espiritual  de  Cristo.  De  fato,  Paulo 
chega  a  avanzar  mais:  identifica  a  Igreja  com  Cristo:  "Assim 
como  o  corpo  é  um,  e  tem  muitos  membros,  e  todos  os 
mem.bros,  sendo  muitos,  constituem  um  só  corpo,  assim  tam- 
bém com  respeito  a  Cristo",  v.  12.  Nao  se  podia  declarar, 
com  maior  énfase,  a  unidade  da  Igreja  Crista,  como  o  faz 
o  apostólo,  a  seguir:  "Em  um  só  Espirito  todos  nós  fomos 
batizados  em  um  corpo,  quer  judeus,  quer  gregos,  quer  escra- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


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VOS,  quer  livres.  E  a  todos  nós  foi  dado  a  beber  de  um  só 
Espirito",  V.  13.  Até  mesmo  certas  distincoes,  aparentemente 
insuperáveis,  existentes  no  mundo  antigo,  como  a  que  havia 
entre  judeus  e  gentíos,  entre  escravos  e  livres,  desaparece- 
ram  todas  sob  o  influxo  do  Espirito  de  Deus,  formando  todos 
os  cristács  um  corpo  pela  influencia  do  mesmo  Espirito,  que 
os  levava  a  participar  de  uma  vida  comum. 

Muita  gente,  hoje  em  dia,  emprega  a  frase  ''batismo  do 
Espirito"  para  indicar  uma  nova  experiencia  que  é  possivel 
vir  depois  da  conversáo,  ou  para  expressar  novos  aumentos 
de  peder  espiritual.  É  provavelmente  mais  biblico  definir 
tais  experiencias  com  estoutra  expressáo  —  "Encher-se  do 
Espiiito".  Pode  a  pessoa  "encher-se"  multas  vézes,  porém 
batizar-se  com  o  Espirito  Santo  isto  só  pode  ocorrer  uma  vez 
na  vida  do  individuo.  O  batismo  é  essa  atividade  inicial  do 
Espirito  Santo,  pela  qual  o  crente  é  levado  a  unir-se  ao  corpo 
único  e  indivisível  de  Cristo,  a  saber,  a  Igreja  Crista,  á  qual 
todos  os  cr entes  pertencem. 

Paulo  mostra  que  a  Igreja  é  um  organismo  vivo,  tal  qual 
o  corpo  humano.  Muitos  sao  os  seus  membros,  mas  cada  qual 
é  necessário  á  vida  e  ao  bem-estar  de  todos  os  demais.  Perder 
qualquer  um  déles  é  mutilar  o  corpo. 

Deve  ser  lembrado  que  o  apostólo  está  encarando  um 
problem.a  particular  daquela  igreja.  Os  corintios  exageravam 
a  importancia  de  certos  dons  espirituais,  particularmente  o 
de  falar  linguas.  Os  que  nao  possuíam.  ésses  dons  mais  am- 
bicionados eram  tentados  a  ficar  descontentes  e  a  privar  a 
igreja  dos  seus  servicos,  que,  se  nao  davam  tanto  ñas  vistas, 
também  nao  deixavam  de  ser  necessários  como  os  outros. 
Por  outro  lado,  os  que  possuiam  ésses  dons  de  m.aior  sen- 
sacáo  inclinavam-se  a  monopolizar  os  lugares  de  mais  evi- 
dencia ñas  reunioes  da  igreja,  humilhando  assim  e  afastando 
os  outros,  que  nao  podiam  competir  com  éles  em  tanto  brí- 
Iho  e  importancia. 

Paulo,  pois,  corrige  essas  faltas  empregando  a  parábola 
do  coi-po.  Quáo  absurdo  seria  um  membro,  digamos,  o  pé 
ou  a  máo,  recusar-se  a  funcionar,  a  agir,  como  se  nao  per- 
tencesse  ao  corpo,  só  porque  sua  funcáo  diferia  da  funcáo  de 
outro.  Pois  é  igualmente  absurdo  um  m.embro  da  igreja 
invejar  o  dom  que  nao  tem  e  recusar  prestar  á  igreja  o  ger- 
vigo  que  está  em  suas  fórcas  realizar.^  Vs.  14-20. 


112 


CHARLES  R.  ERDMAN 


A  segunda  falta  é  rematada  loucura.  Um  órgáo  do  corpo 
nao  pode  despiezar  os  outros,  declarando  nao  precisar  déles, 
porque  todos,  formosos  ou  nao,  sao  partes  integrantes  do 
corpo,  dependendo  a  saúde  déste  da  funcáo  regular  de  cada 
um.  É  estulticia,  igualmente,  qualquer  membro  da  igreja 
desprezar  outros  menos  aquinhoados,  supondo  que  sua  pró- 
pria  vida  espiritual  nao  vai  sofrer  se  ele  continuar  menos- 
cabando os  que  brilham  menos,  ou  os  que  sao  menos  admi- 
rados do  que  ele.  Vs.  21-25. 

É  obvio  que  vale  a  pena  aplicar  estes  principios  á  Igreja 
de  hoje.  Mostram-nos  éles  que  é  tolice  invejarmos  os  dons 
que  nao  temos,  ou  desdenharmos  dos  que  nao  tém  os  nossos. 
O  apostólo  que  deixar  bem  gravada  sua  doutrina,  de  modo 
que,  no  resto  do  cap.,  menciona  de  novo  os  vários  dons  do 
Espirito,  reforjando  assim  a  mesma  licáo  para  os  leitores. 

A  nova  lista  de  dons  difere  algo  da  apresentada  nos  vs. 
8-10.  Agora  a  ordem  nao  é  ditada  pela  natureza  íntima  déles, 
de  modo  a  se  relacionarem  com  o  intelecto,  com  a  vontade 
ou  com  as  emogoes,  mas  atende  antes  á  importancia  relati- 
va déles  na  obra  e  na  edificagáo  da  Igreja.  Na  dianteira 
vém  os  "apostólos",  comissionados  diretamente  por  Cristo  e 
incumbidos  da  suprema  tarefa  da  fundagáo  da  Igreja.  Em. 
segundo  lugar,  os  "profetas",  que  recebiam  revelacoes  da 
parte  de  Deus,  e  cujo  ministério  era  itinerante,  entre  as  igre- 
jas.  Terceiro,  "mestres",  que  expunham  a  doutrina  do  evan- 
gelho,  explicando-a  e  aplicando  suas  verdades  á  vida  prática. 
Seguiam-se  ministérios  menos  importantes,  como  o  da  ope- 
ragáo  de  "milagres",  relacionando-se  estes  particularmente 
com  a  cura  de  doengas  físicas;  "socorros",  que  ministravam 
aos  pobres  e  órfáos,  aos  enfermos  e  estrangeiros,  ajudando-os 
em  suas  necessidades;  "govemos",  aqueles  que  se  encarrega- 
vam  própriamente  dos  negocios  eclesiásticos.  Em  último 
lugar,  como  de  menor  importancia,  vinha  "variedades  de 
línguas". 

Esta  ordem,  em  que  sao  novamente  apresentados  os  dons 
espirituais,  deve  ter  valido  como  censura  aos  corintios,  pelo 
desacato  com  que  tratavam  Paulo,  desdenhando  de  seus 
dons  e  enaltecendo,  quais  criancas,  a  aptidáo  espetacular  de 
falar  línguas.  Quando  o  apostólo  declara  que  todos  éles 
sao  concessoes  soberanas  de  Deus,  quer  com  isso  ensinar  que 
ninguém  deixa  de  ser  necessário  á  vida  da  igreja,  por  menor 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


113 


que  seja  o  dom  que  recebeu.  Vs.  26-28.  Éstes  ensino  é  aiiida 
reforcado  por  nova  enumeracáo  dos  dons,  agora  em  forma  de 
perguntas:  Como  foi  que  Deus  os  distribuiu?  Deu-os  todos 
a  cada  pessoa?  Absolutamente  nao,  porque,  se  o  fizesse,  cada 
membro  seria  completo  em  si  e  seria  independente  dos  ou- 
tros.  Dar-se-ia  neste  caso  a  destruicáo  do  próprio  corpo. 
Paulo,  pois,  frisa  esta  segunda  verdade:  nenhum  membro 
da  igreja  se  basta  a  si  mesmo,  por  mais  importantes  que 
sejam  suas  aptidoes.  Vs.  29-30.  Fica,  portanto,  bem  esclare- 
cida a  dependencia  mútua  dos  membros  da  igreja,  em  vista 
dos  seus  diferentes  dons  e  talentos,  assim  como  nao  resta 
mais  dúvida  quanto  ao  dever  de  cada  um  exercer  com  fide- 
lidade  o  seu,  seja  éste  qual  fór. 

Paulo,  no  entanto,  termina  esta  dissertagáo  exortando 
seus  leitores  a  que  procurem,  zelosamente,  "os  melhores 
dons".  Mas,  se  éles  sao  dádivas  soberanas  de  Deus,  como 
afirmou,  esta  excrtacáo  só  pode  ter  o  seguinte  sentido:  Aca- 
tando, valorizando  os  dons  recebidos  e  usando-os  com  fideli- 
dade,  os  crentes  podem  assim  ficar  habilitados  a  receber 
maiores  aptidoes  e  se  tornaráo  mais  úteis  no  exercício  da- 
quelas  que  já  possuem.  Provavelmente  Paulo,  com  isso,  quer 
se  referir  aos  "dons  melhores"  da  profecía  e  do  ensino  (mes- 
tres),  com  os  quais  se  ocupará  adiante,  cap.  14.  Antes,  po- 
rém,  vai  fazer  uma  pausa,  para  referir,  numa  imortal  passa- 
gem  sua,  o  "caminho  sobremodo  excelente",  ou  seja  o  mé- 
todo de  conseguir  e  exercer  todos  os  dons  proveitosamente 
—  é  o  caminho  ou  o  método  do  amor,  cap.  13. 


2.  O  Método  do  Amor.  Cap.  13. 


A  incomparável  passagem  de  Paulo  a  respeito  do  "ca- 
minho" ou  método  de  exercer  os  dons  espirituais  é  táo  su- 
blime e  arrebatadora  em  sua  substancia,  foi  escrita  com  tanto 
ritmo  e  poesia,  que  se  tornou  conhecida  como  "Hiño  ao 
Amor".  Alguns  se  surpreendem  com  o  fato  de  haver  Paulo 
escrito  esta  passagem,"sendo  ele  quem  era.  Mas  isto  apenas 
revela  que  nao  compreendem  o  apostólo.  Pois  o  Paulo  que 
conhecem  é  o  escritor  sagaz  de  inteligencia,  inexorável  na 
lógica,  severo,  frió,  insensível  e  austero.  Entretanto  o  ver- 
dadeiro  Paulo  era  também  um  homem  de  emocoes  profun- 


114 


CHARLES  R.  ERDMAN 


das,  de  verdadeira  sensibilidade,  devotado  aos  amigos,  hu- 
mano, compassivo,  terno  até  as  lágrimas.    Se  nao  soubesse 

simpatizar,  se  fósse  incapaz  de  sentir  afeicoes,  nunca  teria  , 

conquistado,  como  conquistou,  a  admiracáo  de  multidoes,  nem  I 

teria  podido  compor  a  maicr  poesia  lírica  que  éste  mundo  já  | 

viu,  éste  cap.  13  de  sua  primeira  Carta  aos  Corintios.  t 

Outros  nao  tém  podido  atinar  com  a  razáo  de  ter  sido 
esta  passagem  escrita  pelo  "apóstolo  ou  campeáo  da  fé", 
e  nao  pelo  "apostólo  do  amor",  Joáo  evangelista.  Deve  ser 
lembrado,  no  entanto,  que  nao  havia  antagonismo  entre  éles  ^ 
dois;  cada  qual  podia  escrever  sobre  uma  ou  outra  das  re- 
feridas virtudes,  para  Ihes  frisar  a  importancia,  e  por  isso 
é  que  Joáo  também  escreveu  sobre  a  "vitória  que  vence  o 
mundo,  a  nossa  fé",  e  Paulo,  por  seu  lado,  chegou  a  fazer 
aquela  afirmacáo  profunda,  de  sentido  vasto:  "O  amor  é  o 
cumprimento  da  lei". 

Com  efeito,  Paulo  apresenta-nos  agora  o  amor  como  vir-  ¡ 
tude  ou  graga,  e  náo  como  aptidáo  ou  dom  espiritual.  Já  ' 
considerou  as  "línguas",  a  "profecia",  as  "curas"  e  outros 
miraculosos  dons  concedidos  á  Igreja  Primitiva.  Agora  vai  j 
mostrar  o  caminho,  o  meio  de  usar  ésses  dons  e,  déste  modo,  i 
como  aproveitar  a  vida  crista  em  todos  os  seus  aspectos  e 
em  toda  a  sua  plenitude. 

A  virtude,  considerada  aqui,  náo  é  o  amor  para  com 
Deus,  que  é  a  mais  elevada  forma  de  amor.  Náo  é  o  amor 
para  com  os  que  nos  sáo  caros,  o  que  seria  mera  emogáo, 
egoística  e  sensual.  Mas  é  a  atitude  do  coracáo  e  do  espirito 
que  devemos  cultivar  para  com  a  humanidade  inteira.  Se  o 
empolgante  discurso  de  Paulo  em  torno  desta  virtude  fór  con- 
siderado como  hiño,  pode  ser  dividido  em  trés  estrofes,  corres- 
pondendo  á  necessidade,  á  natureza  e  á  perenidade  do  amor. 


a.  O  Amor  é  Indispensável:  Cap.  13:1-3. 

1  Aínda  que  eu  fale  as  línguas  dos  homens  e  dos 
anjos,  se  náo  tiver  amor,  serei  como  o  bronze  que  soa, 
ou  como  o  címbalo  que  retine.  2  Aínda  que  eu  tenha 
o  dom  de  profetizar  e  conhe^a  todos  os  místérios  e 
toda  a  ciencia;  aínda  que  eu  tenha  tamanha  fé  ao 
ponto  de  transportar  montes,  se  náo  tiver  amor,  na- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  115 
 ^ 

da  serei.  3  E  aínda  que  eu  distribua  todos  os  meus 
bens  entre  os  pobres^  e  aínda  que  entregue  o  mea 
próprío  corpo  para  ser  queimado,  se  nao  tíver  amor, 
nada  dísso  me  aproveitará. 

Antes  de  mais  nada,  o  amor  é  absolutamente  indispensá- 
vel.  Paulo  mostra-o  em  relagáo  com  o  exercício  dos  "dons" 
espirituais,  e  é  ainda  indispensável  o  amor  em  qualquer  das 
atividades  e  relagoes  da  vida.  Para  os  cristáos  corintios  o 
dom  mais  apreciável,  devido  á  sensagáo  que  produzia,  era  o 
de  "línguas",  a  habilidade  de  ficar  em  éxtase  e  emitir  pa- 
lavras  só  compreendidas  por  aqueles  que  tivessem  o  dom 
correspondente  da  interpretagáo.  Ainda  que  alguém  possuísse 
ésse  dom,  a  mais  sublimada  forma  de  linguagem,  e  falasse  as 
"línguas"  que  foi  concedido  algumas  vézes  aos  homens  falar, 
ou  mesmo  as  línguas  dos  anjos,  a  própria  linguagem  do  céu, 
se  nao  fósse  animado  pelo  amor,  seu  discurso  seria  apenas 
um  barulho  sem  sentido,  ''como  o  bronze  que  soa,  ou  como 
o  címbalo  que  retine". 

Os  cristáos  corintios  corriam  o  risco  de  produzir  pala- 
vrórios  sem  sentido  por  causa  do  espirito  de  partido,  de 
ciúme  e  vaidade  prevalecente  no  meio  déles.  Mesmo  hoje, 
certos  prégadores  e  defensores  da  fé,  embora  eloquentes,  al- 
gumas vézes,  no  púlpito,  se  esquecem  da  simpatía  crista,  da 
cortezia,  do  amor,  de  modo  que  suas  prégagoes  sao  rispidas, 
estridentes,  metálicas.  Perdem  com  isso  sua  utilidade  e  seu 
poder  de  persuasáo. 

Do  mesmo  modo,  se  alguém  tivesse  o  dom  de  profetizar, 
essa  capacidade  especial  de  interpretar  as  verdades  mais  pro- 
fundas e  mesmo  de  predizer  acontecimentos;  e  ainda  que, 
para  exercer  ésse  dom,  fósse  capaz  de  compreender  todos  os 
"mistérios"  da  revelagáo  divina,  e  possuísse  toda  a  "ciéncia" 
déles;  ainda  mesmo  que  tivesse  o  dom  da  fé  que  opera  mi- 
lagres,  ésse  poder  que  nosso  Senhor  referiu  como  capaz  de 
remover  montanhas;  se  tivesse  tudo  isso  mas  sem  a  inspi- 
ragáo  do  amor,  seu  caráter  cristáo  seria  falho. 

Pode  acontecer,  hoje,  alguém  possuir  o  conhecimento 
da  verdade  divina,  aer  hábil  na  exposigáo  das  Escrituras  e 
demonstrar  a  mais  firme  fé  em  Deus,  e  ainda  carecer  de 
amor.  Néste  caso  nao  será  um  exemplo  de  vida  crista;  nao 
é  nada. 


116 


CHARLES  R.  ERDMAN 


Mais  ainda:  pode  alguém  ser  caridoso,  ao  ponto  de  dar 
aos  pobres  tudo  quanto  possua;  pode  deixar-se  arrastar  á 
fogueira,  como  mártir  da  fé;  se  nao  fór  animado  pelo  amor, 
nenhum  galardáo  recebará.  Sua  caridade  poderá  ter  nascido 
da  esperanga  de  recompensa  ou  louvor,  do  desejo  de  ser  visto; 
a  morte  no  fogo  pode  ter  sido  motivada  por  mero  fanatismo, 
pela  ambigáo  de  ser  considerado  santo,  por  obstinagáo  ou 
soberba. 

Paulo  emprega  uma  énfase  admirável  nestas  frases  su- 
cessivas,  em  que  acentúa  a  inutilidade  da  profecía  e  da  fé, 
da  caridade  e  do  sacrificio  da  vida,  a  menos  que  o  motivo 
de  tudo  se  ja  o  amor.  O  dom  de  línguas  nao  quer  dizer  nada. 
A  influencia  da  profecía  ou  da  fé  nenhum  valor  tem.  A 
oferenda  dos  dons,  e  até  o  martirio,  nao  garantem  nada. 
Para  que  a  vida,  em  qualquer  de  suas  esferas,  tenha  valor, 
proveito  ou  significagáo,  é  de  absoluta  necessidade  que  seja 
informada  pelo  amor.  Sem  o  amor  nenhum  dom  poderá 
ser  exercido  de  modo  próprio,  nenhum  talento  poderá  ser 
bem  empregado.  Sem  ele  a  profissáo  da  fé  crista  nao  passa 
de  pretensáo,  o  servigo  na  igreja  é  infrutífero.  Sem  ele  todas 
as  relagoes  da  vida  sao  imperfeitas,  toda  as  suas  atividades 
carecentes  de  motivo,  fúteis  e  ocas.  No  sentido  mais  pro- 
fundo, deixar  de  amar  é  deixar  de  viver,  é  extinguir-se. 


b.  Como  se  manifesta  o  Amor.  Cap.  13:4-7. 

4  o  amor  é  paciente,  é  benigno,  o  amor  náo  arde 
em  ciúmes,  nao  se  ufana,  nao  se  ensoberbece,  5  nao 
se  conduz  inconvenietemente,  nao  procura  os  seus 
iníerésses,  nao  se  exaspera,  nao  se  ressente  do  mal;  6 
nao  se  alegra  com  a  injusti^a,  mas  regozija-se  com  a 
verdade;  7  tudo  sofre,  tudo  eré,  tudo  espera,  tudo 
suporta. 

Pode  ser  difícil  definir  o  amor;  discerní-lo  ou  descobrí-lo 
é  que  nao  o  é.  Paulo  nao  ensaia  nenhuma  definigáo,  análise 
ou'descrigáo  déle.  O  que  faz  é  tragar-lhe  os  movimentos,  a 
agáo.  Mostra  o  que  o  amor  faz  e  senté,  assim  também  o  que 
foge  de  fazer.  Recorda  os  modos  pelos  quais  se  manifesta. 
E  enquanto  faz  isso,  vai  aplicando  essas  manifestagoes  do 
amor  ao  caso  concreto  que  tem  diante  de  si,  isto  é,  vai  pro- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  117 


curando  a  solugáo  de  um  problema  particular,  qual  seja  o 
dos  corintios.  É  no  interésse  dessa  igreja  que  ele  escreve, 
Igreja  conturbada  e  dividida  exatamente  pelo  modo  como 
encara  seus  dons  espirituais  e  como  os  exerce  ou  emprega. 

Paulo  já  disse  que,  sem  o  amor,  de  nada  servem  os  dons. 
Mostra,  agora,  como  haveriam  de  pensar  e  proceder  os  seus 
possuídores  se  fóssem  animados  pelo  amor.  Já  demonstrou 
que  o  amor  é  indispensável;  agora  é  a  vez  de  mostrar  que  é 
reconhecível  ou  iniludível.  Que  é  necessário,  iá  o  declarou; 
vai  agora  revelar  sua  insigne  beleza,  sua  intrínseca  excelen- 
cia e  seu  encanto.  Nao  é  do  amor  como  abstracáo  que  o 
apostólo  escreve;  nem  é  sua  pretensáo  fornecer  um  sumário 
completo  de  suas  qualidades  ou  elementos.  Nao  obstante, 
o  que  ai  expende  é  o  mais  perfeito  panegírico  do  amor  que  já 
se  escreveu.  Embora  procure  apenas  sanar  as  discordias, 
divisoes  e  lutas  que  agitam  a  igreja  de  Corinto,  demonstra, 
como  nenhum  escritor  antes  nem  depois  jamáis  conseguiu, 
o  de  que  é  capaz  o  amor  se  Ihe  derem  permissáo  de  governar 
os  coragoes,  os  lares,  quaisquer  ajuntamentos  de  pessoas, 
igrejas,  seja  qual  fór  a  comunidade,  em  qualquer  lugar  do 
mundo.  Em  quinze  frases  de  beleza  incomum  o  apostólo,  em 
traeos  bem  vivos,  descreve  como  opera  um  principio  ou  re- 
gra  que  tem  poder  para  transformar  toda  a  vida  humana. 

"O  amor  é  paciente  (sofre),  é  benigno".  Em  duas  curtas 
sentencas  está  descrita  a  esséncia  do  amor,  ou  em  que  con- 
siste sua  operagáo.  Éle  nos  faz  pacientes  no  sofrer  o  mal, 
ativos  no  conferir  béncáos.  O  mal  a  que  se  faz  referencia 
ai  é  o  que  decorre  da  provocacáo  e  da  injúria.  O  amor  é 
magnánimo  em  suportar  ésses  maleficios.  Nao  permite  que 
a  amargura  e  a  ira  operem.  Tem  firmeza  de  ánimo  em 
sofrer  afrontas.  Nao  dá  guarida  a  ressentimentos.  Perdoa 
—  nao  sómente  sete  vézes,  mas  setenta  vézes  sete. 

Nao  paga  o  mal  com  outro  mal.  É  benigno.  Nao  é 
meramente  passivo;  está  ativamente  ocupado  com  fazer  o 
bem.  Usa  de  finezas.  Seu  espirito  benévolo  está  expresso 
numa  conhecida  regra  do  bom  viver:  "Por  esta  vida  só 
passarei  esta  vez.  Assim,  pois,  todo  o  bem  de  que  sou  capaz, 
todo  obséquio  que  puder  dispensar  a  qualquer  ser  humano, 
quero  hoje  realizar.  Nao  o  deixarei  para  amanhá,  nao  o 
negligenciarei,  e  por  esta  razáo:  nao  passarei  por  aquí 
outra  vez". 


118 


CHARLES  R.  ERDMAN 


"O  amor  nao  arde  em  ciúmes"  (náo  é  invejoso).  De  si 
mesmo  generoso,  nao  se  deixa  ralar  pelos  talentos  de  outrem. 
E  se  alguma  vez  for  superado  por  um  competidor,  nao  se 
irrita,  nao  se  aflige.  Nada  de  ciúme,  se  o  rival  levar  o  premio. 

"Nao  se  ufana".  É  humilde,  nao  é  presungoso.  Nao  tem 
aparatos,  nao  anseia  fazer  demonstragoes  de  seus  dons  su- 
periores ou  tornar-se  alvo  de  admiragáo  imerecida.  É  isto  o 
amor.  Nao  é  arrogante  para  com  os  inferiores  —  nao  se 
ensoberbece.  Nunca  se  torna  ridículo  por  falta  de  modéstia, 
por  irreverencia,  por  assumir  um  aspecto  de  superioridade, 
ou  manifestar  importancia  pessoal. 

"Nao  se  conduz  inconvenientemente";  é  todo  cortezia. 
A  arte  da  polidez  nao  se  aprende  sómente  em  livros  de  eti- 
quetas sociais.  Brota  do  íntimo.  Inspira-se  em  simpatía  e 
é  orientada  pelo  acatamento  aos  sentimentos  alheios.  Co- 
mumente  é  a  falta  de  amor,  antes  que  de  ciencia  ou  de  edu- 
cagáo,  que  leva  aos  maus  modos,  as  inconveniencias,  as  gros- 
serias.  Sem  dúvida  que  nao  há  receita  para  se  fabricar 
cavalheirismo  e  cortezia,  que  nao  emanagoes  naturais  de  um 
coragáo  simpático.  O  amor  nao  pode  ferir,  nem  causar  des- 
gostos,  nem  criar  situagoes  embaragosas.  Éle  é  contrário  a 
toda  contenda  inconveniente.  As  dissengoes  que  transtor- 
navam  a  Igreja  de  Corinto  nao  eram  fruto  da  cortezia  do 
amor,  porque  esta,  por  sua  própria  natureza,  se  dá  logo  a 
conhecer  e  isto  na  maneira  como  os  cristáos  comegam  a  tra- 
tar aqueles  de  quem  divergem. 

O  amor  "nao  procura  os  seus  interésses".  É  eminente- 
mente altruista.  Nao  é  sinal  de  amor,  isso  de  andar  a  pessoa 
insistindo  sempre  nos  seus  direitos.  O  amor  é  retraído,  nao 
exige  precedencia  para  si,  reconhecimento,  aplausos,  nem 
mesmo  a  consideragáo  que  possa  parecer  de  pleno  direito, 
visto  como  o  amor  é  mais  profundo  do  que  a  justiga. 

Tem  bom  humor,  é  jovial;  "nao  se  exaspera".  Nunca 
o  amor  é  irritável.  A  facilidade  de  zangar-se,  o  mau  humor, 
que  se  costuma  chamar  "o  vicio  dos  virtuosos",  muitas  vézes 
é  o  único  sério  defeito  de  um  caráter  que,  sem  éle,  seria 
excelente.  E  quando  acontece  que  um  caráter  excelente  se 
deixa  macular  tristemente  por  essa  falha,  a  situagáo  da 
pessoa  torna-se  deveras  lamentável,  porque  ésse  defeito  cos- 
tuma causar  indiscrítível  infelicidade  e  sofrimentos.  Contu- 


raiMKIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


119 


do,  há  um  meio  excelentíssimo  de  prevenir  tamanho  desas- 
tre: a  cura  infalível  de  um  temperamento  irritável,  que  se 
revela  na  imposicáo  da  vontade  do  individuo,  na  énfase  á 
sua  dignidade  —  está  em  cultivar  perseverantemente  o 
amor  altruista,  que  se  consagra  aos  outros. 

O  amor  ''nao  se  ressente  do  mal",  déle  nao  faz  conta. 
Acumular  no  coracao  a  memoria  de  maleficios  recebidos,  de 
ingratidóes,  de  queixas,  de  agravos,  de  golpes  moráis;  manter 
um  como  registro  rigorosamente  exato  das  injúrias  sofridas 
de  outrem  —  isso  nao  sao  maneiras  do  amor  inspirado  por 
Cristo.  O  amor  nao  somente  é  capaz  de  perdoar,  como  tam- 
bém  de  esquecer  completamente. 

O  amor  nos  faz  caridosos  para  com  as  faltas  e  fracassos 
do  próximo.  ''Nao  se  alegra  com  a  injustica",  nunca  se  re- 
gozija  quando  os  outros  váo  mal,  á  maneira  de  uma  desforra. 
Nao  fica  satisfeito,  lá  no  seu  íntimo,  com  as  fraquezas  mo- 
ráis, com  as  maldades  ocultas  de  um  rival;  nao  tem  interésse 
em  espalhar  más  noticias,  boatos  maliciosos;  nao  se  gloria 
com  a  prevaléncia  do  mal. 

"Regozija-se  com  a  verdade".  Quando  a  verdade  triunfa, 
o  amor  compartilha  as  suas  alegrías.  Se  quiserem  ver  ai 
uma  referencia  á  verdade  do  evangelho,  entáo  é  fato  que  o 
amor  se  deleita  com  seu  progresso,  com  sua  afirmacáo  e  de- 
fesa.  Mas  se  aceitarmos  para  essa  "verdade"  outro  sentido 
mais  provável,  qual  seja  o  oposto  de  falsidade,  do  erro,  e  se 
considerarmos  justica  como  antónimo  de  iniquidade,  ainda 
assim  vibraremos  de  júbilo  com  a  vitória  do  amor.  O  amor 
exulta  quando  a  verdade  desbarata  a  calúnia,  quando  a  sus- 
peita  se  prova  infundada,  quando  o  prejuízo  e  o  mal  sao  des- 
feitos,  e  o  direito  prevalece.  "O  amor  alegra-se  com  o  bem". 

Sempre  está  pronto  a  excusar  os  outros  .  Cobre  com  um 
manto  de  boa  vontade  todas  as  faltas  do  próximo.  Tudo  ele 
"suporta".  "Tudo  eré",  acredita  que  tudo  é  bom.  Nutre 
confianca  até  para  com  os  suspeitos.  Capacita-nos  a  ter  fé 
no  próximo  e  dar  as  suas  atitudes  sempre  o  mais  alto  e  o 
melhor  sentido.  Essa  dem.onstracáo  de  confianca  multas 
vézes  traz  logo  sua  recompensa;  faz  que  até  nos  individuos 
mais  depravados  se  revelem  qualidades  boas,  virtudes  de 
cuja  existencia  ninguém  suspeitava  antes. 


120 


CHARLES  R.  ERDMAN 


Mas,  como  se  há  de  comportar  o  amor  nos  dias  maus, 
quando  se  perde  toda  a  confianza  nos  homens,  quando  aquilo 
que  antes  apenas  se  suspeitara  ruim,  agora  está  descoberto, 
agora  paténtela  toda  a  sua  maldade,  que  já  nao  se  pode 
encobrir  —  como  se  há  de  comportar  o  amor  em  siutagoes 
tais?  Mesmo  em  crises  desta  ordem  o  amor  nao  desespera. 
Se  nao  há  mais  esperanza  de  uma  justificagáo  para  o  mal 
cometido,  se  ele  é  notorio  e  indescuipável  —  o  amor  ainda 
tem  confianca,  ainda  é  impelido  a  acreditar  na  possibilidade 
de  uma  reforma,  numa  rehabilitagáo,  e  apela  para  mais  uma 
tentativa,  crendo  na  vitória  final.  Porque  "o  amor  tudo 
espera". 

E  "tudo  suporta",  sem  desanimar,  indefesso  até  ao  fim. 
Paciente,  nao  apenas  por  alguns  momentos,  mas  por  longos 
dias,  durante  anos  a  fio,  quando  a  esperanza  vai  vendo  sem- 
pre  adiado  aquilo  que  espera,  ele,  o  amor,  nao  se  cansa  ja- 
máis. Sob  o  fardo  pesado  de  uma  prolongada  dem_ora  ele 
se  firma  e  sustenta,  sempre  esperando,  com  bravura  perse- 
verando e  corajosamente  suportando. 

Sao  estas,  entáo,  algumas  das  manif estagoes  da  virtude 
que  conhecemos  sob  a  denominagáo  de  amor.  É  difícil  de 
ser  imitada,  falsificada,  ou  escondida.  É  mais  desejável  que 
todos  os  dons,  ainda  que  estes  se  apresentem  com  o  encanto 
das  maravilhas,  com  a  seriedade  dos  mistérios,  e  com  a  au- 
réola dos  milagres.  Mais  do  que  estes,  a  operag^o  do  amor 
contribuí  para  a  unidade  e  edificagáo  da  Igreja  de  Cristo. 
Sob  o  seu  completo  dominio  a  vida  mais  obscura  torna-se 
um  trepidante  manancial  de  fórga,  a  prestar  servigos  e  a 
promover  concordia.  Pela  fórga  do  amor  imperando  vito- 
rioso  nos  coragoes,  Jesús  Cristo,  ai  entronizado,  fará  que  o 
mundo,  aflito  e  em  expectagáo,  alcance  a  idade  de  ouro  e  de 
gloria  para  a  qual  está  destinado. 


c.  A  perenidade  do  Amor.  Cap.  13:8-13. 

8  O  amor  jamáis  acaba;  mas,  havendo  profecías, 
seráo  aniquiladas;  havendo  línguas,  cessaráo;  havendo 
ciencia,  passará;  9  porque  em  parte  conhecemos,  e  em 
parte  profetizamos.  10  Quando,  porém,  vier  o  que  é 
perfeito,  entáo  o  que  é  em  parte  será  aniquilado.  11 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  121 


Quando  eu  era  menino,  falava  como  menino,  sentía 
como  menino,  pensava  com  menino;  quando  cheguei 
a  ser  homem,  desistí  das  coisas  próprias  de  menino. 

12  Porque  agora  vemos  como  em  espélho,  obscura- 
mente, entáo  veremos  face  a  face;  agora  conhe^o  em 
parte,  entáo  conhecerei  como  também  sou  conhecido. 

13  Agora,  pois,  permanecem  a  fé,  a  esperanza  e  o 
amor,  estes  tres:  porém  o  maior  déstes  é  o  amor. 

O  amor  é  imorredouro.  Contrastando  com  os  dons  e 
talentos,  que  tém  seu  lugar  e  sua  finalidade  no  tempo  apenas, 
o  amor  é  uma  virtude  que  por  toda  a  eternidade  continuará 
manifestando  seu  glorioso  poder.  Paulo  continua  tecendo- 
Ihe  louvores  e  tem  agora  oportunidade  de  contrastá-lo,  de 
maneira  definida  com  os  dons  de  profecías  de  línguas  e  da 
ciencia,  outorgados  que  foram  para  fortalecimento  e  orien- 
tagáo  da  Igreja  dos  corintios. 

No  exercício  désses  dons  nao  se  dispensa  o  amor,  mos- 
trou-o  Paulo,  e  mais:  a  posse  dos  mesmos  deve  dar  ótima 
oportunidade  a  espléndidas  manifestagoes  do  amor.  Entoa 
agora  nova  estrofe  do  Hiño.  Canta  o  apostólo  que  esta  vir- 
tude perdurará  depois  que  todos  ésses  dons  virem  passar 
sua  oportunidade.  "O  amor  jamáis  acaba;  mas,  havendo  pro- 
fecías, seráo  aniquiladas;  havendo  línguas,  cessarao;  haven- 
do ciencia,  passará". 

''Seráo  aniquiladas".  Concedamos  que  os  dons  espiri- 
tuais,  outorgados  á  Igreja  dos  corintios,  limitaram-se  á  Era 
Apostólica.  Ainda  que  Paulo  nao  o  afirme  aqui,  essa  limita- 
gao  era  um  fato  provável.  Pelo  menos  é  certo  que  ésses  dons, 
exatamente  como  os  houve  em  Corinto,  nao  existem  mais. 
Contudo  o  contraste  que  Paulo  apresenta  nao  é  entre  os 
fatos  da  Era  Apostólica  e  os  do  tempo  presente,  senáo  entre 
os  do  presente,  considerado  de  um  modo  geral  e  incluindo, 
portanto,  a  idade  apostólica,  e  os  da  idade  futura  que  se  ini- 
ciará com  a  vinda  de  Cristo.  Os  dons  espirituais  foram  con- 
cedidos, na  melhor  hipótese,  apenas  para  uma  época  caracte- 
rizada por  sua  imperfeigáo,  época  preparatoria;  mas  o  amor, 
éste  há  de  continuar,  há  de  perdurar,  será  indispensável 
ainda  mesmo  "quando  vier  o  que  é  perfeito". 

Seja  no  tempo,  seja  na  eternidade,  o  amor  nao  deixará 
de  existir.  É  imperecível.  "Havendo  profecías,  seráo  aniqui- 
ladas" —  nao  porque  sejam  falsas  em  si  ou  nada  conformes 
com  a  verdade,  senáo  porque  já  teráo  sido  perfeitamente  rea- 


122 


CHARLES  R.  ERDMAN 


lizadas  e  porque,  na  era  vindoura,  nao  haverá  ocasiáo  nem 
necessidade  de  qualquer  dom  profético.  Mas  "o  amor  jamáis 
acaba". 

"Havendo  línguas,  cessaráo",  nao  porém  o  amor.  A  fina- 
lidade  do  ambicionadíssimo  dom  de  línguas  foi  apenas  pro- 
duzir  um  efeito  passageiro,  e  auxiliar  na  fundagáo  da 
Primitiva  Igreja.  Mas  sua  necessidade,  hoje,  passou,  e  cer- 
tamente,  no  porvir,  essa  capacidade  aparentemente  misteriosa 
de  proferir  discursos  ininteligíveis  nao  será  mais  desejada. 
Contudo,  "o  amor  jamáis  acaba". 

"Havendo  ciencia,  passará".  Como  e  por  que  passará, 
Paulo  o  diz  com  vivacidade  e  clareza:  ao  aparecimento  de 
Cristo,  o  que  agora  é  parcial  e  imperfeito  se  desvanecerá, 
inevitavelmente,  diante  do  perfeito  e  completo.  Toda  a  nossa 
ciencia,  mesmo  a  que  se  concedeu  aos  primitivos  cristáos, 
gragas  a  uma  especial  iluminacáo  de  seus  espíritos,  é  frag- 
mentária,  temporária,  provisoria:  "Ha vendo  ciencia,  passa- 
rá".  Mas  "o  amor  jamáis  acaba". 

Néste  ponto  o  inspirado  compositor  acrescenta  alguns 
versos  extras  a  esta  estrofe  do  seu  Hiño  ao  Amor.  Com  o  fim 
de  esclarecer  o  sentido  em  que  os  dons  temporários  se  desva- 
neceráo,  emprega  duas  comparacoes:  o  conhecimento  infan- 
til e  os  reflexos  de  um  espélho.  Como  sabe  todo  adulto  ajuí- 
zado,  a  percepgáo  limitada  que  as  criangas  revelam  das 
coisas,  no  devido  tempo  cederá  lugar  á  compreensáo  mais 
perfeita  da  idade  madura:  "Quando  eu  era  menino,  falava 
como  menino,  sentia  como  menino,  pensava  como  menino; 
quando  cheguei  a  ser  homem,  desistí  das  coisas  próprias  de 
menino".  O  ser  humano  normal  cresce,  progride,  desenvolve- 
-se.  A  mudanga  que  ésse  desenvolvimento  acarreta,  seia  nos 
modos  de  falar,  se  ja  ñas  íntimas  disposigoes,  se  ja  na  menta- 
lidade  —  transformagoes  estas  que  o  apostólo  mesmo  expe- 
rimentou  quando  se  foi  tornando  homem  —  é  um  retrato 
vivo  da  transitoriedade  dos  conhecimentos  imperfeitos  que 
hoje  temos  das  coisas,  os  quais  iráo  crescendo  até  atingirem 
o  grau  da  perfeita  madureza,  o  que  se  verificará  nésse  dia 
alegre  da  revelagáo  de  Cristo  em  sua  gloria.  Entáo,  nossos 
olhos  se  abriráo  para  ver  aquilo  que  é  permanente  e  eterno. 
O  que  é  do  tempo  cessará  de  existir,  mas  "o  amor  jamáis 
acaba". 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  123 


Quem  náo  percebe  o  significado  da  segunda  comparacáo? 
A  imagem  de  um  rosto  amigo  refletida  num  espélho  para  nós 
é  imperfeita  e  nao  nos  satisfaz  de  modo  algum;  o  que  quere- 
mos é  vé-lo  face  a  face,  queremos  désse  rosto  ter  urna  visáo 
imediata  e  perfeita!  "Agora  vemos  como  em  espélho,  obs- 
curamente, entáo  veremos  face  a  face".  Enquanto  a  situacáo 
fór  a  atual,  só  poderá  ser  indireta,  um  tanto  imprecisa,  a 
apreensáo  das  realidades  divinas.  Esquemas  falhos,  impres- 
soes  foscas,  vagas,  sombreadas,  reflexos  torcidos  ou  defor- 
mados —  tudo  isso  contrasta  vividamente  com  aquela  in- 
tuigáo  direta,  aquéle  conhecimento  instantáneo  e  perfeito 
que  haveremos  de  ter  e  gozar  na  gloria  futura! 

Com  referencia  a  espelhos  e  seus  defeitos,  Corinto  os 
conhecia.  De  fato,  cidade  antiga,  era  afamada  por  seus  es- 
pelhos feitos  de  metal  polido,  muito  aperfeicoados  para  aquela 
época.  Nao  obstante,  por  mais  fiéis  que  fóssem  as  imagens 
por  éles  refletidas,  nao  chegávam  a  ser  nítidas,  eram  som- 
breadas, em  comparagáo  com  a  visáo  direta  dos  objetos. 
Assim,  o  conhecimento  que  temos  atualmente  de  Deus  é  de 
igual  modo  obscuro,  mercé  dos  mistérios  que  topamos  a  cada 
passo.  Hoje  vemos  "obscuramente",  como  através  de  quebra- 
-cabega  ou  enigma;  logo  mais,  porém,  veremos  o  Senhor  ime- 
diatamente,  sem  a  interferencia  de  meios,  assim  como  Éle  nos 
vé  agora.  É  verdade  que  jamáis  o  conhecimento  que  dÉle 
tivermos  será  completo  como  o  seu,  mas  será  conhecimento 
direto,  sem  mais  a  interferéncia  de  nada,  tal  qual  o  seu  a 
nosso  respeito.  Hoje,  o  conhecimento  que  temos  de  Deus 
contrasta  com  o  que  Éle  tem  de  nós,  mas  um  dia  será  digno 
de  comparar-se  com  o  conhecimento  que  tem  atualmente  de 
nós:  "Agora  conhego  em  parte,  entáo  conhecerei  como  tam- 
bém  sou  conhecido".  O  conhecimento  de  hoje,  parcial,  pas- 
sará  um  dia,  mas  "o  amor  jamáis  acaba". 

Por  ser  incompleto  e  parcial  ésse  conhecimento,  nao 
vamos  cair  no  érro  fatal  de,  por  isso,  julgá-lo  engañoso  ou 
váo  ou  inútil.  Posto  que  imperfeito,  diz  respeito  a  grandes 
realidades  que  sáo  objeto  de  nossa  fé  e  fundamento  de 
nossas  eternas  esperangas.  Por  ser  imperfeito  nao  é  que  nos 
possa  engañar.  Aquilo  que  Deus  nos  concede  deve  ser  rece- 
bido  com  gratidáo,  desenvolvido  continuamente  e  usado  com 
sabedoria.  Viver  k  meia-luz  désse  pouco  recebido  é  a  única 
condigáo  de  se  ficar  preparado  para  receber  mais  ampios 


124 


CHARLES  R.  ERDMAN 


conhecimentos  e  mais  claras  visoes  do  pleno  dia  celestial. 
Para  as  nossas  presentes  necessidades  é  suficiente. 

E  ainda:  táo  imperfeitos  sao  nossos  conhecimentos  atuais 
que  nunca  se  deveráo  tornar  motivo  de  tola  ufania,  de  pre- 
sumida superioridade,  de  orgulho,  de  contenda.  Com  todas 
as  suas  limitacoes  e  imperfeigoes,  nao  devem  nunca  dar  lugar 
a  ciúmes,  vaidades,  divisóes  e  porfías.  Por  que  haveríamos 
de  nos  alegrar  tanto  com  elogios  a  ésses  dons  temporários, 
que  em  breve  desapareceráo?  Antes  cultivemos,  demonstre- 
mos essa  virtude  que  sobreviverá  ao  tempo,  que  torna  capazes 
seus  possuídores  para  o  mais  elevado  servigo  de  Deus. 

O  que  é  parcial  desaparecerá,  mas  o  que  é  perfeito  con- 
tinuará sempre  triunfante  em  sua  obra  —  "..o  amor  jamáis 
acaba". 

Com  justiga  tem-se  chamado  o  amor  "a  coisa  mais  im- 
portante desta  vida",  e  também  é  a  que  mais  resplandece 
na  gloria  do  céu.  Que  há  de  sobreviver  aos  dons  temporá- 
rios, afirmou-o  Paulo;  mas  agora  vai  dizer  que  o  amor  ultra- 
passa  em  importancia  as  virtudes  eternas.  Nao  supera  so- 
mente  as  coisas  perecíveis;  o  amor  tem  supremacía  entre 
aqueias  outras  que  permanecem.  Das  trés  virtudes  cardiais 
do  Cristianismo,  o  amor  é  e  sempre  será  a  principal.  "Agora 
permanecem  a  fé,  a  esperanga  e  o  amor,  estes  trés:  porém  o 
maior  déstes  é  o  amor".  Com  esta  nota  de  exultagáo  e  de 
plena  certeza  o  apostólo  atinge  o  ápice  do  arrebatamento, 
para  encerrar  o  seu  hiño  belíssimo. 

"O  maior  déstes ..."  —  em  que  é,  entáo,  que  consiste 
esta  supremacía?  Nao,  certamente,  por  ser  mais  durável  o 
amor  do  que  a  f é  e  a  esperanca.  Algumas  pessoas  que  tém 
estudado  éste  Hiño  entendem  que  o  advérbio  "agora",  usa- 
do néste  último  versículo,  quer  dizer  que  na  era  atual  per- 
manecem a  fé,  a  esperanga  e  o  amor,  mas  na  era  futura  a 
fé  e  a  esperanga  deixaráo  de  existir,  ficando  só  o  amor. 
Multo  pelo  contrário,  Paulo  afirma  que  os  trés  váo  perma- 
necer, mas  o  amor,  entre  éles,  terá  preeminéncia.  Por  que 
é  preeminente  o  amor,  Paulo  nao  se  detem  a  explicar.  No 
comégo  do  hiño  sugeriu  uma  razáo:  a  fé  sem  o  amor  é  im- 
perfeita  —  nao  passa  de  um  assentimento  frió  do  intelecto, 
uma  submissáo  passiva  da  vontade,  e  carece  do  calor  da  de- 
vogáo  de  que  o  coragáo  é  capaz.    A  esperanga  sem  o  amor 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  125 


será  egocéntrica,  será  impura.  Mas  a  verdadeira  fé  e  a  le- 
gítima esperanga  completam-se  no  amor,  verdadeiro  e  per- 
feito.  O  amor  é  o  fim  último  délas  duas,  sua  *realizagáo 
plena,  seu  alvo  mais  alto,  sua  meta  final.  É  o  mais  abengoado 
fruto  da  fé  e  o  maior  bem  antecipado  pela  esperanga. 

Acresce  que,  contrastando  com  a  fé  e  a  esperanga,  o  amor 
tem  um  lado  que  se  inclina  para  o  que  é  humano.  A  fé  nos 
poe  em  justas  relagoes  com  Deus;  a  esperanga  nos  coloca 
numa  atitude  correta  para  com  o  futuro;  mas  o  amor  faz-nos 
entrar  em  relagoes  perfeitas  com  os  nossos  semelhantes.  Tem 
seu  valor  na  vida  particular  de  cada  um,  mas  também  apro- 
veita  á  coletividade,  fortalece  a  Igreja,  faz  raiar  luz  e  ale- 
gría para  a  térra  inteira.  Verdadeiramente  o  amor  é  o  que 
de  maior  existe  no  mundo. 

Que  necessidade  haverá  de  procurar  outras  explicagoes 
para  a  supremacía  do  amor,  se  basta  saber  que,  sobre  todas 
as  coisas,  o  amor  participa  da  própria  natureza  de  Deus? 
A  fé,  a  esperanga  e  o  amor  sao  todos  imortais,  mas  o  amor 
é  divino.  A  fé  e  a  esperanga  ajustam  nossas  relagoes  com 
Deus,  mas  o  amor  é  da  própria  esséncia  da  divindade.  Deus 
nao  eré,  Deus  nao  espera,  mas  Éle  ama.  O  amor  é  supremo 
por  uma  única  razáo,  a  seguinte:   "Deus  é  Amor". 

Em  conhecermos  Deus,  em  reconhecermos  seu  amor  por 
nós  é  que  se  origina  e  se  firma  o  amor  que  a  Éle  dedicamos 
e  ao  nosso  próximo.  "Amamos  porque  Éle  nos  amou  pri- 
meiro".  Aqueles  que  continuamente  estudam  e  pesquisam 
o  amor,  para  Ihe  descobrirem  as  origens,  a  natureza  e  as 
manifestagoes,  esta  preciosa  sentenga  da  Primeira  Epístola 
de  Joáo  fornece  a  pista  que  leva  ao  desejado  fim.  O  próprio 
Deus  nos  chama  para  que  empreendamos  essa  pesquisa  e 
fagamos  essa  descoberta.  Éste  incomparável  hiño  que  ai  te- 
mos, da  autoría  de  Paulo,  nao  foi  escrito  apenas  para  deleitar 
os  que  apreciam  o  belo,  nem  para  censurar  nossa  vida  vazia 
de  amor,  nem  aínda  para  despertar  em  nós  qualquer  senti- 
mentalismo ou  pieguice  em  face  desta  virtude  crista  que  é 
o  amor.  Nada  disto,  mas  foi  escrito  para  nos  incitar  á  agáo, 
imediata  e  constante.  A  conclusáo  inevitável  a  que  chegamos 
com  o  estudo  déste  Hiño  é  que  devemos  procurar  o  amor, 
com  urgencia  e  sem  esmorecimentos,  e  andar  néle,  na  cer- 
teza de  que  é  "um  caminho  sobremodo  excelente". 


126 


CHARLES  R.  ERDMAN 


Tornemos  a  pesquisá-lo.  Nenhum  busca  ou  inquirigáo, 
nenhuma  aventura  a  que  o  homem  se  lance  em  toda  a  sua 
vida  será  mais  nobre,  de  maior  valor,  mais  compensadora  do 
que  esta.  Porque  no  tempo  como  na  eternidade  nao  haverá 
nada  assim  grandioso,  nem  melhor,  nem  mais  refulgente  do 
que  o  amor. 


3.  Os  Valores  Comparados  e  o  devido  emprégo  dos  Dons 
Cap.  14. 

O  dom  de  línguas  é  ambicionado,  e  defendida  a  sua  legi- 
timidade,  por  muitos  cristáos  da  atualidade.  Se  essas  línguas 
sao  reais,  se  o  respectivo  dom  é  legítimo  e  outorgado  por 
Deus,  isso  é  uma  questáo  de  fato  que  precisa  de  ser  resol- 
vida  com  provas.  A  maior  parte  das  pessoas,  porém,  está 
convencida  de  que  nunca  houve  prova  bastante  de  ser  o  fe- 
nómeno em  aprégo  a  manifestagáo  de  um  verdadeiro  dom. 
Créem  que  se  trata  antes  de  uma  forma  de  histeria,  de  uma 
experiencia  que  engaña  pelas  aparéncias.  Em  qualquer  caso, 
é  bom  lembrar  que  Paulo  considera  as  línguas  pelo  menos 
como  o  último  dos  dons  do  Espirito  a  serem  desejados.  E 
viu  a  necessidade  de  advertir  os  cristáos  corintios  contra  o 
abuso  do  mesmo  e  o  aprégo  exagerado  em  que  o  tinham. 

O  que  parece  é  que  o  dom  em  lide  nao  era  idéntico  ao 
que  se  manifestou  no  Dia  de  Pentecostés,  pois  o  que  houve 
naquela  ocasiáo  foi  a  capacidade  de  falar  línguas  estran- 
geiras,  Hnguas  vivas  e  conhecidas  no  mundo,  e  por  isso 
mesmo  foram  compreendidas  pelos  que  as  ouviram.  Mas  o 
dom  de  que  Paulo  trata  agora  manifestava-se,  sob  a  influen- 
cia de  um  éxtase,  na  prolagáo  de  sons  que  eram  enten- 
didos, nem  pela  pessoa  que  falava,  nem  pelos  que  a  ouviam, 
a  nao  ser  que  um  dos  presentes,  que  possuísse  o  dom  de 
interpretagáo,  traduzisse  aqueles  discursos.  Quem  daquéle 
modo  falava,  fazia-o  para  Deus.  Dominado  por  emogáo  pro- 
funda, possivelmente  orava,  cantava  ou  dava  gragas  á  ma- 
neira  de  quem  pronunciava  palavras,  mas  sem  que  ele  mesmo 
entendesse  o  que  dizia. 

íntimamente  relacionado  com  ésse  dom,  havia  o  outro 
de  profecía.  Em  ambos  os  casos  quem  falava  era  movido  pelo 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


127 


Espirito  Santo,  mas  o  profeta  se  dirigía  ao  povo,  fazendo  urna 
revelagáo.  Transmitía  a  todos  uma  mensagem  que  Deus  Ihe 
segredara  ao  coragáo.  A  predicáo  de  acontecimentos  nao  era 
parte  essencial  de  seu  ministério.  Podía  fazer  e  deixar  de 
fazer  parte  de  suas  mensagens.  Mas  tudo  quanto  dizia  era 
em  linguagem  clara,  por  todos  compreendia.  O  apostólo  vai 
mostrar  agora  que  o  dom  de  profetizar  é  muito  superior  ao 
de  línguas,  e  dá  instrucoes  sobre  o  exercício  de  ambos. 

Estas  instrucoes  baseiam-se  nos  fatos  apresentados  nos 
dois  caps,  precedentes.  O  primeiro  déles  mostrou  que  todos 
os  dons  foram  destinados  á  edificagáo  da  Igreja;  o  segundo, 
que  todos  os  dons  devem  ser  exercídos  sob  a  influencia  do 
amor.  A  finalidade  déste  cap.  14  é  mostrar  que  o  amor  ao 
próximo  há  de  influir  na  escolha  de  um  dom  que  mais^con- 
tribua  para  a  edificacáo,  e  éste  é  o  de  profecía,  de  preferéncía 
ao  de  língua,  e  que  o  amor  há  de  inspirar,  igualmente,  u'a 
maneira  própría  e  decente  de  empregar  tanto  um  como  o 
outro. 


a.  Profetizar  é  preferível  a  falar  Línguas.  Cap.  14:1-25. 

1  Seguí  o  amor,  e  procura!  com  zélo  os  dons  espiri- 
tuais,  mas  princijpalmente  que  profetizeis.  2  Pois  quem 
fala  em  outira  língua,  nao  fala  a  homens,  senáo  a 
Deus,  visto  que  ninguém  o  entende,  e  em  espirito  fala 
mistéríos.  3  Mas  o  que  profetiza,  fala  aos  homens,  edi- 
ficando, exortando  e  consolando.  4  O  que  fala  em  ou- 
tra  língua  a  si  mesmo  se  edifica,  mas  o  que  profetiza 
edifica  a  igreja.  5  Eu  quisera  que  vos  todos  falásseis  em 
outras  línguas;  muito  maís,  porém,  que  profetizásseis; 
pois  quem  profetiza  é  superior  ao  que  fala  em  outras 
línguas,  salvo  se  as  interpretar  para  que  a  igreja  re- 
ceba edificacáo.  6  Agora,  porém,  irmáos,  se  eu  fór  ter 
convosco  falando  em  outras  línguas,  em  que  vos  apro- 
veitarei,  se  vos  nao  falar  por  meio  de  revelagáo,  ou  de 
ciencia,  ou  de  profecía,  ou  de  doutrina?  7  É  assim  que 
instrumentos  inanimados,  como  a  flauta,  ou  a  cítara, 
quando  emitem  sons,  se  nao  os  derem  bem  distintos, 
como  se  reconhecerá  o  que  se  toca  na  flauta,  ou  cítara? 
8  Pois  também  se  a  trombeta  der  som  incerto,  quem 
se  preparará  para  a  batalha?  9  Assim  vos,  se,  com  a 
língua,  nao  disserdes  palavra  compreensível,  como  s« 
entenderá  o  que  dizeis?  porque  estaréis  como  se  falás- 
seis ao  ar.  10  Há  sem  dúvida,  muitos  tipos  de  vozes  no 
mundo,  nenhum  déles,  contudo,  sem  sentido.  11  Se  eu, 


128 


CHARLES  R.  ERDMAN 


pois,  ignorar  a  significagáo  da  voz,  serei  estrangeiro 
para  aquéle  que  fala;  e  éle,  estrangeiro  para  mim.  12 
Assim  também  vos,  posto  que  desejais  com  ardor  dons 
espirituais,  procurai  progredir,  para  a  edificaeao  da 
igreja.  13  Pelo  que,  o  que  fala  em  outra  lingua,  ore 
para  que  a  possa  interpretar.  14  Porque,  se  eu  orar  em 
outra  lingua,  o  meu  espirito  ora  de  fato,  mas  a  minha 
mente  fica  infrutífera.  15  Que  farei,  pois?  Orarei  com 
o  espirito,  mas  também  orarei  com  a  mente;  cantarei 
com  o  espirito,  mas  também  cantarei  com  a  mente.  16 
E  se  tu  bendísseres  apenas  em  espirito,  como  dirá  o  in- 
douto  o  amém  depois  da  tua  acáo  de  grabas?  visto  que 
nao  entende  o  que  dizes;  17  porque  tu  de  fato  dás 
bem  as  grabas,  mas  o  outro  nao  é  edificado.  18  Dou 
gracas  a  Deus,  porque  falo  em  outras  linguas  mais  do 
que  todos  vós.  19  Contudo,  prefiro  falar  na  igreja 
cinco  palavras  com  o  meu  entendimento,  para  instruir 
outros,  a  falar  dez  mil  palavras  em  outra  lingua.  20 
Irmáos,  nao  sejais  meninos  no  juízo;  na  malicia,  sim, 
sede  crianzas;  quanto  ao  juízo,  sede  homens  amadure- 
cidos.  21  Na  lei  está  escrito:  Falarei  a  éste  povo  por 
homens  de  outras  linguas  e  por  lábios  de  outros  povos, 
e  nem  assim  me  ouviráo,  diz  o  Senhor.  22  De  sorte 
que  as  linguas  constituem  um  sinal,  nao  para  os  eren- 
tes,  mas  para  os  incrédulos;  mas  a  profecía  nao  é  para 
os  incrédulos,  e,  sim,  para  os  que  créem.  23  Se,  pois, 
toda  a  igreja  se  reunir  no  mesmo  lugar,  e  todos  se 
puserem  a  falar  em  outras  linguas,  no  caso  de  entra- 
rem  indoutos  ou  incrédulos,  nao  diráo  porventura  que 
estáis  loucos?  24  Porém,  se  todos  profetizarem,  e  en- 
trar algum  incrédulo,  ou  indouto,  é  éle  por  todos  con- 
vencido, e  por  todos  julgado;  25  tornam-se-lhe  rna- 
nifestos  os  segredos  do  coragáo,  e,  assim  prostrando-se 
com  a  face  em  térra,  adorará  a  Deus,  testemunñando 
que  Deus  está  de  fato  no  meio  de  vós. 

Duas  razoes  Paulo  apresenta  da  necessidade  de  o  amor 
inspirar  a  escoiha  do  dom  de  profecia,  antes  que  o  de  linguas. 
A  primeira  é  a  consideragáo  que  se  deve  ter  aos  irmáos,  vs. 
1-19;  a  segunda  é  o  deseio  de  que  os  incrédulos  se  convertam, 
vs.  20-25. 

"Diligenciai  seguir  éste  Caminho  do  Amor  que  vos  acabo 
de  indicar",  diz  éle.  "O  resultado  será  dése j ardes  mais  e 
mais  os  dons  do  Espirito,  particularmente  o  de  profetizar, 
de  preferencia  ao  de  linguas,  e  isto  porque  a  profecia  edifica 
a  todos,  ao  passo  que  o  de  linguas  só  aproveita  a  quem  fala. 
Quem  se  externa  em  lingua  desconhecida,  é  a  Deus  que  fala, 
e  nao  aos  homens.    Ninguém  o  compreende,  embora,  em 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


129 


seu  espirito,  fale  segredos  que  da  parte  de  Deus  Ihe  foram 
revelados.  Mas  o  que  profetiza,  fala  para  edificacáo,  anima- 
gao  e  conforto  de  todos.  Aquéle  pode  beneficiar-se,  mas  éste 
edifica  a  Igreja.  Ora,  eu  gostaria  que  todos  vós  falásseis 
em  línguas,  porém  muito  mais  estimaria  que  todos  profe- 
tizásseis.  Éste  último  dom  de  profecia  é,  portan to,  o  preferí- 
vel,  a  nao  ser  que  a  pessoa  que  fale  em  línguas  se  ja  capaz 
de  interpretar  o  que  diz  para  proveito  espiritual  da  Igreja. 
Que  vantagem  haveria  se  eu  vos  falasse  debaixo  da  influen- 
cia de  um  éxtase,  se  ao  mesmo  tempo  nao  juntasse  ao  meu 
discurso  alguma  palavra  de  sentido  claro,  palavra  de  reve- 
lagáo,  de  ciencia,  de  profecia  ou  de  doutrina?"  Vs.  1-6. 

Como  ilustragáo  da  inutilidade  das  línguas  que  nao  se 
interpretam,  Paulo  emprega  duas  comparagoes,  uma  de  ins- 
trumentos musicais,  e  a  outra  da  linguagem  humana:  "Se, 
por  exemplo,  numa  orquestra  os  instrumentos  nao  emitirem 
sons  distintos,  notas  afinadas,  como  se  saberá  o  que  é  que  se 
toca?  Assim,  se  a  trombeta  nao  der  som  claro  de  se  com- 
preender,  quem  se  aprestará  para  a  batalha?  Do  mesmo  mo- 
do, as  vossas  falas  espirituais  seráo  de  nenhum  proveito  se 
nao  forem  claras  e  inteligíveis.  O  mesmo  se  diga  dos  idio- 
mas: cada  qual  tem  seu  sentido,  mas  se  alguém  nao  entende 
a  língua  em  que  Ihe  falam,  nenhuma  idéia  colhe  do  que 
ouve.  Portanto,  se  apreciáis  e  cultiváis  os  dons  espirituais, 
julgai-os  do  ponto  de  vista  de  sua  utilidade  e  do  auxilio  que 
podem  prestar".  Vs.  7-12. 

Insta  o  apostólo  para  que,  se  alguém  fala  em  determina- 
da língua,  ore  pedindo  o  dom  da  interpretacáo.  Poe  em 
relevo  a  superioridade  do  culto  inteligente  sobre  o  que  é  me- 
ramente emocional.  E  afirma  que  se  ele  ora  em  língua  des- 
conhecida,  seu  espirito  fica  inativo,  porque  nao  acompanha 
o  que  diz,  preferindo  ele  orar  e  louvar  a  Deus  com  o  pensa- 
mento  a  sentir  meras  emogóes.  "Se  a  oragáo  é  fervorosa,  ex- 
citada e  nao  inteligível,  como  pode  o  incapaz  de  Ihe  inter- 
pretar o  sentido  fazé-la  sua  dizendo  Amém  á  vossa  agáo  de 
gragas?  Se  é  sincero  tal  culto,  nao  aproveita  aos  ouvintes. 
Nao  subestimo  o  dom  de  línguas,  porque  eu  mesmo  o  possuo 
no  mais  alto  grau.  Todavía,  ñas  reunioes  da  Igreja  prefiro 
falar  cinco  palavras  e  ser  entendido  pelos  outros  e  assim 
instruí-los,  a  falar  dea  mil  e  nao  ser  compreendido".  Vs.  13-19. 

Havia  algo  de  infantilidade  no  prazer  que  os  corintios 
sentiam  quando  estavam  naquéles  arroubos  linguareiros  e 


130 


CHARLES  R.  ERDMAN 


ininteligíveis.  Oxalá  fóssem  meras  criancas  com  relagáo  ao 
conhecimento  e  á  experiencia  do  mal;  no  espirito,  na  ca- 
pacidade  de  fazer  distincáo  entre  o  útil  e  o  inútil,  íossem 
adultos. 

Que  vantagem  havia  naquéles  palavrórios  extáticos?  Nao 
edificavam  os  crentes,  nem  levavam  nenhum  incrédulo  á 
conversáo.   Esta  segunda  razáo  da  inferioñdade  das  línguas,  ] 
comparadas  com  a  profecía,  é  frisada  por  uma  citacáo  do 
Antigo  Testamento.   Quando  os  israelitas,  dados  ao  vicio  da  ' 
embriaguez,  zombaram  da  mensagem  simples  de  Deus  trans-  ! 
mitida  por  Isaías,  considerando-a  apropriada  sómente  para 
criangas,  o  profeta  advertiu-os  que  o  Senhor  Ihes  falaria  de 
outra  maneira.   Dar-lhes-ia  uma  licáo  pelos  labios  dos  inva- 
sores e  conquistadores  assirios.    A  linguagem  déstes  expres- 
saria  a  condenacáo  de  Judá.  Deus  falaria,  entáo,  retribuindo 
á  maldade  de  seu  povo,  numa  língua  estranha  e  de  estran- 
geiros,  nao  para  Ihe  despertar  a  fé,  senáo  para  Ihes  con- 
firmar e  consumar  a  incredulidade. 

De  igual  modo,  o  dom  de  línguas  tinha  o  mesmo  designio 
fatídico  relativamente  aos  que  rejeitavam  o  simples  evange- 
Iho  de  Cristo.  Nao  se  destinava  a  conduzí-los  ao  arrependi-  | 
mentó,  antes  confirmava-os  na  incredulidade,  com  o  que  éles 
tinham  de  assentir.  Ésse  fenómeno  evocava  expressoes  do 
desprézo  déles  votado  á  Igreja  e  as  suas  mensagens.  A  pro- 
fecía, entretanto,  destinava-se  a  reacender  os  ánimos  e  a 
fortalecer  a  fé.  Vs.  20-23. 

Ainda  para  ilustrar  essa  inferioridade  do  dom  de  línguas, 
Paulo  figura  uma  reuniáo  da  Igreja,  quando  todos  os  miem- 
bros a  um  só  tempo  falassem  línguas.  Suponha-se  entáo 
que  um  individuo  entrasse  pela  primeira  vez  alí,  sem  co- 
nhecer  nada  de  cristianismo,  ou  alguém  que  se  obstinasse 
no  erro,  náo  querendo  aceitar  a  verdade.  Qual  seria  a  im- 
pressao  recebida?  Náo  haveria  de  pensar  que  entrara  sem 
o  saber  numa  roda  de  doidos?  Se  o  dom  de  línguas  fósse  o 
mais  importante  que  um  crente  pudesse  exercer,  s^undo  o 
parecer  dos  corintios,  podia  o  seu  exercício,  por  todos  os 
crentes,  redundar  em  um  desastre  desta  ordem?  Por  outro 
lado,  suponha-se  que  todos  na  reuniáo  estivessem  profeti- 
zando, quando  entrasse  o  incrédulo  ou  alguém  que  náo  pos- 
suísse  qualquer  dom.  Qual  o  resultado?  Todos  o  levariam  a 
convencer-se  da  verdade,  todos  Ihe  esquadrinhariam  os  sen- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  131 


timentos,  os  segredos  de  seu  coragáo  se  revelariam,  e  ele  cai- 
ria  sobre  o  seu  rosto  e  adoraría  a  Deus,  dizendo:  "Na  ver- 
dade,  o  Senhor  está  no  meio  de  vós". 

Por  conseguinte,  o  dom  de  profetizar  é  superior  ao  de 
línguas,  nao  sómente  porque,  como  já  foi  dito,  edifica  a 
igreja  e  interessa  a  razáo,  ao  invés  de  só  provocar  emocoes, 
mas  também  porque,  como  agora  se  acabou  de  ilustrar,  pode 
ser  exercido  com  seguranga  por  toda  a  igreja,  e  por  causa 
de  resultar  na  conversáo  de  incrédulos. 

Aplicando  estes  principios  as  condigoes  atuais,  ninguém 
se  sentirá  impulsionado  a  dése  jar  nem  o  dom  de  profetizar, 
nem  o  de  línguas,  mas  a  procurar  um  conhecimento  mais 
nítido  da  relativa  importancia  das  emocoes  e  do  raciocinio 
na  vida  e  no  servico  cristáo.  É  possívei  haver  muito  fervor 
e  excitamento  religioso  em  alguns,  nao  em  muitos,  ajunta- 
mentos  de  cristáos.  A  maioria  das  igrejas  precisa  orar  fer- 
ventemente  por  um  novo  movimento  e  nova  orientagáo  do 
Espirito  Santo,  para  que  os  que  adoram  a  Deus  conhecam 
algo  da  paixáo,  do  gozo,  do  arrebatamento,  da  exultagáo,  da 
esperanga  triunfante  que  comumente  eram  experimentados 
pelos  primitivos  cristáos,  até  mesmo  em  Corinto. 

Por  outra  parte,  se  os  pecadores  tém  de  ser  conquistados 
para  Cristo,  o  apelo  aprecisa  ser  feito  nao  só  as  emocoes, 
como  igualmente  ao  intelecto.  Nada  de  desejar  línguas  que 
ninguém  entenda;  nada  de  procurar  revelagoes  prof éticas 
de  verdades  que  nao  se  achem  ñas  Escrituras.  O  que  deve 
haver  é  uma  solicitude  persistente  por  novas  visoes  de  Cristo 
e  de  sua  graga,  e  oragoes  incessantes  no  sentido  de  o  Espirito 
Santo  capacitar  para  o  ministério  evangélico  homens  de  zélo 
e  paixáo  apostólica,  cujas  mensagens  sejam  táo  simples  que 
o  menos  douto  as  compreenda,  todavía  táo  convincentes,  táo 
sábias,  táo  lógicas  e  táo  inteligentes  que  ínter essem  os  mais 
cultos  e  os  mais  bem  informados. 


b.  Regras  para  o  exercício  dos  Dons.  Cap.  14:26-40. 

26  Que  pois  fazer,  irmáos?  Quando  vos  reunís,  um 
tem  salmo,  outiro  doutrina,  éste  traz  revela^áo,  aquéle 
outra  língua,  e  aínda  outro  interpreta^áo.  Seja  tudo 
feito  para  edificacáo.  27  No  caso  de  alguém  falar  em 


132 


CHARLES  R.  ERDMAN 


outra  lingua,  que  nao  sejam  mais  do  que  dois  ou  quan- 
do  muito  tres,  e  isto  sucessivamente,  e  haja  quem  in- 
terprete. 28  Mas,  nao  havendo  intérprete,  fique  calado 
na  igreja,  falando  consigo  mesmo  e  com  Deus  29  Tra- 
tando-se  de  profetas,  falem  apenas  dois  ou  tres,  e  os 
outros  julguem.  30  Se,  porém,  vier  revelagáo  a  outrem 
que  esteja  assentado,  cale-se  o  primeiro.  31  Porque 
todos  podereis  profetizar,  um  após  outro,  para  todos 
aprenderem  e  serem  consolados.  32  Os  espíritos  dos 
profetas  estáo  su  jeitos  aos  próprios  profetas;  33  por- 
que Deus  nao  é  de  confusáo;  e,  sim,  de  paz.  Como  em 
todas  as  igrejas  dos  santos,  34  conservem-se  as  mulhe- 
res  caladas  ñas  igrejas,  porque  nao  Ihes  é  permitido 
falar;  mas  estejam  submissas  como  também  a  lei  o 
determina.  35  Se,  porém,  querem  aprender  alguma 
coisa,  interroguem,  em  casa,  a  seus  próprios  maridos; 
porque  para  a  mulher  é  indecoroso  falar  na  igreja.  36 
Porventura  a  palavra  de  Deus  se  originou  no  meio  de 
vos,  ou  veio  ela  exclusivamente  para  vós?  37  Se  alguém 
se  considera  profeta,  ou  espiritual,  reconhe?a  ser 
mandamento  do  Senhor  o  que  vos  escrevo.  38  E  se 
alguém  o  ignorar,  será  ignorado.  39  Portanto,  meus 
irmáos,  procurai  com  zélo  o  dom  de  profetizar,  e  nao 
proibais  o  falar  em  outras  linguas.  40  Tudo,  porém,  se- 
ja  feito  com  decencia  e  ordem. 

Paulo  dá  a  entender  que  o  principio  que  determina  o  va- 
lor relativo  do  dom  de  profecía  e  o  de  linguas  deve  ser  apli- 
cado na  justa  avaliacáo  de  todos  os  outros.  Trata-se  do 
principio  ou  regra  da  utilidade  e  da  edificagáo.  Os  dons 
mais  apreciados  devem  ser  justamente  os  mais  úteis  á  Igreja 
e  ao  próximo.  A  luz  déste  principio  Paulo  agora  oferece 
algumas  instrugoes  práticas  relativas  ao  emprégo  dos  dons 
espirituais  no  culto  público.  Refere-se  de  modo  especial,  pri- 
meiro ao  uso  de  linguas,  vs.  26-28,  depois  ao  exercício  da  pro- 
fecía, vs.  29-36,  para  terminar  mencionando  a  autoridade  que 
tem  para  dar  essas  normas  reguladoras  do  exercício  de  todos 
os  dons,  vs.  37-40. 

Estas  instrugoes  especiáis  sao  necessárias  á  vista  da  pro- 
fusáo  de  dons  existentes  na  igreja  de  Corinto.  Suas  reunioes 
podiam  degenerar  em  desordem  e  confusáo,  o  que  seria  um 
perigo.  Quando  reunidos,  cada  qual  ficava  ansioso  por  de- 
sempenhar  uma  parte  no  culto.  Éste  queria  entoar  um 
salmo  de  louvor,  outro  desejava  pregar  um  sermáo,  aquéle 
procurava  comunicar  uma  revelagáo,  aqueloutro,  em  transe, 
queria  prorromper  no  palavrório  de  uma  língua,  e  ainda  outro 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


133 


estava  ansioso  para  nao  perder  urna  oportunidade  de  inter- 
pretar qualquer  coisa.  E  todos  queriam  falar  ao  mesmo 
tempo,  inclusive  as  mulheres.    Era  urna  desordem  horrível. 

Do  pior  da  confusáo  eram  as  línguas  as  responsáveis,  e 
isto  porque  vários  membros,  exuberantes  de  entusiasmo,  que- 
riam ser  ouvidos  a  um  tempo  só.  Paulo,  pois,  precisa  repe- 
tir-lhes  a  sua  regra  fundamental  relativa  ao  emprégo  de  to- 
dos os  dons:  "Seja  tudo  feito  para  edificacáo".  Quanto  ao 
emprégo  de  línguas,  determina  que  apenas  tres  pessoas,  no 
máximo,  se  facam  ouvir  em  cada  culto.  Além  disso,  o  que 
se  disser  deverá  ser  explicado  á  congregacáo.  E  se  nao  houver 
intérprete  presente,  guardem  siléncio  os  capazes  de  falar  em 
línguas.    Calados  tenham  sua  própria  comunháo  com  Deus. 

Mesmo  que  se  trate  do  superior  dom  de  profetizar,  se- 
menté duas  ou  tres  pessoas  se  facam  ouvir  em  cada  culto. 
Se  outros  profetas  estiverem  presentes,  provem  sua  inspira- 
cao  julgando,  em  siléncio,  se  o  que  se  diz  procede  ou  nao  do 
Espirito  de  Deus. 

Se  enquanto  um  está  talando,  algum  outro,  que  nao  se 
espera  que  fale,  recebe  uma  revelacáo,  cale-se  o  primeiro, 
porque  se  cada  um  der,  assim,  preferéncia  a  outro,  todos 
poderáo  ser  ouvidos  e  todos  se  beneficiaráo.  Ninguém  deve 
alegar  que  está  sendo  impulsionado  por  Deus  e  que,  por  isso, 
nao  pode  resistir  ao  desejo  de  profetizar.  Éste  dom  de  pro- 
fecía está  sempre  sujeito  á  vontade  do  profeta.  Se  é  o  caso 
de  uma  verdadeira  inspiracáo  que  venha  de  Deus,  o  dom 
será  exercido  discretamente  e  com  amor  fraternal;  porque 
os  espíritos  dos  profetas  sujeitam-se  a  éles.  Mas,  se  aquela 
segunda  revelacáo  vier  de  fato  interromper  a  primeira,  e  se 
ésse  segundo  profeta  estiver  mesmo  inspirado  por  Deus,  te- 
remos  uma  confusáo  causada  pelo  Espirito  Santo,  o  que  nao 
se  pode  admitir,  porque  Deus  nao  é  de  confusáo  senáo  de  paz. 

Mulheres  casadas  nao  devem  exercer  públicamente  o 
dom  de  profetizar.  Paulo  já  teve  ocasiáo  de  corrigir  certas 
anomalías  com  referéncía  á  maneira  de  vestir,  e  agora  men- 
ciona algurrias  inconveniéncias,  relativas  ao  dom  da  palavra, 
que  surgiram  naquela  igreja.  E  o  ponto  em  que  se  baseia  é  o 
mesmo  anterior,  a  saber,  o  marido  é  o  cabeca  da  familia, 
e  a  mulher  é  dependente  do  marido.  A  autorídade  de  ensinar 
na  igreja  e  o  exercício  público  da  profecía  cabiam  aos  ma- 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


ridos  e  nao  ás  mulheres.  Estas  nem  deviam  interromper  o 
culto  sob  o  pretexto  de  fazer  perguntas.  Se  quisessem  per- 
guntar  alguma  coisa  que  o  fizessem  em  casa,  a  seus  esposos. 
Era  improprio  para  mulheres  casadas  tomarem  o  lugar  de 
seus  maridos  no  desempenho  do  oficio  de  profeta  na  igreja. 

Paulo  concluí  insistindo  com  veeméncia  na  autoridade 
de  suas  instrugoes.  Se  os  corintios  nao  se  quisessem  submeter 
a  elas,  por  que  motivo  seria?  pergunta.  Por  acaso  se  iulga- 
vam  os  inventores  do  Cristianismo?  Era  a  religiáo  de  Cristo 
propriedade  exclusiva  déles?  Nao  era  antes  o  Cristianismo 
que  tinha  o  direito  de  estabelecer  suas  próprias  regras,  suas 
exigencias,  como  entendía  que  fósse  de  justica?  Além  do  que, 
acresceríta,  a  melhor  pro  va  de  que  alguém  é  profeta  ou  de- 
tentor  de  outros  dons  espirituais  é  o  fato  de  reconhecer,  como 
mandamentos  de  Cristo,  tudo  quanto  Paulo  está  escrevendo. 
Se,  entretanto,  por  motivo  de  ignorancia,  vaidade  e  rivali- 
dade,  alguém  deliberadamente  rejeita  as  instrugoes  ácima 
ministradas,  o  apostólo  recusa-se  a  discutir  com  ésse  tal. 
Assuma  ele  a  responsabilidade  e  as  consequéncias  de  sua 
ignorancia.  "Se  alguém,  porém,  o  ignora,  ignore",  fique 
ignorante. 

Quanto  á  questáo  da  relativa  importancia  das  línguas 
e  da  profecía,  aquelas  nao  eram  para  ser  preteridas  ou  des- 
prezadas,  embora  se  devesse  desejar  mais  ardentemente  a  pro- 
fecía. Mas,  qualquer  que  fósse  o  caso,  a  grande  regra  dos 
cultos  na  igreja  é  esta:  "Tudo  se  ja  feito  com  decencia  e 
ordem". 

Admita-se  que  o  dom  de  línguas  haja  cessado  e  que  o  de 
profetizar  tenha  visto  passar  sua  oportunidade,  contudo  as 
instrugoes  e  ordens  de  Paulo  a  respeito  déste  assunto  encer- 
ram  verdades  de  valor  permanente.  Por  um  lado  há  o  pe- 
rigo  de  que  alguém,  no  desempenho  de  seu  oficio  pastoral, 
deixe  de  procurar  o  desenvolvimento  das  aptidoes  de  pessoas 
que  podem  ser  multo  úteis  na  igreja.  Por  outro  lado,  em- 
bora ao  culto  público,  por  ésse  motivo,  falte  maior  entusiasmo 
e  emocáo,  deve  sempre  ser  governado  pela  razáo,  caracte- 
rizado pela  decéncia,  e  dignificado  pela  ordem. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


135 


J.  A  RESSURREigAO  DOS  MORTOS.  Cap.  15. 

A  mentalidade  dos  filósofos  gregos  a  simples  idéia  de 
ressurreicáo  do  corpo  afigurava-se  grotesca  e  absurda.  Quan- 
(Jo  Paulo,  em  Atenas,  no  discurso  que  alí  proferiu,  tocou  néste 
assunto,  foi  ridicuiarizado,  e  parece  que  em  Corinto  aconte- 
ceu  a  mesma  ccisa.  Pelo  menos  havia  na  igreja  desta  última 
cidade  alguns  que  negavam  a  doutrina  da  ressurreicáo  do 
corpo.  Quase  que  somos  gratos  por  essa  manifestacáo  de 
incredulidade,  visto  como  deu  ocasiáo  a  que  Paulo  escrevesse 
o  cap.  que  agora  temos  diante  dos  olhcs  —  uma  das  mais 
brilhantes  realizacoes  suas,  que  ao  mesm.o  tempo  é  uma  das 
mais  admiráveis  obras-primas  de  literatura. 

Lendo-se  éste  cap.,  dois  ou  tres  fatos  devem  estar  pre- 
sentes á  memoria.  Primeiro:  Paulo  discute  aqui  a  ressur- 
reicáo do  corpo  e  nao  a  imortalidade  da  alma.  Éste  último 
fato  é  dado  como  admitido  pelas  Escrituras,  e  igualmente 
por  Paulo,  néste  capítulo.  A  ressurreicáo  e  a  imortalidade 
sáo  fatos  intimamente  relacionados  entre  si.  Se  a  primeira 
é  verdadeira,  a  segunda  dispensa  provas,  sendo  que  nesta 
dissertacáo  de  Paulo  é  dado  como  aceito  que  a  ressurreicáo 
do  corpo  implica  a  consciente  e  feliz  imortalidade  da  alma. 
Náo  obstante,  os  dois  fatos  sáo  distintos.  Os  gregos,  em  co- 
mum  com  todos  os  povos  e  racas,  criam  que  a  alma  estava 
viva  no  além-túmulo,  mas  náo  tinham  idéia  alguma  de  res- 
surreicáo. É  doutrina  peculiar,  exclusiva  do  Cristianismo 
que  a  alma,  separando-se  do  corpo,  na  morte,  revestir-se-á 
outra  véz  de  um  corpo  imortal,  que  será  sua  nova  habitacáo. 
É  uma  crenca  que  absolutamente  nada  tem  que  ver  corn  a 
crendice  da  transmigracáo  das  almas,  ensinada  por  outras 
religioes,  nem  com  aquéles  indecisos  fantasmas  do  além- 
-túmulo,  em  que  os  gregos  acreditavam.  Néste  cap.,  Paulo 
náo  discute  se  a  alma  sobrevive  ou  náo  á  morte,  mas  trata 
do  retorno  dos  espíritos,  que  reanimaráo  os  corpos. 

Em  segundo  lugar,  convém  lembrar  que  Paulo,  aqui,  trata 
da  ressurreicáo  dos  crentes  e  náo  dos  incrédulos.  Como  nosso 
Senhor  ensinou  claramente,  "todos  os  que  se  acham  nos  tú- 
mulos ouviráo  a  sua  voz  e  sairáo:  os  que  tiverem  feito  o  bem, 
para  a  ressurreicáo  da  vida;  e  os  que  tiverem  praticado  o 
mal,  para  a  ressurreicáo  do  juizo".  Ou  como  Paulo  disse: 
"Haverá  ressurreicáo,  tanto  de  justos  como  de  injustos".  Tem 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


sido  objeto  de  discussao  se  as  duas  ressurreigóes  seráo  simul- 
táneas ou  nao.  Mas  Paulo  aqui  ocupa-se  apenas  com  a  res- 
surreigáo  dos  que  sao  de  Cristo  "na  sua  vinda".  Aliás  é 
éste  o  terceiro  fato  importante  a  considerar  néste  cap.:  o 
apostólo  refere  um  acontecimento  que  ocorrerá  na  Segunda 
Vinda,  com  a  reaparicáo  pessoal  de  Cristo.  As  Escrituras 
silenciam  completamente  em  tomo  da  experiencia  ou  si- 
tuacáo  dos  fiéis  entre  a  morte  e  a  ressurreicáo.  É  difícil, 
se  nao  impossível,  fazer  idéia  de  um  espirito  fora  do  corpo. 
Todavía  sabemos  que  estar  "ausente  do  corpo"  é  estar  "pre- 
sente com  o  Senhor".  Ainda  somos  assegurados  que  "deixar  o 
corpo"  é  "estar  com  Cristo,  o  que  é  incomparavelmente  me- 
Ihor".  Entretanto  ésse  estado  dos  espirites  fora  do  corpo 
nao  é  final  nem  perfeito.  Na  vinda  de  Cristo  as  almas  dos 
fiéis  seráo  revestidas  de  um  corpo  imortal,  á  semelhanga  do 
corpo  glorioso  de  Cristo  ressuscitado  e  elevado  aos  céus,  onde 
está  á  direita  do  Pai.  Esta  doutrina,  por  conseguinte,  difere 
daquela  segundo  a  qual  as  almas  dormem  desde  a  morte  até 
ao  dia  da  ressurreicáo.  Corrige  igualmente  uma  outra  con- 
cepgáo  que  por  ai  existe,  de  que  na  morte  as  almas  trocam 
seus  corpos  mortais  por  outros  imortais.  Quando  morrem, 
os  fiéis  entram  num  estado  de  bem-aventuranga  e  ficam  em 
comunháo  consciente  com  o  seu  Salvador.  Todavía  a  gloria 
désse  estado  será  consumada  ou  aperfeicoada  na  vinda  do 
Senhor  e  com  a  ressurreigáo  dos  corpos. 

Discorrendo  sobre  esta  doutrina,  Paulo  se  detém  primeiro 
a  considerar  o  fato  ou  a  realidade  da  ressurreigáo,  vs.  1-34; 
depois,  trata  do  modo  como  se  dará,  ou  seja  a  sua  natureza, 
vs.  35-58. 

Como  fundamento  do  fato,  ele  apresenta  a  ressurreicáo 
de  Cristo,  vs.  1-11.  Afirmando-a,  mostra  que  ela  torna  ine- 
gável  o  fato  da  ressurreigáo,  vs.  12-19,  assegura  a  ressurreigáo 
dos  crentes,  vs.  20-28,  e  também  produz  seus  efeitos  práticos 
na  vida  de  todos  éles,  vs.  29-34. 

Tratando  do  modo  como  se  dará  a  ressurreigáo,  primeiro 
discute  sua  natureza,  vs.  35-49,  para  depois  discorrer  sobre 
a  mudanga  que  se  verificará  nos  vivos  e  nos  mortos  á  vinda 
de  Cristo,  vs.  50-58. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


137 


1.  A  Rcalidade  da  Ressurreigao.  Cap.  15:1-34. 
a.  A  Ressurreigáo  de  Cristo.  Cap.  15:1-11. 

1  Irmáos,  venho  lem.brar-vos  o  evangelho  que  vos 
anunciei,  o  qual  recebestes  e  no  qual  ainda  perseve- 
ráis; 2  por  ele  também  sois  salvos,  se  retiverdes  a  pa- 
lavra  tal  como  vo-la  préguei,  a  menos  que  tenhais 
crido  em  váo.  3  Antes  de  tudo  vos  entregue!  o  que  tam- 
bém recebi:  que  Cristo  morreu  pelos  nossos  pecados, 
segundo  as  Escrituras,  4  e  que  foi  sepultado,  e  ressus- 
citou  ao  terceiro  dia,  segundo  as  Escrituras,  5  e  apa- 
receu  a  Cefas,  e,  depois,  aos  doze.  6  Depois  foi  visto 
por  mais  de  quinhentos  irmáos  de  uma  só  vez,  dos 
quais  a  maioria  sobrevive  até  agora,  porém  alguns  já 
dormem.  7  Depois  foi  visto  por  Tiago,  mais  tarde  por 
todos  os  apostólos,  8  e,  afinal,  depois  de  todos,  foi  visto 
também  por  mim,  como  por  um  abortivo.  9  Porque  eu 
sou  o  menor  dos  apostólos,  que  mesmo  nao  sou  digno 
de  ser  chamado  apostólo,  pois  perseguí  a  igreja  de 
Deus.  10  Mas,  pela  graga  de  Deus,  sou  o  que  sou;  e  a 
sua  graga,  que  me  foi  concedida,  nao  se  tornou  va,  antes 
trabalhei  muito  mais  do  que  todos  éles;  todavía  nao 
eu,  mas  a  graca  de  Deus  comigo.  11  Portanto,  seja  eu, 
ou  sejam  éles,  assim  pregamos  e  assim  créstes. 

Afirmando  a  doutrina  da  ressurreigáo  dos  mortos,  Paulo 
apoia  toda  a  sua  argumentagáo  no  fato  indisputado  da  res- 
surreigáo  do  Senhor.  Tem  de  lembrar  éste  fato  aos  corintios, 
fazendo-os  ver  sua  relagáo  com  outras  grandes  verdades  da 
fé  crista  e  especialmente  com  a  da  ressurreigáo  dos  corpos. 
Estas  verdades,  declara  ele,  sao  elementos  essenciais  do  evan- 
gelho que  Ihes  pregara  e  que  por  éles  fóra  recebido,  evangelho 
que  ainda  retém  e  do  qual,  se  é  evangelho  genuino,  depende 
a  salvagáo  déles. 

Entre  éstes  fatos  salientam-se  os  seguintes,  que  foram 
recebidos  pelo  apostólo,  fósse  por  tradigáo  oral,  fósse  por 
meio  de  revelagáo:  a  morte  de  Cristo  por  nossos  pecados,  se- 
gundo as  Escrituras;  seu  sepultamento;  sua  ressurreigáo  ao 
terceiro  dia,  como  predito  ainda  pelas  Escrituras;  e  suas  apa- 
rigoes  a  testemunhas  escolhidas. 

Paulo  sublinha  o  fato  de  haver  Jesús  morrido  "por  nossos 
pecados",  isto  é,  a  favor  déles,  para  expiá-los,  a  fim  de  que  se 
tornasse  possível  o  seu  perdáo  e  déles  nos  pudéssemos  livrar. 
Éstes  fatos  foram  preditos  pelas  Escrituras,  através  da  lin- 
guagem  figurada  daquéles  sacrificios  e  instituigoes,  assim 


138 


CHARLES  R.  ERDMAN 


como  em  salmo  e  em  profecía.  O  fato  da  sepultura  de  Jesús 
é  mencionado  de  propósito,  tanto  para  indicar  a  realidade 
de  sua  morte,  como  para  salientar  que  Éle  ressurgiu  real- 
mente. Os  leitores,  déste  modo,  sao  colocados  diante  do  tú- 
mulo vazio,  fato  que  só  pode  ser  explicado  pela  ressurreicáo. 
Nao  foi  um  desmaio  aquilo  que  Jesús  experimentou  na  cruz. 
Foi  verdadeira  morte:  "Cristo  morreu".  Se  nao  tornou,  a 
viver,  se  foi  mentira  ou  ilusáo  o  seu  levantamento  dentre  os 
mortos,  por  que  nao  se  achou  seu  corpo  no  túmulo  onde  fóra 
sepultado? 

"Ressuscitou  ao  terceiro  dia",  como  fóra  predito  pela  Es- 
critura, e  segundo  o  testificaram  testemunhas  competentes 
e  em  número  suficiente.  Das  aparicoes  de  Cristo  redivivo  a 
essas  testemunhas,  o  apóstolo  menciona  seis.  Omite  o  nome 
de  María  de  Magdala  e  apresenta  em  primeiro  lugar  Pedro, 
visto  ser  éste  mais  largamente  conhecido  e  de  modo  especial 
em  Corinto.  A  Pedro  que  o  negara,  a  Pedro  antes  que  aos 
outros,  a  Pedro  sózinho  apareceu  Cristo  ressurto.  Nao  se 
sabe  o  que  Ihe  disse  Jesús  nessa  ocasiáo,  nem  o  tempo  e 
nem  o  lugar  dessa  aparigáo.  Um  silencio  sagrado  envolve 
éste  episodio.  Deve  entretanto  Ihe  ter  f  ala  do  Jesús  palavras 
de  perdáo.  Néste  caso,  tal  experiencia  concorreu  mais  para 
transformá-lo  de  Simáo  em  Pedro,  o  homem  rijo  como 
''pedra",  do  que  todos  aquéles  anos  que  antes  levara  na  com- 
panhia  de  seu  Salvador.  Pelo  menos  é  o  que  se  infere  do  fato 
de  ser  aqui  chamado  ''Cefas",  o  nome  prof ético  recebido 
de  Cristo. 

Em  seguida  Paulo  menciona  "os  doze",  reunidos  no  ce- 
náculo, Tomé  ausente.  Foi  quando  Jesús  comeu  com  os  dis- 
cípulos, assegurando-lhes  que  nao  estavam  diante  de  um  es- 
pirito desencarnado,  senáo  perante  um  corpo  que  realmente 
ressurgira  dos  mortos. 

"Depois  foi  visto  por  mais  de  quinhentos  irmáos  de  uma 
só  véz",  em  um  monte  da  Galiléia,  naquéle  encontró  que, 
antes  de  morrer,  prometerá  ter  com  os  discípulos  no  referido 
local.  E  foi  alí  que  éles  receberam  a  grande  comissáo  de 
fazer  discípulos  de  todas  as  nacoes. 

Um  homem  do  tipo  de  Pedro  admite-se  que  podía  ser 
vi  tima  de  um  sonho  ou  ilusáo,  julgando-se  na  presenta  de 
Jesús  ressuscitado.   É  muito  menos  possível  que  os  Doze  se 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


139 


enganassem.  E  quando  "mais  de  quinhentos"  homens  apre- 
sentam  seu  testemunho  unánime  sobre  éste  fato,  entáo  nao 
há  mais  alimentar  dúvida  razoável  sobre  o  mesmo. 

"Depois  foi  visto  por  Tiago",  o  próprio  irmáo  de  Jesús, 
que  antes  nao  cria  nÉle,  e  cujo  testemunho,  por  esta  razáo, 
é  tanto  m.ais  valioso.  A  posicáo  de  lideranca  que  veio  a 
ocupar  na  igreja  de  Jerusalém  paténtela  o  poder  transforma- 
dor da  confianca  em  um  Cristo  redivivo. 

"Mais  tarde  por  todos  os  apostólos"  foi  visto  Jesús,  es- 
tando Tomé  presente  —  o  discípulo  duvidador,  patrono  de 
todos  os  cépticos,  cuja  obstinacáo  em  duvidar  tem  sido  sanada 
pela  visao  de  Cristo  ressurto,  na  presenca  de  quem  fazem  eco 
as  palavras  désse  apostólo:   "Senhor  meu  e  Deus  meu". 

"Depois  de  todos",  escreve  Paulo,  "foi  visto  também  por 
mim".  Isto  se  deu  quando  se  dirigía  a  Damasco.  Essa  apa- 
ricáo,  corporal  como  todas  as  outras,  táo  de  súbito  trans- 
mudou  o  Saulo  perseguidor  em  Paulo  que  ele  se  compara  a 
"um  abortivo".  É  que  contrasta  seu  caso  com  os  dos  outros, 
pois  estes  foram  gradual  e  normalmente  se  desenvolvendo, 
do  estado  de  simples  discípulos  até  chegarem  á  madureza  do 
apostolado,  á  perfeita  condicáo  de  mensageiros  de  Cristo. 

Rememorando  seu  passado  de  perseguidor  da  Igreja, 
Paulo  declara-se  "o  menor  dos  apostólos",  "indigno  de  ser 
chamado  apostólo".  Todavía  está  presente  á  sua  lembranca 
que,  pela  graca  divina,  seus  labores  apostólicos  ultrapassa- 
ram  os  de  todos  os  colegas.  Nao  é  menos  decisivo  aqui  seu 
testemunho  a  favor  da  ressurreicáo  de  Cristo.  É  de  fato  o 
mais  eloquente  de  todos  os  testemunhos,  pelos  dois  motivos 
que  apresenta:  Primeiro,  fóra  perseguidor  da  Igreja.  Como 
explicar,  razoavelmente,  o  fato  público  e  notorio  de  comecar, 
de  repente,  a  pregar  ésse  evangelho  que  combateu,  e  a  es- 
tender a  Igreja  que  antes  procurara  exterminar?  Segundo: 
como  explicar  que  o  perseguidor  ultrapassasse  todos  os  ou- 
tros em  fervor  apostólico  e  no  éxito  dos  trabalhos?  Só  existe 
uma  explicacáo:  a  visao  que  teve  do  Senhor  redivivo. 

O  testemunho  produzido  com  referéncia  á  ressurreicáo 
de  Cristo  é  absolutamente  unánime.  "Portante,  seja  eu,  ou 
sejam  éles,  assim  pregamos  e  assim  créstes".  Nenhum  fato 
podia  ser  mais  bem  atestado  nem  mais  razoavelmente  crido. 
Pois  é  tal  o  fato  da  ressurreicáo  —  está  no  fundamento,  na 


140  CHARLES  R.  ERDMAN 


base  do  evangelho  pregado  pelos  apostólos  e  crido  sempre 
pela  Igreja  Crista. 


b.  O  despropósito  de  se  recusar  a  Ressurreigáo.  Cap. 
15:12-19. 

12  Ora,  se  é  corrente  prégar-se  que  Cristo  ressus- 
citou  dentre  os  mortos,  como,  pois,  afirmam  alguns 
dentre  vós  que  nao  há  ressurreigáo  de  mortos?  13  E, 
se  nao  há  ressurreicáo  de  mortos,  entáo  Cristo  náo 
ressuscitou.  14  E,  se  Cristo  náo  ressuscitou,  é  va  a 
nossa  prégagáo  e  vá  a  vossa  fé;  15  e  somos  tidos  por 
falsas  testemunhas  de  Deus,  porque  temos  asseverado 
contra  Deus  que  ele  ressuscitou  a  Cristo,  ao  qual  ele 
náo  ressuscitou,  se  é  certo  que  os  mortos  náo  ressusci- 
tam.  16  Porque,  se  os  mortos  náo  ressuscitam,  tam- 
bém  Cristo  náo  ressuscitou.  17  E,  se  Cristo  náo  ressus- 
citou, é  vá  a  vossa  fé,  e  ainda  permanecéis  nos  vossos 
pecados.  18  E  ainda  mais:  os  que  dormiram  em  Cristo, 
pereceram.  19  Se  a  nossa  esperanza  em  Cristo  se  li- 
mita apenas  a  esta  vida,  somos  os  mais  infelizes  de 
todos  os  homens. 

Nao  é  certo  que  algum  dos  cristáos  corintios  negasse  a 
ressurreigáo  de  Cristo,  mas  o  acervo  de  provas  dessa  dou- 
trina,  apresentadas  aqui  por  Paulo,  dá  a  entender  que  se 
fazia  necessário  um  reforgo  da  mesma.  Entretanto,  havia 
alguns  entre  éles  que  negavam  a  ressurreicáo  dos  crentes. 
Ora,  se  negavam  isto,  recusavam  na  verdade  a  idéia  de  qual- 
quer  ressurreigáo.  E  por  isso,  quando  o  apostólo  demonstra 
que  a  ressurreigáo  de  Cristo  foi  uma  realidade,  mostra  ao 
mesmo  tempo  que  é  impossível  crer  néste  fato  e  asseverar 
por  outro  lado  que  náo  há  ressurreigáo,  porque  "se  náo  há 
ressurreigáo  de  mortos,  entáo  Cristo  náo  ressuscitou".  E 
mais:  negar  a  ressurreigáo  de  Cristo  será  declarar  mentiroso 
o  testemunho  dos  apostólos  a  respeito  désse  fato.  E  náo  só 
isto  como  será  também  desabonar  o  inteiro  sistema  da  fé 
cristá. 

Pormenorizando  as  consequéncias  dessa  negagáo,  Paulo 
declara  (1)  que  ela  invalida  a  mensagem  do  evangelho,  "a 
nossa  prégagáo",  que  néste  caso  fica  vazia,  sem  conteúdo, 
visto  como  a  ressurreigáo  de  Cristo  é  a  própria  substancia 
das  Boas  Novas.  Sem  conteúdo,  toma-se  ''falsa".  Depois  (2) 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  141 


a  fé  crista  apresentar-se-ia  engañosa,  "va",  sem  substancia; 
edificada  sobre  o  alegado  fato  da  ressurreicáo  de  Cristo,  ca- 
recería de  alicerce  em  que  se  apoiasse,  serla  minada  em 
sua  base. 

Consequentemente,  (3)  ficaria  provado  que  os  apostólos 
eram  "falsas  testemunhas"  e  da  pior  espécie,  porque  esta- 
riam  apresentando  um  testemunho  aleivoso  acerca  de  Deus 
e,  por  isso,  contra  Ele  —  a  mais  horrível  forma  de  impostura 
—  visto  como  Paulo  atribula  ao  poder  de  Deus  a  ressurreicáo 
de  Cristo.  E  nao  só  isto,  como  também  (4)  a  nossa  fé  seria 
"va",  nao  sómente  no  sentido  de  carecer  de  conteúdo,  como 
no  de  ser  fútil,  ineficaz.  Se  a  ressurreicáo  de  Cristo  fósse 
irreal,  também  os  efeitos  que  Ihe  sáo  atribuidos  náo  existi- 
riam.   Os  crentes  náo  estariam  salvos.    Falando  mais  claro 

(5)  ,  ainda  estariam  nos  seus  pecados,  porque,  se  Cristo  náo 
ressuscitou,  é,  néste  caso,  um  Cristo  que  foi  e  permanece 
condenado;  náo  é  um  Cristo  justificado,  e  por  certo  que  náo 
pode  garantir  a  justificacáo  dos  crentes.   Seguir-se-ia,  entáo 

(6)  que  os  que  morreram  "pereceram".  Dormiram  confiando 
em  Cristo  e  certos  de  uma  feliz  imortalidade,  mas  acordaram 
daí  para  sentir-se  perdidos,  sob  a  condenacáo  de  Deus. 

Por  fim  (7),  com  referencia  aos  crentes  ainda  vivos,  se 
com  todos  os  seus  sacrificios  e  privacoes  o  que  éles  possuem 
nesta  vida  é  apenas  uma  esperanca  depositada  em  Cristo, 
mas  esperanca  sómente  e  nada  mais,  esperanca  que  nunca 
há  de  ver  realizado  o  que  espera,  falsa  esperanga  de  uma  sal- 
vacáo  presente  e  de  uma  gloria  futura  —  sáo  tais  crentes,  de 
todos  os  homens,  os  mais  dignos  de  lástima. 

Vé-se,  pois,  que  a  ressurreicáo  dos  mortos  náo  é  mero 
sonho,  nem  é  para  ser  recusada  esta  doutrina  assim  leviana- 
mente.  Se  náo  a  aceitamos,  teremos  de  recusar  com  ela  a 
ressurreicáo  de  Cristo  e  a  salvagáo  que  ela  nos  garante:  ruirá 
por  térra  todo  o  sistema  da  fé  cristá.  Mas,  recolocando  no 
seu  lugar  o  alicerce  désse  sistema,  cuja  remocáo  Paulo  fi- 
gurou  por  um  momento,  toma  o  apostólo  a  levantar  sobre 
ele  a  majestosa  estrutura  da  fé,  que  se  eleva  as  alturas,  pe- 
netrando ñas  nuvens  da  bem-aventuranca  infinita  e  eterna 
que  ela  tem  reservada  para  os  crentes  e  para  todo  o  uni- 
verso de  Deus. 


142 


CHARLES  R.  ERDMAN 


c.  Garantida  a  Ressurreigáo  dos  Crentes.  Cap.  15:20-28. 

20  Mas  de  fato  Cristo  ressuscitou  dentre  os  mortos, 
sendo  ele  as  primicias  dos  que  dormem.  21  Visto  que 
a  morte  veio  por  um  homem,  também  por  um  homem 
veio  a  ressurreicáo  dos  mortos.  22  Porque  assim  como 
em  Adáo  todos  morrem,  assim  também  todos  seráo  vi- 
vificados em  Cristo.  23  Cada  um,  porém,  por  sua  pró- 
pria  ordem:  Cristo,  as  primicias;  depois  os  que  sao  de 
Cristo,  na  sua  vinda.  24  E  entáo  virá  o  fim,  quando  ele 
entregar  o  reino  ao  Deus  e  Pai,  quando  houver  destrui- 
do todo  dominio,  bem  como  toda  autoridade  e  poder. 
25Porque  convém  que  ele  reine  até  que  haja  posto  todos 
os  inimigos  debaixo  dos  seus  pés.  26  O  último  inimigo 
a  ser  destruido  é  a  morte.  27  Porque  todas  as  coisas  su- 
jeitou  debaixo  dos  seus  pés.  E  quando  diz  que  todas  as 
coisas  Ihe  estáo  sujeitas,  certamente  exclui  aquéle  que 
tudo  Ihe  subordinou.  28  Quando,  porém,  todas  as  coisas 
Ihe  estiverem  sujeitas,  entáo  o  próprio  Filho  também 
se  sujeitará  aquéle  que  todas  as  coisas  Ihe  sujeitou, 
para  que  Deus  seja  tudo  em  todos. 

É  com  urna  nota  de  triunfo  que  o  apostólo  passa  ao  lado 
positivo  de  sua  argumentagáo.  Em  contraste  com  a  suposi- 
cáo  tremenda  do  que  seria  se  nao  houvera  ressurreicáo,  ele 
agora  firma  as  benditas  consequéncias  da  ressurreigáo  de 
Cristo.  É  que  ela  garante  a  ressurreigáo  dos  crentes  e  o  cum- 
primento  de  todo  o  propósito  redentor  de  Deus. 

Cristo  é  ai  declarado  "as  primicias  dos  que  dormem".  Os 
primeiros  graos  amadurecidos  ou  o  primeiro  feixe  de  espigas 
—  as  primicias  —  que  se  apresentava  a  Deus  pela  páscoa,  era 
o  penhor  e  uma  amostra  da  colheita  que  se  avizinhava, 
Assim,  Cristo  ressuscitado  foi  apenas  o  primeiro  de  uma  enor- 
me multidáo  que  se  há  de  levantar  dentre  os  mortos.  Sua 
ressurreigáo  vale  por  uma  promessa  divina  de  que  os  crentes 
ressurgiráo  também,  e  dessa  ressurreicáo  é  ela  o  exemplo. 
Diz  Paulo  que  "dormem"  os  crentes  que  morreram.  É  alusác 
ao  sonó  do  corpo  na  morte.  A  alma  náo  dorme,  mas  perma- 
nece em  comunháo  consciente  com  Cristo.  O  apostólo,  aqui, 
está  tratando  é  da  ressurreicáo  do  corpo.  Esta  se  verificará 
pelo  poder  de  Cristo  e  em  virtude  da  reiagáo  dos  crentes  com 
Éle.  Do  mesmo  modo  como  estáo  sujeitos  á  morte  todos 
quantos  procedem  de  Adáo,  assim  quantos  pela  fé  estáo  uni- 
dos a  Cristo  recebem  a  garantía  de  se  libertar  do  poder  dessa 
mesma  morte.    Esta  náo  é  apresentada  aqui  pelo  apostólo 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


143 


como  de  necessidade  para  os  seres  finitos  que  somos,  senáo 
como  uma  calamidade  que  o  homem  atraiu  sobre  si,  da  qual 
precisa  livrar-se,  e  isto  pelo  poder  da  vitória  de  Cristo  em 
sua  ressurreigáo. 

"A  sequéncia  estabelecida  por  Deus  é  esta:  Primeiro,  a 
ressurreicáo  de  Cristo,  tipo  e  penhor  de  nossa  ressurreigáo; 
depois,  a  ressurreigáo  dos  que  o  seguem,  e  isto  na  sua  vinda. 
Após  virá  o  fim,  quando  Éle  apresentará  ao  Pai  o  reino  con- 
sumado". Dizendo  Paulo  "cada  um  por  sua  ordem",  empre- 
ga  uma  enérgica  expressáo  militar.  Cada  soldado  marcha 
em  seu  próprio  regimentó,  indo  á  frente  o  grande  Coman- 
dante; passa  a  gloriosa  companhia  de  seus  seguidores  e,  por 
fim,  o  restante  dos  mortos. 

"Entáo  virá  o  fim",  nao  simultáneamente  com  a  apa- 
rigáo  de  Cristo,  mas  em  seguimento  a  esta.  "Logp  mais  vem 
o  fim".  Será  o  tempo  em  que  Éle  entregará  "o  reino  ao  Deus 
e  Pai,  quando  houver  destruido  todo  dominio,  bem  como 
toda  autoridade  e  poder".  "No  intervalo  entre  a  Segunda 
Vinda  e  o  fim"  o  Reino  de  Cristo  será  consumado.  "Devemos, 
pois,  considerar  sob  o  reinado  de  Cristo  tudo  quanto  ocorrer 
desde  sua  aparigáo  até  á  época  chamada  fim.  Haverá  tam- 
bém  uma  sequéncia  na  ressurreigáo  dos  mortos. . .  (1)  Cris- 
to, as  primicias;  (2)  os  crentes  em  Cristo  na  sua  vinda;  (3) 
todo  o  resto  da  humanidade  no  fim,  quando  ocorrerá  o  juízo 
final". 

O  reinado  de  Cristo  consumar-se-á,  chegará  á  sua  pleni- 
tude,  na  ressurreigáo  dos  mortos.  "O  último  inimigo  a  ser 
destruido  é  a  morte".  Apresentou-se  a  morte,  antes,  como 
servente  dos  fiéis,  cap.  3:22;  agora  como  inimiga.  Ela  é  uma 
e  outra  coisa.  A  morte  afasta  a  cortina  e  leva  a  alma  á  pre- 
senga  do  Senhor.  Entretanto  é  inimiga,  porque  seu  triunfo 
sobre  os  nossos  corpos  dá  lugar  a  angústias,  a  separagoes,  a 
lágrimas.  Na  ressurreigáo,  porém,  "quando  éste  corpo  cor- 
ruptível  se  revestir  de  incorruptibilidade",  há  de  com  certeza 
a  morte  ser  "tragada  pela  vitória".  A  ressurreicáo  destruí-la-á. 

A  entrega  do  Reino  a  Deus  e  a  sujeigáo  do  Filho  ao  Pai 
náo  significam,  de  modo  nenhum,  que  Cristo  deixará  de 
reinar,  ou  que  náo  é  divino.  "A  sujeigáo  de  que  se  trata  é 
apenas  aquela  que  sua  condigáo  de  Filho  implica.  Náo  sig- 
nifica inferioridade  de  natureza,  nem  abdicagáo  de  autori- 


144 


CHARLES  R.  ERDMAN 


dade.  É  antes  a  livre  submissáo  do  amor,  esséncia  do  espi- 
rito filial". 

A  morte  de  Cristo,  como  sua  ressurreiQáo  e  seu  reinado, 
tudo  isto  está  nos  planos  divinos  para  que  o  propósito  re- 
dentor do  Pai  chegue  a  ser  consumado,  em  virtude  do  qual 
somos  levados  á  comunháo  com  Ele  que  em  toda  parte  está 
presente,  cuja  vontade  é  suprema  em  todo  o  tempo,  Éle  o 
Deus  que  é  "tudo  em  todas  as  coisas". 


d.  A  doutrina  na  prática.  Cap.  15:29-34. 

29  Doutra  maneira,  que  faráo  os  que  se  batizam 
por  causa  dos  morios?  Se  absolutamente  os  mortos 
nao  ressuscitam,  por  que  se  batizam  por  causa  déles? 
30  £  por  que  também  nós  nos  expomos  a  perigos  a 
toda  hora?  31  Día  após  día  morro!  Eu  o  protesto,  ir- 
máos,  pela  gloria  que  tenho  em  vós  outros,  em  Cristo 
Jesús  nosso  Senhor.  32  Se,  como  homem,  lutei  em 
Éfeso  com  feras,  que  me  aproveita  isso?  Se  os  mor- 
tos nao  ressuscitam,  comamos  e  bebamos,  que  amanhá 
morreremos.  33  Nao  vos  engañéis:  as  más  conversa- 
qoes  corrompem  os  bons  costumes.  34  Tornai-vos  á  so- 
briedade,  como  é  justo,  e  nao  pequéis;  porque  alguns 
ainda  nao  tém  conhecimento  de  Deus;  isto  digo  para 
vergonha  vossa. 

Uma  vez  firmada  a  doutrina  da  ressurreigáo,  Paulo  agora 
se  detém  um  pouco  para  aplicá-la  aos  leitores,  lembrando- 
-Ihes  que  essa  doutrina  está  vinculada  as  suas  mais  sagradas 
esperanzas.  Outra  vez  adota  o  método  de  indicar  o  que  é 
que  se  perde  recusando-se  a  ressurreigáo.  As  aplicagoes  prá- 
ticas  desta  verdade  podem  ser  mencionadas  como  segué:  (1) 
O  batismo  pelos  mortos  tem  sua  razáo  de  ser;  (2)  o  sacrificio 
feito  no  trabalho  evangélico  nao  é  perdido;  (3)  o  sensualis- 
mo é  fruto  da  falta  de  bom-senso;  (4)  é  perigoso  conviver 
com  os  que  duvidam  dessa  doutrina. 

Com  referencia  ao  batismo  pelos,  ou  por  causa  dos  mortos 
há  enorme  diversidade  de  opinioes.  Muito  difícilmente  que- 
rerá  dizer  batismo  vicário,  de  alguém  que  confessasse  o  nome 
de  Cristo  visando  com  isso  salvar  um  amigo  que  morrera 
incrédulo.  Nem  se  trata  de  batismo  que  alguém  aceitasse  em 
lugar  de  um  crente  que  morresse  sem  éste  sacramento.  Nao 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


145 


há  prova  alguma  de  que  tais  práticas  fóssem  correntes  nos 
dias  de  Paulo.  A  interpretagáo  mais  provável  é  a  seguinte: 
quando  pessoas  descrentes  viam  morrer  entes  queridos,  na 
sua  grande  dor  e  desolagáo  voltavam-se  para  Cristo,  levadas 
pela  esperanga  de  se  encontraren!  de  novo  com  os  seus  ama^ 
dos  na  bem-aventuranga  da  ressurreicáo.  E,  de  fato,  nao 
Ihes  seria  frustrada  essa  expectativa.  O  batismo  de  tais 
pessoas,  que  antes  de  tudo  era  motivado  por  urna  forte  afeigáo 
humana,  nao  deixava  de  ser  uma  prova  comovente  de  fé  na 
vida  futura,  vida  que  é  inseparável  da  ressurreigáo. 

A  vista  dessa  bendita  certeza  nao  era  de  estranhar  que 
os  obreiros  cristáos  se  expusessem  continuamente  a  perigos 
e  morte.  Era  o  caso  de  Paulo.  Dia  após  dias  a  ameaga  de 
morte  pairava  sobre  éle,  tantos  eram  os  perigos  e  dificul- 
dades  que  o  rodeavam.  Se  nao  houvesse  recompensas  futu- 
ras, nem  uma  feliz  imortalidade,  por  que,  do  ponto  de  vista 
himiano,  tinha  éle  lutado  "em  Éfeso  com  feras"?  É  muito 
improvável  que  lá  o  houvessem  langado  á  arena;  o  mais  certo 
é  que  fóra  compelido  a  contender  com  individuos  ferozes  e 
sanguissedentos.  Onde  estarla  a  recompensa  de  tamanha 
luta,  se  a  ressurreigáo  fósse  um  sonho  ilusorio?  Se  o  fósse, 
haveria  razáo  para  se  adotar  a  estúpida  filosofía  do  sen- 
sualismo: "Comamos  e  bebamos,  que  amanhá  morreremos". 
Era  comum  ouvir  dizer  isto  em  Corinto,  e  ainda  hoje  é  má- 
xima corren  te:  "Da  vida  nada  se  leva",  logo  —  concluem 
gozemo-la  quanto  possível.  A  luz  da  imortalidade  e  da  glo- 
ria vindoura  é  patente  a  insensatez  dessa  filosofía. 

Muitos  corintios  parece  que  se  deixaram  influenciar  por 
essas  idéias  epicuristas,  devido  á  sua  convivencia  com  pagáos. 
Porisso  é  que  Paulo  adverte  os  leitores  contra  o  perigo  de 
associarem-se  aqueles  que  punham  em  dúvida  as  verdades 
essenciais  do  Cristianismo,  como  por  exemplo  a  ressurreigáo. 
"As  más  conversagoes  corrompem  os  bons  costumes",  diz  o 
apostólo,  citando,  ao  que  parece,  um  provérbio  corrente  na- 
quela  época.  Como  que  diz:  "Despertai  do  torpor  que  a  ne- 
gagáo  desta  verdade  há  produzido.  Nao  vos  deixeis  levar 
pelas  más  influéncias  daquéles  que  tém  posto  em  dúvida 
esta  doutrina.  A  sabedoria  enfatuada  dos  tais  nao  passa  de 
ignoráncia:  "ainda  nao  tém  conhecimento  de  Deus".  O 
apostólo  quis,  dessarte,  lancar-lhes  em  rosto  a  vergonha  do 
procedimento  de  alguns  déles  que  ousavam  duvidar  de  táo 
importante  verdade.    E  déste  modo  realga  que  é  essencial 


146 


CHARLES  R.  ERDMAN 


crer  na  ressurreigáo.  É  bom,  portante,  advertir  que  a  fé  de- 
termina a  conduta.  Os  que  desejam  conservar-se  de  todo 
cientes  e  compenetrados  de  Deus  precisam  firmar-se  ñas 
verdades  que  Éle  nos  tem  revelado. 

2.  A  Natureza  da  Ressurreigáo.  Cap  15:35-58. 

a.  Como  seráo  os  corpos  redivivos.  Cap.  15:35-49. 

35  Mas  algruém  dirá:  Como  ressuscitam  os  mortos? 
e  em  que  forma  de  corpo  vém?  36  Insensato!  o  que 
semeias  nao  nasce,  se  primeiro  nao  morrer;  37  e 
quando  semeias,  nao  semeias  o  corpo  que  há  de  ser, 
mas  o  simples  grao,  como  de  trigo,  ou  de  qualquer  ou- 
tra  sementé.  38  Mas  Deus  Ihe  dá  corpo  como  Ihe 
aprouve  dar,  e  a  cada  uma  das  sementes  o  seu  corpo 
apropriado.  39  Nem  toda  carne  é  a  mesma;  porém  uma 
é  a  carne  dos  homens,  outra  a  dos  animáis,  outra  a 
das  aves  e  outra  a  dos  peixes.  40  Também  há  corpos 
celestiais  e  corpos  terrestres;  e,  sem  dúvida,  uma  é  a 
gloria  dos  celestiais  e  outra  a  dos  terrestres.  41  üma 
é  a  gloria  do  sol,  outra  a  gloria  da  lúa,  e  outra  a  das 
esírélas;  porque  até  entre  estréla  e  estréla  há  dif éren- 
las de  esplendor.  42  Pois  assim  também  é  a  ressurrei- 
Qáo  dos  mortos.  Semeia-se  o  corpo  na  corrupgáo,  res- 
suscita  na  incorrup^áo.  Semeia-se  em  desonra,  ressus- 
cita  em  gloria.  43  Semeia-se  em  fraqueza,  ressuscita 
em  poder.  44  Semeia-se  corpo  natural,  ressuscita  cor- 
po espiritual.  Se  há  corpo  natural,  há  também  corpo 
espiritual.  45  Pois  assim  está  escrito:  O  primeiro  ho- 
mem,  Adáo,  foi  feito  ser  vivente.  O  último  Adáo,  po- 
rém, é  espirito  vivificante.  46  Mas  nao  é  primeiro  o 
espiritual,  e,  sim,  o  natural;  depois  o  espiritual.  47  O 
primeiro  homem,  formado  da  térra,  é  terreno;  o  se- 
gundo homem  é  do  céu.  48  Como  foi  o  primeiro  ho- 
mem, o  terreno,  tais  sao  também  os  demais  homens 
terrenos;  e  como  é  o  homem  celestial,  tais  também  os 
celestiais.  49  E,  assim  como  trouxemos  a  imagem  do 
que  é  terreno,  devemos  trazer  também  a  imagem  do 
celestial. 

Paulo  já  afirmou  a  certeza  da  ressurreicáo.  Agora  passa 
a  considerar  a  sua  natureza  ou  a  maneira  como  se  efetuará. 
Primeiro  trata  do  caráter  ou  constituigáo  dos  corpos  na 
ressurreigáo;  depois  considera  a  mudanga  que  se  operará  nos 
corpos  dos  vivos  e  dos  mortos,  na  vinda  de  Cristo. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  147 


Abre  a  discussáo  com  duas  perguntas  que  talvez  fóssem 
formuladas  pelos  que  recusavam  a  dou trina,  ou  possivel 
por  algumas  pessoas  sinceras  que  desejavam  esciar eciinento 
a  respeito  do  assunto:  "Como  ressuscitam  os  mortos?  e  em 
que  forma  de  corpo  vém?"  A  primeira  pergunta  sugere  que 
a  ressurreicáo  é  impossível;  a  segunda,  que  é  inconcebível. 
O  apostólo  responde  ao  inquiridor  chamando-o  "insensato" 
ou  irrefletido.  Bastava  que  desejasse  usar  seu  raciocinio  para 
encontrar  resposta  até  nos  campos  de  lavoura.  Cada  sementé 
primeiro  morre,  deixa  de  ser  o  que  é,  para  tornar-se  planta, 
adquirindo  assim  uma  forma  mais  elevada  de  existencia.  É 
verdade  que  as  sementes  nao  morrem  assim  literalmente 
como  os  corpos,  mas  deixam  de  existir  como  sementes  para 
assumirem  a  forma  de  planta  ou  árvore  frutífera. 

Esta  analogía  nao  prova  a  ressurreicáo.  O  que  faz  é 
responder  á  dificuldade  proposta,  mostrando  o  processo  pelo 
qual  Deus  realiza  o  que  parece  impossível,  fazendo,  que  con- 
forme as  leis  por  Éle  estabelecidas,  a  mesma  vida  surja  sob 
outro  aspecto  mais  glorioso. 

Adiante  Paulo  mostra  a  grande  variedade  de  formas  sob 
as  quais  se  manifesta  a  vida  animal.  Declara  que  existe 
igualmente  grande  diferenca  entre  os  corpos  dos  celícolas  e 
dos  que  habitam  na  térra,  assim.  como  difere  o  esplendor 
solar  do  brilho  da  lúa  e  das  estrélas.  Deus,  portanto,  é  capaz 
de  prover  aquela  forma  de  corpo  que  se  adapte  as  necessi- 
dades  da  alma  imortal. 

O  apostólo  nao  tenta  descrever  a  natureza  íntima  de 
um  corpo  ressurto,  mas  do  que  éle  diz  aqui  e  do  que  se  segué 
evidencia-se  (1)  que  existe  uma  diferenca  entre  o  corpo  que 
ressurge  e  aquéle  que  morreu  e  foi  sepultado.  Nao  há  nada 
que  indique  se  ja  o  corpo  redivivo  composto  das  mesmas  par- 
tículas materiais  do  que  morreu.  O  que  Paulo  ensina  é  exa- 
tamente  o  contrario.  Há  de  ser  muito  mais  glorioso.  O  corpo 
natural  está  su  jeito  a  ruina,  a  perder  a  graga,  a  enfraque- 
cer-se,  enquanto  o  corpo  ressurto  estará  livre  de  todas  estas 
limitacoes  e  imperfeigoes,  será  corpo  glorioso,  perfeitamente 
adequado  as  necessidades  do  espirito  glorificado,  assim  como 
o  corpo  mortal  foi  feito  de  modo  a  servir  as  necessidades  da 
vida  presente. 

O  semear  na  "corrup^áo. . .  em  desonra. . .  em  fraque- 
za"  nao  se  refere  ao  sepultamento.    A  presente  vida  é  já  a 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


época  da  sementeira;  o  corpo  mortal  de  onde,  após  a  morte, 
vai  surgir  outro  diferente,  já  se  acha  em  ponto  de  germinar. 

(2)  O  corpo  redivivo,  portanto,  ainda  que  diferente  do  que 
morreu,  será  idéntico  a  éle.  Nao  diz  o  apostólo  como  ou  até 
onde  será  preservada  a  identidade.  Talvez  haja  disso  urna 
analogía  na  identidade  que  há  entre  o  corpo  de  um  menino  e 
éste  mesmo  corpo  quando  na  idade  adulta.  Cada  partícula  ou 
molécula  foi  substituida  por  outras  e,  nao  obstante,  o  corpo  é 
o  mesmo.  Assim  é  com  os  corpos  na  ressurreigáo:  "diferentes 
e  todavía  os  mesmos,  ai  está  um  dos  paradoxos  da  fé  crista". 
Ver-se-á  que  os  corpos  gloriosos  retrataráo  os  corpos  mortais, 
conservando-lhes  as  respectivas  características  pelas  quais  se 
reconheceráo.  Ainda  que  perfeitos  e  imortais,  a  natureza 
déles  corresponderá,  de  alguma  forma,  á  dos  corpos  corruptí- 
veis  e  fracos,  do  primitivo  estado.  Paulo  nao  trata  de  nova 
criacáo,  mas  de  ressurreigáo,  renascimento,  reaparigáo. 

(3)  Os  corpos  na  ressurreigáo  seráo  produzidos  pelo  poder 
de  Cristo  e  háo  de  trazer  estampada  em  si  a  imagem  do  Sal- 
vador. Nao  seráo  corpos  mortais  reconstruidos,  nem  serao  o 
desenvolvimento  de  um  germe  indestrutível  que  os  "corpos 
naturais"  ora  contenham  em  si;  nem  seráo  o  produto  de  uma 
fórga  natural  que  presentemente  resida  no  corpo  humano, 
nem  ainda  seráo  um  etéreo  "corpo  astral"  que  atualmente  ha- 
bite no  corpo  natural.  Nada  disto.  Os  corpos  na  ressurreigáo 
seráo  produto  do  poder  divino,  uma  reprodugáo  dos  corpos 
que  foram  sepultados;  déles  possuimos  um  modélo  ou  exem- 
plar  no  corpo  de  Cristo  ressurto  e  glorificado. 

O  primeiro  Adáo,  por  um  ato  criador  de  Deus,  tornou-se 
"ser  vívente";  o  último  Adáo,  Jesús  Cristo,  em  virtude  de  sua 
ressurreigáo,  tornou-se  "espirito  vivificante".  É  esta  ordem  a 
que  também  aquí  se  observa:  primeiro,  como  descendentes  de 
Adáo,  fomos  feitos,  á  sua  semelhanga,  seres  viventes  que  habi- 
tamos corpos  mortais  e  trazemos  a  imagem  de  nosso  pai  ter- 
restre; mas,  como  seguidores  de  Cristo,  havemos  ainda  de  ser 
revestidos  de  corpos  imortais  e  traremos  estampada  em  nosso 
ser  a  imagem  de  nosso  Senhor  celestial. 

b.  A  Transformasao  dos  Morios  e  dos  Vivos.  Cap. 

15:50-58. 

50  Isto  afirmo,  irmáos,  que  carne  e  sangue  nao 
podem  herdar  o  reino  de  Deus,  nem  a  corrup§áo  her- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  149 


dar  a  incorrup?áo.  51Eis  que  vos  digo  um  mistério: 
Nem  todos  dormiremos,  mas  transformados  seremos- 
todos,  52  num  momento,  num  abrir  e  fechar  dos  olhos, 
ao  ressoar  da  última  trombeta.  A  trombeta  soará,  os 
mortos  ressascitaráo  incorruptíveis,  e  nós  seremos 
transformados.  53  Porque  é  necessário  que  éste  corpo 
corruptível  se  revista  da  incorruptibilidade,  e  que  o 
corpo  mortal  se  revista  da  imortalidade.  54  E,  quando 
éste  corpo  corruptível  se  revestir  de  incorruptibilidade, 
e  o  que  é  mortal  se  revestir  de  imortalidade,  entáo  se 
cumprirá  a  palavra  que  está  escrita:  Tragada  foi  a 
morte  pela  vitória.  55  Onde  está,  ó  morte,  a  tua  vitó- 
ría?  onde  está,  ó  morte,  o  teu  aguiiháo?  56  O  aguilháo 
da  morte  é  o  pecado,  e  a  fórca  do  pecado  é  a  lei.  57 
Gracas  a  Deus  que  nos  dá  a  vitória  por  intermédio  de 
nosso  Senhor  Jesús  Cristo.  58  Portanto,  meus  amados 
irmáos,  sede  firmes,  inabaláveis,  e  sempre  abundantes 
na  obra  do  Senhor,  sabendo  que,  no  Senhor,  o  vosso  tra- 
balho  nao  é  váo. 

Tratando  da  ressurreicáo  dos  fiéis,  Paulo  discute  um 
acontecimento  que  ocorrerá,  nao  por  ocasiáo  da  morte,  mas  na 
vinda  de  Cristo.  Resta,  pois,  uma  pergunta  a  responder: 
Quando  Cristo  voltar,  qual  será  a  sorte  dos  que  estiverem 
vivos?  Precisaráo  morrer,  para  que  possam  partilhar  da  bem- 
-aventuranca  dos  que  ressuscitarem? 

Os  corpos  dos  que  estiverem  vivos  nessa  ocasiáo  certa- 
mente  seráo  transformados.  Asseverando  isto  o  apostólo  co- 
meca  novo  parágrafo:  "Carne  e  sangue  nao  podem  herdar  o 
reino  de  Deus",  isto  é,  o  corpo  humano,  cuja  substancia  é 
carne  e  cujo  elemento  vivificante  é  o  sangue,  nao  é  adap- 
tável  ao  futuro  estado,  nao  convirá  ao  mundo  celeste.  E 
acrescenta:  "Nem  a  corrupcáo  pode  herdar  a  incorrupcáo". 
Um  cadáver,  certamente,  nao  pode  ser  lugar  de  habitacáo  para 
para  uma  alma  imortal.  Destarte,  para  se  adaptar  á  gloria 
futura  é  mister  que  o  corpo  sofra  uma  transformacáo,  trata-se 
de  vivos  ou  de  mortos. 

Relativamente  á  transformacáo  dos  vivos,  Paulo  decla- 
ra que  tem  uma  revelacáo.  "Eis  que  vos  digo  um  mistério". 
Mistérfo,  entretanto,  na  linguagem  do  apostólo  náo  quer 
dizer  algo  oculto,  mas  aquilo  culo  conhecimento  esteve  antes 
vedado  mas  agora  está  revelado.  "Nem  todos  dormiremos". 
Os  crentes  todos  náo  váo  morrer.  Alguns  estaráo  vivos  quan- 
do Cristo  vier.  Seus  corpos  seráo  transformados.  A  mudanga 
será  instantánea,  como  o  movimento  das  pálpebras.  Será 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


anunciada  pelo  som  da  "última  trombeta".  Naturalmente  o 
apostólo  nao  quer  se  referir  a  urna  trombeta  de  verdade,  nern 
as  trombetas  apocalípticas.  Nao  há  quem  possa  saber  em  que 
consistirá  éste  sinal  divino.  Na  Primeira  Carta  aos  Tessa- 
lonicenses  apresenta-se  associado  á  *'voz  do  arcanjo":  "Por- 
quanto  o  Senhor  mesmo,  dada  a  sua  palavra  de  ordem,  ouvida 
a  voz  do  arcanjo,  e  ressoada  a  trombeta  de  Deus,  descerá  dos 
céus,  e  os  mortos  em  Cristo  ressuscitaráo  primeiro;  depois 
nós,  os  vivos  os  que  ñcarmos,  seremos  arrebatados  junta- 
mente com  éles,  entre  nuvens,  para  o  encontró  do  Senhor 
nos  ares". 

Torna  o  apostólo  a  afirmar  a  necessidade  desta  transfor- 
magáo  dos  vivos  e  dos  mortos,  declarando  cimiprir-se  na 
mesma  a  profecía  bíblica  referente  ao  livramento  final,  triun- 
fante do  povo  de  Deus:  "porque  é  necessário  que  éste  corpo 
corruptível  [o  corpo  que  está  morto]  se  revista  da  incorrupti- 
bilidade,  e  que  o  corpo  mortal  [o  corpo  vivo]  se  revista  da 
imortalidade".  "Entáo  se  cumprirá  a  palavra  que  está  escrita: 
Tragada  foi  a  morte  pela  vitória".  Entáo,  mas  nao  agora, 
falaremos  em  vitória  que  o  será  de  fato.  Durante  certo 
tempo,  por  ora,  a  morte  vai  alcangando  seus  triunfos.  Nao 
adianta  negá-lo.  A  morte  é  uma  realidade  e  é  inimiga;  vence 
e  destroi.  Sua  vitória,  no  entanto,  é  passageira,  durante  certo 
tempo.  Quando  Cristo  vier,  ao  ressurgirem  os  mortos  e  se 
transformar  em  os  vivos,  entáo,  em  toda  a  realidade,  a  morte 
será  tragada  pela  vitória. 

"O  aguilháo  (ferráo)  da  morte  é  o  pecado".  É  o  pecado 
que  faz  amarga  a  morte,  que  Ihe  empresta  o  caráter  de  pena- 
lidade  ou  castigo.  É  o  pecado  que  a  torna  dolorosa,  uma 
verdadeira  desgrana.  "A  fórca  do  pecado  é  a  lei",  porque  esta 
é  que  Ihe  dá  a  fórga  que  tem.  Sempre  foi  da  experiencia 
humana  que  as  exigéncias  da  lei  e  suas  ameagas  apenas  exas- 
peram  e  arrastam  a  alma  para  deslises  cada  véz  mais  graves. 
Por  meio  de  Cristo,  Deus  livra  o  crente  destas  duas  fórgas 
adversárias,  removendo  de  seu  coragáo  o  sentimento  de  culpa 
e  o  pavor  do  juízo.  Por  seu  Espirito  concede-lhe  o  poder  de 
realizar  o  que  a  lei  exige.  Aliás,  éste  livramento  já  agora  nos 
é  concedido;  mas,  quando  formos  livres  de  todas  aquelas 
preocupagoes  pesadas,  das  perdas,  dos  pesares  que  a  morte 
tem  ocasionado;  quando  conhecermos  a  legítima  liberdade 
dos  filhos  de  Deus  e  acharmos  na  retidáo  continuo  prazer,  e 
isto  no  lar  celestial  de  nosso  Pai,  entáo  com  alegría  mais  pura 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  COPwINTIOS 


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uniremos  nossa  voz  ao  coro  universal  —  "Gragas  a  Deus 
que  nos  dá  a  vitória". 

Colocando,  assim,  os  leitores  diante  da  visáo  da  gloria 
inefável  que  os  aguarda,  como  revelada  néste  capítulo,  nao 
admira  que  o  apestólo  ponha  o  ponto  final  nesta  preciosa 
dissertacáo  fazendo-lhes  uma  exortacáo  prática:  "Portanto, 
meus  amados  irmáos,  sede  firmes,  inabaláveis,  e  sempre 
abundantes  na  obra  do  Senhor,  sabendo  que,  no  Senhor,  o 
vosso  trabalho  nao  é  váo". 


III.  CONCLUSÁO  Cap.  16 

A.  A  Coleta  em  Favor  dos  Pobres  de  Jerusalém.  Cap. 

16:1-4. 

1  Quanto  á  coleta  para  os  santos,  fazei  vos  tam- 
bém  como  ordenei  as  igrejas  da  Galácia.  2  No  primeiro 
día  da  semana  cada  um  de  vós  ponha  de  parte,  em 
casa,  conforme  a  sua  prosperidade,  e  vá  juntando,  para 
que  se  nao  fagam  coletas  quando  eu  fór.  3  E,  quando 
tiver  chegado,  enviarei,  com  cartas,  para  levarem  as 
vossas  dádivas  a  Jerusalém,  aqueles  que  aprovardes.  4 
4  Se  convier  que  eu  também  vá,  éles  iráo  comigo. 

Nao  vale  a  pena  discutir  se  as  instrucóes  dadas,  aquí, 
com  referencia  as  ofertas  para  os  cristáos  pobres  de  Jerusa- 
lém devem  ser  consideradas  como  décimo-primeiro  e  último 
tópico  desta  epístola,  ou  se  constituem  o  primeiro  parágrafo 
de  seu  capítulo  final.  A  mente  do  apostólo,  pelo  menos,  essa 
coleta  se  apresentava  como  da  maior  importancia,  nao  sendo 
difícil  descobrir  a  razáo  do  seu  profundo  interesse  no  caso. 
Antes  de  tudo,  a  simpatía  crista  levava-o  a  procurar  alivio 
para  seus  irmáos  e  companheiros,  particularmente  por  se 
tratar  de  patricios  seus.  Aliás,  no  Concilio  de  Jerusalém,  ao 
aceitar  o  encargo  de  evangelizar  o  mundo  gentílico,  prome- 
terá lembrar-se  daquéles  crentes  pobres.  Seu  principal  mo- 
tivo, pcrém,  era  o  desejo  de  congracar  os  dois  elementos  da 
Igreja,  gentíos  e  judeus,  por  ésse  ato  de  caridade  que,  para 
estes  últimos,  seria  expressáo  da  simpatía  dos  cristáos  gentíos 
por  éles,  bem  como  sinal  da  genuinídade  de  sua  fé. 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


É  fácil  também  saber  por  que  havia  tantos  pobres  entre 
os  cristáos  de  Jerusalém.  A  única  razáo  nao  foi,  como  alguns 
tém  dito,  aquéle  ensaio  pouco  prudente  de  comunismo  cristáo 
a  que  éles  se  aventuraram.  A  comunidade  de  bens  fora  só 
temporária,  ocasional  e  voluntária.  A  causa  mais  provável 
e  constante  fóra  a  perseguicáo  e  o  ostracismo  social  sofridos 
pelos  cristáos  em  Jerusalém  da  parte  de  seus  concidadáos. 
A  prosperidade  económica  daquela  cidade  dependía  em  larga 
escala  dos  ritos  e  cerimonias  do  Judaismo.  É  claro,  pois,  que 
os  convertidos  ao  Cristianismo  só  podiam  encontrar  alí  di- 
ficuldades  para  arranjar  trabalho  que  Ihes  garantisse  a  sub- 
sistencia. De  qualquer  modo,  as  aperturas  daquéles  cristáos 
eram  bem  grandes.  Para  socorré-los  Paulo  envidou  esforgos, 
procurando  angariar  ofertas  em  todas  as  igrejas  que  havia 
fundado. 

Tratou-se  do  caso  com  os  corintios,  mas  pouco  fizeram. 
Porisso  é  que  Paulo  Ihes  repete  agora  as  instrugoes  que,  a 
respeito,  dera  as  igrejas  da  Galácia.  Tais  instrucoes,  de  gran- 
díssimo  valor  para  as  igrejas  de  hoje,  encerram  a  maior  parte 
das  regras  necessárias  ao  exercício  da  beneficencia  crista  e 
á  administracáo  das  finanzas  da  Igreja. 

(1)  As  ofertas  seráo  feitas  por  cada  membro  da  congre- 
gagáo.  ''Cada  um  de  vós  ponha  de  parte,  em  casa".  Ricos  e 
pobres,  velhos  e  mogos,  todos  devem  entrar  com  sua  parte 
neste  servigo. 

(2)  As  ofertas  seráo  sistemáticas.  Cada  um  deverá  con- 
tribuir, e  isto  semanalmente.  "O  primeiro  dia  da  semana'* 
já  era  reconhecido  no  tempo  de  Paulo  como  o  dia  do  Senhor, 
dia  da  ressurreicáo.  É  um  dia  conveniente  para  atos  regu- 
lares, como  éste,  de  culto  cristáo  —  contribuir  para  o  sus- 
tento da  obra  do  Senhor. 

(3)  Ainda  uma  terceira  regra,  a  da  proporcionalidade. 
Alguns  podem  dar  mais,  outros  daráo  menos.  Cada  um  de- 
verá  dar  "conforme  a  sua  prosperidade".  Um  modo  de  siste- 
matizar as  ofertas  de  beneficéncia  é  entrar  com  uma  parte 
certa,  definida,  como  por  exemplo  o  décimo  da  renda.  As 
quantias  entregues  com  regularidade  crescem  de  volume, 
tomando-se  menor  a  carga  para  todos,  o  que  nao  sucede 
quando  as  contribuigóes  se  fazem  extemporánea  e  irregu- 
larmente. 

(4)  Náo  deve  ser  necessário  usar  apelos  ocasionáis  e 
emocionantes,  para  que  os  crentes  contribuam.    Paulo  ex- 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  153 


pressou  o  dése  jo  de  que  nao  se  fizessem  coletas  quando  éle 
chegasse,  pois  quería  devotar-se  á  instrugáo  dos  corintios  e 
nao  ocupar  seu  tempo  com  essa  arrecadacáo  de  dinheiro.  Sua 
visita  poderia  dar  oportunidade  a  que  se  levantasse  grande 
soma,  mas  éle  queria  que  éste  assunto  se  resolvesse  antes  de 
sua  chegada. 

(5)  Quando  se  fazem  apelos  de  ve  haver  os  mais  elevados 
motivos.  É  natural,  entáo,  que  muitos  opinem  que  éste  pará- 
grafo relativo  as  ofertas  se  ja  posto  no  fim  do  cap.  precedente, 
como  parte  integrante  do  "assunto  ai  tratado.  Depois  de  se 
deter  por  longo  tempo  apreciando  a  gloria  da  ressurreicáo 
e  da  vida  futura,  Paulo  acrescenta  inopinadamente:  "Quanto 
á  coleta  para  os  santos ..."  A  ressurreicáo  seria  um  motivo 
de  contribuicáo.  Essa  coleta  seria  parte  da  "obra  do  Senhor" 
em  que  os  fiéis  deviam  ser  abundantes  á  vista  da  vitória  que 
Ihes  pertencia  "por  intermédio  de  nosso  Senhor  Jesús  Cristo". 

(6)  Os  fundos  de  beneficéncia  devem  ser  administrados 
cuidadosamente.  Cumpria  aos  corintios  nomear  uma  comis- 
sáo  de  financas,  uma  junta  administrativa,  que  zelasse  pelas 
ofertas.  Aquéles  que  fóssem  cuidadosamente  escolhidos,  ao 
chegar,  daria  cartas  de  recomendacáo  para  a  igreja  de  Jeru- 
salém.  Existe  algo  de  tocante  nessa  providéncia.  Os  intuitos 
de  Paulo  tinham  sido  mal  interpretados.  Insinuacoes  ma- 
liciosas tinham  sido  feitas  em  torno  de  um  pretenso  interésse 
pessoal  do  apostólo  naquelas  ofertas.  Éle,  entáo,  procura 
precatar-se  contra  o  menor  fundamento  de  suspeita.  Entre- 
tanto, essa  providéncia  deve  sempre  ser  tomada  relativamente 
á  administracáo  de  fundos  de  beneficéncia.  Deve-se  manter 
uma  escrituragáo  regular  de  todo  o  movimento,  para  se  pre- 
venir qualquer  suspeita  de  peculato. 

(7)  As  ofertas  de  beneficéncia  devem  ser  bastante  gene- 
rosas para  que  sejam  dignas  de  Cristo  e  de  seus  servos.  Paulo 
dá  a  entender  que  éle  irá  levar  a  Jerusalém  as  ofertas  das 
igrejas,  se  elas  forem  bastante  vultosas  para  atribuir  impor- 
tancia a  essa  viagem.  Se  convier  que  vá,  os  mensageiros  da 
parte  da  igreja  o  acompanharáo. 

Algumas  ofertas  se  tornam  despreziveis  nao  por  serem 
pequeñas,  mas  porque  ficam  muito  aquém  do  que  podem 
ser.  Sáo  uma  vergonha  para  a  Igreja  e  para  aquéles  que  a 
representam.  Tem-se  acanhamento  de  prestar  relatório  de 
quantias  táo  mesquinhas.  As  ofertas  dos  crentes  devem  cor- 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


responder  á  profissáo  que  éles  fazem  de  desapego  ás  ooisas 
da  térra,  e  de  serem  hefdeiros  do  celestial  Reino  de  Cristo. 


B.  As  Visitas  de  Paulo,  Timoteo  e  Apolo.  Cap.  16:5-12. 

5  Irei  ter  convosco  por  ocasiáo  da  minha  passa- 
gem  pela  Macedónia,  porque  devo  percorrer  a  Mace- 
dónia.  6  E  bem  pode  ser  que  convosco  me  demore,  ou 
mesmo  passe  o  invernó,  para  que  me  encaminheis  ñas 
viagens  que  eu  tenha  de  fazer.  7  Porque  nao  quero 
agora  ver-vos  apenas  de  passagem,  pois  espero  perma- 
necer convosco  algum  tempo,  se  o  Senhor  o  permitir. 
8  Ficarei,  porém,  em  Éfeso  até  ao  Pentecoste;  9  por- 
que urna  porta  grande  e  oportuna  para  o  trabalho  se 
me  abriu;  e  há  muitos  adversários.  10  E,  se  Timoteo 
fór,  vede  que  esteja  sem  receio  entre  vos,  porque  traba- 
Iha  na  obra  do  Senhor,  como  tambcm  eu;  11  ninguém, 
pois,  o  despreze.  Mas  encaminhai-o  em  paz,  para  que 
venha  ter  comigo,  visto  que  o  espero  com  os  irmáos. 
12  Acerca  do  irmáo  Apolo,  muito  Ihe  tenho  recomen- 
dado que  fósse  ter  convosco  em  companhia  dos  irmáos, 
mas  de  modo  algum  era  a  vontade  déle  ir  agora;  irá, 
porém,  quando  se  Ihe  deparar  boa  oportunidade. 

Mencionando  a  oferta  em  favor  dos  pobres,  Paulo  referiu 
sua  próxima  visita  a  Corinto.  Agora  detem-se  a  esclarecer 
mais  os  planos  que  visa  executar.  Em  vez  de  deixar  Éfeso 
mais  cedo  e  viajar  diretamente,  rumo  ao  ocidente,  a  Corinto, 
acha  necessário  prolongar  sua  estada  alí,  propondo-se  agora 
ir  via  Macedónia.  Frisa  o  fato  de  que  deverá  "percorrer  a 
Macedónia",  seja  para  indicar  uma  modificagáo  em  seu  pla- 
no, seja  para  mostrar,  como  alguns  supoem,  que  sua  viagem 
será  uma  excursáo  evangelística,  visando  com  ela  completar 
o  trabalho  comegado  em  sua  primeira  missáo. 

Há  outra  razáo  para  demorar-se  em  Éfeso.  Se  fór  imedia- 
tamente  a  Corinto,  terá  de  tratar  com  severidade  os  membros 
daquela  igreja.  Deseja  dar-lhes  tempo  bastante  para  resolve- 
rem  alguns  dos  problemas  sérios  a  que  se  referiu.  Mas  a  causa 
principal  da  demora  em  Éfeso  é  que  alí  se  oferecia  agora,  ao 
trabalho  de  evangelizagáo,  boa  oportunidade:  "porque  uma 
porta  grande  e  oportuna  para  o  trabalho  se  me  abriu".  Além 
disso,  havia  "muitos  adversários",  o  que  era  mais  uma  razáo 
para  se  demorar  lá,  visto  precisar  combater  ésses  inimigos 
no  interésse  da  obra. 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS  155 


Embora  protele  assim  a  sua  viagem  a  Corinto,  sua  visita 
a  esta  cidade  nao  será  feita  as  pressas.  Nao  dése  ja  apenas 
passar  pela  cidade,  mas  permanecer  lá  por  algum  tempo. 
Os  negocios  da  igreja  alí  demandam  muita  cautela,  agáo 
ponderada  e  nao  de  afogadilho.  Pode  até  passar  o  invernó 
lá  e  dar-lhes  oportunidade  a  que  o  encaminhem  ñas  viagens 
que  tenha  de  fazer,  seja  em  demanda  de  Jerusalém,  se  ficar 
decidido,  seja  em  diregáo  do  ocidente,  a  Roma,  o  que  ele 
tanto  almeja. 

Timoteo  fóra  enviado  a  Corinto.  Nao  se  sabe  ao  certo  o 
tempo  em  que  alí  chegou,  nem  coisa  alguma  dessa  visita. 
Se  vier,  pede  o  apostólo  que  o  recebam  cordialmente.  Sua 
mocidade,  sua  natural  timidez  e  sensibilidade,  possivelmente 
sua  falta  de  cultura  podiam  induzir  os  corintios  a  tratá-lo 
com  descortezia.  Lembra-lhes  o  apostólo  que  Timoteo  está 
empenhado  no  servigo  de  Cristo,  tanto  quanto  ele,  e  assim 
é  digno  da  maior  consideragáo.  Sua  missáo  entre  éles  era 
delicada  e  difícil,  porisso  o  apostólo  insiste  em  que  o  man- 
dem  de  volta  em  paz. 

Paulo  gostaria  de  enviar-lhes  um  mensageiro  mais  idoso, 
como  Apolo.  Havia  até  instado  com  éste  a  que  fósse.  Mas 
Apolo  recusou-se  terminantemente.  Parece  que  estava  muito 
desgostoso  com  aquelas  dissengoes  partidárias  em  Corinto,  as 
quais  davam  a  entender  ser  ele  rival  de  Paulo.  Nada  tinha 
a  ver  com  essa  rivalidade  e  porisso  insistía  em  ir  adiando  sua 
visita  áquela  igreja  até  que  a  situagáo  amainasse  e  se  mos- 
trasse  mxais  favorável.  Nésse  ínterim  Timoteo  foi  enviado. 
É  com  profunda  solicitude  que  Paulo  aguarda  o  relatório 
que  ele  e  seus  companheiros  Ihe  traráo. 


C.  Exortagoes  e  Saudagoes  Fináis.  Cap.  16:13-24. 

13  Sede  vigilantes,  permanecei  firmes  na  fé,  por- 
tai-vos  varonilmente,  fortalecei-vos.  14  Todos  os  vossos 
atos  sejam  feitos  com  amor.  15  E  agora,  irmáos,  eu  vos 
pe?o  o  seguinte:  (sabéis  que  a  casa  de  Estéfanas  é  as 
primicias  da  Acaia,  e  que  se  consagraram  ao  servido 
dos  santos),  16  que  também  vos  sujeiteis  a  esses 
tais,  como  também  a  todo  aquéle  que  é  cooperador  e 
obreiro.  17  Alegro-me  com  a  vinda  de  Estéfanas,  e  de 
Fortunato  e  de  Acaico;  porque  estes  supriram  o  que  da 
vossa  parte  faltava.  18  Porque  trouxeram  refrigério  ao 


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CHARLES  R.  ERDMAN 


meu  espirito  e  ao  vosso.  Recoiihecei,  pois,  a  homens 
como  estes.  19  As  igrejas  da  Asia  vos  saúdam.  No  Se- 
nhor  muito  vos  saúdam  Aquila  e  Priscila  e,  bem  assim, 
a  igreja  que  está  na  casa  déles.  20  Todos  os  irmáos 
vos  saúdam.  Saiidai-vos  uns  aos  outros  com  ósculo 
santo.  21  A  saudagáo,  escrevo-a  eu,  Paulo,  de  próprio 
punho.  22  Se  alguém  nao  ama  ao  Senhor,  seja  anáte- 
ma.  Maranata!  23  A  graca  do  Senhor  Jesús  seja  con- 
vosco.  24  O  meu  amor  seja  com  todos  vós  em  Cristo 
Jesús. 

Chegando  ao  ponto  em  que  vai  encerrar  sua  epístola, 
Paulo  faz  exortagoes  concisas,  de  sentido  bem  claro,  como  se 
foram  ordens  a  soldados:  vigiai,  estai  firmes,  sede  corajosos, 
fortes,  bondosos.  Expressa  o  imenso  prazer  e  o  grande  alivio 
que  experimentou  com  a  presenga  e  as  mensagens  dos  dele- 
gados de  Corinto.  Menciona  particularmente  Estéfanas  que, 
juntamente  com  sua  familia,  fóra  o  primeiro  grego  convertido 
a  Cristo  e  que  se  devotara  em  servir  á  Igreja.  Paulo  insiste 
que  tais  homens  sao  dignos  de  toda  a  deferencia.  Podem 
ser  ouvidos  e  obedecidos  sem  recelo  algum. 

A  primeira  das  saudagoes  fináis  procede  das  igrejas  da 
Asia;  nao  sómente  de  Éfeso,  como  de  toda  a  provincia.  Paulo 
nao  visitara  todas  aquelas  comunidades  cristas,  todavía  es- 
tava  rodeado  de  representantes  seus  e,  destarte,  conhecia 
como  aquelas  igrejas  simpa  tiza  vam  com  os  corintios.  Paulo 
gostava  de  enlagar  assim  as  igrejas,  servindo-se  de  expressoes 
chelas  de  amor.  A  segunda  saudacáo  enderegam-na  Aquila  e 
Prisca,  amigos  pessoais  do  apostólo.  Devem  os  corintios  lem- 
brar  que  éste  casal  hospedou  a  Paulo,  enquanto  lá  esteve. 
Depois,  haviam  arriscado  a  vida  por  ele.  A  saudagáo  de  Aquila 
e  Prisca  junta-se  a  de  toda  a  sua  familia  e  de  todos  os  cristáos 
efésios  que,  na  sua  casa  hospitaleira,  se  reunem  para  o  culto. 
Segue-se  a  saudagáo  de  toda  a  irmandade  de  Éfeso:  "Todos 
os  irmáos  vos  saúdam". 

Quando  ouvissem  1er  estas  saudagoes  de  afeto  espiritual, 
os  corintios  estavam  convidados  a  expressar,  por  sua  vez,  seu 
companheirismo  em  Cristo,  mediante  a  saudagáo  cerimonial 
do  "ósculo  santo". 

E  chega  o  momento  de  Paulo,  com  solenidade,  apor  ao 
manuscrito  o  sinal  de  próprio  punho,  sua  saudagáo  autogra- 
fada.  Esta  consiste  (1)  no  título:  "A  saudagáo,  escrevo-a  eu, 
Paulo,  de  próprio  punho".  (2)  Segue-se  um  duplo  moto,  cuja 


PRIMEIRA  EPISTOLA  DE  PAULO  AOS  CORINTIOS 


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primeira  cláusula  declara  maldito,  "anátema",  quem  quer 
que  professe  crer  em  Cristo,  mas  nao  sinta  por  Éle  real 
afeicáo.  A  segunda  cláusula  consiste  em  duas  palavras  ara- 
maicas  —  "Maraña  tha"  —  multas  vézes  traduzidas:  "ó 
Senhor,  vem!"  Traz  isto  á  lembranga  a  súplica  final  do  Apo- 
calipse:  "Vem,  Senhor  Jesús".  Há,  por  outro  lado,  quem 
entenda  essa  expressáo  aramaica  como  significando  urna  pro- 
messa  profética:  "O  Senhor  vem",  "sua  volta  se  aproxima", 
''perto  está  o  Senhor",  "Maraña  tha". 

(3)  Havendo  declinado  a  grande  senha  da  Igreja,  usada 
nesta  expectativa  da  vinda  do  Senhor,  Paulo  acrescenta  sua 
béncáo,  e  o  faz  empregando  suas  palavras  favoritas  de  des- 
pedida: "A  graca  do  Senhor  Jesús  seja  convosco".  E  como 
nao  fez  em  nenhuma  outra  de  suas  epístolas,  poe  o  ponto 
final  com  palavras  de  ternura  e  amor.  Fóra  compelido  a 
censurar  severamente  os  leitores,  por  causa  de  suas  desaven- 
gas, mas  agora  assegura  a  todos  éles  o  seu  afeto:  "O  meu 
amor  seja  com  todos  vos  em  Cristo  Jesús.  Amém". 


F  I  M 


Éste  liyro  foi  composto  e  impresso 

em  Dezembro  de  1956.   ñas  oficinas 

GRÁFICA  MERCÚRIO  S.  A. 
Al.  Cleveland.  3^3  -  Sao  Paulo  -  BraaU 


I