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Full text of "A primeira mulher de Camilo"

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in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/primeiramulherdeOOpime 


ALBERTO  PIMENTEL 


A  PRIMEIRA  IMIILHER 


DE 


CAMILO 


Ha  relâmpagos  òe  memoria  que  abrem 
i:m  vinco  na  fronte  òo  homem.  E  a  ve- 
lhice extemporânea  òe  alguns  o  que  é  se 
não  recorôarem-se  ? 

CAMILO  CASTELO  BRANCO—   A    Ei\  ^''eitad.i . 


1916 

GUIiMARÃES   &   C.»  —  Editores 

68,  Rua  do  Munõo,  70 

LISBOA 


H  primeira  mulher  ^e  Camilo 


Composto  e  impresso  na  Imprensa 
-»  «  Je  Manuel  Lucas  Torres  ■*  ^ 
K.  Diário  de  Xotici^is,  &j  a  qJ,  Lisboa 


ALBERTO  PIMENTEL 


A  PRIMEIRA  MILHER 


DE 


CAMILO 


Ha  relâmpagos  òe  memoria  que  abrem 
um  vinco  na  fronte  òo  homem.  E  a  ve- 
lhice extemporânea  òe  alguns  o  que  é  se 
não  recorõarem-se? 

CAMILO  CASTELO  BRANCO  —  A  Euç^eitadã. 


19  16 

QULMARÃES    e^   C.a  —  Editores 

68,  Rua  òo  Munòo,  70 

LISBOA 


.    'Z75^ 


JUN  2  7  195c' 


A  MEMORIA 


DE 


Jlnimio    de    Jl^tt^adc    6aéfc(c.    zStancu, 


falecido  ew  5  de  janeiro  de  ir/iíj. 


A  primeira  mulher  de  Camilo 


Silêncio  injustificado 

Quanto  à  primeira  mulher  de  Camilo  Castelo 
Branco  não  serão  para  desprezar  as  informações  no- 
vas, que  hoje  trago  a  lume,  absolutamente  inéditas. 

Mas  careço  de  evocar  algumas  passagens  concer- 
nentes ao  mesmo  assunto,  que  se  encontram  em  duas 
ou  três  obras  minhas,  e  faço-o  por  amor  da  sequên- 
cia lógica  desta  breve  narrativa. 

O  grande  romancista  ocultou  sistematicamente  o 
facto  de  ter  contraído  primeiras  núpcias  com  uma 
camponesa  residente  em  Friííme,  e  parece  que  che- 
gou a  negá-lo.  segundo  uma  referência  insuspeita  de 
António  de  Azevedo  Castelo  Branco  em  carta  diri- 
gida ao  visconde  de  S.  Miguel  de  Seide. 

Pelo  menos,  ocultá-lo  em  documentos  oficiais  cor- 
respondia a  negá-lo. 


A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO 


Assim,  quando  em  outubro  de  1846  entrou  na 
Cadeia  do  Porto  por  haver  raptado  D.  Patrícia  Emí- 
lia do  Carmo,  fez-se  inscrever  como  solteiro,  sendo 
ainda  viva  a  sua  primeira  mulher.  E  quando  em  1 852 
se  habilitou  naquela  mesma  cidade  para  tomar  or- 
dens menores  —  o  que  não  efectivou  —  omitiu  na 
petição  ao  bispo  o  estado  de  viúvo. 

Mas,  no  respectivo  processo  eclesiástico,  o  abade 
da  Sé.  atestando  pro  moribiis.  declara  ser  o  peticio- 
nário «viuvo  de  D.  Joaquina  Pereira  de  França.» 
(Nunca  uma  aldeã  íoi  mais  digna  de  a  honorificarem. 
Dona). 

Tinha  conhecimento  daqueles  autos  de  ordens  o 
ilustre  cónego  Alves  Mendes,  amigo  desvelado  de 
Camilo,  e,  por  isso.  quando  em  1885  começou  de- 
dicadamente a  promover  o  casamento  do  insigne  es- 
critor com  D.  Ana  Plácido,  para  conseguir  a  dis- 
pensa de  proclamas  solicitou,  perante  o  arcebispo 
de  Braga,  uma  justificação  legal  do  falecimento  de 
D.  Joaquina  Pereira  França. 

Foi  o  mesmo  cónego  Alves  Mendes  quem  me  co- 
municou todos  estes  pormenores,  que  mais  tarde 
comprovou  com  a  oferta  de  documentos,  por  mim 
publicados  em   1890  no  Romance  do  romancista, 

Camilo  nunca  revelou  aos  seus  íntimos,  nem  em 
-^malquer  dos  seus  livros  —  tão  ricos  de  dados  au- 


A   PRIMEIRA   MULHER  DE  CAMILO 


tobiográficos  —  referiu,  clara  e  directamente,  a  his- 
tória do  seu  primeiro  casamento. 

Mas  eu  surpreendi,  em  algumas  das  suas  obras, 
insistentes  impressões  que  êle  guardara  desde 
Friííme  e  que  propositadamente  desfigurava  quanto 
às  personagens  principalmente. 

Camilo  contou,  sem  nenhum  disfarce,  os  seus  idí- 
lios amorosos  com  duas  camponesas  da  Samardan. 
Luisa,  donairosa  ^<flôr  dentre  as  fragas  ^>,  ^  e  Maria 
do  Adro,  a  triste  e  pálida  aldeã.  ■ 

l  Então  por  que  se  obstinaria  em  ocultar,  ou  re- 
negar, o  seu  consórcio  com  outra  camponesa  ? 

Por  isso  mesmo  que  a  desposou,  fazendo  um  ca- 
samento obscuro,  cuja  confissão  pareceria  desairosa 
às  suas  tendências  aristocráticas,  à  sua  culminância 
literária  e  evidência  social,  que  depois  tão  justifica- 
damente conquistou. 

Não  se  esquivara  Camilo  a  comemorar  publica- 
mente os  galanteios  serranos,  que  não  tinham  che- 
gado a  criar  uma  situação  doméstica,  a  estabelecer 
laços  de  família,  a  autorizar  a  vida  em  comum  que 
o  casamento  sanciona. 

Mas  dir-se-ia  envergonhado  da  afeição  que  o  le- 


'  Duas  horas  de  leitura,  Cm  livro,  Memórias  do  cárcere. 
-  Duas  horas  de  leitura. 


10  A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO 


vára  ao  matrimónio  como  se  fora  qualquer  dos  seus 
brasileiros  que,  regressando  à  terra  natal,  houvesse 
desposado  a  filha  do  feitor,  rapariga  tão  apetitosa 
quanto  humilde. 

Camilo  receava  até  a  possibilidade  de  se  falar 
nisso,  consoante  disse  António  de  Azevedo  na  carta 
já  citada. 

Quando,  tendo-me  pedido  informações  sobre  o  tra- 
balho da  sua  biografia,  eu  lhe  confessei  lealmente  no 
Hotel  Borges,  em  Lisboa,  que  possuia  uma  certidão 
do  seu  primeiro  casamento,  Camilo  retorquiu-me, 
excitado : 

—  Esse  casamento  foi  uma  infâmia. 

A  isto  respondi  eu  com  a  mesma  lealdade : 

—  Tenho  provas  de  que  foi  apenas  a  consequên- 
cia duma  criancice  aos  dezasseis  anos. 

Mas  essa  criancice,  que  teve  uma  sanção  honrosa, 
e  que,  portanto,  não  podia  nem  devia  envergonhar 
Camilo  :  essa  legalizada  aventura  primaveril,  que 
êle  tanto  queria  recatar  no  maior  sigilo,  muitas  vezes 
a  recordou  intimamente  com  secreta  saudade,  sem 
todavia  a  querer  confessar  francamente. 

Espero  demonstrá-lo  nesta  monografia,  cujo  plano 
comportará,  primeiro,  o  que  já  escrevi  sobre  o  mesmo 
assunto  no  Romance  do  romancista^  nos  Amores  de 
Camilo  e  no  prefácio  da  sua  comédia  póstuma  O 


A  PRIMEIRA  MULHER   DE   CAMILO  U 

Labis-hotneni;  depois,  as  minhas  pesquisas  recentes. 
quanto  à  família  de  D.  Joaquina  Pereira  França  :  por 
último,  o  estudo  psicológico  das  páginas  que  melhor 
traduzem  as  recordações  saudosas  do  eminente  es- 
critor, sempre  veladas  num  injustificado  mistério  de 
alma. 


II 

Transcrições 

Do  Romance  do  romancista  (1890) : 

«Francisco  Xavier  Alves,  Reitor  da  freguezia  do 
Salvador  da  Ribeira  de  Pena,  archidiocese  de  Braga  : 

«Certifico  e  atesto,  que  em  um  livro  dos  assen- 
tos de  casamento  d*esta  freguezia  do  Salvador,  con- 
celho de  Ribeira  de  Pena.  archidiocese  de  Braga, 
está  lavrado  a  fl.  43  o  assento  do  teor  seguinte : 
«Camillo  Ferreira  Botelho  Castello  Branco,  filho  de 
Manuel  Joaquim  Botelho  Castello  Branco,  e  Jacinta 
Rosa  Almeida  do  Espirito  Santo,  da  cidade  de  Lis- 
boa e  de  presente  assistente  n'esta  freguezia  do  Sal- 
vador, e  Joaquina  Pereira,  filha  de  Sebastião  Mar- 
tins dos  Santos  e  Maria  Pereira  de  França,  do  lugar 
de  Friume,  desta  freguezia  do  Salvador  da  Ribeira 
de  Pena,  contrahiram  o  Sacramento  do  matrimonio 
por  seus  mútuos  e  expressos  consentimentos  ///  fa- 


A    PRIMEIRA  MULHER   DE   CAMILO  13 

cie  EcclesícB  conforme  o  Concilio  Tridentino  e  Cons- 
tituição do  Arcebispado  com  commutação  de  procla- 
mas para  depois  de  recebidos  na  minha  presença  e 
das  testemunhas  abaixo  assignadas,  a  dezoito  d" Agos- 
to de  mil  e  oitocentos  e  quarenta  e  um  :  testemunhas 
presentes  o  Padre  José  Maria  de  Souza,  do  Pontido 
d'Aguiar  e  Francisco  Ribeiro  Moreira,  de  Friume, 
d'esta  freguezia  :  e  para  constar  fiz  este  termo  era  at 
supra.  O  Encommendado  Domingos  José  Ribeiro. 
O  Padre  José  Maria  de  Souza.  Francisco  Ribeiro 
Moreira.  Tema  margem  «Friume  eVilla  Real,»  E' 
copia  do  próprio  original,  a  que  me  reporto.  Epor  ser 
verdade  passei  a  presente  que  juro  infide  Parochi. 
Parochial  do  Salvador  da  Ribeira  de  Pena,  2 1  de  No- 
vembro de  1887  e  sete  — Francisco  Xavier  ALves.» 

Acrescentarei  agora  que  a  assinatura  de  Fran- 
cisco Ribeiro  Moreira,  como  testemunha,  prova  que 
D.  Rita  Emília  da  Veiga  Castelo  Branco,  tia  de  Ca- 
milo, consentiu  no  casamento,  porquanto  esta  senhora 
era  sogra  daquele  Ribeiro  Moreira,  abastado  pro- 
prietário em  Friíime. 

Pensaria  éla,  talvez,  que  o  sobrinho,  casando  com 
uma  rapariga  linda,  postoque  de  modesta  condição, 
renunciaria  a  novas  rapaziadas  e  que  o  sogro  assu- 
miria o  encargo  de  olhar  por  êle. 


14  A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO 


D.  Rita  Emília,  geralmente  conhecida  em  Vila 
Real  por  D.  Rita  Brocas,  tivera  de  receber  Camilo 
e  a  irmã  quando  ficaram  órfãos  :  o  conselho  de  fa- 
mília, reunido  em  Lisboa,  resolvera  enviar-lhos. 

Manuel  Joaquim  Botelho  Castelo  Branco,  pai  de 
Camilo,  vivera  de  escassos  rendimentos,  pelo  que 
teve  de  exercer  um  cargo  público,  e  deixara  credo- 
res. 

Assim,  pois,  o  «esperançoso  património»,  a  que 
se  referiu  Camilo,  é  uma  frase  que  não  corresponde 
à  verdade  dos  factos. 

Nem,  como  êle  supunha,  foi  uma  lei  da  Senhora 
D.  Maria  I  que  o  deserdou.  ^ 

Vem  a  propósito,  e  pode  esboçar-se  rapidamente, 
a  história  dessa  lei. 

No  século  XVIII,  D.  Leonor  Maior  Lobo  da  Gama. 
dama  nobre,  sucedeu,  por  morte  de  Luís  Lobo  da 
Gama.  seu  irmão,  na  administração  dos  bens  da  casa. 

Mas  apareceram  em  juizo  dois  filhos  legitimados 
do  fidalgo  a  reivindicar  tanto  os  bens  alodiais,  como 
os  vínculos.  D.  Leonor,  decaída  nos  tribunais  ordiná- 
rios, recorreu  para  a  Coioa,  que  estabeleceu  a  dou- 
trina de  que.  existindo  quaisquer  legítimos  descen- 


'  T)uas  horas  de  leitura. 


A   PRIMEIRA    MULHER   DE   CAMILO  15 


dentes  dos  instituidores  dos  vínculos,  não  produzi- 
riam efeito  as  cartas  de  legitimação,  ' 

Manuel  Botelho  reconheceu  como  seus  filhos  Ca- 
milo e  Carolina  em  27  de  junho  de  1829. 

O  respectivo  «instrumento  de  legitimação  e  per- 
filhação» ^  diz  que  o  pai  vivia  dos  seus  rendimentos 
e  não  declara  o  nome  da  mãe.  (Mãe  incógnita,  se- 
gundo a  frase  tabelioa). 

Certamente  avisado  pelo  notário  de  que  era  pre- 
ciso evitar  a  aplicação,  por  analogia,  da  provisão  ré- 
gia de  1799,  Manuel  Botelho  resolveu  acautelar-se 
obtendo  o  seguinte  documento : 

«Senhor. 

«Manda-me  Vossa  Real  Magestade  Fidelíssima 
responder  ao  requerimento  de  meu  Irmão  Manoel 
Joaquim  Botelho  Castello-Branço,  como  única  inte- 
ressada á  sua  herança,  se  elle  fallesce-se  ab  intes- 
tato,  a  fim  da  Perfilhação  de  hum  se  a  filho  Natural 
Camillo  Ferreira  Botelho  Castello  Branco  e  de  huma 
filha  Carolina  Ritta  Botelho  Castello  Branco,  nada 


'  Resolução  régia  òe  16  òe  òezembro  òe  1798  e  Provisão 
òe  18  òe  janeiro  òe  1799. 

^  Publicaòo  integralmente  pelo  sr.  Peòro  òe  Azeveòo  nos 
Antepassados  de  Camilo. 


16  A   PRIMEIRA   MULHER   DE  CAMILO 

tenho  que  dizer,  e  antes  muito  louvo  ao  ditto  meu 
Irmão  Recorrente,  os  seus  honrados  sentimentos  de 
bom  Catholico.  e  por  isso  a  tudo  presto  o  meu  con- 
sentimento, e  V.  R.  M.  F.  Mandará  o  que  fôr  justo. 
—  Villa  Real  20  de  Agosto  de  1829.  D.  Ritta  Emilia 
Castello  Branco.»  ^  (Segae-se  o  reconhecimento,) 

Seis  anos  depois,  a  22  de  dezembro  de  1835, 
Manuel  Botelho  falecia  em  Lisboa,  na  rua  dos  Dou- 
radores.  29,  freguesia  de  Santa  Justa.  - 

Em  1836  publicava  o  Diário  do  Governo,  n.''  37, 
de  sexta-feira   12  de  fevereiro,  este  aviso  judicial: 

«Pelo  Juízo  de  Paz  da  Freguesia  de  Santa  Justa 
se  precede  a  inventario  dos  bens  ficados  por  óbito 
de  Manoel  Joaquim  Botelho  Castello  Branco*:  todos 
os  credores  que  o  forem  ao  casal  do  dito  fallecido 
concorrerão  ao  dito  Juizo  no  prazo  de  quinze  dias, 
contados  da  data  deste  annuncio.  a  legalisar  seus  cré- 
ditos, para  no  acto  da  partilha  se  lhe  dar  pagamento.  >> 


^  Arquivo  Nacional  —  Desembargo  òo  Paço,  maço  553. 
Ministério  òo  Reino.  (Vi  este  õocumento  por  inòicação  òo 
sr.  PeDro  òe  Azeveòo.) 

-Comunicação  òo  òr.  João  òe  Meira,  em  carta  òe  7  òe 
março  òe  1906. 


A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO  17 

O  cadáver  de  Manuel  Botelho  foi  lançado  à  vala 
comum,  n.°  7,  do  cemitério  oriental  (Alto  de  S.  João). 

E  o  minguado  espólio,  se  algum  remanesceu  do 
pagamento  de  dívidas,  não  chegou  para  que  a  edu- 
cação dos  dois  órfãos  decorresse  em  colégios  de  Lis- 
boa, como  seria  conveniente,  se  para  isso  houvesse 
recursos  pecuniários  bastantes. 

Carolina  e  Camilo,  ficando  pobres,  tiveram  de  ser 
recebidos  em  Vila  Real  *  pela  mesma  tia  que  a  fa- 
vor deles  havia  renunciado  aos  direitos  duma  hipo- 
tética herança. 

Mas  Camilo,  rapaz  travesso,  fugira  de  casa  de 
D.  Rita  Brocas,  e  viera  para  Lisboa  aventurosamente. 

Foi,  porém,  reenviado  a  Trás-os-Montes,  onde. 
depois  do  casamento  de  sua  irmã  Carolina  com  o 
medico  Azevedo,  encontrou  mais  carinhosa  e  instru- 
tiva hospedagem  na  casa  deles,  em  Vilarinho  da  Sa- 
mardan.  - 


1  «Tinha  eu  òez  annos,  e  vivia  em  Villa  Real  »  Memo- 
rias do  cárcere,  I.,  cap.  XV. 

-  «N'esta  Samarôan  passei  eu  os  òescuiòos  e  as  alegrias 
ôa  infância,  na  companhia  òe  minha  irman,  que  aili  casou, 
e  ô'aquelie  paòre  António  ò'Azeve()o,  alma  òe  Deus  ..  Me- 
ritórias do  cárcere,  II,  cap.  XXX. 

«Vivi  òois  annos  com  este  prior.  As  nossas  camas  esta- 
vam no  mesmo  quarto.  Seroens  de  S.Miguel  de  Seide,  III. 

2 


18  A  PRIMEIRA  MULHER   DE   CAMILO 


Todavia  nem  D.  Rita  ficara  de  mal  com  o  sobri- 
nho, nem  o  sobrinho  de  mal  com  ela. 

E  assim  se  explica  que  o  jovem  Camilo  a  tivesse 
acompanhado  a  Friúme,  em  visita  a  Francisco  Ribeiro 
Moreira  e  sua  mulher,  genro  e  filha  da  mesma  D. 
Rita. 

Desposando  a  meiga  «Quininha»  —  docemente  a 
tratava  o  povo  por  este  deminutivo  —  Camilo  ficou 
em  Friúme.  onde  exerceu  o  cargo  de  amanuense 
dum  funcionário  público,  bastante  «acumulador»,  e 
lá  permaneceu  algum  tempo  sob  a  vigilância  e  a  pos- 
sível protecção  do  sogro,  que  se  lisonjeou  do  casa- 
mento da  filha  com  um  rapaz  inteligente  e  de  famí- 
lia conhecida  em  Trás-os-Montes, 

Aqui  suspendo  a  divagação. 

Do  livro  Os  amores  de  Camilo  (1899)  tomarei, 
na  sua  mesma  grafia,  as  páginas  baseadas  em  infor- 
mações a  que  posso  dãr  o  nome  de  «versão  de  Friú- 
me», porque  de  lá  vieram  e  me  foram  obsequiosa- 
mente fornecidas  por  uma  família  distinta. 

Reproduzo-as  apenas  com  os  ligeiros  retoques  que 
uma  futura  edição  exigia,  e  que  já  estavam  feitos 
antes  de  iniciadas  quaisquer  diligências,  junto  dos 
parentes  de  D.  Joaquina  Pereira  França,  para  obter 
a  sua  «versão  de  família». 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  19 

«Friume,  pequena  povoação  *  que  ainda  hoje  -  tem 
apenas  85  casas,  recosta-se  na  margem  esquerda  d? 
Tâmega  e  corôa-se  no  alto  por  uma  extensa  rocha, 
sobre  a  qual  assenta  a  capella  de  S.  Gonçalo. 

A  vegetação,  pela  abundância  pinturesca  que  a 
caracteriza,  faz  lembrar  o  Minho,  já  fronteiro.  Os 
campos  são  cultivados  e  arborizados.  Os  carvalhos, 
os  freixos,  os  castanheiros  e  os  choupos,  principal- 
mente os  choupos,  servem  de  apoio  ás  vides  de  en- 
forcado. Por  este  motivo  o  povo  de  Friume  designa 
pelo  nome  de  uveiras  todas  as  arvores  a  que  se  ar- 
rima a  vinha. 

A  quatrocentos  metros  da  aldeia  deriva  plácida  a 
corrente  do  Tâmega  fecundando  o  solo.  regando  os 
campos  e  pomares. 

Camillo,  se  houvesse  de  acompanhar  sua  tia  a 
Lisboa  ou  ainda  ao  Porto,  iria  contrariado:  mas. 
dentro  da  província  transmontana,  passar  da  Samar- 
dan  para  Friume,  onde  a  vida  rústica  era  a  mesma, 
se  bem  que  o  scenario  fosse  mais  ameno,  não  im- 
portava sacrifício. 

Como  em  todas  as  aldeias,  havia  em  Friume  um 
estabelecimento  commercial  que  acumulava  vários 


'  Do  concelho  òe  Ribeira  òe  Pena. 
-  1 899. 


20  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


géneros  de  negocio ;  era  simultaneamenie  mercearia 
e  loja  de  capella  ;  vendia  arroz  e  botões,  alhos  e  fi- 
tas, bacalhau  e  lustrina.  cominhos  e  gravatas.  Dir- 
se-ia  a  tenda  do  Martins  do  Chiado  despejada  dentro 
do  magasín  do  Mattos  e  Silva.  Parecia  uma  torre 
de  Babel  em  que  cada  ^artigo»  fallava  uma  lingua- 
gem differente. 

Mas  o  proprietário  da  loja,  Sebastião  Martins  dos 
Santos,  entendia-se  perfeitamente  no  meio  d'esta 
complicada  Babel.  Não  confundia  nem  os  lotes  nem 
os  géneros  do  seu  estabelecimento ;  era  como  um 
velho  bibliothecario  que,  por  maior  que  seja  a  livra- 
ria, sabe  onde  ha-de  ir  buscar  o  tomo  que  lhe  pe- 
dem. 

Elle  não  era  natural  de  Friume.  Tinha  nascido 
no  concelho  de  Gondomar,  onde  exercera,  como 
Johnson  nos  Estados-Unidos.  a  profissão  de  alfaiate. 

Todavia  esse  humilde  mester  não  fora  indifferente 
á  illuminação  do  seu  espirito,  natulmente  sagaz : 
também  como  Johonson,  Sebastião  dos  Santos  po- 
deria ufanar-se,  no  parlamento  da  sua  loja.  de  ter 
aprendido,  quando  alfaiate,  ^<a  cortar  a  direito  e  a 
tomar  medidas  exactas.» 

E  teria  muitas  occasiões  de  o  dizer,  porque  era 
um  sujeito  discursivo,  que  fallava  de  dentro  do  bal- 
cão como  do  alto  de  uma  tribuna,  illustrando  os  fre- 


A  PRIMHIRA   MULHER  DE  CAMILO  21 


guezes,  orientando-os  sobre  o  rumo  dos  negócios  pú- 
blicos, commentando  com  desassombro  e  arrogância 
as  zaragatas  da  junta  de  paroquia  do  Salvador. 

A  sua  loja  fazia  lembrar  um  vasto  collector  em 
que  fossem  desaguar  as  ramificações  litterarias.  po- 
liticas e  philosophicas  do  Grémio,  da  Havaneza,  do 
Martinho,  de  S.  Bento,  da  Arcada  e  do  Curso  Supe- 
rior de  Lettras. 

Sebastião  dos  Santos  tinha  uma  opinião  para 
tudo  e  para  todos.  Era  um  doutor  dè  aldeia,  typo 
aliás  vulgar  nas  nossas  províncias,  a  quem  os  fre- 
guezes  e  os  consulentes  jamais  recorriam  em  vão. 
Aviava  tudo  quanto  lhe  pedissem,  fosse  pimenta  para 
temperar  uma  lebre,  conselho  para  vencer  uma  de- 
manda ou  receita  para  curar  brotoejas  e  terçãs. 

A'  noite,  quando  o  movimento  commercial  da  loja 
abrandava,  e  elle  occupava  a  sua  cáthedra  de  Pico 
de  Mirandola,  era  um  gosto  ouvil-o  dissertar  sobre 
as  proezas  de  Carlos  Magno,  as  prophecias  do  Ban- 
darra, as  guerras  do  tempo  do  Cerco,  a  gravitação 
dos  astros  e  a  pesca  do  bacalhau  na  Terra  Nova. 

No  meio  da  mais  profunda  attenção  do  auditório, 
só  a  intervallos  perturbada  pelo  advento  de  algum 
freguez  retardatário,  Sebastião  dos  Santos  preleccio- 
nava  de  omni  re  scibili  et  qaibasdani  alíís,  —  de  to- 
das as  coisas  e  de  muitas  outras. 


22  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

A  dentro  do  balcão  escutavam-no  com  religioso 
respeito  a  mulher,  Maria  Pereira  França,  e  qua- 
tro filhas  ainda  na  infância,  a  mais  velha  das  quaes 
se  chamava  Joaquina  e  desabrochava  têmpora  e 
linda,  cachopa  guapa  que  o  leitor  terá  occasião  de 
conhecer  em  escorço. 

Sebastião  dos  Santos,  transferindo-se  de  Gondo- 
mar a  Friume,  tomara  logo  pé  como  César :  chegou, 
viu  e  venceu.  Sentia-se  com  instinctos  mais  altos  do 
que  os  que  humildemente  se  confinavam  entre  o  giz 
e  a  tesoira. 

Uns  parentes  que  tinha  em  Friume  e  eram  ren- 
deiros de  varias  commendas  provocaram-no  a  mu- 
dar de  domicilio.  O  alfaiate  desfez-se  logo  da  offi- 
cina :  entroixou  e  partiu  com  a  família. 

Quando  Camillo,  acompanhando  a  tia  Rita.  che- 
gou a  Friume,  a  loja  de  Sebastião  dos  Santos  flo- 
rescia como  um  Printenips  local  e  como  um  soa- 
lheiro mais  brilhante  que  os  da  Castanheira  e  Alhos 
Vedros  no  tempo  de  Camões. 

O  talento  de  Camillo  já  tinha  começado  a  brotar, 
numa  atmosphera  de  classicismo,  á  sombra  de  pa- 
dre António  de  Azevedo.  '  Naquelle  tempo  o  ensino 
do  latim  não  se  havia  ainda  secularizado  :  estava  nas 

"'  Irmão  òo  méòico  Azeveòo. 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  23 

mãos  do  clero.  O  estudante  mais  estróina  continha- 
se  em  respeito,  em  terror  até.  na  presença  do  Pa- 
dre-Mestre  que  lhe  ensinava  Eutropio  e  Virgílio,  com 
a  profundidade  de  um  poço  que  alcatruzasse  latini- 
dade  cristallina. 

Os  themas  eram  colhidos  nos  escriptores  portu- 
guezes  de  boa  nota,  os  clássicos,  principalmente  nos 
textos  substanciosos  de  estreme  orthodoxia. 

Camillo.  quando  chegou  a  Friume,  levava  o  latim 
de  padre  António  de  Azevedo,  mais  a  bagagem  lit- 
teraria  que  elle  lhe  emmalara. 

Também  levava  a  viola  dos  serões  transmontanos, 
que  amios  depois  ainda  dedilhava  no  Porto,  empolei- 
rado sobre  as  telhas  de  um  prédio  da  rua  Escura. 

Com  estes  predicados,  personificava  o  typo  esrho- 
lastico  da  sua  época, 

Inventava  facilmente  entremezes  para  os  serandei- 
ros  e  redondilhas  para  serem  cantadas  ao  desgarre. 

Não  que  elle  tivesse  méritos  de  cantor,  porque  a 
voz  lhe  era  rebelde.  Percorrendo  a  escala,  «quando 
chegava  ao  si,  esganitava-se  n'uma  engasgação.»  * 
Sem  embargo,  quando  o  amor  o  inspirava,  tentava 
vencer,  com  melhor  ou  peor  êxito,  as  rebeldias  da 
larynge. 


^  A  lyra  meridionjl. 


24  A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


A  vocação  litteraria  de  Camillo  não  visava  nesse 
tempo  a  um  ideal  artistico.  Estava  unicamente  ao 
serviço  de  um  temporal  desfeito  de  adolescência  fol- 
gazã e  de  alegria  fragoeira.  que  saltava  tão  desem- 
baraçada por  sobre  as  neves  e  barrocas  do  Marão 
como  um  gentleman  poderia  pisar,  nos  memiettos 
da  corte,  velludosos  tapetes  de  Susa. 

A  vida  de  Camillo,  á  semelhança  da  de  Camões  e 
Bocage,  foi  irrequieta  nos  primeiros  annos  da  mo- 
cidade. Camões  teve  a  alcunha  de  Diabo,  que  tam- 
bém foi  o  qualificativo  dado  por  Heine  a  Proudhon. 
e  que  egualmente  assentaria  com  propriedade  em 
Camillo. 

Pode,  pois,  imaginar-se  a  sensação  que  elie  cau- 
saria quando  appareceu  em  Friume  com  a  sua  ba- 
gagemzinha  intellectual  preparada  por  padre  Antó- 
nio ;  com  a  viola  transmontana  e  uma  inexgotavel  veia 
de  improvisação  ;  com  a  sua  alegria  desabalada,  que 
refervia  em  vulcões  de  imaginação  inventiva. 

Sebastião  dos  Santos,  o  tendeiro  lettrado,  conhe- 
cia que  tinha  encontrado  o  «seu  homem.»  Camillo 
viera  dar  á  «Havaneza»  de  Friume  umas  tinturas  de 
illustração  e  mundanidade  que  não  podiam  deixar 
de  lisonjear  o  dono  do  estabelecimento,  tão  lido  na 
Historia  Sagrada,  e  tão  interessado  em  saber  e  dis- 
cutir o  que  se  passava  por  esse  mundo  fora, 


A   PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO  25 

A  concorrência  á  loja  de  Sebastião  dos  Santos  co- 
meçou a  ser  maior,  porque,  em  vez  de  um.  havia 
agora  dois  oradores  a  iscar  a  curiosidade  publica. 
Mas  o  joven  Camillo  reconheceu,  a  breve  trecho, 
que  precisava  de  maior  âmbito,  para  expandir  a  sua 
alegria,  do  que  a  loja  de  Sebastião. 

Entrou  a  promover  corridas  de  gallos  e  entreme- 
zes, que  elle  próprio  dirigia  com  uma  actividade  in- 
fatigável, attraindo  sobre  si  a  estima  e  o  reconheci- 
mento públicos,  porque  a  aldeia  de  Friume  perdera 
de  repente  a  somnolencia  patriarchal,  que  até  então 
a  tinha  amodorrado. 

Os  entremezes,  divertimento  que  dos  costumes 
da  corte,  onde  Gil  Vicente  o  implantara,  derivou  para 
a  tradição  popular,  eram  recebidos  com  geral  agrado. 

Camillo  compunha  a  peça,  distribuia-a.  ensaiava-a 
com  enorme  trabalho,  lascando  as  durezas  da  pro- 
sódia dos  actores,  como  se  brita  pedra  com  um  mar- 
tello,  e  trepanando  os  papeis  na  cabeça  dos  que  não 
sabiam  ler  Depois  ajudava  a  levantar  o  palco  sce- 
nico.  carpintejando  elle  próprio.  Na  noite  da  represen- 
tação era  auctor.  contra-regra.  actor  e  fiscal  do  thea- 
tro,  multiplicando  prodigiosamente  a  sua  actividade. 

Rodeado   de  uma  atmosphera  de   prestigio,  em 
lena  evidencia,  não  admira  que  os  seus  jovialissi- 


2Ó  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

mos  dezeseis  annos  se  impozessem  á  admiração  das 
raparigas  de  toda  a  freguezia  do  Salvador,  e  que  elle 
próprio  se  deixasse  enlear  nos  laços  que  o  amor  arma 
brandamente. 

Assim  aconteceu.  A  breve  trecho  foi  Joaquina 
Pereira,  a  primogénita  de  Sebastião  Martins  dos  San- 
tos, entre  todas  as  raparigas  de  Ribeira  de  Pena,  a 
que  pôde  gabar-se  de  ter  empolgado  o  coração  do 
joven  e  endiabrado  Camillo. 

Ella  era,  como  já  disse,  uma  guapa  e  têmpora 
cachopa.  Forte,  sadia,  reforçada,  de  peitos  altos,  es- 
tatura regular  :  nas  faces  morenas,  um  clarão  de  in- 
genuidade alegre,  de  bondade  expansiva. 

Na  véspera  e  dia  de  Natal,  quando  sahiam  as  ron- 
das —  grupos  de  rapazes  e  moçoilas  que  percorrem 
a  povoação  em  danças  e  descantes  —  Joaquina, 
que  tomara  os  appellidos  da  mãe,  era  a  flor  do  ran- 
cho, o  que  despertava  um  certo  despeito  nas  rapa- 
rigas nascidas  em  Friume,  porque  ella  tinha  nascido 
em  S.  Cosme  de  Gondomar. 

A  10  de  janeiro,  pela  romaria  de  S.  Gonçalo,  era 
das  mais  gentis  cachopas  que  exhibiam  as  suas  ves- 
tes de  gala  :  saia  de  chita,  jaqué  de  merino,  ordina- 
riamente escuro,  chinellas  de  verniz,  lenço  de  seda 
na  cabeça. 

Pulando  nas  danças  do  arraial,  quando  o  lenço  lhe 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  27 

descahia  ao  abandono,  parecia  ainda  mais  gentil,  gra- 
ças ao  penteado  em  uso  entre  as  raparigas  de  Friu- 
me :  duas  tranças  singelamente  enlaçadas  na  parte 
posterior  da  cabeça. 

Joaquina  Pereira  enamorou-se  de  Camillo  ouvindo-o 
discursar  na  loja  do  pai  e  recitar  versos  que  exalta- 
vam a  imaginação.  Depois,  a  liberdade  nas  rondas^ 
nos  entremezes  e  nas  corridas  de  gallos  ageitava 
occasião  propicia  ás  confidencias,  aos  segredos,  ás 
juras  de  amor,  que  na  loja  de  Sebastião  dos  San- 
tos, interposto  o  balcão,  não  eram  permittidos  aos 
dois  namorados. 

Camillo,  que  tinha  ido  a  Friume  por  acompanhar 
apenas  a  tia  Rita,  achou  alli.  quando  menos  o  espe- 
rava, uma  posição  social,  postoque  modesta,  conve- 
niente. Luiz  da  Cunha  Lemos,  que  acumulava  as 
funcções  de  secretario  da  camará  e  da  administra- 
ção do  concelho  de  Ribeira  de  Pena.  tinha  sido  in- 
vestido também  nas  de  escrivão  de  fazenda  e  escri- 
vão e  tabellião  do  julgado.  Não  parece,  este  Lemos, 
um  dos  felizes  burocratas  graúdos  dos  nossos  dias. 
que  são  verdadeiros  cabides  de  empregos  rendosos  ? 
Pois  bem!  o  indispensável  Lemos  precisava  de  um 
escrevente,  que  certamente  não  era  de  mais,  e  con- 
tratou  Camillo   para  esse  cargo,   mediante  casa  e 


28  A   PRIMEIRA  MULHER   DE   CAMILO 


mesa.  além,  talvez,  de  alguma  remuneração  em  di- 
nheiro. 

Que  magnifico  amanuense  seria  Camillo  !  Tinha 
ortographia,  prenda  não  vulgar  em  Ribeira  de  Pena 
e  outras  partes,  incluindo  as  ilhas  adjacentes,  mas, 
principalmente,  dispunha  de  uma  bella  calligraphia, 
que  a  rapidez  da  escripta  não  conseguiu  estragar 
completamente  mais  tarde. 

Sebastião  dos  Santos  não  podia  encontrar  melhor 
genro,  nem  mais  a  seu  geito.  Dir-se-ia  que  o  tendeiro 
de  Friume,  o  antigo  alfaiate  de  Gondomar,  tivera  a  in- 
tuição do  futuro  de  gloria  reservado  a  Camillo. 

A  certa  altura  impoz  o  casamento,  tanto  mais  in- 
vejado quanto  a  imaginação  popular,  fascinada  pelas 
eminentes  qualidades  do  sobrinho  de  D.  Rita.  aca- 
lentara a  lenda  de  que  elle  teria  a  receber  uma 
grande  herança. 

Foi  por  uma  tarde  de  agosto,  a  18,  de  1841  que, 
na  egreja  do  Salvador  de  Ribeira  de  Pena.  Camillo 
Ferreira  Botelho  Castello  Branco  desposou  a  filha 
de  Sebastião  Martins  dos  Santos. 

O  párocho  encommendado,  Domingos  José  Ri- 
beiro, lançou  as  bênçãos.  Como  testemunhas  assis- 
tiram o  padre  José  Maria  de  Sousa,  de  Pontido  de 
Aguiar,  e  o  genro  de  D.  Rita.   Francisco  José  Ri- 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  29 


beiro  Moreira,  primo,  por  affinidade.  de   Camillo. 

Está  a  gente  a  ver  toda  a  movimentação  theatral 
d'essa  tarde  de  agosto  em  Friume : 

Camillo,  uma  creança  de  dezeseis  annos.  menta- 
lizando a  plenitude  da  ^^ posse»  legitima  na  contem- 
plação da  noiva,  cujas  graças  acirrantes,  modeladas 
numa  plástica  vigorosa,  a  elle  offuscariam  nessa  hora 
electrizante  os  liames  e  encargos  do  casamento. 

Joaquina  Pereira,  espiritualizada  pela  paixão,  que 
é  dynamite  capaz  de  fazer  saltar  os  mais  duros  blo- 
cos do  cérebro  humano,  e  ella  era  uma  pobre  cam- 
poneza,  que  ainda  assim  se  distinguia  entre  muitas 
outras  por  saber  ler  e  escrever. 

Sebastião  dos  Santos  desvanecido  pela  satisfação 
de  ter  ganho  a  partida  num  rápido  lance  de  távolas, 
dizendo  porventura  aos  convidados  que,  nas  suas 
mãos,  «o  rapaz  havia  de  ir  muito  longo. 

As  raparigas  de  Friume  mordidas  de  inveja  pela 
felicidade  que  uma  estranha  lhes  viera  roubar,  le- 
vando-lhes  o  melhor  noivo  que  podiam  apetecer,  e  a 
herança  fabulosa  que  havia  de  enriquecel-o  um  dia. 

A  casa  dos  noivos,  em  Friume,  era,  como  a  maior 
parte  de  todas  as  da  povoação,  construída  de  pedra 
tosca,  sem  rebocos  e  sem  vidraças. 

Foi  essa  choupana  o  ninho  de  amor  onde  Camillo 


30  A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO 

passou  OS  dias  do  noivado,  certamente  sem  ambicio- 
nar hoUandas  finas  para  o  leito,  manjares  delicados 
para  a  mesa,  perfumes  de  boiídoir  que  não  fossem 
o  do  rosmaninho  silvestre  e  da  madresilva  das  sebes 
floridas. 

Elle  chegaria  a  julgar,  talvez,  que  a  sua  existên- 
cia derivaria  toda  alli.  placidamente.  á  beira  do  Tâ- 
mega, contente  com  o  amor  dedicado  e  leal.  que  en- 
contrara no  coração  de  Joaquina  Pereira. 

E.  comtudo,  a  vida  amorosa  de  Camillo  começava 
apenas ;  aquelle  sereno  idyllio  conjugal  era  o  prefa- 
cio de  um  inferno  de  paixões  tempestuosas. 

Ambições,  quem  lh'as  dera,  fora  o  próprio  sogro, 
íascinadopela  evidencia  social  que  lhe  viria  do  genro. 

A  breve  trecho  Sebastião  Martins  dos  Santos  quiz 
que  Camillo  se  preparasse  para  um  curso  superior. 
Desejava-o  medico  e.  para  realizar  este  ideal,  não 
duvidou  affastar  Camillo  de  Friume. 

Convinha  refrescar  o  latim  que  padre  António  de 
Azevedo  lhe  tinha  ensinado,  porque  o  latim  era  o 
prato  de  resistência  entre  os  poucos  preparatórios 
então  exigidos. 

Na  Granja  Velha,  logar  da  freguezia  de  Santa  Ma- 
rinha, do  mesmo  concelho,  havia  um  pregador  e  la- 
tinista de  fama.  o   Padre-Mestre  Manuel  Rodrigues 


A   PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO  31 


OU  padre  Manuel  da  Lixa.  mas  a  Granja  Velha  dis- 
tava oito  kilometros  de  Friume,  mais  de  légua  e 
meia.  Para  todos  dias,  a  caminhada  de  três  léguas, 
ida  e  volta,  seria  violenta.  Por  isso  Sebastião  dos 
Santos  entendeu  por  bem  arranjar  hospedagem  aCa- 
millo  no  logar  de  \'iella.  também  da  freguezia  de 
Santa  Marinha,  em  casa  de  Rita  Alves.  d'onde  o  es- 
tudante mais  facilmente  poderia  ir  á  Granja  Velha. 
Só  aos  domingos  e  dias  santificados  tinha  elle  li- 
cença para  visitar  a  mulher  em  Friume. 

Foi  Sebastião  dos  Santos  que  estragou  os  seus 
mesmos  planos  de  grandeza  futura,  commettendo  a 
imprudência  de  affastar  do  amoroso  ninho  de  noi- 
vado um  rapaz  de  dezeseis  annos. 

Os  laços  conjugaes  não  tiveram  tempo  de  solidi- 
ficar. Joaquina  Pereira  não  pôde  assegurar  a  con- 
quista do  coração  de  Camillo  por  uma  demorada  e 
carinhosa  convivência.  A  creança  achou-se  em  liber- 
dade como  a  ave  a  que  mão  imprudente  abre  a  porta 
da  gaiola. 

Na  Granja  Velha  deparou-se  a  Camillo  ensejo  para 
entregar-se  ao  tracto  das  musas,  que  nem  sempre 
são  boas  conselheiras.  Tanto  peor  para  Joaquina  Pe- 
reira. O  padre  Manuel  da  Lixa  tinha,  como  prega- 
dor, certo  verniz  litterario.  e  ao  passo  que  admoes- 
tava Camillo  sobre  os  perigos  da  paixão  das  letras. 


32  A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO 

dava-lhe  a  ler  poetas,  Garção  e  TolenLÍno.  o  que  era 
contraproducente. 

Feita  a  admoestação  e  lidos  os  poetas,  a  imagem 
de  Elmena  *  tornou  a  apparecer  a  Camillo.  porque 
o  seu  espirito  começava  a  precisar  de  um  ideal  fe- 
minino, que  não  podia  ser  a  pobre  camponeza  já  pos- 
suída como  um  livro  que.  depois  de  lido,  nos  saciou 
a  curiosidade. 

« Vivi  daquella  hora  em  diante  —  diz elle  —  mais 
clandestinamente  com  Apollo.  já  versejando  por  conta 
de  Elmena,  já  versejando  aos  passarinhos  que  can- 
tavam nos  soutos  e  olivaes  visinhos  da  janella  do 
meu  pobre  quatro.  "^» 

Comtudo,  as  cautelas  adoptadas  por  Camilo  não 
eram  tão  rigorosas,  que  o  segredo  das  suas  com- 
posições métricas  fosse  apenas  conhecido  dos  pas- 
sarinhos, Os  condiscípulos  de  latim  aprecia vam-lhe 
a  facilidade  de  improvisação,  e  a  fama  de  poeta  es- 
palhava-se  desde  Friume  até  á  Granja  Velha. 

Foi  justamente  esta  prenda  litteraria  que  levou 
Camillo  a  abandonar  precipitadamente  o  concelho  de 
Ribeira  de  Pena. 


^  Pseuòónimo  com  que  arcáòicamente  foi  òesignaòa  por 
Camilo  uma  sobrinha  òe  certo  vigário  transmontano. 
2.4o  anoitecer  da  vida. 


A  PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO  33 


<Elle  mesmo  se  constituiu  chronista  dessa  for- 
çada emigração  : 

«N'aquellafreguezia  andavam  ás  más  dois  irmãos 
de  fidalga  prosápia,  á  conta  do  casamento  desigual 
que  um  d'elles  intentava  fazer,  contra  a  vontade  do 
mais  velho.  Por  parte  dos  sequazes  d*este  me  foram 
pedidos  uns  versos,  em  que  a  noiva  menos  fidalga  e  o 
apaixonado  mancebo  fossem  chanceados  á  conta  de 
me  não  lembra  que  antecedencias  mui  ageitadas  á 
galhofa  métrica.  Deu-me  soberbas  uma  incumbência 
deste  género  I  Poeta,  e  de  mais  a  mais  requestado 
para  intervir  com  minha  opinião  em  casamento  tão 
fallado  nas  vinte  aldeias  circumpostas ! 

«Escrevi  uma  folha  de  papel  aimaço  em  quadras, 
que  os  interessados  na  publicidade  affixaram  na  porta 
da  egreja,  momentos  antes  da  missa  das  onze  horas. 
O  boticário,  que  seguia  as  partes  do  morgado,  lia 
a  satyra  á  populaça,  que  ria  ás  escancaras. 

«E  eu  de  lado  a  revêr-me  na  obra.  ea  saborear- 
me  nas  alvares  cascalhadas  do  gentio  ! 

«Por  um  cabello  que  não  fui  então  martyr  do  gé- 
nio !  A  victima  crucificada  na  porta  da  egreja  não 
era  das  que  dizem  :  «  Senhor,  perdoai  ao  poeta,  que 
não  sabe  as  asneiras  que  diz  1  -  Apenas  lhe  constou 
que  era  eu  o  instrumento  da  vingança  de  seu  irmão, 
preferiu  quebrar  o  instrumento,  e  deixar  não  só  o 

3 


34  A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

fidalgo,  que  também  o  boticário  em  paz.  Poeta  era 
eu  só  naquelle  quadrado  de  dez  léguas  :  avisada- 
mente conjecturou  o  homem  que.  esganando  a  musa 
que  o  verberara,  abafaria  aquelle  respiraculo  da  de- 
tracçâo  inimiga. 

-O  padre  mestre  avisou-me  horas  antes  da  es- 
pera e  da  sepultura.  Fugi  com  o  magniim  Lexicon 
debaixo  do  braço,  e  com  os  ossos  direitos  que 
aquella  terra  ingrata  me  queria  comer,  ' » 

Abandonando  Ribeira  de  Pena  precipitadamente, 
como  quem  foge  a  um  perigo  certo.  Camillo  deixou 
alli  memoria  de  duas  creancices  :  o  casamento  e  a 
satyra.  Que  admira,  se  elle  era  uma  creança  de  de- 
zeseis  annos  ? 

Sob  a  protecção  do  sogro,  veio  para  Lisboa,  onde 
tornaria  a  ver  Amélia  ou  Celestina,  a  qual  se  mos- 
traria indifferente  á  recordação  do  galanteio  infan- 
til que  ambos  haviam  entretido. 

Lisboa  seria  a  terra  escolhida  intencionalmente. 
talvez  por  conselho  de  Sebastião  dos  Santos,  para 
que  fosse  maior  a  distancia  interposta  ao  auctor  da 
satyra  e  ao  seu  feroz  inimigo  de  Ribeira  de  Pena. 

Mas  Camillo  não  estava  habituado  á  vida  da  ca- 


*  Mesma  obra,  prefácio. 


A  PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO  35 

pitai,  que  lhe  fazia  saudades  da  vida  dos  campos  e 
dos  passarinhos  dos  soutos  e  olivaes. 

Quando  julgou  mais  acalmada  a  tempestade  que 
a  satyra  desencadeara,  foi  para  o  Porto  a  fim  de  es- 
tudar preparatórios,  porque  o  sogro  não  tinha  desis- 
tido ainda  de  formal-o  em  medicina. 

De  repente,  num  impeto  de  mocidade  irrequieta, 
a  que  a  saudade  da  infância  não  seria  de  todo  es- 
tranha, Camillo  emancipou-se  da  tutella  de  Sebastião 
dos  Santos  e  acoitou-se  em  Villa  Real  em  casa  da 
tia  D.  Rita. 

Desde  essa  hora.  o  sogro  julgou  prejudicados  to- 
dos os  seus  projectos,  e  vociferava  nos  soalheiros  de 
Friume,  especialmente  na  loja.  contra  o  genro,  que 
elle  próprio  havia  conduzido  imprudentemente. 

A  victima  da  cólera  de  Sebastião  era  a  filha,  que 
nenhuma  culpa  tinha  nas  occorrencias  que  lhe  arran- 
caram dos  braços  o  marido. 

Mas  o  pai  enfurecia-se  quando  via  no  collo  de 
Joaquina  uma  creança  recemnascida  :  revelava  as- 
somos de  medonha  cólera. 

«A  pobre  rapariga,  desejando  juntar-se  ao  marido, 
contratou  duas  mulheres  de  Friume,  para  que  fos- 
sem a  Villa  Real  levar  a  Camillo  uma  carta  em  que 
se  dizia  enferma. 


36  A   PRIMEIRA   MULHER    DE   CAMILO 

As  duas  mensageiras  enganaram-na.  porque  se  oc- 
cultaram  durante  alguns  dias.  findos  os  quaes  ap- 
pareceram  simulando  a  resposta  de  que  Camillo  não 
estava  em  Villa  Real,  mas  que  D.  Rita  Castello  Branco 
lhes  assegurara  que,  logo  que  elle  regressasse  alli, 
lhe  entregaria  a  carta  de  Joaquina  Pereira. 

A  verdade  é  que  Camillo  estava  em  Villa  Real, 
e  não  recebera  a  mensagem.  Apezar  de  haver  en- 
contrado um  novo  idyllio,  os  factos,  que  depois  se 
deram,  fazem  crer  que  partiria  para  Friume  se  i 
carta  de  Joaquina  Pereira  lhe  houvesse  chegado  ás 
mãos. 

Como  elle  se  demorasse  em  voltar,  a  filha  de  Se- 
bastião dos  Santos  alliciou  um  mensageiro  de  maior 
confiança,  Bernardo  Alves,  para  ir  a  Villa  Real  com 
nova  carta. 

Adivinha-se  facilmente  o  que  essa  carta  diria. 
Fallar-lhe-ia  da  filhinha,  das  suas  graças  infantis,  das 
cóleras  com  que  Sebastião  dos  Santos  a  atormentava. 
e  da  supposta  doença,  piedosa  mentira  destinada  a 
commovêl-o. 

Camillo  contou  a  Bernardo  Alves  os  motivos  que 
tinha  para  não  ir  a  Friume :  receava  a  brutalidade 
do  sogro  e  talvez  a  vingança  da  victima  da  satyra ; 
mas  romperia  por  todas  essas  considerações,  se  ti- 
vesse meios  para  sustentar  a  mulher  e  a  filha. 


A  PRIMEIRA  xMULHER   DE   CAMILO  37 

Bernardo  Alves  contrapoz.  certamente,  que  tudo 
se  concertaria  do  melhor  modo  possível,  e  Camillo 
não  duvidou  acompanhal-o  a  Friume. 

Avistou-se  com  a  mulher  e,  reconhecendo  que 
ella  não  estava  doente,  teve  uma  phrase  carinhosa, 
que  é  confessada  por  uma  testemunha  presencial : 

—  Então  eu  por  aqui  tão  af flicto,  e  tu  de  perfeita 
saúde  ? 

Beijou  a  filhinha,  e  parece  que.  graças  á  inter- 
venção de  Bernardo  Alves,  se  reconciliou  algum  tanto 
com  o  sogro,  que,  sempre  desconfiado,  o  vigiava  como 
um  Argus,  procurando  evitar  a  aproximação  intima 
dos  dois  casados. 

Com.binou-se  que  Camillo  voltaria  para  o  Porto  a 
continuar  os  estudos  :  que.  logo  que  elle  se  formasse 
em  medicina,  Joaquina  Pereira  sahiria  de  casa  do 
pai  para  a  companhia  do  marido  :  e  que  a  filhinha  se- 
ria entretanto  educada  num  Recolhimento  portuense. 

Camillo  voltou  ao  Porto,  como  se  combinara. 

Não  lhe  davam  noticias  de  Friume,  da  mulher  nem 
da  filha,  porque  Sebastião  dos  Santos  julgou  que 
desse  modo  estimularia  o  amor  do  genro  ao  estudo. 

Desatados  novamente  todos  os  laços  de  familia. 
por  imprevidência  do  sogro.  Camillo.  feitos  no  liceu 
os  exames  preparatórios,  matriculou-se  no  1."  anno 


38  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


da  Escola  Medica  e  na  aula  de  chimica  da  Acade- 
mia Polytechnica  em  outubro  de  1843. 

Vivia  como  estudante  pobre  num  esguio  terceira 
andar  da  rua  Escura  —  rua  que  por  este  facto  e  por 
um  romance  de  António  Coelho  Lousada  ficou  du- 
plamente celebre. 

Na  vida  bohemia  do  Porto,  colleccionando  namo- 
ros colhidos  nas  trapeiras  da  rua  do  Souto  e  outras 
alfurjas,  privado  de  ver  a  mulher  e  a  filha  por  im- 
posição autoritária  do  sogro,  foi  uma  creança  ás  sol- 
tas, passou  por  todas  as  loucuras  próprias  da  sua 
idade. 

Elle  mesmo  o  confessa,  dizendo:  «Eu  que  des- 
cera das  penedias  transmontanas,  perfumadas  das 
essências  das  mattas  altas,  vestidas  do  rosiclér  das 
auroras,  da  purpura  vespertina  dos  crepúsculos,  de 
moitas  de  rosmaninhos,  e  resvalara  á  sargeta  da  rua 
Escura .  .  .  »  ^ 

Em  1847,  Joaquina  Pereira  adoecera  de  cam- 
bras, '  O  pai  não  avisou  Camillo.  A  pobre  rapariga, 
cuja  dedicação,  fortalecida  pelo  amor  da  filhinha,  tal- 
vez tivesse  sido  capaz  de  conter  a  mocidade  de  Ca- 

1  O  general  Carlos  Ribeiro. 

-  Corrupção  provinciana  òe  <camaras*. 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  39 


millo  se  Sebastião  dos  Santos  os  deixasse  perma- 
necer juntos,  conheceu  que  morria  e  pediu  os  sa- 
cramentos. 

A  25  de  setembro  d'aquelle  anno,  fallecia.  No 
dia  27  era  sepultada  como  pobre. 

As  carpideiras,  vizinhas  que  pranteavam  officiosa- 
mente,  acocoradas  numaattitude  de  ceremonia  orien- 
tal, ululariam  clamores  fúnebres  em  redor  do  cadá- 
ver da  mal-casada.  até,  que  o  abbade  José  António 
Rodrigues,  de  sotaina  e  sobrepeliz,  seguido  pelos 
quatro  portadores  do  esquife  parochial  e  acompa- 
nhado pelo  mozinho  com  a  caldeira  de  agua  benta, 
viria  encommendar  o  corpo, 

A  pobreza  do  acompanhamento  teve  alguma  com- 
pensação na  missa  de  «corpo  presente»,  que  foi  can- 
tada. 

Mas  faltaram  no  funeral  aquellas  lagrimas,  que 
não  são  espremidas  pela  convenção  das  carpideiras, 
antes  nascem  do  luto  de  almas  saudosas, 

Poucos  mezes  depois  morria  a  filhinha  de  Joaquina 
Pereira. 

«  Assim  desappareceu  rapidamente  a  primeira  f a- 
milia  constituida  por  Camillo.  Pode  dizer-se  que  elle 
foi  marido  e  pai  sem  conhecer  os  encantos  da  vida 
caseira,  porque  o  não  souberam  conduzir  a  essa  fe- 
licidade, talvez  a  maior  da  vida  humana. 


40  A   PRIMEIRA   MULHEk   Dh  CAMILO 

Sebastião  dos  Santos  sahiu  de  Friume,  passados 
annos.  e,  sempre  aventuroso  na  ambição,  estabele- 
ceu uma  padaria  em  S.  Cosme  ou  no  Porto,  não  sei 
bem. 

Quando  Camillo,  já  libado  a  D.  Anna  Plácido,  vi- 
via na  rua  do  Almada,  d'aquella  cidade,  em  um  pré- 
dio fronteiro  ao  coUegio  Podestá,  uma  irmã  de  Joa- 
quina Pereira,  mocetona  de  lindas  cores  e  guapo 
talhe,  ia  algumas  vezes  visitar  o  cunhado. 

D.  Anna  Plácido  não  gostava  desta  visita  ;  disse-o 
uma  vez  a  um  parente  de  Camillo.  revelando-lhe  as 
suas  apprehensões. »  ^ 


u . . .  informanòo-me  òe  que  seu  pae  recebia  ás  vezes 
uma  cunhaòa  òe  capote  ou  capa  e  lenço,  òe  cujo  nome  não 
me  lembro  e  que  elle  requestava  ou  òe  que  não  desgostava, 
mas  que  vivia  no  Porto,  bem  como  o  sogro,  que  era  pa- 
òeiro.*  Carta  òo  sr.  conselheiro  António  ò'Azeve()o  Castello 
Branco  ao  visconõe  òe  S.  Miguel  òe  Seiòe,  que  a  incluiu 
no  òesvairaòo  Protesto  contra  a  supposta  filha  de  Camillo, 
etc. 


III 

A  família  da  noiva 

Vão  passados  dezassete  anos  desde  a  publicação 
dos  Amores  de  Camilo,  e  as  novas  investigações 
agora  realizadas,  cujo  resultado  não  alterou  funda- 
mentalmente a  narrativa  que  deixo  transcrita,  vie- 
ram proporcionar-me  óptimo  ensejo  de  completá-la 
com  exactas  e  seguras  informações  acerca  da  famí- 
lia a  que  D.  Joaquina  Pereira  França  pertenceu. 

Mais  ainda  :  Parentes  seus,  felizmente  ainda  vi- 
vos e  residentes  no  Porto,  permitiram-me  conhecer 
a  sua  versão  sobre  o  primeiro  casamento  de  Camilo 
e  os  factos  que  se  lhe  sucederam,  versão  com  que 
nem  sempre  concordo,  mas  que  vou  reproduzir  e 
comentarei  sem  malignidade. 

Facilmente  compreenderá  o  leitor  a  razão  por  que 
me  antecipo  a  dizer  que  esta  família  prosperou  em 
condições  de  vida  e  fortuna,  devidas  a  casamentos 
vantajosos. 


42 


A   PRIMEIRA   MULHER   DE  CAMILO 


O  sogro  òe  Camilo 


A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO  43 


Posto  isto.  evoquemos  genealógicamente  os  as- 
cendentes da  linda  Quininha.  D.  Joaquina  Pereira 
França. 

Seu  pai,  Sebastião  Martins  dos  Santos,  era  filho 
legítimo  de  José  Martins  dos  Santos  e  de  Helena 
Vieira. 

Nasceu  em  Fânzeres.  *  freguesia  do  concelho  de 
Gondomar,  em  10  de  janeiro  de  1810. 

Exercia  o  ofício  de  alfaiate  quando  casou  com 
Maria  Pereira  França,  nascida  na  freguesia  de  S. 
Cosme,  "  daquelle  mesmo  concelho  de  Gondomar,  no 
ano  de  1806.  filha  legitima  de  Manuel  Pinto  de  Cas- 
tro e  Maria  Pereira  França. 

Suponho  que  pela  mãe  pertenceria  à  família  do 
padre  que  depois  foi  bispo  do  Porto.  D.  João  de 
França  Castro  e  Moura,  nascido  em  S.  Cosme 
(1804). 

Do  casamento  de  Sebastião  Martins  dos  Santos 
resultou  uma  numerosa  prole. 

Em  S.  Cosme  nasceram  : 

1  —  Joaquina  Pereira  França,  de  quem  falaremos 
oportunamente  com  especial  menção. 


^  Seis  quilómetros  a  noroeste  òa  ciòaòe  òo  Porto. 
~  Oito  Quilómetros  a  noroeste  òa  ciòaòe  òo  Porto. 


44 


A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


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A  sogra  e  o  sogro  ue  Camilo 


A   PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO  45 


2  —  Vitória  Pereira  França,  que  nasceu  em  1 83 1 . 
Casou  com  António  José  Alves,  negociante  e  pro- 
prietário no  Porto.  Ela  morreu  em  26  de  novembro 
de  1906.  e  êle  tinha  morrido  em  janeiro  de  1890. 
Não  deixaram  descendência. 

Por  ocasião  do  cerco  do  Porto.  Sebastião  Mar- 
tins dos  Santos  fugiu  com  a  família  para  Trás-os- 
Montes,  obtendo  procuração  dum  seu  protector  para 
lhe  cobrar  algumas  rendas  em  Ribeira  de  Pena. 

Estabeleceu  residência  no  lugar  de  Friúme,  onde 
pôs  loja  de  mercearia. 

Correndo-lhe  bem  o  negócio,  comprou  a  casa  de 
habitação  e  outra  contígua,  como  também  umas  ter- 
ras, tão  modestas  como  as  duas  casas. 

Foi  aí,  nesse  lugar  da  freguesia  do  Salvador,  que 
sua  mulher  deu  à  luz  mais  os  seguintes  filhos  : 

3  —  Ana  Pereira  França,  que  nasceu  em  1833 
e  morreu  criança. 

4  —  Jerónima  Pereira  França,  que  nasceu  em  1 
de  março  de  1834.  Ficando  solteira  foi.  depois  da 
morte  dos  pais.  viver  em  companhia  de  sua  irmã 
Ermelinda,  de  quem  ao  diante  falaremos.  Faleceu  no 
Porto,  na  rua  de  Cedofeita,  no  dia  27  de  julho  de 
1913. 

5  —  António  Martins  dos  Santos,  que  nasceu  em 
1837.   Foi  para  o  Brasil  em   1848,  confiado  aos 


46  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

cuidados  de  seu  tio  paterno  Agostinho  Martins  Viei- 
ra. '  residente  então  no  Rio  de  Janeiro. 

Ainda  vive  no  Brasil,  em  Amparo  de  Barra  Mansa, 
freguesia  da  provincia  do  Rio  de  Janeiro ;  é  viuvo  e 
não  tem  filhos. 

6  —  Engrácia  Pereira  França.  Nasceu  em  1839. 
Casou  no  Porto  com  Torcato  José  Pereira,  proprie- 
tário, falecido  em  agosto  de  1911.  Tem  uma  filha. 
D.  Rosa  Pereira  França  do  Amaral,  que  foi  casada 
com  António  Pereira  do  Amaral,  falecido  em  novem- 
bro de  1908,  Deste  casamento  ficaram  seis  filhos, 
que  são  todos  vivos  e  residem  no  Porto,  rua  da  Cons- 
tituição, vila  Torcato. 

7  —  Salvador  Martins  dos  Santos.  Nasceu  em 
1841.  Convidado  por  seu  irmão  António,  foi  para 
o  Brasil  mas,  não  se  dando  bem  com  o  clima,  vol- 
tou doente  a  Portugal,  onde  faleceu  aos  dezanove 
-anos  de  idade. 

8  —  Ermelinda  Martins  dos  Santos  Castro.  Nas- 
ceu em  23  de  julho  de  1843.  Casou  no  Porto  em 
1859  com  José  Maria  de  Castro,  negociante  e  pro- 
prietário. Ela  faleceu  em  17  de  junho  de  1909  e 


'  Este  Agostinho  Martins  Vieira  foi  pai  òe  Tomás  Martins 
Vieira,  general  reformaòo,  que  vive  no  Porto. 


A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  47 


êle  em  19  de  dezembro  de  1915.  Tiveram  os  fi- 
lhos seguintes :  ^ 

(a)  —  D.  Maria  da  Conceição  dos  Santos  Castro. 
Nasceu  no  Porto  em  2  de  março  de  1860.  Vive  na 
mesma  cidade. 

(b) —  D.  Vitória  Rosa  dos  Santos  Castro  Dias.  Nas- 
ceu no  Porto  em  29  de  maio  de  1866.  Casou  com 
o  dr.  Manuel  Fernandes  Dias.  médico  e  proprietário 
em  Vila  Nova  de  Cerveira,  falecido  a  9  de  setem- 
bro de  1915,  com  quarenta  e  quatro  anos  de  idade. 
D.  Vitória  continua  residindo  em  Cerveira,  com  uma 
filha.  D.  Maria  Isabel. 

(c)  —  António  dos  Santos  Castro.  Nasceu  no 
Porto  em  1 1  de  maio  de  1868.  Frequentava  o  quinto 
ano  de  engenharia  na  antiga  Academia  Politécnica 
quando  faleceu  em  13  de  fevereiro  de  1893. 

(d)  —  D.  Engrácia  dos  Santos  Castro.  Nasceu  no 
Porto  em  17  de  maio  de  1872.  Vive  e  é  religiosa 
professa  nas  Franciscanas  de  Calais  (França). 

(e)  —  Avelino  de  Castro  Martins.  Nasceu  no 
Porto  em  1 1  de  agosto  de  1876.  Fez  o  curso  de 
preparatórios  pa^a  medicina  na  Academia  Politécni- 
ca, é  professor  de  ensino  secundário  e  do  instituto 


'  Além  òe  outros  que  morreram  na  puerícia. 


48  A   PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO 


de  surdos-mudos  «Araújo  Porto."  Casou  em  1902 
com  D.  Maria  Adelaide  Malheiro  Dias  :  deste  casa- 
mento provieram  seis  filhos.  E'  viuvo,  e  vive  no 
Porto,  na  rua  de  Cedofeita.  589. 

ffj  ~  D.  Cristina  dos  Santos  Castro.  Nasceu  no 
Porto  em  30  de  novembro  de  1878.  Vive  também 
na  rua  de  Cedofeita. 

9  —  Ana  Pereira  França.  Nasceu  em  1845  e 
morreu  de  tenra  idade. 

10  —  Tomásia  Pereira  França.  Nasceu  aos  20 
de  maio  de  1847. 

E'  conhecida  na  íntegra  a  certidão  de  baptismo 
desta  cunhada  de  Camilo.  '  Foram  seus  padrinhos 
Tomás  Martins  e  Joaquim  Pinto  da  França,  tio  da 
baptizada. 

Desde  já  diremos  os  motivos  que  levaram  o  sr. 
dr.  Maximiano  Lemos  a  obter  e  publicar  aquple  do- 
cumento. 

Camilo,  na  5.''  «Novella  do  Minho»,  que  se  inti- 
tula O  filho  natural  evocou  a  figura  dum  homem 
com  quem  tinha  mantido  relações  de  amizade  em 
Friííme. 


»  Arquivos  de  História  da  Medicina  Portuguesa,  n.°  1  òo 
7."  ano  (1916). 


A  PRIMEIRA   MULHER  DE  CAMILO  49 


Era  o  farmacêutico  Macário  Afonso  (nome  autên- 
tico) o  qual  ensinara  Camilo  a  jogar  o  gamão  e  as 
damas.  ^ 

Foi  a  saudade  de  Friííme.  ou.  mais  propriamente, 
a  saudade  de  Quininha.  que  na  memória  do  roman- 
cista aviventou  a  imagem  do  boticário,  porque,  segun- 
do as  interessantes  investigações  do  sr.  dr.  Maxi- 
miano Lemos,  na  acção  da  novela  O  filho  natural 
não  se  reconhece  como  verdade  documentada  senão 
a  existência  de  Macário  Afonso. 

Este  boticário  teve  mais  duma  filha,  teve  qua- 
tro, dlêm  dum  filho  :  nenhuma  das  filhas  se  chamou 
Tomásia  como  a  heroína  da  novela. 

0  sr.  dr.  Maximiano  Lemos  lembra  que  uma 
das  irmãs  de  Joaquina  Pereira  recebera  o  nome  de 
Tomásia,  podendo  assim  inferir-se  que  este  nome 
ocorresse  a  Camilo  por  associação  de  ideias  correla- 
tivas a  Friúme,  Eis  a  razão  por  que  publicou  a  cer- 
tidão do  baptismo  de  Tomásia  Pereira  França. 

Mas,  discreto  pesquisador,  conclue  dizendo  :  -Se- 
ria arriscar  muito  supò-la  a  heroina  do  romance  (O 
filho  natural)  atribuído  à  filha  de  Macário.» 

E  era,  porque  Tomásia.  irmã  de  Quininha.  viveu 
pouco  tempo. 

1  o  filho  natural,  1."  parte,  pag.  28. 


50  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


Sebastião  Martins  dos  Santos,  por  insinuação  dos 
parentes  que  ele  e  a  mulher  tinham  no  concelho  de 
Gondomar,  desfez  a  sua  casa  em  Friííme  e  veio  es- 
tabelecer residência  no  Porto,  junto  ao  Padrão  de 
Campanhã,  onde  nasceu  a  sua  filha ; 

11  —  Rosa  Pereira  França,  em  1849.  Esta  ca- 
sou com  Francisco  Teixeira  Lopes,  que  teve  um 
café  defronte  da  estação  das  Devesas  (hoje  estação 
de  Gaia)  estabelecendo  mais  tarde  uma  padaria,  que 
se  denominava  «de  S.  José»,  na  rua  Chã.  e  que  ele 
trespassou  para  ir  tomar  conta  do  restaurante  da  Es- 
tação de  Campanhã,  quando  o  caminho  de  ferro  do 
norte  se  ligou  com  o  do  sul  pela  ponte  Maria  Pia  em 
1877. 

Do  casamento  de  Rosa  Pereira  França  com  Fran 
cisco  Teixeira  Lopes  nasceu  em  1879  um  filho.  An- 
tónio dos  Santos  Lopes,  o  qual  casou  com  D.  Lu- 
cinda Barroso,  rica  proprietária  em  Viseu,  cidade 
onde  êle  foi  vitimado  pela  tuberculose  em  1902, 

Teixeira  Lopes  faleceu  em  1895  e  sua  mulher 
em  1900. 

Esta  irmã  de  Quininha  era  a  que  visitava  Camilo 
Castelo  Branco  no  Porto,  não  sem  desgosto  de  D.  Ana 
Plácido,  como  referiu  António  de  Azevedo.  ' 

1  Os  jnio^es  de  (^atnilo,  pg.  87,  nota. 


A  PRIMEIRA   MULHER  DE  CAMILO  51 


Rosa  Pereira  França 
e  seu  mariòo  Francisco  Teixeira  Lopes 


52  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


E  foi  O  seu  retrato,  que  inesperadamente  me  che- 
gou às  mãos,  a  origem  das  longas  investigações  que 
promovi  para  conhecer  melhor  toda  a  família  de  D, 
Joaquina  Pereira. 

Vamos  à  história  do  retrato. 

Certo  dia  recebi  pelo  correio  uma  carta  e  uma 
fotografia  que  me  eram  enviadas  pelo  sr.  Carlos 
Duarte  Amaral,  portuense  residente  perto  de  Lis- 
boa, na  Amadora,  e  fervoroso  camilianista,  que  eu 
aliás  não  tinha  ainda  a  honra  de  conhecer. 

Na  sua  amabílissima  carta,  o  sr.  Amaral  expli- 
cava gentilmente  a  oferta  da  fotografia  dizendo  : 

«Para  V.  ver  que  as  suas  Informações  foram 
boas  ^  e  que  realmente  era  mocetona  de  lindas  co- 
res e  guapo  talhe,  ahí  remetto  a  reproducção  d' uma 
photographia  quando  ella  contava  45  annos». 

As  informações  a  que  o  sr.  Amaral  se  refere  ti- 
nha-as  eu  recebido  outrora  de  origem  fidedigna,  bem 
como  as  que  diziam  respeito  a  Joaquina  Pereira 
França. 

Contava-me  o  sr.  Amaral  que,  aos  dez  anos  de 
idade,  quando  seu  pai  era  chefe  do  movimento  do 
caminho  de  ferro  do  Minho  e  Doure,  conhecera  D. 


Us  amores  de  Camilo,  pg.  87. 


A  PRIMEIRA   MULHER  DE  CAMILO 


53 


Rosa  Pereira  França,  cunhaòa  òe  Camilo 


(Segunòo  a  fotografia  ofereciòa  pelo  sr.  Carlos 
Duarte  Amaral) 


54  A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO 


Rosa  Pereira  França,  cujo  marido  explorava  nessa 
época  o  restaurante  da  Estação  de  Campanhã  ;  acres- 
centava que  D.  Rosa  era  uma  boa  criatura  que  o  rega- 
lava com  guloseimas  e  alguns  patacos  para  com- 
prar peões  :  finalmente,  dizia  conservar  muito  viva 
a  memória  desse  período  da  sua  infância,  graças 
às  frequentes  dádivas  que  D.  Rosa  lhe  prodigali- 
zava. 

Quando  eu  vi  plenamente  confirmadas  pelo  re- 
trato dela  as  minhas  anteriores  informações,  reno- 
vei diligências  para  saber  se  existiria  algum  retrato 
de  Quininha.  que.  segundo  essas  mesmas  informa- 
ções, devia  ter  sido  mulher  de  bela  plástica,  sadia 
e  forte  como  sua  irmã  Rosa. 

Retrato  da  primeira  mulher  de  Camilo  não  apa- 
receu nenhum ;  não  existe,  segundo  afirmam  paren- 
tes, que.  todavia,  dizem  saber  por  tradição  que  Joa- 
quina se  parecia  muito  com  Rosa. 

Então  suspeitei  que  nas  outras  cunhadas  do  ro- 
mancista prevalecesse  o  mesmo  tipo  de  família,  que 
todos  elas  fossem  bonitas  mulheres,  de  formas  opu- 
lentas, feições  não  direi  delicadas,  mas  simpá- 
ticas, cabello  farto,  olhos  expressivos  de  bondade 
atraente. 

Foi  ainda  o  sr.  Carlos  Duarte  Amaral  quem.  com 
a  maior  dedicação,  procurou  e  obteve  no  Porto,  por 


A    PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO  55 

favor  do  sr.  Avelino  de  Castro  Martins.  '  filho  de  D. 
Ermelinda,  as  indicações  genealógicas  e  biográfi- 
cas, assim  como  os  retratos,  que  reproduzo  nesta 
monografia,  e  constituem  um  achado  felicíssimo, 
como  raras  vezes  acontece. 

Fomos  autorizados  a  tirar  cópias  das  fotografias, 
cavalheirosamente  confiadas  ao  sr.  Amaral :  e  alem 
de  completas  informações  genealógicas  e  biográficas, 
recolhemos  a  interessante  versão  de  família  sobre  o 
infeliz  casamento  de  Joaquina  Pereira. 

Assim  é  que  podemos  dar  o  retrato  dos  sogros 
de  Camilo,  o  de  D.  Rosa  com  o  marido,  e  o  grupo 
das  irmãs  e  irmão  de  Quininha. 

Observando  este  grupo  verá  o  leitor  que  a  mi- 
nha suspeita  não  foi  errónea,  porque  as  cunhadas  de 
Camilo,  conquanto  já  não  estivessem  na  mocidade 
quando  se  fotografaram,  mostram  ter  sido  guapas 
mulheres  e  conservar  o  tipo  feminino  de  familia,  her- 
dado da  mãe,  sucedendo  que  D.  Jerónima,  cujas  fei- 
ções eram  mais  finas,  foi  a  liaica  que  morreu  sol- 
teira. 

Seu   irmão,  António  Martins  dos  Santos,  o  qual 


'  Relembrarei  que  este  cavalheiro  resiòeno  Porto,  rua  òe 
Ceòofeita  n."  589. 

Para  que  não  haja  òúviòas 


56 


A  PRIMEIRA   MULHER    DE    CAMILO 


Cunhaòas  e  cunhaòo  òe  Camilo 


Da  esqueròa  para  a  òireita  :  Rosa,  Jerónima,  Vitória, 
António,  Ermelinòa  e  hngrácia 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  57 

veio  à  pátria  em  1881.  1897  e  1902.  sempre  acom- 
panhado pela  esposa.  D.  Maria  Luisa  dos  Santos,  era 
também,  na  época  do  retrato,  um  homem  bem  pare- 
cido. 

Hoje,  além  dos  desgostos  que  depois  o  acabru- 
nharam porque  perdeu  os  seus  maiores  haveres  num 
krach  do  café  como  sócio  da  firma  comercial  Ma- 
chado Guimarães  —  Horta  —  Santos  &  C.^.  deve 
avergá-lo  o  peso  da  extrema  velhice  —  quase  oitenta 
anos  de  idade. 

O  pai.  quando  saiu  de  Friííme  com  a  família,  em- 
pregou-se  no  Porto  como  caixeiro  em  casa  de  José 
Magalhães,  posteriormente  em  casa  de  José  Ehlers 
e,  por  ultimo,  tendo-lhe  dado  crédito  o  negociante  de 
trigo  José  Paulo,  montou  uma  padaria  na  rua  do  Sol, 

Daii  mudou,  com  o  mesmo  negócio,  para  a  rua  de 
Trás,  sendo  aí  melhor  sucedido,  mas  como  a  casa 
fosse  pequena  e  êle  quisesse  sentar  algumas  vezes 
à  sua  mesa  toda  a  família,  transferiu-se  para  a  rua 
Chã,  contra  a  opinião  sensata  da  mulher,  que  se 
desgostou  a  ponto  de  ter  estado  doente,  não  sem  al- 
guma gravidade. 

Foi  na   casa  da  rua  Chã  que  Sebastião  Martins 
dos  Santos  faleceu,  repentinamente,  muito  contrito., 
nos  braços  de  sua  filha  Jerónima.  aos  23  desetem 
o  de  1871. 


58  A   I  RIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


A  mulher,  Maria  Pereira  França,  sobreviveu-lhe 
dois  anos  e  alguns  meses,  expirando  no  dia  6  de 
fevereiro  de  1874. 

Agora,  antes  de  fazer  especial  menção  de  Quini- 
nha,  revocaremos  a  tradição  de  família  no  que  ela 
tem  de  comum  ao  pai  e  à  filha. 

Sebastião  Martins  dos  Santos  —  dizem  os  seus 
descendentes  —  era  homem  inteligente  e  honrado, 
tinha  alguma  instrução  e  gostava  muito  de  lêr.  sendo 
a  Bíblia  o  seu  livro  predilecto. 

Quando  Camilo  apareceu  em  Friííme.  admirou-lhe 
a  inteligência,  afeiçou-se-lhe  e  planeou  protegê-lo  en- 
caminhando-o  à  vida  eclesiástica.  Com  este  fim  lhe 
propôs  que  fosse  aperfeiçoar-se  em  latim  com  o  pa- 
dre Manuel  da  Lixa.  morador  na  Granja  Velha,  pron- 
tificando-se  a  pagar  todas  as  despesas. 

Mas  entretanto  Camilo  enamorára-se  da  filha  mais 
velha  de  Sebastião  Martins  dos  Santos,  renunciando 
ao  sacerdócio. 

Fez-se  o  casamento,  sem  que  de  nenhum  modo 
concorresse  para  êle  a  ideia  de  que  o  jovem  Camilo 
pudesse  vir  a  receber  uma  grande  herança  como  a 
atoarda  ingénua  dos  camponeses  apregoava. 

Ele  sabia  muito  bem.  diz  a  família,  que  não  era 
assim :  que  o  genro  nem  herdara,  nem  tinha  a  her- 
dar. 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  59 

Neste  ponto  estamos  de  acordo.  Sebastião  Mar- 
tins dos  Santos  facilmente  poderia  saber,  com  segu- 
rança, as  circunstâncias  financeiras  em  que  se  en- 
contrava Camilo. 

Mas  o  que  é  certo  é  que  o  casamento  o  conten- 
tou, porque  reconhecia  que  o  genro,  ainda  que  sem 
bens  de  fortuna,  poderia,  pela  sua  inteligência,  ter 
um  futuro  brilhante. 

Foi  o  próprio  Camilo  que  então  alvitrou  a  carreira 
a  seguir :  queria  ser  médico. 

Era  uma  sugestão  vinda  do  exemplo  dado  pela 
família  Azevedo,  da  Samardan :  não  podendo  ser  sa- 
cerdote como  padre  António,  pois  já  tinha  casado, 
desejava  fazer  o  curso  de  medicina  como  o  cunhado, 
irmão  do  padre. 

Sebastião  Martins  dos  Santos  anuiu,  e  mandou 
Camilo  para  o  Porto  estabelecendo-lhe  a  mesada  de 
duas  libras. 

Mas,  imprevidentemente,  deixou-o  ir  entregue 
a  si  mesmo,  em  plena  liberdade  dos  seus  ver- 
des anos,  para  uma  cidade  onde  os  perigos  da  ten- 
tação eram  muito  maiores  do  que  na  aldeia  de 
Friííme. 

O  sogro  deveria  ter  aconselhado  que  a  filha  acom- 
panhasse o  marido,  porque  o  amor.  quando  sincero 
como  o  de  Quininha,  não  é  só  pródigo  de  afectos  que 


60  A    PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

vencem  pelo  carinho,  mas  também  exerce  uma  suave 
acção  educativa  e  moderadora. 

Camilo  submeter-se-ia  docilmente  a  esse  terno  ju- 
go ;  assim  no-lo  faz  crer  o  facto  de  êle  ir  passar  as  férias 
em  Friííme  junto  da  mulher,  facto  que  os  descenden- 
tes de  Sebastião  Martins  dos  Santos  aliás  confirmam. 

Quininha  era  uma  criança  —  logo  diremos  a  sua 
idade  —  mas  sobejavam-lhe  graças  e  virtudes  que 
prolongassem  o  encanto  da  vida  doméstica,  além  de 
que,  toda  a  mulher  dedicada  tem  o  instinto  dos  seus 
direitos  conjugais  e  do  processo  de  os  defender  por 
si  mesma. 

Todavia,  no  Porto.  Camilo  não  descurou  absoluta- 
mente os  estudos  preparatórios  para  o  curso  médico- 
porque  no  dia  12  de  outubro  de  1843  fazia  exames 
de  gramática  e  lingua  latina,  obtendo  aprovação  uná. 
nime,  némine  discrepante  como  então  se  dizia,  e  de 
gramática  e  lingua  francesa,  sem  maior  classifica- 
ção que  a  de  simpLíciter. 

No  dia  1 3  era  examinado  em  filosofia  racional  e 
moral,  sendo  classificado  do  mesmo  modo  que  no 
exame  de  francês.  ' 


'  A  investigação  õêstes  exames  liceais  pertence  ao  sr.  òr. 
Maximiano  Lemos  lArq.  de  Hist.  da  Medicina  Portuguesa;, 
n/'  1,  òo  1."  ano  (1916). 


A    PRI  VIEIRA   MULHER  DE  CAMIL^  61 

Desde  esse  dia,  Camilo  ficava  legalmente  habi- 
litado a  matricular-se  na  Escola  Médica,  e  assim  fez 
no  dia  16.  ' 

Apresentando  certidão  de  o  ter  feito,  foi  admitido, 
na  Academia  Politécnica,  à  matrícula  na  aula  de  quí- 
mica, porque  esta  disciplina,  para  o  efeito  da  ma- 
trícula, das  propinas  e  da  frequência,  estava  englo- 
bada no  l.""  ano  da  Escola  Médica  i anatomia  .  do 
mesmo  modo  que  zoologia  e  botânica  o  estavam  no 
2."  ano  (fisiologia  e  higiene). 

O  curso  de  medicina  fazia-se  com  deminuta  des- 
pesa no  respeitante  aos  encargos  propriamente  es- 
colares. A  abertura  de  matrícula  em  cada  ano  da  Es- 
cola custava  9 $600  réis  (duas  moedas)  e  o  encerra- 
mento igual  quantia.  A  carta  de  formatura  importava 
em  14$000  réis,  e  os  emolumentos  de  secretaria 
eram  modestos. 


'O  Decreto  òe  29  òe  òezembro  òe  1836  exigia,  para  a 
matrícula  nas  Escolas  Méòicas  òe  Lisboa  e  Porto,  certiòão 
òe  iòaòe  òe  14  anos  e  òos  exames  òas  quatro  primeiras  ca- 
òeiras  e  òa  sexta  òo  curso  òos  liceus.  (Eram  as  òe  portu- 
guês, latim,  francês,  inglês,  iòeologia,  gramática  geral  e  ló- 
gica, moral  universal,  geografia,  cronologia,  e  história).  Mas 
estabelecia  um  períoòo  transitório  em  que  seria  permitiòa 
a  matrícula  pelos  regulamentos  anteriores  até  cinco  anos 
òepois  òe  estarem  regularmente  estabeieciòos  os  liceus  òis- 


62  A   PRlMtlRA  MULHER  DE  CAMILO 


Pode  calcular-se  que.  no  fim  do  seu  curso,  o  alu- 
no pouco  mais  de  cento  e  dez  mil  réis  teria  pago  ao 
Estado. 

E  quanto  ao  que  então  se  chamava  «o  passadio», 
a  vida  dos  estudantes  no  Porto  era  muito  favorecida 
pela  modicidade  dos  géneros  alimentícios  e  do  alu- 
guer das  casas. 

Mas  compreende-se  que  da  mesada  de  duas  libras 
pouco  ou  nada  sobejasse  a  Camilo  para  as  suas  pa- 
tuscadas de  rapaz.  Não  admira,  pois.  que  fizesse  al- 
gumas dívidas,  as  quais  não  podiam  ser  grandes  por 
falta  de  crédito  ou  penhor.  E  aos  dezoito  anos  tam- 
bém não  admira  que.  além  de  dívidas,  fizesse  rapa- 
zices.  gratuitas  ou  pouco  dispendiosas. 

Sebastião  Martins  dos  Santos,  mediante  informa- 
ções mais  ou  menos  certas,  veio  a  sabê-lo  e  nas  fé- 
rias, em  Friííme,  repreendeu  severamente  o  genro, 
que  num  momento  de  desespero  bradou  á  mulher  : 

tritais.  Ora  o  regulamento  òe  23  òe  abril  òe  1840  manteve 
ainòa  o  períoòo  transitório  e  especificou  como  preparató- 
rios para  a  referida  matrícula  a  língua  latina  e  a  lógica.  Por- 
tanto, Camilo  requerera  voluntariamente  o  exame  òe  fran- 
cês, língua  òe  que  já  tinha  começaòo  a  aprenòer  a  gramática 
na  Samaròan  Seroer.v  òe  5.  Miguel  de  Se:de,  III,  pag.  76\ 
com  paòre  António  òe  Azeveòo  (carta-òeòicatória  no  ro- 
mance O  bem  e  o  mal). 


A  PRIMEIIA  MULHER  DE  CAMILO  63 


—  A  minha  vontade  era  arrasar  estas  paredes. 

O  sogro  ouviu  isto.  expulsou  Camilo  e  disse  á  fi- 
lha que  esquecesse  para  sempre  o  marido  ou  então 
que  fosse  viver  com  êle  :  querendo  ir.  que  nunca  mais 
lhe  chamasse  pai  nem  lhe  tornasse  a  aparecer. 

Em  geral  são  os  velhos  que.  pela  sua  experiên- 
cia, moderação  e  serenidade,  aplacam  as  tempesta- 
des domésticas.  Mas  não  aconteceu  assim  em  casa 
de  Sebastião  Martins  dos  Santos,  conquanto  êle  fosse 
homem  de  bons  sentimentos  e  inteligente.  Faltava- 
Ihe,  porem,  a  serenidade  indispensável  no  homem 
que  tem  de  perdoar  e  dirigir :  digo  perdoar,  porque 
muitas  vezes,  quase  sempre,  perdoar  é  dirigir  pelo 
exemplo  e  pela  mansidão. 

Estas  minhas  considerações  discordam,  até  certo 
ponto,  dos  apontamentos  que  constituem  uma  ver- 
são de  família. 

Sinto  que  seja  assim,  mas  são  os  próprios  factos 
que  autorizam  a  minha  maneira  de  vêr. 

Sigámo-los.  pois. 

(^Camilo,  depois  do  rompimento  com  o  sogro,  es- 
queceu, desprezou  sua  mulher?  Não.  Por  aqueles 
mesmos  apontamentos  soube  o  sr.  Carlos  Amaral 
que  o  cunhado  de  Camilo,  ainda  hoje  residente  no 
Brasil,  dissera  um  dia  ao  pai.  como  criança  incons- 
ciente que  então  era.  ter  visto  a  Quininha  ir  escon- 


64  A  PRIMEIRA  MULHhR    l'E  CAMILO 


der  um  embrulho  no  forro  do  tecto.  Penalizava-o  ter 
revelado  este  segredo,  que  surpreendera  e  denun- 
ciara sem  prever  as  suas  possíveis  consequências. 

Sebastião  Martins  dos  Santos  foi  ao  esconderijo 
e  examinou  o  embrulho. 

Eram  cartas  de  Camilo,  recebidas  a  ocultas,  pela 
saudosa  Quininha. 

Portanto.  Camilo  não  esquecera  nem  desprezara 
a  sua  linda  mulher,  depois  que  o  sogro  o  banira  da 
casa  de  Friííme. 

Muito  initado.  Sebastião  Martins  dos  Santos  cas- 
tigou asperamente  a  filha,  que  continuou  a  ver-se 
torturada  num  dilema  atroz,  não  ousando  abandonar 
o  pai  para  ir  viver  com  o  marido. 

E,  contudo,  aquele  maço  de  cartas  bem  poderia 
ter  sido  uma  óptima  ponte  de  recíproca  transigência 
por  onde  Camilo  corresse  a  lançar-se  nos  braços  de 
sua  infeliz  mulher,  tão  sofredora  e  submissa,  pobre 
criança  sem  ventura. 

Criança,  sim. 

l  Sabe  o  leitor  a  idade  de  Quininha  quando,  em 
Ribeira  de  Pena.  casou  com  Camilo  Ferreira  Bote- 
lho Castelo  Branco  no  dia  18  de  agosto  de  1841? 

Pois  fique  desde  já  sabendo  que  era  ainda  mais 
nova  do  que  Camilo. 

Não  perfizera  quinze  anos. 


A    PRIMEIRA   ?vlLLHER   DE   CAMILO  65 


Di-lo  O  seguinte  documento,  que  pela  primeira 
vez  trago  a  lume  : 

Américo  Jazelino  Dias  da  Costa.  Bacharel  for- 
mado em  Direito  pela  Universidade  de  Coimbra  e 
Oficial  do  Registo  Civil  do  Concelho  de  Gondo- 
mar: 

Certifico  que  do  livro  competente  de  registos, 
existente  na  Repartição  a  meu  cargo,  a  folhas  du- 
zentos setenta  e  cinco  verso  consta  um  do  teor  se- 
guinte ;  —  « Joaquina  filha  legitima  de  Sebastião  Mar- 
tins dos  Santos  e  Maria  Pereira  de  França  do  lugar 
do  Taralhão  da  freguesia  de  Sam  Cosme  de  Gondo- 
mar, Bispado  do  Porto.  Neta  paterna  de  José  Mar- 
tins dos  Santos,  e  de  Elena  Martins.  E  materna  de 
Manuel  Pinto  de  Castro,  e  de  Maria  Pereira  de  França. 
Nasceu  a  vinte  e  três  de  Novembro  de  mil  e  oito- 
centos e  vinte  e  seis,  foi  na  Igreja  desta  freguesia 
batisada  pelo  Padre  José  Martins  de  minha  licença 
no  dia  vinte  e  cinco  do  dito  mês  e  ano  tocou  a  criança 
na  Pia  Batismal  o  dito  José  Martins  dos  Santos  por 
procuração  de  António  Francisco  Monteiro  Guima- 
rães, e  Madrinha  foi  Joaquina  Vieira  Pinto  fiz  este 
assento.  O  Reverendo  (?)  Manuel  Martins.  Sebastião 
Martins  dos  Santos.  De  José  M  (lugar  do  sinal  de 
criís   artins  dos  Santos. 


55  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


Nada  mais  consta  do  referido  assento  que  fiel- 
mente fica  trasladado. 

Gondomar  e  Repartição  do  Registo  Civil  em  3  de 
Junho  de  1916  e  dezasseis. 

O  Oficial,  Américo  Jazelíno  Dias  da  Costa. 

Camilo,  no  Amor  de  perdição,  comenta  ironica- 
mente o  amor  da  mulher  aos  quinze  anos,  mas  é 
essa  a  idade  que  atribue  a  Teresa  de  Albuquerque, 
cujo  amor  ele  pintou  leal  e  constante. 

Teresa  de  Albuquerque  não  teve  existência  real, 
quem  existiu  de  facto  foi  Joaquina  Pereira  França, 
que  desde  os  quinze  anos  —  Camilo  bem  o  sabia  — 
amou  com  ternura  e  perseverança  o  mesmo  homem. 

E'  ela,  pois,  que  personaliza  a  excepção  se  hou- 
vermos de  generalizar  como  verdadeira  a  inconstân- 
cia feminina  aos  quinze  anos. 

Bem  cedo  madrugou  em  Quininha  a  mulher  es- 
piritual, a  mulher  de  coração  e  caracter. 

Ao  mesmo  passo,  também  precocemente,  o  seu 
corpo  havia  atingido  um  desenvolvimento  em  que  já 
floresciam  exuberantemente  os  encantos  da  nubili- 
dade. 

Lembre-se  o  leitor  do  rápido  retrato  que  deixei 
esboçado  em  poucas  palavras  nos  Amores  de  Ca- 
milo : 


A   PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO  67 


-K Forte  e  sadia,  reforçada,  de  peitos  altos,  esta- 
tura regular  ;  nas  faces  morenas,  um  clarão  de  inge- 
nuidade alegre,  de  bondade  expansiva.» 

E  se  o  leitor  fôr  tão  meticuloso  que  se  não  con- 
tente apenas  com  palavras,  julgue  a  figura  de  Joa- 
quina Pereira  França  pelo  retrato  de  sua  irmã  Rosa, 
que  tem  presente  nesta  monografia,  pois  que  os  pa- 
rentes afirmam  que  as  duas  irmãs  eram  muito  pa- 
recidas. 

O  casamento  duma  rapariga  de  1 5  anos  com  um 
rapaz  de  16,  ambos  pobres,  consentido  pelas  respe- 
ctivas famílias,  presupõe  circunstâncias  imperiosas. 
Não  tardarão  momento  em  que  esta  conjectura  trans- 
pareça em  maior  vulto.  Mas  pelo  casamento  se  con- 
segue a  liquidação  legal  de  todas  as  responsabilida- 
des e  desvarios  do  amor.  E  o  casamento  católico 
era,  além  de  um  pacto  autorizado  pelo  Direito  Civil, 
uma  purificadora  benção  do  Céu.  um  sacramento  da 
^Santa  Madre  Igreja.»  como  sempre  disseram  nos- 
sos pais. 

A  linda,  a  bondosa  O  fininha  deu  a  Camilo  uma 
filha,  nascida  a  25  de  agosto  de  1843.  em  Friííme. 
a  qual  foi  baptizada  quatro  dias  depois  na  paroquial 
do  Salvador,  sendo  padrinho  seu  avô,  Sebastião  Mar- 
tins dos  Santos,  e  madrinha  sua  tia  Vitória. 

A  criança  recebeu  o  nome  de  Rosa. 


68  A    f  RIMEIRA   y.ULHtR  DE   CAMILO 


Não  me  esquivarei  a  reproduzir  na  íntegra  a  cer- 
tidão de  idade  : 

^Certifico,  para  effeito  literário,  que  num  livro  de 
baptismos  desta  freguesia  existe  o  assento  seguinte  : 

<<Roza,  filha  legitima  de  Camillo  Ferreira  Bote- 
lho Castello  Branco  e  Joaquina  Pereira  França,  do 
lugar  de  Friume,  desta  freguesia  do  Salvador  de  Ri- 
beira de  Pena.  Necta  paterna  de  Manuel  Joaquim 
Botelho  Castello  Branco  e  Jacinta  Rosa  Almeida  do 
Espirito  Santo,  da  cidade  de  Lisboa,  e  Materna  de  Se- 
bastião Martins  dos  Santos  e  Maria  Pereira  de  França, 
do  lugar  de  Friume.  Nasceu  aos  quinze,  digo.  vinte  e 
cinco,  25.  e  foi  baptisada  solemnemente  com  a  im- 
posição dos  Santos  Óleos,  aos  vinte  e  nove  do  mez 
de  agosto  de  mil  oitocentos  e  quarenta  e  três  :  foram 
padrinhos  seu  avô,  Sebastião  Martins  dos  Santos  e 
sua  filha  Victoria  França,  todos  do  lugar  de  Friume 
desta  freguesia  do  Salvador  de  Ribeira  de  Pena.  E 
para  constar  fiz  este  termo.  Era  ut  supra.  Na  ausên- 
cia do  Parocho,  o  P.®  Manuel  Balthazar  Giz.  E'  co- 
pia fiel  do  original. 

Salvador  de  Ribeira  de  Pena  1  de  junho  de  1915. 
O  Parocho,  Álvaro  Augusto  de  Carv ciUi o  Pimenta,  y- 

Ao  parto  de  Quininha  sobrevieram  abcessos  do 


A   PRIMEIPA  MULHIiR   DE  CAMILO  69 


seio,  que  impediram  a  amamentação,  facto  aliás  vul. 
£ar  nas  primíparas. 

Mas  a  sogra  de  Camilo,  que  tinha  dado  à  luz  re- 
centemente mais  uma  filha.  *  criou  ao  seu  peito  tanto 
a  filha  como  a  neta. 

Este  é  que  não  é  um  facto  vulgar. 

Em  .verdade  há  muito  de  extraordinário  no  pri- 
meiro casamento  de  Camilo,  rodeam-no  circunstân- 
cias inverosimilmente  romanescas,  relances  de  ma- 
ravilhoso, próprios  de  contos  fantásticos,  em  breve 
perturbados  por  uma  conflituosa  e  banal  realidade. 

Assim,  pois.  o  nascimento  da  filha,  contra  o  que 
se  devia  esperar,  não  melhorou  a  sorte  dos  cônjuges, 
nem  modificou  a  atitude  do  sogro  de  Camilo, 

As  informações  colhidas  no  Porto  pelo  sr.  Carlos 
Amaral  são  omissas  quanto  aos  factos  que  decorre- 
ram desde  o  nascimento  de  Rosa  até  à  morte  da 
mãe. 

Mas  o  Romance  do  romancista  e  os  Amores  cie 
Camiio,  baseados  nos  apontamentos  que  em  1889 
recebi  de  Ribeira  de  Pena.  dizem  que  Joaquina  Pe- 
reira França  procurara  insistentemente  atrair  a  Friú- 
me  o  marido  :  que  ele  cedera  e  fora  ali  vêr  e  beijar 
a  filhinha,  sendo  vigiado  sempre  pelo  sogro  para  evi- 

1  Ermelinòa,  nasciòa  a  23  òe  julho  òe  1843. 


70  A    PRTMPTKA    MULHER   DE  CAJíILO 

tar  uma  aproximação  íntima  entre  marido  e  muliíer  ; 
que,  finalmente,  estes  combinaram  entre  si  juntar-se 
no  Porto  quando  Camilo  tivesse  concluído  a  forma- 
tura em  medicina. 

Era  uma  esperança  a  longo  prazo  e  devia  ser  a 
mais  falaz  das  ilusões. 

Banido  de  Friííme,  Camilo  ia  passar  as  férias  com 
sua  tia  D.  Rita  em  Vila  Real  e  foi  aí  que  se  enu" 
morou  de  Patrícia  Emília  do  Carmo,  fugindo  ambos 
para  o  Porto,  onde  foram  presos. 

Este  facto  escandaloso  tivera  grande  notoriedade 
e  é  provável  que  Joaquina  Pereira  França  o  soubesse 
em  Ribeira  de  Pena. 

Pode  imaginar-se  a  sua  imensa  amargura,  o  seu 
grande  desalento ;  as  lágrimas  que  choraria,  a  ocul- 
tas do  pai,  quando  beijava  ternamente  as  faces  ro- 
sadas da  sua  filhinha. 

Como  Penélope,  esperava  leal  e  saudosamente  o 
marido  errante,  pensando  nele  dia  e  noite,  mas  a  teia 
do  seu  tear  era  tecida  de  farrapos  do  coração  dilace- 
rado e,  se  em  cada  alvorada  a  recomeçava,  em  cada 
ocaso    a  desfazia,  vendo  que  o  marido  não  voltava. 

Mais  que  uma  doença  acidental  foi  este  cruciante 
desgosto,  recalcado  no  imo  peito,  que  matou  a  des- 
ditosa Quininha.  Morta  vivera  éla  o  último  ano  de 
sua  vida. 


A   PRIMEIRA   MULHER  DE   CAMILO  71 


A  certidão  de  óbito  é  dum  laconismo  e  secura, 
que  repugnam.  Oculta-se  o  nome  do  marido  e  até  o 
dos  pais  e  não  se  declara  que  fosse  enterrada  dentro 
da  igreja,  mas  fica-se  sabendo  que  fora  lançada  à 
sepultara  como  pobre. 

Eis  o  teor  desse  miserando  documento ; 

«Joaquina,  rasada,  do  logar  de  Friume  e  fregue- 
zia  do  Salvador  de  Ribeira  de  Pena.  falleceu  com  to- 
dos os  sacramentos  em  dia  vinte  e  cinco  e  foi  se- 
pultada aos  vinte  e  sete  de  Setembro  de  mit  oito- 
centos e  quarenta  e  sete,  foi  sepultada  como  pobre, 
nada  teve,  e  para  constar  fiz  este  termo,  Era  iit  su- 
pra. O  Parocho  José  António  Rodrigues.  Nota  à 
margem:  Friume.  Teve  missa  cantada.»  * 

A  mais  vil  das  mulheres  não  seria  registada  no 
obituário  paroquial  em  termos  mais  degradantes. 

Que  infortunados  vinte  anos ! 

E,  contudo,  D.  Joaquina  Pereira  França  Castelo 
Branco  tinha  sido  filha  respeitosa  e  submissa,  esposa 
dedicada  e  fiel,  mãe  carinhosa  e  exemplar. 

Choraram-na  os  pobres,  gratos  à  piedade  com  que 
os  esmolava. 


^  O  Romance  do  romancista,  pg.  49. 


72  A  PRI\dElRA  MULHER   DE  CAMILO 


Camilo  não  foi  chamado  a  Friííme.  e  por  isso  se 
agravou  talvez  o  seu  ressentimento  contra  o  sogro, 
pois  que  as  informações  de  família,  tais  como  foram 
colhidas,  nos  contam  os  seguintes  factos : 

-Camilo,  depois  da  morte  da  mulher,  para  arre- 
liar o  sogro,  dizia  a  toda  a  gente  que  havia  de  ir  bus- 
car a  filha  para  a  sua  companhia.  Mas  a  Rosita. 
quando  lhe  diziam  isto,  agarrava-se  ao  pescoço  do 
avó  e  pedia-lhe  que  fugisse  com  ela  e  a  escondesse. 
Era  grande  o  amor  dos  avós  pela  neta,  a  ponto 
de  Sebastião  Martins  dos  Santos  dizer  que  prefe- 
ria que  Deus  lha  levasse  a  ter  que  entregá-la  ao 
pai.  -> 

E  morta  a  viu  bem  depressa,  porque  a  pobre 
criança  apenas  sobreviveu  à  mãe  cinco  meses  e  al- 
guns dias. 

«Certifico,  para  effeito  literário,  que  num  livro 
dos  óbitos  do  registo  parochial  desta  freguesia  existe 
o  assento  seguinte : 

«Roza.  filha  legitima  de  Camillo  Ferreira  Botelho 
Castello  Branco  e  Joaquina  Pereira  França,  menor 
de  cinco  annos  de  idade,  do  lugar  de  Friíime,  desta 
freguesia  do  Salvador  de  Ribeira  de  Pena,  falleceu 
no  dia  dez  e  foi  sepultada,  dentro  da  Egreja.  dia  onze 
de  março  de  mil  oitocentos  e  quarenta  e  oito.  do  que 


A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO  73 

fiz  este  termo.   Era  ut  supra.  Na  ausência  do  Abb.^ 
—  O  P.'  Domingos  J/  Giz. » 

E"  copia  fiel  do  original.  Salvador  de  Ribeira  de 
Pena  1  de  junho  de  1915. 
O  Parocho.  Álvaro  Augusto  de  Carvalho  Pimenta.- 

Et  Rose,  elle  a  vécu  ce  que  vivent  ies  roses. . . 

Mas.  se  não  tivesse  morrido  em  tenra  idade,  creio 
bem  que  o  romancista  a  iria  buscar  a  Friúme.  não 
por  acinte  ao  sogro,  mas  para  ser  educada  no  Porto. 
z,  sobretudo,  para  êle  mesmo  dulcificar  no  afecto 
à  filha  a  amarga  saudade  da  mãe, 

E  esse  seria  o  caso.  aliás  vulgar,  em  que  os  bei- 
jos dados  aos  filhos  levam  doloridas  confissões  dum 
passado  inconfessável.  - 

l  Ficou  a  família  de  Sebastião  Martins  dos  San- 
tos a  odiar  Camilo  ?  Não.  certamente  porque  o  não 
responsabilizou  pelos  factos  que  a  fatalidade  de  in- 
felizes destinos  encadeou  terrivelmente. 

Sabemos  que  D.  Rosa  Pereira  França,  cunhada 
de  Camilo,  o  visitava  no  Porto,  quando  êle  era  já 
um  escritor  insigne. 

E.  pelas  informações  de  família,  sabemos  também 
que  o  sr,  António  Martins  dos  Santos,  vindo  do  Bra- 
sil a  Portugal,  pela  primeira  vez.  em  1881.  fora  a 
S,  Miguel  de  Seide  para  visitar  seu  cunhado,  que 


74  A    PRIMEIRA  MULHER   DE   CAMILO 


muito  admirava,  e  que  o  romancista,  «talvez  receo- 
so,» se  negou,  apesar  de  ter  sido  visto  à  janela. 

Receoso,  sim,  mas  de,  num  momento  de  expan- 
são sincera,  confessar  em  voz  alta  o  segredo  da  sua 
amargura  íntim^a. 

O  grande  escritor  nem  sequer  poderia  reconhecer 
o  sr.  António  Martins  dos  Santos,  se  o  viu  da  ja- 
nela, porque  o  irmão  de  Quininha  tinha  quatro  anos 
de  idade  no  tempo  em  que  Camilo  casou  e  não  mais 
de  onze  quando  foi  para  o  Brasil. 

Aqui  fica  exarada  em  todos  os  pormenores  a  tra- 
dição de  família. 

Agora  pouco  mais. 

No  Romance  do  romancista  (pag.  118)  incluí 
uma  fotografia  da  casa  de  Camilo  e  Joaquina  Pe- 
reira em  Friííme. 

Tinha-me  sido  cativantemente  enviada,  a  meu  pe- 
dido, por  uma  respeitabilíssima  pessoa  de  Ribeira  de 
Pena. 

Durante  vinte  e  tantos  anos  ninguém,  que  me 
conste,  impugnou  que  fosse  aquela  a  casa  autêntica 
onde  os  noivos  residiram. 

Mas  informações  recentes  e  autorizadas  vieram 
afirmar-me  ser  outra  a  casa  que  devia  ter  sido  foto- 
grafada. 

Estas  informações  surpreenderam-me,  contudo  a 


A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


75 


76  A   PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO 


autoridade  da  sua  orioem  abonava-as  como  verídicas, 
e  por  isso  solicitei  qualquer  desenho,  um  simples  es- 
boço, se  não  pudesse  ser  uma  reprodução  fotográ- 
fica. 

O  sr,  padre  Álvaro  Pimenta,  digno  pároco  da  fre- 
guesia do  Salvador  em  Ribeira  de  Pena.  prontamente 
satisfez  a  minha  solicitação. 

A  casa  de  Camilo  e  a  do  sogro  são  contíguas, 
mas  sem  nenhuma  comunicação  interior,  e  com  en- 
tradas independentes. 

Especializemos  a  de  Camilo,  que  tema  frente  uma 
cancela,  um  muro  e  o  quinteiro,  separados  da  es- 
trada ^  cerca  de  três  metros. 

E'  humilde,  muito  aldeão,  o  seu  aspecto.  Não  lhe 
falta  a  tradicional  varanda  de  madeira,  tão  portu- 
guesa, tão  vulgar  em  todo  o  país.  mormente  nas  pro- 
víncias do  norte. 

Devemos  supor  que  a  linda  Quininha  teria  a  sua 
varanda  bem  florida  de  amores-perf eitos  e  cravos, 
a  sorrirem  a  alegria  duma  habitação  de  noivos  nas 
lânguidas  m.anhãs  do  noivado. 

A  dentro  da  cancela  alguns  degraus  de  pedra  dão 
ingresso  para  a  cozinha,  ficando  à  direita  a  varan- 

'  Era  a  antiga  estraòa  que  seguia  para  Vila  Pouca  e  Cha- 
ves. 


A   PRIMEIRA    MULHER    DE  CAMILO 


77 


78  A   PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO 

da,  cuja  porta  comunica  com  um  sobrado,  imediato 
á  cozinha. 

Eis  tudo. 

Nos  baixos  da  casa  avultam,  com  alguma  galhar- 
dia, duas  portas,  que  são  das  cortes,  noíe-se.  boas 
cortes,  segundo  o  critério  económico  das  aldeias, 
onde  o  gado  é  um  valor  mais  cotado  que  o  ho- 
mem. 

Camilo  e  Quininha  tiveram  uma  criadita,  Maria 
Rita  Machado,  que  ainda  existe  nouagenária,  com- 
pletamente desmemoriada,  e  residente  na  casa  ha- 
bitada outrora  por  Sebastião  Martins  dos  Santos. 

Na  casa  em  que  morou  Camilo  mora  hoje  uma 
pobre  mulher  de  nome  Ana  Lopes. 

O  actual  proprietário  da  casa  é  o  médico  sr.  dr. 
Bento  Augusto  de  Andrade  e  parece  que  tem  pen- 
sado em  demoli-la  porque  lhe  tira  a  vista  do  próxi- 
mo largo,  «ponto  principal  da  povoação»,  segundo 
me  informam, 

Sequer  ao  menos  Camilo,  ainda  que  em  modes- 
tíssima casa,  habitava  no  Chiado  '  de  Friúme.  Mí- 
sera compensação,  ,  . 

E  o  sogro,  que  tinha  a  sua  tenda  na  casa  contí- 


^  Permita-se  esta  inocente  ironia,  porque  o  largo  não  tem 
nome  algum,  nem  o  tem  a  ruaestraòa. 


A   PRIMEIRA  MULHER   DE   CAMILO  79 


gua,  a  mesma  onde  residia,  mostrou  tino  comercial 
na  escolha  do  lu£ar. 

Ambas  as  casas  as  adquirira  êle. 

As  duas  fotografias,  que  deixo  aqui  reproduzidas, 
representam,  pois,  com  interessantes  pormenores, 
toda  a  exteriorização  do  tugúrio  autêntico  onde  Ca- 
milo se  domiciliou  em  Friúme.  ' 

Faço  ardentes  votos  pela  conservação  desse  his- 
tórico pardieiro,  no  qual,  também,  nasceu  e  morreu 
a  efémera  Rosinha  e  expirou  sua  mãe.  D.  Joa- 
quina Pereira  França  Castelo  Branco,  primeira  mu- 
lher legítima  do  preclaro  escritor,  obscura  rapariga, 
cuja  imagem  viveu  oculta  no  coração  de  Camilo,  onde 
é  preciso  ir  procurá-la  através  duma  neblina  de  sau- 


'  Ouero  Õizer,  a  respeito  òe  outro  çrediu  camilicino.  que 
o  sr.  Peòro  òe  Azeveòo,  òescobrinòo  que  Manuel  Joaquim 
Botelho  Castelo  Branco  resiòira  algum  tempo  na  casa  que, 
em  Lisboa,  torneja,  ao  ociòente,  òa  rua  òa  Oliveira  para  o 
Largo  òo  Carmo,  chegou  a  suspeitar  que  tivesse  ali  nasciòo 
Camilo:  ao  que  eu  contrapus  que  sempre  Camilo  me  afirmara 
terem-lhe  oito  que  nasceu  na  casa  òo  Largo  òo  Carmo,  onòe 
vemos  hoje  a  lápiòe  comemorativa  ;  conquanto  o  romancista 
se  lembrasse  vagamente  òe  haver  resiòiòo  cem  o  pai  no 
referiòo  préòio  òa  rua  òa  Oliveira. 

Com  a  mesma  lealòaòe  com  que  me  revelou  a  sua  apreen- 
,são,  comunicou-me  o  sr.  Peòro  òe  Azeveòo,  passaòo  tempo, 


80  A   PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO 

dade,  de  remorso  talvez,  como  indicam  as  suas  tor- 
turadas palavras  ; 

—  Esse  casamento  foi  uma  infâmia. 

Contudo,  na  va3ta  obra  do  grande  Mestre  surgem 
dispersas,  como  vamos  ver.  semelhando  destroços 
de  naufrágio  num  mar  tormentoso,  reminiscências 
persistentes  de  Friííme  esvoaçando-se  em  torno  da- 
quela que  foi  no  amor  e  no  infortúnio  uma  lídima  e 
quase  anónima  antecessora  de  D.  Ana  Plácido. 


ter  verificaôo  por  um  livro  antigo  òas  òécimas  que  Manuel 
Joaquim  Botelho  Castelo  Branco  apenas  morou  na  rua  òa 
Oliveira  òesòe  1826  (isto  é,  tenòo  Camilo  um  ano  òe  iòaòe) 
até  1830. 

Por  que  motivo  seria  ministraõo  o  baptismo  na  freguesia 
ííos  Mártires  a  uma  criança  que  nasceu  na  freguesia  òo  Sa- 
cramento, a  qual  sempre  tem  compreenòiòo  o  Largo  òo 
Carmo  ? 

O  meu  velho  amigo  òr.  Garcia  Denís,  òecano  òos  páro- 
cos òa  capital,  òiz-me  terem-se  òaòo  vários  casos  análogos, 
por  òiversos  motivos,  especialmente  o  melinòre  òe  tornar 
pública  a  situcção  ilegal  òa  mãe  òo  baptizaiiòo. 


IV 


Interpretação   da   comédia 
o  «Lubis-Homem» 

Entre  as  recordações  do  tempo  em  que  desposou 
Joaquina  Pereira,  conservou  sempre  Camilo,  muito 
nítida,  a  do  fidaLgo-mendígo  José  Pacheco  de  An- 
drade, morgado  de  Friúme,  cuja  trágica  biografia  êle 
narrou  em  Um  Livro  e  a  cuja  morte  se  refere  nos 
Mysterios  de  Fafe. 

Mas  esta  recordação  tem  apenas  um  mero  inte- 
resse topográfico,  digamos  assimx :  evoca,  unicamen- 
te, a  aldeia  em  que  o  adolescente  Camilo  conheceu 
e  amou  a  filha  primogénita  de  Sebastião  Martins  dos 
Santos. 

Mais  nos  importa  recordar  as  páginas  em  que  en- 
trevemos a  imagem  de  Joaquina  Pereira  sob  o  dis- 
farce onomástico  de  outra  mulher  ;  e  até  a  hora  fes- 
tiva do  seu  consórcio  e  dos  seus  primeiros  momen- 
tos no  mesquinho  lar  sorridente. 


82  A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO 


Aqui  tem  o  leitor  uma  dessas  transparentes  pá- 
ginas, supostamente  referida  ao  casamento  do  poeta 
Silvestre  da  Silva  com  a  filha  do  sargento-mór  de 
Soutêlo  ; 

«  Sahimos  para  a  egreja  entre  alas  de  activo  bom- 
bardeamento. Eram  centenares  de  pessoas  d'ambos 
os  sexos.  ^ 

«As  velhas  erguiam  as  mãos  aos  céus,  excla- 
mando : 

«  —  Como  tu  vaes  linda  !  Bemdito  seja  Deus  !  Pa- 
reces Nossa  Senhora  ! 

«Confessamo-nos,  commungamos  e  recebemos  as 
bênçãos. 

«Desde  que  sahimos  da  egreja  até  á  entrada  de 
casa,  caminhamos  sempre  debaixo  de  nuvens  de  flo- 
res. O  estrondo  dos  bacamartes  era  atroador,  e  os 
dois  sinos  '  da  freguezia  repicaram  desde  que  sahi- 
mos do  templo  até  ao  anoitecer  d'esse  dia. 

«Meia  hora  depois  que  chegamos,  entrei  no  quarto 
de  minha  mulher  e  encontrei-a  de  joelhos  diante  du- 
ma imagem  de  S.  João  dos  Bem- Casados. 

«Ergueu-se  ella,  benzendo-se.  e  esperou  que  eu 
a  beijasse  pela  segunda  vez.  Penso  que  o  publico 


1  A  igreja  òo  Salvaòor  òe  Ribeira  òe  Pena  tem  òuas  tor 
res  e  òois  sinos. 


A  PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO  83 

me  releva  a  confissão  de  que.  ao  dar-lhe  este  se- 
gundo beijo,  encontrei  os  seus  lábios.  Era  o  instincto 
das  sensações  agradáveis,  mas  honestas,  que  ensi- 
nou a  minha  mulher  o  segredo  do  máximo  prazer 
de  um  beijo.  ^> 

Este^último  período  é  mais  etéreo  do  que  a  im.- 
pressão  que  nos  deixam  algumas  páginas  naturalis- 
tas da  Maria  Mo y sés  e  algumas  claras  scenas  da 
comédia  póstuma  O  Liibis-homem. 

Por  agora  falemos  da  comédia. 

Fui  eu  que  a  prefaciei  por  convite  dos  editores, 
e  logo  no  início  da  prefação  assentei  uma  tese.  que 
me  propus  demonstrar. 

Vinha  falando  do  autor,  e  disse : 

«A  comedia  Liibis-homern  é  nada  mais  e  nada 
menos  que  a  historia  provavelmente  exacta  do  seu  ga- 
lanteio e  casamento  com  Joaquina  Pereira.  O  dis- 
farce em  Liibis-Jiomem  talvez  seja  exacto  também. 
O  namoro  fora  um  desenfado  de  estudante,  sem  pre- 
visão das  consequências  que  podia  trazer.  Mas  as 
circunstancias  complicaram-se  perante  a  attitude  se- 
vera do  pai  de  Joaquina  Pereira  e  da  gente  do  campo, 
que  costuma  resolver  á  valentona  as  questões  que 
põem  em  jogo  a  honra  das  famílias.  A  pobre  cam- 


*  Coração,  cabeça  e  estômago,  terceira  parte. 


84  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


poneza  sustentava  com  lagrimas,  em  vez  de  palavras, 
o  seu  direito  a  uma  reliabilitação.  Camillo  viu-se  ro- 
deado de  ameaças,  e  a  consciência  gritou-lhe  que 
quem  faz  o  que  deve,  deve  o  que  faz.  As  lagrimas 
de  Joaquina  Pereira  apressaram  a  solução  do  con- 
flicto.  Camillo  casou.  Deve  ter  sido  esta  a  historia  do 
seu  primeiro  casamento,  contada  por  elle  mesmo. » 

O  Diário  da  Tarde,  folha  portuense,  noticiando 
a  aparição  da  comédia,  prefaciada  por  mim,  insi- 
nuava que  eu  a  tinha  prefaciado  mal. 

Havia  naquele  diário  alguém  que  sempre  me  que- 
ria ser  desagradável.  Nunca  procurei  saber  quem 
fosse.  Mas  se  das  outras  vezes  isso  me  não  tirava  o 
sono,  dessa  vez  tive  dó  do  sujeito  que,  nem  com  o 
auxílio  da  minha  lupa,  sabia  ler  nas  entrelinhas  da 
comédia. 

Rodaram  alguns  anos  e  o  sr.  dr.  Sérgio  de  Cas- 
tro, na  sua  vasta  obra  CamilLo  Castelío  Branco,  ' 
categoricamente  afirmou,  sem  hesitações,  que  a  exa- 
ctidão e  a  verdade  eram  manifestas  naquele  meu 
prefácio,  malsinado  anonimamente. 

Diz  s.  ex.'"'  no  volume  III.  a  páginas  36,  referin- 
do-se  ao  Mestre  : 

«  .  .  .  o  sr.  Alberto  Pimentel,  que  considera  o  Lu- 


^  Em  três  volumes.  Lisboa,  1914. 


A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  85 

bis-H ornem  como  sendo,  nem  mais  nem  menos,  um 
episodio  provavelmente  exacto  do  seu  galanteio  e  ne- 
cessário casamento  com  Joaquina  Pereira,  do  logar 
de  Friume,  concelho  de  Ribeira  de  Pena  —  um  pe- 
daço de  terra  privilegiada  de  naturaes  bellezas,  que  se 
aperta  entre  os  extremos  de  Traz  os  Montes  e  Minho. 

«Mais  do  ç\\it  provável,  o  consideramos  nós  como 
certo. 

«Conhecemos  o  m^eio  onde  se  produziram  esses 
amores  ;  visitámol-o  por  muitas  vezes :  ouvimos  tes- 
temunhas vivas,  contemporâneas  d*esses  devaneios 
de  rapaz  sem  cuidados,  e  o  meio,  as  testemunhas 
nos  certificaram  que  na  comedia  com  effeito  se  trata 
da  vida  alegre  do  futuro  romancista,  doidivanas 
estróina  e  desabusado,  personificando-se  em  Carlos 
de  Athayde ...» 

O  homem  do  Diário  da  tarde  deve  ter  embu- 
chado  gravemente. 

A  comedia  decorre,  em  1846.  Entre-Douro-e-Mi- 
nho.  designação  vaga  que  a  seu  tempo  se  restringe 
e  aclara  numa  rubrica. 

São  personagens  principais : 

João  da  Eira  (Sebastião  Martins  dos  Santos), 
M ar ia/in a,  SU3.  filha  (Joaquina  Pereira  França). 
Carlos  de  Ataíde  (Camilo). 


86  A   PRIMEIRA   MULHER  DE  CAMILO 

O  Vigário  de  S.  Salvador  (Padre  Manuel 
Rodrigues  ou  padre  Manuel  Lixa  *  com  quem  Camilo 
fora  aperfeiçoar-se  em  latim  na  Granja  Velha). 

E  completam  a  ementa  dos  actores  : 

Manoel  do  Portelo. 

Miquelina  do  Prado. 

Um  Padre. 

Seis  ou  mais  encamisados. 

Doas  fantasmas. 

Gente  do  povo,  patrulhas,  etc. 

O  primeiro  acto  passa-se  na  eira  do  tio  Manuel 
do  O^ínchoso  em  noite  de  espadelada  —  um  dos  mais 
alegres  serões  da  vida  aldeã. 

Há  raparigas  espadelando  e.  junto  delas,  rapazes 
que  as  auxiliam,  quebrando  os  feixes  de  linho.  Há 
cantos,  musicata,  encamisados,  que  vêem  de  Esca- 
rei  (lugar  da  freguesia  do  Salvador),  danças,  amo- 
res, despiques,  pauladas  e  tumultuoso  pavor  quando 
aparece  o  labis-homem  —  transformação  dum  dos 


^  «..   não  te  recoròas  òos  nossos  conòiscipulos  na  aula 
òo  paõre  Lixa  ha  vinte  e  cinco  annos?» 
Xoiíes  de  insoimua,  n."  7,  pág.  28. 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  87 


encamisados,  Carlos  de  Ataíde,  que  foge  surrateira- 
mente  com  Mariana. 

A  rubrica  indicativa  do  scenário  do  segundo  acto  é 
aquela  a  que  há  pouco  aludimos  como  esclarecedora 
do  exacto  lugar  em  que  a  acção  decorre. 

<^  A"  esquerda  a  frontaria  da  egreja  de  S.  Salvador, 
deixando  vêr  um  dos  pannos  da  parede,  com  passa- 
gem contigua.  Ao  fundo,  a  casa  da  residência  do  vi- 
gário, com  entrada  ao  rez-do-chão.  A  maior  parte  do 
palco  é  uma  alameda  ou  adro.  ^>  - 

Trata-se,  pois,  da  freguesia  do  Salvador  em  Ri- 
beira de  Pena,  que  compreende  o  lugar  de  Friííme. 

Neste  acto  realiza-se  o  casamento  religioso  duns 
noivos  residentes  naquela  paróquia. 

Camilo  descreve,  noutra  rubrica,  os  festejos  tra- 
dicionais com  que  também  as  suas  bodas  tinham 
sido  celebradas  em  1841,  acentuando  ainda  mais 
que  no  Coração,  cabeça  e  estômago  o  pormenor  das 
atroadoras  detonações. 

«Alguns  rapazes  dos  que  vimos  no  l.*'acto.  ves- 
tidos de  festa,  disparam  os  seus  bacamartes,  e  mos- 
tram-se  muito  azafamados  neste  entertenimento.  Ou- 
ve-se  o  sino  da  egreja  repicando.  Depois,  do  inte- 
rior do  templo,  sahem  uns  esposados,  a  quem  mui- 
tas moças  lançam  flores,  entre  ruidosas  aclamações 
de  flores  d  desposada !  Os  moços  continuam  o  seu 


88  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

tiroteio,  com  grande  garbo  e  aprazimento  de  suas  pes- 
soas ...  A  desposada  e  o  desposado  podem  ser  quaes- 
quer  figurantes.  Accresce  aos  designados  o  reverendo 
parocho  da  freguezia,  destolla  e  sobrepeliz.» 

João  da  Eira,  alheado  da  alegria  dos  outros,  diz 
ao  vigário  que  deseja  falar-lhe  em  segredo.  E  o  pá- 
roco apressadamente  despede  o  rumoroso  cortejo  nu- 
pcial. Ficam  sós  os  dois  no  adro  da  igreja. 

Então  o  pai  de  Mariana,  muito  crédulo  e  timo- 
rato, faz  esta  revelação  ao  padre  : 

-jOAO  DA  EIRA 

O  lubis-home,  sr.  vígaíro,  é  o  estudante  de 
gramtnátegas  que  v.  s.^  cá  tem  a  ensinar.    • 

VIGÁRIO 
O  estudante  I .  .  .  eu  cada  vez  percebo  menos  !... 

■\0K0  DA  EIRA 

Quer  o  sr.  vigairo  saber  se  elle  é  ou  não  é  lubis- 
home  ? .  .  .  Olhe  se  elle  está  em  casa  á  sexta  fei- 
ra. .  . 

VIGÁRIO 

N'esses  dias  vai  elle  visitar  a  familia  a  «Villa 
Real». 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  89 


JOÃO  DA  EIRA 
Não  como  essa,  sr.  vígalro,  e  perdoará  em  Iheu 
ir  á  mão.  Olhe  (apontando  para  os  olhos)  com  es- 
tes vi-o  eu  a  espolinhar-se  no  meu  souto  da  Rebo- 
leira, e  depois .  .  . 

VIGÁRIO 

Que  diz,  sr.  João,  que  está  vocemecê  ahi  a  dizer 
disparates  1 .  .  . 

JOÃO  DA  EIRA 

Deus  me  não  ajude,  se  isto  assim  não  é.  .  .  A 
mulher  lá  a  tenho  emprégadinha,  que  se  não  me 
mexe ;  a  filha  está  que  ninguém  a  conhece,  enge- 
lhada, magra  e  cheia  dossos.  e  tudo  isto  foi.  .  .  faz 
no  sabbado  três  mezes  que  eu  fiz  a  minha  espadada. 

VIGÁRIO 

Homem,  eu  estou  abysmado  1  Então  o  rapaz  ba- 
teu-lhe  na  familia? 

JOÃO   DA  EIRA 

Foi  o  lubis-home,  por  que  v.  s.^  bem  sabe  que  os 
lubis-homes,  estando  no  carátele  da  sua  própia 
pessoa,  não  fazem  mal :  mas  como  eu  vinha  dizendo, 
no  fim  da  minha  espadada  appareceu  o  luWs-home. 


90  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

e  fugimos  todos  ;  só  a  minha  Marianna  ficou  de  fora, 
por  não  poder  entrar,  e  tal  medo  apanhou  que  me 
está  tolhidinha.  Não  tem  vontade  de  comer,  anda 
sempre  a  chorar,  não  vai  ao  campo,  e  diz  o  barbei- 
ro-çurgico  que  ella  tem  uma  obstrução,  no  corpo, 
salvo  tal  logar.» 

O  estudante  aparece  a  propósito  e.  sendo  inqui- 
rido pelo  vigário  na  presença  de  João  da  Eira.  mos- 
tra-se  irónico,  motejador.  Para  assustar  o  pai  de  Ma- 
riana confessa  ser  lubis-homem. 

Indigna-se  o  vigário.  Diz  a  Carlos  de  Ataíde  que 
se  retire  e  procura  tranquilizar  o  lavrador  afirman- 
do-lhe  que  é  mentira  haver  lubis-homens. 

Por  isso,  ao  despedir-se  do  pároco.  João  da  Eira 
vai  mais  calmo,  mas  não  tarda  a  aparecer-lhe  um 
fantasma  de  manto  branco  raivando  ameaças  e  mal- 
dições contra  o  boçal  lavrador  por  ter  difamado  um 
inocente, 

João  da  Eira.  espavorido,  roja-se  súplice,  implo- 
rando piedade.  O  fantasma  increpa-o.  intimída-o.  ba- 
rafusta, mas  perdoa  magnânimo. 

Afasta-se  o  timorato  lavrador  e  assoma  à  porta 
da  residência  a  criada  do  vigário,  bradando  por  Carlos 
de  Ataíde  para  lhe  preguntar  se  êle  levou  algum  len- 
çol da  cama. 


A  PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO  91 

E  O  estudante,  já  desmascarado,  responde-lhe : 

—  Está  aqui. 

No  terceiro  acto  o  scenárío  representa  o  arraial 
de  S.  Bartolomeu  em  Cavez.  romaria  famosa  a  que 
concorrem  muitas  pessoas  por  suposta  obessão  de 
espíritos  malignos. 

João  da  Eira  leva  a  filha  à  romaria  para  lhe  se- 
rem feitas  as  rezas  do  estilo,  que  põem  o  diabo  fora 
dos  corpos  em  que  se  incubou. 

A  rapariga,  constrangida,  envergonhada,  não  quere 
sujeitar-se  ao  exorcismo,  mas,  como  isto  mesmo  pa- 
reça diabolice,  arrastam-na  à  presença  do  padre. 

Neste  momento,  um  rapaz  bem  trajado,  com  o 
rosto  meio  oculto  num  lenço  branco,  aproxima-se  e, 
casquinando  uma  risada,  some-se  na  multidão. 

MARIANNA 
E'  elle .  .  .   E'  elle  a  rir-se  de  mim  ! 

PADRE 
Elle .  .  .  quem  ? 

VOZES 

E'  o  esprito  que  sahiu .  .  . 

Esta  scena  repete-se  durante  o  esconjuro  e  Ma- 


92  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

riana,  querendo  agarrar  o  desconhecido,  desfalece 
extenuada. 

Reanimando-se,  corre  um  olhar  penetrante  pelo 
arraial  à  procura  de  alguém  e.  ouvindo  estalar  uma 
terceira  risada,  vai.  de  salto,  aferrar  nervosamente 
o  motejador  contumaz. 

Levanta-se  am  grande  borborinho  em  torno  dele, 
Manuel  do  Portelo  destapa-lhe  a  cara.  mas  João  da 
Eira,  reconhecendo  o  lubis-homem,  estremece  e  grita 
que  o  larguem. 

Mariana  desilude  o  pai  confessando  ter  sido  se- 
duzida por  aquelle  estudante  com  promessa  de  ca- 
samento. 

O  tumulto  aumenta  no  arraial,  o  povo  clama  vin- 
gança, e  uma  patrulha  prende  Carlos  de  Ataíde. 

Mas  quem  se  não  contenta  apenas  com  a  prisão 
é  Manuel  do  Portelo,  o  qual  aponta  uma  paulada  à 
cabeça  do  estudante. 

Intervêm  o  vigário  lembrando  a  Carlos  de  Ataíde 
o  cumprimento  dos  seus  deveres  de  honra. 

Para  se  livrar  de  maior  entalação,  o  estudante 
submete- se,  e  fica  ali  resolvido  fazer-se  o  casamento 
nesse  mesmo  dia. 

A  folia  do  arraial  recomeça,  dança-se  e  canta-se 
a  chula,  passam  «estúrdias»,  os  valentões  fazem  evo- 
luções com  os  seus  varapaus  e  o  povo  afasta-se  na 


A   PRIMEIRA   MULHER    DE   CAMILO  93 

espectativa  de  bordoada  rija  —  coisa  valgaríssima 
naquela  barbarêsca  romaria. 

Felizmente  a  presença  do  vigário  evita  qualquer 
briga. 

Mariana  e  Miquelina  conservam-se  a  alguma  dis- 
tância do  arraial  conversando  ; 

MIQUELINA 
Então  vaes  casar  c'um  fidalgo  ? 

MARÍANNA 

Bem  me  importa  a  mim  que  elle  seja  ou  não  fi- 
dalgo ! .  .  .  O  que  eu  quero  é  que  elle  me  não  faça 
passar  por  vergonhas  do  mundo. 

MIQUELINA 

Tu  também  deixaste-te  enganar  assim  com  tão 
pouco .  .  ,   Que  viesse  p'ra  cá  ! .  .  . 

MARIANNA 
Se  tu  lhe  tivesses  amor  como  eu .  .  . 

MIQUELINA 

Isso  sim  ! .  .  .  que  viesse  p"ra  cá  ! .  .  .  Se  te  tinha 
amor,  que  casasse  comtigo.  .  .  Mas  casa  agora, 
que  é  o  mesmo,  e  fica  tudo  esquecido.  ,  . 


94  A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


MARIANNA 

E  tu  não  eras  minha  amiga  se  soubesses  que 
eu .  .    ? 

MIQUELINA 

Tua  amiga,  isso  era  eu.  mas  meu  pai  não  me  dei- 
xava andar  á  tua  beira  nas  segadas,  e  nas  bessadas... 
Deus  nos  livre ! .  .  .  nem  pensar  n'isso  é  bom .  .  . 
E  tu  vaes  p^ra  Villa  Real  com  o  teu  homem? 

MARIANNA 

Eu  não  sei .  .  .  Vou  pVa  onde  elle  quizer  que  eu 
vá .  .  .  Sou  sua  mulher .  .  . 

Ao  passo  que  o  autor  da  comédia  avoluma  a  res- 
ponsabilidade das  suas  proezas  de  rapaz  com  as  ex- 
cessivas ribaldarias  de  Carlos  de  Ataíde,  exorna  o 
caracter  da  camponesa  Mariana  com  as  altas  quali- 
dades que  tinha  podido  avaliar  em  Joaquina  Pereira 
França. 

Repugna  a  Mariana  ir  sujeitar-se  hipocritamente 
ao  exorcismo  em  Cavez :  indignam-na  as  risadas  ul- 
trajantes de  Carlos  no  arraial :  perante  a  rude  cre- 
dulidade do  pai  no  lubis-homem  e  no  fantasma,  tem 
a  hombridade  de  confessar  que  êle  é  o  estudante  que 
a  seduziu  e  lhe  prometeu  casamento :  o  seu  amor. 


A  PRIMEIRA  MULHER   DE   CAMILO  95 

como  ela  confessa  a  Miquelina,  é  tão  leal  que  sobre- 
puja todos  os  ultrajes  e  agravos ;  envergonha-se  da 
culpa  em  que  incorreu,  preocupa-a  ver-se  rebaixada 
no.  conceito  das  suas  amigas  e  do  povo  ;  e  docil- 
mente se  não  importa  em  seguir  Carlos,  logo  que 
seja  seu  marido,  para  onde  quer  que  êle  vá,  porque, 
apesar  de  tudo,  o  ama  com  fervor  e  confiança. 

Todas  estas  nobres  qualidades,  que  eram  as  mes- 
mas de  Joaquina  Pereira,  deixaram  um  vinco  inde- 
lével na  alma  de  Camilo. 

Nem  isso  admira,  porque  esta  boa  rapariga  foi 
5ua  namorada  e  sua  mulher,  amou  e  sofreu,  e  a  ex- 
trema sensibilidade  de  Camilo  levava- o  a  recordar 
longamente  as  impressões  recebidas  outrora. 

Em  muitos  padres  virtuosos  reproduziu  êle  o  ca- 
racter do  obscuro  levita  da  Samardan  que  iniciou 
a  sua  educação  literária.  Não  se  esqueceu  nunca  desse 
infeliz  Pedro-Seni  de  Ribeira  de  Pena  que  foi  o  mor- 
gado de  Friúme.  Já  na  velhice  fez  desfilar  na  sua  me- 
mória a  procissão  dos  moribundos  e  dos  mortos  que 
tinha  conhecido  e  tratado  de  perto. 

Que  admira,  pois,  que  a  sua  mulher,  a  sua  primeira 
mulher  legítima,  ainda  que  em  público  a  renegasse 
por  um  mal-entendido  pejo.  saudosamente  a  fizesse 
ressurgir  na  biografia  de  outras  mulheres,  igualmente 
aldeãs,  igualmente  dedicadas  e  desventurosas  ? 


96  A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


E,  ainda  a  propósito  da  filha  de  João  da  Eira,  lem- 
bro-me  de  outra  Mariana,  também  de  Camilo,  que 
por  sua  origem  e  sentimentos  poderá  considerar-se 
mais  um  desdobramento  de  Joaquina  Pereira.  Re- 
firo-me  à  do  Amor  de  perdição.  Já  aventei  que  talvez 
lhe  redoire  o  retrato  algum  reflexo  longínquo  da  cam- 
ponesa de  Friúme,  *  a  quem  o  romancista  julgaria 
capaz  dum  sacrifício  igual  ao  da  filha  do  ferrador. 

Mas  vamos  ao  desfecho  da  comédia. 

Carlos  de  Ataíde  recorre  a  um  expediente  jocoso 
para  se  desentalar  da  promessa  de  casamento. 

O  noivo  que  se  apresenta  é  Manuel  Pitosga,  criado 
seu.  que  vem  trajado  com  o  fato  do  amo  e  traz  meia 
cara  entrapada  num  lenço. 

O  ardil,  cómicamente  sustentado  com  efeitos  hi- 
lariantes, facilmente  foi  descoberto. 

Manuel  Pitosga  ri-se,  Mariana  sente-se  humilhada 
pelo  desprezo  das  outras  raparigas,  João  da  Eira  cho- 
ra, o  vigário  tem  apóstrofes  irritadas. 

Carlos  acode  a  aplacar  a  tempestade,  que  prome- 
tia ser  temerosa.  Enroupado  com  a  farpela  do  cria- 
do, dirige-se  a  Mariana  e  abraça-a. 

Ela,  em  vez  de  recriminações,  diz-lhe  ternuras  : 
^<0'  meu  Carlos !  filho  do  meu  coração !» 


^  Notas  sobre  o  a  Amor  de  fer dição»,  pag.  52. 


A  PRIMEIRA  MULHER   DE   CAMILO  97 

João  da  Eira  e  o  vigário  reconciliam-se  com  o 
estudante  que,  já  em  caminho  da  igreja,  vai  disser- 
tando : 

—  Meus  amigos  !  nunca  me  lembrei  que  o  sen- 
timento da  compaixão  me  obrigaria  a  casar.  Era  pre- 
ciso acabar  com  isto.  Primeiro  fui  lubis-homem,  de- 
pois alma  penada,  depois  Manuel  Pitosga  e  resta-me 
ser  homem  casado.  O  homem  casado  tem  maior  fa- 
dário a  cumprir  que  o  lubis-homem  ;  anda  mais  som- 
brio que  uma  alma  penada ;  torna-se  mais  aparva- 
lhado que  um  Manuel  Pitosga .  .  .  Está  dito  :  quero 
reunir  tudo  —  vou  casar  comtigo  I » 

Os  noivos  entram  na  igreja,  seguidos  de  muita 
gente. 

As  <í< estúrdias»  repenicam  alegres  chulas. 

E  o  pano  cae. 

Condensando  o  monólogo  de  Carlos  de  Ataíde, 
diz  o  sr.  dr.  Sérgio  de  Castro :  Era  necessário  aca- 
bar com  aquíLlo,  casou.» 

Nestas  e  noutras  páginas  de  Camilo  encontramos 
a  persistência  do  mesmo  tipo  de  mulher  aldeã,  ape- 
nas sujeito  a  modalidades  de  ocasião,  mas  aureolado 
de  raras  qualidades,  cuja  memória  lhe  merece  res- 
peito e  lhe  inspira  saudade. 

Já  o  escritor  ultrapassara  meio  século  de  existên- 
cia, quando,  para  a  sua  coleção  de  Novellas  do  Mi- 


98  A  PRIMEIRA.   MULHER   DE   CAMILO 

nho,  escreveu  aquela  que  tem  por  titulo  Marta  Moy- 
sés  e  foi  acolhida  com  ^eral  interesse  e  aplauso. 

Penso  que  esta  encantadora  novela,  modelo  no 
seu  género  pela  rapidez  e  perfeição  nos  caracteres 
e  nos  episódios,  a  viveu,  tanto  ou  quanto,  Camilo, 
pessoalmente. 

Ele  não  se  limita,  como  nos  Gracejos  que  matam, 
a  apresentar  personagens  oriundas  de  Entre-Douro- 
e-Minho. 

Na  Maria  Moisés  é  especificadamente  no  conce- 
lho de  Ribeira  de  Pena  que  o  novelista  localiza  a 
acção,  em  sítios  de  que  nitidamente  se  lembra  ainda  : 
por  isso  lhes  declina  o  nome  certo,  assim  como  o  ape- 
lido ou  profissão  de  indivíduos  que  os  habitavam  e  que 
jamais  esqueceu.  Mas,  quanto  à  imagem  que  é  o  ali- 
cerce espiritual  de  todas  estas  memórias,  recorre  ao 
artificio  de  identificá-la  com  Josefa  de  Santo  Aleixo 
—  isto  é,  Josefa,  natural  de  Santo  Aleixo  de  Alem 
Tâmega,  freguesia  do  mesmo  concelho  de  Ribeira  de 
Pena. 

Vamos,  no  capítulo  seguinte,  demonstrar  a  nossa 
afirmativa. 


A  mãe  de  Maria  Moisés 

Josefa  (a  inicial  é  a  mesma  de  Joaquina)  amou 
António  de  Queiroz  e  Menezes,  que,  tendo  estudado 
para  frade  criízio,  sentou  praça  quando,  por  morte 
do  irmão  mais  velho,  herdou  o  direito  de  primoge- 
nitura. 

Era  cadete  de  cavalaria  de  Chaves  e  geralmente 
designado  por  <^  morgado  novo  de  Cimo-de-Vila.  > 

Não  devemos  esquecer  que  o  próprio  Camilo  se 
julgava  um  morgado  pobre,  arbitrariamente  deser- 
dado pela  ominosa  provisão  i;égia  de  1799.  posto 
não  fosse  representante  de  casa  vinculada,  porque 
nem  mesmo  a  quinta  de  Montezelos,  onde  o  avô 
paterno  expirou,  '  constituía  vinculo  de  família. 


^  AssassinaÒo  por  salteaòores,  òiz  uma  vaga  traôição  ;  ou 
por  se  haver  suíciòaòo,  segunòo  pensa  o  sr.  PeÔro  òe  Aze- 
veòo. 


100  A   PRIMEIRA    .MULHER   DE   CAMILO 


Esta  quinta  tinha  pertencido  aos  Grilos  de  Mi- 
nhava. 

Era  em  logares  recônditos,  mas  convezinhos  de 
Friúme,  que  os  dois  namorados  emboscavam  as  suas 
entrevistas  secretas,  especialmente  na  Insua. 

Um  diálogo  da  novela  denuncia  esses  misteriosos 
encontros  : 

*  —  ...  Ha  quem  os  visse  no  bosque  de  amiei- 
ros da  ínsua,  defronte  da  Granja.  O  senhor  sabe... 

«  —  Conheço  esse  bosque.  O  meu  padre-mestre 
de  latim  chamava-lhe  a  ILha  dos  amores ;  foi  lá  que 
todos  os  bons  latinistas  meus  condiscípulos  leram  a 
Arte  de  amar  de  Ovidio :  e  o  cadete,  pelos  modos, 
applicou  as  theorias  do  Sulmonense .  .  . 

« — Não  vamos  tão  longe,  sr.  Maurício  —  emen- 
dou o  minorista.  —  O  que  se  diz  é  que  elle  passava 
o  Tâmega  nas  poldras,  com  a  canna  de  pesca  e  o  ca- 
cifro  :  depois,  mettia-se  na  Insua,  e  a  Josefa  ia  lá 
ter. » 

A  Insua  releva  sobre  o  rio  Tâmega  entre  a  quinta 
de  Manscos  na  margem  direita  e  Friúme  na  margem 
esquerda. 

E'  grande,  encrustada  de  penedos  e  verdejante  de 
carvalhos  e  amieiros. 

Camilo  conhecia  muito  bem  este  bosque  emer- 
gente do  Tâmega,  para  onde  no  verão  ia  passar  as 


A   PRIMEIRA   MULHER   DE  CAMILO 


101 


102  A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

tardes,  em  alegres  merendas,  que  os  amigos  lhe  ofe- 
reciam e  onde  provavelmente,  noutras  ocasiões  me- 
nos ruidosas  e  ainda  mais  felizes,  se  encontraria  fur- 
tivamente com  Joaquina  Pereira,  como  António  de 
Queiroz  e  Menezes  com  Josefa  de  Santo  Aleixo. 

Esta  personagem  da  novela,  que  era  uma  loira 
mocetona,  não  precisava,  para  ser  ditosa,  que  o  gen- 
til cadete  lhe  prometesse  casamento,  como  aliás  pro- 
metera. ^Preferia  tel-o,  e  amal-o  nas  mattas  chil- 
readas, nos  desfiladeiros  dos  montes,  no  sinceiral  da 
Insua,  nas  alcovas  de  ramagem  que  só  elles  e  os 
rouxinoes  conheciam  nas  margens  do  Tâmega.» 

A  Insua  deixara  na  alma  de  Camilo  uma  terna  e 
duradoira  recordação  ;  unicamente,  a  mulher  que  lhe 
suscitava  essa  íntima  recordação  não  se  chamou  Jo- 
sefa mas  Joaquina,  e,  sendo  tambem'guapa  mocetona y 
não  era  loira. 

O  doirado  dos  cabelos  foi  um  cauteloso  disfarce 
com  que  o  romancista  queria  desnortear  os  velhos 
de  Friúme,  os  quais,  todavia,  conheciam  optimamente 
a  história  da^  entrevistas  de  Joaquina  e  Camilo  e  por 
experiência  própria  deviam  conhecer  a  crónica  da- 
quela lUia  dos  amores,  que  eles  haviam  descoberto 
antes  de  Camilo. 

A  novela  procura  desculpar  os  amores  do  cadete 
com  Josefa  pela  influição  regional,  pela  estimulante 


A  PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO  103 

acção  da  natureza  em  plena  erupção  de  energias 
amatórias,  mas  Camilo  não  queria  adoptar  esta  des- 
culpa para  sua  defesa  e  absolvição  em  igual  delito 
de  naturalismo. 

Singular  incongruência  I 

E',  pois,  falando  suspostamente  de  outrem,  que 
ele  escrere  : 

«Viu  no  monte  a  filha  do  lavrador  de  Santo  Aleixo, 
As  serras  tem  sombras  do  infinito.  O  coração  ahi  é 
maior  que  as  dimensões  do  peito.  O  homem  como 
se  vê  só,  no  cabeço  de  um  fragoêdo.  dá-se  grandeza 
extraordinária,  mede-se  pelo  comprimento  de  hori- 
sonte  a  horisonte.  Se  o  amor  lhe  rutilou  ahi  como  um 
relâmpago  que  fulgura  n'uma  vasta  cordilheira  de 
montes,  é  um  amor  olympico.  titânico,  immenso,  que 
disparado  sobre  a  modéstia  e  singeleza  de  uma  ra- 
pariga montezinha,  faz  lembrar  Camões  : 

Qual  será  o  amor  bastante 

De  nympha  que  sustente  o  ò'um  gigante  ?> 

Isto,  assim  descrito,  só  um  ^<  gigante »  o  podia  es- 
crever ao  recordar-se  duma  «nympha»  ...  ou  de 
várias. 

Mas  Camilo  é  ainda  mais  naturalista  quando  re- 
monta nas  suas  considerações  à  sensualidade  ins- 
tintiva de  remotos  varões  não  civilizados. 


104  A   PRIMEIRA   MULHER  DE   CAMILO 


«Depois,  á  volta  de  poucos  dias,  o  fogo  levou  de 
assalto  aquelle  combustivel  edificio  de  ínnocencia, 
cheio  de  fluidos  inflammaveis.  A  serra  tinha  penhas- 
caes,  bosques,  cavernas,  insinuando  o  amor  selvagem. 
Rodeava-os  uma  natureza  contemporânea  do  homem 
vestido  da  pelle  do  seu  confrade  em  civilisação,  o 
grande  urso  e  o  grande  veado.  A  forma  selvática  e 
antiga  do  proscénio  deu-lhes  geitos  de  antigos  acto- 
res da  vida  animal.  Ninguém  que  os  visse,  ninguém 
que  lhes  lesse  os  grandes  livros  do  padre  Sanches, 
acerca  do  matrimonio.  Oh  !  a  solidão,  entre  dois 
amantes,  faz  os  poetas  ;  mas  talvez  primitivos  de 
mais,  algum  tanto  gaelicos,  normandos,  alheios  de 
tudo  o  que  é  epistolographia  amorosa,  —  pelles-ver- 
melhas  no  rigor  antropológico,  á  vista  do  modo  como 
a  gente  em  honesta  prosa  costuma  cazar-se.> 

Quere  dizer  que  o  nosso  Camilo  não  conquistou 
epistolarmente  Joaquina  Pereira  nem  precisou  disso. 
A  ILha  dos  amores  era  um  seguro  e  vasto  papel  de 
ramagens  verdes  onde  cabiam  todas  as  frases  e  to- 
dos os  beijos  ao  abrigo  de  sombras  densas  e  discre- 
tas, que  lhe  serviam  de  espesso  envoltório.  Estava 
ali  a  natureza  em  acção,  não  a  secante  ortografia  que 
ainda  então  era  muito  complicada.  Tudo  natural,  tudo 
pele-vermelha  no  rigor  antropológico.  E  era  bastante  : 
era  bom. 


A   PRIMEIRA    MULHER   DE  CAMILO  105 


Camilo,  querendo  reprimir-se,  fugiu  de  rememo- 
rar que  o  vestir  das  camponesas  é  mais  tentador  e 
acirrante  que  o  das  mulheres  da  cidade,  para  quem 
o  figurino  constitue  dogma. 

O  corpo  duma  aldeã  enforma-se,  desenvolve-se  e 
floresce  sem  constrangimentos  nem  peias.  A  carne 
não  anda  triturada,  moída  pelas  varetas  dos  espar- 
tilhos, que  fazem  corolas  e  cinturas  artificiais.  Os 
peitos  foliam  soltos  debaixo  do  jaqué  ou  aninham- 
se  comodamente  dentro  do  colete  curto  e  dócil.  As 
saias  não  encobrem  a  perna  toda  nem  os  pés.  e  as 
meias,  sem  ligas,  caem  em  refegos  no  tornozelo. — 
o  que  aliás  Camilo  não  achava  feio,  *  certamente 
porque  exibem  um  qaantam  satis  de  nudez.  Os  ca- 
belos abundantes  e  fortes  não  são  queimados  nem 
torcidos  pelo  ferro  de  frisar  ou  engordurados  pelo 
abuso  de  pomadas.  Os  dentes,  alvos  e  rijos,  conser- 
vam um  claro  esmalte,  que  a  folha  da  salva  e  do 
mentrasto  aviva  pela  fricção.  A  polpa  dos  braços, 
morena  e  elástica,  assemelha-se  á  crosta  tostada  do 
pão  de  ló  fresco  e  fofo. 

A  camponesa,  na  exibição  sincera  do  seu  corpo 
e  da  sua  carnadura,  na  folgada  simplicidade  do  seu 
vestir  desartificioso,  açula  o  apetite  sensual,  reflecte 


Coração,  cabeça  e  estômago^  ultima  parte. 


106  A   PRIMEIRA   MULHER   Dh  CAMILO 


a  franqueza,  a  liberdade  e  independência  dos  aspec- 
tos da  paisagem  que  lhe  oferece  alcovas  em  flor? 
camilhas  de  relva,  respaldos  de  boninas,  docéis  de 
copado  arvoredo,  rios  onde  podem  mundificar-se  co- 
mo as  naiádes  do  contacto  dos  tritões,  e  escutar  rou- 
xinóis melodiosos  que  de  margem  a  margem  glo- 
sam seus  amores,  guardando  segredo  de  outros.  .  . 

Joaquina  Pereira  ou  Josefa  de  Santo  Aleixo  eram 
genuínas  mulheres  do  campo,  que  cediam  às  suges- 
tões magnéticas  da  natureza,  como  espontâneas  actri- 
zes da  vida  anim^al. 

E  por  viverem  longe  de  grande  povoados  não  ha- 
via no  seu  traje  aquela  imitação  urbana,  que  mais 
parece  caricatura  do  que  imitação. 

Falando  de  Josefa  especializa  a  novela  o  seu  ja- 
qué  amarelo  com  botões  azuis,  provavelmente  porque 
na  memória  de  Camilo  se  gravara  fundamente  a  vi- 
são dum  jaqué  assim,  que  Joaquina  Pereira  teria  pos- 
suído. 

Quando  o  fidalgo  velho  de  Cimo  de  Vila  foi  avi- 
sado pelo  vigário  de  Santa  Marinha  de  que  o  cadete, 
herdeiro  da  casa,  lhe  pedira  que  o  recebesse  com 
Josefa  de  Santo  Aleixo,  levou  imediatamente  o  filho 
para  a  corte,  onde  lhe  propôs  para  noiva  uma  Teles 
de  Menezes. 

Respondeu-lhe  o  rapaz  com  respeitosa  serenidad  e: 


A    PRIMEIRA  MULHER    DE  CAMILO  107 

—  Meu  pai  pode  dispor  da  minha  vida  ;  mas  do 
meu  coração  já  eu  dispus.  Prometi  casamento  a  uma 
rapariga  de  baixa  condição.  Ou  caso  com  ela  ou  não 
casarei  nunca. 

Muito  indignado,  o  fidalgo  velho  requereu  à  Re- 
gência do  Reino  que  mandasse  encarcerar  seu  filho 
no  Limoeiro. 

Entre  ferros,  o  morgado  novo  de  Cimo  de  Vila 
preocupava-se  menos  com  o  seu  encarceramento  do 
que  com  a  situação  difícil  de  Josefa  em  casa  dos  pais, 
que  ignoravam  a  gravidez  da  filha. 

Queria  aconselhá-la  a  fugir  para  a  sua  quinta  do 
Enxertado,  apenas  habitada  por  caseiros,  gente  de 
confiança. 

Aquele  e  outros  nomes  de  lugares,  que  o  muni- 
cípio de  Ribeira  de  Pena  compreende,  sempre  Ca- 
milo os  tinha  lembrado  desde  longos  anos,  como  se 
prova  pelo  titulo  do  romance  Aventareis  de  Bazilio 
Fernandes  Enxertado.  ^ 


^  «Seu  pae  chamou-se  José  Fernanôes,  por  alcunha  o  Bm- 
xertado.  Pegou-lhe  a  alcunha,  por  que,  senòo  elle  natural 
òe  uma  alòeia  ò'aquelle  nome  em  Tras-os-Montes,  quanòo 
já  era  caixeiro,  muitas  vezes  òizia  aos  seus  companheiros 
òe  passeata,  aos  òomingos  :  «O  Porto  é  boa  terra  ;  mas  lá 


108  A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

Torna-se  oportuno  elucidar  o  leitor  sobre  alguns 
pormenores  toponímicos  da  novela. 

A  aldeia  de  Santo  Aleixo,  onde  Joaquina  residia 
com  seus  pais,  fica  na  margem  direita  do  Tâmega : 
e  as  quintas  de  Cimo  de  Vila  e  do  Enxertado,  atri- 
buídas aos  Menezes,  assentam  na  margem  esquerda. 

Da  povoação  de  Santo  Aleixo  vem  descendo  para 
a  beira  do  rio  a  antiga  Cangôsta  do  Estevão  (hoje 
tem  outro  nome)  e  uma  fieira  de  poldras  alinha-se 
de  margem  a  margem. 

António  de  Queiroz  e  Menezes  escreveu  ao  seu 
amigo  Fernando  Gonçalves  Penha,  filho  do  sargento- 
mór  da  Temporan,  próximo  vezinho  de  Cimo  de 
Vila,  encarregando-o  de  procurar  pessoa  idónea  que 
levasse  o  recado  a  Josefa. 

O  confidente  do  cadete  escolheu  para  emissária 
a  mulher  do  caseiro,  a  qual  se  desempenhou  cabal- 
mente da  incumbência  com  aquela  arteirice  e  ma- 
nha que  são  proverbiais  nas  matronas  de  Entre- 
Douro-e-Minho. 

Contou  ela  a  Josefa  que  o  sr.  Antoninho  de  Cimo 


como  o  EnxertaÔo  ainôa  não  puz  os  olhos  n'outra  !>  Acai- 
xeiraòa,  menos  sensível  á  sauòaòe  õas  suas  alòeias,  ria  òo 
moço,  e,  por  mofa,  lhe  chamava  o  Enxertado,  alcunha  que 
elle  ajuntou  ao  seu  nome  com  honras  Õe  appelliôo.>  Cap.  1. 


A   PRIMEIRA   MULHER  DE  CAMILO  .  109 


de  Vila  estava  preso  por  não  querer  casar  com  uma 
fidalga  de  Lisboa  e  que  lhe  mandava  dizer  que  fu- 
gisse para  a  quinta  do  Enxertado,  onde  estaria  em 
sossego  até  que  ele  pudesse  voltar. 

Por  sua  parte,  a  ladina  matrona  ensinou  a  Josefa 
que  devia  passar  as  poldras  do  Tâmega  e,  chegando 
à  margem  esquerda,  esperar  na  Encruzilhada  do  Mato 
que  lhe  aparecesse  um  rapaz  cabreiro  para  guiá-la 
até  ao  Enxertado. 

Assim  ficou  assente, 

Mas  o  abalo  causado  pela  boa  nova  suscitou  as 
primeiras  dores  do  parto  e  a  mãe  de  Josefa,  conhe- 
cendo então  qual  era  a  verdadeira  doença  de  sua  fi- 
lha, rompeu  num  desespero  bramindo  raivas  e  mal- 
dições. 

E  porque  tinha  «o  orgulho  selvagem  da  honra > 
caiu  doente. 

O  marido,  bêbado  emérito,  quando  chegou  a  casa 
e  não  viu  a  panela  ao  lume.  cortou  filosoficamente 
um  naco  de  toicinho,  meteu-o  entre  duas  talhadas  de 
broa  e  isolou-se  na  adega  comendo  e\beberricando. 

E'  certo  que  êle,  quando  começou  a  vêr  a  filha 
muito  coada  de  cores,  tinha  mandado  chamar  <^o  bo- 
ticário de  Friíime»  e  consentira  que  ela  fosse  com 
a  mãe  exorcismar-se  à  romaria  de  S.  Bartolomeu  em 
Cavez. 


110  A  PRIMEIRA  MULHER    DE   CAMILO 


Mas  naquela  tarde,  faltando-lhe  a  ceia,  improvi- 
sou-a  êle  próprio  bebendo  pela  cabaça  a  sua  habi- 
tual filosofia,  cujo  princípio  basilar  consistia  em  pou- 
cas palavras:  «Aguenta,  João,  que  tua  mãe  não  faz 
outro.» 

Logo  que  anoiteceu,  Josefa  fugiu  levando  a  filhi- 
nha recem-nascida.  (Lembremos  que  Joaquina  Pe- 
reira tivera  também  uma  filha.)  Meteu-a  dentro  dum 
bercinho,  o  mesmo  em  que  a  parturiente  tinha  sido 
acalentada  e  que  era  feito  de  verga,  bem  encanas- 
trada,  hermeticamente  fasquiado  de  madeira  no 
fundo. 

Com  o  berço  sobraçado,  seguiu  em  direcção  às 
poldras  para  atravessar  o  Tâmega. 

Conquanto  robusta,  sentia-se  esvaída,  turvada. 
Davam-lhe  vertigens.  Passou  as  quatro  primeiras 
alpondras,  mas  depois  escorregou  ao  rio.  O  berço, 
que  então  levava  à  cabeça,  caiu  na  água,  e  Josefa, 
supondo  vê-lo  a  distância,  avançou  para  lhe  deitar 
a  mão.  Escabujando  sufocada,  agarrou-se  instintiva- 
mente ao  esgalho  dum  salgueiro,  já  moribunda.  As- 
sim a  foram  encontrar  um  pastor  de  seu  pai.  que 
procurava  uma  cabra  desgarrada,  e  o  moleiro  da 
azenha. 

Logo  constou  que  Josefa  de  Santo  Aleixo  tinha 
morrido,  atribuíndo-se  a  sua  morte  a  suicídio,  o  que 


A  PRIMEIRA  MULHER   DE   CAMILO 


não  era  verdade.  Esta  notícia  chegou  a  Lisboa  trans- 
mitida pelo  vigário  de  Santa  Marinha  ao  morgado 
velho  de  Cimo  de  Vila,  que  sem  maior  delonga  pe- 
diu alvará  de  soltura  para  o  filho. 

Mas  António  de  Queiroz  recusou-se  a  voltar  à  casa 
paterna  e  preferiu  ir  fazer  serviço  no  Brasil  como 
cadete  de  cavalaria. 

O  pai  respondeu-lhe  ríspidamente  : 

«  —  Não  é  meu  filho  !  Vá  para  o  Brazil,  vá  para 
onde  quizer.  Sua  mãe  teve  cinco  mil  cruzados  de 
dote.  D'essa  sei  eu  que  você  é  filho.  Recebêl-os-ha 
hoje,  e  amanhã  partirá.  > 

Deste  modo  fecha  Camilo  o  1 .°  volumezinho  de 
Maria  Moysés,  que  caracteriza  a  época  dos  sentimen- 
tos fogosos,  das  paixões  veementes  e  cegas  por  que 
o  romancista  passou  na  mocidade.  E'  um  vendaval 
que  revive  e  remoinha  espalhando  as  cinzas  do  pas- 
sado tempestuoso. 

No  segundo  volume,  predominam  outros  senti- 
mentos mais  puros,  mais  nobres  e  altruístas.  Camilo 
reentra  em  si  mesmo,  acalma  a  sua  consciência  com 
o  sorriso  bom  dos  velhos  na  hora  em  que  se  peni- 
tenciam de  antigos  erros  e  procuram  redimi-los  pela 
indulgência  e  a  piedade,  pelo  respeito  e  a  compai- 
xão que  os  erros  alheios  inspiram  aos  arrependidos, 
fatigados  de  errar  e  sofrer. 


112  A  PRIMEFRA  MULHtR    OR  CAMILO 


Nessa  atmosfera  de  paz  consoladora  que  paira  so- 
bre todo  o  segundo  volume,  Camilo  escreveu  uma 
palavra,  um  nome  de  mulher,  que  tinha  na  memó- 
ria e  no  coração,  nome  que  conseguiu  afastar  no  pri- 
meiro volume,  mas  que  irrompeu  da  sua  pena  como 
lágrima  furtiva. 

E'  Joaquina  esse  nome,  dado  a  uma  rapariga  que 
se  perdeu  por  amor :  Joaquina,  sem  nenhum  sobre- 
nome que  o  afidalgue. 

Na  Sereia,  a  heroina  chama-se  Joaquina  Eduarda, 
porque  era  pessoa  que  pôde  assistir,  entre  damas 
ilustres,  á  inauguração  do  primeiro  teatro  lírico  do 
Porto. 

Mas  no  segundo  volume  da  Maria  Moysés  o  nome 
de  Joaquina  soa  plebeu  como  é,  muito  vulgar  nas 
aldeias,  e  apenas  suportável  nas  salas  quando  pom- 
posos apelidos  de  família  o  nobilitam. 

Em  breve  iremos  ao  encontro  dessa  personagem, 
a  cujo  nome  e  destino  ligamos  o  valor  dum  termo  de 
equação. 


VI 
Sombra  plangente 

Ora  o  berço  com  a  filhinha  de  Josefa  de  Santo 
Aleixo  encalhou  numa  angra,  onde  o  descobriu  Fran- 
cisco Bragadas,  caseiro  da  quinta  de  Santa  Eulália 
e  pescador  de  chumbeira. 

Camilo  redigiu  esta  novela  tão  dominado  pela 
emoção,  que,  ao  escrevê-la  ou  ao  rever  as  provas  ti- 
pográficas, não  reparou  que.  nas  primeiras  páginas 
da  2/  parte,  o  apelido  Bragadas  aparece  transfor- 
mado em  Bernardo,  como  se  íôra  nome  de  ba- 
ptismo. 

Ouvindo  chorar  uma  criança,  Francisco  Bragadas 
pôs-se  a  olhar  e  viu  o  berço. 

Desenrascou-o  das  ramagens  dum  amieiro,  tirou-o 
da  água,  e,  sobraçando-o.  deitou  a  correr  para 
casa. 

Irei  já  dizendo  que  o  apelido  Bragadas  não  é  in- 
venção de  Camilo.  A  casa  do  suposto  achador  do 


114  A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

berço  fica  na  margem  direita  do  Tâmega,  defronte 
de  Friííme.  Ali  se  hospedava  o  futuro  romancista 
quando  ia  pescar  trutas  no  próximo  rio  Beça  ou  jo- 
gar as  Damas  com  o  padre  Domingos  José  Ribeiro, 
parente  dos  Bragadas. 

As  távolas  de  marfim,  que  eram  do  próprio  Ca- 
milo, conserva-as  um  sobrinho  daquele  padre,  e  a 
mesa  em  que  o  taboleiro  das  Damas  assentava  per- 
tence actualmente  ao  ilustre  pároco  do  Salvador  de 
Ribeira  de  Pena. 

Estava  a  mulher  do  Bragadas  amamentando  uma 
filha  no  momento  em  que  o  marido  entrou  com  o 
berço.  Ela.  piedosamente,  deu  logo  o  peito  à  engei- 
tadinha  e  o  Bragadas  foi  participar  o  achado  às  fi- 
dalgas da  quinta  de  Santa  Eulália,  cujo  caseiro 
era. 

Nesta  quinta,  que  o  romancista  localiza  também 
na  margem  direita  do  Tâmega,  passavam  a  estação 
calmosa,  segundo  a  novela,  aquelas  fidalgas  —  duas 
irmãs  velhas  e  feias  —  com  seu  mano  desembarga- 
dor aposentado  ;  gente  nobre  e  antiga,  do  Arco  de 
Baiilhe. 

Este  é.  realmente,  o  nome  duma  freguesia  do  con- 
celho de  Cabeceiras. 

Romanceia  Camilo  que,  na  ocasião  em  que  o  Bra- 
gadas entrou  à  presença  dasj[idalgas,  estavam  elas 


A   PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO  115 

e  o  desembargador  a  jogar  a  bisca  sueca  com  o  có- 
nego da  Sé  de  Braga.  João  Correia  Botelho. 

Camilo  viu  um  dia  o  retrato  deste  cónego  na  ga- 
leria dos  benfeitores  do  hospital  de  S.  Marcos,  da- 
quela cidade,  e  ou  pôde  averiguar  que  o  cónego  era  seu 
parente  ou  pelos  apelidos  lhe  pareceu  que  devia  ser. 

Eu  não  posso  afirmar  nem  contestar  que  o  fosse. 

Apenas  cheguei  à  certeza  de  que  o  padre  João 
Correia  Botelho  tinha  sido,  em  1814.  abade  de  Vila 
Chã  —  não  sei  qual,  porque  há  várias  —  talvez  Vila 
Chã  da  Montanha,  freguesia  do  concelho  de  Alijó, 
distrito  de  Vila  Real :  sendo,  depois,  cónego  magis- 
tral na  Sé  de  Braga  e  lente  proprietário  duma  ca- 
deira na  faculdade  de  teologia  em  Coimbra.  ^ 

Camilo,  introduzindo  no  segundo  volume  da  no- 
vela uma  pessoa  que  realmente  existiu  e  que  êle 
reputara  seu  parente,  obedeceu  à  influição  benéfica 
da  velhice  mansa  e  compassiva,  representando-se 
agora  no  cónego  Correia  Botelho,  que  fala  erudita- 
mente como  êle,  que  propõe  para  a  engeitadinha  o 
nome  de  Maria  Moisés,  que  lhe  lega  quatro  mil 
cruzados,  e  que  se  despede  dela  pelo  modo  que.  em 
versos  conhecidos.  Camilo  se  despediu  da  sua  se- 
gunda mulher  e  dos  seus  dois  filhos. 

'  Almanach  de  Lisboa  para  o  anuo  de  1823. 


116  A  PRIMEíRA  MULHER   DE  CAMILO 

Diz  O  cónego  a  Maria  Moisés,  na  frase  do  ro- 
mancista : 

«De  vez  em  quando.  Maria,  vem  sentar-te  aqui 
onde  agora  estamos,  quando  eu  já  estiver  dormindo 
o  somno  eterno,  e  imagina  que  me  ouves  estes  con- 
selhos que  te  deixo.» 

E'  a  mesma  preocupação  espiritista  de  Camilo  sobre 
a  evocação  dos  mortos  pelos  vivos  que  os  recordam. 

Assim  o  disse  êle  escrevendo  numa  composição 
dispersa : 

Quanòo  a  Acácia  ôo  Jorge  ainòa  outra  vez  inflore, 
Chamae-me,  que  eu  òe  abril  nas  auras  voltarei. 

E  ainda  quando,  noutra  composição,  pede  a  D. 
Ana  Plácido  que  o  chame,  o  evoque,  depois  de  morto  : 

Ao  voltarem  òe  abril  as  rosas  linòas 
E  as  arvores  vestirem  suas  galas, 

De  mim  te  lembrarás. 
Que  tu  bem  sabes,  filha,  quanto  eu  era 
Amante  òos  festins  òa  primavera, 

Das  rosas  e  lilaz. 

Depois  irão  teus  olhos  òivaganòo 

No  òoce  azul  òos  céus  e,  talvez,  triste, 

A'  terra  os  voltarás. . . 
E  venôo  em  òerreòor  a  soleòaòe. 
Bem  poòe  ser  que  òigas  com  sauòaòe  : 

<Camillo  1  aonòe  es^ás  ?» 


A  PRIMEIRA    MULHER   DE  CAMILO  117 


Ocorre-me  agora,  a  propósito,  um  diálogo  teatral 
de  Maurício  Maeterlinck : 

«  TyLpyL  —  Vous  dormez  tout  le  temps  .  .  . 

^Grand  Papa  Tyl  —  Ouí.  nous  dormons  pas  mal, 
en  attendant  qu'  une  pensée  des  Vivants  nous  ré- 
veille ...  Ah  1  c'est  bien  bon  de  dormir,  quand  la 
vie  est  finie .  .  .  Mais  il  est  agréable  aussi  de  s'  éveil- 
ler  de  temps  en  temps.» 

Chamae-me,  que  eu  òe  abril  nas  auras  voltarei. 

Como  os  belos  espíritos  se  harmonizam ! 

A  enjeitadinha  encontrou  padrinhos  na  família  da 
quinta  de  Santa  Eulália  e  o  baptizado  fez-se  na  igreja 
do  Salvador  á  mesma  hora  em  que  os  sinos  de  Santo 
Aleixo  dobravam  pela  mãe. 

Uma  das  fidalgas,  a  madrinha  de  Maria  Moisés, 
protegeu-a  em  vida  e  deixou-lhe  em  testamento  cinco 
mil  cruzados,  representados  na  quinta  de  Santa  Eu- 
lália. 

O  cónego  Correia  Botelho,  por  morte  dos  padri- 
nhos, mandou,  como  tutor,  educar  Maria  no  convento 
das  Terezinhas  em  Braga. 

Ela  concentrou-se  menos  na  meditação  das  fór- 
mulas conventuais  que  na  estreme  piedade  ensinada 
por  Jesus  Christo. 


118  A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

Engeitada,  o  seu  pensamento  constante  era  valer 
a  engeitadinhos. 

Saindo  do  convento,  com  a  íntima  resolução  de 
não  voltar  para  lá,  passou  um  verão  em  Santa  Eu- 
lália, acompanhada  pelo  tutor. 

Foi  então  que  ela  lhe  revelou  o  seu  plano. 

O  cónego,  sem  a  contrariar  fundamentalmente, 
expôs-lhe  os  encargos  e  demais  inconvenientes  dessa 
filantrópica  resolução. 

Maria  Moisés  insistiu. 

«  —  O  meu  desejo,  disse  ela,  é  dar  aos  enfeita- 
dos a  caridade  que  eu  recebi. 

«  —  Mas  tencionas  procural-os  ? 

«  —  Isso  não  :  espero  que  a  divina  Providencia  os 
leve  onde  eu  estiver.» 

Passados  alguns  dias,  o  caseiro  da  quinta,  que 
era  ainda  o  velho  Francisco  Bragadas,  contou-lhe  que 
a  moleira  da  Trofa  tinha  morrido  «de  cambras»  dei- 
xando dois  filhos  sem  amparo. 

Logo  Maria  Moisés  os  recolheu  em  sua  casa. 

Todos  os  anos  a  romaria  de  S.  Bartolomeu  em 
Cavez  é  tragicamente  assinalada  por  mortíferos  com- 
bates entre  rapazes  do  Minho  e  de  Trás-os-Mon- 
tes. 

Sucedeu  que,  por  esse  tempo,  uma  das  vítimas 
fora  o  noivo  prometido  daquela  filha  do  Bragadas, 


A   PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO  119 


que  a  mãe  estava  amamentando  quando  o  marido 
chegou  com  a  engeitadinha  no  berço. 

Tinha,  pois,  esta  rapariga  quase  a  mesma  idade 
de  Maria  Moisés,  que  desde  a  infância  se  lhe  afei- 
çoara muito,  e  que  a  levou  para  a  sua  companhia  e 
a  acarinhou  fraternalmente  em  seguida  ao  morticí- 
nio de  Ca  vez. 

Era  uma  «guapa  moça»  e  chamava-se.  .  .  Joa- 
quina —  como  a  primeira  mulher  de  Camilo. 

As  afinidades  ressaltam,  não  intencionalmente  pro- 
curadas, mas  espontaneamente  sugeridas  pela  sau- 
dade, subtil  aroma  que  suaviza  a  memória  dos  tris- 
tes. 

Ambas,  Joaquina  Bragadas  e  Joaquina  Pereira, 
receberam  o  mesmo  nome,  eram  mulheres  estatuária- 
mente  perfeitas,  e  sofreram  as  penas  dos  corações 
constantes. 

«Uma  noite,  acorçoada  pelo  amoroso  desvelo  de 
Maria,  a  filha  do  Bragadas,  com  mais  lagrimas  que 
expressões,  revelou  que  estava  perdida,  porque  o 
pai  de  seu  filho  já  não  podia  remediar  a  sua  des- 
honra. 

«A  engeitada  quedou-se  a  olhar  para  Joaquina 
com  muita  tristeza  e  espanto.  Do  seu  próprio  nas- 
cimento inferia  ela  uma  desgraça  semelhante  á  de 
Joaquina ;    mas  o  pudor,  a  religião,  a  repugnância 


120  A   PRIMEIRA   MULHER   DE  CAMILO 

congenial  da  sua  vida  pura  soffreram  uma  dor  in- 
tima com  a  inesperada  confissão.  O  coração  decerto 
as  tinha,  mas  não  llie  inspirou  de  prompto  palavras 
confortadoras.  Separou-se  d'ella  fundamente  magoada 
e  pensativa ;  mas  não  adormeceu.  Alta  noite  ouviu 
ringir  a  porta  do  quarto  de  Joaquina.  Ergueu-se  al- 
voroçada pelo  presentimento  de  que  a  infeliz  rapa- 
riga ia  matar-se.  Não  a  encontrou  no  quarto :  correu 
á  porta  da  sala  de  espera  que  ella  nesse  momento 
abrira.  Reteve  a  desvairada,  e  disse-lhe  abraçando-a  : 

«  —  Onde  vaes  ? 

«Joaquina,  com  a  vista  vaga  e  turva  de  quem 
chorou  até  que  a  demência  lhe  seccasse  as  lagrimas, 
sentindo-se  apertada  ao  seio  d'aquella  a  quem  se  con- 
fessara mãe  deshonrada  e  perdida,  balbuciou : 

«  —  Não  diga  a  ninguém  a  causa  da  minha  morte, 
que  meu  pae  está  muito  acabado;  e,  se  elle  o  sou- 
ber, morre  de  paixão.  .  . 

«  —  Falia  baixinho,  que  não  ouça  o  sr.  cónego  — 
disse  Maria  apontando  para  o  quarto  do  hospede.  — 
Vem  para  o  meu  quarto.  Joaquina,  e  lembra-te  que 
eu  sou  aquella  engeitada  que  teu  pae  poz  no  coUo 
de  tua  mãe  quando  tu  lá  estavas.  Vem ;  e,  se  és  mi- 
nha amiga,  não  chores,  nem  me  assustes.» 

Maria  Moisés  planeou  o  modo  de  ocultar  a  Fran- 
cisco Bragadas  a  deshonra  da  filha.  Saiu  com  Joa- 


A  PRIMEIRA   MULHER  DE  CAMILO  121 

quina  para  Braga  a  passar  ali  os  meses  de  inverno, 
sob  pretexto  de  frequentar  as  suas  amigas  de  con- 
vento. 

Confiou  ao  caseiro  a  guarda  dos  seus  pupi- 
los, e  só  voltou  com  Joaquina  na  primavera  se- 
guinte, 

Vinha  também  uma  criança  que  Maria  Moisés  ti- 
nha adoptado  em  Braga. 

O  caseiro  achou  que  a  caridade  da  senhora  era 
excessiva  e  acabaria  por  empobrecê-la  irremediavel- 
mente. 

Joaquina  ouviu  o  pai  com  os  olhos  marejados  de 
lágrimas. 

Francisco  Bragadas  nem  por  sombras  suspeitou 
que  aquela  criança  fosse  seu  neto. 

Quando  o  cónego  Correia  Botelho  faleceu  em 
1836.  as  despesas  de  Maria  Moisés  com  os  engei- 
tadinhos  iam  já  aumentando  muito  pela  afluência 
deles  e  das  respectivas  amas  de  leite  que,  segundo 
dizia  o  Bragadas,  eram  as  próprias  mães.  desaver- 
gonhadas e  comedoras, 

A  caridosa  Maria  começou  a  pesar  as  saas  res- 
ponsabilidades financeiras  e,  temendo  não  poder  com- 
portá-las, pediu  a  pessoas  abastadas  que  a  auxilias- 
sem procurando  colocação  para  os  engeJtados  mais 
crescidos. 


122  A   PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO 

O  abade  de  Pedraça  (Santa  Marinha  de  Pedraça. 
paróquia  do  concelho  de  Cabeceiras)  tomou  a  seu 
cargo  um  deles,  que  mandou  para  o  Brasil,  onde  en- 
riqueceu. 

Em  outra  NoveíLa  do  Minho,  intitulada  O  filho  na- 
tural, Camilo  faz-lhe  referência  e  traz  ao  diálogo  o 
nome  de  Maria  Moisés.  No  fundo  da  página  põe  esta 
nótula : 

«A  próxima  Novella  dará  ampla  noticia  de  Maria 
Moisés.» 

Isto  prova  que  a  novela  deste  último  título  já  es- 
tava tracejada  no  espírito  de  Camilo  quando  o  roman- 
cista escrevia  O  filho  natural.  Era  uma  florescência 
de  recordações  que  êle  contemplava  dentro  da  sua 
alma  no  retrospecto  da  saudade  e  que  emoldurava, 
como  grinalda  de  escabiosas,  a  imagem  longínqua 
de  Joaquina  Pereira.  Essas  recordações  persistiam 
mentalmente,  fasciculadas,  entretecidas  numa  só 
ideia  fixa :  apenas  esperavam  o  momento  em  que 
as  palavras  lhes  dessem  vida  exterior. 

Camilo,  tomando  o  compromisso,  obrigou-se  a  si 
próprio  a  vencer  aquelas  hesitações  com  que  sempre 
encaramos  de  frente  um  assunto  que  nos  é  querido, 
mas  que  nos  fará  sofrer  muito  durante  o  labor  de 
corporizá-lo  literariamente. 

Agora  já  vem  próxima,  na  sequência  do  entrecho 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  123 

da  novela,  uma  frase  de  Camilo  que  é  bem  o  re- 
flexo da  sua  alma  tanto  mais  dolorida  quanto  mais 
ele  envelhecia. 

António  de  Queiroz  e  Menezes,  o  esbelto  cadete 
de  outrora,  regressara  da  América  em  1850,  refor- 
mado com  a  patente  de  general  brasileiro,  saciado 
de  honras  militares,  mas  tão  desfigurado  pelas  suas 
longas  barbas  brancas  e  faces  angulosas,  que  nin- 
guém o  poderia  reconhecer  facilmente. 

«  O  general  —  diz  textualmente  Camilo  —  chegou 
inesperadamente,  recolheu-se  á  casa  onde  nascera : 
e  tão  funda  amargura  o  avassallou  que  se  arrepen- 
deu de  voltar  á  terra  natal,  onde  lhe  entraram  redi- 
vivas e  pungentes  ao  âmago  da  alma  as  recor- 
dações de  Josefa  de  Santo  Aleixo,  —  a  sombra 
plangente  que  lhe  seguira  todos  os  passos  da 
vida,» 

Esta  frase  define  a  longa  amargura  que  outra 
sombra  plangente,  a  de  Joaquina  Pereira,  deixara 
por  sua  vez  na  alma  de  Camilo  como  um  sulco  pro- 
fundo de  remorso  íntimo  ou  de  tristeza  indelé- 
vel. 

E  aqui  nos  torna  a  lembrar  aqueloutra  frase  que 
o  romancista  proferiu  em  voz  alta  na  presença  de 
parentes  e  amigos : 

—  Esse  casamento  foi  uma  infâmia. 


124  A   PRIMEIRA  MULHtR   DE  CAMILO 


Plangente  era  também  a  sombra  de  Joaquina  Pe- 
reira, como  a  de  Josefa  de  Santo  Aleixo,  porque  a 
pobre  camponesa  de  Friííme  lamentaria  ainda  alem 
da  campa  a  torturante  situação  em  que  vivera  neste 
mundo. 

Casada  por  amor,  arrebataram-lhe  o  marido.  De 
modo  que  nem  era  solteira,  nem  casada,  nem  viuva. 
Mas  fora  sempre  esposa  fiel.  com  o  rosto  nunca  en- 
xuto das  lágrimas  da  viuvez,  que  tanto  valia  no  seu 
coração  leal  a  ausência  do  marido. 

E,  contudo,  a  culpa  deste  abandono  não  era  sua, 
nem  dele. 

Assim  como  o  morgado  velho  de  Cimo  de  Vila 
fora  estorvo  à  felicidade  plena  do  filho  e  de  Josefa, 
também  Sebastião  Martins  dos  Santos  impedira,  com 
errados  cálculos  e  programas,  que  sua  filha  e  Ca- 
milo pudessem  viver  como  bem-casados,  numa  inti- 
midade sem  Mentor,  numa  alegria  juvenil,  que 
triunfaria  da  pobreza. 

Quando  Camilo  voltou  a  Friúme,  chamado  pela 
mulher  sob  pretexto  de  doença,  estava  ainda  na  mão 
do  sogro  reparar  os  seus  primeiros  desacertos  de 
mal-avisado  guia  conjugal. 

Aconselhasse  a  ida  de  ambos  para  o  Porto,  subsi- 
diando-os  dentro  de  suas  posses. 

Eles  viveriam  em  qualquer  mansarda  da  rua  Es- 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  125 

cura  ^  ou  quejandas,  uma  vida  de  estudante  po- 
bre, fazendo  Camilo  o  seu  curso  de  medicina,  tendo 
por  estímulo  ao  trabalho  uma  linda  e  dedicada  mu- 
lher, que,  por  nascimento  e  educação,  cuidaria  mais 
da  casa  e  da  filhinha  que  de  distracções  e  vestidos. 

Camilo  ter-se-ia  formado,  o  que  não  o  impediria 
de  cultivar  ao  mesmo  passo  a  medicina  e  a  litera- 
tura, como  sucedeu  mais  tarde  com  Júlio  Diniz. 

Mandá-lo  sozinho  para  o  Porto  foi  desgraçar  Joa- 
quina Pereira,  desorganizar  uma  família,  que  nunca 
chegou  a  solidarizar-se, 

O  general  António  de  Queiroz  apenas  encontrou 
vivo  um  dos  seus  amigos.  Fernando  Gonçalves  Penha. 
da  casa  da  Temporan.  aquele  mesmo  que,  trinta  e 
oito  anos  antes,  tinha  mandado  a  caseira  dizer  a  Jo- 
sefa que  fugisse  para  a  quinta  do  Enxertado. 

Foi  por  este  amigo  que  o  general  colheu  algumas 
impressões  sobre  a  morte  da  sua  amada  e  a  ime- 
diata aparição  da  criança  no  berço  flutuante. 

Segundo  Gonçalves  Penha,  o  antigo  cirurgião  admi- 
tia a  hipótese  de  não  ter  havido  suicídio,  mas  de- 
sastre por  congestão  quando  Josefa  ia  a  fugir  com  a 
criança  para  a  margem  esquerda. 


'  Em  1843-1844  foi  numa  água-furtaòa  òesta  rua  que  mo- 
rou Camilo  quanòo  estuòava  química. 


126  A   PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 

A  isto  contrapôs  António  de  Queiroz  que  o  parto 
ainda  deveria  tardar  um  mês  ao  tempo  em  que  a 
pobre  rapariga  morreu. 

Gonçalves  Penha  replicou  que  o  cirurgião  tam- 
bém admitia  a  hipótese  de  ter  Josefa  experimen- 
tado um  forte  abalo  no  momento  em  que,  julgan- 
do-se  abandonada,  o  amante  lhe  mandara  propor  a 
fuga. 

E  prometeu  averiguar,  pelos  filhos  da  sua  fale- 
cida caseira,  qual  tinha  sido  a  quinta  que  recebeu 
a  criança. 

No  outro  dia  o  general  saiu  de  casa  pela  primeira 
yez  e  dirigiu-se  sozinho  para  a  beira  do  Tâmega. 

Chegando  á  margem,  parou  defronte  da  Insua. 

«Era  alli  —  escreve  Camilo  —  que  Josepha  espe- 
rava o  juvenil  aspirante  embrenhada  no  choupal.  Um 
conhecido  amieiro  de  tronco  esgalhado  em  ramos  re- 
curvos já  não  existia.  Nesse  logar  estava  uma  aze- 
nha, com  uma  barca  de  passagem  amarrada  a  uma 
argola  de  pedra  chumbada  na  parede.  >- 

Sempre  a  recordação  saudosa  da  Insua  tão  vivaz 
no  espírito  de  Camilo .  .  .  como  no  do  suposto  ge- 
neral brasileiro. 

Apareceu  a  moleira,  que  ofereceu  a  António  de 
Queiroz  passá-lo  na  Jbarca  e  que,  durante  a  traves- 
sia, lhe  falou,  à  conta  de  sua  pobreza,  na  benfazeja 


A    PRIMEIRA  MULHER    DE   CAMILO  127 

senhora  de   Santa  Eulália,  amparo  de  todos  os  en- 
£eitadinhos. 

—  Não  conheço,  disse  o  general. 

E  antes  de  saltar  em  terra  prometeu  esmolar  a 
barqueira. 

Depois  seguiu  pela  margem  direita  até  ao  prin- 
cípio da  Cangòsta  do  Estevão. 

E'-nos  preciso  ouvir  mais  uma  vez  o  depoimento 
escrito,  melhor  direi,  o  depoimento  autobiográfico  de 
Camilo. 

«Como  ia  fatigado,  sentou-se.  enxugando  o  suor. 
na  fraga  a  que  o  moleiro  encostara  o  cadáver  de  Jo- 
sepha,  e  lembrou-se  que  alli  mesmo  haviam  estado 
sentados  ambos  em  uma  tarde  de  julho.  Em  baixo 
murmurava  a  corrente  agitando  as  franças  dos  sal- 
gueiros, coaxavam  as  rans,  e  ás  vezes  una  scalo  de 
ventie  prateado  saltava  á  flor  d'agua.  ELLe  parecia 
ver  e  ouvir ;  mas  via  e  ouvia  no  passado  o  rosto  e 
a  voz  de  Josepha,  e  embebia  no  Lenço  as  Lagrimas. » 

Camilo,  para  ver  e  ouvir  Joaquina  Pereira,  não 
precisava  ir  a  Friííme.  nem  queria  ir  para  ocultar  a 
fragilidade  de  ter  casado  aos  dezasseis  anos  com  uma 
camponesa.  Mas  via-a  e  ouvia-a  em  toda  a  parte,  es- 
pecialmente na  solidão  meditativa  de  Seide.  entre 
pinheirais  gementes,  que  lhe  uivavam  recriminações. 

E  não  só  a  via  e  ouvia,  a  ela.  mas  também  re- 


128  A   PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO 


cordava,  passo  a  passo,  os  lugares  que  a  evocavam  : 
a  Insua  das  entrevistas,  a  fraga  da  beira  do  rio,  o 
coaxar  das  rãs.  os  pulos  dos  escalos,  a  Cangôsta  do 
Estevão,  que  não  é  uma  fantasia,  conquanto  hoje  seja 
conhecida  pelo  Quelho  da  Barca. 

E'  que,  na  Maria  Moysés,  toda  a  nomenclatura 
topográfica  corresponde  à  realidade,  se  exceptuar- 
mos talvez  a  localização  da  quinta  de  Santa  Eulália 
na  margem  direita  e  mais  duas  referências :  Agra  da 
Cruz,  que  poderá  ser  a  quinta  dos  Agras,  e  Vendas 
Novas,  que  é  Venda  Nova. 

Tudo  mais  está  certo:  o  Bravio  do  Pimenta,  que 
foi  cultivado  e  passou  a  denominar-se  Conquesturas  ; 
o  Campo  da  Lagoa ;  a  Encruzilhada  do  Mato,  onde 
ha.  realmente,  uma  caixa  das  Almas  :  a  Temporan. 
onde  existe  uma  capela  vinculada  que  pertenceu  ao 
conde  de  Basto  :  as  poldras,  a  azenha .  .  .  tudo.  tudo, 
enfim,  recordado  saudosamente,  doloridamente,  te- 
nazmente, como  se  não  houvessem  já  decorrido  mui- 
tos e  trabalhosos  anos. 

Nem  sequer  lhe  tinham  esquecido  certos  indiví- 
duos que  lá  conheceu  e  que  por  sua  profissão  se  ha- 
viam popularizado. 

Está  neste  ca^o  o  boticário-curandeiro  de  Friú- 
me,  assim  como  o  Figaro  da  Venda  Nova. 

Confrontemos  esta  viveza  de  reminiscência  com 


A   PRIMEIRA  MULHER   DE  CAMILO  129 


algumas  truncadas  frases  de  Camilo,  recolhidas  em 
outros  livros,  e  elas  poderão  completar  cabalmente 
a  nossa  demonstração ; 

«...  as  primeiras  paixões,  que  nos  sopram  a 
tempestade  no  limpido  lago  da  adolescência.» 

(Scenas  contemporâneas). 

«Eu  não  tenho  imaginação,  tenho  memoria,  do 
que  vi.  do  que  senti,  do  que  experimentei.» 

(Vingança). 

^<Se  a  recordação  é  um  remorso,  é  em  testimu- 
nho  da  nossa  grandeza.  Pois  o  remorso  o  que  é  ?  E" 
a  reacção  da  virtude  contra  o  crime ...  E*  o  fogo 
purificador  que  devora  a  macula. » 

(Um  livro,  Vinte  dias  de  agonia), 

Por  último,  talvez  ainda  mais  claro  que  todos,  um 
trecho  do  Romance  de  um  homem  rico  : 

«...  quando  a  saudade  de  um  sitio  é  a  dor  re- 
percutida de  vidas  que  lá  viveram  comnosco.  essa 
não  tem  remédio.» 

E  não  tinha. 

Está  agora  por  pouco  o  desfecho  da  novela  Ma- 
ria  Moysés. 


130  A   PRIMEIRA  MULHEI'   DE  CaMILO 

O  general  subiu  o  íngreme  barrocal  da  Cangôsta, 
entrou  na  aldeia  de  Santo  Aleixo  e  sentou-se  no  adro, 
onde  o  velho  reitor  da  freguesia  o  viu  e  cumprimen- 
tou como  a  um  forasteiro  desconhecido,  mas  de 
aparência  distinta. 

Travaram  diálogo  e,  trocadas  as  primeiras  frases, 
António  de  Queiroz  pediu  ao  reitor  que  lhe  fosse  ci- 
cerone na  visita  àquela  aldeia,  porque  lhe  parecia 
muito  interessante. 

O  pároco  anuiu  prontamente  e  ia  indicando  os 
melhores  prédios  e  dizendo  os  nomes  dos  respecti- 
vos proprietários. 

Diante  das  ruínas  duma  casa  de  lavrador,  muito 
espaçosa,  o  general  pareceu  querer  reconhecer  o  sí- 
tio e  a  casa. 

Era  ali  que  tinha  habitado  João  da  Lage. 

Contou  o  reitor  a  misteriosa  morte  de  Josefa,  facto 
anormal  que  impressionara  a  povoação,  mas  esqui- 
vou-se  a  responder  à  pregunta  do  general  sobre  a 
causa  do  suposto  suicídio,  para  não  fazer  juízos  te- 
merários que  desrespeitassem  os  mortos. 

E,  por  observar  que  o  forasteiro  estava  comovido, 
notou-lho. 

António  de  Queiroz  desculpou-se  dizendo  : 

—  Todos  os  velhos  são  fáceis  em  chorar. 

Depois  desejou  descer  à  margem  do  rio  e.  quando 


A    PKlMlilRA   MULHER   DE   CAMILO  13 


chegaram  ás  poldras,  interrogou  o  reitor  sobre  a 
atoarda  de  ter  aparecido  outrora  a  boiar  no  Tâmega 
um  berço  com  uma  criancinha  dentro. 

Que  era  verdade,  confirmou  o  pároco  :  que  o  facto 
se  dera  na  mesma  noi  te  em  que  Josefa  morreu  :  que 
ainda  vivia  octogenár-o  o  Francisco  Bragadas  que 
tinha  descoberto  o  berço,  e  que  era  agora  caseiro 
da  mesma  engeitada  que  êle  achou. 

Admirou-se  o  general  e  o  reitor  elucidou-o  : 

—  O  Bragada^  já  então  era  caseiro  de  Santa  Eu- 
lália e  levou  às  fidalgas  a  menina  que  apareceu  no 
rio.  Elas  puseram-lhe  o  sobrenome  de  Moisés,  em 
razão  de  ter  flutuado  nas  águas  como  o  legislado^" 
hebreu.  Uma  das  fidalgas,  que  foi  madrinha,  deixou- 
Ihe  a  quinta.  E  a  engcitadinha  saiu  um  anjo  de  ca- 
ridade ;  é  a  mãe  carcável  de  todos  os  engeitados  e 
de  todos  os  órfãos. 

Preguntou  o  general  ao  reitor  se  estava  conven- 
cido de  que  a  menina  fosse  filha  de  Josefa. 

Novamente  se  escusou  o  pároco  a  fazer  uma  afir- 
mativa, mas  repetiu  a  coincidência  da  aparição  de 
Maria  Moisés  com  a  morte  da  filha  de  João  da  Lage, 
Depois  contou  que  apesar  da  herança  da  madrinha, 
do  legado  dum  bondoso  cónego  da  Sé  de  Braga,  e 
de  outros  auxílios  de  pessoas  caridosas,  os  recursos 
pecuniários  de  Maria  Moisés  estavam  tão  decresci- 


132  A    PRIMEIRA   MULHIiR  DE  CAMILO 


dos,  que  ela  se  via  na  necessidade  de  vender  a  quinta, 
porque  já  devia  três  mil  cruzados  a  várias  confrarias. 

O  general,  que  parecia  muito  agitado,  abraçou  o 
reitor  e  sígnificou-lhe  o  desejo  de  recebê-lo  em  sua 
casa. 

—  Mas  eu  não  sei  com  quem  tenho  a  honra  de 
falar,  tornou-lhe  o  pároco. 

António  de  Queiroz  declinou  o  seu  nome  e  o  da 
sua  quinta. 

Reconheceram-se  :  tinham  sido  condiscípulos.  Re- 
cordaram factos  da  infância,  alegrando-se  fugitiva- 
mente, até  que  o  pároco,  de  súbito,  disse  ao  gene- 
ral compreender  agora  as  suas  lágrimas  quando  viu 
a  casa  do  lavrador  de  Santo  Aleixo. 

Num  impulso  de  nobre  alma  asseverou  então  a 
Queiroz  que  Maria  Moisés  era  filha  de  Josefa.  Con- 
tar-lhe-ia  alguns  factos  e  transgrediria  o  sigilo  da 
confissão  por  bem  fazer  a  muitas  almas.  Tinha  sido 
chamado  para  confessar  a  mulher  de  João  da 
Lage  em  artigos  de  morte.  Recolheu  bem  todas  as 
suas  palavras.  Ela  lhe  disse  que  a  filha  dera  á  luz 
uma  criança  na  tarde  do  dia  em  que  morreu  e  que. 
fugindo,  certamente  levara  um  bercinho  encanastrado. 
que  desapareceu  de  casa.  A  moribunda  nada  mais 
sabia,  porque  adoeceu  de  aflição  depois  da  morte  da 
filha. 


A   PRIMEIRA   MULHER   DE   CAMILO  133 


—  Para  mim.  concluiu  o  reitor,  está  provado  que 
Maria  Moisés  é  filha  de  Josefa. 

Ao  outro  dia,  o  general,  com  o  seu  amigo  Fernando 
Gonçalves  Penha  e  um  tabelião  do  julgado,  apresen- 
tou-se  na  quinta  de  Santa  Eulália  para  comprá-la. 

A  sua  comoção  era  grande,  e  maior  foi  ainda  desde 
que  viu  e  ouviu  Maria  Moisés. 

António  de  Queiroz  não  fez  questão  de  preço,  e 
prontamente  atendeu  o  pedido  de  conservar  o  velho 
caseiro  Bragadas.  Afagou  treze  crianças  que  estavam 
asiladas  na  quinta.  E  quis  ver  o  berço  a  que  a  boa 
Maria  se  tinha  referido  quando  dissera  que  fora  o 
Bragadas  que  o  tirou  do  rio. 

Estava  lavrada  a  escritura.  O  general  entregou  a 
quantia  ajustada  e  ordenou  que  os  rendimentos  da 
quinta  continuariam  a  ser  recebidos  pela  mesma  pes- 
soa que  até  então  os  recebera. 

Logo,  atalhando  o  assombro  causado  por  esta  or- 
dem, com  palavras  de  terna  bondade  declarou  ser  o 
pai  de  Maria  Moisés. 

Tinha  entre  as  suas  as  mãos  dela.  e  beijou-a  na 
fronte, 

<' Maria  cahiu  de  joelhos,  pendente  dos  braços  do 
pae  :  e  os  velhos,  e  as  creanças  ajoelharam  também, 
trementes  e  extáticos,  sob  a  faisca  eléctrica  daquelle 
sublime  lance.» 


134  A    PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO 


Quem  lê  estas  últimas  páginas  da  novela  entrevê 
refulgências  daquele  divino  alvor  de  paz  e  sereni- 
dade que  iluminava  outrora  na  serra  da  Arrábida 
poetas  como  frei  Agostinho  da  Cruz  e  frei  António 
das  Chagas,  quando  na  solitude  da  sagrada  monta- 
nha descarregavam  os  erros  e  trabalhos  de  sua  mo- 
cidade irreflectida. 

Maria  Moisés  é  também,  para  Camilo,  montanha 
de  recordações,  lugar  de  acalmação  e  penitência,  es- 
pecialmente no  segundo  volumezinho,  porque  no  pri- 
meiro ouvimos  ainda  rugir  o  vendaval  das  loucuras 
e  paixões  amorosas  que  perturbam  a  juventude. 

Mas.  especialmente  depois  que  a  alma  de  Camilo 
cria  insofridamente  uma  personagem  para  lhe  dar  o 
mesmo  nome  da  sua  primeira  mulher,  aliviando  as- 
sim um  peso  da  memória  ou  da  consciência,  que  o 
sufocava,  alastra-se  sobre  o  papel  uma  atmosfera  de 
condolência,  de  bondade  e  mansidão  infinitamente  do- 
ces e  puras. 

O  desfecho  da  novela  é  um  poema  evangélico,  uma 
alta  lição  de  brandura  e  caridade  cristãs,  que  se 
torna  ainda  mais  valiosa  quando  percebemos  o  seu 
duplo  sentido,  como  narrativa  de  supostos  aconte- 
cimentos e  como  efeito  dum  estado  psíquico  do  au- 
tor que  os  coordenou  sobre  um  tema  íntimo. 

O  ténue  véu  de  mistério,  que  a  mão  de  Camilo 


A  PRIMEIRA  MULHER  DE  CAMILO  135 


não  teve  a  coragem  de  espedaçar  completamente, 
parece-nos  tão  diáfano  como  a  gaze  que  no  teatro 
deixa  entrever  uma  scena  longínqua. 

O  romancista  confessou-se  a  si  próprio  e  não  pe- 
rante o  grande  público.  A  razão  deste  seu  procedi- 
mento já  antecedentemente  a  deixamos  assinalada- 
Mas  palavras  mesmas  de  Camilo,  nas  Memoruis  do 
cárcere,  '  confirmarão  agora  a  razão  da  inviolabili- 
dade que  ele  não  quisera  aluir  pela  base  : 

«Pejo  ou  orgulho,  até  dos  meus  amigos  escondi 
sempre  as  lagrimas.» 

E  foi  por  isso  que,  sobre  as  últimas  páginas  san- 
tificadas da  novela.  Camilo  dirige  a  Tomás  Ribeiro 
um  post-scriptiim  cuja  ironia  íinal  é  o  antifaz  com 
que  procura  ocultar  as  lágrimas  da  sua  emoção. 


F  I3S^ 


'  Discurso  Preliminar. 


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