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ALBERTO PIMENTEL
A PRIMEIRA IMIILHER
DE
CAMILO
Ha relâmpagos òe memoria que abrem
i:m vinco na fronte òo homem. E a ve-
lhice extemporânea òe alguns o que é se
não recorôarem-se ?
CAMILO CASTELO BRANCO— A Ei\ ^''eitad.i .
1916
GUIiMARÃES & C.» — Editores
68, Rua do Munõo, 70
LISBOA
H primeira mulher ^e Camilo
Composto e impresso na Imprensa
-» « Je Manuel Lucas Torres ■* ^
K. Diário de Xotici^is, &j a qJ, Lisboa
ALBERTO PIMENTEL
A PRIMEIRA MILHER
DE
CAMILO
Ha relâmpagos òe memoria que abrem
um vinco na fronte òo homem. E a ve-
lhice extemporânea òe alguns o que é se
não recorõarem-se?
CAMILO CASTELO BRANCO — A Euç^eitadã.
19 16
QULMARÃES e^ C.a — Editores
68, Rua òo Munòo, 70
LISBOA
. 'Z75^
JUN 2 7 195c'
A MEMORIA
DE
Jlnimio de Jl^tt^adc 6aéfc(c. zStancu,
falecido ew 5 de janeiro de ir/iíj.
A primeira mulher de Camilo
Silêncio injustificado
Quanto à primeira mulher de Camilo Castelo
Branco não serão para desprezar as informações no-
vas, que hoje trago a lume, absolutamente inéditas.
Mas careço de evocar algumas passagens concer-
nentes ao mesmo assunto, que se encontram em duas
ou três obras minhas, e faço-o por amor da sequên-
cia lógica desta breve narrativa.
O grande romancista ocultou sistematicamente o
facto de ter contraído primeiras núpcias com uma
camponesa residente em Friííme, e parece que che-
gou a negá-lo. segundo uma referência insuspeita de
António de Azevedo Castelo Branco em carta diri-
gida ao visconde de S. Miguel de Seide.
Pelo menos, ocultá-lo em documentos oficiais cor-
respondia a negá-lo.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Assim, quando em outubro de 1846 entrou na
Cadeia do Porto por haver raptado D. Patrícia Emí-
lia do Carmo, fez-se inscrever como solteiro, sendo
ainda viva a sua primeira mulher. E quando em 1 852
se habilitou naquela mesma cidade para tomar or-
dens menores — o que não efectivou — omitiu na
petição ao bispo o estado de viúvo.
Mas, no respectivo processo eclesiástico, o abade
da Sé. atestando pro moribiis. declara ser o peticio-
nário «viuvo de D. Joaquina Pereira de França.»
(Nunca uma aldeã íoi mais digna de a honorificarem.
Dona).
Tinha conhecimento daqueles autos de ordens o
ilustre cónego Alves Mendes, amigo desvelado de
Camilo, e, por isso. quando em 1885 começou de-
dicadamente a promover o casamento do insigne es-
critor com D. Ana Plácido, para conseguir a dis-
pensa de proclamas solicitou, perante o arcebispo
de Braga, uma justificação legal do falecimento de
D. Joaquina Pereira França.
Foi o mesmo cónego Alves Mendes quem me co-
municou todos estes pormenores, que mais tarde
comprovou com a oferta de documentos, por mim
publicados em 1890 no Romance do romancista,
Camilo nunca revelou aos seus íntimos, nem em
-^malquer dos seus livros — tão ricos de dados au-
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
tobiográficos — referiu, clara e directamente, a his-
tória do seu primeiro casamento.
Mas eu surpreendi, em algumas das suas obras,
insistentes impressões que êle guardara desde
Friííme e que propositadamente desfigurava quanto
às personagens principalmente.
Camilo contou, sem nenhum disfarce, os seus idí-
lios amorosos com duas camponesas da Samardan.
Luisa, donairosa ^<flôr dentre as fragas ^>, ^ e Maria
do Adro, a triste e pálida aldeã. ■
l Então por que se obstinaria em ocultar, ou re-
negar, o seu consórcio com outra camponesa ?
Por isso mesmo que a desposou, fazendo um ca-
samento obscuro, cuja confissão pareceria desairosa
às suas tendências aristocráticas, à sua culminância
literária e evidência social, que depois tão justifica-
damente conquistou.
Não se esquivara Camilo a comemorar publica-
mente os galanteios serranos, que não tinham che-
gado a criar uma situação doméstica, a estabelecer
laços de família, a autorizar a vida em comum que
o casamento sanciona.
Mas dir-se-ia envergonhado da afeição que o le-
' Duas horas de leitura, Cm livro, Memórias do cárcere.
- Duas horas de leitura.
10 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
vára ao matrimónio como se fora qualquer dos seus
brasileiros que, regressando à terra natal, houvesse
desposado a filha do feitor, rapariga tão apetitosa
quanto humilde.
Camilo receava até a possibilidade de se falar
nisso, consoante disse António de Azevedo na carta
já citada.
Quando, tendo-me pedido informações sobre o tra-
balho da sua biografia, eu lhe confessei lealmente no
Hotel Borges, em Lisboa, que possuia uma certidão
do seu primeiro casamento, Camilo retorquiu-me,
excitado :
— Esse casamento foi uma infâmia.
A isto respondi eu com a mesma lealdade :
— Tenho provas de que foi apenas a consequên-
cia duma criancice aos dezasseis anos.
Mas essa criancice, que teve uma sanção honrosa,
e que, portanto, não podia nem devia envergonhar
Camilo : essa legalizada aventura primaveril, que
êle tanto queria recatar no maior sigilo, muitas vezes
a recordou intimamente com secreta saudade, sem
todavia a querer confessar francamente.
Espero demonstrá-lo nesta monografia, cujo plano
comportará, primeiro, o que já escrevi sobre o mesmo
assunto no Romance do romancista^ nos Amores de
Camilo e no prefácio da sua comédia póstuma O
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO U
Labis-hotneni; depois, as minhas pesquisas recentes.
quanto à família de D. Joaquina Pereira França : por
último, o estudo psicológico das páginas que melhor
traduzem as recordações saudosas do eminente es-
critor, sempre veladas num injustificado mistério de
alma.
II
Transcrições
Do Romance do romancista (1890) :
«Francisco Xavier Alves, Reitor da freguezia do
Salvador da Ribeira de Pena, archidiocese de Braga :
«Certifico e atesto, que em um livro dos assen-
tos de casamento d*esta freguezia do Salvador, con-
celho de Ribeira de Pena. archidiocese de Braga,
está lavrado a fl. 43 o assento do teor seguinte :
«Camillo Ferreira Botelho Castello Branco, filho de
Manuel Joaquim Botelho Castello Branco, e Jacinta
Rosa Almeida do Espirito Santo, da cidade de Lis-
boa e de presente assistente n'esta freguezia do Sal-
vador, e Joaquina Pereira, filha de Sebastião Mar-
tins dos Santos e Maria Pereira de França, do lugar
de Friume, desta freguezia do Salvador da Ribeira
de Pena, contrahiram o Sacramento do matrimonio
por seus mútuos e expressos consentimentos /// fa-
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 13
cie EcclesícB conforme o Concilio Tridentino e Cons-
tituição do Arcebispado com commutação de procla-
mas para depois de recebidos na minha presença e
das testemunhas abaixo assignadas, a dezoito d" Agos-
to de mil e oitocentos e quarenta e um : testemunhas
presentes o Padre José Maria de Souza, do Pontido
d'Aguiar e Francisco Ribeiro Moreira, de Friume,
d'esta freguezia : e para constar fiz este termo era at
supra. O Encommendado Domingos José Ribeiro.
O Padre José Maria de Souza. Francisco Ribeiro
Moreira. Tema margem «Friume eVilla Real,» E'
copia do próprio original, a que me reporto. Epor ser
verdade passei a presente que juro infide Parochi.
Parochial do Salvador da Ribeira de Pena, 2 1 de No-
vembro de 1887 e sete — Francisco Xavier ALves.»
Acrescentarei agora que a assinatura de Fran-
cisco Ribeiro Moreira, como testemunha, prova que
D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, tia de Ca-
milo, consentiu no casamento, porquanto esta senhora
era sogra daquele Ribeiro Moreira, abastado pro-
prietário em Friíime.
Pensaria éla, talvez, que o sobrinho, casando com
uma rapariga linda, postoque de modesta condição,
renunciaria a novas rapaziadas e que o sogro assu-
miria o encargo de olhar por êle.
14 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
D. Rita Emília, geralmente conhecida em Vila
Real por D. Rita Brocas, tivera de receber Camilo
e a irmã quando ficaram órfãos : o conselho de fa-
mília, reunido em Lisboa, resolvera enviar-lhos.
Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco, pai de
Camilo, vivera de escassos rendimentos, pelo que
teve de exercer um cargo público, e deixara credo-
res.
Assim, pois, o «esperançoso património», a que
se referiu Camilo, é uma frase que não corresponde
à verdade dos factos.
Nem, como êle supunha, foi uma lei da Senhora
D. Maria I que o deserdou. ^
Vem a propósito, e pode esboçar-se rapidamente,
a história dessa lei.
No século XVIII, D. Leonor Maior Lobo da Gama.
dama nobre, sucedeu, por morte de Luís Lobo da
Gama. seu irmão, na administração dos bens da casa.
Mas apareceram em juizo dois filhos legitimados
do fidalgo a reivindicar tanto os bens alodiais, como
os vínculos. D. Leonor, decaída nos tribunais ordiná-
rios, recorreu para a Coioa, que estabeleceu a dou-
trina de que. existindo quaisquer legítimos descen-
' T)uas horas de leitura.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 15
dentes dos instituidores dos vínculos, não produzi-
riam efeito as cartas de legitimação, '
Manuel Botelho reconheceu como seus filhos Ca-
milo e Carolina em 27 de junho de 1829.
O respectivo «instrumento de legitimação e per-
filhação» ^ diz que o pai vivia dos seus rendimentos
e não declara o nome da mãe. (Mãe incógnita, se-
gundo a frase tabelioa).
Certamente avisado pelo notário de que era pre-
ciso evitar a aplicação, por analogia, da provisão ré-
gia de 1799, Manuel Botelho resolveu acautelar-se
obtendo o seguinte documento :
«Senhor.
«Manda-me Vossa Real Magestade Fidelíssima
responder ao requerimento de meu Irmão Manoel
Joaquim Botelho Castello-Branço, como única inte-
ressada á sua herança, se elle fallesce-se ab intes-
tato, a fim da Perfilhação de hum se a filho Natural
Camillo Ferreira Botelho Castello Branco e de huma
filha Carolina Ritta Botelho Castello Branco, nada
' Resolução régia òe 16 òe òezembro òe 1798 e Provisão
òe 18 òe janeiro òe 1799.
^ Publicaòo integralmente pelo sr. Peòro òe Azeveòo nos
Antepassados de Camilo.
16 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
tenho que dizer, e antes muito louvo ao ditto meu
Irmão Recorrente, os seus honrados sentimentos de
bom Catholico. e por isso a tudo presto o meu con-
sentimento, e V. R. M. F. Mandará o que fôr justo.
— Villa Real 20 de Agosto de 1829. D. Ritta Emilia
Castello Branco.» ^ (Segae-se o reconhecimento,)
Seis anos depois, a 22 de dezembro de 1835,
Manuel Botelho falecia em Lisboa, na rua dos Dou-
radores. 29, freguesia de Santa Justa. -
Em 1836 publicava o Diário do Governo, n.'' 37,
de sexta-feira 12 de fevereiro, este aviso judicial:
«Pelo Juízo de Paz da Freguesia de Santa Justa
se precede a inventario dos bens ficados por óbito
de Manoel Joaquim Botelho Castello Branco*: todos
os credores que o forem ao casal do dito fallecido
concorrerão ao dito Juizo no prazo de quinze dias,
contados da data deste annuncio. a legalisar seus cré-
ditos, para no acto da partilha se lhe dar pagamento. >>
^ Arquivo Nacional — Desembargo òo Paço, maço 553.
Ministério òo Reino. (Vi este õocumento por inòicação òo
sr. PeDro òe Azeveòo.)
-Comunicação òo òr. João òe Meira, em carta òe 7 òe
março òe 1906.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 17
O cadáver de Manuel Botelho foi lançado à vala
comum, n.° 7, do cemitério oriental (Alto de S. João).
E o minguado espólio, se algum remanesceu do
pagamento de dívidas, não chegou para que a edu-
cação dos dois órfãos decorresse em colégios de Lis-
boa, como seria conveniente, se para isso houvesse
recursos pecuniários bastantes.
Carolina e Camilo, ficando pobres, tiveram de ser
recebidos em Vila Real * pela mesma tia que a fa-
vor deles havia renunciado aos direitos duma hipo-
tética herança.
Mas Camilo, rapaz travesso, fugira de casa de
D. Rita Brocas, e viera para Lisboa aventurosamente.
Foi, porém, reenviado a Trás-os-Montes, onde.
depois do casamento de sua irmã Carolina com o
medico Azevedo, encontrou mais carinhosa e instru-
tiva hospedagem na casa deles, em Vilarinho da Sa-
mardan. -
1 «Tinha eu òez annos, e vivia em Villa Real » Memo-
rias do cárcere, I., cap. XV.
- «N'esta Samarôan passei eu os òescuiòos e as alegrias
ôa infância, na companhia òe minha irman, que aili casou,
e ô'aquelie paòre António ò'Azeve()o, alma òe Deus .. Me-
ritórias do cárcere, II, cap. XXX.
«Vivi òois annos com este prior. As nossas camas esta-
vam no mesmo quarto. Seroens de S.Miguel de Seide, III.
2
18 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Todavia nem D. Rita ficara de mal com o sobri-
nho, nem o sobrinho de mal com ela.
E assim se explica que o jovem Camilo a tivesse
acompanhado a Friúme, em visita a Francisco Ribeiro
Moreira e sua mulher, genro e filha da mesma D.
Rita.
Desposando a meiga «Quininha» — docemente a
tratava o povo por este deminutivo — Camilo ficou
em Friúme. onde exerceu o cargo de amanuense
dum funcionário público, bastante «acumulador», e
lá permaneceu algum tempo sob a vigilância e a pos-
sível protecção do sogro, que se lisonjeou do casa-
mento da filha com um rapaz inteligente e de famí-
lia conhecida em Trás-os-Montes,
Aqui suspendo a divagação.
Do livro Os amores de Camilo (1899) tomarei,
na sua mesma grafia, as páginas baseadas em infor-
mações a que posso dãr o nome de «versão de Friú-
me», porque de lá vieram e me foram obsequiosa-
mente fornecidas por uma família distinta.
Reproduzo-as apenas com os ligeiros retoques que
uma futura edição exigia, e que já estavam feitos
antes de iniciadas quaisquer diligências, junto dos
parentes de D. Joaquina Pereira França, para obter
a sua «versão de família».
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 19
«Friume, pequena povoação * que ainda hoje - tem
apenas 85 casas, recosta-se na margem esquerda d?
Tâmega e corôa-se no alto por uma extensa rocha,
sobre a qual assenta a capella de S. Gonçalo.
A vegetação, pela abundância pinturesca que a
caracteriza, faz lembrar o Minho, já fronteiro. Os
campos são cultivados e arborizados. Os carvalhos,
os freixos, os castanheiros e os choupos, principal-
mente os choupos, servem de apoio ás vides de en-
forcado. Por este motivo o povo de Friume designa
pelo nome de uveiras todas as arvores a que se ar-
rima a vinha.
A quatrocentos metros da aldeia deriva plácida a
corrente do Tâmega fecundando o solo. regando os
campos e pomares.
Camillo, se houvesse de acompanhar sua tia a
Lisboa ou ainda ao Porto, iria contrariado: mas.
dentro da província transmontana, passar da Samar-
dan para Friume, onde a vida rústica era a mesma,
se bem que o scenario fosse mais ameno, não im-
portava sacrifício.
Como em todas as aldeias, havia em Friume um
estabelecimento commercial que acumulava vários
' Do concelho òe Ribeira òe Pena.
- 1 899.
20 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
géneros de negocio ; era simultaneamenie mercearia
e loja de capella ; vendia arroz e botões, alhos e fi-
tas, bacalhau e lustrina. cominhos e gravatas. Dir-
se-ia a tenda do Martins do Chiado despejada dentro
do magasín do Mattos e Silva. Parecia uma torre
de Babel em que cada ^artigo» fallava uma lingua-
gem differente.
Mas o proprietário da loja, Sebastião Martins dos
Santos, entendia-se perfeitamente no meio d'esta
complicada Babel. Não confundia nem os lotes nem
os géneros do seu estabelecimento ; era como um
velho bibliothecario que, por maior que seja a livra-
ria, sabe onde ha-de ir buscar o tomo que lhe pe-
dem.
Elle não era natural de Friume. Tinha nascido
no concelho de Gondomar, onde exercera, como
Johnson nos Estados-Unidos. a profissão de alfaiate.
Todavia esse humilde mester não fora indifferente
á illuminação do seu espirito, natulmente sagaz :
também como Johonson, Sebastião dos Santos po-
deria ufanar-se, no parlamento da sua loja. de ter
aprendido, quando alfaiate, ^<a cortar a direito e a
tomar medidas exactas.»
E teria muitas occasiões de o dizer, porque era
um sujeito discursivo, que fallava de dentro do bal-
cão como do alto de uma tribuna, illustrando os fre-
A PRIMHIRA MULHER DE CAMILO 21
guezes, orientando-os sobre o rumo dos negócios pú-
blicos, commentando com desassombro e arrogância
as zaragatas da junta de paroquia do Salvador.
A sua loja fazia lembrar um vasto collector em
que fossem desaguar as ramificações litterarias. po-
liticas e philosophicas do Grémio, da Havaneza, do
Martinho, de S. Bento, da Arcada e do Curso Supe-
rior de Lettras.
Sebastião dos Santos tinha uma opinião para
tudo e para todos. Era um doutor dè aldeia, typo
aliás vulgar nas nossas províncias, a quem os fre-
guezes e os consulentes jamais recorriam em vão.
Aviava tudo quanto lhe pedissem, fosse pimenta para
temperar uma lebre, conselho para vencer uma de-
manda ou receita para curar brotoejas e terçãs.
A' noite, quando o movimento commercial da loja
abrandava, e elle occupava a sua cáthedra de Pico
de Mirandola, era um gosto ouvil-o dissertar sobre
as proezas de Carlos Magno, as prophecias do Ban-
darra, as guerras do tempo do Cerco, a gravitação
dos astros e a pesca do bacalhau na Terra Nova.
No meio da mais profunda attenção do auditório,
só a intervallos perturbada pelo advento de algum
freguez retardatário, Sebastião dos Santos preleccio-
nava de omni re scibili et qaibasdani alíís, — de to-
das as coisas e de muitas outras.
22 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
A dentro do balcão escutavam-no com religioso
respeito a mulher, Maria Pereira França, e qua-
tro filhas ainda na infância, a mais velha das quaes
se chamava Joaquina e desabrochava têmpora e
linda, cachopa guapa que o leitor terá occasião de
conhecer em escorço.
Sebastião dos Santos, transferindo-se de Gondo-
mar a Friume, tomara logo pé como César : chegou,
viu e venceu. Sentia-se com instinctos mais altos do
que os que humildemente se confinavam entre o giz
e a tesoira.
Uns parentes que tinha em Friume e eram ren-
deiros de varias commendas provocaram-no a mu-
dar de domicilio. O alfaiate desfez-se logo da offi-
cina : entroixou e partiu com a família.
Quando Camillo, acompanhando a tia Rita. che-
gou a Friume, a loja de Sebastião dos Santos flo-
rescia como um Printenips local e como um soa-
lheiro mais brilhante que os da Castanheira e Alhos
Vedros no tempo de Camões.
O talento de Camillo já tinha começado a brotar,
numa atmosphera de classicismo, á sombra de pa-
dre António de Azevedo. ' Naquelle tempo o ensino
do latim não se havia ainda secularizado : estava nas
"' Irmão òo méòico Azeveòo.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 23
mãos do clero. O estudante mais estróina continha-
se em respeito, em terror até. na presença do Pa-
dre-Mestre que lhe ensinava Eutropio e Virgílio, com
a profundidade de um poço que alcatruzasse latini-
dade cristallina.
Os themas eram colhidos nos escriptores portu-
guezes de boa nota, os clássicos, principalmente nos
textos substanciosos de estreme orthodoxia.
Camillo. quando chegou a Friume, levava o latim
de padre António de Azevedo, mais a bagagem lit-
teraria que elle lhe emmalara.
Também levava a viola dos serões transmontanos,
que amios depois ainda dedilhava no Porto, empolei-
rado sobre as telhas de um prédio da rua Escura.
Com estes predicados, personificava o typo esrho-
lastico da sua época,
Inventava facilmente entremezes para os serandei-
ros e redondilhas para serem cantadas ao desgarre.
Não que elle tivesse méritos de cantor, porque a
voz lhe era rebelde. Percorrendo a escala, «quando
chegava ao si, esganitava-se n'uma engasgação.» *
Sem embargo, quando o amor o inspirava, tentava
vencer, com melhor ou peor êxito, as rebeldias da
larynge.
^ A lyra meridionjl.
24 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
A vocação litteraria de Camillo não visava nesse
tempo a um ideal artistico. Estava unicamente ao
serviço de um temporal desfeito de adolescência fol-
gazã e de alegria fragoeira. que saltava tão desem-
baraçada por sobre as neves e barrocas do Marão
como um gentleman poderia pisar, nos memiettos
da corte, velludosos tapetes de Susa.
A vida de Camillo, á semelhança da de Camões e
Bocage, foi irrequieta nos primeiros annos da mo-
cidade. Camões teve a alcunha de Diabo, que tam-
bém foi o qualificativo dado por Heine a Proudhon.
e que egualmente assentaria com propriedade em
Camillo.
Pode, pois, imaginar-se a sensação que elie cau-
saria quando appareceu em Friume com a sua ba-
gagemzinha intellectual preparada por padre Antó-
nio ; com a viola transmontana e uma inexgotavel veia
de improvisação ; com a sua alegria desabalada, que
refervia em vulcões de imaginação inventiva.
Sebastião dos Santos, o tendeiro lettrado, conhe-
cia que tinha encontrado o «seu homem.» Camillo
viera dar á «Havaneza» de Friume umas tinturas de
illustração e mundanidade que não podiam deixar
de lisonjear o dono do estabelecimento, tão lido na
Historia Sagrada, e tão interessado em saber e dis-
cutir o que se passava por esse mundo fora,
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 25
A concorrência á loja de Sebastião dos Santos co-
meçou a ser maior, porque, em vez de um. havia
agora dois oradores a iscar a curiosidade publica.
Mas o joven Camillo reconheceu, a breve trecho,
que precisava de maior âmbito, para expandir a sua
alegria, do que a loja de Sebastião.
Entrou a promover corridas de gallos e entreme-
zes, que elle próprio dirigia com uma actividade in-
fatigável, attraindo sobre si a estima e o reconheci-
mento públicos, porque a aldeia de Friume perdera
de repente a somnolencia patriarchal, que até então
a tinha amodorrado.
Os entremezes, divertimento que dos costumes
da corte, onde Gil Vicente o implantara, derivou para
a tradição popular, eram recebidos com geral agrado.
Camillo compunha a peça, distribuia-a. ensaiava-a
com enorme trabalho, lascando as durezas da pro-
sódia dos actores, como se brita pedra com um mar-
tello, e trepanando os papeis na cabeça dos que não
sabiam ler Depois ajudava a levantar o palco sce-
nico. carpintejando elle próprio. Na noite da represen-
tação era auctor. contra-regra. actor e fiscal do thea-
tro, multiplicando prodigiosamente a sua actividade.
Rodeado de uma atmosphera de prestigio, em
lena evidencia, não admira que os seus jovialissi-
2Ó A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
mos dezeseis annos se impozessem á admiração das
raparigas de toda a freguezia do Salvador, e que elle
próprio se deixasse enlear nos laços que o amor arma
brandamente.
Assim aconteceu. A breve trecho foi Joaquina
Pereira, a primogénita de Sebastião Martins dos San-
tos, entre todas as raparigas de Ribeira de Pena, a
que pôde gabar-se de ter empolgado o coração do
joven e endiabrado Camillo.
Ella era, como já disse, uma guapa e têmpora
cachopa. Forte, sadia, reforçada, de peitos altos, es-
tatura regular : nas faces morenas, um clarão de in-
genuidade alegre, de bondade expansiva.
Na véspera e dia de Natal, quando sahiam as ron-
das — grupos de rapazes e moçoilas que percorrem
a povoação em danças e descantes — Joaquina,
que tomara os appellidos da mãe, era a flor do ran-
cho, o que despertava um certo despeito nas rapa-
rigas nascidas em Friume, porque ella tinha nascido
em S. Cosme de Gondomar.
A 10 de janeiro, pela romaria de S. Gonçalo, era
das mais gentis cachopas que exhibiam as suas ves-
tes de gala : saia de chita, jaqué de merino, ordina-
riamente escuro, chinellas de verniz, lenço de seda
na cabeça.
Pulando nas danças do arraial, quando o lenço lhe
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 27
descahia ao abandono, parecia ainda mais gentil, gra-
ças ao penteado em uso entre as raparigas de Friu-
me : duas tranças singelamente enlaçadas na parte
posterior da cabeça.
Joaquina Pereira enamorou-se de Camillo ouvindo-o
discursar na loja do pai e recitar versos que exalta-
vam a imaginação. Depois, a liberdade nas rondas^
nos entremezes e nas corridas de gallos ageitava
occasião propicia ás confidencias, aos segredos, ás
juras de amor, que na loja de Sebastião dos San-
tos, interposto o balcão, não eram permittidos aos
dois namorados.
Camillo, que tinha ido a Friume por acompanhar
apenas a tia Rita, achou alli. quando menos o espe-
rava, uma posição social, postoque modesta, conve-
niente. Luiz da Cunha Lemos, que acumulava as
funcções de secretario da camará e da administra-
ção do concelho de Ribeira de Pena. tinha sido in-
vestido também nas de escrivão de fazenda e escri-
vão e tabellião do julgado. Não parece, este Lemos,
um dos felizes burocratas graúdos dos nossos dias.
que são verdadeiros cabides de empregos rendosos ?
Pois bem! o indispensável Lemos precisava de um
escrevente, que certamente não era de mais, e con-
tratou Camillo para esse cargo, mediante casa e
28 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
mesa. além, talvez, de alguma remuneração em di-
nheiro.
Que magnifico amanuense seria Camillo ! Tinha
ortographia, prenda não vulgar em Ribeira de Pena
e outras partes, incluindo as ilhas adjacentes, mas,
principalmente, dispunha de uma bella calligraphia,
que a rapidez da escripta não conseguiu estragar
completamente mais tarde.
Sebastião dos Santos não podia encontrar melhor
genro, nem mais a seu geito. Dir-se-ia que o tendeiro
de Friume, o antigo alfaiate de Gondomar, tivera a in-
tuição do futuro de gloria reservado a Camillo.
A certa altura impoz o casamento, tanto mais in-
vejado quanto a imaginação popular, fascinada pelas
eminentes qualidades do sobrinho de D. Rita. aca-
lentara a lenda de que elle teria a receber uma
grande herança.
Foi por uma tarde de agosto, a 18, de 1841 que,
na egreja do Salvador de Ribeira de Pena. Camillo
Ferreira Botelho Castello Branco desposou a filha
de Sebastião Martins dos Santos.
O párocho encommendado, Domingos José Ri-
beiro, lançou as bênçãos. Como testemunhas assis-
tiram o padre José Maria de Sousa, de Pontido de
Aguiar, e o genro de D. Rita. Francisco José Ri-
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 29
beiro Moreira, primo, por affinidade. de Camillo.
Está a gente a ver toda a movimentação theatral
d'essa tarde de agosto em Friume :
Camillo, uma creança de dezeseis annos. menta-
lizando a plenitude da ^^ posse» legitima na contem-
plação da noiva, cujas graças acirrantes, modeladas
numa plástica vigorosa, a elle offuscariam nessa hora
electrizante os liames e encargos do casamento.
Joaquina Pereira, espiritualizada pela paixão, que
é dynamite capaz de fazer saltar os mais duros blo-
cos do cérebro humano, e ella era uma pobre cam-
poneza, que ainda assim se distinguia entre muitas
outras por saber ler e escrever.
Sebastião dos Santos desvanecido pela satisfação
de ter ganho a partida num rápido lance de távolas,
dizendo porventura aos convidados que, nas suas
mãos, «o rapaz havia de ir muito longo.
As raparigas de Friume mordidas de inveja pela
felicidade que uma estranha lhes viera roubar, le-
vando-lhes o melhor noivo que podiam apetecer, e a
herança fabulosa que havia de enriquecel-o um dia.
A casa dos noivos, em Friume, era, como a maior
parte de todas as da povoação, construída de pedra
tosca, sem rebocos e sem vidraças.
Foi essa choupana o ninho de amor onde Camillo
30 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
passou OS dias do noivado, certamente sem ambicio-
nar hoUandas finas para o leito, manjares delicados
para a mesa, perfumes de boiídoir que não fossem
o do rosmaninho silvestre e da madresilva das sebes
floridas.
Elle chegaria a julgar, talvez, que a sua existên-
cia derivaria toda alli. placidamente. á beira do Tâ-
mega, contente com o amor dedicado e leal. que en-
contrara no coração de Joaquina Pereira.
E. comtudo, a vida amorosa de Camillo começava
apenas ; aquelle sereno idyllio conjugal era o prefa-
cio de um inferno de paixões tempestuosas.
Ambições, quem lh'as dera, fora o próprio sogro,
íascinadopela evidencia social que lhe viria do genro.
A breve trecho Sebastião Martins dos Santos quiz
que Camillo se preparasse para um curso superior.
Desejava-o medico e. para realizar este ideal, não
duvidou affastar Camillo de Friume.
Convinha refrescar o latim que padre António de
Azevedo lhe tinha ensinado, porque o latim era o
prato de resistência entre os poucos preparatórios
então exigidos.
Na Granja Velha, logar da freguezia de Santa Ma-
rinha, do mesmo concelho, havia um pregador e la-
tinista de fama. o Padre-Mestre Manuel Rodrigues
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 31
OU padre Manuel da Lixa. mas a Granja Velha dis-
tava oito kilometros de Friume, mais de légua e
meia. Para todos dias, a caminhada de três léguas,
ida e volta, seria violenta. Por isso Sebastião dos
Santos entendeu por bem arranjar hospedagem aCa-
millo no logar de \'iella. também da freguezia de
Santa Marinha, em casa de Rita Alves. d'onde o es-
tudante mais facilmente poderia ir á Granja Velha.
Só aos domingos e dias santificados tinha elle li-
cença para visitar a mulher em Friume.
Foi Sebastião dos Santos que estragou os seus
mesmos planos de grandeza futura, commettendo a
imprudência de affastar do amoroso ninho de noi-
vado um rapaz de dezeseis annos.
Os laços conjugaes não tiveram tempo de solidi-
ficar. Joaquina Pereira não pôde assegurar a con-
quista do coração de Camillo por uma demorada e
carinhosa convivência. A creança achou-se em liber-
dade como a ave a que mão imprudente abre a porta
da gaiola.
Na Granja Velha deparou-se a Camillo ensejo para
entregar-se ao tracto das musas, que nem sempre
são boas conselheiras. Tanto peor para Joaquina Pe-
reira. O padre Manuel da Lixa tinha, como prega-
dor, certo verniz litterario. e ao passo que admoes-
tava Camillo sobre os perigos da paixão das letras.
32 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
dava-lhe a ler poetas, Garção e TolenLÍno. o que era
contraproducente.
Feita a admoestação e lidos os poetas, a imagem
de Elmena * tornou a apparecer a Camillo. porque
o seu espirito começava a precisar de um ideal fe-
minino, que não podia ser a pobre camponeza já pos-
suída como um livro que. depois de lido, nos saciou
a curiosidade.
« Vivi daquella hora em diante — diz elle — mais
clandestinamente com Apollo. já versejando por conta
de Elmena, já versejando aos passarinhos que can-
tavam nos soutos e olivaes visinhos da janella do
meu pobre quatro. "^»
Comtudo, as cautelas adoptadas por Camilo não
eram tão rigorosas, que o segredo das suas com-
posições métricas fosse apenas conhecido dos pas-
sarinhos, Os condiscípulos de latim aprecia vam-lhe
a facilidade de improvisação, e a fama de poeta es-
palhava-se desde Friume até á Granja Velha.
Foi justamente esta prenda litteraria que levou
Camillo a abandonar precipitadamente o concelho de
Ribeira de Pena.
^ Pseuòónimo com que arcáòicamente foi òesignaòa por
Camilo uma sobrinha òe certo vigário transmontano.
2.4o anoitecer da vida.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 33
<Elle mesmo se constituiu chronista dessa for-
çada emigração :
«N'aquellafreguezia andavam ás más dois irmãos
de fidalga prosápia, á conta do casamento desigual
que um d'elles intentava fazer, contra a vontade do
mais velho. Por parte dos sequazes d*este me foram
pedidos uns versos, em que a noiva menos fidalga e o
apaixonado mancebo fossem chanceados á conta de
me não lembra que antecedencias mui ageitadas á
galhofa métrica. Deu-me soberbas uma incumbência
deste género I Poeta, e de mais a mais requestado
para intervir com minha opinião em casamento tão
fallado nas vinte aldeias circumpostas !
«Escrevi uma folha de papel aimaço em quadras,
que os interessados na publicidade affixaram na porta
da egreja, momentos antes da missa das onze horas.
O boticário, que seguia as partes do morgado, lia
a satyra á populaça, que ria ás escancaras.
«E eu de lado a revêr-me na obra. ea saborear-
me nas alvares cascalhadas do gentio !
«Por um cabello que não fui então martyr do gé-
nio ! A victima crucificada na porta da egreja não
era das que dizem : « Senhor, perdoai ao poeta, que
não sabe as asneiras que diz 1 - Apenas lhe constou
que era eu o instrumento da vingança de seu irmão,
preferiu quebrar o instrumento, e deixar não só o
3
34 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
fidalgo, que também o boticário em paz. Poeta era
eu só naquelle quadrado de dez léguas : avisada-
mente conjecturou o homem que. esganando a musa
que o verberara, abafaria aquelle respiraculo da de-
tracçâo inimiga.
-O padre mestre avisou-me horas antes da es-
pera e da sepultura. Fugi com o magniim Lexicon
debaixo do braço, e com os ossos direitos que
aquella terra ingrata me queria comer, ' »
Abandonando Ribeira de Pena precipitadamente,
como quem foge a um perigo certo. Camillo deixou
alli memoria de duas creancices : o casamento e a
satyra. Que admira, se elle era uma creança de de-
zeseis annos ?
Sob a protecção do sogro, veio para Lisboa, onde
tornaria a ver Amélia ou Celestina, a qual se mos-
traria indifferente á recordação do galanteio infan-
til que ambos haviam entretido.
Lisboa seria a terra escolhida intencionalmente.
talvez por conselho de Sebastião dos Santos, para
que fosse maior a distancia interposta ao auctor da
satyra e ao seu feroz inimigo de Ribeira de Pena.
Mas Camillo não estava habituado á vida da ca-
* Mesma obra, prefácio.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 35
pitai, que lhe fazia saudades da vida dos campos e
dos passarinhos dos soutos e olivaes.
Quando julgou mais acalmada a tempestade que
a satyra desencadeara, foi para o Porto a fim de es-
tudar preparatórios, porque o sogro não tinha desis-
tido ainda de formal-o em medicina.
De repente, num impeto de mocidade irrequieta,
a que a saudade da infância não seria de todo es-
tranha, Camillo emancipou-se da tutella de Sebastião
dos Santos e acoitou-se em Villa Real em casa da
tia D. Rita.
Desde essa hora. o sogro julgou prejudicados to-
dos os seus projectos, e vociferava nos soalheiros de
Friume, especialmente na loja. contra o genro, que
elle próprio havia conduzido imprudentemente.
A victima da cólera de Sebastião era a filha, que
nenhuma culpa tinha nas occorrencias que lhe arran-
caram dos braços o marido.
Mas o pai enfurecia-se quando via no collo de
Joaquina uma creança recemnascida : revelava as-
somos de medonha cólera.
«A pobre rapariga, desejando juntar-se ao marido,
contratou duas mulheres de Friume, para que fos-
sem a Villa Real levar a Camillo uma carta em que
se dizia enferma.
36 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
As duas mensageiras enganaram-na. porque se oc-
cultaram durante alguns dias. findos os quaes ap-
pareceram simulando a resposta de que Camillo não
estava em Villa Real, mas que D. Rita Castello Branco
lhes assegurara que, logo que elle regressasse alli,
lhe entregaria a carta de Joaquina Pereira.
A verdade é que Camillo estava em Villa Real,
e não recebera a mensagem. Apezar de haver en-
contrado um novo idyllio, os factos, que depois se
deram, fazem crer que partiria para Friume se i
carta de Joaquina Pereira lhe houvesse chegado ás
mãos.
Como elle se demorasse em voltar, a filha de Se-
bastião dos Santos alliciou um mensageiro de maior
confiança, Bernardo Alves, para ir a Villa Real com
nova carta.
Adivinha-se facilmente o que essa carta diria.
Fallar-lhe-ia da filhinha, das suas graças infantis, das
cóleras com que Sebastião dos Santos a atormentava.
e da supposta doença, piedosa mentira destinada a
commovêl-o.
Camillo contou a Bernardo Alves os motivos que
tinha para não ir a Friume : receava a brutalidade
do sogro e talvez a vingança da victima da satyra ;
mas romperia por todas essas considerações, se ti-
vesse meios para sustentar a mulher e a filha.
A PRIMEIRA xMULHER DE CAMILO 37
Bernardo Alves contrapoz. certamente, que tudo
se concertaria do melhor modo possível, e Camillo
não duvidou acompanhal-o a Friume.
Avistou-se com a mulher e, reconhecendo que
ella não estava doente, teve uma phrase carinhosa,
que é confessada por uma testemunha presencial :
— Então eu por aqui tão af flicto, e tu de perfeita
saúde ?
Beijou a filhinha, e parece que. graças á inter-
venção de Bernardo Alves, se reconciliou algum tanto
com o sogro, que, sempre desconfiado, o vigiava como
um Argus, procurando evitar a aproximação intima
dos dois casados.
Com.binou-se que Camillo voltaria para o Porto a
continuar os estudos : que. logo que elle se formasse
em medicina, Joaquina Pereira sahiria de casa do
pai para a companhia do marido : e que a filhinha se-
ria entretanto educada num Recolhimento portuense.
Camillo voltou ao Porto, como se combinara.
Não lhe davam noticias de Friume, da mulher nem
da filha, porque Sebastião dos Santos julgou que
desse modo estimularia o amor do genro ao estudo.
Desatados novamente todos os laços de familia.
por imprevidência do sogro. Camillo. feitos no liceu
os exames preparatórios, matriculou-se no 1." anno
38 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
da Escola Medica e na aula de chimica da Acade-
mia Polytechnica em outubro de 1843.
Vivia como estudante pobre num esguio terceira
andar da rua Escura — rua que por este facto e por
um romance de António Coelho Lousada ficou du-
plamente celebre.
Na vida bohemia do Porto, colleccionando namo-
ros colhidos nas trapeiras da rua do Souto e outras
alfurjas, privado de ver a mulher e a filha por im-
posição autoritária do sogro, foi uma creança ás sol-
tas, passou por todas as loucuras próprias da sua
idade.
Elle mesmo o confessa, dizendo: «Eu que des-
cera das penedias transmontanas, perfumadas das
essências das mattas altas, vestidas do rosiclér das
auroras, da purpura vespertina dos crepúsculos, de
moitas de rosmaninhos, e resvalara á sargeta da rua
Escura . . . » ^
Em 1847, Joaquina Pereira adoecera de cam-
bras, ' O pai não avisou Camillo. A pobre rapariga,
cuja dedicação, fortalecida pelo amor da filhinha, tal-
vez tivesse sido capaz de conter a mocidade de Ca-
1 O general Carlos Ribeiro.
- Corrupção provinciana òe <camaras*.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 39
millo se Sebastião dos Santos os deixasse perma-
necer juntos, conheceu que morria e pediu os sa-
cramentos.
A 25 de setembro d'aquelle anno, fallecia. No
dia 27 era sepultada como pobre.
As carpideiras, vizinhas que pranteavam officiosa-
mente, acocoradas numaattitude de ceremonia orien-
tal, ululariam clamores fúnebres em redor do cadá-
ver da mal-casada. até, que o abbade José António
Rodrigues, de sotaina e sobrepeliz, seguido pelos
quatro portadores do esquife parochial e acompa-
nhado pelo mozinho com a caldeira de agua benta,
viria encommendar o corpo,
A pobreza do acompanhamento teve alguma com-
pensação na missa de «corpo presente», que foi can-
tada.
Mas faltaram no funeral aquellas lagrimas, que
não são espremidas pela convenção das carpideiras,
antes nascem do luto de almas saudosas,
Poucos mezes depois morria a filhinha de Joaquina
Pereira.
« Assim desappareceu rapidamente a primeira f a-
milia constituida por Camillo. Pode dizer-se que elle
foi marido e pai sem conhecer os encantos da vida
caseira, porque o não souberam conduzir a essa fe-
licidade, talvez a maior da vida humana.
40 A PRIMEIRA MULHEk Dh CAMILO
Sebastião dos Santos sahiu de Friume, passados
annos. e, sempre aventuroso na ambição, estabele-
ceu uma padaria em S. Cosme ou no Porto, não sei
bem.
Quando Camillo, já libado a D. Anna Plácido, vi-
via na rua do Almada, d'aquella cidade, em um pré-
dio fronteiro ao coUegio Podestá, uma irmã de Joa-
quina Pereira, mocetona de lindas cores e guapo
talhe, ia algumas vezes visitar o cunhado.
D. Anna Plácido não gostava desta visita ; disse-o
uma vez a um parente de Camillo. revelando-lhe as
suas apprehensões. » ^
u . . . informanòo-me òe que seu pae recebia ás vezes
uma cunhaòa òe capote ou capa e lenço, òe cujo nome não
me lembro e que elle requestava ou òe que não desgostava,
mas que vivia no Porto, bem como o sogro, que era pa-
òeiro.* Carta òo sr. conselheiro António ò'Azeve()o Castello
Branco ao visconõe òe S. Miguel òe Seiòe, que a incluiu
no òesvairaòo Protesto contra a supposta filha de Camillo,
etc.
III
A família da noiva
Vão passados dezassete anos desde a publicação
dos Amores de Camilo, e as novas investigações
agora realizadas, cujo resultado não alterou funda-
mentalmente a narrativa que deixo transcrita, vie-
ram proporcionar-me óptimo ensejo de completá-la
com exactas e seguras informações acerca da famí-
lia a que D. Joaquina Pereira França pertenceu.
Mais ainda : Parentes seus, felizmente ainda vi-
vos e residentes no Porto, permitiram-me conhecer
a sua versão sobre o primeiro casamento de Camilo
e os factos que se lhe sucederam, versão com que
nem sempre concordo, mas que vou reproduzir e
comentarei sem malignidade.
Facilmente compreenderá o leitor a razão por que
me antecipo a dizer que esta família prosperou em
condições de vida e fortuna, devidas a casamentos
vantajosos.
42
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
O sogro òe Camilo
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 43
Posto isto. evoquemos genealógicamente os as-
cendentes da linda Quininha. D. Joaquina Pereira
França.
Seu pai, Sebastião Martins dos Santos, era filho
legítimo de José Martins dos Santos e de Helena
Vieira.
Nasceu em Fânzeres. * freguesia do concelho de
Gondomar, em 10 de janeiro de 1810.
Exercia o ofício de alfaiate quando casou com
Maria Pereira França, nascida na freguesia de S.
Cosme, " daquelle mesmo concelho de Gondomar, no
ano de 1806. filha legitima de Manuel Pinto de Cas-
tro e Maria Pereira França.
Suponho que pela mãe pertenceria à família do
padre que depois foi bispo do Porto. D. João de
França Castro e Moura, nascido em S. Cosme
(1804).
Do casamento de Sebastião Martins dos Santos
resultou uma numerosa prole.
Em S. Cosme nasceram :
1 — Joaquina Pereira França, de quem falaremos
oportunamente com especial menção.
^ Seis quilómetros a noroeste òa ciòaòe òo Porto.
~ Oito Quilómetros a noroeste òa ciòaòe òo Porto.
44
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
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A sogra e o sogro ue Camilo
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 45
2 — Vitória Pereira França, que nasceu em 1 83 1 .
Casou com António José Alves, negociante e pro-
prietário no Porto. Ela morreu em 26 de novembro
de 1906. e êle tinha morrido em janeiro de 1890.
Não deixaram descendência.
Por ocasião do cerco do Porto. Sebastião Mar-
tins dos Santos fugiu com a família para Trás-os-
Montes, obtendo procuração dum seu protector para
lhe cobrar algumas rendas em Ribeira de Pena.
Estabeleceu residência no lugar de Friúme, onde
pôs loja de mercearia.
Correndo-lhe bem o negócio, comprou a casa de
habitação e outra contígua, como também umas ter-
ras, tão modestas como as duas casas.
Foi aí, nesse lugar da freguesia do Salvador, que
sua mulher deu à luz mais os seguintes filhos :
3 — Ana Pereira França, que nasceu em 1833
e morreu criança.
4 — Jerónima Pereira França, que nasceu em 1
de março de 1834. Ficando solteira foi. depois da
morte dos pais. viver em companhia de sua irmã
Ermelinda, de quem ao diante falaremos. Faleceu no
Porto, na rua de Cedofeita, no dia 27 de julho de
1913.
5 — António Martins dos Santos, que nasceu em
1837. Foi para o Brasil em 1848, confiado aos
46 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
cuidados de seu tio paterno Agostinho Martins Viei-
ra. ' residente então no Rio de Janeiro.
Ainda vive no Brasil, em Amparo de Barra Mansa,
freguesia da provincia do Rio de Janeiro ; é viuvo e
não tem filhos.
6 — Engrácia Pereira França. Nasceu em 1839.
Casou no Porto com Torcato José Pereira, proprie-
tário, falecido em agosto de 1911. Tem uma filha.
D. Rosa Pereira França do Amaral, que foi casada
com António Pereira do Amaral, falecido em novem-
bro de 1908, Deste casamento ficaram seis filhos,
que são todos vivos e residem no Porto, rua da Cons-
tituição, vila Torcato.
7 — Salvador Martins dos Santos. Nasceu em
1841. Convidado por seu irmão António, foi para
o Brasil mas, não se dando bem com o clima, vol-
tou doente a Portugal, onde faleceu aos dezanove
-anos de idade.
8 — Ermelinda Martins dos Santos Castro. Nas-
ceu em 23 de julho de 1843. Casou no Porto em
1859 com José Maria de Castro, negociante e pro-
prietário. Ela faleceu em 17 de junho de 1909 e
' Este Agostinho Martins Vieira foi pai òe Tomás Martins
Vieira, general reformaòo, que vive no Porto.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 47
êle em 19 de dezembro de 1915. Tiveram os fi-
lhos seguintes : ^
(a) — D. Maria da Conceição dos Santos Castro.
Nasceu no Porto em 2 de março de 1860. Vive na
mesma cidade.
(b) — D. Vitória Rosa dos Santos Castro Dias. Nas-
ceu no Porto em 29 de maio de 1866. Casou com
o dr. Manuel Fernandes Dias. médico e proprietário
em Vila Nova de Cerveira, falecido a 9 de setem-
bro de 1915, com quarenta e quatro anos de idade.
D. Vitória continua residindo em Cerveira, com uma
filha. D. Maria Isabel.
(c) — António dos Santos Castro. Nasceu no
Porto em 1 1 de maio de 1868. Frequentava o quinto
ano de engenharia na antiga Academia Politécnica
quando faleceu em 13 de fevereiro de 1893.
(d) — D. Engrácia dos Santos Castro. Nasceu no
Porto em 17 de maio de 1872. Vive e é religiosa
professa nas Franciscanas de Calais (França).
(e) — Avelino de Castro Martins. Nasceu no
Porto em 1 1 de agosto de 1876. Fez o curso de
preparatórios pa^a medicina na Academia Politécni-
ca, é professor de ensino secundário e do instituto
' Além òe outros que morreram na puerícia.
48 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
de surdos-mudos «Araújo Porto." Casou em 1902
com D. Maria Adelaide Malheiro Dias : deste casa-
mento provieram seis filhos. E' viuvo, e vive no
Porto, na rua de Cedofeita. 589.
ffj ~ D. Cristina dos Santos Castro. Nasceu no
Porto em 30 de novembro de 1878. Vive também
na rua de Cedofeita.
9 — Ana Pereira França. Nasceu em 1845 e
morreu de tenra idade.
10 — Tomásia Pereira França. Nasceu aos 20
de maio de 1847.
E' conhecida na íntegra a certidão de baptismo
desta cunhada de Camilo. ' Foram seus padrinhos
Tomás Martins e Joaquim Pinto da França, tio da
baptizada.
Desde já diremos os motivos que levaram o sr.
dr. Maximiano Lemos a obter e publicar aquple do-
cumento.
Camilo, na 5.'' «Novella do Minho», que se inti-
tula O filho natural evocou a figura dum homem
com quem tinha mantido relações de amizade em
Friííme.
» Arquivos de História da Medicina Portuguesa, n.° 1 òo
7." ano (1916).
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 49
Era o farmacêutico Macário Afonso (nome autên-
tico) o qual ensinara Camilo a jogar o gamão e as
damas. ^
Foi a saudade de Friííme. ou. mais propriamente,
a saudade de Quininha. que na memória do roman-
cista aviventou a imagem do boticário, porque, segun-
do as interessantes investigações do sr. dr. Maxi-
miano Lemos, na acção da novela O filho natural
não se reconhece como verdade documentada senão
a existência de Macário Afonso.
Este boticário teve mais duma filha, teve qua-
tro, dlêm dum filho : nenhuma das filhas se chamou
Tomásia como a heroína da novela.
0 sr. dr. Maximiano Lemos lembra que uma
das irmãs de Joaquina Pereira recebera o nome de
Tomásia, podendo assim inferir-se que este nome
ocorresse a Camilo por associação de ideias correla-
tivas a Friúme, Eis a razão por que publicou a cer-
tidão do baptismo de Tomásia Pereira França.
Mas, discreto pesquisador, conclue dizendo : -Se-
ria arriscar muito supò-la a heroina do romance (O
filho natural) atribuído à filha de Macário.»
E era, porque Tomásia. irmã de Quininha. viveu
pouco tempo.
1 o filho natural, 1." parte, pag. 28.
50 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Sebastião Martins dos Santos, por insinuação dos
parentes que ele e a mulher tinham no concelho de
Gondomar, desfez a sua casa em Friííme e veio es-
tabelecer residência no Porto, junto ao Padrão de
Campanhã, onde nasceu a sua filha ;
11 — Rosa Pereira França, em 1849. Esta ca-
sou com Francisco Teixeira Lopes, que teve um
café defronte da estação das Devesas (hoje estação
de Gaia) estabelecendo mais tarde uma padaria, que
se denominava «de S. José», na rua Chã. e que ele
trespassou para ir tomar conta do restaurante da Es-
tação de Campanhã, quando o caminho de ferro do
norte se ligou com o do sul pela ponte Maria Pia em
1877.
Do casamento de Rosa Pereira França com Fran
cisco Teixeira Lopes nasceu em 1879 um filho. An-
tónio dos Santos Lopes, o qual casou com D. Lu-
cinda Barroso, rica proprietária em Viseu, cidade
onde êle foi vitimado pela tuberculose em 1902,
Teixeira Lopes faleceu em 1895 e sua mulher
em 1900.
Esta irmã de Quininha era a que visitava Camilo
Castelo Branco no Porto, não sem desgosto de D. Ana
Plácido, como referiu António de Azevedo. '
1 Os jnio^es de (^atnilo, pg. 87, nota.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 51
Rosa Pereira França
e seu mariòo Francisco Teixeira Lopes
52 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
E foi O seu retrato, que inesperadamente me che-
gou às mãos, a origem das longas investigações que
promovi para conhecer melhor toda a família de D,
Joaquina Pereira.
Vamos à história do retrato.
Certo dia recebi pelo correio uma carta e uma
fotografia que me eram enviadas pelo sr. Carlos
Duarte Amaral, portuense residente perto de Lis-
boa, na Amadora, e fervoroso camilianista, que eu
aliás não tinha ainda a honra de conhecer.
Na sua amabílissima carta, o sr. Amaral expli-
cava gentilmente a oferta da fotografia dizendo :
«Para V. ver que as suas Informações foram
boas ^ e que realmente era mocetona de lindas co-
res e guapo talhe, ahí remetto a reproducção d' uma
photographia quando ella contava 45 annos».
As informações a que o sr. Amaral se refere ti-
nha-as eu recebido outrora de origem fidedigna, bem
como as que diziam respeito a Joaquina Pereira
França.
Contava-me o sr. Amaral que, aos dez anos de
idade, quando seu pai era chefe do movimento do
caminho de ferro do Minho e Doure, conhecera D.
Us amores de Camilo, pg. 87.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
53
Rosa Pereira França, cunhaòa òe Camilo
(Segunòo a fotografia ofereciòa pelo sr. Carlos
Duarte Amaral)
54 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Rosa Pereira França, cujo marido explorava nessa
época o restaurante da Estação de Campanhã ; acres-
centava que D. Rosa era uma boa criatura que o rega-
lava com guloseimas e alguns patacos para com-
prar peões : finalmente, dizia conservar muito viva
a memória desse período da sua infância, graças
às frequentes dádivas que D. Rosa lhe prodigali-
zava.
Quando eu vi plenamente confirmadas pelo re-
trato dela as minhas anteriores informações, reno-
vei diligências para saber se existiria algum retrato
de Quininha. que. segundo essas mesmas informa-
ções, devia ter sido mulher de bela plástica, sadia
e forte como sua irmã Rosa.
Retrato da primeira mulher de Camilo não apa-
receu nenhum ; não existe, segundo afirmam paren-
tes, que. todavia, dizem saber por tradição que Joa-
quina se parecia muito com Rosa.
Então suspeitei que nas outras cunhadas do ro-
mancista prevalecesse o mesmo tipo de família, que
todos elas fossem bonitas mulheres, de formas opu-
lentas, feições não direi delicadas, mas simpá-
ticas, cabello farto, olhos expressivos de bondade
atraente.
Foi ainda o sr. Carlos Duarte Amaral quem. com
a maior dedicação, procurou e obteve no Porto, por
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 55
favor do sr. Avelino de Castro Martins. ' filho de D.
Ermelinda, as indicações genealógicas e biográfi-
cas, assim como os retratos, que reproduzo nesta
monografia, e constituem um achado felicíssimo,
como raras vezes acontece.
Fomos autorizados a tirar cópias das fotografias,
cavalheirosamente confiadas ao sr. Amaral : e alem
de completas informações genealógicas e biográficas,
recolhemos a interessante versão de família sobre o
infeliz casamento de Joaquina Pereira.
Assim é que podemos dar o retrato dos sogros
de Camilo, o de D. Rosa com o marido, e o grupo
das irmãs e irmão de Quininha.
Observando este grupo verá o leitor que a mi-
nha suspeita não foi errónea, porque as cunhadas de
Camilo, conquanto já não estivessem na mocidade
quando se fotografaram, mostram ter sido guapas
mulheres e conservar o tipo feminino de familia, her-
dado da mãe, sucedendo que D. Jerónima, cujas fei-
ções eram mais finas, foi a liaica que morreu sol-
teira.
Seu irmão, António Martins dos Santos, o qual
' Relembrarei que este cavalheiro resiòeno Porto, rua òe
Ceòofeita n." 589.
Para que não haja òúviòas
56
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Cunhaòas e cunhaòo òe Camilo
Da esqueròa para a òireita : Rosa, Jerónima, Vitória,
António, Ermelinòa e hngrácia
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 57
veio à pátria em 1881. 1897 e 1902. sempre acom-
panhado pela esposa. D. Maria Luisa dos Santos, era
também, na época do retrato, um homem bem pare-
cido.
Hoje, além dos desgostos que depois o acabru-
nharam porque perdeu os seus maiores haveres num
krach do café como sócio da firma comercial Ma-
chado Guimarães — Horta — Santos & C.^. deve
avergá-lo o peso da extrema velhice — quase oitenta
anos de idade.
O pai. quando saiu de Friííme com a família, em-
pregou-se no Porto como caixeiro em casa de José
Magalhães, posteriormente em casa de José Ehlers
e, por ultimo, tendo-lhe dado crédito o negociante de
trigo José Paulo, montou uma padaria na rua do Sol,
Daii mudou, com o mesmo negócio, para a rua de
Trás, sendo aí melhor sucedido, mas como a casa
fosse pequena e êle quisesse sentar algumas vezes
à sua mesa toda a família, transferiu-se para a rua
Chã, contra a opinião sensata da mulher, que se
desgostou a ponto de ter estado doente, não sem al-
guma gravidade.
Foi na casa da rua Chã que Sebastião Martins
dos Santos faleceu, repentinamente, muito contrito.,
nos braços de sua filha Jerónima. aos 23 desetem
o de 1871.
58 A I RIMEIRA MULHER DE CAMILO
A mulher, Maria Pereira França, sobreviveu-lhe
dois anos e alguns meses, expirando no dia 6 de
fevereiro de 1874.
Agora, antes de fazer especial menção de Quini-
nha, revocaremos a tradição de família no que ela
tem de comum ao pai e à filha.
Sebastião Martins dos Santos — dizem os seus
descendentes — era homem inteligente e honrado,
tinha alguma instrução e gostava muito de lêr. sendo
a Bíblia o seu livro predilecto.
Quando Camilo apareceu em Friííme. admirou-lhe
a inteligência, afeiçou-se-lhe e planeou protegê-lo en-
caminhando-o à vida eclesiástica. Com este fim lhe
propôs que fosse aperfeiçoar-se em latim com o pa-
dre Manuel da Lixa. morador na Granja Velha, pron-
tificando-se a pagar todas as despesas.
Mas entretanto Camilo enamorára-se da filha mais
velha de Sebastião Martins dos Santos, renunciando
ao sacerdócio.
Fez-se o casamento, sem que de nenhum modo
concorresse para êle a ideia de que o jovem Camilo
pudesse vir a receber uma grande herança como a
atoarda ingénua dos camponeses apregoava.
Ele sabia muito bem. diz a família, que não era
assim : que o genro nem herdara, nem tinha a her-
dar.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 59
Neste ponto estamos de acordo. Sebastião Mar-
tins dos Santos facilmente poderia saber, com segu-
rança, as circunstâncias financeiras em que se en-
contrava Camilo.
Mas o que é certo é que o casamento o conten-
tou, porque reconhecia que o genro, ainda que sem
bens de fortuna, poderia, pela sua inteligência, ter
um futuro brilhante.
Foi o próprio Camilo que então alvitrou a carreira
a seguir : queria ser médico.
Era uma sugestão vinda do exemplo dado pela
família Azevedo, da Samardan : não podendo ser sa-
cerdote como padre António, pois já tinha casado,
desejava fazer o curso de medicina como o cunhado,
irmão do padre.
Sebastião Martins dos Santos anuiu, e mandou
Camilo para o Porto estabelecendo-lhe a mesada de
duas libras.
Mas, imprevidentemente, deixou-o ir entregue
a si mesmo, em plena liberdade dos seus ver-
des anos, para uma cidade onde os perigos da ten-
tação eram muito maiores do que na aldeia de
Friííme.
O sogro deveria ter aconselhado que a filha acom-
panhasse o marido, porque o amor. quando sincero
como o de Quininha, não é só pródigo de afectos que
60 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
vencem pelo carinho, mas também exerce uma suave
acção educativa e moderadora.
Camilo submeter-se-ia docilmente a esse terno ju-
go ; assim no-lo faz crer o facto de êle ir passar as férias
em Friííme junto da mulher, facto que os descenden-
tes de Sebastião Martins dos Santos aliás confirmam.
Quininha era uma criança — logo diremos a sua
idade — mas sobejavam-lhe graças e virtudes que
prolongassem o encanto da vida doméstica, além de
que, toda a mulher dedicada tem o instinto dos seus
direitos conjugais e do processo de os defender por
si mesma.
Todavia, no Porto. Camilo não descurou absoluta-
mente os estudos preparatórios para o curso médico-
porque no dia 12 de outubro de 1843 fazia exames
de gramática e lingua latina, obtendo aprovação uná.
nime, némine discrepante como então se dizia, e de
gramática e lingua francesa, sem maior classifica-
ção que a de simpLíciter.
No dia 1 3 era examinado em filosofia racional e
moral, sendo classificado do mesmo modo que no
exame de francês. '
' A investigação õêstes exames liceais pertence ao sr. òr.
Maximiano Lemos lArq. de Hist. da Medicina Portuguesa;,
n/' 1, òo 1." ano (1916).
A PRI VIEIRA MULHER DE CAMIL^ 61
Desde esse dia, Camilo ficava legalmente habi-
litado a matricular-se na Escola Médica, e assim fez
no dia 16. '
Apresentando certidão de o ter feito, foi admitido,
na Academia Politécnica, à matrícula na aula de quí-
mica, porque esta disciplina, para o efeito da ma-
trícula, das propinas e da frequência, estava englo-
bada no l."" ano da Escola Médica i anatomia . do
mesmo modo que zoologia e botânica o estavam no
2." ano (fisiologia e higiene).
O curso de medicina fazia-se com deminuta des-
pesa no respeitante aos encargos propriamente es-
colares. A abertura de matrícula em cada ano da Es-
cola custava 9 $600 réis (duas moedas) e o encerra-
mento igual quantia. A carta de formatura importava
em 14$000 réis, e os emolumentos de secretaria
eram modestos.
'O Decreto òe 29 òe òezembro òe 1836 exigia, para a
matrícula nas Escolas Méòicas òe Lisboa e Porto, certiòão
òe iòaòe òe 14 anos e òos exames òas quatro primeiras ca-
òeiras e òa sexta òo curso òos liceus. (Eram as òe portu-
guês, latim, francês, inglês, iòeologia, gramática geral e ló-
gica, moral universal, geografia, cronologia, e história). Mas
estabelecia um períoòo transitório em que seria permitiòa
a matrícula pelos regulamentos anteriores até cinco anos
òepois òe estarem regularmente estabeieciòos os liceus òis-
62 A PRlMtlRA MULHER DE CAMILO
Pode calcular-se que. no fim do seu curso, o alu-
no pouco mais de cento e dez mil réis teria pago ao
Estado.
E quanto ao que então se chamava «o passadio»,
a vida dos estudantes no Porto era muito favorecida
pela modicidade dos géneros alimentícios e do alu-
guer das casas.
Mas compreende-se que da mesada de duas libras
pouco ou nada sobejasse a Camilo para as suas pa-
tuscadas de rapaz. Não admira, pois. que fizesse al-
gumas dívidas, as quais não podiam ser grandes por
falta de crédito ou penhor. E aos dezoito anos tam-
bém não admira que. além de dívidas, fizesse rapa-
zices. gratuitas ou pouco dispendiosas.
Sebastião Martins dos Santos, mediante informa-
ções mais ou menos certas, veio a sabê-lo e nas fé-
rias, em Friííme, repreendeu severamente o genro,
que num momento de desespero bradou á mulher :
tritais. Ora o regulamento òe 23 òe abril òe 1840 manteve
ainòa o períoòo transitório e especificou como preparató-
rios para a referida matrícula a língua latina e a lógica. Por-
tanto, Camilo requerera voluntariamente o exame òe fran-
cês, língua òe que já tinha começaòo a aprenòer a gramática
na Samaròan Seroer.v òe 5. Miguel de Se:de, III, pag. 76\
com paòre António òe Azeveòo (carta-òeòicatória no ro-
mance O bem e o mal).
A PRIMEIIA MULHER DE CAMILO 63
— A minha vontade era arrasar estas paredes.
O sogro ouviu isto. expulsou Camilo e disse á fi-
lha que esquecesse para sempre o marido ou então
que fosse viver com êle : querendo ir. que nunca mais
lhe chamasse pai nem lhe tornasse a aparecer.
Em geral são os velhos que. pela sua experiên-
cia, moderação e serenidade, aplacam as tempesta-
des domésticas. Mas não aconteceu assim em casa
de Sebastião Martins dos Santos, conquanto êle fosse
homem de bons sentimentos e inteligente. Faltava-
Ihe, porem, a serenidade indispensável no homem
que tem de perdoar e dirigir : digo perdoar, porque
muitas vezes, quase sempre, perdoar é dirigir pelo
exemplo e pela mansidão.
Estas minhas considerações discordam, até certo
ponto, dos apontamentos que constituem uma ver-
são de família.
Sinto que seja assim, mas são os próprios factos
que autorizam a minha maneira de vêr.
Sigámo-los. pois.
(^Camilo, depois do rompimento com o sogro, es-
queceu, desprezou sua mulher? Não. Por aqueles
mesmos apontamentos soube o sr. Carlos Amaral
que o cunhado de Camilo, ainda hoje residente no
Brasil, dissera um dia ao pai. como criança incons-
ciente que então era. ter visto a Quininha ir escon-
64 A PRIMEIRA MULHhR l'E CAMILO
der um embrulho no forro do tecto. Penalizava-o ter
revelado este segredo, que surpreendera e denun-
ciara sem prever as suas possíveis consequências.
Sebastião Martins dos Santos foi ao esconderijo
e examinou o embrulho.
Eram cartas de Camilo, recebidas a ocultas, pela
saudosa Quininha.
Portanto. Camilo não esquecera nem desprezara
a sua linda mulher, depois que o sogro o banira da
casa de Friííme.
Muito initado. Sebastião Martins dos Santos cas-
tigou asperamente a filha, que continuou a ver-se
torturada num dilema atroz, não ousando abandonar
o pai para ir viver com o marido.
E, contudo, aquele maço de cartas bem poderia
ter sido uma óptima ponte de recíproca transigência
por onde Camilo corresse a lançar-se nos braços de
sua infeliz mulher, tão sofredora e submissa, pobre
criança sem ventura.
Criança, sim.
l Sabe o leitor a idade de Quininha quando, em
Ribeira de Pena. casou com Camilo Ferreira Bote-
lho Castelo Branco no dia 18 de agosto de 1841?
Pois fique desde já sabendo que era ainda mais
nova do que Camilo.
Não perfizera quinze anos.
A PRIMEIRA ?vlLLHER DE CAMILO 65
Di-lo O seguinte documento, que pela primeira
vez trago a lume :
Américo Jazelino Dias da Costa. Bacharel for-
mado em Direito pela Universidade de Coimbra e
Oficial do Registo Civil do Concelho de Gondo-
mar:
Certifico que do livro competente de registos,
existente na Repartição a meu cargo, a folhas du-
zentos setenta e cinco verso consta um do teor se-
guinte ; — « Joaquina filha legitima de Sebastião Mar-
tins dos Santos e Maria Pereira de França do lugar
do Taralhão da freguesia de Sam Cosme de Gondo-
mar, Bispado do Porto. Neta paterna de José Mar-
tins dos Santos, e de Elena Martins. E materna de
Manuel Pinto de Castro, e de Maria Pereira de França.
Nasceu a vinte e três de Novembro de mil e oito-
centos e vinte e seis, foi na Igreja desta freguesia
batisada pelo Padre José Martins de minha licença
no dia vinte e cinco do dito mês e ano tocou a criança
na Pia Batismal o dito José Martins dos Santos por
procuração de António Francisco Monteiro Guima-
rães, e Madrinha foi Joaquina Vieira Pinto fiz este
assento. O Reverendo (?) Manuel Martins. Sebastião
Martins dos Santos. De José M (lugar do sinal de
criís artins dos Santos.
55 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Nada mais consta do referido assento que fiel-
mente fica trasladado.
Gondomar e Repartição do Registo Civil em 3 de
Junho de 1916 e dezasseis.
O Oficial, Américo Jazelíno Dias da Costa.
Camilo, no Amor de perdição, comenta ironica-
mente o amor da mulher aos quinze anos, mas é
essa a idade que atribue a Teresa de Albuquerque,
cujo amor ele pintou leal e constante.
Teresa de Albuquerque não teve existência real,
quem existiu de facto foi Joaquina Pereira França,
que desde os quinze anos — Camilo bem o sabia —
amou com ternura e perseverança o mesmo homem.
E' ela, pois, que personaliza a excepção se hou-
vermos de generalizar como verdadeira a inconstân-
cia feminina aos quinze anos.
Bem cedo madrugou em Quininha a mulher es-
piritual, a mulher de coração e caracter.
Ao mesmo passo, também precocemente, o seu
corpo havia atingido um desenvolvimento em que já
floresciam exuberantemente os encantos da nubili-
dade.
Lembre-se o leitor do rápido retrato que deixei
esboçado em poucas palavras nos Amores de Ca-
milo :
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 67
-K Forte e sadia, reforçada, de peitos altos, esta-
tura regular ; nas faces morenas, um clarão de inge-
nuidade alegre, de bondade expansiva.»
E se o leitor fôr tão meticuloso que se não con-
tente apenas com palavras, julgue a figura de Joa-
quina Pereira França pelo retrato de sua irmã Rosa,
que tem presente nesta monografia, pois que os pa-
rentes afirmam que as duas irmãs eram muito pa-
recidas.
O casamento duma rapariga de 1 5 anos com um
rapaz de 16, ambos pobres, consentido pelas respe-
ctivas famílias, presupõe circunstâncias imperiosas.
Não tardarão momento em que esta conjectura trans-
pareça em maior vulto. Mas pelo casamento se con-
segue a liquidação legal de todas as responsabilida-
des e desvarios do amor. E o casamento católico
era, além de um pacto autorizado pelo Direito Civil,
uma purificadora benção do Céu. um sacramento da
^Santa Madre Igreja.» como sempre disseram nos-
sos pais.
A linda, a bondosa O fininha deu a Camilo uma
filha, nascida a 25 de agosto de 1843. em Friííme.
a qual foi baptizada quatro dias depois na paroquial
do Salvador, sendo padrinho seu avô, Sebastião Mar-
tins dos Santos, e madrinha sua tia Vitória.
A criança recebeu o nome de Rosa.
68 A f RIMEIRA y.ULHtR DE CAMILO
Não me esquivarei a reproduzir na íntegra a cer-
tidão de idade :
^Certifico, para effeito literário, que num livro de
baptismos desta freguesia existe o assento seguinte :
<<Roza, filha legitima de Camillo Ferreira Bote-
lho Castello Branco e Joaquina Pereira França, do
lugar de Friume, desta freguesia do Salvador de Ri-
beira de Pena. Necta paterna de Manuel Joaquim
Botelho Castello Branco e Jacinta Rosa Almeida do
Espirito Santo, da cidade de Lisboa, e Materna de Se-
bastião Martins dos Santos e Maria Pereira de França,
do lugar de Friume. Nasceu aos quinze, digo. vinte e
cinco, 25. e foi baptisada solemnemente com a im-
posição dos Santos Óleos, aos vinte e nove do mez
de agosto de mil oitocentos e quarenta e três : foram
padrinhos seu avô, Sebastião Martins dos Santos e
sua filha Victoria França, todos do lugar de Friume
desta freguesia do Salvador de Ribeira de Pena. E
para constar fiz este termo. Era ut supra. Na ausên-
cia do Parocho, o P.® Manuel Balthazar Giz. E' co-
pia fiel do original.
Salvador de Ribeira de Pena 1 de junho de 1915.
O Parocho, Álvaro Augusto de Carv ciUi o Pimenta, y-
Ao parto de Quininha sobrevieram abcessos do
A PRIMEIPA MULHIiR DE CAMILO 69
seio, que impediram a amamentação, facto aliás vul.
£ar nas primíparas.
Mas a sogra de Camilo, que tinha dado à luz re-
centemente mais uma filha. * criou ao seu peito tanto
a filha como a neta.
Este é que não é um facto vulgar.
Em .verdade há muito de extraordinário no pri-
meiro casamento de Camilo, rodeam-no circunstân-
cias inverosimilmente romanescas, relances de ma-
ravilhoso, próprios de contos fantásticos, em breve
perturbados por uma conflituosa e banal realidade.
Assim, pois. o nascimento da filha, contra o que
se devia esperar, não melhorou a sorte dos cônjuges,
nem modificou a atitude do sogro de Camilo,
As informações colhidas no Porto pelo sr. Carlos
Amaral são omissas quanto aos factos que decorre-
ram desde o nascimento de Rosa até à morte da
mãe.
Mas o Romance do romancista e os Amores cie
Camiio, baseados nos apontamentos que em 1889
recebi de Ribeira de Pena. dizem que Joaquina Pe-
reira França procurara insistentemente atrair a Friú-
me o marido : que ele cedera e fora ali vêr e beijar
a filhinha, sendo vigiado sempre pelo sogro para evi-
1 Ermelinòa, nasciòa a 23 òe julho òe 1843.
70 A PRTMPTKA MULHER DE CAJíILO
tar uma aproximação íntima entre marido e muliíer ;
que, finalmente, estes combinaram entre si juntar-se
no Porto quando Camilo tivesse concluído a forma-
tura em medicina.
Era uma esperança a longo prazo e devia ser a
mais falaz das ilusões.
Banido de Friííme, Camilo ia passar as férias com
sua tia D. Rita em Vila Real e foi aí que se enu"
morou de Patrícia Emília do Carmo, fugindo ambos
para o Porto, onde foram presos.
Este facto escandaloso tivera grande notoriedade
e é provável que Joaquina Pereira França o soubesse
em Ribeira de Pena.
Pode imaginar-se a sua imensa amargura, o seu
grande desalento ; as lágrimas que choraria, a ocul-
tas do pai, quando beijava ternamente as faces ro-
sadas da sua filhinha.
Como Penélope, esperava leal e saudosamente o
marido errante, pensando nele dia e noite, mas a teia
do seu tear era tecida de farrapos do coração dilace-
rado e, se em cada alvorada a recomeçava, em cada
ocaso a desfazia, vendo que o marido não voltava.
Mais que uma doença acidental foi este cruciante
desgosto, recalcado no imo peito, que matou a des-
ditosa Quininha. Morta vivera éla o último ano de
sua vida.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 71
A certidão de óbito é dum laconismo e secura,
que repugnam. Oculta-se o nome do marido e até o
dos pais e não se declara que fosse enterrada dentro
da igreja, mas fica-se sabendo que fora lançada à
sepultara como pobre.
Eis o teor desse miserando documento ;
«Joaquina, rasada, do logar de Friume e fregue-
zia do Salvador de Ribeira de Pena. falleceu com to-
dos os sacramentos em dia vinte e cinco e foi se-
pultada aos vinte e sete de Setembro de mit oito-
centos e quarenta e sete, foi sepultada como pobre,
nada teve, e para constar fiz este termo, Era iit su-
pra. O Parocho José António Rodrigues. Nota à
margem: Friume. Teve missa cantada.» *
A mais vil das mulheres não seria registada no
obituário paroquial em termos mais degradantes.
Que infortunados vinte anos !
E, contudo, D. Joaquina Pereira França Castelo
Branco tinha sido filha respeitosa e submissa, esposa
dedicada e fiel, mãe carinhosa e exemplar.
Choraram-na os pobres, gratos à piedade com que
os esmolava.
^ O Romance do romancista, pg. 49.
72 A PRI\dElRA MULHER DE CAMILO
Camilo não foi chamado a Friííme. e por isso se
agravou talvez o seu ressentimento contra o sogro,
pois que as informações de família, tais como foram
colhidas, nos contam os seguintes factos :
-Camilo, depois da morte da mulher, para arre-
liar o sogro, dizia a toda a gente que havia de ir bus-
car a filha para a sua companhia. Mas a Rosita.
quando lhe diziam isto, agarrava-se ao pescoço do
avó e pedia-lhe que fugisse com ela e a escondesse.
Era grande o amor dos avós pela neta, a ponto
de Sebastião Martins dos Santos dizer que prefe-
ria que Deus lha levasse a ter que entregá-la ao
pai. ->
E morta a viu bem depressa, porque a pobre
criança apenas sobreviveu à mãe cinco meses e al-
guns dias.
«Certifico, para effeito literário, que num livro
dos óbitos do registo parochial desta freguesia existe
o assento seguinte :
«Roza. filha legitima de Camillo Ferreira Botelho
Castello Branco e Joaquina Pereira França, menor
de cinco annos de idade, do lugar de Friíime, desta
freguesia do Salvador de Ribeira de Pena, falleceu
no dia dez e foi sepultada, dentro da Egreja. dia onze
de março de mil oitocentos e quarenta e oito. do que
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 73
fiz este termo. Era ut supra. Na ausência do Abb.^
— O P.' Domingos J/ Giz. »
E" copia fiel do original. Salvador de Ribeira de
Pena 1 de junho de 1915.
O Parocho. Álvaro Augusto de Carvalho Pimenta.-
Et Rose, elle a vécu ce que vivent ies roses. . .
Mas. se não tivesse morrido em tenra idade, creio
bem que o romancista a iria buscar a Friúme. não
por acinte ao sogro, mas para ser educada no Porto.
z, sobretudo, para êle mesmo dulcificar no afecto
à filha a amarga saudade da mãe,
E esse seria o caso. aliás vulgar, em que os bei-
jos dados aos filhos levam doloridas confissões dum
passado inconfessável. -
l Ficou a família de Sebastião Martins dos San-
tos a odiar Camilo ? Não. certamente porque o não
responsabilizou pelos factos que a fatalidade de in-
felizes destinos encadeou terrivelmente.
Sabemos que D. Rosa Pereira França, cunhada
de Camilo, o visitava no Porto, quando êle era já
um escritor insigne.
E. pelas informações de família, sabemos também
que o sr, António Martins dos Santos, vindo do Bra-
sil a Portugal, pela primeira vez. em 1881. fora a
S, Miguel de Seide para visitar seu cunhado, que
74 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
muito admirava, e que o romancista, «talvez receo-
so,» se negou, apesar de ter sido visto à janela.
Receoso, sim, mas de, num momento de expan-
são sincera, confessar em voz alta o segredo da sua
amargura íntim^a.
O grande escritor nem sequer poderia reconhecer
o sr. António Martins dos Santos, se o viu da ja-
nela, porque o irmão de Quininha tinha quatro anos
de idade no tempo em que Camilo casou e não mais
de onze quando foi para o Brasil.
Aqui fica exarada em todos os pormenores a tra-
dição de família.
Agora pouco mais.
No Romance do romancista (pag. 118) incluí
uma fotografia da casa de Camilo e Joaquina Pe-
reira em Friííme.
Tinha-me sido cativantemente enviada, a meu pe-
dido, por uma respeitabilíssima pessoa de Ribeira de
Pena.
Durante vinte e tantos anos ninguém, que me
conste, impugnou que fosse aquela a casa autêntica
onde os noivos residiram.
Mas informações recentes e autorizadas vieram
afirmar-me ser outra a casa que devia ter sido foto-
grafada.
Estas informações surpreenderam-me, contudo a
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
75
76 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
autoridade da sua orioem abonava-as como verídicas,
e por isso solicitei qualquer desenho, um simples es-
boço, se não pudesse ser uma reprodução fotográ-
fica.
O sr, padre Álvaro Pimenta, digno pároco da fre-
guesia do Salvador em Ribeira de Pena. prontamente
satisfez a minha solicitação.
A casa de Camilo e a do sogro são contíguas,
mas sem nenhuma comunicação interior, e com en-
tradas independentes.
Especializemos a de Camilo, que tema frente uma
cancela, um muro e o quinteiro, separados da es-
trada ^ cerca de três metros.
E' humilde, muito aldeão, o seu aspecto. Não lhe
falta a tradicional varanda de madeira, tão portu-
guesa, tão vulgar em todo o país. mormente nas pro-
víncias do norte.
Devemos supor que a linda Quininha teria a sua
varanda bem florida de amores-perf eitos e cravos,
a sorrirem a alegria duma habitação de noivos nas
lânguidas m.anhãs do noivado.
A dentro da cancela alguns degraus de pedra dão
ingresso para a cozinha, ficando à direita a varan-
' Era a antiga estraòa que seguia para Vila Pouca e Cha-
ves.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
77
78 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
da, cuja porta comunica com um sobrado, imediato
á cozinha.
Eis tudo.
Nos baixos da casa avultam, com alguma galhar-
dia, duas portas, que são das cortes, noíe-se. boas
cortes, segundo o critério económico das aldeias,
onde o gado é um valor mais cotado que o ho-
mem.
Camilo e Quininha tiveram uma criadita, Maria
Rita Machado, que ainda existe nouagenária, com-
pletamente desmemoriada, e residente na casa ha-
bitada outrora por Sebastião Martins dos Santos.
Na casa em que morou Camilo mora hoje uma
pobre mulher de nome Ana Lopes.
O actual proprietário da casa é o médico sr. dr.
Bento Augusto de Andrade e parece que tem pen-
sado em demoli-la porque lhe tira a vista do próxi-
mo largo, «ponto principal da povoação», segundo
me informam,
Sequer ao menos Camilo, ainda que em modes-
tíssima casa, habitava no Chiado ' de Friúme. Mí-
sera compensação, , .
E o sogro, que tinha a sua tenda na casa contí-
^ Permita-se esta inocente ironia, porque o largo não tem
nome algum, nem o tem a ruaestraòa.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 79
gua, a mesma onde residia, mostrou tino comercial
na escolha do lu£ar.
Ambas as casas as adquirira êle.
As duas fotografias, que deixo aqui reproduzidas,
representam, pois, com interessantes pormenores,
toda a exteriorização do tugúrio autêntico onde Ca-
milo se domiciliou em Friúme. '
Faço ardentes votos pela conservação desse his-
tórico pardieiro, no qual, também, nasceu e morreu
a efémera Rosinha e expirou sua mãe. D. Joa-
quina Pereira França Castelo Branco, primeira mu-
lher legítima do preclaro escritor, obscura rapariga,
cuja imagem viveu oculta no coração de Camilo, onde
é preciso ir procurá-la através duma neblina de sau-
' Ouero Õizer, a respeito òe outro çrediu camilicino. que
o sr. Peòro òe Azeveòo, òescobrinòo que Manuel Joaquim
Botelho Castelo Branco resiòira algum tempo na casa que,
em Lisboa, torneja, ao ociòente, òa rua òa Oliveira para o
Largo òo Carmo, chegou a suspeitar que tivesse ali nasciòo
Camilo: ao que eu contrapus que sempre Camilo me afirmara
terem-lhe oito que nasceu na casa òo Largo òo Carmo, onòe
vemos hoje a lápiòe comemorativa ; conquanto o romancista
se lembrasse vagamente òe haver resiòiòo cem o pai no
referiòo préòio òa rua òa Oliveira.
Com a mesma lealòaòe com que me revelou a sua apreen-
,são, comunicou-me o sr. Peòro òe Azeveòo, passaòo tempo,
80 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
dade, de remorso talvez, como indicam as suas tor-
turadas palavras ;
— Esse casamento foi uma infâmia.
Contudo, na va3ta obra do grande Mestre surgem
dispersas, como vamos ver. semelhando destroços
de naufrágio num mar tormentoso, reminiscências
persistentes de Friííme esvoaçando-se em torno da-
quela que foi no amor e no infortúnio uma lídima e
quase anónima antecessora de D. Ana Plácido.
ter verificaôo por um livro antigo òas òécimas que Manuel
Joaquim Botelho Castelo Branco apenas morou na rua òa
Oliveira òesòe 1826 (isto é, tenòo Camilo um ano òe iòaòe)
até 1830.
Por que motivo seria ministraõo o baptismo na freguesia
ííos Mártires a uma criança que nasceu na freguesia òo Sa-
cramento, a qual sempre tem compreenòiòo o Largo òo
Carmo ?
O meu velho amigo òr. Garcia Denís, òecano òos páro-
cos òa capital, òiz-me terem-se òaòo vários casos análogos,
por òiversos motivos, especialmente o melinòre òe tornar
pública a situcção ilegal òa mãe òo baptizaiiòo.
IV
Interpretação da comédia
o «Lubis-Homem»
Entre as recordações do tempo em que desposou
Joaquina Pereira, conservou sempre Camilo, muito
nítida, a do fidaLgo-mendígo José Pacheco de An-
drade, morgado de Friúme, cuja trágica biografia êle
narrou em Um Livro e a cuja morte se refere nos
Mysterios de Fafe.
Mas esta recordação tem apenas um mero inte-
resse topográfico, digamos assimx : evoca, unicamen-
te, a aldeia em que o adolescente Camilo conheceu
e amou a filha primogénita de Sebastião Martins dos
Santos.
Mais nos importa recordar as páginas em que en-
trevemos a imagem de Joaquina Pereira sob o dis-
farce onomástico de outra mulher ; e até a hora fes-
tiva do seu consórcio e dos seus primeiros momen-
tos no mesquinho lar sorridente.
82 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Aqui tem o leitor uma dessas transparentes pá-
ginas, supostamente referida ao casamento do poeta
Silvestre da Silva com a filha do sargento-mór de
Soutêlo ;
« Sahimos para a egreja entre alas de activo bom-
bardeamento. Eram centenares de pessoas d'ambos
os sexos. ^
«As velhas erguiam as mãos aos céus, excla-
mando :
« — Como tu vaes linda ! Bemdito seja Deus ! Pa-
reces Nossa Senhora !
«Confessamo-nos, commungamos e recebemos as
bênçãos.
«Desde que sahimos da egreja até á entrada de
casa, caminhamos sempre debaixo de nuvens de flo-
res. O estrondo dos bacamartes era atroador, e os
dois sinos ' da freguezia repicaram desde que sahi-
mos do templo até ao anoitecer d'esse dia.
«Meia hora depois que chegamos, entrei no quarto
de minha mulher e encontrei-a de joelhos diante du-
ma imagem de S. João dos Bem- Casados.
«Ergueu-se ella, benzendo-se. e esperou que eu
a beijasse pela segunda vez. Penso que o publico
1 A igreja òo Salvaòor òe Ribeira òe Pena tem òuas tor
res e òois sinos.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 83
me releva a confissão de que. ao dar-lhe este se-
gundo beijo, encontrei os seus lábios. Era o instincto
das sensações agradáveis, mas honestas, que ensi-
nou a minha mulher o segredo do máximo prazer
de um beijo. ^>
Este^último período é mais etéreo do que a im.-
pressão que nos deixam algumas páginas naturalis-
tas da Maria Mo y sés e algumas claras scenas da
comédia póstuma O Liibis-homem.
Por agora falemos da comédia.
Fui eu que a prefaciei por convite dos editores,
e logo no início da prefação assentei uma tese. que
me propus demonstrar.
Vinha falando do autor, e disse :
«A comedia Liibis-homern é nada mais e nada
menos que a historia provavelmente exacta do seu ga-
lanteio e casamento com Joaquina Pereira. O dis-
farce em Liibis-Jiomem talvez seja exacto também.
O namoro fora um desenfado de estudante, sem pre-
visão das consequências que podia trazer. Mas as
circunstancias complicaram-se perante a attitude se-
vera do pai de Joaquina Pereira e da gente do campo,
que costuma resolver á valentona as questões que
põem em jogo a honra das famílias. A pobre cam-
* Coração, cabeça e estômago, terceira parte.
84 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
poneza sustentava com lagrimas, em vez de palavras,
o seu direito a uma reliabilitação. Camillo viu-se ro-
deado de ameaças, e a consciência gritou-lhe que
quem faz o que deve, deve o que faz. As lagrimas
de Joaquina Pereira apressaram a solução do con-
flicto. Camillo casou. Deve ter sido esta a historia do
seu primeiro casamento, contada por elle mesmo. »
O Diário da Tarde, folha portuense, noticiando
a aparição da comédia, prefaciada por mim, insi-
nuava que eu a tinha prefaciado mal.
Havia naquele diário alguém que sempre me que-
ria ser desagradável. Nunca procurei saber quem
fosse. Mas se das outras vezes isso me não tirava o
sono, dessa vez tive dó do sujeito que, nem com o
auxílio da minha lupa, sabia ler nas entrelinhas da
comédia.
Rodaram alguns anos e o sr. dr. Sérgio de Cas-
tro, na sua vasta obra CamilLo Castelío Branco, '
categoricamente afirmou, sem hesitações, que a exa-
ctidão e a verdade eram manifestas naquele meu
prefácio, malsinado anonimamente.
Diz s. ex.'"' no volume III. a páginas 36, referin-
do-se ao Mestre :
« . . . o sr. Alberto Pimentel, que considera o Lu-
^ Em três volumes. Lisboa, 1914.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 85
bis-H ornem como sendo, nem mais nem menos, um
episodio provavelmente exacto do seu galanteio e ne-
cessário casamento com Joaquina Pereira, do logar
de Friume, concelho de Ribeira de Pena — um pe-
daço de terra privilegiada de naturaes bellezas, que se
aperta entre os extremos de Traz os Montes e Minho.
«Mais do ç\\it provável, o consideramos nós como
certo.
«Conhecemos o m^eio onde se produziram esses
amores ; visitámol-o por muitas vezes : ouvimos tes-
temunhas vivas, contemporâneas d*esses devaneios
de rapaz sem cuidados, e o meio, as testemunhas
nos certificaram que na comedia com effeito se trata
da vida alegre do futuro romancista, doidivanas
estróina e desabusado, personificando-se em Carlos
de Athayde ...»
O homem do Diário da tarde deve ter embu-
chado gravemente.
A comedia decorre, em 1846. Entre-Douro-e-Mi-
nho. designação vaga que a seu tempo se restringe
e aclara numa rubrica.
São personagens principais :
João da Eira (Sebastião Martins dos Santos),
M ar ia/in a, SU3. filha (Joaquina Pereira França).
Carlos de Ataíde (Camilo).
86 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
O Vigário de S. Salvador (Padre Manuel
Rodrigues ou padre Manuel Lixa * com quem Camilo
fora aperfeiçoar-se em latim na Granja Velha).
E completam a ementa dos actores :
Manoel do Portelo.
Miquelina do Prado.
Um Padre.
Seis ou mais encamisados.
Doas fantasmas.
Gente do povo, patrulhas, etc.
O primeiro acto passa-se na eira do tio Manuel
do O^ínchoso em noite de espadelada — um dos mais
alegres serões da vida aldeã.
Há raparigas espadelando e. junto delas, rapazes
que as auxiliam, quebrando os feixes de linho. Há
cantos, musicata, encamisados, que vêem de Esca-
rei (lugar da freguesia do Salvador), danças, amo-
res, despiques, pauladas e tumultuoso pavor quando
aparece o labis-homem — transformação dum dos
^ «.. não te recoròas òos nossos conòiscipulos na aula
òo paõre Lixa ha vinte e cinco annos?»
Xoiíes de insoimua, n." 7, pág. 28.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 87
encamisados, Carlos de Ataíde, que foge surrateira-
mente com Mariana.
A rubrica indicativa do scenário do segundo acto é
aquela a que há pouco aludimos como esclarecedora
do exacto lugar em que a acção decorre.
<^ A" esquerda a frontaria da egreja de S. Salvador,
deixando vêr um dos pannos da parede, com passa-
gem contigua. Ao fundo, a casa da residência do vi-
gário, com entrada ao rez-do-chão. A maior parte do
palco é uma alameda ou adro. ^> -
Trata-se, pois, da freguesia do Salvador em Ri-
beira de Pena, que compreende o lugar de Friííme.
Neste acto realiza-se o casamento religioso duns
noivos residentes naquela paróquia.
Camilo descreve, noutra rubrica, os festejos tra-
dicionais com que também as suas bodas tinham
sido celebradas em 1841, acentuando ainda mais
que no Coração, cabeça e estômago o pormenor das
atroadoras detonações.
«Alguns rapazes dos que vimos no l.*'acto. ves-
tidos de festa, disparam os seus bacamartes, e mos-
tram-se muito azafamados neste entertenimento. Ou-
ve-se o sino da egreja repicando. Depois, do inte-
rior do templo, sahem uns esposados, a quem mui-
tas moças lançam flores, entre ruidosas aclamações
de flores d desposada ! Os moços continuam o seu
88 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
tiroteio, com grande garbo e aprazimento de suas pes-
soas ... A desposada e o desposado podem ser quaes-
quer figurantes. Accresce aos designados o reverendo
parocho da freguezia, destolla e sobrepeliz.»
João da Eira, alheado da alegria dos outros, diz
ao vigário que deseja falar-lhe em segredo. E o pá-
roco apressadamente despede o rumoroso cortejo nu-
pcial. Ficam sós os dois no adro da igreja.
Então o pai de Mariana, muito crédulo e timo-
rato, faz esta revelação ao padre :
-jOAO DA EIRA
O lubis-home, sr. vígaíro, é o estudante de
gramtnátegas que v. s.^ cá tem a ensinar. •
VIGÁRIO
O estudante I . . . eu cada vez percebo menos !...
■\0K0 DA EIRA
Quer o sr. vigairo saber se elle é ou não é lubis-
home ? . . . Olhe se elle está em casa á sexta fei-
ra. . .
VIGÁRIO
N'esses dias vai elle visitar a familia a «Villa
Real».
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 89
JOÃO DA EIRA
Não como essa, sr. vígalro, e perdoará em Iheu
ir á mão. Olhe (apontando para os olhos) com es-
tes vi-o eu a espolinhar-se no meu souto da Rebo-
leira, e depois . . .
VIGÁRIO
Que diz, sr. João, que está vocemecê ahi a dizer
disparates 1 . . .
JOÃO DA EIRA
Deus me não ajude, se isto assim não é. . . A
mulher lá a tenho emprégadinha, que se não me
mexe ; a filha está que ninguém a conhece, enge-
lhada, magra e cheia dossos. e tudo isto foi. . . faz
no sabbado três mezes que eu fiz a minha espadada.
VIGÁRIO
Homem, eu estou abysmado 1 Então o rapaz ba-
teu-lhe na familia?
JOÃO DA EIRA
Foi o lubis-home, por que v. s.^ bem sabe que os
lubis-homes, estando no carátele da sua própia
pessoa, não fazem mal : mas como eu vinha dizendo,
no fim da minha espadada appareceu o luWs-home.
90 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
e fugimos todos ; só a minha Marianna ficou de fora,
por não poder entrar, e tal medo apanhou que me
está tolhidinha. Não tem vontade de comer, anda
sempre a chorar, não vai ao campo, e diz o barbei-
ro-çurgico que ella tem uma obstrução, no corpo,
salvo tal logar.»
O estudante aparece a propósito e. sendo inqui-
rido pelo vigário na presença de João da Eira. mos-
tra-se irónico, motejador. Para assustar o pai de Ma-
riana confessa ser lubis-homem.
Indigna-se o vigário. Diz a Carlos de Ataíde que
se retire e procura tranquilizar o lavrador afirman-
do-lhe que é mentira haver lubis-homens.
Por isso, ao despedir-se do pároco. João da Eira
vai mais calmo, mas não tarda a aparecer-lhe um
fantasma de manto branco raivando ameaças e mal-
dições contra o boçal lavrador por ter difamado um
inocente,
João da Eira. espavorido, roja-se súplice, implo-
rando piedade. O fantasma increpa-o. intimída-o. ba-
rafusta, mas perdoa magnânimo.
Afasta-se o timorato lavrador e assoma à porta
da residência a criada do vigário, bradando por Carlos
de Ataíde para lhe preguntar se êle levou algum len-
çol da cama.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 91
E O estudante, já desmascarado, responde-lhe :
— Está aqui.
No terceiro acto o scenárío representa o arraial
de S. Bartolomeu em Cavez. romaria famosa a que
concorrem muitas pessoas por suposta obessão de
espíritos malignos.
João da Eira leva a filha à romaria para lhe se-
rem feitas as rezas do estilo, que põem o diabo fora
dos corpos em que se incubou.
A rapariga, constrangida, envergonhada, não quere
sujeitar-se ao exorcismo, mas, como isto mesmo pa-
reça diabolice, arrastam-na à presença do padre.
Neste momento, um rapaz bem trajado, com o
rosto meio oculto num lenço branco, aproxima-se e,
casquinando uma risada, some-se na multidão.
MARIANNA
E' elle . . . E' elle a rir-se de mim !
PADRE
Elle . . . quem ?
VOZES
E' o esprito que sahiu . . .
Esta scena repete-se durante o esconjuro e Ma-
92 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
riana, querendo agarrar o desconhecido, desfalece
extenuada.
Reanimando-se, corre um olhar penetrante pelo
arraial à procura de alguém e. ouvindo estalar uma
terceira risada, vai. de salto, aferrar nervosamente
o motejador contumaz.
Levanta-se am grande borborinho em torno dele,
Manuel do Portelo destapa-lhe a cara. mas João da
Eira, reconhecendo o lubis-homem, estremece e grita
que o larguem.
Mariana desilude o pai confessando ter sido se-
duzida por aquelle estudante com promessa de ca-
samento.
O tumulto aumenta no arraial, o povo clama vin-
gança, e uma patrulha prende Carlos de Ataíde.
Mas quem se não contenta apenas com a prisão
é Manuel do Portelo, o qual aponta uma paulada à
cabeça do estudante.
Intervêm o vigário lembrando a Carlos de Ataíde
o cumprimento dos seus deveres de honra.
Para se livrar de maior entalação, o estudante
submete- se, e fica ali resolvido fazer-se o casamento
nesse mesmo dia.
A folia do arraial recomeça, dança-se e canta-se
a chula, passam «estúrdias», os valentões fazem evo-
luções com os seus varapaus e o povo afasta-se na
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 93
espectativa de bordoada rija — coisa valgaríssima
naquela barbarêsca romaria.
Felizmente a presença do vigário evita qualquer
briga.
Mariana e Miquelina conservam-se a alguma dis-
tância do arraial conversando ;
MIQUELINA
Então vaes casar c'um fidalgo ?
MARÍANNA
Bem me importa a mim que elle seja ou não fi-
dalgo ! . . . O que eu quero é que elle me não faça
passar por vergonhas do mundo.
MIQUELINA
Tu também deixaste-te enganar assim com tão
pouco . . , Que viesse p'ra cá ! . . .
MARIANNA
Se tu lhe tivesses amor como eu . . .
MIQUELINA
Isso sim ! . . . que viesse p"ra cá ! . . . Se te tinha
amor, que casasse comtigo. . . Mas casa agora,
que é o mesmo, e fica tudo esquecido. , .
94 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
MARIANNA
E tu não eras minha amiga se soubesses que
eu . . ?
MIQUELINA
Tua amiga, isso era eu. mas meu pai não me dei-
xava andar á tua beira nas segadas, e nas bessadas...
Deus nos livre ! . . . nem pensar n'isso é bom . . .
E tu vaes p^ra Villa Real com o teu homem?
MARIANNA
Eu não sei . . . Vou pVa onde elle quizer que eu
vá . . . Sou sua mulher . . .
Ao passo que o autor da comédia avoluma a res-
ponsabilidade das suas proezas de rapaz com as ex-
cessivas ribaldarias de Carlos de Ataíde, exorna o
caracter da camponesa Mariana com as altas quali-
dades que tinha podido avaliar em Joaquina Pereira
França.
Repugna a Mariana ir sujeitar-se hipocritamente
ao exorcismo em Cavez : indignam-na as risadas ul-
trajantes de Carlos no arraial : perante a rude cre-
dulidade do pai no lubis-homem e no fantasma, tem
a hombridade de confessar que êle é o estudante que
a seduziu e lhe prometeu casamento : o seu amor.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 95
como ela confessa a Miquelina, é tão leal que sobre-
puja todos os ultrajes e agravos ; envergonha-se da
culpa em que incorreu, preocupa-a ver-se rebaixada
no. conceito das suas amigas e do povo ; e docil-
mente se não importa em seguir Carlos, logo que
seja seu marido, para onde quer que êle vá, porque,
apesar de tudo, o ama com fervor e confiança.
Todas estas nobres qualidades, que eram as mes-
mas de Joaquina Pereira, deixaram um vinco inde-
lével na alma de Camilo.
Nem isso admira, porque esta boa rapariga foi
5ua namorada e sua mulher, amou e sofreu, e a ex-
trema sensibilidade de Camilo levava- o a recordar
longamente as impressões recebidas outrora.
Em muitos padres virtuosos reproduziu êle o ca-
racter do obscuro levita da Samardan que iniciou
a sua educação literária. Não se esqueceu nunca desse
infeliz Pedro-Seni de Ribeira de Pena que foi o mor-
gado de Friúme. Já na velhice fez desfilar na sua me-
mória a procissão dos moribundos e dos mortos que
tinha conhecido e tratado de perto.
Que admira, pois, que a sua mulher, a sua primeira
mulher legítima, ainda que em público a renegasse
por um mal-entendido pejo. saudosamente a fizesse
ressurgir na biografia de outras mulheres, igualmente
aldeãs, igualmente dedicadas e desventurosas ?
96 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
E, ainda a propósito da filha de João da Eira, lem-
bro-me de outra Mariana, também de Camilo, que
por sua origem e sentimentos poderá considerar-se
mais um desdobramento de Joaquina Pereira. Re-
firo-me à do Amor de perdição. Já aventei que talvez
lhe redoire o retrato algum reflexo longínquo da cam-
ponesa de Friúme, * a quem o romancista julgaria
capaz dum sacrifício igual ao da filha do ferrador.
Mas vamos ao desfecho da comédia.
Carlos de Ataíde recorre a um expediente jocoso
para se desentalar da promessa de casamento.
O noivo que se apresenta é Manuel Pitosga, criado
seu. que vem trajado com o fato do amo e traz meia
cara entrapada num lenço.
O ardil, cómicamente sustentado com efeitos hi-
lariantes, facilmente foi descoberto.
Manuel Pitosga ri-se, Mariana sente-se humilhada
pelo desprezo das outras raparigas, João da Eira cho-
ra, o vigário tem apóstrofes irritadas.
Carlos acode a aplacar a tempestade, que prome-
tia ser temerosa. Enroupado com a farpela do cria-
do, dirige-se a Mariana e abraça-a.
Ela, em vez de recriminações, diz-lhe ternuras :
^<0' meu Carlos ! filho do meu coração !»
^ Notas sobre o a Amor de fer dição», pag. 52.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 97
João da Eira e o vigário reconciliam-se com o
estudante que, já em caminho da igreja, vai disser-
tando :
— Meus amigos ! nunca me lembrei que o sen-
timento da compaixão me obrigaria a casar. Era pre-
ciso acabar com isto. Primeiro fui lubis-homem, de-
pois alma penada, depois Manuel Pitosga e resta-me
ser homem casado. O homem casado tem maior fa-
dário a cumprir que o lubis-homem ; anda mais som-
brio que uma alma penada ; torna-se mais aparva-
lhado que um Manuel Pitosga . . . Está dito : quero
reunir tudo — vou casar comtigo I »
Os noivos entram na igreja, seguidos de muita
gente.
As <í< estúrdias» repenicam alegres chulas.
E o pano cae.
Condensando o monólogo de Carlos de Ataíde,
diz o sr. dr. Sérgio de Castro : Era necessário aca-
bar com aquíLlo, casou.»
Nestas e noutras páginas de Camilo encontramos
a persistência do mesmo tipo de mulher aldeã, ape-
nas sujeito a modalidades de ocasião, mas aureolado
de raras qualidades, cuja memória lhe merece res-
peito e lhe inspira saudade.
Já o escritor ultrapassara meio século de existên-
cia, quando, para a sua coleção de Novellas do Mi-
98 A PRIMEIRA. MULHER DE CAMILO
nho, escreveu aquela que tem por titulo Marta Moy-
sés e foi acolhida com ^eral interesse e aplauso.
Penso que esta encantadora novela, modelo no
seu género pela rapidez e perfeição nos caracteres
e nos episódios, a viveu, tanto ou quanto, Camilo,
pessoalmente.
Ele não se limita, como nos Gracejos que matam,
a apresentar personagens oriundas de Entre-Douro-
e-Minho.
Na Maria Moisés é especificadamente no conce-
lho de Ribeira de Pena que o novelista localiza a
acção, em sítios de que nitidamente se lembra ainda :
por isso lhes declina o nome certo, assim como o ape-
lido ou profissão de indivíduos que os habitavam e que
jamais esqueceu. Mas, quanto à imagem que é o ali-
cerce espiritual de todas estas memórias, recorre ao
artificio de identificá-la com Josefa de Santo Aleixo
— isto é, Josefa, natural de Santo Aleixo de Alem
Tâmega, freguesia do mesmo concelho de Ribeira de
Pena.
Vamos, no capítulo seguinte, demonstrar a nossa
afirmativa.
A mãe de Maria Moisés
Josefa (a inicial é a mesma de Joaquina) amou
António de Queiroz e Menezes, que, tendo estudado
para frade criízio, sentou praça quando, por morte
do irmão mais velho, herdou o direito de primoge-
nitura.
Era cadete de cavalaria de Chaves e geralmente
designado por <^ morgado novo de Cimo-de-Vila. >
Não devemos esquecer que o próprio Camilo se
julgava um morgado pobre, arbitrariamente deser-
dado pela ominosa provisão i;égia de 1799. posto
não fosse representante de casa vinculada, porque
nem mesmo a quinta de Montezelos, onde o avô
paterno expirou, ' constituía vinculo de família.
^ AssassinaÒo por salteaòores, òiz uma vaga traôição ; ou
por se haver suíciòaòo, segunòo pensa o sr. PeÔro òe Aze-
veòo.
100 A PRIMEIRA .MULHER DE CAMILO
Esta quinta tinha pertencido aos Grilos de Mi-
nhava.
Era em logares recônditos, mas convezinhos de
Friúme, que os dois namorados emboscavam as suas
entrevistas secretas, especialmente na Insua.
Um diálogo da novela denuncia esses misteriosos
encontros :
* — ... Ha quem os visse no bosque de amiei-
ros da ínsua, defronte da Granja. O senhor sabe...
« — Conheço esse bosque. O meu padre-mestre
de latim chamava-lhe a ILha dos amores ; foi lá que
todos os bons latinistas meus condiscípulos leram a
Arte de amar de Ovidio : e o cadete, pelos modos,
applicou as theorias do Sulmonense . . .
« — Não vamos tão longe, sr. Maurício — emen-
dou o minorista. — O que se diz é que elle passava
o Tâmega nas poldras, com a canna de pesca e o ca-
cifro : depois, mettia-se na Insua, e a Josefa ia lá
ter. »
A Insua releva sobre o rio Tâmega entre a quinta
de Manscos na margem direita e Friúme na margem
esquerda.
E' grande, encrustada de penedos e verdejante de
carvalhos e amieiros.
Camilo conhecia muito bem este bosque emer-
gente do Tâmega, para onde no verão ia passar as
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
101
102 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
tardes, em alegres merendas, que os amigos lhe ofe-
reciam e onde provavelmente, noutras ocasiões me-
nos ruidosas e ainda mais felizes, se encontraria fur-
tivamente com Joaquina Pereira, como António de
Queiroz e Menezes com Josefa de Santo Aleixo.
Esta personagem da novela, que era uma loira
mocetona, não precisava, para ser ditosa, que o gen-
til cadete lhe prometesse casamento, como aliás pro-
metera. ^Preferia tel-o, e amal-o nas mattas chil-
readas, nos desfiladeiros dos montes, no sinceiral da
Insua, nas alcovas de ramagem que só elles e os
rouxinoes conheciam nas margens do Tâmega.»
A Insua deixara na alma de Camilo uma terna e
duradoira recordação ; unicamente, a mulher que lhe
suscitava essa íntima recordação não se chamou Jo-
sefa mas Joaquina, e, sendo tambem'guapa mocetona y
não era loira.
O doirado dos cabelos foi um cauteloso disfarce
com que o romancista queria desnortear os velhos
de Friúme, os quais, todavia, conheciam optimamente
a história da^ entrevistas de Joaquina e Camilo e por
experiência própria deviam conhecer a crónica da-
quela lUia dos amores, que eles haviam descoberto
antes de Camilo.
A novela procura desculpar os amores do cadete
com Josefa pela influição regional, pela estimulante
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 103
acção da natureza em plena erupção de energias
amatórias, mas Camilo não queria adoptar esta des-
culpa para sua defesa e absolvição em igual delito
de naturalismo.
Singular incongruência I
E', pois, falando suspostamente de outrem, que
ele escrere :
«Viu no monte a filha do lavrador de Santo Aleixo,
As serras tem sombras do infinito. O coração ahi é
maior que as dimensões do peito. O homem como
se vê só, no cabeço de um fragoêdo. dá-se grandeza
extraordinária, mede-se pelo comprimento de hori-
sonte a horisonte. Se o amor lhe rutilou ahi como um
relâmpago que fulgura n'uma vasta cordilheira de
montes, é um amor olympico. titânico, immenso, que
disparado sobre a modéstia e singeleza de uma ra-
pariga montezinha, faz lembrar Camões :
Qual será o amor bastante
De nympha que sustente o ò'um gigante ?>
Isto, assim descrito, só um ^< gigante » o podia es-
crever ao recordar-se duma «nympha» ... ou de
várias.
Mas Camilo é ainda mais naturalista quando re-
monta nas suas considerações à sensualidade ins-
tintiva de remotos varões não civilizados.
104 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
«Depois, á volta de poucos dias, o fogo levou de
assalto aquelle combustivel edificio de ínnocencia,
cheio de fluidos inflammaveis. A serra tinha penhas-
caes, bosques, cavernas, insinuando o amor selvagem.
Rodeava-os uma natureza contemporânea do homem
vestido da pelle do seu confrade em civilisação, o
grande urso e o grande veado. A forma selvática e
antiga do proscénio deu-lhes geitos de antigos acto-
res da vida animal. Ninguém que os visse, ninguém
que lhes lesse os grandes livros do padre Sanches,
acerca do matrimonio. Oh ! a solidão, entre dois
amantes, faz os poetas ; mas talvez primitivos de
mais, algum tanto gaelicos, normandos, alheios de
tudo o que é epistolographia amorosa, — pelles-ver-
melhas no rigor antropológico, á vista do modo como
a gente em honesta prosa costuma cazar-se.>
Quere dizer que o nosso Camilo não conquistou
epistolarmente Joaquina Pereira nem precisou disso.
A ILha dos amores era um seguro e vasto papel de
ramagens verdes onde cabiam todas as frases e to-
dos os beijos ao abrigo de sombras densas e discre-
tas, que lhe serviam de espesso envoltório. Estava
ali a natureza em acção, não a secante ortografia que
ainda então era muito complicada. Tudo natural, tudo
pele-vermelha no rigor antropológico. E era bastante :
era bom.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 105
Camilo, querendo reprimir-se, fugiu de rememo-
rar que o vestir das camponesas é mais tentador e
acirrante que o das mulheres da cidade, para quem
o figurino constitue dogma.
O corpo duma aldeã enforma-se, desenvolve-se e
floresce sem constrangimentos nem peias. A carne
não anda triturada, moída pelas varetas dos espar-
tilhos, que fazem corolas e cinturas artificiais. Os
peitos foliam soltos debaixo do jaqué ou aninham-
se comodamente dentro do colete curto e dócil. As
saias não encobrem a perna toda nem os pés. e as
meias, sem ligas, caem em refegos no tornozelo. —
o que aliás Camilo não achava feio, * certamente
porque exibem um qaantam satis de nudez. Os ca-
belos abundantes e fortes não são queimados nem
torcidos pelo ferro de frisar ou engordurados pelo
abuso de pomadas. Os dentes, alvos e rijos, conser-
vam um claro esmalte, que a folha da salva e do
mentrasto aviva pela fricção. A polpa dos braços,
morena e elástica, assemelha-se á crosta tostada do
pão de ló fresco e fofo.
A camponesa, na exibição sincera do seu corpo
e da sua carnadura, na folgada simplicidade do seu
vestir desartificioso, açula o apetite sensual, reflecte
Coração, cabeça e estômago^ ultima parte.
106 A PRIMEIRA MULHER Dh CAMILO
a franqueza, a liberdade e independência dos aspec-
tos da paisagem que lhe oferece alcovas em flor?
camilhas de relva, respaldos de boninas, docéis de
copado arvoredo, rios onde podem mundificar-se co-
mo as naiádes do contacto dos tritões, e escutar rou-
xinóis melodiosos que de margem a margem glo-
sam seus amores, guardando segredo de outros. . .
Joaquina Pereira ou Josefa de Santo Aleixo eram
genuínas mulheres do campo, que cediam às suges-
tões magnéticas da natureza, como espontâneas actri-
zes da vida anim^al.
E por viverem longe de grande povoados não ha-
via no seu traje aquela imitação urbana, que mais
parece caricatura do que imitação.
Falando de Josefa especializa a novela o seu ja-
qué amarelo com botões azuis, provavelmente porque
na memória de Camilo se gravara fundamente a vi-
são dum jaqué assim, que Joaquina Pereira teria pos-
suído.
Quando o fidalgo velho de Cimo de Vila foi avi-
sado pelo vigário de Santa Marinha de que o cadete,
herdeiro da casa, lhe pedira que o recebesse com
Josefa de Santo Aleixo, levou imediatamente o filho
para a corte, onde lhe propôs para noiva uma Teles
de Menezes.
Respondeu-lhe o rapaz com respeitosa serenidad e:
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 107
— Meu pai pode dispor da minha vida ; mas do
meu coração já eu dispus. Prometi casamento a uma
rapariga de baixa condição. Ou caso com ela ou não
casarei nunca.
Muito indignado, o fidalgo velho requereu à Re-
gência do Reino que mandasse encarcerar seu filho
no Limoeiro.
Entre ferros, o morgado novo de Cimo de Vila
preocupava-se menos com o seu encarceramento do
que com a situação difícil de Josefa em casa dos pais,
que ignoravam a gravidez da filha.
Queria aconselhá-la a fugir para a sua quinta do
Enxertado, apenas habitada por caseiros, gente de
confiança.
Aquele e outros nomes de lugares, que o muni-
cípio de Ribeira de Pena compreende, sempre Ca-
milo os tinha lembrado desde longos anos, como se
prova pelo titulo do romance Aventareis de Bazilio
Fernandes Enxertado. ^
^ «Seu pae chamou-se José Fernanôes, por alcunha o Bm-
xertado. Pegou-lhe a alcunha, por que, senòo elle natural
òe uma alòeia ò'aquelle nome em Tras-os-Montes, quanòo
já era caixeiro, muitas vezes òizia aos seus companheiros
òe passeata, aos òomingos : «O Porto é boa terra ; mas lá
108 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Torna-se oportuno elucidar o leitor sobre alguns
pormenores toponímicos da novela.
A aldeia de Santo Aleixo, onde Joaquina residia
com seus pais, fica na margem direita do Tâmega :
e as quintas de Cimo de Vila e do Enxertado, atri-
buídas aos Menezes, assentam na margem esquerda.
Da povoação de Santo Aleixo vem descendo para
a beira do rio a antiga Cangôsta do Estevão (hoje
tem outro nome) e uma fieira de poldras alinha-se
de margem a margem.
António de Queiroz e Menezes escreveu ao seu
amigo Fernando Gonçalves Penha, filho do sargento-
mór da Temporan, próximo vezinho de Cimo de
Vila, encarregando-o de procurar pessoa idónea que
levasse o recado a Josefa.
O confidente do cadete escolheu para emissária
a mulher do caseiro, a qual se desempenhou cabal-
mente da incumbência com aquela arteirice e ma-
nha que são proverbiais nas matronas de Entre-
Douro-e-Minho.
Contou ela a Josefa que o sr. Antoninho de Cimo
como o EnxertaÔo ainôa não puz os olhos n'outra !> Acai-
xeiraòa, menos sensível á sauòaòe õas suas alòeias, ria òo
moço, e, por mofa, lhe chamava o Enxertado, alcunha que
elle ajuntou ao seu nome com honras Õe appelliôo.> Cap. 1.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO . 109
de Vila estava preso por não querer casar com uma
fidalga de Lisboa e que lhe mandava dizer que fu-
gisse para a quinta do Enxertado, onde estaria em
sossego até que ele pudesse voltar.
Por sua parte, a ladina matrona ensinou a Josefa
que devia passar as poldras do Tâmega e, chegando
à margem esquerda, esperar na Encruzilhada do Mato
que lhe aparecesse um rapaz cabreiro para guiá-la
até ao Enxertado.
Assim ficou assente,
Mas o abalo causado pela boa nova suscitou as
primeiras dores do parto e a mãe de Josefa, conhe-
cendo então qual era a verdadeira doença de sua fi-
lha, rompeu num desespero bramindo raivas e mal-
dições.
E porque tinha «o orgulho selvagem da honra >
caiu doente.
O marido, bêbado emérito, quando chegou a casa
e não viu a panela ao lume. cortou filosoficamente
um naco de toicinho, meteu-o entre duas talhadas de
broa e isolou-se na adega comendo e\beberricando.
E' certo que êle, quando começou a vêr a filha
muito coada de cores, tinha mandado chamar <^o bo-
ticário de Friíime» e consentira que ela fosse com
a mãe exorcismar-se à romaria de S. Bartolomeu em
Cavez.
110 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Mas naquela tarde, faltando-lhe a ceia, improvi-
sou-a êle próprio bebendo pela cabaça a sua habi-
tual filosofia, cujo princípio basilar consistia em pou-
cas palavras: «Aguenta, João, que tua mãe não faz
outro.»
Logo que anoiteceu, Josefa fugiu levando a filhi-
nha recem-nascida. (Lembremos que Joaquina Pe-
reira tivera também uma filha.) Meteu-a dentro dum
bercinho, o mesmo em que a parturiente tinha sido
acalentada e que era feito de verga, bem encanas-
trada, hermeticamente fasquiado de madeira no
fundo.
Com o berço sobraçado, seguiu em direcção às
poldras para atravessar o Tâmega.
Conquanto robusta, sentia-se esvaída, turvada.
Davam-lhe vertigens. Passou as quatro primeiras
alpondras, mas depois escorregou ao rio. O berço,
que então levava à cabeça, caiu na água, e Josefa,
supondo vê-lo a distância, avançou para lhe deitar
a mão. Escabujando sufocada, agarrou-se instintiva-
mente ao esgalho dum salgueiro, já moribunda. As-
sim a foram encontrar um pastor de seu pai. que
procurava uma cabra desgarrada, e o moleiro da
azenha.
Logo constou que Josefa de Santo Aleixo tinha
morrido, atribuíndo-se a sua morte a suicídio, o que
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
não era verdade. Esta notícia chegou a Lisboa trans-
mitida pelo vigário de Santa Marinha ao morgado
velho de Cimo de Vila, que sem maior delonga pe-
diu alvará de soltura para o filho.
Mas António de Queiroz recusou-se a voltar à casa
paterna e preferiu ir fazer serviço no Brasil como
cadete de cavalaria.
O pai respondeu-lhe ríspidamente :
« — Não é meu filho ! Vá para o Brazil, vá para
onde quizer. Sua mãe teve cinco mil cruzados de
dote. D'essa sei eu que você é filho. Recebêl-os-ha
hoje, e amanhã partirá. >
Deste modo fecha Camilo o 1 .° volumezinho de
Maria Moysés, que caracteriza a época dos sentimen-
tos fogosos, das paixões veementes e cegas por que
o romancista passou na mocidade. E' um vendaval
que revive e remoinha espalhando as cinzas do pas-
sado tempestuoso.
No segundo volume, predominam outros senti-
mentos mais puros, mais nobres e altruístas. Camilo
reentra em si mesmo, acalma a sua consciência com
o sorriso bom dos velhos na hora em que se peni-
tenciam de antigos erros e procuram redimi-los pela
indulgência e a piedade, pelo respeito e a compai-
xão que os erros alheios inspiram aos arrependidos,
fatigados de errar e sofrer.
112 A PRIMEFRA MULHtR OR CAMILO
Nessa atmosfera de paz consoladora que paira so-
bre todo o segundo volume, Camilo escreveu uma
palavra, um nome de mulher, que tinha na memó-
ria e no coração, nome que conseguiu afastar no pri-
meiro volume, mas que irrompeu da sua pena como
lágrima furtiva.
E' Joaquina esse nome, dado a uma rapariga que
se perdeu por amor : Joaquina, sem nenhum sobre-
nome que o afidalgue.
Na Sereia, a heroina chama-se Joaquina Eduarda,
porque era pessoa que pôde assistir, entre damas
ilustres, á inauguração do primeiro teatro lírico do
Porto.
Mas no segundo volume da Maria Moysés o nome
de Joaquina soa plebeu como é, muito vulgar nas
aldeias, e apenas suportável nas salas quando pom-
posos apelidos de família o nobilitam.
Em breve iremos ao encontro dessa personagem,
a cujo nome e destino ligamos o valor dum termo de
equação.
VI
Sombra plangente
Ora o berço com a filhinha de Josefa de Santo
Aleixo encalhou numa angra, onde o descobriu Fran-
cisco Bragadas, caseiro da quinta de Santa Eulália
e pescador de chumbeira.
Camilo redigiu esta novela tão dominado pela
emoção, que, ao escrevê-la ou ao rever as provas ti-
pográficas, não reparou que. nas primeiras páginas
da 2/ parte, o apelido Bragadas aparece transfor-
mado em Bernardo, como se íôra nome de ba-
ptismo.
Ouvindo chorar uma criança, Francisco Bragadas
pôs-se a olhar e viu o berço.
Desenrascou-o das ramagens dum amieiro, tirou-o
da água, e, sobraçando-o. deitou a correr para
casa.
Irei já dizendo que o apelido Bragadas não é in-
venção de Camilo. A casa do suposto achador do
114 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
berço fica na margem direita do Tâmega, defronte
de Friííme. Ali se hospedava o futuro romancista
quando ia pescar trutas no próximo rio Beça ou jo-
gar as Damas com o padre Domingos José Ribeiro,
parente dos Bragadas.
As távolas de marfim, que eram do próprio Ca-
milo, conserva-as um sobrinho daquele padre, e a
mesa em que o taboleiro das Damas assentava per-
tence actualmente ao ilustre pároco do Salvador de
Ribeira de Pena.
Estava a mulher do Bragadas amamentando uma
filha no momento em que o marido entrou com o
berço. Ela. piedosamente, deu logo o peito à engei-
tadinha e o Bragadas foi participar o achado às fi-
dalgas da quinta de Santa Eulália, cujo caseiro
era.
Nesta quinta, que o romancista localiza também
na margem direita do Tâmega, passavam a estação
calmosa, segundo a novela, aquelas fidalgas — duas
irmãs velhas e feias — com seu mano desembarga-
dor aposentado ; gente nobre e antiga, do Arco de
Baiilhe.
Este é. realmente, o nome duma freguesia do con-
celho de Cabeceiras.
Romanceia Camilo que, na ocasião em que o Bra-
gadas entrou à presença dasj[idalgas, estavam elas
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 115
e o desembargador a jogar a bisca sueca com o có-
nego da Sé de Braga. João Correia Botelho.
Camilo viu um dia o retrato deste cónego na ga-
leria dos benfeitores do hospital de S. Marcos, da-
quela cidade, e ou pôde averiguar que o cónego era seu
parente ou pelos apelidos lhe pareceu que devia ser.
Eu não posso afirmar nem contestar que o fosse.
Apenas cheguei à certeza de que o padre João
Correia Botelho tinha sido, em 1814. abade de Vila
Chã — não sei qual, porque há várias — talvez Vila
Chã da Montanha, freguesia do concelho de Alijó,
distrito de Vila Real : sendo, depois, cónego magis-
tral na Sé de Braga e lente proprietário duma ca-
deira na faculdade de teologia em Coimbra. ^
Camilo, introduzindo no segundo volume da no-
vela uma pessoa que realmente existiu e que êle
reputara seu parente, obedeceu à influição benéfica
da velhice mansa e compassiva, representando-se
agora no cónego Correia Botelho, que fala erudita-
mente como êle, que propõe para a engeitadinha o
nome de Maria Moisés, que lhe lega quatro mil
cruzados, e que se despede dela pelo modo que. em
versos conhecidos. Camilo se despediu da sua se-
gunda mulher e dos seus dois filhos.
' Almanach de Lisboa para o anuo de 1823.
116 A PRIMEíRA MULHER DE CAMILO
Diz O cónego a Maria Moisés, na frase do ro-
mancista :
«De vez em quando. Maria, vem sentar-te aqui
onde agora estamos, quando eu já estiver dormindo
o somno eterno, e imagina que me ouves estes con-
selhos que te deixo.»
E' a mesma preocupação espiritista de Camilo sobre
a evocação dos mortos pelos vivos que os recordam.
Assim o disse êle escrevendo numa composição
dispersa :
Quanòo a Acácia ôo Jorge ainòa outra vez inflore,
Chamae-me, que eu òe abril nas auras voltarei.
E ainda quando, noutra composição, pede a D.
Ana Plácido que o chame, o evoque, depois de morto :
Ao voltarem òe abril as rosas linòas
E as arvores vestirem suas galas,
De mim te lembrarás.
Que tu bem sabes, filha, quanto eu era
Amante òos festins òa primavera,
Das rosas e lilaz.
Depois irão teus olhos òivaganòo
No òoce azul òos céus e, talvez, triste,
A' terra os voltarás. . .
E venôo em òerreòor a soleòaòe.
Bem poòe ser que òigas com sauòaòe :
<Camillo 1 aonòe es^ás ?»
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 117
Ocorre-me agora, a propósito, um diálogo teatral
de Maurício Maeterlinck :
« TyLpyL — Vous dormez tout le temps . . .
^Grand Papa Tyl — Ouí. nous dormons pas mal,
en attendant qu' une pensée des Vivants nous ré-
veille ... Ah 1 c'est bien bon de dormir, quand la
vie est finie . . . Mais il est agréable aussi de s' éveil-
ler de temps en temps.»
Chamae-me, que eu òe abril nas auras voltarei.
Como os belos espíritos se harmonizam !
A enjeitadinha encontrou padrinhos na família da
quinta de Santa Eulália e o baptizado fez-se na igreja
do Salvador á mesma hora em que os sinos de Santo
Aleixo dobravam pela mãe.
Uma das fidalgas, a madrinha de Maria Moisés,
protegeu-a em vida e deixou-lhe em testamento cinco
mil cruzados, representados na quinta de Santa Eu-
lália.
O cónego Correia Botelho, por morte dos padri-
nhos, mandou, como tutor, educar Maria no convento
das Terezinhas em Braga.
Ela concentrou-se menos na meditação das fór-
mulas conventuais que na estreme piedade ensinada
por Jesus Christo.
118 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Engeitada, o seu pensamento constante era valer
a engeitadinhos.
Saindo do convento, com a íntima resolução de
não voltar para lá, passou um verão em Santa Eu-
lália, acompanhada pelo tutor.
Foi então que ela lhe revelou o seu plano.
O cónego, sem a contrariar fundamentalmente,
expôs-lhe os encargos e demais inconvenientes dessa
filantrópica resolução.
Maria Moisés insistiu.
« — O meu desejo, disse ela, é dar aos enfeita-
dos a caridade que eu recebi.
« — Mas tencionas procural-os ?
« — Isso não : espero que a divina Providencia os
leve onde eu estiver.»
Passados alguns dias, o caseiro da quinta, que
era ainda o velho Francisco Bragadas, contou-lhe que
a moleira da Trofa tinha morrido «de cambras» dei-
xando dois filhos sem amparo.
Logo Maria Moisés os recolheu em sua casa.
Todos os anos a romaria de S. Bartolomeu em
Cavez é tragicamente assinalada por mortíferos com-
bates entre rapazes do Minho e de Trás-os-Mon-
tes.
Sucedeu que, por esse tempo, uma das vítimas
fora o noivo prometido daquela filha do Bragadas,
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 119
que a mãe estava amamentando quando o marido
chegou com a engeitadinha no berço.
Tinha, pois, esta rapariga quase a mesma idade
de Maria Moisés, que desde a infância se lhe afei-
çoara muito, e que a levou para a sua companhia e
a acarinhou fraternalmente em seguida ao morticí-
nio de Ca vez.
Era uma «guapa moça» e chamava-se. . . Joa-
quina — como a primeira mulher de Camilo.
As afinidades ressaltam, não intencionalmente pro-
curadas, mas espontaneamente sugeridas pela sau-
dade, subtil aroma que suaviza a memória dos tris-
tes.
Ambas, Joaquina Bragadas e Joaquina Pereira,
receberam o mesmo nome, eram mulheres estatuária-
mente perfeitas, e sofreram as penas dos corações
constantes.
«Uma noite, acorçoada pelo amoroso desvelo de
Maria, a filha do Bragadas, com mais lagrimas que
expressões, revelou que estava perdida, porque o
pai de seu filho já não podia remediar a sua des-
honra.
«A engeitada quedou-se a olhar para Joaquina
com muita tristeza e espanto. Do seu próprio nas-
cimento inferia ela uma desgraça semelhante á de
Joaquina ; mas o pudor, a religião, a repugnância
120 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
congenial da sua vida pura soffreram uma dor in-
tima com a inesperada confissão. O coração decerto
as tinha, mas não llie inspirou de prompto palavras
confortadoras. Separou-se d'ella fundamente magoada
e pensativa ; mas não adormeceu. Alta noite ouviu
ringir a porta do quarto de Joaquina. Ergueu-se al-
voroçada pelo presentimento de que a infeliz rapa-
riga ia matar-se. Não a encontrou no quarto : correu
á porta da sala de espera que ella nesse momento
abrira. Reteve a desvairada, e disse-lhe abraçando-a :
« — Onde vaes ?
«Joaquina, com a vista vaga e turva de quem
chorou até que a demência lhe seccasse as lagrimas,
sentindo-se apertada ao seio d'aquella a quem se con-
fessara mãe deshonrada e perdida, balbuciou :
« — Não diga a ninguém a causa da minha morte,
que meu pae está muito acabado; e, se elle o sou-
ber, morre de paixão. . .
« — Falia baixinho, que não ouça o sr. cónego —
disse Maria apontando para o quarto do hospede. —
Vem para o meu quarto. Joaquina, e lembra-te que
eu sou aquella engeitada que teu pae poz no coUo
de tua mãe quando tu lá estavas. Vem ; e, se és mi-
nha amiga, não chores, nem me assustes.»
Maria Moisés planeou o modo de ocultar a Fran-
cisco Bragadas a deshonra da filha. Saiu com Joa-
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 121
quina para Braga a passar ali os meses de inverno,
sob pretexto de frequentar as suas amigas de con-
vento.
Confiou ao caseiro a guarda dos seus pupi-
los, e só voltou com Joaquina na primavera se-
guinte,
Vinha também uma criança que Maria Moisés ti-
nha adoptado em Braga.
O caseiro achou que a caridade da senhora era
excessiva e acabaria por empobrecê-la irremediavel-
mente.
Joaquina ouviu o pai com os olhos marejados de
lágrimas.
Francisco Bragadas nem por sombras suspeitou
que aquela criança fosse seu neto.
Quando o cónego Correia Botelho faleceu em
1836. as despesas de Maria Moisés com os engei-
tadinhos iam já aumentando muito pela afluência
deles e das respectivas amas de leite que, segundo
dizia o Bragadas, eram as próprias mães. desaver-
gonhadas e comedoras,
A caridosa Maria começou a pesar as saas res-
ponsabilidades financeiras e, temendo não poder com-
portá-las, pediu a pessoas abastadas que a auxilias-
sem procurando colocação para os engeJtados mais
crescidos.
122 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
O abade de Pedraça (Santa Marinha de Pedraça.
paróquia do concelho de Cabeceiras) tomou a seu
cargo um deles, que mandou para o Brasil, onde en-
riqueceu.
Em outra NoveíLa do Minho, intitulada O filho na-
tural, Camilo faz-lhe referência e traz ao diálogo o
nome de Maria Moisés. No fundo da página põe esta
nótula :
«A próxima Novella dará ampla noticia de Maria
Moisés.»
Isto prova que a novela deste último título já es-
tava tracejada no espírito de Camilo quando o roman-
cista escrevia O filho natural. Era uma florescência
de recordações que êle contemplava dentro da sua
alma no retrospecto da saudade e que emoldurava,
como grinalda de escabiosas, a imagem longínqua
de Joaquina Pereira. Essas recordações persistiam
mentalmente, fasciculadas, entretecidas numa só
ideia fixa : apenas esperavam o momento em que
as palavras lhes dessem vida exterior.
Camilo, tomando o compromisso, obrigou-se a si
próprio a vencer aquelas hesitações com que sempre
encaramos de frente um assunto que nos é querido,
mas que nos fará sofrer muito durante o labor de
corporizá-lo literariamente.
Agora já vem próxima, na sequência do entrecho
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 123
da novela, uma frase de Camilo que é bem o re-
flexo da sua alma tanto mais dolorida quanto mais
ele envelhecia.
António de Queiroz e Menezes, o esbelto cadete
de outrora, regressara da América em 1850, refor-
mado com a patente de general brasileiro, saciado
de honras militares, mas tão desfigurado pelas suas
longas barbas brancas e faces angulosas, que nin-
guém o poderia reconhecer facilmente.
« O general — diz textualmente Camilo — chegou
inesperadamente, recolheu-se á casa onde nascera :
e tão funda amargura o avassallou que se arrepen-
deu de voltar á terra natal, onde lhe entraram redi-
vivas e pungentes ao âmago da alma as recor-
dações de Josefa de Santo Aleixo, — a sombra
plangente que lhe seguira todos os passos da
vida,»
Esta frase define a longa amargura que outra
sombra plangente, a de Joaquina Pereira, deixara
por sua vez na alma de Camilo como um sulco pro-
fundo de remorso íntimo ou de tristeza indelé-
vel.
E aqui nos torna a lembrar aqueloutra frase que
o romancista proferiu em voz alta na presença de
parentes e amigos :
— Esse casamento foi uma infâmia.
124 A PRIMEIRA MULHtR DE CAMILO
Plangente era também a sombra de Joaquina Pe-
reira, como a de Josefa de Santo Aleixo, porque a
pobre camponesa de Friííme lamentaria ainda alem
da campa a torturante situação em que vivera neste
mundo.
Casada por amor, arrebataram-lhe o marido. De
modo que nem era solteira, nem casada, nem viuva.
Mas fora sempre esposa fiel. com o rosto nunca en-
xuto das lágrimas da viuvez, que tanto valia no seu
coração leal a ausência do marido.
E, contudo, a culpa deste abandono não era sua,
nem dele.
Assim como o morgado velho de Cimo de Vila
fora estorvo à felicidade plena do filho e de Josefa,
também Sebastião Martins dos Santos impedira, com
errados cálculos e programas, que sua filha e Ca-
milo pudessem viver como bem-casados, numa inti-
midade sem Mentor, numa alegria juvenil, que
triunfaria da pobreza.
Quando Camilo voltou a Friúme, chamado pela
mulher sob pretexto de doença, estava ainda na mão
do sogro reparar os seus primeiros desacertos de
mal-avisado guia conjugal.
Aconselhasse a ida de ambos para o Porto, subsi-
diando-os dentro de suas posses.
Eles viveriam em qualquer mansarda da rua Es-
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 125
cura ^ ou quejandas, uma vida de estudante po-
bre, fazendo Camilo o seu curso de medicina, tendo
por estímulo ao trabalho uma linda e dedicada mu-
lher, que, por nascimento e educação, cuidaria mais
da casa e da filhinha que de distracções e vestidos.
Camilo ter-se-ia formado, o que não o impediria
de cultivar ao mesmo passo a medicina e a litera-
tura, como sucedeu mais tarde com Júlio Diniz.
Mandá-lo sozinho para o Porto foi desgraçar Joa-
quina Pereira, desorganizar uma família, que nunca
chegou a solidarizar-se,
O general António de Queiroz apenas encontrou
vivo um dos seus amigos. Fernando Gonçalves Penha.
da casa da Temporan. aquele mesmo que, trinta e
oito anos antes, tinha mandado a caseira dizer a Jo-
sefa que fugisse para a quinta do Enxertado.
Foi por este amigo que o general colheu algumas
impressões sobre a morte da sua amada e a ime-
diata aparição da criança no berço flutuante.
Segundo Gonçalves Penha, o antigo cirurgião admi-
tia a hipótese de não ter havido suicídio, mas de-
sastre por congestão quando Josefa ia a fugir com a
criança para a margem esquerda.
' Em 1843-1844 foi numa água-furtaòa òesta rua que mo-
rou Camilo quanòo estuòava química.
126 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
A isto contrapôs António de Queiroz que o parto
ainda deveria tardar um mês ao tempo em que a
pobre rapariga morreu.
Gonçalves Penha replicou que o cirurgião tam-
bém admitia a hipótese de ter Josefa experimen-
tado um forte abalo no momento em que, julgan-
do-se abandonada, o amante lhe mandara propor a
fuga.
E prometeu averiguar, pelos filhos da sua fale-
cida caseira, qual tinha sido a quinta que recebeu
a criança.
No outro dia o general saiu de casa pela primeira
yez e dirigiu-se sozinho para a beira do Tâmega.
Chegando á margem, parou defronte da Insua.
«Era alli — escreve Camilo — que Josepha espe-
rava o juvenil aspirante embrenhada no choupal. Um
conhecido amieiro de tronco esgalhado em ramos re-
curvos já não existia. Nesse logar estava uma aze-
nha, com uma barca de passagem amarrada a uma
argola de pedra chumbada na parede. >-
Sempre a recordação saudosa da Insua tão vivaz
no espírito de Camilo . . . como no do suposto ge-
neral brasileiro.
Apareceu a moleira, que ofereceu a António de
Queiroz passá-lo na Jbarca e que, durante a traves-
sia, lhe falou, à conta de sua pobreza, na benfazeja
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 127
senhora de Santa Eulália, amparo de todos os en-
£eitadinhos.
— Não conheço, disse o general.
E antes de saltar em terra prometeu esmolar a
barqueira.
Depois seguiu pela margem direita até ao prin-
cípio da Cangòsta do Estevão.
E'-nos preciso ouvir mais uma vez o depoimento
escrito, melhor direi, o depoimento autobiográfico de
Camilo.
«Como ia fatigado, sentou-se. enxugando o suor.
na fraga a que o moleiro encostara o cadáver de Jo-
sepha, e lembrou-se que alli mesmo haviam estado
sentados ambos em uma tarde de julho. Em baixo
murmurava a corrente agitando as franças dos sal-
gueiros, coaxavam as rans, e ás vezes una scalo de
ventie prateado saltava á flor d'agua. ELLe parecia
ver e ouvir ; mas via e ouvia no passado o rosto e
a voz de Josepha, e embebia no Lenço as Lagrimas. »
Camilo, para ver e ouvir Joaquina Pereira, não
precisava ir a Friííme. nem queria ir para ocultar a
fragilidade de ter casado aos dezasseis anos com uma
camponesa. Mas via-a e ouvia-a em toda a parte, es-
pecialmente na solidão meditativa de Seide. entre
pinheirais gementes, que lhe uivavam recriminações.
E não só a via e ouvia, a ela. mas também re-
128 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
cordava, passo a passo, os lugares que a evocavam :
a Insua das entrevistas, a fraga da beira do rio, o
coaxar das rãs. os pulos dos escalos, a Cangôsta do
Estevão, que não é uma fantasia, conquanto hoje seja
conhecida pelo Quelho da Barca.
E' que, na Maria Moysés, toda a nomenclatura
topográfica corresponde à realidade, se exceptuar-
mos talvez a localização da quinta de Santa Eulália
na margem direita e mais duas referências : Agra da
Cruz, que poderá ser a quinta dos Agras, e Vendas
Novas, que é Venda Nova.
Tudo mais está certo: o Bravio do Pimenta, que
foi cultivado e passou a denominar-se Conquesturas ;
o Campo da Lagoa ; a Encruzilhada do Mato, onde
ha. realmente, uma caixa das Almas : a Temporan.
onde existe uma capela vinculada que pertenceu ao
conde de Basto : as poldras, a azenha . . . tudo. tudo,
enfim, recordado saudosamente, doloridamente, te-
nazmente, como se não houvessem já decorrido mui-
tos e trabalhosos anos.
Nem sequer lhe tinham esquecido certos indiví-
duos que lá conheceu e que por sua profissão se ha-
viam popularizado.
Está neste ca^o o boticário-curandeiro de Friú-
me, assim como o Figaro da Venda Nova.
Confrontemos esta viveza de reminiscência com
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 129
algumas truncadas frases de Camilo, recolhidas em
outros livros, e elas poderão completar cabalmente
a nossa demonstração ;
«... as primeiras paixões, que nos sopram a
tempestade no limpido lago da adolescência.»
(Scenas contemporâneas).
«Eu não tenho imaginação, tenho memoria, do
que vi. do que senti, do que experimentei.»
(Vingança).
^<Se a recordação é um remorso, é em testimu-
nho da nossa grandeza. Pois o remorso o que é ? E"
a reacção da virtude contra o crime ... E* o fogo
purificador que devora a macula. »
(Um livro, Vinte dias de agonia),
Por último, talvez ainda mais claro que todos, um
trecho do Romance de um homem rico :
«... quando a saudade de um sitio é a dor re-
percutida de vidas que lá viveram comnosco. essa
não tem remédio.»
E não tinha.
Está agora por pouco o desfecho da novela Ma-
ria Moysés.
130 A PRIMEIRA MULHEI' DE CaMILO
O general subiu o íngreme barrocal da Cangôsta,
entrou na aldeia de Santo Aleixo e sentou-se no adro,
onde o velho reitor da freguesia o viu e cumprimen-
tou como a um forasteiro desconhecido, mas de
aparência distinta.
Travaram diálogo e, trocadas as primeiras frases,
António de Queiroz pediu ao reitor que lhe fosse ci-
cerone na visita àquela aldeia, porque lhe parecia
muito interessante.
O pároco anuiu prontamente e ia indicando os
melhores prédios e dizendo os nomes dos respecti-
vos proprietários.
Diante das ruínas duma casa de lavrador, muito
espaçosa, o general pareceu querer reconhecer o sí-
tio e a casa.
Era ali que tinha habitado João da Lage.
Contou o reitor a misteriosa morte de Josefa, facto
anormal que impressionara a povoação, mas esqui-
vou-se a responder à pregunta do general sobre a
causa do suposto suicídio, para não fazer juízos te-
merários que desrespeitassem os mortos.
E, por observar que o forasteiro estava comovido,
notou-lho.
António de Queiroz desculpou-se dizendo :
— Todos os velhos são fáceis em chorar.
Depois desejou descer à margem do rio e. quando
A PKlMlilRA MULHER DE CAMILO 13
chegaram ás poldras, interrogou o reitor sobre a
atoarda de ter aparecido outrora a boiar no Tâmega
um berço com uma criancinha dentro.
Que era verdade, confirmou o pároco : que o facto
se dera na mesma noi te em que Josefa morreu : que
ainda vivia octogenár-o o Francisco Bragadas que
tinha descoberto o berço, e que era agora caseiro
da mesma engeitada que êle achou.
Admirou-se o general e o reitor elucidou-o :
— O Bragada^ já então era caseiro de Santa Eu-
lália e levou às fidalgas a menina que apareceu no
rio. Elas puseram-lhe o sobrenome de Moisés, em
razão de ter flutuado nas águas como o legislado^"
hebreu. Uma das fidalgas, que foi madrinha, deixou-
Ihe a quinta. E a engcitadinha saiu um anjo de ca-
ridade ; é a mãe carcável de todos os engeitados e
de todos os órfãos.
Preguntou o general ao reitor se estava conven-
cido de que a menina fosse filha de Josefa.
Novamente se escusou o pároco a fazer uma afir-
mativa, mas repetiu a coincidência da aparição de
Maria Moisés com a morte da filha de João da Lage,
Depois contou que apesar da herança da madrinha,
do legado dum bondoso cónego da Sé de Braga, e
de outros auxílios de pessoas caridosas, os recursos
pecuniários de Maria Moisés estavam tão decresci-
132 A PRIMEIRA MULHIiR DE CAMILO
dos, que ela se via na necessidade de vender a quinta,
porque já devia três mil cruzados a várias confrarias.
O general, que parecia muito agitado, abraçou o
reitor e sígnificou-lhe o desejo de recebê-lo em sua
casa.
— Mas eu não sei com quem tenho a honra de
falar, tornou-lhe o pároco.
António de Queiroz declinou o seu nome e o da
sua quinta.
Reconheceram-se : tinham sido condiscípulos. Re-
cordaram factos da infância, alegrando-se fugitiva-
mente, até que o pároco, de súbito, disse ao gene-
ral compreender agora as suas lágrimas quando viu
a casa do lavrador de Santo Aleixo.
Num impulso de nobre alma asseverou então a
Queiroz que Maria Moisés era filha de Josefa. Con-
tar-lhe-ia alguns factos e transgrediria o sigilo da
confissão por bem fazer a muitas almas. Tinha sido
chamado para confessar a mulher de João da
Lage em artigos de morte. Recolheu bem todas as
suas palavras. Ela lhe disse que a filha dera á luz
uma criança na tarde do dia em que morreu e que.
fugindo, certamente levara um bercinho encanastrado.
que desapareceu de casa. A moribunda nada mais
sabia, porque adoeceu de aflição depois da morte da
filha.
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 133
— Para mim. concluiu o reitor, está provado que
Maria Moisés é filha de Josefa.
Ao outro dia, o general, com o seu amigo Fernando
Gonçalves Penha e um tabelião do julgado, apresen-
tou-se na quinta de Santa Eulália para comprá-la.
A sua comoção era grande, e maior foi ainda desde
que viu e ouviu Maria Moisés.
António de Queiroz não fez questão de preço, e
prontamente atendeu o pedido de conservar o velho
caseiro Bragadas. Afagou treze crianças que estavam
asiladas na quinta. E quis ver o berço a que a boa
Maria se tinha referido quando dissera que fora o
Bragadas que o tirou do rio.
Estava lavrada a escritura. O general entregou a
quantia ajustada e ordenou que os rendimentos da
quinta continuariam a ser recebidos pela mesma pes-
soa que até então os recebera.
Logo, atalhando o assombro causado por esta or-
dem, com palavras de terna bondade declarou ser o
pai de Maria Moisés.
Tinha entre as suas as mãos dela. e beijou-a na
fronte,
<' Maria cahiu de joelhos, pendente dos braços do
pae : e os velhos, e as creanças ajoelharam também,
trementes e extáticos, sob a faisca eléctrica daquelle
sublime lance.»
134 A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO
Quem lê estas últimas páginas da novela entrevê
refulgências daquele divino alvor de paz e sereni-
dade que iluminava outrora na serra da Arrábida
poetas como frei Agostinho da Cruz e frei António
das Chagas, quando na solitude da sagrada monta-
nha descarregavam os erros e trabalhos de sua mo-
cidade irreflectida.
Maria Moisés é também, para Camilo, montanha
de recordações, lugar de acalmação e penitência, es-
pecialmente no segundo volumezinho, porque no pri-
meiro ouvimos ainda rugir o vendaval das loucuras
e paixões amorosas que perturbam a juventude.
Mas. especialmente depois que a alma de Camilo
cria insofridamente uma personagem para lhe dar o
mesmo nome da sua primeira mulher, aliviando as-
sim um peso da memória ou da consciência, que o
sufocava, alastra-se sobre o papel uma atmosfera de
condolência, de bondade e mansidão infinitamente do-
ces e puras.
O desfecho da novela é um poema evangélico, uma
alta lição de brandura e caridade cristãs, que se
torna ainda mais valiosa quando percebemos o seu
duplo sentido, como narrativa de supostos aconte-
cimentos e como efeito dum estado psíquico do au-
tor que os coordenou sobre um tema íntimo.
O ténue véu de mistério, que a mão de Camilo
A PRIMEIRA MULHER DE CAMILO 135
não teve a coragem de espedaçar completamente,
parece-nos tão diáfano como a gaze que no teatro
deixa entrever uma scena longínqua.
O romancista confessou-se a si próprio e não pe-
rante o grande público. A razão deste seu procedi-
mento já antecedentemente a deixamos assinalada-
Mas palavras mesmas de Camilo, nas Memoruis do
cárcere, ' confirmarão agora a razão da inviolabili-
dade que ele não quisera aluir pela base :
«Pejo ou orgulho, até dos meus amigos escondi
sempre as lagrimas.»
E foi por isso que, sobre as últimas páginas san-
tificadas da novela. Camilo dirige a Tomás Ribeiro
um post-scriptiim cuja ironia íinal é o antifaz com
que procura ocultar as lágrimas da sua emoção.
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