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PRIMEIRA PARTE
DA HLSTORLi
DE S. DOMINGOS
PARTICULAR DO REIXO E CONQUISTAS DE PORTUGAL
POR FR. L-Ul» CACEIAS
DA MESMA ORDEM E PROVÍNCIA, E CKROilISTA DELLA
REFORMADA EJÍ ESTILO E ORDEM, E AMPLIFICADA EM SUCCESSOS,
•^ PARTICULARIDADES
OU FR. luís de SOUSA
FILHO DO CONVENTO DE BEMFICA
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TERCEIRA EDICAO
VOLUME I
IISROA
TYP- DO PANORAMA— Rua do Arco do Randdra, 112.
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OE QUE ft. J- F. LOPES É EOlTOft,
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Historia dos festejos reaes por
nccasião dosdesposorio? de S.
M. ei-reiosr D. Pedr' v. Um
folheto com 10 gravuras.
M. M. B. DU BOCA
Obras com|)lclas, colligidas, >ii--
postas eannotadas por I. F. :.
Silva, e precedidas d'um estu-
do hiographico e iillcrario so-
lire o i)oela, escripto por Re-
bello da Silva, 6 vol 4:320
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1 vH. 8." ir ; '■
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actos 1 voi. S.Tr -320
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Minhas Lembranças, poesias... ' H'
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Um Visco, c. em 2 actos. IGO
Seenas de familia, c. em 2 actos. 320
A Dúplice exi.slciicia, e. em 4
actos 24fr
A Probidade, c cm 2 actos e 1
prologo, 2.' ed 300»
Os Filhos dos trabalhos, J. em
4 actos ■ 360
PRIMEIRA PARTE
DA
HISTORIA DE S. DOMINGOS
PRIMEIRA PARTE
DA fflSTORIA
DE S. DOMINGOS
PAUTICllAR DO REIXO E COXQUISTAS DE PORTUGAL
POR FR. I^LIS CACECAS
DA ryiESiyiA ordem e província, e chronista della
REFORMADA EM ESTILO E ORDEM, E AMPLIFICADA EM SUCCESSOS,
E PARTICULARIDADES
POR FR. luís de SOUSA
FILHO DO CONVENTO DE BEMFICA
TERCEIRA EDICAO
VOLUME I
LISBOA
TYP. DO PANORAMA— Ku3i do Arco do Bandeira, 312.
M DCCC LXYI.
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V,
A EL-REI N()88() 8EXH0R
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Novo género de Crónica oíTerece a Vossa Majestade minlia Religião
por mi n'este volume, que a seus Reais pés tenho : d'aquelles santos,
e valerosos Reis Portugueses, dos quais V. M. tem o sangue, e possuo
a Coroa, que largos annos felicissimamente possuirá. Crónica verdadeira,
e certa, não dos climas novos, e mares nunca navegados que descobri-
rão, nem das batalhas que vencerão, nem dos Reinos que conquistarão: ■
mas só da pureza de fé, com que por todas as idades buscarão aDeos,
do zelo, e fervor, com que se empregarão em o servil-, da liberalidade,
e magnihcencia, com que agazalharão, enriquecerão, e honrarão todas as
Religiões, em que seu nome lie venerado. E isto não ha duvida, que vai
mais que conquistar, que vencer, que triunfar. Porque, na verdade, as
correntes das vitorias, e as enchentes das riquezas, que d'ellas procede-
rão, não teverão origem n"outras fontes. Juntou Deos na Coroa de Es-
panha, e em mão de V. M. a maior, e mais dilatada, e mais opulenta
Monarquia, que nenhum Príncipe do mundo, desde seu principio, até
nossos tempos possuio : e esta, pêra mostrar, que só era dadiva sua, não
quiz, que fosse ganhada com os milhões de homens dos exércitos de
Xerses, cuja multidão secava os rios, as setas no ar fazião nuvens, que
tolhião o Sol, as Armadas lancavão pontes de Ásia a Europa : mas com
poucas nãos, que sairão de Sevilha, deu ao Católico Rei dom Fernando
de gloriosa memoi'ia hum mundo novo, terras tão largas, que correm
de Polo a Polo por iníiniío numero de legoas, tão ricas que os rios cor-
rem por ouro, as entranhas dos montes são prata, as serras esmeral-
das, as praias do mar pérolas. Da mesma maneira fez qne poucas nãos
que sairão de Lisboa, ganhassem pêra el Rei dom Manoel, e por seu
meio pêra V. M. o Senhorio do Oriente, vencidos os medos, e tempes-
tades do Cabo Tormentório com navegação tão espantosa, que de louca,
e desasizada lhe derão nome os estrangeiros desaífeiçoados de Espanha,
perdendo o tino da verdadeira estimação das cousas, ou com o pasmo
VI
d"ella, ou com a enveja (não quero dizer raiva), que lhes fazia, verem
que os grilhões, que o vão Xerses mandava cm huma occasião lançar ao
estreito mar Mediterrâneo, recebia, e sofria de mão de poucos Portu-
gueses o vastíssimo Oceano. Preza-se Deos de honrar, e galardoar nos
illhos, e successores a virtude, e merecimentos de pais, e avós. Forão
estes dous Príncipes decendentes de Reis santos, e religiosíssimos : de
hum Ranymiro, que em graças de huma vitoria de Mouros, fez tributa-
ria com voto Espanha toda ao Apostolo Santiago, e a sua Igreja : de
hum dom Afonso Enriquez, que prometeo, e deu a S. Bernardo, e á sua
Ordem posto sobre huma alta serra tudo quanto alcançou com os olhos
alé os Orizontes : tão pio, e generoso, que não edificando nunca pêra si
casa, as que deixou feitas pêra Deos assombrão as grandezas do tempo
presente com a capacidade, com a architectura, com a grossura de ren-
das. E sendo tais estes dous Reis, forão igualados, por não dizer ven-
cidos, de muitos, que d'elles procederão até V. M. He estreito o campo
pêra falar de todos : digamos de hum Filippe primeiro em Portugal, se-
gundo no resto de Espanha, que na mesma conjunção, que os hereges
de França Aizião guerra ás sepulturas dos Santos, queimando seus ve-
neráveis ossos, e dando-lhes na terra fria d"elles o martyrio, que vivendo
desejarão por Christo : entra polas portas de Toledo com as Relíquias do
Santo Prelado Eugénio, sobre seus hombros trazidas de muito longe, e
com grande despesa : e em tempo que Alemanha, e Inglaterra profana-
vão as Aras, roubavão, e assolavão os templos, levanta hum tão famoso,
(jue do mundo he oitava maravilha, oitava em numero, primeira em ca-
lidade. Digamos de hum dom João Terceiro de Portugal, tão inflamado
em amor do culto Divino, que a elle deve a Igreja Católica a dilatação
da Fé por todo o Oriente muito além da Áurea Chersonesso, e até á
ultima China, e Japão, províncias, que os antigos nem por fama conhece-
rão : a elle deve o Oriente os triunfos de grande numero de martyres
laureados n'ellas de seu sangue, e muitas Cathedrais fundadas por toda
a índia, que a Sé Apostólica provê, as rendas Reais sustentão : a elle
deve Portugal as letras, e doutrina das universidades, a observância, e
reformação de todas as Religiões. Não he logo maravilha que a Omni-
potência Divina por hum Oííir, que nos tempos muito antigos deu em
comercio a hum filho de hum Rei Santo, guardasse dous pêra os dar a
Y. SI. em posse, hum na índia Oriental, outro na Occidental, sendo fi-
lho, e successor de tantos Príncipes santos : e sobre essa grandeza lhe
desse no restante da terra tamanha parle, que na Europa possue o me-
lhor de Itália, e muitas províncias de Alemanha : sendo em humas, e
outras o arbitro da paz, e da guerra, e escudo por huma parte contra
a potencia Otthomana, por outra contra os hereges : na Africa he senhor
de todas as cosias, e Ilhas adjacentes, até dentro à Ethiopia. Por ma-
neira que, assistindo V. M. no meio de Espanha, como em centro, e ca-
beça do mundo, está despachando Visoreis, Governadores, Capitães,
VII
exércitos, e armadas pêra Iodas as partes de sna redondeza ao mesmo
modo que o Sol as visita, e . juenta com seus raios.
Este he pois o intento, esta a confiança d"estes escritos, manifestar
ao muiido huma Historia de novo adiada (como íhezouro escondido)
dos Reis an;',,.^os de Portugal. Mandou-nos a obediência averiguar, e pôr
cm memoria os princípios, e meios, com que a Ordem de Nosso Patriar-
cha S. Domingos se fundou neste Reino. Feita a Historia, achamos, que
na sustancia he tão própria dos Reis, e Príncipes Portugueses, que se
llie tirarmos o titul» de S. Domingos, ficará mais d'elies, que d"elle : e
se lhe chamarmos Crónica Ecclesiastica dos Reis, ficará sendo toda sua
em titulo, e sustancia. Porque, se V. M. fòr servido pássaros olhos por ella,
achará, que tudo, o que contem, são obras, que elles fizerão de piedade, e
devação, altares, e templos, que levantarão. Mosteiros, e Santuários, que
fundarão em honra da Fé, e veneração do nome de Christo, com tanto animo,
e largueza, que quasi não temos casa antiga, nem moderna, seja de Re-
ligiosos, seja de Religiosas, que não deva aos Príncipes, ou a origem, ou
o augmento, ou a sustentação, ou tudo junto. O primeiro gasalhado,
que esta Ordem teve, do qual procedeo o Mosteiro dos Frades de San-
tarém, lhe foi dado pola Infante dona Sancha. O segundo, que foi em
Coimbra, por suas irmãs dona Tareja, e dona Branca, todas três filhas
do grande batalhador, e Rei dom Sancho Primeiro. Do Conver.to de Lis-
boa foi fundador em sua origem dom Sancho Segundo. A Igreja, que
hoje está em pé, edificou seu irmão dom Afonso Terceiro. O mesmo
fundou o Mosteiro de Elvas. El-Rei dom João Primeiro deu â Ordem
Ires casas : duas em Portugal, que forão a Batalha, e Bemfica, outra em
Africa. O Infante dom Pedro edificou a de Aveiro. El-Rei dom Manoel
nos deu a da Serra de Almeirim, e dotou em Lisboa o Collegio de Santo
Thomas, que hoje está em Coimbra: seu filho dom João Terceiro nos
deu Amarante: seu bisneto dom Sebastião Setuvel: e os dous Filippes
santos, que estão no Ceo, pai, e avô de V. M. nos adiantarão em renda
cada hum particularmente, o Mosteiro da Batallia, E sendo assi que as
boninas do jardim mais devem sua frescura, e belleza a quem dá o sitio
pêra se plantarem, e as fontes pêra se regarem, que ás mãos, que as
despoem, e cultivão, não ha duvida, que aos Reis estamos devendo todos
os grandes fruitos, que esta Religião tem dado de doutrina, de letras,
de pregação, de reformação de costumes, e augmento de virtudes, e até
os Santos, que tem produzido, e sua santidade. E, como só esta moeda
he a que tem valia diante do soberano Rei da Gloria, assi só a ella he
rezão, que refiramos as grandezas, com que este pequeno Reino se fez
insigne no mundo. E ficará sendo esta escritura huma Crónica de em-
presas do Ceo,- e do valor espiritual dos Reis: como as que Y. M. liies
manda fazer são dos feitos em armas, e conquistas da terra. O que me
faz ter por certo, que será de V. M. não só com benignidade olhada,
mas recebida em serviço, e amoroso reconhecimento, inda que fraco, e
VIII
pobre, da gratidão, que todas as Religiões, e Religiosos d'este Reino es-
tamos devendo á santa memoria dos Reis, e a V. M. e de que a minha
começa hoje, e he primeira a desempenhar-se. E não carece de mysterio
(como todas as cousas da terra vem traçadas do Ceo), ser V. M. o pri-
meiro Príncipe despois de tantos, e tão gloriosos antecessores, a quem
este justíssimo tributo se oíTerece : pois vemos anticipar-se tanto nos
actos de Fé, e Christandade, que o que elles fizerão despois de muitos
annos de vida, e mundo, começou V. M. a executar na hora, que entrou
poios Orizontes d'ella, e d'elle : ordenando a Divina Providencia darem-
se-lhe as sagradas agoas do Bautismo no mesmo vaso, em que as tinha
3'ecebido 434 annos antes meu glorioso Patriarcha S. Domingos : e jun-
tar-se no mesmo dia ao felicíssimo nome de Filippe o apelido santo de
Dominico. Foi isto venerar V. M. todos os Santos neste Santo : foi hon-
rar todas as Religiões n'esta Religião : foi alegrar a Igreja Catholica, e
confundir a heregia, e infidelidade em hum ponto da Santa Igreja muito
estimado, e dos hereges, e infiéis com estremos aborrecido. São os bons
]irincipios grande pronostico do futuro. Estes nos estão prometendo (não
sj pronosticando), de V. M. que ha de vencer em boas venturas todos
s us mais gloriosos antecessores, que ha de atropellar, e sogeitar com
famosas vitorias, como vai fazendo, todos os hereges da alta e baixa Ale-
manha, por mais que conjurem com elles os enemigos públicos, e ami-
gos dissimulados, e levem consigo até o sangue : e em fim, que ha de
senhorear, e dominar (como o acena o nome Dominico), toda a infideli-
dade até arvorar os estandartes da Cruz de Christo, e Liões de Espanha
sobre as torres de Constantinopla. Que pois os primeiros passos da vida
felicíssima de V. M. madrugarão tanto em beneficio, e favor da verda-
deira Religião, como já temos visto : e os de seu governo cnnformão
tanto com os da vida, que por remedear Catholicos afligidos, inda que
estranhos, e não de sua precisa obrigação, oíferece liberalmente nobilís-
sima parte de seu sangue, não pôde faltar a mão omnipotente, e libera-
lissima do Senhor em recompensar tão santos, e altos espíritos com
alegres, e venturosos fins de todas as empresas, e pensamentos de V. M.
e com llie dar largos, e prosperissimos annos de vida pêra grande bem,
e augmento da Christandade, e gloria de seus Reinos, como todas as Re-
ligiões, e Religiosos com orações continuas lhe pedimos, D'este Convento
de Bemfica, ultimo dia do anno de 1C23.
Fr. Luís de Soui^a.
PROLOGO
AOS RELIGIOSOS DA OUDEM DE S. DOMINGOS
Tenção tinha de escusar este prologo, e não despender tempo nem
i^apel em dar contas ao Leitor, por mais cândido, e benévolo que che-
gasse a ler-nos. Sei que se não grangea perdão, se ha de que o pedir,
como sempre ha. Sei que ninguém levanta a lança, se acha que calum-
niar. E se o Prologo não he mui apontado, quem quer se faz juiz pêra
condenar por elle toda a obra. Assi determinava satisfazer ao costume
com as poucas regras, que no primeiro capitulo abi-em a porta á Histo-
ria, como já fizemos em outra occasião : mas tirão-mc de meu sentido
pareceres alheios: e fazem-me força, porque não ha defender despois de
consultar. Querem que demos rezão de algumas cousas, se nao a lodos,
ao menos aos meus. He primeiía a contradição, que representa o titulo
do livro propondo a hum só trabalho, e não o maior do mundo, dous
Autores: hum morto, cT outro vivo: hum á Historia, outro ao estilo :
lium feito Cronista, outro reformador : e parecia bastante ver-se qual dos
feitios pesava mais, e dar-se o nome ao de mais sustancia. Sabemos de
Tito Livio entre os Latinos, que se aproveitou tão particularmente dos
escritos de Polybio (írego, quo ao pé da leti'a treslada d"elle livros in-
teiros. Valeo-se Damião de Góes entre os nossos, pcra a Crónica dei Rei
dom Manoel, dos trabalhos de Ruy de Pina, e Fernão de Pina, seuíilho,
que a tinhão quasi toda feita fconfessa-o elle lã em hum canto d"ella,
pudera-o fazer no rosto.) Assi se fizerão ambos donos do suor alheio,
mas com justíssima causa : porque, servindo-se do que acharão nos an-
tecessores só pêra informação, era demasiada liberalidade communicar
ao informador o nome de Autor. Não faltou quem com tais exemplos
nos obrigava a cortai- duvidas, o fazer o livro em todo nosso. E havia
mais rezões por minha parte. Porque tudo, o que o Padi-e Frei Luis
Cacegas deixou escrito, he hum monte de cousas indigestas, e informes :
o modo de dizer ao antigo, pouco jiolido, e falto de arte, e qual se conta
que foi o do Romano Ennio, com lhe sobejar engenho : Ennius ingenio
iiiaximus, arte rndis. Falo assim sem mais salvas nem rodeos ; porque
X
escrevendo, como escrevo, entre os que o conhecerão, e tratarão, e ú
vista de seus papeis, que temos vivos, sei que lhe não faço oíTensa. Foi
este Padre bom Letrado Theologo, giande amigo dos livros, e de ter
muitos, e muito bons : e, o que vai mais que tudo, essencial religioso.
Viveo largos annos, e passava dos setenta, quando faleceo. D'estes gastou
mais de vinte em andar poios Conventos da Piwincia desentranhando
Cartórios, revolvendo pergaminhos, investigando antiguidades : e tudo,
o que em fim nos deixou, são, como dissemos em outra parte, mate-
riais pêra edificar mnis, que edificios feitos. E esta foi a causa, porque
os Pielados me mandarão fazer obra d'elles ; que foi o mesmo, que cons-
tituir-me por Autor, e architecto do que fizesse. Mas que conta daría-
mos da humildade, e modéstia da Religião, a que a Misericórdia Divina
nos trouxe ao pôr do sol da vida, se não houvéramos de fazer contas
mais desinteressadas? Voz foi do Ceo a que fez a Arsénio constante mo-
rador do deserto : Fuge, qniescp, et tace : Foge, assossega, e não fales (1).
E pêra o repouso corporal soube aconselhar o mesmo hum Gentio, di-
zendo : Ama nesciri : Procura que ninguém te saiba o nome. Se fogimos
huma vez, pêra que he tornar a povoado,' nem por letra ? Se ha de ha-
ver quietação, se silencio, de que serve ser lido, e ouvido por todas as
praças, e falai' nellas não menos que com livros inteiros ? Isto he o que
me obrigou, estando vivo, e são, a dar o meu trabalho, vida, e nome ao
Padre Gacegas, defunto de sete annos. Se me perguntão, porque o fiz de
meãs, e não inteiramente (que fora perfeita liberalidade), respondo com
huma só palavra. He próprio da Religião o que está escrito: Nemo nos-
ínimviuit sibi (2): fui mandado, obedeci. O titulo de Reformador, que re-
presenta mais ambição, não desculpo, porque alem de se fundar em
verdade, assaz humilhado fica, não só temperado, com o segundo lugar,
que o outro nem em Roma queria.
Segue apoz a controvérsia do titulo, outra não pequena no discurso
da Historia. E he que começando a geral da Ordem o famoso pregador,
e mestre o Padre Frei Fernando de Castilho, e proseguindo-a o Reve-
rendíssimo Senhor Bispo de Monopoli, e escrevendo ambos com grande
cuidado, e diligencia de sua parle, e com grande credito, e honra d'esta
Província no particular, que tocão delia, todavia se offerecem encontros,
e variedades entre a sua escritura, e esta nossa, em nomes de pessoas,
de lugares, e Conventos : huns trocados, outros tão disfarçados, que se
íazem escuros, e mal entendidos alA pêra os que somos naturais. Seja
exemplo no Padre Frei Fernando o nome do primeiro Provincial de Es-
panha (3) constiluido nella da mão de nosso Santo fundador, que huma vez
Uie chama Frei Gomes, e outra Frei Sueiro, e não lhe dá nacimento,
sendo cousa bem achada ser Portuguez, como o confessa na sua Quinta
parte o senhor Bispo (4). Seja exemplo no Senhor Bispo chamar Petragoria
(1) Surius. t. 4. f. 230. (2) Ad Roman. 14. (3) P. 1. 1. 1. cap. 25. Idem p. 1. 1. 2.
c. 1. [i] P. 5. 1. 2. c. 32. Idm p. li. I. 2. c. 3í.
XI
ao Convento do Pedrógão, chamar dei Salto ao da Serra, de Almeyta ao
de Almada, com mais alguma variedade em successos, e na computação
de annos, e tempos : venialidades causadas humas das informações se-
rem ou Latinas, ou mal declaradas: outras de descuidos da impressão,
que temos nesta parte muita falta em toda Espanha. E por esta rezão
passamos por ellas no discurso da Historia, sem apontar nem contradi-
zer: e só fazemos aqui esta advertência pêra que quem com algumas se
embaraçar recorra a este nosso trabalho, como a commento de ambos.
Porque na verdade nos aconteceo a todos três o que he ordinário a quem
toma agoa na fonte, em que está pura, e limpa, como eu a tomei: ou nos
regatos, onde em cor, e sabor vai já inficionada da terra, por que passa,
como elles a tomarão. E com tudo não haja ninguém, que por estas cou-
sas leves, e vizinhas faça jnizo temerário contra as graves, e afastadas,
que escrevem. Porque, se a vizinhança causa ás vezes algum descuido, a
distancia maior dos lugares, e o peso das que importão, esperta, e aviva
o cuidado de sorte, que por sem duvida podemos ter, que ha em todas
grande certeza. Por onde estamos em muita obrigação a ambos : mas em
maior ao Senhor Bispo, que mais tempo, e mais aturadamente tem tra-
balhado em honra da Ordem.
Resta animarmo-nos todos huns aos outros, e lembrarmo-nos que,
sendo qualquer historia mestra da vida, esta, que he de Santos, que fo-
rão nossos irmãos, e companheiros, não só nos deve servir de mestra,
mas de hum espelho cristalino, e puro, a cuja vista enfeitemos, e com-
ponhamos a vida, e costumes, estimando sua santidade, não pêra nos
vangloriarmos nella, senão pêra a imitarmos, conforme à sentença do
Komano, que tratando da obrigação que fazem os retratos dos homens
valerosos a seus descendentes : Idcirco, diz, in prima mliiim parle poni
soiere effigics maiorum, ut eorum virtutes fosteri non soluiii legerent, sed
etiam imitarentur. (\)
Valrfp fpJices.
Frei Luís de Sousa.
(1) Valer. Ma\. 1. :;. c. 8.
LICENÇAS
DA OUDEM.
Comecei a ver este livro do Padre Frei Lu is de Sousa, que he a pri-
meira parte do que toca a esta nossa Provincia de Portugal ; e sendo
pi-incipio de o ler curiosidade, e gosto mais que obrigação, juntou-se
maiidar-me o nosso Padre Provincial, que fosse eu hum dos revedores
pola Ordem : o que me obrigou a novo cuidado. E fazendo juizo em ri-
gor, acho, que temos nelle não só pêra nossa Ordem, mas pêra todo este
Reino de Portugal dous ricos thesouros, hum de santidade, e verdadeira
Religião de infinitos varões, que esta terra, em que nascemos, produzio
pêra o Ceo, e lá estão roganrlo a Deos por nós : outro de excellencias
de estilo, e lingoagem : estilo grave, elegante, e sentencioso, com bre-
vidade, e clareza juntamente, que em poucos se acha : lingoagem natu-
sal, corrente, e cortezam, com termos tão próprios, tão significativos, c
eííicazes, e longe de affeites, e íH-tificios viciosos, que sem encarecimen-
to podemos aífn-mar, que dos livros, que até o presente são escritos em
Portuguez, nenhum se achará de mais policia, e perfeição. E atrevo-me
a dizer, que, assi como a lingoagem Castelhana está em sua pureza nos
escritos do nosso Padre Frei Luis de Granada, e quando acertasse de
se perder, podíamos por elles restaural-a, segundo foi opinião de hum
bom espirito de seu tempo : nem mais nem menos temos neste volume
enthesourada a Portugueza, e em gráo tão subido, que não ha desejar-
Ihe mais fineza, nem mais graça, e gravidade. E, o que mais admira, he,
que em tanto papel escrito, e tanta variedade de cousas, nem hum só
vocábulo lhe acho tomado de lingoa estranha, nem ao perto nem ao lon-
ge, como muitos indignamente vão fazendo : com o que faz evidente, que
não he paradoxo, mas demonstração ser a lingoagem Portugueza tão
abundante de palavras, tão rica de bons termos, e pola mesma rezão tão
perfeita, como a melhor de Europa. Por onde me parece que com toda
a brevidade se deve imprimir esta Historia, como espelho de santidade,
e virtude pêra os devotos, e como forma, e modello de bem escrever,
e falar pêra estudiosos. Ém S. Domingos de Lisboa, IG de Setembro do
Fr. Agnslinho de Sousa. <^
XIII
Por mandado do nosso muito Reverendo Padre Provincial, o Padre
Mestre Frei Diogo Ferreira, vi attenta, e curiosamente este livro intitu-
lado a Primeira parte da Historia de S. Domingos, particular do Reino,
e Conquistas de Portugal, ordenada, e reformada pelo Padre Frei Luis
de Sousa, Portuguez, Religioso professo da Ordem dos Frades Pregado-
res, e fdho do Convento de Bemfica nesta Província de Portugal : nella
achei muita verdade nas matérias, muita gravidade no tratal-as, muita
pureza nas palavras, muito suave, e agradável estilo no dispol-as, e or-
denal-as, de que o Autor singularmente he dotado. Pelo que toda a His-
toria assi deleita os ouvidos, que por elles introduz na alma huns fervo-
rosos desejos de imitar varões tão santos, como o leitor achará a cada
passo. E está o livro tão cheio d"esta celestial gente, que mais parece ca-
thalogo de Santos, que narração de cousas já passadas, as quais a his-
toria tem por fim fazer presentes com sua representação, e lição. Esta
he mui curiosa, mui santa, mui aprazível, e cheia de muito espirito do
Ceo. Por onde me parece mui digna de se mandar á estampa, e sair a
luz, pêra honra da nossa sagrada Religião, e grande utilidade espiritual,
não só dos que professão a vida religiosa, mas Christam. Antes nos po-
demos gloriar de que a nossa idade nos desse na nossa Piovincia hum
tão illustre individuo, que com seu illustre estilo illustrasse varões tão
illustres em santidade, fazendo que se conheção no mundo os que a an-
tiguidade do tempo, e a incúria dos homens tinha posto em esqueci-
mento. E assi merece o nome íseja-me licito assi falar), de hum novo,
e santo Tito Livio das heróicas proezas dos antigos, e modernos heroes
de virtude, como na Historia verá o devoto, e curioso leitor. Em S. Do-
mingos de Lisboa aos 18 de Setembro de 1022.
Fr. Thomas de S. Domingos Magister.
DO PADRE PROVINCIAL.
Nós Frei Diogo Ferreira, Mestre em santa Theohgia, Consultor do
Santo Ofpcio, e Prior Provincial da Ordem dos Pregadores nos Reinos de
Portugal, etc. Vista a approvação dos Padres Revedores, damos licença
ao Padre Frei Luis de Sousa pêra imprimir esta Primeira parte da His-
toria d'esta Procincia. E lhe mandamos in meritum sánctae obedientiae,
gue o imprima o mais em breve que for possível. Dada em o nosso Con-
vento de S. Domingos de Lisboa em 19 de Setembro de 1G22.
Frei Diogo Ferreira Prior Provincial.
XIV
DO SANTO OFFICIO.
Al^PROVAÇÃO DO REVEDOR.
Vi este livro da Historia do Patriarcha S. Domingos, na parle que
toca a esta Proviíicia de Portugal, composta pelo Padre Frei Luis de
Sousa. Na qual se vè por hum estilo mui alevantado, grave, o mui reli-
gioso, tratado com toda a eloquência os grandes fructos, que fazem na
Igreja Catholica, e na defensão, e pregação da Fé sagrada os filhos doesta
Provinoia sancta : os muitos Sanctos que esta sagrada Província tem dado
a Deos, a muita religião, santidade, e letras que nella ílorecera. Vê-se
mais a muita devação, fervor, e charidade dos Reis, e Príncipes de
Portugal, e nobres d'elle, com que fundarão esta santa Provinda, e ama-
rão os filhos d"ella, encommendando-lhes os negócios mais importantes
a suas almas, e bem do Reino, por saberem da sua grande religião, e
letras. Pelo que me parece livro digníssimo de que seja impresso huma,
e muitas vezes, porque se edifiquem os Catholicos, e affervorem no amor
de tão sancta religião, e se confundão os herejes inimigos da Fé. Em S.
Francisco de Lisboa, hoje 8 de Novembro de lC2á.
Erei André da Rcsurreição,
Eu Frei Thomas de S. Domingos, Revedor, e Calificador do Santo
OfQcio, vi diligentemente este livro por mandado do nosso Padre Pro-
vincial ; e a minha approvação está no principio do livro a que me re-
metto. Em S. Domingos de Lisboa, 12 de Novembro de 1622.
Fr. Thomas de S. Domingos Magister.
Vistas as informações, pode-se imprimir o livro da Historia de S. Do-
mingos, e depois de impresso torne conferido com o original para se dar
licença para correr, e sem ella não correrá. Lisboa, aos 16 de Novembro
de 1622.
António Diaz Cardoso. Gaspar Pereira. Dom João da
Francisco de Goavea. Manoel Pereira. Silva.
DO ORDINÁRIO.
Pode-se imprimir esta Historia de S. Domingos. Lisboa, 17 de No-
vembro de 1622.
Viegas.
XV
DO DESEMBARGO DO PAÇO.
Que se possa imprimir este livro, vista a licença do Santo Ojficio^ e
do Ordinário. Lisboa, a ^[ de Novembro de Hr2ll.
Dinis dtí Mello. Vicente Caldeira.
TABOADA DOS CONVENTOS
DE QIE »E TRATA \E*TE PRIMEIRO VOLl UE
CONVENTOS DE FRADES
1 Primeiro Convento junto á Villa de Alanquer, na serra de Monte jun-
to, liv. I. cap. 12.
Tresladação d'este Convento do sitio de Montijrás, na Villa de Santa-
rém, pêra o lugar onde hoje está, liv. ii, cap. 2.
2 Convento da cidade de Coimbra, liv. ni, cap. 1.
3 Convento da cidade do Porto, liv. m, cap. 9.
4 Convento da cidade de Lisboa, liv. ni, cap. 17.
MOSTEIRO DE FREIRAS.
i São Fellx de Chellas, junto á cidade de Lisboa, liv. i, cap. 2:3.
LIYRO PHIMEÍHO
DA
HISTORIA DE S. DOMINGOS
PARTICULAR DO REINO, E CONÇUISTÂS DE PORTUGAL
CAPITULO I
Do nascimento dó Patriarcha S. Domingos, sua criara:), estudo í
virtudes, alê tomar o habito dos Cónegos regulares de Santo Agos-
tinho.
Temos a cargo escrever, e pôr em memoria os feitos iilustres dos fi-
lhos, e successores de nosso glorioso Patriarcha S. Domingos na parte
que toca ao Reino, e conquistas de Portugal. E pai-ece que nfio procede-
rá a narração delles com a ordem e termo devido, se havendo de tra-
tar dos filhos nos descuidarmos em dar alguma noticia da vida e santida-
de do pai. E não nos desobriga o ser sabida de todos, ouvida cada dia dos
púlpitos, lida em muitos livros, e escrita em todas as lingoas. Porque sen-
do qualquer Religião hum corpo mystico, em que o fundador he a cabe-
ça, e os membros são seus fdhos, e successores: assi como perderia o
tempo, e o feitio quem nos quizesse representar em pintura, ou relação
hum corpo humano perfeito, se tratando de pés e braços não íizessc caso
da cabeça e rosto, que naturalmente he base e principio, e como alma
d'elle: nem mais, nem menos pede a razãf) que se não louvem, fruitos,
YOL. 1 1
2 LIVllO I DA IIISTOHIA DE S. DOMINGOS
sem dar novas da at-vore, nem se pintem torres sem mostras da lirnieza
e fundamento em que estribão, nem se trate de filhos sem íallar de seu
pai. Mas porque temos hmii grande mar diante, de annos e antiguidades,
(pie pedem muita leitura, e volumes crescidos, navegação que obriga a hum
prolongado, e intolerável trabalho (e como somos velhos, e não podemos
prometter pêra longe) contentar-nos-hemos com fazer huma succinta rela-
ção da vida, e obras de nosso santo fundador: a qual ainda que fique com
menos luz da que lhe he devida, vista a diíTiculdade que tem pintar gigan-
tes em pequena taboa, será a que baste, pêra fugirmos, quanto a mi, dos
'defeitos de corpo monstruoso: e quanto aos curiosos que nos lerem, pcra
lerem diante dos olhos hum espelho em que sem cançar a memoria en-
xerguem, quão bem souberão os Portugueses filhos d"esta Ordem e Pro-
víncia retratar em si por todas as idades a vida, e costumes de seu mes-
tre, não só imital-o. Seguir-se-ha de huma, e outra cousa hum grande be-
neficio pêra os que hoje nos prezamos da gloria de tão honrado tronco, e
do valor de tão bons irmãos: o qual será espertarmo-nos a seguir com
viveza, e fervor os caminhos de virtudes heróicas, como o outro Grego,
que confessava de si lhe fazião perder o somno as proezas que lia do ven-
turoso Milciades. (*) E seguir-se-ha também acudirmos com antídoto apro-
priado ao mal da profanidade, e infinidade de livros, que cada hora saem
por todas as províncias, cheios de fabulas e ocíosidades, estragadoras
d"aquella pureza dos bons costumes antigos, que tanta saudade nos fa-
zem. Assi faremos remédio de livros contra livros: como nos ensina a
natureza a compor triagas das víboras, e serpentes mais venenosas pêra
defensivo d'ellas mesmas. Que na verdade se em algum tempo foi con-
veniente fiizer a gente espiritual grandes empregos de estudo, e trabalho
em escrever; a idade em que vivemos não só o está pedindo, mas obrigan-
do, e forçando a todos os que pêra si tem qualquer talento, edo bem com -
murn algum zelo. Mas toca este cuidado mais de perto aos que seguimos
a disciplina monástica. Porque as Religiões são em geral os exércitos e cam-
pos formados que Deos mandou ao mundo, c sustenta nelle, pêra refor-
mação de costumes, desterro de vícios, e conservação da santa doutrina.
Raivem quanto quizerem os hereges, perseguindo-as com lingoas serpenti-
nas, roubando-lhes as rendas, assolando-lhes as casas, o aparelhando assi
os caminhos ao Anti-Chrísto. Raivem e arrebentem de fúria, que ao seu
{•) riulare. in \iU Tliemiítcol.— Valer. .Ma\. iib. '.iii. cap. lo.
PAIiriCULAr. DO HEIXO DE POIiTLGAL 3
])esar, dos caiiliiihos das'ccllas se povoa o Ceo de milhares de Saiilos. E
assi como as Religiões são os exércitos, assi seus mosteiros são os castellos
que guardão as cidades com vigia de estudo e letras, com exercício de je-
juns, lagrimas e disciplinas, e com armas de sacrifícios e orações, armas
que bastão a suspender a ira do Allissimo sempre de peccados provocada.
E n'elles como em praças militares se crião, e adestrão na disciplina santa
valerosos espíritos pêra a conquista do Ceo, senão com tantos hombros
como os primeiros Atlantes, nem com tantos braços como os antigos Bria-
reus, quero dizer, com que os santos capitães, a quem seguem: ao menos
com a mesma confiança na graça Divina que os fez taes. E estes são os frui-
tos com que as sagradas Religiões vão acudindo em tempo ao soberano Pai
de famílias, como largamente se deixa ver em todas: e nós o mostraremos,
se o Senhor fòr servido, em hum pequeno garfo da nossa, por esta histo-
ria: a qual escre^ de melhor vontade, tanto pela força que me faz a ne-
cessidade que apontamos, como por honra d'este Reino em que nascemos,
e pela obrigação immortal, em que todas as Religiões, e Religiosos lhe es-
tamos. Porque assi como elle foi huma das primeiras terras de Hespanha,
que recebeo a fé de Christo, e foi a primeira de toda Europa, que fundou
Prelacia em seu nome, com a presença e pregação do grande Apostolo
Santiago, naquella cidade, que como em profecia d'esta excellencia gozava
já glorioso apellido, chamando-se Brachara Augusta (*): e lambem foi a pri-
meira de Hespanha e Europa, que se matizou com sangue santo, derrama-
do por honra do mesmo Senhor (como adiante mostraremos) : da mesma
maneira abraçou com tanta devação, e amor todas as Ordens que hoje ha
na Igreja de Deos, que nenhuma nação do mundo em tão estreitos limites
as enriqueceo tanto, nem honrou mais. Mas he tempo de começar.
Caleruega, que as nossas lendas chamão Calaroga, he villa do bispado
de Osma, em Castella, na parte que hoje chamão Castella a velha, e nas
demarcações dos Romanos chamavão Hespanha citerior (**). Em tempos an-
tigos foi rico e insigne lugar, morada c assento de gente illustre, e de
muitos varões que n aquella idade, rica de valor mais que de titulos, e ren-
das, erão conhecidos pelo nome de ricos homens. Estes tinhão tanto lugar
diante dos Reis, que achando-se na corte assinavão com elles as cartas de
(*) Breviar. Brach — Santo Isidoro nas V"ifla5 dos Santo?, cap. ~',i. — O Papa Calixto na Vida
de San-Tiago.
(■*•) Pêro de Medina; p.n íun Hc-pnnha; liv. ii rap 1 IO. — Píoloni lih ii, rap, C. - Plínio
lib. 111, cap. o.
4 LIVUU I DA IIISIOHIA DE S. bO.MI.NUOS
privilégios, e mercês: e asáiimvão não como testimuribas ou iniuistroí;, se-
não como consentidores, e quasi como companheiros. Porque assinando, stí
declarava que conlirmavão elles o que El-Rei concedia. E bem se deixa en-
tender, que o confirmar he hum certo auto, como de poder igual. E por
isso era ordinário confirmarem juntamente o Príncipe herdeiro do Reino,
e os Infantes que liavia. IVeste lugar vivia D. Félix de Gusmão, filho dâ
Rodrigo Nunes de Gusmão, apellido e gente já n"a quelle tempo tão illustre,
que nos consta confirmarem comos Reis, por escrituras autenticas. Irmão
de D. Félix mais velho foi Álvaro Ruiz ou Rodi'igues de Gusmão, do qual
por linha masculina procedeo D. Álvaro Pires de Gusmão, que em Casíella
chamarão El-Rueno (*). Efoi aquelie que defendendo Tarifa aos Mouros, a
sendo ameaçado, que se não entregava a villa, lhe degolariãc diante dos olhos
hum filho que em seu poder tinhão, esteve tão longe de se dobrar ao partido,
que do muro, donde estava com elles á falia, lhes lançou (*(h baixo o punhal
que cingia, significando, que onde se tratava de fidelidade, não duvidava pola
fruardai', oíTerecer armas contra suas próprias entranhas: feito glorioso
em Hespanha, e digno brasão da grande casa de Medina Sidónia. Foi casa-
do D. Félix com D. Joanna d"Aça, sua igual cm nobreza, mas em virtudes
nobilíssima.
De tal níatrinionio, e em tal villa, e de tão illustre sangue nasceo nos-
so glorioso Patriarcha S. Domingos. E como a virtude acomiíanliada de
nobreza realça tanto, que passa a estremos de fermosura, quiz o Senhor
que fosse t;d a d'este Santo, pêra lhe não faltar parte nenhuma das que
estão bem n"ella. Tinhão estes senliores já dons filhos, António, eMamcdó
(OU Manes, como lhe chamão outros) quando D. Joanna sentindo-se de no-
vo pejada., se pôz a caminho pêra o Convento de S. Domingos de Silos a
encommendaraDeospormeiodaquelle Santo o fruito que esperava, ea
hora de o dar ao mundo a todas as mais temerosa. He este convento de
Religiosos de S. Bento: mas a devação do santo Abbade Domingos, que
n"elle vivendo fiorecera em santidade; e agora morto resplandecia com mi-
lagres, lhe tinha trocado o nome. Cumprio a devota matrona sua novena
com fervorosas orações á vista das santas Relíquias: e o Saiiío alcançou de
Deos, que levasse logo a paga com hum successo de grande consolação.
Appareceo-lhe, edísse-lheqfie da parte de Deos a avisava, que d"aquelle
parto daria ao mundo hum lillio que n'elle seria huma grande cousa. Mas
dura pouco qualquer alegria da vida. A poucos dias depois de tornada a
(•; M. Ir. rciíuindo de Caslilho. lib. i. citp. 2.--IIist. geral de S. Dominjo?.
PAATICULAP. DO REINO DE PORTUGAL li
sua casa, bastou hum sonho p.íra a desconsolar, e encher Je medo. Repre-
sentou-se-lhe dormhido, que o íllho, de quem tão boas novas ouvira, não
era homem, nem de humana criatura tinha forma, mas de hum cão. E pê-
ra mais se embaraçar e temer, via-lhe atravessada na boca huma tocha ar-
dendo com tanto fogo, que o pegava a toda a terra. Agoado assi o gosto
da primeira visão com o pavor do sonho, que na verdade era confirmação
d'ella, passou entre medo, e esperanças, até a hora que se vio rica de mais
hum fiiho (que riqueza he em gente nobre huma meza rodeada de muitos
filhos, principalmente se a criação fosse qiial sohia ser a d'aquelles tem-
pos).
Corria o anno de nosso Senhor JesuChristo de H70; era Summo Pon-
tífice Ale?;andre Terceiro, e Emperador de Alemanha Federico I chamado
Barbarroxa: Rei deCastella D. AíTonso, filho de D. Sancho, que chamarão
o desejado: e reinava em Portugal D. Affonso líemiques, primeiro dos Reis,
c do nome deste Reino. Converteo D. Joanna os medos em alegria, e do-
brou-se-lhe com novos e bem assombrados pronosticos, que logo se forao
vendo no menino: pronosticos todavia prodigiosos, e fora do natural. Ao tem"
po que o levantou o Sacerdote das agoas sagradas do bautismo, vio-st^lhe
na testa huma resplandecente estrella: ou em sinal que liavia deserguia,
e norte de salvação pêra muitos, como depois mostrou o successo: ou quo
era aquella a estrella, cujo nascimento estava profetizado dous mil quatro-
centos e noventa e sete annos antes pola Sybilla Erilrsea, dizendo assi cm
hum de seus versos: (uSijdus, cujus nílore universus terrorum orbes iUustri^t
redJetar et clarus, in Hispânia creabilur.-» Quer dizer: Em Hespanha nasce-
rá huma estrella, cuja luz dará fermosura, e resplandor a toda a redon-
deza da terra. Leandro Alberto, Mestre grave, e douto traz esta profecia
na vida d"este Santo escrita muitos annos 'ha (*). Mas bem podemos dizer
d'esta estrella, quo foi lingoa de fogo com que o Espirito Santo quiz visi-
velmente santificar aquella bemdiía alma, que pelo nome de Domingos,,
f|ue lhe foi posto, já escolhia por sua. Deixou-se isto entender logo dos
effeitos de sua criação. Porcjue sendo ainda de peito lhe acontecia cair da
cama de sua ama, e ficar dormindo em terra: cousa que se não pôde
conceder sem movimento do Ceo. Porque parecendo primeiro caso acci-
dental, tantas vezes llie succedeo, que veio a ser havido por mysterio, e
huma certa inclinação, e principio d'aquella rigorosa penitencia que depois
(•) M. í oanilr. Alh. in V;t;i S. Domiiuci.
i) I.IVHO I DA HISTOHIA DL S. DOMI.NCUS
por toda a vida abraçou, como se conta dè alguns Santos, que desd "os
peitos das amas, e n'aquelle primeiro leite começarão executar abstinên-
cia (*). Notava D. Joanna tudo, e vendo como hia conformando com a
revelação da Igreja de Silos, tanto que teve sete annos não quiz tardar
em o entregar a Deos na maneira que então podia. Manclou-o a hum irmão
seu, Arcediago da Igreja de Gumiel de Yçan, varão de provada virtude.
Aqui foi estudando as primeiras letras, occupando-se juntamente no servi-
ço dos altares, ecoro: e como crescia nos annos, hia descobrindo nas le-
tras habilidade, e nas cousas da Igreja aíTeição e perfeição, e em tudo o
que fazia n'aquella puerícia hum peso, e madureza que parecia velhice. Era
já de quatorze annos, e não se lhe via cousa que descubrisse culpa, ou le-
viandade, nem ainda pequena nota naquella primeira graça que no bautis-
mo receljera. N"esta idade foi mandado á cidade de Falência pêra entender
nos estudos maiores (era então Falência assento das letras de Hespanha,
que depois se passarão a Salamanca). Começou o moço seu estudo livre da
sujeição de pai, e parentes, com hum modo de vida estranho, e novo pêra
entre seculares. Como quem espera inimigos poderosos em tempo de guer-
ra, que não se dando por seguro no campo, procura encastellar-se em
lugar forte provido de presidio, e munições, assi se armou de todas as
virtudes contra todo género de vicios. Em casa recolhimento, silencio, con-
tinuação sobre os livros; fora modéstia, humildade, frequência de sacramen-
tos. Com tal companhia dentro de pouco tempo se acreditou de maneira,
que em toda a Universidade era havido por hum Anjo em carne.
Assi foi estudando Lógica, Philosophia, e Metaphisica, e passou á santa
Theologia, e crescendo nas letras, e na idade adquiria novas forças, e novo
vigor na virtude. Sentia profundamente peccados alheios: chorava-os com vi-
vas lagrimas, fazia porellespenitencia, como se forão próprios: despendia-
se todo em esmolas, compassivo por estremo dos trabalhos que via nos pró-
ximos. Veio hum anno estéril, cresceo o preço das cousas, parou em fome
geral. Depois de repartir entre pobres o que tinha, e quanto havia de bom
em casa, olhou pêra as estantes que estavão povoadas de livros, alegrou-
seGomoseachárathesouroocioso.Vahãon'aquelle tempo os livros muito,
como não havia impressão: logo os pôz em venda, e enthezourou o preço
no seio dos necessitados. E matando a fome a estes com a obra, abrio os
olhos aos ricos com o exemplo, pêra alargarem mãos, e ânimos, Não lhe
(>) De S. Nicoláo cx MeUniihruílc, t o Rouieiuo Brcviar.
PARTICriAR DO REINO DE PORTlT..\i 7
ficava que dar, e a caridade ensinou o que ainda tinha que vender, ou ao
menos empenhar. Yeio-se a elle huma affligida mulher, como a rico, e no-
bre, e Uberal, chorou-lhc hum irmão cativo em terra de Mouros: chorou
elle também a pena do cativo, e a de quem lha representava, e disse-lhc
íjue todavia lhe lembrava que ainda tinha com que a remediar, acrescen-
tando logo com deliberada vontade, que tratasse com o Mouro se aceitaria
a pessoa de Domingos de Gusmão pola de seu irmão, que logo a entrega-
ria por elle. Mas não permittio Deos que houvesse por então outro Pau-
lino (* ). A estas virtudes ajuntava perpetuo cuidado de sua pureza e castida-
de: eíTeito particular da divina graça, que começando n'aquella alma desdo
berço lha conservou limpa, e sem magoa por toda a vida. Esta pedia a
Deos em oração continua arrebatado já então em altas contemplações, e
amores do Ceo. Quem assi estudava, claro fica com quanta facilidade se
faria senhor das sciencias, e principalmente da que tem o nome de Deos.
Não chegava a vinte cinco annos, já era consultado por muitas pessoas,
e de muitas partes em matérias altas de Theologia.
Era Bispo de Osma D. DiogodeAzebes, que alguns chamão de Azeve-
do, pessoa de grandes partes em religião, e prudência. Tinha introduzido
em sua Igreja huma estranha reformação, ou transformação de vida. Aca-
bara com os seus Cónegos que de seculares se fizessem regrantes, vives-
sem em comraunidade e clausura, e em fim guardassem a regra de Santo
Agostinho. Ouvindo as novas que corrião no bispado, das letras, e virtude
do nosso estudante, pareceo-lhe que seria muito a propósito sua companhia
pêra conservação, e amplificação de tal vida. Convidou-o pêra ella: foi fá-
cil de entrar em escola onde se professava perfeição. Entrado procurou
adiantar-se em todos os exercícios espirituaes, e de discípulo se fez mestre,
e era espelho pêra todos. Quiz o Bispo que tivesse o cargo de Superior,
que nos estilos da Sé respondia a Arcediago, Aceitou-o á força, e exerci-
tou-o com humildade e inteireza. Passado algum tempo tornou a Palencia
com certa occasião a assistir na Uuiversidade: e chegando aos trinta annos
começou a descobrir com a pregação evangélica os dons do Ceo que Deos
communicava a sua alma, e entendimento. Era admirável o fruito que fa-
zia nas almas, juntando-se exçellencia de engenho com virtude consumma-
da, palavras bem assentadas com vida santa. Levava traz si toda a Uni-
versidade, e todo o género de gente. Aqui lhe acontereo segunda vez pôr
(•) S. Paulinn, Bi«po de iNok*^
8 I.IVUO I IV\ IIISTOHIA DE S. IKJMINGO.-Í
emalmoedaoslivrosquedo novo juntara: achou pobreza em niuila gente,
niio lhe soflVco o coi'ação vel-a em onlrem, sem ser participante (relia: fi-
cou j)ohre como todos.
CAPITULO II
Parle Frei Domingos pêra França, passa a Paris e a Romo: torna
de ausento a Tohsa pregar aos hereges: funda huut. recolhimento de
donzellas: vence miiilos hereges em disputas: converte outros. Appa-
rece-lhe n Virgem nor-sa Senhora: ensina-lke a devoção do Santo Ro-
saria, e manda-lhc que a pregue.
Mas chegava-se o tempo em que Deos queria descobrir ao mundo as
grandezas pêra que errara seu servo Domingos, e tomou por instrumento
o mesmo Bispo de Osnia D. Diogo, o qual estando de caminho pêra Fran-
ça encarregado de huma embaixada de importância por El-Rei D. Affonso
de Castelía, não quiz fazer a jornada sem elle. Partirão por Abril do anno
de 1203, entrarão pela parte de Tolosa, cidade principal da Província Nar-
bonense. Souberão logo que andava levantada n"aquelía comarca huma dia-
bólica heregia, que nascida no lugar de Albi, hia lavrando como fogo por
todos os lugares vizinhos, e inílcionando como peste não só a gente popu-
lar, mas também nobres, e senhores. Frei Domingos que já em ílespanha
costumava derramar lagrimas por peccados alheios e ordinários, qtie faria
nos de falta de Fé? Foi dòr que oferionaalma. E muito mais, quando vio
por seus olhos, e ouvio com seus ouvidos na primeira pousada, em que
entrarão, hum pobre estalajadeiro atrevidamente pôr em pratica e disputa
Hiysterios soberanos da Fé (manha he ordinária de hereges, como não tem
a Fé no coração, trazerem-na sempre na boca, e qualquer idiota presumir
de falar, e argumentar n'ella). Tremião as carnes aos Gaíholicos de ouvir
as blasfémias. Tomou Frei Domingos entre mãos o miserável, e por cego
e obstinado que estava, cm poucas razões o deixou atado, e convencido, e
como primicia da jornada, aliumiado o reduzido. Passarão á corte de Fran-
ça, era a Rainha Hespanhola; e tal pessoa, que por ella confessão os escri-
tores Franceses, que entrarão todos os bens em França. Chamava-se D.
Branca, filha do mesmo Rei D. AfTonso de Casíella, era cujo serviço era a
PARTICULAR DO REINO LE PORTUGA!, 9
embai-vaJa. Como devota, e religiosa folgou de commmiicar íom Frei Do-
mingos. E como tardava em alegrar o Reino com successão, pedio-lhe que
com suas orações lhe alcançasse de Deos fruito de benção; e não se enga-
nou na petição: dentro de pouco tempo teve hum filho tão de benção, co-
mo foi o santo Rei Luis.
Concluido o negocio da embaixada, quiz o Bispo, pois estava em cami-
nho, visitar as relíquias dos Sagrados Apóstolos em Roma, e dar conta ao
Pontífice como testemunha de vista do estrago que fazia a heregia nas ter-
ras de Tolosa, e da necessidade que havia do remédio apressado. Fez a
jornada, e não foi perdido o trabalho. Despachou o Papa pessoas de letras,
e virtude que se fossem empregar na pregação, e reducção dos hereges.
Erão doze Abbades da Ordem de Cister. Sahio pouco depois o Bispo em
seguimento d^elles, mas achou tudo mais daranado do que o deixara; e mui-
tos lugares inteiros declarados na heregia com seus senhores. Começarão
todos a pregar, rogando, instando, amoestando, ensinando. Não se pôde crer
o desaforamento que havia. Não só desprezavão a doutrina e doutrinantes,
mas fazião-se reformadores, e reprehensores dos mestres da verdade, quo
comião, que vestião, queandavãoacavallo. Tratou Frei Domingos com o
■ Bispo que tirassem toda occasião de murmurar aos inimigos, a ver se ti-
nha a verdade mais lugar, ajudada de hum raro exemplo. Determina-se o
Bispo, larga o fausto, e despede pêra Hespanha o acompanhamento de Pre-
lado e Embaixador, fica-se só com Frei Domingos. Entrão ambos a pé por
Monpelher. Fizerão o mesmo os Abbades. He a terra grande e populosa,
e estava cliea dos que já se chamavão Albigenses, tomando o nome do lu-
gar em que tivera nascimento o desatino. Junta-se o povo, contentava-se
nosso Padre com ser ouvido, abria-lhe os olhos, descobria-lhe a cegueira,
conclaia-os. Mas crescia a ignorância, e o atrevimento nos mais cegos: pêra
apartarem o povo da pregação, commettem ao Bispo que per disputa pu-
blica querem calificar suas opiniões. Porém foi facíl de vencer a mentira.
Convencidos e corridos pedem segundo partido: dizem que Frei Do-
mingos vence com agudezas argumentando, e com eloquência fatiando, que
se dispute por escrito. Escrevem ellts, escreve elle. Mas desconfiando os
hereges de suas sofistarias, passão a maior temeridade, querem sinaes do
Ceo: e fazem instancia que se remeta ao fogo a verdade do que cada par-
te defende. Refusava Frei Domingos tentar a Deos quando estava Aictorio-
so em todos os outros meios. Passarão muitos dias, crescia a contumácia,
e a soberba. Parcceo forçado a<'eitar o desafio. Não podião os herege? es-
10 LIVRO I BA HISTORIA DE S. DOMINGOS
perar milagre, nem erão tão ignorantes que o esperassem: que nunca iioii-
ve milagre onde faltou a verdadeira fé: mas foi lanço de artificio, e ina-
iicia. Fazião conta, que íinhão por infallivel, que o fogo consumiria os es-
critos catholicos: e ainda que os seus também ardessem, já ficavão iguaes
na causa, que era assaz pêra elles. E não falta quem aflirme que tinhão
quem com esconjuros, e arte diabólica se offerecia sustentar-lhe os seus
sem damno no meio das brasas. Em íim aprazou-se dia. O nosso Prega-
dor entretanto não tinha hora de descanço. De dia oração, e jejuns: de
noite oração, lagrimas, e disciplinas. Este era o maior estudo pêra a con-
tenda que esperava. Chegado o prazo, toma seus cadernos, junta-se com
o Bispo, e Abbades. Acodem os contrários, pije-se em meio hum bra-
seiro ardendo: lancão-se os papeis de cada parte. Caso estranho! Saltão
fora do fogo os que conf inhão a verdade, abrazão-so os heréticos em hum
momento. Louvarão a Deos os Catholicos: ficou Frei Domingos com no-
me de Santo. E pêra que n'um só milagre houvesse três, segunda, e ter-
ceira vez foi convidado o fogo c'os mesmos papeis: e outras tantas os
deitou de si sem lesão, nem sinal d"ella.
Mas não bastão pêra os incrédulos milagres do Coo. Porque permitte
Deos pêra castigo dos máos, quando a cegueira nasce de vontade damnada,
que vendo não vejão, entendendo não entendão. Não só licarão em sua du-
reza, mas passarão ao ultimo desatino, e próprio de hereges, que he su-
prir, c confundir com força as faltas da razão: tomão as armas, fazem-se
temer, e obedecer por ellas. Estava prevertido, e em seu favor o Conde de
Tolosa senhor poderoso. Juntarão-se-lhe na opinião, e na força os Condes
de Foix, e Comminge. Cahio de todo a causa dos bons, atropellada do po-
der, e das armas. Andavão os Catholicos encolhidos, e encantoados, outros
fugidos, -ou envergonhados e abatidos: suas casas erão saqueadas, as fa-
zendas destruídas, tudo confusão, e injustiças. Assi derão em tanta pobre-
za, que muitos nobres por sustentar a fé chegavão a desamparar as casas,
e as filhas donzellas: e taes havia que polas não ver padecer escolhião por
menos mal entregal-as como vendidas, e cativas aos hereges que reinavão.
A este desamparo acudio o santo Frei Domingos com hum desenho do
Ceo, que sempre dos maiores males costuma Deos tirar grandes bens. Ti-
nha-lhe dado o.Bispo de Tolosa Fulcon, varão religioso e santo, huma Igre-
a entre Carcassona e Tolosa pêra seu recolhimento (era a invocação Nossa
Sethora, e o nome do sitio Prulliano.) Ordena Frei Domingos n'ella hum
ccc'.:.imonto pobrf' por então, e mal reparado, conforme ao tempo que cor-
PARTICULAP. DO REINO DE PORTUGAL 11
ria. Começa logo a povoal-o de donzellas nobres, e pobres, pondo á conta de
Deos o governo, o sustentacrio: o chegarão em pouco tempo a numero de
cento. De tão fracos princípios veio a ser, e he hoje casa sumptuosissi-
ma, e o primeiro mosteiro de Freiras que houve nas Ordens mendicantes,
e o primeiro de França qiie admittio clausura.
Fíavia já dous annos que o Bispo D. Diogo assistia n"esta conquista
de almas. Vendo que o trabalho era intolerável e sem fim, porque ainda
que aproveitavão muito por huma parte, hia por outra tomando novas
forças a heregia, e de novo se corrompião mais lugares, determinou
acudir a suas ovelhas. Foi-se : c o mesmo fizerão os Abbades. Ficou S.
Domingos S(3, que não pôde acabar comsigo largar o campo: antes arden-
do em zelo da honra de Deos, e do remédio de tantas almas, tomou
o negocio tanto a peito, que aos dous annos, que já tinha assistido, ajun-
tou depois com invencível cons'tancia oito: e forão dez por todos os que
perseverou n'eíle. Grandes cousas ihe succedêrão no discurso de tão
largo tempo, que não poderemos fazer mais que hir tocando algumas dé
passo, e deixando outras por abreviar. Pregava sem* cessar em publico,
e pelas casas particulares, correndo os lugares, e villas da comarca.
Sentem-se os hereges, porque lhes tirava reputação, e grande numero
de discípulos: tornão a pedir conferencia, e disputas publicas das opi-
niões. Assentou-se junta em hum lugar pouco distante de Tolosa. Quiz o
Bispo Fulcon achar-se presente, e apercehia-se de acompanhamento
conforme a seu estado, parecendo-lhe conveniente, pois era auto publi-
co, mostrar autoridade e pompa, contra gente armada de poder, e for-
ça. Pcrsuade-lhe S. Domingos que vença a soberba herética com humil-
dade, e imitação de Christo. Poem-se ambos ao caminho a pé e des-
calsos- Vio-os partir hum herege; sáe-lhes ao encontro fora das horas, e
fingindo doer-sc delles com palavras e cortesia de amigo, offereceo le-
val-os por hum passo que sabia com que atalharião terra, e trabalho,
Que fácil he de enganar a virtude! Seguem-no ; dá com elles em hum
monte serrado de matos, e aspereza : triunfa em seu coração vendo-os
cançados, e moidos. e dos pés descalços correndo sangue. Mas não se
dava de todo por satisfeito, porqne todavia hião alegres, e sofridos.
Cançou-se o infelíce rodeando montes, e valles : e em fim notando que
durava mais n'elles a paciência, que n'elle o gosto e teima de os que-
brantar, foi tal a confusão, e compunção que recebeo d"aquella santa
constância, reconhecendo n"ella a verdade da fé, e do espirito c graça
•li LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMIXdOS
divina, que no meio do maio se lançou aos pés de S. Domingos, con-
fessou seu erro, e pedio perdão, e rediicção á Igreja. Pagou Oeos a seu:»
servos o trabalho do caminho com gloiiosa victoria nas disputas.
Mas vencião em poder c numero os que em razões, e argnmentos erão
vencidos, e como da parto de S. Domingos falíava corpo de gente, e
o vião só e pobre, determinarão descompol-o com afrontas e desprezos,
humas vezes dizendo-lhe injurias no rosto, outras tirando-lhe pedras.
e iançando-Hio lodo das ruas ao vestido, e aos olhos. Triunfava o Santo
conhecendo a causa porque padecia: pagava com silencio, eolhosaDeos
em graças do que lhe dava a merecer por defensão, e honra da verda-
de. E sendo assi que em muitos lugares recebia estas ignominias, e na
cidade de Tolosa era ainda respeitado e amado, notava-se n'eHe, que
pêra hir áquelles tinha azas nos pós; o pêra Tolosa sempre hia forçado.
Ardião os hereges em raiva com a humildado do sofrimento, e muito
mais com a continuação da pregação de que nunca desistia : ameação-no
com a morte se não calla, e tratão de lh"a dar; porque não temendo
Rei nem Prelados, d"el!e, só tremem descalço e pobre. E hum dia lhe
disserão sem rebuço, qim se passara por certo lugar, onde lhe íinhão
armado, estiverãi) já descançados. P&rguntou que determinavão fazer?
Responderão, que fartar-se de seu sangue: e elle re-iiicou, que porque
vissem que não tinha m?n3s s:.de do o derramar pila cansa que defen-
dia, que elles de o beber, lhes houvera de pedir em tal passo, que lhe
não encurtassem a gloria de padecer matando-o depressa, mas que lhe
fossem cortando cada meiubro por si, e tantas mortes rece^besse, quan-
tos erão os membro:;.
Soube-se em Roma o que passava. Despachou o Poníifice hum Le
gado por nomo Pedro de Casíronovo,' ou Castel-novo, que he o mesmo,
da Ordem de Cister. Entrou pola terra, fallou com os Condes, fez jun-
tas, tentou remédios: achando tudo cerrado, e todos contumazes, ex-
comungou o Conde de Tolosa, e fez volta. Senlio-se o Conde, mandou
gente trás elle, rnalão-no ás lançadas. Era entrado o anno de 1208, go-
vernava a Igreja de Deos Innocencio Terceiro, varão santíssimo : deter-
mina castigar a impiedade a fogo e sangue como merecia, jlanda logo a
França por seu Legado o Cardeal Gallon do titulo de Santa Maria in
Porticu. Escreve a El-Rei, c a todos os Príncipes da Christandade, que
acudão ao cíistigo dos rebeldes, e passa Bulias pêra se pregar Cnizada
contra elles, c seus valedores, como era costume quanda se juntavão ex-
PARTÍCLLA.U DL) Ulii.NO DK FOnTCGVI, 13
ercitos pêra a conquista Ja Terra Santa. Foi grande o poder de genle
que começou a correr pêra a empreza, de toda a sorte, estado, c qua-
lidade, e de todas as províncias da Chrisíandade.
Não estava entretanto o Santo ocioso, procurava por todos os meios
reduzir os cegos ao caminho da verdade, antes que cahisse sobre elles
o rigor que antevia da espada divina. Corria, como costumava, todos os
lugares, fazia grandes instancias com os homens : mas muito maiores
com Deos, pêra quem cada dia ganhava muitas almas. He cousa certa,
(jue em hum lugar d'estes, aposentando-se em casa de humas senhoras
illustres, que vivião na cegueira da heregia, passou huma Quaresma in-
teira a pão e agoa, e sem outra cama mais que huma taboa, ajuntando
a tal cama e tal mantença muita oração, e ásperas disciplinas. O que
sendo delias notado, e vendo-o na Paschoa com mais forças, e melhor
côr de rosto, do que entrara na Quaresma, pôde mais que a pregação,
esta vista e discurso: espantadas da virtude, e poder divino deixarão-so
vencer da verdade, e abjurarão a hei-egia. Era o íim d'estas penitencias
não huma só casa, nem poucas almas. Esiendia-se aquella inflamada ca-
ridade a todo o Reino de Fi'ança, e a toda a Christandade, temendo
muito aquelle fogo, e lembrando-se do antigo de Arrio, e outros seme-
lhantes, que com seus erros corromperão, e levarão ao inferno grande
parte do mundo : prosírava-se por terra diante do Senhor, regava-a com
rios de lagrimas, e com profundíssima humildade gritava por remédio.
Descançava hum pouco, e logo discorria que poderia fazer de sua par-
te em serviço d"aqu3lles próximos, que fosse de momento pêra os allu-
miar, e reduzir áqueíle Senhor que nenhuma cousa mais ama que a sal-
vação dos que criou. Estendia o pensamento a juntar gente contra o
inferno, como eíle juntava contra Deos: gente armada de fé, de peni-
tencia, de humildade, de doutrina, contra a que professava inhdelida-
de, soberba, dissolução, ignorância. Deleítava-se na traça, que na ver-
dade já era do alto, d'onde todo o bem procede ; mas julgando-se por
indigno, e fraco pêra tamanha empreza, tornava ás lagrimas. Após as
lagrimas, requeria com sangue arrancado á força de Imma cadea de fer-
ro, que de noite lhe servia de disciplina, e de dia fazia ofíicio de cilicio
cingida, e apertada á raiz das carnes. Assi alternando orações, discipli-
nas, gemidos despendia muitas horas: c no cabo parccendo-lhe que nSo
era ouvido por seus peccados, acudia á Yirge^ii Min, fonte de toda a
misericórdia, e lembrando-lhe que seu Unigénito Filho no tempo qm
14 UVUO I DA HISTORIA DE S. DOJII.NGO.S
lidava na Cruz com as angustias da morte, que lhe davão os peocado-
res, ali mesmo lhe dera o titulo de mãi d'elles, e Mio deixara como por
herança, e em testamento, tomava-a por medianeira em tnntos males,
instava, e pedia-lhe favor. Depois de perseverar muitos dias ri"cste re-
querimento, acudio-lhe a Virgem piedosissima com huma Tisão, que assi
como foi pêra o Santo de grande consolação, justo he que o seja tam-
bém pêra os que somos seus filhos, o pêra todo o Clinstão em quan-
to o mundo durar, pois tanto durará o fruiío d"ella, se o soubermos
estimar. Appareceo-lhe visivelmente, e ensinou-íhe a sagrada devação do
Rosário, mandou-lhe que a pregasse com certeza que seria remédio
eíTicaz pêra vencer e acabar a heregia, e preservar do veneno d'eíla os
que a abraçassem, e exercitassem. Animou-o juntamente a levar adiante
a empresa de pregar contra os erros, e pravidade herética, e defender
e publicar as verdades cathoiicas, dando-lhe novas que brevemente veria
dado cumprimento á traça que trazia imaginada de ajuntar homens pêra
o mesmo officio, por ser traça que a Deos muito agradava.
CAPITULO III
Começa-se a guerra contra os hereges Albigenses. Dá S. Domingos
j)rincipio ao Santo Officio da Inquisição: Confirma-o o Summo
Ponlifice, e dá-lhe titulo de Pregadores a elle, e a seus Compa-
nheiros.
Era entrado o anno de duzentos e nove, abria o tempo, e dava ja
lugar pêra os Cruzados poderem sahir em campanha, e começarem a
menear as armas. Nomeou El-Rei de França por General do exercito a
Simão, Conde de Monforte, e encommendou-lhe com particularidade a
pessoa do Mestre da pregação Frei Domingos, que já de muitos dias
era conhecido de todos por este titulo, e a mesma recomendação teve
por letras do Papa. Esíavão os hereges enceiTados nos lugares fortes,
apercebidos de armas, e munições, e animados a esperar n"elles perti-
nazmente todo transe, antes que mudar de opinião. Foi o primeiro acom-
metimento contra a villa de Besses, ou Brissiers: defendeo-se com valor
de gente desesperada: mas em fim foi entrado o lugar, e passados a fio
de espada sete mil homens. í-assáião a Carcassona: fez pavor o succe^-
PARTlCULAh DO HKLNO Dt FOHTK.AL 15
so de Besses, deii-se a partido. Acompanhava o santo pregador os Cru-
zados na primeira fileira do esquadrão, leito Alferes de hum devoto Cru-
cifixo, que levava arvorado em huma haste. Mas hia metido em hum mar
de cuidados, como ardia em zelo das almas, e da honra de Deos, qual
outro Elias. Considerava que o fim das ai-rnas Christãs não devia ser
destruir somente, senão também edificar, que convinha tomar-se algum
termo com aquelles, que ou o medo do castigo, ou algum bom espirito
trouxesse á obediência da Igreja: e dar-se ordem pêra serem recebidos
a penitencia, por tal modo, que se ficasse entendendo se procedia do
coração, ou de fingimento: parecia-lhe que se perdia o tempo na guer-
ra, e nos remédios violentos, se a passo igual se não negoceava algum
meio com que ficasse a terra limpa de contagião, e sem medo de tornar
a brotar a perversa zizania, ou por occulta, ou por mal mondada. Deu
conta de tudo ao Legado Apostólico, que acompanhava o exercito'; elle
como prudente entendida a necessidade, manda-lhe como a outro Josepli
do Egypto, que pois Deos lhe communicara pensamentos tão acertados,
elle mesmo trace o remédio, elle o execute sem meter tempo em meio:
que entretanto avisará ao Pontífice. D'este ponto teve origem o venerá-
vel tribunal do Santo Officio contra a herética pravidade, de que tan-
tos, e tão grandes bens tem resultado á Christandade. Tomou logo a
mão o Santo em inquirir nos de Carcassona, quaes erão obstinados,
quaes pedião misericórdia. E como era já seguido de alguns virtuosos
sujeitos, obrigados das maravilhas, e grande espirito que n"elle vião,
fez tomar a rol, e em livro nomes, idades, estados, sexo, e quaUdades
dos culpados, com todas as mais diligencias e circumstancias necessá-
rias. Assi forão os obstinados ao fogo: forão com misericórdia recebidos
os que de arrependimento derão sinaes. Mas amoestados, que sendo
achados segunda vez em culpa, serião castigados em todo rigor. Era
grande a vigilância e cuidado com que o Santo procedia no novo officio,
(|ue como consistia em inquirir e censurar vidas, fè, e costumes, foi
tomando nome dos effeitos, nome, e oíTicio, nunca d'antes ouvido, nem
usado na Igreja. Não era menos o louvor que tinha dos grandes do exer-
cito, e principalmente da boca do Legado, a cuja auctoridade referia tu-
do o que fazia, tomando só pêra si o trabalho, e dando-lhe a elle o no-
me, como era razão, pois era ali Ministro supremo da Sé Apostólica, e
immediato ao Pontífice. Foi o campo conquistando lodos os lugares do
-orça, e o Santo inquisidor seguia com as armas de seu ollicio, e com
•16 Ll\nO 1 i)A JlíSrUHlA DK S. DO.MLNUOS
2êlo de bom pastor separando o gado enfermo do são. Em Cazzéi-as re-
laxou sessenta juntos, que forão queimados. No castello de Minerva cen-
te o quarenta, em outro lugar quatrocentos. E por outras partes cento
e oitenta. Em Vauro, villa forte do bispado de Tolosa, forão queimados
hum grande numero: o a senhora do lugar chamada Giralda, por perti-
naz na heregia, foi empoçada. Do resto do povo huns erão reconciliados,
outros penitenciados com suas ceremonias, e sentenças pêra exemplo, e
castigo.
Soou em Roma o exercício e fruito d'este cargo acreditado dantes com
as cartas do Legado ; e sendo estimado de toda a corte, despachou o
Santo Pontífice Innocencio III, suas letras de approvação d"elle, e de
muita honra, e favor pêra o Santo. N'ellas lhe mandou que o exercitas-
se, e como Inquisidor Apostólico procedesse contra os contumazes. Assi
o affirmão D. Luís de Paramo, Inquisidor de Sicília, e Blondo, e Jo5o
Buccheto, e outros (*). E acrescentão huma cousa que succedeo ao cer-
rar do Breve, em que ao parecer não faltou mysterio: e foi que repa-
rando o Pontífice na forma do sobrescrito, e mandando-o emendar por ires
vezes, na ultima assentou que fosse assi: Ao Mestre Frey Bo^mngos, e
aos irmãos inégadores que com elle cs-tão.
Mas não me atrevo a passar adiante sem pedir com caridade a dous
KeUgioses Cistercienses, escritores em lingoa castelhana, que polo que
devem a si mesmos, e ao cret,lito que desejão a seus livros, folguem de
$6 retractar (que os bons e sábios se retractão) de huma opinião em
([ue mostrão paixão demasiada, e pouco conhecimento das historias an-
tigas, e modernas, affirmando que na sua Ordem, e não na nossa teve
principio o Santo OíTicio da Inquisição. E antes d'outra cousa lhes lem-
bro, que escrevendo elles depois do anno de ío87, em todos os que cor-
rerão atrás desde o tempo que nosso Padre S. Domingos começou a pre-
gar em França, que são poucos menos de quatrocentos, a nenhum dos
escritores da sua Ordem, nem dos chegados a ella passou nunca pela
imaginação porem tal cousa em papel. E pois estes a não escreverão,
sendo assi que ílorescião então em leiras, em poder do Conventos, em
numero de Bispos e Arcebispos, e Cardeaes, claro fica que o não deixarão
de fazer se não porque na verdade não querião pcra si, c pêra sua Reli-
gião mais do que direitamente lhe pertencia. E como em tal opinião não tem
[•) L>. Luiz (Í8 Param, de Orig. Off. S._InquÍ3. liv. u. tit. 1 cap. 3, num. 9. - Blon^íus, lib.
VI. dic. 2.~Joa!in. Buccli, iii Anual Aquit!
PARTICUI.AH DO r.i:i>0 DE POUTUGAL 17
por si autor antigo neiílium, nem sou, nem alheio: e nós temos em fa-
vor nosso toda a venerável antiguidade, quero dizer todos os que es-
creverão em tempos vizinhos á guerra Alhigense, em que o santo tri-
bunal teve principio, e em que podia haver muitos, e poderosos con-
Iraditores: e assi í\<'ão por nós os que despois fahírrio na matéria p» r
todo o discurso d'estes quatrocentos a:mos, taíito seculai-es, como eccle-
siasticos: tanto Religiosos nossos, como d"oulras Ordens: bem se se-
gue ser assumpto temerário quererem dous ou três, só na confiança
de bom engenho, escrevendo n"esía idade, saber mais que todos os
seus, e contradizer todos os nossos, e os que de nós falão. Bem estou
na conta, que me hão de culpar os m.eus de dar vida a suas rezões,
com lhes fazer reposta : mas Aiço-a por dous respeitos. Primeiro, po:-
que escrevem em vulgar, e o vulgo he fácil de levar de novidades, quan-
do não são impugnadas. Segundo, porque lie justo acudirmos á obriga-
ção, e fraternidade que nos devemos as Religiões, Immas ás outras, não
consentindo fazer-se á do Santo illustrissimo Bernardo tamanha offeh-
sa, como seria procurar-lhe honra de suor, e íraballios alheios, quando
elle com os próprios lhe soube adquirir tanía.
E porque a verdade he que nosso Padre S. Domingos foi o inventor
do Santo OíTicio da Inquisição, como atrás dizemos, e o primeiro Inqui-
sidor, e Inquisidor geral confirmado por dous Papas, iremos apontando
os Autores que o escrevem. Seja o primeiro Camillo Campegio In-
quisidor geral, c Bispo de Nepi na Toscana, qne largamente o prova ms
suas addições. O mesmo afiirma Francisco Pegnia, e Zanchino Ugolino
de Ilaereticis. E Pedro Mathaeus Doutor em ambos os direitos diz es-
tas palavras: Favít B. Doviinici votis et operi Sninmus Ponlifex iniuucto
ei censurac sou quam vocant Inquisilionis liacreseos niuncre, quo quidem
ipsc Bcalus Valer prinras onrniuin oníatiis est. Assi 0 dizem Fr. Leandro
Alberto, Fr. Seljastião de Olmedo, Fr. António de Sena, Fr. João Ma-
rieta, Fr. Estevão de Senhalac, Fr. João Sagastizaval, Aymerico Inquisi-
dor geral de Aragão, e Bernardo Quijon Inquisidor de Tolosa. São de
ver as palavras de Lúcio Marineo Siculo na sua liisloria de Espanha:
Procurante Imiocentio III. Pont. Max. haeresim apuã Tolosani niiper abor-
tam mira celcritate atque virlule co)npescnit S. I)(J'iíí nicas, ele. E são isto
catorze Autores, sem os três que allegamos atras, e som outros sete que
irão na mai-gem, por encurtarmos aqui leitura (*). Mas bem puJ.eramos
(-) C;iniill, Camp. in suis addi(. Francis. Pcgii. 5. p. direct. com. 32. tit.. qiioJ Inquisi-
>0L. I 2
18 LlVliO 1 DA I113T0UIA Di: S. DOMIXGOS
escusar lodos, só com referir o teslimanho do famoso Pontifice Sixlo V,
cjjas cousas inda lioje estão espirando inteireza e valor. Diz ello em
hum hrcve que passou no anno de 1586, soljre a fesía do nosso Inqui-
sidor, e primeiro martyr por aquelle oíri.:io sagrado, S. Pedro de Vero-
na: Imo vero imitafione acceiísus B. P. Dominici, ut tile perpeluls cl con~
cionihus, et disputationum congressibus, officioque Iivjuisitionis, quoã et
pi-imum praedccessores nostri Innocentius III, et Ilonoi iiis III, commise-
rant contra Ilaercticos mirohiliter se gessit. E mais abaixo confirma o
mesmo acrecentando: Quam obrem post B. Dominicnm non imrnerito Prin-
cens oppellari dcbet sacrosancti Officii InqnUilionis, cum ipse primus illud
suo sanguine consecrarit. isto são letras Apostólicas que irrefragavelmente
provão que dous Papas santíssimos derão primeiro a nosso Padre o of-
ficio de Inquisidor, que a toda outra pessoa. E comtudo estejamos á conta
com estes dous Padres, e examinemos seus fundamentos; que por elles
mostraremos que não dizem por si, nem contra nós cousa de sustancia.
Fazendo-lhes primeiro a saber que o breve allegado começa, se o quize-
rem ver: Invictorum Christi militum nitmems ingens, ele. E foi passado
em 15 de Abril do anno de 1586, primeiro de seu Pontificado.
O primeiro, quebe o padre Fr. Bernabé de Montalvo na Historia de sua
Ordem diz assi: Este mismo oficio de Inquisidor conservo Santo Domingo
todo cl ticmpo que bivio nueslro Arnaldo Generalissimo de Cister Arçobis-
po de Nurhona Inquisidor General. Por cuija mucrte, que fue cl anno de
422Í, y la de su successor Pedro Diácono Cardenal, einbiando el Ponlifi-
ce por sn Legado a Latere a don Bernardo nueslro Monge Cislerciense
Presbítero Cardenal, y Capitan dei exercito de los Catfwlicos contra los
hereges de Aquitania: y confirmo el officio de Inquisidor a Santo Domingo,
como consta de ta dispensacion que dio a tin Cacallero de Tolosa. For los
quales instrumentos, sentencias, y cartas de Santo Domingo claramente se
collige, que nunca el fue Inquisidor por autoridad Apostólica. Ni cn los
Archivos de Roma hasta oy se ha hallado instrumento, ui letras Apostólicas
en contrario desta rcrdad que aqui prucco, gue no aya sido el prinier In-
quisidor Sunto Domingo: no obstante que lo diga Francisco Pegnia,Com-
Zandi Teol. <le llacrct. r. 20. Pplriis Malli. in annol. ad siiminam Cotiílilulio. Pont. til. Pij
V S k(i Fr. Leand. Ali), in vila S. Dom. i. Fr. Suba*, de Olni. in vita cjiifdom. Fr. Ant. dcSi.'na
Dtc' 1 f 13. Mariela p. 2. 1. 7. c. 11. Seniial. c. 2. de {.;!. nom. pratniic. Saijastizaval in .-íun
]\o< f L3 A\mcr. ?rrm. 2. de S. l'ot. Mait. Khai]. iJeil. in liiít. Tolosae. Lnc. Maiin. Sic. I.v.
j; iiernar Onijon Inqui?. 1 olo.-;. Salzcd. in prat. Criínin. (iinon. c. 11 í. l'?uí Maiis f. 2. sui Cat.
c"li!(|uis. Susatus c. 2. fiiac Cronic. \'.díV-\ Ldanc. f. 4i. .^uac lii,<tor. Soncin. in cpi.-t.
!'i'tiuin di; Pakide suí)cr lib. Scntenliar rianiin. l.b. 2. de S. l)o:a. P. li. L. o. f. UÍ.
Aiilist. 1. de
(ledic. a d I
e I lo. da IíílI da sua Oíd
í'Al\TiCULAU DO REINO Di; r.ORTLGAL 19
menlo 32, pagina 401. Suppucsfo lo que tcncr.ios didto fácil será de pro-
var, reprovando primcro con el rcspelo decido a ian gnm Varon : la opi-
iiioii de Frag Ilcrnando de Caslillo, que dize aocr lenido principio esle
Santo 0/jicio de Inquisicion por su Padre Sanío Domingo. Lo qual pro-
varè ser falso, no solo con las autoridades y leiras Apostólicas que dan
esto a monges de nucstra Orden, sino tambien con las que el mismo trae
para provar, que Santo Domingo fue Inquisidor (como es vcrdad lo fue)
mas no Inquisidor General, ni el primcro que invento el Santo Officio de
la Inquisicion. Coni esta comprida, e envolta arenga qv.er esto Religioso
dar por provado seu intento: -na qual lhe mostraremos ao olho três er-
ros, com que claramente se condena. Primeiro erro be dizer, que des-
pois do anno de 1224, fez o Monge dom Bernardo autos de coníhmíação
com nosso Padre S. Domingos, sendo assi que não ha quem ignore, que
era falecido S. Domingos ires annos antes no de 1221. Segundo erro,
c intolerável erro, affirmar, como aíTirma, que até o dia era que escre-
veo se não achavão nos Archivos de Roma instrumentos, nem leiras
Apostólicas que dessem a S. Domingos nome de primeiro inquisidor.
Claro sinal que não revolveo bem aquelles sanios arcliivos. Que se o íi-
'^era, achara o Breve atrás referido despachado no anno de 1586, antes
de sahir á luz a ílisíoria do Mestre Fr. Fernando de Castilho, contra
quem elle escreve. Terceiro, e maior eri-o commete, dizendo que mos-
trará ser falso haver-se dado principio ao Santo Officio da Inquisição
por S. Domingos: e que o provará com autoridade e letras Apostólicas,
que affirma, darem-no a Monges da sua Ordem de Cister. As quaes le-
tras não mostra: nem as pode mostrar, porque seria dar dous Breves
.Apostólicos em huma mesma causa repugnantes entre si, sem expressa
rezão de tal repugnância. ííum só defeito bastava pêra invalidar, e an-
nullar toda esta sua prova: que será havendo Ires, e tão palpáveis, e
tão enormes? Assi não ha que fazer caso d^eila: nem d"outra, em que o
mesmo Autor mostra fazer confiança, persuadindo-nos, que no nome
do habito que polo sanío Officio se veste aos penitenciados ficou a memoria
.de S. Bento chamando-lhe Sambenito. Ridícula derivação. Arrimou-se á
semelhança do vocábulo, sem ler os Autores antigos allegados n"estf,
ponto polo Inquisidor de Sicilia D. Luis de Paramo (*). Que se os lera,
achara que na primitiva Igreja, a quem tinha cometido delito merece-
dor de penitencia publica, se mandava usar vesíe de sacco. e porque a
(.) Dora. Luii de Paiaino 1. 1. t. 2. c. o. c lib. 2. t. 3. c. 11.
20 LIVnO I DA HISTORIA DE S. DOMfXGOS
feenzfão com particular oração os Sacerdotes, era sou nome Sacais hene-
iliclus. A força da antigaid.'íde foi comendo, e eiicurtíuído o nome.
Mas vejaníos se tem mais r>eno o se<Tun(ío.
cAPinxo IV
Censura-se ^wm Jmjar âe (rttlro lielifjioso ãa mesma Ordem e opiniãa,
CTnama-se o se^mdo Religioso Frei Angef !\íanrique, e começa assi
íium período, falando das í,Tandezas da OiiTem ãoChtçv{'): Entre todas
Jis que hasta aqm hemos dicho, y si atras algunas dixeremn-s ai fin deste
discurso, la que a mij parecer jmede (ener por principal hlason de sn no^
hleza^ es el Santo Officio de la Inqaisicion, que sin dtida nfufjuna tnvo sn
»riíj€n y principio de nueslra Ordcn. Com esta tão resoluta proposta
quer tirar a capa dos lK)mljros allieios, e na verdade grande honra lhes
fora, como diz, se ella não tivm^a dono com prescrijTç.ão de posse rra Or-
dem de S. Domingos de f|natrocento&annos, e prescrípeão de silencio na sua
de Cister de outros tantos, Que fura se não tivéramos armas no Breve
referido de Sixto Y, valeroso íilho do Seráfico Francisco? Mas a verd;»-
de he, que vivemos já hoje na idade misenível de ferro (*"*), tão de ferro,
e pouca justiça, que pouco adiante no mesmo livro e discurso ("*) se atreve
também íi defrandar-nos da fimdação da Ordeni da Mercê dando-a aos seus,
sem fazer mcTição nenhuma de S.Raymundo de Penhafort Frade nosso, e
Confessor dei Rei D. Jayme de Aragão, que os mesmos Pa(h-es Mercenariosa
boca cheia confessão(***')r c reconhecem por seu fundador, e legislador que
l;ie deu, e vestio o habito: c até a sua reza, que foi sempre Dominica, ex-
cipto de poucos annos pêra cá, que tomarão a Romana. Assi não ha
que espantar (juerer-nos despojar do que tem jwr gloria, quem n"isto
que menos importa, faz presa. Mas tornando ao pronto; em dous princí-
pios funda este Religioso sua opinião, tomados amlws de Autores ãs
Historia de S. Domingos, e ambos torcidos a seu propo:»ito. Des[)ois de
nis querer persuadir que o Santo Monge Pedro de Castro-novo foi o
primeiro Inquisidor que houve no mundo, acrecenta em bom Castelhano:
Asii lo confiessa Ludovico de Paramo lib. 2. óe Orifj, Inquisil. lit. i,
f.) Na Laurra Evnngcl. L. 3. Diíc. 8. g. í. 2.3.
j..j Ovitl. l. 1. Sictamnrph
{'•■•^ Ff. NuU'.fÍ5 Xau-t MercetíaiíDí lib. de eodcra Ord. AnnaL Eecl. 1223^
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL ^i
ç. I. aun que en cl cap. 2, ndelante dize, que Santo Domingo fnc el pri-
uier Inquisidor; olvidado de lo que acabava de dizir en este: sus palabras
■gon las siíjnienles: Sanctissimce ergo luquisitionis officium eo tempere sum-
psit exordium, quo iiupijs erroribus^ et blaspitemijs execrabilibus Albigen-
sium, Comilatus Tolosanas infectas, el pcnè extinctus crat. Tunc enim
gloriosas Deus iu, Innocentio Tertio Summo PorUifice eani mentem iniecit,
v.t Petrum de Castro novo Monachum virtMtis, el sancli-tatis gloria (loren-
tem creUret Legafum, et ad illain procincÍLWi ad VkristHm Seruatorem nos-
trnm reducendam mill^er-et. Por maneira, que só com Paramo dizer n'es-
tas palavras que Pedro Mong<4 foi mandado por Legado a Tulosa, quer
dar i)or certo, e provado, que foi taiiibcm por Inquisidor. Tenho por
necessário dal-as traduzidas em nossa linguagem, pêra que todos jul-
guem o te^temunlio que lhes levanta; dizem assi: Teve pois sua origem
o officio dtí ^cmtissiiua Inquisição no tempo, que o Condado de Tolosa es-
t«4:<i iiificio9iad% e yua-si perdido com os erros, e blasfémias dos Albigen-
ses. Porqne ^ntão foi Deos servido par no coração do Summo Pontifice
Innocencio Terceiro, que nomeasse por Legado a Pedro de Castro novo,
monge de grande nome, de virtude, e santidade, e o mandasse áquella
Provinda pêra ejfeito de a tornar a Christo nosso Salvador. Tal he 0 pri-
meiro princi[)io em que este Autor se funda: e lie o mesmo (alem do
torcer o sentido de Paramo) que não alcançar a dilTerença que ha entro
os olficios de Legado, e Inquisidor: e outrosi estar mui alheio d"outro
principio mui notório, qual he, não se mandarem Inquisidores aonde os
Príncipes, e cabeças das terras são declarados inimigos da Igreja Roma-
na. Pois ninguém ignora que seria cousa ridícula mandarem-se Inquisido-
res a Olanda, e Gelanda, ou a Genevra, ou á Rochella no estado em que estas
terras hoje estão. A verdade he, que o Santo Monge fez u olhcio que Paramo
lhe dá de Legado, e Embaixador do Pontífice, pêra tratar com os Condes
senhores da Província, que já estavão pervertidos da heregía. E isto fez
polo direito das gentes, com que os Embaixadores sem medo de oíTensa
entrão por casa dos inimigos. Se os achara em disposição -de obedece-
rem aos santos conselhos, e amoestações do Papa, então usara do poder
de Legado, absolvendo-os, e reduzindo-os ao grémio da Igreja. E bem
claro está, que não entrou aqui parle nenhuma de olilcío de Inquisidor.
O que fez de Legado escomôiungando o Conde de Tolosa (que pudera
i^cusar se quizera, pois ipso jure estava escomungado) lhe custou a vida,
como atrás contamos. E dahi naceo mandar o Papa publicar Cruzada
22 LTVr.O I DA niSTOlUA DV. S. DO^ÍIiXGO;-"'»
contra elle: c consoj^uintcinente, cnino lioiive exercito, c forra, traíar
S. Domingos de S3 dar ordem pcra se nliinpnreni as terras que S3 hião
ronqnistando, da má semcníe, com a traça divina que inventou do Santo
OGIcio. E porque Paramo o escreve, e entendo assi, deduzindo iiumas
cousas de outras, seguramente som se enconírar, nem esquecer (que não
ha csquecimcnlo de Capitulo primeiro pêra segundo) declara logo que o
Padre S. Domingos foi o primeiro Inquisidor que liouve na igreja de
Dcos, com.o este Padre o refere.
Tal como este Ijo outro lugar que também traz do mesmo Paramo,
pcra mostrar, que doze Abi)ades da sua^rdem forão também inquisi-
dores: o lie o seguinte: Eo lempore Suininus Poniifex misit duodccim Ab-
hates ex Divi Bernardi família eximia visinle, ri frcvcíara doclrina orna-
iiisímos, i(t hareticorum pafjns excurrenies. etc. E lie de notar, que paran-
do aqui sem nos dar o remate do período Latino, acaba-o em Castelha-
no dizendo: Que fuessen a exercitar cl ivAsmo officio. Grande falta, ou md-
seravel aríiQcio pêra quem emprende contrastar -cousas diríicuitosas.
Além de tais falências, como lodo edificio mal fundado por si mesmo
cáe, ellc mesmo dá com este em terra, com outras palavras que traz de
Vincencio Belvocense, que dizem assi, falando d'estes Abbades: Cceperunt-
que sinrjuli Evangelicam paupertatem côinplecti, pedilesqus discurrere, ac
sírenue fuleui Christí verbo et opere pruídicare. Querem dizer: E começa-
rão todos, e cada hum por si abraçar-se com a po!)rcza evangélica, c
andar a pé, e a pregar valentemente a fé de Christo. O que he clara
confirmação do que atrás temos dito, que fizerão por conselho de nos-
so Padre S. Domingos, e do Bispo de Osma. Assi íica claro, que nem o
Legado era mais que Legado, nem os Abbades forão mais que prega-
dores.
Menos força tem, ainda que traz mais alguma aparência, outra re-
zão, com que este Padre cuida que de todo deixa encabeçada a Inquisi-
ção na sua Ordem, dizendo, que nosso Padre S. Domingos confessa que
recebeo do Legado que era Abbade Cisterciensc o Officio de Inquisidor,
porcfue em huma sentença que deu, diz: Quod nobis ofjicium iniimxitdo-
minus Ahbaa Cisterciensis Ápostoíicíe Sedis Legatus, etc. E d"aqui infere,
que pois S. Domingos foi Inquisidor por ordem, ecommissão do Legado.
íicava o Legado sendo Inquisidor supremo, efirimeiro Inquisidor cpie S. Do-
mingos. A esta desatada, c fraca consequência se responde com facilidade.
Primeiramente ninguém pude duvidar que os Legados no soberano poder.
PARTICULAR DO REINO DK PORTUGAL 23
íjiie exerci Ião, provém muitos cargos necessários pêra a execução d"elle,
que ou são incompativeis com sua dignidade, ou inferiores a ella, e de
força se lião de administrar por terceiros. E ainda que elles os possão
prover, e conferir, não se segue por isso, que também os podem exer-
citar, ou que os íiquem eminentemente exercitando alguma hora. E tal
havemos de confessar, que era então este género de ollicio: oílicio, como
são de ordinário todos os que se crião de novo, sem proveito, nem hon-
ra, de muito cuidado, de grande trabalho, e risco entre hereges per-
versíssimos, e só accommodado á grande humildade de S. Domingos, e
ao zelo em que ardia das almas. E por ser tal, estimou o sábio Legado
querer o Santo occupar-se n"efle, e lhe mandou que o fizesse, pois achara
a traça como atrás dissemos, em quanto avisava ao Pontiíice. Assi não
negamos, nem queremos negar que o sérvio por commissão de quem ti-
nha o supremo poder da Igreja em França, até que o Ponlifice mandou
a sua de Roma. Com a qual começou a fazer o oiricio com plenária au-
toridade, sem mais sojeição ao Legado que aquefta que todo ministro
Ecclesiastico deve aos que são immediatos da suprema cadeira quando
se achão presentes. E esta distinção de tempo, e serventia, e commis-
sijes se collige da mesma Historia de Castilho em que o Padre Frei An-
gel se funda. Porque não pôde negar, que onde achou escrita a sentença^
diz Castilho como em prologo d"ella, as palavras seguintes: De anles que
f nesse Inquisidor (entende S. Dominijos) de ofpcio, sino por sola commis-
sion dei Legado, que andava en las revoluciones de Tolosa, se halla untí
sentencia dada contra mi herege. E logo segue a sentença. Nem pode ne-
gar que no mesmo capitulo, em que achou esta, se lé outra seníença, ou
dispensação que confirma a distinção de tempo, dizendo assi: Universis
Christi [idelihus, ad quos lilerw pixesenles peroenerint, Frater Domini-
cus Oxomensis Canonicwi, prmdicationis hnmílis minister salutem eS sin-
ccram ia Domino cJiaritalem. Discrelio vcslrw ttniversitatis prcêsentium
autor itate cognoscat, quod nos Uaij mundo Gulielino de Altaripa Pelagani-
rio licenliam concessinius, ut Gulielniuin Ugutioneni lucreticali qnondam ha-
hiiu, ut idem coram nobis asseruit iavestitum, secam in domuni suam apud
Tolosam teneat more aliorum hominum conversnnteni, ele. Uesponde tra-
duzida em Portuguez assi: A todos os fieis Christãos que estas letras vi-
rem, Frei Domingos Cónego de Osma, humilde ministro da pregação,
saúde, e amor no Senhor. A todos vos seja notório por autoridade das
presentes, que nós dêmos licença a Raymundo Guilherme de Altaripa
24 LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
Pelnganirio, pern ter cm sua casa em Tolosa a Guilherme Ugociano, sem
(liireronça no trato commum, e ordinário de todos os mais liomens, sem
embargo que em tempos atrás foi condenado ao habito de })cnileiicia
que se dá aos hereges, segundo diante de n(!)s o aíTirmou, etc.
Bem se diz, que convém fazer distinção de tempos, quem quer achar
conveniência nos direitos. Se este Padre notara a diíferença que ha nas
duas sentenças quanto á commissão, e exercicio, e serventia do oHicio,
f indando-sc a primeira na autoridade do Legado em quanto tardava a
do Pontifice: e fundando-so a segunda em autoridade própria, porque
a tinha já de Roma, como se mostra no termo, conccssimus, e não se rc-
ierir como na primciín ao Legado. Se notara a diílerença dos tempos,
que clararn:"níc parec^^ iv? quondam, da sogunda: do crer he, que senão
(^nganára, nem tomara >o!)re si huma opinião tão encontrada com todos
os historiadores, e estudiosos: pois com estas distincções se mostra cla-
ra, e corrente, e sem contradição a verdade que seguem, que he a mes-
ma em que concordão Paramo, e o Padre Frei Fernando de Castilho,
ab]'açada também (porque nos não fique nada por dizer) por Joannes
Âzzor da Companhia do Jesus, varão de grande doutrina, e mui versa-
do na lição das íiistorias Ecclesiasticas, que tratando esta matéria diz
assi:(*) Ex Hislorijfi Ecclesinslicis didicimns hoc muucris quadam ex parle
friiimm Beato Dominico fiiisss ntandatum circa nnnum Donniii 1208. E
mais abaixo : El ideo ut salnUinhus pconileiítijs imposiiis eos redeuntes
[entende Oí hereges) posset absolvere plenain ad id facullalem á lioniano
Pontífice impetravit.
Noticia tenho que ha terceiro mantenedor do assumpto d"estes dous
Religiosos, e que he da mesma Ordem(**). Não fiz muita diligencia polo ver,
por que não deve dizer mais que os doas, e basta-lhe a mesma reposta.
Mas temos nova contenda com outro Religioso da Ordem do glorioso
Padre S.Franc!SCo(***), que pêra tirar a S. Domingos o lugar de primeiro In-
quisidor, conforma coma opinião reprovaíla dosCistercienses, dizendo que
o foi somente por commissão do Abbade Legado. E desconcerta comos mes-
mos prra fazer sua Seráfica Ordem participante por partes iguais nos prin-
cípios d"aq;ieile Santo Officio com a de S. Domingos; pêra o que aíTirma
de seu parecer absoluto, que senão conta a origem da Inquisição de mais
atráS: que de cjuando o Papa Gregório IX mandou Inquisidores da sua,
(') .Icannc5 Azzor t. 1. 1. 8. c. 18. iastil. moral.
(••) Fr. LíMirenco Je Zamora na Moiianb. Mist. 1*. 7. na vida de S. Dom. f. 33G.
{•••] Im-. Ant. Dai-a na 4. jiart. da lliít. do S. I-ranci.-. 1. 1. c. li.
PAnTIClLAR DO REINO DE PORTUGAL 25
e nossa Oixlem contra os hereges' do Condado do Tolosa. Por maneira qiio
por liumavia nos quer tomar tudo, e por outra quer entrar comnoscoao
meio.
Pêra prova do primeiro faz grande força na sentença que atrás apon-
tamos, em que Nosso Padre confessa que exercitava ainda então o cargo por
commissão do Legado. E he caso gracioso, que andando junta a segimda
sentença que o mesmo Santo deu despois sem falar no Legado, c com au-
toridade própria, porque a tinha já do Santo Ponliíice ínnocencio Terceiro,
como fica mostrado: e sendo força, que ondcvio hmiia, liavia dever am-
bas, vale-se d'aque!la que serve pcra seu intento, e caha esfoutra que o
encontra, e põe por terra.
Não traz meUiorcs armas pêra confirmação do segundo. Allega luimas
palavras espedaçadas da Historia de Santo Antonino(*), onde conta que forão
por Inquisidores pêra as partes de Tolosa alguns Padres das Ordens dos
Pregadores, e jíenores, que despois padecerão martyrios ás mãos dos he-
reges. E digo espedaçadas, porque usando d"ellas pêra mostrar qne forão
estes os primeiros Inquisidores, não lhes dá o Santo Historiador tal nome
de primeiros: eservindo-se também d"el!as pêra provar Cjuc forão manda-
dos por Gregório IX, calla a circumstancia mais importante doanno apon-
tado pelom.esmo escritor: porque era o de I2'i2 que em claro desbarata
seu intento, por quanto Gregório IX era falecido de primeiro de Setem-
bro do anno atrás(**). E de muitos antes havia já inquisidores Dominicos
em Fi'ança, em LonVoardia, em Sicilia, e Alomanhaf***).
Descuberta a fraqueza d>stes fundamentos, que não tem por si mais
que a imaginação de seu dono, desacompanhada de Autores de impor-
tância: porque os Gistcrcienses já íicão refutados: e estando por nós to-
dos os que nomeamos no capitulo antes d'cste, bem nos pudéramos
queixar do cahir tão injusta pretenção em pessoa, que por Chronista da
sua Ordem, eslava obrigado a ter noticia do que tantos escrevem, e af-
lirmão: e por Religioso d'ella não podo deixar de venerar com sojeição
de animo, e entendimento a Extravagante do Santo Pontífice Sixto V seu
Frade(****), que atrás tocamos, na qual pêra confusão do primeiro erro, de-
clara que foi S. Domingos o primeiro Inquisidor da Igreja de Deos : e
{.) S. Aril. p. 3. til. 23. c. 1). .^. 1.
(••) Annaeí Ecclcs. no anno de 12íl. llliescas na Pont. na vida de Gregor. Nono.
(...) Doii Luís de Par. 1. 2. lit.l. c. i. n í. c c. 3 ii 6. Annaes lictlcs. an. 1215. n.ll. e an.
122Õ. n. 7. Paramo 1. 2. c. '2o.
(«.'.J Si.\tus V. in Extravag. quac iiicipit: Invictorum Clirisli milililm
2G i.ivno I DA iiiSToniA de s. domingos
pêra desengano do segundo, que o foi por commissão de dons Pontífices
Innocencio, e Honório, ambos Terceiros, e arníjos falecidos antes de Gre-
gório iX subir áquella santa Cadeira. E isto baste.
CAPITULO V
Passa o campo Catholico contra otilros Ingves. Conlão-se algumas
maravilhas qiio Dcos obrou pol) Sa?ilo. Cercão os Catholicos a Ci-
dade de To!osa, reíirão se com perda, e desfaz-se o campo.
Tornando ao fio de nossa historia, custou dous annos de tempo, e
muito sangue aos Católicos a conquista dos lugares, cjuo atrás aponta-
mos, e d"outi'os a que logo forão passando: c não menos trabalho ao
Santo Pregador, que nunca tinha hora ociosa. Porque quando o inverno
fazia cessar as armas da guerra, manejava clle as da pregação, e dispu-
tas com que sempre ^rangeava muito pêra Deos, ou allumiando almas,
ou confunchndo as que não querião luz. Aconteceo na Yilla de Murei,
ou Monreal, (e advirto que estes nomes dos lugares como são tomados
de historias Latinas, andãomui disfarçados, e differentes dos próprios mo-
dernos, e antigos) que despois de huma longa contenda que teve com
hereges de paz, em que houve grande numero de ouvintes, que mostra-
vão querer entender a verdade, como vío que os tinha tomado ás mãos,
quiz ver se os podia acabar de render. Trazia a matéria escrita em ter-
mos. Era do Sacramento da penitencia e confissão vocal: tirou do papel,
mcteo-liro nas mãos. Forão-se com elle, juntão-se á noiíe os que pre-
sumião de mais agudos: debaterão, cansarão sem achar que replicar, até
que hum de pura raiva arrebata o papel, e arremessa-o a huma fogueira
que todos cercavão em huma grande chaminé. Prodigioso successo! Per-
deo o elem.ento a força natural á vista da verdade e tomou outra con-
tra natural, que foi, rebater, e rechaçar o papel com tanta força, que
voando parou sobre huma viga que atravessava a sala. Este caso tiverão
por então em segredo, até que muitos dias despois foi publicado por
hum da companhia que se converteo, e a viga se guarda hoje por me-
moria.
Mas não acreditava o Senhor só por huma via a doutrina de seu ser-
vo, sarava enfermos, lançava demónios, e íazia outras grandes maravi-
PARTICULAR DO REI.NO DE PORTUGAL 27
lhas. A humas desaventurada., mulheres, a quem o demónio trazia atol-
ladas em torpezas, porque não podia acabar de as persuadir que se emen-
dassem, offereceo dar-lhes vista, e conhecimento de quem as guiava, e a
quem seryião. Mandou ao inimigo que dcscubrisse a figura com que as
acompanhava. Tão fea, e temerosa era que acabou o medo d"ella, quando
a virão, o que o de Deos não fazia.
Foi hum dia porá entrar em huma Igreja cercado de ouvintes, a quem
queria doutrinar. Achou-a cerrada. Tardavão as chaves a caso, ou
acinte. Chegou ás portas, poz-lho as mãos, abrirão-se de par om par
com admiração de todos.
Outro dia caminhava com pressa pêra certo lugar. Ao passar de
lium rio (chamio-lhe Aregia) cahio-lhe na agoa o Breviário envolto com
papeis de impurtancia. Era peso junto, foi-se ao fundo: c não houve re-
médio pêra se tirar, nem elle consentio que se fizesse muita diligencia,
assi por não perder a jornada, como por dar tudo por perdido despois
de passado da agoa. A cabo de três dias trazem-l!ie o Breviário, e
papeis, tudo tão enxuto como se nunca tocarão agoa. Foi o caso, quo
arrastando hu;n pescador suas redes no mesm ) lugar, colheo o en-
voltório, e fez restituição ao Santo. E como os papeis devião ser das
matérias de fé que andavão em questão, não quiz ser menos cortez
com elles o elemento da agoa, do que fora o do fogo com os outros.
N'esíe mesmo caminho aconteceo, que passando huma barca, ao saltar em
terra, lhe pedio o barqueiro o preço da passagem, e ái seu traballio-
Como o Santo não trazia dinheiro, porque vivia de esmolas, e o barquei-
ro não determinava ficar sem paga: antes a requeria com soberba, e des-
compostura, poz elle os olhos no Ceo com huma breve oração, e logo tor.
nando-os a terra, vio junto de si com que satisfez a divida.
A estas maravilhas ajuntou o Senhor dar-lhe espirito de profecia
com que antevia cousas grandes por vir, e a tempos declarava algumas,
como veremos ao diante. Eííeito foi d"eslc espirito o remédio de hum
pobre moço, que sendo por elle relaxado ao braço secular por herege
emperrado, quando o vio levar ao fogo, não sei que n"elle lhe revelou o Ceo,
quepedio lh"o largassem. Era o moço de gentil presença em disposição, e ros-
to. Sem falar ninguém advogarão por elle estas partes : trouxe-o comsigo
assi obstinado. E em fim veio a ter lume da verdade, e mereceo rece-
ber o habito na Ordem, e acabou n'ella com sinaes de predestinado.
Mas era entrado o anno de 1211, e o Conde de Monfort juntando
28 LIVRO I DA HISTOllIA DE S. DOMINGOS
stíu campo deUírminou acometer o lugar de Albi, ninho da heregia, e que
lhe dera nacimento, e nome. Tomou-o a viva força, e sem deixar es"
friar a corrente da victoria foi entrando, e conquistando outras praças'
acompanhado sempre do nosso Inquisidor, e pregador. E ultimamente
foi-sc lançar sobre Tolosa, onde estava junta toda a força dos hereges, fa"
zendo conta que aqui arrematava a guerra. lie a terra grande ; estava
bem provida, fazia brava resistência. Assi foi o cerco prolongado com
vários successos, e perigos, cuja relação não pertence a esta historia,
senão emquanto tocão ao Padre S. Domingos. Assistia elle no campo
pregando, e animando, e servindo a todos, e fazendo oração por todos,
que era pelejar por todos. Eisque hum dia acodem a elle muitos sol-
dados huns trás outros, lastimando-se todos, que acabavão de ver per-
der no rio huma barca carregada de gente, e polo que se podia conjeitu-
rar, julgavão serem Gatholicos. AlUigido com a nova sae da tenda, se-
guem-no todos a hum teso sobre o rio, d'ali começa a dar vozes inflam"
mado em compaixão, e caridade chamando da parte de Deos pelos que
já não aparecião, e logo á vista de todo o campo Catholico (podemos
bem dizer: Obediente Domino voei hominis) começão a levantar as cabe-
ças sobre a agoa, e vir saindo hum, e hum do fundo do rio pêra a praia,
e sem faltar homem de toda a companhia, reconhecidos todos do mila-
groso beneficio se vierão lançar aos pés do Santo, que os abraçava cheio
de alegria, como o estavão os circunstantes de maravilha, vendo sãos, c
salvos os que virão perder, e affogar, e desaparecer no meio da agoa.
E-ntão se soube o numero, e calidade. Erão quarenta peregrinos que
passavão em devação a San-Tiago, de nação Ingrezes. O tempo forte, e o
peso da gente fez soçobrar o vaso, pequeno pêra tamanha carga.
Havia muitos mezes que o cerco durava, sem nenhum bom eíTeito,
pola pertinácia, e valeiUia com que os cercados se defendião. Começarão
a faltar mantimentos aos cercadores, derramavão-se os soldados, e min-
goava o exercito : forão recrecendo outros inconvenientes. Em fim foi
forçado levantar o campo com perda de reputação, e grande desconsola-
rão do Santo.
PAUTICILAR DO REI>"0 DE PORTIGAI. 29
CAPITULO VI
Animi o Santo aos Calholicos com huma alegre profecia d't fim
da guerra. Contão-se algumas maravilhas obradas por meio do
Santo ^Rosaria: e a grande victoria que se alcançou dos hereges.
Era julf^ada por tamanha desgraça esta retirada de Tolosa, que não
havia Catholico que levantasse o rosto, assi aridavão caliidos e desmaiados. Só
o Padre S. Domingos cheio de confiança noCeo, consolava, e animava a to-
dos, e alegremente affirmava que a guerra teria fim muito cedo. Mas ornai
presente não consentia dar-se credito a nenhuma boa esperança, com quanto
tinhão experiência das vei-dades do Santo. Declarava-se mais, apontava parti-
cularidades, que haveria huma famosa batalha, serião vencedores os Ca-
thoUcos, ficaria hum Rei morto no campo. Não bastava nada, porque
lançando contas humanas achavão tantos inconvenientes no estado das
cousas, quo vinhão a julgar mal do Sanf-o, não s-j a negar-lhe fé. Ac-
c.recentava a desconfiança verem entrado o anno de 1213, e sem haver
I)oder de parte dos Cathoiicos, andarem os hereges poderosos de gente,
e allianças. Com tudo o Santo porfiava, e pregava, rogando publicamen-
te que não quizessem com a desesperação encurtar, ou anteparar a mi-
sericórdia Divina: que sem falta lhes afifirmava, os viria cons<ilar a tem-
po aquella Senliora, Virgem, e Mãi, cujos Rosários resavão, c trazião nas
mãos, e sobre os peitos. A isto ajuntava lembranças das muitas, e gran-
des maravilhas, com que a mesma Senhora ali mesmo, e entre elles lhes
tinha feito conhecer o muittj que valia sua devação. Assi os hía entre-
tendo, e aliviando em quanto tardava o prazo que no Ceo estava deter-
minado ao cumprimento da profecia. Mas porque nlío he rezão ficarem
em silencio os casos que o Santo lhes lembrava, diremos brevemente
por honra da Virgem, e do seu Rosário alguns dos muitos que n'aquelle
tempo succcderão(*).
Andava no camfX) Catholico hum fidalgo de Bretanha por nome Ala-
no de Valcoloara, do qual se aíTirma, que lodosos dias rezava o Rosário,
despois que o Santo pregara, e ensinara a devação. Achou-se hum dia
em huma escaramuça: era valente soldado: empenhou-se demasiado com
os inimigos, e quando menos cuidou, aohou-se cercado de muitos, e
(•) P. Fr, Fcinanj. de Caslilhj 1 1 c. 31.
30 i.ivno I DA insTí)iiiA de s. domíxius
quasi desamparado dos seus. Não havia senão moirer. Aparece-lhc ifes-
ta pressa a Senhora, põe-se de sua parte. Quem seria contra eUa? Come-
rão subitamente a cair pedras sobre os hereges com tanta fnria (juc
voltarão as costas com muitos mortos, c todos feridos, e malti-Uados.
E porque digamos tudo o que se escreve d'este devoto: aconteceo-lhe al-
guns annos despois da guerra achar-se no mar cm huma tormenta, e a
paragem tal, que sem remédio hia o navio á costa sobre huma rocha ta-
lhada. Acudio elle ao seu Rosário, e acudio-lhe a Senhora. Saltou subita-
mente o vento á terra, lançou o navio pêra o mar, e salvoií-se. Conhece-
rão 05 ruaiínheiros o milagre, e reconheceo-o elle tomando o. habito de
S. Domingos, tanto que poz os pés em terra (*).
São os perigos da alma tanto mais de temer que os do corpo, quanto
cila vai mais, e he mais nobre que elle. l^ías tam])om n'elles acha a esta
Senhora quem a busca : e como he Mãi, ás vezes também quem a não
busca. Quando succedeo o milagre dos papeis lançados no fogo que con-
támos, achou-se entre os hereges que forão presentes hum muito prin-
cipal em poder, e sangue. Este vendo o caso ficou enleado, c atónito,
porque havia quinze annos que se não confessava. E caindo em huma
profunda imaginação do que vira, e do estado cm que estava, vio-se
subitamente arrebatado por huma legião inteira de Demónios, que o le-
varão ao inferno, e o poserão á vista do que padecião os que este Sacra-
mento Santo aborrecerão na vida. E vio que cada hum dos taes tinha
hum feio dragão ferrado nas ilhargas, que enroscado pelas costas lhe rola
o coração cm pago da dureza com que fugirão da confissão : e as dores
que padecião os fazião dar bramidos como J)estas feras : dos olhos em
lugar das lagrimas que houverão de chorar de penitencia, lançavão laba-
redas de fogo, das bocas vomitavão podridão, veneno, e fedor : e parando
O vomito pêra não terem hora livre de tormento, lhes entravão por ellas
lagartos, e bivoras. Era tudo tal, e tão medonho, que só da vista se sentia
atormentado, e lhe parecia ser já companheiro nas penas. Mas a miseri-
córdia Divina lhe deparava ali a Virgem do Rosário, cujas grandezas ti-
nha algumas vezes ouvido ao Padre S. Domingos, a qual via que em
meio d'esta aíllição lhe dava a mão, e o livrava. Assi na primeira hora
que pôde, sem meter tempo em meio, se foi ao Santo que o confessou,
c pêra cura perfeita lhe ensinou a devacão de quem lhe valera no traba-
lho : a qual tomou tanto a peito que de herege, e estragado se fez Ca-
{•) Castilho ubi sup.
í\VUTIC!'I,Ar. DO IU:iNO DE PORTUGAL 31
pitão de Calliolicos, e nas l)aiideiras trazia por divisa o Sarilo Rosário,
fjue lhe deu dos liorcges muitas victorias, como lhe dera do inferno.
Por diííerente via teve cura igual outro nobre Catliolico. Era vicioso,
e devasso em sensualidades, e tratava mal Imma virtuosa fêmea sua mu-
lher. Ella ardendo em ira, e raiva de ver que a desprezava por outras,
andava em pensamentos de se perder, por se vingar do marido em ma-
téria que igualmente lhe doesse. Passando assi alguns dias aborrecida
da vida, e do marido, e de sua própria lionra, e alma : e não acabando
de pôr em obra o que já na vontade trazia executado : foi servido o Pai
de misericórdia representar-lhc em sonhos as penas que no inferno pa-
decião os sensuaes. Vio que jazião em fornos ardendo, abraçados de ser-
pentes, e liados d'ellas por toda a parte: de sorte, que nem as podião
lançar de si, nem erão senhores de mover pé nem mão. Sahião-l!ie poios
olhos, boca, e narizes chammas de fogo horrendo de azulado, e negro
com huma respiração, e cheiro incomportável como de Vulcanos que ar-
dem nos mineraes de enxofre : c a voltas do fogo vinlião huns borbulíiões
de matérias como de pos temas podres, negras, e nojentas que lhes corrião,
o cobrião os corpos de pés a caljoça, e passavão ás entranhas, criando
alli íVagoa, d'onde tornavão a subir em corrente perpetua. Nacia de tudo
hum tormento desesperado nos tristes padecentes, e do tormento hum
grito continuado que atroava o inferno. E sendo talo martyrio, nem
matava (que fora género de consolação) nem podia matar : e esta certeza
de perpetuidade era causa de nova, c maior pena. Entre estes fornos via
hum vazio de condenado, mas não dos instrumentos dos outros, e foi-lhe
dito que aquelle esperava por seu marido. A pobre senhora, que pudera
alegrar-se com a vingança, estava tão assombrada do que via, que cheia
de compaixão começou a fazer hum sentido pranto, que lhe tirou o sono
e a visão. Acordou banhada em lagrimas, mas consolada, e contente d^
não ter executado os danados propósitos de que estivera persuadida, E
como não podia perder da memoria o que vira, buscou logo a S. Domin-
gos, deu-lhe conta de duas almas, e levou remédio pêra ambas. Efoi assi.
Deo-lhe o Santo hum rosário seu, mandou-lhe que rezasse por cUe, e de
noite o pozessc debaixo do travesseiro ao descomposto marido. Divino^
e poderoso feitiço. Ka primeira noite lhe cahio n"alma lium grande medo
acompanhado de tamanha dôr de seus peccados, que a passou toda emla
grimas : na segunda se lhe representou que era cliamado a juízo diante do
tribunal divino, com que espertou cheio de novo lei'ror, e sem poder to-
32 LIVIU) I DA IIISTOIIIA DE S. DWílNGOS
mar sono: tudo forrio suspiros, e pedir perdões á mullier até pola ma-
nliã. Finalmente foi Deos servido mostrar-lhe outra visão do interno se-
melhante á que contámos de sua mullier, com que se resolveo em lazer
nova vida. E em quanto lhe durou, foi grande pregoeiro do poder, e
virtudes do santo Rosário.
Mas tornando á nossa instoria, e aos desconliados Catholicos, era che-
gado o tempo em que o Senhor os queria consolar, c dar comprimento
á profecia de seu servo; e pêra que a victoria fosse toda sua, ordenou
que succedesse no tempo que o partido Gatholico estava mais desespe-
rado, e passou d'esía maneira. Era por Setembro do l!;íl3. Andavão os
hereges senhores do campo: e o Conde de Monfort, repartidas as poucas
gentes que tinha polas terras ganhadas, estava encerrado com poucos no
(^astello de .Murei, prara forte sobre o rio Garona. Forão sobre elle os
Condes hereges com tamanho poder que ameaçavão a toda aí' rança, não
s3 aos cercados. Levavão em seu favor a Et-Rei 1). Pedro de Aragão
acompanhado de hum exercito victorioso, com que no annoatrazde 1212
se achara com EI-Rei de Castella na ÍLimosa batallra das Navas, em que
ambos desbaratarão, e matarão hum numero infinito de Mouros. Não lia-
via no Gastello mais de mil o oitocentos homens de armas, e os inimigos
cobrião montes, e valles, aífirma-se que não erão menos de cera mil com-
batentes. Acompanhava S. Domingos aos cercados, c como outro Moysés
negoceava com Deos por meio de fervorosas orações, e do santo Rosário,
e muitas lagrimas, não só o remédio do lugar, mas do Reino de França
inteiro, que então pendia d'eUe. Era gente escolhida, e valorosa a que o
Conde de Monfort recolhera comsigo: mas á vista de tanto inimigo não
havia peito livre de temor. Só o Santo alegre, e confiado jiropõe que
assaltem os hereges confiados em sua multidão, e descuidados do perigo,
e aíTirma que tanto dilatão a victoria, quanto íardão em os acometer.
Foi conselho que se armassem todos das armas santas dos Sacramentos
da confissão, e sagrada communhão. Assi animados, abrem as portas,
põe-se o Santo na dianteira com o sagrado guião de Christo crucificado nas
mãos. Arremeteo aquelle pequeno esquadrão aos inimigos com hum íor
vão de alarida. Não se pôde escrever qual foi o encontro, nem qual a
resistência, como vencerão tão poucíjs, como forão vencidos tantos: veio
a victoria do Ceo, d"onde estava prometida ás lagrimas do servo de Deos:
assi ficou desfeito aquelle grande exercito em hum momento, como o
outro de Senachcrib, ao parecer mais por obra de Anjos, que por mãos
PARTICULAR DO REÍXO DK POIITUGAL 33
de homens, e alagando com sangue os campos que (l'antes cobria com
corpos, e armas, c he cousa ccrla, que forão mortos vinte mil homens,
não faltando dos vencedores mais que sete ou oito. E porque se com-
prisse em todo a prophecia do Santo, e a victoria mais gloriosa fosse,
ficou morto no campo El-Rei D, Pedro, desgraça digna da companhia que
tomou, não de seu valor. Rendeo a victoria a S. Domingos celehrar-se seu
nome com novos títulos, além de Santo, de Propheta, de milagroso, e
amado de Deos. Bem sei que se escreve differentemente por alguns este
successo, dizendo que ficou o Santo posto em oração com huns Prelados,
que havia no castello. Mas não he de crer que acompanhando elle os
exércitos grandes em escaramuças, e recontros de menos conta, desam-
parasse este pequeno esquadrão em perigo tão manifesto, e Ião necessitado
de sua presença. E notou-se n'elle mais ao claro, o que já em outros
recontros tinhão os homens visto, que sendo o Santo nos acommetimen-
tos o dianteiro, nem em sua pessoa, nem na figura do santo Crucifixo,
tocou nunca lança, nem seta, nem outro tiro, ficando pêra inteira confir-
mação do milagre a haste em que hia arvorado, crespa de muitas setas
que a pregarão. Este Crucifixo por memoria do successo se guarda, e
mostra hoje no nosso convento de Tolosa (*). E pola mesma conta devia dar
o consentimento commum a nosso Padre hum Crucifixo por devisa que
todos os pintores lhe põem nas mãos: e d"ella usão os Mestres geraes
da nossa Ordem no sello grande de seu cargo. E he o costume tão an-
tigo, que no Capitulo que se fez em Bolonha no anno de 1240 se decre-
tou particular ordenação, que nenhum outro religioso a trouxesse em
sinete.
Rendeo a mesma victoria aos Catholicos correrem logo,,e senhorea-
rem toda a terra, sem haver quem lhes fizesse rosto, castigarão-se muitos
hereges, ganharão-se todas as forças que estavão por elles, e o que mais
importou, reduzirão-se infinitas almas ao grémio da Igreja. E he cousa
averiguada que forão poucas menos de cem mil as que converte o no
tempo que durarão estas alterações a diligencia, e pregação, e vida de
S. Domingos, segundo constou poios autos que pêra sua canonização se
processarão (**). Apaziguada a terra, começarão a crecer os bens, efruitos
da paz, com augmentos de religião, e quietação de corpos, e almas. Go-
zava-os o Santo recolhido em Tolosa com seus companlieiros. Vivião jun-
(*) Susato na vida de Fr. Beieng. 13. M. Geral.
(.*) Fr. Fernando de Castilho Uiít. do S. Dom. p. i. 1. i. c. 1».
VOL. 1. 3
34 LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
los, e em commiinidade em humas casas que lhe dera hum d'elles chamado
Pedro Cellan. Aqui os exercitava em silencio, e recolhimento, jejuns, vi-
gi lias, oração, o contemplação: ensaiando-os com seu exemplo nos tra-
balhos da Religião, e vida nova que em seu animo traçava, vida nunca
ociosa, nunca descançada, activa na necessidade, contemplativa no ócio.
CAPITULO Ylí
Dá S. Domingos principio á sagrada Ordem dos Pregadores. Pede
confirmação ao Pontífice : alcança-a verbal, e condicional. Funda
cm Tolosa o primeiro convento. Faz renunciarão de rendas, e fa-
zenda. Torna a Roma em demanda da confirmação : Conlào-se
humas visões que ahi leve.
Aquelle Senhor que tudo dispõe suavemente, e em suas promes-
sas nunca fez falta, querendo acudir á que em beneficio do mundo tinha
feito a seu servo S. Domingos por meio da gloriosa Virgem Wà, e Es-
posa sua, como atraz fica contado, foi servido dar-ihe comprimento pe-
los termos, e modos que agora diremos. Tinha o Padre S. Domingos
dezaseis companheiros bem provados todos nos traballios d"estes annos,
e no exercido da pregação, e serviço da Inquisição em que o tinhão aju-
dado muito. Porque alguns erão bons letrados, e todos de grande virtude,
e espirito. Havia outros muitos sujeitos que desejavão seguil-o. Pare-
ceo-Ihe tempo de manifestar ao mundo, e pôr em eíTeito o que de longe
trazia imaginado, que era fundar huma Ordem, que fosse seminário per-
manecente de gente apostada a encontrar hereges, e heregias, e ser escu-
do, e defensa da verdadeira doutrina : officio em que já havia muitos dias
elle, e os seus andavão exercitados. Deo conta do desenho a seus gran-
des amigos o Bispo Fulcon de Tolosa, e o Conde de Monfort. Ambos
louvarão a empreza, e ás palavras ajuntarão obras; entendendo que pêra
se empregar com todo cuidado no espiritual, de (fue tão bons eífeitos
tinhão visto, convinha ser fomentado com ajudas temporaes, cada hum
lhe fez sua doação. Dco-lhe o Conde o senhorio temporal de huma boa
villa chamada Fanjous(*). O Bispo, todas as rendas da Igreja de Santa Maria
da mesma villa de Fanjous, a que ajuntou outras Igrejas, e a sexta parte
{.) M. Fr. Juniào c. 20. M. Fr. Bfiiiar. Guido tit. Das Frciruí de riulliaiio. Caítilho |). i. 1.
1. r. lo
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL ofi
dos dízimos do todo seu Bispado, com consentimento da Clerisia, que era
tudo cousa mui grossa.
Publicou-se n'este tempo por toda a Christandade de parte do Summo
Pontifice Innoeencio III, convocação geral de Prelados pêra Concilio uni-
versal, que veio a celebrar por Novembro do anno de 1215 em Roma na
Igreja de S. João de Latrão. Foi-se S. Domingos a ellc em companhia
do Bispo de Tolosa, não duvidando com tal testemunha de seus traba-
lhos pedir, e alcançar approvação, e confirmação de sua Ordem. Mas
sendo bem visto do Papa, e de toda a Corte Romana, por nenhum caso
foi admitido o requerimento : antes sahio particular decreto do Concilio,
que se não consentissem Religiíjes novas (*). Parece que foi ordem da divina
providencia pêra maior honra d'esta Rehgião, e pêra que ficasse publi-
co, e notório no mundo, que não tivera seu principio n'elle, senão no
Ceo, e como tal era necessária na Igreja Catholica. Acodia S. Domin-
gos a palácio do dia requerendo aos homens, gastava despois as noites
inteiras clamando a Deos com oração, c lagrimas (**). Corria o tempo, per-
severava o Santo constantemente em sua prefênção, e requerimento, e
durava igualmente a contradição : quando amanhecendo hum dia em pa-
lácio, lhe foi dito que era buscado de mandado do Papa; o qual vendo-o
lhe mandou que logo se tornasse a seus companheiros, e com elles deli-
berasse na escolha de huma das regras approvadas pola Igreja, e com
isso lhe faria a graça da confirmação de sua Ordem. Fez geral espanto
em toda a corte mudança tão súbita no Santo Pontífice. Mas muito mais
admirou a rezão d ella. E foi que na mesma noite começando a repousar
afadigado do peso, e cuidados de seu governo, representou-se-lhe que
via o templo famoso de S. João de Latrão tão inclinado, e pendente so-
bre hum lado, que ao parecer se vinha sem remédio ao chão : logo no-
tava que hum homem vestido de mursa, e roxete se chegava ao edificio,
e pondo-lhe as mãos o sustentava, e livrava de ruina. Vigiava o espirito,
se bem os sentidos estavão adormecidos : conheceo o homem, e lembrou-
se do requerimento, e ficou entendendo despois de acordado, que não era
sonho, senão advertência do Ceo o que vira, do que devia fazer(***). Assi de-
firio logo com gosto, ao que d'antes resistia com aspereza. Encommen-
dou-lhe de novo o officio da pregação, e Inquisição, mandando escrever
(•) Cap. 13. Ne niraia Religionum divcrsitas, &c.
■ (..) S. Ant. 3. p. t. 19. c. 3. & t. '23. c. 4. g. 3.
(>") Pelrus Mutlli. Y<llieg. Fr. Scbus. Olmedo. Fr. gtep. de Seilaluc. tratt. 2.
36 LIVRO 1 DA HISTORIA DE S. DOMLXGOS
emluiniainstnicção dascousasque lhe encarregava o titulo já outra vez dada,
como affirmão muitos, ao Mestre Frei Domingos, e aos irmãos Pregadores.
Não tardou o Santo cm tornar pêra os seus. Jiintou-os na igreja de
Prulliano: deu-llies conta do despaclio que trazia, e do que convinha resol-
ver. Assentarão em tomar a regra do Padre Santo Agostinho com as cons-
tituições, e cerimonias pela mór parte da Ordem de Premonstrel (he esta
Ordem filha de Santo Agostinho, dos Cónegos regalares, foi fundador S.
Nortberto Bispo Magdeburgense.) Não ignoro qne Dionysio Carthusiano
varão gravíssimo (*) quer que da Cartuxa tomasse S. Domingos estatutos, e
habito : e o mesmo aíTirma D. Theodoro Pelreyo nas notas que fez á Chro-
nica Cartuziensc. Mas no que tenho dito conformão todos os nossos, se-
guindo ao Mestre Frei Humberto de Romanis, que assi o escreve, e al-
cançou ao Padre S. Domingos, e foi Geral da Ordem aos trinta e três ân-
uos despois de sua morte. Como quem já tinha consentimento, e confir-
mação da boca do Summo Pontifice, começou também a pôr mãos no edi-
fício do primeiro Convento. Dera-lhe o Bispo Fulcon a Igreja de S. Ro-
mão em Tolosa, por occ^ião de humas casas nobres a ellas vizinhas, de
que lhe tinha feito doação Ramon Vidal, e sua mulher Brunequildes. Aqui
armou o Convento com pouca despeza, juntando casas, e Igreja. E pas-
sou-se logo a elle, deixando as casas de Pedro Cellan. Erão as celtas de
tal feitio que quasi arremedavão sepulturas em comprimento, e largura.
Entender-se-ha a medida, do que ao diante veremos, que succedeo ao
Santo em Bolonha : dentro hum feixe de vides, ou hum tessido de verga
pêra cama: ehuma pequena banca pêra meza de livros, e estudo, e não
havia lugar pêra mais. Dividião-se com a grossura de huma taboa. O cor-
redor do dormitório muito estreito, as celtas sem fecho, nem porta pêra
S3 fechar. A tal fabrica quiz que respondesse a sustentação. Pareceo-lhe
que, pois tomavão á sua conta exercitar o oílicío dos Santos Apóstolos,
a quem Christo mandou que o fizessem sem alforge, devião viver sobre a
terra ao uso dos mesmos Apóstolos, sem possuírem cousa nenhuma n'ella.
E logo fez renunciação, e trespasso no Mosteiro, e Freiras de Prulliano
de todas as rendas que tinhão.
Compostas assi estas cousas, era passado muito adiante o anno de 1216.
Poz-se de novo em caminho pêra Roma a tirar as letras de confirmação.
Achou defunto o Papa Innooencio, e a seu successor Honório Terceiro oc-
(•) In nnus. Dionys. Cait. ar. 8. de piíccou. lau. Ord. Caifliusiens. D. Tbcodor. Petrejo 'su-
per 1. 'J. c. li.
PAnTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 37
cupado em negócios gravíssimos, parte com aprestar hum grosso exer-
cito que mandava pêra a Terra Santa : parte com o receliimento do Em-
perador de Constantnopla Pedro Alíisidiorense, que com a Emperatiiz
sua mulher se vinha coroar de sua mão em Roma. Não fazia o Papa
Honório duvida na matéria, mas os muitos negócios interpunhão causas
de dilação. Alíligia-se o Santo : e o Senhor benignissimo estimando a af-
feição, de que era causa, tinha cuidado entre tanto de o consolar com
visões celestiaes. E foi huma, mostrar-se-lhe Christo com três lanças na
mão, em acto, e postura, ao que parecia, de vingar com ellas os pecca-
dos do mundo, com os três açoutes mais temidos n"elle. Logo via a Vir-
gem Mãi ajoelhar-se com entranhas de piedade diante do Filho irado, e
pedir-lhe misericórdia, oíTerecendo-se por fiadora de huma nova, e grande
reformação em toda a terra, por meio de dous devotos servos seus que
n'ella tinha : os quaes lhe mostrava sinalando-o a clle, e a outro homem
que não conheceo, envolto n'um capote de saco, pés descalços, rosto in-
flado, e desfeito. E notava que o Senhor se deixava vencer dos rogos, e
promessas, e ficava aplacado. Foi grande a consolação, e confiança com
que ficou de seus negócios: mas grande também o desejo detconhecer, e
venerar hum tal companheiro. E não passarão muitos dias que encontrou
S. Francisco na Igreja de S. Pedro, e segundo liie ficara impressa na me-
moria a visão passada, não duvidou na pessoa, nem em se lançar a seus
pés. Abraçarão-se, tratarão-se como amigos, e prometerão-se fiel compa-
nhia pêra toda a vida, e que, ainda que fundavão Ordens differentes em
leis, cerimonias, e trajo, fossem ambas huma só nos ânimos dos succes-
sores que n'ellas professassem, (e creio eu que não será verdadeiro filho
d"estes Santos, quem de tão antigo trato, e contrato se esquecer.) D esta
visão tiverão noticia os nossos Frades por relação do Padre S. Francis-
co, a quem só a contou o Padre S. Domingos. Assi o deixou escrito o famoso
Chronista Franciscano, e Português Frei Marcos de Lisboa, Bispo do Porto (*).
Chegava-se o fim do anno, e não chegava o effeito dos desejos do San-
to. Era grande a mortificação que siníia, e o que acre'ceníava com ella
de merecimento pêra com Deos, feito como outro Daniel ("), hum varão de
desejos. Alegreu-o o Senhor de novo com outra visão. Ficou-se huma noite
em oração na Igreja de S. Pedro em Vaticano diante das sagradas rehquias
dos Apóstolos S. Pedro, e S. Paulo, regava aquellas lageas com vivas
(•] Na Cronic. dos Men. p. !. 1, i. c. i6.
["] Daii. 9.
3^ LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOAIINGOS
lagrimas. Eis que lhe appareccm ambos, e falando com ello manilao-Uio
de parto de Deos, (|iio pregue sua fé polo mundo por si, e por seus com-
panheii'os, e em penhor de tal mandato offerece-lhe cada hum d'elles
sua dadiva (dadiva honrosa, e em que podemos fundar os Religiosos
d"esta Ordem grande certeza de misericórdias do Ceo, mas também lui-
ma perpetua lembrança de grandes obrigações nossas), S. Pedro lhe deo
bum bordão, S. Paulo hum livro.
CAPITULO VIII
Alcança S. Domingos cm Roma letras Apostólicas de confirmação de
sua Ordem, com titulo de Ordem dos Pregadores. Torna a França,
faz eleição de Prelado entre os seus, e manda-os a pregar por
varias partes.
Em fim foi despachada a confirmação da Ordem de S. Domingos polo
Summo Pontífice Honório III com assistência de dezoito Cardeaes em
vinte e dou$ dias do mez de Dezembro, anno da Redempção do género
humano 1216. Começa o Breve que d^ella se passou: Honório Bispo ser-
vo dos servos de Deos ao amado Frei Domingos Prior de S. Romão de To-
losa, etc. E o titulo foi: Letras de confirmação da Ordem dos Frades Pre-
gadores. E d'aqHÍ naceo, que dando o tempo, e occasiões d'elle vários
titulos a esta Ordem, e todos l)em honrosos, como era chamarem-nos em
humas partes Frades de Nossa Senhora, porque d"ella recebemos o ha-
bito, e outros particulares favores, como adiante o contará a historia (*). Em
outras partes Frades da Ordem da verdade, pola constância com que ella
se oppoz sempre â falsidade das heregias em serviço, e defensão da ver-
dadeira fé. Comtudo no Capitulo Geral celebrado em Paris anno 12uG,
S3 fez particular decreto, em que se mandou que doutro nome não usás-
semos, salvo destOj em que Honório nos confirmou aqui, e que Innocen^
cio seu antecessor nos tinha dado d'antes. Diz o decreto: Fratres nosiri
vocentur Fratres Prcpdicatores, et non alijs nominibus.
Não se deteve o Santo mais em Roma. Cliegado a Tolosa ao seu con-
vento abrio os braços a receber noviços, e os pensamentos, e determina^
ção a espalhar polo mundo esses poucos companheiros antigos, de que
(•) S. Ant. 3. p. t. 23. c 3. §. i. M. Fr. Aiif. de Scciía na sua Cron. foi 27. O mesmo Fr.
Ant. de Sena f, 2j. Óí 179,
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 39
Já tinha experiência. Do numero d"elles faláo variamente os Autores. Os
mais concordão que furão dezaseis. A saber, sete Franceses, Matheus
Estevão de Metz de Lorena, Beltrão de Garriga, Guilherme Clarete, Pe-
dro, e Thomás Celian, irmãos, Natal. D'estes bavião sido Priores de Igre-
jas Collegiadas, bomens maduros, e bons letrados os dous primeiros l\Ia-
theus, e Estevão. Outros sete Espanboes, Manes, ou Mamerto, irmão in-
teiro de nosso Padre S. Domingos, Miguel de Uzero, Domingos Espa-
nbol, o pequeno, ou polo ser de corpo, ou por diíTerença de seu Mestre,
João de Navarra, que alguns querem que fosse Lombardo, e se cbarnasse
de Vanaria, não de Navarra, Pedro de Madin, Miguel de Espanba, por
outro nome de Fabra : e Sueiro Gomes, que sendo sabidamente Portu-
guez nenlium Autor antigo nem moderno lhe sinalla pátria. Erão mais
bum Lourenço Ingres, e bum Leigo que buns cbamão Oíhorio, outros
Odorico Normando. Como erão tão poucos foi forte a contradição que o
Santo achou nos maiores amigos, a quem por rezão, e cortesia deo con-
ta do desenho. Sempre foi ordinário encontrar o mundo os movimentos
divinos. Não sofria o Bispo Fulcon haver-se de dividir por outras terras
aquella pequena esquadra de pregadores, quando a seu parecer só a sua
os bavia mister todos. D'esta opinião era o Conde Simão, e todas as pes-
soas de autoridade com quem communicava. Porém elle se armou só
cjntra todos, e obrigado do titulo recebido do Papa, do instincto do Ceo,
e do mandato dos Apóstolos aflirmava constantemente, que esses grãos
de mostarda tão poucos, e tão pequenos que queria semear, e derramar
polo mundo, bavião de dar arvores que o cobrissem todo. E sem mudar
bum ponto de seu propósito foi acabando de compor a casa de S. Ro-
mão em perfeição de Mosteiro, vestio os companheiros de mursas, e
sobrepellizes como elle usava: e logo mandou-lhes que elegessem entre
si Prelado que o fosse de todos, e do convento em que estavão. Porque
na peregrinação, que imaginava, não queria que sua pessoa ficasse de
fora, antes pretendia tomar pêra si a parte mais difficultosa (exemplo di-
gno de ser imitado de todos os que mandão.) Affirmão alguns escritores,
quu foi sua tenção n'este passo ent!'ar por teriva de Mouros a pregar a fé
inflammado em esperanças de ser 3Iartyr por Cbristo, e com tal presup-
posto tinha deixado crescer a barba. Sahio canonicamente eleito (e foi
a primeira eleição d'esta Ordem) Frei Matheus, homem de boas letras,
e idade crecida, como atraz apontámos, e fora Piior, antes de seguir a S.
Domingos, da Igreja coUegiada de S. Vicente de Castras. Chamou-se por
40 LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
então Abbade, e foi o primeiro, e ultimo Prelado d'este título na Ordem,
Porque logo traz elle se forão chamando Priores. Esta eleição por ser
a primeira quiz S. Domingos que se fizesse no Mosteiro de Prulliano em
dia fermoso, que foi o da gloriosa Assumpção de nossa Senhora em 15
de Agosto de 1217.
Logo passado dia de nosso Padre Santo Agostinho, deu principio a
determinada sementeira divina na fónna seguinte. Despachou sete compa-
nheiros á grande cidade de Paris cabeça de França, huns pêra pregarem,
outros pêra estudarem. Mandou hum pêra as terras vizinhas deLiraoges, e
quatro pêra Espanha, sinatando-lhes os Reinos em cpie cada hum havia de
assistir. Mas porque esta historia he só do que toca ao Reino de Portu-
gal, visto como todas as outras províncias tem seus Escritores, deixare-
mos o muito que fizerão, e trabalharão, e fructificarão os que forão a
França, pêra que o digão com melhor estilo seus naturaes; e trataremos
somente dos quatro a quem coube Espanha. Aos quaes seguiremos em
quanto forem companheiros, e em quanto d'elles se não dividir o que
d'esta Religião foi Apostolo de Portugal. Tanto que se apartarem, segui-
remos este somente, desobrigando-nos dos mais, porque o resto de Es-
panha tem também seus Clironistas particulares, que nos escusão o tra;
balho de dar noticia d'elles. Erão todos os quatro Espanhoes, E os no-
mes pela ordem, e formalidade que os mais dos autores guardão em os
contar, erão Frei Gomes, Frei Miguel de Uzero, Frei Pedro de Madin,
que alguns chamão Frei Pedro de Madrid pola semelhança do nome, e
Frei Domingos o pequeno. Não os tomou de súbito, nem desapercebidos
esta obediência : muitas vezes os tinha o Santo prevenido, e avisado de
sua determinação, e do que pretendia, e esperava d'elles : e tão mestres
os tinlia feito nas regras da verdadeira resignação, que nem os que fi-
carão se alegrarão por ficarem em repouso, nem os inviados se sintirão
vendo-se obrigados a novo género de vida, e a haverem de aparecer
entre parentes, e amigos em trajo pobre, e grosseiro, caminhando a pé,
e sustentando a vida com hum pedaço de pão comprado com a vergonha
de o pedir de porta em porta. Assi se dividirão sem alteração de parte a
parte, exceito aquella que era rezão causasse em gente unida em Christo
o apartamento de tal pai, e tais irmãos; que de força havia de arrancar
lagrimas significadoras do amor que os liava : e não devião ser poucas
as do pai, que a todos tinha na alma. Porém sendo as lagrimas ordiná-
rio testemunho de tristeza, aqui não havia senão júbilos de alegria. Por-
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 41
que os filhos, como bons soldados, que confiados no valor, e bom juízo
do Capitão, basta porem-lhe os olhos no rosto pêra correrem ao pe-
rigo, como a victoria certa, hião cheios de alvoroço pêra se verem a bra-
ços com os trabalhos. E tal ficava o pai, a quem o espirito fazia crer
que não devia esperar menos daqucllos filhos, que em Christo gerara, e
em serviço do mesmo Christo, e com sua benção lai-gava de seu bafo,
do que espera o lavrador sisudo, quando atrevidamente despeja o cilei-
ro, e lança á terra a melhor parte do trigo mais grado, e mais limpo,
que lhe tem custado gotas de sangue. Dos colloquios d"esta despedida,
que devião ser cheios de fogo do Ceo, e parece está pedindo a curiosi-
dade de quem lê, saber quaes forão, nem os escritores antigos nos dei-
xarão lembrança, nem a humildade de filho, e frieza de espirito, e bre-
vidade prometida nos consente fazer juizo, pêra se quer pola obrigação
de historiador darmos alguma noticia delles. Partidos, que forão come-
çou também o Santo sua peregrinação com o rosto por então em Itália, e
Roma, onde o deixaremos hum espaço, por seguirmos os quatro com-
panheiros, que fazião seu caminho apostolicamente, e com boa diligen-
cia pêra as terras de seu nacimento. Não especificão os escrUores que
lugares demandarão primeiro, nem onde se apartarão, nem onde fizerão
assento. Mas colligindo a obra polo successo, entrarão por Catalunha,
pregarão em Barcelona, e successivamente em Çaragoça, e passarão a
Madrid, e em todos estes lugares fizerão fruito favorecidos de Deos, e
ajudados dos homens, como a diante se tocará. Só Frei Gomes estendeo
mais sua jornada, e passou ao Reino de Portugal.
CAPITULO IX
Entra Frei Gomes em Portugal. Dá-se conta de quem era em nome,
cairia, e calidades.
Era entrado o inverno deste anno, em que vamos correndo de 1217, quan-
do Frei Gomes entrou por terras de Portugal. E podemos bem dizer que
com sua chegada anticipou o verão n'este reino poios effeitos que d'ella
seguirão. Mas antes de passarmos a diante, parece rezão darmos no-
ticia de quem era por nação, e geração. He de saber, que os autores
antigos, de cujos escritos pola mor parte colhemos, e vamos tecendo
42 LIVUO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
esta historia todos sem exceituar nenhum, são estrangeiros de Espa-
nha, hiins Franceses, outros Ttalianos, e d\Hitras nações, os quaes escre-
vendo a vida, e feitos de Nosso Padre S. Domingos são diminutos, e
faltos sobre maneira nas cousas que tocão a Espanha. E não faltão ma-
liciosos, que o dão por vicio de animo em alguns, porque fazem juizo das
historias antigas polo que achão nas modernas, escritas na idade de nos-
sos pais, e nossa: mas ho agravo, que se faz a singeleza, e bondade
dos antigos, em quem se não pode dar mais culpa que pouco cuidado,
e falta de informações. A esta falta atribuímos a pouca noticia que nos
dão dos princípios d'esta Ordem nas terras de Espanha, e de quem a
veio prantar n'ellas. E como as mais das nações, a uso dos antigos Gre-
gos, tem por barbara toda a gente que vive fora das raias de suas pro-
víncias, commetem outro erro intolerável no que escrevem dos Espa-
nhoes, que por latinizarem os nomes dos homens, rios, e lugares, humas
vezes os estendem, outras os encurtão, e abrevião, e em fim os corrom-
pem de sorte que ficão quasi inintelligiveis até pêra os naturaes. Quem
lê as Historias me escusará de apontar mais exemplos que o que temos
presente no nosso Frei Gomes, que sendo seu nome verdadeiro Frei
Sueiro Gomes, huns lhe chamão Gomecio, outros Gnomenicio, e os que
menos errão Frei Gomes, deixando o nome próprio polo patronímico.
Mas o de que mais me queixo he que sendo Portuguez tão manifesta-
mente, que pêra todo bom juizo he matéria sem duvida, não ha nenhum
dos antigos que o diga: e os escritores modernos, e visinhos nossos, que
são os de Gastella, e Aragão, conhecendo, como de força devem conhe-
cer, e reconhecer que este nome, Sueiro Gomes, assi junto não no hou-
ve nunca dos montes Pireneos pêra fora, com tudo não lhe dão terra
nem nacimenío, dando-o a todos os mais companheiros do nosso Padre,
(tiramos d'este numero só o senhor Bispo de Monopoli, que na sua quin-
ta Centuaria, que agora ultimamente compoz, o faz Portuguez). (*) E o pior
he que não só lhe negão o nome de Portuguez, mas nem Espanhol o
fazem. D'onde nace havermo-nos por obrigados a descubrir com hum
breve discurso a verdade de quem era : que sendo, como he, pêra Por-
tugal de grande gloria, não renderá menos lustre a todo o resto de Es-
panha ; que assi como o instituidor da Ordem S. Domingos naceo em
Gastella, seja nado, e criado dentro de Espanha, e em Portugal quem
(.) Cent. li. l. 2. c. 32.
PARTICULAR EO REINO DE PORTUGAL 43
a pregou, e fondou, e mais dilatou por toda ella, que foi o nosso Frei
Sueiro Gomes.
He pois cousa certa, que entre os estrangeiros, a saljer : Franceses,
Italianos, e AUemãcs, e quasi todas as outras nações, passa em costume
ordinário nomearom-se os homens poios nomes patronímicos, quero dizer
sobrenomes, ou apellidos de pais ou famílias, deixando os próprios que
dizemos nomes da pia, como por exemplo, a S. João Chrysostomo chamão S.
Chrysostomo, a S. Pedro Gonçalves Telmo, S. Telmo, a S. João Boaventura,
S.Boaventura. Eisto ás vezes he causa de grandes perpolexidades nas Histo-
rias, como mostraremos em alguns de Espanha. Porque sendo assi que
o Arcebispo D. Rodrigo (*) escritor Espanhol antíquissimo, e de muito cre-
dito, chama Inhigo ao Capitão geral que El-Rei D. Rodrigo ultimo dos
Godos nomeou pcra resistir aos Mouros, quando conquistarão Espanha,
Razzis Mouro, eChronista dos mesmos lhe dá o nome de Sancho (**). Po
onde ficava em duvida, e risco a verdade, senos não acudira Luiz dei Mar
mol (***) que os concerta, referido por hum bom autor moderno, e diz que
se chamava Inhigo Sanches, servindo-se o Christão do nome próprio, e
o Mouro só do patronímico. Isto mesmo se nos offerece em Frei Sueiro
Gomes. Porque dos estranhos huns lhe chamão Gomecio ('*'*)' outros Sue-
rio, e dos Espanhues o Padre Frei Fernando de Castilho huma vez o no-
mea pc^^ Frei Gomes, outra por Frei Sueiro. E o Santo Frei Raymun-
do, que foi seu súbdito, como veremos adiante, lhe chama Gomecio, cha-
mando-lhe D. Lucas Bispo de Tuy, que foi seu contemporâneo, Suerio.
E na verdade tinha ambos os nomes, como se collige d^estes Autores, e
da rezão dos tempos, e mais claramente de huma letra do livro anti-
quíssimo dos Óbitos (*****), e Noas do real Mosteiro de S.Yicente de Lisboa,
onde era costume lançarem-se os nomes das pessoas de conta que fal-
lecião, e diz assi : Sexto Calendas Maij ohijt Suerius Gomelij quoudam
Prior Prcedicatorum. E he o primeiro Frade d'esia Ordem que no livro
anda, havendo ao diante outros, e outras conjeituras na calidade, e anti-
guidade do livro, e da casa, que provão bastantemente ser este o que
dizemos.
Que este nome assi junto seja Portuguez, não de outra Província,
{*) Dom Rofirigo Arce!ii:-po 1. 3. c. 18.
(••) Razzis Mouro na lli?t. de K?paiiha.
(••.) Luys (lei fllarmol. pag. 1. 1. ?. c 10. Fr. Bcrn. de Brito, Munar. Lus, p. 2. 1 7. c. 2.
(.*.*) Casti. p. 3. 1. 1. c. m. Idtm. p. I. I. 2 c. t.
{.»*.»J Lib. dos Obilos de S. \icenle de Lisb.
44 LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
nem fora de Espanha, noin de dentro d"ella, senão de Portugal, mos-
tral-o-hemos logo. Primeiramente o não ser Francez, nem Italiano, nem
d'outra terra mais alongada, o mesmo nome o declara sem mais prova. Por-
que, ainda que as Historias nos oíferecem na Noruegía, ou Noruega hum Rei
do nome Suero, que faleceo em Bergas anno de 1203 e homens par-
ticulares chamados Suenos, que trazem pouca differença (nomes que po-
dião passar a Espanha com os Godos, e outros moradores do Norte
que a ella vierão) com tudo a junta de Gomes nos tira a duvida. Só fica
pêra discutir se seria de outra Província dos Pireneos pêra dentro, que
não fosse Portugal. E pêra não ser Aragonez, Catalão, Valenciano, ou
Navarro, basta que pêra- a Coroa de Aragão, e Reino de Navarra he o
nome totalmente estranho. Porque ainda que me possão dar n'ella algum
Gomes (e muitos Gemes que todavia fazem dilTerenca grande) não ha
nenhum Sueiro. Que não seja Castelhano mostra-se com grande eviden-
cia. Porque sendo, como foi, primeiro Provincial de Espanha, e nomea-
do por S. Domingos, como pessoa de excellentes virtudes, e por tal es-
timado de El-Rei D. Fernando o Santo de Castella, e dos Reis de Ara-
gão, e Portugal, como veremos ao diante; não se pode duvidar que, se
fora Castelhano, ou Aragonez, Catalão, Valenciano, ou Navarro, se fal-
tara (como faltou) quem o dissera entre os antigos, que aos mais com-
panheiros de nosso Padre derão pátria, e nacimento, não faltara entre
os escritores modernos Castelhanos, e Aragonezes: dos cjuaes he bem de
crer que não quereria tirar esta honra a suas Províncias mormente tendo
pêra isso, e achando como de casa hum tão efficaz, e forçoso fundamen-
to, como he a formalidade do nome, pêra o poderem polo menos natu-
ralizar em Castella, onde não faltão inda hoje alguns Gomes, e Sueyros,
se ao nome se ajuntcára qualquer outra leve congruência. D'onde se in-
fere com certeza, não só probabilidade, que sendo, como he, o nome de Frei
Sueiro Gomez meramente Espanhol, e não o podendo fazer seu Aragão,
Catalunha, Valença nem Navarra nem se atrevendo a tomarnol-o Castella,
com quem contamos o reino deLeão, e Galiza, não lhe podemos dar ou-
tra terra, d'onde seja natural, se não he Portugal.
E não obsta poder-se dizer, que pois nenhum dos Autores antigos
nem modernos o faz Espanhol, conseguintemente fica provado não ser
Portuguez, vista principalmente a particularidade com que nomeão todos
os que tinhão por Espanhces na companhia de S. Domingos. Porque
antes esta rezão tacitamente faz em nosso favor, se bem nas apparencias
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 45
nos encontra. E digo que faz em nosso favor, porque despois que passa-
rão aquelles antigos pais da Historia Gregos, e Romanos, gente consu-
mada nas artes necessárias pêra bem escrever : em quasi todos, os que
após elles seguirão, faltou aquella pontualidade, e rigor de fallar com
propriedade em muitas cousas, e com verdadeiro conhecimento da Geo-
grafia, e Topografia. Assi acharemos nos mais que escrevem em vul-
gar, quando tralão de Portugal, e do resto de Espanha: que assi falão
em Portugueses como se forão gente, e província de França, ou Allema-
nha, e não comprendida nos Umites de Espanha dizendo: Juntóse el
armada de Portugal con la de Espanha. Ou dizendo : Quatro soldados
Portugueses y seis Espaiioles. A este modo fíilla Santo Antonino na vida
de nosso Padre f). He Italiano, e escreve em lingua Latina. Quando trata
dos Mosteiros de Espanha diz : In Hispânia vnum Monasterium Monja-
Hum, in Castella alterum, quod est CalarogcB, in Portugália unum. E CO-
mo assi seja quando os Autores estranhos não fazem Espanhol a Frei
Sueiro, nem por isso lhe tirão poder ser Portuguez. E ha se de enten-
der, que não chegando a sua noticia ser Portuguez, todavia alcançarão
não ser das mesmas terras d'onde erão naturaes os mais companhei-
ros que por Espanhoes apontão. De sorte que no seu modo de falar
podia ser Portuguez pêra nós, e não ser Espanhol pêra elles.
Mas se alguém me perguntar, porque me afadigo em provar o que
ninguém me nega, nem pôde negar, respondo com duas rezões. Primei-
ra, por me parecer que se não podem salvar de culpa os que escrevem
d'esta ordem dentro dos limites de Espanha, pois sendo sabida, e ir-
refragavelmente da mesma terra o nome de Sueiro : e sendo grande glo-
ria pêra Espanha saber-se que foi natural d'ella o primeiro homem que
lhe trouxe a pranta de huma Ordem que tanto a tem honrado, e que foi
primeiro Provincial e Pai seu; antes quizerão privar-se d^essa honra,
dissimulando seu nacimento, que declarando-o confessal-o por Portu-
guez. A segunda rezão he, que como nos fazemos autores de opinião que
por si não tem outro, e a alma da historia he a verdade, e certeza do
que se escreve, convém por honra do oíTicio, que indignamente nos po-
sérão ás costas, corroboral-a de sorte, que fique livre de todo o escrúpulo,
não só deduvida,ainda que ninguém nos encontre, nem contradiga. E por tan-
to diremos mais alguma cousa em confirmação d'ella no Capitulo seguinte.
(♦) r. 3. t. 23. c. 13.
46 LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
CAPITULO X
Confinna-se a verdade de Frei Siieiro Gomes ser Portuguez : com
algumas rezões, com as quaes se descobre que também era nobre,
e letrado.
A calidade do nome prova com grande evidencia em Frei Siieiro
a naUireza de Portugal. Porque era tão corrente, e costumado n'este Rei-
no o nome de Suciro, poios anrios em que levamos esta Historia, co-
mo hoje he o de António em Lisboa, e o de Gonçalo em entre Dou-
ro, e Minho. E não duvidará d^isto quem lèr o livro das linliagens an-
tigas, composto polo Conde D. Pedro filho de El-Rei D. Diniz: no qual
encontramos a cada passo (*) com o nome Sueiro nas famílias mais no-
bres, hora em lugar de próprio, hora hum pouco disfarçado, e tr<ansfor-
mado de Saeiro em Soares, em lugar de patronímico, segundo o costu-
me antigo de todas as nações, que era tomar o filho pêra sobrenome o
nome do pai, e por elle se dar a conhecer. He cousa tão notória que te-
nho por escusado trazer os lugares estendidanienle. Apontados vão na
margem; quem os buscar achará outros muitos. O que não encontramos
em muitas gerações dos Reinos de Caslella, que com cuidado buscámos,
antes he cousa tão rara n'elíes, que alguns Sueiros, que achamos, pare-
cem ser por descendência, ou communicação d'este Reino: como he hum
Sueyro de Aguilar nos primeiros fundadores da casa de S. Romão, O qual
era filho de D. Gonçaleanes d'Aguiar, que de Portugal passou a servir
a El-Rei D. Fernando o Santo deCastella. E em toda a casa de Agui!ar
não ha outro Sueyro. Na casa deQuinhones se acha hum Suer Peres, que
vivia poios annos do Senhor de 1351 e 1333, e hum Sueiro de Quinho-
nes bisneto deste. Esta multiplicação de Sueiros, que temos mostrado
nas famílias nobres de Portugal, adiamos também nas plebeias, (como
sempre o povo se affciçoa ao que vê estimado nos nobrcsj, e parecerá
por algumas escrituras d\aquolles tempos, que a outro propósito have-
mos de trazer ao diante, julgando-as no presente por surperfluas. Mas
deixando a rezão do nome, passaremos a outras mais sustanciaes, que
só por si nos fazem o homem Porlugnez, ainda que o nome fora mani-
(•) T. IG. '21. 22 T.;. 30. íl. o. 4i. G:;. cg. G7. 68. 71. li.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 47
festamente estranho. E seja a primeira, que lanlo que Frei Siieiro en-
trou em Portugal, e teve companheiros, e seguidores de sua doutrina, o
que foi logo despois de sua cliegada, c antes de ser nomeado por Pro-
vincial de Espanlia, logo alcançou licença dos Prelados do Reino pêra
pregar em suas diocesis, como se verá de huma do Bispo de Coimbra
D. Pedro(*), que originalmente veio a nossas mãos, c ao diante irátresla-
dada em outro propósito, o qual he de crer se lhe não concedera tão
facilmente, se não fora conhecido por natural emlingoa, cnome. Confir-
ma-se isto com o que conta Frei Marcos (**) na Chronica dos Menores, que
entrando no mesmo tempo n'este Reino dous companheiros do glorioso
Patriarcha S.Francisco, que forão os Santos Frei Zacharias, eFrei Gual-
ter, se acharão mui estranhos, mal recebidos, e pior ouvidos, só por es-
trangeiros, e pola lingoa estranha que falavão. E por essa rezão padece-
rão, pêra mais merecimento com Deos, muitos trabalhos em sua entra-
da. E claro está que sem intervir milagre mal poderia pregar, e ser en-
tendido entre gente rude, e plebea, quem se não declarasse com a lin-
goagem da terra, como fazia Frei Sueiro, que por isso sua douti-ina fru-
ctificou tanto, que em breves dias teve Frades para povoar conventos. E
creceo tanto em reputação no Reino, (que he o segundo ponto de sustan-
cia dos acima oíTerecidos), que achamos seu nome em autos públicos dos
Reis, e entre os grandes d'elle: cousa que não somente ocalifica porna-
tural, senão também por nobre. E mostrado isto, supérfluas ficão todas
as mais provas.
Mostral-o-hemos por duas escrituras, cujos originaes temos na torre
do tombo, (que é o Archivo real das memorias antigas) (***), das quaes dare-
mos ao diante tresladados algims pedaços a outro propósito: contém hu-
ma d'ellas certa composição que El-Rei D. Sancho lí chamado o Capei-
lo fez com suas tias D. Tareja, e D. Sancha, e D. Branca, sobre huma
contenda que havia muitos annos durava, e fora causa de grandes des-
gostos entre El-Rei D. AíTonso II seu pai, e estas Infantes, da qual ao
diante será forçado darmos mais larga noticia. N'esta escritura achamos
assinado o Arcebispo de Braga, que então, e sempre foi o primeiro pre-
lado do Reino, ecom elle Frei Sueiro coro estas palavras; Suerius Prior
Fratnm Proedicatorum in Hispânia. A outra he hum compromisso que
{*] C. 16.
('.) fr. Jlarcos cie Lisboa p. 1. 1. 1. c. Í8.
48 LIVUO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
passou entre o mesmo Rei, e o Arcebispo de Braga D. Estevão Soares
da Silva em matéria de perdas, e danos, de que aquella Igreja preten-
dia satisfação contra El-Rei D. AÍTonso seu pai, e de conformidade fizerão
juiz louvado de toda a causa a FreiSueiro em primeiro lugar, e elle os
compoz. E bem se deixa entender que a rezão de natural obrigou a El-
Rei, e ao Arcebispo. Porque não pudera um homem estrangeiro igno-
rante nos estilos do Reino, nas valias, e estimações das cousas, nas moe-
das, nas compras, e vendas ser buscado pêra tal negocio, nem elle acei-
tal-o, requerendo-se homem mui versado em tudo. D"onde fica claro que
não somente era Portuguez, do que já ninguém pode duvidar, mas que
também era muito nobre em sangue, e homem de letras. Porque todas
estas partes era rezão concorressem em juiz de taes pessoas, mormente
sendo entrado de poucos annos no Reino. E não he possivel que só sua
virtude, por grande que era o levantasse a tanto, se não fora acompa-
nhada, e favorecida de dous tão poderosos adjuntos; como são sciencia,
e nobreza.
Ajuda esta opinião acharmo-lo nomeado em todas as escrituras antigas
com o titulo de Dom, contra o costume dos nossos Frades, ainda que Pro-
vinciaeSj-e Geracs fossem. Assi o nomea El-Rei D. Fernando o Santo de
Castella, em huma sua provisão que adiante tresladaremos, e o Bispo de
Coimbra na licença que lhe dá pêra pregar, e o que he ma/s nas escri-
turas do compromisso que passou diante dei Rei D. Sancho está com o
mesmo titulo nomeado: o qual ou pertencendo-lhe por rezão de pai, e
avós, ou de alguma honra, ou prelada que antes de religioso possuísse,
não se communicava n'aquelle tempo senão a pessoas mui aveníajadas
em merecimentos das ordinárias. Que lhe pertencesse por rezão de san-
gue, e parentes se infere bem do livro do Conde D. Pedro (*) em muitos
titulos de familias illustres, a que dão principio homens desse nome, ora
em próprio, ora em palronimico. Como he no titulo 21, onde diz as-
si: Dona Marinha Gomez filhn de dom Gomes Mendes Gedeão, e de dona
Mor Paes filha de dom Paio Soares, neta de dom Sueijro Paes. E no mes-
mo titulo, quando nomea os que acompanharão a Gonçalo Mendes de
Amaya o hdador, aponta os seguintes: Dom Soeyro Aires de Valadares,
dom Nuno Soares, dom Soeyro Paes, dom Soeyro Viegas filho do bom
Egas Monis de riba de Douro. E no titulo sessenta, e dous temos hum
periodo que diz: E doiía Marinha Martins irmam da dita dona Sancha,
(*) Nobiliário do Coode Dom Pedro.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 49
/oí casada com Siieyreanes de Pauka.e fez em ella João Soares de Pauha
e Gomes Soares: e dona Constança Soares que fui Abhadessa de Lorvão,
e outro que ouve Uúrtie Paij Soares de Pauha, e Fei Vasco Soares que foi
frade Freijador. E que lhe pudesse pertencer o Dom por rczíto de Prela-
da, ou outra grandeza semelhante, Serafmo Razzi (*) autor Italiano no-ío
persuade, dizendo que deixou prenda grande no mundo, p[)r seguir a
humildade da Religião. E bem podíamos presumir sem temeridade que
seria o nosso Frei Sueyro filko ou neto d'este Sueyreanes, coUegindo-o
polo filho sabido Frei Vasco, (como he ordinário obrigar o parentesco a
muitos a seguirem a Relegião.) A S. Bernardo não ficou irmão no mun-
do tendo muitos. S. Domingos de dous que teve, levou hum após si.
Não ignoramos que o, Dom, podia ser honra anexa Cónego regrante
usada inda hoje. Mas se por esta rezão lhe tocara, tanto que mudou o
habito, devia mudar as honras d"elle: e as escrituras que apontamos são
todas feitas alguns annos despois de deixado o habito de Cónego, e tro-
cado no que hoje usamos.
Ficão-nos por mostrar suas letras. E como em cousas tão antigas, e
faltas de luz de historia, he forçado governar por conjeituras, basta pêra
darmos por certo que foi letrado, sabermos alem do que Serafmo Razzi
conta delle, que o escolheo N. Padre pêra fundar a Ordem era sua pá-
tria Espanha, e por Prelado dos que a isso mandava, sendo Espanhoes,
e pessoas de muita conta. E como nos consta que alguns dos companhei-
ros erão letrados, e que a Paris inviou a Frei Matheus que o era, bem
se segue que não mandaria a sua Pátria homem idiota. Assi lhe devemos
por todas as vias, e daremos d"aqui em diante o nome de D. Frei Suei-
ro Gomes.
CAPITULO XI
Dd-se conta do estado, e governo do Reino de Portugal na chegada de D.
Frei Sueiro Gomes: e do que fez entrando, e como deu principio ao
primeiro Convento que hou^e em ioda Espunha da ordem dos Pregado-
res.
Inverno era escuro, tempestuoso, e triste, como atras começamos a
dizer, quando D. Frei Sueiro entrava polas portas de sua pátria, não só
na sazão, e tempo do anno, mas muito mais nas vidas, c consciências
(•) Serapli. Razzi na rida de S. Doininff.
VOí.. l ^ k
50 LlVlSO 1 DA iUSTOlUA D!-: S. DOMINGOS
de ijuasi lodos os moradores d"elia. Reinava em Portugal D. Afforiso II,
que cliamarão o gotdo. Deiciíara-lhc sou pai Eí-Hei D. Sancho pi'imeiro
o Reino acreceniado de terras, floreceníe de paz, e a casa real clieia de
prata, e ouro, á custa de seu Ijraro, e sangue, e de muitas victorias al-
cançadas dos Mouros, c parecendo-lhe rezão deixar bem herdadas n'elle
três filhas suas, Tareja, Sancha, e Branca, ou fiando no muito que tinha
trabalhado pêra poder partir largo, ou desconfiando da condição do fi-
lho que já devia ter conhecido: repartira entre todas três muito dinhei-
ro, muito ouro, e prata lavrada, e em particular deixara a D. Tareja a
Yiila de Montemor o velho, (*j o a D. Sancha a de Alanquer, (tanto ha que
esta Yilla de Alanquer começou a andar bem aforada, e pertencer a gen-
te real), e dera-lhes a posse dos lugares em vida. Tanto qu) o filho lhe
vio osollios cerrados, protendeo fazer-se senlior das terras. Poem-seem
ai'n:«as, revolve o Reino. Tinhão as Infantes brio, e valor de quem erão:
não lhe faltavão vaiedoros na teira, c nos Reinos visinlios, defendião seu
partido animosamenie. Eslc foi o principio do reinado d"El-Rei D. Affon-
so, c cessando as armas entrarão em lugar d"ellas litígios, ódios, divi-
sões, e longos debates de escomunhões, e ínterdilos, com (lue o Papa
acudio em favor das Infantes, que pedião termos judiciais contra a for-
ça que por muitas vias se lhes fazia. E quando pareceo que se quietava
a tempestade com esperanças de concertos que se tralavão, começaifio
novas contendas occasionadas da liberdade da guerra, e divisões passa-
das, (que tacs são os fruitos da discórdia), queixando-se o Arcebispo de
Ri';i(ra D. Estevão Soares da Silva em seu nome, e do Clero do Reino,
de grandes perdas dadas ás Igrejas em geral, e particular, forças feitas
nas rendas, c património ecclesiasiico, roubos de gados, e dinheiros, que-
brantamentos de foros, e privilégios, e izcnções concedidas pola supre-
ma Cadeira. E dilatando El-Rei a satisfação, ou por conselho de gente
interessada, ou por entender que a não devia, fulminou o Arcebispo no-
vas escomunhões contra os ministros Reais, e despois agravando as cen-
suras veio apor interdito em todas as terras do Reino, salvo as que erão
da obediência das Infantes.
N^este estado estava Portugal quasi semelhante ao dos Mouros seus vi-
sinhos em não ter Missa, nem officio Divino, nem som de sinos, ou ou-
tra solenidade ecclesiastica, (infelice, e calamitoso estado), quando a mi-
sericórdia Divina, como tem por objeito a maior miséria, e acode sem-
('] Duaitc Kuiic;: de Lir.o na vida M Rey Duui Sunciíu priíiieiío.
PAr.TICLLAU DO r,El?xO BE POIITLCAL 5 1
pre aos maiores desamparos, ordenou que erjírasse pêra remédio uni-
versa!, e inslrumento de paz, c nova primavera em vidas, e almas o em-
baixador da Rova Religião D. Frei Siieiro Gomes. Reina no commnm da
gente Portugueza luima aiTeieão a seu natural maior com grande aventa-
gem, que em todas as outras nacíles, ou porque a i)'.)M'lade da terra o
merece: ou po!a condição branda dos homens. Vinlia D. Frei Sueiro al-
voroçado pêra ver sua terra, não por matar saudades de muitos annos
de ausência de parentes, e amigos; que estas tinha a Deos sacrificadas,
qe.ando deixou o m.undo, mas pêra enriquecer as almas com a doutrina
de seu grande Mestre. Considerava o m.uiío fruito que com el!a deixava
feito por Catalunha, e Aragão, nas Cidades de Barcelona, e Çarngpça, o
nas que ouvirão sua pregação porCastella, sendo recebida em fodàs com
proveito das abnas, e espertando Deos por seu meio, amor q,o Cco, e da
salvação: fazia conta, (e parecia-lhe que a não lançava errada), que não
fructificaria menos, semeada nos corações Porluguezes, devotos por na-
tureza, e dispostos sempre pêra emprezas de fim honrado, lúa quando
chegou, o entendeo nos primeiros togares o que passava cm todos es
mais, ({uais estavão as cabeças, quais os membros, fácil lie de crer a dor
que sua alma receberia. Porém, como em natural, se bem era grande a
magoa do que ouvia, não seria menos a compaixão, e o desejo que afor-
ra da caridade acenderia de remediar tamanhos males. E por muito qiio
o embaraçava o enemigo commum oíTerecendo-liie montes de diíliculda-
des pêra o acovordar: a necessidade da terra a quem devia o sargue, ií
a criação, a lenibrança de quem o mandara, e do a que vinha lhe davão
animo pêra vencer tudo, e passar adiante. E determinado em não largar
o arado que huma vez tomara na mão, nem somente olhar pêra Irás, só
tratava consigo que lugar deoiandaria prim.eiro, porque o estado das cou-
sas fazia vacillar os conselhos. A tenção que de longe trazia, era não bus-
car Rei, nem corte, onde poderia encontrar amigos, e conhecidos, e por
ventura parentes, (que mal, e com grande risco torna ao mar, e ondas
das cortes quem huma vez lhe pode, ou soube fugir, fosse aças;), ou por
consí-lliO.) Determinava entrar em lugares grandes, onde reina a so])er-
ba, anda sem freio a cobiça, a abundância, e ociosidade trazem todos os
vicios espertos senb.ores das almas. A tais lugares, e conira tais mons-
tros fazia conta que era mandado. Agora vê, que estando todo o mal na
cabeça, parecia tempo perdido aplicar medicamentos a outros memliros,
e que bem poderia npparecer diante do Rei, e dos va/idos quem fosse
§2 LIVRO l DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
armado ãô linma firme determinação de não querer, nem dizer outra
cousa, senão Imm, non licet libi: como outro Baulista. Levava-se d'estc
pensamento, e quasi ficava vencido d'elle: mas logo tornando sobre si,
e temendo-se d'elle como de fina tentação, em fim assentou em ir direi-
to á villa de Alanquer que só estava desassombrada de interditos, e da-
li proceder segundo aconselhasse o tempo. E assim o fez.
Como Ília magoado de tanta Igreja fechada, e tanto silencio, e triste-
za cimio até alli achara em todas, alegrou seu animo com a vista de hum
higar, que só lhe parecia gozar de Sol, e luz. Começou logo a dar ale-
gres novas ao povo da nova Ordem que era vinda ao mundo a pregar
verdades, e publicar desenganos, e por isso tinha titulo de Ordem de
Pregadores, da qual elle vinha por messageiro a Portugal pêra grande
bem das almas, o consciências de todos. A novidade d'esta lingoagem,
o geito, e composição estranha do homem, e a lingoa Portugueza gran-
gearão graça, ajuntarão-lhe ouvintes. Pregava cada dia nas Igrejas, e pra-
ças. Dezia-lhes entre outras cousas, que se bem tinhão o Ueino livre, á
custa do muito sangue, do injusto senhorio dos Mouros, que tantos an-
nos o pisarão, e])ossuirão, inda faltava libertal-os de outros Mouros, ene-
migos mais perniciosos e tyrannos injustíssimos das almas que erão in-
finitos vicios, abusos, e desordens que levavão ao cativeiro do inferno,
contra os quaes erão necessárias forças, e poder do Céo, não bastavão
as humanas. Que em vão se jactaria de forro, e livre quem da casa em
que vivia não fosse inteiro senhor: sem proveito mondaria o lavrador seu
trigo, se cortando as ervas que o affogavão, lhe deixasse na terra as raí-
zes; donde ao outro dia brotavão de novo: que como a raiz das calami-
dades que ainda opprimião grande parte de Espanha liavião sido pecca-
dos, e devassidoens na vida dos Reis, e dos vassallos, se desenganas-
sem, que durando esta, inda estavão sopeados, inda cativos. Assi os
persuadia, e juntamente fazia temer, discorrendo polas misérias, e infâ-
mias do peccado, e polas penas, e castigos que acarrea em vida, e mor-
te. Logo os assegurava e alegrava com a facilidade do remédio junto a espe-
ranças de grandes bens por meio do Santo Rosário da Virgem puríssima,
recontando os maravilhosos effeitos que por elle vira na guerra dos Al-
bigenses. Dava o Senhor dos Ceos viveza nas palavras, eíTicacia nas re-
zões. Era ouvido com silencio, e attenção, e mostrava-se no sembrante
de todos, que só lhes faltava Mestre pêra correrem os caminhos da vir-
tude. Seguirão obras, começarão confissoens. Era buscado, e tratado pêra
PARTICULAR DO REINO hU. I^ORTIGaL 53
matérias de consciência. Bem se deixa entender como se alegraria seu
espirito com tão bons princípios, e tal disposirão.
Foi a nova á Infante dona Sancha, (Rainha lhe chamão as Historias
antigas, que era o titulo, com que então se tralavão as filhas dos Reis)
desejou de o ver, e ouvir : manda-o vir diante de si. Era Alanquer vil-
la pequena em praça, e povo, mas honrada por antiguidade de sua fun-
dação, e calidade dos moradores ricos, e bem erdados na largueza, e
fertilidade dos campos vizinhos, que lava o Tejo. Foi seu primeiro nome
Alanoquerca, (*) e polo que delie parece, devia ser edificio de Alanos, huma
das naçoens Septentrionaes que passarão a Espanha, e assentarão nes-
ta parte de Portugal, muitos annos antes dos Mouros, comeo-o, e en-
cortou-o o tempo, como faz a tudo. Era a Infante senhora do lugar, como
atrás tocam^os, e vivia nelle respeitada por quem era, e igualmente polas
grandes virtudes de que era dotada. A renda era curta pêra sua calida-
de, e casa, mas valia-se de muita riqueza, que seu pai el-Rei dom San-
cho lhe dera em vida, e governava-se com tal prudência, que tinha pêra
si, e pêra alargar a mão em esmollas ; de sorte que era sua casa hos-
pital de pobres, e refugio de peregrinos. E deve-lhe Alanquer poder-se
gabar de ser o primeiro lugar, que ouvio, e agasalhou em Portugal os
embaixadores evangélicos dos grandes Patriarchas Francisco, e Domin-
gos, e o primeiro que lhes deu de seu sangue filhos, e disci pulos. (**) Por-
(jue também aqui vierão primeiro os Santos Frei Zacharias, e Frei Gual-
ter da Ordem Franciscana primeiros messageiros, pêra este Reino. Acha-
mos posto em memoria desta Princesa, (***) que era dada á lição de livros
devotos, e vidas de Santos, e que lendo as colaçõens dos Padres do ermo
nos escritos de João Cassiano, erão grandes os desejos que acendião em
sua alma aquelles exemplos de ver era seu tempo semelhantes espíri-
tos, e semelhantes exercícios. Quando vio, e ouvio a dom Frei Sueiro,
entendido fica qual seria a pratica. Podemos crer que foi toda celestial.
Assi ficou entendendo que tinha presente, evivo o que lá na letra morta
lhe retratavão os seus livros. Vierão por fim de pratica a tratar da causa de
sua vinda, declarou elle com breves, e humildes rezoens, que não era
outra senão espertar na gente Portugueza memoria da salvação, e dese-
jos do Ceo, e de vida perfeita : e pêra este fim fazer de sua parle tudo
aquillo com que entendesse a poderia obrigar, e levar a elle : e se achasse
(•) Idacio Cl.iro na sua Cronol. Mniinrr. Lusil. p. 2. lib. G. c. 3.
(••) F. fliarros de Lisboa na cron. dos Men.
(••») Rezende in vila B. .Egidij 1. 2. liatt. 2, Ã: Ho
M LIVRO 1 DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
(como C5pci\iva cm Deos: c na grande viríurle í1í3 hum Pai, c Mestre, e
graiido Santo que o insinara, e o inviava), quem o quisesse seguir, e aju-
dar, trazia animo de ajimí-ar coiX][)anhias, c edificar casas que fossem
luVaias praças foiles, guarnecidas de valente presidio coníra o Jiiferno,
e humas escolas donde se ouvissem vozes continuas que estivessem re-
tinindo nas orelhas do povo, hoi\a com louvores de Deos, hora com bra-
dos, e clamores em abominação de vicios, e peccados. Não se podia di-
zer á Infanto cousa de que mais satisfação tevesse. E como era pasto
suiivissimo pêra sua alma, assi lie de crer, fjue logo dali, inda que inui-
ías outras vezes o ouvio cm publico, e em })aríicular, licou traçado que
o Santo varão lançasíc olhos por lugar aconiodado a seu intento. E ou
fosse que a esiíeiteza da viHa lhe não desse azo a edificar nelía, ou que
quiz, como parece mais provável, satisííizer á tenção, e desejo pio da
ínfaníe, (digo provável, porque não temos luz de escritura que nos guie
iio certo, e vamos em muitas cousas, arriniandonos a tradiçoons, e con-
veniências), escoíheo pêra morada sua, e sitio do primeiro Convento a
serra de Monte junto, e nella huma ermida da invocação de Nossa Senho-
la das Neves. E tal ibi o principio, e solar que teve a Farniiia dos Pre-
gadores, e Ordem Dominicana nestes Ucinos de Portugal, como veremos
mais em particular no capitulo seguinte.
CAPITULO Xlí
L^escreve-se o sitio do lirinieiro conuenlo que a Ordem de S. Domingos
teve em Portugal, e fabrica delle.
A duas legoas e meia de Alanquer contra o Norte se levanta a ser-
ra que boje chamão de IJonte junto. {*)- A maior antiguidade lhe chamou
Monte sacro, e também Monte lagro, nome que com pouca diíferença se
conserva inda bojo no lugar de Tagarro ahi visinbo. Nos a pudéramos
nomear por hum só monte de -leJi-a, ou huma só pedra, antes que serra.
Porque o nome de serra compiende montes de penedias, e rochedos en-
cadeados, c continuados com valles, e sobidas: e esta consta de huma
só pedra, ou monte que igual, e juntamente crece, e sobe, em meio
de terras lavradias, e por toda i)arte cultivadas, e ainda que são do-
bradas, e de várzeas, e oiteiros entresachadas, íicão em comparação
(•] lUtciiilc 1. 1. daí Aiifguii!. f. -iO. M. Varro C-.Iiiimlla. riinio.
PA[\TíCrLAU DO RKINO DK PORTUGAL '>•)
(\'e\h\ h;im campo razo. E tal vista oíTerecem aos olhos de qiicm do alto
as considera. Representa esía pedra que terá de sobida hiiiTia boa meia
legoa, tendo no pé, e fundamento mais de quatro de circnilo, e !ie tão a.L^ra,
c alcantilada em roJa, que com grande diffieiíldade se podo subir a ca-
vallo. Porqne em miiía> partes n~io ha passar sem apear, e valer das
mãos, como dos pés. Sj da parte occidental contra Viila verde oíTerece
huma costa algnma cousa menos ingremj, a qiial se fora cortada, como
era faeil, tinliamos a] li um retraí) de uma daquellas íV^rças que n>s
pintão as Historias da índia e Etiópia por inexpugnáveis (*). Porque sendo
da natui-eza criadas a este mído mui altas, e talhadas cm roda como ao
picão até ás raizes, bastão pêra defender huma sá entrada, ou duas que
ha feitas á mão, muito poucos homens contra grandes exércitos: e con-
ta-se que tem no alto largueza pêra sustentar muita gente. Esta fará no
cume duas léguas de praça, c ainda que quasi tudo he pedra continua,
abre no meio huma gran:le várzea de terra lavradia, que terá cm cir-
cuito meia legoa, a que fazem coroa grossas penedias vestidas a partes
di matos espessos, e crecidos, guarida d 3 lobos, e outro-; animi.\s sil-
vestres: na várzea ha duas lagoas de agoa clara, e boa: e em pouca dis-
tancia, e sobre huma pequena costa, que ainda se sobe áspera sempre, e
pedregosa, se acha huma ermida, a que a devação dos vizinhos deu no-
me de Nossa Senhora das Neves. A casa he pequena, e baixa, mas pêra
deserto de ])oa fabrica. Tem de fora seu recebimento, ou alpendre cn-
berto: e dentro divisão de Gapella, e corpo de Igreja, com seu arco crn
melo, tudo cerrado de abobada. Fora do arco, e das grades que o cer-
rão, tem seus altarinhos, como hc costume de huma, e outra parte. No
altar da Gapella se vè hum retábulo com liiima imagem de Nossa Stmhora,
e outras de Santos, tudo pintura moderna. Nas paredes pendem algu-
mas memorias de enfermos, e cativos. Nos altares travessos não ha pin-
turas, mas algumas figuras de vulto de antiga escultura, e grosseira: en-
tre ellas duas com habito Dominico, das quaes huma tem nome de S. Do-
mingos, e está autorisada com mitra na cabeça, (devia julgar a simpli-
ciúade montanlieza, que não lhe estava bem aos pés), todas prometem
huma grande antiguidade, não só no feitio, mas no trato, c representa-
ção da madeira comida e Ci)nsumida da velhice, e do tempo. Na en-
trada da porta se acha hunoa pia abería ao picão na lagea, e chão na-
(•) Fr. JoiTo Aoi Saiiloí na «ua Elin|iia I. i. c. 4. à i!. Aiiton. Píh. nos crrcos de dua, o
Chaul. 1. 1. c. 7. & D. Q. Cuit. iii lii^i. Alexan. Lopo de Sousa CoutiniJO no cer.vo de Diu 1. i.
58 LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
tural da ermida, que jantamenLc he pia, e fonte, porque corre agoa, e
dura a fama de ser milagrosa pêra infirmidades. A hum lado vão con-
tinuadas, e coníiguas duas pequenas casas, como de Sacristã, Imma d'el-
las com chaminé, e d'es[a& correm algumas paredes arruinadas, que mos-
Irão divisões, e sinais de casas algum tanto maiores, e cerca espaçosa,
em partes pedra em sosso, n'outras pedra, o baiTo, em nenhuma ras^to
de cal, nem pedra lavrada, nem final de edifício curioso. E tal he o es-
tado do presente da serra, c da ermida: do que então era não nos consta.
Mas aqiiellas figuras velhas, e mal obradas, a ossada pobre Oe casas, e
paredes delidas da forca dos annos acreditão com bastante testimunho
a tradição recebida, e continuada por quatrocentos annos nos povos vi-
zinhos de pais, e avós : de que honve alli casa, e Convento úe nossa Or-
dem. Porque de nenhuma outra cousa podiam servir aquelles pobres
edifícios: nem a estranheza do sitio podia consenílF outros moradores,
se não fosse gente aborrecida da vida, e desejosa de abreviar os cami-
nhos pêra o Geo. E bem podemos ter por certo que seria tudo então
muito mais fero, e mais inculto, pois n'aquella idade muitas terras chans
erão cubertas de brenhas, e criavão animais bravos, á falta de quem as
abrisse. E tal devia ser a informação que se deu a dom Frei Sueyro.Mas
elle não se espantando nem descontentando de nada, sobio á serra, vi-
sitou a ermida, lançou-se por terra diante d"aquella Senhora, dando-lhe
graças, como he de crer, com lagrimas de alegria, por vêr que assi como
a seu Mestre dera em França primeiro gasalliado em casa sua, qual era
a de Prulliano, assi o queria também dar ao discípulo em parte tão dis-
tante. Aqui lhe pederia, que assi como com as neves de que ali tinha
a invocação, dera antigamente final na força das calmas do estio, que lhe
agradava a devação d'aquelles dous servos seus, que em Roma lhe tinhão
offerecido almas, e fazenda, quizesse mostrar agora seu soberano poder,
derretendo neves de alguns corações enregelados, com chamas de celes-
tial caridade que alumiassem entendimentos, abrazassem vontades, pêra
que cessando escândalos, e coiiteudas ficassem dispostos pêra receberem
a doutrina do Ceo, que de tão longe lhes vinha communicar, como já
se hia recebendo, e estimando n'aquella pequena vilta. Não achamos apon-
tado mez nem dia em que o edifício começasse a crecer, nem a ser po-
voado. Mas bem se segue, que como a efficacia de sua pregação, e a de-
vação Portugueza lhe foi logo ajuntando companheiros, (que isto he cousa
sabida), não tardaria em os levar ao Monte, e como seu pensíimento só
pAnTicuLAn DO rei.no di: portcgal 57
em architectura celestial tinha a mira, postos na serra apareceria a casa
acabada tão depressa, como traçada. Deu o monte pedra, madeira, e
barro, poserão elles as mãos, e o serviço. Coraeçoo-se a exercitar o ri-
gor monástico, ao que podemos alcançar com a primavera do anno se-
guinte de 1218. Exerci tavam-se em todo género de mortificações que a
religião insina das portas a dentro, jejuns, cilicios, disciplinas, vigilias,
silencio, e oração continua. Ao trabalho de casa seguia o de fora tanto
mais intolerável, quanto era tomado por gente exausta de forças com os
rigores caseiros. Decião da serra, entravão poios lugares a mendigar a
pobre maníença. Se a trazião, e se a não trazião, tudo era tormento. Por-
que a costa áspera pêra os que toi'navam leves, e sem esmola, era tra-
balhosa por si, e por haverem por culpa, e demérito próprio não alcan-
çar com que alimentar os companheiros, e a si: e aos carregados o peso
lhes tirava as forças, e os quebrantava de novo. Valia em tudo o exem-
plo do Mestre, que como sabia ser o primeiro, e mais diligente no que
era mais penoso, não havia nenhum covarde nem froxo. Lembrava-se o
Santo Varão dos estranhos géneros de padecer, quo notara em seu bom
Mestre: as disciplinas nocturnas sempre com ferro, c nunca sem san-
gue: as quaresmas inteiras de pão, e agoa: a terra fria por cama, o Ceo
por manta: o pendurar os çapatcs no cinto poios caminhos do monte
por se magoar: o calçallos no povoado por fogir vamgloria: correrem os pé>
sangue e a boca entoar alegres hymnos, convidando os passarinhos a lou-
vores do Criador. Via que criava noviços, não só pêra religiosos ordi-
nários, mas pêra mestres, e pais da província, que vinha fundar, não llie
ficava nada por fazer pêra boa instituição: e ajudava-o a graça Divina a
levar hum trabalho que excedia as forças humanas. Amanhecia em Alan-
quer, e poios outros lagares vizinhos a doutrinar, insinar, e pregar: e
despois de cansado, e moido deste serviço, hia também de porta em
porta pedindo hum pedaço do pão pêra si, e pêra os seus. E quando
havia de alliviar, tornava a subir a serra, sobida que só por si, quando
muito ocioso, e folgado andara, era tormento excessivo. Edificavão-sc,
e espantavão-se todos, e elle cuidava que fazia pouco, e que era obri-
gado a mais. E eu também cuido que esta demasia em trabalhar no
obriga a inquirir, e discursar polo ofíicio que fazemos de Historiador,
que rezão podia mover a hum varão sisudo a huma empreza tão árdua
como foi seguir juntamente vida do deserto, e do povoado: contomp:..
tiva entre feras, e penedos : e activa entre homens: fyito Ancoreta àoU-
58 LIVRO i DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
íario, e no mesmo tempo pregador, e mestre cercado de povo, c ou-
vintes. A contradição he grande polo estremo de se alongar tanto da
gente, que parecia impossível poder acudir aoinsino d"ella. (que iie o fim
principal d"es!a Ordem), e vira em seu Mestre exemi)lo diíTerente, pois
não ediricára fora de povoado. D onde infiro que n"este novo modo de
vida teve algum fim mais alto, e só encaminhado ao remédio dos ma-
les que via no Reino, sem ser sua tenção ficarem elle, nem os seus pelo
tempo adiante moradores do ermo. E pêra concluir digo, e sinto, que
considerando este prudente varão o calamitoso estado do Reino na parte
mais importante que era a espiritual, e vendo a quietação com que os
gi-andes se deixavão estar oscomungados, e interditos, houve-se por
obrigado em rezão de letrado, e nobre, e por ministro Apostólico da
pregação Evangélica significar desde logo, que não aprovava, nem apro-
varia em nenhum tempo tal modo de proceder, por mais rezões quo
por si alegassem. Clara significação foi, inda que muda, desviar-se da
Corte logo no principio, alem das mais causas que apontamos. E com o
mesmo intento foi a retirada, que agora fez da villa de Alanquer, esco-
lhendo antes viver entre feras, que na companhia dos homens, pêra
que quando fosse conhecido, e buscado, (como estava certo o havia de
ser) do Rei, e dos grandes, calando respt^ndesse, e mostrando que den-
tro em sua pátria vivia como peregrino d^ella, servisse tal obra de lin-
goagem, e rezões vivas, que lhes estivessem lançando cm rosto, e es-
tranhando a temeridade, com que se maniinhão tanto tempo havia, con-
tra escomunhões, sem sinal de humildade, nem cuidado de paz. Per-
suadia-se dom Frei Sueyro que era obrigação dos que Deos poz ém lu-
gar alto por qualquer via que a elle subissem, não só não ajudarem,
nem autorisarem, nem favorecerem as obras exorbitantes, e desarezoa-
das, e aos autores d'e!la : mas torcendo-lhe o rosto, e fugindo-lhe com
a presença, lestimunharem ao mundo, que não erão n"ellas, nem com
clles consintidores. Foi o conselho aprovado do successo. Porque em
iim era conselho de quem se tinha todo entregue a Deos, e por elle vinha guia-
do, como adiante o veremos : despois que dissermíjs alguma cousa do
Padre São Domingos, com quem he força que vamos conLínuando, e te-
cendo esta escritura, que delle depende, em quanto o temos vivo.
PAP.TICULxVR DO REINO DE POílTUuAL 59
CAPITULO XIÍI
Das grandes maravilhas que Dcos nosso Scnlior ohrou em Roma por S.
I)o)iung<)S. Conla-se a nova forma de habito que o Souío deu aos seus
Frades, e a rezào delia : e conto poz em clatisula a.s Freiras de Roma.
Ordena Uniu de Theologia no sacro Palácio, e he o primeiro Leitor
dcíla. I-rcga a det^ação do Rosário.
Em quanto «as ultimas partos do Occidontc passavão as cousas quo
temos contado, corrião as da Ordem em Roma com gi-andc prosperidade
acreditando Deos a sou sorvo São Domingos com !iama extraordinária
corrente do mercês, c favores do Coo : de sorte que em ijouoos meses
so YÍo o Santo não só pai de muitos fillios, mas do muitos Conventos, o
grandes familias Paíriarclia. Diremos aígumas brevemente, e quanto bas-
tem pêra so entender o processo de sua vida, que começamos. Entrou o
Santo em Roma por fim de Outubro do mesmo anno de 1217, despois
do ter dado á sua Ordem os principies, que temos AÍsto em França, e
Espanha. E como entrava já fundador de Religião pola Santa Sé Apos-
tólica aceitada, c coníirmada, foi recebida naquolia Corte com hum tão
grande amor, e ai)!auso de todo género, e estado de gente, que se e]>
xergava claramente serem efíeitos da mão Divina, não nascidos, nemgran-
geados por nenhuns meies humanos. Tinha-lho Beos mandado [)olos Após-
tolos que pregasse, prometera-lhe que seus hombros sustentarião a Igre-
ja, e como elle he o que dá os cargos, e juntamente a suíTiciencia pêra
elles, começou a desempenhar-se da promessa. Foi o princípio pôr taes
palavras na boca do seu pregador, e dar-lhe tal graça neilas, quo trazia
toda a terra após si, e como cousa celestial ora ouvido, buscado, o se-
guido : dos peccadores pêra remédio, dos bons pêra guia, parecendo a
todos que não podia íalíar meio de salvação, e abundância de bens do
Ceo em tal companliia, e doutrina. Erão tantos os que lhe pedião o lia-
Ijito, que toda casa era estreita pêra os recoUior. Acudio o Santo Ponti-
fico Honório a esta falta : deu-lhe a Igreja de S. Sisto pêra Convento.
Começa logo a edificar por huma parte, e receber noviços por outra.
Creciam as paredes, e os habitadores como a competência: e o Ceo ti-
nha a cargo ajudar a obra com novos meios.
Correndo a fabrica, cahiu do improviso hum lanço do parede velha :
â vista de muito povo junto colheo hum dos oíficiaes, foi grande a gri-
fiO LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMLNGOS
ta, acodem com pressa a desenterral-o, achão-no sem figura de homem,
feito hum bolo. Não edificava o Santo pêra matar, senão pcra dar vida,
e saúde. Vem correndo, chega-se ao defunto, põe os olhos no Ceo com
huma breve oração, e logo levantando a voz manda ao seu oíTicial que
se levante, e torne a vencer seu jornal. Obedeceo a morte, levantou-se o
defunto, e tornou a trabalhar. Pasmarão os circunstantes, e pergunta-
vão-sfi huns aos outros polo caso, porque aos olhos próprios não davão
credito.
Mas fez cessar o espanto outro caso que logo sevio trás este. Huma
dona nobre, mãi de hum só filho, (chamão-lhe os escritores Guttadona)
tinha-o enfermo. Deixou-o huma manhã, por acudir ao sermão do Santo:
tornando a casa, acha-o passado da vida. Dá volta pêra a Igreja com o
minino nos braços, e vozes lastimosas ao Ceo: chama polo Santo, mis-
tura queixas com rogos: que de deixar o filho por devota, lhe nacia cho-
ral-o agora por mofina: que bem podia elle fazer por seu filho, o que
fizera polo oíficial da sua obra. Lastima-se o Santo, consola-a: eUa pede
obras, não palavras, vida pêra o filho, e n"ella seu único remédio. Yen-
ce-se o Santo, faz o sinal santíssimo da Cruz sobre o morto, e entrega-
0 vivo a sua mãi. Não ha palavras que possam encarecer o movimento
que causou no povo tal successo. Chegavam-se ao Santo, cortavão-lhe a
sobrepeliz, e a loba, sem se poder defender: fazião conta que leva vão
pêra casa antídoto contra todos os males.
Entre tanto enchia-se o Convento de Frades, que he cousa certa pas-
sarão de cento em poucos mezes. I\Ias não parava aqui o espirito do
Santo: a maiores emprezas se estendia. Desejava o Papa reduzir a clau-
sura as Freiras de Roma, e particularmente as do Mosteiro de Santa
Maria, que chamavão de trans Tyberim. De vacara amalicia dos tempos,
que sempre correm pêra pior, aquella simplicidade antiga, com que as
donzellas que se recolhião a servir a Deos nos mosteiros, fiavão tanto de
si, e dos homens, que se atrevião a andar, e tratar fora de clausura, e
conversar entre elles não só sem dano, mas também sem temor. Estava
trocada esta bondade de ânimos; erão tantos os successos avessos, que
se perdia a Religião, e o credito d'ella, e cumpria acudir-se ao mal com
cura apressada. Pedio-se remédio pêra gente viva a q)iem o sabia achar
pêra mortos. Chamou o-Papa a S. Domingos, entregou-lhe o negocio nas
mãos. Molheres nobres, e ricas, e muitas cm numero, (erão quarenta e
quatro), avezadas a liberdade : não podia com ellas o Príncipe supremo
PARTICULAR DO REINO DF. PORTUGAL Cl
(la Igreja, que faria lium pobre Frade? Visitoií-as, prégou-llics, fallou
Deos por elle. Não só ficarão persuadidas a clausura, mas o que nin-
guém cuidou, e que teve fortes contrastes, aceitarão passar-se do lugar
em que estavão, que era pouco decente, pêra o seu Convento de S. Six-
to. E começou logo de o accommodar pêra ellas, c a casa de Santa Sa-
bina, que o Papa lhe nomeara de novo, pêra os seus Frades.
Era já n"este tempo o numero dos Frades tão crecido, poios mui-
tos que cada dia entravão, que houve o Santo, podia partir com alguns
lugares de Itália, dos muitos que com instancia, llie pedião pregadores,
e havia sojeitos taes que se podia fiar muito d'elles. Pareceo-lhe tempo de
empregar as novas prantas, e fazer missão nova. Mandou a Bolonha huns
pêra pregarem, outros pêra estudarem, e a ]Milão, Como, e Bergamo
pêra entenderem na pregação, e doutrina do povo. E com tudo ficavão
ainda em Roma, como diz a Historia, ao justo cem Conventuais: estes
vivião de, esmolas colhidas com alforge, e brado polas ruas, e portas,
como fazem inda hoje com santo exemplo os Frades IMenores. Âconte-
ceo imm dia fazerem-se horas de jantar, e não haver que pôr na mesa.
Quem a linha a cargo deo conta da falta ao Santo. Nunca mais bem as-
sombrado, nem mais alegre rosto lhe viram: responde que fiem de Deos,
e se faça logo o signal costumado: faz elle o de Prelado: entra a Com-
munidade, toma cada hum seu lugar. Não havia que benzer, mais que
mesa seca: benze todavia dando graças ao Senhor pola mingoa, como ou-
tras vezes fazia pola abundância, (que em todo estado lhas devemos, se
somos Christãos.) Tudo foi lium, assentarem-se os Frades, e entrarem
dous moços com canisteis de pão nos hombros, de que forão provendo
todas as mesas : pão alvo, e mimoso qual nunca olhos virão. A presen-
ça, a disposição, o geito dos servidores, arrebatou os olhos de toda a
Communidade : e sem saber como, deleitava-se mais em sua vista, que
no remédio da necessidade. Notou-se que começarão a servir primeiro
aos mais humildes leigos, e noviços moços, e dahi forão subindo até o
Prelado. Este modo de proceder, e a confiança dos autores delle, deo
certo indicio de serem cortezãos do Ceo. Assi o declarou o Santo aos
súbditos, ajuntando por lei perpetua no serviço das mesas, a lição que
derão, que se guarda até hoje inviolavelmente por toda a Ordem. Se-
gunda vez achamos que succedeo a mesma necessidade, e soccorro nel-
la polo mesmo modo, e na mesma casa; só foi a differença no numero
dos que forão presentes que forão S(') (fuarenta Frades.
C2 Livno 1 DA líísToaiA di: s. domixcos
Mas parocc que o Ceo todo se queria occupar como á porfia cm fa-
Z-T b.onras a esta Ordem. Apareceo por estes dias era Roma linm famo-
s) letrado cm amlios os direitos, Davão da Sé de Odiens, e Leitor da
Uiiiversidade de Paris, cliamado Reinaldo, ou Regiualdo: o qual cuida-
doso de sua salvação buscou a S. Domingos, e assentou com elle deixar
todas as lí^nras do mundo, e vestir o habito da Ordem, como cumpris-
se cerla jornada de voto(*). xVpcrcebia-G3 pêra ella, quando se vio salteado
de huma febre ardente, ao parecer dos Médicos, mortal, c sem remé-
dio. Assistia-lhe o Santo, sentido da perda de tal sogeito, porque fun-
dava nelle grande augmcnto da Ordem por leti"as, e virtude. Pedião am-
bos a Deos a vida, chamando por valedora com grande eíficacia a Vir-
gem Mãi, particular Slãi, e avogada desta Ordem em todo trabalho.
Não tardou a piadosa Senhora em soccorrer a ambos. Visitou pessoal c
visivelmente o enfermo, deii-lhe saúde, c como em penhor delia mos-
trou-lhe hum habito, c escapulário branco, dizendo que tal como aquel-
le vestiria, e tal queria que fosso dali em diante o desta Ordem em for-
ma e côr. Visitou também e alegrou a S. Domingos com a mesma vi-
são, e aviso; e elle se vestio logo pola traça das mãos Divinas mostra-
da, trocando a autoridade da loba, mursa, e roxete, trajo Episcopal; na
humildade de hum habito, e escapulário branco, e capa preta tudo do
pano grosseiro, e no feitio estreito, e curto, e o mesmo fizerão todos
seus súbditos presentes e ausentes. E tal foi o principio do habito dos
Pregadores, dadiva do Ceo, e vinda por mt;io, c mão da Mãi do
Deos.
Continuava o Santo sermões de grande fruiío por todas as igrejas,
e praças de Roma. Entrando hum dia no sacro Palácio, notou que era'
infinita a gente que andava por aquelles claustros, e saias perdendo tem-
po em corrilhos, e murmurações, em jogos, e outras leviandades, foi
imaginando se poderia haver algum meio de advirtir, c occupar em en-
tretinimento honesto, e proveitoso; (*)offereceo-se-lhe hum tririjalho into-
lerável pêra quem como elle se repartia era tantos outros, que foi ler
huraa lição quotidiana da Escritura sagrada nas horas qne mais povo
acudia ao Paço. E foi cousa tão bem recebida do Papa, e Cardiais, que
no dia que isto vamos escrevendo passa de quatrocentos, e dous annos
(•] Crónica da Ordem de João Garzon. Leandro Alb. 1. o. Anold. 1. 2. c. ii. S.Ant. n. 3. '
29. c. i.
(-; Sufuto G. 2.
PARTICULAR DO REINO DF. PORTUGAL G3
que persevera, e sempre em Leitores da mesma Ordem, em ipie come-
çou, sem nunca haver mudança.
Ajuntou logo outra lição pêra os bem occupados de grandes provei-
tos, e pêra todos. Foi a devação do santo Rosário: na qual se empre-
gou com tanta eiricacia com occasião da primeira, que pola novidads era
frequentada do melhor do Roma, que a fez acceitar por todos os Gar-
diais, e senhores da Corte, recebendi de sua mio os insirumoíitos del-
ia, digo muitos ramais de Contas, que com grande gosto repai^íia: e vio
logo delias formosos eífeitos. Foi entre outros a conversão de huma mo-
Ihcr de vida perdida (*), e que era causa de muiios a perderem. Porque
sendo dotada de excellentes partes irdurais, scrvião-lhe todas do fazer
gente pêra o Inferno, e abrazar a cidade em fogo de sensualidade, bri-
gas, e ódios; e procedeo seu remédio de hum Rosário que alcançou da
mão do Santo. Rezava por elle, trazia-o nas mãos, c ao pescoço. Era íim
valeo-lhe pêra merecer tão boa ventura, que ainda antes de mudar de
todo os erros da vida visse a Christo Redentor em sua casa, e á sua
mesa trocando figuras, pêra lhe trocar a alma, hora tomarido-a de ml-
nino, hora de homem de idade perfeita, huma vez com Cruz ás costas,
e coi"oa de es[)inhos na cabeça, outra pés, e mãos correndo sangue, e
em íim feito seu Pregador: Obras que de [joccadora por estremo deva.-
sa, (louvem-vos os Anjos JESU benditoj a trocarão em santa de cstre-
mos.
Mas porque trás este caso seguirão outros em numero, e calidaue
espantosos, que em Roma, e toda Itália íizerão a devação grandemente
celebre: e procedendo o tempo a estenderão por todos os membros da
Christandade, favorecendo-a Deos com tantas misericórdias do Ceo, e
graças, e privilégios na terra por seus santos Vigários, que já não lia
Cidade, nem Viila, nem aldeã, nem ainda casa particular, qiio deixe de
a abraçar, e venerar dando por toda parte testimunho Christão os Fu-
mais de Contas, hora nas mãos, hora sobre os peitos; parece rezão, que
pois esta historia he do Patriarcha São Domingos, e por seu meio foi o
Senhor servido mandar tanto bem ao mundo, digamos antes de passar
adiante, alguma cousa do processo, e augmento, e grandezas delle; e
será com a mesma brevidade que vamos seguindo, vi^ío como já andão
livros inteiros no mesmo argumento. Sohia a ser no bom tempo, quando
no mmido linha lugar justiça, e rezão, que era pairimoiiio honrado até
(•) Fldiíiin. 1. 2. Caitilíio p. i. 1. i. c. 3j.
64 LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
(los filhos )'icos, OS bons scrviros do pai, pêra requererem, e alcançarem
meicOs do Rei da (erra; nós que somos lillios pobres, e temos requeri-
meulo com o Príncipe do Ceo justissimo, e riquissimo, he bem que te-
jínamos vivas, e postas em bons papeis as auções de que Nosso Padre
São Domingos nos fez herdeiros, pêra nos valermos nas necessidades da
vida : iirincipalmentc quando a caridade dos próximos vai estando tão
resfriada, que quem não pode fazer seu o alheio, contenta-se com fazer
que fique mescabado, e de pior condição pêra seu dono.
CAPITULO XIY
Mostra-se como São Domingos foi o primeiro que insinou a rezar por Con-
tas os viysíerios de nossa Redenção, que he a devoção do Santo Rosário
contra os que a querem fdzcr mais antiga. Conla-se como rcsuscitou ao
sobrinho do Cardeal Estefuno em Roma.
Alguns autores modernos, que tratão desta santa devação, querem
que seja tão antiga que se lhe não saiba principio, e achamos que o diz
hum. a quem outros seguem, por estas palavras : Nam quoad antiquUa-
íem, tanta est., vt eius initium ignoretur,Ç)e pêra a lançarem nos tempos
mui atrazados, já a referem aos do Concilio Claramontense, e de hum
Pedro Eremita que nelle se achou poios annos do Senhor de 1093, já
a atrazão aos do Papa Leão Quarto que foi no de 854, já a lanção na
primitiva Igreja, e idade dos Apóstolos. E he bem de espantar, que sen-
do obrigação dos homens de letras falar nas matérias com distinção, e
clareza: e havendo nesta a forma de devação, que heo que propriamen-
te se chama Rosário, e a santa Igreja na sua Missa própria lhe chama
sacratissimo Rosário : e havendo também o material das Contas, polas
quais se reza : elles jiuitão tudo, no nome do Rosário, e assi em confu-
so fazem sua origem escura, immemorial, e ignorada. E não ha duvida
que se fizerão rellexão na differença que ha de huma cousa á outra, ella
mesma os guiara pêra acharem principio, e origem certa, no que he-sus-
tancial, digo na devação, e psalteiro de Nossa Senhora, cujo nome Ro-
sário, ou Rosal.
E começando a buscal-a por ordem, como quem deseja descobrir
verdades, quero-lhes conceder toda a mais alta antiguidade que preten-
(•) Francisc. Soar. t. 2. de viitute Relig. 1. 3. c. 9. Rcbello no livro do Ros.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 65
dera no uso das Contas, pêra eíTeito de se contarem por ellas os Psal-
mos, e Hymnos, e Oraçoens da santa igreja rezando ; e coníirmo-llia assi.
No tempo que os desertos do EgypLÓ se começarão a povoar daquelles
santos Ermitnens (*), das qimisas historias Ecclesiaslicas nos dão por pai
ao Evangelista S. Marcos, tão pobres que espantavão o mundo com suas
penitencias, e com as faltas que padecião: tão Santos que Philo Judeu
quiz honrar o Judaísmo com suas virtudes, em hum hvro que deUes es-
creveo, dando-lhe gi-andes louvores- como a gente sua, chamando-lhe Esse-
nos : he cousa certa que pêra terem conta, e ordem no que havião de
rezar entre dia, e noite, se aproveitarião como gente necessitada de tudo
dos fruitos silvestres, e secos do mato, inflados em seus ramais. E jà
daqui fica colhida a etimologia das Contas polo cíTeilo em que servião.
Que isto fosse costume entre os Ermilaens bom argumento he, não ver-
mos nenhum nas pinturas antigas sem estas infiaduras de csteriles frui-
tos nas maons. E de que os mesmos usassem em seus ajuníameníos re-
zar numero certo de Psalmos, temos autor antiquissimio que o aíTirma,
qual heS.Theodoreto(**).E pois havia conta, enumero de reza determi-
nado, bem se segue que convinha haver algum meio de fazer mem.oria:
e os desertos não o podião dar melhor. Mas toda a duvida nos tira o
costume que hoje cm dia dura entre os Mouros de Africa, de se servi-
rem pêra suas superstiçoens de grandes ramais de Contas : costume tão
antigo nelles como sua Seita, que tem já de ansianidade mais de milan-
nos (***). Por nossos olhos os vimos em Argel dar voltas alongas, e gros-
sas infiaduras, passando cada bugalho com duas palavras; que erão :
Stafar Alia. Cuja significação he : Ferdoa-me Deos. Foi Mafamede colhen-
do da lei da Graça, e da escritura as cousas que lhe pareceo podião au-
torisar seus desatinos : estava bem reputado o exercido das Contas, mis-
turou-o com ellcs.
Ex aqui o nso de Contas cora muitos mais de mil annos de idade :
mas que se siga disso, ser tão antiga com^o ellas a davação que lhe ac-
comodamos hoje; e chamamos do Rosário, he cousa indigna de homens
que falão ingenuamente. Assi temos justa queixa contra Gregório de Vi-
ihegas (****) de aíllrmar que o Papa Lião Quarto na guerra que teve com os
(*) S. Jernnym. dos Eícritcres Eccleslast.
(•♦) Theod. de vir ilJMst. in vit. Julian. jíonneií.
(.-.) I'o!yd. Yirg. J. 7. c. 8. Luys dei marmol. I. 2. c i. El-Rey dom Afunso em suas ta-
boa?. Forlalificm Gdei de bello Saracem. 1. 40. art 10.
(-«.*) ViPucg. lio Floí Saut. na Exnllar-ão da Cruz a lí. de SfleuiLro.
VOL. 1. ' S
Qfy. LIVRO I DA HISTORIA DE i. DOMLNGOS
Sarracenos em Hoslia, armou' seus soldados de Rosários; (houvera de di-
zer, se tal houve, ramais de Contas.) Mas culpa maior he de quem fun-
dou nesta palavra aírazar a dcvação a estes annos, que fica sendo o mes-
mo que defraudar da honra delia, a quem muitos despois foi seu pri-
meiro, e verdadeiro inventor. Quanto mais que o que Vilhegas escreve
he tão mal fundado, que nenhum autor antigo tem por si, e pêra cou-
sa tão atrazada não he bastante seu dito pêra com nosco, nem o devera
ser pêra os que o seguirão. Yejão-se os que apontamos na margem (*), que
são todos Autores graves, e escrevem a mesma guerra, e a vida do mes-
mo Pontifice sem falar om Contas, nem Rosários, E contra os que lhe
dão por Autor o Ermitão Pedro, temos a autoridade do Cardeal Baronio,
que tratando delie era seus annais, e de como o Papa Urbano Segundo
propoz no Concilio de Claramente a reza do ofíicio pequeno de Nossa
Senhora recebido desdentão por toda a Christandade, nenhuma menção
faz de Contas, nem Rosário.
Sendo logo desconhecida por velha, e atrazada, a origem do mate-
rial das Contas : e não havendo autor nenhum que diga, nem possa di-
zer outro tanto da formalidade da devação, daremos muitos que escre-
vem clara, e patentemente o mesmo que atrás deixamos contado, que
foi primeiro Pregador, e promotor delia Nosso Padre S. Domingos re-
cchcndo-a da Virgem sagrada (**). E por que lhe foi dada por tais maons, e
nclla temiOS cifrada, como todos sabem, sua santa vida, seus trabalhos
e glorias de mistura com a vida, e morte, e paixão, e gloriosa Resur-
reição de Nosso Redentor, mcreceo o nome do Rosário na lingua Lati-
na que na Portugueza responde. Rosal. lie a rosa a mais nobre fior de
todas as flores por fineza da côr, por excellencia do cheiro, por utili-
dade da virtude ; alegra a vista, deleita o olfacto, conforta o coração ; e
he conservadora da 'vida humana, com a agoa sendo estilada, com o óleo
em infusão, com a sustancia em conserva. Por estas calidades, e porque
nasce armada de espinhas, e abrolhos, que oírendem, e magoão, he sím-
bolo da honestidade, e vergonha virginal : como parece das sagradas le-
tras, onde o Espirito Santo pêra declarar as excellencias da Esposa San-
(.) Platina de vita el mor. Pontíf. f. lOC. Ulcfcas na Pontif. i. p. 1 4. f. 20i. Onu|)h. Pa-
nuin, in cnisl. Poiílif Uoraan. f. Í2 Baron. t. 1». Annal Eccles. no anno 849. ex Anast. Bibliot.
Bonifac. Simoneta Ord. Cisterc. lib. li. de Rontif. iitrfecut. c. 9.
(..) O S. Fr. Joidno. O Genil Humberto e Theodorico lodos três escritores da vida de S.
Doiiiin. Os Anniiis Ri deViust. u\i< an de 1213. n. í». e 11 e 12. .Jo. Ant. Flui«in. Fr. Alano de
lUnie. F. Fcrn. de Cast. F. Jtrouim. Taix. Fr. Dicgo de Uogfda Sagiisliza\ul. O Bis^o dcJHi»-
nonopoli.
i
PARTICULAR DO REI.NO Di! PORTUG.VL ()7
ta por termos do campo humildes, e pastoris não buscou melhor com-
paração, dizendo em nome ádh: Ego flos campi, etlilium cQ7mallium('').
E noutm parte: Sicitt liUum inler spinas, sic unúca mea inter filias (*').
E falando também do Esposo Divino, não lhe quiz dar maiores gabos,
que dizer delle : Qui jmsciliir inter lilia (**'). E muito tempo antes tinha
dito: Pukhriludo agri mecmn est (****). E não obsla apontar o texto só
em lírios. Porque no Hebraico lírios, e rosas tem hum mesmo nome,
como adviríio o M. Sotto Maior (*"**) por estas palavras: Yox enim
Hcbrcca liruiiiíjue aiijnipcat iam rosas, quam iilium. E onde o Latino diz:
ligo (los campi. Traduzem os ííebreus : Ego rosa Sarou (******). E a ver-
são que anda de Hebraico Espanhola, que não tem pouca autoridade,
onde a Latina Ic : Qui pasvitnr inter lilia, diz, enlre rosas (*******). E
Santo Ambrósio nos ensina que estes lírios, e rosas são as Virgens santas,
e que a ignJja sagrada aiTirma o mesmo de si. São as palavras : Chrisli
lilia siint specialitir Virgiues, quarum est splendida et immacuJala virgi-
nitas. Vnde plerique accipiunt, quod Ecclesia videalur dicerc, Ego fios
canipi, et liiium conualliian (■******»*^_
Não se podia logo achar nome mais próprio pêra huma devação toda
alternada cm mysterios de gozos, e magoas da Virgem., e Mãi bendiíissima,
de dores, e glorias da Mãi, e do Filho Deos, e homem verdadeiro. Assi des-
pois que foi aprovada pola igreja, logo se lhe foi aplicando tudo o que so
acha escrito de rosas nas letras Sagradas. Já lhe chamamos: Rosa puriíalis, o
rosasinespina, ']ârosasapienli(jB. Já lhe cantamos : Sicut plantatio rosai in
Jericó. E pêra que tudo quadre com a forma da devação, temos autor que af-
firma, erão tão dobradas estas rosas de .lerico em Palestina, que se conía^ ão
em cada huma cento, e cincoenta folhas. Do que não discrepa muito Plínio
(*********), que nos avisa de outras que chama centifolias, em huma provín-
cia de ítalia, e noutra de Grécia. E foi tão aceito â mesma Senhora este
serviço, e nome, que por muitas vezes se deixou ver de seus devotos
hora coroada, hora cercada de rosas : e estas, pêra nos confirmar na or-
dem, que seu servo tinha dado da reza, entresachadas a cada dez bran-
(.) Cant. 2.
(..) l.Sid.
(-..) Ibi. c. 8.
("") Psal. ÍO.
(.....) Solto Maior, in Caiil. c. 6. foi. lOGci.
(...»..; Itleni r. 3. í. 422.
(,......) Yeríão do lífhraico Espanhola.
( •') Anibr. 1. Je irisíit. Virgin, c. Vò.
(....,....) riiii. Wh. 21. c. í.
68 I.IVRO I DA IlISTORU PE S. DOMI.Xr.OS
cas, de luima maior encarnada. Do que houve tantos testimunhos, que
delles naceo dar-se o nome de Rosal â devação, c passar da devação ao
instrumento, de maneira que já lioje está recebido por'nome próprio das
Contas : e não lia pintura desta invocarão da Senhora, que deixe de vir
semeada de Rosas.
Mas tudo isto teve sua origem na forma, e repartição dos mystcrios
aplicados ás Contas, e pregados por S. Domingos. E como eíie a come-
çou a pregar, segundo aífirmão lodos os escritores de soa vida, era To-
losa : e despois do anno de 4220 em Roma, não he m.aisalla, nem mais
moderna a anliguidade do nome, e devação do Santo Rosário, ou Rosal,
por mui antigo que seja o uso das Contas. E se houver algum incrédu-
lo no ponto mais sustancial, de que a recebeo por revelação Divina, e
pedir sinaes. darlhosemos do Ceo, e da terra. E seja o primeiro que a
primeira pessoa de quem o soubemos, c por quem passou aos succes-
sores, foi o mesmo Palriarcha, tão digno de ser crido, que ásua vozre-
suscitarão quarenta mortos juntos, já sumidos, e afíogados na madre de
hum profundo rio, á vista de hum grande exercito; A seu brado tornou
á vida nos olhos de toda a Cidade, e corte de Roma humNapoleon, não
só morto, mas feilo pedaços. Á sua doutrina renderão almas, e entendi-
mentos, de bronze cem mil hereges. Tesíim^unho he este de quem se de-
ve deixar vencer todo o bom juizo. Mas temos outros muitos, Cjuais são
que todas as vezes que o mundo se descuidou, ou adormeceo na santa
devação, a Senhora teve cuidado de a espertar, não buscando outro meio
se não o dos filhos do seu primeiro pregador, (grande, e soberana honra
desta Ordem), primeiramente no anno de 14G1, por Frei Alanoíngrezf):
e despois no de 1475, polo Mestre Frei Jacobo Prior do Convento de
Colónia em Alemanha, aos quais ambos se mostrou visivelmente, e lhes
mandou cpue a pregassem ; e destes annos em diante foi cm grande cre-
cimento, e começarão a levantar-se confrarias por toda parte, e escreve-
rem-se nellas Reis, e Príncipes, e todo género, e estado de gentes, se-
guirão infinitos milagres. Confirmarão-na com letras Apostólicas soccesi-
vamente os Vigários de Christo honrando-a com grandes graças, privilé-
gios, e indulgências (**)• E ultimam.ente como em gratificação do serviço que
a Igreja neste particular recebeo de S. Domingos, e pêra se não perder
{»] Aiidrcs Copesl. 1. 2. da Cõf. do Rcf. Bonifa. in viiginali 1. 2. c- t^. Carlag. Fiancis-
r.<no 1. ult. g. l^"). !•'. Alanu? de Kupe c. 4. 5 e 7.
(..) O Bisp. de Moncpcli no 3. p. da biítor. da Oíd L. 2. c. 2.
PAHT1CULAR DO REINO DE PORTUGAL Cy
a memoria dello, três Pontífices santíssimos hum trás outro declararão
por suas Bailas dever-se ao Santo ("). São os Pontífices Pio Quinto, e Gre-
gório Decimoterceiro, Sixto Quinto. As BuUas traz estendidamente Frei
Alonso Fernandes no livro dos milagres do Rosário (**). A de Pio lalando
de S. Domingos diz em hum período: Modum facikm et omnibus pertiium
ac admodum pium orandi et precaiidi Deum Rosarium, seu Psalterium
ejusdem Bcalm 3Iqri(8 Vircjinis nuncupatum : Q cerra abaixo ; Excoyita-
vit, excogitaium per SancKB Romana; Ecdesice parles propuíjauit, et. As
palavras do Grogorio são: Memores Beatuni Dominicum Ordinis Frcedi-
calorum instilulorem, cum et Gallia et Jtalia d perniciosis premeretnr hoe-
resibus, ad iram Dei placandam, et Beatissimw Virginis iiitercessionem iiii-
plorandam pijssimum ilhim orandi modum instiluissc^ qxiod Rosarium, sine
Psalterium Beatissimce Virginis nuncupatur, etc. O mesmo affirma 0 va-
lerosissimo Sixto ('*'), digno filho do Seráfico Francisco dizendo: Attenden-
tes itaque cjiiani religioni noslrce fructuosum fxierit sanclissimi Psalleiij
Rosarij nuncuputi, gloriosm semperqne Virginis 3íariaí, aimce Dei genitri-
cis instiiutum, per Beatum Dominicum Ordinis Fratrum Prcsdicalorum
autorem, Spirilu Sanctu, ut creditar, a/jlatum, excogitatum, etc.
Não nos fica que dizer, senão o que hum grande Santo aponta em
semelhante caso: que a dureza de crer dos duvidosos, não he tanto fra-
queza sua, como meio de firmeza nossa, pois á vista de provas tão cla-
ras, não haverá jamais névoa que oílusque a verdade. Antes podemos
cuidar dos mesmos, que nos ajudarão a engrandecer as misericórdias
do Senhor, que pêra maior corroboração d'ella, tem conservado este
grande beneíicio na Ordem do seu servo S. Domingos por mais de 400
annos, hora com revelaçoens do Ceo, hora com favores da terra, prohi-
bindo ultimamente os Santos Pontiíices, que em nenhuma, senão n'ella
se possão levantar Confrarias, da Senhora do Rosário (***'). Concluamos logo,
que este he hum dos hombros de Nosso Patriarcha, e d'esta Religião,
com que ínnocencio Terceiro vio sustentada a igreja Lateranense : por-
(♦) Jodoco nevGCÍio Qy.iiíc. do Rosar. F. Jacinlho Chaquccio liist. dos Santos da Ordem ein
fhnd. c. -2:3. p. 20/.
(-♦) Alexaiid. Lpg.id. i:i buli. Non dofuit Papa F.ifio x. in Riilla Pastoris a-lcrni. Piíis v
in Biill.quic iiicipit. Coasiiuvuruut iloniani l*oiit. e;c. Uiegor. V.W. in BuU. quyo iiiciíiit. Moiut
AjJOilo!.
(.«•) Sixtiis Y. ia Bulia qux incipiS. Dum in eíTabllia nifritorum iníignia. S. Gie^'. Tapa
howil. '£'J. in Evarg.
(•••-) i'iu3 Y. iii Buli. fjia^v- i;ici;i. btcr dcsidcijb Iili cord. ele.
70 LIVUO I DA niSTOniA DE S. DOMINGOS
que o outro he o Santo Oííicio da Inquisição, de que também foi primeiro
inventor, e ministro. Mas temo-nos divertido muito, e he tempo do tor-
nar ao fio da historia.
Apoz tamanha maravilha como a que fica contada no Capitulo prece-
dente, obrou outras o Senhor por seu servo, que excedendo o curso
natural das cousas, lhe renderão grande gloria diante dos homens. Li-
dava já com paroxismos da morte o Procurador do Convénio Frei Do-
mingos de Mele, ardendo em huma febre pestilencial. Era pessoa de im-
portância pêra o governo, e bem da Communidade, e muito amado d ella.
Choravam-no todos. Chegou-se o Santo á cama, e fez huma breve ora-
ção: fogio a doença, e ficou com inteira saúde o que era chorado por
morto. Mas na saúde do Procurador avisou o Santo aos mais religiosos,
que a perderião em breve dous, e acabarião o curso da vida mortal :
a outros dous succederia pior caso, que fngirião de casa feitos traido-
res a sua profissão. Cubrio a nova de medo, e tristeza a todos, receo-
sos de qualijuer das sortes. Sérvio a profecia de olhar cada um por si,
e andarem apercebidos, o com recato. Mas dentro de poucos dias vi-
rão com maior espanto o cumprimento.
Era acaljado o anno áe Í2I8, e não acabavam as obras que se fa-
zião era São Sixto pêra as Freiras: nem as de Santa Sa!)ina pêra os Fra-
des. Gora a entrada do anno novo mandou o Pontiíice apertar, e dar
pressa: e vierão a passar-se as Freiras no primeiro Domingo da Quares-
ma, que cahio cm 2i de Fevereiro d'este anno de i219. Logo á quarta
feira seguinte forão ao Mosteiro três Cardeais, |)era assistirem cm certa
soiemnidade de renunciações, que as Freiras haviam de fazer de fazenda,
6 próprios em mão de S. Domingos. Estavam juntos com elle entenden-
do no negocio: eis que sentem na poi'ta hum tropel de gente, e logo
muitas maons que batem n elia com grita, lagrimas, e confusão. Eram
os criados do Cardeal Estefano de Fossa nova, hum dos três que esta-
rão dentro: contão que Napoleon seu sobrinho íicava morto no meio da
rua, e não só morto, mas feito pedaços. Cae o bom velho nos braços
de S. Domingos todo desmaiado, lastimão-se todos, e chorão duas mor-
tes, huma certa do moço, e outra do velho, de que não duvidão. Era Na-
peleon a luz dos olhos do Cardeal: quiz passar a carreira em huma rua,
lançou-o o cavallo de si, de tal modo, que ficou no miserável estado que
dizião. Ouvindo os que cstavão na casa tamanlio desastre, e que tinhão
consigo a pessoa de São Domingos, de quem tantas maravilhas ouvião, e
PARTICULAR DO RKLNO DE PORTUGAL 71
sabião, acodem a elle todos juntamente, apertão, instão, impor tunSo, que
se compadeça de caso tão lastimoso, qne rogue por duas almas merecedo-
ras ambas de melhor fortuna, e que levão consigo todo o hom, e alegria
da corte: que mostre aqui sua fé, e sua valia com Deos. Encolhia-se o Santo
com grande humildade, e mostrando-se igualmente triste, e desconsolado
com os mais, mandou a seu com.panheiro que aparelhasse pêra dizer Missa.
Foi tal a devação, e fervor do espirito com que a celebrou, que ao levan-
tar da sagrada Hóstia se levantou com ella no ar á vista de todos bum
grande espaço. Acabado o santo sacrifício foi-se ao corpo morlo, seguin-
do-o os Cardeais, e grande numero de povo, concertou com suas maons
os membros torsidos, e espedaçados, chegando cada hum a seu lugar, e
feito sobre elle o sinal da Cruz, manda-lhe em virtude de Jesu Christo
que logo se alevante. Levantou-se o morto, respondeo, e falou, e pêra
que fosse o pasma maior, pedio de comer, e comeo diante de todos.
CAPITULO XV
Contão-se outros grandes milagres. Parte o Santo peva Espanha. Escre-
ve-se n que lhe succedeo no caminho. Funda em Segóvia Convento de
Frades, em Madrid de Freiras. Torna pêra Itália.
Fizerão illustrissimo o milagre que acabamos de contar as circuns-
tancias que o acompanharão, como forão a presença de três cardeais, a
nobreza do resucitado, a grande multidão do povo que se ajuntou, e
os cffeitos de alta devação que se virão no Santo. Seguio logo na gente
Romana hum novo, e grande desejo de continuar a escola, e doutrina
de tal homem. Corrião bandos de noviços de todas idades a Santa Sabi-
na, e bandos de donzellas á reclusão de S. Sisto com tanta vontade de
trocar por ella a liberdade do mundo, que achamos escrito forão rece-
bidas ao habito antes do Santo sair desta vez de Roma sessenta Noviças-
E pcra que ellas, e elles se confirmassem na santa vocação contra as
siladas, ê tenlaçíjes do enemigo commum usava o Senhor de grandes
misericórdias, e novas maravilhas em credito, e favor de seu servo.
Âchou-se o Santo hum dia em S. Sisto com trinta companheiros; sintio sede,
pedio de beber, trouxerão-llic bum pequeno vaso com vinho (que em Itá-
lia, ou por costume, ou por serem agoas menos sadias que em Espanha,
usa-se pouco delias na bebida singellamentc) bebeo, e deo o vaso ao
"73 UMtO I DA IIÍSTOT^ÍA ^E S. DOMINGOS
que estava mais perlo, mantlando-lhe qce bebesse, e passasse aos mais,
para que bebessem todos. Erão muitos, e o vaso não podia ser tamanho,
que tirasse poder cuidar algum, que era o cumprimento ocioso pêra com
taiilas locas. Mas o fmo obediente não faz discursos: bebeo, e foi passan-
do o vaso de mão em mão aos mais. E pois forão mandados tomar a po>-
bre refeição, persoado-me que devia ser o jantar daquelle dia, ou sem
provisão de vinho, ou muito fraco de vianda, como e[itão erão todos. E
como os pobres, e mal jantados bebem ás vezes com fome do tão bo^a
vontade, como o fazem os ricos, e fartos com sede, devião satisfazer bem
á necessidade, e escusar termos de coriezia. Em fim beberão todos com
espanto de todos, e a vasilha inda mostrava no peso que não estava va-
zia. E o Santo pêra que entendessem donde procedia sua confiança, e
aqtieiíe vinho, mandou que passasse ás Freiras, e que bebessem todas
sem ficar nenhuma, e assi se fez. E erão já a este tempo entre todas
cento e quatro. Derão-se graças ao Senhor por tão raro prodígio, com.
que m.ostrou sexMlie tão fácil fazer crecer o Ucor no vaso, como nacer na
parra: e como também crecer subitamente a agoa no rio sem chuva,
nem invernadas, o que se vio por estes dias, e também em favor da
Ordemi.
Levavão dous Frades de Roma pêra outra cidade hum noviço Roma-
no, moço nobre, polo desviarem dos parentes, que tomavão mal sua
santa determinação, e pretendião tiral-o á força do Convento. Tinhão
deixado atrás hum pequeno ribeiro que se offerece a quem vai pela es-
rada Numentana, por onde era seu caminho, e passado a pé enxuto.
Hião em seu seguimento os parentes a cavallo, e chegando poucas ho-
ras despois ao rio, em dia claro, e sereno, subitamente o acharão tão
crecido de agoas, e tão temeroso de corrente, que lhes tolheo a passa-
gem, e trocou a tenção de fazerem força ao noviço, reconhecendo na-
quella novidade o poder Divino: que de maneira acompanhava o Santo,
e suas cousas, que até dos^ Demónios era temido, e obedecido, quanto
mais dos homens.
PJanifestou-se este respeito em dous casos. Foi o primeiro em ha-
ma molher a quem juntamente atormentavão, e juntamente se ouvião
falar nella sete espiritos diííerentes, e sete vozes distintas, e de todos a
livrou mandando-lhes o Santo imperiosamente que logo a deixassem. E
chamava-a elle despois Sor Amada, em S. Sisto, onde a recolheo pêra
Freira. Outro dia ííizendo huma pratica espiritual ás Freiras na horta do
PARTICULAR DO REÍXO DE PORTUGAL 73
Mosielj'0, começou o eiiemigo a espantal-as. Era a figura do hum feio e
medonho lagarto de duas cabeças. Davão-se por mortas. Mandou-lhe o
Santo que logo se fosse lançar cm hum lago que na horta havia. Não po-
de resistir: foi-se de hum salto mergulhar n"elle, e desapareceo.
Folgavão os Anjos de servir (cousa hem de crer) a quem o Inferno
temia. Achou-se huma tarde em S. Sisío; foi forçado deter-se, entrou a
noite escura, e o tempo carregado. Pedião-lhe as religiosas, e os compa-
nheiros que ficasse no mosteiro, porque era longe a Santa Sabina. Não
se deixou persuadir, E quando o importunavam muito, dizia, vamos,
vamos, que não faltará hum anjo que nos guie. E assi acconteceo. Por-
que aos primeiros passos virão diante de si hum vulto, ao que se po-
dia divisar de homem mancebo, que com bordão na mão caminhava
despachadam.ente ao passo delles, e como se fora guia foi enfiando as
ruas até Santa Sabina, onde desapareceo. E chegando o Santo á Igreja,
(porque no Convento dormião já desesperados da sua vinda), as portas
se abrirão por si.
Era isto ao que se pode alcançar entrada do m.arço deste anno em
que vamos correndo de 1219. Andava o Santo com cuidado de saber
dos seus que mandara a Espanha. Parece que lhe revelava o Espirito o
pouco que já tinha de vida mortal. Determinou vel-os. Á hora da partida
de Roma foi-se a S. Sisto lançar a benção áquella companhia santa. Acu-
dirão as Religiosas a seu Prelado, e Pai. Perguntou se faltava alguma,
porque queria falar a todas. Foi-lhe respondido que três estavão em ca-
ma ardendo em febres, e mui atribuladas, que só isso as pudera ter.
Chamou o Sanío a Rodeira, diz-lhe que vá, e diga ás enfermas, que elle
lhes manda que não tenhão mais febre. Soberana confiança, glorioso im-
pério. Vierão logo sem mal nenhum, e como se nunca o teverão. Nesta
vinda do Santo a Espanha ha differença entre os autores sobre que an-
no foi. O Padre Frei Fernando de Castilho (*) nos tira de duvida, e mostra
com boas razões que não podia ser senão na conjunção, e anno que va-
mos seguindo de 12 i 9.
Algumas cousas grandes fez por elle o Senhor em Espanha, mas ou
fosse por falta de escritores, (que em Espanha não havia então quem
escrevesse, e os de fora em chegando a feitos delia logo emmudecem,
como já nos queixamos), ou fosse que quiz o Senhor ser imitado de seu
servo em não fazer m.ilagres em sua pátria, são muito menos em nume-
(.) Castilho 1). 1. !;b. I. c. 40.
74 UVUO I DA HISTOniA DE S. DOMINGOS
ro, e em calidade, tias que em breve tempo deixava feitas em Roma: e
pêra que se note isto melhor, não deixaremos nenhuma das que andam
escritas.
Caminhava o Santo com muitos companheiros discípulos seus, ajun-
t3u-se-lhe hum do P. S. Francisco, que levava o mesmo caminho. Em
C3rto lugar inviou-se lium cão ao Franciscano, que acaso ficara atrás^
pêra o morder, e fazendo presa no pobre habito abrio-lhe huma gran-
de farpa. Era no monte, e pêra quem o levava singelo sobre as carnes,
fadão-lhe guerra vergonha, c impossibilidade. Usou S. Domingos hum
remédio, qual dava o lugar, e o tempo, mas ao parecer, gracioso : jun-
tou as rasgaduras, tomou lodo da estrada, apertou-as com elle. Chega-
dos á pousada quiz o Frade coser-se, achou que o barro fizera officio de
grude, não sò de linha, e agiilha.
Mas acharão pior encontro em huma venda. Entrarão, e como erão
muitos, e genle a pé, descalça, e enlameada, não se prometeo a vendei-
ra provei lo de tal companhia. Começou a enfadar-se, e murmurar pri-
meh'o enlre ^lentes. jMas quando vio que em lugar de pedirem de comer,
eniravão muiío de assento em conferencia de matérias espirituais, solta
a lingoa em huma corrente de pragas contra todos, e principalmente
contra o que vio miis respeitado, que era o Santo, (devia querer obri-
gal-o a despejar a casa). Rogou-lhs elle com a sua brandura que o dei-
xasse hum pouco, e temperasse a ligoagem. Foi o bom termo hysope de
agoa em forja acesa. Já não erão palavras, se não brados, e fiuâa. Affli-
gio-se o Santo, porque não havia outra pousada, e levantando o rosto
sem nenhum género de paixão nem ira disse: Tape-te Deos poderoso
essa boca, já que rogos humildes não bastão. Acudio o Senhor por seu
servo; não sahio mais palavra da boca furiosa, ílcou muda. E pêra que
não tornemos a falar nella, tornando o Santo pola mesma casa de volta
pêra Itália, sahio a muda, lançou-se a seus pés, e alcançou por humilde
a fala, que perdtira por soberba.
O primeiro lugar de Castella que achamos nomeado nesta entrada do
Santo, he Guadalajara. Padccco neile hum grande desgosto pêra prova
de paciência, c daquella inteira verdade, que não ha Profeta em sua pátria-
Trazia muitos discípulos, fugirão-lhe quasi todos. Foi tentação do Infer-
no que lhe fez guerra, da qual o Santo teve revelação, e os avisou, maS
permitlio Deos que prevalecesse o tentador. Sintio-se o Santo como san"
to, chorando no successo o peccado dos Apóstatas, mais que o descredi-
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 7o
to, OU (Icsemparo próprio, e com invencível paciência imilando ao Sal-
vador, (alou a três que só ficarão, perguntando-lhes se queriam também
ir-se. Mas nem estes quizeiTio deixal-o, nem os outros se perderão to-
dos, que poucos dias dcspois tornarão os mais â obediência de seu Mestre.
Com os três passou por então á Cidade de Segóvia, onde sendo bem ou-
vido, aceitou sitio pêra fundar casa, e foi por elle escolhido entre huns
penedos, em qae lhe deu gasalhado huma lapa, que por ser acomodada
pêra seus exercícios de oração, e disciplinas, lhe servia de cella, c ora-
tório. E porque as pedras toscas delia sendo borrifadas com o sangue do
Santo conservarão longos annos aquelles sinais, veio polo tempo adiante
a ficar mettida no Convento em huma capeila de sua vocação. Creceo a
devação no povo, porque em. hum dia de Sol claro, e Ceo sereno, que
nenhuma esperança dava de humidade, sospirando todos por agoa, por-
que se perdiam as novidades por seca, prometeo no sermão que fazia a
grande multidão de gente, que Deos lhes acudiria no mesmo dia com
sua misericórdia. E virão cumprida a promessa, e regada a terra de
grande abundância d'agoas ainda antes de acabado o sermão. Não edi-
ficou menos outra promessa, que melhor direm.os prophecia, que não
tardou anno inteiro em se cumprir. E foi o caso, que hum homem dos
principais da terra, começando o Santo a pregar, se levantou, e deixou
a pregação, juntando á descortezia da obra, outra maior de palavras
contra o Santo. E o Santo disse logo aos que ficavão que rogassem a
Deos por elle, porque antes do anno acabado seria morto por seus ini-
migos. E assi aconteceo. Que justo he que o pague quem traía com des-
prezo a doutrina do Ceo. Melhor se houve na mesma Cidade huma boa
molher; souiip guardar como jóia preciosa huma túnica do Santo, que
fora diía ver-se hoje, pêra confusão do mimo com que nos tratamos, (era
de áspero burel), e deu-lhe por ella outra de verdeiro silício. Guardou-
a, e queímando-se-lhe por desastre a casa, com quanto nella havia, só
perdeo a força o fogo contra huma grande arca, em que tinha junto, e
fechado o que possuía de preço em companhia da santa relíquia.
Deixada boa ordem na nova estancia de Segóvia, foi-se o Santo á vil-
la de Madrid, onde tinhão tomado assento os discipulos que inviára com
dom Frei Sueiro Gomes. Não declarão as historias se erão todos três,
ou parte, ou se era gente chamada já por elle á Religião. Quaesquer que
fossem: achou que estava delles a terra bem satisfeita, c lhes tinha sina-
lado pêra morada sitio competente; e por boas conveniências, e polo que
76 LIVRO I DA IlISTOr.íA DE S. DOMíXGOS
se colligo do escrituras autenticas, os três companheiros não esíavão,
nem podião estar jtiiUos, nem parados. Porijue neste mesmo tempo íi-
nhão ordenado principio de casas, ou residências em Palencia, e em Ca-
mora, e Salamenca, e também emToIedo(*). Erão estes principios residi-
rem nos Hospitais, continuando exercicio de charidade com os enfer-
mos, e acudindo a corpos, e almas. Dali saliião a pregar às igrejas, e se
o povo era muito pregarão nas praças, e despois fazião doutrina polas
ruas. E assi procedião até terem casa, se a terra lha dava, ou passavão
a outras. E não lia duvida que em Barcelona, e Saragoça íinhão deixado
ordem, e gente pêra fundarem crecendo o numero, e fervor dos Reli-
giosos por toda parte(**). Epola'mesma rezão podemos cuidar que os li-
nha o Santo chamado, e mandado jantar em Madrid como a Capitulo, e
pêra dar assento nas cousas de Espanha: e he de crer, que lhe acudiria
também de Portugal, e do seu novo Convento de Monte junto o Prelado,
com quem primeiramente os mandara peregrinar. Mas disto não acha-
mos memoria nem certeza: a conveniência he grande com o que diremos
no fim do Capitulo. Porque a vinda de S. Domingos a Espanha com
tanta pressa, que quasi não teve hora pêra parar em nenhum lugar, não
devemos conceder que foi inconsiderada, nem só a fim de fundar em
Segóvia, e Madrid. Mas com alio pensamento, e como dando forma, e
regra ao que hoje fazem os Prelados maiores seus successores. Determi-
nava fazer huma junta geral de seus filhos, quiz ver primeiro a todos
por seus olhos, como vivião, e procedião. E por isso foi logo passando
aos mais lugares da Christandade, onde sua Família começava a ter ga-
salhado, que todos correo, e visitou dentro deste anno. As ordens que
deu, forão animar, e consolar; não reprender, nem emondar. Porque
na verdade estavão tão bem fundadas aquellas novas prantas com o que
de seu espirito, e com a fama, e exemplo de suas virtudes lhes comuni-
cava ausente, que achava era todas muito que louvar, nada que reprovar.
Avisou em geral que pêra dia de Pentecoste do anno seguinte de 12:20
celebraria Capitulo em Bolonha, e logo deixou apontados os Religiosos
que de cada terra, e província havião de ir a elle. Em particular orde-
nou que no sitio que os Frades tinhão em Madrid, com o pouco que já
possuião de próprios se fundasse Mosteiro pcra Freiras, e tudo renun-
ciassem nellas. E de dous sojeitos a que nesta jornada lançara de suas
(.) Castilho p. 1. lib. 1. c. 53.
(*•) Âniiai» de Aragão 1. i. c. 70. Castillio ubi sup.
PARTICULAR DO REINO DK PORTUGAL 77
liomditas mãos o liabito, ambos cie[idac{e madura, e ambos chamados Do-
mingos, (ao qne parece em devação do Mestre, e detestaç-ão do mundo
deixado), a liiim, que era natural de Segóvia, e se cliamava de sobreno-
me Mimhós, mandou ficar em companhia das Freiras, e deile ha hoje
memorias no Mosteiro: ao outro, que era Portuguez, e o sobrenome de
Cubo, mandou acompar, e ajudar a dom Frei Sueiro, bom argumento
de que estava presente. E isto assentado tratou logo de sua partida.
CAPJTULO XVI
Parie o Santo de Madrid pcra lialia : c dom Frei Sueiro prra Portugal.
Pedem Prelados de Portugal a dom Frei Sueiro Pregadores pêra seus
Bispados. A infante dona Branca offcrece fundar casa em Coimbra.
Despedio-se São Domingos de seus filhos, e tomou o caminho de Fran-
ça pola via de Çaragoça. Ficarão os filhos com magoa do pouco tempo
que lograrão a vista do pai : e forão-se cada hum pêra onde os chamava
sua obrigação. Tornou-se dom Frei Sueiro sem perder jornada ao seu
Monte. E como era já mui divulgada polo Reino sua virtude, e a dos seus
moradores do deserto, achou que o esperavão recados da Infante dona
Branca, e de alguns Prelados ; delles, pêra lhes ir pregar em suas Dio-
cesis, ou mandar quem o fizesse. Delia, pêra o ouvir, e ter perto de si
casa da Ordem. De huma cousa, e outra achamos letras autenticas. São
as priuieiras de hum Bispo de Coimbra com hcença mui ampla pcra elle,
e seus Frades pregarem naquelle Bispado : e não só licença, mas também
iiidulgcncia pêra quem os ouvisse, e commissão pêra emendarem, e cas-
tigarem as desordens que achassem. E são as que se seguem, tiradas do
original de verbo ad verbum.
Peírus Collimhriensis Ecclesies 3íinister humilis, lícct indignus ; vm-
versis Christi fidelibus per Collimbriensem. Episcopatum commorantihus ad
gnoscunque isíce literce pertienerinl, et iUis gui eas legcre audierint salu-
tem et benedictionem. Vniuersitnti vestrce noUficetur, quod nos concessimus,
et concedimus Bomno Suerio de Ordine Projdicaíorum Priori, et omnibus
suis Frairibus liceníium prwdicandi per fotum Collimbriensem Episcopa-
tum. Et adhuc concedimus ellicenfiam et poleslatem compelíendi et corn-
gcndi omnes excessus, quaícnus Dei gratia vos omnes per eorum prcedica-
tioncm melius et facilius ad f.dem Catholicam vos vakcmt perducere. Et
78" LlVnO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
eliam addimus, quod ipsi vobis conccdant absolutionem peccatorum vcsiro-
rum quadraginta dierum ; de illis dicimus, qui ad procdicaiionetn eorum
venerint, et eos benigué audierint, et eorum prcedicattonc7n cxaudierint.
Em nossa linguagem respondem assi. Pedro humilde ministro da
Igreja de Coimbra, inda que indino, a todos os fieis Christaons n'este
Bispado moradores, a que estas letras chegarem, e as lerem, e ouvirem,
saúde e benção. Seja-vos a todos notório, que nós temos dado, e damos
licença a dom Sueyro Prior da Ordem dos Pregadores, e todos seus Fra-
des, pêra pregarem por todo o Bispado de Coimbra. E assi lhe damos
mais licença, e poder pêra emendarem todas as desordens que acharem,
obrigando, e constrangendo as partes: a fim que mediante a graça de
Deus, e sua pregação, vos possão melhor doutrinar, e com mais facili-
dade instruir nas cousas da fé Catholica. E queremos outro si, que em
nosso nome vos dcm, e concedam indulgência de quarenta dias do per-
dão : áquelles entendo, que acudirem ás prégaçoens, e as ouvirem de
boa vontade, e a suas amoestaçoens obedecerem.
Ainda que estas letras não tem data, pola narração d'eH3s se deixa
entender o tempo. Porque como falão com dom Frei Sueyro Prior, di-
zendo, Priori, denotão que já tinha Convento, e súbditos. O que não
foi, nem podia ser, senão dentro dos annos de 1218, e 1219, e poucos
meses do seguinte, no qual foi eleito provincial. E assi ficamos alcan-
çando a data com mais verdade, que se a teveramos por números de
arismetica que muitas vezes o tempo borra, e o descuido troca. E tira-
mos d"aqui outra certeza muito importante, de que alguns escritores
dão noticia, que hc do modo que n'aquelles tempos fazião os nossos
Frades o ofiicio da pregação : o qual era correrem toda a terra, sem
deixar aldeã por vil, "e desprezada que fosse, desterrando ignorâncias
d"aquella rudeza bronca, e grosseira, e com paciência dando a sentir
nos entendimentos, e guardar nas memorias as verdades da Fé. E não
se contentavão com este exercicio só nas terras em que tinham Con-
ventos. Porque como as taes erão de ordinário povoaçoens grandes,
onde sempre ha muitos doutrinantes, e melhor noticia das cousas, acha-
vão que se tirava mais fruto do trabalho, empregando-se nas aldeãs, e
insinando n'ellas aos mjninos, e aos velhos igualmente necessitados de
doutrina, da qual despois composerão cartilhas, que ainda chegarão al-
gumas a nossos lomijos. E em fim era o mesmo oííicio que com muito
louvor fazem hoje nos lugares em que assistem os Padres da Companhia
PAUTICLLAI'. DO ÍIEINO DK PORTUGAL t9
de Jesu. Que na verdade os filhos das ordens regulares viemos ao mun-
do pêra ajundantes do minisierio Ecclesiastico, e Episcopal. E se o em-
prego a Deos mais acceiío, lie onde vai maior necessidade, ninguém me
negará que nos lugarinlios pobres, esquecidos, e miseráveis se faz muito
mais serviço, e não basta dizer, que esses tem seus Curas particulares.
Porque se somente se lia de acudir, onde ha falta de Curas, mais letra-
dos, e mais diligentes os tem as cidades. E por esta rezão corrião os
nossos Frades, tudo (como se coUige da lingoagem do Bispo), e cliama-
vão a isto n"aquelle tempo apostolar, segundo ao diante o veremos me-
lhor.
Mas t(irnando á historia, a infante dona Branca, que despcis foi
Senhora de Guadalajara em Castella, (segundo afíirma Duarte .Nuiiss de
Lião)(*) era irmã das Infantes dona Tareja senhora deMoniemór o velho, e
dona Sancha senhora de Alanquer, e todas três filhas dei Rei dom San-
cho primeiro, e irmãs dei Rei D. Affonso Segundo, que por este tempo
reinava. Esta dona Branca vivia junto a Coimbra em companhia de dona
Tareja, e estando já n'este tempo quietas todas da força que el Rei seu
irmão pretendeo fazer-lhes nas villas que possuiani, (como atrás tocamos)
porque se tratava de composição : desejava á imitação de sua irmã dona
Sancha ter junto de si casa da Ordem de São Domingos, e gozar de sua
doutrina. Pêra este eíTeito quiz ver, e ouvir a dom Frei Sueyro, e offe_
recia comprar-lhe sitio em Coimbra, e fazer a despeza do edifício. E pa-
rece que foi traça pêra o mais obrigar, ajuntar ao seu recado as letras
do Bispo. Não ha duvida que acudio dom Frei Sueyro a huma cousa,
e outra com aquelle zelo das almas que de seu Mestre aprendera, ainda
que vinha necessitado de descansar do caminho de i\ladrid, que tomara
a pé, como n'aquelle tempo se faziam todos n"esíe religião por lai-gos
que fossem. Succedeo-ihe a jornada bem, como todas as que tem por fim
a Deos. Porque entre muitos, e bons sujeitos que Coimbra lhe deu pêra
o habito, lançou-o a hum natural da mesma Cidade, que despois deu
grande Santo, como ao diante veremos: Era o povo grande, de gente
bem inclinada, e branda, achou bom sitio nas almas pêra o edifício es-
piritual, porque era ouvido com muita vontade, e respondia a ella o
frui to. E não se agradou menos do posto que alcançou na terra pêra a
fabrica material do Convento, que foi pegado com a Cidade, e sobre o
rio, onde chamavão a Figueira velha. Não nos consta do tempo que aqui
(•) Diiarle Kaiies dt Lião ua vida dei Rei dom í'anc'ao piimeiro.
80 I.IVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
se deteve dom Frei Sueyro, nem do dia, o anno em que começou a obra
do Convento, mas por escrituras antigas, de que ao diante daremos no-
ticia, e treslados, se collige, que por este tempo teve principio, c que
sete annos despois d"este em que vamos correndo, que vem a ser no
de 1227, havia já Convento formado com Prior, e Supprior. E tomou
esta Princeza tanto a peito a obra, e com tal gosto, que a nenhuma
pessoa quiz dar parte n"ella, se não foi á Infante dona Tareja sua irimi.
De tudo damos adiante larga relação em Capitulo particular(*). Porque me
pareceo mais clareza das matérias dizer juntamente tudo o que toca
a cada Convento com sua fundação, e cousas notáveis no lugar que lhe
couber por sua antiguidade, e successão : que não ir misturando, e te-
cendo os successos de huns Conventos com outros, só por guardar com
pontualidade a rezão dos tempos de cada hum, quando caem juntos
em um mesmo anno. Visto como he mais acertado levar desembaraçado,
e corrente o sustancíal da Historia, que consiste nos successos, que não
o particular do tempo, e conjunção de cada successo, que fica remediado
com o repetirmos, e especificarmos de novo em seus lugares, e onde
parecer necessário. A este trabalho nos obriga a calidadc de historia
que nos coube em sorte, que sendo como he de muitos Conventos, e
muitas fundaçíjes, e sendo força escrever os successos que ha de todos
por discurso de largos annos : cada Convento por si faz huma historia
própria. E fica esta escritura hum volume de Crónicas, ou mais propria-
mente hum aranzel de relações de Conventos: pois a cada passo ha de ser
cortada, e estroncada em tantas Crónicas, ou relaçocns particulares, quantos
Conventos tever. Desgosto, e fadiga grande pêra quem escreve, que não
tem outro allivio, senão cuidarmos que por novidade, e variedade fica-
rá a quem ler deleitosa. Dado este aviso que era necessário, tornemos
á nossa Historia.
Deixada bastante ordem em Coimbra, passou dom Frei Sueyro a
Braga, e a Guimaraens. Era Guimaraens n^aquelle tempo huma das
terras de mais importância, e de mais estima do Reino. Tinham n"ella
suas casas, e assento muitos fidalgos, e muita outra gente nobre, eriça,
que se prezava por Christandadc, e por termo de honra, e cortezia abra-
çar a religião, e professores delia. Assi quasi no mesmo tempo derão
gasalhado aos filhos dos dous grandes Paíríardias Fi-ancisco, e Domin.
gos. Os Franciscanos com Frei Gualter houverão hum pequeno oratório
(•) L. 3 c. j.
f>AUT!C.rí.AR DO REINO DE PORTUGAL ' 8t
apartado da viH:\(*): d'onde despois de alguns annosse passarão ao Con-
vento maior que edificarão junto d'elia. Dom Frei Sueiro com os seus
foi agasalhado no hospital da villa, e n'elie residirão muito tempo seus
successores, (tão bons de contentar erão então os Religiosos), saindo a
pregar polas terras vizinlias, e tornando-se a "recolher a ello. Donde
veio ficar-ihe' o nome de Hospital de S. Domingos : e estarem hoje as
paredes, e r(^:;iboío3 ua Igreja clieios de memorias suas, e dos Santos
da Ordem. E quando cinquenta aunos adiante viemos a ter primeiro
Convento, e Igreja na villa, inda que os Frades deixarão a morada do
Hospital, que até então fora sou Convento, ficou em costume que hoje
dura, (sem se saber o fundamento) ir hum Religioso todos os Sábados
do anno dizer Missa n"elle. Mas ao diante no titulo d"esíe Convento, (como
em seu próprio lugar), faremos mais larga relação d"esta antiguidade.
Não podia dom Frei Sueiro andar estes caminhos devagar, pois ti-
nha por diante a obrigação de aparecer em Bolonha por Pentecoste do
anno que entrava, como deixamos dito, lhe era ordenado por S. Domin-
gos. Tornou-S3 ao seu Convento com propósito de começar a jornada
€om cedo. Visitou em Alanquer a infaiite dona Sancha, e dando-lhe conta
do que deixava assentado com sua irmam, dos Frades que deixava ena
Coimbra, e Guimaraens, do fruito que fizera em ambos os lugares, e
Noviços que recebeo, consolava-se muito a Princesa, como Santa que
era, e dava graças ao Senhor, que a fizer-a de laes obras medianeira,
e acendendo-se em verdadeira caridade cabia na conta do injusto, e in-
soportavel trabalho, que padeciam os seus Frades na vivenda da serra,
de que nacia não poderem communicar a santa doutrina com tanta
continuação com.o as necessidades, e devação dos povos pedião. Mas
clles Sião desisilão da sobida, e decida do monte : e o prelado com
mais animo que todos, dando cada hora mais vivos exemplos de ca-
ridade, e mortificação, com que se fazia venerar dos súbditos, e res-
peitar de toda a comarca, e polo Reino corria sua fama como de homem
Santo.
. (;) F. Marcos de Li-bea p. i. !. C. c. ÍO.
VOL. í
82 LIVr.O I DA niiTORIA DE S. DOMÍNÍiOS
CAPITULO XVIÍ
PiirlP I). Frei Siiciro fera o pririieiro Capitulo (jeral de sua Ordem a
Jiiiliii. ConUi-se o que succedeo a São Domingos despols (pie sahio de
Madrid até d cclebnação d'eUe: c o que ficou ordenado naquella santa
junta.
No primeiro tempo que o nnno novo cie 1220 prometteo serenidade,
tomou dom Frei Saeiro seu bordão, e Breviário, que forão es Compa-
nheiros com que primeiro entrou por terras de Espanha, c em Portu-
gal. E sem outro ah''orge, nem viatico, e sem dar moléstia, nem ser pe-
sado a nJnguem, (ditosa confiança, dina de nos fazer grandes envejas), se
poz a quatrocentas léguas de caminho. Antecipou-se pêra chegar a ten>-
po, porque caminhava a pé, e não queria perder a consolação de ver,
e tratar de passagem os Religiosos de Gastella, e Aragão, que todos o
rcconlrecião, e veneravão por pai.
N"ests tempo tinha S. Domingos passado Aragão, atravessado França,
decido pelos Alpes a Lombardia, visto Borgamo, e Bolonha, e em fim
entrado em Roma, d'onde sairá por Março do nnno próximo passado de
Í2i9. PJuitos casos houve na jornada dignos de memoria. Iremos apon-
tando alguns. Em Çaragoça visitou os seus Frades em hum pobre re-
eolhimento que já tinlião sobre o rio Ebro. Pregou na Cidade, e fez
huma admirável conversão. Entrava pola Igreja ao principio do sermf»
hum homem dos principais da terra, (devia ser curiosidade, se pior fim
não era). Descubrio Dúos aos olhos do Santo huma legião de Demónios
que o cercavão, por aviso de quí>l era a vida que fazia. Encheo-se de
compaixão, e pedindo a Dcos misericórdia por elle dentro de sua alma,
aliou a linguagem, encareceo os perigos do peccado, pena de fogo, c
t)rmento eterno dos condemnados. Bem se diz que lie mais afiada, e
cortadora que huma espada de dous gumes a palavra de Deos(*). Ficou o
fidalgo penetrado de medo polo que em si siulia : e foi primeiro eíTeito
trazel-o a outro sermão. N'elle permitlio o Senhor pêra salvação sua, e
aviso de todos, e por merecimento do Sauto, que visse toda a Igreja o
infernal esquadrão que o seguia. Foi tal o espanto, e terror que não
parou homem dentro. O mesmo pcccador de confuso, e coi-rido queria,
se pudera, fogir de si. Wandou-lhe o Sanlo hum Rosário, ir.sinou-lhe a
devação: ajuuado d'eria emendou a vida, e veio a ganhar a alma.
(.) Utbi-. i
PAUTicuLAu DO isEixo DK roimr.AL 83
Em Tolosa visitou os seus Conventos do São Xlomuo, cPruliiano. To-
mou de S. Romão oito Frndcs, c foi-sc na voiía de Paris. Faltou na pri-
meii'a jornada a csinoia: orão muitos, e índos rançados, a comida pouca,
e pêra l)el)ida liain vaso mui pequeno de vinlio. Mandou-o vazar em
ouíro grande, e que fora bastante pêra a companhia, se fieira cheio
e disse que o acabassem de encher de agoa. Poserão-iho diante, lan-
çou-lhe a benção, (santa, e poderosa benção), beberão iodos vinho sabo-
roso, e fino. Não he pêra ficar em silencio que essa mesma noite dis-
pois de deixat os companheiros na pousada bem accommodados se f( i
cá Igreja pêra dar graças a Deos da mercê recebida, e tomou por recrer-
ção do trabalho do dia passar em oração até pola manham.
No dia seguinte deu com nuns fidalgos Alemaens, que em habito do
Romeiros levavão a mesma estrada. Forão-se todos juntos, deleitando-se
os Alemaens na novidade do traje dos Frades, e muito mais na ordem
com que caminhavão, que era cantando Ilymnos, o parando a espaços
a fazer oração. Maníiverão-lhe companhia os Romeiros quatro dias, ten-
do-o sempre por convidado cora todos os seus, e não consintindo quo
tomassem o ti-aballio costumado de ir mendigar polas portas. Ao quin'o
pareceo ao Santo pouco primor deixar passar tanto tempo sem dar algum
género de agradecimento áquella caridade. Ficou-se um pouco atraz, fez
oração, e tornando a alcançar os companheiros, começou a travar pra-
tica com os Alemaens, em sua iingoa, fallando-a tão cerceada, e pronta,
como se naccra em Alemanha : c espantando-os com o milagre, ponji e
até aquella hora fora mudo, alcgrou-os com linguagem do Ceo, c matei
rias da alma, que lhes foi tratando por espaço de outros quatro dias,
que aiiida forão jiiníos. Omesmo se escreve, (se não hc maior caso), (jie
lhe acontecco outra vez topando-se com hum varão santo de terra, e lii;-
goa mui estranha, que entenderão, c communicarão ambos, fallando cada
hum a sua natural.
Mas n'es[a jornada notou Frei Beltrão do Garriga discípulo dos ant:-
gos, e seu compauhoiro n'ella, outra maravilha que despois contava, jul-
gando-a por muito mais prodigiosa. Caminhavão longe de povoado, a:-
mou-se uma t!'ovoada, cí)raeçou a lançar de si apoz relâmpagos, e })om-
bardadas de trovões, pedra grossa, e grande agoa, e vinha-sc pêra elles
a toda fúria com força de vento. Não havia tempo pêra lhe fugir, nem
roupa pêra a esperar. Poz os olhos no Ceo, fez o sinal da Cruz contra a
cila. Descarregou a tempestade sem torcer nem parar: mas elles forSo
gi LIVRO I TíX Ili.-TOP.IA DE P. DO^ríNGO.^
caminhando como moUitlas cm hum toldo sera lhes locar goía do agoa.
Outras vezos siiccodia chegar á pousada passado da chuva, e coherío de
lodo : e o alhvio que linha era agasalhar os Frades com hoa fogueira
porá se enxugarem, e elle ir-se buscar a igreja, e n'elia passar cm ora-
(;So a noite inteira. Porem pagava-I!ie o Senhor cm consolações do Cco,
o porque fossem entendidas dos seus, noíavão eiies que quando os vi-
iilia demandar pola manliã, não havia habito mais enxuto na companhia
que o seu. Abrangia ao vestido o fogo que ardia na alma.
Chegou a Paris á nossa igreja de Santiago, que foi a primeira que
ali tivemos, donde teve origem o nome que os Francezes nos dão de Ja-
cobinos. Alegrou-se dever os Frades já quietos n^ella. Porque quasi iium
anno inteiro tinlião feito sua estancia em hum hospital. Passou depressa
por atravessar os Alpes antes da fMxa do inverno. No lagar de Casle-
íar foi agasalhado por hum bom Sacerdote com lodos os que levava, com
festa, c boa sombra. Mas perturbou tudo, e a todos hum grande desas-
tre. Acabavão de entrar, quando vem poios ares caindo do alto de hum
eirado hum sobrinho do hospede, com tal Ímpeto que ficou ho chão es-
tirado, sem sentido, e com as pernas quebradas, e parecia ler acabado
seus dias. Desconsolados todos, e juntos sobre elle em pranto, acudio o
Santo á oração, refugio seu em todo o trabalho. Esíandí5n'erialevantou-
se o que davão por morto, são, e salvo, como se espertara de algum
sono. Dobrou-se a festa com a maravilha, e íicarão por convidados os
parentes, e amigos que vinhão ajudar a chorar. Postos á mesa vio o
Santo que não lançava mão de nada a mãi do que passara o desastre.
Sabida a causa, que era andar cativa de huma importuna quaríam, e es-
tar na mesma horacom a força da sezão: fez-ihe hum praío de humas
iguarias, que vierão á mesa, lanço u-lhes a benção, e mandou -lhe que co-
messe sem medo. Refusando ella, inda que confessava apetite ao peixe,
certificou-a que lhe não faria dano. E assi foi, que no primeiro bocado
se sintio livre de todo o mal, e não lhe tornou mais a quartam.
Ao passar dos Alpes foi desfalecendo hum irmão Leigo, de pura fra-
queza, e falta de manlcnça, de sorte que perdia o alento, e não podia
dar passo. Fez o Santo diligencia polo animar, a ver se poderia chegar
ao primeiro lugar. Não valendo nada porá o esforçar, aponíou-lhe pêra
huma arvore, mandou-lhe que fosse a eiia, e adiaria que comer. E assi
aconteceo. Achou hum pão de tal sabor, que ficou com novo espirito, e
forças, como de comida milagrosa, qual na verdade era.
PAUTICLLAíi BO íiEiNO DE POniLllAL 83
Em Berganio visitou os seus Frades que de novo achou entrados n:i
Cidade. Pregou ao povo, e consolou a todos. Em Culoníia deo o habito
a muitos moços estudantes da Universidade, que derão despois homens
de grande conía. E cmfim veio a entrar em Roma no mesmo anno cm
que sahio d'ella : onde sendo gerahnente estimada sua vinda, nos seus
dois Mosteiros foi festejada com estre.mo. A primeira cousa em que en-
tendeo foi instituir huma nova ordem pêra serviço da Igreja. Era liuma
irmandade ou milícia, que chamou de Jesu Chi-isto, composta de gente
secular, com leis, c Rm principal de defendereín com armas materiaes
o património da Igreja, e seu direito, e jurdição contra os hereges: e foi
abraçada com grande vontade por todos os nobres da Chrislandade, e
honrada com favores dos Pontifices. Mas cessou como forão cessando as
hcregias, e veio a converter-se de Ordem de homens em Ordem de mui
llieres, com nome da terceira regra de S. Domingos, ou da penitencia.
E por eila tem vindo ao mundo grandes lumes de Sanlidade por toda a
Europa, como ao diante veremos cm seus lugares, e bastante he liuma
(.alherina de Sena pêra honrar muitas ordens, e sendo como foi Freira
In-ceira, ser primeira em todas. Desta milícia primeira de homens te\e
origem, e dependência a companhia dos que o tribunal do Santo OiTicio
admite hoje ao serviço d'aqueiie sagrado ministério da Fé com nome do
Familiares, e honra de privilégios, e de huma Cruz branca, e negra, qi e
trazem a tempos, insígnia sua, e da Ordem de S. Domingos, procurada
já hoje nas mais das províncias de Espanha, e estimada de todos os no-
bres d"ella
N'este tempo lançou o habito ao bemdlío Jgcintho, sobrinho do Bispo
de Cracóvia, que a caso se acharão em Roma juntos, e foi com tão boa
sorte, que juntamente com o habito lhe deu todo seu espirito. Assi fez
em Polónia, e por aquellas partos do Norte grande dilatação da Ordem,
confirmada com \ ida innocentissima, e famosos milagres, que hoje o tem
cânon isado.
No meio de tantas occnpações acudia o Santo quotidianamente ao
púlpito em Santa Sabina, e S. Sixto, não dando hora de alivio aos can-
çados membros, que sua invencível caridade fortalecia de maneira que
excedião as forças humanas. E cada hora lhe succedião cousas, que mos
travão bem, quão gratos erão seus trabalhos áquelle poderoso Senhor
por quem os levava. Yisiíava «a Cidade, c confessava huma niolher do
grande, e provada virtude, e igualmcnie affligida de fortes iniinnidaJ.cs,
86 LlVnO i DA IIIiTOiUA DE S. DOMINGOS
porque so nlío e?panicni os bons de terem traballins, (clianiava-so Tlon?,)
Acmlirão-l!io de novo liuni cancro, que vindo a apostemar, llie comia os
peitos em vida, não só com a foira do raáo humor interior', mas com
iiuma podridão descoberta, (jue fervia em bichos, e causava dores, e ou-
tros accidentss incompoiiaveis. Não podia o Santo crer tanto ma! em
q:;em tão poucos merecia: desejava ver a c!i;iga, porque h;«.via por cousa
mjnstruosa o mal contado, e a alegria, não sj paciência com ({U3 BiUia
o levava. Houve Bona de obedecer a seu Padre espiritual. Vio o Santo a
(Iiajií, considerou-a, maravilhou-se. Tomou em suas mãos isum dos bi-
ciios, ou pêra se moraficar, ou pei'a que vissem os comnanh.eiros, onde
estavão os tliesouros do Ceo. Aponta a liistoria q-ue era nojento, e feio,
e grande, e a cabeça negra. Caso peregrinu, e nunca ouvido! No mesn^.o
ponto que tocou aquellas santas mãos, tornou-se em hunia pérola que
deleitava os olhos de orienlal, bella, e fina. Requerião os companheiros
que a guardasse pêra memoria do caso. Requereu Bona que lhe tornas-
se a sua pérola. Porque d'ella, e das irmãs tinha já tanto gosto, que se
alguma acertava a cair do lugar cancerado, era cousa sabida, que logo
a íornava a eile. Enírcgou-lha o Santo, e tornou logo a sua primeira fi-
gura, e a roer como de antes no peito enfermo, mas igualmeníe valero-
s'). Despedio-se enconiendando-a a Deos, e fazendo sobre a poslema o si-
nal saluíifero da Cruz. Não tinha acabado de decer a escada quando Bo-
na sinlio subitamente saltar fora a podridão, e os bichos, despegando-se
tudo, e ficando aliviada do mal, foi logo enxugando, e encarnando o peito,
e cobrou saúde pei;/eita.
Em outra beata igualmente virtuosa, e perseguida de doenças, se vio
pouco despois semelhante milagre. Junlára-se-lhe em hum braço hum
humor renenoso, o corrosivo: e começando a apostemar tinha-lhe lavra-
do o braço todo, e coínida a carne, que não havia já mais que as canas
nuas, e secas, co.mo de corpo defunto, sem esperança de remédio: mas
foi cura repentina, c perfeita, hum sinal da Cruz feito polo Santo sobre
o mal.
Não podia deixar de ser aborrecido do enem'go comum quem tanto
favor tinha da potencia Divina. Assi era inquietado d'e[le a toda a hora,
c a todo seu poder: e não podia nada, porque não tem mais força, que
quanta lhe permitte aqueile Senhor que o he de tudo, e de todos: o
polo mesmo caso nem o Santo o tinha cm conta, nem lhe fazião pavor
suas carrancas. Hum dia em Santa Sabina estando em oração na igreja,
PARTICUF.AIX DO REINO DE PORTUGAL 87
fcz-lhe tiro do alto com Imnu grande pedra, tão bem apontado, que lhe
4eo polo capello, passando, e sem outro dano que})roii diante d"elle com
hum estrondo infernal. Mas nem desta vez o apartou do Santo exercício;
nem de outras que procurou perturbal-o com mascaras c figuras teme-
rosas, alcançou mais que esprimentâr a fraqueza própria : e arder em
nova raiva de se ver desprezado, e mandado cora império, e como es-
cravo por huma criatura de terra, e mortal, e sendo sua natureza ião
alta.
Desejava o Santo dar vista aos Conventos de ítalia, que erão já prin-
cipiados muitos. Mas era muito entrado o anno de láiO, e medindo o
lempo em que cumpria acliar-se em Bolonha pêra celebração do Ca[)i-
tulo aprazado, chegou somente a Milão. Aqui- adoeceo de umas febres
mui rijas. E he de saber, que querendo curados seus filhos em qualquer
enfermidade, não só com caridade, mas com mimo, e sentindo-se assaz
traballiado d"csta, nem teve melhor cama que huma taboa, nem so pode
acabar com elle que comesse carne hum só dia, nem deixasse de jejuar.
Mas não era isto cousa nova: com o mesmo rigor nos consta que se go-
vernou outras duas vezes que foi doente antes d"esta, huma cm Viterbo,
outra em hum dos primeiros caminhos que fez a Roma. E sendo uma
das doenças gravíssimas, nenliuma cousa quiz nunca aceitar das que he
cos:ume darem-se aos enfermos pêra hum pouco mais de allivio; e o
maicr mimo que admittio, foi huns guisados de ervas, e alguns legumes.
Como melhorou, tomou por recreação ir-se por Cremoiía. Dizem que
íbi a tenção visitar seu grande amigo o Padre S. Francisco, que ali se
achava em huma casinha que os seus Frades começavão a edificar. Viram-
se, e consolou-se muito com elie. E succedeo que estando juntos che-
gou o Guardião, e disse-ihes, que pois Doos ali os ajuntara, alcançassem
d"elle com suas oraçoens o remédio d"aquella casa, que consistia em um
poço que mandara abrir, e despois de muito trabalho, e despeza, não
achavão mais que hum pouco de liumor, que era mais km.a que agoa,
iJouve comprimentos, e porfias de humildade entre os Santos, sobre qual
ficava obrigado a tomar á sua conta aquella necessidade. Foi vencido o
Padre S. Domingos por hospede, c pedio que lhe trouxessem hum vaso
d'aquslle lodo que o Guardião dizia. Benzeo o lodo com o poderoso si-
nal da Cruz, mandou que o tornassem ao poço, e des daquelle ponto
teve o poço agoa perpetua, ciara, c boa.
Na entrada de Maio d"este anno de 1220 vierão entrando em Bolo-
Ua LIVRO I DA HISTORIA DE S. DGMí.Xf.OS
niia lodos aqueles Paiírcs que o Santo liiilia avisado, o ordenado que so
achassem com elle pêra celebrarem Capitulo geral. Chama-llies o Padre
Frei Fernando do Castilho Provinciais (*), deve querer dizer as cabeças, c
primeiros Padres das cinco Províncias que então se eoiiÍLívao, que eriío
Espanha, Provença, ou Tolosa, França, Roma, Lombardia. Qualquer que
fosse o titulo d'estes Padres, (porque o do Provinciais não o adiamos em
outros autores, se não no anno seguinte de 1221), entrou, e assistio com
elles dom Frei Sueiro Goraez. Como o Santo os teve juntos, propoz com
novo género de humildade a ínsuiTiciencia que em si sentia pêra os go-
vernar, pedindo-lhes com palavras mui eíTicazes posessem no cargo pes-
soa que melhor o merecesse. Sobresaítados com a novidade do reque-
rimento, foi a primeira reposta confusão e lagrimas: a segunda, despois
que deu logar a dor, que nunca cm tal consintirião em quanto elle, e
elles vida tevesscm. Ordenou então que em todos os Capítulos gerais se
fizesse eleição de certo numero de Padres, cujo officio, e poder fosse
Feprender o Geral havendo culpas, e castigal-o, e absolvel-o sendo neces-
sário. Este decreto, e o género de Magistrado persevera até hoje. Cha-
mão-se DifTinidores, e passoa a lei também aos Capitulas Provinci'á-&
Dura o poder tanto tempo, como a junta do Capitulo. O num.ero he de
qualro,'e fazem quinqucvirato com o Provincial novamente eleito. Etem-
se visto nas Províncias usarem do poder que nosso Padre aqui deu, pe-
nitenciando, o depondo Provinciais. Assentou-se mais n'este Capitulo Ge-
ral com decreto rigoroso o que já outras vezes tinha o Santo ma,ndado,
e sempre fora sua determinada vontade, que não possuíssem os Con-
ventos dos Frades nenhum género de fazenda de raiz: sem embargo da
concessão geral que já tinha do Summo Pontífice pola Bula da confir-
mação da Ordem. E d"aqui teve principio escreverem alguns antigos (**) que
fez nosso Padre esta lei, obrigado do exemplo do Padre S. Francisco^,
achafido-se com elle em Assis no Capitulo, que chamam das Esteiras, e
notando as maravilhas que ali resplandecerão da providencia Divina. Mas
o fundamento tem contradição: porque he cousa sem duvida, que no
mesmo tempo d'este Capitulo, que foi polo Pentecoste do anno de 12í9
estava S. Domingos em Espanha: e nos dous atrás em Roma, e Tolosa:
e nos dous adiante esteve em Bolonha celebrando também seus capitu-
les pola mesma conjunção de Pentecoste. Ultimamente adviríio o Santo
(•] V. 1. 1. 1. «. ;]!
(••) Conkí. án Frei Perlei, ds Ti-sn p. !!. fi;||it, \i Flore!, c. 17
PARTICULAn DO RKINO DE POnTCGÀL 89
OS seus Capitulares, que no anno seguiníe da 1221 se juníassem todos
ouíra vez na niesiiia Cidade, e poio mesmo tempo: ficando por assento,
que d"ahi em diante serião os Capituios gerais hum anno em Paris, ou-
tro em Bolonha. E logo tomada sua benção se tornou cada hum pêra
sua Província temperando a fadiga da longa jornada, coín o interesse, e
gosto de poderem tornar brevemente aos olhos de tão bom Pai.
CAPITULO XVIÍ
Celebra nosso FaJre S. Domingos segundo dipitulo geral em Bolonha.
Acode a elle dom Frei Sueiro, e tonta pêra Espanha com nome de
Provincial, e cora leiras apostólicas em seu fiivor, e dos seus.
Como nosso Santo Pa tri ar cha era dotado de summa prudência humana,
e por outra parte dependia cm todas suas acções dos conselhos Divinos,
como outro Moysés, occasião nos dá de discorrer hum pouco e ItL^car
qual seria o fmi que teve em dar tamanho trabaliio aos súbditos, como
era fazel-os correr cada anno centenares de legoas, C(3m as descomiro-
didades de caminhar a pé, e sem bolsa: e o que mais admira he, que
estes erão os seus mais amados, e filhos primogénitos, os velhos, e paia
da Religião, os mais dignos de descançafem, e mais importantes pêra
assistirem com suas pessoas de assento nas Províncias. Como havemos
logo de conceder, que sendo elles tais, e sendo o pai qual temos di to
não houvesse alguma rezão mui poderosa, e mui do Ceo, pêra elle o
entender, e mandar assi? Seria por ventura querer que aquellas cans
veneráveis fossem pregando ao mundo com os passos cancados, e com
a sustentação buscada de porta em porta, que he largamente mais eíli-
caz pregação, que todas as bem estudadas nas cellas, bem representa-
das nos púlpitos? Ou seria dar-lhes estas jornadas pêra contrapeso da
honra do governo, e de terem o primeiro lugar entre seus irmaons? Ou
seria querer que entendessem todos, cpue o mandar n'esta Ordem havia
de trazer consigo taes encargos, que os primeiros em mandar fossem pri-
meiros em mais trabalhar, e melhor servir, que era hum género de con-
fundir, e matar este máo apetite humano de senhorear, e preceder,
apetite tão pegado a nossa natureza, despois que polo peccado foi infi-
cionada, que não falta quem diga que até no inferno he saboroso o man-
dar, como não faltou outro que trocava ser segundo em Roma triunfan-
90 LIVRO I DA IIISTOíUA DE S. DOMINT.OS
te, por primeiro cm liuma aldca das mais tristes, e mais defumadas
dos Alpes. Qualquer que fosse o íim de nosso bom Padre, sem nos
constar qual foi, podemos affirmar que foi Santo, e muito sustancial.
E polo mesmo caso me atreveria a julgar que se -acertáramos de o ter
hoje com nosco, quando bem sofrera os iníervallos maiores que ha nos
Capítulos, não houvera de levar em paciência faltarem n'elles muitas ve-
zes os mais velhos, e melhores votos das Províncias : visto como já
não ha trabalho que arrecear, pois esta idaile tem metido em uso pode-
rem caminhar com toda commodidade. Mas deixado este discurso, pêra
que o pese, e examine quem só o pôde rcmcdear, tornemos a acompanhar
o Santo.
Devia ter já noticia do pouco tempo que lhe restava de vida, e ainda
que sempre trabalhou incansavelmente, agora excedia-se a si mesmo. Pas-
sado o Capitulo deixou Bolonha dando primeiro ordem na obra do Con-
À^ento que se liia fazendo: e foi-se por ítalia visitando as- casas já fundadas,
e procurando fundar outras de novo: pêra o que tinha favores continues
do Papa Honório, que estimando o muilo crecimento que havia de Re-
ligião, e devação nas terras, em que os Frades asseníavão, acudia-lhe com
letras Apostólicas pêra todos os Prelados, e senhores seculares em re-
comendação dos novos agricultores da vinha do Senhorv Colhia o Santo
grande fruito d'ellas, e de sua ida, porque com a vista atrahia os âni-
mos de todos, e trocava coraçoens com a pregação, lie maneira que dei-
xava fermoso rasto, por onde passava, do fogo Divino em que ardia, fi-
cando os Conventos cheios de novos disci[)ulos, e as Cidades despeja-
das de muita gcnie, que á sua conta buscava a salvação. Mas tendo gas-
tado muitos meses n"esta i)eregrinação, e sendo entrado o anno de i221,
veio-se recolhendo a Bolonha. Vinha alegre a ver seus filhos: porém achou
iiousa na entrada do Convento, que lhe aguou todo o gosto que trazia.
Poz os olhos no edifício que deixara começado, vio cellas hum pouco
maiores, e mais altas do que traçara quando se ausentou. Foi cousa que
lhe ferio a alma, queixou-se com todos, e de todos, reprendeo o Procu-
rador que tinha a obra a cargo. Chorava, e lastimava-se, como se vira
hum grande principio de perdição da ordem. E erão as palavras, que
d'aquelle peito mansissimo, e nunca alterado sahião, tão sentidas, que
hft bem nos fiquem impressas na alma a todos seus filhos, pêra memoria
da pobreza a que nos deixou, e desejou obrigados não só em geral, mas
no particular de cada hum, e até no vestido, livros, c roupa, e nas mais
PARTICULAII DO r.EIXO DE PORTUGAL 91
miadas alfaias de unia cella. Dizia suspirando: Adlnic me vívenfo palatia vo-
bis oedificatis. H3 a signlíicação, ccmo S3 dissera: Que em uilnlia vida, e
á minha vista levanteis casas pêra morar? grands mogoa, e grande mal.
Assi paroti o edifício, e não houve quem se atrevesse a proseguil-o em-
quanto viveo. E lie rczão sabermos pêra confusão nossa, quo as cellas
que nosso Padre iiavia por palácios, tinlião ao justo nove pes de cumprido,
e sele e meio de largo . Dura ainda hoje pêra memoria hiinia das que o Santo
estranhou, que estando quasi acabada mandarão os Padres ficasse assi
imperfeita pêra sempre, a qnal, passando quem isto escrevia, a Roma, no
anno de í.j71, e médio por curiosidade.
N>sta casa de Bolonha, como havia de ficar por solar, e cabeça da
Ordem, quiz o Senhor honrar seu servo com casos maravilhosos.
Diremos algnns. E primeiro dous que forão qiiasi em iodo semelhan-
tes a outros que deixamos contados em Roma. Disse-lhe o Procurador
hum dia que não havia e:n casa mais que dous paens pêra toda a Gom-
munidade. Não vos agasteis, respondeo o Santo, que esses bastarão. To-
mou 03 dous paens: foi-os fatiando em partes tão miúdas, que não ficou ne-
nhum lugar de Frade som sua parte. Entrou a Communidade assentou-se.
Tanto crecerão aquolles pequenos bocados, que foi banquete de testa em
abundância, e sabor . Outra vez era refeitoreiro. Frei Bomviz, (dizemos o no-
me, porque elle, e Frei Reinaldo, que despois foi arcebispo de Hyber-
nia testim.unharão o milagre no processo da Canonização), não havia to-
talmente que pôr na meza: e era dia de jejsim da Igreja. Soube-o o
Santo, levantou mãos, e olhos ao Ceo, dando alegres graças a Deos,
por querer que ficassem seus servos aquelle dia sem jantar, quando era
certo que não faltava n'elle com sua ração, e mantença a nenliurn ani-
mal do campo, nem ave do ar, como poderoso que era pêra acudir a
todos. Deteve-se hum pouco n^esta consideração: quando abaixou os olhos,
vio que eníravão polo refeitório dous mancebos ambos bem carregados,
que correndo as mezas, e deixando-as abastadas de pão, e figos passa-
dos, desaparecerão.
Hum estudante atolíado em vicios, e sensualidades teve atrevimento
pêra se chegar ao Santo, e beijar-lhe as maons. Qualquer que fosse a
tenção, tal cheiro, e tal virtude sahio delias, que d"aquolla hora mu-
dou vida, e pensamentos. Outros dous lhe pediram hum dia que os en-
commendasse a Deos, que tinhão necessidade, e acabavão de se confes-
sar em casa. Passado hum espaço chamou-os, e a hum encheu de espe-
Ôâ LIVIU) I DA UISTOUEA DE S. DOM!\GOã
ranças de perdão ; e ao ouíro do modo, adveríiiulo-o ({'.le íizesso confis-
são plenária, 8 descobrio-liio hum peccado que escondia.
Não he pêra esquecer hum caso que Deos aqui peniiittio porá exem-
plo nosso. Amanhecco hum dia fortemente atormentado do Diabo hum
irmão que servia de enfermeiro. Acodio-lhe o Santo, mandou ao enemigo
que o deixasse. Aporfiava por ficar, dizendo (jue liniia licença contra elle,
porque* onde todos os mais Frades padecião por penitentes, e devotos,
este andava farto e cheio de carne por goloso, á couta dos enfermos, e
enfastiadus q;io curava. iMostra-nos Deos que he vileza, e descortezia di-
gna de ser ciisiigada por algoz do inferno, querermos poupar-nos, quando
os outros trabalhão: não sendo nós melhores, nem mais necessários na
casa, senão por ventura mais inutiles, e ao certo, quais disse o outro
poios que que se atreverão a deixar ir os companheiros aos perigos do
mar, e se ficarão em terra descansados: Ânimos nil magnoi landis egcn-
tes{*), quiz dizer, gente que iheiíão dá nada por adiantar em honra, e cre-
dito.
Quando veio dia de Pentecosío d'este anno de ii^I em que vamos,
estavão juntos com o Santo Patriarcha os Padres velhos caberás das
Províncias, ou Provinciais: e com ellos o que muis terras, e mais legoas
caminhava, e vinha do ultimo Occidente dom Frei Sueiro Gomes. To-
dos 03 escritores dizem claramente que n'este Capitulo forão com for-
malidade eleitos Provinciais pêra todas as Províncias que então havia na
Ordem, e que foi eleito pêra a de Espanha dom Frei Sueiro. Esta com-
prendia todos os Reinos dos Pyrineos pêra dentro, com todos os Con-
ventos que n'elles havia. E não foi isto mais que encomendar-se-lhe com
titulo, o que d*antes com realidade já tinha a cargo. O mais que n'esta
santa junta passou não he de nossa obrigação. Despedio o Santo a seus
filhos com bençoens, e abraços, que sabia havião de ser os últimos de
sua vida, e assi he de crer serião mais affectuosos. A dom Frei Sueiro
deu cartas do Pontifico: humas gerais para os Prelados de. Espanha fa-
vorecerem a Ordem: outras particulares pêra os Reis, em recommenda-
ção da pessoa da dom Frei Sueiro, e dos seus Frades. É porque não
era em sua mão tomar hora de descanço em quanto tinha vida, deter-
minou passar á grande cidade de Veneza, julgando que como era terra
de grossos tratos, e concurso de varias gentes, poderia fazer bom em-
prego de sua doutrina, e pescaria certa de almag. Partio dando primei'
(•) Vir;,Ml. .Enoi. ».
rARTiCULAR DO P.KIXO DK POílTlT.AL 93
rõ de sua mão o habito com venUirosa sorte ao bendito Frei Pedro do
Verona em idade pueril: a quem a igreja santa honrou despois com ti-
tulo de S. Pedro Maríyr. por que o foi por honra d\'l!a, e da Fé.
Caminhavão também os Capitulares pêra seus districtos, e dom Frei
Sueiro pêra Espanha. E pêra comerár logo a visitar os Conventos de
sua obediência, obrigação primeira, e principal do oíTicio de Provincial,
e os trazer de caminho inflados, entrou por Catalunha em Barcellona,
Edificava-se então o Convento de Santa CalerinaMartyr(*). Porque he cousa
certa, que quasi ires annos assistirão os nossos ileligiosos n"aquella ci-
dade por hospitais, e sem domJoilio certo. Aqui achou o grande Doutor
Frei Haimundo de Penhafort seu filho pessoa já então de tantas letras,
e tão provada virtude, que no tempo que pudera residir cm casa de no-
viços, segundo os estilos da Ordem, foi escolhido, e chamado por el
Rei dom Jayme de Aragão pêra seu Confessor (**), e foi por Divina reve-
lação fundador, e legislador da illustre, e santa Ordem de nossa Senhora
da Mercê. Porque a fundou por Agosto do anno de 1218 e tinha rece-
bido o habito em Barcellona na Quaresma do mesmo anno aos quarenta
e cinco de sua idade. Soube o provincial aproveitar-se de suas letras,
encommendou-lhe que composesse huma Summa de casos de consciên-
cia, com que sahio brevemente (chama-se Swwmrt //«?//«?<«(/»), e por ser
a primeira que se escreveo n'esta forma, e que deu principio, e metho-
do a todas as que despois se forão escrevendo, rendeo grande lionra a
seu Autor, e a quem lh*a mandou fazer. Mas pouco servem honras da
terra a quem as goza do Ceo, sendo assi, que foi tal a vida d"fiste filho
do nosso dom Frei Sueiro, tantas as maravilhas que Deos por elie obrou,
que o temos hoje pola Santa Madre Igreja entre os Santos delia canO'
nizado.
N"esía cidade apresentou o Provincial as letras Apostólicas, que tra-
zia pêra os Prelados de Espanha. Traduzidas em vulgar são as seguih-
tes.
«Honório Bispo servo dos servos de Deos aos veneráveis irmaons
Arcebispos, e Bispos: e aos amados filhos Abbades, e Priores, e a todos
os mais Pi-elados das Igrejas de Espanha saúde, e Apostólica benção,
etc. Se tendes cuidado de amar, e honrar as pessoas religiosas, tende
por certo cpe fazeis agradável serviço a Deos, a quem servir he o mes-
{*) M. Frei Jordão na Iiist. da Ordcai.
["■] AnnaÍÊ de Aragiío 1. t. c. 70.
94 I.IVUO 1 DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
mo que reinar: e que diz de si, qne qualquer coiísa feita em favor do mais pe-
quenino de sua casa, assi a estima, e aceita, como se a sna própria Maj^esfade
se fizera. Poio que a vossa devação rogamos, e efucazmentc a todos vos exor-
tamos, e por estas Apostólicas letras mandamos, que aos amados filhos da
Ordem dos Pregadores, das presentes portadores, cujo útil ministério, e re-
ligião cremos ser a Deos agradável, empnreis, e favoreçais em seu lou-
vável propósito, procurando que sejam benignamente recebidos ao offi-
cio da pregação, pêra que estão deputados. E tendo-os por encomenda-
dos em reverencia da Sé Apostólica, os ajudeis em suas necessidades,
como a homens que entendendo no aproveitamento das almas, e seguindo
só.e buscando a Deos, estimão sobre tudo o titulo de pobreza. Final-
mente de tal modo ponde em effeito o que assi vos encomendo, e
mando, que quando vier o dia temeroso da conta, e juizo final, vos acheis
em companhia dos escolhidos do Senhor, e á sua mão direita, e alcan-
ceis com elles o Reino, e gloria eterna : e não ouçais nem vos toque a
temerosa sentença dos danados, aos cpiais o mesmo Senhor, por se ha-
ver por desprezado, e afrontado no desprezo que d'esíes pequeninos seus
servos fizerão, ha de condenar a fogo perpetuo. Dada em Viterbo aos
dezasete das Calendas de Dezembro no anno quarto de nosso Pontifi-
cado».
De Barcelona veio dom Frcy Sueiro correndo todos os Mosteiros
da Província : e como sua pessoa, e partes, sua pregação, pobreza, e
modéstia acreditavão muito as encomendas que trazia, com os Reis, e
com todos os Prelados, forão os Breves Pontificais de grande eíTeito : e
creceo tanto u devação *da Ordeiii nas terras por onde primeiro veio en-
trando da coroa de Aragão, que antes de oitenta annos cumpridos des-
pois de conhecida nellas, íeverão Conventos bastantes porá fazerem Pro-
víncia por si, e ficarem separados com titulo de Província de Aragão.
Deixando visitados estes Conventos, e pi'Ovido n'elles o que por então
convinha. O ([ue havemos de entender foi mui de so])re mão, porque
nos consta que não veio a enlrar em Casíella se não no principio do
anno seguinte, como logo veremos : tornou a continuar o caminho em
proseguimento de sua obrigação.
PAÍ{TiCi:i.A!i DO I\i:iNO !)!■: rOilTLGAL 9'>
CAPITULO XÍX
Prosef/ne o Provincial dom Frcy Snciro Gomez a visita de saa Proriu-
cia nos licinos de Cnstella e Portugal. Gonta-se o felice transito de nosso
' yloriuso Pairiarcha São Domingos: c a eleição que se fez em seu lugar
de mestre Geral da Ordem.
Entrava o anno de 1222, e no mesmo tempo caminhava porCastelIa
o nosso Provincial em demanda da Corlef), havendo por cousa importan-
te pêra o liem da Província, c por termo de cortezia devida a hum Hei
que í.inha nom(! de Santo dar-!he conta de si, e do serviço, que com a nova
obiif^ação do cargo vinha fazer a todos os Reinos de Espanha, c presen-
tar-Hio as cartas, que trazia do Pontífice. Era Kci em Castella dom Fer-
nando Terceiro, que reina.nd() em Lião, veio a succcder nos mais Rei-
nos do Castelia, por morte dei Hei dom Anrique, que sem deixar ílihos
morreo de huin desastre cm Palencia, e era tio de dom Fernando, ir-
mão de sua raãi a Rainha dona Berenguela. A fama que já corria com
louvor do suas partes de virtude, e bom governo lhe veio a render des-
pois o nome de Santo, por quem hoje he conhecido. Deu-lhe o Provincial
coiíta do estado da Ordem, e do cargo que trazia; e a que vinha. Lcm-
brou-lhe a ojjrigação que tinlia, como iJei, e como Catholico, e bom go-
veriíndor de favorecer numa Oi-dem, cujo fim era com sam doutrina des-
terrar vícios do povo, e prantar virtudes, que era o mesmo que fazer-
Ihe vassallos fieis, e santos: Ordem fundada por hum vassallo seu na-
cido em Castella, e do melhor d"e]Ia: vassallo santo, e tão santo, como
a fama, e voz publica testemunhava, e com ella o mesmo Pontifico Prín-
cipe da Igreja de Deos, cujas letras lhe offerecia. Foi o Provincial bem
visto dei Rei, e ouvido com benignidade, e promessas de todo favor que
pêra bom cífeito de sua pretenção lhe fosse neccessario. E desde logo
lhe mandou passar huma provisão geral pêra todos seus Reinos, cm
particular abonarão, e recomendação de sua pessoa, e de toda a Ordem,
a qual tirada do original que hoje está vivo no nosso Convento de S.
Pedro Martyr de Toledo he a seguinte.
Fernandus Dei yratia Rex Caslcllw et Toleti omnihns liominibus Ilrgni
sui hanc charlam mdentihus salutcmct gratiam. Unieersati rcslrcc notum
(.) Caslilho j). !. I. 2. 0. 1.
§0 LiVUt) I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
fieri volumus, gu-Jd Donuui Suerium Priorem Ordinis Prwdicalorum iii
Jíispania diligimus, el chani:n haòemns, ciusque mcritis exigcnUbus firmam
de CO fiduciam gerimus et constanfem. Vnde rogamus vos prupensius, et
nian^amus, qnõd cinn ad loca veslra venerint tam dicfus Prior, quàm Pr(S-
dicati}res Ordinis sui [cum emulem Ordinem, et Fratres ad preces et man-
dntum Domlni Papas sub protectione, et dcfenúúne nostra receperimus, et
ad promotionem dicti Ordinis velimus intendere diligenter) cos benigne
rvcipere, deuotè aiidire, et cum reverentia debita tractare in omnibiis sludea-
tis: círca eos in omnibus talifer vos hahendo, quód maiorem apud nos me-
reamini gradam invenirc. Fada charla apud JÍadrid Reg. exp. dic XVílí.
lanuarij Era milésima sexagésima, anno rcgni sui quirJo.
Traduzida em vulgar diz assi :
Fernando pola graça de Deos, Rei de Gastella, e de Toledo, a todos
os que esta carta virem saúde, e graça. Queremos que a todos vos seja
notório, que amamos, e nos he mui caro dom Sueiro Prior da Ordem
dos Pregadores cm Espanha, c d'elle, porque assi o requerem seus me-
recimentos, fazemos firme, e se-gura confiança. Pelo que encarecidamente
vos rogamos, e mandamos, que quando clle ou os Pregadores de sua
Ordem forem a vossas terras, folgueis de os agasalhar com amor, ou-
vir com devação, e trata-los em tudo com a reverencia devida, e pro-
cedendo com elles de maneira que pêra comigo vos façais merecedores
de mais graça, e mercê : visto como a dita Ordem, e Frades tenho to-
mado debaixo de nossa protecção, c emparo, a rogo, e por mandato do
Senhor Papa, e com diligencia queremos entender em seu acrecentamento.
Feita era Madrid a dezoito de Janeiro da Era de mil e duzentos e ses-
senta, aos cinco annos de nosso reinado, (responde ao justo aos annos de
de Christo mil duzentos e vinte dous.) .
Do teor d"esta provisão se deixa bom entender qual seria o encareci-
mento das cartas do Pontifico, e que não serião m.enos eíficazes, as que o Pro-
vincial trouxe pêra elRei de Aragão, e trazia pêra o de Portugal. Também
fica entendido o grande fervor com que o Provincial procurava dilatar a
Ordem, e abranger com o zelo de outro Paulo a todos os lugares de
Espanha, pois vindo de caminho tão comprido, c instando outro pêra o
Capitulo de Paris não lom.ava dias do descanço, e na força do inverno
queria aproveitar o tempo.
PASTirXLAR DO REINO DE PORTLT.AL 9t
N'c3íes pensamentos, e obras andava occiípado dom Frei Sueiro
quando foi certificado da morte do Santo Paifiareha. Foi seu ditoso transito
em Bolonha {mma sesta feira aos seis de Agosto do anno passado de
1221. Saíra, como atrás dissemos daqnella cidade na volta de Veneza
logo despois do Capitulo: fora pregando por tqdas as cidades, e lugares
de importância, em Ferrara, em Maníua, em Faença, com grande traba-
lho seu, que se augmentava com hum extraordinário concurso, e deva-
cão dos iw\05. Fm Veneza não t9've momento de repouso, sendo da mes-
ma sorte buscado, 8 ouvido a todas horas. iMas como sabia que se lhe
estreitava o prazo da vida, segundo o declarara á saída de Bolonha a
huns devotos seus^ dizendo-lhes que brevemente acabaria sea desterro^
e que seria no mesmo anno, c antes do dia da Assumpção de Nossa Se--
nhora, deu-se pressa em fazer volta, c com o trabalho do caminho sem*-
pre a pé, c nunca aliviado, janlando-?e a força das calmas que abraza-
vão a tíSrra, (era por fim de Julho), chegou a Bolonha tão cançado, e des-
falecido, que já se não podia ter nos pes. E com tudo ainda aquella
noite se não quiz entregar a doente. Assistio no Goro ás !\Iatinas, e des-
pois na igreja até pola m,anham em seus acostumados exercidos. Mas
amanheceo com febre descuberta, e sobre visrão outros accidentes, que o
debilitarão demasiadamente, e foi necessar»o levarem-no a huma cella.
E esta foi a primeira vez que sofreo semelhante gasalhado. Como de
grande novidade apontão as historias cuja era, e dizem que de Frei
Moneta. Kellafoi lançado sobre hum pobre enxergão: he nome de palha
recolhida, e apertada entre duas mantas de xerga ou sacco. Ali andando
todos os rostos cobertos de nuvens de tristeza, resplandecia no seu hum
Sol de alegiia, como quem esperava com alvoroço o cumprimento de
lauma nova, que recoihendo-se hum pouco em oração teve da boca do
mesmo Chrisío. Aparcceo-lhe o- Senhor em figura de hum moço bellis-
simo sobre tudo o que se pode dizer, ou imaginar, e dizia-lhe: «Vem,
amigo, vem, ç entrarás na posse dos verdadeiros gozos». Confessou-se
geraimente nesta hora, sendo assi que o tiniia feito outras vezes: rece-
beo lodos os Sacramonlos da santa igreja com a sua devação, que não
lia mais encarecer: e tratando-se da sepultura, foi palavra expressa suâ
que o enterrassem aos pés dos seus Frades. Hia enfraquecendo, e aca-
bando por momentos: vio que na sua melhor hora o despedião seus íi-
ihos com rios de lagrimas, que corrião dos olhos de quantos o cercavão,
que crão todos os quo havia no Govento: não o po^Ie soffrer aquella ca*
VOL. 1 7
98 U\l\0 I DA IIISTC.UA DE S. DO.MI.NCOS
ridaíle angélica, esforçou a voz, consolou-os com palavras de ceíesliaí es-
pirito, enconieiulanilo-lhcs com parliciilaridade todas as virtudes: e qiun-
(\o chegou á caridade, dezia que csía com a humildade, e pobreza Evan-
gélica erão a lieranra, que por ícstamenío lhes deixava. E porque cre-
cião effeitos, c vozes de pmor chorando-se os Frades por desamparad(js
com a folia de tal pai, forão ultimas palavras certifical-os, e prometter-
Ihes, que no lugar, pêra onde ia morrendo, lhes seria de mais proveito,
cii3 na terra vivo. E levaidando as mãos, e olhos ao Ceo, dou aquella
bemdita aluía nas mãos do Creador: em idade de cinquenta o hum an-
Eos. Certificarão logo sua gloria muitas, e varias revelações de gente san-
ta, e seguirão testemunhos de grandes milagres em sua sepultura. Era
S. Domingos de meã estatura, muito alvo, c geutilhomem de rosto: o
cabcllo tirava a ruivo, ptoucas cans, mas mais na cabeça que na barba.
O cabello da cabeça muito espesso, c sem sinal de entradas nem calva.
A voz no púlpito multo alta, mas de bom metal, e nada penosa aos ou-
vintes. Magro de seu natural, mas com as penitencias mais desfeito, e
quelirad) do que pedia o numero dos annos. Notavão muitos que da
tesía, e olhos lhe sahião algumas vezes huns como raios, que afuzilavão
na vista de quen.i o olhava, e tralava, de sorte que o fazião gi'andemcn-
te venerável. De coiídição era maiísissimo: de sua boca se não sabe que
saísse nunca palavi-a de ira, ou descom^posição, nesn ociosa: todo seu tra-
to, e praticas ou erão do Deos, ou com Dei:)S: riguroso com estreuios
pel\i comsigo: e com os mesmos brando, o mavioso pcu-a seus súbditos.
Amigo sobre tudo, o que se pode dizer, de ser pobre, o desprezado do.
mundo, iiiimicissimo das glorias, e grandezas delle, do que deu bom
testemunho : engellando três Bispados, que em difterentes tempos lhe
forão ofíerecidos, como o escreve TheodoricoApoldia(*) em sua vida, que
compoz por mandado do nosso sétimo Geral Munio, passa já de trezen-
tos, c vinte annos, e conta que quando foi buscado pcra hum destes,
que clle chama Cizeraneuse, respondoo, (pie antes aceitaria morrer logo,
(|ue ver-se em. t.al ho:i!'a, nem em outras semelhantes. Affirmarão os(]ue
de suas confissões podião teslcmuníiar, que nunca peccou mortalmente.
Nunca conieo carne, nem por doente deixou de jejuar. Nunca despois de Ain-
dada a Ordem teve outra casa se não a igreja, nunca outra cama senão as la-
goas delia. As noites passava inteiras em oração, e disciplinas: disci]))inas tão
aspei-as, e continuas (pie erão três cada noite, c sempre de sangue, e o
(•] Thfjil. k[>d:\ i:i \iU U. Djai. 1. i. c. It). Iclcin 1. í. c. ÍO.^
PAUTlCULAn DO liKl.NO DK POUTiGAL 91)
iiislriinicnío cadoas de ferro. A oração Ião afervorada, qtie liuinas vezes
SC arrebatava em profundos exíasis, hora ficando sem movimento, nem
sentido, c como passado da vida, liora levantado no ar: outras erão tan-
tos os suspiros, o gemidos, que som se poder valer saliião do santo jiei-
to, que ao estrondo, e rumor delles acordavão os Frades, c perdião o
sono. Assi não lhe ficava liora de repouso : c rjuando os membros can-
çados pedião a satisfação natural, tomava por almofada bum breve es-
paço que doi'inia os degraos de alguiu altar. Do santo sacrificio da Mis-
sa era devotíssimo : não se lhe passava dia sem celebrai": c era sempre,
cora Ião alto sentimento, que como de duas fontes corrião as lagrimas do
seus olhos, c decião até o chão.
Temperou o Provincial o sentimento, e saudades do bom Pai, com a
ccrieza que tinha de sua gloria, por estas virtudes, e outras muitas que
por brevidade deixamos, de que elle era boa testemunha: e obrigado de
todas, e do (\\iv a f;una trazia de seu santo transito, tomava novo animo
pêra o traljallio que so!)re seus liombros carregava, sen^ fazer conta da vi-
da, nem a querer pêra outra cousa. Gomo foi tempo de caminhar pêra
o Capitulo de Paris, segundo a ordem que estava dada, começou a jor-
nada com novo cuidado da eleição, que instava de successor de S. Do-
mingos. 1'^ anticipou-se, a meu parecer, alguns dias pêra ir de passagem
cjlhendo fruito de sua pi'égação, e doutrina nos lugares da Montanha,
como são Burgos, e outros por onde he a estrada de Paris, que então
erão terras grandes e b^em povoadas. Em todas he de crer, que se de-
teria purificando consciências, e aíTeiçoando com sua pregação os ânimos
á virtude, e áquella estreita poi)reza com que caminhava, que como de
verdadeiro filho de S. Domingos es])aníava, e confundia os que a vião.
E daqui teve priíicipio tratarem os vizinhos de Burgos de darem casa á
Ordem. E esta he das ])em antigas, e que íeverão seus principies por es-
tes annos. lambem me persuado i)or l)ons fiindamcntos que leve a ori-
gem desta jorriada buma Historia que nos deixou de sua mão dom Lu-
cas, que despois foi Bispo de Tuy em Galiza, e escritor celebre daquel-
les tempos. Era dom Lucas Cónego regular do iMostciro de Santo L^idro,
ou Isidoro de Leão: como homem de virtude, e letras devia ver, e ti-a-
lar o ]M'0vincial. E o Provincial como lhe entendeo o talento, desejou lo-
go occvipabo em cousa que fosse de proveito das- almas. E iKtrque os
exemplos dos Santos podem muito pêra espertar nos íicis a memoiia da
salvação, fez-lhe lembrança que seria obra de imi)ortancia tirar a luz a
1(K) LIVr.O I DA IIlfiTOr.íA DK S. DO?,nXGOS
vida, c milagres (logrando Arcoljispo do Sovilha Sanío. Isidoro, poisem
casa sua, e do seu nomo residia. Obrigoa-se dom Lucas ao trabalho, e
saindo dospois a luz com liuma parlo delle, dodicou-a ao mesmo Provin-
cial com csíe titulo: Sanctissimo Patii Siierio Priori, eic. c enlre as clau-
sulas do prologo lia huma cujo principio lie: Cmii adscribcnãa mirccula,
boné paAíor Sucri, Sanclissimi Ordinis Fraedicalornin in Hispanij& Prior
Provincialis, cie. E por remato do prologo di:í assi: Dignare orare, le-
nignissims Pater, iit qiiia koc in sua matéria landahile opus vestra iubcn-
te, ac suadente sanctitalc in incepto a.feclionis consislit, aiixilium divininn
ad opiaiam pcrfcclioiwni misericorditer faciat jiervcnire. Esíe iivro escri-
to de mão se guarda no Ârcliivo do Mosteiro do Santo Isidoro do Leão,
segundo o aflirma o Cónego João de Palácios no Catalogo que fez dos
Bispos de Tuy(*). Chegado a Paris o Provincial dom Frei Sueiro, e juntos
os mais Provinciais, e Padres Capitulares no sanío dia do Pentecostes
do anno que corria de 1222, foi eleito com summa conformidade por
Mestre geral de joda a Ordem, e successor do S. Domingos o mestre
Frei Jordão de nação Alemão, das terras de Saxonia, pessoa de grandes
partes de letras, e virtude, que por ser tal fora eleito polo mesmo San-
to em Provincial do Lombardia. E sem fazerem outra cousa que toque
a nosso propósito se despedirão os Padres pêra suas Provindas.
CAPITULO XX
Ycin a Portugal o Proviíicinl dom Frei Sucíro,
treslada o Convento de Montejunto pêra Santarém ao sitio de Montijrás.
Bem podemos affirmar que era desejada a vinda do Provincial n'est8
Reino poios que erão seus scbdilos, e por toda a mais gente que d^eiio
tinha coniiecimento. Porque quanto aos súbditos, além do desgosto que
geralmente causa a falta do Prelado, a grande bondado d'esie, e ausen-
cla do xYiti anno e meio, (visto como não parece possível que entre estes
dons Capitules tevesse tempo pêra decer a sua pátria), acrecentava o
desejo, e ns saudades em qaem .não conhecia outro pai. Ajuntava-se da
parte dos conhecidos, e adeiçoados tratar-se com grande calor por pes-
soas bem intencionadas, e amigas do bem commum, que se buscasse
algum meio pêra terem fim as duvidas, e contendas que de tanio tempo,
(■«) João de Palácios no Caialngo do: Bispos de Tuy.
PAUTiCLLAl'. DO r.i:i.\(J l;E POUTLGAL 101
G tam porfiaílamerile corriiio, (como atrás tocamos), entre o Arcebispo de
Braga dom Estevão da Silva em seu nome, c do Clero de saa Igreja, e e^
Rei dom Affoiíso, em grande prejuízo das almas de seus vassallos, c des-
crédito da Religião, por rezão das escomimhoens, e interditos que to-
davia diiravão. E o melo que se apontava era hum louvamen^o em pes-
soa desinteressada, que sem estrépito de juizo decidisse com brevidade
lodos os liligios. E da pessoa não havia quem duvidasse, quando a ti-
nhão tal no Reino como era a do Provincial, que por partes de sciencia,
e consciência se não podia buscar outra mais a proivísito. Assi foi bem
vindo pêra todo estado, e género de gente: e logo se começou a aper-
tar mais a pratica poios que a trazião entre mãos, e foi com tanta força,
que poucos mezes despois ^oi Deos servido chegasse a eíieiío.
Mas elle entre tanto não vivia fora de cuidados: e sobre todos o afa-
digava ter-l!ie mostrado o tempo que não era possivel aturarem os Fra-
des a vivenda da serra, e serra tão áspera, o intratável, quando a Ordem
íinlia tantas outras asperezas, que só per si erão bastantemeníe consu-
midoras de qualíjuer mui robusto sojeito. Quanto mais que pêra o pro-
veito espiritual da terra, que era o alvo de nosso instituto, esiavão mui
desviados do povoado, não só em rezão de distancia, aias também de
sitio: e não só ficavão inutiles por viverem longe, mas por estarem em
parte, onde dos devotos não podião ser buscados sem muito ti^abalho :
e isto só em hum tempo do anno que era no verão. Assi era já reso-
lução dos que melhor siníião entre os Religiosos, e dos seculares qne á
Ordem tinlião mais devação, que se não tardasse na mudança. Só no
lugar se duvidava. Porque se lhes fazia de mal aos Padres, e parecia ser
contra a caridade desempararem as terras de Alanquer, onde acharão
primeiro gasalhado: e muito nsais deixar a vizinhança da Infante que os
amava, e fóvorccia. Contra isto havia, que Alanquer como não era lugar
grande, pêra doutrina tinha bastantes Mestres nos Padres Menores já
moradores, e vizinhos das portas a dentro: e pêra exercício de caridade
em os sustentar não erão poucos: e sobretudo não sentião na villa lu-
gar comniodo pêra outro Convento. E quanto á infante estava certo, que
em alcançando paz que levesse por fuTiic; comei Rei seu irmão pola com-
posição que já também andava em pratica, não soffreria a ausência de
sua? irmãs.. Considerava-se lambem, que como os Mosteiros tem res-
peito á perpetuidade, não era sisudo conselho soieitar este ahuma só vida,
e de huma Princesa já entrada em dias, mormente quando nesta sojei-
•102 t.ivnn i da iirf^Toni.v de ?. domingos
ção era o í^eiTico, quo so lho fazia pouco ; c o duio quo os religiosos
padociícn mui Lo: o muito o que eiit,i'o tanto [)0!'í]ia qualijuer outra torra,
tias (jUG já os cliamavão pêra Hiudar.
Não havendo duvida em deixar Alanqucr. e a sua serra, nem íaiíaiido
recados do bous lugares, t|uc requerião fundarão, e offerecião pêra ella
suas esmolias, o que mais conveniente pareceo ao provincial por Iodas
as vias, foi Santarém Yilla primeira do todas as do Reino, e por gran-
deza, e numero de povo, e opulência de comarca comparável ás mellío-
res cidades d'e}!e. i^o sitio que lhe offereceram de Montoirás, inda que
logo lhe notou inconvenientes, não reparou, ou por se não mostrar mão
de contentar, ([iiando era chamado, e rogado: ou porque cm comi)ara-
ção do que deixava, todo ou'i'o parecia raii aconr.nodado. Mas o que o
successo nos faz julgar por mais certo, he que o aceitou, não como casa
de morada: se não como gasalliado de empréstimo, até com bom con-
selho o buscar qual convinha. Deu conta de tudo á Infante: elia com ani-
mo real, c pio não só o não encontrou, mas como quem era testimunha
do muito que os pobres Frades tinhão padecido, e padeciam queimados
do Sol, do frio, e ventos de tãií trabalhosa vivenda, aprovou a deter-
minação, antepondo, como dizia, o maior bem dos Religiosos ao gosto
((i!0 levava de os ter junto de si. Não se mostrou tão fácil como a In-
fante o comuyn da vilía de Alan(]ucr, e o governo d'eila, quo sabendo
como sabião o grande serviço que a Deos se fazia n^aquella santa com-
panhia com orações continuas, jejuns, vigílias, disciphnas, parecia-lhes
que perdiam com sua ida hum jiresidio, c guarda de suas vidas, e f^i-
zcndas, alem da hom-a que lhes resultava de terem consigo dous Con-
ventos de gente tanto do Geo, quando havia poucas terras em toda Es-
panha que teveséom hum só. Mas o consentimento da Infante franqueou
Iodas as di .'"Acuidades. Mudarão casa, e houve tão pouco estrondo na mu-
dança, (i)em haja quem te ama, o quem com obras, e coração te abraça
santa pobi'eza),que sem nenhum pejo levarão tudo o que havia que mu-
dar, debaixo dos braços, E o tudo erão alguns livros, e hunias leves
alfaias da Sacristia, o as polires mantinhas, que lhes faziam abi-igo nas
cellas. O mais movei d'elias, e até a mesma fabrica do Convento era
pêra o seu trato fácil de achar em todo lugar, onde houvesse mato, c
pedra, c líari;). Assi em chegando a Santarém não houve tardança em
terem casa feita. Porque o mais diílicultoso tinha de seu o sitio, que
era uma Igreja bem accommodada.
PARTlCrLAR DO RRINO DE PORTUGAL 103
Deu o Provincial o cargo da obra a Frei Domingos de Cubo filho do
habito de nosso Padre S. Domigos do tempo qae veio a Segóvia, e Ma-
drid, como atrás íica dito, o qiuil desde Ciilão ílcou cír Portugal, e di.'u
pessoa de grande marca na Religião, como ao diante veremos. J;inta-
mente o apercebeo que desde logo fosse lançando os olhos por silii)
melhorado em visinhança com a viila. Que pois da serra os trazia hum
só desejo de se empregarem a todi hora em serviço do povo, nijo ti-
nha por acertado ficarem longe delia, mais que em quanto se buscasse
melhor posto. Cumprio Frei Domingos huma, o outra ordem, entenden-
do com as mãos na fabrica presente, e com os oUios buscando, e mar-
eando sitios que armassem pêra a encommendada. E foi o Senhor ser-
vido que em breves dias se acreditarão os Religiosos com a terra de sorte,
que houve quem deu o dinheiro pêra se comprar novo sítio em nome
d'elles, e se começou a tratar da mudança. Mas por hora se licarão em
Montijrás. Pêra melhor se entender o que antigameiíte era, e onde cabia
Montijrás remeto o Leitor ao Capitulo primeiro do segundo livro, onde
fazemos descripção de toda a viila, como em seu próprio lugar. Agora
basta saber-sc que era hum sitio, cujo nacimento começava á raiz do
monte, que hoje chamão dos Apóstolos, e se estendia polo valle do ar-
rabalde da ribeira contra a viila, afastado hum espaço do mesmo arra-
balde, que então era cousa pouca: e pêra a viila licava huma sobida de
costa comprida, e agra. O valle ja ii"aquelle tempo era cultivado de hor-
tas. Aqui contão as Chronicas do Reino (jue parou el Rei dom Affonso
Enriques primeiro Rei de Portugal com seus soldados pêra fazer hí>ras
de accometter o venturoso assalto, e escalada, com que em huma noite,
e com poucos companheiros, e sendo elle em pessoa hum dos mais ar-
riscados acomettedores, se fez senhor da viila matando infinitos Mou-
ros, sem perder homem. E polo valle fez a entrada contra a porta que
chamão da Atamarta. Foi este feito no anno de nosso Senhor Jesu Christo
de 1147(*), e sendo emprendido com tanto valor, e bom successo, foi o
segredo tal, ({uc nem em Coimbra, d"onde saliio, houve (juem imaginasse
que tal se tratava, se não despois que se víd acabado. E a ígrequja, e
os nossos Frades acharão, devia ser obra do mesmo Rei, como em gra-
ças da victoria, que d'aque!ie posto teve principio.
Deu o Provincial pressa em que se acommodasse o recolhimento,
(.) Duarte Nunes tio Leão na vida de! iSei dom AlTdnáo línrlqueá. Maris foi. 39. das seuá
Dial.
|(H Lniío I DA iiisToníA r>E s. bomíngos
pêra que os Frades, q\iQ jimtaniântle er«o arclíitectos, e trabalhadores,
nãvj íoiíassem á prAgação, e doutrina. E lai foi o priuwiro sitio, e o priíí-
eipio do Convento, que esía Provinda teve em Santareni, ficando com
o nome de S. Domingos de Montijrás: o qual colligimos parte de memo-
rias, e papeis antigos, que hoje vivem no cartório d'aqaella casa, parte
da tradição commum que n'ella, e na villa dura entre os velhos, de-
duzida das idades antigas até a presente. Queixo-me porém do descuido
com que viverão da posteridade os Padrfô que n'este Convento n"aqael-
les bons tompos se criarão, pois sendo tão insignes sua vida, e obras,
que as achamos celebradas por livros, e lingoas estranhas, forão clles
em no-las dar de sua mão escritas tão avaros, que he necessário andar-
mos mendigando muitas cousas por ci^nveniencias, e conjeituras pêra
podermos formar esta Historia. Assi não bastou nenhuma diligencia pêra
alcançarmos ao certo o anno preciso d'e3ta íransmigração, sendo cousa
certa que foi por estes annos em que vamos: nem pêra sabermos como
desfez o tempo esta Igi^eja do Montijrás, visto não haver hoje rasto, nem
sinal d'ella, e ser também certo que esteve muitos tempos em pé, e
muitos manteve o nome de S. Domingos, ainda despois de a deixarem
os nossos Frades com segunda tresladação que fizerão pêra o Ingar, onde
hoje temos o Convento na mesma villa: e sendo dada a outros morada-
res, como ao diante se verá.
CAPITULO X:vl
Vai o Provincial a Coimbra chamado de! liei dom Sancho Segunde. Con-
cordai com o Arcebispo de Braga, sendo por ambos eleito Juiz das
contendas que trazida. .
Quando os medianeiros da composição, que se tratava entre cl Rei
dom Affonso segundo, e o Arcebispo de Braga dom Estevão Soares da
Silva, acabarão de assentar com el Rei as condições do compromisso
que se havia de fazer, (como atrás fica tocado), na pessoa do Provincial
dom Frei Sueiro, mandou-se-lhe recado a Santarém pêra que se achasse
presente ás escrituras, e aceitasse, e assinasse o louvamento. Acodio o
Provincial, e veio o Arcebispo a Coimbra, onde el Rei estava. Mas como
cousas grandes tem sempre suas diíficuldades, c el Rei decia aos con-
eerlos mais por animo Chrlsíão, c- pio, qiic por entender que em cob-
PARTICTLAa DO REiNO DE PORTUGAL Í05
sciencia íinha olirigarão algumas ás queixas do Arcebispo: e folgava de
cortar, sôgaiiuo dizia por si, por aíalhar as desconsolaçoens que havia
no povo com as escomuiihoens, e interditos, houve tanta dilação em meio,
quo erão passados do anno novo de 1223 dous mezes, e as escrituras
não se celebravão. E quando não faltava msis que ass!n^'\rem-se, decre-
íou-se outra cousa no tribunal divino: veio el Rei a adoecer, e faleceu logo
aos vinte cinco de Marco d este anno eni que vamos correndo de i223.
Porém, não estorvou tamanho accidente o que estava capitulado: antes
el Rei dom Sancho, inda que moço que não chegava a desesete annos,
querendo entrar com Ixinçoens, e boa esírca no Reino, passados os dias
que erão devidos a exéquias, e nojos reaes, mandou que tevesse eíTeito
o louvamento, e a escritura se fez no mez de Junho logo seguinte. D'ella
poremos aqu.i alguns pedaços tirados do original que se guarda no car-
tório da Sé de Braga, d'onde nos forão dados. E diz assim.
CiDii oliiii quceslio vcrteretiir inter Domniiin Alfonsuji Secnndinn illas^
irem Regem Portugaliicg ex vna parte, et Donum Stephaniim Brac. Arch.
ex (iltera super qnibusdam (janatis et peeunia, de guibns Jicebatur idem
Ilex sforcíasse Monasleria. et Eccleúas, et super quihusdani domibus, et vi-
neis , et alijs damnis irrojatis eidsm Arch. et Ecclesice Brach. et Thesau-
rario. Qnare idem Arch. senteniias interdictorum iii regniim^ et diversarum
excommunicationum in ipsum Regem Donum Alfonsum, et factores suos.
et in eum sequentes, et ia pcrsonas quorundam ckricorum, et quaedam alia
Concilia partim auloritate sua, parlim Sitmmi Punfificis fecerat promulgari.
Tandem prfpxlicto Rege viam vniverscs carnis ingresso placuit ftlio eius Dono
Saneio Secundo illuslri Regi Poriugal. cum prcpfato Arcliiep. amicabiliter
composiiionem f(ic(re inhunc modura. In primis iurauit idem Rex et BarO'
nes siti ad sancta Dei Ecangclia ca qua; sequunfiir, scilicet quòd de gana-
tis, sforciado et pecunia spolialis emendam faciet per sabedoriam et exiS'
timalionem Domini Suerij Prioris Fratrum Pncdicaturum in Hispânia^
et Archidiaconi Brac. Domini Garcia} Menendi, et Ferdinandi Petri olim
Cantons UUxbonensis iuralorum ad sancta Dei Euangelia bana fide veri-
talem de gahatis, et pecunia inquirere, et quanlum Donum Regem ibi dare
oporteat, et qiialiiaíe amicabiliter definirei quorum existimationi vtraqtie
pars síare tenetur, ele.
Ao diante vão condições, e clausulas particulares de obrigações de
depósitos, e eníregas de dinheiro, cjue deixamos, porque não servem, c
após ellas procede a escritura dixendo :
i06 LIVRO I DA HISTORIA DF S. DOMIXf.OS
Dominns autcm Archiep. iurunit aã muda Dei Euangelid coram po-
sita, qiml facta depositione pecuniie prwfaUe apnd Aquam lenalam, de qiia
dcheat conslare per literas supradictornni eristimntonim, et satisfucto ipso
Archiep. de prwdictis sex inilliba^ aureorum PorturjuHensis moneta; com-
tnunis absolnet sine mora tolum reijnum,el Inllcl generali ahsoliúione omnes
senleiítias, qnas ttdit, vel fieri procuravit, Iam. inlcrtlictorum, qnani ex-
commuuicationuin niaioram, vel minorum, sice iii loca, sice iii rerjninn,
sive in concilia, sice in piírsonas Iam clcriconim, quam laicorum, qv.am
quornmcumqne occasione hniir.midi discórdia;, sive senlenlia fuerunt latte
autor iíale Domini Archiespiscopi, sive Dom. Papce, sice per judices, sive
per executores Iam Dom. Papce, qmim Archiep. ctc.
E iilliiiiamente cerra a escritura assi:
Aclum Colimo, mcnse lunio sub Era M.CC.LXI. prcefatis Rege cl Ar-
cliiep. liixc confirmantibus cum apposilione sigillorum suorum : pra;sentes
autem fuerunt, eíct.
E logo abaixo vão muitos áiiiais sem mais declaração que a primeira
Mra do nome de cada hum, e sua dignidade pola ordem que vão
postos.
Donns P. Abbas Âlcobacioc. Donns P. Magister Templi in Portug.
Donus R. Prior líospitalis. Doniis S. Prior Pra?dicat.
Donus Ambritius Abbas S. Joan. dc^Tarauca. Mag. P. Cantor Portug.
Magister Joan. Decanus Colirabr. G. Ârchid. Brac.
Alagisícr V. Decanus Vlixb. I. Tbesaurarius Egitanus.
Esta^ clausulas traduzidas cm nosso vulgar respondem o seguinte.-
Correndo demanda em tempos atrás entre o senhor Rei dom AíTon-
so Segundo de Portugal de huma parte, e o senhor Areei )ispo de Braga
dom Estevão da onlra, sobre, e por rezão de certos gados, c dinheiros,
dos quais se dizia que el Rei esbulhara Mosteiros, e Igrejas: e sobre al-
gumas casas, e vinhas, e outros danos dados ao mesmo Arcebispo, e á Igreja
de Braga, e ao Thcsonreiro delia: por razão das quais cousas ellc xVrce-
bispo fizera publicar sentenças de interditos contra o Reino, e varias ex-
comunliijes contra o mesmo Rei dom Arfonso, e contra seus ministros e
sequazes, c conira as pessoas de certos clérigos, c contra algemas ter-
ras, e conselhos: parte em nome, c por autoridade delle Arcebispo, parte
PARTICrí,AR DO REi.NO DF. POlíTrOAf. 107
por autoridade do Summo Pontillce. E hora sendo o dito Rei falecido
da vida presente, houve por bem el Rei dom Sancho Segimdo sen filiio
lazer coin o dito Areeijíspo amigável cou^iposicão na forma segnir.te. Pri-
meii'amente jiiion el Hei, e com ellc os Senhores de sua Corte aos san-
tos Evangelhos (pie comprirá as cousas seguintes, a saber: que poios
gados, c dinheiros, forras, e esbulhos feitos dará a satisfação que justo
for a juizo, e alvidramenío de dom Sueiro Prior dos Frades Pregadores
em Espanha, e do Arcediago de Braga dom Garcia Mendes, e de Fernão
Peres Cliantre, que foi de Lisboa, ajuramentados, que com boa fé procu-
rem avei-iguar a verdade do que toca aos gados, e dinheiro, e logo de-
terminem amigavelmente quanto será bem que o Senhor Rei dê, e em
que forma. E amigas as partes sejão obrigadas estar polo que sentencia-
rem. Seíjiie adiante. E O senhor Arcebispo jurou aos santos Evangelhos
que tin!ia diante, (\u(i sendo primeiro depositado o diiiheiro acima dito
no lugar de Agoa levada: do qual deposito constaria por assinados dos
ditos juizes: e sendo elle Arcebispo satisfeito das seis mil peças d"ouro
de moeda Portugueza atras declaradas, logo sem mais demora absolve-
rá todo o Reino, e levantará com absolvição geral todas as sentenças que
deu, e fez dar, assi de interditos, como do escomunhões maiores, ou
menores contra quaisquer lugares, e contra o Reino, Conselhos, e pes-
soas assi de clérigos, e frades, como de leigos, e quaisquer outros que
a esta discórdia derão occasião, qí^icr as ditas sentenças fossem dadas por
elle senhor Arcebispo, ou pelo Senhor Papa, quer por juizes, ou minis-
tros de ambos, ou de cada hum, etc. Abaixo. Feito em Coimbra no mez
de Junho Era de M. CC. LXL (f/ue corresponde aos annos de €hristo de
1223.) confirmando tudo os ditos Rei, e Arcebispo com seus sel-
los, etc.
lio de saber, que além dos que atrás notamos no íim da escritura
que forão presentes, e assinarão huns como Prelados de autoridade no
reino, outros como juizes, ou partes: assinarão outras muitas pessoas
que jurarão por parte dei Rei, como diz' a escritura, e erão os fidalgos
mais principaes do Reino, segundo parece de huma regra antecedente
aos sinais que diz assi: Barones aulem qui iurati fuerunt ex parle domini
Reíjis sunt isti. K he de notar, que estão nomeados polo taballião duas
vezes, quasi sem differença, primeiro como testemunhas, e despois co-
mo partes, e postos pola ordem que aqui vão. E o Donus em tantos
mostra ser cortezia do escrivão, e não titulo de Dom em todos.
108 L1VI\0 I DA IIÍST P.IA DE S. DOMINGOS
Donus P. Jíian. M:Hordomu> Guria; Donus Gon. MeiíJiidi.
DonusM. Joan. sign.iff i- Domini Regis. Donus Ro. M^neaili.
Donus Gar. Menendi- Donus Gil Vasqucs.
Donus Io. Fernandi. Donus Henrichius.
Donus Poncius. Donus F. Joan.
Donus G. Menendi Cance^Iarius. Donus Aprilis.
Esta escritura ainda que hum pouco dilatada mo pareceo ajuntar pê-
ra mostrarmos com tão veidadeiro íestimunlio o primeiro serviço quo
a Ordem de S. Domingos fez a oste Reino, e aos Reis, com ceiloza de
mez, e anno, que em tamanha antiguidade he bem de estimar. Tninbem
he de notar a*^lia a grand:- Ghristandade, e bondade dos Reis Poriugue-
zes, que ainda que se sintissem contra o que íin-ião por rezão, aggra-
vados dos miinistros Ecclesiasticos seus vassailos, ou com respeito, e mo-
déstia filial lhes não tolhião usar de todo direito, e armas de seu fo-
ro : ou com real benignidade, desprezado todo interesse, decião com
elles a qualquer composição. Mas porque atrás prometti mostrar com duas
escrituras a grande reputação em que dom Frei Sueiro estava no Rei-
no, como indicio de ser nacido nelle, e do melhor delle: ainda que por
esta fica bem entendido, ajuntaremos a outra, que segundo parece suc-
cedeo em tempo á que fica lançada, a qual lho não dá menos honra. Por-
que se pêra a primeira foi chamado por Arbitro, como natural, e sábio,
e virtuoso, e nobre: pêra a segunda parece que foi buscado pêra com sua
presença, e sinal a authorizar, género de honra muito aventajado. E irá
no capitulo seguinte também espedaçada, e tomando delia só o que nos
parecer necessário por encurtar leitura.
capítulo XXII
Assiste o Provincial a hima escritura (h composição entre el liei Joni
Sancho Segundo, e as Infantes suas tias. Aceriíjuão-se os annos que
reinarão dom Afonso Segundo, e dom Sawii') seu filho.
He de saber que el R^d dom AiTonso íí despois que obrigado por
comminações de censuras, e interditos do Summo Ponliílce largou as
armas, qrie tinha tomado contra as Infantes dona Tareja, e dona Sancha
suas irmans, com pretenção de as desapossar das villas de Montemor o
PAllTiCrLAlí BO REIAO RE PORTUGAL 109
velho, P Âlanquer, de qno cl Rei dom Sancho seu pai as deixara senho-
ras: decendo com ellas a contenda de jtiizo civil, e correrido a causa nes-
íe Reino, e despois em Roma, em íim al':ancou sentença contra el:;is.
Pcrqiie sendo património real, não podia el Rei dom Sancho seu pai
alheal-as da Coroa, nem seu filho, e successor delia consintir nisso. Foi
agente dei Rei em Roma o Bispo de Lisboa dom Sueiro, mandado por
elio a solicitar a causa. E consta da sentença, e desta agencia por hu-
ma provisão do mesmo Rei, que nos foi communicada do cartório da Sé
de Lisboa: a qual poremos aqui de verbo ad verbum, como faremos po-
lo discurso da historia a outras antigualhas semelhantes: porque desejo
sejão exemplo aos que despois do nós tomarem o trabalho de escrever
feitos passados, pêra que vejão que o melhor meio de descubrir verda-
des, averiguar successos de importância, c concordar tempos, e annos
duvidosos, he revolvendo cartórios antigos das igrejas grandes, e com-
munidades autorisadas: onde se lanção muitas memorias só a propósito
do que lises cumpre sem medo de desagradar, nem ambição de com-
prazer a iiinguem: as quais como estão puras, singelas, e sem vicio ser-
vem de grande lume pêra a historia. E não tenho duvida que se os nos-
sos Cronistas antigos, digo aquelles que esc?''' verão dos Reis, longos an-
nos despois da sua morte, assi como se valerão de informações verbais,
teverão uu curiosidade, ou paciência, pcra d'^Sí:'nrolar pergaminhos ve-
lhos, c ir soletrando ou adivinhanhando, (que quasi assi convém), a letra
Gótica humas vezes embaraçada, outras quasi apagada, e cega de ve-
lhice, como mais de liuma voz nos aconíeceo: sem.pre houverão deixado
maior noticia; e mais acertada de muitas cousas de importância, em
que ainda hoje se deseja. E passemos á nnssa provisão que diz assi :
Aifonsus Bei grcdia Fortugallice Rcjc vniuersis de Regno suo, ad quou
liieroi islcc. perve-iyrint, Sal. Sciaii^ qtiód ego ium multuin debitoi\ et omnrs
qui de rac descendei int dono S. Viiibon. Episrcpo. et toti generi suo, et
cidem Ecciesiíc, ef Canonicis eiusdem pro eo.qudd ipse Eni^copus seruivi
in multam tauí apud Rouiam, qunm in r!'fiiiO n^^stro ia causa, qiioe verte-
hatnr inter me et sorores meãs super caslris Montis maioris, et Alanque-
ri], de quibus ipsce tenebant me exliipredatum, et juiiit ad hcerediiatiO'
nem prmlictorum castrorwn, in sentenlia à Dom. Papa Innoc. lll.óbtenlé
super eisdem castris. Et iuiiit me iam ia fioo, qua-n in aJijs multis ser-
nitjis, in quibus ipsum necessari\im hahui. Quaproffer ego rccepi illum ía
meam coriimendam cum omníbus, qacs Ecclcsia Viixbon. habet , et habite-
1-10 LlViU) I DA HlbTOlUA DK S. DOMINGOS
rit In tolo rcgno meo, etc. et proplcr hoc dcdi eis islam meam charlam
apertam noslro sigillo \)lumheo munítam. Dat. apud Vlixbun. XVIÍ. die
Aprilis, per mandatam Domini llcíjis .Era M.CC.LV. (responde aos
annos de Christo de 1217.)
Escusamos a tradução, por seguir brevidade, e porque sem el!a fica
entendido o que prelendemos mostrar de como el Rei litigou em Portu-
gal, e na Cúria Romana com suas irmãs, e teve sentença em seu favor,
e em que tempo. Esta sentença ou que fosse só na propriedade, ou em
iodo, procurou cl Rei assentar com cilas por escritura, e contrato pa-
cifico que por sua morte' deixassem as villas livremente á Coroa. Dila-
tou-se o negocio porljuvidas que se devião mover: e podia ser que hou-
vesse contratos feitos por terceiros, c os mesmos se recindissem por
nuo serem a gosto das partes. Porque a infante dona Tareja queria que
por sua morie ficassem Montemor, e Esgueira á Infante dona Branca
sua irmã: c por falecimento d'ambas então ficasse Montemor á Coroa,
Esgueira se desse ao Mosteiro de Lorvão. Em fim veio este concerto
também ás mãos dei Rei D. Sancho, como o do Aicebispo de Braga, e
veio a celebrar-S3 no mesmo mez, e anno, mas não no mesmo lugar,
o. ao que parece foi alguns dias desnois, parque não tendo data em dias
a escritura do Arcebispo, esta se declara que passou em Véspera de
S.. João Bautista. Qaiz el Rei que se autorisasse este acto com interven-
ção da pessoa do Provincial dom Frei Sueiro, c que se fizesse em Mon-
temor o velho em presença da Infante dona Tareja, onde elle se foi acom-
panhado do arcebispo de Braga, que também assinou na escritura. D'ella
lançaremos aqui algumas clausulas, por serem em memoria de dom Frei
Sueiro, e honra, e autoridade da Ordem do S. Domingos. Começa assi:
In Dei nomine. Iliec est forma pacis et compositionis factrs inter Do-
minnm S. secundum illnstrcm Reijem Portuga IUíê cx vna parte ^ et nobilís-
simas Beginas (Já disscmos atrás que este titulo gozavão então todas as
filhas dos Reis) Dominam T. el Dominam S. et Dominam li. ex altera ;
sua spoule, cl ia sua sanitate super castris Montis maioris, et Alanrjuer,
el super Isgueira: videlicet fjuòd licgina dona T. et dona S. debeant tenere in
vila sua castram deAlanqucr, et post mortem naturalem Regina' dona' T. et re-
gúve dona' S. ipsum castrurd de Alanr/ner debeat redire cum omni iure suo libe-
re, el sine omni diminvdione ad diclnm Dominam S. llegcni Forlagalliti', et ad
filiiuii eios^ vel ad suam liwredcm legilimum. Et Regina dona T dchct
liabere -in vila sua castrum Montis maioris et Isgneiram, et poU morlem
pAiiTicuLA!', no ni:i.\o dk poutigal 1 1 1
eias naluralem rci/ina Domina ]>. dchet hnhcre ipsuiu cídtinm et Isijuei-
rain : et post mortein naí ura leni ípsfinini âmbar nm, castncn ipsum in pare
cum GDini itrre sin liherè, et siiie omni diniinutionc redcat cuin suis perti-
ncnlijs ad dirinni J)o:niniim S. Regem Portdfjallin. ve! ad ejwí lerjuinium
ínvredem: et post uiovtem natnralem reginije doivx 2'harasijO, et reginoi dome
Jilmicce Isgueíra deljct remanere Moiiasterio de Lorvano pro licsreditate, elc^
Despois seguem outras cousas, e por fim delias diz: Actum publice apud
Montem maiorem veterem in vigília S. loan. liaptislie mense íiinio. Fra-
senles fuenint Domitus lirac. Arckiepis. G. Archidiaconns, A. Tliesiura-
rins, G. Cnpellanus Bracaren. S. Prior Fratruni Pnedleaturuni in Hispâ-
nia: Abaixo seguem todos os mais, ou quasi todos os assinados na ou-
tra escritura de Coimbra: e arremata dizendo. Actum sub.Era M.CC.LXL
((jue lie o próprio anuo em que vamos de l:2i3.)
Agora he tempo de adviríii-mos aos que audão vistos nas Clu'o:jicas
deste Reino da rczão que temos pêra nos não conformarmos na com-
putação dos annos, c successo da morte dei Rei dom Aílonso Segundo
com a letra de sua sepultura do Mosteiro real de Alcobaça, que o dá
ali sepultado no anno de Cbristo de 1233, principalmente sendo apre»
vada poios Doutores Frei Bernardo de Brito, e Duarte Nunes de Leão
reformador dasChronicas dos primeiros Reis de Portugal (*), pessoas, a
cujas leiras, e sciencia se deve grande respeito. Digo pois, que sendo
l)rincipio posto em toda boa rezão não se consintir disputa em matérias
([ue ou consistem em feito, ou que de feito se podem averiguar, satis-
faço bastan temente com duas csciituras atrás, cujos orjginaes estão vi-
vos, bum no cartório i'eal d"este reino, outro no da Sé de Braga, d"onde
me foi dado o que delles temos apontado, polo Licenciado Gaspai- Al-
vares de Lousada Macbado, que o Braccarense teve a seu cargo alguns
annos, e o Real tem de presente com titulo de Refijrmador dos Padroa-
dos da Coroa, e Escrivão da torre do Tombo, e vai digerindo aquellrs
memorias antigas por tão boa ordem, que será fácil aos escrupulosos
satisfazerem-se com vista de ollios de ambas as escrituras referidas, por-
que tamltem m.e consta, que na mesma torre ba íreslado autentico da
de Braga. Ehuma, e outra fazem morto el Rei dom Affonso Segundo an-
tes do mez de Junlio do anno de 12i3 dizendo a primeira: Tandem proe-
dicto Rege viam vninerscu carnis ingresso: c fazendo cm ambas el Rei
seu íilho autos que não fizera se não fora berdado, c Senbor soberano
(•) Duarte Àunes na? Crouic. rcformadui. F. Burn. tle Brito nos elogios d«s Reis.
412 LIVRO I DA IIISTOIUA DE S. BOMINSOá
do Reino. Por onde sendo isío testemunhos vivos, c maiores de toda
exceição, claramente fica convencida a culpa da pedra de Alcobaça se a
iioiive n"ella, e culpados de descuido os que a seguirão, n^o penetrando
a significação do letreiro, que com bom juizo esculpio, ou o primeiro
que assentou a sepultura, ou o segundo que a mudou, que foi o Ab-
bade dom Jorge de Mello. E moslral-o-bei com hum breve discurso.
Diz a Letra: Condilnr hoc tumulo Donns Alfonsus Sccundus noyninc,
erdineque Tertius LnsilanicB RcxannoM. CC.XS.XlIi, Quer dizer: Neste
muimentoestá mettido, (ou foi meLíido, usando do prssente por pretérito)
dom Affonso Rei de Portugal Segundo no nome, Terceiro em numero
no anno de 1233. Duas cousas ha n'est8 letreiro que estão como com o
dedo apontando duvida. Seja huma falar por annos de Christo, sendo
assi que nem então, nem muito tempo despois se falou se não por Era
de César: a outra he aquelle, conãitur : que faz differeníe signiílcação,
visto principalmente que em todos os mais letreiros ha ouíros termos,
como, obijt, decessit, e outros, que claramente dizem falecco, acabou, c
nos estão amoestando que não sem fundamento usou do conãitur. Am-
bas estas cousas, e cada uma d'ellas fora rezão que obrigarão aos Chro-
nistas a revolver antjguidades, e cartórios, que são fonte de luz d'ellas,
como fica dito. Que se o fizerão, achai'ão as escrituras atrás lançadas,
das quais consta que era falecido antes de Junho de 1223. Acharão no
livro dos Óbitos do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra huma letra que
diz: Odavo Cal. Aprilis obijt Bónus Alfonsus, Tertius Rex Portugal. A^ra
M. CC. LXI. E acharão a mesma na Sé de Coimbra, que acrecenía des-
pois do nome, e do tempo: Qui dedit huic Ecdcsixe viginli millia -anreo-
ruin aã claustruin facienduin, et pro anniversdrio suo mille moraòitínos,
A mesma, e com as mesmas palavras anda no livro dos Óbitos do Mos-
teiro de S. Vicente de fora da cidade de Lixboa, acrccentando: Cante-
tur Missa ad maius altare, Hat processio. E também aírtás outro livro
de Óbitos da Sé de Lisboa sem discrepar em nada, e ajuntando somente:
Qui dedit Capitulo mille morabitinos in commemoratione sui Annicersa-
rij. (E não faça duvida o dizer Alfonsus Tertius Rex, porque a mesma
Era mostra que nao podia ser outro senão AíTonso Segundo em nome,
Terceiro em numero). D'esta opinião he Garibay na Historia geral de
Espanha (*). E da mes.ma o Chronista Ruy de Pina, só com dlfferença de hum
(.) Garib. 1. 31. f. 802. Pina na vida dei Hei D. XGomo S<;g'.indo. i!aris nos dial. de va-
pla hist. Buarle ^U!:es na genccilog. dos Reis. Mariima 1. i2. c. 10. í 597. Va-í'U.
PARTICULAR DO REINO DE PORTIT.AL i í 3
anno adiante. E a ella se cheglo Alaris, e o mesmo Duarte Nunes do
Le^.o na genealogia dos Reis que imprimio primeiro qae as Clironicas. E
o Padre Mariana na liisíoria de Espanha. E Vaseu que lie mais antig')
que todos. Resta descubrirmos a rezão porque a repultura de Alcobaça
está diífereníe em dez annos adiante. Esta be, que el Rei não foi levado
a Alcobaça senuo dez annos despois de seu faleci inento: quem qaizer
ver a causa da dilação, lea toda a escritura primeira de que atrás não.
trazemos mais que pedaços por bons respeitos, e ficará satisfeito, ass^
do que dizemos, como da boa consideração, com que o Autor da letra da
sepultura fazendo verdadeira relação do tempo, que aquelle corpo real ali fui
recolhido, se livra de dar outras, e a do dia preciso de seu falecimento.
Confirmão esta verdade algumas conveniências. lie a primeira dize-
rem as Chronicas que el Rei dom Affonso por seu filho dom Sancho fi-
car moço, e só, o deixou encomendado a sua tia a Rainha deLeão(*). Sai-
bamos a que chamão moço, e a que chamão só: se falecendo no anno
de 1233 era dom Sancho, (como elles mesmos con.ressão), de vinte seis
annos, e tão pouco só que o acompanhavão dous irmãos legítimos, dom
Affonso, e dom Luis, cada um delles de mais de vinte annos. Bem se segue
(Vesta contradição, que foi verdadeira a recomendação, e o anno que nós
llie damos de sua morte, que he o de 1223, porque n"elle era dom
Sancho moço de dezaseis annos, idade pueril, e pêra se poder encomendar
a huma tia: e também se podia chamar só, pois seus irmãos erão mi-
ninos.
Segunda conveniência he, que não era possível deixasse hum Rei si-
sudo cumprir idade de viníeseis annos a hum Principe successor do Reino
sem o casar, principalmente quando os mesmos Chronistas confessão, que
já conhecia n"elle fraqueza natural.
Sobre tudo o que mais faz ao caso he, que sendo os Portugueses
tão contrários á deposição dei Rei dom Sancho, como em eíTeito se mos-
trarão, fica dura cousa de crer, que em tão breve tempo de reinado,
como doze annos, que os Chronistas lhe dão, (porque o ultimo já foi de
desterro), succedessem tantas cousas juntas, como forão os aggravos in-
toleráveis que seus validos fazião, as queixas do povo multiplicadas â
Sé Apostólica, cartas, e reprensões do Summo Poníifice, vindas do Le-
gados, e emfim deposição de hum Rei. O que tudo conforma com fídecor
seu pai no anno das nossas escrituras, e tomar elie no mesmo o go-
(•) Cronic. de Portugal, e Djarte Nunez na vi^ia dd Rei dom Sancho 2
VoL I. ' 8
,{i4 LiVRO I DA IliSTOillA Dii S. DOMINGOS
vôriio do Ríino, sondo moço da dezascis nnuos: g por isso ílcar por ca-
sar, c encoraondado a liiima t!a, e logo ião fácil do levar dos artiílcio»
i\ò goalo raal inclinada, que se apoderou d'elk\ Assi be toda a diíferenra
de dez annos, os quais tiradas á idade do Pai dom Afforiso, e dados á
\ida, c reinado do íHho dom Sancho, não só os não descompõem : mas
antes concerlão toda a Historia de ambos, e nos dão em sen verdadeiro,
e lefTiíimo tempo os snccessos, e composições dei Rei dom^ Sancho com
o Arcebispo de Braga, c com as infantes, que forão celebradas senda
Provincial de Espanha dom Frei Suelro Gomez, o qual dez nnnos adiante
era falecido. Faitava-nos algum auto real que dom Sancho ílzesse desa-
companhado dfr Frades pcra minb.a satisfação, e d'algum demasiado es-
crupuloso. Acudio-Ros o Cartório da santa Sé de Évora com huma carta
dY^sle Rei, passada cm Lisboa mmez de Abril, Era de láGâ, que he
anno do Redentor 1220 na qual recebe aquelie Cabido debaixo de sua
protecção. E pois já então reinava, bem ceilo ílca, que não podia seu
jiai falecer no de 1233, como querem os que refiiíamos. Ancb esta carta
no livro das composições da Sé.
CAPITULO XXIII
■ Como foi [andado o priniríro Mosteiro ih Freiras (jue honre em Porlugai
ciíi Ordem dos Pn'g-'i(i>res.
Junto á cidade de Lisboa, ao Niírte d"clla. em distancia de quasi
huma legoa, ha hum valle por copia de qiiiatas, e fgsscura de hortas, e
pumares assífz deleitoso, que chamão Valle de Clieilas. Havia n^elle po-
ios annos, em que vamos de ií2'j huma Igreja íã) antiga na primeira
fundação, que, sem iiavor que^n d^isso duvidasse, se referia ao tempo
cm que a primitiva igreja ílorecia com favores do Ceo, e persiguições-
da terra. Porque sendo regada com rios de sangue de infinitos Slarty-
res, qiie cada hora padecião, tomava forças do raosmo ferro, e fogo, com
que era persiguida, o liia crecendo, e pulando, e tomando posse do mundo.
Assi lie cousa certa, que derão oecasião a se fundar esta igreja os glo-
i-iosos Martyres S. Félix, e Adriano. Porque padecendo ambos em templo
de Diocleciano Emperador animosa, e santamente pola Fé (*): Félix em Gi-
ro;;a de Cataiunha, aonde veio buscar o marfyrio, íogindo da cidade
{'] S. l:ii!or. l'rui'.encio.
PARTÍCrLAP. DO P.EINO DE rOP.TUGAL ÍÍj
SJiiLann, om qiio nacor.i, o Cn do Cosarei oní Ãivm, onde seus pais o
criavão uo esLuílo(*): c Adriano sondo mari3TÍs:i!io em Nicoinodia do Bi-
Ihiiiia: por vários casos, o ena diiToreates tempos vierão as sanlas reliquias úq
aniivos, com muitas do outros compaalieiros do marlyrio aportar ii^esío
vaílo, -c no lugar da Igreja, onde n\a(irieiie tempo chegava o mar, que
agora lhe fica íorigo qiiasi meia legoa.Forão os Mnrtyres conliecidos per
relação de quem os acomparilmva, mas logo reconhecidos, c reverencia-
dos por meio de esclarecidos milagres, que obrarão. Edilicou-lhes ígr. ji
a devação de Lisboa, c forão honrados nY'1'a debaixo do nome do S. Félix,
oii porque padocoo em terras de Espanha, ou porque foi primeiro em
chegar aoYaile: e em íestimunlio da grande antiguidade ficou com nomo
quasi trocado no povo, cha;nanila-se S. Pêro Fins do Acliellas. Na en-
trada dos Mouros, que despois succedeo, do crer he que o medo, e a
confusão q;ie por castigo do Geo opprimia os ânimos, usaria do remé-
dio n:ais fa^il pêra salvar as santas reliquias, que era eníerral-as no mesmo
lugar, G encommendal-as aos mesmos Sanlos: e |podomos cuidar do grande
favor, quo ainda hoje exprimentão os que a esla casa o vem buscar em
suas necessidades, que elies nos gu.ardarão este thesouro, O qual se de-
via descoljrir despois no dia .em que as lendas do Mosteiro celebrão sua
tresladnção, que he aos 14 de Janeiro. í']ntão se poserão em duas gran-
des caixas de pedra os corpos de S. Félix, e Santo Adriano que írazião
nome sabiido. Os mais que erão vinte quatro com o de Santa Nataíià fi-
carão cm confuso sem se poder averiguar qual era o da Santa. N'esie
estado fez d"elles íiltima, e solcmnissima tresiadação o iílustrissimo se-
nhor Arcebispo dom Miguel de Castro, passando-os do sitio, cm que es-
íavãv) pêra a ígrej?. E n"cHa se vem agora em meios corpos de obra-cu-
riosa, e custosa, S. Félix com doze companheiros no altar collaíeral da
parte do Evangellio; Santo Adriano da Epistola com a Santa consorte; e
com mais opizo companheiros. E podemos cuidar (jue elles são os que
com sua intercessão sustentão a vida de quem assi os honrou em idade
que tem quasi cinquenta annos de Prelado. Dos seus milagres antigos
nos (lãi) muita noticia huns devotos officios que na casa se rezarão por
ma.is de treze; dos annos, em quanto n'ella so conservou a reza Dom."-
•nica, que vierão a nassa mão, e consta por elles que se fazia festa a S. Fé-
lix, em p:àmeiro dia do Agosto, -e a Santo Adriano em nove do Se:e;i-
bro. Dos modernos temos bastante testimunlio na grande mubidão de
(•) Suri. Adon.
1 l(j LtVUO I DA HISTOr.IA DR S. DOMfNGOS
povo que acode a esta casa todas as sestas feiras do anno, sem niincg
iiaver falia, o chamão-lhe a romagem de S. Perofms.
Laiicados os Mouros do Lisboa polo braço, e valor dei Rei dom ÂRonso
Enriquez: puriílcadas as Igrejas, que ainda bavia em pè, e reedificadas
pouco a pouco as que esíavão em rui na, foi povoada esía de Frades: o
que se vê do provisões, e outros estormentos autênticos do cartório
d"ella, que particularmente vimos, e notamos, e cotamos: mas com mais
clareza nos constou de buma doação feita aos Frades por el Uei dom
Sanclio seu fillio, a qual lançaremos aqui assi coaio |ax no original, e bo
a quo se segue.
In Dei Namine. Iícbc est charla donationis, et perpelucB firmitndinis,
qnam ego Sancius Dei grulia Portugallirf! Rex vná cum vxore mea Regina
Domna Dulcia, et fiUjs, et filiahus mcis facio Fratribns Sancti Felicis de
Achellis tam prcesentibus, qudrii fulurís, de quadam vinea quam vobis da-
mus, et monasterio vestro, vt ibi semper sit pro hísreditate in perpetuum.
Et hoc quidem fncimns pro amore Dei, et glnriasai semper Virginis Ma-
ricc, et vt in orationíbus, et beneficijs restris vaJeanius semper esse parti-
cipes. Huiiis vineoe isti sunt termini. A parle Ãqiúlonis vinea [ilioram de
Snnrio Barrina: ah omiiibus alijs partibus vioe publkce. Damus vobis hanc
vineam tuli pacto, vt semper sit Imreditas Monasterij de Achelli.r. et imUi
sit licitum eam vendere, aut aliquo modo ab eodein Monasterio alienare,
sed monasltriiim ipsum possideat iitre lueredilario in perpehium. Quiciin-
Que iqilnr hoc facluin vobis inlegrum obsentiwerit, sit beneditns a Deo, ameti.
Facla charla donationis et perpétuos (irmitiidinis apud Vlisbonam in Mra
M.CC.XXX. mense kugusto (que be anno de Gbristo ilí)2). Nos supra
nominaíi reges qui hanc charlam facere iussitmis, eam coram testibus ro-
boraiVAis, et hcBC signa faclmus. Qui a(fueranl.
Domnns Suenus Vlijsbon. Episc. Conf. Fernandtts Pelri test.
Domnus loan. Ferd. Maiordomus Caria; Conf. Gust. Nunls test.
Rodericiis Ferd. Pnetor Vlisbon. Conf. Giraldas Pelagij test.
lulianus Notarias Cuiics scripsit
Ao pé d'esla provisão está buma postilia pola qual el Rei dom Affonso
seu íilbo confirma a doação, e mercê, quo n'elia se contem, e são as
palavras:
Ilanc charlam snprascriptnm, qaam pater meus Rex Donus S:ncíus
PAUTICULAil DO REINO DC PORTUGAL I ! 7
fecH, st concessU Fralrihus Sanctí Felicis de Achellis de (jnadum viiiea,
concedo ego Frotrilnis einsdem Mona^lerlj, ctc. AjmdVlishonam mense Ma-
dio .E. M. CC.LVlí. {ha o anno de Chrislo í\ó 1219).
Esta provisão, e postilla de confirmação tesíemunhão ser esta casa
em sua primeira restauração despois dos Mouros, dada a Frades, e por
elies ser possuída em vida d'esíes dous Reis até o anno de 1219. E por-
que so pêra este eííeito a lançamos aqui, não curamos de a traduzir advir-
tindo ao Leitor, que esta, e todas as mais escrituras antigas, que no
discurso d'esta Historia se adiarem, vão tiradas dos originais com tanta
pontualidade, que a guardamos até nas abreviaturas, e nos modos de
escrever assi como se liião trocando com os annos, e cora os entendi-
mentos dos homens. Os Frades que em Ghellas tinlião Convento erão
Cavalleiros da Ordem de S, João do Hospital de Jerusalém, que vivião
então em coramunidade: e consta per outros estormentos de compras,
e vendas, que permanecem hoje no cartório do Convento.
Mas qual foi o anno em que os Frades, largarão esta casa, e come-
çou a ser povoada de Freiras, e quem foi o meio, e instrumento de as
juntar, e trazer a ella, isto ficou tão cego, e apagado ou com o longo
discurso dos annos, que tudo escurecem: ou com a rudeza dos homens,
que nada escrevião, senão o que precisamente era forçado pêra o que
írazião entre mãos; que totalmente o rtão podemos descubrir. Somente
alcançamos de pergaminhos velhos do cartório com bastante clareza, que
no espaço de dez annos, que houve entre o da doação, e confirmação
dos Reis atrás escrita, e o de mil e duzentos e viiite nove se fez a mu-
dança de Frades pêra Freiras: de Frades de S. João Bautista, pêra Frei-
ras de S. Domingos. Entre muitos que o mostrão he uma doação em
sua narrativa bem notável, e por isso irá com sua íraducção.
In nominc Boinini, Amen. Nuneriut vniversi presentein charlam in-
specturi, (juod ego Dominica Roderici qnondam vicina Sanctarcn. in vila
mea, et integro sensn meo considerans slatuni mundi, et meam. et pra;-
cauens in fuíurum, ad honorem Dei, et Ordinis Sanei i Doiiiinici do et
concedo, et roboro corpus raeum et animain in Monasterio Dominaruin de
Achellis In eanindcm Ordine, sumpto eiusdem Ordinis liaúilu, in vila et
in morte in perpetuam perinansuram. Do etiarn et concedo Priorissa; e(
Conuentui eiusdem Monasterij cie Achellis omnia bona meu temporalia mo-
118 LIVRO I DA IIÍSTORIA DE S. D()MIXG03
hUia^et immohilia, et se mouenda, quoniin loca et íeriniiii, in qiiihus pos-
s^ssiones sita) infertiis sunt scripta, etc. Actiim apuil YlisbQJKim mensc Mar-
tj uEra M. CC. LXVII. Qui pressentes fiierunt Fríiler Pelagius Uracca-
rcii. Fraler Fctrtis Siierij Vlisbonen. Frater Dominiciis Marllni Vlisbo-
nsn. lounnss luanais de IMparia qnondam Procurator Domindncn.
A linguagora hô:
Em noaiG do D30S Amcn.Saibão quaníos csla escritura virem, como
eu Do:iiing33 Rodrigues miradora qae fai em Saiitirem, estando viva, e
sani, e em meu preíeUo ju\z^, con-iderando as cousas do mundo, e seu
estado, e meu, e acautelando-me pjra o dianle : á honra de Deos, e da
Ordem de S. Domingos, dou. e outorgo, e com firmeza offerei'0 minha
alma, e corpo ao Mosteiro das donas de Chelias, pêra ficar com ellas em
s ia Ordem, e com seu habito em vida o morte, e pêra sempre. Tam-
l)3m dou, e outorgo á Prioressa, e communidade do mesmo Mosteiro do
Cielias, toda minha fazenda, e bens, assi moveis, como de raiz, e os
<|ue por si S3 movem: e os lugares, silios, e coníVontações das proprieda-
dí-s vão íibaixo declaradas, etc. Fez-se em Lisboa no mez de Março Era
de M.GC. LXVII. nesponde ao anuo de Cúristo de 1220. Forão presentes
Frei l'a:o de Braga, Frei Pedro Soares de iJsboa, Frei Domingos Mar-
ti;!S do Lisboa, íoanianes de Ribeira, Procurador que í^;! das mesmas
LV,i!ias em tempo atrás.
Do teor doesta escritura fica bem entendido, e sem lugar de duvida,
que já no anno de 1229, em que passou, estava o Mosteiro cm poder
de Freiras asseníado, e corrente, o que as Freiras erão da Ordem, c
liabito de S. Domingos, e como aquelle quondam iaz indicarão de tempo
passado, o não pouco, se dermos o principio do Mosteiro em cinco an-
Pios atrás, achado fica que foi no de i22i, e que o recolhimento das
Freiras passou por mão do Provincial dom. Frei Sueiro logo no anno se-
guinte despois da morte "dei Rei dom A.fonso, e da concórdia do Arce-
]jispo com el Rei dom Sancho. Mas não duvido, que pêra cousa ião
nova em i^ortugal interviria braço de pessoa real, e mui pederosa, pois
l)recedeo lirar-se a casa aos Frades, que de força havia de ser negocio
custoso. Também íica claro o miuito que custaria de írabalíio, e cuidado
ao Provincial este ultimo serviço publico que fez a sua Pátria : quantos
PAIinCULA?. DvO WFASO DE I'0:\Trr.AL ilO
S3 cans:ina em pregações [jiiijlicas, c persuasões parílculares por ajur.-
tar este rebanho Santo ao Paslor, e Esposo celeslial. Obra foi na verdade
<ligna de verdadeiro íilho de S. Domingos, e de quem ao vivo em pcn-
sauientos, e obras o imilava: e hoje lhe deve render grandes grãos de
gloria no Ceo. Porque não ha duvida que todas quaiitas ahiias íem su-
bido d"aquelle recolhimento aos gozos eternos h"esíes quatrocentos annos,
lhe são em algum modo devedoras como a primeiro pai seu, e primeiro
autor da santa reclusão cm que merecerão o Ceo. E o Reino de Poríu"
gal lhe está devendo ser este o primeiro Mosteiro de Freiras que das
Ordens mendicantes se fundou n"elle. Porque sendo assi que o primeiro
que cá houve de Freiras de Santa Clara, fí>i hum que se edincou noanno
de 1^58 nas ribeiras do rio Douro, em pouca distancia da cidade do
Porto, onde chamão entrambos os Rios, que he o mesmo que despois
no anno de 1.'Í54 foi passado pêra dentro da Cidade, ílca-íhe o de Cliel-
ias superior cm ansianidade por mais de trinta annos.
Esmcrou-sc o Provincial em fazer este Mosteiro de S. Félix de Lis-
boa hum retrato de S. Sixto de Rom3, prantando n"eile o m.esmo rigor,
e observância, com as mesmas leis, e ausíeridades: e como era jardim
de sua mão, cultivado com sua doutrina, e cxem.plos frescos, c nuasl
vivos do Padre S. DomJngos, e acompanliado, quando elle faltava de
Mestres muito espirituais e Santos, começou a ter cheiro, e fama de
hum Paraizo na terra, e corrião a elle muitas donzellas do melhor do
Reino. Porém, como he condição das cousas humanas ir senipre variando,
e descaindo, e as que são mais perfeitas terem maiores contrastes, foi
faltando com os annos aqucHc primeiro fervor. Era gente nobre, c mi-
mosa, fazia-se-lhe de mal tanta continuação de aspei-ezas. Devião ajudar
pais, e parentes indiscretamente piadosos. Começarão a levar mal o ri-
gor da regra, havendo-a por intolerável, não só pesada na parte que
co]n mais rezão lhes houvera de ser suave, que he a clausura: pois esla
he a chave, e sello de toda Religião, e sem elia he impossível consor-
var-se. Fazia dano o exemplo que sempre tem grande poder pêra mai.
Havia no Reino outros Mosteiros que vivião na simplicidade antiga de
sairem as Freiras em communidade hora a suas erdades, hora acompa-
nhar procissões: e em particular visitavão suas mais, e irmãs: íinha-sc
por cousa santa, não só sem dano..Dizião, que entrando pêra servirem
a Deos com alegria, vivião em huma perpetua maíencolia, e em hiima
roJa viva de trabalhos,. sem hora de allivio. como tiniião os mais Reli-
liO LIVUO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
giosQS do Roino: que d"aqui nacião doenças novas, e sem remédio, que
já havia enlre ellas, ajudando o assombramento da reclusllo perpetua aS
destemi)eranças, e malignidade do ar. Que a vida que tinhão não era
só de encerradas, mas pior que de emparedadas : porque estas como
cada liuma era prelada de si mesma, tinhão em sua mão o trabalho, e o
descanço, dispunhão do dia, e da noite cá sua vontade, mas elias com a
vontade, e entendimento sujeito ao arbítrio d"outrem, não tinhão mo-
mento que podessem chamar seu: Freiras no nome, nos effeitos encar-
cei-adas. Que tudo se pudera levar, se huraa vez no anno poderão visi-
tar a mãi velha, e o pai enfermo, \er a casa em que nacerão, em Qm-
respirar hum dia em outro ar, e estar huma hora sem ouvir sinos, sem
viver por regra. Que era forte cousa harém menos d^ellas aos Prelados
Dominicos, do que íiavão das suas os outros Prelados, sendo todas Por
íuguezas, todas bem criadas, todas- bem nacidas. Que pêra molheres
lionradas, e de bom entendimento não havia cerca mais alta, nem muro
mais forte, que o ponto da honra, e o medo da infâmia. Quanto mais,
que sendo esta pequena liberdade, alivio pêra a vida, e remédio grande
pêra a saúde, corria já no Reino por género de aíTronta, faltar-lhe a el-
las quando sobejava a outras, que não erão melhores em nada.
Assi se queixavão, e assi instavão. Acudião os Prelados com todos
os meios que a prudência insina pêra as quietar. Quando virão que nãe
Ijasíavão, houverão por menos mal perder o Mosteiro, que descer hum
ponto do primeiro instituto. Recorrerão á Sé Apostólica, pedirão absol-
vição do cargo, e da administração delle : e em fim o vierão a largar
no anno de 129-j despois de o governarem mais de sessenta annos. e
ficou na jurdiçlo do Ordinário de Lisboa, conservando todavia até nossa
idade o habito, reza, e cerimonias de S. Domingos. Mas porque n'esta
idade houve quem quiz escurecer estas verdades, e he rezão acudirmos
por ellas, será necessário fazermos inda hum par de Capitules n'este ar-
gumento: quem os tever por sobejos, porque a Historia pôde bem pas-
ser sem elles, livrar-se-ha do trabalho com voltar poucas folhas.
PÀRTIGULAP. DO RKINO DE PORTUGAL 4Í1
CAPITULO XXÍIII
Censura se Inuna letra esculpida do fresco em huina pedra do Mosteiro
de CheJhis: descobre-se o artificio, e tenção d'eUa.
N'esía nossa idatk' fértil de monstruosas novidades, poucos annos an-
tes do de 1G08, que foi o mesmo em que as Religiosas do Mosteiro de Cl^el-
las deixarão a reza do Breviário Dominicano, apareceu hunia pedra posta
em lugar alto, e publico da sua Igreja, e entalhado n'elia o letreiro se-
guinte:
Este Convento he de Conegns regrantes de S. Agostinho por escritu-
ras antiquissimas: e foi casa das Vestais antes da vinda de Christo Nosso
Senhor, como se vê poios vestigios de pedras que estão na Crasia velha, e
polo cipo de lulia Flaminia, e ara das Vestays com o buraco da urna
do igne perpetuo. A^si que se acha ser reedificada esta Capella quatro ve-
zes, huma em tempo das Vestays, outra na printitiua Igreja de Espanha, e
duas d es pois.
Sem escrúpulo podemos affirmar, que a tenção d'esta letra e colo-
cação da pedra, não foi outra, senão que como pedras são dejmais dura
que porgaminlios: e he cousa sabida estarem vivos, e sãos muitos que a
encontrão, alcançaria com tal meio victoria delles so não fosse de pre-
sente, ao menos d'aqui a longos annos, quando cm falia de tudo se ve-
nha a estar polo que disserem pedras (desmesurada providencia ! em
descrédito de todas as memorias antigas das pedras Romanas, que sem-
pre forão de estima, e gosto). Mas graças a este papel, (jue sendo em
si cousa frquissim.a, se fará não só forte, mas immorlal cm virtude da
impressão : e n'elle ficará pêra sempre viva, e notada a sem justiça da
pedra, e da letra, e de quem a notou; e permanecerão igualmente as re-
zões que temos de a condenar na parle que toca á Religião de S. Do-
Domingos, que só me move. E deixando á parte a vaidade dasTestais,
do buraco, da urna, do igne perpetuo, em que nos não toca falar, nem
diremos palavra, visto como em nenhuma parte do mundo, fora de Roma,
houve nunca casa de virgens Vestais, por ser contra as leis, e rií(.)s d'el-
las, em tal compan!u'a nenhuma donzella que tcvesse seu domicilio fora
cie Itália: e nas que se recebião, precedia exame de suas partes, e calidades,
122 uviío I D\ iii:>TorjA de s. domíxgoí?
feito polo Pontifico r\IaXÍmo qnc cm ílnmn residia: o ello era o qiio por
sua mão as metia no recolhimento do templo, guardando certas cerimo-
nias do obra, o palavra : oi!o o que as vigiava, reprendia, e castigava
quando havia descuidos: e a casa era na ijorie mais povoada, e mais se-
giira de insultos que havia na cidade. Polas quaes rezões todas cm ne-
nhum dos escritores antigos se acha que liouvcsse Vestais por outrr.s
provincias, mais que cm Roma (*). E assi não perdendo indignamente o
lempo, trataremos só da primeira parto do letreiro, que pretenda tirar
aos Frades de S. DomJngos o titulo de fundadores do Mosteiro, dizendo
que por escrituras antiquissimas he de Conegas regrantes.
Dura e nova contenda he em huma opinião assi absolutamente afnr-
m-ida, iiavermos de litigar som vèr autor, nem respondente. Porque se
a queremos accusar (como de feito accusamos) de errada, e injusta, em
quanto lúo vemos quem sustento, he hum osgiimir no ar, e dar golpes
em vão, e em fira falar com hum penedo. Se lhe aparecera dono, foj'ra-
vamoá grande trabalho. Porque como quem se dá por autor de qual-
quer novidade, logo se obriga á prova d'e!la: e eu estou certo, que em
favor d'esta não ha nem pióde haver escrituras antigas, nem modernas:
se o tevcramos em praça, certos ficávamos da victoria, e livres de mais
contenda. Mas em caso quo o havemos com pedra, e pedra demasiado
palreira em affirmar cousas sem fundamento, sui'da pêra se vencer da
boa rezão, muda pêra se confessar culpa, insensível pêra levar pena,
ficamos obrigados ao traba!!\o de negar como rcos, e juntamente pro-
var como autores: quaiído nenhuma lei, nem dijx-ito manda, que se pro-
vem negativas. Primeiramente negamos n'esto Mosteiro o titulo de^Gone-
gas regrantes, assi absoluto, que o letreiro lhe dã; e provamoi-o polo es-
tormenío do Capitulo precedente, tirado do seu m.esmo cartório, que as
Ciiama expressamente Freiras da Ordem de S. Domingos, e está por Fra-
des delia assinado. Segundariamcnte negamos haver debaixo do Sol as
escrituras que chama, e diz tem antiquissimas, pêra pr)va de serem Co-
negas regrantes, sem sujeição da Ordem, e constituições de S. Domin-
gos: e mosiro-o assi. Ou estas escrituras são antes da entrada dos Mou-
ros em Espanha: ou despois de lançados de Lisboa. Serem d"antes não
pode ser, porque se o fossem, era necessário estarem celebradas no anno
de Cliristo Nosso Redentor de setecentos, e quatorze pêra atrás, tempo
(•1 Auliis Giíllius 1. I. c. ). r<-'[ie.t. do Saí-oidut. Roiíi. c. G. luítaj Lipsius de Veda e
Yc-'a!i'). 1. 1. c. 2. Alex. ab Alcxanii. I. li. c. 12 Genial, ditium.
PAP.TiGULAU DO REINO DE rOP.TLT.AL iâ-l
em que roinavlío os Godos, e os I^Jonros conquistarão Espanha, do qual
não ha cstormenío. nem roeíiioria particular n'estc Reino que faça men-
ção do outras Fremiras, mais quo da Ordeni de S. Bento. Serem despois
do lançados de Lisljoa os Moia-os, também não pôde soi'(*). Porqiie Lis-
boa foi ganliaíUi por el Rei dom Afonso Em iques no anuo de 1147 (*), e
a provisão de seu íiiho el liei dom Saneiío, que lançamos no Capitulo
atrás, he feita poucos annos despois no de I1D2, e esta com outras es-
crituras que h'} da mesmo tempo fazem o Mosteiro morada de Frades
até o de Ii2i0, c iogo no de 1220 sem haver em meio mais f\iiQ dez
annos, -consta que já estava povoado de Freiras da Ordem de S. Do-
mingos por estormento autentico, cujo treslado fica no mesmo capitulo.
Logo: se antes dos mouros se não deu o Mosteiro a Gonegas regrantes:
nem despois dos ?uouros se lhe podia dar, porque n^esse íempo se en-
tregou a Frades: e se entre os tais Frades, e as Freiras do S. Domin-
gos não houve espaço intermédio, pêra n^elie poderem entrar estas Go-
negas re;j;rantes: segue-se cpm evidencia indubitavelque não ha nem podo
haver aqueilas antiquíssimas esciituras que o letreiro [lublica: visto como
não íka tempo em que se pudessem fazer, nem dar-se o ?íiostelro a Go-
negas regrantes, e polo conseguinte he o titulo fantástico, ficíicio, e ima-
ginário, e íica bem provado não poder ninguém dizer, que houve íeinsto
algum em que esta casa fosse possuída d"outras Fj'eiras senão domini-
cas.
GAPITULO XXV
Confinna-se a maíeriíí do Capitulo antecedente com ura Breve Apostólico,
e com outros ãocuiucittos.
Mas porque acabemos de convencer o artificio de quem fez faiar um
mármore, pêra furtar o corpo a dar rezão dos absurdos que lhe lançou
ás costas, confirmaremos de novo nosso intento, não já com doações de
Reis, nem de vassaUos, por muito autenticas que sejão, mas com letras
Apostólicas, qiie se bem se podem por cá perder, ou supprimir, Icm
seus registros na Guria Romana, onde sempre estão vivas, como em
sua fonte. E ainda que pudéramos trazer a Bulia primeira de Gregório
IX pola qual confirma este Mosteiro em Freiras de S. Domingos, to-
(•) F. Ikrn. de Brito "onarc. Liis't.
(•') Duait! ftutics de Leão r.a vida (i'c.ic Rei dom Afonso. Gauiiny na vida do ir.c.-nio.
124 LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
mando-as debaixo de seu emparo, e dando-lhes licença pêra possuirem
bens temporais, receber noviças, e eleger Prioressa, e começa: Pniden-
tibus Virginibus, quoe sub luibitu Heligionis, etc. passada no anno de 1234
alguns annos despois de estarem em posse da casa. E ainda que pode-
ramos ajuntar outras muitas Bulias expedidas em Roma pêra negócios
particulares do Mosteiro despois que entrou na jurdição do Ordinário,
nas quais todas usão os Poníifices dos antigos, e originários titulos d'elle,
dizendo assi: Dilectos filioe Priorissos Conuentus Saiidi Fclicis de Achei-
lis per Priorinsam soliti gnbernari sub regula, et secumium instituta Fra-
trum PrGedicutorum,ek. e não lhes chamando nunca Conegas regrantes.
Com tudo deixadas todas, juntaremos somente huma, que foi despachada
trinta e dous annos adiante polo Papa Clemente líll á instancia do ^].
Geral da Ordem, e dos Frades de Portugal, quando começarão a tratar
de se desobrigar d"este Mosteiro : a qual como em tempos já afastados
da fundação, e mais chegados a nós, com relação do passado, e decre-
tos pêra o futuro declara largamente o que cumpre pêra inteira averi-
guação da matéria presente, e do que apontamos no fim do Capitulo
passado. Por ser tal pêra que seja do todos entendida, e não occupe-
mos muito papel, vai logo traduzida em vulgar.
«Cl3m'^nte Bispo sorvo dos sorvos de Deos aos amados filhos o Âbbade
de Alcobaça, e aos Guardiães dos Conventos de Lisboa, e Santarém da
Ordem dos Frades Menores do Bispado de Lisboa saude, e benção Apos-
tólica. De boa vontade tiramos toda matéria, e occasião de poderem cair
os Religiosos, pêra que se não abra algum caminho que se desvie de
sua obrigação: e de muito melhor lhes desejamos graça de salvação.
Cousa certa he, segundo somos informados, que as amadas filhas em
Christo as Freiras ou Sorores do Mosteiro de Chellas da Ordem de S. Agos-
tinho, ha mais de trinta annos que vivem segundo os estatutos, debaixo
do governo dos amados filhos, os Frades da Ordem dos Pregadores: de
tal modo que os Priores Provinciais da mesma Ordem, que polo tempo
forão n'aquellas partes, por si, ou poios Frades de sua obediência, não
somente fizerão Prioressas no mesmo Mosteiro, e as tirarão: mas tam
bem exercitarão n"elle os officios de visitação, correição, e reformação^
segundo lhes parecia ser necessário: e assi fazião todas as mais cousas
concernentes ao lem d"elle, que todos os mais Provinciais, Priores, e
YvíiJes da mesma Ordem dos Pregadores, costumão executar nos Mos-
tjiros de Freiras da dita Ordem de S. Agostinho, que estão sojeitos a
PARTICULAR DO REIXO DR PGRTUCAX 123
seu governo. O que tudo affirmavão fazerem em conformidade de mui-
tas licenças que tiiihão de diversos Pontífices nossos predecessores. E
hora estavão as cousas da dita casa em termos, que ainda que o amado
filho Prior Provincial a quem pertence, solicito da salvação das Freiras, as
tenha eíTicazmente amoestado por meio de seus Frades, obrigando-as
com mandados, e preceitos, e com rogos, que por honra sua, e d'elles
guardassem clausura, assi como se guarda no Mosteiro de S. Sixto na
cidade de Roma: ellas com tudo ou a maior parte d"ellas mettendo-se
voluntariamente em perigo o não querião fazer, e appeilavão d"elle Pro-
vincial, e de seus Frades pêra nosso venerável irmão o Bispo de Lis-
boa. Pola qual rezão nos foi hiimilmente pedido por parte de nossos
am.ados filhos o Mestre geral da dita Ordem dos Pregadores, e do Pro-
vincial, e dos mesmos Frades, que os qu izessemos absolver do cargo, e
cuidado d*ellas, e do seu Mosteiro, pêra que se não siga a elles, e á
dita Ordem dos Pregadores alguma nota de murmuração, vivendo as
Freiras com licença de liberdade nociva. Por onde querendo nós pola
obrigação de nosso olíiôio proceder no caso com a diligencia que con-
vém, e prover n"elle acertadamente, a vossa descrição, e bom juizo es-
treitamente comettemos, e encommendamos em virtude de santa obe-
diência, que vades pessoalmente ao dito Mosteiro, e com cuidado vos
informeis das mesmas Freiras, e de outras pessoas fidedignas sobre es.
tas cousas, dando- lhes primeiro juramento, polo qual declarem se as
ditas Freiras por es paço dos ditos annos viverão debaixo da obediência,
e cargo: e segundo os estatutos dos ditos Frades: e se os ditos Frades
poserão, e tirarão Prioressas, e exercitarão no dito Mosteiro o oíTicio que
acima fica declarado: e também se elles Frades, ou outros de seu man-
dado, e licença lhes administrarão os sacramentos Ecclesiasticos, e jiui-
lamentc se as Freiras fizerão profissão em mão dos mesmos Frades, Tou
por ordem d'elles em mãos daPrioressa que polo tempo foi), prometendo
a elles perpetua obediência, e recebendo o habito de sua mão, ou pof
ordem sua. Por maneira que haja clareza, se todas estas cousas succe-
derão, e teverão effeito sem contradição dos Bispos d'esse lugar, exceilo
do que agora he: e se lie fama publica que estas Freiras sejãocommum-
mcnte nomeadas por Freiras da dita Ordem dos Pregadores. E constando
por esta tal inquirição serem verdadeiras, e certas as cousas acima di-
las, em tal caso determinadamente, e com nossa autoridade mandareis
ás ditas Freiras, que com eífeito obedeção ao dito Provincial, e Frades,
Vlí) UW.O ! DA IIISTOP.IA DE S. DOMINGOS
em tiub o q:iG lhes ordenarem a cerca das cousas acima ditas: e sobre
tudo sem dilação nem replica so dclormiiiem viver em clausura, como
se vive no Mosteiro de S. Sixto, eíc. E nvtis abaixo. Mas se por ventura
não achardes quo as diías Freiras ou Sorores forão eníregues por leiras
Apostólicas á obediência dos diíos Mestre, c Provincial: ou não constar
doestas cousas: com tudo porque muitas cousas são verdadeiras, que se
não podem provar, absolvereis á cauíclla ao dito- Mestre, e Provincial,
e Frades de lerem mais cuidada d'estas Freiras, o do dito Mosteiro. E
a ellas obrigareis pola mesma censura, e sem appeilação sendo primeiro
amoestadas: que deixem o habito da dita Ordem dos Pregadores. Dada
cm Perosa aos ^1\ de Fevereiro anno segundo de nosso Pontificado.»
Este anno segundo de Clemente ÍIÍÍ responde ao justo aos annos do
Senhor de 12-30. Porque elle foi posto na Cadeira Pontifical por Novem-
bro de i-Gí. E como havia mais do trinta annos, segundo o Breve re-
lata, que o Mosteiro era da obediência de S. Domingos, juntos estes trinta
e tantos aos da Bula da Confirinação de Gregório ÍX que foi expedida,
como atrás apontamos, no de 1231, vem justamente a compor o numero
de i2G0, que foi o mesmo em que o Papa Clemente despachou este
Breve. E polo conseguinte não dá tempo nem lugar em que o pudessem
ter estas Fíeligiosas pêra deixarem de ser Dominicas, e terem hum só
dia de Gonegas regrantes. E não he duvida pêra entre gente Curial se-
rem nomeadas por Freiras, e ainda Conegas da Ordem de S. Agostinho:
porque este ti tido com sua distinção, sustentarão sempre as nossas, res-
peito da primeira regra d"esíe Santo, que ellas, e os Frades seguimos,
como se verá a) diante(*) de uma petição das Freiras de Santarém feita
ao Papa: e por hum Breve Apostólico passado em favor das de Corpus
Christi do Porto.
Parece cousa supérflua despender mais rezões n'esta matéria, onde
houver quem queira sem paixão considerar este Breve, e tudo o que
delle em nosso favor se collige, como he, o litigarmos por deixar o
Mosteiro, o buscarmos pêra isso poder do Príncipe da Igreja, (o que tudo
escusávamos se não fora nosso, ou se íevera qualquer dependência, ainda
que mnito escura, de qualquer outra Ordem), o não fallar o Papa nem
huma só palavra no titulo que a pedi\a lhe dá de Gonegas regrantes,
nem noulro algum, antes como quem liiiha por certo ser nosso, man-
dar com eíTicacia aos (^omniissarie-s, busquem por onde nos prendão, c
Í-) L. o. e. 27. L. C. c.
PARTICULAR DO RKIXO DE PGUTrGAL iÍ7
obrigii3iii a não lai-gnrmos a aiiaiiriis-raçlo, Do que tuílo naceo, (porqiio
os Coirímissarios deixarão a causa indecisa), não nos podermos acabr.r
de iseaia? d"GÍla, senão ainda vinie e novo annos adiante no de 1295,
sendo falecida a Prioressa Tareia Fagundes, e ciei ia oín seu lugar raia-
ria Sebastião.
E pêra que nos não ílijue nada por dizer: d'es!a Tarcja Fagundes ainda
lioje vive no cartório do Síosteiro de S. Domingos das donas de S^uía-
reni(*)li;inia doação que ao diante irá íresladada, pela qual consta que pfr
Ordem dos j^reiados Dominicos mandou duas Freiras de Chelías, fundar
n'aquelle de Santarém a nossa Religião, que harnas, e outras seguião: e
no mesmo de Cíielias aiida uma procuração autentica, que confirma a
sobjeição cm que vivia da Ordem, da qual o treslado de verbo ad ver-
buin he o que se segue:
«iN.')5 Tareja Fagyndijs Prix)ressa do ?dosteiro de Aclieilas, e mais
Convento ordenamos, es-tabelecemos, e conurmamos por nosso lidimo
Procurador Frei Fernanda Fruiíuoso portador d"est.a nossa procuração,
l)era arrecadar aquelle erdamento, que nos tem forçado dom Roy Fer-
nandes Alcaide da Azambuja: e pêra receber o pão, e tomar posse, c
arrecadar, etc. E ahaixo despois de ah/umas clausnlns. PíOgamos dom Frei
Gi! Prior dos Frades Pregadores de Lisboa, de cuja Oi-dem nós somos
sojoilas, que nós isto outorgiiedes, o dedes licença ao dito Frei Fernando
Fruituoso de receber esta procuração. E logo conseguinlemcnte. Eu di;o
Prior rogado da dita Prioressa, e do Convento do Mosteiro de Acheilas,
outorguei, c outorgo licença ao diti) Frei Fernando Fruiíuoso de receber
esta procuração em si: e douli poder de fazer livremente iodas as cou-
sas da sosodilas, e cada Imma d"ellas, e outorgo, c concenso na dita pro-
curação : e pêra isso não vir peis cm duvida, fiiço csla carta de sege-'
Ihar do segelho de meu ofilcio do davamdito Priorado, e nos de suso
ditas Prioressa, e Convento posemos aqui os nossos segeihos. E por esta
procuração ser firme, c estável por lodo sempre, os que forão presen-
tes Fí-ei Domingos dito bom, Estevão João, Yasco Vicente. Feita a pro-
curação emAcliellas oito dias andados do mezdeJuiho; EraM.CCG.XXX
annos (que responde ao anno de Christo 12D2.»
?,Ias porque rezão que não f;ilte algumia prova moderna entre tantas
antigas, cerraremos este capitulo com íiuma bem notável acompanhada
de ura gracioso caso succcdido de fresco em desgraça, c reprovação íc-
(.) L. o. c. 2^.
iá8 Mvao I DA msTOui de y. domingos
tal cVesta pedra. Tinlião-na collocada, e publicada os edificantes, quando
cairão na conta quo lhes ficava das portas a dentro vivo, e em pè hnin
testemunho que desbaratava o artificio, e condemnava o edificio: e era
estarem no mesmo tempo toda aquella communidade rezando o Breviá-
rio Dominicano, e usando do nosso Ordinário, e cerimonias d'elle. Fi-
zerão então instancia por introduzir o Romano. Mas como são máos
darrancar costumes velhos, foi necessário violência. Esta por ser de muita
força, desterrou o Dominicano no anno de 1608. E assi podemos dizer,
que teve mais poder com estas Religiosas o estimulo, ou respeito de
conservarem a opinão do seu mármore, do que teve no tempo passado
o mandato de um Pontífice Romano que foi Pio V, e o decreto de um
Concilio universal, que foi o Tridentino: contra o qual alegarão, (e lhes
valeo) que o mandato Pontifical exceituava as Gommunidades que de
duzentos annos atrás usassem particular Breviário : e a sua não tinha
menos annos de uso do Dominicano, dos que contava de fundação, e
quasi tantos como a mesma Ordem Dominicana, que passavão então de
trezentos e cinquenta. N'este caso não fica que dizer, se não, que ou
haja quem faça a esta pedra o que Afonsojde Albuquerque (*) fez a outra
na índia por se livrar de contradições, que foi virar-lhe pêra dentro da
parede a face escrita, e mandar esculpir na contraria aquella sabida le-
tra: Lapidem quem reprohauerunt ^ãificuntesC"). Ou que nos acuda o juí-
zo do piadosohermitãoJacobo (***), que sendo presente a huraa maliciosa
sentença de hum juiz Persiano, mandou a hum. grande mármore que
lhe servia de tribunal, que mostrasse em si a pena que merecia quem
n'elle se assentava, e assi sentenciava. E no mesmo ponto estallou por
toda parte o feixo ferrenho, e mocisso, e se desfez em pó.
A fama, ou sonho que anda na boca do povo, fundado na semelhança
do nome: de que n"este valle, e entre as Vestais foi escondido o moço
Achilles por quem lhe queria bem, polo divertirem da guerra de Troya,
e que d'ahi lhe ficou o nome: he mera fabula, e indigna doeste lugar.
Pouco sabia de computação de tempos, quem ajimtou Achilles com Ves-
tais: e pouco das mesmas fabulas quem com esta se enganou. Mas nem
a vaidade d'ellas, nem a sem rezão da letra me podem tirar fazer me-
moria de algumas cousas que achei n'esta casa, merecedoras do as não
escurecer o tempo, como faz a tudo. E ajuntallasemos logo.
(•) Commciit. de Afonso de Alhiiq.
(>-] João de Barros Dcc. i 1. .'>. c. II.
(•..j Tliecd. l;b. de virihus illust.
rARTICrLÂU DO V.EV^O DE PORTUGAL Í29
CAPITULO XXYÍ
De algumas particidaridad-s nntnnei.s do Mosiciro de Chellaf-:,
Despois qne temos mostrado com evidencia ser es!e Mosteiro a pri-
meira pranta de donzellas recolhidas em clausura neste Reino, pola di-
ligencia de am filiio, e discipulo inimediaío de S. Domii^igos : em boa
rezão esíá que tratemos d'elle, como de casa nossa: e mostremos quanto
lhe montou sua doutrina pêra o tempo adiante: e o muito que iiie vai
lioje a fam.a, e certeza d'elia, inda que tão mal confessada por quem
mais a devera conservar, e manter. E começando por esta certeza, elia
lie a que me obriga a sar seu Chronista não rogado nem requerido. E
quanto á doutrina, 1-c de saber, o^ue ficou tão bem asseiiíada nos âni-
mos das primeiras Religiosas que a receberão: que passando ás succes-
soras foi sempre correndo de n^ião em mão com notável aproveitamento;
e lançando por iodas as idades hum ch.eiro de virtudes excelleníe, como
mjsíura de materiais aromáticos confecionada de mão, que por muito
antiga não pode perder a viveza da primeira fragrância: perseverou, e
chegou até o presente em grande numero de Religiosas. E ainda que
nos escondeo, e apagou a memoria de quasi todas, quem tudo acaj)a, e
desbarata, que he o curso dos annos, temos com tudo indicios mui cer-
tos de seu graíide valor, no de algumas, que em nossa idade, e de
nossos pais alcançamos. E não obsta a queixa que atrás referimos feiía
poios nossos Frades á Sé Apostólica. Porque esta consistia só em não
quererem as Religiosas d"aqnelie íem.po consintir na estreiteza da clau-
sura de São Xisto, sendo em Iodas as mais partes de nossa Constitui-
ção observantissimas, e tendo por si innocencia grande de costumes,
ponto, e brio de nobreza, e o uso, e liberdade em que vivião iodas as
mais Freiras de Portugal. E íenlio pêra confirmação d"estc discurso al-
guns tcstimunhos do Cco cm seu favor, tão extraordinários, e gerais,
que de força havemos de confessar, que erão micrecimento de virtudes
íambern gerais. Que sofra Deos culpas, e peccados por algum tempo,
com aquella sua longaníiuidade, e misericórdia de verdadeiro Pai, ordi-
nariamente o vemos: e também vemos que do que tarda cm castigar se
paga, e recompensa no peso, e graveza dos castigos. ?-ías liuma conti-
nuação de. mercês suas sem interpolação de tempos, he grande sinal do
haver a m.esma na guarda da Religião (*). Conforme aquillo: Oaili Donnni
¥í'L. í, \)
130 LIVRO I DA HISTOni DE i. DOMINGOS
super iiistos, e o que a igreja sagrada canta, quando encommenda aos
homens a execução da vontade Divina: Qui nuUa eis nocebit aduersitas,
si nuUa (lonunditr inúfuitasC). Seguros, diz, estarão de todo mal, se de
odo peccado se achirem izentos. Sabemos, (e he grande caso, e com
tcerta, e constante tradição provado), que aconíeceo muitas vezes pegar-
se fogo no Mosteiro, casa de edifício velho, e desemparada de auxilio
de homens, atear-se em madeira seca, estar longe a agoa, assoprarem
ventos: "e todavia acudindo a coiíimunidade á oração parar o incêndio, e
como mandado obedecer aos brados do santo ajuntamento.
Maior caso he, que ardendo a cidade de Lisboa em outro fogo muito
mais temeroso de furiosa peste, em diiTerentes tempos, e por muitas
vezes, (como adiante o contará a Historia,) e não podendo escusar o Mos-
teiro communicar-se com ella pêra remédio da vida : nunca já mais na-
quelles claustros se exprimentou, nem siníio ar contaminado. Antes pê-
ra mostrar o Geo, que comxO casa do gente santa morava debaixo da
pi-otecção do Senhor delle, aconteceo, (e ficou em memoria) o que agora
diremos. Entrou dentro hum lavrador que levava certa renda de pão,
e foi medil-a ao cileiro. ília ferido do mal, e em tal estado, que em
saindo ^'òra da clausura cahio morto : esteve rodeado de muitas Reli-
giosas, e a nenhuma danou a contagião. Antes he de considerar, que
a força do bom ar que a Divina bondade mantinha entre elías, apertou.
e refinou o danado, que o morto trazia comsigo pêra o matar mais de-
pressa : como se vê em boa filosofia na pólvora da espingarda, que faz
maior effeito, quanto mais atíacada. Assi não ha lembrança, que em tem-
po algum desemparassem a santa clausura : Com o que podemos con-
fessar qne nos tem honradamente recompensado a queixa que te vemos
de suas antecessoras-
Mas sobre todos os casos descobre as misericórdias, com que o Se-
nhor olha esta casa, hum muito estranho, que foi servido mostramos em
nossa idade : do qual vivem ainda hoje por testemunhas muitos vizinhos
delia: e algumas Madres que com grande -consolação, e suavidade d'al-
ma o contão, como pessoas que forão presentes. E quasi todas as que
despois entrarão, o ouvirão cás que são mortas. Entrou o Duque de Al-
va em Lisboa no anno de 1380 acompanhado de hum luzido exercito
por terra, e grossa armada por mar, sem mais repugnância, que um leve
recontro que teve nos muros delia com poucos homens faltos de forças,
{•) :*ial. 'òo.
í>ARTlCULAn DO REINO DE PORTLT.AL 131
e armas, e muito mais de consellio : e como se fora semelhante o perigo
ao que noutro tempo experimentou no rio A.lbis em Alemanlia, quiz re-
presentar famosa vitoria, publicando saco contra a terra que lhe não
resistio : e n!íô duvidou contra toda lei de boa guerra entregar á cubi-
ca, e fúria dos Soldados, qne quasi não tinhão arrancado espada, tudo
o que havia fora dos muros, e três legoas á roda da cidade. ílavia mui-
tas casas de Religião. Como entre Catliolicos mandou todavia acudir com
guarda ás mais notáveis. Ficou a nossa de Chellas, ou por distante, ou
por menos conhecida, sem nenhuma. Encheo a Igreja a gente das Quin-
tas vizinhas : e os claustros, e oílicinas o que cada hum tinha de mais
preço. Entrando a primeira noite, e crescendo com ella o temor do qne
se esperava, tomarão as Religiosas a cargo passal-a em vigia, por nHo
Sarem colhidas de improviso. Eis que entre as onze, e a meia noite sen-
tem que se picava o muro da cerca. Esperta-se toda a Communidade,
acodem á parte donde soava a obra. Havia já hum agulheiro feito, que
se via por elle a claridade da Lua da outra parte. Dão-se por perdidas,
correm á portaria, e ao Coro pedir favor a Deos, e aos homens que ha-
via. Sairão logo alguns fora, mais pêra atalaias, ou escutas do que se
fazia, que pêra remedeadores do dano que se tinha por certo em tal tem-
po. Mas tornarão logo cheios de novo medo, referindo por maior mal,
que vinhão cercando o Mosteiro huma grossa esquadra de Cavallos. Não
faltarão outros atrevidos, que quizerão dar fé do que estes affirmavão,
e contarão vinte cinco lanças, que todos sem faltar hum, cavalgavão ca-
vallos brancos, e vestião sobre as armas marlotas brancas. E o que mais
espantou, notarão que sem parar forão dando voltas ao Mosteiro, e com
tanto silencio, que nunca se sintio, nem poude colher palavra de entre
elles : e durou o passeo sem outro effeito até as três despois da meia
noite. O mal que se temeo de tanta gente junta, como maior, fez esque-
cer o menor dos que aportilhavão a cerca. Mas sucedeo, sem se saber
como, que cessou o rumor dos instrumentos que a batião. Amanheceo
o dia seguinte, foi dando com a luz tregoas ao medo da noite, e lugar
a se fazerem discursos do que nella se vira. Assentavão todos que a Ca-
vallaria era do exercito, e viera mandada pêra guarda do Convento, pois
delia não resultara dano, mas antes fogirem os que rompião o muro.
Neste ponto chegou recado em nome do Duque, com disculpas de não
ter miandado acudir áquella Casa, ofTerecendo fazel-o logo, como de fei-
to mandou. Foi a resposta das Madres cheia de agradecimentos da oífer-
132 LlVr.O I DA HISTORIA DL' S. D0MÍNG05
ía presente, mas maiores da obra da noite passada : a qual sendo con-
tada aos messageiros, e despois no exercito, foi ouvida com maravilha.
Porque em iodo o campo, segundo aífirmavão, não havia viole cinco ca-
valios brancos reparlidamente : qaanlo mais juntos em hiíiria só compa-
nhia. Donde naceo darem por certo, assi as Religiosas, como os vizi-
iilios que forrso presentes, que os vinte cinco Gavalleiros erão os seus
Martyres que íeverão cuidado de as- vir defender, e guardar: e fundavão
a verdade no numero, nas cores, e no eííeito. No numero, porque íaí-
tava nelle hum só pêra vinle seis, o qual não era rezão aparecer em tal
habiío, (isto dizião por Santa Natália.) Nas cores, porque tais são as com
<{U0 assisiom .os Martyres diante do trono Divino, despois que lavarão
suas roupas no sangue do Cordeiro : e as tirarão deUe mais alvas que
neve : mas só com esta diíferença que la tem nas mãos palmas de tri-
unfadores : cá empunharão lanças de combaíeates no eííeito, porque li-
vrarão a casa do perigo que já tinhão nos olhos, & do que mais pudera
suceder na m.esma noite.
Com tais maravilhas costuma Deos honrar as Communidades que o
busôão, e amão: e basta vão estas porá prova de qnani bem servido foi
sempre nesta dò Ghellas : se me não parecera tpie fazia oílensa a todo
o Mosteiro, deixando em silencio o que s:^bemos de algumas Religiosas,
que em nossa idade se farão delle pêra o Ceo. Cousas são que não es-
pantarão menos que as que acabamos de contar, e acreditarão igualmente
o valor de suas antecessoras. Seja a primeira a Madre dona Maria da
Silva, que governou esta casa quarenta e doas annos. que foi todo o tem-
qo que viveò despois de huma vez eleita. Tal era sua vida, que dezia
por ella cl Rei dom João o Terceiro, que se fora possível repartir dona
Maria por muitos Mos-eiros, só com isso os dera todos por mui refor-
mados. Muito faz ao caso approvaeão de Rei tão santo, muito imporia
o que sabem.os das virtudes desta Madre : mas temos entre maons hum
successo visto, e palpado neste mesmo anno de 1622, em que isto va-
mos escrevendo, tão extraordinário, que podemos crer o permitio Deos
pêra que sem escrúpulo a veneremos por Santa. Ultimo dia de Janeiro
irinta, e três annos despois que a comia a terra, se abrio a sua sepultu-
ra pêra lançarem nella huma sobrinha sua. Achou-se consumido, c tor-
nado cinza tudo o que com ella se enterrou, e até os ossos quasi deli-
dos : só apareceo são, e inteiro o veo preto, com que todas as Freiras
se enterrão, e envolta nolle a caveira descarnada, e seca. C-raniíe, c mis-
PARTICULAR PO P.KINO DF. POnTlT.AL 133
t^riooo pro.Iigío : em que o Senlior, ao quo parece, nos csíá mostrando
que manteve esta Religiosa iníeiramente, e sein quebra os dous pontos
que a todas se encouiendão na profissão. Re o primeiro, que saiba a
professa que ha de presentar diante do íribun?.! de Cliristo sem nódoa
nem magoa aqnelle veo que recebe. Segando, que o aceita, como ferrete
no rosto, e em sinal de que a nenhum outro amor dará lugar em sua
alma: que isto querem dizer as palavras: Suscipe rdamen, onoã per fe-
ras sins macula ante irwv.nal Domini nostri Jesu Chriati. E as outras da
Antifona : Posuit sigmim in fadem meam, ut nullum prcuter eum amatorem ad-
mitiam.
Fama havia no mosteiro que fora visío semelhante successo nelie
treze annos antes no de 609 na sepultara da3íadre Sor Elena do Espiri-
to santo, que falecera outros treze atrás no de 1505. E contavão que
não se achando nelia mais que terra, e ossos, aparecera o veo preto tão
abraçado com a caveira, e tão são, que procurando o Coveiro tiral-o com
a enxada, quebrou, e partio a caveira, e não o veo: de sorte que esta-
vam ossos mais podres que hum fraco lenço. Mas em gorai foi menos
o .espanto, ou por parecer poaco espaço o de treze aanos, ou também
porque estava fresca nos anim.os das Religiosas a memoria de suas vir-
tudes : afíirniando-se delia estremos de penitencia, e huma continuação
de oração admirável, e tanto cuidado em andar composta, que sendo
porteira quasi toda a vida, nunca s^ecular nenhum lhe vira o rosto des-
cuberto, se não fora o Medico.
Salúda cousa he, que se não izenta de corrupção debaixo* da terra
nenhuma cousa criada, se não he o ouro, que tem este privilegio até
contra o fogo: e por isso he símbolo de perfeição. Grande credito da re-
ligião desta casa : em que ficamos duvidando se deve mais á terra que
tanto respeito guarda aos seus veos, ou os veos a sua virtude, que he
a que por boa conta os preserva de corrupção: principalmente mostran-
do-íios Deos de novo nella, e neste mesmo anno de ôá^, e na inesma
maioria terceira maravilha que logo contaremos. Tinha vivido a iiadre
Sor Brites da Paixão muitos annos com grande opinião de santidade, e
acabado sua carreira com fim semelhante no armo de 603, Sabia-se que
até a ultima doença, do que acabou, fora sua cama huma cortiça accom-
panhada de pobres mantas, e por cabeceira hum madeiro seco, que des-
pois de longos dias trocou em huma almofada de Iam, mas tão embuti-
da, e dura, que quasi não ficava sendo menos penosa pêra a cabeça. Je-
134 LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
juava a pão, e agoa todas as sestas feiras ilo anuo, e na Q-aaresmn ajun-
tava as quartas feiras : e todo o mais tempo de Quaresma, e Advento
passava com legumes sem outro mantimento. Sendo muito caritativa, e
piadosa com todas, seguia hum aperto estranho de pobreza consigo : por-
que possuindo com hcença hiima tença grossa, toda despendia cm es-
molas, nada em commodidade ou alivio seu. Assi quando veio a falecer
não se lhe achou na cella mais que huma pobre Cruz de pão. O vestido
que linha era somente quanto pedia a necessidavdc para se mudar, e la-
var, sem peça de guarda, ou de sobejo. Conformando-se com seu nome
era devotíssima da Paixão : e foi o Senhor servido pagar-lhe a devação
com a levar pêra si no dia da Exaltação da santa Cruz : e com lhe dar
a sintir nos iiiiimos dias da vida, em pés, e maons, e coração hunias
gravíssimas dores, que sendo rscebidas por ella com grande paciência,
aíiirmava, que sem auxilio Divino era impossivel aíural-as. Veio a abrir-
se a cova, em que fora sepultada, pcra outro enterro, alguns meses des-
pois que se vio o que contamos na da madre dona Pilaria da Silva. Erão
passados ao justo dezenove annos, e não havendo mais que cinza de to-
do o despojo mortal, achou-se o veo preto salvo de corrupção, e como
cosido com a caveira. Pêra consolação da nobreza, e lembrança do mui-
to que obriga a quem a tem, he de saber qiie erão estas Religiosas to-
das três muito nobres. A madre dona Maria lllha de João Fogaça Deça-
qne foi irmão de dona Joana Deça Camareira mór da Rainha dona Cate,
rina. Sor Elena sobrinha do Arcebispo de Évora dom João de Mello, filha
de seu primo com irmão António d' Azevedo de Castro. Sor Brites filha
de dom Fernando de Lima. Resta-nos pêra conclusão do que prometemos,
dizer só de outra Religiosa, será no Capitulo seguinte : advirtindo pri-
meiro duas cousas nos prodígios referidos. ííuma será, que nossa ten-
ção não he dar por milagre nenhum delles, nem dos que adiante escre-
vermos, em quanto pola Igreja não forem caíificados : sem embargo de
sabermos que nestes annos próximos se sentenceou por verdadeiro mi-
lagre polo Ordinário da cidade de Coimbra, com parecer de grandes le-
tiados, acliar-se hum Rosário na caveira de lium defunto enterrado de
quatro ou cinco annos, que estava são, e sem corrupção, assi no páo das
contas, como no cordão que as infiava. A outra será que nos dous veos
íbs Madres dona Maria da Silva, e Sor Brites da Paixão fizemos estrei-
tas diligencias com os m^esmos padres, que os teverão em suas maons,
assistindo aos enterros das defuntas, que forão causa de se acharem
PARTICULAR DO REINO DS POr.TUGAL 135
SÓ no veo da Madre Sor Elena como em cousa mnis aírazada não achei
tanta clareza, sem embargo, que dura a memoria uelle como dos mais
entre as Religiosas do Mosteiro.
CAPITULO XXYII
Da Madre Sor Felipa do Espirito Santo.
Com setenta annos de habito, e oitenta e cinco de idade deixou a
vida mortal pêra passar á eterna a Madre Sor Felipa do Espirito^Santo,
entrando o de Christo de 1617. Temos na vida d"esía Religiosa dous
estremos, qae nio só espantão, mas atemorizT5o, considerados com atíen-
ção. Foi o primeiro huma longa continuação de penalidades, e rigores
voluntários. E o segundo outra corrente de aíílicções mandadas da mao
de Deos : humas, e outras espantíisas por grandes, e pesadas, e pola
paciência com qae as levou, igual a ellas: qae não ha mais encarecer.
Entrou Sor Felipa muito moça na Religião: mas trazia já de fora tanto
lume das cousas de Deos, que podemos crer foi prevenida com as ben
ções de suavidade celestial, que o Senhor costuma dar a seus amados
quando he servido. Vio-se isto em huma entranhavel devação, que n"a-
quella tenra idade começou a ter ao Saníissimo Sacramento, acompa-
nhada de fé tão viva, que antes de ter annos pêra cobrir manto em
casa de seus pais, já tinha eníendiniento pêra notar, e saber estimar os
discursos com que os Pregadores procuravão dar a entender as maravi-
lhas d"aquel}e soberano memorial de nossa redenção: e entrada na Re-
ligião, nenhuma cousa fazia com mais gosto, que empregar-se toda em
sua veneração, e serviço, Assi tanto que se vio professa, que foi aos de-
zaseis annos de idade, ou pouco mais, começou um género de vida do
molher perfeita. Diiigentissima em acudir ao Coro, alegre no serviço
d"elle, ultima em o deixar. Na guarda da regra não só pontua! consigo,
mas tão zelosa, que polo tempo em diante não duvidava reprender de-
feitos onde os via. Ao que ajuntava profunda humildade, e huma mor-
tificação de todos os sentidos maravilhosa. O seu jejum era tão estreito
que pasmavão as outras Religiosas de como se podia sustentar. As dis-
ciplinas erão continuas, e ásperas: e pêra serem de mais tormento, erão
tão gerais que até nos braços, e pulsos lhe forão notadas por muitas
vezes nódoas azuis, e pisaduras grossas. O sono quasi nenhum, porque
lóx) Livao I DX íirsToníA de s. domingos
chegou a estado que, passado liiim breve espaço que tomava pera re-
pousar, logo corria pcra o Coro, e poucas vezes tornava ci'eile senão po!a
manhã. Mas lai era o leito que a agasaliiava que não fica de espantar se
dormia pouco. He cousa sem duvida que em muitos annos se lue não
soiibemais cama que liuma cortiça com duas mantas grossas, e por al-
mofada hum madeiro roliço envolto, por honra, ou por fogir vangloria,
em huma toalha. Também he certo, qiie nunca vestio tuiiica de iinlio,
senão' ires dias antes do falecer. No amor da pobreza chegou a iermi';S,
que não havia em seu poder peça nenhuma de gosto ou curiosidade,
senão era um devoto Crucifixo que muito amava. r%'a devação do Santís-
simo' Sacramento creceo grandeinenie : fazia-lhe a festa todos os annos
em quanto não houve confraria assentada entre as Religiosas; o custo d"el-
la pera 'ser mais meritória era grangeado com abstinência de todo o aii-
no, tirando-o da pobre pilança do refeitório. E porque isto era pouco,
ajuntava tudo o que lhe davão tros jrmãos que tinha, dous Clérigos ri-
cos, e hum secular, sem reservar pera si iiada. E não he pera esque-
cer que íinlia por costume acrcceníar n"este dia o jantar de toda a Com-
munidade, com duas pitancas á sua custa : estas erão sirejas, e leiic :
banquete humilde, e pobre na sustancia, mas cortezão, e rico na íençao:
representava n'ehe ao que parece, ou as cores das espécies sacramentais
de pão, e vinho: ou aquellas que a Esposa santa gaba no Divino Es, oso(*),
quando por alvo, e corado o dá a conhecer ás fiílias de Jerasaleia. E
lumi caso houve despois de sua morte, que deu bom indicio que não
desagradava no Geo a dovação. Porque na verdade a sua festa m.aior era
ioda de fer''or de espirito, como se deixa entender do aparelho que
usava todas as vezes que se chega^va á santa communhão. -Esíe era con-
fessando-se á véspera, seguir a conílssão com hiima rigorosa disciplina, e
despois guardar silencio até todo o dia seguinte. Ao commungar t^c fa-
zião seus olhos lingoas do que lhe passava n'alma, tornados duas fontes
de lagrimas, que algumas vezes polo impeto, com que sahião, era ne-
cessário ao Sacerdote esperar, e dar-ihe lugar. Despois que as Freiras
ordenarão enírc si confraria, ficou fazendo sempre o gasto de toda a
cera, com tanto gosto de sua parte, que não sofria se chamasse isto
gastar, se não enthesourar : ao que ajuntava todas as quintas feiras do
anno rezar-lhe o officio inteiro da festa. No serviço da Gommunidadenão
havia Religiosa que mais trabalhasse: incansavelmente fazia todos os
(.j C, 111. 5.
PAIíTÍCíJLAP. DO lU^lÀO DH PORTIT.AL 137
oiiicios: já saçiisL^, jâ 83crivl, íaigoiiora. e cantora coitinua: jÁ Mesíra
de ?ví)viças, Vigaira ; Porteira: pêra cada cousa cVestas parecia qiio só
nacera. Ta! era seu lalònlo em tudo. A brainuira, e boa sombra com
que procedia, fa,:ia-3 amada de iodas: a prudência, e gravidade igiial-
nieníe respeitada. Começarão-lhe a render esta vida, e calidades opinião
de Santa, em casa, e fora d'ella. E elia a tinha de si tão diíTerente, que
sempre ;uidava b'^scando occasião do fazer por sua mão o que era obri-
gação das mais humiides servidoras do casa: e p)rque não houvesse
quem i!i'o tolhesse, valia-se das horas em que as íleligiosas estavão re-
colhidas. Aconteceo louvai-a huma Ueligiosa em certa occasião, e no-
meaí-a por Santa. As>i se ofíendeo como puder;*, fazer outrem de utna
grande aíTronta : e cheia de espirito não dih\tou tomar a vingança em
si do jiíizo alheio, dando-se com sua própria' mão duas bofetadas com
íal força, que lhe ficarão os dedos assinelados nas fyices. E poio contra-
rio súccedondo outro dia tratarem-na mal de palavra, (era em hora quo
rezava por hum hvro estando em pé), não somente manteve silencio ou-
vindo-se af^^ontar : mas poz os joelhos em terra, e Í!>i continuando sua
oração sem fazer movimento, nem mostrar sentimento.
Com tal vida entrou S)rFel!pa poios annos da velhice. Parecia tempo
de descançar, ou ao menos aiiviar hum p3uco de tanto írabaiho. Ma,
ííÁ tanto ao revés, quo então começou a entrar cm novos, e extraordi-
nários tiabalhos, que íiio não deixarão nora de repouso até o ultimo íio
da vida. Quem se hão espantará? quem não pnsm:irá de medo, vendo
ao pai-ecer mal tratada liuma vu^tude tão sobida? Parece que quiz Deos
mostramos nesta Religiosa Imm retrato do que n*ouiro tempo fez com o
Santo Frei Henrique Saso Frade também, doesta OrdemQ. TinliaFreifíen-
rique passado grande pane de vida em estranliezas de penitencias, c
mortificações: e ouvio hum dia que lhe dizia o Senhor. Atégora andas-
te por escolas liaisas, foste soldado de pé. Convém que saibamos pêra
quanto prestas, passando adiante, e posto a cavallo. E confirmou estas
palavras com' uma bataria de tormentos, o aíuicções tão rigorosa, que
algumas vezes lhe cliegavao a por em risco a paciência, e a conhança:
o mesmo temos em Sor Felipa. Quando naíurabnente devera ser izenta
de todo peso, e cuidado, e antes começar a lograr os prémios de huma
vida pura, ordenou a Summa bondade prova!-a em huma fragoa do
dores, de desastres, e niartyrios. Yai muito a dizer de mortiílcações vo-
•138. LIVRO I DA HISTORIA Dli g. DOMINGOS
liintarias, e caseiras, ás não esperadas, e que vem de fura. Doem me-
nos aqu^ilas polo que tem, de eleição, e mão própria : ferem estas com
mais força, por serem de braço allieio: e fazem-se mais sintir, quanto
são menos previstas. Começou o primeiro assalto por huma gravíssima
doença. D'esta lho procederão humas dores de esíamago tão intensas,
e continuas, que não erão menos que dores de inferno (*). Porque não ha-
via n'ellas remédio nem alivio, senão com mal maior: e passa assi que
todas as vezes que aparecia o Geo escuro, lhe cobrião o coração outras
tantas nuvens com medo de trovões, e raios, e não havia senão morrer
de aflição. Então se suspendião as dores de estamago, quanto durava o
assombramento do ar. Era n'ella o temor de Deos igual ao amor; porém
confessava maior medo nas carrancas do Ceo irado.
Continuava esíe mal, e ella não cessava de servir, e trabalhar, como
quando mais sam. E assi chegou aos setenta e cinco annos. Pêra este
ponto lhe estava guardada nova, e maior Cruz. Era Porteira : e succe-
dendo haver obras de pedra, e cal no Mosteiro, tinha hum dia a porta
meio aberta pêra correr o serviço: e estava a caso detrás em pé, e re-
zando por hu;n Breviário: empuxarão subitamente a porta dous homens
que acarretavão pedra com uma padiola: e f)i tal o ímpeto, ajudado do
peso que levavão, que encontrando a pobre Porteira, derão com ella
por terra tão pisada, e maltratada, que d"ali a levarão atravessada em
hum colxão, dando gritos que chegavão ao Geo. E porque ninguém
duvidasse que do Geo procedião, notou- se, que foi o desastre no dia
de sua maior devação, que era uma quinta feira, e a reza, em que en-
tendia, o officio do Santíssimo Sacramento. E não se queixava de balde,
porque vindo Cirurgiães, achirão que d"alto abaixo fi/ára moida, e des-
conjuntada qaasi toda a armação d"aque!l3s ossos velhos, e cansados:
e tratando de remédio não obravão as mezinhas, ou pola fraqueza do
sojeito, ou porque o Senhor, que dera o mVi, não permittia que teves-
sem bom successo. Assi esteve padecendo mortais tormentos dous an-
nos e meio: e tão tolhida que em todos elles não foi senhora de se vi-
rar sobre hum lado. E pêra qualquer movimento, que nunca era sem
grandes dores, se vaUa de cordas lançadas a huma trave da cella. Mas
he muito de notar o como levava tanto mal. Louva a Escriptura sagra-
da a Job de não peccar(**), nem soltar uma só palavra descomposta nas
(.) Psal. 17.
(••) Job 1.
PAUTICULAR DO REIXO DE PORTUGAL 139
sintidas queixas, em que o fizerão romper suas calamidades. E n:js te-
mos em Sor Felipa luim Job tão sofrido, e considerado, que nunca de
sua bocca sairão rezõcs mais abrazadas em amor de Beos; nem louvo-
res mais encarecidos de suas misericórdias, que quando as dores erão
mais vivas, e mais cruéis. Era novo getiero de tormento a cella em que
a recoiherão: porque d'ella a liuma sepultura liavia pouca diíferença. Ti-
nha em comp)'!menlo pouco mais de doze palmos, e sete de largo: o si-
tio debaixo de íuima escada: a luz tão alongada, que quasi sempre era
noiíe n"ella. rSÍ'este purgatório aturou oito annos, c meio sem nunca se
queixar, nem deixar de rezar o otficio Divino, ajuntando ás quintas fei-
ras o do Sacramento, jejuando as Quaresmas, e adventos inteiros, e dos
mais tempos as quartas, e sestas, e sabbados, com tanto rigor, como
quando era muito sam.
Afllna-se a virtude na tribulação. Porque acode o Senhor a seus ser-
vos com favores aventajados aos trabalhos que lhes dá. Tão resignada vivia
Sor Felina na vontade Divina, que ficando toda aleijada, de maneira,
que sem duas muletas não podia dar passo, todas as vezes que falava
n"este desastre, o nomo com que o significava, era a sua mercê deDeos.
E uezia bem, porque do mesmo ponto começou a esprimentar altissimas
mercês de sua divina bondade, humas vezes concedendo-lhe o Senhor
tudo quanto pedia em requerimeiítos próprios, o alheios, de muita gente
que em suas orações se mandava encommendar: outras mostrando-lhe
visões sobrenaturais de grande consolação : outras revelando-lhe cousas
futuras. E de tudo temos exemplos, e casos mui notáveis bastanteiíiente
verificados por muitas Religiosas, e por seus Confessores: os quais deixa-
mos de referir, esperando que saião brevemente luz poios meios que a
igreja costuma: como sei-á rezão pêra gloria de Deos, e honra do valor
Monástico, a pesar das ling.ias venenosas que o perseguem, e mordem.
Corria por oitenta, e quatro annos de idade, quando a vida já não
he vida, se não trabalho, e dor(*): e ainda o Senlior achava nella sitio pê-
ra empregos de novo merecimento. Na entrada de Janeiro de 1GÍ6 co-
meçou a sintir huns accidentes do coração tão vehementes, que do pri-
meiro esteve vinte quatro horas sem fala, e ílcarão-lhe acudindo em todas
as conjançoens da Lua. Oezia que se sintia com elles abrazar toda inte-
riormente, e as angustias que padecia erão de morte. No meio de tan-
to martyrio era de ver a alegria de seu rosto, e a conformidade que
{*) rsul.n. 80.
140 LIVRO I DA HISTO:\!A DS g. DOMINGOS
tinlia coirx Deos, e as grnças que i'io (lava, em quanto podia formar voz.
Chamava estes males, mimos ceies' iaes : e aiTirmava que erão tamanhas
as consolações qne no ponto mais alio cia tribulação sintia, qne exce-
dião a capacidade de sua alma : e podendo o corpo com a guerra dos
traijalhos, a alma não podia com as mercês, e favores. Mas continuando
03 accidentes; a cabo de hum anno vierão a derribar de todo a nature-
za já por si calda, .e passarão-na a melhor vida, com hnm.íransiíotãobem
assombrado, e santo, que em todo o mosteiro deixou saudade, eenveja. F]
não se duvida que foi por ella muilo antes conhecido. Porque tinha mandado
avisar a certo Religioso de quem sabia que a encomendava a Deos, que quan-
do lhe disessem que tinha mal em hum pé, soubesse qae acabava sua carrei-
ra. Deu-lhe este mal dez dias antes da morte. Três Rehgiosas de credito
aíTirmaruo, que na mesma conjunção, que todas andavão em pranto po-
la defunta, ouvirão exceiiente musica de vozes, sem poderem atinar onde
era. O que de certo consta he, que estando por soterrar vintequatro
horas, estavão suas maons, e braços tão meneáveis, e brandos, como
quando mais saúde tinlia. E a cabo de trinta e oito dias que a sepultu-
ra esteve sem campa, houve hum oaicial que com hum escopro se atre-
veo a fazer força nas taboas do caixão em que estava, e aífirmou que sa-
bia delle suave clieiro : o que logo foi confirmado por outros que che-
garão a fazer a mesma experiência. Também se avenguou que dentro do
Mosteyro, e fora delle alcançarão saúde repentina, e quasi desesperada
algumas pessoas enfermas aplicando reliquias da defunta, e valando-se
da fé' de seus merecimentos. Forão irmaons desta Religiosa Nicolao de
Fi ias Architecío dei Rei dom. Felipe o primeiro de Portugal, e o P. An-
tónio de Frias Prior de Unlios, Igreja de grossa renda, em cujo serviço
fji bom imitador dos virtudes de sua irmã, como também o foi a Ma-
dre Sor ínes de Jesu Freira de S. Domingos no nosso }ríosieiro de Abran-
tc?, c também irmã sua.
Concluamos esta memoria com o que delia se fica collegindo, que são
duas cousas. A primeira que foça o leitor Juizo desta Casa, segando as
regras dos bons descubridores de minas d"ouro, os quaes dão por certo
sinal de riqmeza nas entranhas da terra, guando as mosí.ias superíidaes
são de metal fino. A segunda he. que saibão as Religiosas delia, que
lodos estes bens devem á doutrina, e santidade daqueile grande espirito
que Deos foi servido dar-lhes por seu primeiro Mestre, e íandadoi-, que
foi nosso glorioso Pauiarclia São Domingos.
PARTICULAU DO REINO DE PORTUGAL 141
CAPITULO XXYIII
Do granch aug:ne;itO, e rtrosperiãnde da Provinda de Espanha^ noíeiupo que
foi governada por dom Frei Sueiro. Dd-se couta de sen grande espiriío, e
virtudes, e dos annos que viveo.
Doz-3 annos continuos achamos qae governou dom Frei Sueiro esía
Proviacia que havemos de chamar Espanha sem agravo dos reinos par-
ticulares delia, em quanto andar unida, e sem divisão de membros. Tal
era sua prudência, íais suas virtudes, que se moitoá mais vivera, -todos
9 governara. Noíava-se em seu tempo que a ollsos vistos crecião iodos os
bens nella, assi espiriíuaes, como temporaes. Favor do Ceo em grandes
sojeiíos que se vinhão ao hauiío, e em grande espiriío que Beos dava a
todos. Favor dos Reis cm honrarem a Ordem: amor do povo em a esti-
mar, pedindo tantas cidades pregadores, e desejando Conventos por to-
da Espanha, que não era possível poder-se acudir a todas com o mime-
ro, e calidade de Religiosos que pêra fundar convinhiío. Assi íicarão
princiítiados muitos, que todos referem sua origem a dom Frei Sueiro,
e iodos o tem por seu fundador: e os grandes Religiosos que nelies profes-
sarão, que forão muitos, e muitos delles Santos, o reconhecem por Pai. Que
quando não íeveramos^dito, nem. por dizer oulra cousa deste famoso Porlu-
guez, parecia bastante pcra credito, o honra, e testimunho do seu so-
berano espirito contarmos somente as virtudes dos súbditos. Ganhão os
soldados a victoria, conqaistão o Reino : m.uila honra lie de cada hum :
mas toda junta, e a de cada soldado se refere ao Capitão. Porque ain-
da que muiias maons fazem muito, numa cabeça que as menea todas he
a que acaba tudo. Foi o primei ro a reconhecer esta verdade o admi-
rável Santo Barcelonòs S. Hay mundo, Santo que antes de cumprir anno
iníeiro nesta ReligiSo, íbi fundador doutra. Na Summa de Casos, que á
instancia de dom Frei Sueiro fez, lhe chama Beatíssimo, dodicando-Iha
com este titulo no prologo : Reverendo et Deulissimo Fatri in Christo Fra-
tri Gometio Priori Fratnim Qrdinis Prcedicaíorwn in Hi-^pania Fr ater Ray-
inundusds Pcnniafurt. Filhos si^ seus pela mesma conta, hum S. FreiPon-
cio de Planedis, pois começam.os por terras da Coroa de Aragão, que
sendo Inquisidor morreo á mio de hereges, e morto fez o milagre de
Jesué em Gabaom, (*) c do Mestre de Santiago dom Payo Correia Portugue-z
(•) J'.suc iO.
142 LIVUO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
no Algarve. (*) iMas com esta ventagem, que elles fizerão-no em vida, e Frei
Poncio já tornado terra iria. Lá teve o Sol obediência a vozes huma-
nas: cá respeito a ossos secos, e mjdos, porque parou em seu curso
por espaço de seis horas, e tantas foi maior o dia das exéquias deste
Santo pêra serem dignamente solenizadas. íliim Frei Pedro Cendra mi-
lagroso, que em sinal das muitas alnas, qne alluminou com sua doutri-
na, deu luz corporal a quatorze cegos sobre outras grandes maravilhas,
líum Frei Miguel Bennazar Malhorquin, qne na infidelidade Mahomeíica
nacido, deu affamado Santo convertido, Em seu nome forão recebidos á
Ordem S. Frei Gil, e S. Pêro Gonçalves Telmo em Palencia : o Santo
Frei Lourenço Mendes em Guimaraens : e no mesmo lugar S. Gonçalo do
Amarante, cujos milagres são hoje tão ordinários, como trezentos e cin-
quenta annos atrás, quando erão quotidianos. De sua mão lançou o habito
ao Santo Frei Paio, Santo encoberto, e desconliecido na vida ; glorioso
despois de morto, em Coimbra, como outro Santo Aleixo em Roma. De
•sua mão o deu em Montejunto a hum Chantre da Sé de Lisboa, grande
em nobreza de sangue, maior em santidade, que por tal foi nomeado
por seu adjunto em negocio de tanto peso, como a composição atrás re-
ferida dei Rei dom Sancho com o Arcebispo de Braga.
Mas todas estas excollencias de dom. Frei Sueiro podemos referir a
outra maior sua, qual foi ser filho, e companheiro, de nosso grande Pa-
triarcha, ajudator inseparável de seus primeiros trabalhos, criado aos
peitos de sua doutrina, em a qual procurou imilal-o tanto ao vivo, que
pêra de todo o tresladar em si, não lhe faltou mais que o nome : e assi
foi outro S. Domingos cm tudo o mais. Bem o conhecia o Pai, que não
só nas obras, mas dentro nos peitos espiava coraçoens, polo espirito
profético que do Ceo tinha. E vendo o thesouro que aqucUe vaso de bar-
ro escondia, havendo de mandar Apóstolos á pátria que amava, foi eilo
hum dos escolhidos pêra tão honrada missão : e sendo quatro os que
mandava, dos quais os três Ihè tocavão mais por lingoa, e vizinhança de
nacimento, e merecião muito por valor, e partes : todavia desde logo lhe
deu o primeiro lugar, e despois l!io confirmou fazendo o pai de toda a
Província. Foi a causa, que quanto mais adiantava na idade, e no exer-
cício de superior, mais se aventajava nas partes que lhe tinlião dado o
{*] F. Francisco Oingo 1. \. c. 4. da lli;l. da Ordem em Aras-Zurita I. 3. c. lli. ilos Anais
de Aras. Paramo 1. 2. t. i. c. 8.
PARTICULAR DO RKINO DE PORTUGAL |43
cargo : que lie grande prova de virtude conserval-a mandando, quanto
mais melhoral-a.
Consideremos agora quais erão os companheiros, porá alcançarmos por
verdadeira proporgão a medida, e grandeza do que lhe foi dado por
prelado. O que cliamavão Frei Domingos pequeno, foi em tudo o mais
tamanho, qae a olle aconteceo aqueile memorável caso (*), que airevendo-
se a tental-o, socapa de virtude, huma miserável fêmea, instigada de mi-
nistros de Satanás, qiie não podião sofrer a força de suas reprensoons:
elle lhe olTereceo por cama hum monte de brasas abanadas, nas quais
se lançou assi vestido como estava : e como se em cania de rosas se re-
clinara, assi esteve quieto, sem o fogo se atrever a oífundel-o, nem em
hum pelo do habito, pasmando os que vinluio de conceito, e segredo
pêra testemunhas do pretendido insulto, e ficando attonita a tentadora
de medo, e de confusão: que todavia lhe valeo pêra meio de salvação,
como o foi de honra pêra o Santo. E tal era o pequeno : e por elle po-
deremos fazer juizo das calidades dos outros dous. Bem salsia quem os-
ajuntou, que havia conveniência entre todos, e não se pode cuidar me-
nos. De tal gente se deu o governo a dom Frei Saeiro, e sendo isto pc^
ra elle hum novo género de ob.iigação, pêra em alto grão aíiinar todas
as virtudes, como fez : pêra nós he claro indicio da grande roputação que
por toda Espanha devia ter de Santo. Assi o mostra sintir o Mestre Frei
Francisco Diago na Crónica da Pi'ovincia de xVragão dizendo :
Santo Domingo hizo Provincialeá de su mano ai Santo Frai lordan
de Lombardia, y a Fray Suero de Espanha, que devio sin duda ser vn
Santo. Porque pues Santo Domingo quando en Tolosa entendió en em-
biar sus hijos por el mundo, embiandolos tales, a cada parte, que algu-
nos dellos fuessem Santos, qual fue Fray Miguel de Fabra entre los que
embió a Paris, Fray Pedro Gellan entre los que embió a Limoges : no
privo deste don tan dei cielo a Espanha por ser su pátria, et. E o mex-
mo juizo faz o Mestre Frei Fernando de Castilho na líidoria •jcral da Ordem,
cujas palavras formais são. Era entonces Provincial en estos Reynos de
Castilla Fray Suero, hombre de mucha prudência y santidady, y de tan-
tas partes, que pai'a saber quantas y quaíes eran, basta saber que le
auia puesto em el oíTicio el mismo Santo Domingo en el Capitulo Gene-
ral próximo passado, y aora entendia en cl govierno yacrecentamiento
de la Orden en toda Espanha, etc.
(•) Casl.lli. p. I. 1. i. c. 29 ílamb. p. í. Le:iiui. 1. li. l'hm. 1. i.
•1Í4 LIVRO I DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
E não obstante nem faz ao caso faltamos noticia particular do snas
penitencias, jejuns, vigílias, oração, e caridade: e ignorarOiOS pi"odigius,
e milagres, lesíernirnhadores da valia qne por estas virtudes linha com
Dôos. Porque como os Santos, sendo todos huns em serem Santos, não
o são sempre pola mesma via, e modo de saníid;idô: assi ordena, e per-
mitte aquelle, que os sobe a esse estado, qne linns vivão com grande
nomo no mundo: e outros que por suas obras merecião a mesma honra,
scjão como peregrinos n'ell8 ignoi'3dos, e desconhecidos. íiuns olrrem
grandes maiavilhas: outros de igual virtude não facão huma em toda a
vida. íluns vivão cheios de mimos, e consolações do Ceo: outros aiidem
sempre desconsolados, famintos, e desfavorecidos d"eHe: e todavia igual-
mente filhos, e igualmente Santos. Esta be aqueila variedade que o Psal-
misía gaba nos panos á"ouro(*),e roupas bordadas, que com grande graça
vestem a Esposa sagrada. Do que pudéramos apontar exen][)l;}s, senão
fora forçado irmo-nos recolhendo. Quem lé as vidas dos Santos me for-
•rará o trabalho. E quem souber lançar boas contas, e quizer salter as
estreitas mortificações de dom Frei Sueiro, sua ievantada coíiíemplação,
seu ardentissimo amor pêra com Deos, e com os próximos: os cegos a
q:ie deu vista em corpo, e alma, os coxos a que deu pes, os mudos a
que deu fala, os enfermos que sarou, e em fim os morti« L]iie resnsci-
íoii: veja, e considere tudo o que fizei^ão todos os Santos que atrás no-
meamos, e os que ao diante apontaremos, e haja que te.m adiado o qne
fez dom Frei Sueiro. Porque qaanio elles obrarão, e iodos os que o co-
nhecerão por pai, tudo llie rende lioje louvor na terra, e grandes grãos
de gloria accidental no Ceo : e tanto por ventura mais avantajjulQS lá,
quanto cá foi menos celebrado seu -valor. Viveu dom Frei Sueiro no cai'go
doze annos: faleceu cortado mais de trabai(u.)s, e penitencias, e longos
cam.inhos, que da idade. Escondeo-nos o tem;)o, e o descuido dos bo-
dos homens sua sepultura, como as mais particoiaridades de sua vida,
e morte, que puderão fazer esta Historia estimada, e deleitosa. Segundo
os annos que governou, e o em que foi eleito, veio a folocer na arsno
de Í233. O s;]Ccessor que teve foi lam.bem Portnguez. Declarar-se-ha
seu nome no discurso da Historia : e n^o se diz agora por não coií-
fundirmos com cousas posteriores as aiitecedenícs , e primeiras cm
tempo. Porque como esta Historia ho particular das fundações dos Con-
ventos, e dos varões il lustres qu-c nY-lles fiorecerão, e de cada hum
(•) Pjahn, i5.
PAHTICILAR DO líKl.NO DE POUTltiAL li,')
havciíios de fazer relação continuada, como lhe chegar polo curso, o or-
dem dos annos sua fundação, sem ficar nada por dizer do que achar-
mos notável até nossa idade: não he possivol pêra clareza, e disíinção
dos successos. leval-os atados aos Provinciais, mormente d'aqui em
diante, que vão multi[)licando fundações : e fora grande confusão que-
rer ir tocando, e tratando todas juntamente, e seguindo a passo igual
os Provinciais. E se o íizemos com dom Frei Sueiro, foi a causa achar-
mos este principio desabafado de fundações: e ser elle primeiro Pi-ovin-
cial nosso, ePortuguez: e devermos-lhe tudo, pois esta escritura he
de varões illuslres, por illustrissimo Pai, e fundador nosso.
VOL. 1. 10
LIVRO SEGL^DO
DA
HISTORIA DE S. DOMINGOS
PARTICULAR DO REINO, E CONQUISTAS DE PORTUGAL
CAPÍTLLO I.
Do sido da \illa de Santarém : e do que nellasedeu de novo ao Convento de S.
Domingos de Montijrds.
Havendo de tratar do sitio, e fabrica do Convento, que a Ordem tem
hoje no alto da villa de Santarém, primeiro treslado da casa, que ii'\(^
no baixo delia em Montijrás, e segundo da que teve em Montejunlo :
com os quais treslados he cabeça de todos os Conventos de Espaniia,
não só de Portugal: parece necessário darmos primeiro noticia da villa,
e do assento, e calidades delia. E não hei por mal empregado, nem oci-
oso o trabalho: porque imagino que escrevo pêra as províncias eslra-
nlias grandes, e dilatadas, tanto como pêra a minha pequena, e estrei-
ta. E desejo não ser colhido na culpa, que vejo reprender cada hora em
outros escritores, que fazendo conta que escrevem só pêra os seus, o
temendo parecer sobejos com particularizar muitas cousas, ficão curtos
até pêra os mesmos: e escuros, e confusos pêra os estrangeiros.
 quatorze legoas de Lisboa polo Tejo acima, epi cabo de terras do-
bradas, e montuosas, e principio de grandes mares de cam{)inas levan-
tou a natureza, como marco entre montanhas, e campo huma junta de
montes dependurados sobre a margem direita do rio, e tanto mais altos
que toda a outra terra : que de qualquer parte que sejão buscados, so
deixa ver muitas legoas ao longe, como se forão hnnia mui empinada
J48 I.iVUO II DA niSTOIUA DE S. DOMINGOS
serra. São os moiítes lioni considerados, sete, todos divididos com pro-
fundos valles poias fraldas, huns mais, outros menos, c cada hum com
sua diíTeronra, mas de maneira juntos nas cabeças, que f;izem sobre a>
coroas Imm plano igual, e comum a todos sete, cap:tz de huma í^rande
povoação, cora largueza de praças, e commodidade pêra maior povo, o
tal he Santarém. Para dar a entender osto sitio a quem o nío vio. se-
guiremos o costume dos Geógrafos, que usão de comparação de alguns
membros do corpo humano, pêra sé declararem na significação de ou-
tros do grande corpo da terra. Representar-nos-Iia !)em o plano íjue temos
dito com suas aberturas de valtes, huma mão esquerda apartada do bra-
ço, com a palma, e dedos estendidos, e divididos hum do outro quanto
naturalmente se podem alargar : se assentarmos a mão de maneira, que
o tledo do meio corra direitamente contra o Sul, e o coito da mão fique
no Norte. Assi ficão sendo primeiros montes os dous cantos do collo da
mão, e primeira parte do piano sobre elles a palma até o m.eio, que he
huma formosa, e esíendida praça diante da porta que chauião de Leiria,
que fica ao Norte da villa, cercada de Mosteiros, e casas nobres, o por
rezão do uso em que serve muitos dias do anno tem nome de Chão da
Feira. Estes primeiros montes são divididos de hum valle que vai su-
bindo por entre elles, e trazendo a estrada que vem de Leiíia até dar
no plano do Chão da Feira, e primeira parte da palma, e na porta que
chamão de Leiria. Nos cantos desta grande praça estão situados da parte
de Ponenle o Mosteiro novo de S. Domingos, de que de presente ha-
vemos de tratar. E no outro de Levante o Mosleiro da Trindade.
Faz terceiro monte, (porque não deixemos a semelhança, com que
começamos), o dedo poltegar : e na primeira jsinta, ou raiz d"elle fica
assentado o Convento do S. Francisco. E logo adiante, quasi no meio
do dedo tem seu assento o grande Mosteiro de Santa Clara, casa muito
antiga, e nobre e do grande Religião: o na ca!>eça d'elle a Ermida dos
Apóstolos, que está á conta de Religiosos de S. Bento.
Da porta de Leiria, que assentamos no meio da palma, dá o muro
da villa huma volta larga, em que comprende hum Casíello antigo, e
casa real juntamente, e deixando ainda livre hum espaço da palma, vai
entestar na raiz do dedo maior, e eslendendo-se por clle até á ponta,
abraça d"es{a parte tudo o que he cercado de muro na villa: deixando
na me^ma raiz outra porta que chamão de Mansos; e tanta praça diante
(jue dá lugar á se conununicai' com a praça maior do Chão da Feira.
PAIlTlCULAn no HKINO DE PORITT.AL 140
Corre a povoação polo resto da palma, e polo plano dos dedos, que
Fazem quarto, e (luinto montes. A do dedo maior vai direita ao Sul, e
tem por remate liiuu Mosteiro de Capuchos, e hum moinho de vento.
Aqui teve a casa de Bragança antigamente lium bom aposento que agora
estcá gor terra, como estão outros muitos na vilia que forão de nome.
O bairro que toma o index vai fazer na ponta huma fortaleza guerreira,
c fermosa, e com tanta praça dentro, que a faz a huma boa Igreja, e
algumas casas nobres, e por isso retém o nome antigo de Alcáçova. In-
clina este monte pêra o nacente lauto como nos representa o mesmo
dedo bem afastado do companheiro, e vai beber no rio com hum grande,
e dependurado barrocal, que por três partes acompanha a fortaleza, e
a faz inaccessivel. Não he pêra esquecer que dentro n"ella a hum lado
da enti^da criou a natureza hum outeiro, ou tumulo de ten"a, redondo,
e como feito a mão, que crecendo em boa altura sustenta no alto huma
torre, d'onde em dias claros se devisa a cidade de Lisltoa: e devia
servir pêra em tempos de guerra se darem avisos com fogo.
Os vazios entre os dedos, e por fora d'elles, são valles profundes,
como temos dito, com costas, e quebradas mui agras, exceito o valle
que sobe ao collo da mão dividindo, segundo fica mostrado, os dous
primí'iros montes. Porque este vem subindo de longe, e faz a entrada
menos cos tosa.
O primeiro valle, que seguindo a nossa comparação, abre entre o
poUegai', e Index : assi como na mão se faz maior abertura entre estes
dous dedos, que nos outros, assi he muito mais largo, e capaz, e com-
preude hum grande arrabalde ; que com a commodidade do rio que o
lava, e lhe deu o nome. (chama-se a Ribeira), tem crecido tanto, que faz
representação de huma grande villa ornada de boas Igrejas, e suas pra-
ças. N'este valle ao pè do monte dos Apóstolos que dece do pollegar,
he o sitio que atrás dissemos, do nosso recolhimento de Àlontijrás.
O segundo valle he entre o índex, e o maior. E assi como estes de-
dos naturalmente abrem menos, também o valle que entre elles, fica he
mais apertado, sendo ignahnente fundo, e hum arrabalde que por elle
se estende até o rio he de menos conta em grandeza, e gente, e edifí-
cio, (chama-se Alfange).
Entre o dedo maior, e o quarto, (que os Latinos chamão annular
do costume, que havia de não pejarem outro com os anéis, que erão
insígnia dos nobres), corre outra semelhante quebrada até a porta de
loO Livr.o !i DA iiistop.lv de s. domingos
Mansos, e faz o monte sexío : polo loniljo do qual corre hum espaço a
estrada que sae d"esl,a porta pêra Lisboa, acompanhada de humas Er-
midas, e do hum pequeno arrabalde, e logo faz grande queda pêra o
baixo, íicaud) o sétimo monte no dedo minimo, mas muito mais curto,
ecom menos representação entre os mais montes, da (jue elle tem en-
li'e os dedos: e n"elle pegados com a palma assenião juntamente hoje
uoiis -Mosteiros, lium de Frades da Terceira regra de S. Francisco so-
lirc o valle do Annular: e outro do Freiras de S. Domingos, (jue olha
sobre as ladeiras que decem do dedo minimo da parte de fora, e do
canto da mão. Tal he a foima que hoje tem a villa de Santarém. E qua-
dra-lhe bem a comparação, pola semelhança que tem com a cidade de
VoUerra na provinda de Toscana em Itália, chamada na lingoa Latina
Wila Tcrr.i! ('), que hc o mesmo, que palma da mão da terra, E he de
saber, que no tempo que a ella veio a nossa Ordem, não tinha Mos-
teh'0 nenhum. E só se via no mesmo lugar, onde hoje he nosso Con-
vénio dos Frades huma pequena Ermida da invocação de nossa Senhora
(la Oliveira, que com elle se extinguio: e junto aonde he o das Freiras,
outra que aiuíla dura, com titulo, e nome da Madalena.
A estes montes assi juntos, e viila assi situada vem demandar o Tejo
par meio de largos campos com impetuosa cori'ente, e cortando polas
raízes do alto monte da Alcáçova faz seu curso direito contra Lisboa.
Ue este higar insigne por antiguidade, e por abundância de bens do
Oo, e da terra. Os do Coo são duas espantosas memorias que n"elle
se conservão ha muitos centenares de annos dos mysterios de nossa fé.
jíuma n"aquelle milagre dos milagres que por excellencia chamamos o
Santo Miíagi-e, onde está Christo Senhor nosso sacramentalmente envolto
em sou próprio sangue, como nos corporais de Daroca em Aragão; da
(]ual faremos relação mais parlicular ao diante, na parte onde pertence
a esla historia. A outia memoria a figura de hum Christo crucificado,
despegado de ambos os bi"aços da Cruz, e todo inclinado, e dobrado
de corpo, e cabeça, e sustentado só no cravo dos pés, que se guarda
com veneração a cargo de Religiosos de S. Bento, no oratório do moníe
dos Apóstolos, (caso digno de larga historia, succedido em favor, e tes-
temunho de honra de uma aííligida mollier). Também he celestial ma-
ravilha o sepulcro da gloriosa Portugueza virgem, e martyr S. Irena
(que hoje chamamos Eyria), fabricado por maons de Anjos nas entranhas
(•) Sliul). 1. j. riin. 1. 3. c. •;. •
PARTICULAR DO REINO DK rriRTíT.AI. ISl
do rio, defronte do arrebalde da Ribeira, e (ia Igreja, em qae he vene-
rada ao longo da agoa. Foi mor ia á espada na vi lia do Thomar no anno
de 6o3 por honra da pureza virginal, e como victima d"ella(*). E sendo
laneada no rio Nabão veio milagrosamente por elle ao Zêzere, e do Zê-
zere ao Tejo, e em fim parar, e sepultar-se n'este lugar pêra honrar
com sen nome a villa. Com o de Escalaliis foi ella conhecida mnito antes
qns a conhecessem Romanos (**): e tanto atrás que não falta quem queira
referir sua origem a hum Abydis Rei vigésimo quarto dos que em Es-
panlia florecerão logo despois do diluvio por successão continuada. A
ambição Romana, que em nome como em posse queria fazer tudo seu,
iie poz o de Prcesidhim luJium, e metendo dentro moradores Romanos,
como quem conhecia a força do sitio, honrou-a com titulo, e privilégios
de Colónia Romana. E porque o lugar era capaz de tudo, assentou n'elle
huma das três Relações ou casas de justiça, com que se governava a Lu-
sitânia, a qLie chamavão Conventos jurídicos.
Faz aqui o rio huma agradável divisão, deixando á parte direita, e
Occidental, onde fica a villa, tudo o que ha de montuoso, e íí esquerda
estendidas campinas, que fertiliza com suas enchentes, como faz aoEgypto
o seu Nilo. E com tudo tal fertilidade tem os montes, que se atrevem
a competir com os campos. Porque se estes são ricos de todo género de
gi'ão: enriquece os montes hum bosque continuo de olivais, que os co-
bre até os muros da villa. E da mesma maneira que os campos parecem
cheios de fermosos casais, e instrumentos de lavoura, e povoados de
lodo género de criação de gado: assi poios montes se vem infmitas Quin-
tas de bom edifício cercadas de vinhas, e pumares, e hortas, regadas
de fontes, e arroyos de agoas excelleníes. E se o campo he agradável de
inverno pola caça, e muita volateria que n"elle ha: faz ao monte deleitoso
no verão a frescura, e alegria dos bosques, e grande abundância de fruitas
de toda sorte. E he bem de espantar, qao costiimanio a terra deliciosa
produzir os homens semelhantes a si mesma, quero dizer de corpos, e ani -
mos pouco varonis: esta polo contrario tem dado por todas as idades gente
de grande valor, como pudéramos mostrar com exemplos, se nos derão
licença as leis da Historia. A villa he morada do mais famílias illustres
que todos os mais lugares de Reino despois de Lisboa, c quasi solar
d'elles, pola magnificência de casas que ahi tem de tempos antigos
(•] I.ciula anliga da Santa.
(••} 1'. Bern. de Britj na Mon. Lu-il. p. i. 1. i. c 22.
132 LIVRO II DA HISTORÍA DE S. DOMINGOS
edificadas. Polo mesmo modo vomos irella muitos, e grandes templos :
c sustenta Mosteiros de quasi todas as Ordens, ricos de rendas, e edi-
fícios, de dourados, e pinturas nos altares, e muita prata lavrada, e re-
líquias santas nas sacristias.
Pêra tal terra tresladou dom Frei Sueiro o seu Convento de Monte-
junto: e comi não estava contente do posto de Montijrás, com quanto
a força dos negócios da Província o trazia repartido em grandes cuida-
dos, não cessava de lembrar a Frei Domingos de Cubo, que tinha a cargo
o recolhimento, como atrás dissemos, que procurasse chegar-se pêra
mais vizinhança da villa. Pofqtie além dos inconvenientes de ficarem longe
em Montijrás, devião descubrir-sc outros no sitio, de pouco sadio de
verão com os aros do campo, e com a humidade do monte no inverno. Não se
descuidou Frei Domingos: e considerando muitos postos, veio a satisfa-
zer-se de iunn junto da Ermida da Madalena, no chão que posemos na
laiz do dedo mínimo, ou monte sétimo da nossa descripção, que he o
mesmo lugar em que lioje vemos o Mosteiro de Freiras da nossa Ordem,
que vulgarmente chamão das Donas. Tratou da compra. Como se soube
na villa, sobejou-lhe tudo.
CAPITULO II
Começa-se a obra da casa nova nn primeiro silio que se comprou. Stispen-
de-se por hum estranho caso, e fundn-se a casa em outro. Dd-se conta
de quem foi o que deu a traça da Ljreja, e crasta.
Igualmente desejavão os moradores da villa, e os Religiosos a pas-
sagem do recolhimento de Montijrás pêra o alto: e huns, e outros com
íim santo, e cheio do caridade, mais que por interesse próprio: os Fra-
des sintindo a descommodidade que era pêra os vizinhos irem ao baixo
buscar a pregação, ,e officios Divinos: os vizinhos doendo-se do traba-
lho que custavão aos Frades as pregações, e qualquer outra obra de
caridade, pêra que erão chamados na villa. Assi derão pressa todos, e
como de mão commum a Fr. Domingos, que não dilatasse a obra. Co-
meçou elle a abrir os alicesses com geral gosto do povo. Acudião os
devotos com todo género de materiais, e os Religiosos todos ao traba-
lho sem exccição de pessoa. Mas a cabo de poucos dias succedeo cousa
que deu muito que cuidar, e suspendendo a fabrica em fim fez mudar
o intento. Foi caso mui estranho, e que eu me não atrevera a por n"es-
PARTICILAU DO REl.NO DIC PORTLGAL 153
lf3S cscrilos, polo grande cuidado com que vou, de que não pareça n'el-
les cousa que faça a verdade suspeitosa, sendo ella só a que dá alma, e
vida á historia; se me não tirara o escrúpulo a tradição antiquíssima que
o tem acreditado, c rece])!do por toda a Província. Deixavão os oíficiais
quando á noite despegavão do trabalho, juntos, c basíantemenle arre-
cadados os instruinentos de que se servião na obra; que devia ser fe-
cliando-os em alguma casa que houvesse no sitio. Eis que hum dia ama-
nhecendo n'elle pêra trabalharem, não achão ferramenta, e a casa tão
hmpa, que nem huma só peça havia. Não pareceo ladroice, por ser,
como era, o IV.río pouco cubiçoso. Menos cuidavão em zombaria, ou tra-
vessura de ociosos, como igualmente pesada pêra huma grande ociosi-
dade. Fizerão diligencia, queixarão-sc os Religiosos, falou-sc muito no
furto. A caso se soube que em luima Ermida não pouco distante, lera
a de JXossa Senhora da Oliveira situada, como atrás dissemos, no monte
primeiro, e canto direito da palma da nossa comparação), estava lançada
huma copia de semelhantes instrumentos: forão lá, acharão toda sua fa-
zenda junta, assi como a tinhão deixado a noite d"antes, sem faltar nada.
Tornarão a trabalhar sem fazer caso, ou fazendo graça do successo; e
todavia ao recolher houve cuidado de a deixar em lugar ao parecer mais
seguro. Quando foi pola manhani, acharão-se escarnecidos, e roubados,
como no dia afras: mas houve menos fadiga na busca: foi hum correndo
á mesma Ermida, e achou tudo. Isío contão que succcdeo mais vezes,
(í ou fosse que o roubo mysteíioso fizesse força aos Religiosos: ou que
o sitio da Ermida lhes agradasse mais, juntamente começarão a tratar
d'elle, e levantaião mão da obra, em que se trabalhava. Era a Ermida
annexa da Igreja collegiada de Nossa Senhora da Alcaçava da mesma
villa: fizerão os Cónegos liberal doação iVella á Ordem. E como o nego-
cio vinha traçado do Alto, d'onde vem todo o bem, porque deste canto
da terra se queria o Ceo povoar de muitos Santos^ alargou-se logo o
sitio com huma grande Quinta, que huma Senhora nobre oíTereceo aos
Religiosos, tão a propósito d"elle,que o cingia todo: e ílcarão com casas,
vinha, pumares, c olivais junto com Igreja. Era isto Mosteiro quasi feito,
e Frei Domingos alegre com o successo não duvidou despejar logo Mon-
tijrás, e recolher-se com seus Frades na casa nova, que doeste dia em
diante foi perdendo o primeiro nome na memoria do povo, mas não da
Religião, que por lho conservar dedicou o aliar mor a Nossa Senhora
da Oliveira, como se vê na pintura delle.
15i LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
Estava viva nos ânimos dos súbditos a queixa que o Patriarclia São
Domingos fizera em Bolonha, e não sem lagrimas, quando vindo de fora,
achou crescidos os limites da traça que encommendara, (e era crecimento
assaz pequeno). Esta memoria obrigou a Fr. Domingos a dar o Convento
por acabado com pouco feitio. O maior que ouve foi levantar huma casa
térrea grande, e comprida, abrir-lhe janellas altas nos topos, lançar hum
corredor de taboado polo meio, dividil-o despois em cellas, e ficar dor-
mitório. E tal gasalhado sérvio tantos annos, que dura inda iioje a lem-
brança do lugar que occupava. Aqui trabalhavão todos igualmente ser-
vindo aos mestres da obra no que cumpria. Não se desdenhavão as mãos
sagradas de amassar o barro, nem as costas moidas com disciplinas
refusavão carregar a pedra : e edificando pêra si criavão outro edifício
mais alto, e mais importante nos ânimos do povo, que acudia em ban-
dos a vèr, e considerar com devação, e alegria tais alveneres. E tenho
por certo que muitos dos melhores d'elle fazendo juizo que aquella fa-
brica era mais própria sua, e pêra sou bem espiritual encaminhada,
que pêra os mesmos que nella suavão cheios de pó; lançarião mão das
enxadas, e padiolas, tendo por dita serem companheiros, e participan-
tes em tal obra.
Aqui he lugar de averiguarmos o anno em que este edifício teve
principio, como ponto que em todos os de consideração he o primeiro
que se busca. Escritura d'onde o possamos acliar não ha nenhuma. Assi
he necessário buscarmol-o por lanços de conveniências, e boas conjei-
turas. Em todos os escritores da vida do Padre S. Frei Gil achamos,
sem discrepar nenhum, que ao sétimo anno de sua conversão lha tor-
nou o enemigo do género humano hum escrito de vassalagem, qvie de
seu sangue lhe tinha feito, como adiante o contará a Historia. Achamos
também que o anno de sua conversão foi o mesmo em que os nossos
Frades comcçavão ^ edificar casa em Palencia, porque n'elle, e n'ella
recebeo o habito. Os ineb*mos escritores coiíformão que o escrito lhe foi
restituído n'esta casa de Santarém, na Capclla do Capitulo d'ella, e con-
firmão a tradição universal da villa, e da província, mostrando na Ca-
pella, que hoje he a mesma, lugar particular, e próprio por onde o
papel veio decendo do alto. Logo achado o anno da fundação de Palen-
cia, que por ser dos mui antigos de Castella podemos crer succedeu por
fipa do anno de 1219, resulta que acabado o de 1220 tinha Frei Gil
cumpridos sete de sua conversão, e polo conseguinte estava já em pé,
PAr.TIClLAR DO REINO DE PORTUGAL {1)1}
e corrcale o, Convento de S;iníarein, pois em tal tempo havia recebiflo
ii"elle o seu esfrito. E (juaiido lhe não demos mais qne hum anno pêra
estar acabado n"af{Ui'lla pobreza, e humildade primeira que então se cos-
tumava, fica-nos caindo sua fundação no aiuio de l22o, em que ao pa-
recer não cabe duvida. Assi não esliverão os Religiosos dons annos per-
feitos em Monlijrás.
Formado o Convento, e agasalhados os Frades, ficava-se só sintindo
a pouca capacidade da Ermida. Poi'que a muita devação, e concurso
que havia de gente ás pregações, e doutrina obrigava a porem o púlpito
fora. Suprio-se o defeito por então com imm grande alpendre alto, e
capaz, mas sem mais feitio que quaiito bastasse pêra defender do Sol,
e da chuva. E d"aqui íicarão as alpendoradas que ainda hoje durão nos
Conventos mais antigos d"esteT\eino, como são Gumiarães, Porto, eAveii'o.
N"outros, como em Lisboa, e n"esíe de Santarém não são apagados os
sinais.
Mas não sofreo a devação dei Rei dom Sancho Segundo, que n'este
tempo já reinava, a descornmodidade que a nossa pohi-eza davaíio povo.
E como a maior nobreza dos grandes lugares são casas de oração suin-
ptuosas, e magnificas, mandou a Frei Domingos de Cubo, que no que
tocava a tudo o mais do Convento, seguisse embora as leis da S!;a or-
dem, mas quanto â Igreja, e craslas deixasse a traça á sua conta : e
mandou-as dizenliar na grandeza, e capacidade, que inda hoje luima, e
outra cousa representa. Porque posto (jue a Igreja está redificada de
poucos annos, não tem diiíerença da praça antiga, e a mesma ordem
vai no claustro. Como el Rei era pio, e naturalmente bem inclinado, não
tenho duvida, que como deu a traça devia ter tenção de acudir com a
despesa. Mas a cubica, e perversidade dos ministros não dei.xav-do ser bom
Rei, quem de seu era bonisiimo varão. Fora ditoso, se ou tevera brio
pêra não ílar o Reino, e governo doutro conselho mais que do seu, ou
achara junto de si prúvados de igual bondade, e polo menos, fieis. A falta
d "estes causou no Reino grandes calamidades, (como ao diante diremos),
c a elle o maior de todos os iníurtunios, que foi ver-se em vida despo-
jado de Reino, e honra, c íicar-lhe como por escarneo o titulo de Ca-
pello, que por Religioso merecia. No desterro, e na morte mostrou quão
largamente acudira á obra de (]ue se deu por architecto, se de sua von-
tade tevera livre jurdição, e do que entendia execução. Declarai -o-hemos
com huma verba tirada originalmente do testamento que fez em Toledo,
lo6 LlVRO h DA mSTOUlA DE S. DOMINGOS
onde está s^^puUado: Mando operi Pnedicaíonim de Santarém trecentos
morabilinos: et mando quòd dent eis de meu madeira de Vlishona, et de
alijs mcis locis quanta eis fuerit necessária í"). Estes maravedis se erão de
ouro, c da valia antiga, do que não ficou clareza, linha cada hum qui-
nhentos réis, porque sessenta fazião hum marco de ouro, e em seu lu-
gar succederão, segundo parece, as moedas de Cruz do mesmo valor, e
peso: e não era pequena esmolla pêra aquelles tempos, e psra o estado
em que se achava.
CAPITULO III
Prosegue a relação do edifício da casa nova de Santarém. Contão-se algU'
mas antiguidades tocantes a cila. Moslra-se como lhe pertence a pre-
cedência de todos os Conventos de Espanha.
Tardou a Igreja em se levantar muitos annos. Porque teve na traça
Rei, e faltou-lhe Rei no lavor. Faleceu dom Sancho, que a traçou: e seu
irmão, e successor dom Affoíiso Terceiro, inda que ajudou a obra com
boas esmolias, era como em cousa alheia, não como própria, (tão antigo
h,3 não querer ninguém continuar o que outrem começou). Assi ficando
a cargo dos Frades, fazia-se-lhes dilficuitoso em tempos apertados pe-
dir esmolias pêra o pão, e sustentação quotidiana, como pedião: e jun-
tamen^.e pêra pedra, e cal de fabrica realenga: e parando n^ella, servião-
se da Ermida. Podemos crer devião correr-se de a continuar por sua
autoridade, achando-sc postos em cerco por huma parte da traça que
já não podia tornar atrás, pelo cabedal que á conta do Rei defunto ti-
nhão metido: e por outra da regra, e constituições da Ordem, que se
bem dão licença pêra haver mais largueza nas Igrejas, que nos outros
membros dos Conventos: com tudo não permittem demasias. Estas per-
plexidades inferimos do muito tempo que durou a obra, e do remédio
que buscarão pêra 1140 íicar imperfeita, que foi impetrar do Summo Pon-
tiíice huma indulgência pêra os que dessem suas esmolias pêra se aca-
bar. As palavras da Bulia declarão o estado da Igreja dizendo: Quam ibi-
dem, aicut accepinms, coepcrunt oedificare. A Bulia está hoje viva no car-
tório doeste Convento, passada por Alexandre Quarto, anno terceiro de
seu Pontificado, que responde aos do Senhor de 1237. Achamos n'ella
digno de notar que foi a indulgência, cem dias de perdão: e devia ser
havida por bom favor.
['] Duarlc Kuncs de Li?boa na \iila de dom Sancho jirimeiro. f. 6j.
PARTICILAR DU lUilNO DK I'OUTl(;AL 157
Sahiii a Igreja grande, c alterosa em proporção, e como convinha
pcra tamanho povo: três naves, presbitérios atlfjs na que fica encostada
ao claustro: seu cruzeiro que só por si pudera fazer uma boa igreja :
n"elle a porta travessa, por onde he todo o serviço, por ficar mais vizinha
á villa. De todas as nossas Igrejas daquella idade foi esta a maior, ex-
ceitoadeLisboa, que se avenlajou em corpo, como também em padroei-
ro mais poderoso, e mais prospero, mas não na traça, que he a mesma
de Santarém. Também de todas as grandes he a que só ficou sem pa-
droeiro Ueal, e pola mesma rezão sem letra nem sinal que nos decla-
rasse tempo nem autor. Cousa bem estranha em Portugal, porque forão '
seus Reis por todas as idades tão Católicos, que nas obras pias, e ma-
gnificas tomarão sempre a maior parte: e d'aqui vem não vermos quasi
em todo o Reino Igreja de edificio custoso, sem escudo das armas Reais
por frontaria.
Todavia achamos duas memorias dei Rei dom AÍTonso Terceiro que
foi Conde de Bolonha, ambas em favor dos Religiosos d'este Convento,
nenhuma do edificio. Rezão he ficarem n'estes escritos por lionra da
antiguidade, e polo que então se estimou a mercê, ainda que pouco im-
portante. Residia nesta villa a casa, e corte do Civel, que el Itei dom
João o primeiro muitos annos despois passou pêra Lisboa, c em nossos
dias transferio el Rei dom Felippe, também primeiro pêra nós, á cidade
do Porto. Fizerão os Reis esta honra a Santarém, como em memoria da
que possuio longos annos cm tempo de Rom.anos, com o Convento ju-
rídico, que atrás dissemos. Era o lugar ordinário das execuções dos que
padecião por justiça, tão vizinho ao Convento, que ficavão nos olhos dos
Religiosos os que se eníbrcavão, ou queimavão. Nos primeiros annos sin-
tia-se pouco este mal, porque nos que reinou el Rei dom Sancho era
cousa mui rara hum justiçado, andando a terra cheia de malfeitores. Mas
entrando o governo severo, e inteiro de seu irmão, que lhe tomou o
Reino, como havia cuidado cm punir delitos, e delinquentes, tinhão os
Religiosos a miúdo vistas nojosas, com que se desconsolavão muito.
D'estas pedirão a el Rei que os livrasse, fez-lhes a mercê por uma carta
de sello pendente que vimos, e tresladamos do cartório do Convento, e
he a que se segue :
Âlfonsus Rex PorlxujaUice et Comes Bohniensis Praiori, Aluazilibus,
et Concilio Sanclarcuensi saluton. Sciatis quòd ego ntando et defendo
158 LIVI\0 II PA HISTORIA DK S. DO"\ir\t";OS
prmitcr sub pccnn corpnyum et luihere, quod nulhif; sil aiuns co\uhurrrc,
nec iusticiare liomiusiti. ncc f<icere grauamen aliípiod Fmtrihus Praidirn-
toribns ah tila via publica, quos vndlt reclè a ^'n-la Lp,>jrenna' uersus do-
mus Lcprosonnn v-iqiir; ad monaslerinni Fratni n Pr/cdicatorum SnncUirc-
nensium: qviu quicniique inde r.Und fecerit. reiíinnehit pro nostro ininilro,
et ego ailumniabor enin in corpnre, et iu 'uòere, et insiiper Icwóo incnn-
iurn de ipso. Bativ.n Saiirtiirennre ortaua die í)i'c''inbris ^Era M .CC.LXXXIX.
(respouíltí ao anno do S;!lvador d-i 1251). Esciisamos traduzir esla caila,
porqLie já fica fciía relação do que contem.
A outra mímoi'ia consta de carta passada com as mesmas solemni-
dades nove a.nnos adiante no de 121)0, a qaal por menos importante n^ío
tresladareinos, diremos só a sustancia. Parec3 que a dcvarlo indiscreta
de alguns seculares, despois que os padres Menores teverão também re-
colhiiHcnto ni villa, levantou controvérsia entre as duas Ordens, liavendo
nas mesmas Igrejas, em que ambas prégavão, quem pendia a huma mais
que a outra. Ciiegou a causa a el Hei, (juiz evitar diíTerenças, mandou
vir dous ileiigiosos estrangeiros a prazimenlo dos Frades, e de seus maio-
res, que partirão vinte, e duas Igrejas, e Ermidas, que então havia na
viUa, e arrabaldes, e assentarão que ficasse a cada Ordem numero igual.
E pêra tirar todo o escrúpulo, e lambem acudir cá inclinação, e devação
do povo, foi condição que cada seis meses fizessem troca, e alternativa
das Igrejas, de sorte que em cada hum anno se ouvisse nas mesmas
Igrejas doutrina d"ambas as Ordens. Está o concerto assinado poios jui-
zes árbitros, o polo mesmo Rei, (obra na verdade de animo benigno, e
mui Chiistão decer, e assistir a estas miudezas por manter paz entre
as religiões), lie pêra notar que entre as vinte duas Igrejas, que todas
vão especificadas, se conta também no arrabalde da ribeira a de S. Do-
mingos de Montijrás. D'onde se fica entendendo que não quiz largar o
nome que com a residência dos Frades herdou. E o não termos hoje
noticia d"elia, devia ser causa algum incêndio ou terremoto que a po-
sesse cm ruina: e sobrevindo discurso de annos a[)agou de todo a me-
moria. Este he tão poderoso, que basta só por si, inda que cesso a vio-
lência dos elementos, pêra destruir, e acabar os mais firmes, e fortes
edifícios da terra. Muito prometia durar o que nos tinha levantado coiíi
tanto trabalho, e despeza o Santo Frei Domingos do Cubo: mas quando
chegou o anno de lOOi, faltando ainda muitos pêra cumprir quatrocen-
PARTIGULAU DO RKINO DE POItTUGAL 159
tos de idade, estava já Ião danificado, que tpmplo, e claiislros se vinha
ludo desatando, e caindo por si. Assi temendo-se com bom juizo liuma
ruiua súbita, que podia succeder em liora que prejudicasse a muitos,
foi decretado na Provincia que se deslizessem, e de novo se redificassem
Era Provincial o Mestre Frei Manoel Coelho, que despois foi Inquisidor
em Lisboa: deu o cuidado ao Presentado Frei Sebastião de Pavia Prior
do Convento. Começou elle a obra com grande animo: e dentro em seu
tempo, e n"outros três annos que se lhe prorogou o cargo, deixou aca-
bada a Igreja que ameaçava grande dilação. Ficou feita de abobada na
mesma traça da primeira, e poios mesmos alicesses, ficando em pé o que
estava durável, como erão o Coro, e Capella mór, e todas as mais ca-
pellas assi do cruzeiro, como do corpo da Igreja. Pulio-se depois, e aper-
feiçoou-se poios successores, e está muito airosa, e bem assombrada.
E porque também se temeo perigo da torre dos sinos, porque conheci-
damente fazia abalo quando se dobravão, seguindo o movimento, e ba-
lanço do peso, (o que nacia de ser estreita, e alta, mais que de fraqueza,
sendo como era toda de cantaria, muito liada, e bem feita), foi conselho
derribar-se, e levantar-se outra, como sç fez. xVcompanhou-se despois com
casa nova de sacristia alta, e espaçosa, guardando-se a reedificarão dos
claustros pêra' ultimo trabalho, e n'elles se entende de presente. Deu-
se-lhes principio por Agosto de IGáO, e começou polo lanço mais ne-
cessário, que era o da parte do refeitório: porque junta por cima as ser-
ventias da hospedaria, e casa de noviços com o dormitório: e poi' baixo
faz sombra á entrada do refeitório. He obra de abobada sobre arcos de
pedraria boa, e lustrosa, e. toma a mesma praça do claustro antigo; não
o excedendo mais que em maior altura, que foi necessária pêra correr
a olivel por cima com as officinas, que por ella se ficão servindo.
CAPITULO IIÍI
Mosira-se como pertence a este convento a jirecedencia de todos
Qs de Espanha.
Temos dito tudo o que havia do Convento de Santarém pertencente
ao edifício material, e sua amiguidade: em que se vê que de todas as
^iLiigiões, que esta villa h^je sustenta, a nossa foi a primeira que a veio
servir. Yè-se também que lh'o soubcrão pagar os moradores no amor
100 LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
com que pessoalmente ajudarão a obra do Convento, e dirão pêra ella
n?.o hum sá, mas Ires siiios : acontecendo-nos aqui o mesmo que em
Roma, onde toveinos primeiro S. Sixto, logo Santa Sabina, despois a Mi-
nerva que hoje possuímos: E se lie verdade que nos deve obrigar mui ío
esta memoria, não lhes fica a elles menos obrigarão do amar, e estimar
o qno he obra de suas mãos, visto coíuj uaiuralmrnle todo liomem
ama a arvore que plantou, o acha mais s;íbor na frui ta do garfo (pio
enxertou, e aparou, e atou.
Aqui so mostra lambem o muito que todo esle Reino deve ao Patriar-
cha S. Domingos, pois no dia que se determinou espalhar seus discípulos
polo mundo, logo lhe mandou hum particular Portoguez: e a este quiz
fazer cabeça dos que inviava a sua p:iíria, e sendo seus naturais. D"onde
naceo íicar em Portugal, e n"osta villa a ca])3ça de todos os Conventos
de Espanlia, por meio da antiguidade da casa de Montejunto, em cuja
herança, e representação succede o Couvcuíd de Santarém. Porque es-
tando ediíicaílo o de Montejunto na eutraila do anua de 1218 como atrás
contamos, com todas as circumstancias qut3 ni Ordem se praticão em
matéria de fiuições, a saber, licença do Summo Pontiíice, aceitação da
Ordem, i)0sse- do sitio, autoridade do sonhar da terra, o consintimento
dos moradores: e íicando tão corrente, e assentado, (}uo logo teve por
filho o do Coimbra, e pouco dospois deu principio ao de Chellas, bem
se segue que he primeiro, e mais antigo que todos os de Espanha, pois
iiella não houve Convento formado senão despois que o Padre S. Do-
mingos a veio visitar no anuo de 1229. Assi o sente o .Jlestre Frei Jor-
dão (*), quando diz que antes de nosso Padre vii'a Espanha tinha dom Frei
Sueiro aproveitado muito com suas pregações. E não he contradição di-
zer e!le mesmo despois. e co:iíirmal-oSanto Antonino (**), que o Convento
de Segóvia fundado por nosso Padre no anno de 12ií>, foi o primeiro de
Espanha. Porque já advirtimos que estes escritores não comprendião
Portugal debaixo do nome de Espanha : e antes esta autoridade lie em
favor de Montejunto, que estava edificado hum anno antes, no de 1218
como fica dito. D'csta opinião he oAuctor do livro (jue se intitula. Síí-í/í-
íHíi OrdinisPmdicalonm (*"), quando contando osConventos da Ordem d'a-
quella primeira idade, põem cm primeiro lugar o de Santarém. E o Pa-
(•) M. Froi Joi-dão e. 2i.
í-.) S. Aiitonin. p 3 til. 2.1 ,^. t.
(•••J Sl'íiniuii Ord. ^nrildic. I. '223.
PAiniCLLAR DO HKl.NO Di: FOKTLGAL 1(31
(Ire Frei Jojo de ia Cruzi*) falando mais claramente na sua Crónica diz,
que até á vinda do Padre S. Domingos a Espanha não havia Convento
nenliam da sua Ordem em Castella: mas na Lusitânia si. E quanto á
Provincia de Ara;^ão também nos dá o primeiro logar, dizendo o Crft-
nisla d'ella Frei Francisco Dingo(** ), que os Conventos deBarcellona, e Ça-
ragoça teverão seu principio no anno de 1219.
Mas se isto he obrigação pêra a gente Portugueza, bem largamente
se tem d"ante mãos desindi vidado delia, na grande pi.xlade, e devação
com que desde tempos antiquíssimos agasalhou, e reverenci(3u quasi
todas as Religiões da Igreja de Deus, recebendo humas, e chamando
outras, enriquecendo, e sustentando todas, e fundando outras de novo,
que são como fruito próprio d"este torrão de Portugal, Soja exemplo
a Ordem de S. Bento, que logo em seus princípios, ainda em tem-
pos dos Heis SuevosC'*) semeou de tantos Mosteiros a estreiteza das terras
de Entredouro, e Minho, que com muitos que seus Religiosos despois
largarão, enriquecerão outras Ordens, e com os que possuem estão muito
ricos. Muito de ver he a grandeza, a fermosura, a limpeza das casas dos
Cónegos regrantes de Santo Agostinho, cuja opulência, sem parecer qu(3
perderão nada, sustenta hoje as grossas despezas da Universidade de
Coimbra. A familia d.í S. Bernardo ainda em vida do Santo foi cha-
mada, e honrada, e d'..'!ada com tanta liberalidade polo grande Rei dom
Afonso Enriques, que do que hoje sob..'ja á real casa de Alcobaça, faz prato
a hum Infante de mais de dez mil cruzados de renda. As casas das
mais Ordens são quasi sem numero, e todas vivem, todas se suston-
lão, suprindo a caridade do povo, onde faltão as rendas. A religião
da Companhia de Jesus, sendo ultima das que vierão, não he inferior
á de S. Bento em grossura de rendas, nem á dos Cónegos regrantes em
magnificência de casas, iguala a de S. Bernardo na honra de ser tarnbem
chamada poios Reis, tanto em sua flor, que quando á petição íiel Rei
dom João o Terceiro nos deu o Santo Francisco Xavier (****), que já hoje
vemos beatificado poios altares, pêra Apostolo do Japão, inda era vivo
seu santo instituidor.
Mas não he menos de estimar hum género de Religião, (fruito pró-
prio, e natural d'este Reino), que os seculares inventarão pêra exercicio
(.) F. João de la Cruz p. i. f. 1C. 8',). 90.
(■.) F. Franc. Diaco. 1. 2. c. i. 8. 32.
(..») Cioií. de C\ster. p. i. 1. 6. c. 9. Monarc. Lusit. p. 2. I. G. c. 12.
(•..•) I'. í. de Lucena na %i!a do Santo Francisco Xavier.
VOL. í. li
162 LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
de virtude: que lie o serviço geral das casas de Misericórdia, introduzido
não só nas cidades, mas em todas as villas do Reino. Empregão n elle
os sobejos da fazenda os ricos : e os sobejos do tempo os ociosos :
e redunda tudo nas mais piadosas, e mais acertadas obras que em fa-
vor dos próximos se podem fazer. Quem quizer saber a grandeza, e
custo d"ellas, se for bom contador, alcancal-o-ha facilmente, proporcio-
nando os membros com a cabeça, quero dizer, todo o resto das terras
do Reino com Lisboa, na qual se despenderão no anno, que isto vamos
escrevendo, que he o de 1621, por conta liquida, e publicada no dia
da Visitação de Nossa Senbora, que he o dia mais solemne d'esta Irman-
dade, cinquenta, e sete mil trezentos e noventa e sete cruzados.
Em differente género frutificou esta ceara Portugueza não menos
pia, nem menos magnificamente, com que podemos fazer inveja a todas
as nações do mundo. Acabou a formosa Ordem dos Templários em tem-
pos passados com geral sintimento da Christandade, sendo executores
de seu desastrado fim, dous poderosos inimigos, ódio, o cubica. Resis-
tio Portugal. Teve o Rei valeroso por vileza, (era dom Diniz), ajuntar
á sua coroa preço de sangue de esforçados cavaleiros, levantou de suas
cinzas como huma Fénix, só trocado o nome. outra Ordem mais bella,
e mais fermosa, c mais rica, e também no titulo melhor estreada, (cha-
mou a de Christo). E este Senhor como sua a tem acrecentado tanto,
que a presidência d*ella, (passa já de cem annos), por exceder muito cá
capacidade de vassallos, que nos tempos atrás a governavão, anda na
pessoa do mesmo Rei. Chega o numero das Commendas por lista, que
temos em nossa mão, a quatrocentas e vinte oito correntes, e liquidas,
afora mais de outras cento litigiosas. E passa o rendimento das corren-
tes, segundo o que tem sobido no tempo presente, de trezentos mil
cruzados em cada hum anno.
Mas he tempo de recolhermos este discurso, que crecerá demasiado,
se dissermos tudo o q^J.e ha qup considerar, c apontar nelle: e diremos
somente que deve Portugal ter particular consolação na lembrança des-
tas cousas, porque são hum sinal claríssimo de fé, e amor de Deos. Por
onde com grande confiança podemos esperar que a Justiça Divina levan-
tará algum dia a mão dos açoutes, e calamidades, com que tantos an-
nos ha somos disciplinados, e affligidos.
PARTICULAR DO REINO DE P0RTIT,.\J, 163
CAPITULO V
Da grande santidade que florecia no Convento de Santarém: com Inima no-
tável memoria da pobreza em que nelle se vivia. Dá-se conta de quem
eram dous Religiosos, que seguiram a el Rei dom Sancho fora do
Reino.
Segue a poz a obra de pedra, e cal, fabrica terrestre, e corruptí-
vel, outro edifício mais alto, e de mais conta, pêra cujo serviço se com-
põem todos os da terra. Este he o mystico, e espiritual, onde se lavrão
os cedros cheirosos, e os mármores finos das almais puras pêra serem
tresladados á Celestial Jerusalém, e despois de desbastados com o ferro
das penitencias, e amarguras da vida, polidos na roda do exercício das
obras santas, lustrados com o desprezo da terra, e amores do Geo, se-
rem collocados por mão do soberano Architecto naquelles muros, cujo
fundamento he ouro fino de todos os quilates de virtudes : as pedras,
diamantes de constância, rubis de caridade, esmeraldas de pureza : e a
Angular, que fecha toda a obra, e lhe dá lustre, e perfeição, he Christo
Jesu, eterno Sol de justiça, a cujos raios estão brilhando com luz incom-
parável, e sem fim. D"esta tal fabrica, e tal oíficina liei de tratar hum
pouco, mas com muito gosto, polo que leva em falar dos bens da Pá-
tria quem mais longe se acha delia, que fora sem duvida aventajado,
se nos não encubrira o mais do que nelía se trabalhou, parte a antiguida-
de dos annos, parte a santa teima cora que os mesraos trabalhadoi-es
procuraram esconder-se-nos, pêra serem só conhecidos do Ceo. Come-
çaremos por algumas generalidades que alcançamos, pêra irmos por al-
ias fazendo juízo de quais serião os particulares de que nos faltar no-
ticia. E porque isto he historia Portugueza, seja principio hum testemu-
nho de fora, e de Auctor que por auctoridade de. virtude, e letras, e
polo que revolveo de livros pêra a historia que escreveo, merece gran-
de credito. He o Padre Mestre Frei Fernando de Castilho pregador mui-
tos annos d'el Rei dom Felipe Segundo em Castella, que na historia ge-
ral da Ordem falando deste Convento, diz assi(*): Estos y otros semejantes
espíritos se criavan en el Convento de Santarém, que quasi no se hallava
en toda aqncUa casa quien no f nesse Santo, y singularmente Santo. E n"ou-
tra parte diz o seguinte (**): Embiaronle los Prelados a Portugal, g ai Con-
{>] Castilho p. 1. 1. 2. c. 67.
(••) O iiiciíDO p. 1. 1. i. c. 72.
Í6Í FJVllO 11 DA IIISTOÍUA DK S. DOÍII.NGaS
rento de Sanlarcm, mie eraun retraio dei Cielo acu en la tierra con unas co-
lores ij soinbras de aquclla soberana sanlidud, y dcvocion, tj fervores de
espirito. E p.a verdade fala ao jusío do que havia nelíe. Porque a obse-
vancia da regra, a austeridade da vida, o rigor dos Jejuns, e disciplinas.
o fervor da oração e coníemplação tudo crão estremos. O estudo, e li-
rão coritiniia, o silencio tal, que estando a casa cheia de Religiosos, se
fazia julgar por erma dos que entravão de fora; hora nenliuma ociosa,
recolhimento perpetuo, se não era nas horas forçadas que se davão aos
próximos, ou confessando, ou pregando, ou aconselhando, ou fazendo
doutrina. E a doutrina até paias ruas, c praças, como então costumavão.
Na pregação conceitos chãons, claros, devotos, e espertadores do amor
do Céo, e da elevação do Saulo Rosário, ajudando~se sempre d'aqi!&l}e
pio costume, que os nossos Pregadores primeiro introduzirão na igreja,
de invocar nos princípios o favor da gloriosa Virgem Mãi, com a sauda-
ção Angélica. Fora d'estas horas não se via Fi\ide, senão no Coro, 012
110 aliar. E no altar espantava, e consolava juntamente a devação, e es-
pirito com que celebravão os Divinos mysterios, trasluzindo polo rosto,
e olhos de cada hum os vários effeitos, que obrava o Senhor nas almas.
Huns afogueados de amor, e confiança : outros pallidos, e sumidos com
pavor, e humildade : huns derretidos em lagrimas de alegria polo que
tinham entre mãos, outros em lagrimas de reverencia, de compunção,
e contrição : e todos como absorptos, e enlevados em pasmo daquella
soberana mcuíoria, e recopilarão de todas as maravilhas de Deos. A cria-
ção dos noviços era tal, que se não escrevem maiores encarecimentos
dos que se criavam nos desertos da Thebayda, nem de mortificação, nem
de aproveitamento. A doutrina, os ministros que a davam, o fogo de
espirito com que a buscavam os discípulos, era tudo tanta do Ceo, que
poucos mezes deste noviciado faziam mestres. Da pobrexa, com que se
vivia, poderamos dizer muito, porque como estes padres não ]x>ssuiam
próprios, como agora, o pendião da caridade dos próximos, que não era
sempre igual nem bastante, parecia a vida também Angélica nas faltas
do pasto, como na aljur-dancia das virtudes, eexcellcncias referidas. Huma
memoria temos hoje viva no real Mosteiro de Alcobaça da Ordem de
Cister, que nos confirma bem esta verdade. Anda na livraria delle hum
iivro que no feitio, e no estado, em que está, representa huma grande
antiguidade. lie todo de pergaminho, quasi três palmos de comprido, e
hum, e meio cie largo. Contém vidas de Santos, de boa letra ordinária :
PARTICULAR DO REINO DH PORTUGAL IC3
c na ultima folha estão duas regras de outra corrida, e differenle, que
dizem assi :
Dederunt nobis Fratribus de Alcobacia hunc Jibrum de vitis Sanch}'^^
Fratres Proidkatores de Santarém, pro pignore nostr.e crucis oenece anno
Domini M.CC.XXXX. tertio nonas Martij, Querem dizer: Este livro de
vidas de Santos nos derão a nós Frades de Alcobaça, os Frades Prega-
dores de Santarém em penhor de nossa Cruz de cobre, aos cinco de
Março do anno do Senhor de mil e duzentos. e quarenta.
Merecia esta memoria traduzir-se em todas as lingoas. Porque não pode
ser mais vivo testimunho de extrema pobreza em hum Convento, que
viver de empréstimo, e usar. de penhor pêra huma Cruz de cobre.
Mas havendo de entrar nos particulares da casa, que lie principal
instituto d'este nosso trabalho, e escritura, poem-nos em cuidado donde
tomaremos o pnncipio. Porque como elia foi tão fértil de Santos, e to-
dos os d"esta primeira idade, como em ceara de anno benigno, vierão
a florecer e fratificar quasi juntos, estou arreceando a eleição. Muito me
obriga o grande lume desta villa o extático padre São Frei Gil. Porque
já quando faleceo dom Frei Sueiro estava em tanta reputação de Santo,
que tanto que se juntarão oí Padres da Província em Capitulo de elei-
ção, foi acciamado por succi::ssor do defunto, e recebido com aplauso de
toda Espanha, ?,Ias quanto elle ganha por merecimento de mais santo, e
de Prelado : tanto se lhe aventajão outros pequeninos ao parecer, e mal
conhecidos no mundo, que forão primeiros a receber o premio, e a co-
roa da vida traballiada, eslendendo-se ao Prelado o desterro, e curso
mortal dos annos, que o Senhor por seus ocultos juizos quiz abreviar
aos súbditos. Por onde parece que cessa toda a duvida, e que nos de-
vemos ir trás os que nacerão primogénitos na herança, e posse do Cco,
qu;iis são aquelles que se anticiparão a sair das prisões da carne, e do
odo, e .misérias da terra, Assi fazendo seguiremos a ordem que a Igreja
sagrada guarda na celebração das festas dos Santos, que he solemnizar
nellas, não o dia que vierão a fazer numero entre os mortais no mundo,
se não o em que voarão inimortais ao Ceo. Mas desta regra hão de fi-
car por hora exceituados dous valorosos espíritos, que com não deixa-
rem actos memoráveis de sua morte, por hum que fizerão em vida, me-
recem ficar lembrados entre os que contamos por gente santa, irmãos
16G LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
seus de casa, e habito. Estes dous Religiosos na retirada que el Rei dom
Sanei 10 Segundo fez pêra Caslella, despojado do Reino polo Conde de
Bolonha seu irmão, voluntariamente se desterrarão com elle, e o acom-
panharão até sua morte, e assinarão em seu testamento. Chamavão-se
Fr. I\íiguel que o servia de esmoller, e Frei Vicente de Lisboa, que sen-
do secular fora seu medico. E he muito digno de ser advirtido, que
sendo os nossos Frades, os que por mandado do Papa com liberdade
lhe intimavão os Breves de sua deposição, quando mais prospero rei-
nava : e os que do púlpito mais prosperamente reprendião as desordens
que consiníia, e não remedeava no reino, com tudo souberão seguir, e
servir, e amar a pessoa, em que estranhavão, e aborrecião vicios. Etfeito
de verdadeira caridade não lisongear o Rei na prosperidade; servil-o
com amor, e gosto na perseguição, e desamparo.
CAPITULO VI
Da santa vida, e morte do Padre Frei Fernando Pires^ Chantre que foi
da Santa Sé de Lisboa.
Comecemos por hum velho, que a misericórdia do Pai Eterno das
famílias chamou da ociosidade das praças do mundo ao pôr do Sol, e
cerrar do dia da vida : e mandando-o cavar na viíiha, quando veio a hora
da paga, foi servido por sua grande liberalidade, e bondade iguala!-o
n^ella com os que tinhão trabalhado todo o dia em peso cançando, e
suando desde pola manham até noite. Grande nova, e boa estrea pêra
aquelles que gastado o aço da idade robusta em servir ao mundo, não
trazem pêra Deos, mais que ferro frio, poucas forças pêra o empregar,
e poucas horas pêra merecer. Boa nova digo : animar, e não desmaiar :
que ainda que acudimos tarde ao serviço, e em estado mais de dar pejo,
que de aproveitar aos que tiabalhão, temos amo liberal, rico, e grandio-
so, que sabe que dá do seu, e não sojeita sua real condição ás escace-
sas, e contas acanhadas do mundo. E bem o mostrou com. este velho
cançado, e fraco, de quem tomamos principio pêra tratar dos valerosos
obreiros do primeiro Convento d'esta Província.
Era dom Fernando Pires muito nobre, e rico, cercado de parentes
do melhor do Reino, posto em dignidade, e renda de Chantre da Sé de
Lisboa. Vivia abastado de tudo o que o mundo pode dar, gozando, e
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 1§7
triunfando a vida cm gosto, e passatempos havia muitos annos, com
grande esquecimento de que havia outra de mais dura, e mais pêra so-
timar. Derão-lhe novas da resolução, cora que seu parenle, {que o era
muito), Frei Gil de hum estremo de adiantado no mundo, se passara a
outro de abatido, e aniquilado n'clle, e não so a ser pobre, mas a ser-
vir, e ser escravo de pobres. Foi huma aldrabada que Deos lhe deu nas
portas da alma, (que também islo ganhão os que buscão a Deos, abri-
rem os olhos com seu exemplo a muitos cegos, e enganados), cornocou
a entrar em contas consigo, e a perder o gosto de tudo, com ver o que
resultava d'ellas. Muitos annos perdidos, haver de dar rezão de todos;
e não de annos, se não de horas, e momentos, e em tribunal de juiz,
e juizo temeroso. Olhava pêra si, via o rosto quebrado, a cabeça cuberta
de neve, com que o tempo yai dando aviso aos velhos, e aos descuida-
dos, (aviso de que nunca fizera caso). Cabia na conta do esquecimento
era que vivia : dava mil graças ao parente que o espertara da modorra,
e do encantamento, louvava-o, e desejava ir-se trás elle : mas não aca-
bava de se resolver. Parece que devia pôr o negocio em conselho, pêra
que não fosse tachado de leve, e não achar quem lhe favorecesse o pen-
samento, antes muitos que o encontrassem : qae eslava entrado em dias,
e não poderia com o trabalho da Religião, e seria mais vergonha o tor-
nar atras tendo começado, (tudo discursos humanos). Que em sua casa
podia ser Santo, e juntamente fazer bem. a parentes, e criados : que a
renda não tolhia virtude, e como era velho, ella pêra a velhice se bus-
cava, quando convinha o mimo, e a cama branda, e a casa abrigada, e
o serviço dos criados, e os parentes á cabeceira. De crer l;e, que pe-
sando tudo, e considerando que os mais fazião causa própria, poucos a
sua d'e!le, e nenhum a de Deos, se desconsolaria, não da força dos con-
selhos que nada o dobra vão, se não poios ter pedido, vendo-se arrisca-
do, a que despois em qualquer successo avesso havião de triunfar d'elle
os conselheiros. D'aqui nacia a falta de execução. Mas como tinha por
si ao Senhor que o bafejava com bons movimentos, e constância, (como
d'elle procede todo o bem), fazia discurso, e resolvia consigo, que nas
cousas que sabidamente são boas he desacordo culpável quem tem es-
pirito pêra as acometer, sojeilar-se a pareceres alheios. Porque horaera
que poera em disputa se dará esmola, se fará penitencia, se perdoará
ao enemigo, e coisas semelhantes de si manifestamente boas, e santas,
dá sinal que as não quer fazer, e só quer tirar do conselho aquella hon-
163 Liyiio II DA iiisToiuA m: s. domingos
rinha publicada sem outro fim. Curíou ein fim por tudo animosamente,
e esta foi a maior difficaldade, e a mór viloria. Qnando menos se cui-
dou eslava com o habilo vestido. Louvcm-vos os Anjos, Deos de toda
bondade que vós dais, e de vós procede fazermos alguma cousa boa
quando a fazemos : e vós sois o mesmo que dais o premio, e a coroa
por esse bem, se o execlitamos. Vossa foi a inspiração, com que dom
Fernando deixou o mundo, vós o trouxestes aos claustros, e á pobreza
de S. Domingos, vós o armastes, e animastes de maneira, que em todos
os rigores d\aqueila santa Casa, que já temos declarado quais erão, se
igualava com o mais robusto executor d'elles : e com tão boa sombra
levava, e vencia as austeridades maiores, como se nunca soubera que
cousa era mimo, nem vida folgada. E o que mais lhe dourava este va-
lor nos olhos dos religiosos, era enxei'gar-se n'eUe, que quanto perdia
das forças corporais enfraquecendo a carne, que todavia sintia o peso,
tanto ganhava, e adiantava de es{)irito. Assi foi subindo ao monte alto
da perfeição Evangélica, e em poucos mezes teve nome de Santo entre
a gente nobre do Reino. D"onde naceo, que pêra o concerto que el Rei
dom Sancho assentou com o Arcebispo de Braga, que atrás fica contado,
foi elle hum dos três louvados, com grande satisfação de ambas as par-
tes nom.eado, e acertado. Assistio, e fez seu ofTicio, porque foi mandado
por obediência : mas logo deu as costas ao trato do paço, e negócios se-
culares, fogindo pêra o ermo da cella, como quem só n'elia sintia ver-
dadeiro descanço. A cabo de poucos annos quiz o Senhor mostrar quanto
se paga de huma determinada, e verdadeira conversão, e quão bem a
paga. Chamou-o por meio de huma grave doença, e n'ella lhe deu tais
luzes, e sintimeiiíos interiores com certeza de sua salvação, que visl-
tando-o na ultima hora o Santo Frei Gil, que n'aquelle tempo andava
RO fervor de suas penitencias, e perguntando-lhe como se achava, res-
pondeo com maravilhosa confiança : Meu Padre Frei Gil, mui bem me
acho, porque o inferno está cerrado pêra mi, já sei que não ei de ir lá:
e sem dizer mais palavra espirou. Começou a Gommunidade o officio da
commendação com muitas lagrimas, porque era de todos amado. Só o
Sanlo Frei Gil, nem ajudava o CóiUto, nem a reza : mas em lugar dos
Psalmos de finados rezava, e repetia muitas vezes o Psalmo 'Laudate
Domimm de cwlis. E mostrando-se risonho, e alegre, affirmava que não
era em Sísa mão fazer outra cousa, nem lhe parecia rezão celebrar nou-
tra ibníia íai género de morte tanta paz. e segurança de consciência, e
PAnTicriAn no nEiA;o de portigal 1G9
tnmaiilía confiança em Deos, e em seus santos Sacramentos em hum ho-
mem que tantos annos vivera cnfrascado nas ociosidades, nos gostos, e
desassocegos da terra. Por onde não liavia que fazer se não alegrar, e
festejar quem assi partia, louvar, c engrandecer o Senhor que tais ma-
ravilhas ohrava. Da morte d'este Padre se faz memoria no livro dos Óbi-
tos do real ^h)Sleiro de Santa Cruz de Coimbia, como de pessoa de
grande calidade : Ol/ijt IJomnus Femandus Petri Fraler Pnsdicatorum
quondam Cantor Viisbonensis Kal. Apritis. Minto deviamos a estes Reli-
giosos por esta curiosidade, se não fora defectuosa no que mais impor-
ta, que ho a conta dos annos que não aponta.
CAPITULO YÍI
Da reliijiosa vida, e santa morte do Pudie Frei Martinlio de Liibca:
e do inuão Frei Martinho Leigo.
Mas não devemos menos louvores ao Rei da gloria pola bemaventu-
rada morte de outro velho, que quasi foi semelliante em tudo ao que
acabamos de contar. Era seu nome Frei Martinho de Lisboa. Fora ca-
pellão de hum Bispo da mesma Cidade, Bispo de quem se escreve que
juntamente com o Capellão vestio o habito de S. Domingos. Yei-oá Re-
ligião muilo eutndo na idade, e assi teve poucos dias de vida nella.
Mudança ds terra, e ares desbarata muito a velhice: juntou-se a esta a
do comer, e beber, do sono, o da vigia, ílzerão todas forte impressão
no corpo carregado de annos, lançaram-no depressa na sepultura. E com
tudo não teverão poder pêra o consumir tão cm breve, se não fora a
[iressa, e determinação com que o bom velho se entregou a todo géne-
ro de penitencia, e trabalho. Apertou o passo pêra alcançar por diligen-
cia aos que eram entrados primeiro, e liião mui lo adiante em tudo. Foi
caso estranho que passou a muitos, e clsegou a por-se hombro por hom-
bro com os mais aproveitados em todo género de virtude, fazendo em
si verdadeiro o que se disse por outrem, que gastado em breves dias
cumprio carreira de longos annos (*). Brevemente acabou a vida, mas nes-
sa bre\idade chegou a tudo o que os mais ardidos soldados daquella mi-
lícia religiosa com muito trabalho, e longo tempo alcançarão de perfei-
ção. Era por Páscoa de Resurreição. Salteou-o huma febre, que não des-
(') Sap. 4.
170 LIVRO II DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
cobria alteração nem accidentes pêra temer, antes na continuação amea-
çava doença mais comprida, que mortal. Passou pêra a enfermaria pêra
se curar, mas sem pena do mal que llie causava. Quando foi véspera da
Ascensão acertou de entrar o Padre S. Frei Gil, que como medico das
almas, tanío como dos corpos, acudia de ordinário a visitar os doentes
com aquelle seu fogo de caridade que pêra os aííligidos era especial
epitima de consolação. Tanto que Frei Martinho o vio chamou alto por
elle, como semhrante, e significações de alegria, dizendo : Boas novas
Padre Frei Gil, boas novas meu Padre : chegando-se o Santo a elle foi
continuando, e dizia. Estou muito alegre, porque o dia d'ámanhã ha de
ser o ultimo de meu desterro, e principio de meu descanço. E levan-
tando mãos, e olhos ao Ceo, acrecentava. Muitas graças vos dou meu
Senhor Jesu Christo por temanha mercê, como he haver-me de hir pêra
vós em tão fermoso dia como o d'ámanhã, dia em que vós subistes em
carne a esse Ceo ; dia, e festa a que sempre tive particular devação. Não
era a voz de doente, e muito menos de quem. se fazia tão vizinho da
morte. Tomou-lhe o Santo o pulso, e foi-se saindo, e dizendo. Por mui-
ta pressa que se dè essa febre a vos matar, não o fará nem pode fazer
em oito dias. Falava o Santo como medico, e o doente como Santo. En-
ganou-se a medicina, acertou a santidade. Amanheceo o dia da Ascensão,
pede os sacramentos sagrados da Eucharistia, e unção, divinos, e ex-
cellentes socorros da Igreja, hum pêra viatico da jornada, outro pêra
esforço da lula que esperava. Fazia-se de mal ao Prior tal requerimento
em homem que ao parecer não tinha mais de doente, que estar na en-
fermaria. Mas não desistindo delle, administrou-lh'os sem dilação: eFrei
Maninho os recebeo com consolação de Santo, e devação de que mor-
ria. E assi foi, que acabando de os receber, antes de despejarem os
Padres que lhe rodeavam a cama, deu a alma a Deos cá vista, e com es-
panto de todos.
Succedeo a hum 3Iartinho outro JMartinho, aquelle Sacerdote, este
Leigo, ambos Santos, e no successo da morte quasi iguais. Tinha-se no-
tado neste Leigo por todo a vida tanta singeleza d'alma, tamanha pure-
za de costumes, que na opinião de todos era julgado, e ávido por Santo.
Adoeceo mortalmente no mez de Dezembro; quando foi dia de S. Tho-
mé, sobreveo-lhe hum accidente com tais termos, que pareceo estava
acabando, não só aos Religiosos que com grande caridade curavão del-
le, mas também ao Santo Frei Gil, que como medico foi chamado pêra
PARTICULAR DQ REINO DE PORTUGAL 17i
O ver. E porque se persuadio que brevemente espiraria : assi como nisso
não tinha duvida, tamliem a não tinha, (porque conhecia o sujeito), que
desatada aquella ahiia do corpo se iria voando aos braços do Criador, e
fez-lhe lembrança, (parece que devia estar virado pêra a parede), que hum
grande Santo, e também 3íartinho como elle, achando-se em semelhan-
te artigo, quizera acabar em postura qne descubrisse o Ceo, e a parte
Oriental com os olhos, dizendo, que ficava assi melhor, porque despe-
dida a alma do corpo se iria a elle seu caminho direito. E chamou hum
enfermeiro, e disse-lhe á orelha que fizesse outro tanto ao nosso Marti-
nho. Parecia, e era impossível ouvil-o outrem na casa, quanto mais quem
estava penando em paroxismos de ip.orte. Eis que esperta o que davão
por mo!'to, e levanta a voz, como tornado do outro mundo, dizendo,
Padre Frei Gil não morro agora, passarão quatro dias, então me irei pêra
o Ceo. E aconteceo pontualmente, como o disse. Porque no dia Santo
do glorioso nacimento de Christu á hora que no Coro se começava a
entoar o Invitatorio: Chrisliis natiis est nohis: se foi elle ajudal-o a can-
tar aos Anjos no Ceo.
CAPITULO VIII
Do Padre Frei Pedro de Santarém, e do irmão Leigo
Frei Miirlinho segundo.
Onde faltão informações de vida, bastante prova he de virtude huma
boa morte. Este capitulo será também de mortes com historia breve de
successos em vida : mas esses acompanhados de claros sinais de gran-
de valia com Deos. Acharão-se hum dia na enfermaria juntes o Padre
Frei Pedro de Santarém, que fora medico antes de Religioso, e hum ir-
mão Leigo, por nome Frei Martinho, que chamaremos segundo pêra
diíTerença do primeiro, de quem falamos no capitulo precedente, e o
santo Padre Frei Gil. Os dous ainda enfermos, e em cama: o Santo con-
valecente, e de pé. Na hora de Noa, que a Communidade estava no Coro
dando aquelle espaço á oração, não o quizerão perder os dous enfer-
mos, (que obriga muito o bom exemplo aos olhos, e em casa, se se não
vive entre gente insensível), eram ambos muito espirituais, e virtuosos:
o traballio da doença aííinava o espirito, e aperfeiçoava a virtude. Foi
a oração de Frei Pedro tão fervorosa, aue assi como estava de joelhos
172 LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
sobre as pobres mantas se foi levantando no ar até pôr a cabeça no te-
lhado. Não estava longe Frei Martinho : acertou virar os olhos, ficou
não attonito, nem pasmado, porque também era experimentado, e douto nos
effeitos da oração, mas louvando a Deos com cordial consolação : e vio
que passado hum bom espaço tornou o extático companheiro a decer
pouco a pouco, e ficar como d'antes sobre o leito. Entrou despois o
Padre Frei Gil; e Frei Pedro, se confessou com elle, dando-lhe conta
de si, e de algumas cousas que vira, particularidades que sintira. Por-
que o Padre Frei Gil já neste tempo, como adiante veremos, era bus-
cado pêra tais matérias como Pai da Província, e como letrado, e San-
to (*), e por sua relação que fazia ao Mestre Frei Humberto Geral da Ordem
chegarão quasi todas estas cousas ao tempo presente. E os verdadeiros
humildes quanto mais avante vão no caminho da luz, tanto menos fião
de seu parecer. Respondeo-lhe o Santo por remate de tudo, que tivesse
cuidado de esconder, e enterrar os favores do Ceo, polo risco que ha
de se ollender aquelle Senhor que os dá : porque quem publica tczou-
ro, he sinal que ou quer ser roubado, ou pertende vam gloria. Acabada
a confissão foi-se ao leito do Leigo, que com simplicidade de Leigo lhe
começou a perguntar, se lhe dera Frei Pedro conta de hum maravilhoso
rapto que tevera na hora de Noa ; e espantando-se o Santo, como que
o ignorava, foi-lhe contando, e encarecendo o que vira, que conformava
pontualmente com o que da boca de Frei Pedro ouvira. Mandou-lhc o
Padre o mesmo que aconselhara a Frei Pedro, obrigando-o a guardar
segredo com boas rezues, e com sua autoridade. Ambos estes enfermos
teverão fim glorioso, e em breve tempo. Hla Frei Pedro convalecendo
da doença, e crecendo em perfeição, e ao mesmo passo lhe acudia o Se-
nhor com o Maná celestial de suas consolações, e misericórdias. Não
soífria o enemigo das almas que coubesse tanto bem em peito mortal,
ardia em fogos de raiva, e inveja. Estava o convalecente hum dia de
joelhos diante de hum altar orando : chega-se a elle disfarçado com mas-
cara, e habito de Frade, e como besta fera que he, sacode-Ihe hum cou-
ce, com que lhe abrio grande ferida em huma perna : e não contente com
isto, leva-o pelo pés arrastado por toda a Igreja com tanta fúria que fi-
cou todo pisado, e de novo enfermo pêra muitos dias. Porque a ferida
como foi de pé Luciferiuo nunca acabou de soldar, c em fim ficou em
fistula: e delia veio a morrer. E assi a ira de quem cuidou que lhe fa-
l') Gregnr. Iloin ii. in Evangol.
PAUTICLLAU DO REINO DE PORTCGAL 173
zia' mal, lhe acarretou o maior bem dos bens, qaal he pêra os justos aca-
bar contas com o mundo, c entrar na posse da gloria.
Não tardou muito em Mie ser companheiro na morte quem o fora na
doença, c na enfermaria, digo Frei Martinho o Leigo: em cujo transito
quiz a misericórdia Divina descubrir o tezouro de virtudes que andava
encerrado, e desconhecido debaixo da cortiça tosca de hum Leigozinho
idiota, e rude, rude, e idiota pêra o mundo: grande sábio diante de
Deos. Acabou de espirar, cobrio-sc-lhe o rosto da sombra, e noite da
morte, em lugar da luz, e graça da vida que hia fugindo. Começou a
Gommunidaue junta o officio da commendação da alma, como he costu-
me : eis milagre espantoso, trocão-se de novo as cores do morto, reves-
te-se o sembrante pallido, e mortal de huma luz extraordinária, como
de orizonte, onde o Sol vem nacendo mui vizinho, (final certo do que já
lhe allum.iava a alma), luz tão clara, e luminosa, que cerrando-se o dia,
ficou o Prior rezando a cila polo processionario, que tinha na mão, todo
o Officio, com.o pudera fazer se tevera junto de si huma tocha.
CAPITULO ]\.
Do sanlo fnn de Frei Bomingos, e Frei Gonçalo innauns Leigos.
Rezão he que á vista de tão bendito Leigo, não saia a historia de
Leigos. E não he menos do estimar o que agoi'a diremos de dous: e tão
venturosos ambos, que teverão por seu Cronista o Santo Padre Frei
Gil, que ajuntou o que havemos de contar delles á relação que atrás dis-
semos. Chamava-se hum Frei Domingos, que por muito modesto, manso,
e encolhido, era amado, e confessado do Santo Fiei Gil. A eilo reconhe-
cia o Leigo por Mestre, ainda que havia outro em casa : a elle dava con-
ta de sua alma. Com tal nome, e com tal mestre bem era que fosse San-
to. Veio a adoecer perigosamente, e por tempo deu em hidropico. lie
o mal muito penoso, e de que poucos escapão : e todavia tinha alguns
dias de tanto alivio, que se promeitia a saúde que desejava. Poz-lhe hum
dia o desejo delia na imaginação, que o sitio da enfermaria era contra-
rio ao seu mal; que se mudassse estancia, se acharia melhor: e não he
bom sinal em doentes procurar mudanças de lugar. Com tudo pcdio que
o tirassem da enfermaria, fez instancias até tomar por valedor seu ami-
go, e confessor, c em fim passarão-no a huma cella que apontou. Dei-
174 LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
tou-se, quietou, alegrou-sc. Era sobre tarde, tangerão a Capitulo des-
pois de Completas. Pareceo ao enfin^meiro que lhe dava a boa sombra
do seu doente lugar, pêra não perder o Capitulo. Foi-se a e!le, acertou
a ser comprido, tardou hum espaço largo. Quando tornou, acha o doen-
te inquieto, enfadado, e queixoso, que falava consigo, e dezia: Valha-
me Deos que cousa tão mal feita? como se descuidarão os porteiros?
que entrasse huma mollier polo Convento, e polas oíTicinas, e só? e que
não houvesse quem accudisse a tal desordem? Attonito o enfernieiro com
o que ouvia, não sabia que cuidasse, e parecia-lhe género de tresvalio.
Chegou-se a elle, e o doente se começou a queixar de novo, e contava,
que tanto que elle o deixara, entrara pola cella huma molher, que no
geito, e traje, e no ar da i:essoa parecia nobre, e senhora. E que não
fora sonho, nem força de imaginagão, que estava muito em si quando
a vira : e ainda que ficara corrido, e pasmada de tal vista, notara que
vestia de branco roupas de preço, e na cabeça trazia hum fino volante
por toucado que lhe decia até os hombros : e estivera devagar, e assen-
tada no escabello que tinha á cabeceira perguntando-lhe pola doença, e
animando-o a soffrel-a com palavras graves, e de muita edificação: com
as quais não negava que ficara consolado : mas eu, acrecentava o doen-
te, escusara bem visita, e vista de molheres em tal tempo, e a tal hora :
e espanto-me irmão, como não topastes com ella : que agora se vai d'a-
qui : e não acabo de cair em quem possa ser. Lançou o enfermeiro po-
la porta fora, tirou correndo á portaria, correo o Convento, pei^guntou
a todos. Como não achou quem lhe desse novas de tal mollier, tornou
mais maravilhado que fora : e de novo cançava o doente por saber par-
ticularidades da vijita, que já tinha por cousa grande, e mysieriosa.
Chegou a nova a seu Confessor, fui-se a elle, e ouvio de sua boca por
extenso tudo o que temos referido. Mas eis que amanhecendo o dia se-
guinte, que era véspera da gloriosa virgem, e martyr santa Águeda en-
tra o doente em crtigos de morte. Acode o Santo Frei Gil, e apoz elle
muitos outros Religiosos, ouvem que em voz alta, e alegremente dizia :
Logo, logo: sim quero, quero morrer, e muito depressa. E com estas
palavras na boca acabou a vida aos quatro dias de Fevereiro do anno
de 1262. E acrecenta o Santo na m.emoria que fez deste Religioso, que
fora parecer conforme dos Padres que presentes se acharão, e seu, que
a Senhora que o visitara, fora a santa virgem Águeda, e que a mesma
cm suas vésperas o viera chamar pêra o Ceo cora sinais mais claros de
PARTICULAR PO REINO DE PORTUGAL 175
quem era, qne os do dia atrás. O que infirião do processo da visita pri-
meira, e das ultimas palavras do defunto, que forão indicio de outra;
e muito mais ao certo da sua boa vida: e julgavão que a santa virgem,
como quem tanto padecera em seu martyrio, quisera valer a quem fora
martyr na doença, e como virgem, e a quem também o era (*) : do que
elle Frei Gil se dava por fiel teslimunha, como quem muitos annos o
o confessara.
Chamava-se o outro irmão Leigo Frei Gonçalo. Estava em cama de
liuma febre aguda tentado, mas ao parecer dos médicos sem perigo.
Hum dia mandou á pressa qiie llie chamassem o Prelado, e pedio-lhe
com eíTicacia que llie quizesse administrar os Sacramentos, porque se
sintia ir acabando por momentos. Fazia o Prior duvida em tanto aper-
tar quem não mostrava mais sinais de morte, que os de seu dito. E o
doente acrecentou : Eu Padre Prior não me engano : e se vossa Reve-
rencia viera hum pouco antes, achara nesse lugar minha mãi, e irmã,
as quais são mortas dias ha, como vossa Reverencia sabe. Elias me dis-
seram que me aparelhasse, que sem duvida morreria, á manham, e com
ellas me iria ao Ceo. Eu me sobresaltei muito quando as vi, e conheci,
e fiquei surpenso, e perplexo, imaginando se seria algama illusão do
Demónio. Ellas vendo-me duvidar, me assegurarão dizendo, que não fi-
zesse duvida em serem as mesmas: e soubesse que por intercessão da
Virgem Mãi alcançarão licença pêra me vir consolar, e avisar. E vossa
Reverencia sabe muito bem que ambas crão molheres de boa vida, e de-
votas de nossa Ordem. Também me avisarão, que aihda que me apa-
reção muitos demónios, que virão pêra me perturbar, não tema nada,
que ellas com muitos Frades do nosso habito se acharão aqui com.igo.
E assi estivesse advirtido que quando aqui chegasse meu Senhor Jesu
Christo, (que só polas entranhas de sua misericórdia me queria fazer es-
ta mercê), me prostrasse a seus pés, nelle posesse todos meus pensamen-
tos, e a elle encomendasse minha alma. Ouvidas estas rezões, não fez o
Prior mais contradição, porque a virtude, e bom exeniplo de Frei Gon-
çalo lhe tinham ganhado reputação pêra ser crido em cousas grandes.
E posto que os Médicos affirmavam que naturalmente falando, nâo era
possível desliarem-se os espiritos vitais tão em breve daqueiles mem-
bros, polo grande vigor que nelles sintião, fez a vontade ao eníermo,
ministrou-lhe os Sacramentos, e elle os recebeo, como quem tinha por
(•) Castilho p. 1. 1. 2. c. 70. da Ilist. Geral de S. Doming.
176 T.ivno n da iiistohia de s. domingos
cei-lo que mon-ia, com (.levarão, e consolaçiío. E logo no cila seguinte
ao romper da nianham se foi pêra o Ceo, deixando aos Religiosos, que
com eile assisíirão, grandes penhores de sua bemaventurança, no rosto,
e racneos antes, e despois de espirar.
He de notar que alguns autores esírangeiros, que este sncccsso co-
lherão dos escritos do Padre S. Frei Gil. varião no nome do irmão, não
variando na verdade da relação, c segundo seu costumo huns lhe cha-
nião Frei Anrique, outros Frei Gonçalo. E he a causa, que devia ter o
Frade dous nomes, como apontamos em outros, e ser nomeado com am-
bos polo Padre S. Frei Gil, seguindo o estilo Portugnez : c os estran-
geiros lançarem mão cada hum do seu, sem quererem advirtir na con-
fusão que faz, ou não darem ambos, ou não concordarem em hum. De-
via chamar-se Frei Gonçalo Amiques. Esta he a culpa em que outras
vezes achamos comprendidos os escritores antigos, e de que nos temos
queixado. Mas jei passa aos modernos, como se pôde ver nos que escre-
verão do nosso Sardo Frei Luis Beltrão (*): cada hum lhe dá seu nome,
poucos llie juntão ambos.
CAPrruLO X
Do Padre Frei Doininfjos Gomez Prior do Convénio de Sanfareni.
Foi Frei Domingos Gomez hum dos ])rimeiros sojeilos que da villa
de Santarém vieram á Ordem : e como dos primeiros em tempo, tam-
bém foi d!)S qne mais se aventajarão em virtude, e por tal veio a ser
eleito em Prior da mesma casa. Administrando o cargo com toda pru-
dência, e religião que se podia desejar, era tão profunda sua humildade,
que se corria, e havia por indign.o de governar gente tão santa coíno ti-
nha no Convento. E entendendo que lhe seria melhor ser mandado que
mandar, e obedecer antes que ser obedecido, polo grande risco que he
pêra huma consciência pura aceitar por sua vontade cargo de almas,
pedia com grande efficacia absolvição do oíTicio, alegando além do im-
pedimento interior de sua consciência, outro não pequeno de infirmida-
des, que na verdade padecia trabalhosas : as rjuais lhe tolhião seguir as
Communidades, e exercícios da Ordem com a continuação, que está
obrigado todo Prelado, muito mais que os súbditos. Mas não lhe valen-
(•] M. Frei Viccr.te Anli.-í, .M. Tiei Francisco Diugo. Cion. da piovintia de .iragão I. 2. c. 7^.
PAUTICULAn DO r.EÍXO DE I'0;lTLGAL 177
do suas diligencias em parliciilar com o Provincial, fez conta que llic
valerião com os Padres da Província no Capitulo que instava. Despachou
pêra elle o companlieiro que por eleição do Convento lhe for dado, por-
que suas indisposições lhe não davão lugar pêra fazer caminho. E en-
comendou-lhe sohre tudo o que a cargo levava, lhe alcançasse no Diffini-
torio sua absolvição : e não contente com esta diligencia pedia a outros
Padres que hião a Capitulo publicassem sua inhabiiidnde, e impossibili-
dades, e ajuJassem o requerimento. Mas achando a lodos contra si, c|U8
chammente llio estranhavão, e havião por género de ingratidão querel-os
deixar, quando de seu governo se davão poi' contentes, e consolados :
aliligia-se, e dezia com grande espirito: Hora meus Padres facão embo-
ra o que quizerem, que se lá me não quizerem livrar doeste tormento,
Prelado maior temos no Coo, que conliece minha insufficiencia, e os in-
tentos que me movem; elle com seu poder me absolverá. E assi lhe
succedeo como o disse. Adoeceo, idos os Capitulares, o antes de torna-
rem a casa deixou vida, e cargo juntamente, cora dor, e admiração de
todos quando o souberão, e arrependidos tarde da contradição feita,
que ainda continuarão no Capitulo. Mas bem mostrou sua morte que nem
os súbditos se enganavão no conceito que tinhão d"el!e : nem elle do qi;e
valião suas orações diante de Deos. lie cousa certa, q'ie entrando na ba-
talha da morte assi festejou a nova delia, como se ao sabido entrara a
vencer, e triunfar, não a pelejar. Naceo-lhe esta confiança, e animo ('a
honra que lhe fez n'aquel!a hora temerosa, a Virgem Mãi de Deos com
sua gloriosa presença. Foi o espaço breve, e ao parecer do doente hum
momento. Ficando muito esforçado, ficou por estremo saudoso. Que co-
mo está escrito, mil annos de bens da gloria, são hum dia curto da terra,
e dia já passado (*).E tornando-se ao Padre Frei Álvaro <{uo junto d"elle
estava, queixava-se piadosamente, e dizia : Meu Padi^e Frei Álvaro, pêra
onde se foi aquella Senhora que agora aqui estava? imaginou o Pieligioso
que serião delirios de enfermo, rcspondeo-llie que estivesse bem no qiie
dezia, que como ignorava elle, que não podião chegar molhercs áquelle
lugar. Isso são raoiheres da terra, tornou o doente: e eu d 'essas não
falo, senão da que he bendita entre todas as da terra. Por esta pergjin-
to, que agora estava aqui diante de nós com o precioso Jesus em seus
santos braços: e muito me espanta não dar V. R. fé d^ella. Apoz estas
palavras fez muitas vezes sobre si o sinal da Cruz ; parecendo aos Pa-
(.) Psil. 80.
VCL. 1. 12
178 LlVr.O 11 DA HISTORIA BK S. DOííí.NOaS
dres que era combate de enemijTOS, e que entrava em passamento, íízc-
rão tanger as tal)oas pêra acudir a Communidade, (costume santo da Re-
ligião achar-so em tal passo todo o Convento presente pêra socorrer com
orações multiplicadas ao affligido, e juntamente tomar cada hum dou-
trina n'eHe do que espera a todos). Ahrio então os oiiios, o vendo a
casa cheia de seus irmãos, levantou as mãos, e olhos ao Ceo, como quem
dava graças a Deos por se ver acabar em tal companhia, c foi-se a elle
em paz.
Poucos dins despois apareceo este Padre a outro da mesma casa,
pessoa de credito, que estava esperto, e rezando, e conhecendo-o lhe
fez pergunta sem torvação, se era elle como parecia o Prior Frei Do-
mingos pouco antes falecido. Esse mesmo sou, respondeu o defunto,
morto pêra o mundo, mas vivo pêra Deos, e em sua gloria. Peco-vos
que advirtais os nossos Frades, que não consintão entrar seculares onde
estiver Religioso em artigo de morte, porque perturba n'aquelle passo
a vista d'etles: e a mi me custou alguma cousa a presença de huns (jue
me acompanharão: erão parentes, fizerão-me compaixão suas lagrimas,
sinti-as com fraqueza humana, e paguet-as com pena de fogo. Parece que
fazia inda o liom Prior ofílcio de Prelado vindo da outra vida a dar adver-
tências a seus súbditos. E na verdade, assi he, que não perdem os jus-
tos a caridade com a morte: antes aviva, e reíina com o lume da gloria
que gozão. E por isso lie santo, e proveitoso pensamento fazermos
muito poios fieis defuntos, sendo certos que nos não podem faltar com
agradecimento, e paga quando mais nos im.portar. iMostrou-o este Santo
com seu Supprior por termo extraordinário, (digo seu, porque servia
ainda o ofíicio que elle lhe dera, e este caso foi poucos mezes despois
de sua morte). Estava Frei Domingos Afonso, que assi se chamava o
Supprior, doente na enfermaria, mas era o mal tão leve a parecer de
iodos, que não dava cuidado. Eis que alta noite soa luima grande voz
no dormitório, que espertou todos os Frades,' como se cada hum fora
chamado cá porta da celía : e não hor-vc nenhum que duvidasse ser a
fala do Prior defunto. Dezia a voz: Levantai-vos irmãos, acudi depi-essa
ao vosso Supprior que morre. Forão todos correndo á enfei-mai-ia com
o Credo na boca, como he costume na Ordem em casos semelhantes,
espantados do espertador muito mais, que do perigo não cuidado do
enfermo: e acliarão-no em estado de grande necessidade. ;\Ias não parou
aqui a caridade do defunto. Tinha o Santo Padre Fi ci Gil n'este tempo
PAnTicrLAu DO ri:lno dk ['Outical 179
seu rccoliiimento fora do Dormi tório coinmum, por ser iiuiiío velíso:
e cm parte que não podia ouvir a voz que espertou a comifiuriidade.
Foi-se o defunto a elle, lirou-llie do bi-aço, que dormia, e dando-se
a conliecer, disse-lhe que acudisse depressa ao Supprior Frei Domin-
gos Afonso, porque eslava acabando, e estando já acompanhado de iodo o
Convento, só elle faltava: sendo elle quem o trabalhado enfermo mais de-
sejava ver pêra aílivio do aperto em que estava. Levantou-se o Santo ve-
lho, chamou por um irmão leigo que o acompanhava na cella pêra irem
ambos, dizendo-lhe do accidente do Supprior, e quem o avisara delle.
Não se persuadia o Frade, nem acabava consigo deixar o leito, aífirmando
que na mesma noite ao recolher o deixara q.uieío, e sem sombra de pe-
rigo: por onde não havia que crer de fantasmas. Foi'ão comíudo ambos:
e chegando acharão o enfermo no estado em que o defunto dissera, o
qual recreado lium pouco com a vista, e benção do bom velho, que
todos tinlião por pai, e respeitavão como Santo, se finou logo. No livro
dos Óbitos do Convento de S. Vicente de Lisboa, que chamão de fora,
por ficar fora dos muros antigos da cidade, e podemos dizer, que foi o
primeiro que n"ella se povoou de Religiosos despois de tomada aos Mou-
ros (são Cónegos regrantes de S. Agostinho) achamos memoria d"esíe
Padre com esta letra: A'í. R'al. Gcíob. obijt. Frater Dominiais Gomefij
Prior Píied. Sanctaren. Mas não aponta anno, como já advirtimos; e be
o prmieiro Frade d'esla Ordem, de que faz menção despois de dom
Frei Sueiro.
CAPÍTULO XI
Bo Padre Frei Fernando de Jesii, de suas doenças, e paciência:
de sua sanla morte, e apareci nierdo despois d'elia.
Aqui cabe lugar a outro Religioso d"esía casa, que também veio da
outra vida dar-nos avisos, e boas novas. Era seu nome Frei Fernando
de Jesu: e não o teve debalde: porque toda sua vida foi Imraa perpetua
cruz, e uma invencível paciência com que a levava. A calidade do tra-
balho forão doenças prolongadas acompanhadas de deres, com que mo-
via a piedade, e lastima os Rehgiosos, c movera iiifieis se o virão, se-
gundo erão apertadas, e terribeis. O termo, com que se havia n'eilas
veio a passar o mais alto gráo de paciência. Porque fez da pena gosto,
e do tormento recreação, não cessando de dar graças ao CriadOi-, finando
180 LIVRO II DA nisTor.iA nii s. do.mi.ngos
mais atribuíauo se via; como outro Jo]i, por lhe íira!" as riquezas ãs
saúde, qfie são as maiores da vida, e carregar-lhe a mão eiíi lepra de
dores por todos os membros, que cada momento o chegavão ao martyrio
da morte. Mas no fim mostrou o m.esmo Senhor que de sua mão pro-
cederão doenças, dores, e paciência, coroando tudo, ao passar da vida,
com hum manifesto sinal da gloria, que já lhe começavão a render. E
foi imprimir-lhe no rosto huma luz extraordinária, e incom.paravel, que
sendo julgada por revei berai ão do Sol Divino da gloria trocou logo as
lagrimas dos bons irmaons em alegria, e as lastimas que lhe tiniião eia
santa envcja.
Não passarão muitos dias que este defunto se representou em sonhos
a outro Religioso do mesmo convento, o qual conhecendo~o, mas duvi-
dando da visão, lhe fez algumas perguntas. Foi a primeira se era cUe
Frei Fernando, como o parecia, a quem i)ouco havia, ajudara a eiilen\u-.
E respondendo, que era o mesmo que vii-a morto, e enterrado: Pergun-
tou-lhe se lhe saberia dar novas de lium Frade da mesma casa fa-Iecido
de poucos dias que chamavão Frei Diogo: respondeo, que estava iio pnr-
gatorio, mas que seria brevemente íi^TC, e entraria no Ceo Sesta feira
da semana Santa, que vinha perto. Estendeo-se a cnriosidade do que
dormia, a querer saber a causa da pena : e o defunto o satisfez, apon-
tando com o dedo na boca, e na garganta, e dizendo que fora compla-
cência que tivera de si quando cantava. Pergunlando-ihe mais por outros
Frades, respondeo que estavão bem. Porque haveis de saber, (dizi^ o
defunto), que os Frades que morrem em sua Religião, e trabalhão por
cumiprir com suas obrigações, nenhum se perde: e particularmeiíte são
ajudados da Virgem Nossa Senhora na hora da morte. Pedio-lhe enião o quo
perguntava, algum sinal pêra certeza do que linlia ouvido, foi a reposta que
no dia da festa de Ramos, que estava próxima, não liaveria no Convento
som de sinos, que isto levasse por sinal. Acordou o Frade tanto em si,
e com a memoria tão viva das particularidades referidas, que só lhe fa-
zia duvidar delias, e do toda a visão, a iuípossibihdade que achava na ul-
tima do sinal, sendo assi, que o dia he tão festejado por toda a igreja,
como sabemos. Mas chegado o dia, verificou-se o sinal por i ezão de um
inlerdito, cjue houve em todas as Igrejas da vilia: e deu-se por certa a
vis^lo em tudo o mais, asseníanflo os Padres que permittira Deos tão
vngaroso coUoquio peia doutrina, e aviso, e consolação de muitos, pola
virtude, e merecimenios do santo defunto. J] por ser lai, fez o Santo
rARTICULAR M REINO PE POP.TIT.AL Í8l
Frei Gi! relnção cVeile ao Mestre Geral da Ordom, Enão falta qnemaíTir-
me, fundado em boas rezões, que nos casos raros, e seméihanles a esto
que o Santo escreveo, e aíTirmou, como apontava Frade sem nome, era
elle o mesmo apontado. Porque casos de tanta admiração, e tão extraor-
dinários não os coiita nenhum sisado (*), senão vistos, e apai[»ados com
as próprias mãos.
CAPITULO Xii
lie quem foi o Padre frei Domingos do Cubo : e de sua vida,
€ morte, e sepultura
Sempre causou grande controvérsia, e muitas vezes engano entre os
escritores antigos a semeliiança, eallusão dos nomes em homens, e luga-
res. E se não ha muito cuidado nos que despois escrevemos, he forçado
errar poios muitos seguidores que cada opinião leva trás si. Nas histo-
rias Pontificais hc impossível de averiguar entre três Papas do nome
João 20, 2i, 22, a qual d'elies pertencem os casos qsio succederão por
todo o tempo dos três: e causou esta variedade servirem-se do mesmo
nome, e não haver grande distancia de annos entre o governo de cada
hum, como bem o adviriio Genebrardo na siia Chronologia. Da mesma
maneira nos dá em que entender hum Thomás Doutor Anglico, mistu-
rando suas obras com as do nosso Thomás Doutor Ani^elicof*), pola vizi-
nhança dos nomes, havendo tanta dilíerença na real significação d'elles,
quanta ha da terra ao Ceo, de Ingres a Angélico. Este trabalho temos
no Capitulo presente, havendo de tratar do Santo Frei Domingos do Cubo
(como elle se assinava), e não de Cuba, como algumas memorias antigas
lhe cliamão. Porque concorrjerão com elle outros dous Domingos, que
sem cmL>argo de se distinguirem baslanteraeníe por seus sobrenomes,
houve tão pouca diligencia nos que escreverão suas cousas em no los
dar a conhecer por estas distinçoens, que deixarão huma perpetua con-
fusão, e enleio aos que despois quizerão escrever, porque sem giande
culpa forão applicando os feitos,, e virtudes de todos áquelle, a quem
a caso, ou por alguma rezão se inclinavão. Assi convém fazermos aqui
huma breve digressão, declarando quem foi cada um dos ires, antes
de entrarmos na historia do nosso.
{•) Resende na vicia ile S. Fr. Gil !. i. c. 7.
[••) Gen. in (Ihroiio. I. 5. f. U.S2.
182 LIVP.O II DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
He pois de saber, que entro os companheiros do Patriarcha S. Do-
mingos não iioiive mais quo Iram só Domingos, (como deixanios escrito) (*)
e Espaiiho], e de sobrenome o Peqneno : e deste foi aqiicHe feito cele-
brado, (;ue SC lançou no fogo vestiuo, e calçado, sem receber huma nii-
iiima lezão, nem na roupa, nem na carne. E o mesmo foi bum dos três
compaiiiíeiros que o Santo Patriarcha dsii a dom Frei Sueiro Gomes pêra
a jornada de Espanha, (como atrás contamos) (**). E d"elle escreve o Mes-
tre Frei João Teuíonico no registro dos Santos, e varoens illuslres da
(iiiiem, que passando a Itália faleceo em Perosa cidade da Toscana, e jaz
sepuilado na igreja velha do nosso Convento. Vindo despois nosso Pa-
dre do Roma a Espanha no anno do 1219 entre os sojeitos que de sua
bendita mão receberão o habito forão doii-s Domingos, hum Castelhano
natural de Segóvia, quo se chamou Frei Domingos Munhós: outro Por-
íuguez por nome Frei Domingos do Cul)o. Ambos trouxe alguns dias
consigo, e forão poucos, porque não puderão ser mais que os que se
deteve em Espanha, j^ías esses bastarão pêra os deixar tão aproveitados
cm todo género do virtude, que forão espelho delia entre os Religiosos
de sou tempo. E por serem tais andão envoltas as memorias que d^elies
ficarão até com o nome de seu Mestre (***). O Castelhano residio muitos
annos por Vigário, e Confessor das Freiras de Madrid no Mosteiro de Santo
Domingo elReaí. AoPoríuguez mandou nosso Padre que se viesse ajudar
a dom Frei Sneiro a Portugal.
Este era Frei Domingos do Ci:bo. Eiu Portugal sérvio no ministé-
rio da pregação, em que era imico, correndo muitas terras do Reino
ião fractuosamente, que obrigou muita gente nobre a buscar a Religião,
levados da excellencia da doutrina, e suavidade da pratica com que
SC declarava, á qual ajuntava exemplo do^kVida Angélica, costumes purís-
simos, c penitencia em todo extremo rigurosa. Os escritores da vida de
S. Frei Gil (****) aponlão entre outros Frei Bertolameu Pires, Frei Matheus,
Frei João Domingues, e Frei Maríim Godinho, que juntamente erão no-
viços em Santarém, e lodos quatro nobres. Assi ganhou por lodo o
Reino nome de Apostolo de Portugal, poios muitos que fazia deixar o
mundo, e nome de Santo polas mais virtudes: como o Mestre Frei Je-
rónimo de Padilha cm humas memorias, que sendo Provincial neste
(-j l. 1. c. 8.
(") L. I. c. S.
(.-.) Castilho y>. i. I. i c. ii.
(•»"] íicser,(]c 1. '2. I. i. cxomp. 82.
PAr.TICULAI'. DO RETXO DF. POP.TUGAL i83
Reino, e Iiuíh dos reformadores, que de Castelia vicrlío a chaiT^ndo (M
Rei dom João o Tercdro, deixou de sua mão escritas das cousas riota-
veis d"e]Ie. E acrecenía, que este Convento de Santarém por iradição re-
cebida de tempo immemorial o reconhece por seu fundador, no sitio e
lagar em que hoje o vemos. Traballiou muito Frei Domingos em checar a
perfeição huma tamanha maquina como foi Igreja, e claustiO seui braço
de Rei, como atrás -tocamos. E nisso se deixa bem ver o que valia com
os howens a opinião de sua virtude. Faleceo em boa vríiiiice dous an-
nos pouco mais ou menos primeiro que S. Frei Gd. Do lugar de sua
sepultura não ha noticia certa. Erão aquelles tempos faltos de curiosidade,
e quanto a meu juizo não por defeito de quem soubesse, ou podesse
escrever entre os nossos: mas porque era tal a perfeição dos Religiosos,
que tudo quanto fazião lhes parecia pouco: e não fazendo cousas tão
grandes que só a fama as fizesse duras por exorbitantes: havião por ver-
gonha lançar em livro as que tinhão em. si por ordinárias, que são as
mesmas que hoje nos espantão d"elles. E na verdade quando soube di-
zer hum gentio : Facilis iadura sepiikri (*), tendo por leve perda a de
ficar sem sepultura, não he de espantar que aquelles nossos maiores, que
só dos bens da ahna tratavão, fizessem pouco caso do sitio em que ha-
via de íicar o corpo mortal, e corruptível: farião conta que onde faltasse
a cerimonia da pedra que o cobrisse, ou ainda terra que o agasalhasse,
não podia faltar a capa do Ceo que tudo cobre, como disse o outro:
Calo tefjiínr qiii non hahet moam (**): e essa bastava pêra esperar o dia glo-
rioso da Resurreição. A tradição mais aprovada he que o muimenío de
S. Frei Gil contem em si duas sepulturas, e quem considerar com atten-
ção a fabrica d'elle achará que logo representa huma sobre outra. E di-
zem que pêra a baixa foi tresladado o corpo do Santo Padre Frei Do-
mingos do Cubo, (o que devia ser quando se passou pêra a alta o de
S. Frei Gil seis annos despois de seu faleci mento, como adiante veremos;
porque ambos jazião no commum cemitério, e assi como erão venerados
n'el!e, ficarão despois venerados, e visitados juntos em hum sepulcro.
E ijem concerta estarem Juntos em huma capeila, e debaixo de uma la-
gea aquelles que em vida forão muito amigos, e cuja memoria na morte
ficou á vista de ambos pintada no relabolo que faz ornamento á capeila.
E não devemos duvidar, que como tudo sahio de hum pensamento, e
de huma só mão, capeila, sepulchro, e pintura, não se esqueceria quem
(•) Viigil. ,Eneid. í.
("i Lucaii. Pfea:-í. 7.
184 LlVr>0 II DA IliSTOUIA DE S. DOMINGOS
tiiíU) fez, de honrar com mármores a quem folgou de dar vida com o
aríifício de liiiías, e cores. Quem foi autor d'esla fabrica dizemos adiauío
lia vida do Santo Frei Gi!. Aqui tocaremos somente a parte que pertence
d'ei!a ao Padre Frei Domingos.
• Vivia em Santarém na freguezia de S. Nicoláo (*) Iiuma virtuosa, e no-
bre malix-na por nome Elvira Paes, a qual sendo como era viuva, toda
sua consolação, como ouira Anua profeíissa, era a continuação da Igreja,
e o santo exercício da oração, e meditação em que tinha por mestres
estes santos Religiosos, que por isso fazião d"eiia muita conta. Poios an-
nos do Senhor de 1205, havendo já dous, pouco mais ou menos que
era falecido o Padre Frei Domingos do Cubo, adoeceo S. Frei Gil da ul-
tima doença. Andava Elvira Paes desconsolada, e sollicita temendo-lhe o
». successo, como era muito velho. Amaniiecendo o dia glorioso daAscen-
ção trouxe â igreja a obrigarão da festa, e o cuidado de saber do seu
Santo, que tinha novas estava no cabo. Quando chegou soube que o
acabavão de sepultar. Ficando magoada, e ti'iste, foi o Senhor servido
de a consolar no mesmo dia, e na mesma Igreja com uma visão celes-
tial, a qual contava por estes termos. Sintida da perda do Santo passava
pola memoria suas virtudes : e contemplava o grande peso de gloria,
({ue já lhe terião rendido: desejava ir-se trás elie. Estando absorta moeste
pensamento, representavão-se-lh.e á vista dous velh.os veneráveis por
cans, e paramentos de ouro, e purpura, que conhecia serem os dous
amigos Frei Domingos, e S. Frei Gil. E logo via huma grande escada,
(lue tendo o pé no meio do cemitério do Convento, chegava com as pon-
tas ao Cco, e notava que decião por ella dous Anjos clieios de luz, c
fermosura de quem erão, e com grande festa chamavão poios dous velhos,
dizendo: Vinde irmãos, vinde, e subi, que vos chama o Senhor. Assi
foi-ão logo subindo, e seguindo aos Messagciros até se recolherem com
elies no Ceo. Era Elvira Faes por parles de virtude, e honra tão acre-
ditada, que não houve quem duvidasse da visão: e mereceo além da tra-
dição, que passasse á idade presente em um novo género de escritura,
de tempo em que nada se escrevia: que foi piníando-se em hum painel
do retabolo que se fez juntamente com a capella, e sepultura de S. Frei
Gil: e porm-anece hoje a piiiíura, porque se foi renovando a tempos.
Contava Elvira Paes muitas vezes despois esta visão aos nossos Frades
com abundância de lagrimas, e grande suavidade de espirito, e mais
(•] Resende !, 2. t. 8. exemp. oV-.
PAIITICILAH DO RELNO DE POHTLíJAL 185
pniticiilarmcníe a hum padre que do mesmo tempo nos deixou escrila
a vida de S. Frei Gil, e a Frei Maríim Pires, e Frei Bernardo Religio-
sos muito espirituais, e de autoridade, por cuja relação veio passando
em tradiíTio aíé á idade presente, além do ícsiimunho da Pintura.
CAPITULO XIÍÍ
Do nacimonlo, (jcrução, estudos, e peregrinarão do Siinlo Frei Gil,
até o dia de sua conversão.
Quem vio nunca vaso de barro feito pedaços, despois de repassado
do fogo nas mais vis cozinlias do mundo, moido de novo, amassado, e
fundido tornar á roda do oleiro: e sair de suas maons mais lustroso,
mais polido, o muiio mais perfeito do que era primeiro? Isto he o que
só faz, e pode fazer a omnipoiencia Divina quando llie apraz, como o diz
por hum Profeta (*), e o provou em hum Paulo de perseguidor da Igreja
toi'nado vaso de eleição: e com igual, ou maior evidencia parecerá no
nosso Sanlo Frei Gil, de quem será este Capitulo, e alguns mais. Por
que i)ertencendo elle ao Convento do Santarém, cuja historia vamos se-
guindo, por muitas rezões, inda que fdho de habito de S. Paulo de Pa-
lencia, pertencc-nos também, (porque nenhum titulo nos falte) por rigor
de justiça fundada em Actas de hum Ca.pitulo Geral celebrado em Bolo-
nha anno de 1240, que dispõem, e manda que o Frade, que morar de
assento nos limites da pregação de qualqsier Convento, seja reputado, e
e havido por lilho deile, sem embargo de haver recebido o habito, e pro-
fessado em outra Província.
Naceo Gil Rodrigues no lugar de l]ouzí'lla, tei^mo da cidade de Vi-
seu poios aníios do Senhor de 1190, pouco mais ou menos: de pai, e
mãi illustres por sangue, e por lugar, e fazenda no Reir.o. Seu. pai se
chamou dom Rui Paes de Yahadares: foi do Conselho del-Rei dom San-
cho Primeiro, e seu Mordomo mór, e juntamente Alcaide mór da cidade
e casíello de Coimbra. Do que dá bastante testemunho a leira de b.u-
rna sepultura da Igreja de Santa Cruz de Coimbra, celebre Convento de
Cónegos regrantes de Santo Agostinho, alegada por Frei André de Re-
sende (**), a quem seguimos nesta historia, que diz assi:
llic silns es! Doinvus Jiodcriciis pater Fraíris yEfjidij Sancturenénsis
{') ie-Qm. 18. Aci. íl.
{«•j Fi. And de lleseiaíe in vila Beati .'Etrid. 1. i. c 1.
186 LIVRO II DA ílISTOniA DE S. DOMl.NCOS
maior prcefechis areis, et vrbis Conimbrigensis. Aqui jaz dom Rodrigo
pai de Frei GU de Santarém, Alcaide mór do castello, c cidade de Coim-
bra.
Declaramos o Latim, porque dous Autores mais antigos lhe dão tir
tulo de Pretor, que era oíTicio de paz, como Juiz, ou Corregedor, e não
de Alcaide mór, que lie o que responde o nome de Pnpfectiis na lali-
nidade. Também dá que considerar o novo modo da inscripção, queren-
do quem a fez dar a conhecer o pai polo filho. Donde parece que se de-
via fazer muitos annos despois, não sem curiosidade, ou ambição, mas
nada culpável : porque hum Santo basta pêra dar luz a toda huma ge-
ração de passados, e successores. Da mesma maneira argue tempos mais
modernos o termo de maior Pnefedus, porque desdiz muito da singe-
leza dos antigos pouco cuidadosos destas maiorias. Mas como quer que
seja, seguimos o escritor acima nomeado, que he de noventa annos atrás,
e foi Religioso de nossa Ordem, pessoa de caiidade, e autoridade, digna
de se alegar, que esta historia poz em boa lingoa Latina, tirando a de
outra muito mais antiga, e meio barbara, que se guarda no Convento
de Santarém lambem composta por Frade : e de hum, e outro pode-
mos estar seguros que farião o oíílcio livres de paixões que desvião da
verdade.
A mui de Gil Rodrigues foi donaTareja Gil, que o mesmo Autor (*) no-
mea por tia de dona Joana Dias senhora da vilia da Atouguia, que mui-
tos annos andou em casa da Rainha dona Breiliz de Guzmão molher dei
Rei dom Afonso Terceiro, e foi mãi de Nuno í^ernandes Cogominho,
pessoa de gran.de nome, e Ahnirantc do mar em tempo dei Rei dom
Dinis. Esta dona Joana alcançando em annos ao Santo primo lhe edifi-
cou capella, e sepultura, como ao diante veremos. Teve Gil Rodrigues
mais dous irmãos, Paio Rodrigues, e João Rodrigues, e outro que não
nos consta se foi irmão inteiro, Dayão da Sé de Lisboa. Sendo moço,
e mostrando inclinação ás letras com habilidade, foi posto no estudo por
seus pais. Era Coimbra assento da corte, c juntamente havia nelia Mes-
tres das boas artes, e sciencias. Porque el Rei dom Sancho como rece-
beo de seu pai o reino pacifico, e rico, piocurou iilustral-o, e acrecen-
tal-o por muitas vias : e não lhe esqueceo a das letras, que he a que
mais lustre dá aos homens, e ás províncias. Deu-se Gil Rodrigues, des-
pois que teve eleição nos estudos, com particular affeição á Medicina, e
(•) Resende 1. 1. c. 1. iii vila B. jEgidii.
PARTICILAR DO RKINO DE POIITIGAL 187
começou a ter nome de grande estudante. Não desagradou a el Rei a
determinação quando a souiie, como seu Pai cabia tanto com elle, folgou
de Ília favoiccer, enriquecendo-o a esse íim de benefícios Ecciesiasticos,
e tantos que não erão menos de cinco os que possuia sendo ainda bem
moço. Três Conezias em ires igrejas diíTerentes, e distantes, Braga,
Coimbra, 3 Guarda. Dous Priorados, íium de Santa Eiria de Santarém,
outro de Coruche. Sofria o tempo estas disformidades, ou polo fraco
rendimento das prebendas, ou por falia de homens : ou porque sempre
aos validos sobejão rezões pêra ajuntar nos seus. Vio-se o moço pros-
pero de renda, e engenho : e como tinha já tomado o sabor ao gosto
que dá o nome, e estimação das leiras, parecendo-lhe que, se tocasse
qualquer Universidade subiria a grandes gi'áos de honra nellas ; persua-
dido do pensamento negocea Jicenças, poem-se a caminho com os olhos
em Paris. Não falta quem diga que a rezão de se aplicar ao estudo da
Medicina, inda que então não era indigno de gente iliustre, fora com fim
pouco honesto de poder entrar em muitas casas, e penetrar como me-
dico, onde como mancebo, e nobre achava tudo cerrado, e timido. E
assi o descubrio o successo. Pontue não tinha andado muitas jornadas,
quando se lhe fez encontradisso em figura hum.ana o autor de tais pen-
sam.entos, e pai de toda maldade, e fingindo que levava o mesmo cami^
rdio, entrou com elle em praticas, como he costume do caminhantes,
dando, e pedindo contas. O descuidado mancebo se lhe abrio todo; e o
enemigo começou a combatel-o a duas mãos : huma invisível dentro na
alma, e outra de palavras suaves, e venenosas nas orelhas. Que acerta-
va, lhe dizia, porque era mui conforme a sua idade, e calidade preten-
der valer, e ter nome ; c juntamente levar boa vida. Que na verdade se
a valia, e honra não havia de ser meio pêra poder viver livre, e alegre-
mente, e em todo género de delicias : e se a primavera da idade se não
houvesse de lograr com os gostos, e passatempos, que naturaimonte
apetece, tiiaio vão, e sem sustancia ci'a a honra, sensabor, e pouco de
estimar o m.elhor tempo que Deos dera ao homem. Que não fora máo
termo inclinar á profissão de Medico, pêra com roupas largas ir pos-
suindo rendas Eccleslasticas : mas pêra ser famoso no mundo, e junta-
mente ver, e alcançar mui las cousas de gosto, e grandes boas venturas,
havia sciencia mais poderosa que a Medicina, e menos custosa de apren-
der. E perguntado qual era, respondia, que a arte ^lagica era só a que
podia fazer hum homem estimado nas cortes, valido dos Reis, e de todo
188 LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
O resto do mundo quasi absoluto senhor. Porque aos que a sabião não
se ibe escondia nada do que havia, e se fazia em todas as provincias,
quanto mais em todas as casas; e não só alcançavão o presente, mas
também antevião o que estava por vir, com os successos particulares da
fazenda, e da honra, da morte, e da vida, da guerra, e da paz : e d'aqui
viera nos tempos m/iíito antigos chaníarem-se ^íagos os grandes sábios,
por ser esta a maior sciencia de todas. Logo lhe foi apontando alguns
homens que n'aquelles tempos havião sido famosos em Espanha, e affir-
mava que o forão por beneficio d'ella, obrando maravilhas hora de es-
panto, hora de riso, humas de importância, outras de passatempo. Em
íim era arte pêra honra, e pêra gosto : e sendo arrimada á Medicina, que
elle já sabia, teiia bella capa pêra grandes eíTeitos, porque atribuindo as
cousas grandes á força natural da Fisica ganharia nome do maior Filosofo
da terra, e espantaria o mundo, como outro ApollonioThianeu. Com estas
mintiras foi engolfando o pai d'ellas hum animo temerário, e cobiçoso, em
desejos de se vender, se fosse possível, por achar hum mostre de tal scien-
cia : e com grande eíTicacia lhe perguntava que meio haveria pêra desco-
brirem algum. Então lhe foi dizendo, como sem torserem muito, pode-
rião dar em lugar, onde havia escola, e mestres consumados : mas que
era cousa mui secreta, e sabida de poucos, e que linha suas difficulda-
des, e algumas condições pesadas : qiic, se quizesse, lhe faria serviço de
o guiar. Não sal)ia o moço a hora que se havia de achar em Academia
tanto da sua arte, o dava-se mil parabéns por haver encontrado com tal
homem. Só nos estylos que lhe referia da escola reparava hum pouco :
porque deixar a fé, (como propunha), hum homem nobre, era cousa in-
digna : obrigar-se a isso por escrito, e escrito feito, e assinado com san-
gue próprio, parecia abatimento dal-o, e huma desconfiança torpe, e de
gente baixa, e roim o pedil-o. Facilitava-lhe tudo o companheiro : e em
fim vencido da esperança das honras, e dos gostos de que já se repre-
sentava senhor, fol-se com elle onde o esperavão os ministros da oífici-
na infernal. Era huma gruta na raiz de hum monte, em lugar ermo, c
longe de povoado. Aqui entrou, e residio feito discípulo de Lúcifer.
Muitas particularidades se contão de condiscípulos que vio levados em
corpo, e alma ao inferno, e outras cousas que lhe puderão bem abrir os
nlhos, se não estivera de todo cego. Em fim fez seu escrito á vontade
de quv^m liio pedio, e despedido foi-se buscar melhor escola. Todos os
que escrevem dizem que residio nesta das covas tempo de sete annos.
PARTICU!.AR DO RKI.NO DE PORiniAÍ. 189
e que erão junto a Toledo. A dilação de tantos annos se me faz dura de
crer pêra cm animo qne só tinha por mira vicio e gosto. Caminhou di-
reito a Paris, enlrou nos estudos, e aulas da Medicina, e mostrou logo
tal agudeza nos autos da sciencia, e tal mão em algumas curas de im-
portância, que antes do tempo foi havido por digno do gráo que pre-
tendia. Enlão se começou a entregar a todo vicio á rédea solta, servin-
do-se das más artes humas vezes pêra ser mais máo, e outras pêra es-
panto, c entrelimento seu, e de amigos, obrando cousas que parecião
exceder as forças da natureza. Assi andava na boca das gentes estimado,
e envejado : e por estremo contente, e igualmente esquecido de si. Em
tal abismo de enganos, e misei'ias vivia, quando o Senhor foi servido
pôr nelle os olhos de sua Divina misericórdia por hum novo, e estranho
modo, como veremos no Ca[titulo seguinte.
CAPITULO XIV
Da milagrosa conversão do Santo Frei Gil, c conto (ornou o liabilo
de S. DoDiiuijos, e fez profissão.
Estava Gd Rodrigues hum dia em seu estudo, e sobre os livros da
infernal sciencia, descuidado de toda cousa que lhe podia dar pena. Eis
que subitamente se lhe põem diante hum homem armado, e a cavallo,
e brandindo-Ihe huma lança nos olhos com braveza, dizia: Muda a vida
homem, muda a vida. Assombrou-se Gil Rodrigues, e sobresaltou-sc
multo, arguindo-lhe a consciência, (como acontece), n'aquelle tempo muitas
cousas juntas, e todas más, e tristes, e medonhas (*): mas tornado sobre
si, e tirando pola carne a liberdade, e soltura da vida, pai"ecia-ihe a vi-
são sonho, e o fazer caso delia pusillanimidade, lembrando-liie que o
cavallo, e cavalleiro lhe parecerão de pedra, e despois se resolverão em
ar. Assi fói continuando em seus desatinos. Mas não se esquecia o bom
Pastor da ovelha perdida. Passados poucos dias torna o cavalleiro sobre
elle na mesma postura, e habito, mas com termo, e sembrante mais te-
meroso : e arremessando-lhe o cavallo como que o queria levar debaixo
dos pés, e pondo-lhe a lança nos peitos : Muda, disse, muda, muda ho-
mem a vida, se não morto es. Ficou Gil Rodrigues como fora de si, de
attonito, e confuso, e respondeo com pavor, quasi como outro Paulo. Si
(.) Sap. 17. .
190 LlVnO II DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
fnrei Senhor ('). E peço-vos mo peidovis não obedecer da priínoica vez.
lí-to dezia, e junUimonte sí3 sinlia ferir da mão do cnvalleiro com lanta
força nos peilos que lhe parecia íicava atravessado da lança : e ohrigado
da dor deu hum grande grito chamando poios criados que Ih.e acudis-
sem. Achoii-se com menos mal do que cuidava, porque não apareceo no
lugar do encontro mais que huma riscadura leve, e superficial, e com
tudo determinou logo não esperar terceira amoeslação, e mandou fazer
prestes pêra caminhar, e fogir de Paiií. E foi bom principio da promessa
feita, mudar terra; ao que ajuntou, dar fogo a quantos livros tinha da
maldita magica : e feitos em cinza poz-se a caminho. Caminhava desa-
brido, e malenconico : dava-lhe occasião o ver-se só pêra imaginar : en-
trava em si, lançaNa os oliios poios annos que tinha vivido : não achava
hora izenta de culpa : quando chegava aos que empregara nas covas de
Toledo, c ao que d'elles lhe resultava, perdia o gosto de tudo de corri-
do, e confuso, e abafando de pesar. Assi sendo d"antes amigo de travar
praticas de passatempo com os criados, e com os que encontrava iiumas
vezes com graças, e ironias, outras com derivações, e agudezas, como
era de condição bem assombrado, c jovial : agora hia mudo, carregado,
e abori'ido de sorte, que os criados pasmavão não podendo atinar com
a causa de tal novidade. Chegava á pousada, não tocava em nenhuma
cousa de quanto lhe punhão na meza : fazião-llie a cama, ou não se dei-
tava, ou não tomava sono. E ou que fossem isto já princípios de peniten-
cia que obravão tristeza pêra verdadeira saúde (**): ou que redundassem
no corpo, (como he ordinário), as feridas que seus cuidados lhe fazião na
alma ; cahio em huma febre malenconich de quartans. que lhe davão
m-uito trabalho : e com tudo nunca se quiz ciirar, nem perder jornada
até entrar em Espanlia. Entrado nella, e por Casiella, írouxe-o a estrada
que seguia â cidade de Palencia. Weste lugar passou a caso polo sitio
em que os Frades de S. Domingos andavão actualmente rompendo pa-
redes em humas casas velhas, e levantando outras pêra comporem seu
Convenlinho : vio ferver a fibra, e n'ella amassando cal, e carregando
pedra cubertos de pó. e caliça homens, que no gesto, e no geito mos-
Iravão não haver nacido pêra tais misteres. Ediíicou-se, e compungio-se,
não lhe parecendo feio aquelle pó, nem pouco lionrado o serviço, quan-
do lhe soube o fim. Logo fez conta de não passar dali. No dia seguinte
f.) Act. 9.
(••] i. Cur. 7.
PARTICULAR DO IxEINO DE PORTUGAL 191
tornou ao sitio, buscou o Prior. Acliou homem cspirilual, e sábio : fala-
rão (Je vagar, doa-lhe conta de si. Aqui fez a primeira reíracção, ou abju-
ração de seus desconcertos, e vida passada por confissão vocal.
Ficou Gil Rodrigues algum tanto aliviado cora este bom principio. ííe
medicamento Divino huma boa confissão, lie porta, e entrada pcra todo
bem, e que mais desabafa, e assossega buma consciência, que comera a
sintir-sc, ea sintir. Foi cobrando alento, e estendendo o animo a cousas
maiores. Tornou ao Prior, e propoz-lhe com pahvras cheias de humilda-
do, e conbecim.ento próprio, se haveria n'aquel!a sania casa misericórdia,
e lugar pêra hum peccador desaforado, e facinoroso, e que o fora toda a
vida contra sua alma, e contra Deos : mas siníindo d'alguma maneira, e
muito desejoso de desejar tornar sobre si(*), e salvar-se de seus naufrágios,
por meio da muita santidade que alli via. Não devião ser ouvidas com.
olhos enxutos tais palavras, e tal requerimento, onde havia verdadeira ca-
ridade. Foi respondido não só com bom despacho, mas abraçado, e admi-
tido com amor, e alegria do Prior, e dos mais Pieligiosos. E não tardou
mais em vestir o santo habito, que em quanto escreveo aos seus, c dospe-
dio os criados. Neste passo teve o primeiro merecimento da fogida do
mundo : porque levantarão pranto, como se o deixarão cníerrado : mas
^elle apercebendo a paciência pei"a maiores contrastes, enganava-a neste,
com fazer conta que se via já livre de huma parte não pequena dos ca-
tiveiros do mundo, polo muito que obrigão os bons criados.
Desapegado d'elles. e encerrado com os seus Frades, e novos com-
panheiros começou Frei Gil hum novo género de vida, novo pêra elle,
mas ordinário nelles. Pagava a boa vida passada, de dia com espreita
abstinência, c com trabalhar na obra do Convento como o mais vil jor-
naleiro : de noite com ásperas disciplinas, e oração, furtando pêra ella
muitas horas ao sono, e ao descanço corporal. E parecendo-lhe tudo
pouco, a comparação do muito a que se achava obrigacip, vingava-sc de
si, não só como algoz, mas como enemigo : carregando-se a mão com
castigos particulares, em pago das particulariílades com que servira, e
deleitara os siníidos : polas casas grandes, e bem armadas huma cella
erma, pouco maior que huma sepultura : polas sedas do leito, e olandas
da cama hum tecido seco de varas, ou de canas, sem m.ais abrigo que
huma manta de saco. Contra as sobogidões dos banquetes, pf.dL^ço de
pão grosseiro, e negro : e pêra os poder passar, humas folhas de couve
(•) i*s. 118.
192 nvp.o 11 DA iiiSTor.iA de s, domingos
cozidas cm agoa, esal, (que esla era a vida d"aqueiies primeiros Padres
de Paleucia), quando alcançavão liuma gota de azeite, era caso raro, ou
festa grande. As alegrias dos saráos de França, as graças, e galantarias
de corte, em que era único, pagava com luim silencio inviolável, ainda
nas cousas muito necessárias. Os apetites de grandeza, c reputação, com
andar na cozinha, lavar a louça, curar dos enfermos nos mais abatidos,
o humildes serviços da Religião. Finalmente em vingança das sensuali-
dades, que tão sem freio apetecera, cingio-se liuma cinía de ferro sobre
as carnes fechada com cadeado : e pêra se privar pêra sempre de ioda
esperança de alivio, lançada a chave no rio. Âssi procedia com grande
edificação dos Religiosos, até que pareceo tem{)0, ('que ainda então não
era certo, e preciso como agora) de lhe fazerem sua profissão. Mas esta,
como a fez, não criou nellc mais liberdade da vida, nem mais alivio no
modo d'ella : começou a ser noviço pêra si, como o fora aíé então pêra
a Religião : agora voluntário, como d"antes por oljrigação.
CAPÍTULO XV
Sae Frei Gil de Paícnr.ia. mudado pcra S(!r,l<irc)}}. Coniinúa suas pcniíen-
cias. Conlão-se as persiguiçocus, e assoinòruinentos 'jue padeceo do De-
mónio, ale uhançar o cserilo que lhe tinha dado.
Neste rigor perseverou até que foi mandado pcra Portugal. Não nos
consta com que occasião. Parece que devia ser instancia de parentes com
dom Frei Sueiro, a cujo cargo estavão as cousas da Província: porque
a vontade em Frei Gil era aífeito totalmente morto. Muito nos importa-
ra achar ao justo o aiuio em quò se passou a Portugal, tirado por con-
jeitura, como atrás fizemos (*) pcra alcançar o principio da casa nova des-
ta villa : se foi logo dcspois da profissão, i'esponde-nos ao fim do anno
de i220, ou entrada de 1:22 i. Mas como todos os autores dizem que
veio logo pêra Santarém, onde neste tempo não havia ainda Convento,
he força dizermos que se deteve emPalencia,tres ou quatro annos. Achou
Frei Gil a casa de Santarém floiida de gente santa, recreação grande
pêra sua alma, confusão nova por outra parte, qiiando lhe lembrava o
penhor cuc tinha em podei" do enemigo, pacto infelice, e penhor de san-
gue, escrito, c assinado do sua mão, feito, e dado com muito gosto.
{.) L. 2, c 2.
PAivrrcr; ah do rkino de portlt.aí, ÍD:]
E nTío liavia ronsa que o consolasse, pareceu Jo-llio que íawío l!io dura-
va a triste vassalagem, e que se condeiiinara, quanto tardava em o res-
gatar. Aqui era o desíázcr-se em lagrimas diante do Saníissinio Sacra-
mento, não cessando noite, e dia. Aqui o apertar com novas peniten-
cias, c bradar por misericórdia. Mas julgando que não era, neíii mere-
cia ser ouvido, tornava-se á Virgem mTú, emparo. e remédio de pecca-
dores, ancora sagrada, e ultimo refugio de aílligidos. Pedia-llie (}ue va-
lesse ao fillio adoptivo diante do natural: que não poderia negar nada
a tão boa Mãi, inda que fosse por tão mão íilho. Havia na casa do Ca-
pitulo huma devota imagem da Senhora. A este lugar o trazia a confian-
ça que só nella tiiiha, pranteava, carpia-se sem descançar, queixava-sc,
de si, e confessava que não era merecedor de perdão, e logo se da\a
a pena lavando as costas em sangue, que conaa em rios até regar as
bgeas. Muito tempo continuou neste exercício sem mais consolação, nem
orvalho piadoso do Ceo, que huma interior confiança que se perseverasse,
lhe não faltaria despacho, conforme á Divina promessa : Onmis, qni pc-
íit, accipit; etqviqiicerit, mué-^íí (*). Mas esta lhe procurava roubar o ene-
migo, atemoriznndo-o com figuras medonhas, e fantasmas infernais. Es-
tava huma noite cheio de fervor orando: eis que subitamente lhe abre
a terra até o centro, e poem-lhe diante dos olhos todo o Inferno junto
(vista horrenda) sem ficar cousa que pudesse mover asco, e pavor, q.;e
Ufa não representasse, as misérias, os tormentos, as disformes posturas
dos padecentes, as cruezas, as visagens, a fealdade dos atonnenladores ;
trabalhando persuadil-o que por muito que orasse, aquelle horror sem-
piterno havia de ser sua eterna morada. Outra vez tomando a figura de
hum monstruoso Centauro armado de arco, c frechas, embebia huma
no arco corn tanta força, que lhe fazia juntar as pontas, e apontava em
Frei Gil, (que de medo estava sem sangue) com geito, e ferocidade tal,
que lhe parecia não podia escapar de atravessado. Yalia-so nestes pas-
sos das armas de fiel Christão, do nome poderosissimo de Jesu, e sua
Cruz santíssima. Fogia o enemigo : mas elle não daixava de ficar pei"-
tm'bado, e descontente, attribuindo a seus peccados tanto poder, e ta-
manhas affrontas: e todavia como bom soldado tornava sem desmaiar
a seu requerimento, e oração. Sintia-se Satanás de o ver perseverante
nas penitencias, e animoso na oração: arremete hum dia a eiie í';ito hu-
ma fea, e disforme tartaruga, de cabeça, e boca tão desmesurada, que
[•*) Luc. II.
vni.. I. i.'!
IQ4 LlVr.O ÍI DA 1I!ST0Í\ÍA DE S. DOI^ÍLNT.CS
prometia podel-o cngiilir : foi grande o medo, dando-se por oiiíro Jonas
no ventre da Balea. Mas alcaiiraiido já pouco por estes meios, porque
a continuação tinha criado em Frei Gil animo p^ra desprezar suas fan-
tasmas, como cocos de miníno, determinou-se em guerra descuberta.
Deixa figuras aílieias, entra em campo com sua própria, mais temerosa
por mais coníiecida ; c porque com ella refrescava a memoria das pro-
messas, c culpas passadas ao delinquente. Começava a despregar aquella
lingoa serpentina em mil afrontas, chamando-I!ie traidor, e ingrato, fe-
mentido, e perjiiro : ingrato a quantas Itoas venturas lhe grangeara de
gostos, e delicias : traidor a quanta honra uic dera entre Príncipes, o
grandes da terra. Dava bramidos como Lião, fulminava feros, e ])lasfe-
mias com gestos, e carrancas, que a si mesmo se excedia de feio, e abo-
minável. Mente, dezia, faísca, e perjura comigo quanto quizeres. Que isso
mesmo te lia de fazer a guerra, porque ninguém Vi crea, a ninguém en-
ganes. Chora, trabalha, cança, derrama esse sangue aleivoso. Meu has
de ser chorando, e padecendo : melhor te fora rindo, e folgando. Afnr-
mava Frei Gil quando despois de muito velho com santa singeleza con-
tava estas cousas, que tanto lhe custava de medo, e tormento cada hu-
ma d'elb.s, que muito menos sintira ver-se levar a justiçar em huma
praça publica, não hum.a só vez, se não muitas. E todavia aturou este
martyrio, e tentações com valor, e constância sete annos inteiros, con-
tados do dia que foi recebido ao habito. No cabo d'elies estando huma
noite na sua ordinária estancia do Capitulo, c no sou costumado, e con-
tinuo requerimento com a sagrada Virgem, c pedindo-lhe remédio com
palavras sabidas do intimo da alma, e cheias do lastima, e desconsola-
ção, forão sobre elle maiitos Demónios juntos, e com maior violência
que nunca pretenderão metel-o em desesperação : e misturando ameaças
com vitupérios dezião, que a seu pesar, nem Ceo, nem torra havia já
de lograr. Porque o Ceo tinha fechado, e feito de bronze, polo escrito
de obrigação que com sua mão, e com seu sangue fizera ao Inferno ; o
a terra com os bens, e gostos d"ella perdia, polo querer quebrar como
falsario: eassi não tinha que fazer, senão desesperar, e arrebentar, pois
tinha perdido tudo sem remédio. Estava o penitente prostrado com o
peito, e face em terra, cheio de medo dos exércitos de Satanás que o
assombravão : mas multo mais do que sua consciência o accusava, vendo
nella mil testemunlios do que ouvia aos enemigos : e isto sintia mais
que todas suas goltrançaiias. Levantava o rosto, c olhos á Virgem, e
PAHT.CLW.Ai; DO ISKINO DP, 1'0!!TLT.AÍ. IQ.j
com grande dor, c liumilílíide dczia : Virgem bendilissima, ollcs dÍ7X'm
verdade, eti o confesso, no qne toca a minhas gravíssimas culpas : e não
nego que também mereço por cilas o que dizem. Mas nunca confessarei
que pesão mais meus peccados, que os merecimentos d'aqueile precioso
sangue que meu bom Jesu Filho de Djos, e vosso, por mi derramou na
('.ruz. E como isso seja verdade, nunca desesperarei de sua Divina mi-
sericórdia, inda que toda a vida padeça, e viva milhares de annos. E
vós Virgem fonte de piedade não consintais que se alegrem vossos enc-
migos, levando vitoria d 'este pobre fdho vosso, que em vós fia, e por
vós chama tantos annos ha. Mostrai Senhora, que são falsos, e mintiro-
sos contra vós, e contra vosso Filho, e lambem contra mi. Mostrai coni
(ílles que sois Mãi de Deos: mostrai comigo que o sois de desempara-
dos, acudindo-me com alguma consolação, e misericórdia d'essas mãos
poderosas neste ahysmo de misérias. Assi dezia, do peso da tribulação
quasi desmaiado: e os enemigos como em batalha rota atroavão tudo
com grita, com braveza, e estrondo infernal. Neste ponto so sintio so-
corrido de poder invisivel. Porque vio fogir de repente os exercidos de
Lúcifer, como quem com medo dava as cosias a maior força : soando
d"entre elles huma voz horrenda que claramente dezia : Toma com a mi-
nha maldição, e de todo o Inferno. Nunca o houveras, se me não íizera
força quem está n'esse altar: ella me faz guerra, ella me vence. E Ií-^í^')
notou que vinha decendo do alto da capella, da parte onde a vazavji hu-
ma al)ertura, pola qual os vira ir íogindo de tropel, linm pedaço de lu'!-
gaminho, que pêra sinal do que era, e de quem o ganliara, e dei-.i a
vitoria, se veio como posto á mão offerecer, e assentar aos pés da Se-
nhora sobre o altar: era este o mesmo lugar por onde cahia a corda do
sino do Convento, e até nossa idade' se conservou no mesmo estado, e
servivço, e justo fora que se não perdera o sinal d'clle, pêra memoria de
caso ião raro, inda que se escusou o uso. :n7io ha em nenhuma lingoa-
gem termos !)astantes a significar o gozo, e alegria que o atribulado Frei
Gil sintio em sua alma, quando vio, e reconheceo a carta do infame con-
certo restituída a snas mãos. Torna-se a lançar por terra, e com a boca
muda, e pegada nas lageas, e os olhos feitos duas fontes, deixou-se es-
tar grande espaço em sinal das graças que desejava dar : e offerecia por
cilas lagrimas e silencio, porque não achava razões que respondessem
ao que sintia. Em sua alma se prometia por cativo á Mãi, e como res-
gatado por seo meio : promelia-se por escravo ao Filho, puis mostrara
|fM> LIVRO II DA IIISTOr.íA DE S. DOMINGOíi
em o tivríir qnc não engeitava siia contrição, e i^enitencia : c cheio do
prazer oderecia não havev de ter hora nem momento cn^ toda a Tida,
(jLie empregasse em outra cousa mais, que serviço da Mãi, e amor do
Filho. Mas aqui he de considerar a alteza das misericórdias, e riquezas
de Deos, que quando faz mercês, excede, e sobrepoja não só os mere-
cJmentO(S, mí\s até os desejos, e imaginação do liomem. Por sete aunos,
que Frei Gil chorou, lhe pagou com outros sete de perpétuos mimos,
c favores: e particularmente o acompanhou em todos com hum.-iluz da
gloria, que como tocha acesa lhe andava, e aparecia sempre diante dos
olhos, como em penhor de patrocinio certo contra as siladas do íiLrcrno,
(juc tanto o tinha afadigado, e nunca despois deixou de o perseguir em
toda occasião que pode. E este socorro foi parte pêra lhe vir a perder
o medo de maneira, que não só o desprezava, mas era espanto, e terror
a todos os cspiritos Infernííis. Assi veio a cobrar liuma grande paz, o
quietação d"alma, mas não que fosse parte pêra deixar os rigores, e pe-
nitencias costumadas : antes a& executava agora com mais vontade, quan-
to via, e tinha por certo, poio que lho tinhão aproveitado, que as podia
íazer com maior confiança.
CAPÍTULO XYÍ
Parle Frei Gil pe-ra França a esfiuhtr Theolocjin. Conla-se a sanfa vida
que fazia em Paris estudando, e como reccbeo o rjrdo cie Doutor pola
Universidade, e foi declarado pela Ordem por Mestre, e Leitor de Theo-
logia.
Ajuntou Frei Gil á austeridade de vida que seguia, pêra mais mere-
cimento com Deos, e com a Ordem, dar-se ao estudo da sanía Theolo-
gia : no qual se empregou com tanto cuidado, que fora das horas que
dava a Deos, em nenhuma outra cousa se ocupava dias, e noites. Como
lhe sobejava habilidade, e estava fundado na Filosofia do tempo que es-
tudara a Medicina, tinha bastante mestre cm seu engenho, o Aula na
cella. Mas porque nenhuma sciencia se aprende fundadamente se não em
escolas, onde a conferencia, e emulação põem esporas, e aviva os enge-
nhos, foi-lhe mandado poio Provincial que fosse residir, e graduar-se era
Paris. Poz-se ao caminho por obediência, que n'outro tempo tomara por
n-osto: e tal era a dilTerença em tudo. Então rico, e acompanhado de
PARTICrr.AR DO REINO DE PORTrOÂL 197
recamara, e criados, e engolfado em cuidados de agradar ao mundo :
agora pobre, e a pé, e todo embebido em lazer alguma cousa por ser-
viço d'aqueí!e Senhor que o livrara d^elíes, e d'elle.
Ao entrar por França, de crer he, que achando-se em parles que
íVoulro tempo ihe forão occasião de olTensas do Criador, também agora
o serião de novas lagrimas, imitando o que tinha ouvido dos grandes
penitentes. Que se só o canto úc hum gallo fazia arrebentar em pranto
o Principe dos Apóstolos, que farião cm Frei Gil os encontros que a
cada passo tinha de muitas cousas juntas, em cada huma das quais re-
conhecia não só oíTensas ordinárias, mas aqiiella maior de todas da vil
capitulação que fizera com os enemigos de Deos contra o mesmo Deos.
Chorava de novo, mas juntamente engrandecia as misericórdias do Se-
nhor que o livi^ara, e assi crescia com elle em graça, e merecimentos
(qwe esta interesse rendera peccados bem chorados.) iMas se chorava nas
cidades, alegrava-se nos campos, servindo-lhe qualquer flor que via, ou
passarinho que ouvia, de se arrebatar em louvores Divinos. E como tra-
zia grandes luzes na slma oommunicadas daquella, que lhe ficou sempre
diante tios olhos, como atrás dissemos, andava em peri^elus união com
Deos, amando-o, dcsejando-o, e enlevando-se nelle de sorte, rpc tudo o
que não era Deos Ih;^ aborrecia, e dava pena. Estado bemavonturado, e
(jual devo ser o de todo Religioso, que pois buscamos a hum Senhor
que se não (juer servido do meias, erro será não ll^i darmos o coração
inieiro, pêra alcançarmos a boa ventura daquelles qui tolo cords cxqui-
runt caini"). Assi adiantou muito em espirito, e perfeição nesta jornada
de França, e quasi ao mesmo passo do que perdeo na primeira.
Achou Frei Gil em Paris ao Santo Frei Jordão Mestre Geral da Or-
dem, que tendo noticia de quem era, e recommendação de sua pessoa
por cai'la dei Rei dom Sancho lhe fez muito gasalhado, e honra, e maior
despois que o tratou, e foi conhecendo o gosto, e continuação com que
se empregava no estudo primeiro da Religião que he a viilude, e no
segundo que he o cuidado de aproveitar nas letras. Aqui teve por com-
panheiro das Aulas, e da cella ao grande Humberto, que despois veio
a ser Geral da Ordem. Este varão se lhe affeiçoou muito, e notando com
attenção sua vida no tempo que estiverão juntos, nos deixou noticia em
seus escritos de, algumas cousas delia. AíTirma c{ue sua occupação con-
tinua era orar, ou osiudar, oU servir enfermos: com tal constância que
(.) Ps. 118.
108 LIVIIO II DA IHSTOUÍA DE S. DOMINGOS
oní todo O (lia,, c cm toda a roda do aiino, o cm quanto estudou cm Pa-
ris, nunca o vio huma só hora ocioso. Com tão grande testemunho pu-
déramos escusar tudo o mais que ha de sua residência em França, ^ias
como esta liisíoria se escreve pêra exemplo, dontrina dos que de pre-
sente vivemos, e dos que hão de vir traz nós, parece obrigação dizer-
mos mais alguma cousa. Tinha Frei Gil particular gosto de servir na
enfermaria : no qual officio fazia nmitos ollicios. Porque hmnas vezes
visitava os enfermos como Medico que era consumado, e logo lançava
lóra Hipócrates, e Galeno pêra lhes levantar os ânimos ao Ceo(*). Dezia
([ue Deos criara o Medico, e a medirina, bom ei'a ouvir o Medico, e acei-
tar o medicamento; mas coníiai* só em Di^os, que podia mais que a na-
tureza. Outras vezes como se fora o mais humilde irmãozinho de casa
de noviços, punha as mãos em tudo o que convinha ao doente sem pejo,
nem asco, nem cerimonia, se não com huma vontade tão prompta, e
alegre, que se lhes trasluzia em tudo hum coração inílammado em ver-
dadeira caridade. Também quando convinha acudia como Santo. Porque
<'omo a doença -não he outra cousa senão descomposição de humores :
e estes descompostos trocão, e pervertem a l»oa complexão natural dos
doentes ; daqui vem serem muitos homens na doença penosos, descon-
leiitadiços, e máos de servir. Pêra este ponto era Frei Gil dotado de
huma certa gi-aça natural, que por mais descomposto que achasse o en-
fermo, elle o tornava de colérico, macio, e brando: de maiencolizado
alegre, de impaciente sofírido, de desmaiado, animoso, e cheio de esfor-
ço. O que servindo muito pêra a saúde corporal, não aproveitava menos
pêra a espiritual. E assi como trazia todo o Convento edificado, e obri-
gado com esta arte, não o edificava menos com a que usava comsigo,
quando era enfermo. Porque de nenhuma maneira podia acabar consigo
ser pesado, nem dar pena a nenliuma criatura. Se lhe davão de comer,
se Ih o não davão, se vinha cedo, ou tarde, se mal, ou bem guisado, se
frio, ou requentado, ou escaldando, a tudo fazia o mesmo rosto, e sem-
pre bom rosto. E o que mais espanta lie, que sendo singular o Medico,
entrando a vel-o os de casa, estava por tudo o que delle ordenavão sem
faltar palavra, cativando por humildade o entendimento próprio ao pa-
recer alheio, e ás vozes pouco acertado. Mas não era menos proveitoso
medico pêra as almas dos sãos, do que o era pêra os corpos, c condi-
ção dos doentes. Como durava a memoria do tempo em que o virão
(•) Etd. 38.
PARTICULAR DO REINO DE PORTIT.AL i99
naquclia Uiiivert.idado celebrado xMcdico, e autor do grandes maravilhas,
i)iiscava-o muita gente persuailida, que devia ter muito de Deos quem
alcançara d'elle poder trocar a gloria de andar nas l)ocas da genie, c
nas azas da fama, por huma túnica de Iam, e hum habito remendado.
Vinhão huns com as almas chagadas de gs-aveza de peccados, chagas po-
dres, e ao parecer incuráveis : nestes como tão esprimentado em feridas
próprias fazia milagrosas curas. Nenhum so lhe hia sem remédio. Aqui
polo muito que amava a Deos, empregava toda sua sufíjciencia ajudando
além da Fisica dos bons conselhos, com a de suas orações. Na mesma
forma aliviava e mandava consolado todo outro allligido, quahpier que
fosse o trabalho : ou em perda de fazenda, ou de eolado, de honra, ou
de fama. Tacs cousas sabia dizer, tal virtude punha Deos no que dezia,
que ninguém sahia de suas mãos sem remédio. E se o chegavão a tra-
tar por curiosidade, como acontecia, alguns mancebos, ou começados a
enganar das vaidades do mundo, ou enfrascados já nellas, assi os fazia
temer, e entrar em si, que davão volta em redondo na vida, e nos pen-
samentos. Assi aquirio muita gente nobre em França pêra a Religião : e
o mesmo fez despois em Portugal. E podemos bern dizer por elle, quo
na arte de encantador ficou o mesmo que d"ai!tes era, trocados somente
os fins. Porque, como se não perdera a eíTicacia, e embainientos d"ella,
forçava com suavidade os corações, obrigava, rendia, e encaminhava os
homens pêra Deos, furtava-os ao inferno. Esta graça conta d*elle o Santo
Geral ILimberlo, que tinha também com noviços, quando salteados de
qualquer desgosto, ou tentação, vacillavão, ou tornavão atrás nos santos
propósitos. Bastava meterem-Ihos nas mãos, pêra sairem d'ellas cheios
de valor, e constância. Mas erão já eífeiíos sobrenaturais, não humanos,
nem ordinários. Porque nos poucos annos que se deteve cm França pas-
sou tanto adiante na virtude, e perfeição, que todo seu trato era com
Deos. e sua conversação no Geo, nem fazia cousa que lá não negoceasse
primeiro. E testemunha o mesmo Padre Humberto, que lhe acontecia
muitas vezes arrebatar-se subitamente, e ficar alienado de todos os siii-
tidos de tal sorte, que entrando algumas pessoas onde eslava, de nenhu-
ma dava fé, e a cabo de grande espaço, que tornava em si, então lhes
falava, e as saudava, como se naquella liora chegarão. Communicava-lhe o
Rei da gloria aqueíle divino cheiro dos âmbares, e agoas de Angeles das
boticas celestiais, não era mais em sua mão, corria traz elle : e perdia
o gosto, e o conhecimento de tudo o da terra. Porém isto, que então
iOi) I.IVIU) II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
era sj huma faisca de fogo Di\iiio, dtíspois andando o tempo passou a
eííeiíos tão extraordinários, e espantosos, que roubando-lbe de todo uso
os sintido, 6 os membros do peso natural, arrebatavão aijucile corpo
poios ares, como adiante veremos.
AjudaJa assi dos divinos favores a destreza natural do bom engenbo
não foi necessário gastar muitos annos pêra morecer a lionra do grão :
e porque el-Rei dom Sanclio tinba mandado prover as despesas deite,
Fiví Gil a recebeo publica na Universidade com festas, e aplauso: e lo-
go outra particular na Ordem, sendo nomeado por Leitor, e Mestre em
Tlieologia pêra a Província de Espanba. Isto allirmão todos os que es-
crevem dellef). O que nós achamos apontado no livro, que cbamão rí/í/í
Fratrum da nossa Ordem, he o seguinte :
Hcec Fraler yEgkliiis de Fortiigalliu scripsif, vir simptex drccins, et
timens Deurn^ iii stfculo imujiius in artibus et Phisica, et in Tlteoloijia in
Online Dcctor.
CAPITULO XVIÍ
Torna Fiei Gil pêra Espanha, Conla-se o rjue llie siicecdeo no caminho: e
como começou a pregar em Portugal. Refere-se hum estranho artificio
cem que o demónio o tentou, e como se houce nelle.
Sendo Frei Gil nomeado por Mestre, e Leitor de Espanha, foi-lbe manda-
do que logo se viesse á Província exercitar seu talento. Achamos posto em
memoria um caso que llie succedeo n"esta volta que fez pêra Espanha, digno
de ser sabido, pêra vermos qual era n"este tempo sua confiança em Deos, e o
fruito, e poder de sua oração. Caminhava por terras da comarca de Poitiers :
e tinha andado lium dia desde polamanhãa até quasi meio dia: e como suas
penitencias o trazião descarnado, e fraco, comc-çou a sinlir o trabalho, e
desejava descançar. Vendo porto luinia aldeã, disse ao companheiro, que
seria bern, irem-se a ella, e pedindo de caminho alguma esmoUa come-
rião hum bocado, e repousarião um pouco. O companheiro que era ro-
busto, e trazia mais alento, resistia, e dezia que não era bom conselho
parar era lugar pobre, porque estava certo acharem n'elle tão pouco re-
médio, c{ue íicarião impossibUiísdos pêra seguirem despois o caminho,
(.) L. í. til. de virt. oiat.
PARTICri.AP, DO REINO DE PORTUGAL 201
de fome, e fraqueza. Que o melhor era apertar o passo, e chegar a lu-
gar onde S3 pudessem refazer bastaníeinente. Acoihia-se Frei Gil aos
poderes Divinos, dizia-lhe que rraquella Irislc aldeã podia Deos acudir-
llies com muito mais do que havião mister. Que não duvidava, respondia
o companheiro, das grandezas de Deos, mas que íaes milagres não cos-
tumava fazer, nem erão pêra esperar. Cheio então de conliança o Santo,
hora, irmão, disse, não duvidois, nem temais, que eu vos affirmo, que
aqui nos ha de prover hoje meu Senhor Jesu Christo com grande
largueza. Ião n"esla consulta, quando appareceo hum tropel de gente de
cavado, e de pé, que trazia o mesmo caminho: e chegando a elles, fo-
rão saudados de liuma dona, que no geito, e lugar que trazia, parecia
Senhora de toda a companhia, e reconhecendo que erão Frades Domi-
nicos fez parar os seus, e deteve-se com Frei Gil praticando um espaço,
qaasi julgando de sua presença, e aspeito quem devia ser dentro na
alma. Ao despedir chamou por lium fdho moço que trazia consigo, e
disse-lhe, que segundo a hora que era, aquelles servos de Deos devião
vir necessitados, que por reverencia do mesmo Senhor os acompanhasse
até o lugar que apparecia, e lhes desse muito bem de jantar. O moço
se apeou como bom cortezão, e se foi com elles alegrementi% e não se
contentou com menos que banqiíeteal-os com tudo o que havia na aldeã,
e servil-os de mestresala, pondo e tirando pratos, e lanrando-lhe o vi-
nho nos copos, com tão boa sombra de gesto, e palavras, que não só os
convidava a comer, mas obrigava, e forçava. Aqui llies disse, como sua
rnãi era senhora do castello de S. Maxencio, e particularmente devota
da Ordem de S. Domingos. Acabado o jantar, disse o Santo pcra seu
companheiro: laçamos, irmão, oração a nosso Senhor, e á VÍ!'gem por
quem usou com nosco de tanta caridade, e peramos-lhe que ponha seus
olhos n*este gentil mancebo, que com tanta graça, e cortezia nos agasa-
lhou, e o faça ainda hum grande servo seu. E postos os joelhos em
terra rezarão o Hymno : Veni Crealor Spiritus, e a Satce com suas ora-
ções. E despedidos tornarão ao caminho. Contão as historias, que passa-
dos ires annos, vindo o Saído Frei Gil pêra hum Capitulo geral, que se
fazia em l^aris, passou pola cidade dePoitiers, e pousando no Convento,
que nella temos, achou este moço feito frade, e já píofesso, e muito
contente, e consolado de o ser : o qual despois do lhe tomar a benção,
se lhe deu a conhecer, leiíibrando-lhe o encontro, e jaiítar da aldeã, e
a oração com que lho pagara, e confessando que a ella devia a grande
202 LIVHO II DA HISTORIA DF. S. DOMINGOS
misericórdia que Deos com clle usara em tirar do mundo, e Irazol-o á
Religião.
Caminhava o Santo a grandes jornadas, quanto sua fraqueza lhe dava
lugar, com desejo de se ver na pátria, e poder fazer algum serviço
âqnelle Senhor, a quem tão olirigado se conhecia, empregando-se em
aproveitar a seus próximos, e naiuraes. Chegado a Portugal não tomou
dias de repouso pêra si, nem pêra dar aos amigos, e parentes: mas
começou logo a trabalhar em seu m.inisterio insinando, doutrinando, e
pregando, do púlpito, no Confi^ssionario, e polas ruas : nas cidades, c
villas grandes, nos lugares menores, e nas aldeãs, não deixando passar
occasião nenhuma de santo interesse, pêra poder dizer a seu tempo que
tornava o talento, se não dobrado, ao menos aproveitado, e com usura.
Não nos consta de lugar pai-ticular era que fizesse officio de Leitor, cons-
tando jinslaníeraoníe do mais por memorias do Reino, e de fora d'elle (*).
A el Rei dom Sancho pregou com valor, e liberdade, porque começava
haver queixas de grandes desordens, que não remedeava : e crecendo
estas polo tempo adiante, creceo lambem n"elle o zelo Apostólico pêra
lhe dizer verdades, e sofrer por ellas injurias, como em seu lugar ve-
remos. Ao povo pregava com bom successo, porque era seguido, e bus-
cado : e buscada por seu meio a Religião. Mas lambem pregava pêra si,
e pêra lodos os professores da obrigação do púlpito, advirf.indo-os com
energia, e sentenças graves, que mal usavão d'elle, e em vão usavão, e
se maia vão, se desejando aproveitar a outrem, não começassem por si.
Porque era condição Farisaica palavras do Ceo, e obras da terra : e pêra
quem quizessc fazer Santos, era meio caminho andado ser primeiro
Santo. E esta doutrhia pi'0curava dar estampada em si, lendo por pão
quotidiano aquelie antigo rigor de vida do tempo de sua conversão.
Mas ardia em fogos de enveja, e ódio novo o velho dragão do Infer-
no, não levando em paciência, que quem lhe havia saido das unhas, lhe
fizesse agora guerra, tornado de obediência vassallo, enemigo publico.
De tiros descubertos não fiava já, porque só tirava d"elles ficar despre-
zado, e com vergonha : buscou traça nova, e muito sua. Era Frei Gil
morador no Convento de Coimbra em companhia do Prior Frei Domin-
gos Pais, que o estimava, e amava, porque sabia o que tinha em tal pes-
soa. Faz-se o enemigo encontradisso com elle emmascarado, e desmin-
tido, (pêra não deixar nunca de se parecer consigo, e sempre mintir), na
(•) Do lombo da Sé de Braga.
PARTICULAR DO RKINO DK PORTUGAL 203
figura iIl' liuin íleligioso de casa, cliaaiado Frei Julião Francez ; e come-
ça a euieiíder com olle, primeiro com graças, e rizinhos, fazendo zom-
baria de sua composição, e modéstia. I)esviava-se Frei Gil não esqu(;cido
de si : m:is a^liava-o logo outra vez diante, e passando a termos mais
pesados cliamava-lhe de hypocriía, reíalsado, que andava ei;ganando o
mundo feito Beato de homem perdido, que merecia castigado, não visto,
nem sofrido de ninguém. Tinha Frei Gil feito calos de sofrimento ; e
como trazia a Deos sempre presente em sua alma, tirava ganho da per-
siguição, e alegrando-se com a afronta julgava por ministro de Deos
aquelle Frade, lembrado do termo com que hum Rei Santo, e também
perseguido se houve nos atrevimentos de hum vassallo: desejava imi-
tal-o, e fazia conta que Deos movia arpiella iingoa pêra prova de sua
paciência. Purém islo que lhe servia a elle de esforço, c armas, levan-
tava incêndio de nova ira em Lúcifer. Reina inda hoje n'eHe a mesma
soberba, com que se qiiiz pôr homjjro por homijro, Ci)m o Altissimo :
como sofrerá desarmar em vão cum hum bichinho da terra ? Buscou de
novo ao Santo huma manham, determinado a não largar o campo sem
o deixar vencido, ou polo menos descomposto : tantos opróbrios lhe dis-
se, disfarçado com a mesma mascara, tantos desatinos fez, que não fal-
tou mais que por-lhe as mãos ; (não teve licença pêra tarito.) Foi tenta-
ção em todo estremo apertada, e tanto mais perigosa, quanto menos en-
tendida ; via o Santo, c conhecia o rosto, e voz do Frade, não podia cair
na silada. Primeiro valeo-se de silencio, como costumava, e passava, ou
retirava-se: não bastando, porque logo tornava a dar com elle. pedio-
Ihe com humildade, e sem soltar [)a!avra de paixão, nem es.andalo, que
o deixasse viver, que o não quizesse maltratar sem causa, e deo-Ihe as
costas. Mas quando d"esla vez se vio li\re, resolvco-se em mudar na
mesma hora terra, e casa: não arriscar a paciência a outro eiiconíro, sintindo
como Santo igualmente, ou mais, a descompostura que imaginava do
Frade, que a afronta própria. Vai-se dijx^ito á celia do Prior, [)ede-lhe
licença. Alíerou-se o Prior com a novidade, e com a pressa, fez instancia
por s.iber a causa : descobrio-lhe o Santo tudo o que era passado de
dias atrás entre ellii. e Fiei Julião, c o que naquella hora lhe acabava
de ouvir, acrecentando por remate, que tinha por melhor conselho ca-
recer da consolação com que vivia em sua companhia, e n'aquelle Con-
vento, que não dar occasião a hum Religioso, que sempre tivera cm boa
conta de se inquietar a si, e a elle. Não sabia o Prelado que conselho
204 LIVRO II DA lIlSTOniA DK S. nO.MIXGOS
tomasse, conhecia a Fr. Julião por virtuoso, e sisudo; e se não fora a
Frei Gil, a nenhuma outra pessoa crera o que d'eile ouvia. Todavia
mandou-o vir diante de si, e sendo presente mandou-lhe que fizesse a
vénia ao Santo, {\\e cerimonia santa da Ordem, com que se humilha, quem
oíTendeo, ao olfendido, em sinal de arrependimento, e satisfação), acre-
centando que lhe pedisse perdão do máo termo, com que o tratara, e es-
candalizara aquella mauham. Obedeceo o Frade quanto á vénia, e ale-
vantado i)or Frei Gil, que também se lançou no chão, pedio licença pcra
falar, e aífirmou, e jurou solemnemente, que des que amanhecera o dia
até a hora presente, não falara elle Frei Julião pouco nem muito, nem
mal nem bem com o Santo: e pedia a Deos não permitisse chegal-o a
tanta íaita de juizo, que alguma hora perdesse o respeito a quem em seu
conceito era merecedor de toda veneração, como Frei Gil. Então creceo
mais a admiração em todos três, e sem serem necessários muitos dis-
cursos assentarão que foi-a lanço do Demónio, que pertendera com Imm
só tiro fazer muitas maldades : humas publicas tolhendo o bem que o
Santo fazia a muitas almas na cidade com sua doutrina: outras particu-
lares, metendo-o em paixão, ou desabrindo-o com seu irmão. Mas em
ambos ficou enganado o Pai da maldade : porque com o irmão ficou mais
unido em amor, e caridade fraternal : e pêra continuar com seus ser-
mões, e insino do povo quietamente se animou muito, fazendo conta que
de algum fruito erão, pois desagradavão ao enemigo de todo bem. Este
successo põem o Padre Castilho em annos atrás (*) : nós seguimos
nelle a Frei André de Resende que vio as memorias antigas em suas
fontes f *).
CAPITULO XVIII
Como foi eleito em ■Provincial o Santo Frei Gil, c du cuidado, e intt-ireza
com que procedeo no cargo. Passa d ilha de Malhorca celebrar Capitulo
Provincial. Dá- se couta da tempestade que teve no mar, e das affrontas
que por rezão delia lhe fizerão: e como cessou por sua oração.
Não durou muito esta quietação ao Santo Frei Gil. Porque foleceu na
mesma conjunção o Santo Provincial dom Frei Sueiro, e juntando-se os
Padres da Província pêra lhe darem successor, (não ficou em memoria
(-) Castilho p. 1.1. 2. rap. 72.
l-.) Ue.sende l. 1. c. 8. in vila B. .Egidij.
pAnricrLAi; do uei.no dk i»ohtl(jal 205
onde foi a junla), e achando-sc rrdla S. Frei Gil, som precederem votos,
nem escriitinios, foi de consintimento universal acclamado Provincial. E
d'aqui se pode fazer jaizo qual era já a opinião, quo por toda Espanha
corria de sua santidade: do que dá bom teslimunho o Padre Frei Fer-
nando de Castilho falando desta eleirão por estas palavras : }' lo.^ Frau-
les de Cuslilla Je hizieron su Provincial en la primeva occasion, por tener-
la ellos para ser santos con el exemplo de un Paslor santo (*). Advirtimos
de passo ao Leitor que não lhe faça duvida, sendo esta eleição de toda
a Província, e a primeira delia, em que de força se havião de juntar lo-
dos os votos, que n'ella se comprendião, dizer este Padre que a fizerão
os Frades de Castella. Usou como melhor Orador, que historiador, da
figura Retórica de tomar a parte polo todo, como faz em outros casos:
e não posso crer que quizesse seguir o costume de alguns escritores de
fora, que por darem tudo o que podem a sens naturais, se aproveitão
d'ella a pesar das leis do officio. O anuo preciso, em quo foi eleito S,
Frei Gil, não consta por nenlium dos quo d"olle escrevem. Mas pola conta
que levamos dos doze annos, quo dom Frei Sueiro viveo Provincial vem
a cair no de 1233, que era já o decimo do reinado dei l\e\ dom Sancho
Capelo.
Mostrou o Santo Frei Gil aos seus eleitores, c a toda a Província
que não fora engano, nem favor mal considerado a honra, que lhe fize-
rão. Porque onde o cargo costuma a mamTestar faltas, e fraquezas nos
eleitos, que muitas vezes, ou cobre a sagacidade da ambição ou o esta-
rem longe das occasiões de governo, n'ell3 descobrio maior suííiciencia,
e mais merecimentos. Era diligente, trabalhador, amigo da virtude, e
honrador dos virtuosos : mansíssimo com todos ; austero, e rigoroso só
consigo, e em fim mais Pai que Prelado em tado, e como tal amado dos
súbditos. E podemos dizer que não sintio a Província mudança de go-
verno, mais que no nome. Assi foi crecendo por toda a parte em Con-
ventos, e reputação, e foi grande o numero do3 que se fundarão por
Castella, e Aragão, e Catalunha. E teverão principio em seu tempo em
Portugal o do Porto, e o de Lisboa, como se verá adiante cm seus par-
ticulares títulos. Mas he de considerar, que havendo no disíricto de sua
o])i'igação duzentas legoas de caminho, que tan.tas se conlão de Lisboa
a Barcelona por estrada direita, he cousa certa, que em todo o tempo
d "este primeiro cargo sempre visitou a pé, (raro exemplo, e digno que o
[•} Caslilho p. 1. 1. '2. ca[». 7o.
^Oí) I.IVI'.() II DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
viramos ciiljiçailo, e segiiidG cm nossa idade : mostranão os Prelados
que só amor de Deos os move a aceitar as lionras, sem nos ficar escrú-
pulo de os crermos.) Ajuntemos a isto, (porque não cuide nin^^uem que
pediriios mi'.agres), que acodia cada anno aos Capítulos gerais, c não man-
dava Minguem cm seu lugar, nem mudava estilo no caminhar : sondo
hum em Paris, orJro em Bohjnha: e sobre tudo levava sobre as carnes huma
cinta de ferro ai)erta'la : (jue não se pode imaginai mais tormentosa com-
panhia pêra huma hora de andar a pé, quanto mais dias, e annos. Bem
havia mister soccorro do Ceo, c não Ilie faltava. Donde nacia offereuer-
se animosamente a todo trabalho por dilatar, c ilhistrar a Província,
como veremos no caso seguinte.
He a ilha de Pvíalliorca huma, e a maior das (]ue são conhecidas en-
tro a cosia do Espanha, e Africa, com o nome de Baleares no mar Me-
diterrâneo. Havia nclla hum principio de Convento da Ordem, des do
tempo que cl Rei dom Jayme de Aragão a ganhara, poucos annos havia,
aos luouros. Pareceo á Pi-ovincia que seria acertado, pêra ficar no esta-
do que convinha pêra cm terra povoada de novo, celebrar-se n"ella hum
{Capitulo Provincial. Não refusou o tra])aiho o valeroso Prelado : quando
foi tempo, achou-se em Barcelona pêra (Kali passar. Estava de partida
huma núo do mercadores pêra a ilha, cmliarcou-so n'ella com alguns Ca-
pitulares repartindo outros por outras emharcaçíjes. Levantadas ancoras
ao deferir das velas soou hum espirro entre os passageiros. Foi cousa
de espanto a alteração, e pavor que entrou Juntamente em mercantes,
e mercadores, por huma cousa tão natural, e ordinária, como he hum
espirro. No mesmo tempo mandão que se tomem as velas, c se larguem
de novo ns ancoras, dizendo que com tal agouro nenhum sizudo se des-
abrigava de ter!'a. Acudio o Santo, mais i)ola honra de Deos, que pola
necessidade do navegar, e conieçou a reprovar a determinação, com re-
zões santas fundadas em Fé, v. Cliristandade, c no credito íla providen-
cia Divina, f[ue rege, e governa todas as cousas : c dependendo todas
d'clia. nenliuma tem força nem poder cm si, se não quanto cila lhe com-
munica, c concede, como suprema, e ultima causa que hc de tudo. Don-
de naco que he vaidaíle, e fabula dizer, que ha agouro, ou hora mingoa-
da em tempo, caso, animal, nome ou succeso. E se alguma hora se vem
effeitos qiic acreditem as cousas, he permissão de Deos pêra castigo do
pcccndos, e dos que n"ellas altentão com mais cuidado, do que devem á
Fé (]ue professão. So]eitarão-se os liomens á boa doutrina, e obrigou-os
rAinicrLAP, do uf-ino dl: i>ortl(;al 207
mais o venlo que era do viagem, e em jornaila breve, que não lie mais de
sessenta legoas de travessa. Sairão em popa.
Este vicio de oliiar em agouros lie ordinário em muita gente, e foi
particular da antiga Gentilidade, e por tal trabalha o enemigo de o introdu-
zir, e sustentar entre os Cbristãos, pêra d"alii passar a danos maiores. Mas
o successo do espirro, que estes tomarão em agouro avesso, foi nos tem-
pos muito antigos recebido em contrario sintido, como o aponta o Prín-
cipe dos Poetas em Penélope (*), de quem conta que se alegrou, ouvindo
lium espirro, quando Ulysses começou a executar a vingança de seus ene-
migos, e que o houve por boa estrea, e sinal de victoria. D'onde fica pro-
vado o engano, e futilidade do agouro pola differença dos tempos, e opi-
niijes. As historias menos antigas fazem menção de huma doença geral,
e tão perniciosa, que o homem que dava espirro, dava com elle junta-
mente a vida (**) : e quando foi aplacando, se hum espirrava, e acertava a
ficar vivo, acudião os presentes a dar-llie as emboras, como hoje fazemos
sem mais rezão, que o costume posto já em posse, e termos de corte-
zia. E por ventura foi deduzido este, e o agouro dos mareantes do mes-
mo principio.
Mas tornando a nossa historia, cerrada a noite creceo o vento, en-
grossou o mar, escureceo o Ceo, cobrindo-se de nuvens, e quando ama-
nheceo, era tormenta desfeita. Eis que começa a gente do mar aqueixar-
se, e dar culpas a quem os fizera navegar. Acodem os mercadores, o
vendo embravecer o mar cada vez mais dando-se por perdidos, e per-
dida a fazenda, que estimavão igualmente com as vidas : e em lugar de
fazerem orações a Deos, dão em desesperações : tornão-se contra o San-
to, que saliio debaixo a co;isolal-os. dizcni-lhe mil afrontas, e impropé-
rios, lançando-lhe toda a culpa do trabalho. Ajuntão-se outros mais da-
nados, ou com o medo, ou com o exemplo, gritavão que o lançassem ao
mar, e fosse primeiro afogado, quem fora primeií-o em os persuadir a
deixar a terra : e faltava pouco pêra violarem com mãos sacrílegas as ve-
neráveis cans. Vendo o Santo a força do tempo ajudada da raiva, e des-.
atino dos homens, levantou os olhos ao Ceo, e pondo toda sua alma, e
confiança em Deos, disse em voz alta. Que ho possível, Senhor, que ha-
veis de permitir que acabemos aqui, e que triunfe o demónio, e fiquem
acreditadas suas mentiras? Ah não seja assi, meu bom Jesu. Acudi Se-
{.) Ilonicr. Odyss. 1. 17.
(♦•) Whcífas l.']!. 1. 4. c. 1. n;i M'da de S. Gip^ui. Papa.
208 ' LlVllO II DA mSTOUIA DK S. DOMINGOS
iihor, e socorrei a vossos sorvos, qiio se vós qiiizcrdes, Ião obeilecido
sois no mar, como r.a terra, e em todo lugar podeis castigar, c dar re-
médio. Quiz í)oos mostrar que ouvia a seu servo, e quiz qiic o conlie-
cessem, c cuíendessem assi, lodos os que ouvirão sua oração. Aplacou
o mar, não como lie costume, cessando pouco a pouco o vento, e ondas :
mas subitamente, c como de pancada em acabando a ultima palavra do
Santo, acabou também toda a lemposlade, a íuria dos ventos ficou cal-
ma, somirão-so as serras de mares que subião ás nuvens, tornou Sol, e
dia claro. Pasmados da maravilha quantos havia no navio, levantarão as
mãos ao Ceo, e voz em grita davão graças ao Senhor, e juntamente ao Santo:
e chamando-lhe Santo e mil vezes Santo, confessavão receber de sua mão vi-
das, não, e fazenda. Os mercadores mais em particular se lhe lançarão aos
pés, o iium que maior parte tinha na náo, c mais desacatado andara com
elle de obras, e palavras, conhecido de sua cislpa, fazia força por lhe beijar
os pés, pedindo-íhe perd'io com lagrimas, de sua ira, e soberba. Não se
podia o Sauto defender como verdadeiro humilde que era, a hum humi-
lhado : e em íim disse-lhe, que o perdoaria com huma condição igual,
que era, se elle lambem perdoasse a quem o tinha offendido. O merca-
dor, ou por não cair no que o Santo pretendia, sendo colhido de súbi-
to : ou porque tinha inda presentes na alma os medos passados, e a mor-
te que vira n"olles, não se atreveo a contradizer o partido. Era o caso
publico, c o mais falado que n'aquelles dias corria em Barcelona. Tevera
brigas com hum parente, e sairá d"ellas com tal ferida pola cabeça, que
ficou julgado por morto: escapou com muitos dias de cura, e com ver
seus olhos muitos pedaços de casco, que lhe tirarão d"el!a. Clomo S3 vio são,
forão exlraordinr.rias as diligencias que fez, e meios que biscou porá se
vingar. A gente de seu natural he mal sofrida, o teimosa. Ájuníava-se ao
escândalo, e afronta, ser homem rico: fazia conín de satisfazer por si,
ou por outrem, c tinha dado em sua alma tamanho iugar ao ódio, que
tratando o Bispo de o quietar, e metendo-se n'isso parentes, e amigos,
e toda a nobreza da cidade, de nenhuma maneira poderão com elle aca-
bar nada. Agora obrigado polo Santo, deixou-se vencer, e deu sua pa-
lavra de perdoar ao conU-ario, e ser seu amigo. E o Santo ficou cheio
de prazer, porque no perdão de hum ficou gunliando as almas, c quie-
tação de ambos.
PAiiTicrLAn D() r.KiNODí-: i'0»tlt.al 200
CAPITULO XIX
Do estranho meio porrjne São frei Gil foi sabedor do naufrágio de huns
Capitulares, que hião em outro navio. Despacha fíelif/iosos pêra Inqui-
sidores d'algumas cidades de Catalunha. Celebra Capilído em Burgos.
Aceita-se nelle o Convento da cidade do Porto. Vem a Portugal. Prega
com liberdade a el Rei dom Sancho. Recolhe-se a Santarém.
Síío as morcOs de Deos em tndo perfeitas. Assi como deu fim á lor-
menía, acodio também com vento prospero, qne brevemente o.s meteo
no porto da ilha. I-^ntiou o Provincial no seu Convento, que tem nomií
de Nossa Senhora, e S. Miguel da Vitoria; e foi recebido com espanto,
e alegria de toda a terra, porque entendião que de força o colhera no
mar a tempestade, e davão graças a Deos de o verem em salvo, sendo
assi, que no porto, e em terra fizera muita perda. Pola mesma rezão
estava o Provincial com grande cuidado dos seus Capitulares, vendo
qne tardavão, e em fim veio a saber dY'l!es brevemente polo modo se-
guinte. Kesidia no Convento da ilha Frei Miguel de Bcnazar. natural
d'ella, nacido, e criado na lei de Maíamede. Vendo a pátria conquis-
tada por el Rei dom Jaime, deixou-se também conquistar da verdr-
de da Fé:- foi recebido ao habito, e obrou n'elle a gi'aça de sorte, i\u>'.
foi hum modello de virtude, e religião, e he havido por Santo c;;-
tre os Padres Aragoneses. Como se esperava Capitulo, era elle sobii;
quem carregava todo o cuidado de l)uscar, e pedir o necessário. Levar.-
tou-se uma manliã de madrugada, despois de chegado o Provincial, a er.-
tender em sua obrigação: eis que se lhe oíTercce de longe huma longa
pi-ocissão de Frades da 0)'dem ; apertou o passo alegremente a encon-
tral-os, tendo por cei'to serem os Capitulares, (jue es[)eravão: o dando-
lhes a boa vinda offerecia-se a acompanlial-os, e guial-os ao Convento.
Respondeo-lhe hum por todos, que na verdade erão os Capitulares, c
que pêra aquella casa vinhão, porém que orílenara a Pi-ovidencia Divina
outra cousa, mandando-os ir pêra a Celestial, e soberana da gloria, onde
já descansavão pêra todas as Eternidades: o fora o meio d"este bem a
tormenta passada, que abrira o navio, e ficarão sumidos no abismo das
agoas sem escapar nenhum de vintcsinco que erão. E isto dito desaí)a-
reccrão todos. Foi o successo de muita magoa pêra o Proviijcial. Sintia
VOJ.. I. i\
210 LIVRO li DA HISTORIA DH S. DOMINGOS
a perda de tantos sojeitos juntos, que erão dos mais calificados da Pro-
vincia: e só lhe temperava a dor como a Santo, a Iwa sorte, com que
estava certo tirilião trocado as ondas, e tempestades da \\ú^.
Como faltava nos Frades perdidos a maior parle da Província, não
liouve que esperar mais na ilha. Visitou o Convento, e fez volta peia
Espanlia. Chegando a eíia, foi-líie communicado polo Arcebispo de Tar-
ragona hum Breve (*) que tinha de tempos atrás , do SummoPontiíIce Gre-
gório Nono dirigido a elle, e aos bispos seus sulTraganeos, e despachado
em Espoleto aos seis dias do mez de Maio de 121^2, e começa: Decli-
nante iam vnundi vespere ad occasum, etc, A sustancia do quat era mnn-
dar-lhes o Pontifice que por si, e por meio dos Frades Pregadores, c
doutras pessoas idóneas fizessem diligencia contra as heregias, e here-
ges. E a clausula que faz ao caso traduzida do Breve diz assi:
Exhortamos vossa Fraternidade, mandando estreitamente com pre-
ceito por palavras Apostólicas debaixo de citarão do Divino juizo escri-
tas, que por vós, poios Frades Pregadores, e outros que entenderdes
serem pêra isso idóneos, inquirais com diligente cuidado se ha hereges,
ou gente infamada de heregia, etc.
Estas são as primeiras letras Apostólicas, qiTe achamos derão prin-
cipio a se exercitar em Espanha o Santo oflicio da Inquisição: e logo o
Papa nomea os Frades Pregadores pêra elle, como a quem pertencia
por direito, e herança do inventor, e primeiro executor delia, que foi
nosso glorioso Palriarcha S. Domingos. Mas não nos consta do anno pre-
ciso, em que se começarão a pôr em exercício, sendo cousa certa que
foi nos primeiros d"esteProvJncialaío do Santo Frei Gil, polo pouco tempo
que viveu dom Frei Sueiro Gomez no cargo despois de expedidas as
leiras. O certo he, que na hora que S. Frei Gil eiiíendeo o mandato do
Pontifico, e foi' advir tido polo Arcebispo dos lugares a que convinlia acu-
dir com Inquisidores, nomeou pêra elles sojeitos de letras, e prudência:
e feita esta diligencia foi-se dando volta á Provinda, e convocou novo
Capitulo pêra o anno seguinte de 1237 no Convento de Burgos na Mon-
tanha.
Este Capitulo celebrou o Santo polo Espirito Santo d*este anno : e
nelle foi aceitada a fundação do Convento da cidade do Porto em Por-
;♦) o M. Fr. Fruntijco Di;i?o. Dum Luiz de Paruino.
PARTICLLAn DO P.EINO T)V. POÍiTí «iAL 21!
tugal, sendo pedida polo Bispo, e Caltido por liiima cnría, que contém
relarão lastimosa dos males que se padecião n"aqnella Diocesi sem haver
.justiça, neiíi poder que os remediasse. He caria notável pêra se enten-
der o triste estado do Reino, e a grande reputarão em que estava a
Ordem ; porque a rezão, que dão pêra desejarem Convento, lie parecei"-
Ihes que por orações, e merecimentos dos Religiosos, terião os males
termo. Adiante vai lançada no titulo deste Convento.
D"aqui veio decendo o Provincial pêra sua Pátria não a descançar de
tão largos caminlios, mas a participar dos tra])alhos que nella se pade-
cião, de que liniia aviso por cartas de muitos, e ultimamente ficara mais
inteirado pola carta do Bispo, e Cabido do Porto, que dissemos. Pi'oc(-
dião os males, de el Rei dom Sancho se ter de todo entregue a homejis
pouco tementes a Deos, os quais tratando só de conservar sua valia, e
adiantar em riqueza, e poder, convertião era interesse próprio todas as
desordens, e desaforamentos, que se cometião naRepuhlica. E como erão
senhores da vontade dei Rei, e o trazião cercado de homens de sua
manga, c semelliantes a si na consciência, e trato, quem se queixava, (se
alguém se atrevia a isso), ou não era ouvido, porque estes o lolhião, ou
não aproveitava a queixa, porque o remédio pendia d "elles, e havia de
correr por sua mão. Assi tendo a terra hum Pi'incipe em sua pessoa não
máo, padecia tantos males, e sem justiças, como se fora regida polo mais
cruel tyranno do mundo. E fazia o estado mais miserável ver que nas
aparências não lhe faltava parte nenhuma de bom governador. Era be-
nigno, ])rando, pio, religioso : entendia o bem, e o mal, e mostrava-o
arrezoando, e conversando, e no que por seu juizo mandava, e ordena-
va. S(j era a desgraça, que quando chegava á execução, representava
Imm corpo paralítico, cujos membros não acodem com nenhuma opera-
ção aos movimentos da vontade. E até nas cousas de seu gosto seguia
a mesma fraqueza : porque não sabia querer, nem apetecer nada senão
ao modo, e arte dos validos ; os quais tendo alcançado com quem o ha-
vião, já não erão validos, nem privados, se não amos, (desaforamento
grande), e senhores absolutos, e como tais procedião em tudo. Esperou-
se que crecendo na idade, creceria juntamente nas paixões, que em Reis
costumão a ser vehementes de ira, ódio, amor, e vontade. Porque quando
tomou o seiro, que foi como atrás fica dito no anno de 122^», tinha pouco
mais de dezeseis de idade, porém erão passados mais caíoiv.e, e a re-
missão estava tão de assento, que muitos a julgavão por ajudada com
212 LIVUO II DA lIlSTOr.IA DE S. DOMINCaí
más aiies, e iifio natural. Donde começarão grandes desconleníamcntos
nos Prelados, e nobreza do Reino, que amando a seu Rei sobre todas
as cousas da vida sofrião muito polo não desagradar: e em fim vendo
(juc se perdia a terra, e não havia emenda com os annos, nem rom ad-
vertências, e cartas, e Núncios, que á sua instancia Hie despacharão os
Pontifices, tomarão huma rigorosa determinação, de que resultou cha-
mar-se, e vir Rei de fora, como ao diante veremos: (jue força nos ha de
ser locar o successo pêra entendimento da nossa historia. Entre tanto
fazião sou dever os nossos- Pregadores trabalhando abrir os olhos ao Rei,
e trazer ao caminho da rezão, e da virtude os ministros. ¥.ss chegaado-
o Santo Frei Gil, pareceo a todos os bem intencionados, que pola boa
vontade, que el Rei lhe tinha, e por sua autoridade, c oobreza acabaria
alguma cousa com elle, ou com os validos : e por isso era desejada sua
vinda de todo estado de gente. Assi começou a fazer em publico, e cm
particular tudo o que devia a quem era, e ao conceito, que d'eíle se li-
nha, sem grangear nem adular, sem pretender, nem tratar mais que do
l>em publico. Mas foi Deos servido i>or seus occuHos juízos, que nada
aproveitasse. Deixou logo a Corte, por não parecer que autorizava íís-
sistindo, o que não podia remediar aconselhando. Recolheo-sc a descan-
rar no Convento de Santarém, e tomar hum pouco de alento pêra novo,
e maior trabalho, que era haver-se de achar no anno seguinte de íT.iS
em Bolonha, onde pei^tencia o Capitulo geral futiiro. Amava o Santo Pro-
vincial a casa de Santarém, polas m.ercês que nella recebera do Senhor :
e quanto tempo podia furtar aos negócios, tanto empregava com Deos
por meio de alta contemplação, tão descuidado de tudo o da terra, que
em qualquer momento que o deixavão, assi ficava na ceíia, como se vi-
vera nos desertos da Thebayda. Ali era o remontar sobre todos os clio-
ros dos Anjos: unir-se por amor, ao abjsmo da soberana Divindade:
ali o pasmar na Magestade, e abrasar-se em dejosos de romper as pri-
s(3cs da carne, e ficar muitas vezes em estado que de todo parecia estar
livre d'ellas, e íresladado já ao Ceo. E era tal a suavidade, que nesta
santa occupação adiava, que, quando d'ella saliia, ou era chamado í)era
negócios de sua obrigação, testemunhavão os olhos com lagrimas, e o
peito com suspiros o muito que lhe custava tirarem-no d"ella. Muitos
casos espantosos lhe succederão nesta matéria, diremos alguns no capi-
tulo seguinte.
PARTICULAR DO REINO DF. PORTIT.AL 213
CAPITULO XX
Dos grandes cffeilos, que fazia no Santo a forra do amor Divino, com di-
versidade de enlevamentos, e raptos maraviUosos, C-então-se alguns. Dá
principio ao Convento de Lisboa.
Costumava o Santo Provinci?.! por sua grande humildade em meio
das maiores oecupações do carço, visitar com gosto os irmãos de casa
lie noviços, fazer-llies suas praticas, insinal-os, e animal-os. Âchando-se
imni dia rieáte Convento de San tarem com huns, que de fresco tinha re-
cebido, foi-lhes dizendo algum.as'Cousas, e em particular como a melhor
arma, qye havia coKitra as tentações do Demónio, era a oração : e a me-
lhor e msis perfeita oração consistia em trazer sempre a Deos diante
dos olhos da alma, louvando-o, desejando-o, amando-o : que esta purill-
cava a ahna de toila a culpa, e a habilitava pcra passar a outro grão mais
alto, e tal que, quem a elle chegada, e começava a siníir nesta vida huinas
iuzes da gloria, huns penhores da eternidade, que exprimentados se
fazião estimar mais que todos os thesouros, c todos os Reinos da terra.
ília o Santo assi discorrendo, e deíeitando-se nos bens que prometia, se
não quando de repente se lhe ata a lingoa, perde a fala, e ílca mudo,
e tão profundamente arrebatado, que es moços, que não tinhão visto, nem
ouvido cousa semelhante, hcarão primeiro pasmados, e suspensos: mas
vendo que não tornava, julgarão que fora cfieito de velhice, ou de can-
saço: e havendo que ficava bem adormecido, despejarão o Oratório, e
recolherão-se. Porém brevemente forão desenganados da calidade da-
quelle sono com o caso seguinte succedido na mesma casa.
Entrou huma manhã pola enfermaria a visitar os doentes : cousa em
que recebia consolação, e a dava grande. Chegou-se a hum que pade-
cia dores, e estava impaciente com a força delias, começou-lhe a dizer
algumas palavras pêra o animar a soffrer, e soffrendo merecer. E na
verdade trazião todas as suas huma certa virtude envolta, que obrava
maravilhas. No meio delias deu o enfermo hum suspiro acompanhando-o
com o nome de Jesu. Foi cousa estranha, que em lhe soando nas ore-
lhas aquelle santo nome, nerdeo a corrente do que dezia, e derretendo-
se-lhe a alma com suavidade, como se ouvira huma musica dus Anjos,
dezia cheo de alegria : irmão Frei MarlinliO, (assi se ciianiava o doente)
244 I.IVRO II DA HISTORIA DF. S. DOMINGOS
sabeis como lie formoso, como lic amável, como ho doce esse nome Di-
vino? sabiiis as riquezas, que em si encerra? E repetindo-o muitas vezes
levantou-sc com força, como quem se abalança pêra dar grande salto,
ou pêra correr, e alcançar alguém, e ajudando-se do bordão, que trazia
na mão. Mas nesta postura o desemparou a alma e adianlando-se a fa-
zer, o que o corpo mostrou que queria, e desejava, e voou tão longe
que íicarão os membros como liuma estatua de mármore privados de
todo sintido, e movimento humano, encostados ou pendurados sobre o
l)ordão: e tão fixos, e immoveis, que acudindo muitos Padres a lhe fa-
zer força pêra tornar em si com empuxões, e aballos, não fazião mais
effeito, que se o houverão com hum monte. Residia no Convento Frei Vi-
cente de Lisboa, que fora ]\Iedico de fama, e dos mais estimados da ca-
sa dei Rei dom Sancho, e o foi acompanhando despois quando deixou
o Heino, como fica dito. Este fiado no muito (jue sabia de Filosofia hu-
maíia, e querendo medir com ella as grandezas divinas, de nenhuma ma-
neira se pej'suadia, que podia haver tal género de enlevamentos. Como
o Santo ficou no estado, que temos dito, não faltou quem folgasse de o
axisar. Veio correndo, vio-o, e não crendo ainda o que via, arrebatou-
l!ie o bordão, tendo por certo que viria ao chão, tirado o animo. Mas
ficando em pé, e sem mudança, passou o medico de inci'edulo a cruel.
Porque despois de provar forças pêra o menear, despois de lhe tirar
com aspereza poios narizes, buscou huma agulha, com que lhe picou crua-
mente as mãos, e ultimamente, como se fizera auto de inquisição pêra
tiiar a lim[»o negocio duvidoso, trouxe huma veia acesa, e não se deu
jior vencido, até que vio que nem com lhe queimar as unhas, e as pon-
tas dos dedos, mostrava sentimento, nem dava acordo de si.
Muito ordinários erão estes raptos no Santo: e seria giande leitura
especificar todos. Mas o que teve em Leiria, vindo de caminho, merece
ser sabiiiO por huma grande circunstancia, que nelle houve de mais, e pola
publicidade, com que foi celebrado. Camiiihava pêra Coimbra, e acertou
de hzev noite em Leii-ia, em casa de huma molher virtuosa, e nobre,
que chama vão de sobrenome Pichena. Chegando entrou pêra huma ca-
mará, que lhe tinlião concertada, e assentou-se na borda da cama pêra
descançar hum pouco. Como seu descanço era conversar nos Ceos, se-
gundo afingoagem, evida de outroS. Paulo (*), tudo foi hum assentar-se
o corpo, e voar a alma arrebatada de huma extasi veheraente, que le-
(.) Ad IMiilip. 3.
PAnílCULAR DO REINO DE PORTUGAL 2 RJ
VOU trás si os membros até jmito do telhado. Acompanliava-o Frei An-
dré Pires, natural de Santarém, que era novo nestas matérias, e enlrando
no aposento ficou pasmado, parecendo-lhe, que via faiitasma. Quando ca-
Ijío no que era, julgou que seria bem deceí-o: deu aviso á senhora da
casa, juntarão-se os criados, fizerão força, derão-lhe tormento com ba-
lanços, e aballos, e não somente o não puderão decer, mas nem leve-
mente menear. Soube-se do caso na visinhança, acudio toda, e passando
íi voz, veo correndo o lugar inteiro com tanto alvoroço, que não cabendo
nas casas, sobirão poios tellrados. c dcístelharão a camará por verem a
maravilha. Era alta noite, o Santo não tornava, uem os homens se po-
dião apartar feitos extáticos do que vião: em fim obrigiídos das horas
do sono despejarão. Passado grande espaço foi espertando, e tornou ao
primeiro assento, o sabendo do companheiro o que lhe acontecera, e o
concurso, que houvera, sintido, e corrido de ser achado com aquelle santo
ím'to nas mãos, pagou-o com novo trabalho, que foi madrugar de sorte,
que qisando amanheceo tinha feito muito caminho.
Mas porque ao diante haverá lugar de toi'narmos a dizer mais algu-
ma cousa dos efieitos, que o amor Divino obrava no Saato, he tempo de
darmos conta da jornada de Bolonha. E ke de saber, que antes de par-
tir de Santarém lhe chegou recado de ser falecido o Mestre Geral da
Ordem o Santo Frei Jordão e que se hsvia de fazer eleição de Geral.
Achou-se o Santo a tempo com os mais Provinciais em Bolonha por Pen-
tecoste de láo8, e foi eleito o Santo Frei Raimundo de Penhafort. Des-
ta vez faço contó que trouxe o Provincial a capa de nosso glorioso Pa-
triarca, com que enriqueceo o seu Convento de Santarém, alcançando-a
do novo Geral seu grande amigo, e até então súbdito. E porque não
consta do anno certo em que a houve, sendo cousa certa que a clle a de-
vemos, também ha quem diga, que lh"a deu o Mestre Frei Jordão. E pê-
ra concluirmos com o que mais fez no tempo, que lhe durou o tiabalho
de Provincial desta primeira vez, que sérvio: achamos apontado que de
huma jornada destes Capítulos gerais, que se fazião cada anno, tornan-
do pei-a Espanha, nos tirou de França, (não consta do anno precisamente)
o grande, c ditoso espirito Frei Bernardo do Morlans, pêra filho de ha-
bito, e gloria do Santarém: de cuja vida, e morte ao diante falaremos
largo. Pouco tomp-o despois, que foi no anno de 1241 aceitou o Convento
de Lisboa, e a rogo dei Rei dom Sancho Segundo, e com Licença do Daião,
e cabido da Sé, que estava vacante, lançou nelle a primeira pedra hum
:í!() LIVHO II DA IIISTOÍSIA DE S. DOMINGOS
Bispo eslrangeiro, como veremos adièiiite no titulo desta casa, onde per-
Iciíie a ndarfio inteira de sua íundação por escusarmos repitições. O que
aqui podernos dizer he, (pie [)rocuiar el Rei honrar, e acreceníar a Or-
dem em tempo, que S. Frei G\\, o os seus Frades andavão afiados contra
sua íVaqueza, e contra a força de seus ministros : nellc era obra de sua
boa, e pia inclinarão: mas nos que o mandavão, e consintirão no ediíi-
cio, ou obrava a ambição de agradarem ao povo com alguma empresa
\irtiiosa, ou era maniia, e pretenção de aplacarem por esta via ao San-
to, e aos seus. Mas brevemente moslrou o elleilo que em ambas as cou-
sas se oiiganavão.
Não ha clareza nos escritores antigos dos annos que o Santo gover-
nou a Proviiicia desta primeira vez, nem que rezão houve pêra deixar
o cargo: só nos consta por Imma conveniência, que adiante tocaremos,
que na entrada do anno de 1'z't'ò já estava livre delle. E sem duvida po-
demos crer, que ou elle pedio absolvição, ou lh"a procurarão os priva-
dos' dei íiei d.om Sancho, por abaterem de autoridade hum contrario,
qrie por neiiliuma via podião moUiíicar.
CAPITULO XXI
Ciino foi decretada a deposição dei liei dom Sancho do Reino: e como
III a intimou em s-ita pessoa o Santo Frei Gil. Contão-se as aljrontas, que
por isso reccbco : e a revelação, que tece no meio d'ellas : e hiuna anti-
guidade, em que se mostra quanto era estimada dei Hei dom Afonso.
Tinhão chegado a tamanho estremo a remissão dei Rei dom Sancho,
e os excessos dos que o governavão, que os Prelados, e nobreza se de-
terminarão em pedir ao Papa mandasse a esto Reino o Infante dom Af-
fonso seu irmão segundo, que em França vivia, não pêra tirar o Reino
a dom Sancho, mas pêra o governar com justiça, e melhores conselhos
em sua vida, e succeder nelle por sua morte não tendo lilhos. Forão
procuradores deste requerimento o Arcebispo de Braga dom João Egas,
e o Bispo de Coimbi-a domTiburcio(*), que sendo mandados por el Rei
dom Sancho a ou iro eííeito, aceitarão de boa vontade a jornada pêra ne-
gocearem com maior atfouteza, e mais a seu salvo o bem da Pátria. Es-
tava era Paris o infante casado cora Matildis, Condessa de Bolonha era
(•} Duaj-le Nunes do Lião na Cron. do Condo dom Aiirici. f. 11).
PAUTIClLAFt DO REINO DE PORTUGAL 2i7
Picardia, cidado que os Fi-aiiceses cliamão Biilíon. Virão-se os Prelados
com elie. Despacliou o Papa seus Breves pêra o Heino da deposição de
dom Sancho com as condições acima referidas, que a lealdade Porlu-
gueza apontou, e pedio pêra não lalLar, como nunca em nenhum tempo
faltou no ponto delia. lie hum famoso Decreto, (jue anda inserto no Di-
reito Canónico (*). Com os Breves mandou Comniissarios a Paris, que em
piesença dos dous Prelados, e de Kuy Gomes de ihileiros, e Gomes
Viegas, fid.-^lgos principais, e Frei Pedi'o Afonso, Frade Dominico, e Frei
Domingos de Braga Franciscano, como aceiiantes todos deste Cíjnlrato
em nome do Reino, derão juramiiuto ao Infante Condo, na conformidade
do Decreto. Passou este auto em Paris em primeiros de Setembro do
anno de 124."), e logo como pola posta chegarão treslados delie a Por-
tugal, e mandatos do Summo Pontifice aos lleligiosos de S. Domingos,
e S, Francisco, que intimassem o que eslava decreíado pola Sé Apostó-
lica a el Rei dom Sancho, e o publicassem nas cidade, e povo.
Estava S. Frei Gil despejado do cargo, quieío, o descançado na sua
cella: linha obiigações pessoais a el Rei, e outras parliculaies por seus
irmãos, e parentes que o servião : mas tocava-!!ie por Pregador fazer sua
diligencia com o povo, em cumprimenlo dos mandatos Apostólicos: ç
por pessoa de autoridade fazel-a com o próprio Rei. Nestas contrarie-
dades venceo o bem publico ao particular da carne, e sangue: e pesou
mais a obrigação de Ministro da Igrej;'., que a de sua quietação. Poem-
se cm campo, e sabendo certo que íazia embaixada de muito desgosto
pêra el Rei, e de grande perigo [)era si, foi-se ao Paço, e com a liber-
dade de hum Bautista, declarou-lhe no rosto, e na presença dos pode-
rosos, que o cei'cavão, a vontade, e delei-minação do Pontifice. Era dom-
Sancho tão fi'oxo de natureza, como temos visto, e pêra com Religiosos
fácil, e clieio de santos respeitos : com tudo neste caso alterou-se, e to-
mou fogo. Porque tirar-se-llie o Reino havido por herança, coníii'mado
como posse, nem elle se persuadia que poderia nunca ser, nem que ha-
veria, quem tivesse boca, ou espirito pêra lhe fallar em tal, (e assi lh'o
fazião crer os que o enganavão em tudo o mais.) Queria responder, mas
adiantou-se hum dos que o acompanhavão, c mandavão, e que mais de-
saforadamente usava de tal mando, e poder : e como em causa, que por
igual lhe tocava, desatou furiosamente a iingoa contra o Santo em huma
corrente de palavras injuriosas, e tais que não foião menos descortczes pe-
(♦) Lib. 6. Lecrcl. Cajtil. Graiid'. Duaite ^iuiicí lie Liilo na vida dcl Rei dom Siiiicbo 2.°
218 LIVRO II DA HISTOUIA DE S. DOMINGOS
ra hum Rei, que as ouvia, que pêra as cans veneráveis, e haJjito Religio-
so: porque enlre gente de primor, e bom entendimento quasi igualmente
offendcm as descortezias aos amigos, e enemigos. ília o Santo aperce-
bido pêra dar a cabeça ao talho, se cumprisse : humilhou-a ás palavras,
que ás vezes he mais. Mas aquelle Senhor, que dos seus Santos he tiío
cuidadoso, que nem hum cabelo da cabeça consente que pcrcão(*), como
consintir^, que se lhe tire da honra? Ali mesmo lhe revelou logo o cas-
tigo, com que determinava vingal-o. Ília por seu companheiro Frei An-
dré, Religioso de autoridade, e que em secular professara letras; guan-
do vio, e ouvio o vilipendio, cora que o Santo foi tratado diante dei Rei,
e ambos lançados fora do Paço, vinha pasmado, e queixava-se, como não
fulminava o Ceo coriscos sobre tanta maldade. Deixai-o, Padre Frei An-
dré, respondeo o Santo, que pouco fez pêra o desaveaturado fim, que o
espera, e lhe vereis cedo(**). Mostrou o successo brevemente comprida esta
revelação, e profecia. Porque entrando o Conde de Bolonha em Portu-
gal, foi este hum dos primeiros que houve ás mãos, e sendo-lhe prova-
dos enormes delitos, fez-lh'os pagar por junto na forca.
Retirou-se el Rei dom Sancho pêra Castella: vlveo pouco mais de hum
anno, e succedeo o Conde no Reino. E como as cousas delle não são de
nossa obrigação mais, que em quanto pertencem a esta Historia, ou pêra
melhor entendimento delia, ou por irem com ella travadas, iremos to-
cando somente algumas, que fizerem a nosso caso, como fizemos no suc-
cesso passado.
A primeira que se oíTerece he huma carta de confirmação, que o Con-
de fez pouco tempo despois de recebido em Lisboa, e ainda antes de
tomar o titulo de Rei, pola qual lhe confirma todos seus foros, e privi-
légios, vista a pronta obediência que nos moradores delia achou aos man-
datos Apostólicos, e em seu recebimento. Esta anda tresladada nos livros
da Camará, em lium que chamão dos Pregos (***). E merece andar tam-
bém neste, pola honra, e lugar, que nella tem S. Frei Gil, assinando com
o Arcebispo de Braga, e com o Bispo de Coimbra ao que parece, como
confirmando, segundo uso daquelles tempos, inda que o não declara. A
carta tirada do original he a seguinte:
(.) Luc. 21.
(•') Fr. AikI. de Rc?onde lib. 2 Iract. 3. excmp. 49.
(•••) Livro do< rrc'p;05 f. í.
PARTICII.AU DO REINO DE PORTUGAL 210
Alfonstis, (ilius illustris Rcjia Portugallice^ et procurator reijui eiiisdem,
cl Dei grafia Comes Bolonia', Pnctori, Alvazilibus, et unioerso Concilio Ulis-
bonensi, in vero salntari Saliilem, Cutn propter malum stalum regni Furtu-
galliie, ín quo fules, et iuslitia crudclUcr deperibat, ud maynitui clamorcm
Prfp.latorum, Baronnin, et Conciliorum, Dominits Papa ad stipradicluui
reíjiium nos mitleret, tU ibidem fidem et iustitiam faceremus obseruari : vo-
bis qui mandato Apostólico et nostro jirudeuter obedislis contra inimicos
fidei et iusliliie, concedinius cobis cliartas vestras, et foros veslros scriptos
et non scrijitos, et omnia iura ad vcstrum ciuitatem pertineutia, sicut ab
antiqno liabuistis, et vobis concesserunt progenitores nostri, et promitti-
inus seruare. Proiitilíimus elinni vobis, quód si qui fori mali índucli sunt
de noco contra vos, quúd eos tollcinus, et conseriiabimus, et custodiemus
vos in bono slalu, (juantúm Deus possibile nobis dederit inteltigere. Et vt
fuctiun nusiruni firniius robur obtincut^ tianc priesentem charlam sigilli nos-
tri munimine fccimns rohorari. Actn apud Ulivbonam Mense Febriiarij
sub ^Era M.CG .LXXXIIII. pra-sentibus Domiuis I. Archiep. Bracharen.
et T. Episcopo CoUimbriensi, et G. commendatore de Mertola Ordinis illi-
litias Saacti lacobi^ct Eralre ^F.gidio Ordinis Prwdicatorum, el per Gillium
Giron.
A tradurão em vulgar lie a seguinte:
Dom AÍTonso filho do illuslre Rei de Portugal, e do mesmo Reino
a.lministrador, e por grara de Deos Conde de Bolonha. Ao Corrregedor,
Juslieas, e Alguazis, e a todo Conselho, e Camará de Lisboa saúde, no
que lie verdadeira salvação. Gomo quer que o Senhor Papa havendo res-
peito ao máo estado, em que o dito Reino estava por falta de verdade,
e lidelidade, e justiea, mo mandou que viesse a eile á petição, e reque-
rimento dos Prelados, e íidalgos, e povos, pêra ordenarmos que se guar-
de justiça, e haja bom governo. E vós outros obedecesies aiis mandados
Apostólicos, e nossos, sem fazerdes caso dos enemigos da verdade, e
justiça. Por tanto vos cr)ncedemos, e confirmamos as cartas do vossas
liberdades, e vossos privilégios, c foros, assi os que tendes por escrito
como os que só em costume, e sem escritura alguma gozais, e todos os
mais direitos a vossa cidade pertencentes, assi, e da maneira que poios
Reis deste Reino meu pai, e avós vos forão concedidos, e outorgados,
e os tendes de tempos antigos, assi vol-os promettemos manter, e guar-
dar. E outro si prometemos, que havendo de novo introduzidos alguns
220 LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
foros contra rezão, e em prejuízo de vossa Republica, tiraremos, e vos
guardaremos, e maaleremos em todo bom estado, quanto o Senhor Deos
for servido deixar-nos com o entendimento alcançar. E pêra que o que
assl fazemos, e ordenamos, mais força, e vigor tenha, vos mandamos
dar esta carta com nosso selo firmada, e autorisada. Feita em Lisboa
no mez de Fevereiro da Era de mil e duzentos e oitenta e quatro (res-
ponde ao anno do Senhor Í24G), sendo presentes dom João Arcebispo
de Braga, e dom Tiburcio Bispo de Coimbra, e dom Gonçalo Commen-
dador de Mertola da Ordem de Santiago: e Frei Gil da Ordem dos Pre-
gadores. Escrita por Gil Girão.
Bem se deixq ver que estava o Santo já izento do cargo de Provin-
cial, quando assinou n'esta carta, porque não se esquecera o escrivão
de llie dar o titulo da dignidade, se a tivei"a, como deu aos mais. E
esta he a conveniência em que nos fundamos, como atrás fica apontado,
pêra o darmos por assolto d"ella já des do anno atrás.
CAPITULO XXII
I)e alguns effeilos admiráveis da oração de S. Frei Gil, em que se vio
por casos differentes o muito que por ella alcançava de Deos.
O Mestre Frei André de Rezende (*) affirma que succedeo ao Santo o
que agora queremos contar, quasi vinte annos antes de sua morte. Por
onde nos cae bem no fim deste anno de 12 40, em que vamos: ou na
entrada do seguinte, visto, como faleceo no de 1263 segundo adiante
veremos. Acabou hum dia de dizer Missa no Convento de Santarém,
pêra onde se acolhia, e recolhia todo o tempo que tinha por seu. Foi-se
logo ao Coro, segundo seu bom costume, a dar graças ao Senhor de tão
alta mercê, como recebia naquelle Divino pasto. Sintio-se abalado do
espirito. Quiz-se retirar a lugar menos publico, pêra lograr cora mais
segredo estes segundos bocados, demandou a Sacristia, achando-a fecha-
da, e não podendo mais resistir a quem o chamava, assentou-se junto
da porta, e deixou-se nas mãos da disposição Divina, como quem naquelle
espaço não tinha vontade, nem era senhor de si. Começando a dormir aquelle
sono bemaventurado("), que Deos dá a seus amados em arras da herança
(•) Fr. Anti. de Kescnd. 1. i. Ir. i. excnip. 9.'. in \ita R. /E{;i(!ij.
(..) l'é. I2(J.
rAnTiciLAn do ri;i.\o di: poutigaí. 22 í
maior que os espera, estava na Igreja liuma nobre, e virtuosa feiíiea,
moradora na mesma villa, e muilo coníiniia na nossa Igreja, (cbamava-so
Elvira Daranda.) E ou fosso a caso, ou que tevesse alguma cousa que
negocear com o Sacristão: ou porque na verdade todos os casos da ter-
ra vem traçados, e acertados do Ceo, cliegou-se a huma rede, ou ralo
da porta, por onde sem abrir respondia o Sacristão, a qual naquelle tem-
po, em que os Frades se servião ainda da ermida antiga, ficava defronte
(ia outra da Sacristia, e deu com os ollios no Santo, que estava todo en-
levado, e como passado deste mundi). Detendo-se bum pouco, eis que
vê decer sobre elle buma coluna de luz mais clara, e mais liella que a
do Sol, e logo ficar o Santo todo penetrado delia, resplandecendo como
bum cristal puro, transparente, e fermoso, e do rosto lançando raios,
que ella comparava, por não acbar semelbança mais própria, aos que
reverbera bum espelbo ferido do Sol. Ficou a molber atíonita, e com.o
fora de si, não crendo bem a seus olbos visão tão nova. E como ninguém
llie tolbia lograr-se delia, deixou-se estar na Igreja, como dcspois afíir-
mava, espaço de duas boras, por ver em que paiava: cm fim vio ir
mingoando, e desaparecendo todo aquelie fogo, e o Santo tornando cm
si, mas com buns sospiros arrancados do centro da alma, como quem
perdia estado, que lhe custava muito deixal-o. E notou que ao partir se
foi arrimando ás paredes, e apalpando, como quem levava ainda a vis-
ta, e os mais sintidos enleados. Ilum dos Padres antigos, que isto es-
creverão, afilrma que Elvira Duranda grilou, cuidando que o Santo se
abrazava em verdadeiro fogo, e que aos brados acudio toda a Commu-
nidade, e foi testemunlia do que temos contado. Foi o successo pêra
esta alma occasião de grande bem seu, e d"outras muitas. Porque í^izen-
do reflexão no que vira, e discorrendo com bom juizo que não podia ser
a caso cummunicar-se-lbe aos olbos mortais buma maravilha tão celes-
tial, foi logo assentando consigo levantar o espirito a hum género de
vida mais alto, e mais perfeito que o que até então seguira. Falíavão na
villa Mosteiros de Freii as, resolveo-se em fazer só mosteiro por si, (tanto
pode buma boa inspiração.) Recolheo-se ou sepultou-se em buma estreita
casinha térrea, que mandou edificar no sitio, onde agora vemos o ]tíos-
teiro da Trindade, sem mais entrada, nem porta, nem janella, que buma
pequena fresta, ou seteira pêra luz, e pêra receber a comida que lhe
vinha de fora, e a seus tempos os santos Sacramentos da Igreja. A esta
cnimosa molhcr forão imitando outras, e crccendo o numero vierão a
Í2Í2 LIVRO II DA HISTOniA DE S. DOMINGOS
(lar principio ao Mosteiro que chamamos das donas da Ordem de S.
Domingos, de que ao diante faremos particular titulo, quando lhe chegar
seu anno(*). E nolle daremos larga relação da vida, e calidade desta devota, e
de suas com])anheiras, e da rezão, porque a Ordem se encarregou delias.
Por hora baste saber-se que so deve sua origem a S. Frey Gil.
Ajuntaremos a este caso outro, que também foi effeito notável da
oração do Santo, se bem por via, e termos dilTerentes, e a meu pare-
cer devia acontecer poios annos em que vamos, e sendo elle Prior desta
casa. Porque não o especificando os autores antigos, da mesma narra-
ção se coilige. Contão pois, que estando buma tarde com o Santo o Pa-
dre Frei Giraldo Domingues pessoa de letras, e espirito, que por tal
foi nomeado por el-Rei dom Afonso Terceiro, por bum de seus testa-
menteiros : era conversação santa, estendeo-se, e entrou muito pola noite.
Qui.z o Santo antes de se agasalhar, dar buma volta ao Convento, e ver
como estava fechado, e cercado. Em saindo da cella começão a ouvir
buma revolta espantosa de estrondo, e grita, e vozes confusas, que pa-
recia soverter-se a casa. E Frei Giraldo, que allumiava ao Santo, per-
dido de medo deixou cair a vela, e cabio meio amortecido. Animava-o
o Santo, e dezia-lhe. Não ha que temer, eu sei o que isto he, algum,
roubo me quer fazer o lobo tragador no Convento : e mandava-lbe que
fosse a acender a vela. Neste passo chegou o Supprior Frei Domingos
Afonso fazendo estremos de sentimento, e dizendo que naquella hora
era fogida de casa de noviços bum moço dos que melhor geito mostra-
vam, estando em véspera de Profissão. E o que mais lhe dobia que se
fora desatinadamente, e com perigo por cima de hum telhado. Não me
enganou o roubador, respondeo o Santo, bem lhe conheci os bramidos,
mas em vão se alegra com a presa, que se Deos he servido, cu lha ar-
rancarei das unhas. E lançando-se por terra no mesmo lugar, começou
a orar polo fugitivo. E foi tal a eííicacia da oração, que logo mostrou o
successo, que fora ouvido. Porque o noviço sem ninguém o buscar tor-
nou pulo mesmo telhado, e vindo-se buscar a cella do Santo deu com
elle, onde ainda jazia prostrado em oração: e lançando-se-lhe aos pés
com espanto de toda a Communidade, que estava junta, contou que o
enemigo o tentara tão apertadamente aquella i;0ite, que como fora de
seu juizo o fizera lançar poios telhados sem saber por onde bia : e bus-
(♦) L. u. c. 20.
i
PAKTICUI.AI! DO HKINO DK POnTUíiAL 223
cando despois por onde saltar fura lhe dera na cabeça liiima vertigem
que o embaraçara, e detivera: e querendo todavia lançar-se do telhado
abaixo, lhe acudira Deos por tal modo, que sem saber como, elle mes-
mo se reprendia com palavras tais, que parecia lhas davam por escrito
dizendo: Aonde vás traidor? Pêra isto te lançaste aos pés de hum ho-
mem Santo pedindo-lhe te recebesse na Religião? Pêra isto o importu-
naste que rogasse a Deos por ti ? Hora sus, torna-te a elle, que pai h.e,
e tu és filho: não te negará perdão. Assi dezia derramando muitas la-
grimas, e fazendo que todos o acompanhassem nellas. Levantou-o o Santo,
c levou-o nos braços cheio de alegria, como a outro filho pródigo: e
não duvidou fazer-lhe profissão no dia seguinte: nem o moço faltou polo
tempo adiante nas esperanças, que tinha dado nos princípios.
Aconteceo neste tempo ir o Santo a hum Capitido, e de volta pas-
sar por C, amora, onde havia já de alguns annos hum muito reh'gioso
Convento da Ordem. Desej )U descançar huns dias, e recrear seu espi-
rito com o trato, e santidade dos sojcitos, que nelle residião. Achou aqui
enfermo hum seu conhecido antigo ciiamado Frei Pedro Fernandes, de
nação Galego, e á differença d"outro chamado Espanhol, de grande no-
me em letras, mas muito maior em virtude. Lera Theologia em muitos
Conventos da Ordem, e em Santarém tevera estreita familiaridade com
o Santo, e fora seu filho de confissão. Visitou-o, e consolou-o, e per-
guntando despois a hum Padre amigo do enfermo, polo tempo, e esta-
do da doença, elle lhe deu toda a informação, e juntou que fazendo por
elle oração, como por pessoa importante á Ordem, e amigo, tevera huma
visão, e não podia attinar com o que significava: e era que vira sobre
Imníi monte alto ao enfermo cercado de muita luz, c acompanhado de
dous mancebos, cuja disposição, e ar excedia tudo o que a seu parecer
podia haver na terra de gentileza. Tornou o Santo despois a Frei Pedro,
e ou fosse polo que colligio da visão como Santo, ou polo que enfendeo
do estado da doença como Medico; e sabendo bem com quem faiava:
Boas novas, disse, Padre Frei Pedro, Jjoas novas vos trago. Alegrar, que
he chegada a hora de vos hirdes pêra o Ceo. Peço-vos que em pago
delias saudeis em meu nome a Virgem Nossa Senhora, e a nosso Padre
S. Domingos. Assi ficou alegre, e alvoroçado o doente com as novas da
morte, como as pudera festejar de saúde perfeita quem muito a dese-
jara: e cheio de prazer, dezia: ?deu irmão Frei Gil torne-me a dizer isso,
que não ha pêra minha alma gosto igual. E dando inteiro credito á em-
22 i Mvno II DA iiiSToniA di: s.domlngos
baixada, (que lio \i\di do crer o que se deseja), pedio as armas sanlas da
Igreja que são os Sacramentos, os quais recebidos com tanta devação que
afez grande a iodos, chamou ao Santo, c contou-llie com segredo, c la-
grimas que naquellaliorao visitara a Virgem Mãi deDeos acompanhada do
Dicipulo amado: e Uie posera na cabeça huma fermosa coroa, que em suas
benditas maons trazia: o o Dicipulo l!ie posera outra: mas não podia
entender por onde lhe vinhão tamanhas honras, con!ieccndo-se por gran-
de peccador. Rospondco-lhe o Santo que ambas lhe perlencião. A da
Virgem, pola pureza virginal, que toda a vida guardara: a do Dicipulo
pola dignidade de Doutor ganhada com o trabalho de insinar, e pregar.
E ambas, acrecentava o Santo, vos alcançou o favor da Senliora, c a in-
tercessão do Dicipulo. Peço-vos que me encomendeis muito a ella. Le-
vantou o enfermo as maons, e com grande segurança prometteo que o
faria. E trás isto pedio que se fizesse sinal com as taboas pêra se jun-
tu^ a Communidade. Sendo junios os Religiosos despedio-se de todos
com palavras santas, e acabou com estas. Sabei certo, meus irmãos, que
tem Deos particular amor a esta nossa Ordem, e que se agraila muito
do serviço, qtie se lhe faz ncHa: estimai-a, e amai-a com caridade, e obser-
vância. Grauílô enemigo tendes no Inferno: multo aborrecer este monte
Sion. Mas não ha que temer, que certo lie não vos faltar o soccorro
do Ceo. Apoz estas rezões passou da vida com tal serenidade, como se
passara de huma cella pêra outra. Este caso ho hum dos muitos que o
Santo escrevoo ao l\íestro Geral Humberto, e succedeo algum tempo an-
tes do anno de iâf50. Oomo se prova de que o poz em memoria entre
os exemplos dos Santos daOrdemf) Frei Gerardo Fraqueto no seguinte
de I2G1 por mandalo do mesmo Geral. O que advirtimos, porque não
falta quem faça a este Padre íilho do Convento de Estelhá da província
de Aragão, sendo assi, que aquella casa se começou a edificar quasi poios
mesmos annos de i2G0, ou de 1250. E nós temos conjeituras prová-
veis, que tomou o habito com os primeiros filhos do Convento de Mon-
tejunto, e por isso pertence a este de Santarém com que vamos conti-
nuando, porque qiie quem ler com attenção os casos, que o Santo es-
crevco ao Geral Humberto, e andão referidos poios historiadores da Or-
dem, achará que são pola mor parte succedidos em filhos dos Conventos
[•1 Fr. GoiT.nlo Fraij. 1. 5. c. o. c\eiiip. IG. dos Frxdcs ila Oniem Fr. Fraiic. Diago I. i.
c. 7. (la pvf)viiH'Ui lie Araá'.
PAUTlCrLAH DO l\U\0 Di: POíiTLGAL 2íío
dc Portnjínl. Falou dos de sua patrin, com quem tinha communicação
estreita, e pola mesma rezão mais certeza de suas cousas.
CAPITULO XXIII
Vem n Saldarem o vnvo Provincial. Aclia-í^e prcscnie a liiima cxlasi do
Siinlo. Dó el Rei dom Afonso principio á ígrrja de S. Domingo.^ de
Lisboa. Heferc-se a familiaridade com que trutuca a S. Frei Gil em
Santarém. E como concaleceo da gola por sen meio. Torna o Santo a
servir o cargo de Provincial.
Succcdeo ao Santo no cargo, e governo da Provincia o Padre Frei
Pedro de líuesca, (segundo adiamos em Frei. André de Resende, mas
sem declaração, se foi ao primeiro cargo, se ao segundo) (*) este Provin-
cial decendo a Portugal em prosecução de seu officio veio visiíar o Con-
vénio de Santarém : c como anda vão na boca de todos, os raptos do
Santo Frei Gil, foi Iiuma das primeiras cousas que ouvio aos Frades,
mas tão pouca fé lhes deu, como se fallarão dos maiores impossiveis da
terra. Succedeo que se deteve alguns dias, e nelles, (era por huma festa)
acabando o Santo de dizer sna Missa [lola manhã cedo, foi-se ao Coro,
segundo seu costume : e antes de se pôr de joelhos, foi prevenido d:)
Ceo: e assi como estava cm pé. e direito, ficou iodo absorpío. Acudirão
os Frades logo ao Provincial, dizendo que podia desenganar-se do que
não cria, se quizessc dar poucos passos. Foi o Provincial, o achou -o,
como dissemos, e primeiro por se certificar do que lhe aflirmavão, che-
gou-lhe a orelha á boca, e narizes, e não lhe sintindo respiração nem
anhelito, fez bater rijamente nas cadeiras com liurn martello de ferro
que a caso ficara nellas a huns carpinteiros do dia dantes. E não es-
pertando o Santo de seu sono, nem elle de sua incredulidade, poz-lhe
as mãos empuxando-o a toda força, com outras diligencias extraordina-
]'ias. Em fim quando lhe não ÍÍl.ou nada por tentar den-se por conven-
cido, e acabou de crer com lagrimas de arrependimento, o compunção.
Por este tempo, que foi poios annos de i^va, começou el Kei doin
Afonso a grande machina da nossa Igreja de Lisboa, como a vemos hoje.
Devia parecer-lhe cousa pouca })ei-a tão grande cidade, e que cada dia
bia crecendo, a que el Rei dom Sanclio seu irmão fizera com o Conven-
to : mostrou seus espíritos na magnificência, e sumptuosidade da o')ra,
(.) Fcácnde na vida fie S. Frei Gil 1. 2. pxcniil. 2.
\0L. 1. 13
226 LIVÍIO II DA lilSTOlUA DE S. DOMINGOS
e O potler real na diligencia, acabando-a em dez annos, como ao dianío
diremos em seu próprio lugar. Fazemos aqui menção d'ella por ser feita
em vida de S. Frei Gil, vislo como não devia importar pouco pêra el ílci
se resolver cm tamanha fabrica a presença do Santo, e o gosto que mos-
trava de lhe fazer honra, c favor, como o declarou em muitas cousas
outras polo tempo em diante. E foi ímma vindo a Santarém por Dezem-
bro do anno de 1251 communicar o Santo com grande humanidade, e
brandura. Vindo ao Mosteiro muitns vezes, e peia o poder fazer mais
familiarmente, e com menos nota da magestade, e autoridade real, como
o Santo era velho, e enfermo, e por essa rezão tinha huma pobre cella
separada do Dormitório comum, porque qnasi nunca sabia d'ella senão
pêra a Igreja, ou pêra o Coro, mandou-lhe el Rei prantar, c cercar hum
jardim junto d'el}a, ao qual vinha, e nelle despedidos os fidalgos, e
acompanhamento real se íicava só, e devagar com o Santo : pêra o qual
também era de recreação a frescura do arvoredo, e variedade das flores
nos actos mentais, em que sempre andava occujiado.
Creceo o amor que el Rei tinha a S. Frei Gil, com o que pouco des-
pois lhe aconteceo com elle. Era el Rei dom Afonso em sua primeira
idade muito inclinado aos exercícios militares de justar, e tornear, e
muito fragueiro nelles, e quando estes faltavão, nos da caça, e monta-
ria. Esta natureza ajudada do costumo dos Franceses, entre quem vivia,
que são nesta parte incansáveis, trazia-o enxuto de membros, são, e bem
desposto. Como esteve no Reino a occupação dos negócios, e governo
apartou o dos exercícios corporais : foi logo criando carnes, e humores
demasiados, que com a carga dos annos pararão em gota. Começou-lhe
poios pés com grandes dores, como traz consigo. Visltava-o o Santo al-
gumas vezes. De huma que estava mui afadigado, e assentado em huma
cadeira, por não poder sofrer a cama, vendo que entrava o Santo a
vel-o, persuadio-lhe a afflição do mal, que não deixa cousa por tentar,
que tinha na mão o remédio. Estavão ambos de bordão, o que visitava,
e o visitado. El Rei por doente, e o Santo por velho, e fraco. Ao des-
pedir disse-lhe el Rei dissimuladamente. Troquemos, Padre, os bordões,
que me parece melhor esse vosso. Não alcançou o lanço a humildade ;
pareceo ao Santo, que não podia el Rei dizer senã,o o que sintia, e que
seria juiiíaincisk^ querer honral-o com a troca, como fazia em outras
cousas. Foi cousa certa, e provada que fez milagre a fé dei Rei, e a vir-
tude do Santo, de sorte que da hora que el Rei lhe tomou o bordão não
1'AHTici'LAr, no Hr.i.Nu i)i: roíirríiAL '227
siiitio mais dores, convaleceo, c sarou porreitameiílL'. E licou í:io ccrío
que crelle lhe procedera o liem, (jue por devarão o trazia de í)rdii)ario
na mão por casa. E acontecendo entrar no Paço muitos annos despois
pejado grandemente, e quasi manco do mesmo mal de gota, hum Pêro
Martins Petarino, muito seu aceito, e do seu Conselho, Alcaide mór de
OiH-em, den-lhe o bordão, que trazia na mão, e disse-lhe. Este tomei a
Frei Gil, e me deu saúde na minha gota, também vola dará a vós. Le-
You-o o valido, e valco-lhe, como íizera a el Rei. Mas poríjue pode haver
algum juizo agudo, que neste segundo eíTeito ache mais poderes de adu-
lação, (por intervir privado), que de virtude, dal-o-hemos autoiizado com
testimunho irrefragavel, terceira maravilha obrada por meio do mesmo
bordão, com que desde então previnio os incrédulos, ehe a que se segue.
Na villa de Onrem aconleceo a hum Domingos Martins jantando pe-
gar-se-lhc na garganta huma lasca de hum osso ião aguda, e tenaz, que
por muito que porfiou pola lançar, ou passar, nenhum remédio bastou.
Vendo que se affogava, pedio que lhe trouxessem quem o confessasse.
Em quanto forão buscar o Confessor, creceo a opressão de maneira, que
quando chegou, já não pode falar palavra. Ajuntarão-se os vizinhos, hou-
ve grande revolta. Chegou a nova do desastre a dona Estefânia, mulher
do Alcaide mor. Tanto que soube o (jue passava, toma da mão do ma-
rido o bordão do Santo, e dadiva dei Rei, e manda-o. Mandado fez mi-
lagre sem sospeita. Não íizerão mais que chegnl-o a tocar a garganta do
meio affogado, e logo lançou o osso. Âcrecenta a Historia, que vendo-^e
livre se confessou : e despojada a garganta, e aliviada a consciência, tor-
nou á meza a comer alegremente, donde se levantara pouco havia an-
gustiado, e pêra morrer. Forão testemunhas do milagre dona Estefânia,
e seu marido, e hum Capeílão seu, que todos o contavão (les[)ois, e o
Confessor Estevão Martins, que servia na Igreja de S. João.
Tornando á nossa Historia, houve por esle tempo na Província Ca[)i-
tulo de eleição, e foi eleito com a mesma vontade, que no antigo, o Santo
Frei Gil. Era ausente por velho, e carregado de annos, e iníirmidades :
o trabalho immenso pêra homem muito robusto, e muito advií-tido em
se poupar ; quanto mais pêra quem estava consumido de penitencias, e
sobre tudo procedia no governo publico, e no de sua pessoa cm todo o
rigor da Regra : fez-se-lhe mui agro o aceital-o. Mas em fim obrigou-o
sua cbaridade, e a instancia da Proviíicia. Começou a visitar, como quan-
do tinha mais forças, Aposlolicamente a pé, e sem uíais remedi**, que o
228 LIM\0 I! DA niSTOniA Di: S. DOMINC.OS
que alcançava do esmolas. E como este írabalho não tinha outro íím,
senão a honra, e glona de Deos, assi rece])ia d"e!!e a toda hora grandes
mimos, e favores em sua alma, o era grande o fruito, que nas dos súb-
ditos fazia com seu exemplo, doutrina, e seniiões. Se repi-endia vicios,
tinha tal eííicacia no dizer, que fazia tremer, c pasmar de medo quem
o ouvia. Se tratava das virtudes, ou dos bens do (j^o, abrazava os co-
rações em amor de Deos : e nelle mesmo se hia saboreando nesta mu-
sica de sorte, que muito amiúde íifava no estado, que ati'ás dissemos,
úa alheado dos sinlidos, c na mesma postura em que liia praticando im-
movel como huma coluna. Crecia o merecimento, faltavão consolações
da terra : dobrava-lhe o Senhor as sobi^enaiurais do Geo.
capítulo xxiy
Irhinda o Santo Frovincidl Pregadores a (erra de Mouros. Conía-se hum
csíranho caso que lhe succedeo caminhando pçr Cahlella : e antros em
PortiKjal, todos cm matéria de espirito. Pede absolcirdo do cargo cm
Capitulo Geral ; alc&nça-a. Conta-se huma penitencia, que nelle se deu
a liuns Frades.
Não nos deixarão declarado os antigos o anno pi'eciso, cm qiic o Santo
começou este segundo governo. Mas contando-nos que estava muito
adiante na idade, e a sua cli.gou quasi aos oitenta annos, como veremos
em seu lugar, se dermos doze annos ao primeiro cargo, e outros tantos
a seu successor, veio-lhe a entrar este polo de 1257, ou pouco mais, e
já sobre os setenta da vida, que pêra as naturezas d"aquelle tempo não
era dcmasinda veliiice, se forão de vida mais folgada, ou menos perse-
guida de rigores, que a sua. Começando animosamente a fazer sea ofil-
cio, huma das primeiras cousas, cm que entendeo, foi em dar cumpri-
mento a humas letras do Pai)a Alexandre Quarto, polas quais partiiiilar-
mcnte encomendava, que se mandassem líeligiosos pregar aos Mouros ;
c como dentro de Espanha havia grandes terras senhoreadas d"elles, não
era necc;-sario passar o mar : nem o Santo Provincial teve muito traba-
lho em buscar so]ei!os, que se arriscassem á empresa. Porque antes foi
alvitro pêra toda a lU-ligiáo. Despachou os que lhe pareceo que convi-
jilião, O deixou a muitos sintidos, e envejosos. íle bem de ver pêra cre-
PAnTlCrLA?, DO r.EINO DE POhTIT.AT. 229
dito da Ordem a nota da Bula. Poremos só algumas palavras dY-ila, por
não estender leitura. E ^ão as seguintes :
Sane qnia inter ulios propiignaíores fdlai Chrisfiancv Fratres Ordinis
(ui, iu^ta professce religionis vffcium zelus comcdit animarum: ex eis ad
(jcnlcs, qu(s Chrislum Domimna non cognoscunl, et ad suòtractionis filies,
qui sacrosai}c(a; lionuincB Ecclesiic non obediíint, dccreuimus aliquos des-
iinandos, ele.
Do que fizerão os inviados, donde erão filhos, e a que lugares forão,
tudo deixarão nossos maiores em silencio, e até os nomes, que com le-
tras eternas devem estar escritos no livro da vida, (indigno silencio, e
erro sem desculpa,; As cousas, que só escreverão em lugar d"estas, ire-
mos dizendo.
Continuando o Santo seus caminhos chegou cá cidade de Quenca em
Casíella. ília de passagem, porque não tínhamos inda ali Convento. Jun-
tou-se alguma boa gente á novidade do habito, que não tinhão visto, pe-
dirão-lhc que quizesse pregar. Gomo esta he a verdadeira obrigação da
Ordem, ainda que moído o corpo do caminho, e o espirito dos negó-
cios, não se sOube escusar, Recolheo-se com cedo pêra ver algam livro.
Leo hum espaço, passeou outro. Logo, sintindo, ao que se pode entcií-
der, o ímpeto do espirito, arrimou-se ao leito, e lançando mão da vela,
mcteo-a debaixo d'el[e, (devia ser com tenção de a apagar), mas ou fosse
descuido, ou não estar já senhor de si^ ficou em parte, que as pontas
do cubertor, e lençoes esíavão ao justo sobre a labareda, como postas
assinto. Aconipanliavão ao Santo nesta jornada Frei João Romo, Galego,
c Frei Pedro Bellioc, Aragonês. Chegarão á porta, virão-no enlevado, te-
merão perturbal-o, não quizerão enirar. E ou não notarão o estado, c
o perigo do fogo : ou lizerão conta, que pois não fazia dano, a vela se
iria gastando, e por si se apagaria. Mas o caso foi, que o Santo ama-
nheceo na postura, e sono bemaventurado, em que o deixarão á noite,
e a vela iambem com elle no mesm^o estado, em que a tinhão visto, ar-
dendo, c nada consumida, sendo assi que não podia naíuralmcníe durar
mais que quando muito duas horas : e as pontas da roupa tão commu-
nicadas com o fogo, que era impossível deixarem de arder sem intervir
milagre claro, e manifesto. Por maneira que consideravão quatro mila-
gres juntos. Prim.eiro, o rapto de huma noite inteira : segundo, arder
230 I.IVUO U DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
oiiíro Umto tempo hum pedaço do vela, (luc não tinha ahmento pêra
duas h(M"as ; terceiro, arder, e não se consumir; quarto, estarem sobre
o fogo toda tiuma noiíe eslopa, e Iam sem se queimar, nem crestar,
nem somente se defumar,
A este modo vindo-se recolhendo polo alto de Portugal Imm d'estes
nnnos pei'a Saniaiem, lhe aconíeceo caso notável no Mosteiro de Freiras
de Arouca, da Ordem de Cister. Pedirão-lhe as Religiosas, que pois Deos
o trouxera jior alli, as quizesse consolar com huma pratica espiritual, e
sna, Assenton-se á grade do Coro, era presente toda a Communidade :
jirégava a gente devota, e esposas do bom Jesu, que havia de ser o ser-
míio, senão amores, c requebros do mesmo Senhor. Foi-os propondo
com huns termos tão lirariílos. huns encarecimentos tão vivos, e huma
devação, e fervor tanto do intrínseco da alma, que as Ueliglosas pendu-
radas da santa elocjuencia se hião alheando de si, como com hum en-
cantamento de força invisível. Mas tudo era pouco pêra o que o Santo
siníia cm si. Yio-se logo o effeiío. Porque, como tratava do que expri-
meníava cada dia, e o repetia com o mesmo gosto, e sabor que o sintia,
e en.tendia, e lho communicava o Sol Eterno, foi-sc arrebatando nelle
aíé hum ponto, em que alevantando as mãos ao Ceo, cm graças do muito
(juc devíamos a Deos, só por querer, e consintir que o amassemos,
sendo tão soberano, o nós terra, pó, e lodo, ficou como transformado
em hum penedo, sem voz, sem anhelito, o o que he mais, sem pulso,
c privado de toda a outra operação dos sintidos, os braços, e mãos em
alto, na forma em que o tomou o rapto, e com o mesmo geito de boca,
olhos, e sembrante com que hia falando. E assi perseverou algumas
horas.
?Jas o que lhe acontecco despois que chegou a Santarém, passa por
tudo o que se pode dizer nesta matéria. Entrou hum dia na sua cela
Frei Pedro de S. João que o acompanhava, c lhe tinha cuidado d'ella,
e ach.oa-o levantado no ar, mais alto que a mcza, em que estudava, com
as mãos, e olhos ao Ceo. Tirou-liie polo habito a ver se o podia decer:
como vio que trabalhava debalde, sahio correndo a dar aviso ao Prior
Frei Estevão : e não o achando, tornou com Frei Pedro da Cruz, c Frei
Afonso de Toledo, que encontrou : mas acharão-no já assentado, e quieto.
Dezia Frei Pedro de S. João, que quando entrara da primeira vez lhe
vira aberto o livro de S. Dionísio Areopagita em hum lugar (*), onde aponta
[•] nionv«. (1p Divinií nnniin. r. i.
PAimClLAR DO P.F.INO DR PCRTIT.AL 231
algumas excelleiícias do amor Divino, e como Mestre, e oxprJmeníado
diz d"e!ie que enleva, c allumia a quem o possue : enleva com suavida-
de, e allumia com luz da gloria. Eattribuia o rapto á lição, polo que sa-
bia que o Santo se pagava d'ella. Este Frei Pedro da Cruz tinha ouvido
das ordinárias extasis do Santo, e ficou sintido de não chegar a tempo
que o visse nesta tão dilTerente, Mas não passarão inuilos dias que to-
cando-lhfí por certa occasião acompanhar o Santo, se satisfez bastante-
mente. Ficou-se. hum dia despois de Com[»ietas rezando no Coro, e tor-
nando já^noite cerrada, não achou o Santo na cella, Sahio ao jardim,
senão (juando se lhe olíerece â visía hum homem, como fantasma i)en-
duradu no ar, rosto, e mãos erguidas ao Ceo. Conheceo quem era, e
todavia, como em cousa nova, ficou cheio de medo, cuidando que pode-
ria cair com perigo ; foi correndo em busca do Supprior Frei Martinho
Martins, conlou-lhe cora admiração que acabava de ver lium corpo glo-
rificado em retrato, e pedio-lhe que fossem ambos a decel-o, e recolhel-o,
visto ser noite. Assi com.eçarão a mar ty rizar o Santo cada bum de sua
parle com forças, e abalos, ate que em fim se foi deixando mover, e
o trouxerão em braços ao leito, mas não livre de todo d"aquella delei-
tosa peregrinação dos siníidos.
Estava o Santo em setenta e seis annos, tão cançado já, que não po-
dia fazer caminho por feus pés ; e todavia, por não deixar de acudir a
correr a Provinda, servia-sc de hum asninho, porque Uie não valiam ro-
gos com o Geral da Ordem pêra soltar por lei humana quem já polas
da natureza estava forro, e hmlo de lodo trabalho, com a maior força
de todas, que era impossibilidade. Esforçou-se na entrada deste anno
a caminhar duzentas legoas pêra aparecer no Capitulo geral, que estava
publicado pcra Barcelona, Fez conta que alcançaria, sendo visto, o que
Sião impetrava ouvido. Foi, pedio huma hora desabafada- de negócios
pêra morrer, pois em quanto tevera forças pêra servir, nenhuma de tra-
balho refusara, Moveo os Padres a piedade a velhice, a pessoa, e a re-
zão, derão-ihe absolvição,
E porque o Santo velho devia ser, como tão ansião, e autorizado,
bum dos principais votos deste Capitulo, não será fora de rezão que
por sua coPita fique aqiii em memoria huma penitencia que nelle se deu
a hum Prior, que havia sido do mesmo Convento de Barcelona : e refe-
ril-a-hemos polas mesmas palavras que ficarão nas Actas, que hoje esla-
vão vivas, e são as seguintes:
Ti'! i.iviio n !)A iiisrcr.iA ls: <. domimoos
fialri, qui eial Prior (jiiand.') JJoniiHn iuut Barcliiuonciisé fuil iiiee-
plmn, cl Fraíiibus, qui lunc eranl aã dandnm voiisUiuin circd opera, ex
(juonua nfrjliijnilia seu di^siiiitilaliGne fariuin esl, quod pwdiclani JJor-
miloriuiíi (illititdincin ab Ordine prielaxnlítm cxcedil nolabiliter, iniinuji-
inus Ircdeciíii dies in pane cl aqua, cl lolidcm disciplinas. El dislriclé
iniiivf/iriuis, quod doiims, qiue adlmc suiil facienda',n(jn sinl alliores, quam
in Constilidionibus e-it taxaluni.
Oiioreia dizer.
Condenamos ao Frade qne era Prior d'esla casa de Barcelona, quan-
do se começou a levantar o Dormitório, e aos Frades, a quem locava dar
conselho na matéria do edificio, em treze dias de pão, e agoa, e outras
tantas disciplinas : visto como de seu descuido, ou dissimulação proce-
dtío ficar o Dormitório notavelmente mais alto, do qne está determinado
poki Ordem. E em todo rigor mandamos, que as casas, qne estão por
fazer, não passem da medida, que nas Constituições está limitada.
Com esíe rigor se acudia então a culpas tão leves, claro argumento
do que seria nas grandes, se as houvera : e de quam entranliado andava
nas almas o amor da santa pobreza.
CAPÍTIL(J XXV
De algumas visões sohrcnalitrais que o Sanío leve : e )nila(jrcs que por seu
meio. e orúçâo obrou o Senhor.
■ Yeio-se o Santo Frei Gil pêra a sua cella a esperar a ultima hora,
começou a empregar-se -todo no cuidado delia, como seja a te vera pre-
sente, vivia no corpo huma vida, que podemos chamar Angélica: tão pu-
ro, tão penitente, tão vigiado alé do pó, e da sombra das mais peque-
nas venialidades, como se então começara os dias de sua conversão do
Falência. Pagava-lhe o Seniior com grandes misericórdias, humas vezes
de visões sobrenaturais mostradas aos olhos, e vista corporal, outras de
milagres patentes, obrados por sua oração, c intercessão. Das visões era
grande encubridor, porque algumas, que se escreverão, forão sabidas a
caso, ou alcançadas por conjeituras. Gomo era velho, e naturalmente se-
PARTlCfLAI! DO REI.NO DK PORTIT.AL 2^3
vero, não se atrevia ninguém a fazer-llie perguntas, e, quem lhas ítizia,
ficava sem i'eposta, c cori-ido. Conlava Frei Pedro seu companheiro, (jue
estando o Santo lium dia sobre o leito pola sesta, e elle lambem deiíado
não longe, acudira ás festas, e alvoroço, com que o Santo levantando as
mãos, e batendo as palmas com os olhos no alto dezia : Aii meu Se-
nhor Jesu. Ah duicissimo Jesu, no coração, lie rezão que vos eu traga :
no corarão andeis escrito, impresso, escul[)ido. Ó Senhora piadosissima,
Mãi de meu piadosissimo Senhor. O santíssima Mãi do Deos, (j Virgem
gloriosa. Rainha da terra, Rainha do Ceo, que graças vos dará hum po-
bre homenzinho, hum bichinho da terra ? E tendo Frei Pedro por certo
que falava com vista dos olhos manifesta, segundo as palavras o íesle-
munhavão, e vendo-o Ião alegre, ludo lhe dera aiiimo jiera lhe pergun-
tai", não pola visão, de que estava som duvida, se não por algumas par-
ticularidades, que desejava saber. Mas o Santo sem diferir á perguma,
lhe maiidara que o deixasse, e repousasse.
A Infante dona Sancha, senhora de Alanquer, de cujas virtudes fize-
mos atrás larga relação, tinha tanta devação ao Santo, que não só se le-
vantava ao receber, quando lhe entrava por casa : mas posta de joelhos
llie pedia a benção, e que a encomendasse a Deos. Vindo a falecer apa-
receo ao Santo a horas, que elle começava a repousar. Espertou hum
pouco torvado, mas caindo logo em quem era, quietou-Sí,', e perguniou-
Ihc com.o lhe hia. ^luiío bem me vai, respondco a defunta, por mercê
de meu Senhoi- Jesu (^hrisío, e por meio de vossas orações. Esta visão
contou o Santo a FreiBartolameu, Frade de grande religião, e acrecen-
tava, que a defunta o deixara cheio de celestial consolação, sinal certíj
da gloria immortal, que já possuía.
Celebrava hum dia em Santarém. Eis que no meio da Missa fica su-
bitamente arrebatado: e a cabo de grande espaço torna rindo, e fazendo
festas com huma alegria tão fora do ordinário, que deu em que cuidar
a muitos Padres, f|ue acudirão ao rapto, chamados do ministro, c fazião
vários discursos, tendo por descom})osição o que virão, em tai lugar, e
tempo. Acabada a Àíissa, fez-ihe i)ergunta o Prior polo que vira, e ou-
vii-a, como quem fora hum dos que o ministro chamara : e que causa
houvera pêra tal, sendo assi que sempre acabava aquelles santos mys-
teríos com lagrimas, e as extasis com queixas, e sospiros. Não podo o
Santo negar nada, a quem inquiria como Prelado, e foi-lhc contando, que-
naquella hora se lhe representara, e vira com os olhos corporais a alma
234 LIVRO II DA HISTORIA DF. S. DOMINGOS
de hum grande seu amigo, e grande Santo, que se liia ao Ceo cercada
de resplandores de gloria, e levada por mãos de Anjos. Era este dom
Gonçalo Mendes, Geral da Ordem dos Cónegos regrantes de Santo Agos-
tinho deste Reino, que falecera em Lisboa, e vivendo na Ordem com
grande exemplo, alcançara o cargo sem pretenrão, e o servira com a
mesma innoccncia, e bondade, com que o merecera, e cheio de annos,
e virtudes subia naquella hora a reccl)er o premio verdadeiro. Notou o
Prior dia, e hora : e achou despois que puntualmente então acabara no
Convento de S. Vicente de Lisboa.
Gi'andes cousas nos vai descobrindo a vida d'esto Santo, quanto mais
adiante vamos : e pcra que nos não espai\tem as passadas, temos entre
mãos milagres, que vencem as leis da natureza, com que a Omnipotên-
cia Divina quiz honrar, e acreditar seu Servo. No tempo que se edificava
o Convento de Lisboa, em quanto não havia bastante gasalhado pêra os
Religiosos, que já assistião na Cidade pregando, e doutrinando, tinha-lhes
dado Imma dona princi])al, chamada dona Urraca, hum quarto das casas
cm que vivia, porque além de ser rica, e devota do habito, era mãi de
Fr. Domingos Martins, que estava na Ordem. Vivia na cidade huma mo-
Iher honrada, que padecia fluxo de sangue, havia dezenove annos: como
andavão na boca do povo as maravilhas, que Deos obrava por S. Frei
Gil, pcdio a dona Urraca, que vindo elle a cidade quizesse avizal-a. Pas-
sados poucos dias soube, que era chegado : veio logo a casa, lançou-se
aos pés do Santo, tomou-lhe o escapulário, beijou-o com devação, des-
culpando o atrevimento com a necessidade, que padecia, e esperança do
remédio, que a obrigava. Âcuchrão os Religiosos, que erão presentes por
intercessores. Disse o Santo aos Frades, seja Chrislo Jesu com ella : e a
ella. Ide embora filha. Acuda-vos Deos segundo vossa Fé. Foi-se, e foi
sam des daquella hora, e de todo ponto livre do mal.
Dez annos havia que era casada xMaria Antioca, e julgada já por es-
téril dos Médicos, com quem se linha cançado, e despendido, desejando
ver hum íillio, e successor em sua casa. Determinou buscar o remédio
em Deos, onde nunca falta a (}uem o sabe pedir. Tinha particular deva-
ção com o Padre S. Domingos : e a mesma com o Santo Frei Gil polo
que delle ouvia; foi-se hum dia a elle, e pedio-lhe com encarecimento,
quizesse alcançar do Padre S. Domingos se lembrasse d'ella, prometen-
do a ambos, que, se Deos lhe desse hum filho, ella lho tornaria, dando-o
á Ordem. Passados poucos dias, sintio-sc prenhada, teve hum filho, cha-
PAHTir.n.AR DO REINO DE PORTUGAL 235
moii-lhc Domingos, e ciimprio a promessa fazendo-o Frade. Affirma hum
escritor muito antigo, de quem tomamos parte d"esta Historia, que o al-
canrou na Ordem, mo(;o de tão bom natural, que logo parecia fdho de
orações de Santos.
Correo a voz pola terra: acreditou-se logo o milagre com outro em
tudo semelhante. Tornavão de Sevilha pêra Lisboa pola via do Algarve
Frei Martim Gíjnçalves, natural de Lisboa, e Frei Kstevão A^erdugo. Che-
gando a Faro agasalliou-os em sua casa Diogo AlTonso, Alcaide mór da
terra. Antes de se despedirem tomou-os a parle dona Micia, sua molher,
e teve com elles longa pratica, dizendo que des que se entendera, tevera
sempre grande inclinarão, e devação á Religião de S. Domingos, e fol-
gara de lhe fazer todo bem, que em sua mão fora : e de presente era
particular devota do Padre Frei Gil, o ainda que o não vira nunca, em
ausência o respeitava, e venerava como a Santo : e desejava saber se
era verdade o que lhe linhão dito, (|ue por suas orações era Maria An-
tioca mãi de hum filho. Porque se tal era, não desmerecia ella ao Santo,
c á sua Ordem alcançar-lhe de Deos semelhante favor, pois estava na
mesma necessidade havendo muitos annos que era casada, e temia que
a falta de filhos fosso causa do sou marido se vir a desgostar com ella,
vivendo ambos em tudo o mais com muita conformidade. Derão os hos-
pedes por cousa certa o que se dezia de Maria Antioca. E quanto á sua
necessidade, e petição prometerão ser diligentes procuradores, tanto que
chegassem a ver o Santo. Quando o virão, não Ibrão descuidados : pro-
pozerão-lhe a causa, e os merecimentos da boa senhora, ajuntarão ro-
gos. Obrigado o Santo disse-lhes que o ajudassem com outros Religio-
sos, que erão presentes, a rogar por ella, offerecendo a Nossa Seniiora
a Antífona Salve lirgina. Rezou-a de joelhos, e disse a oração. E dona
Micia veio parida de hum filho d'aqucl}e dia a nove mezes : e por se
desindividar em alguma cousa com o Santo, chamou-lhe no baulismo
Diogo Gil.
Os caíos prodigiosos não [)erdeni a esíraiiheza por acLtníec.'rem ás
vezes em sojeitos, e occasiões de menos importância, qiiaíiuo Deos he
servido de também nas tais dar honra a seus servos. Foi cousa corta,
c com muitas lesíimunhas dignas de fé confirmada, que achando-se o
Santo na Azoya, lugar do termo de Santarém, (era este lugar do Dayão
de Lisboa seu irmão, e por isso acudia lá algumas vezes, quando o Dayão
era presente), e começando a fiizer huma pratica espiritual aos morado-
236 I.IVP.O II DA HISTORIA DE ». DOMIXnOS
ros, assentados todos no campo, apareceo junto d"ellos hum gallo, e co-
meçou lambom sua natural musica, replicando-a com tanta importuna-
rão, e dosentoanienío, quo o Santo Ibe arremessou o bordão : e foi tão
certeiro, que o dei-ribou morto. Rccolheo-o depressa lium dos ouvintes
debaixo da capa, porque o Santo não tevesse desgosto, como era certo
se o vira morto. Âcal)ada a pratica, como o Santo não ouvio mais o seu
musico, julgou o que era. Pcdio que llio trouxessem., e quando o vio,
começou-se a culpar de demasiado colérico contra hum animal irracio-
nal, e pondo os olhos no Ceo tornou logo, e tocando o gallo com a ponta
do bordão : Ea, disse, levantai-vos dahi, tornai-me logo a vosso ofíicio,
e louvai o Criador. No mesmo ponto se levantou, e batendo as azas, fui
dando saltos, e cantando com espanto, e alegria dos circunstantes. Lem-
brado estou que outro caso semelhante se conta no livro, que chamão
Vidas dos Padres da nossa Ordem, e só faz diíierença no lugar, mas co-
mo diz juntamente que foi escrito polo Padre Frei Gil, sem dar nome
do aucior da maravilha, podemos crer, que o quiz o Santo disfarçar es-
crevendo, por não confessar que sairá de suas mãos, (como já o temos
advirlido em outros casos.) Porque não ha duvida que este snccedeo na
Azoya, sendo presentes Frei Bernardo de Morlans, o Frei Bertolameu
Pires, Frei Domingos da Cinceira, Frei Pedro da Cruz, Frei João de
3ilarvilla, e Frei Jordão de Torres. E acrecenía hiun escritor m.uiío anti-
go, que alcançou ainda huma Ermisenda, moiher de bem, moradora do
mesmo lugar, que se achara presente ao milagre, o o contava na mes-
ma forma.
CAPÍTULO XXVI
De algumas cousas milagrosas que o Sunío fez por sua mão.
Milagres de Medico Divino temos pêra este capitulo, que cura doen-
ças, ou só com o tacto de sua mão, ou com cousas contrarias ás mes-
mas doenças, bem como o fazia Christo Senhor nosso, e como o dezia
a seus discípulos, que o farião elles, se tevessem fé, e outras maravilhas
muito maiores. Diremos primeiro algumas semelhantes : adiante pode
ser que as achemos aventajadas. Que se a sombra de S. Pedro presente
dava saúde aos enfermos (*) que alcançava: aqui acharemos remédio dado
a muitos só com a fama, e nome, ou com a iiivocação de S. Frei Gil
(♦) Act. 5.
PARTICULAn DO REINO DE I>OUTl'(;AL 237
aiBonte. Acudião de coiilinuo ao Santo muilos enfiarmos, Iran? como a
Aíedico grande, que era dentro dos limites da Piíilosopliia, c estudo, e
que curava de graça: outros que sabilío sua virtude, com lim mais alto,
e como a Santo. Juntarão-se hum dia na nossa portaria dous.: urn tão
jierdido de mal de olhos, que não só os trazia cí)rrendo humor conti-
imo, e cuhertos de névoa, mas pestanas, e sobi'ancelhas peladas, e co-
midas, e falíando pouco pêra cego de todo. O outi'0 com força de doen-
ças, e falia de cura viera a encurvar-se, e alcorcovar-se de sorte que
não era senhor de levantar a cabeça, nem olhar direito. Cada hum por
sua via obrigou ao Santo a compaixão. E deíendo-se hum pouco, como
que cuidava no remédio, mandou ao Porteiro Frei João que lhe trou-
xesse hum pouco de azeite, benzeo-o com o sinal da Cruz, ehiima bre-
ve oração, e untou os olhos ao cego. Acudio líiim Padre que chamavão
o ?>íedico, porque o fora em secular, reprovando íal género dt? mezinha,
visto ser o azeite totalmente contrario á visla. Toda a arle, respondeo
o Santo, cessa onde ha ie. Não vos lembra que contra toda a rezão de
Física curou Christo a hum cego com lodo, e nos deixou dito, que quem
tevesse fé, poderia beber sem dano vasos clseios de pcçonh.a ? Pois, a es-
te azeite, espero, c contio eu nelle, que ha de dar tal virtude, que cure
onde costuma a danar. E assi foi, porque untando peito, e costas ao
contreito, como fizera aos oPnos do cego, ambos se tornarão sãos, hum
direito, e saltando, outro allumiado, e logrando os bens de vista clara.
O mesmo cíTeito fez a mão do Santo estando em Coimbra, em Iram
moço lilho de João Paes cidadão honrado, que estudava pêra Clérigo, e
tinha já beneficio em S. Bei-tolameu. Derão-lhe alporcas, e iinlião-ihe o
pescoço tão afeado de Inndoas grossas, e escaras, e vermelhiílões, (era
uso da maior antiguidade o que agoi'a vemos renovar de pescoços des-
cubertos: melhores cousas pudéramos tomar delia), que se não atrevia
aparecer em publico. ííe o mal rebelde á Fisica, e nelle estava incurá-
vel : despois de tempo, e muito gasto perdido com módicos. Não faltou
quem o aconselhasse que se valesse do Santo. Foi-se a elle por meio
de Frei Estevão Besa. Deu-lhe conta de si, rnoslrou-lhe o pescoço. O
Santo, que era todo brandura, e piedade, poz-lhe as mJos, e fez-lho o
sinal da (]ruz. Sem outro feitio em poucos dias se lhe veio a juntar to-
do o humor venenoso em huin lugar, onde superando, e saindo em ma-
téria podre deixou o pescoço enxuto, e sem grossura nem pejo, ficando
só algumas costuras leves como em memoria do milagre.
238 I.lVnO 11 DA HISTORIA DE S. DOMINOOS
E porque não saiamos de Coimbra: na mesma ciclatle huma Maria
Godinha ílliia de Godim Paes o moço, ficou de huma longa doença tão
seca, e mirrada de carnes, que com nenhum remédio tornava em si, e
se dava por eiica. Tinha assentado sua mãi Mor Sueira leval-a ao Santo,
mas hia-se dilatando de dia em dia, até que obrigada de hum forte ac-
cidente de convulsão de todos os membros, c febre juntamente, se vie-
rão mãi, e filha ao Saato: e fazendo-lhes elle o sinal da Cruz sobre as
cabaças, tornarão com o remédio que buscavão.
Era primo do Santo Martim Gonçalves Chacim, fidalgo principal do
nobreza antiga, e conhecida então, apagado hoje, como muitas outras
que o tempo extinguio. Quiz hum dia festejar o Santo em sua casa, e co-
mo sabia que não comia carne, apereebeo hum banquete de peixe, quanto
podia ser, esplendido. Chamou parentes, e amigos, estendeo-se a comi-
da. E procurando que houvesse alegria, rogava aos convidados que co-
messem : e occupado todo n'isto, e em mandar os criados, e governar
a meza, descuidou-se tanto de si, que levou em hum bocado huma es-
pinlia envolta, a qual se lhe ferrou na garganta de sorte, que por muita
força que fazia, não podia passal-a, nem lanç;il-a fora. Começou a temer,
e aílligio-se, o rosto feito brasa, e os olhos que lhe sallavão de inchados,
os convidados com toda a casa torvados, e descompostos. Aqui acudio
o Santo, e estendendo o braço poz-lhe a mão na garganta, e feito nella
o sinal da Cruz, mandou-lhe que tussisse. Estava já tão trabalhado, que
o não pode fazer sem muita pena. E logo se despegou a espinha, veo
fora, e ficou quieto.
Isto, que a Martim Gonçalves succedeo com espinha, aconteceo pun-
luahnente a hum pobre homem do lugar, que dissemos da Azoia, com
hum osso. Bebia huma escudella de caldo de vaca com descuido, ou com
apetite, e fome de pobre, levou nelle de volta huma lasca de osso, que
sendo aguda de huma, e outra parte se lhe atravessou na via da comi-
da : fez força pola despedir, e o impeto de homem robusto, c forçoso,
não sendo bastante pêra a desaferrar,, e cuspir, foi parte pêra a encra-
var mais: assi ficou em estado qua nem podia falar, nem passar cousa
de mantimento. A cabo de poucos dias começou-lhe a criar inchação de
huma parte, e d"outra : com que se lhe hia apertando a respiração, e
tomando o fôlego, e começava a desesperar da vida. Aqui cicudirão os
parentes, poem-no em huma cavalgadura, dão com elie em Santarém á
porta do nosso Convento: pedem que lhes deixem ver o Santo, c dar-
PAUilClLAU DO IIEINO DK POUinjAL 2ÍJ9
lhe cotila ih suas lastimas. Diz a Historia que se acharão cora elle Frei
Bernardo de àlorlans, e Frei Pedro da Cruz; e dando-lhe conta do caso,
perguntava o Santo a Frei Bernardo que sei"ia bem aplicar-llie, como se
determinara cural-o com a lisica humana, e ordinária: e Frei Bei'nardo,
que tinha entendido o mal de raiz, respondeo. Não he este o caso qua
se cura assi, Padre Frei Gil: o poder de vossa grande fé he o que lhe
lia de valer; que pêra remédios humanos já não lie tempo. Todavia man-
dou o Santo que lhe dessem huns bocados de pão, a ver se engolin-
do lançavão o osso abaixo : mas foi diligencia perdida : antes, co-
mo interiormente havia já tumor crecido, poz-se o pobre em perigo de
se affogar com a força, c grossura do bocado. Pedio então bum pouco
de azeite, e untando-llip a guela pola parte de fora, donde se queixava,
e íeito o sinal da Cruz em erma, mandou que lhe lançassem sobre a ca-
beça a capa do Padre S. Domingos, pretendendo que a honra do mila-
se atribuisse á virtude d*a capa, e de seu dono, antes que á sua mão.
Começarão a entrar na Igreja pcra fazerem o (jue o Santo mandava : eis
que subitamente sente o doente resolver-se-lhe toda a inchação, e aper-
to da garganta com huma leve tosse que lhe acudio : e subindo-lhe á
boca bum golpe de sangue pisado, e matéria imperfeita, que vomitou,
sahio de mistura a lasca do osso ensangoentada de ambas as pontas. E
com tudo não quiz o Santo que deixasse de tocar a capa de nosso Pa-
triarca, pêra que a ella referissem o remédio.
CAPITULO XXVIl
De outros casQ.9 milagrosos obrados por iiifercossão do Sanlo ausente :
mas ainda vivendo na terra.
Agora diremos os milagres que obrou ausente, estando ainda vivo,
e são, e em carne mortal. E verem(?s acudir a Omnipotência Divina á
fé dos que chamavão por seu servo : ou se valião de alguma cousa que
houvesse andado em seu uso: como se com elle em tal grão se achara
empenliada, que llie pudessem fazer força merecimentos humanos : me-
recimentos que quando os ha. são dadiva, e mercê sua, nem tem mais
valor que aquelle que o mesmo Deos he servido dai'-lhes. Atrás deixa-
mos escrito o bom successo que el Rei dom Afonso teve na troca do
bordão, que trazia por gotoso, com o que o Santo usava por velho. iMas
210 Livno II DA HisroniA djí s. domingos
em cousas aiiRla de menos sustancia mostraremos igual, e espantoso ef-
feito.
indo o San lo pêra Coimbra com Frei Bertolameu Pires por compa-
ijiiciro, eniroa de caminho em hum Convento de Cónegos regrantes de
Santo Agostinlio de hum lugar que os Escritores ciiamão Cohiieas. Re-
ccberão-no os Frades com amor. e alegria: c na meza foi agasalhado
com ludo o bom, que havia em casa. Só do vinho lhe pedirão perdão,
queixando-se que se danara todo sem ficar huma gota que prestasse :
com que se passava assas trabalho no Convento. Agradecia o Santo a
Ijoa sombra, e vontade que enxergava em todos : e sem fazer caso de
mais, dezia-lhes que nenhuma cousa dava melhor tempera á comida,
nem mais sabor ao vinho: e que pêra a sua arte fora agasalhado muito
melhor do que pudera desejar. Esta benignidade, e singeleza do Santo
o])rigou ao Adeguei ro a fazer conceito, que não sem causa se conta vão
tantos louvores de sua virtude, e querer valer-se d"ella. E tomando oc-
casiíio de lhe ver na mão liuma agulha, que a caso tirara da manga, (ou-
tros escrevem que era cabacinha, que lhe servia no caminho pêra agoa,
c a trazia pendurada da cinta), pedio-lhe que Ília deixasse ver, e foi-se
com ella á adega, e lançou-a dentro em huma grande cuba, em que es-
tava recolhida toda a novidade daquelle anno, e tão mal parada, que
nenhuma parte tinlia de que se pudesse esperar bem. Ajuntou oração
breve, mas cheia de (>'% e devacão, dizendo, que em nome do Senhor,
e do seu servo Frei Gil se atrevia a fazer aquella diligencia, confiando
que por seus merecimentos, c por ser cousa que trouxera nas mãos, e
em seu uso, seria sua Divina bondade servido que o vinho melhorasse :
e assi tevessem os pobres Frades com que passar o anno, e seu servo
ficasse honrado. No dia seguinte foi tirar vinho pêra a Communidade :
lançando nos copos, de turvo apareceo claro, de grosso delgado, e o
que mais be, trocado em cor, c sabor, e em fim como dado de milagre.
Foi grande o espanto dos Religiosos, mas não durou mais que quanto
tardarão em saber o feitio que o Adegueiro fizera, e o que devião por
elle aos merecimentos do Santo, de quem já sabião cousas maiores.
Entre os mesmos Frades, mas cm lugar diíTerente, e diflerente oc-
casião, quiz Deos pouco despois acreditar lambem seu servo. Foi a Igreja
de Ansede, no Bispado do Porto, Mosteiro de Cónegos regrantes, antes
que viesse a Ordem de S. Domingos, que agora a ))0ssue. Passavão polo
lugar Frei Misíuel João natural do Porto, e Frei Rol)erio Frades nossos:
PAIiTicn.An DO UKlNf) DK POriTlT.AL 211
forão con^i(Ja(los dosPaJros doMosíeiro com amor, e coríezia, e comi'-
rão alguns com elles. Veio á meza sável, que acodem muitos ao Douro, que
aqui perto corre, e de nenhum rio de Espanha são tão saborosos nem
tamanhos, como os que se pescão nellc, c no .^liiilio. Succedeo a Iram
dos Padres de casa, com pressa ou desatento aíravessar-se-lhe huma es-
pinlia que aceríí)u a ser mai? teza do que costumão as muitas, com que
a natureza armou este peixe. Procurou despedil-a tossindo, fez muita
força, não bastava nada : estando todos confusos, disse-lhe Frei Miguel
cm voz alta, que nomeasse o Santo Frei Gil, que Deos lhe acudiria por
seus merecimentos. Tudo foi hum, chamar polo Santo, e vir a espinha
fura, e tornarem a comer alegremente, e ficarem todos por mais títulos
devotos do Santo.
Costuma a Divina bondade honrar muitos Santos com particulares
graças, pêra serem mais estimados dos homens por sua intercessão em
seus males, e necessidades remedeados. Âssi buscamos a S. João Bau-
tisía pêra dores de cabeça, a Santo ínacio pêra mal do coração, a S. Paulo
contra as quedas dos cavallos, S. Bento contra venenos, S. Domingos
pêra livrar de febres, S. Pedro Gonçalves Telmo das tempestades do
mar, e muitos outros Santos de varias iníirmidades. Parece que quer
Deos que não fiemos demasir.do nas boticas de medicamentos humanos :
offerece-nos esta do Ceo. Em males de garganta teve o Santo Frei Gil
em vida, e morte grande favor do Senhor. Dos que curou vivendo te-
mos ainda três casos, (jue por serem quasi semelltaníes, irão juntos. No
primeiro foi curado Frei Vicente o Medico, aqueile de quem coníanios
liamas mui apertadas, e pouco cortezans experiências, que quiz fazer
das extasis do Santo. E aconteceo-Hie o que he ordinário aos que d al-
guma maneira peccão de protervos, e teimosos por cabeça, que vendo
não vem : inda quando ouvia fallar n"ellas, ou torsia o rosto, ou mar-
chava, por não dizer duvidava. Mas veio a desenganar-se com lhe fazer
sintir na garganta huma dura espinlia o que elle procurou que sinllsse
o Santo, quando lhe picava as mãos, e queimava os dedos. Era em
Coimbra diante de toda a Communidade do Convento, e d"alguns cida-
dãos, que forão aqueile dia- convidados. Ferrou-se-lhe a espinha na guela
tão vivamente, como se fora huma agulha. Yio-se atribulado, e como de-
sesperado, porque a não podia passar nem airancar : e sem comer mais
liocado encostou-se á parede quasi desm.aindo. Lcmbrou-se então que
ainda que os Santos sejão pouco vingativos, tinha justa pena de suas
VOL. I. 10
2Í2 LlVnO II DA HISTORIA DE S. DOJÍINGOS
incredulidades. Em fim cnmprio-se nelle o que está escrito, que os tra-
balhos dão entendimento (*). Encomendou-se de coração ao Santo, c logo
com buma leve tosse, e sem nenluima força veio a espinha envolta em
sangue : guardou-a, e mostrava-a despois.
O segundo Foi livre de hum osso de peixe atravessado na garganta,
com igual perigo, e com a mesma devação. Chamava-se Payo Rodrigues
morador em Torres novas, onde era Almoxarife das rendas da Rainha :
e costumava agasalhar cm sua casa os nossos Frades, quando hião ali
pregar, e este dia jaiilavSo com elle Frei Miguel Martins, e outro.
O terceiro caso foi em Portalegre, sendo presentes Fr. Durando Es-
tcvens, e Frei Nuno, e jantando ambos com o Prior da Igreja de Nossa
Senhora dom André. Jantavão juntamente alguns Clérigos, e hum d'elles
por nome Domingos João levou inadvertidamente huma espinha de sá-
vel, (que lie peixe grande castigador de golosos), e estando meio aíToga-
do, e em grande estremo de alllição, tanto que chamou polo nome de
S. Frei Gil, â instancia de Frei Durando, que lh'o lembrou, lançou huma
espinha retorsida como hum anzol toda ensanguentada, que mostrou a
todos, não se fartando de dar graças a Deos, e ao Santo, que peregri-
nando ainda entre os mortais tanto favor alcançava de Deos. Foi mais
testimunha deste milagre Frei João do Portalegre, que então era moço,
e secular, e se achou presente no jantar.
CAPÍTULO XXVIIÍ
Do (jrande nome que o Santo tinha em toda a Ordem, e pvr
terras estranhas : e de seu [eJice transito.
São companheiras inseparáveis da virtude, como a sombra do corpo,
honra, e fama gloriosa (**): e tal he o agradecimento, com que ella paga a
quem a segue, tal o interesse que rende a seus amadores. Dos aconle-
cimentos que temos contado, e de outros semelhantes que não escreve-
mos, tinha o Santo Frei Gil ganhado tal nome em toda a Ordem, que a
boca cheia era n'ella celebrado por grande Santo. Porém não se conten-
tou a Divina bondalle com o fazer conhecido entre os seus, se não esten-
desse íambem sua gloria aus estranhos. Vivia no mesmo tempo cm Ro-
pAHTicn Ali DO ni;i.\o m: !'Oíítlt.al 2i3
ma hum ermitão de abalizada virlude, estimado, c conhecido por tal de
muitos Cardeais, e outros Prehidos. Achaiido-se hum dia em casa de hum
(Cardeal, que visitava, com alguns Espanhoes, perguntou com eíficacia,
se lhe saberião dar rezão de hum Frade Dominico Portuguez, de nome
Trei Gil, e tal geito, e tais feições de rosto, e começou a pintar o Sanlo
com tanta propriedade, que sendo hum dos que o ouvião o Mestre Pêro
Vicente ('onego de Braga, que muitas vezes o tinha visto, e tratado, lhe
respondeo, que bem ao natural tinha retratado hum grande Santo, que
em Portugal conhecia do nome, e partes que lhe dava. Contou então o
Ermitão, que havia alguns dias que estando huma noite em oração, e
sendo já perto da manhã, cairá em hum leve sono, no qual se lhe repre-
sentara a visão seguinte. Vio o Ceo aberto, e Christo Salvador nosso em
pé, e a Virgem sua Mãi junto delle com as mãos juntas, e levantadas,
como que o adorava : logo via abaixo dos braços da Senhora hum homem
que no trajo representava Frade da Ordem dos Pregadores, e cercado
de hum estranho resplandor tinha as mãos em postura, que se mostrava
sustentar com ellas os braços da Virgem, como se escreve que sustinhão
os braços de Moysés. quando orava no Monte, Aaron, eHur(*). Eacrecen-
tava, que ficando maravilhado, e desejoso de entender quem seria o bem-
aventurado de tamanha honra merecedor, lhe fora dito pola mesma Se-
nhora, que era Frei Gil, Espanhol da ultima Lusitânia, Frade da Ordem
dos Pregadores, seu particular devoto, e tal pessoa, que assi como via
sustentar-lhe os liraços, assi por suas orações, e merecimentos se man-
tinha, e augmentava a Ordem dos Pregadores. Tentando saber mais, des-
aparecera a visão, e o sono, licando-lhe impresso na memoria o nome
que ouvira, e o rosto que vira : e até aquella hora andara sempre com
desejos de encontrar pessoas, que o pudessem satisfazer, se havia tal ho-
mem no mundo : e dava graças ao Senhor por lhe ter mostrado o que
buscava, e confirmado com isso a sua visão. Este Cónego vindo a Coim-
bra referio ao nosso Convento o que temos dito, confirmando-o cora ju-
ramento em presença do Prior Frei Martinho Martins, e dos Padres Frei
Lopo, Mestre, e Leitor de Theologia, e Frei Bertolameu Pires, e outros
muitos.
Mas he muito de ponderar, que sendo estas honras, que acompanhão,
e servem á virtude, negoceadas polo mesmo Doos em favor de seus ser-
vos, elles as aborrecem, e abominão, e assi vivem temerosos, e acaute-
(•] E\o. 17.
Í>4Í LIVIIO II I>A ItlSTOr.IA DE S. DOMINGOS
lados (Vullas, como de perigosa lenlação, porque sabem que o cnemigo
cominum, cm quanío vivemos no cárcere da carne, não perde occasião
de armar silada, e envolver veneno em tudo. Assi nenhum varão sisudo
se dá por seguro em quanto vive, inda que se veja nadar em mimos, e
favores do Ceo. E esta deve ser a rezão, porque lemos de muitos San-
tos antigos, que damavão com Paulo : Quis me liherahil de corpore mor-
íis Ãííii^i? ('; Quando acabaremos de nos ver livres de hun:i corpo, em que
ludo he morte? Porque ainda que a esjxírança do premio obi-iga muito,
l>arôce que faz maior força o receio de poder oíienJer ao Senhor que
amão, em huma vida toda cheia de laços, e occasiões de cair. Desejava
S, Frei Gil como Santo romper as prisões. Quiz Deos que o soubésse-
mos por mais honra sua por vias extraordinárias, não só por sua boca.
Estefânia Brocarda, dona iionrada, e rica, que vivia em Lisboa em santa
viuvez, e opinião de virtude, dava cm sua casa {>or amor de Oeos apo-
sento, e ração a hum pobre cego, chamado Estevão, homem virtuoso, que
contente com aquella esmolla traíava só de se encomendar a Deos em
continua oração, sem andar polas ruas, cego nos olhos, mas muito alla-
miado na alma. E hum dia despois de ter dado longas horas a este exer-
cício, tendo os olhos do sua alma bem espertos, vio que subia da terra
com estranho ímpeto, e veiOcida'de hum globo de fogo ardente, e clarís-
simo, e notava, que chegando a emparelhar com as estrellas se abria o
Ceo, e sahia hum Anjo, que se lhe punha diante, e abanando com huma
toalha o rebatia, e fazia tornar a decer pêra a terra. Maravilhado o cego
da contenda, e estendendo a oraçlío com desejo de entender a signiílca-
ção, e mysterío delia, foi lhe dito polo mesmo Anjo, que a bola de fogo
era a alma de Frei Gil de Santarém, que ahrazada de amor Divino es-
tava anelando por se ver livre do peso mortal, e voar aos braços do
Criador: e ellc era mandado a detel-o pêra bem de muitas almas, que
Deos queria ainda ganhar por seu meio na terra, pêra lho reiídercm tam-
bém despois mais altos grãos de gloria.. Contou o cego com simplicidade
o que se lhe representara a Estefânia Brocarda como a pessoa espiiitual.
E ella, porque o tinha em grande conta, e juntamente era muito devota
do Santo, publicou a visão. E de sua boca affirma que a ouvio, o pri-
meiro, e mais antigo escritor da vida do Santo, em presença de Frei
Gonçalo Martins, natural de Santarém, e ajunta que vlveo o Santo despois
quasi cinco annos.
(•, Uom. T.
VARTICrLAR DO REINO BK PORTCGAL âUJ
Passados estes cinco aniios, e sendo entrado o Santo nos oitenta de
sua idade, era-llie a vida traballio, e dôr mais que vida, tanto pola ve-
lhice, e fraquezas grandes que padecia, como polas ânsias, com que sus-
pirava por Chrisío, e desejava fogir da terra, que fazião por si ou Ira in-
flrmidade. Em fim chegou o messageiro de sua Uberdade, que foi huma
febre não ardente, nem teimosa : mas elle conhecendo-a dava-lhe graças
com alvoroço do que permeio d'ella esperava alcançar (*). Que se servir a
Deos hc possuir Reinos, como dezia Santo António, que será reinar com
elle? Traíavão os Frades de físicas, e medicamentos: desenganou-os que
não perdessem tempo, poi'que a hora de seu descanço era chegada. Pe-
dio, e recebeo os Sacramentos da Igreja com entranhavel devação : c
entrando o dia, que Ghristo nosso bem subio com gloria ao Padre Eter-
no, aniio de 126^, mandou-se tirar do leito, e lançar em terra sobre huma
manta de saco, e consolando aos Religiosos com palavras cheias de amor
e brandura, lembra va-llies a guarda da observância, c os ganhos cer-
tos, que n'ella tinlião : e alegre entre tristes, risonho entre chorosos, le-
vantou as mãos ao Ceo, e pronunciou com voz inteií-a aquellas palavras:
In manus tuas, Chvute Deus, commendo spiritum meiím. E logo deixando
cair os braços em Cruz, rendeo o espirito tão sem pena, que pareceo
entrara em saboroso sono : e tal íicou seu rosto, assi bem assombrado,
e composto. Ao amortalhar, e compor do corpo pêra a sepultura, lhe.
foi achada á raiz da carne a cinta de ferro, que em Falência cingio, como
atrás contamos, nos princípios de sua conversão, e nunca mais tirou. E
por tal se guarda no Convento como preciosa relíquia: e ho pedida de
muitas moiheres em partos perigosos, mostrando o successo, que dura
ainda naquelle ferro frio, c morto a virtude dos membros, que tanto
tempo acooipanliou vivos.
CAPÍTULO XXIX
Do-s shmis que houce da rjloria do Santo, por diversidade de smcessos
que a confirmarão.
O primeiro sinal publico, e patente, que houve da gloria d'este Sar-
to, foi que na hora que espirou, cessou hum cheiro desagradável, que
de ordinário acompanha os enfermos, e ^ua roupa, e aposentos, e subi-
tamente se trocou em outro tão suave, e cordial, que a todos consola-
(0 B. Ant. iii k'g. OrJ. Piíi-dic.
210 i.ivr.o II DA Hi.^ToniA de s. do.mint.os
va, p não ]invi;i qiicm lhe soii!)ossn dnr igiinl, ou semelhante em todos
os da tei-ra. O se<iiiiido íbi o que deixamos contado na vida do Santo
Frei Domingos doCnbo, qne por isso não repetimos aqui (*). Também se
teve por cousa n^ui cerla o que contava Frei André o Medico., que liimi
tempo fora seu companlieii'o. Dezia elle que o Santo lhe aparecera com
semhrante sobre maneira fermoso, e cheio de luz, vestido de humas
roupas como do neve na alvura : e porque Frei André se espantava do
o ver, lhe dissera. Vivo estou Frei André, não vos enganeis, nem cui-
deis que sou morto. Que a esta hora deixo Santarém, e me vou por
essas aideas a pregar. Ficou Fr-ei André entendendo que o Santo des-
pois de o certiíicnr de sua gloria, lhe quiz apontar em alguma remissão
de que era notado no olTicio da pregação, e fazer-llie cortezammente na
morte a lembrança, que por ventura lhe fazia muitas vezes em vida com
severidade.
Soou n'um momento por toda a vi Ha o falecimento do Santo, e po-
demos dizer, que não houve homem que n'aquelle dia faltasse na nossa
Igreja. Ou fosse o amor, e benefícios com que o Santo sabia obrigar a
todos, ou a dòr da perda de hum tal vizinho, e pai da pátria; que muito
he pêra sintir ausentar-se-nos hum Santo da terra. Anticiparão-se os Reli-
giosos no oflicio, e enterro, respeito da solemnidade do dia, e com re-
ceio do que logo virão. Porque tanto que acabada a Missa, poserão mão
no ataúde pêra o levarem ao cemitério, espertou-se o amor, e saudade
n.) povo: procuravão todos chegar a vel-o, e tocai -o, e ficar com alguma
memoria sua: e forão-lhe cortando os hábitos com tanta pressa, e alvo-
roço, que a não se estorvar, ficara o corpo com indecencia. Mas sendo
soterrado, persuadio a devação aos que não poderão alcançar parte no
vestido, que tão grande Santo também communicaria virtude ás taboas
em que ali viera. Foi cousa de ver a competência com que o ataúde foi
desfeito, o a miudeza com que se rcpartio, cuidando cada hum que le-
vava pêra casa remédio, e saúde. E mostrou-o a experiência. ííuma po-
bre velha muito aífeiçoada ao Santo, não pode haver mais que humas
mui pequenas lascas do ataúde, que por miúdas ficarão polo chão, e
huma pouca de terra da cova, que ainda do Santo não tinha mais que
o nome: e com estas peças se foi recolhendo pêra casa tão rica, e con-
tente, como os que melhor quinhão houverão. De caminho quiz ver huma
vizinha sua atribulada com hum filho minino, que tinha a cabeça aberta
(.) L. % c. 12.
PARTICULAR DO RELNO DE POP.TlT.At. VÚ
de hiima perigosa (ciida havida por desastre. Cliainava-sc o Pai Miguei
Grainho. Entrando, soute que llie linlião os Cirurgiaens feito novas fe-
ridas, e tirado ossos, com o que elles chamão alegrar o casco; c despois
lhe sobreviera luim fluxo de sangue aos narizes tão importuno, que não
havia estancal-o: e ja o da vão, e choravão por morto. Acudio-lhe a l)oa
velha com o remédio que pêra si trazia do Convento, e a mãi do ferido
reccbeo a dadiva com fé: e pondo tudo sobre a cabeça do filho, vio effeito
santo, e maravilhoso. Porque de repente cessou a corrente do sangue,
com que foi dado por Uvre de perigo, c pouco despois veio ao Convento
são, ofíerecer-se, e dar graças ao Santo.
Mas não deu menos occasião de louvar a Deos outro successo cla-
ramente milagroso, e também do mesmo dia. Juntando-se toda a villa
no Convento à celebração das honras, como dissemos, com tal frequên-
cia, que parecia não faltar vizinho nenhum : houve hum tão amigo do
qne á sna fazenda, e gosto pertencia, e tão descuidado do que devia á
solemnidade da gloriosa Âscenção. que se poz pola manhã a cavallo, e
se foi polo termo a negocear o que sem perigo pudera fazer no dia se-
guinte, ou n'outro menos festival. Mas não tardou a ira, ou a miseri-
córdia Divina, (que huma cousa, e outra se descubrio no successo), em
acudir por sua honra, e pola de seu servo. No meio do negocio, ou do
passatempo, em que entendia Martim Gonçalves Guecha, que assi se
chamava o pouco escrupuloso fazendeiro, foi salteado de hum accidenie
de gargantíi, (he seu nome entre gs médicos esquinencia), com dores agu-
das, e vehementes, e tal aperto da respiração, que se não podia fartar
de fôlego. E o pior era, que crecião por momentos as dores, c a opres-
são interior: e assentou consigo, que se o mal durava, não podia es-
capar de afogado. Mas logo foi aparecendo novo trabalho de hum tu-
mor grande por toda a garganta pola parte de fura, que começava a des-
cer pcra o peito. Então começou também entrar em si, e cair na conta
da irreverência que usara contra o Santo dia, e contra o Santo defunto.
Lançou-se em terra arrependendo-se , e reprendendo-se : e quanto as
dores erão mais intensas, que como ásinte não cessavão de apertar os
cordéis do tormento, mais merecedor se julgava d"elias. N"este passo
acudio a misericórdia do Senhor, inspirando-Ihe que se valesse do Santo,
pêra remédio da offensa feita â Festa, e ao Santo. Como não ignorava
as maravilhas que o Santo ílzera em vida, nem duvidava que morto ti-
nha estado, c merecimentos de as poder fazer maiores, ajimtou á com-
2i8 • UVRO II T)A HláTOrtlA DK S. DO.M].\COS
punrrio Imni voto de se ir confessar sou erro, se l!ie dava remédio, na
sua casa, o diante dos seus Frades: e como penitenciado de culpas
graves apparecer com unia vela na mão. Logo colliendo hum junco cin-
gio com ei!e a garganta, que já com a inchação tinha extraordinária
grossu!'a, e [irijmeíeo com ingrimas que tal seria a medida da vela. Era
o dia de (riumtbs, e de não haver ninguém descontente. Acabando de
fazer o voto, vio logo os eiTeitos de sua contrição, e do poder do Santo.
Tornou todo o mal atrás poios mesmos passos que viera: e porque caísse
de verdade em que huma, c outra cousa tinha origem do. Ceo, cessou
a dôr, desinchou o peito, e garganta, faríon-se de ar, não se fartando
de dar graças a Deos, e ao Santo, de se ver tão milagrosamente restituí-
do á saúde. E no dia seguinte cum{»rio sua promessa em tudo.
Por maravilha, que também cahio quasi no felice transito, ajuntare-
mos a presente. Tinha visitado ao Santo algumas vezes na ultima doença
o Alcaide mor da villa Mem Peres, fidalgo honrado, e muito seu afíei-
çoado: e tornou de huma muito desconsolado pêra casa, por entender
(jue ia acabando a vida, não polo que a doença ameaçava, mas porque
o m.esmo doente lh'o certificara. Desapega-se mal nossa natureza do que
i\n\di. P,^ão sofria o fidalgo haver-lhe de faltar tão bom amigo, mas per-
siiadido do que temia, dezia-lhe com sintimento. Pois meu Padre Frei
Gil, e que ha de ser de Mem Peres sem vós? Que vida ha de ser a mi-
nlia, quando entrar n'esla casa, e não vos achar? Quem como vos me
lia de aconselliar, guiar, e consolar? Vós ireis pêra Deos como dese-
jais, eu ficarei morrendo por me ir trás vós. Consoiava-o o Santo com
iium novo género de promessa. Dezia-lhe que fiasse d'elle, que despois
de morto lhe havia de fazer mais serviço, do que fazia vivendo: c em
penhor d'esta verdade lhe prometia, que se alguma hora chamasse por
elle com viva confiança em Deus, o havia de achar á sua ilharga vivo,
e não morto. Eis que a poucos dias despois de falecido, adoece Mem
Peres, e foi o mal em tanto crocimento, que os Médicos desconfiarão, e
declararão, que era tempo de tratar da alma. Mas não houve que fazer,
senão virar pêra a parede, como outro Ezechias, e buscar soccorro do
Ceo(*). Lembrou-se das promessas do seu Santo, e fazia conta que erão
duas: huma, que lhe havia de ser de proveito despois de morto: outra
que o havia de achar vivo, se por elle chamasse. Pois, meu Santo, de-
zia o enfermo, se algum bem me haveis de fazer, pêra quando mo guar-
(^ 4. HPg. 20.
PARTlCri AP. DO RF.INO DF. PORTUGAL • 249
dais? Se esporais necessidade grande, nunca a íive maior. Se n"esta, que
me tem em braços com a morte, me não acudis, nem vos acho vivo,
como ,me promc-ttcstcs; pêra quando hei de esperar, que me aproveiiem
vossos poderes? No meio tfesta aíílicçrio se llie poz o Santo dianíc ale-
gre, e resplandecente, e vestido de roupas de gloria, dizendo: Eis-mo
aqui Mem Peres. Não desconfieis, que Deos lie com vosco. EHe vos dará
saúde, e logo. As palavras dos Santos são juntamente obras. Desapa-
receo o Santo, e a doença juntamente com elle : e ficou tão são, e as
forças tão inteiras, que estando no dia atrás sentenciado á miorte poios
médicos, no seguinte visitou a sepultura do Santo, e em sinal de saúde
perfeita, jantou com os Frades, do peixe da Communidade. os quais oii-
vindo-lhe o caso, notavão antes do milagre duas profecias do Santo, c
no milagre cumprimenlo dambas: visíu como lhe promeltera duas cou-
sas, e ambas cumprir neíle.
CAPITULO XXX
Conto resuscHarão por orações feitas ao Santo Ires mortos:
e forão licrcs do Demónio quatro pessoas.
Bem lie que, pois temos occasião, comecemos este Capitulo polas
terras em que o Santo naceo, já que o precedente nos levou todo a em
que morreo. Morava no lugar deAlafÍjes, vizinho aBouzella, donaTareja
Martins, prima do Santo, molher de Rodrigo Affonso, de sobrenome Ca-
pão, e criava cm sua casa hum minino por nome Pedro, filho de Lou-
renço AíTonso Capão seu cunhado, com amor de filho próprio, e como
adoptivo, por carecer dos naturais. Ha no lugar liumas fontes de agoas
quentes medicinais, e tanques junto delias pêra os banhos, com que se
curão varias doenças. Nestes he fama que foi curado el-Rei dom Affonso
Anriques, sendo minino, da aleijão com que naceo. Succedeo que aii-
dando o minino Pedro brincando cora outro junto do tanque, forão am-
bos em tombos polas escadas á agoa. O tanque tem altura, elles mini-
nos: quando acudirão os que se acharão perto, não derão fé mais, que
de hum que tirarão meio afogado, e tal que foi necessário pendurarem-
n'o poios pés pêra vomitar a muita agoa que tinha bebido. Faltava o
Pedro: como pode falar o companheiro, que o era continuo «eu, per-
guntarão-lhe por elle: respondeo que, quando cairá na agoa, ambts liião
250 • MVnO II DA Hlí^TORIA DE S. DOMINGOS
juntos, e pegados ; e não sabia mais. Ficoii-se entendendo o que era,
que estaria afogado dentro do tanque, e já cozido, segundo a calidade,
e quentura da agoa, que em breve espaço coze ovos, e péla galiniias, c
patos: e segundo a bora em que cairá. Fez-se diligencia, a agoa he clara,
apareceo morto no fundo. Lançarão-se a elle, e conta a bistoria, que foi
quem o tirou, bum Sacerdote nobre, filbo de dom Julião. Posto fora não
só vinba morto, mas já meio cozido com a tez do rosto denegrida, e
todo o corpo incbado, e azulado. Acudio dona Tareja: quando o vio tal,
foi o pranto mais que de mãi. Despnis de muitas lastimas, e lagrimas,
lembrada do parente Santo tornou sobre si, e com devação igual á dor
dezia posta de joelhos. Ab bom Padre Frei Gil, se vós sois Santo, e
amado de Deos, como todos criamos que o éreis, quando entre nós vivieis,
tornai-me esta criatura, que por filho criava, e como filho amava: que
bem creio, e confio que, se vós quiserdes, m'o podeis dar vivo, e são.
Não são vagarosas as dadivas do Ceo. Acabava de pronunciar as ultimas
palavras, se não quando contra toda ordem, e rezão natural, começa o
minino a abrir a boca, e vazar agoa, e pouco despois abre os olhos, e com
voz clara, e distinta chamou pola mãi, e por sua ama. Foi o pasmo em
todos não menor, que o prazer da mãi. E o pai a brados o offereceo
logo á Ordem de S. Domingos. E despois, quando teve idade, o levou a
Santarém a presental-o diante das relíquias do santo parente, como cousa
sua por novo titulo; e ao Prior da casa pêra lhe lançar o habito, (dizem
as memorias, que era Prior Frei Domingos de Caieruega chegado em snn-
gue a nosso Santo Patriarcha.) Autenticou-se o caso por autos públicos:
forão testimunhas dona Tareja, e dona Maria Serram mãi do moço: e o
clérigo que o tirou, e seu pai dom Julião que o teve nos braços, e mui-
tos outros. O moço, em quanto viveo, ficou sempre amarelo, e Sem cor
de rosto : permissão Divina pêra perpetuo testimunho do milagre.
Mas, se neste fez alguma força ao Santo a carne, e o sangue, dire-
mos logo de outros dous resuscitados, em que só verdadeira devação
teve lugar. Em Lisboa, na freguezia de Santa Justa, ftileceo hum mance-
bo nobre de doença prolongada. Pranteavão-no os pais, e parentes, e so-
bre todos huma avó que o tinha por lume dos seus olhos. Não era hoi'a
de o darem á terra, quando acabou de espirar, porque anoitecia. Fica-
rão-no acompanhando, e carpindo toda a noite. Quando foi meia noite,
começou a tocar o sino de S. Domingos a Matinas : e aquelle som fez
lembrança a alguns peia irem consigo discorrendo polo cuidado com que
PARTICn.AR no REINO DE PORTUGAL 2.jl
OS Religiosos se levaiitavão naquella hora: c fazião violência á natureza
pêra cantarem louvores a Deos: que poios mesmos passos correia S.
Frei Gil, e se fizera Santo, c milagroso, c tão celebre, como então an-
dava na terra : e assentou-se entre todos mandarem pedir ao Convento
liuma relíquia sua. Yierão com ella os P>ades, poserão-na soiíre o de-
funto, e rezando algumas orações, pareceo (jue fizera o corpo movimento.
Acudirão aver-lhe o rosto: aclião sembrante, c pulso de quem tornava â
vida, e com espanto de todos tornou logo, não só vivo, mas tamljem
são. Assi empregarão em sacrificios de graças o que tinhão aparelhado
pêra mortuorio.
Na villa de Estremoz acabava de dar a alma ao Criador hum man-
cebo mirrado de huma trabalhosa infirmidade. Era único em casa. Des^
pois de muito chorado tratou-se de morlalha, sepultura, e exéquias. En-
trou a acompanhar a mãi, e parentas huma dona principal do lugar, cha-
mada dona Anna: e trazendo consigo huma relíquia do Santo, que em
grande estima tinha, e guardava, chegou-se ao defunto, e chamando era
seu coração com muita confiança polo Santo, poz-lha sobro os peitos,
Milagroso eíTeito : como se com ella lhe trouxera vida. e aima, tornou,
viveo, sarou, levantou-se, e dentro de poucos dias foi a Santarém visi-
tar o Santo, e contava aos Padres que sua alma desatada do corpo vira
o venerável Padre vestido em seu habito Dominico, e elle lhe mandara
que tornasse a animar aquelles membros já frios, e defuntos : e polo be-
neficio recebido lhe hia render as graças.
Succedeo a huma pobre molher em Alanquer cair do hum eirado
tão alto, que liuns homens que acertarão vel-a, quando vinha poios ares,
a davão por feita pedaços, não só por morta. Chegando a ella achão-na
sam, e salva, e sem nenhuma lesão. Pasmados de a ver com vida, de-
zia-lhes a molher alegremente, que logo em se sinlindo cair, chamara
polo seu Santo Frei Gil em sua alma, e elle lhe valera : e dezia seu
Santo, porque o mesmo favor lhe fizera em tempos atrás na doença de
hum anno, onde cada dia tinha a morte presente: mas então fora sarar,
agora resusciíar.
A estes quatro livres das leis da morte, ajuntaremos outros quatro
livres das afrontas, e insultos do Demónio, que despois que por permis-
sivo Diviuca tem licença, (sem ella não pôde nada), pêra nos perseguir, he
mais temeroso por feio, que a mesiua morte: e mais prejudicial por
:2o2 i.ivno II DA iiisTonrv de s. domingo-;
maligno, e polo grande ódio que tem aos homens, que todo o mal do
mundo.
Seis annos havia que era atormentada de grandes tremores de cora-
ção Maria Sucira molher pobre, moradora em Santarém, na freguezia
de Santo Estevão. E já se sabia que não procedião de causa natural.
Aparecera-lhe o demónio duas vezes : e tal visía fez eíTeitos conformes.
Ficarão-lhe além do mal do coração huns estremecimentos de todo o
corpo, que lhe acabavão a vida com tormento. E o enemigo não cessa-
va de a perseguir com infernais tentações, que acabasse de sair de huma
vida cançada, penosa, e triste; e pois tinha mãos, não esperasse outro
meio, que não tinha que esperar de Deos. Outras vezes se persuadia que
tinha o Demónio dentro nas entranhas, e que lh"as arrancava de seu lu-
gar. A. isto ajuntava dar-lhe com mão invisível cruéis bofetadas no rosto,
que a fazião ir fogindo como desasizada tora da casa. Assi andava a po-
bre sem cor, nem figura de criatura humana, tão avexada destes traba-
lhos, como do medo delles, que era guerra por si, quando cessavão.
Confessava-a Frei André da Cruz varão espiritual : fazia todas as diligen-
cias pola quietar, mas perdia tempo, e trabalho. Ei-a grande a força do
enemigo : a molher, de seu fraca, ajudava-se pouco dos bons conselhos.
Não havia hum mez que o Santo era passado a melhor vida : amiudavão
milagres em sua sepultura. Mandou-lhe o (Confessor que continuasse na
Igreja, e pedisse remédio ao Santo. Ao terceiro dia, que tinha começado
a devação, estando levemente adormecida, reprcsentou-se-lhe que via o
Santo grandemente fermoso em vestido, e sembrante, e parecía-lhe que,
se chegava a elle com humildade, e tomando-lhe a borda da capa, pu-
nha-a srobre a cabeça, o dezia-lhe: líavei piedade de mi, Padre santo, li-
vrai-me das affronías deste enemigo. E o Santo hie respondia. Vai-te
embora, filha, busca-me no lugar de minha sepultura, que lá me acha-
rás. Acordou a afíligida, com[)rou candeas, foi com ellas onde era man-
dada. He cousa certa, que desdaquella hora nunca mais se lhe alreveo
o enemigo.
Domingos João, que em Coimbra tinha a seu cargo arrecadar as ren-
das del-Rei, fora em vida do Santo particular amigo, e devoto seu, e á
sua conta fazia muitas caridades aos nossos Frades, e ao Convento. Co-
mo sabia muito delle, quiz íicar com huma peça sua, e usou desta ma-
nha : mandou-lhe fazer huma capa nova, e pedio-lhc que a trocasse com
a que trazia bem usada, e velha. Pareceo ao Santo que era receber es-
PAHTICULAR DO REI.NO DE I'ORTL'GAL 253
molla, acto de pobreza, e humildade, não fez diíTiculdade. D"ahi a mui-
tos annos aconíeceo entrar o Demónio em hum Domingos Pires seu vi-
zinho, e alormental-o tão tei'ribehnente que fazia grande lastima a vida
que passava. Vindo á noticia de Domingos João hum dia, que o pobre
mais tiranizado estava, lançou-lhe a capa do Santo ás costas. Foi effeito
nunca cuidado. Raivando, e bramindo se sahio do corpo, e nunca mais
se atreveo a tornar a elle.
A hum mancebo chamado Abiil, de obrigação de Fernão Fernandes
liomem principal de Thomar, tomou hum mal repentino, e não enten-
dido dos médicos: o qual llie dava com huma dor de coração, e das
entranhas tão desmedida, que arrebentava em fúria, e fernesis: e de
maneira forcejava, que muitos homens juntos o não podião ter, nem to-
Iher-lhe desfazer, e espedaçar quanto podia alcançar com. os dentes, tan-
to em si, como em outrem,. E não havia remédio pêra llie defenderem
comer-se aos bocados, se não era leiído-o alado em aspa de pés, e mãos,
e amarrando-lhe até a cabeça. Neste marlyrio vivia o pol.ire, e confessa-
va já que era espirito mão, não humor, quem l!)"o causava. Acertou de
entrar por casa dom Lourenço de Thomar, Procurador dos cavaleiros
Templários, que ali tinhão seu Convento, homem religioso, e de auto-
ridade. E notando o que passava, lançou mão ao seio, e tirou delle hum
papel, que lhe meíeo nos peitos. Foi caso de pasmar. Porque repentina-
mente de tigre furioso tornou hum cordeiro, e dezia com mansidão. Ó
bom Deos! ó bom Senhor! eu estou são. E acrecenlava falando com dom
Lourenço: De verdade senhor, que ou vossas mãos tem alguma grande
virtude secreta: ou trazeis convosco cousa que a tenha. Porque em me
tocando essa mão, fiquei livre de huma oppressão atrocíssima. Dom Lou-
renço derramando lagiimas de prazer polo eíTeito que via, declarou en-
tão aos circunstantes que nacia a maravilha da terra da sepultura de Santo
Frei Gil, que consigo trazia. E porque ficasse mais patente o milagre,
permittio o Senhor, que, despois de solto das prisões, o acometesse de
novo o enemigo apertando-lhe com mão invisível huma perna, e joelho
tão duramente, que o pol)re voz em grita pedia que lhe acudissem com
a terra santa ao lugar, se não que morria. Aplicou-se-lhe, e no m.esmo
ponto cessou a dor, e fogio quem lira dava. Terceira vez, indo hum dia
pêra entrar em casa, deu com elle de rosto, que o esperava da banda
de dentro cercado de hum numero infinito de Demónios, que lhe tinhão
a porta tomada. Ficou assombrado, e não se atrevia a entrar, valeo-se
:25i LIVHO II PA HISTOUIA DK S. DOMINGOS
do primeiro soccorro: lançarão-llie ao pescoço a lerra do Santo: como
a trouxe, nunca mais a enemigo teve mão contra elie.
Falta-nos o quarto dos que prometemos. Este era hum morozinho
fillio de Silvestre Peres, Taballião de Santarém, e de sua molher Domin-
gas Peres. Sendo muito amiúde acometido, e maltratado do Demónio,
lançou-lhe a mãi ao pescoço huma nomina com terra do Santo: foi de-
fensivo com que ficou de todo livre. A cabo de hum anno torna o mal-
dito a fazer-lhe guerra. Sentidos os pais buscarão-lhe o pescoço; con-
fessou, que, dando-se })or são, largara a nomina. Armarão-no com outra,
e bastou pêra ficar toda a vida em paz.
CAPITULO XXXI
Como se converleo hum Mouro, c forão curadas algumas pessoas
de (jrandes males por meio de relíquias do Sanlo.
Aos casos milagrosos, que temos pêra este Capitulo, fará principio
hum, em que grandemente resplandece a misericórdia de nosso bom
Deos , e se offerece matéria de consolação pêra todo animo fiel, e
pio. Dona Maria Bernardes viuva, moradora em Santarém, dona no-
bre por geração, e virtude, tinha hum escravo Mouro, que desejava
ver bauiizado por lhe ganhar a alma, e í)orque via nelle tão boas partes
naturais, que lhe fazia lastima haver-se de perder. E he de considerar,
que nenhuma rezão bastava pêra o persuadir. Tão cego, e emperrado
vivia com Mafamede, que, quando se via convencido, porque não podia
fazer mudo a quem o convencia, fazia-se a si surdo polo não ouvir, me-
tendo os dedos nos ouvidos. Vindo a adoecer de huma febre de má ca-
lidade, tinha a senhora de seu hum escapulário do Santo, que muito esti-
mava ; poz-lho á cabeceira por sua mão com a fé, que lho fazia estimar,
e piedade, que havia do escravo, dizendo, que fiava na santidade, de cuja
fora aqucila peça, que ou havia de ter saúde no corpo vivendo, ou na
alma morrendo Christão. Assi o deixou huma tarde, e foi-se ao Convento
a Vésperas. Entre tanto obrou a santa relíquia invisivelmente raro, e
visto effeito de Pregador. Gritou o Mouro que lhe chamassem sua se-
nhora, que logo logo se queria l)autizar, que não houvesse tardança.
Acudirão dom Bernardo, e Giraldo Soares, Lourenço Mendes, e dona
CaLnina, todos irmãos de drma Maria. Juntarão-se de fora dona Gontjna,
1
PAUTICLLAU DO lUil.NO ÍH: I'Oim GAL 2Jj5
e Orraca Gil vizínlias: foi grande o alvoroço, e contentamento. Recebeo
a agoa do santo Bautismo com iiiima fé tão viva, como quem merecera
ter por pregador o Espirito Santo, que o provcnio sobrenaturalmente.
Foi-se agravando a doença, e elle crecia na fé. Pareceo bem dar-se-Uio
o Santissimo Sacramento por viatico : e foi bem a tempo o Divino so-
corro. Porque começou a ser tentado com velicmencia, mostrando-se-lhe
á vista muitos Demónios, contra os quais usava das armas da Cruz o no-
vo soldado d'aquella celestial bandeira, persinando-se muitas vezes, e
pedindo a todos que o ajudassem. No meio d'este combate íicou de re-
pente suspenso, fazendo geitos no rosto, liora de alegria, e bumildade,
hora de admiração, e como quem via, e ouvia cousas de que muito se
agradava. Passado hum espaço, contou que estando a casa cheia de gente
disforme, e medonha, subitamente entrara huma luz como de muitas to-
chas juntas, que a lizera fogir : e logo vira a Christo Nosso Salvador
com a Virgem bemdita sua Mãi, que o animavão contra os medos da
companhia inferna!. E despois entrara Gonçalo Mendes seu senhor, e ma-
rido de dona Maiia Bernardes acompanhado de huma íillta, defuntos am-
bos, e ambos cercados de claridade lhe dezião que se fosse cora elles. E
o mesmo lhe dezia também um Frade Dominico, que via muito resplan-
decente e formoso. Referia isto o bemavcnturado cheio de consolação, e
espanto, e assi voou aos gozos eternos. Ninguém houve que duvidasse
que todo este bem tevera origem do escapulário do Santo, e que elle
era o Frade, que o defunto vira.
Sobre cousas tão religiosas como esta, e muitas que temos contado,
parecia supérfluo despendermos tempo, e papel, em ajuntar outras, que
não são de tanta maravilha, nem podem dar mais honra ao Santo. Com
tudo, porque seria fazer injuria aos que antes de nòs escreverão, se dei-
xássemos de apontar os casos que elles não desprezarão por menos im-
portantes, diremos mais alguns com a maior brevidade que pudermos.
Huma molher rica de Torres novas teve huma postema no rosto, de
humor tão venenoso, que lhe veio a lavrar, e comer toda huma queixada
em forma que já lhe descobria os dentes, e nelles, e na boca hia fazendo
tal impressão, que a mesma enferma não podia sofrer o hálito que d"ella
procedia. Foi-se a Santarém pêra se valer de médicos, e cirurgiães de
mais nomo. Ahi visitou huma emparedada de fama em virtude pêra lho
pedir suas orações. Esta lhe aconselhou que buscasse só remédios do
Ceo, en.comcndando-se a Fr. Gil. Obedeceo, foi-se ao Convento, poz a
21)6 LIVRO II DA HISTOIUA DE S. DOMINGOS
íace fistulada soljre a sepultura do Santo com devação, e lagrimas, e
polvorizou a chaga com terra d'ella. Começou logo a sintir melhoria : e
ao quarto dia se achou de todo são, sem lhe ficar no rosto mais sinal
que huuias leves costuras. O Mestre Frei André de Resende, seguindo a
Frei Pedro Paes, hum dos escriptores antigos da vida do Santo, diz que
esta molher era de Villa nova de Yermoim. Possível he que fossem dous
milagres distintos.
Outra semelhante postema naceo a huma moça de serviço, que em
sua casa tinha hum homem nobre de Valença de Alcântara, por nome
João Peres. Tevera principio entre as cspadoas, foi-lhe subindo, e to-
mando pescoço, e garganta com dureza, e inflammação, que dava sinais
mortaes, porque lhe tolhia a respiração, e a faia. Chamão os médicos a
este género de postcmas cai'bunculos, e enlrazes : são de má calidade,
porque se gerão de humor colérico, e adusto, e por essa causa em tem-
pos de contagião são havidas por tão mortíferas., como as nacidas ordi-
nárias da peste. Havendo já três dias que não falava, e a postema sem-
pre mais rebelde, e sem sinal de suporação, lenibrou-se o Amo dos mi-
lagres de S. Frei Gil, de que no mesmo lugar havia grande fama por
relação de parentes, que a mesma enferma tinha em Santarém ; e íez vo-
to, se lhe dava saúde, de ir com ella visitar sua sepultura. Foi cousa
vista, e certa, que trás o voto saltou por si a escara, e vasou grande
copia de matéria, com que logo desafogou a garganta, e podo respirar,
e falar livremente, e em breve foi sasn.
Do mesmo mal tinha em Santarém hum Mendo João sua molher tão
chegada ao esti-emo da vida, que não tratava já mais que de remédios
da alma. Quando a vio n'este estado, foi correndo ao Convento : toma
cm hum lenço hurna pouca da terra do Santo : assí atada lha chegou ao
pescoço, onde tinha a nacída. Cessou logo a dor, que era mui veliemen-
te, e abaixou, e resolvco-se a postema, e ficou a enferma de todo livre.
Na mesma vilia era moradora, mas de maior mal atormentada, huma
Mor Paes. Porque linha deniro na boca hum cancro sem liie valer mezi-
iiiia, nem a esperar da terra. Sonhou huma noite que hia á sepultura do
Santo, e com terra, que d'clla tomava, alcançava saúde. Tanto que luzio
a m.anham fez o sonho verdadeiro em tudo : foi á cova, tomou terra,
aplicou-a ao mal, c ficou sam.
A Martíin João, Clérigo do Bispado do Porto, se lhe abrio huma chaga
no braço esquerdo de hum humor tão corrosivo, (cliamão-lhe os Cirur-
PARTICILAR no REINO DE POUTLT.AL %n
giães fogo de Sanlo Antão), que lhe tinha lavrado ahi' o cotovelo, comida
a carne, descubertas as canas, e era estado que de mão, e braço não linha
já mais que ossos secos. E porque se entendia que o dano não pararia
no cotovelo, era conselho, fe o pobre Clérigo estava já persuadido;, dei-
xar coilar o l»i\aco por salvar a vida. Xeste ponlu lhe lembrarão amigos
que se encomendasse ao Sanío Frei Gil, cujas maravilhas andavão na
boca de todos. Aceitou o conselho, offereceo-se de coração ao Santo com
voto de visitar sua casa, se lhe dava remédio. He cousa averiguada que
logo parou o mal, e acudio a natureza a cul)rir de nova carne as canas,
e em pouco tempo não houve diíTerença de hum braço a outro.
Quatro mezes havia que hum filho do procurador do nosso Convénio
de Santarém tinha na cabeça huma grande inchação, sem haver remédio
que lha moilificasse, ou resolvesse. E dezião os médicos que procedia
de fígado abrazado, e corrupto: e assi se bia o moço consumindo. Acu-
dio o pai ao Santo, encomendou-lbo com lagrimas, e amor de pai, trouxe
da sua terra, lançou-lha sobre a cabeça. Era isto em estado que o moço
estava já em artigo de morte, olhos fechados, sem fala. No mesmo ponto
que lhe tocou a terra espertou gritando, que hum Frade de S. Domingos
lhe abrira a cabeça. Virão logo correr-lhe delia hum rio de matéria co-
mo de postema madura, estando até aquella hora rebelde, e desespera-
da ; e em poucos dias convaleceo de todo.
CAPITULO XXXÍI
I)e muitas e varias doenças que terevão milagrosa cura, encomenâaiido-se
os enfermos ao Sanío, ov usando de suas relíquias.
He o mal de hydropesia poucas vezes curavel. E em gente pobre
quasi todos os males tomão esta calidade. Estava enfermo delia, havia
dous annos, Martim Domingues Barqueiro de Santarém, tinha jterdido a
fazenda em curas, e não alcançado cura. Despois de maríyrizado com
fontes, e chagas, que lhe abrirão pêra lhe vazarem a agoa, e tudo sem
proveito, foi-se hum dia sobre hum bordão visitar o sepulcro do Santo.
Tornando cançado do caminho, e da iníirmidade adormeceo, e começou
a sonhar, que bia pêra hum lugar do termo afadigado de se não poder
ter nas pernas, e encontrava com o Santo, que bem conhecia. Alegre
com tão bom encontro lançava-si-'-llie aos pés, pedia-lhe que lhe desse
VOL. I. 17
258 LIVHO II DA HISTUKIA DK íi. DOMINGOS
remédio, C(Jino dava a todos. E o Santo lhe perguntava que doenra ti-
nlia, e pondo-lhe as mãos, onde a força delia o trazia mais inchado, de-
zia. Tornai-vos pêra casa, que já ides são. Acordou com hum leve acci-
dente de dissenleria, que bastou pêra o desinchar de lodo, e cobrar
saúde.
A outro homem da mesma viila deu no rosto, e cabeça huma ex-
traordinária inchação, e hia-lhe crecerido até decer ao peito, e garganta,
com tal disformidade, que quasi se lhe não enxergavão olhos nem feição
de rosto. Acudio ao Santo, poserão-lhe sobre a cabeça hum retalho do
seu escsqiuiario.' Logo sem haver dilação de tempo em meio, e á vista
de muitas pessoas, se lhe abrio huma fonte debaixo da barba, por onde
evacuou tanto humor, que ficou enxuto, e são, como quando o mais era.
Payo Nunes, natural de Santarém, sendo homem que vivia de seu
trabalho, veio a ter por desastre liuma disforme quebradura de ambas
as virilhas. Como deixou de ganhar jornais polo impedimento do mal,
cahio em estrema pobreza, (doença maior que a prim.eira), e pêra pedir
o remédio polas portas determinou mudar terra, onde não fosse conhe-
cido. Mas quiz primeiro vit^iíar o Santo, e representai'-lhe sua neci ssida-
de, e resolução : foi ao Convento, chorou, lasíimou-se, pedio misericór-
dia, e trouxe consigo da terra da sepultura. Logo na noite seguinte, es-
tando esperto, e sem dormir, vio cliegar-se o Santo a elle, e por-llse as
mãos com tanta força, que, sintindo gravíssima dor, gritou, ai de mi, Pa-
dre Frei Gil, que me mataste. O Santo lhe respondeo que não temesse,
que ficava são. E assi foi.
Do mesmo mal alcançarão saúde por diílerenles vias Domingos Mar-
tins de Coimbra, e Raimundo, Francez dcMompelher. O Domingos Mar-
tins padecia grandes tormentos secretos, não querendo níanifestar-se a
médicos, ou por honesto, ou por corrido da enfermidade. Yendo-se em
huma conjuncção de Lua apertado de hum accidente de extraordinárias
dores, nem isso bastou pêra se sojeiíar a mezinhas humanas : falou com
o Santo em sua airna, dizendo que a elle só queria por seu Medico, a
elle remetia seu remédio com voto que visitaria sua casa, se lho dava.
Não tardou o Santo em lhe fazer conhecer quanto acertara : repentina-
mente se achou sem dores, e com as roturas soldadas. O Francez cobi-
çoso de saúde, mais que pejado da deformidade, sairá de sua terra pêra
Çaragoça de Aragão ;í fama de Mestres, que ali curavão semelhantes tra-
balhos. Gastou com ellcs sua pobreza ; abri]'ão-no duas vezes, coserão-
PAllTiCl I.All DO [\i:iXO nK POlíTlGAL 2'iO
no: despois de fortes inarlyrios foi a cura tão pouco duravfl, que a pou-
cas jornadas despois de saido de Çaragoça pêra Santiago feito Romeiro,
como caminhava a pé, tornou ao primeiro estado : e continuando todavia
o caminho, abrio segunda rotura, e ficou com duas. Assi atormentado
acabou sua romaria, e fazendo conta que em Lisboa acharia embarcação
que oposessc junto de sua terra, entrou por Portugal, chegou a Santa-
rém. Ali ouvindo os milagres do Santo, foi-se ao (Convento cheio de boa
esperança. Continuando sua devação, quando veio o sexto dia, sintio-st;
aliviado notavelmente de hum pejo continuo, que sempre p acompanhava,
e parecia-lhe que n"aquelie momento, c lugar (estava diante do aliar)
crecia em forças, e alento, como quando era são, e moço. Espantado d:i
novidade, e tornando sobre si, achou que de todo ponto se lhe haviriM
cerrado, e soldado por si ambas as roturas ; e derramando lagrimas por
graças diante do Santo entrou no Convento, e contou de praça o mi-
lagre.
Hum moço nobre, filho de dona Mayor de Guimarães, foi em Santa-
rém atropelado de hum cavallo, de que ficou com hunf braço"quobiado.
Curou-se, soldarão as canas. Mas ficou-!he tal fraqueza, (jue não era se-
nhor de o dobrar, nem abrir, e fechar a mão, nem ainda bolir com/^os
dedos. Levou-o sua mãi ao Santo, atou-lhe nos braços da sua terra : foi
Deos servido, que antes de sair da Igreja meneava livremente o braço,
e movia toda a mão, e pouco despois não teve mal nenhum.
O mesmo aconteceo a Payo Nunes, que atrás nomeamos. Andava em
seu trabalho descalço, meteo-se-liic hum osso agudo pola planta do pé,
foi penetrante, apostemou, logo incliou pé, c perna, seguirão intoleráveis
dores. Lembrado do beneficio, que outra vez recebera da terra do Santo
como fica contado, mandou-a busca'-, polvorizou a chaga hunia só vez.
Não foi mais necessário pêra ficar logo são.
Frei Gil Ermiguez, el'rei Rodrigues Fernandes, ambos Frades nossos,
se derão por affogados com espinhas na garganta atravessadas, ambos
Ibrão livres com ciiamarem polo Santo. O primeiro levou a espinha no
refeitório, foi-se lançar sobre a cova do Santo orando em seu coração,
porque com a lingoa não podia, e lançava logo cubcrta de sangue. O se-
gundo teve o perigo em Obedos, era a espinha de dourada, (que ha mui-
tas na alagoa d'aquella vi lia), aUbgavase, vaieo-lhe a invocação do Sanío
com hum sinal da Cruz sobre a garganta.
Em Santarém, na fr'?gacsia d.« Mar^■il!■:l, hum minino de peil^s íiliio de
2G0 I.IVIiO II DA IIISTUIUA LK S. DOMl.NÍIOS
Domiiipíos ^Iimliós. lançou mão ile hum anel da mãi, e como os mininos
tudo levão á boca, metteo-o nella sem ser vislo : e cahio-lhe na estrei-
teza tia guela. Affogava-se, chorava, qucixava-se, tussia, ninguém enten-
dia o ({Uf! era, mais ([ue ser mal na garganta. Acndio a vizinhança, en-
trou jr.nlamente liuiiia mitllier, que dava candeas aos devotos da nossa
Igreja. Esta desenrolou depressa hum maço das <]ue trazia consigo, e
cingindo-lhc oj^escocinho, prometeo ir acender, e offerecer logo a me-
dida ao Santo. Feito o voto, sae do profundo da garganta o anel envolto
em sangue, pasmando todos, e engrandecendo o milagre na consideração
do perigo.
A Pêro Sueiro de Tancos nnceo na ponta do nariz hum género de
poslema, que os médicos chauíão Noli me iangere. Tomava-liie já todo
o rosto com hiinia fea inchação, e escara por cima. Veio a Santarém
buscar remédio a hum Cirurgião do fama, por nome Mestre Martinho,
o qual imaginando que cortado o mal na raiz, e arrancado, deixaria o
enfermo são: poz-!he o ferro, e lançou-lho destramente fora. Was enga-
nou-se, porque sobreveio nova inchação, que tomava o pescoço, e gar-
ganta, e entrava em ânsias de morte. Neste passo lhe acudio Estevão
Nunes, em cuja casa se agasalhava, com hum pedaço de túnica, que ti-
nha do Santo : e a olhos vistos amainou a inchação, aliviou a garganta,
e licou curado.
Cinco annos havia que padecia fluxo de sangue continuo huma dona
lionrada, moça, e muito rica, molher de Domingos Estevens, e com hu-
ma só doença penava em dous tormentos, hum da infirmidade nojosa
por si, e desconsolada, outro da desconfiança de poder ter íilhos, que
muito desejava, (erão moradores em Santarém, na freguesia de Marvilla.)
ílum sábado prim.eiro despois da Ascenção, em hora que se achava com
notável fraqueza causada do mal, disse-liie a mãi, que se esforçasse, e
fossem ouvir as vesparas do Santo, ponjue ao Domingo se lhe fazia no
Convento a festa. Fez o caminho encostada em duas molheres. Na Igreja
proslrou-sc em terra humilde, e devota, c atribulada : e fez voto do lhe
ie'uar toda a vida a vespara de sua festa, se lho dava saúde. Afurmava
despois, que logo na mesma tai^de sintii'a melhoria, e no dia seguinte se
achara com tão bom alento, que assiílira sem pena á Plissa, e pregação,
e de maneira ficou livre da desavcntura, em que vivia, que pêra verda-
deiro, e claro testemunho, aos nove mezes cumpridos alegrou a casa,
e o marido, e a si com hum filho macho.
PART[CULAR DO REINO DE PORTUGAL 2Gi
Esta mesma mollier lium anno despois teve hum accidente de paiie-
zia, que lhe tolheo hum l3raço. Como linlia experiência fresca do que va-
lião com o Sa;ito rogos humildes, foi-se ao Convento, chorou, rogou,
instou, tornou pêra casa não só remediada, mas sam de todo.
CAPITULO XXXIIÍ
De algumas moUures, que alcançarão remédio em partos díf^cullosos, en-
commenãando-sc ao Sanlo : € como forão curados surdos, e mudos com
a terra da sua cova.
Huma dona honrada de Coimbra, andando prenhada, deu em hum.a
hidropesia disforme, c ao parecer sem remédio, porque os que a Fisica
podia aphcar, tolhia a prenhez. Acolheo-se aos rem.edios do Ceo, buscou
buma relíquia do Santo, trouxe-a consigo, e fez voto de ir em pessoa,
ou mandar visitar sua sepultura. Não passarão três dias, que a inchação,
que a trazia feita hum monstro, se surnio, e resolveo por si, e teve saú-
de, e bom parto.
No lugar de Ceice, termo de Ourem, esteve huma molher três dias
inteiros com doi'es de parto continuas, e reduzida a tamanha fraijueza,
que as Comadres a davão por morta. Acertarão a passar pola rua ht;ns
Frades de S. Domingos de caminho pcra Thomar. Erão os gritos da po-
bre tão lastimosos, que os obrigou a caridade a perguntar a causa :
quando a soubeião, mandarão-lhe dizer, que se encomendasse a S. Frei
Gil, e tevesse por certo o soccorro do Ceo. Começou logo a chamar polo
Santo, e elle não esperou ser importunado, deu-llie alivio, e forças, e
hora boa, que a fez mãi de hum filho.
No mesmo lugar succedeo a outra semellianto trabalho em dores, e
em tempo. Foi visitada da que acabamos de contar, e advirtida, que se
valesse do Santo, como ella íizera.TouiwU o coiiSelho, e nn rn<ísnio pontn
teve remédio. Correo a fama pola terra, creceo a devação. Em apontando
a necessidade, não conhecião outro Santo: e achamos em lembrança, que
outras três molheres, postas em igual perigo, forão livres encom-indan-
do-se a elle.
Dona Maria Bernardes, de quem atrás falamos, padecia grandes do-
res em hum ouvido com inflammação, e tumor n"elle. Acudio-lhe febre
intensa, perdeo o sono, e o ouvir. Tinha remédio em casa provado com
26á LIVIM II hX HI.STOíUA DF. S. DO.Ml.\r.O>
cxiieiitriioia, ({Uv? er.'i hum eseapuiaiio do Santo, inandoa-o vir, c fez que
lho pos!\sr>oni sobre a ca!)eça. Logo na noito segiiiiile repousou. E caindo
(MB hum sono descansado, de que andava falta, sonhou que via diante
de si o .Santo, o que lhe dezia, que pozesse o ouvido soi)re huma pa-
iielia nova cheia de agoa quente, o tomando aqnehe bafo guareceria logo.
E })arecia-lhe, (juc o Santo por suas mãos lhe aphcava o mesmo remédio,
(! com elíe ahviava a dor, e desjjejava o humor. Acordou, e vio com ef-
íeiio o que o sono lhe representara. Porque cessarão as dores, a incha-
rão abaixou, iornou a ouvir, como quando era sam, e os travesseii'OS da
cama a[!arecerão tintos do sangue, e matéria envolta, que sem ella o sin-
tir, despfdio a natureza.
Domingos Munhós, também de Santarém, cuja molher também foi
curada polo Santo duas vezes, como fica contado, vivia triste, porque
lium filho rainino, que linha, de dores de cabeça veio a ficar tão profun-
damente surdo, que, se não era por acenos, nenhuma cousa entendia. A
mãi, (]ue tinha por certo o socorro no Santo pêra todo trabalho, polo que
em si exprimenta!\a, mandou-o com outros da mesma idade á sepultura
do Santo, instruídos no que liavião de fazer pêra que elle fizesse o mes-
mo, porque dV)utro modo não era possível doulrinal-o. Forão-se de com-
panhia á cova do Santo, tomavão da terra, lançavão-na sobre a cabeça,
esfrega vão com ella o rosto, e metião-na poios ouvidos. Fazia o surdinho
outro tanto. E o Santo não desprezou a devação da mui, nem a obra do
filho : e a terra, por ser sua, fez eíTeito contrario do que toda outra cos-
timia; costuma cerrar, obstruir, e ensurdecer mais, esta abrio, espertou,
aguçou, e em fim resuscitou aquelle sentido sepultado, e perdido, sem
sinal de que nunca n'elle padecera falta.
Outra molher da mesma villa vivia com grande pena, porque huma
doença larga lhe deixara nos ouvidos huns tinnidos, que a trazião total-
mente surda : e ajudava o mal huma vehemente inclinação, e apetite de
comer barro, a que não podia resistir, nem resistia. E de tal nutiimento
procedião outros males, com que o dos ouvidoc vinha a ser o menor.
Desesperada de tal vida por meios humanos, acolheo-se á Igreja, offere-
cco-se ao Santo, visitou sua sepultura. Foi logo amainando o rugido da
cabeça, e espertando o sentido do ouvir : e, o que mais espantou, tama-
n!!0 aborrecimento criou ao barro, que só a memoria d'elle lhe fazia
vómitos.
ílum mancebo em tanto estremo surdo, que nenhuma voz nem bra-
PARTICULAR DO REINO DE PORTir.AL 20?,
do, por graiulo, e mui vizinho que fosse, ouvia, alcançou inteiro remédio,
com se lançar sobre a sepultura do Santo, pôr neila os ouvidos, e nos
ouvidos a terra delia.
Poios mesmos paços guarecco outro liomem de huma postema na-
cida dentro em hum ouvido, que lhe tinha o rosto todo erisipulado, e
inflammado com tamanhas dores, que temia perder o juizo. Cobrio a ore-
lha toda da terra do Santo. ('Uaro, e nunca visto cííeito) fogío o humor
nocivo do lugar, como se o lançarão com a mão, e á força, e foi fazer
defluxão debaixo de hum braço : onde madurou logo, e com huma leve
picada de lanceta descarregou a natureza.
Aconteceo em Santarém a huma molher moça ficar muda de hum
sobresalto : e nem hum grito, nem hum gemido podia dar. E entendia-
se-lhe que padecia grandes tormentos interiores, porque cruzava os bra-
ços, apertava, e Irosia as mãos, lançava-se em terra, e espojava-se nella
como desasizada. Poserão-lbe da terra do Santo sobre a cabeça, derão-
Iha a beber em agoa, tornou-lhe a fala, como quando mais solta, e mais
espevitada a tinha.
Celebrava-se n'aquelles tempos a tresladação do Padre S. Domingos
na cidade de Lisl)oa com grandes festas, e concursos de povo. Passarão
huns ourives pola porta d"outro, que estava entendendo em seu officio,
rogarão-lhe que se fosse com elles á festa. Não quiz deixar o que fazia,
e continuando, (era obra de fogo), saltou-lhe huma faisca dentro n'um
olho : fez logo empola, que lhe tolhia fechal-o, seguirão dores incompor-
táveis. Insinado do desastre foi-se correndo â festa, e chegou a tempo
que estavão a meia pregação, c o Pregador a caso hia contando alguns
milagres do Santo Frei Gil. Como os ouvio, prometeo ir a pé dentro a
Santarém visitar sua sepultura, se lhe salvava o olho. Não foi necessário
mais pêra o Santo acudir logo á humildade, e contrição. Chegando a
casa sintio-se muito aliviado das dores, e sem pejo no olho. Espantado
de tão notável melhoria, em parte demasiado sensitiva, tomou hum es-
pelho, e vio o olho liinpo, e claro, e sem lezão. E conhecendo, que não
podia succeder tal sem manifesto milagre era tão curto espaço de tem-
po, porque a natureza não obra nada em instante, cheio de prazer por
se ver são, sem lembrança de comer nem beber, nem da hora que era,
(era das onze pêra o meio dia), nem do tempo já calmoso, tÍ!'on ['ola ,
porta fora, e foi-se dar cumprimento a seu voto.
2(^ LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
CAPITULO XXXIV
Como foi Ircsladíido o Santo pêra a sua Capella.
Seis annos lir.via. que o Santo gozava dos eternos bens do Ceo, con-
tinuando em todo Portugal prodigiosos casos em honra sua, â vista de
qualquer reliqnia, ou só invocação de seu nome, semelhantes em sus-
lancia, aventajados em numero aos que temos contado. E todavia nin-
guém tratava de o melhorar de lugar na terra. Estava entre os seus, de-
Ijaixo dos pés de lodos, quem entre os estranhos andava sobre as ca-
beças de todos por reputação, e fama de santidade. E era maior o sen-
timento nos devotos, porque lhe tinha lavrado capella, e tumulo sua pri-
ma, e grande devota dona Joana Dias, senhora da Atouguia, e não bastava
isto pêra se determinarem os Frades. Em íim acudio o Santo por si.
Em primeiro de Julho do anno de l^2'\ apareceo a Frei João de San-
tarém, porteiro do Convento, estando em oração, e disse-lhe, que advir-
tisse ao Prior, e mais Religiosos, que era tempo, e Deos o queria, que
tirassem seu corpo do sitio humilde, em que jazia, pêra onde ficasse
nos olhos do povo, que o amava, e estimava. Fez o Porteiro sua embai-
xada, e foi-lhe ci'ida, porque sua pessoa, e viitude a acreditavão. Mas
ofíerecião-se inconvenientes fundados em humildade, e ânimos desinte-
ressados, que á vista parecião bastantes pêra impedirem a obra : e so-
l)resteve por então. Passarão dias: fez o Santo segunda lembrança ao
Prior, sem usar de meio doutrem: disse-lhe claramente Imma noite, que
effeituasse o que polo terceiro lhe significara. Não se atreveo o Prior a
escrupulear mais. Pi^égou no Domingo seguinte, avisou ao povo de tu-
do o que era passado, o desculpando com as visões, e mandatos do Santo
a determinação do o trasladar, temeroso ainda de se poder julgar que
pi"etendia ou vangloria pêra o Santo, ou proveito temporal pêra a casa.
Mas enxergou logo que fora seu o engano. Porque o povo aceitou a nova
com gosto, e alvoroço de toda a villa. Aprazou-se dia, acudio gente sem
numero, começou-se huma Missa de grande solemnidade. Despois do
Offertorio deceo do altar o Prior, que a cantava, ministros, e acólitos,
e Cruz diante com toda a Coinmunidade. E seguidos de iníinito povo
caminharão }iera o cemitério, onde o Santo jazia. Como forão nelle, co-
m.eçarão os Religiosos a entoar o líymno Te Deum laiidamus, e hum
Fi.uk velho poz nas mãos do Prior huma enxada, e elle íomando-a deu
rAr.TicrLAR do reino de poutít.al 205
lirim golpe soljre a cova, em sinal, e principio de abertura: o mesmo
fizerão o Diácono, e Subdiacono, bum trás outro. Logo cbegarão oíTiciaes
que forão cavando até darem no caixão. Estava cerrado e pregado : e
sendo tirado fora, e aberto, foi sintido entre todos hum cheiro, que con-
soíava, e recreava. Vio-se, e venerou-se com geral devação, e prazer o
santo corpo, e com lagrimas de muitos foi notado, que despois'de seis
aníios eslava inteiro sem falta nem lesão de membros, e como na liora
em (jue foi sepultado. Fervia a Igreja em devotas, e alegres acclamações
qne a competência louvavão, e engrandecião o Santo. Ajudou-as elle pe-
i"a gloiia de Deos com dai- vista naquelle publico ajuntamento a buma
mollier cega, e saúde perfeita a luun aleijado, e a outros enfermos.
Trouxerão-no quatro Religiosos ao Coro com a mesma ordem, em que
o forão buscar, e com eila, despois de acabada a Missa, foi levado á sua
capella, e metido no moimento novo. He a capella no arco do Cruzeiro,
que responde á porta travessa da Igreja. Ficou pequena, porque o sitio
não dá lugar peia mais: e pobre, conforme a humildade do Santo, e
estreiteza dos tempos antigos. O moimento lie grande, toma o largo
delia da banda da Epistola, a face de fora lavrada de folhagens ao uso
antigo, na iagea, que o cobre, entalhada de relevo ao longo, liuma figu-
ra de Frade. Serve-lhe de letreiro, porque na pedra não parece nenhum,
a pintura do retabolo, inda que pequeno, e pouco lustroso, que repre-
senta em cores, e sombras a conversão do Santo, e alguns successos
mais de sua vida, e morte.
Mostrou logo o Senhor com grande numero, e diversidade de mi-
lagres, que aceitava em serviço a honra, que se lizera ao servo fiel. Al-
guns diremos sem pedir de novo perdão aos Leitores: visto como em
historia pia serve o testemunho dos milagres pêra consolação, e augmenlo
de devação nos fieis: e pêra convencer a dureza, e incredulidade dos
infiéis. Mas lançarem.os primeiro as orações, que pêra esta Missa se de-
vião compor, que achamos de tempo immemorial escritas. São devotas,
e dignas de se verem. Porque a primeira nos dá este Santo por valedor
particular de grandes peccadores. O que, aimla que se pode coUigir dos
meios de sua conversão, jiossivel he que houvesse casos, que a nós não
chegarão, que obrigassem ao Autor das Orações a dar-lhe este titulo:
titulo de grande consolação pêra os que vivemos, que todos somos pe-
cadores, haver hum Santo avogado de almas enfermas, cuja saúde me-
rece buscar-se com mais cuidado, que toda a corporal.
266 LIVllO 11 DA IHSTOniA DE S. DO.Mf\r.OS
Seguem as Oraçues.
Deus, qiii beatum Aígidium confessorem tnum á peccati subiectione re-
uocasti, ei perpetrati sccleris veniam ímpetiaudi specialem gratiamlribuens,
da eius meritis ttiam hic consequi misericordiam, vt nostrorum excessuum
detestatione perpetrata scelera redimamus. Per Dominnm nostrum Jesum
Clirislum Fiiium Itium, etc.
Secreta.
Beati jEgidij, quwsumus Domine, inlercedentibtis meritis gloriosis
munera hcec placatus accipias : et grata tribue offerre dona, quibus tribuisti
et offerre ojjicia. Per Dominum nostrum Jesum Cliristiim, etc.
Post Coinmiinionem.
Oblato, Domine, salutis noslrce exórdio, eius concede nos adiuuari suf-
fragijs, de cuius confisi meritis, íkbc tibi sacramenta você libamus^ et men-
te. Per Dominum nostrum Jesum Christum Filiuin iaum etc.
Antes de entrar nos milagres, que de novo prometemos, convém es-
tar advirtido o leitor, que os, que escreverão esta historia antes de nós,
não íizerão distinção de tempos, nem nos que já íicão contados, nem em
alguns dos que restão, e d"outios, que deixamos por escusar leitura. E
não lenho duvida, que muitos dos que já vão nos capítulos atrás, podião
succeder muito tempo despois da tresladação : mas como, por serem as
cousas tão antigas, -não foi possível averiguar esta circunstancia, guarda-
mos pêra este lugar alguns, que com mais evidencia nos parecerão suc-
cedidos despois, que irão no Capitulo seguinte.
CAPITULO XXXV
Como por intercessão do Santo alcançarão huns pobres homens remédio pcra
vinho danado, e perdido: e outros o teverão em graves doenças, e varias
necessidades.
Vierão os moradores de Santarém a fazer tamanha confiança do amor
que achavão n'este Santo, que, depois de lhes curar todo género de in-
PARTICl LAR DO REINO DE PORTUGAL :»C7
firmiilailes de corpos, e almas, não duvidarão, que lambem lhes valeria
nas de suas fazendas. Iníirmidade lie do vinho engrossar, ou azedar-se,
como da fruita apodrecer, e do trigo criar em si o gorgulho. Hum João
Solier tinha huma grande cuba de vinho, tão danado em tudo, que até
o cheiro lhe não podia sofrer, e determinava abrir-lhe o torno, e !an-
çal-o fora de casa. Mas, ou que soubesse do milagre, que a agulha do
Santo fez no vinho dos Cónegos regi-antcs, que atrás contamos: ou que
a necessidade por si he engenhosa, e inventora, foi-se á sua capella,
propoz-lhe o aperto, em que ficava sua família, perdendo aquelle vinho,
que era a mellior parte de sua fazenda, pedio-lhe o remédio crim fé, conio
a quem cada dia obrava maiavilhas avenlajadas. Tomando a casa sem.
fazer detença, (juiz ver o que montara sua oração: achou o viuho não
só remediado, mas estremo de bom. Foi cousa publica na villa, assi o
dano passado do vinho, como o concerto, e bondade presente, e gran-
geou ao Santo nova devação entre os moradores, vendo que até de sua
sustentação tiniia cuidado. E logo se virão outras experiências semelhan-
tes, com grande contentamento, e utilidade dos que as fazião.
Particularmente se conta de um .\ndré Pires, homem pobre, cujo re-
médio pêra todo a anno consistia em uma boa copia que vinho, que tinha
encubado, e estava de todo perdido, e tal, que não havia de esperar,
senão desembaraçar a vasilha, pêra a novidade seguinte. Só a mulher
não desesperou, foi-se ao sepulcro do Santo, ajuntou hum pouco de pó
de junto d"elle, atou-o em hum pano, lançou-o na cuba. Provarão o vi-
nho no dia seguinte: foi tal a mudança, que os fez ricos aquelle anno.
D'aqui teve principio mandarem os Padres abrir na grossura da pedra,
que cobre o moimento, huma concavidade, que fica como pia por baixo
do hombro direito do vulto esculpido: na qual os, que desejão seus vi-
nhos remediados, ou conservados, mandão lançar suas amostras, como
em offerta, e do que achão já oíTerecido, tomão pêra lançarem nas pi-
pas. Serve também este vinho, pêra levarem consigo os enfermos, e de-
votos em lugar da terra, que nos tempos atrás tomavão da sua cova no
cemitério.
Aos milagres de vinho succedem com rezão os de agoa, que ile mais
necessária na terra, e a muitos mais agradável. He mosteiro famoso, e
antigo de Freiras da Ordem de Cister, o que chamão de Cellas junto a
Coimbra, e os antigos chamavão Cellas de Guimarães. Costumava o Santo
visilal-o de boa vontade, quando se achava na cidade, e fazer suas pra-
2G8 LIVRO II DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
liças espirituaes ás Religiosas, que cilas muito estimavão. Passados al-
guns annos despois de sua morte, succedendo vir hum anno de grande
seca, veio a faltar agoa em hum poço do Mosteiro, que era todo o re-
médio d"el!e, e pouco despois secou de todo. lie o Mosteiro grande, e
sempre povoado de muita gente; era intolerável o trabalho que se pa-
decia, e as laltas em que se vião com agoa de carreto. Hum dia que a
necessidade apertou mais, fez a Abbadessa ajuntar a Communidade no
mesmo lugar, d"onde cosíumavão ouvir as pregações do Santo. E pedindo
a todas as religiosas que a ajudassem com suas orações, disse em voz
alta, e não sem lagrimas: Padre Frei Gil, Santo de Deos amado, lem-
bradas somos, e vós não deveis estar esquecido, que, quando vivieis, nos
communicaveis com muita consolação nossa, aquellas fontes de agoa viva,
que perpetuamente está brotando pêra a vida eterna. Agora que as es-
tais logrando imuirtrtalinente, poder tendes pêra nos alcançar do Senhor
d'ellas, esta mortal da terra, de que estamos tão necessidadas pêra a
vida presente, como vedes. Âcudi-nos com ella padre santo, e piadoso.
Responderão todas, Âmen. E logo, assi como estavão juntas, se forão
ao poço. E dVjnde d'antes nem sinal de humidade aparecia no fundo
(maravilhas da Divina bondade), achão-no cheio de agoa até o bocal. Es-
panto, e alegria forão as graças do milagre: e em testimunho d'elle man-
darão liuma servidora a Santarém, a olferecer no altar do Santo, huma
medida da altura do poço cuberla de cera. E he cousa sem duvida, que
nunca despois n"elle faltou agoa, com se dai- largancente a toda a vizi-
iiliMnra.
Em diOereníf liiaiei-i;'. esprimentarão ponco depois estas Religiosas
o mesíiio favor, e iôiubrança do Santo. Tinha o Convento dous escra-
vos Mouros, que erão todo o serviço de fora. Desapparecerão hum dia:
forão buscados: como não houve nova d'elles, acudio a Communidade
ao Santo: fizerão-lhe oração conliadamente: e, fpiando menos cuidavão,
entrarão os Mouros por casa, do sua livre vontade, sem força, nem
constrangimento de ninguém. Em memoria mandarãí) as Religiosas pen-
durar, diante do altar do Santo, quatro pés de cera.
A estes milagres ajunta mais três o Mestre Frei André de Resende,
que esta historia do Santo nos deixou escrita em mui escolhida lingoa
Latina, e d'elles se dá por teslimunha de vista. Não será rezão ficarem
por dizer. Foi o primeiro em hum pobre homem Andaluz, que havia
doze dias jazia no alpendre do Convento, tolhido de um lado, de alto
rARTir.lI.AR DO IlEINO DK PORTIGAL 269
a Ijaixo, c a boca torcida, o posta, como dizem, lia orellia, de hnm
forte accidente de paralysia. Sairão a caso á portaria o Mestre Frei André,
e Frei Roque Leme com outros Padres, acompaiiliando o Supprior Frei
Thomás de Watos, a ver liiins ofíiciaes, que laviavão pedraria no alpen-
dre pêra certa obra de casa. Apiadados do pobre, assi como estavão
juntos, pei^suadirão-no, (jue se fosse ao aliar do Santo, e se encommcn-
dasse a elle. Foi-se aij-aslando com muito trabalho, até á capella, e os
Religiosos seguirão com buma Aníifona, e oração: não era bem acabadas
quando começou a grilar, que acudissem, que se abrazava em fogo : e
logo foi estendendo a i)erna, e liraços lolliidos, e a boca lhe tornou a
seu lugar. Cobrando mais confiança, começou a passear soltamente, e
despois correr, e saltar com o prazer de se ver são.
No Domingo seguinte ordenaiào os Religiosos, que assistisse este
homem á pirgação em bum \ug,-ni- alto, pêra ser visto do povo, quando
o Pregador referisse o milagre, que já eslava lomndo jjor fé, e autos de Es-
crivão publico. No mesmo t('nii)o quiz o Senhor acreditar o milagre, e
a voz do Pregador, que t) coníava, com (uiiros dous juntos, cada qual por
si fermoso, e prodigiosos. Pôde ser que houvesse homens presentes de
tão poucas fé nas grandezas do Ceo, que levessem necessidade de cura.
Era ouvinte do Seiíiião huma mulher que tiazia de bum cancro comido
bum peito, e'n'elle chaga feia, podre, e asquerosa: com o cpie ouvio do
Andaluz, mysteriosamente curado por intercessão do Santo, cobrou ani-
mo, e alento pêra conliar, confiança pêra esjiei-ar, esperança pêra pedir,
e alcançar. Chegou-se ao sepulcro, molhou hum jiano no vinho da pia,
que dissemos, e estendeo-o sobie a chaga. Foi cousa visia por lium povo
inteiro, que sendo publica, e sabida a infiin:i idade, sem se nuidar do
lugar, se lhe cubrio de carne nova, e limpa o peito aposíemado, e roido,
e ficou sem nenhuma difíérença do outi"0, salvo em huma vermelhidão
notável, como sinal, ou do milagre, ou de cousa que a naiuieza obediente
ao Criador gerara de fresco.
Outra mulher trazia nos braços uni minino niuiío maltratado de hum
género de sarna, ou fogagem, ordinário n"aquellas idades. Cliama-lhe a
medicina uzagre: Não be mal perigoso pêra a vida, mas importuno, e
cbeio de dores peiva as crianças, cansativo, e nojoso pêra as mais. Tomou
do vinho do Santo em bum pano, envolveo-ihe n"el!e hum Itracinho, onde
o mal estava junto, e lh"o tinha todo lavrado, e crespo lastimosamente
de uma escara áspera, e grossa. Passado um espaço, julgando que es-
270 LIVRO II DA HISTOIUA DK S. DOMINÍJOS
laria o pano serco da quentura coníiuua do mal, quiz luimodecel-o do
novo. Quando foi pêra tirar, vio que toda a secura, e bostella, que co-
bria a fogagem, sabia pegada no pano, sem o minino lazer queixa nem
sintimento: e espantada do que via, notou com novo espanto, que todo
o bracinbo estava liso, e limpo, e sem mal nenbum, Mostrou-o aos Re-
ligiosos, que consideravão pêra maior gloria de Deos, que procedera do
vinbo do Santo, buma cura contra a natureza, porque tendo o vinbo ca-
lidades de fogo, fizera oíTicio de um refrigerante medicinal, como pêra
tal infirmidade convinba. Aponta o escritor que corria o anno de 1520,
c era no msz de Outubro, e que a obra, que se fazia no Convento, era
em serviço do Santo, e por mandado dei Rei dom Manoel, agradecido
da bem assombrada bora, que tevera a Rainha dona Lianor em seu
parlo, de que andava temerosa, sondo-lbe levada a cinta de ferro do Santo.
Nacoo então a infante D. Maria, cuja memoria vive com gloria na ca-
pelia, o bospiia!, que por sua morte, mandou edificar no Mosteiro de
Nossa Senhora da Luz, de Frades da Oi-dem de Christo: obra magni-
íica, e verdadeirainriiite real. E com esta lembrança acaba a historia,
o nós Ihs daremos remate, acrecentando, que a Princeza dona Joana
com o exemplo de sua tia, se valeo do mesmo remédio, pêra alegrar
o Reino com o nacimento dei Hei dom Sebastião, (incomparável ale-
gria, se a mo eclipsarão nossos peccados aos vinte e cinco annos com
desastrado fim seu, e de tudo bom, que havia no Reino). A Princeza
tornou o ferro acompanhado de ouro, e prata de esmolla. A Rainha re-
formou-lhe a capella, e retabolo. Mas ninguém tratou atégora da maior
honra, e tão !)em merecida do Santo, que he sua canonização. Do que nos
podemos queixar com justo sintimento.
CAPITULO XXXVI
Da santa vida, e glorioso transito Jo Padre Frei liernardo de Morhms:
e de dom mininos Santos, seus discipiihs.
Atrás promettemos relação copiosa da vida, e morte do Frei Rer-
nardo do Morlans, quando tocámos como o Santo Frei Gil, o tirou de
França. lie tempo de nos desinvidarmos. Vindo o Santo de hum Capi-
tulo Geral do Paris pêra Espanha, da primeira vez que foi Provincial,
e fazendo sou caminho por terras de Gascunha, em hum lugar, que cha-
PAUTICULAU DO REINO DE PORTLGAL 271
mão Morlans, lhe veio tomar a benção hum mancebo de pouca idade: o
qual lhe deu conta de sua vida, e alma por taes termos, que entendeo
o Santo, tinha Deos n'clle depositado grandes tesouros de sua graça. Al-
cançou polo que falarão que era muito nobre, e aparentado. E sendo
prevenido com bênçãos do Espirito Santo, que o guiava, a deixar as vai-
dades do mundo: todavia foiças de parentes o tinhão obrigado a espo-
sar-se por palavras de futuro, com uma donzelia sua igual. N"esta con-
juncção chegou a Morlans o Santo Provincial: e o mancebo vendo em
sua terra o habito de S. Domingos, a que se confessava devoto, e tal
pessoa com elle, houve que lho trazia Deos a casa, pêra por seu meio
se livrar dos laços da vida secular, da obrigação da esposa, e da casa,
o da fazenda, que tudo por amor de Deos, desejava largar. E alHrmando,
que o não tinha feito, até então por falta de occasião, e guia, pedio-lhe
com instancia que houvesse piadade de huma alma, que se punha em
suas mãos, e por ellas esperava achar salvação. Quem duvida que seria
isto musica celestial, pêra um espirito sempre abrazado em amores Di-
vinos? Recebeo o Santo com abraços da alma. Animou-o com suas pala-
vras, que espiravão fogo, e com exemplos dos Santos antigos, que na
flor da idade, derão demão aos gostos, aos estados, e ás esperanças: hum
Antão, a quem sobejava tudo, fugido pêra hum deserto falío de tudo:
hum Aleixo, senhor do melhor de Uoma, deixando Consulados, e esposa
nobilíssima, por hum pedaço de pão negro, buscado de porta em porta
com aíTronta, e muitas vezes negado com aspereza. Era isto assoprar
fogo que por si ardia. E como em conselhos de buscar a Deos toda di-
ligencia he vagarosa, assentarão que se posesse logo a caminho pêra Ça-
ragoça, e ahi esperasse polo Provincial, que, como caminhava a \w, de
força havia de tardar em chegar. Tal foi o principio da vida do Santo
Frei Bernardo, principio de assentarem n'elle todos os favores, e mimos
do Ceo, que o Senhor prom.ette, a quem polo servir sabe aborrecer os
nadas da terra. Chegou o Santo a Çaragoça com desejos de ver o seu valo-
roso fugitivo: e achou-o não menos alvoroçado pêra se entregar ao de-
serto, e pobreza da religião. Lançou-lhe ali logo o habito por filho do
seu amado Convento de Santarém, e foi n"esta jornada seu Mestre do
noviços. D 'aqui podemos inferir qnal sairia do tal escola, e entrando em
tal Convento, onde, como temos dito, tudo crão Santos. Tal se fez, que
diz d" elle Frei André de Resende as palavras seguintes :
27â Livno II DA HisroiUA dj: s. DOMixr.os
liic Bcnuiidus, de quo modo mentionem feri, Ivuf/c recenlior allcro
(faz comparação com S. Bernardo Abbade de Claraval) fíiit, scd íolnm-
bina simplicitate, monim innocentiu, et virgmúi puritate non adeó dis.si-
milis.
Querem dizer
Este iíiTiiardo, de quem agora fiz menção, foi muito mais moderno
que o 011 tro (Abbade Santo de Claraval), mas nada difíerente na singele-
za de pomba, na santidade de costumes, e na pureza virginal.
Morava Frei Bernardo om Santarém, e fazia o otTicio de Sacristão
com cuidado, e limpeza de Santo : e, como era tal a opinião, que tinha
na villa, trazião-lhe os homens nobres seus filhos mininos pêra os dou-
trinar, e ir insinando a ler, e escrever nas horas, que tinha de sua oc-
cupação. Fazia-o ellc com caridade, como quem criava prantaspera o Ceo.
Entre os que mais continuavão sua escola, havia dous que andavão ves-
tidos no nosso habito, e ou por serem parentes, ou vizinhos viniião, e
aprendião juntos. Como acudíão pola manham, mandava-os Frei Bernar-
do recolher em huma capela, em quanto dava ordem na Sacrisíin. Ali
hião lendo por suas cartas, e escrevendo suas matérias, até que elle vi-
nha, e dafldo-lhes lição, sendo sempre primeira a da doutrina Christam,
os despedia. Pêra passarem as manhãs, e solfrerem as esperas do Mes-
tre, como he tão ordinário levar-se a idade tenra de cor.sas de comer,
não subindo aquelles annos a outros cuidados, mandavão-nos as mais
providos de seus almorços atados em seus lenços, ou recolhidos em ces-
tinhos. Como tinhão trabalhado hum pouco, punhão de parte cartas, e
papeis, estendião os lenços, fazião meza dos degraos do altar, e despe-
javão o que havia. Isto era costume de cada dia, e a capella, em que
assistião mais de ordinário, era a dos Reis contigua ao Coro, e capella
mòr da parte do Evangelho. A qual, porque fique desde logo dito, e sa-
bido, possuio este nome dos Beis até o anno, em que veio caníMiizado S.
Jacinto de Polónia nosso Frade: e então se deu ao'Santo o titulo d"ella:
e o jazigo, e enterro pedio Ayres de Saldanha, que foi Visorei da índia,
e irmão de Frei Diogo de Saldanha, Frade nosso, pêra si, e seus succes-
sores, como gente que tem a devação da Ordem por herança do Avós,
c do apellido. Havia no altar huma imagem de nossa Senhora de vulto
antiga, c grande com seu ÍVlinino .Jesus no collo. Aconteceo hum dia, que
i'AiiTi(jii..\u Du ui:i.\u d;: i-oivrutiAL 273
estando os dous conipanheirinhos com meza posta festejando o almorço,
levantou hum d'elles os olhos á imagem, e detendo-os no Minino Jesus,
dlsse-lhe com a innocencia da idade, que lhe fazia crer o tinha presente,
se queria almorçar, decesse, e comerião lodos. Como o Senhor se paga
tanto de ânimos singellos, e puros, honrou logo aquella santa simplici-
dade : vião-no decer, assenlar-se com elles, lançar mão do que havia, e
mostrar que comia ; e fazendo o mesmo outras vezes ; acabado o almorço
tornar-se a seu lugar. De crer he, que nem sempre desfaria logo a com-
panhia, antes se deteria com elles, vendo-lhes as cartas, e matérias, e
não seria o trato mudo : nem também os meninos terião em segredo a
suas mais o que passava, ou pêra fazerem crecer a ração, pois linhão
convidado : ou porque he também parte da innnocencia dizer tudo. Pas-
sados alguns dias, despois (jue a conversação continuava, \ierão a dar
conta ao Mestre : e como em queixa dizião, que o Minino Jesus comia mui
bem do que elles trazião, mas que nunca punha nada. Ouvia-os Frei Ber-
nardo primeiro com duvida : despois de certificado, com admiração. E
como a Santo derretia-se-Ihe o coração em amores da Divina bondade.
OíTerecia-lhe eternos louvores por tanta misericórdia, e convidava a elles,
toda a Corte celestial. Foi cuidando logo como grangearia algum grande
bem aos innocentinhos, em que pudesse ter lambem sua parte. Disse-
Ihes que estivessem advirtidos pêra a primeira vez, que o Minino tornasse
a ser seu hospede, dizerem-lhe, que pois folgava de comer dos seus al-
morços, lambem seria rezão dar-lhes algum dia em casa de seu Pai huma
merenda, e que pêra ella levarião comsigo a seu Mestre. Ficarão cliebs
de prazer com o conselho, e esperanças de negocearem com seu hospe-
de a paga do que a seu parecer lhes linha comido, ignorando de lodo
a Iraça santa do seu Mestre. Era huma segunda feira da semana da glo-
riosa Ascensão. Acudirão á sua lição, e capella, e devião vir melhor pro-
vidos os cestinhos, visto como determinavão pedir. Não fiiltou o hospede,
nem elles forão esquecidos de lhe propor seu requerimento. Respondeo-
Ihes, que era contente de os convidar a ambos pêra casa de seu Pai, e
que seria d'aHi a Ires dias. Tornarão com o aviso ao Mestre, que não
desconfiando das misericórdias do Senhor, e julgando que a falta da re-
posta era pêra prova de sua constância, usou da jurdição, e direito de
seu officio. Mandou-lhes, que lhe dissessem no dia seguinte, que como
trazião o habito do S. Domingos, estavão obrigados a guardar as leis dos
Frades. E porque huma das priíicipaes era obediência ao Mesti-e, elle
VOL. I. IS
274 LIVRO II DA lirSTORIA DE S. DOMINGOS
não era eontenle, que fossem sós a sua casa, nem consintiria na hída,
se não indo também de companhia. Deixou-se vencer a Divina bondade
d"esta segunda instancia, e do artificio do Mestre, aceitou-o por convi-
dado. E elle recebeo a nova com estremos de alvoroço, estando bem na
conta de qual havia de ser o banquete. E como varão espiritual começou
a entender no aparelho, que pêra elle convinha, pêra não ser achado em
tal dia"sem roupa de bodas. Aparelho perpetuo he pêra amezada gloria, a
vida da Religião ; mas a hora de chegar, he hora de confusão, e de te-
mor, e tremor até pêra os mais perfeitos. Convém grande cuidado, c
grande vigia : e tal foi a de Fiei Bernardo, sobre huma vida de Santo.
Chegado o dia da Ascensão, que era o prazo da merenda, dizem, que
foi elle o ultimo de casa a dizer Missa ; e já quando os Padres hião pê-
ra o refeitório, (devia ser esperar a hora, em que o Senhor subio ao Ceo.)
Disse-a no altar do Divino hospede, forão ministros os Fradinhos discí-
pulos, e he tradição que de sua mão os commungou n"ella. Acabada a
Missa poz-se com elles de joelhos diante do altar, com mãos levantadas,
e olhos no Geo, esperando a hora de serem chamados. E n"esta postura
lhes foi cumprida a Divina promessa. E n'ella forão achados da Com-
munidade, que vindo ás graças, e saindo despois pola Igreja acudio toda
a ver o espectáculo devoto, e maravilhoso. Porque á vista, e no sem-
brante estavão vivos, mas feitas as experiências necessárias, se vio que
erão passados a melhor vida. Publicou-se o caso, acudio toda a villa, vie-
rão pais, e parentes dos mininos. Então se soubeião por relação sua as
particularidades todas, que temos contado, i)orque a pouca cautella da
idade descobria suas boas venturas com facilidade, e essa mesma as fa-
zia julgar então por ridículas de quem lh'as ouvia. Foi celebrado o caso
com espanto, e lagrimas no povo : com devação, e enveja no convento,
como entre Santos. E rezão fora, que entre todos se solennizara com már-
mores, e pergaminhos : mármores pêra se dar illustrc, e digna sepultu-
ra a gente tão mimosa do Ceo : pergaminhos pêra ficar por escrito, e
muito sabida na terra huma memoria de tanta honra pêra nossa Ordem.
Mas quem o acreditará? Nenhuma d'estas cousas se fez. Andava a casa
acostumada a grandes maravilhas : havia-se por caso de menos valer, fa-
zer muita conta d'estas. Huma só honra lhes derão, que foi sepultal-os
juntos na mesma capella, e á vista do mesmo Senhor, que com tanta mi-
sericórdia foi servido banqueteal-os. Polo tempo em diante, ou fosse oc-
casião al!?um milafrre. ou entrar no Convento gente mais curiosa, estra-
1»AUTICL'I.AH DO KVASO DK POlíTUGAL 27 O
nhou-se não estarem mais honrados os corpos, que liavião sido deposita,
rios de almas tão ditosas. Fez-se a tresladação, recolherão- nos em hum
archete de pedra, que embeberam na grossura da parede do Cruzeiro,
defronte da mesma Capella, poios não apartarem dos olhos de seu ama-
do hospede. Sebre o archete se pintou a fresco, de mão pouco polida,
jiuma imagem da Senhora, e abaixo d"ella a do minino Jesu entre dous
fradinhos do haljito Dominico, cada hum com seu cabazinho na mão. Mas
nem inda estes Padres, que por esta obra, e por mais chegados a nos-
sos tempos chamamos curiosos, tiverão cuidado de nos deixar escrito o
primeiro successo, nem como, e quando se fez a tresladação, nem que
rezão, ou occasião houve pêra se fazer. Só a pintura lhe devemos, e não
he pequena divida em tantos descuidos. Porque ella sem haver cousa es-
crita foi ajudando a tradição, quanto ao casa principal, que também es-
tivera apagada com os arinos, e nos guiou pêra se descobrirem as santas
Relíquias, e em fim ficar tudo com huma nova, e grande luz, e perpe-
tuado pêra em quanto o mundo durar. Que isto he hum cabello da ca-
beça dos justos, que Deos se tem obrigado por sua verdade que não ha
de perecer : memoria mundana, que em comparação da Eterna, (jue tam-
bém promete, ainda he menos que hum cabello. A traça, e meio dire-
mos no capitulo seguinte.
CAPITULO XXXVII
Como forão achados os corpos dos Santos Frei Bernardo^ e seus
discípulos, e colhwados em altar particular.
A porta das graças do Convento tinha antigamente a seiventia sobre
os presbitérios da Igreja. Dezejavão os Padres mudal-a, e abrir outra,
assi por tirarem aquella indecencia, como por ganharem mais huma Ca-
pella nos presbitérios : mas deixavão de o fazer, porque não havia outro
lugar, se não onde ficava a pintura, que dissemos, cujo indicio junto á tra-
dição, sem haver outra certeza, atava mãos aos Prelados, pêra não boli-
rem na parede. Atreveo-se a romper polo inconveniente o Prior Frei Mi-
guel do Rosário, e merece ficar em memoria seu nome : porque do bom
juizo, com que o fez, resultou ficarem o Convento com commodidade, e os
Santos com honra. Tendo junto o necessário pêra dar principio á obra,
pedio ao Vigário Geral, que polo Arcebispo assiste na vilhi. ({uizesse
276 LIVHO II DA HISTOrJA DE S. DOMINGOS
achar-se presente : porque, se Deos fosse servido acliar-se o que se sos
peitava n*aquelle lugar, houvesse solenidade, e lembrança tal, que se não
queixassem os vindouros. Foi assinado o dia aos 14 de Janeiro do anno
de 1577. Âcudio elle acompanhado de dous Notários Apostólicos, e fo-
rão chamadas algumas pessoas nobres, e outra gente devota da Ordem.
A primeira cousa, que se fez, foi considerarem a calidaJe, e estado da
pintura, que estava sobre o sitio, onde se havia de começar a romper, a
qua! notarão, e assentarão todos ser mui antiga, colligindo-o das feiçijes
uc rostos, e \estidos, em tudo desacostumados, e diíYereníes do tempo
presente, e de estarem as cores botadas, e o perfil da pintura em partes
cego, e em partes apagado, (indicio certo de longo discurso de annos.)
Logo forão officiaes começando a picar a parede polo mesmo lugar da
pintura : e a poucos golpes derão em Imma pedra grande, lavrada, que
sendo seguida, e descarnada, e descuberta, pareceo ser caixão ou arcliete
cerrado. Decido do alto com alegria, e reverencia, e aberto diante de
todos, parecerão dentro dous envoltórios em toalhas de linho. As toalhas
sans, e tão novas, e alvas, que parecião postas alli d"aqueHa hora, (cousa
que muito admirou), tinhão ao longo das bainhas humas listas vermelhas,
e polo meio, onde se houverão de juntar com costura huraa cadenilha, ou
renda de seda, ao parecer feita de agulha. Ao abrir do primeiro envoltório,
recendeo pola Igreja, e foi sintido de todos os que cião presentes hum
suavíssimo cheiro, que lançavão de si os ossos, que n"elle eslavão. Erão
grandes, seccos, e alvos, que não se podia duvidar serem de homem, e
sua caveira grande, que respondia em proporção com elles. Na outra
toalha havia mais ossos em numero, mas todos miúdos, e delgados, e
huma caveira inteira, e pequena, que logo parecia ser de minino : e huns
pedaços de casco d'outra, que também mostravão ser pequena. A inteira
estava cuberta de hum veo negro. Alguns dos ossinhos tinhão ainda
carne pegada. Achou-se com elles hum pedaço de pano de lã, que devia
ser dos hábitos dos mininos : e juntas com o pano humas guedelhas do
cabellos louros, e curtos como de cercilho dos Fradinhos. Celebrarão os
Religiosos este achado com a duvação, e contentamento, que era rezão,
dando muitas graças a nosso Senhor, pola manifestação, e confirmação
tão infallivel de hum successo, que pendia só de hnma tradição quasi
morta, e do testimunho da pintura meio apagada, sendo tanto da honra
de Deos, e da Christandade, e da Ordem de S. Domingos. Fizerão se
lo"o autos era forma de direito, com summ.ario de tcstimunhas tiradas
PARTICCLAII DO REINO DE PORTUGAL 2 / l
ante o Vigário geral, com declaração de todas as particularidades, e cir-
cunstancias, que temos dito, de que se pedirão, e derão treslados pêra
o cartório do Convento, onde estão guardados.
He particular circumstancia, e honra da verdade ser sempre unifor-
me, e huma mesma sem variedade, nem alterarão. Pôde estar escondida,
enterrada, ou esquecida: mas difterente de si, ou encontrada consigo
nunca o pôde ser : porque polo mesmo caso não fora verdade. Bem o
temos visto na correspondência, que achamos d'este successo com a tra-
dição antiga: e na conformidade da tradição com a pintura, e da tradi-
ção, e pintura com a ultima prova, e vista das relíquias: e da santidade,
que contamos de Frei Bernardo, reconhecida com a fragrância desusada
do cheiro de seus ossos, usada, e vista só nos de grandes Santos. Mas
isto mesmo me obriga a sentir mais, que sendo o principal gosto da
historia saber o tempo certo das cousas: der-pois de nos constar cora
clareza este glorioso successo, de força havemos de ficar com duvida dos
annos, em que aconteceo, porque, onde falta escritura, nenhum discurso
nem conjectura, nos pode bastantemente certificar. Muitos aíTirmão que
foi no anno de 1250, e sem falta se enganão: porque vivendo, como vivia inda
então S. Frei Gil, e avisando como sabemos ao Mestre Geral da Ordem
de particulares casos de vida, e morte de Religiosos d"este Reino, era
impossível deixar esquecido hum tão peregrino como este. Ajunta-se,
que ao tempo do falecimento de S. Frei Gil, que foi quinze annos des-
pois no de 1^65, era vivo o Santo Frei Bernardo. O que achamos nos
escritores de sua vida, e o refere o Mestre Resende na visão, que teve
Elvira Paes, da gloria do mesmo Santo despois de sua morte, dizendo
que esta mulher a contou ao Santo varão. Frei Bernardo, e a outros
que nomea (*;; e assi he forçado passarmos o successo muito adiante. E
porque humas das principais obrigações do historiador, he computar, e
averiguar com precisão os tempos do que escreve, he de saber, que no
summario de testemunhas, que como, fica dito, tirou o Vigário Geral,
concordarão todos os mais velhos, que forão presentes, que o caso pas-
sara, havia tresentos annos, (e assi ficou escrito), os quais tirados de
1577, que corrião, quando se fez o summario, ficão ao justo 1277, e
este he o tempo verdadeiro, a pouco mais ou menos, em que acon-
teceo.
Não ignoram.os, que alguns Autores quizerão lançar este aconteci-
(•) M. Frei Andic de Re;ondc 1. 2. trac. 8. cxcmp. 33.
278 I.IVIU) II DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
menlo nos annos muito adianto úe 13i8 até 13o0, alleganJo que hou-
vera em tal conjunção, huma peste geral no Reino, tão violenta, que
deixara despovoados muitos Conventos, levando de dez partes dos Re-
ligiosos as nove: e que a falta de Frades obrigava aos que ficarão a ir
criando mininos, pêra lhes darem a seu tempo ó habito, quaes erão
estes nossos. Mas enganarão-so por outro semelhante milagre, com que
Deos quiz honrar outro Convento nosso em tal conjunção, que foi o de
S. Miguel de Vitoria da ilha de Malhorca: o qual milagre teve algumas
diíferenças do nosso, como se pôde ver nos escritores da província de
Aiagão(*): primeira ser um só minino convidado, segunda, e terceira suc-
ceder em Domingo, e mais de setenta annos adiante.
Mas tornando á historia, tiradas as santas relíquias, forão levadas
com solemnidade á capella mór, e postas nos degráos do altar, em quanto
se tratava do lugar, onde havião de ficar. Estava doente, e mui trabalhado
havia justos oitenta dias, de humas rigurosas terçãs dobres, hum Reli-
gioso antigo do Convento, por nome Frei André de S. Paulo: foi avi-
sado do que passava, e aconselhado, que se aproveitasse da occasião.
Ainda que o mal o tinlia reduzido cá estrema fraqueza, cobrou coração.
Levanton-se, e fez-se levar primeiro á Sacristia, onde se confessou, e
cummungou, e despois ao altar mór. Vio as santas relíquias, venerou-as,
c beijou-as, pedio-lhes sua valia, e intercessão pêra se ver alguma hora
livre de tanto frio, e tanto fogo, como padecia cada dia tão importuna-
mente, que j;i lhe parecia, que nunca havia de ser são. lie cdusa certa
(jvie desde esta hora não teve mais sezão, nem mal nenhum: e como em
saúde de milagre, foi tão apressada a convalescença, que aos oito dias
foi comer em Communidade o peixe ordinário do refeitori >.
Fez o Pricr relaçãD de todas estas cousas ao Arcebispo de Lisboa
dom Jorge de Almeida : e com sua licença deputou altar particular no
corpo da igreja pêra decente coll cação das relíquias, no qual por en-
tão se poserão bem fechadas, ficando em moio do altar a mesma ima-
gem milagrosa do Menino Jesus, de cuja invocação se instituio logo
huma Confraria com estatuto de se dizer uma Missa da Ascensão todas
as quintas feiras do anno, e ceiebrar-se-lhe festa no mesmo dia da Ascen-
são, visto como n'elle foi servido obrar a maravilha com seus servos.
yVlguns annos despois assentarão os Padres do Convento com melhor
conselho, pêra que tudo também nos lugares ficasse conformando com
(•) M. Frei Frnnciíco Di;igo 1. c. i3. hist. da província, de Aragão.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 27fí
a antiguidade, que a S. Jacinto se desse outra capella: c, a que occupava
dos Reis, se restituísse á imagem milagrosa, e ás relíquias dos seus con-
vidados. E assi se fez. E a imagem antiga da Senhora, que o tinha nos
braços, pêra se conservar com mais decência, se passou á Capella do
Rosário, e he a mesma, que ali tem a invocação d'eUa. Huma, e outra
cousa se ordenou com muita consideração, porque, alem da grande ve-
neração, que a ambas estas imagens se deve polo passado, e por mila-
gres que hoje fazem, está recebido, e assentado n"esta villa entre pes-
soas religiosas, e seculares de bom juízo, que a do minino tem crecido
notavelmente, e está muito maior do que era em tempos atrás: c os
que continuavão no Convento, e na vista delle affirmão, que ainda hoje
vai crecendo conhecidamente. Do que he argumento que sendo recolhida
em tempos atrás, em huma caixa, que se lhe fez pêra resguardo, forrada
de setim carmesi, na qual segundo a tradição comum csoia folgadamente
cuberta a cabeça com seu chapeosinho alto, feito do mesmo setim, tes-
timunhão muitos Padres de grande authoridade, e credito, e seculares
dignos de fé, que virão com seus olhos dezeseis annos atrás, ser-lhe a
caixa tão curta, que com diíTiculdade entrava n'ella desbarretado. O que
sendo publico, e chegando á noticia das Religiosas Framer.jas da Or-
dem de S. Francisco, que tem seu Mosteiro em Alcântara, arrabalde de
Lisboa, cheias de espirito, e devaeão inviarão ao Prior uma caixa maior,
e melhor lavrada, e dourada, pedindo-lhe a troco delia a que o minino
a parecer de todos já engeitava por curta. Foi o Prior fácil de vencer
do partido, e a.eiíou-o com liberalidade pouco considerada. Porém a
mesma imagem santa o vai desculpando, porque n"estes dezeseis annos
tem crecido tanto ao sabido, que sendo assi, que quando aceitou o novo
recolhimento, estava n"elle com grande largueza coroado de uma coroa
de prata cerrada, que remata em huma Cruz no alto: os mesmos, que
o virão eulão, pasmão hoje: porque o enche tanto ao justo, e tão aper-
tadamente, que he necessário geito, e artificio pêra o tornarem a reco-
lher, quando os Padres acertão de o tirar por alguma occasião. D"onde
se infere ao certo que também aqui vai crecendo. Mas o maior crecimento
se vio, e notou a olhos de toda a villa de Santarém, quando saindo do
Convento huma devota procissão, haverá oiío annos em occasião de gra-
víssimo sintiraento, pareceo ao Prelado que seria importante, pêra fa-
zer devação, e pedir misericórdia, ir n'ella a imagem antiga da seniiora,
c em seus braços a do menino milagroso. Fez-se assi, e enxergou-se
280 I.FVI',0 II DA IIISTOniA DE S. DOMINGOS
Imma excessiva desproporção do corpo do filho ao da mãi, porque cla-
rainento a encobria, e assombrava de maneira, que a não deixava ver.
Assi achamos Rehgiosos nas diligencias, que de próximo fizemos no
caso, que não duvidão jurar, que vai crecendo.
Mas isto são cousas muito vizinhas ao tempo presente. Tornando ás
mais affastadas, quando soou pelo Reino a manifestação d"estes Santos
foi grande a devação, e aíTecto de piadade, com que geralmente foi ou-
vida. Assi se pedirão logo relíquias de muitas iiartcs. E pedindo-as tam-
bém a senhora dona Gaterina fdha do infante dom Duarte, e mãi do
Duque de Bragança dom Theodosio, lhe foi diula a cabeça que entre as
dos mininos se achou inteira: a qual se guarda com outro grande nu-
mero de preciosas relíquias na sumptuosa capella que os Duques tem
nos seus paços de Yilla Viçosa.
CAPITULO XXXVIII
Do Santo Frei Bernardo Segundo, sua conversão, vida, e milagres,
e sepultura.
A hum Bernardo bem pode seguir outro Bernardo, quando não foi in-
fei'ior na virtude, nem no sangue : nem diíTerente em Convento : se bem
houve grande dilferença nos lugares onde ambos nacerão, e nos annos
em que fíorecerão. Temos tradição muito antiga, (escritura não ha ne-
nhuma, nem ha já pêra que perder tempo em culpar descuidos, nem
defender singelezas de nossos maiores) que poios annos de 1340, pou-
cos mais ou menos, tomou o habito n'este Convento hum moço muito
illiístfo, e natural da mesma Villa. E foi o meio, por onde o Espirito
Santo o trouxe a buscar o Ceo, hum caso accidental, que passou d'esta
maneira. Sahio hum dia a cavallo com outros seus iguais ao Chão da
Feira, (assi chamão á grande praça que se estende entre aporta de Lei-
ria, e os Mosteiros de S. Francisco, e S. Domingos.) Era a tenção fes-
fejar a tarde em virtuoso exercício, mostrando cada hum sua destreza, e
as boas manhas dos ginetes. Começando a passar a carreira, poz-se no
posto Bernardo (assi havia nome o moço) trazia hum poderosa cavallo:
e ou fosse que o não tevesse bem conhecido: ou que o permitisse assi
Deos para o fim que ordenava, foi tão descompassado o Ímpeto, com
que o animal furioso se arremessou á carreira, que o descompoz, c ar-
PAKTICULAR DO REINO DK PORTUGAL 28 1
nncon da cclla, e com os estribos perdidos hia a olhos vistos ao clião.
N'esio passo so lembrou de S. Domingos, (corria com o rosto no Con-
vento) foi-se a elle com o pensamento, como hia com a vista, pedio-lho
socorro : e logo sem saber como, nem porque via, segundo despois con-
tava, se vio tão senhor da cella, e do cavallo, que sem nenhum desar, e
com espanto dos companheiros chegou ao cabo da carreira, e foi paran-
do concertado, e gentilhomem. Maslembrado do peVigo em que vira sua
vida, c opinião, que huma, e outra cousa sintia igualmente, logo deter-
minou tomar estado, em que pêra sempre ficasse izento de semelhantes
afrontas : e conhecendo bem o que devia a quem o livrara da presente,
amanheceo o dia seguinte no Convento, e pedio o habito. Não poz o
Prior dilação em lho vestir, porque erão publicas as calidades do sojei-
to : nem o generoso moço em mostrar, que fora a mudança da mão do
Altíssimo : se bem levera principio em humilde accidentc da terra. En-
íregou-se a todos os exercícios da Religião, como se pêra outra cousa
não nacera : estimava a pobreza, como se nunca fora senhor de fazenda:
assi obedecia, como se toda a vida fora súbdito, e nunca soubera que
cousa fosse mandar : riguroso no jejum, devoto na oração, no silencio
constante. O recolhimento da cella, e a lição dos livros saiilos, ora o seu
maior gosto : mas pêra os exercícios humildes ninguém sahia delia com
mais vontade. Das portas do Convento pêra fora não queria saber nada:
parentes, e amigos do mundo poz de todo em esquecimento : e até o
nome da família, e do sangue engeitou, ficando-se só com o de Frei Ber-
nardo, nem lhe sabemos outro. Assi foi sobindo a hum alto género do
santidade, que elle encubria com outro igual de abatimento, e desprezo
de si. Mas este foi o maior descubriclor d'ella. Porque o enemigo co-
mum que particularmente aborrece humildade, não arrependido do pec-
cado antigo, vendo que se fundava na de Frei Bernardo valerosa coluna
da Religião, começou a fazer-lhe guerra a todo seu poder. Porém pola
misericórdia Divina ficava sempre vencido, e o bom soldado de Christo
cobrava com o exercício novas forças pêra pelejar, e vencer. Veio a ser
occupado no car<ro da Sacristia. Aqui achou o enemigo hum novo ardil
pêra o inquietar. Erão os Frades poucos, ou era elle só pêra muito, ser-
via a Sacristia sem companheiro, e fazia-o com particular diligencia. Era
esmerada a limpeza, e concerto com que tudo andava em sua mão. Mas
queixavão-se es Frades, que as mais das noites achavão as alampadas do
Dormitório, e da Igreja apagadas. Disserão-lho, procurou o remédio pro-
282 LIVRO II DA inSTOniA DIÍ S, IX)MIXG09
vendo-as sempre, e deixando-as em estado que por boa conta sustentas-
sem a luz horas dobradas, cerrando frestas, e janellas. Mas não bastava
nada. Porque no tempo mais quieto se achavão mortas sem combate de
vento, nem tormenta : e os Frades fazião queixa publica de sua negli-
gencia, Assi andava enemistado com elles, e desacreditado com o Prelado
sem culpa nenhuma. Foi tirado a Capitulo, reprendido, penitenciado.
Não sahia que íizessd^ chorava, e sintia o escândalo da Gommunidade,
mais que seu descrédito ; e o desgosto do Prelado, mais que as peniten-
cias que lhe dava, porque outras fazia mais rigurosas, e continuas. He
constante tradição que nove annos lhe durou este trabalho, e afronta,
trazendo-o afiligido, e tresnoutado de se levantar a cada passo a vigiar, e
acender de novo, com hum sofrimento incansável, aceitando já o trabalho
por exercício de virtude, e offerecendo a Deos a injustiça das culpas que
llie davão. Mas o discurso do tempo, e a paciência de Frei Bernardo foi
mostrando que não era cousa natural : e já todos entendião que tal im-
portunação, e contumácia não podia proceder se não do Inferno, e aca-
bou-se de ver no caso que agora diremos.
Acabou huma noite de concertar, e acender a alampada do altar mór-
e em virando as costas achou-a apagada. Era o tempo claro, e sereno,
não se sintia bafo de vento: sem fazer juizo temerário entendeo que fora
feito á sinle, e a alampada apagada á mão. Era falta no culto Divino,
indigna de se dissimular, arrebentou o sofrimento. Prostra-se por terra
diante do Santissimo Sacramento pedindo eíTicazmente, e com desconso-
lação ao Senhor lhe quizesse manifestar algum dia quem tanta lhe cau-
sava. Acabada a oração foi-se buscar luz, e começava a entender com a
alampada, se não quando se lhe põem diante, e junto d*ella hum feio
animal, bode na barba, e armação. Julgando logo quem podia ser o dono
de tal mascara, mandou-lhe da parte de Deos que d"ali se não bolisse,
nem mudasse a hgura : e foi-se correndo á Sacristia, trouxe huma grossa
disciplina, levou o cabrão polas barbas, desafogou a paixão, ou quebrou
as mãos em o disciplinar. E despois de cançado levou-o arrastando, e
atroando o Convento com berros infernais até a casa commum, e lançou-o
por ella a!)aixo. Então cessou a queixa das alampadas : e cairão os Frades
no que tinhão dado a merecer de tanto tempo atrás ao pobre Sacristão
com seus mal fundados juízos.
Crece a virtude, e o valor nos trabalhos. Crecião graças, e favores do
Geo cm Frei Bernardo, quando mais acossado andava do Inferno: evião-
fAimcUí.AR Dó REINO DE PORTUGAL 283
se prodígios da sua orAção, e de suas liiãos, espantosos. lie cousa sem
duvida, que a muitos enfermos desesperados de remédio humano, livrou
das portas da morte, sarou aleijados, deu olhos a cegos, resuscitou mor-
tos. Das circunstancias, e particularidades de cada maravilha doestas não
chegou a nós a noticia, porque estando escritas muitas poios antigos, e
contemporâneos de Frei Bernardo, os successores forão tão descuidados,
(porque nunca nos faltem queixas), que deixarão consumir os pergami-
nhos, que ainda erão vivos em tempo de Frei André de Resende (*), como
elle o testimunlia na vida de S. Frei Gil, dizendo de certa particulari-
dade, que a achou apontada entre os milagres de S. Frei Bernardo. Mas
diremos hum que por estranho, e quasi nunca visto, não pode ser da
antiguidade vencido, porque se conservou a tradição delle com ajuda de
pintura.
Foi o caso, que sendo levado a enforcar huma mânham hum pobre
homem, por sentença, e mandado da justiça, e íeita n'elle a execução
segundo costume: quando foi sobre tarde permittio o Senhor que pas-
sassem por junto da forca certos homens, os quais se ouvirão chamar
d'ella, e acudindo á voz não livres de medo, mas animados com a com-
panhia, (hsse-lhes o pendurado que chogiíssem sem temor, porque não
era fantasma quem lhes falava, senão homem vivo, e usassem com elle
de misericórdia, já que Deos os trouxera por ali. Despois que o decerão,
não faltou curiosidade pêra lhe perguntarem a rezão de tal maravilha,
tendo tamanha contradição entre si vivo. e enforcado. Respondeo, que
Frei Bernardo, Sacristão de S. Domingos aparecera ali, e estivera com
elle ao tempo que lhe lançavão os cordéis, e sem elle padecente saber
como, o defendera da morte, e o sustentara até aquella hora que os sin-
tica, e chamara. Soube-se despois que a mãi era grande devota do Santo,
e que ao tempo que o leva vão a padecer, se fora a elle com lagrimas,
pedindo-lhe remédio, e manifesíar-lhe, como he de crer, que padecia
sem culpa : o que muitas vezes tem acontecido, não deixando de fazer
seu dever a justiça, e juizes.
O successo tem toda a certeza que humanamente pode haver em
cousa tão antiga. Porque teve por Cronista todo o povo de Santarém, a
cujos olhos se pintou a historia nas paredes da Capella, que então era
dos Reis >íagos, contigua ao Coro, e Capella mòr da parte do Evangelho.
E claro está que se não pintara cousa duvidosa havendo de ter tantas
{•) Resende l. 2. tr. 2. csenip . 39.
28 i LIYUO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
tostimunhas. E nós alcançamos a pintura que era viva ha menos de cin-
quenta annos. Lembra-mc como natural de Santarém, ouvir muitas vezes
Missa n'esta Capella, e ver-lhe as paredes cubertas de pinturas a fresco
de alto abaixo, e de mão pouco polida, prometendo muita antiguidade
no feitio, e no estado de cores botadas, e pouco distintas em parte. No-
távamos forca, e o pendurado, em sua alva vestido, e rosto cuberto, e
pés estirados, e lembra-me como moço fazer-me horror, e asco. Víamos
a outra parte homens amortalhados, e outros que representavão hum
hospital, por serem muitos, e todos com sembrante, e geito de enfer-
mos: tudo memorias dos que por orações do Santo teverão remédio
milagroso. Não esqueceo a historia que contamos do apagador das alam-
padas, em huma parte representando-se ao Santo, n outra disciplinado,
e em acto que mostrava ou fingia sintir o castigo. Menos danificada es-
tava esta memoria no anno em que o Padre Mestre Frei Jeronymo de
Padilha a vio, que foi o de 1539, em que fez os apontamentos, que temos
seus, de cousas que como Provincial, que era, foi notando nas casas da
Província : e diz as palavras seguintes :
Este glorioso Santo, (fala de Fr. Bernardo), ha hecho muckos milagros,
y ossi está toda su Capilla llena de pinturas dellos oy en dia, dado que
ha que passo mas de dozientos anos.
De qual foi sua morte, não temos certa relação. Bem acreditada está
com a vida d'antes, e com a honra, que lhe grangeou despois. Porque
como a Santo se lhe deu sepultura alta na Capella, que temos dito, que
foi hum grande moimento de pedra lavrado a uso d'aquella idade, que
ficava arrimado á parede do Coro, e Capella mór, entalhado hum vulto
de Frade de relevo na lagea, que o cobria, e aos pés a figura, em que o
diabo se lhe descubrio, quando o perseguia. E ajuntarão os devotos, a
pintura pêra ornato da Capella, e elogio da sepultura. Este moimento se
abrio, e desfez no tempo, que a Igreja se reedificou. A causa de se abrir
foi haver fama, que hum Prior antigo passara os ossos, que n'ella havia
pêra a sepultura do S. Frei Gil. iMas a que houve pêra se desfazer foi,
não se saber cujos erão : e parecer que convinha desembaraçar o lugar
pêra effeito de se engrossarem, e fortificarem as paredes da Capella mór.
Aberto o sepulcro veriíicou-se a mudança das relíquias, porque se não
acharão mais que três ou quatro ossos, os quais recolliidos em huma bo-
ceta, com hum papel, que declara a rezão do feito, íicarão sumidos na
grossura da parede, no mesmo sitio da sepultura, e posta sobre elles ã
PAUTICULÀR DO REINO DE PORTUGAL 285
nico liuma pedra sinelada das armas da Ordem, sem outra memoria.
Sospeitarão os Padres, que entendião na pedra, e cal, ser a sepultura
do Padre Frei Domingos de Cubo, porque lhes faltou a pintura que os
guiasse, trocada já então em azulejos, des do tempo que se dedicou a
Capella a S. Jacinto. Assi ficou Frei Bernardo despois de longos annos
sem nome, sem Capella, e sem sepultura, repartido parte na alliea, e
parte encerrado na parede: porém sem culpa dos edificadores, e só por
falta de noticia da antiguidade. Que se esta houvera, de crer he, que
com novos titulos se avivara a memoria de tal Santo: e nós em lugar
d"elles lhe oíTerecemos em nome da Província, que nos manda escrever,
e no nosso humilde, mas como natural, estas poucas regras, que se por
serem de nossa penna merecerem pouca estima, polo valor da impressão
durarão mais que todos os jaspes, e póríidos da terra : e por emprega-
das cm seu serviço podemos esperar que sejão immortais.
CAPITULO XXXIX
De alguns lieligiosos, que despois de servirem grandes cargos na Ordem,
se recolherão neste Convento. E outras antigualhas delle.
Como este Convento era conhecido, e nomeado por toda a Ordem
por hum Seminário de Santos, e com mais particularidade na provisicia
de Espanha, de que era cabeça, como atrás temos mostrado ; houve mui-
tos Padres dos mais abalisados delia, que despois de a terem servido
nos cargos maiores, quizerão rematar nelle o curso de sua peregrinação,
fiando que seria consolação dos últimos dias, ò remédio pêra a alma,
viver entre Santos, e ficar entre Santos sepultado. O primeiro, de que
temos noticia, e mais antigo, foi o Mestre Frei Arnaldo Segarra, natu-
ral de Barcelona, em Catalunha, varão insigne em virtude, e letras. Era
Provincial, veio a concluir seu cargo com a visita deste Convento na
entrada do anno de 1255: e vendo com seus olhos o que a fama pre-
goava no Santo Frei Gil, e em outros Religiosos, e ouvindo maravilhas
dos que erão de fresco falecidos, não se soube apartar mais de tal mo-
rada, e vida, nem querer melhor jazigo na morte, que o cemitério com-
mum. Estava a humildade em tão alto ponto, que os cargos grandes
erão aborrecidos como carga; c o mais humilde lugar era havido por
mais honrado em vida, e lambem na morte. Parece que soava ainda nas
286 LIVHO II DA lUSTORlA DE S. DOMINGOS
orelhas dos filhos aquella palavra do Santo Patriarclia, quando sendo
perguntado onde queria que o sepultassem, respondeo, que aos pés dos
seus Frades. Este exemplo sejíuio S. Frei Gil duas vezes Provincial, e
se o vemos melhoi'ado, foi porque o arrancou de terra a devação dos
lieis. Não devião pretender mais honra Frei Arnaldo, e os, que após elle
buscarão este Convento.
 variedade dos tempos foi variando estilos, e introduzindo sepultu-
ras altas, letras, e pinturas, em que devemos louvar a tenção pia dos
successores, que suprião com estes meios a falta da escritura, e conser-
vavão a memoria dos que vinlião honrar a casa. Assi achamos nella em
humas parles nichos, e archetes de pedra, sem letra, nem outro sinal
sumidos nas paredes da Igreja : que se virão, e considerarão, quando se
derribava pêra se levantar de novo; e, como estavão sem nome, passavão
as ossadas ao cemitério. l*or outras partes ha pedras, letreiros, e se-
pulturas altas de Frades, mas são já de tempos mais chegados a nós, e
por isso alguma cousa menos severos, ou mais polidos. Na parede da
crasta, de huma, e outra parte da entrada do Capitulo, se vem hoje duas
pedras, ambas pequenas, e entalhadas de letras Góticas miúdas. Dizem
humas :
Hic jacet Domnus Frater Dominicus Veeijra reuerendiis Doctor Ordi-
nis Prmdicatorum, qni bona senechite plenus dierum, at sapiendw obijt
in Domino in Vigília Natalis jEra M.CCC.LX. (Responde ao anno de
Christo de 1322.)
As outras são:
Jíic hicel Frater Gonçalaiis de Calciata Prior Provincialis Ordinis
Prcedicatorum. qui obijt anno Domini M.CCC.LX.
Na capei! a dos Santos Cosmos, que lie contigua ao Coro, da parte
da Epistola liavia liuma sepultura com seu letreiro, que declarava ser
do Mestre Frei Estevão de Santarém, que fundara o segundo Dormitó-
rio do Convento. Este sinal basta pêra lermos este Padre por um dos
mui antigos delle. Porque o Dormitório por velho se veio a derribar no
anno do 1602, sendo Prior Frei Eliseu de Almeida, e no sitio se fez parte
do refeitório, que hoje serve, e parte da casa de noviços. IMas não valeo
a Frei Estevão sua ansianidade pêra ficar em repouso. Os reedificadores
PAUTICILAR DO «LINO DE POUTLT.AL 287
da Igreja mudarão a ossada para o cemitério, picarão a letra da campa,
e aplicarão-na a outro serviço. Se foi com justiça, outrem o julgue. Eu
tenho por de graúdo estima qualquer letra antiga, e as deste Convento
por muito aventajadas em preç"), poios muitos Santos, que produzia; e
tenho por certo que todos estes enterros dilferenciados erão de gente
que os merecia por santidade. No cruzeiro da Igreja junto á capella de
S. Frei Gil íica huma sepultura com esta letra Portugueza notável.
Aqui jaz Mestre Gonçalo que foi Provincial da Ordem de São Domin-
gos por dezoito annos,* e Prior do Mosteiro da Vitoria por dez annos.
Alma sua folga em paz. E finou iEra Domini M.CCCC.XXXXVIII. aos
XYIIL dias de Outubro.
Outra diíTerença parece em muitas sepulturas no Capdulo, e pola
Igreja, que são campas lançadas no chão com liguras inteiras de Frades
dizenhadas, ou riscadas somente, e cada huma com sua divisa do gráo
que seu dono teve, mas sem nome, nem outra declaração : e todas em
geral com seu bordão, e livro nas mãos. A rezão desta insígnia era, por-
que nos princípios da Ordem todos os Religiosos caminhavão com ella,
e a pé, em lembrança, que fora antigamente dada poios Santos Apósto-
los a nosso Patriarcha, como atrás contamos. E sua significação era, se-
gundo dezia o grande Mestre Fj'ei João Teutonico, Mestre Geral da Or-
dem, haverem de estar sempre prontos, e prestes os Pregadores Apos-
tólicos pêra correrem polo mundo todo pregoando, e estendendo o santo
Evangelho entendido polo livro, arrimados ao bordão, que he a Cruz de
Christo, ou a vara de Jessé, por quem entendemos a Virgem Mãi, em
cuja confiança poderíamos vencer, e alropellar sem medo todos os pe-
rigos, c trabalhos da vida.
E porque nos não fique por dizer nenhuma antigualha, que de algu-
ma maneira toque á reputação desta casa : somos lembrados ver huma
pintura no Capitulo, na parede fronteira da entrada, que em defeito de
escritura, (como d'outras d'este Convento temos dito), sustentou até nossa
idade huma memoria bem de estimar. E foi que o veio visitar hum Mes-
tre Geral da Ordem com devação do que d'elle ouvia : em tempo tão
antigo, que não havia mais que seis Conventos em todo o Reino, a saber
Santarém, Coimbra, Porto, Lisboa, Elvas, Guimarães. E pêra os ver to-
dos em suas cabeças fez aqui huma congregação dos Priores. Mostrava
288 LIVRO 11 DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
a pintura no alto hum antigo retrato do Padre S. Domingos com esta
letra: Sandus Dominicus primus Magister sacri Palatij. E logo abaixo
o Padre Geral cm meio dos sois Priores, com huma disciplina de varas
na mão, que lie insignia, com que se costumão pintar os Gerais desta
Ordem. Quizerão os Padres, que se acharão presentes, que ficasse per-
petua a memoria desta honra, fiarão-na só de pintura feita a fresco, e
sobre a cal, e por oílicial pouco primo, indicio da pobreza, que em ta-
da se guardava. Em favor da antiguidade a referimos aqui, e merece-a
ella, porque não he menos que de trezentos, e cinquenta annos, visto
como a conta de seis Conventos he do anno de' 1270 até o de 1280, em
que começamos a ter sete, como se verá polo discurso da Historia.
CAPITULO XL
l)as grandes maravilhas, que cm vários tempos se virão no cemitério, em
confirr.mção da santidade do Convento. Das pessoas Reais, que nelle ja-
zem. Dos Religiosos, que os Reis lhe tirarão pêra differentes cargos.
Mas, se estas cousas, com serem só fundadas cm huma boa opiniã o
do povo, fazem ao caso, e rendem credito ao Convento, que fará a sus-
tancia, e verdade delias sabida? Pouco he tudo o que desde seus prin-
cípios temos contado d'elle : e certo sinal, que o escrito, e sabido são
humas cifras do muito, que á nossa noticia não chegou de numero de
Santos, e de grandeza de santidade. Historia he, que anda nesta casa
recebida de mão em mão dos antigos moradores, e celebrada na Pro-
víncia por muito verdadeira, que estando cl Rei dom Afonso Quarto,
que chamarão o Cravo, em Santarém, e chegando em huma noite de
verão a huma janella do Paço, das que tem vista pêra o Convento, vio
arder á parte do cemitério huma grande claridade de muitos lumes jun-
tos, e logo notou huma comprida procissão de Frades em branco com
cirios acesos nas mãos, que dava volta ao cemitério, e ali mesmo aca-
bava, e desaparecia. E contão, que sem esperar que fosse manhã, man-
dara no mesmo ponto saber do Prior, que causa havia pêra se fazer tal
procissão, e a tal hora, que era pouco despois de meia noite. E o Prior
pêra responder com puntualidade, e mostrar, que não houvera movimento
extraordinário em casa, contra a vista de hum Rei, levara o messageiro
I
partícula» do iu:i.\o di; i>ortlí;al !á89
polo Dormiíoriu, mostrando-lhe como os Religiosos todos, dilas suas
Watinas, estavão rocolliidos, e descuidados em seus leilos.
Muitos annos despois succedeo a mesma visão a el Hei dom João
o segundo, e como era varão espiritual, e muito dado a Deos: não foi
hama só vez, se não muitas, as que se lhe descobrião estes lumes, e
procissões, (dom lie do Ceo, e a poucos concedido ter olhos pêra seme-
lhantes vistas: esforça-os Deos, quando lie servido mostrar-lhes cousas
tão sobre naturaes). Devia cuidar da continuação, com (jue as via, que
seria costume, ou obrigação da casa, não fez por então caso delias. To-
davia, chamando hum dia o Prior para outro negocio, perguntou-lhe des-
pois d'el!e, a que fim se fazião no Conveiíto aqaellas procissões noctur-
nas. Maravilhando-se o Prior, e affirmando que tal não havia, contou-lhe
el Rei por extenso donde, e como, a que horas ; e as muitas vezes que
as vira. Grande consolação pêra um Rei Christão ver em sou Reino, e
diante de seus olhos tão vivos sinais de verdadeira religião : e tanto nu-
mero de santos, e mostrar-!he Deos, como em huin espelho, significa-
ção certa que estão occupados naquelia hora, e em todas diante de Deos
em semelhantes preces polo Reino, e pola terra, donde gaijharão, e me-
recerão as commendas da Gloria, que gozão. Maior consolação pêra os
que somos filhos de tal Ordem, termos tantos, e lais santos por irmãos
mais velhos, que nos ficão em lugar de pais, tutores, e curadores, co-
mo se usa nas famílias do mundo: e de força hão de estar em rogativa
continua como nossos mercieiros, porque Deos nos faça taescomoelles,
e por suas pisadas cheguemos ao que já possuem. Coiífusão pêra os he-
rejes, e pêra todo mão Christão, (se iia algum Ião mão, qne com olhos
torsidos olha as sagradas Religiões), em sinais tão claros de que as esti-
ma, e ama, e se deleita n'ellas como em jardim seu aquelie Senhor, de
quem cantamos : Quipascitur inter lilia. (*) Assim o mostrou sempre a Di-
vina misericórdia, não só aos olhos, mas também aos mais sintidos : não S('»
nos tempos passados, mas também nos modernos, e presentes, como
parecerá desta historia, pêra que não hnja ninguém, que por fraco tre-
ma, por peccador desconfie, quando temos o soccorro de sua graça sem-
pre pronto, e certo, e continua em nosso favor a intercessão dos bons
irmãos.
Cousa he muito sabida, e provada de tempos immcmoriaes, que to-
das as vezes, que neste cemitério se abria cova pêra eiiíerro de algum
(*j Oiiit. G.
VOL. 1. 19
290 LIVRO II DA HISTOIUA DF. S. DOMIXHOS
religioso, em se bolindo aquella terra santa acontecia o mesmo, que se
começarão a ferver muitas cassoulas das mclhoi^es pastilhas, e agoas chei-
rosas (la terra: se não que o cheiro era aventajado a esses ordinários,
que não havia quem lhe soubesse dar semelhante. Daqui naceo ser o lu-
gar desd"a fundação do Convento, e por todas as idades muito venerado,
e estar cercado, e fechado de muro alto. Que pois o Senhor se servia
de conservar naquelle barro frio, e morto a mesma fragrância, que quan-
do tinha vida, lhe fazia agradável holocausto de innocencia, e pureza, c
de todas as mais virtudes monásticas : rezão era pôr-se em custodia co-
mo preciosa relíquia não só o lugar inteiro, mas até as ervinhas d'elle:
como nos deixou insinado o devotíssimo Bispo de Turs ou Turon São
Martinho, que pedindo, e sendo-lhe negada huma relíquia dos Santos
Martyres da legião Tiíebéa, contentou-se com lhe mostrarem o lugar do
martyrio (*). Posto nelle fez conta que tinha mais do que desejava, mostran-
do-lhe a fé, que qualquer torrão da terra, que fora regada com tão pre-
cioso sangue, era relíquia pêra entezourar. E não se enganou; porque
mettendo a faca na terra pêra arrancar huma herva, veio a raiz com ella
correndo sangue, e foi-se rico, e contente.
Mas, porque me não digão que revolvemos antiguidades apagadas :
ou que he acabada nas religiões aquella fineza de santidade, que fazia re-
cender a terra em perfumes, e fragrâncias do Geo : tiaiarcmos da idade
de nossos pais, e nossa. Certo, e sem duvida he, não alcansado por me-
morias ou tradições sem Era, que mandando o mestre Frei Niculáo Dias
abrir huma cova neste cemitério em sua presença, íopai-ão os oíTiciaes
com hum moimento de pedra inteiro, e parecendo grande novidade ha-
ver tal cousa debaixo de terra, acudirão o Prior, e muitos Religiosos,
e tratarão que se levantasse a campa, desejosos de ver o que haveria
dentro. Tanto que se começou a descobrir, foi tão desacostumada a sua-
vidade de cheiro, que de dentro saliia, que todos pasmavão : e o Prior
tocado de escrúpulo mandou que, como cousa sagrada, e que os olhos
não merecião ver nem os mais sentidos gozar, se tornasse a cerrar, e
cobrir da sua terra com muita pressa, e a cova se abrisse em outra par-
te. Isto nos deixou escrito o mesmo Mestre Frei Niculáo Dias, pessoa de
tal calidade por virtude, e letras, que com justiça o havemos por tes-
temunha maior de toda exceição.
Mas de nossos dias temos muitas experiências semelhantes. O dor-
(.) LcMida do Breviário Uoiii. a ii de SeUnib.
PARTICILAU DO REINO DE POKTLGAL 201
mi tório, que hoje chamamos novo, he fabrica começada do anno de 1560
pêra cá. Foi necessário pêra levar a obra direita tomar parte do cemi-
tério. Ao abrir dos alicesses encontravão os ofticiaes com alguns ossos,
que secos, e mirrados deleitavão o olfacto com tal estremo, que davão
grande occasião de louvar a Deos. Alguns annos despois so abrio outro
alicesse, pêra se fazer o corredor de abobada, que vai pêra o coro. Este
entrou muito mais pola terra sagrada, e assi deu maiores sinais, e mais
vivos do que dizemos nos ossos, que se acharão. Mas, ainda (jue causou
grande admiração, e devação em Religiosos, e seculares o que aqui se
vio, com grande aventagem foi tudo, quando se edificou a capellinha do
lavatório, que fica defronte da porta da Sacristia, obra mais moderna de
todas. Porque, como está toda fundada dentro no cemitério, foi estranlia,
e fragrantissima a suavidade, que se sintio, tanto que se foi movendo a
terra, e mais particularmente cortando ao longo de outra caixa de pe-
dra, que se achou soterrada.
Por onde podemos com rezão cuidar que a santidade d'este Conven-
to, muito mais celebre nos tempos atrás, devia obrigar alguns Reis a
mandarem sepultar nelle os filhos, que amavão, sem embargo de terem
enterros reais : como fez el Rei dom Afonso o Quarto, de quem pouco
ha fizemos menção, que falecendo o Infante dom Afonso seu filho em
idade pueril na villa de Penela o mandou trazer a este Convento, tendo
mais perto Coimbra, e Alcobaça : e nelle está, mas do lugar certo se
tem perdido a memoria (*). O mesmo linha feito primeiro elRei dom Di-
nis seu pai a hum bastardo querido, que chamai-ão dom Fernando San-
ches, e tem sua sepultura na capella dos Santos Cosmos, que he conti-
gua á capella mór da parte da epistola.
Assi tinha o Senhor cuidado de honrar esta casa por todas as vias,
ordenando que os Reis tirassem delia sogeitos pêra serviço de sua casa,
e seu ou da Republica, trazendo-os no Conselho, ou encarregando-os de
Preladas. Mas isto sempre confessaremos com dôr, que sendo honra da
Ordem, de nenhuma cousa lhe resulta mais dano. Porque por huma
parte nos tirão homens feitos, e aquelles, que com virtude, e letras lho
dão lustre, e bom exemplo, e sendo Bispos já não são nossos. Por ou-
tra os que coníinuão as Cortes, e serviço do Rei, por perfeitos que se-
jão, são occasião de relaxação pêra si, e por sen meio pêra outros. Por-
que o religioso fora da cella semi)re anda arriscado a perder. Achamos
(«) Duailc Kunes de Lião na vida ilel Uci áo\i\ Afonso IV. foi. IVò.
202 l.IVRO 11 BA HISTORIA DE S. DOMINGOS
por este tempo no Algarve dons Bispos cVesta Ordem, Dom Frei Rober-
to, e dom Frei Bertolameií. Dom Frei Bertolameu foi criado na doutri-
na do santo Frei Gil, e governou aquella Igreja em tempo dei Rei dom
Dinis (*). O outro foi mais antigo. Em boa troca destes varões, que a Or-
dem deu então pêra Bispos, nos deu no mesmo tempo o mundo pêra
ella hum Bispo de Lisboa. Mas que diremos ao desazo do tempo, e da
gente? Ficou-nos o nome do capellão Frei Martinho, que com elle veio
á Ordem, do Bispo não ficou particularidade. E temos muitos autores
que escrevem o feito, e não ha duvida que foi certíssimo, porque todos
fazem escritor primeiro delle a são Frei Gil(**). Na santa Sé de Lisboa acha-
mos duas memorias, que ao parecer nos dão sem duvida o nome, e en-
terro d'este santo Bispo, e o tempo de sua morte. líuma he de hum
livro antigo das capeilas, e obrigações de defuntos, que diz assi em Por-
tuf^uez: Anniversario do Bispo Sueim que jaz em Sautarem em Sam Do-
mingos dos Frades. Bom indicio de ser Frade nosso enterrar-se em íal
tempo com nosco. O tempo de sua morte se vè por outra verba, que
anda nas margens de hum martirologio muito antigo, em que se decla-
rão as pessoas, porque se fazião anniversarios, e diz assi : IlII. Cal. fe-
bniarij eodem die obijt Sueriíis tertius Episcopns Vlyssiponensis, e abaixo
ajunta Era M.CC.LXX. que responde ao anno de 1232. Bem sei que
lia outro Bispo Sueiro da mesma cidade, e falecido no anno de 1249.
IMas este tem sua sepultura na porta do Claustro da mesma Sé, e chama-
se nas memorias Sueireanes. E ainda que cousas tão antigas sempre tra-
zem consigo algumas duvidas, nenhuma fica no nome, e enterro do nos-
so: e só faz falta não se declarar, que tomou o habito de S. Domingos.
D'onde inferimos, que por não alcançar licença do Pontífice ficaria go-
vernando sua Igreja vestido em nosso habito, como aconteceo a dom
Frei Pedro Centelhas Bispo, de Barcelona, e a dom Frei Raimundo de
Ponte Bispo de Valença, e em França ao Bispo de Perigort dom Frei
Pedro de Santo Asterio (***). Todos três quasi no me^imo tempo do nosso
de Lisboa vestirão o habito de S. Domingos, mas não puderão impetrar
licenças pêra deixarem suas ovelhas.
Dos Frades que achamos empregados em serviço dos Reis, e da
Republica, he o primeiro Frei Pedro Afonso, que foi a Paris assistir ao
[<■) Duarte Nunes na vida dei Rei dom Afunso 111.
(..) Fici Gerardo de Fraqu. nas vidas dos Frades Prégad. 1. 3. c. 3. exempl. 7. Castilho
n 1 1 '>. C. 07.
(...) Crunic. de Aiagão 1. !. c. 1. e 8 M. Frei Hern. de Guido.
PARTICULAR DO RKINO DE PORTIT.AL 293
juramento, que se tomou por ordem do Papa, e em nome do Reino, ao
Infante dom Afonso Conde de Bolonha : os segundos são dons, que atrás
dissemos, que seguirão em sua retirada a Casteila a el Rei dom Sanclio
Capello. Apoz estes se servirão os Reis sempre de Frades desta Ordem,
assi na Corte, e Conselhos, como em negócios seus particulares. El Rei
dom Afonso Terceiro escollieo por seu testamenteiro a Frei Giraldo Do-
mingues, Mestre, e Leitor na Provinda, o qual em huraa memoria do
Reino do anno de 1277 está nomeado com este titulo: Frater Geraldus
Ordinis Pnedicatorum Coiiúliarius Regis. El Rei dom Dinis seu filho te-
ve consigo primeiro a Frei Durando, despois a outro Frei Giraldo Do-
mingues, e Frei Pedreanes, e a todos três achamos assinados em cartas,
e confirmações, e negócios importantes deste Rei des do anno de 1294
até o de 1311, como nos foi mostrado da torre do tombo, em Uvros
delia polo Licenciado Lousada atrás nomeado. Escrivão d"aquelle real
Cartório. Outros deste tempo pudéramos ajuntar, que deixamos por bre-
vidade. Os que polo tempo em diante andarão em semelhantes trabalhos
irão apontados em seus lugares.
CAPITULO XLI
Da demção, e virtudes do Padre Frei Manuel de Beja, e do irmão Frei
Diogo das Vinhas. E da jornada que fez d índia o Padre Frei Pedro
Coelho.
Requeria este Convento só liuma Crónica inteira, pêra memoria dos
sojeitos, que nelle florecerão. Mas foi providencia Divina, que pêra não
fazermos inveja a todas as Religiões juntas, de huns faltasse quem es-
crevesse, e de outros se perdesse o que havia escrito. E assi acontece
que de tantos annos não temos quasi que dizer, clamando em favor de
todos a terra, em que se tornarão, tornada em pastas aromáticas com a
corrupção das sepulturas : e o Ceo, de que gozão, com as luzes, que des-
pois mostraram. Testimunho tão celebre, que quando houvera grandes
maravilhas escritas, nos forrava o trabalho de as repetir. Todavia por
mostrarmos o cuidado, com que trabalhamos em busrar, (^ tirar a luz
tudo, faremos memoria de alguns modernos, parte que nossos pais ai-
cansaram, parte que nrjs conhecemos, e tratamos.
Destes o mais antigo foi o Padre Frei Manoel de Beja. e por huma
:2í)l MVP.O II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
SÓ parliciilari(l;ulc qiiizerão os que o conheceram, que entendêssemos
seu grande espirito: nem nós diremos outra. Esta era que todas as ve-
zes que celebrava, o fazia com tanta devarão. e tão inflamado afíeiío,
que seus olhos se íornavão dous rios de lagrimas, e não liavia quem os
tevesse enxutos, vendo-o. E na verdade, como este Divino sacrifício foi
huma memoria, e recapitulação de todas as maravilhas que o misericor-
dioso Deos fez em favor do género humano (*), com rezão faziam os homens
juizo das virtudes, que moravão na alma deste ileligioso, polo respeito,
e veneração com que o vião todo enlevado, e absorpto na presença, e cele-
bração d'elle. Deos não teve mais que dar nem o mundo mais que de-
zejar. Os que aqui estamos tibios, ou descuidados, ou adormecidos, he
porque estamos longe não só de Santos, mas de conhecer bem o que
temos entre mãos.
Do mesmo tempo foi Frei Diogo das Vinhas irmão leigo, e filho doeste
Convento. Vivendo com raro exemplo de virtude, e religião huma vida
mui larga, particularmente se esmerou na obediência. Porque pêra tu-
do o que lhe mandassem os Prelados, e a qualquer hora, e tempo que
fosse, era tão leve, tam fácil, e prestes, que causava admiração. E sen-
do muito velho, e dando a velhice muitas licenças, tão alegremente obe-
decia, quando era do setenta, e mais annos. e até que acabou a vida,
como na idade mais florida. Mas não tinha menos de humilde, que de
obediente. Sendo já de oitenta annos descompoz-se com elle hum raáo
homem, e como ministro de Satanás, que o quiz por tal mão tentar,
alreveo-se a afrontar aquellas veneráveis cans com huma enoi'ine bofe-
tada. Ficou quieto, e sem fazer movimento, e tão desassombrado com
a injuria, como se o rosto não fora seu. Só, porque via que em o tra-
tar assi não tivera rezão. lhe perguntou por ella, mas com muita bran-
dura : á imitação de Christo nosso bem, quando em semelhante desati-
no, disse ao criado deCaifas: Quidme ccedis?^*) Fião muito de Deos os
humildes, e então vivera cora mais segurança, quando o mundo cuida
que os abate, porque quanto mais decem á vista dos homens, tanto se
ievantão nos olhos de Deos. Esta confiança fazia a Frei Diogo tão ani-
moso, que nenhuma cousa da terra sintia, nem temia. Aconteceo hum
dia virar-se a eiie furiosamente hum boi feroz, e bravo, em lugar que
não teve tempo pêra se valer dos pés. Virão de longe o perigo alguns
(.) Ps. 110.
{.») Luc. 48.
PARTICULAR DO REINO DE PORTlT.Af. 205
Religiosos, derão o Frade por morto : porque como era tão velho, pe-
queno encontro bastava pêra o acabar. E elie esteve tanto em si, que
sem se bollir, quando o animal estava já com elle, não fez mais que co-
mo com império mandar-lhe com a mão, e com a voz que se desviasse,
dizendo: Vai-te pêra lá besta fera. E só isto bastou pêra se afastar logo
feito hum cordeiro. E o que mais espantou foi, que em passando d*alli
tornou a entrar em fúria, e braveza, como d'antes.
Mas, porque não faltasse nos filhos d'este Convento, e desta villa
nenhum género de espirito dos que muito se estimão no serviço de Deos,
temos hum natural d"ella, e íilho d^elle, que com aquelle animo com
que em tempos muito antigos se desterravão voluntariamente das partes
de Itália alguns Religiosos d'esta Ordem pêra Tartaria, e Preste João,
outros pêra irem pregar á Pérsia, e fundar Conventos (como fundarão,
e ainda hoje não estão apagados entre os Arménios) se embarcou de
Portugal pêra a índia novo, e valeroso peregrino (*). Digo novo, porque
ainda que des dos primeiros annos do descubrimento da índia, sempre
forão alguns Religiosos nossos, como adiante veremos, e residião n"ella,
pêra consolação dos naturais qne acom.panhavão, e pêra irem tentando
os ânimos da Gentilidade : com tudo em communidade, e a fim de fun-
dar Conventos, nem erão idos até então nenhuns, nem forão se não al-
guns annos despois. Assi devemos ao Convento de Santarém dar-nos o
primeiro Prelado de Pregadores Apostólicos desta Ordem pêra a índia.
Este foi Frei Pedro Coelho grande letrado, e famoso Pregador. A causa,
e fim de sua ida se escreve na forma seguinte. Polo nome do Preste
João, ainda que corrupto, e diíferente do próprio, he conhecido o grande
senhor das terras da Ethioj)ia, que na índia se chamão vulgarmente ter-
ras do Abexim. Chegara á Corte, do que de presente reinava, e andara
nella devagar hum João Bermudes, em tempo, que padecia cruel guerra
de hum Rei Mouro seu vizinho poderoso de armas, e instrumentos de
pólvora, e fogo, cousa não conhecida nem vista até então em Etiópia.
Informou-o, que o poder, que assombrava a índia de muitos annos atrás,
era de hum Rei de Ponente, que seguia a lei de Christo, e professava
sua fé, a qual era a mesma dos Abexins. Enclieo-sc o Preste de espe-
(♦) .lofio (ie B:uTos Dec. ,3. 1. 5. c. i. Slnrco Paulo Yencto. F. João dos Santos 1. i. da
Chrií^tandade Orient. c. i. Serafino Razzi na Croii. de S. i)om. f. 295. Paramo 1. %. t. i. c. 9.
de Oiig. liujuiíit. Commentanui de AlIbiiso de Albuijiierque p. i. c. i. i 2!. Hiigo do Cou»»
Dec. ^1. 1. I. c. 10. Caslaiihe da 1. 7. c. li. da Ind. Os primeiros fundadnr.>;-í da (.ongregação
da Índia íorão era Março de VòiS. Frei João dos Santos 1. 2. c. 2. de vuna bistoiia da Cris-
tandade Orient.
iíOG LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
i-anças, que leria nelle valedor contra seus enemigos, Despachoii-o com
cartas pêra o! Rei de Portugal, e com ordem que passasse a Roma, e
tratasse com o Summo Fontifice matéria espiritual de sua redução á
obediência da Sé Apostólica, e com el Rei a temporal de soccorro de
gente, e arlilheria contra os .tíouros de Zeila. Entrou Bermudes em Ro-
ma: foi despachado do Papa Paulo III. com titulo de Fatriarcha da Etió-
pia, e com nome de dom João Bermudes, e veio a este Reino encomen-
dado a el Rei dom João. Despacliou-o el Rei também com boa satisfa-
ção ao requerimento do Preste: e pêra ajudar o Patriarclia no edificio
das almas, mandou ao Pi'ovincial que lhe desse Religiosos pêra o acom-
panharem, e ailnmiarem aquelles estendidos Reinos da cegueira de mui-
tos erros em que vivião. Foi nomeado pêra esta sagrada missão o Padre
Frei Pedro, por concorrerem nelle as partes necessárias pêra a empre-
sa, e feito Prelado de cinco companlieiros, que animosamente aceitarão
o trabalho com os olhos em Deos, e na obrigação do habito. Partirão
todos nas nãos de viagem do anno de 1539, e chegarão a salvamento a
Goa (*): mas não passarão á Ethiopia(**), porque Hroimpedio quem tinha
o governo da índia, com grande sintimento do Patriarcha, e não menor
dos Religiosos, que como varões Apostólicos tinhão já tragado na deter-
minação todos os medos, e oííerecida na vontade a vida ao talho : fal-
tou-lhes este, não lhe fatiarão elles. Todavia licarão na índia servindo
no ministério de sua profissão, e apostados a seguir o primeiro propó-
sito, como tevessem licença,
CAPITULO XLII
Vida, e morte do irmão Frei Diogo de Saldanha, fillio deste Convento.
A estes três ajuntaremos hum só, que tratamos, e alcançamos, e não
tem menos aução pêra ficar nestas memorias, que aquelles que concor-
rerão nos princípios deste Convento. Viveo em Santarém, e teve casa,
e rendas, como natural da villa, António de Saldanha, fidalgo honrado
por calidades de sangue, e pessoa: a que ajuntou bons serviços feitos
aos Reis dom Manoel, e dom João na índia, e neste Reino, dos quais
foi o ultimo ir por Capitão mór da armada, com que o Infante dom Luis
(•) Dom Jorio Bernmde? no tratado de sua erabaixada c. 4.
("i] í roi João dos Santoã 1. 2. c. i. da varia hislor.
rARTICtl-AR DO RRINO DF, PORTlT.Af, 297
passou á empresa de Tunes em companhia do Emperador Carlos V. Era
j/i tão velho, quando foi nesta jornada, que fazendo-Ihe elRei dom Jono
da volta delia algumas mercês pêra em sua vida, porque não tinha íi-
Ihos, nem era casado, se houve por agravado, dizendo aos ministros, (assi
o ouvimos contar a quem o alcançou), que não havia por mercês as que
juntamente não erão pêra seus filhos. Soube-o el Rei, festejou o agi^avo
fundado em requerimento de homem meio enterrado por velho, pêra
filhos não nascidos. E como era Príncipe prudente, e benigno, man-
dou-o satisfazer a seu gosto. Seguio ao despacho o casamento, e ao ca-
samento hum exame de íillios. Foi a molher dona Joanna de Mendoça
filha de Ayres de Sousa, Gommendador das Commendas de N. Senhora
de Alcaçava, e Rio maior da Ordem de Avis. Tinha esta casa particular
devaçdo ao Convento de S. Domingos, que andava nella como por he-
rança: e devia ter principio, ao que parece, no jazigo, que seus passados
tinhão eleito dacapelia mór, que era sua. Continuou nella Diogo de Sal-
danha, que assi havia nome o filho mais velho, ficando por morte de
seu pai muito moço. E o mesmo fez despois de casado, empregando
muitas horas em tratar com os Religiosos, e acudindo a suas necessida-
des com muito amor. Mas levando-lhe Deos sua molher dona ínez de
Távora a poucos anu os despois de casado, logo fez resolução de se en-
tregar todo ao Padre S. Domingos, e á sua Religião. Assi começou a
proftíssar huma nova ordem de vida em continuação de exercioios espi-
rituais, oração, e penitencias, e frequência de Sacramentos. Tem os cou-
sas Divinas huma excellencia, que, quanto mais se usa delias, mais sa-
])orosas se achão, e mais se fazem apetecer. Desejava, e morria por pas-
sar adiante. Mas era impedimento hum filho, que só Ihelicou. de quem
sendo pai, fazia também oflicio de mãi em falta da natural. E havia ne-
gócios de sua fazenda com dependências da coroa real, a que era for-
çado acudir com habito secular. Escolheo hum termo, que a muita gente
estivera bem, que foi ser religioso sem habito, nem tonsura de Religião:
e fazer vida monástica em trajos Sí^cuiares. E, porque ainda isto havia por
pouco, tomou cella em casa de noviços, seguia as Communidades com elles,
feito minino entre mininos, cumprindo quasi á risca o que disse o Senhor,
que convinha peia a saivi^ção, que era nacer de novo. Assi passou mui-
tos aiinos com hum grande trabalho de sempre noviço, e sempre mi-
nino no estado, sendo na idade cada dia mais velho. Porque, como os
negócios não tomavâo termo pêra o deixarem professar, nunca passava
29B LIVRO II DA HISTORIA DF S. DOMINGOS
dc nnvii;o puro, ficando no primeiro andar dos mais humildes mininos.
E com tudo resplandeceo sempre n^elle verdadeira humildade em huma
grande reverencia ao Mestre, amor, e affabilidade com os pobres irmão-
zinhos, e notável respeito a todos os Padres. E tal era o exemplo que
dava, que sendo este género de vida em todo estremo encontrado com
as leis de nossa Ordem, saneava, e supria tudo com sua virtude. Por-
que, se parecia indecencia hum homem de ferraroulo, e sombreiro, e
muito entrado em annos viver entre mininos ; tomado o negocio por ou-
tra parte, marcava-o a vida, que fazia, polo mais reformado noviço de
quantos o acompanhavão: tão composto, tão surdo, e mudo, e tão nada
em sua própria estimação, que não aparecia nelle mais que sombra de
homem, proceder de innocente, feitos de Santo. Correrão annos, nunca
se vio mudança : hum mesmo estilo, e teor de vida seguio sempre. Ca-
sou seu filho, fez-se avo de netos, e muilos netos: não só não alterava
hum ponto com as cans, e idade maior, mas reverdecia pêra abatimen-
to de mais noviço, e mais minino. Por mais de vinte annos perseverou
leigo nas obrigações de frade: até que Deos foi servido chegar as cou-
sas de sua casa a estado, que pode dispor das de sua alma a todo seu
sabor: como fez na entrada do anno de 1392 vestindo o santo habito
com estremos de alegria. lAlas a poucos mezes deste gosto, lhe bateo á
porta liuma visita do Ceo, com huma forte doença, a qual inda que não
veio sobre muita velhice, achou o sojeito gastado de penitencias, e tão
fraco que o venceo depressa. Desconfiarão os médicos. Declarou-lhe o
Prelado o ponto em que estava. Ouvio elle o desengano com muita se-
renidade no sembrante, testimunho certo da que lhe ficava dentro na
alma, e respondeo com render graças pola lembrança, e pedir os sacra-
mentos pêra a jornada que se lhe denunciava : acreceníando, que de
acabar sua peregrinação nenhum pesar sintia : antes se hum grande pec-
cador podia falar assi, levava muito gosto de morrer, pois morria em tal
casa, e entre tais Religiosos : só Ih o aguava ver que lhe tolhia Deos
por seus peccados o que toda a vida desejara, que era entregar-se á
Ordem por solene profissão. Porque na verdade não podia negar que
muito suspirava por ver o fim áquelle anno, que havia de ser meio de
ficar filho de S. Domingos por voto, como era por vontade, e estimara
grandemente conceder-Uro o Senhor. Moverão-se á piedade os Padres,
porque sabião todos que erão rezucs saldas da alma. Propoz o Prior em
conselho fazer-lhe profissão por hum Breve, que temos do Papa Pio V.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 290
expedido a 23 de Agosto de 1570 que começa, Summi Sacerdoíij, efe.
polo qual concedeo aos noviços da nossa Ordem (*), que estando, ajuízo de
medico, em arti.ío de morte, possão fazer solemne profissão, dado que
não tenhão satisfeito com a disposição do direito Canónico, que manda
senão f^iça, nem seja valiosa sem o cumprimento de lium anno inteiro
de provação. Ajuntarão as rezões que havia de parte de tal sojeito, pro-
vado, e approvado com o discurso de vinte annos, que he a tenção da
lei : e o que ganhava a Ordem, e aquelle Convento, com ficar contado
hum tão religioso varão no numero de seus filhos. Foi o Senhor servi-
do pêra mais consolação sua, que era véspera do dia, e festa de Nosso
Padre, quando se lhe deu a nova, e logo vio a execução d'ella. Fez-lhe
o Prior profissão em presença de seu filho António de Saldanha, e de
outros fidalgos, que se juntarão. E pedindo-lhe o filho a benção, lani ou-
lh'a, encomendando-lhe que fosse sempre muito amigo, e servidor da
Ordem. E como estava cheio de contentamento por se ver professo, de-
sejando mostrar-se agradecido a tamanho beneficio no pouco que então
podia, disse-lhe mais, que estivesse advirtido que no dia seguinte se fa-
zia a festa de seu Padre S. Domingos, e tevesse cuidado de mandar pêra
o jantar dos Padres o seu costumado prato, (sohia o professo todos os
annos por tal dia acrecentar o jantar dos Frades com huma particular
iguaria pêra toda a communidade), e ajuntou, que lhe durasse por amor
d'elle a lembrança, e a obra pêra toda a vida. Assi acabou com glorio-
so fim dias bem vividos, ganhando indulgência plenária, e remissão de
peccados, em forma de Jubileo concedido aos noviços, que na hora da
morte professão, e outras muitas graças, que todos os Religiosos alcan-
ção naquelle artigo. Foi sepultado na terra sagrada do cemitério com-
mum do Convento, gozando já do privilegio de Pieligioso, sem embargo
de ter enterro na capella mór, de que era legitimo padroeiro, como te-
mos dito.
CAPITULO XLIÍI
Das santas Relíquias qne ha nesle Convento.
Porque não faltasse nada de quanto se podia pedir, e desejar pêra
credito, e lionra de huma casa santa, ordenou Deos enriquecer esta com
huma preciosíssima relíquia de seu miraculoso sangue, posto por sua
{•) Manoel Rodrig. tom, 3 Qua'«t. Reg. Qu.Tít. 13. art. 6
^00 LIVUO II DA lUSTOniA DE S. DOMINGOS
allissima misericórdia clara, e patentemente á vista de olhos peccadores:
milagre perpetuo, e perenne, que dura, e permanece assi ha mais de
trezentos e cimpienta annos pêra coníirmação da Fé, e huma inelTavel
consolação dos Catholicos, e grande confusão dos cegos, e miseráveis
liereges, que podem acabar consigo, privar-se do maior, e mais aíta bem
de todos os bens. O successo he autentico, e certissimo, a historia te-
merosa : mas polo fim, que teve, saborosíssima. E aíTirmo, que quando
nos não obrigáramos a escrever esta Crónica da Ordem a outro fim
mais, que pêra com occasião d*ella espalharmos polo mundo tão estra-
nha maravilha, fora bastante rezão pêra trabalharmos com gosto. E dou
infinitas graças ao Divino Autor delia, por me dar mão, e forças pêra
chegar a escrevel-a, como deu olhos pêra a ver algumas vezes. Reinando
em Portugal el Rei dom Afonso Terceiro, que foi Conde de Bolonha,
acontecco na villa de Santarém poios annos do Senhor de 4266, que
huma pobre molher do povo, não achando em seu marido igual corres-
pondência de amor, ao que a seu parecer lhe merecia, ou por ser áspero
de condição, ou por se divertir em mocidades : e desejando mais, que
a própria vida, achar algum meio de o reduzir, e abrandar, deu conta
de si a huma molher de lei, e nação Judia, como n"aquelle tempo havia
muita gente d"esta em Portugal, que em bairros separados vivião á sua
vontade por todas as terras, e lugares grandes. Devia ser de humas ve-
lhas, que por género de vida com qualquer conhecimento de ervas, ou
experiências se fazem .chamar Mestras no povo : e ás vezes passão a tra-
tos, e pactos com o Demónio. Esta como ouvio as queixas da Christam,
e conheceo a raiz d'onde procedia a ânsia com que vinha, julgou que
tinha sitio pêra fundar quanto quizesse n'ella. Promete-lhe fácil cura,
co;iio de sua parte ajudasse com o que podia. Que não faria com tal
promessa quem outra cousa não buscava ? A tudo se oíTereceo quanto
lhe quizesse mandar. Instruída pola Judia do que havia de fazer, as ho-
ras lhe parecião annos pêra a execução. Tinha sua morada na freguesia
de Santo Estevão, (aponta a historia (lue era na rua dos esteireiros), vai-
se pola manham á Igreja, pede confissão, e communhão a titulo de in-
disposta, os tempos então pouco acautelados, ella determinada, e cheia
de paixão, e molher : ao receber da sagrada Hóstia teve atrevimento, e
manha pêra lhe por as mãos profanas, e immundas, tiral-a da boca, e
atal-a na ponta da beatilha que trazia soqueixada, (chama a lingoagem do
povo beatilha a hum género de veo, ou touca grossa com que as mo-
PAUTICri-AU DO RKINO DE PORTUGAL 301
Iheres plebeias cobrem por lionestidade cabeça, e garganta), e o que
mais he, que logo se poz em caminho pêra a ir entregar ao Judaísmo.
Mas não pcrmittio o Senhor, que em huma villa tão ilhistre, e onde tan-
tos Santos, e tanta santidade havia, lhe fosse feito tamanho desacato,
como ser n'ella de novo entregue a quem de novo pretendia tornal-o a
crucificar : e pêra grandes bens, e honra de Santarém, converteo a afron-
ta, que se aparelhava cm hum soberano género de misericórdia. Cami-
nhava a atrevida, e mais que infiel fêmea pêra a Judiaria, e caminhava
feita andor, e Custodia de Christo Jesus Deos trino, e uno poderosissi-
mo, e soberanissimo, como padeceo por nós, e como está glorioso nas
alturas do Ceo Impireo. Mas eis que começão a regar-se as ruas de san-
gue sagrado, como n'outro tempo as de Jerusalém. Oh ineffavel m.ara-
vilha ! Lingoas de Anjos houverão de falar n"este passo, que todas as
humanas são pobres, fracas, e indignas pêra tão alta matéria. Virão huns
homens o sangue, que corria até o chão, notarão as roupas da molher
tintas n'elle, perguntarão-lhe espantados, que cousa era, ou que feridas
levava. Olhou ella pêra si, vio que sabia do nó da beatilha, sobresaltou-
se, c perturbou-se toda. Parece que ajudarão os Anjos a perturbação,
pêra que mudasse conselho. Dá volta pêra sua casa, tira a beatilha, en-
cerra-a com o Divino deposito dentro de huma arca. Passou o dia sem
se determinar no que fana : senão quando cobrindo-se o mundo de noite
escura, amanhece no aposento dia, e resplandor celestial. Acorda o ma-
rido pasmado: desmaia, e torva-se de novo a molher. Notão ambos, que
de huma parte baixa sahião raios mais claros, e mais ardentes que do
Sol do meio dia. Não se atreveo a autora do sacrilégio a mais segredos,
conhecendo que procedião da arca, que ali tinha sen lugar, e da mesma
causa que de dia vertera sangue. Contou tudo o que era passado sem
encubrir nada. Acudio o homem, correndo ao Prior da Igreja : juntou-se
o povo todo: foi grande a revolta, e o espanto, grande o alvoroço, e de-
vação. Tratou-se primeiro de huma solene pompa e procissão pêra tira-
rem o Senhor d'onde estava. Em segundo lugar entrou em duvida que
parte, ou que Igreja seria bem honrar com elle. Era vulgo, foi grande
a variedade de pareceres. Huns propunhão S. Domingos allegando que
estaria bem servido, onde tudo erão Santos : outros S. Francisco, onde
não faltavão : outros querião-no pêra a Igreja matriz. E os fregueses de
Santo Estevão, inda que poucos, e pobres requerião pola sua Igr'!Ja, com
a justiça de haver saido o mesmo Senhor d'ella. Mas sendo tudo pobre
302 LIVRO II DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
pêra tamanho hospede, era-o mais que tudo a freguesia. E nao falta quem
affirme com bons fundamentos, que o primeiro possuidor de tão alta re-
hquia foi o Convento de S. Domingos. Mas no tempo presente he cousa
certa, e sem duvida que a possue a própria freguesia, e por essa rezão
foi perdendo a Igreja seu antigo nome, e tomando o que hoje tem do
Santo milagre, que por excellencia lhe compete. Com as esmoUas, e con-
curso dos íieis se tem feito hum luzido templo cm edifício, e rendas, e
de ordinai'io anda o Priorado d'elle em pessoas de muita calidade. E
hoje o possiie o Doutor Luis da Silva de Brito, natural da mesma villa.
Correndo o tempo foi o Senhor servido de juntar a esta Divina Relíquia
duas circunstancias, que cada huma per si he soberano Milagre, e am-
bas juntas lhe acrecentão tanta autoridade, e grandeza, que a fazem única
110 mundo, (entre outras que sabemos da mesma calidade) com grande
honra do Reino de Poi'tugal, e da villa do Santarém. A primeira he, que
sendo, como foi, conselho, (e devia ser nacido dos Frades de S. Domin-
gos, que serião consultados como letrados, e Santos), recolher-se com
cera todo o sangue que havia por fora da beatilha, e da sagrada Hóstia,
e compor-se também de cera, como de matéria menos corruptível hum
género de recolliimento, ou custodia, em que se guardasse tudo, (devia
faltar ouro, e prata, como em idade pobre), aconteceo a cabo de annos,
que visitando o Prior a santa Relíquia, ou querendo-a mostrar ao povo,
como então era costume, na festa de Corpus, achou com grande espanto
recolhida a hóstia sagrada dentro de huma ambula de cristal, de tal
feitio, que claramente parece obra, e ministério de Anjos tal recolhimen-
to. Porque tendo a ambula o assento da largura, e forma de huma moeda
de oito reales Castelhana, sobe em forma piramidal com hum collo alto,
e estreito : e dentro parece o corpo da partícula Sagrada do tamanho da
metade de hum tostão grande, e n"ella humas nódoas em parte quasi
pretas, como de sangue pisado, e em partes vermelhas, como de sangue
fresco, e o resto branco, e alvo da cor das Hóstias frescas : e no fundo
do vaso se devisão humas gotas grossas de sangue, vermelhas humas, e
outras quasi pretas. O que tudo argue que não haveria mãos humanas
que tevessem poder nem ousadia pêra entender em tal obra (*). He a se-
gunda circunstancia, ou segundo milagre continuado des dos primeiros
tempos até a idade presente servir-se o Senhor pêra confirmação de fé,
(*) o P. João de Luee. na vida do V. Frãcisco Xavier. Pcro de M;uis na liiít. deste Santo
Biiijre. t. 4.
PAIITICULÂU DO REINO DIÍ POIITUGAL 303
c cordial consolação das a^.mas devotas, de se representar em varias fi-
guras aos olhos de muitos, como o deixarão escrito algumas pessoas de
muito credito, e nós o ouvimos a oiilras : e o declara liuma escritura ou
relação antiquíssima, que se guarda no cartório da mesma Igreja por estas
palavras : Et apparet inlus in ampulla multis, ia disersis similitudinibus
hominis: quandoque in cr nce, quando que in grémio Matris, quanúoqne
aliter, pro vt placet et.
Deste tão famoso milagre tem hoje o Convento de S. Domingos de
Santarém huraa fermosa parte : que he hum pedaço da heatilha todo ca-
sangoentado, e tão vermelho de presente, (sendo o successo tão antigo),
como se de próximo o ensoparão em sangue fresco, e grosso, e muito
vermelho. E está guardado em hum viril de cristal, no fundo do qual
se vem mais dous pelouros de huma cera descorada tamanhos como grãos
de comer, que forão parte da mesma, com que os Sacerdotes forão re-
colhendo algum sangue, que havia pola arca, e fora da beatilha. Este pe-
daço dizem que será de hum palmo de comprido, e três dedos de largo.
Em tempos atrás estava na Sacristia, recolhido em hum sacrário de pe-
draria que se fez pêra elle, encaixado na parede fronteira da porta, que
sae pêra a Igreja, e dourado por dentro, e por fora, e cercado de pin-
turas, e letras acomodadas ao mysterio. O sitio pêra segurança, e res-
peito he tão alto que se lhe não podia chegar facilmente : e ardião diante
duas alampadas perpetuas. xVqui esteve mais de duzentos e sincoenta
annos, e se mostrava a pessoas nobres, e devotas. Despois pareceo que
estaria mais venerado no Sacrário da Capella mór, como em seu próprio
lugar : passou-se a elle, e ahi está agora.
/V occasião, de que naceo vir ao Convento tamanha, o tão preciosa
parte, não consta ao certo, nem ha escritura que o diga. A tradição dos
Frades antigos era, que logo no principio, (como atrás fica dito), viera
toda a Santa relíquia ao Convento : e pouco despois arrependidos os
freguezes de sua sobeja liberalidade repetirão por justiça o que tinhão
dado por cortezia : e houvera longo litigio : e por bem de paz, ficara
aos Religiosos a parte que temos. Assi o querem significar humas pala-
vras de huma relação muito antiga do mesmo milagre, que andava no
Cartório da sua Igreja, que dizem assi : In ccenobio Prcedicatorum sema-
tur qucedam particula eiusdem miraculi in ampulla decrislalio reposita in
sacrário, quam tunc temporis ohtinuerunt reliijiosi multa sandilate proís-
tanles. E que houve escrituras mais antigas, a mesma, que tiaz o Li-
oOi LIVRO II DA HISTOIUA DE S. DOMINGOS
fenciado Pedro de Maris, em sua historia, o aponta dizendo no fim do
prologo, secundiim inueni scríptvm ab antiquis(*). xV mesma tradição se con-
firmou por homens velhos, tirados por testimunhas em hum sunmiario
que o mesmo Maris ailega feito por mandado do Cardeal Infante dom
Anrique, que succcdco no Reino a el Rei dom Sebastião. Era o Cardeal
juntamente Arcebispo de Lisboa, e como Prelado mandou fazer a dili-
gencia, por hiim requerimento que lhe íizerão os Beneficiados do Santo
Milagre : e por ella pareceo bastantemente o que temos dito, e por isso
se guardão os processos no Cartório do Convento.
Pudéramos escusar tratar de mais relíquias á vista da que temos
dito : mas por dizer tudo, temos nesta casa a capa inteira de que N, P.
S. Domingos usava quando faleceo, peça de grande estima por hum pe-
nhor de seu espirito, como o de outro Elias. Atrás fica dito quem a deu,
e quem a trouxe (**). He de estamenha grossa, aa^rmuito deslavada: do
que he causa a antiguidade, e o ser tinta sobre vermelho. O capello está
cozido com ella, e a aba he muitocurla. Guarda-se em huma caixa de prata.
Das onze mil Virgens temos aqui grande cantidade de relíquias, e
com ellas outras do Martyr S. Gerion. Trouxe-as a este Convento hum
Prior d'elle, tornando de hum Capitulo, que se celebrou em Colónia
Agripina anno de 1403. Estão autorizadas com certidão de quem as
deu, que foi o Prior da Casa Frei Guilhermo de Aquisgran. O nosso,
que as reccbeo, se chamava Frei Gil Martins.
Falta-nos pêra cerrar este capitulo, e a relação d*esta casa, apontar
as mercês que goza dos Reis, e Prelados : e acho que por Abril do anno
de 1501 lhe deu el Rei dom Manoel a Ermida de N. Senhora da Serra,
situada em meio dos montes da coutada real de Almeirim, onde he toda
a recreação dos Reis. Pola qual resão se houve a Ordem por obrigada a
fazer n'ella Convento formado. E porque hoje o he, ficará o mais que
pudéramos dizer d'elle, pêra quando chegarmos com a historia aos annos
de sua fundação, e particular titulo.
Os Illustrissimos Metropolitanos de Lisboa tem sinalado huma boa
esmola á casa de Santarém, com obrigação de huma lição piiblica, e
quotidiana de Casos de consciência na Igreja de Santa Maria de Alcaçava,
pêra a qual se nomeão sojeitos de sufficiencia nos Capítulos Provinciais,
sem embargo que no Convento, como de ordinário sustenta qnarenla, e
cinco Religiosos, ha sempre muitos de nome em púlpito, e letras.
(•1 Ha bist. Ho Sanlissimo Milagre c. 3. f. 3í.
(••) L. 2. c. 20.
LIVRO TERCEIRO
DA
HISTORIA DE S. DOMINGOS
PARTICULAR DO REINO, E CONQUISTAS DE PORTUGAL
CAPITULO I
Da fundarão, e princípios do Convento de Coimbra.
Foi primeiro ramo da planta, que nos deu na serra de ■\Iontejunto
aquelle pequeno grão de mostarda, n'ella semeado, e cultivado por mão
de dom Frei Sueiro Gomes, o Convento da cidade de Coimbra, morada,
e Corte por largos annos dos Reis d"este Reino : despois illustre Acade-
mia de todas as scicncias d'elle : e tão antiga em sua origem, que refere
a fundação do seu castello ao Thebano Hercules. Os meios, e modos,
porque teve principio este Convento deixamos contados no começo d'esta
Historia, quando contamos como foi chamado dom Frei Saeiro, ainda
antes de Provincial, da Infante dona Branca, filha dei Rei dom Sancho
Primeiro, e juntamente do Bispo de Coimbra, e como teve logo sitio pêra
fundar, por obra, e favor d"esta Infante, e da Rainha dona Tareja, sua
irmam(*), e guardamos pêra este lugar a narração mais copiosa. He pois
de saber, que na ribeira direita do rio Mondego, que lava a cidade, no
plano, onde hoje vemos assentada grande parte da povoação da ponte
pêra baixo, havia em tempos antigos muita frescura de pumares, que
chamavão o Figueiral. Entre elles pareceo á Infante dona Branca lugar
accommodado pêra fundar Convento, hum posto que havia nome a Fi-
L. 1. c, 11.
voL. I. 2D
306 LIVIIO m DA IIISTOÍIIA DE S. DOMINGOS
gueira velha. Porque por liuma parte pêra a communicação da cidade
não ficava longe, opor outra senhoreava o Rio, quen'aquella idade, (quem
o crerá hoje?) corria fundo, e alcantilado: e vinha o silio muito a pro-
pósito pêra a commodidade, e recreação dos Religiosos. Começando a
mandar comprar as propriedades, veio á noticia da infante dona Tareja
sua irmam o qr.o passava. Era esta Senhora irmam mais velha de dona
Branca, fora casada com el Hei dom Afonso de Lião : despois de terem
filhos foi separado o matrimonio, e tornou-se á terra, em que nacera. E
como Princeza religiosa, e pia, quais forão sempre todas as d'este Reino,
inda que sintio ter-lhe sua irmam ganhado por mão na determinação,
não quiz por isso perder o merecimento de entrar á parte em obra tão
santa, c tratou com elia que partissem entre si a despeza. E forão os
termos tão cortczes, e tão de quem ambas erão, que a Infante lif o houve
de conceder. Constou-nos pola mesma carta, que a Rainha passou das
compras, que fez do sifio, e propriedades que n'e!le havia : a qual os
Frades lhe pedirão alguns annos despois, pêra lhes ficar por titulo, e
poder constar em todo tempo de como as houverão. E porque be de
ver a nota, a lançamos aqui, e he a que se segue.
In nomhie Palris, et Filij\ et Spiritus Sancti. Ainen. Ego Regina
Bomna Tarasia, filia Rcgis Sancij Primi de Poringallia, facio notam oní-
nibus prcesentem paginam inspecluris, quòd ciim soror mea Regina Domua
Blanca vclletfaccre Monasterinm Fruíram Prcedicatorinn ápad CoUimbriam,
ego cupiens in tam grandi bono hiibere partem, rogani iam dictam sororem
meam, vt placeret ei^ quód ego emerem hwredilatem, in qna posset fundari
Monasferiíim. et aUa fieri, qiim necessária cssent Fratribus ibidem mora-
turis. ípsa ergo libenler et Itberè concesit milii quod petebam, méis pre-
cibus incHnata. Time ego emi htereditates istas de própria pccunia in ilh
loco, qiii dicitur, Ficiis vetns^ ab Abbatissa de Loruono Domna liaria
Alfonsi, et Conucntu suo emi kereditatem qnantam Monasterium de Lorua-
110 habebat pricdicto loco per cenlum triginta Morabitinos. Et d Pelro 3Iu~
nionis Priore, et clericis Sancii Petri de CoUimbrín quantum in illo loco
habebat ipsn Ecclesia per centnm viginti Morabitinos, et d Domno Tho-
masio PrioíJi et ch^icis Sancti Sahiatoris quantum ibi habebat ipsa Eccle-
sia. Et dedi eis pro eo, quod ibi habebat ipa Ecclesia, tria casalia inBrase.
Et emi illi casalia ab Abbatissa de Cellis de Yimaranis Domna Fruila et
(Jonvcntu suo per duccntos Morabitinos. Prcr.terea emi ab hominibus, qui
PAIiTlCULAR DO REINO DF. PORTUGAL 307
morahanlur in prcodiclis ltj;reditatibus, et possidebnnt illas ml fórum et
consuetudinem suam, qnam inde fuciebant Manaste rio, et dcricis supradi-
clis, fotuin íits, quod inde Iiabebant, cl etiam do mos in quibus moraban-
tur, sicut placuit illis. Tunc istam totam hcBreditalem, comparatam et ex-
pedilam, sicut dictum est, dedi tcmpore illo Fratrihus Ordinis Prícdicato-
rum, vt in ipsa facerent Mouastcrium sui Ordinis pro salulc anima; niecc,
et parentum meorum. Et modo ipmm donafionem, quam feci, per istam
charlam roboro et confirmo. Et vt donatio inca maius robur obtineat, in
ipsa manus meãs, et siyillum meum appono. Non ergo alicui hominum
lianc mea: donationis charlam liceal infringere, nec ei nusii temerário con-
tra ire. Quod si quis fecerit. Domino teme iuxta terra} consuetudinem
obnoxius calumnice teneatur, et hfcreditatem, super qna possessores inquic-
tfiverif, duplet eis. Farta charta donationis et confrmationis menxe Fcbrua-
rij sub jEra M.CC.LXXX, ret/nante in Portuijallia Saneio Secundo.
Em nossa linguagem responde o seguinte:
Em nome do Padre, e do Filho, e do Espirito Santo, Amen. Eu a Rainlia
dona Tareja, filha dei Hei dom Sancho piimeiro de Portugal, a quantos esta
cai1a virem, faço saber, que sendo informada como a Rainha dona Branca mi-
nha irmã, queria fundar um Mosteiro da Ordem dos Frades Prega-
dores em Coimbra: e desejando que me tocasse alguma parte em ta-
manlio bem, lhe pedi fosse contente, que comprasse eu o sitio, em que
se havia de fazer o edifício, e o mais que pêra boa vivenda dos Religio-
sos era necessário. E ella houve por bem conformar-se comigo, e con-
cedendo-me com gosto, e livremente tudo o que lhe pedi. O que visto,
comprei logo por meu dinheiro, no lugar que chamão a Figueira ve-
lha, as propriedades seguintes. A saber, da Abbadessa, e Mosteiro de
Lorvão toda a fazenda que tinha na dita parte por preço de cento e
trinta Morabitinos. E a Pedro Munliós Prior da Igreja de S. Pedro de
Coimbra, e seus beneficiados, por cento e vinte morabitinos, tudo quanto
ahi possuia a dita Igreja. E assi houve do Prior domThomás, e dos clé-
rigos de S. Salvador o que ahi tinha a sua Igreja, dando-lhe em troca,
c escaimbo três casais meus em Brase, e outros que comprei a dona Fruila
Abbadessa de Celtas por duzentos morabitinos. E porque estas proprieda-
des estavão cmprazadas a difierentes pessoas, que d"ellas pagavão foro 'aos
308 LIVRO 111 DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
ditos Mosteiros, e Igrejas, fiz nova composição, alem de ter comprado o
direito senhorio poios preços acima ditos, com os possuidores, e iiso-
frncluarias, pêra mas largarem, e me deixarem até as casas de sua mora-
da que tinhão feito, dando-lhes por huma, e outra cousa quanto quizerão.
E toda esta fazenda assi junta, e livre, e desembargada, tanto que foi mi-
nha, a dei, e doei logo no mesmo tempo, aos Religiosos da Ordem dos
Pregadores pêra eíTeito de fabricarem n'ella hum Convento polas almas
de meus pais, e minha. E a tal doação, que entio lhes íiz, ratifico agora,
e de novo a confirmo por esta carta. E pêra que mais força, e vigor tenha,
de minha mão a assinei, e sellei com meu sello. Epor tanto nenhuma pes-
soa intente ou pretenda invalidal-a, nem per ale i ima via encontral-a; sopena
que fazendo-o, fique por atrevimento obrigado a pagar ao senhor da
terra, as penas que segundo costume d'ella, se levão aos que falsa, e
maliciosamente demandão o que lhes não pertence : e aos possuidores
pague em dobro a valia da propriedade, sobre que lhes der moléstia.
Foi feita esta carta de doação, e confirmação no mez de Fevereiro : Era
de 1280 (responde ao anno de Chrisio 1242).
Polo teor d'esta doação, temos por fundadoras d"este Convento duas
Princezas. E he bem de considerar a virtude de ambas, e a pouca ambição
de cada huma, pois ambas tratavão sò do elTeiío da obra pia, e a nenhuma
lembrava a honra ou nome d'ella(*). E he de saber que não era o custo
leve pêra aquelles tempos. Porque os Morabitinos, como já apontamos
outra vez, se erão de ouro, valia cada um quiiilientos réis, que assi consta
do testamento dei Rei dom Sancho Primeiro, que foi pai d'es!as infan-
tas. E não devia ser menos contia a que se deu aos possuidores das
propriedades, da que levarão os que tinhão o direito senhoria. Masadvir-
timos ao Leitor, que, como a Escritura não declara a calidade, e valia
da moeda, podião ser estes maravedis de huns que achamos alguns an-
nos despois com nome de maravedis velhos, e sua valia de vinte sete
soldes, ou reais brancos. Esta doação está hoje viva no Cartório do Con-
vento. E por outros papeis que d'elle nos forão mostrados, consta, que
começada a obra pareceo necessário comprarem-se mais outros pedaços
de terra, e pumares: dos quais huns se pagarão de contado: outros com
propriedades equivalentes buscadas, e compradas pêra isso: e estas forão
as que pertencião ao Bispo, e Cabido, que não quizerão vender a dinheiro:
(•' I.. 2. e. í. Du.Mlc Nunes de Lião na vjja de dcm Suuche Prinicir. f. tí".
PARTICILAR DO RELNO DE PORTUGAL 300
e hunias, e outras fizerão de custo outros duzentos e vinte cinco mora-
biíinos, os quais devia mandar pagar a Infante dona Tereja.
A conta da Infante dona Branca ficou a obra de pedra, e cal, e todo
o mais edifício (*): e como o fazia com devação, e poder: porque ■! Rei seu
pai a deixou igualada com suas irmans, em grossa herança de ouro, e
prata, e segundo affirmão alguns historiadores era senhora da cidade de
Gundalajara em Castella, creceo a obra tão depressa, que no anno de
1227, havia já Convento formado, com Prior e Supprior. E consta por
memorias, que vimos no Cartório, que era Prior n"esto anno hum Frei
João, do qual huma dona Elvira, confessa receber três morabi tinos, por
rezão de humas arvores que á instancia dos Religiosos cortou em hum
quintal seu: e fez contrato, que no tal lugar se não plantarião outras em
nenhum tempo, por quanto com ellas se devassava a cerca do Convento.
Assi se fica coUigindo com clareza, que pois n"este anno estava a casa
tanto adiante, de alguns atrás, e não poucos, devia estar principiada. O
mesmo se deixa entender da carta da Infante dona Tereja, porque ainda
que a data he quinze annos adiante, pola narrativa d'ella se mostra, que
houve grande distancia entre o tempo da entrega das terras, e o em
que mandou despachar a carta: declarando, que quando as comprara,
logo então as dera aos Religiosos, e confirmava agora o que de tempo
atrás tinha dado. Confirma esta antiguidade sabermos que residio S. Frei
Gil n'esta casa antes que fosse Provincial a primeira vez: e consta-nos,
que foi sua eleição no anno de 1233 por morte de dom FreiSueiro(**).
C\PITULO II
Vida, morte, e milaijres do Santo Frei Paio.
Era Coimbra nos primeiros annos do Reino de Portugal como ca-
beça, e metropoli d"elle. Porque residindo n"eUa de assento a Corte,
como então residia, o mesmo fazia o melhor, e mais luzido de toda a
nobreza, e d"outra gente de calidade. Assi foi este Convento meio de
salvação, e remédio de mui f as almas, com sua doutrina, e pregações, e
exemplo: almas, que as ondas de pretenções, e esperanças vans da Corte
costumão trazer esquecidas de si. lambem nos grangeou pêra a Ordem
(•) Duarle ?iuncs de Liío na vida de dom Sanciío Primeiro.
(••] Kescnde na vida de S. Fiei Gil.
olO LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
muitos sujeitos, quo despois a honrarão com virtude, e letras: dos quais
houvera muito que dizer, se nos antigos não faltara a curiosidade do
escrever; de que sempre nos queixaremos. D onde nace, que sendo certo
que iiouvc n'este Convento, muitos Religiosos dignos de lionrada memo-
ria, qnasi não teveramos de quem a fazer particular, se nos não dera
hum Frei Paio Ião abalisado em santidade, que fez escrever os estra-
nhos, primeiro que os nossos (*). Do que podemos inferir quo em ar-
vore, d'onde tal fruito se produzio, não podião faltar outros seme-
l!iantes. Mas bastar-lhes-ha a elles estarem escritos no livro da vida,
se o não ficarem n'este: e a nós, termos em tais irmãos quem de
veras ngs procure com sua intercessão, que cheguemos algum dia a
escrevermo-nos também n"el!e.
Foi Frei Paio, filho de habito do grande dom Frei Sueiro, honra pêra
o filho, mas não menor pêra o pai: c temos conjecturas que foi natural,
e nacido em Coimbra. E ainda que basta estar sepultado dentro de seus
muros, pêra grande gloria da terra, maior lie ser filho d'ella. Que se
Pádua em Itália se jacta de um Santo António estrangeiro, e hospede,
só porque o tem consigo: e Lisboa faz o mesmo, tendo-o ausente, só
porque o deu ao mundo, e o criou cm seus ares: muito deve Coimbra
a Deos por lhe dar hum tão grande Santo por hospede juntamente, c
])or cidadão. Cousa he rara, e maravilhosa, que de todos os outros San-
tos sabemos que o forão, por ouvirmos contar cxcellencias de sua vida,
ou de sua moríe; e do presente não temos nenhuma que escrever: e com
tudo sabemos que foi grande Santo, e por tal nolo pregoão a boca cheia,
(juasi todos os estrangeiros que d'esta Ordem escreverão. E não he esta
a mais pequena maravilha das que havemos de contar d'elle. Por onde
justamente podianios pedir licença pêra perguntar ao Senhor, que o fez
tal, que rezão houve, pêra que sendo tão liberal pagador de bons ser-
viços, que ainda n'este mundo se preza de responder a cento por hum,
assi permitlio que ficasse entendida liuma vida puríssima, e huma morte
santa, quo nenhuma fama nem noticia houvesse d"ella. Eu leio. Senhor,
de hum Ililarião que vivendo entre selvagens no coração do deserto, or-
denastes que os mesmos Demónios o fizessem conhecido em muitas par-
tes do mundo. Leio de hum Aleixo Romano que, peregrinando pobre, e
desconhecido pola Syria, huma imagem de vossa sagrada Mãi publicou
f.) S. Anlon o. p. lit. 2."]. c. 10. M. r.can. Albert M. Soraphin. Razzi Castilho p. 1. 2. cap.
S8. Mariíita nus Santos du Esjiuiilia i. \i. 1. li. t. !i3.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 3 1 1
seu nome. E a liura Paulo primeiro ermitão, embrenhado na? serras da
Tliebaida despois de cem annos de vida, mandais quem o visite, e lhe
faga exéquias: Que havemos logo de responder n*este caso, senão (jue
mais mercê fizestes a hum Frei Paio, que a muitos celebrados da terra?
Porque sendo assi, que vos agradais muito dos que mais se sabem es-
conder, e furtar ás lingoas, e favor dos homens, por esta via o quizes-
tcs fazer hum Santo único, e sem igual. E como em vossa Divina pala-
vra não pôde haver falta, o que lhe tardastes com mercês publicas na
vida, recompensastes na abundância, e caUdade das que lhe fizestes
despois de morto. Era Frei Paio, quando veio á religião, entrado já em
dias, e conhecido por letras, e virtude. E como tal foi o primeiro Prior
do Convento, e ficando em Coimbra morador continuo. Ajudou muito o
edifício material com sua assistência: mas muito mais o espiritual, com
a pregação, no qual ministério sabemos que foi eminente, e incansável.
Faleceo, segundo a conta dos mais dos autores, que d'elle escrevem,
poios annos do Senhor de 1257, pouco mais, ou menos. Mas se nos
havemos de conformar com a letra da sua sepultura, que adiante pore-
mos, em dezesete annos se enganarão. Foi sua vida, e morte surda, e
sem rumor. Achou-se-lhe huma cinta de ferro grossa, e larga, que tra-
zia a raiz da carne. Mas isto de vida penitente, e trabalhada pêra aquella
idade era cousa tão ordinária, que em ninguém fazia abalo, e foi enter-
rado sem mais ruido nem cerimonia, que qualquer dos frades conven-
tuaes. As particularidades secretas de alta perfeição cobrio vivendo com
estranha dissimulação, e morrendo, com a sepultura. E quando Deos foi
servido desenterral-as, e publical-as, inda não quiz que as alcançásse-
mos mais que em soma, e sem distinção. Elle sabe o porque. O modo
foi o que agora diremos. Era falecido de alguns mezes, e enterrado no
cemitério commum. Veio a morrer outro Religioso, mandou-se-ihe abrir
cova ao longo d"elle. Andava hum official trabalhando nella, presentes a
caso alguns frades: e ou que se chegasse demasiado á cova vizinha, ou
que profundasse inuito a que abria, cahio hum torrão da terra da de
Frei Paio. Em caindo, eis que sai d"ella, (caso estupendo, e nunca ouvido)
á vista de todos huma nuvem, ou névoa espessa, que como vapor de
muitos thuribulos, que ardessem juntos com cópia de perfumes, se foi
levantando, e dilatando, e juntamente recreando os sintidos com tão es-
tranha, e nunca jamais imaginada suavidade, que fez acudir todo o Con-
vento com espanto ao cemitério. No meio do alvoroço dos frades, e ruido
3!5J LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
(los vizinhos que se juntavão, e huns, e outros confessavão a vozes a
Frei Paio por Santo, largou o coveiro a enxada, e trabalho, e torna logo
carregado de huma moça paralítica, (era filha sua, tolhida havia annos
de pés a cabeça), rompe por todos, lança-se com ella na cova que tinha
feito. Mas em lhe dando o ar da vizinha, e o cheiro que por tudo recen-
dia, a moça se levantou sam, e salva. E não só tornou por seu pé pêra
casa, a que viera em braços alheios : mas na mesma tarde pêra confir-
mação do milagre foi, e veio ao rio com sua talha á cabeça, servindo, e
acarretando agoa.
A novidade do caso, tanto como esperança de saúde arrancou da
cama, em que jazia havia dias, muito enfermo, e fraco hum Frade do
Convento : e não foi bem chegado á sepultura, quando se sintio com
novas forças, e se levantou do lugar com perfeita saúde.
Espalhou-se pola terra a fama dos milagres, espertou a todos os
que alguma cousa padecião, e todos levavão remédio tão subido, e tão
geral, como se buscarão agoa no rio, ou se abrira ali alguma fonte, dan-
tes ignorada, e agora achada. E na verdade fonte era de misericórdias
divinas, pêra honra do servo fiel. O primeiro, que logo despois se apro-
veitou d'elia, foi hum vizinho do Convento, que em vida do Santo fora
seu confessado, e de presente estava cego, por remate de huma forte
doença, que despois de muito trabalho padecido, o deixou sem olhos
cobrando saúde nos mais membros. Fez-se levar ao Santo: lembrava-lhe
quantas vezes fiara d"elle os secretos de sua alma, e lhe ouvira, e acei-
tara seus consellios: pedia-lhe cora confiança, que pois eslava tão valido
com aquelle Senhor, que tudo podia, quizesse mostral-o em o livrar das
trevas, em que vivia, ou por melhor dizer morria. Foi caso de pasmar,
que antes de se bulir do lugar, em que fez a oração, se achou com sua
vista, como quando a tinha mais perfeita.
Dous homens da mesma cidade estavão afadigados de differentes ma-
les: hum apertado de esquinencia, que se afogava sem remédio: outro do
febres continuas, que o tinhão no estremo da vida. Não lhes sendo pos-
sível irem pessoalmente á sepultura do Santo, mandarão buscar da ter-
ra d'ella: e esta fez o effeito, que cada hum desejava.
Assi como dizemos atrás, que havia no Reino polas cidades, e luga-
res grandes bairros separados, em que vivia gente de nação líebrea era
sua lei: havia também outros, que erão vivenda de Mouros seguidores
do seu Mafamede, e ainda hoje conservão o nome de Mourarias. Soando
PARTICULAR DO REINO DE PORTUf.AL 313
entre elles a voz dos milagres, fizerão-se levar à nossa Igreja duas Mou-
ras que ardião cm febres, mais ten|iíndo que confiando. E ambas adia-
rão no Santo a mesma liberalidade, que se forão boas chrislãs, ambas
tornarão sem febre, c sans.
CAPITULO III
Proscguem outros milagres do Santo Frei Paio: com a estranheza
do sino fundido com a terra da sua cova.
Forão crecendo os prodígios, assi como acudião os necessitados.
Porque nenhum vinha que tornasse frustrado em sua confiança. Come-
çarão então os Frades a buscar por casa peças de vestido do Santo, e
outras cousas de seu uso, que ainda havia. Em particular poserão em
guarda com respeito, e veneração a cinta de ferro, que lhe tirarão na
morte. A qual sendo pedida de algumas partes, fez logo milagrosos effei-
tos, particularmente em partos diíTicultosos, pêra os quais se foi cali-
ficando com as experiências por remédio tão certo, que desde então
até hoje se pede de ordinário. Trazem-na os Religiosos forrada de ve-
ludo, e não sae de casa senão acompanhada de alguns. Mas repartíndo-
se as peças de vestido entre gente devota, he cousa averiguada, que
por meio d'ellas foi nosso Senhor servido obrar muitas, e grandes ma-
ravilhas. A huma mulher, que perecia de dores de estamago, de humas
que matão raivando, em se lhe applicando huma peça d 'estas, no mes-
mo ponto ficou sem ellas. Com o mesmo remédio se provou que forão
livres em tempos, e terras differentes sinco homens, aformeniados do
Demónio, não podendo o enemigo valer-se contra a virtude communi-
cada a hum retalho de pano de hum corpo defunto, e feito cinza. Mas
caso maior he o que se segue.
Se he grande mal Demónio no corpo, quanto maior será Demónio na
alma ? Tanto he maior, quanto he mais nobre a alma que o corpo, e
quanto se arrisca mais nos bens espirituais eternos, que em todos os
outros. Não se podia persuadir doesta Filosofia hum pobre homem, que
de sua vontade se tinha entregue ao enemigo, e sua companhia o trazia
tão esquecido do que se devia a si mesmo, e a sua salvação, que sobre
outros males não havia força de rezões, que o pudesse chegar ao santo
Sacramento da Confissão. Quando se via convencido, e envergonhado dos
314 LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINí.OS
amigos, defendia-se com dizer, que de nenhum modo podia ter arrepen-
dimento da vida que fazia, nem contrição de suas culpas, ainda que co-
nhecia que o erão. Apertarão hum dia com elle, e obrigarão-no quasi á
força, que visitasse a sepultura do santo, e com a frieza de homem per-
dido, qual andava, lhe pedisse huma peíjuena de brandura pêra aquelle
coração de pedra. Foi sem vontade, e por comprazer a quem o rogava:
propoz ao santo com devação alliea, e palavi-as não suas a necessidade
própria : sintio logo a mão do Senhor, e a intercessão do servo : porque
subitamente quebrou o bronze da cerviz dura, e rebelde, buscou confes-
sor, e posto a seus pés passou a hum novo género de contrição. Porque
onde d'antes se não podia confessar por secura, e dureza de aífeito, ago-
ra lhe tolhião a confissão, chuvas e tempestades de lagrimas.
São maravilhosas em alto gráo as maravilhas d'este Santo. E visto
como as maravilhas bastão pêra conhecermos a grandeza de seus mere-
cimentos, e desejarmos sua intercessão diante de Deos, não ajuntaremos
mais que huma, que sobe tanto em calidade sobre as contadas, e sobre
muitas que se contão de grandes Santos, quanto tem de estranheza por
durável. A saúde dada em huma doença, ou se perde com outra, ou se
acaba com a vida. Aqui temos milagre que passando de trezentos annos
que succedeo, está hoje tão fresco, tão vivo, e tão visto, como no dia, e
hora, em que se fez. Quiz hum Prior d'este Convento fazer hum sino
maior que o que servia : chamou mestres, lançarão contas, ajuntou me-
tal, quanto parece.) bastante pêra o corpo que se pretendia. Feitas as
formas, e posto o metal no fogo, tornou o ollicial sobre si, e achou que
se enganara na conta com tamanho excesso, que lhe faltava pêra encher
a forma, quando menos huma terça parte do que já estava prestes, c
derretido. Fazia-se a fundição no Convento. Virão os Religiosos que as-
sistião o mestre alcançado, e confuso : ficarão-no elles muito mais, quando
lhes confessou o erro. Porque além do tempo, e feitio perdido, vião-so
sem sino velho, nem novo, nem modo com que remedear tamanha falta
com a brevidade, que convinha em Convento, que vivia de esmollas. N'esta
perturbação foi-se hum dos Religiosos como inspirado do Ceo á cova do
Santo, e pedindo-lhe com a elTicacia, e sinlimento, que o caso obrigava,
se compadecesse da pobreza da Casa, em que vivera, e da desconsolação
dos Frades seus irmãos, lança mão á terra, e fazendo alforge do esca-
pulário, e levando quanta pode colher n'clle, entra polo meio dos Frades
que rodeavão o fogo, arremcssa-a sobre o metal, que fervia. Pasma o
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 'Mlí
fundidor, julgando-o feito por género de desesperação, ou desatino, gri-
ta, queixa-se, acode aremedear o dano, que tem por certo da mistura.
Mas eis que pasma de novo, porque vê ir empollando, e crecendo o me-
tal com tanta pressa, e abundância, que quasi não cabe já no vaso, e
saltando de prazer, e espanto, aíTirma que grande segredo era o d'aquelb
terra, que seu entendimento não pode penetrar: mas qualtjuer que seja,
não teme já falta no metal, inda que muito maiores forão as formas. E
assi aconteceo, porque o sino ílcou feito em toda a grandeza do molde,
e sobejou cantidade de metal, que pesado pêra testimunho do milagre,
chegou a duas arrobas e vinte arrates. E consideravão-se no caso duas
maravillias juntas, e ambas mui prodigiosas. Primeira da transmutação
de barro em bronze, segunda dá multiplicação, e crecimento com tal
novidade, que viesse a sobejar muito, onde d'antes faltava muito. O sino
está hoje vivo, e são, e serve no Convento, e vem-se nelle claros sinais
de obra milagrosa. Porque se lhe enxerga a lugares o metal areoso da
mistura da terra : e ao tanger faz hum som notavelmente differente dos
outros sinos : polo qual lie conhecido por toda a Cidade, representando
a quem o ouve, a cada movimento, nova armonia, hora hum tinido muito
agudo, e esperto, hora grosso, e grave, hora vario entre hum, e outro:
e assi recreando, e cs[)a[itando faz lembrança de sua origem.
Outra particularidade assaz estranha attribuião os antigos a este sino,
que a meu ver era alhea, e não sua. Contão, que em quanto sérvio na
torre do Convento, que forão pouco menos de trezentos annos, assi co-
mo se movia, quando o tangião. levava juntamente consigo a torre, e de
tal sorte a abalava, e embalava, que logo no pé fazia sinal, e abertura
que podia receber o grosso de hum dedo polegar, a qual crecendo em
proporção com a altura da torre, vinha a fazer no alto do campanário
tamanha inclinação, que a quem a via de fora causava espanto grande,
e a quem a exprimentava em cima fazia medo, e fazia crer que se hia
ao chão. Devisavase mais esta diíTerença em tempo, que o Convento es-
tava em pé, (que, como logo veremos, foi derribado pêra se lhe dar me-
lhor sitio), porque havia huma parede muito chegada á torre, com a qual
fazia a perspectiva verdadeiro juizo do muito que se alargava d'ella. IIu-
ma, e outra cousa vio, e provou o Infante dom Luis, único no nome em
Portugal, e único em excellencia de condições entre os Príncipes de seu
tempo. Passando por Coimbra de caminho pêra Santiago, levado de cu-
riosidade do que lhe contarão, sobio á torre, e mandou dobrar o sino.
3 10 LIVRO III DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
Tui foi o cabecear do campanário com pendores a huma, e outra parte,
que lhe pareceo o perigo demasiado : e havendo-o por indigno de sua
pessoa, e bastantes pêra a experiência poucos balanços : pêra que ces-
sassem, levou da espada, e cortou a corda, que movia o sino.
Quando se tresladou o Convento pêra o lugar, onde hoje está, só a
torre íicou em pé pêra memoria ou d'este prodigio, ou da antiguidade.
Não he muito alia, mas o ser de cantaria bem liada, e edifício firme, e
perfeito, e sobre tudo muito estreita, e delgada, faz fácil de crer poder-
se abalar sem mysterio, só com o movimento, e peso do sino, como
atrás contamos, que acontecia â do Convento de Santarém (*), que foi causa
de se derribar, e levantar outra. Se o abalo pendia do sino ser milagroso
ver-se-ha como teve torre. De presente serve em huma parede entre
casas, e não alta, onde se podem mal notar os effeitos, que descobria o
edifício alto, e desacompanhado. As reliquias do Santo se tirarão do
baixo, e se levantarão recolhidas em huma caixeta de mármore, ficando
de fora a cabeça, que se mostra aos devotos, e se leva aos enfermos
com certeza de curas milagrosas. De presente estão na Igreja do CoUe-
gio de Santo Thomas, (de que adiante trataremos), em quanto se não
acaba a do Convento. O sitio he a capella mór, e está a caixa embebida
na parede da parte do Evangelho : e na face esculpido este letreiro.
Frimus huius Conventus Prior morum sanctitate, ac miraciilorum glo-
ria iiisignis Pelagius hic sihis est. Obiit circd annum 1240. Por cima
parece hum vulto do Santo entalhado em pedra com hum sino na mão
por insígnia, na basi tem huma letra, que declara o nome de quem man-
dou fazer a obra, e a causa, que foi hum milagre do Santo em beneficio
do Autor d"e!la.
CAPITULO IV
De algumas antiguidades doeste Convento, e como foi mudado pêra o sitio
em que hoje está.
Porque se veja a grande opinião, que havia da santidade d'este Con-
vento, e o respeito, que por toda a parte se lhe tinha, diremos de algu-
mas memorias, que achamos muito dignas de se não deixarem escurecer
do tempo. Presidindo na Igreja de Deos o Pontífice Innocencio Quarto
cometeo ultimamente ao Arcebispo de Braga, e ao Bispo de Coimbra,
(.) L. 2. c. 3.
PARTICULAR DO REINO Dt PORTUGAL 317
que lhe tirassem huma informação do estado, em que se achava o Reino
com o governo dei Rei dom Sancho segundo, de que havia queixa geral,
a que queria acudir, como logo aciidio. No hreve d^esto conimissão dá
o Papa por adjunto a dous tão graves Prelados, e em matéria de tanto
peso, ao Prior de S, Domingos de Coimbra. Os originais delia, e dcs
informações se vem hoje no cartório da Sé dç Braga.
Particular devota, e bemfeitora d"este Convento foi a senhora dona
Constança Sanches, filha bastarda dei Rei dom Sancho primeiro, que
aquella idade chamava Infante, e não era o erro grande, quando ás le-
gitimas dava nome de Rainhas. Foi benção d'este Convento ser ^ rJido
de Princesas, e bom juizo d'esta indinar-se a huma casa, que tod era
feitura de suas hirmans. Mostra-se por seu testamento, que era o Prior
seu confessor, e declara sem especificar o nome, que fez o te£> amento
com elle, e lhe pedio o autorizasse com seu sello, como então se usava:
e entre os legados he hum de sincoenta livras pêra a casa de Coimbra,
e trinta pêra cada huma das outras, que no Reino liavia d'esta Ordem,
e não era a esmolla curta pêra então. A valia das libras n'aquelle tempo,
polo que se pode colligir do que escreve o Doutor Duarte Nunes de
LiãoC), era cada huma cento, e sesenta reis, (dizemos n"aquelle tempo
porque os passados, e presentes nos insinão alterarem-se muitas vezes
as moedas no preço, e valia sem mudança dos nomes.) Faleceo esta se-
nhora no anno de 1269. Está enterrada no Mosteiro de santa Cruz de
Coimbra.
No anno de 1360 entrou em Coimbra dom Vasco, Arcebispo de To-
ledo, e demandando este Convento, n'elle se aposentou, e residio em
quanto viveo, que não foi muito. Vinha desterrado por el Rei dom Pe-
dro, o cruel, de Castella, ou fogindo de sua ira. Piocedeo com grande
exemplo de virtude, e paciência cm seus trabalhos : mas a sem rezão,
e desgosto lavrou por dentro, e abreviou-lhe a vida. Faleceo em cabo
de dous annos, e mandou-se enterrar no nosso cemitério. Em hum livro
antigo dos Óbitos do Mosteiro de Santa Cruz ha huma memoria, que fala
d'elle por estas palavras.
Feria secunda sele dias do mez de Março Era M.CCCC. se finou dom
Vasco doeste mundo Arcebispo de Toledo, o qual foi inviado do Reino de
Castella por sanha dei liei, e chegou d cidade de Coimbra, e fez vivenda
no mosteiro de S. Domingos doesta cidade. (A Era responde aos annos
{'] Dudile Nunes de IJãc Ciun. dos Reis foi. 13í.
318 I.IVttO m DA ilISTOUlA DK S. DOMINGOS
de Clirislo de 1.3G2.) Este Arcebispo, hum mez antes de falecer, sagrou
a Igreja grande de S. Francisco, situada da oulra banda do rio sobi"e a
margem d"elle : e no mesmo dia sagrou também a bum Bispo da cidade
de Orensc, que be em Galiza, assistindo com clle em ambas as sacras o
Bispo de Viseu, e dom Frei Gil, Bispo de Cirendoni, que devia ser li-
íiilar. Mas be força darmos bum grande salto de annos, pêra irmos se-
guindo o que lia que dizer mais d"este Convento. E temos primeiro a
tresiadação d"elle pêra o sitio, em que de presente tem mais nome, que
forma de Convento. Sendo corridos trezentos annos da fundação, vierão
a ser tão grandes as encbentes do Mondego, que acontecia de inverno
estar o Convento muitos dias feito ilba, e posto em cercn. Seguirão an-
nos invernosos, continuarão, e crecerão as agoas com novo mal, que foi
trazeiem consigo grande poder de áreas, e cegarem com ellas a madre
do rio, de maneira, que d'onde antes corria tão fundo, que o sitio do
Convento lhe ficava sobranceiro, e senhor, veio a igualar a corrente or-
dinária com elle, e a força da agoa começou a lançar as áreas por cima
das mais altas margens, senhoreando-se do campo, e entupindo cerca,
e officinas. E acontecia pola muita abundância das áreas, sobir o rio a
tanta altura com qualquer pequena enchente, que não só cobria os cam-
pos, e alagava o Convento, mas lançava por cima da ponte. Donde na-
ceo, que temendo-se ficar brevemente vencida das áreas, como já se bia
somindo n'ellas, tratou a cidade de fazer com tempo outra, que be a
que boje vemos : e aflirma-se que foi direitamente fundada sobre a an-
tiga, de que não temos mais que a fama. E com a podermos chamar
nova, vai fazendo já bom testimunho ao que dizemos. Porque acontece
em alguns dos arcos terem estreita, e trabalhosa passagem os mesmos
barcos, que poucos annos atrás passavão folgadamente á vela. A causa
de tanto mal sabida be, e não está tão sem remédio, polo estado a que
tem chegado, como por ser negocio publico, porque estes quasi era ne-
nhum.a parte do mundo tem hoje emparo ou valedor, Chega a cobiça,
ou a multidão, e necessidade dos homens a não deixar palmo de teira,
que não rompa. Em tempos muito antigos erão invioláveis as costas, e
ladeiras, que cabião sobre os rios, com medo do que boi? se padece, e
como cousa sagrada estava o cargo de se guardarem á conta dos melho-
res do Reino. Lembra-me ouvir aos velhos, que receberão dos mais an-
tigos, fora este cuidado em bum tempo do Infante dom Pedro, que cha-
marão da Alferroubeira, pola morte que junto do buma o levou, Prin-
PAUTICULAR DO HF.INO DE PORTUGAL 319
cipe de grande valor, inda que igualmente desgraciado. Faz perder os
campos muito largos, e muito proveitosos, o querer aproveitar montes
pola maior parte esteriles, ou pouco fructiferos : aclião as invernadas a
terra bolida, levão-na ao baixo, e ficão despidos os altos até descobri-
rem os ossos, que são as lageas, e penedias do centro, e assi ficão os
campos perdidos, e os montes não dão proveito.
Mas tornando ao ponto, ajuntava-se ao mal dos dilúvios, que as
agoas de muito tempo encliarcadas deixavão o Convento apaulado : e
quando com o verão vinha a enxugar, era somente na face da terra : e
ficava do interior lançando vapores, que causavão graves doenças. Yen-
cia-se este inconveniente com a paciência, e santidade dos Religiosos, á
conta de não desempararem hum Santuário, que fora morada de muitos
Santos, e era depositário de seus ossos. Obrigava-os juntamente o res-
peito devido a todos os nobres da cidade, cujos pais, e avós tinhão con-
sigo enterrados. Assi era de ver o cuidado, e amor, com que toda a no-
breza, e povo lhes acudia, tanto que as agoas crecião. Porque, como es-
tavão satisfeitos de sua constância, em se fazendo sinal com o smo, co-
mo era costume, não havia homem timido, nem pobre pêra os socorrer.
Acudião como a competência na força das tormentas, e muitas vezes com
perigo, e reluzia a caridade com esmollas gerais, e tão copiosas, que
sobejava provimento na casa pêra longos dias, despois de passado o
aperto.
Porém, quando veio poios annos de loiO, era já o mal tamanho, e
tão continuo, que parecia tentar a Deos assistirem mais em tal casa ho-
mens sisudos. Nem os cidadãos, que muito o síntião, duvidavão já em
ser força a mudança. Porque sobre os danos referidos, começava-se a
sintir outro mais temeroso, que era hir a continuação das agoas soca-
vando, e enfraquecendo as paredes, que de seu não erão muito fortes,
e temia-se huma ruina súbita. Fizerão relação de tudo a el Rei dom João
Terceiro os Prelados maiores. Era pai, e emparo de todas as Religiões,
deu sua licença, e esmollas pêra a m.udança. Pedio-se, e alcançou-se ou-
tra no Capitulo geral do anno de lo4G celebrado em Roma, sendo Mes-
tre Geral da Ordem Frei Francisco Romeu. Com esta, sendo primeiro
confirmada polo Papa Paulo Terceiro, se fez a tresladação no mesmo
anno. Tinhão lançado olhos a hum sitio na rua de Santa Sofia, que se
estende até a porta do campo, que chamão do Arnado, e fica todavia no
plano da cidade. Agasalhados aqui pobremente, forão logo comprando
320 I.IVRO III DA HISTOIUA DC S. DOMINGOS
mais casas, c chãos, ajudando com muita liberalidade, e larguezí) o
commum, e particulares da cidade : e porque andava já em pratica fun-
dar-se hum Collegio separado do Convento, que servisse só pêra os so-
jeitos, que a Provincia mandasse estudar na Universidade, procurou-se
logo tamanha capacidade de sitio, que fosse bastante pêra Convento, e
CoUegio. Valerão-nos muito os Padres do real Mosteiro de Santa Cruz,
que por sua grande religião fizerão doarão graciosa á Provincia de huns
chãos, e casas, que possuião no mesmo posto : com a qual commodidadc
ficamos com oitenta braças em comprimento ao longo da rua, e d'estas
se tomarão pêra o corpo do Convento quarenta, e cinco.
CAPITULO V
Do processo do edifício do Convento novo : e da grande virtude^ e parles
do Mestre Frei Martinho de Ledesma.
Corria a obra de vagar, e com fraqueza, porque faltava braço de
Príncipe, que a tomasse á sua conta, como em tempos passados. O preço
das cousas estava por todo o Reino muito levantado, e a Provincia não
tinha forças pêra suprir tamanha despeza. N'este estado nos acudio o
Duque de Aveiro dom João, neto do grande Rei dom João Segundo, e
porque não déssemos por de todo acabada a benção tão própria d"estc
Convento, tomou â sua conta parte da obra. Fora Duque da mesma ci-
dade o Mestre de Santiago, seu pai : estava-lhe bem ter seu jazigo n'ella:
escolheo pêra elle a capella mór do novo Convento : e ordenou algumas
cousas, que sendo de muita piedade Cliristam redundão em honra, e re-
putação da casa. Foi a primeira deixar cem mil réis de juro pêra três
Missas quotidianas perpetuas. Instituiu hum modo de mercearias pêra
sete clérigos pobres estudarem com doze mil reis a cada hum por anno.
Estes acodem todos os dias a dizer sua Missa no Convento, e se lhes dá
guisamento na Sacristia. Deixou outra csmolla pêra ajuda de casamento
de treze orfans, a doze mil reis pêra cada huma. Obras verdadí^ramenle
reais huma, e outra : e he administrador d^ellas o Prior.
Era entrado por este tempo na Universidade pêra Lente da cadeira
de prima de Theologia, o famoso Doutor, e Mestre Frei Martinho de
Ledesma, que sendo de nação Castelhano, e filho da Provincia de Cas-
lella, se encorporou nesta de Portugal, e foi perfilhado por este Con-
PARTlCULAn DO REI.NO DE PORTUGAL 321
vontô do Coimbra. E como bom filho começou logo a empregar-se em
o servir, estendendo o animo a cousas grandes. Por onde íicamos obri-
gados por dons títulos a tratar d"elle n'este lugar, primeiro por bera-
feitor do Convento, cuja historia temos entre mãos : segundo, por filho
digníssimo d'elle. Tinha o Mestre Frei Martinho tamanho animo pêra
cousas do serviço de Deos, e de sua Ordem, que podemos dizer erão
espíritos Reais. Porque, se alguma hora se virão estes, engastados em
barro de pura humildade, e desprezo próprio, foi n"elle. Sendo mui hu-
milde, e pobre no trato de sua pessoa, e cella, e vestido : e muito chão,
e igual com os Pieligiosos ordinários em toda a conversação, e modo de
proceder: por outra parte nas obras de virtude, subia tão alto com os
pensamentos, que quasi n'um mesmo tempo acometeo edlficio de dous
Conventos juntos. ílum foi pêra o Collegio de Santo Thomas, que deixou
de todo acabado, e d"elle faremos mais larga menção em seu lugar pró-
prio ao diante : outro pêra os Frades, que se mudarão do sitio velho :
mas n'este não pode dar cabo, porque emprendeo maior fabrica do que
erão suas forças. Tendo feito gasalhado pêra os Frades, tolerável pêra
em princípios de casa nova, quiz começar a Igreja. Engana o gosto de
edificar, e ás vezes trasporta. E os Mestres de traças, como dispõem de
bolsa alhea, folgão de mostrar habilidade própria, e mysterios de archi-
tectura. A traça começada a executar obriga a não fazer pé atrás, ainda
que ameace impossibilidades. Tal foi a Machina, que fundou em grande-
za, e perfeição de lavor, que despendendo n'ella muitos annos o que lhe
valia a cadeira, (porque consigo gastava pouco), e sobre este rendimento,
que não era pequeno, tudo o que pareceo devia contribuir a casa de
Aveiro por rezão da capella mtjr, cujo edificio estava á conta dos pa-
droeiros : em fim acabou huma vida bem larga, qual foi a sua, sem
passar da capella mór. Mas a que ficou lavrado he obra de tanto pri-
mor, e custo, que pode competir com as que no Reino são mais lou-
vadas. O mármore he alvíssimo, e mui fino, e a falta que tem do menos
forte, e duro, do que se requer pêra obras, cujo fim he perpetuidade,
recompensa bem com a facilidade de se cortar e lavrar: a policia, e de-
licadeza, e miudeza que se vê no lavor da pedraria parece traçada mais
pêra pincel em pintura, que pêra escopro em cantaria. E faz lastima
grande a todos os que vem tal obra, cuidar-se que chegará primeiro a
cahlr, e acabar de desemparada, que a por-se em estado do prestar, e
servir no ministério, pêra q'io foi comeí^ado. Porqu-^-, comofalfceo qnrm
vGL. I. :^i
3:22 LIVRO III DA HisToniA Dr: s. domingoí;
lhe deu principio, que ha perto de cinquenta annos, quando islo vamos
escrevendo, faltarão também mãos, e espíritos pêra a proseguir, e as
calamidades, e mudanças, que logo succederão no Reino, ajudarão a ficar
esquecida. Assi ficou também o resto do Convento até hoje, informe, e
longe do devido remate, não só de perfeição. A renda da casa escassa-
mente com a Sacristia supre á despesa dos Religiosos. Nos m^oradores
da cidade não falta o animo pio, e caridoso dos annos passados, mas
por desgraça commum a muitos lugares grandes do Reino, estão caídos
em pobreza, e pola mór parte podem pouco.
Tornando ao Mestre Frei Martinlio, de quem devemos tratar com.o
de fillio primogénito do Convento novo, e segundo filho de suas obras,
pois elle o edificou : tais forão as suas espirituaes, que deixão, (como
dizem), a perder de vista todas as temporaes, por muito que fossem
sumptuosas, e magnificas. Por obras de espirito contamos as de seu es-
tudo, polas quais em seu tempo era chamado de todos os grandes Theo-
logos poço de leiras. Dão bom testimunho seus escritos, com que Iionron
a Província, e toda a Ordem. ímprimio dous volumes sobre o Quarto
livro do Mestre das Sentenças, cuja doutrina he mui seguida por solida,
e certa: estimada por clareza de resoluções, e repostas doutíssimas. Es-
creveo vários Commentarios sobre toda a Summa de Santo Thomas, co-
mo quem a íeo, e dícíou de cadeira, e não buma só vez poios muitos
annos, que teve de vida. Forão obra de muita estima, se acabara consigo
vestil-a de term.os mais polidos, e melhor frasi. Continuou a lição, e as
escolas com tanta constância, que despois de jubilado não perdoava ao
trabalho, e leo quasi outro tanto tempo. E enxergava-se n'elle, que não
era respeito de mais renda, ou ambição, e gloria vam, mas só virtude,
e bom zelo Grande virtude pêra onde havia tanta sciencia. Muitas pu-
déramos particularizar suas, mas forrar-nos-ha trabalho, e leitura contar
hum só acto, em que foi provado, e nos <leixou bem provado, que as
tinha todas em sua alma, como em tezouro encerradas. Governava este
Reino a Rainha dona Caterina na menoridade dei Rei dom Sebastião, seu
neto : desejava acertar no provimento das prelacias, como cousa tão es-
sencial : chamou Frei Martinho, fez-lhe saber que o tinha escolhido pêra
Bispo de Viseu, que he huma cidade de sitio aprazível, e bera rendi-
mento. Respondeo com palavras singellas, que estimava o juízo, mas não
a mercê, c constantemente enjeitou a dignidade, honra, e renda, que
som negoccação nem cuidado lhe entrava por casa : antepondo a quieta-
PARTICULAR DO P.EI^n DE PORTUGAL 323
rão de sua alma a todas as grandezas da terra tão suspiradas, e tlío
aneladas de todos. Yiveo despois muitos annos, e faleceo em boa ve-
lhice no de 1574, aos quinze de Agosto, foi enterrado na capella mór do
seu Collegio, em sepultura baixa, conforme a sua humildade, não a seus
merecimentos.
CAPITULO VI
Vida, e morte de dom Frei Vicente da Fonseca, Arcebispo de Goa
Primas da índia.
Filho d'este Convento foi dom Frei Vicente da Fonseca, Arcebispo
de Goa, e Primas da índia Oriental. Era natural de Lisboa, e de geníc
nobre. Tomou o habito muito moço. Pola viveza de engenho, e bom na-
tural, que mostrava, foi mandado estudar no Collegio de S. Tliomas.
Acabado o estudo, leo hum curso de Artes, e Filosofia em Lisboa, e
conseguintemente Theologia. Não ha maior estudo que o de quem lê :
esperta muito o juizo a obrigação publica, e faz trabalhar o desejo do
agradar. Com huma, e outra lição fez-se em.inente Theologo, c não me-
nos eminente Pregador. Tinha grande agudeza nos conceitos, muita elo-
quência pêra discorrer, graça no representar, nervo, e força pêra mo-
ver. Por estas partes lhe deu a Província o grão de Presentado. E
quando foi a jornada de Africa no anno de 1578 entre os Religiosos, que
o Provincial Frei João da Silva escolheo, pêra o acompanharem, e irem
com cUe em serviço de seu Uci, que forão dos mais grados da Provín-
cia, foi elie hum. E acompanhando o exercito ficou cativo dos Mouros.
Os trabalhos assi como aperfeiçoão a virtude, também crião entendi-
mento, e adelgação o engenho. De tudo descubrio muito nello o cati-
veiro. Era continuo na pregação entre grande numero de fidalgos, e
muitos outros cativos, hnns feridos ainda da batalha, outros enfermos
dos caminhos, os mais despidos, e famintos, todos desconsolados. O es-
tado triste fazia attenção : animavão-se ao trabalho com a virtude, e pa-
ciência, e boas razões do Pregador, e tratavão todos do Ceo. Mas não
era menos ouvido dos Judeos, e de seus Piabinos. Acudião estes a tirar
interesse da miséria dos necessitados, offerecendo dinheiro aos fidalgos
com excessivas usuras, que o mal presente fazia parecer caridade. De
caminho ouvião as pregações, e como de ordinário todos sabem as lin-
goas de Espanha, porque as couservão des do tempo que d'el!a forão
3ÍÍ UVIíO lli DA HISTOhU DS S. DOMINGOS
lançados, acudião muitos obrigados da suavidade da pratica. Não se des-
cuidava Frei Vicente da occasião, tentava sua dureza com claros tesli-
munhos das Escrituras, confundia-os, e foi meio de se converterem al-
guns, vendo-se atados, e convencidos da rezão. Também fez tornar em
si hum renegado de muitos annos, rico, e casado, e adiantado em honras
entre os Mouros. Era já Alcaide, que não ha em Africa mais grandeza
em particulares. Chamava-se Ali Raposo, nome composto do Africano,
e do Poríuguez, d'onde tinha o sangue. A molher se converteo jcnía"
mente, e recebeo o santo bautismo, tendo passado por duas leis, pri-
meiro pola de Moyses, porque era Judia de nacimento, despois pola de
Mafamede, e nella se chamava Çayda. O Padre Frei Vicente lho bauti-
zou por suas mãos hum filho. Assi o conta Jcronymo de Mendoça na
historia, que escrevco d'esta infelice jornada (*).
Sendo resgatado, e vindo ao Reino, foi ouvido algumas vezes dei
Rei dom Felipe, que tinlia sucedido a el Rei dom Anrique. E por eho
foi nomeado por pregador de sua capella, e pouco despois por Arcebispo
de Goa, e Primas da índia Oriental ; pêra onde se embarcou nas pri-
meiras nãos de viagem, que forão as do anno de 1583. Chegado á índia
começou a entender no governo de suas ovelhas com muita inteireza, e
prudência, pregando, visitando, e remedeando o que convinha com.o vi-
gilante, e cuidadoso pastor. Mas atalhou o curso d'e3te bom procedi-
mento embarcando-se de novo pêra o reino intempestivamente. As causas
publicas de tal resolução erão, iiaver-se por obrigado a aparecer em Ro-
ma a dar obediência pessoal, e Canónica ao Summo Pontince, em con-
formidade de hum motu próprio promulgado de próximo polo Papa
Gregório Decim.o tertio, o qual dispõem, e manda que todos os Bispos
a tempos certos facão a tal jornada a eíTeito de visitar, e venerar as sa-
gradas reliquias dos Apóstolos, e reconhecer por suprema aquelía Ca-
deira, e o Pontifico que nella reside por cabeça universal de toda a igreja
Caíholica. Mas linha-se por certo que esta rezão era cuberta de outras
secretas, e muito importantes á sua consciência. E não podião deixar de
ser tais as que obrigarão a hum tamanho Prelado a arrepiar huma car-
reira tão larga, e cançada, e nunca passada sem muitos perigos. Dezia-
se por fora que o fizerão embarcar, desgostos pesados sobre jardição.
Faleceo no mar qunsi nos ares da pátria, em huma paragem que chamão
a volta do Sargaço. Suspeiíou-se do género da doença, que fora causada
[A Life. 13. f. !I9.
PÂRTICITAR DO REINO BE PORTUGAL 32lí
de peçonha negoceada na índia, por pessoa que se sinlira da liberdade
de suas reprensi3es, e se temera que fossem ao diante mais pesadas. He
todo aqueile Oriente ferlilissimo de simplices contra veneno. De lá vem
as pedras de bazar, as de porco espim, os unicórnios, e abadas, os co-
cos de Maldiva, o páo da cobra, e outras. Mas parece-me que llie deve-
mos por todos mui pouco, porque he muito maior a abundância dos
venenos que cria : e tal a sciencia dos homens era os compor, e tempe-
rar, que se affirma ha cozinheiros que os dão pêra dias, e mezes, e
annos precisos sem errar tiro. E o pior he que recebendo-se sempre na
comida, não ha poder atinar com elles comendo, nem vai assistência de
ministros que tomem salva ao uso antigo das mezas Reais: porque se
não entende o engano se não despois de feito o mal.
CAPITULO Vli
Do Padrs Frei Tkomas Pinto Inquisidor.
A mesma jornada fez, mas com melhor remate, se bem com cargo
inferior, outro fdho d'esíe Convento por nome Frei Thomás Pinto. Des-
pois de ter trabalhado muito na Ordem, e alcançado o gráo, e titulo de
Preseníado, a que se não sobe de ordinário sem suores, e frios de mui-
tos annos, foi nomeado pêra Inquisidor da índia no tribunal de Goa.
Embarcou na não Santiago por xVbril do anno de 1585, Era Capitão
ffiór d'esía viagem Fernão de Jiíondoça, e hia na mesma não. Passado
com bom tempo o Cabo d» Boa esperança (que he a mór difficuldade
em ida, e vinda) forão encalhar desastradamente sobre os baixos que
chamão da Judia, levados das correntes, e do engano do Piloto. Foi a
confusão como em sentença súbita de morte, vendo-se embarrados em
terra no meio do mar, e sem vista de terra, nem costa por nenhuma
parte (novo, e miserável género de naufrágio.) Ajudou o terror, e des-
consolação o ser de noite, e persuadirem-se que não poderião chegar a
ver a luz da manham com vida. A gente Christam, e temente a Deos
amoesíada do perigo, acudio aos remédios santos, e últimos d'alma.
Mas era o povo muito, e confuso, e desanim.ado : e tanta a pressa que
cada homem tinha por se confessar, que houve alguns que desatinados
ou com o medo da morte, ou dos peccados começarão a fazer confissões
publicas, e em altas vozes. Alalhou-as o inquisidor, reprendendo, e ro-
326 I.IVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
pando, c animando (*): e assentoií-se no chapiteo com seu companheiro
Frei Adrião de S. Jeronymo, e derão-se tão bom expediente ambos, e
liuns Padres da Compan!iia de Jesus, que antes de amanhecer estava
confessada toda a gente, que passava de quatrocentas e cinquenta almas.
E aturou todo este trabalho o Inquisidor com estar juntamente padecen-
do gravíssimas dores de huma ferida, que na mesma noite, e conflicto
recebeo na cabeça, de hum aparelho, que cahio da entena, a que por
então não soube, nem pode dar outro remédio, mais que cobril-a, e
;;pertal-a com as mãos. E porque não era tempo de buscar alivio, nem
(lescançar, quando cada hora cuidavão ser sorvidos do mar, gastarão o
que restava da noite até poía manham em fazer praticas, e animar a
gente a se conformar com o que Deos era servido. Entre tanto quietou
?ium pouco o mar, e o vento, que tudo perseguia os pobres naufragan-
tes, e foi descobrindo a luz do dia aos olhos ao miserável estado em
que estavão. Tratou o Capitão mór Fernão de Mendonça de sua salva-
ção no esquife da náo, e embarcou-se com algumas pessoas de pouca
sorte. ProcLirarão fazer o mesmo no batel alguns fidalgos, e outra gente
de calidade. Pêra isto poder ser com ordem, e quietação, era necessá-
rio tomar as armas a muitos, que d'elias se tinhão apercebido fazendo
conta, que lhe vaierião pêra alcançar lugar por força em qualquer em-
]>arcação, que se ordenasse, quando de grado lhe não fosse dada. Era
tão grande o respeito, que entre todos se tinha ao Inquisidor, que só
(relle fiou o Capitão, que foi eleito pêra esta viagem,. (chamava-se Duarte
de Mello), que poderia acabar alguma cousa com os armados. Encomcn-
dou-lhe o cargo, e succedeo, como o imaginou. Porque se houve com el-
les por tão bom termo, que todos se deixarão vencer, e huns entrega-
vão as armas, e outros, que primeiro refusavão, pondo-lhes o Padre a
mão, não se atrevião a negar-lh"as. De toda a gente, que temos dito
não coube lugar no batel, mais que a cinquenta, e tantas pessoas. Não
foi inencs im.portante o cargo, que aqui se deu ao Inquisidor despois
de embarcados. Era o mantimento, que se pode ajuntar n"aquelle aperto
tão pouco, que se faltara dispenseiro religioso, e prudente, estava certa
liuma nova, e mais desesperada perdição, qual lie a da fome. Este se
entregou ao Inquisidor, e da quantidade com que cada hum se conten-
tava, entenderemos o pouco que se meteo no batel pêra todos. Era ra-
ção do dia inteiro, (chama-Ihe a lingoagem do mar, regra, e cabia-Ihe
(•) Mar.osl Gcdinho Cartlcso na relação d'esla niio.
. PARTIGULAn DO REINO DE POUTUGAL 3^7
aqui bem o nome pola estreiteza, cora que era regrada), tanto biscouío,
quanto se tomava com Imma mão, e iium.a talhada de marmelada, que
embarcando-se no Reino pêra remédio de enfermos, veio a servir de
mantimento de sãos : e dava-se mais bum copo de vinho não grande, e
muito aguado.
Começarão sua navegação em demanda da costa. Tocou logo novo
trabalho ao mesmo Padre, que fui ter espertos os marinheiros, que bião
ás escotas da vela do batel: o governo d"ellas importava tanto na nova
viagem, que a haver qualquer descuido, tinhão a perdição certa, porque
o batel não tinha leme, e só as escotas meneadas com cuidado, e humas
pás lançadas por popa, fazião o que o leme havia de fazer, quando o
houvera. Was não havia homem, que deixasse de estar mui alcançado do
sono, e necessitado de repouso, polo muito que a todos tevera espertos
na náo o medo da morte, e o cuidado do remédio : com tudo em igual
necessidade, e trabalho aceitou o nosso P. cortar por si, e vigiar elle, e
fazer vigiar os que governavão. Assi íiavegavão, porém via-se claramente
que se fazia pouco caminho, porque o batel de sobrecarregado da mui-
ta gente, que levava, não surdia, e segundo o pouco mantimento, que
havia, estava cerío novo género de naufrágio, se não se dava ordem pêra
aliviar a embarcação, e se navegar mais espedidamente. Tomou-se con-
selho: foi a resolução perecerem alguns por não acabarem todos, eexe-
cutou-se logo. Lançavão olhos ao que parecia mais inútil ou por idade,
ou por forças, ou por outras considerações. Mandavam-no subir sobre
o bordo, punha-lhe outro as mãos, trabucava, e ficava sumido nas agoas
(horrenda, e lastimosa morte.) Assi aliviarão de carga, e pouparão co-
mida.
Mas não se pode deixar em silencio por honra da caridade fraternal
o que succedeo nesta embarcação a dous hirmãos. Cahio a sorte de ir
ao mar sobre o mais veliio, aparelhava-se pêra a execução da sentença :
acudio o outro com huma estranha proposta, dizendo que mais rezão
parecia morrer elle, que era moço, que não o condemnado, que por mais
velho era emparo, e remédio de huma mãi, e irmãs, que ambos tinhão,
e tocava a muitos sua perda. Quebrou corações com espanto, e piedade,
o valor, e despreso da morte, onde se hia comprando tão caro o fogir
d'ella. iVIas foi aceitada a rezão, e o partido: e logo lançado ao m.ar em
lugar do irmão : do qual não consta que pêra tal Pylades íizesse se quer
alguma arremetida ou cumprimento, ou geito de Orcstes, mais que com
328 LIVRO m DA HISTORIA DS S. DOMiNGOÍ
lagrimas, e palavras tristes, que ciistão pouco (*). E não ho de maravilhar,
porque huma boa amizade, qual foi a daquelles Gregos, vence a iodo
parentesco: e na idade presente se acerta haver fineza entre parentes,
como aqui vimos, acha-se poucas vezes igual respondencia, inda que seja
entre irmãos, e entre pais, e filhos, conforme ao que disse o outro, tanto
tempo ha: Fratrum quoque gralia rura est (**), Acudio Deos polo bom espi-
rito do moço, deu-lhe forças, e alento pêra seguir nadando o barco mais
de ires horas, vencendo arrebatadas correntes, e chamando sempre por
Jesus, e por sua bendita Mãi: e no cabo d'elias moveo a piedade os
companheiros, e foi recolhido. Justo he que não fique ignorada sua na-
tureza : erão nascidos em Lisboa.
A cabo de oito dias ferrarão terra na costa brava da Etiópia Orien-
tal, habitada de bárbaros, gente negra de cor, e de cabello revolto, o
nome entre nós he Cafraria. Livres dos medos do mar, começarão a ex-
primentar os males da terra. E, porque lhes não durasse muito o gosto
de se verem n'ella, no mesmo dia se virão salteados de huma nuvem
escura de Cafres, e forão todos despojados d'essa pouca roupa, que tra-
zião sobre si, e levados cativos. E o Inquisidor, porque fez resistência
a largar o vestido, obrigado da honestidade religiosa, ficou com duas
feridas de azagaia. Aqui padecerão estrema miséria : de fomes deses-
peradas, de Sol que abrazava de dia, de frio que enregelava, e entorpe-
cia os membros de noite: e chegarão a termos com tal tratamento junto
a) quo trazião do mar, que onde pareceo se abria caminho de algum
(iescanço, adoecerão os mais, e morrerão muitos : e tais esíavão todos
de fracos, e deslapidados, que o Padre Frei Adrião de S. Jeronymo ti-
rou ás cosias da prizão, em que estavão, onze defuntos, e por sua mão
os enterrou, sem haver homem, que tevcsse forças pêra lhe ser compa-
nheiro no trabalho.
Não he rezão ficar-nos por dizer o meio com que se salvarão outros
da náo, porque redunda em honra de Deos, a de sua Santa Cruz, se
bem parecia aibeio d'esta escritura, e da obrigação, que seguimos. Fí.ú
o caso: que apartados da náo o batel, e esquife, como dissemos, entre o povo
que ficou a pé quedo esperando a morte, que seria na hora, que a força
do mar acabasse, de destroncar os membros da cuberta da náo, em que
se sustentava, animarão-se quinze ou deseseis homens com o soíapiloto,
(*] Cie. fie amicit.
(..j Ovid. Melkiu. !.
PARTICULAR DO RKINO DK PORTUGAL 329
e juntando algumas taljoas, e oiUra madeira o menos mal quopuderão,
composerão huma jangada, (assi cliamão os marinheiros esta junta de
madeira sem ordem nem forma do embarcação.) Saltarão n'ena os aven-
tureiros, parecendo aos que ficavão, que não era mais remédio que dila-
tar o fim da vida algum pouco, ou ir buscar a morte afastados d"aquelle
infelice posto. Nem era maior a confiança dos que se arriscarão. Por-
que a jangada com peso da gente bia toda por ba;xo da agoa, e sem
nenhum remédio pêra tomarem repouso : e o mantimento era huma pêra
era conserva por dia a cada companheiro, e menos de meio quartilho
de vinho temperado com agoa salgada. Desesperada determinação, e
que só podia ter remédio bafejada,, como foi, do favor Divino. Levava
hum dos em.barcados ao pescoço huma pequena jeliquia do Santo lenho
da Vera Cruz, lançou-a ao mar com fé de bom Christão, atada em hum
cordel por popa da jangada. Com tal leme forão navegando, ou nadando
milagrosamente treze dias, até darem em terra. E porque a fome, e o
trabalho, e a dilação do tempo os não fizesse desesperar, quiz o mise-
ricordioso Deos mostrar-lhes, que os levava á conta da sua santa Cruz,
com huma conhecida maravilha. He cousai certa, que cinco dias antes
que chegassem á costa, tanto que se cerrava a noite, os acompanhava
hum^a musica de notável suavidade, em vozes como de mininos, das quais
com distinção se deixava entender o principio, e toada ordinária da dou-
trina Christã, que os mininos aprendem, e cantão nas escolas de Portu-
gal: Todo pel Christão he mui obrigado a ter devação d Santa Cruz, etc.
Tanto que tocarão terra perderão a companhia dos músicos, e não acha-
rão a Santa relíquia, que ao parecer elles a devião levar. Publicou-se
a miaravilha, despois que em Moçaml)ique se vierão ajuntar todos os que
escaparão da perdição ; e o Inquisidor inquirio juridicamente os da jan-
gada, e achou sem discrepar nenhum, que fora cousa certa, e verdndei-
ra: e per tal a publicou, pêra gloria d*aquellc bom Senhor, que doeste
lenho banhado com sangue tinha n'outro tempo feito barca, e remédio
pêra salvar o mundo inteiro. E não era muito virem agora Anjos acom-
panhar com celestial melodia aquella parte d'ell8, e consolar, e alegrar
os aííligidos, que por tal meio buscavão vida, e salvação. O Padre Frei
Thomas passou com seu companheiro á índia, onde viveo alguns annos
servindo seu cargo em Goa, e jaz enterrado no Capitulo do nosso Con-
vénio da mesm.a cidade. Frei Adrião com amor da pátria teve animo
330 LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
pera exprimentar segunda vez os medos do Oceano, e nella veio a lo-
grar O resto da vida.
CAPITULO VIII
Do gravide cuidado, «? ííolemnidade, com que na cidade, e Convento de S.
Domingos de Coimbra, se celebrão as festas do Santo Itosario. Re ferem- se
dous milagres snccedidos de próximo por intercessão da Virgem.
Ainda que em todas as terras grandes deste Reino, e principalmente
onde lia Conventos da Ordem de S. Domingos, he servida com particu-
lar davação no titulo do Santo Rosário a Virgem mãi de Deos: a cidade
de Coimbra de alguns annos a esta parte se tem avantajado era a vene-
rar, e festejar com grande estremo, procurando todos os estados, e ca-
lidades de gente, como á competência, ter parte em seu serviço. Assi está
a Confraria rica de prata, e ornamentos, e acompanhada sempre dos me-
lhores da terra, e as festas são celebradas com pompa, e gastos extraor-
dinários. Do que a Virgem sagrada, como fonte, que he de piedade, mos-
tra agradar-se recompensando taes obras com benefícios, e favores, que
fdz á terra, e a seus contornos, obrando a meudo claros, e patentes mi-
lagres, que são causa de se acender de novo a devação: e a Senhora
também se obrigar a lhe procurar, e alcançar de seu bemdito filho no-
vas misericórdias. E, porque o encubrir as mercês do Rei, além de ser
ingratidão de quem as recebe, he também oííensa, que se faz á sua gran-
deza, e parece hum género de opposição, e encontro á corrente de sua
liberalidade : faremos relação n'este lugar de dous milagres, com que de
fresco tem mostrado esta Senhora, que não engeita os bons desejos dos
grandes, e ricos, nem os humildes rogos dos pobres, e pequeninos. Se-
rá isto huma oíTerta de ânimos agradecidos feita de parte, e em nome
da mesma cidade, pois outro serviço lhe não pôde fazer a nossa penna,
visto como pera com Deos he officaz oração, e petição o saber-lhe ren-
der as graças de seus benefícios quem os recebe: e ainda com o mun-
do he ai'te de pedir, e manha de grangear, hum encarecido agradeci-
mento. Mas não me culpe ninguém de escrevermos só dous milagres,
quando são muitos, e muito averiguados os que se contão. Porque a pu-
reza, e verdade da historia, cpie seguimos, não admite mais, que aquelles
que achamos aprovados polo Ordinário, como são estes dous, e como
puderão ser outros muitos, se houvera nelles o mesmo cuidado.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 331
No anno de IGlí cahio a festa, que chamão da Rosa, que se costu-
ma fazer em iMaio aos vinte sinco do mez. No mesmo dia sucedeo, que
luim António João, oíTicial pedreiro, conhecido por iiomem bem acostu-
mado, c de bom viver, teve huma briga acidental com outro homem,
no terreiro de santa Cruz. Da qual resultou fazer-lhe o contrario tiro
com huma grande pedra, que colhcndo-o em cheio no meio dos peitos,
foi tamanha a impressão, c abalo, que dentro sintio, que se deu por
morto, e foi correndo ao GoUegio de Santo Thomas pedir confissão. De-
via ser devoto de nossa Senhora do Rosário, pois havendo em meio ou-
tros mosteiros, passou por todos a buscar o dos seus Frades. Entrando
no coliegio, lançou-se no meio do Geral da Theologia, que achou aber-
to, com a respiração tão apertada, e a voz tão débil, que julgarão os Pa-
dres que morria. Perguntado polo mal, que trazia, contava que huma
pedrada, não de mão de homem, nem de Gigante, mas disparada a seu
parecer de huma bombarda, lhe dera sobre o peito, e lhe tinha quebra-
dos, e moídos todos os ossos dentro, segundo o que em si sintia. Des-
cobrirão-lhe os p.eitos : fazia fé ao que dezia grande elevação cuberta de
nódoas negras, sinais da bataria, e contusão da pedra, e nella tamanho
sintimenío, que não sofria chegar-se-lhe com a mão. F. era indicio de
maior dano, e dano interior, que pola boca, e narizes lançava sangue.
Como foi confessado, acudio-lhe hum Padre com humas rosas bentas
d'aqueíle dia, dando-lhe humas a beber com agoa, lançando-lhe outras
polo pescoço, c peitos. Na mesma liora, á vista de muitos padres, que o
acompanliavão, tornou em si, como se sahira de algum grande acidente,
levantou-se sem pena, e alegre, dizendo que estava são, c que vira a
Senhora d"aquellas rosas com hum rosário de contas na mão, (erão pala-
vras formais do ferido), que lhe queria ir dar graças á Igreja. Espanta-
dos 03 Religiosos de tamanha novid;ide, e tão súbita convalescencia,
porque em sinal d'ella batia nos peitos com muita força, onde d'antes
não consintia tocar-lhe levemente a mão, quizerão ver-lhos de novo. c
acharão toda a inchação abatida, e o que não podia ser cm instante sem
milagre, as nódoas, e pisaduras desaparecidas, como se nunca as tevera,
e são de todo se foi da igreja pêra sua casa, que tinha na rua nova, fre-
guezia de Santa Justa. Forão testimunhas do trabalho, c afílição pri-
meira, e da saúde, que logo seguio, todos os Frades Collegiais, e por
lhes parecer o milagre famoso tratarão, que se autenticasse. Feitas as di-
. ligencias diante do Bispo dom Afonso de Castelbranco, elle o deu por
332 LIVI\0 III DA HISTORIA DE S. DOMINGdS
Terdadeiro por seu despacho, publicado em quatro de Dezembro do
mesmo anuo, com licença pêra se poder pregar ao povo.
De íiro do Ceo, e mão invisível estava chegada ás portas da morte
na mesma cidade hum.a Anna João, molher de Maneei Fernandes, hor-
telão da freguesia de S. João de santa Cruz. Era o mal esquinencia de
tão má calidade, e tão grossa inchação interior, que nem agoa podia
passar pêra baixo : e bastava a falta de mantença pêra a matar sem os
accidentes da infirmidade. Assi falava já tão mal, que quasi ninguém a
entendia. Erão passados sete dias sem melhorar, desconfiarão o Medico,
e Cirurgião : e dando-a por morta, mandarão, que se lhe acudisse como
Sacramento da unção, e não tratarão da santa Communhão, polo res-
peito que dissemos da oppressão da garganta. Foi ungida hum Sábado
onze dias do mez de Maio do anno de 1619. Era ao Domingo a festa da
Rosa. Disseião-no á enferma algumas pessoas, que a vigia vão, como a quem
morria, lembrando-lhe que n^aquelia hora se estava fazendo a festa de
Nossa Senhora do Rosário ; que se encomendasse a ella, que poder ti-
nha pêra lhe valer em todo aperto. Levantou ella os olhos a hum reta-
bolo da Yirgem, que tinha defronte pendurado na parede, e falando com
o coração, e com o geito dos olhos, e sembrante, porque a lingua es-
tava presa, e impossibilitada, encomendava-lhe sua necessidade com mui-
ta fé. Não dilatou a Senhora suas misericórdias a tal oração. Repentina-
mente arrebentou a postema, e lançando-a diante de todos pola boca,
ficou tão viva, e senhora das operações de são, que logo falou clara-
mente, e comeo com gosto. E pêra que se visse ser a saúde mi-
lagrosa, aconteceo caso igualmente espantoso, e foi que a pobrezinha ti-
nha huma criança de peito, quando adoeceo: e porque logo se lhe secou
o leite, estava já fora de casa. Mas na hora que a Senhora foi servida
dar-lhe saúde, como ella não faz mercês de meãs, senão em tudo per-
feitas, tornou-lhe juntamente o seu leite, e com tanta abundância, que
se mandou buscar a criatura pêra lhe despejar os peitos. Estava o mi-
lagre patente : pareceo rezão calificar-se juridicamente, perguntarão-se
testimunhas, foi liuma o Medico, que jurou lhe não passara pola mão,
despois que curava, doença tão perniciosa : nem vira saúde mais mila-
grosa. Assi foi julgado por certo, e verdadeiro milagre por sentença do
Doutor João Pimentel, Vigário geral do Bispado em Sede vacante aos
cinco de Outubro do mesmo anno de 1619.
PÁniICULAR Btt R£kNO Dli PORTCGAL 331
CAPITULO IX
Da origem, e principio do Convénio da cidade do Porto : s das cousns
que houve pêra ss aceilar pola Provinda
íle o Convento da cidado do Porto terceiro em tempo, e ordem do
antiguidade d.js que temos em Portugal: mas o primeiro, que foi pedi-
do por conselho, e decreto de Bispo, e Cabido no Reino. E redundando
isto em honra da Religião, não são de menos importância pêra o credito
dos filhos as razões, porque se moverão a pedil-o. Reinava eia Portu-
gal havia quatorze annos dom Sancho Segundo, por morte de Affonso
Segundo seu pai, que faleceo no de 1223 como atrás mostramos: e pro-
cedendo em seu governo com o descuido, e froxidão que dissemos, e
largando toda a administração dos negócios nas mãos de poucos ho-
mens depravados nas consciências, infiéis ao Rei, que os honrava, ini-
migos da Republica, que os soíTria, acabou-se de entender por toda a
terra a falta da cabeça, e o desm.ancho dos que a governavão: que o Rei
não era senhor de si, que os privados não erão já privados com sojei-
ção, se não absolutos mandadores com império, e superioridade: e co-
meçarão, como he ordinário, acrecer vicios, e maldades por todo o Reino,
e a desaforar-se viciosos, e insolentes por todas as cidades, e terras
grandes: cometião-se violências publicas contra grandes, e pequenos,
contra seculares, e Ecclesiasticos, nenhuma se castigava. Nem havia
justiça, nem quem se atrevesse a faze-Ia. Porque os aggressorcs procu-
ravão ter hum amigo em casa dos validos, e isso bastava pêra absolvi-
ção, e segurança, e pêra com.etterem novos insultos. E os validos tinhão
por razão de estado sustentar os atrevidos, e desalmados, pêra com elles
como gente sua se fazer respeitar, e temer. Não faltavão homens de bom
espirito, que sinlião o mal, e dezejavão alalhal-o: mas a huns fazião an-
teparar interesses próprios, em outros não havia brio pêra cortarem po-
las dependências, que tinhão com os que mandavão, ou por rezão de
sangue, ou de amizade. Outros mais livres, que se atrevião a chegar
a el Rei, e propor-lhe sem rebuço as desordens, e falta de jiístiça, erão
bem ouvidos, em quanto fallavão; passada aqiiella hora, ficava tudo como
dantes. Porque, se bem era capaz, e dócil pêra. entender o que se lho
dezia, nenhuma forra tinha pêra executar o que entendia. Assi furão cre-
334 I.IVUO 111 DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
cendo, e encapeliando mares de misérias, e calamidades em tanto extre-
mo, qne d^ellas mesmas veio a arrebentar o remédio, chamando o Reino
ao Conde de Bolonlia pêra restaurador d'elle, como deixamos contado.
Mas, emqaanto este se não buscava, por ser commum de todos, e por
isso muito vagaroso, procurava a gente zelosa acudir em particular cada
hum em sua cidade com os meios, e cura, que o bom discurso offere-
cia, e sua posse abrangia. Isto aconteceo ao Bispo da cidade do Porto
dom Pedro. Sintia com zelo, e animo de bom Pastor as desaventuras
que a cada passo lhe ferião as orelhas, e alma, e muitas vezes os olhos,
sem as poder remedear: imaginou que poderião ser de proveito em meio
de tanta devassidão, e maldade os exemplos vivos de virtude, e santi-
dade, que ílorecião nos Religiosos de são Domingos, e se publicavão
por toda a parte com louvor, juntando-se com sua pregação, e doutrina
era que se sabia, erão continues, e incansáveis. Gommunicou o pensa-
mento com seu Cabido, pareceo a traça acertada polo que tinha de res-
peito ao Geo, porque só as tais são o verdadeiro antídoto dos males da
terra. Havia novas, que n-aquelle anno, (entrava o de 1237), celebravão
os nossos Frades Capitulo Provincial na cidade de Burgos, e era Provin-
cial o Santo Frei Gil conhecido por natural do Reino, e por fama de
suas virtudes, que erão já mui notórias. Ajudou tudo a se darem pressa
em despachar quem fosse a elle com o requerimento. Achou-se o raes-
sageiro a tempo em Burgos, c encaminhado poios Frades deu sua carta
no Diíllnitorio: a qual sendo n'elle aberta, vio-se que continha o se-
guinte :
VeneraMlibus viris et in Christo chnrissimis Priori Prouinciali^ et
Diffinitorihus, totique Capitulo fratrum Prcedicdorum Surgis celebrando,
Petrus Bei miseratione Portuensis dictus Episcopus fmalem in Dei ser-
uilio perseverantiam cum saltite etc. Vergenle ad occidnum die, quando
inualescente-iniquitats, non tam multorum refrigescit, sed patins extingni-
tur charitas : nec poterit ignis ille, quem vetiit Dominus in terram mit-
tere, vt vehementer aràeat, sine Bivini verhi (labello vllateuus reaccendi.
Jdeõ nostris temporibus non diibitamus Ordinem vestrum Dei prouidenlia
suscitatum, per quem Dominus infrigidatos malitia ad sui amoris incen-
diiim reuúcaret. Quanta igitur prce cceteris Portugallcnsihus locis, tam in
nostra Dicecesi, quam Bracharensi, et etiam Lamecensi, quce à vcstrorum
Fratrum consolationc ^lon modicum sunt remotas, malitia inundanit, vo-
PAP.TICULAli DO REINO DE POP.TUGAI- 335
bis nullatemis suificumts explicare. Insurrexerunt enim pr(edonss iimume-
rabiles, qui Beum non liment, nec Dcum reucrenlur, qni de Monasterijs
et Ecclesijs, solius Dei cultui dcdítis, speluncas lattronmn efficiunt, nec
non claustro pugnantum, stahula iumentonim, prostibida meretricium : di-
reptisque tain clericonim, quàm agricolarum, et etiain religiosoruin pos-
sessionibus, possessores ipsos contra altare crudelitus trucidantes, vel cuni
clericis comburentes, a facto tam cxecrabili nec admonitionibus, nec ex-
commiinicationibus cohibentur. Quis non doleat qiiosdíun paruidorum ah
vberibus matrum auidsos gladijs trucidari, aUidi scopuHs, quosdam subr.ier-
gi fluminibus, nisi a spoliatis parentibus prece, vel alio quantulocunque
prélio redimantur^ Quis nom horrebit puellas antes annos nuhiles violen-
ier abrumpi, et in Ecclesijs plurimorum ex nefandorum homimrni libidi-
nosa freqtientia expilari : Intucntes igitiir cum Salomone hcec mala qu'£
fiunt sub Sole, calumniasque pauperum^ et lacryinas iiinoceníiutn, et conso-
latorem neminem: nec posse resistere malorum violentio} cunctoriim auxi-
lio dcstitutos : dignam duximus, de Capituli nostri consilio, et assensu
plantare Conuentuin vestri Ordinis in loco nostro ad cooperationetr, salu-
tis animaru)H, et solatiuni afflictonun: credens fratrtim vestrorum pressen-
tia cum Dei gratia non modicum iiostris partibus profuluruni. Damzisque
vobis in bono loco Ecclesiam consecralam cum domibus in quadro ad mo-
dum claustri coiistnictis, et spcitiuni satis latum ad habendum horlum, et
ad officinas alias consfruendas. Vestram igitur, de qua plane confidimus,
rogamus in Domino charitatcm, qnatenus amore Dei, et nostri, et salutis
animarum intuitu, ad iam dictum Conuentum construendum, fratres-quos
nobis videritis necessários, qui virtute verbi Dei valeant mala supradicla
trrumpere, nobis dignemini destinare. Parati enim sumus, daníe Deo,
semper eos in ijs qxue potuerimus adjuuare, et oh diieclionem, qu/im sern-
per erga vestrwn Ordinem habtiimus, vberius con[ouere. Oratc pro nobis,
et valete.
Foi lida a csi-^ta com alíenrão e ouvida do Provincial Portuguez cora
abundância de lagrimas, lastimado não menos dos males de sua pátria,
de que tinha bastante noticia, que de os ver publicados por terras es-
tranhas. Pareceo a todos os Capitulares, que se devia satisfazer com
eíTeito, e brevemente ao requerimento : pois éramos chamados de hum
Prelado, e de hnma Cidade das mais importantes do Reino, onde se po-
dia fazer muito serviço a Deos. qu8 era o maior interesse da Religião.
XIQ UyWO III DA llISTOKtiV DK S. DOMINGOS
E assim se deu por reposta ao messageiro. A. carta declara as infelici-
dades d'aqueria idade melhor, que todas as Chronicas. E ponjue se veja
a rezão, que o Reino teve de buscar valedor contra ellas, irá em vulgar,
e he a que se segue:
Pedro por mercê de Deos chamado Bispo do Porto, aos veneráveis
varões, e em Ghrisío carissimos o Prior Provincial, e DiíTmidores, e a
todo o Capitulo que está pêra se celebrar na cidade de Burgos : saúde,
e em serviço do Senhor perseverança até o fim. Cerrando-se já o dia do
mundo, e estando quasi no cabo : pois cora o poder, e forças que a mal-
dade tem tomado n'elie, não só se esfria a caridade de muitos, mas de
todo se vai perdendo, e apagando : e não se podendo esperar que aquelle
fogo, que o Senhor veio pegar na terra, se torne a acender, pêra que
com vehemeníe ardor abraze as almas, se não for avivado, e abanado
com o ar, e assopros de sua santa palavra. Por isso assentamos, e temos
por certo que criou, e levantou a providencia Divina a vossa Ordem em
taes tempos, pêra por meio d ella tornar a inflammar em seu amor
aqoelies, que a malícia do peccado traz enregelados, e am.ortecidos. Assi
não ha palavras que possão bem declarar o muito, que tem crecido os
excessos, e desaforamentos, mais que em todas as partes de Portugal,
n'este nosso Bispado, e nas Comarcas de Braga, e Lamego, terras onde
se vive longe do trato, e consolação dos vossos Religiosos. Podemos di-
zer, que vai tudo cuberto de enchentes de peccados. Porque andão le-
vantados infinitos salteadores, que sem temor de Deos, nem respeito dos
homens, fazem dos Mosteyros, e Igrejas dedicadas ao culto, e serviço de
hum só Deos, covas de latrocínios, castelíos de soldadesca, estrebarias
de suas bestas, casa pubiica de mulheres infames, e perdidas. E saquean-
do os casaes, e fazendas dos clérigos, e lavradores, e até dos Frades,
matão á espada os mesmos caseiros diante dos altares, ou os queimão
com os Clérigos, E não bastão pêra refrear tamanhas exorbitâncias ne-
nhumas diligencias Ecclesiasticas de moniíorios, e escomunhõcs. Quem
poderá ouvir sem rnuita dôr, que chegãa a arrebatar as crianças dos
peitos das mais, e humas passão de estocadas, outras arrebentão nos
penedos, outras afogão nos rios, se os pais (lespois de roubados de todo
não acodem a resgalal-as com alguma cous..; de valia, por pouca que
seja, ou com lagrimas, e rogos? Quem não h?. de tremer, e pasmar de
não valer ás moças serem quasi mininas, e muito longe dos anno? de
PAUTICI LA» DO MAM) DF. IMJLl IKiAL 337
casar, pêra escaparuiii do slt com barbara violuncia Ibrgadas, e dv/ciro
das igrejas afrontadas por muitos -homens juntos em alcateas á execução
de tão enorme, e bestial sensualidade? Todos estes males passão entrai
nós, e á nossa vista, e vendo sobre elles injurias de pobres, lagrimas
de innocentes, e nenhum consiilador, como se queixava Salamão : e so-
!)re tudo não sermos poderosos pêra resistir á força maior da gente da-
nada, e perversa, por estarmos de todo ponto desemparados de quem
nos possa valer : pareceo-nos acertado fundar n"esLa nossa Cidade hum
Convento da vossa Ordem, assi pêra lermos n"elle coadjutores no que
cumpre á salvação das almas, como a consolação, e alivio dos atribuh-
dos. Pêra o que houvemos primeiro conselho, e beneplácito do nos-o
CaJjido : tendo por certo que com a graça do Senhor nos será de mui -a
iiíiiidado espiritual nestas partes a presença, e compauhii de tais Ueli-
giosos. E desde logo vos oíferecemos hnma Igreja já sagrada, e em bom
sitio, acompanhada de humas moradas de casas edificadas em quadro a
modo de claustro, com hum pedaço de teria bem largo, em <]ue haverá
lugar pêra fazer officinas, e praníar horta. Por tanto pedimos a vossa
caridade em o Senhoi-, na qual estamos confiados : que por seu amor, e
nosso, e polo que toca á salvação das almas, hajais por bem mandar-nos
logo os frades, que vos parecerem necessários pêra ordenarem o Mostei-
ro : e que sejão pessoas de tal valor, que com o poder, e armas da pa-
lavra de Deos se possão oppor, e fazer guerra aos males, que temos dito.
Porque de nossa parte estamos prestes com o favor Divino, })era os aju-
dar em tudo o que pudermos, e os agasalhar com muito amor, polo moo
sempre levemos a esta Ordem. Encomendai-nos ao Senhoi', que vos guar-
de, e dê saúde.
CAPITULO X
Dos Religiosos qae foruo mandados fundar o Convend) do Porto. Da-se
conta dos muitos favores, que o Bispo lhes fazia. E como desjhns mudou
parecer, e das rezões que pêra isso leve.
Nomeou o Diffinitorio pêra esta fundação dous ReUgiosos, de cujas
partes havia experiência que satisfarião bastaníemoníe á tenção pia, e
santa do Bispo, e Cabido, e á obrigação de quem os mandava. Eião Frei
Gualtero, e Frei Domingos Galego, que partirão logo, Esperava-os o Bis-
po, e toda a Cidade com alvoroço. E^ quando chegarão, forão recebidos
VOL. I. "-Àl
338 LIVUO III DA msTor.iA dk s. domi.ngos
com festa, e hospedados com amor, e largueza : c logo se lhes deu posse
da Igreja, casas, e chãos polo Bispo offerecid os. Começarão a pregar, e
confessar, ensinando nas horas vagas a doutrina Christã em casa, e polas
ruas, e juntamente entendendo na fabrica, e ordem do Convento. Era o
trabalho grande, e como a duas mãos : encaminhando, e dando traças
no temporal, e não largando o espiritual. Mas aliviava a fadiga ver que
se edificavão todos os bons, e os que d"antes andavão soltos, e descom-
postos se começavão a reprimir, e entrar em si : de sorte que obrando
Deos por mão de seus servos, dentro de poucos mezes se vio notável
mudança nas vidas, e costumes. E acudindo, como houve gazalhado mais
religiosos, corrião aos togares vizinhos, e aproveitavão muito em todo
género de gente. Alegrava-se o commum da Cidade, e agradecia a seu
Prelado a vinda de tais hospedes. E elle com desejos de que tevesseni
em hreve casa feita, mandou publicar por todo o Bispado huma provi-
são em recomendação dos Frades, e de seu Convento, concedendo gra-
ças, e indulgências aos que de alguma maneira ajudassem a obra d"el!e.
Esta poremos aqui de verbo ad verbum tirada da própria, que se guar-
da no Cartório da casa, e também irá traduzida em vulgar. Porcfue con-
vém assi, respeito das alterações, que logo seguirão. A Latina diz assi.
Petrvs Dei púticntia Portucnsis Episcopus, omnibus iam clericis, qiiam
laicis in rortugallensi diccccsi sahttem, et honis opcribvs abundure. ISore-
rilis nos fruíres Prcediccdoí es ad mormidnm in civitate nosiru de Consensu,
et voluntnle Canoniconm, et omnium ciiiium Porítignllensium reccpisse,
credenles ipsos vides, et necessários corporibus, et animabus dcgentium in
cinitate, et in Episcopatu nostro. Vndc cvm prcedicti Fratres nihil hu-
beunt, ncc possint sine meo iuuamine, et vestro Ecclesiam, et domos sibi
necessárias constnicre, vniiíersifatem veslram rogamns, atque in remissio-
nem vestrorum vobis iriiungimxis peccaloritm, cjvatenus tom in ligms colli-
nendis, quam etinm in lapidibvs ducendis opcri prwdictorum fratriim ne-
cessitrijs vos exhibeotis propitios, et deuotos iuxta illud: Sibi (edificat,
qui domnm Dei a^dificat. Nos igititr de Dei misericórdia plenissime confi-
dentes, omnibus, qui sibi fideliter in lignis coUigendis, et lapidibus du-
cendis, vel ibi próprio corpore laborauerint per vniim diem, vel operar ium
mnerint loco sui, qvadragiuta dics de iniuncla sibi plenissime pcenitentin
misericorditer relaxamus. Atque in hunc modum qui operi prcedicto et
Fratrihns phts boni feccrint, plus mcrced!s accipicnt et coroicc, Datum
PARTICLLAR DO IlEINO DE PORTUGAL 339
Portiujallue sub .Era M.CC.LXXVI. die sexto mcnsis Marlij. Uaieat us-
que ad duos annos.
A Portugueza he
Pedro pola paciência de Deos, Bispo do Porto, a todos os moradores
d'este nosso Bispado, assi Ecclesiasticos, como seculares, saúde, e acre-
centamento em bem fazer. SaÍ3ereis que nós recolhemos n'esía nossa Ci-
dade pêra morarem n"ella aos Frades Pregadores com consintimento, e
gosto dos Cónegos, e de todos os Cidadãos, tendo por certo que sua com-
panhia he necessária, e ha de ser de proveito temporal, e espiritual pêra
todos os moradores da cidade, e Bispado. Pola qual rezão visto como os
Religiosos não possuem nenhuma cousa de próprio, nem podem compor
sua Igreja, e fabricar as casas, de que tem necessidade, sem vossa, e
minha ajuda, rogamos-vos a todos, e em remissão de vossos peccados
vos encarregamos, que mostreis com elles facilidade, e devação, assi em
os ajudar a cortar, e ajuntar a madeira, como no carreto da pedra ne-
cessária pêra a obra, conforme aquillo: Pêra si edifica, quem a Deos faz
casa. E por tanto confiando nós plenissimamente na misericórdia de Deos
a todos aquelles que fielmente lhes acudirem no colher da madeira, e
carregar da pedra: ou lhes derem por si, ou por outrem hum dia de
trabalho na obra, concedemos quarenta dias de perdão das penitencias
que lhes forem impostas. E a este modo sejão certos que os que mais
favorecerem tal obra, e a quem a faz, mais premio receberão, e maior
coroa. Dada no Porto a seis de Março da Era de Mil e duzentos e se-
tenta e seis (responde aos annos de Christo de 1238). Valha por tempo
de dous annos.
He a gente d'esta Cidade geralmente dotada de honradas calidades,
pia, devota, liberal e bem inclinada. E na nobreza he maior a venta-
gem, quanto mais se adianta no sangue. Assi pêra a Cidade foi pouco
necessária a amoestação do Prelado. Porque se a liberdade do tempo
trazia alguns desconcertados na vida, fazião por honra, e brio, o que
outros por virtude : e não faltava nenhum em acudir á Casa de Deos
segundo sua possibilidade. Faz muito ao caso em toda a matéria o
exemplo dos nobres. Valeo este no resto do Bispado, junto com a re-
comendação do Bispo, pêra procurarem muitos ter merecimento na obra.
O liispo também não contente com o que tinha dado aos Padres como
3Í0 LlVnO III DA IIISTOIÍIA DE y. DO.MINC.OS
Prelado, quiz enU"ar â parte como particular. Possuía huns cliíícis de sen
l)a!rinK)iiia, qiicparlião com o sitio, fcz-lhcs doação d'e]!es pêra se alar-
garoíii. Assi podemos dizer d"esla Cidade, que como do nosso Convento
de Coimbra forão fundadoras as duas Priíicezas, ílllias dei í\ei dom San-
cho I-rimeiro : da mesma maneira o íoi cila d'cste : com^ecando o braço
Eccíesiasíico, e seguindo o secular.
Mas lie grande a inconsíancia, e fragilidade da natureza liimiana, pê-
ra que a boca cheia, demos por acertada a sentença : Maledidus homo
qui fdit in hmine (*); e pêra que só em Deos fiemos. No meio doestes
fervores, ou fosse que o Clero entrasse em ciúmes das grossas esmollas
que corrião ao Convento, e julgasse de algumas, que começarão a entrar
por enterros, e benesses, e legados de testamentos, (como na terra não
lia mais Freguezia que a Sé), que tudo o que hia pêra os Frades, era
como agoa furtada á erdade dos Clérigos : ou fosse enveja áo enemigo
comum, que sinlia ser lançado da jurdição, e posse pacifica de muitas
almas, com os brados da pregação, e doutrina dos Religiosos, e adivi-
nhava maior perda pêra o diante: ou tudo junto : creceo em tanto grão
o fogo da desconfiança do que vião, que parou em hum incêndio que
mostrava sinais de se não apagar com nenhumas forças. E sendo assi,
que a qualquer homem do povo saem coros ao rosto, se diante d"outro
nega a palavra, ou troca parecer ainda em negocio muito desarrezoado:
neste que era Santo, e todo de Deos, pede tanto o medo do dano ima-
ginado, ou a tentação de Lúcifer, que não duvidarão Cónegos, c digni-
dades, e todo o Cabido junto, gente conhecida por virtuosa, e prudente,
tornar atrás com tudo o que tinhão concedido, dado, e doado, e pondo
n'.)ta sobre si de pouca constância, chamarem-se enganados em cousa de
C3mum conselho acordada, e decretada. O primeiro ponto que derão no
negocio foi mandarem em.bargar a obra, que corria no Convento. Sus-
pensos os pobres Frades com o embargo, pareceo que acharião emparo
110 Bispo, como em quem fora o primeiro autor de sua vinda, e o que
mais os tinha favorecido, e em íhii feito o Convento cousa sua, com lhe
ter lançado a primeira pedra. ^ías acharão-se enganados. Porque saindo
de casa o Prior, e outro frade pêra se irem valer d"eile, derão de rosto
na portaria com hum Notário Apostólico, que de sua parte lhes notificou
que em seu Bispado não pregassem, nem confessassem, nem ceiebras-
sjm Plissa, nem outro officio Divino. Foi grande o escândalo, que toda a
{-^ Jurem. 17.
PARTICULAP. DO RKIXO DE ronTIGAI. 341
Cidade recebeo, e principalinoíitc a nobreza, mosíraiido-sc mui scnlida
do áspero termo, com que se procedia com gente buscada, e chamada,
gente que a ninguém oíTendia, e a todos edificava. Juntarão-se muitos,
e tomarão á sua conta o ediíicio, como so tocara a cada iium delles, e
nada aos Frades. E Gzerão que corresse adiante, assistindo com suas
pessoas, e fazendas, e animando aos Religiosos, que não sabião, que
consellio tomassem aííligidos, e desconsolados de verem nacer a pcrsi-
guição d'onuc esperavão o remédio. Mas não parava o Inferno em asso-
prar as brasas da discórdia, pêra que se visse que era sua a maior parle
d^eila. Veado o Clero o concurso, que bavia dos cidadãos no Convento,
e como Ibe acudião com nova liberalidade, fazem relação ao Bispo, que
não foi vagaroso em fulminar censuras, e pór interdito contra todos os
que dessem favor, ou ajuda, ou conselho pêra se continuar a obra. En-
tão ficarão os Frades postos em cerco: vendo-se privados de todo re-
médio divino, e humano, quo na terra havia, tornarão-se a Deos : pe-
dião-ltie com continuas orações, e sacrifícios abrisse os olhos a seus per-
siguidores, pêra que não errassem contra clle, c contra si mesmos. Of-
ierecião-lhe aquella tribulação, e afronta, quo só por cllc padecião, epolo
amor dos próximos, cujo serviço vinlião procurar n\aquelle lugar, sem
nenhum interesse próprio d'elles Religiosos. Por oiúra parte como gente
exercitada em m.aterias do espirito, alegravão-se no traballio, fazendo
conta, que alguns bens antevia o Demónio haverem de sair d"aqueilo
Convento pêra gloria de Deos, e remédio dos homens, pois com tanta
senirozão estorvava o ediíicio, semrezão totalmente indigna da virtude,
e bom entendimento do Prelado, que a fazia. Assi discorrendo, e sofren-
do com silencio, e constância, e sem se ouvir de suas bocas palavrr. do
impaciência, esperavão reclusos o remédio do Ceo, avisando de tudo ao
Província!, e sojeitando-se a suas ordens.
capítulo Xí
BuK(io-se intercessores poderosos por parle do Convénio: não valendo
nada, qucixão-sc os rrades a Rúnia. Comete o Snmmo Ponlifiee ao
Arcebispo Primos que os desagrave.
Entre tanto erão muitos os que procuravão alcançar do Bispo, e Ca-
bido algum meio de paz. Por huma parte trabalhavão alguns velhos dos
3Í2 LIYKtí III DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
mais nobres, e autorizados da Cidade, obrigados de instancias de todos
os mais. Por outra o Provincial, que era o Santo Frei Gil, desejando es-
cusar queixas, e litigios, pedio á Rainha dona Mafalda, tia dei Rei dom
Sancho Segundo, irmã de seu pai, quizesse interpor sua autoridade em
pacificar o Bispo com os seus Frades. O mesmo pedio ao Arcebispo
Primas de Braga dom Silvestre. Fizerão-se por todos diligentes, e aper-
tados oííicios com o Bispo, e Cabido. Mas aconteceo o que he ordinário
em todos os que sabem pouco de negócios, quando se vem rogados,
(|ue referem os rogos á falta de justiça, e não á boa natureza de quem
roga. Assi vendo o Bispo, e Cónegos tantos, e tão honrados intercesso-
res por parte dos frades, derão-se por absolutos senhores da causa, e
não só não admittirão concórdia, mas ajuntarão novo escândalo aos pas-
sados. E foi, que tendo os frades comprado alguns chãos, e casas vizi-
nhas ao Convento, e dado dinheiro, e feito escrituras cem licença, e
aprazimento do Cabido, por serem foreiros a elle, revogarão as licenças
que por escrito tinhão dado : e com a mesma deshumanidade publicarão
por nullas algumas doações voluntárias, que de bens semelhantes tinhão
feito algumas pessoas pias ao Convento. Vista tamanha dureza, foi ne-
cessário acudir por remédio á Suprenia Cadeira. Presentarão-se ao Pon-
tifice as queixas do Convento, e suas rezões. Proveo logo no caso com
hum Breve mui amplo, que poremos de verbo ad verbum, e com sua
li-aducção : assi porque estes são os titules d"este Convento, como por-
que seja a todos notória a pureza, e verdade da historia, que seguimos,
e não pareça a ninguém que a enfeitamos. Este Pontifice era Gregório
Nono, que sendo Cardeal com nome de Ugolino fora grande devoto de
nosso Patriarcha S. Domingos em vida, e despois de assentado na Ca-
deira de S. Pedro, como testimunha de seus merecimentos o poz no
Catalogo dos Santos canonizados. Segue o Breve.
Gregorius Episcopus seruus seruorum Dei, Uenerabili Fralri Ar chi e-
piscopn, et dilectis filijs Decano et Cantori Bracharensihus salutem et Apos-
tolicam henedictionem. Olim venerabilem fratrem nostrum Episcopiim Por-
lugallensem illius esse credehamus indiistrice, vt perennis ohtentu glorios
libenter efficcret, per quce Deo et homínibus complaceret. Sed cogimnr opi-
nari contrariam, illis in co7ispectu nostro clamantibus, quos sine causa
perseqnitur nom ahsque contumelia Redemptoris. Sane dilectoriim fúionun
Fratrum de Ordine Prwdicatontm PorttigaUensium insinuatione percepi'
PAUTICUI.AR DO RFJiNO PE PORTUGAL 34S
tnus, quód idem Episcopus aliquando pie cogitans eorum studijs animarum
procurari salatem, et ampliationem CothoHccB purilatis, eis Portiujalliam
ad suam vocem infrantibus, locum ipsis pro Ecclesia fundanda conressum,
de sui consensu Capiluli UheralHer assignauit, ponens ibidem lapidem pri-
mar ium, et sua: partem lia;reditatis adjiciens, vt inchoatum csdificium pos-
set magis efpci spaliosum: ciindis loci eiusdem per eum nihilominus fada
certa remissione peccaminum, qni ad lioc ipsis prwstarent siibsidium oppor-
tunum. Uerúm cum dicti Fruíres locum ipsum pacificê possidentes, et ibi-
dem de sua licentia Divina libere celebrantes pro liuiusmodi perfedione
operis graues lubores subierint, et expensas : ipse subitó de patre commu-
tatus in hostem^ eos exinde vná cum suis Canonicis amouere nititiir, niul-
tis ex hoc, ac eisdem fratribus in graui scandah constitulis. Frcesertim
cum idem ipsis contra indulgentias eis ab Apostólica Sede concessas, ne
proedicent, seu confessiones audiunt, vel Diuina celebrent duxerit inhiben-
dum, lata in omnes inlerdicti sententia, qui eis ad huiusmodi perfedio-
vem operis consilium, vel auxilium largiuntur. Cum igitur prorsus inde-
cens et detestabih videatur, nt idem Episcopus vidcatur de tanta varictate
notabilis, et persecutor Deum timentium reputetur : eundem rogamus et hor-
tamur attenté, nostris sibi distridé in virtute obedientiís mandantes literis,
in prceceptis, vt fratres eosdem pnefati loci possessione pacifica, sine prceiu-
dicio iuris sui, et etiam alieni pro Divina et noslra reuerentia gaudere
permiltat, latam per ipsum in benefadores eorum interdidi sententiam, in-
fra odo dies post susceptionem earum sine qualibet difficullatc relaxans.
Quocircá discretioni vestra per Apostólica scripta mandamus, quatenus si
didus Episcopus proocejdum nostrum infra prcsscriptum tempus neglexerit
adimplere, vos extnnc relaxantes eandem, et si similem in illos de ccetero
ferre prwsumpserit, eam tanquam contra inhibitionem Sedis Apostolicvs
promulgatain, nullam esse peniius decernentes, fratres ipsos super eiusdem
possessionibus, ac eos, et benefadores suos, super construendis ibidem cedi-
jlcijs eorundem fraírum vsibus opportunis non psrmitlatis ab aliquo inde-
bile molestari, mvlestatores huiusmodi auíhoritate noslra nppellatione pro-
posita, compescendo. Quód si nom omnes ijs exequendis potueritis interes-
se, tu frater Archiepiscope cum eorum altero ea nihilominus exequaris.
Daium Anagnice VJIL Cal. Odobris, Pontiftcatus noslri anno duodécimo.
ôví- Livi;o IH nA msToniA de s. domingos
Em vulgar responde assi.
Gregório Bispo servo dos servos de Deos, ao venerável irmão Arce-
líispo de Brng;í, e nos amados Daião, e Ciiantre da mesma igreja de Bra-
f^a sande, e Apostólica benrão. Tivemos sempre em tão boa conta nosso
venerável ii'nião o Bispo do Porto, que criamos d'elle íaiia com gosto,
a íim de alcançar a eterna bemaventurança, tndo aqiiillo que o pudesse
l:!7.;'r grafo a Deos, e aos homens. Mas obrigão-nos hoje a cuidar ouíra
(•')usa delle as queixas, e brados que ante nós dão aquelles a quem per-
segue sem causa, o não sem aííVonta do Redentor. Soubemos por rela-
ção certa dos amados filhos os Frades da Ordem dos Pregadores do Con-
vento do Porto, em como o mesmo Bispo, tendo d'elles boa opinião, e
do cuidado com (jue íraíãf» da salvação das almas, e augmonto da pu-
reza christã, os chamou, e levou áquella Cidade, n'eila lhes assinou lu-
gar pêra fundarem Igreja, com beneplácito do seu Cabido, no edific-o
}ioz de sua mão a primeira pedra, e pêra terem mais lai'gueza os aju-
dou com lazenda de seu património:' e sobre tudo publicou indulgên-
cias, e remissão de peccados pêra todos os que dalguma maneira des-
sem ajuda, e favor á mesma obra. E que, estando por este m.odo em
})osse pacifica dosiíio, que lhes dera, e celebrando n"elle com sua licença
os Oíficios Divinos, e procurando juntamente com muito trabalho, e des-
}ieza por chegarem á [)erfeição o Convento: hora trocado repentinamente
<'e pai em eneinigo, fazem toda força elle, e seus Cónegos poios lança-
lem da íeri'a, com grave escândalo de muita gente, e dos mesmos Fra-
des: principalmente por lhes mandar, que não preguem, nem confessem,
nem celebrem os Officios Divinos, sendo cousas que a Sé Apostólica
lhes tem concedido: e perseguir com interdito os que de obra ou pa-
lavra llies acodem ou fazem algum bem. Por tanto como seja cousa to-
talmente indecente, e abominável, que no mesmo Bispo se ache junta-
mente no!a de homem vario, c de perseguidor dos que a Deos temem,
polas prcsevites letras lhe rogamos, e com eílicacia o amoestamos pon-
<lo-ibe rigorosaaiente preceito em virtude de Santa obediência, que por
reverencia de Deos. e nossa deixe gozar os Frades da posse quieta, e
pacifica do lugar, em que estão, sem prejuízo porAm do direito, que
'.•lie cu outrem no tal lugar pretenda. E dentro de oito dias, despois
de lhe cliegarcm eslos letras, levante sem fazer nenhuma duvida o in-
ivrdiío, e todas as mais censuras, que centra os bemfeiíores do Convento
PAIVTICULAU DO «F.INO DK PORTUGAL 345
íever postas. E á vossa discrição cometemos, e encomendamos que, se o
Bispo no termo assinado não cumprir nosso mandado, em tal caso vijs
as levanteis. E se oníra tal presumir ao diante fulminar, a julgueis por
nuUa, e como passada contra publica inhibição da Sé Apostólica: nlio
Gonsintindo que sejão molestados de pessoa alguma nem os Frades na
posse de seu sitio, e casa, nem seus bemfeitores no favor, e ajuda, que
pêra proscguir suas obras lhe quiserem dar. E reprimireis por autori-
dade, e poder nosso sem. appellação, nem recurso, quem quer que os
inquietar. E acontecendo não vos poderdes achar juntos á execução do
que assi mandamos, vós ii-mão xVrcebispo o podeis fazer só com qual-
quer dos nomeados. Dada em Anagnia aos 24 de Setembro íío anno
duodécimo de nosso Pontificado, {que responde ao do Senhor de \2'À8.)
CAPITULO XII
Levantão-se as censuras, e prosegne a obra do Convento. Passa cl Rei
dom Sancho aos Frades carta de Padroeiro. Mitiga-se o Bispo, e faz
composição com elles.
Era já no cabo do, anno de 1238, quando cbegou o Breve ás mãos
do Arcebispo. E ainda que tinha trabalhado por quietar o negocio, sem
lhe valer nada sua boa diligencia, como contamos : e pudera com rezão
ser arremessado executor; com tudo respeitando o credito, a autórisla-
de do Bispo desejou, que não parecesse em juizo, e tornou a tratar de
paz, avisando-o do rigor da commissão. Mas ha muitos eniendimeníos
que não he em sua mão conhecer os bens da paz, senão despois de bem
acutilados, e atropelados da guerra. Tão cegos estavão de paixão, c tão
confiados da vitoria Bispo, e Cónegos, que não quizerão vir cm nenhum
partido, e quando decia a hum pouco de brandura, o menos que pcdião,
era que os Frades não dessem em sua Igreja sepultura geral, nem par-
ticular, nem receiíessem olfertas, com outras exorbitâncias semelhantes.
O qud visto polo Primaz, publicou o Breve, mandou-os parecer em Bra-
ga por si ou por seus procuradores. E logo levantou as censuras, e in-
terdito, que o Bispo tiriiia posto aos seculares pêra não ajudarem o edi-
fício, nem eommunicarem no Convento ; e mandou-lhe que desembar-
gasse a obra, e não inipedisse o ir adiante. E obrigou ao Cabido a con-
íiriiiar as veiidas, e doações feitas ao Convento, e revalidar as licenças
346 LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMIXGOS
que revogara, e a dar de novo todas as que pedidas lhe fossem. Com es-
te principio abrirão os Religiosos suas portas: publicarão no povo os
favores da Sé Apostólica: e ainda que guardavão toda moderação em
suas praticas, a terra, que estava resintida, e queixosa, não fazia o mes-
mo, antes celebrava a vitoria, como se fora causa própria. E polo mes-
mo teor acudião tantos oíficiaes á obra, e erão tantos os que provião o
necessário pêra ella, que crecia maravilhosamente. Mas não corria com
menos prosperidade o edifício espiritual: porque o Provincial tinha in-
\iado numero de Religiosos, e querendo todos mostrar-se agradecidos
á boa vontade, e caridosos ânimos, que em seus trabalhos acharão na
Cidade, empregavão-se com grande cuidado em a servir, e agradar em
tudo o que era ministério da Religião.
Na mesma conjunção lhes acudio Deos com novo favor. Era entrado
o anno de 1239. El Rei dom Sancho segundo, que reinava, movido de
bom espirito, (que na verdade tal era o seu na fonte), ou persuadido, ao
que se pode congeiturar da Rainha dona Mafalda sua tia, passou huma
provisão, pola qual de seu motu próprio se deu por autor, fundador, e
padroeiro do Convento. No que he de ver sua grande bondade, porque
era cousa certa, que n'este mesmo tempo todos os nossos pregadores se
desfazião nos púlpitos em vituperar descubertamente as faltas de seu
governo. Foi esta provisão de muita importância: porque, ainda que só
por si não fora de effeito, polo pouco respeito, que geralmente se tinha
ao Rei, e a seus mandados : bastou junta com o favor de Roma, pêra
os Frades íicarem armados, e animados a procederem confiadamente em
suas fabricas. A nota, e antiguidade d'ella me faz cuidar, que será agra-
dável a quem se occupar nesta lição : dezia assi:
Sanciíis Bei (jratia Poríiigallke Rex, omnibus de meo Regno, adquos
litcroB ístcB periienerint, salutem. Sciatis quod ego mando facere pro ani-
ma mea monasterium Fratrum Prcedicatorum in Portu. Quia inlelligo
quód erit grande bontim, et magna profetantin. milii et omnibus de Regno
meo. Et rccipio ipsum Monasterium, et ipsos fralres in commenda mea.
Vnde mando firmiler, quód nullus sit ausiis in regno meo eis mal>im fa-
cere, negue operarijs sitis. Quia quicumque eis mahim fecerit, aut fortiam
siue íortim, pectabit milii quivgentos morabiiinos, et eis emendabit dum-
num in duplum, quod illis fecerit, et super remanebit pro meo iaimico.
Et vt ipsi et locus ipsorum sint melius emparali.) do eis istam meam cliar-
PARTICULAR DÓ REINO DE PORTUGAL 347
tam apertam, quod teneant illam in tesfimoniim. Datum apud CoUimhrinm
iij Kalend. Fehruarij Ma M.CC.lXXVIl. (responde aos trinta de Ja-
neiro (lo anno de Christo 1239.)
De crer lie que passando el Rei huma provisão com palavras tão
claras, e resolutas, e aífirmando, que mandava fazer o Mosteiro por sua
alma, nao seria, (como nos persuade a conjunção que passou), fantasti-
camente, e só a fim de valer aos Religiosos contra a força, que se lhes
fazia: mas que mandaria despender com elle da fazenda real. Confirma-
se isto com que a Igreja, inda que não seja muito grande, he toda de
cantaria, e obra custosa, e maior do que n"aquelle tempo demandava o
custume das fabricas da Ordem, que também nas Igrejas guardavão mo-
deração, salvo n'aquellas, que os Reis tomavão á sua conta. Se não qui-
sermos dizer que pode ser esta mesma de que o Bispo fez offerta ao
capitulo. De qualquer maneira que a origem fosse : certo he que o Mos-
teiro ficou realengo, e consta-nos de outra provisão passada por el Rei
dom Dinis, sessenta annos despois da que fica atrás, c escrita em Portu-
guez, cujo original he do teor seguinte.
Dom Dinis pola graça de Deos Rei de Portugal, é do Algarve, à
quantos esta carta virem faço saber, que eu recebo em minlia guarda, e
em minha encomenda, e sob meu defendimento o meu Mosteiro, e Con-
vento dos Pregadores do Porto, e seus homens, e suas agoas, e todas
as cousas, que pertencem a este Mosteiro. Polo que mando, e defendia
que nenhum nom seja ousado, que faça mal nem força em esse Mostei-
ro, nem a esses Frades, nem a seus homens, nem a suas hortas, nem
a suas agoas, nem em nenhumas de suas cousas. E aquelle que ende
ai fizer, ficará por meu imigo, e peitará a mi o meu encouto de seis
mil soldos, e corregerá em dobro o mal ou forç-a, que fizer ao diío Mos-
teiro, ou aos Frades d'elle, ou a suas agoas, ou a alguma de suas cou-
sas. Em testimunho da qual cousa dei ao dito Convento esta minha car-
ta. Dada em Lisboa treze de Setembro. El Rei o mandou por Pedrafonso
Ribeiro. Domingos Joanes a fez, era de M.CCC.XXXYIII. annos. {Res-
ponde aos de Christo de 1300.)
O mesmo se mostra por outro indicio muito mais publico, que he
vermos nas vidraças, que estão sobre o arco da Capella mór a insígnia
3i8 Livao III DA iiisToniA mz s. domingos
tão saljida ilas esferas d"cl ílei dom Manoel. E eoni tudo ficando !)astan-
temente provado por tais memorias ser este Convento da obrigação dos
Reis, não achamos nenhuma de mercê perpetua, que elles llie fizessem
de renda, ou fazenda, ou bens da Coroa.
Mas tornando á historia, foi o Bispo caindo na conta das semrazões
que tinlui feito aos Frades, e entendendo, que não poderia prevalecer
contra elles, pois tinhão por si os poderes do Ceo, e da terra, começou
a liumanar-se, e descer a partidos mais acommodados. E os Frades por
mostrarem, que não linhão gosto da discórdia, inda quando estavão cer-
tos da vitoria, fo]garão.de cortar por si, e concederão em algumas con-
dições pesadas, que o tempo despois foi aliviando, e reduzindo tudo ao
estado de paz, e quietação, com que hoje vive. Pêra o que ajudou mui-
to a Rainha doaa Mafalda, de quem pouco ha falamos, poios meios, que
dii^emos no capitulo seguinte.
CAPÍTULO XII í
Faz a Rainha dona 3Iaf<thla doação do padroado de uma Igreja á Sé do
Porlo. pêra de todo pacificar o Bispo, e Cabido com os Frades. Pro-
cede o Bispo com elles em amizade: faz- lhes esrnolla de daas fontes
pêra o Convento.
A Rainha dona Mafalda foi filha dei Rei dom Sancho Primeiro de
Portuga! ( *), e casada com elRei dom Anrique, oPrimeiro deCasíella, aquelle
que morreo em Falência do desastre de huma telha, que lhe cahio so-
bre a cabeça: do q;'.al sendo apartada por sentença da Sé Apostólica,
por casarem sem dispensação, havendo entre ambos estreito parentesco,
tornou pêra Portugal, e, andando o tempo, fundou o Mosteiro de Arouca
na Ordem de Cister, e nelle se recollieo, e está sepultada. Esta senhora
como procurou nos princípios atalhar as inquietações, que o Bispo dava
aos Frades, assi, despois que os vio scrihores da causa com os favores
do Pontífice, e dei Rei, desejou polo amor, e grande devação, que ti-
á Ordem, que;não ficassem, em casa alheia hospedes mal assombrados.
E a este fim fez doação ao Bispo, e Cabido de huma Igreja, que tinha
de seu padroado na ribeira de Leça, offerecendo-a liberal, e esponta-
neamente, e afiançada com certos casaes, em recompensa das perdas,
(.] Monar. Lusil. p. 2. 1. 7. c. 22. Duarte Nunt's de Lião na víila de dora Sanclio riim.
PARTICI I.AU DO [íEINO DE PORTLGAf. 3ií)
e danos, que os Clérigos da viziníiaLTa dos Frades íemião. Grande, c
memorável virtude! que por pacificar desavenças alheias, em que nada.
interessava, nem perdia, folgou de perder a fazenda própria. O original
da escritura se guarda no Cartório do Convento: e nós polo que toca á
memoria, e honra de tal Princeza, darem.os aqui o treslado, pêra que
em quanto estes escritos durarem, viva n'elles seu nome, e nosso agra-
decimento. Segue a doação.
In Dei nomine Amcn. Notum sit o?>íír/5?í.s fnrscTiicm paginam inspc-
ctiiris, qnód ego Regina Domina Mafalda pro remédio aninue mea', ob
gratiam Fratrum PrceiUcatoriim in ciuitale Poriucnsi de consensu Episco-
pi et Capitnii Portugal lenais commorantium do Ecdcsiam sancíce Criicis
de Ripa LeccicB cnm omnibus suis possessícnihns et iuribiis suis, Ecclesicn
sanctw Mar ice Sedis Porluensis in recompensadonem grauar.iinis , si in
aliquo ex Pradicalorum Froirttm commoralione, Ecclesia Portvgallensis
fuerit aggrauata. El slalim wilto Episcopxnn Dominum Pctriim et Capitu-
Inm eiusdem Ecdesiw in duminium et possessioncni Ecclesia' siipradicUv, iit
quicquid iuris, hceredilnlis, possessioivis vid quasi in prcedicla obtineo Eccle-
sia, totum in Episcopum et Capidiluni supradicta; Sedis transfero pleno
iure. Et vt ista mea donalio jirmnin robur ofitincat, assigno sex Cusalia
in villa de Louredo de Sousa, vt si fcrtè aliqvis vcHel impedire donatio-
nem meam, et ae iure in cndem Ecclesia in vila mea ius evinceret patro-
natus : et ego prcediclam Ecdesiam non liberauero, de pnedictis casalibus
recipiat Ecclesia Porlugnllensis nuanfum damnum. snsUnuerit in prcedicta
Ecclesia Sanctfi; Crucis. Et si tolnm omiserit Ecclesia Portugallensis in
perpetiium, tunc in perpeluum pnvdicta Casalia penes PoitugallcjiSrni Ec-
desiam libera remanvaul. Quod si forte aiiquis vd aliqui in vita m^a
ipsain Ecdesiam impeUívint, et in eadem aliquid non obfinuerint, libc-
rum sit mihi de eisdem casalibus in morte mea pro mea disponere volun-
iate. Et si ínterim de eisdem Casalibus oliter voluero ordinare, debeo
primo assignnre pradicke Sedi alia Casalia wquiualentia in Portvgallensi
Dioecesi constituía, quce sint conditione et modo simili obligata. Episcopus
autem et Cnpitulvm snpradicti debent me iuuare ad liherafionern supradi-
ctcp. Ecdesice per iustitiam Ecclesiasticam, quanlum de iure potuerint bona
fide. Et vt supradida in dvbivm non vcniâr.t, 'nec aliqua inde conlentio
orintur, fecimus per alphabdum dividi charlas islãs, vi vtraqne pars suam
tcneat in tcstimonium frmilatis, et sigillo nico prriprio cGmmunirc. Faria
350 LIVRO 111 DA IIISTOHIA DE S. DOMINGOS
charta iiiensi lunij sttb jEra M.CC.LXXVIf. re.-[)ond6 ao anno corrente
d6 Christo I;239.) Eijo vcró tabellio inemoratus Anlonitis Stepliamis^ qiii
supradictam literam inspexi cum supradido siijillo ipsius ílegiure hnbente
ex vna pcuie imaginem mídieris quasi amictíe p<illio habentis manum dex-
teram i/i qua tenebat florem, et mamim sinistram supra pcclus quan te-
nenteni chordas pallij, et habentis coronam in capite ; et supra coronam
dicfw imaginis et sub pedibus ipsius, in suprema scilicel, et in inferiori
parte sigilli erard signa llegum Portugalliíd: ex altera vero parte sigilli
erat imago cujusdam Castri: literes vero per tolum circuitum sigilli ex
vtraqnc parte ernnt istoe. S. Dominm 3fafald<c Dei grafia CastelliX et To-
leti Regina;, eadem gratia Santij illustris Porlugallice Regis filiw.
Porque temos atrás bastantcmenle declarado a sustancia d'esta es-
critura: e ho bem escusarmos "leitura desnecessária, traduziremos so-
mente as palavras, que no fim d'ella ajuntou o tabellião de seu officio,
que pôde ser sejão bem aceitas dos que não sabem Latim, as quais
querem dizer:
E Eu dito tabaliião António Esteves vi a carta acima escrita com o
sello pendente da mesma Rainha, o qual tem de huma parte liuma fi-
gura de molher, que representa estar com manto cuberto, e huma flor
na mão direita, e a esquerda, que lhe fica sobre o peito, parece travada
de huns cordoens, que saem do manto. E tem na cabeça sua coroa ; e
por cima d'ella na volta mais alta do sello, e na inferior por baixo dos
pés se divisão as armas de Portugal. Da outra banda parece hum cas-
tello com muitas letras, que o rodeão, e fazem orla ao sello por ambas
as partes, e dizem. Sello de dona Mafalda por graça de Deos Rainha de
Castella, e Toledo : c pola mesma graça íilha do illustre Rei de Portu-
gal dom Sancho.
Assi teve fim esta tormentosa contenda. E o Bispo, ou que entrasse
n"ella por induzimonto, e persuasão d^outrem : ou que caisse agora na
conta do muito, que ganhava em seu oíTicio Pastoral com obreiros tão
proveitosos, como cada hora hia conhecendo, que o erão os Frades, pro-
curou por todas as vias soldar a quebra passada, e sepultar os desgos-
tos passando de inimigo, e persiguidor publico, a publico bemfeitor, e
amigo. E foi o principio acudir ao Convento com copiosas esmolas : e
PAUTICILAII DO HEINO DE POMICAL 351
logo no mesmo anno de 1239 enterveio com sua pessoa, e sinal (]e sua
mão em iiuma escritura, de doarão que certo devoto fez ao Convento
de liuma horta, que partia com elle. E despois no de 1245 em sinal de
animo verdadeiro, e não fingida reconciliação deu pêra a casa duas agoas
de hurnas herdades suas, que logo se trouxerão, e foi esmola de muita
importância. O assinado, que d'ellas fez original, se guarda no Cartório,
e he o seguinte :
Nolum sU omnibus tam prijesenúbus, quum futnris lias Viteras inspectu-
rts, quod ego Petrns Divina misericórdia PortugaUensis Episcopus causa
cleemosi/me et intintu pictatis in remissionem peccatorum meorum dono Fra-
tribus PrcEdicatorlbus de Portu dous fontes, cjiiorvin vnvs orilur In hortu
meo chra guoddam pahnnbare, alter vero snperius circà viam, qua; conti-
gua est iam dicto horto tn perpetuum possidendos. Insvper concedo eis libe-
rum transilum tam per loca mea^ quam per loca alíorum^ vt posslnt aquani
dktoriim foníium ad suum Monasterium ducere iiberé et sccurè: IJatacharta
pridié Cal. Maij anno Domini M.CC.XLV.
Outra fonte nos deu hum fidalgo da cidade, cujo appellido dura inda
hoje n'ella: chamava-se Domingos Gonçalves Ferreira, e sua molher Jla-
rinha Mendes. A fonte tem nome daGalvoa. Assi ficou a casa com abun-
dância d'agoa bastante pêra cozinha, e horta, mas nenhuma boa de be-
ber. E, porque se veja a pouca curiosidade, com que os Religiosos d'esía
casa viverão sempre, do que a suas pessoas locava, ou a bebião assi
salobre, e grossa, ou tiravão da comida, e esmolas, que pêra ella gran-
geavão, quanto bastava pêra comprarem mellior agoa. E n"este modo
de vida perseverarão constantemente 'até poucos annos ha, que os Pa-
dres Menores seus vizinhos, trazendo de fora, huma muito boa peVa
o seu Convento, e não tendo outro caminho pêra a levarem com com-
modidade se não pola nossa cerca, partirão com nosco quanto basta
pêra suprir a falta, recebendo, e fazendo fraíeinal caridade. A Igreja
como houve concórdia foi logo lageada de sepulturas requestadas á com-
petência. E, porque sobejavão requerentes pêra outras, e faltava lugar :
hum Prior, filho do mesmo Conventcs a quem nas memorias antigas
achamos com nome de dom Frei Pedro Esteves, levantou o grande al-
pendre, que cobre o adro, o qual foi logo povoado de sepulturas, e em
parte serve de recreação, e casa de negocio aos naturaes, ao m.odo que
òoi LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
fazem as gr;uU's dn Sé de Sfvilha aos sons. Porque, como a cidade está
situada em lugnr dependurado, e o Comento lhe fica no meio, e como
no coração d"ella, não ha lugar mais a propósito pêra ser írequentudo
dos negociantes, juntando-se a comraodidade da igreja, e o einparo, que
o alpendre dá pêra Sol, e agoa. A vista dos dormitórios cae sobre o
Douro, que faz porto á cidade, e lava as muralhas, que decem.a beber
na agoa. Assi lie o posto aprazível, e sadio. Sustenta o Convento de or-
dinário vinle, e quatro Frades. Porque, dado que a fazenda, que possue
de raiz, he muito curta pêra tantas bocas: a caridade da terra não lie
boje niunios, que n'aquelles primeiros, e antigos tempos.
CAPITULO XIV
Da confraria do santissimo nome de Jesii sila neslc Convénio:
de sua anligitidade, e milugies.
No anno, que el Rei dom Duarte, nnico d'este nome faleceo, padecia
o Reino bum cruel açoute de peste, da qual dizem que foi sua morte :
c estendendo-se por todas as Comarcas, foi grande o estrago, que íez. E
como os males de contagião onde achão mais fioqiiencia de gente, fe-
rem ci)m maior violência, tanto que o fogo delle chegou a esta cidade,
ateou com tanta força, que não se sabião os homens dar a conselho, nem
achavão remédio humano pêra se valer. Muito ordinário be mandamos
Deos trabalhos, pêra serem meio de o buscarmos: o também instrumen-
to de nos fazer mercês. Era publico que assola;ido-se Lisboa poucos an-
nos atrás com semelhante praga, se juntara o povo em numa confraria
do suavíssimo nome de Jesu. E havendo muitos annos, que durava sem
dar hora de repouso, quasi subitamente desapareceo com este remédio,
sendo assi que a confraria se assentou no Convento de S. Domingos polo
mez de Novembro do anno de 1432, (como ao diante veremos), e quando
veo fim de Dezembro, que logo seguio, já não liavia mal nenimm. A esta
imitação entrando o anno de 1448 se acordou entre os Cidadãos do
Porto instituir buma semelhante Confraria, e junta a terra toda levarão
com solene procissão hum devoto' Crucifixo ao nosso Convénio, o o col-
locarão em altar particular seu. Mashe dino de muita consideração, que
obrando nosso Senhor por meio d"esta imagem mui provados milagres
em pessoas particulares, não foi servido remcdear por então a corrup-
PAUriCil.AU 1)0 r.Kl.NO ííE 1'UKTl(jAL 3o.1
cão do ar, e infirraidade publica : antes durou mais alguns annos, des-
pois de cessar por todo o Ueino, clamando a voz do povo, que assi junía
cosiunia muitas vezes acertar nos juízos, que a rezão de perseverar era
liuuia tormenta de contradições, que levantarão certos homeiis a seu pa-
recer zelosos, pretendendo tiramos a imagem, e extinguir a confraria :
matéria em que houve seis annos de litigios, e padecerão os Religiosos
tantas vexações, e trabalhos, que houverão por milagre do Senhor 11-
vral-os d"el!es com lhes dar sentença, como deu, em lavor. Muitas vezes
faz dano trazer de novo á praça negócios pescdos, quando o tempo os
tem sepultado. Por isso deixaremos em silencio as causas, e autoi^es, o
processo d"estes. E trataremos de alguns milagres dos annos mais vizi-
nhos a esta nossa idade, com que se acredilão bem os antigos, que nilo
Cearão em escrito.
Polo mez de Maio do anno de 1574 mandou o Sacristão a casa d-j
huns devotos huma toalha, com que estava cingido, como he costume o
Santo Crucifixo, pêra que Ília lavassem. Havia nella huma minina de seis
pêra sete annos, que passava de dous, que não sahia fora da porta por
estar de todo cega. Fora principio do mal muita copia de humor, que
lhe acudio aos olhos com tão grossa, e sobeja inchação sobre elles, que
a nenhum remédio obedeceo : e foi deixada dos Médicos por incurável,
entendendo-se que os devia ter quebrados. Quando virão em sua mão
peça, que em íal ministério servira, chamão a minina com alvoroço, e
devação, põem- lha sobre a cabeça, e olhos: grita a mãi desfazendo-sj
em lagrimas: Ah meu Senhor Jesu Christo, a huma Cananea Gentia cu-
rastes vós n"outro tempo a filha atormeníada(*), e a outra Flebrea deu saúde
a borda da vossa roupa tocada (**): bem podíeis vós hoje, se quisésseis, dar
iemedio a huma mãi desconsolada, e a huma criat-arinha afdigida com
tormento de trevas quasi antes de ter idade pêra ver, nem de perder a,
graça, que em vosso sangue polo bautismo recebeo. E bem podia ser
meio do que vos peço, este lenço, pois sérvio na imagem, que nos esl:i
representando o muito, que por ella, e por mi, e polo mundo todo fi-
zestes. Passadas duas horas foi abaixando a grande inchação, que cubria
os olhos da minina, de sorte que começou a abrir o esquerdo, e cha-
mando pola mãi com alegria afiirmava, que não sintia já pejo nelle, e
que via. Não podia a mãi crer tamanho bem. Eisque no melo do aho-
(•1 Mat lo.
{■•; iliith. !).
vor. i. 2o
355- LIVRO II! DA IIISTOKIA DE S. DOMINGOS
roço foi-sc-lho abrindo o outro, e enxugando ambos de maneira, que de
cega de todo, ficou sam, e com perfeita vista de todo. Como o milagre
foi ilio patente, houve cuidado de o fazer justificar, e autorizar polo Or-
dinário. E achamos em lembrança, que succedeo em 18 de Maio do anno
que temos dito de 1374. E foi o ministro, que fez a diligencia o Doutor
João Pais, Provisor, e Vigário geral polo Bispo dom Ayres da Silva, e
a minina se chamava Elena. Mas não espantarão menos os que se se-
guem.
Dezeseis annos havia, que Lianor Leitoa, moradora na mesma cidade
na rua das Cangostas padecia hum estranho mal na cabeça, hora de do-
res intensas, e intoleráveis, com que lhe acudião huns vómitos de gran-
♦ de tormento : hora com vagados como de mal caduco que davão com
ella em terra, e ficava sem juizo : e a continuação d"estes acidentes a ti-
nha ensurdecido, e todos os dentes tão abalados, que lhe era pena o co-
mer. E o maior mal era que com nenhum beneficio da Fisica sintia me-
lhoria. Ouvindo contar o milagre da cega, fez-se levar ao Convento, lan-
çou-se em oração diante do altar de Jesu, trouxerão-lhe a toalha, bei-
jou-a, e pol-a sobre a cabeça. Quando se levantou, se achou tão outra
do que viera, que, como se ah lhe mandarão deixar os males todos,
nunca mais sintio nenhum de quantos trazia. Está apontado que o dia,
que esteve no Convento, foi aos 16 de Junho do anno cor.-ente de 1374.
Por Agosto do mesmo anno, adoeceo de hum prioris Caterina Ra-
belia, moiher de Martim Ferraz, ambos gente nobre, e foi o mal tão ve~
Iiem.ente, que ao seteno desconfiarão os Médicos d"el!a. Neste estado
mandou buscar a santa toalha, e pondo-a sobre a cabeça, e chegando
huma ponta ao lugar d'onde mais se dohia, sintio logo que se lhe des-
fizera huma dureza como taboa, que Uie tomava o estamago : e i>edio de
comer, cousa de que totalmente tinha perdido o gosto. A estes princi-
pies sucedeo hum copioso suor, que lançou fora a febre, e a doença.
Também se autenticou este milagre com ditos de muitas testimunhas. E
a enferma em penhor de agradecimento mandou ao Convento hum fer-
moso cofre de madre pérola guarnecido de prata pêra servir ao santís-
simo Sacramento no Sacrário.
I\íaria Gonçalves, moiher pobre, que se agasalhava no hospital de
nossa Senhora do Cais, havia quasi quatro annos que caindo quebrara o
braço direito pola cana junto da mão. Curou-se, sarou do braço. Mas
ficarão-lhe três dedos da mão encolhidos, e sem uzo, nem movimento
PAIVriClLAR DO RI:L\0 I)K 1'UUTIGAL .Voo
nonliiim. Ajnntnva-sc andar quasi tolhida dí3 hunia perna, que com muito
ti'al)alho, e dores arrastava. Chegando o primeiro (ha do anno novo de
1573, em que se fazia a festa do nome de Jesu, foi-se como pode ao
Convento. Posta diante do Senhor chamou por elle com grande fee; e
({ueixando-se éos mestres, em cujas mãos perdera o pouco que tinha de fa-
zenda, e não achara saúde, pedia-Ihe que fosse seu mostre, e sua saúde,
que esta lhe seria também fazenda, e remédio na pobreza, e miséria, que
padecia : tomou a santa toalha com a mão manca, c beijou-a com deva-
ção. Logo na noite seguinte sintio grandes dores, que lhe corriam poia
mão, e dedos aleijados até pola manham: e entrado o dia começou a
estender, e endereitar os dedos com espanto de ver, que já não estavão
amortecidos como d"antes, mas que os movia, e meneava despejada-
mente. Conheceo logo d'onde lhe vinha tanto bem, foi servindo, e tra-
balhando com elles, e dando graças ao Senhor, que pêra maior gloria
sua, apoz a cura da mão, lhe deu também saúde na aleijão da peina.
CAPITULO XV
De outros milagres do Santo Crucifixo.
Muitos outros milagres achamos postos em memoria, que deixamos
por encurtar leitura : e diremos somente dous mais insignes, que não
merecem ficar esquecidos. No Mosteiro de Corpus Christi de Villa nova
de Gaia, que fica deft-onte da cidade, na outra margem do rio, e he de
Freiras de São Domingos, estava enferma Sor Maria de Bairros, profes-
sa. Sendo mandada sangrar pêra remédio de huma doença, ficou com
duas despois de sangrada. Porque o oííicial por desastre, ou pouca des-
treza lhe picou hum nervo, a que seguio logo grande inchação no braço,
e maior no lugar oíTendido, e começar-se a tingir todo de nódoas azuis,
e verdenegras, acompanhadas de dores crecidas, que fazião medo, e in-
dicies de grande mal. E não era senhora de o estender, nem bolir. Es-
tando assi aleijada, e não melhorando com nenhuma cura de muitas, que
lhe fazião, trouxerão-lhe hum espinho da Coroa do Santo Crucifixo. Era
presente a Prioressa, e toda a Comunidade. A enferma com grande fé,
e devação descobrio o braço, lançou fora emprastos, e ataduras : e che-
ga o espinho aonde linha a origem do mal, e pede que alli lho atem, e
apertem, que não quer outro emprasto, nem outra mezinha. Ajudarão
Í)-jC) livro III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
as Religiosas sua confiança rezando a Antífona Clirislus fadus est pro
uolns obedicns, ele, e a orarão Rcspice, qucesumus, etc, com hum Credo.
Foi principio de milagre, que logo aquella noilc tomou sono tendo-o de
todo perdido, e quando amanlieceo estava sam, sem haver no braço dor,
nem sinal de nódoa ou inchação. Levantou-se logo, foi-se «o Choro ren-
der as graças ao Senhor. Quando as Religiosas a virão postrada n"elle
imaginarão que o poder-se vestir, e chegar alli quem estava no estado,
em quG a tinhão deixado a tarde atrás, devia ser força de dores, ou de
desesperação : forão-se a el!a lastimadas, e elia levantando-sc cheia de
alegria pedia-lhes, que a ajudassem a dar graças a Deos por tamanlia
misericórdia, como lhe tinha feito, e mostrou-lhes o braço limpo de todo
mal. Começarão então a entoar todas hiima Antífona á santa Coroa, e a
enferma pouco despois em testemunho da saúde milagrosamente alcan-
çada, lançou as mãos á corda do sino grande do Mosteiro, e sem outra
ajuda o abalou, e tangeo com facilidade : e d'aquelle dia em diante não
consintio mais que lhe chamassem Maria de Bairros, se não Maria da
Coroa.
Em caso de sangria, mas com maior perigo, foi também o segundo
que prometemos. Governava a casa, e Corte do Porto o Conde de Mi-
randa Anrique de Sousa, decendeníe do grande mestre da Ordem de
Christo, dom Lopo Dias de Sousa, e herdeiro, e possuidor de sua casa.
Tinha enferma huma filha moça, e de grandes partes. Parecendo que se
devia sangrar, perturbou-se o official com ser o melhor da terra, de
sorte que errou mais, onde mais desejava acertar, e não picou nervo
que muitas vezes tem^ fácil cura : mas cortou arteiia, que poucas he re-
mediavel. Conheceo-se logo o dano, porque sahia o sangue, não com
corrente continuada, como faz o das veas, mas com hum movimento in-
terpolado, qual he o do pulso. Ficou o homem fora de si conhecendo o
erro. Acudirão Cirurgiões, e Médicos, não havia tomar o sangue, nem
esperança de soldar a artéria respeito da agitação continua, com que se
movem todas, imitando a respiração de que vivemos. Era grande a des-
consolação dos pais, como he de crer, e da enferma, que desejava, e me-
recia viver. Mas crecia o perigo : lembrava, e lemia-se caso semelhante
ao que se tinha visto poucos annos atrás em duas senhoras principaes
em Lisboa : huma irmam do Conde de Villa franca. Rui Gonçalves da
Camará, outra irmam de dom Jorze de Almeida, Arcebispo de Lisboa,
(jue amljas por este modo morrerão a ferro, e mãos de sangradores.
PAUTÍCULAU DO RLIXO DE PORTUGAL 3'i7
Como se vio,. que não obravão os medicamentos, antes coraeçavão a apa-
recer sinaos de maior mal, não podendo a enferma repousar com gra-
veza de dores, acudio toda a casa aos remédios do Ceo. E forão correndo
ao Convento com recado do Governador, que com muita eíTicacia pedia
lhe acudissem os Padres com a santa toaliia de Jesu, de quem só espe-
rava o remédio. Era Prior o Padre Frei António Mascarenlias. xMandou-a
com o Suprior, e outro Padre. Foi cousa de maraviilia, e de grande glo-
ria, e louvor de Deos. Porque no mesmo momento, que lha poserão so-
bre o braço, foi livre das dores, soldou a artéria, e brevemente cobrou
saúde : o gosto da qual foi o Governador celebrar no Convento j:om
buma Missa solene no altar de Jesu, e muitas esmoilas por graças. Mas
agradeceo-a melhor quem a recebeo. Porque d"ahi a poucos annos do
meio das grandezas, e esperanças da Corte, e casa da Hainha dona Mar-
garida de Áustria, a quem servia, soube dar de mão a tudo, e conten-
lar-se com huma cella estreita, e pobre de bum Mosteiro de rigurosa
observância, onde se recolheo, e professou.
Pois traíamos de milagres, que neste Convento teverão sua origem,
não he rezão deixarmos de dizer, como sepdo os Padres d'elle ajudados
de toda a cidade a festejar a canonização do glorioso São Jacinto, Frade
nosso, no anno de io95 com huma soleníssima procissão, mostrou Deos
aceitar o serviço, que se lhe fazia em honra de seu Santo com mui co-
nhecidos, e provados milagres em favor de alguns moradores da mesma
cidade. Os quaes não especificaremos por serem notórios assi estes, co-
mo outros muitos, com que o Santo se fez celebre, e estimado por iodo
o Pieino n"aquelle tempo : e também porque não são direitamente da
obrigação d"esta Historia.
■O"".^
CAPITULO XVÍ
De alfjuns filhos iVestc Convento : e das relíquias que nelle ha.
E outras particularidades.
Antes de entrarmos na matéria proposta no titulo d"esíe capitulo,
porque ha de ser ultimo das cousas do Porto, farei reposta a huma du-
vida, que se oíferece no que temos escrito d'este Convento. E he que o
Bispo na carta, que escreveo ao Capitulo de Burgos, oílececeo Igreja
sagrada : e despois dizemos, (e assi consta do Breve do Papa), que elle
3.')S LlVnO III DA IIISTOllIA DE S. DOMINGOS
lançou a primeira pedra na fabrica d"ella. Isto, cm que parece haver
conli-adição. tem duas repostas. Porque, ou podemos dizer que se fez
de novo somente a Capei la mor, que considerado o estado presente da
obra, não ha duvida ser edifício mais moderno, que o corpo da lííreja,
ilida cfue o genei-o de fabrica seja o mesmo ; e nella faria o Bispo a ce-
remonia dita : com que se ficão salvando as palavras do Breve, enten-
dendo o todo pola parte : ou que a prometida Igreja seria em posto Ião
desncomodado pêra se poder estender o Convento, que terião os Frades
}>oi- menos mal fabrical-a de novo em sitio largo, e capaz. Se não qui-
zermos dizer, que houve tudo junto, dar-se Igreja feita, e mais levantar-
se outra de novo : i)odendo ser a velha a mesma, que hoje vemos en-
costada á nova, que he liuma ermida, a que se sobe por huma escada
alta, e Íngreme, que por lai descomodidade, e ser cousa pequena não
escusava o Convento outra. E he tão antiga, que não ha entre nós me-
moria de sua fundação : havendo-a dos princípios da confraria, que nella
instituirão os mercadores por hum contrato celebrado no anno de Í35G
entre o Convento, e os primeiros mordomos.
Agora diremos dos filhos do Convento, e diremos de poucos, e pou-
co de cada hum, pola rezão, que muitas vezes tocamos, e muitas nos ha
de ser forçado repetir, da humildade, ou brio dos Religiosos d'aquelle
tempo, que querião fazer cousas dignas de escritura, antes que escre-
vel-as, correndo-se de lançar em livro as que erão de honra, e louvor
próprio. E quanto a mi bastante Crónica he da virtude, e santidade de
lodos os Padres d"aquclla idade, e muitas ao diante, a Carta do Bispo
dom Pedro, c as rezões com que se derão por obrigados, (leão-se coin
attenção), elle, e o seu Cabido pêra os chamarem, e nã(; meuí^s o amor
com que toda huma Cidade se armou por elles.no tempo dos desfavores
do Bispo. Com muita confiança os posera eu em Catalogo de vaiíjes in-
signes, se soubera seus nomes, posto que de feitos particulares me não
constara. Mas até d"islo forão pêra com nosco tão avaros, que só de Frei
Gualtero, e de seu companheiro nos deixarão memoria, a qual devemos
celebrar por rezão de fundadores, e polo peso de trabalhos, e contradi-
ções, que padecerão no officio ; e em Frei Gualtero lemos mais a opinião
que delie leve a Rainha dona Mafalda, como logo se dirá.
A caso aciíamos lembrança do Mestre Frei Domingos do Porto, nome
que por filho do Convento, como era, e natural da terra lhe compelia.
Foi pessoa de tantas partes de religião, e eminência de letras, que o
rARTICCLAR DO RFIXO DF. POP.TIT.AÍ. 'I"i9
escolheo o Papa Nicolao III pêra seu Penitenciário cm Romn. E pola
grande satisfação, que havia de sua inteireza, c virtude, foi conservado no
cargo poios snccessores Celestino Quinto, c Bonifácio Oitavo. De Roma
eomo bom lllíio, reconheceo a mãi, que o criara, mandando a esta casa
algumas peças de prata ricas pêra o altar : entre as quais era hum gran-
de, e fermoso Caliz dourado, e guarnecido de liuns engastes de esme-
raldas. Mandou mais alguns ornamentos Sacerdotaes, e entre elles havia
lium muito rico. A estas peças ajuntou huma copia de dinheiro pêra
eíTeito de se lhe fabricar na casa huma Capella de Santa Marta, de quem
era devoto, com huma enfermaria, de que. havia falta. Dura a memoria
(lo que mandou, c ordenou do dinheiro, não do que se fez. Elle faleceo
em Roma.
Filho era também d'este Convento, mas de tempo mais moderno
Frei Álvaro do Porto, que polas boas calidades, que n"oIIe concorrião,
achando-se em Roma, chegou a ser Capellão do Summo Pontifice. Mas
não esquecido do que devia à criação, mandou algumas esmolas a esta
casa, e vive sua memoria na vidraça grande da Sacristia, que fica de-
fronte da porta, que se fez com parte d^ellas.
Nas Crónicas d"este Reino, na parte onde se escreve a jornada que
el Rei dom João, o Primeiro, fez á Cidade de Ceita em Africa, quando
a ganhou aos Mouros (*), achamos apontado, que estando em oração hum
Religioso fdho d"csta casa, huma noite despois de Matinas, diante do al-
tar de Nossa Senhora do Rosário, se lhe representou á vista o mesmo
Rei armado de todas armas, e posto de joelhos diante da Senhora com
as mãos ao Ceo levantadas : e vio que lhe metião na mão hum.a espada
que de luzente, e acicalada lançava de si tal resplandor, que não tinha
comparação com cousa da terra. E não comprendendo quem lha dava,
todavia ficou entendendo ser cousa celestial. Não declara a Crónica o
nome do Religioso : nem nós o pudemos alcançar por outra via. Gi'am
caso, que contem historiadores seculares cousa de honra de nossa Reli-
gião, e pêra nós sejão estranhas. Roa prova de nosso desazo no que nos
toca, que na verdade tem pouca desculpa.
lia neste Convento huma relíquia de grande preço, pola calidado
d"ella, e pola mão de que veio. He huma Cruz feita do sagrado lenho
da em que padeceo Nosso Salvador. Foi dadiva da Rainha dona ?Taíílda,
que também falecendo nos quiz obrigar com novos penhores, alem doá"
(•) Gomcziancs L. da tomada de Ceita f. 3ô.
Sv^iO I.IYP.d III DA HISTORIA BE S. D0:\[1XG0S
qne nos deu ile sua devação cm vida, que temos contado. E lio de con-
siderar, que acabando seus dias no Mosteiro de Arouca, onde ficava se-
pullada, quiz antes pêra nós csla preciosa relíquia, que pêra o seu Mos-
teiro. Que não pode ser maior prova de amor, e da grande opinião, que
linha dos moradores do nosso. Deixou-a em testamento com declaração
que fora de Santa Elena, que lic ponto de muita sustancia, porque se
não devia fundar em congeíturas leves. Deixou-nos mais outra relíquia
de valor, que lie lium osso do Santo Marlyr São Brás. E ajuntou ás re-
líquias huma honrada esmola de duzentos morabitinos, que se erão d'ou-
ro, valia cem mil reis, como atrás fica dito, e cem medidas de pão, que
declara seja do melhor do seu celeiro de Bouças. A verba do testamen-
to, que se guarda no Convento, lie do teor seguinte.
Alando Monasterium fratrum Prfp.ãicalornm de Porfit crucem de Jigno
Domini, quai fuit de Saneia Helena : et os Sancti Blasij, quod dcdernnt
■iiiilii Hospitalarlj, et ducentos Morabitinos reteres, et centum modios de
pane mdiori cellarij mei de Baucis. Esta he a verba : o testamenteiro foi
]<>ei Gualtero, que então tinha o cargo de Prior do Porto ; e pois esta
Princeza o escolheo pêra tamanha honra, bem conhecia que estava nelle
]jeni empregada.
De tempo immemorial vai todos os dias hum Religioso d'esía casa á
Sé, ler huma lição de casos de consciência aos Clérigos, c todos os mais
(jue querem ser ouvintes. Por este trabalho dão os Bispos huma esmola
perpetua.
Da mesma maneira vai outro visitar todas as náos estrangeiras, prin-
cipalmente as que vem de terras sospeitosas de heregia, pêra se evitar
a entrada de livros danados. He commissão que os Priores tem do In-
quisidor geral.
CAPITULO XVII
Da fundarão do Real Convento de Lisboa,
O Convento de S. Domingos de Lisboa he obra Real des da primeira
pedi-a. Foi fundador el Rei dom Sancho, Segundo no nome, e Quarto
lío numero, e ordem dos Reis d'este Reino. Consta-nos por documentos
autênticos que temos vivos em sua origem no Cartório d^elle, os quais
(iriremos tresladados de verbo ad verbum, e traduzidos em vulgar, assi
por honra do autor da obra, que na verdade era de seu natural pio, c
PARTICULAR DO REINO DR PORTUGAL 361
amigo da Religião, como porqnc não faltão escritores, que qiielrão dar
esta fundação a seu irmão, e successor no Reino o Conde de Bolonha,
que foi dom Afonso líl, dos Reis d'este nome. A rezão/jue teverão iiuns
foi tirada da pedra, que hoje vemos sobre a porta das graças do mesmo
Convento, (chamamos porta das graças a que dá servintia da Igreja pêra
o claustro : e o nome he do effeito de entrarem por elia os Religiosos
quando saem do Refeitório, e vão juntos ao Coro dar graças ao Senhor
polo pão cotidiano, e encomendar-lhe juntamente as alnias de todos
aquellss, que com suas esmolas nos ajudão a sustentar,) E porque, como
a letra d"ella faz autor do edifício do templo a el Rei dom Afonso, to-
mando o todo pola parte, não era engano muito culpável, mas foi en-
gano. OUítros, considerando o estado do Reino quanto ao governo pu-
blico, e aos sojeitos que havião de povoar a casa, devião ter por im-
possível, que em tal tempo se desse consintimenío pêra a fabrica, e era
o discurso acertado. Porque do governo estavão apoderados homens, de
cujos costumes, e consciências havia queixas publicas : e o gasaUiado
havia de ser pêra Religiosos, cujas pregações já então era huma perpe-
tua invectiva clara, e descuberta contra esses mesmos homens, (muitas
vezes o temos apontado atrás obrigados do curso da Historia, que pêra
ser entendida nos forca a repitir as mesmas cousas mais de huma vez.)
Mas soUa-se a duvida com duas rezões muiio achadas. A prim.eira da
bondade dei Rei, que amava a virtude nos mesmos, que lhe erão pesa-
dos, e sofria o seu desgosto a troco do que ganhava o povo em os ter
consigo. A segunda da manha, e artificio dos poderosos privados : que
como todo animal, por tosco, e inliabil que seja. ho por natureza pêra
sua conservação engenhoso, ou se qnerião congraçar com os Frades, que
temião, ou vender hypocresia ao Summo Pontiíice, que a el Rei, e a elles
reprendia : e d"aqui nacia que folgando el Rei de edijicar, não resistis-
sem elles. Assi foi a obra dei Rei dom Sancho, seu o pensamento, sua
a traça: e o principio no anno do Senhor de l'2'iL e no mesmo acei-
tada pola Ordem, sendo Provincial o Santo Frei Gi!, prerogativa grande
d'este Convento. Quiz el Rei que houvesse no começo toda solenidade
Ecclesiastica. Estava Lisboa em Sede vacante, aproveitou-se de hum
Bispo Estrangeiro, que andava na Cidade. Pedlo-lhe por carta sua que
fizesse a cerimonia. Derão sua licença o Dayão, e Cabido. Com ella poz
o Bispo a primeira pedra no cdiíicio, ao que se pode colligir, por fim
de Fevereiro, ou entrada de Março, (porque do dia preciso não consta),
3G2 LIVRO III DA msTOiíiiA m: s. domingos
do anno seguinte de 1242, e passou sua certidão do feito estando em
Santarém, que lie do teor seguinte.
F. Bei ijrutia Regensis Episcopus vniuersis pneseníes literas inspectU'
ris salulem in Domino. Cum esscmus tn Vlisbonensi Dioecesi conslituti,
Donànus Rex Portiigallice precibiis tipnd nos instilit, speciales nobis
literas (ícstinando, vt in fjnodam loco circd civitatem Vlisbonensem, qui
dici'ur Corredonra, vbi Monastcrium Ordinis Fratrum Prcedicalorum con-
struere proponcbat, primarium lapidem poneremns. Vt autem nobis li-
cite competcret, preces regias eífeclui manàpare, fuerunt nobis ex parte
Capituli Ulyssiponensis, eadem Ecclesia debito Pastore vacante tales literce
proisentatis . Notiun sit omnibus pressentes literas inspecturis, quòd nos De-
canus et Capitulum Ulisbonense damns licentiam Fratribiis Prwdicatori-
hns construendi Monastcrium apud Ulisbonam. Intelligimus et enim quôd
hoc proueniat ad honorem Ecclesice noslroe et salutem animarum. Et vt
hcec concessio robur obtineat firmitatis, sigillo nostro eam fecimus comniu-
niri. Datum apud Ulisbonam XllI. Kal. Nouembris anno Domini 1241,
Item alice sub hac forma. Venerabili in Ghristo Patri ac Domino F. Del
gratia Regensi Episcopo Capitulum Vlisbonense renerentiam cum salute.
Palcrnitatem vestram daximus attentiàs deprecandum, quatenus in eis,
quat Fratribus Prcedicaioribus nostroe Dicecesis, quae ad officium Episco-
pale spectant, occurrcrint necessária, dignemini Episcopale officium exer-
cere, Dominationi vestrce super praidictis celebrandis licentiam tribuentes.
Datum apud Ulisbonam quinto Idus Februarij. líurum igitur auloritate
liíerarum volunlati proidicfi Regls inclinati in prmlicto loco primarium
lapidem imposuimus ad Monasterium Fratrum dicti Ordinis construendum.
Datum apud Sancíareni scptimo Kal. Aprilis anno Dom. 1242.
A tradução lie.
F. Por mercê de Deos Bispo Regense a todos os que as presentes
letras virem saúde no Senhor. Acliandonos no Bispado de Lisboa, nos
mandou pedir por carta sua o Senhor Rei de Portugal, que lançássemos
a primeira pedra no edifício do Convento, que pretendia fazer pêra os
Frades Pregadores no sitio, que chamão a Corredonra junto á Cidade de
Lisboa. O que querendo nós púr em execução, pêra o podermos legiti-
mamente fazer, estando a dita Igreja, como está, era Sé vacante, nos
PAIITICULAR DO IIEINO DE PORTUGAL 363
forão presentadas humas letras de parte do Cabido delia, cuja sentença
era esta. Saibão qnantos estas letras virem, que nós Dayão, e Cabido de
Lisboa damos licenra aos Frades pregadores pêra edificarem Mosteiro
nesta Cidade. Porque entendemos que resultará de tal obra honra peia
nossa Igreja, e será meio de salvação pêra as almas. E pêra que esta
licença tenha força, e vigor, a confirmamos com nosso sello. Em Lisboa
aos vinte de Outubro anno do Senhor 1241.
Tainbcm nos foi dada liuma carta do mesmo Cabido que continha
o seguinte.
Ao venerável em Christo Padre, c senhor F. Bispo Regense, o Cabi-
do da Sé de Lisboa, reverencia, e saúde. Pareceo-nos pedir com boa con-
sideração a V. P. que nas occasiões de necessidade, que aos Frades Pre-
gadores se offerecem em cousas tocantes ao ministério Episcopal, seja
vossa Senhoria servido executal-o, porque pêra as tais lhe damos licen-
ça. Em Lisboa nove de Fevereiro. Por tanto em virtuíle destas letras
desejando nós satisfazer ao dito Senhor Rei, fomos ao sitio acima decla-
rado, e assentamos a primeira pedra pêra se proseguii' a obra do dito
Convento, que se determinava fazer. E esta passamus em Santarém aos
2G de Maiço anno do Senhor de 1242.
Por esta certidão do Bispo, que inclue outra certidão, e carta do Ca-
bido, se deixa bem ver que não foi outro o fundador do Convento se
não el Rei dom Sancho, visto como nestes annos de 241 e 242 reinava
pacificaniente, e basta nomear-se o anno, inda que se não declare o no-
me do Rei. E de não esperar polo Bispo proprietário, que devia estar
eleito, e não confirmado: nem por outro do Reino, que fora cousa faci!,
se collige claramente, que havia apetite na obra, e desejo que corresse
logo : segundo a qual vontade, e o pouco feitio das nossas fabricas
n'aquella bendita idade, que só nas do espirito se alargava, e esmerava,
.podemos ter por certo, que foi dizer, e fazer : isto he que foi o Convento
logo acabado. E temos bom argumento no testamento, que este Rei pouco
despois fez no desterro de Toledo, no qual deixando esmolas, como
atrás contamos, pêra as obras do nosso Convento de Santarém, porque
sabia e&Larem em aLcrío, uenhuiiia menção fez do de Lisboa, como de
casa perfuiia de todo poniu, e bem necessidade. E na verdade pêra dor-
364 LIVRO III DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
mitorios, c officinas térreas, feitas á medida de nossas constituições, e
pêra igreja proporcionada poucos meses bastavão de trabalho.
Achamos por memorias antigas, que entrava por este sitio hum gran-
de esleiro do mar, que devia ter fundo pêra agasalhar navios : do que
vimos por nossos olhos certeza, não só conjeituras no anno de 1571
quando se abrião os alicesses pêra o dormitório, que agora serve. Por-
que se descobrirão silhares de pedraria bem lavrada, e a partes grossas
argollas de bronze travadas, e pendentes d"ella, como em caiz, pêra ser-
virem de amarrar navios : e por outra parte montes de casca de maris-
co. D"onde não fica sendo maravilha, que houvesse outro tal esteiro, que
subisse até o Mosteiro de Chellas polo valle de enxobregas, no tempo
que alli aportarão as relíquias dos Santos Maríyres, sendo o caso succe-
dido muitos centenares de annos antes, como atrás contamos.
ResLa-nos declarar a terra, e nome do Bispo estrangeiro, ou a rezão
de darmos seu nome em cifra, e o Bispado quasi da mesma maneira.
Quem tiver lido com attenção o que temos escrito até aqui, não creo
que me pedirá rezão da Cifra, pois nos temos queixado do termo de
escrever antigo no que pertence a nomes próprios, em que muitas ve-
zes he necessário adivinhar, e neste nos aconteceo o mesmo. Da Igreja
não temos duvida, que seria a de Regensburgh, em Alemanha, cujo nome
Latino hô Ratisbona.
CAPITULO XVIII
Funda el Rei dom Afonso Terceiro a Igreja grande do Convento^ faz-Jhe
doação de muitos chãos, e terras a roda. Confão-se alguns trabalhos
que houve na casa por cheias, e tremores de terra.
Não erão bem passados seis annos despois de acabado o Convento
por el Rei dom Sancho, quando seu irmão, e successor el Rei dom
Afonso mostrando bem a diíferença, que vai de homem a homem na con-
dição, e grandeza de animo, emprendeo a maquina do templo, que hoje
vemos, maquina famosa pêra o tempo presente, quanto mais pêra o an-
tigo, que bem olhada por toda parte, e considerado o pouco, que então
era Portugal, está testemunhando em seu autor hum espirito merecedor
de grandes Reinos. E, ou fosse porque a Igreja, que seu antecessor fi-
zera não era capaz do povo, que se ajuntava ás prégaçíjes, e officios Di-
vinos : ou que quizesse mostrar a devação, que tinha á Ordem, e o que
PAUTlCULAn DO HEINO DK PORTUGAL ;jG-J
lhe tleAia polo muito, que os fiUios cVella írabalharão no negocio de sua
entrada, e successão no Reino por mandado do Sammo Pontifice : e
juntamente pretendesse illustrar a cidade cora magniíicencia de edifício?,
que hc a cousa, qn.e mais ennobrece os lugares grandes, não esperou
pêra lhe dar principio mais que assentar Os negócios do Reino. E en-
trando o terceiro anno de seu Reinado, que foi quarto despois de chegado
a Portugal, porque o nome de Rei não tomou senão por morte de seu
irmão dom Sancho, que viveo hum anno em Toledo, poz mão na obra
com tão boa vontade, que em termo de dez annos a deu acabada. Tudo
consta de huns versos Latinos abertos de letra Gótica em huma pequena
pedra sobre a porta das graças, como atrás tocamos, E são os seguintes-
Strenuus Alfonsits Rex Quintus Portugalensis,
JUustris Dominus Comitattts Bolonicnsif^
Qui dilatauit regnum patris, et reparautt^
Ac extirpauit pruuos, hoates superuuit,
Istias EccIesiíS iccil funiltimina magnis
Sumptibus, egregié compleuit quinque bis annis.
Annos millenos Domini, decicsque vigenós,
Ac quinquagenos, minns vno, collige pleno.
Cuni Rex incipiens opus lioc produxit in esse
Annos três faciens cx quo Rex cceperat esse.
A este modo de versos com respondencia de consoantes nos cabos
chamarão Leoninos os, que os começarão a usar. Inlroduzirão-se no mun-
do, quando foi faltando a policia da lingoa Latina, e a viveza de sua Poe-
sia. Durou esta em quanto Roma triunfava, entrou a bastarda, o barbara
com a declinação do Império. Devia nacer o nome do primeiro autor
da invenção, porque a calidade d'el}a não merece por si nome magnifico,
visto como aquillo mesmo, em que foi fundar sua graça, que he junta
de consoantes, sempre se reprovou entre os bons Poetas Latinos, e lhe
chamavão cacofonia, que he o mesmo, que huma falsa na musica, ou de-
sentoamentQ, que oCfende as orelhas. Mas podemos-lhe conceder o nome
honrado á conta de que fizerão passagem, e como fundamento pêra o
género de Poesia vulgar, que hoje usamos, agiadavel já, e bem recebido
ã força do tempo, e do costume. E tornando á Historia a significação
d"elles he esta.
3CG 1.IVP.0 III DA HISTORIA DE S. DOMINfiOS
O valoroso Afonso dos Reis de Portugal cm ordem Quinto, senhor
illuslre do Condado do Bolonhi, que o Reino de seu Pai restaurou, e
alargou, e alimpou do geníe roim, e desbaratou seus enemigos, foi o que
fundou este tenr(ilo com grandes despesas, e o acabou com toda perfei-
ção cm espaço do dez annos. Corria o do Senhor de lá49, quando co-
meçou a obra, e havia Ires que reinava.
Isto he o que dizem os versos. Pêra os naturais não ha que adviríir
n"elles, porque he a historia mais trilhada de quantas ha no Reino. Aos
de fora advírtiremos, que se não enganem com esta Bolonha pola seme-
lhança, que tem no nome com outra de Itália. Esta, de que falamos, he
em França, seu nome hoje Bilhon, o sitio, sobre o mar Oceano, a Pro-
víncia, Picardia. Era Condado honrado, e rico: a senhora d'elie viuva, e
moça. Casou dom Afonso com cila pêra viver, porque era pobre Infante
sem terras, c sem lierança. Fez o casamento sua tia a Rainha de França
dona Branca, irmã da Rainha de Portugal dona Urraca sua mãi. Chama-
va-se a Condessa Malildes, e não houverão filhos.
Se sobre tanta clareza houver ainda algum escrupuloso, que todavia
queira por fundador do Convento a este Rei antes que a dom Sancho,
remelo-o ao testamento do mesmo Rei dom Afonso, e peço-lhe que se
não desengane sem o ver. He feito em Lisboa a 23 de Novembro de
V211, alguns aninis antes que falecesse. N'el1e achará, que deixando es-
molas a lodos os Conventos do Reino, quando fala no de Elvas diz, que
se lembra d"cíle. porque o fundou, e são as palavras formais : Item Fra-
tribus Pradicatorihus de Elbis centnm libras, quia ego ftmdani Monaste-
rium fioc in hareditale mea.
E deixando a este de Lisboa a esmola dobrada, ou por ser casa de
mais Frades, ou porque se mandava depositar n'elle, não lhe dá titulo
de obra sua, como dera, se o fora, pola aventagem, que havia de hum a
outro.
Ficou este Convento, polo que temos mostrado fabrica de dous Reis,
e dous irmãos : mas sem lhe porem por isso nenhuma carga de obriga-
ções : também lhe não deixarão ordinária nenhuma, nem esmola perpe-
tua sequer pêra reparo do edifício, ou pêra as alampadas, como pode-
rão fazer, (inda que nossas Communidades vivião então sem rendas) com
particular applicação : devia ser não quererem os Prelados quebrar hum
ponto da observância das leis admitíindo em casa rendas, por m.ui jus-
tificado que fosse o titulo. O que S('> admiftirão foi. a ílm de ficarem os
rAnTICULAR DO HEI NO DE PORTUGAL 307
Uclij^nosos livres do pcrliirbação de vizinhos, hiima doação, qiíe cl Uei
dom Afonso lhes fez despois da Igreja levantada, dos chãos, e terras, que
cerca vão o Convento, conneçando das que se estendião, até onde agora he
a porta de Santo Antão: por onde corria a estrada, que cliamavão a Corre-
doura : e voltando sobre a mão direita assi como agora sobe o muro até o
postigo de Santa Anna, e decendo com elle até o baixo, onde são os canos
(la Mouraria : e d'aili correndo pêra a Igreja de S. Malheus. por onde hia
outra estrada, e dando volta polo que agora he a rua da Beíesga, ficando
dentro d'esse circuito, e como em Ilha a Ermida de São Malheus com as ca-
sas do Convento de Monsanto, e tudo o que íoma o hospital dei Rei, até
tornar ajuntar com o Convento. N'aquelle tempo erão terras devolutas de
que o povo se servia sem haver dono particular d'ellas, em telhaes, e
fornos de tijolo por huma parle, e por outra em sementeiras de ferre-
geais, e hortaliças. O muro, que hoje as cinge, se lançou longos annos
despois, como a cidade foi em crecimento. Esta mercê, que então se acei-
tou por ser de terra desaproveitada, e baldia, e sem olho a interesse,
veo despois a im.portar muito. E importara mais, se el Rei dom João
Primeiro não tomara ao Convento o grande sitio, que occupou com a Real
fabrica do seu hospital.
Assi como o Convento era aprasivel por desabafado, c livre de so-
geição, em quanto estava fora de povoado: assi despois que a cidade se
alargou, e foi crecendo, e caminhando pêra a grandeza, que hoje tem, fi-
cou no melhor posto d'ella entre todos os Conventos. Porque está como
no centro, e coração do lugar, na parte mais plana, e mais habitada, e
de mais concurso delle, e suas portas na mellior praça. ]\ias como em
tudo ha defeitos, pagarão os Religiosos estas commodidades no tempo
antigo com muitos medos, e perigos, e no presente também com alguns.
Era a causa, que nos primeiros annos antes de haver ediíicios á roda,
todas as agoas, que corrião do monte, e campo de Santa Anna, e do
grande valle, que ainda hoje se chama da Mouraria, vinhão demandar os
muros da Igreja, e Convento, como a huma barreira: e tanto que as in-
vernadas passavão do termo ordinário, o que muitas vezes acontecia, fa-
zião n'elle grandes danos : principalmente succedendo decer a força das
agoas da terra em conjimção de alguns estos maiores do mar, porque
então não só íicava impedida a vazant»'. ás da terra, mas ajudavão-se suas
enchentes com o crecimento do mar, e do Rio que também sahia de ma-
dre: c toda esta fúria vinha a cair, e quebrar sobre o Convento. Acha-
o08 I.IVi\0 111 DA HlSTOaiA DE S. DOMINGOS
mos posío em louibrança, que alguns annos so virão os Religiosos era
grande trabalho. Âssi devia ser em liuma famosa chea, de que faz men-
ção o livro das Calondas da Sé, que deu muila perda na cidade, e foi
em 4 de Janeiro de 13 i3. Mas quarenta e lium annos despois, no de 1384
em 24 de Outubro forão as agoas tão crecidas, tão arrebatadas, e impe-
tuosas, que assolarão ioda a cerca do Convento, e levantarão n"eHe altu-
ra de quatro covados, e meio de agoa, (assi o apontão as memorias, que
temos), e deixando feita irreparável destruição em todas as Ofíieinas, fo-
i'ão sair polas portas da Igreja com tal força, que arrombarão as pare-
des de que era cercado o Alpendre ; e, como toda a casa era térrea, foi
lastimosa causa o estado, em que íicou tudo o que havia de ornamentos,
livros, provisão, camas, e vestidos. Pêra não haver mortaes valeo o pou-
co sono, ou a vigia continua dos Frades. Em semelhante aperto se acha-
rão imiiíos annos a diante no de 1488, huma Terça-feira IC de Setem-
bro. E foi maior o perigo, porque veio o diluvio repentinamente, e em
tempo que ainda se não temia, nem esperavão agoas : e engressou tanto,
que não foi bastante pêra lhe dar evasão a grande madre do cano, que
corre por detrás do Convento, que a cidade tinha mandado abrir com
grande despesa tanto pêra este fim, como pêra limpeza da terra, e pola
capacidade, e largueza, que tem, he chamado Real. Esíiverão os pobres
Frades alagados com altura de dez palmos d"agoa por toda a casa, (são
palavras formais da lembrança, que era altura de huma braça de cra-
veira.)
De todos os Reis, em cujo tempo succederão estas cheas, o primei-
ro que se doeo dos que padecião os tormentos, e medos delias, foi
el Rei dom Manoel, que por esse respeito mandou derribar todo o edi-
fício velho, que era térreo, e fez lavrar, e levantar de novo hum dormi-
tório alto. Assim acabou a antiguidade da vivenda baixa, que a todos dava
cuidado. E não estão em pequena obrigação por tal obra a este Piei os
Religiosos, que se acharão no Convento por dezembro do anno passado
de 1018, no qual veo sobre elle huma força de agoas semelhante áqucl-
las antiguas no Ímpeto, e abundância, e também na occasião de maré ;
e adiando porta aberta na cerca, que era serventia de obra, que se fazia
em casa de Noviços, meteo dentro hum mar de agoa com tal faria, que
em todas as oHicinas baixas subio oito palmos, e em algumas mais. Va-
leo muito a diligencia, e animo do Prelado : a diligencia em fazei- dar
saída ás agoas, c o animo pêra reparar as perdas sem se sintirem em
PARTiCLLAU DO iii:iNO DK i»onTi:<;Aí. )j{)0
casa, e sem ser pesada fora, nem aos amigos, que já apercebião as bol-
sas pêra grossa despesa.
Mas o reparo, que el Rei dom xManoel fez contra as agoas, não bastou
contra os outros elementos. Yierão tremores de terra em lugar dos di-
lúvios, com igual medo, e maior risco. E succedeo n'esta cidade hum
entre outros no anno de 1531, huma Quinta-feira 26 de Janeiro com aba-
los tão descompassados, que se fez sintir por mais de sessenta legoas do
distancia, e assolou lugares inteiros por todo Ribatejo, e por outras par-
tes : e em Lisboa poz por terra muitas casas, fazendo-as sepulturas de
seus donos. As ruinas, que houve então n'este Convento, se deixão en-
tender do grande dano, que recebeo a Igreja : porque sendo fundada so-
bre firmíssimos alicerses com paredes de grossura, e fortaleza pêra mu-
ros de huma cidade, abrirão todas as naves de alto abaixo, e ficou o
corpo todo tão estroncado, e desfiado de membros, que por mais dili-
gencias que se fizerão pola fortificar, polo alto com grossas linhas de fer-
ro, e poios lados com escoras de grandes botareos de cantaria, foi com
tudo necessário desfazer despois grande parte d'ella, e reedifical-a de
novo, como se fez poios annos de Í5G0, ajudando todos os moradores da
cidade a obra com tanto ardor, e vontade, como se tocara só a cada hum
o bem delia.
CAPITULO XIX
Da antiguidade, e devaeão dn Ermida de nossa Sejihora da Purifiiard')
que commnmcnte se chama da Escada.
He contigua ao corpo da Igreja d'este Convento, e quasi como parte,
ou capeUa delia da banda do Evangelho, a Ilermida, que o povo chama
de nossa Senhora da Escada, (sendo seu próprio, e antigo titulo da Pu-
rificação), por ser casa de sobrado, e se sobir a elle por muitos degraos
de huma escada de pedra, que cae no adro, e circuiro, que antigamente
tomava a alpendorada, que ficava diante d"ella, e da porta principal da Igre-
ja. A forma do edifício he estar assentada sobre firmes abobadas de três
ou quatro capellas, que tem seus arcos, e serviço no andar da Igreja, e
abrir sobre ellas huma grande janela rasgada, e tão alta, que fica sendo
tribuna mui commoda pêra toda a Igreja, defronte das capelas de Jesu,
e do Rosário. Que rezão houvesse pêra tal sorte de fabrica nem se es-
creve, nem se comprende. Alcanç;il-a por discurso he trabalho sem frui-
370 LIVRO III DA IlISTORIA DE S. DOMINGOS
to, como será também querermos averiguar os princípios de sua funda-
ção, onde não ha escritura, que nos dê luz. Muitos concordão em ser a
primeira casa, que na cidade se edificou a nossa Senhora, despois de lan-
çados os i\Iouros. Mas he maravilha, se assi foi, não se falar n'ella na
cerlidão do Bispo Regense pêra confrontação do nosso Convento, quando
começava, nem em outras memorias d'elle. Se não quizermos dizer, que
nos ficava longe antes de edificada a Igreja por el Rei dom Afonso, e
que esta foi meio de a fazer nossa. O que consta de certo lie que de
tempos muito antigos foi frequentada com devação, e romagem, não só
do povo, mas também dos Reis. Do primeiro fundador não ha memoria.
Reformador sabemos que foi d"ella hum Pedrafonso Mealha, vedor da fa-
zenda, e valido dei Rei dom Fernando, que tem sua sepultura em huma
das Capelas, que lhe ficão debaixo : e merece-nos bem esta lembrança,
pola que elle teve do remédio d'este Convento, deixando-lhe a Quinta, que
temos em Almada junto a nossa Senhora da Piedade, que he boa parto
da sustentação d'elle. E de em tal tempo estar a ermida necessitada de
reparo se coUige bem, que teria já bons annos de ansianidade. Mas não fal-
tão outros indícios que lha confirmão. E seja o primeiro acharmos em
memorias antigas, que todas as procissões, que a cidade ordenava, ou pê-
ra pedir a Deos remédio em necessidades publicas, ou pêra lhe dar gra-
ças por mercês recebidas, a esta Ermida vinhão. Nas Crónicas do Reino
se lê, que havendo guerra entre elle, e o de Castella, pola successão dei
Rei dom João o Primeiro, fez a cidade alguns votos pola vitoria: e en-
tre elles prometeo huma procissão perpetua a esta Ermida (*). Não será
desagradável aos curiosos lançarmos aqui hum pedaço de capitulo da
Crónica d'esle Rei, pêra se ver a Christandade de nossos antepassados
em negocear com Deos, e a veneração que tinhão á Ermida : e irá na
mesma lingoagem, e termos do Cronista, e diz assi.
E a fora as preces, e oraçoens que por esto cada dia tinham ordena-
do fazer, juntarão-se todos na Camará da cidade, onde tinhão de costu-
me de falar seus feitos. E mandarão chamar pessoas Religiosas, Doutores,
Mestres era Theologia pêra a verem com elles conselho, como averião
a Deos em sua ajuda, e amansado de alguma sanha se contra elles por
seus peccados tinha. (E mais abaixo), e por tanto os officiais, e homens
bons dos mesteres ouvindo as palavras d'aquelles Padres Pregadores, e
f.) Crónica ilel Rei dum João i. ji. 2. c. i.
PARTICULAH DO REINO DK PORTIGAL 371
querendo seguir seu conselho, vendo como per muitos annos o povo da
cidade fora amoestado em prégaçoens, que se partisse de alguns peccc-
dos, 6 danados costumes dos Gentios que se em ella de longo tempo
usarão, mormente erros de idolatria. (E hum pouco adiante). Por ende
estabelecerão, e ordenarão prometendo a Deos guardar pêra sempre por
si, e por seus successores, que day em diante na cidade, e em seu ter-
mo nenhum não uzasse de feitiços, nem de chamar Diabos, nem desen-
cantaçoens, nem sonhos, nem lançar roda, nem sortes, nem outra nenhu-
ma cousa a que a arte de física não consinta. E mais que nenhum não
cantasse laneiras, nem Maias, nem outro nenhum mez do anno, nem
furtassem agoas, nem lançassem sortes, nem observança que a tais fei-
tos pertença. E porque o carpir sobre os finados he costume deshones-
to, e deccnde dos Gentios, sendo espécie de idolatria defeza por Deos
em seus mandamentos: por ende ordenarão, que homem nem molher
nom se carpisse, nem depenasse, nem bradasse sobre algum finado, posto
que fosse padre, ou madre, nem filho, nem hirmão, ou marido, ou mo-
lher : nem por outra nenhuma perda, nem nojo : mas trouxesse seu dó,
e chorasse honestamente: e quem o contrario fizesse, que pagasse certa
pena de dinheiro, e tevesse o finado oito dias em sua casa. E porque
os costumes dos Gentios se usavão em certos dias do anno, assi como
dia de Janeiro, e dia de Maio, e dia de Santa Cruz : estabelecerão que
cada anno pêra sempre fizessem três Procissoens por estes dias. A pri-
meira na Sé Catredal, a segunda a Santa Maria da Escada por devarãu
da ^ladre de Deos, a terceira que fosse a Santa Cruz por seu serviço,
e honra, etc. Até aqui são palavras da Crónica.
A primeira cousa, que a cidade fez tanto que pola vitoria se vio obrigada
ao comprimento destes votos foi ajuntar huma geral, e extraordinária
Procissão de todo o estado, e sexo de gente, e sem exceição de pessoa
vierão todos descalços render as graças por meio d'esta Senhora ao Se-
nhor dos exércitos, que he o que dá as vitorias, como, e quando, e a
quem he servido, e com aquella quasi milagrosa deu por então paz, e
quietação no Reino afíligido.
Seguirão-se logo as Procissões promettidas nos dias assinados. A, que
tocava a esta Ermida em primeiro dia de Maio, se ordenou sempre com
particular pompa, e solemnidade. Punha-se a casa de festa, armada de
tudo o bom, que havia na terra, e ornada de toda a frescura de flores.
372 LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
e boninas que traz Abril : recebia a Procissão com solene Missa, e pre-
gação. Esta Procissão continuou assi longos annos, e por este dia. Mas
despois que pareceo estar conseguido o fim pêra que fora inventada de
extinguir as profanidades genticas, que se uzavão em tal dia mudou-se
com bom conselho pêra o da vocação da Ermida, que he o segundo
de Fevereiro da Purificação da Virgem. N'este ficou continuando perpe-
tuamente por este modo. São mordomos sempre da Confraria da Senhora
dous Cidadãos, os quais com o povo, que se junta em grande numero
assistem ao officio da benção das Candeas, que se faz na Capella de Je-
su, e d'ella vão em Procissão com suas velas acesas nas mãos á Ermida
em companhia de todos os Religiosos do Convento, que cantão a Missa
solemne da Festa, e ha pregação. Por este meio se trocou a superstição
danada em Festas religiosas, e santas, e forão arrancados os máos abu-
sos Gentílicos. E he cousa averiguada, que forão autores deste artificioso
conselho os Frades d'esta Ordem, e em especial o Mestre Frei Vicente
de Lisboa, Provincial de Castella, e Portugal, e Inquisidor geral de am-
bos os Reinos antes da divisão das Províncias, como adiante o dirá a
Historia (*). Entenderão aquelles Padres com bom discurso que sofre mal
nossa natureza mudanças súbitas, inda que sejão pêra bem, e que folga
de ser enganada : uzarão de manha, acabou ella com suavidade, o quo
a violência pudera endurecer mais.
Mas não era menos a devnção, que os Reis tinhão a esta Senhora, o
Ermida. El Rei dom João o Primeiro a mandou em sua vida renovar
com curiosidade. E despois, no cabo d'ella, estando enfermo em Aícou-
chete da doença de que faleceo, e sintindo-se acabar, mandou-se trazer
a Lisboa, e antes de entrar em sua casa veo a esta a despedir-se, e to-
mar a benção da Senhora d'ella, e encomendar-lhe sua alma, e seus Rei-
nos. D'aqui se foi pêra os Paços do Castello, onde se finou breve-
mente.
Este mesmo respeito, e devação permaneceo, como por erança em
seus filhos, e nos Reis seus successores. El Rei dom Duarte seu filho,
e primeiro successor acrecentou a Ermida, e a poz no estado, e capa-
cidade, que hoje tem, e lhe fez esmola pêra arder huma alampada per-
petua diante da Senhora.
O Infante Santo dom Fernando, irmão dei Rei dom Duarte, quando
se quiz embarcar pêra a infelice jornada da Tángere, em que ficou cati-
ÍA P t. ISo ('.'Miventij de l{crifir;t.
PARTICULAR DO REINO Di: PORTUGAL o' 3
vo, nesla Capella se confessou, e commungou: e d'aqui se foi meter na
nào, e na mesma hora se fez ávéla com toda a Armada, em dia de San-
tiago do anno de 1437. Morreo este Infante no cativeiro por occullos
juízos d'aquelle Senhor, que tudo governa com summa providencia, e
justiça: mas esta Senhora o animou nos trabalhos, e consolou no ultimo
artigo da morte, aparecendo-lhe visivelmente, e certificando-o da gloria
que n'aquelle mesmo dia o esperava: como adiante o contaremos.
Com melhor successo fez semelhante despedida seu sobrinho el Rei
dom Afonso Quinto, filho d'elUei dom Duarte, no anno de 1471, quando
foi tomar Arzila, e Tangere aos Mouros. Acompanhado de toda a Corte
veio visitar a Senhora na manhã do dia de sua gloriosa Assumpção, a
quinze de Agosto. Ouvio Missa, e deixando-lhe esmola pêra arder outra
alampada perpetua com a de seu pai, se foi embarcar, e no mesmo dia
sahio do porto.
Em caso muito differente mostrou el Rei dom Manoel a veneração
que em sua alma tinha a esta Ermida. Porque dando-se por mui offen-
dido, como era rezão, do desastrado caso, que em seu tempo succedeo
no anno de 1506 da matança dos Judeus, que de fresco erão bautiza-
dos, e mandando, que no Convento de S. Domingos não ficasse nenhum
Frade, porque n'ell8 tevera principio a desordem: logo exceituou o que
tinha a seu cargo a Ermida, e este só ficou. Apontão as memorias anti-
gas, que ajudou a boa tenção d'el Rei ser o Frade varão santo, e por
tal havido em toda a cidade.
Não discrepou d'elle el Rei dom João Terceiro, seu filho, quando
foi o tremor da terra, que atrás contamos do anno de 1531. Como o
Convento ficou todo desbaratado, e posto em ruina, pedindo-lhe o Prior,
que era Frei Afonso de Madail, esmola pêra o reparo, raandou-lira dar
bem grossa, m.as com distinção declarada da parte, que dava pêra reme-
dear o dano, que houvesse na Ermida, e na nave da igreja, que sobre
ella cae, como parte, e membro da mesma Ermida.
óii LIVRO III DA HISTORIA PE S. DOMINGOS
CAPITULO XX
Da vida, e morte do Padre Frei Fernando do Cadaval
Capellão de nossa Senhora da Escada.
O cargo iVesta Ermida foi sempre costume andar em Frades velhos,
e de virtude callificada. Por morte do que assima dissemos, que o ser-
via era tempo d'el Rei dom Manoel, deu-se a hum bom velho muito pio,
e singello, que tinha bem servido a Ordem, sendo muitos annos Mestre
de noviços no Convento, e alguns Supprior. Era seu nome Frei Fernan-
do do Cadaval. Yendo-se o velho sacristão da Senhora, houve-se por
largamente pago dos trabalhos da longa vida : e era grande o gosto, e
cuidado, com que se empregava em seu serviço. Quando pola manhã
Ília abrir as portas, chegava-se ao altar, falava com a Senhora, encomen-
dava-lhe sua alma, e sua vida, pedia-lhe favor, e ajuda pêra a servir
bem aquelle dia, e em quanto vivesse. Despois de falar com a Virgem,
oiiiava pêra ominino, que tinha em seus braços, e, como se o vira n"el-
les, quando a Senhora o criava, e na mesma idade, que ali representava,
dezia-lhe seus requebros, e com santa simplicidade, e licença dos annos
(que, quando são muitos, se tornão a igualar com os dos mininos), esten-
dia as mãos, e os braços, e dezia-lhe, que se viesse pêra elles, deixasse
os da mãi sagrada; e com palavras pueris, e imperfeitas offerecia dar-
Ihe algum mimo da cella. Quando vinha á tarde fechar suas portas, e
concertar as alampadas, rezava suas devações á Senhora : e por remate
dezia-lhe, que se acabava o dia, e entrava a noite, avisando a quem era
velho como elle, que não podia tardar cerrar-se também o dia de sua
vida, e entrar-lhe por casa a noite da morte. Que pêra então havia mis-
ter seu soccorro, então se lembrasse de quem folgava de a servir agura.
Despedia-se logo do minino com novos amores, e pedia-lhe a mão pêra
lh'a beijar, e prometia buscar, que lhe trazer pêra o dia seguinte. Tor-
nava pola manliam cheio de alvoroço pêra aquelle santo trato, e nelle
andava tão embebido, e afervorado, que de nenhuma cousa outra da vi-
da tinha lembrança. As primeiras violetas, que em Lisboa traz Dezem-
bro, dando novas anticipadas do verão, as primeiras rosas de Março, co-
meçando a desabotoar, os cravos, as mosqueias, e jasmins, tudo busca-
va segundo os tempos pêra o seu minino, e pondo-lhe nas mãos o que
PARTICLLAU DO RKI.NO DE PORTIT.AL ^7.*)
trazia, fazia oíTerta da innocencia de sua alma, que ao Sentior mais agra-
da, accommodando ditos, e galantarias á idade de quem o recebia.
Assim continuava o velho o serviço de sua capellania : e não se des-
cuidando n elle hora nem momento, quiz o Senhor dos Ceos também
por meio da mesma imagem, em que era venerado, corresponder a sua
devação, e consolal-o. IIc cousa certa, e que foi vista, e notada por
Padres, que algumas vezes o acompanhavão, que indo pola manham cedo
abrir a sua Ermida, achava o minino Jesus assentado no meio do altar
sobre a pedra de ara. Ali erão novos amores, e o abrasar-se em deva-
ção : tomava-o nos braços, e como outro Simeão, pedia-lhe licença pêra
acabar ali a vida, porque a alma não era capaz de tamanho gozo, como
recebia em tal estado : e beijando-lhe os pés tornava-o ao collo da Vir-
gem. Outras vezes fazia-lhe perguntas como a minino, pêra que decia
ao altar, aonde teria frio : porque deixava os peitos da Senhora, em
que estava mais abrigado, e melhor agasalhado: e por remate tornava-o
a seu lugar. Está a Imagem da Virgem sobre o altar assentada em hum
nicho alto, mas em sitio tão firme, e seguro, que sabidamente não era
possível cair o minino de noite: e, quando succedesse acaso alguma vez,
não podia ser tanto a miude, como era achado embaixo : e, quando de-
mos, que cahia vezes, não se pode conceder, que sempre caisse direito,
e assentado em hum mesmo lugar. Por onde não ha duvida se não que era
obra do Altíssimo pêra consolação d'aquella alma pura, como vimos que
o fazia em Santarém, agazalhando os mininos innocentes, e mostrando-
Ihes, que aceitava os seus almorços. Pêra confirmação d'ísto sabia-se
que não entrava pessoa viva na Ermida, despois que a fechava, porque
era tão vigilante no serviço, e tão cioso d ella, que não fiava de ninguém
as chaves, e dormia com ellas á cabeceira. Considerava-se também, que
havia mistério em o minino ficar sempre assentado sobre o altar, por-
que era necessário dobrar-se, e fazer postura, e geito muito diíTerente
do que tem nos braços da Senhora: pêra o que não dava lugar sem mi-
lagre a matéria de que he feito, que he pão. E em fim tudo estava per-
suadindo obra do Ceo, e fora do natural. Mas o bom velho, acontecen-
do-lhe isto amiúde, veo a sintir o que lhe custava tornal-o á Senhora :
porque era força pêra o fazer, subir-se sobre o altar: e hum dia quei-
xou-se'á Virgem, dizendo-lhe com muitas lagrimas, e com simplicidade,
e candideza de pomba, qual era a de sua alma, que aquelie sen indigno
Capellão era muito velho, e não tinha já forças pêra subir tantas vezes
-»/() I.lVnO Hl DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
sobre o altar a entregar-lhe o miniuo Jesus; que lhe pedia não no lar-
gasse de si, e a elle forrasse tamanho trabalho. Mas o Senhor não dei-
xava de exercitar o seu velho n"aquella fácil penitencia, em que havia
mais de mimo, que de fadiga: e algumas vezes, que não decia, fazia
que, quando vinha pola raanham, achasse sobre o altar o chapeozinho que
linha na cabeça, que também era impossível cair sem mistério, porque
no lugar não ha vento; edado que o houvera, encaixava na Imagem tanto
ao justo, que não era leve de tirar, quanto mais de cair. E o bom ve-
lho, inda que pesado, e cansado, não queria dar aquelle cargo a outrem,
subia ao Altar custando-lhe muito, e cobria o minino.
Mas não tardou novo exercido de paciência. Eis que abrindo hum
dia pola manham, como costumava, suas portas, acha apagada a alam-
pnda, que he obrigação arder dia, e noite. Pareceo-lhe grave culpa, sin-
tio-a, deceo os degráos, que são muitos pêra a Igreja a buscar lume.
Quando tornou o dia, tornou-a a achar morta: entendeo, que era cousa
feita á mão, e á sinte: porque o tempo estava quieto, a casa bem fecha-
da, o azeite limpo. Então se queixou, e chorou: e acendendo-a foi-se ao
minino, e em todo seu siso lhe disse com eílicacia, que pois via, quão
velho, e fraco era pêra sobir, e descer muitas vezes tão comprida es-
cada, tevesse elle cuidado de vigiar a sua alampada, e não consintir, que
lha apagassem, porque d'ali lh"a entregava. Porem o Senhor inda o
quiz provar outra vez : quando veio pola manham, achou tudo ás escu-
ras: creceo a paixão, sintindo com seu trabalho a pouca reverencia de
ficar a Senhora sem luz. Foi-se ao minino, queixou-se delle, pedio-lhe
conta do descuido em cousa, que tanto lhe encomendara: mas querendo
tomar a escada pêra ir buscar lume, eisque subitamente a vio aceza. E
desde aqnella hora nunca mais se lhe apagou. Foi opinião dos Frades
que o Demónio lhe fazia estes tiros pêra o tentar, e provocar a ira : o
fundavão-se em saber, que o perseguia com muitos outros. Porque humas
vezes lhe aparecia em figura mui própria de quem elle he, que era de
porco, e grunhindo: e o Santo velho, não fazendo caso d elle, estendia
a pcnía da correa, e disciplinava-o com ella. Outras vezes, recolhendo-se
pêra a cella, achiva^o na cama, e na mesma figura estirado entre as
mantas: e com muito descanço, e sem nenhum pavor, (que pouco teme
varas, e beliguins, quem não deve á justiça), reprendião, c dizia-lhe pa-
lavras formais: Não vos tenho eu avisado, dom previso, que me não en-
treis TtestQ ceJJa: sus, levantar d'ahi muito nas mas horas, que essa cama
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 377
he muito estreita pêra dous. Quanto mais que não aceito eu tão ruim com-
panhia. E o enemigo desaparecia logo. Continuou o Santo velho muitos
tempos com esta vida, e sempre com raro exemplo de virludv^ Em íim
foi-se pêra o Ceo cheio de annos, e merecimentos cm sete de Outubro
de 1555.
CAPITULO XXI
Do Padre Frei Matbeus de Ogeda Capellão de Nossa Senhora da Escada.
Succedeo a Frei Fernando no serviço da Ermida, c devação da Vir-
gem outro velho tão antigo na Ordem, e na idade como elle, e não me-
nos estimado por religião, e pureza de vida. Este foi Frei Matheus de
Ogeda, nacido em Burgos nas montanhas, filho de pai Portiiguez, e mãe
Biscainha, da qual tomou o apellido. Veio a esta província por compa-
nheiro do Padre Frei Jeronymo de Padilha, quando por mandado d"el-
Rei dom João se começou a reformação por meio de alguns Padres de
grande observância, que de Castella decerão a seu chamado, dos quais
Frei Jerónimo vinha em primeiro lugar. E vindo a tal ofíicio, bem acre-
ditada fica a virtude do companheiro, que pêra elle escolheo. Era a vir-
tude grande, e igual a habilidade em matéria de papeis. Juntava com
elta facilidade no negocear, e huma certa brandura natural, com que se
fazia amar de súbditos, e Prelados : de sorte que, morto o Padre Frei
Jeronymo, fez o mesmo ofíicio com outros quatro Provinciais successi-
vamente, e sempre com satisfação de todos. No mesmo anno, em que
veio, se perfilhou por este Convento : e, quando faieceoFrei Fernando do
Cadaval, passava Frei Matheus muito dos setenta annos. Assi pareceo
por todas as rezões, que seria digno successor do defunto: e bem o mos-
trou nos annos, que viveo, que ainda forão muitos, e vividos todos com
singular exemplo de vida. Contão os antigos, que sendo este cargo como
género de jubilação, e hum modo de ficarem aposentados, e izentos de
obrigações os que tem trabalhado, e servido : elle o entendeo tão diíTe-
rentemente, que servindo a nossa Senhora com todo cuidado na sua Er-
mida, nunca faltava de matinas no Convento. E affirma-se d'elle, que em
todo o tempo, que n'esta Província residio, que forão trinta e oito annos,
nunca faltou n'ellas em qualquer Convento, que se acuasse, nem usando
do privilegio, que a força dos negócios dava, quando era Companliciro,
nem do mais forçoso a que o obrigava a idacie despois de aposentado.
378 LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
Antes aconleceo, que andando já muito no cabo, dous annos, ou pouco
mais, antes que falecesse, por se entender, que tinha quasi cento, foi
mandado recolher na enfermaria pêra ser tratado como enfermo, pois
era bastante doença tamanha velhice. E com tudo ainda então se fazia
força, e não deixava de ir todas as noites rezar com a communidade
as matinas de nossa Senhora, dando fermoso exemplo a todo o Convento.
Parece que ou podia mais o habito continuado de tantos annos, que a
fraqueza natural : cu que a obrigação de Capellão da Virgem lhe dava
animo, e alento.
Mas he caso quasi prodigioso, que, em quanto este Padre viveo, ne-
nhum trabalho o quebrantava, nem o medo da morle o fazia buscar mi-
mos ou commodidades. Na grande peste, que no anno de 1569 assolou
Lisboa, sendo feridos alguns Religiosos no principio do mal, quando
fazia mais terror, o tudo era fogir; Frei Matheus os visitava todos polo
menos duas vezes no dia, e os onfessava, e assistia com elles, quando
se lhe administravão os sacramentos, e entravão em artigo de morte; e
sempre acudia ao oíficio da comendação da alma a cada hum. Nem os
deixava despois de falecidos, antes, quando se davão os corpos á terra
tinha elle por devação levar a Cruz diante, e n'este ministério acompa-
nhou aos que em casa morrerão, e aos que arriscando voluntariamente
á morte com santa, e Religiosa caridade acabarão curando os enfermos
na Casa da Saúde. Porque seus corpos erão trazidos ao cemitério com-
mum do Convento. Mas não faltará quem diga, que pouco faz quem
despois de vividos noventa annos, como elle já então tinha, despreza a
morte, conforme ao dito do Trágico.
Fortem facit vicina libertas senem (*).
Querendo dizer, que não faz muito em mostrar valentia contra as
carrancas da morte, quem pola muita idade se vè abraçado com ella.
Porém não corria esta rezão em Frei Matheus. O que o fazia animoso
era huma vida religiosa, e austera continuada por discurso de longos
annos em pureza de costumes. E o que lhe conservava a saúde, era huma
firme resolução, com que vivia de se não poupar, nem buscar mimos ou
commodidades, traz que muitos a perdem. Porque estas são a verdadeira
peçonha, e destruição d'ella. Quem acabará de persuadir esta verdade
(•) Séneca tragic.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 379
no mundo 1 He a vida humana hum vaso de vidro muito delicado : e o
vidro não o quebra tanto sua fragilidade, como o receio, e sobejo cui-
dado, com que seu dono se vigia de que não quebre, cmpapelando-o,
e resguardando-o mais do que merece, como disse hum antigo.
Frangere dum metuis, frangis cristallína: peccant
Securae nimium^ solicilae que manus.
Não obrigava menos a Frei Matheus a vencer todos os medos, e
trabalhos sua grande caridade, que era hum fogo perpetuo, cm que ar-
dia, e com que dezejava de se desentranhar pêra acudir a todos os ne-
cessitados, e que d'elle se querião valer. Assi com tantos annos de com-
panheiro dos Prelados maiores, e huma vida tão larga, não havia cella
mais falta de tudo que a sua, nem Frade mais pobre no trato de sua
pessoa que elle. grande amigo de fazer por todos, grande precatado em
não ser pesado, nem dar moléstia a ninguém. Havia já vinte annos, que
servia de sacristão da Senhora, e pouco menos de dons, que estava re-
colhido na enfermaria: e, sendo julgado por homem, que corria em perto
de cento de idade, era todavia robusto, e andava em pé. Mas ou que
fosse discurso de bom juizo, qual foi sempre o seu, ou algum aviso se-
creto do Ceo, que elle nunca publicou: entrou hum dia pola cella do
Prior, que era o Padre Frei Estevão Leitão, que acaso estava acompa-
nhado de muitos Religiosos, e era hum d"elles, qiicn isto despois apon-
tou: e alvoroçando-se todos com sua vinda, porque todos o amavão, e
dezejando entender, que occasião o trazia aonde nunca vinha: assentou-
se, e, despois que descançou hum pouco, propoz assi. Nosso Padre Prior,
inda que dizem que não ha ninguém tão velho, que não possa viver hum
anno(*): segundo o que sinto, esta regra não se entende já em mi. Muitos
annos ha, que ando no cabo da viagem, mas agora estou já no porto.
Minha condição foi sempre não dar pena a ninguém : com tudo não se
poderá escusar levarem meus irmãos comigo algum trabalho : quero di-
zer no officio da sepultura: que na doença, e morte espero em nosso
Senhor, que lhes não hei de ser penoso. Venho pedir a vossa Reveren-
cia huma caridade, a qual he que pêra o dia, que assi se cansarem co-
migo, mande dar a toda a Gommunidade ao jantar huma pitança de
arroz doce. Apercebia-se o Prior pêra lhe responder á vontade, segun-
(') Tullius lib. de genect.
380 MVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
do mostrava na boa sombra, com que o ouvia : E elle indo por diante,
disse : e pêra isto lhe peço, que receba esta esmola, que agora me derão.
Sem dizer mais levantou-se, entregou a esmola, que se vio serem dez
cruzados, e tornou pêra a enfermaria.
Passados poucos dias, entrando o mez de Janeiro de 1576, quando
veio a véspera dos Reis, soou polo Convento, que morria Frei Matheus.
Jnntou-se a Communidade, acharão, que se liia apagando aquella candea,
por lhe faltar com a muita idade alimento, que detivesse nos membros
a luz da bendita alma. Porque não linha febre, nem frio, nem outra
doença: e assi se foi na mesma noite receber com gloriosa morte o pre-
mio de huma santa vida. Teverão-no os Frades no Choro, em quanto du-
rou a Missa da festa, e pregação, e teve sempre o rosto descuberto,
porque estava não só bem assombrado, mas com huma cor rosada como
de vivo. E por ser sua pesssa, e virtude mui conhecida de todo o au-
ditório, não foi parte a Festa, pêra tolher ao pregador fazer d'elle hu-
ma honrada memoria. Acabada a Missa, foi levado á sepultura poios
mesmos Ministros, assi como estavão revestidos de festa em ornamentos
de brocado, e cores, seguindo toda a nobreza, e povo, que em tal dia
concorre em grande numero ao Convento, como se forão a triunfo, não
a mortuoria.
CAPITULO XXII
Da origem, e principio que teverão na Ordem de S. Domingos os Altares,
e Confrarias do nome de Jesu
Entre grande numero de Irmandades, que em serviço de Deus Nosso
Senhor, e de seus santos estão n'esta Igreja instituidas, he a primeira
em calidade, e quasi em antiguidade, a do nome de Jesu. Pêra se en-
tender o fundamento, e origem d'ella, he de saber, que governando a
a Igreja universal o Papa Gregório decimo, e dezejando com paternais
entranhas, que todos os lieis em reconhecimento do muito, que devemos
ao Salvador do mundo Christo Jesu, verdadeiro Deos, e homem, vene-
rássemos com cordial aíTeito seu glorioso nome : pêra que d'esta vene-
ração resultasse alcansarmos d"elle novas mercês nas continuas necessi-
dades, de que nossa vida sempre anda cercada, passou hum Breve ao
Mestre Geral da Ordem de S. Domingos Frei João de Vercellis, cujo
PARTICULAH DO REINO DE PORTUGAL 381
treslado tirado do seisto das Decretais, onde anda lanrado, lie o se-
guinte (*).
Gregorius Epificopus seruus seruorum Dei, dilecto filio Mayislro Or-
àinis Fratrum PrcBdicntorum Salutem et Apostolicam benedictionem. Niiper
in Concilio Luijdunensi duximns statuendum, vt ad Ecclesias hunúlis sit^
et deuotus ingressus, et sit in eis quieta conuersatio, Deo grata, inspicien-
tibus placita, qtice considerantes non solum instntat, scd reficiat : conne-
nientes ibidem nomen id quod est super omne nomen, a qno aliud sub ccelo
tion est dntum hominibus, in quo sahos fieri credentes oporteat, nomen
■videlicet Jesu Cltristi, qui saluum fecit populum suiim a peccatis eoruin,
exhibitione reuerentim spiritualis attollant. Et quod generaliler scribitur,
vt in nomine Jesu omne gemi fleclatur, singuli singxdariler in se ip$is im-
plentes, speciaiiter dum aguntur Missarum sacra mijsteria, gloriostim id
nomen quandocuuque recolitur, flectant genua cordis sui, quod capitis in-
cUnatione testentur. Ideoque dilectionom tuam rogamus^ et hortamur atfen-
lé per Apostólica tibi scripta mandantes, quafenus tu, et fratres tui Or-
dinis, cum vos populis contigerit proponcre uerbum Dei, populos ipsos ad
prcBmissa efficacibus rationibus inducatis. Ifa qucld proinde retributionis
die prcemium possitis promereri. Datum Liigduni Xij Calendas Octobris,
Pontificatus nostri anno tertio.
Em vulgar reponde assi.
Gregório Bispo servo dos servos de Deos, ao amado filho o Mestre
da Ordem dos Pregadores saúde, e Apostólica benção. No Concilio, que
pouco ha celebramos na cidade de Lião, nos pareceo conveniente man-
dar ordenar, e decretar, que pêra que em todos os fieis haja grande
cuidado de entrarem nas Igrejas com humildade, e reverencia, e n'el!as
assistão com tal sossego, e compostura, que a Deos agrade, e aos que
a virem alegre, e não só sirva de edificação, e doutrina a quem a vir,
e considerar, mas também de recreação : todos, os que em tais lugares
se juntarem, honrem com particulares mostras de reverencia, e devação
espiritual aquelle nome, que he sobre todo o outro nome, nome que
fora d'elle não ha debaixo do Ceo outro, em que se possa esperar sal-
vação. Este he o nome de Jesu Christo que veio remir seu povo, e li-
:-! Uscret.
382 I.IVI\0 III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
vral-o do cativeiro dos peccados : e cumprindo cada hum particular-
mente aquillo a que todos estão obrigados, que he humilhar-se todo o
Christão, edobrar-se todo o joelho com respeito, e humildade ao nome de
Jesu: principalmente o facão, quando forem presentes ao santo Sacrifício
da Missa, dobrando os joelhos de suas almas, e humilhando-se todas as
vezes, que n'ella se ouvir este Divino nome, e testemunhem com incli-
nação exterior da cabeça a, que interiormente lhe fazem com a vontade.
E por tanto a vossa caridade rogamos, e consideradameníe exhortamos
por estas letras Apostólicas, a vós com especial commissão dirigidas, que
todas as vezes que vós, e vossos Frades pregardes ao povo, trabalheis
por lhe persuadir com efíicacia de rezoens o que assima dizemos, e o
façais de maneira que no dia da paga geral do Senhor possais merecer
o galardão de bons servos. Dada em Lião aos vinte de Setembro no ter-
ceiro anno do nosso Pontificado, (cahio este anno no de Christo de 1274,
porque foi eleito este Pontífice no mez de Julho de 1271).
Visto o Breve polo Padre Geral, e entendida por elle sua santa ten-
ção, teve por especial honra da Ordem huma commissão de tanto ser-
viço, e gloria do Senhor. E com diligencia o espalhou em copias por
todos os Conventos, e províncias da Christandade, encommendando a
seus filhos com vivas, e fervorosas palavras a execução delle. Tomarão
os Religiosos a peito o mandado do santo Pontífice, e a amoestação de
seu Prelado com tanta vontade, que não havia pregação, nem pratica
espiritual, nem ainda conversação, em que não dessem grande parte a
esta devacão. Lembravão com encarecimento aos fieis o respeito, que
se devia áquelle santíssimo nome, recontavão suas soberanas prerogati-
vas, descobrião o thesouro, que nelle se encerra das altas misericórdias
que o Senhnr obrou na salvação do género humano. Como se falava com
gente pia, e catholica, foi grande o fruito, que colherão de seu trabalho.
Porque não ha duvida, que a estremada reverencia, com que hoje o ve-
mos venerado de todo Christão, leve principio n"esta diligencia, sendo
assi que não ha lugar na Christandade tão apartado do trato, e policia
civil, nem tão agreste, e rude, onde se não reconheça o preço do glo-
rioso nome de Jesu com geral humilhação de corpos, e cabeças, era
soando nas orelhas, e com claros sinais, que está bem arreigada nos co-
rações a estimação d'elle. E isto bem se deixa entender, que ficou co-
mo erança recebida dos primeiros ouvintes despois que em suas almas
pauticulau do ueino de portugâl 383
se fundou com aquellas continuadas, c devotas amoestaçoens dos Prega-
dores, a que foi encommendado o cargo. Assi podemos á boca ciíeia di-
zer que pola boa industria, e cuidado d'elles vemos hoje cumprida a pa-
lavra do Apostolo na parte, que lhe faltava das criaturas da terra: quando
o Pontífice houve por necessário os ofTicios em suas letras encommen-
dados, pois d'ellas parece que devia haver notável esquecimento na Re-
publica Chrislam da obrigação, que era reconhecerem as criaturas ter-
restres a este divino nome com publicidade, e exterior demonstração,
aquella mesma vassalagem, com que por dito do Apostolo se lhe humi-
Ihão, e sojeitão ao seu pezar as infernais, e com gosto, e alegria as ce-
lestiais, e Angélicas.
Mas não parou nos Religiosos o desejo de bem servir com os bons
effeitos, que vião presentes. Considerarão que convinha força de artificio
contra a fragilidade, e pouca constância da memoria humana. E inven-
tarão logo pêra espertadores continues d'ella os altares, que levantarão
por todos os Conventos, e Igrejas da Ordem, dedicados particularmente
ao bom Jesu. Por maneira que nos Frades de S. Domingos quasi he
tão antiga como a mesma Ordem, a posse, que temos da companhia de
Jesu, e dos seus altares, e serviço, não per eleição nossa, se não por
ordem, e mandado do mesmo Senhor, pois nos veio por commissão
do Príncipe supremo da Igreja Catholica, seu vigário na terra. Levan-
tados os altares, ficou dado principio ás Confrarias. Porque ordinário
he não se instituir nenhuma, sem preceder como fundam.ento o altar do
Santo ou Santa, em cuja veneração se unem os devotos com confor-
midade de irmaons. Mas não era ainda então conhecido este bom modo
de obrigar a Deos. Conheceo-se muitos annos dcspois, e começou n'este
Convento de S. Domingos de Lisboa, e no altar, e nome de Jesu (pêra
prospero, e felice successo de todo semelhante serviço) como logo ve-
remos.
CAPITULO XXIII
Do occasião, e tempo em que foi inslihiida a primeira Confraria do nome
de Jesu no Convento de S. Domingos de Lisboa.
Reinando em Portugal o valeroso restaurador do Reino, e da liber-
dade dom João o primeiro, (que por tal merece não ser nunca nomeado
sem o titulo saudoso de boa memoria, que o consintimento commum
38Í I.IVKO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
de todas as idades lhe íem dado), foi Deos servido castigar a terra com
hiinia corrupção pestilencial do ar, que sendo cruel matadora por todo
o Reino, cm Lisboa, e seus termos fez cruelissimo estrago. Acudia o
povo d'esta cidade a Deos amiudando orações particulares, e gerais: e
as que mais continuava erão em Procissões de quasi cada dia a nossa
Senhora da Escada na Ermida, de que pouco ha falamos. Cora a occa-
sião de povo junto em lugar tão vizinho, mandavão os Prelados que
houvesse pregação na nossa Igreja todas as vezes, que vinhão, pêra
dar animo aos aflligidos, e se aliviar a tribulação, que era mui crecida.
Continuava quasi sempre o púlpito n'esles dias dom Frei André Dias de
Lisboa : o qual sendo natural d'ella, e Frade nosso passou a Itália, e
veio por suas letras, e grande espirito, e eloquência a ser eleito polo
Papa em Bispo de Mèganf, antiga cidade da província de Achaia em
Grécia: mas tirando por elle o amor da pátria, como os Portuguezes
são tão aíTeiçoados a este pequeno torrão de seu nacimento, quiz an-
tes viver pobre, e privadamente entre os seus, que mandar nos estra-
nhos : tornou ao grémio, em que nacera, e vivia contente com o pouco
que lhe rendia o Mosteiro de S. João da Alpendorada, de que el Rei o
fizera commendatario. Fazião-no muito ouvido a dignidade, e partes que
temos dito. E elle compadecido das calamidades, que via em seus natu-
rais, trabalhava por se aventajar a si mesmo: e como pregador de es-
pirito Apostólico, ainda que de sua colheita tinba ser agradável ás ore-
lhas com a musica da lingoagem, e partes de eloquência, empregava
todo seu estudo em buscar meios pêra levantar as almas desmaiadas, e
caidas com o peso da tribulação, a se armarem christammente contra
ella com armas de paciência, e amor de Deos, e esperança firme n'elle:
affirmasido que esta era a verdadeira cura, e triaga contra o veneno dos
males, que padecião: que assi farião rendosa a pena das mortes do filho,
do pai, do irmão: assi tirarião merecimento dos trabalhos, e das misé-
rias misericórdia, e sobre tudo que não havia mais certo meio de apla-
car a Deos que pôr os olhos em Christo Jesu cordeiro innocentissimo
pregado na Cruz. Aqui paravão todos seus discursos. Aqui lhes desco-
bria altos thesouros de consolação, mostrando como este Senhor d'a-
quelle trono, que pêra salvar o mundo enfermo escolhera n'elle, estava
dando exemplo, e iiçoens de soífrimento, de caridade, e confiança, pêra
que não houvesse nenhum bomem tão aílligido, que com tal espelho diante
dos olhos não cobrasse animo, e alivio, e boa esperança. Logo exhortava
PÂIITICIXAH DO REINO Di: POUTIGAL 385
com estranha vehemencia, o rczocns saidas da alma, que se quorião ver
fim ao mal, todo homem se empregasse de coração em ser devoto do
nome sacraíissimo do bom Jesu, que era cousa certa, e por certo o
aflirmava, que hum Seníior, que tão atribulado fora por valer a homens,
quando lhe não merecião nada, se doeria, e haveria misericórdia dos
que via atribulados, que remidos já com seu sangue, todavia fazia por
lhe merecer alguma cousa. Outras vezes não saindo do mesmo conceito,
persuadia, que todo homem trouxesse o santo nome continuamente não
só na alma, mas também na boca: não só na alma, e na boca, mas que
o trouxessem escrito sobre o peito, e o mandassem pintar sobre as
portas das casas: qne sem duvida seria remédio poderoso pêra o Senhor
amansar sua ira. Acendia-se a gente affligida em amor do aíílgido Jesu,
e no meio das mortes aceleradas, caindo aqui huns, ali outros, andava
todavia o sagrado nome nas bocas de lodos, louvavão-n'o com paciên-
cia os que morrião, louvavão-n'o, e davão-lhe graças os que ficavão, es-
crevião-n'o, pintavão-n'o.
Quando o Pregador vio, e entendeo tão boa disposição, encheu-se do
confiança, que não podia o Senhor faltar com sua misericórdia; e propoz
em hum Sermão, que se ordenasse huma Confraria, e que fosse o titulo
do nome de Jesu: affirmando constantemente que o bemdiíissimo Jesu,
que he íonte de piedade, usaria d"ella com todos os que folgassem de ser
seus irmãos, e Confrades ; e por meio d'elles com toda a terra ; que
olhassem, que só nisto estava chegar o remédio de tantas calamidades,
e tanta desaventura, como cada hum via em sua casa. Dezia isto, e re-
pelia-o com grande efficacia, e já era pedida de muitos a Confraria, e de-
sejada de todos: mas, ou fosse, porque nas cousas boas nunca fallão im-
pedimentos, ou porque as muitas mortes tiravão o juizo, e o conselho.
não acabava de haver resolução. Eníre tanto crecia o dano da contagião
com fúria terrível, não havia casa, nem homem seguro : mais fero, e mais
pernicioso couipa os mais robustos, era tiro de fogo, que apontava, e
derribava, feria, e matava tudo junto. Mas o que não tiniia reparo, e que
só com o medo tirava vidas, era que o ar corruto, e venenoso despois
de enterrar hum, e muitos, não se enterrava nem acabava com elles :
vivo, e inteiro ficava em qualquer peça de vestido, e em qualquer dobra
de pano, por pequena que fosse, d'aUi, como de emboscada acometia do
novo a quem se atrevia a local-o, e com a mesma violência o matava,
que fizera ao que já estava tornado cinza. Fazendo isio grande forra ao
VUL. 1. " ^-i '
38G LIVRO III DA IIISTOUIA DIÍ S. DOMINGOS
Bispo porá bradar, c rogar, c instar, em fim foi Deos servitlo, que se
veio a assentar, e fundar a Confraria dia sinalado, véspera da Presenla-
ção de Nossa Senhora, vinte de ?íovembro do anno do Senhor 1432. Era
Domingo, e pregava o mesmo Bispo, declarou do púlpito o que eslava
assentado, e advirtio juntamente, que acabada a Missa havia de benzer
agoa em nome do bom Jesu, Autor, e Senhor da Confraria, pêra que a
levassem pêra casa, e a communicassem aos enfermos. Foi recebida a
nova com extraordinário alvoroço, o alegria, como bem estreado pronos-
tico do que logo succedeo : e não havia homem, que quizesse ficar fora
da Irmandade, nem sair da Igreja sem sua parte da agoa. Assi esperarão
todos, até que acabada a Missa sahio o Bispo vestido em Fortificai, e su-
bio ao altar de Jesu. Era o povo tanto, que não cabia na Igreja. Estava
posta abaixo dos degráos huma grande talha de agoa. Benzeo-a com as
benções costumadas da Igreja, com muita solemnidade, e devação de sua
parte, e infinitas lagrimas dos assistentes, porque nenhum havia em ta-
manha multidão, que não tivesse, ou esperasse em sua casa occasião delias:
e he cousa averiguada, que muitos estavão feridos despois de entrarem
na Igreja, polo muito que se reforça, e aviva em qualquer ajuntamento
o fogo da contagião. Carregou logo tanta gente pêra participar da agoa
benta, que sem se poderem valer os dianteiros pola pressa, e aperto que
fazião os, que ficavão detrás, foi a talha derribada, e a agoa derramada.
Mas não se perdeo, antes foi occasião o derramar-se de chegar aos mais
afastados, e tocando todos as mãos, e os lenços n'ella, soube-se com cer-
teza, que logo dos feridos, que erão presentes, sararão muitos; e dos
ausentes, a quem se levou, hum grande numero. O que foi occasião de
o Bispo benzer outra mais vezes, porque era buscada de toda a cidade
como imico antídoto contra o mal, e com effeitos tão certos cm cal idade,
que affirma o Bispo por letra sua em hum livro d'aquelle tempo, que se
guarda na G nfraria, que não erão acontecidas em toda a Christandade
junta de cem annos atrás tantas, e tais maravilhas. Encarecimento que
só a tão santo varão se pode crer. Uixs pêra que em nenhum tempo pos-
sa haver duvida nem dos milagres, nem do encarecimento, crecerão elles
de maneira, que dentro de quarenta dias contados d"aquellc Domingo em
diante se vio o mal de todo acabado : e no fim de Dezembro erão já en-
tradas na cidade muitas famílias inteiras de gente nobre, que na força
do trabalho se tinha retirado a suas Quintas : e agora acudião tanto ás
novas da sauile, como do novo, e santo remédio d'clia.
PARTICILAR DO miNO DE PORTUGAL 387
CAPITULO XXIV
OrJeRd-se solene festa no Aliar de Jesu, por graças de saúde: (azem-sc
Compromisso, e Estatutos da Confraria.
Pareceo então que seria justo darem-se graças ao Senhor pola saucle,
c milagre d'ella. E ordenou-se huma solene festa no Altar de Jcsu, a
quem se devia, pêra em seu dia, que foi o primeiro do mez, e do anno
seguinte de 1433, e n"elle se fez com assistência de toda a nobreza, e
povo da cidade, e sendo presente o Padre Mestre Frei Gonçab Mendes
Provincial d'esta província de Portugal, já então separada de Castella, e
o Padre Frei Vicente da Azoya, Prior do Convento, a quem os livros da
Confraria nomeão por Doutor. E no mesmo dia á tarde, (tão acesa an-
dava a devação em t. dos), tornarão ao Convento, e juntos com os Religio-
sos derão ordem, que começasse a correr, e exercitar-se a Confraria de-
cretada. E o primeiro auto foi, que todos os que se Unhão declarado por
Confrades, e de novo se declararão, ílzerão eleição de sete irmãos pêra
a começarem a servir, e governar com titulo de hum Juiz, hum Mordo-
mo, hum Escrivão, e quatro conselheiros. Foi segundo acordo compro-
meterem-se todos nos sete eleitos pêra ordenarem com maduro conse-
lho hum Compromisso das leis, que fossem convenientes pêra bom go-
verno da Confraria, e maior gloria do Senhor, com declaração que o pi!-
dessem logo mandar confirmar polo Summo PoníiRcc. Dado este assen-
to e tomado por escrito, e assinado, achamos nas lembranças, que durão
na Confraria, que foi tamanho o contentamento em todos, que não caben-
do nos peitos, tresbonlou por fora, a buns brotando poios olhos em la-
grimas, a outros moventlo pés, e mãos pêra darem saltos no meio da
Igreja, e voltas no ar, sem mais som que o de seu prazer, dizendo, o
repetindo com a lingoagem d'aquclle tempo, que o fazião á honra, e pêra
gloria do bom Jesu, por serviço, e renembrança do bom Jesu. E tal foi
o principio d'esta santa Confraria.
Instituio-se despois o Compromisso com suas leis, e ordenações: e foi
a primeira, que a festa da Confraria se celebrasse no primeiro dia de
cada hum anno, por ser o mesmo, cm que o Senhor quiz começar a pa-
decer poios homens, e tomar nome, e contar-se entre elles. E pêra eter-
na memoria, e agradecimenlo da mercê recoèida. houvesse iodos os an-
388 UYP.O III DA líISTOP.IA DE S. DOMINGOS
nos á véspera da festa huma Procissão, em que iriâo os Religiosos do
Convento, e se acharia com elles toda a Irmandade : e lium Sacerdote
acompanhado do Diácono, e Subdiacono levaria em suas mãos luima ima-
gem do minino Jesu. Esta procissão se juntaria na Ermida de nossa Se-
nhora da Oliveira, sita no adro da igreja de S. Gião, e d"ahi iria ao Con-
vento. Foi confirmado o Compromisso, segundo por elie parece, polo
Cardeal Renuncio, Penitenciário maior do Papa. E, porque muitos annos
despois foi mostrando o tempo, que convinha acrecentar ordenações de
novo, e reformar algumas das antigas, juntou-se a Irmandade, e com seu
acordo se proveo n"ellas, e o, que ficou assentado, se confirmou autoritatc
Apostólica polo Infante dom Anrique Cardeal, e Legado a latere n"estc
Reino.
Os milagres, que nosso Senhor obrou na fundação da Confraria, e ou-
tros muitos, com que despois quiz honrar os devotos de seu nome, se es-
creverão em folhas de pergaminho, e d'ellas se fez livro, que pêra con-
solação dos fieis, e curiosos se pendorou nas grades da Capella por huma
cadea de ferro, com conselho mais pio, que prudente. Porque ficou oc-
casionado ao que despois aconteceo, que foi roubal-o hum atrevido, não
quebrando ferro, mas resgando pergaminho com. magoa de todos os bons-
Outro livro anda na Confraria vivo, que foi trabalho, e composição do
mesmo Bispo dom Frei André. São muitas orações em prosa, e verso
vulgar de louvores, e excellencias do nome de Jesu, apropriadas pêra
espertar a devação d'elle, e todas íestimunhão bem a de seu autor. Em
tempos antigos, que havia mais singollezn, e menos malícia, que nos pre-
sentes, era costume ás sestas feiras, quando não occorria festa de guar-
da, e se cantava a Missa de Jesu, que em tal dia he ordinária, sobir-se
o Diácono ao púlpito, assim como estava revestido despois de dizer seu
Evangelho : e abrindo este livro lia ao povo huina das orações, que dis-
semos, que vinha mais a propósito pêra o tempo- porque as havia n'el!e
occommodadas pêra todo o discurso do anno. E afnrmão os antigos, que
fazião fruito, c se edificava o auditório : porque ficavão servindo de huma
breve pratica espiritual.
O sitio da Capella he no corpo da Igreja, no meio d'ella, sobre o
presbyterio alto, que se estende por toda a nave direita. Faz divisão das
Capellas collaterais com grades de ferro torneadas, o tecto he tão alto,
como a nave. o frontispício chega a pegar no frisa do emmadeiramento
do meio da Igreja, que he grande altura : e assi o tecto por denti-o, como
PARTICULAR DO RCINO DE PORTLT.AL 389
O frontispicio por fora, são lavrados de tarjas, e figuras de meio relevo
de boa masseaaria, e todas cozidas em ouro sem se ver outra cousa. O
retabolo sobe quanto a parede, c com a largura toma toda a Capella. lie
pouco aparatoso em feitio, mas de boa pintura nos painéis. No meio
abre bum grande nicho alto, e largo, e cerrado com portas de grade
forte, cujos balaustres são de prata mocissa. Dentro fica hum Christo
crucificado de grande devação, em vulto, c estatura de hum bem pro-
porcionado homem. No lado está sempre o Divinississimo Sacramento reco-
lliido em hum relicário, ou custodia redonda, de tal arte que de fora se
devisa toda a redondeza da Historia sagrada. D'estas Custodias ha duas
no Convento, huma de prata dourada, que serve quotidianamente, guar-
necida de pedraria: ouíra de ouro mocisso, e fcilio igual á m.aleria de
f{ue se usa nas festas, e tem mais de hum palmo em diâmetro. Esta peça
foi dadiva do infante dom Luis, sendo por sua devação mordomo da Con-
traria : as grades fez o primeiro Conde de Santa Cruz dom Francisco
Mascarenhas, que foi o que defendeo o famoso cerco de Chaul na índia.
Ardem continuas diante sete alampadas de prata. As três grandes, e cus-
tosas, as outras de menos conta. A este ornato respondem os paramen-
tos que ha pêra o altar, e ministros, pêra todo o discurso do anno, ri-
cos, e mui perfeitos. Assi lie a Capella de mais lustre, e magestadc des-
pois da maior, que ha em todas as Igrejas da Ordem : e no Reino pou-
cas lhe fazem ventagem.
Por ser tal situarão os Prelados nella a Confraria do Santíssimo Sa-
cramento, por communicação da universal Confraria do nosso Con-
vento da Minerva de Roma, pola qual todos os Conventos da Ordem go-
zão do privilegio de poderem levantar em suas Igrejas esta Confraria,
e fazer procissões nas terceiras Domingas de cada mez, particulares : e
duas publicas, e solenes na Dominga infra Octavas da festa de Coqius,
huma pola manham, e outra á tarde. E pêra mais s<jlenidade está pro-
hibido por letras Apostólicas a todas as mais Religiões Monacaes fazerem
em tal dia semelhantes procissões. Do anno, em que começou a correr
esta Confraria, não consta ao certo : mas certo he, que foi a primeira
d"esta invocação, que em toda a Cidade houve : e assi se julgou por sen-
tença no anno de 1548 em huma bnga demanda, que por parte do Ca-
bido da Sé correo contra os nossos Frades. E a grande antiguidade lhe
tem rendido muitas, e grandes indulgências, e graças : humas, que os
Sammos Pontifices concederão á Coíifraria de Jesu: outras, que a Papa
390 LIVRO III DA MISTOIUA DK S. DOMINGOS
Paulo Terceiro expressa, o especialments concedeo á Confraria do Santo
Sacramento n"ella encorporada, e outras, com que de novo a enriqueceo
o Papa Pio Quinto de gloriosa memoria no anno de 157 1 com indulgên-
cia plenária, e i'emis3ão do todos os[)eccados aos fieis, que presentes se
acharem nas duas Prucissíjes da Dominga infra Odavus.
Ultimamente se annexou á Confraria de Jesu, e á sua Capella outra
Irmandade, cujo titulo he do nome de Deos pêra evitar juramentos. Esta
levo principio em Castella, e foi instituição de ham Religioso de S. Do-
mingos, por nome Frei Diogo de Vitoria no anno do Senhor de 1500.
E despois a confirmou, e dotou de grandes indulgências o Papa Pio
Quarto, e seu successor Pio Quinto, confirmando-a de novo, lhe acrecen-
tou outras graças ; e por hum particular Molu próprio ordenou, que em
nenhum outro Convento ou Igreja se pudesse situar, salvo nas da Ordem
de S. Domingos ; e onde faltasse casa da Ordem, se houvesse licença
dos Religiosos d"e}la, sem a qual nenhuma indulgência nem graça se al-
cançaria. No anno de 1580 confirmou tudo o acima dito Gregório Deci-
mo tareio, assi como estava concedido, e confirmado por seus anteces-
sores: e começa a Bulia. Aliás iier foiUck rcconhttionis Papam Piíim
Quartum, ek. E de novo ajuntou outros favores, e mandou que a Pro-
cissão, que se costumava fazer por esta Confraria nos primeiros Domin-
gos do mez se passasse a outro, pêra f-carem despejados os primeiros
pêra o santo Rosário. E por esta maneira ficarão Ires Confrarias unidas
em huma.
CAPITULO XXV
Da êhnfraria de Nossa Senhora do Rosário.
Não ha duvida, que assi como o primeiro Pregador, que a Virgem sa-
cratíssima escollieo pêra communicar ao mundo os tliezouros de seu
santo Rosário, foi o Patriarca S. Domingos : da mesma maneira ficou a
cargo aos filhos serem d"e!le pregoeiros: e não fundarem casa nenhuma
des do principio da Ordem, sem dedicarem logo juntamente particular
Capella, ou Altar com titulo da Senhora do Rosário. Mas, como somos
homens, e de todas as cousas humanas he propriedade natural não per-
manecerem muito tempo em hum estado, foi descaindo pouco, e pouco
esta devação, porque erão homens os que a mantinhão : e chegou a ter-
mos de estar quasi esquecida, e apagada. Mas aquclla Senhora, que he
PARTICULAR DO RKTNO DR PORTUGAL 391
fonte de misericórdia, e como tal foi sempre medianeira de manarem as
riquezas, e bens do Ceo soi)re a terra, vendo o muito que os fieis per-
dião neste descuido : ainda que os Frades de S. Domingos, que por tan-
tos titulos estamos obrigados a seu serviço, éramos no esquecimento os
mais culpados, foi servida de tornar a fiar dos mesmos a bonra do seu
Eo&ario, (louvem-vos os Anjos, Virgem bendita, que bem mostrastes n'isto
que sois verdadeira mãi), e aparecendo primeiro ao nosso famoso Pre-
gador Frei Alano, de nação Ingres, e despois ao Prior de S. Domingos
de Colónia cm Alemanha, mandou a bum, e outro, que resucitassem, e
tornassem de novo ao mundo este santo género de oração acommodado,
c fácil pêra os homens, agradável a Deos, e a ella, e pêra alcansar mi-
sericórdias do Çeo mui poderoso. Era poios annos do Senhor de 1475,
c passados já duzentos e sincoenta e tantos despois de falecido nosso
Santo Patriarca. Convinha muito pêra a empresa outro tal espirito como
o seu. Mas suprio a Senhora as faltas dos que então havia, com tanta
superabundância de graças, que fazendo elles o que de sua parte po-
dião,- não ha i)alavras que possão bem declarar quam celebre, e estima-
da fizerão com seus Sermões a santa devação, estendendo-a por toda a
redondeza da terra. Grandes forão as maravilhas, infinitos os milagres
(|ue por ella se virão. As Irmandades, e Confrarias sem numero, con-
correndo a ellas não só a gente ordinária, nem só os Fidalgos, e hon-
rados, mas Príncipes, e Reis, e Emperadores, e até os mesmos Papas,
tendo por honra escrever seus nomes nos livros da Senhora. Assi o acha-
mos apontado em memorias digníssimas de fee, (gloria grande pêra esta
sagrada Picligião, e que devemos procurar conservar poios mesmos meios
que nos entrou em casa.) A primeira Confraria, que doeste tempo acha-
mos fundada, foi na mesma cidade de Colónia, e no Convento de S. Do-
mingos, a qual aprovou, e confirmou no anno de 1479 o Papa Xisto
Quarto por hum Breve riquíssimo de graças, e Indulgências : e o mesmo
fez por outro semelhante no de 148i Inaocencio Oitavo. E desde este
anno nos consta, que começou também esta Confraria no Convento de S.
Domingos de Lisboa, instituída, e assentada na sua mesma Capella, que
desde os fundamentos da Igreja lhe foi logo dedicada duzentos annos
atrás. E d'aqui se foi dilatando por todo o Reino, e crecendo a devação,
c reverencia do santo Rosário de parte dos fieis, foi também mostrando
a Senhora d'elle, que se agradava do serviço com alguns successos ma-
ravilhosos obro.Ios em beneficio d'~ >!^us devotos. O que deu ocasião a
392 LIVRO III DA lIISTOr.IA DE S. DOMINGOS
que levantando-so na cidade novo incêndio de peste no anno de IWO,
av:iidio o governo d"eila, acoaipanliado dos melhores da nobreza, e povo
a este Convento, e. juntos em sua Capella, e com voto feito de a servi-
rem, e solenizarem suas festas, a tomarão por avogada do mal. Mostra-
se dos livros da Confraria, que assisíiifío com elles a esta santa determi-
nação o Mestre Frei Brás de Évora Provincial, e o Piãor do Convento
Erei Pedro Faleiro : e que no mesmo tempo se renovarão alguns Capí-
tulos do Compromisso, e acreccníarão outros pêra melhor serviço da
(loníraria. O proveito, que d'este remédio se sintio, foi tal, que cobrou
novas forças nos ânimos dos homens o fervor, e affeição do santo Pxosa-
rio : e os mimos, e favores, com que a Senhora o acreditava, crão tan-
tos, que andão escritos livros inteiros d'elle. Apoz a devação creceo a
riqueza no altar, e Confraria, em ornamentos, prata, sedas, e brocados,
e grande copia de cera: levantou-se a Capella na mesma forma de altu-
ra, lavor, e dourados, que dissemos da de Jesu, que lhe lie contigua. E
ardem nella sinco alampadas de prata. Introduzio-se dcspois benzcrem-
se Rosas polo mez de Maio, em nomo e á honra da Virgem : e como
cila lie, e tem por titulo, roza de pureza, deu-se por bem servida d"esta
cerimonia : e forão grandes os benefícios, que logo então receberão, e
inda hoje recebem os que com fee se valera d"ellas em suas necessida-
des, como não haja descuido nas outras de suas Aves Marias, que são
as rosas, que mais estima: e por cujo respeito, e em significação do
que lhe agradão se mostrou algumas vezes coroada das que cria Abril,
e Maio. Vn'ão-se os effeitos era alguns casos mui peregrinos, que não
he rezão ficarem fora d'esta escritura, por terem todos em certo modo
sua origem, e dependência d'esta Confraria : brevemente diremos alguns
dos mais notáveis.
Águeda Lopes se chamava huma pobre molher em Lisboa, que sendo
acusada de seu marido por adultera, foi posta em prisão, e feito pro-
cesso judicial contra ella. Correndo a causa, era grande a eíTicacia com
(pie continuava em encomendar sua innocencia á Virgem por meio do
santo Rosário, que muitas vezes passava cada dia, consolando sua tribu-
lação com as dores, que considerava da Senhora, alegrando-se nos passos
de seus gozos, e esperando remédio nos de sua gloria. Mas por ocultos
juízos de Dejs sahio por sentença condenada á força pola culpa, que o
successo mostrou, que não tinha. Ouvio a sentença, afferrada todavia ao
seu Rosário ; e com elle no seio, e sobre o coração foi a padecer. Fez-se
PAnTICULAl^ DO Ri:iXO DE PORTUGAL 393
a oxcciíção, e dizem que ao tempo, que o algoz a empuxou da escada
pêra ficar pendui-ada, deu hum grande grilo chamando nomeadamente
pola Virgem do Rosário. Quando veio sobre tarde, passadas muitas ho-
ras despois da jusíiça feita, houve quem quiz tratar de a enterrar: de-
cido o corpo, notarão os autores da caridade, que parecia ter sinais de
vida, e começarão a tratar d'el!a mais que da sepultura. A primeira pa-
lavra, com que tornou, foi nomeando a Senhora do Rosário : e dizendo
que ella lhe valera, pedia que a levassem, ao seu altar. Deu se recado no
Convento, e levada com o resguardo necessário, lançou-se diante da Se-
nhora regando a terra com lagrimas em lugar de graças pola restituição,
que alcançara de duas vidas em huma só vida. Aprovou-se o milagre ju-
ridicamente com testimunho dos que o trouxerão : e ella em seu jura-
mento affirraou que na hora, em que lhe fora lançado o laço, que a havia
de affogar, vira a piadosa Virgem por quem chamara junto consigo, e
ella lhe sustentara a vida em aquelle trance. Esta molher viveo despois
muitos annos, e todos empregou em acender, e alimpar as alampadas da
Senhora. Não parece questão pêra ventilar, se era innocente, como foi
condenada em juízo de gente Ghristã: ou como houve milagre pêra ella,
se era culpada. Porque he fácil a reposta. Podia haver erro no juízo, ou
falsidade no processo: sendo assi que, (como acontecem muitos casos só
pêra manifestação da gloria de Deos), podia ser cegarem-se os Juizes, e
sentencearem mal: ou julgarem bem, sendo o processo, e sua prova
tudo falso.
Mas, assi como acudio aqui a Virgem Mãi a huma innocencia aos olhos
dos homens duvidosa, em huma molher plebeia : assi remedeou logo
outra mui clara, e notória em huma nobre, livrando-a de igual ou maior
perigo. E passou o caso d'esta maneira. Vivia esía molher junto do Con-
vento, 6 como virtuosa, e honrada tinha particular devação á Virgem, e
a seu santo Rosário com cuidado de não passar dia sem lhe dar voltas.
Era o marido moço, desconfiado, e colérico, e devia trazer os olhos em
casa alhea, que lhe fazia julgar mal dobem, que tinha na sua. Veio ace-
gar-se de todo, e persuadir-sc, que havia nella culpas dignas de se pa-
garem com a vida, determina tirar-lha. Sintia-lhe a innocente no trato, e
no sembrante o desgosto, com que vivia d'ella : queria tentar justifica-
ções de palavra, mas porque danão mais, onde se julga mal das obras,
tornava-se ao seu Rosário, chorava com elle. Hum Domingo sobre tarde
vio, que mandara criados, c criadas fora de casa, e notou, que hia cer-
394 LIVRO III if\ iiisToniA de s. do^hngos
rando sobre si as portas por dentro, e julgou ma!, e tcmeo-se: subio-se
ao alto (la casa, toma em suas mãos o Rosário, e com os joelhos em
terra, e olhos no Ceo pedia á Virgem fosse escudo, e emparo da verda-
de, pois a sabia. No meio destes medos baterão rijo na porta da rua,
e repelirão liumavez, e outra com tanta pressa, que o cego, e enganado
mancebo, que já sobia pêra pôr em eíTeito a danada tenção, se houve
por obrigado a acodir [irimeiro abaixo. Deceo, e acha hum gentil moço,
que em trajo, e aspeito representava calidade mais que ordinária, o qual
llie disse com termo muito cortez, e brando, que hum Padre de S. Do-
mingis, (nomeava hum Religioso seu conhecido, e pessoa de importân-
cia), lhe pedia, que na mesm.a hora quizessc chegar ao Convento, que
cumpria dar-lhe huma palavra em negocio de sustancia. Começou o ce-
go a desculpar-se, e despedil-o, dezejando desembaraçar-se do messa-
■ eiro, e acabar sua obra. Mas elle replicou com tanta eíficacia, dizendo
ijue o Padre lhe pedira, que achando-o em casa o não largasse, porque
^lavia perigo na tardança, sem o levar consigo: que em fim se deixou
vencer, mais de sua presença, e boa arte, que do recado que trazia. Cu-
brio a capa, e foi-sc com elle. Chegando defronte da Igreja, virão que
se cantava a Salve, como he costume, com assistência de toda a Com-
munidade. Foi força entrar, e ouvil-a : e considerar hum pouco ao som
d"aquella musica santa no desatino, que trazia no peito. Sendo acabada
quiz todavia despachar-se, e requerendo o companheiro pêra irem em
busca do Frade, porque sahirão do Coro, não o vio : buscou-o por toda
a Igi'eja, e não no achando, íicou hum pouco sobrcsaltado : com tudo
foi-se ao Frade saber o que lhe queria : o qual o sobresaltou de novo,
e confundio mais, porque aíTirmou, que nem lhe mandara recado, nem
conhecia o moço, que por messageiro d'elle nomeava. Então foi o Senhor
servido de lhe abrir os olhos pêra acabar de entender, que os mãos pro-
pósitos d"aque!le dia erão enredo, traça, e traição de Satanás : e a vinda
fora negoceada polo Anjo do Senhor, que o trouxera á Salve de sua mãi
sagrada, pêra lhe dar tempo de cair na conta de seu erro com tantos
sinais, e salvar a innocente molher. Tornou-se pêra casa todo trocado, e
ficando com ella em muita paz, passados tempos lhe recontou a obriga-
ção, em que estava á Senhora do Rosário: e a forte conjunção, em que
lhe valera com seu messageiro. Mas não são de menos gloria da Virgem
outros casos, que diremos no Capitulo seguinte, huns menos antigos que
os referidos, e outros do mesmo tempo, em que vamos Cocrevendo.
PAUTICrLAR DO KEIXO DE PORTUGAL 395
CAPITULO XXVI
Pro^eguein mais alguns milagres do Santo Rosário.
Entrava em artigo de morte liiima pobre mollier de huma forte doen-
ça, que a tinha toda inchada. Cercavão-na muitos filhinhos, que com pranto,
que fazião, lhe dobravão o mal. O marido andava por fora buscando-
Ihe o remédio por seu trabalho. Acudirão as vizinhas, pobres como el-
la, a por-lhe na mão huma candea, ultimo soccorro de Christandade. Á
pressa, e á revolta d'ellas, e ao pranto dos mininos acudio huma vizi-
nha honrada, que por esmola a mandava curar, e como devota, (que o
era muito), do nossa Senhora do Rosário, levou-lhe humas rosas suas, e
fez-lhe tomar hum trago d'agoa d^ellas, mandando-lhe, que se encomen-
dasse de todo coração á Virgem. Foi cousa prodigiosa, o de grande glo-
ria de Deos, que no momento, que tomou a agoa, de artigo, e dores
de morte, entrou em ponto, e dores de parto, e traz grande copia de
humor, que vasou, e cm que se resolveo a maior incharão, lançou com
muita facilidade huma criança morta. Mas entrou em novo trabalho, por-
que as, que lhe fazião officio de comadre, dizião, que lhe ficava outra
criatura : e segundo a postura, em que a natureza a queria despedir, e
a fraqueza estrema da mollier, tinhão por certo, que primeiro se finaria.
Morava a pobre em huma casinha ao pé dos degrcáos da calçada do Carmo :
forão correndo a S. Domingos buscar-lhe confessor. Tocou a sorte ao
Padre Frei Luis Cacegas, a quem se deve o trabalho original da melhor
parte d'estes escritos. Quando o Padre soube o estado da enferma, e o
que era passado, empregou-se lodo em a animar, aflirmando de parte
de Nossa Senhora do Rosário, que, pois começara a fazer-lhe mercê, não
deixaria de a perfeiçoar : e acabando de a confessar, fez-lhe tomar mais
agoa das mesmas rosas, que primeiro tomara, e lançando-lhe ao pesco-
ço o Rosário, que elle Frei Luiz trazia, deixou-a. Não era bem despedi-
do de casa, quando a enferma se sintio subitamente tão esforçada, que
sem ajuda nem ministério de comadres deitou a segunda criança, e tam-
bém morta, e dentro de jjreves dias teve perfeita saúde, que a dito das
vizhihas, que lhe assistirão, e de todos os que soberão do caso, foi jul-
gada por manifestamente milagrosa : e assi se justificou diante do Ordi-
nário á instancia do Padre Mestre Frei Nicolao Dias. E ficou em lem^-
396 LIVHO III DA HlSTOniA DE S. DOMINGOS
branca, que a vizinha nobre se chamava Lianor de Azevedo, e hiima das
comadres Alaria Domingues, c foi o successo polo mez de Julho anno
lo74.
Quasi do mesmo tempo he outro, que agora diremos, o qual sobre
todos, os que ficão atrás, nos confirma o muito, que a Virgem Sacratís-
sima toma a sou cargo emparar, e remedear os, que a buscão polo meio
do seu Rosário : e tem huma circunstancia de muita estima, a qual hc
que passou polas mãos do Padre Mestre Frei Liiis de Granada, e foi
por elle pregado na mesma Igreja de S. Domingos, onde aconteceo. IIu-
ma dona Illustre d'esfa cidade estava de joelhos diante da Imagem de Nossa
Senhora das Virtudes, que tem seu altar no Cruzeiro, em que agora vemos
lambem S. Jacinto, pcdindo-lhe favor com angustiado espirito em hum
negocio, que a trazia cm todo estremo desconsolada. E no meio dos ro-
gos, e das lagrimas, com que os acompanhava, se ouvio chamar da Se-
nhora benignissima por seu nome, e dizcr-lhe palavras formais, que lhe
ficarão esculpidas na alma : Não tenhais pena ; que eu me encarrego
desse negocio, pois que vós tendes cuidado de mo rezar cada dia o meu
Rosário. A pessoa era conhecida do Mestre, e de tal virtude, e c^lidade
que acreditava o successo, e por ser viva, quando o pregou, não publi-
cou o nome.
Mas, porque não pareça, quefaltão milagres presentes, onde tantos, e
tão illustre houve antigos, ajuntaremos dous tão de fresco succedidos,
que ambos nos vierão á mão em tempo, que hiamos pondo em limpo es-
tes escritos, pêra se darem á impressão. E ambos são do anno passado,
de 1C20. E ambos podemos contar com os d"este Convento, porque, ain-
da que hum d'elles succedeo em terras tão remotas, como são as de An-
gola, parte da Etyopia Occidental : da mesma maneira que d'esta cidade
de Lisboa procederão todas as conquistas, que os Portuguezes fizerão,
assi as Confrarias, e devações do Rosário, que a elias levarão, não se
pode negar deverem sua origem á mesma cidade, e ao lugar d'eHa em
que tinlião sua raiz, e fiorecião, que era este Convento. Não falíão ou-
tras rezões pêra confirmarão do que dizemos, que ao diante se verão:
agora digamos os milagres. E seja primeiro o de mais longe.
Era Governador do Reino de Angola Luis Mendes de Vasconccllos.
Trazia seu campo fora, Aizendo guerra polo Reino, onde entendia, que con-
vinha, Portuguezes poucos, Negros amigos, e fieis muitos, e todos a car-
go de hum filho seu. Chegarão ás ribeiras do rioGoariza hum Domingo 15
PARTICULAU DO REÍNO DE POnTlT.AL 307
dc Março de 1020. lie o rio grande, e poderoso de agoas, c n'esta parle
corro mui largo, e faz algumas Ilhas. Pareceo aos nossos, que seria bem
sojeital-as, buscou-se remédio. Acliarão-se duas almadias sobre pequenas,
rotas, e velhas. Não faltando animosos, que as abonassem, saltarão den-
tro dous Capitães armados de pés a cabeça, e sens arcabuzes nas mãos,
c espadas na cinta, e hum Alferes mais com elles, e negros remeiros, e
frecheiros, e forão remando contra a Ilha, e contra os enomigos, que os
esperavão á borda da agoa. São as Alniãdias embarcações de hum só
pão, e ainda as grandes, e fortes são tão ciosas, que com qualquer des-
composição logo çossobrão. Estas, que se aíllrma erão pouco maijres
que gamellas, e por serem abertas, liião já meio alagadas, no ponto que
chegarão a tiro, era se começando os nossos a revolver, os brancos com
os arcabuzes, e os negros com os arcos, virarão ambas sem remédio.
Francisco Corrêa, que assi se chamava hum dos Capitães, sem disparar
mais que huma só vez, se affogou logo, e não apareceo mais. Sebastião
Dias, que era o outro, se foi também a pique ao fundo, como se fora de
chumbo. Sendo ambos julgados por mortos com dor de todo o campo,
que estava á vista, eis que parece om cima da agoa Sebastião Dias, bra-
cejando com huma rodella, que trazia embraçada, porque não sabia na-
dar, e sustentando na outra mão o arcabuz, que nunca largou: até af-
ferrar cm huma das almadias, á qual, tanto que chegou, deu hum gran-
de grito, chamando por nossa Senhora do Rosário, era graças de se ver
salvo por ella com evidente milagre. E não o foi menos escapar dos ene-
migos despois de pegado na AIraádia, e andar boas ires horas na agoa
até se poder recolher ao campo. Parece que quiz a Senhora acreditar pu-
blicamente sua devação com negros, e brancos, porque este homem era
em geral conhecido de todos por grande devoto do Rosário, e contava,
que, quando caii^a na agoa, fora marrar com a cabeça na área, e n'este
passo se lembrara do Rosário, que levava ao pescoço, e chamara era seu
coração pola Senhora d"ell3, e logo se achara leve, e cheio de alento, e
em estado de poder chegar a lançar mão da Almádia pêra se sustentar,
e salvar. Cousa, que sem milagre era impossível succeder.
O outro temos mais perto, e quasi na vizinhança do Convento: por-
que succedeo no que os nossos Frades tem na cidade de Évora. Orde-
nava-se^'elle a festa do milagroso Santo de Amarante S. Gonçalo por
Janeiro do anno de G20. Ile a Confraria pobre, e administrada por gente
tão humilde, que pêra acreccuíarem solenidade, e encurtarem despeza.
398 LIVRO III DA IIISTOniA DF, S. DOMINGOS
pedirão de cmpreslimo parte da cera de Nossa Senhora do Rosário, a
condição de pagarem a, que o fogo, e o tempo gastasse. E por isso a to-
marão por peso, e, de conformidade fizerão liuns, e outros Mordomos
seus assentos do que pesava. Acabada a festa, e juntos pêra a entrega,
e paga, fizerão segundo peso : e onde esperavão falta de muitos arra-
tens, porque ardera ás Vésperas, e Missa, tudo com muita solenidade.
e musica celebrado, acharão-se com peso àventejado, c não em pou-
ca contia, ao que cada parle tinha posto em escrito. Foi grande o sobre-
salto, e torvação. Culpão-se os de Nossa Senhora de descuidados, e dão-
se por enganados : tornão a ler, e reler suas lembranças, pesão de
novo, e repesão a cera, esmerilhão, se lia erro na !)alança, ou vicio nos
pesos. Gente plebea, e humilde não se atrevia a cuidar em milagre, ten-
do-o entre mãos evidente. Referião o negocio a erro de todos juntos,
ainda que fieis, e verdadeiros em seu troto. Mas aquclla Senhora, que
lie emparo de humildes, e Mãi de hum Beos, que tanto se humilhou no
mundo, que d"elle nos manda aprender humildade, quiz honrar os hu-
mildes, confirmando o milagre por novo caminho : e foi assi. Aparlarão-
se os seus Mordomos, despois de longo debate, a recolher sua cera af-
firmando dever-se-lhes todavia por boa rezão o, que a balança negava :
ao menos em duas tochas, que entro as mais tinhão dado, que erão no-
vas, quando as derão, é agora vinlião manifestamente gastadas. Começa-
vão a lançal-a em sua caixa. Eisque assombra extraordinária maravilha.
As tochas, que, quando novas, e inteiras eníravão Ojlgadamente na caixa,
agora não cabião ardidas : pasmão, gritão, não crião hum milagre, já
confessão dous, hum no crecimenlo do peso, outro do corpo das duas
tochas. Ghamão por testemunhas, quantos havia na Igreja, correm aos Fra-
des, dão todos soberanas graças á Virgem do Rosário tão benigna porá
os pobres, que nãoconsintio, que por sua conta se levasse preço aos hu-
mildes festejadores do seu servo S. Gonçalo, acudindo com tal prodigio:
antes mostrou, que não só estimava a devação, mas que folgava de a aju-
dar, e contribuir n'ella, como qualquer dos pobres com os arratens do
cera, que o fogo consumio, e com os que se acharão de crença. Em mi-
lagre tão patente houve pouco que fazer. Justificou-se logo, o approvou-
se polo Ordinário : c com sua licença o pregou na festa d'este anno de
■1G21 o Prior do Convento, que era o Padre Presen!ado Frei Ch^istovão
Carvão.
t
PAUTICULAU DO UEINO DE POIITCG.VL ^{09
CAPITULO XXVII
De outras Confrarias que ha ncsla Ljreja^ e de sua antiguidade, e decação.
Mcreciãu primeiro lugar por calidade as Confrarias, de que traiamos
nos capítulos precedentes. Das que restão, iremos agora fazendo relação
segundo suas antiguidades. A que mais annos conta entre todas, as quo
ha n'esta Igreja, he a dos Santos Reis Magos, que tem seu altar pegado
com o de Nossa Senhora do Rosário contra a porta da Igreja. A capella,
c retabolo foi mandado fazer, c pintar por el Rei dom Dinis, quando
despois de Rei mandou fazer de novo algumas oíTicinas n*este Convento,
e reparar outras. E assi tem a pintura tíais de 3áO annos de antigui-
dade, visto como dom Dinis começou a reinar no de 1279, em qae dom
Affonso III seu pai faleceo: e os mesmos tem a Confraria. lia neste al-
tar huma curiosidade muito digna de ser sabida. E he que na Imagem
de Nossa Sriihora, que está no meio do retabolo cercada dos Reis, te-
mos tirada ao natural a Rainha Sanla Dona Isabel, mollier d"el Rei dom
Dinis: e na do minino Jesu, que tem nos braços, o Príncipe seu filho,
<]ue então se criava, e despois succedeo no Reino com nome de dom
AíTonso Quarto. Quem fosse autor de tal memoria, não consta, mas bem
he de crer, que seria el Rei, pois o foi da obra do retabolo, e sem sua
ordem se não atreveria o pintor. E bastante indicio he sabermos, que
fazia el Rei n"esta Capella a festa de S. Dionísio cada anno, em q;i.;,ii-o
tardou em se acabar o edifício de S. Dinis de Odivellas, Mosteiro ?e.';l
por muitas calidades, em que o mesmo Rei jaz sepultado. O qu<' ' .1
causa de se nomear muitos annos por Capella de S. Dinis, e fazer ^^l
Rei mercê ao Convento, por contra d'ella, de dez libras em cada hn;,-
anno, cm quanto viveo: E são as palavras formais da Provisão, que fa-
sia esta esmola pêra se adubar a igreja do seu Mosteiro de S. Domin-
gos da Villa de Lisboa. Esta Provisão lemos confirmada por cl Rei dom
AíTonso seu filho no anno de 1326. E, porque se veja o muito, que en-
tão valia pouco dinheiro, pois com esta contia se podia acudir ao repa-
ro de tamanha casa, importavão dez libras da moeda de agora, sendo a
conta de Duarte Nunes de Lião, mil e seiscentos réis (*).
Tem segundo lugar de antiguidade a irmandade dos Ingrescíj na
(•) Nu Cruii. (luí- lU'!í f. loí.
400 LlVnO III DA HISTORIA DE S, DOMI^'GOS
Capella do seu padroeiro S. Jorge, que he collateral á Capclla mór i1a
parte do Evangelho. Deve-se a instituição d'o!la aos Reis d'aquelle Rei-
no, que como erão tão Católicos nos tempos atrás, c com este Reino
conservarão sempre commercio de amisade, e algumas vezes de sangue,
quizerão, que seus vassallos residentes contínuos n'elle tevessem particu-
lar Capella, onde se juntassem aos OÍTicios Divinos pêra testimunho de
sua religião : e com ordem que houvesse quem os apontasse, e também
quem tevesse poder de multar os descuidados, e levar-Ihes a pena. Ajun-
tarão despois a este bom costume, hum direito nas mercadorias, que
despachavão na Alfandega, que valia dez réis por cada peça de panno;
e como era o trato grosso, e grande numero de náos, vinha no cabo
do anno a montar muito. Arrecadava-se o direito poios livros da Alfan-
dega, e erão executores os"j\Iordomos com assistência do seu Cônsul.
Assi estava a Confraria rica de muita, o boa prata, e bons ornamentos
do Altar. Como lá faltou a Religião nos Reis, foi também faltando aquel-
le primor, e gosto antigo do culto Divino nos vassallos, que navegavão,
c o grosso direito de dez réis por cada pano, trocou-se em hum cruzado
por cada náo, que foi grande abatimento. E, com tudo, entre os que erão
moradores antigos doesta Cidade, assi como se conservou a fé com a pu-
reza de seus maiores, ajudada com o exemplo, que tinlião nos Portugue-
zes : assi nunca se desemparou de todo o serviço da Capclla no meio
das calamidades, e tormentas, que aquella ilha padece, ha muitos annos
em matéria de religião. E com não cessarem estas inda hoje, a paz, quo
faz crecer todos os bens, como dura, ha já vinte annos com a Coroa, e
Reinos de Espanha, tem mostrado, que não está apagado nesta nação o
Católico espirito de seus antepassados. Porque em bom serviço, e em
numero, e frequência de homens está a irmandade de presente mui adian-
tada, e começão a reformar, e illuslrar a Capella de novo com mármo-
res, e pinturas, e dourados, que a vão aventajando ás mais estimadas
do Convento. Não falia quem diga, que a instituição da Capclla, c Con-
fraria Ingreza he Ião antiga, como a tomada de Lisboa, quando foi ganha-
da aos Mouros com ajuda d'aque!la grande armada de varias nações do
Norte, que na conjunção do cerco, que el Rei dom Afonso Anriquez lho
tinha posto, aportou na barra, e foz do Tejo (*). Porque d"ellas ficou com
nosco muita gente nobre, e plebeia, e mais da Ingreza. E querem atri-
buir este cuidado ao valeroso Arcebispo, o Martyr de Cantuaria Santo
(') Duarte Nunes de Lião na viJu dei Rei doiu Afoiíiu Ani-ii{uei.
PAUTiCULAR DO HEINO BK rOnTlT.AL U)l
Tliom.is, dizendo, que cHe procurara no tempo, que teve mão no gover-
no de Inglaterra, que seus naturaes se juntassem cá em Capella, e com-
panhia particularmente sua, e que da Igreja das Martens, onde estivera
primeiro, se passara á de S. Domingos, tanto que fora ediíicada. De qnc
a Ermida das Martens, (cujo verdadeiro nome ho dos Marivres), tevesso
principio naquelle tempo, e fosse obra dos mesmos estrangeiros no tem-
po do cerco da Cidade, ninguém duvida: e de que permaneceo n"ella
ajuntamento, e devação dos que ficarão no Reino, bem se deixa crer da
pintura, que dura no alto do retabolo ; que nos faz representação dos
Capitães estranhos juntos á bandeira de S. Jorge.
De certo sabemos, que em tempo d'el Rei dom Duarte estava já tão
autorizada a Confraria n"esta sua Capella de S. Domingos, que elle como
fdho de Ingreza que era, ordenou, que se lhe dissessem n'ella em cada
hum anno no dia de festa do S. Jorge humas Yesparas solemnes, e Mis-
sa cantada, e pêra ella deixou de renda quinhentos reaes brancos, nos
quais se montava quasi ao dobro da moeda, que hoje corre, a rezão de
dez seitis, e quatro quintos de seitil por cada real branco da antiga moe-
da: o que ignorando os que tratarão da reformação do padrão n'estes
annos próximos, aceitarão quinhentos réis da moeda presente, que he
de seis seitis o real, e ficarão perdendo o mais : como se pode ver da
redução que el Rei dom Manoel fez das moedas em seu tempo (*).
No anno de 1414 em 12 de Abril achamos, que foi fundada a irman-
dade da gente Framenga, que n'aqLiel'.e tempo era chamada irmandíido
dos Borgonhoens, nome que comprondia todas as Provindas sojeiías
ao grande Duque de Borgonha, Conde, e Senhor de Fraudes. Deu-se-lhes
pêra ella a Capella collateral da ]\Iaior da banda da Epistola, que fica
em sitio igual com a dos Ingrezes. Foi o nome de Santa Cruz, e do Apos-
tolo Santo André antigo padroeiro da Casa de Borgonha, e de sua Or-
dem de Tusão de ouro, Ordem militar, mas posta em reputação de se
não communicar mais que a Príncipes, e grandes Senhores. Como gente
amiga do bem publico, souberão começar polo principal, que foi enri-
quecel-a com muitas relíquias de Santos, e particulares dos Apóstolos
Santo André, Santiago, e S. Felipe, e logo com indulgências, e alguns
Jubileus, que impetrarão de Roma. E ajuntarão pêra commodidade espi-
ritual terem no Convento hum Frade deputado pêra seu Capellão, o qual
por privilegio Apostólico tem poder pêra lhes administrar todos os Sa-
(•) Naí OrJen. vclba^ 'JlI [\ú Jcm Muirjcl 1. í. l. 1.
VOL. 1. 2G
402 LIVRO III DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
cramentos, como se fora seu parrochor e, como tal, lhes diz sua Missa
nos Domingos, c dias de Fesla, â qual acodem com cuidado, e a ouvem
juntos. lie estatuto entre elles guardado com puntualidade darem per»
a fabrica da Confraria, e Capella hum por milhar de tudo o que vai a
fazenda, que lhes entra nas mãos, e todas suas duos pagão por tonelada
Imm vintém, que, como são muitas, e a terra de Fraudes não tem ou-
tro género de vida nem trato, senão mercadejar, he hum, o outro ren-
dimento tão importante, que huns annos passa de dous mil, e quinhen-
tos cruzados, quando o commercío não está cerrado. Assi celebrão suas
festas com grande despesa, e pompa: e está a Capella mui luzida, e abas-
tada de prata rica, e bem lavrada, e de muitos ornamentos de frontais,
e casulas de telas de ouro, e prata, e sedas de todas cores, pêra ser-
virem segundo os tempos, e as festas. Mas o, que mais lhes devemos
louvar, he terem por costume, e ordem repartir muitas esmolas entre
os pobres de sua nação, e casarem orfans, fdhas d'estes com dotes com-
petentes. Ao que se ajunta, que, quando acontece virem a este llcino
alguns naturais seus a negocear, se caem em doença ou em outra ne-
cessidade, são curados, e providos com caridade, o largueza: pêra o quo
se fmtão todos, e acode cada hum de sua casa com o que pôde, quando
não basta a renda commum da Confraria. E pêra perfeita piedade, to-
dos os pobres são enterrados á custa da Irmandade, e acompanhados
com muita cera, que usão toda verde, e soccorridos logo com Missas, e
sufíragios. E tem pêra seu enterramento lugares separados, a saber
aquella parte do cruzeiro, que íica adiante da sua Capella, e a Sacristia
d'ella, que he huma boa casa. Foi isto commodidade, e graça que os
Religiosos lhes fizerão em reconhecimento de particulares, e avenlaja-
das esmolas, com que nos tempos antigos dos tremores da terra acudi-
rão ao reparo da Igreja, e Convento, c forão sempre os quo mais se si-
iielarão n'este ponto. E o mesmo fizerão polo tempo em diante, c ale-
gora, nas obras que succederão de importância, c necessidade.
CAPÍTULO XXVIII
Prosenue a relação das Confrarias, e outras irmandades que ha na Iijreja.
A Casa, c Gorío da Suplicação, tribunal supremo da justiça d'este
Ueiuo, tem u"csla Igreja anliquissimo assoiíto de Confraria, que deve ser
PAllTICUIiAR DO REl.XO DK ['OUTLT.AL kÚ7>
iííiin! em annos aos que ciki ícni do assistência na Ciuade, dcspois qno.
0 5 Reis a trooxerão de Santarém, como atrás tocamos. Mas não no;T
consta do anno, em que começarão, e por isso lhe damos esto lugar.
Estes Padres fazem sua festa ao Espirito Santo na primeira Oitava da
mesma festa, sem eleição de Gapella ou altar particular, e celebrão-n'a
com muita magestade. No anno do Senhor de VÒQQ, sendo Regedor da
Casa Lourenço da Silva, se fez novo Compromisso, no qual emendarão
algumas cousas do estilo antigo, que iisavão, e ordenarão de novo ou-
tras pêra bom serviço da Confraria: as quais confirmarão por cl Rei
dom Sebastião.
íle muito bem servida, e com grande cuidado a Seráfica Santa Gatc-
rina de Sena. He Santa da Ordem, e como dizem, de casa. Assi tem
sumptuosa Capella, e altar rico de perfeita pintura, em que se lem parte
das maravilhas de sua santíssima vida. Â huma parte recebendo-a Chris-
to Jesu por sua esposa, e sendo medianeira do Divino concerto a Vir-
gem sacratíssima sua Mãi. A outra imprimindo-lhe suas divinas chagas.
Mosíra-se o bom Jesu pregado em huma Cruz no alto do Ceo cercado
de celestial claridade, e a Santa absorta toda n'elle, recebendo o sobe-
i"ano favor por meio de humas linhas de fogo, e sangue que o represen-
tão. Vè-se em outro painel o amorosíssimo Senhor, (porque acabemos
de entender os estremos, que faz por quem o ama), tocando sen Divino
coração com o da Santa. Esta Capella, e altar toma todo o topo do cru-
zeiro da parte da Epistola.
No topo fronteiro tem Capella por estremo fermosa a Virgem Nossa
Senhora com titulo das Virtudes. He a imagem de vulto vestida de es-
tofado: perfeitíssima em escultura. Foi mandada fazer em Frandes por
el Rei dom Manoel, com tenção de a dar ao Mosteiro de S. Jeronymo
do Espinheiro de Évora. Sendo chegada a Lisboa, e muito gabada a el
Rei, mandou que a posessem n'este Convento pêra a ver. Vendo-a no
Altar mór, onde a poserão, satisfez-se tanto da fermosura do rosto, ta-
lho, e proporção d'ella, que a gabou muito aos fidalgos, queoacompanha-
vão. Tornando no paço a falar nella, e repetindo quão bem lhe parecera,
hum valido seu, e da nossa Ordem devoto, desejando-a pêra esta casa,
valeo-se da occasião, e posto de joelhos diante dei Rei, pedio-lhe de
mercê, que, pois tão contente estava da imagem, fosse servido coníentar-se
também do altar, em que a vira, c não consintir, que se tirasse d'elle,
l)orque ali a poderia ver mais vezes, do que faria estando em Évora.
40Í UVnO III DA HLSTOniA DE S. DOMINGOS
Juntou-se o gosto próprio com a aíTeiçSo do privado, concedeo-a ao Con-
vento, e mandou, que se fizesse outra pêra o Espinheiro. Esteve a Ima-
gem no Altar mor até o anno de 1358, que foi o, em que se aereoentou
á mesma Capella tudo, o que n'ella parece de obra moderna, e differente
da antiga, que se deixa Ijem conhecer. Então se passou pêra onde hoje
está, e onde tem sua Confraria, e se lhe faz solemne festa no dia de seu
glorioso Nacimento. E esta he a imagem, de que atrás conl anos, que
falou, e consolou a huma devota do seu Rosário.
Sendo canonizado S. Jacinto, e recebido n'este Reino seu nome com
tanta devação, que forão muitos, e notáveis os milagres, que em todas
as partes d"elle tem obrado, parece que a Senhora das Virtudes seria
servida de agasalhar no seu altar quem de tantas foi dotado. Assi se
poz n'elle huma devota Imagem do Smio com sua custodia nas mãos,
em lembrança d"aquella, com que foginlo dos Bárbaros infiéis passou o-
grande rio Boristhenes fazendo carnií/lii' sobre a corrente das agoas im-
petuosas, com a mesma confiança, e facilidade, que pudera fazer pob
lageado da sua Igreja, Mas que maravilha, se levava n"enss quem o le-
vava, e guiava a elle, e lhe dava a vida, o ser, e o valor? Des do mes-
mo dia ficou assentada nova Irmandade em nome do Santo: e pêra mais
lionra sua se annexou à da Virgem: com a qual se incorporou também
de novo a Irmandade da Resurreição, e ficarão unidas três em huma só.
E porque os soldados da guarda Tudesca, que serve a el Rei n"este
Reino, e em sua ausência acompanha os Yisoreis, e Governadores que
sua pessoa represenlão, quiserão também formar Confraria pêra exer-
cício de obras virtuosas como bons, e fieis Catholicos : escolherão com
acertado conselho por padroeiro, e protector este Santo, se não natural
de sua terra, ao menos mais vizinho, que os Santos de cá. Ficou funda-
da esta Irmandade na mesma Capella, e Altar, onde o S;«ito está, e de-
baixo de sua invocação, mas separada das outras três, e distinta em leis,
e estatutos, como em gente, e lingoa. Porém passados alguns annos
achamos, que mudou sitio pêra outra Igreja.
Ultimamente inslituio n"esta Igreja o gravíssimo senado da santa, e
geral Inquisição huma solene Irmandade sem escolha de Altar particu-
lar: cujo titulo he do valeroso Martyr S. Pedro de Verona, Frade de S.
Domingos, por ser o primeiro, que por honra do sagrado Officio da In-
quisição, que servia, deu sua vida, e com o próprio sangue ennobreceo
o cargo. E por esta rezão celebra cm seu dia o santo Tribunal a festa
PARTICULAR DO RF.INO DK PORTUGAL 40a
<la Confraria. Acode a ella o Inquisidor Geral, acompanhado de todos os
Padres, que com elle servem : e juntos assistem ás Yesparas, e despois
no dia á Missa, e pregação. Acodem todos os Ministros, e Familiares
do Santo OlTicio, trazendo estes dous dias sobre os peitos suas cruzes
quarteadas de branco, e preto, divisa própria da Ordem de S. Domin-
gos, em memoria que n'€lla teve principio este tão importante ministé-
rio.
Outras Irmandades ha, quasi tantas em numero como são as Capei-
las, o Altares, Em todas se vê riqueza, e devação, c bom serviço, com
que a Igreja está muito frequentada, e ennobrecidj. Mas dito o princi-
pal, convém passar a outras cousas.
CAPITULO XXIX
De alguns Religiosos filhas iVesia casa qnf falecerão
tam opinião de santidade.
Avisando primeiro ao Leitor da nossa ordinária queixa, que he fal-
tarem-nos nossos antepassados com memorias gerais dos Santos, e mais
varões assinelados, que sabemos certo houve n'este Reino no principio da
Ordem, quando mais ílorecia, e no processo a diante, quando se dilatava
em Conventos, porque a santidade conhecida era causa de serem pedi-
dos, e dezejados de todos os lugares grandes, que os podião manter,
como vivião sem próprio : será í^jrçado ficarmos curtos em historia do
huma casa, que só nos poderá dar matéria de grandes volumes, se não
ficara enterrada com os sogeitos, que n"ella ílorecerão, sua memoria.
Por onde passaremos aos que <iuasi nos forão presentes : advirtindo pri-
meiro, que de dous illustres filhos d"ella, que tinhão aqui seu lugar, fa-
zemos particular relação, e com titulo próprio na segunda, e terceira
parte d'esta historia em Conventos, que com sua presença, e virtudfs
illustrarão, e fundarão. Hum muito antiguo, que foi o Mestre Frei Vi-
cente de Lisboa, Provincial, e Inquisidor geral de toda Espanha antes
da separação d'esta província : de quem tratamos no titulo do Convento
de Benfica, onde está sepultado: outro he o Mestre dom Frei Bertolameu
dos Martyres, Arcebispo digníssimo de Braga, primas das Espanhas, mo-
derno em tempo, mas comparável em santidade aos primeiros, e mais
antigos santos assi da Ordem, como da Santa Igreja. Daremos relação
400 MVllO III DA IIISTOIUA DE S. DOMINGO?
(le sua vida, quando chegarmos aos annos, em que fundou com seu tra-
l)allio, e despesa o Coiivento que a Ordem tem em Alem Douro na insi-
gne viila de Viana, sem omíjargo de a termos escrito, e publicado em
parlicular historia impressa na mesma villa no anno de 1619.
O primeiro, que agora se nos oííercce, lie o Padre Frei Diogo de S,
Dionísio, cliama(h) o maior, a dilTcrença d"ouíro mais moço, e lambem
porque lhe quadrava o nom.e por todas as vias. Floreceo em grandes, e
abalizadas virtudes n'este Convento, poios annos do Senhor de 1550, e
ei'a grandemente estimado por sua pregação. Porque, como pregava com
exemplo de vida, e fazendo o que dizia, erão suas palavras fogo, que
abrazava coraçíjes, e sua lingoa espada de dous gumes, que afiada em
muita graça, o eloquência natural, de que era dotado, penetrava, obri-
gava, e rendia os mais duros, e rebeldes peccadoi'es, fazendo tornar
muitos á estrada do temor, e amor de Deos. Assi tinha no púlpito luiin
estranlio fervor : e em algumas matérias pronunciava o, que sintia, com
liuns brados tão efficazes, e ião conhecidamente saidos da alma, e de
Imm aceso desejo de aproveitar, cjue feria as almas dos ouvintes: mas
com esta vehemencia fazia muito dano á sua saúde, inda que lhe rendia
ganho nos próximos: ficava trabalhado, e moido, como se entrara era
I)aialha, e em fim o aturar lhe veio a causar a morte. Porque sendo ve-
lho, e continuando todavia o púlpito com constância de moço, nacida de
seu grande espirito, e zelo das almas, hum dia se forçou tanto, que lhe
rebentou huma vea no peito, e tornou pêra a cella vasando-se em san-
gue pola boca. Fizerão-se-lhe muitos remédios: como não ajudava a ida-
de, era tempo perdido. Mostrou no trabalho da doença quem Tora no
bom .iempo da saúde : levava-a não só com paciência, mas com alegria.
Porque entendendo com bom discurso, que, posto que soldasse d vea,
não ficava já o peito capaz de tornar ás suas energias, e fervores, com
que dava alma, e vida a tudo o que dizia: sintia-se n'eile, que desejava
acabar a carreira, havendo, que, pois havia de ficar inuíil pêra trabalhar,
não era rezão, que vivesse só pêra fazer numero, e comer, e dar pejo
em casa. Pteduzido já a grande fraqueza, e suspirando pola fiora que
o havia de desatar da vida, entrou o Medico huma manhã, o tomando)
llie p pulso declarou-ilie sem rodeos, (porque sabia com quem o havia-
que tinha perío.a ultima hora. Assi lhe agradeceo Frei Diogo o desen-
gano, como n-Quiro tempo pudera cslimar novas de saúde: e fez demons-
tração por obras, havendo que não baslavão palavras. Deu-lhe forças a
I» ARTICULAR DO REINO DF. PORTUGAL U)7
gosto, como aos franetícos a fúria do mal. Assentou-sc na cama, e lan-
çando os braços no pescoço ao Medico, pedio-lhe que recebesse aqiiellc
abraço, que era tudo o que llie podia dar, dezejando que fora huma ri-
ca dadiva pulo gosto da boa nova, que lhe trouxera : o tardou pouco em
a ir lograr.
Com as mesmas ânsias de chegar ao fim da carreira d'esta vida mor-
tal, se foi pêra a eterna Frei Sebastião do Rosário Irmão leigo, e man-
cebo, mas de grande serviço, c virtude provada. Ajudava na portaria
ao bom velho Frei Jordão do Espirito Santo, aproveitava-se do exem-
plo, e lições de seu espirito, e linha alcançado, que só na boa morte con-
sistia todo o bem da vida. Como tinha esta certeza, e liava muito da
misericórdia Divina dezejava como valente, o que os fracos por cá te-
memos. Eslava doente, e apertado : disse-lhe hum dia o Medico, que
de sua virtude tinha muito conhecimento : Boas novas irmão Frei Se-
bastião : cedo estareis com Deos, este pulso me diz, que não tardareis
de hoje. Alvoroçou-se o enfermo com o que ouvio de sorte, que como
muito são quizera saltar do leito a abraçal-o, e com a voz inteira ; e ro-
busta lhe respondeu : Pague Deos a vossa mercê, senhor Doutor, as al-
viçaras, que lhe devo por tão boas novas, com lhe dar todos os bens que
deseja. Faço-lhe a saber, que nunca me falou tanto á vontade, como agora.
Pedio logo o ultimo Sacramento, e recebido com devação dormio no Se-
nhor.
capítulo XXX
Da gloriosa morte de Padre Frei Dinis de Metlo, e do Padre
Frei Affonso de S. Mathens.
Quasi polo mesmo tempo concluio com glorioso fim huma vida
muito larga o bom velho Frei Dinis de Mello. Fora Prior de muitos Con-
ventos, e trabalhara bem, em quanto o ajudarão esforças. Como lhe fal-
tarão com a idade, e entrarão doenças, certa companhia da velhice, re-
colheo-se a esta casa como filho d*ella, não a descançar, que já não lia-
via lugar polo mal, que descansa quem he doente : senão a morrer. Assi
em nenhuma cousa outra tratava, nem cuidava m.ais que na morte. E
como se n"ella tevesse certas todas as delicias do mundo, assi dizia
muitas vezes, que por acelerada que lhe viesse, nunca seria tanto, que
o achasse descuidado. Porque pêra toda hora, c lugar, e pêra todo sue-
408 LlVnO IM DA líISTORIA DF, S. DOMINGOS
cesso andava prestes, e apercebido. E por tanto advirtia a todos, que, se
acertassem de o acliar morto em qualquer parte, e de qualquer modo
que fosse, não dissesse ninguém, que acabara de morte su])ita. Porque
linha por mais acertado viver cuidando que cada hora morria, que mor-
rer imaginando, que poderia viver mais hum anno. Com este pretexto
todos seus exercicíos erão de homem, que (!stava com a candea na mão,
e pêra espirar: toda sua occupação era tratar só com Deos, falar com
cllc, ou mentalmente orando, ou rezando psalmos. E costumava rezar
muitas vezes na semana o Psalterio de David inteiro. Não podia faltar o
Senhor com buma hora bem assombrada a (juem o esperava com tal
\igia. Revelou-lhe, quando havia de chegar: efoi tanto ao certo, que em
hum dia, que ninguém cuidou, o virão correr os Dormitórios tangendo
as taboas. He som temeroso em todo Convento, quando se ouve fura de
horas, ou sem precederem sinos : parece que batem aquellas aldrabas
sobre o coração, não em taboa. Não se sabia, que houvesse doente de
perigo em casa: era maior o terror. Saliião os Frades ás portas das
cellas, pasmados de o verem n"aquelle oílicio, pergantavão-lhe por quem
tangia, respondia alegre, e sossegado, que por si mesmo, que queria
morrer. Não houve nenhum a quem deixasse de parecer mero delirio:
])orque no mesmo dia dissera sua Missa, e comera no Refeitório da en-
fermaria, onde estava recolhido não por enfermo nem convalecente, se
não só por velho. Todavia aporfiou, que morria, epedio, que o não dei-
xassem : e sendo chamado o Medico, e conhecendo do pulso, que o de-
semparava a virtude natural, conformou com cUe : e com espanto de to-
dos foz no mesmo dia bemaventurado fim.
Como huma boa morte he verdadeiro testemunho quasi sempre de
"liuma vida semelhante, gastamos pouco jtapel em escrever obras parti-
culares dos três Religiosos, que atrás ficão. Mas seguil-os-ha huma vida
de grande admiração, e grandes estremes. Afíirmão os antigos de Frei
Afonso de S. Matheus, filho d*esta casa, que d'esd'o dia, que tomou o
líabito, nunca mais comeo carne, nunca quebrou jejum da Constituição,
nem se soube d"eile, que comesse fora do refeitório da Communidade.
E sendo a comida, que de ordinário se dá na Ordem, bastante pasto,
mas não demasiado pêra sustentar huma vida: ellc fazia, quo a sua por-
ção suprisse a duas, cortando-a sempre polo meio, e ajudando a sus-
tentar com a parte, que tirava hum pobre honrado, com licença que ti-
nha alcançado dos Prelados. Todos os dias á prima noite cumiiihava pe-
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 409
ra O Coro, c n'ellc ficava até hora de matinas. Então, se havia horas de
nossa Senhora, assistia a ellas com a Communidade, e, acabadas se re-
colliia, porque tinha officio, que o obrigava a madrugar, como logo di-
remos. Seu dormir era sempre vestido, a cama hnma taboa nua, o cu-
herlor huma manta áspera, desabrigada, e fria, de pelo de cabra : e com
este tratamento cingia de continuo hum mui áspero cilicio : e tinlia de
seu alguns, cada hum de diferente género pêra lhe servirem conforme
aos tempos. Foi seu primeiro oíTicio ajudar na Sacristia: despois succe-
dendo no cargo inteiro d'ella sérvio, e perseverou vintoito annos contí-
nuos no trabalha de Sacristão mór, e em todos elles, se aíTirma, que
nunca teve amizade particular com pessoa nenhuma, havendo muitas
que a dezejavão ter com elle. Lembrado estou, i\ue ouvi contar a quem
o conheceo, e tratou de perto, que a Rainha dona Caterina, tendo rela-
ção de sua vida, desejara de o ver, e tratar, como fosse sem lhe fazer
força; e elle furtara o corpo á honra, de maneira que nunca entrara no
Paço. Vindo a falecer, todo o recheio da sua cella se resolveo em al-
faias de penitencia, cilícios fortes, e cruéis, e bem curtidos do uso, três
ramais de disciplinas, humas de rosetas, outras enceradas, outras de
cordéis, e todas com claros sinais de não viverem ociosas. A isto se
juntou huma fronha de travisseiro, que se lhe achou recheada de reta-
lhos de varias sedas, e meadas de retroz de cores, que lhe servião de
remendar, e cozer por sua mão, (segundo género de mortificação, e pe-
nitencia), frontais, e vestimentas nas horas ociosas da sua cella. Livros
não tinha mais que hum só, e esse em vulgar. E tal era a riqueza de
hum Sacristão mór de Lisboa. A rezão de tanta pobreza em quem tinha
occasiões de lhe sobejar cabedal pêra boa livraria, e curiosidades, estava
entendida, porque todos seus empregos, e grangerias erão desentra-
nhar-se com pobres, e buscar pêra elles : e não lhe bastando o próprio
pêra sua caridade, havia Fidalgos, que sabendo jcu proceder repartião
por sua mão copia de dinheiro, que elle sabia empregar com segredo, e
prudência entre pessoas honradas, e pobres, e virtuosas. E particular-
mente tinha commissãc de Jorge da Silva, Fidalgo rico, e grande pai de
pobres, pêra despender com elles cada mez huma boa contia. Faleceo
no anno de 1569 aos oito de Agosto, na grande peste, que houve nesta
cidade.
410 LIVRO III DA IIISTOIUA DE S. DOMINGOS
CAPITULO XXXI
Da vida, c martyrio glorioso do Padre Frei Jeromjmo da Cruz.
Grande sallo nos obriga a dar hum illustrc filho d'esta casa era seu
seguimento : assi o pudéramos seguir nas obras. lie o Beato Frei Jero-
nvmo da Cruz, nacido neste ultimo occidente, e na Sé de Lisboa bauli-
zado : morto, e de seu sangue laureado além do Indo, e do Ganges, por
honra da fé, e de sua Religião. Tomou o habito em idade de trinta an-
nos, sendo já Bacharel formado em Cânones por Coimbra. Era nobre por
geração de pai, e mãi, o apellido d'elle Paiva, d'ella Chamorra. O pri-
meiro anno despois de professo foi ordenado de Epistola, e Evangelho.
No outro seguinte indo pêra a índia quatro Religiosos, c estando já em-
barcados, succedeo caso forçado, que impossibilitou a jornada a hum
delles. E foi tanto em vésperas da partida, que no dia seguinte se fa-
zião as nãos á vela. Era Provincial o grande Mestre Frei Jeronymo da
Azambuja : liouve que seria quebra, mandando tão poucos pêra onde
erão necessários muitos, haver falta nelles. Taes mostras dava o novo
Diácono, que lhe pareceo encheria dignamente o lugar. Erão horas, que
ajudava a cantar a Salve despois de Completas. Chamou-o, dísse-lhe sem
prólogos, que se fosse embarcar pêra a índia, que convinha assi. Não
houve mais palavras de parte do Provincial : nem do súbdito mais re-
posta que dizendo Benedictus Deus a uzo da Ordem, fazer a vénia, e
beijar-lhe o escapulário, caminhar pêra a cella, cubrir a capa, e tomar
o Breviário, e tirar alegremente pêra a portaria. Perfeito sacrifício de
obediência, ir mandado, ir logo, ir com gosto, e ir sem por em consulta
se arma a ida. -Mas outro sacrifício fez maior Frei Jeronymo, que tendo
na cidade sua mãi, offereceo a Deos as saudades, que lhe merecia, e a
desconsolação, que lh3 deixava : embarcou-se a furto d'ella, e não foi na
mesma hora, porque acudio o Prior, que era o Padre Frei Estevão Lei-
tão, dizendo que seria bem tomar primeiro Ordens de Missa pcra o que
logo deu traça. Assi teve aquella noite pêra se despedir dos Frades ami-
gos, acudindo os que souberão da ida a enriquecel-o de livros, e do que
cada hum podia, porque fez aballo em todos o animo, e a resolução. Le-
vantou-se ante manham a tomar as Ordens, que lhe deu o Bispo dom
Belchior Belleago. E foi o tempo tão estreito, que ia pola barra fora, e
no mar largo, c a mòr parto do Convento não sabia, que se embarcava.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 411
Já parece que podemos contar por principio do martyrio tal modo de
deixar a pátria. Mas a jornada nos descubrio muito maiores mostras de
seu valor.
ília na náo lium mancebo bem nobre no sangue, mas mui pouco em
costumes, atrevido de lingoa, e colérico, e da arte de liuns ignorantes,
que achão por valentia inventar novas formas de juramentos, e afrontar
com ellas o Ceo, e as orellias pias. ílum dia que Frei Jeronymo o vio
desmandado era muitos, não se atreveo o animo religioso a tolerar as
injurias do Salvador : inda que conhecia o risco, foi-se a elle, e com ter-
mo brando, e grave, cstranliou-llie os juramentos, dizendo-lhe o que mais
llie pareceo obrigação do habito. Não era acabada a ultima palavra, quan-
do o desatinado mancebo levanta a mão, e assenta-a com toda a força
do braço sobre a face venerável do Sacerdote. Tomarão os seculares, que
erão presentes, e muitos a injuria sobre si, como na verdade em lei de
primor sobre elles cahia : houve grande rumor, grande revolta : só o
ofíendido não se alterou, nem por si acudio com mais palavra, que as
do animo, com que se tinha todo dedicado a Deos, que forão. Seja por
amor de Jesu. E, porque isto erão ensaios com que o Senhor o ia dis-
pondo pêra a batalha maior do martyrio, grangeou-lhe novo merecimen-
to, e segundo interesse da affronta por sua honra varonilmente aceitada.
E foi assi que, começando a levantar-se brigas sobre o successo entre os
passageiros, pareceo ao Capitão, que haveria quietação, se fosse ausente
quem fora origem, e causa d'ellas. Pedio-Ihe, que se passasse a outra
náo. Era isto o mesmo que lançar Jonas ao mar pcra cessar a tormenta
levantada sem culpa sua(*). Sofrco o Santo, que já nos merece bem no-
mearmol-o assi, a pena, que lhe davão polo erro alheio com o mesmo
valor, que a bofetada : e foi-se desterrado da companhia dos Padres seus
irmãos, que pêra viagem Ião comprida não podia ser maior desconsola-
ção. Mas pagou-lha nosso Senhor, quando por honra de seu nome se lhe
multiplicavão trabalhos : porque n'aquelle desemparo, e apartamento dos
seus, o visitou com grandes consolações, das quais naceo sobir tão alto
nas matérias do espirito, que andando despois na índia, todas as vezes
que se recolhia na Oração, em que era mui continuo, se arrebatava em
profundas êxtases (**).
Chegado á índia, como Deos lhe queria abreviar a coroa, pareceo
que ainda em Goa seria sua presença ocasião de discórdia aos mesmos
(.) Joan. I. {") M. Frei Anlcii. de Sena Cron. (.'a Onl. fal. "SC.
412 tlVRO III DA IIIí^TORIA DE S. DOMIXCOS
que primeiro a tiverão por elle. Despachou-o o Vigário Geral da nossa
Congregação logo pêra Malaca : e com a mesma brevidade o dcspidio de
Malaca pêra o Reino de Syão o Prior d'aqiielle Convento, como Vigário
dos Religiosos, que por aquellas partes andavão derramados na conversão
da Gentilidade, que já então erão muitos, e agora tem sobido a grande
numero, segundo veremos adiante, quando chegarmos com a historia aos
annos do descubrimenlo da índia. Dcu-lhc o Vigário por companheiro
em Malaca ao Padre Frei Sebastião do Canto. Forão estes dous Padres os
primeiros, que entrarão n'aquelle grande Reino a pregar o Evangelho.
Entendido poios naturais quem erão, e que vida fazião, e que fim os
levava á sua terra, pareceo aos mais, que merecião honra, e gasalhado,
pois lhes hião dar novas, e conhecimento do verdadeiro Deos, que devião
adorar, que era o mesmo, que dos Frades íinhão publicado os Portu-
gueses, homens de negocio, que residião na primeira cidade, em que po-
serão os pés. A esta conta forão bem recebidos, e aposentados no me-
lhor lugar d>lla. Logo se juntarão os nobres a visital-os, e até os Sa-
cerdotes dos ídolos os forão buscar, mostrando-se todos desejosos de
ouvir a nova doutrina. A primeira cousa, em que os Religiosos entende-
rão, foi estudar a lingoa ; e não causou pouca admiração na terra a gran-
de brevidade, com que a tomarão, e se começarão a dar a entender com
os naturais. Começavão já a publicar o santo Evangelho, e ensinar os
mininos, com esperança de tirarem grande fruito de seu trabalho : quan-
do o Senhor por seus occultos juizos permitio, que não passassem adiante
os bons princípios, ou porque a terra por seus peccados não merecia
entrar-lhe a luz : ou porque quiz abreviar a gloria, e a palma ao seu
Martyr. Como em todas as terras marítimas do Oriente tem os Mouros
trato, e morada de muitos annos antes que os Portugueses passassem a
cila, 6 tem certeza, que onde forem honrados os Christãos, não podem
ellcs deixar de ser perseguidos, procurarão os que havia neste porto
adiantar-se, e apagar o fogo nos principies antes de levantar incêndio,
como já se lhes trasluzia na geral inclinação, que vião no povo pêra as
cousas da fé, e no muito, que o Padre Frei Jeronymo lhe tinha em par-
ticular ganhado as vontades. Foi conselho armar briga com os mercado-
res Portugueses, que acudião a casa dos Padres, pêra que saindo elles,
como era certo, a meter paz, fossem acometidos, e mortos, e parecesse
o negocio accidental. Pêra melhor effeito peitarão alguns Gentios, quo
ouvindo rumor saíssem com suas armas, pcra que por todas as vias
PARTIGULAi; DO HEINO BE POIITUGAL 413
fosse a traição mais dissimulada. Assi como o trararão, o posorão por
obra, e assi lhes succedeo. Acharão á porta dos Padres os mercadores
Portugueses, soltarão-se cora elles em palavras : não sofrerão os nossos
o atrevimento, levão das espadas, trava-se a briga. Acodem os Gentios
peitados, e conjurados, com suas armas, como estava tratado, revolvem-
se todos, arde a rua em grita, e confusão. Chegou o rumor aos Padres,
decem abaixo, melem-se por entre espadas, e lanças, procurando apar-
tar, e quietar. Was como elles erão os buscados, então creceo mais o
niido, e carregando de propósito pêra onde vinhão todo o peso da re-
volta, e das armas, foi atravessado o Padre Frei Jeronymo com huma
lança poios peitos, de que logo cahio morto ; e o Padre Frei Sebastião
ficou mal ferido na cabeça, mas não de morte. Mostrou a cidade notável
sintimento do caso, e vio-se claro quão bons fundamentos tinha lançado,
pêra aproveitar no principal, o Padre Frei Jeronymo, de bem quisto, e
amado em commum. Porque ate os mininos clioravão sobre elle, e com
vozes, e clamores ao Cco repetião Vapa beta : vnpa beta, que quer dizer,
meu pai, meu pai. O mesmo sintimento teve elUei, que estava ausente
em huma cidade distante, quando foi informado do que passara ; e man-
dou fazer exemplares justiças em Mouros, e Gentios. As relíquias do
Santo Martyr se trouxerão pêra Malaca no anno seguinte ; c sendo rece-
bidas com procissão, e triunfo por toda a cidade, forão postas no Con-
vento, que alli tem a Ordem. Succedeo oMartyrio no anno de I0G6 pola
conta mais cería.
CAPITULO XXXII
Viãa, c trabalhos do Padre Frei Lopo Cardoso.
Com boa benção despedio o Convento de Lisboa tal filho, como foi
o Martyr Frei Jeronymo, pois tal ventura alcançou. Mas não devemos
estimar menos outros, que, se não forão Martyres de cutello, e sangue
derramado, padecerão tormentos de merecimento igual. Porque não ha
duvida, que os trabalhos da fome, e sede, de perigos da terra, e medos
do mar são hum género «b morte vagarosa, e martyrio prolongado, que
muitas vezes mata com dubrada pena. Pedio el Rei de Camboja por seu
Embaixador ao Capitão do Malaca, que lho mandasse alguns Religiosos
pêra em seu Reino pregarem a fé, e edificarem casa. He Camboja gran-
de, c dilatada Provincja, e huma das que com Malaca tem ordinário com-
414 LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOxMlXGQS
mercio. Deu o Capitão conta ao Vigário de S. Domingos, o elle nos Fra-
des. Oíifereceo-se á jornada o Padre Frei Lo[)o Cardoso, íilho do Con-
vento de Lisboa, e por seu companheiro o Podre Frei João Madeira. Era
Frei Lopo já neste tempo conhecido por homem de valor, c grande re-
ligião: fora Prior em Chaul, Vigário de Malaca, e da Ciiristandade de
Solor : e cm todas estas partes se tinha governado com muita prudên-
cia, e bom exemplo. Entrarão os dous companheiros em Camboja como
pedidos, e chamados, e assi forão recebidos do Rei com todas as mos-
tras de amor, que se podia desejar. Seguirão obras conformes, mandan-
do-lhes sinalar sitio pêra Igreja, e despachar suas licenças pêra prega-
rem. Começava Frei Lopo com fervor, animado de tão bons principios.
Mas succedeo-lhe o caso mais avesso, que em tal tempo se podia espe-
rar. Faleceo el Rei, entrou no Reino hum filho moço entregue todo aos
Sacerdotes dos ídolos. Estes, como se virão com autoridade, emprega-
rão-na em fazer o dano, que podião aos Religiosos, e foi o primeiro ti-
rar-lhes a licença de pregarem aos naturais do Reino. Tratou logo Frei
Lopo de deixar a terra : e em quanto avisava ao Vigário de Malaca, por
não largar o ministério a que fora chamado, entendeo em pregar a al-
guma gente de secreto, e aos tratantes forasteiros em publico, porque
havia muitos, e de varias naçijes : e converteo alguns.
Não consintio o Vigário de Malaca, que Frei Lopo deixasse Camboja,
entendendo que com o tempo, e com sua prudência viria a vencer a op-
posição dos enemigos : e pêra o obrigar foi-se ver com elle a Camboja,
levou-lhe outro companheiro eni lugar de Frei João Madeira, que fora
com o aviso a Malaca, (foi este o Padre Frei Silvestre de Azevedo.) E
visitou a el Rei a fim de o reduzir ao bom animo de seu pai. Quando
se quiz partir mandou-lhe el Rei entregar huns moços Jaós, que cativara
na guerra : com ordem que em Malaca lhos fizesse vender, e do proce-
dido lhe comprasse, e inviasse certas peças, que lhe apontou. Foi a des-
graça, que cliegado o Vigário a Malaca, os escravos, como não anda vão
a ferro, desaparecerão logo; o que alli he ordinário pola vizinhança da
terra firme : e não houve de que dar cumprimento á encomenda. Sabido
em Camboja o que passava, pagarão os que lá estavão o descuido do
encomendeiro, ou o desastre da encomenda, e forão logo despojados de
toda a pobreza, que em casa tinhão, por mandado dei Rei, até o caliz,
e vestimenta, e Missal lhe levarão : e não parando o negocio no fato, por
ser de pouca valia, forão os Padres postos em áspera prisão. Aqui foi
PAIlTICULAIl DO liKINO DE PORTUGAL 41 S
O merecer padecendo estremos de fome, que sendo g-enero de morte
desesperado, so temperava com novas, que cada dia lhe davão, que el
Rei os mandava lançar aos elefantes bravos. E não havia duvida, que
fora execuiado o mandado, se lhes não valera hum privado, que o Padre
Frei Lopo tinha de secreto convertido á fé, e juntamente a mãi dei Hei
que lhe aCfeava tratar mal homens entrados no Reino debaixo da fé, e
seguro Real de seu pai. Mas cm fim, por aqui teverão remédio de sol-
tura os corpos, ainda que nenhum a fazenda roubada.
Não he pêra licar em silencio pêra exemplo do muito, que pode a fé
prantada em hum animo, ainda que bárbaro, que lendo Frei Lopo con-
vertido hum moço de nação Ganarim, que chamou Domingos no bauíis-
mo, foi tanta sua piedade do que via padecer ao pai espiritual, que não
sentindo outra via pêra o poder socorrer, lhe pedio por vezes que o
quizesse vender por escravo, e valer-se no aperto, em que vivia com o
preço, que achasse por elle.
Yendo-se Frei Lopo livre do cárcere, desejou livrar-se também da
terra, em que já não era de tanto proveito como imaginara : e andando,
em traças de fogida, foi mexericado, e de novo preso com seu compa-
nheiro : e tratados ambos com exorbitantes afrontas de palavra, e obra.
Porque ainda assi os queria el Rei ter em arrefens das suas escravas
com cobiça, e baixeza do infiel. Passados muitos dias acudio-lhes o Se-
nhor, por quem padecião, inclinando aquelle animo avaro a hum parti-
do, que foi largar a Frei Lopo pêra que fosse a IMalaca resucitar-lhe a
sua encomenda : ficando todavia por prenda, e lembrança o companhei-
ro. Chegou Frei Lopo a Malaca, tirou por esmolas com que satisfazer a
el Rei, e também agradecer á Rainha sua mãi os benefícios, que lhe fi-
zera. Embarcado o retorno dei Rei, e hum presente pêra a Rainha, inda
aqui quiz Deos dar occasião de merecimento a Frei Lopo, e a seu com-
panheiro, permittindo que comesse o mar tudo com a embarcação, que
o levava. Assi tornou com novo trabalho, e afronta a mindigar segundo
retorno, não esperando ver de outra sorte seu companheiro resgatado,
e sua palavra desobrigada. Porque he condição tacita, que acompanha
as encomendas dos poderosos, não lhes prejudicar nenhum naufrágio, e
haverem-lhe de tornar á mão seguras de todo risco. Era tão estimado
Frei Lopo em Malaca, que todavia juntou o que convinha pêra desem-
penhar a Frei Silvestre. Mas não se atreveo a esperar outro naufrágio :
embarcou a bom recado o que tinha ncgoceado, dirigido ao companhci-
4f6 ' LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
ro, e meteo-se no primeiro navio, que se oíTereceo pêra Goa. O succcsso
cVesta fazenda, que não teve melhor ventura, que a primeira, e as novas
fortunas, que por isso passou o Padre Frei Silvestre, veremos nas rela-
ções dos Conventos da índia, se Deos for servido chegamos a escreve-
1-as. Só he rezão, por não dilatarmos paga, e agradecimento de benefi-
cio recebido, ficar aqui logo em memoria, que tendo noticia em Japão o
Padre Alexandre Valinhano da Companhia de Jesus, Visitador d'aquella
Província, do estado em que estes Padres se achavão em Camboja, lhes
mandou hum Caliz de prata com vestimenta aparelhada, e frontal, e Missal
Romano ; e, porque não faltasse nada, ajuntou farinha de trigo, e vinho
de Portugal : o que tudo buscava ao Padre Frei Lopo ; e não no achan-
do, foi entregue em mãos de Frei Silvestre, que o teve por celestial con-
solação do desterro, e aíílições que n"elle despois padeceo.
O Padre Frei Lopo seguindo sua viagem chegou a Goa, onde fizerão
lastima de seus trabalhos; e como varão santo foi mandado polo Vigário
geral da Congregação descançar em casa santa. Encomendou-lhe a Igreja
de Nossa Senhora dos Remédios, no termo de Baçaim, onde esta Senhora
quiz, e mandou, que o Religiosos d"esta Ordem lha edificássemos, e em
testimuho d'isso a tem feito celebre por toda aquella costa com tantos
milagres, que no anno de 1005 se contavão cento e vinte juridicamente
approvados, como o contará a historia, quando chegarmos com ella ao
anno, em que teverão principio. Despois de residir aqui alguns annos,
nos quais com sua industria acreccntou a casa, e com sua santa vida edi-
ficou muito a terra, foi eleito cm Prior de Cocliim. Servindo neste cargo
a Ordem acudio a Goa a hum Capitulo, e n'elle faleceo de sua doença.
Foi enterrado em hum lanço do claustro do Convento d'aquella cidade.
Puserão-lhe sobre a sepultura, quando se ladrilhou o kigar d'ella, sinco
azulejos em Cruz. E isto foi, quanto se fez em memoria, e veneração de
tal pessoa. Assi vamos hoje seguindo as pisadas, mas os defeitos de que
nos queixamos em nossos maiores.
C.\PITULO XXXIII
Da vida, e morte do Padre Frei Inácio da Purificação. E do irmão
Frei Pedro de S. JJomiiujos, leigo.
Dous filhos deu o Convento de Lisboa pêra perfazerem o numero do
doze, (numero de boa estrca), que no anno de 15 í 8 furão fundar aCon-
PAr.TICLLAn DO niílXO DiC PORTÍGAL 4Í7
crregarrio do Nossa sagrada Ordem, nas paríes da índia, em companhia
do primeiro Vigário Geral d'e'ia, Frei Diogo Bermndes, sendo Provincial
n'esta Província o Padre Meslro Frei Francisco de Bovadillia, e Gover-
nador da índia o bom velho Garcia de Sá : como largamente contaremos
adiante, quando com a historia chegarmos a estes annos. Taes foriío em-
suas ol.)ras os dous sojeitos, que pêra tal empresa dou Lisboa, que hon-
rarão bem o juízo, de quem os escoUieo. Foi hum o Padre Frei Inácio
da Purificação : e outro Frei Pedro de S. Domingos, Irmão leigo. * Frei
Inácio era pregador de nome, e nomeada sua oljsei-vancia, e virtude na
Ordem, e como tal fizera o officio de Mestre de Noviços no Convento de
Lisboa, com estremada diligencia. Tanto que o Vigário Geral poz os pés
na Índia, e tratou de receber gente ao habito, logo fez conta que não)
tinha outrem pêra llie dar a ciiação, que convinlia, como Frei Inácio : e
como teve numero competente de noviços, lhos entregou com inteira
confiança de saírem de sua mão Mestres. E na verdade elie tomou tanto
a peiío o cuidado, vendo que criava homens pêra Apostol-os d'aquellas
vastíssimas províncias do Oriente, tão cegas, como vastas, que se adian-
tou a si mesmo, e fez discípulos, que derão de si homens de muita con-
ta. E por honra dos velhos he rezão, que fiquem em lembrança, que en-
tre os minínos, que pêra Noviços lhe forão entregues, entrou hum Fi-
dalgo velho, e honrado, que aborrecido do mundo, e engeitando suas
promessas se determinou em seguir a Christo pobre, e nú : chamava-se
Simão Botelho d"Andrade. Servira doze annos de Vedor da fazenda da
índia, e três de Capitão de Malaca. Estava rico, e era opinião geral, que
ninguém entendia melhor o governo d'aquelle estado de (juantos Fidal-
gos tinhão passado o cabo de Boa Esperança. Assi foi grande espanto
dos vãos, e cubiçosos, mas maior sua consolação, e com ella professou,
e acabou santamente no habito. Com tal Mestre, e tais Noviços começou
a Congregação da índia. O Mestre Fi'ei Inácio passados alguns annos
deixou o cargo pêra descançar. Sendo morador em Cocliim, pregava com
muita continuação, e com hum zelo ferventissimo da salvação das almas.
E hum dia foi tanta a vehem.encia, com que trabalhou por persuadir, e
mover o auditório, que no cabo do Sermão foi tirado do púlpito quasi
pêra espirar, e no mesmo dia acabou com grandes sinais de Santo. E
por tal anda contado no catalogo, e Martyrologio da Ordem.
Frei Pedro, o Irmão leigo, foi dotado de tão boas paiíes de virtude,
e prudência, que o V'gario geral fiou d'eHe, e d'oulro Irmão também
VOL. 1. ^i7
4{g LIVRO III DA HISTORIA DK S. DOMINGOS
leigo irem ambos assistir na fabrica da Igreja de Santa Barbara, que foi
huma das quatro Vigairarias, que o Governador da índia, Jorge Cabral,
deu á nossa Ordem ni Ilha de Goa. Chamava-se a aldeã, em que funda-
rão, Morumbiin. Muitos annos despois foi mandado pêra o Convento, que
S3 deu á Ordem em Damão. He a Cidade na costa de Cambaya, e muito
importante, por ser perpetua fronteira contra os Mogores, gente belli-
cosa, e fera, que ha muitos annos são senhores d'aquelle Reino. Mas es-
tava tão pouco defensável, que era mais pêra soldados muito trabalha-
dores, e amigos de empresas perigosas, que morada pêra Religiosos
quietos. Não o ignoravão os enemigos, esíavão cada dia sobre ella de
cerco, e algumas vezes apertavão com tanta fúria, que davão muito cui-
dado aos nossos. Em huma d'estas accasiões, como não havia mais for-
tificação, que vallos, e trincheiras de terra, e faxina, tendo por vergonha
que com tão fraca defesa se sustentassem poucos homens contra hum
exercito vencedor de Províncias inteiras, acometerão a entrada com es-
tranha porfia. Governava a terra hum valeroso Fidalgo, encheo-se do
fo^o, e cólera, (e por ventura que foi mais temeridade, que prudência),
determina acometel-os fora das trincheiras, e pelejando em cíimpo razo
mostrar ao enemigo, que havia dentro forca, e esforço não só pêra de-
fender, mas também pêra offender. Põem sua gente em ordem, manda
abrir as portas : se não quando, havendo muitos que torsião o rosto a
feito tão desesperado, acha juntu consigo ao nosso Frei Pedro feito
alferes de hum devoto Crucifixo em huma asíe arvorado. Seguindo tal
bandeira sac o Capitão animoso, e dando como hum raio sobre os cííc-
raigos, por muito que trabalharão em se manter, e fazer rosto vendo-se
de acometedores acometidos, em fim forão rotos, e desbaraUados, e dei-
xarão o campo cuberto de armas, e corpos sem vida. Mas ficou entre
clles morto o bom alferes de Christo : morto, porém não vencido, se
não antes vencedor, e martyr, c verdadeiro imitador de sen glorioso pai
S. Domingos, que a este modo sohia acompanhar os esquadrões Catho-
licos contra os hereges Albigenses de França, como em sua vida deixa-
mos contado.
Não será rezão ficar em silencio á vista de hum Frade martyr em
f^uerra santa, que andando o tempo obrigou a necessidade d'csta impor-
tante praça aos Frades de S. Domingos, sobre o ministério de sua vo-
cação, tomarem também á sua conta a fortificação delia. Elles forão os
que com sua diligencia a acabarão de cercar de muralha, e baluartes
PÂimCULAU DO !$EI.\0 DE PORTUGAL 4 10
firmiíslmos cm poucos aniios, como hoje está : e isto foi com duas cir-
cunstancias muito de estimar : primeira, sendo rogados dos Visoreis, e
instados do governo, e moradores da cidade : segunda, não tomando
nunca dinheiro na mão, mas assistindo só com a vigilância, e industria
em todas as particularidades da obra. E, ou fosse que os Capitães, a
quem pertencia mais propriamente o negocio, tevessem occuparâes maio-
res: ou que os Visoreis fiassem muito do cuidado, e fidelidade dos Fra-
des : assi nos constou por papeis autênticos, que temos em nosso poder,
dos quais faremos relação mais copiosa, quando chegarmos aos annos, em
que tem seu lugar próprio as cousas da índia.
CAPÍTULO XXXÍV
Do naufrágio, trabalhos, e martyrio do Padre Frei Nicolao do Rosário.
Muitos annos adiante passou á índia outro filho de S. Domingos de
Lisboa, cuja vida até a perder foi liuma continuada tragedia de traba-
lhos, e desastres, e por isso pertence a este lugar. Chamava-se Frei Ni-
colao de Sá, ou do Rosário. E sendo filho do Convento de Lisboa, era
nacido na villa do Pedrógão. Este Padre despois de ter cursado a índia
alguns annos com nome de grande pregador, e vida pura, e exemplar,
houve licença pêra se tornar pêra o Reino. Embarcou-se na náo S. Tho-
mé, Capitão Estevão da Veiga, entrada do anno de 1588. Chegando ao
Cabo de Boa esperança, acharão as tempestades ordinárias, que n'outro
tempo lhe derão nome de Cabo Tormentório, ou tormentoso. E forão
ellas taes, que fazendo força a todos o desejo de passar, abrio a náo
huma agoa pola roda da proa, a qual com o muito trabalhar dos mares
grossos foi crecendo, e brevemente chegou a estado, que não havia ven-
cel-a com muitas bombas. Acordou-se em commum, que arribassem a
Moçambique a buscar remédio, antes que o mal fosse maior. Voltarão
em poupa, mas foi o conselho sem proveito por tarde, que tomado com
cedo dera salvação. Antes de sairem da paragem, que chamão da terra
do Natal, a náo se cubrio de agoa até quasi a cuberta de cima. Era em
meio do golfo, e a perdição sem género de remédio, nem asperança
d'eUe. Mandou o Capitão lançar o esquife ao mar com guarda pêra salvar
sua pessoa com os que lhe parecesse : que não podião ser muitos. E
posto debaixo da varanda forão por ordem sua decendo a elle por cor-
4:20 i.ivuo III DA msTuiWA de s. domingos
(las as pessoas de mais conta, entre as quais foi o Padre Frei Nicolao,
Recolhidos no esquife os, que couberão, acabou de se cobrir dagua a mi-
serável não, e começarão a ver-se lastimosos casos: mas entre lodos
quebrou o coração alé aos que íicavão em stjinelhante desaventura, buma
minina de oito annos, filha do pai e mãi fidalgos, e gente muito conhe-
cida, bracejando piadosamente nas ondas, e lidando com a morte até fi-
car afogada entre suas escravas, que a cercavão. E em tal estado teve
sua própria mãi olhos porá a ver, e animo pêra se salvar sem eila. Mas
não he de crer se não (jue a força do medo da morte a fez descuidar do
l)enhor da alma no primeiro assalto ; e no segundo lhe persuadio, que
por-se no esquife era íomar lugar pêra si, e pêra a filha, e que teria va-
lia pêra a recolher despois. Assi opretendeo logo com gritos, e lastimas,
(juo quebrantarão a lodos, mas não acharão em ninguém piedade pêra
lhe dar remédio.
Porém logo se virão no esquife outros casos, que por mais desastra-
dos fizerão esquecer os da não. Pareceo a gente demasiada pêra tão pe-
queno vaso, tratou-se de o aliviar, e não podia ser sem sentença de
morte contra alguns. Forão logo condenados, e lançados ao mar muitos
dos que pouco antes davão parabéns á sua ventura, de se verem a seu
parecer em salvo, ficando tantos bons companheiros sepultados na pro-
fundeza das agoas. Foi o sorver-se a não no mar, e a passagem ao es-
quife tudo abreviado, e como por momentos. E todavia no lugar, que o
tempo deu, mostrou Frei Nicoláo entranhas de verdadeira piedade, e
religião, ouvindo confissões, e animando a todos : e o mesmo fez mais
de assento nas fadigas, e perigos da segunda navegação : na qual o medo
de soçobrarem com qualquer mar grosso, lhes ti\azia a morte diante dos
olhos a cada momento. A cabo de alguns dias foi Deos servido, que to-
marão terra em buma paragem, que chamão terra dos Fumos, parte da
Etbiopia Oriental. Lançarão fora dous companheiros a descobrir, se havia
povoações, ou gente tratavel. Foi a ventura, que a menos de meia legoa
derão com buma aldeã de negros cafres, de cabello revolto, como são os
mais d'esta costa. Mas era a gente bem assombrada, branda, e alegre:
e tão bemaventurada, que nunca tinha visto estrangeiros ; do que derão
sinal nos estremos de pasmo, que fazião de os verem brancos ; e, polo
que se podia coUigir dos geitos, e meneios, que fazião, davão-lhes nome
de filhos do Sol. Seguio-se ao pasmo bom gasalhado, e convidarem-nos
a comer, o beber do que tinhão : e sairem logo alguns com elles cm
PARTICri-AU DO RF.IXO DK POP.TIT.AL 421
busca dos companheiros á praia. Mas crão desaparecidos : que virão
vento em popa, e não quizerão perder viagem : do que os descobridores
levantarão gritos ao Ceo, como desesperados. E por não ficarem alli em
nova, e maior perdição, tomada licença dos bons liospedes, se lançarão
á praia, a ver se davão com esquife. Os cafres os consolavão com mos-
tras de compaixão de sua desgraça, e misturavão conselhos n"aquella
lingoagem muda : em que querião significar, que o mar era doudo fu-
rioso, e sempre irado, e mais doudo quem se fiava d'elle : que andassem
por terra como fazião os moradores d*aquella aldea, e nunca terião do
que se queixar. Conselho sisudo, se não viera tarde : e na verdade pêra
os cobiçosos nenhum vem a tempo, como logo se mostrou nestes. Hião
caminhando com assaz malencolia, arriscados a ficarem pêra sempre se-
pultados entre aquelles bárbaros : acertarão de conhecer âmbar na praia,
e não havia menos que montes (felle por toda a costa : assi se carrega-
rão da mercadoria, como se caminharão de Belém pêra Lisboa : e carre-
gados chegarão ao esquife, que acharão surto com força de vento con-
trario. D"aqui se fizerão á vela, e forão correndo a costa até darem em
huma Ilha, que conhecerão ser das terras de hum Rei amigo dos Por-
tuguezes, chamado o Inhacca : e sem fazerem mais diligencia, poserão
fogo ao esquife, porque não houvesse quem deixasse a companhia, apro-
veitando-se d"elle fiiríadamente. Foi o conselho tão precipitado, que es-
tiverão por elle em risco de hum novo naufrágio de fome, e sede. Por-
que a íllia era deshabilada, e tal, que corrida toda, nem agoa tinha do
beber, nem cousa que comer. Neste estado moveo Deos os corações di;
huns Cafres da terra firme a que passassem á Ilha a entender a causa
de huns fogos, que n"ella virão, feitos poios nossos na mesma noite, que
chegarão. Levarão duas embarcações, em que passarão os pobres nau-
fragantes á terra firme, mas com novos medos, o tralKílhos, porque erão
Almádias pequenas em demasia, e faciles de virar com pequena força de
tempo, a travessa grande, e os mares temerosos. Como a terra era de
Rei amigo, forão caminhando descançadamente até onde tinha seu assen-
to : e elle os agasalhou com amizade, e cortezia. Pareceo, que erão aca-
badas íodis as fadigas com tal gazalhado, mas acharão-se muito enga-
nados. Porque havendo só dous caminhos pêra se tornarem á índia, que
erão, ou ficar alli esperando embarcação pêra Moçambique, ou caminhar
por terra á nossa fortaleza de Sofalla : os que ficarão esperando pagarão
a quietação com pestilenciais doenças, e necessidades sem remédio, com
422 I.IVRU III DA HISTORIA DF, S. DOMINGOS
que acabarão muitos miseravelmente : os, que se atreverão ao caminho,
padecerão fomes, e sedes, e encontros de Cafres de guerra mãos, e des-
Immanos, a fora oitenta legoas de asperissimos caminhos tomados a pé.
D'estos atrevidos foi luim o Padre Frei Nicolao, e succedeo-lhe bem,
porque achou em Sofalla Casa de S. Domingos, e Frades da Ordem. Era
alli Vigário o Padre Frei João dos Santos, que despois escreveo parte
deste naufrágio ouvido da boca dos que o padecerão, na sua Varia His-
toria da Ethiopia Oriental (*),
CAPITULO XXXV
Como foi martyrizado o Padre Frei Nicolao do Rosário.
Como Frei Nicolao descançou, deixou a fortaleza, e passou-se á Ilha
de Moçambique, terra sadia, e fresca. Mas, como quem veste o habito
da Religião, e zelo d'ella, não sabe descançar, nem poupar-se : em lugar
de tornar pêra a pátria, e aos seus amados penedos do Pedrógão, ou
pêra a deliciosa cidade de Goa : se foi de novo oílerecer ás febres, d
desaventuras dos rios de Cuama, que são na mesma costa, e Cafraria,
onde se perdera. Era polo anno do Senhor de 1592, quando emprendeo
esta viagem. Nella se fez bem conhecer, e estimar por espirito Apostó-
lico de todos os lugares, por onde andou, até acabar, dando a vida por
Deos, e poios próximos pola maneira seguinte.
Succedeo n"este tempo aparecer n"aquellas partes hum exercito do
Cafres, o nome Zimbas ou Muzimbas, gente nova, e nunca nellas visia,
que saindo de suas terras, correo grande parte d"esta Ethiopia, como
açoute do Ceo, fazendo destruição em toda cousa vivente, que encontrava,
com brutalidade mais que de feras. Porque, como verdadeiros Antropó-
fagos da antiguidade celebrados, comião carne humana : no lugar d"onde
entravão, não perdoavão a cousa viva, nem homem, nem animal : tudo
matavão, e tudo comião, e até os bichos, como por conjuração. Erão em
numero mais de vinte mil, gente solta sem molheres, nem filhos : e co-
mo erão tantos, e não vinhão com tenção de buscar terras pêra morar
ao uso dos antigos Hunos, Godos, e Vândalos, e outras nações do Norte:
se não só instigados de espirito diabólico de fazer mal, corrião em breve
muita terra, e como achavão a gente descuidada, e os lugares abertos,
f-) P. 2. 1. 3. c. o.
PARTICULAR DO RF.INO DE PORTUGAL 423
nenhuma cousa lhes resistia, assol avão tudo. O remédio, que achavão os
u;iturais, era largar as povoações, (que na verdade são pouco custosas),
fogir pêra o mato, c embrenhar-se no mais espesso : ou ajuntar-se com
elltís cm semelhante género de vida, porque só assi escapavão á morte,
c a seus dentes. Tendo corrido vicloriosos mais de trezentas legoas de
costa, e andando nas terras de Moiíopotapa : pêra com mais segurança
senhorearem a província, forlilicarãj hum lugar, e n'elle fazião assento,
c sahião a tempos como salteadores. Tem os Portugueses nestas partes
duas casas fortes, situadas sobre as ribeiras do grande rio Zambeze, em
disLancia de sessenta legoas huma da outra : huma está na povoação de
Sena, de que era Capitão André de Santiago, outra na de Tete, Capitão
Pêro Fernandez do Chaves. Estes Capitães são súbditos do nosso Capi-
tão, e Governador de Sofala, e ordinariamente são homens de sua obri-
gaçãOy ou seus criados : e as casas lhe servem de feitorias pêra o res-
gate do ouro, que mandão fazer, e he o trato mais grosso de Sofala.
Obrigado André de Santiago dos males, que os Zimbas vinhão fazendo
nas terras vizinhas, determinou buscal-os, pelejar com elles, e ver se os
podia desfazer antes de crecerem mais em poder, e reputação. Ajuntou
tudo o que havia em Sena de Portugueses, e mestiços, e negros confi-
dentes, e foi-se em demanda d'ellcs ao mesmo lugar, de que se dezia
estavão senhores. Mas chegando, achou a empresa mais diíficultosa do
que se persuadira ao sair de casa, porque o enemigo tinha cercado a
povoação em rodíi de fortes trincheiras de páos a pique, suas cavas lar-
gas, e fundas, com travezes, e seteiras, tudo em rezão militar, e não
como bárbaros. Avisou logo ao Capitão de Tete, que se viesse ajudal-o
cora o maior poder, que lhe fosse possível. Não tardou Pêro Fernandez
de Chaves em acodir, porque a causa era commum, e, como fazia conta
que terião cerco largo, pedio ao Padre Frei Nicolao, que, havia dias, re-
sidia em Tete, quizesse ser companheiro rw jornada pêra administração
dos Sacramentos, e consolação de todos. Não se soube elle negar, como
se tratou de serviço de Deos, e bem das almas. Poz-se com elle em ca-
minho. Tiverão os Bárbaros noticia do soccorro, lanção espias fora, pêra
saberem a ordem, e caminho, que trasião. Como estiverão informados,
sae de noite caladamente hum esquadrão dos melhores, vão-se deitar em
silada em hum passo de huma grande mata de arvoredo espesso, e ce-
go, por onde o soccorro tinha sua estrada : que não podia ser mais a
propósito pêra o effeito. Vinhão os nossos sem nenhuma forma de gente
4*2 V i.ivno III DA HisToniA df. s, domingos
tle guerra, erão poucos mais de cem homens entre Portugueses, e Mes-
tiços, gente bem armada, mas iodos tão descuidados, e sem cautela, co-
mo se não houvera enemigo em toda a terra. Os mais em andores ás
cosias ái seus escravos sem armas prestes, nem mecha aceza, nem ho-
mem diante, que descobrisse o campo: em fim como gente, que não te-
mia, nem estimava o enemigo : o qual, tanto que os vio bem entregues
110 maio, levantando hum trovão de alarida, que foi ferir nas nuvens, deu
sil)re elles com ianta fúria, que antes de terem tempo de arrancar es-
pada, forão degolados todos os Portugueses, e mestiços, sem escapar
homem. Ajudou a desa ventura, que os nossos por virem mais desaba-
fados, caminhavão mea legoa diante dos cafres amigos, que trazião pêra
companheiros do perigo, que erão hum grande numero, gente boa e de-
terminada : e assi, quando chegarão ao valle da emboscada, já os Bárba-
ros saliião d^elle vitoriosos. O Padre Frei ?íicolao, sendo achado inda vivo,
e conhecido por Religioso, foi trazido por elles á sua povoação, assi co-
mo eslava atassalhado de feridas mortais : alli o atarão de pés, e mãos
a hum madeiro aUo, e ás frechadas o acabarão de matar em ódio de
nossa santa Religião, dizendo, que os Portugueses não fazião aquelki
guerra se não por conselho dos seus Gacizes, (que assi chamão os Ca-
fres aos nossos Sacei'doíes, com lingoagem dos Mouros da costa, seus
vizinhos antigos.) AíFirma-se, que sofreo a morte com alegria, e olhos no
(ieo-: não só com paciência, considerando, como he de crer, que puro
7Ji\o de servir a seus próximos, e cumprir com sua obrigação o chegara
a tão duro passo. Assi acabou sua vida, e trabalhos com mais este me-
itícimenlo, e com outro, que logo seguio também assaz considerável,
que foi ser pasto daquellas feras em carne humana cozido, e assado :
pêra podermos dizer d"elle o que se conta dos Maríyres antigos : Oblu-
raiwruiU ora Lcinnm, etc. (*), seiído despols de asseíeado, como são Se-
i)aslião, comido de feras, como Santo Inácio.
: Mas, porque he certo, que fica dezejando o fim de tão carniceiros al-
íOz^Sj quem isto iè, brevemente o diremos, inda que não seja de nossa
obrigação. Com a vitoria de Pêro Fernandes de Chaves, facilitarão a ou-
íya, que logo hcuverão do Capitão de Sena, que os cercava: fizerão-lhe
ver as cabeças dos amigos, e conhecidos, que o vinhão soccorrer. Re-
Sí>lveo-se em deixar o cerco. Mas a tristeza, e horror do desastre fez
nos seus o mesmo desmancho, que nos do Gliaves. Desordenarão-se ao
(•) Ilcb. 11.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 425
partir, e, (como toda a retirada tem partes de desconfianra, e medo)
saindo trás elles toda a maltidão dos cercados, forão desbaratados, e
mortos, ainda que teverão a consolação de ser com as armas nas mãos,
e vendendo bem suas vidas. Passarão estes negros despois á Ilha de
Quiloa, onde se aflirma, que comerão mais de três mil Mouros, e Mou-
ras, e despois á de Mombaça, onde fizerão o mesmo em todos os mo-
radores, que não houve escapar-lhes nenhum. Ultimamente forão mor-
tos, e acabados por el Rei de Melinde, que lhes deu batalha acompa-
nhado de outros Cafres, homens de valor chamados Mosseguejos (*). Assi
castigou Deos, e acabou o instrumento, com que tinha castigado a tan-
tos. Outro exercito semelhante a este, ha muitos annos, que correo a
costa da mesma Ethiopia, que chamamos Occidental, porque corre do
Cabo de Boa esperança pêra o Norte, com os mesmos estilos de vida,
e guorra, e com nome de Jagas: e andão já no Reino de Angola, e po-
ios vizinhos. São varas deDeos, que manda por toda a parte, quando lhe
parece, pêra escarmento do mundo, e exemplo nosso.
CAPITULO XXXYI
De alguns filhos íVcste Convento que subirão a grandes Frclacias.
Despois de dizermos dos filhos, que cora santidade, e trabalhos, e
em íim com sangue honrarão a mãi, que os gerou no Senhor, e pêra
elle os criou: entrão ouiros, que tirarão da mesma criação poder illus-
trar a mesma mãi, e toda a Ordem merecendo, e alcançando honras ou
nas Universidades com su.ns leiras ; ou nos tribunais mais altos com
sua religião, e inteireza, ou nas Prelacias do Reino com uma cousa, e
outra. Mas, porque fora leitura sem fim proseguir com particularidade a
vida, e obras de cada hunr: por tanto não farem.os mais, que ir apon-
tando os nomes com algumas particularidades forçadas, e com advirtir-
mos ao Leitor, que dos qne apontarmos, que são quasi todos de nosso
tempo, ou mui chegados i elle, faça juizo, quanto maior numero pode-
ramos dar, se nossos antepassados nos quizerão deixar por escrito suas
vidas, ou polo menos seis nomes.
Por todos os titnlos, que temos proposto merece lugar n"este cata-
logo, e que seja ante talos nomeado polo que tem do mais antigo, hum
{•) Frei João dfs Santos \a Elliiopia p, i. I. 2. c. 21.
4Í6 LIVRO III DA HISTORIA DR S. DOMINGOS
Bispo, (jue o curso daílisíoria, que atrás fica, nos foi descobrir no anno
de 1432, piincipiador da Confraria do Santo nome de Jesu; digo dom
Frei André Dias de Lisboa, Bispo de Megara, que. como era de Lisboa
natural, não temos duvida em ser filho deste Convento.
Seja segundo quem por maior dignidade, merecia ser primeiro, e
não menos por lieroicas virtudes, e grandes letras, que forão as partes
qne o tirarão do canto de sua humildade, pêra o Arcebispado de Braga,
ePrimacia de Espanha. Tomou o habito neste Convento no anno de 1528.
E foi nascido em Lisboa, seu nomo dom Frei Bertolameu dos Martyres.
Livros ha de sua vida, que nos escusão ser aqui mais largos.
Também foi filho d"esla casa dom Frei Jorge Temudo, que sendo
Pressntado em Thsologia na Ordem, foi delia tirado pêra Bispo primeiro
de Cccliim, e tal valor mostrou n"esla prelacia, que foi delia passado
pêra Arcebispo de Goa, e Primas de toda a Índia Oriental.
Dom Frei Bernardo da Cruz, de Mestre de Noviços de seu Convento
de Lisboa, foi mandado a Roma por el Bei dom João III. a negócios de
muita importância: da volta o nomeou por Bispo da Ilha de S. Thomé,
e achando n"elle talenjo pêra cousas maiores, que cada hora se ofiere-
cião no Reino, do que oi'dinariamente erão as do Bispado, empregou-o
em Reitor, e reformador da Universidade de Coimbra, e fazendo-o Co-
missário do Santo Oíficio, raandou-lhe, que desse principio ao tribunal
deites que n'aquella cidade se assentou. Chamado despois a Lisboa en-
trou por deputado do Conselho da 3Iesa da Consciência, e Ordens. Em
fim escusou-o el Rei de ir experimentar as febres, e ardores da tórrida
zona Bo seu Bispado, e deu-lhe o cargo de seu esmoler, e boa renda
em melhor terra encommendando-lhe os Mosteiros de Tibaens, e Car-
voeiro da Ordem de S. Bento em Entredouro, e Minho, onde vivendo
eom muito exemplo, e fazendo largas esmolss acabou em boa velhice.
Dom Frei Gaspar dos Reis, e dom Frei Jo:"ge de Santiago forão dous
filhos d"este Convento, que ao parecer andaião a par, e conformes em
todos os successos da vida. Porque ambos ca'Ja hum por sua via forão
estudar a Paris. Ambos se doutorarão em Theologia n'aquella Universi-
dade. Ambos lerão n'ella a mesma faculdade com tão bom nome, que a
hum, e outi'o chamou el Rei dom João juntanente pêra se servir d'el-
les, e succedendo dar-se principio ao Santo Cíjicilio Tridenlino no anno
de lo 4o polo Papa Paulo líl, ambos mandou a íUe por seus Theologos:
c tornando brevemeníe a Portugal, porque o Concilio se interrompeo,
PARTICULAR DO T\EI\0 DE PORTCC.AL 4Sl
foi dam Gaspar sagrado em Bispo titular de Tripoli, despois de servir
muitos annos no tribunal da Santa Inquisição de Lisboa : em que foi o
primeiro revedor de livros, que houve em Portugal. Dom Frei Jorge
foi também Inquisidor em Lisboa, e ultimamente eleito Bispo de Angra,
e Ilhas dos Açores. Mas sendo os autos da vida tão conformes des-
tes dous Prelados até chegarem ao maior estado, foi maravilhosa a
diíTerença, que teverão em o lograr: hum de descanço,e sossego: outro
de trabalho, e inquietações. Dom Gaspar, que se contentou de ir ser-
vir ao Cardeal Infante sem mais dignidade que a titular, gozou-a em
muita paz dentro de huma bem assombrada, e rica cidade, qual he
Évora, sem nunca sair mais dos limites do Reino, e da pátria. E he de
saber, que estavão tão conhecidos seus merecimentos na Corte de Roma,
polo nome, que suas letras lhe ganharão no Concilio, que, quando n'ella
se presentou a suplica do Cardeal, em que dizia íallando á Realenga
que o queria pêra lhe fazer os Pontificaes na Se: o Summo Pontífice,
que era Júlio III, lembrado das calidades do Religioso, deu de mão ao
papel, dizendo que a tal pessoa hum grande Arcebispado em proprie-
dade, e não só titulo, era devido: e não consentio no despacho das le-
tras. E assi foi necessário ao Cardeal reformar a petição, e dizer que
polas grandes partes, que no liomem concorrião, o buscara elle, não
pêra súbdito, senão pêra igual, não pêra segundo, senão pcra primeiro
na administração de sua Diocesi, visto estar elle Cardeal de ordinário,
e forçadamente ausente com negócios do governo do Reino. E então al-
cançou despacho.
Porém dom Jorge des do dia, que poz a mitra na cabeça, inda que
o mondo houve, que ficava avenlajado na prebenda: começou a correr
tormenta de cuidados da alma, e perigos da vida, como se entrara era
batalha. O primeiro trabalho foi a passagem do mar, que nunca he sem
risco. Posto em Angra achou aquella Ilha, e as mais mui depravadas
em vicios, e algumas almas tão vencidas d"elles, que lhe foi necessário
grande valor pêra as tornar á virtude. Bem se diz, que não pôde ser
Prelado, senão quem tever animo pêra arrostar, e não temer desagra»
dar a himi poderoso. Era grande letrado pêra conhecer suas obrigaçijes,
e grande animoso pêra executar o, que entendia. Achando alguns, que
não sintlão bem da fé, cubrio-os de ferros, e mandou-os entregar no
cárcere do Santo Officio cm Lisboa. Apertou com outros com as armas
espirituais em todo rigor, até os mettcr no caminho dos mandamentos
4Í8 LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
Divinos, Mas custou-lhe ver-se três vezes em fortes perigos. Huma qiie-
reudo passar de huma Ilha pêra outra, foi acometido de gente armada
na embarcarão, e pêra se salvar não teve outro remédio, se não lançar-se
ao mar, e valer-se dos braços, e nadar. Outra estando fazendo seu oíTi-
cio de Visitador lhe tirarão com huma espingarda, guardou-o Deos, e
matarão iuim sobrinho seu, que o acompanhava. Terceira vez tentarão
matal-o em certa casa, onde tirava huma devaça: e acometendo as por-
tas os culpados n'ella com armas, e determinação danada, valeo-lhe, que
como andava acautelado, acharão-nas trancadas por dentro, e seguras.
E com tudo inda mostrarão descortezia, e poder diabólico, porque che-
garão a entaipar o Prelado, ajuntando pedra, e cal, e cerrando-as de
parede por fura. Não faltou gente nobre, e de melhor animo, que lhe
acudio. Muito trabalhou, mas também remedeou muito : que este be o
oiTicio de Prelado. Ultimamente passou de novo o mar, e veio ao Reino
a negócios da Dioccsi: e tornando com animo de edificar huma casa da
sua Ordem em Angra, pêra o que levava consigo pêra fundadores três
Religiosos de boas letras, e bom púlpito, e todas as licenças necessárias,
desfez sua morte os bons desenhos. Este Padre, que dissemos, era filho
da:Convento de Lisboa, entendemos adoptivo: porque tomou o habito,
e professou em Santo Estevão de Salamanca : e despois foi perfilhado
por este Convento.
Dom Frei Jorge de Lemos de Presentado em Theologia veio a ser
Bispo do Fiinclial, e Ilha da Madeira. Succedendo vir ao Reino a nego-
cií«s, desejou descarregar-se da dignidade, porque o carregavão muitos
anãos: renunciou o Bispado, e aceitou ser Esmoler dei Rei: e faleceo
em Lisboa, e sepultou-se no nosso Convento, sendo Prior o Padre Frei
Jeronymo Corrêa.
Dom Frei Jeronymo Pereira foi Bispo titular de Salò á petição do
Cardeal Infante, traz dom Frei Gaspar, e com o mesmo fim, e rezões,
porque era bom letrado, e pregador de grande nome.
Dom Frei Jorge de Padilha Mestre em Theologia, e Bispo de Civita
Ducale em Itália.
Dom Frei António de Sousa, filho do famoso Governador da índia
Martim Afonso de Sousa: sendo Mestre em Theologia, veio a ser Vigá-
rio Geral de toda a Ordem dos Pregadores: pregador dos Reis dom
Sebastião, dom Anrique, e dom Felipe I, c ultimamente Bispo de Viseu.
Dom Frei Aiítonio do Santo Estevão, pregador dos Reis dom Fe-
PARTICCLAH DO UKINO DE PORTIGAL 429
lipc I, e II. na peste de Lisboa, que acabou no anno de 002, aturou três
annos com admirável constância o cargo de enfermeiro m()r da casa
da Saúde, (nome, com que disfarçamos o horror, que faz dizer hospi-
tal de peste), tendo á sua conta todo o temporal, e espiritual d"ella,
e sustentando a vida como por milagre no meio de infinitas mortes;
e foi despois Bispo do Congo, e Angola.
Dom Frei António Valente leo muitos annos em Nossa Senhora da
escada aos Clérigos do Collegio, que a Rainha dona Caterina, como
adiante diremos, insíituio neste Convento: e foi examinador das Igrejas
do Padroado real, e Mestrados de thristo, e Santiago, e Avis, e ul-
timam.ente Bispo da Ilha de S. Thomé. Bem he não ficar em silencio
por honra d'esía nossa cidade, que estes três Antonios erão filhos d"ella,
e nacidos n"ella, assi como o erão d"esíe Convento.
Estes são os Prelados, que achamos em lembrança, deu á Igreja de
Deos o Couvenío de Lisboa. Apoz elles diremos no Capitulo seguinte õs
que servirão no gravíssimo tribunal do Santo Ofílcio, porque n'elié 's-é
caliíicão os bons juizos, e se fazem dignos das Preladas. ' ^' "
CAPÍTULO XXXVIl
De outros filhou d este Convento qtie servirão nos tribnnacs
do Santo Ofjicio.
Pudéramos dar primeiro lugar a hum ííiquisidor Geral de toda
Espanha, e juntamente Proviíicial, antes da separação d*esta Província,
pregador, e confessor dei Rei dom João o Primeiro d'este Reino, que
foi o Mestre Frei Vicente de Lisboa. 3Iasjá temos dito, que heseii lu-
gar próprio o Convento de Benfica, onde faremos maior menção d^elíe.
O Mestre Frei Manoel da Veiga sobre grandes letras foi dotado de
bmua singular excellencia de entendimento natural. E, por ser tal, cor-
reo por seus degráos os tribunais do Santo Olficio, que ha n'este Reino,
Coimbra, Évora, e Lisboa. No de Évora lhe aconteceo dar prospero fim'
a hum negocio de tanta importância, que não hia menos n'eHe, que a
honra de liuma cidade inteira, e á sua diligencia devemos tirar-se a lim-
po, e sair á luz a verdade: e quando de Frei Manoel não soubéramos
outra cousa, esta bastava pêra o fazer muito illustre. O caso foi, que
sendo presos pola Inquisição na cidade de Beja quatro homens da nação
430 LIVUO III DA HISTORIA Dlí S. DOMINGOS
dos Christâos novos, (nome, com que entendemos os filhos, e netos d"a-
quelles, que em tempo dei Rei dom Manuel se oon verterão do Judaísmo
a nossa santa Fé), quando despois forão em particular examinados, e per-
guntados, como se costuma, poios compiices, apontarão sem discrepar
hum do outro, e falando todos quatro i)or huma boca, dezoito casas de
homens nobres, e honrados da mesma cidade. Como era testimunho
uniforme, e conteste, forão logo presos homens, e mulheres com gi-ande
terror, e espanto de toda a terra, e levadas a bom recado ao cárcere
do Santo OíTicio de Évora. Negarão elles, e ellas o crime cora boas re-
zões: favorecia-os a quietação de animo, com que estavão, e respondião;
ajudava sua calidade, e o sangue limpo, e sem mistura com os accusa-
dores. Fazia também por elles serem os quatro accusadores todos da
nação sem parte nenhuma de Christâos velhos, salvo hum, que era or-
denado de Diácono, e tinha de Guiné o, que lhe faltava do sangue da
nação, Iorque era mulato. Assi parecia a quem de fora julgava, que pe-
navão innocentemcnte. Todavia esíava o negocio reduzido a perigosos
termos: accusação feita por quatro homens, ratificada huma, c muitas
vezes, e com interpolações de tempo em meio : sem fazerem mudança
nem alteração nos ditos. O tribunal zeloso, e temeroso de casos de he-
regia por alguns, que de fresco erão succedidos era algumas partes de
Espanha. O Rei, e o Reino alterado com a suspeita do que nunca fora
inficionado em corpo de gente. Vio-se o Santo tribunal em hum labe-
rinto de confusão, e irresolucões: e fez o negocio mais duvidoso, quan-
do ao parecer estava em favor dos accusados, que hum d'elles sintindo
mais o trabalho da reclusão, que o pojito da honra, confessou-se cham-
mente por culpado, acreditando assi os accusadores. Aqui resplandeceo
a prudência, a virtude, e a religião do nosso Inquisidor. Vendo caso tão
cego, determinou-se em o remeter ao autor da Luz, pêra que Tha desse
no que devia fazer n'elle: com que não padecesse a innocencia dos ho-
mens, ou o credito do intemerato, e sagrado ministério da Inquisição,
se condenassem gente sem culpa, (como he fácil enganar-se a humani-
dade). Mandou fazer muitas orações por gente virtuosa, e por discursa
de tempo: as suas erão continuas, e aífirma-se, que juntava a ellas muita
penitencia, jejuns, e lagrimas, dando sempre voltas ao entendimento,
que remédio teria pêra descobrir a verdade. Em fim poz-lhe Deos na
imaginação a traça, como a outro Daniel. Erão passados quatro annos:
entra hum dia no cárcere, e sendo assi, que os quatro havia longo tem-
PAllTICUF.AU D(J HKINO DK I'OUT(T.AL Í'M
po que estavâo separados, e muito longe hnns dos outros, mandou-os
trazer juntos, e públicos, de modo que se virão, e reconhecerão: e fez
que os posessem em hum corredor, onde liavia (juatro cubículos contí-
guos hum a outro, em que íicarão repartidos, imaginou o santo Inqui-
sidor, que vendo-se assi juntos, falarião de noite, e procurarião con>
municar sobre suas cousas, e que seria meio pêra se abrir caminho a
se alcançar alguma luz d'ellas. Poem-lhes guardas com ordem, que cc-
Ihendo quaesquer razões sospeitosas, gritassem logo, pêra que os presos
entendessem serem ouvidos, e descuberlos. Succedeo puntualmente, co-
mo se lhe representou. Tanto que se virão juntos, teverão-no a boa ven-
tura: quietando a noite, começarão a chamar iiuns poios outros, e a fa-
lar sem cautella, e tão largamente, que as vigias aprenderão mais do
que era necessário, e, como lhes pareceo temjio, bradarão, reprenden-
do-os do que tinhão ouvido. Forão logo chamados á meza cada hum por
si, como se lhe proposerão palavras, c rezões conhecidas, derão-se por
descubertos . Confessarão então cliammente huma estranha, e nunca
vista conjuração, dizendo, que no tempo de sua prisão em Beja virão
com seus olhos a muitos dos accusados fazer festas, e correr carreiras
â lionra de seu trabalho, (e na verdade assi contão os antigos que acon-
teceo), por onde logo então na m.esma cadea,em que cstavão presos, se
concertarão elles quatro de fazer pagar aos dezoito o gosto, que mostra-
vão de os verem n"ella, nomeando-os por cúmplices da heregia, como
falsamente tinhão feito: sendo verdade, que nunca com nenhum d'elles
teverão tal communicação. Custou esta confissão aos quatro serem quei-
mados com suas insígnias de carochas nas cabeças, pêra serem do povo
conhecidos. Aos dezoito foi i'estituida sua honra, sendo condenado em
degredo pêra o Brasil o que, por fugir á vexação, póz sobre si a culpa
que não linha, com que fazia duvidosa a innocencia dos companheiros.
Obriga este successo a darmos immorlais graças a Nosso Senlior polo
fim d'elle todos os, que somos catliolicos, e mais em parlicular os que
fomos Frades de S. Domingos, pois o mesmo Senhor foi servido, que
d'esta sua Ordem sahisse em tempos antigos tão salutifero medicamento
das almas, como he o do Santo Officio : e nos modernos hum tão valc-
roso espirito, como foi o d'este Incjuisidor; pcra que não houvesse sen-
tença errada, onde a tenção era pia e justa, e amiga de acertar. E cer-
remos este elogio com dar os parabéns á nobi-e Vilta de Aveiro por ser
nacido n"ella, quanto â carne, hum tão insigne sujeito, como o foi quanto
432 LIVHO III DA IHSTOHIA DE S. DOMINGOS
ao espirito no Convento de Lisboa. Correndo depois o anno de 1571,
e celebraudo-se capitulo de eleição na villa de Santarém, foi eleito
com grande conformidade de todos os capitulares em Provincial: o qual
cargo não sérvio, porque o contradisse o Cardeal Infante Inquisidor
Geral n"este Reino, aíTirmando importar mais ao serviço de Oeos a suf-
íiciencia de tal pessoa pêra assistir no tribunal do Santo Officio de Lis-
boa, em que o tinha occupado, que não governando a sua onlem, em
que havia muitos sojeitos pêra isso bastautes : e porque liiilia poderes
do Padre Geral, cassou a eleição.
O Mestre Frei António Pegado foi Deputado do mesmo tribunal.
O Mestre Frei António de S. Domingos Lente de Prima da cadeira
de Theologia na Universidade de Coimbi'a, e n"ella jubilado, foi famosa
pregador, c revedor dos livros, o Deputado do Santo Officio na mesma
cidade de Coimbra. D"esle Padre sabemos, que, sendo Prior de Lisboa
na mór íorça da peste grande do anno de 1508, não desemparou o Con-
vento, em quanto lhe durou o cargo : sendo assi, que obrigou a muitos
Religiosos a se sairem d"elle: e mandaiido-lhe pedir huni Irmão leigo
qae do mesmo mal estava acabando, que o (juizesse confessar, com tal
teima, que parecia mais frenesi, que conselho, porque de nenhum ou-
tro Religioso se satisfazia, animosamente lhe acudio, ouvindo-o, e con-
solando-o muito de vagar. Faleceo em Coimbra do anno de 1596, em
idade de sessenta e cinco.
O Mestre Frei Rertolameu Ferreira revedor dos livros, e Deputada
do Santo OíTicio em Lisboa f ).
O Mestre Frei Francisco Foreiro foi mandado por el Rei dQm Se-
bastião ao Santo Concilio Tridentino entre os Theologos, que pêra elle
sinalou: onde o escolheo aquella gravíssima junta pêra Secretario da
Congregação dos Bispos, que forão deputados pêra censurarem os li-
vros, que se liavião de prohibir, e fazer catalogo dos permitíidos, e dos
reprovados. Despois que tornou, foi revedor d'elles em Lisboa, e junta-
mente Deputado da Mesa da Consciência, e Ordens, e nosso Provincial.
O mais, que d'elle temos, que não he pouco, se verá, quando chegarmos
ao Convento, que edificou, e dotou em Almada.
O Mestre Frei Manoel da Serra' Deputado do Santo Officio da índia
no tribunal de Goa.
O Padre Frei Thomâs do Espirito Santo, nacido na villa de Guima-
(•) Frei .\iit. tie Semi na sua Bibliol.
PAr.Tir.rL.vr. do reino de rnnTur.Ar 433
rães de Ijom, e anligo sangue, tomou o liahito n"este Convento de Lis-
boa, e passando á índia soube íanibem ajuntar as obrigações da religião
com as do nacimento (*) que dos Ueligiosos, que o conhecião de perto, i^,
do povo, que o tratava mais de longe, era havido por Santo. E por tal
foi muitos annos Deputado do Santo Officio : e tão estimado dos Yiso-
reis de seu tempo, que não davão ponto era negocio de importância sem
seu conselho. Sendo Prior do Convento de S. Domingos de Goa empren-
deo fazer huma casa emPagim, que he hum sitio deleitoso, pouoo afas-
tado da Cidade. E valeo sua industria, e o amor, que lhe tinha a terra
pêra sahir com a obra, e a ver acabada, e moradores n"ella trinta Reli-
giosos. Este edifício mudou despois nome, e sitio, sendo íresladado pcra
dentro da cidade, com nome de Collegio de Santo Thomás, e confirma!)-
do-se n"elle o de seu autor primeiro, e as rendas, e ordenados reais
que o mesmo lhe tinha grangeado.
O Mestre Frei Pedro martyr, sendo lente da cadeira de vespara do
Theologia na Universidade deCoimbra, foi revedor dos livros polo Santo
Officio da mesma cidade.
Sendo Inquisidor Geral n"este Reino o Cardeal Infante dom Anrique
que despois succedeu na coroa d"elle, era cargo annexo ao do Priorado
d"este Convento, por provisão sua serem revedores dos livros os Padres
que n'elle entrassem.
CAPITULO XXXVIII
Be outros Padres, que forno lentes de (jrandes catredns na Universidade
de Coimbra sem entenderem em outro ministério.
Dos primeiros Religiosos, que residindo no Collegio de Santo Tho-
más de Coimbra, forão públicos professores das sciencias na Universi-
dade da mesma cidade, foi hum o Doutor Frei João de Pedrazza, perfi-
lhado por este Convento de Lisboa: e leo a cadeira de vespara de Theo-
logia. Despois de iongos annos de idade deixou a continuação da Catre-
da, mas não do estudo, e pouco antes de falecer sahio com huma sum-
ma de casos de consciência, que compoz á instancia do Bispo dom Ju-
lião Dalva: foi obra estimada em seu tempo, e impressa muitas vezes.
Ao Mestre Frei António da Fonseca, Doutor Parisiense por ser filho
d"este Convento, e natural de Lisboa, mandou el Rei dom João Tercei-
(•] Frei João (lo3 Santos P. 2 l. 2 c. 1(>. ile Var. lliítoria OrÍ!'iil.
voL. I. ;>8
434 LIVHO III DA HISTORIA DK S. DOMlXdOS
ro vir de Paris, pêra lhe dar a cadeira da sagrada Escritura da Univer-
sidade de Coimbra: c foi lente de vespara: e juntamente o fez seu pre-
gador. Porque tinha com as letras admirável eloquência. Este Padre foi
o primeiro pregador, que introduzio neste P»eino pregar o sintido lite-
ral da Escritura apostillando o Santo Evangelho : modo fácil, e menos
trabalhoso pêra quem o segue, porque he totalmente separado do estilo
oratório antigo, que se compõem de suas partes, com seus tropos, e li-
guras, e flores Rcthoricas: e ha mister estudo particular. He pêra o povo
mais aprazível, e mais claro o apostillar, polo que tem de menos cir-
cuito de rezões, e períodos, e pola mesma rezão mais abreviado no re-
sumir: porem de força se ha de suprir com conceitos, e sentenças, e
lugares de sustancia o, que faltar de elegância, e ornato de palavras,
de que os Gregos, e Latinos fazião tanto caso, que lhe chamavão arreios,
e jaezes da Oração, Phalerala dieta {*). Qual seja melhor género he longa
questão, e não doeste lugar. Hum anligo chamava Oradores de carí.npa-
cio aos, que com ditos, e sentenças alheas, e historia antiga tecião ioda
a Oração: e dizia, que o saber era fazer o homem alguma cousa sua, sem
pender sempre do que outros disserão. São as palavras : Aliqnid et de
tuo profer. Istos minqnam Autores, semper interpretes nihil puto hahere
g^nerosi. E mais baixo: Scire est et sua facere qnceque, nec ah exemplari
penderei^*). Mas doestas cousas o tempo, que tudo vai trocando, e o uzo
com quem vivemos, são os que hão de dar a sentença. Em Frei Antó-
nio havia eloquência, e havia engenho, com que juntava huma cousa, e
outra, e fazia, que tudo líie estivesse bem.
O Mestre Frei Diogo de Morais, sendo Prior de S. Domingos de Lis-
boa foi mandado absolver do oííicio pola Rainha donaCaierina, que go-
vernava na menoridade dei Rei dom Sebastião seu neto, pêra ir ler a
cadeira de Theologia de vespara na mesma Universidade. Tinha lido
esta faculdade cm Lisboa muitos annos. Não viveo mais que dois em
Coimbra. Estes com raro exemplo de modéstia nos actos públicos, e
de pobreza consigo, porque nunca se sérvio, nem aproveitou em parti-
cular do rendimento da cadeira : e sempre subio ás escollas a pé sem
querer usar de cavalgadura.
O Mestre Frei Luis de Sotomaior, vindo do Conciho de Trento, em
que assistio, foi mandado por el Rei dom Sebastião ler a cadeira de Es-
critura na Universidade. N'ella jubilou com o nome, que de direito lhe pode-
(•) Tcrchl iu pbur. {••) Sciicta Epiíl. 33.
PAUTICULAU DO RLl.NO DK POUTLT.AL 4 '5,"
mos dar de Trismegisto, quero dizer, três vezes máximo, grande letrado,
grande estudante, e, (o que mais importa), grande Religioso. E sobejando-
llie idade, e forças pêra segunda vez poder jubilar, largou as escolas no que
podia parecer cobiça, que fora ir lendo de novo: e não no que era tra-
]íallio. Porque ficou estudando, e escrevendo em serviço da Republica
literária aíé o ultimo espirito com a mesma applicação, e continuação
que se estivera obrigado ás lições da Universidade : e n"ella faleceo era
idade de oitenta e quatro annos, sendo sua fama celebrada pola excel-
lencia do que tinha escrito, por todos os bons espíritos da Chrisíanda-
de, e havendo quarenta e sinco annos, que começara esta lição deCoim-
Jjra. Do discurso de tão larga vida pudéramos dizer muito, mas resu-
mil-a-hemos nas mais breves palavras, que for possível. Tomou o habito
muito moço em S. Domingos de Lisboa. Passou a Frandes á Universi-
dade deLovaina. N"ella estudou Theologia, e juntamente se deu ás lin-
goas Grega, e Ebraica. Como tinha profundo juizo, e huma memoria
sobre tudo o que se pôde dizer tenaz, e firme, consumou-se na scien-
cia, e nas lingoas. A Latina leo publicamente em Londres, por mandado
dei Rei dom Felipe segundo deCastella,que depois foi primeiro de Por-
tugal, quando passou a casar com a Rainha Maria de Inglaterra, pre-
tendendo aquelles Reis, que fosse juntamente aos discípulos Ingrescs
mestres da pureza da Fé. Exercitou despois todas em Frandes, e Aic-
manha: e por rezão d'ellas se foi aplicando com grande cuidado a pe-
netrar o sintido, e mysterios do texto das sagradas letras. Andou fora
da Pátria até á celebração do Santo Concilio de Trento, em que assistio:
o sendo acabado, deceo a Veneza pêra passar com o Padre Frei Boni-
fácio de Araguza, da Ordem dos Menores a visitar a terra Santa. Levava
este Padre a familia Franciscana a seu cargo, e os peregrinos d"aquelle
anno. Huma grave doença estorvou a santa jornada ao Padre Frei Luis.
Mas ficou em memoria huma encomenda, que deu ao Padre Frei Panta-
lião de Aveiro Franciscano, e Portuguez, quando se embarcou, na mesma
jornada: encomenda, que descobre bem a fee, e espirito de quem a fa-
zia. Pedia-lhe que, pois não merecera a Deos ser seu companheiro, lho
trouxesse de qualquer rua ou estrada publica de Jerusalém huma pouca
de terra, porque, como o bom Jesu andara por ellas, tinha por certo
que até o centro ficara toda a terra sanctificada.
Vindo a Portugal começou a ler Escritura em S. Domingos do Lis-
boa. Mas foi por poucos dias, porque logo o mandou el liei dom Se-
436 LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGnK
bastião pera a Universidade de Coimbra, onde escreveu doulissimos com-
mentarios sobre o Testamento velho, e novo, mostrando n"elles as ri-
quezas de erudiçrio, que entczourava sua mcmctria. Porque, como tinha
lido com attenção, quasi tudo, quanto ha escrito em todas as faculdades
desde a Humanidade até a maior, e milhor sciencia, tão presente estava
nas que tinha passado, quando moço, como nas em que de próximo se
empregava. Ajudava-se de artificio pera a conservação do que estudava,
cotando os livros com diversidade de sinais de penna, e passando estes
a huma grande taboa,que tinha na parede, com que lhe ficava fácil achar
os livros, as matérias, e as particularidades. E, porque seus escritos an-
tes de chegarem á impressão, já cordão por toda a Christandade com
fama, o grande aceitação de todos os doutos, o Papa Clemente oitavo
lhe mandou escrever hum Breve cheio do honras, em que o anima, e
amoesta que imprima. Foi passado o Breve em S. Pedro de Roma em
28 de Março de 1597, e, porque anda já impresso no volume, que es-
creveo sobre os Cantares, deixamos de o lançar aqui.
Foi incansável no ler, e no escrever. Affirma-se d"el!e, que leo to-
das as obras de Santo Agostinho, a cuja doutrina, e lição tinha par-
ticular devação, e affeição, duas vezes, e algumas d"eilas sinco, e mais
vezes: sendo assi que ha poucos homens, que as lessem huma só vez
pola grandeza, e numero dos volumes, que compreiídem. O seu ler foi
sempre com a pena na mão, qualquer que fosse o livro, pera se apro-
veitar de tudo, e de todos. O seu escrever sempre por sua mão, ató
que lhe deu a gota na direita. E, com lhe succederisto, no cabo da vida.
fez logo trabalhar a esquerda, primeiro em fazer o seu sinal, e despois
em escrever tudo o que se lhe oíTerecia, de maneira que veio a usar
d'ella como da direita. O seu estudar era continuo sem tempo certo
nem determinado. Fura das horas, que dava a Deos, ou ás necessidades
naturais de comer, e dormir, ou lhe tomavão negócios precisos, logo
seu espirito corria ao estudo, como a pedra ao centro. Polo comer cor-
tava sempre pera partir com os pobres, e pera dormir menos. E do
sono tirava tanto, que de ordinário se levantava á meia noite, (pera o
que tinha sempre consigo hum espertador de relógio), sem tomar da
cama mais que o necessário pera a vida, nada pera a recreação. Contava
d"elle o Padre Frei João da Silva, que indo ambos a hum Capitulo ge-
ral, com ir cançado do caminho, todas as noites, passado o primeiro
sono acendia candea,(pera o que levava aparelho de fusil, e pederneira,.)
PAUTICILAR DO REINO DE PORTUGAL 437
c entendia cos livros, que sempre com elle peregrinavão, como se esti-
vera na quietação da cella. Ajudava-o muito huma complexão robusta,
c forte, que o acompanliou, como dizem de Santo Agostinho, até quasi
os últimos annos da vida. Porque da gota não foi tentado senão então,
e ainda assi lhe dava graças, chamando-a ditosa necessidade, porque ren-
dia mais tempo pêra o estudo, livrando-o de acudir a negócios, ou de
comprimento de gentes, a quem se não podia negar, ou de força, da
Universidade, pêra que sempre era chamado, como i prmeiro, e mais
antigo voto d'ella. Da regra, e constituições foi observantismo, livre, e
azedo reprensor do que era contra a lei de Deos, ou verdade politica,
perpetuo bemfeitor em commum com a esmolla, com a intercessão pêra
todos os, que o buscavão, e em particular pêra estrangeiros, como quem
o foi muitos annos peregrinando fora da pátria. Em casa brando, fácil,
e conversavel. Na cella morador tão aturado, que quasi nunca se achava
fora d.'ella: e fora de casa não hia, se não arrancado de grande, e for-
çosa obrigação.
Chegando á idade, que temos dito no anno deGiO, dia da Gloriosa
Ascensão do Redentor, se levantou pola manliam, e se foi ao Orató-
rio do GoUegio, ouvio Missa, confessou-se, e commungou, e recolhendo-
se pêra a cella, tratou de morrer tão determinadamente, que foi con-
stante opinião de todos os, que o conhecião, e notarão com attenção o
successo de sua morte, que lhe fora revelada a hora d'ella. De sua hu-
mildade, e modéstia sabemos, que nunca tal lhe sahio da boca. Mas fa-
larão por elle os eíTeitos, que não pode reprimir. Foi o primeiro, do
qual se não teve noticia, se não muitos dias despois de sua morte, hum
papel, que se lhe achou em hum escritório, feito n'este mesmo dia, e de
sua mão assinado, ííe uma protestação da fé, que por sua, e de tal hora,
na qual estava com os olhos na eternidade, merece que, todos os que
somos seus irmãos do habito, e nos prezamos de discípulos de sua dou-
trina a imprimamos nas almas. E por isto a lançamos aqui, e será no
setruinte capitulo.
CAPÍTULO XXXIX
Da protestnção da fé que o Padre Frei Luís do Souto Maior deixou escrita:
e de sua bemai^enturada morte.
Ecce iam morior, vel potius dormia, et viuere incipio in Christo vita
mea, cmus (jratia vsque in hunc dicni in [ide ciusdem cathoUca cixí, /i-
488 IIYHO III DA HISTORIA Dn S. DOMINGOS
cfit minus henè, fnteor ingenuè et doleo. Quoniam verá, vt inqiiit Pmihis
Apostoltis, corde credUur ad iiistitiam: ore autem confessio fit a d saltitem.
Idárcò neccssarium potaiii nunc temporls, et m hac hora [idem meam con-
ceptis verbls atquc elunn scriptis breutíer ad salutem, siviitlque exemphim
aiiorum confiteri in tnnta pra'sertim profanarum vocuni iwinlate, vt ne
dicain licentii et mpunilate: próque ea [ide mmortales Deo gralias agcre^
gui vie pro sua immensa misericórdia digna tus est fidelem Calliolicum noa
solum e/Jicere, sed eluim vsqne \n finem serunre nullo quidem mérito meoi
sed polius mérito Christi Filij sni, et Domini mei, qui dilcxit me, et tra-
didit semetipsum pro me. Fins itaque mérito et iustitia et gratin spero
me posse saluari, id est., vitam tilam immortalem et healum me adrpturum
esse confido. Qnod autem pertinet ad quwstionem illam de gralia Dei,
seu gratia Christi própria circumuagatam, idipsiim firmíter teneo, et [ide-
litcr credo, quod seniper tenui, id est., qnod semper tenuit Ecclesia Catho-
lica et Romana, quodque tenuit olim D. Augiistinus, et post eum D. Tho-
mas verlssimus et fidelissimus eius interpres. Denique id quod me docuc-
runt prceceptores mei, id est, Theologi Lovanienses, quorum antoritas mihi
grauissima est et quorum discipuliis et alumnus per tot annos fui, licet
indignas. 20 die Blaij amo 1610.
Freg Luis de Souto mayor.
Não será rezão, que defraudemos do fruito, e significação de tão
santa escritura os, que não penetrão a Latinidade : daremos a tradução,
e diz assi:
Eis que morro, mas antes durmo, e começo a viver em Christo vida
minha : por cuja graça, e mercê vivi até lioje em sua fé Catholica itida
que não tão bem como devia, cbammente o confesso, e peza-me de co-
ração. Mas porque, como diz o Apostolo S. Paulo: crer com o coração
S3rve pcra a graça, e justificação; e confessar a fé com a boca, con-
vém pêra a salvação. Portanto me pareceo necessário, sendo chegado
a este tempo, e iiora, confessar, e declarar brevemente a fé, em que
vivo, por palavra, e por escrito, assi pêra salvação minha, como pcra
exemplo d"outros, em tempo principalmente de tanta novidade, por
não dizer atrevimento, e licença mal castigada de profanas lingua-
gens. E lambem pêra dar eternas graças a Deos pela mesma fé. Pois
fji servido por sua immensa bondade, não só íazer-me Católico Chris-
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 439
tao, mas conservar-me em sua santa fé até o fim da vida: e isto sem
nenhum merecimento meu, senão só poios méritos de meu Senhor Jesu
Clu'isto seu Filho, que me amou, e por mi se entregou á morte. E assi
espero, e confio poder-me salvar no que elle me mereceo, e por sua
justiça, e graça, quero dizer, alcançar a vida eterna, e bemaventurada.
E quanto a hurna questão, que anda mui ventilada, acerca da graça pró-
pria de Christo: declaro, que cu tcnlio, e creio firme, e firmemente o
que sempre tive, e cri, que he o mesmo, que sempre teve a Igreja Ca-
tólica Romana: e o que antigamente teve Santo Agostinho, e depois d'el-
ie seu mui verdadeiro, e fidelíssimo interprete Santo Thomás: e em fim
o mesmo, que me ensinarão os Mestres, quero dizer, os Theologos da
Universidade de Lovaina, cuja autoridade tem pêra comigo grandíssimo
peso, c poder, sendo como fui tantos annos discípulo, e filho, inda que
indigno de sua doutrina. Em 20 de Maio de 1010.
Frey Luis dií Souto mayor.
Após esta protestação, que foi como testamento, porque outro não
fez, nem tinha de que o fazer como verdadeiro Religioso, deitou-se na
cama: e sendo visitado de alguns médicos, desassombradamente lhes
disse, que morria, e que já era tempo, e que lhe não pesava. E repli-
cando hum, que lhe daria Deos muita vida, e saúde, respondeo: A da
alma, que hc a que importa. A hum Monge de S. Bernardo, que o vi-
sitou, e lhe perguntou, como se sintia, disse: Como quem está pêra fa-
zer huma jornada multo comprida, e muito perigosa.
Deste dia em diante foi entrando em fraqueza muito conhecida, e
sendo visitado amiúde dos médicos, recebeu o santo viatico: e antes de
o receber pronunciando muitas palavras, assi da sagrada Escritura,
Cfiino dos sagrados Concilies, com que reconhecia estar debaixo das es-
pécies sacramentais Nosso Senhor Jesu Christo verdadeiro Deos, c ho-
mem. Filho do Eterno Padre; fez-lhe uma devota, e eíficaz petição, que
o confirmasse em sua santa fé. E logo pedio ao Prelado, que na hora,
que entendesse ser tempo, lhe administrasse a santa Unção. Quando
veio á sesta feita antes do dia do Espirito Santo pareceo ao Reitor, que
convinha não lh"a dilatar, e tratando-o cora elle, e propondo-lhe o perigo
em que estava de poder falecer sem aquclle Sacramento: com muita
fonfiança respondeo, que não permittiria Deos tal : e que o receberia
440 i.ivr.o III DA iií;vronLV di? s. doming.os
no Sábado, c que era vospara da Fesla, sem embargo, que, como siibdito
SC resignava em sua vontade. Pedio então espaço pêra se aparelhar. Foi
o aparellio coníessar-se, e pedir ao enferinciro, que por reverencia dos
santos óleos lhe lavasse os pés. lie de considerar, que de quarenta
aiinos atrás se sabia, que nunca outras maons llfos lavarão, se não as
suas próprias; e n"aquella hora, sendo dons dias antes da morte, con-
sintio, que lhe tirassem as meãs calças, que segundo estilo da Religião
ainda tinha calçadas, havendo tanto tempo, que se podia haver por
i/.ento de todos os rigores d"ella. Xo Sabbado á noite pedio, que lhe
lessem a paixão do Evangelho de S. João: e começando a meditar hum
pouco no que ouvia, deu-lhe hum grande aballo de estremecimento.
Acudirão os Padres parecendo, que acabava, e poserão-ihe na mão a
candea. Disse espertando, que ainda não era tempo; que elle teria cui-
dado de a pedir. E vendo que estavão juntos todos os, que havia no
CoUegio, despedio-se d"elles com amor, e humildade, e forão as pala-
vras: Padres meus, como grande peccador, íjue sou, não tenho nenhum
bom exemplo, que lhes deixe mais, que o de bom estudante. Peço-lhos
]auito,que nunca se apartem da doutrina de Santo Agostinho, e de noses
Padre Santo Tomás do Aquino. Porque sem ella se não pode entender
u Apostolo S. Paulo: e tudo o, que se lhe responde são, (foi palavra sua
íormal), esfolagatos. Quiz dizer, agudezas soíisticas. Perguntarão-lhe a
que Santos queria lhe dissessem Missas, apontou em Santo Agostinho,
o com a occasião pedio, que lhe dessem hum livrinho das suas confis-
sões, e dizendo, que aquelle era o seu thesouro, tirou de dentro dous
papeis: hum foi o registo da imagem do Santo, com que se abraçou
como eiíi despedida: outro huma oração de sua mão escrita, que dizia
fora composta polo mesmo Santo pouco antes da morte. Mandou, que
lh'a lessem, porque he muito devota, e por ser tal encomendou aos Re-
ligiosos, que tomassem treslados, e a rezassem. Ao dia de Pentecoste
pola manham chamou ao confessor, e reconciliando-se pedio-lhe, que lho
aplicasse a indulgência concedida aos nossos Frades no artigo da ncorte
pola Sé Apostólica. Absolto por ella disse-lhe, que se ficasse embora,
porque elle se hia descançar com Deos; e pedio a candea; e, tanto que a
teve na mão, espirou com huma quietação de Santo, na hora, que no
Coro se começava a cantar dospois da Epistola o verso da Allcluya, Vou
sancte Spiriíus.
Houve no transito doesto Religioso dous estremes de considei'ação.
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 441
Quando soube ou entendeo, que morria, teraoo, c tremeo a humanidade
sobro oitenta, e tantos annos de vida mui occupada, mui trabalhada, e
mui religiosa. Este foi o primeiro estremo: que se colligio de huma pro-
funda tristeza, em que cahio, tanto que adoeceo, da qual sendo advirtido
que llie agravai-ia o mal, respondeo: Tristitia hccc elfectiis pwnitenticead
salulem. (*) Como significando que era effeito de dor, e arrependimento pêra
meio de salvarão. Ao mesmo propósito disse pouco depois com grande
elíicacia: Timendus est Deus, niaximè cum iudicot. Quiz dizer: Sempre
Deos he de temer, mas principalmente quando julga. Passou d'este es-
tremo a outro, com que acabou, de huma grande paz. e sossego da alma.
Porque, visitando-o os Doutores da Universidade, com tão boa sombra
se despedia de cada hum, como se tratara de passar pêra outro Con-
vento ; e todos sahião assombrados, e edificados. E não espantou menos,
que dizendo-lhe o Reitor da Universidade dom Francisco de Castro, que
hoje he Bispo da Guarda, que se lembrasse d"elle diante de Deos, res-
pondeo, que quanto n'elle era, prometia fazel-o. Assi o reconheceo logo
toda a Universidade por Santo nos effeitos. Porque entre a huma, e duas
despois de meio dia se juntarão no CoUegio com o Reitor muitos Dou-
tores, e Fidalgos, e grande numero de Religiosos, e elle foi o primeiro
que chegou a beijar-Uie a mão, o que imitarão alguns : mas os mais se
forão aos pés, entendendo, que a tal pessoa não era devida menos vene-
ríição. Foi á terra coroado de huma capella de rosas : e sobre o escapu-
lário, que era hum, que pcra este dia tinha bera guardado, porque fora
do Santo Arcebispo de Rraga dom Frei Bertolameu dos Martyres (**), levava
huma Cruz feita de rosas, e ao pescoço hum rosário, que muito pezava,
por ser feito da madeira do caixão, em que o mesmo Arcebispo estivera
primeiro sepultado. Nos dous dias seguintes teve solenes Ofíicios da Uni-
versidade, e de todas as Religiões, que concorrerão ao Collegio. E o Rei-
tor da Universidade lhe mandou cobrir a cova, que he no meio do Ora-
tório do mesmo Collegio, com huma fcrmosa campa esculpida do seguin-
te elogio.
Magnus Theolorjns vir coelo dignits Frater Ludcuicus Sotto maior Do-
minicanus^ fulei vehcmens assertor in vlraque Germânia, et Anglia, Pri-
marius Coninibriccc Biuinorum librorum inierpres longe ilhistris, et eméri-
tas: moriens ipsa die, et Lora, qua Spirilns Sundus corda repleuerat Apos-
{'] *2. Cor. 7. («•) Frei L. Caceias na vida de Santo Arcebispo 1. U. c. 22.
442 LIVRO 111 DA HISTORIA DE S, DOMINGOS
tolorum, su(P ?»oí7/.í diuimis viuam sanetitatis imaginem expressit, quam
vivens sibi parauerat Deum sequencio. Tandem hicsitus est anno IGIO, sua:
(Bi ai is 84.
CAPITULO XL
Dos esludos que ha nesle Convento. E como lhe foi annexada a Igreja,
e renda do antigo Mosteiro de Ansedc pola Sé Apostólica.
Floreceo sempre n"esta casa estudo geral de Filosofia, e Theologia,
e he a primeira Academia da Ordem n'esía Provinda. São ordinárias duas
lições de Theologia, e huma de Artes, e Filosofia. Em tempos atrás or-
denou n'ella el Kei dom Manoel hum CoUegio pêra certo numero de Re-
ligiosos, o qual el Rei dom João seu filho mandou despois passar a Coim-
bra com nome de Santo Thomas, como se dirá em seu lugar, e anno
próprio conforme á ordem, que seguimos. E agora o locamos, pêra quo
se saiba que aqui teve sua origem.
Além d'esie estudo, que he de portas a dentro, e mais próprio dos
Religiosos, dado que também admitta alguns seculares : ha outro fora,
de duas lições publicas de casos de consciência, particular pêra secula-
res. Estas se iem na Ermida de Nossa Senhora da Escada : e tem dous
lentes, que nomea o Capitulo Provincial. Foi obra, e instituição da Rai-
nha dona Gaterina, digna consorte do Christianissimo Rei dom João III,
e grande imiiador de suas virtudes : e sinalou de esmola por ella ao
Convento cem mil reis de juro. Mas vendo, que o beneficio, com ser tão
geral, não abrangia áquelles que por falta de sustentação, sobejando-lhe
as mais parles, não podião assistir na cidade, ordenou hum Collegio de
Clérigos pobres com numero certo, e porções determinadas. Conselho
de alto entendimento. Porque, além do mérito da esmola, e mantença
que S8 dá a pobres: a comida certa obriga-os a estudar: e o estudo a
se habilitarem pêra servirem de Curas das Igrejas, e em outros benefi-
eãos : com que se vem a dilatar a esmola por todos os membros da Re-
publica. São os Collegiaes trinta e dous: dos quaes mandou, qu^s doze
fossem sempre do Arcebispo de Lisboa, e os vinte do restante do Rei-
no. Aos do Arcebispado, como a gente, que está em sua casa, ou perto
d'ella, se dão de porção doze mil reis por anno ; aos de mais longe a
quinze mil réis pagos em dinheiro, e aos quartéis, e de mão do Prior
do Convento. Pêra serem admitlidos passão por rigoroso exame de La-
PARTICULAR DO REINO DE PORTUGAL 443
tinidade, despois de aprovados era vida, e costumes, e limpeza de san-
gue: e sempre lia consQrso de pretendentes, e he preferido o mais há-
bil, e mais digno. Tem obrigarão de certos annos de assistência, e con-
tinuação quotidiana de manhã, e tarde : pêra o que ha dous apontado-
res, cujo oíTicio he tomar era lembrança as faltas de cada hum ; e, quan-
do chega ao quartel, tanto recebem menos, quanto montão as lições, que
perderão pro rata do qual vai a porção. O Prior he o administrador de
tudo, 6 o que manda fazer os pagamentos, que fica sendo a maior corn-
modidade de todas pêra os pobres, porque he almoxarife certo, e bem
assombrado. A contia, que se monta, deixou a Rainha em juro perpetuo
assentado na alfandega da cidade.
Mas, porque falamos em juro, o rendas, será bem dizermos alguma
cousa das que susfentão a este Convento : as quais he de saber, que pêra
cem Frades, que de ordinário nelle residem, além de grande numero de
hospedes quasi sempre contínuos, são mui curtas, como era todos os
mais conventos do Reino. E he a rezão tal, que desejo encubril-a por
r.ão culpar nossos maiores, que ou polo costume do bom tempo, em que
vivíamos sem próprios, ou por brio de se mostrarem izentos de cubica,
forão muito faciles em largar legitimas, e heranças grossas, fazendo pou-
co caso do dano das Communidades a troco da gloria de liberais. O que
sendo visto, e considerado pola Rainha dona Caterina no tempo que go-
vernava este Reino na menoridade d'el Rei dom Sebastião seu neto, pro-
curou impetrar da Sé Apostólica hum Mosteiro de boa renda de alguns
antigos, que por estarem quasi despovoados de Religiosos, se davão po-
ios Reis a pessoas particulaies pêra viverem das rendas d'elles, com no-
me de Commendatarios. E vagando o de Ansede no anno de lo59, por
falecimento do Commendaíario, que o possuía, escreveo ao Pontífice em
nome dei Rei, no qual corrião todos os negócios, e papeis públicos. E
porque a nota testimunha bem as nacessidades, que lemos dito da nossa
casa, e o estado da que se pedia, não será fora de propósito tresladar-
mos aqui a carta: e he a que se segue.
3íuito Santo em Chríslo Padre, e mui bemaventurado Senhor, eu de-
sejo, que o Convento deS. Domingos d' esta cidade tenha sufficienfes alimentos
jiera poder sustentar o numero de Religiosos, que he necessário pêra bom ser-
viço de Nosso Senhor n'esta cidade, e Reino, e denta Republica no espi-
ritual, por ser casa de estudo de Artes, e Theologia, donde saem vinte e
444 LIVRO III DA HISTORIA DE S. DOMINGOS
tantos pregadores por toda a cidade, e Reino, e onde ha continuas confiS'
soes, e onde todas as principais duvidas de consciência vão ter, fera que
com a determinação dos letrados da dita casa se quietem as consciências :
e por haver muitos annos, que a terra está em costume de achar na dita
casa aviamento peva todas estas cousas. E, porque pêra isto se poder sus-
tentar, he necessário ter grande numero de Relijiosos, pêra os quais tem
a casa mui pouca renda : e minha fazenda está mui despesa pêra poder a
isso acudir, por a mui continua guerra, que com os Mouros inimigos de
nossa santa fé continuamente trago nas partes de Africa, e índia : mandei
jiedir a V. Santidade me qaizesse fazer mercê de unir o Mosteiro de An-
sede ao dito Convento: por quanto mais serviço de Nosso Senhor será dar-
se a dita casa, que estar, como otèqui esteve, com cinco ou seis Religiosos
por forma, e a mais renda comel-a hum Commendatario. Porque também,
quando a V. Santidade lhe parecesse povoar-se o dito Mosteiro de Ansede
d'alguns Padres da dita Ordem de S. Domingos, que preguem na terra
onde o dito Mosteiro está, que tem necessidade de doutrina, o Padre Pro-
vincial, e Padres de S. Domingos o facão. E, porque importa muito a
boa conclusão deste negocio, no qual espero, que V. Santidade folgue de fa-
zer a mercê, que lhe pesso : vai sobre elle, e outros negócios, que tocão d
dita Ordem, o Padre Frei Julião, pessoa de muita confiança: e que porei
Rei meu Senhor, e avó, que santa gloria haja a ter delle, o mandou em
tempo da boa memoria dos Papas Paulo, e Júlio sobre outros negócios da
dita Ordem. Peço muito por mercê a V. Santidade, que, no que acerca dis-
to lhe requer por porte da dita Ordem, folgue de lhe fazer toda mercê, que
houver lugar, no que a receberei mui grande de V. Santidade. 3íui santo
em Chrislo Padre, e mui bemaveniurado senhor. Nosso Senhor por muitos
annos conserve V. Santidade em seu serviço. De Lisboa a 10 de Julho de
lo50.
Concedeo o Papa na annexação da Igreja, vistas as rezões da carta.
E com os rendimentos delia, que impurtão pouco mais de dous mil e
quinhentos cruzados forros pêra o convento, se aliviarão as nece*ssidades
que passava, e com elles, e com a providencia, e bom governo dos Prio-
res se tem reformado o edifício de quasi toda a casa, e enriquecida a
Sacristia de ornamentos pêra o culto divino : de sorte, que faz ventagem
a todas as de Lisboa. O Mosteiro de Ansede he tão antigo em sua fun-
darão, que ha memorias, com que se prova, que no anno de 1107 havia
PARTICILAU DO RFJNO DE PORTUGAL 443
já n'elle Religiosos, e que no de MOO foi dado aos Cónegos regrantes
de Santo Agostinho, em cujo poder estava, quando el Rei dom Sebastião
o impetrou pêra a nossa Ordem. E por boa conta parece, que os ante-
cessores dos Cónegos regrantes devião ser Frades de S. Bento. A casa
lie freguezia do lugar, e tem outras Igrejas, e freguezias annexas com
seus Curas, e Abbades apresentados polo Prior de S. Domingos de Lis-
boa. Assi fica sendo Ansede huma das Vigairarias da Província : e o Vigá-
rio, ou qualquer outro Frade ali residente tem dispensação do Papa pêra
administrar os Sacramentos, como verdadeiro Parrocho. O Bispado, cm
que cae he o do Porto.
Não he pêra esquecer, que se guarda n"este mosteiro de Ansede de
tempos immemoriaes huma caveira de homem inteira de tal virtude, que
todo animal danado, que com ella toca, fica logo são. E de muitas le-
goas á roda acode o povo ao beneíieio ; e, se não podem trazer o animal
infeclonado, com levarem pão ou palha tocada na santa cabeça, (que este
he o seu nome, e não se lhe sabe outro), como esteja em estado que o
passa comer, logo fica livre do perigo.
CAPÍTULO L
Das Relíquias que ha no Cowccnto : e de algumas moiwrias antigas
que nclle se acltão.
O que falta de renda, e fazenda a este Convento, lhe sobeja cm ou-
tra riqueza de mais estima, que he hum tezouro de grandes, e preciosas
relíquias, que se guardão na sacristia, recolhidas com decência em hum
nicho aberto na grossura da parede do topo fronteiro da porta. íle a pri-
meira huma cruz feita do verdadeiro lenho, em que nosso Redentor Jesu
Christo padeceo. Está engastada em outra grande de prata, que junta-
mente faz custodia a muitas outras reliquias. Foi esta peça do Mestre
Frei Nicolao Dias. As reliquias lhe dera em Roma o Papa Pio Quinto,
de quem por suas grandes partes era muito amado : e elle as deu a este
Convento como filho, que era seu de habito, e profissão.
Tem mais dous espinhos da sagrada Coroa de Christo, em seus viris
de cristal, com suas guarniçijes de prata douradas.
Em huma caixa dourada, e bem guarnecida se guarda a casula inteira
com que nosso Padre S. Domingos celebrava no tempo, í}ue residia em
4ÍG I.lVnO III DA IIISTOHIA DL S. DOMINGOS
Tolosa i)régan(lo aos hereges Albigenses. lie de huma seda síngella como
tafetá : e mostra na parte, que cae sobre o peito, sinais bem vistos, e
matizes santos das lagrimas, que derramava n"aquelle celestial ministério.
Foi dadiva das Freiras do insigne Mosteiro do Prolliano, feita ao Padre
Mestre Frei António de Sousa, quando as visitou como Vigário geral
que era de toda a Ordem, vindo de Roma pêra Portugal, e elle de sua
mão a i»oz nesta casa, porque pêra ella a pedio.
Em hum engaste de prata está a cabeça do Protomartyr Santo Este-
vão, que a Rainha dona Caterina deu a esta Sacristia com a de outro
Tílartyr.
Outra semelhante guarnição sobre huma cabeça das onze mil Virgens,
e hum pedaço de huma costa de Santa Caterina de Sena, e outro osso
grande da Reata Margarida, que, sendo nacída em Lisboa, quiz ir viver,
e morrer á vista da sepultura do nosso glorioso Patriarca em Bolonha,
com o habito, e profissão de Freira terceira, cuja vida, se Deos no la
der, não ficará fora d'esles escritos, quando chegarmos aos annos. em que
íloreceo.
A casa da Sacristia, em que estas Reliquias estão, be bem digna Cus-
todia d*ellas, porque, sem grande encarecimento, he amaisfermosa qua-
dra em capacidade, e proporção, que ha era todo o Reino, inda que me-
tamos em conta Conventos Rcíilengos.
Mas, porque nos não fique nada por dizer do (pio ha digno de histo-
ria neste Convento, passaremos a algumas antiguidades, que n'elle acha-
mos.
Na Igreja, entre os arcos da capella do Santo André, que hc no Cru-
zeiro, e da que dá servintia pêra a Sacristia, parece no alto imm pequeno
tumulo de pedra sumido na parede, que corre a prumo com ella : e na
face de fora, que só descobre, tem huma letra, que declara jazer n'elle
o Infante dom Afonso, filho dei Rei dom Afonso, o terceiro, fundador
que foi da mesma Igreja. Este Príncipe jouve até nossos tempos, no
baixo do cruzeiro, em huma caixa de mármore branco, entalhada em
roda de arvoredos, e apparatos de montaria, a qual, por ser demasia-
damente grande, e parecer, que em tal lugar dava pejo, foi desfeita : e
o corpo também desfeito pêra ser agasalhado em lugar mais estreito, e
no sitio, em que hora está. Quando foi descuberto, fez espanto por gran-
deza de estatura, e grossura de carnes, de que ainda estava acompa-
nhado inteiramente, salvo nas pernas, e cabeça. Mas não espantou menos
PARTICULAR DO RIÍINO DE POUTLT.AL 417
O liabito, em que foi achado : estava envolto em hum pano de seda ama-
relia, e cingido com huma corda de linho: corda, e pano tão novo, e
são, como posto d'aqnella hora, em cabo de mais de duzentos e sincoon-
ta annos. O cingidouro pareceo, que devia ser contrição, e humildade do
defunto, ou devação do Padre S. Francisco. ííc de saber que este Infanto
foi da Rainha dona Breitiz, e não da Condessa de Bolonha, como d"aates
publicava a fama popular (*).
Nas costas da capella de Jesu, na parede, que responde ás crastas,
está sepultado em hum moimento de pedra alto, e sumido dentro nella
hum dom Pedro Peres, Cónego de duas Cathedraes, cousa que na sin-
geleza dos tempos antigos não fazia dissonância, sendo tão claramente
incompatível. Faleceo poucos annos despois de fundada a Igreja. Huma
cousa, e outra consta de hum pequeno letreiro, que sobre a sepultura
parece á face da parede em letras Góticas, e diz assi.
Hic iacel ãonus Pctrus Petri Cunonicus Compostellnncc et Ulixhonensis^
Ecclesioi, qui iti scncclute bona plenus dierum, diuitijs et sapientíd mor-
tuus est in kahitn Prcedicatorum. Obijt aulem in vigília Beali Laurcntij
sub .Era MCCCIIIL
Em vulgar responde.
Aqui jaz dom Pedro Peres, Cónego das Igrejas de Compostella, (que
hc Santiago), e Lisboa, que em boa veihice cheio de dias, riquezas, e
saber, faleceo no habito dos pregadores : e acabou vespara de S. Lou-
renço na era de Cezar de mil trezentos e quatro, (que responde aos annos
de Ckristo 1266.)
Coslumavão n'aquelle tempo da primitiva Ordem alguns Ecclesiasii-
cos nobres, e também seculares, se no estado se achavão desobrigados,
quando nas enfermidades erão desenganados poios médicos, que não ha-
via que esperar da vida, ou quando o numero crecido dos aimos dava
aviso, que não podia ser de muita dura, acolher-se, como dizem, á Igreja;
Pedião licença aos Prelados, huns pêra tomarem o habito, e professarem
logo : outros pêra ficarem com nosco, e fazerem profissão a sen tempo:
e todos com tenção de ganharem as indulgências, que os Frades goza-
mos no artigo da morte, e participarem despois d'clla dos muitos suíTra^
(•) Fcriifio Lo|teí ii;i Croii. tiol Rei (I'jm Dinis.
448 LIVRO III DA íi:STOniA DE S. DOMINGOS
gios, que se fazem por todos, em toda a Ordem com cuidado, e conti-
nuação. E assi acontcceo a este Padre, que, pouco antes de falecer, se
recolheo com nosco, e tomou o liabito. Santo, e salutifero pensamento
de parte dos que tal remate procurão a seus dias, mostrando-se rfisso
católicos, e conhecidos da vida futura f mas grande, e aventajada beni-
gnidade, e misericórdia a da Religião em aceitar, e adraittir enli'e si
aquelles que tendo dado o asso das forças, e meliior idade ao mundo,
não trazemos aos claustros mais que o ferro, e ultimo ferro da vida pêra
darmos pejo, mais que proveito. Porque sendo assi que os, que cavarão
na vinha do pai de familias do Evangelho, não forão arguidos de mao
serviço poios emulos, se não só de acudirem tarde : por onde se vc, que
todavia estirarão os braços, e apertarão a enxada, e suarão : não ha du-
vida, que a obra d'este bom velho teve muito de mercantil, e uzuraria :
pois morrendo cheio de riquezas, e de aanos, (como diz o epitáfio), nem
dia exprimentou de pobre, que he o essencial da religião : nem hora do
trabalho : nem parece, que veo mais que a lograr o suave do habito, e
não sintir o agro. Que na verdade os partidos, que não são iguais, e
como dizem de dar, e tomar, tirania são, e não partidos. Sirva isto pêra
vermos, e entendermos o muito, que devemos estimar as Religiões, que
se se deixão vencer de nossas desigualdades, he a causa, porque são vi-
nha de Deos, e os, que as governão, seguem sua condição, e bondade
não se buscando a si, se não o bem dos próximos, e a maior gloria do
mesmo Deos, como verdadeiros servos seus.
Mas tornando ao nosso Cónego, consta-nos todavia que, ainda que
tarde, soube dispor, e assentar bem suas cousas. Porque deixou muita
fazenda de raiz á Sé de Lisboa, onde a ganhara. E, porque a Ordem não
possuia próprios, e pola mesma rezão não aceitava obrigação de Missas
nem suíTragios perpetua, poz clausula nos bens, que deixou á Sé, que
todos os annos lhe mandasse o Cabido cantar hum anniversario n'este
Convento. E a hum criado deixou duas moradas de casas, huma ao poço
de Borratem, outra pouco adiante, onde chamão a Porta Nova, com en-
cargo de dar todos os annos na vespara de S. Lourenço, que foi o dia
em que faleceo, huma pitança aos Frades. Esta devação, que os homens
do bom tempo tomavão tão em grosso, que se não contentavão com me-
nos que professar nas Religiões, que todavia era obra de grande mere-
cimento, inda que fosse por huma só hora, vierão a trocar os que suce-
derão em se contentarem de levar á cova vestido o habito da Religião, a
PARTICULAU BO REINO DE PORTUGAL 4Í9
que mais se inclinão. O que, alem de ser também indicio de animo chris-
tão, e pio, grangea a quem o faz muitas graças, e indulgências concedi-
das poios Summos Pontifices, por ser trajo de gente dedicada a Dcos,
e simbolo de virtude.
Esta prevenção da ultima hora, que tão digna he de nos trazer des-
velados, fazião também no mesmo tempo alguns Sacerdotes, regulares
pessoas de authoridade : mas por outro modo, e não tanto ao tardo.
Despois que tinlião bem servido a Ordem, e trabalhado cada hum em
sua vocação, procura vão recolher-se em algum Convento, onde a obser-
vância andasse mais em seu ponto, e esperar entre santos, fim santo.
Assi o vimos no titulo do Convento de Santarém em alguns Padres, que
a elle vierão no ultimo quartel da idade (*). E achamos posto em lembran-
ça por Jeronymo Blancas, Cronista Aragonês, referido polo Mestre Frei
Francisco Diago (**): que Frei Garcia de Vulcos, de nação Biscainho, e filho
do Convento de S. Domingos de Çaragoça, Mestre em Theologia, e mui
douto em ambos os direitos Canónico, e Civil, despois que sérvio o car-
go de Provincial de toda Espanha, antes da separação das Províncias
como por obrigação correra, e visitara as casas todas : de tal maneira se
contentou da paz, e sossego, que achou Giesta de Lisboa, e da pureza de
espirito, que enxergou em todos os moradores d'ella, que se determinou
acabar aqui seus dias. E assi diz este Autor, que o fez : e affirma, que
sobio a tão alto gráo de santidade, que floreceo em vida, e morte com
muitos milagres : dos quais postos em pintura estava seu sepulcro ro-
deado. Nas memorias do Convento não parece nenhuma, que nos dè luz
de tal cousa : mas dizer que estavão os milagres pintados polas paredes
conforma com o que era costume d'aquella idade em Portugal, como
apontamos nas vidas dos Frades de Santarém : e o faltar-nos cá noticia
de hum Religioso Estrangeiro, não deve tirar fé ao historiador antigo,
quando a cada passo vamos tropessando em descuidos contra os nossos
naturais.
(.) L. 2. c. 38. (••) Ka hist. da Ord. da Prov. de Arag;to 1. 12. c. 37 e 72.
FIM DO PRIMEIRO VOLUME.
VOL. I. 29
TABOADA
DOS capítulos dos três primeiros livros d esta
PRIMEIRA PARTE DA HISTORIA DE S. DOiMlNGOS PARTICULAR DO REINO
E CONQUISTAS DE PORTUGAL
LIVRO I
Pag.
Capitulo i. Do nascimento do Patriarca S. Domingos, sua criação,
estudo, e virtudes, até tomar o habito dos Cónegos Regulares
de Santo Agostinho 1
Cap. II. Parte Frei Domingos pêra França, passa a Paris, e a Roma :
torna de assento a Tolosa pregar aos hereges : funda hum reco-
lhimento de donzellas : vence muitos hereges em disputas : con-
verte outros. Aparece-lhe a Virgem Nossa Senhora : insina-lhe a
devação do santo Rosário, e manda-lhe que a pregue, pag. . . 8
Cap. III. Começa-se a guerra contra os hereges Albigenses. Dá S,
Domingos principio "ao Santo Oílicio da Inquisição : confirma-o o
Summo Pontífice, e dá-llie titulo de Pregadores a elle, e a seus
companheiros 14
Cap. IV. Censura-se hum lugar de outro Rehgioso da mesma Or-
dem, e opinião 20
Cap. v. Passa o campo Catholico contra outros lugares. Contão-se
algumas maravilhas, que Deos obrou polo Santo. Cercão os Ca-
Iholicos a cidade de Tolosa : retirarão-se com perda, c desfaz-se
o campo 26
Cap. VI. Anima o Santo aos Gatholicos com huma alegre profecia de
fim da guerra. Gontão-se algumas maravilhas obradas por meio
do santo Rosário : e a grande victoria, que se alcançou dos here-
ges 2í)
Cap. VII. Dá S. Domingos principio á sagrada Ordem dos Pregado-
res. Pede corfirmação ao Pontífice: alcança-a verbal, e condicio-
nal. Funda em Tolosa o primeiro Convento. Faz renunciação de
rendas, e fazenda. Torna a Roma em demanda da confirmação :
contão-se humas visões, que alii teve 31
«
452 TABOADA
Pag-
Cap. viu. Alcança S. Domingos em Roma letras Apostólicas de con-
firniaçlío de sua Ordem, com titulo de Ordem dos Pregadores.
Torna a França, faz eleição de Prelado entre os seus, e mando-os
a pregar por varias partes 38
Cap. IX. Entra Frei Gomes em Portugal. Dá-se conta de quem era
em nome, pátria, e calidades 41
Cap. X. Confirma-se a verdade de Frei Sueiro Gomes ser Portu-
guez : com algumas rezões, com as quaes se descobre, que tam-
bém era nobre, e letrado 46
Cap. XI. Dá-se conta do estado, e governo do Reino de Portugal na
chegada de dom Frei Sueiro Gomes: e do que fez entrando, e
como deu principio ao primeiro convento, que houve em toda Es-
panha da Ordem dos Pregadores 40
Cap. XII. Descreve-se o sitio do primeiro Convento, que a Ordem de
S. Domingos teve em Portugal, e a fabrica d^elle 54
Cap. xni. Das grandes maravilhas, que Deos IVosso Senhor obrou
em Roma por S. Domingos. Conta-se a nova forma de habito, que
o Santo deu aos seus Frades, e a rezão d'ella, e como poz em
clausura as Freiras de Roma. Ordena lição de Theologia no sa-
cro Palácio, e he o primeiro leitor d'ella. Prega a devação do
santo Rosário 59
Cap. xiv. Mostra-se como S. Domingos foi o primeiro, que insinou
a rezar por contas os mistérios de Nossa Redemção, que he a de-
vação do santo Rosário, contra os que a querem fazer mais anti-
ga: conta-se como resuscitou ao sobrinho do Cardeal Estefano
era Roma 04
Cap. XV. Contão-se outros milagres. Parte o Santo pêra Espanha.
Escreve-se o que lhe succedeo no caminho. Funda em Segóvia
Convento de Frades, em Madrid de Freiras. Torna pêra Raiia . 71
Cap. XVI. Parte o Santo de Madrid pêra Itália: e dom Fiei Sueiro
pêra Portugal. Pedem os Prelados de Portugal a dom Frei Suei-
ro pregadores pêra seus Rispados. A Infante dona Rranca offere-
ce fundar casa em Coimbra 77
Cap. XVII. Parte dom Frei Sueiro pêra o primeiro Capitulo Geral de
sua Ordem a Itália. Conta-se o que succedeo a S. Domingos des-
pois que sahio de Madrid até á celebração d'elle: e o que ficou
ordenado n'aquella santa junta 82
Cap. xvih. Celebra Nosso Padre S. Domingos segundo Capitulo Ge-
ral em Bolonha. Acode a elle dom Frei Sueiro, e torna pêra Es-
panha com nome de Provincial, e com letras Âpostohcas em seu
favor, e dos seus 89
Cap. XIX. Prosegue o Provincial dom Frei Sueiro Gomes a visita de
sua Provincia nos Reinos de Gastella, e Portugal. Conta-se o fe-
DOS capítulos d'este volume 4o3
Pag.
lice transito de Nosso p^lorioso Patriarcca S. Domingos : e a elei-
ção, que se fez em seu lugar de Mestre Geral da Ordem ... 9o
Cap. XX. Vem a Portugal o Provincial dom Frei Sueiro, treslada o
Convento de Montejunto pêra Santarém ao sitio de Monlijrás . 100
Cap. XXI. Vai o Provincial a Coimbra chamado dei Rei dom Sancho
Segundo. Concordão com o Arcebispo de Braga, sendo por am-
bos eleito juiz das contendas, que trazião 104
Cap. xxu. Assiste o Provincial a huma escritura de composição en-
tre el Rei dom Sancho Segundo, e as Infantes suas tias. Averi-
guão-se os annos, que reinarão dom Afonso Segundo, e dom San-
cho seu filho 108
Cap. xxni. Como foi fundado o primeiro Mosteiro de Freiras, que
houve em Portugal da Ordem dos Pregadores 114
Cap. xxiv. Censura-se huma letra esculpida de fresco em huma pe-
dra do Mosteiro de Chellas: descobre-se o artificio, e tenção
d^ella 121
Cap. XXV. Confirma-se a matéria do Capitulo antecedente com hum
Breve Apostólico, e com outros documentos 123
Cap. XXVI. De algumas particularidades notáveis do mosteiro de
Chellas 129
Cap. xxvii. Da madre Sór Filippa do Espirito Santo 133
Cap. XXVIII. Do grande augmento, e prosperidade da Província de
Espanha no tempo, que foi governada por dom Frei Sueiro. Dá-
se conta de seu grande espirito, e virtudes,, e dos annos que vi-
veo 141
LIVRO II
Cap. 1. Do sitio da villa de Santarém: e do que nella se deo de
novo ao Convento de S. Domingos de Monlijrás 147
Cap. II. Começa-se a obra da casa nova no primeiro sitio, que se
comprou : suspcnde-se por hum estranho caso, e funda-se a casa
em outro. Dá-se conta de quem foi o que deu a traça da Igreja,
e crasta lo2
Cap. ni. Prosegue a relação do edifício da casa nova de Santarém
Contão-se algumas antiguidades tocantes a ella. Mostra-se como
lhe pertence a precedência de todos os Conventos de Espanha . lo6
Cap. IV. Mostra-se como pertence a este Convento a precedência
de todos os de Espanha 139
Cap. V. Da grande santidade que florecia no Convento de Santa-
rém: com huma notável memoria da pobreza, em que n"elle se
vivia. Dá-se conta de quem erão dous Religiosos, que seguirão a
el Rei dom Sancho fora do Reino 163
454 TABOADA
Pag.
Cap. VI. Da santa vida, e morte do Padre Frei Fernando Pirez,
Cliantre que foi da santa Se de Lisboa ICG
Cap. VII. Da religiosa vida, e santa morte de Frei Martinlio de Lis-
boa: e do irmão Frei Martinlio leigo IGO
Cap. VIII. Do Padre Frei Pedro de Santarém, e do irmão leigo Frei
Martinho segundo 171
Cap. IX. Do santo fim de Frei Domingos, e Frei Gonsalo irmãos lei-
gos 173
Cap. X. Do Padre Frei Domingos Gomes Prior do Convento de San-
tarém 176
Cap. XI. Do Padre Frei Fernando de Jesu, de suas doenças, e pa-
ciência: de sua santa morte, e aparecimento despois d'ella . . 170
Cap. XII. De quem foi o Padre Frei Domingos do Cubo, e de sua
vida, e morte, e sepultura 181
Cap. XIII. Do nacimenlo, geração, estudos, e peregrinação do san-
Frei Gil, até o dia de sua conversão 18o
Cap. XIV. Da milagrosa conversão do santo Frei Gil, e como tomou
o habito de S. Domingos, e fez profissão 189
Cap. XV. Sae Frei Gil de Palencia, mudado pêra Santarém. Conti-
nua suas penitencias. Contão-se as perseguições, e assombramen-
tos, que padeceo do Demónio, até alcançar o escrito que lhe ti-
nha dado 192
Cap. XVI. Parte Frei Gil pêra França a estudar Theologia. Conta-se
a santa vida, que fazia em Paris estudando, e como recebeo o
grão de Doutor pola Universidade, e foi declarado pola Ordem
por Mestre, e leitor de Theologia 196
Cap. XVII. Torna Frei Gil pêra Espanha. Conta-se o que lhe succe-
deo no caminho : e como começou a pregar em Portugal. Refere-
se bum estranho artificio, com que o Demónio o tentou, e como
se houve n"elle 200
Cap. XVIII. Como foi eleito em Provincial o Santo Frei Gil, e do
cuidado, e inteireza, com que procedeo no cargo. Passa á ilha de
Malhorca celebrar Capitulo Provincial. Dá-se conta da tempesta-
de, que teve no mar, e das afrontas que por rezão d'ella lhe fi-
zerão : e como cessou por sua oração 204
Cap. XIX. Do estranho meio com que S. Frei Gil foi sabedor do
naufrágio de huns Capitulares que hião em outro navio. Despa-
cha Religiosos pêra Inquisidores de algumas cidades de Catalu-
nha. Celebra Capitulo em Burgos. Aceita-se n'elle o Convento da
cidade do Porto. Vem a Portugal. Prega com liberdade a el Rei
dom Sancho. Recolhe-se a Santarém 209
Cap. XX. Dos grandes effeitos que fazia no Santo a força do amor
Divino, com diversidade de enlevamentos, c raptos maravilhosos.
DOS capítulos d'este volume 45S
Contâo-sc alguns. Dá principio ao Convento de Lisboa .... 213
Gap. xxr. Como foi decretada a deposição dei Rei dom Sancho do Reino:
e como lh'a intimou era sua pessoa o Santo Frei Gil. Contão-se
as afrontas, que por isso recebeo: e a revelação que teve no meio
d'ellas: e huma antiguidade, em que se mostra quanto era esti-
mado dei Rei dom Afonso 2IG
Cap. XXII. De alguns effeitos admiráveis da oração de S. Frei Gil,
em que se vio por casos differentes o muito, que por ella alcan-
çava de Deos 220
Cap. XXIII. Vem a Santarém o novo Provincial. Acha-se presente a
huma extasi do Santo. Dá el Rei dom Afonso principio á Igreja
de S. Domingos de Lisboa. Refere-se a familiaridade, com que
tratava a S. Frei Gil em Santarém: e como convaleceo da gota por
seu meio. Torna o Santo a servir o cargo de Provincial . ... 223
Gap. xxiv. Manda o Santo Provincial pregadores a terra de Mouros.
Gonta-se hum estranho caso que lhe succedeo caminhando por
Gastella : e outros em Portugal, todos em matéria do espírito.
Pede absolvição do cargo em Capitulo Geral: alcança-a. Conta-se
huma penitencia, que n'elle se deu a huns Frades 228
Cap. xxv. De algumas visoens sobrenaturaes, que o Santo teve : e
milagres que por seu meio, e oração obrou o Senhor .... 232
Cap. XXVI. De algumas cousas milagrosas, que o Santo fez por sua
mão 23G
Cap. xxvii. De outros casos milagrosos obrados por intercessão do
Santo ausente: mas ainda vivendo na terra 239
Cap. xxvin. Do grande nome, que o Santo tinha em toda a Ordem,
e por terras estranhas: e de seu felice transito 242
Cap. XXIX. Dos sinais que houve da gloria do Santo, por diversidade
de successos, que a confirmarão 24o
Cap. XXX. Como resuscitarão por orações feitas ao Santo três mor-
tos: e forão livres do Demónio quatro pessoas 249
Cap. XXXI. Como se converteo hum Mouro, e forão curadas al-
gumas pessoas de grandes males por meio de Relíquias do
Santo 254
Cap. XXXII. De muitas, e varias doenças, que tiverão milagrosa cura
encomendando-se os enfermos ao Santo, ou usando de suas Re-
líquias 257
Cap. 'xxxiii. De algumas molheres que alcançarão remédio em partos
dificultosos, encommendaiido-se ao Santo: e como forão curados
surdos, e mudos com a terra de sua cova 261
Cap. XXXIV. Como foi tresladado o Santo pêra a sua capella . . 264
Cap. XXXV. Como por intercessão do Santo alcançarão huns pobres
bomen* remédio pêra vinho danado, o perdido : c outros o te-
456 TABOADA
Pag.
verão em graves doenças, e varias necessidades 266
Cap. xxxvi. Da santa vida, e glorioso transito do Padre Frei Ber-
nardo de Morlans: e de dous mininos Santos seus discipulos . . 270
Cap. xxxvii. Como forão achados os corpos dos Santos Frei Ber-
nardo, e seus discipulos, e coUocados em altar particular . . 27o
Cap. xxxvhi. Do Santo Frei Bernardo segundo, sua conversão, vida,
e milagres, e sepultura 280
Cap. xxxix. De alguns Religiosos, que despois de servirem grandes
cargos na Ordem se recolherão n'este Convento. E outras anti-
gualtias d'elle 283
Cap. xl. Das grandes maravilhas que em vários tempos se virão no
cemitério, era confirmação da santidade do Convento. Das pessoas
Reais que n'elle jazem. Dos Religiosos, que os Reis lhe tirarão
pera.differentes cargos 288
Cap. xli. Da devação, e virtudes do Padre Frei Manoel de Beja, e
do irmão Frei Diogo das Vinhas. E da jornada que fez á índia
o Padre Frei Pedro Coelho 293
Cap. xlh. Vida, e morte do irmão Frei Diogo de Saldanha, filho
doeste Convento 296
Cap. xlhi. Das santas Relíquias que ha n'este Convento .... 299
LIVRO III
Capitulo i. Da fundanção, e princípios do Convento de Coimbra . 305
Cap. u. Vida, e morte, e milagres do Santo Frei Paio .... 309
Cap. ni. Prosoguem outros milagres do S. Frei Paio : com estra-
nheza do sino fundido com a terra da sua cova 313
Cap. IV. De algumas antiguidades d'este Convento, e como foi mu-
dado pêra o sitio, em que hoje está 316
Cap. V. Do processo do edificio do Convento novo : e da grande
virtude, e partes do Mestre Frei Martinho de Ledesma . . . 320
Cap. VI. Vida, e morte de dom Frei Vicente da Fonseca Arcebispo
de Goa, Primas da índia 323
Cap. VII. Do Padre Frei Thomas Pinto, Inquisidor 325
Cap. VIII. Do grande cuidado, e solemnidade com que na cidade,
e Convento de S. Domingos de Coimbra, se celebrão as festas
do Santo Rosário. Referem-se dous milagres succedidos de pró-
ximo por intercessão da Virgem 330
Cap. IX. Da origem, e principio do Convento da cidade do Porto:
e das causas que houve pêra se aceitar pola Província . . . 333
Cap. X. Dos Religiosos que forão mandados fundar o Convento do
Porto. Dá-se conta dos muitos favores, que oPispo lhes fazia. E
como despois mudou parecer, e das rezões que pêra isso teve . 337
DOS capítulos d'este volume 437
Pag.
Cap. XI. Biiscão-se intercessores poderosos por parte do Convento :
não valendo nada, queixão-se os Frades a Roma. Comete o Sum-
mo Pontífice ao Arcebispo Primas qne os desagrave .... 34i
Cap. XII. Levantão-se as censuras, e prosegue a obra do Convento.
Passa el Rei dom Sancho aos Frades caria de Padroeiro. Mitiga-
se o Bispo, e faz composição com elles 345
Cap. XIII. Faz a Rainha dona Mafalda doação do Padroado de huma
Igreja á Sè do Porto, pêra de todo pacificar o Bispo, e Cabido
com os Frades. Procede o Bispo com elles em amizade. Faz-lhes
esmola de duas fontes pêra o Convento 348
Cap. XIV. Da Confraria do Santíssimo nome de Jesu sita n'este Con-
vento : de sua antiguidade, e milagres 3o2
Cap. XV. De outros milagres do Santo Crucifixo 35o
Cap. XVI. De alguns filhos d"este Convento: e das Refiquias que
n'elle ha : e outras particularidades 357
Cap. xvu. Da fundação do Real Convento de Lisboa 3(30
Cap. xvui. Funda el Rei dom Afonso Terceiro a Igreja grande do
Convento: faz-lhe doação de muitos chãos, e terras á roda. Con-
tão-se alguns trabalhos que houve na casa por cheias, e tremo-
res de terra 3G4
Cap. XIX. Da antiguidade, e devação da Ermida de N. Senhora da
Purificação, que conmiummente se chama da Escada .... 309
Cap. XX. Da vida, e m.orte do Padre Frei Fernando do Cadaval Ca-
pellão de Nossa Senhora da Escada . .- 374
Cap. XXI. Do Padre Frei Mattheas de Ogeda Capellão de Nossa Se-
nhora da Escada 377
Cap. XXII. Do principio, e origem que tiverão na Ordem de S. Do-
mingos os altares, e Confrarias do Santíssimo nome de Jesu. . 380
Cap. xxni. Da occasião, e tempo em que foi insUtuida a primeira
Confraria do nome de Jesu no Convento de S. Domingos de
Lisboa 383
Cai'. XXIV. Ordena-se solemnc festa no altar de Jesu por graças
da saúde, fazem-se compromisso, e estatutos da Confi-aria . ^ . 387
Cai». XXV. Da Confraria de Nossa Senhora do Rosário 390
Cap. XXVI. Proseguem mais alguns milagres do Santo Rosário. . 395
Cap. xxvu. De outras Confrarias que ha n"esta igreja, e de sua an-
tiguidade, e devação 399
Cap. xxviii. Prosegue a relação das Confrarias, e outras irmandades
que ha na Igreja 40á
Cap. oix. Do alguns Religiosos filhos d"esta casa que falecerão com
opinião de santidade , 405
Cap. XXX. Da gloriosa morte do Pi; ire Frei Dinis do Mello, e do
Padre Fi^i Aífonso de S. .Maiheus 407
voL. I. 30
4G8 TABOADA
Pag.
Cap. XXXI. Da vida, e marlyrio glorioso do Padre Frei Jerónimo da
Cruz 410
Cap. xx?ai. Vida, e trabalhos do Padre Frei Lopo Cardoso . . . 413
Cap. xxxiii. Da vida, e morte do Padre Frei Jgnacio da Purifica-
ção. E do irmão Frei Pedro de S. Domingos leigo 416
Cap. xxxiv. Do naufrágio, e trabalhos, e martyrio do Padre Frei
Nicoláo do Rosário 419
Cap. XXXV. Como foi martyrisado o Padre Frei Nicoláo do Rosário. 422
Cap. XXXVI. De alguns filhos deste Convento que sobirão a gran-
des Prelazias 423
Cap. xxxvii. De outros filhos d'este Convento que servirão nos tri-
bunais do Santo Officio 429
Cap. xxxviii. De outros Padres que forão Lentes de grandes cáte-
dras na Universidade de Coimbra sem entenderem em outro mi-
nistério , 433
Cap. XXXIX. Da protestação da fé que o Padre Mestre Frei Luiz de .
Sotto Maior deixou escrita; e de sua bemaventurada morte . . 437
Cap. xl. Dos estudos que ha n'este Convento. E como lhe foi an-
nexada a Igreja, e renda do antigo Mosteiro de Ansede pola Sé
Apostólica 442
Cap. xli. Das Relíquias que ha no Convento : e de algumas me-
morias antigas que n'elle se achão 445
Uma Lição de florete, c. d em 3
actos.'
Tl aba llio e honra, c. em 3 actos
A Ari.-tocrnciiie o dinheiro, cem
•') artos
CurdíAo (ie ferro, d phanlaslico
em ;j acto*
O (.lialede (laciíemira, comeilia
^i:i um acto, por Alexandre Du-
(1;,!-. Traduzida iivreiíieiite por
A. Osar de Lacerda
perigdso .»er rico, comedia em
um acto
\í jóias de familia c. d. em 3
actos
MEM)ES LEAL ANTOMO
Poesias, I vol
Àliel e Caim, c. em 3 actos
ma Viclima, d. original em 3
aclns
)òr e Amor. c d. em ;} actos. . .
.1. DAIiOI.M
1' farde entre a murta, comedia
em 3 actos
> líecnmmendado de Lisboa, c.
em I acto
• Homem jioe e Deus dispõe, c.
em doi.s aclos
s nódoas de sangue, d. em .">
actos
aiin louco com sua mania, c.
original cm um ado
I. M ITJJOO
amões do hocio. c. em 3 aclos.
Torre do Omvo. d. em í ;!cios
e um |Holo?,'o
arios ou a Familia rle um Ava-
rento, c. cm í aclos
íiJro Cem, c. em ;> aclos ....
emcchido , o Guorrilliciro , d.
em 3 aclos
E. I5II-STEU
m Quadro da vida, d. em o
actos
Uedcmpção, c. d. em 3 actos,
jas épocas da vida, c. em 2
actos
«a viagem peialilteraluracon-
lem|)oranea
. obras de Horácio , iraiiacão,
comedia em um acto '. . .
n homem de Consciência, c.
em 2 actos
Maestro Favilla, drama em 3
ictos
ALFREDO UOííÁn"
Brazileiras, c. d. em 3 actos,
nguem julgue pelas apparen-
;ias , c. d em 3 actos
( Iiissipadores, c. em 4 aclos .
Inicllior não experimentar, c.
Ill I acto
Imorias do Cotação
liiuà de Caridíuie , c. em 2
! aclos 160
180 ^ Duas mulheres da época, roman-
300'; ce contemporâneo 250
j O Marido no Prego. c. em um
300: acto ..." ICO
! .Já não ha tolosi. c em um
300 acto Sf)
j Não liesprese sem saber . c. em
I um acio J20
I O Colono, c. (1. em 3 actos !«(>
220 Segredos do Cwração, c. d. em 3
! actos ' 2()y
IGO I O .1017.0 do Jlundo c. d. em 3
j actos fljo
300 : A Mascara Social, c. d. em 3
actos 200
íjOO A 1'elledo Leão. c. d. cm 3ac|iis. 2(10
2Í0 í A Hoda da fortuna , c. d. em 3
! actos íco
ICO ; Nem tudo que luz coiro, c. d. em
200 ; 3 aclos 2{i()
! O dia l."de Dezemiiro de KilO,
c. heróica, original em 3 acius. 200
250 O nltiinii dia dos Jesuilas cm Por-
tuga!, drama original hisiorico
80 porlugucz cm 8 ([uadros i ac-
liis e um en'1'í.'o 2(10
120 ; JlLiO CIvSAlí 3IACI!AIH). K
ALI i:i:!)0 IlOli \.\
lf)0 A Vida cm Lisboa, c. d. em 4
aclos ;]()(»
100 Primeiro o dever' c. d. cm 3
I actos I(,(|
oOO j F. CVMiiSTO LKOM
Génio da ljm.';ia Porhi^iu/n . . . I:,SIH)
400 ! .1. c. DOS Santos
, o Segredo d'unia Familia. c. em
210 i 3 aclos 21í(
Suo O Pae proiligo. comedia em 3
aclos 12í)
soo j O Homem das Cautelas, c. em 2
I ^ actos JSít
I Gil Braz de Saniilhana, comedia
480 I em 3 aclos 800
300 Maria, ou o Irmão e a Irmã. c.
em 3 actos 20;>
2i0 Uma chávena de cl;;';, c. em i:;::
acto !2í»
200 Convido o coroiic,!! '.. c em nm
acto iC!»
120 A Herança do tio llusso . r. em
3 actos •">•>(>
ICO HENRIQUE VAN-DEUrERS
Poesias ,1 vol 3(;o
200 Os moedeiros falsos, c d. origi-
nai cm 3 actos |(;()
300 Dois cães a um osso. c. em lado I(i(>
Não envenenes tu, a mulher qui-
3í»0 proquo em I acto 1 2ii
400 Scenas iniimas, comedia-drama
em 1 acto ítii»
200 .1 0 A Q U I .M A l (i r ST O 1 1 E 0 1. 1 V E UW
240 A Coroa de Carlos Ma;;no pi-ia
majjic-1 de grande espcclaciiio
100
IGU
3C0
SOO
200
Pm 4artosl prologo, c 21 qua-
riro>. formada !^ot)re!ileiula=
LeMualrelils Aynion 3.U
\ f.osiure.ra, cem um aclo. . .
l-rro* <la Mocidade, c. en. .{aclos.
\ ave (lo rarf.i/.o, comedia-n.a!;i-
c.i cm iO quadros, formando
;{ actos ;
o na. ai/o perdido, ou « crcaçHo
,. o Dciuvio, jieca bihlica em
1 prologo, 'Á aclos e 1 epilotro,
fnrniando 21 'I '"i'' '"*;,• V.^v.Wc
M\MEL01)01UC0 MhM)Eí5
Omom-uIo acerca do l»almHiiim
de Inulalcrra e do seu aulor no
qual se prova haver !«ido a refe-
rida obra composta original-
mente em portusue/.. . . . . • • • •
1 DE ViUlKNA UAU150b\
r^Iades e villas da Monarchia
INirtugue/a que teem Brasões
dArmas:3vol.8.'fr. comes
liimpas ivtographadas ••••'•••'="""
.lULIÕ (.ESA1\ MACHADO
A esposa deve acompanhar seu
marido, (. em um acto
O Capitão nilterlin , c. em um
"'^^iíístVdèsaiíranciíès
Slnmtuil, c. em 3 aclos e 9 qua-
dros • :
A mãe dos escravos, d. em 4
actos... , • • • •
(, orno se descobrem... mazcllas,
c. em í acto • ]'-}^
Trovoadas (U maio, c. em 1 acto Ibu
Os dois pescadores, c. em 1 acto. bU
Kem lodo o mato e oregãos, cem
lacto ^^^
140
140
300
200
4^1
101
1
20(
1S<
j R. COUDEIUO JUMOU
Amor e arte, drama em 3 actos^
O Arrependimento salva, dram*
em mu acto.. • • • • • ' • ; '.
Fernando, comedia-dramu cm 4
aclos ••j-j;-,Veahaijjo '
AprinmadeArrentella,lrage-
rfiaburle.-.cacm3aclos....j^
A Sombra do Si''Cir«. trcigidi*
burlesca em 3 actos----;; • ;•
Um Bico em Verso, scena to-
mica ■trV..Vf<ia
0 Prinrepe Escarlate, ^ra^eo a
burlesca em 2 actos em ^'•T'^-
Um iiomem que tem cabeça; c.
em um acto - -
Últimos Toomcnios d'uni .Uidaf,
entre-aclo tragieo-burlescn.. .
JOSÉ UEMO DA11AU.I0 ASSIS
O segredo d'uma esmoli, c d-
em 2 actos
Asdu^xs paixões, c. eui 1 acto..
Deus nos livre de mulheres, c. em
um acto, ornada de coplas . .
J.A. DE MACEDO
A Creacao, poema pelo P- José
Asostlnho de Macedo
KK.NESTO MAUECOS
As Primeiras Inspirações,— Poe-
sias •
Jucá, a Matnmbolla- Lenda....
MANUEL MAKIAPOllTELLA
Ensaios poéticos.— Poesias. „^„^V"
OUHAS DE DIVEUSOS AUCTOULS
lleflexòes sobre a língua por-'- >>
gue/.a,2.- ed < ^í
Cirurgia e medicina 1 vol ..... ■^htl
Camões e o Jáo,scena dramática. 1
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Obras que devem estar promptas até a fim
de Março próximo.
Jorge FERREinA de VAScoNCELLOS=Memorial dos Cavalleiros
da Tavola Redonda.— Aulegrafiia.—Eufrosina.—Ullysipp
Rocha PiTA=Historia do Brazil.
Rr.iTO FREiRE=NoYa Lusitana, Guerra Brasílica.
Padre Antomo CoRDEiRO=Ilistoria insulana.
Padre CARVALno=Corografia portugueza.
.]. Baptista de CASTRO=Mappa de Portugal, continuado até
presente.
Pedro NursES=Esfera.
ViLLAS BoAS=Nobliarcliia portugueza.
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