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Full text of "Primeira[-quarta] parte da historia de S. Domingos, particular do reino e conquistas de Portugal"

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in  2011  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archlve.org/details/primeiraquartap01cace 


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PRIMEIRA  PARTE 
DA  HLSTORLi 

DE  S.  DOMINGOS 

PARTICULAR  DO  REIXO  E  CONQUISTAS  DE  PORTUGAL 
POR  FR.  L-Ul»  CACEIAS 

DA  MESMA  ORDEM  E  PROVÍNCIA,  E  CKROilISTA  DELLA 

REFORMADA  EJÍ  ESTILO  E  ORDEM,  E  AMPLIFICADA  EM  SUCCESSOS, 
•^  PARTICULARIDADES 

OU  FR.  luís  de  SOUSA 

FILHO  DO  CONVENTO  DE  BEMFICA 


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TERCEIRA  EDICAO 


VOLUME  I 


IISROA 
TYP-  DO  PANORAMA— Rua  do  Arco  do  Randdra,  112. 


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M  DCCC  LXYI. 


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por  muitos  escriptorcs  dislin- 
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folheto  com  10  gravuras. 
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Obras  com|)lclas,  colligidas,  >ii-- 
postas  eannotadas  por  I.  F.  :. 
Silva,  e  precedidas  d'um  estu- 
do hiographico  e  iillcrario  so- 
lire  o  i)oela,  escripto  por  Re- 

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PRIMEIRA  PARTE 


DA 


HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 


PRIMEIRA  PARTE 
DA  fflSTORIA 

DE  S.  DOMINGOS 

PAUTICllAR  DO  REIXO  E  COXQUISTAS  DE  PORTUGAL 
POR  FR.  I^LIS  CACECAS 

DA  ryiESiyiA  ordem  e  província,  e  chronista  della 


REFORMADA  EM  ESTILO  E  ORDEM,  E  AMPLIFICADA  EM  SUCCESSOS, 
E  PARTICULARIDADES 


POR  FR.  luís  de  SOUSA 

FILHO  DO  CONVENTO  DE  BEMFICA 

TERCEIRA  EDICAO 


VOLUME  I 


LISBOA 
TYP.  DO  PANORAMA— Ku3i  do  Arco  do  Bandeira,  312. 


M  DCCC  LXYI. 


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V, 


A  EL-REI  N()88()  8EXH0R 


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Novo  género  de  Crónica  oíTerece  a  Vossa  Majestade  minlia  Religião 
por  mi  n'este  volume,  que  a  seus  Reais  pés  tenho :  d'aquelles  santos, 
e  valerosos  Reis  Portugueses,  dos  quais  V.  M.  tem  o  sangue,  e  possuo 
a  Coroa,  que  largos  annos  felicissimamente  possuirá.  Crónica  verdadeira, 
e  certa,  não  dos  climas  novos,  e  mares  nunca  navegados  que  descobri- 
rão, nem  das  batalhas  que  vencerão,  nem  dos  Reinos  que  conquistarão:  ■ 
mas  só  da  pureza  de  fé,  com  que  por  todas  as  idades  buscarão  aDeos, 
do  zelo,  e  fervor,  com  que  se  empregarão  em  o  servil-,  da  liberalidade, 
e  magnihcencia,  com  que  agazalharão,  enriquecerão,  e  honrarão  todas  as 
Religiões,  em  que  seu  nome  lie  venerado.  E  isto  não  ha  duvida,  que  vai 
mais  que  conquistar,  que  vencer,  que  triunfar.  Porque,  na  verdade,  as 
correntes  das  vitorias,  e  as  enchentes  das  riquezas,  que  d'ellas  procede- 
rão, não  teverão  origem  n"outras  fontes.  Juntou  Deos  na  Coroa  de  Es- 
panha, e  em  mão  de  V.  M.  a  maior,  e  mais  dilatada,  e  mais  opulenta 
Monarquia,  que  nenhum  Príncipe  do  mundo,  desde  seu  principio,  até 
nossos  tempos  possuio  :  e  esta,  pêra  mostrar,  que  só  era  dadiva  sua,  não 
quiz,  que  fosse  ganhada  com  os  milhões  de  homens  dos  exércitos  de 
Xerses,  cuja  multidão  secava  os  rios,  as  setas  no  ar  fazião  nuvens,  que 
tolhião  o  Sol,  as  Armadas  lancavão  pontes  de  Ásia  a  Europa :  mas  com 
poucas  nãos,  que  sairão  de  Sevilha,  deu  ao  Católico  Rei  dom  Fernando 
de  gloriosa  memoi'ia  hum  mundo  novo,  terras  tão  largas,  que  correm 
de  Polo  a  Polo  por  iníiniío  numero  de  legoas,  tão  ricas  que  os  rios  cor- 
rem por  ouro,  as  entranhas  dos  montes  são  prata,  as  serras  esmeral- 
das, as  praias  do  mar  pérolas.  Da  mesma  maneira  fez  qne  poucas  nãos 
que  sairão  de  Lisboa,  ganhassem  pêra  el  Rei  dom  Manoel,  e  por  seu 
meio  pêra  V.  M.  o  Senhorio  do  Oriente,  vencidos  os  medos,  e  tempes- 
tades do  Cabo  Tormentório  com  navegação  tão  espantosa,  que  de  louca, 
e  desasizada  lhe  derão  nome  os  estrangeiros  desaífeiçoados  de  Espanha, 
perdendo  o  tino  da  verdadeira  estimação  das  cousas,  ou  com  o  pasmo 


VI 

d"ella,  ou  com  a  enveja  (não  quero  dizer  raiva),  que  lhes  fazia,  verem 
que  os  grilhões,  que  o  vão  Xerses  mandava  cm  huma  occasião  lançar  ao 
estreito  mar  Mediterrâneo,  recebia,  e  sofria  de  mão  de  poucos  Portu- 
gueses o  vastíssimo  Oceano.  Preza-se  Deos  de  honrar,  e  galardoar  nos 
illhos,  e  successores  a  virtude,  e  merecimentos  de  pais,  e  avós.  Forão 
estes  dous  Príncipes  decendentes  de  Reis  santos,  e  religiosíssimos :  de 
hum  Ranymiro,  que  em  graças  de  huma  vitoria  de  Mouros,  fez  tributa- 
ria com  voto  Espanha  toda  ao  Apostolo  Santiago,  e  a  sua  Igreja :  de 
hum  dom  Afonso  Enriquez,  que  prometeo,  e  deu  a  S.  Bernardo,  e  á  sua 
Ordem  posto  sobre  huma  alta  serra  tudo  quanto  alcançou  com  os  olhos 
alé  os  Orizontes :  tão  pio,  e  generoso,  que  não  edificando  nunca  pêra  si 
casa,  as  que  deixou  feitas  pêra  Deos  assombrão  as  grandezas  do  tempo 
presente  com  a  capacidade,  com  a  architectura,  com  a  grossura  de  ren- 
das. E  sendo  tais  estes  dous  Reis,  forão  igualados,  por  não  dizer  ven- 
cidos, de  muitos,  que  d'elles  procederão  até  V.  M.  He  estreito  o  campo 
pêra  falar  de  todos :  digamos  de  hum  Filippe  primeiro  em  Portugal,  se- 
gundo no  resto  de  Espanha,  que  na  mesma  conjunção,  que  os  hereges 
de  França  Aizião  guerra  ás  sepulturas  dos  Santos,  queimando  seus  ve- 
neráveis ossos,  e  dando-lhes  na  terra  fria  d"elles  o  martyrio,  que  vivendo 
desejarão  por  Christo :  entra  polas  portas  de  Toledo  com  as  Relíquias  do 
Santo  Prelado  Eugénio,  sobre  seus  hombros  trazidas  de  muito  longe,  e 
com  grande  despesa :  e  em  tempo  que  Alemanha,  e  Inglaterra  profana- 
vão  as  Aras,  roubavão,  e  assolavão  os  templos,  levanta  hum  tão  famoso, 
(jue  do  mundo  he  oitava  maravilha,  oitava  em  numero,  primeira  em  ca- 
lidade.  Digamos  de  hum  dom  João  Terceiro  de  Portugal,  tão  inflamado 
em  amor  do  culto  Divino,  que  a  elle  deve  a  Igreja  Católica  a  dilatação 
da  Fé  por  todo  o  Oriente  muito  além  da  Áurea  Chersonesso,  e  até  á 
ultima  China,  e  Japão,  províncias,  que  os  antigos  nem  por  fama  conhece- 
rão :  a  elle  deve  o  Oriente  os  triunfos  de  grande  numero  de  martyres 
laureados  n'ellas  de  seu  sangue,  e  muitas  Cathedrais  fundadas  por  toda 
a  índia,  que  a  Sé  Apostólica  provê,  as  rendas  Reais  sustentão :  a  elle 
deve  Portugal  as  letras,  e  doutrina  das  universidades,  a  observância,  e 
reformação  de  todas  as  Religiões.  Não  he  logo  maravilha  que  a  Omni- 
potência Divina  por  hum  Oííir,  que  nos  tempos  muito  antigos  deu  em 
comercio  a  hum  filho  de  hum  Rei  Santo,  guardasse  dous  pêra  os  dar  a 
Y.  SI.  em  posse,  hum  na  índia  Oriental,  outro  na  Occidental,  sendo  fi- 
lho, e  successor  de  tantos  Príncipes  santos :  e  sobre  essa  grandeza  lhe 
desse  no  restante  da  terra  tamanha  parle,  que  na  Europa  possue  o  me- 
lhor de  Itália,  e  muitas  províncias  de  Alemanha :  sendo  em  humas,  e 
outras  o  arbitro  da  paz,  e  da  guerra,  e  escudo  por  huma  parte  contra 
a  potencia  Otthomana,  por  outra  contra  os  hereges :  na  Africa  he  senhor 
de  todas  as  cosias,  e  Ilhas  adjacentes,  até  dentro  à  Ethiopia.  Por  ma- 
neira que,  assistindo  V.  M.  no  meio  de  Espanha,  como  em  centro,  e  ca- 
beça do  mundo,  está  despachando  Visoreis,   Governadores,  Capitães, 


VII 

exércitos,  e  armadas  pêra  Iodas  as  partes  de  sna  redondeza  ao  mesmo 
modo  que  o  Sol  as  visita,  e  .  juenta  com  seus  raios. 

Este  he  pois  o  intento,  esta  a  confiança  d"estes  escritos,  manifestar 
ao  muiido  huma  Historia  de  novo  adiada  (como  íhezouro  escondido) 
dos  Reis  an;',,.^os  de  Portugal.  Mandou-nos  a  obediência  averiguar,  e  pôr 
cm  memoria  os  princípios,  e  meios,  com  que  a  Ordem  de  Nosso  Patriar- 
cha  S.  Domingos  se  fundou  neste  Reino.  Feita  a  Historia,  achamos,  que 
na  sustancia  he  tão  própria  dos  Reis,  e  Príncipes  Portugueses,  que  se 
llie  tirarmos  o  titul»  de  S.  Domingos,  ficará  mais  d'elies,  que  d"elle :  e 
se  lhe  chamarmos  Crónica  Ecclesiastica  dos  Reis,  ficará  sendo  toda  sua 
em  titulo,  e  sustancia.  Porque,  se  V.  M.  fòr  servido  pássaros  olhos  por  ella, 
achará,  que  tudo,  o  que  contem,  são  obras,  que  elles  fizerão  de  piedade,  e 
devação,  altares,  e  templos,  que  levantarão.  Mosteiros,  e  Santuários,  que 
fundarão  em  honra  da  Fé,  e  veneração  do  nome  de  Christo,  com  tanto  animo, 
e  largueza,  que  quasi  não  temos  casa  antiga,  nem  moderna,  seja  de  Re- 
ligiosos, seja  de  Religiosas,  que  não  deva  aos  Príncipes,  ou  a  origem,  ou 
o  augmento,   ou  a  sustentação,  ou  tudo  junto.  O  primeiro  gasalhado, 
que  esta  Ordem  teve,  do  qual  procedeo  o  Mosteiro  dos  Frades  de  San- 
tarém, lhe  foi  dado  pola  Infante  dona  Sancha.  O  segundo,  que  foi  em 
Coimbra,  por  suas  irmãs  dona  Tareja,  e  dona  Branca,  todas  três  filhas 
do  grande  batalhador,  e  Rei  dom  Sancho  Primeiro.  Do  Conver.to  de  Lis- 
boa foi  fundador  em  sua  origem  dom  Sancho  Segundo.  A  Igreja,   que 
hoje  está  em  pé,  edificou  seu  irmão  dom  Afonso  Terceiro.  O  mesmo 
fundou  o  Mosteiro  de  Elvas.  El-Rei  dom  João  Primeiro  deu  â  Ordem 
Ires  casas :  duas  em  Portugal,  que  forão  a  Batalha,  e  Bemfica,  outra  em 
Africa.  O  Infante  dom  Pedro  edificou  a  de  Aveiro.  El-Rei  dom  Manoel 
nos  deu  a  da  Serra  de  Almeirim,  e  dotou  em  Lisboa  o  Collegio  de  Santo 
Thomas,  que  hoje  está  em  Coimbra:  seu  filho  dom  João  Terceiro  nos 
deu  Amarante:  seu  bisneto  dom  Sebastião  Setuvel:  e  os  dous  Filippes 
santos,  que  estão  no  Ceo,  pai,  e  avô  de  V.  M.  nos  adiantarão  em  renda 
cada  hum  particularmente,  o  Mosteiro  da  Batallia,  E  sendo  assi  que  as 
boninas  do  jardim  mais  devem  sua  frescura,  e  belleza  a  quem  dá  o  sitio 
pêra  se  plantarem,  e  as  fontes  pêra  se  regarem,  que  ás  mãos,  que  as 
despoem,  e  cultivão,  não  ha  duvida,  que  aos  Reis  estamos  devendo  todos 
os  grandes  fruitos,  que  esta  Religião  tem  dado  de  doutrina,  de  letras, 
de  pregação,  de  reformação  de  costumes,  e  augmento  de  virtudes,  e  até 
os  Santos,  que  tem  produzido,  e  sua  santidade.  E,  como  só  esta  moeda 
he  a  que  tem  valia  diante  do  soberano  Rei  da  Gloria,  assi  só  a  ella  he 
rezão,  que  refiramos  as  grandezas,  com  que  este  pequeno  Reino  se  fez 
insigne  no  mundo.  E  ficará  sendo  esta  escritura  huma  Crónica  de  em- 
presas do  Ceo,-  e  do  valor  espiritual  dos  Reis:  como  as  que  Y.  M.  liies 
manda  fazer  são  dos  feitos  em  armas,  e  conquistas  da  terra.  O  que  me 
faz  ter  por  certo,  que  será  de  V.  M.  não  só  com  benignidade  olhada, 
mas  recebida  em  serviço,  e  amoroso  reconhecimento,  inda  que  fraco,  e 


VIII 

pobre,  da  gratidão,  que  todas  as  Religiões,  e  Religiosos  d'este  Reino  es- 
tamos devendo  á  santa  memoria  dos  Reis,  e  a  V.  M.  e  de  que  a  minha 
começa  hoje,  e  he  primeira  a  desempenhar-se.  E  não  carece  de  mysterio 
(como  todas  as  cousas  da  terra  vem  traçadas  do  Ceo),  ser  V.  M.  o  pri- 
meiro Príncipe  despois  de  tantos,  e  tão  gloriosos  antecessores,  a  quem 
este  justíssimo  tributo  se  oíTerece :  pois  vemos  anticipar-se  tanto  nos 
actos  de  Fé,  e  Christandade,  que  o  que  elles  fizerão  despois  de  muitos 
annos  de  vida,  e  mundo,  começou  V.  M.  a  executar  na  hora,  que  entrou 
poios  Orizontes  d'ella,  e  d'elle :  ordenando  a  Divina  Providencia  darem- 
se-lhe  as  sagradas  agoas  do  Bautismo  no  mesmo  vaso,  em  que  as  tinha 
3'ecebido  434  annos  antes  meu  glorioso  Patriarcha  S.  Domingos :  e  jun- 
tar-se  no  mesmo  dia  ao  felicíssimo  nome  de  Filippe  o  apelido  santo  de 
Dominico.  Foi  isto  venerar  V.  M.  todos  os  Santos  neste  Santo :  foi  hon- 
rar todas  as  Religiões  n'esta  Religião :  foi  alegrar  a  Igreja  Catholica,  e 
confundir  a  heregia,  e  infidelidade  em  hum  ponto  da  Santa  Igreja  muito 
estimado,  e  dos  hereges,  e  infiéis  com  estremos  aborrecido.  São  os  bons 
]irincipios  grande  pronostico  do  futuro.  Estes  nos  estão  prometendo  (não 
sj  pronosticando),  de  V.  M.  que  ha  de  vencer  em  boas  venturas  todos 
s  us  mais  gloriosos  antecessores,  que  ha  de  atropellar,  e  sogeitar  com 
famosas  vitorias,  como  vai  fazendo,  todos  os  hereges  da  alta  e  baixa  Ale- 
manha, por  mais  que  conjurem  com  elles  os  enemigos  públicos,  e  ami- 
gos dissimulados,  e  levem  consigo  até  o  sangue :  e  em  fim,  que  ha  de 
senhorear,  e  dominar  (como  o  acena  o  nome  Dominico),  toda  a  infideli- 
dade até  arvorar  os  estandartes  da  Cruz  de  Christo,  e  Liões  de  Espanha 
sobre  as  torres  de  Constantinopla.  Que  pois  os  primeiros  passos  da  vida 
felicíssima  de  V.  M.  madrugarão  tanto  em  beneficio,  e  favor  da  verda- 
deira Religião,  como  já  temos  visto :  e  os  de  seu  governo  cnnformão 
tanto  com  os  da  vida,  que  por  remedear  Catholicos  afligidos,  inda  que 
estranhos,  e  não  de  sua  precisa  obrigação,  oíferece  liberalmente  nobilís- 
sima parte  de  seu  sangue,  não  pôde  faltar  a  mão  omnipotente,  e  libera- 
lissima  do  Senhor  em  recompensar  tão  santos,  e  altos  espíritos  com 
alegres,  e  venturosos  fins  de  todas  as  empresas,  e  pensamentos  de  V.  M. 
e  com  llie  dar  largos,  e  prosperissimos  annos  de  vida  pêra  grande  bem, 
e  augmento  da  Christandade,  e  gloria  de  seus  Reinos,  como  todas  as  Re- 
ligiões, e  Religiosos  com  orações  continuas  lhe  pedimos,  D'este  Convento 
de  Bemfica,  ultimo  dia  do  anno  de  1C23. 


Fr.  Luís  de  Soui^a. 


PROLOGO 

AOS  RELIGIOSOS  DA  OUDEM  DE   S.   DOMINGOS 


Tenção  tinha  de  escusar  este  prologo,  e  não  despender  tempo  nem 
i^apel  em  dar  contas  ao  Leitor,  por  mais  cândido,  e  benévolo  que  che- 
gasse a  ler-nos.  Sei  que  se  não  grangea  perdão,  se  ha  de  que  o  pedir, 
como  sempre  ha.  Sei  que  ninguém  levanta  a  lança,  se  acha  que  calum- 
niar.  E  se  o  Prologo  não  he  mui  apontado,  quem  quer  se  faz  juiz  pêra 
condenar  por  elle  toda  a  obra.   Assi  determinava  satisfazer  ao  costume 
com  as  poucas  regras,  que  no  primeiro  capitulo  abi-em  a  porta  á  Histo- 
ria, como  já  fizemos  em  outra  occasião :  mas  tirão-mc  de  meu  sentido 
pareceres  alheios:  e  fazem-me  força,  porque  não  ha  defender  despois  de 
consultar.  Querem  que  demos  rezão  de  algumas  cousas,  se  nao  a  lodos, 
ao  menos  aos  meus.  He  primeiía  a  contradição,  que  representa  o  titulo 
do  livro  propondo  a  hum  só  trabalho,  e  não  o  maior  do  mundo,  dous 
Autores:  hum  morto,  cT  outro  vivo:  hum  á  Historia,   outro  ao  estilo : 
lium  feito  Cronista,  outro  reformador  :  e  parecia  bastante  ver-se  qual  dos 
feitios  pesava  mais,  e  dar-se  o  nome  ao  de  mais  sustancia.  Sabemos  de 
Tito  Livio  entre  os  Latinos,  que  se  aproveitou  tão  particularmente  dos 
escritos  de  Polybio  (írego,  quo  ao  pé  da  leti'a  treslada  d"elle  livros  in- 
teiros. Valeo-se  Damião  de  Góes  entre  os  nossos,  pcra  a  Crónica  dei  Rei 
dom  Manoel,  dos  trabalhos  de  Ruy  de  Pina,  e  Fernão  de  Pina,  seuíilho, 
que  a  tinhão  quasi  toda  feita  fconfessa-o  elle  lã  em  hum  canto  d"ella, 
pudera-o  fazer  no  rosto.)  Assi  se  fizerão  ambos  donos  do  suor  alheio, 
mas  com  justíssima  causa :  porque,  servindo-se  do  que  acharão  nos  an- 
tecessores só  pêra  informação,  era  demasiada  liberalidade  communicar 
ao  informador  o  nome  de  Autor.  Não  faltou  quem  com  tais  exemplos 
nos  obrigava  a  cortai-  duvidas,   o  fazer  o  livro  em  todo  nosso.   E  havia 
mais  rezões  por  minha  parte.  Porque  tudo,  o  que  o  Padi-e  Frei  Luis 
Cacegas  deixou  escrito,  he  hum  monte  de  cousas  indigestas,  e  informes : 
o  modo  de  dizer  ao  antigo,  pouco  jiolido,  e  falto  de  arte,  e  qual  se  conta 
que  foi  o  do  Romano  Ennio,  com  lhe  sobejar  engenho :  Ennius  ingenio 
iiiaximus,  arte  rndis.  Falo  assim  sem  mais  salvas  nem  rodeos ;  porque 


X 

escrevendo,  como  escrevo,  entre  os  que  o  conhecerão,  e  tratarão,  e  ú 
vista  de  seus  papeis,  que  temos  vivos,  sei  que  lhe  não  faço  oíTensa.  Foi 
este  Padre  bom  Letrado  Theologo,  giande  amigo  dos  livros,  e  de  ter 
muitos,  e  muito  bons :  e,  o  que  vai  mais  que  tudo,  essencial  religioso. 
Viveo  largos  annos,  e  passava  dos  setenta,  quando  faleceo.  D'estes  gastou 
mais  de  vinte  em  andar  poios  Conventos  da  Piwincia  desentranhando 
Cartórios,  revolvendo  pergaminhos,  investigando  antiguidades :  e  tudo, 
o  que  em  fim  nos  deixou,  são,  como  dissemos  em  outra  parte,  mate- 
riais pêra  edificar  mnis,  que  edificios  feitos.  E  esta  foi  a  causa,  porque 
os  Pielados  me  mandarão  fazer  obra  d'elles ;  que  foi  o  mesmo,  que  cons- 
tituir-me  por  Autor,  e  architecto  do  que  fizesse.  Mas  que  conta  daría- 
mos da  humildade,  e  modéstia  da  Religião,  a  que  a  Misericórdia  Divina 
nos  trouxe  ao  pôr  do  sol  da  vida,  se  não  houvéramos  de  fazer  contas 
mais  desinteressadas?  Voz  foi  do  Ceo  a  que  fez  a  Arsénio  constante  mo- 
rador do  deserto  :  Fuge,  qniescp,  et  tace  :  Foge,  assossega,  e  não  fales  (1). 
E  pêra  o  repouso  corporal  soube  aconselhar  o  mesmo  hum  Gentio,  di- 
zendo :  Ama  nesciri :  Procura  que  ninguém  te  saiba  o  nome.  Se  fogimos 
huma  vez,  pêra  que  he  tornar  a  povoado,'  nem  por  letra  ?  Se  ha  de  ha- 
ver quietação,  se  silencio,  de  que  serve  ser  lido,  e  ouvido  por  todas  as 
praças,  e  falai'  nellas  não  menos  que  com  livros  inteiros  ?  Isto  he  o  que 
me  obrigou,  estando  vivo,  e  são,  a  dar  o  meu  trabalho,  vida,  e  nome  ao 
Padre  Gacegas,  defunto  de  sete  annos.  Se  me  perguntão,  porque  o  fiz  de 
meãs,  e  não  inteiramente  (que  fora  perfeita  liberalidade),  respondo  com 
huma  só  palavra.  He  próprio  da  Religião  o  que  está  escrito:  Nemo  nos- 
ínimviuit  sibi  (2):  fui  mandado,  obedeci.  O  titulo  de  Reformador,  que  re- 
presenta mais  ambição,  não  desculpo,  porque  alem  de  se  fundar  em 
verdade,  assaz  humilhado  fica,  não  só  temperado,  com  o  segundo  lugar, 
que  o  outro  nem  em  Roma  queria. 

Segue  apoz  a  controvérsia  do  titulo,  outra  não  pequena  no  discurso 
da  Historia.  E  he  que  começando  a  geral  da  Ordem  o  famoso  pregador, 
e  mestre  o  Padre  Frei  Fernando  de  Castilho,  e  proseguindo-a  o  Reve- 
rendíssimo Senhor  Bispo  de  Monopoli,  e  escrevendo  ambos  com  grande 
cuidado,  e  diligencia  de  sua  parle,  e  com  grande  credito,  e  honra  d'esta 
Província  no  particular,  que  tocão  delia,  todavia  se  offerecem  encontros, 
e  variedades  entre  a  sua  escritura,  e  esta  nossa,  em  nomes  de  pessoas, 
de  lugares,  e  Conventos :  huns  trocados,  outros  tão  disfarçados,  que  se 
íazem  escuros,  e  mal  entendidos  alA  pêra  os  que  somos  naturais.  Seja 
exemplo  no  Padre  Frei  Fernando  o  nome  do  primeiro  Provincial  de  Es- 
panha (3)  constiluido  nella  da  mão  de  nosso  Santo  fundador,  que  huma  vez 
Uie  chama  Frei  Gomes,  e  outra  Frei  Sueiro,  e  não  lhe  dá  nacimento, 
sendo  cousa  bem  achada  ser  Portuguez,  como  o  confessa  na  sua  Quinta 
parte  o  senhor  Bispo  (4).  Seja  exemplo  no  Senhor  Bispo  chamar  Petragoria 

(1)  Surius.  t.  4.  f.  230.  (2)  Ad  Roman.  14.  (3)  P.  1.  1.  1.  cap.  25.  Idem  p.  1.  1.  2. 
c.  1.        [i]  P.  5.  1.  2.  c.  32.  Idm  p.  li.  I.  2.  c.  3í. 


XI 

ao  Convento  do  Pedrógão,  chamar  dei  Salto  ao  da  Serra,  de  Almeyta  ao 
de  Almada,  com  mais  alguma  variedade  em  successos,  e  na  computação 
de  annos,  e  tempos :  venialidades  causadas  humas  das  informações  se- 
rem ou  Latinas,  ou  mal  declaradas:  outras  de  descuidos  da  impressão, 
que  temos  nesta  parte  muita  falta  em  toda  Espanha.  E  por  esta  rezão 
passamos  por  ellas  no  discurso  da  Historia,  sem  apontar  nem  contradi- 
zer: e  só  fazemos  aqui  esta  advertência  pêra  que  quem  com  algumas  se 
embaraçar  recorra  a  este  nosso  trabalho,  como  a  commento  de  ambos. 
Porque  na  verdade  nos  aconteceo  a  todos  três  o  que  he  ordinário  a  quem 
toma  agoa  na  fonte,  em  que  está  pura,  e  limpa,  como  eu  a  tomei:  ou  nos 
regatos,  onde  em  cor,  e  sabor  vai  já  inficionada  da  terra,  por  que  passa, 
como  elles  a  tomarão.  E  com  tudo  não  haja  ninguém,  que  por  estas  cou- 
sas leves,  e  vizinhas  faça  jnizo  temerário  contra  as  graves,  e  afastadas, 
que  escrevem.  Porque,  se  a  vizinhança  causa  ás  vezes  algum  descuido,  a 
distancia  maior  dos  lugares,  e  o  peso  das  que  importão,  esperta,  e  aviva 
o  cuidado  de  sorte,  que  por  sem  duvida  podemos  ter,  que  ha  em  todas 
grande  certeza.  Por  onde  estamos  em  muita  obrigação  a  ambos :  mas  em 
maior  ao  Senhor  Bispo,  que  mais  tempo,  e  mais  aturadamente  tem  tra- 
balhado em  honra  da  Ordem. 

Resta  animarmo-nos  todos  huns  aos  outros,  e  lembrarmo-nos  que, 
sendo  qualquer  historia  mestra  da  vida,  esta,  que  he  de  Santos,  que  fo- 
rão  nossos  irmãos,  e  companheiros,  não  só  nos  deve  servir  de  mestra, 
mas  de  hum  espelho  cristalino,  e  puro,  a  cuja  vista  enfeitemos,  e  com- 
ponhamos a  vida,  e  costumes,  estimando  sua  santidade,  não  pêra  nos 
vangloriarmos  nella,  senão  pêra  a  imitarmos,  conforme  à  sentença  do 
Komano,  que  tratando  da  obrigação  que  fazem  os  retratos  dos  homens 
valerosos  a  seus  descendentes :  Idcirco,  diz,  in  prima  mliiim  parle  poni 
soiere  effigics  maiorum,  ut  eorum  virtutes  fosteri  non  soluiii  legerent,  sed 
etiam  imitarentur.  (\) 


Valrfp  fpJices. 


Frei  Luís  de  Sousa. 


(1)  Valer.  Ma\.  1.  :;.  c.  8. 


LICENÇAS 


DA  OUDEM. 


Comecei  a  ver  este  livro  do  Padre  Frei  Lu  is  de  Sousa,  que  he  a  pri- 
meira parte  do  que  toca  a  esta  nossa  Provincia  de  Portugal ;  e  sendo 
pi-incipio  de  o  ler  curiosidade,  e  gosto  mais  que  obrigação,  juntou-se 
maiidar-me  o  nosso  Padre  Provincial,  que  fosse  eu  hum  dos  revedores 
pola  Ordem :  o  que  me  obrigou  a  novo  cuidado.  E  fazendo  juizo  em  ri- 
gor, acho,  que  temos  nelle  não  só  pêra  nossa  Ordem,  mas  pêra  todo  este 
Reino  de  Portugal  dous  ricos  thesouros,  hum  de  santidade,  e  verdadeira 
Religião  de  infinitos  varões,  que  esta  terra,  em  que  nascemos,  produzio 
pêra  o  Ceo,  e  lá  estão  roganrlo  a  Deos  por  nós :  outro  de  excellencias 
de  estilo,  e  lingoagem :  estilo  grave,  elegante,  e  sentencioso,  com  bre- 
vidade, e  clareza  juntamente,  que  em  poucos  se  acha :  lingoagem  natu- 
sal,  corrente,  e  cortezam,  com  termos  tão  próprios,  tão  significativos,  c 
eííicazes,  e  longe  de  affeites,  e  íH-tificios  viciosos,  que  sem  encarecimen- 
to podemos  aífn-mar,  que  dos  livros,  que  até  o  presente  são  escritos  em 
Portuguez,  nenhum  se  achará  de  mais  policia,  e  perfeição.  E  atrevo-me 
a  dizer,  que,  assi  como  a  lingoagem  Castelhana  está  em  sua  pureza  nos 
escritos  do  nosso  Padre  Frei  Luis  de  Granada,  e  quando  acertasse  de 
se  perder,  podíamos  por  elles  restaural-a,  segundo  foi  opinião  de  hum 
bom  espirito  de  seu  tempo :  nem  mais  nem  menos  temos  neste  volume 
enthesourada  a  Portugueza,  e  em  gráo  tão  subido,  que  não  ha  desejar- 
Ihe  mais  fineza,  nem  mais  graça,  e gravidade.  E,  o  que  mais  admira,  he, 
que  em  tanto  papel  escrito,  e  tanta  variedade  de  cousas,  nem  hum  só 
vocábulo  lhe  acho  tomado  de  lingoa  estranha,  nem  ao  perto  nem  ao  lon- 
ge, como  muitos  indignamente  vão  fazendo  :  com  o  que  faz  evidente,  que 
não  he  paradoxo,  mas  demonstração  ser  a  lingoagem  Portugueza  tão 
abundante  de  palavras,  tão  rica  de  bons  termos,  e  pola  mesma  rezão  tão 
perfeita,  como  a  melhor  de  Europa.  Por  onde  me  parece  que  com  toda 
a  brevidade  se  deve  imprimir  esta  Historia,  como  espelho  de  santidade, 
e  virtude  pêra  os  devotos,  e  como  forma,  e  modello  de  bem  escrever, 
e  falar  pêra  estudiosos.  Ém  S.  Domingos  de  Lisboa,  IG  de  Setembro  do 

Fr.  Agnslinho  de  Sousa.  <^ 


XIII 

Por  mandado  do  nosso  muito  Reverendo  Padre  Provincial,  o  Padre 
Mestre  Frei  Diogo  Ferreira,  vi  attenta,  e  curiosamente  este  livro  intitu- 
lado a  Primeira  parte  da  Historia  de  S.  Domingos,  particular  do  Reino, 
e  Conquistas  de  Portugal,  ordenada,  e  reformada  pelo  Padre  Frei  Luis 
de  Sousa,  Portuguez,  Religioso  professo  da  Ordem  dos  Frades  Pregado- 
res, e  fdho  do  Convento  de  Bemfica  nesta  Província  de  Portugal :  nella 
achei  muita  verdade  nas  matérias,  muita  gravidade  no  tratal-as,  muita 
pureza  nas  palavras,  muito  suave,  e  agradável  estilo  no  dispol-as,  e  or- 
denal-as,  de  que  o  Autor  singularmente  he  dotado.  Pelo  que  toda  a  His- 
toria assi  deleita  os  ouvidos,  que  por  elles  introduz  na  alma  huns  fervo- 
rosos desejos  de  imitar  varões  tão  santos,  como  o  leitor  achará  a  cada 
passo.  E  está  o  livro  tão  cheio  d"esta  celestial  gente,  que  mais  parece  ca- 
thalogo  de  Santos,  que  narração  de  cousas  já  passadas,  as  quais  a  his- 
toria tem  por  fim  fazer  presentes  com  sua  representação,  e  lição.  Esta 
he  mui  curiosa,  mui  santa,  mui  aprazível,  e  cheia  de  muito  espirito  do 
Ceo.  Por  onde  me  parece  mui  digna  de  se  mandar  á  estampa,  e  sair  a 
luz,  pêra  honra  da  nossa  sagrada  Religião,  e  grande  utilidade  espiritual, 
não  só  dos  que  professão  a  vida  religiosa,  mas  Christam.  Antes  nos  po- 
demos gloriar  de  que  a  nossa  idade  nos  desse  na  nossa  Piovincia  hum 
tão  illustre  individuo,  que  com  seu  illustre  estilo  illustrasse  varões  tão 
illustres  em  santidade,  fazendo  que  se  conheção  no  mundo  os  que  a  an- 
tiguidade do  tempo,  e  a  incúria  dos  homens  tinha  posto  em  esqueci- 
mento. E  assi  merece  o  nome  íseja-me  licito  assi  falar),  de  hum  novo, 
e  santo  Tito  Livio  das  heróicas  proezas  dos  antigos,  e  modernos  heroes 
de  virtude,  como  na  Historia  verá  o  devoto,  e  curioso  leitor.  Em  S.  Do- 
mingos de  Lisboa  aos  18  de  Setembro  de  1022. 

Fr.  Thomas  de  S.  Domingos  Magister. 


DO  PADRE  PROVINCIAL. 

Nós  Frei  Diogo  Ferreira,  Mestre  em  santa  Theohgia,  Consultor  do 
Santo  Ofpcio,  e  Prior  Provincial  da  Ordem  dos  Pregadores  nos  Reinos  de 
Portugal,  etc.  Vista  a  approvação  dos  Padres  Revedores,  damos  licença 
ao  Padre  Frei  Luis  de  Sousa  pêra  imprimir  esta  Primeira  parte  da  His- 
toria d'esta  Procincia.  E  lhe  mandamos  in  meritum  sánctae  obedientiae, 
gue  o  imprima  o  mais  em  breve  que  for  possível.  Dada  em  o  nosso  Con- 
vento de  S.  Domingos  de  Lisboa  em  19  de  Setembro  de  1G22. 


Frei  Diogo  Ferreira  Prior  Provincial. 


XIV 
DO  SANTO  OFFICIO. 

Al^PROVAÇÃO  DO  REVEDOR. 

Vi  este  livro  da  Historia  do  Patriarcha  S.  Domingos,  na  parle  que 
toca  a  esta  Proviíicia  de  Portugal,  composta  pelo  Padre  Frei  Luis  de 
Sousa.  Na  qual  se  vè  por  hum  estilo  mui  alevantado,  grave,  o  mui  reli- 
gioso, tratado  com  toda  a  eloquência  os  grandes  fructos,  que  fazem  na 
Igreja  Catholica,  e  na  defensão,  e  pregação  da  Fé  sagrada  os  filhos  doesta 
Provinoia  sancta :  os  muitos  Sanctos  que  esta  sagrada  Província  tem  dado 
a  Deos,  a  muita  religião,  santidade,  e  letras  que  nella  ílorecera.  Vê-se 
mais  a  muita  devação,  fervor,  e  charidade  dos  Reis,  e  Príncipes  de 
Portugal,  e  nobres  d'elle,  com  que  fundarão  esta  santa  Provinda,  e  ama- 
rão os  filhos  d"ella,  encommendando-lhes  os  negócios  mais  importantes 
a  suas  almas,  e  bem  do  Reino,  por  saberem  da  sua  grande  religião,  e 
letras.  Pelo  que  me  parece  livro  digníssimo  de  que  seja  impresso  huma, 
e  muitas  vezes,  porque  se  edifiquem  os  Catholicos,  e  affervorem  no  amor 
de  tão  sancta  religião,  e  se  confundão  os  herejes  inimigos  da  Fé.  Em  S. 
Francisco  de  Lisboa,  hoje  8  de  Novembro  de  lC2á. 

Erei  André  da  Rcsurreição, 

Eu  Frei  Thomas  de  S.  Domingos,  Revedor,  e  Calificador  do  Santo 
OfQcio,  vi  diligentemente  este  livro  por  mandado  do  nosso  Padre  Pro- 
vincial ;  e  a  minha  approvação  está  no  principio  do  livro  a  que  me  re- 
metto.  Em  S.  Domingos  de  Lisboa,  12  de  Novembro  de  1622. 

Fr.  Thomas  de  S.  Domingos  Magister. 

Vistas  as  informações,  pode-se  imprimir  o  livro  da  Historia  de  S.  Do- 
mingos, e  depois  de  impresso  torne  conferido  com  o  original  para  se  dar 
licença  para  correr,  e  sem  ella  não  correrá.  Lisboa,  aos  16  de  Novembro 
de  1622. 

António  Diaz  Cardoso.  Gaspar  Pereira.  Dom  João  da 

Francisco  de  Goavea.  Manoel  Pereira.  Silva. 


DO  ORDINÁRIO. 

Pode-se  imprimir  esta  Historia  de  S.  Domingos.  Lisboa,  17  de  No- 
vembro de  1622. 

Viegas. 


XV 


DO  DESEMBARGO  DO  PAÇO. 


Que  se  possa  imprimir  este  livro,  vista  a  licença  do  Santo  Ojficio^   e 
do  Ordinário.  Lisboa,  a  ^[  de  Novembro  de  Hr2ll. 


Dinis  dtí  Mello.  Vicente  Caldeira. 


TABOADA  DOS  CONVENTOS 

DE  QIE  »E  TRATA  \E*TE  PRIMEIRO  VOLl  UE 

CONVENTOS  DE  FRADES 

1  Primeiro  Convento  junto  á  Villa  de  Alanquer,  na  serra  de  Monte  jun- 

to, liv.  I.  cap.  12. 
Tresladação  d'este  Convento  do  sitio  de  Montijrás,  na  Villa  de  Santa- 
rém, pêra  o  lugar  onde  hoje  está,  liv.  ii,  cap.  2. 

2  Convento  da  cidade  de  Coimbra,  liv.  ni,  cap.  1. 

3  Convento  da  cidade  do  Porto,  liv.  m,  cap.  9. 

4  Convento  da  cidade  de  Lisboa,  liv.  ni,  cap.  17. 

MOSTEIRO  DE  FREIRAS. 
i  São  Fellx  de  Chellas,  junto  á  cidade  de  Lisboa,  liv.  i,  cap.  2:3. 


LIYRO  PHIMEÍHO 


DA 


HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 


PARTICULAR  DO   REINO,  E  CONÇUISTÂS  DE  PORTUGAL 


CAPITULO  I 

Do  nascimento  dó  Patriarcha  S.  Domingos,  sua  criara:),  estudo  í 
virtudes,  alê  tomar  o  habito  dos  Cónegos  regulares  de  Santo  Agos- 
tinho. 

Temos  a  cargo  escrever,  e  pôr  em  memoria  os  feitos  iilustres  dos  fi- 
lhos, e  successores  de  nosso  glorioso  Patriarcha  S.  Domingos  na  parte 
que  toca  ao  Reino,  e  conquistas  de  Portugal.  E  pai-ece  que  nfio  procede- 
rá a  narração  delles  com  a  ordem  e  termo  devido,  se  havendo  de  tra- 
tar dos  filhos  nos  descuidarmos  em  dar  alguma  noticia  da  vida  e  santida- 
de do  pai.  E  não  nos  desobriga  o  ser  sabida  de  todos,  ouvida  cada  dia  dos 
púlpitos,  lida  em  muitos  livros,  e  escrita  em  todas  as  lingoas.  Porque  sen- 
do qualquer  Religião  hum  corpo  mystico,  em  que  o  fundador  he  a  cabe- 
ça, e  os  membros  são  seus  fdhos,  e  successores:  assi  como  perderia  o 
tempo,  e  o  feitio  quem  nos  quizesse  representar  em  pintura,  ou  relação 
hum  corpo  humano  perfeito,  se  tratando  de  pés  e  braços  não  íizessc  caso 
da  cabeça  e  rosto,  que  naturalmente  he  base  e  principio,  e  como  alma 
d'elle:  nem  mais,  nem  menos  pede  a  razãf)  que  se  não  louvem,  fruitos, 

YOL.     1  1 


2  LIVllO  I  DA  IIISTOHIA  DE  S.  DOMINGOS 

sem  dar  novas  da  at-vore,  nem  se  pintem  torres  sem  mostras  da  lirnieza 
e  fundamento  em  que  estribão,  nem  se  trate  de  filhos  sem  íallar  de  seu 
pai.  Mas  porque  temos  hmii  grande  mar  diante,  de  annos  e  antiguidades, 
(pie  pedem  muita  leitura,  e  volumes  crescidos,  navegação  que  obriga  a  hum 
prolongado,  e  intolerável  trabalho  (e  como  somos  velhos,  e  não  podemos 
prometter  pêra  longe)  contentar-nos-hemos  com  fazer  huma  succinta  rela- 
ção da  vida,  e  obras  de  nosso  santo  fundador:  a  qual  ainda  que  fique  com 
menos  luz  da  que  lhe  he  devida,  vista  a  diíTiculdade  que  tem  pintar  gigan- 
tes em  pequena  taboa,  será  a  que  baste,  pêra  fugirmos,  quanto  a  mi,  dos 
'defeitos  de  corpo  monstruoso:  e  quanto  aos  curiosos  que  nos  lerem,  pcra 
lerem  diante  dos  olhos  hum  espelho  em  que  sem  cançar  a  memoria  en- 
xerguem, quão  bem  souberão  os  Portugueses  filhos  d"esta  Ordem  e  Pro- 
víncia retratar  em  si  por  todas  as  idades  a  vida,  e  costumes  de  seu  mes- 
tre, não  só  imital-o.  Seguir-se-ha  de  huma,  e  outra  cousa  hum  grande  be- 
neficio pêra  os  que  hoje  nos  prezamos  da  gloria  de  tão  honrado  tronco,  e 
do  valor  de  tão  bons  irmãos:  o  qual  será  espertarmo-nos  a  seguir  com 
viveza,  e  fervor  os  caminhos  de  virtudes  heróicas,  como  o  outro  Grego, 
que  confessava  de  si  lhe  fazião  perder  o  somno  as  proezas  que  lia  do  ven- 
turoso Milciades.  (*)  E  seguir-se-ha  também  acudirmos  com  antídoto  apro- 
priado ao  mal  da  profanidade,  e  infinidade  de  livros,  que  cada  hora  saem 
por  todas  as  províncias,  cheios  de  fabulas  e  ocíosidades,  estragadoras 
d"aquella  pureza  dos  bons  costumes  antigos,  que  tanta  saudade  nos  fa- 
zem. Assi  faremos  remédio  de  livros  contra  livros:  como  nos  ensina  a 
natureza  a  compor  triagas  das  víboras,  e  serpentes  mais  venenosas  pêra 
defensivo  d'ellas  mesmas.  Que  na  verdade  se  em  algum  tempo  foi  con- 
veniente fiizer  a  gente  espiritual  grandes  empregos  de  estudo,  e  trabalho 
em  escrever;  a  idade  em  que  vivemos  não  só  o  está  pedindo,  mas  obrigan- 
do, e  forçando  a  todos  os  que  pêra  si  tem  qualquer  talento,  edo  bem  com - 
murn  algum  zelo.  Mas  toca  este  cuidado  mais  de  perto  aos  que  seguimos 
a  disciplina  monástica.  Porque  as  Religiões  são  em  geral  os  exércitos  e  cam- 
pos formados  que  Deos  mandou  ao  mundo,  c  sustenta  nelle,  pêra  refor- 
mação de  costumes,  desterro  de  vícios,  e  conservação  da  santa  doutrina. 
Raivem  quanto  quizerem  os  hereges,  perseguindo-as  com  lingoas  serpenti- 
nas, roubando-lhes  as  rendas,  assolando-lhes  as  casas,  o  aparelhando  assi 
os  caminhos  ao  Anti-Chrísto.  Raivem  e  arrebentem  de  fúria,  que  ao  seu 

{•)  riulare.  in  \iU  Tliemiítcol.— Valer.  .Ma\.  iib.  '.iii.  cap.  lo. 


PAIiriCULAr.  DO  HEIXO  DE  POIiTLGAL  3 

])esar,  dos  caiiliiihos  das'ccllas  se  povoa  o  Ceo  de  milhares  de  Saiilos.  E 
assi  como  as  Religiões  são  os  exércitos,  assi  seus  mosteiros  são  os  castellos 
que  guardão  as  cidades  com  vigia  de  estudo  e  letras,  com  exercício  de  je- 
juns, lagrimas  e  disciplinas,  e  com  armas  de  sacrifícios  e  orações,  armas 
que  bastão  a  suspender  a  ira  do  Allissimo  sempre  de  peccados  provocada. 
E  n'elles  como  em  praças  militares  se  crião,  e  adestrão  na  disciplina  santa 
valerosos  espíritos  pêra  a  conquista  do  Ceo,  senão  com  tantos  hombros 
como  os  primeiros  Atlantes,  nem  com  tantos  braços  como  os  antigos  Bria- 
reus,  quero  dizer,  com  que  os  santos  capitães,  a  quem  seguem:  ao  menos 
com  a  mesma  confiança  na  graça  Divina  que  os  fez  taes.  E  estes  são  os  frui- 
tos  com  que  as  sagradas  Religiões  vão  acudindo  em  tempo  ao  soberano  Pai 
de  famílias,  como  largamente  se  deixa  ver  em  todas:  e  nós  o  mostraremos, 
se  o  Senhor  fòr  servido,  em  hum  pequeno  garfo  da  nossa,  por  esta  histo- 
ria: a  qual  escre^  de  melhor  vontade,  tanto  pela  força  que  me  faz  a  ne- 
cessidade que  apontamos,  como  por  honra  d'este  Reino  em  que  nascemos, 
e  pela  obrigação  immortal,  em  que  todas  as  Religiões,  e  Religiosos  lhe  es- 
tamos. Porque  assi  como  elle  foi  huma  das  primeiras  terras  de  Hespanha, 
que  recebeo  a  fé  de  Christo,  e  foi  a  primeira  de  toda  Europa,  que  fundou 
Prelacia  em  seu  nome,  com  a  presença  e  pregação  do  grande  Apostolo 
Santiago,  naquella  cidade,  que  como  em  profecia  d'esta  excellencia  gozava 
já  glorioso  apellido,  chamando-se  Brachara  Augusta  (*):  e  lambem  foi  a  pri- 
meira de  Hespanha  e  Europa,  que  se  matizou  com  sangue  santo,  derrama- 
do por  honra  do  mesmo  Senhor  (como  adiante  mostraremos) :  da  mesma 
maneira  abraçou  com  tanta  devação,  e  amor  todas  as  Ordens  que  hoje  ha 
na  Igreja  de  Deos,  que  nenhuma  nação  do  mundo  em  tão  estreitos  limites 
as  enriqueceo  tanto,  nem  honrou  mais.  Mas  he  tempo  de  começar. 

Caleruega,  que  as  nossas  lendas  chamão  Calaroga,  he  villa  do  bispado 
de  Osma,  em  Castella,  na  parte  que  hoje  chamão  Castella  a  velha,  e  nas 
demarcações  dos  Romanos  chamavão  Hespanha  citerior  (**).  Em  tempos  an- 
tigos foi  rico  e  insigne  lugar,  morada  c  assento  de  gente  illustre,  e  de 
muitos  varões  que  n  aquella  idade,  rica  de  valor  mais  que  de  titulos,  e  ren- 
das, erão  conhecidos  pelo  nome  de  ricos  homens.  Estes  tinhão  tanto  lugar 
diante  dos  Reis,  que  achando-se  na  corte  assinavão  com  elles  as  cartas  de 

(*)  Breviar.  Brach  — Santo  Isidoro  nas  V"ifla5  dos  Santo?,  cap.  ~',i.  —  O  Papa  Calixto  na  Vida 
de  San-Tiago. 

(■*•)  Pêro  de  Medina;  p.n  íun  Hc-pnnha;  liv.  ii  rap  1  IO.  —  Píoloni  lih  ii,  rap,  C.  -  Plínio 
lib.  111,  cap.  o. 


4  LIVUU   I  DA  IIISIOHIA  DE   S.    bO.MI.NUOS 

privilégios,  e  mercês:  e  asáiimvão  não  como  testimuribas  ou  iniuistroí;,  se- 
não como  consentidores,  e  quasi  como  companheiros.  Porque  assinando,  stí 
declarava  que  conlirmavão  elles  o  que  El-Rei  concedia.  E  bem  se  deixa  en- 
tender, que  o  confirmar  he  hum  certo  auto,  como  de  poder  igual.  E  por 
isso  era  ordinário  confirmarem  juntamente  o  Príncipe  herdeiro  do  Reino, 
e  os  Infantes  que  liavia.  IVeste  lugar  vivia  D.  Félix  de  Gusmão,  filho  dâ 
Rodrigo  Nunes  de  Gusmão,  apellido  e  gente  já  n"a quelle  tempo  tão  illustre, 
que  nos  consta  confirmarem  comos  Reis,  por  escrituras  autenticas.  Irmão 
de  D.  Félix  mais  velho  foi  Álvaro  Ruiz  ou  Rodi'igues  de  Gusmão,  do  qual 
por  linha  masculina  procedeo  D.  Álvaro  Pires  de  Gusmão,  que  em  Casíella 
chamarão  El-Rueno  (*).  Efoi  aquelie  que  defendendo  Tarifa  aos  Mouros,  a 
sendo  ameaçado,  que  se  não  entregava  a  villa,  lhe  degolariãc  diante  dos  olhos 
hum  filho  que  em  seu  poder  tinhão,  esteve  tão  longe  de  se  dobrar  ao  partido, 
que  do  muro,  donde  estava  com  elles  á  falia,  lhes  lançou  (*(h  baixo  o  punhal 
que  cingia,  significando,  que  onde  se  tratava  de  fidelidade,  não  duvidava  pola 
fruardai',  oíTerecer  armas  contra  suas  próprias  entranhas:  feito  glorioso 
em  Hespanha,  e  digno  brasão  da  grande  casa  de  Medina  Sidónia.  Foi  casa- 
do D.  Félix  com  D.  Joanna  d"Aça,  sua  igual  cm  nobreza,  mas  em  virtudes 
nobilíssima. 

De  tal  níatrinionio,  e  em  tal  villa,  e  de  tão  illustre  sangue  nasceo  nos- 
so glorioso  Patriarcha  S.  Domingos.  E  como  a  virtude  acomiíanliada  de 
nobreza  realça  tanto,  que  passa  a  estremos  de  fermosura,  quiz  o  Senhor 
que  fosse  t;d  a  d'este  Santo,  pêra  lhe  não  faltar  parte  nenhuma  das  que 
estão  bem  n"ella.  Tinhão  estes  senliores  já  dons  filhos,  António,  eMamcdó 
(OU  Manes,  como  lhe  chamão  outros)  quando  D.  Joanna  sentindo-se  de  no- 
vo pejada.,  se  pôz  a  caminho  pêra  o  Convento  de  S.  Domingos  de  Silos  a 
encommendaraDeospormeiodaquelle  Santo  o  fruito  que  esperava,  ea 
hora  de  o  dar  ao  mundo  a  todas  as  mais  temerosa.  He  este  convento  de 
Religiosos  de  S.  Bento:  mas  a  devação  do  santo  Abbade  Domingos,  que 
n"elle  vivendo  fiorecera  em  santidade;  e  agora  morto  resplandecia  com  mi- 
lagres, lhe  tinha  trocado  o  nome.  Cumprio  a  devota  matrona  sua  novena 
com  fervorosas  orações  á  vista  das  santas  Relíquias:  e  o  Saiiío  alcançou  de 
Deos,  que  levasse  logo  a  paga  com  hum  successo  de  grande  consolação. 
Appareceo-lhe,  edísse-lheqfie  da  parte  de  Deos  a  avisava,  que  d"aquelle 
parto  daria  ao  mundo  hum  lillio  que  n'elle  seria  huma  grande  cousa.  Mas 
dura  pouco  qualquer  alegria  da  vida.  A  poucos  dias  depois  de  tornada  a 

(•;  M.  Ir.  rciíuindo  de  Caslilho.  lib.  i.  citp.  2.--IIist.  geral  de  S.  Dominjo?. 


PAATICULAP.  DO  REINO  DE  PORTUGAL  li 

sua  casa,  bastou  hum  sonho  p.íra  a  desconsolar,  e  encher  Je  medo.  Repre- 
sentou-se-lhe  dormhido,  que  o  íllho,  de  quem  tão  boas  novas  ouvira,  não 
era  homem,  nem  de  humana  criatura  tinha  forma,  mas  de  hum  cão.  E  pê- 
ra mais  se  embaraçar  e  temer,  via-lhe  atravessada  na  boca  huma  tocha  ar- 
dendo com  tanto  fogo,  que  o  pegava  a  toda  a  terra.  Agoado  assi  o  gosto 
da  primeira  visão  com  o  pavor  do  sonho,  que  na  verdade  era  confirmação 
d'ella,  passou  entre  medo,  e  esperanças,  até  a  hora  que  se  vio  rica  de  mais 
hum  fiiho  (que  riqueza  he  em  gente  nobre  huma  meza  rodeada  de  muitos 
filhos,  principalmente  se  a  criação  fosse  qiial  sohia  ser  a  d'aquelles  tem- 
pos). 

Corria  o  anno  de  nosso  Senhor  JesuChristo  de  H70;  era  Summo  Pon- 
tífice Ale?;andre  Terceiro,  e  Emperador  de  Alemanha  Federico  I  chamado 
Barbarroxa:  Rei  deCastella  D.  AíTonso,  filho  de  D.  Sancho,  que  chamarão 
o  desejado:  e  reinava  em  Portugal  D.  Affonso  líemiques,  primeiro  dos  Reis, 
c  do  nome  deste  Reino.  Converteo  D.  Joanna  os  medos  em  alegria,  e  do- 
brou-se-lhe  com  novos  e  bem  assombrados  pronosticos,  que  logo  se  forao 
vendo  no  menino:  pronosticos  todavia  prodigiosos,  e  fora  do  natural.  Ao  tem" 
po  que  o  levantou  o  Sacerdote  das  agoas  sagradas  do  bautismo,  vio-st^lhe 
na  testa  huma  resplandecente  estrella:  ou  em  sinal  que  liavia  deserguia, 
e  norte  de  salvação  pêra  muitos,  como  depois  mostrou  o  successo:  ou  quo 
era  aquella  a  estrella,  cujo  nascimento  estava  profetizado  dous  mil  quatro- 
centos e  noventa  e  sete  annos  antes  pola  Sybilla  Erilrsea,  dizendo  assi  cm 
hum  de  seus  versos:  (uSijdus,  cujus  nílore  universus  terrorum  orbes  iUustri^t 
redJetar  et  clarus,  in  Hispânia  creabilur.-»  Quer  dizer:  Em  Hespanha  nasce- 
rá huma  estrella,  cuja  luz  dará  fermosura,  e  resplandor  a  toda  a  redon- 
deza da  terra.  Leandro  Alberto,  Mestre  grave,  e  douto  traz  esta  profecia 
na  vida  d"este  Santo  escrita  muitos  annos 'ha  (*).  Mas  bem  podemos  dizer 
d'esta  estrella,  quo  foi  lingoa  de  fogo  com  que  o  Espirito  Santo  quiz  visi- 
velmente santificar  aquella  bemdiía  alma,  que  pelo  nome  de  Domingos,, 
f|ue  lhe  foi  posto,  já  escolhia  por  sua.  Deixou-se  isto  entender  logo  dos 
effeitos  de  sua  criação.  Porcjue  sendo  ainda  de  peito  lhe  acontecia  cair  da 
cama  de  sua  ama,  e  ficar  dormindo  em  terra:  cousa  que  se  não  pôde 
conceder  sem  movimento  do  Ceo.  Porque  parecendo  primeiro  caso  acci- 
dental,  tantas  vezes  llie  succedeo,  que  veio  a  ser  havido  por  mysterio,  e 
huma  certa  inclinação,  e  principio  d'aquella  rigorosa  penitencia  que  depois 

(•)  M.  í  oanilr.  Alh.  in  V;t;i  S.  Domiiuci. 


i)  I.IVHO  I  DA  HISTOHIA  DL   S.    DOMI.NCUS 

por  toda  a  vida  abraçou,  como  se  conta  dè  alguns  Santos,  que  desd "os 
peitos  das  amas,  e  n'aquelle  primeiro  leite  começarão  executar  abstinên- 
cia (*).  Notava  D.  Joanna  tudo,  e  vendo  como  hia  conformando  com  a 
revelação  da  Igreja  de  Silos,  tanto  que  teve  sete  annos  não  quiz  tardar 
em  o  entregar  a  Deos  na  maneira  que  então  podia.  Manclou-o  a  hum  irmão 
seu,  Arcediago  da  Igreja  de  Gumiel  de  Yçan,  varão  de  provada  virtude. 
Aqui  foi  estudando  as  primeiras  letras,  occupando-se  juntamente  no  servi- 
ço dos  altares,  ecoro:  e  como  crescia  nos  annos,  hia  descobrindo  nas  le- 
tras habilidade,  e  nas  cousas  da  Igreja  aíTeição  e  perfeição,  e  em  tudo  o 
que  fazia  n'aquella  puerícia  hum  peso,  e  madureza  que  parecia  velhice.  Era 
já  de  quatorze  annos,  e  não  se  lhe  via  cousa  que  descubrisse  culpa,  ou  le- 
viandade, nem  ainda  pequena  nota  naquella  primeira  graça  que  no  bautis- 
mo  receljera.  N"esta  idade  foi  mandado  á  cidade  de  Falência  pêra  entender 
nos  estudos  maiores  (era  então  Falência  assento  das  letras  de  Hespanha, 
que  depois  se  passarão  a  Salamanca).  Começou  o  moço  seu  estudo  livre  da 
sujeição  de  pai,  e  parentes,  com  hum  modo  de  vida  estranho,  e  novo  pêra 
entre  seculares.  Como  quem  espera  inimigos  poderosos  em  tempo  de  guer- 
ra, que  não  se  dando  por  seguro  no  campo,  procura  encastellar-se  em 
lugar  forte  provido  de  presidio,  e  munições,  assi  se  armou  de  todas  as 
virtudes  contra  todo  género  de  vicios.  Em  casa  recolhimento,  silencio,  con- 
tinuação sobre  os  livros;  fora  modéstia,  humildade,  frequência  de  sacramen- 
tos. Com  tal  companhia  dentro  de  pouco  tempo  se  acreditou  de  maneira, 
que  em  toda  a  Universidade  era  havido  por  hum  Anjo  em  carne. 

Assi  foi  estudando  Lógica,  Philosophia,  e  Metaphisica,  e  passou  á  santa 
Theologia,  e  crescendo  nas  letras,  e  na  idade  adquiria  novas  forças,  e  novo 
vigor  na  virtude.  Sentia  profundamente  peccados  alheios:  chorava-os  com  vi- 
vas lagrimas,  fazia  porellespenitencia,  como  se  forão  próprios:  despendia- 
se  todo  em  esmolas,  compassivo  por  estremo  dos  trabalhos  que  via  nos  pró- 
ximos. Veio  hum  anno  estéril,  cresceo  o  preço  das  cousas,  parou  em  fome 
geral.  Depois  de  repartir  entre  pobres  o  que  tinha,  e  quanto  havia  de  bom 
em  casa,  olhou  pêra  as  estantes  que  estavão  povoadas  de  livros,  alegrou- 
seGomoseachárathesouroocioso.Vahãon'aquelle  tempo  os  livros  muito, 
como  não  havia  impressão:  logo  os  pôz  em  venda,  e  enthezourou  o  preço 
no  seio  dos  necessitados.  E  matando  a  fome  a  estes  com  a  obra,  abrio  os 
olhos  aos  ricos  com  o  exemplo,  pêra  alargarem  mãos,  e  ânimos,  Não  lhe 

(>)  De  S.  Nicoláo  cx  MeUniihruílc,  t  o  Rouieiuo  Brcviar. 


PARTICriAR  DO   REINO  DE  PORTlT..\i  7 

ficava  que  dar,  e  a  caridade  ensinou  o  que  ainda  tinha  que  vender,  ou  ao 
menos  empenhar.  Yeio-se  a  elle  huma  affligida  mulher,  como  a  rico,  e  no- 
bre, e  Uberal,  chorou-lhc  hum  irmão  cativo  em  terra  de  Mouros:  chorou 
elle  também  a  pena  do  cativo,  e  a  de  quem  lha  representava,  e  disse-lhc 
íjue  todavia  lhe  lembrava  que  ainda  tinha  com  que  a  remediar,  acrescen- 
tando logo  com  deliberada  vontade,  que  tratasse  com  o  Mouro  se  aceitaria 
a  pessoa  de  Domingos  de  Gusmão  pola  de  seu  irmão,  que  logo  a  entrega- 
ria por  elle.  Mas  não  permittio  Deos  que  houvesse  por  então  outro  Pau- 
lino (* ).  A  estas  virtudes  ajuntava  perpetuo  cuidado  de  sua  pureza  e  castida- 
de: eíTeito  particular  da  divina  graça,  que  começando  n'aquella  alma  desdo 
berço  lha  conservou  limpa,  e  sem  magoa  por  toda  a  vida.  Esta  pedia  a 
Deos  em  oração  continua  arrebatado  já  então  em  altas  contemplações,  e 
amores  do  Ceo.  Quem  assi  estudava,  claro  fica  com  quanta  facilidade  se 
faria  senhor  das  sciencias,  e  principalmente  da  que  tem  o  nome  de  Deos. 
Não  chegava  a  vinte  cinco  annos,  já  era  consultado  por  muitas  pessoas, 
e  de  muitas  partes  em  matérias  altas  de  Theologia. 

Era  Bispo  de  Osma  D.  DiogodeAzebes,  que  alguns  chamão  de  Azeve- 
do, pessoa  de  grandes  partes  em  religião,  e  prudência.  Tinha  introduzido 
em  sua  Igreja  huma  estranha  reformação,  ou  transformação  de  vida.  Aca- 
bara com  os  seus  Cónegos  que  de  seculares  se  fizessem  regrantes,  vives- 
sem em  comraunidade  e  clausura,  e  em  fim  guardassem  a  regra  de  Santo 
Agostinho.  Ouvindo  as  novas  que  corrião  no  bispado,  das  letras,  e  virtude 
do  nosso  estudante,  pareceo-lhe  que  seria  muito  a  propósito  sua  companhia 
pêra  conservação,  e  amplificação  de  tal  vida.  Convidou-o  pêra  ella:  foi  fá- 
cil de  entrar  em  escola  onde  se  professava  perfeição.  Entrado  procurou 
adiantar-se  em  todos  os  exercícios  espirituaes,  e  de  discípulo  se  fez  mestre, 
e  era  espelho  pêra  todos.  Quiz  o  Bispo  que  tivesse  o  cargo  de  Superior, 
que  nos  estilos  da  Sé  respondia  a  Arcediago,  Aceitou-o  á  força,  e  exerci- 
tou-o  com  humildade  e  inteireza.  Passado  algum  tempo  tornou  a  Palencia 
com  certa  occasião  a  assistir  na  Uuiversidade:  e  chegando  aos  trinta  annos 
começou  a  descobrir  com  a  pregação  evangélica  os  dons  do  Ceo  que  Deos 
communicava  a  sua  alma,  e  entendimento.  Era  admirável  o  fruito  que  fa- 
zia nas  almas,  juntando-se  exçellencia  de  engenho  com  virtude  consumma- 
da,  palavras  bem  assentadas  com  vida  santa.  Levava  traz  si  toda  a  Uni- 
versidade, e  todo  o  género  de  gente.  Aqui  lhe  acontereo  segunda  vez  pôr 

(•)  S.  Paulinn,  Bi«po  de  iNok*^ 


8  I.IVUO   I  IV\  IIISTOHIA   DE   S.    IKJMINGO.-Í 

emalmoedaoslivrosquedo  novo  juntara:  achou  pobreza  em  niuila  gente, 
niio  lhe  soflVco  o  coi'ação  vel-a  em  onlrem,  sem  ser  participante  (relia:  fi- 
cou j)ohre  como  todos. 

CAPITULO  II 


Parle  Frei  Domingos  pêra  França,  passa  a  Paris  e  a  Romo:  torna 
de  ausento  a  Tohsa  pregar  aos  hereges:  funda  huut.  recolhimento  de 
donzellas:  vence  miiilos  hereges  em  disputas:  converte  outros.  Appa- 
rece-lhe  n  Virgem  nor-sa  Senhora:  ensina-lke  a  devoção  do  Santo  Ro- 
saria, e  manda-lhc  que  a  pregue. 


Mas  chegava-se  o  tempo  em  que  Deos  queria  descobrir  ao  mundo  as 
grandezas  pêra  que  errara  seu  servo  Domingos,  e  tomou  por  instrumento 
o  mesmo  Bispo  de  Osnia  D.  Diogo,  o  qual  estando  de  caminho  pêra  Fran- 
ça encarregado  de  huma  embaixada  de  importância  por  El-Rei  D.  Affonso 
de  Castelía,  não  quiz  fazer  a  jornada  sem  elle.  Partirão  por  Abril  do  anno 
de  1203,  entrarão  pela  parte  de  Tolosa,  cidade  principal  da  Província  Nar- 
bonense.  Souberão  logo  que  andava  levantada  n"aquelía  comarca  huma  dia- 
bólica heregia,  que  nascida  no  lugar  de  Albi,  hia  lavrando  como  fogo  por 
todos  os  lugares  vizinhos,  e  inílcionando  como  peste  não  só  a  gente  popu- 
lar, mas  também  nobres,  e  senhores.  Frei  Domingos  que  já  em  ílespanha 
costumava  derramar  lagrimas  por  peccados  alheios  e  ordinários,  qtie  faria 
nos  de  falta  de  Fé?  Foi  dòr  que  oferionaalma.  E  muito  mais,  quando  vio 
por  seus  olhos,  e  ouvio  com  seus  ouvidos  na  primeira  pousada,  em  que 
entrarão,  hum  pobre  estalajadeiro  atrevidamente  pôr  em  pratica  e  disputa 
Hiysterios  soberanos  da  Fé  (manha  he  ordinária  de  hereges,  como  não  tem 
a  Fé  no  coração,  trazerem-na  sempre  na  boca,  e  qualquer  idiota  presumir 
de  falar,  e  argumentar  n'ella).  Tremião  as  carnes  aos  Gaíholicos  de  ouvir 
as  blasfémias.  Tomou  Frei  Domingos  entre  mãos  o  miserável,  e  por  cego 
e  obstinado  que  estava,  cm  poucas  razões  o  deixou  atado,  e  convencido,  e 
como  primicia  da  jornada,  aliumiado  o  reduzido.  Passarão  á  corte  de  Fran- 
ça, era  a  Rainha  Hespanhola;  e  tal  pessoa,  que  por  ella  confessão  os  escri- 
tores Franceses,  que  entrarão  todos  os  bens  em  França.  Chamava-se  D. 
Branca,  filha  do  mesmo  Rei  D.  AfTonso  de  Casíella,  era  cujo  serviço  era  a 


PARTICULAR  DO  REINO  LE  PORTUGA!,  9 

embai-vaJa.  Como  devota,  e  religiosa  folgou  de  commmiicar  íom  Frei  Do- 
mingos. E  como  tardava  em  alegrar  o  Reino  com  successão,  pedio-lhe  que 
com  suas  orações  lhe  alcançasse  de  Deos  fruito  de  benção;  e  não  se  enga- 
nou na  petição:  dentro  de  pouco  tempo  teve  hum  filho  tão  de  benção,  co- 
mo foi  o  santo  Rei  Luis. 

Concluido  o  negocio  da  embaixada,  quiz  o  Bispo,  pois  estava  em  cami- 
nho, visitar  as  relíquias  dos  Sagrados  Apóstolos  em  Roma,  e  dar  conta  ao 
Pontífice  como  testemunha  de  vista  do  estrago  que  fazia  a  heregia  nas  ter- 
ras de  Tolosa,  e  da  necessidade  que  havia  do  remédio  apressado.  Fez  a 
jornada,  e  não  foi  perdido  o  trabalho.  Despachou  o  Papa  pessoas  de  letras, 
e  virtude  que  se  fossem  empregar  na  pregação,  e  reducção  dos  hereges. 
Erão  doze  Abbades  da  Ordem  de  Cister.  Sahio  pouco  depois  o  Bispo  em 
seguimento  d^elles,  mas  achou  tudo  mais  daranado  do  que  o  deixara;  e  mui- 
tos lugares  inteiros  declarados  na  heregia  com  seus  senhores.  Começarão 
todos  a  pregar,  rogando,  instando,  amoestando,  ensinando.  Não  se  pôde  crer 
o  desaforamento  que  havia.  Não  só  desprezavão  a  doutrina  e  doutrinantes, 
mas  fazião-se  reformadores,  e  reprehensores  dos  mestres  da  verdade,  quo 
comião,  que  vestião,  queandavãoacavallo.  Tratou  Frei  Domingos  com  o 
■  Bispo  que  tirassem  toda  occasião  de  murmurar  aos  inimigos,  a  ver  se  ti- 
nha a  verdade  mais  lugar,  ajudada  de  hum  raro  exemplo.  Determina-se  o 
Bispo,  larga  o  fausto,  e  despede  pêra  Hespanha  o  acompanhamento  de  Pre- 
lado e  Embaixador,  fica-se  só  com  Frei  Domingos.  Entrão  ambos  a  pé  por 
Monpelher.  Fizerão  o  mesmo  os  Abbades.  He  a  terra  grande  e  populosa, 
e  estava  cliea  dos  que  já  se  chamavão  Albigenses,  tomando  o  nome  do  lu- 
gar em  que  tivera  nascimento  o  desatino.  Junta-se  o  povo,  contentava-se 
nosso  Padre  com  ser  ouvido,  abria-lhe  os  olhos,  descobria-lhe  a  cegueira, 
conclaia-os.  Mas  crescia  a  ignorância,  e  o  atrevimento  nos  mais  cegos:  pêra 
apartarem  o  povo  da  pregação,  commettem  ao  Bispo  que  per  disputa  pu- 
blica querem  calificar  suas  opiniões.  Porém  foi  facíl  de  vencer  a  mentira. 

Convencidos  e  corridos  pedem  segundo  partido:  dizem  que  Frei  Do- 
mingos vence  com  agudezas  argumentando,  e  com  eloquência  fatiando,  que 
se  dispute  por  escrito.  Escrevem  ellts,  escreve  elle.  Mas  desconfiando  os 
hereges  de  suas  sofistarias,  passão  a  maior  temeridade,  querem  sinaes  do 
Ceo:  e  fazem  instancia  que  se  remeta  ao  fogo  a  verdade  do  que  cada  par- 
te defende.  Refusava  Frei  Domingos  tentar  a  Deos  quando  estava  Aictorio- 
so  em  todos  os  outros  meios.  Passarão  muitos  dias,  crescia  a  contumácia, 
e  a  soberba.  Parcceo  forçado  a<'eitar  o  desafio.  Não  podião  os  herege?  es- 


10  LIVRO  I  BA   HISTORIA   DE   S.   DOMINGOS 

perar  milagre,  nem  erão  tão  ignorantes  que  o  esperassem:  que  nunca  iioii- 
ve  milagre  onde  faltou  a  verdadeira  fé:  mas  foi  lanço  de  artificio,  e  ina- 
iicia.  Fazião  conta,  que  íinhão  por  infallivel,  que  o  fogo  consumiria  os  es- 
critos catholicos:  e  ainda  que  os  seus  também  ardessem,  já  ficavão  iguaes 
na  causa,  que  era  assaz  pêra  elles.  E  não  falta  quem  aflirme  que  tinhão 
quem  com  esconjuros,  e  arte  diabólica  se  offerecia  sustentar-lhe  os  seus 
sem  damno  no  meio  das  brasas.  Em  íim  aprazou-se  dia.  O  nosso  Prega- 
dor entretanto  não  tinha  hora  de  descanço.  De  dia  oração,  e  jejuns:  de 
noite  oração,  lagrimas,  e  disciplinas.  Este  era  o  maior  estudo  pêra  a  con- 
tenda que  esperava.  Chegado  o  prazo,  toma  seus  cadernos,  junta-se  com 
o  Bispo,  e  Abbades.  Acodem  os  contrários,  pije-se  em  meio  hum  bra- 
seiro ardendo:  lancão-se  os  papeis  de  cada  parte.  Caso  estranho!  Saltão 
fora  do  fogo  os  que  conf  inhão  a  verdade,  abrazão-so  os  heréticos  em  hum 
momento.  Louvarão  a  Deos  os  Catholicos:  ficou  Frei  Domingos  com  no- 
me de  Santo.  E  pêra  que  n'um  só  milagre  houvesse  três,  segunda,  e  ter- 
ceira vez  foi  convidado  o  fogo  c'os  mesmos  papeis:  e  outras  tantas  os 
deitou  de  si  sem  lesão,  nem  sinal  d"ella. 

Mas  não  bastão  pêra  os  incrédulos  milagres  do  Coo.  Porque  permitte 
Deos  pêra  castigo  dos  máos,  quando  a  cegueira  nasce  de  vontade  damnada, 
que  vendo  não  vejão,  entendendo  não  entendão.  Não  só  licarão  em  sua  du- 
reza, mas  passarão  ao  ultimo  desatino,  e  próprio  de  hereges,  que  he  su- 
prir, c  confundir  com  força  as  faltas  da  razão:  tomão  as  armas,  fazem-se 
temer,  e  obedecer  por  ellas.  Estava  prevertido,  e  em  seu  favor  o  Conde  de 
Tolosa  senhor  poderoso.  Juntarão-se-lhe  na  opinião,  e  na  força  os  Condes 
de  Foix,  e  Comminge.  Cahio  de  todo  a  causa  dos  bons,  atropellada  do  po- 
der, e  das  armas.  Andavão  os  Catholicos  encolhidos,  e  encantoados,  outros 
fugidos,  -ou  envergonhados  e  abatidos:  suas  casas  erão  saqueadas,  as  fa- 
zendas destruídas,  tudo  confusão,  e  injustiças.  Assi  derão  em  tanta  pobre- 
za, que  muitos  nobres  por  sustentar  a  fé  chegavão  a  desamparar  as  casas, 
e  as  filhas  donzellas:  e  taes  havia  que  polas  não  ver  padecer  escolhião  por 
menos  mal  entregal-as  como  vendidas,  e  cativas  aos  hereges  que  reinavão. 
A  este  desamparo  acudio  o  santo  Frei  Domingos  com  hum  desenho  do 
Ceo,  que  sempre  dos  maiores  males  costuma  Deos  tirar  grandes  bens.  Ti- 
nha-lhe  dado  o.Bispo  de  Tolosa  Fulcon,  varão  religioso  e  santo,  huma  Igre- 
a  entre  Carcassona  e  Tolosa  pêra  seu  recolhimento  (era  a  invocação  Nossa 
Sethora,  e  o  nome  do  sitio  Prulliano.)  Ordena  Frei  Domingos  n'ella  hum 
ccc'.:.imonto  pobrf'  por  então,  e  mal  reparado,  conforme  ao  tempo  que  cor- 


PARTICULAP.    DO    REINO   DE  PORTUGAL  11 

ria.  Começa  logo  a  povoal-o  de  donzellas  nobres,  e  pobres,  pondo  á  conta  de 
Deos  o  governo,  o  sustentacrio:  o  chegarão  em  pouco  tempo  a  numero  de 
cento.  De  tão  fracos  princípios  veio  a  ser,  e  he  hoje  casa  sumptuosissi- 
ma,  e  o  primeiro  mosteiro  de  Freiras  que  houve  nas  Ordens  mendicantes, 
e  o  primeiro  de  França  qiie  admittio  clausura. 

Fíavia  já  dous  annos  que  o  Bispo  D.  Diogo  assistia  n"esta  conquista 
de  almas.  Vendo  que  o  trabalho  era  intolerável  e  sem  fim,  porque  ainda 
que  aproveitavão  muito  por  huma  parte,  hia  por  outra  tomando  novas 
forças  a  heregia,  e  de  novo  se  corrompião  mais  lugares,  determinou 
acudir  a  suas  ovelhas.  Foi-se :  c  o  mesmo  fizerão  os  Abbades.  Ficou  S. 
Domingos  S(3,  que  não  pôde  acabar  comsigo  largar  o  campo:  antes  arden- 
do em  zelo  da  honra  de  Deos,  e  do  remédio  de  tantas  almas,  tomou 
o  negocio  tanto  a  peito,  que  aos  dous  annos,  que  já  tinha  assistido,  ajun- 
tou depois  com  invencível  cons'tancia  oito:  e  forão  dez  por  todos  os  que 
perseverou  n'eíle.  Grandes  cousas  ihe  succedêrão  no  discurso  de  tão 
largo  tempo,  que  não  poderemos  fazer  mais  que  hir  tocando  algumas  dé 
passo,  e  deixando  outras  por  abreviar.  Pregava  sem*  cessar  em  publico, 
e  pelas  casas  particulares,  correndo  os  lugares,  e  villas  da  comarca. 
Sentem-se  os  hereges,  porque  lhes  tirava  reputação,  e  grande  numero 
de  discípulos:  tornão  a  pedir  conferencia,  e  disputas  publicas  das  opi- 
niões. Assentou-se  junta  em  hum  lugar  pouco  distante  de  Tolosa.  Quiz  o 
Bispo  Fulcon  achar-se  presente,  e  apercehia-se  de  acompanhamento 
conforme  a  seu  estado,  parecendo-lhe  conveniente,  pois  era  auto  publi- 
co, mostrar  autoridade  e  pompa,  contra  gente  armada  de  poder,  e  for- 
ça. Pcrsuade-lhe  S.  Domingos  que  vença  a  soberba  herética  com  humil- 
dade, e  imitação  de  Christo.  Poem-se  ambos  ao  caminho  a  pé  e  des- 
calsos-  Vio-os  partir  hum  herege;  sáe-lhes  ao  encontro  fora  das  horas,  e 
fingindo  doer-sc  delles  com  palavras  e  cortesia  de  amigo,  offereceo  le- 
val-os  por  hum  passo  que  sabia  com  que  atalharião  terra,  e  trabalho, 
Que  fácil  he  de  enganar  a  virtude!  Seguem-no ;  dá  com  elles  em  hum 
monte  serrado  de  matos,  e  aspereza :  triunfa  em  seu  coração  vendo-os 
cançados,  e  moidos.  e  dos  pés  descalços  correndo  sangue.  Mas  não  se 
dava  de  todo  por  satisfeito,  porqne  todavia  hião  alegres,  e  sofridos. 
Cançou-se  o  infelíce  rodeando  montes,  e  valles :  e  em  fim  notando  que 
durava  mais  n'elles  a  paciência,  que  n'elle  o  gosto  e  teima  de  os  que- 
brantar, foi  tal  a  confusão,  e  compunção  que  recebeo  d"aquella  santa 
constância,  reconhecendo  n"ella  a  verdade  da  fé,  e  do  espirito  c  graça 


•li  LIVRO  I  DA   HISTORIA   DE  S.   DOMIXdOS 

divina,  que  no  meio  do  maio  se  lançou  aos  pés  de  S.  Domingos,  con- 
fessou seu  erro,  e  pedio  perdão,  e  rediicção  á  Igreja.  Pagou  Oeos  a  seu:» 
servos  o  trabalho  do  caminho  com  gloiiosa  victoria  nas  disputas. 

Mas  vencião  em  poder  c  numero  os  que  em  razões,  e  argnmentos  erão 
vencidos,  e  como  da  parto  de  S.  Domingos  falíava  corpo  de  gente,  e 
o  vião  só  e  pobre,  determinarão  descompol-o  com  afrontas  e  desprezos, 
humas  vezes  dizendo-lhe  injurias  no  rosto,  outras  tirando-lhe  pedras. 
e  iançando-Hio  lodo  das  ruas  ao  vestido,  e  aos  olhos.  Triunfava  o  Santo 
conhecendo  a  causa  porque  padecia:  pagava  com  silencio,  eolhosaDeos 
em  graças  do  que  lhe  dava  a  merecer  por  defensão,  e  honra  da  verda- 
de. E  sendo  assi  que  em  muitos  lugares  recebia  estas  ignominias,  e  na 
cidade  de  Tolosa  era  ainda  respeitado  e  amado,  notava-se  n'eHe,  que 
pêra  hir  áquelles  tinha  azas  nos  pós;  o  pêra  Tolosa  sempre  hia  forçado. 
Ardião  os  hereges  em  raiva  com  a  humildado  do  sofrimento,  e  muito 
mais  com  a  continuação  da  pregação  de  que  nunca  desistia  :  ameação-no 
com  a  morte  se  não  calla,  e  tratão  de  lh"a  dar;  porque  não  temendo 
Rei  nem  Prelados,  d"el!e,  só  tremem  descalço  e  pobre.  E  hum  dia  lhe 
disserão  sem  rebuço,  qim  se  passara  por  certo  lugar,  onde  lhe  íinhão 
armado,  estiverãi)  já  descançados.  P&rguntou  que  determinavão  fazer? 
Responderão,  que  fartar-se  de  seu  sangue:  e  elle  re-iiicou,  que  porque 
vissem  que  não  tinha  m?n3s  s:.de  do  o  derramar  pila  cansa  que  defen- 
dia, que  elles  de  o  beber,  lhes  houvera  de  pedir  em  tal  passo,  que  lhe 
não  encurtassem  a  gloria  de  padecer  matando-o  depressa,  mas  que  lhe 
fossem  cortando  cada  meiubro  por  si,  e  tantas  mortes  rece^besse,  quan- 
tos erão  os  membro:;. 

Soube-se  em  Roma  o  que  passava.  Despachou  o  Poníifice  hum  Le 
gado  por  nomo  Pedro  de  Casíronovo,'  ou  Castel-novo,  que  he  o  mesmo, 
da  Ordem  de  Cister.  Entrou  pola  terra,  fallou  com  os  Condes,  fez  jun- 
tas, tentou  remédios:  achando  tudo  cerrado,  e  todos  contumazes,  ex- 
comungou o  Conde  de  Tolosa,  e  fez  volta.  Senlio-se  o  Conde,  mandou 
gente  trás  elle,  rnalão-no  ás  lançadas.  Era  entrado  o  anno  de  1208,  go- 
vernava a  Igreja  de  Deos  Innocencio  Terceiro,  varão  santíssimo :  deter- 
mina castigar  a  impiedade  a  fogo  e  sangue  como  merecia,  jlanda  logo  a 
França  por  seu  Legado  o  Cardeal  Gallon  do  titulo  de  Santa  Maria  in 
Porticu.  Escreve  a  El-Rei,  c  a  todos  os  Príncipes  da  Christandade,  que 
acudão  ao  cíistigo  dos  rebeldes,  e  passa  Bulias  pêra  se  pregar  Cnizada 
contra  elles,  c  seus  valedores,  como  era  costume  quanda  se  juntavão  ex- 


PARTÍCLLA.U    DL)    Ulii.NO   DK   FOnTCGVI,  13 

ercitos  pêra  a  conquista  Ja  Terra  Santa.  Foi  grande  o  poder  de  genle 
que  começou  a  correr  pêra  a  empreza,  de  toda  a  sorte,  estado,  c  qua- 
lidade, e  de  todas  as  províncias  da  Chrisíandade. 

Não  estava  entretanto  o  Santo  ocioso,  procurava  por  todos  os  meios 
reduzir  os  cegos  ao  caminho  da  verdade,  antes  que  cahisse  sobre  elles 
o  rigor  que  antevia  da  espada  divina.  Corria,  como  costumava,  todos  os 
lugares,  fazia  grandes  instancias  com  os  homens :  mas  muito  maiores 
com  Deos,  pêra  quem  cada  dia  ganhava  muitas  almas.  He  cousa  certa, 
(jue  em  hum  lugar  d'estes,  aposentando-se  em  casa  de  humas  senhoras 
illustres,  que  vivião  na  cegueira  da  heregia,  passou  huma  Quaresma  in- 
teira a  pão  e  agoa,  e  sem  outra  cama  mais  que  huma  taboa,  ajuntando 
a  tal  cama  e  tal  mantença  muita  oração,  e  ásperas  disciplinas.  O  que 
sendo  delias  notado,  e  vendo-o  na  Paschoa  com  mais  forças,  e  melhor 
côr  de  rosto,  do  que  entrara  na  Quaresma,  pôde  mais  que  a  pregação, 
esta  vista  e  discurso:  espantadas  da  virtude,  e  poder  divino  deixarão-so 
vencer  da  verdade,  e  abjurarão  a  hei-egia.  Era  o  íim  d'estas  penitencias 
não  huma  só  casa,  nem  poucas  almas.  Esiendia-se  aquella  inflamada  ca- 
ridade a  todo  o  Reino  de  Fi'ança,  e  a  toda  a  Christandade,  temendo 
muito  aquelle  fogo,  e  lembrando-se  do  antigo  de  Arrio,  e  outros  seme- 
lhantes, que  com  seus  erros  corromperão,  e  levarão  ao  inferno  grande 
parte  do  mundo :  prosírava-se  por  terra  diante  do  Senhor,  regava-a  com 
rios  de  lagrimas,  e  com  profundíssima  humildade  gritava  por  remédio. 
Descançava  hum  pouco,  e  logo  discorria  que  poderia  fazer  de  sua  par- 
te em  serviço  d"aqu3lles  próximos,  que  fosse  de  momento  pêra  os  allu- 
miar,  e  reduzir  áqueíle  Senhor  que  nenhuma  cousa  mais  ama  que  a  sal- 
vação dos  que  criou.  Estendia  o  pensamento  a  juntar  gente  contra  o 
inferno,  como  eíle  juntava  contra  Deos:  gente  armada  de  fé,   de  peni- 
tencia, de  humildade,  de  doutrina,  contra  a  que  professava  inhdelida- 
de,  soberba,  dissolução,  ignorância.  Deleítava-se  na  traça,  que  na  ver- 
dade já  era  do  alto,  d'onde  todo  o  bem  procede ;  mas  julgando-se  por 
indigno,  e  fraco  pêra  tamanha  empreza,  tornava  ás  lagrimas.  Após  as 
lagrimas,  requeria  com  sangue  arrancado  á  força  de  Imma  cadea  de  fer- 
ro, que  de  noite  lhe  servia  de  disciplina,  e  de  dia  fazia  ofíicio  de  cilicio 
cingida,  e  apertada  á  raiz  das  carnes.  Assi  alternando  orações,  discipli- 
nas, gemidos  despendia  muitas  horas:  c  no  cabo  parccendo-lhe  que  nSo 
era  ouvido  por  seus  peccados,  acudia  á  Yirge^ii  Min,  fonte  de  toda  a 
misericórdia,  e  lembrando-lhe  que  seu  Unigénito  Filho  no  tempo  qm 


14  UVUO  I  DA  HISTORIA    DE  S.   DOJII.NGO.S 

lidava  na  Cruz  com  as  angustias  da  morte,  que  lhe  davão  os  peocado- 
res,  ali  mesmo  lhe  dera  o  titulo  de  mãi  d'elles,  e  Mio  deixara  como  por 
herança,  e  em  testamento,  tomava-a  por  medianeira  em  tnntos  males, 
instava,  e  pedia-lhe  favor.  Depois  de  perseverar  muitos  dias  ri"cste  re- 
querimento, acudio-lhe  a  Virgem  piedosissima  com  huma  Tisão,  que  assi 
como  foi  pêra  o  Santo  de  grande  consolação,  justo  he  que  o  seja  tam- 
bém pêra  os  que  somos  seus  filhos,  o  pêra  todo  o  Clinstão  em  quan- 
to o  mundo  durar,  pois  tanto  durará  o  fruiío  d"ella,  se  o  soubermos 
estimar.  Appareceo-lhe  visivelmente,  e  ensinou-íhe  a  sagrada  devação  do 
Rosário,  mandou-lhe  que  a  pregasse  com  certeza  que  seria  remédio 
eíTicaz  pêra  vencer  e  acabar  a  heregia,  e  preservar  do  veneno  d'eíla  os 
que  a  abraçassem,  e  exercitassem.  Animou-o  juntamente  a  levar  adiante 
a  empresa  de  pregar  contra  os  erros,  e  pravidade  herética,  e  defender 
e  publicar  as  verdades  cathoiicas,  dando-lhe  novas  que  brevemente  veria 
dado  cumprimento  á  traça  que  trazia  imaginada  de  ajuntar  homens  pêra 
o  mesmo  officio,  por  ser  traça  que  a  Deos  muito  agradava. 

CAPITULO    III 

Começa-se  a  guerra  contra  os  hereges  Albigenses.  Dá  S.  Domingos 
j)rincipio  ao  Santo  Officio  da  Inquisição:  Confirma-o  o  Summo 
Ponlifice,  e  dá-lhe  titulo  de  Pregadores  a  elle,  e  a  seus  Compa- 
nheiros. 

Era  entrado  o  anno  de  duzentos  e  nove,  abria  o  tempo,  e  dava  ja 
lugar  pêra  os  Cruzados  poderem  sahir  em  campanha,  e  começarem  a 
menear  as  armas.  Nomeou  El-Rei  de  França  por  General  do  exercito  a 
Simão,  Conde  de  Monforte,  e  encommendou-lhe  com  particularidade  a 
pessoa  do  Mestre  da  pregação  Frei  Domingos,  que  já  de  muitos  dias 
era  conhecido  de  todos  por  este  titulo,  e  a  mesma  recomendação  teve 
por  letras  do  Papa.  Esíavão  os  hereges  enceiTados  nos  lugares  fortes, 
apercebidos  de  armas,  e  munições,  e  animados  a  esperar  n"elles  perti- 
nazmente todo  transe,  antes  que  mudar  de  opinião.  Foi  o  primeiro  acom- 
metimento  contra  a  villa  de  Besses,  ou  Brissiers:  defendeo-se  com  valor 
de  gente  desesperada:  mas  em  fim  foi  entrado  o  lugar,  e  passados  a  fio 
de  espada  sete  mil  homens.  í-assáião  a  Carcassona:  fez  pavor  o  succe^- 


PARTlCULAh    DO    HKLNO  Dt   FOHTK.AL  15 

so  de  Besses,  deii-se  a  partido.  Acompanhava  o  santo  pregador  os  Cru- 
zados na  primeira  fileira  do  esquadrão,  leito  Alferes  de  hum  devoto  Cru- 
cifixo, que  levava  arvorado  em  huma  haste.  Mas  hia  metido  em  hum  mar 
de  cuidados,  como  ardia  em  zelo  das  almas,  e  da  honra  de  Deos,  qual 
outro  Elias.  Considerava  que  o  fim  das  ai-rnas  Christãs  não  devia  ser 
destruir  somente,  senão  também  edificar,  que  convinha  tomar-se  algum 
termo  com  aquelles,  que  ou  o  medo  do  castigo,  ou  algum  bom  espirito 
trouxesse  á  obediência  da  Igreja:  e  dar-se  ordem  pêra  serem  recebidos 
a  penitencia,  por  tal  modo,  que  se  ficasse  entendendo  se  procedia  do 
coração,  ou  de  fingimento:  parecia-lhe  que  se  perdia  o  tempo  na  guer- 
ra, e  nos  remédios  violentos,  se  a  passo  igual  se  não  negoceava  algum 
meio  com  que  ficasse  a  terra  limpa  de  contagião,  e  sem  medo  de  tornar 
a  brotar  a  perversa  zizania,  ou  por  occulta,  ou  por  mal  mondada.  Deu 
conta  de  tudo  ao  Legado  Apostólico,  que  acompanhava  o  exercito';  elle 
como  prudente  entendida  a  necessidade,  manda-lhe  como  a  outro  Josepli 
do  Egypto,  que  pois  Deos  lhe  communicara  pensamentos  tão  acertados, 
elle  mesmo  trace  o  remédio,  elle  o  execute  sem  meter  tempo  em  meio: 
que  entretanto  avisará  ao  Pontífice.  D'este  ponto  teve  origem  o  venerá- 
vel tribunal  do  Santo  Officio  contra  a  herética  pravidade,  de  que  tan- 
tos, e  tão  grandes  bens  tem  resultado  á  Christandade.  Tomou  logo  a 
mão  o  Santo  em  inquirir  nos  de  Carcassona,  quaes  erão  obstinados, 
quaes  pedião  misericórdia.  E  como  era  já  seguido  de  alguns  virtuosos 
sujeitos,  obrigados  das  maravilhas,  e  grande  espirito  que  n"elle  vião, 
fez  tomar  a  rol,  e  em  livro  nomes,  idades,  estados,  sexo,  e  quaUdades 
dos  culpados,  com  todas  as  mais  diligencias  e  circumstancias  necessá- 
rias. Assi  forão  os  obstinados  ao  fogo:  forão  com  misericórdia  recebidos 
os  que  de  arrependimento  derão  sinaes.  Mas  amoestados,  que  sendo 
achados  segunda  vez  em  culpa,  serião  castigados  em  todo  rigor.  Era 
grande  a  vigilância  e  cuidado  com  que  o  Santo  procedia  no  novo  officio, 
(|ue  como  consistia  em  inquirir  e  censurar  vidas,  fè,    e  costumes,  foi 
tomando  nome  dos  effeitos,  nome,  e  oíTicio,  nunca  d'antes  ouvido,  nem 
usado  na  Igreja.  Não  era  menos  o  louvor  que  tinha  dos  grandes  do  exer- 
cito, e  principalmente  da  boca  do  Legado,  a  cuja  auctoridade  referia  tu- 
do o  que  fazia,  tomando  só  pêra  si  o  trabalho,  e  dando-lhe  a  elle  o  no- 
me, como  era  razão,  pois  era  ali  Ministro  supremo  da  Sé  Apostólica,  e 
immediato  ao  Pontífice.  Foi  o  campo  conquistando  lodos  os  lugares  do 
-orça,  e  o  Santo  inquisidor  seguia  com  as  armas  de  seu  ollicio,  e  com 


•16  Ll\nO   1  i)A  JlíSrUHlA  DK   S.   DO.MLNUOS 

2êlo  de  bom  pastor  separando  o  gado  enfermo  do  são.  Em  Cazzéi-as  re- 
laxou sessenta  juntos,  que  forão  queimados.  No  castello  de  Minerva  cen- 
te  o  quarenta,  em  outro  lugar  quatrocentos.  E  por  outras  partes  cento 
e  oitenta.  Em  Vauro,  villa  forte  do  bispado  de  Tolosa,  forão  queimados 
hum  grande  numero:  o  a  senhora  do  lugar  chamada  Giralda,  por  perti- 
naz na  heregia,  foi  empoçada.  Do  resto  do  povo  huns  erão  reconciliados, 
outros  penitenciados  com  suas  ceremonias,  e  sentenças  pêra  exemplo,  e 
castigo. 

Soou  em  Roma  o  exercício  e  fruito  d'este  cargo  acreditado  dantes  com 
as  cartas  do  Legado ;  e  sendo  estimado  de  toda  a  corte,  despachou  o 
Santo  Pontífice  Innocencio  III,  suas  letras  de  approvação  d"elle,  e  de 
muita  honra,  e  favor  pêra  o  Santo.  N'ellas  lhe  mandou  que  o  exercitas- 
se, e  como  Inquisidor  Apostólico  procedesse  contra  os  contumazes.  Assi 
o  affirmão  D.  Luís  de  Paramo,  Inquisidor  de  Sicília,  e  Blondo,  e  Jo5o 
Buccheto,  e  outros  (*).  E  acrescentão  huma  cousa  que  succedeo  ao  cer- 
rar do  Breve,  em  que  ao  parecer  não  faltou  mysterio:  e  foi  que  repa- 
rando o  Pontífice  na  forma  do  sobrescrito,  e  mandando-o  emendar  por  ires 
vezes,  na  ultima  assentou  que  fosse  assi:  Ao  Mestre  Frey  Bo^mngos,  e 
aos  irmãos  inégadores  que  com  elle  cs-tão. 

Mas  não  me  atrevo  a  passar  adiante  sem  pedir  com  caridade  a  dous 
KeUgioses  Cistercienses,  escritores  em  lingoa  castelhana,  que  polo  que 
devem  a  si  mesmos,  e  ao  cret,lito  que  desejão  a  seus  livros,  folguem  de 
$6  retractar  (que  os  bons  e  sábios  se  retractão)  de  huma  opinião  em 
([ue  mostrão  paixão  demasiada,  e  pouco  conhecimento  das  historias  an- 
tigas, e  modernas,  affirmando  que  na  sua  Ordem,  e  não  na  nossa  teve 
principio  o  Santo  OíTicio  da  Inquisição.  E  antes  d'outra  cousa  lhes  lem- 
bro, que  escrevendo  elles  depois  do  anno  de  ío87,  em  todos  os  que  cor- 
rerão atrás  desde  o  tempo  que  nosso  Padre  S.  Domingos  começou  a  pre- 
gar em  França,  que  são  poucos  menos  de  quatrocentos,  a  nenhum  dos 
escritores  da  sua  Ordem,  nem  dos  chegados  a  ella  passou  nunca  pela 
imaginação  porem  tal  cousa  em  papel.  E  pois  estes  a  não  escreverão, 
sendo  assi  que  ílorescião  então  em  leiras,  em  poder  do  Conventos,  em 
numero  de  Bispos  e  Arcebispos,  e  Cardeaes,  claro  fica  que  o  não  deixarão 
de  fazer  se  não  porque  na  verdade  não  querião  pcra  si,  c  pêra  sua  Reli- 
gião mais  do  que  direitamente  lhe  pertencia.  E  como  em  tal  opinião  não  tem 

[•)     L>.  Luiz  (Í8  Param,  de  Orig.  Off.  S._InquÍ3.  liv.  u.  tit.  1    cap.  3,  num.  9.  -  Blon^íus,  lib. 
VI.  dic.  2.~Joa!in.  Buccli,  iii  Anual   Aquit! 


PARTICUI.AH  DO  r.i:i>0  DE  POUTUGAL  17 

por  si  autor  antigo  neiílium,  nem  sou,  nem  alheio:  e  nós  temos  em  fa- 
vor nosso  toda  a  venerável  antiguidade,  quero  dizer  todos  os  que  es- 
creverão em  tempos  vizinhos  á  guerra  Alhigense,  em  que  o  santo  tri- 
bunal teve  principio,  e  em  que  podia  haver  muitos,  e  poderosos  con- 
Iraditores:  e  assi  í\<'ão  por  nós  os  que  despois  fahírrio  na  matéria  p»  r 
todo  o  discurso  d'estes  quatrocentos  a:mos,  taíito  seculai-es,  como  eccle- 
siasticos:  tanto  Religiosos  nossos,  como  d"oulras  Ordens:  bem  se  se- 
gue ser  assumpto  temerário  quererem  dous  ou  três,  só  na  confiança 
de  bom  engenho,  escrevendo  n"esía  idade,  saber  mais  que  todos  os 
seus,  e  contradizer  todos  os  nossos,  e  os  que  de  nós  falão.  Bem  estou 
na  conta,  que  me  hão  de  culpar  os  m.eus  de  dar  vida  a  suas  rezões, 
com  lhes  fazer  reposta :  mas  Aiço-a  por  dous  respeitos.  Primeiro,  po:- 
que  escrevem  em  vulgar,  e  o  vulgo  he  fácil  de  levar  de  novidades,  quan- 
do não  são  impugnadas.  Segundo,  porque  lie  justo  acudirmos  á  obriga- 
ção, e  fraternidade  que  nos  devemos  as  Religiões,  Immas  ás  outras,  não 
consentindo  fazer-se  á  do  Santo  illustrissimo  Bernardo  tamanha  offeh- 
sa,  como  seria  procurar-lhe  honra  de  suor,  e  íraballios  alheios,  quando 
elle  com  os  próprios  lhe  soube  adquirir  tanía. 

E  porque  a  verdade  he  que  nosso  Padre  S.  Domingos  foi  o  inventor 
do  Santo  OíTicio  da  Inquisição,  como  atrás  dizemos,  e  o  primeiro  Inqui- 
sidor, e  Inquisidor  geral  confirmado  por  dous  Papas,  iremos  apontando 
os  Autores  que  o  escrevem.  Seja  o  primeiro  Camillo  Campegio  In- 
quisidor geral,  c  Bispo  de  Nepi  na  Toscana,  qne  largamente  o  prova  ms 
suas  addições.  O  mesmo  afiirma  Francisco  Pegnia,  e  Zanchino  Ugolino 
de  Ilaereticis.  E  Pedro  Mathaeus  Doutor  em  ambos  os  direitos  diz  es- 
tas palavras:  Favít  B.  Doviinici  votis  et  operi  Sninmus  Ponlifex  iniuucto 
ei  censurac  sou  quam  vocant  Inquisilionis  liacreseos  niuncre,  quo  quidem 
ipsc  Bcalus  Valer  prinras  onrniuin  oníatiis  est.  Assi  0  dizem  Fr.  Leandro 
Alberto,  Fr.  Seljastião  de  Olmedo,  Fr.  António  de  Sena,  Fr.  João  Ma- 
rieta,  Fr.  Estevão  de  Senhalac,  Fr.  João  Sagastizaval,  Aymerico  Inquisi- 
dor geral  de  Aragão,  e  Bernardo  Quijon  Inquisidor  de  Tolosa.  São  de 
ver  as  palavras  de  Lúcio  Marineo  Siculo  na  sua  liisloria  de  Espanha: 
Procurante  Imiocentio  III.  Pont.  Max.  haeresim  apuã  Tolosani  niiper  abor- 
tam mira  celcritate  atque  virlule  co)npescnit  S.  I)(J'iíí nicas,  ele.  E  são  isto 
catorze  Autores,  sem  os  três  que  allegamos  atras,  e  som  outros  sete  que 
irão  na  mai-gem,  por  encurtarmos  aqui  leitura  (*).  Mas  bem  puJ.eramos 

(-)    C;iniill,  Camp.  in  suis   addi(.  Francis.  Pcgii.  5.  p.  direct.  com.  32.  tit..  qiioJ  Inquisi- 
>0L.   I  2 


18  LlVliO  1  DA  I113T0UIA  Di:  S.   DOMIXGOS 

escusar  lodos,  só  com  referir  o  teslimanho  do  famoso  Pontifice  Sixlo  V, 
cjjas  cousas  inda  lioje  estão  espirando  inteireza  e  valor.  Diz  ello  em 
hum  hrcve  que  passou  no  anno  de  1586,  soljre  a  fesía  do  nosso  Inqui- 
sidor, e  primeiro  martyr  por  aquelle  oíri.:io  sagrado,  S.  Pedro  de  Vero- 
na: Imo  vero  imitafione  acceiísus  B.  P.  Dominici,  ut  tile  perpeluls  cl  con~ 
cionihus,  et  disputationum  congressibus,  officioque  Iivjuisitionis,  quoã  et 
pi-imum  praedccessores  nostri  Innocentius  III,  et  Ilonoi  iiis  III,  commise- 
rant  contra  Ilaercticos  mirohiliter  se  gessit.  E  mais  abaixo  confirma  o 
mesmo acrecentando:  Quam  obrem  post  B.  Dominicnm  non  imrnerito  Prin- 
cens  oppellari  dcbet  sacrosancti  Officii  InqnUilionis,  cum  ipse  primus  illud 
suo  sanguine  consecrarit.  isto  são  letras  Apostólicas  que  irrefragavelmente 
provão  que  dous  Papas  santíssimos  derão  primeiro  a  nosso  Padre  o  of- 
ficio  de  Inquisidor,  que  a  toda  outra  pessoa.  E  comtudo  estejamos  á  conta 
com  estes  dous  Padres,  e  examinemos  seus  fundamentos;  que  por  elles 
mostraremos  que  não  dizem  por  si,  nem  contra  nós  cousa  de  sustancia. 
Fazendo-lhes  primeiro  a  saber  que  o  breve  allegado  começa,  se  o  quize- 
rem  ver:  Invictorum  Christi  militum  nitmems  ingens,  ele.  E  foi  passado 
em  15  de  Abril  do  anno  de  1586,  primeiro  de  seu  Pontificado. 

O  primeiro,  quebe  o  padre  Fr.  Bernabé  de  Montalvo  na  Historia  de  sua 
Ordem  diz  assi:  Este  mismo  oficio  de  Inquisidor  conservo  Santo  Domingo 
todo  cl  ticmpo  que  bivio  nueslro  Arnaldo  Generalissimo  de  Cister  Arçobis- 
po  de  Nurhona  Inquisidor  General.  Por  cuija  mucrte,  que  fue  cl  anno  de 
422Í,  y  la  de  su  successor  Pedro  Diácono  Cardenal,  einbiando  el  Ponlifi- 
ce  por  sn  Legado  a  Latere  a  don  Bernardo  nueslro  Monge  Cislerciense 
Presbítero  Cardenal,  y  Capitan  dei  exercito  de  los  Catfwlicos  contra  los 
hereges  de  Aquitania:  y  confirmo  el  officio  de  Inquisidor  a  Santo  Domingo, 
como  consta  de  ta  dispensacion  que  dio  a  tin  Cacallero  de  Tolosa.  For  los 
quales  instrumentos,  sentencias,  y  cartas  de  Santo  Domingo  claramente  se 
collige,  que  nunca  el  fue  Inquisidor  por  autoridad  Apostólica.  Ni  cn  los 
Archivos  de  Roma  hasta  oy  se  ha  hallado  instrumento,  ui  letras  Apostólicas 
en  contrario  desta  rcrdad  que  aqui  prucco,  gue  no  aya  sido  el  prinier  In- 
quisidor Sunto  Domingo:  no  obstante  que  lo  diga  Francisco  Pegnia,Com- 

Zandi  Teol.  <le  llacrct.  r.  20.  Pplriis  Malli.  in  annol.  ad  siiminam  Cotiílilulio.  Pont.  til.  Pij 
V  S  k(i  Fr.  Leand.  Ali),  in  vila  S.  Dom.  i.  Fr.  Suba*,  de  Olni.  in  vita  cjiifdom.  Fr.  Ant.  dcSi.'na 
Dtc'  1  f  13.  Mariela  p.  2.  1.  7.  c.  11.  Seniial.  c.  2.  de  {.;!.  nom.  pratniic.  Saijastizaval  in  .-íun 
]\o<  f  L3  A\mcr.  ?rrm.  2.  de  S.  l'ot.  Mait.  Khai].  iJeil.  in  liiít.  Tolosae.  Lnc.  Maiin.  Sic.  I.v. 
j;   iiernar  Onijon  Inqui?.  1  olo.-;.  Salzcd.  in  prat.  Criínin.  (iinon.  c.  11  í.  l'?uí  Maiis  f.  2.   sui  Cat. 

c"li!(|uis.  Susatus  c.  2.  fiiac  Cronic.  \'.díV-\  Ldanc.  f.  4i.  .^uac  lii,<tor.  Soncin.  in  cpi.-t. 

!'i'tiuin  di;  Pakide  suí)cr  lib.    Scntenliar   rianiin.   l.b.  2.  de  S.  l)o:a.  P.  li.  L.  o.  f.  UÍ. 


Aiilist.  1.  de 
(ledic.  a  d  I 
e  I  lo.  da  IíílI   da  sua  Oíd 


í'Al\TiCULAU  DO  REINO  Di;  r.ORTLGAL  19 

menlo  32,  pagina  401.  Suppucsfo  lo  que  tcncr.ios  didto  fácil  será  de  pro- 
var, reprovando  primcro  con  el  rcspelo  decido  a  ian  gnm  Varon  :  la  opi- 
iiioii  de  Frag  Ilcrnando  de  Caslillo,  que  dize  aocr  lenido  principio  esle 
Santo  0/jicio  de  Inquisicion  por  su  Padre  Sanío  Domingo.  Lo  qual  pro- 
varè  ser  falso,  no  solo  con  las  autoridades  y  leiras  Apostólicas  que  dan 
esto  a  monges  de  nucstra  Orden,  sino  tambien  con  las  que  el  mismo  trae 
para  provar,  que  Santo  Domingo  fue  Inquisidor  (como  es  vcrdad  lo  fue) 
mas  no  Inquisidor  General,  ni  el  primcro  que  invento  el  Santo  Officio  de 
la  Inquisicion.  Coni  esta  comprida,  e  envolta  arenga  qv.er  esto  Religioso 
dar  por  provado  seu  intento: -na  qual  lhe  mostraremos  ao  olho  três  er- 
ros, com  que  claramente  se  condena.  Primeiro  erro  be  dizer,  que  des- 
pois  do  anno  de  1224,  fez  o  Monge  dom  Bernardo  autos  de  coníhmíação 
com  nosso  Padre  S.  Domingos,  sendo  assi  que  não  ha  quem  ignore,  que 
era  falecido  S.  Domingos  ires  annos  antes  no  de  1221.  Segundo  erro, 
c  intolerável  erro,  affirmar,  como  aíTirma,  que  até  o  dia  era  que  escre- 
veo  se  não  achavão  nos  Archivos  de  Roma  instrumentos,  nem  leiras 
Apostólicas  que  dessem  a  S.  Domingos  nome  de  primeiro  inquisidor. 
Claro  sinal  que  não  revolveo  bem  aquelles  sanios  arcliivos.  Que  se  o  íi- 
'^era,  achara  o  Breve  atrás  referido  despachado  no  anno  de  1586,  antes 
de  sahir  á  luz  a  ílisíoria  do  Mestre  Fr.  Fernando  de  Castilho,  contra 
quem  elle  escreve.  Terceiro,  e  maior  eri-o  commete,  dizendo  que  mos- 
trará ser  falso  haver-se  dado  principio  ao  Santo  Officio  da  Inquisição 
por  S.  Domingos:  e  que  o  provará  com  autoridade  e  letras  Apostólicas, 
que  affirma,  darem-no  a  Monges  da  sua  Ordem  de  Cister.  As  quaes  le- 
tras não  mostra:  nem  as  pode  mostrar,  porque  seria  dar  dous  Breves 
.Apostólicos  em  huma  mesma  causa  repugnantes  entre  si,  sem  expressa 
rezão  de  tal  repugnância.  ííum  só  defeito  bastava  pêra  invalidar,  e  an- 
nullar  toda  esta  sua  prova:  que  será  havendo  Ires,  e  tão  palpáveis,  e 
tão  enormes?  Assi  não  ha  que  fazer  caso  d^eila:  nem  d"outra,  em  que  o 
mesmo  Autor  mostra  fazer  confiança,  persuadindo-nos,  que  no  nome 
do  habito  que  polo  sanío  Officio  se  veste  aos  penitenciados  ficou  a  memoria 
.de  S.  Bento  chamando-lhe  Sambenito.  Ridícula  derivação.  Arrimou-se  á 
semelhança  do  vocábulo,  sem  ler  os  Autores  antigos  allegados  n"estf, 
ponto  polo  Inquisidor  de  Sicilia  D.  Luis  de  Paramo  (*).  Que  se  os  lera, 
achara  que  na  primitiva  Igreja,  a  quem  tinha  cometido  delito  merece- 
dor de  penitencia  publica,  se  mandava  usar  vesíe  de  sacco.  e  porque  a 

(.)  Dora.  Luii  de  Paiaino  1.  1.  t.  2.  c.  o.  c  lib.  2.  t.  3.  c.  11. 


20  LIVnO  I  DA   HISTORIA  DE  S.  DOMfXGOS 

feenzfão  com  particular  oração  os  Sacerdotes,  era  sou  nome  Sacais  hene- 
iliclus.  A  força  da  antigaid.'íde  foi  comendo,  e  eiicurtíuído  o  nome. 
Mas  vejaníos  se  tem  mais  r>eno  o  se<Tun(ío. 

cAPinxo  IV 

Censura-se  ^wm  Jmjar  âe  (rttlro  lielifjioso  ãa  mesma  Ordem  e  opiniãa, 

CTnama-se  o  se^mdo  Religioso  Frei  Angef  !\íanrique,  e  começa  assi 
íium  período,  falando  das  í,Tandezas  da  OiiTem  ãoChtçv{'):  Entre  todas 
Jis  que  hasta  aqm  hemos  dicho,  y  si  atras  algunas  dixeremn-s  ai  fin  deste 
discurso,  la  que  a  mij  parecer  jmede  (ener  por  principal  hlason  de  sn  no^ 
hleza^  es  el  Santo  Officio  de  la  Inqaisicion,  que  sin  dtida  nfufjuna  tnvo  sn 
»riíj€n  y  principio  de  nueslra  Ordcn.  Com  esta  tão  resoluta  proposta 
quer  tirar  a  capa  dos  lK)mljros  allieios,  e  na  verdade  grande  honra  lhes 
fora,  como  diz,  se  ella  não  tivm^a  dono  com  prescrijTç.ão  de  posse  rra  Or- 
dem de  S.  Domingos  de  f|natrocento&annos,  e  prescrípeão  de  silencio  na  sua 
de  Cister  de  outros  tantos,  Que  fura  se  não  tivéramos  armas  no  Breve 
referido  de  Sixto  Y,  valeroso  íilho  do  Seráfico  Francisco?  Mas  a  verd;»- 
de  he,  que  vivemos  já  hoje  na  idade  misenível  de  ferro  (*"*),  tão  de  ferro, 
e  pouca  justiça,  que  pouco  adiante  no  mesmo  livro  e  discurso  ("*)  se  atreve 
também  íi  defrandar-nos  da  fimdação  da  Ordeni  da  Mercê  dando-a  aos  seus, 
sem  fazer mcTição  nenhuma  de  S.Raymundo  de  Penhafort  Frade  nosso,  e 
Confessor  dei  Rei  D.  Jayme  de  Aragão,  que  os  mesmos  Pa(h-es  Mercenariosa 
boca  cheia  confessão(***')r  c  reconhecem  por  seu  fundador,  e  legislador  que 
l;ie  deu,  e  vestio  o  habito:  c  até  a  sua  reza,  que  foi  sempre  Dominica,  ex- 
cipto  de  poucos  annos  pêra  cá,  que  tomarão  a  Romana.  Assi  não  ha 
que  espantar  (juerer-nos  despojar  do  que  tem  jwr  gloria,  quem  n"isto 
que  menos  importa,  faz  presa.  Mas  tornando  ao  pronto;  em  dous  princí- 
pios funda  este  Religioso  sua  opinião,  tomados  amlws  de  Autores  ãs 
Historia  de  S.  Domingos,  e  ambos  torcidos  a  seu  propo:»ito.  Des[)ois  de 
nis  querer  persuadir  que  o  Santo  Monge  Pedro  de  Castro-novo  foi  o 
primeiro  Inquisidor  que  houve  no  mundo,  acrecenta  em  bom  Castelhano: 
Asii  lo  confiessa  Ludovico  de  Paramo  lib.  2.  óe  Orifj,  Inquisil.  lit.  i, 

f.)  Na  Laurra  Evnngcl.  L.  3.  Diíc.  8.  g.  í.  2.3. 
j..j  Ovitl.  l.  1.  Sictamnrph 

{'•■•^  Ff.  NuU'.fÍ5  Xau-t  MercetíaiíDí  lib.  de  eodcra  Ord.  AnnaL  Eecl.  1223^ 


PARTICULAR    DO    REINO  DE  PORTUGAL  ^i 

ç.  I.  aun  que  en  cl  cap.  2,  ndelante  dize,  que  Santo  Domingo  fnc  el  pri- 
uier  Inquisidor;  olvidado  de  lo  que  acabava  de  dizir  en  este:  sus  palabras 
■gon  las  siíjnienles:  Sanctissimce  ergo  luquisitionis  officium  eo  tempere  sum- 
psit  exordium,  quo  iiupijs  erroribus^  et  blaspitemijs  execrabilibus  Albigen- 
sium,  Comilatus  Tolosanas  infectas,  el  pcnè  extinctus  crat.  Tunc  enim 
gloriosas  Deus  iu,  Innocentio  Tertio  Summo  PorUifice  eani  mentem  iniecit, 
v.t  Petrum  de  Castro  novo  Monachum  virtMtis,  el  sancli-tatis  gloria  (loren- 
tem  creUret  Legafum,  et  ad  illain  procincÍLWi  ad  VkristHm  Seruatorem nos- 
trnm  reducendam  mill^er-et.  Por  maneira,  que  só  com  Paramo  dizer  n'es- 
tas  palavras  que  Pedro  Mong<4  foi  mandado  por  Legado  a  Tulosa,  quer 
dar  i)or  certo,  e  provado,  que  foi  taiiibcm  por  Inquisidor.  Tenho  por 
necessário  dal-as  traduzidas  em  nossa  linguagem,  pêra  que  todos  jul- 
guem o  te^temunlio  que  lhes  levanta;  dizem  assi:  Teve  pois  sua  origem 
o  officio  dtí  ^cmtissiiua  Inquisição  no  tempo,  que  o  Condado  de  Tolosa  es- 
t«4:<i  iiificio9iad%  e  yua-si  perdido  com  os  erros,  e  blasfémias  dos  Albigen- 
ses.  Porqne  ^ntão  foi  Deos  servido  par  no  coração  do  Summo  Pontifice 
Innocencio  Terceiro,  que  nomeasse  por  Legado  a  Pedro  de  Castro  novo, 
monge  de  grande  nome,  de  virtude,  e  santidade,  e  o  mandasse  áquella 
Provinda  pêra  ejfeito  de  a  tornar  a  Christo  nosso  Salvador.  Tal  he  0  pri- 
meiro princi[)io  em  que  este  Autor  se  funda:  e  lie  o  mesmo  (alem  do 
torcer  o  sentido  de  Paramo)  que  não  alcançar  a  dilTerença  que  ha  entro 
os  olficios  de  Legado,  e  Inquisidor:  e  outrosi  estar  mui  alheio  d"outro 
principio  mui  notório,  qual  he,  não  se  mandarem  Inquisidores  aonde  os 
Príncipes,  e  cabeças  das  terras  são  declarados  inimigos  da  Igreja  Roma- 
na. Pois  ninguém  ignora  que  seria  cousa  ridícula  mandarem-se  Inquisido- 
res a  Olanda,  e  Gelanda,  ou  a  Genevra,  ou  á  Rochella  no  estado  em  que  estas 
terras  hoje  estão.  A  verdade  he,  que  o  Santo  Monge  fez  u  olhcio  que  Paramo 
lhe  dá  de  Legado,  e  Embaixador  do  Pontífice,  pêra  tratar  com  os  Condes 
senhores  da  Província,  que  já  estavão  pervertidos  da  heregía.  E  isto  fez 
polo  direito  das  gentes,  com  que  os  Embaixadores  sem  medo  de  oíTensa 
entrão  por  casa  dos  inimigos.  Se  os  achara  em  disposição  -de  obedece- 
rem aos  santos  conselhos,  e  amoestações  do  Papa,  então  usara  do  poder 
de  Legado,  absolvendo-os,  e  reduzindo-os  ao  grémio  da  Igreja.  E  bem 
claro  está,  que  não  entrou  aqui  parle  nenhuma  de  olilcío  de  Inquisidor. 
O  que  fez  de  Legado  escomôiungando  o  Conde  de  Tolosa  (que  pudera 
i^cusar  se  quizera,  pois  ipso  jure  estava  escomungado)  lhe  custou  a  vida, 
como  atrás  contamos.  E  dahi  naceo  mandar  o  Papa  publicar  Cruzada 


22  LTVr.O  I  DA  niSTOlUA  DV.   S.   DO^ÍIiXGO;-"'» 

contra  elle:  c  consoj^uintcinente,  cnino  lioiive  exercito,  c  forra,  traíar 
S.  Domingos  de  S3  dar  ordem  pcra  se  nliinpnreni  as  terras  que  S3  hião 
ronqnistando,  da  má  semcníe,  com  a  traça  divina  que  inventou  do  Santo 
OGIcio.  E  porque  Paramo  o  escreve,  e  entendo  assi,  deduzindo  iiumas 
cousas  de  outras,  seguramente  som  se  enconírar,  nem  esquecer  (que  não 
ha  csquecimcnlo  de  Capitulo  primeiro  pêra  segundo)  declara  logo  que  o 
Padre  S.  Domingos  foi  o  primeiro  Inquisidor  que  liouve  na  igreja  de 
Dcos,  com.o  este  Padre  o  refere. 

Tal  como  este  Ijo  outro  lugar  que  também  traz  do  mesmo  Paramo, 
pcra  mostrar,  que  doze  Abi)ades  da  sua^rdem  forão  também  inquisi- 
dores: o  lie  o  seguinte:  Eo  lempore  Suininus  Poniifex  misit  duodccim  Ab- 
hates  ex  Divi  Bernardi  família  eximia  visinle,  ri  frcvcíara  doclrina  orna- 
iiisímos,  i(t  hareticorum  pafjns  excurrenies.  etc.  E  lie  de  notar,  que  paran- 
do aqui  sem  nos  dar  o  remate  do  período  Latino,  acaba-o  em  Castelha- 
no dizendo:  Que  fuessen  a  exercitar  cl  ivAsmo  officio.  Grande  falta,  ou  md- 
seravel  aríiQcio  pêra  quem  emprende  contrastar -cousas  diríicuitosas. 
Além  de  tais  falências,  como  lodo  edificio  mal  fundado  por  si  mesmo 
cáe,  ellc  mesmo  dá  com  este  em  terra,  com  outras  palavras  que  traz  de 
Vincencio  Belvocense,  que  dizem  assi,  falando  d'estes  Abbades:  Cceperunt- 
que  sinrjuli  Evangelicam  paupertatem  côinplecti,  pedilesqus  discurrere,  ac 
sírenue  fuleui  Christí  verbo  et  opere  pruídicare.  Querem  dizer:  E  começa- 
rão todos,  e  cada  hum  por  si  abraçar-se  com  a  po!)rcza  evangélica,  c 
andar  a  pé,  e  a  pregar  valentemente  a  fé  de  Christo.  O  que  he  clara 
confirmação  do  que  atrás  temos  dito,  que  fizerão  por  conselho  de  nos- 
so Padre  S.  Domingos,  e  do  Bispo  de  Osma.  Assi  íica  claro,  que  nem  o 
Legado  era  mais  que  Legado,  nem  os  Abbades  forão  mais  que  prega- 
dores. 

Menos  força  tem,  ainda  que  traz  mais  alguma  aparência,  outra  re- 
zão,  com  que  este  Padre  cuida  que  de  todo  deixa  encabeçada  a  Inquisi- 
ção na  sua  Ordem,  dizendo,  que  nosso  Padre  S.  Domingos  confessa  que 
recebeo  do  Legado  que  era  Abbade  Cisterciensc  o  Officio  de  Inquisidor, 
porcfue  em  huma  sentença  que  deu,  diz:  Quod  nobis  ofjicium  iniimxitdo- 
minus  Ahbaa  Cisterciensis  Ápostoíicíe  Sedis  Legatus,  etc.  E  d"aqui  infere, 
que  pois  S.  Domingos  foi  Inquisidor  por  ordem,  ecommissão  do  Legado. 
íicava  o  Legado  sendo  Inquisidor  supremo,  efirimeiro  Inquisidor  cpie  S.  Do- 
mingos. A  esta  desatada,  c  fraca  consequência  se  responde  com  facilidade. 
Primeiramente  ninguém  pude  duvidar  que  os  Legados  no  soberano  poder. 


PARTICULAR    DO    REINO  DK  PORTUGAL  23 

íjiie  exerci  Ião,  provém  muitos  cargos  necessários  pêra  a  execução  d"elle, 
que  ou  são  incompativeis  com  sua  dignidade,  ou  inferiores  a  ella,  e  de 
força  se  lião  de  administrar  por  terceiros.  E  ainda  que  elles  os  possão 
prover,  e  conferir,  não  se  segue  por  isso,  que  também  os  podem  exer- 
citar, ou  que  os  íiquem  eminentemente  exercitando  alguma  hora.  E  tal 
havemos  de  confessar,  que  era  então  este  género  de  ollicio:  oílicio,  como 
são  de  ordinário  todos  os  que  se  crião  de  novo,  sem  proveito,  nem  hon- 
ra, de  muito  cuidado,  de  grande  trabalho,  e  risco  entre  hereges  per- 
versíssimos, e  só  accommodado  á  grande  humildade  de  S.  Domingos,  e 
ao  zelo  em  que  ardia  das  almas.  E  por  ser  tal,  estimou  o  sábio  Legado 
querer  o  Santo  occupar-se  n"efle,  e  lhe  mandou  que  o  fizesse,  pois  achara 
a  traça  como  atrás  dissemos,  em  quanto  avisava  ao  Pontiíice.  Assi  não 
negamos,  nem  queremos  negar  que  o  sérvio  por  commissão  de  quem  ti- 
nha o  supremo  poder  da  Igreja  em  França,  até  que  o  Ponlifice  mandou 
a  sua  de  Roma.  Com  a  qual  começou  a  fazer  o  oiricio  com  plenária  au- 
toridade, sem  mais  sojeição  ao  Legado  que  aquefta  que  todo  ministro 
Ecclesiastico  deve  aos  que  são  immediatos  da  suprema  cadeira  quando 
se  achão  presentes.  E  esta  distinção  de  tempo,  e  serventia,  e  commis- 
sijes  se  collige  da  mesma  Historia  de  Castilho  em  que  o  Padre  Frei  An- 
gel  se  funda.  Porque  não  pôde  negar,  que  onde  achou  escrita  a  sentença^ 
diz  Castilho  como  em  prologo  d"ella,  as  palavras  seguintes:  De  anles  que 
f nesse  Inquisidor  (entende  S.  Dominijos)  de  ofpcio,  sino  por  sola  commis- 
sion  dei  Legado,  que  andava  en  las  revoluciones  de  Tolosa,  se  halla  untí 
sentencia  dada  contra  mi  herege.  E  logo  segue  a  sentença.  Nem  pode  ne- 
gar que  no  mesmo  capitulo,  em  que  achou  esta,  se  lé  outra  seníença,  ou 
dispensação  que  confirma  a  distinção  de  tempo,  dizendo  assi:  Universis 
Christi  [idelihus,  ad  quos  lilerw  pixesenles  peroenerint,  Frater  Domini- 
cus  Oxomensis  Canonicwi,  prmdicationis  hnmílis  minister  salutem  eS  sin- 
ccram  ia  Domino  cJiaritalem.  Discrelio  vcslrw  ttniversitatis  prcêsentium 
autor itate  cognoscat,  quod  nos  Uaij mundo  Gulielino  de  Altaripa  Pelagani- 
rio  licenliam  concessinius,  ut  Gulielniuin  Ugutioneni  lucreticali  qnondam  ha- 
hiiu,  ut  idem  coram  nobis  asseruit  iavestitum,  secam  in  domuni  suam  apud 
Tolosam  teneat  more  aliorum  hominum  conversnnteni,  ele.  Uesponde  tra- 
duzida em  Portuguez  assi:  A  todos  os  fieis  Christãos  que  estas  letras  vi- 
rem, Frei  Domingos  Cónego  de  Osma,  humilde  ministro  da  pregação, 
saúde,  e  amor  no  Senhor.  A  todos  vos  seja  notório  por  autoridade  das 
presentes,  que  nós  dêmos  licença  a  Raymundo  Guilherme  de  Altaripa 


24  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

Pelnganirio,  pern  ter  cm  sua  casa  em  Tolosa  a  Guilherme  Ugociano,  sem 
(liireronça  no  trato  commum,  e  ordinário  de  todos  os  mais  liomens,  sem 
embargo  que  em  tempos  atrás  foi  condenado  ao  habito  de  })cnileiicia 
que  se  dá  aos  hereges,  segundo  diante  de  n(!)s  o  aíTirmou,  etc. 

Bem  se  diz,  que  convém  fazer  distinção  de  tempos,  quem  quer  achar 
conveniência  nos  direitos.  Se  este  Padre  notara  a  diíferença  que  ha  nas 
duas  sentenças  quanto  á  commissão,  e  exercicio,  e  serventia  do  oHicio, 
f  indando-sc  a  primeira  na  autoridade  do  Legado  em  quanto  tardava  a 
do  Pontifice:  e  fundando-so  a  segunda  em  autoridade  própria,  porque 
a  tinha  já  de  Roma,  como  se  mostra  no  termo,  conccssimus,  e  não  se  rc- 
ierir  como  na  primciín  ao  Legado.  Se  notara  a  diílerença  dos  tempos, 
que  clararn:"níc  parec^^  iv?  quondam,  da  sogunda:  do  crer  he,  que  senão 
(^nganára,  nem  tomara  >o!)re  si  huma  opinião  tão  encontrada  com  todos 
os  historiadores,  e  estudiosos:  pois  com  estas  distincções  se  mostra  cla- 
ra, e  corrente,  e  sem  contradição  a  verdade  que  seguem,  que  he  a  mes- 
ma em  que  concordão  Paramo,  e  o  Padre  Frei  Fernando  de  Castilho, 
ab]'açada  também  (porque  nos  não  fique  nada  por  dizer)  por  Joannes 
Âzzor  da  Companhia  do  Jesus,  varão  de  grande  doutrina,  e  mui  versa- 
do na  lição  das  íiistorias  Ecclesiasticas,  que  tratando  esta  matéria  diz 
assi:(*)  Ex  Hislorijfi  Ecclesinslicis  didicimns  hoc  muucris  quadam  ex  parle 
friiimm  Beato  Dominico  fiiisss  ntandatum  circa  nnnum  Donniii  1208.  E 
mais  abaixo  :  El  ideo  ut  salnUinhus  pconileiítijs  imposiiis  eos  redeuntes 
[entende  Oí  hereges)  posset  absolvere  plenain  ad  id  facullalem  á  lioniano 
Pontífice  impetravit. 

Noticia  tenho  que  ha  terceiro  mantenedor  do  assumpto  d"estes  dous 
Religiosos,  e  que  he  da  mesma  Ordem(**).  Não  fiz  muita  diligencia  polo  ver, 
por  que  não  deve  dizer  mais  que  os  doas,  e  basta-lhe  a  mesma  reposta. 

Mas  temos  nova  contenda  com  outro  Religioso  da  Ordem  do  glorioso 
Padre  S.Franc!SCo(***),  que  pêra  tirar  a  S.  Domingos  o  lugar  de  primeiro  In- 
quisidor, conforma  coma  opinião  reprovaíla  dosCistercienses,  dizendo  que 
o  foi  somente  por  commissão  do  Abbade  Legado.  E  desconcerta  comos  mes- 
mos prra  fazer  sua  Seráfica  Ordem  participante  por  partes  iguais  nos  prin- 
cípios d"aq;ieile  Santo  Officio  com  a  de  S.  Domingos;  pêra  o  que  aíTirma 
de  seu  parecer  absoluto,  que  senão  conta  a  origem  da  Inquisição  de  mais 
atráS:  que  de  cjuando  o  Papa  Gregório  IX mandou  Inquisidores  da  sua, 

(')  .Icannc5  Azzor  t.  1.  1.  8.  c.  18.  iastil.  moral. 

(••)  Fr.  LíMirenco  Je  Zamora  na  Moiianb.  Mist.  1*.  7.  na  vida  de  S.  Dom.  f.  33G. 

{•••]  Im-.  Ant.  Dai-a  na  4.  jiart.  da  lliít.  do  S.  I-ranci.-.  1.  1.  c.  li. 


PAnTIClLAR   DO   REINO   DE  PORTUGAL  25 

e  nossa  Oixlem  contra  os  hereges'  do  Condado  do  Tolosa.  Por  maneira  qiio 
por  liumavia  nos  quer  tomar  tudo,  e  por  outra  quer  entrar  comnoscoao 
meio. 

Pêra  prova  do  primeiro  faz  grande  força  na  sentença  que  atrás  apon- 
tamos, em  que  Nosso  Padre  confessa  que  exercitava  ainda  então  o  cargo  por 
commissão  do  Legado.  E  he  caso  gracioso,  que  andando  junta  a  segimda 
sentença  que  o  mesmo  Santo  deu  despois  sem  falar  no  Legado,  c  com  au- 
toridade própria,  porque  a  tinha  já  do  Santo  Ponliíice  ínnocencio  Terceiro, 
como  fica  mostrado:  e sendo  força,  que  ondcvio  hmiia,  liavia  dever  am- 
bas, vale-se  d'aque!la  que  serve  pcra  seu  intento,  e  caha  esfoutra  que  o 
encontra,  e  põe  por  terra. 

Não  traz  meUiorcs  armas  pêra  confirmação  do  segundo.  Allega  luimas 
palavras  espedaçadas  da  Historia  de  Santo  Antonino(*),  onde  conta  que  forão 
por  Inquisidores  pêra  as  partes  de  Tolosa  alguns  Padres  das  Ordens  dos 
Pregadores,  e  jíenores,  que  despois  padecerão  martyrios  ás  mãos  dos  he- 
reges. E  digo  espedaçadas,  porque  usando  d"ellas  pêra  mostrar  qne  forão 
estes  os  primeiros  Inquisidores,  não  lhes  dá  o  Santo  Historiador  tal  nome 
de  primeiros:  eservindo-se  também  d"el!as  pêra  provar  Cjuc  forão  manda- 
dos por  Gregório  IX,  calla  a  circumstancia  mais  importante  doanno  apon- 
tado pelom.esmo  escritor:  porque  era  o  de  I2'i2  que  em  claro  desbarata 
seu  intento,  por  quanto  Gregório  IX  era  falecido  de  primeiro  de  Setem- 
bro do  anno  atrás(**).  E  de  muitos  antes  havia  já  inquisidores  Dominicos 
em  Fi'ança,  em  LonVoardia,  em  Sicilia,  e  Alomanhaf***). 

Descuberta  a  fraqueza  d>stes  fundamentos,  que  não  tem  por  si  mais 
que  a  imaginação  de  seu  dono,  desacompanhada  de  Autores  de  impor- 
tância: porque  os  Gistcrcienses  já  íicão  refutados:  e  estando  por  nós  to- 
dos os  que  nomeamos  no  capitulo  antes  d'cste,  bem  nos  pudéramos 
queixar  do  cahir  tão  injusta  pretenção  em  pessoa,  que  por  Chronista  da 
sua  Ordem,  eslava  obrigado  a  ter  noticia  do  que  tantos  escrevem,  e  af- 
lirmão:  e  por  Religioso  d'ella  não  podo  deixar  de  venerar  com  sojeição 
de  animo,  e  entendimento  a  Extravagante  do  Santo  Pontífice  Sixto  V  seu 
Frade(****),  que  atrás  tocamos,  na  qual  pêra  confusão  do  primeiro  erro,  de- 
clara que  foi  S.  Domingos  o  primeiro  Inquisidor  da  Igreja  de  Deos :  e 

{.)  S.  Aril.  p.  3.  til.  23.  c.  1).  .^.  1. 

(••)  Annaeí  Ecclcs.  no  anno  de  12íl.  llliescas  na  Pont.  na  vida  de  Gregor.  Nono. 
(...)  Doii  Luís  de  Par.  1.  2.  lit.l.  c.  i.  n  í.  c  c.  3  ii  6.  Annaes  lictlcs.  an.  1215.  n.ll.  e  an. 
122Õ.  n.  7.  Paramo  1.  2.  c.  '2o. 

(«.'.J  Si.\tus  V.  in  Extravag.  quac  iiicipit:  Invictorum  Clirisli  milililm 


2G  i.ivno  I  DA  iiiSToniA  de  s.  domingos 

pêra  desengano  do  segundo,  que  o  foi  por  commissão  de  dons  Pontífices 
Innocencio,  e  Honório,  ambos  Terceiros,  e  arníjos  falecidos  antes  de  Gre- 
gório iX  subir  áquella  santa  Cadeira.  E  isto  baste. 

CAPITULO  V 

Passa  o  campo  Catholico  contra  otilros  Ingves.  Conlão-se  algumas 
maravilhas  qiio  Dcos  obrou  pol)  Sa?ilo.  Cercão  os  Catholicos  a  Ci- 
dade de  To!osa,  reíirão  se  com  perda,  e  desfaz-se  o  campo. 

Tornando  ao  fio  de  nossa  historia,  custou  dous  annos  de  tempo,  e 
muito  sangue  aos  Católicos  a  conquista  dos  lugares,  cjuo  atrás  aponta- 
mos, e  d"outi'os  a  que  logo  forão  passando:  c  não  menos  trabalho  ao 
Santo  Pregador,  que  nunca  tinha  hora  ociosa.  Porque  quando  o  inverno 
fazia  cessar  as  armas  da  guerra,  manejava  clle  as  da  pregação,  e  dispu- 
tas com  que  sempre  ^rangeava  muito  pêra  Deos,  ou  allumiando  almas, 
ou  confunchndo  as  que  não  querião  luz.  Aconteceo  na  Yilla  de  Murei, 
ou  Monreal,  (e  advirto  que  estes  nomes  dos  lugares  como  são  tomados 
de  historias  Latinas,  andãomui  disfarçados,  e  differentes  dos  próprios  mo- 
dernos, e  antigos)  que  despois  de  huma  longa  contenda  que  teve  com 
hereges  de  paz,  em  que  houve  grande  numero  de  ouvintes,  que  mostra- 
vão  querer  entender  a  verdade,  como  vío  que  os  tinha  tomado  ás  mãos, 
quiz  ver  se  os  podia  acabar  de  render.  Trazia  a  matéria  escrita  em  ter- 
mos. Era  do  Sacramento  da  penitencia  e  confissão  vocal:  tirou  do  papel, 
mcteo-liro  nas  mãos.  Forão-se  com  elle,  juntão-se  á  noiíe  os  que  pre- 
sumião  de  mais  agudos:  debaterão,  cansarão  sem  achar  que  replicar,  até 
que  hum  de  pura  raiva  arrebata  o  papel,  e  arremessa-o  a  huma  fogueira 
que  todos  cercavão  em  huma  grande  chaminé.  Prodigioso  successo!  Per- 
deo  o  elem.ento  a  força  natural  á  vista  da  verdade  e  tomou  outra  con- 
tra natural,  que  foi,  rebater,  e  rechaçar  o  papel  com  tanta  força,  que 
voando  parou  sobre  huma  viga  que  atravessava  a  sala.  Este  caso  tiverão 
por  então  em  segredo,  até  que  muitos  dias  despois  foi  publicado  por 
hum  da  companhia  que  se  converteo,  e  a  viga  se  guarda  hoje  por  me- 
moria. 

Mas  não  acreditava  o  Senhor  só  por  huma  via  a  doutrina  de  seu  ser- 
vo, sarava  enfermos,  lançava  demónios,  e  íazia  outras  grandes  maravi- 


PARTICULAR  DO  REI.NO  DE  PORTUGAL  27 

lhas.  A  humas  desaventurada.,  mulheres,  a  quem  o  demónio  trazia  atol- 
ladas  em  torpezas,  porque  não  podia  acabar  de  as  persuadir  que  se  emen- 
dassem, offereceo  dar-lhes  vista,  e  conhecimento  de  quem  as  guiava,  e  a 
quem  seryião.  Mandou  ao  inimigo  que  dcscubrisse  a  figura  com  que  as 
acompanhava.  Tão  fea,  e  temerosa  era  que  acabou  o  medo  d"ella,  quando 
a  virão,  o  que  o  de  Deos  não  fazia. 

Foi  hum  dia  porá  entrar  em  huma  Igreja  cercado  de  ouvintes,  a  quem 
queria  doutrinar.  Achou-a  cerrada.  Tardavão  as  chaves  a  caso,  ou 
acinte.  Chegou  ás  portas,  poz-lho  as  mãos,  abrirão-se  de  par  om  par 
com  admiração  de  todos. 

Outro  dia  caminhava  com  pressa  pêra  certo  lugar.  Ao  passar  de 
lium  rio  (chamio-lhe  Aregia)  cahio-lhe  na  agoa  o  Breviário  envolto  com 
papeis  de  impurtancia.  Era  peso  junto,  foi-se  ao  fundo:  c  não  houve  re- 
médio pêra  se  tirar,  nem  elle  consentio  que  se  fizesse  muita  diligencia, 
assi  por  não  perder  a  jornada,  como  por  dar  tudo  por  perdido  despois 
de  passado  da  agoa.  A  cabo  de  três  dias  trazem-l!ie  o  Breviário,  e 
papeis,  tudo  tão  enxuto  como  se  nunca  tocarão  agoa.  Foi  o  caso,  quo 
arrastando  hu;n  pescador  suas  redes  no  mesm )  lugar,  colheo  o  en- 
voltório, e  fez  restituição  ao  Santo.  E  como  os  papeis  devião  ser  das 
matérias  de  fé  que  andavão  em  questão,  não  quiz  ser  menos  cortez 
com  elles  o  elemento  da  agoa,  do  que  fora  o  do  fogo  com  os  outros. 
N'esíe  mesmo  caminho  aconteceo,  que  passando  huma  barca,  ao  saltar  em 
terra,  lhe  pedio  o  barqueiro  o  preço  da  passagem,  e  ái  seu  traballio- 
Como  o  Santo  não  trazia  dinheiro,  porque  vivia  de  esmolas,  e  o  barquei- 
ro não  determinava  ficar  sem  paga:  antes  a  requeria  com  soberba,  e  des- 
compostura, poz  elle  os  olhos  no  Ceo  com  huma  breve  oração,  e  logo  tor. 
nando-os  a  terra,  vio  junto  de  si  com  que  satisfez  a  divida. 

A  estas  maravilhas  ajuntou  o  Senhor  dar-lhe  espirito  de  profecia 
com  que  antevia  cousas  grandes  por  vir,  e  a  tempos  declarava  algumas, 
como  veremos  ao  diante.  Eííeito  foi  d"eslc  espirito  o  remédio  de  hum 
pobre  moço,  que  sendo  por  elle  relaxado  ao  braço  secular  por  herege 
emperrado,  quando  o  vio  levar  ao  fogo,  não  sei  que  n"elle  lhe  revelou  o  Ceo, 
quepedio  lh"o  largassem. Era  o  moço  de  gentil  presença  em  disposição,  e  ros- 
to. Sem  falar  ninguém  advogarão  por  elle  estas  partes :  trouxe-o  comsigo 
assi  obstinado.  E  em  fim  veio  a  ter  lume  da  verdade,  e  mereceo  rece- 
ber o  habito  na  Ordem,  e  acabou  n'ella  com  sinaes  de  predestinado. 
Mas  era  entrado  o  anno  de  1211,  e  o  Conde  de  Monfort  juntando 


28  LIVRO  I  DA  HISTOllIA  DE  S.  DOMINGOS 

stíu  campo  deUírminou  acometer  o  lugar  de  Albi,  ninho  da  heregia,  e  que 
lhe  dera  nacimento,  e  nome.  Tomou-o  a  viva  força,  e  sem  deixar  es" 
friar  a  corrente  da  victoria  foi  entrando,  e  conquistando  outras  praças' 
acompanhado  sempre  do  nosso  Inquisidor,  e  pregador.  E  ultimamente 
foi-sc  lançar  sobre  Tolosa,  onde  estava  junta  toda  a  força  dos  hereges,  fa" 
zendo  conta  que  aqui  arrematava  a  guerra.  lie  a  terra  grande ;  estava 
bem  provida,  fazia  brava  resistência.  Assi  foi  o  cerco  prolongado  com 
vários  successos,  e  perigos,  cuja  relação  não  pertence  a  esta  historia, 
senão  emquanto  tocão  ao  Padre  S.  Domingos.  Assistia  elle  no  campo 
pregando,  e  animando,  e  servindo  a  todos,  e  fazendo  oração  por  todos, 
que  era  pelejar  por  todos.  Eisque  hum  dia  acodem  a  elle  muitos  sol- 
dados huns  trás  outros,  lastimando-se  todos,  que  acabavão  de  ver  per- 
der no  rio  huma  barca  carregada  de  gente,  e  polo  que  se  podia  conjeitu- 
rar,  julgavão  serem  Gatholicos.  AlUigido  com  a  nova  sae  da  tenda,  se- 
guem-no  todos  a  hum  teso  sobre  o  rio,  d'ali  começa  a  dar  vozes  inflam" 
mado  em  compaixão,  e  caridade  chamando  da  parte  de  Deos  pelos  que 
já  não  aparecião,  e  logo  á  vista  de  todo  o  campo  Catholico  (podemos 
bem  dizer:  Obediente  Domino  voei  hominis)  começão  a  levantar  as  cabe- 
ças sobre  a  agoa,  e  vir  saindo  hum,  e  hum  do  fundo  do  rio  pêra  a  praia, 
e  sem  faltar  homem  de  toda  a  companhia,  reconhecidos  todos  do  mila- 
groso beneficio  se  vierão  lançar  aos  pés  do  Santo,  que  os  abraçava  cheio 
de  alegria,  como  o  estavão  os  circunstantes  de  maravilha,  vendo  sãos,  c 
salvos  os  que  virão  perder,  e  affogar,  e  desaparecer  no  meio  da  agoa. 
E-ntão  se  soube  o  numero,  e  calidade.  Erão  quarenta  peregrinos  que 
passavão  em  devação  a  San-Tiago,  de  nação  Ingrezes.  O  tempo  forte,  e  o 
peso  da  gente  fez  soçobrar  o  vaso,  pequeno  pêra  tamanha  carga. 

Havia  muitos  mezes  que  o  cerco  durava,  sem  nenhum  bom  eíTeito, 
pola  pertinácia,  e  valeiUia  com  que  os  cercados  se  defendião.  Começarão 
a  faltar  mantimentos  aos  cercadores,  derramavão-se  os  soldados,  e  min- 
goava  o  exercito :  forão  recrecendo  outros  inconvenientes.  Em  fim  foi 
forçado  levantar  o  campo  com  perda  de  reputação,  e  grande  desconsola- 
rão do  Santo. 


PAUTICILAR  DO  REI>"0  DE  PORTIGAI.  29 

CAPITULO   VI 

Animi  o  Santo  aos  Calholicos  com  huma  alegre  profecia  d't  fim 
da  guerra.  Contão-se  algumas  maravilhas  obradas  por  meio  do 
Santo  ^Rosaria:  e  a  grande  victoria  que  se  alcançou  dos   hereges. 

Era  julf^ada  por  tamanha  desgraça  esta  retirada  de  Tolosa,  que  não 
havia  Catholico  que  levantasse  o  rosto,  assi  aridavão  caliidos  e  desmaiados. Só 
o  Padre  S.  Domingos  cheio  de  confiança  noCeo,  consolava,  e  animava  a  to- 
dos, e  alegremente  affirmava  que  a  guerra  teria  fim  muito  cedo.  Mas  ornai 
presente  não  consentia  dar-se  credito  a  nenhuma  boa  esperança,  com  quanto 
tinhão  experiência  das  vei-dades  do  Santo.  Declarava-se  mais,  apontava  parti- 
cularidades, que  haveria  huma  famosa  batalha,  serião  vencedores  os  Ca- 
thoUcos,  ficaria  hum  Rei  morto  no  campo.  Não  bastava  nada,  porque 
lançando  contas  humanas  achavão  tantos  inconvenientes  no  estado  das 
cousas,  quo  vinhão  a  julgar  mal  do  Sanf-o,  não  s-j  a  negar-lhe  fé.  Ac- 
c.recentava  a  desconfiança  verem  entrado  o  anno  de  1213,  e  sem  haver 
I)oder  de  parte  dos  Cathoiicos,  andarem  os  hereges  poderosos  de  gente, 
e  allianças.  Com  tudo  o  Santo  porfiava,  e  pregava,  rogando  publicamen- 
te que  não  quizessem  com  a  desesperação  encurtar,  ou  anteparar  a  mi- 
sericórdia Divina:  que  sem  falta  lhes  afifirmava,  os  viria  cons<ilar  a  tem- 
po aquella  Senliora,  Virgem,  e  Mãi,  cujos  Rosários  resavão,  c  trazião  nas 
mãos,  e  sobre  os  peitos.  A  isto  ajuntava  lembranças  das  muitas,  e  gran- 
des maravilhas,  com  que  a  mesma  Senhora  ali  mesmo,  e  entre  elles  lhes 
tinha  feito  conhecer  o  muittj  que  valia  sua  devação.  Assi  os  hía  entre- 
tendo, e  aliviando  em  quanto  tardava  o  prazo  que  no  Ceo  estava  deter- 
minado ao  cumprimento  da  profecia.  Mas  porque  nlío  he  rezão  ficarem 
em  silencio  os  casos  que  o  Santo  lhes  lembrava,  diremos  brevemente 
por  honra  da  Virgem,  e  do  seu  Rosário  alguns  dos  muitos  que  n'aquelle 
tempo  succcderão(*). 

Andava  no  camfX)  Catholico  hum  fidalgo  de  Bretanha  por  nome  Ala- 
no  de  Valcoloara,  do  qual  se  aíTirma,  que  lodosos  dias  rezava  o  Rosário, 
despois  que  o  Santo  pregara,  e  ensinara  a  devação.  Achou-se  hum  dia 
em  huma  escaramuça:  era  valente  soldado:  empenhou-se  demasiado  com 
os  inimigos,  e  quando  menos  cuidou,  aohou-se  cercado  de  muitos,  e 

(•)  P.  Fr,  Fcinanj.  de  Caslilhj  1    1    c.  31. 


30  i.ivno  I  DA  insTí)iiiA  de  s.  domíxius 

quasi  desamparado  dos  seus.  Não  havia  senão  moirer.  Aparece-lhc ifes- 
ta  pressa  a  Senhora,  põe-se  de  sua  parte.  Quem  seria  contra  eUa?  Come- 
rão subitamente  a  cair  pedras  sobre  os  hereges  com  tanta  fnria  (juc 
voltarão  as  costas  com  muitos  mortos,  c  todos  feridos,  e  malti-Uados. 
E  porque  digamos  tudo  o  que  se  escreve  d'este  devoto:  aconteceo-lhe  al- 
guns annos  despois  da  guerra  achar-se  no  mar  cm  huma  tormenta,  e  a 
paragem  tal,  que  sem  remédio  hia  o  navio  á  costa  sobre  huma  rocha  ta- 
lhada. Acudio  elle  ao  seu  Rosário,  e  acudio-lhe  a  Senhora.  Saltou  subita- 
mente o  vento  á  terra,  lançou  o  navio  pêra  o  mar,  e  salvoií-se.  Conhece- 
rão 05  ruaiínheiros  o  milagre,  e  reconheceo-o  elle  tomando  o. habito  de 
S.  Domingos,  tanto  que  poz  os  pés  em  terra  (*). 

São  os  perigos  da  alma  tanto  mais  de  temer  que  os  do  corpo,  quanto 
cila  vai  mais,  e  he  mais  nobre  que  elle.  l^ías  tam])om  n'elles  acha  a  esta 
Senhora  quem  a  busca :  e  como  he  Mãi,  ás  vezes  também  quem  a  não 
busca.  Quando  succedeo  o  milagre  dos  papeis  lançados  no  fogo  que  con- 
támos, achou-se  entre  os  hereges  que  forão  presentes  hum  muito  prin- 
cipal em  poder,  e  sangue.  Este  vendo  o  caso  ficou  enleado,  c  atónito, 
porque  havia  quinze  annos  que  se  não  confessava.  E  caindo  em  huma 
profunda  imaginação  do  que  vira,  e  do  estado  cm  que  estava,  vio-se 
subitamente  arrebatado  por  huma  legião  inteira  de  Demónios,  que  o  le- 
varão ao  inferno,  e  o  poserão  á  vista  do  que  padecião  os  que  este  Sacra- 
mento Santo  aborrecerão  na  vida.  E  vio  que  cada  hum  dos  taes  tinha 
hum  feio  dragão  ferrado  nas  ilhargas,  que  enroscado  pelas  costas  lhe  rola 
o  coração  cm  pago  da  dureza  com  que  fugirão  da  confissão :  e  as  dores 
que  padecião  os  fazião  dar  bramidos  como  J)estas  feras :  dos  olhos  em 
lugar  das  lagrimas  que  houverão  de  chorar  de  penitencia,  lançavão  laba- 
redas de  fogo,  das  bocas  vomitavão  podridão,  veneno,  e  fedor :  e  parando 
O  vomito  pêra  não  terem  hora  livre  de  tormento,  lhes  entravão  por  ellas 
lagartos,  e  bivoras.  Era  tudo  tal,  e  tão  medonho,  que  só  da  vista  se  sentia 
atormentado,  e  lhe  parecia  ser  já  companheiro  nas  penas.  Mas  a  miseri- 
córdia Divina  lhe  deparava  ali  a  Virgem  do  Rosário,  cujas  grandezas  ti- 
nha algumas  vezes  ouvido  ao  Padre  S.  Domingos,  a  qual  via  que  em 
meio  d'esta  aíllição  lhe  dava  a  mão,  e  o  livrava.  Assi  na  primeira  hora 
que  pôde,  sem  meter  tempo  em  meio,  se  foi  ao  Santo  que  o  confessou, 
c  pêra  cura  perfeita  lhe  ensinou  a  devacão  de  quem  lhe  valera  no  traba- 
lho :  a  qual  tomou  tanto  a  peito  que  de  herege,  e  estragado  se  fez  Ca- 

{•)  Castilho  ubi   sup. 


í\VUTIC!'I,Ar.  DO  IU:iNO  DE  PORTUGAL  31 

pitão  de  Calliolicos,  e  nas  l)aiideiras  trazia  por  divisa  o  Sarilo  Rosário, 
fjue  lhe  deu  dos  liorcges  muitas  victorias,  como  lhe  dera  do  inferno. 

Por  diííerente  via  teve  cura  igual  outro  nobre  Catliolico.  Era  vicioso, 
e  devasso  em  sensualidades,  e  tratava  mal  Imma  virtuosa  fêmea  sua  mu- 
lher. Ella  ardendo  em  ira,  e  raiva  de  ver  que  a  desprezava  por  outras, 
andava  em  pensamentos  de  se  perder,  por  se  vingar  do  marido  em  ma- 
téria que  igualmente  lhe  doesse.  Passando  assi  alguns  dias  aborrecida 
da  vida,  e  do  marido,  e  de  sua  própria  lionra,  e  alma :  e  não  acabando 
de  pôr  em  obra  o  que  já  na  vontade  trazia  executado :  foi  servido  o  Pai 
de  misericórdia  representar-lhc  em  sonhos  as  penas  que  no  inferno  pa- 
decião  os  sensuaes.  Vio  que  jazião  em  fornos  ardendo,  abraçados  de  ser- 
pentes, e  liados  d'ellas  por  toda  a  parte:  de  sorte,  que  nem  as  podião 
lançar  de  si,  nem  erão  senhores  de  mover  pé  nem  mão.  Sahião-l!ie  poios 
olhos,  boca,  e  narizes  chammas  de  fogo  horrendo  de  azulado,  e  negro 
com  huma  respiração,  e  cheiro  incomportável  como  de  Vulcanos  que  ar- 
dem nos  mineraes  de  enxofre  :  c  a  voltas  do  fogo  vinlião  huns  borbulíiões 
de  matérias  como  de  pos temas  podres,  negras,  e  nojentas  que  lhes  corrião, 
o  cobrião  os  corpos  de  pés  a  caljoça,  e  passavão  ás  entranhas,  criando 
alli  íVagoa,  d'onde  tornavão  a  subir  em  corrente  perpetua.  Nacia  de  tudo 
hum  tormento  desesperado  nos  tristes  padecentes,  e  do  tormento  hum 
grito  continuado  que  atroava  o  inferno.  E  sendo  talo  martyrio,  nem 
matava  (que  fora  género  de  consolação)  nem  podia  matar  :  e  esta  certeza 
de  perpetuidade  era  causa  de  nova,  c  maior  pena.  Entre  estes  fornos  via 
hum  vazio  de  condenado,  mas  não  dos  instrumentos  dos  outros,  e  foi-lhe 
dito  que  aquelle  esperava  por  seu  marido.  A  pobre  senhora,  que  pudera 
alegrar-se  com  a  vingança,  estava  tão  assombrada  do  que  via,  que  cheia 
de  compaixão  começou  a  fazer  hum  sentido  pranto,  que  lhe  tirou  o  sono 
e  a  visão.  Acordou  banhada  em  lagrimas,  mas  consolada,  e  contente  d^ 
não  ter  executado  os  danados  propósitos  de  que  estivera  persuadida,  E 
como  não  podia  perder  da  memoria  o  que  vira,  buscou  logo  a  S.  Domin- 
gos, deu-lhe  conta  de  duas  almas,  e  levou  remédio  pêra  ambas.  Efoi  assi. 
Deo-lhe  o  Santo  hum  rosário  seu,  mandou-lhe  que  rezasse  por  cUe,  e  de 
noite  o  pozessc  debaixo  do  travesseiro  ao  descomposto  marido.  Divino^ 
e  poderoso  feitiço.  Ka  primeira  noite  lhe  cahio  n"alma  lium  grande  medo 
acompanhado  de  tamanha  dôr  de  seus  peccados,  que  a  passou  toda  emla 
grimas :  na  segunda  se  lhe  representou  que  era  cliamado  a  juízo  diante  do 
tribunal  divino,  com  que  espertou  cheio  de  novo  lei'ror,  e  sem  poder  to- 


32  LIVIU)  I  DA  IIISTOIIIA   DE  S.   DWílNGOS 

mar  sono:  tudo  forrio  suspiros,  e  pedir  perdões  á  mullier  até  pola  ma- 
nliã.  Finalmente  foi  Deos  servido  mostrar-lhe  outra  visão  do  interno  se- 
melhante á  que  contámos  de  sua  mullier,  com  que  se  resolveo  em  lazer 
nova  vida.  E  em  quanto  lhe  durou,  foi  grande  pregoeiro  do  poder,  e 
virtudes  do  santo  Rosário. 

Mas  tornando  á  nossa  instoria,  e  aos  desconliados  Catholicos,  era  che- 
gado o  tempo  em  que  o  Senhor  os  queria  consolar,  c  dar  comprimento 
á  profecia  de  seu  servo;  e  pêra  que  a  victoria  fosse  toda  sua,  ordenou 
que  succedesse  no  tempo  que  o  partido  Gatholico  estava  mais  desespe- 
rado, e  passou  d'esía  maneira.  Era  por  Setembro  do  l!;íl3.  Andavão  os 
hereges  senhores  do  campo:  e  o  Conde  de  Monfort,  repartidas  as  poucas 
gentes  que  tinha  polas  terras  ganhadas,  estava  encerrado  com  poucos  no 
(^astello  de  .Murei,  prara  forte  sobre  o  rio  Garona.  Forão  sobre  elle  os 
Condes  hereges  com  tamanho  poder  que  ameaçavão  a  toda  aí' rança,  não 
s3  aos  cercados.  Levavão  em  seu  favor  a  Et-Rei  1).  Pedro  de  Aragão 
acompanhado  de  hum  exercito  victorioso,  com  que  no  annoatrazde  1212 
se  achara  com  EI-Rei  de  Castella  na  ÍLimosa  batallra  das  Navas,  em  que 
ambos  desbaratarão,  e  matarão  hum  numero  infinito  de  Mouros.  Não  lia- 
via  no  Gastello  mais  de  mil  o  oitocentos  homens  de  armas,  e  os  inimigos 
cobrião  montes,  e  valles,  aífirma-se  que  não  erão  menos  de  cera  mil  com- 
batentes. Acompanhava  S.  Domingos  aos  cercados,  c  como  outro  Moysés 
negoceava  com  Deos  por  meio  de  fervorosas  orações,  e  do  santo  Rosário, 
e  muitas  lagrimas,  não  só  o  remédio  do  lugar,  mas  do  Reino  de  França 
inteiro,  que  então  pendia  d'eUe.  Era  gente  escolhida,  e  valorosa  a  que  o 
Conde  de  Monfort  recolhera  comsigo:  mas  á  vista  de  tanto  inimigo  não 
havia  peito  livre  de  temor.  Só  o  Santo  alegre,  e  confiado  jiropõe  que 
assaltem  os  hereges  confiados  em  sua  multidão,  e  descuidados  do  perigo, 
e  aíTirma  que  tanto  dilatão  a  victoria,  quanto  íardão  em  os  acometer. 
Foi  conselho  que  se  armassem  todos  das  armas  santas  dos  Sacramentos 
da  confissão,  e  sagrada  communhão.  Assi  animados,  abrem  as  portas, 
põe-se  o  Santo  na  dianteira  com  o  sagrado  guião  de  Christo  crucificado  nas 
mãos.  Arremeteo  aquelle  pequeno  esquadrão  aos  inimigos  com  hum  íor 
vão  de  alarida.  Não  se  pôde  escrever  qual  foi  o  encontro,  nem  qual  a 
resistência,  como  vencerão  tão  poucíjs,  como  forão  vencidos  tantos:  veio 
a  victoria  do  Ceo,  d"onde  estava  prometida  ás  lagrimas  do  servo  de  Deos: 
assi  ficou  desfeito  aquelle  grande  exercito  em  hum  momento,  como  o 
outro  de  Senachcrib,  ao  parecer  mais  por  obra  de  Anjos,  que  por  mãos 


PARTICULAR   DO   REÍXO   DK  POIITUGAL  33 

de  homens,  e  alagando  com  sangue  os  campos  que  (l'antes  cobria  com 
corpos,  e  armas,  c  he  cousa  ccrla,  que  forão  mortos  vinte  mil  homens, 
não  faltando  dos  vencedores  mais  que  sete  ou  oito.  E  porque  se  com- 
prisse  em  todo  a  prophecia  do  Santo,  e  a  victoria  mais  gloriosa  fosse, 
ficou  morto  no  campo  El-Rei  D,  Pedro,  desgraça  digna  da  companhia  que 
tomou,  não  de  seu  valor.  Rendeo  a  victoria  a  S.  Domingos  celehrar-se  seu 
nome  com  novos  títulos,  além  de  Santo,  de  Propheta,  de  milagroso,  e 
amado  de  Deos.  Bem  sei  que  se  escreve  differentemente  por  alguns  este 
successo,  dizendo  que  ficou  o  Santo  posto  em  oração  com  huns  Prelados, 
que  havia  no  castello.  Mas  não  he  de  crer  que  acompanhando  elle  os 
exércitos  grandes  em  escaramuças,  e  recontros  de  menos  conta,  desam- 
parasse este  pequeno  esquadrão  em  perigo  tão  manifesto,  e  Ião  necessitado 
de  sua  presença.  E  notou-se  n'elle  mais  ao  claro,  o  que  já  em  outros 
recontros  tinhão  os  homens  visto,  que  sendo  o  Santo  nos  acommetimen- 
tos  o  dianteiro,  nem  em  sua  pessoa,  nem  na  figura  do  santo  Crucifixo, 
tocou  nunca  lança,  nem  seta,  nem  outro  tiro,  ficando  pêra  inteira  confir- 
mação do  milagre  a  haste  em  que  hia  arvorado,  crespa  de  muitas  setas 
que  a  pregarão.  Este  Crucifixo  por  memoria  do  successo  se  guarda,  e 
mostra  hoje  no  nosso  convento  de  Tolosa  (*).  E  pola  mesma  conta  devia  dar 
o  consentimento  commum  a  nosso  Padre  hum  Crucifixo  por  devisa  que 
todos  os  pintores  lhe  põem  nas  mãos:  e  d"ella  usão  os  Mestres  geraes 
da  nossa  Ordem  no  sello  grande  de  seu  cargo.  E  he  o  costume  tão  an- 
tigo, que  no  Capitulo  que  se  fez  em  Bolonha  no  anno  de  1240  se  decre- 
tou particular  ordenação,  que  nenhum  outro  religioso  a  trouxesse  em 
sinete. 

Rendeo  a  mesma  victoria  aos  Catholicos  correrem  logo,,e  senhorea- 
rem toda  a  terra,  sem  haver  quem  lhes  fizesse  rosto,  castigarão-se  muitos 
hereges,  ganharão-se  todas  as  forças  que  estavão  por  elles,  e  o  que  mais 
importou,  reduzirão-se  infinitas  almas  ao  grémio  da  Igreja.  E  he  cousa 
averiguada  que  forão  poucas  menos  de  cem  mil  as  que  converte  o  no 
tempo  que  durarão  estas  alterações  a  diligencia,  e  pregação,  e  vida  de 
S.  Domingos,  segundo  constou  poios  autos  que  pêra  sua  canonização  se 
processarão  (**).  Apaziguada  a  terra,  começarão  a  crecer  os  bens,  efruitos 
da  paz,  com  augmentos  de  religião,  e  quietação  de  corpos,  e  almas.  Go- 
zava-os  o  Santo  recolhido  em  Tolosa  com  seus  companlieiros.  Vivião  jun- 

(*)  Susato  na  vida  de  Fr.  Beieng.  13.  M.  Geral. 

(.*)  Fr.  Fernando  de  Castilho  Uiít.  do  S.  Dom.  p.  i.  1.  i.  c.  1». 

VOL.  1.  3 


34  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

los,  e  em  commiinidade  em  humas  casas  que  lhe  dera  hum  d'elles  chamado 
Pedro  Cellan.  Aqui  os  exercitava  em  silencio,  e  recolhimento,  jejuns,  vi- 
gi lias,  oração,  o  contemplação:  ensaiando-os  com  seu  exemplo  nos  tra- 
balhos da  Religião,  e  vida  nova  que  em  seu  animo  traçava,  vida  nunca 
ociosa,  nunca  descançada,  activa  na  necessidade,  contemplativa  no  ócio. 

CAPITULO  Ylí 

Dá  S.  Domingos  principio  á  sagrada  Ordem  dos  Pregadores.  Pede 
confirmação  ao  Pontífice  :  alcança-a  verbal,  e  condicional.  Funda 
cm  Tolosa  o  primeiro  convento.  Faz  renunciarão  de  rendas,  e  fa- 
zenda. Torna  a  Roma  em  demanda  da  confirmação :  Conlào-se 
humas  visões  que  ahi  leve. 

Aquelle  Senhor  que  tudo  dispõe  suavemente,  e  em  suas  promes- 
sas nunca  fez  falta,  querendo  acudir  á  que  em  beneficio  do  mundo  tinha 
feito  a  seu  servo  S.  Domingos  por  meio  da  gloriosa  Virgem  Wà,  e  Es- 
posa sua,  como  atraz  fica  contado,  foi  servido  dar-ihe  comprimento  pe- 
los termos,  e  modos  que  agora  diremos.  Tinha  o  Padre  S.  Domingos 
dezaseis  companheiros  bem  provados  todos  nos  traballios  d"estes  annos, 
e  no  exercido  da  pregação,  e  serviço  da  Inquisição  em  que  o  tinhão  aju- 
dado muito.  Porque  alguns  erão  bons  letrados,  e  todos  de  grande  virtude, 
e  espirito.  Havia  outros  muitos  sujeitos  que  desejavão  seguil-o.  Pare- 
ceo-Ihe  tempo  de  manifestar  ao  mundo,  e  pôr  em  eíTeito  o  que  de  longe 
trazia  imaginado,  que  era  fundar  huma  Ordem,  que  fosse  seminário  per- 
manecente  de  gente  apostada  a  encontrar  hereges,  e  heregias,  e  ser  escu- 
do, e  defensa  da  verdadeira  doutrina  :  officio  em  que  já  havia  muitos  dias 
elle,  e  os  seus  andavão  exercitados.  Deo  conta  do  desenho  a  seus  gran- 
des amigos  o  Bispo  Fulcon  de  Tolosa,  e  o  Conde  de  Monfort.  Ambos 
louvarão  a  empreza,  e  ás  palavras  ajuntarão  obras;  entendendo  que  pêra 
se  empregar  com  todo  cuidado  no  espiritual,  de  (fue  tão  bons  eífeitos 
tinhão  visto,  convinha  ser  fomentado  com  ajudas  temporaes,  cada  hum 
lhe  fez  sua  doação.  Dco-lhe  o  Conde  o  senhorio  temporal  de  huma  boa 
villa  chamada  Fanjous(*).  O  Bispo,  todas  as  rendas  da  Igreja  de  Santa  Maria 
da  mesma  villa  de  Fanjous,  a  que  ajuntou  outras  Igrejas,  e  a  sexta  parte 

{.)  M.  Fr.  Juniào  c.  20.  M.  Fr.  Bfiiiar.  Guido  tit.  Das  Frciruí  de  riulliaiio.  Caítilho  |).  i.  1. 
1.  r.  lo 


PARTICULAR   DO   REINO   DE  PORTUGAL  ofi 

dos  dízimos  do  todo  seu  Bispado,  com  consentimento  da  Clerisia,  que  era 
tudo  cousa  mui  grossa. 

Publicou-se  n'este  tempo  por  toda  a  Christandade  de  parte  do  Summo 
Pontifice  Innoeencio  III,  convocação  geral  de  Prelados  pêra  Concilio  uni- 
versal, que  veio  a  celebrar  por  Novembro  do  anno  de  1215  em  Roma  na 
Igreja  de  S.  João  de  Latrão.  Foi-se  S.  Domingos  a  ellc  em  companhia 
do  Bispo  de  Tolosa,  não  duvidando  com  tal  testemunha  de  seus  traba- 
lhos pedir,  e  alcançar  approvação,  e  confirmação  de  sua  Ordem.  Mas 
sendo  bem  visto  do  Papa,  e  de  toda  a  Corte  Romana,  por  nenhum  caso 
foi  admitido  o  requerimento  :  antes  sahio  particular  decreto  do  Concilio, 
que  se  não  consentissem  Religiíjes  novas  (*).  Parece  que  foi  ordem  da  divina 
providencia  pêra  maior  honra  d'esta  Rehgião,  e  pêra  que  ficasse  publi- 
co, e  notório  no  mundo,  que  não  tivera  seu  principio  n'elle,  senão  no 
Ceo,  e  como  tal  era  necessária  na  Igreja  Catholica.  Acodia  S.  Domin- 
gos a  palácio  do  dia  requerendo  aos  homens,  gastava  despois  as  noites 
inteiras  clamando  a  Deos  com  oração,  c  lagrimas (**).  Corria  o  tempo,  per- 
severava o  Santo  constantemente  em  sua  prefênção,  e  requerimento,  e 
durava  igualmente  a  contradição :  quando  amanhecendo  hum  dia  em  pa- 
lácio, lhe  foi  dito  que  era  buscado  de  mandado  do  Papa;  o  qual  vendo-o 
lhe  mandou  que  logo  se  tornasse  a  seus  companheiros,  e  com  elles  deli- 
berasse na  escolha  de  huma  das  regras  approvadas  pola  Igreja,  e  com 
isso  lhe  faria  a  graça  da  confirmação  de  sua  Ordem.  Fez  geral  espanto 
em  toda  a  corte  mudança  tão  súbita  no  Santo  Pontífice.  Mas  muito  mais 
admirou  a  rezão  d  ella.  E  foi  que  na  mesma  noite  começando  a  repousar 
afadigado  do  peso,  e  cuidados  de  seu  governo,  representou-se-lhe  que 
via  o  templo  famoso  de  S.  João  de  Latrão  tão  inclinado,  e  pendente  so- 
bre hum  lado,  que  ao  parecer  se  vinha  sem  remédio  ao  chão :  logo  no- 
tava que  hum  homem  vestido  de  mursa,  e  roxete  se  chegava  ao  edificio, 
e  pondo-lhe  as  mãos  o  sustentava,  e  livrava  de  ruina.  Vigiava  o  espirito, 
se  bem  os  sentidos  estavão  adormecidos :  conheceo  o  homem,  e  lembrou- 
se  do  requerimento,  e  ficou  entendendo  despois  de  acordado,  que  não  era 
sonho,  senão  advertência  do  Ceo  o  que  vira,  do  que  devia  fazer(***).  Assi  de- 
firio  logo  com  gosto,  ao  que  d'antes  resistia  com  aspereza.  Encommen- 
dou-lhe  de  novo  o  officio  da  pregação,  e  Inquisição,  mandando  escrever 

(•)  Cap.  13.  Ne  niraia  Religionum  divcrsitas,  &c. 
■    (..)  S.  Ant.  3.  p.  t.  19.  c.  3.  &  t.  '23.  c.  4.  g.  3. 
(>")  Pelrus  Mutlli.  Y<llieg.  Fr.  Scbus.  Olmedo.  Fr.  gtep.  de  Seilaluc.  tratt.  2. 


36  LIVRO  1  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMLXGOS 

emluiniainstnicção  dascousasque  lhe  encarregava  o  titulo  já  outra  vez  dada, 
como  affirmão  muitos,  ao  Mestre  Frei  Domingos,  e  aos  irmãos  Pregadores. 

Não  tardou  o  Santo  cm  tornar  pêra  os  seus.  Jiintou-os  na  igreja  de 
Prulliano:  deu-llies  conta  do  despaclio  que  trazia,  e  do  que  convinha  resol- 
ver. Assentarão  em  tomar  a  regra  do  Padre  Santo  Agostinho  com  as  cons- 
tituições, e  cerimonias  pela  mór  parte  da  Ordem  de  Premonstrel  (he  esta 
Ordem  filha  de  Santo  Agostinho,  dos  Cónegos  regalares,  foi  fundador  S. 
Nortberto  Bispo  Magdeburgense.)  Não  ignoro  qne  Dionysio  Carthusiano 
varão  gravíssimo  (*)  quer  que  da  Cartuxa  tomasse  S.  Domingos  estatutos,  e 
habito :  e  o  mesmo  aíTirma  D.  Theodoro  Pelreyo  nas  notas  que  fez  á  Chro- 
nica  Cartuziensc.  Mas  no  que  tenho  dito  conformão  todos  os  nossos,  se- 
guindo ao  Mestre  Frei  Humberto  de  Romanis,  que  assi  o  escreve,  e  al- 
cançou ao  Padre  S.  Domingos,  e  foi  Geral  da  Ordem  aos  trinta  e  três  ân- 
uos despois  de  sua  morte.  Como  quem  já  tinha  consentimento,  e  confir- 
mação da  boca  do  Summo  Pontifice,  começou  também  a  pôr  mãos  no  edi- 
fício do  primeiro  Convento.  Dera-lhe  o  Bispo  Fulcon  a  Igreja  de  S.  Ro- 
mão em  Tolosa,  por  occ^ião  de  humas  casas  nobres  a  ellas  vizinhas,  de 
que  lhe  tinha  feito  doação  Ramon  Vidal,  e  sua  mulher  Brunequildes.  Aqui 
armou  o  Convento  com  pouca  despeza,  juntando  casas,  e  Igreja.  E  pas- 
sou-se  logo  a  elle,  deixando  as  casas  de  Pedro  Cellan.  Erão  as  celtas  de 
tal  feitio  que  quasi  arremedavão  sepulturas  em  comprimento,  e  largura. 
Entender-se-ha  a  medida,  do  que  ao  diante  veremos,  que  succedeo  ao 
Santo  em  Bolonha :  dentro  hum  feixe  de  vides,  ou  hum  tessido  de  verga 
pêra  cama:  ehuma  pequena  banca  pêra  meza  de  livros,  e  estudo,  e  não 
havia  lugar  pêra  mais.  Dividião-se  com  a  grossura  de  huma  taboa.  O  cor- 
redor do  dormitório  muito  estreito,  as  celtas  sem  fecho,  nem  porta  pêra 
S3  fechar.  A  tal  fabrica  quiz  que  respondesse  a  sustentação.  Pareceo-lhe 
que,  pois  tomavão  á  sua  conta  exercitar  o  oílicío  dos  Santos  Apóstolos, 
a  quem  Christo  mandou  que  o  fizessem  sem  alforge,  devião  viver  sobre  a 
terra  ao  uso  dos  mesmos  Apóstolos,  sem  possuírem  cousa  nenhuma  n'ella. 
E  logo  fez  renunciação,  e  trespasso  no  Mosteiro,  e  Freiras  de  Prulliano 
de  todas  as  rendas  que  tinhão. 

Compostas  assi  estas  cousas,  era  passado  muito  adiante  o  anno  de  1216. 
Poz-se  de  novo  em  caminho  pêra  Roma  a  tirar  as  letras  de  confirmação. 
Achou  defunto  o  Papa  Innooencio,  e  a  seu  successor  Honório  Terceiro  oc- 

(•)  In  nnus.  Dionys.  Cait.  ar.  8.  de  piíccou.  lau.  Ord.  Caifliusiens.  D.  Tbcodor.  Petrejo 'su- 
per 1.  'J.  c.  li. 


PAnTICULAR   DO   REINO   DE  PORTUGAL  37 

cupado  em  negócios  gravíssimos,  parte  com  aprestar  hum  grosso  exer- 
cito que  mandava  pêra  a  Terra  Santa  :  parte  com  o  receliimento  do  Em- 
perador  de  Constantnopla  Pedro  Alíisidiorense,  que  com  a  Emperatiiz 
sua  mulher  se  vinha  coroar  de  sua  mão  em  Roma.  Não  fazia  o  Papa 
Honório  duvida  na  matéria,  mas  os  muitos  negócios  interpunhão  causas 
de  dilação.  Alíligia-se  o  Santo :  e  o  Senhor  benignissimo  estimando  a  af- 
feição,  de  que  era  causa,  tinha  cuidado  entre  tanto  de  o  consolar  com 
visões  celestiaes.  E  foi  huma,  mostrar-se-lhe  Christo  com  três  lanças  na 
mão,  em  acto,  e  postura,  ao  que  parecia,  de  vingar  com  ellas  os  pecca- 
dos  do  mundo,  com  os  três  açoutes  mais  temidos  n"elle.  Logo  via  a  Vir- 
gem Mãi  ajoelhar-se  com  entranhas  de  piedade  diante  do  Filho  irado,  e 
pedir-lhe  misericórdia,  oíTerecendo-se  por  fiadora  de  huma  nova,  e  grande 
reformação  em  toda  a  terra,  por  meio  de  dous  devotos  servos  seus  que 
n'ella  tinha :  os  quaes  lhe  mostrava  sinalando-o  a  clle,  e  a  outro  homem 
que  não  conheceo,  envolto  n'um  capote  de  saco,  pés  descalços,  rosto  in- 
flado, e  desfeito.  E  notava  que  o  Senhor  se  deixava  vencer  dos  rogos,  e 
promessas,  e  ficava  aplacado.  Foi  grande  a  consolação,  e  confiança  com 
que  ficou  de  seus  negócios:  mas  grande  também  o  desejo  detconhecer,  e 
venerar  hum  tal  companheiro.  E  não  passarão  muitos  dias  que  encontrou 
S.  Francisco  na  Igreja  de  S.  Pedro,  e  segundo  liie  ficara  impressa  na  me- 
moria a  visão  passada,  não  duvidou  na  pessoa,  nem  em  se  lançar  a  seus 
pés.  Abraçarão-se,  tratarão-se  como  amigos,  e  prometerão-se  fiel  compa- 
nhia pêra  toda  a  vida,  e  que,  ainda  que  fundavão  Ordens  differentes  em 
leis,  cerimonias,  e  trajo,  fossem  ambas  huma  só  nos  ânimos  dos  succes- 
sores  que  n'ellas  professassem,  (e  creio  eu  que  não  será  verdadeiro  filho 
d"estes  Santos,  quem  de  tão  antigo  trato,  e  contrato  se  esquecer.)  D  esta 
visão  tiverão  noticia  os  nossos  Frades  por  relação  do  Padre  S.  Francis- 
co, a  quem  só  a  contou  o  Padre  S.  Domingos.  Assi  o  deixou  escrito  o  famoso 
Chronista Franciscano,  e  Português  Frei  Marcos  de  Lisboa,  Bispo  do  Porto  (*). 
Chegava-se  o  fim  do  anno,  e  não  chegava  o  effeito  dos  desejos  do  San- 
to. Era  grande  a  mortificação  que  siníia,  e  o  que  acre'ceníava  com  ella 
de  merecimento  pêra  com  Deos,  feito  como  outro  Daniel  ("),  hum  varão  de 
desejos.  Alegreu-o  o  Senhor  de  novo  com  outra  visão.  Ficou-se  huma  noite 
em  oração  na  Igreja  de  S.  Pedro  em  Vaticano  diante  das  sagradas  rehquias 
dos  Apóstolos  S.  Pedro,  e  S.  Paulo,  regava  aquellas  lageas  com  vivas 

(•]  Na  Cronic.  dos  Men.  p.  !.  1,  i.  c.  i6. 
["]  Daii.  9. 


3^  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE  S.   DOAIINGOS 

lagrimas.  Eis  que  lhe  appareccm  ambos,  e  falando  com  ello  manilao-Uio 
de  parto  de  Deos,  (|iio  pregue  sua  fé  polo  mundo  por  si,  e  por  seus  com- 
panheii'os,  e  em  penhor  de  tal  mandato  offerece-lhe  cada  hum  d'elles 
sua  dadiva  (dadiva  honrosa,  e  em  que  podemos  fundar  os  Religiosos 
d"esta  Ordem  grande  certeza  de  misericórdias  do  Ceo,  mas  também  lui- 
ma  perpetua  lembrança  de  grandes  obrigações  nossas),  S.  Pedro  lhe  deo 
bum  bordão,  S.  Paulo  hum  livro. 

CAPITULO  VIII 

Alcança  S.  Domingos  cm  Roma  letras  Apostólicas  de  confirmação  de 
sua  Ordem,  com  titulo  de  Ordem  dos  Pregadores.  Torna  a  França, 
faz  eleição  de  Prelado  entre  os  seus,  e  manda-os  a  pregar  por 
varias  partes. 

Em  fim  foi  despachada  a  confirmação  da  Ordem  de  S.  Domingos  polo 
Summo  Pontífice  Honório  III  com  assistência  de  dezoito  Cardeaes  em 
vinte  e  dou$  dias  do  mez  de  Dezembro,  anno  da  Redempção  do  género 
humano  1216.  Começa  o  Breve  que  d^ella  se  passou:  Honório  Bispo  ser- 
vo dos  servos  de  Deos  ao  amado  Frei  Domingos  Prior  de  S.  Romão  de  To- 
losa,  etc.  E  o  titulo  foi:  Letras  de  confirmação  da  Ordem  dos  Frades  Pre- 
gadores. E  d'aqHÍ  naceo,  que  dando  o  tempo,  e  occasiões  d'elle  vários 
titulos  a  esta  Ordem,  e  todos  l)em  honrosos,  como  era  chamarem-nos  em 
humas  partes  Frades  de  Nossa  Senhora,  porque  d"ella  recebemos  o  ha- 
bito, e  outros  particulares  favores,  como  adiante  o  contará  a  historia (*).  Em 
outras  partes  Frades  da  Ordem  da  verdade,  pola  constância  com  que  ella 
se  oppoz  sempre  â  falsidade  das  heregias  em  serviço,  e  defensão  da  ver- 
dadeira fé.  Comtudo  no  Capitulo  Geral  celebrado  em  Paris  anno  12uG, 
S3  fez  particular  decreto,  em  que  se  mandou  que  doutro  nome  não  usás- 
semos, salvo  destOj  em  que  Honório  nos  confirmou  aqui,  e  que  Innocen^ 
cio  seu  antecessor  nos  tinha  dado  d'antes.  Diz  o  decreto:  Fratres  nosiri 
vocentur  Fratres  Prcpdicatores,  et  non  alijs  nominibus. 

Não  se  deteve  o  Santo  mais  em  Roma.  Cliegado  a  Tolosa  ao  seu  con- 
vento abrio  os  braços  a  receber  noviços,  e  os  pensamentos,  e  determina^ 
ção  a  espalhar  polo  mundo  esses  poucos  companheiros  antigos,  de  que 

(•)  S.  Ant.  3.  p.  t.  23.  c  3.  §.  i.  M.  Fr.  Aiif.  de  Scciía  na  sua  Cron.  foi  27.  O  mesmo  Fr. 
Ant.  de  Sena  f,  2j.  Óí  179, 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  39 

Já  tinha  experiência.  Do  numero  d"elles  faláo  variamente  os  Autores.  Os 
mais  concordão  que  furão  dezaseis.  A  saber,  sete  Franceses,  Matheus 
Estevão  de  Metz  de  Lorena,  Beltrão  de  Garriga,  Guilherme  Clarete,  Pe- 
dro, e  Thomás  Celian,  irmãos,  Natal.  D'estes  bavião  sido  Priores  de  Igre- 
jas Collegiadas,  bomens  maduros,  e  bons  letrados  os  dous  primeiros  l\Ia- 
theus,  e  Estevão.  Outros  sete  Espanboes,  Manes,  ou  Mamerto,  irmão  in- 
teiro de  nosso  Padre  S.  Domingos,  Miguel  de  Uzero,  Domingos  Espa- 
nbol,  o  pequeno,  ou  polo  ser  de  corpo,  ou  por  diíTerença  de  seu  Mestre, 
João  de  Navarra,  que  alguns  querem  que  fosse  Lombardo,  e  se  cbarnasse 
de  Vanaria,  não  de  Navarra,  Pedro  de  Madin,  Miguel  de  Espanba,  por 
outro  nome  de  Fabra :  e  Sueiro  Gomes,  que  sendo  sabidamente  Portu- 
guez  nenlium  Autor  antigo  nem  moderno  lhe  sinalla  pátria.  Erão  mais 
bum  Lourenço  Ingres,  e  bum  Leigo  que  buns  cbamão  Oíhorio,  outros 
Odorico  Normando.  Como  erão  tão  poucos  foi  forte  a  contradição  que  o 
Santo  achou  nos  maiores  amigos,  a  quem  por  rezão,  e  cortesia  deo  con- 
ta do  desenho.  Sempre  foi  ordinário  encontrar  o  mundo  os  movimentos 
divinos.  Não  sofria  o  Bispo  Fulcon  haver-se  de  dividir  por  outras  terras 
aquella  pequena  esquadra  de  pregadores,  quando  a  seu  parecer  só  a  sua 
os  bavia  mister  todos.  D'esta  opinião  era  o  Conde  Simão,  e  todas  as  pes- 
soas de  autoridade  com  quem  communicava.  Porém  elle  se  armou  só 
cjntra  todos,  e  obrigado  do  titulo  recebido  do  Papa,  do  instincto  do  Ceo, 
e  do  mandato  dos  Apóstolos  aflirmava  constantemente,  que  esses  grãos 
de  mostarda  tão  poucos,  e  tão  pequenos  que  queria  semear,  e  derramar 
polo  mundo,  bavião  de  dar  arvores  que  o  cobrissem  todo.  E  sem  mudar 
bum  ponto  de  seu  propósito  foi  acabando  de  compor  a  casa  de  S.  Ro- 
mão em  perfeição  de  Mosteiro,  vestio  os  companheiros  de  mursas,  e 
sobrepellizes  como  elle  usava:  e  logo  mandou-lhes  que  elegessem  entre 
si  Prelado  que  o  fosse  de  todos,  e  do  convento  em  que  estavão.  Porque 
na  peregrinação,  que  imaginava,  não  queria  que  sua  pessoa  ficasse  de 
fora,  antes  pretendia  tomar  pêra  si  a  parte  mais  difficultosa  (exemplo  di- 
gno de  ser  imitado  de  todos  os  que  mandão.)  Affirmão  alguns  escritores, 
quu  foi  sua  tenção  n'este  passo  ent!'ar  por  teriva  de  Mouros  a  pregar  a  fé 
inflammado  em  esperanças  de  ser  3Iartyr  por  Cbristo,  e  com  tal  presup- 
posto  tinha  deixado  crescer  a  barba.  Sahio  canonicamente  eleito  (e  foi 
a  primeira  eleição  d'esta  Ordem)  Frei  Matheus,  homem  de  boas  letras, 
e  idade  crecida,  como  atraz  apontámos,  e  fora  Piior,  antes  de  seguir  a  S. 
Domingos,  da  Igreja  coUegiada  de  S.  Vicente  de  Castras.  Chamou-se  por 


40  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

então  Abbade,  e  foi  o  primeiro,  e  ultimo  Prelado  d'este  título  na  Ordem, 
Porque  logo  traz  elle  se  forão  chamando  Priores.  Esta  eleição  por  ser 
a  primeira  quiz  S.  Domingos  que  se  fizesse  no  Mosteiro  de  Prulliano  em 
dia  fermoso,  que  foi  o  da  gloriosa  Assumpção  de  nossa  Senhora  em  15 
de  Agosto  de  1217. 

Logo  passado  dia  de  nosso  Padre  Santo  Agostinho,  deu  principio  a 
determinada  sementeira  divina  na  fónna  seguinte.  Despachou  sete  compa- 
nheiros á  grande  cidade  de  Paris  cabeça  de  França,  huns  pêra  pregarem, 
outros  pêra  estudarem.  Mandou  hum  pêra  as  terras  vizinhas  deLiraoges,  e 
quatro  pêra  Espanha,  sinatando-lhes  os  Reinos  em  cpie  cada  hum  havia  de 
assistir.  Mas  porque  esta  historia  he  só  do  que  toca  ao  Reino  de  Portu- 
gal, visto  como  todas  as  outras  províncias  tem  seus  Escritores,  deixare- 
mos o  muito  que  fizerão,  e  trabalharão,  e  fructificarão  os  que  forão  a 
França,  pêra  que  o  digão  com  melhor  estilo  seus  naturaes;  e  trataremos 
somente  dos  quatro  a  quem  coube  Espanha.  Aos  quaes  seguiremos  em 
quanto  forem  companheiros,  e  em  quanto  d'elles  se  não  dividir  o  que 
d'esta  Religião  foi  Apostolo  de  Portugal.  Tanto  que  se  apartarem,  segui- 
remos este  somente,  desobrigando-nos  dos  mais,  porque  o  resto  de  Es- 
panha tem  também  seus  Clironistas  particulares,  que  nos  escusão  o  tra; 
balho  de  dar  noticia  d'elles.  Erão  todos  os  quatro  Espanhoes,  E  os  no- 
mes pela  ordem,  e  formalidade  que  os  mais  dos  autores  guardão  em  os 
contar,  erão  Frei  Gomes,  Frei  Miguel  de  Uzero,  Frei  Pedro  de  Madin, 
que  alguns  chamão  Frei  Pedro  de  Madrid  pola  semelhança  do  nome,  e 
Frei  Domingos  o  pequeno.  Não  os  tomou  de  súbito,  nem  desapercebidos 
esta  obediência :  muitas  vezes  os  tinha  o  Santo  prevenido,  e  avisado  de 
sua  determinação,  e  do  que  pretendia,  e  esperava  d'elles :  e  tão  mestres 
os  tinlia  feito  nas  regras  da  verdadeira  resignação,  que  nem  os  que  fi- 
carão se  alegrarão  por  ficarem  em  repouso,  nem  os  inviados  se  sintirão 
vendo-se  obrigados  a  novo  género  de  vida,  e  a  haverem  de  aparecer 
entre  parentes,  e  amigos  em  trajo  pobre,  e  grosseiro,  caminhando  a  pé, 
e  sustentando  a  vida  com  hum  pedaço  de  pão  comprado  com  a  vergonha 
de  o  pedir  de  porta  em  porta.  Assi  se  dividirão  sem  alteração  de  parte  a 
parte,  exceito  aquella  que  era  rezão  causasse  em  gente  unida  em  Christo 
o  apartamento  de  tal  pai,  e  tais  irmãos;  que  de  força  havia  de  arrancar 
lagrimas  significadoras  do  amor  que  os  liava :  e  não  devião  ser  poucas 
as  do  pai,  que  a  todos  tinha  na  alma.  Porém  sendo  as  lagrimas  ordiná- 
rio testemunho  de  tristeza,  aqui  não  havia  senão  júbilos  de  alegria.  Por- 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  41 

que  os  filhos,  como  bons  soldados,  que  confiados  no  valor,  e  bom  juízo 
do  Capitão,  basta  porem-lhe  os  olhos  no  rosto  pêra  correrem  ao  pe- 
rigo, como  a  victoria  certa,  hião  cheios  de  alvoroço  pêra  se  verem  a  bra- 
ços com  os  trabalhos.  E  tal  ficava  o  pai,  a  quem  o  espirito  fazia  crer 
que  não  devia  esperar  menos  daqucllos  filhos,  que  em  Christo  gerara,  e 
em  serviço  do  mesmo  Christo,  e  com  sua  benção  lai-gava  de  seu  bafo, 
do  que  espera  o  lavrador  sisudo,  quando  atrevidamente  despeja  o  cilei- 
ro,  e  lança  á  terra  a  melhor  parte  do  trigo  mais  grado,  e  mais  limpo, 
que  lhe  tem  custado  gotas  de  sangue.  Dos  colloquios  d"esta  despedida, 
que  devião  ser  cheios  de  fogo  do  Ceo,  e  parece  está  pedindo  a  curiosi- 
dade de  quem  lê,  saber  quaes  forão,  nem  os  escritores  antigos  nos  dei- 
xarão lembrança,  nem  a  humildade  de  filho,  e  frieza  de  espirito,  e  bre- 
vidade prometida  nos  consente  fazer  juizo,  pêra  se  quer  pola  obrigação 
de  historiador  darmos  alguma  noticia  delles.  Partidos,  que  forão  come- 
çou também  o  Santo  sua  peregrinação  com  o  rosto  por  então  em  Itália,  e 
Roma,  onde  o  deixaremos  hum  espaço,  por  seguirmos  os  quatro  com- 
panheiros, que  fazião  seu  caminho  apostolicamente,  e  com  boa  diligen- 
cia pêra  as  terras  de  seu  nacimento.  Não  especificão  os  escrUores  que 
lugares  demandarão  primeiro,  nem  onde  se  apartarão,  nem  onde  fizerão 
assento.  Mas  colligindo  a  obra  polo  successo,  entrarão  por  Catalunha, 
pregarão  em  Barcelona,  e  successivamente  em  Çaragoça,  e  passarão  a 
Madrid,  e  em  todos  estes  lugares  fizerão  fruito  favorecidos  de  Deos,  e 
ajudados  dos  homens,  como  a  diante  se  tocará.  Só  Frei  Gomes  estendeo 
mais  sua  jornada,  e  passou  ao  Reino  de  Portugal. 

CAPITULO  IX 

Entra  Frei  Gomes  em  Portugal.  Dá-se  conta  de  quem  era  em  nome, 

cairia,  e  calidades. 

Era  entrado  o  inverno  deste  anno,  em  que  vamos  correndo  de  1217,  quan- 
do Frei  Gomes  entrou  por  terras  de  Portugal.  E  podemos  bem  dizer  que 
com  sua  chegada  anticipou  o  verão  n'este  reino  poios  effeitos  que  d'ella 
seguirão.  Mas  antes  de  passarmos  a  diante,  parece  rezão  darmos  no- 
ticia de  quem  era  por  nação,  e  geração.  He  de  saber,  que  os  autores 
antigos,  de  cujos  escritos  pola  mor  parte  colhemos,  e  vamos  tecendo 


42  LIVUO  I  DA  HISTORIA   DE  S.   DOMINGOS 

esta  historia  todos  sem  exceituar  nenhum,  são  estrangeiros  de  Espa- 
nha, hiins  Franceses,  outros  Ttalianos,  e  d\Hitras  nações,  os  quaes  escre- 
vendo a  vida,  e  feitos  de  Nosso  Padre  S.  Domingos  são  diminutos,  e 
faltos  sobre  maneira  nas  cousas  que  tocão  a  Espanha.  E  não  faltão  ma- 
liciosos, que  o  dão  por  vicio  de  animo  em  alguns,  porque  fazem  juizo  das 
historias  antigas  polo  que  achão  nas  modernas,  escritas  na  idade  de  nos- 
sos pais,  e  nossa:  mas  ho  agravo,  que  se  faz  a  singeleza,  e  bondade 
dos  antigos,  em  quem  se  não  pode  dar  mais  culpa  que  pouco  cuidado, 
e  falta  de  informações.  A  esta  falta  atribuímos  a  pouca  noticia  que  nos 
dão  dos  princípios  d'esta  Ordem  nas  terras  de  Espanha,  e  de  quem  a 
veio  prantar  n'ellas.  E  como  as  mais  das  nações,  a  uso  dos  antigos  Gre- 
gos, tem  por  barbara  toda  a  gente  que  vive  fora  das  raias  de  suas  pro- 
víncias, commetem  outro  erro  intolerável  no  que  escrevem  dos  Espa- 
nhoes,  que  por  latinizarem  os  nomes  dos  homens,  rios,  e  lugares,  humas 
vezes  os  estendem,  outras  os  encurtão,  e  abrevião,  e  em  fim  os  corrom- 
pem de  sorte  que  ficão  quasi  inintelligiveis  até  pêra  os  naturaes.  Quem 
lê  as  Historias  me  escusará  de  apontar  mais  exemplos  que  o  que  temos 
presente  no  nosso  Frei  Gomes,  que  sendo  seu  nome  verdadeiro  Frei 
Sueiro  Gomes,  huns  lhe  chamão  Gomecio,  outros  Gnomenicio,  e  os  que 
menos  errão  Frei  Gomes,  deixando  o  nome  próprio  polo  patronímico. 
Mas  o  de  que  mais  me  queixo  he  que  sendo  Portuguez  tão  manifesta- 
mente, que  pêra  todo  bom  juizo  he  matéria  sem  duvida,  não  ha  nenhum 
dos  antigos  que  o  diga:  e  os  escritores  modernos,  e  visinhos  nossos,  que 
são  os  de  Gastella,  e  Aragão,  conhecendo,  como  de  força  devem  conhe- 
cer, e  reconhecer  que  este  nome,  Sueiro  Gomes,  assi  junto  não  no  hou- 
ve nunca  dos  montes  Pireneos  pêra  fora,  com  tudo  não  lhe  dão  terra 
nem  nacimenío,  dando-o  a  todos  os  mais  companheiros  do  nosso  Padre, 
(tiramos  d'este  numero  só  o  senhor  Bispo  de  Monopoli,  que  na  sua  quin- 
ta Centuaria,  que  agora  ultimamente  compoz,  o  faz  Portuguez).  (*)  E  o  pior 
he  que  não  só  lhe  negão  o  nome  de  Portuguez,  mas  nem  Espanhol  o 
fazem.  D'onde  nace  havermo-nos  por  obrigados  a  descubrir  com  hum 
breve  discurso  a  verdade  de  quem  era :  que  sendo,  como  he,  pêra  Por- 
tugal de  grande  gloria,  não  renderá  menos  lustre  a  todo  o  resto  de  Es- 
panha ;  que  assi  como  o  instituidor  da  Ordem  S.  Domingos  naceo  em 
Gastella,  seja  nado,  e  criado  dentro  de  Espanha,  e  em  Portugal  quem 

(.)  Cent.  li.  l.  2.  c.  32. 


PARTICULAR   EO  REINO  DE  PORTUGAL  43 

a  pregou,  e  fondou,  e  mais  dilatou  por  toda  ella,  que  foi  o  nosso  Frei 
Sueiro  Gomes. 

He  pois  cousa  certa,  que  entre  os  estrangeiros,  a  saljer :  Franceses, 
Italianos,  e  AUemãcs,  e  quasi  todas  as  outras  nações,  passa  em  costume 
ordinário  nomearom-se  os  homens  poios  nomes  patronímicos,  quero  dizer 
sobrenomes,  ou  apellidos  de  pais  ou  famílias,  deixando  os  próprios  que 
dizemos  nomes  da  pia,  como  por  exemplo,  a  S.  João  Chrysostomo  chamão  S. 
Chrysostomo,  a  S.  Pedro  Gonçalves  Telmo,  S.  Telmo,  a  S.  João  Boaventura, 
S.Boaventura.  Eisto  ás  vezes  he  causa  de  grandes  perpolexidades  nas  Histo- 
rias, como  mostraremos  em  alguns  de  Espanha.  Porque  sendo  assi  que 
o  Arcebispo  D.  Rodrigo  (*)  escritor  Espanhol  antíquissimo,  e  de  muito  cre- 
dito, chama  Inhigo  ao  Capitão  geral  que  El-Rei  D.  Rodrigo  ultimo  dos 
Godos  nomeou  pcra  resistir  aos  Mouros,  quando  conquistarão  Espanha, 
Razzis  Mouro,  eChronista  dos  mesmos  lhe  dá  o  nome  de  Sancho  (**).  Po 
onde  ficava  em  duvida,  e  risco  a  verdade,  senos  não  acudira  Luiz  dei  Mar 
mol  (***)  que  os  concerta,  referido  por  hum  bom  autor  moderno,  e  diz  que 
se  chamava  Inhigo  Sanches,  servindo-se  o  Christão  do  nome  próprio,  e 
o  Mouro  só  do  patronímico.  Isto  mesmo  se  nos  offerece  em  Frei  Sueiro 
Gomes.  Porque  dos  estranhos  huns  lhe  chamão  Gomecio  ('*'*)'  outros  Sue- 
rio,  e  dos  Espanhues  o  Padre  Frei  Fernando  de  Castilho  huma  vez  o  no- 
mea  pc^^  Frei  Gomes,  outra  por  Frei  Sueiro.  E  o  Santo  Frei  Raymun- 
do,  que  foi  seu  súbdito,  como  veremos  adiante,  lhe  chama  Gomecio,  cha- 
mando-lhe  D.  Lucas  Bispo  de  Tuy,  que  foi  seu  contemporâneo,  Suerio. 
E  na  verdade  tinha  ambos  os  nomes,  como  se  collige  d^estes  Autores,  e 
da  rezão  dos  tempos,  e  mais  claramente  de  huma  letra  do  livro  anti- 
quíssimo dos  Óbitos  (*****),  e  Noas  do  real  Mosteiro  de  S.Yicente  de  Lisboa, 
onde  era  costume  lançarem-se  os  nomes  das  pessoas  de  conta  que  fal- 
lecião,  e  diz  assi :  Sexto  Calendas  Maij  ohijt  Suerius  Gomelij  quoudam 
Prior  Prcedicatorum.  E  he  o  primeiro  Frade  d'esia  Ordem  que  no  livro 
anda,  havendo  ao  diante  outros,  e  outras  conjeituras  na  calidade,  e  anti- 
guidade  do  livro,  e  da  casa,  que  provão  bastantemente  ser  este  o  que 
dizemos. 

Que  este  nome  assi  junto  seja  Portuguez,  não  de  outra  Província, 

{*)  Dom  Rofirigo  Arce!ii:-po  1.  3.  c.  18. 

(••)  Razzis  Mouro  na  lli?t.  de  K?paiiha. 

(••.)  Luys  (lei  fllarmol.  pag.  1.  1.  ?.  c    10.  Fr.  Bcrn.  de  Brito,  Munar.  Lus,  p.  2.  1   7.  c.  2. 

(.*.*)  Casti.  p.  3.  1.  1.  c.  m.  Idtm.  p.   I.  I.  2   c.  t. 

{.»*.»J  Lib.  dos  Obilos  de  S.  \icenle  de  Lisb. 


44  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

nem  fora  de  Espanha,  noin  de  dentro  d"ella,  senão  de  Portugal,  mos- 
tral-o-hemos  logo.  Primeiramente  o  não  ser  Francez,  nem  Italiano,  nem 
d'outra  terra  mais  alongada,  o  mesmo  nome  o  declara  sem  mais  prova.  Por- 
que, ainda  que  as  Historias  nos  oíferecem  na  Noruegía,  ou  Noruega  hum  Rei 
do  nome  Suero,  que  faleceo  em  Bergas  anno  de  1203  e  homens  par- 
ticulares chamados  Suenos,  que  trazem  pouca  differença  (nomes  que  po- 
dião  passar  a  Espanha  com  os  Godos,  e  outros  moradores  do  Norte 
que  a  ella  vierão)  com  tudo  a  junta  de  Gomes  nos  tira  a  duvida.  Só  fica 
pêra  discutir  se  seria  de  outra  Província  dos  Pireneos  pêra  dentro,  que 
não  fosse  Portugal.  E  pêra  não  ser  Aragonez,  Catalão,  Valenciano,  ou 
Navarro,  basta  que  pêra-  a  Coroa  de  Aragão,  e  Reino  de  Navarra  he  o 
nome  totalmente  estranho.  Porque  ainda  que  me  possão  dar  n'ella  algum 
Gomes  (e  muitos  Gemes  que  todavia  fazem  dilTerenca  grande)  não  ha 
nenhum  Sueiro.  Que  não  seja  Castelhano  mostra-se  com  grande  eviden- 
cia. Porque  sendo,  como  foi,  primeiro  Provincial  de  Espanha,  e  nomea- 
do por  S.  Domingos,  como  pessoa  de  excellentes  virtudes,  e  por  tal  es- 
timado de  El-Rei  D.  Fernando  o  Santo  de  Castella,  e  dos  Reis  de  Ara- 
gão, e  Portugal,  como  veremos  ao  diante;  não  se  pode  duvidar  que,  se 
fora  Castelhano,  ou  Aragonez,  Catalão,  Valenciano,  ou  Navarro,  se  fal- 
tara (como  faltou)  quem  o  dissera  entre  os  antigos,  que  aos  mais  com- 
panheiros de  nosso  Padre  derão  pátria,  e  nacimento,  não  faltara  entre 
os  escritores  modernos  Castelhanos,  e  Aragonezes:  dos  cjuaes  he  bem  de 
crer  que  não  quereria  tirar  esta  honra  a  suas  Províncias  mormente  tendo 
pêra  isso,  e  achando  como  de  casa  hum  tão  efficaz,  e  forçoso  fundamen- 
to, como  he  a  formalidade  do  nome,  pêra  o  poderem  polo  menos  natu- 
ralizar em  Castella,  onde  não  faltão  inda  hoje  alguns  Gomes,  e  Sueyros, 
se  ao  nome  se  ajuntcára  qualquer  outra  leve  congruência.  D'onde  se  in- 
fere com  certeza,  não  só  probabilidade,  que  sendo,  como  he,  o  nome  de  Frei 
Sueiro  Gomez  meramente  Espanhol,  e  não  o  podendo  fazer  seu  Aragão, 
Catalunha,  Valença  nem  Navarra  nem  se  atrevendo  a  tomarnol-o  Castella, 
com  quem  contamos  o  reino  deLeão,  e  Galiza,  não  lhe  podemos  dar  ou- 
tra terra,  d'onde  seja  natural,  se  não  he  Portugal. 

E  não  obsta  poder-se  dizer,  que  pois  nenhum  dos  Autores  antigos 
nem  modernos  o  faz  Espanhol,  conseguintemente  fica  provado  não  ser 
Portuguez,  vista  principalmente  a  particularidade  com  que  nomeão  todos 
os  que  tinhão  por  Espanhces  na  companhia  de  S.  Domingos.  Porque 
antes  esta  rezão  tacitamente  faz  em  nosso  favor,  se  bem  nas  apparencias 


PARTICULAR    DO    REINO  DE  PORTUGAL  45 

nos  encontra.  E  digo  que  faz  em  nosso  favor,  porque  despois  que  passa- 
rão aquelles  antigos  pais  da  Historia  Gregos,  e  Romanos,  gente  consu- 
mada nas  artes  necessárias  pêra  bem  escrever :  em  quasi  todos,  os  que 
após  elles  seguirão,  faltou  aquella  pontualidade,  e  rigor  de  fallar  com 
propriedade  em  muitas  cousas,  e  com  verdadeiro  conhecimento  da  Geo- 
grafia, e  Topografia.  Assi  acharemos  nos  mais  que  escrevem  em  vul- 
gar, quando  tralão  de  Portugal,  e  do  resto  de  Espanha:  que  assi  falão 
em  Portugueses  como  se  forão  gente,  e  província  de  França,  ou  Allema- 
nha,  e  não  comprendida  nos  Umites  de  Espanha  dizendo:  Juntóse  el 
armada  de  Portugal  con  la  de  Espanha.  Ou  dizendo :  Quatro  soldados 
Portugueses  y  seis  Espaiioles.  A  este  modo  fíilla  Santo  Antonino  na  vida 
de  nosso  Padre  f).  He  Italiano,  e  escreve  em  lingua  Latina.  Quando  trata 
dos  Mosteiros  de  Espanha  diz :  In  Hispânia  vnum  Monasterium  Monja- 
Hum,  in  Castella  alterum,  quod  est  CalarogcB,  in  Portugália  unum.  E  CO- 
mo  assi  seja  quando  os  Autores  estranhos  não  fazem  Espanhol  a  Frei 
Sueiro,  nem  por  isso  lhe  tirão  poder  ser  Portuguez.  E  ha  se  de  enten- 
der, que  não  chegando  a  sua  noticia  ser  Portuguez,  todavia  alcançarão 
não  ser  das  mesmas  terras  d'onde  erão  naturaes  os  mais  companhei- 
ros que  por  Espanhoes  apontão.  De  sorte  que  no  seu  modo  de  falar 
podia  ser  Portuguez  pêra  nós,  e  não  ser  Espanhol  pêra  elles. 

Mas  se  alguém  me  perguntar,  porque  me  afadigo  em  provar  o  que 
ninguém  me  nega,  nem  pôde  negar,  respondo  com  duas  rezões.  Primei- 
ra, por  me  parecer  que  se  não  podem  salvar  de  culpa  os  que  escrevem 
d'esta  ordem  dentro  dos  limites  de  Espanha,  pois  sendo  sabida,  e  ir- 
refragavelmente  da  mesma  terra  o  nome  de  Sueiro  :  e  sendo  grande  glo- 
ria pêra  Espanha  saber-se  que  foi  natural  d'ella  o  primeiro  homem  que 
lhe  trouxe  a  pranta  de  huma  Ordem  que  tanto  a  tem  honrado,  e  que  foi 
primeiro  Provincial  e  Pai  seu;  antes  quizerão  privar-se  d^essa  honra, 
dissimulando  seu  nacimento,  que  declarando-o  confessal-o  por  Portu- 
guez. A  segunda  rezão  he,  que  como  nos  fazemos  autores  de  opinião  que 
por  si  não  tem  outro,  e  a  alma  da  historia  he  a  verdade,  e  certeza  do 
que  se  escreve,  convém  por  honra  do  oíTicio,  que  indignamente  nos  po- 
sérão  ás  costas,  corroboral-a  de  sorte,  que  fique  livre  de  todo  o  escrúpulo, 
não  só  deduvida,ainda  que  ninguém  nos  encontre,  nem  contradiga.  E  por  tan- 
to diremos  mais  alguma  cousa  em  confirmação  d'ella  no  Capitulo  seguinte. 

(♦)  r.  3.  t.  23.  c.  13. 


46  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 


CAPITULO  X 

Confinna-se  a  verdade  de  Frei  Siieiro  Gomes  ser  Portuguez :  com 
algumas  rezões,  com  as  quaes  se  descobre  que  também  era  nobre, 
e  letrado. 

A  calidade  do  nome  prova  com  grande  evidencia  em  Frei  Siieiro 
a  naUireza  de  Portugal.  Porque  era  tão  corrente,  e  costumado  n'este  Rei- 
no o  nome  de  Suciro,  poios  anrios  em  que  levamos  esta  Historia,  co- 
mo hoje  he  o  de  António  em  Lisboa,  e  o  de  Gonçalo  em  entre  Dou- 
ro, e  Minho.  E  não  duvidará  d^isto  quem  lèr  o  livro  das  linliagens  an- 
tigas, composto  polo  Conde  D.  Pedro  filho  de  El-Rei  D.  Diniz:  no  qual 
encontramos  a  cada  passo  (*)  com  o  nome  Sueiro  nas  famílias  mais  no- 
bres, hora  em  lugar  de  próprio,  hora  hum  pouco  disfarçado,  e  tr<ansfor- 
mado  de  Saeiro  em  Soares,  em  lugar  de  patronímico,  segundo  o  costu- 
me antigo  de  todas  as  nações,  que  era  tomar  o  filho  pêra  sobrenome  o 
nome  do  pai,  e  por  elle  se  dar  a  conhecer.  He  cousa  tão  notória  que  te- 
nho por  escusado  trazer  os  lugares  estendidanienle.  Apontados  vão  na 
margem;  quem  os  buscar  achará  outros  muitos.  O  que  não  encontramos 
em  muitas  gerações  dos  Reinos  de  Caslella,  que  com  cuidado  buscámos, 
antes  he  cousa  tão  rara  n'elíes,  que  alguns  Sueiros,  que  achamos,  pare- 
cem ser  por  descendência,  ou  communicação  d'este  Reino:  como  he  hum 
Sueyro  de  Aguilar  nos  primeiros  fundadores  da  casa  de  S.  Romão,  O  qual 
era  filho  de  D.  Gonçaleanes  d'Aguiar,  que  de  Portugal  passou  a  servir 
a  El-Rei  D.  Fernando  o  Santo  deCastella.  E  em  toda  a  casa  de  Agui!ar 
não  ha  outro  Sueyro.  Na  casa  deQuinhones  se  acha  hum  Suer  Peres,  que 
vivia  poios  annos  do  Senhor  de  1351  e  1333,  e  hum  Sueiro  de  Quinho- 
nes  bisneto  deste.  Esta  multiplicação  de  Sueiros,  que  temos  mostrado 
nas  famílias  nobres  de  Portugal,  adiamos  também  nas  plebeias,  (como 
sempre  o  povo  se  affciçoa  ao  que  vê  estimado  nos  nobrcsj,  e  parecerá 
por  algumas  escrituras  d\aquolles  tempos,  que  a  outro  propósito  have- 
mos de  trazer  ao  diante,  julgando-as  no  presente  por  surperfluas.  Mas 
deixando  a  rezão  do  nome,  passaremos  a  outras  mais  sustanciaes,  que 
só  por  si  nos  fazem  o  homem  Porlugnez,  ainda  que  o  nome  fora  mani- 

(•)  T.  IG.  '21.  22  T.;.  30.  íl.  o.  4i.  G:;.  cg.  G7.  68.  71.  li. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  47 

festamente  estranho.  E  seja  a  primeira,  que  lanlo  que  Frei  Siieiro  en- 
trou em  Portugal,  e  teve  companheiros,  e  seguidores  de  sua  doutrina,  o 
que  foi  logo  despois  de  sua  cliegada,  c  antes  de  ser  nomeado  por  Pro- 
vincial de  Espanlia,  logo  alcançou  licença  dos  Prelados  do  Reino  pêra 
pregar  em  suas  diocesis,  como  se  verá  de  huma  do  Bispo  de  Coimbra 
D.  Pedro(*),  que  originalmente  veio  a  nossas  mãos,  c  ao  diante  irátresla- 
dada  em  outro  propósito,  o  qual  he  de  crer  se  lhe  não  concedera  tão 
facilmente,  se  não  fora  conhecido  por  natural  emlingoa,  cnome.  Confir- 
ma-se  isto  com  o  que  conta  Frei  Marcos  (**)  na  Chronica  dos  Menores,  que 
entrando  no  mesmo  tempo  n'este  Reino  dous  companheiros  do  glorioso 
Patriarcha  S.Francisco,  que  forão  os  Santos  Frei  Zacharias,  eFrei  Gual- 
ter,  se  acharão  mui  estranhos,  mal  recebidos,  e  pior  ouvidos,  só  por  es- 
trangeiros, e  pola  lingoa  estranha  que  falavão.  E  por  essa  rezão  padece- 
rão, pêra  mais  merecimento  com  Deos,  muitos  trabalhos  em  sua  entra- 
da. E  claro  está  que  sem  intervir  milagre  mal  poderia  pregar,  e  ser  en- 
tendido entre  gente  rude,  e  plebea,  quem  se  não  declarasse  com  a  lin- 
goagem  da  terra,  como  fazia  Frei  Sueiro,  que  por  isso  sua  douti-ina  fru- 
ctificou  tanto,  que  em  breves  dias  teve  Frades  para  povoar  conventos.  E 
creceo  tanto  em  reputação  no  Reino,  (que  he  o  segundo  ponto  de  sustan- 
cia  dos  acima  oíTerecidos),  que  achamos  seu  nome  em  autos  públicos  dos 
Reis,  e entre  os  grandes  d'elle:  cousa  que  não  somente  ocalifica  porna- 
tural,  senão  também  por  nobre.  E  mostrado  isto,  supérfluas  ficão  todas 
as  mais  provas. 

Mostral-o-hemos  por  duas  escrituras,  cujos  originaes  temos  na  torre 
do  tombo,  (que  é  o  Archivo  real  das  memorias  antigas)  (***),  das  quaes  dare- 
mos ao  diante  tresladados  algims  pedaços  a  outro  propósito:  contém  hu- 
ma d'ellas  certa  composição  que  El-Rei  D.  Sancho  lí  chamado  o  Capei- 
lo  fez  com  suas  tias  D.  Tareja,  e  D.  Sancha,  e  D.  Branca,  sobre  huma 
contenda  que  havia  muitos  annos  durava,  e  fora  causa  de  grandes  des- 
gostos entre  El-Rei  D.  AíTonso  II  seu  pai,  e  estas  Infantes,  da  qual  ao 
diante  será  forçado  darmos  mais  larga  noticia.  N'esta  escritura  achamos 
assinado  o  Arcebispo  de  Braga,  que  então,  e  sempre  foi  o  primeiro  pre- 
lado do  Reino,  ecom  elle  Frei  Sueiro  coro  estas  palavras;  Suerius  Prior 
Fratnm  Proedicatorum  in  Hispânia.  A  outra  he  hum  compromisso  que 

{*]  C.  16. 

('.)  fr.  Jlarcos  cie  Lisboa  p.  1.  1.  1.  c.  Í8. 


48  LIVUO  I  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

passou  entre  o  mesmo  Rei,  e  o  Arcebispo  de  Braga  D.  Estevão  Soares 
da  Silva  em  matéria  de  perdas,  e  danos,  de  que  aquella  Igreja  preten- 
dia satisfação  contra  El-Rei  D.  AÍTonso  seu  pai,  e  de  conformidade  fizerão 
juiz  louvado  de  toda  a  causa  a  FreiSueiro  em  primeiro  lugar,  e  elle  os 
compoz.  E  bem  se  deixa  entender  que  a  rezão  de  natural  obrigou  a  El- 
Rei,  e  ao  Arcebispo.  Porque  não  pudera  um  homem  estrangeiro  igno- 
rante nos  estilos  do  Reino,  nas  valias,  e  estimações  das  cousas,  nas  moe- 
das, nas  compras,  e  vendas  ser  buscado  pêra  tal  negocio,  nem  elle  acei- 
tal-o,  requerendo-se  homem  mui  versado  em  tudo.  D"onde  fica  claro  que 
não  somente  era  Portuguez,  do  que  já  ninguém  pode  duvidar,  mas  que 
também  era  muito  nobre  em  sangue,  e  homem  de  letras.  Porque  todas 
estas  partes  era  rezão  concorressem  em  juiz  de  taes  pessoas,  mormente 
sendo  entrado  de  poucos  annos  no  Reino.  E  não  he  possivel  que  só  sua 
virtude,  por  grande  que  era  o  levantasse  a  tanto,  se  não  fora  acompa- 
nhada, e  favorecida  de  dous  tão  poderosos  adjuntos;  como  são  sciencia, 
e  nobreza. 

Ajuda  esta  opinião  acharmo-lo  nomeado  em  todas  as  escrituras  antigas 
com  o  titulo  de  Dom,  contra  o  costume  dos  nossos  Frades,  ainda  que  Pro- 
vinciaeSj-e  Geracs  fossem.  Assi  o  nomea  El-Rei  D.  Fernando  o  Santo  de 
Castella,  em  huma  sua  provisão  que  adiante  tresladaremos,  e  o  Bispo  de 
Coimbra  na  licença  que  lhe  dá  pêra  pregar,  e  o  que  he  ma/s  nas  escri- 
turas do  compromisso  que  passou  diante  dei  Rei  D.  Sancho  está  com  o 
mesmo  titulo  nomeado:  o  qual  ou  pertencendo-lhe  por  rezão  de  pai,  e 
avós,  ou  de  alguma  honra,  ou  prelada  que  antes  de  religioso  possuísse, 
não  se  communicava  n'aquelle  tempo  senão  a  pessoas  mui  aveníajadas 
em  merecimentos  das  ordinárias.  Que  lhe  pertencesse  por  rezão  de  san- 
gue, e  parentes  se  infere  bem  do  livro  do  Conde  D.  Pedro  (*)  em  muitos 
titulos  de  familias  illustres,  a  que  dão  principio  homens  desse  nome,  ora 
em  próprio,  ora  em  palronimico.  Como  he  no  titulo  21,  onde  diz  as- 
si: Dona  Marinha  Gomez  filhn  de  dom  Gomes  Mendes  Gedeão,  e  de  dona 
Mor  Paes  filha  de  dom  Paio  Soares,  neta  de  dom  Sueijro  Paes.  E  no  mes- 
mo titulo,  quando  nomea  os  que  acompanharão  a  Gonçalo  Mendes  de 
Amaya  o  hdador,  aponta  os  seguintes:  Dom  Soeyro  Aires  de  Valadares, 
dom  Nuno  Soares,  dom  Soeyro  Paes,  dom  Soeyro  Viegas  filho  do  bom 
Egas  Monis  de  riba  de  Douro.  E  no  titulo  sessenta,  e  dous  temos  hum 
periodo  que  diz:  E  doiía  Marinha  Martins  irmam  da  dita  dona  Sancha, 

(*)  Nobiliário  do  Coode  Dom  Pedro. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  49 

/oí  casada  com  Siieyreanes  de  Pauka.e  fez  em  ella  João  Soares  de  Pauha 
e  Gomes  Soares:  e  dona  Constança  Soares  que  fui  Abhadessa  de  Lorvão, 
e  outro  que  ouve  Uúrtie  Paij  Soares  de  Pauha,  e  Fei  Vasco  Soares  que  foi 
frade  Freijador.  E  que  lhe  pudesse  pertencer  o  Dom  por  rczíto  de  Prela- 
da, ou  outra  grandeza  semelhante,  Serafmo  Razzi  (*)  autor  Italiano  no-ío 
persuade,  dizendo  que  deixou  prenda  grande  no  mundo,  p[)r  seguir  a 
humildade  da  Religião.  E  bem  podíamos  presumir  sem  temeridade  que 
seria  o  nosso  Frei  Sueyro  filko  ou  neto  d'este  Sueyreanes,  coUegindo-o 
polo  filho  sabido  Frei  Vasco,  (como  he  ordinário  obrigar  o  parentesco  a 
muitos  a  seguirem  a  Relegião.)  A  S.  Bernardo  não  ficou  irmão  no  mun- 
do tendo  muitos.  S.  Domingos  de  dous  que  teve,  levou  hum  após  si. 
Não  ignoramos  que  o,  Dom,  podia  ser  honra  anexa  Cónego  regrante 
usada  inda  hoje.  Mas  se  por  esta  rezão  lhe  tocara,  tanto  que  mudou  o 
habito,  devia  mudar  as  honras  d"elle:  e  as  escrituras  que  apontamos  são 
todas  feitas  alguns  annos  despois  de  deixado  o  habito  de  Cónego,  e  tro- 
cado no  que  hoje  usamos. 

Ficão-nos  por  mostrar  suas  letras.  E  como  em  cousas  tão  antigas,  e 
faltas  de  luz  de  historia,  he  forçado  governar  por  conjeituras,  basta  pêra 
darmos  por  certo  que  foi  letrado,  sabermos  alem  do  que  Serafmo  Razzi 
conta  delle,  que  o  escolheo  N.  Padre  pêra  fundar  a  Ordem  era  sua  pá- 
tria Espanha,  e  por  Prelado  dos  que  a  isso  mandava,  sendo  Espanhoes, 
e  pessoas  de  muita  conta.  E  como  nos  consta  que  alguns  dos  companhei- 
ros erão  letrados,  e  que  a  Paris  inviou  a  Frei  Matheus  que  o  era,  bem 
se  segue  que  não  mandaria  a  sua  Pátria  homem  idiota.  Assi  lhe  devemos 
por  todas  as  vias,  e  daremos  d"aqui  em  diante  o  nome  de  D.  Frei  Suei- 
ro  Gomes. 

CAPITULO  XI 

Dd-se  conta  do  estado,  e  governo  do  Reino  de  Portugal  na  chegada  de  D. 
Frei  Sueiro  Gomes:  e  do  que  fez  entrando,   e  como  deu  principio  ao 
primeiro   Convento  que  hou^e  em  ioda  Espunha  da  ordem  dos  Pregado- 
res. 

Inverno  era  escuro,  tempestuoso,  e  triste,  como  atras  começamos  a 
dizer,  quando  D.  Frei  Sueiro  entrava  polas  portas  de  sua  pátria,  não  só 
na  sazão,  e  tempo  do  anno,  mas  muito  mais  nas  vidas,  c  consciências 

(•)  Serapli.  Razzi  na  rida  de  S.  Doininff. 

VOí..   l  ^  k 


50  LlVlSO  1  DA  iUSTOlUA  D!-:  S.   DOMINGOS 

de  ijuasi  lodos  os  moradores  d"elia.  Reinava  em  Portugal  D.  Afforiso  II, 
que  cliamarão  o  gotdo.  Deiciíara-lhc  sou  pai  Eí-Hei  D.  Sancho  pi'imeiro 
o  Reino  acreceniado  de  terras,  floreceníe  de  paz,  e  a  casa  real  clieia  de 
prata,  e  ouro,  á  custa  de  seu  Ijraro,  e  sangue,  e  de  muitas  victorias  al- 
cançadas dos  Mouros,  c  parecendo-lhe  rezão  deixar  bem  herdadas  n'elle 
três  filhas  suas,  Tareja,  Sancha,  e  Branca,  ou  fiando  no  muito  que  tinha 
trabalhado  pêra  poder  partir  largo,  ou  desconfiando  da  condição  do  fi- 
lho que  já  devia  ter  conhecido:  repartira  entre  todas  três  muito  dinhei- 
ro, muito  ouro,  e  prata  lavrada,  e  em  particular  deixara  a  D.  Tareja  a 
Yiila  de  Montemor  o  velho,  (*j  o  a  D.  Sancha  a  de  Alanquer,  (tanto  ha  que 
esta  Yilla  de  Alanquer  começou  a  andar  bem  aforada,  e  pertencer  a  gen- 
te real),  e  dera-lhes  a  posse  dos  lugares  em  vida.  Tanto  qu)  o  filho  lhe 
vio  osollios  cerrados,  protendeo  fazer-se  senlior  das  terras.  Poem-seem 
ai'n:«as,  revolve  o  Reino.  Tinhão  as  Infantes  brio,  e  valor  de  quem  erão: 
não  lhe  faltavão  vaiedoros  na  teira,  c  nos  Reinos  visinlios,  defendião  seu 
partido  animosamenie.  Eslc  foi  o  principio  do  reinado  d"El-Rei  D.  Affon- 
so,  c  cessando  as  armas  entrarão  em  lugar  d"ellas  litígios,  ódios,  divi- 
sões, e  longos  debates  de  escomunhões,  e  ínterdilos,  com  (lue  o  Papa 
acudio  em  favor  das  Infantes,  que  pedião  termos  judiciais  contra  a  for- 
ça que  por  muitas  vias  se  lhes  fazia.  E  quando  pareceo  que  se  quietava 
a  tempestade  com  esperanças  de  concertos  que  se  tralavão,  começaifio 
novas  contendas  occasionadas  da  liberdade  da  guerra,  e  divisões  passa- 
das, (que  tacs  são  os  fruitos  da  discórdia),  queixando-se  o  Arcebispo  de 
Ri';i(ra  D.  Estevão  Soares  da  Silva  em  seu  nome,  e  do  Clero  do  Reino, 
de  grandes  perdas  dadas  ás  Igrejas  em  geral,  e  particular,  forças  feitas 
nas  rendas,  c  património  ecclesiasiico,  roubos  de  gados,  e  dinheiros,  que- 
brantamentos de  foros,  e  privilégios,  e  izcnções  concedidas  pola  supre- 
ma Cadeira.  E  dilatando  El-Rei  a  satisfação,  ou  por  conselho  de  gente 
interessada,  ou  por  entender  que  a  não  devia,  fulminou  o  Arcebispo  no- 
vas escomunhões  contra  os  ministros  Reais,  e  despois  agravando  as  cen- 
suras veio  apor  interdito  em  todas  as  terras  do  Reino,  salvo  as  que  erão 
da  obediência  das  Infantes. 

N^este  estado  estava  Portugal  quasi  semelhante  ao  dos  Mouros  seus  vi- 
sinhos  em  não  ter  Missa,  nem  officio  Divino,  nem  som  de  sinos,  ou  ou- 
tra solenidade  ecclesiastica,  (infelice,  e  calamitoso  estado),  quando  a  mi- 
sericórdia Divina,  como  tem  por  objeito  a  maior  miséria,  e  acode  sem- 

(']  Duaitc  Kuiic;:  de  Lir.o  na  vida  M  Rey  Duui  Sunciíu  priíiieiío. 


PAr.TICLLAU  DO  r,El?xO  BE  POIITLCAL  5  1 

pre  aos  maiores  desamparos,  ordenou  que  erjírasse  pêra  remédio  uni- 
versa!,  e  inslrumento  de  paz,  c  nova  primavera  em  vidas,  e  almas  o  em- 
baixador da  Rova  Religião  D.  Frei  Siieiro  Gomes.  Reina  no  commnm  da 
gente  Portugueza  luima  aiTeieão  a  seu  natural  maior  com  grande  aventa- 
gem,  que  em  todas  as  outras  nacíles,  ou  porque  a  i)'.)M'lade  da  terra  o 
merece:  ou  po!a  condição  branda  dos  homens.  Vinlia  D.  Frei  Sueiro  al- 
voroçado pêra  ver  sua  terra,  não  por  matar  saudades  de  muitos  annos 
de  ausência  de  parentes,  e  amigos;  que  estas  tinha  a  Deos  sacrificadas, 
qe.ando  deixou  o  m.undo,  mas  pêra  enriquecer  as  almas  com  a  doutrina 
de  seu  grande  Mestre.  Considerava  o  m.uiío  fruito  que  com  el!a  deixava 
feito  por  Catalunha,  e  Aragão,  nas  Cidades  de  Barcelona,  e  Çarngpça,  o 
nas  que  ouvirão  sua  pregação  porCastella,  sendo  recebida  em  fodàs  com 
proveito  das  abnas,  e  espertando  Deos  por  seu  meio,  amor  q,o  Cco,  e  da 
salvação:  fazia  conta,  (e  parecia-lhe  que  a  não  lançava  errada),  que  não 
fructificaria  menos,  semeada  nos  corações  Porluguezes,  devotos  por  na- 
tureza, e  dispostos  sempre  pêra  emprezas  de  fim  honrado,  lúa  quando 
chegou,  o  entendeo  nos  primeiros  togares  o  que  passava  cm  todos  es 
mais,  ({uais  estavão  as  cabeças,  quais  os  membros,  fácil  lie  de  crer  a  dor 
que  sua  alma  receberia.  Porém,  como  em  natural,  se  bem  era  grande  a 
magoa  do  que  ouvia,  não  seria  menos  a  compaixão,  e  o  desejo  que  afor- 
ra da  caridade  acenderia  de  remediar  tamanhos  males.  E  por  muito  qiio 
o  embaraçava  o  enemigo  commum  oíTerecendo-liie  montes  de  diíliculda- 
des  pêra  o  acovordar:  a  necessidade  da  terra  a  quem  devia  o  sargue,  ií 
a  criação,  a  lenibrança  de  quem  o  mandara,  e  do  a  que  vinha  lhe  davão 
animo  pêra  vencer  tudo,  e  passar  adiante.  E  determinado  em  não  largar 
o  arado  que  huma  vez  tomara  na  mão,  nem  somente  olhar  pêra  Irás,  só 
tratava  consigo  que  lugar  deoiandaria  prim.eiro,  porque  o  estado  das  cou- 
sas fazia  vacillar  os  conselhos.  A  tenção  que  de  longe  trazia,  era  não  bus- 
car Rei,  nem  corte,  onde  poderia  encontrar  amigos,  e  conhecidos,  e  por 
ventura  parentes,  (que  mal,  e  com  grande  risco  torna  ao  mar,  e  ondas 
das  cortes  quem  huma  vez  lhe  pode,  ou  soube  fugir,  fosse  aças;),  ou  por 
consí-lliO.)  Determinava  entrar  em  lugares  grandes,  onde  reina  a  so])er- 
ba,  anda  sem  freio  a  cobiça,  a  abundância,  e  ociosidade  trazem  todos  os 
vicios  espertos  senb.ores  das  almas.  A  tais  lugares,  e  conira  tais  mons- 
tros fazia  conta  que  era  mandado.  Agora  vê,  que  estando  todo  o  mal  na 
cabeça,  parecia  tempo  perdido  aplicar  medicamentos  a  outros  memliros, 
e  que  bem  poderia  npparecer  diante  do  Rei,  e  dos  va/idos  quem  fosse 


§2  LIVRO  l  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

armado  ãô  linma  firme  determinação  de  não  querer,  nem  dizer  outra 
cousa,  senão  Imm,  non  licet  libi:  como  outro  Baulista.  Levava-se  d'estc 
pensamento,  e  quasi  ficava  vencido  d'elle:  mas  logo  tornando  sobre  si, 
e  temendo-se  d'elle  como  de  fina  tentação,  em  fim  assentou  em  ir  direi- 
to á  villa  de  Alanquer  que  só  estava  desassombrada  de  interditos,  e  da- 
li proceder  segundo  aconselhasse  o  tempo.  E  assim  o  fez. 

Como  Ília  magoado  de  tanta  Igreja  fechada,  e  tanto  silencio,  e  triste- 
za cimio  até  alli  achara  em  todas,  alegrou  seu  animo  com  a  vista  de  hum 
higar,  que  só  lhe  parecia  gozar  de  Sol,  e  luz.  Começou  logo  a  dar  ale- 
gres novas  ao  povo  da  nova  Ordem  que  era  vinda  ao  mundo  a  pregar 
verdades,  e  publicar  desenganos,  e  por  isso  tinha  titulo  de  Ordem  de 
Pregadores,  da  qual  elle  vinha  por  messageiro  a  Portugal  pêra  grande 
bem  das  almas,  o  consciências  de  todos.  A  novidade  d'esta  lingoagem, 
o  geito,  e  composição  estranha  do  homem,  e  a  lingoa  Portugueza  gran- 
gearão  graça,  ajuntarão-lhe  ouvintes.  Pregava  cada  dia  nas  Igrejas,  e  pra- 
ças. Dezia-lhes  entre  outras  cousas,  que  se  bem  tinhão  o  Ueino  livre,  á 
custa  do  muito  sangue,  do  injusto  senhorio  dos  Mouros,  que  tantos  an- 
nos  o  pisarão,  e])ossuirão,  inda  faltava  libertal-os  de  outros  Mouros,  ene- 
migos  mais  perniciosos  e  tyrannos  injustíssimos  das  almas  que  erão  in- 
finitos vicios,  abusos,  e  desordens  que  levavão  ao  cativeiro  do  inferno, 
contra  os  quaes  erão  necessárias  forças,  e  poder  do  Céo,  não  bastavão 
as  humanas.  Que  em  vão  se  jactaria  de  forro,  e  livre  quem  da  casa  em 
que  vivia  não  fosse  inteiro  senhor:  sem  proveito  mondaria  o  lavrador  seu 
trigo,  se  cortando  as  ervas  que  o  affogavão,  lhe  deixasse  na  terra  as  raí- 
zes; donde  ao  outro  dia  brotavão  de  novo:  que  como  a  raiz  das  calami- 
dades que  ainda  opprimião  grande  parte  de  Espanha  liavião  sido  pecca- 
dos,  e  devassidoens  na  vida  dos  Reis,  e  dos  vassallos,  se  desenganas- 
sem, que  durando  esta,  inda  estavão  sopeados,  inda  cativos.  Assi  os 
persuadia,  e  juntamente  fazia  temer,  discorrendo  polas  misérias,  e  infâ- 
mias do  peccado,  e  polas  penas,  e  castigos  que  acarrea  em  vida,  e  mor- 
te. Logo  os  assegurava  e  alegrava  com  a  facilidade  do  remédio  junto  a  espe- 
ranças de  grandes  bens  por  meio  do  Santo  Rosário  da  Virgem  puríssima, 
recontando  os  maravilhosos  effeitos  que  por  elle  vira  na  guerra  dos  Al- 
bigenses. Dava  o  Senhor  dos  Ceos  viveza  nas  palavras,  eíTicacia  nas  re- 
zões.  Era  ouvido  com  silencio,  e  attenção,  e  mostrava-se  no  sembrante 
de  todos,  que  só  lhes  faltava  Mestre  pêra  correrem  os  caminhos  da  vir- 
tude. Seguirão  obras,  começarão  confissoens.  Era  buscado,  e  tratado  pêra 


PARTICULAR  DO  REINO  hU.  I^ORTIGaL  53 

matérias  de  consciência.  Bem  se  deixa  entender  como  se  alegraria  seu 
espirito  com  tão  bons  princípios,  e  tal  disposirão. 

Foi  a  nova  á  Infante  dona  Sancha,  (Rainha  lhe  chamão  as  Historias 
antigas,  que  era  o  titulo,  com  que  então  se  tralavão  as  filhas  dos  Reis) 
desejou  de  o  ver,  e  ouvir :  manda-o  vir  diante  de  si.  Era  Alanquer  vil- 
la  pequena  em  praça,  e  povo,  mas  honrada  por  antiguidade  de  sua  fun- 
dação, e  calidade  dos  moradores  ricos,  e  bem  erdados  na  largueza,  e 
fertilidade  dos  campos  vizinhos,  que  lava  o  Tejo.  Foi  seu  primeiro  nome 
Alanoquerca,  (*)  e  polo  que  delie  parece,  devia  ser  edificio  de  Alanos,  huma 
das  naçoens  Septentrionaes  que  passarão  a  Espanha,  e  assentarão  nes- 
ta parte  de  Portugal,  muitos  annos  antes  dos  Mouros,  comeo-o,  e  en- 
cortou-o  o  tempo,  como  faz  a  tudo.  Era  a  Infante  senhora  do  lugar,  como 
atrás  tocam^os,  e  vivia  nelle  respeitada  por  quem  era,  e  igualmente  polas 
grandes  virtudes  de  que  era  dotada.  A  renda  era  curta  pêra  sua  calida- 
de, e  casa,  mas  valia-se  de  muita  riqueza,  que  seu  pai  el-Rei  dom  San- 
cho lhe  dera  em  vida,  e  governava-se  com  tal  prudência,  que  tinha  pêra 
si,  e  pêra  alargar  a  mão  em  esmollas ;  de  sorte  que  era  sua  casa  hos- 
pital de  pobres,  e  refugio  de  peregrinos.  E  deve-lhe  Alanquer  poder-se 
gabar  de  ser  o  primeiro  lugar,  que  ouvio,  e  agasalhou  em  Portugal  os 
embaixadores  evangélicos  dos  grandes  Patriarchas  Francisco,  e  Domin- 
gos, e  o  primeiro  que  lhes  deu  de  seu  sangue  filhos,  e  disci pulos.  (**)  Por- 
(jue  também  aqui  vierão  primeiro  os  Santos  Frei  Zacharias,  e  Frei  Gual- 
ter  da  Ordem  Franciscana  primeiros  messageiros,  pêra  este  Reino.  Acha- 
mos posto  em  memoria  desta  Princesa,  (***)  que  era  dada  á  lição  de  livros 
devotos,  e  vidas  de  Santos,  e  que  lendo  as  colaçõens  dos  Padres  do  ermo 
nos  escritos  de  João  Cassiano,  erão  grandes  os  desejos  que  acendião  em 
sua  alma  aquelles  exemplos  de  ver  era  seu  tempo  semelhantes  espíri- 
tos, e  semelhantes  exercícios.  Quando  vio,  e  ouvio  a  dom  Frei  Sueiro, 
entendido  fica  qual  seria  a  pratica.  Podemos  crer  que  foi  toda  celestial. 
Assi  ficou  entendendo  que  tinha  presente,  evivo  o  que  lá  na  letra  morta 
lhe  retratavão  os  seus  livros.  Vierão  por  fim  de  pratica  a  tratar  da  causa  de 
sua  vinda,  declarou  elle  com  breves,  e  humildes  rezoens,  que  não  era 
outra  senão  espertar  na  gente  Portugueza  memoria  da  salvação,  e  dese- 
jos do  Ceo,  e  de  vida  perfeita :  e  pêra  este  fim  fazer  de  sua  parle  tudo 
aquillo  com  que  entendesse  a  poderia  obrigar,  e  levar  a  elle :  e  se  achasse 

(•)  Idacio  Cl.iro  na  sua  Cronol.  Mniinrr.  Lusil.  p.  2.  lib.  G.  c.  3. 

(••)  F.  fliarros  de  Lisboa  na  cron.  dos  Men. 

(••»)  Rezende  in  vila  B.  .Egidij  1.  2.  liatt.  2,  Ã:  Ho 


M  LIVRO  1  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

(como  C5pci\iva  cm  Deos:  c  na  grande  viríurle  í1í3  hum  Pai,  c  Mestre,  e 
graiido  Santo  que  o  insinara,  e  o  inviava),  quem  o  quisesse  seguir,  e  aju- 
dar, trazia  animo  de  ajimí-ar  coiX][)anhias,  c  edificar  casas  que  fossem 
luVaias  praças  foiles,  guarnecidas  de  valente  presidio  coníra  o  Jiiferno, 
e  humas  escolas  donde  se  ouvissem  vozes  continuas  que  estivessem  re- 
tinindo nas  orelhas  do  povo,  hoi\a  com  louvores  de  Deos,  hora  com  bra- 
dos, e  clamores  em  abominação  de  vicios,  e  peccados.  Não  se  podia  di- 
zer á  Infanto  cousa  de  que  mais  satisfação  tevesse.  E  como  era  pasto 
suiivissimo  pêra  sua  alma,  assi  lie  de  crer,  fjue  logo  dali,  inda  que  inui- 
ías  outras  vezes  o  ouvio  cm  publico,  e  em  })aríicular,  licou  traçado  que 
o  Santo  varão  lançasíc  olhos  por  lugar  aconiodado  a  seu  intento.  E  ou 
fosse  que  a  esiíeiteza  da  viHa  lhe  não  desse  azo  a  edificar  nelía,  ou  que 
quiz,  como  parece  mais  provável,  satisííizer  á  tenção,  e  desejo  pio  da 
ínfaníe,  (digo  provável,  porque  não  temos  luz  de  escritura  que  nos  guie 
iio  certo,  e  vamos  em  muitas  cousas,  arriniandonos  a  tradiçoons,  e  con- 
veniências), escoíheo  pêra  morada  sua,  e  sitio  do  primeiro  Convento  a 
serra  de  Monte  junto,  e  nella  huma  ermida  da  invocação  de  Nossa  Senho- 
la  das  Neves.  E  tal  ibi  o  principio,  e  solar  que  teve  a  Farniiia  dos  Pre- 
gadores, e  Ordem  Dominicana  nestes  Ucinos  de  Portugal,  como  veremos 
mais  em  particular  no  capitulo  seguinte. 

CAPITULO  Xlí 

L^escreve-se  o  sitio  do  lirinieiro  conuenlo   que   a   Ordem  de  S.  Domingos 
teve  em  Portugal,  e  fabrica  delle. 

A  duas  legoas  e  meia  de  Alanquer  contra  o  Norte  se  levanta  a  ser- 
ra que  boje  chamão  de  IJonte  junto.  {*)-  A  maior  antiguidade  lhe  chamou 
Monte  sacro,  e  também  Monte  lagro,  nome  que  com  pouca  diíferença  se 
conserva  inda  bojo  no  lugar  de  Tagarro  ahi  visinbo.  Nos  a  pudéramos 
nomear  por  hum  só  monte  de  -leJi-a,  ou  huma  só  pedra,  antes  que  serra. 
Porque  o  nome  de  serra  compiende  montes  de  penedias,  e  rochedos  en- 
cadeados, c  continuados  com  valles,  e  sobidas:  e  esta  consta  de  huma 
só  pedra,  ou  monte  que  igual,  e  juntamente  crece,  e  sobe,  em  meio 
de  terras  lavradias,  e  por  toda  i)arte  cultivadas,  e  ainda  que  são  do- 
bradas,  e  de  várzeas,  e  oiteiros  entresachadas,  íicão  em  comparação 

(•]  lUtciiilc  1.  1.  daí  Aiifguii!.  f.  -iO.  M.  Varro  C-.Iiiimlla.  riinio. 


PA[\TíCrLAU  DO  RKINO  DK  PORTUGAL  '>•) 

(\'e\h\  h;im  campo  razo.  E  tal  vista  oíTerecem  aos  olhos  de  qiicm  do  alto 
as  considera.  Representa  esía  pedra  que  terá  de  sobida  hiiiTia  boa  meia 
legoa,  tendo  no  pé,  e  fundamento  mais  de  quatro  de  circnilo,  e  !ie  tão  a.L^ra, 
c  alcantilada  em  roJa,  que  com  grande  diffieiíldade  se  podo  subir  a  ca- 
vallo.  Porqne  em  miiía>  partes  n~io  ha  passar  sem  apear,  e  valer  das 
mãos,  como  dos  pés.  Sj  da  parte  occidental  contra  Viila  verde  oíTerece 
huma  costa  algnma  cousa  menos  ingremj,  a  qiial  se  fora  cortada,  como 
era  faeil,  tinliamos  a]  li  um  retraí)  de  uma  daquellas  íV^rças  que  n>s 
pintão  as  Historias  da  índia  e  Etiópia  por  inexpugnáveis (*).  Porque  sendo 
da  natui-eza  criadas  a  este  mído  mui  altas,  e  talhadas  cm  roda  como  ao 
picão  até  ás  raizes,  bastão  pêra  defender  huma  sá  entrada,  ou  duas  que 
ha  feitas  á  mão,  muito  poucos  homens  contra  grandes  exércitos:  e  con- 
ta-se  que  tem  no  alto  largueza  pêra  sustentar  muita  gente.  Esta  fará  no 
cume  duas  léguas  de  praça,  c  ainda  que  quasi  tudo  he  pedra  continua, 
abre  no  meio  huma  gran:le  várzea  de  terra  lavradia,  que  terá  cm  cir- 
cuito meia  legoa,  a  que  fazem  coroa  grossas  penedias  vestidas  a  partes 
di  matos  espessos,  e  crecidos,  guarida  d 3  lobos,  e  outro-;  animi.\s  sil- 
vestres: na  várzea  ha  duas  lagoas  de  agoa  clara,  e  boa:  e  em  pouca  dis- 
tancia, e  sobre  huma  pequena  costa,  que  ainda  se  sobe  áspera  sempre,  e 
pedregosa,  se  acha  huma  ermida,  a  que  a  devação  dos  vizinhos  deu  no- 
me de  Nossa  Senhora  das  Neves.  A  casa  he  pequena,  e  baixa,  mas  pêra 
deserto  de  ])oa  fabrica.  Tem  de  fora  seu  recebimento,  ou  alpendre  cn- 
berto:  e  dentro  divisão  de  Gapella,  e  corpo  de  Igreja,  com  seu  arco  crn 
melo,  tudo  cerrado  de  abobada.  Fora  do  arco,  e  das  grades  que  o  cer- 
rão,  tem  seus  altarinhos,  como  hc  costume  de  huma,  e  outra  parte.  No 
altar  da  Gapella  se  vè  hum  retábulo  com  liiima  imagem  de  Nossa  Stmhora, 
e  outras  de  Santos,  tudo  pintura  moderna.  Nas  paredes  pendem  algu- 
mas memorias  de  enfermos,  e  cativos.  Nos  altares  travessos  não  ha  pin- 
turas, mas  algumas  figuras  de  vulto  de  antiga  escultura,  e  grosseira:  en- 
tre ellas  duas  com  habito  Dominico,  das  quaes  huma  tem  nome  de  S.  Do- 
mingos, e  está  autorisada  com  mitra  na  cabeça,  (devia  julgar  a  simpli- 
ciúade  montanlieza,  que  não  lhe  estava  bem  aos  pés),  todas  prometem 
huma  grande  antiguidade,  não  só  no  feitio,  mas  no  trato,  c  representa- 
ção da  madeira  comida  e  Ci)nsumida  da  velhice,  e  do  tempo.  Na  en- 
trada da  porta  se  acha  hunoa  pia  abería  ao  picão  na  lagea,  e  chão  na- 

(•)  Fr.  JoiTo  Aoi  Saiiloí   na  «ua  Elin|iia  I.   i.  c.  4.  à  i!.  Aiiton.  Píh.  nos  crrcos  de  dua,  o 
Chaul.  1.  1.  c.  7.  &  D.  Q.  Cuit.  iii  lii^i.  Alexan.  Lopo  de  Sousa  CoutiniJO  no  cer.vo  de  Diu  1.  i. 


58  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE   S.  DOMINGOS 

tural  da  ermida,  que  jantamenLc  he  pia,  e  fonte,  porque  corre  agoa,  e 
dura  a  fama  de  ser  milagrosa  pêra  infirmidades.  A  hum  lado  vão  con- 
tinuadas, e  coníiguas  duas  pequenas  casas,  como  de  Sacristã,  Imma  d'el- 
las  com  chaminé,  e  d'es[a&  correm  algumas  paredes  arruinadas,  que  mos- 
Irão  divisões,  e  sinais  de  casas  algum  tanto  maiores,  e  cerca  espaçosa, 
em  partes  pedra  em  sosso,  n'outras  pedra,  o  baiTo,  em  nenhuma  ras^to 
de  cal,  nem  pedra  lavrada,  nem  final  de  edifício  curioso.  E  tal  he  o  es- 
tado do  presente  da  serra,  c  da  ermida:  do  que  então  era  não  nos  consta. 
Mas  aqiiellas  figuras  velhas,  e  mal  obradas,  a  ossada  pobre  Oe  casas,  e 
paredes  delidas  da  forca  dos  annos  acreditão  com  bastante  testimunho 
a  tradição  recebida,  e  continuada  por  quatrocentos  annos  nos  povos  vi- 
zinhos de  pais,  e  avós :  de  que  honve  alli  casa,  e  Convento  úe  nossa  Or- 
dem. Porque  de  nenhuma  outra  cousa  podiam  servir  aquelles  pobres 
edifícios:  nem  a  estranheza  do  sitio  podia  consenílF  outros  moradores, 
se  não  fosse  gente  aborrecida  da  vida,  e  desejosa  de  abreviar  os  cami- 
nhos pêra  o  Geo.  E  bem  podemos  ter  por  certo  que  seria  tudo  então 
muito  mais  fero,  e  mais  inculto,  pois  n'aquella  idade  muitas  terras  chans 
erão  cubertas  de  brenhas,  e  criavão  animais  bravos,  á  falta  de  quem  as 
abrisse.  E  tal  devia  ser  a  informação  que  se  deu  a  dom  Frei  Sueyro.Mas 
elle  não  se  espantando  nem  descontentando  de  nada,  sobio  á  serra,  vi- 
sitou a  ermida,  lançou-se  por  terra  diante  d"aquella  Senhora,  dando-lhe 
graças,  como  he  de  crer,  com  lagrimas  de  alegria,  por  vêr  que  assi  como 
a  seu  Mestre  dera  em  França  primeiro  gasalliado  em  casa  sua,  qual  era 
a  de  Prulliano,  assi  o  queria  também  dar  ao  discípulo  em  parte  tão  dis- 
tante. Aqui  lhe  pederia,  que  assi  como  com  as  neves  de  que  ali  tinha 
a  invocação,  dera  antigamente  final  na  força  das  calmas  do  estio,  que  lhe 
agradava  a  devação  d'aquelles  dous  servos  seus,  que  em  Roma  lhe  tinhão 
offerecido  almas,  e  fazenda,  quizesse  mostrar  agora  seu  soberano  poder, 
derretendo  neves  de  alguns  corações  enregelados,  com  chamas  de  celes- 
tial caridade  que  alumiassem  entendimentos,  abrazassem  vontades,  pêra 
que  cessando  escândalos,  e  coiiteudas  ficassem  dispostos  pêra  receberem 
a  doutrina  do  Ceo,  que  de  tão  longe  lhes  vinha  communicar,  como  já 
se  hia  recebendo,  e  estimando  n'aquella  pequena  vilta.  Não  achamos  apon- 
tado mez  nem  dia  em  que  o  edifício  começasse  a  crecer,  nem  a  ser  po- 
voado. Mas  bem  se  segue,  que  como  a  efficacia  de  sua  pregação,  e  a  de- 
vação Portugueza  lhe  foi  logo  ajuntando  companheiros,  (que  isto  he  cousa 
sabida),  não  tardaria  em  os  levar  ao  Monte,  e  como  seu  pensíimento  só 


pAnTicuLAn  DO  rei.no  di:  portcgal  57 

em  architectura  celestial  tinha  a  mira,  postos  na  serra  apareceria  a  casa 
acabada  tão  depressa,  como  traçada.  Deu  o  monte  pedra,  madeira,  e 
barro,  poserão  elles  as  mãos,  e  o  serviço.  Coraeçoo-se  a  exercitar  o  ri- 
gor monástico,  ao  que  podemos  alcançar  com  a  primavera  do  anno  se- 
guinte de  1218.  Exerci tavam-se  em  todo  género  de  mortificações  que  a 
religião  insina  das  portas  a  dentro,  jejuns,  cilicios,  disciplinas,  vigilias, 
silencio,  e  oração  continua.  Ao  trabalho  de  casa  seguia  o  de  fora  tanto 
mais  intolerável,  quanto  era  tomado  por  gente  exausta  de  forças  com  os 
rigores  caseiros.  Decião  da  serra,  entravão  poios  lugares  a  mendigar  a 
pobre  maníença.  Se  a  trazião,  e  se  a  não  trazião,  tudo  era  tormento.  Por- 
que a  costa  áspera  pêra  os  que  toi'navam  leves,  e  sem  esmola,  era  tra- 
balhosa por  si,  e  por  haverem  por  culpa,  e  demérito  próprio  não  alcan- 
çar com  que  alimentar  os  companheiros,  e  a  si:  e  aos  carregados  o  peso 
lhes  tirava  as  forças,  e  os  quebrantava  de  novo.  Valia  em  tudo  o  exem- 
plo do  Mestre,  que  como  sabia  ser  o  primeiro,  e  mais  diligente  no  que 
era  mais  penoso,  não  havia  nenhum  covarde  nem  froxo.  Lembrava-se  o 
Santo  Varão  dos  estranhos  géneros  de  padecer,  quo  notara  em  seu  bom 
Mestre:  as  disciplinas  nocturnas  sempre  com  ferro,  c  nunca  sem  san- 
gue: as  quaresmas  inteiras  de  pão,  e  agoa:  a  terra  fria  por  cama,  o  Ceo 
por  manta:  o  pendurar  os  çapatcs  no  cinto  poios  caminhos  do  monte 
por  se  magoar:  o  calçallos  no  povoado  por  fogir  vamgloria:  correrem  os  pé> 
sangue  e  a  boca  entoar  alegres  hymnos,  convidando  os  passarinhos  a  lou- 
vores do  Criador.  Via  que  criava  noviços,  não  só  pêra  religiosos  ordi- 
nários, mas  pêra  mestres,  e  pais  da  província,  que  vinha  fundar,  não  llie 
ficava  nada  por  fazer  pêra  boa  instituição:  e  ajudava-o  a  graça  Divina  a 
levar  hum  trabalho  que  excedia  as  forças  humanas.  Amanhecia  em  Alan- 
quer,  e  poios  outros  lagares  vizinhos  a  doutrinar,  insinar,  e  pregar:  e 
despois  de  cansado,  e  moido  deste  serviço,  hia  também  de  porta  em 
porta  pedindo  hum  pedaço  do  pão  pêra  si,  e  pêra  os  seus.  E  quando 
havia  de  alliviar,  tornava  a  subir  a  serra,  sobida  que  só  por  si,  quando 
muito  ocioso,  e  folgado  andara,  era  tormento  excessivo.  Edificavão-sc, 
e  espantavão-se  todos,  e  elle  cuidava  que  fazia  pouco,  e  que  era  obri- 
gado a  mais.  E  eu  também  cuido  que  esta  demasia  em  trabalhar  no 
obriga  a  inquirir,  e  discursar  polo  ofíicio  que  fazemos  de  Historiador, 
que  rezão  podia  mover  a  hum  varão  sisudo  a  huma  empreza  tão  árdua 
como  foi  seguir  juntamente  vida  do  deserto,  e  do  povoado:  contomp:.. 
tiva  entre  feras,  e  penedos :  e  activa  entre  homens:  fyito  Ancoreta  àoU- 


58  LIVRO  i  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

íario,  e  no  mesmo  tempo  pregador,  e  mestre  cercado  de  povo,  c  ou- 
vintes. A  contradição  he  grande  polo  estremo  de  se  alongar  tanto  da 
gente,  que  parecia  impossível  poder  acudir  aoinsino  d"ella.  (que  iie  o  fim 
principal  d"es!a  Ordem),  e  vira  em  seu  Mestre  exemi)lo  diíTerente,  pois 
não  ediricára  fora  de  povoado.  D  onde  infiro  que  n"este  novo  modo  de 
vida  teve  algum  fim  mais  alto,  e  só  encaminhado  ao  remédio  dos  ma- 
les que  via  no  Reino,  sem  ser  sua  tenção  ficarem  elle,  nem  os  seus  pelo 
tempo  adiante  moradores  do  ermo.  E  pêra  concluir  digo,  e  sinto,  que 
considerando  este  prudente  varão  o  calamitoso  estado  do  Reino  na  parte 
mais  importante  que  era  a  espiritual,  e  vendo  a  quietação  com  que  os 
gi-andes  se  deixavão  estar  oscomungados,  e  interditos,  houve-se  por 
obrigado  em  rezão  de  letrado,  e  nobre,  e  por  ministro  Apostólico  da 
pregação  Evangélica  significar  desde  logo,  que  não  aprovava,  nem  apro- 
varia em  nenhum  tempo  tal  modo  de  proceder,  por  mais  rezões  quo 
por  si  alegassem.  Clara  significação  foi,  inda  que  muda,  desviar-se  da 
Corte  logo  no  principio,  alem  das  mais  causas  que  apontamos.  E  com  o 
mesmo  intento  foi  a  retirada,  que  agora  fez  da  villa  de  Alanquer,  esco- 
lhendo antes  viver  entre  feras,  que  na  companhia  dos  homens,  pêra 
que  quando  fosse  conhecido,  e  buscado,  (como  estava  certo  o  havia  de 
ser)  do  Rei,  e  dos  grandes,  calando  respt^ndesse,  e  mostrando  que  den- 
tro em  sua  pátria  vivia  como  peregrino  d^ella,  servisse  tal  obra  de  lin- 
goagem,  e  rezões  vivas,  que  lhes  estivessem  lançando  cm  rosto,  e  es- 
tranhando a  temeridade,  com  que  se  maniinhão  tanto  tempo  havia,  con- 
tra escomunhões,  sem  sinal  de  humildade,  nem  cuidado  de  paz.  Per- 
suadia-se  dom  Frei  Sueyro  que  era  obrigação  dos  que  Deos  poz  ém  lu- 
gar alto  por  qualquer  via  que  a  elle  subissem,  não  só  não  ajudarem, 
nem  autorisarem,  nem  favorecerem  as  obras  exorbitantes,  e  desarezoa- 
das,  e  aos  autores  d'e!la :  mas  torcendo-lhe  o  rosto,  e  fugindo-lhe  com 
a  presença,  lestimunharem  ao  mundo,  que  não  erão  n"ellas,  nem  com 
clles  consintidores.  Foi  o  conselho  aprovado  do  successo.  Porque  em 
iim  era  conselho  de  quem  se  tinha  todo  entregue  a  Deos,  e  por  elle  vinha  guia- 
do, como  adiante  o  veremos :  despois  que  dissermíjs  alguma  cousa  do 
Padre  São  Domingos,  com  quem  he  força  que  vamos  conLínuando,  e  te- 
cendo esta  escritura,  que  delle  depende,  em  quanto  o  temos  vivo. 


PAP.TICULxVR  DO  REINO  DE  POílTUuAL  59 

CAPITULO  XIÍI 

Das  grandes  maravilhas  que  Dcos  nosso  Scnlior  ohrou  em  Roma  por  S. 
I)o)iung<)S.  Conla-se  a  nova  forma  de  habito  que  o  Souío  deu  aos  seus 
Frades,  e  a  rezào  delia  :  e  conto  poz  em  clatisula  a.s  Freiras  de  Roma. 
Ordena  Uniu  de  Theologia  no  sacro  Palácio,  e  he  o  primeiro  Leitor 
dcíla.  I-rcga  a  det^ação  do  Rosário. 

Em  quanto  «as  ultimas  partos  do  Occidontc  passavão  as  cousas  quo 
temos  contado,  corrião  as  da  Ordem  em  Roma  com  gi-andc  prosperidade 
acreditando  Deos  a  sou  sorvo  São  Domingos  com  !iama  extraordinária 
corrente  do  mercês,  c  favores  do  Coo :  de  sorte  que  em  ijouoos  meses 
so  YÍo  o  Santo  não  só  pai  de  muitos  fillios,  mas  do  muitos  Conventos,  o 
grandes  familias  Paíriarclia.  Diremos  aígumas  brevemente,  e  quanto  bas- 
tem pêra  so  entender  o  processo  de  sua  vida,  que  começamos.  Entrou  o 
Santo  em  Roma  por  fim  de  Outubro  do  mesmo  anno  de  1217,  despois 
do  ter  dado  á  sua  Ordem  os  principies,  que  temos  AÍsto  em  França,  e 
Espanha.  E  como  entrava  já  fundador  de  Religião  pola  Santa  Sé  Apos- 
tólica aceitada,  c  coníirmada,  foi  recebida  naquolia  Corte  com  hum  tão 
grande  amor,  e  ai)!auso  de  todo  género,  e  estado  de  gente,  que  se  e]> 
xergava  claramente  serem  efíeitos  da  mão  Divina,  não  nascidos,  nemgran- 
geados  por  nenhuns  meies  humanos.  Tinha-lho  Beos  mandado  [)olos  Após- 
tolos que  pregasse,  prometera-lhe  que  seus  hombros  sustentarião  a  Igre- 
ja, e  como  elle  he  o  que  dá  os  cargos,  e  juntamente  a  suíTiciencia  pêra 
elles,  começou  a  desempenhar-se  da  promessa.  Foi  o  princípio  pôr  taes 
palavras  na  boca  do  seu  pregador,  e  dar-lhe  tal  graça  neilas,  quo  trazia 
toda  a  terra  após  si,  e  como  cousa  celestial  ora  ouvido,  buscado,  o  se- 
guido :  dos  peccadores  pêra  remédio,  dos  bons  pêra  guia,  parecendo  a 
todos  que  não  podia  íalíar  meio  de  salvação,  e  abundância  de  bens  do 
Ceo  em  tal  companliia,  e  doutrina.  Erão  tantos  os  que  lhe  pedião  o  lia- 
Ijito,  que  toda  casa  era  estreita  pêra  os  recoUior.  Acudio  o  Santo  Ponti- 
fico Honório  a  esta  falta  :  deu-lhe  a  Igreja  de  S.  Sisto  pêra  Convento. 
Começa  logo  a  edificar  por  huma  parte,  e  receber  noviços  por  outra. 
Creciam  as  paredes,  e  os  habitadores  como  a  competência:  e  o  Ceo  ti- 
nha a  cargo  ajudar  a  obra  com  novos  meios. 

Correndo  a  fabrica,  cahiu  do  improviso  hum  lanço  do  parede  velha : 
â  vista  de  muito  povo  junto  colheo  hum  dos  oíficiaes,  foi  grande  a  gri- 


fiO  LIVRO    I    DA   HISTORIA   DE   S.    DOMLNGOS 

ta,  acodem  com  pressa  a  desenterral-o,  achão-no  sem  figura  de  homem, 
feito  hum  bolo.  Não  edificava  o  Santo  pêra  matar,  senão  pcra  dar  vida, 
e  saúde.  Vem  correndo,  chega-se  ao  defunto,  põe  os  olhos  no  Ceo  com 
huma  breve  oração,  e  logo  levantando  a  voz  manda  ao  seu  oíTicial  que 
se  levante,  e  torne  a  vencer  seu  jornal.  Obedeceo  a  morte,  levantou-se  o 
defunto,  e  tornou  a  trabalhar.  Pasmarão  os  circunstantes,  e  pergunta- 
vão-sfi  huns  aos  outros  polo  caso,  porque  aos  olhos  próprios  não  davão 
credito. 

Mas  fez  cessar  o  espanto  outro  caso  que  logo  sevio  trás  este.  Huma 
dona  nobre,  mãi  de  hum  só  filho,  (chamão-lhe  os  escritores  Guttadona) 
tinha-o  enfermo.  Deixou-o  huma  manhã,  por  acudir  ao  sermão  do  Santo: 
tornando  a  casa,  acha-o  passado  da  vida.  Dá  volta  pêra  a  Igreja  com  o 
minino  nos  braços,  e  vozes  lastimosas  ao  Ceo:  chama  polo  Santo,  mis- 
tura queixas  com  rogos:  que  de  deixar  o  filho  por  devota,  lhe  nacia  cho- 
ral-o  agora  por  mofina:  que  bem  podia  elle  fazer  por  seu  filho,  o  que 
fizera  polo  oíficial  da  sua  obra.  Lastima-se  o  Santo,  consola-a:  eUa  pede 
obras,  não  palavras,  vida  pêra  o  filho,  e  n"ella  seu  único  remédio.  Yen- 
ce-se  o  Santo,  faz  o  sinal  santíssimo  da  Cruz  sobre  o  morto,  e  entrega- 
0  vivo  a  sua  mãi.  Não  ha  palavras  que  possam  encarecer  o  movimento 
que  causou  no  povo  tal  successo.  Chegavam-se  ao  Santo,  cortavão-lhe  a 
sobrepeliz,  e  a  loba,  sem  se  poder  defender:  fazião  conta  que  leva  vão 
pêra  casa  antídoto  contra  todos  os  males. 

Entre  tanto  enchia-se  o  Convento  de  Frades,  que  he  cousa  certa  pas- 
sarão de  cento  em  poucos  mezes.  I\Ias  não  parava  aqui  o  espirito  do 
Santo:  a  maiores  emprezas  se  estendia.  Desejava  o  Papa  reduzir  a  clau- 
sura as  Freiras  de  Roma,  e  particularmente  as  do  Mosteiro  de  Santa 
Maria,  que  chamavão  de  trans  Tyberim.  De  vacara  amalicia  dos  tempos, 
que  sempre  correm  pêra  pior,  aquella  simplicidade  antiga,  com  que  as 
donzellas  que  se  recolhião  a  servir  a  Deos  nos  mosteiros,  fiavão  tanto  de 
si,  e  dos  homens,  que  se  atrevião  a  andar,  e  tratar  fora  de  clausura,  e 
conversar  entre  elles  não  só  sem  dano,  mas  também  sem  temor.  Estava 
trocada  esta  bondade  de  ânimos;  erão  tantos  os  successos  avessos,  que 
se  perdia  a  Religião,  e  o  credito  d'ella,  e  cumpria  acudir-se  ao  mal  com 
cura  apressada.  Pedio-se  remédio  pêra  gente  viva  a  q)iem  o  sabia  achar 
pêra  mortos.  Chamou  o-Papa  a  S.  Domingos,  entregou-lhe  o  negocio  nas 
mãos.  Molheres  nobres,  e  ricas,  e  muitas  cm  numero,  (erão  quarenta  e 
quatro),  avezadas  a  liberdade :  não  podia  com  ellas  o  Príncipe  supremo 


PARTICULAR   DO   REINO   DF.  PORTUGAL  Cl 

(la  Igreja,  que  faria  lium  pobre  Frade?  Visitoií-as,  prégou-llics,  fallou 
Deos  por  elle.  Não  só  ficarão  persuadidas  a  clausura,  mas  o  que  nin- 
guém cuidou,  e  que  teve  fortes  contrastes,  aceitarão  passar-se  do  lugar 
em  que  estavão,  que  era  pouco  decente,  pêra  o  seu  Convento  de  S.  Six- 
to.  E  começou  logo  de  o  accommodar  pêra  ellas,  c  a  casa  de  Santa  Sa- 
bina, que  o  Papa  lhe  nomeara  de  novo,  pêra  os  seus  Frades. 

Era  já  n"este  tempo  o  numero  dos  Frades  tão  crecido,  poios  mui- 
tos que  cada  dia  entravão,  que  houve  o  Santo,  podia  partir  com  alguns 
lugares  de  Itália,  dos  muitos  que  com  instancia,  llie  pedião  pregadores, 
e  havia  sojeitos  taes  que  se  podia  fiar  muito  d'elles.  Pareceo-lhe  tempo  de 
empregar  as  novas  prantas,  e  fazer  missão  nova.  Mandou  a  Bolonha  huns 
pêra  pregarem,  outros  pêra  estudarem,  e  a  ]Milão,  Como,  e  Bergamo 
pêra  entenderem  na  pregação,  e  doutrina  do  povo.  E  com  tudo  ficavão 
ainda  em  Roma,  como  diz  a  Historia,  ao  justo  cem  Conventuais:  estes 
vivião  de,  esmolas  colhidas  com  alforge,  e  brado  polas  ruas,  e  portas, 
como  fazem  inda  hoje  com  santo  exemplo  os  Frades  IMenores.  Âconte- 
ceo  imm  dia  fazerem-se  horas  de  jantar,  e  não  haver  que  pôr  na  mesa. 
Quem  a  linha  a  cargo  deo  conta  da  falta  ao  Santo.  Nunca  mais  bem  as- 
sombrado, nem  mais  alegre  rosto  lhe  viram:  responde  que  fiem  de  Deos, 
e  se  faça  logo  o  signal  costumado:  faz  elle  o  de  Prelado:  entra  a  Com- 
munidade,  toma  cada  hum  seu  lugar.  Não  havia  que  benzer,  mais  que 
mesa  seca:  benze  todavia  dando  graças  ao  Senhor  pola  mingoa,  como  ou- 
tras vezes  fazia  pola  abundância,  (que  em  todo  estado  lhas  devemos,  se 
somos  Christãos.)  Tudo  foi  lium,  assentarem-se  os  Frades,  e  entrarem 
dous  moços  com  canisteis  de  pão  nos  hombros,  de  que  forão  provendo 
todas  as  mesas :  pão  alvo,  e  mimoso  qual  nunca  olhos  virão.  A  presen- 
ça, a  disposição,  o  geito  dos  servidores,  arrebatou  os  olhos  de  toda  a 
Communidade :  e  sem  saber  como,  deleitava-se  mais  em  sua  vista,  que 
no  remédio  da  necessidade.  Notou-se  que  começarão  a  servir  primeiro 
aos  mais  humildes  leigos,  e  noviços  moços,  e  dahi  forão  subindo  até  o 
Prelado.  Este  modo  de  proceder,  e  a  confiança  dos  autores  delle,  deo 
certo  indicio  de  serem  cortezãos  do  Ceo.  Assi  o  declarou  o  Santo  aos 
súbditos,  ajuntando  por  lei  perpetua  no  serviço  das  mesas,  a  lição  que 
derão,  que  se  guarda  até  hoje  inviolavelmente  por  toda  a  Ordem.  Se- 
gunda vez  achamos  que  succedeo  a  mesma  necessidade,  e  soccorro  nel- 
la  polo  mesmo  modo,  e  na  mesma  casa;  só  foi  a  differença  no  numero 
dos  que  forão  presentes  que  forão  S(')  (fuarenta  Frades. 


C2  Livno  1  DA  líísToaiA  di:  s.  domixcos 

Mas  parocc  que  o  Ceo  todo  se  queria  occupar  como  á  porfia  cm  fa- 
Z-T  b.onras  a  esta  Ordem.  Apareceo  por  estes  dias  era  Roma  linm  famo- 
s)  letrado  cm  amlios  os  direitos,  Davão  da  Sé  de  Odiens,  e  Leitor  da 
Uiiiversidade  de  Paris,  cliamado  Reinaldo,  ou  Regiualdo:  o  qual  cuida- 
doso de  sua  salvação  buscou  a  S.  Domingos,  e  assentou  com  elle  deixar 
todas  as  lí^nras  do  mundo,  e  vestir  o  habito  da  Ordem,  como  cumpris- 
se cerla  jornada  de  voto(*).  xVpcrcebia-G3  pêra  ella,  quando  se  vio  salteado 
de  huma  febre  ardente,  ao  parecer  dos  Médicos,  mortal,  c  sem  remé- 
dio. Assistia-lhe  o  Santo,  sentido  da  perda  de  tal  sogeito,  porque  fun- 
dava nelle  grande  augmcnto  da  Ordem  por  leti"as,  e  virtude.  Pedião  am- 
bos a  Deos  a  vida,  chamando  por  valedora  com  grande  eíficacia  a  Vir- 
gem Mãi,  particular  Slãi,  e  avogada  desta  Ordem  em  todo  trabalho. 
Não  tardou  a  piadosa  Senhora  em  soccorrer  a  ambos.  Visitou  pessoal  c 
visivelmente  o  enfermo,  deii-lhe  saúde,  c  como  em  penhor  delia  mos- 
trou-lhe  hum  habito,  c  escapulário  branco,  dizendo  que  tal  como  aquel- 
le  vestiria,  e  tal  queria  que  fosso  dali  em  diante  o  desta  Ordem  em  for- 
ma e  côr.  Visitou  também  e  alegrou  a  S.  Domingos  com  a  mesma  vi- 
são, e  aviso;  e  elle  se  vestio  logo  pola  traça  das  mãos  Divinas  mostra- 
da, trocando  a  autoridade  da  loba,  mursa,  e  roxete,  trajo  Episcopal;  na 
humildade  de  hum  habito,  e  escapulário  branco,  e  capa  preta  tudo  do 
pano  grosseiro,  e  no  feitio  estreito,  e  curto,  e  o  mesmo  fizerão  todos 
seus  súbditos  presentes  e  ausentes.  E  tal  foi  o  principio  do  habito  dos 
Pregadores,  dadiva  do  Ceo,  e  vinda  por  mt;io,  c  mão  da  Mãi  do 
Deos. 

Continuava  o  Santo  sermões  de  grande  fruiío  por  todas  as  igrejas, 
e  praças  de  Roma.  Entrando  hum  dia  no  sacro  Palácio,  notou  que  era' 
infinita  a  gente  que  andava  por  aquelles  claustros,  e  saias  perdendo  tem- 
po em  corrilhos,  e  murmurações,  em  jogos,  e  outras  leviandades,  foi 
imaginando  se  poderia  haver  algum  meio  de  advirtir,  c  occupar  em  en- 
tretinimento  honesto,  e  proveitoso;  (*)offereceo-se-lhe  hum  tririjalho  into- 
lerável pêra  quem  como  elle  se  repartia  era  tantos  outros,  que  foi  ler 
huraa  lição  quotidiana  da  Escritura  sagrada  nas  horas  qne  mais  povo 
acudia  ao  Paço.  E  foi  cousa  tão  bem  recebida  do  Papa,  e  Cardiais,  que 
no  dia  que  isto  vamos  escrevendo  passa  de  quatrocentos,  e  dous  annos 

(•]  Crónica  da  Ordem  de  João  Garzon.  Leandro  Alb.  1.  o.  Anold.  1.  2.  c.  ii.  S.Ant.  n.  3.  ' 
29.  c.  i. 

(-;  Sufuto  G.  2. 


PARTICULAR    DO    REINO    DF.    PORTUGAL  G3 

que  persevera,  e  sempre  em  Leitores  da  mesma  Ordem,  em  ipie  come- 
çou, sem  nunca  haver  mudança. 

Ajuntou  logo  outra  lição  pêra  os  bem  occupados  de  grandes  provei- 
tos, e  pêra  todos.  Foi  a  devação  do  santo  Rosário:  na  qual  se  empre- 
gou com  tanta  eiricacia  com  occasião  da  primeira,  que  pola  novidads  era 
frequentada  do  melhor  do  Roma,  que  a  fez  acceitar  por  todos  os  Gar- 
diais,  e  senhores  da  Corte,  recebendi  de  sua  mio  os  insirumoíitos  del- 
ia, digo  muitos  ramais  de  Contas,  que  com  grande  gosto  repai^íia:  e  vio 
logo  delias  formosos  eífeitos.  Foi  entre  outros  a  conversão  de  huma  mo- 
Ihcr  de  vida  perdida  (*),  e  que  era  causa  de  muiios  a  perderem.  Porque 
sendo  dotada  de  excellentes  partes  irdurais,  scrvião-lhe  todas  do  fazer 
gente  pêra  o  Inferno,  e  abrazar  a  cidade  em  fogo  de  sensualidade,  bri- 
gas, e  ódios;  e  procedeo  seu  remédio  de  hum  Rosário  que  alcançou  da 
mão  do  Santo.  Rezava  por  elle,  trazia-o  nas  mãos,  c  ao  pescoço.  Era  íim 
valeo-lhe  pêra  merecer  tão  boa  ventura,  que  ainda  antes  de  mudar  de 
todo  os  erros  da  vida  visse  a  Christo  Redentor  em  sua  casa,  e  á  sua 
mesa  trocando  figuras,  pêra  lhe  trocar  a  alma,  hora  tomarido-a  de  ml- 
nino,  hora  de  homem  de  idade  perfeita,  huma  vez  com  Cruz  ás  costas, 
e  coi"oa  de  es[)inhos  na  cabeça,  outra  pés,  e  mãos  correndo  sangue,  e 
em  íim  feito  seu  Pregador:  Obras  que  de  [joccadora  por  estremo  deva.- 
sa,  (louvem-vos  os  Anjos  JESU  benditoj  a  trocarão  em  santa  de  cstre- 
mos. 

Mas  porque  trás  este  caso  seguirão  outros  em  numero,  e  calidaue 
espantosos,  que  em  Roma,  e  toda  Itália  íizerão  a  devação  grandemente 
celebre:  e  procedendo  o  tempo  a  estenderão  por  todos  os  membros  da 
Christandade,  favorecendo-a  Deos  com  tantas  misericórdias  do  Ceo,  e 
graças,  e  privilégios  na  terra  por  seus  santos  Vigários,  que  já  não  lia 
Cidade,  nem  Viila,  nem  aldeã,  nem  ainda  casa  particular,  qiio  deixe  de 
a  abraçar,  e  venerar  dando  por  toda  parte  testimunho  Christão  os  Fu- 
mais de  Contas,  hora  nas  mãos,  hora  sobre  os  peitos;  parece  rezão,  que 
pois  esta  historia  he  do  Patriarcha  São  Domingos,  e  por  seu  meio  foi  o 
Senhor  servido  mandar  tanto  bem  ao  mundo,  digamos  antes  de  passar 
adiante,  alguma  cousa  do  processo,  e  augmento,  e  grandezas  delle;  e 
será  com  a  mesma  brevidade  que  vamos  seguindo,  vi^ío  como  já  andão 
livros  inteiros  no  mesmo  argumento.  Sohia  a  ser  no  bom  tempo,  quando 
no  mmido  linha  lugar  justiça,  e  rezão,  que  era  pairimoiiio  honrado  até 

(•)  Fldiíiin.  1.  2.  Caitilíio  p.  i.  1.  i.  c.  3j. 


64  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

(los  filhos  )'icos,  OS  bons  scrviros  do  pai,  pêra  requererem,  e  alcançarem 
meicOs  do  Rei  da  (erra;  nós  que  somos  lillios  pobres,  e  temos  requeri- 
meulo  com  o  Príncipe  do  Ceo  justissimo,  e  riquissimo,  he  bem  que  te- 
jínamos  vivas,  e  postas  em  bons  papeis  as  auções  de  que  Nosso  Padre 
São  Domingos  nos  fez  herdeiros,  pêra  nos  valermos  nas  necessidades  da 
vida :  iirincipalmentc  quando  a  caridade  dos  próximos  vai  estando  tão 
resfriada,  que  quem  não  pode  fazer  seu  o  alheio,  contenta-se  com  fazer 
que  fique  mescabado,  e  de  pior  condição  pêra  seu  dono. 

CAPITULO  XIY 

Mostra-se  como  São  Domingos  foi  o  primeiro  que  insinou  a  rezar  por  Con- 
tas os  viysíerios  de  nossa  Redenção,  que  he  a  devoção  do  Santo  Rosário 
contra  os  que  a  querem  fdzcr  mais  antiga.  Conla-se  como  rcsuscitou  ao 
sobrinho  do  Cardeal  Estefuno  em  Roma. 

Alguns  autores  modernos,  que  tratão  desta  santa  devação,  querem 
que  seja  tão  antiga  que  se  lhe  não  saiba  principio,  e  achamos  que  o  diz 
hum.  a  quem  outros  seguem,  por  estas  palavras :  Nam  quoad  antiquUa- 
íem,  tanta  est.,  vt  eius  initium  ignoretur,Ç)e  pêra  a  lançarem  nos  tempos 
mui  atrazados,  já  a  referem  aos  do  Concilio  Claramontense,  e  de  hum 
Pedro  Eremita  que  nelle  se  achou  poios  annos  do  Senhor  de  1093,  já 
a  atrazão  aos  do  Papa  Leão  Quarto  que  foi  no  de  854,  já  a  lanção  na 
primitiva  Igreja,  e  idade  dos  Apóstolos.  E  he  bem  de  espantar,  que  sen- 
do obrigação  dos  homens  de  letras  falar  nas  matérias  com  distinção,  e 
clareza:  e  havendo  nesta  a  forma  de  devação,  que  heo  que  propriamen- 
te se  chama  Rosário,  e  a  santa  Igreja  na  sua  Missa  própria  lhe  chama 
sacratissimo  Rosário :  e  havendo  também  o  material  das  Contas,  polas 
quais  se  reza :  elles  jiuitão  tudo,  no  nome  do  Rosário,  e  assi  em  confu- 
so fazem  sua  origem  escura,  immemorial,  e  ignorada.  E  não  ha  duvida 
que  se  fizerão  rellexão  na  differença  que  ha  de  huma  cousa  á  outra,  ella 
mesma  os  guiara  pêra  acharem  principio,  e  origem  certa,  no  que  he-sus- 
tancial,  digo  na  devação,  e  psalteiro  de  Nossa  Senhora,  cujo  nome  Ro- 
sário, ou  Rosal. 

E  começando  a  buscal-a  por  ordem,  como  quem  deseja  descobrir 
verdades,  quero-lhes  conceder  toda  a  mais  alta  antiguidade  que  preten- 

(•)  Francisc.  Soar.  t.  2.  de  viitute  Relig.  1.  3.  c.  9.  Rcbello  no  livro  do  Ros. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  65 

dera  no  uso  das  Contas,  pêra  eíTeito  de  se  contarem  por  ellas  os  Psal- 
mos,  e  Hymnos,  e  Oraçoens  da  santa  igreja  rezando ;  e  coníirmo-llia  assi. 
No  tempo  que  os  desertos  do  EgypLÓ  se  começarão  a  povoar  daquelles 
santos  Ermitnens  (*),  das  qimisas  historias  Ecclesiaslicas  nos  dão  por  pai 
ao  Evangelista  S.  Marcos,  tão  pobres  que  espantavão  o  mundo  com  suas 
penitencias,  e  com  as  faltas  que  padecião:  tão  Santos  que  Philo  Judeu 
quiz  honrar  o  Judaísmo  com  suas  virtudes,  em  hum  hvro  que  deUes  es- 
creveo,  dando-lhe  gi-andes  louvores- como  a  gente  sua,  chamando-lhe  Esse- 
nos :  he  cousa  certa  que  pêra  terem  conta,  e  ordem  no  que  havião  de 
rezar  entre  dia,  e  noite,  se  aproveitarião  como  gente  necessitada  de  tudo 
dos  fruitos  silvestres,  e  secos  do  mato,  inflados  em  seus  ramais.  E  jà 
daqui  fica  colhida  a  etimologia  das  Contas  polo  cíTeilo  em  que  servião. 
Que  isto  fosse  costume  entre  os  Ermilaens  bom  argumento  he,  não  ver- 
mos nenhum  nas  pinturas  antigas  sem  estas  infiaduras  de  csteriles  frui- 
tos nas  maons.  E  de  que  os  mesmos  usassem  em  seus  ajuníameníos  re- 
zar numero  certo  de  Psalmos,  temos  autor  antiquissimio  que  o  aíTirma, 
qual  heS.Theodoreto(**).E  pois  havia  conta,  enumero  de  reza  determi- 
nado, bem  se  segue  que  convinha  haver  algum  meio  de  fazer  mem.oria: 
e  os  desertos  não  o  podião  dar  melhor.  Mas  toda  a  duvida  nos  tira  o 
costume  que  hoje  cm  dia  dura  entre  os  Mouros  de  Africa,  de  se  servi- 
rem pêra  suas  superstiçoens  de  grandes  ramais  de  Contas :  costume  tão 
antigo  nelles  como  sua  Seita,  que  tem  já  de  ansianidade  mais  de  milan- 
nos  (***).  Por  nossos  olhos  os  vimos  em  Argel  dar  voltas  alongas,  e  gros- 
sas infiaduras,  passando  cada  bugalho  com  duas  palavras;  que  erão  : 
Stafar  Alia.  Cuja  significação  he  :  Ferdoa-me  Deos.  Foi  Mafamede  colhen- 
do da  lei  da  Graça,  e  da  escritura  as  cousas  que  lhe  pareceo  podião  au- 
torisar  seus  desatinos :  estava  bem  reputado  o  exercido  das  Contas,  mis- 
turou-o  com  ellcs. 

Ex  aqui  o  nso  de  Contas  cora  muitos  mais  de  mil  annos  de  idade : 
mas  que  se  siga  disso,  ser  tão  antiga  com^o  ellas  a  davação  que  lhe  ac- 
comodamos  hoje;  e  chamamos  do  Rosário,  he  cousa  indigna  de  homens 
que  falão  ingenuamente.  Assi  temos  justa  queixa  contra  Gregório  de  Vi- 
ihegas  (****)  de  aíllrmar  que  o  Papa  Lião  Quarto  na  guerra  que  teve  com  os 

(*)  S.  Jernnym.  dos  Eícritcres  Eccleslast. 
(•♦)  Theod.  de  vir  ilJMst.  in  vit.  Julian.  jíonneií. 

(.-.)  I'o!yd.  Yirg.  J.  7.  c.  8.  Luys  dei  marmol.  I.  2.  c  i.  El-Rey  dom  Afunso  em  suas  ta- 
boa?.  Forlalificm  Gdei  de  bello  Saracem.  1.  40.  art    10. 

(-«.*)  ViPucg.  lio  Floí  Saut.  na  Exnllar-ão  da  Cruz  a  lí.  de  SfleuiLro. 

VOL.    1.  '  S 


Qfy.  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE  i.   DOMLNGOS 

Sarracenos  em  Hoslia,  armou'  seus  soldados  de  Rosários;  (houvera  de  di- 
zer, se  tal  houve,  ramais  de  Contas.)  Mas  culpa  maior  he  de  quem  fun- 
dou nesta  palavra  aírazar  a  dcvação  a  estes  annos,  que  fica  sendo  o  mes- 
mo que  defraudar  da  honra  delia,  a  quem  muitos  despois  foi  seu  pri- 
meiro, e  verdadeiro  inventor.  Quanto  mais  que  o  que  Vilhegas  escreve 
he  tão  mal  fundado,  que  nenhum  autor  antigo  tem  por  si,  e  pêra  cou- 
sa tão  atrazada  não  he  bastante  seu  dito  pêra  com  nosco,  nem  o  devera 
ser  pêra  os  que  o  seguirão.  Yejão-se  os  que  apontamos  na  margem  (*),  que 
são  todos  Autores  graves,  e  escrevem  a  mesma  guerra,  e  a  vida  do  mes- 
mo Pontifice  sem  falar  om  Contas,  nem  Rosários,  E  contra  os  que  lhe 
dão  por  Autor  o  Ermitão  Pedro,  temos  a  autoridade  do  Cardeal  Baronio, 
que  tratando  delie  era  seus  annais,  e  de  como  o  Papa  Urbano  Segundo 
propoz  no  Concilio  de  Claramente  a  reza  do  ofíicio  pequeno  de  Nossa 
Senhora  recebido  desdentão  por  toda  a  Christandade,  nenhuma  menção 
faz  de  Contas,  nem  Rosário. 

Sendo  logo  desconhecida  por  velha,  e  atrazada,  a  origem  do  mate- 
rial das  Contas :  e  não  havendo  autor  nenhum  que  diga,  nem  possa  di- 
zer outro  tanto  da  formalidade  da  devação,  daremos  muitos  que  escre- 
vem clara,  e  patentemente  o  mesmo  que  atrás  deixamos  contado,  que 
foi  primeiro  Pregador,  e  promotor  delia  Nosso  Padre  S.  Domingos  re- 
cchcndo-a  da  Virgem  sagrada  (**).  E  por  que  lhe  foi  dada  por  tais  maons,  e 
nclla  temiOS  cifrada,  como  todos  sabem,  sua  santa  vida,  seus  trabalhos 
e  glorias  de  mistura  com  a  vida,  e  morte,  e  paixão,  e  gloriosa  Resur- 
reição  de  Nosso  Redentor,  mcreceo  o  nome  do  Rosário  na  lingua  Lati- 
na que  na  Portugueza  responde.  Rosal.  lie  a  rosa  a  mais  nobre  fior  de 
todas  as  flores  por  fineza  da  côr,  por  excellencia  do  cheiro,  por  utili- 
dade da  virtude ;  alegra  a  vista,  deleita  o  olfacto,  conforta  o  coração ;  e 
he  conservadora  da  'vida  humana,  com  a  agoa  sendo  estilada,  com  o  óleo 
em  infusão,  com  a  sustancia  em  conserva.  Por  estas  calidades,  e  porque 
nasce  armada  de  espinhas,  e  abrolhos,  que  oírendem,  e  magoão,  he  sím- 
bolo da  honestidade,  e  vergonha  virginal :  como  parece  das  sagradas  le- 
tras, onde  o  Espirito  Santo  pêra  declarar  as  excellencias  da  Esposa  San- 

(.)  Platina  de  vita  el  mor.  Pontíf.  f.  lOC.  Ulcfcas  na  Pontif.  i.  p.  1  4.  f.  20i.  Onu|)h.  Pa- 
nuin,  in  cnisl.  Poiílif  Uoraan.  f.  Í2  Baron.  t.  1».  Annal  Eccles.  no  anno  849.  ex  Anast.  Bibliot. 
Bonifac.  Simoneta  Ord.  Cisterc.  lib.  li.  de  Rontif.  iitrfecut.  c.  9. 

(..)  O  S.  Fr.  Joidno.  O  Genil  Humberto  e  Theodorico  lodos  três  escritores  da  vida  de  S. 
Doiiiin.  Os  Anniiis  Ri deViust.  u\i<  an  de  1213.  n.  í».  e  11  e  12.  .Jo.  Ant.  Flui«in.  Fr.  Alano  de 
lUnie.  F.  Fcrn.  de  Cast.  F.  Jtrouim.  Taix.  Fr.  Dicgo  de  Uogfda  Sagiisliza\ul.  O  Bis^o  dcJHi»- 
nonopoli. 


i 


PARTICULAR   DO    REI.NO   Di!  PORTUG.VL  ()7 

ta  por  termos  do  campo  humildes,  e  pastoris  não  buscou  melhor  com- 
paração, dizendo  em  nome  ádh:  Ego  flos  campi,  etlilium  cQ7mallium(''). 
E  noutm  parte:  Sicitt  liUum  inler  spinas,  sic  unúca  mea  inter  filias  (*'). 
E  falando  também  do  Esposo  Divino,  não  lhe  quiz  dar  maiores  gabos, 
que  dizer  delle  :  Qui  jmsciliir  inter  lilia  (**').  E  muito  tempo  antes  tinha 
dito:  Pukhriludo  agri  mecmn  est  (****).  E  não  obsla  apontar  o  texto  só 
em  lírios.  Porque  no  Hebraico  lírios,  e  rosas  tem  hum  mesmo  nome, 
como  adviríio  o  M.  Sotto  Maior  (*"**)  por  estas  palavras:  Yox  enim 
Hcbrcca  liruiiiíjue  aiijnipcat  iam  rosas,  quam  iilium.  E  onde  o  Latino  diz: 
ligo  (los  campi.  Traduzem  os  ííebreus  :  Ego  rosa  Sarou  (******).  E  a  ver- 
são que  anda  de  Hebraico  Espanhola,  que  não  tem  pouca  autoridade, 
onde  a  Latina  Ic  :  Qui  pasvitnr  inter  lilia,  diz,  enlre  rosas  (*******).  E 
Santo  Ambrósio  nos  ensina  que  estes  lírios,  e  rosas  são  as  Virgens  santas, 
e  que  a  ignJja  sagrada  aiTirma  o  mesmo  de  si.  São  as  palavras :  Chrisli 
lilia  siint  specialitir  Virgiues,  quarum  est  splendida  et  immacuJala  virgi- 
nitas.  Vnde  plerique  accipiunt,  quod  Ecclesia  videalur  dicerc,  Ego  fios 
canipi,  et  liiium  conualliian  (■******»*^_ 

Não  se  podia  logo  achar  nome  mais  próprio  pêra  huma  devação  toda 
alternada  cm  mysterios  de  gozos,  e  magoas  da  Virgem.,  e  Mãi  bendiíissima, 
de  dores,  e  glorias  da  Mãi,  e  do  Filho  Deos,  e  homem  verdadeiro.  Assi  des- 
pois  que  foi  aprovada  pola  igreja,  logo  se  lhe  foi  aplicando  tudo  o  que  so 
acha  escrito  de  rosas  nas  letras  Sagradas.  Já  lhe  chamamos:  Rosa  puriíalis,  o 
rosasinespina,  ']ârosasapienli(jB.  Já  lhe  cantamos  :  Sicut  plantatio  rosai  in 
Jericó.  E  pêra  que  tudo  quadre  com  a  forma  da  devação,  temos  autor  que  af- 
firma,  erão  tão  dobradas  estas  rosas  de  .lerico  em  Palestina,  que  se  conía^  ão 
em  cada  huma  cento,  e  cincoenta  folhas.  Do  que  não  discrepa  muito  Plínio 
(*********),  que  nos  avisa  de  outras  que  chama  centifolias,  em  huma  provín- 
cia de  ítalia,  e  noutra  de  Grécia.  E  foi  tão  aceito  â  mesma  Senhora  este 
serviço,  e  nome,  que  por  muitas  vezes  se  deixou  ver  de  seus  devotos 
hora  coroada,  hora  cercada  de  rosas :  e  estas,  pêra  nos  confirmar  na  or- 
dem, que  seu  servo  tinha  dado  da  reza,  entresachadas  a  cada  dez  bran- 

(.)  Cant.  2. 

(..)  l.Sid. 

(-..)  Ibi.  c.  8. 

("")  Psal.  ÍO. 

(.....)  Solto  Maior,  in  Caiil.  c.  6.  foi.  lOGci. 

(...»..;  Itleni  r.  3.  í.  422. 

(,......)  Yeríão  do  lífhraico  Espanhola. 

( •')  Anibr.  1.  Je  irisíit.  Virgin,  c.  Vò. 

(....,....)  riiii.  Wh.  21.  c.  í. 


68  I.IVRO  I  DA  IlISTORU  PE  S.   DOMI.Xr.OS 

cas,  de  luima  maior  encarnada.  Do  que  houve  tantos  testimunhos,  que 
delles  naceo  dar-se  o  nome  de  Rosal  â  devação,  c  passar  da  devação  ao 
instrumento,  de  maneira  que  já  lioje  está  recebido  por'nome  próprio  das 
Contas :  e  não  lia  pintura  desta  invocarão  da  Senhora,  que  deixe  de  vir 
semeada  de  Rosas. 

Mas  tudo  isto  teve  sua  origem  na  forma,  e  repartição  dos  mystcrios 
aplicados  ás  Contas,  e  pregados  por  S.  Domingos.  E  como  eíie  a  come- 
çou a  pregar,  segundo  aífirmão  lodos  os  escritores  de  soa  vida,  era  To- 
losa  :  e  despois  do  anno  de  4220  em  Roma,  não  he  m.aisalla,  nem  mais 
moderna  a  anliguidade  do  nome,  e  devação  do  Santo  Rosário,  ou  Rosal, 
por  mui  antigo  que  seja  o  uso  das  Contas.  E  se  houver  algum  incrédu- 
lo no  ponto  mais  sustancial,  de  que  a  recebeo  por  revelação  Divina,  e 
pedir  sinaes.  darlhosemos  do  Ceo,  e  da  terra.  E  seja  o  primeiro  que  a 
primeira  pessoa  de  quem  o  soubemos,  c  por  quem  passou  aos  succes- 
sores,  foi  o  mesmo  Palriarcha,  tão  digno  de  ser  crido,  que  ásua  vozre- 
suscitarão  quarenta  mortos  juntos,  já  sumidos,  e  afíogados  na  madre  de 
hum  profundo  rio,  á  vista  de  hum  grande  exercito;  A  seu  brado  tornou 
á  vida  nos  olhos  de  toda  a  Cidade,  e  corte  de  Roma  humNapoleon,  não 
só  morto,  mas  feilo  pedaços.  Á  sua  doutrina  renderão  almas,  e  entendi- 
mentos, de  bronze  cem  mil  hereges.  Tesíim^unho  he  este  de  quem  se  de- 
ve deixar  vencer  todo  o  bom  juizo.  Mas  temos  outros  muitos,  Cjuais  são 
que  todas  as  vezes  que  o  mundo  se  descuidou,  ou  adormeceo  na  santa 
devação,  a  Senhora  teve  cuidado  de  a  espertar,  não  buscando  outro  meio 
se  não  o  dos  filhos  do  seu  primeiro  pregador,  (grande,  e  soberana  honra 
desta  Ordem),  primeiramente  no  anno  de  14G1,  por  Frei  Alanoíngrezf): 
e  despois  no  de  1475,  polo  Mestre  Frei  Jacobo  Prior  do  Convento  de 
Colónia  em  Alemanha,  aos  quais  ambos  se  mostrou  visivelmente,  e  lhes 
mandou  cpue  a  pregassem ;  e  destes  annos  em  diante  foi  cm  grande  cre- 
cimento,  e  começarão  a  levantar-se  confrarias  por  toda  parte,  e  escreve- 
rem-se  nellas  Reis,  e  Príncipes,  e  todo  género,  e  estado  de  gentes,  se- 
guirão infinitos  milagres.  Confirmarão-na  com  letras  Apostólicas  soccesi- 
vamente  os  Vigários  de  Christo  honrando-a  com  grandes  graças,  privilé- 
gios, e  indulgências  (**)•  E  ultimam.ente  como  em  gratificação  do  serviço  que 
a  Igreja  neste  particular  recebeo  de  S.  Domingos,  e  pêra  se  não  perder 

{»]  Aiidrcs  Copesl.  1.  2.  da  Cõf.  do  Rcf.  Bonifa.  in  viiginali  1.  2.  c-  t^.  Carlag.  Fiancis- 
r.<no  1.  ult.  g.  l^").  !•'.  Alanu?  de  Kupe  c.  4.  5    e  7. 

(..)  O  Bisp.  de  Moncpcli  no  3.  p.  da  biítor.  da  Oíd   L.  2.  c.  2. 


PAHT1CULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  Cy 

a  memoria  dello,  três  Pontífices  santíssimos  hum  trás  outro  declararão 
por  suas  Bailas  dever-se  ao  Santo  (").  São  os  Pontífices  Pio  Quinto,  e  Gre- 
gório Decimoterceiro,  Sixto  Quinto.  As  BuUas  traz  estendidamente  Frei 
Alonso  Fernandes  no  livro  dos  milagres  do  Rosário  (**).  A  de  Pio  lalando 
de  S.  Domingos  diz  em  hum  período:  Modum  facikm  et  omnibus  pertiium 
ac  admodum  pium  orandi  et  precaiidi  Deum  Rosarium,  seu  Psalterium 
ejusdem  Bcalm  3Iqri(8  Vircjinis  nuncupatum :  Q  cerra  abaixo ;  Excoyita- 
vit,  excogitaium  per  SancKB  Romana;  Ecdesice  parles  propuíjauit,  et.  As 
palavras  do  Grogorio  são:  Memores  Beatuni  Dominicum  Ordinis  Frcedi- 
calorum  instilulorem,  cum  et  Gallia  et  Jtalia  d  perniciosis  premeretnr  hoe- 
resibus,  ad  iram  Dei  placandam,  et  Beatissimw  Virginis  iiitercessionem  iiii- 
plorandam  pijssimum  ilhim  orandi  modum  instiluissc^  qxiod  Rosarium,  sine 
Psalterium  Beatissimce  Virginis  nuncupatur,  etc.  O  mesmo  affirma  0  va- 
lerosissimo  Sixto  ('*'),  digno  filho  do  Seráfico  Francisco  dizendo:  Attenden- 
tes  itaque  cjiiani  religioni  noslrce  fructuosum  fxierit  sanclissimi  Psalleiij 
Rosarij  nuncuputi,  gloriosm  semperqne  Virginis  3íariaí,  aimce  Dei  genitri- 
cis  instiiutum,  per  Beatum  Dominicum  Ordinis  Fratrum  Prcsdicalorum 
autorem,  Spirilu  Sanctu,  ut  creditar,  a/jlatum,  excogitatum,  etc. 

Não  nos  fica  que  dizer,  senão  o  que  hum  grande  Santo  aponta  em 
semelhante  caso:  que  a  dureza  de  crer  dos  duvidosos,  não  he  tanto  fra- 
queza sua,  como  meio  de  firmeza  nossa,  pois  á  vista  de  provas  tão  cla- 
ras, não  haverá  jamais  névoa  que  oílusque  a  verdade.  Antes  podemos 
cuidar  dos  mesmos,  que  nos  ajudarão  a  engrandecer  as  misericórdias 
do  Senhor,  que  pêra  maior  corroboração  d'ella,  tem  conservado  este 
grande  beneíicio  na  Ordem  do  seu  servo  S.  Domingos  por  mais  de  400 
annos,  hora  com  revelaçoens  do  Ceo,  hora  com  favores  da  terra,  prohi- 
bindo  ultimamente  os  Santos  Pontiíices,  que  em  nenhuma,  senão  n'ella 
se  possão  levantar  Confrarias,  da  Senhora  do  Rosário  (***').  Concluamos  logo, 
que  este  he  hum  dos  hombros  de  Nosso  Patriarcha,  e  d'esta  Religião, 
com  que  ínnocencio  Terceiro  vio  sustentada  a  igreja  Lateranense :  por- 


(♦)  Jodoco  nevGCÍio  Qy.iiíc.  do  Rosar.  F.  Jacinlho  Chaquccio  liist.  dos  Santos  da  Ordem  ein 
fhnd.  c.  -2:3.  p.  20/. 

(-♦)  Alexaiid.  Lpg.id.  i:i  buli.  Non  dofuit  Papa  F.ifio  x.  in  Riilla  Pastoris  a-lcrni.  Piíis  v 
in  Biill.quic  iiicipit.  Coasiiuvuruut  iloniani  l*oiit.  e;c.  Uiegor.  V.W.  in  BuU.  quyo  iiiciíiit.  Moiut 
AjJOilo!. 

(.«•)  Sixtiis  Y.  ia  Bulia  qux  incipiS.  Dum  in  eíTabllia  nifritorum  iníignia.  S.  Gie^'.  Tapa 
howil.  '£'J.  in  Evarg. 

(•••-)  i'iu3  Y.  iii  Buli.  fjia^v-  i;ici;i.  btcr  dcsidcijb  Iili  cord.  ele. 


70  LIVUO  I  DA  niSTOniA  DE  S.  DOMINGOS 

que  o  outro  he  o  Santo  Oííicio  da  Inquisição,  de  que  também  foi  primeiro 
inventor,  e  ministro.  Mas  temo-nos  divertido  muito,  e  he  tempo  do  tor- 
nar ao  fio  da  historia. 

Apoz  tamanha  maravilha  como  a  que  fica  contada  no  Capitulo  prece- 
dente, obrou  outras  o  Senhor  por  seu  servo,  que  excedendo  o  curso 
natural  das  cousas,  lhe  renderão  grande  gloria  diante  dos  homens.  Li- 
dava já  com  paroxismos  da  morte  o  Procurador  do  Convénio  Frei  Do- 
mingos de  Mele,  ardendo  em  huma  febre  pestilencial.  Era  pessoa  de  im- 
portância pêra  o  governo,  e  bem  da  Communidade,  e  muito  amado  d  ella. 
Choravam-no  todos.  Chegou-se  o  Santo  á  cama,  e  fez  huma  breve  ora- 
ção: fogio  a  doença,  e  ficou  com  inteira  saúde  o  que  era  chorado  por 
morto.  Mas  na  saúde  do  Procurador  avisou  o  Santo  aos  mais  religiosos, 
que  a  perderião  em  breve  dous,  e  acabarião  o  curso  da  vida  mortal : 
a  outros  dous  succederia  pior  caso,  que  fngirião  de  casa  feitos  traido- 
res a  sua  profissão.  Cubrio  a  nova  de  medo,  e  tristeza  a  todos,  receo- 
sos de  qualijuer  das  sortes.  Sérvio  a  profecia  de  olhar  cada  um  por  si, 
e  andarem  apercebidos,  o  com  recato.  Mas  dentro  de  poucos  dias  vi- 
rão com  maior  espanto  o  cumprimento. 

Era  acaljado  o  anno  áe  Í2I8,  e  não  acabavam  as  obras  que  se  fa- 
zião  era  São  Sixto  pêra  as  Freiras:  nem  as  de  Santa  Sa!)ina  pêra  os  Fra- 
des. Gora  a  entrada  do  anno  novo  mandou  o  Pontiíice  apertar,  e  dar 
pressa:  e  vierão  a  passar-se  as  Freiras  no  primeiro  Domingo  da  Quares- 
ma, que  cahio  cm  2i  de  Fevereiro  d'este  anno  de  i219.  Logo  á  quarta 
feira  seguinte  forão  ao  Mosteiro  três  Cardeais,  |)era  assistirem  cm  certa 
soiemnidade  de  renunciações,  que  as  Freiras  haviam  de  fazer  de  fazenda, 
6  próprios  em  mão  de  S.  Domingos.  Estavam  juntos  com  elle  entenden- 
do no  negocio:  eis  que  sentem  na  poi'ta  hum  tropel  de  gente,  e  logo 
muitas  maons  que  batem  n  elia  com  grita,  lagrimas,  e  confusão.  Eram 
os  criados  do  Cardeal  Estefano  de  Fossa  nova,  hum  dos  três  que  esta- 
rão dentro:  contão  que  Napoleon  seu  sobrinho  íicava  morto  no  meio  da 
rua,  e  não  só  morto,  mas  feito  pedaços.  Cae  o  bom  velho  nos  braços 
de  S.  Domingos  todo  desmaiado,  lastimão-se  todos,  e  chorão  duas  mor- 
tes, huma  certa  do  moço,  e  outra  do  velho,  de  que  não  duvidão.  Era  Na- 
peleon  a  luz  dos  olhos  do  Cardeal:  quiz  passar  a  carreira  em  huma  rua, 
lançou-o  o  cavallo  de  si,  de  tal  modo,  que  ficou  no  miserável  estado  que 
dizião.  Ouvindo  os  que  cstavão  na  casa  tamanlio  desastre,  e  que  tinhão 
consigo  a  pessoa  de  São  Domingos,  de  quem  tantas  maravilhas  ouvião,  e 


PARTICULAR  DO  RKLNO  DE  PORTUGAL  71 

sabião,  acodem  a  elle  todos  juntamente,  apertão,  instão,  impor tunSo,  que 
se  compadeça  de  caso  tão  lastimoso,  qne  rogue  por  duas  almas  merecedo- 
ras ambas  de  melhor  fortuna,  e  que  levão  consigo  todo  o  hom,  e  alegria 
da  corte:  que  mostre  aqui  sua  fé,  e  sua  valia  com  Deos.  Encolhia-se  o  Santo 
com  grande  humildade,  e  mostrando-se  igualmente  triste,  e  desconsolado 
com  os  mais,  mandou  a  seu  com.panheiro  que  aparelhasse  pêra  dizer  Missa. 
Foi  tal  a  devação,  e  fervor  do  espirito  com  que  a  celebrou,  que  ao  levan- 
tar da  sagrada  Hóstia  se  levantou  com  ella  no  ar  á  vista  de  todos  bum 
grande  espaço.  Acabado  o  santo  sacrifício  foi-se  ao  corpo  morlo,  seguin- 
do-o  os  Cardeais,  e  grande  numero  de  povo,  concertou  com  suas  maons 
os  membros  torsidos,  e  espedaçados,  chegando  cada  hum  a  seu  lugar,  e 
feito  sobre  elle  o  sinal  da  Cruz,  manda-lhe  em  virtude  de  Jesu  Christo 
que  logo  se  alevante.  Levantou-se  o  morto,  respondeo,  e  falou,  e  pêra 
que  fosse  o  pasma  maior,  pedio  de  comer,  e  comeo  diante  de  todos. 

CAPITULO  XV 

Contão-se  outros  grandes  milagres.  Parte  o  Santo  peva  Espanha.  Escre- 
ve-se  n  que  lhe  succedeo  no  caminho.  Funda  em  Segóvia  Convento  de 
Frades,  em  Madrid  de  Freiras.  Torna  pêra  Itália. 

Fizerão  illustrissimo  o  milagre  que  acabamos  de  contar  as  circuns- 
tancias que  o  acompanharão,  como  forão  a  presença  de  três  cardeais,  a 
nobreza  do  resucitado,  a  grande  multidão  do  povo  que  se  ajuntou,  e 
os  cffeitos  de  alta  devação  que  se  virão  no  Santo.  Seguio  logo  na  gente 
Romana  hum  novo,  e  grande  desejo  de  continuar  a  escola,  e  doutrina 
de  tal  homem.  Corrião  bandos  de  noviços  de  todas  idades  a  Santa  Sabi- 
na, e  bandos  de  donzellas  á  reclusão  de  S.  Sisto  com  tanta  vontade  de 
trocar  por  ella  a  liberdade  do  mundo,  que  achamos  escrito  forão  rece- 
bidas ao  habito  antes  do  Santo  sair  desta  vez  de  Roma  sessenta  Noviças- 
E  pcra  que  ellas,  e  elles  se  confirmassem  na  santa  vocação  contra  as 
siladas,  ê  tenlaçíjes  do  enemigo  commum  usava  o  Senhor  de  grandes 
misericórdias,  e  novas  maravilhas  em  credito,  e  favor  de  seu  servo. 
Âchou-se  o  Santo  hum  dia  em  S.  Sisto  com  trinta  companheiros;  sintio  sede, 
pedio  de  beber,  trouxerão-llic  bum  pequeno  vaso  com  vinho  (que  em  Itá- 
lia, ou  por  costume,  ou  por  serem  agoas  menos  sadias  que  em  Espanha, 
usa-se  pouco  delias  na  bebida  singellamentc)  bebeo,  e  deo  o  vaso  ao 


"73  UMtO  I  DA  IIÍSTOT^ÍA  ^E  S.  DOMINGOS 

que  estava  mais  perlo,  mantlando-lhe  qce  bebesse,  e  passasse  aos  mais, 
para  que  bebessem  todos.  Erão  muitos,  e  o  vaso  não  podia  ser  tamanho, 
que  tirasse  poder  cuidar  algum,  que  era  o  cumprimento  ocioso  pêra  com 
taiilas  locas.  Mas  o  fmo  obediente  não  faz  discursos:  bebeo,  e  foi  passan- 
do o  vaso  de  mão  em  mão  aos  mais.  E  pois  forão  mandados  tomar  a  po>- 
bre  refeição,  persoado-me  que  devia  ser  o  jantar  daquelle  dia,  ou  sem 
provisão  de  vinho,  ou  muito  fraco  de  vianda,  como  e[itão  erão  todos.  E 
como  os  pobres,  e  mal  jantados  bebem  ás  vezes  com  fome  do  tão  bo^a 
vontade,  como  o  fazem  os  ricos,  e  fartos  com  sede,  devião  satisfazer  bem 
á  necessidade,  e  escusar  termos  de  coriezia.  Em  fim  beberão  todos  com 
espanto  de  todos,  e  a  vasilha  inda  mostrava  no  peso  que  não  estava  va- 
zia. E  o  Santo  pêra  que  entendessem  donde  procedia  sua  confiança,  e 
aqtieiíe  vinho,  mandou  que  passasse  ás  Freiras,  e  que  bebessem  todas 
sem  ficar  nenhuma,  e  assi  se  fez.  E  erão  já  a  este  tempo  entre  todas 
cento  e  quatro.  Derão-se  graças  ao  Senhor  por  tão  raro  prodígio,  com. 
que  m.ostrou  sexMlie  tão  fácil  fazer  crecer  o  Ucor  no  vaso,  como  nacer  na 
parra:  e  como  também  crecer  subitamente  a  agoa  no  rio  sem  chuva, 
nem  invernadas,  o  que  se  vio  por  estes  dias,  e  também  em  favor  da 
Ordemi. 

Levavão  dous  Frades  de  Roma  pêra  outra  cidade  hum  noviço  Roma- 
no, moço  nobre,  polo  desviarem  dos  parentes,  que  tomavão  mal  sua 
santa  determinação,  e  pretendião  tiral-o  á  força  do  Convento.  Tinhão 
deixado  atrás  hum  pequeno  ribeiro  que  se  offerece  a  quem  vai  pela  es- 
rada  Numentana,  por  onde  era  seu  caminho,  e  passado  a  pé  enxuto. 
Hião  em  seu  seguimento  os  parentes  a  cavallo,  e  chegando  poucas  ho- 
ras despois  ao  rio,  em  dia  claro,  e  sereno,  subitamente  o  acharão  tão 
crecido  de  agoas,  e  tão  temeroso  de  corrente,  que  lhes  tolheo  a  passa- 
gem, e  trocou  a  tenção  de  fazerem  força  ao  noviço,  reconhecendo  na- 
quella  novidade  o  poder  Divino:  que  de  maneira  acompanhava  o  Santo, 
e  suas  cousas,  que  até  dos^  Demónios  era  temido,  e  obedecido,  quanto 
mais  dos  homens. 

PJanifestou-se  este  respeito  em  dous  casos.  Foi  o  primeiro  em  ha- 
ma  molher  a  quem  juntamente  atormentavão,  e  juntamente  se  ouvião 
falar  nella  sete  espiritos  diííerentes,  e  sete  vozes  distintas,  e  de  todos  a 
livrou  mandando-lhes  o  Santo  imperiosamente  que  logo  a  deixassem.  E 
chamava-a  elle  despois  Sor  Amada,  em  S.  Sisto,  onde  a  recolheo  pêra 
Freira.  Outro  dia  ííizendo  huma  pratica  espiritual  ás  Freiras  na  horta  do 


PARTICULAR  DO  REÍXO  DE  PORTUGAL  73 

Mosielj'0,  começou  o  eiiemigo  a  espantal-as.  Era  a  figura  do  hum  feio  e 
medonho  lagarto  de  duas  cabeças.  Davão-se  por  mortas.  Mandou-lhe  o 
Santo  que  logo  se  fosse  lançar  cm  hum  lago  que  na  horta  havia.  Não  po- 
de resistir:  foi-se  de  hum  salto  mergulhar  n"elle,  e  desapareceo. 

Folgavão  os  Anjos  de  servir  (cousa  hem  de  crer)  a  quem  o  Inferno 
temia.  Achou-se  huma  tarde  em  S.  Sisío;  foi  forçado  deter-se,  entrou  a 
noite  escura,  e  o  tempo  carregado.  Pedião-lhe  as  religiosas,  e  os  compa- 
nheiros que  ficasse  no  mosteiro,  porque  era  longe  a  Santa  Sabina.  Não 
se  deixou  persuadir,  E  quando  o  importunavam  muito,  dizia,  vamos, 
vamos,  que  não  faltará  hum  anjo  que  nos  guie.  E  assi  acconteceo.  Por- 
que aos  primeiros  passos  virão  diante  de  si  hum  vulto,  ao  que  se  po- 
dia divisar  de  homem  mancebo,  que  com  bordão  na  mão  caminhava 
despachadam.ente  ao  passo  delles,  e  como  se  fora  guia  foi  enfiando  as 
ruas  até  Santa  Sabina,  onde  desapareceo.  E  chegando  o  Santo  á  Igreja, 
(porque  no  Convento  dormião  já  desesperados  da  sua  vinda),  as  portas 
se  abrirão  por  si. 

Era  isto  ao  que  se  pode  alcançar  entrada  do  m.arço  deste  anno  em 
que  vamos  correndo  de  1219.  Andava  o  Santo  com  cuidado  de  saber 
dos  seus  que  mandara  a  Espanha.  Parece  que  lhe  revelava  o  Espirito  o 
pouco  que  já  tinha  de  vida  mortal.  Determinou  vel-os.  Á  hora  da  partida 
de  Roma  foi-se  a  S.  Sisto  lançar  a  benção  áquella  companhia  santa.  Acu- 
dirão as  Religiosas  a  seu  Prelado,  e  Pai.  Perguntou  se  faltava  alguma, 
porque  queria  falar  a  todas.  Foi-lhe  respondido  que  três  estavão  em  ca- 
ma ardendo  em  febres,  e  mui  atribuladas,  que  só  isso  as  pudera  ter. 
Chamou  o  Sanío  a  Rodeira,  diz-lhe  que  vá,  e  diga  ás  enfermas,  que  elle 
lhes  manda  que  não  tenhão  mais  febre.  Soberana  confiança,  glorioso  im- 
pério. Vierão  logo  sem  mal  nenhum,  e  como  se  nunca  o  teverão.  Nesta 
vinda  do  Santo  a  Espanha  ha  differença  entre  os  autores  sobre  que  an- 
no foi.  O  Padre  Frei  Fernando  de  Castilho (*)  nos  tira  de  duvida,  e  mostra 
com  boas  razões  que  não  podia  ser  senão  na  conjunção,  e  anno  que  va- 
mos seguindo  de  12  i 9. 

Algumas  cousas  grandes  fez  por  elle  o  Senhor  em  Espanha,  mas  ou 
fosse  por  falta  de  escritores,  (que  em  Espanha  não  havia  então  quem 
escrevesse,  e  os  de  fora  em  chegando  a  feitos  delia  logo  emmudecem, 
como  já  nos  queixamos),  ou  fosse  que  quiz  o  Senhor  ser  imitado  de  seu 
servo  em  não  fazer  m.ilagres  em  sua  pátria,  são  muito  menos  em  nume- 

(.)  Castilho  1).  1.  !;b.  I.  c.  40. 


74  UVUO  I  DA  HISTOniA  DE  S.  DOMINGOS 

ro,  e  em  calidade,  tias  que  em  breve  tempo  deixava  feitas  em  Roma:  e 
pêra  que  se  note  isto  melhor,  não  deixaremos  nenhuma  das  que  andam 
escritas. 

Caminhava  o  Santo  com  muitos  companheiros  discípulos  seus,  ajun- 
t3u-se-lhe  hum  do  P.  S.  Francisco,  que  levava  o  mesmo  caminho.  Em 
C3rto  lugar  inviou-se  lium  cão  ao  Franciscano,  que  acaso  ficara  atrás^ 
pêra  o  morder,  e  fazendo  presa  no  pobre  habito  abrio-lhe  huma  gran- 
de farpa.  Era  no  monte,  e  pêra  quem  o  levava  singelo  sobre  as  carnes, 
fadão-lhe  guerra  vergonha,  c  impossibilidade.  Usou  S.  Domingos  hum 
remédio,  qual  dava  o  lugar,  e  o  tempo,  mas  ao  parecer,  gracioso :  jun- 
tou as  rasgaduras,  tomou  lodo  da  estrada,  apertou-as  com  elle.  Chega- 
dos á  pousada  quiz  o  Frade  coser-se,  achou  que  o  barro  fizera  officio  de 
grude,  não  sò  de  linha,  e  agiilha. 

Mas  acharão  pior  encontro  em  huma  venda.  Entrarão,  e  como  erão 
muitos,  e  genle  a  pé,  descalça,  e  enlameada,  não  se  prometeo  a  vendei- 
ra provei  lo  de  tal  companhia.  Começou  a  enfadar-se,  e  murmurar  pri- 
meh'o  enlre  ^lentes.  jMas  quando  vio  que  em  lugar  de  pedirem  de  comer, 
eniravão  muiío  de  assento  em  conferencia  de  matérias  espirituais,  solta 
a  lingoa  em  huma  corrente  de  pragas  contra  todos,  e  principalmente 
contra  o  que  vio  miis  respeitado,  que  era  o  Santo,  (devia  querer  obri- 
gal-o  a  despejar  a  casa).  Rogou-lhs  elle  com  a  sua  brandura  que  o  dei- 
xasse hum  pouco,  e  temperasse  a  ligoagem.  Foi  o  bom  termo  hysope  de 
agoa  em  forja  acesa.  Já  não  erão  palavras,  se  não  brados,  e  fiuâa.  Affli- 
gio-se  o  Santo,  porque  não  havia  outra  pousada,  e  levantando  o  rosto 
sem  nenhum  género  de  paixão  nem  ira  disse:  Tape-te  Deos  poderoso 
essa  boca,  já  que  rogos  humildes  não  bastão.  Acudio  o  Senhor  por  seu 
servo;  não  sahio  mais  palavra  da  boca  furiosa,  ílcou  muda.  E  pêra  que 
não  tornemos  a  falar  nella,  tornando  o  Santo  pola  mesma  casa  de  volta 
pêra  Itália,  sahio  a  muda,  lançou-se  a  seus  pés,  e  alcançou  por  humilde 
a  fala,  que  perdtira  por  soberba. 

O  primeiro  lugar  de  Castella  que  achamos  nomeado  nesta  entrada  do 
Santo,  he  Guadalajara.  Padccco  neile  hum  grande  desgosto  pêra  prova 
de  paciência,  c  daquella  inteira  verdade,  que  não  ha  Profeta  em  sua  pátria- 
Trazia  muitos  discípulos,  fugirão-lhe  quasi  todos.  Foi  tentação  do  Infer- 
no que  lhe  fez  guerra,  da  qual  o  Santo  teve  revelação,  e  os  avisou,  maS 
permitlio  Deos  que  prevalecesse  o  tentador.  Sintio-se  o  Santo  como  san" 
to,  chorando  no  successo  o  peccado  dos  Apóstatas,  mais  que  o  descredi- 


PARTICULAR   DO   REINO   DE  PORTUGAL  7o 

to,  OU  (Icsemparo  próprio,  e  com  invencível  paciência  imilando  ao  Sal- 
vador, (alou  a  três  que  só  ficarão,  perguntando-lhes  se  queriam  também 
ir-se.  Mas  nem  estes  quizeiTio  deixal-o,  nem  os  outros  se  perderão  to- 
dos, que  poucos  dias  dcspois  tornarão  os  mais  â  obediência  de  seu  Mestre. 
Com  os  três  passou  por  então  á  Cidade  de  Segóvia,  onde  sendo  bem  ou- 
vido, aceitou  sitio  pêra  fundar  casa,  e  foi  por  elle  escolhido  entre  huns 
penedos,  em  qae  lhe  deu  gasalhado  huma  lapa,  que  por  ser  acomodada 
pêra  seus  exercícios  de  oração,  e  disciplinas,  lhe  servia  de  cella,  c  ora- 
tório. E  porque  as  pedras  toscas  delia  sendo  borrifadas  com  o  sangue  do 
Santo  conservarão  longos  annos  aquelles  sinais,  veio  polo  tempo  adiante 
a  ficar  mettida  no  Convento  em  huma  capeila  de  sua  vocação.  Creceo  a 
devação  no  povo,  porque  em.  hum  dia  de  Sol  claro,  e  Ceo  sereno,  que 
nenhuma  esperança  dava  de  humidade,  sospirando  todos  por  agoa,  por- 
que se  perdiam  as  novidades  por  seca,  prometeo  no  sermão  que  fazia  a 
grande  multidão  de  gente,  que  Deos  lhes  acudiria  no  mesmo  dia  com 
sua  misericórdia.  E  virão  cumprida  a  promessa,  e  regada  a  terra  de 
grande  abundância  d'agoas  ainda  antes  de  acabado  o  sermão.  Não  edi- 
ficou menos  outra  promessa,  que  melhor  direm.os  prophecia,  que  não 
tardou  anno  inteiro  em  se  cumprir.  E  foi  o  caso,  que  hum  homem  dos 
principais  da  terra,  começando  o  Santo  a  pregar,  se  levantou,  e  deixou 
a  pregação,  juntando  á  descortezia  da  obra,  outra  maior  de  palavras 
contra  o  Santo.  E  o  Santo  disse  logo  aos  que  ficavão  que  rogassem  a 
Deos  por  elle,  porque  antes  do  anno  acabado  seria  morto  por  seus  ini- 
migos. E  assi  aconteceo.  Que  justo  he  que  o  pague  quem  traía  com  des- 
prezo a  doutrina  do  Ceo.  Melhor  se  houve  na  mesma  Cidade  huma  boa 
molher;  souiip  guardar  como  jóia  preciosa  huma  túnica  do  Santo,  que 
fora  diía  ver-se  hoje,  pêra  confusão  do  mimo  com  que  nos  tratamos,  (era 
de  áspero  burel),  e  deu-lhe  por  ella  outra  de  verdeiro  silício.  Guardou- 
a,  e  queímando-se-lhe  por  desastre  a  casa,  com  quanto  nella  havia,  só 
perdeo  a  força  o  fogo  contra  huma  grande  arca,  em  que  tinha  junto,  e 
fechado  o  que  possuía  de  preço  em  companhia  da  santa  relíquia. 

Deixada  boa  ordem  na  nova  estancia  de  Segóvia,  foi-se  o  Santo  á  vil- 
la  de  Madrid,  onde  tinhão  tomado  assento  os  discipulos  que  inviára  com 
dom  Frei  Sueiro  Gomes.  Não  declarão  as  historias  se  erão  todos  três, 
ou  parte,  ou  se  era  gente  chamada  já  por  elle  á  Religião.  Quaesquer  que 
fossem:  achou  que  estava  delles  a  terra  bem  satisfeita,  c  lhes  tinha  sina- 
lado pêra  morada  sitio  competente;  e  por  boas  conveniências,  e  polo  que 


76  LIVRO  I  DA  IlISTOr.íA  DE  S.   DOMíXGOS 

se  colligo  do  escrituras  autenticas,  os  três  companheiros  não  esíavão, 
nem  podião  estar  jtiiUos,  nem  parados.  Porijue  neste  mesmo  tempo  íi- 
nhão  ordenado  principio  de  casas,  ou  residências  em  Palencia,  e  em  Ca- 
mora,  e  Salamenca,  e  também  emToIedo(*).  Erão  estes  principios  residi- 
rem nos  Hospitais,  continuando  exercicio  de  charidade  com  os  enfer- 
mos, e  acudindo  a  corpos,  e  almas.  Dali  saliião  a  pregar  às  igrejas,  e  se 
o  povo  era  muito  pregarão  nas  praças,  e  despois  fazião  doutrina  polas 
ruas.  E  assi  procedião  até  terem  casa,  se  a  terra  lha  dava,  ou  passavão 
a  outras.  E  não  lia  duvida  que  em  Barcelona,  e  Saragoça  íinhão  deixado 
ordem,  e  gente  pêra  fundarem  crecendo  o  numero,  e  fervor  dos  Reli- 
giosos por  toda  parte(**).  Epola'mesma  rezão  podemos  cuidar  que  os  li- 
nha o  Santo  chamado,  e  mandado  jantar  em  Madrid  como  a  Capitulo,  e 
pêra  dar  assento  nas  cousas  de  Espanha:  e  he  de  crer,  que  lhe  acudiria 
também  de  Portugal,  e  do  seu  novo  Convento  de  Monte  junto  o  Prelado, 
com  quem  primeiramente  os  mandara  peregrinar.  Mas  disto  não  acha- 
mos memoria  nem  certeza:  a  conveniência  he  grande  com  o  que  diremos 
no  fim  do  Capitulo.  Porque  a  vinda  de  S.  Domingos  a  Espanha  com 
tanta  pressa,  que  quasi  não  teve  hora  pêra  parar  em  nenhum  lugar,  não 
devemos  conceder  que  foi  inconsiderada,  nem  só  a  fim  de  fundar  em 
Segóvia,  e  Madrid.  Mas  com  alio  pensamento,  e  como  dando  forma,  e 
regra  ao  que  hoje  fazem  os  Prelados  maiores  seus  successores.  Determi- 
nava fazer  huma  junta  geral  de  seus  filhos,  quiz  ver  primeiro  a  todos 
por  seus  olhos,  como  vivião,  e  procedião.  E  por  isso  foi  logo  passando 
aos  mais  lugares  da  Christandade,  onde  sua  Família  começava  a  ter  ga- 
salhado,  que  todos  correo,  e  visitou  dentro  deste  anno.  As  ordens  que 
deu,  forão  animar,  e  consolar;  não  reprender,  nem  emondar.  Porque 
na  verdade  estavão  tão  bem  fundadas  aquellas  novas  prantas  com  o  que 
de  seu  espirito,  e  com  a  fama,  e  exemplo  de  suas  virtudes  lhes  comuni- 
cava ausente,  que  achava  era  todas  muito  que  louvar,  nada  que  reprovar. 
Avisou  em  geral  que  pêra  dia  de  Pentecoste  do  anno  seguinte  de  12:20 
celebraria  Capitulo  em  Bolonha,  e  logo  deixou  apontados  os  Religiosos 
que  de  cada  terra,  e  província  havião  de  ir  a  elle.  Em  particular  orde- 
nou que  no  sitio  que  os  Frades  tinhão  em  Madrid,  com  o  pouco  que  já 
possuião  de  próprios  se  fundasse  Mosteiro  pcra  Freiras,  e  tudo  renun- 
ciassem nellas.  E  de  dous  sojeitos  a  que  nesta  jornada  lançara  de  suas 

(.)  Castilho  p.  1.  lib.  1.  c.  53. 

(*•)  Âniiai»  de  Aragão  1.  i.  c.  70.  Castillio  ubi  sup. 


PARTICULAR    DO    REINO  DK  PORTUGAL  77 

liomditas  mãos  o  liabito,  ambos  cie[idac{e  madura,  e  ambos  chamados  Do- 
mingos, (ao  qne  parece  em  devação  do  Mestre,  e  detestaç-ão  do  mundo 
deixado),  a  liiim,  que  era  natural  de  Segóvia,  e  se  cliamava  de  sobreno- 
me Mimhós,  mandou  ficar  em  companhia  das  Freiras,  e  deile  ha  hoje 
memorias  no  Mosteiro:  ao  outro,  que  era  Portuguez,  e  o  sobrenome  de 
Cubo,  mandou  acompar,  e  ajudar  a  dom  Frei  Sueiro,  bom  argumento 
de  que  estava  presente.  E  isto  assentado  tratou  logo  de  sua  partida. 

CAPJTULO  XVI 

Parie  o  Santo  de  Madrid  pcra  lialia :  c  dom  Frei  Sueiro  prra  Portugal. 
Pedem  Prelados  de  Portugal  a  dom  Frei  Sueiro  Pregadores  pêra  seus 
Bispados.  A  infante  dona  Branca  offcrece  fundar  casa  em  Coimbra. 

Despedio-se  São  Domingos  de  seus  filhos,  e  tomou  o  caminho  de  Fran- 
ça pola  via  de  Çaragoça.  Ficarão  os  filhos  com  magoa  do  pouco  tempo 
que  lograrão  a  vista  do  pai :  e  forão-se  cada  hum  pêra  onde  os  chamava 
sua  obrigação.  Tornou-se  dom  Frei  Sueiro  sem  perder  jornada  ao  seu 
Monte.  E  como  era  já  mui  divulgada  polo  Reino  sua  virtude,  e  a  dos  seus 
moradores  do  deserto,  achou  que  o  esperavão  recados  da  Infante  dona 
Branca,  e  de  alguns  Prelados ;  delles,  pêra  lhes  ir  pregar  em  suas  Dio- 
cesis,  ou  mandar  quem  o  fizesse.  Delia,  pêra  o  ouvir,  e  ter  perto  de  si 
casa  da  Ordem.  De  huma  cousa,  e  outra  achamos  letras  autenticas.  São 
as  priuieiras  de  hum  Bispo  de  Coimbra  com  hcença  mui  ampla  pcra  elle, 
e  seus  Frades  pregarem  naquelle  Bispado :  e  não  só  licença,  mas  também 
iiidulgcncia  pêra  quem  os  ouvisse,  e  commissão  pêra  emendarem,  e  cas- 
tigarem as  desordens  que  achassem.  E  são  as  que  se  seguem,  tiradas  do 
original  de  verbo  ad  verbum. 

Peírus  Collimhriensis  Ecclesies  3íinister  humilis,  lícct  indignus ;  vm- 
versis  Christi  fidelibus  per  Collimbriensem.  Episcopatum  commorantihus  ad 
gnoscunque  isíce  literce  pertienerinl,  et  iUis  gui  eas  legcre  audierint  salu- 
tem  et  benedictionem.  Vniuersitnti  vestrce  noUficetur,  quod  nos  concessimus, 
et  concedimus  Bomno  Suerio  de  Ordine  Projdicaíorum  Priori,  et  omnibus 
suis  Frairibus  liceníium  prwdicandi  per  fotum  Collimbriensem  Episcopa- 
tum. Et  adhuc  concedimus  ellicenfiam  et  poleslatem  compelíendi  et  corn- 
gcndi  omnes  excessus,  quaícnus  Dei  gratia  vos  omnes  per  eorum  prcedica- 
tioncm  melius  et  facilius  ad  f.dem  Catholicam  vos  vakcmt  perducere.  Et 


78"  LlVnO  I  DA  HISTORIA  DE  S.    DOMINGOS 

eliam  addimus,  quod  ipsi  vobis  conccdant  absolutionem  peccatorum  vcsiro- 
rum  quadraginta  dierum ;  de  illis  dicimus,  qui  ad  procdicaiionetn  eorum 
venerint,  et  eos  benigué  audierint,  et  eorum  prcedicattonc7n  cxaudierint. 

Em  nossa  linguagem  respondem  assi.  Pedro  humilde  ministro  da 
Igreja  de  Coimbra,  inda  que  indino,  a  todos  os  fieis  Christaons  n'este 
Bispado  moradores,  a  que  estas  letras  chegarem,  e  as  lerem,  e  ouvirem, 
saúde  e  benção.  Seja-vos  a  todos  notório,  que  nós  temos  dado,  e  damos 
licença  a  dom  Sueyro  Prior  da  Ordem  dos  Pregadores,  e  todos  seus  Fra- 
des, pêra  pregarem  por  todo  o  Bispado  de  Coimbra.  E  assi  lhe  damos 
mais  licença,  e  poder  pêra  emendarem  todas  as  desordens  que  acharem, 
obrigando,  e  constrangendo  as  partes:  a  fim  que  mediante  a  graça  de 
Deus,  e  sua  pregação,  vos  possão  melhor  doutrinar,  e  com  mais  facili- 
dade instruir  nas  cousas  da  fé  Catholica.  E  queremos  outro  si,  que  em 
nosso  nome  vos  dcm,  e  concedam  indulgência  de  quarenta  dias  do  per- 
dão :  áquelles  entendo,  que  acudirem  ás  prégaçoens,  e  as  ouvirem  de 
boa  vontade,  e  a  suas  amoestaçoens  obedecerem. 

Ainda  que  estas  letras  não  tem  data,  pola  narração  d'eH3s  se  deixa 
entender  o  tempo.  Porque  como  falão  com  dom  Frei  Sueyro  Prior,  di- 
zendo, Priori,  denotão  que  já  tinha  Convento,  e  súbditos.  O  que  não 
foi,  nem  podia  ser,  senão  dentro  dos  annos  de  1218,  e  1219,  e  poucos 
meses  do  seguinte,  no  qual  foi  eleito  provincial.  E  assi  ficamos  alcan- 
çando a  data  com  mais  verdade,  que  se  a  teveramos  por  números  de 
arismetica  que  muitas  vezes  o  tempo  borra,  e  o  descuido  troca.  E  tira- 
mos d"aqui  outra  certeza  muito  importante,  de  que  alguns  escritores 
dão  noticia,  que  hc  do  modo  que  n'aquelles  tempos  fazião  os  nossos 
Frades  o  ofiicio  da  pregação :  o  qual  era  correrem  toda  a  terra,  sem 
deixar  aldeã  por  vil,  "e  desprezada  que  fosse,  desterrando  ignorâncias 
d"aquella  rudeza  bronca,  e  grosseira,  e  com  paciência  dando  a  sentir 
nos  entendimentos,  e  guardar  nas  memorias  as  verdades  da  Fé.  E  não 
se  contentavão  com  este  exercicio  só  nas  terras  em  que  tinham  Con- 
ventos. Porque  como  as  taes  erão  de  ordinário  povoaçoens  grandes, 
onde  sempre  ha  muitos  doutrinantes,  e  melhor  noticia  das  cousas,  acha- 
vão  que  se  tirava  mais  fruto  do  trabalho,  empregando-se  nas  aldeãs,  e 
insinando  n'ellas  aos  mjninos,  e  aos  velhos  igualmente  necessitados  de 
doutrina,  da  qual  despois  composerão  cartilhas,  que  ainda  chegarão  al- 
gumas a  nossos  lomijos.  E  em  fim  era  o  mesmo  oííicio  que  com  muito 
louvor  fazem  hoje  nos  lugares  em  que  assistem  os  Padres  da  Companhia 


PAUTICLLAI'.  DO  ÍIEINO  DK  PORTUGAL  t9 

de  Jesu.  Que  na  verdade  os  filhos  das  ordens  regulares  viemos  ao  mun- 
do pêra  ajundantes  do  minisierio  Ecclesiastico,  e  Episcopal.  E  se  o  em- 
prego a  Deos  mais  acceiío,  lie  onde  vai  maior  necessidade,  ninguém  me 
negará  que  nos  lugarinlios  pobres,  esquecidos,  e  miseráveis  se  faz  muito 
mais  serviço,  e  não  basta  dizer,  que  esses  tem  seus  Curas  particulares. 
Porque  se  somente  se  lia  de  acudir,  onde  ha  falta  de  Curas,  mais  letra- 
dos, e  mais  diligentes  os  tem  as  cidades.  E  por  esta  rezão  corrião  os 
nossos  Frades,  tudo  (como  se  coUige  da  lingoagem  do  Bispo),  e  cliama- 
vão  a  isto  n"aquelle  tempo  apostolar,  segundo  ao  diante  o  veremos  me- 
lhor. 

Mas  t(irnando  á  historia,  a  infante  dona  Branca,  que  despcis  foi 
Senhora  de  Guadalajara  em  Castella,  (segundo  afíirma  Duarte  .Nuiiss  de 
Lião)(*)  era  irmã  das  Infantes  dona  Tareja  senhora  deMoniemór  o  velho,  e 
dona  Sancha  senhora  de  Alanquer,  e  todas  três  filhas  dei  Rei  dom  San- 
cho primeiro,  e  irmãs  dei  Rei  D.  Affonso  Segundo,  que  por  este  tempo 
reinava.  Esta  dona  Branca  vivia  junto  a  Coimbra  em  companhia  de  dona 
Tareja,  e  estando  já  n'este  tempo  quietas  todas  da  força  que  el  Rei  seu 
irmão  pretendeo  fazer-lhes  nas  villas  que  possuiani,  (como  atrás  tocamos) 
porque  se  tratava  de  composição :  desejava  á  imitação  de  sua  irmã  dona 
Sancha  ter  junto  de  si  casa  da  Ordem  de  São  Domingos,  e  gozar  de  sua 
doutrina.  Pêra  este  eíTeito  quiz  ver,  e  ouvir  a  dom  Frei  Sueyro,  e  offe_ 
recia  comprar-lhe  sitio  em  Coimbra,  e  fazer  a  despeza  do  edifício.  E  pa- 
rece que  foi  traça  pêra  o  mais  obrigar,  ajuntar  ao  seu  recado  as  letras 
do  Bispo.  Não  ha  duvida  que  acudio  dom  Frei  Sueyro  a  huma  cousa, 
e  outra  com  aquelle  zelo  das  almas  que  de  seu  Mestre  aprendera,  ainda 
que  vinha  necessitado  de  descansar  do  caminho  de  i\ladrid,  que  tomara 
a  pé,  como  n'aquelle  tempo  se  faziam  todos  n"esíe  religião  por  lai-gos 
que  fossem.  Succedeo-ihe  a  jornada  bem,  como  todas  as  que  tem  por  fim 
a  Deos.  Porque  entre  muitos,  e  bons  sujeitos  que  Coimbra  lhe  deu  pêra 
o  habito,  lançou-o  a  hum  natural  da  mesma  Cidade,  que  despois  deu 
grande  Santo,  como  ao  diante  veremos:  Era  o  povo  grande,  de  gente 
bem  inclinada,  e  branda,  achou  bom  sitio  nas  almas  pêra  o  edifício  es- 
piritual, porque  era  ouvido  com  muita  vontade,  e  respondia  a  ella  o 
frui  to.  E  não  se  agradou  menos  do  posto  que  alcançou  na  terra  pêra  a 
fabrica  material  do  Convento,  que  foi  pegado  com  a  Cidade,  e  sobre  o 
rio,  onde  chamavão  a  Figueira  velha.  Não  nos  consta  do  tempo  que  aqui 

(•)  Diiarle  Kaiies  dt  Lião  ua  vida  dei  Rei  dom  í'anc'ao  piimeiro. 


80  I.IVRO  I  DA  HISTORIA  DE  S.   DOMINGOS 

se  deteve  dom  Frei  Sueyro,  nem  do  dia,  o  anno  em  que  começou  a  obra 
do  Convento,  mas  por  escrituras  antigas,  de  que  ao  diante  daremos  no- 
ticia, e  treslados,  se  collige,  que  por  este  tempo  teve  principio,  c  que 
sete  annos  despois  d"este  em  que  vamos  correndo,  que  vem  a  ser  no 
de  1227,  havia  já  Convento  formado  com  Prior,  e  Supprior.  E  tomou 
esta  Princeza  tanto  a  peito  a  obra,  e  com  tal  gosto,  que  a  nenhuma 
pessoa  quiz  dar  parte  n"ella,  se  não  foi  á  Infante  dona  Tareja  sua  irimi. 
De  tudo  damos  adiante  larga  relação  em  Capitulo  particular(*).  Porque  me 
pareceo  mais  clareza  das  matérias  dizer  juntamente  tudo  o  que  toca 
a  cada  Convento  com  sua  fundação,  e  cousas  notáveis  no  lugar  que  lhe 
couber  por  sua  antiguidade,  e  successão  :  que  não  ir  misturando,  e  te- 
cendo os  successos  de  huns  Conventos  com  outros,  só  por  guardar  com 
pontualidade  a  rezão  dos  tempos  de  cada  hum,  quando  caem  juntos 
em  um  mesmo  anno.  Visto  como  he  mais  acertado  levar  desembaraçado, 
e  corrente  o  sustancíal  da  Historia,  que  consiste  nos  successos,  que  não 
o  particular  do  tempo,  e  conjunção  de  cada  successo,  que  fica  remediado 
com  o  repetirmos,  e  especificarmos  de  novo  em  seus  lugares,  e  onde 
parecer  necessário.  A  este  trabalho  nos  obriga  a  calidadc  de  historia 
que  nos  coube  em  sorte,  que  sendo  como  he  de  muitos  Conventos,  e 
muitas  fundaçíjes,  e  sendo  força  escrever  os  successos  que  ha  de  todos 
por  discurso  de  largos  annos :  cada  Convento  por  si  faz  huma  historia 
própria.  E  fica  esta  escritura  hum  volume  de  Crónicas,  ou  mais  propria- 
mente hum  aranzel  de  relações  de  Conventos:  pois  a  cada  passo  ha  de  ser 
cortada,  e  estroncada  em  tantas  Crónicas,  ou  relaçocns  particulares,  quantos 
Conventos  tever.  Desgosto,  e  fadiga  grande  pêra  quem  escreve,  que  não 
tem  outro  allivio,  senão  cuidarmos  que  por  novidade,  e  variedade  fica- 
rá a  quem  ler  deleitosa.  Dado  este  aviso  que  era  necessário,  tornemos 
á  nossa  Historia. 

Deixada  bastante  ordem  em  Coimbra,  passou  dom  Frei  Sueyro  a 
Braga,  e  a  Guimaraens.  Era  Guimaraens  n^aquelle  tempo  huma  das 
terras  de  mais  importância,  e  de  mais  estima  do  Reino.  Tinham  n"ella 
suas  casas,  e  assento  muitos  fidalgos,  e  muita  outra  gente  nobre,  eriça, 
que  se  prezava  por  Christandadc,  e  por  termo  de  honra,  e  cortezia  abra- 
çar a  religião,  e  professores  delia.  Assi  quasi  no  mesmo  tempo  derão 
gasalhado  aos  filhos  dos  dous  grandes  Paíríardias  Fi-ancisco,  e  Domin. 
gos.  Os  Franciscanos  com  Frei  Gualter  houverão  hum  pequeno  oratório 

(•)  L.  3  c.  j. 


f>AUT!C.rí.AR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  '  8t 

apartado  da  viH:\(*):  d'onde  despois  de  alguns  annosse  passarão  ao  Con- 
vento maior  que  edificarão  junto  d'elia.  Dom  Frei  Sueiro  com  os  seus 
foi  agasalhado  no  hospital  da  villa,  e  n'elie  residirão  muito  tempo  seus 
successores,  (tão  bons  de  contentar  erão  então  os  Religiosos),  saindo  a 
pregar  polas  terras  vizinlias,  e  tornando-se  a  "recolher  a  ello.  Donde 
veio  ficar-ihe'  o  nome  de  Hospital  de  S.  Domingos :  e  estarem  hoje  as 
paredes,  e  r(^:;iboío3  ua  Igreja  clieios  de  memorias  suas,  e  dos  Santos 
da  Ordem.  E  quando  cinquenta  aunos  adiante  viemos  a  ter  primeiro 
Convento,  e  Igreja  na  villa,  inda  que  os  Frades  deixarão  a  morada  do 
Hospital,  que  até  então  fora  sou  Convento,  ficou  em  costume  que  hoje 
dura,  (sem  se  saber  o  fundamento)  ir  hum  Religioso  todos  os  Sábados 
do  anno  dizer  Missa  n"elle.  Mas  ao  diante  no  titulo  d"esíe  Convento,  (como 
em  seu  próprio  lugar),  faremos  mais  larga  relação  d"esta  antiguidade. 

Não  podia  dom  Frei  Sueiro  andar  estes  caminhos  devagar,  pois  ti- 
nha por  diante  a  obrigação  de  aparecer  em  Bolonha  por  Pentecoste  do 
anno  que  entrava,  como  deixamos  dito,  lhe  era  ordenado  por  S.  Domin- 
gos. Tornou-S3  ao  seu  Convento  com  propósito  de  começar  a  jornada 
€om  cedo.  Visitou  em  Alanquer  a  infaiite  dona  Sancha,  e  dando-lhe  conta 
do  que  deixava  assentado  com  sua  irmam,  dos  Frades  que  deixava  ena 
Coimbra,  e  Guimaraens,  do  fruito  que  fizera  em  ambos  os  lugares,  e 
Noviços  que  recebeo,  consolava-se  muito  a  Princesa,  como  Santa  que 
era,  e  dava  graças  ao  Senhor,  que  a  fizer-a  de  laes  obras  medianeira, 
e  acendendo-se  em  verdadeira  caridade  cabia  na  conta  do  injusto,  e  in- 
soportavel  trabalho,  que  padeciam  os  seus  Frades  na  vivenda  da  serra, 
de  que  nacia  não  poderem  communicar  a  santa  doutrina  com  tanta 
continuação  com.o  as  necessidades,  e  devação  dos  povos  pedião.  Mas 
clles  Sião  desisilão  da  sobida,  e  decida  do  monte :  e  o  prelado  com 
mais  animo  que  todos,  dando  cada  hora  mais  vivos  exemplos  de  ca- 
ridade, e  mortificação,  com  que  se  fazia  venerar  dos  súbditos,  e  res- 
peitar de  toda  a  comarca,  e  polo  Reino  corria  sua  fama  como  de  homem 
Santo. 

.    (;)  F.  Marcos  de  Li-bea  p.  i.  !.  C.  c.  ÍO. 


VOL.   í 


82  LIVr.O  I  DA  niiTORIA  DE  S.   DOMÍNÍiOS 

CAPITULO  XVIÍ 

PiirlP  I).  Frei  Siiciro  fera  o  pririieiro  Capitulo  (jeral  de  sua  Ordem  a 
Jiiiliii.  ConUi-se  o  que  succedeo  a  São  Domingos  despols  (pie  sahio  de 
Madrid  até  d  cclebnação  d'eUe:  c  o  que  ficou  ordenado  naquella  santa 
junta. 

No  primeiro  tempo  que  o  nnno  novo  cie  1220  prometteo  serenidade, 
tomou  dom  Frei  Saeiro  seu  bordão,  e  Breviário,  que  forão  es  Compa- 
nheiros com  que  primeiro  entrou  por  terras  de  Espanha,  c  em  Portu- 
gal. E  sem  outro  ah''orge,  nem  viatico,  e  sem  dar  moléstia,  nem  ser  pe- 
sado a  nJnguem,  (ditosa  confiança,  dina  de  nos  fazer  grandes  envejas),  se 
poz  a  quatrocentas  léguas  de  caminho.  Antecipou-se  pêra  chegar  a  ten>- 
po,  porque  caminhava  a  pé,  e  não  queria  perder  a  consolação  de  ver, 
e  tratar  de  passagem  os  Religiosos  de  Gastella,  e  Aragão,  que  todos  o 
rcconlrecião,  e  veneravão  por  pai. 

N"ests  tempo  tinha  S.  Domingos  passado  Aragão,  atravessado  França, 
decido  pelos  Alpes  a  Lombardia,  visto  Borgamo,  e  Bolonha,  e  em  fim 
entrado  em  Roma,  d'onde  sairá  por  Março  do  nnno  próximo  passado  de 
Í2i9.  PJuitos  casos  houve  na  jornada  dignos  de  memoria.  Iremos  apon- 
tando alguns.  Em  Çaragoça  visitou  os  seus  Frades  em  hum  pobre  re- 
eolhimento  que  já  tinlião  sobre  o  rio  Ebro.  Pregou  na  Cidade,  e  fez 
huma  admirável  conversão.  Entrava  pola  Igreja  ao  principio  do  sermf» 
hum  homem  dos  principais  da  terra,  (devia  ser  curiosidade,  se  pior  fim 
não  era).  Descubrio  Dúos  aos  olhos  do  Santo  huma  legião  de  Demónios 
que  o  cercavão,  por  aviso  de  quí>l  era  a  vida  que  fazia.  Encheo-se  de 
compaixão,  e  pedindo  a  Dcos  misericórdia  por  elle  dentro  de  sua  alma, 
aliou  a  linguagem,  encareceo  os  perigos  do  peccado,  pena  de  fogo,  c 
t)rmento  eterno  dos  condemnados.  Bem  se  diz  que  lie  mais  afiada,  e 
cortadora  que  huma  espada  de  dous  gumes  a  palavra  de  Deos(*).  Ficou  o 
fidalgo  penetrado  de  medo  polo  que  em  si  siulia :  e  foi  primeiro  eíTeito 
trazel-o  a  outro  sermão.  N'elle  permitlio  o  Senhor  pêra  salvação  sua,  e 
aviso  de  todos,  e  por  merecimento  do  Sauto,  que  visse  toda  a  Igreja  o 
infernal  esquadrão  que  o  seguia.  Foi  tal  o  espanto,  e  terror  que  não 
parou  homem  dentro.  O  mesmo  pcccador  de  confuso,  e  coi-rido  queria, 
se  pudera,  fogir  de  si.  Wandou-lhe  o  Sanlo  hum  Rosário,  ir.sinou-lhe  a 
devação:  ajuuado  d'eria  emendou  a  vida,  e  veio  a  ganhar  a  alma. 

(.)  Utbi-.  i 


PAUTicuLAu  DO  isEixo  DK  roimr.AL  83 

Em  Tolosa  visitou  os  seus  Conventos  do  São  Xlomuo,  cPruliiano.  To- 
mou de  S.  Romão  oito  Frndcs,  c  foi-sc  na  voiía  de  Paris.  Faltou  na  pri- 
meii'a  jornada  a  csinoia:  orão  muitos,  e  índos  rançados,  a  comida  pouca, 
e  pêra  l)el)ida  liain  vaso  mui  pequeno  de  vinlio.  Mandou-o  vazar  em 
ouíro  grande,  e  que  fora  bastante  pêra  a  companhia,  se  fieira  cheio 
e  disse  que  o  acabassem  de  encher  de  agoa.  Poserão-iho  diante,  lan- 
çou-lhe  a  benção,  (santa,  e  poderosa  benção),  beberão  iodos  vinho  sabo- 
roso, e  fino.  Não  he  pêra  ficar  em  silencio  que  essa  mesma  noite  dis- 
pois  de  deixat  os  companheiros  na  pousada  bem  accommodados  se  f(  i 
cá  Igreja  pêra  dar  graças  a  Deos  da  mercê  recebida,  e  tomou  por  recrer- 
ção  do  trabalho  do  dia  passar  em  oração  até  pola  manham. 

No  dia  seguinte  deu  com  nuns  fidalgos  Alemaens,  que  em  habito  do 
Romeiros  levavão  a  mesma  estrada.  Forão-se  todos  juntos,  deleitando-se 
os  Alemaens  na  novidade  do  traje  dos  Frades,  e  muito  mais  na  ordem 
com  que  caminhavão,  que  era  cantando  Ilymnos,  o  parando  a  espaços 
a  fazer  oração.  Maníiverão-lhe  companhia  os  Romeiros  quatro  dias,  ten- 
do-o  sempre  por  convidado  cora  todos  os  seus,  e  não  consintindo  quo 
tomassem  o  ti-aballio  costumado  de  ir  mendigar  polas  portas.  Ao  quin'o 
pareceo  ao  Santo  pouco  primor  deixar  passar  tanto  tempo  sem  dar  algum 
género  de  agradecimento  áquella  caridade.  Ficou-se  um  pouco  atraz,  fez 
oração,  e  tornando  a  alcançar  os  companheiros,  começou  a  travar  pra- 
tica com  os  Alemaens,  em  sua  iingoa,  fallando-a  tão  cerceada,  e  pronta, 
como  se  naccra  em  Alemanha :  c  espantando-os  com  o  milagre,  ponji  e 
até  aquella  hora  fora  mudo,  alcgrou-os  com  linguagem  do  Ceo,  c  matei 
rias  da  alma,  que  lhes  foi  tratando  por  espaço  de  outros  quatro  dias, 
que  aiiida  forão  jiiníos.  Omesmo  se  escreve,  (se  não  hc  maior  caso),  (jie 
lhe  acontecco  outra  vez  topando-se  com  hum  varão  santo  de  terra,  e  lii;- 
goa  mui  estranha,  que  entenderão,  c  communicarão  ambos,  fallando  cada 
hum  a  sua  natural. 

Mas  n'es[a  jornada  notou  Frei  Beltrão  do  Garriga  discípulo  dos  ant:- 
gos,  e  seu  compauhoiro  n'ella,  outra  maravilha  que  despois  contava,  jul- 
gando-a  por  muito  mais  prodigiosa.  Caminhavão  longe  de  povoado,  a:- 
mou-se  uma  t!'ovoada,  cí)raeçou  a  lançar  de  si  apoz  relâmpagos,  e  })om- 
bardadas  de  trovões,  pedra  grossa,  e  grande  agoa,  e  vinha-sc  pêra  elles 
a  toda  fúria  com  força  de  vento.  Não  havia  tempo  pêra  lhe  fugir,  nem 
roupa  pêra  a  esperar.  Poz  os  olhos  no  Ceo,  fez  o  sinal  da  Cruz  contra  a 
cila.  Descarregou  a  tempestade  sem  torcer  nem  parar:  mas  elles  forSo 


gi  LIVRO  I  TíX  Ili.-TOP.IA  DE  P.   DO^ríNGO.^ 

caminhando  como  moUitlas  cm  hum  toldo  sera  lhes  locar  goía  do  agoa. 
Outras  vezos  siiccodia  chegar  á  pousada  passado  da  chuva,  e  coherío  de 
lodo :  e  o  alhvio  que  linha  era  agasalhar  os  Frades  com  hoa  fogueira 
porá  se  enxugarem,  e  elle  ir-se  buscar  a  igreja,  e  n'elia  passar  cm  ora- 
(;So  a  noite  inteira.  Porem  pagava-I!ie  o  Senhor  cm  consolações  do  Cco, 
o  porque  fossem  entendidas  dos  seus,  noíavão  eiies  que  quando  os  vi- 
iilia  demandar  pola  manliã,  não  havia  habito  mais  enxuto  na  companhia 
que  o  seu.  Abrangia  ao  vestido  o  fogo  que  ardia  na  alma. 

Chegou  a  Paris  á  nossa  igreja  de  Santiago,  que  foi  a  primeira  que 
ali  tivemos,  donde  teve  origem  o  nome  que  os  Francezes  nos  dão  de  Ja- 
cobinos. Alegrou-se  dever  os  Frades  já  quietos  n^ella. Porque quasi  iium 
anno  inteiro  tinlião  feito  sua  estancia  em  hum  hospital.  Passou  depressa 
por  atravessar  os  Alpes  antes  da  fMxa  do  inverno.  No  lagar  de  Casle- 
íar  foi  agasalhado  por  hum  bom  Sacerdote  com  lodos  os  que  levava,  com 
festa,  c  boa  sombra.  Mas  perturbou  tudo,  e  a  todos  hum  grande  desas- 
tre. Acabavão  de  entrar,  quando  vem  poios  ares  caindo  do  alto  de  hum 
eirado  hum  sobrinho  do  hospede,  com  tal  Ímpeto  que  ficou  ho  chão  es- 
tirado, sem  sentido,  e  com  as  pernas  quebradas,  e  parecia  ler  acabado 
seus  dias.  Desconsolados  todos,  e  juntos  sobre  elle  em  pranto,  acudio  o 
Santo  á  oração,  refugio  seu  em  todo  o  trabalho.  Esíandí5n'erialevantou- 
se  o  que  davão  por  morto,  são,  e  salvo,  como  se  espertara  de  algum 
sono.  Dobrou-se  a  festa  com  a  maravilha,  e  íicarão  por  convidados  os 
parentes,  e  amigos  que  vinhão  ajudar  a  chorar.  Postos  á  mesa  vio  o 
Santo  que  não  lançava  mão  de  nada  a  mãi  do  que  passara  o  desastre. 
Sabida  a  causa,  que  era  andar  cativa  de  huma  importuna  quaríam,  e  es- 
tar na  mesma  horacom  a  força  da  sezão:  fez-ihe  hum  praío  de  humas 
iguarias,  que  vierão  á  mesa,  lanço  u-lhes  a  benção,  e  mandou -lhe  que  co- 
messe sem  medo.  Refusando  ella,  inda  que  confessava  apetite  ao  peixe, 
certificou-a  que  lhe  não  faria  dano.  E  assi  foi,  que  no  primeiro  bocado 
se  sintio  livre  de  todo  o  mal,  e  não  lhe  tornou  mais  a  quartam. 

Ao  passar  dos  Alpes  foi  desfalecendo  hum  irmão  Leigo,  de  pura  fra- 
queza, e  falta  de  manlcnça,  de  sorte  que  perdia  o  alento,  e  não  podia 
dar  passo.  Fez  o  Santo  diligencia  polo  animar,  a  ver  se  poderia  chegar 
ao  primeiro  lugar.  Não  valendo  nada  porá  o  esforçar,  aponíou-lhe  pêra 
huma  arvore,  mandou-lhe  que  fosse  a  eiia,  e  adiaria  que  comer.  E  assi 
aconteceo.  Achou  hum  pão  de  tal  sabor,  que  ficou  com  novo  espirito,  e 
forças,  como  de  comida  milagrosa,  qual  na  verdade  era. 


PAUTICLLAíi  BO  íiEiNO  DE  POniLllAL  83 

Em  Berganio  visitou  os  seus  Frades  que  de  novo  achou  entrados  n:i 
Cidade.  Pregou  ao  povo,  e  consolou  a  todos.  Em  Culoníia  deo  o  habito 
a  muitos  moços  estudantes  da  Universidade,  que  derão  despois  homens 
de  grande  conía.  E  cmfim  veio  a  entrar  em  Roma  no  mesmo  anno  cm 
que  sahio  d'ella :  onde  sendo  gerahnente  estimada  sua  vinda,  nos  seus 
dois  Mosteiros  foi  festejada  com  estre.mo.  A  primeira  cousa  em  que  en- 
tendeo  foi  instituir  huma  nova  ordem  pêra  serviço  da  Igreja.  Era  liuma 
irmandade  ou  milícia,  que  chamou  de  Jesu  Chi-isto,  composta  de  gente 
secular,  com  leis,  c  Rm  principal  de  defendereín  com  armas  materiaes 
o  património  da  Igreja,  e  seu  direito,  e  jurdição  contra  os  hereges:  e  foi 
abraçada  com  grande  vontade  por  todos  os  nobres  da  Chrislandade,  e 
honrada  com  favores  dos  Pontifices.  Mas  cessou  como  forão  cessando  as 
hcregias,  e  veio  a  converter-se  de  Ordem  de  homens  em  Ordem  de  mui 
llieres,  com  nome  da  terceira  regra  de  S.  Domingos,  ou  da  penitencia. 
E  por  eila  tem  vindo  ao  mundo  grandes  lumes  de  Sanlidade  por  toda  a 
Europa,  como  ao  diante  veremos  cm  seus  lugares,  e  bastante  he  liuma 
(.alherina  de  Sena  pêra  honrar  muitas  ordens,  e  sendo  como  foi  Freira 
In-ceira,  ser  primeira  em  todas.  Desta  milícia  primeira  de  homens  te\e 
origem,  e  dependência  a  companhia  dos  que  o  tribunal  do  Santo  OiTicio 
admite  hoje  ao  serviço  d'aqueiie  sagrado  ministério  da  Fé  com  nome  do 
Familiares,  e  honra  de  privilégios,  e  de  huma  Cruz  branca,  e  negra,  qi  e 
trazem  a  tempos,  insígnia  sua,  e  da  Ordem  de  S.  Domingos,  procurada 
já  hoje  nas  mais  das  províncias  de  Espanha,  e  estimada  de  todos  os  no- 
bres d"ella 

N'este  tempo  lançou  o  habito  ao  bemdlío  Jgcintho,  sobrinho  do  Bispo 
de  Cracóvia,  que  a  caso  se  acharão  em  Roma  juntos,  e  foi  com  tão  boa 
sorte,  que  juntamente  com  o  habito  lhe  deu  todo  seu  espirito.  Assi  fez 
em  Polónia,  e  por  aquellas  partos  do  Norte  grande  dilatação  da  Ordem, 
confirmada  com  \  ida  innocentissima,  e  famosos  milagres,  que  hoje  o  tem 
cânon  isado. 

No  meio  de  tantas  occnpações  acudia  o  Santo  quotidianamente  ao 
púlpito  em  Santa  Sabina,  e  S.  Sixto,  não  dando  hora  de  alivio  aos  can- 
çados  membros,  que  sua  invencível  caridade  fortalecia  de  maneira  que 
excedião  as  forças  humanas.  E  cada  hora  lhe  succedião  cousas,  que  mos 
travão  bem,  quão  gratos  erão  seus  trabalhos  áquelle  poderoso  Senhor 
por  quem  os  levava.  Yisiíava  «a  Cidade,  c  confessava  huma  niolher  do 
grande,  e  provada  virtude,  e  igualmcnie  affligida  de  fortes  iniinnidaJ.cs, 


86  LlVnO  i  DA  IIIiTOiUA   DE  S.  DOMINGOS 

porque  so  nlío  e?panicni  os  bons  de  terem  traballins,  (clianiava-so  Tlon?,) 
Acmlirão-l!io  de  novo  liuni  cancro,  que  vindo  a  apostemar,  llie  comia  os 
peitos  em  vida,  não  só  com  a  foira  do  raáo  humor  interior',  mas  com 
iiuma  podridão  descoberta,  (jue  fervia  em  bichos,  e  causava  dores,  e  ou- 
tros accidentss  incompoiiaveis.  Não  podia  o  Santo  crer  tanto  ma!  em 
q:;em  tão  poucos  merecia:  desejava  ver  a  c!i;iga,  porque  h;«.via  por  cousa 
mjnstruosa  o  mal  contado,  e  a  alegria,  não  sj  paciência  com  ({U3  BiUia 
o  levava.  Houve  Bona  de  obedecer  a  seu  Padre  espiritual.  Vio  o  Santo  a 
(Iiajií,  considerou-a,  maravilhou-se.  Tomou  em  suas  mãos  isum  dos  bi- 
ciios,  ou  pêra  se  moraficar,  ou  pei'a  que  vissem  os  comnanh.eiros,  onde 
estavão  os  tliesouros  do  Ceo.  Aponta  a  liistoria  q-ue  era  nojento,  e  feio, 
e  grande,  e  a  cabeça  negra.  Caso  peregrinu,  e  nunca  ouvido!  No  mesn^.o 
ponto  que  tocou  aquellas  santas  mãos,  tornou-se  em  hunia  pérola  que 
deleitava  os  olhos  de  orienlal,  bella,  e  fina.  Requerião  os  companheiros 
que  a  guardasse  pêra  memoria  do  caso.  Requereu  Bona  que  lhe  tornas- 
se a  sua  pérola.  Porque  d'ella,  e  das  irmãs  tinha  já  tanto  gosto,  que  se 
alguma  acertava  a  cair  do  lugar  cancerado,  era  cousa  sabida,  que  logo 
a  íornava  a  eile.  Enírcgou-lha  o  Santo,  e  tornou  logo  a  sua  primeira  fi- 
gura, e  a  roer  como  de  antes  no  peito  enfermo,  mas  igualmeníe  valero- 
s').  Despedio-se  enconiendando-a  a  Deos,  e  fazendo  sobre  a  poslema  o  si- 
nal saluíifero  da  Cruz.  Não  tinha  acabado  de  decer  a  escada  quando  Bo- 
na sinlio  subitamente  saltar  fora  a  podridão,  e  os  bichos,  despegando-se 
tudo,  e  ficando  aliviada  do  mal,  foi  logo  enxugando,  e  encarnando  o  peito, 
e  cobrou  saúde  pei;/eita. 

Em  outra  beata  igualmente  virtuosa,  e  perseguida  de  doenças,  se  vio 
pouco  despois  semelhante  milagre.  Junlára-se-lhe  em  hum  braço  hum 
humor  renenoso,  o  corrosivo:  e  começando  a  apostemar  tinha-lhe  lavra- 
do o  braço  todo,  e  coínida  a  carne,  que  não  havia  já  mais  que  as  canas 
nuas,  e  secas,  co.mo  de  corpo  defunto,  sem  esperança  de  remédio:  mas 
foi  cura  repentina,  c  perfeita,  hum  sinal  da  Cruz  feito  polo  Santo  sobre 
o  mal. 

Não  podia  deixar  de  ser  aborrecido  do  enem'go  comum  quem  tanto 
favor  tinha  da  potencia  Divina.  Assi  era  inquietado  d'e[le  a  toda  a  hora, 
c  a  todo  seu  poder:  e  não  podia  nada,  porque  não  tem  mais  força,  que 
quanta  lhe  permitte  aqueile  Senhor  que  o  he  de  tudo,  e  de  todos:  o 
polo  mesmo  caso  nem  o  Santo  o  tinha  cm  conta,  nem  lhe  fazião  pavor 
suas  carrancas.  Hum  dia  em  Santa  Sabina  estando  em  oração  na  igreja, 


PARTICUF.AIX   DO   REINO   DE  PORTUGAL  87 

fcz-lhe  tiro  do  alto  com  Imnu  grande  pedra,  tão  bem  apontado,  que  lhe 
4eo  polo  capello,  passando,  e  sem  outro  dano  que})roii  diante  d"elle  com 
hum  estrondo  infernal.  Mas  nem  desta  vez  o  apartou  do  Santo  exercício; 
nem  de  outras  que  procurou  perturbal-o  com  mascaras  c  figuras  teme- 
rosas, alcançou  mais  que  esprimentâr  a  fraqueza  própria :  e  arder  em 
nova  raiva  de  se  ver  desprezado,  e  mandado  cora  império,  e  como  es- 
cravo por  huma  criatura  de  terra,  e  mortal,  e  sendo  sua  natureza  ião 
alta. 

Desejava  o  Santo  dar  vista  aos  Conventos  de  ítalia,  que  erão  já  prin- 
cipiados muitos.  Mas  era  muito  entrado  o  anno  de  láiO,  e  medindo  o 
lempo  em  que  cumpria  acliar-se  em  Bolonha  pêra  celebração  do  Ca[)i- 
tulo  aprazado,  chegou  somente  a  Milão.  Aqui-  adoeceo  de  umas  febres 
mui  rijas.  E  he  de  saber,  que  querendo  curados  seus  filhos  em  qualquer 
enfermidade,  não  só  com  caridade,  mas  com  mimo,  e  sentindo-se  assaz 
traballiado  d"csta,  nem  teve  melhor  cama  que  huma  taboa,  nem  so  pode 
acabar  com  elle  que  comesse  carne  hum  só  dia,  nem  deixasse  de  jejuar. 
Mas  não  era  isto  cousa  nova:  com  o  mesmo  rigor  nos  consta  que  se  go- 
vernou outras  duas  vezes  que  foi  doente  antes  d"esta,  huma  cm  Viterbo, 
outra  em  hum  dos  primeiros  caminhos  que  fez  a  Roma.  E  sendo  uma 
das  doenças  gravíssimas,  nenliuma  cousa  quiz  nunca  aceitar  das  que  he 
cos:ume  darem-se  aos  enfermos  pêra  hum  pouco  mais  de  allivio;  e  o 
maicr  mimo  que  admittio,  foi  huns  guisados  de  ervas,  e  alguns  legumes. 
Como  melhorou,  tomou   por  recreação  ir-se  por  Cremoiía.  Dizem  que 
íbi  a  tenção  visitar  seu  grande  amigo  o  Padre  S.  Francisco,  que  ali  se 
achava  em  huma  casinha  que  os  seus  Frades  começavão  a  edificar.  Viram- 
se,  e  consolou-se  muito  com  elie.  E  succedeo  que  estando  juntos  che- 
gou o  Guardião,  e  disse-ihes,  que  pois  Doos  ali  os  ajuntara,  alcançassem 
d"elle  com  suas  oraçoens  o  remédio  d"aquella  casa,  que  consistia  em  um 
poço  que  mandara  abrir,  e  despois  de  muito  trabalho,  e  despeza,  não 
achavão  mais  que  hum  pouco  de  liumor,  que  era  mais  km.a  que  agoa, 
iJouve  comprimentos,  e  porfias  de  humildade  entre  os  Santos,  sobre  qual 
ficava  obrigado  a  tomar  á  sua  conta  aquella  necessidade.  Foi  vencido  o 
Padre  S.  Domingos  por  hospede,  c  pedio  que  lhe  trouxessem  hum  vaso 
d'aquslle  lodo  que  o  Guardião  dizia.  Benzeo  o  lodo  com  o  poderoso  si- 
nal da  Cruz,  mandou  que  o  tornassem  ao  poço,  e  des  daquelle  ponto 
teve  o  poço  agoa  perpetua,  ciara,  c  boa. 

Na  entrada  de  Maio  d"este  anno  de  1220  vierão  entrando  em  Bolo- 


Ua  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE  S.   DGMí.Xf.OS 

niia  lodos  aqueles  Paiírcs  que  o  Santo  liiilia  avisado,  o  ordenado  que  so 
achassem  com  elle  pêra  celebrarem  Capitulo  geral.  Chama-llies  o  Padre 
Frei  Fernando  do  Castilho  Provinciais  (*),  deve  querer  dizer  as  cabeças,  c 
primeiros  Padres  das  cinco  Províncias  que  então  se  eoiiÍLívao,  que  eriío 
Espanha,  Provença,  ou  Tolosa,  França,  Roma,  Lombardia.  Qualquer  que 
fosse  o  titulo  d'estes  Padres,  (porque  o  do  Provinciais  não  o  adiamos  em 
outros  autores,  se  não  no  anno  seguinte  de  1221),  entrou,  e  assistio  com 
elles  dom  Frei  Sueiro  Goraez.  Como  o  Santo  os  teve  juntos,  propoz  com 
novo  género  de  humildade  a  ínsuiTiciencia  que  em  si  sentia  pêra  os  go- 
vernar, pedindo-lhes  com  palavras  mui  eíTicazes  posessem  no  cargo  pes- 
soa que  melhor  o  merecesse.  Sobresaítados  com  a  novidade  do  reque- 
rimento, foi  a  primeira  reposta  confusão  e  lagrimas:  a  segunda,  despois 
que  deu  logar  a  dor,  que  nunca  cm  tal  consintirião  em  quanto  elle,  e 
elles  vida  tevesscm.  Ordenou  então  que  em  todos  os  Capítulos  gerais  se 
fizesse  eleição  de  certo  numero  de  Padres,  cujo  officio,  e  poder  fosse 
Feprender  o  Geral  havendo  culpas,  e  castigal-o,  e  absolvel-o  sendo  neces- 
sário. Este  decreto,  e  o  género  de  Magistrado  persevera  até  hoje.  Cha- 
mão-se  DifTinidores,  e  passoa  a  lei  também  aos  Capitulas  Provinci'á-& 
Dura  o  poder  tanto  tempo,  como  a  junta  do  Capitulo.  O  num.ero  he  de 
qualro,'e  fazem  quinqucvirato  com  o  Provincial  novamente  eleito.  Etem- 
se  visto  nas  Províncias  usarem  do  poder  que  nosso  Padre  aqui  deu,  pe- 
nitenciando, o  depondo  Provinciais.  Assentou-se  mais  n'este  Capitulo  Ge- 
ral com  decreto  rigoroso  o  que  já  outras  vezes  tinha  o  Santo  ma,ndado, 
e  sempre  fora  sua  determinada  vontade,  que  não  possuíssem  os  Con- 
ventos dos  Frades  nenhum  género  de  fazenda  de  raiz:  sem  embargo  da 
concessão  geral  que  já  tinha  do  Summo  Pontífice  pola  Bula  da  confir- 
mação da  Ordem.  E  d"aqui  teve  principio  escreverem  alguns  antigos  (**)  que 
fez  nosso  Padre  esta  lei,  obrigado  do  exemplo  do  Padre  S.  Francisco^, 
achafido-se  com  elle  em  Assis  no  Capitulo,  que  chamam  das  Esteiras,  e 
notando  as  maravilhas  que  ali  resplandecerão  da  providencia  Divina.  Mas 
o  fundamento  tem  contradição:  porque  he  cousa  sem  duvida,  que  no 
mesmo  tempo  d'este  Capitulo,  que  foi  polo  Pentecoste  do  anno  de  12í9 
estava  S.  Domingos  em  Espanha:  e  nos  dous  atrás  em  Roma,  e  Tolosa: 
e  nos  dous  adiante  esteve  em  Bolonha  celebrando  também  seus  capitu- 
les pola  mesma  conjunção  de  Pentecoste.  Ultimamente  adviríio  o  Santo 

(•]  V.  1.  1. 1.  «. ;]! 

(••)  Conkí.  án  Frei  Perlei,  ds  Ti-sn  p.  !!.  fi;||it,  \i   Flore!,  c.  17 


PARTICULAn  DO  RKINO  DE  POnTCGÀL  89 

OS  seus  Capitulares,  que  no  anno  seguiníe  da  1221  se  juníassem  todos 
ouíra  vez  na  niesiiia  Cidade,  e  poio  mesmo  tempo:  ficando  por  assento, 
que  d"ahi  em  diante  serião  os  Capituios  gerais  hum  anno  em  Paris,  ou- 
tro em  Bolonha.  E  logo  tomada  sua  benção  se  tornou  cada  hum  pêra 
sua  Província  temperando  a  fadiga  da  longa  jornada,  coín  o  interesse,  e 
gosto  de  poderem  tornar  brevemente  aos  olhos  de  tão  bom  Pai. 

CAPITULO  XVIÍ 

Celebra  nosso  FaJre  S.  Domingos  segundo  dipitulo  geral  em  Bolonha. 
Acode  a  elle  dom  Frei  Sueiro,  e  tonta  pêra  Espanha  com  nome  de 
Provincial,  e  cora  leiras  apostólicas  em  seu  fiivor,  e  dos  seus. 

Como  nosso  Santo  Pa tri ar cha  era  dotado  de  summa  prudência  humana, 
e  por  outra  parte  dependia  cm  todas  suas  acções  dos  conselhos  Divinos, 
como  outro  Moysés,  occasião  nos  dá  de  discorrer  hum  pouco  e  ItL^car 
qual  seria  o  fmi  que  teve  em  dar  tamanho  trabaliio  aos  súbditos,  como 
era  fazel-os  correr  cada  anno  centenares  de  legoas,  C(3m  as  descomiro- 
didades  de  caminhar  a  pé,  e  sem  bolsa:  e  o  que  mais  admira  he,  que 
estes  erão  os  seus  mais  amados,  e  filhos  primogénitos,  os  velhos,  e  paia 
da  Religião,  os  mais  dignos  de  descançafem,  e  mais  importantes  pêra 
assistirem  com  suas  pessoas  de  assento  nas  Províncias.  Como  havemos 
logo  de  conceder,  que  sendo  elles  tais,  e  sendo  o  pai  qual  temos  di  to 
não  houvesse  alguma  rezão  mui  poderosa,  e  mui  do  Ceo,  pêra  elle  o 
entender,  e  mandar  assi?  Seria  por  ventura  querer  que  aquellas  cans 
veneráveis  fossem  pregando  ao  mundo  com  os  passos  cancados,  e  com 
a  sustentação  buscada  de  porta  em  porta,  que  he  largamente  mais  eíli- 
caz  pregação,  que  todas  as  bem  estudadas  nas  cellas,  bem  representa- 
das nos  púlpitos?  Ou  seria  dar-lhes  estas  jornadas  pêra  contrapeso  da 
honra  do  governo,  e  de  terem  o  primeiro  lugar  entre  seus  irmaons?  Ou 
seria  querer  que  entendessem  todos,  cpue  o  mandar  n'esta  Ordem  havia 
de  trazer  consigo  taes  encargos,  que  os  primeiros  em  mandar  fossem  pri- 
meiros em  mais  trabalhar,  e  melhor  servir,  que  era  hum  género  de  con- 
fundir, e  matar  este  máo  apetite  humano  de  senhorear,  e  preceder, 
apetite  tão  pegado  a  nossa  natureza,  despois  que  polo  peccado  foi  infi- 
cionada, que  não  falta  quem  diga  que  até  no  inferno  he  saboroso  o  man- 
dar, como  não  faltou  outro  que  trocava  ser  segundo  em  Roma  triunfan- 


90  LIVRO  I  DA  IIISTOíUA  DE  S.   DOMINT.OS 

te,  por  primeiro  cm  liuma  aldca  das  mais  tristes,  e  mais  defumadas 
dos  Alpes.  Qualquer  que  fosse  o  íim  de  nosso  bom  Padre,  sem  nos 
constar  qual  foi,  podemos  affirmar  que  foi  Santo,  e  muito  sustancial. 
E  polo  mesmo  caso  me  atreveria  a  julgar  que  se -acertáramos  de  o  ter 
hoje  com  nosco,  quando  bem  sofrera  os  iníervallos  maiores  que  ha  nos 
Capítulos,  não  houvera  de  levar  em  paciência  faltarem  n'elles  muitas  ve- 
zes os  mais  velhos,  e  melhores  votos  das  Províncias :  visto  como  já 
não  ha  trabalho  que  arrecear,  pois  esta  idaile  tem  metido  em  uso  pode- 
rem caminhar  com  toda  commodidade.  Mas  deixado  este  discurso,  pêra 
que  o  pese,  e  examine  quem  só  o  pôde  rcmcdear,  tornemos  a  acompanhar 
o  Santo. 

Devia  ter  já  noticia  do  pouco  tempo  que  lhe  restava  de  vida,  e  ainda 
que  sempre  trabalhou  incansavelmente,  agora  excedia-se  a  si  mesmo.  Pas- 
sado o  Capitulo  deixou  Bolonha  dando  primeiro  ordem  na  obra  do  Con- 
À^ento  que  se  liia  fazendo:  e  foi-se  por  ítalia  visitando  as- casas  já  fundadas, 
e  procurando  fundar  outras  de  novo:  pêra  o  que  tinha  favores  continues 
do  Papa  Honório,  que  estimando  o  muilo  crecimento  que  havia  de  Re- 
ligião, e  devação  nas  terras,  em  que  os  Frades  asseníavão,  acudia-lhe  com 
letras  Apostólicas  pêra  todos  os  Prelados,  e  senhores  seculares  em  re- 
comendação dos  novos  agricultores  da  vinha  do  Senhorv  Colhia  o  Santo 
grande  fruito  d'ellas,  e  de  sua  ida,  porque  com  a  vista  atrahia  os  âni- 
mos de  todos,  e  trocava  coraçoens  com  a  pregação,  lie  maneira  que  dei- 
xava fermoso  rasto,  por  onde  passava,  do  fogo  Divino  em  que  ardia,  fi- 
cando os  Conventos  cheios  de  novos  disci[)ulos,  e  as  Cidades  despeja- 
das de  muita  gcnie,  que  á  sua  conta  buscava  a  salvação.  Mas  tendo  gas- 
tado muitos  meses  n"esta  i)eregrinação,  e  sendo  entrado  o  anno  de  i221, 
veio-se  recolhendo  a  Bolonha.  Vinha  alegre  a  ver  seus  filhos:  porém  achou 
iiousa  na  entrada  do  Convento,  que  lhe  aguou  todo  o  gosto  que  trazia. 
Poz  os  olhos  no  edifício  que  deixara  começado,  vio  cellas  hum  pouco 
maiores,  e  mais  altas  do  que  traçara  quando  se  ausentou.  Foi  cousa  que 
lhe  ferio  a  alma,  queixou-se  com  todos,  e  de  todos,  reprendeo  o  Procu- 
rador que  tinha  a  obra  a  cargo.  Chorava,  e  lastimava-se,  como  se  vira 
hum  grande  principio  de  perdição  da  ordem.  E  erão  as  palavras,  que 
d'aquelle  peito  mansissimo,  e  nunca  alterado  sahião,  tão  sentidas,  que 
hft  bem  nos  fiquem  impressas  na  alma  a  todos  seus  filhos,  pêra  memoria 
da  pobreza  a  que  nos  deixou,  e  desejou  obrigados  não  só  em  geral,  mas 
no  particular  de  cada  hum,  e  até  no  vestido,  livros,  c  roupa,  e  nas  mais 


PARTICULAII  DO  r.EIXO  DE  PORTUGAL  91 

miadas  alfaias  de  unia  cella.  Dizia  suspirando:  Adlnic  me  vívenfo  palatia  vo- 
bis  oedificatis.  H3  a  signlíicação,  ccmo  S3  dissera:  Que  em  uilnlia  vida,  e 
á  minha  vista  levanteis  casas  pêra  morar?  grands  mogoa,  e  grande  mal. 
Assi  paroti  o  edifício,  e  não  houve  quem  se  atrevesse  a  proseguil-o  em- 
quanto  viveo.  E  lie  rczão  sabermos  pêra  confusão  nossa,  quo  as  cellas 
que  nosso  Padre  iiavia  por  palácios,  tinlião  ao  justo  nove  pes  de  cumprido, 
e  sele  e  meio  de  largo .  Dura  ainda  hoje  pêra  memoria  hiinia  das  que  o  Santo 
estranhou,  que  estando  quasi  acabada  mandarão  os  Padres  ficasse  assi 
imperfeita  pêra  sempre,  a  qnal,  passando  quem  isto  escrevia,  a  Roma,  no 
anno  de  í.j71,  e  médio  por  curiosidade. 

N>sta  casa  de  Bolonha,  como  havia  de  ficar  por  solar,  e  cabeça  da 
Ordem,  quiz  o  Senhor  honrar  seu  servo  com  casos  maravilhosos. 
Diremos  algnns.  E  primeiro  dous  que  forão  qiiasi  em  iodo  semelhan- 
tes a  outros  que  deixamos  contados  em  Roma.  Disse-lhe  o  Procurador 
hum  dia  que  não  havia  e:n  casa  mais  que  dous  paens  pêra  toda  a  Gom- 
munidade.  Não  vos  agasteis,  respondeo  o  Santo,  que  esses  bastarão.  To- 
mou 03  dous  paens:  foi-os  fatiando  em  partes  tão  miúdas,  que  não  ficou  ne- 
nhum lugar  de  Frade  som  sua  parte.  Entrou  a  Communidade  assentou-se. 
Tanto  crecerão  aquolles  pequenos  bocados,  que  foi  banquete  de  testa  em 
abundância,  e  sabor .  Outra  vez  era  refeitoreiro.  Frei  Bomviz,  (dizemos  o  no- 
me, porque  elle,  e  Frei  Reinaldo,  que  despois  foi  arcebispo  de  Hyber- 
nia  testim.unharão  o  milagre  no  processo  da  Canonização),  não  havia  to- 
talmente que  pôr  na  meza:  e  era  dia  de  jejsim  da  Igreja.  Soube-o  o 
Santo,  levantou  mãos,  e  olhos  ao  Ceo,  dando  alegres  graças  a  Deos, 
por  querer  que  ficassem  seus  servos  aquelle  dia  sem  jantar,  quando  era 
certo  que  não  faltava  n'elle  com  sua  ração,  e  mantença  a  nenliurn  ani- 
mal do  campo,  nem  ave  do  ar,  como  poderoso  que  era  pêra  acudir  a 
todos.  Deteve-se  hum  pouco  n^esta  consideração:  quando  abaixou  os  olhos, 
vio  que  eníravão  polo  refeitório  dous  mancebos  ambos  bem  carregados, 
que  correndo  as  mezas,  e  deixando-as  abastadas  de  pão,  e  figos  passa- 
dos, desaparecerão. 

Hum  estudante  atolíado  em  vicios,  e  sensualidades  teve  atrevimento 
pêra  se  chegar  ao  Santo,  e  beijar-lhe  as  maons.  Qualquer  que  fosse  a 
tenção,  tal  cheiro,  e  tal  virtude  sahio  delias,  que  d"aquolla  hora  mu- 
dou vida,  e  pensamentos.  Outros  dous  lhe  pediram  hum  dia  que  os  en- 
commendasse  a  Deos,  que  tinhão  necessidade,  e  acabavão  de  se  confes- 
sar em  casa.  Passado  hum  espaço  chamou-os,  e  a  hum  encheu  de  espe- 


Ôâ  LIVIU)  I  DA  UISTOUEA  DE  S.  DOM!\GOã 

ranças  de  perdão ;  e  ao  ouíro  do  modo,  adveríiiulo-o  ({'.le  íizesso  confis- 
são plenária,  8  descobrio-liio  hum  peccado  que  escondia. 

Não  he  pêra  esquecer  hum  caso  que  Deos  aqui  peniiittio  porá  exem- 
plo nosso.  Amanhecco  hum  dia  fortemente  atormentado  do  Diabo  hum 
irmão  que  servia  de  enfermeiro.  Acodio-lhe  o  Santo,  mandou  ao  enemigo 
que  o  deixasse.  Aporfiava  por  ficar,  dizendo  (jue  liniia  licença  contra  elle, 
porque*  onde  todos  os  mais  Frades  padecião  por  penitentes,  e  devotos, 
este  andava  farto  e  cheio  de  carne  por  goloso,  á  couta  dos  enfermos,  e 
enfastiadus  q;io  curava.  iMostra-nos  Deos  que  he  vileza,  e  descortezia  di- 
gna de  ser  ciisiigada  por  algoz  do  inferno,  querermos  poupar-nos,  quando 
os  outros  trabalhão:  não  sendo  nós  melhores,  nem  mais  necessários  na 
casa,  senão  por  ventura  mais  inutiles,  e  ao  certo,  quais  disse  o  outro 
poios  que  que  se  atreverão  a  deixar  ir  os  companheiros  aos  perigos  do 
mar,  e  se  ficarão  em  terra  descansados:  Ânimos  nil  magnoi  landis  egcn- 
tes{*),  quiz  dizer,  gente  que  iheiíão  dá  nada  por  adiantar  em  honra,  e  cre- 
dito. 

Quando  veio  dia  de  Pentecosío  d'este  anno  de  ii^I  em  que  vamos, 
estavão  juntos  com  o  Santo  Patriarcha  os  Padres  velhos  caberás  das 
Províncias,  ou  Provinciais:  e  com  ellos  o  que  muis  terras,  e  mais  legoas 
caminhava,  e  vinha  do  ultimo  Occidente  dom  Frei  Sueiro  Gomes.  To- 
dos 03  escritores  dizem  claramente  que  n'este  Capitulo  forão  com  for- 
malidade eleitos  Provinciais  pêra  todas  as  Províncias  que  então  havia  na 
Ordem,  e  que  foi  eleito  pêra  a  de  Espanha  dom  Frei  Sueiro.  Esta  com- 
prendia  todos  os  Reinos  dos  Pyrineos  pêra  dentro,  com  todos  os  Con- 
ventos que  n'elles  havia.  E  não  foi  isto  mais  que  encomendar-se-lhe  com 
titulo,  o  que  d*antes  com  realidade  já  tinha  a  cargo.  O  mais  que  n'esta 
santa  junta  passou  não  he  de  nossa  obrigação.  Despedio  o  Santo  a  seus 
filhos  com  bençoens,  e  abraços,  que  sabia  havião  de  ser  os  últimos  de 
sua  vida,  e  assi  he  de  crer  serião  mais  affectuosos.  A  dom  Frei  Sueiro 
deu  cartas  do  Pontifico:  humas  gerais  para  os  Prelados  de.  Espanha  fa- 
vorecerem a  Ordem:  outras  particulares  pêra  os  Reis,  em  recommenda- 
ção  da  pessoa  da  dom  Frei  Sueiro,  e  dos  seus  Frades.  É  porque  não 
era  em  sua  mão  tomar  hora  de  descanço  em  quanto  tinha  vida,  deter- 
minou passar  á  grande  cidade  de  Veneza,  julgando  que  como  era  terra 
de  grossos  tratos,  e  concurso  de  varias  gentes,  poderia  fazer  bom  em- 
prego de  sua  doutrina,  e  pescaria  certa  de  almag.  Partio  dando  primei' 

(•)  Vir;,Ml.  .Enoi.  ». 


rARTiCULAR    DO    P.KIXO  DK  POílTlT.AL  93 

rõ  de  sua  mão  o  habito  com  venUirosa  sorte  ao  bendito  Frei  Pedro  do 
Verona  em  idade  pueril:  a  quem  a  igreja  santa  honrou  despois  com  ti- 
tulo de  S.  Pedro  Maríyr.  por  que  o  foi  por  honra  d\'l!a,  e  da  Fé. 

Caminhavão  também  os  Capitulares  pêra  seus  districtos,  e  dom  Frei 
Sueiro  pêra  Espanha.  E  pêra  comerár  logo  a  visitar  os  Conventos  de 
sua  obediência,  obrigação  primeira,  e  principal  do  oíTicio  de  Provincial, 
e  os  trazer  de  caminho  inflados,  entrou  por  Catalunha  em  Barcellona, 
Edificava-se  então  o  Convento  de  Santa  CalerinaMartyr(*).  Porque  he  cousa 
certa,  que  quasi  ires  annos  assistirão  os  nossos  ileligiosos  n"aquella  ci- 
dade por  hospitais,  e  sem  domJoilio  certo.  Aqui  achou  o  grande  Doutor 
Frei  Haimundo  de  Penhafort  seu  filho  pessoa  já  então  de  tantas  letras, 
e  tão  provada  virtude,  que  no  tempo  que  pudera  residir  cm  casa  de  no- 
viços, segundo  os  estilos  da  Ordem,  foi  escolhido,  e  chamado  por  el 
Rei  dom  Jayme  de  Aragão  pêra  seu  Confessor  (**),  e  foi  por  Divina  reve- 
lação fundador,  e  legislador  da  illustre,  e  santa  Ordem  de  nossa  Senhora 
da  Mercê.  Porque  a  fundou  por  Agosto  do  anno  de  1218  e  tinha  rece- 
bido o  habito  em  Barcellona  na  Quaresma  do  mesmo  anno  aos  quarenta 
e  cinco  de  sua  idade.  Soube  o  provincial  aproveitar-se  de  suas  letras, 
encommendou-lhe  que  composesse  huma  Summa  de  casos  de  consciên- 
cia, com  que  sahio  brevemente  (chama-se  Swwmrt //«?//«?<«(/»),  e  por  ser 
a  primeira  que  se  escreveo  n'esta  forma,  e  que  deu  principio,  e  metho- 
do  a  todas  as  que  despois  se  forão  escrevendo,  rendeo  grande  lionra  a 
seu  Autor,  e  a  quem  lh*a  mandou  fazer.  Mas  pouco  servem  honras  da 
terra  a  quem  as  goza  do  Ceo,  sendo  assi,  que  foi  tal  a  vida  d"fiste  filho 
do  nosso  dom  Frei  Sueiro,  tantas  as  maravilhas  que  Deos  por  elie  obrou, 
que  o  temos  hoje  pola  Santa  Madre  Igreja  entre  os  Santos  delia  canO' 
nizado. 

N"esía  cidade  apresentou  o  Provincial  as  letras  Apostólicas,  que  tra- 
zia pêra  os  Prelados  de  Espanha.  Traduzidas  em  vulgar  são  as  seguih- 
tes. 

«Honório  Bispo  servo  dos  servos  de  Deos  aos  veneráveis  irmaons 
Arcebispos,  e  Bispos:  e  aos  amados  filhos  Abbades,  e  Priores,  e  a  todos 
os  mais  Pi-elados  das  Igrejas  de  Espanha  saúde,  e  Apostólica  benção, 
etc.  Se  tendes  cuidado  de  amar,  e  honrar  as  pessoas  religiosas,  tende 
por  certo  cpe  fazeis  agradável  serviço  a  Deos,  a  quem  servir  he  o  mes- 

{*)  M.  Frei  Jordão  na  Iiist.  da  Ordcai. 
["■]  AnnaÍÊ  de  Aragiío  1.  t.  c.  70. 


94  I.IVUO  1  DA  HISTORIA  DE  S.   DOMINGOS 

mo  que  reinar:  e  que  diz  de  si,  qne  qualquer  coiísa  feita  em  favor  do  mais  pe- 
quenino de  sua  casa,  assi  a  estima,  e  aceita,  como  se  a  sna  própria  Maj^esfade 
se  fizera.  Poio  que  a  vossa  devação  rogamos,  e  efucazmentc  a  todos  vos  exor- 
tamos, e  por  estas  Apostólicas  letras  mandamos,  que  aos  amados  filhos  da 
Ordem  dos  Pregadores,  das  presentes  portadores,  cujo  útil  ministério,  e  re- 
ligião cremos  ser  a  Deos  agradável,  empnreis,  e  favoreçais  em  seu  lou- 
vável propósito,  procurando  que  sejam  benignamente  recebidos  ao  offi- 
cio  da  pregação,  pêra  que  estão  deputados.  E  tendo-os  por  encomenda- 
dos em  reverencia  da  Sé  Apostólica,  os  ajudeis  em  suas  necessidades, 
como  a  homens  que  entendendo  no  aproveitamento  das  almas,  e  seguindo 
só.e  buscando  a  Deos,  estimão  sobre  tudo  o  titulo  de  pobreza.  Final- 
mente de  tal  modo  ponde  em  effeito  o  que  assi  vos  encomendo,  e 
mando,  que  quando  vier  o  dia  temeroso  da  conta,  e  juizo  final,  vos  acheis 
em  companhia  dos  escolhidos  do  Senhor,  e  á  sua  mão  direita,  e  alcan- 
ceis com  elles  o  Reino,  e  gloria  eterna :  e  não  ouçais  nem  vos  toque  a 
temerosa  sentença  dos  danados,  aos  cpiais  o  mesmo  Senhor,  por  se  ha- 
ver por  desprezado,  e  afrontado  no  desprezo  que  d'esíes  pequeninos  seus 
servos  fizerão,  ha  de  condenar  a  fogo  perpetuo.  Dada  em  Viterbo  aos 
dezasete  das  Calendas  de  Dezembro  no  anno  quarto  de  nosso  Pontifi- 
cado». 

De  Barcelona  veio  dom  Frcy  Sueiro  correndo  todos  os  Mosteiros 
da  Província :  e  como  sua  pessoa,  e  partes,  sua  pregação,  pobreza,  e 
modéstia  acreditavão  muito  as  encomendas  que  trazia,  com  os  Reis,  e 
com  todos  os  Prelados,  forão  os  Breves  Pontificais  de  grande  eíTeito :  e 
creceo  tanto  u  devação  *da  Ordeiii  nas  terras  por  onde  primeiro  veio  en- 
trando da  coroa  de  Aragão,  que  antes  de  oitenta  annos  cumpridos  des- 
pois  de  conhecida  nellas,  íeverão  Conventos  bastantes  porá  fazerem  Pro- 
víncia por  si,  e  ficarem  separados  com  titulo  de  Província  de  Aragão. 
Deixando  visitados  estes  Conventos,  e  pi'Ovido  n'elles  o  que  por  então 
convinha.  O  ([ue  havemos  de  entender  foi  mui  de  so])re  mão,  porque 
nos  consta  que  não  veio  a  enlrar  em  Casíella  se  não  no  principio  do 
anno  seguinte,  como  logo  veremos :  tornou  a  continuar  o  caminho  em 
proseguimento  de  sua  obrigação. 


PAÍ{TiCi:i.A!i   DO  I\i:iNO   !)!■:   rOilTLGAL  9'> 

CAPITULO  XÍX 

Prosef/ne  o  Provincial  dom  Frcy  Snciro   Gomez  a  visita  de  saa  Proriu- 
cia  nos  licinos  de  Cnstella  e  Portugal.  Gonta-se  o  felice  transito  de  nosso 
'  yloriuso  Pairiarcha  São  Domingos:  c  a  eleição  que  se  fez  em  seu  lugar 
de  mestre  Geral  da  Ordem. 

Entrava  o  anno  de  1222,  e  no  mesmo  tempo  caminhava  porCastelIa 
o  nosso  Provincial  em  demanda  da  Corlef),  havendo  por  cousa  importan- 
te pêra  o  liem  da  Província,  c  por  termo  de  cortezia  devida  a  hum  Hei 
que  í.inha  nom(!  de  Santo  dar-!he  conta  de  si,  e  do  serviço,  que  com  a  nova 
obiif^ação  do  cargo  vinha  fazer  a  todos  os  Reinos  de  Espanha,  c  presen- 
tar-Hio  as  cartas,  que  trazia  do  Pontífice.  Era  Kci  em  Castella  dom  Fer- 
nando Terceiro,  que  reina.nd()  em  Lião,  veio  a  succcder  nos  mais  Rei- 
nos do  Castelia,  por  morte  dei  Hei  dom  Anrique,  que  sem  deixar  ílihos 
morreo  de  huin  desastre  cm  Palencia,  e  era  tio  de  dom  Fernando,  ir- 
mão de  sua  raãi  a  Rainha  dona  Berenguela.  A  fama  que  já  corria  com 
louvor  do  suas  partes  de  virtude,  e  bom  governo  lhe  veio  a  render  des- 
pois  o  nome  de  Santo,  por  quem  hoje  he  conhecido.  Deu-lhe  o  Provincial 
coiíta  do  estado  da  Ordem,  e  do  cargo  que  trazia;  e  a  que  vinha.  Lcm- 
brou-lhe  a  ojjrigação  que  tinlia,  como  iJei,  e  como  Catholico,  e  bom  go- 
veriíndor  de  favorecer  numa  Oi-dem,  cujo  fim  era  com  sam  doutrina  des- 
terrar vícios  do  povo,  e  prantar  virtudes,  que  era  o  mesmo  que  fazer- 
Ihe  vassallos  fieis,  e  santos:  Ordem  fundada  por  hum  vassallo  seu  na- 
cido  em  Castella,  e  do  melhor  d"e]Ia:  vassallo  santo,  e  tão  santo,  como 
a  fama,  e  voz  publica  testemunhava,  e  com  ella  o  mesmo  Pontifico  Prín- 
cipe da  Igreja  de  Deos,  cujas  letras  lhe  offerecia.  Foi  o  Provincial  bem 
visto  dei  Rei,  e  ouvido  com  benignidade,  e  promessas  de  todo  favor  que 
pêra  bom  cífeito  de  sua  pretenção  lhe  fosse  neccessario.  E  desde  logo 
lhe  mandou  passar  huma  provisão  geral  pêra  todos  seus  Reinos,  cm 
particular  abonarão,  e  recomendação  de  sua  pessoa,  e  de  toda  a  Ordem, 
a  qual  tirada  do  original  que  hoje  está  vivo  no  nosso  Convento  de  S. 
Pedro  Martyr  de  Toledo  he  a  seguinte. 

Fernandus  Dei  yratia  Rex  Caslcllw  et  Toleti  omnihns  liominibus  Ilrgni 
sui  hanc  charlam  mdentihus  salutcmct  gratiam.    Unieersati  rcslrcc  notum 

(.)  Caslilho  j).  !.  I.  2.  0.  1. 


§0  LiVUt)  I  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

fieri  volumus,  gu-Jd  Donuui  Suerium  Priorem  Ordinis  Prwdicalorum  iii 
Jíispania  diligimus,  el  chani:n  haòemns,  ciusque  mcritis  exigcnUbus  firmam 
de  CO  fiduciam  gerimus  et  constanfem.  Vnde  rogamus  vos  prupensius,  et 
nian^amus,  qnõd  cinn  ad  loca  veslra  venerint  tam  dicfus  Prior,  quàm  Pr(S- 
dicati}res  Ordinis  sui  [cum  emulem  Ordinem,  et  Fratres  ad  preces  et  man- 
dntum  Domlni  Papas  sub  protectione,  et  dcfenúúne  nostra  receperimus,  et 
ad  promotionem  dicti  Ordinis  velimus  intendere  diligenter)  cos  benigne 
rvcipere,  deuotè  aiidire,  et  cum  reverentia  debita  tractare  in  omnibiis  sludea- 
tis:  círca  eos  in  omnibus  talifer  vos  hahendo,  quód  maiorem  apud  nos  me- 
reamini  gradam  invenirc.  Fada  charla  apud  JÍadrid  Reg.  exp.  dic  XVílí. 
lanuarij  Era  milésima  sexagésima,  anno  rcgni  sui  quirJo. 

Traduzida  em  vulgar  diz  assi : 

Fernando  pola  graça  de  Deos,  Rei  de  Gastella,  e  de  Toledo,  a  todos 
os  que  esta  carta  virem  saúde,  e  graça.  Queremos  que  a  todos  vos  seja 
notório,  que  amamos,  e  nos  he  mui  caro  dom  Sueiro  Prior  da  Ordem 
dos  Pregadores  cm  Espanha,  c  d'elle,  porque  assi  o  requerem  seus  me- 
recimentos, fazemos  firme,  e  se-gura  confiança.  Pelo  que  encarecidamente 
vos  rogamos,  e  mandamos,  que  quando  clle  ou  os  Pregadores  de  sua 
Ordem  forem  a  vossas  terras,  folgueis  de  os  agasalhar  com  amor,  ou- 
vir com  devação,  e  trata-los  em  tudo  com  a  reverencia  devida,  e  pro- 
cedendo com  elles  de  maneira  que  pêra  comigo  vos  façais  merecedores 
de  mais  graça,  e  mercê :  visto  como  a  dita  Ordem,  e  Frades  tenho  to- 
mado debaixo  de  nossa  protecção,  c  emparo,  a  rogo,  e  por  mandato  do 
Senhor  Papa,  e  com  diligencia  queremos  entender  em  seu  acrecentamento. 
Feita  era  Madrid  a  dezoito  de  Janeiro  da  Era  de  mil  e  duzentos  e  ses- 
senta, aos  cinco  annos  de  nosso  reinado,  (responde  ao  justo  aos  annos  de 
de  Christo  mil  duzentos  e  vinte  dous.) . 

Do  teor  d"esta  provisão  se  deixa  bom  entender  qual  seria  o  encareci- 
mento das  cartas  do  Pontifico,  e  que  não  serião  m.enos  eíficazes,  as  que  o  Pro- 
vincial trouxe  pêra  elRei  de  Aragão,  e  trazia  pêra  o  de  Portugal.  Também 
fica  entendido  o  grande  fervor  com  que  o  Provincial  procurava  dilatar  a 
Ordem,  e  abranger  com  o  zelo  de  outro  Paulo  a  todos  os  lugares  de 
Espanha,  pois  vindo  de  caminho  tão  comprido,  c  instando  outro  pêra  o 
Capitulo  de  Paris  não  lom.ava  dias  do  descanço,  e  na  força  do  inverno 
queria  aproveitar  o  tempo. 


PASTirXLAR   DO   REINO   DE  PORTLT.AL  9t 

N'c3íes  pensamentos,  e  obras  andava  occiípado  dom  Frei  Sueiro 
quando  foi  certificado  da  morte  do  Santo  Paifiareha.  Foi  seu  ditoso  transito 
em  Bolonha  {mma  sesta  feira  aos  seis  de  Agosto  do  anno  passado  de 
1221.  Saíra,  como  atrás  dissemos  daqnella  cidade  na  volta  de  Veneza 
logo  despois  do  Capitulo:  fora  pregando  por  tqdas  as  cidades,  e  lugares 
de  importância,  em  Ferrara,  em  Maníua,  em  Faença,  com  grande  traba- 
lho seu,  que  se  augmentava  com  hum  extraordinário  concurso,  e  deva- 
cão  dos  iw\05.  Fm  Veneza  não  t9've  momento  de  repouso,  sendo  da  mes- 
ma sorte  buscado,  8  ouvido  a  todas  horas.  iMas  como  sabia  que  se  lhe 
estreitava  o  prazo  da  vida,  segundo  o  declarara  á  saída  de  Bolonha  a 
huns  devotos  seus^  dizendo-lhes  que  brevemente  acabaria  sea  desterro^ 
e  que  seria  no  mesmo  anno,  c  antes  do  dia  da  Assumpção  de  Nossa  Se-- 
nhora,  deu-se  pressa  em  fazer  volta,  c  com  o  trabalho  do  caminho  sem*- 
pre  a  pé,  c  nunca  aliviado,  janlando-?e  a  força  das  calmas  que  abraza- 
vão  a  tíSrra,  (era  por  fim  de  Julho),  chegou  a  Bolonha  tão  cançado,  e  des- 
falecido, que  já  se  não  podia  ter  nos  pes.  E  com  tudo  ainda  aquella 
noite  se  não  quiz  entregar  a  doente.  Assistio  no  Goro  ás  !\Iatinas,  e  des- 
pois  na  igreja  até  pola  m,anham  em  seus  acostumados  exercidos.  Mas 
amanheceo  com  febre  descuberta,  e  sobre visrão  outros  accidentes,  que  o 
debilitarão  demasiadamente,  e  foi  necessar»o  levarem-no  a  huma  cella. 
E  esta  foi  a  primeira  vez  que  sofreo  semelhante  gasalhado.  Como  de 
grande  novidade  apontão  as  historias  cuja  era,  e  dizem  que  de  Frei 
Moneta.  Kellafoi  lançado  sobre  hum  pobre  enxergão:  he  nome  de  palha 
recolhida,  e  apertada  entre  duas  mantas  de  xerga  ou  sacco.  Ali  andando 
todos  os  rostos  cobertos  de  nuvens  de  tristeza,  resplandecia  no  seu  hum 
Sol  de  alegiia,  como  quem  esperava  com  alvoroço  o  cumprimento  de 
lauma  nova,  que  recoihendo-se  hum  pouco  em  oração  teve  da  boca  do 
mesmo  Chrisío.  Aparcceo-lhe  o- Senhor  em  figura  de  hum  moço  bellis- 
simo  sobre  tudo  o  que  se  pode  dizer,  ou  imaginar,  e  dizia-lhe:  «Vem, 
amigo,  vem,  ç  entrarás  na  posse  dos  verdadeiros  gozos».  Confessou-se 
geraimente  nesta  hora,  sendo  assi  que  o  tiniia  feito  outras  vezes:  rece- 
beo  lodos  os  Sacramonlos  da  santa  igreja  com  a  sua  devação,  que  não 
lia  mais  encarecer:  e  tratando-se  da  sepultura,  foi  palavra  expressa  suâ 
que  o  enterrassem  aos  pés  dos  seus  Frades.  Hia  enfraquecendo,  e  aca- 
bando por  momentos:  vio  que  na  sua  melhor  hora  o  despedião  seus  íi- 
ihos  com  rios  de  lagrimas,  que  corrião  dos  olhos  de  quantos  o  cercavão, 
que  crão  todos  os  quo  havia  no  Govento:  não  o  po^Ie  soffrer  aquella  ca* 

VOL.  1  7 


98  U\l\0  I  DA  IIISTC.UA  DE  S.   DO.MI.NCOS 

ridaíle  angélica,  esforçou  a  voz,  consolou-os  com  palavras  de  ceíesliaí  es- 
pirito, enconieiulanilo-lhcs  com  parliciilaridade  todas  as  virtudes:  e  qiun- 
(\o  chegou  á  caridade,  dezia  que  csía  com  a  humildade,  e  pobreza  Evan- 
gélica erão  a  lieranra,  que  por  ícstamenío  lhes  deixava.  E  porque  cre- 
cião  effeitos,  c  vozes  de  pmor  chorando-se  os  Frades  por  desamparad(js 
com  a  folia  de  tal  pai,  forão  ultimas  palavras  certifical-os,  e  prometter- 
Ihes,  que  no  lugar,  pêra  onde  ia  morrendo,  lhes  seria  de  mais  proveito, 
cii3  na  terra  vivo.  E  levaidando  as  mãos,  e  olhos  ao  Ceo,  dou  aquella 
bemdita  aluía  nas  mãos  do  Creador:  em  idade  de  cinquenta  o  hum  an- 
Eos.  Certificarão  logo  sua  gloria  muitas,  e  varias  revelações  de  gente  san- 
ta, e  seguirão  testemunhos  de  grandes  milagres  em  sua  sepultura.  Era 
S.  Domingos  de  meã  estatura,  muito  alvo,  c  geutilhomem  de  rosto:  o 
cabcllo  tirava  a  ruivo,  ptoucas  cans,  mas  mais  na  cabeça  que  na  barba. 
O  cabello  da  cabeça  muito  espesso,  c  sem  sinal  de  entradas  nem  calva. 
A  voz  no  púlpito  multo  alta,  mas  de  bom  metal,  e  nada  penosa  aos  ou- 
vintes. Magro  de  seu  natural,  mas  com  as  penitencias  mais  desfeito,  e 
quelirad)  do  que  pedia  o  numero  dos  annos.  Notavão  muitos  que  da 
tesía,  e  olhos  lhe  sahião  algumas  vezes  huns  como  raios,  que  afuzilavão 
na  vista  de  quen.i  o  olhava,  e  tralava,  de  sorte  que  o  fazião  gi'andemcn- 
te  venerável.  De  coiídição  era  maiísissimo:  de  sua  boca  se  não  sabe  que 
saísse  nunca  palavi-a  de  ira,  ou  descom^posição,  nesn  ociosa:  todo  seu  tra- 
to, e  praticas  ou  erão  do  Deos,  ou  com  Dei:)S:  riguroso  com  estreuios 
pel\i  comsigo:  e  com  os  mesmos  brando,  o  mavioso  pcu-a  seus  súbditos. 
Amigo  sobre  tudo,  o  que  se  pode  dizer,  de  ser  pobre,  o  desprezado  do. 
mundo,  iiiimicissimo  das  glorias,  e  grandezas  delle,  do  que  deu  bom 
testemunho :  engellando  três  Bispados,  que  em  difterentes  tempos  lhe 
forão  ofíerecidos,  como  o  escreve  TheodoricoApoldia(*)  em  sua  vida,  que 
compoz  por  mandado  do  nosso  sétimo  Geral  Munio,  passa  já  de  trezen- 
tos, c  vinte  annos,  e  conta  que  quando  foi  buscado  pcra  hum  destes, 
que  clle  chama  Cizeraneuse,  respondoo,  (pie  antes  aceitaria  morrer  logo, 
(|ue  ver-se  em.  t.al  ho:i!'a,  nem  em  outras  semelhantes.  Affirmarão  os(]ue 
de  suas  confissões  podião  teslcmuníiar,  que  nunca  peccou  mortalmente. 
Nunca  conieo  carne,  nem  por  doente  deixou  de  jejuar.  Nunca  despois  de  Ain- 
dada  a  Ordem  teve  outra  casa  se  não  a  igreja,  nunca  outra  cama  senão  as  la- 
goas delia.  As  noites  passava  inteiras  em  oração,  e  disciplinas:  disci]))inas  tão 
aspei-as,  e  continuas  (pie  erão  três  cada  noite,  c  sempre  de  sangue,  e  o 

(•]  Thfjil.  k[>d:\    i:i  \iU  U.  Djai.  1.  i.  c.  It).  Iclcin  1.  í.  c.  ÍO.^ 


PAUTlCULAn    DO    liKl.NO  DK  POUTiGAL  91) 

iiislriinicnío  cadoas  de  ferro.  A  oração  Ião  afervorada,  qtie  liuinas  vezes 
SC  arrebatava  em  profundos  exíasis,  hora  ficando  sem  movimento,  nem 
sentido,  c  como  passado  da  vida,  liora  levantado  no  ar:  outras  erão  tan- 
tos os  suspiros,  o  gemidos,  que  som  se  poder  valer  saliião  do  santo  jiei- 
to,  que  ao  estrondo,  e  rumor  delles  acordavão  os  Frades,  c  perdião  o 
sono.  Assi  não  lhe  ficava  liora  de  repouso :  c  rjuando  os  membros  can- 
çados  pedião  a  satisfação  natural,  tomava  por  almofada  bum  breve  es- 
paço que  doi'inia  os  degraos  de  alguiu  altar.  Do  santo  sacrificio  da  Mis- 
sa era  devotíssimo :  não  se  lhe  passava  dia  sem  celebrai":  c  era  sempre, 
cora  Ião  alto  sentimento,  que  como  de  duas  fontes  corrião  as  lagrimas  do 
seus  olhos,  c  decião  até  o  chão. 

Temperou  o  Provincial  o  sentimento,  e  saudades  do  bom  Pai,  com  a 
ccrieza  que  tinha  de  sua  gloria,  por  estas  virtudes,  e  outras  muitas  que 
por  brevidade  deixamos,  de  que  elle  era  boa  testemunha:  e  obrigado  de 
todas,  e  do  (\\iv  a  f;una  trazia  de  seu  santo  transito,  tomava  novo  animo 
pêra  o  traljallio  que  so!)re  seus  liombros  carregava,  sen^ fazer  conta  da  vi- 
da, nem  a  querer  pêra  outra  cousa.  Gomo  foi  tempo  de  caminhar  pêra 
o  Capitulo  de  Paris,  segundo  a  ordem  que  estava  dada,  começou  a  jor- 
nada com  novo  cuidado  da  eleição,  que  instava  de  successor  de  S.  Do- 
mingos. 1'^  anticipou-se,  a  meu  parecer,  alguns  dias  pêra  ir  de  passagem 
cjlhendo  fruito  de  sua  pi'égação,  e  doutrina  nos  lugares  da  Montanha, 
como  são  Burgos,  e  outros  por  onde  he  a  estrada  de  Paris,  que  então 
erão  terras  grandes  e  b^em  povoadas.  Em  todas  he  de  crer,  que  se  de- 
teria purificando  consciências,  e  aíTeiçoando  com  sua  pregação  os  ânimos 
á  virtude,  e  áquella  estreita  poi)reza  com  que  caminhava,  que  como  de 
verdadeiro  filho  de  S.  Domingos  es])aníava,  e  confundia  os  que  a  vião. 
E  daqui  teve  priíicipio  tratarem  os  vizinhos  de  Burgos  de  darem  casa  á 
Ordem.  E  esta  he  das  ])em  antigas,  e  que  íeverão  seus  principies  por  es- 
tes annos.  lambem  me  persuado  i)or  l)ons  fiindamcntos  que  leve  a  ori- 
gem desta  jorriada  buma  Historia  que  nos  deixou  de  sua  mão  dom  Lu- 
cas, que  despois  foi  Bispo  de  Tuy  em  Galiza,  e  escritor  celebre  daquel- 
les  tempos.  Era  dom  Lucas  Cónego  regular  do  iMostciro  de  Santo  L^idro, 
ou  Isidoro  de  Leão:  como  homem  de  virtude,  e  letras  devia  ver,  e  ti-a- 
lar  o  ]M'0vincial.  E  o  Provincial  como  lhe  entendeo  o  talento,  desejou  lo- 
go occvipabo  em  cousa  que  fosse  de  proveito  das-  almas.  E  iKtrque  os 
exemplos  dos  Santos  podem  muito  pêra  espertar  nos  íicis  a  memoiia  da 
salvação,  fez-lhe  lembrança  que  seria  obra  de  imi)ortancia  tirar  a  luz  a 


1(K)  LIVr.O  I  DA  IIlfiTOr.íA  DK  S.  DO?,nXGOS 

vida,  c  milagres  (logrando  Arcoljispo  do  Sovilha  Sanío.  Isidoro,  poisem 
casa  sua,  e  do  seu  nomo  residia.  Obrigoa-se  dom  Lucas  ao  trabalho,  e 
saindo  dospois  a  luz  com  liuma  parlo  delle,  dodicou-a  ao  mesmo  Provin- 
cial com  csíe  titulo:  Sanctissimo  Patii  Siierio  Priori,  eic.  c  enlre as  clau- 
sulas do  prologo  lia  huma  cujo  principio  lie:  Cmii  adscribcnãa  mirccula, 
boné  paAíor  Sucri,  Sanclissimi  Ordinis  Fraedicalornin  in  Hispanij&  Prior 
Provincialis,  cie.  E  por  remato  do  prologo  di:í  assi:  Dignare  orare,  le- 
nignissims  Pater,  iit  qiiia  koc  in  sua  matéria  landahile  opus  vestra  iubcn- 
te,  ac  suadente  sanctitalc  in  incepto  a.feclionis  consislit,  aiixilium  divininn 
ad  opiaiam  pcrfcclioiwni  misericorditer  faciat  jiervcnire.  Esíe  iivro  escri- 
to de  mão  se  guarda  no  Ârcliivo  do  Mosteiro  do  Santo  Isidoro  do  Leão, 
segundo  o  aflirma  o  Cónego  João  de  Palácios  no  Catalogo  que  fez  dos 
Bispos  de  Tuy(*).  Chegado  a  Paris  o  Provincial  dom  Frei  Sueiro,  e  juntos 
os  mais  Provinciais,  e  Padres  Capitulares  no  sanío  dia  do  Pentecostes 
do  anno  que  corria  de  1222,  foi  eleito  com  summa  conformidade  por 
Mestre  geral  de  joda  a  Ordem,  e  successor  do  S.  Domingos  o  mestre 
Frei  Jordão  de  nação  Alemão,  das  terras  de  Saxonia,  pessoa  de  grandes 
partes  de  letras,  e  virtude,  que  por  ser  tal  fora  eleito  polo  mesmo  San- 
to em  Provincial  do  Lombardia.  E  sem  fazerem  outra  cousa  que  toque 
a  nosso  propósito  se  despedirão  os  Padres  pêra  suas  Provindas. 

CAPITULO  XX 

Ycin  a  Portugal  o  Proviíicinl  dom  Frei  Sucíro, 
treslada  o  Convento  de  Montejunto  pêra  Santarém  ao  sitio  de  Montijrás. 

Bem  podemos  affirmar  que  era  desejada  a  vinda  do  Provincial  n'est8 
Reino  poios  que  erão  seus  scbdilos,  e  por  toda  a  mais  gente  que  d^eiio 
tinha  coniiecimento.  Porque  quanto  aos  súbditos,  além  do  desgosto  que 
geralmente  causa  a  falta  do  Prelado,  a  grande  bondado  d'esie,  e  ausen- 
cla  do  xYiti  anno  e  meio,  (visto  como  não  parece  possível  que  entre  estes 
dons  Capitules  tevesse  tempo  pêra  decer  a  sua  pátria),  acrecentava  o 
desejo,  e  ns  saudades  em  qaem  .não  conhecia  outro  pai.  Ajuntava-se  da 
parte  dos  conhecidos,  e  adeiçoados  tratar-se  com  grande  calor  por  pes- 
soas bem  intencionadas,  e  amigas  do  bem  commum,  que  se  buscasse 
algum  meio  pêra  terem  fim  as  duvidas,  e  contendas  que  de  tanio  tempo, 

(■«)  João  de  Palácios  no  Caialngo  do:  Bispos  de  Tuy. 


PAUTiCLLAl'.  DO  r.i:i.\(J  l;E  POUTLGAL  101 

G  tam  porfiaílamerile  corriiio,  (como  atrás  tocamos),  entre  o  Arcebispo  de 
Braga  dom  Estevão  da  Silva  em  seu  nome,  c  do  Clero  de  saa  Igreja,  e  e^ 
Rei  dom  Affoiíso,  em  grande  prejuízo  das  almas  de  seus  vassallos,  c  des- 
crédito da  Religião,  por  rezão  das  escomimhoens,  e  interditos  que  to- 
davia diiravão.  E  o  melo  que  se  apontava  era  hum  louvamen^o  em  pes- 
soa desinteressada,  que  sem  estrépito  de  juizo  decidisse  com  brevidade 
lodos  os  liligios.  E  da  pessoa  não  havia  quem  duvidasse,  quando  a  ti- 
nhão  tal  no  Reino  como  era  a  do  Provincial,  que  por  partes  de  sciencia, 
e  consciência  se  não  podia  buscar  outra  mais  a  proivísito.  Assi  foi  bem 
vindo  pêra  todo  estado,  e  género  de  gente:  e  logo  se  começou  a  aper- 
tar mais  a  pratica  poios  que  a  trazião  entre  mãos,  e  foi  com  tanta  força, 
que  poucos  mezes  despois  ^oi  Deos  servido  chegasse  a  eíieiío. 

Mas  elle  entre  tanto  não  vivia  fora  de  cuidados:  e  sobre  todos  o  afa- 
digava  ter-l!ie  mostrado  o  tempo  que  não  era  possivel  aturarem  os  Fra- 
des a  vivenda  da  serra,  e  serra  tão  áspera,  o  intratável,  quando  a  Ordem 
íinlia  tantas  outras  asperezas,  que  só  per  si  erão  bastantemeníe  consu- 
midoras de  qualíjuer  mui  robusto  sojeito.  Quanto  mais  que  pêra  o  pro- 
veito espiritual  da  terra,  que  era  o  alvo  de  nosso  instituto,  esiavão  mui 
desviados  do  povoado,  não  só  em  rezão  de  distancia,  aias  também  de 
sitio:  e  não  só  ficavão  inutiles  por  viverem  longe,  mas  por  estarem  em 
parte,  onde  dos  devotos  não  podião  ser  buscados  sem  muito  ti^abalho : 
e  isto  só  em  hum  tempo  do  anno  que  era  no  verão.  Assi  era  já  reso- 
lução dos  que  melhor  siníião  entre  os  Religiosos,  e  dos  seculares  qne  á 
Ordem  tinlião  mais  devação,  que  se  não  tardasse  na  mudança.  Só  no 
lugar  se  duvidava.  Porque  se  lhes  fazia  de  mal  aos  Padres,  e  parecia  ser 
contra  a  caridade  desempararem  as  terras  de  Alanquer,  onde  acharão 
primeiro  gasalhado:  e  muito  nsais  deixar  a  vizinhança  da  Infante  que  os 
amava,  e  fóvorccia.  Contra  isto  havia,  que  Alanquer  como  não  era  lugar 
grande,  pêra  doutrina  tinha  bastantes  Mestres  nos  Padres  Menores  já 
moradores,  e  vizinhos  das  portas  a  dentro:  e  pêra  exercício  de  caridade 
em  os  sustentar  não  erão  poucos:  e  sobretudo  não  sentião  na  villa  lu- 
gar comniodo  pêra  outro  Convento.  E  quanto  á  infante  estava  certo,  que 
em  alcançando  paz  que  levesse  por  fuTiic;  comei  Rei  seu  irmão  pola  com- 
posição que  já  também  andava  em  pratica,  não  soffreria  a  ausência  de 
sua?  irmãs..  Considerava-se  lambem,  que  como  os  Mosteiros  tem  res- 
peito á  perpetuidade,  não  era  sisudo  conselho  soieitar  este  ahuma  só  vida, 
e  de  huma  Princesa  já  entrada  em  dias,  mormente  quando  nesta  sojei- 


•102  t.ivnn  i  da  iirf^Toni.v  de  ?.  domingos 

ção  era  o  í^eiTico,  quo  so  lho  fazia  pouco ;  c  o  duio  quo  os  religiosos 
padociícn  mui  Lo:  o  muito  o  que  eiit,i'o  tanto  [)0!'í]ia  qualijuer  outra  torra, 
tias  (jUG  já  os  cliamavão  pêra  Hiudar. 

Não  havendo  duvida  em  deixar  Alanqucr.  e  a  sua  serra,  nem  íaiíaiido 
recados  do  bous  lugares,  t|uc  requerião  fundarão,  e  offerecião  pêra  ella 
suas  esmolias,  o  que  mais  conveniente  pareceo  ao  provincial  por  Iodas 
as  vias,  foi  Santarém  Yilla  primeira  do  todas  as  do  Reino,  e  por  gran- 
deza, e  numero  de  povo,  e  opulência  de  comarca  comparável  ás  mellío- 
res  cidades  d'e}!e.  i^o  sitio  que  lhe  offereceram  de  Montoirás,  inda  que 
logo  lhe  notou  inconvenientes,  não  reparou,  ou  por  se  não  mostrar  mão 
de  contentar,  ([iiando  era  chamado,  e  rogado:  ou  porque  cm  comi)ara- 
ção  do  que  deixava,  todo  ou'i'o  parecia  raii  aconr.nodado.  Mas  o  que  o 
successo  nos  faz  julgar  por  mais  certo,  he  que  o  aceitou,  não  como  casa 
de  morada:  se  não  como  gasalliado  de  empréstimo,  até  com  bom  con- 
selho o  buscar  qual  convinha.  Deu  conta  de  tudo  á  Infante:  elia  com  ani- 
mo real,  c  pio  não  só  o  não  encontrou,  mas  como  quem  era  testimunha 
do  muito  que  os  pobres  Frades  tinhão  padecido,  e  padeciam  queimados 
do  Sol,  do  frio,  e  ventos  de  tãií  trabalhosa  vivenda,  aprovou  a  deter- 
minação, antepondo,  como  dizia,  o  maior  bem  dos  Religiosos  ao  gosto 
((i!0  levava  de  os  ter  junto  de  si.  Não  se  mostrou  tão  fácil  como  a  In- 
fante o  comuyn  da  vilía  de  Alan(]ucr,  e  o  governo  d'eila,  quo  sabendo 
como  sabião  o  grande  serviço  que  a  Deos  se  fazia  n^aquella  santa  com- 
panhia com  orações  continuas,  jejuns,  vigílias,  disciphnas,  parecia-lhes 
que  perdiam  com  sua  ida  hum  jiresidio,  c  guarda  de  suas  vidas,  e  f^i- 
zcndas,  alem  da  hom-a  que  lhes  resultava  de  terem  consigo  dous  Con- 
ventos de  gente  tanto  do  Geo,  quando  havia  poucas  terras  em  toda  Es- 
panha que  teveséom  hum  só.  Mas  o  consentimento  da  Infante  franqueou 
Iodas  as  di .'"Acuidades.  Mudarão  casa,  e  houve  tão  pouco  estrondo  na  mu- 
dança, (i)em  haja  quem  te  ama,  o  quem  com  obras,  e  coração  te  abraça 
santa  pobi'eza),que  sem  nenhum  pejo  levarão  tudo  o  que  havia  que  mu- 
dar, debaixo  dos  braços,  E  o  tudo  erão  alguns  livros,  e  hunias  leves 
alfaias  da  Sacristia,  o  as  polires  mantinhas,  que  lhes  faziam  abi-igo  nas 
cellas.  O  mais  movei  d'elias,  e  até  a  mesma  fabrica  do  Convento  era 
pêra  o  seu  trato  fácil  de  achar  em  todo  lugar,  onde  houvesse  mato,  c 
pedra,  c  líari;).  Assi  em  chegando  a  Santarém  não  houve  tardança  em 
terem  casa  feita.  Porque  o  mais  diílicultoso  tinha  de  seu  o  sitio,  que 
era  uma  Igreja  bem  accommodada. 


PARTlCrLAR   DO    RRINO    DE  PORTUGAL  103 

Deu  o  Provincial  o  cargo  da  obra  a  Frei  Domingos  de  Cubo  filho  do 
habito  de  nosso  Padre  S.  Domigos  do  tempo  qae  veio  a  Segóvia,  e  Ma- 
drid, como  atrás  íica  dito,  o  qiuil  desde  Ciilão  ílcou  cír  Portugal,  e  di.'u 
pessoa  de  grande  marca  na  Religião,  como  ao  diante  veremos.  J;inta- 
mente  o  apercebeo  que  desde  logo  fosse  lançando  os  olhos  por  silii) 
melhorado  em  visinhança  com  a  viila.  Que  pois  da  serra  os  trazia  hum 
só  desejo  de  se  empregarem  a  todi  hora  em  serviço  do  povo,  nijo  ti- 
nha por  acertado  ficarem  longe  delia,  mais  que  em  quanto  se  buscasse 
melhor  posto.  Cumprio  Frei  Domingos  huma,  o  outra  ordem,  entenden- 
do com  as  mãos  na  fabrica  presente,  e  com  os  oUios  buscando,  e  mar- 
eando sitios  que  armassem  pêra  a  encommendada.  E  foi  o  Senhor  ser- 
vido que  em  breves  dias  se  acreditarão  os  Religiosos  com  a  terra  de  sorte, 
que  houve  quem  deu  o  dinheiro  pêra  se  comprar  novo  sítio  em  nome 
d'elles,  e  se  começou  a  tratar  da  mudança.  Mas  por  hora  se  licarão  em 
Montijrás.  Pêra  melhor  se  entender  o  que  antigameiíte  era,  e  onde  cabia 
Montijrás  remeto  o  Leitor  ao  Capitulo  primeiro  do  segundo  livro,  onde 
fazemos  descripção  de  toda  a  viila,   como  em  seu  próprio  lugar.  Agora 
basta  saber-sc  que  era  hum  sitio,  cujo  nacimento  começava  á  raiz  do 
monte,  que  hoje  chamão  dos  Apóstolos,  e  se  estendia  polo  valle  do  ar- 
rabalde da  ribeira  contra  a  viila,  afastado  hum  espaço  do  mesmo  arra- 
balde, que  então  era  cousa  pouca:  e  pêra  a  viila  licava  huma  sobida  de 
costa  comprida,  e  agra.  O  valle  ja  ii"aquelle  tempo  era  cultivado  de  hor- 
tas. Aqui  contão  as  Chronicas  do  Reino  (jue  parou  el  Rei  dom  Affonso 
Enriques  primeiro  Rei  de  Portugal  com  seus  soldados  pêra  fazer  hí>ras 
de  accometter  o  venturoso  assalto,  e  escalada,  com  que  em  huma  noite, 
e  com  poucos  companheiros,  e  sendo  elle  em  pessoa  hum  dos  mais  ar- 
riscados acomettedores,  se  fez  senhor  da  viila  matando  infinitos  Mou- 
ros, sem  perder  homem.  E  polo  valle  fez  a  entrada  contra  a  porta  que 
chamão  da  Atamarta.  Foi  este  feito  no  anno  de  nosso  Senhor  Jesu  Christo 
de  1147(*),  e  sendo  emprendido  com  tanto  valor,  e  bom  successo,  foi  o 
segredo  tal,  ({uc  nem  em  Coimbra,  d"onde  saliio,  houve  (juem  imaginasse 
que  tal  se  tratava,  se  não  despois  que  se  víd  acabado.  E  a  ígrequja,  e 
os  nossos  Frades  acharão,  devia  ser  obra  do  mesmo  Rei,  como  em  gra- 
ças da  victoria,  que  d'aque!ie  posto  teve  principio. 

Deu  o  Provincial  pressa  em  que  se  acommodasse  o  recolhimento, 

(.)  Duarte  Nunes  tio  Leão  na  vida  de!  iSei  dom  AlTdnáo  línrlqueá.  Maris  foi.  39.  das  seuá 
Dial. 


|(H  Lniío  I  DA  iiisToníA  r>E  s.  bomíngos 

pêra  que  os  Frades,  q\iQ  jimtaniântle  er«o  arclíitectos,  e  trabalhadores, 
nãvj  íoiíassem  á  prAgação,  e  doutrina.  E  lai  foi  o  priuwiro  sitio,  e  o  priíí- 
eipio  do  Convento,  que  esía  Provinda  teve  em  Santareni,  ficando  com 
o  nome  de  S.  Domingos  de  Montijrás:  o  qual  colligimos  parte  de  memo- 
rias, e  papeis  antigos,  que  hoje  vivem  no  cartório  d'aqaella  casa,  parte 
da  tradição  commum  que  n'ella,  e  na  villa  dura  entre  os  velhos,  de- 
duzida das  idades  antigas  até  a  presente.  Queixo-me  porém  do  descuido 
com  que  viverão  da  posteridade  os  Padrfô  que  n'este  Convento  n"aqael- 
les  bons  tompos  se  criarão,  pois  sendo  tão  insignes  sua  vida,  e  obras, 
que  as  achamos  celebradas  por  livros,  e  lingoas  estranhas,  forão  clles 
em  no-las  dar  de  sua  mão  escritas  tão  avaros,  que  he  necessário  andar- 
mos mendigando  muitas  cousas  por  ci^nveniencias,  e  conjeituras  pêra 
podermos  formar  esta  Historia.  Assi  não  bastou  nenhuma  diligencia  pêra 
alcançarmos  ao  certo  o  anno  preciso  d'e3ta  íransmigração,  sendo  cousa 
certa  que  foi  por  estes  annos  em  que  vamos:  nem  pêra  sabermos  como 
desfez  o  tempo  esta  Igi^eja  do  Montijrás,  visto  não  haver  hoje  rasto,  nem 
sinal  d'ella,  e  ser  também  certo  que  esteve  muitos  tempos  em  pé,  e 
muitos  manteve  o  nome  de  S.  Domingos,  ainda  despois  de  a  deixarem 
os  nossos  Frades  com  segunda  tresladação  que  fizerão  pêra  o  Ingar,  onde 
hoje  temos  o  Convento  na  mesma  villa:  e  sendo  dada  a  outros  morada- 
res,  como  ao  diante  se  verá. 

CAPITULO  X:vl 

Vai  o  Provincial  a  Coimbra  chamado  de!  liei  dom  Sancho  Segunde.  Con- 
cordai com  o  Arcebispo  de  Braga,  sendo  por  ambos  eleito  Juiz  das 
contendas  que  trazida.     . 

Quando  os  medianeiros  da  composição,  que  se  tratava  entre  cl  Rei 
dom  Affonso  segundo,  e  o  Arcebispo  de  Braga  dom  Estevão  Soares  da 
Silva,  acabarão  de  assentar  com  el  Rei  as  condições  do  compromisso 
que  se  havia  de  fazer,  (como  atrás  fica  tocado),  na  pessoa  do  Provincial 
dom  Frei  Sueiro,  mandou-se-lhe  recado  a  Santarém  pêra  que  se  achasse 
presente  ás  escrituras,  e  aceitasse,  e  assinasse  o  louvamento.  Acodio  o 
Provincial,  e  veio  o  Arcebispo  a  Coimbra,  onde  el  Rei  estava.  Mas  como 
cousas  grandes  tem  sempre  suas  diíficuldades,  c  el  Rei  decia  aos  con- 
eerlos  mais  por  animo  Chrlsíão,  c-  pio,  qiic  por  entender  que  em  cob- 


PARTICTLAa  DO  REiNO  DE  PORTUGAL  Í05 

sciencia  íinha  olirigarão  algumas  ás  queixas  do  Arcebispo:  e  folgava  de 
cortar,  sôgaiiuo  dizia  por  si,  por  aíalhar  as  desconsolaçoens  que  havia 
no  povo  com  as  escomuiihoens,  e  interditos,  houve  tanta  dilação  em  meio, 
quo  erão  passados  do  anno  novo  de  1223  dous  mezes,  e  as  escrituras 
não  se  celebravão.  E  quando  não  faltava  msis  que  ass!n^'\rem-se,  decre- 
íou-se  outra  cousa  no  tribunal  divino:  veio  el  Rei  a  adoecer,  e  faleceu  logo 
aos  vinte  cinco  de  Marco  d  este  anno  eni  que  vamos  correndo  de  i223. 
Porém,  não  estorvou  tamanho  accidente  o  que  estava  capitulado:  antes 
el  Rei  dom  Sancho,  inda  que  moço  que  não  chegava  a  desesete  annos, 
querendo  entrar  com  Ixinçoens,  e  boa  esírca  no  Reino,  passados  os  dias 
que  erão  devidos  a  exéquias,  e  nojos  reaes,  mandou  que  tevesse  eíTeito 
o  louvamento,  e  a  escritura  se  fez  no  mez  de  Junho  logo  seguinte.  D'ella 
poremos  aqu.i  alguns  pedaços  tirados  do  original  que  se  guarda  no  car- 
tório da  Sé  de  Braga,  d'onde  nos  forão  dados.  E  diz  assim. 

CiDii  oliiii  quceslio  vcrteretiir  inter  Domniiin  Alfonsuji  Secnndinn  illas^ 
irem  Regem  Portugaliicg  ex  vna  parte,  et  Donum  Stephaniim  Brac.  Arch. 
ex  (iltera  super  qnibusdam  (janatis  et  peeunia,  de  guibns  Jicebatur  idem 
Ilex  sforcíasse  Monasleria.  et  Eccleúas,  et  super  quihusdani  domibus,  et  vi- 
neis ,  et  alijs  damnis  irrojatis  eidsm  Arch.  et  Ecclesice  Brach.  et  Thesau- 
rario.  Qnare  idem  Arch.  senteniias  interdictorum  iii  regniim^  et  diversarum 
excommunicationum  in  ipsum  Regem  Donum  Alfonsum,  et  factores  suos. 
et  in  eum  sequentes,  et  ia  pcrsonas  quorundam  ckricorum,  et  quaedam  alia 
Concilia  partim  auloritate  sua,  parlim  Sitmmi  Punfificis  fecerat  promulgari. 
Tandem  prfpxlicto  Rege  viam  vniverscs  carnis  ingresso  placuit  ftlio  eius  Dono 
Saneio  Secundo  illuslri  Regi  Poriugal.  cum  prcpfato  Arcliiep.  amicabiliter 
composiiionem  f(ic(re  inhunc  modura.  In  primis  iurauit  idem  Rex  et  BarO' 
nes  siti  ad  sancta  Dei  Ecangclia  ca  qua;  sequunfiir,  scilicet  quòd  de  gana- 
tis,  sforciado  et  pecunia  spolialis  emendam  faciet  per  sabedoriam  et  exiS' 
timalionem  Domini  Suerij  Prioris  Fratrum  Pncdicaturum  in  Hispânia^ 
et  Archidiaconi  Brac.  Domini  Garcia}  Menendi,  et  Ferdinandi  Petri  olim 
Cantons  UUxbonensis  iuralorum  ad  sancta  Dei  Euangelia  bana  fide  veri- 
talem  de  gahatis,  et  pecunia  inquirere,  et  quanlum  Donum  Regem  ibi  dare 
oporteat,  et  qiialiiaíe  amicabiliter  definirei  quorum  existimationi  vtraqtie 
pars  síare  tenetur,  ele. 

Ao  diante  vão  condições,  e  clausulas  particulares  de  obrigações  de 
depósitos,  e  eníregas  de  dinheiro,  cjue  deixamos,  porque  não  servem,  c 
após  ellas  procede  a  escritura  dixendo : 


i06  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DF  S.  DOMIXf.OS 

Dominns  autcm  Archiep.  iurunit  aã  muda  Dei  Euangelid  coram  po- 
sita,  qiml  facta  depositione  pecuniie  prwfaUe  apnd  Aquam  lenalam,  de  qiia 
dcheat  conslare  per  literas  supradictornni  eristimntonim,  et  satisfucto  ipso 
Archiep.  de  prwdictis  sex  inilliba^  aureorum  PorturjuHensis  moneta;  com- 
tnunis  absolnet  sine  mora  tolum  reijnum,el  Inllcl  generali ahsoliúione  omnes 
senleiítias,  qnas  ttdit,  vel  fieri  procuravit,  Iam.  inlcrtlictorum,  qnani  ex- 
commuuicationuin  niaioram,  vel  minorum,  sice  iii  loca,  sice  iii  rerjninn, 
sive  in  concilia,  sice  in  piírsonas  Iam  clcriconim,  quam  laicorum,  qv.am 
quornmcumqne  occasione  hniir.midi  discórdia;,  sive  senlenlia  fuerunt  latte 
autor iíale  Domini  Archiespiscopi,  sive  Dom.  Papce,  sice  per  judices,  sive 
per  executores  Iam  Dom.  Papce,  qmim  Archiep.  ctc. 

E  iilliiiiamente  cerra  a  escritura  assi: 
Aclum  Colimo,  mcnse  lunio  sub  Era  M.CC.LXI.  prcefatis  Rege  cl   Ar- 
cliiep.   liixc  confirmantibus   cum  apposilione  sigillorum  suorum :  pra;sentes 
autem  fuerunt,  eíct. 

E  logo  abaixo  vão  muitos  áiiiais  sem  mais  declaração  que  a  primeira 
Mra  do  nome  de  cada  hum,  e  sua  dignidade  pola  ordem  que  vão 
postos. 

Donns  P.  Abbas  Âlcobacioc.  Donns  P.  Magister  Templi  in  Portug. 

Donus  R.  Prior  líospitalis.  Doniis  S.  Prior  Pra?dicat. 

Donus  Ambritius  Abbas  S.  Joan.  dc^Tarauca.  Mag.  P.  Cantor  Portug. 

Magister  Joan.  Decanus  Colirabr.  G.  Ârchid.  Brac. 

Alagisícr  V.  Decanus  Vlixb.  I.  Tbesaurarius  Egitanus. 

Esta^  clausulas  traduzidas  cm  nosso  vulgar  respondem  o  seguinte.- 

Correndo  demanda  em  tempos  atrás  entre  o  senhor  Rei  dom  AíTon- 
so  Segundo  de  Portugal  de  huma  parte,  e  o  senhor  Areei )ispo  de  Braga 
dom  Estevão  da  onlra,  sobre,  e  por  rezão  de  certos  gados,  c  dinheiros, 
dos  quais  se  dizia  que  el  Rei  esbulhara  Mosteiros,  e  Igrejas:  e  sobre  al- 
gumas casas,  e  vinhas,  e  outros  danos  dados  ao  mesmo  Arcebispo,  e  á  Igreja 
de  Braga,  e  ao  Thcsonreiro  delia:  por  razão  das  quais  cousas  ellc  xVrce- 
bispo  fizera  publicar  sentenças  de  interditos  contra  o  Reino,  e  varias  ex- 
comunliijes  contra  o  mesmo  Rei  dom  Arfonso,  e  contra  seus  ministros  e 
sequazes,  c  conira  as  pessoas  de  certos  clérigos,  c  contra  algemas  ter- 
ras, e  conselhos:  parte  em  nome,  c  por  autoridade  delle  Arcebispo,  parte 


PARTICrí,AR  DO  REi.NO  DF.  POlíTrOAf.  107 

por  autoridade  do  Summo  Pontillce.  E  hora  sendo  o  dito  Rei  falecido 
da  vida  presente,  houve  por  bem  el  Rei  dom  Sancho  Segimdo  sen  filiio 
lazer  coin  o  dito  Areeijíspo  amigável  cou^iposicão  na  forma  segnir.te.  Pri- 
meii'amente  jiiion  el  Hei,  e  com  ellc  os  Senhores  de  sua  Corte  aos  san- 
tos Evangelhos  (pie  comprirá  as  cousas  seguintes,  a  saber:  que  poios 
gados,  c  dinheiros,  forras,  e  esbulhos  feitos  dará  a  satisfação  que  justo 
for  a  juizo,  e  alvidramenío  de  dom  Sueiro  Prior  dos  Frades  Pregadores 
em  Espanha,  e  do  Arcediago  de  Braga  dom  Garcia  Mendes,  e  de  Fernão 
Peres  Cliantre,  que  foi  de  Lisboa,  ajuramentados,  que  com  boa  fé  procu- 
rem avei-iguar  a  verdade  do  que  toca  aos  gados,  e  dinheiro,  e  logo  de- 
terminem amigavelmente  quanto  será  bem  que  o  Senhor  Rei  dê,  e  em 
que  forma.  E  amigas  as  partes  sejão  obrigadas  estar  polo  que  sentencia- 
rem. Seíjiie  adiante.  E  O  senhor  Arcebispo  jurou  aos  santos  Evangelhos 
que  tin!ia  diante,  (\u(i  sendo  primeiro  depositado  o  diiiheiro  acima  dito 
no  lugar  de  Agoa  levada:  do  qual  deposito  constaria  por  assinados  dos 
ditos  juizes:  e  sendo  elle  Arcebispo  satisfeito  das  seis  mil  peças  d"ouro 
de  moeda  Portugueza  atras  declaradas,  logo  sem  mais  demora  absolve- 
rá todo  o  Reino,  e  levantará  com  absolvição  geral  todas  as  sentenças  que 
deu,  e  fez  dar,  assi  de  interditos,  como  do  escomunhões  maiores,  ou 
menores  contra  quaisquer  lugares,  e  contra  o  Reino,  Conselhos,  e  pes- 
soas assi  de  clérigos,  e  frades,  como  de  leigos,  e  quaisquer  outros  que 
a  esta  discórdia  derão  occasião,  qí^icr  as  ditas  sentenças  fossem  dadas  por 
elle  senhor  Arcebispo,  ou  pelo  Senhor  Papa,  quer  por  juizes,  ou  minis- 
tros de  ambos,  ou  de  cada  hum,  etc.  Abaixo.  Feito  em  Coimbra  no  mez 
de  Junho  Era  de  M.  CC.  LXL  (f/ue  corresponde  aos  annos  de  €hristo  de 
1223.)  confirmando  tudo  os  ditos  Rei,  e  Arcebispo  com  seus  sel- 
los,  etc. 

lio  de  saber,  que  além  dos  que  atrás  notamos  no  íim  da  escritura 
que  forão  presentes,  e  assinarão  huns  como  Prelados  de  autoridade  no 
reino,  outros  como  juizes,  ou  partes:  assinarão  outras  muitas  pessoas 
que  jurarão  por  parte  dei  Rei,  como  diz' a  escritura,  e  erão  os  fidalgos 
mais  principaes  do  Reino,  segundo  parece  de  huma  regra  antecedente 
aos  sinais  que  diz  assi:  Barones  aulem  qui  iurati  fuerunt  ex  parle  domini 
Reíjis  sunt  isti.  K  he  de  notar,  que  estão  nomeados  polo  taballião  duas 
vezes,  quasi  sem  differença,  primeiro  como  testemunhas,  e  despois  co- 
mo partes,  e  postos  pola  ordem  que  aqui  vão.  E  o  Donus  em  tantos 
mostra  ser  cortezia  do  escrivão,  e  não  titulo  de  Dom  em  todos. 


108  L1VI\0  I  DA  IIÍST   P.IA  DE  S.  DOMINGOS 

Donus  P.  Jíian.  M:Hordomu>  Guria;    Donus  Gon.  MeiíJiidi. 
DonusM.  Joan.  sign.iff  i- Domini  Regis.  Donus  Ro.  M^neaili. 
Donus  Gar.  Menendi-  Donus  Gil  Vasqucs. 

Donus  Io.  Fernandi.  Donus  Henrichius. 

Donus  Poncius.  Donus  F.  Joan. 

Donus  G.  Menendi  Cance^Iarius.  Donus  Aprilis. 

Esta  escritura  ainda  que  hum  pouco  dilatada  mo  pareceo  ajuntar  pê- 
ra mostrarmos  com  tão  veidadeiro  íestimunlio  o  primeiro  serviço  quo 
a  Ordem  de  S.  Domingos  fez  a  oste  Reino,  e  aos  Reis,  com  ceiloza  de 
mez,  e  anno,  que  em  tamanha  antiguidade  he  bem  de  estimar.  Tninbem 
he  de  notar  a*^lia  a  grand:-  Ghristandade,  e  bondade  dos  Reis  Poriugue- 
zes,  que  ainda  que  se  sintissem  contra  o  que  íin-ião  por  rezão,  aggra- 
vados  dos  miinistros  Ecclesiasticos  seus  vassailos,  ou  com  respeito,  e  mo- 
déstia filial  lhes  não  tolhião  usar  de  todo  direito,  e  armas  de  seu  fo- 
ro :  ou  com  real  benignidade,  desprezado  todo  interesse,  decião  com 
elles  a  qualquer  composição.  Mas  porque  atrás  prometti  mostrar  com  duas 
escrituras  a  grande  reputação  em  que  dom  Frei  Sueiro  estava  no  Rei- 
no, como  indicio  de  ser  nacido  nelle,  e  do  melhor  delle:  ainda  que  por 
esta  fica  bem  entendido,  ajuntaremos  a  outra,  que  segundo  parece  suc- 
cedeo  em  tempo  á  que  fica  lançada,  a  qual  lho  não  dá  menos  honra.  Por- 
que se  pêra  a  primeira  foi  chamado  por  Arbitro,  como  natural,  e  sábio, 
e  virtuoso,  e  nobre:  pêra  a  segunda  parece  que  foi  buscado  pêra  com  sua 
presença,  e  sinal  a  authorizar,  género  de  honra  muito  aventajado.  E  irá 
no  capitulo  seguinte  também  espedaçada,  e  tomando  delia  só  o  que  nos 
parecer  necessário  por  encurtar  leitura. 

capítulo  XXII 

Assiste  o  Provincial  a  hima  escritura  (h  composição  entre  el  liei  Joni 
Sancho  Segundo,  e  as  Infantes  suas  tias.  Aceriíjuão-se  os  annos  que 
reinarão  dom  Afonso  Segundo,  e  dom  Sawii')  seu  filho. 

He  de  saber  que  el  R^d  dom  AiTonso  íí  despois  que  obrigado  por 
comminações  de  censuras,  e  interditos  do  Summo  Ponliílce  largou  as 
armas,  qrie  tinha  tomado  contra  as  Infantes  dona  Tareja,  e  dona  Sancha 
suas  irmans,  com  pretenção  de  as  desapossar  das  villas  de  Montemor  o 


PAllTiCrLAlí  BO  REIAO  RE  PORTUGAL  109 

velho,  P  Âlanquer,  de  qno  cl  Rei  dom  Sancho  seu  pai  as  deixara  senho- 
ras: decendo  com  ellas  a  contenda  de  jtiizo  civil,  e  correrido  a  causa  nes- 
íe  Reino,  e  despois  em  Roma,  em  íim  al':ancou  sentença  contra  el:;is. 
Pcrqiie  sendo  património  real,  não  podia  el  Rei  dom  Sancho  seu  pai 
alheal-as  da  Coroa,  nem  seu  filho,  e  successor  delia  consintir  nisso.  Foi 
agente  dei  Rei  em  Roma  o  Bispo  de  Lisboa  dom  Sueiro,  mandado  por 
elio  a  solicitar  a  causa.  E  consta  da  sentença,  e  desta  agencia  por  hu- 
ma  provisão  do  mesmo  Rei,  que  nos  foi  communicada  do  cartório  da  Sé 
de  Lisboa:  a  qual  poremos  aqui  de  verbo  ad  verbum,  como  faremos  po- 
lo discurso  da  historia  a  outras  antigualhas  semelhantes:  porque  desejo 
sejão  exemplo  aos  que  despois  do  nós  tomarem  o  trabalho  de  escrever 
feitos  passados,  pêra  que  vejão  que  o  melhor  meio  de  descubrir  verda- 
des, averiguar  successos  de  importância,  c  concordar  tempos,  e  annos 
duvidosos,  he  revolvendo  cartórios  antigos  das  igrejas  grandes,  e  com- 
munidades  autorisadas:  onde  se  lanção  muitas  memorias  só  a  propósito 
do  que  lises  cumpre  sem  medo  de  desagradar,  nem  ambição  de  com- 
prazer a  iiinguem:  as  quais  como  estão  puras,  singelas,  e  sem  vicio  ser- 
vem de  grande  lume  pêra  a  historia.  E  não  tenho  duvida  que  se  os  nos- 
sos Cronistas  antigos,  digo  aquelles  que  esc?''' verão  dos  Reis,  longos  an- 
nos despois  da  sua  morte,  assi  como  se  valerão  de  informações  verbais, 
teverão  uu  curiosidade,  ou  paciência,  pcra  d'^Sí:'nrolar  pergaminhos  ve- 
lhos, c  ir  soletrando  ou  adivinhanhando,  (que  quasi  assi  convém),  a  letra 
Gótica  humas  vezes  embaraçada,  outras  quasi  apagada,  e  cega  de  ve- 
lhice, como  mais  de  liuma  voz  nos  aconíeceo:  sem.pre  houverão  deixado 
maior  noticia;  e  mais  acertada  de  muitas  cousas  de  importância,  em 
que  ainda  hoje  se  deseja.  E  passemos  á  nnssa  provisão  que  diz  assi : 

Aifonsus  Bei  grcdia  Fortugallice  Rcjc  vniuersis  de  Regno  suo,  ad  quou 
liieroi  islcc.  perve-iyrint,  Sal.  Sciaii^  qtiód  ego  ium  multuin  debitoi\  et  omnrs 
qui  de  rac  descendei  int  dono  S.  Viiibon.  Episrcpo.  et  toti  generi  suo,  et 
cidem  Ecciesiíc,  ef  Canonicis  eiusdem  pro  eo.qudd  ipse  Eni^copus  seruivi 
in  multam  tauí  apud  Rouiam,  qunm  in  r!'fiiiO  n^^stro  ia  causa,  qiioe  verte- 
hatnr  inter  me  et  sorores  meãs  super  caslris  Montis  maioris,  et  Alanque- 
ri],  de  quibus  ipsce  tenebant  me  exliipredatum,  et  juiiit  ad  hcerediiatiO' 
nem  prmlictorum  castrorwn,  in  sentenlia  à  Dom.  Papa  Innoc.  lll.óbtenlé 
super  eisdem  castris.  Et  iuiiit  me  iam  ia  fioo,  qua-n  in  aJijs  multis  ser- 
nitjis,  in  quibus  ipsum  necessari\im  hahui.  Quaproffer  ego  rccepi  illum  ía 
meam  coriimendam  cum  omníbus,   qacs  Ecclcsia  Viixbon.  habet ,  et  habite- 


1-10  LlViU)  I  DA   HlbTOlUA   DK   S.    DOMINGOS 

rit  In  tolo  rcgno  meo,  etc.  et  proplcr  hoc  dcdi  eis  islam  meam  charlam 
apertam  noslro  sigillo  \)lumheo  munítam.  Dat.  apud  Vlixbun.  XVIÍ.  die 
Aprilis,  per  mandatam  Domini  llcíjis  .Era  M.CC.LV.  (responde  aos 
annos  de  Christo  de  1217.) 

Escusamos  a  tradução,  por  seguir  brevidade,  e  porque  sem  el!a  fica 
entendido  o  que  prelendemos  mostrar  de  como  el  Rei  litigou  em  Portu- 
gal, e  na  Cúria  Romana  com  suas  irmãs,  e  teve  sentença  em  seu  favor, 
e  em  que  tempo.  Esta  sentença  ou  que  fosse  só  na  propriedade,  ou  em 
iodo,  procurou  cl  Rei  assentar  com  cilas  por  escritura,  e  contrato  pa- 
cifico que  por  sua  morte'  deixassem  as  villas  livremente  á  Coroa.  Dila- 
tou-se  o  negocio  porljuvidas  que  se  devião  mover:  e  podia  ser  que  hou- 
vesse contratos  feitos  por  terceiros,  c  os  mesmos  se  recindissem  por 
nuo  serem  a  gosto  das  partes.  Porque  a  infante  dona  Tareja  queria  que 
por  sua  morie  ficassem  Montemor,  e  Esgueira  á  Infante  dona  Branca 
sua  irmã:  c  por  falecimento  d'ambas  então  ficasse  Montemor  á  Coroa, 
Esgueira  se  desse  ao  Mosteiro  de  Lorvão.  Em  fim  veio  este  concerto 
também  ás  mãos  dei  Rei  D.  Sancho,  como  o  do  Aicebispo  de  Braga,  e 
veio  a  celebrar-S3  no  mesmo  mez,  e  anno,  mas  não  no  mesmo  lugar, 
o.  ao  que  parece  foi  alguns  dias  desnois,  parque  não  tendo  data  em  dias 
a  escritura  do  Arcebispo,  esta  se  declara  que  passou  em  Véspera  de 
S..  João  Bautista.  Qaiz  el  Rei  que  se  autorisasse  este  acto  com  interven- 
ção da  pessoa  do  Provincial  dom  Frei  Sueiro,  c  que  se  fizesse  em  Mon- 
temor o  velho  em  presença  da  Infante  dona  Tareja,  onde  elle  se  foi  acom- 
panhado do  arcebispo  de  Braga,  que  também  assinou  na  escritura.  D'ella 
lançaremos  aqui  algumas  clausulas,  por  serem  em  memoria  de  dom  Frei 
Sueiro,  e  honra,  e  autoridade  da  Ordem  do  S.  Domingos.  Começa  assi: 

In  Dei  nomine.  Iliec  est  forma  pacis  et  compositionis  factrs  inter  Do- 
minnm  S.  secundum  illnstrcm  Reijem  Portuga IUíê  cx  vna  parte ^  et  nobilís- 
simas Beginas  (Já  disscmos  atrás  que  este  titulo  gozavão  então  todas  as 
filhas  dos  Reis)  Dominam  T.  el  Dominam  S.  et  Dominam  li.  ex  altera  ; 
sua  spoule,  cl  ia  sua  sanitate  super  castris  Montis  maioris,  et  Alanrjuer, 
el  super  Isgueira:  videlicet  fjuòd  licgina  dona  T.  et  dona  S.  debeant  tenere  in 
vila  sua  castram  deAlanqucr,  et  post  mortem  naturalem  Regina'  dona'  T.  et  re- 
gúve  dona'  S.  ipsum  castrurd  de  Alanr/ner  debeat  redire  cum  omni  iure  suo  libe- 
re, el  sine  omni  diminvdione  ad  diclnm  Dominam  S.  llegcni  Forlagalliti',  et  ad 
filiiuii  eios^  vel  ad  suam  liwredcm  legilimum.  Et  Regina  dona  T  dchct 
liabere  -in  vila  sua  castrum  Montis  maioris  et  Isgneiram,  et  poU  morlem 


pAiiTicuLA!',  no  ni:i.\o  dk  poutigal  1 1 1 

eias  naluralem  rci/ina  Domina  ]>.  dchet  hnhcre  ipsuiu  cídtinm  et  Isijuei- 
rain  :  et  post  mortein  naí  ura  leni  ípsfinini  âmbar  nm,  castncn  ipsum  in  pare 
cum  GDini  itrre  sin  liherè,  et  siiie  omni  diniinutionc  redcat  cuin  suis  perti- 
ncnlijs  ad  dirinni  J)o:niniim  S.  Regem  Portdfjallin.  ve!  ad  ejwí  lerjuinium 
ínvredem:  et  post  uiovtem  natnralem  reginije  doivx  2'harasijO,  et  reginoi  dome 
Jilmicce  Isgueíra  deljct  remanere  Moiiasterio  de  Lorvano  pro  licsreditate,  elc^ 
Despois  seguem  outras  cousas,  e  por  fim  delias  diz:  Actum  publice  apud 
Montem  maiorem  veterem  in  vigília  S.  loan.  liaptislie  mense  íiinio.  Fra- 
senles  fuenint  Domitus  lirac.  Arckiepis.  G.  Archidiaconns,  A.  Tliesiura- 
rins,  G.  Cnpellanus  Bracaren.  S.  Prior  Fratruni  Pnedleaturuni  in  Hispâ- 
nia: Abaixo  seguem  todos  os  mais,  ou  quasi  todos  os  assinados  na  ou- 
tra escritura  de  Coimbra:  e  arremata  dizendo.  Actum  sub.Era  M.CC.LXL 
((jue  lie  o  próprio  anuo  em  que  vamos  de  l:2i3.) 

Agora  he  tempo  de  adviríii-mos  aos  que  audão  vistos  nas  Clu'o:jicas 
deste  Reino  da  rczão  que  temos  pêra  nos  não  conformarmos  na  com- 
putação dos  annos,  c  successo  da  morte  dei  Rei  dom  Aílonso  Segundo 
com  a  letra  de  sua  sepultura  do  Mosteiro  real  de  Alcobaça,  que  o  dá 
ali  sepultado  no  anno  de  Cbristo  de  1233,  principalmente  sendo  apre» 
vada  poios  Doutores  Frei  Bernardo  de  Brito,  e  Duarte  Nunes  de  Leão 
reformador  dasChronicas  dos  primeiros  Reis  de  Portugal  (*),  pessoas,  a 
cujas  leiras,  e  sciencia  se  deve  grande  respeito.  Digo  pois,  que  sendo 
l)rincipio  posto  em  toda  boa  rezão  não  se  consintir  disputa  em  matérias 
([ue  ou  consistem  em  feito,  ou  que  de  feito  se  podem  averiguar,  satis- 
faço bastan temente  com  duas  csciituras  atrás,  cujos  orjginaes  estão  vi- 
vos, bum  no  cartório  i'eal  d"este  reino,  outro  no  da  Sé  de  Braga,  d"onde 
me  foi  dado  o  que  delles  temos  apontado,  polo  Licenciado  Gaspai-  Al- 
vares de  Lousada  Macbado,  que  o  Braccarense  teve  a  seu  cargo  alguns 
annos,  e  o  Real  tem  de  presente  com  titulo  de  Refijrmador  dos  Padroa- 
dos da  Coroa,  e  Escrivão  da  torre  do  Tombo,  e  vai  digerindo  aquellrs 
memorias  antigas  por  tão  boa  ordem,  que  será  fácil  aos  escrupulosos 
satisfazerem-se  com  vista  de  ollios  de  ambas  as  escrituras  referidas,  por- 
que tamltem  m.e  consta,  que  na  mesma  torre  ba  íreslado  autentico  da 
de  Braga.  Ehuma,  e  outra  fazem  morto  el  Rei  dom  Affonso  Segundo  an- 
tes do  mez  de  Junlio  do  anno  de  12i3  dizendo  a  primeira:  Tandem  proe- 
dicto  Rege  viam  vninerscu  carnis  ingresso:  c  fazendo  cm  ambas  el  Rei 
seu  íilho  autos  que  não  fizera  se  não  fora  berdado,  c  Senbor  soberano 

(•)  Duarte  Àunes  na?  Crouic.  rcformadui.  F.  Burn.  tle  Brito  nos  elogios  d«s  Reis. 


412  LIVRO  I  DA  IIISTOIUA  DE  S.   BOMINSOá 

do  Reino.  Por  onde  sendo  isío  testemunhos  vivos,  c  maiores  de  toda 
exceição,  claramente  fica  convencida  a  culpa  da  pedra  de  Alcobaça  se  a 
iioiive  n"ella,  e  culpados  de  descuido  os  que  a  seguirão,  n^o  penetrando 
a  significação  do  letreiro,  que  com  bom  juizo  esculpio,  ou  o  primeiro 
que  assentou  a  sepultura,  ou  o  segundo  que  a  mudou,  que  foi  o  Ab- 
bade  dom  Jorge  de  Mello.  E  moslral-o-bei  com  hum  breve  discurso. 

Diz  a  Letra:  Condilnr  hoc  tumulo  Donns  Alfonsus  Sccundus  noyninc, 
erdineque  Tertius  LnsilanicB  RcxannoM.  CC.XS.XlIi,  Quer  dizer:  Neste 
muimentoestá  mettido,  (ou  foi  meLíido,  usando  do  prssente  por  pretérito) 
dom  Affonso  Rei  de  Portugal  Segundo  no  nome,  Terceiro  em  numero 
no  anno  de  1233.  Duas  cousas  ha  n'est8  letreiro  que  estão  como  com  o 
dedo  apontando  duvida.  Seja  huma  falar  por  annos  de  Christo,  sendo 
assi  que  nem  então,  nem  muito  tempo  despois  se  falou  se  não  por  Era 
de  César:  a  outra  he  aquelle,  conãitur :  que  faz  differeníe  signiílcação, 
visto  principalmente  que  em  todos  os  mais  letreiros  ha  ouíros  termos, 
como,  obijt,  decessit,  e  outros,  que  claramente  dizem  falecco,  acabou,  c 
nos  estão  amoestando  que  não  sem  fundamento  usou  do  conãitur.  Am- 
bas estas  cousas,  e  cada  uma  d'ellas  fora  rezão  que  obrigarão  aos  Chro- 
nistas  a  revolver  antjguidades,  e  cartórios,  que  são  fonte  de  luz  d'ellas, 
como  fica  dito.  Que  se  o  fizerão,  achai'ão  as  escrituras  atrás  lançadas, 
das  quais  consta  que  era  falecido  antes  de  Junho  de  1223.  Acharão  no 
livro  dos  Óbitos  do  Mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  huma  letra  que 
diz:  Odavo  Cal.  Aprilis  obijt  Bónus  Alfonsus,  Tertius  Rex  Portugal.  A^ra 
M.  CC.  LXI.  E  acharão  a  mesma  na  Sé  de  Coimbra,  que  acrecenía  des- 
pois  do  nome,  e  do  tempo:  Qui  dedit  huic  Ecdcsixe  viginli  millia  -anreo- 
ruin  aã  claustruin  facienduin,  et  pro  anniversdrio  suo  mille  moraòitínos, 
A  mesma,  e  com  as  mesmas  palavras  anda  no  livro  dos  Óbitos  do  Mos- 
teiro de  S.  Vicente  de  fora  da  cidade  de  Lixboa,  acrccentando:  Cante- 
tur  Missa  ad  maius  altare,  Hat  processio.  E  também  aírtás  outro  livro 
de  Óbitos  da  Sé  de  Lisboa  sem  discrepar  em  nada,  e  ajuntando  somente: 
Qui  dedit  Capitulo  mille  morabitinos  in  commemoratione  sui  Annicersa- 
rij.  (E  não  faça  duvida  o  dizer  Alfonsus  Tertius  Rex,  porque  a  mesma 
Era  mostra  que  nao  podia  ser  outro  senão  AíTonso  Segundo  em  nome, 
Terceiro  em  numero).  D'esta  opinião  he  Garibay  na  Historia  geral  de 
Espanha  (*).  E  da  mes.ma  o  Chronista  Ruy  de  Pina,  só  com  dlfferença  de  hum 

(.)  Garib.  1.  31.  f.  802.  Pina  na  vida  dei  Hei  D.  XGomo  S<;g'.indo.  i!aris  nos  dial.  de  va- 
pla  hist.  Buarle  ^U!:es  na  genccilog.  dos  Reis.  Mariima  1.  i2.  c.  10.  í  597.  Va-í'U. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTIT.AL  i  í  3 

anno  adiante.  E  a  ella  se  cheglo  Alaris,  e  o  mesmo  Duarte  Nunes  do 
Le^.o  na  genealogia  dos  Reis  que  imprimio  primeiro  qae  as  Clironicas.  E 
o  Padre  Mariana  na  liisíoria  de  Espanha.  E  Vaseu  que  lie  mais  antig') 
que  todos.  Resta  descubrirmos  a  rezão  porque  a  repultura  de  Alcobaça 
está  diífereníe  em  dez  annos  adiante.  Esta  be,  que  el  Rei  não  foi  levado 
a  Alcobaça  senuo  dez  annos  despois  de  seu  faleci inento:  quem  qaizer 
ver  a  causa  da  dilação,  lea  toda  a  escritura  primeira  de  que  atrás  não. 
trazemos  mais  que  pedaços  por  bons  respeitos,  e  ficará  satisfeito,  ass^ 
do  que  dizemos,  como  da  boa  consideração,  com  que  o  Autor  da  letra  da 
sepultura  fazendo  verdadeira  relação  do  tempo,  que  aquelle  corpo  real  ali  fui 
recolhido,  se  livra  de  dar  outras,  e  a  do  dia  preciso  de  seu  falecimento. 

Confirmão  esta  verdade  algumas  conveniências.  lie  a  primeira  dize- 
rem as  Chronicas  que  el  Rei  dom  Affonso  por  seu  filho  dom  Sancho  fi- 
car moço,  e  só,  o  deixou  encomendado  a  sua  tia  a  Rainha  deLeão(*).  Sai- 
bamos a  que  chamão  moço,  e  a  que  chamão  só:  se  falecendo  no  anno 
de  1233  era  dom  Sancho,  (como  elles  mesmos  con.ressão),  de  vinte  seis 
annos,  e  tão  pouco  só  que  o  acompanhavão  dous  irmãos  legítimos,  dom 
Affonso,  e  dom  Luis,  cada  um  delles  de  mais  de  vinte  annos.  Bem  se  segue 
(Vesta  contradição,  que  foi  verdadeira  a  recomendação,  e  o  anno  que  nós 
llie  damos  de  sua  morte,  que  he  o  de  1223,  porque  n"elle  era  dom 
Sancho  moço  de  dezaseis  annos,  idade  pueril,  e  pêra  se  poder  encomendar 
a  huma  tia:  e  também  se  podia  chamar  só,  pois  seus  irmãos  erão  mi- 
ninos. 

Segunda  conveniência  he,  que  não  era  possível  deixasse  hum  Rei  si- 
sudo cumprir  idade  de  viníeseis  annos  a  hum  Principe  successor  do  Reino 
sem  o  casar,  principalmente  quando  os  mesmos  Chronistas  confessão,  que 
já  conhecia  n"elle  fraqueza  natural. 

Sobre  tudo  o  que  mais  faz  ao  caso  he,  que  sendo  os  Portugueses 
tão  contrários  á  deposição  dei  Rei  dom  Sancho,  como  em  eíTeito  se  mos- 
trarão, fica  dura  cousa  de  crer,  que  em  tão  breve  tempo  de  reinado, 
como  doze  annos,  que  os  Chronistas  lhe  dão,  (porque  o  ultimo  já  foi  de 
desterro),  succedessem  tantas  cousas  juntas,  como  forão  os  aggravos  in- 
toleráveis que  seus  validos  fazião,  as  queixas  do  povo  multiplicadas  â 
Sé  Apostólica,  cartas,  e  reprensões  do  Summo  Poníifice,  vindas  do  Le- 
gados, e  emfim  deposição  de  hum  Rei.  O  que  tudo  conforma  com  fídecor 
seu  pai  no  anno  das  nossas  escrituras,  e  tomar  elie  no  mesmo  o  go- 

(•)  Cronic.  de  Portugal,  e  Djarte  Nunez  na  vi^ia  dd  Rei  dom  Sancho  2 

VoL  I.  '  8 


,{i4  LiVRO  I  DA  IliSTOillA   Dii   S.   DOMINGOS 

vôriio  do  Ríino,  sondo  moço  da  dezascis  nnuos:  g  por  isso  ílcar  por  ca- 
sar, c  encoraondado  a  liiima  t!a,  e  logo  ião  fácil  do  levar  dos  artiílcio» 
i\ò  goalo  raal  inclinada,  que  se  apoderou  d'elk\  Assi  be  toda  a  diíferenra 
de  dez  annos,  os  quais  tiradas  á  idade  do  Pai  dom  Afforiso,  e  dados  á 
\ida,  c  reinado  do  íHho  dom  Sancho,  não  só  os  não  descompõem :  mas 
antes  concerlão  toda  a  Historia  de  ambos,  e  nos  dão  em  sen  verdadeiro, 
e  lefTiíimo  tempo  os  snccessos,  e  composições  dei  Rei  dom^  Sancho  com 
o  Arcebispo  de  Braga,  c  com  as  infantes,  que  forão  celebradas  senda 
Provincial  de  Espanha  dom  Frei  Suelro  Gomez,  o  qual  dez  nnnos  adiante 
era  falecido.  Faitava-nos  algum  auto  real  que  dom  Sancho  ílzesse  desa- 
companhado dfr  Frades  pcra  minb.a  satisfação,  e  d'algum  demasiado  es- 
crupuloso. Acudio-Ros  o  Cartório  da  santa  Sé  de  Évora  com  huma  carta 
dY^sle  Rei,  passada  cm  Lisboa  mmez  de  Abril,  Era  de  láGâ,  que  he 
anno  do  Redentor  1220  na  qual  recebe  aquelie  Cabido  debaixo  de  sua 
protecção.  E  pois  já  então  reinava,  bem  ceilo  ílca,  que  não  podia  seu 
jiai  falecer  no  de  1233,  como  querem  os  que  refiiíamos.  Ancb  esta  carta 
no  livro  das  composições  da  Sé. 

CAPITULO  XXIII 

■  Como  foi  [andado  o  priniríro  Mosteiro  ih  Freiras  (jue  honre  em  Porlugai 
ciíi  Ordem  dos  Pn'g-'i(i>res. 

Junto  á  cidade  de  Lisboa,  ao  Niírte  d"clla.  em  distancia  de  quasi 
huma  legoa,  ha  hum  valle  por  copia  de  qiiiatas,  e  fgsscura  de  hortas,  e 
pumares  assífz  deleitoso,  que  chamão  Valle  de  Clieilas.  Havia  n^elle  po- 
ios annos,  em  que  vamos  de  ií2'j  huma  Igreja  íã)  antiga  na  primeira 
fundação,  que,  sem  iiavor  que^n  d^isso  duvidasse,  se  referia  ao  tempo 
cm  que  a  primitiva  igreja  ílorecia  com  favores  do  Ceo,  e  persiguições- 
da  terra.  Porque  sendo  regada  com  rios  de  sangue  de  infinitos  Slarty- 
res,  qiie  cada  hora  padecião,  tomava  forças  do  raosmo  ferro,  e  fogo,  com 
que  era  persiguida,  o  liia  crecendo,  e  pulando,  e  tomando  posse  do  mundo. 
Assi  lie  cousa  certa,  que  derão  oecasião  a  se  fundar  esta  igreja  os  glo- 
i-iosos  Martyres  S.  Félix,  e  Adriano.  Porque  padecendo  ambos  em  templo 
de  Diocleciano  Emperador  animosa,  e  santamente  pola  Fé  (*):  Félix  em  Gi- 
ro;;a  de  Cataiunha,  aonde  veio  buscar  o  marfyrio,  íogindo  da  cidade 

{']  S.  l:ii!or.  l'rui'.encio. 


PARTÍCrLAP.  DO  P.EINO  DE  rOP.TUGAL  ÍÍj 

SJiiLann,  om  qiio  nacor.i,  o  Cn  do  Cosarei  oní  Ãivm,  onde  seus  pais  o 
criavão  uo  esLuílo(*):  c  Adriano  sondo  mari3TÍs:i!io  em  Nicoinodia  do  Bi- 
Ihiiiia:  por  vários  casos,  o  ena  diiToreates  tempos  vierão  as  sanlas  reliquias  úq 
aniivos,  com  muitas  do  outros  compaalieiros  do  marlyrio  aportar  ii^esío 
vaílo, -c  no  lugar  da  Igreja,  onde  n\a(irieiie  tempo  chegava  o  mar,  que 
agora  lhe  fica  íorigo  qiiasi  meia  legoa.Forão  os  Mnrtyres  conliecidos  per 
relação  de  quem  os  acomparilmva,  mas  logo  reconhecidos,  c  reverencia- 
dos por  meio  de  esclarecidos  milagres,  que  obrarão.  Edilicou-lhes  ígr.  ji 
a  devação  de  Lisboa,  c  forão  honrados  nY'1'a  debaixo  do  nome  do  S.  Félix, 
oii  porque  padocoo  em  terras  de  Espanha,  ou  porque  foi  primeiro  em 
chegar  aoYaile:  e  em  íestimunlio  da  grande  antiguidade  ficou  com  nomo 
quasi  trocado  no  povo,  cha;nanila-se  S.  Pêro  Fins  do  Acliellas.  Na  en- 
trada dos  Mouros,  que  despois  succedeo,  do  crer  he  que  o  medo,  e  a 
confusão  q;ie  por  castigo  do  Geo  opprimia  os  ânimos,  usaria  do  remé- 
dio n:ais  fa^il  pêra  salvar  as  santas  reliquias,  que  era  eníerral-as  no  mesmo 
lugar,  G  encommendal-as aos  mesmos  Sanlos:  e  |podomos  cuidar  do  grande 
favor,  quo  ainda  hoje  exprimentão  os  que  a  esla  casa  o  vem  buscar  em 
suas  necessidades,  que  elies  nos  gu.ardarão  este  thesouro,  O  qual  se  de- 
via descoljrir  despois  no  dia  .em  que  as  lendas  do  Mosteiro  celebrão  sua 
tresladnção,  que  he  aos  14  de  Janeiro.  í']ntão  se  poserão  em  duas  gran- 
des caixas  de  pedra  os  corpos  de  S.  Félix,  e  Santo  Adriano  que  írazião 
nome  sabiido.  Os  mais  que  erão  vinte  quatro  com  o  de  Santa  Nataíià  fi- 
carão cm  confuso  sem  se  poder  averiguar  qual  era  o  da  Santa.  N'esie 
estado  fez  d"elles  íiltima,  e  solcmnissima  tresiadação  o  iílustrissimo  se- 
nhor Arcebispo  dom  Miguel  de  Castro,  passando-os  do  sitio,  cm  que  es- 
íavãv)  pêra  a  ígrej?.  E  n"cHa  se  vem  agora  em  meios  corpos  de  obra-cu- 
riosa,  e  custosa,  S.  Félix  com  doze  companheiros  no  altar  collaíeral  da 
parte  do  Evangellio;  Santo  Adriano  da  Epistola  com  a  Santa  consorte;  e 
com  mais  opizo  companheiros.  E  podemos  cuidar  (jue  elles  são  os  que 
com  sua  intercessão  sustentão  a  vida  de  quem  assi  os  honrou  em  idade 
que  tem  quasi  cinquenta  annos  de  Prelado.  Dos  seus  milagres  antigos 
nos  (lãi)  muita  noticia  huns  devotos  officios  que  na  casa  se  rezarão  por 
ma.is  de  treze; dos  annos,  em  quanto  n'ella  so  conservou  a  reza  Dom."- 
•nica,  que  vierão  a  nassa  mão,  e  consta  por  elles  que  se  fazia  festa  a  S.  Fé- 
lix, em  p:àmeiro  dia  do  Agosto, -e  a  Santo  Adriano  em  nove  do  Se:e;i- 
bro.  Dos  modernos  temos  bastante  testimunlio  na  grande  mubidão  de 

(•)  Suri.  Adon. 


1  l(j  LtVUO  I  DA  HISTOr.IA  DR  S.  DOMfNGOS 

povo  que  acode  a  esta  casa  todas  as   sestas  feiras  do  anno,  sem  niincg 
iiaver  falia,  o  chamão-lhe  a  romagem  de  S.  Perofms. 

Laiicados  os  Mouros  do  Lisboa  polo  braço,  e  valor  dei  Rei  dom  ÂRonso 
Enriquez:  puriílcadas  as  Igrejas,  que  ainda  bavia  em  pè,  e  reedificadas 
pouco  a  pouco  as  que  esíavão  em  rui  na,  foi  povoada  esía  de  Frades:  o 
que  se  vê  do  provisões,  e  outros  estormentos  autênticos  do  cartório 
d"ella,  que  particularmente  vimos,  e  notamos,  e  cotamos:  mas  com  mais 
clareza  nos  constou  de  buma  doação  feita  aos  Frades  por  el  Uei  dom 
Sanclio  seu  fillio,  a  qual  lançaremos  aqui  assi  coaio  |ax  no  original,  e  bo 
a  quo  se  segue. 

In  Dei  Namine.  Iícbc  est  charla  donationis,  et  perpelucB  firmitndinis, 
qnam  ego  Sancius  Dei  grulia  Portugallirf!  Rex  vná  cum  vxore  mea  Regina 
Domna  Dulcia,  et  fiUjs,  et  filiahus  mcis  facio  Fratribns  Sancti  Felicis  de 
Achellis  tam  prcesentibus,  qudrii  fulurís,  de  quadam  vinea  quam  vobis  da- 
mus,  et  monasterio  vestro,  vt  ibi  semper  sit  pro  hísreditate  in  perpetuum. 
Et  hoc  quidem  fncimns  pro  amore  Dei,  et  glnriasai  semper  Virginis  Ma- 
ricc,  et  vt  in  orationíbus,  et  beneficijs  restris  vaJeanius  semper  esse  parti- 
cipes. Huiiis  vineoe  isti  sunt  termini.  A  parle  Ãqiúlonis  vinea  [ilioram  de 
Snnrio  Barrina:  ah  omiiibus  alijs  partibus  vioe  publkce.  Damus  vobis  hanc 
vineam  tuli  pacto,  vt  semper  sit  Imreditas  Monasterij  de  Achelli.r.  et  imUi 
sit  licitum  eam  vendere,  aut  aliquo  modo  ab  eodein  Monasterio  alienare, 
sed  monasltriiim  ipsum  possideat  iitre  lueredilario  in  perpehium.  Quiciin- 
Que  iqilnr  hoc  facluin  vobis  inlegrum  obsentiwerit,  sit  beneditns  a  Deo,  ameti. 
Facla  charla  donationis  et  perpétuos  (irmitiidinis  apud  Vlisbonam  in  Mra 
M.CC.XXX.  mense  kugusto  (que  be  anno  de  Gbristo  ilí)2).  Nos  supra 
nominaíi  reges  qui  hanc  charlam  facere  iussitmis,  eam  coram  testibus  ro- 
boraiVAis,  et  hcBC  signa  faclmus.  Qui  a(fueranl. 

Domnns  Suenus  Vlijsbon.  Episc.  Conf.  Fernandtts  Pelri  test. 

Domnus  loan.  Ferd.  Maiordomus  Caria;  Conf.     Gust.  Nunls  test. 
Rodericiis  Ferd.  Pnetor  Vlisbon.  Conf.  Giraldas  Pelagij  test. 

lulianus  Notarias  Cuiics  scripsit 

Ao  pé  d'esla  provisão  está  buma  postilia  pola  qual  el  Rei  dom  Affonso 
seu  íilbo  confirma  a  doação,  e  mercê,  quo  n'elia  se  contem,  e  são  as 
palavras: 

Ilanc  charlam  snprascriptnm,   qaam  pater  meus  Rex  Donus  S:ncíus 


PAUTICULAil   DO    REINO   DC    PORTUGAL  I  !  7 

fecH,  st  concessU  Fralrihus  Sanctí  Felicis  de  Achellis  de  (jnadum  viiiea, 
concedo  ego  Frotrilnis  einsdem  Mona^lerlj,  ctc.  AjmdVlishonam  mense  Ma- 
dio  .E.  M.  CC.LVlí.  {ha  o  anno  de  Chrislo  í\ó  1219). 

Esta  provisão,  e  postilla  de  confirmação  tesíemunhão  ser  esta  casa 
em  sua  primeira  restauração  despois  dos  Mouros,  dada  a  Frades,  e  por 
elies  ser  possuída  em  vida  d'esíes  dous  Reis  até  o  anno  de  1219.  E  por- 
que so  pêra  este  eííeito  a  lançamos  aqui,  não  curamos  de  a  traduzir  advir- 
tindo  ao  Leitor,  que  esta,  e  todas  as  mais  escrituras  antigas,  que  no 
discurso  d'esta  Historia  se  adiarem,  vão  tiradas  dos  originais  com  tanta 
pontualidade,  que  a  guardamos  até  nas  abreviaturas,  e  nos  modos  de 
escrever  assi  como  se  liião  trocando  com  os  annos,  e  cora  os  entendi- 
mentos dos  homens.  Os  Frades  que  em  Ghellas  tinlião  Convento  erão 
Cavalleiros  da  Ordem  de  S,  João  do  Hospital  de  Jerusalém,  que  vivião 
então  em  coramunidade:  e  consta  per  outros  estormentos  de  compras, 
e  vendas,  que  permanecem  hoje  no  cartório  do  Convento. 

Mas  qual  foi  o  anno  em  que  os  Frades,  largarão  esta  casa,  e  come- 
çou a  ser  povoada  de  Freiras,  e  quem  foi  o  meio,  e  instrumento  de  as 
juntar,  e  trazer  a  ella,  isto  ficou  tão  cego,  e  apagado  ou  com  o  longo 
discurso  dos  annos,  que  tudo  escurecem:  ou  com  a  rudeza  dos  homens, 
que  nada  escrevião,  senão  o  que  precisamente  era  forçado  pêra  o  que 
írazião  entre  mãos;  que  totalmente  o  rtão  podemos  descubrir.  Somente 
alcançamos  de  pergaminhos  velhos  do  cartório  com  bastante  clareza,  que 
no  espaço  de  dez  annos,  que  houve  entre  o  da  doação,  e  confirmação 
dos  Reis  atrás  escrita,  e  o  de  mil  e  duzentos  e  viiite  nove  se  fez  a  mu- 
dança de  Frades  pêra  Freiras:  de  Frades  de  S.  João  Bautista,  pêra  Frei- 
ras de  S.  Domingos.  Entre  muitos  que  o  mostrão  he  uma  doação  em 
sua  narrativa  bem  notável,  e  por  isso  irá  com  sua  íraducção. 

In  nominc  Boinini,  Amen.  Nuneriut  vniversi  presentein  charlam  in- 
specturi,  (juod  ego  Dominica  Roderici  qnondam  vicina  Sanctarcn.  in  vila 
mea,  et  integro  sensn  meo  considerans  slatuni  mundi,  et  meam.  et  pra;- 
cauens  in  fuíurum,  ad  honorem  Dei,  et  Ordinis  Sanei i  Doiiiinici  do  et 
concedo,  et  roboro  corpus  raeum  et  animain  in  Monasterio  Dominaruin  de 
Achellis  In  eanindcm  Ordine,  sumpto  eiusdem  Ordinis  liaúilu,  in  vila  et 
in  morte  in  perpetuam  perinansuram.  Do  etiarn  et  concedo  Priorissa;  e( 
Conuentui  eiusdem  Monasterij  cie  Achellis  omnia  bona  meu  temporalia  mo- 


118  LIVRO  I  DA  IIÍSTORIA  DE  S.   D()MIXG03 

hUia^et  immohilia,  et  se  mouenda,  quoniin  loca  et  íeriniiii,  in  qiiihus  pos- 
s^ssiones  sita)  infertiis  sunt  scripta,  etc.  Actiim  apuil  YlisbQJKim  mensc  Mar- 
tj  uEra  M.  CC.  LXVII.  Qui  pressentes  fiierunt  Fríiler  Pelagius  Uracca- 
rcii.  Fraler  Fctrtis  Siierij  Vlisbonen.  Frater  Dominiciis  Marllni  Vlisbo- 
nsn.  lounnss  luanais  de  IMparia  qnondam  Procurator  Domindncn. 

A  linguagora  hô: 

Em  noaiG  do  D30S  Amcn.Saibão  quaníos  csla  escritura  virem,  como 
eu  Do:iiing33  Rodrigues  miradora  qae  fai  em  Saiitirem,  estando  viva,  e 
sani,  e  em  meu  preíeUo  ju\z^,  con-iderando  as  cousas  do  mundo,  e  seu 
estado,  e  meu,  e  acautelando-me  pjra  o  dianle  :  á  honra  de  Deos,  e  da 
Ordem  de  S.  Domingos,  dou.  e  outorgo,  e  com  firmeza  offerei'0  minha 
alma,  e  corpo  ao  Mosteiro  das  donas  de  Chelias,  pêra  ficar  com  ellas  em 
s  ia  Ordem,  e  com  seu  habito  em  vida  o  morte,  e  pêra  sempre.  Tam- 
l)3m  dou,  e  outorgo  á  Prioressa,  e  communidade  do  mesmo  Mosteiro  do 
Cielias,  toda  minha  fazenda,  e  bens,  assi  moveis,  como  de  raiz,  e  os 
<|ue  por  si  S3  movem:  e  os  lugares,  silios,  e  coníVontações  das  proprieda- 
dí-s  vão  íibaixo  declaradas,  etc.  Fez-se  em  Lisboa  no  mez  de  Março  Era 
de  M.GC.  LXVII.  nesponde  ao  anuo  de  Cúristo  de  1220.  Forão  presentes 
Frei  l'a:o  de  Braga,  Frei  Pedro  Soares  de  iJsboa,  Frei  Domingos  Mar- 
ti;!S  do  Lisboa,  íoanianes  de  Ribeira,  Procurador  que  í^;!  das  mesmas 
LV,i!ias  em  tempo  atrás. 

Do  teor  doesta  escritura  fica  bem  entendido,  e  sem  lugar  de  duvida, 
que  já  no  anno  de  1229,  em  que  passou,  estava  o  Mosteiro  cm  poder 
de  Freiras  asseníado,  e  corrente,  o  que  as  Freiras  erão  da  Ordem,  c 
liabito  de  S.  Domingos,  e  como  aquelle  quondam  iaz  indicarão  de  tempo 
passado,  o  não  pouco,  se  dermos  o  principio  do  Mosteiro  em  cinco  an- 
Pios  atrás,  achado  fica  que  foi  no  de  i22i,  e  que  o  recolhimento  das 
Freiras  passou  por  mão  do  Provincial  dom.  Frei  Sueiro  logo  no  anno  se- 
guinte despois  da  morte  "dei  Rei  dom  A.fonso,  e  da  concórdia  do  Arce- 
]jispo  com  el  Rei  dom  Sancho.  Mas  não  duvido,  que  pêra  cousa  ião 
nova  em  i^ortugal  interviria  braço  de  pessoa  real,  e  mui  pederosa,  pois 
l)recedeo  lirar-se  a  casa  aos  Frades,  que  de  força  havia  de  ser  negocio 
custoso.  Também  íica  claro  o  miuito  que  custaria  de  írabalíio,  e  cuidado 
ao  Provincial  este  ultimo  serviço  publico  que  fez  a  sua  Pátria :  quantos 


PAIinCULA?.   DvO   WFASO   DE  I'0:\Trr.AL  ilO 

S3  cans:ina  em  pregações  [jiiijlicas,  c  persuasões  parílculares  por  ajur.- 
tar  este  rebanho  Santo  ao  Paslor,  e  Esposo  celeslial.  Obra  foi  na  verdade 
<ligna  de  verdadeiro  íilho  de  S.  Domingos,  e  de  quem  ao  vivo  em  pcn- 
sauientos,  e  obras  o  imilava:  e  hoje  lhe  deve  render  grandes  grãos  de 
gloria  no  Ceo.  Porque  não  ha  duvida  que  todas  quaiitas  ahiias  íem  su- 
bido d"aquelle  recolhimento  aos  gozos  eternos  h"esíes  quatrocentos  annos, 
lhe  são  em  algum  modo  devedoras  como  a  primeiro  pai  seu,  e  primeiro 
autor  da  santa  reclusão  cm  que  merecerão  o  Ceo.  E  o  Reino  de  Poríu" 
gal  lhe  está  devendo  ser  este  o  primeiro  Mosteiro  de  Freiras  que  das 
Ordens  mendicantes  se  fundou  n"elle.  Porque  sendo  assi  que  o  primeiro 
que  cá  houve  de  Freiras  de  Santa  Clara,  fí>i  hum  que  se  edincou  noanno 
de  1^58  nas  ribeiras  do  rio  Douro,  em  pouca  distancia  da  cidade  do 
Porto,  onde  chamão  entrambos  os  Rios,  que  he  o  mesmo  que  despois 
no  anno  de  1.'Í54  foi  passado  pêra  dentro  da  Cidade,  ílca-íhe  o  de  Cliel- 
ias  superior  cm  ansianidade  por  mais  de  trinta  annos. 

Esmcrou-sc  o  Provincial  em  fazer  este  Mosteiro  de  S.  Félix  de  Lis- 
boa hum  retrato  de  S.  Sixto  de  Rom3,  prantando  n"eile  o  m.esmo  rigor, 
e  observância,  com  as  mesmas  leis,  e  ausíeridades:  e  como  era  jardim 
de  sua  mão,  cultivado  com  sua  doutrina,  e  cxem.plos  frescos,  c  nuasl 
vivos  do  Padre  S.  DomJngos,  e  acompanliado,  quando  elle  faltava  de 
Mestres  muito  espirituais  e  Santos,  começou  a  ter  cheiro,  e  fama  de 
hum  Paraizo  na  terra,  e  corrião  a  elle  muitas  donzellas  do  melhor  do 
Reino.  Porém,  como  he  condição  das  cousas  humanas  ir  senipre  variando, 
e  descaindo,  e  as  que  são  mais  perfeitas  terem  maiores  contrastes,  foi 
faltando  com  os  annos  aqucHc  primeiro  fervor.  Era  gente  nobre,  c  mi- 
mosa, fazia-se-lhe  de  mal  tanta  continuação  de  aspei-ezas.  Devião  ajudar 
pais,  e  parentes  indiscretamente  piadosos.  Começarão  a  levar  mal  o  ri- 
gor da  regra,  havendo-a  por  intolerável,  não  só  pesada  na  parte  que 
co]n  mais  rezão  lhes  houvera  de  ser  suave,  que  he  a  clausura:  pois  esla 
he  a  chave,  e  sello  de  toda  Religião,  e  sem  elia  he  impossível  consor- 
var-se.  Fazia  dano  o  exemplo  que  sempre  tem  grande  poder  pêra  mai. 
Havia  no  Reino  outros  Mosteiros  que  vivião  na  simplicidade  antiga  de 
sairem  as  Freiras  em  communidade  hora  a  suas  erdades,  hora  acompa- 
nhar procissões:  e  em  particular  visitavão  suas  mais,  e  irmãs:  íinha-sc 
por  cousa  santa,  não  só  sem  dano..Dizião,  que  entrando  pêra  servirem 
a  Deos  com  alegria,  vivião  em  huma  perpetua  maíencolia,  e  em  hiima 
roJa  viva  de  trabalhos,. sem  hora  de  allivio.  como  tiniião  os  mais  Reli- 


liO  LIVUO  I  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

giosQS  do  Roino:  que  d"aqui  nacião  doenças  novas,  e  sem  remédio,  que 
já  havia  enlre  ellas,  ajudando  o  assombramento  da  reclusllo  perpetua  aS 
destemi)eranças,  e  malignidade  do  ar.  Que  a  vida  que  tinhão  não  era 
só  de  encerradas,  mas  pior  que  de  emparedadas :  porque  estas  como 
cada  liuma  era  prelada  de  si  mesma,  tinhão  em  sua  mão  o  trabalho,  e  o 
descanço,  dispunhão  do  dia,  e  da  noite  cá  sua  vontade,  mas  elias  com  a 
vontade,  e  entendimento  sujeito  ao  arbítrio  d"outrem,  não  tinhão  mo- 
mento que  podessem  chamar  seu:  Freiras  no  nome,  nos  effeitos  encar- 
cei-adas.  Que  tudo  se  pudera  levar,  se  huraa  vez  no  anno  poderão  visi- 
tar a  mãi  velha,  e  o  pai  enfermo,  \er  a  casa  em  que  nacerão,  em  Qm- 
respirar  hum  dia  em  outro  ar,  e  estar  huma  hora  sem  ouvir  sinos,  sem 
viver  por  regra.  Que  era  forte  cousa  harém  menos  d^ellas  aos  Prelados 
Dominicos,  do  que  íiavão  das  suas  os  outros  Prelados,  sendo  todas  Por 
íuguezas,  todas  bem  criadas,  todas- bem  nacidas.  Que  pêra  molheres 
lionradas,  e  de  bom  entendimento  não  havia  cerca  mais  alta,  nem  muro 
mais  forte,  que  o  ponto  da  honra,  e  o  medo  da  infâmia.  Quanto  mais, 
que  sendo  esta  pequena  liberdade,  alivio  pêra  a  vida,  e  remédio  grande 
pêra  a  saúde,  corria  já  no  Reino  por  género  de  aíTronta,  faltar-lhe  a  el- 
las quando  sobejava  a  outras,  que  não  erão  melhores  em  nada. 

Assi  se  queixavão,  e  assi  instavão.  Acudião  os  Prelados  com  todos 
os  meios  que  a  prudência  insina  pêra  as  quietar.  Quando  virão  que  nãe 
Ijasíavão,  houverão  por  menos  mal  perder  o  Mosteiro,  que  descer  hum 
ponto  do  primeiro  instituto.  Recorrerão  á  Sé  Apostólica,  pedirão  absol- 
vição do  cargo,  e  da  administração  delle :  e  em  fim  o  vierão  a  largar 
no  anno  de  129-j  despois  de  o  governarem  mais  de  sessenta  annos.  e 
ficou  na  jurdiçlo  do  Ordinário  de  Lisboa,  conservando  todavia  até  nossa 
idade  o  habito,  reza,  e  cerimonias  de  S.  Domingos.  Mas  porque  n'esta 
idade  houve  quem  quiz  escurecer  estas  verdades,  e  he  rezão  acudirmos 
por  ellas,  será  necessário  fazermos  inda  hum  par  de  Capitules  n'este  ar- 
gumento: quem  os  tever  por  sobejos,  porque  a  Historia  pôde  bem  pas- 
ser  sem  elles,  livrar-se-ha  do  trabalho  com  voltar  poucas  folhas. 


PÀRTIGULAP.  DO  RKINO  DE  PORTUGAL  4Í1 

CAPITULO  XXÍIII 

Censura  se  Inuna  letra   esculpida  do  fresco  em  huina  pedra  do   Mosteiro 
de  CheJhis:  descobre-se   o  artificio,  e  tenção  d'eUa. 

N'esía  nossa  idatk'  fértil  de  monstruosas  novidades,  poucos  annos  an- 
tes do  de  1G08,  que  foi  o  mesmo  em  que  as  Religiosas  do  Mosteiro  de  Cl^el- 
las  deixarão  a  reza  do  Breviário  Dominicano,  apareceu  hunia  pedra  posta 
em  lugar  alto,  e  publico  da  sua  Igreja,  e  entalhado  n'elia  o  letreiro  se- 
guinte: 

Este  Convento  he  de  Conegns  regrantes  de  S.  Agostinho  por  escritu- 
ras antiquissimas:  e  foi  casa  das  Vestais  antes  da  vinda  de  Christo  Nosso 
Senhor,  como  se  vê  poios  vestigios  de  pedras  que  estão  na  Crasia  velha,  e 
polo  cipo  de  lulia  Flaminia,  e  ara  das  Vestays  com  o  buraco  da  urna 
do  igne  perpetuo.  A^si  que  se  acha  ser  reedificada  esta  Capella  quatro  ve- 
zes, huma  em  tempo  das  Vestays,  outra  na  printitiua  Igreja  de  Espanha,  e 
duas  d  es  pois. 

Sem  escrúpulo  podemos  affirmar,  que  a  tenção  d'esta  letra  e  colo- 
cação da  pedra,  não  foi  outra,  senão  que  como  pedras  são  dejmais  dura 
que  porgaminlios:  e  he  cousa  sabida  estarem  vivos,  e  sãos  muitos  que  a 
encontrão,  alcançaria  com  tal  meio  victoria  delles  so  não  fosse  de  pre- 
sente, ao  menos  d'aqui  a  longos  annos,  quando  cm  falia  de  tudo  se  ve- 
nha a  estar  polo  que  disserem  pedras  (desmesurada  providencia  !  em 
descrédito  de  todas  as  memorias  antigas  das  pedras  Romanas,  que  sem- 
pre forão  de  estima,  e  gosto).  Mas  graças  a  este  papel,  (jue  sendo  em 
si  cousa  frquissim.a,  se  fará  não  só  forte,  mas  immorlal  cm  virtude  da 
impressão :  e  n'elle  ficará  pêra  sempre  viva,  e  notada  a  sem  justiça  da 
pedra,  e  da  letra,  e  de  quem  a  notou;  e  permanecerão  igualmente  as  re- 
zões  que  temos  de  a  condenar  na  parle  que  toca  á  Religião  de  S.  Do- 
Domingos,  que  só  me  move.  E  deixando  á  parte  a  vaidade  dasTestais, 
do  buraco,  da  urna,  do  igne  perpetuo,  em  que  nos  não  toca  falar,  nem 
diremos  palavra,  visto  como  em  nenhuma  parte  do  mundo,  fora  de  Roma, 
houve  nunca  casa  de  virgens  Vestais,  por  ser  contra  as  leis,  e  rií(.)s  d'el- 
las,  em  tal  compan!u'a  nenhuma  donzella  que  tcvesse  seu  domicilio  fora 
cie  Itália:  e  nas  que  se  recebião,  precedia  exame  de  suas  partes,  e  calidades, 


122  uviío  I  D\  iii:>TorjA  de  s.  domíxgoí? 

feito  polo  Pontifico  r\IaXÍmo  qnc  cm  ílnmn  residia:  o  ello  era  o  qiio  por 
sua  mão  as  metia  no  recolhimento  do  templo,  guardando  certas  cerimo- 
nias  do  obra,  o  palavra :  oi!o  o  que  as  vigiava,  reprendia,  e  castigava 
quando  havia  descuidos:  e  a  casa  era  na  ijorie  mais  povoada,  e  mais  se- 
giira  de  insultos  que  havia  na  cidade.  Polas  quaes  rezões  todas  cm  ne- 
nhum dos  escritores  antigos  se  acha  que  liouvcsse  Vestais  por  outrr.s 
provincias,  mais  que  cm  Roma  (*).  E  assi  não  perdendo  indignamente  o 
lempo,  trataremos  só  da  primeira  parto  do  letreiro,  que  pretenda  tirar 
aos  Frades  de  S.  DomJngos  o  titulo  de  fundadores  do  Mosteiro,  dizendo 
que  por  escrituras  antiquissimas  he  de  Conegas  regrantes. 

Dura  e  nova  contenda  he  em  huma  opinião  assi  absolutamente  afnr- 
m-ida,  iiavermos  de  litigar  som  vèr  autor,  nem  respondente.  Porque  se 
a  queremos  accusar  (como  de  feito  accusamos)  de  errada,  e  injusta,  em 
quanto  lúo  vemos  quem  sustento,  he  hum  osgiimir  no  ar,  e  dar  golpes 
em  vão,  e  em  fira  falar  com  hum  penedo.  Se  lhe  aparecera  dono,  foj'ra- 
vamoá  grande  trabalho.  Porque  como  quem  se  dá  por  autor  de  qual- 
quer novidade,  logo  se  obriga  á  prova  d'e!la:  e  eu  estou  certo,  que  em 
favor  d'esta  não  ha  nem  pióde  haver  escrituras  antigas,  nem  modernas: 
se  o  tevcramos  em  praça,  certos  ficávamos  da  victoria,  e  livres  de  mais 
contenda.  Mas  em  caso  quo  o  havemos  com  pedra,  e  pedra  demasiado 
palreira  em  affirmar  cousas  sem  fundamento,  sui'da  pêra  se  vencer  da 
boa  rezão,  muda  pêra  se  confessar  culpa,  insensível  pêra  levar  pena, 
ficamos  obrigados  ao  traba!!\o  de  negar  como  rcos,  e  juntamente  pro- 
var como  autores:  quaiído  nenhuma  lei,  nem  dijx-ito  manda,  que  se  pro- 
vem negativas.  Primeiramente  negamos  n'esto  Mosteiro  o  titulo  de^Gone- 
gas  regrantes,  assi  absoluto,  que  o  letreiro  lhe  dã;  e  provamoi-o  polo  es- 
tormenío  do  Capitulo  precedente,  tirado  do  seu  m.esmo  cartório,  que  as 
Ciiama  expressamente  Freiras  da  Ordem  de  S.  Domingos,  e  está  por  Fra- 
des delia  assinado.  Segundariamcnte  negamos  haver  debaixo  do  Sol  as 
escrituras  que  chama,  e  diz  tem  antiquissimas,  pêra  pr)va  de  serem  Co- 
negas regrantes,  sem  sujeição  da  Ordem,  e  constituições  de  S.  Domin- 
gos: e  mosiro-o  assi.  Ou  estas  escrituras  são  antes  da  entrada  dos  Mou- 
ros em  Espanha:  ou  despois  de  lançados  de  Lisboa.  Serem  d"antes  não 
pode  ser,  porque  se  o  fossem,  era  necessário  estarem  celebradas  no  anno 
de  Cliristo  Nosso  Redentor  de  setecentos,  e  quatorze  pêra  atrás,  tempo 

(•1  Auliis  Giíllius  1.  I.  c.  ).  r<-'[ie.t.  do  Saí-oidut.  Roiíi.  c.  G.  luítaj  Lipsius  de  Veda  e 
Yc-'a!i').  1.  1.  c.  2.  Alex.  ab  Alcxanii.  I.  li.  c.  12  Genial,  ditium. 


PAP.TiGULAU  DO  REINO  DE  rOP.TLT.AL  iâ-l 

em  que  roinavlío  os  Godos,  e  os  I^Jonros  conquistarão  Espanha,  do  qual 
não  ha  cstormenío.  nem  roeíiioria  particular  n'estc  Reino  que  faça  men- 
ção do  outras  Fremiras,  mais  quo  da  Ordeni  de  S.  Bento.  Serem  despois 
do  lançados  de  Lisljoa  os  Moia-os,  também  não  pôde  soi'(*).  Porqiie  Lis- 
boa foi  ganliaíUi  por  el  Rei  dom  Afonso  Em  iques  no  anuo  de  1147  (*),  e 
a  provisão  de  seu  íiiho  el  liei  dom  Saneiío,  que  lançamos  no  Capitulo 
atrás,  he  feita  poucos  annos  despois  no  de  I1D2,  e  esta  com  outras  es- 
crituras que  h'}  da  mesmo  tempo  fazem  o  Mosteiro  morada  de  Frades 
até  o  de  Ii2i0,  c  iogo  no  de  1220  sem  haver  em  meio  mais  f\iiQ  dez 
annos, -consta  que  já  estava  povoado  de  Freiras  da  Ordem  de  S.  Do- 
mingos por  estormento  autentico,  cujo  treslado  fica  no  mesmo  capitulo. 
Logo:  se  antes  dos  mouros  se  não  deu  o  Mosteiro  a  Gonegas  regrantes: 
nem  despois  dos  ?uouros  se  lhe  podia  dar,  porque  n^esse  íempo  se  en- 
tregou a  Frades:  e  se  entre  os  tais  Frades,  e  as  Freiras  do  S.  Domin- 
gos não  houve  espaço  intermédio,  pêra  n^elie  poderem  entrar  estas  Go- 
negas re;j;rantes:  segue-se  cpm  evidencia  indubitavelque  não  ha  nem  podo 
haver  aqueilas  antiquíssimas  esciituras  que  o  letreiro  [lublica:  visto  como 
não  íka  tempo  em  que  se  pudessem  fazer,  nem  dar-se  o  ?íiostelro  a  Go- 
negas regrantes,  e  polo  conseguinte  he  o  titulo  fantástico,  ficíicio,  e  ima- 
ginário, e  íica  bem  provado  não  poder  ninguém  dizer,  que  houve  íeinsto 
algum  em  que  esta  casa  fosse  possuída  d"outras  Fj'eiras  senão  domini- 
cas. 

GAPITULO  XXV 

Confinna-se  a  maíeriíí  do  Capitulo  antecedente  com  ura  Breve  Apostólico, 
e  com  outros  ãocuiucittos. 

Mas  porque  acabemos  de  convencer  o  artificio  de  quem  fez  faiar  um 
mármore,  pêra  furtar  o  corpo  a  dar  rezão  dos  absurdos  que  lhe  lançou 
ás  costas,  confirmaremos  de  novo  nosso  intento,  não  já  com  doações  de 
Reis,  nem  de  vassaUos,  por  muito  autenticas  que  sejão,  mas  com  letras 
Apostólicas,  qiie  se  bem  se  podem  por  cá  perder,  ou  supprimir,  Icm 
seus  registros  na  Guria  Romana,  onde  sempre  estão  vivas,  como  em 
sua  fonte.  E  ainda  que  pudéramos  trazer  a  Bulia  primeira  de  Gregório 
IX  pola  qual  confirma  este  Mosteiro  em  Freiras  de  S.  Domingos,  to- 

(•)  F.  Ikrn.  de  Brito  "onarc.  Liis't. 

(•')  Duait!  ftutics  de  Leão  r.a  vida  (i'c.ic  Rei  dom  Afonso.  Gauiiny  na  vida  do  ir.c.-nio. 


124  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE   S.   DOMINGOS 

mando-as  debaixo  de  seu  emparo,  e  dando-lhes  licença  pêra  possuirem 
bens  temporais,  receber  noviças,  e  eleger  Prioressa,  e  começa:  Pniden- 
tibus  Virginibus,  quoe  sub  luibitu  Heligionis,  etc.  passada  no  anno  de  1234 
alguns  annos  despois  de  estarem  em  posse  da  casa.  E  ainda  que  pode- 
ramos  ajuntar  outras  muitas  Bulias  expedidas  em  Roma  pêra  negócios 
particulares  do  Mosteiro  despois  que  entrou  na  jurdição  do  Ordinário, 
nas  quais  todas  usão  os  Poníifices  dos  antigos,  e  originários  titulos  d'elle, 
dizendo  assi:  Dilectos  filioe  Priorissos  Conuentus  Saiidi  Fclicis  de  Achei- 
lis  per  Priorinsam  soliti  gnbernari  sub  regula,  et  secumium  instituta  Fra- 
trum  PrGedicutorum,ek.  e  não  lhes  chamando  nunca  Conegas  regrantes. 
Com  tudo  deixadas  todas,  juntaremos  somente  huma,  que  foi  despachada 
trinta  e  dous  annos  adiante  polo  Papa  Clemente  líll  á  instancia  do  ^]. 
Geral  da  Ordem,  e  dos  Frades  de  Portugal,  quando  começarão  a  tratar 
de  se  desobrigar  d"este  Mosteiro :  a  qual  como  em  tempos  já  afastados 
da  fundação,  e  mais  chegados  a  nós,  com  relação  do  passado,  e  decre- 
tos pêra  o  futuro  declara  largamente  o  que  cumpre  pêra  inteira  averi- 
guação da  matéria  presente,  e  do  que  apontamos  no  fim  do  Capitulo 
passado.  Por  ser  tal  pêra  que  seja  do  todos  entendida,  e  não  occupe- 
mos  muito  papel,  vai  logo  traduzida  em  vulgar. 

«Cl3m'^nte  Bispo  sorvo  dos  sorvos  de  Deos  aos  amados  filhos  o  Âbbade 
de  Alcobaça,  e  aos  Guardiães  dos  Conventos  de  Lisboa,  e  Santarém  da 
Ordem  dos  Frades  Menores  do  Bispado  de  Lisboa  saude,  e  benção  Apos- 
tólica. De  boa  vontade  tiramos  toda  matéria,  e  occasião  de  poderem  cair 
os  Religiosos,  pêra  que  se  não  abra  algum  caminho  que  se  desvie  de 
sua  obrigação:  e  de  muito  melhor  lhes  desejamos  graça  de  salvação. 
Cousa  certa  he,  segundo  somos  informados,  que  as  amadas  filhas  em 
Christo  as  Freiras  ou  Sorores  do  Mosteiro  de  Chellas  da  Ordem  de  S.  Agos- 
tinho, ha  mais  de  trinta  annos  que  vivem  segundo  os  estatutos,  debaixo 
do  governo  dos  amados  filhos,  os  Frades  da  Ordem  dos  Pregadores:  de 
tal  modo  que  os  Priores  Provinciais  da  mesma  Ordem,  que  polo  tempo 
forão  n'aquellas  partes,  por  si,  ou  poios  Frades  de  sua  obediência,  não 
somente  fizerão  Prioressas  no  mesmo  Mosteiro,  e  as  tirarão:  mas  tam 
bem  exercitarão  n"elle  os  officios  de  visitação,  correição,  e  reformação^ 
segundo  lhes  parecia  ser  necessário:  e  assi  fazião  todas  as  mais  cousas 
concernentes  ao  lem  d"elle,  que  todos  os  mais  Provinciais,  Priores,  e 
YvíiJes  da  mesma  Ordem  dos  Pregadores,  costumão  executar  nos  Mos- 
tjiros  de  Freiras  da  dita  Ordem  de  S.  Agostinho,  que  estão  sojeitos  a 


PARTICULAR  DO  REIXO  DR  PGRTUCAX  123 

seu  governo.  O  que  tudo  affirmavão  fazerem  em  conformidade  de  mui- 
tas licenças  que  tiiihão  de  diversos  Pontífices  nossos  predecessores.  E 
hora  estavão  as  cousas  da  dita  casa  em  termos,  que  ainda  que  o  amado 
filho  Prior  Provincial  a  quem  pertence,  solicito  da  salvação  das  Freiras,  as 
tenha  eíTicazmente  amoestado  por  meio  de  seus  Frades,  obrigando-as 
com  mandados,  e  preceitos,  e  com  rogos,  que   por  honra  sua,  e  d'elles 
guardassem  clausura,  assi  como  se  guarda    no  Mosteiro  de  S.  Sixto  na 
cidade  de  Roma:  ellas  com  tudo  ou  a  maior  parte  d"ellas  mettendo-se 
voluntariamente  em  perigo  o  não  querião  fazer,  e  appeilavão  d"elle  Pro- 
vincial, e  de  seus  Frades  pêra  nosso  venerável    irmão  o  Bispo  de  Lis- 
boa. Pola  qual  rezão  nos  foi  hiimilmente  pedido  por  parte  de  nossos 
am.ados  filhos  o  Mestre  geral  da  dita  Ordem  dos  Pregadores,  e  do  Pro- 
vincial, e  dos  mesmos  Frades,  que  os  qu  izessemos  absolver  do  cargo,  e 
cuidado  d*ellas,  e  do  seu  Mosteiro,  pêra   que  se  não  siga  a  elles,  e  á 
dita  Ordem  dos  Pregadores  alguma  nota    de  murmuração,  vivendo  as 
Freiras  com  licença  de  liberdade  nociva.    Por  onde  querendo  nós  pola 
obrigação  de  nosso  olíiôio  proceder  no  caso  com  a  diligencia  que  con- 
vém, e  prover  n"elle  acertadamente,  a  vossa   descrição,  e  bom  juizo  es- 
treitamente comettemos,  e  encommendamos   em  virtude  de  santa  obe- 
diência, que  vades  pessoalmente  ao  dito   Mosteiro,  e  com  cuidado  vos 
informeis  das  mesmas  Freiras,  e  de  outras  pessoas  fidedignas  sobre  es. 
tas  cousas,  dando-  lhes  primeiro  juramento,  polo  qual  declarem  se  as 
ditas  Freiras  por  es  paço  dos  ditos  annos  viverão  debaixo  da  obediência, 
e  cargo:  e  segundo  os  estatutos  dos  ditos  Frades:  e  se  os  ditos  Frades 
poserão,  e  tirarão  Prioressas,  e  exercitarão  no  dito  Mosteiro  o  oíTicio  que 
acima  fica  declarado:  e  também  se  elles  Frades,  ou  outros  de  seu  man- 
dado, e  licença  lhes  administrarão  os  sacramentos  Ecclesiasticos,  e  jiui- 
lamentc  se  as  Freiras  fizerão  profissão  em  mão  dos  mesmos  Frades,  Tou 
por  ordem  d'elles  em  mãos  daPrioressa  que  polo  tempo  foi),  prometendo 
a  elles  perpetua  obediência,  e  recebendo  o  habito  de  sua  mão,  ou  pof 
ordem  sua.  Por  maneira  que  haja  clareza,  se  todas  estas  cousas  succe- 
derão,  e  teverão  effeito  sem  contradição  dos  Bispos  d'esse  lugar,  exceilo 
do  que  agora  he:  e  se  lie  fama  publica  que  estas  Freiras  sejãocommum- 
mcnte  nomeadas  por  Freiras  da  dita  Ordem  dos  Pregadores.  E  constando 
por  esta  tal  inquirição  serem  verdadeiras,  e  certas  as  cousas  acima  di- 
las,  em  tal  caso  determinadamente,  e  com  nossa  autoridade  mandareis 
ás  ditas  Freiras,  que  com  eífeito  obedeção  ao  dito  Provincial,  e  Frades, 


Vlí)  UW.O  !  DA  IIISTOP.IA  DE  S.   DOMINGOS 

em  tiub  o  q:iG  lhes  ordenarem  a  cerca  das  cousas  acima  ditas:  e  sobre 
tudo  sem  dilação  nem  replica  so  dclormiiiem  viver  em  clausura,  como 
se  vive  no  Mosteiro  de  S.  Sixto,  eíc.  E  nvtis  abaixo.  Mas  se  por  ventura 
não  achardes  quo  as  diías  Freiras  ou  Sorores  forão  eníregues  por  leiras 
Apostólicas  á  obediência  dos  diíos  Mestre,  c  Provincial:  ou  não  constar 
doestas  cousas:  com  tudo  porque  muitas  cousas  são  verdadeiras,  que  se 
não  podem  provar,  absolvereis  á  cauíclla  ao  dito-  Mestre,  e  Provincial, 
e  Frades  de  lerem  mais  cuidada  d'estas  Freiras,  o  do  dito  Mosteiro.  E 
a  ellas  obrigareis  pola  mesma  censura,  e  sem  appeilação  sendo  primeiro 
amoestadas:  que  deixem  o  habito  da  dita  Ordem  dos  Pregadores.  Dada 
cm  Perosa  aos  ^1\  de  Fevereiro  anno  segundo  de  nosso  Pontificado.» 

Este  anno  segundo  de  Clemente  ÍIÍÍ  responde  ao  justo  aos  annos  do 
Senhor  de  12-30.  Porque  elle  foi  posto  na  Cadeira  Pontifical  por  Novem- 
bro de  i-Gí.  E  como  havia  mais  do  trinta  annos,  segundo  o  Breve  re- 
lata, que  o  Mosteiro  era  da  obediência  de  S.  Domingos,  juntos  estes  trinta 
e  tantos  aos  da  Bula  da  Confirinação  de  Gregório  ÍX  que  foi  expedida, 
como  atrás  apontamos,  no  de  1231,  vem  justamente  a  compor  o  numero 
de  i2G0,  que  foi  o  mesmo  em  que  o  Papa  Clemente  despachou  este 
Breve.  E  polo  conseguinte  não  dá  tempo  nem  lugar  em  que  o  pudessem 
ter  estas  Fíeligiosas  pêra  deixarem  de  ser  Dominicas,  e  terem  hum  só 
dia  de  Gonegas  regrantes.  E  não  he  duvida  pêra  entre  gente  Curial  se- 
rem nomeadas  por  Freiras,  e  ainda  Conegas  da  Ordem  de  S.  Agostinho: 
porque  este  ti  tido  com  sua  distinção,  sustentarão  sempre  as  nossas,  res- 
peito da  primeira  regra  d"esíe  Santo,  que  ellas,  e  os  Frades  seguimos, 
como  se  verá  a)  diante(*)  de  uma  petição  das  Freiras  de  Santarém  feita 
ao  Papa:  e  por  hum  Breve  Apostólico  passado  em  favor  das  de  Corpus 
Christi  do  Porto. 

Parece  cousa  supérflua  despender  mais  rezões  n'esta  matéria,  onde 
houver  quem  queira  sem  paixão  considerar  este  Breve,  e  tudo  o  que 
delle  em  nosso  favor  se  collige,  como  he,  o  litigarmos  por  deixar  o 
Mosteiro,  o  buscarmos  pêra  isso  poder  do  Príncipe  da  Igreja,  (o  que  tudo 
escusávamos  se  não  fora  nosso,  ou  se  íevera  qualquer  dependência,  ainda 
que  mnito  escura,  de  qualquer  outra  Ordem),  o  não  fallar  o  Papa  nem 
huma  só  palavra  no  titulo  que  a  pedi\a  lhe  dá  de  Gonegas  regrantes, 
nem  noulro  algum,  antes  como  quem  liiiha  por  certo  ser  nosso,  man- 
dar com  eíTicacia  aos  (^omniissarie-s,  busquem  por  onde  nos  prendão,  c 

Í-)  L.  o.  e.  27.  L.  C.  c. 


PARTICULAR  DO  RKIXO  DE  PGUTrGAL  iÍ7 

obrigii3iii  a  não  lai-gnrmos  a  aiiaiiriis-raçlo,  Do  que  tuílo  naceo,  (porqiio 
os  Coirímissarios  deixarão  a  causa  indecisa),  não  nos  podermos  acabr.r 
de  iseaia?  d"GÍla,  senão  ainda  vinie  e  novo  annos  adiante  no  de  1295, 
sendo  falecida  a  Prioressa  Tareia  Fagundes,  e  ciei  ia  oín  seu  lugar  raia- 
ria Sebastião. 

E  pêra  que  nos  não  ílijue  nada  por  dizer:  d'es!a  Tarcja  Fagundes  ainda 
lioje  vive  no  cartório  do  Síosteiro  de  S.  Domingos  das  donas  de  S^uía- 
reni(*)li;inia  doação  que  ao  diante  irá  íresladada,  pela  qual  consta  que  pfr 
Ordem  dos  j^reiados  Dominicos  mandou  duas  Freiras  de  Chelías,  fundar 
n'aquelle  de  Santarém  a  nossa  Religião,  que  harnas,  e  outras  seguião:  e 
no  mesmo  de  Cíielias  aiida  uma  procuração  autentica,  que  confirma  a 
sobjeição  cm  que  vivia  da  Ordem,  da  qual  o  treslado  de  verbo  ad  ver- 
buin  he  o  que  se  segue: 

«iN.')5  Tareja  Fagyndijs  Prix)ressa  do  ?dosteiro  de  Aclieilas,  e  mais 
Convento  ordenamos,  es-tabelecemos,  e  conurmamos  por  nosso  lidimo 
Procurador  Frei  Fernanda  Fruiíuoso  portador  d"est.a  nossa  procuração, 
l)era  arrecadar  aquelle  erdamento,  que  nos  tem  forçado  dom  Roy  Fer- 
nandes Alcaide  da  Azambuja:  e  pêra  receber  o  pão,  e  tomar  posse,  c 
arrecadar,  etc.  E  ahaixo  despois  de  ah/umas  clausnlns.  PíOgamos  dom  Frei 
Gi!  Prior  dos  Frades  Pregadores  de  Lisboa,  de  cuja  Oi-dem  nós  somos 
sojoilas,  que  nós  isto  outorgiiedes,  o  dedes  licença  ao  dito  Frei  Fernando 
Fruituoso  de  receber  esta  procuração.  E  logo  conseguinlemcnte.  Eu  di;o 
Prior  rogado  da  dita  Prioressa,  e  do  Convento  do  Mosteiro  de  Acheilas, 
outorguei,  c  outorgo  licença  ao  diti)  Frei  Fernando  Fruiíuoso  de  receber 
esta  procuração  em  si:  e  douli  poder  de  fazer  livremente  iodas  as  cou- 
sas da  sosodilas,  e  cada  Imma  d"ellas,  e  outorgo,  c  concenso  na  dita  pro- 
curação :  e  pêra  isso  não  vir  peis  cm  duvida,  fiiço  csla  carta  de  sege-' 
Ihar  do  segelho  de  meu  ofilcio  do  davamdito  Priorado,  e  nos  de  suso 
ditas  Prioressa,  e  Convento  posemos  aqui  os  nossos  segeihos.  E  por  esta 
procuração  ser  firme,  c  estável  por  lodo  sempre,  os  que  forão  presen- 
tes Fí-ei  Domingos  dito  bom,  Estevão  João,  Yasco  Vicente.  Feita  a  pro- 
curação emAcliellas  oito  dias  andados  do  mezdeJuiho;  EraM.CCG.XXX 
annos  (que  responde  ao  anno  de  Christo  12D2.» 

?,Ias  porque  rezão  que  não  f;ilte  algumia  prova  moderna  entre  tantas 
antigas,  cerraremos  este  capitulo  com  íiuma  bem  notável  acompanhada 
de  ura  gracioso  caso  succcdido  de  fresco  em  desgraça,  c  reprovação  íc- 

(.)  L.  o.  c.  2^. 


iá8  Mvao  I  DA  msTOui  de  y.  domingos 

tal  cVesta  pedra.  Tinlião-na  collocada,  e  publicada  os  edificantes,  quando 
cairão  na  conta  quo  lhes  ficava  das  portas  a  dentro  vivo,  e  em  pè  hnin 
testemunho  que  desbaratava  o  artificio,  e  condemnava  o  edificio:  e  era 
estarem  no  mesmo  tempo  toda  aquella  communidade  rezando  o  Breviá- 
rio Dominicano,  e  usando  do  nosso  Ordinário,  e  cerimonias  d'elle.  Fi- 
zerão  então  instancia  por  introduzir  o  Romano.  Mas  como  são  máos 
darrancar  costumes  velhos,  foi  necessário  violência.  Esta  por  ser  de  muita 
força,  desterrou  o  Dominicano  no  anno  de  1608.  E  assi  podemos  dizer, 
que  teve  mais  poder  com  estas  Religiosas  o  estimulo,  ou  respeito  de 
conservarem  a  opinão  do  seu  mármore,  do  que  teve  no  tempo  passado 
o  mandato  de  um  Pontífice  Romano  que  foi  Pio  V,  e  o  decreto  de  um 
Concilio  universal,  que  foi  o  Tridentino:  contra  o  qual  alegarão,  (e  lhes 
valeo)  que  o  mandato  Pontifical  exceituava  as  Gommunidades  que  de 
duzentos  annos  atrás  usassem  particular  Breviário :  e  a  sua  não  tinha 
menos  annos  de  uso  do  Dominicano,  dos  que  contava  de  fundação,  e 
quasi  tantos  como  a  mesma  Ordem  Dominicana,  que  passavão  então  de 
trezentos  e  cinquenta.  N'este  caso  não  fica  que  dizer,  se  não,  que  ou 
haja  quem  faça  a  esta  pedra  o  que  Afonsojde  Albuquerque  (*)  fez  a  outra 
na  índia  por  se  livrar  de  contradições,  que  foi  virar-lhe  pêra  dentro  da 
parede  a  face  escrita,  e  mandar  esculpir  na  contraria  aquella  sabida  le- 
tra: Lapidem  quem  reprohauerunt  ^ãificuntesC").  Ou  que  nos  acuda  o  juí- 
zo do  piadosohermitãoJacobo (***),  que  sendo  presente  a  huraa  maliciosa 
sentença  de  hum  juiz  Persiano,  mandou  a  hum. grande  mármore  que 
lhe  servia  de  tribunal,  que  mostrasse  em  si  a  pena  que  merecia  quem 
n'elle  se  assentava,  e  assi  sentenciava.  E  no  mesmo  ponto  estallou  por 
toda  parte  o  feixo  ferrenho,  e  mocisso,  e  se  desfez  em  pó. 

A  fama,  ou  sonho  que  anda  na  boca  do  povo,  fundado  na  semelhança 
do  nome:  de  que  n"este  valle,  e  entre  as  Vestais  foi  escondido  o  moço 
Achilles  por  quem  lhe  queria  bem,  polo  divertirem  da  guerra  de  Troya, 
e  que  d'ahi  lhe  ficou  o  nome:  he  mera  fabula,  e  indigna  doeste  lugar. 
Pouco  sabia  de  computação  de  tempos,  quem  ajimtou  Achilles  com  Ves- 
tais: e  pouco  das  mesmas  fabulas  quem  com  esta  se  enganou.  Mas  nem 
a  vaidade  d'ellas,  nem  a  sem  rezão  da  letra  me  podem  tirar  fazer  me- 
moria de  algumas  cousas  que  achei  n'esta  casa,  merecedoras  do  as  não 
escurecer  o  tempo,  como  faz  a  tudo.  E  ajuntallasemos  logo. 

(•)  Commciit.  de  Afonso  de  Alhiiq. 

(>-]  João  de  Barros  Dcc.  i    1.  .'>.  c.  II. 

(•..j  Tliecd.  l;b.  de  virihus  illust. 


rARTICrLÂU   DO   V.EV^O   DE  PORTUGAL  Í29 

CAPITULO  XXYÍ 

De  algumas  particidaridad-s  nntnnei.s  do  Mosiciro  de  Chellaf-:, 

Despois  qne  temos  mostrado  com  evidencia  ser  es!e  Mosteiro  a  pri- 
meira pranta  de  donzellas  recolhidas  em  clausura  neste  Reino,  pola  di- 
ligencia de  am  filiio,  e  discipulo  inimediaío  de  S.  Domii^igos :  em  boa 
rezão  esíá  que  tratemos  d'elle,  como  de  casa  nossa:  e  mostremos  quanto 
lhe  montou  sua  doutrina  pêra  o  tempo  adiante:  e  o  muito  que  iiie  vai 
lioje  a  fam.a,  e  certeza  d'elia,   inda  que  tão  mal  confessada  por  quem 
mais  a  devera  conservar,  e  manter.  E  começando  por  esta  certeza,  elia 
lie  a  que  me  obriga  a  sar  seu  Chronista  não  rogado  nem  requerido.  E 
quanto  á  doutrina,  1-c  de  saber,  o^ue  ficou  tão  bem  asseiiíada  nos  âni- 
mos das  primeiras  Religiosas  que  a  receberão:  que  passando  ás  succes- 
soras  foi  sempre  correndo  de  n^ião  em  mão  com  notável  aproveitamento; 
e  lançando  por  iodas  as  idades  hum  ch.eiro  de  virtudes  excelleníe,  como 
mjsíura  de  materiais  aromáticos  confecionada  de  mão,  que  por  muito 
antiga  não  pode  perder  a  viveza  da  primeira  fragrância:  perseverou,  e 
chegou  até  o  presente  em  grande  numero  de  Religiosas.  E  ainda  que 
nos  escondeo,  e  apagou  a  memoria  de  quasi  todas,  quem  tudo  acaj)a,  e 
desbarata,  que  he  o  curso  dos  annos,  temos  com  tudo  indicios  mui  cer- 
tos de  seu  graíide  valor,  no  de  algumas,  que  em  nossa  idade,  e  de 
nossos  pais  alcançamos.  E  não  obsta  a  queixa  que  atrás  referimos  feiía 
poios  nossos  Frades  á  Sé  Apostólica.  Porque  esta  consistia  só  em  não 
quererem  as  Religiosas  d"aqnelie  íem.po  consintir  na  estreiteza  da  clau- 
sura de  São  Xisto,  sendo  em  Iodas  as  mais  partes  de  nossa  Constitui- 
ção observantissimas,  e  tendo  por  si  innocencia  grande  de  costumes, 
ponto,  e  brio  de  nobreza,  e  o  uso,  e  liberdade  em  que  vivião  iodas  as 
mais  Freiras  de  Portugal.  E  íenlio  pêra  confirmação  d"estc  discurso  al- 
guns tcstimunhos  do  Cco  cm  seu  favor,  tão  extraordinários,  e  gerais, 
que  de  força  havemos  de  confessar,  que  erão  micrecimento  de  virtudes 
íambern  gerais.  Que  sofra  Deos  culpas,  e  peccados  por  algum  tempo, 
com  aquella  sua  longaníiuidade,  e  misericórdia  de  verdadeiro  Pai,  ordi- 
nariamente o  vemos:  e  também  vemos  que  do  que  tarda  cm  castigar  se 
paga,  e  recompensa  no  peso,  e  graveza  dos  castigos.  ?-ías  liuma  conti- 
nuação de.  mercês  suas  sem  interpolação  de  tempos,  he  grande  sinal  do 
haver  a  m.esma  na  guarda  da  Religião (*).  Conforme  aquillo:  Oaili  Donnni 

¥í'L.   í,  \) 


130  LIVRO  I  DA  HISTOni  DE  i.  DOMINGOS 

super  iiistos,  e  o  que  a  igreja  sagrada  canta,  quando  encommenda  aos 
homens  a  execução  da  vontade  Divina:  Qui  nuUa  eis  nocebit  aduersitas, 
si  nuUa  (lonunditr  inúfuitasC).  Seguros,  diz,  estarão  de  todo  mal,  se  de 
odo  peccado  se  achirem  izentos.  Sabemos,  (e  he  grande  caso,  e  com 
tcerta,  e  constante  tradição  provado),  que  aconíeceo  muitas  vezes  pegar- 
se  fogo  no  Mosteiro,  casa  de  edifício  velho,  e  desemparada  de  auxilio 
de  homens,  atear-se  em  madeira  seca,  estar  longe  a  agoa,  assoprarem 
ventos:  "e  todavia  acudindo  a  coiíimunidade  á  oração  parar  o  incêndio,  e 
como  mandado  obedecer  aos  brados  do  santo  ajuntamento. 

Maior  caso  he,  que  ardendo  a  cidade  de  Lisboa  em  outro  fogo  muito 
mais  temeroso  de  furiosa  peste,  em  diiTerentes  tempos,  e  por  muitas 
vezes,  (como  adiante  o  contará  a  Historia,)  e  não  podendo  escusar  o  Mos- 
teiro communicar-se  com  ella  pêra  remédio  da  vida :  nunca  já  mais  na- 
quelles  claustros  se  exprimentou,  nem  siníio  ar  contaminado.  Antes  pê- 
ra mostrar  o  Geo,  que  comxO  casa  do  gente  santa  morava  debaixo  da 
pi-otecção  do  Senhor  delle,  aconteceo,  (e  ficou  em  memoria)  o  que  agora 
diremos.  Entrou  dentro  hum  lavrador  que  levava  certa  renda  de  pão, 
e  foi  medil-a  ao  cileiro.  ília  ferido  do  mal,  e  em  tal  estado,  que  em 
saindo  ^'òra  da  clausura  cahio  morto :  esteve  rodeado  de  muitas  Reli- 
giosas, e  a  nenhuma  danou  a  contagião.  Antes  he  de  considerar,  que 
a  força  do  bom  ar  que  a  Divina  bondade  mantinha  entre  elías,  apertou. 
e  refinou  o  danado,  que  o  morto  trazia  comsigo  pêra  o  matar  mais  de- 
pressa :  como  se  vê  em  boa  filosofia  na  pólvora  da  espingarda,  que  faz 
maior  effeito,  quanto  mais  atíacada.  Assi  não  ha  lembrança,  que  em  tem- 
po algum  desemparassem  a  santa  clausura :  Com  o  que  podemos  con- 
fessar qne  nos  tem  honradamente  recompensado  a  queixa  que  te  vemos 
de  suas  antecessoras- 

Mas  sobre  todos  os  casos  descobre  as  misericórdias,  com  que  o  Se- 
nhor olha  esta  casa,  hum  muito  estranho,  que  foi  servido  mostramos  em 
nossa  idade :  do  qual  vivem  ainda  hoje  por  testemunhas  muitos  vizinhos 
delia:  e  algumas  Madres  que  com  grande -consolação,  e  suavidade  d'al- 
ma  o  contão,  como  pessoas  que  forão  presentes.  E  quasi  todas  as  que 
despois  entrarão,  o  ouvirão  cás  que  são  mortas.  Entrou  o  Duque  de  Al- 
va em  Lisboa  no  anno  de  1380  acompanhado  de  hum  luzido  exercito 
por  terra,  e  grossa  armada  por  mar,  sem  mais  repugnância,  que  um  leve 
recontro  que  teve  nos  muros  delia  com  poucos  homens  faltos  de  forças, 

{•)  :*ial.  'òo. 


í>ARTlCULAn  DO  REINO  DE  PORTLT.AL  131 

e  armas,  e  muito  mais  de  consellio :  e  como  se  fora  semelhante  o  perigo 
ao  que  noutro  tempo  experimentou  no  rio  A.lbis  em  Alemanlia,  quiz  re- 
presentar famosa  vitoria,  publicando  saco  contra  a  terra  que  lhe  não 
resistio :  e  n!íô  duvidou  contra  toda  lei  de  boa  guerra  entregar  á  cubi- 
ca, e  fúria  dos  Soldados,  qne  quasi  não  tinhão  arrancado  espada,  tudo 
o  que  havia  fora  dos  muros,  e  três  legoas  á  roda  da  cidade.  ílavia  mui- 
tas casas  de  Religião.  Como  entre  Catliolicos  mandou  todavia  acudir  com 
guarda  ás  mais  notáveis.  Ficou  a  nossa  de  Chellas,  ou  por  distante,  ou 
por  menos  conhecida,  sem  nenhuma.  Encheo  a  Igreja  a  gente  das  Quin- 
tas vizinhas :  e  os  claustros,  e  oílicinas  o  que  cada  hum  tinha  de  mais 
preço.  Entrando  a  primeira  noite,  e  crescendo  com  ella  o  temor  do  qne 
se  esperava,  tomarão  as  Religiosas  a  cargo  passal-a  em  vigia,  por  nHo 
Sarem  colhidas  de  improviso.  Eis  que  entre  as  onze,  e  a  meia  noite  sen- 
tem que  se  picava  o  muro  da  cerca.  Esperta-se  toda  a  Communidade, 
acodem  á  parte  donde  soava  a  obra.  Havia  já  hum  agulheiro  feito,  que 
se  via  por  elle  a  claridade  da  Lua  da  outra  parte.  Dão-se  por  perdidas, 
correm  á  portaria,  e  ao  Coro  pedir  favor  a  Deos,  e  aos  homens  que  ha- 
via. Sairão  logo  alguns  fora,  mais  pêra  atalaias,  ou  escutas  do  que  se 
fazia,  que  pêra  remedeadores  do  dano  que  se  tinha  por  certo  em  tal  tem- 
po. Mas  tornarão  logo  cheios  de  novo  medo,  referindo  por  maior  mal, 
que  vinhão  cercando  o  Mosteiro  huma  grossa  esquadra  de  Cavallos.  Não 
faltarão  outros  atrevidos,  que  quizerão  dar  fé  do  que  estes  affirmavão, 
e  contarão  vinte  cinco  lanças,  que  todos  sem  faltar  hum,  cavalgavão  ca- 
vallos brancos,  e  vestião  sobre  as  armas  marlotas  brancas.  E  o  que  mais 
espantou,  notarão  que  sem  parar  forão  dando  voltas  ao  Mosteiro,  e  com 
tanto  silencio,  que  nunca  se  sintio,  nem  poude  colher  palavra  de  entre 
elles :  e  durou  o  passeo  sem  outro  effeito  até  as  três  despois  da  meia 
noite.  O  mal  que  se  temeo  de  tanta  gente  junta,  como  maior,  fez  esque- 
cer o  menor  dos  que  aportilhavão  a  cerca.  Mas  sucedeo,  sem  se  saber 
como,  que  cessou  o  rumor  dos  instrumentos  que  a  batião.  Amanheceo 
o  dia  seguinte,  foi  dando  com  a  luz  tregoas  ao  medo  da  noite,  e  lugar 
a  se  fazerem  discursos  do  que  nella  se  vira.  Assentavão  todos  que  a  Ca- 
vallaria  era  do  exercito,  e  viera  mandada  pêra  guarda  do  Convento,  pois 
delia  não  resultara  dano,  mas  antes  fogirem  os  que  rompião  o  muro. 
Neste  ponto  chegou  recado  em  nome  do  Duque,  com  disculpas  de  não 
ter  miandado  acudir  áquella  Casa,  ofTerecendo  fazel-o  logo,  como  de  fei- 
to mandou.  Foi  a  resposta  das  Madres  cheia  de  agradecimentos  da  oífer- 


132  LlVr.O  I  DA  HISTORIA  DL'  S.  D0MÍNG05 

ía  presente,  mas  maiores  da  obra  da  noite  passada :  a  qual  sendo  con- 
tada aos  messageiros,  e  despois  no  exercito,  foi  ouvida  com  maravilha. 
Porque  em  iodo  o  campo,  segundo  aífirmavão,  não  havia  viole  cinco  ca- 
valios  brancos  reparlidamente :  qaanlo  mais  juntos  em  hiíiria  só  compa- 
nhia. Donde  naceo  darem  por  certo,  assi  as  Religiosas,  como  os  vizi- 
iilios  que  forrso  presentes,  que  os  vinte  cinco  Gavalleiros  erão  os  seus 
Martyres  que  íeverão  cuidado  de  as- vir  defender,  e  guardar:  e  fundavão 
a  verdade  no  numero,  nas  cores,  e  no  eííeito.  No  numero,  porque  íaí- 
tava  nelle  hum  só  pêra  vinle  seis,  o  qual  não  era  rezão  aparecer  em  tal 
habiío,  (isto  dizião  por  Santa  Natália.)  Nas  cores,  porque  tais  são  as  com 
<{U0  assisiom  .os  Martyres  diante  do  trono  Divino,  despois  que  lavarão 
suas  roupas  no  sangue  do  Cordeiro :  e  as  tirarão  deUe  mais  alvas  que 
neve :  mas  só  com  esta  diíferença  que  la  tem  nas  mãos  palmas  de  tri- 
unfadores :  cá  empunharão  lanças  de  combaíeates  no  eííeito,  porque  li- 
vrarão a  casa  do  perigo  que  já  tinhão  nos  olhos,  &  do  que  mais  pudera 
suceder  na  m.esma  noite. 

Com  tais  maravilhas  costuma  Deos  honrar  as  Communidades  que  o 
busôão,  e  amão:  e  basta  vão  estas  porá  prova  de  qnani  bem  servido  foi 
sempre  nesta  dò  Ghellas :  se  me  não  parecera  tpie  fazia  oílensa  a  todo 
o  Mosteiro,  deixando  em  silencio  o  que  s:^bemos  de  algumas  Religiosas, 
que  em  nossa  idade  se  farão  delle  pêra  o  Ceo.  Cousas  são  que  não  es- 
pantarão menos  que  as  que  acabamos  de  contar,  e  acreditarão  igualmente 
o  valor  de  suas  antecessoras.  Seja  a  primeira  a  Madre  dona  Maria  da 
Silva,  que  governou  esta  casa  quarenta  e  doas  annos.  que  foi  todo  o  tem- 
qo  que  viveò  despois  de  huma  vez  eleita.  Tal  era  sua  vida,  que  dezia 
por  ella  cl  Rei  dom  João  o  Terceiro,  que  se  fora  possível  repartir  dona 
Maria  por  muitos  Mos-eiros,  só  com  isso  os  dera  todos  por  mui  refor- 
mados. Muito  faz  ao  caso  approvaeão  de  Rei  tão  santo,  muito  imporia 
o  que  sabem.os  das  virtudes  desta  Madre :  mas  temos  entre  maons  hum 
successo  visto,  e  palpado  neste  mesmo  anno  de  1622,  em  que  isto  va- 
mos escrevendo,  tão  extraordinário,  que  podemos  crer  o  permitio  Deos 
pêra  que  sem  escrúpulo  a  veneremos  por  Santa.  Ultimo  dia  de  Janeiro 
irinta,  e  três  annos  despois  que  a  comia  a  terra,  se  abrio  a  sua  sepultu- 
ra pêra  lançarem  nella  huma  sobrinha  sua.  Achou-se  consumido,  c  tor- 
nado cinza  tudo  o  que  com  ella  se  enterrou,  e  até  os  ossos  quasi  deli- 
dos :  só  apareceo  são,  e  inteiro  o  veo  preto,  com  que  todas  as  Freiras 
se  enterrão,  e  envolta  nolle  a  caveira  descarnada,  e  seca.  C-raniíe,  c  mis- 


PARTICULAR  PO  P.KINO  DF.  POnTlT.AL  133 

t^riooo  pro.Iigío  :  em  que  o  Senlior,  ao  quo  parece,  nos  csíá  mostrando 
que  manteve  esta  Religiosa  iníeiramente,  e  sein  quebra  os  dous  pontos 
que  a  todas  se  encouiendão  na  profissão.  Re  o  primeiro,  que  saiba  a 
professa  que  ha  de  presentar  diante  do  íribun?.!  de  Cliristo  sem  nódoa 
nem  magoa  aqnelle  veo  que  recebe.  Segando,  que  o  aceita,  como  ferrete 
no  rosto,  e  em  sinal  de  que  a  nenhum  outro  amor  dará  lugar  em  sua 
alma:  que  isto  querem  dizer  as  palavras:  Suscipe  rdamen,  onoã  per  fe- 
ras sins  macula  ante  irwv.nal  Domini  nostri  Jesu  Chriati.  E  as  outras  da 
Antifona  :  Posuit  sigmim  in  fadem  meam,  ut  nullum  prcuter  eum  amatorem  ad- 
mitiam. 

Fama  havia  no  mosteiro  que  fora  visío  semelhante  successo  nelie 
treze  annos  antes  no  de  609  na  sepultara  da3íadre  Sor  Elena  do  Espiri- 
to santo,  que  falecera  outros  treze  atrás  no  de  1505.  E  contavão  que 
não  se  achando  nelia  mais  que  terra,  e  ossos,  aparecera  o  veo  preto  tão 
abraçado  com  a  caveira,  e  tão  são,  que  procurando  o  Coveiro  tiral-o  com 
a  enxada,  quebrou,  e  partio  a  caveira,  e  não  o  veo:  de  sorte  que  esta- 
vam ossos  mais  podres  que  hum  fraco  lenço.  Mas  em  gorai  foi  menos 
o  .espanto,  ou  por  parecer  poaco  espaço  o  de  treze  aanos,  ou  também 
porque  estava  fresca  nos  anim.os  das  Religiosas  a  memoria  de  suas  vir- 
tudes :  afíirniando-se  delia  estremos  de  penitencia,  e  huma  continuação 
de  oração  admirável,  e  tanto  cuidado  em  andar  composta,  que  sendo 
porteira  quasi  toda  a  vida,  nunca  s^ecular  nenhum  lhe  vira  o  rosto  des- 
cuberto,  se  não  fora  o  Medico. 

Salúda  cousa  he,  que  se  não  izenta  de  corrupção  debaixo*  da  terra 
nenhuma  cousa  criada,  se  não  he  o  ouro,  que  tem  este  privilegio  até 
contra  o  fogo:  e  por  isso  he  símbolo  de  perfeição.  Grande  credito  da  re- 
ligião desta  casa  :  em  que  ficamos  duvidando  se  deve  mais  á  terra  que 
tanto  respeito  guarda  aos  seus  veos,  ou  os  veos  a  sua  virtude,  que  he 
a  que  por  boa  conta  os  preserva  de  corrupção:  principalmente  mostran- 
do-íios  Deos  de  novo  nella,  e  neste  mesmo  anno  de  ôá^,  e  na  inesma 
maioria  terceira  maravilha  que  logo  contaremos.  Tinha  vivido  a  iiadre 
Sor  Brites  da  Paixão  muitos  annos  com  grande  opinião  de  santidade,  e 
acabado  sua  carreira  com  fim  semelhante  no  armo  de  603,  Sabia-se  que 
até  a  ultima  doença,  do  que  acabou,  fora  sua  cama  huma  cortiça  accom- 
panhada  de  pobres  mantas,  e  por  cabeceira  hum  madeiro  seco,  que  des- 
pois  de  longos  dias  trocou  em  huma  almofada  de  Iam,  mas  tão  embuti- 
da, e  dura,  que  quasi  não  ficava  sendo  menos  penosa  pêra  a  cabeça.  Je- 


134  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE   S.   DOMINGOS 

juava  a  pão,  e  agoa  todas  as  sestas  feiras  ilo  anuo,  e  na  Q-aaresmn  ajun- 
tava as  quartas  feiras :  e  todo  o  mais  tempo  de  Quaresma,  e  Advento 
passava  com  legumes  sem  outro  mantimento.  Sendo  muito  caritativa,  e 
piadosa  com  todas,  seguia  hum  aperto  estranho  de  pobreza  consigo :  por- 
que possuindo  com  hcença  hiima  tença  grossa,  toda  despendia  cm  es- 
molas, nada  em  commodidade  ou  alivio  seu.  Assi  quando  veio  a  falecer 
não  se  lhe  achou  na  cella  mais  que  huma  pobre  Cruz  de  pão.  O  vestido 
que  linha  era  somente  quanto  pedia  a  necessidavdc  para  se  mudar,  e  la- 
var, sem  peça  de  guarda,  ou  de  sobejo.  Conformando-se  com  seu  nome 
era  devotíssima  da  Paixão :  e  foi  o  Senhor  servido  pagar-lhe  a  devação 
com  a  levar  pêra  si  no  dia  da  Exaltação  da  santa  Cruz :  e  com  lhe  dar 
a  sintir  nos  iiiiimos  dias  da  vida,  em  pés,  e  maons,  e  coração  hunias 
gravíssimas  dores,  que  sendo  rscebidas  por  ella  com  grande  paciência, 
aíiirmava,  que  sem  auxilio  Divino  era  impossivel  aíural-as.  Veio  a  abrir- 
se  a  cova,  em  que  fora  sepultada,  pcra  outro  enterro,  alguns  meses  des- 
pois  que  se  vio  o  que  contamos  na  da  madre  dona  Pilaria  da  Silva.  Erão 
passados  ao  justo  dezenove  annos,  e  não  havendo  mais  que  cinza  de  to- 
do o  despojo  mortal,  achou-se  o  veo  preto  salvo  de  corrupção,  e  como 
cosido  com  a  caveira.  Pêra  consolação  da  nobreza,  e  lembrança  do  mui- 
to que  obriga  a  quem  a  tem,  he  de  saber  qiie  erão  estas  Religiosas  to- 
das três  muito  nobres.  A  madre  dona  Maria  lllha  de  João  Fogaça  Deça- 
qne  foi  irmão  de  dona  Joana  Deça  Camareira  mór  da  Rainha  dona  Cate, 
rina.  Sor  Elena  sobrinha  do  Arcebispo  de  Évora  dom  João  de  Mello,  filha 
de  seu  primo  com  irmão  António  d'  Azevedo  de  Castro.  Sor  Brites  filha 
de  dom  Fernando  de  Lima.  Resta-nos  pêra  conclusão  do  que  prometemos, 
dizer  só  de  outra  Religiosa,  será  no  Capitulo  seguinte :  advirtindo  pri- 
meiro duas  cousas  nos  prodígios  referidos.  ííuma  será,  que  nossa  ten- 
ção não  he  dar  por  milagre  nenhum  delles,  nem  dos  que  adiante  escre- 
vermos, em  quanto  pola  Igreja  não  forem  caíificados :  sem  embargo  de 
sabermos  que  nestes  annos  próximos  se  sentenceou  por  verdadeiro  mi- 
lagre polo  Ordinário  da  cidade  de  Coimbra,  com  parecer  de  grandes  le- 
tiados,  acliar-se  hum  Rosário  na  caveira  de  lium  defunto  enterrado  de 
quatro  ou  cinco  annos,  que  estava  são,  e  sem  corrupção,  assi  no  páo  das 
contas,  como  no  cordão  que  as  infiava.  A  outra  será  que  nos  dous  veos 
íbs  Madres  dona  Maria  da  Silva,  e  Sor  Brites  da  Paixão  fizemos  estrei- 
tas diligencias  com  os  m^esmos  padres,  que  os  teverão  em  suas  maons, 
assistindo  aos  enterros  das  defuntas,  que  forão  causa  de  se  acharem 


PARTICULAR   DO   REINO   DS    POr.TUGAL  135 

SÓ  no  veo  da  Madre  Sor  Elena  como  em  cousa  mnis  aírazada  não  achei 
tanta  clareza,  sem  embargo,  que  dura  a  memoria  uelle  como  dos  mais 
entre  as  Religiosas  do  Mosteiro. 

CAPITULO  XXYII 

Da  Madre  Sor  Felipa  do  Espirito  Santo. 

Com  setenta  annos  de  habito,  e  oitenta  e  cinco  de  idade  deixou  a 
vida  mortal  pêra  passar  á  eterna  a  Madre  Sor  Felipa  do  Espirito^Santo, 
entrando  o  de  Christo  de  1617.  Temos  na  vida  d"esía  Religiosa  dous 
estremos,  qae  nio  só  espantão,  mas  atemorizT5o,  considerados  com  atíen- 
ção.  Foi  o  primeiro  huma  longa  continuação  de  penalidades,  e  rigores 
voluntários.  E  o  segundo  outra  corrente  de  aíílicções  mandadas  da  mao 
de  Deos :  humas,  e  outras  espantíisas  por  grandes,  e  pesadas,  e  pola 
paciência  com  qae  as  levou,  igual  a  ellas:  qae  não  ha  mais  encarecer. 
Entrou  Sor  Felipa  muito  moça  na  Religião:  mas  trazia  já  de  fora  tanto 
lume  das  cousas  de  Deos,  que  podemos  crer  foi  prevenida  com  as  ben 
ções  de  suavidade  celestial,  que  o  Senhor  costuma  dar  a  seus  amados 
quando  he  servido.  Vio-se  isto  em  huma  entranhavel  devação,  que  n"a- 
quella  tenra  idade  começou  a  ter  ao  Saníissimo  Sacramento,  acompa- 
nhada de  fé  tão  viva,  que  antes  de  ter  annos  pêra  cobrir  manto  em 
casa  de  seus  pais,  já  tinha  eníendiniento  pêra  notar,  e  saber  estimar  os 
discursos  com  que  os  Pregadores  procuravão  dar  a  entender  as  maravi- 
lhas d"aquel}e  soberano  memorial  de  nossa  redenção:  e  entrada  na  Re- 
ligião, nenhuma  cousa  fazia  com  mais  gosto,  que  empregar-se  toda  em 
sua  veneração,  e  serviço,  Assi  tanto  que  se  vio  professa,  que  foi  aos  de- 
zaseis  annos  de  idade,  ou  pouco  mais,  começou  um  género  de  vida  do 
molher  perfeita.  Diiigentissima  em  acudir  ao  Coro,  alegre  no  serviço 
d"elle,  ultima  em  o  deixar.  Na  guarda  da  regra  não  só  pontua!  consigo, 
mas  tão  zelosa,  que  polo  tempo  em  diante  não  duvidava  reprender  de- 
feitos onde  os  via.  Ao  que  ajuntava  profunda  humildade,  e  huma  mor- 
tificação de  todos  os  sentidos  maravilhosa.  O  seu  jejum  era  tão  estreito 
que  pasmavão  as  outras  Religiosas  de  como  se  podia  sustentar.  As  dis- 
ciplinas erão  continuas,  e  ásperas:  e  pêra  serem  de  mais  tormento,  erão 
tão  gerais  que  até  nos  braços,  e  pulsos  lhe  forão  notadas  por  muitas 
vezes  nódoas  azuis,  e  pisaduras  grossas.  O  sono  quasi  nenhum,  porque 


lóx)  Livao  I  DX  íirsToníA  de  s.  domingos 

chegou  a  estado  que,  passado  liiim  breve  espaço  que  tomava  pera  re- 
pousar, logo  corria  pcra  o  Coro,  e  poucas  vezes  tornava  ci'eile  senão  po!a 
manhã.  Mas  lai  era  o  leito  que  a  agasaliiava  que  não  fica  de  espantar  se 
dormia  pouco.  He  cousa  sem  duvida  que  em  muitos  annos  se  lue  não 
soiibemais  cama  que  liuma  cortiça  com  duas  mantas  grossas,  e  por  al- 
mofada hum  madeiro  roliço  envolto,  por  honra,  ou  por  fogir  vangloria, 
em  huma  toalha.  Também  he  certo,  qiie  nunca  vestio  tuiiica  de  iinlio, 
senão' ires  dias  antes  do  falecer.  No  amor  da  pobreza  chegou  a  iermi';S, 
que  não  havia  em  seu  poder  peça  nenhuma  de  gosto  ou  curiosidade, 
senão  era  um  devoto  Crucifixo  que  muito  amava.  r%'a  devação  do  Santís- 
simo' Sacramento  creceo  grandeinenie :  fazia-lhe  a  festa  todos  os  annos 
em  quanto  não  houve  confraria  assentada  entre  as  Religiosas;  o  custo  d"el- 
la  pera  'ser  mais  meritória  era  grangeado  com  abstinência  de  todo  o  aii- 
no,  tirando-o  da  pobre  pilança  do  refeitório.  E  porque  isto  era  pouco, 
ajuntava  tudo  o  que  lhe  davão  tros  jrmãos  que  tinha,  dous  Clérigos  ri- 
cos, e  hum  secular,  sem  reservar  pera  si  iiada.  E  não  he  pera  esque- 
cer que  íinlia  por  costume  acrcceníar  n"este  dia  o  jantar  de  toda  a  Com- 
munidade,  com  duas  pitancas  á  sua  custa :  estas  erão  sirejas,  e  leiic : 
banquete  humilde,  e  pobre  na  sustancia,  mas  cortezão,  e  rico  na  íençao: 
representava  n'ehe  ao  que  parece,  ou  as  cores  das  espécies  sacramentais 
de  pão,  e  vinho:  ou  aquellas  que  a  Esposa  santa  gaba  no  Divino  Es,  oso(*), 
quando  por  alvo,  e  corado  o  dá  a  conhecer  ás  fiílias  de  Jerasaleia.  E 
lumi  caso  houve  despois  de  sua  morte,  que  deu  bom  indicio  que  não 
desagradava  no  Geo  a  dovação.  Porque  na  verdade  a  sua  festa  m.aior  era 
ioda  de  fer''or  de  espirito,  como  se  deixa  entender  do  aparelho  que 
usava  todas  as  vezes  que  se  chega^va  á  santa  communhão.  -Esíe  era  con- 
fessando-se  á  véspera,  seguir  a  conílssão  com  hiima  rigorosa  disciplina,  e 
despois  guardar  silencio  até  todo  o  dia  seguinte.  Ao  commungar  t^c  fa- 
zião  seus  olhos  lingoas  do  que  lhe  passava  n'alma,  tornados  duas  fontes 
de  lagrimas,  que  algumas  vezes  polo  impeto,  com  que  sahião,  era  ne- 
cessário ao  Sacerdote  esperar,  e  dar-ihe  lugar.  Despois  que  as  Freiras 
ordenarão  enírc  si  confraria,  ficou  fazendo  sempre  o  gasto  de  toda  a 
cera,  com  tanto  gosto  de  sua  parte,  que  não  sofria  se  chamasse  isto 
gastar,  se  não  enthesourar :  ao  que  ajuntava  todas  as  quintas  feiras  do 
anno  rezar-lhe  o  officio  inteiro  da  festa.  No  serviço  da  Gommunidadenão 
havia  Religiosa  que  mais  trabalhasse:  incansavelmente  fazia  todos  os 

(.j  C,  111.  5. 


PAIíTÍCíJLAP.  DO  lU^lÀO  DH   PORTIT.AL  137 

oiiicios:  já  saçiisL^,  jâ  83crivl,  íaigoiiora.  e  cantora  coitinua:  jÁ  Mesíra 
de  ?ví)viças,  Vigaira ;  Porteira:  pêra  cada  cousa  cVestas  parecia  qiio  só 
nacera.  Ta!  era  seu  lalònlo  em  tudo.  A  brainuira,  e  boa  sombra  com 
que  procedia,  fa,:ia-3  amada  de  iodas:  a  prudência,  e  gravidade  igiial- 
nieníe  respeitada.  Começarão-lhe  a  render  esta  vida,  e  calidades  opinião 
de  Santa,  em  casa,  e  fora  d'ella.  E  elia  a  tinha  de  si  tão  diíTerente,  que 
sempre  ;uidava  b'^scando  occasião  do  fazer  por  sua  mão  o  que  era  obri- 
gação das  mais  humiides  servidoras  do  casa:  e  p)rque  não  houvesse 
quem  i!i'o  tolhesse,  valia-se  das  horas  em  que  as  íleligiosas  estavão  re- 
colhidas. Aconteceo  louvai-a  huma  Ueligiosa  em  certa  occasião,  e  no- 
meaí-a  por  Santa.  As>i  se  ofíendeo  como  puder;*,  fazer  outrem  de  utna 
grande  aíTronta :  e  cheia  de  espirito  não  dih\tou  tomar  a  vingança  em 
si  do  jiíizo  alheio,  dando-se  com  sua  própria'  mão  duas  bofetadas  com 
íal  força,  que  lhe  ficarão  os  dedos  assinelados  nas  fyices.  E  poio  contra- 
rio súccedondo  outro  dia  tratarem-na  mal  de  palavra,  (era  em  hora  quo 
rezava  por  hum  hvro  estando  em  pé),  não  somente  manteve  silencio  ou- 
vindo-se  af^^ontar :  mas  poz  os  joelhos  em  terra,  e  Í!>i  continuando  sua 
oração  sem  fazer  movimento,  nem  mostrar  sentimento. 

Com  tal  vida  entrou  S)rFel!pa  poios  annos  da  velhice.  Parecia  tempo 
de  descançar,  ou  ao  menos  aiiviar  hum  p3uco  de  tanto  írabaiho.  Ma, 
ííÁ  tanto  ao  revés,  quo  então  começou  a  entrar  cm  novos,  e  extraordi- 
nários tiabalhos,  que  íiio  não  deixarão  nora  de  repouso  até  o  ultimo  íio 
da  vida.  Quem  se  hão  espantará?  quem  não  pnsm:irá  de  medo,  vendo 
ao  pai-ecer  mal  tratada  liuma  vu^tude  tão  sobida?  Parece  que  quiz  Deos 
mostramos  nesta  Religiosa  Imm  retrato  do  que  n*ouiro  tempo  fez  com  o 
Santo  Frei  Henrique  Saso  Frade  também,  doesta  OrdemQ.  TinliaFreifíen- 
rique  passado  grande  pane  de  vida  em  estranliezas  de  penitencias,  c 
mortificações:  e  ouvio  hum  dia  que  lhe  dizia  o  Senhor.  Atégora  andas- 
te por  escolas  liaisas,  foste  soldado  de  pé.  Convém  que  saibamos  pêra 
quanto  prestas,  passando  adiante,  e  posto  a  cavallo.  E  confirmou  estas 
palavras  com' uma  bataria  de  tormentos,  o  aíuicções  tão  rigorosa,  que 
algumas  vezes  lhe  cliegavao  a  por  em  risco  a  paciência,  e  a  conhança: 
o  mesmo  temos  em  Sor  Felipa.  Quando  naíurabnente  devera  ser  izenta 
de  todo  peso,  e  cuidado,  e  antes  começar  a  lograr  os  prémios  de  huma 
vida  pura,  ordenou  a  Summa  bondade  prova!-a  em  huma  fragoa  do 
dores,  de  desastres,  e  niartyrios.  Yai  muito  a  dizer  de  mortiílcações  vo- 


•138.  LIVRO  I  DA  HISTORIA  Dli  g.  DOMINGOS 

liintarias,  e  caseiras,  ás  não  esperadas,  e  que  vem  de  fura.  Doem  me- 
nos aqu^ilas  polo  que  tem,  de  eleição,  e  mão  própria :  ferem  estas  com 
mais  força,  por  serem  de  braço  allieio:  e  fazem-se  mais  sintir,  quanto 
são  menos  previstas.  Começou  o  primeiro  assalto  por  huma  gravíssima 
doença.  D'esta  lho  procederão  humas  dores  de  esíamago  tão  intensas, 
e  continuas,  que  não  erão  menos  que  dores  de  inferno  (*).  Porque  não  ha- 
via n'ellas  remédio  nem  alivio,  senão  com  mal  maior:  e  passa  assi  que 
todas  as  vezes  que  aparecia  o  Geo  escuro,  lhe  cobrião  o  coração  outras 
tantas  nuvens  com  medo  de  trovões,  e  raios,  e  não  havia  senão  morrer 
de  aflição.  Então  se  suspendião  as  dores  de  estamago,  quanto  durava  o 
assombramento  do  ar.  Era  n'ella  o  temor  de  Deos  igual  ao  amor;  porém 
confessava  maior  medo  nas  carrancas  do  Ceo  irado. 

Continuava  esíe  mal,  e  ella  não  cessava  de  servir,  e  trabalhar,  como 
quando  mais  sam.  E  assi  chegou  aos  setenta  e  cinco  annos.  Pêra  este 
ponto  lhe  estava  guardada  nova,  e  maior  Cruz.  Era  Porteira :  e  succe- 
dendo  haver  obras  de  pedra,  e  cal  no  Mosteiro,  tinha  hum  dia  a  porta 
meio  aberta  pêra  correr  o  serviço:  e  estava  a  caso  detrás  em  pé,  e  re- 
zando por  hu;n  Breviário:  empuxarão  subitamente  a  porta  dous  homens 
que  acarretavão  pedra  com  uma  padiola:  e  f)i  tal  o  ímpeto,  ajudado  do 
peso  que  levavão,  que  encontrando  a  pobre  Porteira,  derão  com  ella 
por  terra  tão  pisada,  e  maltratada,  que  d"ali  a  levarão  atravessada  em 
hum  colxão,  dando  gritos  que  chegavão  ao  Geo.  E  porque  ninguém 
duvidasse  que  do  Geo  procedião,  notou- se,  que  foi  o  desastre  no  dia 
de  sua  maior  devação,  que  era  uma  quinta  feira,  e  a  reza,  em  que  en- 
tendia, o  officio  do  Santíssimo  Sacramento.  E  não  se  queixava  de  balde, 
porque  vindo  Cirurgiães,  achirão  que  d"alto  abaixo  fi/ára  moida,  e  des- 
conjuntada qaasi  toda  a  armação  d"aque!l3s  ossos  velhos,  e  cansados: 
e  tratando  de  remédio  não  obravão  as  mezinhas,  ou  pola  fraqueza  do 
sojeito,  ou  porque  o  Senhor,  que  dera  o  mVi,  não  permittia  que  teves- 
sem  bom  successo.  Assi  esteve  padecendo  mortais  tormentos  dous  an- 
nos e  meio:  e  tão  tolhida  que  em  todos  elles  não  foi  senhora  de  se  vi- 
rar sobre  hum  lado.  E  pêra  qualquer  movimento,  que  nunca  era  sem 
grandes  dores,  se  vaUa  de  cordas  lançadas  a  huma  trave  da  cella.  Mas 
he  muito  de  notar  o  como  levava  tanto  mal.  Louva  a  Escriptura  sagra- 
da a  Job  de  não  peccar(**),  nem  soltar  uma  só  palavra  descomposta  nas 

(.)  Psal.  17. 

(••)  Job  1. 


PAUTICULAR   DO  REIXO   DE  PORTUGAL  139 

sintidas  queixas,  em  que  o  fizerão  romper  suas  calamidades.  E  n:js  te- 
mos em  Sor  Felipa  luim  Job  tão  sofrido,  e  considerado,  que  nunca  de 
sua  bocca  sairão  rezõcs  mais  abrazadas  em  amor  de  Beos;  nem  louvo- 
res mais  encarecidos  de  suas  misericórdias,  que  quando  as  dores  erão 
mais  vivas,  e  mais  cruéis.  Era  novo  getiero  de  tormento  a  cella  em  que 
a  recoiherão:  porque  d'ella  a  liuma  sepultura  liavia  pouca  diíferença.  Ti- 
nha em  comp)'!menlo  pouco  mais  de  doze  palmos,  e  sete  de  largo:  o  si- 
tio debaixo  de  íuima  escada:  a  luz  tão  alongada,  que  quasi  sempre  era 
noiíe  n"ella.  rSÍ'este  purgatório  aturou  oito  annos,  c  meio  sem  nunca  se 
queixar,  nem  deixar  de  rezar  o  otficio  Divino,  ajuntando  ás  quintas  fei- 
ras o  do  Sacramento,  jejuando  as  Quaresmas,  e  adventos  inteiros,  e  dos 
mais  tempos  as  quartas,  e  sestas,  e  sabbados,  com  tanto  rigor,  como 
quando  era  muito  sam. 

Afllna-se  a  virtude  na  tribulação.  Porque  acode  o  Senhor  a  seus  ser- 
vos com  favores  aventajados  aos  trabalhos  que  lhes  dá.  Tão  resignada  vivia 
Sor  Felina  na  vontade  Divina,  que  ficando  toda  aleijada,  de  maneira, 
que  sem  duas  muletas  não  podia  dar  passo,  todas  as  vezes  que  falava 
n"este  desastre,  o  nomo  com  que  o  significava,  era  a  sua  mercê  deDeos. 
E  uezia  bem,  porque  do  mesmo  ponto  começou  a  esprimentar  altissimas 
mercês  de  sua  divina  bondade,  humas  vezes  concedendo-lhe  o  Senhor 
tudo  quanto  pedia  em  requerimeiítos  próprios,  o  alheios,  de  muita  gente 
que  em  suas  orações  se  mandava  encommendar:  outras  mostrando-lhe 
visões  sobrenaturais  de  grande  consolação :  outras  revelando-lhe  cousas 
futuras.  E  de  tudo  temos  exemplos,  e  casos  mui  notáveis  bastanteiíiente 
verificados  por  muitas  Religiosas,  e  por  seus  Confessores:  os  quais  deixa- 
mos de  referir,  esperando  que  saião  brevemente  luz  poios  meios  que  a 
igreja  costuma:  como  sei-á  rezão  pêra  gloria  de  Deos,  e  honra  do  valor 
Monástico,  a  pesar  das  ling.ias  venenosas  que  o  perseguem,  e  mordem. 

Corria  por  oitenta,  e  quatro  annos  de  idade,  quando  a  vida  já  não 
he  vida,  se  não  trabalho,  e  dor(*):  e  ainda  o  Senlior  achava  nella  sitio  pê- 
ra empregos  de  novo  merecimento.  Na  entrada  de  Janeiro  de  1GÍ6  co- 
meçou a  sintir  huns  accidentes  do  coração  tão  vehementes,  que  do  pri- 
meiro esteve  vinte  quatro  horas  sem  fala,  e  ílcarão-lhe  acudindo  em  todas 
as  conjançoens  da  Lua.  Oezia  que  se  sintia  com  elles  abrazar  toda  inte- 
riormente, e  as  angustias  que  padecia  erão  de  morte.  No  meio  de  tan- 
to martyrio  era  de  ver  a  alegria  de  seu  rosto,  e  a  conformidade  que 

{*)  rsul.n.  80. 


140  LIVRO  I  DA  HISTO:\!A  DS  g.   DOMINGOS 

tinlia  coirx  Deos,  e  as  grnças  que  i'io  (lava,  em  quanto  podia  formar  voz. 
Chamava  estes  males,  mimos  ceies' iaes :  e  aiTirmava  que  erão  tamanhas 
as  consolações  qne  no  ponto  mais  alio  cia  tribulação  sintia,  qne  exce- 
dião  a  capacidade  de  sua  alma :  e  podendo  o  corpo  com  a  guerra  dos 
traijalhos,  a  alma  não  podia  com  as  mercês,  e  favores.  Mas  continuando 
03  accidentes;  a  cabo  de  hum  anno  vierão  a  derribar  de  todo  a  nature- 
za já  por  si  calda, .e  passarão-na  a  melhor  vida,  com  hnm.íransiíotãobem 
assombrado,  e  santo,  que  em  todo  o  mosteiro  deixou  saudade,  eenveja.  F] 
não  se  duvida  que  foi  por  ella  muilo  antes  conhecido.  Porque  tinha  mandado 
avisar  a  certo  Religioso  de  quem  sabia  que  a  encomendava  a  Deos,  que  quan- 
do lhe  disessem  que  tinha  mal  em  hum  pé,  soubesse  qae  acabava  sua  carrei- 
ra. Deu-lhe  este  mal  dez  dias  antes  da  morte.  Três  Rehgiosas  de  credito 
aíTirmaruo,  que  na  mesma  conjunção,  que  todas  andavão  em  pranto  po- 
la  defunta,  ouvirão  exceiiente  musica  de  vozes,  sem  poderem  atinar  onde 
era.  O  que  de  certo  consta  he,  que  estando  por  soterrar  vintequatro 
horas,  estavão  suas  maons,  e  braços  tão  meneáveis,  e  brandos,  como 
quando  mais  saúde  tinlia.  E  a  cabo  de  trinta  e  oito  dias  que  a  sepultu- 
ra esteve  sem  campa,  houve  hum  oaicial  que  com  hum  escopro  se  atre- 
veo  a  fazer  força  nas  taboas  do  caixão  em  que  estava,  e  aífirmou  que  sa- 
bia delle  suave  clieiro :  o  que  logo  foi  confirmado  por  outros  que  che- 
garão a  fazer  a  mesma  experiência.  Também  se  avenguou  que  dentro  do 
Mosteyro,  e  fora  delle  alcançarão  saúde  repentina,  e  quasi  desesperada 
algumas  pessoas  enfermas  aplicando  reliquias  da  defunta,  e  valando-se 
da  fé' de  seus  merecimentos.  Forão  irmaons  desta  Religiosa  Nicolao  de 
Fi  ias  Architecío  dei  Rei  dom.  Felipe  o  primeiro  de  Portugal,  e  o  P.  An- 
tónio de  Frias  Prior  de  Unlios,  Igreja  de  grossa  renda,  em  cujo  serviço 
fji  bom  imitador  dos  virtudes  de  sua  irmã,  como  também  o  foi  a  Ma- 
dre Sor  ínes  de  Jesu  Freira  de  S.  Domingos  no  nosso  }ríosieiro  de  Abran- 
tc?,  c  também  irmã  sua. 

Concluamos  esta  memoria  com  o  que  delia  se  fica  collegindo,  que  são 
duas  cousas.  A  primeira  que  foça  o  leitor  Juizo  desta  Casa,  segando  as 
regras  dos  bons  descubridores  de  minas  d"ouro,  os  quaes  dão  por  certo 
sinal  de  riqmeza  nas  entranhas  da  terra,  guando  as  mosí.ias  superíidaes 
são  de  metal  fino.  A  segunda  he.  que  saibão  as  Religiosas  delia,  que 
lodos  estes  bens  devem  á  doutrina,  e  santidade  daqueile  grande  espirito 
que  Deos  foi  servido  dar-lhes  por  seu  primeiro  Mestre,  e  íandadoi-,  que 
foi  nosso  glorioso  Pauiarclia  São  Domingos. 


PARTICULAU  DO  REINO  DE  PORTUGAL  141 

CAPITULO  XXYIII 

Do  granch  aug:ne;itO,  e  rtrosperiãnde  da  Provinda  de  Espanha^  noíeiupo  que 
foi  governada  por  dom  Frei  Sueiro.  Dd-se  couta  de  sen  grande  espiriío,  e 
virtudes,  e  dos  annos  que  viveo. 

Doz-3  annos  continuos  achamos  qae  governou  dom  Frei  Sueiro  esía 
Proviacia  que  havemos  de  chamar  Espanha  sem  agravo  dos  reinos  par- 
ticulares delia,  em  quanto  andar  unida,  e  sem  divisão  de  membros.  Tal 
era  sua  prudência,  íais  suas  virtudes,  que  se  moitoá  mais  vivera,  -todos 
9  governara.  Noíava-se  em  seu  tempo  que  a  ollsos  vistos  crecião  iodos  os 
bens  nella,  assi  espiriíuaes,  como  temporaes.  Favor  do  Ceo  em  grandes 
sojeiíos  que  se  vinhão  ao  hauiío,  e  em  grande  espiriío  que  Beos  dava  a 
todos.  Favor  dos  Reis  cm  honrarem  a  Ordem:  amor  do  povo  em  a  esti- 
mar, pedindo  tantas  cidades  pregadores,  e  desejando  Conventos  por  to- 
da Espanha,  que  não  era  possível  poder-se  acudir  a  todas  com  o  mime- 
ro,  e  calidade  de  Religiosos  que  pêra  fundar  convinhiío.  Assi  íicarão 
princiítiados  muitos,  que  todos  referem  sua  origem  a  dom  Frei  Sueiro, 
e  iodos  o  tem  por  seu  fundador:  e  os  grandes  Religiosos  que  nelies  profes- 
sarão, que  forão  muitos,  e  muitos  delles  Santos,  o  reconhecem  por  Pai.  Que 
quando  não  íeveramos^dito,  nem.  por  dizer  oulra  cousa  deste  famoso  Porlu- 
guez,  parecia  bastante  pcra  credito,  o  honra,  e  testimunho  do  seu  so- 
berano espirito  contarmos  somente  as  virtudes  dos  súbditos.  Ganhão  os 
soldados  a  victoria,  conqaistão  o  Reino :  m.uila  honra  lie  de  cada  hum : 
mas  toda  junta,  e  a  de  cada  soldado  se  refere  ao  Capitão.  Porque  ain- 
da que  muiias  maons  fazem  muito,  numa  cabeça  que  as  menea  todas he 
a  que  acaba  tudo.  Foi  o  primei  ro  a  reconhecer  esta  verdade  o  admi- 
rável Santo  Barcelonòs  S.  Hay  mundo,  Santo  que  antes  de  cumprir  anno 
iníeiro  nesta  ReligiSo,  íbi  fundador  doutra.  Na  Summa  de  Casos,  que  á 
instancia  de  dom  Frei  Sueiro  fez, lhe  chama  Beatíssimo,  dodicando-Iha 
com  este  titulo  no  prologo  :  Reverendo  et  Deulissimo  Fatri  in  Christo  Fra- 
tri  Gometio  Priori  Fratnim  Qrdinis  Prcedicaíorwn  in  Hi-^pania  Fr  ater  Ray- 
inundusds  Pcnniafurt.  Filhos  si^  seus  pela  mesma  conta,  hum  S.  FreiPon- 
cio  de  Planedis,  pois  começam.os  por  terras  da  Coroa  de  Aragão,  que 
sendo  Inquisidor  morreo  á  mio  de  hereges,  e  morto  fez  o  milagre  de 
Jesué  em  Gabaom,  (*)  c  do  Mestre  de  Santiago  dom  Payo  Correia  Portugue-z 

(•)  J'.suc  iO. 


142  LIVUO  I  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

no  Algarve.  (*)  iMas  com  esta  ventagem,  que  elles  fizerão-no  em  vida,  e  Frei 
Poncio  já  tornado  terra  iria.  Lá  teve  o  Sol  obediência  a  vozes  huma- 
nas: cá  respeito  a  ossos  secos,  e  mjdos,  porque  parou  em  seu  curso 
por  espaço  de  seis  horas,  e  tantas  foi  maior  o  dia  das  exéquias  deste 
Santo  pêra  serem  dignamente  solenizadas.  íliim  Frei  Pedro  Cendra  mi- 
lagroso, que  em  sinal  das  muitas  alnas,  qne  alluminou  com  sua  doutri- 
na, deu  luz  corporal  a  quatorze  cegos  sobre  outras  grandes  maravilhas, 
líum  Frei  Miguel  Bennazar  Malhorquin,  qne  na  infidelidade  Mahomeíica 
nacido,  deu  affamado  Santo  convertido,  Em  seu  nome  forão  recebidos  á 
Ordem  S.  Frei  Gil,  e  S.  Pêro  Gonçalves  Telmo  em  Palencia :  o  Santo 
Frei  Lourenço  Mendes  em  Guimaraens  :  e  no  mesmo  lugar  S.  Gonçalo  do 
Amarante,  cujos  milagres  são  hoje  tão  ordinários,  como  trezentos  e  cin- 
quenta annos  atrás,  quando  erão  quotidianos.  De  sua  mão  lançou  o  habito 
ao  Santo  Frei  Paio,  Santo  encoberto,  e  desconliecido  na  vida ;  glorioso 
despois  de  morto,  em  Coimbra,  como  outro  Santo  Aleixo  em  Roma.  De 
•sua  mão  o  deu  em  Montejunto  a  hum  Chantre  da  Sé  de  Lisboa,  grande 
em  nobreza  de  sangue,  maior  em  santidade,  que  por  tal  foi  nomeado 
por  seu  adjunto  em  negocio  de  tanto  peso,  como  a  composição  atrás  re- 
ferida dei  Rei  dom  Sancho  com  o  Arcebispo  de  Braga. 

Mas  todas  estas  excollencias  de  dom. Frei  Sueiro  podemos  referir  a 
outra  maior  sua,  qual  foi  ser  filho,  e  companheiro,  de  nosso  grande  Pa- 
triarcha,  ajudator  inseparável  de  seus  primeiros  trabalhos,  criado  aos 
peitos  de  sua  doutrina,  em  a  qual  procurou  imilal-o  tanto  ao  vivo,  que 
pêra  de  todo  o  tresladar  em  si,  não  lhe  faltou  mais  que  o  nome  :  e  assi 
foi  outro  S.  Domingos  cm  tudo  o  mais.  Bem  o  conhecia  o  Pai,  que  não 
só  nas  obras,  mas  dentro  nos  peitos  espiava  coraçoens,  polo  espirito 
profético  que  do  Ceo  tinha.  E  vendo  o  thesouro  que  aqucUe  vaso  de  bar- 
ro escondia,  havendo  de  mandar  Apóstolos  á  pátria  que  amava,  foi  eilo 
hum  dos  escolhidos  pêra  tão  honrada  missão :  e  sendo  quatro  os  que 
mandava,  dos  quais  os  três  Ihè  tocavão  mais  por  lingoa,  e  vizinhança  de 
nacimento,  e  merecião  muito  por  valor,  e  partes  :  todavia  desde  logo  lhe 
deu  o  primeiro  lugar,  e  despois  l!io  confirmou  fazendo  o  pai  de  toda  a 
Província.  Foi  a  causa,  que  quanto  mais  adiantava  na  idade,  e  no  exer- 
cício de  superior,  mais  se  aventajava  nas  partes  que  lhe  tinlião  dado  o 


{*]  F.  Francisco  Oingo  1.  \.  c.  4.  da  lli;l.  da  Ordem  em  Aras-Zurita  I.  3.  c.  lli.  ilos  Anais 
de  Aras.  Paramo  1.  2.  t.  i.  c.  8. 


PARTICULAR  DO  RKINO  DE  PORTUGAL  |43 

cargo :  que  lie  grande    prova  de  virtude  conserval-a  mandando,  quanto 
mais  melhoral-a. 

Consideremos  agora  quais  erão  os  companheiros,  porá  alcançarmos  por 
verdadeira  proporgão  a  medida,  e  grandeza  do  que  lhe  foi  dado  por 
prelado.  O  que  cliamavão  Frei  Domingos  pequeno,  foi  em  tudo  o  mais 
tamanho,  qae  a  olle  aconteceo  aqueile  memorável  caso  (*),  que  airevendo- 
se  a  tental-o,  socapa  de  virtude,  huma  miserável  fêmea,  instigada  de  mi- 
nistros de  Satanás,  qiie  não  podião  sofrer  a  força  de  suas  reprensoons: 
elle  lhe  olTereceo  por  cama  hum  monte  de  brasas  abanadas,  nas  quais 
se  lançou  assi  vestido  como  estava :  e  como  se  em  cania  de  rosas  se  re- 
clinara, assi  esteve  quieto,  sem  o  fogo  se  atrever  a  oífundel-o,  nem  em 
hum  pelo  do  habito,  pasmando  os  que  vinluio  de  conceito,  e  segredo 
pêra  testemunhas  do  pretendido  insulto,  e  ficando  attonita  a  tentadora 
de  medo,  e  de  confusão:  que  todavia  lhe  valeo  pêra  meio  de  salvação, 
como  o  foi  de  honra  pêra  o  Santo.  E  tal  era  o  pequeno :  e  por  elle  po- 
deremos fazer  juizo  das  calidades  dos  outros  dous.  Bem  salsia  quem  os- 
ajuntou,  que  havia  conveniência  entre  todos,  e  não  se  pode  cuidar  me- 
nos. De  tal  gente  se  deu  o  governo  a  dom  Frei  Saeiro,  e  sendo  isto  pc^ 
ra  elle  hum  novo  género  de  ob.iigação,  pêra  em  alto  grão  aíiinar  todas 
as  virtudes,  como  fez :  pêra  nós  he  claro  indicio  da  grande  roputação  que 
por  toda  Espanha  devia  ter  de  Santo.  Assi  o  mostra  sintir  o  Mestre  Frei 
Francisco  Diago  na  Crónica  da  Pi'ovincia  de  xVragão  dizendo : 

Santo  Domingo  hizo  Provincialeá  de  su  mano  ai  Santo  Frai  lordan 
de  Lombardia,  y  a  Fray  Suero  de  Espanha,  que  devio  sin  duda  ser  vn 
Santo.  Porque  pues  Santo  Domingo  quando  en  Tolosa  entendió  en  em- 
biar  sus  hijos  por  el  mundo,  embiandolos  tales,  a  cada  parte,  que  algu- 
nos  dellos  fuessem  Santos,  qual  fue  Fray  Miguel  de  Fabra  entre  los  que 
embió  a  Paris,  Fray  Pedro  Gellan  entre  los  que  embió  a  Limoges :  no 
privo  deste  don  tan  dei  cielo  a  Espanha  por  ser  su  pátria,  et.  E  o  mex- 
mo  juizo  faz  o  Mestre  Frei  Fernando  de  Castilho  na  líidoria  •jcral  da  Ordem, 
cujas  palavras  formais  são.  Era  entonces  Provincial  en  estos  Reynos  de 
Castilla  Fray  Suero,  hombre  de  mucha  prudência  y  santidady,  y  de  tan- 
tas partes,  que  pai'a  saber  quantas  y  quaíes  eran,  basta  saber  que  le 
auia  puesto  em  el  oíTicio  el  mismo  Santo  Domingo  en  el  Capitulo  Gene- 
ral próximo  passado,  y  aora  entendia  en  cl  govierno  yacrecentamiento 
de  la  Orden  en  toda  Espanha,  etc. 

(•)  Casl.lli.  p.  I.  1.  i.  c.  29  ílamb.  p.  í.  Le:iiui.  1.  li.  l'hm.  1.  i. 


•1Í4  LIVRO  I  DA  HISTORIA  DE  S.   DOMINGOS 

E  não  obstante  nem  faz  ao  caso  faltamos  noticia  particular  do  snas 
penitencias,  jejuns,  vigílias,  oração,  e  caridade:  e  ignorarOiOS  pi"odigius, 
e  milagres,  lesíernirnhadores  da  valia  qne  por  estas  virtudes  linha  com 
Dôos.  Porque  como  os  Santos,  sendo  todos  huns  em  serem  Santos,  não 
o  são  sempre  pola  mesma  via,  e  modo  de  saníid;idô:  assi  ordena,  e  per- 
mitte  aquelle,  que  os  sobe  a  esse  estado,  qne  linns  vivão  com  grande 
nomo  no  mundo:  e  outros  que  por  suas  obras  merecião  a  mesma  honra, 
scjão  como  peregrinos  n'ell8  ignoi'3dos,  e  desconhecidos.  íiuns  olrrem 
grandes  maiavilhas:  outros  de  igual  virtude  não  facão  huma  em  toda  a 
vida.  íluns  vivão  cheios  de  mimos,  e  consolações  do  Ceo:  outros  aiidem 
sempre  desconsolados,  famintos,  e  desfavorecidos  d"eHe:  e  todavia  igual- 
mente filhos,  e  igualmente  Santos.  Esta  be  aqueila  variedade  que  o  Psal- 
misía  gaba  nos  panos  á"ouro(*),e  roupas  bordadas,  que  com  grande  graça 
vestem  a  Esposa  sagrada.  Do  que  pudéramos  apontar  exen][)l;}s,  senão 
fora  forçado  irmo-nos  recolhendo.  Quem  lé  as  vidas  dos  Santos  me  for- 
•rará  o  trabalho.  E  quem  souber  lançar  boas  contas,  e  quizer  salter  as 
estreitas  mortificações  de  dom  Frei  Sueiro,  sua  ievantada  coíiíemplação, 
seu  ardentissimo  amor  pêra  com  Deos,  e  com  os  próximos:  os  cegos  a 
q:ie  deu  vista  em  corpo,  e  alma,  os  coxos  a  que  deu  pes,  os  mudos  a 
que  deu  fala,  os  enfermos  que  sarou,  e  em  fim  os  morti«  L]iie  resnsci- 
íoii:  veja,  e  considere  tudo  o  que  fizei^ão  todos  os  Santos  que  atrás  no- 
meamos, e  os  que  ao  diante  apontaremos,  e  haja  que  te.m  adiado  o  qne 
fez  dom  Frei  Sueiro.  Porque  qaanio  elles  obrarão,  e  iodos  os  que  o  co- 
nhecerão por  pai,  tudo  llie  rende  lioje  louvor  na  terra,  e  grandes  grãos 
de  gloria  accidental  no  Ceo :  e  tanto  por  ventura  mais  avantajjulQS  lá, 
quanto  cá  foi  menos  celebrado  seu -valor.  Viveu  dom  Frei  Sueiro  no  cai'go 
doze  annos:  faleceu  cortado  mais  de  trabai(u.)s,  e  penitencias,  e  longos 
cam.inhos,  que  da  idade.  Escondeo-nos  o  tem;)o,  e  o  descuido  dos  bo- 
dos homens  sua  sepultura,  como  as  mais  particoiaridades  de  sua  vida, 
e  morte,  que  puderão  fazer  esta  Historia  estimada,  e  deleitosa.  Segundo 
os  annos  que  governou,  e  o  em  que  foi  eleito,  veio  a  folocer  na  arsno 
de  Í233.  O  s;]Ccessor  que  teve  foi  lam.bem  Portnguez.  Declarar-se-ha 
seu  nome  no  discurso  da  Historia :  e  n^o  se  diz  agora  por  não  coií- 
fundirmos  com  cousas  posteriores  as  aiitecedenícs ,  e  primeiras  cm 
tempo.  Porque  como  esta  Historia  ho  particular  das  fundações  dos  Con- 
ventos, e  dos  varões  il lustres  qu-c  nY-lles  fiorecerão,  e    de  cada  hum 

(•)  Pjahn,  i5. 


PAHTICILAR  DO  líKl.NO  DE  POUTltiAL  li,') 

havciíios  de  fazer  relação  continuada,  como  lhe  chegar  polo  curso,  o  or- 
dem dos  annos  sua  fundação,  sem  ficar  nada  por  dizer  do  que  achar- 
mos notável  até  nossa  idade:  não  he  possivol  pêra  clareza,  e  disíinção 
dos  successos.  leval-os  atados  aos  Provinciais,  mormente  d'aqui  em 
diante,  que  vão  multi[)licando  fundações :  e  fora  grande  confusão  que- 
rer ir  tocando,  e  tratando  todas  juntamente,  e  seguindo  a  passo  igual 
os  Provinciais.  E  se  o  íizemos  com  dom  Frei  Sueiro,  foi  a  causa  achar- 
mos este  principio  desabafado  de  fundações:  e  ser  elle  primeiro  Pi-ovin- 
cial  nosso,  ePortuguez:  e  devermos-lhe  tudo,  pois  esta  escritura  he 
de  varões  illuslres,  por  illustrissimo  Pai,  e  fundador  nosso. 


VOL.  1.  10 


LIVRO  SEGL^DO 


DA 


HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

PARTICULAR  DO  REINO,  E  CONQUISTAS  DE  PORTUGAL 

CAPÍTLLO  I. 

Do  sido  da  \illa  de  Santarém  :  e  do  que  nellasedeu  de  novo  ao  Convento  de  S. 
Domingos  de  Montijrds. 

Havendo  de  tratar  do  sitio,  e  fabrica  do  Convento,  que  a  Ordem  tem 
hoje  no  alto  da  villa  de  Santarém,  primeiro  treslado  da  casa,  que  ii'\(^ 
no  baixo  delia  em  Montijrás,  e  segundo  da  que  teve  em  Montejunlo : 
com  os  quais  treslados  he  cabeça  de  todos  os  Conventos  de  Espaniia, 
não  só  de  Portugal:  parece  necessário  darmos  primeiro  noticia  da  villa, 
e  do  assento,  e  calidades  delia.  E  não  hei  por  mal  empregado,  nem  oci- 
oso o  trabalho:  porque  imagino  que  escrevo  pêra  as  províncias  eslra- 
nlias  grandes,  e  dilatadas,  tanto  como  pêra  a  minha  pequena,  e  estrei- 
ta. E  desejo  não  ser  colhido  na  culpa,  que  vejo  reprender  cada  hora  em 
outros  escritores,  que  fazendo  conta  que  escrevem  só  pêra  os  seus,  o 
temendo  parecer  sobejos  com  particularizar  muitas  cousas,  ficão  curtos 
até  pêra  os  mesmos:  e  escuros,  e  confusos  pêra  os  estrangeiros. 

  quatorze  legoas  de  Lisboa  polo  Tejo  acima,  epi  cabo  de  terras  do- 
bradas, e  montuosas,  e  principio  de  grandes  mares  de  cam{)inas  levan- 
tou a  natureza,  como  marco  entre  montanhas,  e  campo  huma  junta  de 
montes  dependurados  sobre  a  margem  direita  do  rio,  e  tanto  mais  altos 
que  toda  a  outra  terra :  que  de  qualquer  parte  que  sejão  buscados,  so 
deixa  ver  muitas  legoas   ao  longe,  como  se  forão  hnnia  mui  empinada 


J48  I.iVUO  II  DA  niSTOIUA  DE  S.  DOMINGOS 

serra.  São  os  moiítes  lioni  considerados,  sete,  todos  divididos  com  pro- 
fundos valles  poias  fraldas,  huns  mais,  outros  menos,  c  cada  hum  com 
sua  diíTeronra,  mas  de  maneira  juntos  nas  cabeças,  que  f;izem  sobre  a> 
coroas  Imm  plano  igual,  e  comum  a  todos  sete,  cap:tz  de  huma  í^rande 
povoação,  cora  largueza  de  praças,  e  commodidade  pêra  maior  povo,  o 
tal  he  Santarém.  Para  dar  a  entender  osto  sitio  a  quem  o  nío  vio.  se- 
guiremos o  costume  dos  Geógrafos,  que  usão  de  comparação  de  alguns 
membros  do  corpo  humano,  pêra  sé  declararem  na  significação  de  ou- 
tros do  grande  corpo  da  terra.  Representar-nos-Iia  !)em  o  plano  íjue  temos 
dito  com  suas  aberturas  de  valtes,  huma  mão  esquerda  apartada  do  bra- 
ço, com  a  palma,  e  dedos  estendidos,  e  divididos  hum  do  outro  quanto 
naturalmente  se  podem  alargar :  se  assentarmos  a  mão  de  maneira,  que 
o  tledo  do  meio  corra  direitamente  contra  o  Sul,  e  o  coito  da  mão  fique 
no  Norte.  Assi  ficão  sendo  primeiros  montes  os  dous  cantos  do  collo  da 
mão,  e  primeira  parte  do  piano  sobre  elles  a  palma  até  o  m.eio,  que  he 
huma  formosa,  e  esíendida  praça  diante  da  porta  que  chauião  de  Leiria, 
que  fica  ao  Norte  da  villa,  cercada  de  Mosteiros,  e  casas  nobres,  o  por 
rezão  do  uso  em  que  serve  muitos  dias  do  anno  tem  nome  de  Chão  da 
Feira.  Estes  primeiros  montes  são  divididos  de  hum  valle  que  vai  su- 
bindo por  entre  elles,  e  trazendo  a  estrada  que  vem  de  Leiíia  até  dar 
no  plano  do  Chão  da  Feira,  e  primeira  parte  da  palma,  e  na  porta  que 
chamão  de  Leiria.  Nos  cantos  desta  grande  praça  estão  situados  da  parte 
de  Ponenle  o  Mosteiro  novo  de  S.  Domingos,  de  que  de  presente  ha- 
vemos de  tratar.  E  no  outro  de  Levante  o  Mosleiro  da  Trindade. 

Faz  terceiro  monte,  (porque  não  deixemos  a  semelhança,  com  que 
começamos),  o  dedo  poltegar :  e  na  primeira  jsinta,  ou  raiz  d"elle  fica 
assentado  o  Convento  do  S.  Francisco.  E  logo  adiante,  quasi  no  meio 
do  dedo  tem  seu  assento  o  grande  Mosteiro  de  Santa  Clara,  casa  muito 
antiga,  e  nobre  e  do  grande  Religião:  o  na  ca!>eça  d'elle  a  Ermida  dos 
Apóstolos,  que  está  á  conta  de  Religiosos  de  S.  Bento. 

Da  porta  de  Leiria,  que  assentamos  no  meio  da  palma,  dá  o  muro 
da  villa  huma  volta  larga,  em  que  comprende  hum  Casíello  antigo,  e 
casa  real  juntamente,  e  deixando  ainda  livre  hum  espaço  da  palma,  vai 
entestar  na  raiz  do  dedo  maior,  e  eslendendo-se  por  clle  até  á  ponta, 
abraça  d"es{a  parte  tudo  o  que  he  cercado  de  muro  na  villa:  deixando 
na  me^ma  raiz  outra  porta  que  chamão  de  Mansos;  e  tanta  praça  diante 
(jue  dá  lugar  á  se  conununicai'  com  a  praça  maior  do  Chão  da  Feira. 


PAIlTlCULAn  no  HKINO  DE  PORITT.AL  140 

Corre  a  povoação  polo  resto  da  palma,  e  polo  plano  dos  dedos,  que 
Fazem  quarto,  e  (luinto  montes.  A  do  dedo  maior  vai  direita  ao  Sul,  e 
tem  por  remate  liiuu  Mosteiro  de  Capuchos,  e  hum  moinho  de  vento. 
Aqui  teve  a  casa  de  Bragança  antigamente  lium  bom  aposento  que  agora 
estcá  gor  terra,  como  estão  outros  muitos  na  vilia  que  forão  de  nome. 
O  bairro  que  toma  o  index  vai  fazer  na  ponta  huma  fortaleza  guerreira, 
c  fermosa,  e  com  tanta  praça  dentro,  que  a  faz  a  huma  boa  Igreja,  e 
algumas  casas  nobres,  e  por  isso  retém  o  nome  antigo  de  Alcáçova.  In- 
clina este  monte  pêra  o  nacente  lauto  como  nos  representa  o  mesmo 
dedo  bem  afastado  do  companheiro,  e  vai  beber  no  rio  com  hum  grande, 
e  dependurado  barrocal,  que  por  três  partes  acompanha  a  fortaleza,  e 
a  faz  inaccessivel.  Não  he  pêra  esquecer  que  dentro  n"ella  a  hum  lado 
da  enti^da  criou  a  natureza  hum  outeiro,  ou  tumulo  de  ten"a,  redondo, 
e  como  feito  a  mão,  que  crecendo  em  boa  altura  sustenta  no  alto  huma 
torre,  d'onde  em  dias  claros  se  devisa  a  cidade  de  Lisltoa:  e  devia 
servir  pêra  em  tempos  de  guerra  se  darem  avisos  com  fogo. 

Os  vazios  entre  os  dedos,  e  por  fora  d'elles,  são  valles  profundes, 
como  temos  dito,  com  costas,  e  quebradas  mui  agras,  exceito  o  valle 
que  sobe  ao  collo  da  mão  dividindo,  segundo  fica  mostrado,  os  dous 
primí'iros  montes.  Porque  este  vem  subindo  de  longe,  e  faz  a  entrada 
menos  cos  tosa. 

O  primeiro  valle,  que  seguindo  a  nossa  comparação,  abre  entre  o 
poUegai',  e  Index :  assi  como  na  mão  se  faz  maior  abertura  entre  estes 
dous  dedos,  que  nos  outros,  assi  he  muito  mais  largo,  e  capaz,  e  com- 
preude  hum  grande  arrabalde ;  que  com  a  commodidade  do  rio  que  o 
lava,  e  lhe  deu  o  nome.  (chama-se  a  Ribeira),  tem  crecido  tanto,  que  faz 
representação  de  huma  grande  villa  ornada  de  boas  Igrejas,  e  suas  pra- 
ças. N'este  valle  ao  pè  do  monte  dos  Apóstolos  que  dece  do  pollegar, 
he  o  sitio  que  atrás  dissemos,  do  nosso  recolhimento  de  Àlontijrás. 

O  segundo  valle  he  entre  o  índex,  e  o  maior.  E  assi  como  estes  de- 
dos naturalmente  abrem  menos,  também  o  valle  que  entre  elles,  fica  he 
mais  apertado,  sendo  ignahnente  fundo,  e  hum  arrabalde  que  por  elle 
se  estende  até  o  rio  he  de  menos  conta  em  grandeza,  e  gente,  e  edifí- 
cio, (chama-se  Alfange). 

Entre  o  dedo  maior,  e  o  quarto,  (que  os  Latinos  chamão  annular 
do  costume,  que  havia  de  não  pejarem  outro  com  os  anéis,  que  erão 
insígnia  dos  nobres),  corre  outra  semelhante  quebrada  até  a  porta  de 


loO  Livr.o  !i  DA  iiistop.lv  de  s.  domingos 

Mansos,  e  faz  o  monte  sexío :  polo  loniljo  do  qual  corre  hum  espaço  a 
estrada  que  sae  d"esl,a  porta  pêra  Lisboa,  acompanhada  de  humas  Er- 
midas, e  do  hum  pequeno  arrabalde,  e  logo  faz  grande  queda  pêra  o 
baixo,  íicaud)  o  sétimo  monte  no  dedo  minimo,  mas  muito  mais  curto, 
ecom  menos  representação  entre  os  mais  montes,  da  (jue  elle  tem  en- 
li'e  os  dedos:  e  n"elle  pegados  com  a  palma  assenião  juntamente  hoje 
uoiis  -Mosteiros,  lium  de  Frades  da  Terceira  regra  de  S.  Francisco  so- 
lirc  o  valle  do  Annular:  e  outro  do  Freiras  de  S.  Domingos,  (jue  olha 
sobre  as  ladeiras  que  decem  do  dedo  minimo  da  parte  de  fora,  e  do 
canto  da  mão.  Tal  he  a  foima  que  hoje  tem  a  villa  de  Santarém.  E  qua- 
dra-lhe  bem  a  comparação,  pola  semelhança  que  tem  com  a  cidade  de 
VoUerra  na  provinda  de  Toscana  em  Itália,  chamada  na  lingoa  Latina 
Wila  Tcrr.i! ('),  que  hc  o  mesmo,  que  palma  da  mão  da  terra,  E  he  de 
saber,  que  no  tempo  que  a  ella  veio  a  nossa  Ordem,  não  tinha  Mos- 
teh'0  nenhum.  E  só  se  via  no  mesmo  lugar,  onde  hoje  he  nosso  Con- 
vénio dos  Frades  huma  pequena  Ermida  da  invocação  de  nossa  Senhora 
(la  Oliveira,  que  com  elle  se  extinguio:  e  junto  aonde  he  o  das  Freiras, 
outra  que  aiuíla  dura,  com  titulo,  e  nome  da  Madalena. 

A  estes  montes  assi  juntos,  e  viila  assi  situada  vem  demandar  o  Tejo 
par  meio  de  largos  campos  com  impetuosa  cori'ente,  e  cortando  polas 
raízes  do  alto  monte  da  Alcáçova  faz  seu  curso  direito  contra  Lisboa. 
Ue  este  higar  insigne  por  antiguidade,  e  por  abundância  de  bens  do 
Oo,  e  da  terra.  Os  do  Coo  são  duas  espantosas  memorias  que  n"elle 
se  conservão  ha  muitos  centenares  de  annos  dos  mysterios  de  nossa  fé. 
jíuma  n"aquelle  milagre  dos  milagres  que  por  excellencia  chamamos  o 
Santo  Miíagi-e,  onde  está  Christo  Senhor  nosso  sacramentalmente  envolto 
em  sou  próprio  sangue,  como  nos  corporais  de  Daroca  em  Aragão;  da 
(]ual  faremos  relação  mais  parlicular  ao  diante,  na  parte  onde  pertence 
a  esla  historia.  A  outia  memoria  a  figura  de  hum  Christo  crucificado, 
despegado  de  ambos  os  bi"aços  da  Cruz,  e  todo  inclinado,  e  dobrado 
de  corpo,  e  cabeça,  e  sustentado  só  no  cravo  dos  pés,  que  se  guarda 
com  veneração  a  cargo  de  Religiosos  de  S.  Bento,  no  oratório  do  moníe 
dos  Apóstolos,  (caso  digno  de  larga  historia,  succedido  em  favor,  e  tes- 
temunho de  honra  de  uma  aííligida  mollier).  Também  he  celestial  ma- 
ravilha o  sepulcro  da  gloriosa  Portugueza  virgem,  e  martyr  S.  Irena 
(que  hoje  chamamos  Eyria),  fabricado  por  maons  de  Anjos  nas  entranhas 

(•)  Sliul).  1.  j.  riin.  1.  3.  c.  •;.  • 


PARTICULAR  DO  REINO  DK  rriRTíT.AI.  ISl 

do  rio,  defronte  do  arrebalde  da  Ribeira,  e  (ia  Igreja,  em  qae  he  vene- 
rada ao  longo  da  agoa.  Foi  mor  ia  á  espada  na  vi  lia  do  Thomar  no  anno 
de  6o3  por  honra  da  pureza  virginal,  e  como  victima  d"ella(*).  E  sendo 
laneada  no  rio  Nabão  veio  milagrosamente  por  elle  ao  Zêzere,  e  do  Zê- 
zere ao  Tejo,  e  em  fim  parar,  e  sepultar-se  n'este  lugar  pêra  honrar 
com  sen  nome  a  villa.  Com  o  de  Escalaliis  foi  ella  conhecida  mnito  antes 
qns  a  conhecessem  Romanos  (**):  e  tanto  atrás  que  não  falta  quem  queira 
referir  sua  origem  a  hum  Abydis  Rei  vigésimo  quarto  dos  que  em  Es- 
panlia  florecerão  logo  despois  do  diluvio  por  successão  continuada.  A 
ambição  Romana,  que  em  nome  como  em  posse  queria  fazer  tudo  seu, 
iie  poz  o  de  Prcesidhim  luJium,  e  metendo  dentro  moradores  Romanos, 
como  quem  conhecia  a  força  do  sitio,  honrou-a  com  titulo,  e  privilégios 
de  Colónia  Romana.  E  porque  o  lugar  era  capaz  de  tudo,  assentou  n'elle 
huma  das  três  Relações  ou  casas  de  justiça,  com  que  se  governava  a  Lu- 
sitânia, a  qLie  chamavão  Conventos  jurídicos. 

Faz  aqui  o  rio  huma  agradável  divisão,  deixando  á  parte  direita,  e 
Occidental,  onde  fica  a  villa,  tudo  o  que  ha  de  montuoso,  e  íí  esquerda 
estendidas  campinas,  que  fertiliza  com  suas  enchentes,  como  faz  aoEgypto 
o  seu  Nilo.  E  com  tudo  tal  fertilidade  tem  os  montes,  que  se  atrevem 
a  competir  com  os  campos.  Porque  se  estes  são  ricos  de  todo  género  de 
gi'ão:  enriquece  os  montes  hum  bosque  continuo  de  olivais,  que  os  co- 
bre até  os  muros  da  villa.  E  da  mesma  maneira  que  os  campos  parecem 
cheios  de  fermosos  casais,  e  instrumentos  de  lavoura,  e  povoados  de 
lodo  género  de  criação  de  gado:  assi  poios  montes  se  vem  infmitas  Quin- 
tas de  bom  edifício  cercadas  de  vinhas,  e  pumares,  e  hortas,  regadas 
de  fontes,  e  arroyos  de  agoas  excelleníes.  E  se  o  campo  he  agradável  de 
inverno  pola  caça,  e  muita  volateria  que  n"elle  ha:  faz  ao  monte  deleitoso 
no  verão  a  frescura,  e  alegria  dos  bosques,  e  grande  abundância  de  fruitas 
de  toda  sorte.  E  he  bem  de  espantar,  qao  costiimanio  a  terra  deliciosa 
produzir  os  homens  semelhantes  a  si  mesma,  quero  dizer  de  corpos,  e  ani  - 
mos  pouco  varonis:  esta  polo  contrario  tem  dado  por  todas  as  idades  gente 
de  grande  valor,  como  pudéramos  mostrar  com  exemplos,  se  nos  derão 
licença  as  leis  da  Historia.  A  villa  he  morada  do  mais  famílias  illustres 
que  todos  os  mais  lugares  de  Reino  despois  de  Lisboa,  c  quasi  solar 
d'elles,  pola  magnificência  de  casas  que  ahi    tem  de  tempos  antigos 

(•]  I.ciula  anliga  da  Santa. 

(••}  1'.  Bern.  de  Britj  na  Mon.  Lu-il.  p.  i.  1.  i.  c  22. 


132  LIVRO  II  DA   HISTORÍA  DE  S.  DOMINGOS 

edificadas.  Polo  mesmo  modo  vomos  irella  muitos,  e  grandes  templos : 
c  sustenta  Mosteiros  de  quasi  todas  as  Ordens,  ricos  de  rendas,  e  edi- 
fícios, de  dourados,  e  pinturas  nos  altares,  e  muita  prata  lavrada,  e  re- 
líquias santas  nas  sacristias. 

Pêra  tal  terra  tresladou  dom  Frei  Sueiro  o  seu  Convento  de  Monte- 
junto: e  comi  não  estava  contente  do  posto  de  Montijrás,  com  quanto 
a  força  dos  negócios  da  Província  o  trazia  repartido  em  grandes  cuida- 
dos, não  cessava  de  lembrar  a  Frei  Domingos  de  Cubo,  que  tinha  a  cargo 
o  recolhimento,  como  atrás  dissemos,  que  procurasse  chegar-se  pêra 
mais  vizinhança  da  villa.  Pofqtie  além  dos  inconvenientes  de  ficarem  longe 
em  Montijrás,  devião  descubrir-sc  outros  no  sitio,  de  pouco  sadio  de 
verão  com  os  aros  do  campo,  e  com  a  humidade  do  monte  no  inverno.  Não  se 
descuidou  Frei  Domingos:  e  considerando  muitos  postos,  veio  a  satisfa- 
zer-se  de  iunn  junto  da  Ermida  da  Madalena,  no  chão  que  posemos  na 
laiz  do  dedo  mínimo,  ou  monte  sétimo  da  nossa  descripção,  que  he  o 
mesmo  lugar  em  que  lioje  vemos  o  Mosteiro  de  Freiras  da  nossa  Ordem, 
que  vulgarmente  chamão  das  Donas.  Tratou  da  compra.  Como  se  soube 
na  villa,  sobejou-lhe  tudo. 

CAPITULO  II 

Começa-se  a  obra  da  casa  nova  nn  primeiro  silio  que  se  comprou.  Stispen- 
de-se  por  hum  estranho  caso,  e  fundn-se  a  casa  em  outro.  Dd-se  conta 
de  quem  foi  o  que  deu  a  traça  da  Ljreja,  e  crasta. 

Igualmente  desejavão  os  moradores  da  villa,  e  os  Religiosos  a  pas- 
sagem do  recolhimento  de  Montijrás  pêra  o  alto:  e  huns,  e  outros  com 
íim  santo,  e  cheio  do  caridade,  mais  que  por  interesse  próprio:  os  Fra- 
des sintindo  a  descommodidade  que  era  pêra  os  vizinhos  irem  ao  baixo 
buscar  a  pregação, ,e  officios  Divinos:  os  vizinhos  doendo-se  do  traba- 
lho que  custavão  aos  Frades  as  pregações,  e  qualquer  outra  obra  de 
caridade,  pêra  que  erão  chamados  na  villa.  Assi  derão  pressa  todos,  e 
como  de  mão  commum  a  Fr.  Domingos,  que  não  dilatasse  a  obra.  Co- 
meçou elle  a  abrir  os  alicesses  com  geral  gosto  do  povo.  Acudião  os 
devotos  com  todo  género  de  materiais,  e  os  Religiosos  todos  ao  traba- 
lho sem  exccição  de  pessoa.  Mas  a  cabo  de  poucos  dias  succedeo  cousa 
que  deu  muito  que  cuidar,  e  suspendendo  a  fabrica  em  fim  fez  mudar 
o  intento.  Foi  caso  mui  estranho,  e  que  eu  me  não  atrevera  a  por  n"es- 


PARTICILAU  DO  REl.NO  DIC  PORTLGAL  153 

lf3S  cscrilos,  polo  grande  cuidado  com  que  vou,  de  que  não  pareça  n'el- 
les  cousa  que  faça  a  verdade  suspeitosa,  sendo  ella  só  a  que  dá  alma,  e 
vida  á  historia;  se  me  não  tirara  o  escrúpulo  a  tradição  antiquíssima  que 
o  tem  acreditado,  c  rece])!do  por  toda  a  Província.  Deixavão  os  oíficiais 
quando  á  noite  despegavão  do  trabalho,  juntos,  c  basíantemenle  arre- 
cadados os  instruinentos  de  que  se  servião  na  obra;  que  devia  ser  fe- 
cliando-os  em  alguma  casa  que  houvesse  no  sitio.  Eis  que  hum  dia  ama- 
nhecendo n'elle  pêra  trabalharem,  não  achão  ferramenta,  e  a  casa  tão 
hmpa,  que  nem  huma  só  peça  havia.  Não  pareceo  ladroice,  por  ser, 
como  era,  o  IV.río  pouco  cubiçoso.  Menos  cuidavão  em  zombaria,  ou  tra- 
vessura de  ociosos,  como  igualmente  pesada  pêra  huma  grande  ociosi- 
dade. Fizerão  diligencia,  queixarão-sc  os  Religiosos,  falou-sc  muito  no 
furto.  A  caso  se  soube  que  em  luima  Ermida  não  pouco  distante,  lera 
a  de  JXossa  Senhora  da  Oliveira  situada,  como  atrás  dissemos,  no  monte 
primeiro,  e  canto  direito  da  palma  da  nossa  comparação),  estava  lançada 
huma  copia  de  semelhantes  instrumentos:  forão  lá,  acharão  toda  sua  fa- 
zenda junta,  assi  como  a  tinhão  deixado  a  noite  d"antes,  sem  faltar  nada. 
Tornarão  a  trabalhar  sem  fazer  caso,  ou  fazendo  graça  do  successo;  e 
todavia  ao  recolher  houve  cuidado  de  a  deixar  em  lugar  ao  parecer  mais 
seguro.  Quando  foi  pola  manhani,  acharão-se  escarnecidos,  e  roubados, 
como  no  dia  afras:  mas  houve  menos  fadiga  na  busca:  foi  hum  correndo 
á  mesma  Ermida,  e  achou  tudo.  Isío  contão  que  succcdeo  mais  vezes, 
(í  ou  fosse  que  o  roubo  mysteíioso  fizesse  força  aos  Religiosos:  ou  que 
o  sitio  da  Ermida  lhes  agradasse  mais,  juntamente  começarão  a  tratar 
d'elle,  e  levantaião  mão  da  obra,  em  que  se  trabalhava.  Era  a  Ermida 
annexa  da  Igreja  collegiada  de  Nossa  Senhora  da  Alcaçava  da  mesma 
villa:  fizerão  os  Cónegos  liberal  doação  iVella  á  Ordem.  E  como  o  nego- 
cio vinha  traçado  do  Alto,  d'onde  vem  todo  o  bem,  porque  deste  canto 
da  terra  se  queria  o  Ceo  povoar  de  muitos  Santos^  alargou-se  logo  o 
sitio  com  huma  grande  Quinta,  que  huma  Senhora  nobre  oíTereceo  aos 
Religiosos,  tão  a  propósito  d"elle,que  o  cingia  todo:  e  ílcarão  com  casas, 
vinha,  pumares,  c  olivais  junto  com  Igreja.  Era  isto  Mosteiro  quasi  feito, 
e  Frei  Domingos  alegre  com  o  successo  não  duvidou  despejar  logo  Mon- 
tijrás,  e  recolher-se  com  seus  Frades  na  casa  nova,  que  doeste  dia  em 
diante  foi  perdendo  o  primeiro  nome  na  memoria  do  povo,  mas  não  da 
Religião,  que  por  lho  conservar  dedicou  o  aliar  mor  a  Nossa  Senhora 
da  Oliveira,  como  se  vê  na  pintura  delle. 


15i  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

Estava  viva  nos  ânimos  dos  súbditos  a  queixa  que  o  Patriarclia  São 
Domingos  fizera  em  Bolonha,  e  não  sem  lagrimas,  quando  vindo  de  fora, 
achou  crescidos  os  limites  da  traça  que  encommendara,  (e  era  crecimento 
assaz  pequeno).  Esta  memoria  obrigou  a  Fr.  Domingos  a  dar  o  Convento 
por  acabado  com  pouco  feitio.  O  maior  que  ouve  foi  levantar  huma  casa 
térrea  grande,  e  comprida,  abrir-lhe  janellas  altas  nos  topos,  lançar  hum 
corredor  de  taboado  polo  meio,  dividil-o  despois  em  cellas,  e  ficar  dor- 
mitório. E  tal  gasalhado  sérvio  tantos  annos,  que  dura  inda  iioje  a  lem- 
brança do  lugar  que  occupava.  Aqui  trabalhavão  todos  igualmente  ser- 
vindo aos  mestres  da  obra  no  que  cumpria.  Não  se  desdenhavão  as  mãos 
sagradas  de  amassar  o  barro,  nem  as  costas  moidas  com  disciplinas 
refusavão  carregar  a  pedra :  e  edificando  pêra  si  criavão  outro  edifício 
mais  alto,  e  mais  importante  nos  ânimos  do  povo,  que  acudia  em  ban- 
dos a  vèr,  e  considerar  com  devação,  e  alegria  tais  alveneres.  E  tenho 
por  certo  que  muitos  dos  melhores  d'elle  fazendo  juizo  que  aquella  fa- 
brica era  mais  própria  sua,  e  pêra  sou  bem  espiritual  encaminhada, 
que  pêra  os  mesmos  que  nella  suavão  cheios  de  pó;  lançarião  mão  das 
enxadas,  e  padiolas,  tendo  por  dita  serem  companheiros,  e  participan- 
tes em  tal  obra. 

Aqui  he  lugar  de  averiguarmos  o  anno  em  que  este  edifício  teve 
principio,  como  ponto  que  em  todos  os  de  consideração  he  o  primeiro 
que  se  busca.  Escritura  d'onde  o  possamos  acliar  não  ha  nenhuma.  Assi 
he  necessário  buscarmol-o  por  lanços  de  conveniências,  e  boas  conjei- 
turas.  Em  todos  os  escritores  da  vida  do  Padre  S.  Frei  Gil  achamos, 
sem  discrepar  nenhum,  que  ao  sétimo  anno  de  sua  conversão  lha  tor- 
nou o  enemigo  do  género  humano  hum  escrito  de  vassalagem,  qvie  de 
seu  sangue  lhe  tinha  feito,  como  adiante  o  contará  a  Historia.  Achamos 
também  que  o  anno  de  sua  conversão  foi  o  mesmo  em  que  os  nossos 
Frades  comcçavão  ^  edificar  casa  em  Palencia,  porque  n'elle,  e  n'ella 
recebeo  o  habito.  Os  ineb*mos  escritores  coiíformão  que  o  escrito  lhe  foi 
restituído  n'esta  casa  de  Santarém,  na  Capclla  do  Capitulo  d'ella,  e  con- 
firmão  a  tradição  universal  da  villa,  e  da  província,  mostrando  na  Ca- 
pella,  que  hoje  he  a  mesma,  lugar  particular,  e  próprio  por  onde  o 
papel  veio  decendo  do  alto.  Logo  achado  o  anno  da  fundação  de  Palen- 
cia,  que  por  ser  dos  mui  antigos  de  Castella  podemos  crer  succedeu  por 
fipa  do  anno  de  1219,  resulta  que  acabado  o  de  1220  tinha  Frei  Gil 
cumpridos  sete  de  sua  conversão,  e  polo  conseguinte  estava  já  em  pé, 


PAr.TIClLAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  {1)1} 

e  corrcale  o, Convento  de  S;iníarein,  pois  em  tal  tempo  havia  recebiflo 
ii"elle  o  seu  esfrito.  E  (juaiido  lhe  não  demos  mais  qne  hum  anno  pêra 
estar  acabado  n"af{Ui'lla  pobreza,  e  humildade  primeira  que  então  se  cos- 
tumava, fica-nos  caindo  sua  fundação  no  aiuio  de  l22o,  em  que  ao  pa- 
recer não  cabe  duvida.  Assi  não  esliverão  os  Religiosos  dons  annos  per- 
feitos em  Monlijrás. 

Formado  o  Convento,  e  agasalhados  os  Frades,  ficava-se  só  sintindo 
a  pouca  capacidade  da  Ermida.  Poi'que  a  muita  devação,  e  concurso 
que  havia  de  gente  ás  pregações,  e  doutrina  obrigava  a  porem  o  púlpito 
fora.  Suprio-se  o  defeito  por  então  com  imm  grande  alpendre  alto,  e 
capaz,  mas  sem  mais  feitio  que  quaiito  bastasse  pêra  defender  do  Sol, 
e  da  chuva.  E  d"aqui  íicarão  as  alpendoradas  que  ainda  hoje  durão  nos 
Conventos  mais  antigos  d"esteT\eino,  como  são  Gumiarães,  Porto,  eAveii'o. 
N"outros,  como  em  Lisboa,  e  n"esíe  de  Santarém  não  são  apagados  os 
sinais. 

Mas  não  sofreo  a  devação  dei  Rei  dom  Sancho  Segundo,  que  n'este 
tempo  já  reinava,  a  descornmodidade  que  a  nossa  pohi-eza  davaíio  povo. 
E  como  a  maior  nobreza  dos  grandes  lugares  são  casas  de  oração  suin- 
ptuosas,  e  magnificas,  mandou  a  Frei  Domingos  de  Cubo,  que  no  que 
tocava  a  tudo  o  mais  do  Convento,  seguisse  embora  as  leis  da  S!;a  or- 
dem, mas  quanto  â  Igreja,  e  craslas  deixasse  a  traça  á  sua  conta :  e 
mandou-as  dizenliar  na  grandeza,  e  capacidade,  que  inda  hoje  luima,  e 
outra  cousa  representa.  Porque  posto  (jue  a  Igreja  está  redificada  de 
poucos  annos,  não  tem  diiíerença  da  praça  antiga,  e  a  mesma  ordem 
vai  no  claustro.  Como  el  Rei  era  pio,  e  naturalmente  bem  inclinado,  não 
tenho  duvida,  que  como  deu  a  traça  devia  ter  tenção  de  acudir  com  a 
despesa.  Mas  a  cubica,  e  perversidade  dos  ministros  não  dei.xav-do  ser  bom 
Rei,  quem  de  seu  era  bonisiimo  varão.  Fora  ditoso,  se  ou  tevera  brio 
pêra  não  ílar  o  Reino,  e  governo  doutro  conselho  mais  que  do  seu,  ou 
achara  junto  de  si  prúvados  de  igual  bondade,  e  polo  menos,  fieis.  A  falta 
d  "estes  causou  no  Reino  grandes  calamidades,  (como  ao  diante  diremos), 
c  a  elle  o  maior  de  todos  os  iníurtunios,  que  foi  ver-se  em  vida  despo- 
jado de  Reino,  e  honra,  c  íicar-lhe  como  por  escarneo  o  titulo  de  Ca- 
pello,  que  por  Religioso  merecia.  No  desterro,  e  na  morte  mostrou  quão 
largamente  acudira  á  obra  de  (]ue  se  deu  por  architecto,  se  de  sua  von- 
tade tevera  livre  jurdição,  e  do  que  entendia  execução.  Declarai -o-hemos 
com  huma  verba  tirada  originalmente  do  testamento  que  fez  em  Toledo, 


lo6  LlVRO  h  DA  mSTOUlA  DE  S.  DOMINGOS 

onde  está  s^^puUado:  Mando  operi  Pnedicaíonim  de  Santarém  trecentos 
morabilinos:  et  mando  quòd  dent  eis  de  meu  madeira  de  Vlishona,  et  de 
alijs  mcis  locis  quanta  eis  fuerit  necessária í").  Estes  maravedis  se  erão  de 
ouro,  c  da  valia  antiga,  do  que  não  ficou  clareza,  linha  cada  hum  qui- 
nhentos réis,  porque  sessenta  fazião  hum  marco  de  ouro,  e  em  seu  lu- 
gar succederão,  segundo  parece,  as  moedas  de  Cruz  do  mesmo  valor,  e 
peso:  e  não  era  pequena  esmolla  pêra  aquelles  tempos,  e  psra  o  estado 
em  que  se  achava. 

CAPITULO  III 

Prosegue  a  relação  do  edifício  da  casa  nova  de  Santarém.  Contão-se  algU' 
mas  antiguidades  tocantes  a  cila.  Moslra-se  como  lhe  pertence  a  pre- 
cedência de  todos  os  Conventos  de  Espanha. 

Tardou  a  Igreja  em  se  levantar  muitos  annos.  Porque  teve  na  traça 
Rei,  e  faltou-lhe  Rei  no  lavor.  Faleceu  dom  Sancho,  que  a  traçou:  e  seu 
irmão,  e  successor  dom  Affoíiso  Terceiro,  inda  que  ajudou  a  obra  com 
boas  esmolias,  era  como  em  cousa  alheia,  não  como  própria,  (tão  antigo 
h,3  não  querer  ninguém  continuar  o  que  outrem  começou).  Assi  ficando 
a  cargo  dos  Frades,  fazia-se-lhes  dilficuitoso  em  tempos  apertados  pe- 
dir esmolias  pêra  o  pão,  e  sustentação  quotidiana,  como  pedião:  e  jun- 
tamen^.e  pêra  pedra,  e  cal  de  fabrica  realenga:  e  parando  n^ella,  servião- 
se  da  Ermida.  Podemos  crer  devião  correr-se  de  a  continuar  por  sua 
autoridade,  achando-sc  postos  em  cerco  por  huma  parte  da  traça  que 
já  não  podia  tornar  atrás,  pelo  cabedal  que  á  conta  do  Rei  defunto  ti- 
nhão  metido:  e  por  outra  da  regra,  e  constituições  da  Ordem,  que  se 
bem  dão  licença  pêra  haver  mais  largueza  nas  Igrejas,  que  nos  outros 
membros  dos  Conventos:  com  tudo  não  permittem  demasias.  Estas  per- 
plexidades inferimos  do  muito  tempo  que  durou  a  obra,  e  do  remédio 
que  buscarão  pêra  1140  íicar  imperfeita,  que  foi  impetrar  do  Summo  Pon- 
tiíice  huma  indulgência  pêra  os  que  dessem  suas  esmolias  pêra  se  aca- 
bar. As  palavras  da  Bulia  declarão  o  estado  da  Igreja  dizendo:  Quam  ibi- 
dem, aicut  accepinms,  coepcrunt  oedificare.  A  Bulia  está  hoje  viva  no  car- 
tório doeste  Convento,  passada  por  Alexandre  Quarto,  anno  terceiro  de 
seu  Pontificado,  que  responde  aos  do  Senhor  de  1237.  Achamos  n'ella 
digno  de  notar  que  foi  a  indulgência,  cem  dias  de  perdão:  e  devia  ser 
havida  por  bom  favor. 

[']  Duarlc  Kuncs  de  Li?boa  na  \iila  de  dom  Sancho  jirimeiro.  f.  6j. 


PARTICILAR  DU  lUilNO  DK  I'OUTl(;AL  157 

Sahiii  a  Igreja  grande,  c  alterosa  em  proporção,  e  como  convinha 
pcra  tamanho  povo:  três  naves,  presbitérios  atlfjs  na  que  fica  encostada 
ao  claustro:  seu  cruzeiro  que  só  por  si  pudera  fazer  uma  boa  igreja : 
n"elle  a  porta  travessa,  por  onde  he  todo  o  serviço,  por  ficar  mais  vizinha 
á  villa.  De  todas  as  nossas  Igrejas  daquella  idade  foi  esta  a  maior,  ex- 
ceitoadeLisboa,  que  se  avenlajou  em  corpo,  como  também  em  padroei- 
ro mais  poderoso,  e  mais  prospero,  mas  não  na  traça,  que  he  a  mesma 
de  Santarém.  Também  de  todas  as  grandes  he  a  que  só  ficou  sem  pa- 
droeiro Ueal,  e  pola  mesma  rezão  sem  letra  nem  sinal  que  nos  decla- 
rasse tempo  nem  autor.  Cousa  bem  estranha  em  Portugal,  porque  forão  ' 
seus  Reis  por  todas  as  idades  tão  Católicos,  que  nas  obras  pias,  e  ma- 
gnificas tomarão  sempre  a  maior  parte:  e  d'aqui  vem  não  vermos  quasi 
em  todo  o  Reino  Igreja  de  edificio  custoso,  sem  escudo  das  armas  Reais 
por  frontaria. 

Todavia  achamos  duas  memorias  dei  Rei  dom  AÍTonso  Terceiro  que 
foi  Conde  de  Bolonha,  ambas  em  favor  dos  Religiosos  d'este  Convento, 
nenhuma  do  edificio.  Rezão  he  ficarem  n'estes  escritos  por  lionra  da 
antiguidade,  e  polo  que  então  se  estimou  a  mercê,  ainda  que  pouco  im- 
portante. Residia  nesta  villa  a  casa,  e  corte  do  Civel,  que  el  Itei  dom 
João  o  primeiro  muitos  annos  despois  passou  pêra  Lisboa,  c  em  nossos 
dias  transferio  el  Rei  dom  Felippe,  também  primeiro  pêra  nós,  á  cidade 
do  Porto.  Fizerão  os  Reis  esta  honra  a  Santarém,  como  em  memoria  da 
que  possuio  longos  annos  cm  tempo  de  Rom.anos,  com  o  Convento  ju- 
rídico, que  atrás  dissemos.  Era  o  lugar  ordinário  das  execuções  dos  que 
padecião  por  justiça,  tão  vizinho  ao  Convento,  que  ficavão  nos  olhos  dos 
Religiosos  os  que  se  eníbrcavão,  ou  queimavão.  Nos  primeiros  annos  sin- 
tia-se  pouco  este  mal,  porque  nos  que  reinou  el  Rei  dom  Sancho  era 
cousa  mui  rara  hum  justiçado,  andando  a  terra  cheia  de  malfeitores.  Mas 
entrando  o  governo  severo,  e  inteiro  de  seu  irmão,  que  lhe  tomou  o 
Reino,  como  havia  cuidado  cm  punir  delitos,  e  delinquentes,  tinhão  os 
Religiosos  a  miúdo  vistas  nojosas,  com  que  se  desconsolavão  muito. 
D'estas  pedirão  a  el  Rei  que  os  livrasse,  fez-lhes  a  mercê  por  uma  carta 
de  sello  pendente  que  vimos,  e  tresladamos  do  cartório  do  Convento,  e 
he  a  que  se  segue : 

Âlfonsus  Rex  PorlxujaUice  et  Comes  Bohniensis  Praiori,  Aluazilibus, 
et   Concilio  Sanclarcuensi   saluton.   Sciatis  quòd  ego   ntando   et   defendo 


158  LIVI\0  II  PA  HISTORIA  DK  S.  DO"\ir\t";OS 

prmitcr  sub  pccnn  corpnyum  et  luihere,  quod  nulhif;  sil  aiuns  co\uhurrrc, 
nec  iusticiare  liomiusiti.  ncc  f<icere  grauamen  aliípiod  Fmtrihus  Praidirn- 
toribns  ah  tila  via  publica,  quos  vndlt  reclè  a  ^'n-la  Lp,>jrenna'  uersus  do- 
mus  Lcprosonnn  v-iqiir;  ad  monaslerinni  Fratni  n  Pr/cdicatorum  SnncUirc- 
nensium:  qviu  quicniique  inde  r.Und  fecerit.  reiíinnehit  pro  nostro  ininilro, 
et  ego  ailumniabor  enin  in  corpnre,  et  iu  'uòere,  et  insiiper  Icwóo  incnn- 
iurn  de  ipso.  Bativ.n  Saiirtiirennre  ortaua  die  í)i'c''inbris  ^Era  M .CC.LXXXIX. 
(respouíltí  ao  anno  do  S;!lvador  d-i  1251).  Esciisamos  traduzir  esla  caila, 
porqLie  já  fica  fciía  relação  do  que  contem. 

A  outra  mímoi'ia  consta  de  carta  passada  com  as  mesmas  solemni- 
dades  nove  a.nnos  adiante  no  de  121)0,  a  qaal  por  menos  importante  n^ío 
tresladareinos,  diremos  só  a  sustancia.  Parec3  que  a  dcvarlo  indiscreta 
de  alguns  seculares,  despois  que  os  padres  Menores  teverão  também  re- 
colhiiHcnto  ni  villa,  levantou  controvérsia  entre  as  duas  Ordens,  liavendo 
nas  mesmas  Igrejas,  em  que  ambas  prégavão,  quem  pendia  a  huma  mais 
que  a  outra.  Ciiegou  a  causa  a  el  Hei,  (juiz  evitar  diíTerenças,  mandou 
vir  dous  ileiigiosos  estrangeiros  a  prazimenlo  dos  Frades,  e  de  seus  maio- 
res, que  partirão  vinte,  e  duas  Igrejas,  e  Ermidas,  que  então  havia  na 
viUa,  e  arrabaldes,  e  assentarão  que  ficasse  a  cada  Ordem  numero  igual. 
E  pêra  tirar  todo  o  escrúpulo,  e  lambem  acudir  cá  inclinação,  e  devação 
do  povo,  foi  condição  que  cada  seis  meses  fizessem  troca,  e  alternativa 
das  Igrejas,  de  sorte  que  em  cada  hum  anno  se  ouvisse  nas  mesmas 
Igrejas  doutrina  d"ambas  as  Ordens.  Está  o  concerto  assinado  poios  jui- 
zes árbitros,  o  polo  mesmo  Rei,  (obra  na  verdade  de  animo  benigno,  e 
mui  Chiistão  decer,  e  assistir  a  estas  miudezas  por  manter  paz  entre 
as  religiões),  lie  pêra  notar  que  entre  as  vinte  duas  Igrejas,  que  todas 
vão  especificadas,  se  conta  também  no  arrabalde  da  ribeira  a  de  S.  Do- 
mingos de  Montijrás.  D'onde  se  fica  entendendo  que  não  quiz  largar  o 
nome  que  com  a  residência  dos  Frades  herdou.  E  o  não  termos  hoje 
noticia  d"elia,  devia  ser  causa  algum  incêndio  ou  terremoto  que  a  po- 
sesse  cm  ruina:  e  sobrevindo  discurso  de  annos  a[)agou  de  todo  a  me- 
moria. Este  he  tão  poderoso,  que  basta  só  por  si,  inda  que  cesso  a  vio- 
lência dos  elementos,  pêra  destruir,  e  acabar  os  mais  firmes,  e  fortes 
edifícios  da  terra.  Muito  prometia  durar  o  que  nos  tinha  levantado  coiíi 
tanto  trabalho,  e  despeza  o  Santo  Frei  Domingos  do  Cubo:  mas  quando 
chegou  o  anno  de  lOOi,  faltando  ainda  muitos  pêra  cumprir  quatrocen- 


PARTIGULAU  DO  RKINO  DE  POItTUGAL  159 

tos  de  idade,  estava  já  Ião  danificado,  que  tpmplo,  e  claiislros  se  vinha 
ludo  desatando,  e  caindo  por  si.  Assi  temendo-se  com  bom  juizo  liuma 
ruiua  súbita,  que  podia  succeder  em  liora  que  prejudicasse  a  muitos, 
foi  decretado  na  Provincia  que  se  deslizessem,  e  de  novo  se  redificassem 
Era  Provincial  o  Mestre  Frei  Manoel  Coelho,  que  despois  foi  Inquisidor 
em  Lisboa:  deu  o  cuidado  ao  Presentado  Frei  Sebastião  de  Pavia  Prior 
do  Convento.  Começou  elle  a  obra  com  grande  animo:  e  dentro  em  seu 
tempo,  e  n"outros  três  annos  que  se  lhe  prorogou  o  cargo,  deixou  aca- 
bada a  Igreja  que  ameaçava  grande  dilação.  Ficou  feita  de  abobada  na 
mesma  traça  da  primeira,  e  poios  mesmos  alicesses,  ficando  em  pé  o  que 
estava  durável,  como  erão  o  Coro,  e  Capella  mór,  e  todas  as  mais  ca- 
pellas  assi  do  cruzeiro,  como  do  corpo  da  Igreja.  Pulio-se  depois,  e  aper- 
feiçoou-se  poios  successores,  e  está  muito  airosa,  e  bem  assombrada. 
E  porque  também  se  temeo  perigo  da  torre  dos  sinos,  porque  conheci- 
damente fazia  abalo  quando  se  dobravão,  seguindo  o  movimento,  e  ba- 
lanço do  peso,  (o  que  nacia  de  ser  estreita,  e  alta,  mais  que  de  fraqueza, 
sendo  como  era  toda  de  cantaria,  muito  liada,  e  bem  feita),  foi  conselho 
derribar-se,  e  levantar-se  outra,  como  sç  fez.  xVcompanhou-se  despois  com 
casa  nova  de  sacristia  alta,  e  espaçosa,  guardando-se  a  reedificarão  dos 
claustros  pêra'  ultimo  trabalho,  e  n'elles  se  entende  de  presente.  Deu- 
se-lhes  principio  por  Agosto  de  IGáO,  e  começou  polo  lanço  mais  ne- 
cessário, que  era  o  da  parte  do  refeitório:  porque  junta  por  cima  as  ser- 
ventias da  hospedaria,  e  casa  de  noviços  com  o  dormitório:  e  poi'  baixo 
faz  sombra  á  entrada  do  refeitório.  He  obra  de  abobada  sobre  arcos  de 
pedraria  boa,  e  lustrosa,  e.  toma  a  mesma  praça  do  claustro  antigo;  não 
o  excedendo  mais  que  em  maior  altura,  que  foi  necessária  pêra  correr 
a  olivel  por  cima  com  as  officinas,  que  por  ella  se  ficão  servindo. 

CAPITULO  IIÍI 

Mosira-se  como  pertence  a  este  convento  a  jirecedencia  de  todos 
Qs  de  Espanha. 

Temos  dito  tudo  o  que  havia  do  Convento  de  Santarém  pertencente 
ao  edifício  material,  e  sua  amiguidade:  em  que  se  vê  que  de  todas  as 
^iLiigiões,  que  esta  villa  h^je  sustenta,  a  nossa  foi  a  primeira  que  a  veio 
servir.  Yè-se  também  que  lh'o  soubcrão  pagar  os  moradores  no  amor 


100  LIVRO  II    DA   HISTORIA   DE  S.  DOMINGOS 

com  que  pessoalmente  ajudarão  a  obra  do  Convento,  e  dirão  pêra  ella 
n?.o  hum  sá,  mas  Ires  siiios :  acontecendo-nos  aqui  o  mesmo  que  em 
Roma,  onde  toveinos  primeiro  S.  Sixto,  logo  Santa  Sabina,  despois  a  Mi- 
nerva que  hoje  possuímos:  E  se  lie  verdade  que  nos  deve  obrigar  mui ío 
esta  memoria,  não  lhes  fica  a  elles  menos  obrigarão  do  amar,  e  estimar 
o  qno  he  obra  de  suas  mãos,  visto  coíuj  uaiuralmrnle  todo  liomem 
ama  a  arvore  que  plantou,  o  acha  mais  s;íbor  na  frui  ta  do  garfo  (pio 
enxertou,  e  aparou,  e  atou. 

Aqui  so  mostra  lambem  o  muito  que  todo  esle  Reino  deve  ao  Patriar- 
cha  S.  Domingos,  pois  no  dia  que  se  determinou  espalhar  seus  discípulos 
polo  mundo,  logo  lhe  mandou  hum  particular  Portoguez:  e  a  este  quiz 
fazer  cabeça  dos  que  inviava  a  sua  p:iíria,  e  sendo  seus  naturais.  D"onde 
naceo  íicar  em  Portugal,  e  n"osta  villa  a  ca])3ça  de  todos  os  Conventos 
de  Espanlia,  por  meio  da  antiguidade  da  casa  de  Montejunto,  em  cuja 
herança,  e  representação  succede  o  Couvcuíd  de  Santarém.  Porque  es- 
tando ediíicaílo  o  de  Montejunto  na  eutraila  do  anua  de  1218  como  atrás 
contamos,  com  todas  as  circumstancias  qut3  ni  Ordem  se  praticão  em 
matéria  de  fiuições,  a  saber,  licença  do  Summo  Pontiíice,  aceitação  da 
Ordem,  i)0sse-  do  sitio,  autoridade  do  sonhar  da  terra,  o  consintimento 
dos  moradores:  e  íicando  tão  corrente,  e  assentado,  (}uo  logo  teve  por 
filho  o  do  Coimbra,  e  pouco  dospois  deu  principio  ao  de  Chellas,  bem 
se  segue  que  he  primeiro,  e  mais  antigo  que  todos  os  de  Espanha,  pois 
iiella  não  houve  Convento  formado  senão  despois  que  o  Padre  S.  Do- 
mingos a  veio  visitar  no  anuo  de  1229.  Assi  o  sente  o  .Jlestre  Frei  Jor- 
dão (*),  quando  diz  que  antes  de  nosso  Padre  vii'a  Espanha  tinha  dom  Frei 
Sueiro  aproveitado  muito  com  suas  pregações.  E  não  he  contradição  di- 
zer e!le  mesmo  despois.  e  co:iíirmal-oSanto  Antonino (**),  que  o  Convento 
de  Segóvia  fundado  por  nosso  Padre  no  anno  de  12ií>,  foi  o  primeiro  de 
Espanha.  Porque  já  advirtimos  que  estes  escritores  não  comprendião 
Portugal  debaixo  do  nome  de  Espanha :  e  antes  esta  autoridade  lie  em 
favor  de  Montejunto,  que  estava  edificado  hum  anno  antes,  no  de  1218 
como  fica  dito.  D'csta  opinião  he  oAuctor  do  livro  (jue  se  intitula.  Síí-í/í- 
íHíi  OrdinisPmdicalonm  (*"),  quando  contando  osConventos  da  Ordem  d'a- 
quella  primeira  idade,  põem  cm  primeiro  lugar  o  de  Santarém.  E  o  Pa- 

(•)  M.  Froi  Joi-dão  e.  2i. 

í-.)  S.  Aiitonin.  p    3  til.  2.1  ,^.  t. 

(•••J  Sl'íiniuii  Ord.  ^nrildic.  I. '223. 


PAiniCLLAR  DO  HKl.NO  Di:   FOKTLGAL  1(31 

(Ire Frei  Jojo  de  ia  Cruzi*)  falando  mais  claramente  na  sua  Crónica  diz, 
que  até  á  vinda  do  Padre  S.  Domingos  a  Espanha  não  havia  Convento 
nenliam  da  sua  Ordem  em  Castella:  mas  na  Lusitânia  si.  E  quanto  á 
Provincia  de  Ara;^ão  também  nos  dá  o  primeiro  logar,  dizendo  o  Crft- 
nisla  d'ella  Frei  Francisco  Dingo(** ),  que  os  Conventos  deBarcellona,  e  Ça- 
ragoça  teverão  seu  principio  no  anno  de  1219. 

Mas  se  isto  he  obrigação  pêra  a  gente  Portugueza,  bem  largamente 
se  tem  d"ante  mãos  desindi vidado  delia,  na  grande  pi.xlade,  e  devação 
com  que  desde  tempos  antiquíssimos  agasalhou,  e  reverenci(3u  quasi 
todas  as  Religiões  da  Igreja  de  Deus,  recebendo  humas,  e  chamando 
outras,  enriquecendo,  e  sustentando  todas,  e  fundando  outras  de  novo, 
que  são  como  fruito  próprio  d"este  torrão  de  Portugal,  Soja  exemplo 
a  Ordem  de  S.  Bento,  que  logo  em  seus  princípios,  ainda  em  tem- 
pos dos  Heis  SuevosC'*)  semeou  de  tantos  Mosteiros  a  estreiteza  das  terras 
de  Entredouro,  e  Minho,  que  com  muitos  que  seus  Religiosos  despois 
largarão,  enriquecerão  outras  Ordens,  e  com  os  que  possuem  estão  muito 
ricos.  Muito  de  ver  he  a  grandeza,  a  fermosura,  a  limpeza  das  casas  dos 
Cónegos  regrantes  de  Santo  Agostinho,  cuja  opulência,  sem  parecer  qu(3 
perderão  nada,  sustenta  hoje  as  grossas  despezas  da  Universidade  de 
Coimbra.  A  familia  d.í  S.  Bernardo  ainda  em  vida  do  Santo  foi  cha- 
mada, e  honrada,  e  d'..'!ada  com  tanta  liberalidade  polo  grande  Rei  dom 
Afonso  Enriques,  que  do  que  hoje  sob..'ja  á  real  casa  de  Alcobaça,  faz  prato 
a  hum  Infante  de  mais  de  dez  mil   cruzados  de  renda.  As  casas  das 
mais  Ordens  são  quasi  sem  numero,  e  todas  vivem,  todas  se  suston- 
lão,  suprindo  a  caridade  do  povo,   onde   faltão  as  rendas.  A  religião 
da  Companhia  de  Jesus,  sendo  ultima  das  que  vierão,  não  he  inferior 
á  de  S.  Bento  em  grossura  de  rendas,  nem  á  dos  Cónegos  regrantes  em 
magnificência  de  casas,  iguala  a  de  S.  Bernardo  na  honra  de  ser  tarnbem 
chamada  poios  Reis,  tanto  em  sua  flor,  que  quando  á  petição  íiel  Rei 
dom  João  o  Terceiro  nos  deu  o  Santo  Francisco  Xavier (****),  que  já  hoje 
vemos  beatificado  poios  altares,  pêra  Apostolo  do  Japão,  inda  era  vivo 
seu  santo  instituidor. 

Mas  não  he  menos  de  estimar  hum  género  de  Religião,  (fruito  pró- 
prio, e  natural  d'este  Reino),  que  os  seculares  inventarão  pêra  exercicio 

(.)  F.  João  de  la  Cruz  p.  i.  f.  1C.  8',).  90. 

(■.)  F.  Franc.  Diaco.  1.  2.  c.  i.  8.  32. 

(..»)  Cioií.  de  C\ster.  p.  i.  1.  6.  c.  9.  Monarc.  Lusit.  p.  2.  I.  G.  c.  12. 

(•..•)  I'.  í.  de  Lucena  na  %i!a  do  Santo  Francisco  Xavier. 

VOL.   í.  li 


162  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

de  virtude:  que  lie  o  serviço  geral  das  casas  de  Misericórdia,  introduzido 
não  só  nas  cidades,  mas  em  todas  as  villas  do  Reino.  Empregão  n  elle 
os  sobejos  da  fazenda  os  ricos :  e  os  sobejos  do  tempo  os  ociosos : 
e  redunda  tudo  nas  mais  piadosas,  e  mais  acertadas  obras  que  em  fa- 
vor dos  próximos  se  podem  fazer.  Quem  quizer  saber  a  grandeza,  e 
custo  d"ellas,  se  for  bom  contador,  alcancal-o-ha  facilmente,  proporcio- 
nando os  membros  com  a  cabeça,  quero  dizer,  todo  o  resto  das  terras 
do  Reino  com  Lisboa,  na  qual  se  despenderão  no  anno,  que  isto  vamos 
escrevendo,  que  he  o  de  1621,  por  conta  liquida,  e  publicada  no  dia 
da  Visitação  de  Nossa  Senbora,  que  he  o  dia  mais  solemne  d'esta  Irman- 
dade, cinquenta,  e  sete  mil  trezentos  e  noventa  e  sete  cruzados. 

Em  differente  género  frutificou  esta  ceara  Portugueza  não  menos 
pia,  nem  menos  magnificamente,  com  que  podemos  fazer  inveja  a  todas 
as  nações  do  mundo.  Acabou  a  formosa  Ordem  dos  Templários  em  tem- 
pos passados  com  geral  sintimento  da  Christandade,  sendo  executores 
de  seu  desastrado  fim,  dous  poderosos  inimigos,  ódio,  o  cubica.  Resis- 
tio  Portugal.  Teve  o  Rei  valeroso  por  vileza,  (era  dom  Diniz),  ajuntar 
á  sua  coroa  preço  de  sangue  de  esforçados  cavaleiros,  levantou  de  suas 
cinzas  como  huma  Fénix,  só  trocado  o  nome.  outra  Ordem  mais  bella, 
e  mais  fermosa,  c  mais  rica,  e  também  no  titulo  melhor  estreada,  (cha- 
mou a  de  Christo).  E  este  Senhor  como  sua  a  tem  acrecentado  tanto, 
que  a  presidência  d*ella,  (passa  já  de  cem  annos),  por  exceder  muito  cá 
capacidade  de  vassallos,  que  nos  tempos  atrás  a  governavão,  anda  na 
pessoa  do  mesmo  Rei.  Chega  o  numero  das  Commendas  por  lista,  que 
temos  em  nossa  mão,  a  quatrocentas  e  vinte  oito  correntes,  e  liquidas, 
afora  mais  de  outras  cento  litigiosas.  E  passa  o  rendimento  das  corren- 
tes, segundo  o  que  tem  sobido  no  tempo  presente,  de  trezentos  mil 
cruzados  em  cada  hum  anno. 

Mas  he  tempo  de  recolhermos  este  discurso,  que  crecerá  demasiado, 
se  dissermos  tudo  o  q^J.e  ha  qup  considerar,  c  apontar  nelle:  e  diremos 
somente  que  deve  Portugal  ter  particular  consolação  na  lembrança  des- 
tas cousas,  porque  são  hum  sinal  claríssimo  de  fé,  e  amor  de  Deos.  Por 
onde  com  grande  confiança  podemos  esperar  que  a  Justiça  Divina  levan- 
tará algum  dia  a  mão  dos  açoutes,  e  calamidades,  com  que  tantos  an- 
nos ha  somos  disciplinados,  e  affligidos. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  P0RTIT,.\J,  163 

CAPITULO  V 

Da  grande  santidade  que  florecia  no  Convento  de  Santarém:  com  Inima  no- 
tável memoria  da  pobreza  em  que  nelle  se  vivia.  Dá-se  conta  de  quem 
eram  dous  Religiosos,  que  seguiram  a  el  Rei  dom  Sancho  fora  do 
Reino. 

Segue  a  poz  a  obra  de  pedra,  e  cal,  fabrica  terrestre,  e  corruptí- 
vel, outro  edifício  mais  alto,  e  de  mais  conta,  pêra  cujo  serviço  se  com- 
põem todos  os  da  terra.  Este  he  o  mystico,  e  espiritual,  onde  se  lavrão 
os  cedros  cheirosos,  e  os  mármores  finos  das  almais  puras  pêra  serem 
tresladados  á  Celestial  Jerusalém,  e  despois  de  desbastados  com  o  ferro 
das  penitencias,  e  amarguras  da  vida,  polidos  na  roda  do  exercício  das 
obras  santas,  lustrados  com  o  desprezo  da  terra,  e  amores  do  Geo,  se- 
rem collocados  por  mão  do  soberano  Architecto  naquelles  muros,  cujo 
fundamento  he  ouro  fino  de  todos  os  quilates  de  virtudes :  as  pedras, 
diamantes  de  constância,  rubis  de  caridade,  esmeraldas  de  pureza :  e  a 
Angular,  que  fecha  toda  a  obra,  e  lhe  dá  lustre,  e  perfeição,  he  Christo 
Jesu,  eterno  Sol  de  justiça,  a  cujos  raios  estão  brilhando  com  luz  incom- 
parável, e  sem  fim.  D"esta  tal  fabrica,  e  tal  oíficina  liei  de  tratar  hum 
pouco,  mas  com  muito  gosto,  polo  que  leva  em  falar  dos  bens  da  Pá- 
tria quem  mais  longe  se  acha  delia,  que  fora  sem  duvida  aventajado, 
se  nos  não  encubrira  o  mais  do  que  nelía  se  trabalhou,  parte  a  antiguida- 
de dos  annos,  parte  a  santa  teima  cora  que  os  mesraos  trabalhadoi-es 
procuraram  esconder-se-nos,  pêra  serem  só  conhecidos  do  Ceo.  Come- 
çaremos por  algumas  generalidades  que  alcançamos,  pêra  irmos  por  al- 
ias fazendo  juízo  de  quais  serião  os  particulares  de  que  nos  faltar  no- 
ticia. E  porque  isto  he  historia  Portugueza,  seja  principio  hum  testemu- 
nho de  fora,  e  de  Auctor  que  por  auctoridade  de. virtude,  e  letras,  e 
polo  que  revolveo  de  livros  pêra  a  historia  que  escreveo,  merece  gran- 
de credito.  He  o  Padre  Mestre  Frei  Fernando  de  Castilho  pregador  mui- 
tos annos  d'el  Rei  dom  Felipe  Segundo  em  Castella,  que  na  historia  ge- 
ral da  Ordem  falando  deste  Convento,  diz  assi(*):  Estos  y  otros  semejantes 
espíritos  se  criavan  en  el  Convento  de  Santarém,  que  quasi  no  se  hallava 
en  toda  aqncUa  casa  quien  no  f nesse  Santo,  y  singularmente  Santo.  E  n"ou- 
tra  parte  diz  o  seguinte (**):  Embiaronle  los  Prelados  a  Portugal,  g  ai  Con- 

{>]  Castilho  p.  1.  1.  2.  c.  67. 
(••)  O  iiiciíDO  p.  1.  1.  i.  c.  72. 


Í6Í  FJVllO  11  DA   IIISTOÍUA  DK  S.  DOÍII.NGaS 

rento  de  Sanlarcm,  mie  eraun  retraio  dei  Cielo  acu  en  la  tierra  con  unas  co- 
lores ij  soinbras  de  aquclla  soberana  sanlidud,  y  dcvocion,  tj  fervores  de 
espirito.  E  p.a  verdade  fala  ao  jusío  do  que  havia  nelíe.  Porque  a  obse- 
vancia  da  regra,  a  austeridade  da  vida,  o  rigor  dos  Jejuns,  e  disciplinas. 
o  fervor  da  oração  e  coníemplação  tudo  crão  estremos.  O  estudo,  e  li- 
rão  coritiniia,  o  silencio  tal,  que  estando  a  casa  cheia  de  Religiosos,  se 
fazia  julgar  por  erma  dos  que  entravão  de  fora;  hora  nenliuma  ociosa, 
recolhimento  perpetuo,  se  não  era  nas  horas  forçadas  que  se  davão  aos 
próximos,  ou  confessando,  ou  pregando,  ou  aconselhando,  ou  fazendo 
doutrina.  E  a  doutrina  até  paias  ruas,  c  praças,  como  então  costumavão. 
Na  pregação  conceitos  chãons,  claros,  devotos,  e  espertadores  do  amor 
do  Céo,  e  da  elevação  do  Saulo  Rosário,  ajudando~se  sempre  d'aqi!&l}e 
pio  costume,  que  os  nossos  Pregadores  primeiro  introduzirão  na  igreja, 
de  invocar  nos  princípios  o  favor  da  gloriosa  Virgem  Mãi,  com  a  sauda- 
ção Angélica.  Fora  d'estas  horas  não  se  via  Fi\ide,  senão  no  Coro,  012 
110  aliar.  E  no  altar  espantava,  e  consolava  juntamente  a  devação,  e  es- 
pirito com  que  celebravão  os  Divinos  mysterios,  trasluzindo  polo  rosto, 
e  olhos  de  cada  hum  os  vários  effeitos,  que  obrava  o  Senhor  nas  almas. 
Huns  afogueados  de  amor,  e  confiança :  outros  pallidos,  e  sumidos  com 
pavor,  e  humildade :  huns  derretidos  em  lagrimas  de  alegria  polo  que 
tinham  entre  mãos,  outros  em  lagrimas  de  reverencia,  de  compunção, 
e  contrição :  e  todos  como  absorptos,  e  enlevados  em  pasmo  daquella 
soberana  mcuíoria,  e  recopilarão  de  todas  as  maravilhas  de  Deos.  A  cria- 
ção dos  noviços  era  tal,  que  se  não  escrevem  maiores  encarecimentos 
dos  que  se  criavam  nos  desertos  da  Thebayda,  nem  de  mortificação,  nem 
de  aproveitamento.  A  doutrina,  os  ministros  que  a  davam,  o  fogo  de 
espirito  com  que  a  buscavam  os  discípulos,  era  tudo  tanta  do  Ceo,  que 
poucos  mezes  deste  noviciado  faziam  mestres.  Da  pobrexa,  com  que  se 
vivia,  poderamos  dizer  muito,  porque  como  estes  padres  não  ]x>ssuiam 
próprios,  como  agora,  o  pendião  da  caridade  dos  próximos,  que  não  era 
sempre  igual  nem  bastante,  parecia  a  vida  também  Angélica  nas  faltas 
do  pasto,  como  na  aljur-dancia  das  virtudes,  eexcellcncias  referidas.  Huma 
memoria  temos  hoje  viva  no  real  Mosteiro  de  Alcobaça  da  Ordem  de 
Cister,  que  nos  confirma  bem  esta  verdade.  Anda  na  livraria  delle  hum 
iivro  que  no  feitio,  e  no  estado,  em  que  está,  representa  huma  grande 
antiguidade.  lie  todo  de  pergaminho,  quasi  três  palmos  de  comprido,  e 
hum,  e  meio  cie  largo.  Contém  vidas  de  Santos,  de  boa  letra  ordinária : 


PARTICULAR   DO   REINO   DH   PORTUGAL  IC3 

c  na  ultima  folha  estão  duas  regras  de  outra  corrida,  e  differenle,  que 
dizem  assi : 

Dederunt  nobis  Fratribus  de  Alcobacia  hunc  Jibrum  de  vitis  Sanch}'^^ 
Fratres  Proidkatores  de  Santarém,  pro  pignore  nostr.e  crucis  oenece  anno 
Domini  M.CC.XXXX.  tertio  nonas  Martij,  Querem  dizer:  Este  livro  de 
vidas  de  Santos  nos  derão  a  nós  Frades  de  Alcobaça,  os  Frades  Prega- 
dores de  Santarém  em  penhor  de  nossa  Cruz  de  cobre,  aos  cinco  de 
Março  do  anno  do  Senhor  de  mil  e  duzentos. e  quarenta. 

Merecia  esta  memoria  traduzir-se  em  todas  as  lingoas.  Porque  não  pode 
ser  mais  vivo  testimunho  de  extrema  pobreza  em  hum  Convento,  que 
viver  de  empréstimo,  e  usar.  de  penhor  pêra  huma  Cruz  de  cobre. 

Mas  havendo  de  entrar  nos  particulares  da  casa,  que  lie  principal 
instituto  d'este nosso  trabalho,  e  escritura,  poem-nos  em  cuidado  donde 
tomaremos  o  pnncipio.  Porque  como  elia  foi  tão  fértil  de  Santos,  e  to- 
dos os  d"esta  primeira  idade,  como  em  ceara  de  anno  benigno,  vierão 
a  florecer  e  fratificar  quasi  juntos,  estou  arreceando  a  eleição.  Muito  me 
obriga  o  grande  lume  desta  villa  o  extático  padre  São  Frei  Gil.  Porque 
já  quando  faleceo  dom  Frei  Sueiro  estava  em  tanta  reputação  de  Santo, 
que  tanto  que  se  juntarão  oí  Padres  da  Província  em  Capitulo  de  elei- 
ção, foi  acciamado  por  succi::ssor  do  defunto,  e  recebido  com  aplauso  de 
toda  Espanha,  ?,Ias  quanto  elle  ganha  por  merecimento  de  mais  santo,  e 
de  Prelado  :  tanto  se  lhe  aventajão  outros  pequeninos  ao  parecer,  e  mal 
conhecidos  no  mundo,  que  forão  primeiros  a  receber  o  premio,  e  a  co- 
roa da  vida  traballiada,  eslendendo-se  ao  Prelado  o  desterro,  e  curso 
mortal  dos  annos,  que  o  Senhor  por  seus  ocultos  juizos  quiz  abreviar 
aos  súbditos.  Por  onde  parece  que  cessa  toda  a  duvida,  e  que  nos  de- 
vemos ir  trás  os  que  nacerão  primogénitos  na  herança,  e  posse  do  Cco, 
qu;iis  são  aquelles  que  se  anticiparão  a  sair  das  prisões  da  carne,  e  do 
odo,  e  .misérias  da  terra,  Assi  fazendo  seguiremos  a  ordem  que  a  Igreja 
sagrada  guarda  na  celebração  das  festas  dos  Santos,  que  he  solemnizar 
nellas,  não  o  dia  que  vierão  a  fazer  numero  entre  os  mortais  no  mundo, 
se  não  o  em  que  voarão  inimortais  ao  Ceo.  Mas  desta  regra  hão  de  fi- 
car por  hora  exceituados  dous  valorosos  espíritos,  que  com  não  deixa- 
rem actos  memoráveis  de  sua  morte,  por  hum  que  fizerão  em  vida,  me- 
recem ficar  lembrados  entre  os  que  contamos  por  gente  santa,  irmãos 


16G  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

seus  de  casa,  e  habito.  Estes  dous  Religiosos  na  retirada  que  el  Rei  dom 
Sanei  10  Segundo  fez  pêra  Caslella,  despojado  do  Reino  polo  Conde  de 
Bolonha  seu  irmão,  voluntariamente  se  desterrarão  com  elle,  e  o  acom- 
panharão até  sua  morte,  e  assinarão  em  seu  testamento.  Chamavão-se 
Fr.  I\íiguel  que  o  servia  de  esmoller,  e  Frei  Vicente  de  Lisboa,  que  sen- 
do secular  fora  seu  medico.  E  he  muito  digno  de  ser  advirtido,  que 
sendo  os  nossos  Frades,  os  que  por  mandado  do  Papa  com  liberdade 
lhe  intimavão  os  Breves  de  sua  deposição,  quando  mais  prospero  rei- 
nava :  e  os  que  do  púlpito  mais  prosperamente  reprendião  as  desordens 
que  consiníia,  e  não  remedeava  no  reino,  com  tudo  souberão  seguir,  e 
servir,  e  amar  a  pessoa,  em  que  estranhavão,  e  aborrecião  vicios.  Etfeito 
de  verdadeira  caridade  não  lisongear  o  Rei  na  prosperidade;  servil-o 
com  amor,  e  gosto  na  perseguição,  e  desamparo. 

CAPITULO  VI 

Da  santa  vida,  e  morte  do  Padre  Frei  Fernando  Pires^  Chantre  que  foi 
da  Santa  Sé  de  Lisboa. 

Comecemos  por  hum  velho,  que  a  misericórdia  do  Pai  Eterno  das 
famílias  chamou  da  ociosidade  das  praças  do  mundo  ao  pôr  do  Sol,  e 
cerrar  do  dia  da  vida  :  e  mandando-o  cavar  na  viíiha,  quando  veio  a  hora 
da  paga,  foi  servido  por  sua  grande  liberalidade,  e  bondade  iguala!-o 
n^ella  com  os  que  tinhão  trabalhado  todo  o  dia  em  peso  cançando,  e 
suando  desde  pola  manham  até  noite.  Grande  nova,  e  boa  estrea  pêra 
aquelles  que  gastado  o  aço  da  idade  robusta  em  servir  ao  mundo,  não 
trazem  pêra  Deos,  mais  que  ferro  frio,  poucas  forças  pêra  o  empregar, 
e  poucas  horas  pêra  merecer.  Boa  nova  digo :  animar,  e  não  desmaiar : 
que  ainda  que  acudimos  tarde  ao  serviço,  e  em  estado  mais  de  dar  pejo, 
que  de  aproveitar  aos  que  tiabalhão,  temos  amo  liberal,  rico,  e  grandio- 
so, que  sabe  que  dá  do  seu,  e  não  sojeita  sua  real  condição  ás  escace- 
sas,  e  contas  acanhadas  do  mundo.  E  bem  o  mostrou  com.  este  velho 
cançado,  e  fraco,  de  quem  tomamos  principio  pêra  tratar  dos  valerosos 
obreiros  do  primeiro  Convento  d'esta  Província. 

Era  dom  Fernando  Pires  muito  nobre,  e  rico,  cercado  de  parentes 
do  melhor  do  Reino,  posto  em  dignidade,  e  renda  de  Chantre  da  Sé  de 
Lisboa.  Vivia  abastado  de  tudo  o  que  o  mundo  pode  dar,  gozando,  e 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  1§7 

triunfando  a  vida  cm  gosto,  e  passatempos  havia  muitos  annos,   com 
grande  esquecimento  de  que  havia  outra  de  mais  dura,  e  mais  pêra  so- 
timar.  Derão-lhe  novas  da  resolução,  cora  que  seu  parenle,  {que  o  era 
muito),  Frei  Gil  de  hum  estremo  de  adiantado  no  mundo,  se  passara  a 
outro  de  abatido,  e  aniquilado  n'clle,  e  não  so  a  ser  pobre,  mas  a  ser- 
vir, e  ser  escravo  de  pobres.  Foi  huma  aldrabada  que  Deos  lhe  deu  nas 
portas  da  alma,  (que  também  islo  ganhão  os  que  buscão  a  Deos,   abri- 
rem os  olhos  com  seu  exemplo  a  muitos  cegos,  e  enganados),  cornocou 
a  entrar  em  contas  consigo,  e  a  perder  o  gosto  de  tudo,  com  ver  o  que 
resultava  d'ellas.  Muitos  annos  perdidos,  haver  de  dar  rezão  de  todos; 
e  não  de  annos,  se  não  de  horas,  e  momentos,  e  em  tribunal  de  juiz, 
e  juizo  temeroso.  Olhava  pêra  si,  via  o  rosto  quebrado,  a  cabeça  cuberta 
de  neve,  com  que  o  tempo  yai  dando  aviso  aos  velhos,  e  aos  descuida- 
dos, (aviso  de  que  nunca  fizera  caso).  Cabia  na  conta  do  esquecimento 
era  que  vivia :  dava  mil  graças  ao  parente  que  o  espertara  da  modorra, 
e  do  encantamento,  louvava-o,  e  desejava  ir-se  trás  elle :  mas  não  aca- 
bava de  se  resolver.  Parece  que  devia  pôr  o  negocio  em  conselho,  pêra 
que  não  fosse  tachado  de  leve,  e  não  achar  quem  lhe  favorecesse  o  pen- 
samento, antes  muitos  que  o  encontrassem :  qae  eslava  entrado  em  dias, 
e  não  poderia  com  o  trabalho  da  Religião,  e  seria  mais  vergonha  o  tor- 
nar atras  tendo  começado,  (tudo  discursos  humanos).  Que  em  sua  casa 
podia  ser  Santo,  e  juntamente  fazer  bem.  a  parentes,  e  criados :  que  a 
renda  não  tolhia  virtude,  e  como  era  velho,  ella  pêra  a  velhice  se  bus- 
cava, quando  convinha  o  mimo,  e  a  cama  branda,  e  a  casa  abrigada,  e 
o  serviço  dos  criados,  e  os  parentes  á  cabeceira.  De  crer  l;e,  que  pe- 
sando tudo,  e  considerando  que  os  mais  fazião  causa  própria,  poucos  a 
sua  d'e!le,  e  nenhum  a  de  Deos,  se  desconsolaria,  não  da  força  dos  con- 
selhos que  nada  o  dobra  vão,  se  não  poios  ter  pedido,  vendo-se  arrisca- 
do, a  que  despois  em  qualquer  successo  avesso  havião  de  triunfar  d'elle 
os  conselheiros.  D'aqui  nacia  a  falta  de  execução.  Mas  como  tinha  por 
si  ao  Senhor  que  o  bafejava  com  bons  movimentos,  e  constância,  (como 
d'elle  procede  todo  o  bem),  fazia  discurso,  e  resolvia  consigo,  que  nas 
cousas  que  sabidamente  são  boas  he  desacordo  culpável  quem  tem  es- 
pirito pêra  as  acometer,  sojeilar-se  a  pareceres  alheios.  Porque  horaera 
que  poera  em  disputa  se  dará  esmola,  se  fará  penitencia,  se  perdoará 
ao  enemigo,  e  coisas  semelhantes  de  si  manifestamente  boas,  e  santas, 
dá  sinal  que  as  não  quer  fazer,  e  só  quer  tirar  do  conselho  aquella  hon- 


163  Liyiio  II  DA  iiisToiuA  m:  s.  domingos 

rinha  publicada  sem  outro  fim.  Curíou  ein  fim  por  tudo  animosamente, 
e  esta  foi  a  maior  difficaldade,  e  a  mór  viloria.  Qnando  menos  se  cui- 
dou eslava  com  o  habilo  vestido.  Louvcm-vos  os  Anjos,  Deos  de  toda 
bondade  que  vós  dais,  e  de  vós  procede  fazermos  alguma  cousa  boa 
quando  a  fazemos :  e  vós  sois  o  mesmo  que  dais  o  premio,  e  a  coroa 
por  esse  bem,  se  o  execlitamos.  Vossa  foi  a  inspiração,  com  que  dom 
Fernando  deixou  o  mundo,  vós  o  trouxestes  aos  claustros,  e  á  pobreza 
de  S.  Domingos,  vós  o  armastes,  e  animastes  de  maneira,  que  em  todos 
os  rigores  d\aqueila  santa  Casa,  que  já  temos  declarado  quais  erão,  se 
igualava  com  o  mais  robusto  executor  d'elles :  e  com  tão  boa  sombra 
levava,  e  vencia  as  austeridades  maiores,  como  se  nunca  soubera  que 
cousa  era  mimo,  nem  vida  folgada.  E  o  que  mais  lhe  dourava  este  va- 
lor nos  olhos  dos  religiosos,  era  enxei'gar-se  n'eUe,  que  quanto  perdia 
das  forças  corporais  enfraquecendo  a  carne,  que  todavia  sintia  o  peso, 
tanto  ganhava,  e  adiantava  de  es{)irito.  Assi  foi  subindo  ao  monte  alto 
da  perfeição  Evangélica,  e  em  poucos  mezes  teve  nome  de  Santo  entre 
a  gente  nobre  do  Reino.  D"onde  naceo,  que  pêra  o  concerto  que  el  Rei 
dom  Sancho  assentou  com  o  Arcebispo  de  Braga,  que  atrás  fica  contado, 
foi  elle  hum  dos  três  louvados,  com  grande  satisfação  de  ambas  as  par- 
tes nom.eado,  e  acertado.  Assistio,  e  fez  seu  ofTicio,  porque  foi  mandado 
por  obediência :  mas  logo  deu  as  costas  ao  trato  do  paço,  e  negócios  se- 
culares, fogindo  pêra  o  ermo  da  cella,  como  quem  só  n'elia  sintia  ver- 
dadeiro descanço.  A  cabo  de  poucos  annos  quiz  o  Senhor  mostrar  quanto 
se  paga  de  huma  determinada,  e  verdadeira  conversão,  e  quão  bem  a 
paga.  Chamou-o  por  meio  de  huma  grave  doença,  e  n'ella  lhe  deu  tais 
luzes,  e  sintimeiiíos  interiores  com  certeza  de  sua  salvação,  que  visl- 
tando-o  na  ultima  hora  o  Santo  Frei  Gil,  que  n'aquelle  tempo  andava 
RO  fervor  de  suas  penitencias,  e  perguntando-lhe  como  se  achava,  res- 
pondeo  com  maravilhosa  confiança :  Meu  Padre  Frei  Gil,  mui  bem  me 
acho,  porque  o  inferno  está  cerrado  pêra  mi,  já  sei  que  não  ei  de  ir  lá: 
e  sem  dizer  mais  palavra  espirou.  Começou  a  Gommunidade  o  officio  da 
commendação  com  muitas  lagrimas,  porque  era  de  todos  amado.  Só  o 
Sanlo  Frei  Gil,  nem  ajudava  o  CóiUto,  nem  a  reza :  mas  em  lugar  dos 
Psalmos  de  finados  rezava,  e  repetia  muitas  vezes  o  Psalmo  'Laudate 
Domimm  de  cwlis.  E  mostrando-se  risonho,  e  alegre,  affirmava  que  não 
era  em  Sísa  mão  fazer  outra  cousa,  nem  lhe  parecia  rezão  celebrar  nou- 
tra  ibníia  íai  género  de  morte  tanta  paz.  e  segurança  de  consciência,  e 


PAnTicriAn  no  nEiA;o  de  portigal  1G9 

tnmaiilía  confiança  em  Deos,  e  em  seus  santos  Sacramentos  em  hum  ho- 
mem que  tantos  annos  vivera  cnfrascado  nas  ociosidades,  nos  gostos,  e 
desassocegos  da  terra.  Por  onde  não  liavia  que  fazer  se  não  alegrar,  e 
festejar  quem  assi  partia,  louvar,  c  engrandecer  o  Senhor  que  tais  ma- 
ravilhas ohrava.  Da  morte  d'este  Padre  se  faz  memoria  no  livro  dos  Óbi- 
tos do  real  ^h)Sleiro  de  Santa  Cruz  de  Coimbia,  como  de  pessoa  de 
grande  calidade  :  Ol/ijt  IJomnus  Femandus  Petri  Fraler  Pnsdicatorum 
quondam  Cantor  Viisbonensis  Kal.  Apritis.  Minto  deviamos  a  estes  Reli- 
giosos por  esta  curiosidade,  se  não  fora  defectuosa  no  que  mais  impor- 
ta, que  ho  a  conta  dos  annos  que  não  aponta. 

CAPITULO  YÍI 

Da   reliijiosa  vida,    e  santa  morte  do  Pudie  Frei  Martinlio  de  Liibca: 
e  do  inuão  Frei  Martinho  Leigo. 

Mas  não  devemos  menos  louvores  ao  Rei  da  gloria  pola  bemaventu- 
rada  morte  de  outro  velho,  que  quasi  foi  semelliante  em  tudo  ao  que 
acabamos  de  contar.  Era  seu  nome  Frei  Martinho  de  Lisboa.  Fora  ca- 
pellão  de  hum  Bispo  da  mesma  Cidade,  Bispo  de  quem  se  escreve  que 
juntamente  com  o  Capellão  vestio  o  habito  de  S.  Domingos.  Yei-oá  Re- 
ligião muilo  eutndo  na  idade,  e  assi  teve  poucos  dias  de  vida  nella. 
Mudança  ds  terra,  e  ares  desbarata  muito  a  velhice:  juntou-se  a  esta  a 
do  comer,  e  beber,  do  sono,  o  da  vigia,  ílzerão  todas  forte  impressão 
no  corpo  carregado  de  annos,  lançaram-no  depressa  na  sepultura.  E  com 
tudo  não  teverão  poder  pêra  o  consumir  tão  cm  breve,  se  não  fora  a 
[iressa,  e  determinação  com  que  o  bom  velho  se  entregou  a  todo  géne- 
ro de  penitencia,  e  trabalho.  Apertou  o  passo  pêra  alcançar  por  diligen- 
cia aos  que  eram  entrados  primeiro,  e  liião  mui  lo  adiante  em  tudo.  Foi 
caso  estranho  que  passou  a  muitos,  e  clsegou  a  por-se  hombro  por  hom- 
bro  com  os  mais  aproveitados  em  todo  género  de  virtude,  fazendo  em 
si  verdadeiro  o  que  se  disse  por  outrem,  que  gastado  em  breves  dias 
cumprio  carreira  de  longos  annos (*).  Brevemente  acabou  a  vida,  mas  nes- 
sa bre\idade  chegou  a  tudo  o  que  os  mais  ardidos  soldados  daquella  mi- 
lícia religiosa  com  muito  trabalho,  e  longo  tempo  alcançarão  de  perfei- 
ção. Era  por  Páscoa  de  Resurreição.  Salteou-o  huma  febre,  que  não  des- 

(')  Sap.  4. 


170  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DK  S.  DOMINGOS 

cobria  alteração  nem  accidentes  pêra  temer,  antes  na  continuação  amea- 
çava doença  mais  comprida,  que  mortal.  Passou  pêra  a  enfermaria  pêra 
se  curar,  mas  sem  pena  do  mal  que  llie  causava.  Quando  foi  véspera  da 
Ascensão  acertou  de  entrar  o  Padre  S.  Frei  Gil,  que  como  medico  das 
almas,  tanío  como  dos  corpos,  acudia  de  ordinário  a  visitar  os  doentes 
com  aquelle  seu  fogo  de  caridade  que  pêra  os  aííligidos  era  especial 
epitima  de  consolação.  Tanto  que  Frei  Martinho  o  vio  chamou  alto  por 
elle,  como  semhrante,  e  significações  de  alegria,  dizendo :  Boas  novas 
Padre  Frei  Gil,  boas  novas  meu  Padre :  chegando-se  o  Santo  a  elle  foi 
continuando,  e  dizia.  Estou  muito  alegre,  porque  o  dia  d'ámanhã  ha  de 
ser  o  ultimo  de  meu  desterro,  e  principio  de  meu  descanço.  E  levan- 
tando mãos,  e  olhos  ao  Ceo,  acrecentava.  Muitas  graças  vos  dou  meu 
Senhor  Jesu  Christo  por  temanha  mercê,  como  he  haver-me  de  hir  pêra 
vós  em  tão  fermoso  dia  como  o  d'ámanhã,  dia  em  que  vós  subistes  em 
carne  a  esse  Ceo ;  dia,  e  festa  a  que  sempre  tive  particular  devação.  Não 
era  a  voz  de  doente,  e  muito  menos  de  quem.  se  fazia  tão  vizinho  da 
morte.  Tomou-lhe  o  Santo  o  pulso,  e  foi-se  saindo,  e  dizendo.  Por  mui- 
ta pressa  que  se  dè  essa  febre  a  vos  matar,  não  o  fará  nem  pode  fazer 
em  oito  dias.  Falava  o  Santo  como  medico,  e  o  doente  como  Santo.  En- 
ganou-se  a  medicina,  acertou  a  santidade.  Amanheceo  o  dia  da  Ascensão, 
pede  os  sacramentos  sagrados  da  Eucharistia,  e  unção,  divinos,  e  ex- 
cellentes  socorros  da  Igreja,  hum  pêra  viatico  da  jornada,  outro  pêra 
esforço  da  lula  que  esperava.  Fazia-se  de  mal  ao  Prior  tal  requerimento 
em  homem  que  ao  parecer  não  tinha  mais  de  doente,  que  estar  na  en- 
fermaria. Mas  não  desistindo  delle,  administrou-lh'os  sem  dilação:  eFrei 
Maninho  os  recebeo  com  consolação  de  Santo,  e  devação  de  que  mor- 
ria. E  assi  foi,  que  acabando  de  os  receber,  antes  de  despejarem  os 
Padres  que  lhe  rodeavam  a  cama,  deu  a  alma  a  Deos  cá  vista,  e  com  es- 
panto de  todos. 

Succedeo  a  hum  3Iartinho  outro  JMartinho,  aquelle  Sacerdote,  este 
Leigo,  ambos  Santos,  e  no  successo  da  morte  quasi  iguais.  Tinha-se  no- 
tado neste  Leigo  por  todo  a  vida  tanta  singeleza  d'alma,  tamanha  pure- 
za de  costumes,  que  na  opinião  de  todos  era  julgado,  e  ávido  por  Santo. 
Adoeceo  mortalmente  no  mez  de  Dezembro;  quando  foi  dia  de  S.  Tho- 
mé,  sobreveo-lhe  hum  accidente  com  tais  termos,  que  pareceo  estava 
acabando,  não  só  aos  Religiosos  que  com  grande  caridade  curavão  del- 
le, mas  também  ao  Santo  Frei  Gil,  que  como  medico  foi  chamado  pêra 


PARTICULAR  DQ  REINO  DE  PORTUGAL  17i 

O  ver.  E  porque  se  persuadio  que  brevemente  espiraria :  assi  como  nisso 
não  tinha  duvida,  tamliem  a  não  tinha,  (porque  conhecia  o  sujeito),  que 
desatada  aquella  ahiia  do  corpo  se  iria  voando  aos  braços  do  Criador,  e 
fez-lhe  lembrança,  (parece  que  devia  estar  virado  pêra  a  parede),  que  hum 
grande  Santo,  e  também  3íartinho  como  elle,  achando-se  em  semelhan- 
te artigo,  quizera  acabar  em  postura  qne  descubrisse  o  Ceo,  e  a  parte 
Oriental  com  os  olhos,  dizendo,  que  ficava  assi  melhor,  porque  despe- 
dida a  alma  do  corpo  se  iria  a  elle  seu  caminho  direito.  E  chamou  hum 
enfermeiro,  e  disse-lhe  á  orelha  que  fizesse  outro  tanto  ao  nosso  Marti- 
nho. Parecia,  e  era  impossível  ouvil-o  outrem  na  casa,  quanto  mais  quem 
estava  penando  em  paroxismos  de  ip.orte.  Eis  que  esperta  o  que  davão 
por  mo!'to,  e  levanta  a  voz,  como  tornado  do  outro  mundo,  dizendo, 
Padre  Frei  Gil  não  morro  agora,  passarão  quatro  dias,  então  me  irei  pêra 
o  Ceo.  E  aconteceo  pontualmente,  como  o  disse.  Porque  no  dia  Santo 
do  glorioso  nacimento  de  Christu  á  hora  que  no  Coro  se  começava  a 
entoar  o  Invitatorio:  Chrisliis  natiis  est  nohis:  se  foi  elle  ajudal-o  a  can- 
tar aos  Anjos  no  Ceo. 

CAPITULO  VIII 

Do  Padre  Frei  Pedro  de  Santarém,  e  do  irmão  Leigo 
Frei  Miirlinho  segundo. 

Onde  faltão  informações  de  vida,  bastante  prova  he  de  virtude  huma 
boa  morte.  Este  capitulo  será  também  de  mortes  com  historia  breve  de 
successos  em  vida :  mas  esses  acompanhados  de  claros  sinais  de  gran- 
de valia  com  Deos.  Acharão-se  hum  dia  na  enfermaria  juntes  o  Padre 
Frei  Pedro  de  Santarém,  que  fora  medico  antes  de  Religioso,  e  hum  ir- 
mão Leigo,  por  nome  Frei  Martinho,  que  chamaremos  segundo  pêra 
diíTerença  do  primeiro,  de  quem  falamos  no  capitulo  precedente,  e  o 
santo  Padre  Frei  Gil.  Os  dous  ainda  enfermos,  e  em  cama:  o  Santo  con- 
valecente,  e  de  pé.  Na  hora  de  Noa,  que  a  Communidade  estava  no  Coro 
dando  aquelle  espaço  á  oração,  não  o  quizerão  perder  os  dous  enfer- 
mos, (que  obriga  muito  o  bom  exemplo  aos  olhos,  e  em  casa,  se  se  não 
vive  entre  gente  insensível),  eram  ambos  muito  espirituais,  e  virtuosos: 
o  traballio  da  doença  aííinava  o  espirito,  e  aperfeiçoava  a  virtude.  Foi 
a  oração  de  Frei  Pedro  tão  fervorosa,  aue  assi  como  estava  de  joelhos 


172  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

sobre  as  pobres  mantas  se  foi  levantando  no  ar  até  pôr  a  cabeça  no  te- 
lhado. Não  estava  longe  Frei  Martinho :  acertou  virar  os  olhos,  ficou 
não  attonito,  nem  pasmado,  porque  também  era  experimentado,  e  douto  nos 
effeitos  da  oração,  mas  louvando  a  Deos  com  cordial  consolação :  e  vio 
que  passado  hum  bom  espaço  tornou  o  extático  companheiro  a  decer 
pouco  a  pouco,  e  ficar  como  d'antes  sobre  o  leito.  Entrou  despois  o 
Padre  Frei  Gil;  e  Frei  Pedro,  se  confessou  com  elle,  dando-lhe  conta 
de  si,  e  de  algumas  cousas  que  vira,  particularidades  que  sintira.  Por- 
que o  Padre  Frei  Gil  já  neste  tempo,  como  adiante  veremos,  era  bus- 
cado pêra  tais  matérias  como  Pai  da  Província,  e  como  letrado,  e  San- 
to (*),  e  por  sua  relação  que  fazia  ao  Mestre  Frei  Humberto  Geral  da  Ordem 
chegarão  quasi  todas  estas  cousas  ao  tempo  presente.  E  os  verdadeiros 
humildes  quanto  mais  avante  vão  no  caminho  da  luz,  tanto  menos  fião 
de  seu  parecer.  Respondeo-lhe  o  Santo  por  remate  de  tudo,  que  tivesse 
cuidado  de  esconder,  e  enterrar  os  favores  do  Ceo,  polo  risco  que  ha 
de  se  ollender  aquelle  Senhor  que  os  dá :  porque  quem  publica  tczou- 
ro,  he  sinal  que  ou  quer  ser  roubado,  ou  pertende  vam  gloria.  Acabada 
a  confissão  foi-se  ao  leito  do  Leigo,  que  com  simplicidade  de  Leigo  lhe 
começou  a  perguntar,  se  lhe  dera  Frei  Pedro  conta  de  hum  maravilhoso 
rapto  que  tevera  na  hora  de  Noa ;  e  espantando-se  o  Santo,  como  que 
o  ignorava,  foi-lhe  contando,  e  encarecendo  o  que  vira,  que  conformava 
pontualmente  com  o  que  da  boca  de  Frei  Pedro  ouvira.  Mandou-lhc  o 
Padre  o  mesmo  que  aconselhara  a  Frei  Pedro,  obrigando-o  a  guardar 
segredo  com  boas  rezues,  e  com  sua  autoridade.  Ambos  estes  enfermos 
teverão  fim  glorioso,  e  em  breve  tempo.  Hla  Frei  Pedro  convalecendo 
da  doença,  e  crecendo  em  perfeição,  e  ao  mesmo  passo  lhe  acudia  o  Se- 
nhor com  o  Maná  celestial  de  suas  consolações,  e  misericórdias.  Não 
soífria  o  enemigo  das  almas  que  coubesse  tanto  bem  em  peito  mortal, 
ardia  em  fogos  de  raiva,  e  inveja.  Estava  o  convalecente  hum  dia  de 
joelhos  diante  de  hum  altar  orando  :  chega-se  a  elle  disfarçado  com  mas- 
cara, e  habito  de  Frade,  e  como  besta  fera  que  he,  sacode-Ihe  hum  cou- 
ce, com  que  lhe  abrio  grande  ferida  em  huma  perna :  e  não  contente  com 
isto,  leva-o  pelo  pés  arrastado  por  toda  a  Igreja  com  tanta  fúria  que  fi- 
cou todo  pisado,  e  de  novo  enfermo  pêra  muitos  dias.  Porque  a  ferida 
como  foi  de  pé  Luciferiuo  nunca  acabou  de  soldar,  c  em  fim  ficou  em 
fistula:  e  delia  veio  a  morrer.  E  assi  a  ira  de  quem  cuidou  que  lhe  fa- 

l')  Gregnr.  Iloin  ii.  in  Evangol. 


PAUTICLLAU  DO  REINO  DE  PORTCGAL  173 

zia'  mal,  lhe  acarretou  o  maior  bem  dos  bens,  qaal  he  pêra  os  justos  aca- 
bar contas  com  o  mundo,  c  entrar  na  posse  da  gloria. 

Não  tardou  muito  em  Mie  ser  companheiro  na  morte  quem  o  fora  na 
doença,  c  na  enfermaria,  digo  Frei  Martinho  o  Leigo:  em  cujo  transito 
quiz  a  misericórdia  Divina  descubrir  o  tezouro  de  virtudes  que  andava 
encerrado,  e  desconhecido  debaixo  da  cortiça  tosca  de  hum  Leigozinho 
idiota,  e  rude,  rude,  e  idiota  pêra  o  mundo:  grande  sábio  diante  de 
Deos.  Acabou  de  espirar,  cobrio-sc-lhe  o  rosto  da  sombra,  e  noite  da 
morte,  em  lugar  da  luz,  e  graça  da  vida  que  hia  fugindo.  Começou  a 
Gommunidaue  junta  o  officio  da  commendação  da  alma,  como  he  costu- 
me :  eis  milagre  espantoso,  trocão-se  de  novo  as  cores  do  morto,  reves- 
te-se  o  sembrante  pallido,  e  mortal  de  huma  luz  extraordinária,  como 
de  orizonte,  onde  o  Sol  vem  nacendo  mui  vizinho,  (final  certo  do  que  já 
lhe  allum.iava  a  alma),  luz  tão  clara,  e  luminosa,  que  cerrando-se  o  dia, 
ficou  o  Prior  rezando  a  cila  polo  processionario,  que  tinha  na  mão,  todo 
o  Officio,  com.o  pudera  fazer  se  tevera  junto  de  si  huma  tocha. 

CAPITULO  ]\. 

Do  sanlo  fnn  de  Frei  Bomingos,  e  Frei  Gonçalo  innauns  Leigos. 

Rezão  he  que  á  vista  de  tão  bendito  Leigo,  não  saia  a  historia  de 
Leigos.  E  não  he  menos  do  estimar  o  que  agoi'a  diremos  de  dous:  e  tão 
venturosos  ambos,  que  teverão  por  seu  Cronista  o  Santo  Padre  Frei 
Gil,  que  ajuntou  o  que  havemos  de  contar  delles  á  relação  que  atrás  dis- 
semos. Chamava-se  hum  Frei  Domingos,  que  por  muito  modesto,  manso, 
e  encolhido,  era  amado,  e  confessado  do  Santo  Fiei  Gil.  A  eilo  reconhe- 
cia o  Leigo  por  Mestre,  ainda  que  havia  outro  em  casa :  a  elle  dava  con- 
ta de  sua  alma.  Com  tal  nome,  e  com  tal  mestre  bem  era  que  fosse  San- 
to. Veio  a  adoecer  perigosamente,  e  por  tempo  deu  em  hidropico.  lie 
o  mal  muito  penoso,  e  de  que  poucos  escapão :  e  todavia  tinha  alguns 
dias  de  tanto  alivio,  que  se  promeitia  a  saúde  que  desejava.  Poz-lhe  hum 
dia  o  desejo  delia  na  imaginação,  que  o  sitio  da  enfermaria  era  contra- 
rio ao  seu  mal;  que  se  mudassse  estancia,  se  acharia  melhor:  e  não  he 
bom  sinal  em  doentes  procurar  mudanças  de  lugar.  Com  tudo  pcdio  que 
o  tirassem  da  enfermaria,  fez  instancias  até  tomar  por  valedor  seu  ami- 
go, e  confessor,   c  em  fim  passarão-no  a  huma  cella  que  apontou.  Dei- 


174  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE   S.   DOMINGOS 

tou-se,  quietou,  alegrou-sc.  Era  sobre  tarde,  tangerão  a  Capitulo  des- 
pois  de  Completas.  Pareceo  ao  enfin^meiro  que  lhe  dava  a  boa  sombra 
do  seu  doente  lugar,  pêra  não  perder  o  Capitulo.  Foi-se  a  e!le,  acertou 
a  ser  comprido,  tardou  hum  espaço  largo.  Quando  tornou,  acha  o  doen- 
te inquieto,  enfadado,  e  queixoso,  que  falava  consigo,  e  dezia:  Valha- 
me  Deos  que  cousa  tão  mal  feita?  como  se  descuidarão  os  porteiros? 
que  entrasse  huma  mollier  polo  Convento,  e  polas  oíTicinas,  e  só?  e  que 
não  houvesse  quem  accudisse  a  tal  desordem?  Attonito  o  enfernieiro  com 
o  que  ouvia,  não  sabia  que  cuidasse,  e  parecia-lhe  género  de  tresvalio. 
Chegou-se  a  elle,  e  o  doente  se  começou  a  queixar  de  novo,  e  contava, 
que  tanto  que  elle  o  deixara,  entrara  pola  cella  huma  molher,  que  no 
geito,  e  traje,  e  no  ar  da  i:essoa  parecia  nobre,  e  senhora.  E  que  não 
fora  sonho,  nem  força  de  imaginagão,  que  estava  muito  em  si  quando 
a  vira :  e  ainda  que  ficara  corrido,  e  pasmada  de  tal  vista,  notara  que 
vestia  de  branco  roupas  de  preço,  e  na  cabeça  trazia  hum  fino  volante 
por  toucado  que  lhe  decia  até  os  hombros :  e  estivera  devagar,  e  assen- 
tada no  escabello  que  tinha  á  cabeceira  perguntando-lhe  pola  doença,  e 
animando-o  a  soffrel-a  com  palavras  graves,  e  de  muita  edificação:  com 
as  quais  não  negava  que  ficara  consolado :  mas  eu,  acrecentava  o  doen- 
te, escusara  bem  visita,  e  vista  de  molheres  em  tal  tempo,  e  a  tal  hora  : 
e  espanto-me  irmão,  como  não  topastes  com  ella :  que  agora  se  vai  d'a- 
qui :  e  não  acabo  de  cair  em  quem  possa  ser.  Lançou  o  enfermeiro  po- 
la porta  fora,  tirou  correndo  á  portaria,  correo  o  Convento,  pei^guntou 
a  todos.  Como  não  achou  quem  lhe  desse  novas  de  tal  mollier,  tornou 
mais  maravilhado  que  fora :  e  de  novo  cançava  o  doente  por  saber  par- 
ticularidades da  vijita,  que  já  tinha  por  cousa  grande,  e  mysieriosa. 
Chegou  a  nova  a  seu  Confessor,  fui-se  a  elle,  e  ouvio  de  sua  boca  por 
extenso  tudo  o  que  temos  referido.  Mas  eis  que  amanhecendo  o  dia  se- 
guinte, que  era  véspera  da  gloriosa  virgem,  e  martyr  santa  Águeda  en- 
tra o  doente  em  crtigos  de  morte.  Acode  o  Santo  Frei  Gil,  e  apoz  elle 
muitos  outros  Religiosos,  ouvem  que  em  voz  alta,  e  alegremente  dizia  : 
Logo,  logo:  sim  quero,  quero  morrer,  e  muito  depressa.  E  com  estas 
palavras  na  boca  acabou  a  vida  aos  quatro  dias  de  Fevereiro  do  anno 
de  1262.  E  acrecenta  o  Santo  na  m.emoria  que  fez  deste  Religioso,  que 
fora  parecer  conforme  dos  Padres  que  presentes  se  acharão,  e  seu,  que 
a  Senhora  que  o  visitara,  fora  a  santa  virgem  Águeda,  e  que  a  mesma 
cm  suas  vésperas  o  viera  chamar  pêra  o  Ceo  cora  sinais  mais  claros  de 


PARTICULAR  PO  REINO  DE  PORTUGAL  175 

quem  era,  qne  os  do  dia  atrás.  O  que  infirião  do  processo  da  visita  pri- 
meira, e  das  ultimas  palavras  do  defunto,  que  forão  indicio  de  outra; 
e  muito  mais  ao  certo  da  sua  boa  vida:  e  julgavão  que  a  santa  virgem, 
como  quem  tanto  padecera  em  seu  martyrio,  quisera  valer  a  quem  fora 
martyr  na  doença,  e  como  virgem,  e  a  quem  também  o  era  (*) :  do  que 
elle  Frei  Gil  se  dava  por  fiel  teslimunha,  como  quem  muitos  annos  o 
o  confessara. 

Chamava-se  o  outro  irmão  Leigo  Frei  Gonçalo.  Estava  em  cama  de 
liuma  febre  aguda  tentado,  mas  ao  parecer  dos  médicos  sem  perigo. 
Hum  dia  mandou  á  pressa  qiie  llie  chamassem  o  Prelado,  e  pedio-lhe 
com  eíTicacia  que  llie  quizesse  administrar  os  Sacramentos,  porque  se 
sintia  ir  acabando  por  momentos.  Fazia  o  Prior  duvida  em  tanto  aper- 
tar quem  não  mostrava  mais  sinais  de  morte,  que  os  de  seu  dito.  E  o 
doente  acrecentou :  Eu  Padre  Prior  não  me  engano :  e  se  vossa  Reve- 
rencia viera  hum  pouco  antes,  achara  nesse  lugar  minha  mãi,  e  irmã, 
as  quais  são  mortas  dias  ha,  como  vossa  Reverencia  sabe.  Elias  me  dis- 
seram que  me  aparelhasse,  que  sem  duvida  morreria,  á  manham,  e  com 
ellas  me  iria  ao  Ceo.  Eu  me  sobresaltei  muito  quando  as  vi,  e  conheci, 
e  fiquei  surpenso,  e  perplexo,  imaginando  se  seria  algama  illusão  do 
Demónio.  Ellas  vendo-me  duvidar,  me  assegurarão  dizendo,  que  não  fi- 
zesse duvida  em  serem  as  mesmas:  e  soubesse  que  por  intercessão  da 
Virgem  Mãi  alcançarão  licença  pêra  me  vir  consolar,  e  avisar.  E  vossa 
Reverencia  sabe  muito  bem  que  ambas  crão  molheres  de  boa  vida,  e  de- 
votas de  nossa  Ordem.  Também  me  avisarão,  que  aihda  que  me  apa- 
reção  muitos  demónios,  que  virão  pêra  me  perturbar,  não  tema  nada, 
que  ellas  com  muitos  Frades  do  nosso  habito  se  acharão  aqui  com.igo. 
E  assi  estivesse  advirtido  que  quando  aqui  chegasse  meu  Senhor  Jesu 
Christo,  (que  só  polas  entranhas  de  sua  misericórdia  me  queria  fazer  es- 
ta mercê),  me  prostrasse  a  seus  pés,  nelle  posesse  todos  meus  pensamen- 
tos, e  a  elle  encomendasse  minha  alma.  Ouvidas  estas  rezões,  não  fez  o 
Prior  mais  contradição,  porque  a  virtude,  e  bom  exeniplo  de  Frei  Gon- 
çalo lhe  tinham  ganhado  reputação  pêra  ser  crido  em  cousas  grandes. 
E  posto  que  os  Médicos  affirmavam  que  naturalmente  falando,  nâo  era 
possível  desliarem-se  os  espiritos  vitais  tão  em  breve  daqueiles  mem- 
bros, polo  grande  vigor  que  nelles  sintião,  fez  a  vontade  ao  eníermo, 
ministrou-lhe  os  Sacramentos,  e  elle  os  recebeo,  como  quem  tinha  por 

(•)  Castilho  p.  1.  1.  2.  c.  70.  da  Ilist.  Geral  de  S.  Doming. 


176  T.ivno  n  da  iiistohia  de  s.  domingos 

cei-lo  que  mon-ia,  com  (.levarão,  e  consolaçiío.  E  logo  no  cila  seguinte 
ao  romper  da  nianham  se  foi  pêra  o  Ceo,  deixando  aos  Religiosos,  que 
com  eile  assisíirão,  grandes  penhores  de  sua  bemaventurança,  no  rosto, 
e  racneos  antes,  e  despois  de  espirar. 

He  de  notar  que  alguns  autores  esírangeiros,  que  este  sncccsso  co- 
lherão dos  escritos  do  Padre  S.  Frei  Gil.  varião  no  nome  do  irmão,  não 
variando  na  verdade  da  relação,  c  segundo  seu  costumo  huns  lhe  cha- 
nião  Frei  Anrique,  outros  Frei  Gonçalo.  E  he  a  causa,  que  devia  ter  o 
Frade  dous  nomes,  como  apontamos  em  outros,  e  ser  nomeado  com  am- 
bos polo  Padre  S.  Frei  Gil,  seguindo  o  estilo  Portugnez :  c  os  estran- 
geiros lançarem  mão  cada  hum  do  seu,  sem  quererem  advirtir  na  con- 
fusão que  faz,  ou  não  darem  ambos,  ou  não  concordarem  em  hum.  De- 
via chamar-se  Frei  Gonçalo  Amiques.  Esta  he  a  culpa  em  que  outras 
vezes  achamos  comprendidos  os  escritores  antigos,  e  de  que  nos  temos 
queixado.  Mas  jei  passa  aos  modernos,  como  se  pôde  ver  nos  que  escre- 
verão do  nosso  Sardo  Frei  Luis  Beltrão (*):  cada  hum  lhe  dá  seu  nome, 
poucos  llie  juntão  ambos. 

CAPrruLO  X 

Do  Padre  Frei  Doininfjos  Gomez  Prior  do  Convénio  de  Sanfareni. 

Foi  Frei  Domingos  Gomez  hum  dos  ])rimeiros  sojeilos  que  da  villa 
de  Santarém  vieram  á  Ordem :  e  como  dos  primeiros  em  tempo,  tam- 
bém foi  d!)S  qne  mais  se  aventajarão  em  virtude,  e  por  tal  veio  a  ser 
eleito  em  Prior  da  mesma  casa.  Administrando  o  cargo  com  toda  pru- 
dência, e  religião  que  se  podia  desejar,  era  tão  profunda  sua  humildade, 
que  se  corria,  e  havia  por  indign.o  de  governar  gente  tão  santa  coíno  ti- 
nha no  Convento.  E  entendendo  que  lhe  seria  melhor  ser  mandado  que 
mandar,  e  obedecer  antes  que  ser  obedecido,  polo  grande  risco  que  he 
pêra  huma  consciência  pura  aceitar  por  sua  vontade  cargo  de  almas, 
pedia  com  grande  efficacia  absolvição  do  oíTicio,  alegando  além  do  im- 
pedimento interior  de  sua  consciência,  outro  não  pequeno  de  infirmida- 
des,  que  na  verdade  padecia  trabalhosas :  as  rjuais  lhe  tolhião  seguir  as 
Communidades,  e  exercícios  da  Ordem  com  a  continuação,  que  está 
obrigado  todo  Prelado,  muito  mais  que  os  súbditos.  Mas  não  lhe  valen- 

(•]  M.  Frei  Viccr.te  Anli.-í,  .M.  Tiei  Francisco  Diugo.  Cion.  da  piovintia  de  .iragão  I.  2.  c.  7^. 


PAUTICULAn  DO  r.EÍXO  DE  I'0;lTLGAL  177 

do  suas  diligencias  em  parliciilar  com  o  Provincial,  fez  conta  que  llic 
valerião  com  os  Padres  da  Província  no  Capitulo  que  instava.  Despachou 
pêra  elle  o  companlieiro  que  por  eleição  do  Convento  lhe  for  dado,  por- 
que suas  indisposições  lhe  não  davão  lugar  pêra  fazer  caminho.  E  en- 
comendou-lhe  sohre  tudo  o  que  a  cargo  levava,  lhe  alcançasse  no  Diffini- 
torio  sua  absolvição  :  e  não  contente  com  esta  diligencia  pedia  a  outros 
Padres  que  hião  a  Capitulo  publicassem  sua  inhabiiidnde,  e  impossibili- 
dades, e  ajuJassem  o  requerimento.  Mas  achando  a  lodos  contra  si,  c|U8 
chammente  llio  estranhavão,  e  havião  por  género  de  ingratidão  querel-os 
deixar,  quando  de  seu  governo  se  davão  poi'  contentes,  e  consolados : 
aliligia-se,  e  dezia  com  grande  espirito:  Hora  meus  Padres  facão  embo- 
ra o  que  quizerem,  que  se  lá  me  não  quizerem  livrar  doeste  tormento, 
Prelado  maior  temos  no  Coo,  que  conliece  minha  insufficiencia,  e  os  in- 
tentos que  me  movem;  elle  com  seu  poder  me  absolverá.  E  assi  lhe 
succedeo  como  o  disse.  Adoeceo,  idos  os  Capitulares,  o  antes  de  torna- 
rem a  casa  deixou  vida,  e  cargo  juntamente,  cora  dor,  e  admiração  de 
todos  quando  o  souberão,  e  arrependidos  tarde  da  contradição  feita, 
que  ainda  continuarão  no  Capitulo.  Mas  bem  mostrou  sua  morte  que  nem 
os  súbditos  se  enganavão  no  conceito  que  tinhão  d"el!e :  nem  elle  do  qi;e 
valião  suas  orações  diante  de  Deos.  lie  cousa  certa,  q'ie  entrando  na  ba- 
talha da  morte  assi  festejou  a  nova  delia,  como  se  ao  sabido  entrara  a 
vencer,  e  triunfar,  não  a  pelejar.  Naceo-lhe  esta  confiança,  e  animo  ('a 
honra  que  lhe  fez  n'aquel!a  hora  temerosa,  a  Virgem  Mãi  de  Deos  com 
sua  gloriosa  presença.  Foi  o  espaço  breve,  e  ao  parecer  do  doente  hum 
momento.  Ficando  muito  esforçado,  ficou  por  estremo  saudoso.  Que  co- 
mo está  escrito,  mil  annos  de  bens  da  gloria,  são  hum  dia  curto  da  terra, 
e  dia  já  passado  (*).E  tornando-se  ao  Padre  Frei  Álvaro  <{uo  junto  d"elle 
estava,  queixava-se  piadosamente,  e  dizia :  Meu  Padi^e  Frei  Álvaro,  pêra 
onde  se  foi  aquella  Senhora  que  agora  aqui  estava?  imaginou  o  Pieligioso 
que  serião  delirios  de  enfermo,  rcspondeo-llie  que  estivesse  bem  no  qiie 
dezia,  que  como  ignorava  elle,  que  não  podião  chegar  molhercs  áquelle 
lugar.  Isso  são  raoiheres  da  terra,  tornou  o  doente:  e  eu  d 'essas  não 
falo,  senão  da  que  he  bendita  entre  todas  as  da  terra.  Por  esta  pergjin- 
to,  que  agora  estava  aqui  diante  de  nós  com  o  precioso  Jesus  em  seus 
santos  braços:  e  muito  me  espanta  não  dar  V.  R.  fé  d^ella.  Apoz  estas 
palavras  fez  muitas  vezes  sobre  si  o  sinal  da  Cruz ;  parecendo  aos  Pa- 

(.)  Psil.  80. 

VCL.   1.  12 


178  LlVr.O  11  DA  HISTORIA  BK  S.  DOííí.NOaS 

dres  que  era  combate  de  enemijTOS,  e  que  entrava  em  passamento,  íízc- 
rão  tanger  as  tal)oas  pêra  acudir  a  Communidade,  (costume  santo  da  Re- 
ligião achar-so  em  tal  passo  todo  o  Convento  presente  pêra  socorrer  com 
orações  multiplicadas  ao  affligido,  e  juntamente  tomar  cada  hum  dou- 
trina n'eHe  do  que  espera  a  todos).  Ahrio  então  os  oiiios,  o  vendo  a 
casa  cheia  de  seus  irmãos,  levantou  as  mãos,  e  olhos  ao  Ceo,  como  quem 
dava  graças  a  Deos  por  se  ver  acabar  em  tal  companhia,  c  foi-se  a  elle 
em  paz. 

Poucos  dins  despois  apareceo  este  Padre  a  outro  da  mesma  casa, 
pessoa  de  credito,  que  estava  esperto,  e  rezando,  e  conhecendo-o  lhe 
fez  pergunta  sem  torvação,  se  era  elle  como  parecia  o  Prior  Frei  Do- 
mingos pouco  antes  falecido.  Esse  mesmo  sou,  respondeu  o  defunto, 
morto  pêra  o  mundo,  mas  vivo  pêra  Deos,  e  em  sua  gloria.  Peco-vos 
que  advirtais  os  nossos  Frades,  que  não  consintão  entrar  seculares  onde 
estiver  Religioso  em  artigo  de  morte,  porque  perturba  n'aquelle  passo 
a  vista  d'etles:  e  a  mi  me  custou  alguma  cousa  a  presença  de  huns  (jue 
me  acompanharão:  erão  parentes,  fizerão-me  compaixão  suas  lagrimas, 
sinti-as  com  fraqueza  humana,  e  paguet-as  com  pena  de  fogo.  Parece  que 
fazia  inda  o  liom  Prior  ofílcio  de  Prelado  vindo  da  outra  vida  a  dar  adver- 
tências a  seus  súbditos.  E  na  verdade,  assi  he,  que  não  perdem  os  jus- 
tos a  caridade  com  a  morte:  antes  aviva,  e  reíina  com  o  lume  da  gloria 
que  gozão.  E  por  isso  lie  santo,  e  proveitoso  pensamento  fazermos 
muito  poios  fieis  defuntos,  sendo  certos  que  nos  não  podem  faltar  com 
agradecimento,  e  paga  quando  mais  nos  im.portar.  iMostrou-o  este  Santo 
com  seu  Supprior  por  termo  extraordinário,  (digo  seu,  porque  servia 
ainda  o  ofíicio  que  elle  lhe  dera,  e  este  caso  foi  poucos  mezes  despois 
de  sua  morte).  Estava  Frei  Domingos  Afonso,  que  assi  se  chamava  o 
Supprior,  doente  na  enfermaria,  mas  era  o  mal  tão  leve  a  parecer  de 
iodos,  que  não  dava  cuidado.  Eis  que  alta  noite  soa  luima  grande  voz 
no  dormitório,  que  espertou  todos  os  Frades,' como  se  cada  hum  fora 
chamado  cá  porta  da  celía :  e  não  hor-vc  nenhum  que  duvidasse  ser  a 
fala  do  Prior  defunto.  Dezia  a  voz:  Levantai-vos  irmãos,  acudi  depi-essa 
ao  vosso  Supprior  que  morre.  Forão  todos  correndo  á  enfei-mai-ia  com 
o  Credo  na  boca,  como  he  costume  na  Ordem  em  casos  semelhantes, 
espantados  do  espertador  muito  mais,  que  do  perigo  não  cuidado  do 
enfermo:  e  acliarão-no  em  estado  de  grande  necessidade.  ;\Ias  não  parou 
aqui  a  caridade  do  defunto.  Tinha  o  Santo  Padre  Fi  ci  Gil  n'este  tempo 


PAnTicrLAu  DO  ri:lno  dk  ['Outical  179 

seu  rccoliiimento  fora  do  Dormi  tório  coinmum,  por  ser  iiuiiío  velíso: 
e  cm  parte  que  não  podia  ouvir  a  voz  que  espertou  a  comifiuriidade. 
Foi-se  o  defunto  a  elle,  lirou-llie  do  bi-aço,  que  dormia,  e  dando-se 
a  conliecer,  disse-lhe  que  acudisse  depressa  ao  Supprior  Frei  Domin- 
gos Afonso,  porque  eslava  acabando,  e  estando  já  acompanhado  de  iodo  o 
Convento,  só  elle  faltava:  sendo  elle  quem  o  trabalhado  enfermo  mais  de- 
sejava ver  pêra  aílivio  do  aperto  em  que  estava.  Levantou-se  o  Santo  ve- 
lho, chamou  por  um  irmão  leigo  que  o  acompanhava  na  cella  pêra  irem 
ambos,  dizendo-lhe  do  accidente  do  Supprior,  e  quem  o  avisara  delle. 
Não  se  persuadia  o  Frade,  nem  acabava  consigo  deixar  o  leito,  aífirmando 
que  na  mesma  noite  ao  recolher  o  deixara  q.uieío,  e  sem  sombra  de  pe- 
rigo: por  onde  não  havia  que  crer  de  fantasmas.  Foi'ão  comíudo  ambos: 
e  chegando  acharão  o  enfermo  no  estado  em  que  o  defunto  dissera,  o 
qual  recreado  lium  pouco  com  a  vista,  e  benção  do  bom  velho,  que 
todos  tinlião  por  pai,  e  respeitavão  como  Santo,  se  finou  logo.  No  livro 
dos  Óbitos  do  Convento  de  S.  Vicente  de  Lisboa,  que  chamão  de  fora, 
por  ficar  fora  dos  muros  antigos  da  cidade,  e  podemos  dizer,  que  foi  o 
primeiro  que  n"ella  se  povoou  de  Religiosos  despois  de  tomada  aos  Mou- 
ros (são  Cónegos  regrantes  de  S.  Agostinho)  achamos  memoria  d"esíe 
Padre  com  esta  letra:  A'í.  R'al.  Gcíob.  obijt.  Frater  Dominiais  Gomefij 
Prior  Píied.  Sanctaren.  Mas  não  aponta  anno,  como  já  advirtimos;  e  be 
o  prmieiro  Frade  d'esla  Ordem,  de  que  faz  menção  despois  de  dom 
Frei  Sueiro. 

CAPÍTULO  XI 

Bo  Padre  Frei  Fernando  de  Jesii,  de  suas  doenças,  e  paciência: 
de  sua  sanla  morte,  e  apareci nierdo  despois  d'elia. 

Aqui  cabe  lugar  a  outro  Religioso  d"esía  casa,  que  também  veio  da 
outra  vida  dar-nos  avisos,  e  boas  novas.  Era  seu  nome  Frei  Fernando 
de  Jesu:  e  não  o  teve  debalde:  porque  toda  sua  vida  foi  Imraa  perpetua 
cruz,  e  uma  invencível  paciência  com  que  a  levava.  A  calidade  do  tra- 
balho forão  doenças  prolongadas  acompanhadas  de  deres,  com  que  mo- 
via a  piedade,  e  lastima  os  Rehgiosos,  c  movera  iiifieis  se  o  virão,  se- 
gundo erão  apertadas,  e  terribeis.  O  termo,  com  que  se  havia  n'eilas 
veio  a  passar  o  mais  alto  gráo  de  paciência.  Porque  fez  da  pena  gosto, 
e  do  tormento  recreação,  não  cessando  de  dar  graças  ao  CriadOi-,  finando 


180  LIVRO  II  DA  nisTor.iA  nii  s.  do.mi.ngos 

mais  atribuíauo  se  via;  como  outro  Jo]i,  por  lhe  íira!"  as  riquezas  ãs 
saúde,  qfie  são  as  maiores  da  vida,  e  carregar-lhe  a  mão  eiíi  lepra  de 
dores  por  todos  os  membros,  que  cada  momento  o  chegavão  ao  martyrio 
da  morte.  Mas  no  fim  mostrou  o  m.esmo  Senhor  que  de  sua  mão  pro- 
cederão doenças,  dores,  e  paciência,  coroando  tudo,  ao  passar  da  vida, 
com  hum  manifesto  sinal  da  gloria,  que  já  lhe  começavão  a  render.  E 
foi  imprimir-lhe  no  rosto  huma  luz  extraordinária,  e  incom.paravel,  que 
sendo  julgada  por  revei  berai  ão  do  Sol  Divino  da  gloria  trocou  logo  as 
lagrimas  dos  bons  irmaons  em  alegria,  e  as  lastimas  que  lhe  tiniião  eia 
santa  envcja. 

Não  passarão  muitos  dias  que  este  defunto  se  representou  em  sonhos 
a  outro  Religioso  do  mesmo  convento,  o  qual  conhecendo~o,  mas  duvi- 
dando da  visão,  lhe  fez  algumas  perguntas.  Foi  a  primeira  se  era  cUe 
Frei  Fernando,  como  o  parecia,  a  quem  i)ouco  havia,  ajudara  a  eiilen\u-. 
E  respondendo,  que  era  o  mesmo  que  vii-a  morto,  e  enterrado:  Pergun- 
tou-lhe  se  lhe  saberia  dar  novas  de  lium  Frade  da  mesma  casa  fa-Iecido 
de  poucos  dias  que  chamavão  Frei  Diogo:  respondeo,  que  estava  iio  pnr- 
gatorio,  mas  que  seria  brevemente  íi^TC,  e  entraria  no  Ceo  Sesta  feira 
da  semana  Santa,  que  vinha  perto.  Estendeo-se  a  cnriosidade  do  que 
dormia,  a  querer  saber  a  causa  da  pena :  e  o  defunto  o  satisfez,  apon- 
tando com  o  dedo  na  boca,  e  na  garganta,  e  dizendo  que  fora  compla- 
cência que  tivera  de  si  quando  cantava.  Pergunlando-ihe  mais  por  outros 
Frades,  respondeo  que  estavão  bem.  Porque  haveis  de  saber,  (dizi^  o 
defunto),  que  os  Frades  que  morrem  em  sua  Religião,  e  trabalhão  por 
cumiprir  com  suas  obrigações,  nenhum  se  perde:  e  particularmeiíte  são 
ajudados  da  Virgem  Nossa  Senhora  na  hora  da  morte.  Pedio-lhe  enião  o  quo 
perguntava,  algum  sinal  pêra  certeza  do  que  linlia  ouvido,  foi  a  reposta  que 
no  dia  da  festa  de  Ramos,  que  estava  próxima,  não  liaveria  no  Convento 
som  de  sinos,  que  isto  levasse  por  sinal.  Acordou  o  Frade  tanto  em  si, 
e  com  a  memoria  tão  viva  das  particularidades  referidas,  que  só  lhe  fa- 
zia duvidar  delias,  e  do  toda  a  visão,  a  iuípossibihdade  que  achava  na  ul- 
tima do  sinal,  sendo  assi,  que  o  dia  he  tão  festejado  por  toda  a  igreja, 
como  sabemos.  Mas  chegado  o  dia,  verificou-se  o  sinal  por  i  ezão  de  um 
inlerdito,  cjue  houve  em  todas  as  Igrejas  da  vilia:  e  deu-se  por  certa  a 
vis^lo  em  tudo  o  mais,  asseníanflo  os  Padres  que  permittira  Deos  tão 
vngaroso  coUoquio  peia  doutrina,  e  aviso,  e  consolação  de  muitos,  pola 
virtude,  e  merecimenios  do  santo  defunto.  J]  por  ser  lai,  fez  o  Santo 


rARTICULAR  M  REINO  PE  POP.TIT.AL  Í8l 

Frei  Gi!  relnção  cVeile  ao  Mestre  Geral  da  Ordom,  Enão  falta  qnemaíTir- 
me,  fundado  em  boas  rezões,  que  nos  casos  raros,  e  seméihanles  a  esto 
que  o  Santo  escreveo,  e  aíTirmou,  como  apontava  Frade  sem  nome,  era 
elle  o  mesmo  apontado.  Porque  casos  de  tanta  admiração,  e  tão  extraor- 
dinários não  os  coiita  nenhum  sisado  (*),  senão  vistos,  e  apai[»ados  com 
as  próprias  mãos. 

CAPITULO  Xii 

lie  quem  foi  o  Padre  frei  Domingos  do  Cubo  :  e  de  sua  vida, 
€  morte,  e  sepultura 

Sempre  causou  grande  controvérsia,  e  muitas  vezes  engano  entre  os 
escritores  antigos  a  semeliiança,  eallusão  dos  nomes  em  homens,  e  luga- 
res. E  se  não  ha  muito  cuidado  nos  que  despois  escrevemos,  he  forçado 
errar  poios  muitos  seguidores  que  cada  opinião  leva  trás  si.  Nas  histo- 
rias Pontificais  hc  impossível  de  averiguar  entre  três  Papas  do  nome 
João  20,  2i,  22,  a  qual  d'elies  pertencem  os  casos  qsio  succederão  por 
todo  o  tempo  dos  três:  e  causou  esta  variedade  servirem-se  do  mesmo 
nome,  e  não  haver  grande  distancia  de  annos  entre  o  governo  de  cada 
hum,  como  bem  o  adviriio  Genebrardo  na  siia  Chronologia.  Da  mesma 
maneira  nos  dá  em  que  entender  hum  Thomás  Doutor  Anglico,  mistu- 
rando suas  obras  com  as  do  nosso  Thomás  Doutor  Ani^elicof*),  pola  vizi- 
nhança dos  nomes,  havendo  tanta  dilíerença  na  real  significação  d'elles, 
quanta  ha  da  terra  ao  Ceo,  de  Ingres  a  Angélico.  Este  trabalho  temos 
no  Capitulo  presente,  havendo  de  tratar  do  Santo  Frei  Domingos  do  Cubo 
(como  elle  se  assinava),  e  não  de  Cuba,  como  algumas  memorias  antigas 
lhe  cliamão.  Porque  concorrjerão  com  elle  outros  dous  Domingos,  que 
sem  cmL>argo  de  se  distinguirem  baslanteraeníe  por  seus  sobrenomes, 
houve  tão  pouca  diligencia  nos  que  escreverão  suas  cousas  em  no  los 
dar  a  conhecer  por  estas  distinçoens,  que  deixarão  huma  perpetua  con- 
fusão, e  enleio  aos  que  despois  quizerão  escrever,  porque  sem  giande 
culpa  forão  applicando  os  feitos,,  e  virtudes  de  todos  áquelle,  a  quem 
a  caso,  ou  por  alguma  rezão  se  inclinavão.  Assi  convém  fazermos  aqui 
huma  breve  digressão,  declarando  quem  foi  cada  um  dos  ires,  antes 
de  entrarmos  na  historia  do  nosso. 

{•)  Resende  na  vicia  ile  S.  Fr.  Gil  !.  i.  c.  7. 
[••)  Gen.  in  (Ihroiio.  I.  5.  f.  U.S2. 


182  LIVP.O  II  DA  HISTORIA  DK  S.  DOMINGOS 

He  pois  de  saber,  que  entro  os  companheiros  do  Patriarcha  S.  Do- 
mingos não  iioiive  mais  quo  Iram  só  Domingos,  (como  deixanios  escrito)  (*) 
e  Espaiiho],  e  de  sobrenome  o  Peqneno :  e  deste  foi  aqiicHe  feito  cele- 
brado, (;ue  SC  lançou  no  fogo  vestiuo,  e  calçado,  sem  receber  huma  nii- 
iiima  lezão,  nem  na  roupa,  nem  na  carne.  E  o  mesmo  foi  bum  dos  três 
compaiiiíeiros  que  o  Santo  Patriarcha  dsii  a  dom  Frei  Sueiro  Gomes  pêra 
a  jornada  de  Espanha,  (como  atrás  contamos)  (**).  E  d"elle  escreve  o  Mes- 
tre Frei  João  Teuíonico  no  registro  dos  Santos,  e  varoens  illuslres  da 
(iiiiem,  que  passando  a  Itália  faleceo  em Perosa  cidade  da  Toscana,  e  jaz 
sepuilado  na  igreja  velha  do  nosso  Convento.  Vindo  despois  nosso  Pa- 
dre do  Roma  a  Espanha  no  anno  do  1219  entre  os  sojeitos  que  de  sua 
bendita  mão  receberão  o  habito  forão  doii-s  Domingos,  hum  Castelhano 
natural  de  Segóvia,  quo  se  chamou  Frei  Domingos  Munhós:  outro  Por- 
íuguez  por  nome  Frei  Domingos  do  Cul)o.  Ambos  trouxe  alguns  dias 
consigo,  e  forão  poucos,  porque  não  puderão  ser  mais  que  os  que  se 
deteve  em  Espanha,  j^ías  esses  bastarão  pêra  os  deixar  tão  aproveitados 
cm  todo  género  do  virtude,  que  forão  espelho  delia  entre  os  Religiosos 
de  sou  tempo.  E  por  serem  tais  andão  envoltas  as  memorias  que  d^elies 
ficarão  até  com  o  nome  de  seu  Mestre  (***).  O  Castelhano  residio  muitos 
annos  por  Vigário,  e  Confessor  das  Freiras  de  Madrid  no  Mosteiro  de  Santo 
Domingo  elReaí.  AoPoríuguez  mandou  nosso  Padre  que  se  viesse  ajudar 
a  dom  Frei  Sneiro  a  Portugal. 

Este  era  Frei  Domingos  do  Ci:bo.  Eiu  Portugal  sérvio  no  ministé- 
rio da  pregação,  em  que  era  imico,  correndo  muitas  terras  do  Reino 
ião  fractuosamente,  que  obrigou  muita  gente  nobre  a  buscar  a  Religião, 
levados  da  excellencia  da  doutrina,  e  suavidade  da  pratica  com  que 
SC  declarava,  á  qual  ajuntava  exemplo  do^kVida  Angélica,  costumes  purís- 
simos, c  penitencia  em  todo  extremo  rigurosa.  Os  escritores  da  vida  de 
S.  Frei  Gil  (****)  aponlão  entre  outros  Frei  Bertolameu  Pires,  Frei  Matheus, 
Frei  João  Domingues,  e  Frei  Maríim  Godinho,  que  juntamente  erão  no- 
viços em  Santarém,  e  lodos  quatro  nobres.  Assi  ganhou  por  lodo  o 
Reino  nome  de  Apostolo  de  Portugal,  poios  muitos  que  fazia  deixar  o 
mundo,  e  nome  de  Santo  polas  mais  virtudes:  como  o  Mestre  Frei  Je- 
rónimo de  Padilha  cm  humas  memorias,  que  sendo  Provincial  neste 

(-j  l.  1.  c.  8. 

(")  L.  I.  c.  S. 

(.-.)  Castilho  y>.  i.  I.  i   c.  ii. 

(•»"]  íicser,(]c  1.  '2.  I.  i.  cxomp.  82. 


PAr.TICULAI'.   DO   RETXO   DF.  POP.TUGAL  i83 

Reino,  e  Iiuíh  dos  reformadores,  que  de  Castelia  vicrlío  a  chaiT^ndo  (M 
Rei  dom  João  o  Tercdro,  deixou  de  sua  mão  escritas  das  cousas  riota- 
veis  d"e]Ie.  E  acrecenía,  que  este  Convento  de  Santarém  por  iradição  re- 
cebida de  tempo  immemorial  o  reconhece  por  seu  fundador,  no  sitio  e 
lagar  em  que  hoje  o  vemos.  Traballiou  muito  Frei  Domingos  em  checar  a 
perfeição  huma  tamanha  maquina  como  foi  Igreja,  e  claustiO  seui  braço 
de  Rei,  como  atrás  -tocamos.  E  nisso  se  deixa  bem  ver  o  que  valia  com 
os  howens  a  opinião  de  sua  virtude.  Faleceo  em  boa  vríiiiice  dous  an- 
nos  pouco  mais  ou  menos  primeiro  que  S.  Frei  Gd.  Do  lugar  de  sua 
sepultura  não  ha  noticia  certa.  Erão  aquelles  tempos  faltos  de  curiosidade, 
e  quanto  a  meu  juizo  não  por  defeito  de  quem  soubesse,  ou  podesse 
escrever  entre  os  nossos:  mas  porque  era  tal  a  perfeição  dos  Religiosos, 
que  tudo  quanto  fazião  lhes  parecia  pouco:  e  não  fazendo  cousas  tão 
grandes  que  só  a  fama  as  fizesse  duras  por  exorbitantes:  havião  por  ver- 
gonha lançar  em  livro  as  que  tinhão  em.  si  por  ordinárias,  que  são  as 
mesmas  que  hoje  nos  espantão  d"elles.  E  na  verdade  quando  soube  di- 
zer hum  gentio :  Facilis  iadura  sepiikri  (*),  tendo  por  leve  perda  a  de 
ficar  sem  sepultura,  não  he  de  espantar  que  aquelles  nossos  maiores,  que 
só  dos  bens  da  ahna  tratavão,  fizessem  pouco  caso  do  sitio  em  que  ha- 
via de  íicar  o  corpo  mortal,  e  corruptível:  farião  conta  que  onde  faltasse 
a  cerimonia  da  pedra  que  o  cobrisse,  ou  ainda  terra  que  o  agasalhasse, 
não  podia  faltar  a  capa  do  Ceo  que  tudo  cobre,  como  disse  o  outro: 
Calo  tefjiínr  qiii non  hahet  moam  (**):  e essa  bastava  pêra  esperar  o  dia  glo- 
rioso da  Resurreição.  A  tradição  mais  aprovada  he  que  o  muimenío  de 
S.  Frei  Gil  contem  em  si  duas  sepulturas,  e  quem  considerar  com  atten- 
ção  a  fabrica  d'elle  achará  que  logo  representa  huma  sobre  outra.  E  di- 
zem que  pêra  a  baixa  foi  tresladado  o  corpo  do  Santo  Padre  Frei  Do- 
mingos do  Cubo,  (o  que  devia  ser  quando  se  passou  pêra  a  alta  o  de 
S.  Frei  Gil  seis  annos  despois  de  seu  faleci  mento,  como  adiante  veremos; 
porque  ambos  jazião  no  commum  cemitério,  e  assi  como  erão  venerados 
n'el!e,  ficarão  despois  venerados,  e  visitados  juntos  em  hum  sepulcro. 
E  ijem  concerta  estarem  Juntos  em  huma  capeila,  e  debaixo  de  uma  la- 
gea  aquelles  que  em  vida  forão  muito  amigos,  e  cuja  memoria  na  morte 
ficou  á  vista  de  ambos  pintada  no  relabolo  que  faz  ornamento  á  capeila. 
E  não  devemos  duvidar,  que  como  tudo  sahio  de  hum  pensamento,  e 
de  huma  só  mão,  capeila,  sepulchro,  e  pintura,  não  se  esqueceria  quem 

(•)  Viigil.  ,Eneid.  í. 
("i  Lucaii.  Pfea:-í.  7. 


184  LlVr>0  II  DA  IliSTOUIA  DE  S.   DOMINGOS 

tiiíU)  fez,  de  honrar  com  mármores  a  quem  folgou  de  dar  vida  com  o 
aríifício  de  liiiías,  e  cores.  Quem  foi  autor  d'esla  fabrica  dizemos  adiauío 
lia  vida  do  Santo  Frei  Gi!.  Aqui  tocaremos  somente  a  parte  que  pertence 
d'ei!a  ao  Padre  Frei  Domingos. 

•  Vivia  em  Santarém  na  freguezia  de  S.  Nicoláo  (*)  Iiuma  virtuosa,  e  no- 
bre malix-na  por  nome  Elvira  Paes,  a  qual  sendo  como  era  viuva,  toda 
sua  consolação,  como  ouira  Anua  profeíissa,  era  a  continuação  da  Igreja, 
e  o  santo  exercício  da  oração,  e  meditação  em  que  tinha  por  mestres 
estes  santos  Religiosos,  que  por  isso  fazião  d"eiia  muita  conta.  Poios  an- 
nos  do  Senhor  de  1205,  havendo  já  dous,  pouco  mais  ou  menos  que 
era  falecido  o  Padre  Frei  Domingos  do  Cubo,  adoeceo  S.  Frei  Gil  da  ul- 
tima doença.  Andava  Elvira  Paes  desconsolada,  e  sollicita  temendo-lhe  o 
».  successo,  como  era  muito  velho.  Amaniiecendo  o  dia  glorioso  daAscen- 
ção  trouxe  â  igreja  a  obrigarão  da  festa,  e  o  cuidado  de  saber  do  seu 
Santo,  que  tinha  novas  estava  no  cabo.  Quando  chegou  soube  que  o 
acabavão  de  sepultar.  Ficando  magoada,  e  ti'iste,  foi  o  Senhor  servido 
de  a  consolar  no  mesmo  dia,  e  na  mesma  Igreja  com  uma  visão  celes- 
tial, a  qual  contava  por  estes  termos.  Sintida  da  perda  do  Santo  passava 
pola  memoria  suas  virtudes :  e  contemplava  o  grande  peso  de  gloria, 
({ue  já  lhe  terião  rendido:  desejava  ir-se  trás  elie.  Estando  absorta  moeste 
pensamento,  representavão-se-lh.e  á  vista  dous  velh.os  veneráveis  por 
cans,  e  paramentos  de  ouro,  e  purpura,  que  conhecia  serem  os  dous 
amigos  Frei  Domingos,  e  S.  Frei  Gil.  E  logo  via  huma  grande  escada, 
(lue  tendo  o  pé  no  meio  do  cemitério  do  Convento,  chegava  com  as  pon- 
tas ao  Cco,  e  notava  que  decião  por  ella  dous  Anjos  clieios  de  luz,  c 
fermosura  de  quem  erão,  e  com  grande  festa  chamavão  poios  dous  velhos, 
dizendo:  Vinde  irmãos,  vinde,  e  subi,  que  vos  chama  o  Senhor.  Assi 
foi-ão  logo  subindo,  e  seguindo  aos  Messagciros  até  se  recolherem  com 
elies  no  Ceo.  Era  Elvira  Faes  por  parles  de  virtude,  e  honra  tão  acre- 
ditada, que  não  houve  quem  duvidasse  da  visão:  e  mereceo  além  da  tra- 
dição, que  passasse  á  idade  presente  em  um  novo  género  de  escritura, 
de  tempo  em  que  nada  se  escrevia:  que  foi  piníando-se  em  hum  painel 
do  retabolo  que  se  fez  juntamente  com  a  capella,  e  sepultura  de  S.  Frei 
Gil:  e  porm-anece  hoje  a  piiiíura,  porque  se  foi  renovando  a  tempos. 
Contava  Elvira  Paes  muitas  vezes  despois  esta  visão  aos  nossos  Frades 
com  abundância  de  lagrimas,  e  grande  suavidade  de  espirito,  e  mais 

(•]  Resende  !,  2.  t.  8.  exemp.  oV-. 


PAIITICILAH  DO  RELNO  DE  POHTLíJAL  185 

pniticiilarmcníe  a  hum  padre  que  do  mesmo  tempo  nos  deixou  escrila 
a  vida  de  S.  Frei  Gil,  e  a  Frei  Maríim  Pires,  e  Frei  Bernardo  Religio- 
sos muito  espirituais,  e  de  autoridade,  por  cuja  relação  veio  passando 
em  tradiíTio  aíé  á  idade  presente,  além  do  ícsiimunho  da  Pintura. 

CAPITULO  XIÍÍ 

Do  nacimonlo,  (jcrução,  estudos,  e  peregrinarão  do  Siinlo  Frei  Gil, 
até  o  dia  de  sua  conversão. 

Quem  vio  nunca  vaso  de  barro  feito  pedaços,  despois  de  repassado 
do  fogo  nas  mais  vis  cozinlias  do  mundo,  moido  de  novo,  amassado,  e 
fundido  tornar  á  roda  do  oleiro:  e  sair  de  suas  maons  mais  lustroso, 
mais  polido,  o  muiio  mais  perfeito  do  que  era  primeiro?  Isto  he  o  que 
só  faz,  e  pode  fazer  a  omnipoiencia  Divina  quando  llie  apraz,  como  o  diz 
por  hum  Profeta  (*),  e  o  provou  em  hum  Paulo  de  perseguidor  da  Igreja 
toi'nado  vaso  de  eleição:  e  com  igual,  ou  maior  evidencia  parecerá  no 
nosso  Sanlo  Frei  Gil,  de  quem  será  este  Capitulo,  e  alguns  mais.  Por 
que  i)ertencendo  elle  ao  Convento  do  Santarém,  cuja  historia  vamos  se- 
guindo, por  muitas  rezões,  inda  que  fdho  de  habito  de  S.  Paulo  de  Pa- 
lencia,  pertencc-nos  também,  (porque  nenhum  titulo  nos  falte)  por  rigor 
de  justiça  fundada  em  Actas  de  hum  Ca.pitulo  Geral  celebrado  em  Bolo- 
nha anno  de  1240,  que  dispõem,  e  manda  que  o  Frade,  que  morar  de 
assento  nos  limites  da  pregação  de  qualqsier  Convento,  seja  reputado,  e 
e  havido  por  lilho  deile,  sem  embargo  de  haver  recebido  o  habito,  e  pro- 
fessado em  outra  Província. 

Naceo  Gil  Rodrigues  no  lugar  de  l]ouzí'lla,  tei^mo  da  cidade  de  Vi- 
seu poios  aníios  do  Senhor  de  1190,  pouco  mais  ou  menos:  de  pai,  e 
mãi  illustres  por  sangue,  e  por  lugar,  e  fazenda  no  Reir.o.  Seu.  pai  se 
chamou  dom  Rui  Paes  de  Yahadares:  foi  do  Conselho  del-Rei  dom  San- 
cho Primeiro,  e  seu  Mordomo  mór,  e  juntamente  Alcaide  mór  da  cidade 
e  casíello  de  Coimbra.  Do  que  dá  bastante  testemunho  a  leira  de  b.u- 
rna  sepultura  da  Igreja  de  Santa  Cruz  de  Coimbra,  celebre  Convento  de 
Cónegos  regrantes  de  Santo  Agostinho,  alegada  por  Frei  André  de  Re- 
sende (**),  a  quem  seguimos  nesta  historia,  que  diz  assi: 

llic  silns  es!  Doinvus  Jiodcriciis  pater  Fraíris  yEfjidij  Sancturenénsis 

{')  ie-Qm.  18.  Aci.  íl. 
{«•j  Fi.  And   de  lleseiaíe  in  vila  Beati  .'Etrid.  1.  i.  c    1. 


186  LIVRO  II  DA  ílISTOniA  DE  S.   DOMl.NCOS 

maior  prcefechis  areis,  et  vrbis  Conimbrigensis.  Aqui  jaz  dom  Rodrigo 
pai  de  Frei  GU  de  Santarém,  Alcaide  mór  do  castello,  c  cidade  de  Coim- 
bra. 

Declaramos  o  Latim,  porque  dous  Autores  mais  antigos  lhe  dão  tir 
tulo  de  Pretor,  que  era  oíTicio  de  paz,  como  Juiz,  ou  Corregedor,  e  não 
de  Alcaide  mór,  que  lie  o  que  responde  o  nome  de  Pnpfectiis  na  lali- 
nidade.  Também  dá  que  considerar  o  novo  modo  da  inscripção,  queren- 
do quem  a  fez  dar  a  conhecer  o  pai  polo  filho.  Donde  parece  que  se  de- 
via fazer  muitos  annos  despois,  não  sem  curiosidade,  ou  ambição,  mas 
nada  culpável :  porque  hum  Santo  basta  pêra  dar  luz  a  toda  huma  ge- 
ração de  passados,  e  successores.  Da  mesma  maneira  argue  tempos  mais 
modernos  o  termo  de  maior  Pnefedus,  porque  desdiz  muito  da  singe- 
leza dos  antigos  pouco  cuidadosos  destas  maiorias.  Mas  como  quer  que 
seja,  seguimos  o  escritor  acima  nomeado,  que  he  de  noventa  annos  atrás, 
e  foi  Religioso  de  nossa  Ordem,  pessoa  de  caiidade,  e  autoridade,  digna 
de  se  alegar,  que  esta  historia  poz  em  boa  lingoa  Latina,  tirando  a  de 
outra  muito  mais  antiga,  e  meio  barbara,  que  se  guarda  no  Convento 
de  Santarém  lambem  composta  por  Frade :  e  de  hum,  e  outro  pode- 
mos estar  seguros  que  farião  o  oíílcio  livres  de  paixões  que  desvião  da 
verdade. 

A  mui  de  Gil  Rodrigues  foi  donaTareja  Gil,  que  o  mesmo  Autor  (*)  no- 
mea  por  tia  de  dona  Joana  Dias  senhora  da  vilia  da  Atouguia,  que  mui- 
tos annos  andou  em  casa  da  Rainha  dona  Breiliz  de  Guzmão  molher  dei 
Rei  dom  Afonso  Terceiro,  e  foi  mãi  de  Nuno  í^ernandes  Cogominho, 
pessoa  de  gran.de  nome,  e  Ahnirantc  do  mar  em  tempo  dei  Rei  dom 
Dinis.  Esta  dona  Joana  alcançando  em  annos  ao  Santo  primo  lhe  edifi- 
cou capella,  e  sepultura,  como  ao  diante  veremos.  Teve  Gil  Rodrigues 
mais  dous  irmãos,  Paio  Rodrigues,  e  João  Rodrigues,  e  outro  que  não 
nos  consta  se  foi  irmão  inteiro,  Dayão  da  Sé  de  Lisboa.  Sendo  moço, 
e  mostrando  inclinação  ás  letras  com  habilidade,  foi  posto  no  estudo  por 
seus  pais.  Era  Coimbra  assento  da  corte,  c  juntamente  havia  nelia  Mes- 
tres das  boas  artes,  e  sciencias.  Porque  el  Rei  dom  Sancho  como  rece- 
beo  de  seu  pai  o  reino  pacifico,  e  rico,  piocurou  iilustral-o,  e  acrecen- 
tal-o  por  muitas  vias :  e  não  lhe  esqueceo  a  das  letras,  que  he  a  que 
mais  lustre  dá  aos  homens,  e  ás  províncias.  Deu-se  Gil  Rodrigues,  des- 
pois que  teve  eleição  nos  estudos,  com  particular  affeição  á  Medicina,  e 

(•)  Resende  1.  1.  c.  1.  iii  vila  B.  jEgidii. 


PARTICILAR  DO  RKINO  DE  POIITIGAL  187 

começou  a  ter  nome  de  grande  estudante.  Não  desagradou  a  el  Rei  a 
determinação  quando  a  souiie,  como  seu  Pai  cabia  tanto  com  elle,  folgou 
de  Ília  favoiccer,  enriquecendo-o  a  esse  íim  de  benefícios  Ecciesiasticos, 
e  tantos  que  não  erão  menos  de  cinco  os  que  possuia  sendo  ainda  bem 
moço.  Três  Conezias  em  ires  igrejas  diíTerentes,  e  distantes,  Braga, 
Coimbra,  3  Guarda.  Dous  Priorados,  íium  de  Santa  Eiria  de  Santarém, 
outro  de  Coruche.  Sofria  o  tempo  estas  disformidades,  ou  polo  fraco 
rendimento  das  prebendas,  ou  por  falia  de  homens :  ou  porque  sempre 
aos  validos  sobejão  rezões  pêra  ajuntar  nos  seus.  Vio-se  o  moço  pros- 
pero de  renda,  e  engenho :  e  como  tinha  já  tomado  o  sabor  ao  gosto 
que  dá  o  nome,  e  estimação  das  leiras,  parecendo-lhe  que,  se  tocasse 
qualquer  Universidade  subiria  a  grandes  gi'áos  de  honra  nellas ;  persua- 
dido do  pensamento  negocea  Jicenças,  poem-se  a  caminho  com  os  olhos 
em  Paris.  Não  falta  quem  diga  que  a  rezão  de  se  aplicar  ao  estudo  da 
Medicina,  inda  que  então  não  era  indigno  de  gente  iliustre,  fora  com  fim 
pouco  honesto  de  poder  entrar  em  muitas  casas,  e  penetrar  como  me- 
dico, onde  como  mancebo,  e  nobre  achava  tudo  cerrado,  e  timido.  E 
assi  o  descubrio  o  successo.  Pontue  não  tinha  andado  muitas  jornadas, 
quando  se  lhe  fez  encontradisso  em  figura  hum.ana  o  autor  de  tais  pen- 
sam.entos,  e  pai  de  toda  maldade,  e  fingindo  que  levava  o  mesmo  cami^ 
rdio,  entrou  com  elle  em  praticas,  como  he  costume  do  caminhantes, 
dando,  e  pedindo  contas.  O  descuidado  mancebo  se  lhe  abrio  todo;  e  o 
enemigo  começou  a  combatel-o  a  duas  mãos :  huma  invisível  dentro  na 
alma,  e  outra  de  palavras  suaves,  e  venenosas  nas  orelhas.  Que  acerta- 
va, lhe  dizia,  porque  era  mui  conforme  a  sua  idade,  e  calidade  preten- 
der valer,  e  ter  nome ;  c  juntamente  levar  boa  vida.  Que  na  verdade  se 
a  valia,  e  honra  não  havia  de  ser  meio  pêra  poder  viver  livre,  e  alegre- 
mente, e  em  todo  género  de  delicias :  e  se  a  primavera  da  idade  se  não 
houvesse  de  lograr  com  os  gostos,  e  passatempos,  que  naturaimonte 
apetece,  tiiaio  vão,  e  sem  sustancia  ci'a  a  honra,  sensabor,  e  pouco  de 
estimar  o  m.elhor  tempo  que  Deos  dera  ao  homem.  Que  não  fora  máo 
termo  inclinar  á  profissão  de  Medico,  pêra  com  roupas  largas  ir  pos- 
suindo rendas  Eccleslasticas :  mas  pêra  ser  famoso  no  mundo,  e  junta- 
mente ver,  e  alcançar  mui  las  cousas  de  gosto,  e  grandes  boas  venturas, 
havia  sciencia  mais  poderosa  que  a  Medicina,  e  menos  custosa  de  apren- 
der. E  perguntado  qual  era,  respondia,  que  a  arte  ^lagica  era  só  a  que 
podia  fazer  hum  homem  estimado  nas  cortes,  valido  dos  Reis,  e  de  todo 


188  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE  S.   DOMINGOS 

O  resto  do  mundo  quasi  absoluto  senhor.  Porque  aos  que  a  sabião  não 
se  ibe  escondia  nada  do  que  havia,  e  se  fazia  em  todas  as  provincias, 
quanto  mais  em  todas  as  casas;  e  não  só  alcançavão  o  presente,  mas 
também  antevião  o  que  estava  por  vir,  com  os  successos  particulares  da 
fazenda,  e  da  honra,  da  morte,  e  da  vida,  da  guerra,  e  da  paz :  e  d'aqui 
viera  nos  tempos  m/iíito  antigos  chaníarem-se  ^íagos  os  grandes  sábios, 
por  ser  esta  a  maior  sciencia  de  todas.  Logo  lhe  foi  apontando  alguns 
homens  que  n'aquelles  tempos  havião  sido  famosos  em  Espanha,  e  affir- 
mava  que  o  forão  por  beneficio  d'ella,  obrando  maravilhas  hora  de  es- 
panto, hora  de  riso,  humas  de  importância,  outras  de  passatempo.  Em 
íim  era  arte  pêra  honra,  e  pêra  gosto  :  e  sendo  arrimada  á  Medicina,  que 
elle  já  sabia,  teiia  bella  capa  pêra  grandes  eíTeitos,  porque  atribuindo  as 
cousas  grandes  á  força  natural  da  Fisica  ganharia  nome  do  maior  Filosofo 
da  terra,  e  espantaria  o  mundo,  como  outro  ApollonioThianeu.  Com  estas 
mintiras  foi  engolfando  o  pai  d'ellas  hum  animo  temerário,  e  cobiçoso,  em 
desejos  de  se  vender,  se  fosse  possível,  por  achar  hum  mostre  de  tal  scien- 
cia :  e  com  grande  eíTicacia  lhe  perguntava  que  meio  haveria  pêra  desco- 
brirem algum.  Então  lhe  foi  dizendo,  como  sem  torserem  muito,  pode- 
rião  dar  em  lugar,  onde  havia  escola,  e  mestres  consumados :  mas  que 
era  cousa  mui  secreta,  e  sabida  de  poucos,  e  que  linha  suas  difficulda- 
des,  e  algumas  condições  pesadas :  qiic,  se  quizesse,  lhe  faria  serviço  de 
o  guiar.  Não  sal)ia  o  moço  a  hora  que  se  havia  de  achar  em  Academia 
tanto  da  sua  arte,  o  dava-se  mil  parabéns  por  haver  encontrado  com  tal 
homem.  Só  nos  estylos  que  lhe  referia  da  escola  reparava  hum  pouco : 
porque  deixar  a  fé,  (como  propunha),  hum  homem  nobre,  era  cousa  in- 
digna :  obrigar-se  a  isso  por  escrito,  e  escrito  feito,  e  assinado  com  san- 
gue próprio,  parecia  abatimento  dal-o,  e  huma  desconfiança  torpe,  e  de 
gente  baixa,  e  roim  o  pedil-o.  Facilitava-lhe  tudo  o  companheiro :  e  em 
fim  vencido  da  esperança  das  honras,  e  dos  gostos  de  que  já  se  repre- 
sentava senhor,  fol-se  com  elle  onde  o  esperavão  os  ministros  da  oífici- 
na  infernal.  Era  huma  gruta  na  raiz  de  hum  monte,  em  lugar  ermo,  c 
longe  de  povoado.  Aqui  entrou,  e  residio  feito  discípulo  de  Lúcifer. 
Muitas  particularidades  se  contão  de  condiscípulos  que  vio  levados  em 
corpo,  e  alma  ao  inferno,  e  outras  cousas  que  lhe  puderão  bem  abrir  os 
nlhos,  se  não  estivera  de  todo  cego.  Em  fim  fez  seu  escrito  á  vontade 
de  quv^m  liio  pedio,  e  despedido  foi-se  buscar  melhor  escola.  Todos  os 
que  escrevem  dizem  que  residio  nesta  das  covas  tempo  de  sete  annos. 


PARTICU!.AR  DO  RKI.NO  DE  PORiniAÍ.  189 

e  que  erão  junto  a  Toledo.  A  dilação  de  tantos  annos  se  me  faz  dura  de 
crer  pêra  cm  animo  qne  só  tinha  por  mira  vicio  e  gosto.  Caminhou  di- 
reito a  Paris,  enlrou  nos  estudos,  e  aulas  da  Medicina,  e  mostrou  logo 
tal  agudeza  nos  autos  da  sciencia,  e  tal  mão  em  algumas  curas  de  im- 
portância, que  antes  do  tempo  foi  havido  por  digno  do  gráo  que  pre- 
tendia. Enlão  se  começou  a  entregar  a  todo  vicio  á  rédea  solta,  servin- 
do-se  das  más  artes  humas  vezes  pêra  ser  mais  máo,  e  outras  pêra  es- 
panto, c  entrelimento  seu,  e  de  amigos,  obrando  cousas  que  parecião 
exceder  as  forças  da  natureza.  Assi  andava  na  boca  das  gentes  estimado, 
e  envejado :  e  por  estremo  contente,  e  igualmente  esquecido  de  si.  Em 
tal  abismo  de  enganos,  e  misei'ias  vivia,  quando  o  Senhor  foi  servido 
pôr  nelle  os  olhos  de  sua  Divina  misericórdia  por  hum  novo,  e  estranho 
modo,  como  veremos  no  Ca[titulo  seguinte. 

CAPITULO  XIV 

Da  milagrosa  conversão  do  Santo  Frei  Gil,  c  conto  (ornou  o  liabilo 
de  S.  DoDiiuijos,  e  fez  profissão. 

Estava  Gd  Rodrigues  hum  dia  em  seu  estudo,  e  sobre  os  livros  da 
infernal  sciencia,  descuidado  de  toda  cousa  que  lhe  podia  dar  pena.  Eis 
que  subitamente  se  lhe  põem  diante  hum  homem  armado,  e  a  cavallo, 
e  brandindo-Ihe  huma  lança  nos  olhos  com  braveza,  dizia:  Muda  a  vida 
homem,  muda  a  vida.  Assombrou-se  Gil  Rodrigues,  e  sobresaltou-sc 
multo,  arguindo-lhe  a  consciência,  (como  acontece),  n'aquelle  tempo  muitas 
cousas  juntas,  e  todas  más,  e  tristes,  e  medonhas  (*):  mas  tornado  sobre 
si,  e  tirando  pola  carne  a  liberdade,  e  soltura  da  vida,  pai"ecia-ihe  a  vi- 
são sonho,  e  o  fazer  caso  delia  pusillanimidade,  lembrando-liie  que  o 
cavallo,  e  cavalleiro  lhe  parecerão  de  pedra,  e  despois  se  resolverão  em 
ar.  Assi  fói  continuando  em  seus  desatinos.  Mas  não  se  esquecia  o  bom 
Pastor  da  ovelha  perdida.  Passados  poucos  dias  torna  o  cavalleiro  sobre 
elle  na  mesma  postura,  e  habito,  mas  com  termo,  e  sembrante  mais  te- 
meroso :  e  arremessando-lhe  o  cavallo  como  que  o  queria  levar  debaixo 
dos  pés,  e  pondo-lhe  a  lança  nos  peitos  :  Muda,  disse,  muda,  muda  ho- 
mem a  vida,  se  não  morto  es.  Ficou  Gil  Rodrigues  como  fora  de  si,  de 
attonito,  e  confuso,  e  respondeo  com  pavor,  quasi  como  outro  Paulo.  Si 

(.)  Sap.  17.     . 


190  LlVnO  II  DA  HISTORIA  DK  S.  DOMINGOS 

fnrei  Senhor  (').  E  peço-vos  mo  peidovis  não  obedecer  da  priínoica  vez. 
lí-to  dezia,  e  junUimonte  sí3  sinlia  ferir  da  mão  do  cnvalleiro  com  lanta 
força  nos  peilos  que  lhe  parecia  íicava  atravessado  da  lança :  e  ohrigado 
da  dor  deu  hum  grande  grito  chamando  poios  criados  que  Ih.e  acudis- 
sem. Achoii-se  com  menos  mal  do  que  cuidava,  porque  não  apareceo  no 
lugar  do  encontro  mais  que  huma  riscadura  leve,  e  superficial,  e  com 
tudo  determinou  logo  não  esperar  terceira  amoeslação,  e  mandou  fazer 
prestes  pêra  caminhar,  e  fogir  de  Paiií.  E  foi  bom  principio  da  promessa 
feita,  mudar  terra;  ao  que  ajuntou,  dar  fogo  a  quantos  livros  tinha  da 
maldita  magica :  e  feitos  em  cinza  poz-se  a  caminho.  Caminhava  desa- 
brido, e  malenconico :  dava-lhe  occasião  o  ver-se  só  pêra  imaginar :  en- 
trava em  si,  lançaNa  os  oliios  poios  annos  que  tinha  vivido :  não  achava 
hora  izenta  de  culpa  :  quando  chegava  aos  que  empregara  nas  covas  de 
Toledo,  c  ao  que  d'elles  lhe  resultava,  perdia  o  gosto  de  tudo  de  corri- 
do, e  confuso,  e  abafando  de  pesar.  Assi  sendo  d"antes  amigo  de  travar 
praticas  de  passatempo  com  os  criados,  e  com  os  que  encontrava  iiumas 
vezes  com  graças,  e  ironias,  outras  com  derivações,  e  agudezas,  como 
era  de  condição  bem  assombrado,  c  jovial :  agora  hia  mudo,  carregado, 
e  abori'ido  de  sorte,  que  os  criados  pasmavão  não  podendo  atinar  com 
a  causa  de  tal  novidade.  Chegava  á  pousada,  não  tocava  em  nenhuma 
cousa  de  quanto  lhe  punhão  na  meza :  fazião-llie  a  cama,  ou  não  se  dei- 
tava, ou  não  tomava  sono.  E  ou  que  fossem  isto  já  princípios  de  peniten- 
cia que  obravão  tristeza  pêra  verdadeira  saúde (**):  ou  que  redundassem 
no  corpo,  (como  he  ordinário),  as  feridas  que  seus  cuidados  lhe  fazião  na 
alma ;  cahio  em  huma  febre  malenconich  de  quartans.  que  lhe  davão 
m-uito  trabalho :  e  com  tudo  nunca  se  quiz  ciirar,  nem  perder  jornada 
até  entrar  em  Espanlia.  Entrado  nella,  e  por  Casiella,  írouxe-o  a  estrada 
que  seguia  â  cidade  de  Palencia.  Weste  lugar  passou  a  caso  polo  sitio 
em  que  os  Frades  de  S.  Domingos  andavão  actualmente  rompendo  pa- 
redes em  humas  casas  velhas,  e  levantando  outras  pêra  comporem  seu 
Convenlinho :  vio  ferver  a  fibra,  e  n'ella  amassando  cal,  e  carregando 
pedra  cubertos  de  pó.  e  caliça  homens,  que  no  gesto,  e  no  geito  mos- 
Iravão  não  haver  nacido  pêra  tais  misteres.  Ediíicou-se,  e  compungio-se, 
não  lhe  parecendo  feio  aquelle  pó,  nem  pouco  lionrado  o  serviço,  quan- 
do lhe  soube  o  fim.  Logo  fez  conta  de  não  passar  dali.  No  dia  seguinte 

f.)  Act.  9. 

(••]  i.  Cur.  7. 


PARTICULAR  DO  IxEINO  DE  PORTUGAL  191 

tornou  ao  sitio,  buscou  o  Prior.  Acliou  homem  cspirilual,  e  sábio :  fala- 
rão (Je  vagar,  doa-lhe  conta  de  si.  Aqui  fez  a  primeira  reíracção,  ou  abju- 
ração de  seus  desconcertos,  e  vida  passada  por  confissão  vocal. 

Ficou  Gil  Rodrigues  algum  tanto  aliviado  cora  este  bom  principio.  ííe 
medicamento  Divino  huma  boa  confissão,  lie  porta,  e  entrada  pcra  todo 
bem,  e  que  mais  desabafa,  e  assossega  buma  consciência,  que  comera  a 
sintir-sc,  ea  sintir.  Foi  cobrando  alento,  e  estendendo  o  animo  a  cousas 
maiores.  Tornou  ao  Prior,  e  propoz-lhe  com  pahvras  cheias  de  humilda- 
do, e  conbecim.ento  próprio,  se  haveria  n'aquel!a  sania  casa  misericórdia, 
e  lugar  pêra  hum  peccador  desaforado,  e  facinoroso,  e  que  o  fora  toda  a 
vida  contra  sua  alma,  e  contra  Deos :  mas  siníindo  d'alguma  maneira,  e 
muito  desejoso  de  desejar  tornar  sobre  si(*),  e  salvar-se  de  seus  naufrágios, 
por  meio  da  muita  santidade  que  alli  via.  Não  devião  ser  ouvidas  com. 
olhos  enxutos  tais  palavras,  e  tal  requerimento,  onde  havia  verdadeira  ca- 
ridade. Foi  respondido  não  só  com  bom  despacho,  mas  abraçado,  e  admi- 
tido com  amor,  e  alegria  do  Prior,  e  dos  mais  Pieligiosos.  E  não  tardou 
mais  em  vestir  o  santo  habito,  que  em  quanto  escreveo  aos  seus,  c  dospe- 
dio  os  criados.  Neste  passo  teve  o  primeiro  merecimento  da  fogida  do 
mundo :  porque  levantarão  pranto,  como  se  o  deixarão  cníerrado  :  mas 
^elle  apercebendo  a  paciência  pei"a  maiores  contrastes,  enganava-a  neste, 
com  fazer  conta  que  se  via  já  livre  de  huma  parte  não  pequena  dos  ca- 
tiveiros do  mundo,  polo  muito  que  obrigão  os  bons  criados. 

Desapegado  d'elles.  e  encerrado  com  os  seus  Frades,  e  novos  com- 
panheiros começou  Frei  Gil  hum  novo  género  de  vida,  novo  pêra  elle, 
mas  ordinário  nelles.  Pagava  a  boa  vida  passada,  de  dia  com  espreita 
abstinência,  c  com  trabalhar  na  obra  do  Convento  como  o  mais  vil  jor- 
naleiro :  de  noite  com  ásperas  disciplinas,  e  oração,  furtando  pêra  ella 
muitas  horas  ao  sono,  e  ao  descanço  corporal.  E  parecendo-lhe  tudo 
pouco,  a  comparação  do  muito  a  que  se  achava  obrigacip,  vingava-sc  de 
si,  não  só  como  algoz,  mas  como  enemigo :  carregando-se  a  mão  com 
castigos  particulares,  em  pago  das  particulariílades  com  que  servira,  e 
deleitara  os  siníidos :  polas  casas  grandes,  e  bem  armadas  huma  cella 
erma,  pouco  maior  que  huma  sepultura :  polas  sedas  do  leito,  e  olandas 
da  cama  hum  tecido  seco  de  varas,  ou  de  canas,  sem  m.ais  abrigo  que 
huma  manta  de  saco.  Contra  as  sobogidões  dos  banquetes,  pf.dL^ço  de 
pão  grosseiro,  e  negro :  e  pêra  os  poder  passar,  humas  folhas  de  couve 

(•)  i*s.  118. 


192  nvp.o  11  DA  iiiSTor.iA  de  s,  domingos 

cozidas  cm  agoa,  esal,  (que  esla  era  a  vida  d"aqueiies  primeiros  Padres 
de  Paleucia),  quando  alcançavão  liuma  gota  de  azeite,  era  caso  raro,  ou 
festa  grande.  As  alegrias  dos  saráos  de  França,  as  graças,  e  galantarias 
de  corte,  em  que  era  único,  pagava  com  luim  silencio  inviolável,  ainda 
nas  cousas  muito  necessárias.  Os  apetites  de  grandeza,  c  reputação,  com 
andar  na  cozinha,  lavar  a  louça,  curar  dos  enfermos  nos  mais  abatidos, 
o  humildes  serviços  da  Religião.  Finalmente  em  vingança  das  sensuali- 
dades, que  tão  sem  freio  apetecera,  cingio-se  liuma  cinía  de  ferro  sobre 
as  carnes  fechada  com  cadeado :  e  pêra  se  privar  pêra  sempre  de  ioda 
esperança  de  alivio,  lançada  a  chave  no  rio.  Âssi  procedia  com  grande 
edificação  dos  Religiosos,  até  que  pareceo  tem{)0,  ('que  ainda  então  não 
era  certo,  e  preciso  como  agora)  de  lhe  fazerem  sua  profissão.  Mas  esta, 
como  a  fez,  não  criou  nellc  mais  liberdade  da  vida,  nem  mais  alivio  no 
modo  d'ella :  começou  a  ser  noviço  pêra  si,  como  o  fora  aíé  então  pêra 
a  Religião :  agora  voluntário,  como  d"antes  por  oljrigação. 

CAPÍTULO  XV 

Sae  Frei  Gil  de  Paícnr.ia.  mudado  pcra  S(!r,l<irc)}}.  Coniinúa  suas pcniíen- 
cias.  Conlão-se  as  persiguiçocus,  e  assoinòruinentos  'jue  padeceo  do  De- 
mónio, ale  uhançar  o  cserilo  que  lhe  tinha  dado. 

Neste  rigor  perseverou  até  que  foi  mandado  pcra  Portugal.  Não  nos 
consta  com  que  occasião.  Parece  que  devia  ser  instancia  de  parentes  com 
dom  Frei  Sueiro,  a  cujo  cargo  estavão  as  cousas  da  Província:  porque 
a  vontade  em  Frei  Gil  era  aífeito  totalmente  morto.  Muito  nos  importa- 
ra achar  ao  justo  o  aiuio  em  quò  se  passou  a  Portugal,  tirado  por  con- 
jeitura,  como  atrás  fizemos  (*)  pcra  alcançar  o  principio  da  casa  nova  des- 
ta villa :  se  foi  logo  dcspois  da  profissão,  i'esponde-nos  ao  fim  do  anno 
de  i220,  ou  entrada  de  1:22 i.  Mas  como  todos  os  autores  dizem  que 
veio  logo  pêra  Santarém,  onde  neste  tempo  não  havia  ainda  Convento, 
he  força  dizermos  que  se  deteve  emPalencia,tres  ou  quatro  annos.  Achou 
Frei  Gil  a  casa  de  Santarém  floiida  de  gente  santa,  recreação  grande 
pêra  sua  alma,  confusão  nova  por  outra  parte,  qiiando  lhe  lembrava  o 
penhor  cuc  tinha  em  podei"  do  enemigo,  pacto  infelice,  e  penhor  de  san- 
gue, escrito,  c  assinado  do  sua  mão,  feito,  e  dado  com  muito  gosto. 

{.)  L.  2,  c   2. 


PAivrrcr;  ah  do  rkino  de  portlt.aí,  ÍD:] 

E  nTío  liavia  ronsa  que  o  consolasse,  pareceu Jo-llio  que  íawío  l!io  dura- 
va a  triste  vassalagem,  e  que  se  condeiiinara,  quanto  tardava  em  o  res- 
gatar. Aqui  era  o  desíázcr-se  em  lagrimas  diante  do  Saníissinio  Sacra- 
mento, não  cessando  noite,  e  dia.  Aqui  o  apertar  com  novas  peniten- 
cias, c  bradar  por  misericórdia.  Mas  julgando  que  não  era,  neíii  mere- 
cia ser  ouvido,   tornava-se  á  Virgem  mTú,  emparo.  e  remédio  de  pecca- 
dores,  ancora  sagrada,  e  ultimo  refugio  de  aílligidos.  Pedia-llie  (}ue  va- 
lesse  ao  fillio  adoptivo  diante  do  natural:  que  não  poderia  negar  nada 
a  tão  boa  Mãi,  inda  que  fosse  por  tão  mão  íilho.  Havia  na  casa  do  Ca- 
pitulo huma  devota  imagem  da  Senhora.  A  este  lugar  o  trazia  a  confian- 
ça que  só  nella  tiiiha,   pranteava,   carpia-se  sem  descançar,  queixava-sc, 
de  si,  e  confessava  que  não  era  merecedor  de  perdão,  e  logo  se  da\a 
a  pena  lavando  as  costas  em  sangue,  que  conaa  em  rios  até  regar  as 
bgeas.  Muito  tempo  continuou  neste  exercício  sem  mais  consolação,  nem 
orvalho  piadoso  do  Ceo,  que  huma  interior  confiança  que  se  perseverasse, 
lhe  não  faltaria  despacho,  conforme  á  Divina  promessa :  Onmis,  qni  pc- 
íit,  accipit;  etqviqiicerit,  mué-^íí  (*).  Mas  esta  lhe  procurava  roubar  o  ene- 
migo,  atemoriznndo-o  com  figuras  medonhas,  e  fantasmas  infernais.  Es- 
tava huma  noite  cheio  de  fervor  orando:  eis  que  subitamente  lhe  abre 
a  terra  até  o  centro,  e  poem-lhe  diante  dos  olhos  todo  o  Inferno  junto 
(vista  horrenda)  sem  ficar  cousa  que  pudesse  mover  asco,  e  pavor,  q.;e 
Ufa  não  representasse,  as  misérias,  os  tormentos,  as  disformes  posturas 
dos  padecentes,  as  cruezas,  as  visagens,  a  fealdade  dos  atonnenladores ; 
trabalhando  persuadil-o  que  por  muito  que  orasse,  aquelle  horror  sem- 
piterno havia  de  ser  sua  eterna  morada.  Outra  vez  tomando  a  figura  de 
hum  monstruoso  Centauro  armado  de  arco,  c  frechas,  embebia  huma 
no  arco  corn  tanta  força,  que  lhe  fazia  juntar  as  pontas,  e  apontava  em 
Frei  Gil,  (que  de  medo  estava  sem  sangue)  com  geito,  e  ferocidade  tal, 
que  lhe  parecia  não  podia  escapar  de  atravessado.  Yalia-so  nestes  pas- 
sos das  armas  de  fiel  Christão,   do  nome  poderosissimo  de  Jesu,  e  sua 
Cruz  santíssima.  Fogia  o  enemigo :  mas  elle  não  daixava  de  ficar  pei"- 
tm'bado,  e  descontente,  attribuindo  a  seus  peccados  tanto  poder,  e  ta- 
manhas affrontas:   e  todavia  como  bom  soldado  tornava  sem  desmaiar 
a  seu  requerimento,  e  oração.  Sintia-se  Satanás  de  o  ver  perseverante 
nas  penitencias,  e  animoso  na  oração:  arremete  hum  dia  a  eiie  í';ito  hu- 
ma fea,  e  disforme  tartaruga,  de  cabeça,  e  boca  tão  desmesurada,  que 

[•*)  Luc.  II. 

vni..  I.  i.'! 


IQ4  LlVr.O  ÍI  DA  1I!ST0Í\ÍA  DE  S.  DOI^ÍLNT.CS 

prometia  podel-o  cngiilir :  foi  grande  o  medo,  dando-se  por  oiiíro  Jonas 
no  ventre  da  Balea.  Mas  alcaiiraiido  já  pouco  por  estes  meios,  porque 
a  continuação  tinha  criado  em  Frei  Gil  animo  p^ra  desprezar  suas  fan- 
tasmas, como  cocos  de  miníno,  determinou-se  em  guerra  descuberta. 
Deixa  figuras  aílieias,  entra  em  campo  com  sua  própria,  mais  temerosa 
por  mais  coníiecida ;  c  porque  com  ella  refrescava  a  memoria  das  pro- 
messas, c  culpas  passadas  ao  delinquente.  Começava  a  despregar  aquella 
lingoa  serpentina  em  mil  afrontas,  chamando-I!ie  traidor,  e  ingrato,  fe- 
mentido, e  perjiiro :  ingrato  a  quantas  Itoas  venturas  lhe  grangeara  de 
gostos,  e  delicias :  traidor  a  quanta  honra  uic  dera  entre  Príncipes,  o 
grandes  da  terra.  Dava  bramidos  como  Lião,  fulminava  feros,  e  ])lasfe- 
mias  com  gestos,  e  carrancas,  que  a  si  mesmo  se  excedia  de  feio,  e  abo- 
minável. Mente,  dezia,  faísca,  e  perjura  comigo  quanto  quizeres.  Que  isso 
mesmo  te  lia  de  fazer  a  guerra,  porque  ninguém  Vi  crea,  a  ninguém  en- 
ganes. Chora,  trabalha,  cança,  derrama  esse  sangue  aleivoso.  Meu  has 
de  ser  chorando,  e  padecendo :  melhor  te  fora  rindo,  e  folgando.  Afnr- 
mava  Frei  Gil  quando  despois  de  muito  velho  com  santa  singeleza  con- 
tava estas  cousas,  que  tanto  lhe  custava  de  medo,  e  tormento  cada  hu- 
ma  d'elb.s,  que  muito  menos  sintira  ver-se  levar  a  justiçar  em  huma 
praça  publica,  não  hum.a  só  vez,  se  não  muitas.  E  todavia  aturou  este 
martyrio,  e  tentações  com  valor,  e  constância  sete  annos  inteiros,  con- 
tados do  dia  que  foi  recebido  ao  habito.  No  cabo  d'elies  estando  huma 
noite  na  sua  ordinária  estancia  do  Capitulo,  c  no  sou  costumado,  e  con- 
tinuo requerimento  com  a  sagrada  Virgem,  c  pedindo-lhe  remédio  com 
palavras  sabidas  do  intimo  da  alma,  e  cheias  do  lastima,  e  desconsola- 
ção, forão  sobre  elle  maiitos  Demónios  juntos,  e  com  maior  violência 
que  nunca  pretenderão  metel-o  em  desesperação  :  e  misturando  ameaças 
com  vitupérios  dezião,  que  a  seu  pesar,  nem  Ceo,  nem  torra  havia  já 
de  lograr.  Porque  o  Ceo  tinha  fechado,  e  feito  de  bronze,  polo  escrito 
de  obrigação  que  com  sua  mão,  e  com  seu  sangue  fizera  ao  Inferno ;  o 
a  terra  com  os  bens,  e  gostos  d"ella  perdia,  polo  querer  quebrar  como 
falsario:  eassi  não  tinha  que  fazer,  senão  desesperar,  e  arrebentar,  pois 
tinha  perdido  tudo  sem  remédio.  Estava  o  penitente  prostrado  com  o 
peito,  e  face  em  terra,  cheio  de  medo  dos  exércitos  de  Satanás  que  o 
assombravão :  mas  multo  mais  do  que  sua  consciência  o  accusava,  vendo 
nella  mil  testemunlios  do  que  ouvia  aos  enemigos :  e  isto  sintia  mais 
que  todas  suas  goltrançaiias.  Levantava  o  rosto,   c  olhos  á  Virgem,  e 


PAHT.CLW.Ai;  DO   ISKINO   DP,   1'0!!TLT.AÍ.  IQ.j 

com  grande  dor,  c  liumilílíide  dczia :  Virgem  bendilissima,  ollcs  dÍ7X'm 
verdade,  eti  o  confesso,  no  qne  toca  a  minhas  gravíssimas  culpas  :  e  não 
nego  que  também  mereço  por  cilas  o  que  dizem.  Mas  nunca  confessarei 
que  pesão  mais  meus  peccados,  que  os  merecimentos  d'aqueile  precioso 
sangue  que  meu  bom  Jesu  Filho  de  Djos,  e  vosso,  por  mi  derramou  na 
('.ruz.  E  como  isso  seja  verdade,  nunca  desesperarei  de  sua  Divina  mi- 
sericórdia, inda  que  toda  a  vida  padeça,  e  viva  milhares  de  annos.  E 
vós  Virgem  fonte  de  piedade  não  consintais  que  se  alegrem  vossos  enc- 
migos,  levando  vitoria  d 'este  pobre  fdho  vosso,  que  em  vós  fia,  e  por 
vós  chama  tantos  annos  ha.  Mostrai  Senhora,  que  são  falsos,  e  mintiro- 
sos  contra  vós,  e  contra  vosso  Filho,  e  lambem  contra  mi.  Mostrai  coni 
(ílles  que  sois  Mãi  de  Deos:  mostrai  comigo  que  o  sois  de  desempara- 
dos,  acudindo-me  com  alguma  consolação,  e  misericórdia  d'essas  mãos 
poderosas  neste  ahysmo  de  misérias.  Assi  dezia,  do  peso  da  tribulação 
quasi  desmaiado:  e  os  enemigos  como  em  batalha  rota  atroavão  tudo 
com  grita,  com  braveza,  e  estrondo  infernal.  Neste  ponto  so  sintio  so- 
corrido de  poder  invisivel.  Porque  vio  fogir  de  repente  os  exercidos  de 
Lúcifer,  como  quem  com  medo  dava  as  cosias  a  maior  força :  soando 
d"entre  elles  huma  voz  horrenda  que  claramente  dezia  :  Toma  com  a  mi- 
nha maldição,  e  de  todo  o  Inferno.  Nunca  o  houveras,  se  me  não  íizera 
força  quem  está  n'esse  altar:  ella  me  faz  guerra,  ella  me  vence.  E  Ií-^í^') 
notou  que  vinha  decendo  do  alto  da  capella,  da  parte  onde  a  vazavji  hu- 
ma al)ertura,  pola  qual  os  vira  ir  íogindo  de  tropel,  linm  pedaço  de  lu'!- 
gaminho,  que  pêra  sinal  do  que  era,  e  de  quem  o  ganliara,  e  dei-.i  a 
vitoria,  se  veio  como  posto  á  mão  offerecer,  e  assentar  aos  pés  da  Se- 
nhora sobre  o  altar:  era  este  o  mesmo  lugar  por  onde  cahia  a  corda  do 
sino  do  Convento,  e  até  nossa  idade'  se  conservou  no  mesmo  estado,  e 
servivço,  e  justo  fora  que  se  não  perdera  o  sinal  d'clle,  pêra  memoria  de 
caso  ião  raro,  inda  que  se  escusou  o  uso.  :n7io  ha  em  nenhuma  lingoa- 
gem  termos  !)astantes  a  significar  o  gozo,  e  alegria  que  o  atribulado  Frei 
Gil  sintio  em  sua  alma,  quando  vio,  e  reconheceo  a  carta  do  infame  con- 
certo restituída  a  snas  mãos.  Torna-se  a  lançar  por  terra,  e  com  a  boca 
muda,  e  pegada  nas  lageas,  e  os  olhos  feitos  duas  fontes,  deixou-se  es- 
tar grande  espaço  em  sinal  das  graças  que  desejava  dar :  e  offerecia  por 
cilas  lagrimas  e  silencio,  porque  não  achava  razões  que  respondessem 
ao  que  sintia.  Em  sua  alma  se  prometia  por  cativo  á  Mãi,  e  como  res- 
gatado por  seo  meio :  promelia-se  por  escravo  ao  Filho,  puis  mostrara 


|fM>  LIVRO  II  DA  IIISTOr.íA  DE  S.   DOMINGOíi 

em  o  tivríir  qnc  não  engeitava  siia  contrição,  e  i^enitencia  :  c  cheio  do 
prazer  oderecia  não  havev  de  ter  hora  nem  momento  cn^  toda  a  Tida, 
(jLie  empregasse  em  outra  cousa  mais,  que  serviço  da  Mãi,  e  amor  do 
Filho.  Mas  aqui  he  de  considerar  a  alteza  das  misericórdias,  e  riquezas 
de  Deos,  que  quando  faz  mercês,  excede,  e  sobrepoja  não  só  os  mere- 
cJmentO(S,  mí\s  até  os  desejos,  e  imaginação  do  liomem.  Por  sete  aunos, 
que  Frei  Gil  chorou,  lhe  pagou  com  outros  sete  de  perpétuos  mimos, 
c  favores:  e  particularmente  o  acompanhou  em  todos  com  hum.-iluz  da 
gloria,  que  como  tocha  acesa  lhe  andava,  e  aparecia  sempre  diante  dos 
olhos,  como  em  penhor  de  patrocinio  certo  contra  as  siladas  do  íiLrcrno, 
(juc  tanto  o  tinha  afadigado,  e  nunca  despois  deixou  de  o  perseguir  em 
toda  occasião  que  pode.  E  este  socorro  foi  parte  pêra  lhe  vir  a  perder 
o  medo  de  maneira,  que  não  só  o  desprezava,  mas  era  espanto,  e  terror 
a  todos  os  cspiritos  Infernííis.  Assi  veio  a  cobrar  liuma  grande  paz,  o 
quietação  d"alma,  mas  não  que  fosse  parte  pêra  deixar  os  rigores,  e  pe- 
nitencias costumadas :  antes  a&  executava  agora  com  mais  vontade,  quan- 
to via,  e  tinha  por  certo,  poio  que  lho  tinhão  aproveitado,  que  as  podia 
íazer  com  maior  confiança. 

CAPÍTULO  XYÍ 

Parle  Frei  Gil  pe-ra  França  a  esfiuhtr  Theolocjin.  Conla-se  a  sanfa  vida 
que  fazia  em  Paris  estudando,  e  como  reccbeo  o  rjrdo  cie  Doutor  pola 
Universidade,  e  foi  declarado  pela  Ordem  por  Mestre,  e  Leitor  de  Theo- 
logia. 

Ajuntou  Frei  Gil  á  austeridade  de  vida  que  seguia,  pêra  mais  mere- 
cimento com  Deos,  e  com  a  Ordem,  dar-se  ao  estudo  da  sanía  Theolo- 
gia :  no  qual  se  empregou  com  tanto  cuidado,  que  fora  das  horas  que 
dava  a  Deos,  em  nenhuma  outra  cousa  se  ocupava  dias,  e  noites.  Como 
lhe  sobejava  habilidade,  e  estava  fundado  na  Filosofia  do  tempo  que  es- 
tudara a  Medicina,  tinha  bastante  mestre  cm  seu  engenho,  o  Aula  na 
cella.  Mas  porque  nenhuma  sciencia  se  aprende  fundadamente  se  não  em 
escolas,  onde  a  conferencia,  e  emulação  põem  esporas,  e  aviva  os  enge- 
nhos, foi-lhe  mandado  poio  Provincial  que  fosse  residir,  e  graduar-se  era 
Paris.  Poz-se  ao  caminho  por  obediência,  que  n'outro  tempo  tomara  por 
n-osto:  e  tal  era  a  dilTerença  em  tudo.  Então  rico,  e  acompanhado  de 


PARTICrr.AR  DO  REINO  DE  PORTrOÂL  197 

recamara,  e  criados,  e  engolfado  em  cuidados  de  agradar  ao  mundo : 
agora  pobre,  e  a  pé,  e  todo  embebido  em  lazer  alguma  cousa  por  ser- 
viço d'aqueí!e  Senhor  que  o  livrara  d^elíes,  e  d'elle. 

Ao  entrar  por  França,  de  crer  he,  que  achando-se  em  parles  que 
íVoulro  tempo  ihe  forão  occasião  de  olTensas  do  Criador,  também  agora 
o  serião  de  novas  lagrimas,  imitando  o  que  tinha  ouvido  dos  grandes 
penitentes.  Que  se  só  o  canto  úc  hum  gallo  fazia  arrebentar  em  pranto 
o  Principe  dos  Apóstolos,  que  farião  cm  Frei  Gil  os  encontros  que  a 
cada  passo  tinha  de  muitas  cousas  juntas,  em  cada  huma  das  quais  re- 
conhecia não  só  oíTensas  ordinárias,  mas  aqiiella  maior  de  todas  da  vil 
capitulação  que  fizera  com  os  enemigos  de  Deos  contra  o  mesmo  Deos. 
Chorava  de  novo,  mas  juntamente  engrandecia  as  misericórdias  do  Se- 
nhor que  o  livi^ara,  e  assi  crescia  com  elle  em  graça,  e  merecimentos 
(qwe  esta  interesse  rendera  peccados  bem  chorados.)  iMas  se  chorava  nas 
cidades,  alegrava-se  nos  campos,  servindo-lhe  qualquer  flor  que  via,  ou 
passarinho  que  ouvia,  de  se  arrebatar  em  louvores  Divinos.  E  como  tra- 
zia grandes  luzes  na  slma  oommunicadas  daquella,  que  lhe  ficou  sempre 
diante  tios  olhos,  como  atrás  dissemos,  andava  em  peri^elus  união  com 
Deos,  amando-o,  dcsejando-o,  e  enlevando-se  nelle  de  sorte,  rpc  tudo  o 
que  não  era  Deos  Ih;^  aborrecia,  e  dava  pena.  Estado  bemavonturado,  e 
(jual  devo  ser  o  de  todo  Religioso,  que  pois  buscamos  a  hum  Senhor 
que  se  não  (juer  servido  do  meias,  erro  será  não  ll^i  darmos  o  coração 
inieiro,  pêra  alcançarmos  a  boa  ventura  daquelles  qui  tolo  cords  cxqui- 
runt  caini").  Assi  adiantou  muito  em  espirito,  e  perfeição  nesta  jornada 
de  França,  e  quasi  ao  mesmo  passo  do  que  perdeo  na  primeira. 

Achou  Frei  Gil  em  Paris  ao  Santo  Frei  Jordão  Mestre  Geral  da  Or- 
dem, que  tendo  noticia  de  quem  era,  e  recommendação  de  sua  pessoa 
por  cai'la  dei  Rei  dom  Sancho  lhe  fez  muito  gasalhado,  e  honra,  e  maior 
despois  que  o  tratou,  e  foi  conhecendo  o  gosto,  e  continuação  com  que 
se  empregava  no  estudo  primeiro  da  Religião  que  he  a  viilude,  e  no 
segundo  que  he  o  cuidado  de  aproveitar  nas  letras.  Aqui  teve  por  com- 
panheiro das  Aulas,  e  da  cella  ao  grande  Humberto,  que  despois  veio 
a  ser  Geral  da  Ordem.  Este  varão  se  lhe  affeiçoou  muito,  e  notando  com 
attenção  sua  vida  no  tempo  que  estiverão  juntos,  nos  deixou  noticia  em 
seus  escritos  de,  algumas  cousas  delia.  AíTirma  c{ue  sua  occupação  con- 
tinua era  orar,  ou  osiudar,  oU  servir  enfermos:  com  tal  constância  que 

(.)  Ps.  118. 


108  LIVIIO  II  DA  IHSTOUÍA  DE  S.  DOMINGOS 

oní  todo  O  (lia,,  c  cm  toda  a  roda  do  aiino,  o  cm  quanto  estudou  cm  Pa- 
ris, nunca  o  vio  huma  só  hora  ocioso.  Com  tão  grande  testemunho  pu- 
déramos escusar  tudo  o  mais  que  ha  de  sua  residência  em  França,  ^ias 
como  esta  liisíoria  se  escreve  pêra  exemplo,  dontrina  dos  que  de  pre- 
sente vivemos,  e  dos  que  hão  de  vir  traz  nós,   parece  obrigação  dizer- 
mos mais  alguma  cousa.  Tinha  Frei  Gil  particular  gosto  de  servir  na 
enfermaria :  no  qual  officio  fazia  nmitos  ollicios.  Porque  hmnas  vezes 
visitava  os  enfermos  como  Medico  que  era  consumado,  e  logo  lançava 
lóra  Hipócrates,  e  Galeno  pêra  lhes  levantar  os  ânimos  ao  Ceo(*).  Dezia 
([ue  Deos  criara  o  Medico,  e  a  medirina,  bom  ei'a  ouvir  o  Medico,  e  acei- 
tar o  medicamento;  mas  coníiai*  só  em  Di^os,  que  podia  mais  que  a  na- 
tureza. Outras  vezes  como  se  fora  o  mais  humilde  irmãozinho  de  casa 
de  noviços,  punha  as  mãos  em  tudo  o  que  convinha  ao  doente  sem  pejo, 
nem  asco,  nem  cerimonia,  se  não  com  huma  vontade  tão  prompta,  e 
alegre,  que  se  lhes  trasluzia  em  tudo  hum  coração  inílammado  em  ver- 
dadeira caridade.  Também  quando  convinha  acudia  como  Santo.  Porque 
<'omo  a  doença  -não  he  outra  cousa  senão  descomposição  de  humores : 
e  estes  descompostos  trocão,  e  pervertem  a  l»oa  complexão  natural  dos 
doentes ;  daqui  vem  serem  muitos  homens  na  doença  penosos,  descon- 
leiitadiços,  e  máos  de  servir.  Pêra  este  ponto  era  Frei  Gil  dotado  de 
huma  certa  gi-aça  natural,  que  por  mais  descomposto  que  achasse  o  en- 
fermo, elle  o  tornava  de  colérico,  macio,  e  brando:  de  maiencolizado 
alegre,  de  impaciente  sofírido,  de  desmaiado,  animoso,  e  cheio  de  esfor- 
ço. O  que  servindo  muito  pêra  a  saúde  corporal,  não  aproveitava  menos 
pêra  a  espiritual.  E  assi  como  trazia  todo  o  Convento  edificado,  e  obri- 
gado com  esta  arte,  não  o  edificava  menos  com  a  que  usava  comsigo, 
quando  era  enfermo.  Porque  de  nenhuma  maneira  podia  acabar  consigo 
ser  pesado,  nem  dar  pena  a  nenliuma  criatura.  Se  lhe  davão  de  comer, 
se  Ih  o  não  davão,  se  vinha  cedo,  ou  tarde,  se  mal,  ou  bem  guisado,  se 
frio,  ou  requentado,  ou  escaldando,  a  tudo  fazia  o  mesmo  rosto,  e  sem- 
pre bom  rosto.  E  o  que  mais  espanta  lie,  que  sendo  singular  o  Medico, 
entrando  a  vel-o  os  de  casa,  estava  por  tudo  o  que  delle  ordenavão  sem 
faltar  palavra,  cativando  por  humildade  o  entendimento  próprio  ao  pa- 
recer alheio,  e  ás  vozes  pouco  acertado.  Mas  não  era  menos  proveitoso 
medico  pêra  as  almas  dos  sãos,  do  que  o  era  pêra  os  corpos,  c  condi- 
ção dos  doentes.  Como  durava  a  memoria  do  tempo  em  que  o  virão 

(•)  Etd.  38. 


PARTICULAR   DO   REINO    DE  PORTIT.AL  i99 

naquclia  Uiiivert.idado  celebrado  xMcdico,  e  autor  do  grandes  maravilhas, 
i)iiscava-o  muita  gente  persuailida,  que  devia  ter  muito  de  Deos  quem 
alcançara  d'elle  poder  trocar  a  gloria  de  andar  nas  l)ocas  da  genie,  c 
nas  azas  da  fama,  por  huma  túnica  de  Iam,  e  hum  habito  remendado. 
Vinhão  huns  com  as  almas  chagadas  de  gs-aveza  de  peccados,  chagas  po- 
dres, e  ao  parecer  incuráveis :  nestes  como  tão  esprimentado  em  feridas 
próprias  fazia  milagrosas  curas.  Nenhum  so  lhe  hia  sem  remédio.  Aqui 
polo  muito  que  amava  a  Deos,  empregava  toda  sua  sufíjciencia  ajudando 
além  da  Fisica  dos  bons  conselhos,  com  a  de  suas  orações.  Na  mesma 
forma  aliviava  e  mandava  consolado  todo  outro  allligido,  quahpier  que 
fosse  o  trabalho :  ou  em  perda  de  fazenda,  ou  de  eolado,  de  honra,  ou 
de  fama.  Tacs  cousas  sabia  dizer,  tal  virtude  punha  Deos  no  que  dezia, 
que  ninguém  sahia  de  suas  mãos  sem  remédio.  E  se  o  chegavão  a  tra- 
tar por  curiosidade,  como  acontecia,  alguns  mancebos,  ou  começados  a 
enganar  das  vaidades  do  mundo,  ou  enfrascados  já  nellas,  assi  os  fazia 
temer,  e  entrar  em  si,  que  davão  volta  em  redondo  na  vida,  e  nos  pen- 
samentos. Assi  aquirio  muita  gente  nobre  em  França  pêra  a  Religião :  e 
o  mesmo  fez  despois  em  Portugal.  E  podemos  bern  dizer  por  elle,  quo 
na  arte  de  encantador  ficou  o  mesmo  que  d"ai!tes  era,  trocados  somente 
os  fins.  Porque,  como  se  não  perdera  a  eíTicacia,  e  embainientos  d"ella, 
forçava  com  suavidade  os  corações,  obrigava,  rendia,  e  encaminhava  os 
homens  pêra  Deos,  furtava-os  ao  inferno.  Esta  graça  conta  d*elle  o  Santo 
Geral  ILimberlo,  que  tinha  também  com  noviços,  quando  salteados  de 
qualquer  desgosto,  ou  tentação,  vacillavão,  ou  tornavão  atrás  nos  santos 
propósitos.  Bastava  meterem-Ihos  nas  mãos,  pêra  sairem  d'ellas  cheios 
de  valor,  e  constância.  Mas  erão  já  eífeiíos  sobrenaturais,  não  humanos, 
nem  ordinários.  Porque  nos  poucos  annos  que  se  deteve  cm  França  pas- 
sou tanto  adiante  na  virtude,  e  perfeição,  que  todo  seu  trato  era  com 
Deos.  e  sua  conversação  no  Geo,  nem  fazia  cousa  que  lá  não  negoceasse 
primeiro.  E  testemunha  o  mesmo  Padre  Humberto,  que  lhe  acontecia 
muitas  vezes  arrebatar-se  subitamente,  e  ficar  alienado  de  todos  os  siii- 
tidos  de  tal  sorte,  que  entrando  algumas  pessoas  onde  eslava,  de  nenhu- 
ma dava  fé,  e  a  cabo  de  grande  espaço,  que  tornava  em  si,  então  lhes 
falava,  e  as  saudava,  como  se  naquella  liora  chegarão.  Communicava-lhe  o 
Rei  da  gloria  aqueíle  divino  cheiro  dos  âmbares,  e  agoas  de  Angeles  das 
boticas  celestiais,  não  era  mais  em  sua  mão,  corria  traz  elle :  e  perdia 
o  gosto,  e  o  conhecimento  de  tudo  o  da  terra.  Porém  isto,  que  então 


iOi)  I.IVIU)  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

era  sj  huma  faisca  de  fogo  Di\iiio,  dtíspois  andando  o  tempo  passou  a 
eííeiíos  tão  extraordinários,  e  espantosos,  que  roubando-lbe  de  todo  uso 
os  sintido,  6  os  membros  do  peso  natural,  arrebatavão  aijucile  corpo 
poios  ares,  como  adiante  veremos. 

AjudaJa  assi  dos  divinos  favores  a  destreza  natural  do  bom  engenbo 
não  foi  necessário  gastar  muitos  annos  pêra  morecer  a  lionra  do  grão : 
e  porque  el-Rei  dom  Sanclio  tinba  mandado  prover  as  despesas  deite, 
Fiví  Gil  a  recebeo  publica  na  Universidade  com  festas,  e  aplauso:  e  lo- 
go outra  particular  na  Ordem,  sendo  nomeado  por  Leitor,  e  Mestre  em 
Tlieologia  pêra  a  Província  de  Espanba.  Isto  allirmão  todos  os  que  es- 
crevem dellef).  O  que  nós  achamos  apontado  no  livro,  que  cbamão  rí/í/í 
Fratrum  da  nossa  Ordem,  he  o  seguinte : 

Hcec  Fraler  yEgkliiis  de  Fortiigalliu  scripsif,  vir  simptex  drccins,  et 
timens  Deurn^  iii  stfculo  imujiius  in  artibus  et  Phisica,  et  in  Tlteoloijia  in 
Online  Dcctor. 

CAPITULO  XVIÍ 

Torna  Fiei  Gil  pêra  Espanha,  Conla-se  o  rjue  llie  siicecdeo  no  caminho:  e 
como  começou  a  pregar  em  Portugal.  Refere-se  hum  estranho  artificio 
cem  que  o  demónio  o  tentou,  e  como  se  houce  nelle. 

Sendo  Frei  Gil  nomeado  por  Mestre,  e  Leitor  de  Espanha,  foi-lbe  manda- 
do que  logo  se  viesse  á  Província  exercitar  seu  talento.  Achamos  posto  em 
memoria  um  caso  que  llie  succedeo  n"esta  volta  que  fez  pêra  Espanha,  digno 
de  ser  sabido,  pêra  vermos  qual  era  n"este  tempo  sua  confiança  em  Deos,  e  o 
fruito,  e  poder  de  sua  oração.  Caminhava  por  terras  da  comarca  de  Poitiers : 
e  tinha  andado  lium  dia  desde  polamanhãa  até  quasi  meio  dia:  e  como  suas 
penitencias  o  trazião  descarnado,  e  fraco,  comc-çou  a  sinlir  o  trabalho,  e 
desejava  descançar.  Vendo  porto  luinia  aldeã,  disse  ao  companheiro,  que 
seria  bern,  irem-se  a  ella,  e  pedindo  de  caminho  alguma  esmoUa  come- 
rião  hum  bocado,  e  repousarião  um  pouco.  O  companheiro  que  era  ro- 
busto, e  trazia  mais  alento,  resistia,  e  dezia  que  não  era  bom  conselho 
parar  era  lugar  pobre,  porque  estava  certo  acharem  n'elle  tão  pouco  re- 
médio, c{ue  íicarião  impossibUiísdos  pêra  seguirem  despois  o  caminho, 

(.)  L.  í.  til.  de  virt.  oiat. 


PARTICri.AP,  DO  REINO  DE  PORTUGAL  201 

de  fome,  e  fraqueza.  Que  o  melhor  era  apertar  o  passo,  e  chegar  a  lu- 
gar onde  S3  pudessem  refazer  bastaníeinente.  Acoihia-se  Frei  Gil  aos 
poderes  Divinos,  dizia-lhe  que  rraquella  Irislc  aldeã  podia  Deos  acudir- 
llies  com  muito  mais  do  que  havião  mister.  Que  não  duvidava,  respondia 
o  companheiro,  das  grandezas  de  Deos,  mas  que  íaes  milagres  não  cos- 
tumava fazer,  nem  erão  pêra  esperar.  Cheio  então  de  conliança  o  Santo, 
hora,  irmão,  disse,  não  duvidois,  nem  temais,  que  eu  vos  affirmo,  que 
aqui  nos  ha  de  prover  hoje  meu  Senhor  Jesu  Christo  com  grande 
largueza.  Ião  n"esla  consulta,  quando  appareceo  hum  tropel  de  gente  de 
cavado,  e  de  pé,  que  trazia  o  mesmo  caminho:  e  chegando  a  elles,  fo- 
rão  saudados  de  liuma  dona,  que  no  geito,  e  lugar  que  trazia,  parecia 
Senhora  de  toda  a  companhia,  e  reconhecendo  que  erão  Frades  Domi- 
nicos  fez  parar  os  seus,  e  deteve-se  com  Frei  Gil  praticando  um  espaço, 
qaasi  julgando  de  sua  presença,  e  aspeito  quem  devia  ser  dentro  na 
alma.  Ao  despedir  chamou  por  lium  fdho  moço  que  trazia  consigo,  e 
disse-lhe,  que  segundo  a  hora  que  era,  aquelles  servos  de  Deos  devião 
vir  necessitados,  que  por  reverencia  do  mesmo  Senhor  os  acompanhasse 
até  o  lugar  que  apparecia,  e  lhes  desse  muito  bem  de  jantar.  O  moço 
se  apeou  como  bom  cortezão,  e  se  foi  com  elles  alegrementi%  e  não  se 
contentou  com  menos  que  banqiíeteal-os  com  tudo  o  que  havia  na  aldeã, 
e  servil-os  de  mestresala,  pondo  e  tirando  pratos,  e  lanrando-lhe  o  vi- 
nho nos  copos,  com  tão  boa  sombra  de  gesto,  e  palavras,  que  não  só  os 
convidava  a  comer,  mas  obrigava,  e  forçava.  Aqui  llies  disse,  como  sua 
rnãi  era  senhora  do  castello  de  S.  Maxencio,  e  particularmente  devota 
da  Ordem  de  S.  Domingos.  Acabado  o  jantar,  disse  o  Santo  pcra  seu 
companheiro:  laçamos,  irmão,  oração  a  nosso  Senhor,  e  á  VÍ!'gem  por 
quem  usou  com  nosco  de  tanta  caridade,  e  peramos-lhe  que  ponha  seus 
olhos  n*este  gentil  mancebo,  que  com  tanta  graça,  e  cortezia  nos  agasa- 
lhou, e  o  faça  ainda  hum  grande  servo  seu.  E  postos  os  joelhos  em 
terra  rezarão  o  Hymno :  Veni  Crealor  Spiritus,  e  a  Satce  com  suas  ora- 
ções. E  despedidos  tornarão  ao  caminho.  Contão  as  historias,  que  passa- 
dos ires  annos,  vindo  o  Saído  Frei  Gil  pêra  hum  Capitulo  geral,  que  se 
fazia  em  l^aris,  passou  pola  cidade  dePoitiers,  e  pousando  no  Convento, 
que  nella  temos,  achou  este  moço  feito  frade,  e  já  píofesso,  e  muito 
contente,  e  consolado  de  o  ser :  o  qual  despois  do  lhe  tomar  a  benção, 
se  lhe  deu  a  conhecer,  leiíibrando-lhe  o  encontro,  e  jaiítar  da  aldeã,  e 
a  oração  com  que  lho  pagara,  e  confessando  que  a  ella  devia  a  grande 


202  LIVHO  II  DA  HISTORIA  DF.  S.   DOMINGOS 

misericórdia  que  Deos  com  clle  usara  em  tirar  do  mundo,  e  Irazol-o  á 
Religião. 

Caminhava  o  Santo  a  grandes  jornadas,  quanto  sua  fraqueza  lhe  dava 
lugar,  com  desejo  de  se  ver  na  pátria,  e  poder  fazer  algum  serviço 
âqnelle  Senhor,  a  quem  tão  olirigado  se  conhecia,  empregando-se  em 
aproveitar  a  seus  próximos,  e  naiuraes.  Chegado  a  Portugal  não  tomou 
dias  de  repouso  pêra  si,  nem  pêra  dar  aos  amigos,  e  parentes:  mas 
começou  logo  a  trabalhar  em  seu  m.inisterio  insinando,  doutrinando,  e 
pregando,  do  púlpito,  no  Confi^ssionario,  e  polas  ruas :  nas  cidades,  c 
villas  grandes,  nos  lugares  menores,  e  nas  aldeãs,  não  deixando  passar 
occasião  nenhuma  de  santo  interesse,  pêra  poder  dizer  a  seu  tempo  que 
tornava  o  talento,  se  não  dobrado,  ao  menos  aproveitado,  e  com  usura. 
Não  nos  consta  de  lugar  pai-ticular  era  que  fizesse  officio  de  Leitor,  cons- 
tando jinslaníeraoníe  do  mais  por  memorias  do  Reino,  e  de  fora  d'elle  (*). 
A  el  Rei  dom  Sancho  pregou  com  valor,  e  liberdade,  porque  começava 
haver  queixas  de  grandes  desordens,  que  não  remedeava :  e  crecendo 
estas  polo  tempo  adiante,  creceo  lambem  n"elle  o  zelo  Apostólico  pêra 
lhe  dizer  verdades,  e  sofrer  por  ellas  injurias,  como  em  seu  lugar  ve- 
remos. Ao  povo  pregava  com  bom  successo,  porque  era  seguido,  e  bus- 
cado :  e  buscada  por  seu  meio  a  Religião.  Mas  lambem  pregava  pêra  si, 
e  pêra  lodos  os  professores  da  obrigação  do  púlpito,  advirf.indo-os  com 
energia,  e  sentenças  graves,  que  mal  usavão  d'elle,  e  em  vão  usavão,  e 
se  maia  vão,  se  desejando  aproveitar  a  outrem,  não  começassem  por  si. 
Porque  era  condição  Farisaica  palavras  do  Ceo,  e  obras  da  terra :  e  pêra 
quem  quizessc  fazer  Santos,  era  meio  caminho  andado  ser  primeiro 
Santo.  E  esta  doutrhia  pi'0curava  dar  estampada  em  si,  lendo  por  pão 
quotidiano  aquelie  antigo  rigor  de  vida  do  tempo  de  sua  conversão. 

Mas  ardia  em  fogos  de  enveja,  e  ódio  novo  o  velho  dragão  do  Infer- 
no, não  levando  em  paciência,  que  quem  lhe  havia  saido  das  unhas,  lhe 
fizesse  agora  guerra,  tornado  de  obediência  vassallo,  enemigo  publico. 
De  tiros  descubertos  não  fiava  já,  porque  só  tirava  d"elles  ficar  despre- 
zado, e  com  vergonha :  buscou  traça  nova,  e  muito  sua.  Era  Frei  Gil 
morador  no  Convento  de  Coimbra  em  companhia  do  Prior  Frei  Domin- 
gos Pais,  que  o  estimava,  e  amava,  porque  sabia  o  que  tinha  em  tal  pes- 
soa. Faz-se  o  enemigo  encontradisso  com  elle  emmascarado,  e  desmin- 
tido,  (pêra  não  deixar  nunca  de  se  parecer  consigo,  e  sempre  mintir),  na 

(•)  Do  lombo  da  Sé  de  Braga. 


PARTICULAR  DO  RKINO  DK  PORTUGAL  203 

figura  iIl'  liuin  íleligioso  de  casa,  cliaaiado  Frei  Julião  Francez ;  e  come- 
ça a  euieiíder  com  olle,  primeiro  com  graças,  e  rizinhos,  fazendo  zom- 
baria de  sua  composição,  e  modéstia.  I)esviava-se  Frei  Gil  não  esqu(;cido 
de  si :  m:is  a^liava-o  logo  outra  vez  diante,  e  passando  a  termos  mais 
pesados  cliamava-lhe  de  hypocriía,  reíalsado,  que  andava  ei;ganando  o 
mundo  feito  Beato  de  homem  perdido,  que  merecia  castigado,  não  visto, 
nem  sofrido  de  ninguém.  Tinha  Frei  Gil  feito  calos  de  sofrimento ;  e 
como  trazia  a  Deos  sempre  presente  em  sua  alma,  tirava  ganho  da  per- 
siguição,  e  alegrando-se  com  a  afronta  julgava  por  ministro  de  Deos 
aquelle  Frade,  lembrado  do  termo  com  que  hum  Rei  Santo,  e  também 
perseguido  se  houve  nos  atrevimentos  de  hum  vassallo:  desejava  imi- 
tal-o,  e  fazia  conta  que  Deos  movia  arpiella  iingoa  pêra  prova  de  sua 
paciência.  Purém  islo  que  lhe  servia  a  elle  de  esforço,  c  armas,  levan- 
tava incêndio  de  nova  ira  em  Lúcifer.  Reina  inda  hoje  n'eHe  a  mesma 
soberba,  com  que  se  qiiiz  pôr  homjjro  por  homijro,  Ci)m  o  Altissimo : 
como  sofrerá  desarmar  em  vão  cum  hum  bichinho  da  terra  ?  Buscou  de 
novo  ao  Santo  huma  manham,  determinado  a  não  largar  o  campo  sem 
o  deixar  vencido,  ou  polo  menos  descomposto :  tantos  opróbrios  lhe  dis- 
se, disfarçado  com  a  mesma  mascara,  tantos  desatinos  fez,  que  não  fal- 
tou mais  que  por-lhe  as  mãos  ;  (não  teve  licença  pêra  tarito.)  Foi  tenta- 
ção em  todo  estremo  apertada,  e  tanto  mais  perigosa,  quanto  menos  en- 
tendida ;  via  o  Santo,  c  conhecia  o  rosto,  e  voz  do  Frade,  não  podia  cair 
na  silada.  Primeiro  valeo-se  de  silencio,  como  costumava,  e  passava,  ou 
retirava-se:  não  bastando,  porque  logo  tornava  a  dar  com  elle.  pedio- 
Ihe  com  humildade,  e  sem  soltar  [)a!avra  de  paixão,  nem  es.andalo,  que 
o  deixasse  viver,  que  o  não  quizesse  maltratar  sem  causa,  e  deo-Ihe  as 
costas.  Mas  quando  d"esla  vez  se  vio  li\re,  resolvco-se  em  mudar  na 
mesma  hora  terra,  e  casa:  não  arriscar  a  paciência  a  outro  eiiconíro,  sintindo 
como  Santo  igualmente,  ou  mais,  a  descompostura  que  imaginava  do 
Frade,  que  a  afronta  própria.  Vai-se  dijx^ito  á  celia  do  Prior,  [)ede-lhe 
licença.  Alíerou-se  o  Prior  com  a  novidade,  e  com  a  pressa,  fez  instancia 
por  s.iber  a  causa :  descobrio-lhe  o  Santo  tudo  o  que  era  passado  de 
dias  atrás  entre  ellii.  e  Fiei  Julião,  c  o  que  naquella  hora  lhe  acabava 
de  ouvir,  acrecentando  por  remate,  que  tinha  por  melhor  conselho  ca- 
recer da  consolação  com  que  vivia  em  sua  companhia,  e  n'aquelle  Con- 
vento, que  não  dar  occasião  a  hum  Religioso,  que  sempre  tivera  cm  boa 
conta  de  se  inquietar  a  si,  e  a  elle.  Não  sabia  o  Prelado  que  conselho 


204  LIVRO  II  DA  lIlSTOniA  DK  S.   nO.MIXGOS 

tomasse,  conhecia  a  Fr.  Julião  por  virtuoso,  e  sisudo;  e  se  não  fora  a 
Frei  Gil,  a  nenhuma  outra  pessoa  crera  o  que  d'eile  ouvia.  Todavia 
mandou-o  vir  diante  de  si,  e  sendo  presente  mandou-lhe  que  fizesse  a 
vénia  ao  Santo,  {\\e  cerimonia  santa  da  Ordem,  com  que  se  humilha,  quem 
oíTendeo,  ao  olfendido,  em  sinal  de  arrependimento,  e  satisfação),  acre- 
centando  que  lhe  pedisse  perdão  do  máo  termo,  com  que  o  tratara,  e  es- 
candalizara aquella  mauham.  Obedeceo  o  Frade  quanto  á  vénia,  e  ale- 
vantado  i)or  Frei  Gil,  que  também  se  lançou  no  chão,  pedio  licença  pcra 
falar,  e  aífirmou,  e  jurou  solemnemente,  que  des  que  amanhecera  o  dia 
até  a  hora  presente,  não  falara  elle  Frei  Julião  pouco  nem  muito,  nem 
mal  nem  bem  com  o  Santo:  e  pedia  a  Deos  não  permitisse  chegal-o  a 
tanta  íaita  de  juizo,  que  alguma  hora  perdesse  o  respeito  a  quem  em  seu 
conceito  era  merecedor  de  toda  veneração,  como  Frei  Gil.  Então  creceo 
mais  a  admiração  em  todos  três,  e  sem  serem  necessários  muitos  dis- 
cursos assentarão  que  foi-a  lanço  do  Demónio,  que  pertendera  com  Imm 
só  tiro  fazer  muitas  maldades :  humas  publicas  tolhendo  o  bem  que  o 
Santo  fazia  a  muitas  almas  na  cidade  com  sua  doutrina:  outras  particu- 
lares, metendo-o  em  paixão,  ou  desabrindo-o  com  seu  irmão.  Mas  em 
ambos  ficou  enganado  o  Pai  da  maldade :  porque  com  o  irmão  ficou  mais 
unido  em  amor,  e  caridade  fraternal :  e  pêra  continuar  com  seus  ser- 
mões, e  insino  do  povo  quietamente  se  animou  muito,  fazendo  conta  que 
de  algum  fruito  erão,  pois  desagradavão  ao  enemigo  de  todo  bem.  Este 
successo  põem  o  Padre  Castilho  em  annos  atrás  (*) :  nós  seguimos 
nelle  a  Frei  André  de  Resende  que  vio  as  memorias  antigas  em  suas 
fontes  f  *). 

CAPITULO  XVIII 

Como  foi  eleito  em  ■Provincial  o  Santo  Frei  Gil,  c  du  cuidado,  e  intt-ireza 
com  que  procedeo  no  cargo.  Passa  d  ilha  de  Malhorca  celebrar  Capitulo 
Provincial.  Dá- se  couta  da  tempestade  que  teve  no  mar,  e  das  affrontas 
que  por  rezão  delia  lhe  fizerão:  e  como  cessou  por  sua  oração. 

Não  durou  muito  esta  quietação  ao  Santo  Frei  Gil.  Porque  foleceu  na 
mesma  conjunção  o  Santo  Provincial  dom  Frei  Sueiro,  e  juntando-se  os 
Padres  da  Província  pêra  lhe  darem  successor,  (não  ficou  em  memoria 

(-)  Castilho  p.  1.1.  2.  rap.  72. 

l-.)  Ue.sende  l.  1.  c.  8.  in  vila  B.  .Egidij. 


pAnricrLAi;  do  uei.no  dk  i»ohtl(jal  205 

onde  foi  a  junla),  e  achando-sc  rrdla  S.  Frei  Gil,  som  precederem  votos, 
nem  escriitinios,  foi  de  consintimento  universal  acclamado  Provincial.  E 
d'aqui  se  pode  fazer  jaizo  qual  era  já  a  opinião,  quo  por  toda  Espanha 
corria  de  sua  santidade:  do  que  dá  bom  teslimunho  o  Padre  Frei  Fer- 
nando de  Castilho  falando  desta  eleirão  por  estas  palavras :  }'  lo.^  Frau- 
les  de  Cuslilla  Je  hizieron  su  Provincial  en  la  primeva  occasion,  por  tener- 
la  ellos  para  ser  santos  con  el  exemplo  de  un  Paslor  santo  (*).  Advirtimos 
de  passo  ao  Leitor  que  não  lhe  faça  duvida,  sendo  esta  eleição  de  toda 
a  Província,  e  a  primeira  delia,  em  que  de  força  se  havião  de  juntar  lo- 
dos os  votos,  que  n'ella  se  comprendião,  dizer  este  Padre  que  a  fizerão 
os  Frades  de  Castella.  Usou  como  melhor  Orador,  que  historiador,  da 
figura  Retórica  de  tomar  a  parte  polo  todo,  como  faz  em  outros  casos: 
e  não  posso  crer  que  quizesse  seguir  o  costume  de  alguns  escritores  de 
fora,  que  por  darem  tudo  o  que  podem  a  sens  naturais,  se  aproveitão 
d'ella  a  pesar  das  leis  do  officio.  O  anuo  preciso,  em  quo  foi  eleito  S, 
Frei  Gil,  não  consta  por  nenlium  dos  quo  d"olle  escrevem.  Mas  pola  conta 
que  levamos  dos  doze  annos,  quo  dom  Frei  Sueiro  viveo  Provincial  vem 
a  cair  no  de  1233,  que  era  já  o  decimo  do  reinado  dei  l\e\  dom  Sancho 
Capelo. 

Mostrou  o  Santo  Frei  Gil  aos  seus  eleitores,  c  a  toda  a  Província 
que  não  fora  engano,  nem  favor  mal  considerado  a  honra,  que  lhe  fize- 
rão. Porque  onde  o  cargo  costuma  a  mamTestar  faltas,  e  fraquezas  nos 
eleitos,  que  muitas  vezes,  ou  cobre  a  sagacidade  da  ambição  ou  o  esta- 
rem longe  das  occasiões  de  governo,  n'ell3  descobrio  maior  suííiciencia, 
e  mais  merecimentos.  Era  diligente,  trabalhador,  amigo  da  virtude,  e 
honrador  dos  virtuosos :  mansíssimo  com  todos ;  austero,  e  rigoroso  só 
consigo,  e  em  fim  mais  Pai  que  Prelado  em  tado,  e  como  tal  amado  dos 
súbditos.  E  podemos  dizer  que  não  sintio  a  Província  mudança  de  go- 
verno, mais  que  no  nome.  Assi  foi  crecendo  por  toda  a  parte  em  Con- 
ventos, e  reputação,  e  foi  grande  o  numero  do3  que  se  fundarão  por 
Castella,  e  Aragão,  e  Catalunha.  E  teverão  principio  em  seu  tempo  em 
Portugal  o  do  Porto,  e  o  de  Lisboa,  como  se  verá  adiante  cm  seus  par- 
ticulares títulos.  Mas  he  de  considerar,  que  havendo  no  disíricto  de  sua 
o])i'igação  duzentas  legoas  de  caminho,  que  tan.tas  se  conlão  de  Lisboa 
a  Barcelona  por  estrada  direita,  he  cousa  certa,  que  em  todo  o  tempo 
d  "este  primeiro  cargo  sempre  visitou  a  pé,  (raro  exemplo,  e  digno  que  o 

[•}  Caslilho  p.  1.  1.  '2.  ca[».  7o. 


^Oí)  I.IVI'.()  II  DA  HISTORIA  DK  S.   DOMINGOS 

viramos  ciiljiçailo,  e  segiiidG  cm  nossa  idade :  mostranão  os  Prelados 
que  só  amor  de  Deos  os  move  a  aceitar  as  lionras,  sem  nos  ficar  escrú- 
pulo de  os  crermos.)  Ajuntemos  a  isto,  (porque  não  cuide  nin^^uem  que 
pediriios  mi'.agres),  que  acodia  cada  anno  aos  Capítulos  gerais,  c  não  man- 
dava Minguem  cm  seu  lugar,  nem  mudava  estilo  no  caminhar :  sondo 
hum  em  Paris,  orJro  em  Bohjnha:  e  sobre  tudo  levava  sobre  as  carnes  huma 
cinta  de  ferro  ai)erta'la  :  (jue  não  se  pode  imaginai  mais  tormentosa  com- 
panhia pêra  huma  hora  de  andar  a  pé,  quanto  mais  dias,  e  annos.  Bem 
havia  mister  soccorro  do  Ceo,  c  não  Ilie  faltava.  Donde  nacia  offereuer- 
se  animosamente  a  todo  trabalho  por  dilatar,  c  ilhistrar  a  Província, 
como  veremos  no  caso  seguinte. 

He  a  ilha  de  Pvíalliorca  huma,  e  a  maior  das  (]ue  são  conhecidas  en- 
tro a  cosia  do  Espanha,  e  Africa,  com  o  nome  de  Baleares  no  mar  Me- 
diterrâneo. Havia  nclla  hum  principio  de  Convento  da  Ordem,  des  do 
tempo  que  cl  Rei  dom  Jayme  de  Aragão  a  ganhara,  poucos  annos  havia, 
aos  luouros.  Pareceo  á  Pi-ovincia  que  seria  acertado,  pêra  ficar  no  esta- 
do que  convinha  pêra  cm  terra  povoada  de  novo,  celebrar-se  n"ella  hum 
{Capitulo  Provincial.  Não  refusou  o  tra])aiho  o  valeroso  Prelado :  quando 
foi  tempo,  achou-se  em  Barcelona  pêra  (Kali  passar.  Estava  de  partida 
huma  núo  do  mercadores  pêra  a  ilha,  cmliarcou-so  n'ella  com  alguns  Ca- 
pitulares repartindo  outros  por  outras  emharcaçíjes.  Levantadas  ancoras 
ao  deferir  das  velas  soou  hum  espirro  entre  os  passageiros.  Foi  cousa 
de  espanto  a  alteração,  e  pavor  que  entrou  Juntamente  em  mercantes, 
e  mercadores,  por  huma  cousa  tão  natural,  e  ordinária,  como  he  hum 
espirro.  No  mesmo  tempo  mandão  que  se  tomem  as  velas,  c  se  larguem 
de  novo  ns  ancoras,  dizendo  que  com  tal  agouro  nenhum  sizudo  se  des- 
abrigava de  ter!'a.  Acudio  o  Santo,  mais  i)ola  honra  de  Deos,  que  pola 
necessidade  do  navegar,  e  conieçou  a  reprovar  a  determinação,  com  re- 
zões  santas  fundadas  em  Fé,  v.  Cliristandade,  c  no  credito  íla  providen- 
cia Divina,  f[ue  rege,  e  governa  todas  as  cousas :  c  dependendo  todas 
d'clia.  nenliuma  tem  força  nem  poder  cm  si,  se  não  quanto  cila  lhe  com- 
munica,  c  concede,  como  suprema,  e  ultima  causa  que  hc  de  tudo.  Don- 
de naco  que  he  vaidaíle,  e  fabula  dizer,  que  ha  agouro,  ou  hora  mingoa- 
da  em  tempo,  caso,  animal,  nome  ou  succeso.  E  se  alguma  hora  se  vem 
effeitos  qiic  acreditem  as  cousas,  he  permissão  de  Deos  pêra  castigo  do 
pcccndos,  e  dos  que  n"ellas  altentão  com  mais  cuidado,  do  que  devem  á 
Fé  (]ue  professão.  So]eitarão-se  os  liomens  á  boa  doutrina,  e  obrigou-os 


rAinicrLAP,  do  uf-ino  dl:  i>ortl(;al  207 

mais  o  venlo  que  era  do  viagem,  e  em  jornaila  breve,  que  não  lie  mais  de 
sessenta  legoas  de  travessa.  Sairão  em  popa. 

Este  vicio  de  oliiar  em  agouros  lie  ordinário  em  muita  gente,  e  foi 
particular  da  antiga  Gentilidade,  e  por  tal  trabalha  o  enemigo  de  o  introdu- 
zir, e  sustentar  entre  os  Cbristãos,  pêra  d"alii  passar  a  danos  maiores.  Mas 
o  successo  do  espirro,  que  estes  tomarão  em  agouro  avesso,  foi  nos  tem- 
pos muito  antigos  recebido  em  contrario  sintido,  como  o  aponta  o  Prín- 
cipe dos  Poetas  em  Penélope  (*),  de  quem  conta  que  se  alegrou,  ouvindo 
lium  espirro,  quando  Ulysses  começou  a  executar  a  vingança  de  seus  ene- 
migos,  e  que  o  houve  por  boa  estrea,  e  sinal  de  victoria.  D'onde  fica  pro- 
vado o  engano,  e  futilidade  do  agouro  pola  differença  dos  tempos,  e  opi- 
niijes.  As  historias  menos  antigas  fazem  menção  de  huma  doença  geral, 
e  tão  perniciosa,  que  o  homem  que  dava  espirro,  dava  com  elle  junta- 
mente a  vida  (**) :  e  quando  foi  aplacando,  se  hum  espirrava,  e  acertava  a 
ficar  vivo,  acudião  os  presentes  a  dar-llie  as  emboras,  como  hoje  fazemos 
sem  mais  rezão,  que  o  costume  posto  já  em  posse,  e  termos  de  corte- 
zia.  E  por  ventura  foi  deduzido  este,  e  o  agouro  dos  mareantes  do  mes- 
mo principio. 

Mas  tornando  a  nossa  historia,  cerrada  a  noite  creceo  o  vento,  en- 
grossou o  mar,  escureceo  o  Ceo,  cobrindo-se  de  nuvens,  e  quando  ama- 
nheceo,  era  tormenta  desfeita.  Eis  que  começa  a  gente  do  mar  aqueixar- 
se,  e  dar  culpas  a  quem  os  fizera  navegar.  Acodem  os  mercadores,  o 
vendo  embravecer  o  mar  cada  vez  mais  dando-se  por  perdidos,  e  per- 
dida a  fazenda,  que  estimavão  igualmente  com  as  vidas :  e  em  lugar  de 
fazerem  orações  a  Deos,  dão  em  desesperações :  tornão-se  contra  o  San- 
to, que  saliio  debaixo  a  co;isolal-os.  dizcni-lhe  mil  afrontas,  e  impropé- 
rios, lançando-lhe  toda  a  culpa  do  trabalho.  Ajuntão-se  outros  mais  da- 
nados, ou  com  o  medo,  ou  com  o  exemplo,  gritavão  que  o  lançassem  ao 
mar,  e  fosse  primeiro  afogado,  quem  fora  primeií-o  em  os  persuadir  a 
deixar  a  terra :  e  faltava  pouco  pêra  violarem  com  mãos  sacrílegas  as  ve- 
neráveis cans.  Vendo  o  Santo  a  força  do  tempo  ajudada  da  raiva,  e  des-. 
atino  dos  homens,  levantou  os  olhos  ao  Ceo,  e  pondo  toda  sua  alma,  e 
confiança  em  Deos,  disse  em  voz  alta.  Que  ho  possível,  Senhor,  que  ha- 
veis de  permitir  que  acabemos  aqui,  e  que  triunfe  o  demónio,  e  fiquem 
acreditadas  suas  mentiras?  Ah  não  seja  assi,  meu  bom  Jesu.  Acudi  Se- 

{.)  Ilonicr.  Odyss.  1.  17. 

(♦•)  Whcífas  l.']!.  1.  4.  c.  1.  n;i  M'da  de  S.  Gip^ui.  Papa. 


208      '  LlVllO  II  DA  mSTOUIA  DK  S.   DOMINGOS 

iihor,  e  socorrei  a  vossos  sorvos,  qiio  se  vós  qiiizcrdes,  Ião  obeilecido 
sois  no  mar,  como  r.a  terra,  e  em  todo  lugar  podeis  castigar,  c  dar  re- 
médio. Quiz  í)oos  mostrar  que  ouvia  a  seu  servo,  e  quiz  qiic  o  conlie- 
cessem,  c  cuíendessem  assi,  lodos  os  que  ouvirão  sua  oração.  Aplacou 
o  mar,  não  como  lie  costume,  cessando  pouco  a  pouco  o  vento,  e  ondas : 
mas  subitamente,  c  como  de  pancada  em  acabando  a  ultima  palavra  do 
Santo,  acabou  também  toda  a  lemposlade,  a  íuria  dos  ventos  ficou  cal- 
ma, somirão-so  as  serras  de  mares  que  subião  ás  nuvens,  tornou  Sol,  e 
dia  claro.  Pasmados  da  maravilha  quantos  havia  no  navio,  levantarão  as 
mãos  ao  Ceo,  e  voz  em  grita  davão  graças  ao  Senhor,  e  juntamente  ao  Santo: 
e  chamando-lhe  Santo  e  mil  vezes  Santo,  confessavão  receber  de  sua  mão  vi- 
das, não,  e  fazenda.  Os  mercadores  mais  em  particular  se  lhe  lançarão  aos 
pés,  o  iium  que  maior  parte  tinha  na  náo,  c  mais  desacatado  andara  com 
elle  de  obras,  e  palavras,  conhecido  de  sua  cislpa,  fazia  força  por  lhe  beijar 
os  pés,  pedindo-íhe  perd'io  com  lagrimas,  de  sua  ira,  e  soberba.  Não  se 
podia  o  Sauto  defender  como  verdadeiro  humilde  que  era,  a  hum  humi- 
lhado :  e  em  íim  disse-lhe,  que  o  perdoaria  com  huma  condição  igual, 
que  era,  se  elle  lambem  perdoasse  a  quem  o  tinha  offendido.  O  merca- 
dor, ou  por  não  cair  no  que  o  Santo  pretendia,  sendo  colhido  de  súbi- 
to :  ou  porque  tinha  inda  presentes  na  alma  os  medos  passados,  e  a  mor- 
te que  vira  n"olles,  não  se  atreveo  a  contradizer  o  partido.  Era  o  caso 
publico,  c  o  mais  falado  que  n'aquelles  dias  corria  em  Barcelona.  Tevera 
brigas  com  hum  parente,  e  sairá  d"ellas  com  tal  ferida  pola  cabeça,  que 
ficou  julgado  por  morto:  escapou  com  muitos  dias  de  cura,  e  com  ver 
seus  olhos  muitos  pedaços  de  casco,  que  lhe  tirarão  d"el!a.  Clomo  S3  vio  são, 
forão  exlraordinr.rias  as  diligencias  que  fez,  e  meios  que  biscou  porá  se 
vingar.  A  gente  de  seu  natural  he  mal  sofrida,  o  teimosa.  Ájuníava-se  ao 
escândalo,  e  afronta,  ser  homem  rico:  fazia  conín  de  satisfazer  por  si, 
ou  por  outrem,  c  tinha  dado  em  sua  alma  tamanho  iugar  ao  ódio,  que 
tratando  o  Bispo  de  o  quietar,  e  metendo-se  n'isso  parentes,  e  amigos, 
e  toda  a  nobreza  da  cidade,  de  nenhuma  maneira  poderão  com  elle  aca- 
bar nada.  Agora  obrigado  polo  Santo,  deixou-se  vencer,  e  deu  sua  pa- 
lavra de  perdoar  ao  conU-ario,  e  ser  seu  amigo.  E  o  Santo  ficou  cheio 
de  prazer,  porque  no  perdão  de  hum  ficou  gunliando  as  almas,  c  quie- 
tação de  ambos. 


PAiiTicrLAn  D()  r.KiNODí-:  i'0»tlt.al  200 


CAPITULO  XIX 


Do  estranho  meio  porrjne  São  frei  Gil  foi  sabedor  do  naufrágio  de  huns 
Capitulares,  que  hião  em  outro  navio.  Despacha  fíelif/iosos  pêra  Inqui- 
sidores d'algumas  cidades  de  Catalunha.  Celebra  Capilído  em  Burgos. 
Aceita-se  nelle  o  Convento  da  cidade  do  Porto.  Vem  a  Portugal.  Prega 
com  liberdade  a  el  Rei  dom  Sancho.  Recolhe-se  a  Santarém. 

Síío  as  morcOs  de  Deos  em  tndo  perfeitas.  Assi  como  deu  fim  á  lor- 
menía,  acodio  também  com  vento  prospero,  qne  brevemente  o.s  meteo 
no  porto  da  ilha.  I-^ntiou  o  Provincial  no  seu  Convento,  que  tem  nomií 
de  Nossa  Senhora,  e  S.  Miguel  da  Vitoria;  e  foi  recebido  com  espanto, 
e  alegria  de  toda  a  terra,  porque  entendião  que  de  força  o  colhera  no 
mar  a  tempestade,  e  davão  graças  a  Deos  de  o  verem  em  salvo,  sendo 
assi,  que  no  porto,  e  em  terra  fizera  muita  perda.  Pola  mesma  rezão 
estava  o  Provincial  com  grande  cuidado  dos  seus  Capitulares,  vendo 
qne  tardavão,  e  em  fim  veio  a  saber  dY'l!es  brevemente  polo  modo  se- 
guinte. Kesidia  no  Convento  da  ilha  Frei  Miguel  de  Bcnazar.  natural 
d'ella,  nacido,  e  criado  na  lei  de  Maíamede.  Vendo  a  pátria  conquis- 
tada por  el  Rei  dom  Jaime,  deixou-se  também  conquistar  da  verdr- 
de  da  Fé:- foi  recebido  ao  habito,  e  obrou  n'elle  a  gi'aça  de  sorte,  i\u>'. 
foi  hum  modello  de  virtude,  e  religião,  e  he  havido  por  Santo  c;;- 
tre  os  Padres  Aragoneses.  Como  se  esperava  Capitulo,  era  elle  sobii; 
quem  carregava  todo  o  cuidado  de  l)uscar,  e  pedir  o  necessário.  Levar.- 
tou-se  uma  manliã  de  madrugada,  despois  de  chegado  o  Provincial,  a  er.- 
tender  em  sua  obrigação:  eis  que  se  lhe  oíTercce  de  longe  huma  longa 
pi-ocissão  de  Frades  da  0)'dem  ;  apertou  o  passo  alegremente  a  encon- 
tral-os,  tendo  por  cei'to  serem  os  Capitulares,  (jue  es[)eravão:  o  dando- 
lhes  a  boa  vinda  offerecia-se  a  acompanlial-os,  e  guial-os  ao  Convento. 
Respondeo-lhe  hum  por  todos,  que  na  verdade  erão  os  Capitulares,  c 
que  pêra  aquella  casa  vinhão,  porém  que  orílenara  a  Pi-ovidencia  Divina 
outra  cousa,  mandando-os  ir  pêra  a  Celestial,  e  soberana  da  gloria,  onde 
já  descansavão  pêra  todas  as  Eternidades:  o  fora  o  meio  d"este  bem  a 
tormenta  passada,  que  abrira  o  navio,  e  ficarão  sumidos  no  abismo  das 
agoas  sem  escapar  nenhum  de  vintcsinco  que  erão.  E  isto  dito  desaí)a- 
reccrão  todos.  Foi  o  successo  de  muita  magoa  pêra  o  Proviijcial.  Sintia 

VOJ..   I.  i\ 


210  LIVRO  li  DA  HISTORIA  DH  S.  DOMINGOS 

a  perda  de  tantos  sojeitos  juntos,  que  erão  dos  mais  calificados  da  Pro- 
vincia:  e  só  lhe  temperava  a  dor  como  a  Santo,  a  Iwa  sorte,  com  que 
estava  certo  tirilião  trocado  as  ondas,  e  tempestades  da  \\ú^. 

Como  faltava  nos  Frades  perdidos  a  maior  parle  da  Província,  não 
liouve  que  esperar  mais  na  ilha.  Visitou  o  Convento,  e  fez  volta  peia 
Espanlia.  Chegando  a  eíia,  foi-líie  communicado  polo  Arcebispo  de  Tar- 
ragona  hum  Breve  (*)  que  tinha  de  tempos  atrás , do  SummoPontiíIce  Gre- 
gório Nono  dirigido  a  elle,  e  aos  bispos  seus  sulTraganeos,  e  despachado 
em  Espoleto  aos  seis  dias  do  mez  de  Maio  de  121^2,  e  começa:  Decli- 
nante iam  vnundi  vespere  ad  occasum,  etc,  A  sustancia  do  quat  era  mnn- 
dar-lhes  o  Pontifice  que  por  si,  e  por  meio  dos  Frades  Pregadores,  c 
doutras  pessoas  idóneas  fizessem  diligencia  contra  as  heregias,  e  here- 
ges. E  a  clausula  que  faz  ao  caso  traduzida  do  Breve  diz  assi: 

Exhortamos  vossa  Fraternidade,  mandando  estreitamente  com  pre- 
ceito por  palavras  Apostólicas  debaixo  de  citarão  do  Divino  juizo  escri- 
tas, que  por  vós,  poios  Frades  Pregadores,  e  outros  que  entenderdes 
serem  pêra  isso  idóneos,  inquirais  com  diligente  cuidado  se  ha  hereges, 
ou  gente  infamada  de  heregia,  etc. 

Estas  são  as  primeiras  letras  Apostólicas,  qiTe  achamos  derão  prin- 
cipio a  se  exercitar  em  Espanha  o  Santo  oflicio  da  Inquisição:  e  logo  o 
Papa  nomea  os  Frades  Pregadores  pêra  elle,  como  a  quem  pertencia 
por  direito,  e  herança  do  inventor,  e  primeiro  executor  delia,  que  foi 
nosso  glorioso  Palriarcha  S.  Domingos.  Mas  não  nos  consta  do  anno  pre- 
ciso, em  que  se  começarão  a  pôr  em  exercício,  sendo  cousa  certa  que 
foi  nos  primeiros  d"esteProvJncialaío  do  Santo  Frei  Gil,  polo  pouco  tempo 
que  viveu  dom  Frei  Sueiro  Gomez  no  cargo  despois  de  expedidas  as 
leiras.  O  certo  he,  que  na  hora  que  S.  Frei  Gil  eiiíendeo  o  mandato  do 
Pontifico,  e  foi' advir  tido  polo  Arcebispo  dos  lugares  a  que  convinlia  acu- 
dir com  Inquisidores,  nomeou  pêra  elles  sojeitos  de  letras,  e  prudência: 
e  feita  esta  diligencia  foi-se  dando  volta  á  Provinda,  e  convocou  novo 
Capitulo  pêra  o  anno  seguinte  de  1237  no  Convento  de  Burgos  na  Mon- 
tanha. 

Este  Capitulo  celebrou  o  Santo  polo  Espirito  Santo  d*este  anno :  e 
nelle  foi  aceitada  a  fundação  do  Convento  da  cidade  do  Porto  em  Por- 

;♦)  o  M.  Fr.  Fruntijco  Di;i?o.  Dum  Luiz  de  Paruino. 


PARTICLLAn  DO  P.EINO  T)V.  POÍiTí  «iAL  21! 

tugal,  sendo  pedida  polo  Bispo,  e  Caltido  por  liiima  cnría,  que  contém 
relarão  lastimosa  dos  males  que  se  padecião  n"aqnella  Diocesi  sem  haver 
.justiça,  neiíi  poder  que  os  remediasse.  He  caria  notável  pêra  se  enten- 
der o  triste  estado  do  Reino,  e  a  grande  reputarão  em  que  estava  a 
Ordem ;  porque  a  rezão,  que  dão  pêra  desejarem  Convento,  lie  parecei"- 
Ihes  que  por  orações,  e  merecimentos  dos  Religiosos,  terião  os  males 
termo.  Adiante  vai  lançada  no  titulo  deste  Convento. 

D"aqui  veio  decendo  o  Provincial  pêra  sua  Pátria  não  a  descançar  de 
tão  largos  caminlios,  mas  a  participar  dos  tra])alhos  que  nella  se  pade- 
cião, de  que  liniia  aviso  por  cartas  de  muitos,  e  ultimamente  ficara  mais 
inteirado  pola  carta  do  Bispo,  e  Cabido  do  Porto,  que  dissemos.  Pi'oc(- 
dião  os  males,  de  el  Rei  dom  Sancho  se  ter  de  todo  entregue  a  homejis 
pouco  tementes  a  Deos,  os  quais  tratando  só  de  conservar  sua  valia,  e 
adiantar  em  riqueza,  e  poder,  convertião  era  interesse  próprio  todas  as 
desordens,  e  desaforamentos,  que  se  cometião  naRepuhlica.  E  como  erão 
senhores  da  vontade  dei  Rei,  e  o  trazião  cercado  de  homens  de  sua 
manga,  c  semelliantes  a  si  na  consciência,  e  trato,  quem  se  queixava,  (se 
alguém  se  atrevia  a  isso),  ou  não  era  ouvido,  porque  estes  o  lolhião,  ou 
não  aproveitava  a  queixa,  porque  o  remédio  pendia  d "elles,  e  havia  de 
correr  por  sua  mão.  Assi  tendo  a  terra  hum  Pi'incipe  em  sua  pessoa  não 
máo,  padecia  tantos  males,  e  sem  justiças,  como  se  fora  regida  polo  mais 
cruel  tyranno  do  mundo.  E  fazia  o  estado  mais  miserável  ver  que  nas 
aparências  não  lhe  faltava  parte  nenhuma  de  bom  governador.  Era  be- 
nigno, ])rando,  pio,  religioso :  entendia  o  bem,  e  o  mal,  e  mostrava-o 
arrezoando,  e  conversando,  e  no  que  por  seu  juizo  mandava,  e  ordena- 
va. S(j  era  a  desgraça,  que  quando  chegava  á  execução,  representava 
Imm  corpo  paralítico,  cujos  membros  não  acodem  com  nenhuma  opera- 
ção aos  movimentos  da  vontade.  E  até  nas  cousas  de  seu  gosto  seguia 
a  mesma  fraqueza :  porque  não  sabia  querer,  nem  apetecer  nada  senão 
ao  modo,  e  arte  dos  validos ;  os  quais  tendo  alcançado  com  quem  o  ha- 
vião,  já  não  erão  validos,  nem  privados,  se  não  amos,  (desaforamento 
grande),  e  senhores  absolutos,  e  como  tais  procedião  em  tudo.  Esperou- 
se  que  crecendo  na  idade,  creceria  juntamente  nas  paixões,  que  em  Reis 
costumão  a  ser  vehementes  de  ira,  ódio,  amor,  e  vontade.  Porque  quando 
tomou  o  seiro,  que  foi  como  atrás  fica  dito  no  anno  de  122^»,  tinha  pouco 
mais  de  dezeseis  de  idade,  porém  erão  passados  mais  caíoiv.e,  e  a  re- 
missão estava  tão  de  assento,  que  muitos  a  julgavão  por  ajudada  com 


212  LIVUO  II  DA  lIlSTOr.IA  DE  S.   DOMINCaí 

más  aiies,  e  iifio  natural.  Donde  começarão  grandes  desconleníamcntos 
nos  Prelados,  e  nobreza  do  Reino,  que  amando  a  seu  Rei  sobre  todas 
as  cousas  da  vida  sofrião  muito  polo  não  desagradar:  e  em  fim  vendo 
(juc  se  perdia  a  terra,  e  não  havia  emenda  com  os  annos,  nem  rom  ad- 
vertências, e  cartas,  e  Núncios,  que  á  sua  instancia  Hie  despacharão  os 
Pontifices,  tomarão  huma  rigorosa  determinação,  de  que  resultou  cha- 
mar-se,  e  vir  Rei  de  fora,  como  ao  diante  veremos:  (jue  força  nos  ha  de 
ser  locar  o  successo  pêra  entendimento  da  nossa  historia.  Entre  tanto 
fazião  sou  dever  os  nossos-  Pregadores  trabalhando  abrir  os  olhos  ao  Rei, 
e  trazer  ao  caminho  da  rezão,  e  da  virtude  os  ministros.  ¥.ss  chegaado- 
o  Santo  Frei  Gil,  pareceo  a  todos  os  bem  intencionados,  que  pola  boa 
vontade,  que  el  Rei  lhe  tinha,  e  por  sua  autoridade,  c  oobreza  acabaria 
alguma  cousa  com  elle,  ou  com  os  validos :  e  por  isso  era  desejada  sua 
vinda  de  todo  estado  de  gente.  Assi  começou  a  fazer  em  publico,  e  cm 
particular  tudo  o  que  devia  a  quem  era,  e  ao  conceito,  que  d'eíle  se  li- 
nha, sem  grangear  nem  adular,  sem  pretender,  nem  tratar  mais  que  do 
l>em  publico.  Mas  foi  Deos  servido  i>or  seus  occuHos  juízos,  que  nada 
aproveitasse.  Deixou  logo  a  Corte,  por  não  parecer  que  autorizava  íís- 
sistindo,  o  que  não  podia  remediar  aconselhando.  Recolheo-sc  a  descan- 
rar  no  Convento  de  Santarém,  e  tomar  hum  pouco  de  alento  pêra  novo, 
e  maior  trabalho,  que  era  haver-se  de  achar  no  anno  seguinte  de  íT.iS 
em  Bolonha,  onde  pei^tencia  o  Capitulo  geral  futiiro.  Amava  o  Santo  Pro- 
vincial a  casa  de  Santarém,  polas  m.ercês  que  nella  recebera  do  Senhor : 
e  quanto  tempo  podia  furtar  aos  negócios,  tanto  empregava  com  Deos 
por  meio  de  alta  contemplação,  tão  descuidado  de  tudo  o  da  terra,  que 
em  qualquer  momento  que  o  deixavão,  assi  ficava  na  ceíia,  como  se  vi- 
vera nos  desertos  da  Thebayda.  Ali  era  o  remontar  sobre  todos  os  clio- 
ros  dos  Anjos:  unir-se  por  amor,  ao  abjsmo  da  soberana  Divindade: 
ali  o  pasmar  na  Magestade,  e  abrasar-se  em  dejosos  de  romper  as  pri- 
s(3cs  da  carne,  e  ficar  muitas  vezes  em  estado  que  de  todo  parecia  estar 
livre  d'ellas,  e  íresladado  já  ao  Ceo.  E  era  tal  a  suavidade,  que  nesta 
santa  occupação  adiava,  que,  quando  d'ella  saliia,  ou  era  chamado  í)era 
negócios  de  sua  obrigação,  testemunhavão  os  olhos  com  lagrimas,  e  o 
peito  com  suspiros  o  muito  que  lhe  custava  tirarem-no  d"ella.  Muitos 
casos  espantosos  lhe  succederão  nesta  matéria,  diremos  alguns  no  capi- 
tulo seguinte. 


PARTICULAR  DO  REINO  DF.  PORTIT.AL  213 


CAPITULO  XX 

Dos  grandes  cffeilos,  que  fazia  no  Santo  a  forra  do  amor  Divino,  com  di- 
versidade de  enlevamentos,  e  raptos  maraviUosos,  C-então-se  alguns.  Dá 
principio  ao  Convento  de  Lisboa. 

Costumava  o  Santo  Provinci?.!  por  sua  grande  humildade  em  meio 
das  maiores  oecupações  do  carço,  visitar  com  gosto  os  irmãos  de  casa 
lie  noviços,  fazer-llies  suas  praticas,  insinal-os,  e  animal-os.  Âchando-se 
imni  dia  rieáte  Convento  de  San  tarem  com  huns,  que  de  fresco  tinha  re- 
cebido, foi-lhes  dizendo  algum.as'Cousas,  e  em  particular  como  a  melhor 
arma,  qye  havia  coKitra  as  tentações  do  Demónio,  era  a  oração :  e  a  me- 
lhor e  msis  perfeita  oração  consistia  em  trazer  sempre  a  Deos  diante 
dos  olhos  da  alma,  louvando-o,  desejando-o,  amando-o :  que  esta  purill- 
cava  a  ahna  de  toila  a  culpa,  e  a  habilitava  pcra  passar  a  outro  grão  mais 
alto,  e  tal  que,  quem  a  elle  chegada,  e  começava  a  siníir  nesta  vida  huinas 
iuzes  da  gloria,  huns  penhores  da  eternidade,  que  exprimentados  se 
fazião  estimar  mais  que  todos  os  thesouros,  c  todos  os  Reinos  da  terra. 
ília  o  Santo  assi  discorrendo,  e  deíeitando-se  nos  bens  que  prometia,  se 
não  quando  de  repente  se  lhe  ata  a  lingoa,  perde  a  fala,  e  ílca  mudo, 
e  tão  profundamente  arrebatado,  que  es  moços,  que  não  tinhão  visto,  nem 
ouvido  cousa  semelhante,  hcarão  primeiro  pasmados,  e  suspensos:  mas 
vendo  que  não  tornava,  julgarão  que  fora  cfieito  de  velhice,  ou  de  can- 
saço: e  havendo  que  ficava  bem  adormecido,  despejarão  o  Oratório,  e 
recolherão-se.  Porém  brevemente  forão  desenganados  da  calidade  da- 
quelle  sono  com  o  caso  seguinte  succedido  na  mesma  casa. 

Entrou  huma  manhã  pola  enfermaria  a  visitar  os  doentes :  cousa  em 
que  recebia  consolação,  e  a  dava  grande.  Chegou-se  a  hum  que  pade- 
cia dores,  e  estava  impaciente  com  a  força  delias,  começou-lhe  a  dizer 
algumas  palavras  pêra  o  animar  a  soffrer,  e  soffrendo  merecer.  E  na 
verdade  trazião  todas  as  suas  huma  certa  virtude  envolta,  que  obrava 
maravilhas.  No  meio  delias  deu  o  enfermo  hum  suspiro  acompanhando-o 
com  o  nome  de  Jesu.  Foi  cousa  estranha,  que  em  lhe  soando  nas  ore- 
lhas aquelle  santo  nome,  nerdeo  a  corrente  do  que  dezia,  e  derretendo- 
se-lhe  a  alma  com  suavidade,  como  se  ouvira  huma  musica  dus  Anjos, 
dezia  cheo  de  alegria :  irmão  Frei  MarlinliO,  (assi  se  ciianiava  o  doente) 


244  I.IVRO  II  DA  HISTORIA  DF.  S.  DOMINGOS 

sabeis  como  lie  formoso,  como  lic  amável,  como  ho  doce  esse  nome  Di- 
vino? sabiiis  as  riquezas,  que  em  si  encerra?  E  repetindo-o  muitas  vezes 
levantou-sc  com  força,  como  quem  se  abalança  pêra  dar  grande  salto, 
ou  pêra  correr,  e  alcançar  alguém,  e  ajudando-se  do  bordão,  que  trazia 
na  mão.  Mas  nesta  postura  o  desemparou  a  alma  e  adianlando-se  a  fa- 
zer, o  que  o  corpo  mostrou  que  queria,  e  desejava,  e  voou  tão  longe 
que  íicarão  os  membros  como  liuma  estatua  de  mármore  privados  de 
todo  sintido,  e  movimento  humano,  encostados  ou  pendurados  sobre  o 
l)ordão:  e  tão  fixos,  e  immoveis,  que  acudindo  muitos  Padres  a  lhe  fa- 
zer força  pêra  tornar  em  si  com  empuxões,  e  aballos,  não  fazião  mais 
effeito,  que  se  o  houverão  com  hum  monte.  Residia  no  Convento  Frei  Vi- 
cente de  Lisboa,  que  fora  ]\Iedico  de  fama,  e  dos  mais  estimados  da  ca- 
sa dei  Rei  dom  Sancho,  e  o  foi  acompanhando  despois  quando  deixou 
o  Heino,  como  fica  dito.  Este  fiado  no  muito  (jue  sabia  de  Filosofia  hu- 
maíia,  e  querendo  medir  com  ella  as  grandezas  divinas,  de  nenhuma  ma- 
neira se  pej'suadia,  que  podia  haver  tal  género  de  enlevamentos.  Como 
o  Santo  ficou  no  estado,  que  temos  dito,  não  faltou  quem  folgasse  de  o 
axisar.  Veio  correndo,  vio-o,  e  não  crendo  ainda  o  que  via,  arrebatou- 
l!ie  o  bordão,  tendo  por  certo  que  viria  ao  chão,  tirado  o  animo.  Mas 
ficando  em  pé,  e  sem  mudança,  passou  o  medico  de  inci'edulo  a  cruel. 
Porque  despois  de  provar  forças  pêra  o  menear,  despois  de  lhe  tirar 
com  aspereza  poios  narizes,  buscou  huma  agulha,  com  que  lhe  picou  crua- 
mente as  mãos,  e  ultimamente,  como  se  fizera  auto  de  inquisição  pêra 
tiiar  a  lim[»o  negocio  duvidoso,  trouxe  huma  veia  acesa,  e  não  se  deu 
jior  vencido,  até  que  vio  que  nem  com  lhe  queimar  as  unhas,  e  as  pon- 
tas dos  dedos,  mostrava  sentimento,  nem  dava  acordo  de  si. 

Muito  ordinários  erão  estes  raptos  no  Santo:  e  seria  giande  leitura 
especificar  todos.  Mas  o  que  teve  em  Leiria,  vindo  de  caminho,  merece 
ser  sabiiiO  por  huma  grande  circunstancia,  que  nelle  houve  de  mais,  e  pola 
publicidade,  com  que  foi  celebrado.  Camiiihava  pêra  Coimbra,  e  acertou 
de  hzev  noite  em  Leii-ia,  em  casa  de  huma  molher  virtuosa,  e  nobre, 
que  chama  vão  de  sobrenome  Pichena.  Chegando  entrou  pêra  huma  ca- 
mará, que  lhe  tinlião  concertada,  e  assentou-se  na  borda  da  cama  pêra 
descançar  hum  pouco.  Como  seu  descanço  era  conversar  nos  Ceos,  se- 
gundo afingoagem,  evida  de  outroS.  Paulo  (*),  tudo  foi  hum  assentar-se 
o  corpo,  e  voar  a  alma  arrebatada  de  huma  extasi  veheraente,  que  le- 

(.)  Ad  IMiilip.  3. 


PAnílCULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  2 RJ 

VOU  trás  si  os  membros  até  jmito  do  telhado.  Acompanliava-o  Frei  An- 
dré Pires,  natural  de  Santarém,  que  era  novo  nestas  matérias,  e  enlrando 
no  aposento  ficou  pasmado,  parecendo-lhe,  que  via  faiitasma.  Quando  ca- 
Ijío  no  que  era,  julgou  que  seria  bem  deceí-o:  deu  aviso  á  senhora  da 
casa,  juntarão-se  os  criados,  fizerão  força,  derão-lhe  tormento  com  ba- 
lanços, e  aballos,  e  não  somente  o  não  puderão  decer,  mas  nem  leve- 
mente menear.  Soube-se  do  caso  na  visinhança,  acudio  toda,  e  passando 
íi  voz,  veo  correndo  o  lugar  inteiro  com  tanto  alvoroço,  que  não  cabendo 
nas  casas,  sobirão  poios  tellrados.  c  dcístelharão  a  camará  por  verem  a 
maravilha.  Era  alta  noite,  o  Santo  não  tornava,  uem  os  homens  se  po- 
dião  apartar  feitos  extáticos  do  que  vião:  em  fim  obrigiídos  das  horas 
do  sono  despejarão.  Passado  grande  espaço  foi  espertando,  e  tornou  ao 
primeiro  assento,  o  sabendo  do  companheiro  o  que  lhe  acontecera,  e  o 
concurso,  que  houvera,  sintido,  e  corrido  de  ser  achado  com  aquelle  santo 
ím'to  nas  mãos,  pagou-o  com  novo  trabalho,  que  foi  madrugar  de  sorte, 
que  qisando  amanheceo  tinha  feito  muito  caminho. 

Mas  porque  ao  diante  haverá  lugar  de  toi'narmos  a  dizer  mais  algu- 
ma cousa  dos  efieitos,  que  o  amor  Divino  obrava  no  Saato,  he  tempo  de 
darmos  conta  da  jornada  de  Bolonha.  E  ke  de  saber,  que  antes  de  par- 
tir de  Santarém  lhe  chegou  recado  de  ser  falecido  o  Mestre  Geral  da 
Ordem  o  Santo  Frei  Jordão  e  que  se  hsvia  de  fazer  eleição  de  Geral. 
Achou-se  o  Santo  a  tempo  com  os  mais  Provinciais  em  Bolonha  por  Pen- 
tecoste  de  láo8,  e  foi  eleito  o  Santo  Frei  Raimundo  de  Penhafort.  Des- 
ta vez  faço  contó  que  trouxe  o  Provincial  a  capa  de  nosso  glorioso  Pa- 
triarca, com  que  enriqueceo  o  seu  Convento  de  Santarém,  alcançando-a 
do  novo  Geral  seu  grande  amigo,  e  até  então  súbdito.  E  porque  não 
consta  do  anno  certo  em  que  a  houve,  sendo  cousa  certa  que  a  clle  a  de- 
vemos, também  ha  quem  diga,  que  lh"a  deu  o  Mestre  Frei  Jordão.  E  pê- 
ra concluirmos  com  o  que  mais  fez  no  tempo,  que  lhe  durou  o  tiabalho 
de  Provincial  desta  primeira  vez,  que  sérvio:  achamos  apontado  que  de 
huma  jornada  destes  Capítulos  gerais,  que  se  fazião  cada  anno,  tornan- 
do pei-a  Espanha,  nos  tirou  de  França,  (não  consta  do  anno  precisamente) 
o  grande,  c  ditoso  espirito  Frei  Bernardo  do  Morlans,  pêra  filho  de  ha- 
bito, e  gloria  do  Santarém:  de  cuja  vida,  e  morte  ao  diante  falaremos 
largo.  Pouco  tomp-o  despois,  que  foi  no  anno  de  1241  aceitou  o  Convento 
de  Lisboa,  e  a  rogo  dei  Rei  dom  Sancho  Segundo,  e  com  Licença  do  Daião, 
e  cabido  da  Sé,  que  estava  vacante,  lançou  nelle  a  primeira  pedra  hum 


:í!()  LIVHO  II  DA  IIISTOÍSIA  DE  S.  DOMINGOS 

Bispo  eslrangeiro,  como  veremos  adièiiite  no  titulo  desta  casa,  onde  per- 
Iciíie  a  ndarfio  inteira  de  sua  íundação  por  escusarmos  repitições.  O  que 
aqui  podernos  dizer  he,  (pie  [)rocuiar  el  Rei  honrar,  e  acreceníar  a  Or- 
dem em  tempo,  que  S.  Frei  G\\,  o  os  seus  Frades  andavão  afiados  contra 
sua  íVaqueza,  e  contra  a  força  de  seus  ministros :  nellc  era  obra  de  sua 
boa,  e  pia  inclinarão:  mas  nos  que  o  mandavão,  e  consintirão  no  ediíi- 
cio,  ou  obrava  a  ambição  de  agradarem  ao  povo  com  alguma  empresa 
\irtiiosa,  ou  era  maniia,  e  pretenção  de  aplacarem  por  esta  via  ao  San- 
to, e  aos  seus.  Mas  brevemente  moslrou  o  elleilo  que  em  ambas  as  cou- 
sas se  oiiganavão. 

Não  ha  clareza  nos  escritores  antigos  dos  annos  que  o  Santo  gover- 
nou a  Proviiicia  desta  primeira  vez,  nem  que  rezão  houve  pêra  deixar 
o  cargo:  só  nos  consta  por  Imma  conveniência,  que  adiante  tocaremos, 
que  na  entrada  do  anno  de  1'z't'ò  já  estava  livre  delle.  E  sem  duvida  po- 
demos crer,  que  ou  elle  pedio  absolvição,  ou  lh"a  procurarão  os  priva- 
dos' dei  íiei  d.om  Sancho,  por  abaterem  de  autoridade  hum  contrario, 
qrie  por  neiiliuma  via  podião  moUiíicar. 

CAPITULO  XXI 

Ciino  foi  decretada  a  deposição  dei  liei  dom  Sancho  do  Reino:  e  como 
III  a  intimou  em  s-ita  pessoa  o  Santo  Frei  Gil.  Contão-se  as  aljrontas,  que 
por  isso  reccbco  :  e  a  revelação,  que  tece  no  meio  d'ellas :  e  hiuna  anti- 
guidade, em  que  se  mostra  quanto  era  estimada  dei  Hei  dom  Afonso. 

Tinhão  chegado  a  tamanho  estremo  a  remissão  dei  Rei  dom  Sancho, 
e  os  excessos  dos  que  o  governavão,  que  os  Prelados,  e  nobreza  se  de- 
terminarão em  pedir  ao  Papa  mandasse  a  esto  Reino  o  Infante  dom  Af- 
fonso  seu  irmão  segundo,  que  em  França  vivia,  não  pêra  tirar  o  Reino 
a  dom  Sancho,  mas  pêra  o  governar  com  justiça,  e  melhores  conselhos 
em  sua  vida,  e  succeder  nelle  por  sua  morte  não  tendo  lilhos.  Forão 
procuradores  deste  requerimento  o  Arcebispo  de  Braga  dom  João  Egas, 
e  o  Bispo  de  Coimbi-a  domTiburcio(*),  que  sendo  mandados  por  el  Rei 
dom  Sancho  a  ou  iro  eííeito,  aceitarão  de  boa  vontade  a  jornada  pêra  ne- 
gocearem  com  maior  atfouteza,  e  mais  a  seu  salvo  o  bem  da  Pátria.  Es- 
tava era  Paris  o  infante  casado  cora  Matildis,  Condessa  de  Bolonha  era 

(•}  Duaj-le  Nunes  do  Lião  na  Cron.  do  Condo  dom  Aiirici.  f.  11). 


PAUTIClLAFt  DO  REINO  DE  PORTUGAL  2i7 

Picardia,  cidado  que  os  Fi-aiiceses  cliamão  Biilíon.  Virão-se  os  Prelados 
com  elie.  Despacliou  o  Papa  seus  Breves  pêra  o  Heino  da  deposição  de 
dom  Sancho  com  as  condições  acima  referidas,  que  a  lealdade  Porlu- 
gueza  apontou,  e  pedio  pêra  não  lalLar,  como  nunca  em  nenhum  tempo 
faltou  no  ponto  delia.  lie  hum  famoso  Decreto,  (jue  anda  inserto  no  Di- 
reito Canónico  (*).  Com  os  Breves  mandou  Comniissarios  a  Paris,  que  em 
piesença  dos  dous  Prelados,  e  de  Kuy  Gomes  de  ihileiros,  e  Gomes 
Viegas,  fid.-^lgos  principais,  e  Frei  Pedi'o  Afonso,  Frade  Dominico,  e  Frei 
Domingos  de  Braga  Franciscano,  como  aceiiantes  todos  deste  Cíjnlrato 
em  nome  do  Reino,  derão  juramiiuto  ao  Infante  Condo,  na  conformidade 
do  Decreto.  Passou  este  auto  em  Paris  em  primeiros  de  Setembro  do 
anno  de  124."),  e  logo  como  pola  posta  chegarão  treslados  delie  a  Por- 
tugal, e  mandatos  do  Summo  Pontifice  aos  lleligiosos  de  S.  Domingos, 
e  S,  Francisco,  que  intimassem  o  que  eslava  decreíado  pola  Sé  Apostó- 
lica a  el  Rei  dom  Sancho,  e  o  publicassem  nas  cidade,  e  povo. 

Estava  S.  Frei  Gil  despejado  do  cargo,  quieío,  o  descançado  na  sua 
cella:  linha  obiigações  pessoais  a  el  Rei,  e  outras  parliculaies  por  seus 
irmãos,  e  parentes  que  o  servião :  mas  tocava-!!ie  por  Pregador  fazer  sua 
diligencia  com  o  povo,  em  cumprimenlo  dos  mandatos  Apostólicos:  ç 
por  pessoa  de  autoridade  fazel-a  com  o  próprio  Rei.  Nestas  contrarie- 
dades venceo  o  bem  publico  ao  particular  da  carne,  e  sangue:  e  pesou 
mais  a  obrigação  de  Ministro  da  Igrej;'.,  que  a  de  sua  quietação.  Poem- 
se  cm  campo,  e  sabendo  certo  que  íazia  embaixada  de  muito  desgosto 
pêra  el  Rei,  e  de  grande  perigo  [)era  si,  foi-se  ao  Paço,  e  com  a  liber- 
dade de  hum  Bautista,  declarou-lhe  no  rosto,  e  na  presença  dos  pode- 
rosos, que  o  cei'cavão,  a  vontade,  e  delei-minação  do  Pontifice.  Era  dom- 
Sancho  tão  fi'oxo  de  natureza,  como  temos  visto,  e  pêra  com  Religiosos 
fácil,  e  clieio  de  santos  respeitos :  com  tudo  neste  caso  alterou-se,  e  to- 
mou fogo.  Porque  tirar-se-llie  o  Reino  havido  por  herança,  coníii'mado 
como  posse,  nem  elle  se  persuadia  que  poderia  nunca  ser,  nem  que  ha- 
veria, quem  tivesse  boca,  ou  espirito  pêra  lhe  fallar  em  tal,  (e  assi  lh'o 
fazião  crer  os  que  o  enganavão  em  tudo  o  mais.)  Queria  responder,  mas 
adiantou-se  hum  dos  que  o  acompanhavão,  c  mandavão,  e  que  mais  de- 
saforadamente usava  de  tal  mando,  e  poder :  e  como  em  causa,  que  por 
igual  lhe  tocava,  desatou  furiosamente  a  iingoa  contra  o  Santo  em  huma 
corrente  de  palavras  injuriosas,  e  tais  que  não  foião  menos  descortczes  pe- 

(♦)  Lib.  6.  Lecrcl.  Cajtil.  Graiid'.  Duaite  ^iuiicí  lie  Liilo  na  vida  dcl  Rei  dom  Siiiicbo  2.° 


218  LIVRO  II  DA  HISTOUIA  DE  S.  DOMINGOS 

ra  hum  Rei,  que  as  ouvia,  que  pêra  as  cans  veneráveis,  e  haJjito  Religio- 
so: porque  enlre  gente  de  primor,  e  bom  entendimento  quasi  igualmente 
offendcm  as  descortezias  aos  amigos,  e  enemigos.  ília  o  Santo  aperce- 
bido pêra  dar  a  cabeça  ao  talho,  se  cumprisse :  humilhou-a  ás  palavras, 
que  ás  vezes  he  mais.  Mas  aquelle  Senhor,  que  dos  seus  Santos  he  tiío 
cuidadoso,  que  nem  hum  cabelo  da  cabeça  consente  que  pcrcão(*),  como 
consintir^,  que  se  lhe  tire  da  honra?  Ali  mesmo  lhe  revelou  logo  o  cas- 
tigo, com  que  determinava  vingal-o.  Ília  por  seu  companheiro  Frei  An- 
dré, Religioso  de  autoridade,  e  que  em  secular  professara  letras;  guan- 
do vio,  e  ouvio  o  vilipendio,  cora  que  o  Santo  foi  tratado  diante  dei  Rei, 
e  ambos  lançados  fora  do  Paço,  vinha  pasmado,  e  queixava-se,  como  não 
fulminava  o  Ceo  coriscos  sobre  tanta  maldade.  Deixai-o,  Padre  Frei  An- 
dré, respondeo  o  Santo,  que  pouco  fez  pêra  o  desaveaturado  fim,  que  o 
espera,  e  lhe  vereis  cedo(**).  Mostrou  o  successo  brevemente  comprida  esta 
revelação,  e  profecia.  Porque  entrando  o  Conde  de  Bolonha  em  Portu- 
gal, foi  este  hum  dos  primeiros  que  houve  ás  mãos,  e  sendo-lhe  prova- 
dos enormes  delitos,  fez-lh'os  pagar  por  junto  na  forca. 

Retirou-se  el  Rei  dom  Sancho  pêra  Castella:  vlveo  pouco  mais  de  hum 
anno,  e  succedeo  o  Conde  no  Reino.  E  como  as  cousas  delle  não  são  de 
nossa  obrigação  mais,  que  em  quanto  pertencem  a  esta  Historia,  ou  pêra 
melhor  entendimento  delia,  ou  por  irem  com  ella  travadas,  iremos  to- 
cando somente  algumas,  que  fizerem  a  nosso  caso,  como  fizemos  no  suc- 
cesso passado. 

A  primeira  que  se  oíTerece  he  huma  carta  de  confirmação,  que  o  Con- 
de fez  pouco  tempo  despois  de  recebido  em  Lisboa,  e  ainda  antes  de 
tomar  o  titulo  de  Rei,  pola  qual  lhe  confirma  todos  seus  foros,  e  privi- 
légios, vista  a  pronta  obediência  que  nos  moradores  delia  achou  aos  man- 
datos Apostólicos,  e  em  seu  recebimento.  Esta  anda  tresladada  nos  livros 
da  Camará,  em  lium  que  chamão  dos  Pregos (***).  E  merece  andar  tam- 
bém neste,  pola  honra,  e  lugar,  que  nella  tem  S.  Frei  Gil,  assinando  com 
o  Arcebispo  de  Braga,  e  com  o  Bispo  de  Coimbra  ao  que  parece,  como 
confirmando,  segundo  uso  daquelles  tempos,  inda  que  o  não  declara.  A 
carta  tirada  do  original  he  a  seguinte: 


(.)  Luc.  21. 

(•')  Fr.  AikI.  de  Rc?onde  lib.  2    Iract.  3.  excmp.  49. 

(•••)  Livro  do<  rrc'p;05  f.  í. 


PARTICII.AU  DO  REINO  DE  PORTUGAL  210 

Alfonstis,  (ilius  illustris  Rcjia  Portugallice^  et  procurator  reijui  eiiisdem, 
cl  Dei  grafia  Comes  Bolonia',  Pnctori,  Alvazilibus,  et  unioerso  Concilio  Ulis- 
bonensi,  in  vero  salntari  Saliilem,  Cutn propter  malum  stalum  regni Furtu- 
galliie,  ín  quo  fules,  et  iuslitia  crudclUcr  deperibat,  ud  maynitui  clamorcm 
Prfp.latorum,  Baronnin,  et  Conciliorum,  Dominits  Papa  ad  stipradicluui 
reíjiium  nos  mitleret,  tU  ibidem  fidem  et  iustitiam  faceremus  obseruari :  vo- 
bis  qui  mandato  Apostólico  et  nostro  jirudeuter  obedislis  contra  inimicos 
fidei  et  iusliliie,  concedinius  cobis  cliartas  vestras,  et  foros  veslros  scriptos 
et  non  scrijitos,  et  omnia  iura  ad  vcstrum  ciuitatem  pertineutia,  sicut  ab 
antiqno  liabuistis,  et  vobis  concesserunt  progenitores  nostri,  et  promitti- 
inus  seruare.  Proiitilíimus  elinni  vobis,  quód  si  qui  fori  mali  índucli  sunt 
de  noco  contra  vos,  quúd  eos  tollcinus,  et  conseriiabimus,  et  custodiemus 
vos  in  bono  slalu,  (juantúm  Deus  possibile  nobis  dederit  inteltigere.  Et  vt 
fuctiun  nusiruni  firniius  robur  obtincut^  tianc  priesentem  charlam  sigilli  nos- 
tri  munimine  fccimns  rohorari.  Actn  apud  Ulivbonam  Mense  Febriiarij 
sub  ^Era  M.CG .LXXXIIII.  pra-sentibus  Domiuis  I.  Archiep.  Bracharen. 
et  T.  Episcopo  CoUimbriensi,  et  G.  commendatore  de  Mertola  Ordinis  illi- 
litias  Saacti  lacobi^ct  Eralre  ^F.gidio  Ordinis  Prwdicatorum,  el  per  Gillium 
Giron. 

A  tradurão  em  vulgar  lie  a  seguinte: 

Dom  AÍTonso  filho  do  illuslre  Rei  de  Portugal,  e  do  mesmo  Reino 
a.lministrador,  e  por  grara  de  Deos  Conde  de  Bolonha.  Ao  Corrregedor, 
Juslieas,  e  Alguazis,  e  a  todo  Conselho,  e  Camará  de  Lisboa  saúde,  no 
que  lie  verdadeira  salvação.  Gomo  quer  que  o  Senhor  Papa  havendo  res- 
peito ao  máo  estado,  em  que  o  dito  Reino  estava  por  falta  de  verdade, 
e  lidelidade,  e  justiea,  mo  mandou  que  viesse  a  eile  á  petição,  e  reque- 
rimento dos  Prelados,  e  íidalgos,  e  povos,  pêra  ordenarmos  que  se  guar- 
de justiça,  e  haja  bom  governo.  E  vós  outros  obedecesies  aiis  mandados 
Apostólicos,  e  nossos,  sem  fazerdes  caso  dos  enemigos  da  verdade,  e 
justiça.  Por  tanto  vos  cr)ncedemos,  e  confirmamos  as  cartas  do  vossas 
liberdades,  e  vossos  privilégios,  c  foros,  assi  os  que  tendes  por  escrito 
como  os  que  só  em  costume,  e  sem  escritura  alguma  gozais,  e  todos  os 
mais  direitos  a  vossa  cidade  pertencentes,  assi,  e  da  maneira  que  poios 
Reis  deste  Reino  meu  pai,  e  avós  vos  forão  concedidos,  e  outorgados, 
e  os  tendes  de  tempos  antigos,  assi  vol-os  promettemos  manter,  e  guar- 
dar. E  outro  si  prometemos,  que  havendo  de  novo  introduzidos  alguns 


220  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

foros  contra  rezão,  e  em  prejuízo  de  vossa  Republica,  tiraremos,  e  vos 
guardaremos,  e  maaleremos  em  todo  bom  estado,  quanto  o  Senhor  Deos 
for  servido  deixar-nos  com  o  entendimento  alcançar.  E  pêra  que  o  que 
assl  fazemos,  e  ordenamos,  mais  força,  e  vigor  tenha,  vos  mandamos 
dar  esta  carta  com  nosso  selo  firmada,  e  autorisada.  Feita  em  Lisboa 
no  mez  de  Fevereiro  da  Era  de  mil  e  duzentos  e  oitenta  e  quatro  (res- 
ponde ao  anno  do  Senhor  Í24G),  sendo  presentes  dom  João  Arcebispo 
de  Braga,  e  dom  Tiburcio  Bispo  de  Coimbra,  e  dom  Gonçalo  Commen- 
dador  de  Mertola  da  Ordem  de  Santiago:  e  Frei  Gil  da  Ordem  dos  Pre- 
gadores. Escrita  por  Gil  Girão. 

Bem  se  deixq  ver  que  estava  o  Santo  já  izento  do  cargo  de  Provin- 
cial, quando  assinou  n'esta  carta,  porque  não  se  esquecera  o  escrivão 
de  llie  dar  o  titulo  da  dignidade,  se  a  tivei"a,  como  deu  aos  mais.  E 
esta  he  a  conveniência  em  que  nos  fundamos,  como  atrás  fica  apontado, 
pêra  o  darmos  por  assolto  d"ella  já  des  do  anno  atrás. 

CAPITULO  XXII 

I)e  alguns  effeilos  admiráveis  da  oração  de  S.  Frei  Gil,  em  que  se  vio 
por  casos  differentes  o  muito  que  por  ella  alcançava  de  Deos. 

O  Mestre  Frei  André  de  Rezende  (*)  affirma  que  succedeo  ao  Santo  o 
que  agora  queremos  contar,  quasi  vinte  annos  antes  de  sua  morte.  Por 
onde  nos  cae  bem  no  fim  deste  anno  de  12 40,  em  que  vamos:  ou  na 
entrada  do  seguinte,  visto,  como  faleceo  no  de  1263  segundo  adiante 
veremos.  Acabou  hum  dia  de  dizer  Missa  no  Convento  de  Santarém, 
pêra  onde  se  acolhia,  e  recolhia  todo  o  tempo  que  tinha  por  seu.  Foi-se 
logo  ao  Coro,  segundo  seu  bom  costume,  a  dar  graças  ao  Senhor  de  tão 
alta  mercê,  como  recebia  naquelle  Divino  pasto.  Sintio-se  abalado  do 
espirito.  Quiz-se  retirar  a  lugar  menos  publico,  pêra  lograr  cora  mais 
segredo  estes  segundos  bocados,  demandou  a  Sacristia,  achando-a  fecha- 
da, e  não  podendo  mais  resistir  a  quem  o  chamava,  assentou-se  junto 
da  porta,  e  deixou-se  nas  mãos  da  disposição  Divina,  como  quem  naquelle 
espaço  não  tinha  vontade,  nem  era  senhor  de  si.  Começando  a  dormir  aquelle 
sono  bemaventurado("),  que  Deos  dá  a  seus  amados  em  arras  da  herança 

(•)  Fr.  Anti.  de  Kescnd.  1.  i.  Ir.  i.  excnip.  9.'.  in  \ita  R.  /E{;i(!ij. 
(..)  l'é.  I2(J. 


rAnTiciLAn  do  ri;i.\o  di:  poutigaí.  22 í 

maior  que  os  espera,  estava  na  Igreja  liuma  nobre,  e  virtuosa  feiíiea, 
moradora  na  mesma  villa,  e  muilo  coníiniia  na  nossa  Igreja,  (cbamava-so 
Elvira  Daranda.)  E  ou  fosso  a  caso,  ou  que  tevesse  alguma  cousa  que 
negocear  com  o  Sacristão:  ou  porque  na  verdade  todos  os  casos  da  ter- 
ra vem  traçados,  e  acertados  do  Ceo,  cliegou-se  a  huma  rede,  ou  ralo 
da  porta,  por  onde  sem  abrir  respondia  o  Sacristão,  a  qual  naquelle  tem- 
po, em  que  os  Frades  se  servião  ainda  da  ermida  antiga,  ficava  defronte 
(ia  outra  da  Sacristia,  e  deu  com  os  ollios  no  Santo,  que  estava  todo  en- 
levado, e  como  passado  deste  mundi).  Detendo-se  bum  pouco,  eis  que 
vê  decer  sobre  elle  buma  coluna  de  luz  mais  clara,  e  mais  liella  que  a 
do  Sol,  e  logo  ficar  o  Santo  todo  penetrado  delia,  resplandecendo  como 
bum  cristal  puro,  transparente,  e  fermoso,  e  do  rosto  lançando  raios, 
que  ella  comparava,  por  não  acbar  semelbança  mais  própria,  aos  que 
reverbera  bum  espelbo  ferido  do  Sol.  Ficou  a  molber  atíonita,  e  com.o 
fora  de  si,  não  crendo  bem  a  seus  olbos  visão  tão  nova.  E  como  ninguém 
llie  tolbia  lograr-se  delia,  deixou-se  estar  na  Igreja,  como  dcspois  afíir- 
mava,  espaço  de  duas  boras,  por  ver  em  que  paiava:  cm  fim  vio  ir 
mingoando,  e  desaparecendo  todo  aquelie  fogo,  e  o  Santo  tornando  cm 
si,  mas  com  buns  sospiros  arrancados  do  centro  da  alma,  como  quem 
perdia  estado,  que  lhe  custava  muito  deixal-o.  E  notou  que  ao  partir  se 
foi  arrimando  ás  paredes,  e  apalpando,  como  quem  levava  ainda  a  vis- 
ta, e  os  mais  sintidos  enleados.  Ilum  dos  Padres  antigos,  que  isto  es- 
creverão, afilrma  que  Elvira  Duranda  grilou,  cuidando  que  o  Santo  se 
abrazava  em  verdadeiro  fogo,  e  que  aos  brados  acudio  toda  a  Commu- 
nidade,  e  foi  testemunlia  do  que  temos  contado.  Foi  o  successo  pêra 
esta  alma  occasião  de  grande  bem  seu,  e  d"outras  muitas.  Porque  í^izen- 
do  reflexão  no  que  vira,  e  discorrendo  com  bom  juizo  que  não  podia  ser 
a  caso  cummunicar-se-lbe  aos  olbos  mortais  buma  maravilha  tão  celes- 
tial, foi  logo  assentando  consigo  levantar  o  espirito  a  hum  género  de 
vida  mais  alto,  e  mais  perfeito  que  o  que  até  então  seguira.  Falíavão  na 
villa  Mosteiros  de  Freii  as,  resolveo-se  em  fazer  só  mosteiro  por  si,  (tanto 
pode  buma  boa  inspiração.)  Recolheo-se  ou  sepultou-se  em  buma  estreita 
casinha  térrea,  que  mandou  edificar  no  sitio,  onde  agora  vemos  o  ]tíos- 
teiro  da  Trindade,  sem  mais  entrada,  nem  porta,  nem  janella,  que  buma 
pequena  fresta,  ou  seteira  pêra  luz,  e  pêra  receber  a  comida  que  lhe 
vinha  de  fora,  e  a  seus  tempos  os  santos  Sacramentos  da  Igreja.  A  esta 
cnimosa  molhcr  forão  imitando  outras,  e  crccendo  o  numero  vierão  a 


Í2Í2  LIVRO  II  DA  HISTOniA  DE  S.   DOMINGOS 

(lar  principio  ao  Mosteiro  que  chamamos  das  donas  da  Ordem  de  S. 
Domingos,  de  que  ao  diante  faremos  particular  titulo,  quando  lhe  chegar 
seu  anno(*).  E  nolle  daremos  larga  relação  da  vida,  e  calidade  desta  devota,  e 
de  suas  com])anheiras,  e  da  rezão,  porque  a  Ordem  se  encarregou  delias. 
Por  hora  baste  saber-se  que  so  deve  sua  origem  a  S.  Frey  Gil. 

Ajuntaremos  a  este  caso  outro,  que  também  foi  effeito  notável  da 
oração  do  Santo,  se  bem  por  via,  e  termos  dilTerentes,  e  a  meu  pare- 
cer devia  acontecer  poios  annos  em  que  vamos,  e  sendo  elle  Prior  desta 
casa.  Porque  não  o  especificando  os  autores  antigos,  da  mesma  narra- 
ção se  coilige.  Contão  pois,  que  estando  buma  tarde  com  o  Santo  o  Pa- 
dre Frei  Giraldo  Domingues  pessoa  de  letras,  e  espirito,  que  por  tal 
foi  nomeado  por  el-Rei  dom  Afonso  Terceiro,  por  bum  de  seus  testa- 
menteiros :  era  conversação  santa,  estendeo-se,  e  entrou  muito  pola  noite. 
Qui.z  o  Santo  antes  de  se  agasalhar,  dar  buma  volta  ao  Convento,  e  ver 
como  estava  fechado,  e  cercado.  Em  saindo  da  cella  começão  a  ouvir 
buma  revolta  espantosa  de  estrondo,  e  grita,  e  vozes  confusas,  que  pa- 
recia soverter-se  a  casa.  E  Frei  Giraldo,  que  allumiava  ao  Santo,  per- 
dido de  medo  deixou  cair  a  vela,  e  cabio  meio  amortecido.  Animava-o 
o  Santo,  e  dezia-lhe.  Não  ha  que  temer,  eu  sei  o  que  isto  he,  algum, 
roubo  me  quer  fazer  o  lobo  tragador  no  Convento :  e  mandava-lbe  que 
fosse  a  acender  a  vela.  Neste  passo  chegou  o  Supprior  Frei  Domingos 
Afonso  fazendo  estremos  de  sentimento,  e  dizendo  que  naquella  hora 
era  fogida  de  casa  de  noviços  bum  moço  dos  que  melhor  geito  mostra- 
vam, estando  em  véspera  de  Profissão.  E  o  que  mais  lhe  dobia  que  se 
fora  desatinadamente,  e  com  perigo  por  cima  de  hum  telhado.  Não  me 
enganou  o  roubador,  respondeo  o  Santo,  bem  lhe  conheci  os  bramidos, 
mas  em  vão  se  alegra  com  a  presa,  que  se  Deos  he  servido,  cu  lha  ar- 
rancarei das  unhas.  E  lançando-se  por  terra  no  mesmo  lugar,  começou 
a  orar  polo  fugitivo.  E  foi  tal  a  eííicacia  da  oração,  que  logo  mostrou  o 
successo,  que  fora  ouvido.  Porque  o  noviço  sem  ninguém  o  buscar  tor- 
nou pulo  mesmo  telhado,  e  vindo-se  buscar  a  cella  do  Santo  deu  com 
elle,  onde  ainda  jazia  prostrado  em  oração:  e  lançando-se-lhe  aos  pés 
com  espanto  de  toda  a  Communidade,  que  estava  junta,  contou  que  o 
enemigo  o  tentara  tão  apertadamente  aquella  i;0ite,  que  como  fora  de 
seu  juizo  o  fizera  lançar  poios  telhados  sem  saber  por  onde  bia :  e  bus- 

(♦)  L.  u.  c.  20. 


i 


PAKTICUI.AI!  DO  HKINO  DK  POnTUíiAL  223 

cando  despois  por  onde  saltar  fura  lhe  dera  na  cabeça  liiima  vertigem 
que  o  embaraçara,  e  detivera:  e  querendo  todavia  lançar-se  do  telhado 
abaixo,  lhe  acudira  Deos  por  tal  modo,  que  sem  saber  como,  elle  mes- 
mo se  reprendia  com  palavras  tais,  que  parecia  lhas  davam  por  escrito 
dizendo:  Aonde  vás  traidor?  Pêra  isto  te  lançaste  aos  pés  de  hum  ho- 
mem Santo  pedindo-lhe  te  recebesse  na  Religião?  Pêra  isto  o  importu- 
naste que  rogasse  a  Deos  por  ti  ?  Hora  sus,  torna-te  a  elle,  que  pai  h.e, 
e  tu  és  filho:  não  te  negará  perdão.  Assi  dezia  derramando  muitas  la- 
grimas, e  fazendo  que  todos  o  acompanhassem  nellas.  Levantou-o  o  Santo, 
c  levou-o  nos  braços  cheio  de  alegria,  como  a  outro  filho  pródigo:  e 
não  duvidou  fazer-lhe  profissão  no  dia  seguinte:  nem  o  moço  faltou  polo 
tempo  adiante  nas  esperanças,  que  tinha  dado  nos  princípios. 

Aconteceo  neste  tempo  ir  o  Santo  a  hum  Capitido,  e  de  volta  pas- 
sar por  C, amora,  onde  havia  já  de  alguns  annos  hum  muito  reh'gioso 
Convento  da  Ordem.  Desej  )U  descançar  huns  dias,  e  recrear  seu  espi- 
rito com  o  trato,  e  santidade  dos  sojcitos,  que  nelle  residião.  Achou  aqui 
enfermo  hum  seu  conhecido  antigo  ciiamado  Frei  Pedro  Fernandes,  de 
nação  Galego,  e  á  differença  d"outro  chamado  Espanhol,  de  grande  no- 
me em  letras,  mas  muito  maior  em  virtude.  Lera  Theologia  em  muitos 
Conventos  da  Ordem,  e  em  Santarém  tevera  estreita  familiaridade  com 
o  Santo,  e  fora  seu  filho  de  confissão.  Visitou-o,  e  consolou-o,  e  per- 
guntando despois  a  hum  Padre  amigo  do  enfermo,  polo  tempo,  e  esta- 
do da  doença,  elle  lhe  deu  toda  a  informação,  e  juntou  que  fazendo  por 
elle  oração,  como  por  pessoa  importante  á  Ordem,  e  amigo,  tevera  huma 
visão,  e  não  podia  attinar  com  o  que  significava:  e  era  que  vira  sobre 
Imníi  monte  alto  ao  enfermo  cercado  de  muita  luz,  c  acompanhado  de 
dous  mancebos,  cuja  disposição,  e  ar  excedia  tudo  o  que  a  seu  parecer 
podia  haver  na  terra  de  gentileza.  Tornou  o  Santo  despois  a  Frei  Pedro, 
e  ou  fosse  polo  que  colligio  da  visão  como  Santo,  ou  polo  que  enfendeo 
do  estado  da  doença  como  Medico;  e  sabendo  bem  com  quem  faiava: 
Boas  novas,  disse,  Padre  Frei  Pedro,  Jjoas  novas  vos  trago.  Alegrar,  que 
he  chegada  a  hora  de  vos  hirdes  pêra  o  Ceo.  Peço-vos  que  em  pago 
delias  saudeis  em  meu  nome  a  Virgem  Nossa  Senhora,  e  a  nosso  Padre 
S.  Domingos.  Assi  ficou  alegre,  e  alvoroçado  o  doente  com  as  novas  da 
morte,  como  as  pudera  festejar  de  saúde  perfeita  quem  muito  a  dese- 
jara: e  cheio  de  prazer,  dezia:  ?deu  irmão  Frei  Gil  torne-me  a  dizer  isso, 
que  não  ha  pêra  minha  alma  gosto  igual.  E  dando  inteiro  credito  á  em- 


22 i  Mvno  II  DA  iiiSToniA  di:  s.domlngos 

baixada,  (que  lio  \i\di  do  crer  o  que  se  deseja),  pedio  as  armas  sanlas  da 
Igreja  que  são  os  Sacramentos,  os  quais  recebidos  com  tanta  devação  que 
afez  grande  a  iodos,  chamou  ao  Santo,  c  contou-llie  com  segredo,  c  la- 
grimas que  naquellaliorao  visitara  a  Virgem  Mãi  deDeos  acompanhada  do 
Dicipulo  amado:  e  Uie  posera  na  cabeça  huma  fermosa  coroa,  que  em  suas 
benditas  maons  trazia:  o  o  Dicipulo  l!ie  posera  outra:  mas  não  podia 
entender  por  onde  lhe  vinhão  tamanhas  honras,  con!ieccndo-se  por  gran- 
de peccador.  Rospondco-lhe  o  Santo  que  ambas  lhe  perlencião.  A  da 
Virgem,  pola  pureza  virginal,  que  toda  a  vida  guardara:  a  do  Dicipulo 
pola  dignidade  de  Doutor  ganhada  com  o  trabalho  de  insinar,  e  pregar. 
E  ambas,  acrecentava  o  Santo,  vos  alcançou  o  favor  da  Senliora,  c  a  in- 
tercessão do  Dicipulo.  Peço-vos  que  me  encomendeis  muito  a  ella.  Le- 
vantou o  enfermo  as  maons,  e  com  grande  segurança  prometteo  que  o 
faria.  E  trás  isto  pedio  que  se  fizesse  sinal  com  as  taboas  pêra  se  jun- 
tu^  a  Communidade.  Sendo  junios  os  Religiosos  despedio-se  de  todos 
com  palavras  santas,  e  acabou  com  estas.  Sabei  certo,  meus  irmãos,  que 
tem  Deos  particular  amor  a  esta  nossa  Ordem,  e  que  se  agraila  muito 
do  serviço,  qtie  se  lhe  faz  ncHa:  estimai-a,  e  amai-a  com  caridade,  e  obser- 
vância. Grauílô  enemigo  tendes  no  Inferno:  multo  aborrecer  este  monte 
Sion.  Mas  não  ha  que  temer,  que  certo  lie  não  vos  faltar  o  soccorro 
do  Ceo.  Apoz  estas  rezões  passou  da  vida  com  tal  serenidade,  como  se 
passara  de  huma  cella  pêra  outra.  Este  caso  ho  hum  dos  muitos  que  o 
Santo  escrevoo  ao  l\íestro  Geral  Humberto,  e  succedeo  algum  tempo  an- 
tes do  anno  de  iâf50.  Oomo  se  prova  de  que  o  poz  em  memoria  entre 
os  exemplos  dos  Santos  daOrdemf)  Frei  Gerardo  Fraqueto  no  seguinte 
de  I2G1  por  mandalo  do  mesmo  Geral.  O  que  advirtimos,  porque  não 
falta  quem  faça  a  este  Padre  íilho  do  Convento  de  Estelhá  da  província 
de  Aragão,  sendo  assi,  que  aquella  casa  se  começou  a  edificar  quasi  poios 
mesmos  annos  de  i2G0,  ou  de  1250.  E  nós  temos  conjeituras  prová- 
veis, que  tomou  o  habito  com  os  primeiros  filhos  do  Convento  de  Mon- 
tejunto, e  por  isso  pertence  a  este  de  Santarém  com  que  vamos  conti- 
nuando, porque  qiie  quem  ler  com  attenção  os  casos,  que  o  Santo  es- 
crevco  ao  Geral  Humberto,  e  andão  referidos  poios  historiadores  da  Or- 
dem, achará  que  são  pola  mor  parte  succedidos  em  filhos  dos  Conventos 


[•1  Fr.  GoiT.nlo  Fraij.  1.  5.  c.  o.  c\eiiip.  IG.  dos  Frxdcs  ila  Oniem  Fr.  Fraiic.  Diago  I.  i. 
c.  7.  (la  pvf)viiH'Ui  lie  Araá'. 


PAUTlCrLAH  DO  l\U\0  Di:  POíiTLGAL  2íío 

dc  Portnjínl.  Falou  dos  de  sua  patrin,  com  quem  tinha  communicação 
estreita,  e  pola  mesma  rezão  mais  certeza  de  suas  cousas. 

CAPITULO  XXIII 

Vem  n  Saldarem  o  vnvo  Provincial.  Aclia-í^e  prcscnie  a  liiima  cxlasi  do 
Siinlo.  Dó  el  Rei  dom  Afonso  principio  á  ígrrja  de  S.  Domingo.^  de 
Lisboa.  Heferc-se  a  familiaridade  com  que  trutuca  a  S.  Frei  Gil  em 
Santarém.  E  como  concaleceo  da  gola  por  sen  meio.  Torna  o  Santo  a 
servir  o  cargo  de  Provincial. 

Succcdeo  ao  Santo  no  cargo,  e  governo  da  Provincia  o  Padre  Frei 
Pedro  de  líuesca,  (segundo  adiamos  em  Frei.  André  de  Resende,  mas 
sem  declaração,  se  foi  ao  primeiro  cargo,  se  ao  segundo)  (*)  este  Provin- 
cial decendo  a  Portugal  em  prosecução  de  seu  officio  veio  visiíar  o  Con- 
vénio de  Santarém :  c  como  anda  vão  na  boca  de  todos,  os  raptos  do 
Santo  Frei  Gil,  foi  Iiuma  das  primeiras  cousas  que  ouvio  aos  Frades, 
mas  tão  pouca  fé  lhes  deu,  como  se  fallarão  dos  maiores  impossiveis  da 
terra.  Succedeo  que  se  deteve  alguns  dias,  e  nelles,  (era  por  huma  festa) 
acabando  o  Santo  de  dizer  sna  Missa  [lola  manhã  cedo,  foi-se  ao  Coro, 
segundo  seu  costume :  e  antes  de  se  pôr  de  joelhos,  foi  prevenido  d:) 
Ceo:  e  assi  como  estava  cm  pé.  e  direito,  ficou  iodo  absorpío.  Acudirão 
os  Frades  logo  ao  Provincial,  dizendo  que  podia  desenganar-se  do  que 
não  cria,  se  quizessc  dar  poucos  passos.  Foi  o  Provincial,  o  achou -o, 
como  dissemos,  e  primeiro  por  se  certificar  do  que  lhe  aflirmavão,  che- 
gou-lhe  a  orelha  á  boca,  e  narizes,  e  não  lhe  sintindo  respiração  nem 
anhelito,  fez  bater  rijamente  nas  cadeiras  com  liurn  martello  de  ferro 
que  a  caso  ficara  nellas  a  huns  carpinteiros  do  dia  dantes.  E  não  es- 
pertando o  Santo  de  seu  sono,  nem  elle  de  sua  incredulidade,  poz-lhe 
as  mãos  empuxando-o  a  toda  força,  com  outras  diligencias  extraordina- 
]'ias.  Em  fim  quando  lhe  não  ÍÍl.ou  nada  por  tentar  den-se  por  conven- 
cido, e  acabou  de  crer  com  lagrimas  de  arrependimento,  o  compunção. 

Por  este  tempo,  que  foi  poios  annos  de  i^va,  começou  el  Kei  doin 
Afonso  a  grande  machina  da  nossa  Igreja  de  Lisboa,  como  a  vemos  hoje. 
Devia  parecer-lhe  cousa  pouca  })ei-a  tão  grande  cidade,  e  que  cada  dia 
bia  crecendo,  a  que  el  Rei  dom  Sanclio  seu  irmão  fizera  com  o  Conven- 
to :  mostrou  seus  espíritos  na  magnificência,  e  sumptuosidade  da  o')ra, 

(.)  Fcácnde  na  vida  fie  S.  Frei  Gil  1.  2.  pxcniil.  2. 

\0L.   1.  13 


226  LIVÍIO  II  DA  lilSTOlUA  DE  S.   DOMINGOS 

e  O  potler  real  na  diligencia,  acabando-a  em  dez  annos,  como  ao  dianío 
diremos  em  seu  próprio  lugar.  Fazemos  aqui  menção  d'ella  por  ser  feita 
em  vida  de  S.  Frei  Gil,  vislo  como  não  devia  importar  pouco  pêra  el  ílci 
se  resolver  cm  tamanha  fabrica  a  presença  do  Santo,  e  o  gosto  que  mos- 
trava de  lhe  fazer  honra,  c  favor,  como  o  declarou  em  muitas  cousas 
outras  polo  tempo  em  diante.  E  foi  ímma  vindo  a  Santarém  por  Dezem- 
bro do  anno  de  1251  communicar  o  Santo  com  grande  humanidade,  e 
brandura.  Vindo  ao  Mosteiro  muitns  vezes,  e  peia  o  poder  fazer  mais 
familiarmente,  e  com  menos  nota  da  magestade,  e  autoridade  real,  como 
o  Santo  era  velho,  e  enfermo,  e  por  essa  rezão  tinha  huma  pobre  cella 
separada  do  Dormitório  comum,  porque  qnasi  nunca  sabia  d'ella  senão 
pêra  a  Igreja,  ou  pêra  o  Coro,  mandou-lhe  el  Rei  prantar,  c  cercar  hum 
jardim  junto  d'el}a,  ao  qual  vinha,  e  nelle  despedidos  os  fidalgos,  e 
acompanhamento  real  se  íicava  só,  e  devagar  com  o  Santo :  pêra  o  qual 
também  era  de  recreação  a  frescura  do  arvoredo,  e  variedade  das  flores 
nos  actos  mentais,  em  que  sempre  andava  occujiado. 

Creceo  o  amor  que  el  Rei  tinha  a  S.  Frei  Gil,  com  o  que  pouco  des- 
pois  lhe  aconteceo  com  elle.  Era  el  Rei  dom  Afonso  em  sua  primeira 
idade  muito  inclinado  aos  exercícios  militares  de  justar,  e  tornear,  e 
muito  fragueiro  nelles,  e  quando  estes  faltavão,  nos  da  caça,  e  monta- 
ria. Esta  natureza  ajudada  do  costumo  dos  Franceses,  entre  quem  vivia, 
que  são  nesta  parte  incansáveis,  trazia-o  enxuto  de  membros,  são,  e  bem 
desposto.  Como  esteve  no  Reino  a  occupação  dos  negócios,  e  governo 
apartou  o  dos  exercícios  corporais :  foi  logo  criando  carnes,  e  humores 
demasiados,  que  com  a  carga  dos  annos  pararão  em  gota.  Começou-lhe 
poios  pés  com  grandes  dores,  como  traz  consigo.  Visltava-o  o  Santo  al- 
gumas vezes.  De  huma  que  estava  mui  afadigado,  e  assentado  em  huma 
cadeira,  por  não  poder  sofrer  a  cama,  vendo  que  entrava  o  Santo  a 
vel-o,  persuadio-lhe  a  afflição  do  mal,  que  não  deixa  cousa  por  tentar, 
que  tinha  na  mão  o  remédio.  Estavão  ambos  de  bordão,  o  que  visitava, 
e  o  visitado.  El  Rei  por  doente,  e  o  Santo  por  velho,  e  fraco.  Ao  des- 
pedir disse-lhe  el  Rei  dissimuladamente.  Troquemos,  Padre,  os  bordões, 
que  me  parece  melhor  esse  vosso.  Não  alcançou  o  lanço  a  humildade  ; 
pareceo  ao  Santo,  que  não  podia  el  Rei  dizer  senã,o  o  que  sintia,  e  que 
seria  juiiíaincisk^  querer  honral-o  com  a  troca,  como  fazia  em  outras 
cousas.  Foi  cousa  certa,  e  provada  que  fez  milagre  a  fé  dei  Rei,  e  a  vir- 
tude do  Santo,  de  sorte  que  da  hora  que  el  Rei  lhe  tomou  o  bordão  não 


1'AHTici'LAr,  no  Hr.i.Nu  i)i:  roíirríiAL  '227 

siiitio  mais  dores,  convaleceo,  c  sarou  porreitameiílL'.  E  licou  í:io  ccrío 
que  crelle  lhe  procedera  o  liem,  (jue  por  devarão  o  trazia  de  í)rdii)ario 
na  mão  por  casa.  E  acontecendo  entrar  no  Paço  muitos  annos  despois 
pejado  grandemente,  e  quasi  manco  do  mesmo  mal  de  gota,  hum  Pêro 
Martins  Petarino,  muito  seu  aceito,  e  do  seu  Conselho,  Alcaide  mór  de 
OiH-em,  den-lhe  o  bordão,  que  trazia  na  mão,  e  disse-lhe.  Este  tomei  a 
Frei  Gil,  e  me  deu  saúde  na  minha  gota,  também  vola  dará  a  vós.  Le- 
You-o  o  valido,  e  valco-lhe,  como  íizera  a  el  Rei.  Mas  poríjue  pode  haver 
algum  juizo  agudo,  que  neste  segundo  eíTeito  ache  mais  poderes  de  adu- 
lação, (por  intervir  privado),  que  de  virtude,  dal-o-hemos  autoiizado  com 
testimunho  irrefragavel,  terceira  maravilha  obrada  por  meio  do  mesmo 
bordão,  com  que  desde  então  previnio  os  incrédulos,  ehe  a  que  se  segue. 

Na  villa  de  Onrem  aconleceo  a  hum  Domingos  Martins  jantando  pe- 
gar-se-lhc  na  garganta  huma  lasca  de  hum  osso  ião  aguda,  e  tenaz,  que 
por  muito  que  porfiou  pola  lançar,  ou  passar,  nenhum  remédio  bastou. 
Vendo  que  se  affogava,  pedio  que  lhe  trouxessem  quem  o  confessasse. 
Em  quanto  forão  buscar  o  Confessor,  creceo  a  opressão  de  maneira,  que 
quando  chegou,  já  não  pode  falar  palavra.  Ajuntarão-se  os  vizinhos,  hou- 
ve grande  revolta.  Chegou  a  nova  do  desastre  a  dona  Estefânia,  mulher 
do  Alcaide  mor.  Tanto  que  soube  o  (jue  passava,  toma  da  mão  do  ma- 
rido o  bordão  do  Santo,  e  dadiva  dei  Rei,  e  manda-o.  Mandado  fez  mi- 
lagre sem  sospeita.  Não  íizerão  mais  que  chegnl-o  a  tocar  a  garganta  do 
meio  affogado,  e  logo  lançou  o  osso.  Âcrecenta  a  Historia,  que  vendo-^e 
livre  se  confessou :  e  despojada  a  garganta,  e  aliviada  a  consciência,  tor- 
nou á  meza  a  comer  alegremente,  donde  se  levantara  pouco  havia  an- 
gustiado, e  pêra  morrer.  Forão  testemunhas  do  milagre  dona  Estefânia, 
e  seu  marido,  e  hum  Capeílão  seu,  que  todos  o  contavão  (les[)ois,  e  o 
Confessor  Estevão  Martins,  que  servia  na  Igreja  de  S.  João. 

Tornando  á  nossa  Historia,  houve  por  esle  tempo  na  Província  Ca[)i- 
tulo  de  eleição,  e  foi  eleito  com  a  mesma  vontade,  que  no  antigo,  o  Santo 
Frei  Gil.  Era  ausente  por  velho,  e  carregado  de  annos,  e  iníirmidades : 
o  trabalho  immenso  pêra  homem  muito  robusto,  e  muito  advií-tido  em 
se  poupar ;  quanto  mais  pêra  quem  estava  consumido  de  penitencias,  e 
sobre  tudo  procedia  no  governo  publico,  e  no  de  sua  pessoa  cm  todo  o 
rigor  da  Regra :  fez-se-lhe  mui  agro  o  aceital-o.  Mas  em  fim  obrigou-o 
sua  cbaridade,  e  a  instancia  da  Proviíicia.  Começou  a  visitar,  como  quan- 
do tinha  mais  forças,  Aposlolicamente  a  pé,  e  sem  uíais  remedi**,  que  o 


228  LIM\0  I!  DA  niSTOniA  Di:  S.  DOMINC.OS 

que  alcançava  do  esmolas.  E  como  este  írabalho  não  tinha  outro  íím, 
senão  a  honra,  e  glona  de  Deos,  assi  rece])ia  d"e!!e  a  toda  hora  grandes 
mimos,  e  favores  em  sua  alma,  o  era  grande  o  fruito,  que  nas  dos  súb- 
ditos fazia  com  seu  exemplo,  doutrina,  e  seniiões.  Se  repi-endia  vicios, 
tinha  tal  eííicacia  no  dizer,  que  fazia  tremer,  c  pasmar  de  medo  quem 
o  ouvia.  Se  tratava  das  virtudes,  ou  dos  bens  do  (j^o,  abrazava  os  co- 
rações em  amor  de  Deos :  e  nelle  mesmo  se  hia  saboreando  nesta  mu- 
sica de  sorte,  que  muito  amiúde  íifava  no  estado,  que  ati'ás  dissemos, 
úa  alheado  dos  sinlidos,  c  na  mesma  postura  em  que  liia  praticando  im- 
movel  como  huma  coluna.  Crecia  o  merecimento,  faltavão  consolações 
da  terra :  dobrava-lhe  o  Senhor  as  sobi^enaiurais  do  Geo. 

capítulo  xxiy 

Irhinda  o  Santo  Frovincidl  Pregadores  a  (erra  de  Mouros.  Conía-se  hum 
csíranho  caso  que  lhe  succedeo  caminhando  pçr  Cahlella :  e  antros  em 
PortiKjal,  todos  cm  matéria  de  espirito.  Pede  absolcirdo  do  cargo  cm 
Capitulo  Geral ;  alc&nça-a.  Conta-se  huma  penitencia,  que  nelle  se  deu 
a  liuns  Frades. 

Não  nos  deixarão  declarado  os  antigos  o  anno  pi'eciso,  cm  qiic  o  Santo 
começou  este  segundo  governo.  Mas  contando-nos  que  estava  muito 
adiante  na  idade,  e  a  sua  cli.gou  quasi  aos  oitenta  annos,  como  veremos 
em  seu  lugar,  se  dermos  doze  annos  ao  primeiro  cargo,  e  outros  tantos 
a  seu  successor,  veio-lhe  a  entrar  este  polo  de  1257,  ou  pouco  mais,  e 
já  sobre  os  setenta  da  vida,  que  pêra  as  naturezas  d"aquelle  tempo  não 
era  dcmasinda  veliiice,  se  forão  de  vida  mais  folgada,  ou  menos  perse- 
guida de  rigores,  que  a  sua.  Começando  animosamente  a  fazer  sea  ofil- 
cio,  huma  das  primeiras  cousas,  cm  que  entendeo,  foi  em  dar  cumpri- 
mento a  humas  letras  do  Pai)a  Alexandre  Quarto,  polas  quais  partiiiilar- 
mcnte  encomendava,  que  se  mandassem  líeligiosos  pregar  aos  Mouros ; 
c  como  dentro  de  Espanha  havia  grandes  terras  senhoreadas  d"elles,  não 
era  necc;-sario  passar  o  mar  :  nem  o  Santo  Provincial  teve  muito  traba- 
lho em  buscar  so]ei!os,  que  se  arriscassem  á  empresa.  Porque  antes  foi 
alvitro  pêra  toda  a  lU-ligiáo.  Despachou  os  que  lhe  pareceo  que  convi- 
jilião,  O  deixou  a  muitos  sintidos,  e  envejosos.  íle  bem  de  ver  pêra  cre- 


PAnTlCrLA?,  DO  r.EINO  DE  POhTIT.AT.  229 

dito  da  Ordem  a  nota  da  Bula.  Poremos  só  algumas  palavras  dY-ila,  por 
não  estender  leitura.  E  ^ão  as  seguintes : 

Sane  qnia  inter  ulios  propiignaíores  fdlai  Chrisfiancv  Fratres  Ordinis 
(ui,  iu^ta  professce  religionis  vffcium  zelus  comcdit  animarum:  ex  eis  ad 
(jcnlcs,  qu(s  Chrislum  Domimna  non  cognoscunl,  et  ad  suòtractionis  filies, 
qui  sacrosai}c(a;  lionuincB  Ecclesiic  non  obediíint,  dccreuimus  aliquos  des- 
iinandos,  ele. 

Do  que  fizerão  os  inviados,  donde  erão  filhos,  e  a  que  lugares  forão, 
tudo  deixarão  nossos  maiores  em  silencio,  e  até  os  nomes,  que  com  le- 
tras eternas  devem  estar  escritos  no  livro  da  vida,  (indigno  silencio,  e 
erro  sem  desculpa,;  As  cousas,  que  só  escreverão  em  lugar  d"estas,  ire- 
mos dizendo. 

Continuando  o  Santo  seus  caminhos  chegou  cá  cidade  de  Quenca  em 
Casíella.  ília  de  passagem,  porque  não  tínhamos  inda  ali  Convento.  Jun- 
tou-se  alguma  boa  gente  á  novidade  do  habito,  que  não  tinhão  visto,  pe- 
dirão-lhc  que  quizesse  pregar.  Gomo  esta  he  a  verdadeira  obrigação  da 
Ordem,  ainda  que  moído  o  corpo  do  caminho,  e  o  espirito  dos  negó- 
cios, não  se  sOube  escusar,  Recolheo-se  com  cedo  pêra  ver  algam  livro. 
Leo  hum  espaço,  passeou  outro.  Logo,  sintindo,  ao  que  se  pode  entcií- 
der,  o  ímpeto  do  espirito,  arrimou-se  ao  leito,  e  lançando  mão  da  vela, 
mcteo-a  debaixo  d'el[e,  (devia  ser  com  tenção  de  a  apagar),  mas  ou  fosse 
descuido,  ou  não  estar  já  senhor  de  si^  ficou  em  parte,  que  as  pontas 
do  cubertor,  e  lençoes  esíavão  ao  justo  sobre  a  labareda,  como  postas 
assinto.  Aconipanliavão  ao  Santo  nesta  jornada  Frei  João  Romo,  Galego, 
c  Frei  Pedro  Bellioc,  Aragonês.  Chegarão  á  porta,  virão-no  enlevado,  te- 
merão perturbal-o,  não  quizerão  enirar.  E  ou  não  notarão  o  estado,  c 
o  perigo  do  fogo :  ou  lizerão  conta,  que  pois  não  fazia  dano,  a  vela  se 
iria  gastando,  e  por  si  se  apagaria.  Mas  o  caso  foi,  que  o  Santo  ama- 
nheceo  na  postura,  e  sono  bemaventurado,  em  que  o  deixarão  á  noite, 
e  a  vela  iambem  com  elle  no  mesm^o  estado,  em  que  a  tinhão  visto,  ar- 
dendo, c  nada  consumida,  sendo  assi  que  não  podia  naíuralmcníe  durar 
mais  que  quando  muito  duas  horas :  e  as  pontas  da  roupa  tão  commu- 
nicadas  com  o  fogo,  que  era  impossível  deixarem  de  arder  sem  intervir 
milagre  claro,  e  manifesto.  Por  maneira  que  consideravão  quatro  mila- 
gres juntos.  Prim.eiro,  o  rapto  de  huma  noite  inteira :  segundo,  arder 


230  I.IVUO  U  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

oiiíro  Umto  tempo  hum  pedaço  do  vela,  (luc  não  tinha  ahmento  pêra 
duas  h(M"as ;  terceiro,  arder,  e  não  se  consumir;  quarto,  estarem  sobre 
o  fogo  toda  tiuma  noiíe  eslopa,  e  Iam  sem  se  queimar,  nem  crestar, 
nem  somente  se  defumar, 

A  este  modo  vindo-se  recolhendo  polo  alto  de  Portugal  Imm  d'estes 
nnnos  pei'a  Saniaiem,  lhe  aconíeceo  caso  notável  no  Mosteiro  de  Freiras 
de  Arouca,  da  Ordem  de  Cister.  Pedirão-lhe  as  Religiosas,  que  pois  Deos 
o  trouxera  jior  alli,  as  quizesse  consolar  com  huma  pratica  espiritual,  e 
sna,  Assenton-se  á  grade  do  Coro,  era  presente  toda  a  Communidade : 
jirégava  a  gente  devota,  e  esposas  do  bom  Jesu,  que  havia  de  ser  o  ser- 
míio,  senão  amores,  c  requebros  do  mesmo  Senhor.  Foi-os  propondo 
com  huns  termos  tão  lirariílos.  huns  encarecimentos  tão  vivos,  e  huma 
devação,  e  fervor  tanto  do  intrínseco  da  alma,  que  as  Ueliglosas  pendu- 
radas da  santa  elocjuencia  se  hião  alheando  de  si,  como  com  hum  en- 
cantamento de  força  invisível.  Mas  tudo  era  pouco  pêra  o  que  o  Santo 
siníia  cm  si.  Yio-se  logo  o  effeiío.  Porque,  como  tratava  do  que  expri- 
meníava  cada  dia,  e  o  repetia  com  o  mesmo  gosto,  e  sabor  que  o  sintia, 
e  en.tendia,  e  lho  communicava  o  Sol  Eterno,  foi-sc  arrebatando  nelle 
aíé  hum  ponto,  em  que  alevantando  as  mãos  ao  Ceo,  cm  graças  do  muito 
(juc  devíamos  a  Deos,  só  por  querer,  e  consintir  que  o  amassemos, 
sendo  tão  soberano,  o  nós  terra,  pó,  e  lodo,  ficou  como  transformado 
em  hum  penedo,  sem  voz,  sem  anhelito,  o  o  que  he  mais,  sem  pulso, 
c  privado  de  toda  a  outra  operação  dos  sintidos,  os  braços,  e  mãos  em 
alto,  na  forma  em  que  o  tomou  o  rapto,  e  com  o  mesmo  geito  de  boca, 
olhos,  e  sembrante  com  que  hia  falando.  E  assi  perseverou  algumas 
horas. 

?Jas  o  que  lhe  acontecco  despois  que  chegou  a  Santarém,  passa  por 
tudo  o  que  se  pode  dizer  nesta  matéria.  Entrou  hum  dia  na  sua  cela 
Frei  Pedro  de  S.  João  que  o  acompanhava,  c  lhe  tinha  cuidado  d'ella, 
e  ach.oa-o  levantado  no  ar,  mais  alto  que  a  mcza,  em  que  estudava,  com 
as  mãos,  e  olhos  ao  Ceo.  Tirou-liie  polo  habito  a  ver  se  o  podia  decer: 
como  vio  que  trabalhava  debalde,  sahio  correndo  a  dar  aviso  ao  Prior 
Frei  Estevão :  e  não  o  achando,  tornou  com  Frei  Pedro  da  Cruz,  c  Frei 
Afonso  de  Toledo,  que  encontrou :  mas  acharão-no  já  assentado,  e  quieto. 
Dezia  Frei  Pedro  de  S.  João,  que  quando  entrara  da  primeira  vez  lhe 
vira  aberto  o  livro  de  S.  Dionísio  Areopagita  em  hum  lugar  (*),  onde  aponta 

[•]  nionv«.  (1p  Divinií  nnniin.  r.  i. 


PAimClLAR  DO  P.F.INO  DR  PCRTIT.AL  231 

algumas  excelleiícias  do  amor  Divino,  e  como  Mestre,  e  oxprJmeníado 
diz  d"e!ie  que  enleva,  c  allumia  a  quem  o  possue :  enleva  com  suavida- 
de, e  allumia  com  luz  da  gloria.  Eattribuia  o  rapto  á  lição,  polo  que  sa- 
bia que  o  Santo  se  pagava  d'ella.  Este  Frei  Pedro  da  Cruz  tinha  ouvido 
das  ordinárias  extasis  do  Santo,  e  ficou  sintido  de  não  chegar  a  tempo 
que  o  visse  nesta  tão  dilTerente,  Mas  não  passarão  inuilos  dias  que  to- 
cando-lhfí  por  certa  occasião  acompanhar  o  Santo,  se  satisfez  bastante- 
mente.  Ficou-se.  hum  dia  despois  de  Com[»ietas  rezando  no  Coro,  e  tor- 
nando já^noite  cerrada,  não  achou  o  Santo  na  cella,  Sahio  ao  jardim, 
senão  (juando  se  lhe  olíerece  â  visía  hum  homem,  como  fantasma  i)en- 
duradu  no  ar,  rosto,  e  mãos  erguidas  ao  Ceo.  Conheceo  quem  era,  e 
todavia,  como  em  cousa  nova,  ficou  cheio  de  medo,  cuidando  que  pode- 
ria cair  com  perigo ;  foi  correndo  em  busca  do  Supprior  Frei  Martinho 
Martins,  conlou-lhe  cora  admiração  que  acabava  de  ver  lium  corpo  glo- 
rificado em  retrato,  e  pedio-lhe  que  fossem  ambos  a  decel-o,  e  recolhel-o, 
visto  ser  noite.  Assi  com.eçarão  a  mar ty rizar  o  Santo  cada  bum  de  sua 
parle  com  forças,  e  abalos,  ate  que  em  fim  se  foi  deixando  mover,  e 
o  trouxerão  em  braços  ao  leito,  mas  não  livre  de  todo  d"aquella  delei- 
tosa peregrinação  dos  siníidos. 

Estava  o  Santo  em  setenta  e  seis  annos,  tão  cançado  já,  que  não  po- 
dia fazer  caminho  por  feus  pés ;  e  todavia,  por  não  deixar  de  acudir  a 
correr  a  Provinda,  servia-sc  de  hum  asninho,  porque  Uie  não  valiam  ro- 
gos com  o  Geral  da  Ordem  pêra  soltar  por  lei  humana  quem  já  polas 
da  natureza  estava  forro,  e  hmlo  de  lodo  trabalho,  com  a  maior  força 
de  todas,  que  era  impossibilidade.  Esforçou-se  na  entrada  deste  anno 
a  caminhar  duzentas  legoas  pêra  aparecer  no  Capitulo  geral,  que  estava 
publicado  pcra  Barcelona,  Fez  conta  que  alcançaria,  sendo  visto,  o  que 
Sião  impetrava  ouvido.  Foi,  pedio  huma  hora  desabafada-  de  negócios 
pêra  morrer,  pois  em  quanto  tevera  forças  pêra  servir,  nenhuma  de  tra- 
balho refusara,  Moveo  os  Padres  a  piedade  a  velhice,  a  pessoa,  e  a  re- 
zão,  derão-ihe  absolvição, 

E  porque  o  Santo  velho  devia  ser,  como  tão  ansião,  e  autorizado, 
bum  dos  principais  votos  deste  Capitulo,  não  será  fora  de  rezão  que 
por  sua  coPita  fique  aqiii  em  memoria  huma  penitencia  que  nelle  se  deu 
a  hum  Prior,  que  havia  sido  do  mesmo  Convento  de  Barcelona :  e  refe- 
ril-a-hemos  polas  mesmas  palavras  que  ficarão  nas  Actas,  que  hoje  esla- 
vão  vivas,  e  são  as  seguintes: 


Ti'!  i.iviio  n  !)A  iiisrcr.iA  ls:  <.  domimoos 

fialri,  qui  eial  Prior  (jiiand.')  JJoniiHn  iuut  Barcliiuonciisé  fuil  iiiee- 
plmn,  cl  Fraíiibus,  qui  lunc  eranl  aã  dandnm  voiisUiuin  circd  opera,  ex 
(juonua  nfrjliijnilia  seu  di^siiiitilaliGne  fariuin  esl,  quod  pwdiclani  JJor- 
miloriuiíi  (illititdincin  ab  Ordine  prielaxnlítm  cxcedil  nolabiliter,  iniinuji- 
inus  Ircdeciíii  dies  in  pane  cl  aqua,  cl  lolidcm  disciplinas.  El  dislriclé 
iniiivf/iriuis,  quod  doiims,  qiue  adlmc  suiil  facienda',n(jn  sinl  alliores,  quam 
in  Constilidionibus  e-it  taxaluni. 

Oiioreia  dizer. 

Condenamos  ao  Frade  qne  era  Prior  d'esla  casa  de  Barcelona,  quan- 
do se  começou  a  levantar  o  Dormitório,  e  aos  Frades,  a  quem  locava  dar 
conselho  na  matéria  do  edificio,  em  treze  dias  de  pão,  e  agoa,  e  outras 
tantas  disciplinas :  visto  como  de  seu  descuido,  ou  dissimulação  proce- 
dtío  ficar  o  Dormitório  notavelmente  mais  alto,  do  qne  está  determinado 
poki  Ordem.  E  em  todo  rigor  mandamos,  que  as  casas,  qne  estão  por 
fazer,  não  passem  da  medida,  que  nas  Constituições  está  limitada. 

Com  esíe  rigor  se  acudia  então  a  culpas  tão  leves,  claro  argumento 
do  que  seria  nas  grandes,  se  as  houvera :  e  de  quam  entranliado  andava 
nas  almas  o  amor  da  santa  pobreza. 

CAPÍTIL(J  XXV 

De  algumas  visões  sohrcnalitrais  que  o  Sanío  leve :  e  )nila(jrcs  que  por  seu 
meio.  e  orúçâo  obrou  o  Senhor. 

■  Yeio-se  o  Santo  Frei  Gil  pêra  a  sua  cella  a  esperar  a  ultima  hora, 
começou  a  empregar-se -todo  no  cuidado  delia,  como  seja  a  te  vera  pre- 
sente, vivia  no  corpo  huma  vida,  que  podemos  chamar  Angélica:  tão  pu- 
ro, tão  penitente,  tão  vigiado  alé  do  pó,  e  da  sombra  das  mais  peque- 
nas venialidades,  como  se  então  começara  os  dias  de  sua  conversão  do 
Falência.  Pagava-lhe  o  Seniior  com  grandes  misericórdias,  humas  vezes 
de  visões  sobrenaturais  mostradas  aos  olhos,  e  vista  corporal,  outras  de 
milagres  patentes,  obrados  por  sua  oração,  c  intercessão.  Das  visões  era 
grande  encubridor,  porque  algumas,  que  se  escreverão,  forão  sabidas  a 
caso,  ou  alcançadas  por  conjeituras.  Gomo  era  velho,  e  naturalmente  se- 


PARTlCfLAI!  DO   REI.NO  DK  PORTIT.AL  2^3 

vero,  não  se  atrevia  ninguém  a  fazer-llie  perguntas,  e,  quem  lhas  ítizia, 
ficava  sem  i'eposta,  c  cori-ido.  Conlava  Frei  Pedro  seu  companheiro,  (jue 
estando  o  Santo  lium  dia  sobre  o  leito  pola  sesta,  e  elle  lambem  deiíado 
não  longe,  acudira  ás  festas,  e  alvoroço,  com  que  o  Santo  levantando  as 
mãos,  e  batendo  as  palmas  com  os  olhos  no  alto  dezia :  Aii  meu  Se- 
nhor Jesu.  Ah  duicissimo  Jesu,  no  coração,  lie  rezão  que  vos  eu  traga : 
no  corarão  andeis  escrito,  impresso,  escul[)ido.  Ó  Senhora  piadosissima, 
Mãi  de  meu  piadosissimo  Senhor.  O  santíssima  Mãi  do  Deos,  (j  Virgem 
gloriosa.  Rainha  da  terra,  Rainha  do  Ceo,  que  graças  vos  dará  hum  po- 
bre homenzinho,  hum  bichinho  da  terra  ?  E  tendo  Frei  Pedro  por  certo 
que  falava  com  vista  dos  olhos  manifesta,  segundo  as  palavras  o  íesle- 
munhavão,  e  vendo-o  Ião  alegre,  ludo  lhe  dera  aiiimo  jiera  lhe  pergun- 
tai", não  pola  visão,  de  que  estava  som  duvida,  se  não  por  algumas  par- 
ticularidades, que  desejava  saber.  Mas  o  Santo  sem  diferir  á  perguma, 
lhe  maiidara  que  o  deixasse,  e  repousasse. 

A  Infante  dona  Sancha,  senhora  de  Alanquer,  de  cujas  virtudes  fize- 
mos atrás  larga  relação,  tinha  tanta  devação  ao  Santo,  que  não  só  se  le- 
vantava ao  receber,  quando  lhe  entrava  por  casa :  mas  posta  de  joelhos 
llie  pedia  a  benção,  e  que  a  encomendasse  a  Deos.  Vindo  a  falecer  apa- 
receo  ao  Santo  a  horas,  que  elle  começava  a  repousar.  Espertou  hum 
pouco  torvado,  mas  caindo  logo  em  quem  era,  quietou-Sí,',  e  perguniou- 
Ihc  com.o  lhe  hia.  ^luiío  bem  me  vai,  respondco  a  defunta,  por  mercê 
de  meu  Senhoi-  Jesu  (^hrisío,  e  por  meio  de  vossas  orações.  Esta  visão 
contou  o  Santo  a  FreiBartolameu,  Frade  de  grande  religião,  e  acrecen- 
tava,  que  a  defunta  o  deixara  cheio  de  celestial  consolação,  sinal  certíj 
da  gloria  immortal,  que  já  possuía. 

Celebrava  hum  dia  em  Santarém.  Eis  que  no  meio  da  Missa  fica  su- 
bitamente arrebatado:  e  a  cabo  de  grande  espaço  torna  rindo,  e fazendo 
festas  com  huma  alegria  tão  fora  do  ordinário,  que  deu  em  que  cuidar 
a  muitos  Padres,  f|ue  acudirão  ao  rapto,  chamados  do  ministro,  c  fazião 
vários  discursos,  tendo  por  descom})osição  o  que  virão,  em  tai  lugar,  e 
tempo.  Acabada  a  Àíissa,  fez-ihe  i)ergunta  o  Prior  polo  que  vira,  e  ou- 
vii-a,  como  quem  fora  hum  dos  que  o  ministro  chamara  :  e  que  causa 
houvera  pêra  tal,  sendo  assi  que  sempre  acabava  aquelles  santos  mys- 
teríos  com  lagrimas,  e  as  extasis  com  queixas,  e  sospiros.  Não  podo  o 
Santo  negar  nada,  a  quem  inquiria  como  Prelado,  e  foi-lhc  contando,  que- 
naquella  hora  se  lhe  representara,  e  vira  com  os  olhos  corporais  a  alma 


234  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DF.  S.   DOMINGOS 

de  hum  grande  seu  amigo,  e  grande  Santo,  que  se  liia  ao  Ceo  cercada 
de  resplandores  de  gloria,  e  levada  por  mãos  de  Anjos.  Era  este  dom 
Gonçalo  Mendes,  Geral  da  Ordem  dos  Cónegos  regrantes  de  Santo  Agos- 
tinho deste  Reino,  que  falecera  em  Lisboa,  e  vivendo  na  Ordem  com 
grande  exemplo,  alcançara  o  cargo  sem  pretenrão,  e  o  servira  com  a 
mesma  innoccncia,  e  bondade,  com  que  o  merecera,  e  cheio  de  annos, 
e  virtudes  subia  naquella  hora  a  reccl)er  o  premio  verdadeiro.  Notou  o 
Prior  dia,  e  hora :  e  achou  despois  que  puntualmente  então  acabara  no 
Convento  de  S.  Vicente  de  Lisboa. 

Gi'andes  cousas  nos  vai  descobrindo  a  vida  d'esto  Santo,  quanto  mais 
adiante  vamos :  e  pcra  que  nos  não  espai\tem  as  passadas,  temos  entre 
mãos  milagres,  que  vencem  as  leis  da  natureza,  com  que  a  Omnipotên- 
cia Divina  quiz  honrar,  e  acreditar  seu  Servo.  No  tempo  que  se  edificava 
o  Convento  de  Lisboa,  em  quanto  não  havia  bastante  gasalhado  pêra  os 
Religiosos,  que  já  assistião  na  Cidade  pregando,  e  doutrinando,  tinha-lhes 
dado  Imma  dona  princi])al,  chamada  dona  Urraca,  hum  quarto  das  casas 
cm  que  vivia,  porque  além  de  ser  rica,  e  devota  do  habito,  era  mãi  de 
Fr.  Domingos  Martins,  que  estava  na  Ordem.  Vivia  na  cidade  huma  mo- 
Iher  honrada,  que  padecia  fluxo  de  sangue,  havia  dezenove  annos:  como 
andavão  na  boca  do  povo  as  maravilhas,  que  Deos  obrava  por  S.  Frei 
Gil,  pcdio  a  dona  Urraca,  que  vindo  elle  a  cidade  quizesse  avizal-a.  Pas- 
sados poucos  dias  soube,  que  era  chegado :  veio  logo  a  casa,  lançou-se 
aos  pés  do  Santo,  tomou-lhe  o  escapulário,  beijou-o  com  devação,  des- 
culpando o  atrevimento  com  a  necessidade,  que  padecia,  e  esperança  do 
remédio,  que  a  obrigava.  Âcuchrão  os  Religiosos,  que  erão  presentes  por 
intercessores.  Disse  o  Santo  aos  Frades,  seja  Chrislo  Jesu  com  ella :  e  a 
ella.  Ide  embora  filha.  Acuda-vos  Deos  segundo  vossa  Fé.  Foi-se,  e  foi 
sam  des  daquella  hora,  e  de  todo  ponto  livre  do  mal. 

Dez  annos  havia  que  era  casada  xMaria  Antioca,  e  julgada  já  por  es- 
téril dos  Médicos,  com  quem  se  linha  cançado,  e  despendido,  desejando 
ver  hum  íillio,  e  successor  em  sua  casa.  Determinou  buscar  o  remédio 
em  Deos,  onde  nunca  falta  a  (}uem  o  sabe  pedir.  Tinha  particular  deva- 
ção com  o  Padre  S.  Domingos :  e  a  mesma  com  o  Santo  Frei  Gil  polo 
que  delle  ouvia;  foi-se  hum  dia  a  elle,  e  pedio-lhe  com  encarecimento, 
quizesse  alcançar  do  Padre  S.  Domingos  se  lembrasse  d'ella,  prometen- 
do a  ambos,  que,  se  Deos  lhe  desse  hum  filho,  ella  lho  tornaria,  dando-o 
á  Ordem.  Passados  poucos  dias,  sintio-sc  prenhada,  teve  hum  filho,  cha- 


PAHTir.n.AR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  235 

moii-lhc  Domingos,  e  ciimprio  a  promessa  fazendo-o  Frade.  Affirma  hum 
escritor  muito  antigo,  de  quem  tomamos  parte  d"esta  Historia,  que  o  al- 
canrou  na  Ordem,  mo(;o  de  tão  bom  natural,  que  logo  parecia  fdho  de 
orações  de  Santos. 

Correo  a  voz  pola  terra:  acreditou-se  logo  o  milagre  com  outro  em 
tudo  semelhante.  Tornavão  de  Sevilha  pêra  Lisboa  pola  via  do  Algarve 
Frei  Martim  Gíjnçalves,  natural  de  Lisboa,  e  Frei  Kstevão  A^erdugo.  Che- 
gando a  Faro  agasalliou-os  em  sua  casa  Diogo  AlTonso,  Alcaide  mór  da 
terra.  Antes  de  se  despedirem  tomou-os  a  parle  dona  Micia,  sua  molher, 
e  teve  com  elles  longa  pratica,  dizendo  que  des  que  se  entendera,  tevera 
sempre  grande  inclinarão,  e  devação  á  Religião  de  S.  Domingos,  e  fol- 
gara de  lhe  fazer  todo  bem,  que  em  sua  mão  fora :  e  de  presente  era 
particular  devota  do  Padre  Frei  Gil,  o  ainda  que  o  não  vira  nunca,  em 
ausência  o  respeitava,  e  venerava  como  a  Santo :  e  desejava  saber  se 
era  verdade  o  que  lhe  linhão  dito,  (|ue  por  suas  orações  era  Maria  An- 
tioca  mãi  de  hum  filho.  Porque  se  tal  era,  não  desmerecia  ella  ao  Santo, 
c  á  sua  Ordem  alcançar-lhe  de  Deos  semelhante  favor,  pois  estava  na 
mesma  necessidade  havendo  muitos  annos  que  era  casada,  e  temia  que 
a  falta  de  filhos  fosso  causa  do  sou  marido  se  vir  a  desgostar  com  ella, 
vivendo  ambos  em  tudo  o  mais  com  muita  conformidade.  Derão  os  hos- 
pedes por  cousa  certa  o  que  se  dezia  de  Maria  Antioca.  E  quanto  á  sua 
necessidade,  e  petição  prometerão  ser  diligentes  procuradores,  tanto  que 
chegassem  a  ver  o  Santo.  Quando  o  virão,  não  Ibrão  descuidados :  pro- 
pozerão-lhe  a  causa,  e  os  merecimentos  da  boa  senhora,  ajuntarão  ro- 
gos. Obrigado  o  Santo  disse-lhes  que  o  ajudassem  com  outros  Religio- 
sos, que  erão  presentes,  a  rogar  por  ella,  offerecendo  a  Nossa  Seniiora 
a  Antífona  Salve  lirgina.  Rezou-a  de  joelhos,  e  disse  a  oração.  E  dona 
Micia  veio  parida  de  hum  filho  d'aqucl}e  dia  a  nove  mezes :  e  por  se 
desindividar  em  alguma  cousa  com  o  Santo,  chamou-lhe  no  baulismo 
Diogo  Gil. 

Os  caíos  prodigiosos  não  [)erdeni  a  esíraiiheza  por  acLtníec.'rem  ás 
vezes  em  sojeitos,  e  occasiões  de  menos  importância,  qiiaíiuo  Deos  he 
servido  de  também  nas  tais  dar  honra  a  seus  servos.  Foi  cousa  corta, 
c  com  muitas  lesíimunhas  dignas  de  fé  confirmada,  que  achando-se  o 
Santo  na  Azoya,  lugar  do  termo  de  Santarém,  (era  este  lugar  do  Dayão 
de  Lisboa  seu  irmão,  e  por  isso  acudia  lá  algumas  vezes,  quando  o  Dayão 
era  presente),  e  começando  a  fiizer  huma  pratica  espiritual  aos  morado- 


236  I.IVP.O  II  DA  HISTORIA  DE   ».   DOMIXnOS 

ros,  assentados  todos  no  campo,  apareceo  junto  d"ellos  hum  gallo,  e  co- 
meçou lambom  sua  natural  musica,  replicando-a  com  tanta  importuna- 
rão, e  dosentoanienío,  quo  o  Santo  Ibe  arremessou  o  bordão :  e  foi  tão 
certeiro,  que  o  dei-ribou  morto.  Rccolheo-o  depressa  lium  dos  ouvintes 
debaixo  da  capa,  porque  o  Santo  não  tevesse  desgosto,  como  era  certo 
se  o  vira  morto.  Âcal)ada  a  pratica,  como  o  Santo  não  ouvio  mais  o  seu 
musico,  julgou  o  que  era.  Pcdio  que  llio  trouxessem.,  e  quando  o  vio, 
começou-se  a  culpar  de  demasiado  colérico  contra  hum  animal  irracio- 
nal, e  pondo  os  olhos  no  Ceo  tornou  logo,  e  tocando  o  gallo  com  a  ponta 
do  bordão :  Ea,  disse,  levantai-vos  dahi,  tornai-me  logo  a  vosso  ofíicio, 
e  louvai  o  Criador.  No  mesmo  ponto  se  levantou,  e  batendo  as  azas,  fui 
dando  saltos,  e  cantando  com  espanto,  e  alegria  dos  circunstantes.  Lem- 
brado estou  que  outro  caso  semelhante  se  conta  no  livro,  que  chamão 
Vidas  dos  Padres  da  nossa  Ordem,  e  só  faz  diíierença  no  lugar,  mas  co- 
mo diz  juntamente  que  foi  escrito  polo  Padre  Frei  Gil,  sem  dar  nome 
do  aucior  da  maravilha,  podemos  crer,  que  o  quiz  o  Santo  disfarçar  es- 
crevendo, por  não  confessar  que  sairá  de  suas  mãos,  (como  já  o  temos 
advirlido  em  outros  casos.)  Porque  não  ha  duvida  que  este  snccedeo  na 
Azoya,  sendo  presentes  Frei  Bernardo  de  Morlans,  o  Frei  Bertolameu 
Pires,  Frei  Domingos  da  Cinceira,  Frei  Pedro  da  Cruz,  Frei  João  de 
3ilarvilla,  e  Frei  Jordão  de  Torres.  E  acrecenía  hiun  escritor  m.uiío  anti- 
go, que  alcançou  ainda  huma  Ermisenda,  moiher  de  bem,  moradora  do 
mesmo  lugar,  que  se  achara  presente  ao  milagre,  o  o  contava  na  mes- 
ma forma. 

CAPÍTULO  XXVI 

De  algumas  cousas  milagrosas  que  o  Sunío  fez  por  sua  mão. 

Milagres  de  Medico  Divino  temos  pêra  este  capitulo,  que  cura  doen- 
ças, ou  só  com  o  tacto  de  sua  mão,  ou  com  cousas  contrarias  ás  mes- 
mas doenças,  bem  como  o  fazia  Christo  Senhor  nosso,  e  como  o  dezia 
a  seus  discípulos,  que  o  farião  elles,  se  tevessem  fé,  e  outras  maravilhas 
muito  maiores.  Diremos  primeiro  algumas  semelhantes :  adiante  pode 
ser  que  as  achemos  aventajadas.  Que  se  a  sombra  de  S.  Pedro  presente 
dava  saúde  aos  enfermos  (*)  que  alcançava:  aqui  acharemos  remédio  dado 
a  muitos  só  com  a  fama,  e  nome,  ou  com  a  iiivocação  de  S.  Frei  Gil 

(♦)  Act.  5. 


PARTICULAn  DO  REINO  DE  I>OUTl'(;AL  237 

aiBonte.  Acudião  de  coiilinuo  ao  Santo  muilos  enfiarmos,  Iran?  como  a 
Aíedico  grande,  que  era  dentro  dos  limites  da  Piíilosopliia,  c  estudo,  e 
que  curava  de  graça:  outros  que  sabilío  sua  virtude,  com  lim  mais  alto, 
e  como  a  Santo.  Juntarão-se  hum  dia  na  nossa  portaria  dous.:  urn  tão 
jierdido  de  mal  de  olhos,  que  não  só  os  trazia  cí)rrendo  humor  conti- 
imo,  e  cuhertos  de  névoa,  mas  pestanas,  e  sobi'ancelhas  peladas,  e  co- 
midas, e  falíando  pouco  pêra  cego  de  todo.  O  outi'0  com  força  de  doen- 
ças, e  falia  de  cura  viera  a  encurvar-se,  e  alcorcovar-se  de  sorte  que 
não  era  senhor  de  levantar  a  cabeça,  nem  olhar  direito.  Cada  hum  por 
sua  via  obrigou  ao  Santo  a  compaixão.  E  deíendo-se  hum  pouco,  como 
que  cuidava  no  remédio,  mandou  ao  Porteiro  Frei  João  que  lhe  trou- 
xesse hum  pouco  de  azeite,  benzeo-o  com  o  sinal  da  Cruz,  ehiima  bre- 
ve oração,  e  untou  os  olhos  ao  cego.  Acudio  líiim  Padre  que  chamavão 
o  ?>íedico,  porque  o  fora  em  secular,  reprovando  íal  género  dt?  mezinha, 
visto  ser  o  azeite  totalmente  contrario  á  visla.  Toda  a  arle,  respondeo 
o  Santo,  cessa  onde  ha  ie.  Não  vos  lembra  que  contra  toda  a  rezão  de 
Física  curou  Christo  a  hum  cego  com  lodo,  e  nos  deixou  dito,  que  quem 
tevesse  fé,  poderia  beber  sem  dano  vasos  clseios  de  pcçonh.a  ?  Pois,  a  es- 
te azeite,  espero,  c  contio  eu  nelle,  que  ha  de  dar  tal  virtude,  que  cure 
onde  costuma  a  danar.  E  assi  foi,  porque  untando  peito,  e  costas  ao 
contreito,  como  fizera  aos  oPnos  do  cego,  ambos  se  tornarão  sãos,  hum 
direito,  e  saltando,  outro  allumiado,  e  logrando  os  bens  de  vista  clara. 
O  mesmo  cíTeito  fez  a  mão  do  Santo  estando  em  Coimbra,  em  Iram 
moço  lilho  de  João  Paes  cidadão  honrado,  que  estudava  pêra  Clérigo,  e 
tinha  já  beneficio  em  S.  Bei-tolameu.  Derão-lhe  alporcas,  e  iinlião-ihe  o 
pescoço  tão  afeado  de  Inndoas  grossas,  e  escaras,  e  vermelhiílões,  (era 
uso  da  maior  antiguidade  o  que  agoi'a  vemos  renovar  de  pescoços  des- 
cubertos:  melhores  cousas  pudéramos  tomar  delia),  que  se  não  atrevia 
aparecer  em  publico.  ííe  o  mal  rebelde  á  Fisica,  e  nelle  estava  incurá- 
vel :  despois  de  tempo,  e  muito  gasto  perdido  com  módicos.  Não  faltou 
quem  o  aconselhasse  que  se  valesse  do  Santo.  Foi-se  a  elle  por  meio 
de  Frei  Estevão  Besa.  Deu-lhe  conta  de  si,  rnoslrou-lhe  o  pescoço.  O 
Santo,  que  era  todo  brandura,  e  piedade,  poz-lhe  as  mJos,  e  fez-lho  o 
sinal  da  (]ruz.  Sem  outro  feitio  em  poucos  dias  se  lhe  veio  a  juntar  to- 
do o  humor  venenoso  em  huin  lugar,  onde  superando,  e  saindo  em  ma- 
téria podre  deixou  o  pescoço  enxuto,  e  sem  grossura  nem  pejo,  ficando 
só  algumas  costuras  leves  como  em  memoria  do  milagre. 


238  I.lVnO  11  DA   HISTORIA  DE  S.   DOMINOOS 

E  porque  não  saiamos  de  Coimbra:  na  mesma  ciclatle  huma  Maria 
Godinha  ílliia  de  Godim  Paes  o  moço,  ficou  de  huma  longa  doença  tão 
seca,  e  mirrada  de  carnes,  que  com  nenhum  remédio  tornava  em  si,  e 
se  dava  por  eiica.  Tinha  assentado  sua  mãi  Mor  Sueira  leval-a  ao  Santo, 
mas  hia-se  dilatando  de  dia  em  dia,  até  que  obrigada  de  hum  forte  ac- 
cidente  de  convulsão  de  todos  os  membros,  c  febre  juntamente,  se  vie- 
rão  mãi,  e  filha  ao  Saato:  e  fazendo-lhes  elle  o  sinal  da  Cruz  sobre  as 
cabaças,  tornarão  com  o  remédio  que  buscavão. 

Era  primo  do  Santo  Martim  Gonçalves  Chacim,  fidalgo  principal  do 
nobreza  antiga,  e  conhecida  então,  apagado  hoje,  como  muitas  outras 
que  o  tempo  extinguio.  Quiz  hum  dia  festejar  o  Santo  em  sua  casa,  e  co- 
mo sabia  que  não  comia  carne,  apereebeo  hum  banquete  de  peixe,  quanto 
podia  ser,  esplendido.  Chamou  parentes,  e  amigos,  estendeo-se  a  comi- 
da. E  procurando  que  houvesse  alegria,  rogava  aos  convidados  que  co- 
messem :  e  occupado  todo  n'isto,  e  em  mandar  os  criados,  e  governar 
a  meza,  descuidou-se  tanto  de  si,  que  levou  em  hum  bocado  huma  es- 
pinlia  envolta,  a  qual  se  lhe  ferrou  na  garganta  de  sorte,  que  por  muita 
força  que  fazia,  não  podia  passal-a,  nem  lanç;il-a  fora.  Começou  a  temer, 
e  aílligio-se,  o  rosto  feito  brasa,  e  os  olhos  que  lhe  sallavão  de  inchados, 
os  convidados  com  toda  a  casa  torvados,  e  descompostos.  Aqui  acudio 
o  Santo,  e  estendendo  o  braço  poz-lhe  a  mão  na  garganta,  e  feito  nella 
o  sinal  da  Cruz,  mandou-lhe  que  tussisse.  Estava  já  tão  trabalhado,  que 
o  não  pode  fazer  sem  muita  pena.  E  logo  se  despegou  a  espinha,  veo 
fora,  e  ficou  quieto. 

Isto,  que  a  Martim  Gonçalves  succedeo  com  espinha,  aconteceo  pun- 
luahnente  a  hum  pobre  homem  do  lugar,  que  dissemos  da  Azoia,  com 
hum  osso.  Bebia  huma  escudella  de  caldo  de  vaca  com  descuido,  ou  com 
apetite,  e  fome  de  pobre,  levou  nelle  de  volta  huma  lasca  de  osso,  que 
sendo  aguda  de  huma,  e  outra  parte  se  lhe  atravessou  na  via  da  comi- 
da :  fez  força  pola  despedir,  e  o  impeto  de  homem  robusto,  c  forçoso, 
não  sendo  bastante  pêra  a  desaferrar,,  e  cuspir,  foi  parte  pêra  a  encra- 
var mais:  assi  ficou  em  estado  qua  nem  podia  falar,  nem  passar  cousa 
de  mantimento.  A  cabo  de  poucos  dias  começou-lhe  a  criar  inchação  de 
huma  parte,  e  d"outra :  com  que  se  lhe  hia  apertando  a  respiração,  e 
tomando  o  fôlego,  e  começava  a  desesperar  da  vida.  Aqui  cicudirão  os 
parentes,  poem-no  em  huma  cavalgadura,  dão  com  elie  em  Santarém  á 
porta  do  nosso  Convento:  pedem  que  lhes  deixem  ver  o  Santo,  c  dar- 


PAUilClLAU    DO    IIEINO    DK   POUinjAL  2ÍJ9 

lhe  cotila  ih  suas  lastimas.  Diz  a  Historia  que  se  acharão  cora  elle  Frei 
Bernardo  de  àlorlans,  e  Frei  Pedro  da  Cruz;  e  dando-lhe  conta  do  caso, 
perguntava  o  Santo  a  Frei  Bernardo  que  sei"ia  bem  aplicar-llie,  como  se 
determinara  cural-o  com  a  lisica  humana,  e  ordinária:  e  Frei  Bei'nardo, 
que  tinha  entendido  o  mal  de  raiz,  respondeo.  Não  he  este  o  caso  qua 
se  cura  assi,  Padre  Frei  Gil:  o  poder  de  vossa  grande  fé  he  o  que  lhe 
lia  de  valer;  que  pêra  remédios  humanos  já  não  lie  tempo.  Todavia  man- 
dou o  Santo  que  lhe  dessem  huns  bocados  de  pão,  a  ver  se  engolin- 
do lançavão  o  osso  abaixo :  mas  foi  diligencia  perdida :  antes,  co- 
mo interiormente  havia  já  tumor  crecido,  poz-se  o  pobre  em  perigo  de 
se  affogar  com  a  força,  c  grossura  do  bocado.  Pedio  então  bum  pouco 
de  azeite,  e  untando-llip  a  guela  pola  parte  de  fora,  donde  se  queixava, 
e  íeito  o  sinal  da  Cruz  em  erma,  mandou  que  lhe  lançassem  sobre  a  ca- 
beça a  capa  do  Padre  S.  Domingos,  pretendendo  que  a  honra  do  mila- 
se  atribuisse  á  virtude  d*a  capa,  e  de  seu  dono,  antes  que  á  sua  mão. 
Começarão  a  entrar  na  Igreja  pcra  fazerem  o  (jue  o  Santo  mandava :  eis 
que  subitamente  sente  o  doente  resolver-se-lhe  toda  a  inchação,  e  aper- 
to da  garganta  com  huma  leve  tosse  que  lhe  acudio :  e  subindo-lhe  á 
boca  bum  golpe  de  sangue  pisado,  e  matéria  imperfeita,  que  vomitou, 
sahio  de  mistura  a  lasca  do  osso  ensangoentada  de  ambas  as  pontas.  E 
com  tudo  não  quiz  o  Santo  que  deixasse  de  tocar  a  capa  de  nosso  Pa- 
triarca, pêra  que  a  ella  referissem  o  remédio. 

CAPITULO  XXVIl 

De  outros  casQ.9  milagrosos  obrados  por  iiifercossão  do  Sanlo  ausente : 
mas  ainda  vivendo  na  terra. 

Agora  diremos  os  milagres  que  obrou  ausente,  estando  ainda  vivo, 
e  são,  e  em  carne  mortal.  E  verem(?s  acudir  a  Omnipotência  Divina  á 
fé  dos  que  chamavão  por  seu  servo :  ou  se  valião  de  alguma  cousa  que 
houvesse  andado  em  seu  uso:  como  se  com  elle  em  tal  grão  se  achara 
empenliada,  que  llie  pudessem  fazer  força  merecimentos  humanos :  me- 
recimentos que  quando  os  ha.  são  dadiva,  e  mercê  sua,  nem  tem  mais 
valor  que  aquelle  que  o  mesmo  Deos  he  servido  dai'-lhes.  Atrás  deixa- 
mos escrito  o  bom  successo  que  el  Rei  dom  Afonso  teve  na  troca  do 
bordão,  que  trazia  por  gotoso,  com  o  que  o  Santo  usava  por  velho.  iMas 


210  Livno  II  DA  HisroniA  djí  s.  domingos 

em  cousas  aiiRla  de  menos  sustancia  mostraremos  igual,  e  espantoso  ef- 
feito. 

indo  o  San  lo  pêra  Coimbra  com  Frei  Bertolameu  Pires  por  compa- 
ijiiciro,  eniroa  de  caminho  em  hum  Convento  de  Cónegos  regrantes  de 
Santo  Agostinlio  de  hum  lugar  que  os  Escritores  ciiamão  Cohiieas.  Re- 
ccberão-no  os  Frades  com  amor.  e  alegria:  c  na  meza  foi  agasalhado 
com  ludo  o  bom,  que  havia  em  casa.  Só  do  vinho  lhe  pedirão  perdão, 
queixando-se  que  se  danara  todo  sem  ficar  huma  gota  que  prestasse  : 
com  que  se  passava  assas  trabalho  no  Convento.  Agradecia  o  Santo  a 
Ijoa  sombra,  e  vontade  que  enxergava  em  todos :  e  sem  fazer  caso  de 
mais,  dezia-lhes  que  nenhuma  cousa  dava  melhor  tempera  á  comida, 
nem  mais  sabor  ao  vinho:  e  que  pêra  a  sua  arte  fora  agasalhado  muito 
melhor  do  que  pudera  desejar.  Esta  benignidade,  e  singeleza  do  Santo 
o])rigou  ao  Adeguei  ro  a  fazer  conceito,  que  não  sem  causa  se  conta  vão 
tantos  louvores  de  sua  virtude,  e  querer  valer-se  d"ella.  E  tomando  oc- 
casiíio  de  lhe  ver  na  mão  liuma  agulha,  que  a  caso  tirara  da  manga,  (ou- 
tros escrevem  que  era  cabacinha,  que  lhe  servia  no  caminho  pêra  agoa, 
c  a  trazia  pendurada  da  cinta),  pedio-lhe  que  Ília  deixasse  ver,  e  foi-se 
com  ella  á  adega,  e  lançou-a  dentro  em  huma  grande  cuba,  em  que  es- 
tava recolhida  toda  a  novidade  daquelle  anno,  e  tão  mal  parada,  que 
nenhuma  parte  tinlia  de  que  se  pudesse  esperar  bem.  Ajuntou  oração 
breve,  mas  cheia  de  (>'%  e  devacão,  dizendo,  que  em  nome  do  Senhor, 
e  do  seu  servo  Frei  Gil  se  atrevia  a  fazer  aquella  diligencia,  confiando 
que  por  seus  merecimentos,  c  por  ser  cousa  que  trouxera  nas  mãos,  e 
em  seu  uso,  seria  sua  Divina  bondade  servido  que  o  vinho  melhorasse  : 
e  assi  tevessem  os  pobres  Frades  com  que  passar  o  anno,  e  seu  servo 
ficasse  honrado.  No  dia  seguinte  foi  tirar  vinho  pêra  a  Communidade : 
lançando  nos  copos,  de  turvo  apareceo  claro,  de  grosso  delgado,  e  o 
que  mais  be,  trocado  em  cor,  c  sabor,  e  em  fim  como  dado  de  milagre. 
Foi  grande  o  espanto  dos  Religiosos,  mas  não  durou  mais  que  quanto 
tardarão  em  saber  o  feitio  que  o  Adegueiro  fizera,  e  o  que  devião  por 
elle  aos  merecimentos  do  Santo,  de  quem  já  sabião  cousas  maiores. 

Entre  os  mesmos  Frades,  mas  cm  lugar  diíTerente,  e  diflerente  oc- 
casião,  quiz  Deos  pouco  despois  acreditar  lambem  seu  servo.  Foi  a  Igreja 
de  Ansede,  no  Bispado  do  Porto,  Mosteiro  de  Cónegos  regrantes,  antes 
que  viesse  a  Ordem  de  S.  Domingos,  que  agora  a  ))0ssue.  Passavão  polo 
lugar  Frei  Misíuel  João  natural  do  Porto,  e  Frei  Rol)erio  Frades  nossos: 


PAIiTicn.An  DO  UKlNf)   DK  POriTlT.AL  211 

forão  con^i(Ja(los  dosPaJros  doMosíeiro  com  amor,  e  coríezia,  e  comi'- 
rão  alguns  com  elles.  Veio  á  meza  sável,  que  acodem  muitos  ao  Douro,  que 
aqui  perto  corre,  e  de  nenhum  rio  de  Espanha  são  tão  saborosos  nem 
tamanhos,  como  os  que  se  pescão  nellc,  c  no  .^liiilio.  Succedeo  a  Iram 
dos  Padres  de  casa,  com  pressa  ou  desatento  aíravessar-se-lhe  huma  es- 
pinlia  que  aceríí)u  a  ser  mai?  teza  do  que  costumão  as  muitas,  com  que 
a  natureza  armou  este  peixe.  Procurou  despedil-a  tossindo,  fez  muita 
força,  não  bastava  nada :  estando  todos  confusos,  disse-lhe  Frei  Miguel 
cm  voz  alta,  que  nomeasse  o  Santo  Frei  Gil,  que  Deos  lhe  acudiria  por 
seus  merecimentos.  Tudo  foi  hum,  chamar  polo  Santo,  e  vir  a  espinha 
fura,  e  tornarem  a  comer  alegremente,  e  ficarem  todos  por  mais  títulos 
devotos  do  Santo. 

Costuma  a  Divina  bondade  honrar  muitos  Santos  com  particulares 
graças,  pêra  serem  mais  estimados  dos  homens  por  sua  intercessão  em 
seus  males,  e  necessidades  remedeados.  Âssi  buscamos  a  S.  João  Bau- 
tisía  pêra  dores  de  cabeça,  a  Santo  ínacio  pêra  mal  do  coração,  a  S.  Paulo 
contra  as  quedas  dos  cavallos,  S.  Bento  contra  venenos,  S.  Domingos 
pêra  livrar  de  febres,  S.  Pedro  Gonçalves  Telmo  das  tempestades  do 
mar,  e  muitos  outros  Santos  de  varias  iníirmidades.  Parece  que  quer 
Deos  que  não  fiemos  demasir.do  nas  boticas  de  medicamentos  humanos : 
offerece-nos  esta  do  Ceo.  Em  males  de  garganta  teve  o  Santo  Frei  Gil 
em  vida,  e  morte  grande  favor  do  Senhor.   Dos  que  curou  vivendo  te- 
mos ainda  três  casos,  (jue  por  serem  quasi  semelltaníes,  irão  juntos.  No 
primeiro  foi  curado  Frei  Vicente  o  Medico,  aqueile  de  quem  coníanios 
liamas  mui  apertadas,   e  pouco  cortezans  experiências,  que  quiz  fazer 
das  extasis  do  Santo.   E  aconteceo-Hie  o  que  he  ordinário  aos  que  d  al- 
guma maneira  peccão  de  protervos,  e  teimosos  por  cabeça,  que  vendo 
não  vem :  inda  quando  ouvia  fallar  n"ellas,  ou  torsia  o  rosto,  ou  mar- 
chava, por  não  dizer  duvidava.  Mas  veio  a  desenganar-se  com  lhe  fazer 
sintir  na  garganta  huma  dura  espinlia  o  que  elle  procurou  que  sinllsse 
o  Santo,  quando  lhe  picava  as  mãos,   e  queimava  os  dedos.  Era  em 
Coimbra  diante  de  toda  a  Communidade  do  Convento,  e  d"alguns  cida- 
dãos, que  forão  aqueile  dia- convidados.  Ferrou-se-lhe  a  espinha  na  guela 
tão  vivamente,  como  se  fora  huma  agulha.  Yio-se  atribulado,  e  como  de- 
sesperado, porque  a  não  podia  passar  nem  airancar :  e  sem  comer  mais 
liocado  encostou-se  á  parede  quasi  desm.aindo.  Lcmbrou-se  então  que 
ainda  que  os  Santos  sejão  pouco  vingativos,  tinha  justa  pena  de  suas 

VOL.    I.  10 


2Í2  LlVnO  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOJÍINGOS 

incredulidades.  Em  fim  cnmprio-se  nelle  o  que  está  escrito,  que  os  tra- 
balhos dão  entendimento  (*).  Encomendou-se  de  coração  ao  Santo,  c  logo 
com  buma  leve  tosse,  e  sem  nenluima  força  veio  a  espinha  envolta  em 
sangue :  guardou-a,  e  mostrava-a  despois. 

O  segundo  Foi  livre  de  hum  osso  de  peixe  atravessado  na  garganta, 
com  igual  perigo,  e  com  a  mesma  devação.  Chamava-se  Payo  Rodrigues 
morador  em  Torres  novas,  onde  era  Almoxarife  das  rendas  da  Rainha : 
e  costumava  agasalhar  cm  sua  casa  os  nossos  Frades,  quando  hião  ali 
pregar,  e  este  dia  jaiilavSo  com  elle  Frei  Miguel  Martins,  e  outro. 

O  terceiro  caso  foi  em  Portalegre,  sendo  presentes  Fr.  Durando  Es- 
tcvens,  e  Frei  Nuno,  e  jantando  ambos  com  o  Prior  da  Igreja  de  Nossa 
Senhora  dom  André.  Jantavão  juntamente  alguns  Clérigos,  e  hum  d'elles 
por  nome  Domingos  João  levou  inadvertidamente  huma  espinha  de  sá- 
vel, (que  lie  peixe  grande  castigador  de  golosos),  e  estando  meio  aíToga- 
do,  e  em  grande  estremo  de  alllição,  tanto  que  chamou  polo  nome  de 
S.  Frei  Gil,  â  instancia  de  Frei  Durando,  que  lh'o  lembrou,  lançou  huma 
espinha  retorsida  como  hum  anzol  toda  ensanguentada,  que  mostrou  a 
todos,  não  se  fartando  de  dar  graças  a  Deos,  e  ao  Santo,  que  peregri- 
nando ainda  entre  os  mortais  tanto  favor  alcançava  de  Deos.  Foi  mais 
testimunha  deste  milagre  Frei  João  do  Portalegre,  que  então  era  moço, 
e  secular,  e  se  achou  presente  no  jantar. 

CAPÍTULO  XXVIIÍ 

Do  (jrande  nome  que  o  Santo  tinha  em  toda  a  Ordem,  e  pvr 
terras  estranhas :  e  de  seu  [eJice  transito. 

São  companheiras  inseparáveis  da  virtude,  como  a  sombra  do  corpo, 
honra,  e  fama  gloriosa  (**):  e  tal  he  o  agradecimento,  com  que  ella  paga  a 
quem  a  segue,  tal  o  interesse  que  rende  a  seus  amadores.  Dos  aconle- 
cimentos  que  temos  contado,  e  de  outros  semelhantes  que  não  escreve- 
mos, tinha  o  Santo  Frei  Gil  ganhado  tal  nome  em  toda  a  Ordem,  que  a 
boca  cheia  era  n'ella  celebrado  por  grande  Santo.  Porém  não  se  conten- 
tou a  Divina  bondalle  com  o  fazer  conhecido  entre  os  seus,  se  não  esten- 
desse íambem  sua  gloria  aus  estranhos.  Vivia  no  mesmo  tempo  cm  Ro- 


pAHTicn  Ali  DO  ni;i.\o  m:  !'Oíítlt.al  2i3 

ma  hum  ermitão  de  abalizada  virlude,  estimado,  c  conhecido  por  tal  de 
muitos  Cardeais,  e  outros  Prehidos.  Achaiido-se  hum  dia  em  casa  de  hum 
(Cardeal,  que  visitava,  com  alguns  Espanhoes,  perguntou  com  eíficacia, 
se  lhe  saberião  dar  rezão  de  hum  Frade  Dominico  Portuguez,  de  nome 
Trei  Gil,  e  tal  geito,  e  tais  feições  de  rosto,  e  começou  a  pintar  o  Sanlo 
com  tanta  propriedade,  que  sendo  hum  dos  que  o  ouvião  o  Mestre  Pêro 
Vicente  ('onego  de  Braga,  que  muitas  vezes  o  tinha  visto,  e  tratado,  lhe 
respondeo,   que  bem  ao  natural  tinha  retratado  hum  grande  Santo,  que 
em  Portugal  conhecia  do  nome,  e  partes  que  lhe  dava.  Contou  então  o 
Ermitão,   que  havia  alguns  dias  que  estando  huma  noite  em  oração,  e 
sendo  já  perto  da  manhã,  cairá  em  hum  leve  sono,  no  qual  se  lhe  repre- 
sentara a  visão  seguinte.  Vio  o  Ceo  aberto,  e  Christo  Salvador  nosso  em 
pé,  e  a  Virgem  sua  Mãi  junto  delle  com  as  mãos  juntas,  e  levantadas, 
como  que  o  adorava  :  logo  via  abaixo  dos  braços  da  Senhora  hum  homem 
que  no  trajo  representava  Frade  da  Ordem  dos  Pregadores,  e  cercado 
de  hum  estranho  resplandor  tinha  as  mãos  em  postura,  que  se  mostrava 
sustentar  com  ellas  os  braços  da  Virgem,  como  se  escreve  que  sustinhão 
os  braços  de  Moysés.  quando  orava  no  Monte,  Aaron,  eHur(*).  Eacrecen- 
tava,  que  ficando  maravilhado,  e  desejoso  de  entender  quem  seria  o  bem- 
aventurado  de  tamanha  honra  merecedor,  lhe  fora  dito  pola  mesma  Se- 
nhora, que  era  Frei  Gil,  Espanhol  da  ultima  Lusitânia,  Frade  da  Ordem 
dos  Pregadores,  seu  particular  devoto,  e  tal  pessoa,  que  assi  como  via 
sustentar-lhe  os  liraços,  assi  por  suas  orações,  e  merecimentos  se  man- 
tinha, e  augmentava  a  Ordem  dos  Pregadores.  Tentando  saber  mais,  des- 
aparecera a  visão,  e  o  sono,   licando-lhe  impresso  na  memoria  o  nome 
que  ouvira,  e  o  rosto  que  vira :  e  até  aquella  hora  andara  sempre  com 
desejos  de  encontrar  pessoas,  que  o  pudessem  satisfazer,  se  havia  tal  ho- 
mem no  mundo :  e  dava  graças  ao  Senhor  por  lhe  ter  mostrado  o  que 
buscava,  e  confirmado  com  isso  a  sua  visão.  Este  Cónego  vindo  a  Coim- 
bra referio  ao  nosso  Convento  o  que  temos  dito,  confirmando-o  cora  ju- 
ramento em  presença  do  Prior  Frei  Martinho  Martins,  e  dos  Padres  Frei 
Lopo,  Mestre,  e  Leitor  de  Theologia,  e  Frei  Bertolameu  Pires,  e  outros 
muitos. 

Mas  he  muito  de  ponderar,  que  sendo  estas  honras,  que  acompanhão, 
e  servem  á  virtude,  negoceadas  polo  mesmo  Doos  em  favor  de  seus  ser- 
vos, elles  as  aborrecem,  e  abominão,  e  assi  vivem  temerosos,  e  acaute- 

(•]  E\o.  17. 


Í>4Í  LIVIIO  II  I>A  ItlSTOr.IA  DE  S.   DOMINGOS 

lados  (Vullas,  como  de  perigosa  lenlação,  porque  sabem  que  o  cnemigo 
cominum,  cm  quanío  vivemos  no  cárcere  da  carne,  não  perde  occasião 
de  armar  silada,  e  envolver  veneno  em  tudo.  Assi  nenhum  varão  sisudo 
se  dá  por  seguro  em  quanto  vive,  inda  que  se  veja  nadar  em  mimos,  e 
favores  do  Ceo.  E  esta  deve  ser  a  rezão,  porque  lemos  de  muitos  San- 
tos antigos,  que  damavão  com  Paulo :  Quis  me  liherahil  de  corpore  mor- 
íis  Ãííii^i?  (';  Quando  acabaremos  de  nos  ver  livres  de  hun:i  corpo,  em  que 
ludo  he  morte?  Porque  ainda  que  a  esjxírança  do  premio  obi-iga  muito, 
l>arôce  que  faz  maior  força  o  receio  de  poder  oíienJer  ao  Senhor  que 
amão,  em  huma  vida  toda  cheia  de  laços,  e  occasiões  de  cair.  Desejava 
S,  Frei  Gil  como  Santo  romper  as  prisões.  Quiz  Deos  que  o  soubésse- 
mos por  mais  honra  sua  por  vias  extraordinárias,  não  só  por  sua  boca. 
Estefânia  Brocarda,  dona  iionrada,  e  rica,  que  vivia  em  Lisboa  em  santa 
viuvez,  e  opinião  de  virtude,  dava  cm  sua  casa  {>or  amor  de  Oeos  apo- 
sento, e  ração  a  hum  pobre  cego,  chamado  Estevão,  homem  virtuoso,  que 
contente  com  aquella  esmolla  traíava  só  de  se  encomendar  a  Deos  em 
continua  oração,  sem  andar  polas  ruas,  cego  nos  olhos,  mas  muito  alla- 
miado  na  alma.  E  hum  dia  despois  de  ter  dado  longas  horas  a  este  exer- 
cício, tendo  os  olhos  do  sua  alma  bem  espertos,  vio  que  subia  da  terra 
com  estranho  ímpeto,  e  veiOcida'de  hum  globo  de  fogo  ardente,  e  clarís- 
simo, e  notava,  que  chegando  a  emparelhar  com  as  estrellas  se  abria  o 
Ceo,  e  sahia  hum  Anjo,  que  se  lhe  punha  diante,  e  abanando  com  huma 
toalha  o  rebatia,  e  fazia  tornar  a  decer  pêra  a  terra.  Maravilhado  o  cego 
da  contenda,  e  estendendo  a  oraçlío  com  desejo  de  entender  a  signiílca- 
ção,  e  mysterío  delia,  foi  lhe  dito  polo  mesmo  Anjo,  que  a  bola  de  fogo 
era  a  alma  de  Frei  Gil  de  Santarém,  que  ahrazada  de  amor  Divino  es- 
tava anelando  por  se  ver  livre  do  peso  mortal,  e  voar  aos  braços  do 
Criador:  e  ellc  era  mandado  a  detel-o  pêra  bem  de  muitas  almas,  que 
Deos  queria  ainda  ganhar  por  seu  meio  na  terra,  pêra  lho  reiídercm  tam- 
bém despois  mais  altos  grãos  de  gloria.. Contou  o  cego  com  simplicidade 
o  que  se  lhe  representara  a  Estefânia  Brocarda  como  a  pessoa  espiiitual. 
E  ella,  porque  o  tinha  em  grande  conta,  e  juntamente  era  muito  devota 
do  Santo,  publicou  a  visão.  E  de  sua  boca  affirma  que  a  ouvio,  o  pri- 
meiro, e  mais  antigo  escritor  da  vida  do  Santo,  em  presença  de  Frei 
Gonçalo  Martins,  natural  de  Santarém,  e  ajunta  que  vlveo  o  Santo  despois 
quasi  cinco  annos. 

(•,  Uom.  T. 


VARTICrLAR  DO  REINO  BK  PORTCGAL  âUJ 

Passados  estes  cinco  aniios,  e  sendo  entrado  o  Santo  nos  oitenta  de 
sua  idade,  era-llie  a  vida  traballio,  e  dôr  mais  que  vida,  tanto  pola  ve- 
lhice, e  fraquezas  grandes  que  padecia,  como  polas  ânsias,  com  que  sus- 
pirava por  Chrisío,  e  desejava  fogir  da  terra,  que  fazião  por  si  ou  Ira  in- 
flrmidade.  Em  fim  chegou  o  messageiro  de  sua  Uberdade,  que  foi  huma 
febre  não  ardente,  nem  teimosa :  mas  elle  conhecendo-a  dava-lhe  graças 
com  alvoroço  do  que  permeio  d'ella  esperava  alcançar  (*).  Que  se  servir  a 
Deos  hc  possuir  Reinos,  como  dezia  Santo  António,  que  será  reinar  com 
elle?  Traíavão  os  Frades  de  físicas,  e  medicamentos:  desenganou-os  que 
não  perdessem  tempo,  poi'que  a  hora  de  seu  descanço  era  chegada.  Pe- 
dio,  e  recebeo  os  Sacramentos  da  Igreja  com  entranhavel  devação :  c 
entrando  o  dia,  que  Ghristo  nosso  bem  subio  com  gloria  ao  Padre  Eter- 
no, aniio  de  126^,  mandou-se  tirar  do  leito,  e  lançar  em  terra  sobre  huma 
manta  de  saco,  e  consolando  aos  Religiosos  com  palavras  cheias  de  amor 
e  brandura,  lembra va-llies  a  guarda  da  observância,  c  os  ganhos  cer- 
tos, que  n'ella  tinlião :  e  alegre  entre  tristes,  risonho  entre  chorosos,  le- 
vantou as  mãos  ao  Ceo,  e  pronunciou  com  voz  inteií-a  aquellas  palavras: 
In  manus  tuas,  Chvute  Deus,  commendo  spiritum  meiím.  E  logo  deixando 
cair  os  braços  em  Cruz,  rendeo  o  espirito  tão  sem  pena,  que  pareceo 
entrara  em  saboroso  sono :  e  tal  íicou  seu  rosto,  assi  bem  assombrado, 
e  composto.  Ao  amortalhar,  e  compor  do  corpo  pêra  a  sepultura,  lhe. 
foi  achada  á  raiz  da  carne  a  cinta  de  ferro,  que  em  Falência  cingio,  como 
atrás  contamos,  nos  princípios  de  sua  conversão,  e  nunca  mais  tirou.  E 
por  tal  se  guarda  no  Convento  como  preciosa  relíquia:  e  ho  pedida  de 
muitas  moiheres  em  partos  perigosos,  mostrando  o  successo,  que  dura 
ainda  naquelle  ferro  frio,  c  morto  a  virtude  dos  membros,  que  tanto 
tempo  acooipanliou  vivos. 

CAPÍTULO  XXIX 

Do-s  shmis  que  houce  da  rjloria  do  Santo,  por  diversidade  de  smcessos 
que  a  confirmarão. 

O  primeiro  sinal  publico,  e  patente,  que  houve  da  gloria  d'este  Sar- 
to,  foi  que  na  hora  que  espirou,  cessou  hum  cheiro  desagradável,  que 
de  ordinário  acompanha  os  enfermos,  e  ^ua  roupa,  e  aposentos,  e  subi- 
tamente se  trocou  em  outro  tão  suave,   e  cordial,  que  a  todos  consola- 

(0  B.  Ant.  iii  k'g.  OrJ.  Piíi-dic. 


210  i.ivr.o  II  DA  Hi.^ToniA  de  s.  do.mint.os 

va,  p  não  ]invi;i  qiicm  lhe  soii!)ossn  dnr  igiinl,  ou  semelhante  em  todos 
os  da  tei-ra.  O  se<iiiiido  íbi  o  que  deixamos  contado  na  vida  do  Santo 
Frei  Domingos  doCnbo,  qne  por  isso  não  repetimos  aqui  (*).  Também  se 
teve  por  cousa  n^ui  cerla  o  que  contava  Frei  André  o  Medico.,  que  liimi 
tempo  fora  seu  companlieii'o.  Dezia  elle  que  o  Santo  lhe  aparecera  com 
semhrante  sobre  maneira  fermoso,  e  cheio  de  luz,  vestido  de  humas 
roupas  como  do  neve  na  alvura :  e  porque  Frei  André  se  espantava  do 
o  ver,  lhe  dissera.  Vivo  estou  Frei  André,  não  vos  enganeis,  nem  cui- 
deis que  sou  morto.  Que  a  esta  hora  deixo  Santarém,  e  me  vou  por 
essas  aideas  a  pregar.  Ficou  Fr-ei  André  entendendo  que  o  Santo  des- 
pois  de  o  certiíicnr  de  sua  gloria,  lhe  quiz  apontar  em  alguma  remissão 
de  que  era  notado  no  olTicio  da  pregação,  e  fazer-llie  cortezammente  na 
morte  a  lembrança,  que  por  ventura  lhe  fazia  muitas  vezes  em  vida  com 
severidade. 

Soou  n'um  momento  por  toda  a  vi  Ha  o  falecimento  do  Santo,  e  po- 
demos dizer,  que  não  houve  homem  que  n'aquelle  dia  faltasse  na  nossa 
Igreja.  Ou  fosse  o  amor,  e  benefícios  com  que  o  Santo  sabia  obrigar  a 
todos,  ou  a  dòr  da  perda  de  hum  tal  vizinho,  e  pai  da  pátria;  que  muito 
he  pêra  sintir  ausentar-se-nos  hum  Santo  da  terra.  Anticiparão-se  os  Reli- 
giosos no  oflicio,  e  enterro,  respeito  da  solemnidade  do  dia,  e  com  re- 
ceio do  que  logo  virão.  Porque  tanto  que  acabada  a  Missa,  poserão  mão 
no  ataúde  pêra  o  levarem  ao  cemitério,  espertou-se  o  amor,  e  saudade 
n.)  povo:  procuravão  todos  chegar  a  vel-o,  e  tocai -o,  e  ficar  com  alguma 
memoria  sua:  e  forão-lhe  cortando  os  hábitos  com  tanta  pressa,  e  alvo- 
roço, que  a  não  se  estorvar,  ficara  o  corpo  com  indecencia.  Mas  sendo 
soterrado,  persuadio  a  devação  aos  que  não  poderão  alcançar  parte  no 
vestido,  que  tão  grande  Santo  também  communicaria  virtude  ás  taboas 
em  que  ali  viera.  Foi  cousa  de  ver  a  competência  com  que  o  ataúde  foi 
desfeito,  o  a  miudeza  com  que  se  rcpartio,  cuidando  cada  hum  que  le- 
vava pêra  casa  remédio,  e  saúde.  E  mostrou-o  a  experiência.  ííuma  po- 
bre velha  muito  aífeiçoada  ao  Santo,  não  pode  haver  mais  que  humas 
mui  pequenas  lascas  do  ataúde,  que  por  miúdas  ficarão  polo  chão,  e 
huma  pouca  de  terra  da  cova,  que  ainda  do  Santo  não  tinha  mais  que 
o  nome:  e  com  estas  peças  se  foi  recolhendo  pêra  casa  tão  rica,  e  con- 
tente, como  os  que  melhor  quinhão  houverão.  De  caminho  quiz  ver  huma 
vizinha  sua  atribulada  com  hum  filho  minino,  que  tinha  a  cabeça  aberta 

(.)  L.  %  c.  12. 


PARTICULAR  DO  RELNO  DE  POP.TlT.At.  VÚ 

de  hiima  perigosa  (ciida  havida  por  desastre.  Cliainava-sc  o  Pai  Miguei 
Grainho.  Entrando,  soute  que  llie  linlião  os  Cirurgiaens  feito  novas  fe- 
ridas, e  tirado  ossos,  com  o  que  elles  chamão  alegrar  o  casco;  c  despois 
lhe  sobreviera  luim  fluxo  de  sangue  aos  narizes  tão  importuno,  que  não 
havia  estancal-o:  e  ja  o  da  vão,  e  choravão  por  morto.  Acudio-lhe  a  l)oa 
velha  com  o  remédio  que  pêra  si  trazia  do  Convento,  e  a  mãi  do  ferido 
reccbeo  a  dadiva  com  fé:  e  pondo  tudo  sobre  a  cabeça  do  filho,  vio  effeito 
santo,  e  maravilhoso.  Porque  de  repente  cessou  a  corrente  do  sangue, 
com  que  foi  dado  por  Uvre  de  perigo,  c  pouco  despois  veio  ao  Convento 
são,  ofíerecer-se,  e  dar  graças  ao  Santo. 

Mas  não  deu  menos  occasião  de  louvar  a  Deos  outro  successo  cla- 
ramente milagroso,  e  também  do  mesmo  dia.  Juntando-se  toda  a  villa 
no  Convento  à  celebração  das  honras,  como  dissemos,  com  tal  frequên- 
cia, que  parecia  não  faltar  vizinho  nenhum :  houve  hum  tão  amigo  do 
qne  á  sna  fazenda,  e  gosto  pertencia,  e  tão  descuidado  do  que  devia  á 
solemnidade  da  gloriosa  Âscenção.  que  se  poz  pola  manhã  a  cavallo,  e 
se  foi  polo  termo  a  negocear  o  que  sem  perigo  pudera  fazer  no  dia  se- 
guinte, ou  n'outro  menos  festival.  Mas  não  tardou  a  ira,  ou  a  miseri- 
córdia Divina,  (que  huma  cousa,  e  outra  se  descubrio  no  successo),  em 
acudir  por  sua  honra,  e  pola  de  seu  servo.  No  meio  do  negocio,  ou  do 
passatempo,  em  que  entendia  Martim  Gonçalves  Guecha,  que  assi  se 
chamava  o  pouco  escrupuloso  fazendeiro,  foi  salteado  de  hum  accidenie 
de  gargantíi,  (he  seu  nome  entre  gs  médicos  esquinencia),  com  dores  agu- 
das, e  vehementes,  e  tal  aperto  da  respiração,  que  se  não  podia  fartar 
de  fôlego.  E  o  pior  era,  que  crecião  por  momentos  as  dores,  c  a  opres- 
são interior:  e  assentou  consigo,  que  se  o  mal  durava,  não  podia  es- 
capar de  afogado.  Mas  logo  foi  aparecendo  novo  trabalho  de  hum  tu- 
mor grande  por  toda  a  garganta  pola  parte  de  fura,  que  começava  a  des- 
cer pcra  o  peito.  Então  começou  também  entrar  em  si,  e  cair  na  conta 
da  irreverência  que  usara  contra  o  Santo  dia,  e  contra  o  Santo  defunto. 
Lançou-se  em  terra  arrependendo-se ,  e  reprendendo-se :  e  quanto  as 
dores  erão  mais  intensas,  que  como  ásinte  não  cessavão  de  apertar  os 
cordéis  do  tormento,  mais  merecedor  se  julgava  d"elias.  N"este  passo 
acudio  a  misericórdia  do  Senhor,  inspirando-Ihe  que  se  valesse  do  Santo, 
pêra  remédio  da  offensa  feita  â  Festa,  e  ao  Santo.  Como  não  ignorava 
as  maravilhas  que  o  Santo  ílzera  em  vida,  nem  duvidava  que  morto  ti- 
nha estado,  c  merecimentos  de  as  poder  fazer  maiores,  ajimtou  á  com- 


2i8        •  UVRO  II  T)A  HláTOrtlA  DK  S.  DO.M].\COS 

punrrio  Imni  voto  de  se  ir  confessar  sou  erro,  se  l!ie  dava  remédio,  na 
sua  casa,  o  diante  dos  seus  Frades:  e  como  penitenciado  de  culpas 
graves  apparecer  com  unia  vela  na  mão.  Logo  colliendo  hum  junco  cin- 
gio  com  ei!e  a  garganta,  que  já  com  a  inchação  tinha  extraordinária 
grossu!'a,  e  [irijmeíeo  com  ingrimas  que  tal  seria  a  medida  da  vela.  Era 
o  dia  de  (riumtbs,  e  de  não  haver  ninguém  descontente.  Acabando  de 
fazer  o  voto,  vio  logo  os  eiTeitos  de  sua  contrição,  e  do  poder  do  Santo. 
Tornou  todo  o  mal  atrás  poios  mesmos  passos  que  viera:  e  porque  caísse 
de  verdade  em  que  huma,  c  outra  cousa  tinha  origem  do.  Ceo,  cessou 
a  dôr,  desinchou  o  peito,  e  garganta,  faríon-se  de  ar,  não  se  fartando 
de  dar  graças  a  Deos,  e  ao  Santo,  de  se  ver  tão  milagrosamente  restituí- 
do á  saúde.  E  no  dia  seguinte  cum{»rio  sua  promessa  em  tudo. 

Por  maravilha,  que  também  cahio  quasi  no  felice  transito,  ajuntare- 
mos a  presente.  Tinha  visitado  ao  Santo  algumas  vezes  na  ultima  doença 
o  Alcaide  mor  da  villa  Mem  Peres,  fidalgo  honrado,  e  muito  seu  afíei- 
çoado:  e  tornou  de  huma  muito  desconsolado  pêra  casa,  por  entender 
(jue  ia  acabando  a  vida,  não  polo  que  a  doença  ameaçava,  mas  porque 
o  m.esmo  doente  lh'o  certificara.  Desapega-se  mal  nossa  natureza  do  que 
i\n\di.  P,^ão  sofria  o  fidalgo  haver-lhe  de  faltar  tão  bom  amigo,  mas  per- 
siiadido  do  que  temia,  dezia-lhe  com  sintimento.  Pois  meu  Padre  Frei 
Gil,  e  que  ha  de  ser  de  Mem  Peres  sem  vós?  Que  vida  ha  de  ser  a  mi- 
nlia,  quando  entrar  n'esla  casa,  e  não  vos  achar?  Quem  como  vos  me 
lia  de  aconselliar,  guiar,  e  consolar?  Vós  ireis  pêra  Deos  como  dese- 
jais, eu  ficarei  morrendo  por  me  ir  trás  vós.  Consoiava-o  o  Santo  com 
iium  novo  género  de  promessa.  Dezia-lhe  que  fiasse  d'elle,  que  despois 
de  morto  lhe  havia  de  fazer  mais  serviço,  do  que  fazia  vivendo:  c  em 
penhor  d'esta  verdade  lhe  prometia,  que  se  alguma  hora  chamasse  por 
elle  com  viva  confiança  em  Deus,  o  havia  de  achar  á  sua  ilharga  vivo, 
e  não  morto.  Eis  que  a  poucos  dias  despois  de  falecido,  adoece  Mem 
Peres,  e  foi  o  mal  em  tanto  crocimento,  que  os  Médicos  desconfiarão,  e 
declararão,  que  era  tempo  de  tratar  da  alma.  Mas  não  houve  que  fazer, 
senão  virar  pêra  a  parede,  como  outro  Ezechias,  e  buscar  soccorro  do 
Ceo(*).  Lembrou-se  das  promessas  do  seu  Santo,  e  fazia  conta  que  erão 
duas:  huma,  que  lhe  havia  de  ser  de  proveito  despois  de  morto:  outra 
que  o  havia  de  achar  vivo,  se  por  elle  chamasse.  Pois,  meu  Santo,  de- 
zia  o  enfermo,  se  algum  bem  me  haveis  de  fazer,  pêra  quando  mo  guar- 

(^  4.  HPg.  20. 


PARTlCri  AP.  DO  RF.INO  DF.  PORTUGAL  •        249 

dais?  Se  esporais  necessidade  grande,  nunca  a  íive  maior.  Se  n"esta,  que 
me  tem  em  braços  com  a  morte,  me  não  acudis,  nem  vos  acho  vivo, 
como  ,me  promc-ttcstcs;  pêra  quando  hei  de  esperar,  que  me  aproveiiem 
vossos  poderes?  No  meio  tfesta  aíílicçrio  se  llie  poz  o  Santo  dianíc  ale- 
gre, e  resplandecente,  e  vestido  de  roupas  de  gloria,  dizendo:  Eis-mo 
aqui  Mem  Peres.  Não  desconfieis,  que  Deos  lie  com  vosco.  EHe  vos  dará 
saúde,  e  logo.  As  palavras  dos  Santos  são  juntamente  obras.  Desapa- 
receo  o  Santo,  e  a  doença  juntamente  com  elle :  e  ficou  tão  são,  e  as 
forças  tão  inteiras,  que  estando  no  dia  atrás  sentenciado  á  miorte  poios 
médicos,  no  seguinte  visitou  a  sepultura  do  Santo,  e  em  sinal  de  saúde 
perfeita,  jantou  com  os  Frades,  do  peixe  da  Communidade.  os  quais  oii- 
vindo-lhe  o  caso,  notavão  antes  do  milagre  duas  profecias  do  Santo,  c 
no  milagre  cumprimenlo  dambas:  visíu  como  lhe  promeltera  duas  cou- 
sas, e  ambas  cumprir  neíle. 

CAPITULO  XXX 

Conto  resuscHarão  por  orações  feitas  ao  Santo  Ires  mortos: 
e  forão  licrcs  do  Demónio  quatro  pessoas. 

Bem  lie  que,  pois  temos  occasião,  comecemos  este  Capitulo  polas 
terras  em  que  o  Santo  naceo,  já  que  o  precedente  nos  levou  todo  a  em 
que  morreo.  Morava  no  lugar  deAlafÍjes,  vizinho  aBouzella,  donaTareja 
Martins,  prima  do  Santo,  molher  de  Rodrigo  Affonso,  de  sobrenome  Ca- 
pão, e  criava  cm  sua  casa  hum  minino  por  nome  Pedro,  filho  de  Lou- 
renço AíTonso  Capão  seu  cunhado,  com  amor  de  filho  próprio,  e  como 
adoptivo,  por  carecer  dos  naturais.  Ha  no  lugar  liumas  fontes  de  agoas 
quentes  medicinais,  e  tanques  junto  delias  pêra  os  banhos,  com  que  se 
curão  varias  doenças.  Nestes  he  fama  que  foi  curado  el-Rei  dom  Affonso 
Anriques,  sendo  minino,  da  aleijão  com  que  naceo.  Succedeo  que  aii- 
dando  o  minino  Pedro  brincando  cora  outro  junto  do  tanque,  forão  am- 
bos em  tombos  polas  escadas  á  agoa.  O  tanque  tem  altura,  elles  mini- 
nos:  quando  acudirão  os  que  se  acharão  perto,  não  derão  fé  mais,  que 
de  hum  que  tirarão  meio  afogado,  e  tal  que  foi  necessário  pendurarem- 
n'o  poios  pés  pêra  vomitar  a  muita  agoa  que  tinha  bebido.  Faltava  o 
Pedro:  como  pode  falar  o  companheiro,  que  o  era  continuo  «eu,  per- 
guntarão-lhe  por  elle:  respondeo  que,  quando  cairá  na  agoa,  ambts  liião 


250         •  MVnO  II  DA  Hlí^TORIA  DE  S.  DOMINGOS 

juntos,  e  pegados ;  e  não  sabia  mais.  Ficoii-se  entendendo  o  que  era, 
que  estaria  afogado  dentro  do  tanque,  e  já  cozido,  segundo  a  calidade, 
e  quentura  da  agoa,  que  em  breve  espaço  coze  ovos,  e  péla  galiniias,  c 
patos:  e  segundo  a  bora  em  que  cairá.  Fez-se  diligencia,  a  agoa  he  clara, 
apareceo  morto  no  fundo.  Lançarão-se  a  elle,  e  conta  a  bistoria,  que  foi 
quem  o  tirou,  bum  Sacerdote  nobre,  filbo  de  dom  Julião.  Posto  fora  não 
só  vinba  morto,  mas  já  meio  cozido  com  a  tez  do  rosto  denegrida,  e 
todo  o  corpo  incbado,  e  azulado.  Acudio  dona  Tareja:  quando  o  vio  tal, 
foi  o  pranto  mais  que  de  mãi.  Despnis  de  muitas  lastimas,  e  lagrimas, 
lembrada  do  parente  Santo  tornou  sobre  si,  e  com  devação  igual  á  dor 
dezia  posta  de  joelhos.  Ab  bom  Padre  Frei  Gil,  se  vós  sois  Santo,  e 
amado  de  Deos,  como  todos  criamos  que  o  éreis,  quando  entre  nós  vivieis, 
tornai-me  esta  criatura,  que  por  filho  criava,  e  como  filho  amava:  que 
bem  creio,  e  confio  que,  se  vós  quiserdes,  m'o  podeis  dar  vivo,  e  são. 
Não  são  vagarosas  as  dadivas  do  Ceo.  Acabava  de  pronunciar  as  ultimas 
palavras,  se  não  quando  contra  toda  ordem,  e  rezão  natural,  começa  o 
minino  a  abrir  a  boca,  e  vazar  agoa,  e  pouco  despois  abre  os  olhos,  e  com 
voz  clara,  e  distinta  chamou  pola  mãi,  e  por  sua  ama.  Foi  o  pasmo  em 
todos  não  menor,  que  o  prazer  da  mãi.  E  o  pai  a  brados  o  offereceo 
logo  á  Ordem  de  S.  Domingos.  E  despois,  quando  teve  idade,  o  levou  a 
Santarém  a  presental-o  diante  das  relíquias  do  santo  parente,  como  cousa 
sua  por  novo  titulo;  e  ao  Prior  da  casa  pêra  lhe  lançar  o  habito,  (dizem 
as  memorias,  que  era  Prior  Frei  Domingos  de  Caieruega  chegado  em  snn- 
gue  a  nosso  Santo  Patriarcha.)  Autenticou-se  o  caso  por  autos  públicos: 
forão  testimunhas  dona  Tareja,  e  dona  Maria  Serram  mãi  do  moço:  e  o 
clérigo  que  o  tirou,  e  seu  pai  dom  Julião  que  o  teve  nos  braços,  e  mui- 
tos outros.  O  moço,  em  quanto  viveo,  ficou  sempre  amarelo,  e  Sem  cor 
de  rosto :  permissão  Divina  pêra  perpetuo  testimunho  do  milagre. 

Mas,  se  neste  fez  alguma  força  ao  Santo  a  carne,  e  o  sangue,  dire- 
mos logo  de  outros  dous  resuscitados,  em  que  só  verdadeira  devação 
teve  lugar.  Em  Lisboa,  na  freguezia  de  Santa  Justa,  ftileceo  hum  mance- 
bo nobre  de  doença  prolongada.  Pranteavão-no  os  pais,  e  parentes,  e  so- 
bre todos  huma  avó  que  o  tinha  por  lume  dos  seus  olhos.  Não  era  hoi'a 
de  o  darem  á  terra,  quando  acabou  de  espirar,  porque  anoitecia.  Fica- 
rão-no  acompanhando,  e  carpindo  toda  a  noite.  Quando  foi  meia  noite, 
começou  a  tocar  o  sino  de  S.  Domingos  a  Matinas :  e  aquelle  som  fez 
lembrança  a  alguns  peia  irem  consigo  discorrendo  polo  cuidado  com  que 


PARTICn.AR  no  REINO  DE  PORTUGAL  2.jl 

OS  Religiosos  se  levaiitavão  naquella  hora:  c  fazião  violência  á  natureza 
pêra  cantarem  louvores  a  Deos:  que  poios  mesmos  passos  correia  S. 
Frei  Gil,  e  se  fizera  Santo,  c  milagroso,  c  tão  celebre,  como  então  an- 
dava na  terra :  e  assentou-se  entre  todos  mandarem  pedir  ao  Convento 
liuma  relíquia  sua.  Yierão  com  ella  os  P>ades,  poserão-na  soiíre  o  de- 
funto, e  rezando  algumas  orações,  pareceo  (jue  fizera  o  corpo  movimento. 
Acudirão  aver-lhe  o  rosto:  aclião  sembrante,  c  pulso  de  quem  tornava  â 
vida,  e  com  espanto  de  todos  tornou  logo,  não  só  vivo,  mas  tamljem 
são.  Assi  empregarão  em  sacrificios  de  graças  o  que  tinhão  aparelhado 
pêra  mortuorio. 

Na  villa  de  Estremoz  acabava  de  dar  a  alma  ao  Criador  hum  man- 
cebo mirrado  de  huma  trabalhosa  infirmidade.  Era  único  em  casa.  Des^ 
pois  de  muito  chorado  tratou-se  de  morlalha,  sepultura,  e  exéquias.  En- 
trou a  acompanhar  a  mãi,  e  parentas  huma  dona  principal  do  lugar,  cha- 
mada dona  Anna:  e  trazendo  consigo  huma  relíquia  do  Santo,  que  em 
grande  estima  tinha,  e  guardava,  chegou-se  ao  defunto,  e  chamando  era 
seu  coração  com  muita  confiança  polo  Santo,  poz-lha  sobro  os  peitos, 
Milagroso  eíTeito :  como  se  com  ella  lhe  trouxera  vida.  e  aima,  tornou, 
viveo,  sarou,  levantou-se,  e  dentro  de  poucos  dias  foi  a  Santarém  visi- 
tar o  Santo,  e  contava  aos  Padres  que  sua  alma  desatada  do  corpo  vira 
o  venerável  Padre  vestido  em  seu  habito  Dominico,  e  elle  lhe  mandara 
que  tornasse  a  animar  aquelles  membros  já  frios,  e  defuntos :  e  polo  be- 
neficio recebido  lhe  hia  render  as  graças. 

Succedeo  a  huma  pobre  molher  em  Alanquer  cair  do  hum  eirado 
tão  alto,  que  liuns  homens  que  acertarão  vel-a,  quando  vinha  poios  ares, 
a  davão  por  feita  pedaços,  não  só  por  morta.  Chegando  a  ella  achão-na 
sam,  e  salva,  e  sem  nenhuma  lesão.  Pasmados  de  a  ver  com  vida,  de- 
zia-lhes  a  molher  alegremente,  que  logo  em  se  sinlindo  cair,  chamara 
polo  seu  Santo  Frei  Gil  em  sua  alma,  e  elle  lhe  valera :  e  dezia  seu 
Santo,  porque  o  mesmo  favor  lhe  fizera  em  tempos  atrás  na  doença  de 
hum  anno,  onde  cada  dia  tinha  a  morte  presente:  mas  então  fora  sarar, 
agora  resusciíar. 

A  estes  quatro  livres  das  leis  da  morte,  ajuntaremos  outros  quatro 
livres  das  afrontas,  e  insultos  do  Demónio,  que  despois  que  por  permis- 
sivo Diviuca  tem  licença,  (sem  ella  não  pôde  nada),  pêra  nos  perseguir,  he 
mais  temeroso  por  feio,  que  a  mesiua  morte:  e  mais  prejudicial  por 


:2o2  i.ivno  II  DA  iiisTonrv  de  s.  domingo-; 

maligno,  e  polo  grande  ódio  que  tem  aos  homens,  que  todo  o  mal  do 
mundo. 

Seis  annos  havia  que  era  atormentada  de  grandes  tremores  de  cora- 
ção Maria  Sucira  molher  pobre,  moradora  em  Santarém,  na  freguezia 
de  Santo  Estevão.  E  já  se  sabia  que  não  procedião  de  causa  natural. 
Aparecera-lhe  o  demónio  duas  vezes :  e  tal  visía  fez  eíTeitos  conformes. 
Ficarão-lhe  além  do  mal  do  coração  huns  estremecimentos  de  todo  o 
corpo,  que  lhe  acabavão  a  vida  com  tormento.  E  o  enemigo  não  cessa- 
va de  a  perseguir  com  infernais  tentações,  que  acabasse  de  sair  de  huma 
vida  cançada,  penosa,  e  triste;  e  pois  tinha  mãos,  não  esperasse  outro 
meio,  que  não  tinha  que  esperar  de  Deos.  Outras  vezes  se  persuadia  que 
tinha  o  Demónio  dentro  nas  entranhas,  e  que  lh"as  arrancava  de  seu  lu- 
gar. A.  isto  ajuntava  dar-lhe  com  mão  invisível  cruéis  bofetadas  no  rosto, 
que  a  fazião  ir  fogindo  como  desasizada  tora  da  casa.  Assi  andava  a  po- 
bre sem  cor,  nem  figura  de  criatura  humana,  tão  avexada  destes  traba- 
lhos, como  do  medo  delles,  que  era  guerra  por  si,  quando  cessavão. 
Confessava-a  Frei  André  da  Cruz  varão  espiritual :  fazia  todas  as  diligen- 
cias pola  quietar,  mas  perdia  tempo,  e  trabalho.  Ei-a  grande  a  força  do 
enemigo :  a  molher,  de  seu  fraca,  ajudava-se  pouco  dos  bons  conselhos. 
Não  havia  hum  mez  que  o  Santo  era  passado  a  melhor  vida :  amiudavão 
milagres  em  sua  sepultura.  Mandou-lhe  o  (Confessor  que  continuasse  na 
Igreja,  e  pedisse  remédio  ao  Santo.  Ao  terceiro  dia,  que  tinha  começado 
a  devação,  estando  levemente  adormecida,  reprcsentou-se-lhe  que  via  o 
Santo  grandemente  fermoso  em  vestido,  e  sembrante,  e  parecía-lhe  que, 
se  chegava  a  elle  com  humildade,  e  tomando-lhe  a  borda  da  capa,  pu- 
nha-a  srobre  a  cabeça,  o  dezia-lhe:  líavei  piedade  de  mi,  Padre  santo,  li- 
vrai-me  das  affronías  deste  enemigo.  E  o  Santo  hie  respondia.  Vai-te 
embora,  filha,  busca-me  no  lugar  de  minha  sepultura,  que  lá  me  acha- 
rás. Acordou  a  afíligida,  com[)rou  candeas,  foi  com  ellas  onde  era  man- 
dada. He  cousa  certa,  que  desdaquella  hora  nunca  mais  se  lhe  alreveo 
o  enemigo. 

Domingos  João,  que  em  Coimbra  tinha  a  seu  cargo  arrecadar  as  ren- 
das del-Rei,  fora  em  vida  do  Santo  particular  amigo,  e  devoto  seu,  e  á 
sua  conta  fazia  muitas  caridades  aos  nossos  Frades,  e  ao  Convento.  Co- 
mo sabia  muito  delle,  quiz  íicar  com  huma  peça  sua,  e  usou  desta  ma- 
nha :  mandou-lhe  fazer  huma  capa  nova,  e  pedio-lhc  que  a  trocasse  com 
a  que  trazia  bem  usada,  e  velha.  Pareceo  ao  Santo  que  era  receber  es- 


PAHTICULAR  DO  REI.NO  DE  I'ORTL'GAL  253 

molla,  acto  de  pobreza,  e  humildade,  não  fez  diíTiculdade.  D"ahi  a  mui- 
tos annos  aconíeceo  entrar  o  Demónio  em  hum  Domingos  Pires  seu  vi- 
zinho, e  alormental-o  tão  tei'ribehnente  que  fazia  grande  lastima  a  vida 
que  passava.  Vindo  á  noticia  de  Domingos  João  hum  dia,  que  o  pobre 
mais  tiranizado  estava,  lançou-lhe  a  capa  do  Santo  ás  costas.  Foi  effeito 
nunca  cuidado.  Raivando,  e  bramindo  se  sahio  do  corpo,  e  nunca  mais 
se  atreveo  a  tornar  a  elle. 

A  hum  mancebo  chamado  Abiil,  de  obrigação  de  Fernão  Fernandes 
liomem  principal  de  Thomar,  tomou  hum  mal  repentino,  e  não  enten- 
dido dos  médicos:  o  qual  llie  dava  com  huma  dor  de  coração,  e  das 
entranhas  tão  desmedida,  que  arrebentava  em  fúria,  e  fernesis:  e  de 
maneira  forcejava,  que  muitos  homens  juntos  o  não  podião  ter,  nem  to- 
Iher-lhe  desfazer,  e  espedaçar  quanto  podia  alcançar  com.  os  dentes,  tan- 
to em  si,  como  em  outrem,.  E  não  havia  remédio  pêra  llie  defenderem 
comer-se  aos  bocados,  se  não  era  leiído-o  alado  em  aspa  de  pés,  e  mãos, 
e  amarrando-lhe  até  a  cabeça.  Neste  marlyrio  vivia  o  pol.ire,  e  confessa- 
va já  que  era  espirito  mão,  não  humor,  quem  l!)"o  causava.  Acertou  de 
entrar  por  casa  dom  Lourenço  de  Thomar,  Procurador  dos  cavaleiros 
Templários,  que  ali  tinhão  seu  Convento,  homem  religioso,  e  de  auto- 
ridade. E  notando  o  que  passava,  lançou  mão  ao  seio,  e  tirou  delle  hum 
papel,  que  lhe  meíeo  nos  peitos.  Foi  caso  de  pasmar.  Porque  repentina- 
mente de  tigre  furioso  tornou  hum  cordeiro,  e  dezia  com  mansidão.  Ó 
bom  Deos!  ó  bom  Senhor!  eu  estou  são.  E  acrecenlava  falando  com  dom 
Lourenço:  De  verdade  senhor,  que  ou  vossas  mãos  tem  alguma  grande 
virtude  secreta:  ou  trazeis  convosco  cousa  que  a  tenha.  Porque  em  me 
tocando  essa  mão,  fiquei  livre  de  huma  oppressão  atrocíssima.  Dom  Lou- 
renço derramando  lagiimas  de  prazer  polo  eíTeito  que  via,  declarou  en- 
tão aos  circunstantes  que  nacia  a  maravilha  da  terra  da  sepultura  de  Santo 
Frei  Gil,  que  consigo  trazia.  E  porque  ficasse  mais  patente  o  milagre, 
permittio  o  Senhor,  que,  despois  de  solto  das  prisões,  o  acometesse  de 
novo  o  enemigo  apertando-lhe  com  mão  invisível  huma  perna,  e  joelho 
tão  duramente,  que  o  pol)re  voz  em  grita  pedia  que  lhe  acudissem  com 
a  terra  santa  ao  lugar,  se  não  que  morria.  Aplicou-se-lhe,  e  no  m.esmo 
ponto  cessou  a  dor,  e  fogio  quem  lira  dava.  Terceira  vez,  indo  hum  dia 
pêra  entrar  em  casa,  deu  com  elle  de  rosto,  que  o  esperava  da  banda 
de  dentro  cercado  de  hum  numero  infinito  de  Demónios,  que  lhe  tinhão 
a  porta  tomada.  Ficou  assombrado,  e  não  se  atrevia  a  entrar,  valeo-se 


:25i  LIVHO  II  PA  HISTOUIA  DK  S.   DOMINGOS 

do  primeiro  soccorro:  lançarão-llie  ao  pescoço  a  lerra  do  Santo:  como 
a  trouxe,  nunca  mais  a  enemigo  teve  mão  contra  elie. 

Falta-nos  o  quarto  dos  que  prometemos.  Este  era  hum  morozinho 
fillio  de  Silvestre  Peres,  Taballião  de  Santarém,  e  de  sua  molher  Domin- 
gas Peres.  Sendo  muito  amiúde  acometido,  e  maltratado  do  Demónio, 
lançou-lhe  a  mãi  ao  pescoço  huma  nomina  com  terra  do  Santo:  foi  de- 
fensivo com  que  ficou  de  todo  livre.  A  cabo  de  hum  anno  torna  o  mal- 
dito a  fazer-lhe  guerra.  Sentidos  os  pais  buscarão-lhe  o  pescoço;  con- 
fessou, que,  dando-se  })or  são,  largara  a  nomina.  Armarão-no  com  outra, 
e  bastou  pêra  ficar  toda  a  vida  em  paz. 

CAPITULO  XXXI 

Como  se  converleo  hum  Mouro,  c  forão  curadas  algumas  pessoas 
de  (jrandes  males  por  meio  de  relíquias  do  Sanlo. 

Aos  casos  milagrosos,  que  temos  pêra  este  Capitulo,  fará  principio 
hum,  em  que  grandemente  resplandece  a  misericórdia  de  nosso  bom 
Deos ,  e  se  offerece  matéria  de  consolação  pêra  todo  animo  fiel,  e 
pio.  Dona  Maria  Bernardes  viuva,  moradora  em  Santarém,  dona  no- 
bre por  geração,  e  virtude,  tinha  hum  escravo  Mouro,  que  desejava 
ver  bauiizado  por  lhe  ganhar  a  alma,  e  í)orque  via  nelle  tão  boas  partes 
naturais,  que  lhe  fazia  lastima  haver-se  de  perder.  E  he  de  considerar, 
que  nenhuma  rezão  bastava  pêra  o  persuadir.  Tão  cego,  e  emperrado 
vivia  com  Mafamede,  que,  quando  se  via  convencido,  porque  não  podia 
fazer  mudo  a  quem  o  convencia,  fazia-se  a  si  surdo  polo  não  ouvir,  me- 
tendo os  dedos  nos  ouvidos.  Vindo  a  adoecer  de  huma  febre  de  má  ca- 
lidade,  tinha  a  senhora  de  seu  hum  escapulário  do  Santo,  que  muito  esti- 
mava ;  poz-lho  á  cabeceira  por  sua  mão  com  a  fé,  que  lho  fazia  estimar, 
e  piedade,  que  havia  do  escravo,  dizendo,  que  fiava  na  santidade,  de  cuja 
fora  aqucila  peça,  que  ou  havia  de  ter  saúde  no  corpo  vivendo,  ou  na 
alma  morrendo  Christão.  Assi  o  deixou  huma  tarde,  e  foi-se  ao  Convento 
a  Vésperas.  Entre  tanto  obrou  a  santa  relíquia  invisivelmente  raro,  e 
visto  effeito  de  Pregador.  Gritou  o  Mouro  que  lhe  chamassem  sua  se- 
nhora, que  logo  logo  se  queria  l)autizar,  que  não  houvesse  tardança. 
Acudirão  dom  Bernardo,  e  Giraldo  Soares,  Lourenço  Mendes,  e  dona 
CaLnina,  todos  irmãos  de  drma  Maria.  Juntarão-se  de  fora  dona  Gontjna, 


1 


PAUTICLLAU  DO  lUil.NO  ÍH:  I'Oim  GAL  2Jj5 

e  Orraca  Gil  vizínlias:  foi  grande  o  alvoroço,  e  contentamento.  Recebeo 
a  agoa  do  santo  Bautismo  com  iiiima  fé  tão  viva,  como  quem  merecera 
ter  por  pregador  o  Espirito  Santo,  que  o  provcnio  sobrenaturalmente. 
Foi-se  agravando  a  doença,  e  elle  crecia  na  fé.  Pareceo  bem  dar-se-Uio 
o  Santissimo  Sacramento  por  viatico :  e  foi  bem  a  tempo  o  Divino  so- 
corro. Porque  começou  a  ser  tentado  com  velicmencia,  mostrando-se-lhe 
á  vista  muitos  Demónios,  contra  os  quais  usava  das  armas  da  Cruz  o  no- 
vo soldado  d'aquella  celestial  bandeira,  persinando-se  muitas  vezes,  e 
pedindo  a  todos  que  o  ajudassem.  No  meio  d'este  combate  íicou  de  re- 
pente suspenso,  fazendo  geitos  no  rosto,  liora  de  alegria,  e  bumildade, 
hora  de  admiração,  e  como  quem  via,  e  ouvia  cousas  de  que  muito  se 
agradava.  Passado  hum  espaço,  contou  que  estando  a  casa  cheia  de  gente 
disforme,  e  medonha,  subitamente  entrara  huma  luz  como  de  muitas  to- 
chas juntas,  que  a  lizera  fogir :  e  logo  vira  a  Christo  Nosso  Salvador 
com  a  Virgem  bemdita  sua  Mãi,  que  o  animavão  contra  os  medos  da 
companhia  inferna!.  E  despois  entrara  Gonçalo  Mendes  seu  senhor,  e  ma- 
rido de  dona  Maiia  Bernardes  acompanhado  de  huma  íillta,  defuntos  am- 
bos, e  ambos  cercados  de  claridade  lhe  dezião  que  se  fosse  cora  elles.  E 
o  mesmo  lhe  dezia  também  um  Frade  Dominico,  que  via  muito  resplan- 
decente e  formoso.  Referia  isto  o  bemavcnturado  cheio  de  consolação,  e 
espanto,  e  assi  voou  aos  gozos  eternos.  Ninguém  houve  que  duvidasse 
que  todo  este  bem  tevera  origem  do  escapulário  do  Santo,  e  que  elle 
era  o  Frade,  que  o  defunto  vira. 

Sobre  cousas  tão  religiosas  como  esta,  e  muitas  que  temos  contado, 
parecia  supérfluo  despendermos  tempo,  e  papel,  em  ajuntar  outras,  que 
não  são  de  tanta  maravilha,  nem  podem  dar  mais  honra  ao  Santo.  Com 
tudo,  porque  seria  fazer  injuria  aos  que  antes  de  nòs  escreverão,  se  dei- 
xássemos de  apontar  os  casos  que  elles  não  desprezarão  por  menos  im- 
portantes, diremos  mais  alguns  com  a  maior  brevidade  que  pudermos. 

Huma  molher  rica  de  Torres  novas  teve  huma  postema  no  rosto,  de 
humor  tão  venenoso,  que  lhe  veio  a  lavrar,  e  comer  toda  huma  queixada 
em  forma  que  já  lhe  descobria  os  dentes,  e  nelles,  e  na  boca  hia  fazendo 
tal  impressão,  que  a  mesma  enferma  não  podia  sofrer  o  hálito  que  d"ella 
procedia.  Foi-se  a  Santarém  pêra  se  valer  de  médicos,  e  cirurgiães  de 
mais  nomo.  Ahi  visitou  huma  emparedada  de  fama  em  virtude  pêra  lho 
pedir  suas  orações.  Esta  lhe  aconselhou  que  buscasse  só  remédios  do 
Ceo,  en.comcndando-se  a  Fr.  Gil.  Obedeceo,  foi-se  ao  Convento,  poz  a 


21)6  LIVRO  II  DA  HISTOIUA  DE  S.  DOMINGOS 

íace  fistulada  soljre  a  sepultura  do  Santo  com  devação,  e  lagrimas,  e 
polvorizou  a  chaga  com  terra  d'ella.  Começou  logo  a  sintir  melhoria :  e 
ao  quarto  dia  se  achou  de  todo  são,  sem  lhe  ficar  no  rosto  mais  sinal 
que  huuias  leves  costuras.  O  Mestre  Frei  André  de  Resende,  seguindo  a 
Frei  Pedro  Paes,  hum  dos  escriptores  antigos  da  vida  do  Santo,  diz  que 
esta  molher  era  de  Villa  nova  de  Yermoim.  Possível  he  que  fossem  dous 
milagres  distintos. 

Outra  semelhante  postema  naceo  a  huma  moça  de  serviço,  que  em 
sua  casa  tinha  hum  homem  nobre  de  Valença  de  Alcântara,  por  nome 
João  Peres.  Tevera  principio  entre  as  cspadoas,  foi-lhe  subindo,  e  to- 
mando pescoço,  e  garganta  com  dureza,  e  inflammação,  que  dava  sinais 
mortaes,  porque  lhe  tolhia  a  respiração,  e  a  faia.  Chamão  os  médicos  a 
este  género  de  postcmas  cai'bunculos,  e  enlrazes :  são  de  má  calidade, 
porque  se  gerão  de  humor  colérico,  e  adusto,  e  por  essa  causa  em  tem- 
pos de  contagião  são  havidas  por  tão  mortíferas.,  como  as  nacidas  ordi- 
nárias da  peste.  Havendo  já  três  dias  que  não  falava,  e  a  postema  sem- 
pre mais  rebelde,  e  sem  sinal  de  suporação,  lenibrou-se  o  Amo  dos  mi- 
lagres de  S.  Frei  Gil,  de  que  no  mesmo  lugar  havia  grande  fama  por 
relação  de  parentes,  que  a  mesma  enferma  tinha  em  Santarém  ;  e  íez  vo- 
to, se  lhe  dava  saúde,  de  ir  com  ella  visitar  sua  sepultura.  Foi  cousa 
vista,  e  certa,  que  trás  o  voto  saltou  por  si  a  escara,  e  vasou  grande 
copia  de  matéria,  com  que  logo  desafogou  a  garganta,  e  podo  respirar, 
e  falar  livremente,  e  em  breve  foi  sasn. 

Do  mesmo  mal  tinha  em  Santarém  hum  Mendo  João  sua  molher  tão 
chegada  ao  esti-emo  da  vida,  que  não  tratava  já  mais  que  de  remédios 
da  alma.  Quando  a  vio  n'este  estado,  foi  correndo  ao  Convento :  toma 
cm  hum  lenço  hurna  pouca  da  terra  do  Santo :  assí  atada  lha  chegou  ao 
pescoço,  onde  tinha  a  nacída.  Cessou  logo  a  dor,  que  era  mui  veliemen- 
te,  e  abaixou,  e  resolvco-se  a  postema,  e  ficou  a  enferma  de  todo  livre. 

Na  mesma  vilia  era  moradora,  mas  de  maior  mal  atormentada,  huma 
Mor  Paes.  Porque  linha  deniro  na  boca  hum  cancro  sem  liie  valer  mezi- 
iiiia,  nem  a  esperar  da  terra.  Sonhou  huma  noite  que  hia  á  sepultura  do 
Santo,  e  com  terra,  que  d'clla  tomava,  alcançava  saúde.  Tanto  que  luzio 
a  m.anham  fez  o  sonho  verdadeiro  em  tudo :  foi  á  cova,  tomou  terra, 
aplicou-a  ao  mal,  c  ficou  sam. 

A  Martíin  João,  Clérigo  do  Bispado  do  Porto,  se  lhe  abrio  huma  chaga 
no  braço  esquerdo  de  hum  humor  tão  corrosivo,  (cliamão-lhe  os  Cirur- 


PARTICILAR  no  REINO  DE  POUTLT.AL  %n 

giães  fogo  de  Sanlo  Antão),  que  lhe  tinha  lavrado  ahi'  o  cotovelo,  comida 
a  carne,  descubertas  as  canas,  e  era  estado  que  de  mão,  e  braço  não  linha 
já  mais  que  ossos  secos.  E  porque  se  entendia  que  o  dano  não  pararia 
no  cotovelo,  era  conselho,  fe  o  pobre  Clérigo  estava  já  persuadido;,  dei- 
xar coilar  o  l»i\aco  por  salvar  a  vida.  Xeste  ponlu  lhe  lembrarão  amigos 
que  se  encomendasse  ao  Sanío  Frei  Gil,  cujas  maravilhas  andavão  na 
boca  de  todos.  Aceitou  o  conselho,  offereceo-se  de  coração  ao  Santo  com 
voto  de  visitar  sua  casa,  se  lhe  dava  remédio.  He  cousa  averiguada  que 
logo  parou  o  mal,  e  acudio  a  natureza  a  cul)rir  de  nova  carne  as  canas, 
e  em  pouco  tempo  não  houve  diíTerença  de  hum  braço  a  outro. 

Quatro  mezes  havia  que  hum  filho  do  procurador  do  nosso  Convénio 
de  Santarém  tinha  na  cabeça  huma  grande  inchação,  sem  haver  remédio 
que  lha  moilificasse,  ou  resolvesse.  E  dezião  os  médicos  que  procedia 
de  fígado  abrazado,  e  corrupto:  e  assi  se  bia  o  moço  consumindo.  Acu- 
dio o  pai  ao  Santo,  encomendou-lbo  com  lagrimas,  e  amor  de  pai,  trouxe 
da  sua  terra,  lançou-lha  sobre  a  cabeça.  Era  isto  em  estado  que  o  moço 
estava  já  em  artigo  de  morte,  olhos  fechados,  sem  fala.  No  mesmo  ponto 
que  lhe  tocou  a  terra  espertou  gritando,  que  hum  Frade  de  S.  Domingos 
lhe  abrira  a  cabeça.  Virão  logo  correr-lhe  delia  hum  rio  de  matéria  co- 
mo de  postema  madura,  estando  até  aquella  hora  rebelde,  e  desespera- 
da ;  e  em  poucos  dias  convaleceo  de  todo. 

CAPITULO  XXXÍI 

I)e  muitas  e  varias  doenças  que  terevão  milagrosa  cura,  encomenâaiido-se 
os  enfermos  ao  Sanío,  ov  usando  de  suas  relíquias. 

He  o  mal  de  hydropesia  poucas  vezes  curavel.  E  em  gente  pobre 
quasi  todos  os  males  tomão  esta  calidade.  Estava  enfermo  delia,  havia 
dous  annos,  Martim  Domingues  Barqueiro  de  Santarém,  tinha  jterdido  a 
fazenda  em  curas,  e  não  alcançado  cura.  Despois  de  maríyrizado  com 
fontes,  e  chagas,  que  lhe  abrirão  pêra  lhe  vazarem  a  agoa,  e  tudo  sem 
proveito,  foi-se  hum  dia  sobre  hum  bordão  visitar  o  sepulcro  do  Santo. 
Tornando  cançado  do  caminho,  e  da  iníirmidade  adormeceo,  e  começou 
a  sonhar,  que  bia  pêra  hum  lugar  do  termo  afadigado  de  se  não  poder 
ter  nas  pernas,  e  encontrava  com  o  Santo,  que  bem  conhecia.  Alegre 
com  tão  bom  encontro  lançava-si-'-llie  aos  pés,  pedia-lhe  que  lhe  desse 

VOL.  I.  17 


258  LIVHO  II  DA  HISTUKIA  DK  íi.   DOMINGOS 

remédio,  C(Jino  dava  a  todos.  E  o  Santo  lhe  perguntava  que  doenra  ti- 
nlia,  e  pondo-lhe  as  mãos,  onde  a  força  delia  o  trazia  mais  inchado,  de- 
zia.  Tornai-vos  pêra  casa,  que  já  ides  são.  Acordou  com  hum  leve  acci- 
dente  de  dissenleria,  que  bastou  pêra  o  desinchar  de  lodo,  e  cobrar 
saúde. 

A  outro  homem  da  mesma  viila  deu  no  rosto,  e  cabeça  huma  ex- 
traordinária inchação,  e  hia-lhe  crecerido  até  decer  ao  peito,  e  garganta, 
com  tal  disformidade,  que  quasi  se  lhe  não  enxergavão  olhos  nem  feição 
de  rosto.  Acudio  ao  Santo,  poserão-lhe  sobre  a  cabeça  hum  retalho  do 
seu  escsqiuiario.'  Logo  sem  haver  dilação  de  tempo  em  meio,  e  á  vista 
de  muitas  pessoas,  se  lhe  abrio  huma  fonte  debaixo  da  barba,  por  onde 
evacuou  tanto  humor,  que  ficou  enxuto,  e  são,  como  quando  o  mais  era. 

Payo  Nunes,  natural  de  Santarém,  sendo  homem  que  vivia  de  seu 
trabalho,  veio  a  ter  por  desastre  liuma  disforme  quebradura  de  ambas 
as  virilhas.  Como  deixou  de  ganhar  jornais  polo  impedimento  do  mal, 
cahio  em  estrema  pobreza,  (doença  maior  que  a  prim.eira),  e  pêra  pedir 
o  remédio  polas  portas  determinou  mudar  terra,  onde  não  fosse  conhe- 
cido. Mas  quiz  primeiro  vit^iíar  o  Santo,  e  representai'-lhe  sua  neci  ssida- 
de,  e  resolução :  foi  ao  Convento,  chorou,  lasíimou-se,  pedio  misericór- 
dia, e  trouxe  consigo  da  terra  da  sepultura.  Logo  na  noite  seguinte,  es- 
tando esperto,  e  sem  dormir,  vio  cliegar-se  o  Santo  a  elle,  e  por-llse  as 
mãos  com  tanta  força,  que,  sintindo  gravíssima  dor,  gritou,  ai  de  mi,  Pa- 
dre Frei  Gil,  que  me  mataste.  O  Santo  lhe  respondeo  que  não  temesse, 
que  ficava  são.  E  assi  foi. 

Do  mesmo  mal  alcançarão  saúde  por  diílerenles  vias  Domingos  Mar- 
tins de  Coimbra,  e  Raimundo,  Francez  dcMompelher.  O  Domingos  Mar- 
tins padecia  grandes  tormentos  secretos,  não  querendo  níanifestar-se  a 
médicos,  ou  por  honesto,  ou  por  corrido  da  enfermidade.  Yendo-se  em 
huma  conjuncção  de  Lua  apertado  de  hum  accidente  de  extraordinárias 
dores,  nem  isso  bastou  pêra  se  sojeiíar  a  mezinhas  humanas :  falou  com 
o  Santo  em  sua  airna,  dizendo  que  a  elle  só  queria  por  seu  Medico,  a 
elle  remetia  seu  remédio  com  voto  que  visitaria  sua  casa,  se  lho  dava. 
Não  tardou  o  Santo  em  lhe  fazer  conhecer  quanto  acertara :  repentina- 
mente se  achou  sem  dores,  e  com  as  roturas  soldadas.  O  Francez  cobi- 
çoso de  saúde,  mais  que  pejado  da  deformidade,  sairá  de  sua  terra  pêra 
Çaragoça  de  Aragão  ;í  fama  de  Mestres,  que  ali  curavão  semelhantes  tra- 
balhos. Gastou  com  ellcs  sua  pobreza ;  abri]'ão-no  duas  vezes,  coserão- 


PAllTiCl  I.All   DO    [\i:iXO   nK   POlíTlGAL  2'iO 

no:  despois  de  fortes  inarlyrios  foi  a  cura  tão  pouco  duravfl,  que  a  pou- 
cas jornadas  despois  de  saido  de  Çaragoça  pêra  Santiago  feito  Romeiro, 
como  caminhava  a  pé,  tornou  ao  primeiro  estado :  e  continuando  todavia 
o  caminho,  abrio  segunda  rotura,  e  ficou  com  duas.  Assi  atormentado 
acabou  sua  romaria,  e  fazendo  conta  que  em  Lisboa  acharia  embarcação 
que  oposessc  junto  de  sua  terra,  entrou  por  Portugal,  chegou  a  Santa- 
rém. Ali  ouvindo  os  milagres  do  Santo,  foi-se  ao  (Convento  cheio  de  boa 
esperança.  Continuando  sua  devação,  quando  veio  o  sexto  dia,  sintio-st; 
aliviado  notavelmente  de  hum  pejo  continuo,  que  sempre p  acompanhava, 
e  parecia-lhe  que  n"aquelie  momento,  c  lugar  (estava  diante  do  aliar) 
crecia  em  forças,  e  alento,  como  quando  era  são,  e  moço.  Espantado  d:i 
novidade,  e  tornando  sobre  si,  achou  que  de  todo  ponto  se  lhe  haviriM 
cerrado,  e  soldado  por  si  ambas  as  roturas ;  e  derramando  lagrimas  por 
graças  diante  do  Santo  entrou  no  Convento,  e  contou  de  praça  o  mi- 
lagre. 

Hum  moço  nobre,  filho  de  dona  Mayor  de  Guimarães,  foi  em  Santa- 
rém atropelado  de  hum  cavallo,  de  que  ficou  com  hunf  braço"quobiado. 
Curou-se,  soldarão  as  canas.  Mas  ficou-!he  tal  fraqueza,  (jue  não  era  se- 
nhor de  o  dobrar,  nem  abrir,  e  fechar  a  mão,  nem  ainda  bolir  com/^os 
dedos.  Levou-o  sua  mãi  ao  Santo,  atou-lhe  nos  braços  da  sua  terra :  foi 
Deos  servido,  que  antes  de  sair  da  Igreja  meneava  livremente  o  braço, 
e  movia  toda  a  mão,  e  pouco  despois  não  teve  mal  nenhum. 

O  mesmo  aconteceo  a  Payo  Nunes,  que  atrás  nomeamos.  Andava  em 
seu  trabalho  descalço,  meteo-se-liic  hum  osso  agudo  pola  planta  do  pé, 
foi  penetrante,  apostemou,  logo  incliou  pé,  c  perna,  seguirão  intoleráveis 
dores.  Lembrado  do  beneficio,  que  outra  vez  recebera  da  terra  do  Santo 
como  fica  contado,  mandou-a  busca'-,  polvorizou  a  chaga  hunia  só  vez. 
Não  foi  mais  necessário  pêra  ficar  logo  são. 

Frei  Gil  Ermiguez,  el'rei  Rodrigues  Fernandes,  ambos  Frades  nossos, 
se  derão  por  affogados  com  espinhas  na  garganta  atravessadas,  ambos 
Ibrão  livres  com  ciiamarem  polo  Santo.  O  primeiro  levou  a  espinha  no 
refeitório,  foi-se  lançar  sobre  a  cova  do  Santo  orando  em  seu  coração, 
porque  com  a  lingoa  não  podia,  e  lançava  logo  cubcrta  de  sangue.  O  se- 
gundo teve  o  perigo  em  Obedos,  era  a  espinha  de  dourada,  (que  ha  mui- 
tas na  alagoa  d'aquella  vi  lia),  aUbgavase,  vaieo-lhe  a  invocação  do  Sanío 
com  hum  sinal  da  Cruz  sobre  a  garganta. 

Em  Santarém,  na  fr'?gacsia  d.«  Mar^■il!■:l,  hum  minino  de  peil^s  íiliio  de 


2G0  I.IVIiO  II  DA   IIISTUIUA  LK  S.   DOMl.NÍIOS 

Domiiipíos  ^Iimliós.  lançou  mão  ile  hum  anel  da  mãi,  e  como  os  mininos 
tudo  levão  á  boca,  metteo-o  nella  sem  ser  vislo :  e  cahio-lhe  na  estrei- 
teza tia  guela.  Affogava-se,  chorava,  qucixava-se,  tussia,  ninguém  enten- 
dia o  ({Uf!  era,  mais  ([ue  ser  mal  na  garganta.  Acndio  a  vizinhança,  en- 
trou jr.nlamente  liuiiia  mitllier,  que  dava  candeas  aos  devotos  da  nossa 
Igreja.  Esta  desenrolou  depressa  hum  maço  das  <]ue  trazia  consigo,  e 
cingindo-lhc  oj^escocinho,  prometeo  ir  acender,  e  offerecer  logo  a  me- 
dida ao  Santo.  Feito  o  voto,  sae  do  profundo  da  garganta  o  anel  envolto 
em  sangue,  pasmando  todos,  e  engrandecendo  o  milagre  na  consideração 
do  perigo. 

A  Pêro  Sueiro  de  Tancos  nnceo  na  ponta  do  nariz  hum  género  de 
poslema,  que  os  médicos  chauíão  Noli  me  iangere.  Tomava-liie  já  todo 
o  rosto  com  hiinia  fea  inchação,  e  escara  por  cima.  Veio  a  Santarém 
buscar  remédio  a  hum  Cirurgião  do  fama,  por  nome  Mestre  Martinho, 
o  qual  imaginando  que  cortado  o  mal  na  raiz,  e  arrancado,  deixaria  o 
enfermo  são:  poz-!he  o  ferro,  e  lançou-lho  destramente  fora.  Was  enga- 
nou-se,  porque  sobreveio  nova  inchação,  que  tomava  o  pescoço,  e  gar- 
ganta, e  entrava  em  ânsias  de  morte.  Neste  passo  lhe  acudio  Estevão 
Nunes,  em  cuja  casa  se  agasalhava,  com  hum  pedaço  de  túnica,  que  ti- 
nha do  Santo :  e  a  olhos  vistos  amainou  a  inchação,  aliviou  a  garganta, 
e  licou  curado. 

Cinco  annos  havia  que  padecia  fluxo  de  sangue  continuo  huma  dona 
lionrada,  moça,  e  muito  rica,  molher  de  Domingos  Estevens,  e  com  hu- 
ma só  doença  penava  em  dous  tormentos,  hum  da  infirmidade  nojosa 
por  si,  e  desconsolada,  outro  da  desconfiança  de  poder  ter  íilhos,  que 
muito  desejava,  (erão  moradores  em  Santarém,  na  freguesia  de  Marvilla.) 
ílum  sábado  prim.eiro  despois  da  Ascenção,  em  hora  que  se  achava  com 
notável  fraqueza  causada  do  mal,  disse-liie  a  mãi,  que  se  esforçasse,  e 
fossem  ouvir  as  vesparas  do  Santo,  ponjue  ao  Domingo  se  lhe  fazia  no 
Convento  a  festa.  Fez  o  caminho  encostada  em  duas  molheres.  Na  Igreja 
proslrou-sc  em  terra  humilde,  e  devota,  c  atribulada :  e  fez  voto  do  lhe 
ie'uar  toda  a  vida  a  vespara  de  sua  festa,  se  lho  dava  saúde.  Afurmava 
despois,  que  logo  na  mesma  tai^de  sintii'a  melhoria,  e  no  dia  seguinte  se 
achara  com  tão  bom  alento,  que  assiílira  sem  pena  á  Plissa,  e  pregação, 
e  de  maneira  ficou  livre  da  desavcntura,  em  que  vivia,  que  pêra  verda- 
deiro, e  claro  testemunho,  aos  nove  mezes  cumpridos  alegrou  a  casa, 
e  o  marido,  e  a  si  com  hum  filho  macho. 


PART[CULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  2Gi 

Esta  mesma  mollier  lium  anno  despois  teve  hum  accidente  de  paiie- 
zia,  que  lhe  tolheo  hum  l3raço.  Como  linlia  experiência  fresca  do  que  va- 
lião  com  o  Sa;ito  rogos  humildes,  foi-se  ao  Convento,  chorou,  rogou, 
instou,  tornou  pêra  casa  não  só  remediada,  mas  sam  de  todo. 

CAPITULO  XXXIIÍ 

De  algumas  moUures,  que  alcançarão  remédio  em  partos  díf^cullosos,  en- 
commenãando-sc  ao  Sanlo  :  €  como  forão  curados  surdos,  e  mudos  com 
a  terra  da  sua  cova. 

Huma  dona  honrada  de  Coimbra,  andando  prenhada,  deu  em  hum.a 
hidropesia  disforme,  c  ao  parecer  sem  remédio,  porque  os  que  a  Fisica 
podia  aphcar,  tolhia  a  prenhez.  Acolheo-se  aos  rem.edios  do  Ceo,  buscou 
buma  relíquia  do  Santo,  trouxe-a  consigo,  e  fez  voto  de  ir  em  pessoa, 
ou  mandar  visitar  sua  sepultura.  Não  passarão  três  dias,  que  a  inchação, 
que  a  trazia  feita  hum  monstro,  se  surnio,  e  resolveo  por  si,  e  teve  saú- 
de, e  bom  parto. 

No  lugar  de  Ceice,  termo  de  Ourem,  esteve  huma  molher  três  dias 
inteiros  com  doi'es  de  parto  continuas,  e  reduzida  a  tamanha  fraijueza, 
que  as  Comadres  a  davão  por  morta.  Acertarão  a  passar  pola  rua  ht;ns 
Frades  de  S.  Domingos  de  caminho  pcra  Thomar.  Erão  os  gritos  da  po- 
bre tão  lastimosos,  que  os  obrigou  a  caridade  a  perguntar  a  causa : 
quando  a  soubeião,  mandarão-lhe  dizer,  que  se  encomendasse  a S.  Frei 
Gil,  e  tevesse  por  certo  o  soccorro  do  Ceo.  Começou  logo  a  chamar  polo 
Santo,  e  elle  não  esperou  ser  importunado,  deu-llie  alivio,  e  forças,  e 
hora  boa,  que  a  fez  mãi  de  hum  filho. 

No  mesmo  lugar  succedeo  a  outra  semellianto  trabalho  em  dores,  e 
em  tempo.  Foi  visitada  da  que  acabamos  de  contar,  e  advirtida,  que  se 
valesse  do  Santo,  como  ella  íizera.TouiwU  o  coiiSelho,  e  nn  rn<ísnio  pontn 
teve  remédio.  Correo  a  fama  pola  terra,  creceo  a  devação.  Em  apontando 
a  necessidade,  não  conhecião  outro  Santo:  e  achamos  em  lembrança,  que 
outras  três  molheres,  postas  em  igual  perigo,  forão  livres  encom-indan- 
do-se  a  elle. 

Dona  Maria  Bernardes,  de  quem  atrás  falamos,  padecia  grandes  do- 
res em  hum  ouvido  com  inflammação,  e  tumor  n"elle.  Acudio-lhe  febre 
intensa,  perdeo  o  sono,  e  o  ouvir.  Tinha  remédio  em  casa  provado  com 


26á  LIVIM  II  hX   HI.STOíUA  DF.  S.   DO.Ml.\r.O> 

cxiieiitriioia,  ({Uv?  er.'i  hum  eseapuiaiio  do  Santo,  inandoa-o  vir,  c  fez  que 
lho  pos!\sr>oni  sobre  a  ca!)eça.  Logo  na  noito  segiiiiile  repousou.  E  caindo 
(MB  hum  sono  descansado,  de  que  andava  falta,  sonhou  que  via  diante 
de  si  o  .Santo,  o  que  lhe  dezia,  que  pozesse  o  ouvido  soi)re  huma  pa- 
iielia  nova  cheia  de  agoa  quente,  o  tomando  aqnehe  bafo  guareceria  logo. 
E  })arecia-lhe,  (juc  o  Santo  por  suas  mãos  lhe  aphcava  o  mesmo  remédio, 
(!  com  elíe  ahviava  a  dor,  e  desjjejava  o  humor.  Acordou,  e  vio  com  ef- 
íeiio  o  que  o  sono  lhe  representara.  Porque  cessarão  as  dores,  a  incha- 
rão abaixou,  iornou  a  ouvir,  como  quando  era  sam,  e  os  travesseii'OS  da 
cama  a[!arecerão  tintos  do  sangue,  e  matéria  envolta,  que  sem  ella  o  sin- 
tir,  despfdio  a  natureza. 

Domingos  Munhós,  também  de  Santarém,  cuja  molher  também  foi 
curada  polo  Santo  duas  vezes,  como  fica  contado,  vivia  triste,  porque 
lium  filho  rainino,  que  linha,  de  dores  de  cabeça  veio  a  ficar  tão  profun- 
damente surdo,  que,  se  não  era  por  acenos,  nenhuma  cousa  entendia.  A 
mãi,  (]ue  tinha  por  certo  o  socorro  no  Santo  pêra  todo  trabalho,  polo  que 
em  si  exprimenta!\a,  mandou-o  com  outros  da  mesma  idade  á  sepultura 
do  Santo,  instruídos  no  que  liavião  de  fazer  pêra  que  elle  fizesse  o  mes- 
mo, porque  dV)utro  modo  não  era  possível  doulrinal-o.  Forão-se  de  com- 
panhia á  cova  do  Santo,  tomavão  da  terra,  lançavão-na  sobre  a  cabeça, 
esfrega  vão  com  ella  o  rosto,  e  metião-na  poios  ouvidos.  Fazia  o  surdinho 
outro  tanto.  E  o  Santo  não  desprezou  a  devação  da  mui,  nem  a  obra  do 
filho  :  e  a  terra,  por  ser  sua,  fez  eíTeito  contrario  do  que  toda  outra  cos- 
timia;  costuma  cerrar,  obstruir,  e  ensurdecer  mais,  esta  abrio,  espertou, 
aguçou,  e  em  fim  resuscitou  aquelle  sentido  sepultado,  e  perdido,  sem 
sinal  de  que  nunca  n'elle  padecera  falta. 

Outra  molher  da  mesma  villa  vivia  com  grande  pena,  porque  huma 
doença  larga  lhe  deixara  nos  ouvidos  huns  tinnidos,  que  a  trazião  total- 
mente surda :  e  ajudava  o  mal  huma  vehemente  inclinação,  e  apetite  de 
comer  barro,  a  que  não  podia  resistir,  nem  resistia.  E  de  tal nutiimento 
procedião  outros  males,  com  que  o  dos  ouvidoc  vinha  a  ser  o  menor. 
Desesperada  de  tal  vida  por  meios  humanos,  acolheo-se  á  Igreja,  offere- 
cco-se  ao  Santo,  visitou  sua  sepultura.  Foi  logo  amainando  o  rugido  da 
cabeça,  e  espertando  o  sentido  do  ouvir :  e,  o  que  mais  espantou,  tama- 
n!!0  aborrecimento  criou  ao  barro,  que  só  a  memoria  d'elle  lhe  fazia 
vómitos. 

ílum  mancebo  em  tanto  estremo  surdo,  que  nenhuma  voz  nem  bra- 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTir.AL  20?, 

do,  por  graiulo,  e  mui  vizinho  que  fosse,  ouvia,  alcançou  inteiro  remédio, 
com  se  lançar  sobre  a  sepultura  do  Santo,  pôr  neila  os  ouvidos,  e  nos 
ouvidos  a  terra  delia. 

Poios  mesmos  paços  guarecco  outro  liomem  de  huma  postema  na- 
cida  dentro  em  hum  ouvido,  que  lhe  tinha  o  rosto  todo  erisipulado,  e 
inflammado  com  tamanhas  dores,  que  temia  perder  o  juizo.  Cobrio  a  ore- 
lha toda  da  terra  do  Santo.  ('Uaro,  e  nunca  visto  cííeito)  fogío  o  humor 
nocivo  do  lugar,  como  se  o  lançarão  com  a  mão,  e  á  força,  e  foi  fazer 
defluxão  debaixo  de  hum  braço :  onde  madurou  logo,  e  com  huma  leve 
picada  de  lanceta  descarregou  a  natureza. 

Aconteceo  em  Santarém  a  huma  molher  moça  ficar  muda  de  hum 
sobresalto :  e  nem  hum  grito,  nem  hum  gemido  podia  dar.  E  entendia- 
se-lhe  que  padecia  grandes  tormentos  interiores,  porque  cruzava  os  bra- 
ços, apertava,  e  Irosia  as  mãos,  lançava-se  em  terra,  e  espojava-se  nella 
como  desasizada.  Poserão-lbe  da  terra  do  Santo  sobre  a  cabeça,  derão- 
Iha  a  beber  em  agoa,  tornou-lhe  a  fala,  como  quando  mais  solta,  e  mais 
espevitada  a  tinha. 

Celebrava-se  n'aquelles  tempos  a  tresladação  do  Padre  S.  Domingos 
na  cidade  de  Lisl)oa  com  grandes  festas,  e  concursos  de  povo.  Passarão 
huns  ourives  pola  porta  d"outro,  que  estava  entendendo  em  seu  officio, 
rogarão-lhe  que  se  fosse  com  elles  á  festa.  Não  quiz  deixar  o  que  fazia, 
e  continuando,  (era  obra  de  fogo),  saltou-lhe  huma  faisca  dentro  n'um 
olho :  fez  logo  empola,  que  lhe  tolhia  fechal-o,  seguirão  dores  incompor- 
táveis. Insinado  do  desastre  foi-se  correndo  â  festa,  e  chegou  a  tempo 
que  estavão  a  meia  pregação,  c  o  Pregador  a  caso  hia  contando  alguns 
milagres  do  Santo  Frei  Gil.  Como  os  ouvio,  prometeo  ir  a  pé  dentro  a 
Santarém  visitar  sua  sepultura,  se  lhe  salvava  o  olho.  Não  foi  necessário 
mais  pêra  o  Santo  acudir  logo  á  humildade,  e  contrição.  Chegando  a 
casa  sintio-se  muito  aliviado  das  dores,  e  sem  pejo  no  olho.  Espantado 
de  tão  notável  melhoria,  em  parte  demasiado  sensitiva,  tomou  hum  es- 
pelho, e  vio  o  olho  liinpo,  e  claro,  e  sem  lezão.  E  conhecendo,  que  não 
podia  succeder  tal  sem  manifesto  milagre  era  tão  curto  espaço  de  tem- 
po, porque  a  natureza  não  obra  nada  em  instante,  cheio  de  prazer  por 
se  ver  são,  sem  lembrança  de  comer  nem  beber,  nem  da  hora  que  era, 
(era  das  onze  pêra  o  meio  dia),  nem  do  tempo  já  calmoso,  tÍ!'on  ['ola , 
porta  fora,  e  foi-se  dar  cumprimento  a  seu  voto. 


2(^  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

CAPITULO  XXXIV 

Como  foi  Ircsladíido  o  Santo  pêra  a  sua  Capella. 

Seis  annos  lir.via.  que  o  Santo  gozava  dos  eternos  bens  do  Ceo,  con- 
tinuando em  todo  Portugal  prodigiosos  casos  em  honra  sua,  â  vista  de 
qualquer  reliqnia,  ou  só  invocação  de  seu  nome,  semelhantes  em  sus- 
lancia,  aventajados  em  numero  aos  que  temos  contado.  E  todavia  nin- 
guém tratava  de  o  melhorar  de  lugar  na  terra.  Estava  entre  os  seus,  de- 
Ijaixo  dos  pés  de  lodos,  quem  entre  os  estranhos  andava  sobre  as  ca- 
beças de  todos  por  reputação,  e  fama  de  santidade.  E  era  maior  o  sen- 
timento nos  devotos,  porque  lhe  tinha  lavrado  capella,  e  tumulo  sua  pri- 
ma, e  grande  devota  dona  Joana  Dias,  senhora  da  Atouguia,  e  não  bastava 
isto  pêra  se  determinarem  os  Frades.  Em  íim  acudio  o  Santo  por  si. 
Em  primeiro  de  Julho  do  anno  de  l^2'\  apareceo  a  Frei  João  de  San- 
tarém, porteiro  do  Convento,  estando  em  oração,  e  disse-lhe,  que  advir- 
tisse  ao  Prior,  e  mais  Religiosos,  que  era  tempo,  e  Deos  o  queria,  que 
tirassem  seu  corpo  do  sitio  humilde,  em  que  jazia,  pêra  onde  ficasse 
nos  olhos  do  povo,  que  o  amava,  e  estimava.  Fez  o  Porteiro  sua  embai- 
xada, e  foi-lhe  ci'ida,  porque  sua  pessoa,  e  viitude  a  acreditavão.  Mas 
ofíerecião-se  inconvenientes  fundados  em  humildade,  e  ânimos  desinte- 
ressados, que  á  vista  parecião  bastantes  pêra  impedirem  a  obra :  e  so- 
l)resteve  por  então.  Passarão  dias:  fez  o  Santo  segunda  lembrança  ao 
Prior,  sem  usar  de  meio  doutrem:  disse-lhe  claramente  Imma  noite,  que 
effeituasse  o  que  polo  terceiro  lhe  significara.  Não  se  atreveo  o  Prior  a 
escrupulear  mais.  Pi^égou  no  Domingo  seguinte,  avisou  ao  povo  de  tu- 
do o  que  era  passado,  o  desculpando  com  as  visões,  e  mandatos  do  Santo 
a  determinação  do  o  trasladar,  temeroso  ainda  de  se  poder  julgar  que 
pi"etendia  ou  vangloria  pêra  o  Santo,  ou  proveito  temporal  pêra  a  casa. 
Mas  enxergou  logo  que  fora  seu  o  engano.  Porque  o  povo  aceitou  a  nova 
com  gosto,  e  alvoroço  de  toda  a  villa.  Aprazou-se  dia,  acudio  gente  sem 
numero,  começou-se  huma  Missa  de  grande  solemnidade.  Despois  do 
Offertorio  deceo  do  altar  o  Prior,  que  a  cantava,  ministros,  e  acólitos, 
e  Cruz  diante  com  toda  a  Coinmunidade.  E  seguidos  de  iníinito  povo 
caminharão  }iera  o  cemitério,  onde  o  Santo  jazia.  Como  forão  nelle,  co- 
m.eçarão  os  Religiosos  a  entoar  o  líymno  Te  Deum  laiidamus,  e  hum 
Fi.uk  velho  poz  nas  mãos  do  Prior  huma  enxada,  e  elle  íomando-a  deu 


rAr.TicrLAR  do  reino  de  poutít.al  205 

lirim  golpe  soljre  a  cova,  em  sinal,  e  principio  de  abertura:  o  mesmo 
fizerão  o  Diácono,  e  Subdiacono,  bum  trás  outro.  Logo  cbegarão  oíTiciaes 
que  forão  cavando  até  darem  no  caixão.  Estava  cerrado  e  pregado :  e 
sendo  tirado  fora,  e  aberto,  foi  sintido  entre  todos  hum  cheiro,  que  con- 
soíava,  e  recreava.  Vio-se,  e  venerou-se  com  geral  devação,  e  prazer  o 
santo  corpo,  e  com  lagrimas  de  muitos  foi  notado,  que  despois'de  seis 
aníios  eslava  inteiro  sem  falta  nem  lesão  de  membros,  e  como  na  liora 
em  (jue  foi  sepultado.  Fervia  a  Igreja  em  devotas,  e  alegres  acclamações 
qne  a  competência  louvavão,  e  engrandecião  o  Santo.  Ajudou-as  elle  pe- 
i"a  gloiia  de  Deos  com  dai-  vista  naquelle  publico  ajuntamento  a  buma 
mollier  cega,  e  saúde  perfeita  a  luun  aleijado,  e  a  outros  enfermos. 
Trouxerão-no  quatro  Religiosos  ao  Coro  com  a  mesma  ordem,  em  que 
o  forão  buscar,  e  com  eila,  despois  de  acabada  a  Missa,  foi  levado  á  sua 
capella,  e  metido  no  moimento  novo.  He  a  capella  no  arco  do  Cruzeiro, 
que  responde  á  porta  travessa  da  Igreja.  Ficou  pequena,  porque  o  sitio 
não  dá  lugar  peia  mais:  e  pobre,  conforme  a  humildade  do  Santo,  e 
estreiteza  dos  tempos  antigos.  O  moimento  lie  grande,  toma  o  largo 
delia  da  banda  da  Epistola,  a  face  de  fora  lavrada  de  folhagens  ao  uso 
antigo,  na  iagea,  que  o  cobre,  entalhada  de  relevo  ao  longo,  liuma  figu- 
ra de  Frade.  Serve-lhe  de  letreiro,  porque  na  pedra  não  parece  nenhum, 
a  pintura  do  retabolo,  inda  que  pequeno,  e  pouco  lustroso,  que  repre- 
senta em  cores,  e  sombras  a  conversão  do  Santo,  e  alguns  successos 
mais  de  sua  vida,  e  morte. 

Mostrou  logo  o  Senhor  com  grande  numero,  e  diversidade  de  mi- 
lagres, que  aceitava  em  serviço  a  honra,  que  se  lizera  ao  servo  fiel.  Al- 
guns diremos  sem  pedir  de  novo  perdão  aos  Leitores:  visto  como  em 
historia  pia  serve  o  testemunho  dos  milagres  pêra  consolação,  e  augmenlo 
de  devação  nos  fieis:  e  pêra  convencer  a  dureza,  e  incredulidade  dos 
infiéis.  Mas  lançarem.os  primeiro  as  orações,  que  pêra  esta  Missa  se  de- 
vião  compor,  que  achamos  de  tempo  immemorial  escritas.  São  devotas, 
e  dignas  de  se  verem.  Porque  a  primeira  nos  dá  este  Santo  por  valedor 
particular  de  grandes  peccadores.  O  que,  aimla  que  se  pode  coUigir  dos 
meios  de  sua  conversão,  jiossivel  he  que  houvesse  casos,  que  a  nós  não 
chegarão,  que  obrigassem  ao  Autor  das  Orações  a  dar-lhe  este  titulo: 
titulo  de  grande  consolação  pêra  os  que  vivemos,  que  todos  somos  pe- 
cadores, haver  hum  Santo  avogado  de  almas  enfermas,  cuja  saúde  me- 
rece buscar-se  com  mais  cuidado,  que  toda  a  corporal. 


266  LIVllO  11  DA  IHSTOniA  DE  S.  DO.Mf\r.OS 

Seguem  as  Oraçues. 

Deus,  qiii  beatum  Aígidium  confessorem  tnum  á  peccati  subiectione  re- 
uocasti,  ei  perpetrati  sccleris  veniam  ímpetiaudi specialem  gratiamlribuens, 
da  eius  meritis  ttiam  hic  consequi  misericordiam,  vt  nostrorum  excessuum 
detestatione  perpetrata  scelera  redimamus.  Per  Dominnm  nostrum  Jesum 
Clirislum  Fiiium  Itium,  etc. 

Secreta. 

Beati  jEgidij,  quwsumus  Domine,  inlercedentibtis  meritis  gloriosis 
munera  hcec  placatus  accipias :  et  grata  tribue  offerre  dona,  quibus  tribuisti 
et  offerre  ojjicia.  Per  Dominum  nostrum  Jesum  Cliristiim,  etc. 

Post  Coinmiinionem. 

Oblato,  Domine,  salutis  noslrce  exórdio,  eius  concede  nos  adiuuari  suf- 
fragijs,  de  cuius  confisi  meritis,  íkbc  tibi  sacramenta  você  libamus^  et  men- 
te. Per  Dominum  nostrum  Jesum  Christum  Filiuin  iaum  etc. 

Antes  de  entrar  nos  milagres,  que  de  novo  prometemos,  convém  es- 
tar advirtido  o  leitor,  que  os,  que  escreverão  esta  historia  antes  de  nós, 
não  íizerão  distinção  de  tempos,  nem  nos  que  já  íicão  contados,  nem  em 
alguns  dos  que  restão,  e  d"outios,  que  deixamos  por  escusar  leitura.  E 
não  lenho  duvida,  que  muitos  dos  que  já  vão  nos  capítulos  atrás,  podião 
succeder  muito  tempo  despois  da  tresladação :  mas  como,  por  serem  as 
cousas  tão  antigas, -não  foi  possível  averiguar  esta  circunstancia,  guarda- 
mos pêra  este  lugar  alguns,  que  com  mais  evidencia  nos  parecerão  suc- 
cedidos  despois,  que  irão  no  Capitulo  seguinte. 

CAPITULO  XXXV 

Como  por  intercessão  do  Santo  alcançarão  huns  pobres  homens  remédio  pcra 
vinho  danado,  e  perdido:  e  outros  o  teverão  em  graves  doenças,  e  varias 
necessidades. 

Vierão  os  moradores  de  Santarém  a  fazer  tamanha  confiança  do  amor 
que  achavão  n'este  Santo,  que,  depois  de  lhes  curar  todo  género  de  in- 


PARTICl  LAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  :»C7 

firmiilailes  de  corpos,  e  almas,  não  duvidarão,  que  lambem  lhes  valeria 
nas  de  suas  fazendas.  Iníirmidade  lie  do  vinho  engrossar,  ou  azedar-se, 
como  da  fruita  apodrecer,  e  do  trigo  criar  em  si  o  gorgulho.  Hum  João 
Solier  tinha  huma  grande  cuba  de  vinho,  tão  danado  em  tudo,  que  até 
o  cheiro  lhe  não  podia  sofrer,  e  determinava  abrir-lhe  o  torno,  e  !an- 
çal-o  fora  de  casa.  Mas,  ou  que  soubesse  do  milagre,  que  a  agulha  do 
Santo  fez  no  vinho  dos  Cónegos  regi-antcs,  que  atrás  contamos:  ou  que 
a  necessidade  por  si  he  engenhosa,  e  inventora,  foi-se  á  sua  capella, 
propoz-lhe  o  aperto,  em  que  ficava  sua  família,  perdendo  aquelle  vinho, 
que  era  a  mellior  parte  de  sua  fazenda,  pedio-lhe  o  remédio  crim  fé,  conio 
a  quem  cada  dia  obrava  maiavilhas  avenlajadas.  Tomando  a  casa  sem. 
fazer  detença,  (juiz  ver  o  que  montara  sua  oração:  achou  o  viuho  não 
só  remediado,  mas  estremo  de  bom.  Foi  cousa  publica  na  villa,  assi  o 
dano  passado  do  vinho,  como  o  concerto,  e  bondade  presente,  e  gran- 
geou  ao  Santo  nova  devação  entre  os  moradores,  vendo  que  até  de  sua 
sustentação  tiniia  cuidado.  E  logo  se  virão  outras  experiências  semelhan- 
tes, com  grande  contentamento,  e  utilidade  dos  que  as  fazião. 

Particularmente  se  conta  de  um  .\ndré  Pires,  homem  pobre,  cujo  re- 
médio pêra  todo  a  anno  consistia  em  uma  boa  copia  que  vinho,  que  tinha 
encubado,  e  estava  de  todo  perdido,  e  tal,  que  não  havia  de  esperar, 
senão  desembaraçar  a  vasilha,  pêra  a  novidade  seguinte.  Só  a  mulher 
não  desesperou,  foi-se  ao  sepulcro  do  Santo,  ajuntou  hum  pouco  de  pó 
de  junto  d"elle,  atou-o  em  hum  pano,  lançou-o  na  cuba.  Provarão  o  vi- 
nho no  dia  seguinte:  foi  tal  a  mudança,  que  os  fez  ricos  aquelle  anno. 
D'aqui  teve  principio  mandarem  os  Padres  abrir  na  grossura  da  pedra, 
que  cobre  o  moimento,  huma  concavidade,  que  fica  como  pia  por  baixo 
do  hombro  direito  do  vulto  esculpido:  na  qual  os,  que  desejão  seus  vi- 
nhos remediados,  ou  conservados,  mandão  lançar  suas  amostras,  como 
em  offerta,  e  do  que  achão  já  oíTerecido,  tomão  pêra  lançarem  nas  pi- 
pas. Serve  também  este  vinho,  pêra  levarem  consigo  os  enfermos,  e  de- 
votos em  lugar  da  terra,  que  nos  tempos  atrás  tomavão  da  sua  cova  no 
cemitério. 

Aos  milagres  de  vinho  succedem  com  rezão  os  de  agoa,  que  ile  mais 
necessária  na  terra,  e  a  muitos  mais  agradável.  He  mosteiro  famoso,  e 
antigo  de  Freiras  da  Ordem  de  Cister,  o  que  chamão  de  Cellas  junto  a 
Coimbra,  e  os  antigos  chamavão  Cellas  de  Guimarães.  Costumava  o  Santo 
visilal-o  de  boa  vontade,  quando  se  achava  na  cidade,  e  fazer  suas  pra- 


2G8  LIVRO  II  DA   HISTORIA  DK  S.   DOMINGOS 

liças  espirituaes  ás  Religiosas,  que  cilas  muito  estimavão.  Passados  al- 
guns annos  despois  de  sua  morte,  succedendo  vir  hum  anno  de  grande 
seca,  veio  a  faltar  agoa  em  hum  poço  do  Mosteiro,  que  era  todo  o  re- 
médio d"el!e,  e  pouco  despois  secou  de  todo.  lie  o  Mosteiro  grande,  e 
sempre  povoado  de  muita  gente;  era  intolerável  o  trabalho  que  se  pa- 
decia, e  as  laltas  em  que  se  vião  com  agoa  de  carreto.  Hum  dia  que  a 
necessidade  apertou  mais,  fez  a  Abbadessa  ajuntar  a  Communidade  no 
mesmo  lugar,  d"onde  cosíumavão  ouvir  as  pregações  do  Santo.  E  pedindo 
a  todas  as  religiosas  que  a  ajudassem  com  suas  orações,  disse  em  voz 
alta,  e  não  sem  lagrimas:  Padre  Frei  Gil,  Santo  de  Deos  amado,  lem- 
bradas somos,  e  vós  não  deveis  estar  esquecido,  que,  quando  vivieis,  nos 
communicaveis  com  muita  consolação  nossa,  aquellas  fontes  de  agoa  viva, 
que  perpetuamente  está  brotando  pêra  a  vida  eterna.  Agora  que  as  es- 
tais logrando  imuirtrtalinente,  poder  tendes  pêra  nos  alcançar  do  Senhor 
d'ellas,  esta  mortal  da  terra,  de  que  estamos  tão  necessidadas  pêra  a 
vida  presente,  como  vedes.  Âcudi-nos  com  ella  padre  santo,  e  piadoso. 
Responderão  todas,  Âmen.  E  logo,  assi  como  estavão  juntas,  se  forão 
ao  poço.  E  dVjnde  d'antes  nem  sinal  de  humidade  aparecia  no  fundo 
(maravilhas  da  Divina  bondade),  achão-no  cheio  de  agoa  até  o  bocal.  Es- 
panto, e  alegria  forão  as  graças  do  milagre:  e  em  testimunho  d'elle  man- 
darão liuma  servidora  a  Santarém,  a  olferecer  no  altar  do  Santo,  huma 
medida  da  altura  do  poço  cuberla  de  cera.  E  he  cousa  sem  duvida,  que 
nunca  despois  n"elle  faltou  agoa,  com  se  dai-  largancente  a  toda  a  vizi- 
iiliMnra. 

Em  diOereníf  liiaiei-i;'.  esprimentarão  ponco  depois  estas  Religiosas 
o  mesíiio  favor,  e  iôiubrança  do  Santo.  Tinha  o  Convento  dous  escra- 
vos Mouros,  que  erão  todo  o  serviço  de  fora.  Desapparecerão  hum  dia: 
forão  buscados:  como  não  houve  nova  d'elles,  acudio  a  Communidade 
ao  Santo:  fizerão-lhe  oração  conliadamente:  e,  fpiando  menos  cuidavão, 
entrarão  os  Mouros  por  casa,  do  sua  livre  vontade,  sem  força,  nem 
constrangimento  de  ninguém.  Em  memoria  mandarãí)  as  Religiosas  pen- 
durar, diante  do  altar  do  Santo,  quatro  pés  de  cera. 

A  estes  milagres  ajunta  mais  três  o  Mestre  Frei  André  de  Resende, 
que  esta  historia  do  Santo  nos  deixou  escrita  em  mui  escolhida  lingoa 
Latina,  e  d'elles  se  dá  por  teslimunha  de  vista.  Não  será  rezão  ficarem 
por  dizer.  Foi  o  primeiro  em  hum  pobre  homem  Andaluz,  que  havia 
doze  dias  jazia  no  alpendre  do  Convento,  tolhido  de  um  lado,  de  alto 


rARTir.lI.AR  DO  IlEINO  DK  PORTIGAL  269 

a  Ijaixo,  c  a  boca  torcida,  o  posta,  como  dizem,  lia  orellia,  de  hnm 
forte  accidente  de  paralysia.  Sairão  a  caso  á  portaria  o  Mestre  Frei  André, 
e  Frei  Roque  Leme  com  outros  Padres,  acompaiiliando  o  Supprior  Frei 
Thomás  de  Watos,  a  ver  liiins  ofíiciaes,  que  laviavão  pedraria  no  alpen- 
dre pêra  certa  obra  de  casa.  Apiadados  do  pobre,  assi  como  estavão 
juntos,  pei^suadirão-no,  (jue  se  fosse  ao  aliar  do  Santo,  e  se  encommcn- 
dasse  a  elle.  Foi-se  aij-aslando  com  muito  trabalho,  até  á  capella,  e  os 
Religiosos  seguirão  com  buma  Aníifona,  e  oração:  não  era  bem  acabadas 
quando  começou  a  grilar,  que  acudissem,  que  se  abrazava  em  fogo :  e 
logo  foi  estendendo  a  i)erna,  e  liraços  lolliidos,  e  a  boca  lhe  tornou  a 
seu  lugar.  Cobrando  mais  confiança,  começou  a  passear  soltamente,  e 
despois  correr,  e  saltar  com  o  prazer  de  se  ver  são. 

No  Domingo  seguinte  ordenaiào  os  Religiosos,  que  assistisse  este 
homem  á  pirgação  em  bum  \ug,-ni-  alto,  pêra  ser  visto  do  povo,  quando 
o  Pregador  referisse  o  milagre,  que  já  eslava  lomndo  jjor  fé,  e  autos  de  Es- 
crivão publico.  No  mesmo  t('nii)o  quiz  o  Senhor  acreditar  o  milagre,  e 
a  voz  do  Pregador,  que  t)  coníava,  com  (uiiros  dous  juntos,  cada  qual  por 
si  fermoso,  e  prodigiosos.  Pôde  ser  que  houvesse  homens  presentes  de 
tão  poucas  fé  nas  grandezas  do  Ceo,  que  levessem  necessidade  de  cura. 
Era  ouvinte  do  Seiíiião  huma  mulher  que  tiazia  de  bum  cancro  comido 
bum  peito,  e'n'elle  chaga  feia,  podre,  e  asquerosa:  com  o  cpie  ouvio  do 
Andaluz,  mysteriosamente  curado  por  intercessão  do  Santo,  cobrou  ani- 
mo, e  alento  pêra  conliar,  confiança  pêra  esjiei-ar,  esperança  pêra  pedir, 
e  alcançar.  Chegou-se  ao  sepulcro,  molhou  hum  jiano  no  vinho  da  pia, 
que  dissemos,  e  estendeo-o  sobie  a  chaga.  Foi  cousa  visia  por  lium  povo 
inteiro,  que  sendo  publica,  e  sabida  a  infiin:i idade,  sem  se  nuidar  do 
lugar,  se  lhe  cubrio  de  carne  nova,  e  limpa  o  peito  aposíemado,  e  roido, 
e  ficou  sem  nenhuma  difíérença  do  outi"0,  salvo  em  huma  vermelhidão 
notável,  como  sinal,  ou  do  milagre,  ou  de  cousa  que  a  naiuieza  obediente 
ao  Criador  gerara  de  fresco. 

Outra  mulher  trazia  nos  braços  uni  minino  niuiío  maltratado  de  hum 
género  de  sarna,  ou  fogagem,  ordinário  n"aquellas  idades.  Cliama-lhe  a 
medicina  uzagre:  Não  be  mal  perigoso  pêra  a  vida,  mas  importuno,  e 
cbeio  de  dores  peiva  as  crianças,  cansativo,  e  nojoso  pêra  as  mais.  Tomou 
do  vinho  do  Santo  em  bum  pano,  envolveo-ihe  n"el!e  hum  Itracinho,  onde 
o  mal  estava  junto,  e  lh"o  tinha  todo  lavrado,  e  crespo  lastimosamente 
de  uma  escara  áspera,  e  grossa.  Passado  um  espaço,  julgando  que  es- 


270  LIVRO  II  DA  HISTOIUA  DK  S.  DOMINÍJOS 

laria  o  pano  serco  da  quentura  coníiuua  do  mal,  quiz  luimodecel-o  do 
novo.  Quando  foi  pêra  tirar,  vio  que  toda  a  secura,  e  bostella,  que  co- 
bria a  fogagem,  sabia  pegada  no  pano,  sem  o  minino  lazer  queixa  nem 
sintimento:  e  espantada  do  que  via,  notou  com  novo  espanto,  que  todo 
o  bracinbo  estava  liso,  e  limpo,  e  sem  mal  nenbum,  Mostrou-o  aos  Re- 
ligiosos, que  consideravão  pêra  maior  gloria  de  Deos,  que  procedera  do 
vinbo  do  Santo,  buma  cura  contra  a  natureza,  porque  tendo  o  vinbo  ca- 
lidades  de  fogo,  fizera  oíTicio  de  um  refrigerante  medicinal,  como  pêra 
tal  infirmidade  convinba.  Aponta  o  escritor  que  corria  o  anno  de  1520, 
c  era  no  msz  de  Outubro,  e  que  a  obra,  que  se  fazia  no  Convento,  era 
em  serviço  do  Santo,  e  por  mandado  dei  Rei  dom  Manoel,  agradecido 
da  bem  assombrada  bora,  que  tevera  a  Rainha  dona  Lianor  em  seu 
parlo,  de  que  andava  temerosa,  sondo-lbe  levada  a  cinta  de  ferro  do  Santo. 
Nacoo  então  a  infante  D.  Maria,  cuja  memoria  vive  com  gloria  na  ca- 
pelia,  o  bospiia!,  que  por  sua  morte,  mandou  edificar  no  Mosteiro  de 
Nossa  Senhora  da  Luz,  de  Frades  da  Oi-dem  de  Christo:  obra  magni- 
íica,  e  verdadeirainriiite  real.  E  com  esta  lembrança  acaba  a  historia, 
o  nós  Ihs  daremos  remate,  acrecentando,  que  a  Princeza  dona  Joana 
com  o  exemplo  de  sua  tia,  se  valeo  do  mesmo  remédio,  pêra  alegrar 
o  Reino  com  o  nacimento  dei  Hei  dom  Sebastião,  (incomparável  ale- 
gria, se  a  mo  eclipsarão  nossos  peccados  aos  vinte  e  cinco  annos  com 
desastrado  fim  seu,  e  de  tudo  bom,  que  havia  no  Reino).  A  Princeza 
tornou  o  ferro  acompanhado  de  ouro,  e  prata  de  esmolla.  A  Rainha  re- 
formou-lhe  a  capella,  e  retabolo.  Mas  ninguém  tratou  atégora  da  maior 
honra,  e  tão  !)em  merecida  do  Santo,  que  he  sua  canonização.  Do  que  nos 
podemos  queixar  com  justo  sintimento. 

CAPITULO  XXXVI 

Da  santa  vida,  e  glorioso  transito  Jo  Padre  Frei  liernardo  de  Morhms: 
e  de  dom  mininos  Santos,  seus  discipiihs. 

Atrás  promettemos  relação  copiosa  da  vida,  e  morte  do  Frei  Rer- 
nardo  do  Morlans,  quando  tocámos  como  o  Santo  Frei  Gil,  o  tirou  de 
França.  lie  tempo  de  nos  desinvidarmos.  Vindo  o  Santo  de  hum  Capi- 
tulo Geral  do  Paris  pêra  Espanha,  da  primeira  vez  que  foi  Provincial, 
e  fazendo  sou  caminho  por  terras  de  Gascunha,  em  hum  lugar,  que  cha- 


PAUTICULAU  DO  REINO  DE  PORTLGAL  271 

mão  Morlans,  lhe  veio  tomar  a  benção  hum  mancebo  de  pouca  idade:  o 
qual  lhe  deu  conta  de  sua  vida,  e  alma  por  taes  termos,  que  entendeo 
o  Santo,  tinha  Deos  n'clle  depositado  grandes  tesouros  de  sua  graça.  Al- 
cançou polo  que  falarão  que  era  muito  nobre,  e  aparentado.  E  sendo 
prevenido  com  bênçãos  do  Espirito  Santo,  que  o  guiava,  a  deixar  as  vai- 
dades do  mundo:  todavia  foiças  de  parentes  o  tinhão  obrigado  a  espo- 
sar-se  por  palavras  de  futuro,  com  uma  donzelia  sua  igual.  N"esta  con- 
juncção  chegou  a  Morlans  o  Santo  Provincial:  e  o  mancebo  vendo  em 
sua  terra  o  habito  de  S.  Domingos,  a  que  se  confessava  devoto,  e  tal 
pessoa  com  elle,  houve  que  lho  trazia  Deos  a  casa,  pêra  por  seu  meio 
se  livrar  dos  laços  da  vida  secular,  da  obrigação  da  esposa,  e  da  casa, 
o  da  fazenda,  que  tudo  por  amor  de  Deos,  desejava  largar.  E  alHrmando, 
que  o  não  tinha  feito,  até  então  por  falta  de  occasião,  e  guia,  pedio-lhe 
com  instancia  que  houvesse  piadade  de  huma  alma,  que  se  punha  em 
suas  mãos,  e  por  ellas  esperava  achar  salvação.  Quem  duvida  que  seria 
isto  musica  celestial,  pêra  um  espirito  sempre  abrazado  em  amores  Di- 
vinos? Recebeo  o  Santo  com  abraços  da  alma.  Animou-o  com  suas  pala- 
vras, que  espiravão  fogo,  e  com  exemplos  dos  Santos  antigos,  que  na 
flor  da  idade,  derão  demão  aos  gostos,  aos  estados,  e  ás  esperanças:  hum 
Antão,  a  quem  sobejava  tudo,  fugido  pêra  hum  deserto  falío  de  tudo: 
hum  Aleixo,  senhor  do  melhor  de  Uoma,  deixando  Consulados,  e  esposa 
nobilíssima,  por  hum  pedaço  de  pão  negro,  buscado  de  porta  em  porta 
com  aíTronta,  e  muitas  vezes  negado  com  aspereza.  Era  isto  assoprar 
fogo  que  por  si  ardia.  E  como  em  conselhos  de  buscar  a  Deos  toda  di- 
ligencia he  vagarosa,  assentarão  que  se  posesse  logo  a  caminho  pêra  Ça- 
ragoça,  e  ahi  esperasse  polo  Provincial,  que,  como  caminhava  a  \w,  de 
força  havia  de  tardar  em  chegar.  Tal  foi  o  principio  da  vida  do  Santo 
Frei  Bernardo,  principio  de  assentarem  n'elle  todos  os  favores,  e  mimos 
do  Ceo,  que  o  Senhor  prom.ette,  a  quem  polo  servir  sabe  aborrecer  os 
nadas  da  terra.  Chegou  o  Santo  a  Çaragoça  com  desejos  de  ver  o  seu  valo- 
roso fugitivo:  e  achou-o  não  menos  alvoroçado  pêra  se  entregar  ao  de- 
serto, e  pobreza  da  religião.  Lançou-lhe  ali  logo  o  habito  por  filho  do 
seu  amado  Convento  de  Santarém,  e  foi  n"esta  jornada  seu  Mestre  do 
noviços.  D 'aqui  podemos  inferir  qnal  sairia  do  tal  escola,  e  entrando  em 
tal  Convento,  onde,  como  temos  dito,  tudo  crão  Santos.  Tal  se  fez,  que 
diz  d" elle  Frei  André  de  Resende  as  palavras  seguintes : 


27â  Livno  II  DA  HisroiUA  dj:  s.  DOMixr.os 

liic  Bcnuiidus,  de  quo  modo  mentionem  feri,  Ivuf/c  recenlior  allcro 
(faz  comparação  com  S.  Bernardo  Abbade  de  Claraval)  fíiit,  scd  íolnm- 
bina  simplicitate,  monim  innocentiu,  et  virgmúi  puritate  non  adeó  dis.si- 
milis. 

Querem  dizer 

Este  iíiTiiardo,  de  quem  agora  fiz  menção,  foi  muito  mais  moderno 
que  o  011  tro  (Abbade  Santo  de  Claraval),  mas  nada  difíerente  na  singele- 
za de  pomba,  na  santidade  de  costumes,  e  na  pureza  virginal. 

Morava  Frei  Bernardo  om  Santarém,  e  fazia  o  otTicio  de  Sacristão 
com  cuidado,  e  limpeza  de  Santo :  e,  como  era  tal  a  opinião,  que  tinha 
na  villa,  trazião-lhe  os  homens  nobres  seus  filhos  mininos  pêra  os  dou- 
trinar, e  ir  insinando  a  ler,  e  escrever  nas  horas,  que  tinha  de  sua  oc- 
cupação.  Fazia-o  ellc  com  caridade,  como  quem  criava  prantaspera  o  Ceo. 
Entre  os  que  mais  continuavão  sua  escola,  havia  dous  que  andavão  ves- 
tidos no  nosso  habito,  e  ou  por  serem  parentes,  ou  vizinhos  viniião,  e 
aprendião  juntos.  Como  acudíão  pola  manham,  mandava-os  Frei  Bernar- 
do recolher  em  huma  capela,  em  quanto  dava  ordem  na  Sacrisíin.  Ali 
hião  lendo  por  suas  cartas,  e  escrevendo  suas  matérias,  até  que  elle  vi- 
nha, e  dafldo-lhes  lição,  sendo  sempre  primeira  a  da  doutrina  Christam, 
os  despedia.  Pêra  passarem  as  manhãs,  e  solfrerem  as  esperas  do  Mes- 
tre, como  he  tão  ordinário  levar-se  a  idade  tenra  de  cor.sas  de  comer, 
não  subindo  aquelles  annos  a  outros  cuidados,  mandavão-nos  as  mais 
providos  de  seus  almorços  atados  em  seus  lenços,  ou  recolhidos  em  ces- 
tinhos.  Como  tinhão  trabalhado  hum  pouco,  punhão  de  parte  cartas,  e 
papeis,  estendião  os  lenços,  fazião  meza  dos  degraos  do  altar,  e  despe- 
javão  o  que  havia.  Isto  era  costume  de  cada  dia,  e  a  capella,  em  que 
assistião  mais  de  ordinário,  era  a  dos  Reis  contigua  ao  Coro,  e  capella 
mòr  da  parte  do  Evangelho.  A  qual,  porque  fique  desde  logo  dito,  e  sa- 
bido, possuio  este  nome  dos  Beis  até  o  anno,  em  que  veio  caníMiizado  S. 
Jacinto  de  Polónia  nosso  Frade:  e  então  se  deu  ao'Santo  o  titulo  d"ella: 
e  o  jazigo,  e  enterro  pedio  Ayres  de  Saldanha,  que  foi  Visorei  da  índia, 
e  irmão  de  Frei  Diogo  de  Saldanha,  Frade  nosso,  pêra  si,  e  seus  succes- 
sores,  como  gente  que  tem  a  devação  da  Ordem  por  herança  do  Avós, 
c  do  apellido.  Havia  no  altar  huma  imagem  de  nossa  Senhora  de  vulto 
antiga,  c  grande  com  seu  ÍVlinino  .Jesus  no  collo.  Aconteceo  hum  dia,  que 


i'AiiTi(jii..\u  Du  ui:i.\u  d;:  i-oivrutiAL  273 

estando  os  dous  conipanheirinhos  com  meza  posta  festejando  o  almorço, 
levantou  hum  d'elles  os  olhos  á  imagem,  e  detendo-os  no  Minino  Jesus, 
dlsse-lhe  com  a  innocencia  da  idade,  que  lhe  fazia  crer  o  tinha  presente, 
se  queria  almorçar,  decesse,  e  comerião  lodos.  Como  o  Senhor  se  paga 
tanto  de  ânimos  singellos,  e  puros,  honrou  logo  aquella  santa  simplici- 
dade :  vião-no  decer,  assenlar-se  com  elles,  lançar  mão  do  que  havia,  e 
mostrar  que  comia ;  e  fazendo  o  mesmo  outras  vezes ;  acabado  o  almorço 
tornar-se  a  seu  lugar.  De  crer  he,  que  nem  sempre  desfaria  logo  a  com- 
panhia, antes  se  deteria  com  elles,  vendo-lhes  as  cartas,  e  matérias,  e 
não  seria  o  trato  mudo :  nem  também  os  meninos  terião  em  segredo  a 
suas  mais  o  que  passava,  ou  pêra  fazerem  crecer  a  ração,  pois  linhão 
convidado  :  ou  porque  he  também  parte  da  innnocencia  dizer  tudo.  Pas- 
sados alguns  dias,  despois  (jue  a  conversação  continuava,  \ierão  a  dar 
conta  ao  Mestre  :  e  como  em  queixa  dizião,  que  o  Minino  Jesus  comia  mui 
bem  do  que  elles  trazião,  mas  que  nunca  punha  nada.  Ouvia-os  Frei  Ber- 
nardo primeiro  com  duvida :  despois  de  certificado,  com  admiração.  E 
como  a  Santo  derretia-se-Ihe  o  coração  em  amores  da  Divina  bondade. 
OíTerecia-lhe  eternos  louvores  por  tanta  misericórdia,  e  convidava  a  elles, 
toda  a  Corte  celestial.  Foi  cuidando  logo  como  grangearia  algum  grande 
bem  aos  innocentinhos,  em  que  pudesse  ter  lambem  sua  parte.  Disse- 
Ihes  que  estivessem  advirtidos  pêra  a  primeira  vez,  que  o  Minino  tornasse 
a  ser  seu  hospede,  dizerem-lhe,  que  pois  folgava  de  comer  dos  seus  al- 
morços,  lambem  seria  rezão  dar-lhes  algum  dia  em  casa  de  seu  Pai  huma 
merenda,  e  que  pêra  ella  levarião  comsigo  a  seu  Mestre.  Ficarão  cliebs 
de  prazer  com  o  conselho,  e  esperanças  de  negocearem  com  seu  hospe- 
de a  paga  do  que  a  seu  parecer  lhes  linha  comido,  ignorando  de  lodo 
a  Iraça  santa  do  seu  Mestre.  Era  huma  segunda  feira  da  semana  da  glo- 
riosa Ascensão.  Acudirão  á  sua  lição,  e  capella,  e  devião  vir  melhor  pro- 
vidos os  cestinhos,  visto  como  determinavão  pedir.  Não  fiiltou  o  hospede, 
nem  elles  forão  esquecidos  de  lhe  propor  seu  requerimento.  Respondeo- 
Ihes,  que  era  contente  de  os  convidar  a  ambos  pêra  casa  de  seu  Pai,  e 
que  seria  d'aHi  a  Ires  dias.  Tornarão  com  o  aviso  ao  Mestre,  que  não 
desconfiando  das  misericórdias  do  Senhor,  e  julgando  que  a  falta  da  re- 
posta era  pêra  prova  de  sua  constância,  usou  da  jurdição,  e  direito  de 
seu  officio.  Mandou-lhes,  que  lhe  dissessem  no  dia  seguinte,  que  como 
trazião  o  habito  do  S.  Domingos,  estavão  obrigados  a  guardar  as  leis  dos 
Frades.  E  porque  huma  das  priíicipaes  era  obediência  ao  Mesti-e,  elle 

VOL.   I.  IS 


274  LIVRO  II  DA  lirSTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

não  era  eontenle,  que  fossem  sós  a  sua  casa,  nem  consintiria  na  hída, 
se  não  indo  também  de  companhia.  Deixou-se  vencer  a  Divina  bondade 
d"esta  segunda  instancia,  e  do  artificio  do  Mestre,  aceitou-o  por  convi- 
dado. E  elle  recebeo  a  nova  com  estremos  de  alvoroço,  estando  bem  na 
conta  de  qual  havia  de  ser  o  banquete.  E  como  varão  espiritual  começou 
a  entender  no  aparelho,  que  pêra  elle  convinha,  pêra  não  ser  achado  em 
tal  dia"sem  roupa  de  bodas.  Aparelho  perpetuo  he  pêra  amezada  gloria,  a 
vida  da  Religião ;  mas  a  hora  de  chegar,  he  hora  de  confusão,  e  de  te- 
mor, e  tremor  até  pêra  os  mais  perfeitos.  Convém  grande  cuidado,  c 
grande  vigia :  e  tal  foi  a  de  Fiei  Bernardo,  sobre  huma  vida  de  Santo. 
Chegado  o  dia  da  Ascensão,  que  era  o  prazo  da  merenda,  dizem,  que 
foi  elle  o  ultimo  de  casa  a  dizer  Missa ;  e  já  quando  os  Padres  hião  pê- 
ra o  refeitório,  (devia  ser  esperar  a  hora,  em  que  o  Senhor  subio  ao  Ceo.) 
Disse-a  no  altar  do  Divino  hospede,  forão  ministros  os  Fradinhos  discí- 
pulos, e  he  tradição  que  de  sua  mão  os  commungou  n"ella.  Acabada  a 
Missa  poz-se  com  elles  de  joelhos  diante  do  altar,  com  mãos  levantadas, 
e  olhos  no  Geo,  esperando  a  hora  de  serem  chamados.  E  n"esta  postura 
lhes  foi  cumprida  a  Divina  promessa.  E  n'ella  forão  achados  da  Com- 
munidade,  que  vindo  ás  graças,  e  saindo  despois  pola  Igreja  acudio  toda 
a  ver  o  espectáculo  devoto,  e  maravilhoso.  Porque  á  vista,  e  no  sem- 
brante  estavão  vivos,  mas  feitas  as  experiências  necessárias,  se  vio  que 
erão  passados  a  melhor  vida.  Publicou-se  o  caso,  acudio  toda  a  villa,  vie- 
rão  pais,  e  parentes  dos  mininos.  Então  se  soubeião  por  relação  sua  as 
particularidades  todas,  que  temos  contado,  i)orque  a  pouca  cautella  da 
idade  descobria  suas  boas  venturas  com  facilidade,  e  essa  mesma  as  fa- 
zia julgar  então  por  ridículas  de  quem  lh'as  ouvia.  Foi  celebrado  o  caso 
com  espanto,  e  lagrimas  no  povo :  com  devação,  e  enveja  no  convento, 
como  entre  Santos.  E  rezão  fora,  que  entre  todos  se  solennizara  com  már- 
mores, e  pergaminhos :  mármores  pêra  se  dar  illustrc,  e  digna  sepultu- 
ra a  gente  tão  mimosa  do  Ceo :  pergaminhos  pêra  ficar  por  escrito,  e 
muito  sabida  na  terra  huma  memoria  de  tanta  honra  pêra  nossa  Ordem. 
Mas  quem  o  acreditará?  Nenhuma  d'estas  cousas  se  fez.  Andava  a  casa 
acostumada  a  grandes  maravilhas :  havia-se  por  caso  de  menos  valer,  fa- 
zer muita  conta  d'estas.  Huma  só  honra  lhes  derão,  que  foi  sepultal-os 
juntos  na  mesma  capella,  e  á  vista  do  mesmo  Senhor,  que  com  tanta  mi- 
sericórdia foi  servido  banqueteal-os.  Polo  tempo  em  diante,  ou  fosse  oc- 
casião  al!?um  milafrre.  ou  entrar  no  Convento  gente  mais  curiosa,  estra- 


1»AUTICL'I.AH  DO  KVASO  DK  POlíTUGAL  27 O 

nhou-se  não  estarem  mais  honrados  os  corpos,  que  liavião  sido  deposita, 
rios  de  almas  tão  ditosas.  Fez-se  a  tresladação,  recolherão- nos  em  hum 
archete  de  pedra,  que  embeberam  na  grossura  da  parede  do  Cruzeiro, 
defronte  da  mesma  Capella,  poios  não  apartarem  dos  olhos  de  seu  ama- 
do hospede.  Sebre  o  archete  se  pintou  a  fresco,  de  mão  pouco  polida, 
jiuma  imagem  da  Senhora,  e  abaixo  d"ella  a  do  minino  Jesu  entre  dous 
fradinhos  do  haljito  Dominico,  cada  hum  com  seu  cabazinho  na  mão.  Mas 
nem  inda  estes  Padres,  que  por  esta  obra,  e  por  mais  chegados  a  nos- 
sos tempos  chamamos  curiosos,  tiverão  cuidado  de  nos  deixar  escrito  o 
primeiro  successo,  nem  como,  e  quando  se  fez  a  tresladação,  nem  que 
rezão,  ou  occasião  houve  pêra  se  fazer.  Só  a  pintura  lhe  devemos,  e  não 
he  pequena  divida  em  tantos  descuidos.  Porque  ella  sem  haver  cousa  es- 
crita foi  ajudando  a  tradição,  quanto  ao  casa  principal,  que  também  es- 
tivera apagada  com  os  arinos,  e  nos  guiou  pêra  se  descobrirem  as  santas 
Relíquias,  e  em  fim  ficar  tudo  com  huma  nova,  e  grande  luz,  e  perpe- 
tuado pêra  em  quanto  o  mundo  durar.  Que  isto  he  hum  cabello  da  ca- 
beça dos  justos,  que  Deos  se  tem  obrigado  por  sua  verdade  que  não  ha 
de  perecer  :  memoria  mundana,  que  em  comparação  da  Eterna,  (jue  tam- 
bém promete,  ainda  he  menos  que  hum  cabello.  A  traça,  e  meio  dire- 
mos no  capitulo  seguinte. 

CAPITULO  XXXVII 

Como  forão  achados  os  corpos  dos  Santos  Frei  Bernardo^  e  seus 
discípulos,  e  colhwados  em  altar  particular. 

A  porta  das  graças  do  Convento  tinha  antigamente  a  seiventia  sobre 
os  presbitérios  da  Igreja.  Dezejavão  os  Padres  mudal-a,  e  abrir  outra, 
assi  por  tirarem  aquella  indecencia,  como  por  ganharem  mais  huma  Ca- 
pella nos  presbitérios :  mas  deixavão  de  o  fazer,  porque  não  havia  outro 
lugar,  se  não  onde  ficava  a  pintura,  que  dissemos,  cujo  indicio  junto  á  tra- 
dição, sem  haver  outra  certeza,  atava  mãos  aos  Prelados,  pêra  não  boli- 
rem  na  parede.  Atreveo-se  a  romper  polo  inconveniente  o  Prior  Frei  Mi- 
guel do  Rosário,  e  merece  ficar  em  memoria  seu  nome  :  porque  do  bom 
juizo,  com  que  o  fez,  resultou  ficarem  o  Convento  com  commodidade,  e  os 
Santos  com  honra.  Tendo  junto  o  necessário  pêra  dar  principio  á  obra, 
pedio  ao  Vigário  Geral,  que  polo  Arcebispo  assiste  na  vilhi.  ({uizesse 


276  LIVHO  II  DA  HISTOrJA  DE  S.  DOMINGOS 

achar-se  presente :  porque,  se  Deos  fosse  servido  acliar-se  o  que  se  sos 
peitava  n*aquelle  lugar,  houvesse  solenidade,  e  lembrança  tal,  que  se  não 
queixassem  os  vindouros.  Foi  assinado  o  dia  aos  14  de  Janeiro  do  anno 
de  1577.  Âcudio  elle  acompanhado  de  dous  Notários  Apostólicos,  e  fo- 
rão  chamadas  algumas  pessoas  nobres,  e  outra  gente  devota  da  Ordem. 
A  primeira  cousa,  que  se  fez,  foi  considerarem  a  calidaJe,  e  estado  da 
pintura,  que  estava  sobre  o  sitio,  onde  se  havia  de  começar  a  romper,  a 
qua!  notarão,  e  assentarão  todos  ser  mui  antiga,  colligindo-o  das  feiçijes 
uc  rostos,  e  \estidos,  em  tudo  desacostumados,  e  diíYereníes  do  tempo 
presente,  e  de  estarem  as  cores  botadas,  e  o  perfil  da  pintura  em  partes 
cego,  e  em  partes  apagado,  (indicio  certo  de  longo  discurso  de  annos.) 
Logo  forão  officiaes  começando  a  picar  a  parede  polo  mesmo  lugar  da 
pintura :  e  a  poucos  golpes  derão  em  Imma  pedra  grande,  lavrada,  que 
sendo  seguida,  e  descarnada,  e  descuberta,  pareceo  ser  caixão  ou  arcliete 
cerrado.  Decido  do  alto  com  alegria,  e  reverencia,  e  aberto  diante  de 
todos,  parecerão  dentro  dous  envoltórios  em  toalhas  de  linho.  As  toalhas 
sans,  e  tão  novas,  e  alvas,  que  parecião  postas  alli  d"aqueHa  hora,  (cousa 
que  muito  admirou),  tinhão  ao  longo  das  bainhas  humas  listas  vermelhas, 
e  polo  meio,  onde  se  houverão  de  juntar  com  costura  huraa  cadenilha,  ou 
renda  de  seda,  ao  parecer  feita  de  agulha.  Ao  abrir  do  primeiro  envoltório, 
recendeo  pola  Igreja,  e  foi  sintido  de  todos  os  que  cião  presentes  hum 
suavíssimo  cheiro,  que  lançavão  de  si  os  ossos,  que  n"elle  eslavão.  Erão 
grandes,  seccos,  e  alvos,  que  não  se  podia  duvidar  serem  de  homem,  e 
sua  caveira  grande,  que  respondia  em  proporção  com  elles.  Na  outra 
toalha  havia  mais  ossos  em  numero,  mas  todos  miúdos,  e  delgados,  e 
huma  caveira  inteira,  e  pequena,  que  logo  parecia  ser  de  minino :  e  huns 
pedaços  de  casco  d'outra,  que  também  mostravão  ser  pequena.  A  inteira 
estava  cuberta  de  hum  veo  negro.  Alguns  dos  ossinhos  tinhão  ainda 
carne  pegada.  Achou-se  com  elles  hum  pedaço  de  pano  de  lã,  que  devia 
ser  dos  hábitos  dos  mininos :  e  juntas  com  o  pano  humas  guedelhas  do 
cabellos  louros,  e  curtos  como  de  cercilho  dos  Fradinhos.  Celebrarão  os 
Religiosos  este  achado  com  a  duvação,  e  contentamento,  que  era  rezão, 
dando  muitas  graças  a  nosso  Senhor,  pola  manifestação,  e  confirmação 
tão  infallivel  de  hum  successo,  que  pendia  só  de  hnma  tradição  quasi 
morta,  e  do  testimunho  da  pintura  meio  apagada,  sendo  tanto  da  honra 
de  Deos,  e  da  Christandade,  e  da  Ordem  de  S.  Domingos.  Fizerão  se 
lo"o  autos  era  forma  de  direito,  com  summ.ario  de  tcstimunhas  tiradas 


PARTICCLAII   DO   REINO   DE  PORTUGAL  2  /  l 

ante  o  Vigário  geral,  com  declaração  de  todas  as  particularidades,  e  cir- 
cunstancias, que  temos  dito,  de  que  se  pedirão,  e  derão  treslados  pêra 
o  cartório  do  Convento,  onde  estão  guardados. 

He  particular  circumstancia,  e  honra  da  verdade  ser  sempre  unifor- 
me, e  huma  mesma  sem  variedade,  nem  alterarão.  Pôde  estar  escondida, 
enterrada,  ou  esquecida:   mas   difterente   de  si,  ou  encontrada  consigo 
nunca  o  pôde  ser :  porque  polo  mesmo  caso  não  fora  verdade.  Bem  o 
temos  visto  na  correspondência,  que  achamos  d'este  successo  com  a  tra- 
dição antiga:  e  na  conformidade  da  tradição  com  a  pintura,  e  da  tradi- 
ção, e  pintura  com  a  ultima  prova,  e  vista  das  relíquias:  e  da  santidade, 
que  contamos  de  Frei  Bernardo,  reconhecida  com  a  fragrância  desusada 
do  cheiro  de  seus  ossos,  usada,  e  vista  só  nos  de  grandes  Santos.  Mas 
isto  mesmo  me  obriga  a  sentir  mais,  que  sendo  o  principal  gosto  da 
historia  saber  o  tempo  certo  das  cousas:  der-pois  de  nos  constar  cora 
clareza  este  glorioso  successo,  de  força  havemos  de  ficar  com  duvida  dos 
annos,  em  que  aconteceo,  porque,  onde  falta  escritura,  nenhum  discurso 
nem  conjectura,  nos  pode  bastantemente  certificar.  Muitos  aíTirmão  que 
foi  no  anno  de  1250,  e  sem  falta  se  enganão:  porque  vivendo,  como  vivia  inda 
então  S.  Frei  Gil,  e  avisando  como  sabemos  ao  Mestre  Geral  da  Ordem 
de  particulares  casos  de  vida,  e  morte  de  Religiosos  d"este  Reino,  era 
impossível  deixar  esquecido  hum  tão  peregrino  como  este.  Ajunta-se, 
que  ao  tempo  do  falecimento  de  S.  Frei  Gil,  que  foi  quinze  annos  des- 
pois  no  de  1^65,  era  vivo  o  Santo  Frei  Bernardo.  O  que  achamos  nos 
escritores  de  sua  vida,  e  o  refere  o  Mestre  Resende  na  visão,  que  teve 
Elvira  Paes,  da  gloria  do  mesmo  Santo  despois  de  sua  morte,  dizendo 
que  esta  mulher  a  contou  ao  Santo  varão.  Frei  Bernardo,  e  a  outros 
que  nomea  (*;;  e  assi  he  forçado  passarmos  o  successo  muito  adiante.  E 
porque  humas  das  principais  obrigações  do  historiador,  he  computar,  e 
averiguar  com  precisão  os  tempos  do  que  escreve,  he  de  saber,  que  no 
summario  de  testemunhas,  que  como,  fica  dito,  tirou  o  Vigário  Geral, 
concordarão  todos  os  mais  velhos,  que  forão  presentes,  que  o  caso  pas- 
sara, havia  tresentos  annos,  (e  assi  ficou  escrito),  os  quais  tirados  de 
1577,  que  corrião,  quando  se  fez  o  summario,  ficão  ao  justo  1277,  e 
este  he  o  tempo  verdadeiro,  a  pouco  mais  ou  menos,  em  que  acon- 
teceo. 

Não  ignoram.os,  que  alguns  Autores  quizerão  lançar  este  aconteci- 

(•)  M.  Frei  Andic  de  Re;ondc  1.  2.  trac.  8.  cxcmp.  33. 


278  I.IVIU)  II  DA  HISTORIA  DK  S.   DOMINGOS 

menlo  nos  annos  muito  adianto  úe  13i8  até  13o0,  alleganJo  que  hou- 
vera em  tal  conjunção,  huma  peste  geral  no  Reino,  tão  violenta,  que 
deixara  despovoados  muitos  Conventos,  levando  de  dez  partes  dos  Re- 
ligiosos as  nove:  e  que  a  falta  de  Frades  obrigava  aos  que  ficarão  a  ir 
criando  mininos,  pêra  lhes  darem  a  seu  tempo  ó  habito,  quaes  erão 
estes  nossos.  Mas  enganarão-so  por  outro  semelhante  milagre,  com  que 
Deos  quiz  honrar  outro  Convento  nosso  em  tal  conjunção,  que  foi  o  de 
S.  Miguel  de  Vitoria  da  ilha  de  Malhorca:  o  qual  milagre  teve  algumas 
diíferenças  do  nosso,  como  se  pôde  ver  nos  escritores  da  província  de 
Aiagão(*):  primeira  ser  um  só  minino  convidado,  segunda,  e  terceira  suc- 
ceder  em  Domingo,  e  mais  de  setenta  annos  adiante. 

Mas  tornando  á  historia,  tiradas  as  santas  relíquias,  forão  levadas 
com  solemnidade  á  capella  mór,  e  postas  nos  degráos  do  altar,  em  quanto 
se  tratava  do  lugar,  onde  havião  de  ficar.  Estava  doente,  e  mui  trabalhado 
havia  justos  oitenta  dias,  de  humas  rigurosas  terçãs  dobres,  hum  Reli- 
gioso antigo  do  Convento,  por  nome  Frei  André  de  S.  Paulo:  foi  avi- 
sado do  que  passava,  e  aconselhado,  que  se  aproveitasse  da  occasião. 
Ainda  que  o  mal  o  tinlia  reduzido  cá  estrema  fraqueza,  cobrou  coração. 
Levanton-se,  e  fez-se  levar  primeiro  á  Sacristia,  onde  se  confessou,  e 
cummungou,  e  despois  ao  altar  mór.  Vio  as  santas  relíquias,  venerou-as, 
c  beijou-as,  pedio-lhes  sua  valia,  e  intercessão  pêra  se  ver  alguma  hora 
livre  de  tanto  frio,  e  tanto  fogo,  como  padecia  cada  dia  tão  importuna- 
mente, que  j;i  lhe  parecia,  que  nunca  havia  de  ser  são.  lie  cdusa  certa 
(jvie  desde  esta  hora  não  teve  mais  sezão,  nem  mal  nenhum:  e  como  em 
saúde  de  milagre,  foi  tão  apressada  a  convalescença,  que  aos  oito  dias 
foi  comer  em  Communidade  o  peixe  ordinário  do  refeitori  >. 

Fez  o  Pricr  relaçãD  de  todas  estas  cousas  ao  Arcebispo  de  Lisboa 
dom  Jorge  de  Almeida :  e  com  sua  licença  deputou  altar  particular  no 
corpo  da  igreja  pêra  decente  coll  cação  das  relíquias,  no  qual  por  en- 
tão se  poserão  bem  fechadas,  ficando  em  moio  do  altar  a  mesma  ima- 
gem milagrosa  do  Menino  Jesus,  de  cuja  invocação  se  instituio  logo 
huma  Confraria  com  estatuto  de  se  dizer  uma  Missa  da  Ascensão  todas 
as  quintas  feiras  do  anno,  e  ceiebrar-se-lhe  festa  no  mesmo  dia  da  Ascen- 
são, visto  como  n'elle  foi  servido  obrar  a  maravilha  com  seus  servos. 

yVlguns  annos  despois  assentarão  os  Padres  do  Convento  com  melhor 
conselho,  pêra  que  tudo  também  nos  lugares  ficasse  conformando  com 

(•)  M.  Frei  Frnnciíco  Di;igo  1.  c.  i3.  hist.  da  província,  de  Aragão. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  27fí 

a  antiguidade,  que  a  S.  Jacinto  se  desse  outra  capella:  c,  a  que  occupava 
dos  Reis,  se  restituísse  á  imagem  milagrosa,  e  ás  relíquias  dos  seus  con- 
vidados. E  assi  se  fez.  E  a  imagem  antiga  da  Senhora,  que  o  tinha  nos 
braços,  pêra  se  conservar  com  mais  decência,  se  passou  á  Capella  do 
Rosário,  e  he  a  mesma,  que  ali  tem  a  invocação  d'eUa.  Huma,  e  outra 
cousa  se  ordenou  com  muita  consideração,  porque,  alem  da  grande  ve- 
neração, que  a  ambas  estas  imagens  se  deve  polo  passado,  e  por  mila- 
gres que  hoje  fazem,  está  recebido,  e  assentado  n"esta  villa  entre  pes- 
soas religiosas,  e  seculares  de  bom  juízo,  que  a  do  minino  tem  crecido 
notavelmente,  e  está  muito  maior  do  que  era  em  tempos  atrás:  c  os 
que  continuavão  no  Convento,  e  na  vista  delle  affirmão,  que  ainda  hoje 
vai  crecendo  conhecidamente.  Do  que  he  argumento  que  sendo  recolhida 
em  tempos  atrás,  em  huma  caixa,  que  se  lhe  fez  pêra  resguardo,  forrada 
de  setim  carmesi,  na  qual  segundo  a  tradição  comum  csoia  folgadamente 
cuberta  a  cabeça  com  seu  chapeosinho  alto,  feito  do  mesmo  setim,  tes- 
timunhão  muitos  Padres  de  grande  authoridade,  e  credito,  e  seculares 
dignos  de  fé,  que  virão  com  seus  olhos  dezeseis  annos  atrás,  ser-lhe  a 
caixa  tão  curta,  que  com  diíTiculdade  entrava  n'ella  desbarretado.  O  que 
sendo  publico,  e  chegando  á  noticia  das  Religiosas  Framer.jas  da  Or- 
dem de  S.  Francisco,  que  tem  seu  Mosteiro  em  Alcântara,  arrabalde  de 
Lisboa,  cheias  de  espirito,  e  devaeão  inviarão  ao  Prior  uma  caixa  maior, 
e  melhor  lavrada,  e  dourada,  pedindo-lhe  a  troco  delia  a  que  o  minino 
a  parecer  de  todos  já  engeitava  por  curta.  Foi  o  Prior  fácil  de  vencer 
do  partido,  e  a.eiíou-o  com  liberalidade  pouco  considerada.  Porém  a 
mesma  imagem  santa  o  vai  desculpando,  porque  n"estes  dezeseis  annos 
tem  crecido  tanto  ao  sabido,  que  sendo  assi,  que  quando  aceitou  o  novo 
recolhimento,  estava  n"elle  com  grande  largueza  coroado  de  uma  coroa 
de  prata  cerrada,  que  remata  em  huma  Cruz  no  alto:  os  mesmos,  que 
o  virão  eulão,  pasmão  hoje:  porque  o  enche  tanto  ao  justo,  e  tão  aper- 
tadamente, que  he  necessário  geito,  e  artificio  pêra  o  tornarem  a  reco- 
lher, quando  os  Padres  acertão  de  o  tirar  por  alguma  occasião.  D"onde 
se  infere  ao  certo  que  também  aqui  vai  crecendo.  Mas  o  maior  crecimento 
se  vio,  e  notou  a  olhos  de  toda  a  villa  de  Santarém,  quando  saindo  do 
Convento  huma  devota  procissão,  haverá  oiío  annos  em  occasião  de  gra- 
víssimo sintiraento,  pareceo  ao  Prelado  que  seria  importante,  pêra  fa- 
zer devação,  e  pedir  misericórdia,  ir  n'ella  a  imagem  antiga  da  seniiora, 
c  em  seus  braços  a  do  menino  milagroso.  Fez-se  assi,  e  enxergou-se 


280  I.FVI',0  II  DA  IIISTOniA  DE  S.  DOMINGOS 

Imma  excessiva  desproporção  do  corpo  do  filho  ao  da  mãi,  porque  cla- 
rainento  a  encobria,  e  assombrava  de  maneira,  que  a  não  deixava  ver. 
Assi  achamos  Rehgiosos  nas  diligencias,  que  de  próximo  fizemos  no 
caso,  que  não  duvidão  jurar,  que  vai  crecendo. 

Mas  isto  são  cousas  muito  vizinhas  ao  tempo  presente.  Tornando  ás 
mais  affastadas,  quando  soou  pelo  Reino  a  manifestação  d"estes  Santos 
foi  grande  a  devação,  e  aíTecto  de  piadade,  com  que  geralmente  foi  ou- 
vida. Assi  se  pedirão  logo  relíquias  de  muitas  iiartcs.  E  pedindo-as  tam- 
bém a  senhora  dona  Gaterina  fdha  do  infante  dom  Duarte,  e  mãi  do 
Duque  de  Bragança  dom  Theodosio,  lhe  foi  diula  a  cabeça  que  entre  as 
dos  mininos  se  achou  inteira:  a  qual  se  guarda  com  outro  grande  nu- 
mero de  preciosas  relíquias  na  sumptuosa  capella  que  os  Duques  tem 
nos  seus  paços  de  Yilla  Viçosa. 

CAPITULO  XXXVIII 

Do  Santo  Frei  Bernardo  Segundo,  sua  conversão,  vida,  e  milagres, 

e  sepultura. 

A  hum  Bernardo  bem  pode  seguir  outro  Bernardo,  quando  não  foi  in- 
fei'ior  na  virtude,  nem  no  sangue  :  nem  diíTerente  em  Convento :  se  bem 
houve  grande  dilferença  nos  lugares  onde  ambos  nacerão,  e  nos  annos 
em  que  fíorecerão.  Temos  tradição  muito  antiga,  (escritura  não  ha  ne- 
nhuma, nem  ha  já  pêra  que  perder  tempo  em  culpar  descuidos,  nem 
defender  singelezas  de  nossos  maiores)  que  poios  annos  de  1340,  pou- 
cos mais  ou  menos,  tomou  o  habito  n'este  Convento  hum  moço  muito 
illiístfo,  e  natural  da  mesma  Villa.  E  foi  o  meio,  por  onde  o  Espirito 
Santo  o  trouxe  a  buscar  o  Ceo,  hum  caso  accidental,  que  passou  d'esta 
maneira.  Sahio  hum  dia  a  cavallo  com  outros  seus  iguais  ao  Chão  da 
Feira,  (assi  chamão  á  grande  praça  que  se  estende  entre  aporta  de  Lei- 
ria, e  os  Mosteiros  de  S.  Francisco,  e  S.  Domingos.)  Era  a  tenção  fes- 
fejar  a  tarde  em  virtuoso  exercício,  mostrando  cada  hum  sua  destreza,  e 
as  boas  manhas  dos  ginetes.  Começando  a  passar  a  carreira,  poz-se  no 
posto  Bernardo  (assi  havia  nome  o  moço)  trazia  hum  poderosa  cavallo: 
e  ou  fosse  que  o  não  tevesse  bem  conhecido:  ou  que  o  permitisse  assi 
Deos  para  o  fim  que  ordenava,  foi  tão  descompassado  o  Ímpeto,  com 
que  o  animal  furioso  se  arremessou  á  carreira,  que  o  descompoz,  c  ar- 


PAKTICULAR  DO  REINO  DK  PORTUGAL  28  1 

nncon  da  cclla,  e  com  os  estribos  perdidos  hia  a  olhos  vistos  ao  clião. 
N'esio  passo  so  lembrou  de  S.  Domingos,  (corria  com  o  rosto  no  Con- 
vento) foi-se  a  elle  com  o  pensamento,  como  hia  com  a  vista,  pedio-lho 
socorro :  e  logo  sem  saber  como,  nem  porque  via,  segundo  despois  con- 
tava, se  vio  tão  senhor  da  cella,  e  do  cavallo,  que  sem  nenhum  desar,  e 
com  espanto  dos  companheiros  chegou  ao  cabo  da  carreira,  e  foi  paran- 
do concertado,  e  gentilhomem.  Maslembrado  do  peVigo  em  que  vira  sua 
vida,  c  opinião,  que  huma,  e  outra  cousa  sintia  igualmente,  logo  deter- 
minou tomar  estado,  em  que  pêra  sempre  ficasse  izento  de  semelhantes 
afrontas :  e  conhecendo  bem  o  que  devia  a  quem  o  livrara  da  presente, 
amanheceo  o  dia  seguinte  no  Convento,  e  pedio  o  habito.  Não  poz  o 
Prior  dilação  em  lho  vestir,  porque  erão  publicas  as  calidades  do  sojei- 
to :  nem  o  generoso  moço  em  mostrar,  que  fora  a  mudança  da  mão  do 
Altíssimo :  se  bem  levera  principio  em  humilde  accidentc  da  terra.  En- 
íregou-se  a  todos  os  exercícios  da  Religião,  como  se  pêra  outra  cousa 
não  nacera :  estimava  a  pobreza,  como  se  nunca  fora  senhor  de  fazenda: 
assi  obedecia,   como  se  toda  a  vida  fora  súbdito,  e  nunca  soubera  que 
cousa  fosse  mandar :  riguroso  no  jejum,   devoto  na  oração,  no  silencio 
constante.  O  recolhimento  da  cella,  e  a  lição  dos  livros  saiilos,  ora  o  seu 
maior  gosto :  mas  pêra  os  exercícios  humildes  ninguém  sahia  delia  com 
mais  vontade.  Das  portas  do  Convento  pêra  fora  não  queria  saber  nada: 
parentes,  e  amigos  do  mundo  poz  de  todo  em  esquecimento :  e  até  o 
nome  da  família,  e  do  sangue  engeitou,  ficando-se  só  com  o  de  Frei  Ber- 
nardo, nem  lhe  sabemos  outro.  Assi  foi  sobindo  a  hum  alto  género  do 
santidade,  que  elle  encubria  com  outro  igual  de  abatimento,  e  desprezo 
de  si.  Mas  este  foi  o  maior  descubriclor  d'ella.  Porque  o  enemigo  co- 
mum que  particularmente  aborrece  humildade,  não  arrependido  do  pec- 
cado  antigo,  vendo  que  se  fundava  na  de  Frei  Bernardo  valerosa  coluna 
da  Religião,   começou  a  fazer-lhe  guerra  a  todo  seu  poder.  Porém  pola 
misericórdia  Divina  ficava  sempre  vencido,  e  o  bom  soldado  de  Christo 
cobrava  com  o  exercício  novas  forças  pêra  pelejar,  e  vencer.  Veio  a  ser 
occupado  no  car<ro  da  Sacristia.  Aqui  achou  o  enemigo  hum  novo  ardil 
pêra  o  inquietar.  Erão  os  Frades  poucos,  ou  era  elle  só  pêra  muito,  ser- 
via a  Sacristia  sem  companheiro,  e  fazia-o  com  particular  diligencia.  Era 
esmerada  a  limpeza,  e  concerto  com  que  tudo  andava  em  sua  mão.  Mas 
queixavão-se  es  Frades,  que  as  mais  das  noites  achavão  as  alampadas  do 
Dormitório,  e  da  Igreja  apagadas.  Disserão-lho,  procurou  o  remédio  pro- 


282  LIVRO  II  DA  inSTOniA  DIÍ  S,  IX)MIXG09 

vendo-as  sempre,  e  deixando-as  em  estado  que  por  boa  conta  sustentas- 
sem a  luz  horas  dobradas,  cerrando  frestas,  e  janellas.  Mas  não  bastava 
nada.  Porque  no  tempo  mais  quieto  se  achavão  mortas  sem  combate  de 
vento,  nem  tormenta :  e  os  Frades  fazião  queixa  publica  de  sua  negli- 
gencia, Assi  andava  enemistado  com  elles,  e  desacreditado  com  o  Prelado 
sem  culpa  nenhuma.  Foi  tirado  a  Capitulo,  reprendido,  penitenciado. 
Não  sahia  que  íizessd^  chorava,  e  sintia  o  escândalo  da  Gommunidade, 
mais  que  seu  descrédito ;  e  o  desgosto  do  Prelado,  mais  que  as  peniten- 
cias que  lhe  dava,  porque  outras  fazia  mais  rigurosas,  e  continuas.  He 
constante  tradição  que  nove  annos  lhe  durou  este  trabalho,  e  afronta, 
trazendo-o  afiligido,  e  tresnoutado  de  se  levantar  a  cada  passo  a  vigiar,  e 
acender  de  novo,  com  hum  sofrimento  incansável,  aceitando  já  o  trabalho 
por  exercício  de  virtude,  e  offerecendo  a  Deos  a  injustiça  das  culpas  que 
llie  davão.  Mas  o  discurso  do  tempo,  e  a  paciência  de  Frei  Bernardo  foi 
mostrando  que  não  era  cousa  natural :  e  já  todos  entendião  que  tal  im- 
portunação, e  contumácia  não  podia  proceder  se  não  do  Inferno,  e  aca- 
bou-se  de  ver  no  caso  que  agora  diremos. 

Acabou  huma  noite  de  concertar,  e  acender  a  alampada  do  altar  mór- 
e  em  virando  as  costas  achou-a  apagada.  Era  o  tempo  claro,  e  sereno, 
não  se  sintia  bafo  de  vento:  sem  fazer  juizo  temerário  entendeo  que  fora 
feito  á  sinle,  e  a  alampada  apagada  á  mão.  Era  falta  no  culto  Divino, 
indigna  de  se  dissimular,  arrebentou  o  sofrimento.  Prostra-se  por  terra 
diante  do  Santissimo  Sacramento  pedindo  eíTicazmente,  e  com  desconso- 
lação ao  Senhor  lhe  quizesse  manifestar  algum  dia  quem  tanta  lhe  cau- 
sava. Acabada  a  oração  foi-se  buscar  luz,  e  começava  a  entender  com  a 
alampada,  se  não  quando  se  lhe  põem  diante,  e  junto  d*ella  hum  feio 
animal,  bode  na  barba,  e  armação.  Julgando  logo  quem  podia  ser  o  dono 
de  tal  mascara,  mandou-lhe  da  parte  de  Deos  que  d"ali  se  não  bolisse, 
nem  mudasse  a  hgura  :  e  foi-se  correndo  á  Sacristia,  trouxe  huma  grossa 
disciplina,  levou  o  cabrão  polas  barbas,  desafogou  a  paixão,  ou  quebrou 
as  mãos  em  o  disciplinar.  E  despois  de  cançado  levou-o  arrastando,  e 
atroando  o  Convento  com  berros  infernais  até  a  casa  commum,  e  lançou-o 
por  ella  a!)aixo.  Então  cessou  a  queixa  das  alampadas :  e  cairão  os  Frades 
no  que  tinhão  dado  a  merecer  de  tanto  tempo  atrás  ao  pobre  Sacristão 
com  seus  mal  fundados  juízos. 

Crece  a  virtude,  e  o  valor  nos  trabalhos.  Crecião  graças,  e  favores  do 
Geo  cm  Frei  Bernardo,  quando  mais  acossado  andava  do  Inferno:  evião- 


fAimcUí.AR  Dó  REINO  DE  PORTUGAL  283 

se  prodígios  da  sua  orAção,  e  de  suas  liiãos,  espantosos.  lie  cousa  sem 
duvida,  que  a  muitos  enfermos  desesperados  de  remédio  humano,  livrou 
das  portas  da  morte,  sarou  aleijados,  deu  olhos  a  cegos,  resuscitou  mor- 
tos. Das  circunstancias,  e  particularidades  de  cada  maravilha  doestas  não 
chegou  a  nós  a  noticia,  porque  estando  escritas  muitas  poios  antigos,  e 
contemporâneos  de  Frei  Bernardo,  os  successores  forão  tão  descuidados, 
(porque  nunca  nos  faltem  queixas),  que  deixarão  consumir  os  pergami- 
nhos, que  ainda  erão  vivos  em  tempo  de  Frei  André  de  Resende  (*),  como 
elle  o  testimunlia  na  vida  de  S.  Frei  Gil,  dizendo  de  certa  particulari- 
dade, que  a  achou  apontada  entre  os  milagres  de  S.  Frei  Bernardo.  Mas 
diremos  hum  que  por  estranho,  e  quasi  nunca  visto,  não  pode  ser  da 
antiguidade  vencido,  porque  se  conservou  a  tradição  delle  com  ajuda  de 
pintura. 

Foi  o  caso,  que  sendo  levado  a  enforcar  huma  mânham  hum  pobre 
homem,  por  sentença,  e  mandado  da  justiça,  e  íeita  n'elle  a  execução 
segundo  costume:  quando  foi  sobre  tarde  permittio  o  Senhor  que  pas- 
sassem por  junto  da  forca  certos  homens,  os  quais  se  ouvirão  chamar 
d'ella,  e  acudindo  á  voz  não  livres  de  medo,  mas  animados  com  a  com- 
panhia, (hsse-lhes  o  pendurado  que  chogiíssem  sem  temor,  porque  não 
era  fantasma  quem  lhes  falava,  senão  homem  vivo,  e  usassem  com  elle 
de  misericórdia,  já  que  Deos  os  trouxera  por  ali.  Despois  que  o  decerão, 
não  faltou  curiosidade  pêra  lhe  perguntarem  a  rezão  de  tal  maravilha, 
tendo  tamanha  contradição  entre  si  vivo.  e  enforcado.  Respondeo,  que 
Frei  Bernardo,  Sacristão  de  S.  Domingos  aparecera  ali,  e  estivera  com 
elle  ao  tempo  que  lhe  lançavão  os  cordéis,  e  sem  elle  padecente  saber 
como,  o  defendera  da  morte,  e  o  sustentara  até  aquella  hora  que  os  sin- 
tica,  e  chamara.  Soube-se  despois  que  a  mãi  era  grande  devota  do  Santo, 
e  que  ao  tempo  que  o  leva  vão  a  padecer,  se  fora  a  elle  com  lagrimas, 
pedindo-lhe  remédio,  e  manifesíar-lhe,  como  he  de  crer,  que  padecia 
sem  culpa :  o  que  muitas  vezes  tem  acontecido,  não  deixando  de  fazer 
seu  dever  a  justiça,  e  juizes. 

O  successo  tem  toda  a  certeza  que  humanamente  pode  haver  em 
cousa  tão  antiga.  Porque  teve  por  Cronista  todo  o  povo  de  Santarém,  a 
cujos  olhos  se  pintou  a  historia  nas  paredes  da  Capella,  que  então  era 
dos  Reis  >íagos,  contigua  ao  Coro,  e  Capella  mòr  da  parte  do  Evangelho. 
E  claro  está  que  se  não  pintara  cousa  duvidosa  havendo  de  ter  tantas 

{•)  Resende  l.  2.  tr.  2.  csenip  .  39. 


28  i  LIYUO  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

tostimunhas.  E  nós  alcançamos  a  pintura  que  era  viva  ha  menos  de  cin- 
quenta annos.  Lembra-mc  como  natural  de  Santarém,  ouvir  muitas  vezes 
Missa  n'esta  Capella,  e  ver-lhe  as  paredes  cubertas  de  pinturas  a  fresco 
de  alto  abaixo,  e  de  mão  pouco  polida,  prometendo  muita  antiguidade 
no  feitio,  e  no  estado  de  cores  botadas,  e  pouco  distintas  em  parte.  No- 
távamos forca,  e  o  pendurado,  em  sua  alva  vestido,  e  rosto  cuberto,  e 
pés  estirados,  e  lembra-me  como  moço  fazer-me  horror,  e  asco.  Víamos 
a  outra  parte  homens  amortalhados,  e  outros  que  representavão  hum 
hospital,  por  serem  muitos,  e  todos  com  sembrante,  e  geito  de  enfer- 
mos: tudo  memorias  dos  que  por  orações  do  Santo  teverão  remédio 
milagroso.  Não  esqueceo  a  historia  que  contamos  do  apagador  das  alam- 
padas,  em  huma  parte  representando-se  ao  Santo,  n  outra  disciplinado, 
e  em  acto  que  mostrava  ou  fingia  sintir  o  castigo.  Menos  danificada  es- 
tava esta  memoria  no  anno  em  que  o  Padre  Mestre  Frei  Jeronymo  de 
Padilha  a  vio,  que  foi  o  de  1539,  em  que  fez  os  apontamentos,  que  temos 
seus,  de  cousas  que  como  Provincial,  que  era,  foi  notando  nas  casas  da 
Província :  e  diz  as  palavras  seguintes : 

Este  glorioso  Santo,  (fala  de  Fr.  Bernardo),  ha  hecho  muckos  milagros, 
y  ossi  está  toda  su  Capilla  llena  de  pinturas  dellos  oy  en  dia,  dado  que 
ha  que  passo  mas  de  dozientos  anos. 

De  qual  foi  sua  morte,  não  temos  certa  relação.  Bem  acreditada  está 
com  a  vida  d'antes,  e  com  a  honra,  que  lhe  grangeou  despois.  Porque 
como  a  Santo  se  lhe  deu  sepultura  alta  na  Capella,  que  temos  dito,  que 
foi  hum  grande  moimento  de  pedra  lavrado  a  uso  d'aquella  idade,  que 
ficava  arrimado  á  parede  do  Coro,  e  Capella  mór,  entalhado  hum  vulto 
de  Frade  de  relevo  na  lagea,  que  o  cobria,  e  aos  pés  a  figura,  em  que  o 
diabo  se  lhe  descubrio,  quando  o  perseguia.  E  ajuntarão  os  devotos,  a 
pintura  pêra  ornato  da  Capella,  e  elogio  da  sepultura.  Este  moimento  se 
abrio,  e  desfez  no  tempo,  que  a  Igreja  se  reedificou.  A  causa  de  se  abrir 
foi  haver  fama,  que  hum  Prior  antigo  passara  os  ossos,  que  n'ella  havia 
pêra  a  sepultura  do  S.  Frei  Gil.  iMas  a  que  houve  pêra  se  desfazer  foi, 
não  se  saber  cujos  erão :  e  parecer  que  convinha  desembaraçar  o  lugar 
pêra  effeito  de  se  engrossarem,  e  fortificarem  as  paredes  da  Capella  mór. 
Aberto  o  sepulcro  veriíicou-se  a  mudança  das  relíquias,  porque  se  não 
acharão  mais  que  três  ou  quatro  ossos,  os  quais  recolliidos  em  huma  bo- 
ceta, com  hum  papel,  que  declara  a  rezão  do  feito,  íicarão  sumidos  na 
grossura  da  parede,  no  mesmo  sitio  da  sepultura,  e  posta  sobre  elles  ã 


PAUTICULÀR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  285 

nico  liuma  pedra  sinelada  das  armas  da  Ordem,  sem  outra  memoria. 
Sospeitarão  os  Padres,  que  entendião  na  pedra,  e  cal,  ser  a  sepultura 
do  Padre  Frei  Domingos  de  Cubo,  porque  lhes  faltou  a  pintura  que  os 
guiasse,  trocada  já  então  em  azulejos,  des  do  tempo  que  se  dedicou  a 
Capella  a  S.  Jacinto.  Assi  ficou  Frei  Bernardo  despois  de  longos  annos 
sem  nome,  sem  Capella,  e  sem  sepultura,  repartido  parte  na  alliea,  e 
parte  encerrado  na  parede:  porém  sem  culpa  dos  edificadores,  e  só  por 
falta  de  noticia  da  antiguidade.  Que  se  esta  houvera,  de  crer  he,  que 
com  novos  titulos  se  avivara  a  memoria  de  tal  Santo:  e  nós  em  lugar 
d"elles  lhe  oíTerecemos  em  nome  da  Província,  que  nos  manda  escrever, 
e  no  nosso  humilde,  mas  como  natural,  estas  poucas  regras,  que  se  por 
serem  de  nossa  penna  merecerem  pouca  estima,  polo  valor  da  impressão 
durarão  mais  que  todos  os  jaspes,  e  póríidos  da  terra :  e  por  emprega- 
das cm  seu  serviço  podemos  esperar  que  sejão  immortais. 

CAPITULO  XXXIX 

De  alguns  lieligiosos,  que  despois  de  servirem  grandes  cargos  na  Ordem, 
se  recolherão  neste  Convento.  E  outras  antigualhas  delle. 

Como  este  Convento  era  conhecido,  e  nomeado  por  toda  a  Ordem 
por  hum  Seminário  de  Santos,  e  com  mais  particularidade  na  provisicia 
de  Espanha,  de  que  era  cabeça,  como  atrás  temos  mostrado  ;  houve  mui- 
tos Padres  dos  mais  abalisados  delia,  que  despois  de  a  terem  servido 
nos  cargos  maiores,  quizerão  rematar  nelle  o  curso  de  sua  peregrinação, 
fiando  que  seria  consolação  dos  últimos  dias,  ò  remédio  pêra  a  alma, 
viver  entre  Santos,  e  ficar  entre  Santos  sepultado.  O  primeiro,  de  que 
temos  noticia,  e  mais  antigo,  foi  o  Mestre  Frei  Arnaldo  Segarra,  natu- 
ral de  Barcelona,  em  Catalunha,  varão  insigne  em  virtude,  e  letras.  Era 
Provincial,  veio  a  concluir  seu  cargo  com  a  visita  deste  Convento  na 
entrada  do  anno  de  1255:  e  vendo  com  seus  olhos  o  que  a  fama  pre- 
goava no  Santo  Frei  Gil,  e  em  outros  Religiosos,  e  ouvindo  maravilhas 
dos  que  erão  de  fresco  falecidos,  não  se  soube  apartar  mais  de  tal  mo- 
rada, e  vida,  nem  querer  melhor  jazigo  na  morte,  que  o  cemitério  com- 
mum.  Estava  a  humildade  em  tão  alto  ponto,  que  os  cargos  grandes 
erão  aborrecidos  como  carga;  c  o  mais  humilde  lugar  era  havido  por 
mais  honrado  em  vida,  e  lambem  na  morte.  Parece  que  soava  ainda  nas 


286  LIVHO  II  DA  lUSTORlA  DE  S.  DOMINGOS 

orelhas  dos  filhos  aquella  palavra  do  Santo  Patriarclia,  quando  sendo 
perguntado  onde  queria  que  o  sepultassem,  respondeo,  que  aos  pés  dos 
seus  Frades.  Este  exemplo  sejíuio  S.  Frei  Gil  duas  vezes  Provincial,  e 
se  o  vemos  melhoi'ado,  foi  porque  o  arrancou  de  terra  a  devação  dos 
lieis.  Não  devião  pretender  mais  honra  Frei  Arnaldo,  e  os,  que  após  elle 
buscarão  este  Convento. 

  variedade  dos  tempos  foi  variando  estilos,  e  introduzindo  sepultu- 
ras altas,  letras,  e  pinturas,  em  que  devemos  louvar  a  tenção  pia  dos 
successores,  que  suprião  com  estes  meios  a  falta  da  escritura,  e  conser- 
vavão  a  memoria  dos  que  vinlião  honrar  a  casa.  Assi  achamos  nella  em 
humas  parles  nichos,  e  archetes  de  pedra,  sem  letra,  nem  outro  sinal 
sumidos  nas  paredes  da  Igreja :  que  se  virão,  e  considerarão,  quando  se 
derribava  pêra  se  levantar  de  novo;  e,  como  estavão  sem  nome,  passavão 
as  ossadas  ao  cemitério.  l*or  outras  partes  ha  pedras,  letreiros,  e  se- 
pulturas altas  de  Frades,  mas  são  já  de  tempos  mais  chegados  a  nós,  e 
por  isso  alguma  cousa  menos  severos,  ou  mais  polidos.  Na  parede  da 
crasta,  de  huma,  e  outra  parte  da  entrada  do  Capitulo,  se  vem  hoje  duas 
pedras,  ambas  pequenas,  e  entalhadas  de  letras  Góticas  miúdas.  Dizem 
humas : 

Hic  jacet  Domnus  Frater  Dominicus  Veeijra  reuerendiis  Doctor  Ordi- 
nis  Prmdicatorum,  qni  bona  senechite  plenus  dierum,  at  sapiendw  obijt 
in  Domino  in  Vigília  Natalis  jEra  M.CCC.LX.  (Responde  ao  anno  de 
Christo  de  1322.) 

As  outras  são: 

Jíic  hicel  Frater  Gonçalaiis  de  Calciata  Prior  Provincialis  Ordinis 
Prcedicatorum.  qui  obijt  anno  Domini  M.CCC.LX. 

Na  capei! a  dos  Santos  Cosmos,  que  lie  contigua  ao  Coro,  da  parte 
da  Epistola  liavia  liuma  sepultura  com  seu  letreiro,  que  declarava  ser 
do  Mestre  Frei  Estevão  de  Santarém,  que  fundara  o  segundo  Dormitó- 
rio do  Convento.  Este  sinal  basta  pêra  lermos  este  Padre  por  um  dos 
mui  antigos  delle.  Porque  o  Dormitório  por  velho  se  veio  a  derribar  no 
anno  do  1602,  sendo  Prior  Frei  Eliseu  de  Almeida,  e  no  sitio  se  fez  parte 
do  refeitório,  que  hoje  serve,  e  parte  da  casa  de  noviços.  IMas  não  valeo 
a  Frei  Estevão  sua  ansianidade  pêra  ficar  em  repouso.  Os  reedificadores 


PAUTICILAR  DO  «LINO  DE  POUTLT.AL  287 

da  Igreja  mudarão  a  ossada  para  o  cemitério,  picarão  a  letra  da  campa, 
e  aplicarão-na  a  outro  serviço.  Se  foi  com  justiça,  outrem  o  julgue.  Eu 
tenho  por  de  graúdo  estima  qualquer  letra  antiga,  e  as  deste  Convento 
por  muito  aventajadas  em  preç"),  poios  muitos  Santos,  que  produzia;  e 
tenho  por  certo  que  todos  estes  enterros  dilferenciados  erão  de  gente 
que  os  merecia  por  santidade.  No  cruzeiro  da  Igreja  junto  á  capella  de 
S.  Frei  Gil  íica  huma  sepultura  com  esta  letra  Portugueza  notável. 

Aqui  jaz  Mestre  Gonçalo  que  foi  Provincial  da  Ordem  de  São  Domin- 
gos por  dezoito  annos,*  e  Prior  do  Mosteiro  da  Vitoria  por  dez  annos. 
Alma  sua  folga  em  paz.  E  finou  iEra  Domini  M.CCCC.XXXXVIII.  aos 
XYIIL  dias  de  Outubro. 

Outra  diíTerença  parece  em  muitas  sepulturas  no  Capdulo,  e  pola 
Igreja,  que  são  campas  lançadas  no  chão  com  liguras  inteiras  de  Frades 
dizenhadas,  ou  riscadas  somente,  e  cada  huma  com  sua  divisa  do  gráo 
que  seu  dono  teve,  mas  sem  nome,  nem  outra  declaração :  e  todas  em 
geral  com  seu  bordão,  e  livro  nas  mãos.  A  rezão  desta  insígnia  era,  por- 
que nos  princípios  da  Ordem  todos  os  Religiosos  caminhavão  com  ella, 
e  a  pé,  em  lembrança,  que  fora  antigamente  dada  poios  Santos  Apósto- 
los a  nosso  Patriarcha,  como  atrás  contamos.  E  sua  significação  era,  se- 
gundo dezia  o  grande  Mestre  Fj'ei  João  Teutonico,  Mestre  Geral  da  Or- 
dem, haverem  de  estar  sempre  prontos,  e  prestes  os  Pregadores  Apos- 
tólicos pêra  correrem  polo  mundo  todo  pregoando,  e  estendendo  o  santo 
Evangelho  entendido  polo  livro,  arrimados  ao  bordão,  que  he  a  Cruz  de 
Christo,  ou  a  vara  de  Jessé,  por  quem  entendemos  a  Virgem  Mãi,  em 
cuja  confiança  poderíamos  vencer,  e  alropellar  sem  medo  todos  os  pe- 
rigos, c  trabalhos  da  vida. 

E  porque  nos  não  fique  por  dizer  nenhuma  antigualha,  que  de  algu- 
ma maneira  toque  á  reputação  desta  casa :  somos  lembrados  ver  huma 
pintura  no  Capitulo,  na  parede  fronteira  da  entrada,  que  em  defeito  de 
escritura,  (como  d'outras  d'este  Convento  temos  dito),  sustentou  até  nossa 
idade  huma  memoria  bem  de  estimar.  E  foi  que  o  veio  visitar  hum  Mes- 
tre Geral  da  Ordem  com  devação  do  que  d'elle  ouvia :  em  tempo  tão 
antigo,  que  não  havia  mais  que  seis  Conventos  em  todo  o  Reino,  a  saber 
Santarém,  Coimbra,  Porto,  Lisboa,  Elvas,  Guimarães.  E  pêra  os  ver  to- 
dos em  suas  cabeças  fez  aqui  huma  congregação  dos  Priores.  Mostrava 


288  LIVRO  11  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

a  pintura  no  alto  hum  antigo  retrato  do  Padre  S.  Domingos  com  esta 
letra:  Sandus  Dominicus  primus  Magister  sacri  Palatij.  E  logo  abaixo 
o  Padre  Geral  cm  meio  dos  sois  Priores,  com  huma  disciplina  de  varas 
na  mão,  que  lie  insignia,  com  que  se  costumão  pintar  os  Gerais  desta 
Ordem.  Quizerão  os  Padres,  que  se  acharão  presentes,  que  ficasse  per- 
petua a  memoria  desta  honra,  fiarão-na  só  de  pintura  feita  a  fresco,  e 
sobre  a  cal,  e  por  oílicial  pouco  primo,  indicio  da  pobreza,  que  em  ta- 
da  se  guardava.  Em  favor  da  antiguidade  a  referimos  aqui,  e  merece-a 
ella,  porque  não  he  menos  que  de  trezentos,  e  cinquenta  annos,  visto 
como  a  conta  de  seis  Conventos  he  do  anno  de'  1270  até  o  de  1280,  em 
que  começamos  a  ter  sete,  como  se  verá  polo  discurso  da  Historia. 

CAPITULO  XL 

l)as  grandes  maravilhas,  que  cm  vários  tempos  se  virão  no  cemitério,  em 
confirr.mção  da  santidade  do  Convento.  Das  pessoas  Reais,  que  nelle  ja- 
zem. Dos  Religiosos,  que  os  Reis  lhe  tirarão  pêra  differentes  cargos. 

Mas,  se  estas  cousas,  com  serem  só  fundadas  cm  huma  boa  opiniã  o 
do  povo,  fazem  ao  caso,  e  rendem  credito  ao  Convento,  que  fará  a  sus- 
tancia,  e  verdade  delias  sabida?  Pouco  he  tudo  o  que  desde  seus  prin- 
cípios temos  contado  d'elle :  e  certo  sinal,  que  o  escrito,  e  sabido  são 
humas  cifras  do  muito,  que  á  nossa  noticia  não  chegou  de  numero  de 
Santos,  e  de  grandeza  de  santidade.  Historia  he,  que  anda  nesta  casa 
recebida  de  mão  em  mão  dos  antigos  moradores,  e  celebrada  na  Pro- 
víncia por  muito  verdadeira,  que  estando  cl  Rei  dom  Afonso  Quarto, 
que  chamarão  o  Cravo,  em  Santarém,  e  chegando  em  huma  noite  de 
verão  a  huma  janella  do  Paço,  das  que  tem  vista  pêra  o  Convento,  vio 
arder  á  parte  do  cemitério  huma  grande  claridade  de  muitos  lumes  jun- 
tos, e  logo  notou  huma  comprida  procissão  de  Frades  em  branco  com 
cirios  acesos  nas  mãos,  que  dava  volta  ao  cemitério,  e  ali  mesmo  aca- 
bava, e  desaparecia.  E  contão,  que  sem  esperar  que  fosse  manhã,  man- 
dara no  mesmo  ponto  saber  do  Prior,  que  causa  havia  pêra  se  fazer  tal 
procissão,  e  a  tal  hora,  que  era  pouco  despois  de  meia  noite.  E  o  Prior 
pêra  responder  com  puntualidade,  e  mostrar,  que  não  houvera  movimento 
extraordinário  em  casa,  contra  a  vista  de  hum  Rei,  levara  o  messageiro 


I 


partícula»  do  iu:i.\o  di;  i>ortlí;al  !á89 

polo  Dormiíoriu,  mostrando-lhe  como  os  Religiosos  todos,  dilas  suas 
Watinas,  estavão  rocolliidos,  e  descuidados  em  seus  leilos. 

Muitos  annos  despois  succedeo  a  mesma  visão  a  el  Hei  dom  João 
o  segundo,  e  como  era  varão  espiritual,  e  muito  dado  a  Deos:  não  foi 
hama  só  vez,  se  não  muitas,  as  que  se  lhe  descobrião  estes  lumes,  e 
procissões,  (dom  lie  do  Ceo,  e  a  poucos  concedido  ter  olhos  pêra  seme- 
lhantes vistas:  esforça-os  Deos,  quando  lie  servido  mostrar-lhes  cousas 
tão  sobre  naturaes).  Devia  cuidar  da  continuação,  com  (jue  as  via,  que 
seria  costume,  ou  obrigação  da  casa,  não  fez  por  então  caso  delias.  To- 
davia, chamando  hum  dia  o  Prior  para  outro  negocio,  perguntou-lhe  des- 
pois d'el!e,  a  que  fim  se  fazião  no  Conveiíto  aqaellas  procissões  noctur- 
nas. Maravilhando-se  o  Prior,  e  affirmando  que  tal  não  havia,  contou-lhe 
el  Rei  por  extenso  donde,  e  como,  a  que  horas ;  e  as  muitas  vezes  que 
as  vira.  Grande  consolação  pêra  um  Rei  Christão  ver  em  sou  Reino,  e 
diante  de  seus  olhos  tão  vivos  sinais  de  verdadeira  religião :  e  tanto  nu- 
mero de  santos,  e  mostrar-!he  Deos,  como  em  huin  espelho,  significa- 
ção certa  que  estão  occupados  naquelia  hora,  e  em  todas  diante  de  Deos 
em  semelhantes  preces  polo  Reino,  e  pola  terra,  donde  gaijharão,  e  me- 
recerão as  commendas  da  Gloria,  que  gozão.  Maior  consolação  pêra  os 
que  somos  filhos  de  tal  Ordem,  termos  tantos,  e  lais  santos  por  irmãos 
mais  velhos,  que  nos  ficão  em  lugar  de  pais,  tutores,  e  curadores,  co- 
mo se  usa  nas  famílias  do  mundo:  e  de  força  hão  de  estar  em  rogativa 
continua  como  nossos  mercieiros,  porque  Deos  nos  faça  taescomoelles, 
e  por  suas  pisadas  cheguemos  ao  que  já  possuem.  Coiífusão  pêra  os  he- 
rejes,  e  pêra  todo  mão  Christão,  (se  iia  algum  Ião  mão,  qne  com  olhos 
torsidos  olha  as  sagradas  Religiões),  em  sinais  tão  claros  de  que  as  esti- 
ma, e  ama,  e  se  deleita  n'ellas  como  em  jardim  seu  aquelie  Senhor,  de 
quem  cantamos :  Quipascitur  inter  lilia.  (*)  Assim  o  mostrou  sempre  a  Di- 
vina misericórdia,  não  só  aos  olhos,  mas  também  aos  mais  sintidos :  não  S('» 
nos  tempos  passados,  mas  também  nos  modernos,  e  presentes,  como 
parecerá  desta  historia,  pêra  que  não  hnja  ninguém,  que  por  fraco  tre- 
ma, por  peccador  desconfie,  quando  temos  o  soccorro  de  sua  graça  sem- 
pre pronto,  e  certo,  e  continua  em  nosso  favor  a  intercessão  dos  bons 
irmãos. 

Cousa  he  muito  sabida,  e  provada  de  tempos  immcmoriaes,  que  to- 
das as  vezes,  que  neste  cemitério  se  abria  cova  pêra  eiiíerro  de  algum 

(*j  Oiiit.  G. 

VOL.    1.  19 


290  LIVRO  II  DA  HISTOIUA  DF.  S.  DOMIXHOS 

religioso,  em  se  bolindo  aquella  terra  santa  acontecia  o  mesmo,  que  se 
começarão  a  ferver  muitas  cassoulas  das  mclhoi^es  pastilhas,  e  agoas  chei- 
rosas (la  terra:  se  não  que  o  cheiro  era  aventajado  a  esses  ordinários, 
que  não  havia  quem  lhe  soubesse  dar  semelhante.  Daqui  naceo  ser  o  lu- 
gar desd"a  fundação  do  Convento,  e  por  todas  as  idades  muito  venerado, 
e  estar  cercado,  e  fechado  de  muro  alto.  Que  pois  o  Senhor  se  servia 
de  conservar  naquelle  barro  frio,  e  morto  a  mesma  fragrância,  que  quan- 
do tinha  vida,  lhe  fazia  agradável  holocausto  de  innocencia,  e  pureza,  c 
de  todas  as  mais  virtudes  monásticas :  rezão  era  pôr-se  em  custodia  co- 
mo preciosa  relíquia  não  só  o  lugar  inteiro,  mas  até  as  ervinhas  d'elle: 
como  nos  deixou  insinado  o  devotíssimo  Bispo  de  Turs  ou  Turon  São 
Martinho,  que  pedindo,  e  sendo-lhe  negada  huma  relíquia  dos  Santos 
Martyres  da  legião  Tiíebéa,  contentou-se  com  lhe  mostrarem  o  lugar  do 
martyrio  (*).  Posto  nelle  fez  conta  que  tinha  mais  do  que  desejava,  mostran- 
do-lhe  a  fé,  que  qualquer  torrão  da  terra,  que  fora  regada  com  tão  pre- 
cioso sangue,  era  relíquia  pêra  entezourar.  E  não  se  enganou;  porque 
mettendo  a  faca  na  terra  pêra  arrancar  huma  herva,  veio  a  raiz  com  ella 
correndo  sangue,  e  foi-se  rico,  e  contente. 

Mas,  porque  me  não  digão  que  revolvemos  antiguidades  apagadas : 
ou  que  he  acabada  nas  religiões  aquella  fineza  de  santidade,  que  fazia  re- 
cender a  terra  em  perfumes,  e  fragrâncias  do  Geo :  tiaiarcmos  da  idade 
de  nossos  pais,  e  nossa.  Certo,  e  sem  duvida  he,  não  alcansado  por  me- 
morias ou  tradições  sem  Era,  que  mandando  o  mestre  Frei  Niculáo  Dias 
abrir  huma  cova  neste  cemitério  em  sua  presença,  íopai-ão  os  oíTiciaes 
com  hum  moimento  de  pedra  inteiro,  e  parecendo  grande  novidade  ha- 
ver tal  cousa  debaixo  de  terra,  acudirão  o  Prior,  e  muitos  Religiosos, 
e  tratarão  que  se  levantasse  a  campa,  desejosos  de  ver  o  que  haveria 
dentro.  Tanto  que  se  começou  a  descobrir,  foi  tão  desacostumada  a  sua- 
vidade de  cheiro,  que  de  dentro  saliia,  que  todos  pasmavão :  e  o  Prior 
tocado  de  escrúpulo  mandou  que,  como  cousa  sagrada,  e  que  os  olhos 
não  merecião  ver  nem  os  mais  sentidos  gozar,  se  tornasse  a  cerrar,  e 
cobrir  da  sua  terra  com  muita  pressa,  e  a  cova  se  abrisse  em  outra  par- 
te. Isto  nos  deixou  escrito  o  mesmo  Mestre  Frei  Niculáo  Dias,  pessoa  de 
tal  calidade  por  virtude,  e  letras,  que  com  justiça  o  havemos  por  tes- 
temunha maior  de  toda  exceição. 

Mas  de  nossos  dias  temos  muitas  experiências  semelhantes.  O  dor- 

(.)  LcMida  do  Breviário  Uoiii.  a  ii  de  SeUnib. 


PARTICILAU  DO  REINO  DE  POKTLGAL  201 

mi  tório,  que  hoje  chamamos  novo,  he  fabrica  começada  do  anno  de  1560 
pêra  cá.  Foi  necessário  pêra  levar  a  obra  direita  tomar  parte  do  cemi- 
tério. Ao  abrir  dos  alicesses  encontravão  os  ofticiaes  com  alguns  ossos, 
que  secos,  e  mirrados  deleitavão  o  olfacto  com  tal  estremo,  que  davão 
grande  occasião  de  louvar  a  Deos.  Alguns  annos  despois  so  abrio  outro 
alicesse,  pêra  se  fazer  o  corredor  de  abobada,  que  vai  pêra  o  coro.  Este 
entrou  muito  mais  pola  terra  sagrada,  e  assi  deu  maiores  sinais,  e  mais 
vivos  do  que  dizemos  nos  ossos,  que  se  acharão.  Mas,  ainda  (jue  causou 
grande  admiração,  e  devação  em  Religiosos,  e  seculares  o  que  aqui  se 
vio,  com  grande  aventagem  foi  tudo,  quando  se  edificou  a  capellinha  do 
lavatório,  que  fica  defronte  da  porta  da  Sacristia,  obra  mais  moderna  de 
todas.  Porque,  como  está  toda  fundada  dentro  no  cemitério,  foi  estranlia, 
e  fragrantissima  a  suavidade,  que  se  sintio,  tanto  que  se  foi  movendo  a 
terra,  e  mais  particularmente  cortando  ao  longo  de  outra  caixa  de  pe- 
dra, que  se  achou  soterrada. 

Por  onde  podemos  com  rezão  cuidar  que  a  santidade  d'este  Conven- 
to, muito  mais  celebre  nos  tempos  atrás,  devia  obrigar  alguns  Reis  a 
mandarem  sepultar  nelle  os  filhos,  que  amavão,  sem  embargo  de  terem 
enterros  reais :  como  fez  el  Rei  dom  Afonso  o  Quarto,  de  quem  pouco 
ha  fizemos  menção,  que  falecendo  o  Infante  dom  Afonso  seu  filho  em 
idade  pueril  na  villa  de  Penela  o  mandou  trazer  a  este  Convento,  tendo 
mais  perto  Coimbra,  e  Alcobaça :  e  nelle  está,  mas  do  lugar  certo  se 
tem  perdido  a  memoria  (*).  O  mesmo  linha  feito  primeiro  elRei  dom  Di- 
nis seu  pai  a  hum  bastardo  querido,  que  chamai-ão  dom  Fernando  San- 
ches, e  tem  sua  sepultura  na  capella  dos  Santos  Cosmos,  que  he  conti- 
gua á  capella  mór  da  parte  da  epistola. 

Assi  tinha  o  Senhor  cuidado  de  honrar  esta  casa  por  todas  as  vias, 
ordenando  que  os  Reis  tirassem  delia  sogeitos  pêra  serviço  de  sua  casa, 
e  seu  ou  da  Republica,  trazendo-os  no  Conselho,  ou  encarregando-os  de 
Preladas.  Mas  isto  sempre  confessaremos  com  dôr,  que  sendo  honra  da 
Ordem,  de  nenhuma  cousa  lhe  resulta  mais  dano.  Porque  por  huma 
parte  nos  tirão  homens  feitos,  e  aquelles,  que  com  virtude,  e  letras  lho 
dão  lustre,  e  bom  exemplo,  e  sendo  Bispos  já  não  são  nossos.  Por  ou- 
tra os  que  coníinuão  as  Cortes,  e  serviço  do  Rei,  por  perfeitos  que  se- 
jão,  são  occasião  de  relaxação  pêra  si,  e  por  sen  meio  pêra  outros.  Por- 
que o  religioso  fora  da  cella  semi)re  anda  arriscado  a  perder.  Achamos 

(«)  Duailc  Kunes  de  Lião  na  vida  ilel  Uci  áo\i\  Afonso  IV.  foi.  IVò. 


202  l.IVRO  11  BA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

por  este  tempo  no  Algarve  dons  Bispos  cVesta  Ordem,  Dom  Frei  Rober- 
to, e  dom  Frei  Bertolameií.  Dom  Frei  Bertolameu  foi  criado  na  doutri- 
na do  santo  Frei  Gil,  e  governou  aquella  Igreja  em  tempo  dei  Rei  dom 
Dinis  (*).  O  outro  foi  mais  antigo.  Em  boa  troca  destes  varões,  que  a  Or- 
dem deu  então  pêra  Bispos,  nos  deu  no  mesmo  tempo  o  mundo  pêra 
ella  hum  Bispo  de  Lisboa.  Mas  que  diremos  ao  desazo  do  tempo,  e  da 
gente?  Ficou-nos  o  nome  do  capellão  Frei  Martinho,  que  com  elle  veio 
á  Ordem,  do  Bispo  não  ficou  particularidade.  E  temos  muitos  autores 
que  escrevem  o  feito,  e  não  ha  duvida  que  foi  certíssimo,  porque  todos 
fazem  escritor  primeiro  delle  a  são  Frei  Gil(**).  Na  santa  Sé  de  Lisboa  acha- 
mos duas  memorias,  que  ao  parecer  nos  dão  sem  duvida  o  nome,  e  en- 
terro d'este  santo  Bispo,  e  o  tempo  de  sua  morte.  líuma  he  de  hum 
livro  antigo  das  capeilas,  e  obrigações  de  defuntos,  que  diz  assi  em  Por- 
tuf^uez:  Anniversario  do  Bispo  Sueim  que  jaz  em  Sautarem  em  Sam  Do- 
mingos dos  Frades.  Bom  indicio  de  ser  Frade  nosso  enterrar-se  em  íal 
tempo  com  nosco.  O  tempo  de  sua  morte  se  vè  por  outra  verba,  que 
anda  nas  margens  de  hum  martirologio  muito  antigo,  em  que  se  decla- 
rão  as  pessoas,  porque  se  fazião  anniversarios,  e  diz  assi :  IlII.  Cal.  fe- 
bniarij  eodem  die  obijt  Sueriíis  tertius  Episcopns  Vlyssiponensis,  e  abaixo 
ajunta  Era  M.CC.LXX.  que  responde  ao  anno  de  1232.  Bem  sei  que 
lia  outro  Bispo  Sueiro  da  mesma  cidade,  e  falecido  no  anno  de  1249. 
IMas  este  tem  sua  sepultura  na  porta  do  Claustro  da  mesma  Sé,  e  chama- 
se  nas  memorias  Sueireanes.  E  ainda  que  cousas  tão  antigas  sempre  tra- 
zem consigo  algumas  duvidas,  nenhuma  fica  no  nome,  e  enterro  do  nos- 
so: e  só  faz  falta  não  se  declarar,  que  tomou  o  habito  de  S.  Domingos. 
D'onde  inferimos,  que  por  não  alcançar  licença  do  Pontífice  ficaria  go- 
vernando sua  Igreja  vestido  em  nosso  habito,  como  aconteceo  a  dom 
Frei  Pedro  Centelhas  Bispo,  de  Barcelona,  e  a  dom  Frei  Raimundo  de 
Ponte  Bispo  de  Valença,  e  em  França  ao  Bispo  de  Perigort  dom  Frei 
Pedro  de  Santo  Asterio  (***).  Todos  três  quasi  no  me^imo  tempo  do  nosso 
de  Lisboa  vestirão  o  habito  de  S.  Domingos,  mas  não  puderão  impetrar 
licenças  pêra  deixarem  suas  ovelhas. 

Dos  Frades  que  achamos  empregados  em  serviço  dos  Reis,  e  da 
Republica,  he  o  primeiro  Frei  Pedro  Afonso,  que  foi  a  Paris  assistir  ao 

[<■)  Duarte  Nunes  na  vida  dei  Rei  dom  Afunso  111. 

(..)  Fici  Gerardo  de  Fraqu.  nas  vidas  dos  Frades  Prégad.  1.  3.  c.  3.  exempl.  7.  Castilho 
n    1    1    '>.   C.  07. 

(...)  Crunic.  de  Aiagão  1.  !.  c.  1.  e  8   M.  Frei  Hern.  de  Guido. 


PARTICULAR  DO  RKINO  DE  PORTIT.AL  293 

juramento,  que  se  tomou  por  ordem  do  Papa,  e  em  nome  do  Reino,  ao 
Infante  dom  Afonso  Conde  de  Bolonha :  os  segundos  são  dons,  que  atrás 
dissemos,  que  seguirão  em  sua  retirada  a  Casteila  a  el  Rei  dom  Sanclio 
Capello.  Apoz  estes  se  servirão  os  Reis  sempre  de  Frades  desta  Ordem, 
assi  na  Corte,  e  Conselhos,  como  em  negócios  seus  particulares.  El  Rei 
dom  Afonso  Terceiro  escollieo  por  seu  testamenteiro  a  Frei  Giraldo  Do- 
mingues, Mestre,  e  Leitor  na  Provinda,  o  qual  em  huraa  memoria  do 
Reino  do  anno  de  1277  está  nomeado  com  este  titulo:  Frater  Geraldus 
Ordinis  Pnedicatorum  Coiiúliarius  Regis.  El  Rei  dom  Dinis  seu  filho  te- 
ve consigo  primeiro  a  Frei  Durando,  despois  a  outro  Frei  Giraldo  Do- 
mingues, e  Frei  Pedreanes,  e  a  todos  três  achamos  assinados  em  cartas, 
e  confirmações,  e  negócios  importantes  deste  Rei  des  do  anno  de  1294 
até  o  de  1311,  como  nos  foi  mostrado  da  torre  do  tombo,  em  Uvros 
delia  polo  Licenciado  Lousada  atrás  nomeado.  Escrivão  d"aquelle  real 
Cartório.  Outros  deste  tempo  pudéramos  ajuntar,  que  deixamos  por  bre- 
vidade. Os  que  polo  tempo  em  diante  andarão  em  semelhantes  trabalhos 
irão  apontados  em  seus  lugares. 

CAPITULO  XLI 

Da  demção,  e  virtudes  do  Padre  Frei  Manuel  de  Beja,  e  do  irmão  Frei 
Diogo  das  Vinhas.  E  da  jornada  que  fez  d  índia  o  Padre  Frei  Pedro 
Coelho. 

Requeria  este  Convento  só  liuma  Crónica  inteira,  pêra  memoria  dos 
sojeitos,  que  nelle  florecerão.  Mas  foi  providencia  Divina,  que  pêra  não 
fazermos  inveja  a  todas  as  Religiões  juntas,  de  huns  faltasse  quem  es- 
crevesse, e  de  outros  se  perdesse  o  que  havia  escrito.  E  assi  acontece 
que  de  tantos  annos  não  temos  quasi  que  dizer,  clamando  em  favor  de 
todos  a  terra,  em  que  se  tornarão,  tornada  em  pastas  aromáticas  com  a 
corrupção  das  sepulturas :  e  o  Ceo,  de  que  gozão,  com  as  luzes,  que  des- 
pois mostraram.  Testimunho  tão  celebre,  que  quando  houvera  grandes 
maravilhas  escritas,  nos  forrava  o  trabalho  de  as  repetir.  Todavia  por 
mostrarmos  o  cuidado,  com  que  trabalhamos  em  busrar,  (^  tirar  a  luz 
tudo,  faremos  memoria  de  alguns  modernos,  parte  que  nossos  pais  ai- 
cansaram,  parte  que  nrjs  conhecemos,  e  tratamos. 

Destes  o  mais  antigo  foi  o  Padre  Frei  Manoel  de  Beja.  e  por  huma 


:2í)l  MVP.O  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

SÓ  parliciilari(l;ulc  qiiizerão  os  que  o  conheceram,  que  entendêssemos 
seu  grande  espirito:  nem  nós  diremos  outra.  Esta  era  que  todas  as  ve- 
zes que  celebrava,  o  fazia  com  tanta  devarão.  e  tão  inflamado  afíeiío, 
que  seus  olhos  se  íornavão  dous  rios  de  lagrimas,  e  não  liavia  quem  os 
tevesse  enxutos,  vendo-o.  E  na  verdade,  como  este  Divino  sacrifício  foi 
huma  memoria,  e  recapitulação  de  todas  as  maravilhas  que  o  misericor- 
dioso Deos  fez  em  favor  do  género  humano (*),  com  rezão  faziam  os  homens 
juizo  das  virtudes,  que  moravão  na  alma  deste  ileligioso,  polo  respeito, 
e  veneração  com  que  o  vião  todo  enlevado,  e  absorpto  na  presença,  e  cele- 
bração d'elle.  Deos  não  teve  mais  que  dar  nem  o  mundo  mais  que  de- 
zejar.  Os  que  aqui  estamos  tibios,  ou  descuidados,  ou  adormecidos,  he 
porque  estamos  longe  não  só  de  Santos,  mas  de  conhecer  bem  o  que 
temos  entre  mãos. 

Do  mesmo  tempo  foi  Frei  Diogo  das  Vinhas  irmão  leigo,  e  filho  doeste 
Convento.  Vivendo  com  raro  exemplo  de  virtude,  e  religião  huma  vida 
mui  larga,  particularmente  se  esmerou  na  obediência.  Porque  pêra  tu- 
do o  que  lhe  mandassem  os  Prelados,  e  a  qualquer  hora,  e  tempo  que 
fosse,  era  tão  leve,  tam  fácil,  e  prestes,  que  causava  admiração.  E  sen- 
do muito  velho,  e  dando  a  velhice  muitas  licenças,  tão  alegremente  obe- 
decia, quando  era  do  setenta,  e  mais  annos.  e  até  que  acabou  a  vida, 
como  na  idade  mais  florida.  Mas  não  tinha  menos  de  humilde,  que  de 
obediente.  Sendo  já  de  oitenta  annos  descompoz-se  com  elle  hum  raáo 
homem,  e  como  ministro  de  Satanás,  que  o  quiz  por  tal  mão  tentar, 
alreveo-se  a  afrontar  aquellas  veneráveis  cans  com  huma  enoi'ine  bofe- 
tada. Ficou  quieto,  e  sem  fazer  movimento,  e  tão  desassombrado  com 
a  injuria,  como  se  o  rosto  não  fora  seu.  Só,  porque  via  que  em  o  tra- 
tar assi  não  tivera  rezão.  lhe  perguntou  por  ella,  mas  com  muita  bran- 
dura :  á  imitação  de  Christo  nosso  bem,  quando  em  semelhante  desati- 
no, disse  ao  criado  deCaifas:  Quidme  ccedis?^*)  Fião  muito  de  Deos  os 
humildes,  e  então  vivera  cora  mais  segurança,  quando  o  mundo  cuida 
que  os  abate,  porque  quanto  mais  decem  á  vista  dos  homens,  tanto  se 
ievantão  nos  olhos  de  Deos.  Esta  confiança  fazia  a  Frei  Diogo  tão  ani- 
moso, que  nenhuma  cousa  da  terra  sintia,  nem  temia.  Aconteceo  hum 
dia  virar-se  a  eiie  furiosamente  hum  boi  feroz,  e  bravo,  em  lugar  que 
não  teve  tempo  pêra  se  valer  dos  pés.  Virão  de  longe  o  perigo  alguns 

(.)  Ps.  110. 
{.»)  Luc.  48. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTlT.Af.  205 

Religiosos,  derão  o  Frade  por  morto :  porque  como  era  tão  velho,  pe- 
queno encontro  bastava  pêra  o  acabar.  E  elie  esteve  tanto  em  si,  que 
sem  se  bollir,  quando  o  animal  estava  já  com  elle,  não  fez  mais  que  co- 
mo com  império  mandar-lhe  com  a  mão,  e  com  a  voz  que  se  desviasse, 
dizendo:  Vai-te  pêra  lá  besta  fera.  E  só  isto  bastou  pêra  se  afastar  logo 
feito  hum  cordeiro.  E  o  que  mais  espantou  foi,  que  em  passando  d*alli 
tornou  a  entrar  em  fúria,  e  braveza,  como  d'antes. 

Mas,  porque  não  faltasse  nos  filhos  d'este  Convento,  e  desta  villa 
nenhum  género  de  espirito  dos  que  muito  se  estimão  no  serviço  de  Deos, 
temos  hum  natural  d"ella,  e  íilho  d^elle,  que  com  aquelle  animo  com 
que  em  tempos  muito  antigos  se  desterravão  voluntariamente  das  partes 
de  Itália  alguns  Religiosos  d'esta  Ordem  pêra  Tartaria,  e  Preste  João, 
outros  pêra  irem  pregar  á  Pérsia,  e  fundar  Conventos  (como  fundarão, 
e  ainda  hoje  não  estão  apagados  entre  os  Arménios)  se  embarcou  de 
Portugal  pêra  a  índia  novo,  e  valeroso  peregrino  (*).  Digo  novo,  porque 
ainda  que  des  dos  primeiros  annos  do  descubrimento  da  índia,  sempre 
forão  alguns  Religiosos  nossos,  como  adiante  veremos,  e  residião  n"ella, 
pêra  consolação  dos  naturais  qne  acom.panhavão,  e  pêra  irem  tentando 
os  ânimos  da  Gentilidade :  com  tudo  em  communidade,  e  a  fim  de  fun- 
dar Conventos,  nem  erão  idos  até  então  nenhuns,  nem  forão  se  não  al- 
guns annos  despois.  Assi  devemos  ao  Convento  de  Santarém  dar-nos  o 
primeiro  Prelado  de  Pregadores  Apostólicos  desta  Ordem  pêra  a  índia. 
Este  foi  Frei  Pedro  Coelho  grande  letrado,  e  famoso  Pregador.  A  causa, 
e  fim  de  sua  ida  se  escreve  na  forma  seguinte.  Polo  nome  do  Preste 
João,  ainda  que  corrupto,  e  diíferente  do  próprio,  he  conhecido  o  grande 
senhor  das  terras  da  Ethioj)ia,  que  na  índia  se  chamão  vulgarmente  ter- 
ras do  Abexim.  Chegara  á  Corte,  do  que  de  presente  reinava,  e  andara 
nella  devagar  hum  João  Bermudes,  em  tempo,  que  padecia  cruel  guerra 
de  hum  Rei  Mouro  seu  vizinho  poderoso  de  armas,  e  instrumentos  de 
pólvora,  e  fogo,  cousa  não  conhecida  nem  vista  até  então  em  Etiópia. 
Informou-o,  que  o  poder,  que  assombrava  a  índia  de  muitos  annos  atrás, 
era  de  hum  Rei  de  Ponente,  que  seguia  a  lei  de  Christo,  e  professava 
sua  fé,  a  qual  era  a  mesma  dos  Abexins.  Enclieo-sc  o  Preste  de  espe- 

(♦)  .lofio  (ie  B:uTos  Dec.  ,3.  1.  5.  c.  i.  Slnrco  Paulo  Yencto.  F.  João  dos  Santos  1.  i.  da 
Chrií^tandade  Orient.  c.  i.  Serafino  Razzi  na  Croii.  de  S.  i)om.  f.  295.  Paramo  1.  %.  t.  i.  c.  9. 
de  Oiig.  liujuiíit.  Commentanui  de  AlIbiiso  de  Albuijiierque  p.  i.  c.  i.  i  2!.  Hiigo  do  Cou»» 
Dec.  ^1.  1.  I.  c.  10.  Caslaiihe  da  1.  7.  c.  li.  da  Ind.  Os  primeiros  fundadnr.>;-í  da  (.ongregação 
da  Índia  íorão  era  Março  de  VòiS.  Frei  João  dos  Santos  1.  2.  c.  2.  de  vuna  bistoiia  da  Cris- 
tandade Orient. 


iíOG  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

i-anças,  que  leria  nelle  valedor  contra  seus  enemigos,  Despachoii-o  com 
cartas  pêra  o!  Rei  de  Portugal,  e  com  ordem  que  passasse  a  Roma,  e 
tratasse  com  o  Summo  Fontifice  matéria  espiritual  de  sua  redução  á 
obediência  da  Sé  Apostólica,  e  com  el  Rei  a  temporal  de  soccorro  de 
gente,  e  arlilheria  contra  os  .tíouros  de  Zeila.  Entrou  Bermudes  em  Ro- 
ma: foi  despachado  do  Papa  Paulo  III.  com  titulo  de  Fatriarcha  da  Etió- 
pia, e  com  nome  de  dom  João  Bermudes,  e  veio  a  este  Reino  encomen- 
dado a  el  Rei  dom  João.  Despacliou-o  el  Rei  também  com  boa  satisfa- 
ção ao  requerimento  do  Preste:  e  pêra  ajudar  o  Patriarclia  no  edificio 
das  almas,  mandou  ao  Pi'ovincial  que  lhe  desse  Religiosos  pêra  o  acom- 
panharem, e  ailnmiarem  aquelles  estendidos  Reinos  da  cegueira  de  mui- 
tos erros  em  que  vivião.  Foi  nomeado  pêra  esta  sagrada  missão  o  Padre 
Frei  Pedro,  por  concorrerem  nelle  as  partes  necessárias  pêra  a  empre- 
sa, e  feito  Prelado  de  cinco  companlieiros,  que  animosamente  aceitarão 
o  trabalho  com  os  olhos  em  Deos,  e  na  obrigação  do  habito.  Partirão 
todos  nas  nãos  de  viagem  do  anno  de  1539,  e  chegarão  a  salvamento  a 
Goa  (*):  mas  não  passarão  á  Ethiopia(**),  porque  Hroimpedio  quem  tinha 
o  governo  da  índia,  com  grande  sintimento  do  Patriarcha,  e  não  menor 
dos  Religiosos,  que  como  varões  Apostólicos  tinhão  já  tragado  na  deter- 
minação todos  os  medos,  e  oííerecida  na  vontade  a  vida  ao  talho :  fal- 
tou-lhes  este,  não  lhe  fatiarão  elles.  Todavia  licarão  na  índia  servindo 
no  ministério  de  sua  profissão,  e  apostados  a  seguir  o  primeiro  propó- 
sito, como  tevessem  licença, 

CAPITULO  XLII 

Vida,  e  morte  do  irmão  Frei  Diogo  de  Saldanha,  fillio  deste  Convento. 

A  estes  três  ajuntaremos  hum  só,  que  tratamos,  e  alcançamos,  e  não 
tem  menos  aução  pêra  ficar  nestas  memorias,  que  aquelles  que  concor- 
rerão nos  princípios  deste  Convento.  Viveo  em  Santarém,  e  teve  casa, 
e  rendas,  como  natural  da  villa,  António  de  Saldanha,  fidalgo  honrado 
por  calidades  de  sangue,  e  pessoa:  a  que  ajuntou  bons  serviços  feitos 
aos  Reis  dom  Manoel,  e  dom  João  na  índia,  e  neste  Reino,  dos  quais 
foi  o  ultimo  ir  por  Capitão  mór  da  armada,  com  que  o  Infante  dom  Luis 

(•)  Dom  Jorio  Bernmde?  no  tratado  de  sua  erabaixada  c.  4. 
("i]  í  roi  João  dos  Santoã  1.  2.  c.  i.  da  varia  hislor. 


rARTICtl-AR  DO  RRINO  DF,  PORTlT.Af,  297 

passou  á  empresa  de  Tunes  em  companhia  do  Emperador  Carlos  V.  Era 
j/i  tão  velho,  quando  foi  nesta  jornada,  que  fazendo-Ihe  elRei  dom  Jono 
da  volta  delia  algumas  mercês  pêra  em  sua  vida,  porque  não  tinha  íi- 
Ihos,  nem  era  casado,  se  houve  por  agravado,  dizendo  aos  ministros,  (assi 
o  ouvimos  contar  a  quem  o  alcançou),  que  não  havia  por  mercês  as  que 
juntamente  não  erão  pêra  seus  filhos.  Soube-o  el  Rei,  festejou  o  agi^avo 
fundado  em  requerimento  de  homem  meio  enterrado  por  velho,  pêra 
filhos  não  nascidos.  E  como  era  Príncipe  prudente,  e  benigno,  man- 
dou-o  satisfazer  a  seu  gosto.  Seguio  ao  despacho  o  casamento,  e  ao  ca- 
samento hum  exame  de  íillios.  Foi  a  molher  dona  Joanna  de  Mendoça 
filha  de  Ayres  de  Sousa,  Gommendador  das  Commendas  de  N.  Senhora 
de  Alcaçava,  e  Rio  maior  da  Ordem  de  Avis.  Tinha  esta  casa  particular 
devaçdo  ao  Convento  de  S.  Domingos,  que  andava  nella  como  por  he- 
rança: e  devia  ter  principio,  ao  que  parece,  no  jazigo,  que  seus  passados 
tinhão  eleito  dacapelia  mór,  que  era  sua.  Continuou  nella  Diogo  de  Sal- 
danha, que  assi  havia  nome  o  filho  mais  velho,  ficando  por  morte  de 
seu  pai  muito  moço.  E  o  mesmo  fez  despois  de  casado,  empregando 
muitas  horas  em  tratar  com  os  Religiosos,  e  acudindo  a  suas  necessida- 
des com  muito  amor.  Mas  levando-lhe  Deos  sua  molher  dona  ínez  de 
Távora  a  poucos  anu  os  despois  de  casado,  logo  fez  resolução  de  se  en- 
tregar todo  ao  Padre  S.  Domingos,  e  á  sua  Religião.  Assi  começou  a 
proftíssar  huma  nova  ordem  de  vida  em  continuação  de  exercioios  espi- 
rituais, oração,  e  penitencias,  e  frequência  de  Sacramentos.  Tem  os  cou- 
sas Divinas  huma  excellencia,  que,  quanto  mais  se  usa  delias,  mais  sa- 
])orosas  se  achão,  e  mais  se  fazem  apetecer.  Desejava,  e  morria  por  pas- 
sar adiante.  Mas  era  impedimento  hum  filho,  que  só  Ihelicou.  de  quem 
sendo  pai,  fazia  também  oflicio  de  mãi  em  falta  da  natural.  E  havia  ne- 
gócios de  sua  fazenda  com  dependências  da  coroa  real,  a  que  era  for- 
çado acudir  com  habito  secular.  Escolheo  hum  termo,  que  a  muita  gente 
estivera  bem,  que  foi  ser  religioso  sem  habito,  nem  tonsura  de  Religião: 
e  fazer  vida  monástica  em  trajos  Sí^cuiares.  E,  porque  ainda  isto  havia  por 
pouco,  tomou  cella  em  casa  de  noviços,  seguia  as  Communidades  com  elles, 
feito  minino  entre  mininos,  cumprindo  quasi  á  risca  o  que  disse  o  Senhor, 
que  convinha  peia  a  saivi^ção,  que  era  nacer  de  novo.  Assi  passou  mui- 
tos aiinos  com  hum  grande  trabalho  de  sempre  noviço,  e  sempre  mi- 
nino no  estado,  sendo  na  idade  cada  dia  mais  velho.  Porque,  como  os 
negócios  não  tomavâo  termo  pêra  o  deixarem  professar,  nunca  passava 


29B  LIVRO  II  DA   HISTORIA  DF  S.   DOMINGOS 

dc  nnvii;o  puro,  ficando  no  primeiro  andar  dos  mais  humildes  mininos. 
E  com  tudo  resplandeceo  sempre  n^elle  verdadeira  humildade  em  huma 
grande  reverencia  ao  Mestre,  amor,  e  affabilidade  com  os  pobres  irmão- 
zinhos, e  notável  respeito  a  todos  os  Padres.  E  tal  era  o  exemplo  que 
dava,  que  sendo  este  género  de  vida  em  todo  estremo  encontrado  com 
as  leis  de  nossa  Ordem,  saneava,  e  supria  tudo  com  sua  virtude.  Por- 
que, se  parecia  indecencia  hum  homem  de  ferraroulo,  e  sombreiro,  e 
muito  entrado  em  annos  viver  entre  mininos ;  tomado  o  negocio  por  ou- 
tra parte,  marcava-o  a  vida,  que  fazia,  polo  mais  reformado  noviço  de 
quantos  o  acompanhavão:  tão  composto,  tão  surdo,  e  mudo,  e  tão  nada 
em  sua  própria  estimação,  que  não  aparecia  nelle  mais  que  sombra  de 
homem,  proceder  de  innocente,  feitos  de  Santo.  Correrão  annos,  nunca 
se  vio  mudança :  hum  mesmo  estilo,  e  teor  de  vida  seguio  sempre.  Ca- 
sou seu  filho,  fez-se  avo  de  netos,  e  muilos  netos:  não  só  não  alterava 
hum  ponto  com  as  cans,  e  idade  maior,  mas  reverdecia  pêra  abatimen- 
to de  mais  noviço,  e  mais  minino.  Por  mais  de  vinte  annos  perseverou 
leigo  nas  obrigações  de  frade:  até  que  Deos  foi  servido  chegar  as  cou- 
sas de  sua  casa  a  estado,  que  pode  dispor  das  de  sua  alma  a  todo  seu 
sabor:  como  fez  na  entrada  do  anno  de  1392  vestindo  o  santo  habito 
com  estremos  de  alegria.  lAlas  a  poucos  mezes  deste  gosto,  lhe  bateo  á 
porta  liuma  visita  do  Ceo,  com  huma  forte  doença,  a  qual  inda  que  não 
veio  sobre  muita  velhice,  achou  o  sojeito  gastado  de  penitencias,  e  tão 
fraco  que  o  venceo  depressa.  Desconfiarão  os  médicos.  Declarou-lhe  o 
Prelado  o  ponto  em  que  estava.  Ouvio  elle  o  desengano  com  muita  se- 
renidade no  sembrante,  testimunho  certo  da  que  lhe  ficava  dentro  na 
alma,  e  respondeo  com  render  graças  pola  lembrança,  e  pedir  os  sacra- 
mentos pêra  a  jornada  que  se  lhe  denunciava :  acreceníando,  que  de 
acabar  sua  peregrinação  nenhum  pesar  sintia :  antes  se  hum  grande  pec- 
cador  podia  falar  assi,  levava  muito  gosto  de  morrer,  pois  morria  em  tal 
casa,  e  entre  tais  Religiosos :  só  Ih  o  aguava  ver  que  lhe  tolhia  Deos 
por  seus  peccados  o  que  toda  a  vida  desejara,  que  era  entregar-se  á 
Ordem  por  solene  profissão.  Porque  na  verdade  não  podia  negar  que 
muito  suspirava  por  ver  o  fim  áquelle  anno,  que  havia  de  ser  meio  de 
ficar  filho  de  S.  Domingos  por  voto,  como  era  por  vontade,  e  estimara 
grandemente  conceder-Uro  o  Senhor.  Moverão-se  á  piedade  os  Padres, 
porque  sabião  todos  que  erão  rezucs  saldas  da  alma.  Propoz  o  Prior  em 
conselho  fazer-lhe  profissão  por  hum  Breve,  que  temos  do  Papa  Pio  V. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  290 

expedido  a  23  de  Agosto  de  1570  que  começa,  Summi  Sacerdoíij,  efe. 
polo  qual  concedeo  aos  noviços  da  nossa  Ordem  (*),  que  estando,  ajuízo  de 
medico,  em  arti.ío  de  morte,  possão  fazer  solemne  profissão,  dado  que 
não  tenhão  satisfeito  com  a  disposição  do  direito  Canónico,  que  manda 
senão  f^iça,  nem  seja  valiosa  sem  o  cumprimento  de  lium  anno  inteiro 
de  provação.  Ajuntarão  as  rezões  que  havia  de  parte  de  tal  sojeito,  pro- 
vado, e  approvado  com  o  discurso  de  vinte  annos,  que  he  a  tenção  da 
lei :  e  o  que  ganhava  a  Ordem,  e  aquelle  Convento,  com  ficar  contado 
hum  tão  religioso  varão  no  numero  de  seus  filhos.  Foi  o  Senhor  servi- 
do pêra  mais  consolação  sua,  que  era  véspera  do  dia,  e  festa  de  Nosso 
Padre,  quando  se  lhe  deu  a  nova,  e  logo  vio  a  execução  d'ella.  Fez-lhe 
o  Prior  profissão  em  presença  de  seu  filho  António  de  Saldanha,  e  de 
outros  fidalgos,  que  se  juntarão.  E  pedindo-lhe  o  filho  a  benção,  lani  ou- 
lh'a,  encomendando-lhe  que  fosse  sempre  muito  amigo,  e  servidor  da 
Ordem.  E  como  estava  cheio  de  contentamento  por  se  ver  professo,  de- 
sejando mostrar-se  agradecido  a  tamanho  beneficio  no  pouco  que  então 
podia,  disse-lhe  mais,  que  estivesse  advirtido  que  no  dia  seguinte  se  fa- 
zia a  festa  de  seu  Padre  S.  Domingos,  e  tevesse  cuidado  de  mandar  pêra 
o  jantar  dos  Padres  o  seu  costumado  prato,  (sohia  o  professo  todos  os 
annos  por  tal  dia  acrecentar  o  jantar  dos  Frades  com  huma  particular 
iguaria  pêra  toda  a  communidade),  e  ajuntou,  que  lhe  durasse  por  amor 
d'elle  a  lembrança,  e  a  obra  pêra  toda  a  vida.  Assi  acabou  com  glorio- 
so fim  dias  bem  vividos,  ganhando  indulgência  plenária,  e  remissão  de 
peccados,  em  forma  de  Jubileo  concedido  aos  noviços,  que  na  hora  da 
morte  professão,  e  outras  muitas  graças,  que  todos  os  Religiosos  alcan- 
ção  naquelle  artigo.  Foi  sepultado  na  terra  sagrada  do  cemitério  com- 
mum  do  Convento,  gozando  já  do  privilegio  de  Pieligioso,  sem  embargo 
de  ter  enterro  na  capella  mór,  de  que  era  legitimo  padroeiro,  como  te- 
mos dito. 

CAPITULO  XLIÍI 

Das  santas  Relíquias  qne  ha  nesle  Convento. 

Porque  não  faltasse  nada  de  quanto  se  podia  pedir,  e  desejar  pêra 
credito,  e  lionra  de  huma  casa  santa,  ordenou  Deos  enriquecer  esta  com 
huma  preciosíssima  relíquia  de  seu  miraculoso  sangue,  posto  por  sua 

{•)  Manoel  Rodrig.  tom,  3   Qua'«t.  Reg.  Qu.Tít.  13.  art.  6 


^00  LIVUO  II  DA  lUSTOniA  DE  S.   DOMINGOS 

allissima  misericórdia  clara,  e  patentemente  á  vista  de  olhos  peccadores: 
milagre  perpetuo,  e  perenne,  que  dura,  e  permanece  assi  ha  mais  de 
trezentos  e  cimpienta  annos  pêra  coníirmação  da  Fé,  e  huma  inelTavel 
consolação  dos  Catholicos,  e  grande  confusão  dos  cegos,  e  miseráveis 
liereges,  que  podem  acabar  consigo,  privar-se  do  maior,  e  mais  aíta  bem 
de  todos  os  bens.  O  successo  he  autentico,  e  certissimo,  a  historia  te- 
merosa :  mas  polo  fim,  que  teve,  saborosíssima.  E  aíTirmo,  que  quando 
nos  não  obrigáramos  a  escrever  esta  Crónica  da  Ordem  a  outro  fim 
mais,  que  pêra  com  occasião  d*ella  espalharmos  polo  mundo  tão  estra- 
nha maravilha,  fora  bastante  rezão  pêra  trabalharmos  com  gosto.  E  dou 
infinitas  graças  ao  Divino  Autor  delia,  por  me  dar  mão,  e  forças  pêra 
chegar  a  escrevel-a,  como  deu  olhos  pêra  a  ver  algumas  vezes.  Reinando 
em  Portugal  el  Rei  dom  Afonso  Terceiro,  que  foi  Conde  de  Bolonha, 
acontecco  na  villa  de  Santarém  poios  annos  do  Senhor  de  4266,  que 
huma  pobre  molher  do  povo,  não  achando  em  seu  marido  igual  corres- 
pondência de  amor,  ao  que  a  seu  parecer  lhe  merecia,  ou  por  ser  áspero 
de  condição,  ou  por  se  divertir  em  mocidades :  e  desejando  mais,  que 
a  própria  vida,  achar  algum  meio  de  o  reduzir,  e  abrandar,  deu  conta 
de  si  a  huma  molher  de  lei,  e  nação  Judia,  como  n"aquelle  tempo  havia 
muita  gente  d"esta  em  Portugal,  que  em  bairros  separados  vivião  á  sua 
vontade  por  todas  as  terras,  e  lugares  grandes.  Devia  ser  de  humas  ve- 
lhas, que  por  género  de  vida  com  qualquer  conhecimento  de  ervas,  ou 
experiências  se  fazem  .chamar  Mestras  no  povo :  e  ás  vezes  passão  a  tra- 
tos, e  pactos  com  o  Demónio.  Esta  como  ouvio  as  queixas  da  Christam, 
e  conheceo  a  raiz  d'onde  procedia  a  ânsia  com  que  vinha,  julgou  que 
tinha  sitio  pêra  fundar  quanto  quizesse  n'ella.  Promete-lhe  fácil  cura, 
co;iio  de  sua  parte  ajudasse  com  o  que  podia.  Que  não  faria  com  tal 
promessa  quem  outra  cousa  não  buscava  ?  A  tudo  se  oíTereceo  quanto 
lhe  quizesse  mandar.  Instruída  pola  Judia  do  que  havia  de  fazer,  as  ho- 
ras lhe  parecião  annos  pêra  a  execução.  Tinha  sua  morada  na  freguesia 
de  Santo  Estevão,  (aponta  a  historia  (lue  era  na  rua  dos  esteireiros),  vai- 
se  pola  manham  á  Igreja,  pede  confissão,  e  communhão  a  titulo  de  in- 
disposta, os  tempos  então  pouco  acautelados,  ella  determinada,  e  cheia 
de  paixão,  e  molher :  ao  receber  da  sagrada  Hóstia  teve  atrevimento,  e 
manha  pêra  lhe  por  as  mãos  profanas,  e  immundas,  tiral-a  da  boca,  e 
atal-a  na  ponta  da  beatilha  que  trazia  soqueixada,  (chama  a  lingoagem  do 
povo  beatilha  a  hum  género  de  veo,  ou  touca  grossa  com  que  as  mo- 


PAUTICri-AU  DO  RKINO  DE  PORTUGAL  301 

Iheres  plebeias  cobrem  por  lionestidade  cabeça,  e  garganta),  e  o  que 
mais  he,  que  logo  se  poz  em  caminho  pêra  a  ir  entregar  ao  Judaísmo. 
Mas  não  pcrmittio  o  Senhor,  que  em  huma  villa  tão  ilhistre,  e  onde  tan- 
tos Santos,  e  tanta  santidade  havia,  lhe  fosse  feito  tamanho  desacato, 
como  ser  n'ella  de  novo  entregue  a  quem  de  novo  pretendia  tornal-o  a 
crucificar :  e  pêra  grandes  bens,  e  honra  de  Santarém,  converteo  a  afron- 
ta, que  se  aparelhava  cm  hum  soberano  género  de  misericórdia.  Cami- 
nhava a  atrevida,  e  mais  que  infiel  fêmea  pêra  a  Judiaria,  e  caminhava 
feita  andor,  e  Custodia  de  Christo  Jesus  Deos  trino,  e  uno  poderosissi- 
mo,  e  soberanissimo,  como  padeceo  por  nós,  e  como  está  glorioso  nas 
alturas  do  Ceo  Impireo.  Mas  eis  que  começão  a  regar-se  as  ruas  de  san- 
gue sagrado,  como  n'outro  tempo  as  de  Jerusalém.  Oh  ineffavel  m.ara- 
vilha !  Lingoas  de  Anjos  houverão  de  falar  n"este  passo,  que  todas  as 
humanas  são  pobres,  fracas,  e  indignas  pêra  tão  alta  matéria.  Virão  huns 
homens  o  sangue,  que  corria  até  o  chão,  notarão  as  roupas  da  molher 
tintas  n'elle,  perguntarão-lhe  espantados,  que  cousa  era,  ou  que  feridas 
levava.  Olhou  ella  pêra  si,  vio  que  sabia  do  nó  da  beatilha,  sobresaltou- 
se,  c  perturbou-se  toda.  Parece  que  ajudarão  os  Anjos  a  perturbação, 
pêra  que  mudasse  conselho.  Dá  volta  pêra  sua  casa,  tira  a  beatilha,  en- 
cerra-a  com  o  Divino  deposito  dentro  de  huma  arca.  Passou  o  dia  sem 
se  determinar  no  que  fana :  senão  quando  cobrindo-se  o  mundo  de  noite 
escura,  amanhece  no  aposento  dia,  e  resplandor  celestial.  Acorda  o  ma- 
rido pasmado:  desmaia,  e  torva-se  de  novo  a  molher.  Notão  ambos,  que 
de  huma  parte  baixa  sahião  raios  mais  claros,  e  mais  ardentes  que  do 
Sol  do  meio  dia.  Não  se  atreveo  a  autora  do  sacrilégio  a  mais  segredos, 
conhecendo  que  procedião  da  arca,  que  ali  tinha  sen  lugar,  e  da  mesma 
causa  que  de  dia  vertera  sangue.  Contou  tudo  o  que  era  passado  sem 
encubrir  nada.  Acudio  o  homem,  correndo  ao  Prior  da  Igreja :  juntou-se 
o  povo  todo:  foi  grande  a  revolta,  e  o  espanto,  grande  o  alvoroço,  e  de- 
vação.  Tratou-se  primeiro  de  huma  solene  pompa  e  procissão  pêra  tira- 
rem o  Senhor  d'onde  estava.  Em  segundo  lugar  entrou  em  duvida  que 
parte,  ou  que  Igreja  seria  bem  honrar  com  elle.  Era  vulgo,  foi  grande 
a  variedade  de  pareceres.  Huns  propunhão  S.  Domingos  allegando  que 
estaria  bem  servido,  onde  tudo  erão  Santos :  outros  S.  Francisco,  onde 
não  faltavão :  outros  querião-no  pêra  a  Igreja  matriz.  E  os  fregueses  de 
Santo  Estevão,  inda  que  poucos,  e  pobres  requerião  pola  sua  Igr'!Ja,  com 
a  justiça  de  haver  saido  o  mesmo  Senhor  d'ella.  Mas  sendo  tudo  pobre 


302  LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

pêra  tamanho  hospede,  era-o  mais  que  tudo  a  freguesia.  E  nao  falta  quem 
affirme  com  bons  fundamentos,  que  o  primeiro  possuidor  de  tão  alta  re- 
hquia  foi  o  Convento  de  S.  Domingos.  Mas  no  tempo  presente  he  cousa 
certa,  e  sem  duvida  que  a  possue  a  própria  freguesia,  e  por  essa  rezão 
foi  perdendo  a  Igreja  seu  antigo  nome,  e  tomando  o  que  hoje  tem  do 
Santo  milagre,  que  por  excellencia  lhe  compete.  Com  as  esmoUas,  e  con- 
curso dos  íieis  se  tem  feito  hum  luzido  templo  cm  edifício,  e  rendas,  e 
de  ordinai'io  anda  o  Priorado  d'elle  em  pessoas  de  muita  calidade.  E 
hoje  o  possiie  o  Doutor  Luis  da  Silva  de  Brito,  natural  da  mesma  villa. 
Correndo  o  tempo  foi  o  Senhor  servido  de  juntar  a  esta  Divina  Relíquia 
duas  circunstancias,  que  cada  huma  per  si  he  soberano  Milagre,  e  am- 
bas juntas  lhe  acrecentão  tanta  autoridade,  e  grandeza,  que  a  fazem  única 
110  mundo,  (entre  outras  que  sabemos  da  mesma  calidade)  com  grande 
honra  do  Reino  de  Poi'tugal,  e  da  villa  do  Santarém.  A  primeira  he,  que 
sendo,  como  foi,  conselho,  (e  devia  ser  nacido  dos  Frades  de  S.  Domin- 
gos, que  serião  consultados  como  letrados,  e  Santos),  recolher-se  com 
cera  todo  o  sangue  que  havia  por  fora  da  beatilha,  e  da  sagrada  Hóstia, 
e  compor-se  também  de  cera,  como  de  matéria  menos  corruptível  hum 
género  de  recolliimento,  ou  custodia,  em  que  se  guardasse  tudo,  (devia 
faltar  ouro,  e  prata,  como  em  idade  pobre),  aconteceo  a  cabo  de  annos, 
que  visitando  o  Prior  a  santa  Relíquia,  ou  querendo-a  mostrar  ao  povo, 
como  então  era  costume,  na  festa  de  Corpus,  achou  com  grande  espanto 
recolhida  a  hóstia  sagrada  dentro  de  huma  ambula  de  cristal,  de  tal 
feitio,  que  claramente  parece  obra,  e  ministério  de  Anjos  tal  recolhimen- 
to. Porque  tendo  a  ambula  o  assento  da  largura,  e  forma  de  huma  moeda 
de  oito  reales  Castelhana,  sobe  em  forma  piramidal  com  hum  collo  alto, 
e  estreito :  e  dentro  parece  o  corpo  da  partícula  Sagrada  do  tamanho  da 
metade  de  hum  tostão  grande,  e  n"ella  humas  nódoas  em  parte  quasi 
pretas,  como  de  sangue  pisado,  e  em  partes  vermelhas,  como  de  sangue 
fresco,  e  o  resto  branco,  e  alvo  da  cor  das  Hóstias  frescas :  e  no  fundo 
do  vaso  se  devisão  humas  gotas  grossas  de  sangue,  vermelhas  humas,  e 
outras  quasi  pretas.  O  que  tudo  argue  que  não  haveria  mãos  humanas 
que  tevessem  poder  nem  ousadia  pêra  entender  em  tal  obra  (*).  He  a  se- 
gunda circunstancia,  ou  segundo  milagre  continuado  des  dos  primeiros 
tempos  até  a  idade  presente  servir-se  o  Senhor  pêra  confirmação  de  fé, 

(*)  o  P.  João  de  Luee.  na  vida  do  V.  Frãcisco  Xavier.  Pcro  de  M;uis  na  liiít.  deste  Santo 
Biiijre.  t.  4. 


PAIITICULÂU  DO  REINO  DIÍ  POIITUGAL  303 

c  cordial  consolação  das  a^.mas  devotas,  de  se  representar  em  varias  fi- 
guras aos  olhos  de  muitos,  como  o  deixarão  escrito  algumas  pessoas  de 
muito  credito,  e  nós  o  ouvimos  a  oiilras :  e  o  declara  liuma  escritura  ou 
relação  antiquíssima,  que  se  guarda  no  cartório  da  mesma  Igreja  por  estas 
palavras :  Et  apparet  inlus  in  ampulla  multis,  ia  disersis  similitudinibus 
hominis:  quandoque  in  cr  nce,  quando  que  in  grémio  Matris,  quanúoqne 
aliter,  pro  vt  placet  et. 

Deste  tão  famoso  milagre  tem  hoje  o  Convento  de  S.  Domingos  de 
Santarém  huraa  fermosa  parte :  que  he  hum  pedaço  da  heatilha  todo  ca- 
sangoentado,  e  tão  vermelho  de  presente,  (sendo  o  successo  tão  antigo), 
como  se  de  próximo  o  ensoparão  em  sangue  fresco,  e  grosso,  e  muito 
vermelho.  E  está  guardado  em  hum  viril  de  cristal,  no  fundo  do  qual 
se  vem  mais  dous  pelouros  de  huma  cera  descorada  tamanhos  como  grãos 
de  comer,  que  forão  parte  da  mesma,  com  que  os  Sacerdotes  forão  re- 
colhendo algum  sangue,  que  havia  pola  arca,  e  fora  da  beatilha.  Este  pe- 
daço dizem  que  será  de  hum  palmo  de  comprido,  e  três  dedos  de  largo. 
Em  tempos  atrás  estava  na  Sacristia,  recolhido  em  hum  sacrário  de  pe- 
draria que  se  fez  pêra  elle,  encaixado  na  parede  fronteira  da  porta,  que 
sae  pêra  a  Igreja,  e  dourado  por  dentro,  e  por  fora,  e  cercado  de  pin- 
turas, e  letras  acomodadas  ao  mysterio.  O  sitio  pêra  segurança,  e  res- 
peito he  tão  alto  que  se  lhe  não  podia  chegar  facilmente  :  e  ardião  diante 
duas  alampadas  perpetuas.  xVqui  esteve  mais  de  duzentos  e  sincoenta 
annos,  e  se  mostrava  a  pessoas  nobres,  e  devotas.  Despois  pareceo  que 
estaria  mais  venerado  no  Sacrário  da  Capella  mór,  como  em  seu  próprio 
lugar :  passou-se  a  elle,  e  ahi  está  agora. 

/V  occasião,  de  que  naceo  vir  ao  Convento  tamanha,  o  tão  preciosa 
parte,  não  consta  ao  certo,  nem  ha  escritura  que  o  diga.  A  tradição  dos 
Frades  antigos  era,  que  logo  no  principio,  (como  atrás  fica  dito),  viera 
toda  a  Santa  relíquia  ao  Convento :  e  pouco  despois  arrependidos  os 
freguezes  de  sua  sobeja  liberalidade  repetirão  por  justiça  o  que  tinhão 
dado  por  cortezia :  e  houvera  longo  litigio :  e  por  bem  de  paz,  ficara 
aos  Religiosos  a  parte  que  temos.  Assi  o  querem  significar  humas  pala- 
vras de  huma  relação  muito  antiga  do  mesmo  milagre,  que  andava  no 
Cartório  da  sua  Igreja,  que  dizem  assi :  In  ccenobio  Prcedicatorum  sema- 
tur  qucedam  particula  eiusdem  miraculi  in  ampulla  decrislalio  reposita  in 
sacrário,  quam  tunc  temporis  ohtinuerunt  reliijiosi  multa  sandilate  proís- 
tanles.  E  que  houve  escrituras  mais  antigas,  a  mesma,   que  tiaz  o  Li- 


oOi  LIVRO  II  DA  HISTOIUA  DE  S.  DOMINGOS 

fenciado  Pedro  de  Maris,  em  sua  historia,  o  aponta  dizendo  no  fim  do 
prologo,  secundiim  inueni  scríptvm  ab  antiquis(*).  xV mesma  tradição  se  con- 
firmou por  homens  velhos,  tirados  por  testimunhas  em  hum  sunmiario 
que  o  mesmo  Maris  ailega  feito  por  mandado  do  Cardeal  Infante  dom 
Anrique,  que  succcdco  no  Reino  a  el  Rei  dom  Sebastião.  Era  o  Cardeal 
juntamente  Arcebispo  de  Lisboa,  e  como  Prelado  mandou  fazer  a  dili- 
gencia, por  hiim  requerimento  que  lhe  íizerão  os  Beneficiados  do  Santo 
Milagre :  e  por  ella  pareceo  bastantemente  o  que  temos  dito,  e  por  isso 
se  guardão  os  processos  no  Cartório  do  Convento. 

Pudéramos  escusar  tratar  de  mais  relíquias  á  vista  da  que  temos 
dito :  mas  por  dizer  tudo,  temos  nesta  casa  a  capa  inteira  de  que  N,  P. 
S.  Domingos  usava  quando  faleceo,  peça  de  grande  estima  por  hum  pe- 
nhor de  seu  espirito,  como  o  de  outro  Elias.  Atrás  fica  dito  quem  a  deu, 
e  quem  a  trouxe  (**).  He  de  estamenha  grossa,  aa^rmuito  deslavada:  do 
que  he  causa  a  antiguidade,  e  o  ser  tinta  sobre  vermelho.  O  capello  está 
cozido  com  ella,  e  a  aba  he  muitocurla.  Guarda-se  em  huma  caixa  de  prata. 

Das  onze  mil  Virgens  temos  aqui  grande  cantidade  de  relíquias,  e 
com  ellas  outras  do  Martyr  S.  Gerion.  Trouxe-as  a  este  Convento  hum 
Prior  d'elle,  tornando  de  hum  Capitulo,  que  se  celebrou  em  Colónia 
Agripina  anno  de  1403.  Estão  autorizadas  com  certidão  de  quem  as 
deu,  que  foi  o  Prior  da  Casa  Frei  Guilhermo  de  Aquisgran.  O  nosso, 
que  as  reccbeo,  se  chamava  Frei  Gil  Martins. 

Falta-nos  pêra  cerrar  este  capitulo,  e  a  relação  d*esta  casa,  apontar 
as  mercês  que  goza  dos  Reis,  e  Prelados  :  e  acho  que  por  Abril  do  anno 
de  1501  lhe  deu  el  Rei  dom  Manoel  a  Ermida  de  N.  Senhora  da  Serra, 
situada  em  meio  dos  montes  da  coutada  real  de  Almeirim,  onde  he  toda 
a  recreação  dos  Reis.  Pola  qual  resão  se  houve  a  Ordem  por  obrigada  a 
fazer  n'ella  Convento  formado.  E  porque  hoje  o  he,  ficará  o  mais  que 
pudéramos  dizer  d'elle,  pêra  quando  chegarmos  com  a  historia  aos  annos 
de  sua  fundação,  e  particular  titulo. 

Os  Illustrissimos  Metropolitanos  de  Lisboa  tem  sinalado  huma  boa 
esmola  á  casa  de  Santarém,  com  obrigação  de  huma  lição  piiblica,  e 
quotidiana  de  Casos  de  consciência  na  Igreja  de  Santa  Maria  de  Alcaçava, 
pêra  a  qual  se  nomeão  sojeitos  de  sufficiencia  nos  Capítulos  Provinciais, 
sem  embargo  que  no  Convento,  como  de  ordinário  sustenta  qnarenla,  e 
cinco  Religiosos,  ha  sempre  muitos  de  nome  em  púlpito,  e  letras. 

(•1  Ha  bist.  Ho  Sanlissimo  Milagre  c.  3.  f.  3í. 
(••)  L.  2.  c.  20. 


LIVRO  TERCEIRO 


DA 


HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

PARTICULAR  DO  REINO,  E  CONQUISTAS  DE  PORTUGAL 
CAPITULO  I 

Da  fundarão,  e  princípios  do  Convento  de  Coimbra. 

Foi  primeiro  ramo  da  planta,  que  nos  deu  na  serra  de  ■\Iontejunto 
aquelle  pequeno  grão  de  mostarda,  n'ella  semeado,  e  cultivado  por  mão 
de  dom  Frei  Sueiro  Gomes,  o  Convento  da  cidade  de  Coimbra,  morada, 
e  Corte  por  largos  annos  dos  Reis  d"este  Reino :  despois  illustre  Acade- 
mia de  todas  as  scicncias  d'elle :  e  tão  antiga  em  sua  origem,  que  refere 
a  fundação  do  seu  castello  ao  Thebano  Hercules.  Os  meios,  e  modos, 
porque  teve  principio  este  Convento  deixamos  contados  no  começo  d'esta 
Historia,  quando  contamos  como  foi  chamado  dom  Frei  Saeiro,  ainda 
antes  de  Provincial,  da  Infante  dona  Branca,  filha  dei  Rei  dom  Sancho 
Primeiro,  e  juntamente  do  Bispo  de  Coimbra,  e  como  teve  logo  sitio  pêra 
fundar,  por  obra,  e  favor  d"esta  Infante,  e  da  Rainha  dona  Tareja,  sua 
irmam(*),  e  guardamos  pêra  este  lugar  a  narração  mais  copiosa.  He  pois 
de  saber,  que  na  ribeira  direita  do  rio  Mondego,  que  lava  a  cidade,  no 
plano,  onde  hoje  vemos  assentada  grande  parte  da  povoação  da  ponte 
pêra  baixo,  havia  em  tempos  antigos  muita  frescura  de  pumares,  que 
chamavão  o  Figueiral.  Entre  elles  pareceo  á  Infante  dona  Branca  lugar 
accommodado  pêra  fundar  Convento,  hum  posto  que  havia  nome  a  Fi- 

L.  1.  c,  11. 

voL.  I.  2D 


306  LIVIIO  m  DA  IIISTOÍIIA  DE  S.  DOMINGOS 

gueira  velha.  Porque  por  liuma  parte  pêra  a  communicação  da  cidade 
não  ficava  longe,  opor  outra  senhoreava  o  Rio,  quen'aquella  idade,  (quem 
o  crerá  hoje?)  corria  fundo,  e  alcantilado:  e  vinha  o  silio  muito  a  pro- 
pósito pêra  a  commodidade,  e  recreação  dos  Religiosos.  Começando  a 
mandar  comprar  as  propriedades,  veio  á  noticia  da  infante  dona  Tareja 
sua  irmam  o  qr.o  passava.  Era  esta  Senhora  irmam  mais  velha  de  dona 
Branca,  fora  casada  com  el  Hei  dom  Afonso  de  Lião :  despois  de  terem 
filhos  foi  separado  o  matrimonio,  e  tornou-se  á  terra,  em  que  nacera.  E 
como  Princeza  religiosa,  e  pia,  quais  forão  sempre  todas  as  d'este  Reino, 
inda  que  sintio  ter-lhe  sua  irmam  ganhado  por  mão  na  determinação, 
não  quiz  por  isso  perder  o  merecimento  de  entrar  á  parte  em  obra  tão 
santa,  c  tratou  com  elia  que  partissem  entre  si  a  despeza.  E  forão  os 
termos  tão  cortczes,  e  tão  de  quem  ambas  erão,  que  a  Infante  lif  o  houve 
de  conceder.  Constou-nos  pola  mesma  carta,  que  a  Rainha  passou  das 
compras,  que  fez  do  sifio,  e  propriedades  que  n'e!le  havia  :  a  qual  os 
Frades  lhe  pedirão  alguns  annos  despois,  pêra  lhes  ficar  por  titulo,  e 
poder  constar  em  todo  tempo  de  como  as  houverão.  E  porque  be  de 
ver  a  nota,  a  lançamos  aqui,  e  he  a  que  se  segue. 

In  nomhie  Palris,  et  Filij\  et  Spiritus  Sancti.  Ainen.  Ego  Regina 
Bomna  Tarasia,  filia  Rcgis  Sancij  Primi  de  Poringallia,  facio  notam  oní- 
nibus  prcesentem  paginam  inspecluris,  quòd  ciim  soror  mea  Regina  Domua 
Blanca  vclletfaccre  Monasterinm  Fruíram  Prcedicatorinn  ápad  CoUimbriam, 
ego  cupiens  in  tam  grandi  bono  hiibere  partem,  rogani  iam  dictam  sororem 
meam,  vt  placeret  ei^  quód  ego  emerem  hwredilatem,  in  qna  posset  fundari 
Monasferiíim.  et  aUa  fieri,  qiim  necessária  cssent  Fratribus  ibidem  mora- 
turis.  ípsa  ergo  libenler  et  Itberè  concesit  milii  quod  petebam,  méis  pre- 
cibus  incHnata.  Time  ego  emi  htereditates  istas  de  própria  pccunia  in  ilh 
loco,  qiii  dicitur,  Ficiis  vetns^  ab  Abbatissa  de  Loruono  Domna  liaria 
Alfonsi,  et  Conucntu  suo  emi  kereditatem  qnantam  Monasterium  de  Lorua- 
110  habebat  pricdicto  loco  per  cenlum  triginta  Morabitinos.  Et  d  Pelro  3Iu~ 
nionis  Priore,  et  clericis  Sancii  Petri  de  CoUimbrín  quantum  in  illo  loco 
habebat  ipsn  Ecclesia  per  centnm  viginti  Morabitinos,  et  d  Domno  Tho- 
masio  PrioíJi  et  ch^icis  Sancti  Sahiatoris  quantum  ibi  habebat  ipsa  Eccle- 
sia. Et  dedi  eis  pro  eo,  quod  ibi  habebat  ipa  Ecclesia,  tria  casalia  inBrase. 
Et  emi  illi  casalia  ab  Abbatissa  de  Cellis  de  Yimaranis  Domna  Fruila  et 
(Jonvcntu  suo  per  duccntos  Morabitinos.  Prcr.terea  emi  ab  hominibus,  qui 


PAIiTlCULAR  DO  REINO  DF.  PORTUGAL  307 

morahanlur  in  prcodiclis  ltj;reditatibus,  et  possidebnnt  illas  ml  fórum  et 
consuetudinem  suam,  qnam  inde  fuciebant  Manaste  rio,  et  dcricis  supradi- 
clis,  fotuin  íits,  quod  inde  Iiabebant,  cl  etiam  do  mos  in  quibus  moraban- 
tur,  sicut  placuit  illis.  Tunc  istam  totam  hcBreditalem,  comparatam  et  ex- 
pedilam,  sicut  dictum  est,  dedi  tcmpore  illo  Fratrihus  Ordinis  Prícdicato- 
rum,  vt  in  ipsa  facerent  Mouastcrium  sui  Ordinis  pro  salulc  anima;  niecc, 
et  parentum  meorum.  Et  modo  ipmm  donafionem,  quam  feci,  per  istam 
charlam  roboro  et  confirmo.  Et  vt  donatio  inca  maius  robur  obtineat,  in 
ipsa  manus  meãs,  et  siyillum  meum  appono.  Non  ergo  alicui  hominum 
lianc  mea:  donationis  charlam  liceal  infringere,  nec  ei  nusii  temerário  con- 
tra ire.  Quod  si  quis  fecerit.  Domino  teme  iuxta  terra}  consuetudinem 
obnoxius  calumnice  teneatur,  et  hfcreditatem,  super  qna  possessores  inquic- 
tfiverif,  duplet  eis.  Farta  charta  donationis  et  confrmationis  menxe  Fcbrua- 
rij  sub  jEra  M.CC.LXXX,  ret/nante  in  Portuijallia  Saneio  Secundo. 

Em  nossa  linguagem  responde  o  seguinte: 

Em  nome  do  Padre,  e  do  Filho,  e  do  Espirito  Santo,  Amen.  Eu  a  Rainlia 
dona  Tareja,  filha  dei  Hei  dom  Sancho  piimeiro  de  Portugal,  a  quantos  esta 
cai1a  virem,  faço  saber,  que  sendo  informada  como  a  Rainha  dona  Branca  mi- 
nha irmã,  queria  fundar  um  Mosteiro  da  Ordem  dos  Frades  Prega- 
dores em  Coimbra:  e  desejando  que  me  tocasse  alguma  parte  em  ta- 
manlio  bem,  lhe  pedi  fosse  contente,  que  comprasse  eu  o  sitio,  em  que 
se  havia  de  fazer  o  edifício,  e  o  mais  que  pêra  boa  vivenda  dos  Religio- 
sos era  necessário.  E  ella  houve  por  bem  conformar-se  comigo,  e  con- 
cedendo-me  com  gosto,  e  livremente  tudo  o  que  lhe  pedi.  O  que  visto, 
comprei  logo  por  meu  dinheiro,  no  lugar  que  chamão  a  Figueira  ve- 
lha, as  propriedades  seguintes.  A  saber,  da  Abbadessa,  e  Mosteiro  de 
Lorvão  toda  a  fazenda  que  tinha  na  dita  parte  por  preço  de  cento  e 
trinta  Morabitinos.  E  a  Pedro  Munliós  Prior  da  Igreja  de  S.  Pedro  de 
Coimbra,  e  seus  beneficiados,  por  cento  e  vinte  morabitinos,  tudo  quanto 
ahi  possuia  a  dita  Igreja.  E  assi  houve  do  Prior  domThomás,  e  dos  clé- 
rigos de  S.  Salvador  o  que  ahi  tinha  a  sua  Igreja,  dando-lhe  em  troca, 
c  escaimbo  três  casais  meus  em  Brase,  e  outros  que  comprei  a  dona  Fruila 
Abbadessa  de  Celtas  por  duzentos  morabitinos.  E  porque  estas  proprieda- 
des estavão  cmprazadas  a  difierentes  pessoas,  que  d"ellas  pagavão  foro 'aos 


308  LIVRO  111  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

ditos  Mosteiros,  e  Igrejas,  fiz  nova  composição,  alem  de  ter  comprado  o 
direito  senhorio  poios  preços  acima  ditos,  com  os  possuidores,  e  iiso- 
frncluarias,  pêra  mas  largarem,  e  me  deixarem  até  as  casas  de  sua  mora- 
da que  tinhão  feito,  dando-lhes  por  huma,  e  outra  cousa  quanto  quizerão. 
E  toda  esta  fazenda  assi  junta,  e  livre,  e  desembargada,  tanto  que  foi  mi- 
nha, a  dei,  e  doei  logo  no  mesmo  tempo,  aos  Religiosos  da  Ordem  dos 
Pregadores  pêra  eíTeito  de  fabricarem  n'ella  hum  Convento  polas  almas 
de  meus  pais,  e  minha.  E  a  tal  doação,  que  entio  lhes  íiz,  ratifico  agora, 
e  de  novo  a  confirmo  por  esta  carta.  E  pêra  que  mais  força,  e  vigor  tenha, 
de  minha  mão  a  assinei,  e  sellei  com  meu  sello.  Epor  tanto  nenhuma  pes- 
soa intente  ou  pretenda  invalidal-a,  nem  per  ale  i  ima  via  encontral-a;  sopena 
que  fazendo-o,  fique  por  atrevimento  obrigado  a  pagar  ao  senhor  da 
terra,  as  penas  que  segundo  costume  d'ella,  se  levão  aos  que  falsa,  e 
maliciosamente  demandão  o  que  lhes  não  pertence :  e  aos  possuidores 
pague  em  dobro  a  valia  da  propriedade,  sobre  que  lhes  der  moléstia. 
Foi  feita  esta  carta  de  doação,  e  confirmação  no  mez  de  Fevereiro :  Era 
de  1280  (responde  ao  anno  de  Chrisio  1242). 

Polo  teor  d'esta  doação,  temos  por  fundadoras  d"este  Convento  duas 
Princezas.  E  he  bem  de  considerar  a  virtude  de  ambas,  e  a  pouca  ambição 
de  cada  huma,  pois  ambas  tratavão  sò  do  elTeiío  da  obra  pia,  e  a  nenhuma 
lembrava  a  honra  ou  nome  d'ella(*).  E  he  de  saber  que  não  era  o  custo 
leve  pêra  aquelles  tempos.  Porque  os  Morabitinos,  como  já  apontamos 
outra  vez,  se  erão  de  ouro,  valia  cada  um  quiiilientos  réis,  que  assi  consta 
do  testamento  dei  Rei  dom  Sancho  Primeiro,  que  foi  pai  d'es!as  infan- 
tas. E  não  devia  ser  menos  contia  a  que  se  deu  aos  possuidores  das 
propriedades,  da  que  levarão  os  que  tinhão  o  direito  senhoria.  Masadvir- 
timos  ao  Leitor,  que,  como  a  Escritura  não  declara  a  calidade,  e  valia 
da  moeda,  podião  ser  estes  maravedis  de  huns  que  achamos  alguns  an- 
nos  despois  com  nome  de  maravedis  velhos,  e  sua  valia  de  vinte  sete 
soldes,  ou  reais  brancos.  Esta  doação  está  hoje  viva  no  Cartório  do  Con- 
vento. E  por  outros  papeis  que  d'elle  nos  forão  mostrados,  consta,  que 
começada  a  obra  pareceo  necessário  comprarem-se  mais  outros  pedaços 
de  terra,  e  pumares:  dos  quais  huns  se  pagarão  de  contado:  outros  com 
propriedades  equivalentes  buscadas,  e  compradas  pêra  isso:  e  estas  forão 
as  que  pertencião  ao  Bispo,  e  Cabido,  que  não  quizerão  vender  a  dinheiro: 

(•'  I..  2.  e.  í.  Du.Mlc  Nunes  de  Lião  na  vjja  de  dcm  Suuche  Prinicir.  f.  tí". 


PARTICILAR  DO  RELNO  DE  PORTUGAL  300 

e  hunias,  e  outras  fizerão  de  custo  outros  duzentos  e  vinte  cinco  mora- 
biíinos,  os  quais  devia  mandar  pagar  a  Infante  dona  Tereja. 

A  conta  da  Infante  dona  Branca  ficou  a  obra  de  pedra,  e  cal,  e  todo 
o  mais  edifício  (*):  e  como  o  fazia  com  devação,  e  poder:  porque  ■!  Rei  seu 
pai  a  deixou  igualada  com  suas  irmans,  em  grossa  herança  de  ouro,  e 
prata,  e  segundo  affirmão  alguns  historiadores  era  senhora  da  cidade  de 
Gundalajara  em  Castella,  creceo  a  obra  tão  depressa,  que  no  anno  de 
1227,  havia  já  Convento  formado,  com  Prior  e  Supprior.  E  consta  por 
memorias,  que  vimos  no  Cartório,  que  era  Prior  n"esto  anno  hum  Frei 
João,  do  qual  huma  dona  Elvira,  confessa  receber  três  morabi tinos,  por 
rezão  de  humas  arvores  que  á  instancia  dos  Religiosos  cortou  em  hum 
quintal  seu:  e  fez  contrato,  que  no  tal  lugar  se  não  plantarião  outras  em 
nenhum  tempo,  por  quanto  com  ellas  se  devassava  a  cerca  do  Convento. 
Assi  se  fica  coUigindo  com  clareza,  que  pois  n"este  anno  estava  a  casa 
tanto  adiante,  de  alguns  atrás,  e  não  poucos,  devia  estar  principiada.  O 
mesmo  se  deixa  entender  da  carta  da  Infante  dona  Tereja,  porque  ainda 
que  a  data  he  quinze  annos  adiante,  pola  narrativa  d'ella  se  mostra,  que 
houve  grande  distancia  entre  o  tempo  da  entrega  das  terras,  e  o  em 
que  mandou  despachar  a  carta:  declarando,  que  quando  as  comprara, 
logo  então  as  dera  aos  Religiosos,  e  confirmava  agora  o  que  de  tempo 
atrás  tinha  dado.  Confirma  esta  antiguidade  sabermos  que  residio  S.  Frei 
Gil  n'esta  casa  antes  que  fosse  Provincial  a  primeira  vez:  e  consta-nos, 
que  foi  sua  eleição  no  anno  de  1233  por  morte  de  dom  FreiSueiro(**). 

C\PITULO  II 

Vida,  morte,  e  milaijres  do  Santo  Frei  Paio. 

Era  Coimbra  nos  primeiros  annos  do  Reino  de  Portugal  como  ca- 
beça, e  metropoli  d"elle.  Porque  residindo  n"eUa  de  assento  a  Corte, 
como  então  residia,  o  mesmo  fazia  o  melhor,  e  mais  luzido  de  toda  a 
nobreza,  e  d"outra  gente  de  calidade.  Assi  foi  este  Convento  meio  de 
salvação,  e  remédio  de  mui f as  almas,  com  sua  doutrina,  e  pregações,  e 
exemplo:  almas,  que  as  ondas  de  pretenções,  e  esperanças  vans  da  Corte 
costumão  trazer  esquecidas  de  si.  lambem  nos  grangeou  pêra  a  Ordem 

(•)  Duarle  ?iuncs  de  Liío  na  vida  de  dom  Sanciío  Primeiro. 
(••]  Kescnde  na  vida  de  S.  Fiei  Gil. 


olO  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.   DOMINGOS 

muitos  sujeitos,  quo  despois  a  honrarão  com  virtude,  e  letras:  dos  quais 
houvera  muito  que  dizer,  se  nos  antigos  não  faltara  a  curiosidade  do 
escrever;  de  que  sempre  nos  queixaremos.  D  onde  nace,  que  sendo  certo 
que  iiouvc  n'este  Convento,  muitos  Religiosos  dignos  de  lionrada  memo- 
ria, qnasi  não  teveramos  de  quem  a  fazer  particular,  se  nos  não  dera 
hum  Frei  Paio  Ião  abalisado  em  santidade,  que  fez  escrever  os  estra- 
nhos, primeiro  que  os  nossos  (*).  Do  que  podemos  inferir  quo  em  ar- 
vore, d'onde  tal  fruito  se  produzio,  não  podião  faltar  outros  seme- 
l!iantes.  Mas  bastar-lhes-ha  a  elles  estarem  escritos  no  livro  da  vida, 
se  o  não  ficarem  n'este:  e  a  nós,  termos  em  tais  irmãos  quem  de 
veras  ngs  procure  com  sua  intercessão,  que  cheguemos  algum  dia  a 
escrevermo-nos  também  n"el!e. 

Foi  Frei  Paio,  filho  de  habito  do  grande  dom  Frei  Sueiro,  honra  pêra 
o  filho,  mas  não  menor  pêra  o  pai:  c  temos  conjecturas  que  foi  natural, 
e  nacido  em  Coimbra.  E  ainda  que  basta  estar  sepultado  dentro  de  seus 
muros,  pêra  grande  gloria  da  terra,  maior  lie  ser  filho  d'ella.  Que  se 
Pádua  em  Itália  se  jacta  de  um  Santo  António  estrangeiro,  e  hospede, 
só  porque  o  tem  consigo:  e  Lisboa  faz  o  mesmo,  tendo-o  ausente,  só 
porque  o  deu  ao  mundo,  e  o  criou  cm  seus  ares:  muito  deve  Coimbra 
a  Deos  por  lhe  dar  hum  tão  grande  Santo  por  hospede  juntamente,  c 
])or  cidadão.  Cousa  he  rara,  e  maravilhosa,  que  de  todos  os  outros  San- 
tos sabemos  que  o  forão,  por  ouvirmos  contar  cxcellencias  de  sua  vida, 
ou  de  sua  moríe;  e  do  presente  não  temos  nenhuma  que  escrever:  e  com 
tudo  sabemos  que  foi  grande  Santo,  e  por  tal  nolo  pregoão  a  boca  cheia, 
(juasi  todos  os  estrangeiros  que  d'esta  Ordem  escreverão.  E  não  he  esta 
a  mais  pequena  maravilha  das  que  havemos  de  contar  d'elle.  Por  onde 
justamente  podianios  pedir  licença  pêra  perguntar  ao  Senhor,  que  o  fez 
tal,  que  rezão  houve,  pêra  que  sendo  tão  liberal  pagador  de  bons  ser- 
viços, que  ainda  n'este  mundo  se  preza  de  responder  a  cento  por  hum, 
assi  permitlio  que  ficasse  entendida  liuma  vida  puríssima,  e  huma  morte 
santa,  quo  nenhuma  fama  nem  noticia  houvesse  d"ella.  Eu  leio.  Senhor, 
de  hum  Ililarião  que  vivendo  entre  selvagens  no  coração  do  deserto,  or- 
denastes que  os  mesmos  Demónios  o  fizessem  conhecido  em  muitas  par- 
tes do  mundo.  Leio  de  hum  Aleixo  Romano  que,  peregrinando  pobre,  e 
desconhecido  pola  Syria,  huma  imagem  de  vossa  sagrada  Mãi  publicou 

f.)  S.  Anlon  o.  p.  lit.  2."].  c.  10.  M.  r.can.  Albert  M.  Soraphin.  Razzi  Castilho  p.  1.  2.  cap. 
S8.  Mariíita  nus  Santos  du  Esjiuiilia  i.  \i.  1.  li.  t.  !i3. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  3 1 1 

seu  nome.  E  a  liura  Paulo  primeiro  ermitão,  embrenhado  na?  serras  da 
Tliebaida  despois  de  cem  annos  de  vida,  mandais  quem  o  visite,  e  lhe 
faga  exéquias:  Que  havemos  logo  de  responder  n*este  caso,  senão  (jue 
mais  mercê  fizestes  a  hum  Frei  Paio,  que  a  muitos  celebrados  da  terra? 
Porque  sendo  assi,  que  vos  agradais  muito  dos  que  mais  se  sabem  es- 
conder, e  furtar  ás  lingoas,  e  favor  dos  homens,  por  esta  via  o  quizes- 
tcs  fazer  hum  Santo  único,  e  sem  igual.  E  como  em  vossa  Divina  pala- 
vra não  pôde  haver  falta,  o  que  lhe  tardastes  com  mercês  publicas  na 
vida,  recompensastes  na  abundância,  e  caUdade  das  que  lhe  fizestes 
despois  de  morto.  Era  Frei  Paio,  quando  veio  á  religião,  entrado  já  em 
dias,  e  conhecido  por  letras,  e  virtude.  E  como  tal  foi  o  primeiro  Prior 
do  Convento,  e  ficando  em  Coimbra  morador  continuo.  Ajudou  muito  o 
edifício  material  com  sua  assistência:  mas  muito  mais  o  espiritual,  com 
a  pregação,  no  qual  ministério  sabemos  que  foi  eminente,  e  incansável. 
Faleceo,  segundo  a  conta  dos  mais  dos  autores,  que  d'elle  escrevem, 
poios  annos  do  Senhor  de  1257,  pouco  mais,  ou  menos.  Mas  se  nos 
havemos  de  conformar  com  a  letra  da  sua  sepultura,  que  adiante  pore- 
mos, em  dezesete  annos  se  enganarão.  Foi  sua  vida,  e  morte  surda,  e 
sem  rumor.  Achou-se-lhe  huma  cinta  de  ferro  grossa,  e  larga,  que  tra- 
zia a  raiz  da  carne.  Mas  isto  de  vida  penitente,  e  trabalhada  pêra  aquella 
idade  era  cousa  tão  ordinária,  que  em  ninguém  fazia  abalo,  e  foi  enter- 
rado sem  mais  ruido  nem  cerimonia,  que  qualquer  dos  frades  conven- 
tuaes.  As  particularidades  secretas  de  alta  perfeição  cobrio  vivendo  com 
estranha  dissimulação,  e  morrendo,  com  a  sepultura.  E  quando  Deos  foi 
servido  desenterral-as,  e  publical-as,  inda  não  quiz  que  as  alcançásse- 
mos mais  que  em  soma,  e  sem  distinção.  Elle  sabe  o  porque.  O  modo 
foi  o  que  agora  diremos.  Era  falecido  de  alguns  mezes,  e  enterrado  no 
cemitério  commum.  Veio  a  morrer  outro  Religioso,  mandou-se-ihe  abrir 
cova  ao  longo  d"elle.  Andava  hum  official  trabalhando  nella,  presentes  a 
caso  alguns  frades:  e  ou  que  se  chegasse  demasiado  á  cova  vizinha,  ou 
que  profundasse  inuito  a  que  abria,  cahio  hum  torrão  da  terra  da  de 
Frei  Paio.  Em  caindo,  eis  que  sai  d"ella,  (caso  estupendo,  e  nunca  ouvido) 
á  vista  de  todos  huma  nuvem,  ou  névoa  espessa,  que  como  vapor  de 
muitos  thuribulos,  que  ardessem  juntos  com  cópia  de  perfumes,  se  foi 
levantando,  e  dilatando,  e  juntamente  recreando  os  sintidos  com  tão  es- 
tranha, e  nunca  jamais  imaginada  suavidade,  que  fez  acudir  todo  o  Con- 
vento com  espanto  ao  cemitério.  No  meio  do  alvoroço  dos  frades,  e  ruido 


3!5J  LIVRO  III  DA   HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

(los  vizinhos  que  se  juntavão,  e  huns,  e  outros  confessavão  a  vozes  a 
Frei  Paio  por  Santo,  largou  o  coveiro  a  enxada,  e  trabalho,  e  torna  logo 
carregado  de  huma  moça  paralítica,  (era  filha  sua,  tolhida  havia  annos 
de  pés  a  cabeça),  rompe  por  todos,  lança-se  com  ella  na  cova  que  tinha 
feito.  Mas  em  lhe  dando  o  ar  da  vizinha,  e  o  cheiro  que  por  tudo  recen- 
dia, a  moça  se  levantou  sam,  e  salva.  E  não  só  tornou  por  seu  pé  pêra 
casa,  a  que  viera  em  braços  alheios :  mas  na  mesma  tarde  pêra  confir- 
mação do  milagre  foi,  e  veio  ao  rio  com  sua  talha  á  cabeça,  servindo,  e 
acarretando  agoa. 

A  novidade  do  caso,  tanto  como  esperança  de  saúde  arrancou  da 
cama,  em  que  jazia  havia  dias,  muito  enfermo,  e  fraco  hum  Frade  do 
Convento :  e  não  foi  bem  chegado  á  sepultura,  quando  se  sintio  com 
novas  forças,  e  se  levantou  do  lugar  com  perfeita  saúde. 

Espalhou-se  pola  terra  a  fama  dos  milagres,  espertou  a  todos  os 
que  alguma  cousa  padecião,  e  todos  levavão  remédio  tão  subido,  e  tão 
geral,  como  se  buscarão  agoa  no  rio,  ou  se  abrira  ali  alguma  fonte,  dan- 
tes ignorada,  e  agora  achada.  E  na  verdade  fonte  era  de  misericórdias 
divinas,  pêra  honra  do  servo  fiel.  O  primeiro,  que  logo  despois  se  apro- 
veitou d'elia,  foi  hum  vizinho  do  Convento,  que  em  vida  do  Santo  fora 
seu  confessado,  e  de  presente  estava  cego,  por  remate  de  huma  forte 
doença,  que  despois  de  muito  trabalho  padecido,  o  deixou  sem  olhos 
cobrando  saúde  nos  mais  membros.  Fez-se  levar  ao  Santo:  lembrava-lhe 
quantas  vezes  fiara  d"elle  os  secretos  de  sua  alma,  e  lhe  ouvira,  e  acei- 
tara seus  consellios:  pedia-lhe  cora  confiança,  que  pois  eslava  tão  valido 
com  aquelle  Senhor,  que  tudo  podia,  quizesse  mostral-o  em  o  livrar  das 
trevas,  em  que  vivia,  ou  por  melhor  dizer  morria.  Foi  caso  de  pasmar, 
que  antes  de  se  bulir  do  lugar,  em  que  fez  a  oração,  se  achou  com  sua 
vista,  como  quando  a  tinha  mais  perfeita. 

Dous  homens  da  mesma  cidade  estavão  afadigados  de  differentes  ma- 
les: hum  apertado  de  esquinencia,  que  se  afogava  sem  remédio:  outro  do 
febres  continuas,  que  o  tinhão  no  estremo  da  vida.  Não  lhes  sendo  pos- 
sível irem  pessoalmente  á  sepultura  do  Santo,  mandarão  buscar  da  ter- 
ra d'ella:  e  esta  fez  o  effeito,  que  cada  hum  desejava. 

Assi  como  dizemos  atrás,  que  havia  no  Reino  polas  cidades,  e  luga- 
res grandes  bairros  separados,  em  que  vivia  gente  de  nação  líebrea  era 
sua  lei:  havia  também  outros,  que  erão  vivenda  de  Mouros  seguidores 
do  seu  Mafamede,  e  ainda  hoje  conservão  o  nome  de  Mourarias.  Soando 


PARTICULAR  DO  REINO  DE   PORTUf.AL  313 

entre  elles  a  voz  dos  milagres,  fizerão-se  levar  à  nossa  Igreja  duas  Mou- 
ras que  ardião  cm  febres,  mais  ten|iíndo  que  confiando.  E  ambas  adia- 
rão no  Santo  a  mesma  liberalidade,  que  se  forão  boas  chrislãs,  ambas 
tornarão  sem  febre,  c  sans. 

CAPITULO  III 

Proscguem  outros  milagres  do  Santo  Frei  Paio:  com  a  estranheza 
do  sino  fundido  com  a  terra  da  sua  cova. 

Forão  crecendo  os  prodígios,  assi  como  acudião  os  necessitados. 
Porque  nenhum  vinha  que  tornasse  frustrado  em  sua  confiança.  Come- 
çarão então  os  Frades  a  buscar  por  casa  peças  de  vestido  do  Santo,  e 
outras  cousas  de  seu  uso,  que  ainda  havia.  Em  particular  poserão  em 
guarda  com  respeito,  e  veneração  a  cinta  de  ferro,  que  lhe  tirarão  na 
morte.  A  qual  sendo  pedida  de  algumas  partes,  fez  logo  milagrosos  effei- 
tos,  particularmente  em  partos  diíTicultosos,  pêra  os  quais  se  foi  cali- 
ficando  com  as  experiências  por  remédio  tão  certo,  que  desde  então 
até  hoje  se  pede  de  ordinário.  Trazem-na  os  Religiosos  forrada  de  ve- 
ludo, e  não  sae  de  casa  senão  acompanhada  de  alguns.  Mas  repartíndo- 
se  as  peças  de  vestido  entre  gente  devota,  he  cousa  averiguada,  que 
por  meio  d'ellas  foi  nosso  Senhor  servido  obrar  muitas,  e  grandes  ma- 
ravilhas. A  huma  mulher,  que  perecia  de  dores  de  estamago,  de  humas 
que  matão  raivando,  em  se  lhe  applicando  huma  peça  d 'estas,  no  mes- 
mo ponto  ficou  sem  ellas.  Com  o  mesmo  remédio  se  provou  que  forão 
livres  em  tempos,  e  terras  differentes  sinco  homens,  aformeniados  do 
Demónio,  não  podendo  o  enemigo  valer-se  contra  a  virtude  communi- 
cada  a  hum  retalho  de  pano  de  hum  corpo  defunto,  e  feito  cinza.  Mas 
caso  maior  he  o  que  se  segue. 

Se  he  grande  mal  Demónio  no  corpo,  quanto  maior  será  Demónio  na 
alma  ?  Tanto  he  maior,  quanto  he  mais  nobre  a  alma  que  o  corpo,  e 
quanto  se  arrisca  mais  nos  bens  espirituais  eternos,  que  em  todos  os 
outros.  Não  se  podia  persuadir  doesta  Filosofia  hum  pobre  homem,  que 
de  sua  vontade  se  tinha  entregue  ao  enemigo,  e  sua  companhia  o  trazia 
tão  esquecido  do  que  se  devia  a  si  mesmo,  e  a  sua  salvação,  que  sobre 
outros  males  não  havia  força  de  rezões,  que  o  pudesse  chegar  ao  santo 
Sacramento  da  Confissão.  Quando  se  via  convencido,  e  envergonhado  dos 


314  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINí.OS 

amigos,  defendia-se  com  dizer,  que  de  nenhum  modo  podia  ter  arrepen- 
dimento da  vida  que  fazia,  nem  contrição  de  suas  culpas,  ainda  que  co- 
nhecia que  o  erão.  Apertarão  hum  dia  com  elle,  e  obrigarão-no  quasi  á 
força,  que  visitasse  a  sepultura  do  santo,  e  com  a  frieza  de  homem  per- 
dido, qual  andava,  lhe  pedisse  huma  peíjuena  de  brandura  pêra  aquelle 
coração  de  pedra.  Foi  sem  vontade,  e  por  comprazer  a  quem  o  rogava: 
propoz  ao  santo  com  devação  alliea,  e  palavi-as  não  suas  a  necessidade 
própria :  sintio  logo  a  mão  do  Senhor,  e  a  intercessão  do  servo :  porque 
subitamente  quebrou  o  bronze  da  cerviz  dura,  e  rebelde,  buscou  confes- 
sor, e  posto  a  seus  pés  passou  a  hum  novo  género  de  contrição.  Porque 
onde  d'antes  se  não  podia  confessar  por  secura,  e  dureza  de  aífeito,  ago- 
ra lhe  tolhião  a  confissão,  chuvas  e  tempestades  de  lagrimas. 

São  maravilhosas  em  alto  gráo  as  maravilhas  d'este  Santo.  E  visto 
como  as  maravilhas  bastão  pêra  conhecermos  a  grandeza  de  seus  mere- 
cimentos, e  desejarmos  sua  intercessão  diante  de  Deos,  não  ajuntaremos 
mais  que  huma,  que  sobe  tanto  em  calidade  sobre  as  contadas,  e  sobre 
muitas  que  se  contão  de  grandes  Santos,  quanto  tem  de  estranheza  por 
durável.  A  saúde  dada  em  huma  doença,  ou  se  perde  com  outra,  ou  se 
acaba  com  a  vida.  Aqui  temos  milagre  que  passando  de  trezentos  annos 
que  succedeo,  está  hoje  tão  fresco,  tão  vivo,  e  tão  visto,  como  no  dia,  e 
hora,  em  que  se  fez.  Quiz  hum  Prior  d'este  Convento  fazer  hum  sino 
maior  que  o  que  servia :  chamou  mestres,  lançarão  contas,  ajuntou  me- 
tal, quanto  parece.)  bastante  pêra  o  corpo  que  se  pretendia.  Feitas  as 
formas,  e  posto  o  metal  no  fogo,  tornou  o  ollicial  sobre  si,  e  achou  que 
se  enganara  na  conta  com  tamanho  excesso,  que  lhe  faltava  pêra  encher 
a  forma,  quando  menos  huma  terça  parte  do  que  já  estava  prestes,  c 
derretido.  Fazia-se  a  fundição  no  Convento.  Virão  os  Religiosos  que  as- 
sistião  o  mestre  alcançado,  e  confuso :  ficarão-no  elles  muito  mais,  quando 
lhes  confessou  o  erro.  Porque  além  do  tempo,  e  feitio  perdido,  vião-so 
sem  sino  velho,  nem  novo,  nem  modo  com  que  remedear  tamanha  falta 
com  a  brevidade,  que  convinha  em  Convento,  que  vivia  de  esmollas.  N'esta 
perturbação  foi-se  hum  dos  Religiosos  como  inspirado  do  Ceo  á  cova  do 
Santo,  e  pedindo-lhe  com  a  elTicacia,  e  sinlimento,  que  o  caso  obrigava, 
se  compadecesse  da  pobreza  da  Casa,  em  que  vivera,  e  da  desconsolação 
dos  Frades  seus  irmãos,  lança  mão  á  terra,  e  fazendo  alforge  do  esca- 
pulário, e  levando  quanta  pode  colher  n'clle,  entra  polo  meio  dos  Frades 
que  rodeavão  o  fogo,  arremcssa-a  sobre  o  metal,  que  fervia.  Pasma  o 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  'Mlí 

fundidor,  julgando-o  feito  por  género  de  desesperação,  ou  desatino,  gri- 
ta, queixa-se,  acode  aremedear  o  dano,  que  tem  por  certo  da  mistura. 
Mas  eis  que  pasma  de  novo,  porque  vê  ir  empollando,  e  crecendo  o  me- 
tal com  tanta  pressa,  e  abundância,  que  quasi  não  cabe  já  no  vaso,  e 
saltando  de  prazer,  e  espanto,  aíTirma  que  grande  segredo  era  o  d'aquelb 
terra,  que  seu  entendimento  não  pode  penetrar:  mas  qualtjuer  que  seja, 
não  teme  já  falta  no  metal,  inda  que  muito  maiores  forão  as  formas.  E 
assi  aconteceo,  porque  o  sino  ílcou  feito  em  toda  a  grandeza  do  molde, 
e  sobejou  cantidade  de  metal,  que  pesado  pêra  testimunho  do  milagre, 
chegou  a  duas  arrobas  e  vinte  arrates.  E  consideravão-se  no  caso  duas 
maravillias  juntas,  e  ambas  mui  prodigiosas.  Primeira  da  transmutação 
de  barro  em  bronze,  segunda  dá  multiplicação,  e  crecimento  com  tal 
novidade,  que  viesse  a  sobejar  muito,  onde  d'antes  faltava  muito.  O  sino 
está  hoje  vivo,  e  são,  e  serve  no  Convento,  e  vem-se  nelle  claros  sinais 
de  obra  milagrosa.  Porque  se  lhe  enxerga  a  lugares  o  metal  areoso  da 
mistura  da  terra :  e  ao  tanger  faz  hum  som  notavelmente  differente  dos 
outros  sinos :  polo  qual  lie  conhecido  por  toda  a  Cidade,  representando 
a  quem  o  ouve,  a  cada  movimento,  nova  armonia,  hora  hum  tinido  muito 
agudo,  e  esperto,  hora  grosso,  e  grave,  hora  vario  entre  hum,  e  outro: 
e  assi  recreando,  e  cs[)a[itando  faz  lembrança  de  sua  origem. 

Outra  particularidade  assaz  estranha  attribuião  os  antigos  a  este  sino, 
que  a  meu  ver  era  alhea,  e  não  sua.  Contão,  que  em  quanto  sérvio  na 
torre  do  Convento,  que  forão  pouco  menos  de  trezentos  annos,  assi  co- 
mo se  movia,  quando  o  tangião.  levava  juntamente  consigo  a  torre,  e  de 
tal  sorte  a  abalava,  e  embalava,  que  logo  no  pé  fazia  sinal,  e  abertura 
que  podia  receber  o  grosso  de  hum  dedo  polegar,  a  qual  crecendo  em 
proporção  com  a  altura  da  torre,  vinha  a  fazer  no  alto  do  campanário 
tamanha  inclinação,  que  a  quem  a  via  de  fora  causava  espanto  grande, 
e  a  quem  a  exprimentava  em  cima  fazia  medo,  e  fazia  crer  que  se  hia 
ao  chão.  Devisavase  mais  esta  diíTerença  em  tempo,  que  o  Convento  es- 
tava em  pé,  (que,  como  logo  veremos,  foi  derribado  pêra  se  lhe  dar  me- 
lhor sitio),  porque  havia  huma  parede  muito  chegada  á  torre,  com  a  qual 
fazia  a  perspectiva  verdadeiro  juizo  do  muito  que  se  alargava  d'ella.  IIu- 
ma,  e  outra  cousa  vio,  e  provou  o  Infante  dom  Luis,  único  no  nome  em 
Portugal,  e  único  em  excellencia  de  condições  entre  os  Príncipes  de  seu 
tempo.  Passando  por  Coimbra  de  caminho  pêra  Santiago,  levado  de  cu- 
riosidade do  que  lhe  contarão,  sobio  á  torre,  e  mandou  dobrar  o  sino. 


3 10  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DK  S.  DOMINGOS 

Tui  foi  o  cabecear  do  campanário  com  pendores  a  huma,  e  outra  parte, 
que  lhe  pareceo  o  perigo  demasiado :  e  havendo-o  por  indigno  de  sua 
pessoa,  e  bastantes  pêra  a  experiência  poucos  balanços :  pêra  que  ces- 
sassem, levou  da  espada,  e  cortou  a  corda,  que  movia  o  sino. 

Quando  se  tresladou  o  Convento  pêra  o  lugar,  onde  hoje  está,  só  a 
torre  íicou  em  pé  pêra  memoria  ou  d'este  prodigio,  ou  da  antiguidade. 
Não  he  muito  alia,  mas  o  ser  de  cantaria  bem  liada,  e  edifício  firme,  e 
perfeito,  e  sobre  tudo  muito  estreita,  e  delgada,  faz  fácil  de  crer  poder- 
se  abalar  sem  mysterio,  só  com  o  movimento,  e  peso  do  sino,  como 
atrás  contamos,  que  acontecia  â  do  Convento  de  Santarém  (*),  que  foi  causa 
de  se  derribar,  e  levantar  outra.  Se  o  abalo  pendia  do  sino  ser  milagroso 
ver-se-ha  como  teve  torre.  De  presente  serve  em  huma  parede  entre 
casas,  e  não  alta,  onde  se  podem  mal  notar  os  effeitos,  que  descobria  o 
edifício  alto,  e  desacompanhado.  As  reliquias  do  Santo  se  tirarão  do 
baixo,  e  se  levantarão  recolhidas  em  huma  caixeta  de  mármore,  ficando 
de  fora  a  cabeça,  que  se  mostra  aos  devotos,  e  se  leva  aos  enfermos 
com  certeza  de  curas  milagrosas.  De  presente  estão  na  Igreja  do  CoUe- 
gio  de  Santo  Thomas,  (de  que  adiante  trataremos),  em  quanto  se  não 
acaba  a  do  Convento.  O  sitio  he  a  capella  mór,  e  está  a  caixa  embebida 
na  parede  da  parte  do  Evangelho :  e  na  face  esculpido  este  letreiro. 

Frimus  huius  Conventus  Prior  morum  sanctitate,  ac  miraciilorum  glo- 
ria iiisignis  Pelagius  hic  sihis  est.  Obiit  circd  annum  1240.  Por  cima 
parece  hum  vulto  do  Santo  entalhado  em  pedra  com  hum  sino  na  mão 
por  insígnia,  na  basi  tem  huma  letra,  que  declara  o  nome  de  quem  man- 
dou fazer  a  obra,  e  a  causa,  que  foi  hum  milagre  do  Santo  em  beneficio 
do  Autor  d"e!la. 

CAPITULO  IV 

De  algumas  antiguidades  doeste  Convento,  e  como  foi  mudado  pêra  o  sitio 

em  que  hoje  está. 

Porque  se  veja  a  grande  opinião,  que  havia  da  santidade  d'este  Con- 
vento, e  o  respeito,  que  por  toda  a  parte  se  lhe  tinha,  diremos  de  algu- 
mas memorias,  que  achamos  muito  dignas  de  se  não  deixarem  escurecer 
do  tempo.  Presidindo  na  Igreja  de  Deos  o  Pontífice  Innocencio  Quarto 
cometeo  ultimamente  ao  Arcebispo  de  Braga,  e  ao  Bispo  de  Coimbra, 

(.)  L.  2.  c.  3. 


PARTICULAR  DO  REINO  Dt  PORTUGAL  317 

que  lhe  tirassem  huma  informação  do  estado,  em  que  se  achava  o  Reino 
com  o  governo  dei  Rei  dom  Sancho  segundo,  de  que  havia  queixa  geral, 
a  que  queria  acudir,  como  logo  aciidio.  No  hreve  d^esto  conimissão  dá 
o  Papa  por  adjunto  a  dous  tão  graves  Prelados,  e  em  matéria  de  tanto 
peso,  ao  Prior  de  S,  Domingos  de  Coimbra.  Os  originais  delia,  e  dcs 
informações  se  vem  hoje  no  cartório  da  Sé  dç  Braga. 

Particular  devota,  e  bemfeitora  d"este  Convento  foi  a  senhora  dona 
Constança  Sanches,  filha  bastarda  dei  Rei  dom  Sancho  primeiro,  que 
aquella  idade  chamava  Infante,  e  não  era  o  erro  grande,  quando  ás  le- 
gitimas dava  nome  de  Rainhas.  Foi  benção  d'este  Convento  ser  ^  rJido 
de  Princesas,  e  bom  juizo  d'esta  indinar-se  a  huma  casa,  que  tod  era 
feitura  de  suas  hirmans.  Mostra-se  por  seu  testamento,  que  era  o  Prior 
seu  confessor,  e  declara  sem  especificar  o  nome,  que  fez  o  te£> amento 
com  elle,  e  lhe  pedio  o  autorizasse  com  seu  sello,  como  então  se  usava: 
e  entre  os  legados  he  hum  de  sincoenta  livras  pêra  a  casa  de  Coimbra, 
e  trinta  pêra  cada  huma  das  outras,  que  no  Reino  liavia  d'esta  Ordem, 
e  não  era  a  esmolla  curta  pêra  então.  A  valia  das  libras  n'aquelle  tempo, 
polo  que  se  pode  colligir  do  que  escreve  o  Doutor  Duarte  Nunes  de 
LiãoC),  era  cada  huma  cento,  e  sesenta  reis,  (dizemos  n"aquelle  tempo 
porque  os  passados,  e  presentes  nos  insinão  alterarem-se  muitas  vezes 
as  moedas  no  preço,  e  valia  sem  mudança  dos  nomes.)  Faleceo  esta  se- 
nhora no  anno  de  1269.  Está  enterrada  no  Mosteiro  de  santa  Cruz  de 
Coimbra. 

No  anno  de  1360  entrou  em  Coimbra  dom  Vasco,  Arcebispo  de  To- 
ledo, e  demandando  este  Convento,  n'elle  se  aposentou,  e  residio  em 
quanto  viveo,  que  não  foi  muito.  Vinha  desterrado  por  el  Rei  dom  Pe- 
dro, o  cruel,  de  Castella,  ou  fogindo  de  sua  ira.  Piocedeo  com  grande 
exemplo  de  virtude,  e  paciência  cm  seus  trabalhos :  mas  a  sem  rezão, 
e  desgosto  lavrou  por  dentro,  e  abreviou-lhe  a  vida.  Faleceo  em  cabo 
de  dous  annos,  e  mandou-se  enterrar  no  nosso  cemitério.  Em  hum  livro 
antigo  dos  Óbitos  do  Mosteiro  de  Santa  Cruz  ha  huma  memoria,  que  fala 
d'elle  por  estas  palavras. 

Feria  secunda  sele  dias  do  mez  de  Março  Era  M.CCCC.  se  finou  dom 
Vasco  doeste  mundo  Arcebispo  de  Toledo,  o  qual  foi  inviado  do  Reino  de 
Castella  por  sanha  dei  liei,  e  chegou  d  cidade  de  Coimbra,  e  fez  vivenda 
no  mosteiro  de  S.  Domingos  doesta  cidade.   (A  Era  responde  aos  annos 

{']  Dudile  Nunes  de  IJãc  Ciun.  dos  Reis  foi.  13í. 


318  I.IVttO  m  DA  ilISTOUlA  DK  S.  DOMINGOS 

de  Clirislo  de  1.3G2.)  Este  Arcebispo,  hum  mez  antes  de  falecer,  sagrou 
a  Igreja  grande  de  S.  Francisco,  situada  da  oulra  banda  do  rio  sobi"e  a 
margem  d"elle :  e  no  mesmo  dia  sagrou  também  a  bum  Bispo  da  cidade 
de  Orensc,  que  be  em  Galiza,  assistindo  com  clle  em  ambas  as  sacras  o 
Bispo  de  Viseu,  e  dom  Frei  Gil,  Bispo  de  Cirendoni,  que  devia  ser  li- 
íiilar.  Mas  be  força  darmos  bum  grande  salto  de  annos,  pêra  irmos  se- 
guindo o  que  lia  que  dizer  mais  d"este  Convento.  E  temos  primeiro  a 
tresiadação  d"elle  pêra  o  sitio,  em  que  de  presente  tem  mais  nome,  que 
forma  de  Convento.  Sendo  corridos  trezentos  annos  da  fundação,  vierão 
a  ser  tão  grandes  as  encbentes  do  Mondego,  que  acontecia  de  inverno 
estar  o  Convento  muitos  dias  feito  ilba,  e  posto  em  cercn.  Seguirão  an- 
nos invernosos,  continuarão,  e  crecerão  as  agoas  com  novo  mal,  que  foi 
trazeiem  consigo  grande  poder  de  áreas,  e  cegarem  com  ellas  a  madre 
do  rio,  de  maneira,  que  d'onde  antes  corria  tão  fundo,  que  o  sitio  do 
Convento  lhe  ficava  sobranceiro,  e  senhor,  veio  a  igualar  a  corrente  or- 
dinária com  elle,  e  a  força  da  agoa  começou  a  lançar  as  áreas  por  cima 
das  mais  altas  margens,  senhoreando-se  do  campo,  e  entupindo  cerca, 
e  officinas.  E  acontecia  pola  muita  abundância  das  áreas,  sobir  o  rio  a 
tanta  altura  com  qualquer  pequena  enchente,  que  não  só  cobria  os  cam- 
pos, e  alagava  o  Convento,  mas  lançava  por  cima  da  ponte.  Donde  na- 
ceo,  que  temendo-se  ficar  brevemente  vencida  das  áreas,  como  já  se  bia 
somindo  n'ellas,  tratou  a  cidade  de  fazer  com  tempo  outra,  que  be  a 
que  boje  vemos :  e  aflirma-se  que  foi  direitamente  fundada  sobre  a  an- 
tiga, de  que  não  temos  mais  que  a  fama.  E  com  a  podermos  chamar 
nova,  vai  fazendo  já  bom  testimunho  ao  que  dizemos.  Porque  acontece 
em  alguns  dos  arcos  terem  estreita,  e  trabalhosa  passagem  os  mesmos 
barcos,  que  poucos  annos  atrás  passavão  folgadamente  á  vela.  A  causa 
de  tanto  mal  sabida  be,  e  não  está  tão  sem  remédio,  polo  estado  a  que 
tem  chegado,  como  por  ser  negocio  publico,  porque  estes  quasi  era  ne- 
nhum.a  parte  do  mundo  tem  hoje  emparo  ou  valedor,  Chega  a  cobiça, 
ou  a  multidão,  e  necessidade  dos  homens  a  não  deixar  palmo  de  teira, 
que  não  rompa.  Em  tempos  muito  antigos  erão  invioláveis  as  costas,  e 
ladeiras,  que  cabião  sobre  os  rios,  com  medo  do  que  boi?  se  padece,  e 
como  cousa  sagrada  estava  o  cargo  de  se  guardarem  á  conta  dos  melho- 
res do  Reino.  Lembra-me  ouvir  aos  velhos,  que  receberão  dos  mais  an- 
tigos, fora  este  cuidado  em  bum  tempo  do  Infante  dom  Pedro,  que  cha- 
marão da  Alferroubeira,  pola  morte  que  junto  do  buma  o  levou,  Prin- 


PAUTICULAR  DO  HF.INO  DE  PORTUGAL  319 

cipe  de  grande  valor,  inda  que  igualmente  desgraciado.  Faz  perder  os 
campos  muito  largos,  e  muito  proveitosos,  o  querer  aproveitar  montes 
pola  maior  parte  esteriles,  ou  pouco  fructiferos  :  aclião  as  invernadas  a 
terra  bolida,  levão-na  ao  baixo,  e  ficão  despidos  os  altos  até  descobri- 
rem os  ossos,  que  são  as  lageas,  e  penedias  do  centro,  e  assi  ficão  os 
campos  perdidos,  e  os  montes  não  dão  proveito. 

Mas  tornando  ao  ponto,  ajuntava-se  ao  mal  dos  dilúvios,  que  as 
agoas  de  muito  tempo  encliarcadas  deixavão  o  Convento  apaulado :  e 
quando  com  o  verão  vinha  a  enxugar,  era  somente  na  face  da  terra :  e 
ficava  do  interior  lançando  vapores,  que  causavão  graves  doenças.  Yen- 
cia-se  este  inconveniente  com  a  paciência,  e  santidade  dos  Religiosos,  á 
conta  de  não  desempararem  hum  Santuário,  que  fora  morada  de  muitos 
Santos,  e  era  depositário  de  seus  ossos.  Obrigava-os  juntamente  o  res- 
peito devido  a  todos  os  nobres  da  cidade,  cujos  pais,  e  avós  tinhão  con- 
sigo enterrados.  Assi  era  de  ver  o  cuidado,  e  amor,  com  que  toda  a  no- 
breza, e  povo  lhes  acudia,  tanto  que  as  agoas  crecião.  Porque,  como  es- 
tavão  satisfeitos  de  sua  constância,  em  se  fazendo  sinal  com  o  smo,  co- 
mo era  costume,  não  havia  homem  timido,  nem  pobre  pêra  os  socorrer. 
Acudião  como  a  competência  na  força  das  tormentas,  e  muitas  vezes  com 
perigo,  e  reluzia  a  caridade  com  esmollas  gerais,  e  tão  copiosas,  que 
sobejava  provimento  na  casa  pêra  longos  dias,  despois  de  passado  o 
aperto. 

Porém,  quando  veio  poios  annos  de  loiO,  era  já  o  mal  tamanho,  e 
tão  continuo,  que  parecia  tentar  a  Deos  assistirem  mais  em  tal  casa  ho- 
mens sisudos.  Nem  os  cidadãos,  que  muito  o  síntião,  duvidavão  já  em 
ser  força  a  mudança.  Porque  sobre  os  danos  referidos,  começava-se  a 
sintir  outro  mais  temeroso,  que  era  hir  a  continuação  das  agoas  soca- 
vando, e  enfraquecendo  as  paredes,  que  de  seu  não  erão  muito  fortes, 
e  temia-se  huma  ruina  súbita.  Fizerão  relação  de  tudo  a  el  Rei  dom  João 
Terceiro  os  Prelados  maiores.  Era  pai,  e  emparo  de  todas  as  Religiões, 
deu  sua  licença,  e  esmollas  pêra  a  m.udança.  Pedio-se,  e  alcançou-se  ou- 
tra no  Capitulo  geral  do  anno  de  lo4G  celebrado  em  Roma,  sendo  Mes- 
tre Geral  da  Ordem  Frei  Francisco  Romeu.  Com  esta,  sendo  primeiro 
confirmada  polo  Papa  Paulo  Terceiro,  se  fez  a  tresladação  no  mesmo 
anno.  Tinhão  lançado  olhos  a  hum  sitio  na  rua  de  Santa  Sofia,  que  se 
estende  até  a  porta  do  campo,  que  chamão  do  Arnado,  e  fica  todavia  no 
plano  da  cidade.   Agasalhados  aqui  pobremente,  forão  logo  comprando 


320  I.IVRO  III  DA  HISTOIUA  DC  S.   DOMINGOS 

mais  casas,  c  chãos,  ajudando  com  muita  liberalidade,  e  larguezí)  o 
commum,  e  particulares  da  cidade :  e  porque  andava  já  em  pratica  fun- 
dar-se  hum  Collegio  separado  do  Convento,  que  servisse  só  pêra  os  so- 
jeitos,  que  a  Provincia  mandasse  estudar  na  Universidade,  procurou-se 
logo  tamanha  capacidade  de  sitio,  que  fosse  bastante  pêra  Convento,  e 
CoUegio.  Valerão-nos  muito  os  Padres  do  real  Mosteiro  de  Santa  Cruz, 
que  por  sua  grande  religião  fizerão  doarão  graciosa  á  Provincia  de  huns 
chãos,  e  casas,  que  possuião  no  mesmo  posto :  com  a  qual  commodidadc 
ficamos  com  oitenta  braças  em  comprimento  ao  longo  da  rua,  e  d'estas 
se  tomarão  pêra  o  corpo  do  Convento  quarenta,  e  cinco. 

CAPITULO  V 

Do  processo  do  edifício  do  Convento  novo  :  e  da  grande  virtude^  e  parles 
do  Mestre  Frei  Martinho  de  Ledesma. 

Corria  a  obra  de  vagar,  e  com  fraqueza,  porque  faltava  braço  de 
Príncipe,  que  a  tomasse  á  sua  conta,  como  em  tempos  passados.  O  preço 
das  cousas  estava  por  todo  o  Reino  muito  levantado,  e  a  Provincia  não 
tinha  forças  pêra  suprir  tamanha  despeza.  N'este  estado  nos  acudio  o 
Duque  de  Aveiro  dom  João,  neto  do  grande  Rei  dom  João  Segundo,  e 
porque  não  déssemos  por  de  todo  acabada  a  benção  tão  própria  d"estc 
Convento,  tomou  â  sua  conta  parte  da  obra.  Fora  Duque  da  mesma  ci- 
dade o  Mestre  de  Santiago,  seu  pai :  estava-lhe  bem  ter  seu  jazigo  n'ella: 
escolheo  pêra  elle  a  capella  mór  do  novo  Convento :  e  ordenou  algumas 
cousas,  que  sendo  de  muita  piedade  Cliristam  redundão  em  honra,  e  re- 
putação da  casa.  Foi  a  primeira  deixar  cem  mil  réis  de  juro  pêra  três 
Missas  quotidianas  perpetuas.  Instituiu  hum  modo  de  mercearias  pêra 
sete  clérigos  pobres  estudarem  com  doze  mil  reis  a  cada  hum  por  anno. 
Estes  acodem  todos  os  dias  a  dizer  sua  Missa  no  Convento,  e  se  lhes  dá 
guisamento  na  Sacristia.  Deixou  outra  csmolla  pêra  ajuda  de  casamento 
de  treze  orfans,  a  doze  mil  reis  pêra  cada  huma.  Obras  verdadí^ramenle 
reais  huma,  e  outra :  e  he  administrador  d^ellas  o  Prior. 

Era  entrado  por  este  tempo  na  Universidade  pêra  Lente  da  cadeira 
de  prima  de  Theologia,  o  famoso  Doutor,  e  Mestre  Frei  Martinho  de 
Ledesma,  que  sendo  de  nação  Castelhano,  e  filho  da  Provincia  de  Cas- 
lella,  se  encorporou  nesta  de  Portugal,  e  foi  perfilhado  por  este  Con- 


PARTlCULAn    DO    REI.NO   DE  PORTUGAL  321 

vontô  do  Coimbra.  E  como  bom  filho  começou  logo  a  empregar-se  em 
o  servir,  estendendo  o  animo  a  cousas  grandes.  Por  onde  íicamos  obri- 
gados por  dons  títulos  a  tratar  d"elle  n'este  lugar,  primeiro  por  bera- 
feitor  do  Convento,  cuja  historia  temos  entre  mãos :  segundo,  por  filho 
digníssimo  d'elle.  Tinha  o  Mestre  Frei  Martinho  tamanho  animo  pêra 
cousas  do  serviço  de  Deos,  e  de  sua  Ordem,  que  podemos  dizer  erão 
espíritos  Reais.  Porque,  se  alguma  hora  se  virão  estes,  engastados  em 
barro  de  pura  humildade,  e  desprezo  próprio,  foi  n"elle.  Sendo  mui  hu- 
milde, e  pobre  no  trato  de  sua  pessoa,  e  cella,  e  vestido :  e  muito  chão, 
e  igual  com  os  Pieligiosos  ordinários  em  toda  a  conversação,  e  modo  de 
proceder:  por  outra  parte  nas  obras  de  virtude,  subia  tão  alto  com  os 
pensamentos,  que  quasi  n'um  mesmo  tempo  acometeo  edlficio  de  dous 
Conventos  juntos.  ílum  foi  pêra  o  Collegio  de  Santo  Thomas,  que  deixou 
de  todo  acabado,  e  d"elle  faremos  mais  larga  menção  em  seu  lugar  pró- 
prio ao  diante :  outro  pêra  os  Frades,  que  se  mudarão  do  sitio  velho  : 
mas  n'este  não  pode  dar  cabo,  porque  emprendeo  maior  fabrica  do  que 
erão  suas  forças.  Tendo  feito  gasalhado  pêra  os  Frades,  tolerável  pêra 
em  princípios  de  casa  nova,  quiz  começar  a  Igreja.  Engana  o  gosto  de 
edificar,  e  ás  vezes  trasporta.  E  os  Mestres  de  traças,  como  dispõem  de 
bolsa  alhea,  folgão  de  mostrar  habilidade  própria,  e  mysterios  de  archi- 
tectura.  A  traça  começada  a  executar  obriga  a  não  fazer  pé  atrás,  ainda 
que  ameace  impossibilidades.  Tal  foi  a  Machina,  que  fundou  em  grande- 
za, e  perfeição  de  lavor,  que  despendendo  n'ella  muitos  annos  o  que  lhe 
valia  a  cadeira,  (porque  consigo  gastava  pouco),  e  sobre  este  rendimento, 
que  não  era  pequeno,  tudo  o  que  pareceo  devia  contribuir  a  casa  de 
Aveiro  por  rezão  da  capella  mtjr,  cujo  edificio  estava  á  conta  dos  pa- 
droeiros :  em  fim  acabou  huma  vida  bem  larga,  qual  foi  a  sua,  sem 
passar  da  capella  mór.  Mas  a  que  ficou  lavrado  he  obra  de  tanto  pri- 
mor, e  custo,  que  pode  competir  com  as  que  no  Reino  são  mais  lou- 
vadas. O  mármore  he  alvíssimo,  e  mui  fino,  e  a  falta  que  tem  do  menos 
forte,  e  duro,  do  que  se  requer  pêra  obras,  cujo  fim  he  perpetuidade, 
recompensa  bem  com  a  facilidade  de  se  cortar  e  lavrar:  a  policia,  e  de- 
licadeza, e  miudeza  que  se  vê  no  lavor  da  pedraria  parece  traçada  mais 
pêra  pincel  em  pintura,  que  pêra  escopro  em  cantaria.  E  faz  lastima 
grande  a  todos  os  que  vem  tal  obra,  cuidar-se  que  chegará  primeiro  a 
cahlr,  e  acabar  de  desemparada,  que  a  por-se  em  estado  do  prestar,  e 
servir  no  ministério,  pêra  q'io  foi  comeí^ado.  Porqu-^-,  comofalfceo  qnrm 
vGL.  I.  :^i 


3:22  LIVRO  III  DA  HisToniA  Dr:  s.  domingoí; 

lhe  deu  principio,  que  ha  perto  de  cinquenta  annos,  quando  islo  vamos 
escrevendo,  faltarão  também  mãos,  e  espíritos  pêra  a  proseguir,  e  as 
calamidades,  e  mudanças,  que  logo  succederão  no  Reino,  ajudarão  a  ficar 
esquecida.  Assi  ficou  também  o  resto  do  Convento  até  hoje,  informe,  e 
longe  do  devido  remate,  não  só  de  perfeição.  A  renda  da  casa  escassa- 
mente com  a  Sacristia  supre  á  despesa  dos  Religiosos.  Nos  m^oradores 
da  cidade  não  falta  o  animo  pio,  e  caridoso  dos  annos  passados,  mas 
por  desgraça  commum  a  muitos  lugares  grandes  do  Reino,  estão  caídos 
em  pobreza,  e  pola  mór  parte  podem  pouco. 

Tornando  ao  Mestre  Frei  Martinlio,  de  quem  devemos  tratar  com.o 
de  fillio  primogénito  do  Convento  novo,  e  segundo  filho  de  suas  obras, 
pois  elle  o  edificou :  tais  forão  as  suas  espirituaes,  que  deixão,  (como 
dizem),  a  perder  de  vista  todas  as  temporaes,  por  muito  que  fossem 
sumptuosas,  e  magnificas.  Por  obras  de  espirito  contamos  as  de  seu  es- 
tudo, polas  quais  em  seu  tempo  era  chamado  de  todos  os  grandes  Theo- 
logos  poço  de  leiras.  Dão  bom  testimunho  seus  escritos,  com  que  Iionron 
a  Província,  e  toda  a  Ordem.  ímprimio  dous  volumes  sobre  o  Quarto 
livro  do  Mestre  das  Sentenças,  cuja  doutrina  he  mui  seguida  por  solida, 
e  certa:  estimada  por  clareza  de  resoluções,  e  repostas  doutíssimas.  Es- 
creveo  vários  Commentarios  sobre  toda  a  Summa  de  Santo  Thomas,  co- 
mo quem  a  íeo,  e  dícíou  de  cadeira,  e  não  buma  só  vez  poios  muitos 
annos,  que  teve  de  vida.  Forão  obra  de  muita  estima,  se  acabara  consigo 
vestil-a  de  term.os  mais  polidos,  e  melhor  frasi.  Continuou  a  lição,  e  as 
escolas  com  tanta  constância,  que  despois  de  jubilado  não  perdoava  ao 
trabalho,  e  leo  quasi  outro  tanto  tempo.  E  enxergava-se  n'elle,  que  não 
era  respeito  de  mais  renda,  ou  ambição,  e  gloria  vam,  mas  só  virtude, 
e  bom  zelo  Grande  virtude  pêra  onde  havia  tanta  sciencia.  Muitas  pu- 
déramos particularizar  suas,  mas  forrar-nos-ha  trabalho,  e  leitura  contar 
hum  só  acto,  em  que  foi  provado,  e  nos  <leixou  bem  provado,  que  as 
tinha  todas  em  sua  alma,  como  em  tezouro  encerradas.  Governava  este 
Reino  a  Rainha  dona  Caterina  na  menoridade  dei  Rei  dom  Sebastião,  seu 
neto :  desejava  acertar  no  provimento  das  prelacias,  como  cousa  tão  es- 
sencial :  chamou  Frei  Martinho,  fez-lhe  saber  que  o  tinha  escolhido  pêra 
Bispo  de  Viseu,  que  he  huma  cidade  de  sitio  aprazível,  e  bera  rendi- 
mento. Respondeo  com  palavras  singellas,  que  estimava  o  juízo,  mas  não 
a  mercê,  c  constantemente  enjeitou  a  dignidade,  honra,  e  renda,  que 
som  negoccação  nem  cuidado  lhe  entrava  por  casa  :  antepondo  a  quieta- 


PARTICULAR  DO  P.EI^n  DE  PORTUGAL  323 

rão  de  sua  alma  a  todas  as  grandezas  da  terra  tão  suspiradas,  e  tlío 
aneladas  de  todos.  Yiveo  despois  muitos  annos,  e  faleceo  em  boa  ve- 
lhice no  de  1574,  aos  quinze  de  Agosto,  foi  enterrado  na  capella  mór  do 
seu  Collegio,  em  sepultura  baixa,  conforme  a  sua  humildade,  não  a  seus 
merecimentos. 

CAPITULO  VI 

Vida,  e  morte  de  dom  Frei  Vicente  da  Fonseca,  Arcebispo  de  Goa 
Primas  da  índia. 

Filho  d'este  Convento  foi  dom  Frei  Vicente  da  Fonseca,  Arcebispo 
de  Goa,  e  Primas  da  índia  Oriental.  Era  natural  de  Lisboa,  e  de  geníc 
nobre.  Tomou  o  habito  muito  moço.  Pola  viveza  de  engenho,  e  bom  na- 
tural, que  mostrava,  foi  mandado  estudar  no  Collegio  de  S.  Tliomas. 
Acabado  o  estudo,  leo  hum  curso  de  Artes,  e  Filosofia  em  Lisboa,  e 
conseguintemente  Theologia.  Não  ha  maior  estudo  que  o  de  quem  lê : 
esperta  muito  o  juizo  a  obrigação  publica,  e  faz  trabalhar  o  desejo  do 
agradar.  Com  huma,  e  outra  lição  fez-se  em.inente  Theologo,  c  não  me- 
nos eminente  Pregador.  Tinha  grande  agudeza  nos  conceitos,  muita  elo- 
quência pêra  discorrer,  graça  no  representar,  nervo,  e  força  pêra  mo- 
ver. Por  estas  partes  lhe  deu  a  Província  o  grão  de  Presentado.  E 
quando  foi  a  jornada  de  Africa  no  anno  de  1578  entre  os  Religiosos,  que 
o  Provincial  Frei  João  da  Silva  escolheo,  pêra  o  acompanharem,  e  irem 
com  cUe  em  serviço  de  seu  Uci,  que  forão  dos  mais  grados  da  Provín- 
cia, foi  elie  hum.  E  acompanhando  o  exercito  ficou  cativo  dos  Mouros. 
Os  trabalhos  assi  como  aperfeiçoão  a  virtude,  também  crião  entendi- 
mento, e  adelgação  o  engenho.  De  tudo  descubrio  muito  nello  o  cati- 
veiro. Era  continuo  na  pregação  entre  grande  numero  de  fidalgos,  e 
muitos  outros  cativos,  hnns  feridos  ainda  da  batalha,  outros  enfermos 
dos  caminhos,  os  mais  despidos,  e  famintos,  todos  desconsolados.  O  es- 
tado triste  fazia  attenção :  animavão-se  ao  trabalho  com  a  virtude,  e  pa- 
ciência, e  boas  razões  do  Pregador,  e  tratavão  todos  do  Ceo.  Mas  não 
era  menos  ouvido  dos  Judeos,  e  de  seus  Piabinos.  Acudião  estes  a  tirar 
interesse  da  miséria  dos  necessitados,  offerecendo  dinheiro  aos  fidalgos 
com  excessivas  usuras,  que  o  mal  presente  fazia  parecer  caridade.  De 
caminho  ouvião  as  pregações,  e  como  de  ordinário  todos  sabem  as  lin- 
goas  de  Espanha,  porque  as  couservão  des  do  tempo  que  d'el!a  forão 


3ÍÍ  UVIíO  lli  DA  HISTOhU  DS  S.  DOMINGOS 

lançados,  acudião  muitos  obrigados  da  suavidade  da  pratica.  Não  se  des- 
cuidava Frei  Vicente  da  occasião,  tentava  sua  dureza  com  claros  tesli- 
munhos  das  Escrituras,  confundia-os,  e  foi  meio  de  se  converterem  al- 
guns, vendo-se  atados,  e  convencidos  da  rezão.  Também  fez  tornar  em 
si  hum  renegado  de  muitos  annos,  rico,  e  casado,  e  adiantado  em  honras 
entre  os  Mouros.  Era  já  Alcaide,  que  não  ha  em  Africa  mais  grandeza 
em  particulares.  Chamava-se  Ali  Raposo,  nome  composto  do  Africano, 
e  do  Poríuguez,  d'onde  tinha  o  sangue.  A  molher  se  converteo  jcnía" 
mente,  e  recebeo  o  santo  bautismo,  tendo  passado  por  duas  leis,  pri- 
meiro pola  de  Moyses,  porque  era  Judia  de  nacimento,  despois  pola  de 
Mafamede,  e  nella  se  chamava  Çayda.  O  Padre  Frei  Vicente  lho  bauti- 
zou  por  suas  mãos  hum  filho.  Assi  o  conta  Jcronymo  de  Mendoça  na 
historia,  que  escrevco  d'esta  infelice  jornada  (*). 

Sendo  resgatado,  e  vindo  ao  Reino,  foi  ouvido  algumas  vezes  dei 
Rei  dom  Felipe,  que  tinlia  sucedido  a  el  Rei  dom  Anrique.  E  por  eho 
foi  nomeado  por  pregador  de  sua  capella,  e  pouco  despois  por  Arcebispo 
de  Goa,  e  Primas  da  índia  Oriental ;  pêra  onde  se  embarcou  nas  pri- 
meiras nãos  de  viagem,  que  forão  as  do  anno  de  1583.  Chegado  á  índia 
começou  a  entender  no  governo  de  suas  ovelhas  com  muita  inteireza,  e 
prudência,  pregando,  visitando,  e  remedeando  o  que  convinha  com.o  vi- 
gilante, e  cuidadoso  pastor.  Mas  atalhou  o  curso  d'e3te  bom  procedi- 
mento embarcando-se  de  novo  pêra  o  reino  intempestivamente.  As  causas 
publicas  de  tal  resolução  erão,  iiaver-se  por  obrigado  a  aparecer  em  Ro- 
ma a  dar  obediência  pessoal,  e  Canónica  ao  Summo  Pontince,  em  con- 
formidade de  hum  motu  próprio  promulgado  de  próximo  polo  Papa 
Gregório  Decim.o  tertio,  o  qual  dispõem,  e  manda  que  todos  os  Bispos 
a  tempos  certos  facão  a  tal  jornada  a  eíTeito  de  visitar,  e  venerar  as  sa- 
gradas reliquias  dos  Apóstolos,  e  reconhecer  por  suprema  aquelía  Ca- 
deira, e  o  Pontifico  que  nella  reside  por  cabeça  universal  de  toda  a  igreja 
Caíholica.  Mas  linha-se  por  certo  que  esta  rezão  era  cuberta  de  outras 
secretas,  e  muito  importantes  á  sua  consciência.  E  não  podião  deixar  de 
ser  tais  as  que  obrigarão  a  hum  tamanho  Prelado  a  arrepiar  huma  car- 
reira tão  larga,  e  cançada,  e  nunca  passada  sem  muitos  perigos.  Dezia- 
se  por  fora  que  o  fizerão  embarcar,  desgostos  pesados  sobre  jardição. 
Faleceo  no  mar  qunsi  nos  ares  da  pátria,  em  huma  paragem  que  chamão 
a  volta  do  Sargaço.  Suspeiíou-se  do  género  da  doença,  que  fora  causada 

[A  Life.  13.  f.  !I9. 


PÂRTICITAR  DO  REINO  BE  PORTUGAL  32lí 

de  peçonha  negoceada  na  índia,  por  pessoa  que  se  sinlira  da  liberdade 
de  suas  reprensi3es,  e  se  temera  que  fossem  ao  diante  mais  pesadas.  He 
todo  aqueile  Oriente  ferlilissimo  de  simplices  contra  veneno.  De  lá  vem 
as  pedras  de  bazar,  as  de  porco  espim,  os  unicórnios,  e  abadas,  os  co- 
cos de  Maldiva,  o  páo  da  cobra,  e  outras.  Mas  parece-me  que  llie  deve- 
mos por  todos  mui  pouco,  porque  he  muito  maior  a  abundância  dos 
venenos  que  cria :  e  tal  a  sciencia  dos  homens  era  os  compor,  e  tempe- 
rar, que  se  affirma  ha  cozinheiros  que  os  dão  pêra  dias,  e  mezes,  e 
annos  precisos  sem  errar  tiro.  E  o  pior  he  que  recebendo-se  sempre  na 
comida,  não  ha  poder  atinar  com  elles  comendo,  nem  vai  assistência  de 
ministros  que  tomem  salva  ao  uso  antigo  das  mezas  Reais:  porque  se 
não  entende  o  engano  se  não  despois  de  feito  o  mal. 

CAPITULO  Vli 

Do  Padrs  Frei  Tkomas  Pinto  Inquisidor. 

A  mesma  jornada  fez,  mas  com  melhor  remate,  se  bem  com  cargo 
inferior,  outro  fdho  d'esíe  Convento  por  nome  Frei  Thomás  Pinto.  Des- 
pois de  ter  trabalhado  muito  na  Ordem,  e  alcançado  o  gráo,  e  titulo  de 
Preseníado,  a  que  se  não  sobe  de  ordinário  sem  suores,  e  frios  de  mui- 
tos annos,  foi  nomeado  pêra  Inquisidor  da  índia  no  tribunal  de  Goa. 
Embarcou  na  não  Santiago  por  xVbril  do  anno  de  1585,  Era  Capitão 
ffiór  d'esía  viagem  Fernão  de  Jiíondoça,  e  hia  na  mesma  não.  Passado 
com  bom  tempo  o  Cabo  d»  Boa  esperança  (que  he  a  mór  difficuldade 
em  ida,  e  vinda)  forão  encalhar  desastradamente  sobre  os  baixos  que 
chamão  da  Judia,  levados  das  correntes,  e  do  engano  do  Piloto.  Foi  a 
confusão  como  em  sentença  súbita  de  morte,  vendo-se  embarrados  em 
terra  no  meio  do  mar,  e  sem  vista  de  terra,  nem  costa  por  nenhuma 
parte  (novo,  e  miserável  género  de  naufrágio.)  Ajudou  o  terror,  e  des- 
consolação o  ser  de  noite,  e  persuadirem-se  que  não  poderião  chegar  a 
ver  a  luz  da  manham  com  vida.  A  gente  Christam,  e  temente  a  Deos 
amoesíada  do  perigo,  acudio  aos  remédios  santos,  e  últimos  d'alma. 
Mas  era  o  povo  muito,  e  confuso,  e  desanim.ado :  e  tanta  a  pressa  que 
cada  homem  tinha  por  se  confessar,  que  houve  alguns  que  desatinados 
ou  com  o  medo  da  morte,  ou  dos  peccados  começarão  a  fazer  confissões 
publicas,  e  em  altas  vozes.  Alalhou-as  o  inquisidor,  reprendendo,  e  ro- 


326  I.IVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

pando,  c  animando  (*):  e  assentoií-se  no  chapiteo  com  seu  companheiro 
Frei  Adrião  de  S.  Jeronymo,  e  derão-se  tão  bom  expediente  ambos,  e 
liuns  Padres  da  Compan!iia  de  Jesus,  que  antes  de  amanhecer  estava 
confessada  toda  a  gente,  que  passava  de  quatrocentas  e  cinquenta  almas. 
E  aturou  todo  este  trabalho  o  Inquisidor  com  estar  juntamente  padecen- 
do gravíssimas  dores  de  huma  ferida,  que  na  mesma  noite,  e  conflicto 
recebeo  na  cabeça,  de  hum  aparelho,  que  cahio  da  entena,  a  que  por 
então  não  soube,  nem  pode  dar  outro  remédio,  mais  que  cobril-a,  e 
;;pertal-a  com  as  mãos.  E  porque  não  era  tempo  de  buscar  alivio,  nem 
(lescançar,  quando  cada  hora  cuidavão  ser  sorvidos  do  mar,  gastarão  o 
que  restava  da  noite  até  poía  manham  em  fazer  praticas,  e  animar  a 
gente  a  se  conformar  com  o  que  Deos  era  servido.  Entre  tanto  quietou 
?ium  pouco  o  mar,  e  o  vento,  que  tudo  perseguia  os  pobres  naufragan- 
tes,  e  foi  descobrindo  a  luz  do  dia  aos  olhos  ao  miserável  estado  em 
que  estavão.  Tratou  o  Capitão  mór  Fernão  de  Mendonça  de  sua  salva- 
ção no  esquife  da  náo,  e  embarcou-se  com  algumas  pessoas  de  pouca 
sorte.  ProcLirarão  fazer  o  mesmo  no  batel  alguns  fidalgos,  e  outra  gente 
de  calidade.  Pêra  isto  poder  ser  com  ordem,  e  quietação,  era  necessá- 
rio tomar  as  armas  a  muitos,  que  d'elias  se  tinhão  apercebido  fazendo 
conta,  que  lhe  vaierião  pêra  alcançar  lugar  por  força  em  qualquer  em- 
]>arcação,  que  se  ordenasse,  quando  de  grado  lhe  não  fosse  dada.  Era 
tão  grande  o  respeito,  que  entre  todos  se  tinha  ao  Inquisidor,  que  só 
(relle  fiou  o  Capitão,  que  foi  eleito  pêra  esta  viagem,. (chamava-se  Duarte 
de  Mello),  que  poderia  acabar  alguma  cousa  com  os  armados.  Encomcn- 
dou-lhe  o  cargo,  e  succedeo,  como  o  imaginou.  Porque  se  houve  com  el- 
les  por  tão  bom  termo,  que  todos  se  deixarão  vencer,  e  huns  entrega- 
vão  as  armas,  e  outros,  que  primeiro  refusavão,  pondo-lhes  o  Padre  a 
mão,  não  se  atrevião  a  negar-lh"as.  De  toda  a  gente,  que  temos  dito 
não  coube  lugar  no  batel,  mais  que  a  cinquenta,  e  tantas  pessoas.  Não 
foi  inencs  im.portante  o  cargo,  que  aqui  se  deu  ao  Inquisidor  despois 
de  embarcados.  Era  o  mantimento,  que  se  pode  ajuntar  n"aquelle  aperto 
tão  pouco,  que  se  faltara  dispenseiro  religioso,  e  prudente,  estava  certa 
liuma  nova,  e  mais  desesperada  perdição,  qual  lie  a  da  fome.  Este  se 
entregou  ao  Inquisidor,  e  da  quantidade  com  que  cada  hum  se  conten- 
tava, entenderemos  o  pouco  que  se  meteo  no  batel  pêra  todos.  Era  ra- 
ção do  dia  inteiro,  (chama-Ihe  a  lingoagem  do  mar,  regra,  e  cabia-Ihe 

(•)  Mar.osl  Gcdinho  Cartlcso  na  relação  d'esla  niio. 


.  PARTIGULAn  DO  REINO  DE  POUTUGAL  3^7 

aqui  bem  o  nome  pola  estreiteza,  cora  que  era  regrada),  tanto  biscouío, 
quanto  se  tomava  com  Imma  mão,  e  iium.a  talhada  de  marmelada,  que 
embarcando-se  no  Reino  pêra  remédio  de  enfermos,  veio  a  servir  de 
mantimento  de  sãos :  e  dava-se  mais  bum  copo  de  vinho  não  grande,  e 
muito  aguado. 

Começarão  sua  navegação  em  demanda  da  costa.  Tocou  logo  novo 
trabalho  ao  mesmo  Padre,  que  fui  ter  espertos  os  marinheiros,  que  bião 
ás  escotas  da  vela  do  batel:  o  governo  d"ellas  importava  tanto  na  nova 
viagem,  que  a  haver  qualquer  descuido,  tinhão  a  perdição  certa,  porque 
o  batel  não  tinha  leme,  e  só  as  escotas  meneadas  com  cuidado,  e  humas 
pás  lançadas  por  popa,  fazião  o  que  o  leme  havia  de  fazer,  quando  o 
houvera.  Was  não  havia  homem,  que  deixasse  de  estar  mui  alcançado  do 
sono,  e  necessitado  de  repouso,  polo  muito  que  a  todos  tevera  espertos 
na  náo  o  medo  da  morte,  e  o  cuidado  do  remédio :  com  tudo  em  igual 
necessidade,  e  trabalho  aceitou  o  nosso  P.  cortar  por  si,  e  vigiar  elle,  e 
fazer  vigiar  os  que  governavão.  Assi  íiavegavão,  porém  via-se  claramente 
que  se  fazia  pouco  caminho,  porque  o  batel  de  sobrecarregado  da  mui- 
ta gente,  que  levava,  não  surdia,  e  segundo  o  pouco  mantimento,  que 
havia,  estava  cerío  novo  género  de  naufrágio,  se  não  se  dava  ordem  pêra 
aliviar  a  embarcação,  e  se  navegar  mais  espedidamente.  Tomou-se  con- 
selho: foi  a  resolução  perecerem  alguns  por  não  acabarem  todos,  eexe- 
cutou-se  logo.  Lançavão  olhos  ao  que  parecia  mais  inútil  ou  por  idade, 
ou  por  forças,  ou  por  outras  considerações.  Mandavam-no  subir  sobre 
o  bordo,  punha-lhe  outro  as  mãos,  trabucava,  e  ficava  sumido  nas  agoas 
(horrenda,  e  lastimosa  morte.)  Assi  aliviarão  de  carga,  e  pouparão  co- 
mida. 

Mas  não  se  pode  deixar  em  silencio  por  honra  da  caridade  fraternal 
o  que  succedeo  nesta  embarcação  a  dous  hirmãos.  Cahio  a  sorte  de  ir 
ao  mar  sobre  o  mais  veliio,  aparelhava-se  pêra  a  execução  da  sentença : 
acudio  o  outro  com  huma  estranha  proposta,  dizendo  que  mais  rezão 
parecia  morrer  elle,  que  era  moço,  que  não  o  condemnado,  que  por  mais 
velho  era  emparo,  e  remédio  de  huma  mãi,  e  irmãs,  que  ambos  tinhão, 
e  tocava  a  muitos  sua  perda.  Quebrou  corações  com  espanto,  e  piedade, 
o  valor,  e  despreso  da  morte,  onde  se  hia  comprando  tão  caro  o  fogir 
d'ella.  iVIas  foi  aceitada  a  rezão,  e  o  partido:  e  logo  lançado  ao  m.ar  em 
lugar  do  irmão :  do  qual  não  consta  que  pêra  tal  Pylades  íizesse  se  quer 
alguma  arremetida  ou  cumprimento,  ou  geito  de  Orcstes,  mais  que  com 


328  LIVRO  m  DA  HISTORIA  DS  S.  DOMiNGOÍ 

lagrimas,  e  palavras  tristes,  que  ciistão  pouco  (*).  E  não  ho  de  maravilhar, 
porque  huma  boa  amizade,  qual  foi  a  daquelles  Gregos,  vence  a  iodo 
parentesco:  e  na  idade  presente  se  acerta  haver  fineza  entre  parentes, 
como  aqui  vimos,  acha-se  poucas  vezes  igual  respondencia,  inda  que  seja 
entre  irmãos,  e  entre  pais,  e  filhos,  conforme  ao  que  disse  o  outro,  tanto 
tempo  ha:  Fratrum  quoque  gralia  rura  est  (**),  Acudio  Deos  polo  bom  espi- 
rito do  moço,  deu-lhe  forças,  e  alento  pêra  seguir  nadando  o  barco  mais 
de  ires  horas,  vencendo  arrebatadas  correntes,  e  chamando  sempre  por 
Jesus,  e  por  sua  bendita  Mãi:  e  no  cabo  d'elias  moveo  a  piedade  os 
companheiros,  e  foi  recolhido.  Justo  he  que  não  fique  ignorada  sua  na- 
tureza :  erão  nascidos  em  Lisboa. 

A  cabo  de  oito  dias  ferrarão  terra  na  costa  brava  da  Etiópia  Orien- 
tal, habitada  de  bárbaros,  gente  negra  de  cor,  e  de  cabello  revolto,  o 
nome  entre  nós  he  Cafraria.  Livres  dos  medos  do  mar,  começarão  a  ex- 
primentar  os  males  da  terra.  E,  porque  lhes  não  durasse  muito  o  gosto 
de  se  verem  n'ella,  no  mesmo  dia  se  virão  salteados  de  huma  nuvem 
escura  de  Cafres,  e  forão  todos  despojados  d'essa  pouca  roupa,  que  tra- 
zião  sobre  si,  e  levados  cativos.  E  o  Inquisidor,  porque  fez  resistência 
a  largar  o  vestido,  obrigado  da  honestidade  religiosa,  ficou  com  duas 
feridas  de  azagaia.  Aqui  padecerão  estrema  miséria :  de  fomes  deses- 
peradas, de  Sol  que  abrazava  de  dia,  de  frio  que  enregelava,  e  entorpe- 
cia os  membros  de  noite:  e  chegarão  a  termos  com  tal  tratamento  junto 
a)  quo  trazião  do  mar,  que  onde  pareceo  se  abria  caminho  de  algum 
(iescanço,  adoecerão  os  mais,  e  morrerão  muitos :  e  tais  esíavão  todos 
de  fracos,  e  deslapidados,  que  o  Padre  Frei  Adrião  de  S.  Jeronymo  ti- 
rou ás  cosias  da  prizão,  em  que  estavão,  onze  defuntos,  e  por  sua  mão 
os  enterrou,  sem  haver  homem,  que  tevcsse  forças  pêra  lhe  ser  compa- 
nheiro no  trabalho. 

Não  he  rezão  ficar-nos  por  dizer  o  meio  com  que  se  salvarão  outros 
da  náo,  porque  redunda  em  honra  de  Deos,  a  de  sua  Santa  Cruz,  se 
bem  parecia  aibeio  d'esta  escritura,  e  da  obrigação,  que  seguimos.  Fí.ú 
o  caso:  que  apartados  da  náo  o  batel,  e  esquife,  como  dissemos,  entre  o  povo 
que  ficou  a  pé  quedo  esperando  a  morte,  que  seria  na  hora,  que  a  força 
do  mar  acabasse, de  destroncar  os  membros  da  cuberta  da  náo,  em  que 
se  sustentava,  animarão-se  quinze  ou  deseseis  homens  com  o  soíapiloto, 

(*]  Cie.  fie  amicit. 
(..j  Ovid.  Melkiu.  !. 


PARTICULAR  DO  RKINO  DK  PORTUGAL  329 

e  juntando  algumas  taljoas,  e  oiUra  madeira  o  menos  mal  quopuderão, 
composerão  huma  jangada,  (assi  cliamão  os  marinheiros  esta  junta  de 
madeira  sem  ordem  nem  forma  do  embarcação.)  Saltarão  n'ena  os  aven- 
tureiros, parecendo  aos  que  ficavão,  que  não  era  mais  remédio  que  dila- 
tar o  fim  da  vida  algum  pouco,  ou  ir  buscar  a  morte  afastados  d"aquelle 
infelice  posto.  Nem  era  maior  a  confiança  dos  que  se  arriscarão.  Por- 
que a  jangada  com  peso  da  gente  bia  toda  por  ba;xo  da  agoa,  e  sem 
nenhum  remédio  pêra  tomarem  repouso :  e  o  mantimento  era  huma  pêra 
era  conserva  por  dia  a  cada  companheiro,  e  menos  de  meio  quartilho 
de  vinho  temperado  com  agoa  salgada.  Desesperada  determinação,  e 
que  só  podia  ter  remédio  bafejada,, como  foi,  do  favor  Divino.  Levava 
hum  dos  em.barcados  ao  pescoço  huma  pequena  jeliquia  do  Santo  lenho 
da  Vera  Cruz,  lançou-a  ao  mar  com  fé  de  bom  Christão,  atada  em  hum 
cordel  por  popa  da  jangada.  Com  tal  leme  forão  navegando,  ou  nadando 
milagrosamente  treze  dias,  até  darem  em  terra.  E  porque  a  fome,  e  o 
trabalho,  e  a  dilação  do  tempo  os  não  fizesse  desesperar,  quiz  o  mise- 
ricordioso Deos  mostrar-lhes,  que  os  levava  á  conta  da  sua  santa  Cruz, 
com  huma  conhecida  maravilha.  He  cousai  certa,  que  cinco  dias  antes 
que  chegassem  á  costa,  tanto  que  se  cerrava  a  noite,  os  acompanhava 
hum^a  musica  de  notável  suavidade,  em  vozes  como  de  mininos,  das  quais 
com  distinção  se  deixava  entender  o  principio,  e  toada  ordinária  da  dou- 
trina Christã,  que  os  mininos  aprendem,  e  cantão  nas  escolas  de  Portu- 
gal: Todo  pel  Christão  he  mui  obrigado  a  ter  devação  d  Santa  Cruz,  etc. 
Tanto  que  tocarão  terra  perderão  a  companhia  dos  músicos,  e  não  acha- 
rão a  Santa  relíquia,  que  ao  parecer  elles  a  devião  levar.  Publicou-se 
a  miaravilha,  despois  que  em  Moçaml)ique  se  vierão  ajuntar  todos  os  que 
escaparão  da  perdição ;  e  o  Inquisidor  inquirio  juridicamente  os  da  jan- 
gada, e  achou  sem  discrepar  nenhum,  que  fora  cousa  certa,  e  verdndei- 
ra:  e  per  tal  a  publicou,  pêra  gloria  d*aquellc  bom  Senhor,  que  doeste 
lenho  banhado  com  sangue  tinha  n'outro  tempo  feito  barca,  e  remédio 
pêra  salvar  o  mundo  inteiro.  E  não  era  muito  virem  agora  Anjos  acom- 
panhar com  celestial  melodia  aquella  parte  d'ell8,  e  consolar,  e  alegrar 
os  aííligidos,  que  por  tal  meio  buscavão  vida,  e  salvação.  O  Padre  Frei 
Thomas  passou  com  seu  companheiro  á  índia,  onde  viveo  alguns  annos 
servindo  seu  cargo  em  Goa,  e  jaz  enterrado  no  Capitulo  do  nosso  Con- 
vénio da  mesm.a  cidade.  Frei  Adrião  com  amor  da  pátria  teve  animo 


330  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

pera  exprimentar  segunda  vez  os  medos  do  Oceano,  e  nella  veio  a  lo- 
grar O  resto  da  vida. 

CAPITULO  VIII 

Do  gravide  cuidado,  «?  ííolemnidade,  com  que  na  cidade,  e  Convento  de  S. 
Domingos  de  Coimbra,  se  celebrão  as  festas  do  Santo  Itosario.  Re  ferem- se 
dous  milagres  snccedidos  de  próximo  por  intercessão  da  Virgem. 

Ainda  que  em  todas  as  terras  grandes  deste  Reino,  e  principalmente 
onde  lia  Conventos  da  Ordem  de  S.  Domingos,  he  servida  com  particu- 
lar davação  no  titulo  do  Santo  Rosário  a  Virgem  mãi  de  Deos:  a  cidade 
de  Coimbra  de  alguns  annos  a  esta  parte  se  tem  avantajado  era  a  vene- 
rar, e  festejar  com  grande  estremo,  procurando  todos  os  estados,  e  ca- 
lidades  de  gente,  como  á  competência,  ter  parte  em  seu  serviço.  Assi  está 
a  Confraria  rica  de  prata,  e  ornamentos,  e  acompanhada  sempre  dos  me- 
lhores da  terra,  e  as  festas  são  celebradas  com  pompa,  e  gastos  extraor- 
dinários. Do  que  a  Virgem  sagrada,  como  fonte,  que  he  de  piedade,  mos- 
tra agradar-se  recompensando  taes  obras  com  benefícios,  e  favores,  que 
fdz  á  terra,  e  a  seus  contornos,  obrando  a  meudo  claros,  e  patentes  mi- 
lagres, que  são  causa  de  se  acender  de  novo  a  devação:  e  a  Senhora 
também  se  obrigar  a  lhe  procurar,  e  alcançar  de  seu  bemdito  filho  no- 
vas misericórdias.  E,  porque  o  encubrir  as  mercês  do  Rei,  além  de  ser 
ingratidão  de  quem  as  recebe,  he  também  oííensa,  que  se  faz  á  sua  gran- 
deza, e  parece  hum  género  de  opposição,  e  encontro  á  corrente  de  sua 
liberalidade :  faremos  relação  n'este  lugar  de  dous  milagres,  com  que  de 
fresco  tem  mostrado  esta  Senhora,  que  não  engeita  os  bons  desejos  dos 
grandes,  e  ricos,  nem  os  humildes  rogos  dos  pobres,  e  pequeninos.  Se- 
rá isto  huma  oíTerta  de  ânimos  agradecidos  feita  de  parte,  e  em  nome 
da  mesma  cidade,  pois  outro  serviço  lhe  não  pôde  fazer  a  nossa  penna, 
visto  como  pera  com  Deos  he  officaz  oração,  e  petição  o  saber-lhe  ren- 
der as  graças  de  seus  benefícios  quem  os  recebe:  e  ainda  com  o  mun- 
do he  ai'te  de  pedir,  e  manha  de  grangear,  hum  encarecido  agradeci- 
mento. Mas  não  me  culpe  ninguém  de  escrevermos  só  dous  milagres, 
quando  são  muitos,  e  muito  averiguados  os  que  se  contão.  Porque  a  pu- 
reza, e  verdade  da  historia,  cpie  seguimos,  não  admite  mais,  que  aquelles 
que  achamos  aprovados  polo  Ordinário,  como  são  estes  dous,  e  como 
puderão  ser  outros  muitos,  se  houvera  nelles  o  mesmo  cuidado. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  331 

No  anno  de  IGlí  cahio  a  festa,  que  chamão  da  Rosa,  que  se  costu- 
ma fazer  em  iMaio  aos  vinte  sinco  do  mez.  No  mesmo  dia  sucedeo,  que 
luim  António  João,  oíTicial  pedreiro,  conhecido  por  iiomem  bem  acostu- 
mado, c  de  bom  viver,  teve  huma  briga  acidental  com  outro  homem, 
no  terreiro  de  santa  Cruz.  Da  qual  resultou  fazer-lhe  o  contrario  tiro 
com  huma  grande  pedra,  que  colhcndo-o  em  cheio  no  meio  dos  peitos, 
foi  tamanha  a  impressão,  c  abalo,   que  dentro  sintio,  que  se  deu  por 
morto,  e  foi  correndo  ao  GoUegio  de  Santo  Thomas  pedir  confissão.  De- 
via ser  devoto  de  nossa  Senhora  do  Rosário,  pois  havendo  em  meio  ou- 
tros mosteiros,  passou  por  todos  a  buscar  o  dos  seus  Frades.  Entrando 
no  coliegio,  lançou-se  no  meio  do  Geral  da  Theologia,  que  achou  aber- 
to, com  a  respiração  tão  apertada,  e  a  voz  tão  débil,  que  julgarão  os  Pa- 
dres que  morria.  Perguntado  polo  mal,  que  trazia,  contava  que  huma 
pedrada,  não  de  mão  de  homem,  nem  de  Gigante,  mas  disparada  a  seu 
parecer  de  huma  bombarda,  lhe  dera  sobre  o  peito,  e  lhe  tinha  quebra- 
dos, e  moídos  todos  os  ossos  dentro,  segundo  o  que  em  si  sintia.  Des- 
cobrirão-lhe  os  p.eitos :  fazia  fé  ao  que  dezia  grande  elevação  cuberta  de 
nódoas  negras,  sinais  da  bataria,  e  contusão  da  pedra,  e  nella  tamanho 
sintimenío,  que  não  sofria  chegar-se-lhe  com  a  mão.  F.  era  indicio  de 
maior  dano,  e  dano  interior,  que  pola  boca,  e  narizes  lançava  sangue. 
Como  foi  confessado,  acudio-lhe  hum  Padre  com  humas  rosas  bentas 
d'aqueíle  dia,  dando-lhe  humas  a  beber  com  agoa,  lançando-lhe  outras 
polo  pescoço,  c  peitos.  Na  mesma  liora,  á  vista  de  muitos  padres,  que  o 
acompanliavão,  tornou  em  si,  como  se  sahira  de  algum  grande  acidente, 
levantou-se  sem  pena,   e  alegre,  dizendo  que  estava  são,  c  que  vira  a 
Senhora  d"aquellas  rosas  com  hum  rosário  de  contas  na  mão,  (erão  pala- 
vras formais  do  ferido),  que  lhe  queria  ir  dar  graças  á  Igreja.  Espanta- 
dos 03  Religiosos  de  tamanha  novid;ide,  e  tão  súbita  convalescencia, 
porque  em  sinal  d'ella  batia  nos  peitos  com  muita  força,  onde  d'antes 
não  consintia  tocar-lhe  levemente  a  mão,  quizerão  ver-lhos  de  novo.  c 
acharão  toda  a  inchação  abatida,  e  o  que  não  podia  ser  cm  instante  sem 
milagre,  as  nódoas,  e  pisaduras  desaparecidas,  como  se  nunca  as  tevera, 
e  são  de  todo  se  foi  da  igreja  pêra  sua  casa,  que  tinha  na  rua  nova,  fre- 
guezia  de  Santa  Justa.  Forão  testimunhas  do  trabalho,  c  afílição  pri- 
meira, e  da  saúde,  que  logo  seguio,  todos  os  Frades  Collegiais,  e  por 
lhes  parecer  o  milagre  famoso  tratarão,  que  se  autenticasse.  Feitas  as  di- 
.  ligencias  diante  do  Bispo  dom  Afonso  de  Castelbranco,  elle  o  deu  por 


332  LIVI\0  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGdS 

Terdadeiro  por  seu  despacho,  publicado  em  quatro  de  Dezembro  do 
mesmo  anuo,  com  licença  pêra  se  poder  pregar  ao  povo. 

De  íiro  do  Ceo,  e  mão  invisível  estava  chegada  ás  portas  da  morte 
na  mesma  cidade  hum.a  Anna  João,  molher  de  Maneei  Fernandes,  hor- 
telão da  freguesia  de  S.  João  de  santa  Cruz.  Era  o  mal  esquinencia  de 
tão  má  calidade,  e  tão  grossa  inchação  interior,  que  nem  agoa  podia 
passar  pêra  baixo :  e  bastava  a  falta  de  mantença  pêra  a  matar  sem  os 
accidentes  da  infirmidade.  Assi  falava  já  tão  mal,  que  quasi  ninguém  a 
entendia.  Erão  passados  sete  dias  sem  melhorar,  desconfiarão  o  Medico, 
e  Cirurgião  :  e  dando-a  por  morta,  mandarão,  que  se  lhe  acudisse  como 
Sacramento  da  unção,  e  não  tratarão  da  santa  Communhão,  polo  res- 
peito que  dissemos  da  oppressão  da  garganta.  Foi  ungida  hum  Sábado 
onze  dias  do  mez  de  Maio  do  anno  de  1619.  Era  ao  Domingo  a  festa  da 
Rosa.  Disseião-no  á  enferma  algumas  pessoas,  que  a  vigia  vão,  como  a  quem 
morria,  lembrando-lhe  que  n^aquelia  hora  se  estava  fazendo  a  festa  de 
Nossa  Senhora  do  Rosário ;  que  se  encomendasse  a  ella,  que  poder  ti- 
nha pêra  lhe  valer  em  todo  aperto.  Levantou  ella  os  olhos  a  hum  reta- 
bolo  da  Yirgem,  que  tinha  defronte  pendurado  na  parede,  e  falando  com 
o  coração,  e  com  o  geito  dos  olhos,  e  sembrante,  porque  a  lingua  es- 
tava presa,  e  impossibilitada,  encomendava-lhe  sua  necessidade  com  mui- 
ta fé.  Não  dilatou  a  Senhora  suas  misericórdias  a  tal  oração.  Repentina- 
mente arrebentou  a  postema,  e  lançando-a  diante  de  todos  pola  boca, 
ficou  tão  viva,  e  senhora  das  operações  de  são,  que  logo  falou  clara- 
mente, e  comeo  com  gosto.  E  pêra  que  se  visse  ser  a  saúde  mi- 
lagrosa, aconteceo  caso  igualmente  espantoso,  e  foi  que  a  pobrezinha  ti- 
nha huma  criança  de  peito,  quando  adoeceo:  e  porque  logo  se  lhe  secou 
o  leite,  estava  já  fora  de  casa.  Mas  na  hora  que  a  Senhora  foi  servida 
dar-lhe  saúde,  como  ella  não  faz  mercês  de  meãs,  senão  em  tudo  per- 
feitas, tornou-lhe  juntamente  o  seu  leite,  e  com  tanta  abundância,  que 
se  mandou  buscar  a  criatura  pêra  lhe  despejar  os  peitos.  Estava  o  mi- 
lagre patente :  pareceo  rezão  calificar-se  juridicamente,  perguntarão-se 
testimunhas,  foi  liuma  o  Medico,  que  jurou  lhe  não  passara  pola  mão, 
despois  que  curava,  doença  tão  perniciosa :  nem  vira  saúde  mais  mila- 
grosa. Assi  foi  julgado  por  certo,  e  verdadeiro  milagre  por  sentença  do 
Doutor  João  Pimentel,  Vigário  geral  do  Bispado  em  Sede  vacante  aos 
cinco  de  Outubro  do  mesmo  anno  de  1619. 


PÁniICULAR  Btt  R£kNO  Dli  PORTCGAL  331 


CAPITULO  IX 

Da  origem,  e  principio  do  Convénio  da  cidade  do  Porto :  s  das  cousns 
que  houve  pêra  ss  aceilar  pola  Provinda 

íle  o  Convento  da  cidado  do  Porto  terceiro  em  tempo,  e  ordem  do 
antiguidade  d.js  que  temos  em  Portugal:  mas  o  primeiro,  que  foi  pedi- 
do por  conselho,  e  decreto  de  Bispo,  e  Cabido  no  Reino.  E  redundando 
isto  em  honra  da  Religião,  não  são  de  menos  importância  pêra  o  credito 
dos  filhos  as  razões,  porque  se  moverão  a  pedil-o.  Reinava  eia  Portu- 
gal havia  quatorze  annos  dom  Sancho  Segundo,  por  morte  de  Affonso 
Segundo  seu  pai,  que  faleceo  no  de  1223  como  atrás  mostramos:  e  pro- 
cedendo em  seu  governo  com  o  descuido,  e  froxidão  que  dissemos,  e 
largando  toda  a  administração  dos  negócios  nas  mãos  de  poucos  ho- 
mens depravados  nas  consciências,  infiéis  ao  Rei,  que  os  honrava,  ini- 
migos da  Republica,  que  os  soíTria,  acabou-se  de  entender  por  toda  a 
terra  a  falta  da  cabeça,  e  o  desm.ancho  dos  que  a  governavão:  que  o  Rei 
não  era  senhor  de  si,  que  os  privados  não  erão  já  privados  com  sojei- 
ção,  se  não  absolutos  mandadores  com  império,  e  superioridade:  e  co- 
meçarão, como  he  ordinário,  acrecer  vicios,  e  maldades  por  todo  o  Reino, 
e  a  desaforar-se  viciosos,  e  insolentes  por  todas  as  cidades,  e  terras 
grandes:  cometião-se  violências  publicas  contra  grandes,  e  pequenos, 
contra  seculares,  e  Ecclesiasticos,  nenhuma  se  castigava.  Nem  havia 
justiça,  nem  quem  se  atrevesse  a  faze-Ia.  Porque  os  aggressorcs  procu- 
ravão  ter  hum  amigo  em  casa  dos  validos,  e  isso  bastava  pêra  absolvi- 
ção, e  segurança,  e  pêra  com.etterem  novos  insultos.  E  os  validos  tinhão 
por  razão  de  estado  sustentar  os  atrevidos,  e  desalmados,  pêra  com  elles 
como  gente  sua  se  fazer  respeitar,  e  temer.  Não  faltavão  homens  de  bom 
espirito,  que  sinlião  o  mal,  e  dezejavão  alalhal-o:  mas  a  huns  fazião  an- 
teparar interesses  próprios,  em  outros  não  havia  brio  pêra  cortarem  po- 
las  dependências,  que  tinhão  com  os  que  mandavão,  ou  por  rezão  de 
sangue,  ou  de  amizade.  Outros  mais  livres,  que  se  atrevião  a  chegar 
a  el  Rei,  e  propor-lhe  sem  rebuço  as  desordens,  e  falta  de  jiístiça,  erão 
bem  ouvidos,  em  quanto  fallavão;  passada  aqiiella  hora,  ficava  tudo  como 
dantes.  Porque,  se  bem  era  capaz,  e  dócil  pêra.  entender  o  que  se  lho 
dezia,  nenhuma  forra  tinha  pêra  executar  o  que  entendia.  Assi  furão cre- 


334  I.IVUO  111  DA  HISTORIA  DE  S.   DOMINGOS 

cendo,  e  encapeliando  mares  de  misérias,  e  calamidades  em  tanto  extre- 
mo, qne  d^ellas  mesmas  veio  a  arrebentar  o  remédio,  chamando  o  Reino 
ao  Conde  de  Bolonlia  pêra  restaurador  d'elle,  como  deixamos  contado. 
Mas,  emqaanto  este  se  não  buscava,  por  ser  commum  de  todos,  e  por 
isso  muito  vagaroso,  procurava  a  gente  zelosa  acudir  em  particular  cada 
hum  em  sua  cidade  com  os  meios,  e  cura,  que  o  bom  discurso  offere- 
cia,  e  sua  posse  abrangia.  Isto  aconteceo  ao  Bispo  da  cidade  do  Porto 
dom  Pedro.  Sintia  com  zelo,  e  animo  de  bom  Pastor  as  desaventuras 
que  a  cada  passo  lhe  ferião  as  orelhas,  e  alma,  e  muitas  vezes  os  olhos, 
sem  as  poder  remedear:  imaginou  que  poderião  ser  de  proveito  em  meio 
de  tanta  devassidão,  e  maldade  os  exemplos  vivos  de  virtude,  e  santi- 
dade, que  ílorecião  nos  Religiosos  de  são  Domingos,  e  se  publicavão 
por  toda  a  parte  com  louvor,  juntando-se  com  sua  pregação,  e  doutrina 
era  que  se  sabia,  erão  continues,  e  incansáveis.  Gommunicou  o  pensa- 
mento com  seu  Cabido,  pareceo  a  traça  acertada  polo  que  tinha  de  res- 
peito ao  Geo,  porque  só  as  tais  são  o  verdadeiro  antídoto  dos  males  da 
terra.  Havia  novas,  que  n-aquelle  anno,  (entrava  o  de  1237),  celebravão 
os  nossos  Frades  Capitulo  Provincial  na  cidade  de  Burgos,  e  era  Provin- 
cial o  Santo  Frei  Gil  conhecido  por  natural  do  Reino,  e  por  fama  de 
suas  virtudes,  que  erão  já  mui  notórias.  Ajudou  tudo  a  se  darem  pressa 
em  despachar  quem  fosse  a  elle  com  o  requerimento.  Achou-se  o  raes- 
sageiro  a  tempo  em  Burgos,  c  encaminhado  poios  Frades  deu  sua  carta 
no  Diíllnitorio:  a  qual  sendo  n'elle  aberta,  vio-se  que  continha  o  se- 
guinte : 

VeneraMlibus  viris  et  in  Christo  chnrissimis  Priori  Prouinciali^  et 
Diffinitorihus,  totique  Capitulo  fratrum  Prcedicdorum  Surgis  celebrando, 
Petrus  Bei  miseratione  Portuensis  dictus  Episcopus  fmalem  in  Dei  ser- 
uilio  perseverantiam  cum  saltite  etc.  Vergenle  ad  occidnum  die,  quando 
inualescente-iniquitats,  non  tam  multorum  refrigescit,  sed  patins  extingni- 
tur  charitas :  nec  poterit  ignis  ille,  quem  vetiit  Dominus  in  terram  mit- 
tere,  vt  vehementer  aràeat,  sine  Bivini  verhi  (labello  vllateuus  reaccendi. 
Jdeõ  nostris  temporibus  non  diibitamus  Ordinem  vestrum  Dei  prouidenlia 
suscitatum,  per  quem  Dominus  infrigidatos  malitia  ad  sui  amoris  incen- 
diiim  reuúcaret.  Quanta  igitur  prce  cceteris  Portugallcnsihus  locis,  tam  in 
nostra  Dicecesi,  quam  Bracharensi,  et  etiam  Lamecensi,  quce  à  vcstrorum 
Fratrum  consolationc  ^lon  modicum  sunt  remotas,  malitia  inundanit,  vo- 


PAP.TICULAli  DO  REINO  DE  POP.TUGAI-  335 

bis  nullatemis  suificumts  explicare.  Insurrexerunt  enim  pr(edonss  iimume- 
rabiles,  qui  Beum  non  liment,  nec  Dcum  reucrenlur,  qni  de  Monasterijs 
et  Ecclesijs,  solius  Dei  cultui  dcdítis,  speluncas  lattronmn  efficiunt,  nec 
non  claustro  pugnantum,  stahula  iumentonim,  prostibida  meretricium  :  di- 
reptisque  tain  clericonim,  quàm  agricolarum,  et  etiain  religiosoruin  pos- 
sessionibus,  possessores  ipsos  contra  altare  crudelitus  trucidantes,  vel  cuni 
clericis  comburentes,  a  facto  tam  cxecrabili  nec  admonitionibus,  nec  ex- 
commiinicationibus  cohibentur.  Quis  non  doleat  qiiosdíun  paruidorum  ah 
vberibus  matrum  auidsos  gladijs  trucidari,  aUidi  scopuHs,  quosdam  subr.ier- 
gi  fluminibus,  nisi  a  spoliatis  parentibus  prece,  vel  alio  quantulocunque 
prélio  redimantur^  Quis  nom  horrebit  puellas  antes  annos  nuhiles  violen- 
ier  abrumpi,  et  in  Ecclesijs  plurimorum  ex  nefandorum  homimrni  libidi- 
nosa freqtientia  expilari :  Intucntes  igitiir  cum  Salomone  hcec  mala  qu'£ 
fiunt  sub  Sole,  calumniasque  pauperum^  et  lacryinas  iiinoceníiutn,  et  conso- 
latorem  neminem:  nec  posse  resistere  malorum  violentio}  cunctoriim  auxi- 
lio dcstitutos :  dignam  duximus,  de  Capituli  nostri  consilio,  et  assensu 
plantare  Conuentuin  vestri  Ordinis  in  loco  nostro  ad  cooperationetr,  salu- 
tis  animaru)H,  et  solatiuni  afflictonun:  credens  fratrtim  vestrorum  pressen- 
tia cum  Dei  gratia  non  modicum  iiostris  partibus  profuluruni.  Damzisque 
vobis  in  bono  loco  Ecclesiam  consecralam  cum  domibus  in  quadro  ad  mo- 
dum  claustri  coiistnictis,  et  spcitiuni  satis  latum  ad  habendum  horlum,  et 
ad  officinas  alias  consfruendas.  Vestram  igitur,  de  qua  plane  confidimus, 
rogamus  in  Domino  charitatcm,  qnatenus  amore  Dei,  et  nostri,  et  salutis 
animarum  intuitu,  ad  iam  dictum  Conuentum  construendum,  fratres-quos 
nobis  videritis  necessários,  qui  virtute  verbi  Dei  valeant  mala  supradicla 
trrumpere,  nobis  dignemini  destinare.  Parati  enim  sumus,  daníe  Deo, 
semper  eos  in  ijs  qxue  potuerimus  adjuuare,  et  oh  diieclionem,  qu/im  sern- 
per  erga  vestrwn  Ordinem  habtiimus,  vberius  con[ouere.  Oratc  pro  nobis, 
et  valete. 

Foi  lida  a  csi-^ta  com  alíenrão  e  ouvida  do  Provincial  Portuguez  cora 
abundância  de  lagrimas,  lastimado  não  menos  dos  males  de  sua  pátria, 
de  que  tinha  bastante  noticia,  que  de  os  ver  publicados  por  terras  es- 
tranhas. Pareceo  a  todos  os  Capitulares,  que  se  devia  satisfazer  com 
eíTeito,  e  brevemente  ao  requerimento :  pois  éramos  chamados  de  hum 
Prelado,  e  de  hnma  Cidade  das  mais  importantes  do  Reino,  onde  se  po- 
dia fazer  muito  serviço  a  Deos.  qu8  era  o  maior  interesse  da  Religião. 


XIQ  UyWO  III  DA  llISTOKtiV  DK  S.   DOMINGOS 

E  assim  se  deu  por  reposta  ao  messageiro.  A.  carta  declara  as  infelici- 
dades d'aqueria  idade  melhor,  que  todas  as  Chronicas.  E  ponjue  se  veja 
a  rezão,  que  o  Reino  teve  de  buscar  valedor  contra  ellas,  irá  em  vulgar, 
e  he  a  que  se  segue: 

Pedro  por  mercê  de  Deos  chamado  Bispo  do  Porto,  aos  veneráveis 
varões,  e  em  Ghrisío  carissimos  o  Prior  Provincial,  e  DiíTmidores,  e  a 
todo  o  Capitulo  que  está  pêra  se  celebrar  na  cidade  de  Burgos :  saúde, 
e  em  serviço  do  Senhor  perseverança  até  o  fim.  Cerrando-se  já  o  dia  do 
mundo,  e  estando  quasi  no  cabo  :  pois  cora  o  poder,  e  forças  que  a  mal- 
dade tem  tomado  n'elie,  não  só  se  esfria  a  caridade  de  muitos,  mas  de 
todo  se  vai  perdendo,  e  apagando  :  e  não  se  podendo  esperar  que  aquelle 
fogo,  que  o  Senhor  veio  pegar  na  terra,  se  torne  a  acender,  pêra  que 
com  vehemeníe  ardor  abraze  as  almas,  se  não  for  avivado,  e  abanado 
com  o  ar,  e  assopros  de  sua  santa  palavra.  Por  isso  assentamos,  e  temos 
por  certo  que  criou,  e  levantou  a  providencia  Divina  a  vossa  Ordem  em 
taes  tempos,  pêra  por  meio  d  ella  tornar  a  inflammar  em  seu  amor 
aqoelies,  que  a  malícia  do  peccado  traz  enregelados,  e  am.ortecidos.  Assi 
não  ha  palavras  que  possão  bem  declarar  o  muito,  que  tem  crecido  os 
excessos,  e  desaforamentos,  mais  que  em  todas  as  partes  de  Portugal, 
n'este  nosso  Bispado,  e  nas  Comarcas  de  Braga,  e  Lamego,  terras  onde 
se  vive  longe  do  trato,  e  consolação  dos  vossos  Religiosos.  Podemos  di- 
zer, que  vai  tudo  cuberto  de  enchentes  de  peccados.  Porque  andão  le- 
vantados infinitos  salteadores,  que  sem  temor  de  Deos,  nem  respeito  dos 
homens,  fazem  dos  Mosteyros,  e  Igrejas  dedicadas  ao  culto,  e  serviço  de 
hum  só  Deos,  covas  de  latrocínios,  castelíos  de  soldadesca,  estrebarias 
de  suas  bestas,  casa  pubiica  de  mulheres  infames,  e  perdidas.  E  saquean- 
do os  casaes,  e  fazendas  dos  clérigos,  e  lavradores,  e  até  dos  Frades, 
matão  á  espada  os  mesmos  caseiros  diante  dos  altares,  ou  os  queimão 
com  os  Clérigos,  E  não  bastão  pêra  refrear  tamanhas  exorbitâncias  ne- 
nhumas diligencias  Ecclesiasticas  de  moniíorios,  e  escomunhõcs.  Quem 
poderá  ouvir  sem  rnuita  dôr,  que  chegãa  a  arrebatar  as  crianças  dos 
peitos  das  mais,  e  humas  passão  de  estocadas,  outras  arrebentão  nos 
penedos,  outras  afogão  nos  rios,  se  os  pais  (lespois  de  roubados  de  todo 
não  acodem  a  resgalal-as  com  alguma  cous..;  de  valia,  por  pouca  que 
seja,  ou  com  lagrimas,  e  rogos?  Quem  não  h?.  de  tremer,  e  pasmar  de 
não  valer  ás  moças  serem  quasi  mininas,  e  muito  longe  dos  anno?  de 


PAUTICI  LA»   DO   MAM)  DF.   IMJLl  IKiAL  337 

casar,  pêra  escaparuiii  do  slt  com  barbara  violuncia  Ibrgadas,  e  dv/ciro 
das  igrejas  afrontadas  por  muitos -homens  juntos  em  alcateas  á  execução 
de  tão  enorme,  e  bestial  sensualidade?  Todos  estes  males  passão  entrai 
nós,  e  á  nossa  vista,  e  vendo  sobre  elles  injurias  de  pobres,  lagrimas 
de  innocentes,  e  nenhum  consiilador,  como  se  queixava  Salamão :  e  so- 
!)re  tudo  não  sermos  poderosos  pêra  resistir  á  força  maior  da  gente  da- 
nada, e  perversa,  por  estarmos  de  todo  ponto  desemparados  de  quem 
nos  possa  valer :  pareceo-nos  acertado  fundar  n"esLa  nossa  Cidade  hum 
Convento  da  vossa  Ordem,  assi  pêra  lermos  n"elle  coadjutores  no  que 
cumpre  á  salvação  das  almas,  como  a  consolação,  e  alivio  dos  atribuh- 
dos.  Pêra  o  que  houvemos  primeiro  conselho,  e  beneplácito  do  nos-o 
CaJjido :  tendo  por  certo  que  com  a  graça  do  Senhor  nos  será  de  mui -a 
iiíiiidado  espiritual  nestas  partes  a  presença,  e  compauhii  de  tais  Ueli- 
giosos.  E  desde  logo  vos  oíferecemos  hnma  Igreja  já  sagrada,  e  em  bom 
sitio,  acompanhada  de  humas  moradas  de  casas  edificadas  em  quadro  a 
modo  de  claustro,  com  hum  pedaço  de  teria  bem  largo,  em  <]ue  haverá 
lugar  pêra  fazer  officinas,  e  praníar  horta.  Por  tanto  pedimos  a  vossa 
caridade  em  o  Senhoi-,  na  qual  estamos  confiados :  que  por  seu  amor,  e 
nosso,  e  polo  que  toca  á  salvação  das  almas,  hajais  por  bem  mandar-nos 
logo  os  frades,  que  vos  parecerem  necessários  pêra  ordenarem  o  Mostei- 
ro :  e  que  sejão  pessoas  de  tal  valor,  que  com  o  poder,  e  armas  da  pa- 
lavra de  Deos  se  possão  oppor,  e  fazer  guerra  aos  males,  que  temos  dito. 
Porque  de  nossa  parte  estamos  prestes  com  o  favor  Divino,  })era  os  aju- 
dar em  tudo  o  que  pudermos,  e  os  agasalhar  com  muito  amor,  polo  moo 
sempre  levemos  a  esta  Ordem.  Encomendai-nos  ao  Senhoi',  que  vos  guar- 
de, e  dê  saúde. 

CAPITULO  X 

Dos  Religiosos  qae  foruo  mandados  fundar  o  Convend)  do  Porto.  Da-se 
conta  dos  muitos  favores,  que  o  Bispo  lhes  fazia.  E  como  desjhns  mudou 
parecer,  e  das  rezões  que  pêra  isso  leve. 

Nomeou  o  Diffinitorio  pêra  esta  fundação  dous  ReUgiosos,  de  cujas 
partes  havia  experiência  que  satisfarião  bastaníemoníe  á  tenção  pia,  e 
santa  do  Bispo,  e  Cabido,  e  á  obrigação  de  quem  os  mandava.  Eião  Frei 
Gualtero,  e  Frei  Domingos  Galego,  que  partirão  logo,  Esperava-os  o  Bis- 
po, e  toda  a  Cidade  com  alvoroço.  E^  quando  chegarão,  forão  recebidos 
VOL.  I.  "-Àl 


338  LIVUO  III  DA  msTor.iA  dk  s.  domi.ngos 

com  festa,  e  hospedados  com  amor,  e  largueza  :  c  logo  se  lhes  deu  posse 
da  Igreja,  casas,  e  chãos  polo  Bispo  offerecid  os.  Começarão  a  pregar,  e 
confessar,  ensinando  nas  horas  vagas  a  doutrina  Christã  em  casa,  e  polas 
ruas,  e  juntamente  entendendo  na  fabrica,  e  ordem  do  Convento.  Era  o 
trabalho  grande,  e  como  a  duas  mãos :  encaminhando,  e  dando  traças 
no  temporal,  e  não  largando  o  espiritual.  Mas  aliviava  a  fadiga  ver  que 
se  edificavão  todos  os  bons,  e  os  que  d"antes  andavão  soltos,  e  descom- 
postos se  começavão  a  reprimir,  e  entrar  em  si :  de  sorte  que  obrando 
Deos  por  mão  de  seus  servos,  dentro  de  poucos  mezes  se  vio  notável 
mudança  nas  vidas,  e  costumes.  E  acudindo,  como  houve  gazalhado  mais 
religiosos,  corrião  aos  togares  vizinhos,  e  aproveitavão  muito  em  todo 
género  de  gente.  Alegrava-se  o  commum  da  Cidade,  e  agradecia  a  seu 
Prelado  a  vinda  de  tais  hospedes.  E  elle  com  desejos  de  que  tevesseni 
em  hreve  casa  feita,  mandou  publicar  por  todo  o  Bispado  huma  provi- 
são em  recomendação  dos  Frades,  e  de  seu  Convento,  concedendo  gra- 
ças, e  indulgências  aos  que  de  alguma  maneira  ajudassem  a  obra  d"el!e. 
Esta  poremos  aqui  de  verbo  ad  verbum  tirada  da  própria,  que  se  guar- 
da no  Cartório  da  casa,  e  também  irá  traduzida  em  vulgar.  Porcfue  con- 
vém assi,  respeito  das  alterações,  que  logo  seguirão.  A  Latina  diz  assi. 

Petrvs  Dei  púticntia  Portucnsis  Episcopus,  omnibus  iam  clericis,  qiiam 
laicis  in  rortugallensi  diccccsi  sahttem,  et  honis  opcribvs  abundure.  ISore- 
rilis  nos  fruíres  Prcediccdoí  es  ad  mormidnm  in  civitate  nosiru  de  Consensu, 
et  voluntnle  Canoniconm,  et  omnium  ciiiium  Porítignllensium  reccpisse, 
credenles  ipsos  vides,  et  necessários  corporibus,  et  animabus  dcgentium  in 
cinitate,  et  in  Episcopatu  nostro.  Vndc  cvm  prcedicti  Fratres  nihil  hu- 
beunt,  ncc  possint  sine  meo  iuuamine,  et  vestro  Ecclesiam,  et  domos  sibi 
necessárias  constnicre,  vniiíersifatem  veslram  rogamns,  atque  in  remissio- 
nem  vestrorum  vobis  iriiungimxis  peccaloritm,  cjvatenus  tom  in  ligms  colli- 
nendis,  quam  etinm  in  lapidibvs  ducendis  opcri  prwdictorum  fratriim  ne- 
cessitrijs  vos  exhibeotis  propitios,  et  deuotos  iuxta  illud:  Sibi  (edificat, 
qui  domnm  Dei  a^dificat.  Nos  igititr  de  Dei  misericórdia  plenissime  confi- 
dentes, omnibus,  qui  sibi  fideliter  in  lignis  coUigendis,  et  lapidibus  du- 
cendis, vel  ibi  próprio  corpore  laborauerint  per  vniim  diem,  vel  operar ium 
mnerint  loco  sui,  qvadragiuta  dics  de  iniuncla  sibi  plenissime  pcenitentin 
misericorditer  relaxamus.  Atque  in  hunc  modum  qui  operi  prcedicto  et 
Fratrihns  phts  boni  feccrint,  plus  mcrced!s  accipicnt  et  coroicc,  Datum 


PARTICLLAR  DO  IlEINO  DE  PORTUGAL  339 

Portiujallue  sub  .Era  M.CC.LXXVI.  die  sexto  mcnsis  Marlij.  Uaieat  us- 
que  ad  duos  annos. 

A  Portugueza  he 

Pedro  pola  paciência  de  Deos,  Bispo  do  Porto,  a  todos  os  moradores 
d'este  nosso  Bispado,  assi  Ecclesiasticos,  como  seculares,  saúde,  e  acre- 
centamento  em  bem  fazer.  SaÍ3ereis  que  nós  recolhemos  n'esía  nossa  Ci- 
dade pêra  morarem  n"ella  aos  Frades  Pregadores  com  consintimento,  e 
gosto  dos  Cónegos,  e  de  todos  os  Cidadãos,  tendo  por  certo  que  sua  com- 
panhia he  necessária,  e  ha  de  ser  de  proveito  temporal,  e  espiritual  pêra 
todos  os  moradores  da  cidade,  e  Bispado.  Pola  qual  rezão  visto  como  os 
Religiosos  não  possuem  nenhuma  cousa  de  próprio,  nem  podem  compor 
sua  Igreja,  e  fabricar  as  casas,  de  que  tem  necessidade,  sem  vossa,  e 
minha  ajuda,  rogamos-vos  a  todos,  e  em  remissão  de  vossos  peccados 
vos  encarregamos,  que  mostreis  com  elles  facilidade,  e  devação,  assi  em 
os  ajudar  a  cortar,  e  ajuntar  a  madeira,  como  no  carreto  da  pedra  ne- 
cessária pêra  a  obra,  conforme  aquillo:  Pêra  si  edifica,  quem  a  Deos  faz 
casa.  E  por  tanto  confiando  nós  plenissimamente  na  misericórdia  de  Deos 
a  todos  aquelles  que  fielmente  lhes  acudirem  no  colher  da  madeira,  e 
carregar  da  pedra:  ou  lhes  derem  por  si,  ou  por  outrem  hum  dia  de 
trabalho  na  obra,  concedemos  quarenta  dias  de  perdão  das  penitencias 
que  lhes  forem  impostas.  E  a  este  modo  sejão  certos  que  os  que  mais 
favorecerem  tal  obra,  e  a  quem  a  faz,  mais  premio  receberão,  e  maior 
coroa.  Dada  no  Porto  a  seis  de  Março  da  Era  de  Mil  e  duzentos  e  se- 
tenta e  seis  (responde  aos  annos  de  Christo  de  1238).  Valha  por  tempo 
de  dous  annos. 

He  a  gente  d'esta  Cidade  geralmente  dotada  de  honradas  calidades, 
pia,  devota,  liberal  e  bem  inclinada.  E  na  nobreza  he  maior  a  venta- 
gem,  quanto  mais  se  adianta  no  sangue.  Assi  pêra  a  Cidade  foi  pouco 
necessária  a  amoestação  do  Prelado.  Porque  se  a  liberdade  do  tempo 
trazia  alguns  desconcertados  na  vida,  fazião  por  honra,  e  brio,  o  que 
outros  por  virtude :  e  não  faltava  nenhum  em  acudir  á  Casa  de  Deos 
segundo  sua  possibilidade.  Faz  muito  ao  caso  em  toda  a  matéria  o 
exemplo  dos  nobres.  Valeo  este  no  resto  do  Bispado,  junto  com  a  re- 
comendação do  Bispo,  pêra  procurarem  muitos  ter  merecimento  na  obra. 
O  liispo  também  não  contente  com  o  que  tinha  dado  aos  Padres  como 


3Í0  LlVnO  III  DA   IIISTOIÍIA  DE   y.   DO.MINC.OS 

Prelado,  quiz  enU"ar  â  parte  como  particular.  Possuía  huns  cliíícis  de  sen 
l)a!rinK)iiia,  qiicparlião  com  o  sitio,  fcz-lhcs  doação  d'e]!es  pêra  se  alar- 
garoíii.  Assi  podemos  dizer  d"esla  Cidade,  que  como  do  nosso  Convento 
de  Coimbra  forão  fundadoras  as  duas  Priíicezas,  ílllias  dei  í\ei  dom  San- 
cho I-rimeiro :  da  mesma  maneira  o  íoi  cila  d'cste :  com^ecando  o  braço 
Eccíesiasíico,  e  seguindo  o  secular. 

Mas  lie  grande  a  inconsíancia,  e  fragilidade  da  natureza  liimiana,  pê- 
ra que  a  boca  cheia,  demos  por  acertada  a  sentença :  Maledidus  homo 
qui  fdit  in  hmine  (*);  e  pêra  que  só  em  Deos  fiemos.  No  meio  doestes 
fervores,  ou  fosse  que  o  Clero  entrasse  em  ciúmes  das  grossas  esmollas 
que  corrião  ao  Convento,  e  julgasse  de  algumas,  que  começarão  a  entrar 
por  enterros,  e  benesses,  e  legados  de  testamentos,  (como  na  terra  não 
lia  mais  Freguezia  que  a  Sé),  que  tudo  o  que  hia  pêra  os  Frades,  era 
como  agoa  furtada  á  erdade  dos  Clérigos :  ou  fosse  enveja  áo  enemigo 
comum,  que  sinlia  ser  lançado  da  jurdição,  e  posse  pacifica  de  muitas 
almas,  com  os  brados  da  pregação,  e  doutrina  dos  Religiosos,  e  adivi- 
nhava maior  perda  pêra  o  diante:  ou  tudo  junto :  creceo  em  tanto  grão 
o  fogo  da  desconfiança  do  que  vião,  que  parou  em  hum  incêndio  que 
mostrava  sinais  de  se  não  apagar  com  nenhumas  forças.  E  sendo  assi, 
que  a  qualquer  homem  do  povo  saem  coros  ao  rosto,  se  diante  d"outro 
nega  a  palavra,  ou  troca  parecer  ainda  em  negocio  muito  desarrezoado: 
neste  que  era  Santo,  e  todo  de  Deos,  pede  tanto  o  medo  do  dano  ima- 
ginado, ou  a  tentação  de  Lúcifer,  que  não  duvidarão  Cónegos,  c  digni- 
dades, e  todo  o  Cabido  junto,  gente  conhecida  por  virtuosa,  e  prudente, 
tornar  atrás  com  tudo  o  que  tinhão  concedido,  dado,  e  doado,  e  pondo 
n'.)ta  sobre  si  de  pouca  constância,  chamarem-se  enganados  em  cousa  de 
C3mum  conselho  acordada,  e  decretada.  O  primeiro  ponto  que  derão  no 
negocio  foi  mandarem  em.bargar  a  obra,  que  corria  no  Convento.  Sus- 
pensos os  pobres  Frades  com  o  embargo,  pareceo  que  acharião  emparo 
110  Bispo,  como  em  quem  fora  o  primeiro  autor  de  sua  vinda,  e  o  que 
mais  os  tinha  favorecido,  e  em  íhii  feito  o  Convento  cousa  sua,  com  lhe 
ter  lançado  a  primeira  pedra.  ^ías  acharão-se  enganados.  Porque  saindo 
de  casa  o  Prior,  e  outro  frade  pêra  se  irem  valer  d"eile,  derão  de  rosto 
na  portaria  com  hum  Notário  Apostólico,  que  de  sua  parte  lhes  notificou 
que  em  seu  Bispado  não  pregassem,  nem  confessassem,  nem  ceiebras- 
sjm  Plissa,  nem  outro  officio  Divino.  Foi  grande  o  escândalo,  que  toda  a 

{-^  Jurem.  17. 


PARTICULAP.  DO  RKIXO  DE  ronTIGAI.  341 

Cidade  recebeo,  e  principalinoíitc  a  nobreza,  mosíraiido-sc  mui  scnlida 
do  áspero  termo,  com  que  se  procedia  com  gente  buscada,  e  chamada, 
gente  que  a  ninguém  oíTendia,  e  a  todos  edificava.  Juntarão-se  muitos, 
e  tomarão  á  sua  conta  o  ediíicio,  como  so  tocara  a  cada  iium  delles,  e 
nada  aos  Frades.  E  Gzerão  que  corresse  adiante,  assistindo  com  suas 
pessoas,  e  fazendas,  e  animando  aos  Religiosos,  que  não  sabião,  que 
consellio  tomassem  aííligidos,  e  desconsolados  de  verem  nacer  a  pcrsi- 
guição  d'onuc  esperavão  o  remédio.  Mas  não  parava  o  Inferno  em  asso- 
prar as  brasas  da  discórdia,  pêra  que  se  visse  que  era  sua  a  maior  parle 
d^eila.  Veado  o  Clero  o  concurso,  que  bavia  dos  cidadãos  no  Convento, 
e  como  Ibe  acudião  com  nova  liberalidade,  fazem  relação  ao  Bispo,  que 
não  foi  vagaroso  em  fulminar  censuras,  e  pór  interdito  contra  todos  os 
que  dessem  favor,  ou  ajuda,  ou  conselho  pêra  se  continuar  a  obra.  En- 
tão ficarão  os  Frades  postos  em  cerco:  vendo-se  privados  de  todo  re- 
médio divino,  e  humano,  quo  na  terra  havia,  tornarão-se  a  Deos  :  pe- 
dião-ltie  com  continuas  orações,  e  sacrifícios  abrisse  os  olhos  a  seus  per- 
siguidores,  pêra  que  não  errassem  contra  clle,  c  contra  si  mesmos.  Of- 
ierecião-lhe  aquella  tribulação,  e  afronta,  quo  só  por  cllc  padecião,  epolo 
amor  dos  próximos,  cujo  serviço  vinlião  procurar  n\aquelle  lugar,  sem 
nenhum  interesse  próprio  d'elles  Religiosos.  Por  oiúra  parte  como  gente 
exercitada  em  m.aterias  do  espirito,  alegravão-se  no  traballio,  fazendo 
conta,  que  alguns  bens  antevia  o  Demónio  haverem  de  sair  d"aqueilo 
Convento  pêra  gloria  de  Deos,  e  remédio  dos  homens,  pois  com  tanta 
senirozão  estorvava  o  ediíicio,  semrezão  totalmente  indigna  da  virtude, 
e  bom  entendimento  do  Prelado,  que  a  fazia.  Assi  discorrendo,  e  sofren- 
do com  silencio,  e  constância,  e  sem  se  ouvir  de  suas  bocas  palavrr.  do 
impaciência,  esperavão  reclusos  o  remédio  do  Ceo,  avisando  de  tudo  ao 
Província!,  e  sojeitando-se  a  suas  ordens. 

capítulo  Xí 

BuK(io-se  intercessores  poderosos  por  parle  do  Convénio:  não  valendo 
nada,  qucixão-sc  os  rrades  a  Rúnia.  Comete  o  Snmmo  Ponlifiee  ao 
Arcebispo  Primos  que  os  desagrave. 

Entre  tanto  erão  muitos  os  que  procuravão  alcançar  do  Bispo,  e  Ca- 
bido algum  meio  de  paz.  Por  huma  parte  trabalhavão  alguns  velhos  dos 


3Í2  LIYKtí  III  DA  HISTORIA  DK  S.   DOMINGOS 

mais  nobres,  e  autorizados  da  Cidade,  obrigados  de  instancias  de  todos 
os  mais.  Por  outra  o  Provincial,  que  era  o  Santo  Frei  Gil,  desejando  es- 
cusar queixas,  e  litigios,  pedio  á  Rainha  dona  Mafalda,  tia  dei  Rei  dom 
Sancho  Segundo,  irmã  de  seu  pai,  quizesse  interpor  sua  autoridade  em 
pacificar  o  Bispo  com  os  seus  Frades.  O  mesmo  pedio  ao  Arcebispo 
Primas  de  Braga  dom  Silvestre.  Fizerão-se  por  todos  diligentes,  e  aper- 
tados oííicios  com  o  Bispo,  e  Cabido.  Mas  aconteceo  o  que  he  ordinário 
em  todos  os  que  sabem  pouco  de  negócios,  quando  se  vem  rogados, 
(|ue  referem  os  rogos  á  falta  de  justiça,  e  não  á  boa  natureza  de  quem 
roga.  Assi  vendo  o  Bispo,  e  Cónegos  tantos,  e  tão  honrados  intercesso- 
res por  parte  dos  frades,  derão-se  por  absolutos  senhores  da  causa,  e 
não  só  não  admittirão  concórdia,  mas  ajuntarão  novo  escândalo  aos  pas- 
sados. E  foi,  que  tendo  os  frades  comprado  alguns  chãos,  e  casas  vizi- 
nhas ao  Convento,  e  dado  dinheiro,  e  feito  escrituras  cem  licença,  e 
aprazimento  do  Cabido,  por  serem  foreiros  a  elle,  revogarão  as  licenças 
que  por  escrito  tinhão  dado :  e  com  a  mesma  deshumanidade  publicarão 
por  nullas  algumas  doações  voluntárias,  que  de  bens  semelhantes  tinhão 
feito  algumas  pessoas  pias  ao  Convento.  Vista  tamanha  dureza,  foi  ne- 
cessário acudir  por  remédio  á  Suprenia  Cadeira.  Presentarão-se  ao  Pon- 
tifice  as  queixas  do  Convento,  e  suas  rezões.  Proveo  logo  no  caso  com 
hum  Breve  mui  amplo,  que  poremos  de  verbo  ad  verbum,  e  com  sua 
li-aducção :  assi  porque  estes  são  os  titules  d"este  Convento,  como  por- 
que seja  a  todos  notória  a  pureza,  e  verdade  da  historia,  que  seguimos, 
e  não  pareça  a  ninguém  que  a  enfeitamos.  Este  Pontifice  era  Gregório 
Nono,  que  sendo  Cardeal  com  nome  de  Ugolino  fora  grande  devoto  de 
nosso  Patriarcha  S.  Domingos  em  vida,  e  despois  de  assentado  na  Ca- 
deira de  S.  Pedro,  como  testimunha  de  seus  merecimentos  o  poz  no 
Catalogo  dos  Santos  canonizados.  Segue  o  Breve. 

Gregorius  Episcopus  seruus  seruorum  Dei,  Uenerabili  Fralri  Ar  chi  e- 
piscopn,  et  dilectis  filijs  Decano  et  Cantori  Bracharensihus  salutem  et  Apos- 
tolicam  henedictionem.  Olim  venerabilem  fratrem  nostrum  Episcopiim  Por- 
lugallensem  illius  esse  credehamus  indiistrice,  vt  perennis  ohtentu  glorios 
libenter  efficcret,  per  quce  Deo  et  homínibus  complaceret.  Sed  cogimnr  opi- 
nari  contrariam,  illis  in  co7ispectu  nostro  clamantibus,  quos  sine  causa 
perseqnitur  nom  ahsque  contumelia  Redemptoris.  Sane  dilectoriim  fúionun 
Fratrum  de  Ordine  Prwdicatontm  PorttigaUensium  insinuatione  percepi' 


PAUTICUI.AR  DO  RFJiNO  PE  PORTUGAL  34S 

tnus,  quód  idem  Episcopus  aliquando  pie  cogitans  eorum  studijs  animarum 
procurari  salatem,  et  ampliationem  CothoHccB  purilatis,  eis  Portiujalliam 
ad  suam  vocem  infrantibus,  locum  ipsis  pro  Ecclesia  fundanda  conressum, 
de  sui  consensu  Capiluli  UheralHer  assignauit,  ponens  ibidem  lapidem  pri- 
mar ium,  et  sua:  partem  lia;reditatis  adjiciens,  vt  inchoatum  csdificium  pos- 
set  magis  efpci  spaliosum:  ciindis  loci  eiusdem  per  eum  nihilominus  fada 
certa  remissione  peccaminum,  qni  ad  lioc  ipsis  prwstarent  siibsidium  oppor- 
tunum.  Uerúm  cum  dicti  Fruíres  locum  ipsum  pacificê  possidentes,  et  ibi- 
dem de  sua  licentia  Divina  libere  celebrantes  pro  liuiusmodi  perfedione 
operis  graues  lubores  subierint,  et  expensas :  ipse  subitó  de  patre  commu- 
tatus  in  hostem^  eos  exinde  vná  cum  suis  Canonicis  amouere  nititiir,  niul- 
tis  ex  hoc,  ac  eisdem  fratribus  in  graui  scandah  constitulis.  Frcesertim 
cum  idem  ipsis  contra  indulgentias  eis  ab  Apostólica  Sede  concessas,  ne 
proedicent,  seu  confessiones  audiunt,  vel  Diuina  celebrent  duxerit  inhiben- 
dum,  lata  in  omnes  inlerdicti  sententia,  qui  eis  ad  huiusmodi  perfedio- 
vem  operis  consilium,  vel  auxilium  largiuntur.  Cum  igitur  prorsus  inde- 
cens  et  detestabih  videatur,  nt  idem  Episcopus  vidcatur  de  tanta  varictate 
notabilis,  et  persecutor  Deum  timentium  reputetur  :  eundem  rogamus  et  hor- 
tamur  attenté,  nostris  sibi  distridé  in  virtute  obedientiís  mandantes  literis, 
in  prceceptis,  vt  fratres  eosdem  pnefati  loci  possessione pacifica,  sine prceiu- 
dicio  iuris  sui,  et  etiam  alieni  pro  Divina  et  noslra  reuerentia  gaudere 
permiltat,  latam  per  ipsum  in  benefadores  eorum  interdidi  sententiam,  in- 
fra odo  dies  post  susceptionem  earum  sine  qualibet  difficullatc  relaxans. 
Quocircá  discretioni  vestra  per  Apostólica  scripta  mandamus,  quatenus  si 
didus  Episcopus  proocejdum  nostrum  infra  prcsscriptum  tempus  neglexerit 
adimplere,  vos  extnnc  relaxantes  eandem,  et  si  similem  in  illos  de  ccetero 
ferre  prwsumpserit,  eam  tanquam  contra  inhibitionem  Sedis  Apostolicvs 
promulgatain,  nullam  esse  peniius  decernentes,  fratres  ipsos  super  eiusdem 
possessionibus,  ac  eos,  et  benefadores  suos,  super  construendis  ibidem  cedi- 
jlcijs  eorundem  fraírum  vsibus  opportunis  non  psrmitlatis  ab  aliquo  inde- 
bile  molestari,  mvlestatores  huiusmodi  auíhoritate  noslra  nppellatione  pro- 
posita,  compescendo.  Quód  si  nom  omnes  ijs  exequendis  potueritis  interes- 
se, tu  frater  Archiepiscope  cum  eorum  altero  ea  nihilominus  exequaris. 
Daium  Anagnice  VJIL  Cal.  Odobris,  Pontiftcatus  noslri  anno  duodécimo. 


ôví-  Livi;o  IH  nA  msToniA  de  s.  domingos 

Em  vulgar  responde  assi. 

Gregório  Bispo  servo  dos  servos  de  Deos,  ao  venerável  irmão  Arce- 
líispo  de  Brng;í,  e  nos  amados  Daião,  e  Ciiantre  da  mesma  igreja  de  Bra- 
f^a  sande,  e  Apostólica  benrão.  Tivemos  sempre  em  tão  boa  conta  nosso 
venerável  ii'nião  o  Bispo  do  Porto,  que  criamos  d'elle  íaiia  com  gosto, 
a  íim  de  alcançar  a  eterna  bemaventurança,  tndo  aqiiillo  que  o  pudesse 
l:!7.;'r  grafo  a  Deos,  e  aos  homens.  Mas  obrigão-nos  hoje  a  cuidar  ouíra 
(•')usa  delle  as  queixas,  e  brados  que  ante  nós  dão  aquelles  a  quem  per- 
segue sem  causa,  o  não  sem  aííVonta  do  Redentor.  Soubemos  por  rela- 
ção certa  dos  amados  filhos  os  Frades  da  Ordem  dos  Pregadores  do  Con- 
vento do  Porto,  em  como  o  mesmo  Bispo,  tendo  d'elles  boa  opinião,  e 
do  cuidado  com  (jue  íraíãf»  da  salvação  das  almas,  e  augmonto  da  pu- 
reza christã,  os  chamou,  e  levou  áquella  Cidade,  n'eila  lhes  assinou  lu- 
gar pêra  fundarem  Igreja,  com  beneplácito  do  seu  Cabido,  no  edific-o 
}ioz  de  sua  mão  a  primeira  pedra,  e  pêra  terem  mais  lai'gueza  os  aju- 
dou com  lazenda  de  seu  património:'  e  sobre  tudo  publicou  indulgên- 
cias, e  remissão  de  peccados  pêra  todos  os  que  dalguma  maneira  des- 
sem ajuda,  e  favor  á  mesma  obra.  E  que,  estando  por  este  m.odo  em 
})osse  pacifica  dosiíio,  que  lhes  dera,  e  celebrando  n"elle  com  sua  licença 
os  Oíficios  Divinos,  e  procurando  juntamente  com  muito  trabalho,  e  des- 
}ieza  por  chegarem  á  [)erfeição  o  Convento:  hora  trocado  repentinamente 
<'e  pai  em  eneinigo,  fazem  toda  força  elle,  e  seus  Cónegos  poios  lança- 
lem  da  íeri'a,  com  grave  escândalo  de  muita  gente,  e  dos  mesmos  Fra- 
des: principalmente  por  lhes  mandar,  que  não  preguem,  nem  confessem, 
nem  celebrem  os  Officios  Divinos,  sendo  cousas  que  a  Sé  Apostólica 
lhes  tem  concedido:  e  perseguir  com  interdito  os  que  de  obra  ou  pa- 
lavra llies  acodem  ou  fazem  algum  bem.  Por  tanto  como  seja  cousa  to- 
talmente indecente,  e  abominável,  que  no  mesmo  Bispo  se  ache  junta- 
mente no!a  de  homem  vario,  c  de  perseguidor  dos  que  a  Deos  temem, 
polas  prcsevites  letras  lhe  rogamos,  e  com  eílicacia  o  amoestamos  pon- 
<lo-ibe  rigorosaaiente  preceito  em  virtude  de  Santa  obediência,  que  por 
reverencia  de  Deos.  e  nossa  deixe  gozar  os  Frades  da  posse  quieta,  e 
pacifica  do  lugar,  em  que  estão,  sem  prejuízo  porAm  do  direito,  que 
'.•lie  cu  outrem  no  tal  lugar  pretenda.  E  dentro  de  oito  dias,  despois 
de  lhe  cliegarcm  eslos  letras,  levante  sem  fazer  nenhuma  duvida  o  in- 
ivrdiío,  e  todas  as  mais  censuras,  que  centra  os  bemfeiíores  do  Convento 


PAIVTICULAU  DO  «F.INO  DK  PORTUGAL  345 

íever  postas.  E  á  vossa  discrição  cometemos,  e  encomendamos  que,  se  o 
Bispo  no  termo  assinado  não  cumprir  nosso  mandado,  em  tal  caso  vijs 
as  levanteis.  E  se  oníra  tal  presumir  ao  diante  fulminar,  a  julgueis  por 
nuUa,  e  como  passada  contra  publica  inhibição  da  Sé  Apostólica:  nlio 
Gonsintindo  que  sejão  molestados  de  pessoa  alguma  nem  os  Frades  na 
posse  de  seu  sitio,  e  casa,  nem  seus  bemfeitores  no  favor,  e  ajuda,  que 
pêra  proscguir  suas  obras  lhe  quiserem  dar.  E  reprimireis  por  autori- 
dade, e  poder  nosso  sem.  appellação,  nem  recurso,  quem  quer  que  os 
inquietar.  E  acontecendo  não  vos  poderdes  achar  juntos  á  execução  do 
que  assi  mandamos,  vós  ii-mão  xVrcebispo  o  podeis  fazer  só  com  qual- 
quer dos  nomeados.  Dada  em  Anagnia  aos  24  de  Setembro  íío  anno 
duodécimo   de  nosso  Pontificado,  {que  responde  ao  do  Senhor  de  \2'À8.) 

CAPITULO  XII 

Levantão-se  as  censuras,  e  prosegne  a  obra  do  Convento.  Passa  cl  Rei 
dom  Sancho  aos  Frades  carta  de  Padroeiro.  Mitiga-se  o  Bispo,  e  faz 
composição  com  elles. 

Era  já  no  cabo  do,  anno  de  1238,  quando  cbegou  o  Breve  ás  mãos 
do  Arcebispo.  E  ainda  que  tinha  trabalhado  por  quietar  o  negocio,  sem 
lhe  valer  nada  sua  boa  diligencia,  como  contamos :  e  pudera  com  rezão 
ser  arremessado  executor;  com  tudo  respeitando  o  credito,  a  autórisla- 
de  do  Bispo  desejou,  que  não  parecesse  em  juizo,  e  tornou  a  tratar  de 
paz,  avisando-o  do  rigor  da  commissão.  Mas  ha  muitos  eniendimeníos 
que  não  he  em  sua  mão  conhecer  os  bens  da  paz,  senão  despois  de  bem 
acutilados,  e  atropelados  da  guerra.  Tão  cegos  estavão  de  paixão,  c  tão 
confiados  da  vitoria  Bispo,  e  Cónegos,  que  não  quizerão  vir  cm  nenhum 
partido,  e  quando  decia  a  hum  pouco  de  brandura,  o  menos  que  pcdião, 
era  que  os  Frades  não  dessem  em  sua  Igreja  sepultura  geral,  nem  par- 
ticular, nem  receiíessem  olfertas,  com  outras  exorbitâncias  semelhantes. 
O  qud  visto  polo  Primaz,  publicou  o  Breve,  mandou-os  parecer  em  Bra- 
ga por  si  ou  por  seus  procuradores.  E  logo  levantou  as  censuras,  e  in- 
terdito, que  o  Bispo  tiriiia  posto  aos  seculares  pêra  não  ajudarem  o  edi- 
fício, nem  eommunicarem  no  Convento ;  e  mandou-lhe  que  desembar- 
gasse a  obra,  e  não  inipedisse  o  ir  adiante.  E  obrigou  ao  Cabido  a  con- 
íiriiiar  as  veiidas,  e  doações  feitas  ao  Convento,  e  revalidar  as  licenças 


346  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMIXGOS 

que  revogara,  e  a  dar  de  novo  todas  as  que  pedidas  lhe  fossem.  Com  es- 
te principio  abrirão  os  Religiosos  suas  portas:  publicarão  no  povo  os 
favores  da  Sé  Apostólica:  e  ainda  que  guardavão  toda  moderação  em 
suas  praticas,  a  terra,  que  estava  resintida,  e  queixosa,  não  fazia  o  mes- 
mo, antes  celebrava  a  vitoria,  como  se  fora  causa  própria.  E  polo  mes- 
mo teor  acudião  tantos  oíficiaes  á  obra,  e  erão  tantos  os  que  provião  o 
necessário  pêra  ella,  que  crecia  maravilhosamente.  Mas  não  corria  com 
menos  prosperidade  o  edifício  espiritual:  porque  o  Provincial  tinha  in- 
\iado  numero  de  Religiosos,  e  querendo  todos  mostrar-se  agradecidos 
á  boa  vontade,  e  caridosos  ânimos,  que  em  seus  trabalhos  acharão  na 
Cidade,  empregavão-se  com  grande  cuidado  em  a  servir,  e  agradar  em 
tudo  o  que  era  ministério  da  Religião. 

Na  mesma  conjunção  lhes  acudio  Deos  com  novo  favor.  Era  entrado 
o  anno  de  1239.  El  Rei  dom  Sancho  segundo,  que  reinava,  movido  de 
bom  espirito,  (que  na  verdade  tal  era  o  seu  na  fonte),  ou  persuadido,  ao 
que  se  pode  congeiturar  da  Rainha  dona  Mafalda  sua  tia,  passou  huma 
provisão,  pola  qual  de  seu  motu  próprio  se  deu  por  autor,  fundador,  e 
padroeiro  do  Convento.  No  que  he  de  ver  sua  grande  bondade,  porque 
era  cousa  certa,  que  n'este  mesmo  tempo  todos  os  nossos  pregadores  se 
desfazião  nos  púlpitos  em  vituperar  descubertamente  as  faltas  de  seu 
governo.  Foi  esta  provisão  de  muita  importância:  porque,  ainda  que  só 
por  si  não  fora  de  effeito,  polo  pouco  respeito,  que  geralmente  se  tinha 
ao  Rei,  e  a  seus  mandados :  bastou  junta  com  o  favor  de  Roma,  pêra 
os  Frades  íicarem  armados,  e  animados  a  procederem  confiadamente  em 
suas  fabricas.  A  nota,  e  antiguidade  d'ella  me  faz  cuidar,  que  será  agra- 
dável a  quem  se  occupar  nesta  lição :  dezia  assi: 

Sanciíis  Bei  (jratia  Poríiigallke  Rex,  omnibus  de  meo  Regno,  adquos 
litcroB  ístcB  periienerint,  salutem.  Sciatis  quod  ego  mando  facere  pro  ani- 
ma mea  monasterium  Fratrum  Prcedicatorum  in  Portu.  Quia  inlelligo 
quód  erit  grande  bontim,  et  magna  profetantin.  milii  et  omnibus  de  Regno 
meo.  Et  rccipio  ipsum  Monasterium,  et  ipsos  fralres  in  commenda  mea. 
Vnde  mando  firmiler,  quód  nullus  sit  ausiis  in  regno  meo  eis  mal>im  fa- 
cere, negue  operarijs  sitis.  Quia  quicumque  eis  mahim  fecerit,  aut  fortiam 
siue  íortim,  pectabit  milii  quivgentos  morabiiinos,  et  eis  emendabit  dum- 
num  in  duplum,  quod  illis  fecerit,  et  super  remanebit  pro  meo  iaimico. 
Et  vt  ipsi  et  locus  ipsorum  sint  melius  emparali.)  do  eis  istam  meam  cliar- 


PARTICULAR  DÓ  REINO  DE  PORTUGAL  347 

tam  apertam,  quod  teneant  illam  in  tesfimoniim.  Datum  apud  CoUimhrinm 
iij  Kalend.  Fehruarij  Ma  M.CC.lXXVIl.  (responde  aos  trinta  de  Ja- 
neiro (lo  anno  de  Christo  1239.) 

De  crer  lie  que  passando  el  Rei  huma  provisão  com  palavras  tão 
claras,  e  resolutas,  e  aífirmando,  que  mandava  fazer  o  Mosteiro  por  sua 
alma,  nao  seria,  (como  nos  persuade  a  conjunção  que  passou),  fantasti- 
camente, e  só  a  fim  de  valer  aos  Religiosos  contra  a  força,  que  se  lhes 
fazia:  mas  que  mandaria  despender  com  elle  da  fazenda  real.  Confirma- 
se  isto  com  que  a  Igreja,  inda  que  não  seja  muito  grande,  he  toda  de 
cantaria,  e  obra  custosa,  e  maior  do  que  n"aquelle  tempo  demandava  o 
custume  das  fabricas  da  Ordem,  que  também  nas  Igrejas  guardavão  mo- 
deração, salvo  n'aquellas,  que  os  Reis  tomavão  á  sua  conta.  Se  não  qui- 
sermos dizer  que  pode  ser  esta  mesma  de  que  o  Bispo  fez  offerta  ao 
capitulo.  De  qualquer  maneira  que  a  origem  fosse :  certo  he  que  o  Mos- 
teiro ficou  realengo,  e  consta-nos  de  outra  provisão  passada  por  el  Rei 
dom  Dinis,  sessenta  annos  despois  da  que  fica  atrás,  c  escrita  em  Portu- 
guez,  cujo  original  he  do  teor  seguinte. 

Dom  Dinis  pola  graça  de  Deos  Rei  de  Portugal,  é  do  Algarve,  à 
quantos  esta  carta  virem  faço  saber,  que  eu  recebo  em  minlia  guarda,  e 
em  minha  encomenda,  e  sob  meu  defendimento  o  meu  Mosteiro,  e  Con- 
vento dos  Pregadores  do  Porto,  e  seus  homens,  e  suas  agoas,  e  todas 
as  cousas,  que  pertencem  a  este  Mosteiro.  Polo  que  mando,  e  defendia 
que  nenhum  nom  seja  ousado,  que  faça  mal  nem  força  em  esse  Mostei- 
ro, nem  a  esses  Frades,  nem  a  seus  homens,  nem  a  suas  hortas,  nem 
a  suas  agoas,  nem  em  nenhumas  de  suas  cousas.  E  aquelle  que  ende 
ai  fizer,  ficará  por  meu  imigo,  e  peitará  a  mi  o  meu  encouto  de  seis 
mil  soldos,  e  corregerá  em  dobro  o  mal  ou  forç-a,  que  fizer  ao  diío  Mos- 
teiro, ou  aos  Frades  d'elle,  ou  a  suas  agoas,  ou  a  alguma  de  suas  cou- 
sas. Em  testimunho  da  qual  cousa  dei  ao  dito  Convento  esta  minha  car- 
ta. Dada  em  Lisboa  treze  de  Setembro.  El  Rei  o  mandou  por  Pedrafonso 
Ribeiro.  Domingos  Joanes  a  fez,  era  de  M.CCC.XXXYIII.  annos.  {Res- 
ponde aos  de  Christo  de  1300.) 

O  mesmo  se  mostra  por  outro  indicio  muito  mais  publico,  que  he 
vermos  nas  vidraças,  que  estão  sobre  o  arco  da  Capella  mór  a  insígnia 


3i8  Livao  III  DA  iiisToniA  mz  s.  domingos 

tão  saljida  ilas  esferas  d"cl  ílei  dom  Manoel.  E  eoni  tudo  ficando  !)astan- 
temente  provado  por  tais  memorias  ser  este  Convento  da  obrigação  dos 
Reis,  não  achamos  nenhuma  de  mercê  perpetua,  que  elles  llie  fizessem 
de  renda,  ou  fazenda,  ou  bens  da  Coroa. 

Mas  tornando  á  historia,  foi  o  Bispo  caindo  na  conta  das  semrazões 
que  tinlui  feito  aos  Frades,  e  entendendo,  que  não  poderia  prevalecer 
contra  elles,  pois  tinhão  por  si  os  poderes  do  Ceo,  e  da  terra,  começou 
a  liumanar-se,  e  descer  a  partidos  mais  acommodados.  E  os  Frades  por 
mostrarem,  que  não  linhão  gosto  da  discórdia,  inda  quando  estavão  cer- 
tos da  vitoria,  fo]garão.de  cortar  por  si,  e  concederão  em  algumas  con- 
dições pesadas,  que  o  tempo  despois  foi  aliviando,  e  reduzindo  tudo  ao 
estado  de  paz,  e  quietação,  com  que  hoje  vive.  Pêra  o  que  ajudou  mui- 
to a  Rainha  doaa  Mafalda,  de  quem  pouco  ha  falamos,  poios  meios,  que 
dii^emos  no  capitulo  seguinte. 

CAPÍTULO  XII í 

Faz  a  Rainha  dona  3Iaf<thla  doação  do  padroado  de  uma  Igreja  á  Sé  do 
Porlo.  pêra  de  todo  pacificar  o  Bispo,  e  Cabido  com  os  Frades.  Pro- 
cede o  Bispo  com  elles  em  amizade:  faz- lhes  esrnolla  de  daas  fontes 
pêra  o  Convento. 

A  Rainha  dona  Mafalda  foi  filha  dei  Rei  dom  Sancho  Primeiro  de 
Portuga!  ( *),  e casada  com  elRei  dom  Anrique,  oPrimeiro deCasíella,  aquelle 
que  morreo  em  Falência  do  desastre  de  huma  telha,  que  lhe  cahio  so- 
bre a  cabeça:  do  q;'.al  sendo  apartada  por  sentença  da  Sé  Apostólica, 
por  casarem  sem  dispensação,  havendo  entre  ambos  estreito  parentesco, 
tornou  pêra  Portugal,  e,  andando  o  tempo,  fundou  o  Mosteiro  de  Arouca 
na  Ordem  de  Cister,  e  nelle  se  recollieo,  e  está  sepultada.  Esta  senhora 
como  procurou  nos  princípios  atalhar  as  inquietações,  que  o  Bispo  dava 
aos  Frades,  assi,  despois  que  os  vio  scrihores  da  causa  com  os  favores 
do  Pontífice,  e  dei  Rei,  desejou  polo  amor,  e  grande  devação,  que  ti- 
á  Ordem,  que;não  ficassem,  em  casa  alheia  hospedes  mal  assombrados. 
E  a  este  fim  fez  doação  ao  Bispo,  e  Cabido  de  huma  Igreja,  que  tinha 
de  seu  padroado  na  ribeira  de  Leça,  offerecendo-a  liberal,  e  esponta- 
neamente, e  afiançada   com  certos   casaes,  em  recompensa  das  perdas, 

(.]  Monar.  Lusil.  p.  2.  1.  7.  c.  22.  Duarte  Nunt's  de  Lião  na  víila  de  dora  Sanclio  riim. 


PARTICI  I.AU  DO  [íEINO  DE  PORTLGAf.  3ií) 

e  danos,  que  os  Clérigos  da  viziníiaLTa  dos  Frades  íemião.  Grande,  c 
memorável  virtude!  que  por  pacificar  desavenças  alheias,  em  que  nada. 
interessava,  nem  perdia,  folgou  de  perder  a  fazenda  própria.  O  original 
da  escritura  se  guarda  no  Cartório  do  Convento:  e  nós  polo  que  toca  á 
memoria,  e  honra  de  tal  Princeza,  darem.os  aqui  o  treslado,  pêra  que 
em  quanto  estes  escritos  durarem,  viva  n'elles  seu  nome,  e  nosso  agra- 
decimento. Segue  a  doação. 

In  Dei  nomine  Amcn.  Notum  sit  o?>íír/5?í.s  fnrscTiicm  paginam  inspc- 
ctiiris,  qnód  ego  Regina  Domina  Mafalda  pro  remédio  aninue  mea',  ob 
gratiam  Fratrum  PrceiUcatoriim  in  ciuitale  Poriucnsi  de  consensu  Episco- 
pi  et  Capitnii  Portugal lenais  commorantium  do  Ecdcsiam  sancíce  Criicis 
de  Ripa  LeccicB  cnm  omnibus  suis  possessícnihns  et  iuribiis  suis,  Ecclesicn 
sanctw  Mar  ice  Sedis  Porluensis  in  recompensadonem  grauar.iinis ,  si  in 
aliquo  ex  Pradicalorum  Froirttm  commoralione,  Ecclesia  Portvgallensis 
fuerit  aggrauata.  El  slalim  wilto  Episcopxnn  Dominum  Pctriim  et  Capitu- 
Inm  eiusdem  Ecdesiw  in  duminium  et  possessioncni  Ecclesia'  siipradicUv,  iit 
quicquid  iuris,  hceredilnlis,  possessioivis  vid  quasi  in  prcedicla  obtineo  Eccle- 
sia, totum  in  Episcopum  et  Capidiluni  supradicta;  Sedis  transfero  pleno 
iure.  Et  vt  ista  mea  donalio  jirmnin  robur  ofitincat,  assigno  sex  Cusalia 
in  villa  de  Louredo  de  Sousa,  vt  si  fcrtè  aliqvis  vcHel  impedire  donatio- 
nem  meam,  et  ae  iure  in  cndem  Ecclesia  in  vila  mea  ius  evinceret  patro- 
natus :  et  ego  prcediclam  Ecdesiam  non  liberauero,  de  pnedictis  casalibus 
recipiat  Ecclesia  Porlugnllensis  nuanfum  damnum.  snsUnuerit  in  prcedicta 
Ecclesia  Sanctfi;  Crucis.  Et  si  tolnm  omiserit  Ecclesia  Portugallensis  in 
perpetiium,  tunc  in  perpeluum  pnvdicta  Casalia  penes  PoitugallcjiSrni  Ec- 
desiam libera  remanvaul.  Quod  si  forte  aiiquis  vd  aliqui  in  vita  m^a 
ipsain  Ecdesiam  impeUívint,  et  in  eadem  aliquid  non  obfinuerint,  libc- 
rum  sit  mihi  de  eisdem  casalibus  in  morte  mea  pro  mea  disponere  volun- 
iate.  Et  si  ínterim  de  eisdem  Casalibus  oliter  voluero  ordinare,  debeo 
primo  assignnre  pradicke  Sedi  alia  Casalia  wquiualentia  in  Portvgallensi 
Dioecesi  constituía,  quce  sint  conditione  et  modo  simili  obligata.  Episcopus 
autem  et  Cnpitulvm  snpradicti  debent  me  iuuare  ad  liherafionern  supradi- 
ctcp.  Ecdesice  per  iustitiam  Ecclesiasticam,  quanlum  de  iure  potuerint  bona 
fide.  Et  vt  supradida  in  dvbivm  non  vcniâr.t,  'nec  aliqua  inde  conlentio 
orintur,  fecimus  per  alphabdum  dividi  charlas  islãs,  vi  vtraqne  pars  suam 
tcneat  in  tcstimonium  frmilatis,  et  sigillo  nico  prriprio  cGmmunirc.  Faria 


350  LIVRO  111  DA  IIISTOHIA  DE  S.   DOMINGOS 

charta  iiiensi  lunij  sttb  jEra  M.CC.LXXVIf.  re.-[)ond6  ao  anno  corrente 
d6  Christo  I;239.)  Eijo  vcró  tabellio  inemoratus  Anlonitis  Stepliamis^  qiii 
supradictam  literam  inspexi  cum  supradido  siijillo  ipsius  ílegiure  hnbente 
ex  vna  pcuie  imaginem  mídieris  quasi  amictíe  p<illio  habentis  manum  dex- 
teram  i/i  qua  tenebat  florem,  et  mamim  sinistram  supra  pcclus  quan  te- 
nenteni  chordas  pallij,  et  habentis  coronam  in  capite ;  et  supra  coronam 
dicfw  imaginis  et  sub  pedibus  ipsius,  in  suprema  scilicel,  et  in  inferiori 
parte  sigilli  erard  signa  llegum  Portugalliíd:  ex  altera  vero  parte  sigilli 
erat  imago  cujusdam  Castri:  literes  vero  per  tolum  circuitum  sigilli  ex 
vtraqnc  parte  ernnt  istoe.  S.  Dominm  3fafald<c  Dei  grafia  CastelliX  et  To- 
leti  Regina;,  eadem  gratia  Santij  illustris  Porlugallice  Regis  filiw. 

Porque  temos  atrás  bastantcmenle  declarado  a  sustancia  d'esta  es- 
critura: e  ho  bem  escusarmos  "leitura  desnecessária,  traduziremos  so- 
mente as  palavras,  que  no  fim  d'ella  ajuntou  o  tabellião  de  seu  officio, 
que  pôde  ser  sejão  bem  aceitas  dos  que  não  sabem  Latim,  as  quais 
querem  dizer: 

E  Eu  dito  tabaliião  António  Esteves  vi  a  carta  acima  escrita  com  o 
sello  pendente  da  mesma  Rainha,  o  qual  tem  de  huma  parte  liuma  fi- 
gura de  molher,  que  representa  estar  com  manto  cuberto,  e  huma  flor 
na  mão  direita,  e  a  esquerda,  que  lhe  fica  sobre  o  peito,  parece  travada 
de  huns  cordoens,  que  saem  do  manto.  E  tem  na  cabeça  sua  coroa ;  e 
por  cima  d'ella  na  volta  mais  alta  do  sello,  e  na  inferior  por  baixo  dos 
pés  se  divisão  as  armas  de  Portugal.  Da  outra  banda  parece  hum  cas- 
tello  com  muitas  letras,  que  o  rodeão,  e  fazem  orla  ao  sello  por  ambas 
as  partes,  e  dizem.  Sello  de  dona  Mafalda  por  graça  de  Deos  Rainha  de 
Castella,  e  Toledo :  c  pola  mesma  graça  íilha  do  illustre  Rei  de  Portu- 
gal dom  Sancho. 

Assi  teve  fim  esta  tormentosa  contenda.  E  o  Bispo,  ou  que  entrasse 
n"ella  por  induzimonto,  e  persuasão  d^outrem :  ou  que  caisse  agora  na 
conta  do  muito,  que  ganhava  em  seu  oíTicio  Pastoral  com  obreiros  tão 
proveitosos,  como  cada  hora  hia  conhecendo,  que  o  erão  os  Frades,  pro- 
curou por  todas  as  vias  soldar  a  quebra  passada,  e  sepultar  os  desgos- 
tos passando  de  inimigo,  e  persiguidor  publico,  a  publico  bemfeitor,  e 
amigo.  E  foi  o  principio  acudir  ao  Convento  com  copiosas  esmolas :  e 


PAUTICILAII  DO  HEINO  DE  POMICAL  351 

logo  no  mesmo  anno  de  1239  enterveio  com  sua  pessoa,  e  sinal  (]e  sua 
mão  em  iiuma  escritura,  de  doarão  que  certo  devoto  fez  ao  Convento 
de  liuma  horta,  que  partia  com  elle.  E  despois  no  de  1245  em  sinal  de 
animo  verdadeiro,  e  não  fingida  reconciliação  deu  pêra  a  casa  duas  agoas 
de  hurnas  herdades  suas,  que  logo  se  trouxerão,  e  foi  esmola  de  muita 
importância.  O  assinado,  que  d'ellas  fez  original,  se  guarda  no  Cartório, 
e  he  o  seguinte  : 

Nolum  sU  omnibus  tam  prijesenúbus,  quum  futnris  lias  Viteras  inspectu- 
rts,  quod  ego  Petrns  Divina  misericórdia  PortugaUensis  Episcopus  causa 
cleemosi/me  et  intintu  pictatis  in  remissionem  peccatorum  meorum  dono  Fra- 
tribus  PrcEdicatorlbus  de  Portu  dous  fontes,  cjiiorvin  vnvs  orilur  In  hortu 
meo  chra  guoddam  pahnnbare,  alter  vero  snperius  circà  viam,  qua;  conti- 
gua est  iam  dicto  horto  tn  perpetuum  possidendos.  Insvper  concedo  eis  libe- 
rum  transilum  tam  per  loca  mea^  quam  per  loca  alíorum^  vt  posslnt  aquani 
dktoriim  foníium  ad  suum  Monasterium  ducere  iiberé  et  sccurè:  IJatacharta 
pridié  Cal.  Maij  anno  Domini  M.CC.XLV. 

Outra  fonte  nos  deu  hum  fidalgo  da  cidade,  cujo  appellido  dura  inda 
hoje  n'ella:  chamava-se  Domingos  Gonçalves  Ferreira,  e  sua  molher  Jla- 
rinha  Mendes.  A  fonte  tem  nome  daGalvoa.  Assi  ficou  a  casa  com  abun- 
dância d'agoa  bastante  pêra  cozinha,  e  horta,  mas  nenhuma  boa  de  be- 
ber. E,  porque  se  veja  a  pouca  curiosidade,  com  que  os  Religiosos  d'esía 
casa  viverão  sempre,  do  que  a  suas  pessoas  locava,  ou  a  bebião  assi 
salobre,  e  grossa,  ou  tiravão  da  comida,  e  esmolas,  que  pêra  ella  gran- 
geavão,  quanto  bastava  pêra  comprarem  mellior  agoa.  E  n"este  modo 
de  vida  perseverarão  constantemente 'até  poucos  annos  ha,  que  os  Pa- 
dres Menores  seus  vizinhos,  trazendo  de  fora,  huma  muito  boa  peVa 
o  seu  Convento,  e  não  tendo  outro  caminho  pêra  a  levarem  com  com- 
modidade  se  não  pola  nossa  cerca,  partirão  com  nosco  quanto  basta 
pêra  suprir  a  falta,  recebendo,  e  fazendo  fraíeinal  caridade.  A  Igreja 
como  houve  concórdia  foi  logo  lageada  de  sepulturas  requestadas  á  com- 
petência. E,  porque  sobejavão  requerentes  pêra  outras,  e  faltava  lugar : 
hum  Prior,  filho  do  mesmo  Conventcs  a  quem  nas  memorias  antigas 
achamos  com  nome  de  dom  Frei  Pedro  Esteves,  levantou  o  grande  al- 
pendre, que  cobre  o  adro,  o  qual  foi  logo  povoado  de  sepulturas,  e  em 
parte  serve  de  recreação,  e  casa  de  negocio  aos  naturaes,  ao  m.odo  que 


òoi  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.   DOMINGOS 

fazem  as  gr;uU's  dn  Sé  de  Sfvilha  aos  sons.  Porque,  como  a  cidade  está 
situada  em  lugnr  dependurado,  e  o  Comento  lhe  fica  no  meio,  e  como 
no  coração  d"ella,  não  ha  lugar  mais  a  propósito  pêra  ser  írequentudo 
dos  negociantes,  juntando-se  a  comraodidade  da  igreja,  e  o  einparo,  que 
o  alpendre  dá  pêra  Sol,  e  agoa.  A  vista  dos  dormitórios  cae  sobre  o 
Douro,  que  faz  porto  á  cidade,  e  lava  as  muralhas,  que  decem.a  beber 
na  agoa.  Assi  lie  o  posto  aprazível,  e  sadio.  Sustenta  o  Convento  de  or- 
dinário vinle,  e  quatro  Frades.  Porque,  dado  que  a  fazenda,  que  possue 
de  raiz,  he  muito  curta  pêra  tantas  bocas:  a  caridade  da  terra  não  lie 
boje  niunios,  que  n'aquelles  primeiros,  e  antigos  tempos. 

CAPITULO  XIV 

Da  confraria  do  santissimo  nome  de  Jesii  sila  neslc  Convénio: 
de  sua  anligitidade,  e  milugies. 

No  anno,  que  el  Rei  dom  Duarte,  nnico  d'este  nome  faleceo,  padecia 
o  Reino  bum  cruel  açoute  de  peste,  da  qual  dizem  que  foi  sua  morte : 
c  estendendo-se  por  todas  as  Comarcas,  foi  grande  o  estrago,  que  íez.  E 
como  os  males  de  contagião  onde  achão  mais  fioqiiencia  de  gente,  fe- 
rem ci)m  maior  violência,  tanto  que  o  fogo  delle  chegou  a  esta  cidade, 
ateou  com  tanta  força,  que  não  se  sabião  os  homens  dar  a  conselho,  nem 
achavão  remédio  humano  pêra  se  valer.  Muito  ordinário  be  mandamos 
Deos  trabalhos,  pêra  serem  meio  de  o  buscarmos:  o  também  instrumen- 
to de  nos  fazer  mercês.  Era  publico  que  assola;ido-se  Lisboa  poucos  an- 
nos  atrás  com  semelhante  praga,  se  juntara  o  povo  em  numa  confraria 
do  suavíssimo  nome  de  Jesu.  E  havendo  muitos  annos,  que  durava  sem 
dar  hora  de  repouso,  quasi  subitamente  desapareceo  com  este  remédio, 
sendo  assi  que  a  confraria  se  assentou  no  Convento  de  S.  Domingos  polo 
mez  de  Novembro  do  anno  de  1432,  (como  ao  diante  veremos),  e  quando 
veo  fim  de  Dezembro,  que  logo  seguio,  já  não  liavia  mal  nenimm.  A  esta 
imitação  entrando  o  anno  de  1448  se  acordou  entre  os  Cidadãos  do 
Porto  instituir  buma  semelhante  Confraria,  e  junta  a  terra  toda  levarão 
com  solene  procissão  hum  devoto' Crucifixo  ao  nosso  Convénio,  o  o  col- 
locarão  em  altar  particular  seu.  Mashe  dino  de  muita  consideração,  que 
obrando  nosso  Senhor  por  meio  d"esta  imagem  mui  provados  milagres 
em  pessoas  particulares,  não  foi  servido  remcdear  por  então  a  corrup- 


PAUriCil.AU  1)0  r.Kl.NO  ííE  1'UKTl(jAL  3o.1 

cão  do  ar,  e  infirraidade  publica :  antes  durou  mais  alguns  annos,  des- 
pois  de  cessar  por  todo  o  Ueino,  clamando  a  voz  do  povo,  que  assi  junía 
cosiunia  muitas  vezes  acertar  nos  juízos,  que  a  rezão  de  perseverar  era 
liuuia  tormenta  de  contradições,  que  levantarão  certos  homeiis  a  seu  pa- 
recer zelosos,  pretendendo  tiramos  a  imagem,  e  extinguir  a  confraria  : 
matéria  em  que  houve  seis  annos  de  litigios,  e  padecerão  os  Religiosos 
tantas  vexações,  e  trabalhos,  que  houverão  por  milagre  do  Senhor  11- 
vral-os  d"el!es  com  lhes  dar  sentença,  como  deu,  em  lavor.  Muitas  vezes 
faz  dano  trazer  de  novo  á  praça  negócios  pescdos,  quando  o  tempo  os 
tem  sepultado.  Por  isso  deixaremos  em  silencio  as  causas,  e  autoi^es,  o 
processo  d"estes.  E  trataremos  de  alguns  milagres  dos  annos  mais  vizi- 
nhos a  esta  nossa  idade,  com  que  se  acredilão  bem  os  antigos,  que  nilo 
Cearão  em  escrito. 

Polo  mez  de  Maio  do  anno  de  1574  mandou  o  Sacristão  a  casa  d-j 
huns  devotos  huma  toalha,  com  que  estava  cingido,  como  he  costume  o 
Santo  Crucifixo,  pêra  que  Ília  lavassem.  Havia  nella  huma  minina  de  seis 
pêra  sete  annos,  que  passava  de  dous,  que  não  sahia  fora  da  porta  por 
estar  de  todo  cega.  Fora  principio  do  mal  muita  copia  de  humor,  que 
lhe  acudio  aos  olhos  com  tão  grossa,  e  sobeja  inchação  sobre  elles,  que 
a  nenhum  remédio  obedeceo :  e  foi  deixada  dos  Médicos  por  incurável, 
entendendo-se  que  os  devia  ter  quebrados.  Quando  virão  em  sua  mão 
peça,  que  em  íal  ministério  servira,  chamão  a  minina  com  alvoroço,  e 
devação,  põem- lha  sobre  a  cabeça,  e  olhos:  grita  a  mãi  desfazendo-sj 
em  lagrimas:  Ah  meu  Senhor  Jesu  Christo,  a  huma  Cananea  Gentia  cu- 
rastes vós  n"outro  tempo  a  filha  atormeníada(*),  e  a  outra  Flebrea  deu  saúde 
a  borda  da  vossa  roupa  tocada  (**):  bem  podíeis  vós  hoje,  se  quisésseis,  dar 
iemedio  a  huma  mãi  desconsolada,  e  a  huma  criat-arinha  afdigida  com 
tormento  de  trevas  quasi  antes  de  ter  idade  pêra  ver,  nem  de  perder  a, 
graça,  que  em  vosso  sangue  polo  bautismo  recebeo.  E  bem  podia  ser 
meio  do  que  vos  peço,  este  lenço,  pois  sérvio  na  imagem,  que  nos  esl:i 
representando  o  muito,  que  por  ella,  e  por  mi,  e  polo  mundo  todo  fi- 
zestes. Passadas  duas  horas  foi  abaixando  a  grande  inchação,  que  cubria 
os  olhos  da  minina,  de  sorte  que  começou  a  abrir  o  esquerdo,  e  cha- 
mando pola  mãi  com  alegria  afiirmava,  que  não  sintia  já  pejo  nelle,  e 
que  via.  Não  podia  a  mãi  crer  tamanho  bem.  Eisque  no  melo  do  aho- 

(•1   Mat    lo. 
{■•;  iliith.  !). 

vor.  i.  2o 


355-  LIVRO  II!  DA  IIISTOKIA  DE  S.  DOMINGOS 

roço  foi-sc-lho  abrindo  o  outro,  e  enxugando  ambos  de  maneira,  que  de 
cega  de  todo,  ficou  sam,  e  com  perfeita  vista  de  todo.  Como  o  milagre 
foi  ilio  patente,  houve  cuidado  de  o  fazer  justificar,  e  autorizar  polo  Or- 
dinário. E  achamos  em  lembrança,  que  succedeo  em  18  de  Maio  do  anno 
que  temos  dito  de  1374.  E  foi  o  ministro,  que  fez  a  diligencia  o  Doutor 
João  Pais,  Provisor,  e  Vigário  geral  polo  Bispo  dom  Ayres  da  Silva,  e 
a  minina  se  chamava  Elena.  Mas  não  espantarão  menos  os  que  se  se- 
guem. 

Dezeseis  annos  havia,  que  Lianor  Leitoa,  moradora  na  mesma  cidade 
na  rua  das  Cangostas  padecia  hum  estranho  mal  na  cabeça,  hora  de  do- 
res intensas,  e  intoleráveis,  com  que  lhe  acudião  huns  vómitos  de  gran- 
♦  de  tormento :  hora  com  vagados  como  de  mal  caduco  que  davão  com 
ella  em  terra,  e  ficava  sem  juizo :  e  a  continuação  d"estes  acidentes  a  ti- 
nha ensurdecido,  e  todos  os  dentes  tão  abalados,  que  lhe  era  pena  o  co- 
mer. E  o  maior  mal  era  que  com  nenhum  beneficio  da  Fisica  sintia  me- 
lhoria. Ouvindo  contar  o  milagre  da  cega,  fez-se  levar  ao  Convento,  lan- 
çou-se  em  oração  diante  do  altar  de  Jesu,  trouxerão-lhe  a  toalha,  bei- 
jou-a,  e  pol-a  sobre  a  cabeça.  Quando  se  levantou,  se  achou  tão  outra 
do  que  viera,  que,  como  se  ah  lhe  mandarão  deixar  os  males  todos, 
nunca  mais  sintio  nenhum  de  quantos  trazia.  Está  apontado  que  o  dia, 
que  esteve  no  Convento,  foi  aos  16  de  Junho  do  anno  cor.-ente  de  1374. 

Por  Agosto  do  mesmo  anno,  adoeceo  de  hum  prioris  Caterina  Ra- 
belia,  moiher  de  Martim  Ferraz,  ambos  gente  nobre,  e  foi  o  mal  tão  ve~ 
Iiem.ente,  que  ao  seteno  desconfiarão  os  Médicos  d"el!a.  Neste  estado 
mandou  buscar  a  santa  toalha,  e  pondo-a  sobre  a  cabeça,  e  chegando 
huma  ponta  ao  lugar  d'onde  mais  se  dohia,  sintio  logo  que  se  lhe  des- 
fizera huma  dureza  como  taboa,  que  Uie  tomava  o  estamago :  e  i>edio  de 
comer,  cousa  de  que  totalmente  tinha  perdido  o  gosto.  A  estes  princi- 
pies sucedeo  hum  copioso  suor,  que  lançou  fora  a  febre,  e  a  doença. 
Também  se  autenticou  este  milagre  com  ditos  de  muitas  testimunhas.  E 
a  enferma  em  penhor  de  agradecimento  mandou  ao  Convento  hum  fer- 
moso  cofre  de  madre  pérola  guarnecido  de  prata  pêra  servir  ao  santís- 
simo Sacramento  no  Sacrário. 

I\íaria  Gonçalves,  moiher  pobre,  que  se  agasalhava  no  hospital  de 
nossa  Senhora  do  Cais,  havia  quasi  quatro  annos  que  caindo  quebrara  o 
braço  direito  pola  cana  junto  da  mão.  Curou-se,  sarou  do  braço.  Mas 
ficarão-lhe  três  dedos  da  mão  encolhidos,   e  sem  uzo,  nem  movimento 


PAIVriClLAR  DO  RI:L\0  I)K  1'UUTIGAL  .Voo 

nonliiim.  Ajnntnva-sc  andar  quasi  tolhida  dí3  hunia  perna,  que  com  muito 
ti'al)alho,  e  dores  arrastava.  Chegando  o  primeiro  (ha  do  anno  novo  de 
1573,  em  que  se  fazia  a  festa  do  nome  de  Jesu,  foi-se  como  pode  ao 
Convento.  Posta  diante  do  Senhor  chamou  por  elle  com  grande  fee;  e 
({ueixando-se  éos  mestres,  em  cujas  mãos  perdera  o  pouco  que  tinha  de  fa- 
zenda, e  não  achara  saúde,  pedia-Ihe  que  fosse  seu  mostre,  e  sua  saúde, 
que  esta  lhe  seria  também  fazenda,  e  remédio  na  pobreza,  e  miséria,  que 
padecia :  tomou  a  santa  toalha  com  a  mão  manca,  c  beijou-a  com  deva- 
ção.  Logo  na  noite  seguinte  sintio  grandes  dores,  que  lhe  corriam  poia 
mão,  e  dedos  aleijados  até  pola  manham:  e  entrado  o  dia  começou  a 
estender,  e  endereitar  os  dedos  com  espanto  de  ver,  que  já  não  estavão 
amortecidos  como  d"antes,  mas  que  os  movia,  e  meneava  despejada- 
mente.  Conheceo  logo  d'onde  lhe  vinha  tanto  bem,  foi  servindo,  e  tra- 
balhando com  elles,  e  dando  graças  ao  Senhor,  que  pêra  maior  gloria 
sua,  apoz  a  cura  da  mão,  lhe  deu  também  saúde  na  aleijão  da  peina. 

CAPITULO  XV 

De  outros  milagres  do  Santo  Crucifixo. 

Muitos  outros  milagres  achamos  postos  em  memoria,  que  deixamos 
por  encurtar  leitura :  e  diremos  somente  dous  mais  insignes,  que  não 
merecem  ficar  esquecidos.  No  Mosteiro  de  Corpus  Christi  de  Villa  nova 
de  Gaia,  que  fica  deft-onte  da  cidade,  na  outra  margem  do  rio,  e  he  de 
Freiras  de  São  Domingos,  estava  enferma  Sor  Maria  de  Bairros,  profes- 
sa. Sendo  mandada  sangrar  pêra  remédio  de  huma  doença,  ficou  com 
duas  despois  de  sangrada.  Porque  o  oííicial  por  desastre,  ou  pouca  des- 
treza lhe  picou  hum  nervo,  a  que  seguio  logo  grande  inchação  no  braço, 
e  maior  no  lugar  oíTendido,  e  começar-se  a  tingir  todo  de  nódoas  azuis, 
e  verdenegras,  acompanhadas  de  dores  crecidas,  que  fazião  medo,  e  in- 
dicies de  grande  mal.  E  não  era  senhora  de  o  estender,  nem  bolir.  Es- 
tando assi  aleijada,  e  não  melhorando  com  nenhuma  cura  de  muitas,  que 
lhe  fazião,  trouxerão-lhe  hum  espinho  da  Coroa  do  Santo  Crucifixo.  Era 
presente  a  Prioressa,  e  toda  a  Comunidade.  A  enferma  com  grande  fé, 
e  devação  descobrio  o  braço,  lançou  fora  emprastos,  e  ataduras :  e  che- 
ga o  espinho  aonde  linha  a  origem  do  mal,  e  pede  que  alli  lho  atem,  e 
apertem,   que  não  quer  outro  emprasto,  nem  outra  mezinha.  Ajudarão 


Í)-jC)  livro  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

as  Religiosas  sua  confiança  rezando  a  Antífona  Clirislus  fadus  est  pro 
uolns  obedicns,  ele,  e  a  orarão  Rcspice,  qucesumus,  etc,  com  hum  Credo. 
Foi  principio  de  milagre,  que  logo  aquella  noilc  tomou  sono  tendo-o  de 
todo  perdido,  e  quando  amanlieceo  estava  sam,  sem  haver  no  braço  dor, 
nem  sinal  de  nódoa  ou  inchação.  Levantou-se  logo,  foi-se  «o  Choro  ren- 
der as  graças  ao  Senhor.  Quando  as  Religiosas  a  virão  postrada  n"elle 
imaginarão  que  o  poder-se  vestir,  e  chegar  alli  quem  estava  no  estado, 
em  quG  a  tinhão  deixado  a  tarde  atrás,  devia  ser  força  de  dores,  ou  de 
desesperação :  forão-se  a  el!a  lastimadas,  e  elia  levantando-sc  cheia  de 
alegria  pedia-lhes,  que  a  ajudassem  a  dar  graças  a  Deos  por  tamanlia 
misericórdia,  como  lhe  tinha  feito,  e  mostrou-lhes  o  braço  limpo  de  todo 
mal.  Começarão  então  a  entoar  todas  hiima  Antífona  á  santa  Coroa,  e  a 
enferma  pouco  despois  em  testemunho  da  saúde  milagrosamente  alcan- 
çada, lançou  as  mãos  á  corda  do  sino  grande  do  Mosteiro,  e  sem  outra 
ajuda  o  abalou,  e  tangeo  com  facilidade :  e  d'aquelle  dia  em  diante  não 
consintio  mais  que  lhe  chamassem  Maria  de  Bairros,  se  não  Maria  da 
Coroa. 

Em  caso  de  sangria,  mas  com  maior  perigo,  foi  também  o  segundo 
que  prometemos.  Governava  a  casa,  e  Corte  do  Porto  o  Conde  de  Mi- 
randa Anrique  de  Sousa,  decendeníe  do  grande  mestre  da  Ordem  de 
Christo,  dom  Lopo  Dias  de  Sousa,  e  herdeiro,  e  possuidor  de  sua  casa. 
Tinha  enferma  huma  filha  moça,  e  de  grandes  partes.  Parecendo  que  se 
devia  sangrar,  perturbou-se  o  official  com  ser  o  melhor  da  terra,  de 
sorte  que  errou  mais,  onde  mais  desejava  acertar,  e  não  picou  nervo 
que  muitas  vezes  tem^  fácil  cura  :  mas  cortou  arteiia,  que  poucas  he  re- 
mediavel.  Conheceo-se  logo  o  dano,  porque  sahia  o  sangue,  não  com 
corrente  continuada,  como  faz  o  das  veas,  mas  com  hum  movimento  in- 
terpolado, qual  he  o  do  pulso.  Ficou  o  homem  fora  de  si  conhecendo  o 
erro.  Acudirão  Cirurgiões,  e  Médicos,  não  havia  tomar  o  sangue,  nem 
esperança  de  soldar  a  artéria  respeito  da  agitação  continua,  com  que  se 
movem  todas,  imitando  a  respiração  de  que  vivemos.  Era  grande  a  des- 
consolação dos  pais,  como  he  de  crer,  e  da  enferma,  que  desejava,  e  me- 
recia viver.  Mas  crecia  o  perigo :  lembrava,  e  lemia-se  caso  semelhante 
ao  que  se  tinha  visto  poucos  annos  atrás  em  duas  senhoras  principaes 
em  Lisboa :  huma  irmam  do  Conde  de  Villa  franca.  Rui  Gonçalves  da 
Camará,  outra  irmam  de  dom  Jorze  de  Almeida,  Arcebispo  de  Lisboa, 
(jue  amljas  por  este  modo  morrerão  a  ferro,  e  mãos  de  sangradores. 


PAUTÍCULAU  DO  RLIXO  DE  PORTUGAL  3'i7 

Como  se  vio,.  que  não  obravão  os  medicamentos,  antes  coraeçavão  a  apa- 
recer sinaos  de  maior  mal,  não  podendo  a  enferma  repousar  com  gra- 
veza  de  dores,  acudio  toda  a  casa  aos  remédios  do  Ceo.  E  forão  correndo 
ao  Convento  com  recado  do  Governador,  que  com  muita  eíTicacia  pedia 
lhe  acudissem  os  Padres  com  a  santa  toaliia  de  Jesu,  de  quem  só  espe- 
rava o  remédio.  Era  Prior  o  Padre  Frei  António  Mascarenlias.  xMandou-a 
com  o  Suprior,  e  outro  Padre.  Foi  cousa  de  maraviilia,  e  de  grande  glo- 
ria, e  louvor  de  Deos.  Porque  no  mesmo  momento,  que  lha  poserão  so- 
bre o  braço,  foi  livre  das  dores,  soldou  a  artéria,  e  brevemente  cobrou 
saúde :  o  gosto  da  qual  foi  o  Governador  celebrar  no  Convento  j:om 
buma  Missa  solene  no  altar  de  Jesu,  e  muitas  esmoilas  por  graças.  Mas 
agradeceo-a  melhor  quem  a  recebeo.  Porque  d"ahi  a  poucos  annos  do 
meio  das  grandezas,  e  esperanças  da  Corte,  e  casa  da  Hainha  dona  Mar- 
garida de  Áustria,  a  quem  servia,  soube  dar  de  mão  a  tudo,  e  conten- 
lar-se  com  huma  cella  estreita,  e  pobre  de  bum  Mosteiro  de  rigurosa 
observância,  onde  se  recolheo,  e  professou. 

Pois  traíamos  de  milagres,  que  neste  Convento  teverão  sua  origem, 
não  he  rezão  deixarmos  de  dizer,  como  sepdo  os  Padres  d'elle  ajudados 
de  toda  a  cidade  a  festejar  a  canonização  do  glorioso  São  Jacinto,  Frade 
nosso,  no  anno  de  io95  com  huma  soleníssima  procissão,  mostrou  Deos 
aceitar  o  serviço,  que  se  lhe  fazia  em  honra  de  seu  Santo  com  mui  co- 
nhecidos, e  provados  milagres  em  favor  de  alguns  moradores  da  mesma 
cidade.  Os  quaes  não  especificaremos  por  serem  notórios  assi  estes,  co- 
mo outros  muitos,  com  que  o  Santo  se  fez  celebre,  e  estimado  por  iodo 
o  Pieino  n"aquelle  tempo :  e  também  porque  não  são  direitamente  da 
obrigação  d"esta  Historia. 


■O"".^ 


CAPITULO  XVÍ 

De  alfjuns  filhos  iVestc  Convento  :  e  das  relíquias  que  nelle  ha. 
E  outras  particularidades. 

Antes  de  entrarmos  na  matéria  proposta  no  titulo  d"esíe  capitulo, 
porque  ha  de  ser  ultimo  das  cousas  do  Porto,  farei  reposta  a  huma  du- 
vida, que  se  oíferece  no  que  temos  escrito  d'este  Convento.  E  he  que  o 
Bispo  na  carta,  que  escreveo  ao  Capitulo  de  Burgos,  oílececeo  Igreja 
sagrada :  e  despois  dizemos,  (e  assi  consta  do  Breve  do  Papa),  que  elle 


3.')S  LlVnO  III  DA  IIISTOllIA  DE  S.   DOMINGOS 

lançou  a  primeira  pedra  na  fabrica  d"ella.  Isto,  cm  que  parece  haver 
conli-adição.  tem  duas  repostas.  Porque,  ou  podemos  dizer  que  se  fez 
de  novo  somente  a  Capei  la  mor,  que  considerado  o  estado  presente  da 
obra,  não  ha  duvida  ser  edifício  mais  moderno,  que  o  corpo  da  lííreja, 
ilida  cfue  o  genei-o  de  fabrica  seja  o  mesmo ;  e  nella  faria  o  Bispo  a  ce- 
remonia  dita :  com  que  se  ficão  salvando  as  palavras  do  Breve,  enten- 
dendo o  todo  pola  parte  :  ou  que  a  prometida  Igreja  seria  em  posto  Ião 
desncomodado  pêra  se  poder  estender  o  Convento,  que  terião  os  Frades 
}>oi-  menos  mal  fabrical-a  de  novo  em  sitio  largo,  e  capaz.  Se  não  qui- 
zermos  dizer,  que  houve  tudo  junto,  dar-se  Igreja  feita,  e  mais  levantar- 
se  outra  de  novo :  i)odendo  ser  a  velha  a  mesma,  que  hoje  vemos  en- 
costada á  nova,  que  he  liuma  ermida,  a  que  se  sobe  por  huma  escada 
alta,  e  Íngreme,  que  por  lai  descomodidade,  e  ser  cousa  pequena  não 
escusava  o  Convento  outra.  E  he  tão  antiga,  que  não  ha  entre  nós  me- 
moria de  sua  fundação :  havendo-a  dos  princípios  da  confraria,  que  nella 
instituirão  os  mercadores  por  hum  contrato  celebrado  no  anno  de  Í35G 
entre  o  Convento,  e  os  primeiros  mordomos. 

Agora  diremos  dos  filhos  do  Convento,  e  diremos  de  poucos,  e  pou- 
co de  cada  hum,  pola  rezão,  que  muitas  vezes  tocamos,  e  muitas  nos  ha 
de  ser  forçado  repetir,  da  humildade,  ou  brio  dos  Religiosos  d'aquelle 
tempo,  que  querião  fazer  cousas  dignas  de  escritura,  antes  que  escre- 
vel-as,  correndo-se  de  lançar  em  livro  as  que  erão  de  honra,  e  louvor 
próprio.  E  quanto  a  mi  bastante  Crónica  he  da  virtude,  e  santidade  de 
lodos  os  Padres  d"aquclla  idade,  e  muitas  ao  diante,  a  Carta  do  Bispo 
dom  Pedro,  c  as  rezões  com  que  se  derão  por  obrigados,  (leão-se  coin 
attenção),  elle,  e  o  seu  Cabido  pêra  os  chamarem,  e  nã(;  meuí^s  o  amor 
com  que  toda  huma  Cidade  se  armou  por  elles.no  tempo  dos  desfavores 
do  Bispo.  Com  muita  confiança  os  posera  eu  em  Catalogo  de  vaiíjes  in- 
signes, se  soubera  seus  nomes,  posto  que  de  feitos  particulares  me  não 
constara.  Mas  até  d"islo  forão  pêra  com  nosco  tão  avaros,  que  só  de  Frei 
Gualtero,  e  de  seu  companheiro  nos  deixarão  memoria,  a  qual  devemos 
celebrar  por  rezão  de  fundadores,  e  polo  peso  de  trabalhos,  e  contradi- 
ções, que  padecerão  no  officio ;  e  em  Frei  Gualtero  lemos  mais  a  opinião 
que  delie  leve  a  Rainha  dona  Mafalda,  como  logo  se  dirá. 

A  caso  aciíamos  lembrança  do  Mestre  Frei  Domingos  do  Porto,  nome 
que  por  filho  do  Convento,  como  era,  e  natural  da  terra  lhe  compelia. 
Foi  pessoa  de  tantas  partes  de  religião,  e  eminência  de  letras,  que  o 


rARTICCLAR  DO  RFIXO  DF.  POP.TIT.AÍ.  'I"i9 

escolheo  o  Papa  Nicolao  III  pêra  seu  Penitenciário  cm  Romn.  E  pola 
grande  satisfação,  que  havia  de  sua  inteireza,  c  virtude,  foi  conservado  no 
cargo  poios  snccessores  Celestino  Quinto,  c  Bonifácio  Oitavo.  De  Roma 
eomo  bom  lllíio,  reconheceo  a  mãi,  que  o  criara,  mandando  a  esta  casa 
algumas  peças  de  prata  ricas  pêra  o  altar :  entre  as  quais  era  hum  gran- 
de, e  fermoso  Caliz  dourado,  e  guarnecido  de  liuns  engastes  de  esme- 
raldas. Mandou  mais  alguns  ornamentos  Sacerdotaes,  e  entre  elles  havia 
lium  muito  rico.  A  estas  peças  ajuntou  huma  copia  de  dinheiro  pêra 
eíTeito  de  se  lhe  fabricar  na  casa  huma  Capella  de  Santa  Marta,  de  quem 
era  devoto,  com  huma  enfermaria,  de  que.  havia  falta.  Dura  a  memoria 
(lo  que  mandou,  c  ordenou  do  dinheiro,  não  do  que  se  fez.  Elle  faleceo 
em  Roma. 

Filho  era  também  d'este  Convento,  mas  de  tempo  mais  moderno 
Frei  Álvaro  do  Porto,  que  polas  boas  calidades,  que  n"oIIe  concorrião, 
achando-se  em  Roma,  chegou  a  ser  Capellão  do  Summo  Pontifice.  Mas 
não  esquecido  do  que  devia  à  criação,  mandou  algumas  esmolas  a  esta 
casa,  e  vive  sua  memoria  na  vidraça  grande  da  Sacristia,  que  fica  de- 
fronte da  porta,  que  se  fez  com  parte  d^ellas. 

Nas  Crónicas  d"este  Reino,  na  parte  onde  se  escreve  a  jornada  que 
el  Rei  dom  João,  o  Primeiro,  fez  á  Cidade  de  Ceita  em  Africa,  quando 
a  ganhou  aos  Mouros  (*),  achamos  apontado,  que  estando  em  oração  hum 
Religioso  fdho  d"csta  casa,  huma  noite  despois  de  Matinas,  diante  do  al- 
tar de  Nossa  Senhora  do  Rosário,  se  lhe  representou  á  vista  o  mesmo 
Rei  armado  de  todas  armas,  e  posto  de  joelhos  diante  da  Senhora  com 
as  mãos  ao  Ceo  levantadas :  e  vio  que  lhe  metião  na  mão  hum.a  espada 
que  de  luzente,  e  acicalada  lançava  de  si  tal  resplandor,  que  não  tinha 
comparação  com  cousa  da  terra.  E  não  comprendendo  quem  lha  dava, 
todavia  ficou  entendendo  ser  cousa  celestial.  Não  declara  a  Crónica  o 
nome  do  Religioso :  nem  nós  o  pudemos  alcançar  por  outra  via.  Gi'am 
caso,  que  contem  historiadores  seculares  cousa  de  honra  de  nossa  Reli- 
gião, e  pêra  nós  sejão  estranhas.  Roa  prova  de  nosso  desazo  no  que  nos 
toca,  que  na  verdade  tem  pouca  desculpa. 

lia  neste  Convento  huma  relíquia  de  grande  preço,  pola  calidado 
d"ella,  e  pola  mão  de  que  veio.  He  huma  Cruz  feita  do  sagrado  lenho 
da  em  que  padeceo  Nosso  Salvador.  Foi  dadiva  da  Rainha  dona  ?Taíílda, 
que  também  falecendo  nos  quiz  obrigar  com  novos  penhores,  alem  doá" 

(•)  Gomcziancs  L.  da  tomada  de  Ceita  f.  3ô. 


Sv^iO  I.IYP.d  III  DA  HISTORIA  BE  S.  D0:\[1XG0S 

qne  nos  deu  ile  sua  devação  cm  vida,  que  temos  contado.  E  lio  de  con- 
siderar, que  acabando  seus  dias  no  Mosteiro  de  Arouca,  onde  ficava  se- 
pullada,  quiz  antes  pêra  nós  csla  preciosa  relíquia,  que  pêra  o  seu  Mos- 
teiro. Que  não  pode  ser  maior  prova  de  amor,  e  da  grande  opinião,  que 
linha  dos  moradores  do  nosso.  Deixou-a  em  testamento  com  declaração 
que  fora  de  Santa  Elena,  que  lic  ponto  de  muita  sustancia,  porque  se 
não  devia  fundar  em  congeíturas  leves.  Deixou-nos  mais  outra  relíquia 
de  valor,  que  lie  lium  osso  do  Santo  Marlyr  São  Brás.  E  ajuntou  ás  re- 
líquias huma  honrada  esmola  de  duzentos  morabitinos,  que  se  erão  d'ou- 
ro,  valia  cem  mil  reis,  como  atrás  fica  dito,  e  cem  medidas  de  pão,  que 
declara  seja  do  melhor  do  seu  celeiro  de  Bouças.  A  verba  do  testamen- 
to, que  se  guarda  no  Convento,  lie  do  teor  seguinte. 

Alando  Monasterium  fratrum  Prfp.ãicalornm  de  Porfit  crucem  de  Jigno 
Domini,  quai  fuit  de  Saneia  Helena  :  et  os  Sancti  Blasij,  quod  dcdernnt 
■iiiilii  Hospitalarlj,  et  ducentos  Morabitinos  reteres,  et  centum  modios  de 
pane  mdiori  cellarij  mei  de  Baucis.  Esta  he  a  verba :  o  testamenteiro  foi 
]<>ei  Gualtero,  que  então  tinha  o  cargo  de  Prior  do  Porto ;  e  pois  esta 
Princeza  o  escolheo  pêra  tamanha  honra,  bem  conhecia  que  estava  nelle 
]jeni  empregada. 

De  tempo  immemorial  vai  todos  os  dias  hum  Religioso  d'esía  casa  á 
Sé,  ler  huma  lição  de  casos  de  consciência  aos  Clérigos,  c  todos  os  mais 
(jue  querem  ser  ouvintes.  Por  este  trabalho  dão  os  Bispos  huma  esmola 
perpetua. 

Da  mesma  maneira  vai  outro  visitar  todas  as  náos  estrangeiras,  prin- 
cipalmente as  que  vem  de  terras  sospeitosas  de  heregia,  pêra  se  evitar 
a  entrada  de  livros  danados.  He  commissão  que  os  Priores  tem  do  In- 
quisidor geral. 

CAPITULO  XVII 

Da  fundarão  do  Real  Convento  de  Lisboa, 

O  Convento  de  S.  Domingos  de  Lisboa  he  obra  Real  des  da  primeira 
pedi-a.  Foi  fundador  el  Rei  dom  Sancho,  Segundo  no  nome,  e  Quarto 
lío  numero,  e  ordem  dos  Reis  d'este  Reino.  Consta-nos  por  documentos 
autênticos  que  temos  vivos  em  sua  origem  no  Cartório  d^elle,  os  quais 
(iriremos  tresladados  de  verbo  ad  verbum,  e  traduzidos  em  vulgar,  assi 
por  honra  do  autor  da  obra,  que  na  verdade  era  de  seu  natural  pio,  c 


PARTICULAR  DO  REINO  DR  PORTUGAL  361 

amigo  da  Religião,  como  porqnc  não  faltão  escritores,  que  qiielrão  dar 
esta  fundação  a  seu  irmão,  e  successor  no  Reino  o  Conde  de  Bolonha, 
que  foi  dom  Afonso  líl,  dos  Reis  d'este  nome.  A  rezão/jue  teverão  iiuns 
foi  tirada  da  pedra,  que  hoje  vemos  sobre  a  porta  das  graças  do  mesmo 
Convento,  (chamamos  porta  das  graças  a  que  dá  servintia  da  Igreja  pêra 
o  claustro :  e  o  nome  he  do  effeito  de  entrarem  por  elia  os  Religiosos 
quando  saem  do  Refeitório,  e  vão  juntos  ao  Coro  dar  graças  ao  Senhor 
polo  pão  cotidiano,  e  encomendar-lhe  juntamente  as  alnias  de  todos 
aquellss,  que  com  suas  esmolas  nos  ajudão  a  sustentar,)  E  porque,  como 
a  letra  d"ella  faz  autor  do  edifício  do  templo  a  el  Rei  dom  Afonso,  to- 
mando o  todo  pola  parte,  não  era  engano  muito  culpável,  mas  foi  en- 
gano. OUítros,  considerando  o  estado  do  Reino  quanto  ao  governo  pu- 
blico, e  aos  sojeitos   que  havião  de  povoar  a  casa,  devião  ter  por  im- 
possível, que  em  tal  tempo  se  desse  consintimenío  pêra  a  fabrica,  e  era 
o  discurso  acertado.  Porque  do  governo  estavão  apoderados  homens,  de 
cujos  costumes,  e  consciências  havia  queixas  publicas :  e  o  gasaUiado 
havia  de  ser  pêra  Religiosos,  cujas  pregações  já  então  era  huma  perpe- 
tua invectiva  clara,  e  descuberta  contra  esses  mesmos  homens,  (muitas 
vezes  o  temos  apontado  atrás  obrigados  do  curso  da  Historia,  que  pêra 
ser  entendida  nos  forca  a  repitir  as  mesmas  cousas  mais  de  huma  vez.) 
Mas  soUa-se  a  duvida  com  duas  rezões  muiio  achadas.  A  prim.eira  da 
bondade  dei  Rei,  que  amava  a  virtude  nos  mesmos,  que  lhe  erão  pesa- 
dos, e  sofria  o  seu  desgosto  a  troco  do  que  ganhava  o  povo  em  os  ter 
consigo.  A  segunda  da  manha,  e  artificio  dos  poderosos  privados :  que 
como  todo  animal,  por  tosco,  e  inliabil  que  seja.  ho  por  natureza  pêra 
sua  conservação  engenhoso,  ou  se  qnerião  congraçar  com  os  Frades,  que 
temião,  ou  vender  hypocresia  ao  Summo  Pontiíice,  que  a  el  Rei,  e  a  elles 
reprendia :  e  d"aqui  nacia  que  folgando  el  Rei  de  edijicar,  não  resistis- 
sem elles.  Assi  foi  a  obra  dei  Rei  dom  Sancho,  seu  o  pensamento,  sua 
a  traça:  e  o  principio  no  anno  do  Senhor  de  l'2'iL  e  no  mesmo  acei- 
tada pola  Ordem,  sendo  Provincial  o  Santo  Frei  Gi!,  prerogativa  grande 
d'este  Convento.  Quiz  el  Rei  que  houvesse  no  começo  toda  solenidade 
Ecclesiastica.  Estava  Lisboa   em  Sede  vacante,  aproveitou-se  de  hum 
Bispo  Estrangeiro,  que  andava  na  Cidade.  Pedlo-lhe  por  carta  sua  que 
fizesse  a  cerimonia.  Derão  sua  licença  o  Dayão,  e  Cabido.  Com  ella  poz 
o  Bispo  a  primeira  pedra  no  cdiíicio,  ao  que  se  pode  colligir,  por  fim 
de  Fevereiro,  ou  entrada  de  Março,  (porque  do  dia  preciso  não  consta), 


3G2  LIVRO  III  DA  msTOiíiiA  m:  s.  domingos 

do  anno  seguinte  de  1242,  e  passou  sua  certidão  do  feito  estando  em 
Santarém,  que  lie  do  teor  seguinte. 

F.  Bei  ijrutia  Regensis  Episcopus  vniuersis  pneseníes  literas  inspectU' 
ris  salulem  in  Domino.  Cum  esscmus  tn  Vlisbonensi  Dioecesi  conslituti, 
Donànus  Rex  Portiigallice  precibiis  tipnd  nos  instilit,  speciales  nobis 
literas  (ícstinando,  vt  in  fjnodam  loco  circd  civitatem  Vlisbonensem,  qui 
dici'ur  Corredonra,  vbi  Monastcrium  Ordinis  Fratrum  Prcedicalorum  con- 
struere  proponcbat,  primarium  lapidem  poneremns.  Vt  autem  nobis  li- 
cite competcret,  preces  regias  eífeclui  manàpare,  fuerunt  nobis  ex  parte 
Capituli  Ulyssiponensis,  eadem  Ecclesia  debito  Pastore  vacante  tales  literce 
proisentatis .  Notiun  sit  omnibus  pressentes  literas  inspecturis,  quòd  nos  De- 
canus  et  Capitulum  Ulisbonense  damns  licentiam  Fratribiis  Prwdicatori- 
hns  construendi  Monastcrium  apud  Ulisbonam.  Intelligimus  et  enim  quôd 
hoc  proueniat  ad  honorem  Ecclesice  noslroe  et  salutem  animarum.  Et  vt 
hcec  concessio  robur  obtineat  firmitatis,  sigillo  nostro  eam  fecimus  comniu- 
niri.  Datum  apud  Ulisbonam  XllI.  Kal.  Nouembris  anno  Domini  1241, 
Item  alice  sub  hac  forma.  Venerabili  in  Ghristo  Patri  ac  Domino  F.  Del 
gratia  Regensi  Episcopo  Capitulum  Vlisbonense  renerentiam  cum  salute. 
Palcrnitatem  vestram  daximus  attentiàs  deprecandum,  quatenus  in  eis, 
quat  Fratribus  Prcedicaioribus  nostroe  Dicecesis,  quae  ad  officium  Episco- 
pale  spectant,  occurrcrint  necessária,  dignemini  Episcopale  officium  exer- 
cere,  Dominationi  vestrce  super  praidictis  celebrandis  licentiam  tribuentes. 
Datum  apud  Ulisbonam  quinto  Idus  Februarij.  líurum  igitur  auloritate 
liíerarum  volunlati  proidicfi  Regls  inclinati  in  prmlicto  loco  primarium 
lapidem  imposuimus  ad  Monasterium  Fratrum  dicti  Ordinis  construendum. 
Datum  apud  Sancíareni  scptimo  Kal.  Aprilis  anno  Dom.  1242. 

A  tradução  lie. 

F.  Por  mercê  de  Deos  Bispo  Regense  a  todos  os  que  as  presentes 
letras  virem  saúde  no  Senhor.  Acliandonos  no  Bispado  de  Lisboa,  nos 
mandou  pedir  por  carta  sua  o  Senhor  Rei  de  Portugal,  que  lançássemos 
a  primeira  pedra  no  edifício  do  Convento,  que  pretendia  fazer  pêra  os 
Frades  Pregadores  no  sitio,  que  chamão  a  Corredonra  junto  á  Cidade  de 
Lisboa.  O  que  querendo  nós  púr  em  execução,  pêra  o  podermos  legiti- 
mamente fazer,   estando  a  dita  Igreja,  como  está,  era  Sé  vacante,  nos 


PAIITICULAR  DO  IIEINO  DE  PORTUGAL  363 

forão  presentadas  humas  letras  de  parte  do  Cabido  delia,  cuja  sentença 
era  esta.  Saibão  qnantos  estas  letras  virem,  que  nós  Dayão,  e  Cabido  de 
Lisboa  damos  licenra  aos  Frades  pregadores  pêra  edificarem  Mosteiro 
nesta  Cidade.  Porque  entendemos  que  resultará  de  tal  obra  honra  peia 
nossa  Igreja,  e  será  meio  de  salvação  pêra  as  almas.  E  pêra  que  esta 
licença  tenha  força,  e  vigor,  a  confirmamos  com  nosso  sello.  Em  Lisboa 
aos  vinte  de  Outubro  anno  do  Senhor  1241. 

Tainbcm  nos  foi  dada  liuma  carta  do  mesmo  Cabido  que  continha 

o  seguinte. 

Ao  venerável  em  Christo  Padre,  c  senhor  F.  Bispo  Regense,  o  Cabi- 
do da  Sé  de  Lisboa,  reverencia,  e  saúde.  Pareceo-nos  pedir  com  boa  con- 
sideração a  V.  P.  que  nas  occasiões  de  necessidade,  que  aos  Frades  Pre- 
gadores se  offerecem  em  cousas  tocantes  ao  ministério  Episcopal,  seja 
vossa  Senhoria  servido  executal-o,  porque  pêra  as  tais  lhe  damos  licen- 
ça. Em  Lisboa  nove  de  Fevereiro.  Por  tanto  em  virtuíle  destas  letras 
desejando  nós  satisfazer  ao  dito  Senhor  Rei,  fomos  ao  sitio  acima  decla- 
rado, e  assentamos  a  primeira  pedra  pêra  se  proseguii'  a  obra  do  dito 
Convento,  que  se  determinava  fazer.  E  esta  passamus  em  Santarém  aos 
2G  de  Maiço  anno  do  Senhor  de  1242. 

Por  esta  certidão  do  Bispo,  que  inclue  outra  certidão,  e  carta  do  Ca- 
bido, se  deixa  bem  ver  que  não  foi  outro  o  fundador  do  Convento  se 
não  el  Rei  dom  Sancho,  visto  como  nestes  annos  de  241  e  242  reinava 
pacificaniente,  e  basta  nomear-se  o  anno,  inda  que  se  não  declare  o  no- 
me do  Rei.  E  de  não  esperar  polo  Bispo  proprietário,  que  devia  estar 
eleito,  e  não  confirmado:  nem  por  outro  do  Reino,  que  fora  cousa  faci!, 
se  collige  claramente,  que  havia  apetite  na  obra,  e  desejo  que  corresse 
logo :  segundo  a  qual  vontade,  e  o  pouco  feitio  das  nossas  fabricas 
n'aquella  bendita  idade,  que  só  nas  do  espirito  se  alargava,  e  esmerava, 
.podemos  ter  por  certo,  que  foi  dizer,  e fazer :  isto  he  que  foi  o  Convento 
logo  acabado.  E  temos  bom  argumento  no  testamento,  que  este  Rei  pouco 
despois  fez  no  desterro  de  Toledo,  no  qual  deixando  esmolas,  como 
atrás  contamos,  pêra  as  obras  do  nosso  Convento  de  Santarém,  porque 
sabia  e&Larem  em  aLcrío,  uenhuiiia  menção  fez  do  de  Lisboa,  como  de 
casa  perfuiia  de  todo  poniu,  e  bem  necessidade.  E  na  verdade  pêra  dor- 


364  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DK  S.  DOMINGOS 

mitorios,  c  officinas  térreas,  feitas  á  medida  de  nossas  constituições,  e 
pêra  igreja  proporcionada  poucos  meses  bastavão  de  trabalho. 

Achamos  por  memorias  antigas,  que  entrava  por  este  sitio  hum  gran- 
de esleiro  do  mar,  que  devia  ter  fundo  pêra  agasalhar  navios :  do  que 
vimos  por  nossos  olhos  certeza,  não  só  conjeituras  no  anno  de  1571 
quando  se  abrião  os  alicesses  pêra  o  dormitório,  que  agora  serve.  Por- 
que se  descobrirão  silhares  de  pedraria  bem  lavrada,  e  a  partes  grossas 
argollas  de  bronze  travadas,  e  pendentes  d"ella,  como  em  caiz,  pêra  ser- 
virem de  amarrar  navios :  e  por  outra  parte  montes  de  casca  de  maris- 
co. D"onde  não  fica  sendo  maravilha,  que  houvesse  outro  tal  esteiro,  que 
subisse  até  o  Mosteiro  de  Chellas  polo  valle  de  enxobregas,  no  tempo 
que  alli  aportarão  as  relíquias  dos  Santos  Maríyres,  sendo  o  caso  succe- 
dido  muitos  centenares  de  annos  antes,  como  atrás  contamos. 

ResLa-nos  declarar  a  terra,  e  nome  do  Bispo  estrangeiro,  ou  a  rezão 
de  darmos  seu  nome  em  cifra,  e  o  Bispado  quasi  da  mesma  maneira. 
Quem  tiver  lido  com  attenção  o  que  temos  escrito  até  aqui,  não  creo 
que  me  pedirá  rezão  da  Cifra,  pois  nos  temos  queixado  do  termo  de 
escrever  antigo  no  que  pertence  a  nomes  próprios,  em  que  muitas  ve- 
zes he  necessário  adivinhar,  e  neste  nos  aconteceo  o  mesmo.  Da  Igreja 
não  temos  duvida,  que  seria  a  de  Regensburgh,  em  Alemanha,  cujo  nome 
Latino  hô  Ratisbona. 

CAPITULO  XVIII 

Funda  el  Rei  dom  Afonso  Terceiro  a  Igreja  grande  do  Convento^  faz-Jhe 
doação  de  muitos  chãos,  e  terras  a  roda.  Confão-se  alguns  trabalhos 
que  houve  na  casa  por  cheias,  e  tremores  de  terra. 

Não  erão  bem  passados  seis  annos  despois  de  acabado  o  Convento 
por  el  Rei  dom  Sancho,  quando  seu  irmão,  e  successor  el  Rei  dom 
Afonso  mostrando  bem  a  diíferença,  que  vai  de  homem  a  homem  na  con- 
dição, e  grandeza  de  animo,  emprendeo  a  maquina  do  templo,  que  hoje 
vemos,  maquina  famosa  pêra  o  tempo  presente,  quanto  mais  pêra  o  an- 
tigo, que  bem  olhada  por  toda  parte,  e  considerado  o  pouco,  que  então 
era  Portugal,  está  testemunhando  em  seu  autor  hum  espirito  merecedor 
de  grandes  Reinos.  E,  ou  fosse  porque  a  Igreja,  que  seu  antecessor  fi- 
zera não  era  capaz  do  povo,  que  se  ajuntava  ás  prégaçíjes,  e  officios  Di- 
vinos :  ou  que  quizesse  mostrar  a  devação,  que  tinha  á  Ordem,  e  o  que 


PAUTlCULAn  DO  HEINO  DK  PORTUGAL  ;jG-J 

lhe  tleAia  polo  muito,  que  os  fiUios  cVella  írabalharão  no  negocio  de  sua 
entrada,  e  successão  no  Reino  por  mandado  do  Sammo  Pontifice :  e 
juntamente  pretendesse  illustrar  a  cidade  cora  magniíicencia  de  edifício?, 
que  hc  a  cousa,  qn.e  mais  ennobrece  os  lugares  grandes,  não  esperou 
pêra  lhe  dar  principio  mais  que  assentar  Os  negócios  do  Reino.  E  en- 
trando o  terceiro  anno  de  seu  Reinado,  que  foi  quarto  despois  de  chegado 
a  Portugal,  porque  o  nome  de  Rei  não  tomou  senão  por  morte  de  seu 
irmão  dom  Sancho,  que  viveo  hum  anno  em  Toledo,  poz  mão  na  obra 
com  tão  boa  vontade,  que  em  termo  de  dez  annos  a  deu  acabada.  Tudo 
consta  de  huns  versos  Latinos  abertos  de  letra  Gótica  em  huma  pequena 
pedra  sobre  a  porta  das  graças,  como  atrás  tocamos,  E  são  os  seguintes- 

Strenuus  Alfonsits  Rex  Quintus  Portugalensis, 
JUustris  Dominus  Comitattts  Bolonicnsif^ 
Qui  dilatauit  regnum  patris,  et  reparautt^ 
Ac  extirpauit  pruuos,  hoates  superuuit, 
Istias  EccIesiíS  iccil  funiltimina  magnis 
Sumptibus,  egregié  compleuit  quinque  bis  annis. 
Annos  millenos  Domini,  decicsque  vigenós, 
Ac  quinquagenos,  minns  vno,  collige  pleno. 
Cuni  Rex  incipiens  opus  lioc  produxit  in  esse 
Annos  três  faciens  cx  quo  Rex  cceperat  esse. 

A  este  modo  de  versos  com  respondencia  de  consoantes  nos  cabos 
chamarão  Leoninos  os,  que  os  começarão  a  usar.  Inlroduzirão-se  no  mun- 
do, quando  foi  faltando  a  policia  da  lingoa  Latina,  e  a  viveza  de  sua  Poe- 
sia. Durou  esta  em  quanto  Roma  triunfava,  entrou  a  bastarda,  o  barbara 
com  a  declinação  do  Império.  Devia  nacer  o  nome  do  primeiro  autor 
da  invenção,  porque  a  calidade  d'el}a  não  merece  por  si  nome  magnifico, 
visto  como  aquillo  mesmo,  em  que  foi  fundar  sua  graça,  que  he  junta 
de  consoantes,  sempre  se  reprovou  entre  os  bons  Poetas  Latinos,  e  lhe 
chamavão  cacofonia,  que  he  o  mesmo,  que  huma  falsa  na  musica,  ou  de- 
sentoamentQ,  que  oCfende  as  orelhas.  Mas  podemos-lhe  conceder  o  nome 
honrado  á  conta  de  que  fizerão  passagem,  e  como  fundamento  pêra  o 
género  de  Poesia  vulgar,  que  hoje  usamos,  agiadavel  já,  e  bem  recebido 
ã  força  do  tempo,  e  do  costume.  E  tornando  á  Historia  a  significação 
d"elles  he  esta. 


3CG  1.IVP.0  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINfiOS 

O  valoroso  Afonso  dos  Reis  de  Portugal  cm  ordem  Quinto,  senhor 
illuslre  do  Condado  do  Bolonhi,  que  o  Reino  de  seu  Pai  restaurou,  e 
alargou,  e  alimpou  do  geníe  roim,  e  desbaratou  seus  enemigos,  foi  o  que 
fundou  este  tenr(ilo  com  grandes  despesas,  e  o  acabou  com  toda  perfei- 
ção cm  espaço  do  dez  annos.  Corria  o  do  Senhor  de  lá49,  quando  co- 
meçou a  obra,  e  havia  Ires  que  reinava. 

Isto  he  o  que  dizem  os  versos.  Pêra  os  naturais  não  ha  que  adviríir 
n"elles,  porque  he  a  historia  mais  trilhada  de  quantas  ha  no  Reino.  Aos 
de  fora  advírtiremos,  que  se  não  enganem  com  esta  Bolonha  pola  seme- 
lhança, que  tem  no  nome  com  outra  de  Itália.  Esta,  de  que  falamos,  he 
em  França,  seu  nome  hoje  Bilhon,  o  sitio,  sobre  o  mar  Oceano,  a  Pro- 
víncia, Picardia.  Era  Condado  honrado,  e  rico:  a  senhora  d'elie  viuva,  e 
moça.  Casou  dom  Afonso  com  cila  pêra  viver,  porque  era  pobre  Infante 
sem  terras,  c  sem  lierança.  Fez  o  casamento  sua  tia  a  Rainha  de  França 
dona  Branca,  irmã  da  Rainha  de  Portugal  dona  Urraca  sua  mãi.  Chama- 
va-se  a  Condessa  Malildes,  e  não  houverão  filhos. 

Se  sobre  tanta  clareza  houver  ainda  algum  escrupuloso,  que  todavia 
queira  por  fundador  do  Convento  a  este  Rei  antes  que  a  dom  Sancho, 
remelo-o  ao  testamento  do  mesmo  Rei  dom  Afonso,  e  peço-lhe  que  se 
não  desengane  sem  o  ver.  He  feito  em  Lisboa  a  23  de  Novembro  de 
V211,  alguns  aninis  antes  que  falecesse.  N'el1e  achará,  que  deixando  es- 
molas a  lodos  os  Conventos  do  Reino,  quando  fala  no  de  Elvas  diz,  que 
se  lembra  d"cíle.  porque  o  fundou,  e  são  as  palavras  formais :  Item  Fra- 
tribus  Pradicatorihus  de  Elbis  centnm  libras,  quia  ego  ftmdani  Monaste- 
rium  fioc  in  hareditale  mea. 

E  deixando  a  este  de  Lisboa  a  esmola  dobrada,  ou  por  ser  casa  de 
mais  Frades,  ou  porque  se  mandava  depositar  n'elle,  não  lhe  dá  titulo 
de  obra  sua,  como  dera,  se  o  fora,  pola  aventagem,  que  havia  de  hum  a 
outro. 

Ficou  este  Convento,  polo  que  temos  mostrado  fabrica  de  dous  Reis, 
e  dous  irmãos :  mas  sem  lhe  porem  por  isso  nenhuma  carga  de  obriga- 
ções :  também  lhe  não  deixarão  ordinária  nenhuma,  nem  esmola  perpe- 
tua sequer  pêra  reparo  do  edifício,  ou  pêra  as  alampadas,  como  pode- 
rão fazer,  (inda  que  nossas  Communidades  vivião  então  sem  rendas)  com 
particular  applicação :  devia  ser  não  quererem  os  Prelados  quebrar  hum 
ponto  da  observância  das  leis  admitíindo  em  casa  rendas,  por  m.ui  jus- 
tificado que  fosse  o  titulo.  O  que  S('>  admiftirão  foi.  a  ílm  de  ficarem  os 


rAnTICULAR  DO  HEI  NO  DE  PORTUGAL  307 

Uclij^nosos  livres  do  pcrliirbação  de  vizinhos,  hiima  doação,  qiíe  cl  Uei 
dom  Afonso  lhes  fez  despois  da  Igreja  levantada,  dos  chãos,  e  terras,  que 
cerca  vão  o  Convento,  conneçando  das  que  se  estendião,  até  onde  agora  he 
a  porta  de  Santo  Antão:  por  onde  corria  a  estrada,  que  cliamavão  a  Corre- 
doura :  e  voltando  sobre  a  mão  direita  assi  como  agora  sobe  o  muro  até  o 
postigo  de  Santa  Anna,  e  decendo  com  elle  até  o  baixo,  onde  são  os  canos 
(la  Mouraria  :  e  d'aili  correndo  pêra  a  Igreja  de  S.  Malheus.  por  onde  hia 
outra  estrada,  e  dando  volta  polo  que  agora  he  a  rua  da  Beíesga,  ficando 
dentro  d'esse  circuito,  e  como  em  Ilha  a  Ermida  de  São  Malheus  com  as  ca- 
sas do  Convento  de  Monsanto,  e  tudo  o  que  íoma  o  hospital  dei  Rei,  até 
tornar  ajuntar  com  o  Convento.  N'aquelle  tempo  erão  terras  devolutas  de 
que  o  povo  se  servia  sem  haver  dono  particular  d'ellas,  em  telhaes,  e 
fornos  de  tijolo  por  huma  parle,  e  por  outra  em  sementeiras  de  ferre- 
geais,  e  hortaliças.  O  muro,  que  hoje  as  cinge,  se  lançou  longos  annos 
despois,  como  a  cidade  foi  em  crecimento.  Esta  mercê,  que  então  se  acei- 
tou por  ser  de  terra  desaproveitada,  e  baldia,  e  sem  olho  a  interesse, 
veo  despois  a  im.portar  muito.  E  importara  mais,  se  el  Rei  dom  João 
Primeiro  não  tomara  ao  Convento  o  grande  sitio,  que  occupou  com  a  Real 
fabrica  do  seu  hospital. 

Assi  como  o  Convento  era  aprasivel  por  desabafado,  c  livre  de  so- 
geição,  em  quanto  estava  fora  de  povoado:  assi  despois  que  a  cidade  se 
alargou,  e  foi  crecendo,  e  caminhando  pêra  a  grandeza,  que  hoje  tem,  fi- 
cou no  melhor  posto  d'ella  entre  todos  os  Conventos.  Porque  está  como 
no  centro,  e  coração  do  lugar,  na  parte  mais  plana,  e  mais  habitada,  e 
de  mais  concurso  delle,  e  suas  portas  na  mellior  praça.  ]\ias  como  em 
tudo  ha  defeitos,  pagarão  os  Religiosos  estas  commodidades  no  tempo 
antigo  com  muitos  medos,  e  perigos,  e  no  presente  também  com  alguns. 
Era  a  causa,  que  nos  primeiros  annos  antes  de  haver  ediíicios  á  roda, 
todas  as  agoas,  que  corrião  do  monte,  e  campo  de  Santa  Anna,  e  do 
grande  valle,  que  ainda  hoje  se  chama  da  Mouraria,  vinhão  demandar  os 
muros  da  Igreja,  e  Convento,  como  a  huma  barreira:  e  tanto  que  as  in- 
vernadas passavão  do  termo  ordinário,  o  que  muitas  vezes  acontecia,  fa- 
zião  n'elle  grandes  danos :  principalmente  succedendo  decer  a  força  das 
agoas  da  terra  em  conjimção  de  alguns  estos  maiores  do  mar,  porque 
então  não  só  íicava  impedida  a  vazant»'.  ás  da  terra,  mas  ajudavão-se  suas 
enchentes  com  o  crecimento  do  mar,  e  do  Rio  que  também  sahia  de  ma- 
dre: c  toda  esta  fúria  vinha  a  cair,  e  quebrar  sobre  o  Convento.  Acha- 


o08  I.IVi\0  111  DA  HlSTOaiA  DE  S.   DOMINGOS 

mos  posío  em  louibrança,  que  alguns  annos  so  virão  os  Religiosos  era 
grande  trabalho.  Âssi  devia  ser  em  liuma  famosa  chea,  de  que  faz  men- 
ção o  livro  das  Calondas  da  Sé,  que  deu  muila  perda  na  cidade,  e  foi 
em  4  de  Janeiro  de  13  i3.  Mas  quarenta  e  lium  annos  despois,  no  de  1384 
em  24  de  Outubro  forão  as  agoas  tão  crecidas,  tão  arrebatadas,  e  impe- 
tuosas, que  assolarão  ioda  a  cerca  do  Convento,  e  levantarão  n"eHe  altu- 
ra de  quatro  covados,  e  meio  de  agoa,  (assi  o  apontão  as  memorias,  que 
temos),  e  deixando  feita  irreparável  destruição  em  todas  as  Ofíieinas,  fo- 
i'ão  sair  polas  portas  da  Igreja  com  tal  força,  que  arrombarão  as  pare- 
des de  que  era  cercado  o  Alpendre ;  e,  como  toda  a  casa  era  térrea,  foi 
lastimosa  causa  o  estado,  em  que  íicou  tudo  o  que  havia  de  ornamentos, 
livros,  provisão,  camas,  e  vestidos.  Pêra  não  haver  mortaes  valeo  o  pou- 
co sono,  ou  a  vigia  continua  dos  Frades.  Em  semelhante  aperto  se  acha- 
rão imiiíos  annos  a  diante  no  de  1488,  huma  Terça-feira  IC  de  Setem- 
bro. E  foi  maior  o  perigo,  porque  veio  o  diluvio  repentinamente,  e  em 
tempo  que  ainda  se  não  temia,  nem  esperavão  agoas :  e  engressou  tanto, 
que  não  foi  bastante  pêra  lhe  dar  evasão  a  grande  madre  do  cano,  que 
corre  por  detrás  do  Convento,  que  a  cidade  tinha  mandado  abrir  com 
grande  despesa  tanto  pêra  este  fim,  como  pêra  limpeza  da  terra,  e  pola 
capacidade,  e  largueza,  que  tem,  he  chamado  Real.  Esíiverão  os  pobres 
Frades  alagados  com  altura  de  dez  palmos  d"agoa  por  toda  a  casa,  (são 
palavras  formais  da  lembrança,  que  era  altura  de  huma  braça  de  cra- 
veira.) 

De  todos  os  Reis,  em  cujo  tempo  succederão  estas  cheas,  o  primei- 
ro que  se  doeo  dos  que  padecião  os  tormentos,  e  medos  delias,  foi 
el  Rei  dom  Manoel,  que  por  esse  respeito  mandou  derribar  todo  o  edi- 
fício velho,  que  era  térreo,  e  fez  lavrar,  e  levantar  de  novo  hum  dormi- 
tório alto.  Assim  acabou  a  antiguidade  da  vivenda  baixa,  que  a  todos  dava 
cuidado.  E  não  estão  em  pequena  obrigação  por  tal  obra  a  este  Piei  os 
Religiosos,  que  se  acharão  no  Convento  por  dezembro  do  anno  passado 
de  1018,  no  qual  veo  sobre  elle  huma  força  de  agoas  semelhante  áqucl- 
las  antiguas  no  Ímpeto,  e  abundância,  e  também  na  occasião  de  maré ; 
e  adiando  porta  aberta  na  cerca,  que  era  serventia  de  obra,  que  se  fazia 
em  casa  de  Noviços,  meteo  dentro  hum  mar  de  agoa  com  tal  faria,  que 
em  todas  as  oHicinas  baixas  subio  oito  palmos,  e  em  algumas  mais.  Va- 
leo muito  a  diligencia,  e  animo  do  Prelado  :  a  diligencia  em  fazei-  dar 
saída  ás  agoas,  c  o  animo  pêra  reparar  as  perdas  sem  se  sintirem  em 


PARTiCLLAU  DO  iii:iNO  DK  i»onTi:<;Aí.  )j{)0 

casa,  e  sem  ser  pesada  fora,  nem  aos  amigos,  que  já  apercebião  as  bol- 
sas pêra  grossa  despesa. 

Mas  o  reparo,  que  el  Rei  dom  xManoel  fez  contra  as  agoas,  não  bastou 
contra  os  outros  elementos.  Yierão  tremores  de  terra  em  lugar  dos  di- 
lúvios, com  igual  medo,  e  maior  risco.  E  succedeo  n'esta  cidade  hum 
entre  outros  no  anno  de  1531,  huma  Quinta-feira  26  de  Janeiro  com  aba- 
los tão  descompassados,  que  se  fez  sintir  por  mais  de  sessenta  legoas  do 
distancia,  e  assolou  lugares  inteiros  por  todo  Ribatejo,  e  por  outras  par- 
tes :  e  em  Lisboa  poz  por  terra  muitas  casas,  fazendo-as  sepulturas  de 
seus  donos.  As  ruinas,  que  houve  então  n'este  Convento,  se  deixão  en- 
tender do  grande  dano,  que  recebeo  a  Igreja :  porque  sendo  fundada  so- 
bre firmíssimos  alicerses  com  paredes  de  grossura,  e  fortaleza  pêra  mu- 
ros de  huma  cidade,  abrirão  todas  as  naves  de  alto  abaixo,  e  ficou  o 
corpo  todo  tão  estroncado,  e  desfiado  de  membros,  que  por  mais  dili- 
gencias que  se  fizerão  pola  fortificar,  polo  alto  com  grossas  linhas  de  fer- 
ro, e  poios  lados  com  escoras  de  grandes  botareos  de  cantaria,  foi  com 
tudo  necessário  desfazer  despois  grande  parte  d'ella,  e  reedifical-a  de 
novo,  como  se  fez  poios  annos  de  Í5G0,  ajudando  todos  os  moradores  da 
cidade  a  obra  com  tanto  ardor,  e  vontade,  como  se  tocara  só  a  cada  hum 
o  bem  delia. 

CAPITULO  XIX 

Da  antiguidade,  e  devaeão  dn  Ermida  de  nossa  Sejihora  da  Purifiiard') 
que  commnmcnte  se  chama  da  Escada. 

He  contigua  ao  corpo  da  Igreja  d'este  Convento,  e  quasi  como  parte, 
ou  capeUa  delia  da  banda  do  Evangelho,  a  Ilermida,  que  o  povo  chama 
de  nossa  Senhora  da  Escada,  (sendo  seu  próprio,  e  antigo  titulo  da  Pu- 
rificação), por  ser  casa  de  sobrado,  e  se  sobir  a  elle  por  muitos  degraos 
de  huma  escada  de  pedra,  que  cae  no  adro,  e  circuiro,  que  antigamente 
tomava  a  alpendorada,  que  ficava  diante  d"ella,  e  da  porta  principal  da  Igre- 
ja. A  forma  do  edifício  he  estar  assentada  sobre  firmes  abobadas  de  três 
ou  quatro  capellas,  que  tem  seus  arcos,  e  serviço  no  andar  da  Igreja,  e 
abrir  sobre  ellas  huma  grande  janela  rasgada,  e  tão  alta,  que  fica  sendo 
tribuna  mui  commoda  pêra  toda  a  Igreja,  defronte  das  capelas  de  Jesu, 
e  do  Rosário.  Que  rezão  houvesse  pêra  tal  sorte  de  fabrica  nem  se  es- 
creve, nem  se  comprende.  Alcanç;il-a  por  discurso  he  trabalho  sem  frui- 


370  LIVRO  III  DA  IlISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

to,  como  será  também  querermos  averiguar  os  princípios  de  sua  funda- 
ção, onde  não  ha  escritura,  que  nos  dê  luz.  Muitos  concordão  em  ser  a 
primeira  casa,  que  na  cidade  se  edificou  a  nossa  Senhora,  despois  de  lan- 
çados os  i\Iouros.  Mas  he  maravilha,  se  assi  foi,  não  se  falar  n'ella  na 
cerlidão  do  Bispo  Regense  pêra  confrontação  do  nosso  Convento,  quando 
começava,  nem  em  outras  memorias  d'elle.  Se  não  quizermos  dizer,  que 
nos  ficava  longe  antes  de  edificada  a  Igreja  por  el  Rei  dom  Afonso,  e 
que  esta  foi  meio  de  a  fazer  nossa.  O  que  consta  de  certo  lie  que  de 
tempos  muito  antigos  foi  frequentada  com  devação,  e  romagem,  não  só 
do  povo,  mas  também  dos  Reis.  Do  primeiro  fundador  não  ha  memoria. 
Reformador  sabemos  que  foi  d"ella  hum  Pedrafonso  Mealha,  vedor  da  fa- 
zenda, e  valido  dei  Rei  dom  Fernando,  que  tem  sua  sepultura  em  huma 
das  Capelas,  que  lhe  ficão  debaixo :  e  merece-nos  bem  esta  lembrança, 
pola  que  elle  teve  do  remédio  d'este  Convento,  deixando-lhe  a  Quinta,  que 
temos  em  Almada  junto  a  nossa  Senhora  da  Piedade,  que  he  boa  parto 
da  sustentação  d'elle.  E  de  em  tal  tempo  estar  a  ermida  necessitada  de 
reparo  se  coUige  bem,  que  teria  já  bons  annos  de  ansianidade.  Mas  não  fal- 
tão  outros  indícios  que  lha  confirmão.  E  seja  o  primeiro  acharmos  em 
memorias  antigas,  que  todas  as  procissões,  que  a  cidade  ordenava,  ou  pê- 
ra pedir  a  Deos  remédio  em  necessidades  publicas,  ou  pêra  lhe  dar  gra- 
ças por  mercês  recebidas,  a  esta  Ermida  vinhão.  Nas  Crónicas  do  Reino 
se  lê,  que  havendo  guerra  entre  elle,  e  o  de  Castella,  pola  successão  dei 
Rei  dom  João  o  Primeiro,  fez  a  cidade  alguns  votos  pola  vitoria:  e  en- 
tre elles  prometeo  huma  procissão  perpetua  a  esta  Ermida  (*).  Não  será 
desagradável  aos  curiosos  lançarmos  aqui  hum  pedaço  de  capitulo  da 
Crónica  d'esle  Rei,  pêra  se  ver  a  Christandade  de  nossos  antepassados 
em  negocear  com  Deos,  e  a  veneração  que  tinhão  á  Ermida :  e  irá  na 
mesma  lingoagem,  e  termos  do  Cronista,  e  diz  assi. 

E  a  fora  as  preces,  e  oraçoens  que  por  esto  cada  dia  tinham  ordena- 
do fazer,  juntarão-se  todos  na  Camará  da  cidade,  onde  tinhão  de  costu- 
me de  falar  seus  feitos.  E  mandarão  chamar  pessoas  Religiosas,  Doutores, 
Mestres  era  Theologia  pêra  a  verem  com  elles  conselho,  como  averião 
a  Deos  em  sua  ajuda,  e  amansado  de  alguma  sanha  se  contra  elles  por 
seus  peccados  tinha.  (E  mais  abaixo),  e  por  tanto  os  officiais,  e  homens 
bons  dos  mesteres  ouvindo  as  palavras  d'aquelles  Padres  Pregadores,  e 

f.)  Crónica  ilel  Rei  dum  João  i.  ji.  2.  c.  i. 


PARTICULAH  DO  REINO  DK  PORTIGAL  371 

querendo  seguir  seu  conselho,  vendo  como  per  muitos  annos  o  povo  da 
cidade  fora  amoestado  em  prégaçoens,  que  se  partisse  de  alguns  peccc- 
dos,  6  danados  costumes  dos  Gentios  que  se  em  ella  de  longo  tempo 
usarão,  mormente  erros  de  idolatria.  (E  hum  pouco  adiante).  Por  ende 
estabelecerão,  e  ordenarão  prometendo  a  Deos  guardar  pêra  sempre  por 
si,  e  por  seus  successores,  que  day  em  diante  na  cidade,  e  em  seu  ter- 
mo nenhum  não  uzasse  de  feitiços,  nem  de  chamar  Diabos,  nem  desen- 
cantaçoens,  nem  sonhos,  nem  lançar  roda,  nem  sortes,  nem  outra  nenhu- 
ma cousa  a  que  a  arte  de  física  não  consinta.  E  mais  que  nenhum  não 
cantasse  laneiras,  nem  Maias,  nem  outro  nenhum  mez  do  anno,  nem 
furtassem  agoas,  nem  lançassem  sortes,  nem  observança  que  a  tais  fei- 
tos pertença.  E  porque  o  carpir  sobre  os  finados  he  costume  deshones- 
to,  e  deccnde  dos  Gentios,  sendo  espécie  de  idolatria  defeza  por  Deos 
em  seus  mandamentos:  por  ende  ordenarão,  que  homem  nem  molher 
nom  se  carpisse,  nem  depenasse,  nem  bradasse  sobre  algum  finado,  posto 
que  fosse  padre,  ou  madre,  nem  filho,  nem  hirmão,  ou  marido,  ou  mo- 
lher :  nem  por  outra  nenhuma  perda,  nem  nojo :  mas  trouxesse  seu  dó, 
e  chorasse  honestamente:  e  quem  o  contrario  fizesse,  que  pagasse  certa 
pena  de  dinheiro,  e  tevesse  o  finado  oito  dias  em  sua  casa.  E  porque 
os  costumes  dos  Gentios  se  usavão  em  certos  dias  do  anno,  assi  como 
dia  de  Janeiro,  e  dia  de  Maio,  e  dia  de  Santa  Cruz :  estabelecerão  que 
cada  anno  pêra  sempre  fizessem  três  Procissoens  por  estes  dias.  A  pri- 
meira na  Sé  Catredal,  a  segunda  a  Santa  Maria  da  Escada  por  devarãu 
da  ^ladre  de  Deos,  a  terceira  que  fosse  a  Santa  Cruz  por  seu  serviço, 
e  honra,  etc.  Até  aqui  são  palavras  da  Crónica. 

A  primeira  cousa,  que  a  cidade  fez  tanto  que  pola  vitoria  se  vio  obrigada 
ao  comprimento  destes  votos  foi  ajuntar  huma  geral,  e  extraordinária 
Procissão  de  todo  o  estado,  e  sexo  de  gente,  e  sem  exceição  de  pessoa 
vierão  todos  descalços  render  as  graças  por  meio  d'esta  Senhora  ao  Se- 
nhor dos  exércitos,  que  he  o  que  dá  as  vitorias,  como,  e  quando,  e  a 
quem  he  servido,  e  com  aquella  quasi  milagrosa  deu  por  então  paz,  e 
quietação  no  Reino  afíligido. 

Seguirão-se  logo  as  Procissões  promettidas  nos  dias  assinados.  A,  que 
tocava  a  esta  Ermida  em  primeiro  dia  de  Maio,  se  ordenou  sempre  com 
particular  pompa,  e  solemnidade.  Punha-se  a  casa  de  festa,  armada  de 
tudo  o  bom,  que  havia  na  terra,  e  ornada  de  toda  a  frescura  de  flores. 


372  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

e  boninas  que  traz  Abril :  recebia  a  Procissão  com  solene  Missa,  e  pre- 
gação. Esta  Procissão  continuou  assi  longos  annos,  e  por  este  dia.  Mas 
despois  que  pareceo  estar  conseguido  o  fim  pêra  que  fora  inventada  de 
extinguir  as  profanidades  genticas,  que  se  uzavão  em  tal  dia  mudou-se 
com  bom  conselho  pêra  o  da  vocação  da  Ermida,  que  he  o  segundo 
de  Fevereiro  da  Purificação  da  Virgem.  N'este  ficou  continuando  perpe- 
tuamente por  este  modo.  São  mordomos  sempre  da  Confraria  da  Senhora 
dous  Cidadãos,  os  quais  com  o  povo,  que  se  junta  em  grande  numero 
assistem  ao  officio  da  benção  das  Candeas,  que  se  faz  na  Capella  de  Je- 
su,  e  d'ella  vão  em  Procissão  com  suas  velas  acesas  nas  mãos  á  Ermida 
em  companhia  de  todos  os  Religiosos  do  Convento,  que  cantão  a  Missa 
solemne  da  Festa,  e  ha  pregação.  Por  este  meio  se  trocou  a  superstição 
danada  em  Festas  religiosas,  e  santas,  e  forão  arrancados  os  máos  abu- 
sos Gentílicos.  E  he  cousa  averiguada,  que  forão  autores  deste  artificioso 
conselho  os  Frades  d'esta  Ordem,  e  em  especial  o  Mestre  Frei  Vicente 
de  Lisboa,  Provincial  de  Castella,  e  Portugal,  e  Inquisidor  geral  de  am- 
bos os  Reinos  antes  da  divisão  das  Províncias,  como  adiante  o  dirá  a 
Historia  (*).  Entenderão  aquelles  Padres  com  bom  discurso  que  sofre  mal 
nossa  natureza  mudanças  súbitas,  inda  que  sejão  pêra  bem,  e  que  folga 
de  ser  enganada :  uzarão  de  manha,  acabou  ella  com  suavidade,  o  quo 
a  violência  pudera  endurecer  mais. 

Mas  não  era  menos  a  devnção,  que  os  Reis  tinhão  a  esta  Senhora,  o 
Ermida.  El  Rei  dom  João  o  Primeiro  a  mandou  em  sua  vida  renovar 
com  curiosidade.  E  despois,  no  cabo  d'ella,  estando  enfermo  em  Aícou- 
chete  da  doença  de  que  faleceo,  e  sintindo-se  acabar,  mandou-se  trazer 
a  Lisboa,  e  antes  de  entrar  em  sua  casa  veo  a  esta  a  despedir-se,  e  to- 
mar a  benção  da  Senhora  d'ella,  e  encomendar-lhe  sua  alma,  e  seus  Rei- 
nos. D'aqui  se  foi  pêra  os  Paços  do  Castello,  onde  se  finou  breve- 
mente. 

Este  mesmo  respeito,  e  devação  permaneceo,  como  por  erança  em 
seus  filhos,  e  nos  Reis  seus  successores.  El  Rei  dom  Duarte  seu  filho, 
e  primeiro  successor  acrecentou  a  Ermida,  e  a  poz  no  estado,  e  capa- 
cidade, que  hoje  tem,  e  lhe  fez  esmola  pêra  arder  huma  alampada  per- 
petua diante  da  Senhora. 

O  Infante  Santo  dom  Fernando,  irmão  dei  Rei  dom  Duarte,  quando 
se  quiz  embarcar  pêra  a  infelice  jornada  da  Tángere,  em  que  ficou  cati- 

ÍA  P   t.  ISo  ('.'Miventij  de  l{crifir;t. 


PARTICULAR  DO  REINO  Di:  PORTUGAL  o' 3 

vo,  nesla  Capella  se  confessou,  e  commungou:  e  d'aqui  se  foi  meter  na 
nào,  e  na  mesma  hora  se  fez  ávéla  com  toda  a  Armada,  em  dia  de  San- 
tiago do  anno  de  1437.  Morreo  este  Infante  no  cativeiro  por  occullos 
juízos  d'aquelle  Senhor,  que  tudo  governa  com  summa  providencia,  e 
justiça:  mas  esta  Senhora  o  animou  nos  trabalhos,  e  consolou  no  ultimo 
artigo  da  morte,  aparecendo-lhe  visivelmente,  e  certificando-o  da  gloria 
que  n'aquelle  mesmo  dia  o  esperava:  como  adiante  o  contaremos. 

Com  melhor  successo  fez  semelhante  despedida  seu  sobrinho  el  Rei 
dom  Afonso  Quinto,  filho  d'elUei  dom  Duarte,  no  anno  de  1471,  quando 
foi  tomar  Arzila,  e  Tangere  aos  Mouros.  Acompanhado  de  toda  a  Corte 
veio  visitar  a  Senhora  na  manhã  do  dia  de  sua  gloriosa  Assumpção,  a 
quinze  de  Agosto.  Ouvio  Missa,  e  deixando-lhe  esmola  pêra  arder  outra 
alampada  perpetua  com  a  de  seu  pai,  se  foi  embarcar,  e  no  mesmo  dia 
sahio  do  porto. 

Em  caso  muito  differente  mostrou  el  Rei  dom  Manoel  a  veneração 
que  em  sua  alma  tinha  a  esta  Ermida.  Porque  dando-se  por  mui  offen- 
dido,  como  era  rezão,  do  desastrado  caso,  que  em  seu  tempo  succedeo 
no  anno  de  1506  da  matança  dos  Judeus,  que  de  fresco  erão  bautiza- 
dos,  e  mandando,  que  no  Convento  de  S.  Domingos  não  ficasse  nenhum 
Frade,  porque  n'ell8  tevera  principio  a  desordem:  logo  exceituou  o  que 
tinha  a  seu  cargo  a  Ermida,  e  este  só  ficou.  Apontão  as  memorias  anti- 
gas, que  ajudou  a  boa  tenção  d'el  Rei  ser  o  Frade  varão  santo,  e  por 
tal  havido  em  toda  a  cidade. 

Não  discrepou  d'elle  el  Rei  dom  João  Terceiro,  seu  filho,  quando 
foi  o  tremor  da  terra,  que  atrás  contamos  do  anno  de  1531.  Como  o 
Convento  ficou  todo  desbaratado,  e  posto  em  ruina,  pedindo-lhe  o  Prior, 
que  era  Frei  Afonso  de  Madail,  esmola  pêra  o  reparo,  raandou-lira  dar 
bem  grossa,  m.as  com  distinção  declarada  da  parte,  que  dava  pêra  reme- 
dear  o  dano,  que  houvesse  na  Ermida,  e  na  nave  da  igreja,  que  sobre 
ella  cae,  como  parte,  e  membro  da  mesma  Ermida. 


óii  LIVRO  III  DA  HISTORIA  PE  S.  DOMINGOS 

CAPITULO  XX 

Da  vida,  e  morte  do  Padre  Frei  Fernando  do  Cadaval 
Capellão  de  nossa  Senhora  da  Escada. 

O  cargo  iVesta  Ermida  foi  sempre  costume  andar  em  Frades  velhos, 
e  de  virtude  callificada.  Por  morte  do  que  assima  dissemos,  que  o  ser- 
via era  tempo  d'el  Rei  dom  Manoel,  deu-se  a  hum  bom  velho  muito  pio, 
e  singello,  que  tinha  bem  servido  a  Ordem,  sendo  muitos  annos  Mestre 
de  noviços  no  Convento,  e  alguns  Supprior.  Era  seu  nome  Frei  Fernan- 
do do  Cadaval.  Yendo-se  o  velho  sacristão  da  Senhora,  houve-se  por 
largamente  pago  dos  trabalhos  da  longa  vida :  e  era  grande  o  gosto,  e 
cuidado,  com  que  se  empregava  em  seu  serviço.  Quando  pola  manhã 
Ília  abrir  as  portas,  chegava-se  ao  altar,  falava  com  a  Senhora,  encomen- 
dava-lhe  sua  alma,  e  sua  vida,  pedia-lhe  favor,  e  ajuda  pêra  a  servir 
bem  aquelle  dia,  e  em  quanto  vivesse.  Despois  de  falar  com  a  Virgem, 
oiiiava  pêra  ominino,  que  tinha  em  seus  braços,  e,  como  se  o  vira  n"el- 
les,  quando  a  Senhora  o  criava,  e  na  mesma  idade,  que  ali  representava, 
dezia-lhe  seus  requebros,  e  com  santa  simplicidade,  e  licença  dos  annos 
(que,  quando  são  muitos,  se  tornão  a  igualar  com  os  dos  mininos),  esten- 
dia as  mãos,  e  os  braços,  e  dezia-lhe,  que  se  viesse  pêra  elles,  deixasse 
os  da  mãi  sagrada;  e  com  palavras  pueris,  e  imperfeitas  offerecia  dar- 
Ihe  algum  mimo  da  cella.  Quando  vinha  á  tarde  fechar  suas  portas,  e 
concertar  as  alampadas,  rezava  suas  devações  á  Senhora :  e  por  remate 
dezia-lhe,  que  se  acabava  o  dia,  e  entrava  a  noite,  avisando  a  quem  era 
velho  como  elle,  que  não  podia  tardar  cerrar-se  também  o  dia  de  sua 
vida,  e  entrar-lhe  por  casa  a  noite  da  morte.  Que  pêra  então  havia  mis- 
ter seu  soccorro,  então  se  lembrasse  de  quem  folgava  de  a  servir  agura. 
Despedia-se  logo  do  minino  com  novos  amores,  e  pedia-lhe  a  mão  pêra 
lh'a  beijar,  e  prometia  buscar,  que  lhe  trazer  pêra  o  dia  seguinte.  Tor- 
nava pola  manliam  cheio  de  alvoroço  pêra  aquelle  santo  trato,  e  nelle 
andava  tão  embebido,  e  afervorado,  que  de  nenhuma  cousa  outra  da  vi- 
da tinha  lembrança.  As  primeiras  violetas,  que  em  Lisboa  traz  Dezem- 
bro, dando  novas  anticipadas  do  verão,  as  primeiras  rosas  de  Março,  co- 
meçando a  desabotoar,  os  cravos,  as  mosqueias,  e  jasmins,  tudo  busca- 
va segundo  os  tempos  pêra  o  seu  minino,  e  pondo-lhe  nas  mãos  o  que 


PARTICLLAU  DO  RKI.NO  DE  PORTIT.AL  ^7.*) 

trazia,  fazia  oíTerta  da  innocencia  de  sua  alma,  que  ao  Sentior  mais  agra- 
da, accommodando  ditos,  e  galantarias  á  idade  de  quem  o  recebia. 

Assim  continuava  o  velho  o  serviço  de  sua  capellania :  e  não  se  des- 
cuidando n  elle  hora  nem  momento,  quiz  o  Senhor  dos  Ceos  também 
por  meio  da  mesma  imagem,  em  que  era  venerado,  corresponder  a  sua 
devação,  e  consolal-o.  IIc  cousa  certa,  e  que  foi  vista,  e  notada  por 
Padres,  que  algumas  vezes  o  acompanhavão,  que  indo  pola  manham  cedo 
abrir  a  sua  Ermida,  achava  o  minino  Jesus  assentado  no  meio  do  altar 
sobre  a  pedra  de  ara.  Ali  erão  novos  amores,  e  o  abrasar-se  em  deva- 
ção :  tomava-o  nos  braços,  e  como  outro  Simeão,  pedia-lhe  licença  pêra 
acabar  ali  a  vida,  porque  a  alma  não  era  capaz  de  tamanho  gozo,  como 
recebia  em  tal  estado :  e  beijando-lhe  os  pés  tornava-o  ao  collo  da  Vir- 
gem. Outras  vezes  fazia-lhe  perguntas  como  a  minino,  pêra  que  decia 
ao  altar,  aonde  teria  frio :  porque  deixava  os  peitos  da  Senhora,  em 
que  estava  mais  abrigado,  e  melhor  agasalhado:  e  por  remate  tornava-o 
a  seu  lugar.  Está  a  Imagem  da  Virgem  sobre  o  altar  assentada  em  hum 
nicho  alto,  mas  em  sitio  tão  firme,  e  seguro,  que  sabidamente  não  era 
possível  cair  o  minino  de  noite:  e,  quando  succedesse  acaso  alguma  vez, 
não  podia  ser  tanto  a  miude,  como  era  achado  embaixo :  e,  quando  de- 
mos, que  cahia  vezes,  não  se  pode  conceder,  que  sempre  caisse  direito, 
e  assentado  em  hum  mesmo  lugar.  Por  onde  não  ha  duvida  se  não  que  era 
obra  do  Altíssimo  pêra  consolação  d'aquella  alma  pura,  como  vimos  que 
o  fazia  em  Santarém,  agazalhando  os  mininos  innocentes,  e  mostrando- 
Ihes,  que  aceitava  os  seus  almorços.  Pêra  confirmação  d'ísto  sabia-se 
que  não  entrava  pessoa  viva  na  Ermida,  despois  que  a  fechava,  porque 
era  tão  vigilante  no  serviço,  e  tão  cioso  d  ella,  que  não  fiava  de  ninguém 
as  chaves,  e  dormia  com  ellas  á  cabeceira.  Considerava-se  também,  que 
havia  mistério  em  o  minino  ficar  sempre  assentado  sobre  o  altar,  por- 
que era  necessário  dobrar-se,  e  fazer  postura,  e  geito  muito  diíTerente 
do  que  tem  nos  braços  da  Senhora:  pêra  o  que  não  dava  lugar  sem  mi- 
lagre a  matéria  de  que  he  feito,  que  he  pão.  E  em  fim  tudo  estava  per- 
suadindo obra  do  Ceo,  e  fora  do  natural.  Mas  o  bom  velho,  acontecen- 
do-lhe  isto  amiúde,  veo  a  sintir  o  que  lhe  custava  tornal-o  á  Senhora : 
porque  era  força  pêra  o  fazer,  subir-se  sobre  o  altar:  e  hum  dia  quei- 
xou-se'á  Virgem,  dizendo-lhe  com  muitas  lagrimas,  e  com  simplicidade, 
e  candideza  de  pomba,  qual  era  a  de  sua  alma,  que  aquelie  sen  indigno 
Capellão  era  muito  velho,  e  não  tinha  já  forças  pêra  subir  tantas  vezes 


-»/()  I.lVnO  Hl   DA  HISTORIA  DE  S.   DOMINGOS 

sobre  o  altar  a  entregar-lhe  o  miniuo  Jesus;  que  lhe  pedia  não  no  lar- 
gasse de  si,  e  a  elle  forrasse  tamanho  trabalho.  Mas  o  Senhor  não  dei- 
xava de  exercitar  o  seu  velho  n"aquella  fácil  penitencia,  em  que  havia 
mais  de  mimo,  que  de  fadiga:  e  algumas  vezes,  que  não  decia,  fazia 
que,  quando  vinha  pola  raanham,  achasse  sobre  o  altar  o  chapeozinho  que 
linha  na  cabeça,  que  também  era  impossível  cair  sem  mistério,  porque 
no  lugar  não  ha  vento;  edado  que  o  houvera,  encaixava  na  Imagem  tanto 
ao  justo,  que  não  era  leve  de  tirar,  quanto  mais  de  cair.  E  o  bom  ve- 
lho, inda  que  pesado,  e  cansado,  não  queria  dar  aquelle  cargo  a  outrem, 
subia  ao  Altar  custando-lhe  muito,  e  cobria  o  minino. 

Mas  não  tardou  novo  exercido  de  paciência.  Eis  que  abrindo  hum 
dia  pola  manham,  como  costumava,  suas  portas,  acha  apagada  a  alam- 
pnda,  que  he  obrigação  arder  dia,  e  noite.  Pareceo-lhe  grave  culpa,  sin- 
tio-a,  deceo  os  degráos,  que  são  muitos  pêra  a  Igreja  a  buscar  lume. 
Quando  tornou  o  dia,  tornou-a  a  achar  morta:  entendeo,  que  era  cousa 
feita  á  mão,  e  á  sinte:  porque  o  tempo  estava  quieto,  a  casa  bem  fecha- 
da, o  azeite  limpo.  Então  se  queixou,  e  chorou:  e  acendendo-a  foi-se  ao 
minino,  e  em  todo  seu  siso  lhe  disse  com  eílicacia,  que  pois  via,  quão 
velho,  e  fraco  era  pêra  sobir,  e  descer  muitas  vezes  tão  comprida  es- 
cada, tevesse  elle  cuidado  de  vigiar  a  sua  alampada,  e  não  consintir,  que 
lha  apagassem,  porque  d'ali  lh"a  entregava.  Porem  o  Senhor  inda  o 
quiz  provar  outra  vez :  quando  veio  pola  manham,  achou  tudo  ás  escu- 
ras: creceo  a  paixão,  sintindo  com  seu  trabalho  a  pouca  reverencia  de 
ficar  a  Senhora  sem  luz.  Foi-se  ao  minino,  queixou-se  delle,  pedio-lhe 
conta  do  descuido  em  cousa,  que  tanto  lhe  encomendara:  mas  querendo 
tomar  a  escada  pêra  ir  buscar  lume,  eisque  subitamente  a  vio  aceza.  E 
desde  aqnella  hora  nunca  mais  se  lhe  apagou.  Foi  opinião  dos  Frades 
que  o  Demónio  lhe  fazia  estes  tiros  pêra  o  tentar,  e  provocar  a  ira :  o 
fundavão-se  em  saber,  que  o  perseguia  com  muitos  outros.  Porque  humas 
vezes  lhe  aparecia  em  figura  mui  própria  de  quem  elle  he,  que  era  de 
porco,  e  grunhindo:  e  o  Santo  velho,  não  fazendo  caso  d  elle,  estendia 
a  pcnía  da  correa,  e  disciplinava-o  com  ella.  Outras  vezes,  recolhendo-se 
pêra  a  cella,  achiva^o  na  cama,  e  na  mesma  figura  estirado  entre  as 
mantas:  e  com  muito  descanço,  e  sem  nenhum  pavor,  (que  pouco  teme 
varas,  e  beliguins,  quem  não  deve  á  justiça),  reprendião,  c  dizia-lhe  pa- 
lavras formais:  Não  vos  tenho  eu  avisado,  dom  previso,  que  me  não  en- 
treis TtestQ  ceJJa:  sus,  levantar  d'ahi  muito  nas  mas  horas,  que  essa  cama 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  377 

he  muito  estreita  pêra  dous.  Quanto  mais  que  não  aceito  eu  tão  ruim  com- 
panhia. E  o  enemigo  desaparecia  logo.  Continuou  o  Santo  velho  muitos 
tempos  com  esta  vida,  e  sempre  com  raro  exemplo  de  virludv^  Em  íim 
foi-se  pêra  o  Ceo  cheio  de  annos,  e  merecimentos  cm  sete  de  Outubro 
de  1555. 

CAPITULO  XXI 

Do  Padre  Frei  Matbeus  de  Ogeda  Capellão  de  Nossa  Senhora  da  Escada. 

Succedeo  a  Frei  Fernando  no  serviço  da  Ermida,  c  devação  da  Vir- 
gem outro  velho  tão  antigo  na  Ordem,  e  na  idade  como  elle,  e  não  me- 
nos estimado  por  religião,  e  pureza  de  vida.  Este  foi  Frei  Matheus  de 
Ogeda,  nacido  em  Burgos  nas  montanhas,  filho  de  pai  Portiiguez,  e  mãe 
Biscainha,  da  qual  tomou  o  apellido.  Veio  a  esta  província  por  compa- 
nheiro do  Padre  Frei  Jeronymo  de  Padilha,  quando  por  mandado  d"el- 
Rei  dom  João  se  começou  a  reformação  por  meio  de  alguns  Padres  de 
grande  observância,  que  de  Castella  decerão  a  seu  chamado,  dos  quais 
Frei  Jerónimo  vinha  em  primeiro  lugar.  E  vindo  a  tal  ofíicio,  bem  acre- 
ditada fica  a  virtude  do  companheiro,  que  pêra  elle  escolheo.  Era  a  vir- 
tude grande,  e  igual  a  habilidade  em  matéria  de  papeis.  Juntava  com 
elta  facilidade  no  negocear,  e  huma  certa  brandura  natural,  com  que  se 
fazia  amar  de  súbditos,  e  Prelados :  de  sorte  que,  morto  o  Padre  Frei 
Jeronymo,  fez  o  mesmo  ofíicio  com  outros  quatro  Provinciais  successi- 
vamente,  e  sempre  com  satisfação  de  todos.  No  mesmo  anno,  em  que 
veio,  se  perfilhou  por  este  Convento :  e,  quando  faieceoFrei  Fernando  do 
Cadaval,  passava  Frei  Matheus  muito  dos  setenta  annos.  Assi  pareceo 
por  todas  as  rezões,  que  seria  digno  successor  do  defunto:  e  bem  o  mos- 
trou nos  annos,  que  viveo,  que  ainda  forão  muitos,  e  vividos  todos  com 
singular  exemplo  de  vida.  Contão  os  antigos,  que  sendo  este  cargo  como 
género  de  jubilação,  e  hum  modo  de  ficarem  aposentados,  e  izentos  de 
obrigações  os  que  tem  trabalhado,  e  servido :  elle  o  entendeo  tão  diíTe- 
rentemente,  que  servindo  a  nossa  Senhora  com  todo  cuidado  na  sua  Er- 
mida, nunca  faltava  de  matinas  no  Convento.  E  affirma-se  d'elle,  que  em 
todo  o  tempo,  que  n'esta  Província  residio,  que  forão  trinta  e  oito  annos, 
nunca  faltou  n'ellas  em  qualquer  Convento,  que  se  acuasse,  nem  usando 
do  privilegio,  que  a  força  dos  negócios  dava,  quando  era  Companliciro, 
nem  do  mais  forçoso  a  que  o  obrigava  a  idacie  despois  de  aposentado. 


378  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

Antes  aconleceo,  que  andando  já  muito  no  cabo,  dous  annos,  ou  pouco 
mais,  antes  que  falecesse,  por  se  entender,  que  tinha  quasi  cento,  foi 
mandado  recolher  na  enfermaria  pêra  ser  tratado  como  enfermo,  pois 
era  bastante  doença  tamanha  velhice.  E  com  tudo  ainda  então  se  fazia 
força,  e  não  deixava  de  ir  todas  as  noites  rezar  com  a  communidade 
as  matinas  de  nossa  Senhora,  dando  fermoso  exemplo  a  todo  o  Convento. 
Parece  que  ou  podia  mais  o  habito  continuado  de  tantos  annos,  que  a 
fraqueza  natural :  cu  que  a  obrigação  de  Capellão  da  Virgem  lhe  dava 
animo,  e  alento. 

Mas  he  caso  quasi  prodigioso,  que,  em  quanto  este  Padre  viveo,  ne- 
nhum trabalho  o  quebrantava,  nem  o  medo  da  morle  o  fazia  buscar  mi- 
mos ou  commodidades.  Na  grande  peste,  que  no  anno  de  1569  assolou 
Lisboa,  sendo  feridos  alguns  Religiosos  no  principio  do  mal,  quando 
fazia  mais  terror,  o  tudo  era  fogir;  Frei  Matheus  os  visitava  todos  polo 
menos  duas  vezes  no  dia,  e  os  onfessava,  e  assistia  com  elles,  quando 
se  lhe  administravão  os  sacramentos,  e  entravão  em  artigo  de  morte;  e 
sempre  acudia  ao  oíficio  da  comendação  da  alma  a  cada  hum.  Nem  os 
deixava  despois  de  falecidos,  antes,  quando  se  davão  os  corpos  á  terra 
tinha  elle  por  devação  levar  a  Cruz  diante,  e  n'este  ministério  acompa- 
nhou aos  que  em  casa  morrerão,  e  aos  que  arriscando  voluntariamente 
á  morte  com  santa,  e  Religiosa  caridade  acabarão  curando  os  enfermos 
na  Casa  da  Saúde.  Porque  seus  corpos  erão  trazidos  ao  cemitério  com- 
mum  do  Convento.  Mas  não  faltará  quem  diga,  que  pouco  faz  quem 
despois  de  vividos  noventa  annos,  como  elle  já  então  tinha,  despreza  a 
morte,  conforme  ao  dito  do  Trágico. 

Fortem  facit  vicina  libertas  senem  (*). 

Querendo  dizer,  que  não  faz  muito  em  mostrar  valentia  contra  as 
carrancas  da  morte,  quem  pola  muita  idade  se  vè  abraçado  com  ella. 
Porém  não  corria  esta  rezão  em  Frei  Matheus.  O  que  o  fazia  animoso 
era  huma  vida  religiosa,  e  austera  continuada  por  discurso  de  longos 
annos  em  pureza  de  costumes.  E  o  que  lhe  conservava  a  saúde,  era  huma 
firme  resolução,  com  que  vivia  de  se  não  poupar,  nem  buscar  mimos  ou 
commodidades,  traz  que  muitos  a  perdem.  Porque  estas  são  a  verdadeira 
peçonha,  e  destruição  d'ella.  Quem  acabará  de  persuadir  esta  verdade 

(•)  Séneca  tragic. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  379 

no  mundo  1  He  a  vida  humana  hum  vaso  de  vidro  muito  delicado :  e  o 
vidro  não  o  quebra  tanto  sua  fragilidade,  como  o  receio,  e  sobejo  cui- 
dado, com  que  seu  dono  se  vigia  de  que  não  quebre,  cmpapelando-o, 
e  resguardando-o  mais  do  que  merece,  como  disse  hum  antigo. 

Frangere  dum  metuis,  frangis  cristallína:  peccant 
Securae  nimium^  solicilae  que  manus. 

Não  obrigava  menos  a  Frei  Matheus  a  vencer  todos  os  medos,  e 
trabalhos  sua  grande  caridade,  que  era  hum  fogo  perpetuo,  cm  que  ar- 
dia, e  com  que  dezejava  de  se  desentranhar  pêra  acudir  a  todos  os  ne- 
cessitados, e  que  d'elle  se  querião  valer.  Assi  com  tantos  annos  de  com- 
panheiro dos  Prelados  maiores,  e  huma  vida  tão  larga,  não  havia  cella 
mais  falta  de  tudo  que  a  sua,  nem  Frade  mais  pobre  no  trato  de  sua 
pessoa  que  elle.  grande  amigo  de  fazer  por  todos,  grande  precatado  em 
não  ser  pesado,  nem  dar  moléstia  a  ninguém.  Havia  já  vinte  annos,  que 
servia  de  sacristão  da  Senhora,  e  pouco  menos  de  dons,  que  estava  re- 
colhido na  enfermaria:  e,  sendo  julgado  por  homem,  que  corria  em  perto 
de  cento  de  idade,  era  todavia  robusto,  e  andava  em  pé.  Mas  ou  que 
fosse  discurso  de  bom  juizo,  qual  foi  sempre  o  seu,  ou  algum  aviso  se- 
creto do  Ceo,  que  elle  nunca  publicou:  entrou  hum  dia  pola  cella  do 
Prior,  que  era  o  Padre  Frei  Estevão  Leitão,  que  acaso  estava  acompa- 
nhado de  muitos  Religiosos,  e  era  hum  d"elles,  qiicn  isto  despois  apon- 
tou: e  alvoroçando-se  todos  com  sua  vinda,  porque  todos  o  amavão,  e 
dezejando  entender,  que  occasião  o  trazia  aonde  nunca  vinha:  assentou- 
se,  e,  despois  que  descançou  hum  pouco,  propoz  assi.  Nosso  Padre  Prior, 
inda  que  dizem  que  não  ha  ninguém  tão  velho,  que  não  possa  viver  hum 
anno(*):  segundo  o  que  sinto,  esta  regra  não  se  entende  já  em  mi.  Muitos 
annos  ha,  que  ando  no  cabo  da  viagem,  mas  agora  estou  já  no  porto. 
Minha  condição  foi  sempre  não  dar  pena  a  ninguém :  com  tudo  não  se 
poderá  escusar  levarem  meus  irmãos  comigo  algum  trabalho :  quero  di- 
zer no  officio  da  sepultura:  que  na  doença,  e  morte  espero  em  nosso 
Senhor,  que  lhes  não  hei  de  ser  penoso.  Venho  pedir  a  vossa  Reveren- 
cia huma  caridade,  a  qual  he  que  pêra  o  dia,  que  assi  se  cansarem  co- 
migo, mande  dar  a  toda  a  Gommunidade  ao  jantar  huma  pitança  de 
arroz  doce.  Apercebia-se  o  Prior  pêra  lhe  responder  á  vontade,  segun- 

(')  Tullius  lib.  de  genect. 


380  MVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

do  mostrava  na  boa  sombra,  com  que  o  ouvia :  E  elle  indo  por  diante, 
disse :  e  pêra  isto  lhe  peço,  que  receba  esta  esmola,  que  agora  me  derão. 
Sem  dizer  mais  levantou-se,  entregou  a  esmola,  que  se  vio  serem  dez 
cruzados,  e  tornou  pêra  a  enfermaria. 

Passados  poucos  dias,  entrando  o  mez  de  Janeiro  de  1576,  quando 
veio  a  véspera  dos  Reis,  soou  polo  Convento,  que  morria  Frei  Matheus. 
Jnntou-se  a  Communidade,  acharão,  que  se  liia  apagando  aquella  candea, 
por  lhe  faltar  com  a  muita  idade  alimento,  que  detivesse  nos  membros 
a  luz  da  bendita  alma.  Porque  não  linha  febre,  nem  frio,  nem  outra 
doença:  e  assi  se  foi  na  mesma  noite  receber  com  gloriosa  morte  o  pre- 
mio de  huma  santa  vida.  Teverão-no  os  Frades  no  Choro,  em  quanto  du- 
rou a  Missa  da  festa,  e  pregação,  e  teve  sempre  o  rosto  descuberto, 
porque  estava  não  só  bem  assombrado,  mas  com  huma  cor  rosada  como 
de  vivo.  E  por  ser  sua  pesssa,  e  virtude  mui  conhecida  de  todo  o  au- 
ditório, não  foi  parte  a  Festa,  pêra  tolher  ao  pregador  fazer  d'elle  hu- 
ma honrada  memoria.  Acabada  a  Missa,  foi  levado  á  sepultura  poios 
mesmos  Ministros,  assi  como  estavão  revestidos  de  festa  em  ornamentos 
de  brocado,  e  cores,  seguindo  toda  a  nobreza,  e  povo,  que  em  tal  dia 
concorre  em  grande  numero  ao  Convento,  como  se  forão  a  triunfo,  não 
a  mortuoria. 

CAPITULO  XXII 

Da  origem,  e  principio  que  teverão  na  Ordem  de  S.  Domingos  os  Altares, 
e  Confrarias  do  nome  de  Jesu 

Entre  grande  numero  de  Irmandades,  que  em  serviço  de  Deus  Nosso 
Senhor,  e  de  seus  santos  estão  n'esta  Igreja  instituidas,  he  a  primeira 
em  calidade,  e  quasi  em  antiguidade,  a  do  nome  de  Jesu.  Pêra  se  en- 
tender o  fundamento,  e  origem  d'ella,  he  de  saber,  que  governando  a 
a  Igreja  universal  o  Papa  Gregório  decimo,  e  dezejando  com  paternais 
entranhas,  que  todos  os  lieis  em  reconhecimento  do  muito,  que  devemos 
ao  Salvador  do  mundo  Christo  Jesu,  verdadeiro  Deos,  e  homem,  vene- 
rássemos com  cordial  aíTeito  seu  glorioso  nome :  pêra  que  d'esta  vene- 
ração resultasse  alcansarmos  d"elle  novas  mercês  nas  continuas  necessi- 
dades, de  que  nossa  vida  sempre  anda  cercada,  passou  hum  Breve  ao 
Mestre  Geral  da  Ordem  de  S.  Domingos  Frei  João  de  Vercellis,  cujo 


PARTICULAH   DO   REINO   DE  PORTUGAL  381 

treslado  tirado  do  seisto  das  Decretais,  onde  anda  lanrado,  lie  o  se- 
guinte (*). 

Gregorius  Epificopus  seruus  seruorum  Dei,  dilecto  filio  Mayislro  Or- 
àinis  Fratrum  PrcBdicntorum  Salutem  et  Apostolicam  benedictionem.  Niiper 
in  Concilio  Luijdunensi  duximns  statuendum,  vt  ad  Ecclesias  hunúlis  sit^ 
et  deuotus  ingressus,  et  sit  in  eis  quieta  conuersatio,  Deo  grata,  inspicien- 
tibus  placita,  qtice  considerantes  non  solum  instntat,  scd  reficiat :  conne- 
nientes  ibidem  nomen  id  quod  est  super  omne  nomen,  a  qno  aliud  sub  ccelo 
tion  est  dntum  hominibus,  in  quo  sahos  fieri  credentes  oporteat,  nomen 
■videlicet  Jesu  Cltristi,  qui  saluum  fecit  populum  suiim  a  peccatis  eoruin, 
exhibitione  reuerentim  spiritualis  attollant.  Et  quod  generaliler  scribitur, 
vt  in  nomine  Jesu  omne  gemi  fleclatur,  singuli  singxdariler  in  se  ip$is  im- 
plentes,  speciaiiter  dum  aguntur  Missarum  sacra  mijsteria,  gloriostim  id 
nomen  quandocuuque  recolitur,  flectant  genua  cordis  sui,  quod  capitis  in- 
cUnatione  testentur.  Ideoque  dilectionom  tuam  rogamus^  et  hortamur  atfen- 
lé  per  Apostólica  tibi  scripta  mandantes,  quafenus  tu,  et  fratres  tui  Or- 
dinis,  cum  vos  populis  contigerit  proponcre  uerbum  Dei,  populos  ipsos  ad 
prcBmissa  efficacibus  rationibus  inducatis.  Ifa  qucld  proinde  retributionis 
die  prcemium  possitis  promereri.  Datum  Liigduni  Xij  Calendas  Octobris, 
Pontificatus  nostri  anno  tertio. 

Em  vulgar  reponde  assi. 

Gregório  Bispo  servo  dos  servos  de  Deos,  ao  amado  filho  o  Mestre 
da  Ordem  dos  Pregadores  saúde,  e  Apostólica  benção.  No  Concilio,  que 
pouco  ha  celebramos  na  cidade  de  Lião,  nos  pareceo  conveniente  man- 
dar ordenar,  e  decretar,  que  pêra  que  em  todos  os  fieis  haja  grande 
cuidado  de  entrarem  nas  Igrejas  com  humildade,  e  reverencia,  e  n'el!as 
assistão  com  tal  sossego,  e  compostura,  que  a  Deos  agrade,  e  aos  que 
a  virem  alegre,  e  não  só  sirva  de  edificação,  e  doutrina  a  quem  a  vir, 
e  considerar,  mas  também  de  recreação :  todos,  os  que  em  tais  lugares 
se  juntarem,  honrem  com  particulares  mostras  de  reverencia,  e  devação 
espiritual  aquelle  nome,  que  he  sobre  todo  o  outro  nome,  nome  que 
fora  d'elle  não  ha  debaixo  do  Ceo  outro,  em  que  se  possa  esperar  sal- 
vação. Este  he  o  nome  de  Jesu  Christo  que  veio  remir  seu  povo,  e  li- 

:-!  Uscret. 


382  I.IVI\0  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

vral-o  do  cativeiro  dos  peccados :  e  cumprindo  cada  hum  particular- 
mente aquillo  a  que  todos  estão  obrigados,  que  he  humilhar-se  todo  o 
Christão,  edobrar-se  todo  o  joelho  com  respeito,  e  humildade  ao  nome  de 
Jesu:  principalmente  o  facão,  quando  forem  presentes  ao  santo  Sacrifício 
da  Missa,  dobrando  os  joelhos  de  suas  almas,  e  humilhando-se  todas  as 
vezes,  que  n'ella  se  ouvir  este  Divino  nome,  e  testemunhem  com  incli- 
nação exterior  da  cabeça  a,  que  interiormente  lhe  fazem  com  a  vontade. 
E  por  tanto  a  vossa  caridade  rogamos,  e  consideradameníe  exhortamos 
por  estas  letras  Apostólicas,  a  vós  com  especial  commissão  dirigidas,  que 
todas  as  vezes  que  vós,  e  vossos  Frades  pregardes  ao  povo,  trabalheis 
por  lhe  persuadir  com  efíicacia  de  rezoens  o  que  assima  dizemos,  e  o 
façais  de  maneira  que  no  dia  da  paga  geral  do  Senhor  possais  merecer 
o  galardão  de  bons  servos.  Dada  em  Lião  aos  vinte  de  Setembro  no  ter- 
ceiro anno  do  nosso  Pontificado,  (cahio  este  anno  no  de  Christo  de  1274, 
porque  foi  eleito  este  Pontífice  no  mez  de  Julho  de  1271). 

Visto  o  Breve  polo  Padre  Geral,  e  entendida  por  elle  sua  santa  ten- 
ção, teve  por  especial  honra  da  Ordem  huma  commissão  de  tanto  ser- 
viço, e  gloria  do  Senhor.  E  com  diligencia  o  espalhou  em  copias  por 
todos  os  Conventos,  e  províncias  da  Christandade,  encommendando  a 
seus  filhos  com  vivas,  e  fervorosas  palavras  a  execução  delle.  Tomarão 
os  Religiosos  a  peito  o  mandado  do  santo  Pontífice,  e  a  amoestação  de 
seu  Prelado  com  tanta  vontade,  que  não  havia  pregação,  nem  pratica 
espiritual,  nem  ainda  conversação,  em  que  não  dessem  grande  parte  a 
esta  devacão.  Lembravão  com  encarecimento  aos  fieis  o  respeito,  que 
se  devia  áquelle  santíssimo  nome,  recontavão  suas  soberanas  prerogati- 
vas,  descobrião  o  thesouro,  que  nelle  se  encerra  das  altas  misericórdias 
que  o  Senhnr  obrou  na  salvação  do  género  humano.  Como  se  falava  com 
gente  pia,  e  catholica,  foi  grande  o  fruito,  que  colherão  de  seu  trabalho. 
Porque  não  ha  duvida,  que  a  estremada  reverencia,  com  que  hoje  o  ve- 
mos venerado  de  todo  Christão,  leve  principio  n"esta  diligencia,  sendo 
assi  que  não  ha  lugar  na  Christandade  tão  apartado  do  trato,  e  policia 
civil,  nem  tão  agreste,  e  rude,  onde  se  não  reconheça  o  preço  do  glo- 
rioso nome  de  Jesu  com  geral  humilhação  de  corpos,  e  cabeças,  era 
soando  nas  orelhas,  e  com  claros  sinais,  que  está  bem  arreigada  nos  co- 
rações a  estimação  d'elle.  E  isto  bem  se  deixa  entender,  que  ficou  co- 
mo erança  recebida  dos  primeiros  ouvintes  despois  que  em  suas  almas 


pauticulau  do  ueino  de  portugâl  383 

se  fundou  com  aquellas  continuadas,  c  devotas  amoestaçoens  dos  Prega- 
dores, a  que  foi  encommendado  o  cargo.  Assi  podemos  á  boca  ciíeia  di- 
zer que  pola  boa  industria,  e  cuidado  d'elles  vemos  hoje  cumprida  a  pa- 
lavra do  Apostolo  na  parte,  que  lhe  faltava  das  criaturas  da  terra:  quando 
o  Pontífice  houve  por  necessário  os  ofTicios  em  suas  letras  encommen- 
dados,  pois  d'ellas  parece  que  devia  haver  notável  esquecimento  na  Re- 
publica Chrislam  da  obrigação,  que  era  reconhecerem  as  criaturas  ter- 
restres a  este  divino  nome  com  publicidade,  e  exterior  demonstração, 
aquella  mesma  vassalagem,  com  que  por  dito  do  Apostolo  se  lhe  humi- 
Ihão,  e  sojeitão  ao  seu  pezar  as  infernais,  e  com  gosto,  e  alegria  as  ce- 
lestiais, e  Angélicas. 

Mas  não  parou  nos  Religiosos  o  desejo  de  bem  servir  com  os  bons 
effeitos,  que  vião  presentes.  Considerarão  que  convinha  força  de  artificio 
contra  a  fragilidade,  e  pouca  constância  da  memoria  humana.  E  inven- 
tarão logo  pêra  espertadores  continues  d'ella  os  altares,  que  levantarão 
por  todos  os  Conventos,  e  Igrejas  da  Ordem,  dedicados  particularmente 
ao  bom  Jesu.  Por  maneira  que  nos  Frades  de  S.  Domingos  quasi  he 
tão  antiga  como  a  mesma  Ordem,  a  posse,  que  temos  da  companhia  de 
Jesu,  e  dos  seus  altares,  e  serviço,  não  per  eleição  nossa,  se  não  por 
ordem,  e  mandado  do  mesmo  Senhor,  pois  nos  veio  por  commissão 
do  Príncipe  supremo  da  Igreja  Catholica,  seu  vigário  na  terra.  Levan- 
tados os  altares,  ficou  dado  principio  ás  Confrarias.  Porque  ordinário 
he  não  se  instituir  nenhuma,  sem  preceder  como  fundam.ento  o  altar  do 
Santo  ou  Santa,  em  cuja  veneração  se  unem  os  devotos  com  confor- 
midade de  irmaons.  Mas  não  era  ainda  então  conhecido  este  bom  modo 
de  obrigar  a  Deos.  Conheceo-se  muitos  annos  dcspois,  e  começou  n'este 
Convento  de  S.  Domingos  de  Lisboa,  e  no  altar,  e  nome  de  Jesu  (pêra 
prospero,  e  felice  successo  de  todo  semelhante  serviço)  como  logo  ve- 
remos. 

CAPITULO  XXIII 

Do  occasião,  e  tempo  em  que  foi  inslihiida  a  primeira  Confraria  do  nome 
de  Jesu  no  Convento  de  S.  Domingos  de  Lisboa. 

Reinando  em  Portugal  o  valeroso  restaurador  do  Reino,  e  da  liber- 
dade dom  João  o  primeiro,  (que  por  tal  merece  não  ser  nunca  nomeado 
sem  o  titulo  saudoso  de  boa  memoria,  que  o  consintimento  commum 


38Í  I.IVKO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

de  todas  as  idades  lhe  íem  dado),  foi  Deos  servido  castigar  a  terra  com 
hiinia  corrupção  pestilencial  do  ar,  que  sendo  cruel  matadora  por  todo 
o  Reino,  cm  Lisboa,  e  seus  termos  fez  cruelissimo  estrago.  Acudia  o 
povo  d'esta  cidade  a  Deos  amiudando  orações  particulares,  e  gerais:  e 
as  que  mais  continuava  erão  em  Procissões  de  quasi  cada  dia  a  nossa 
Senhora  da  Escada  na  Ermida,  de  que  pouco  ha  falamos.  Cora  a  occa- 
sião  de  povo  junto  em  lugar  tão  vizinho,  mandavão  os  Prelados  que 
houvesse  pregação  na  nossa  Igreja  todas  as  vezes,  que  vinhão,  pêra 
dar  animo  aos  aflligidos,  e  se  aliviar  a  tribulação,  que  era  mui  crecida. 
Continuava  quasi  sempre  o  púlpito  n'esles  dias  dom  Frei  André  Dias  de 
Lisboa :  o  qual  sendo  natural  d'ella,  e  Frade  nosso  passou  a  Itália,  e 
veio  por  suas  letras,  e  grande  espirito,  e  eloquência  a  ser  eleito  polo 
Papa  em  Bispo  de  Mèganf,  antiga  cidade  da  província  de  Achaia  em 
Grécia:  mas  tirando  por  elle  o  amor  da  pátria,  como  os  Portuguezes 
são  tão  aíTeiçoados  a  este  pequeno  torrão  de  seu  nacimento,  quiz  an- 
tes viver  pobre,  e  privadamente  entre  os  seus,  que  mandar  nos  estra- 
nhos :  tornou  ao  grémio,  em  que  nacera,  e  vivia  contente  com  o  pouco 
que  lhe  rendia  o  Mosteiro  de  S.  João  da  Alpendorada,  de  que  el  Rei  o 
fizera  commendatario.  Fazião-no  muito  ouvido  a  dignidade,  e  partes  que 
temos  dito.  E  elle  compadecido  das  calamidades,  que  via  em  seus  natu- 
rais, trabalhava  por  se  aventajar  a  si  mesmo:  e  como  pregador  de  es- 
pirito Apostólico,  ainda  que  de  sua  colheita  tinba  ser  agradável  ás  ore- 
lhas com  a  musica  da  lingoagem,  e  partes  de  eloquência,  empregava 
todo  seu  estudo  em  buscar  meios  pêra  levantar  as  almas  desmaiadas,  e 
caidas  com  o  peso  da  tribulação,  a  se  armarem  christammente  contra 
ella  com  armas  de  paciência,  e  amor  de  Deos,  e  esperança  firme  n'elle: 
affirmasido  que  esta  era  a  verdadeira  cura,  e  triaga  contra  o  veneno  dos 
males,  que  padecião:  que  assi  farião  rendosa  a  pena  das  mortes  do  filho, 
do  pai,  do  irmão:  assi  tirarião  merecimento  dos  trabalhos,  e  das  misé- 
rias misericórdia,  e  sobre  tudo  que  não  havia  mais  certo  meio  de  apla- 
car a  Deos  que  pôr  os  olhos  em  Christo  Jesu  cordeiro  innocentissimo 
pregado  na  Cruz.  Aqui  paravão  todos  seus  discursos.  Aqui  lhes  desco- 
bria altos  thesouros  de  consolação,  mostrando  como  este  Senhor  d'a- 
quelle  trono,  que  pêra  salvar  o  mundo  enfermo  escolhera  n'elle,  estava 
dando  exemplo,  e  iiçoens  de  soífrimento,  de  caridade,  e  confiança,  pêra 
que  não  houvesse  nenhum  bomem  tão  aílligido,  que  com  tal  espelho  diante 
dos  olhos  não  cobrasse  animo,  e  alivio,  e  boa  esperança.  Logo  exhortava 


PÂIITICIXAH  DO  REINO  Di:  POUTIGAL  385 

com  estranha  vehemencia,  o  rczocns  saidas  da  alma,  que  se  quorião  ver 
fim  ao  mal,  todo  homem  se  empregasse  de  coração  em  ser  devoto  do 
nome  sacraíissimo  do  bom  Jesu,  que  era  cousa  certa,  e  por  certo  o 
aflirmava,  que  hum  Seníior,  que  tão  atribulado  fora  por  valer  a  homens, 
quando  lhe  não  merecião  nada,  se  doeria,  e  haveria  misericórdia  dos 
que  via  atribulados,  que  remidos  já  com  seu  sangue,  todavia  fazia  por 
lhe  merecer  alguma  cousa.  Outras  vezes  não  saindo  do  mesmo  conceito, 
persuadia,  que  todo  homem  trouxesse  o  santo  nome  continuamente  não 
só  na  alma,  mas  também  na  boca:  não  só  na  alma,  e  na  boca,  mas  que 
o  trouxessem  escrito  sobre  o  peito,  e  o  mandassem  pintar  sobre  as 
portas  das  casas:  qne  sem  duvida  seria  remédio  poderoso  pêra  o  Senhor 
amansar  sua  ira.  Acendia-se  a  gente  affligida  em  amor  do  aíílgido  Jesu, 
e  no  meio  das  mortes  aceleradas,  caindo  aqui  huns,  ali  outros,  andava 
todavia  o  sagrado  nome  nas  bocas  de  lodos,  louvavão-n'o  com  paciên- 
cia os  que  morrião,  louvavão-n'o,  e  davão-lhe  graças  os  que  ficavão,  es- 
crevião-n'o,  pintavão-n'o. 

Quando  o  Pregador  vio,  e  entendeo  tão  boa  disposição,  encheu-se  do 
confiança,  que  não  podia  o  Senhor  faltar  com  sua  misericórdia;  e  propoz 
em  hum  Sermão,  que  se  ordenasse  huma  Confraria,  e  que  fosse  o  titulo 
do  nome  de  Jesu:  affirmando  constantemente  que  o  bemdiíissimo  Jesu, 
que  he  íonte  de  piedade,  usaria  d"ella  com  todos  os  que  folgassem  de  ser 
seus  irmãos,  e  Confrades ;  e  por  meio  d'elles  com  toda  a  terra ;  que 
olhassem,  que  só  nisto  estava  chegar  o  remédio  de  tantas  calamidades, 
e  tanta  desaventura,  como  cada  hum  via  em  sua  casa.  Dezia  isto,  e  re- 
pelia-o  com  grande  efficacia,  e  já  era  pedida  de  muitos  a  Confraria,  e  de- 
sejada de  todos:  mas,  ou  fosse,  porque  nas  cousas  boas  nunca  fallão  im- 
pedimentos, ou  porque  as  muitas  mortes  tiravão  o  juizo,  e  o  conselho. 
não  acabava  de  haver  resolução.  Eníre  tanto  crecia  o  dano  da  contagião 
com  fúria  terrível,  não  havia  casa,  nem  homem  seguro  :  mais  fero,  e  mais 
pernicioso  couipa  os  mais  robustos,  era  tiro  de  fogo,  que  apontava,  e 
derribava,  feria,  e  matava  tudo  junto.  Mas  o  que  não  tiniia  reparo,  e  que 
só  com  o  medo  tirava  vidas,  era  que  o  ar  corruto,  e  venenoso  despois 
de  enterrar  hum,  e  muitos,  não  se  enterrava  nem  acabava  com  elles : 
vivo,  e  inteiro  ficava  em  qualquer  peça  de  vestido,  e  em  qualquer  dobra 
de  pano,  por  pequena  que  fosse,  d'aUi,  como  de  emboscada  acometia  do 
novo  a  quem  se  atrevia  a  local-o,  e  com  a  mesma  violência  o  matava, 
que  fizera  ao  que  já  estava  tornado  cinza.  Fazendo  isio  grande  forra  ao 
VUL.  1.  "        ^-i      ' 


38G  LIVRO  III  DA  IIISTOUIA  DIÍ  S.  DOMINGOS 

Bispo  porá  bradar,  c  rogar,  c  instar,  em  fim  foi  Deos  servitlo,  que  se 
veio  a  assentar,  e  fundar  a  Confraria  dia  sinalado,  véspera  da  Presenla- 
ção  de  Nossa  Senhora,  vinte  de  ?íovembro  do  anno  do  Senhor  1432.  Era 
Domingo,  e  pregava  o  mesmo  Bispo,  declarou  do  púlpito  o  que  eslava 
assentado,  e  advirtio  juntamente,  que  acabada  a  Missa  havia  de  benzer 
agoa  em  nome  do  bom  Jesu,  Autor,  e  Senhor  da  Confraria,  pêra  que  a 
levassem  pêra  casa,  e  a  communicassem  aos  enfermos.  Foi  recebida  a 
nova  com  extraordinário  alvoroço,  o  alegria,  como  bem  estreado  pronos- 
tico  do  que  logo  succedeo :  e  não  havia  homem,  que  quizesse  ficar  fora 
da  Irmandade,  nem  sair  da  Igreja  sem  sua  parte  da  agoa.  Assi  esperarão 
todos,  até  que  acabada  a  Missa  sahio  o  Bispo  vestido  em  Fortificai,  e  su- 
bio  ao  altar  de  Jesu.  Era  o  povo  tanto,  que  não  cabia  na  Igreja.  Estava 
posta  abaixo  dos  degráos  huma  grande  talha  de  agoa.  Benzeo-a  com  as 
benções  costumadas  da  Igreja,  com  muita  solemnidade,  e  devação  de  sua 
parte,  e  infinitas  lagrimas  dos  assistentes,  porque  nenhum  havia  em  ta- 
manha multidão,  que  não  tivesse,  ou  esperasse  em  sua  casa  occasião  delias: 
e  he  cousa  averiguada,  que  muitos  estavão  feridos  despois  de  entrarem 
na  Igreja,  polo  muito  que  se  reforça,  e  aviva  em  qualquer  ajuntamento 
o  fogo  da  contagião.  Carregou  logo  tanta  gente  pêra  participar  da  agoa 
benta,  que  sem  se  poderem  valer  os  dianteiros  pola  pressa,  e  aperto  que 
fazião  os,  que  ficavão  detrás,  foi  a  talha  derribada,  e  a  agoa  derramada. 
Mas  não  se  perdeo,  antes  foi  occasião  o  derramar-se  de  chegar  aos  mais 
afastados,  e  tocando  todos  as  mãos,  e  os  lenços  n'ella,  soube-se  com  cer- 
teza, que  logo  dos  feridos,  que  erão  presentes,  sararão  muitos;  e  dos 
ausentes,  a  quem  se  levou,  hum  grande  numero.  O  que  foi  occasião  de 
o  Bispo  benzer  outra  mais  vezes,  porque  era  buscada  de  toda  a  cidade 
como  imico  antídoto  contra  o  mal,  e  com  effeitos  tão  certos  cm  cal  idade, 
que  affirma  o  Bispo  por  letra  sua  em  hum  livro  d'aquelle  tempo,  que  se 
guarda  na  G  nfraria,  que  não  erão  acontecidas  em  toda  a  Christandade 
junta  de  cem  annos  atrás  tantas,  e  tais  maravilhas.  Encarecimento  que 
só  a  tão  santo  varão  se  pode  crer.  Uixs  pêra  que  em  nenhum  tempo  pos- 
sa haver  duvida  nem  dos  milagres,  nem  do  encarecimento,  crecerão  elles 
de  maneira,  que  dentro  de  quarenta  dias  contados  d"aquellc  Domingo  em 
diante  se  vio  o  mal  de  todo  acabado :  e  no  fim  de  Dezembro  erão  já  en- 
tradas na  cidade  muitas  famílias  inteiras  de  gente  nobre,  que  na  força 
do  trabalho  se  tinha  retirado  a  suas  Quintas :  e  agora  acudião  tanto  ás 
novas  da  sauile,  como  do  novo,  e  santo  remédio  d'clia. 


PARTICILAR  DO  miNO  DE  PORTUGAL  387 


CAPITULO  XXIV 

OrJeRd-se  solene  festa  no  Aliar  de  Jesu,  por  graças  de  saúde:  (azem-sc 
Compromisso,  e  Estatutos  da  Confraria. 

Pareceo  então  que  seria  justo  darem-se  graças  ao  Senhor  pola  saucle, 
c  milagre  d'ella.  E  ordenou-se  huma  solene  festa  no  Altar  de  Jcsu,  a 
quem  se  devia,  pêra  em  seu  dia,  que  foi  o  primeiro  do  mez,  e  do  anno 
seguinte  de  1433,  e  n"elle  se  fez  com  assistência  de  toda  a  nobreza,  e 
povo  da  cidade,  e  sendo  presente  o  Padre  Mestre  Frei  Gonçab  Mendes 
Provincial  d'esta  província  de  Portugal,  já  então  separada  de  Castella,  e 
o  Padre  Frei  Vicente  da  Azoya,  Prior  do  Convento,  a  quem  os  livros  da 
Confraria  nomeão  por  Doutor.  E  no  mesmo  dia  á  tarde,  (tão  acesa  an- 
dava a  devação  em  t.  dos),  tornarão  ao  Convento,  e  juntos  com  os  Religio- 
sos derão  ordem,  que  começasse  a  correr,  e  exercitar-se  a  Confraria  de- 
cretada. E  o  primeiro  auto  foi,  que  todos  os  que  se  Unhão  declarado  por 
Confrades,  e  de  novo  se  declararão,  ílzerão  eleição  de  sete  irmãos  pêra 
a  começarem  a  servir,  e  governar  com  titulo  de  hum  Juiz,  hum  Mordo- 
mo, hum  Escrivão,  e  quatro  conselheiros.  Foi  segundo  acordo  compro- 
meterem-se  todos  nos  sete  eleitos  pêra  ordenarem  com  maduro  conse- 
lho hum  Compromisso  das  leis,  que  fossem  convenientes  pêra  bom  go- 
verno da  Confraria,  e  maior  gloria  do  Senhor,  com  declaração  que  o  pi!- 
dessem  logo  mandar  confirmar  polo  Summo  PoníiRcc.  Dado  este  assen- 
to e  tomado  por  escrito,  e  assinado,  achamos  nas  lembranças,  que  durão 
na  Confraria,  que  foi  tamanho  o  contentamento  em  todos,  que  não  caben- 
do nos  peitos,  tresbonlou  por  fora,  a  buns  brotando  poios  olhos  em  la- 
grimas, a  outros  moventlo  pés,  e  mãos  pêra  darem  saltos  no  meio  da 
Igreja,  e  voltas  no  ar,  sem  mais  som  que  o  de  seu  prazer,  dizendo,  o 
repetindo  com  a  lingoagem  d'aquclle  tempo,  que  o  fazião  á  honra,  e  pêra 
gloria  do  bom  Jesu,  por  serviço,  e  renembrança  do  bom  Jesu.  E  tal  foi 
o  principio  d'esta  santa  Confraria. 

Instituio-se  despois  o  Compromisso  com  suas  leis,  e  ordenações:  e  foi 
a  primeira,  que  a  festa  da  Confraria  se  celebrasse  no  primeiro  dia  de 
cada  hum  anno,  por  ser  o  mesmo,  cm  que  o  Senhor  quiz  começar  a  pa- 
decer poios  homens,  e  tomar  nome,  e  contar-se  entre  elles.  E  pêra  eter- 
na memoria,  e  agradecimenlo  da  mercê  recoèida.  houvesse  iodos  os  an- 


388  UYP.O  III  DA  líISTOP.IA  DE  S.  DOMINGOS 

nos  á  véspera  da  festa  huma  Procissão,  em  que  iriâo  os  Religiosos  do 
Convento,  e  se  acharia  com  elles  toda  a  Irmandade :  e  lium  Sacerdote 
acompanhado  do  Diácono,  e  Subdiacono  levaria  em  suas  mãos  luima  ima- 
gem do  minino  Jesu.  Esta  procissão  se  juntaria  na  Ermida  de  nossa  Se- 
nhora da  Oliveira,  sita  no  adro  da  igreja  de  S.  Gião,  e  d"ahi  iria  ao  Con- 
vento. Foi  confirmado  o  Compromisso,  segundo  por  elie  parece,  polo 
Cardeal  Renuncio,  Penitenciário  maior  do  Papa.  E,  porque  muitos  annos 
despois  foi  mostrando  o  tempo,  que  convinha  acrecentar  ordenações  de 
novo,  e  reformar  algumas  das  antigas,  juntou-se  a  Irmandade,  e  com  seu 
acordo  se  proveo  n"ellas,  e  o,  que  ficou  assentado,  se  confirmou  autoritatc 
Apostólica  polo  Infante  dom  Anrique  Cardeal,  e  Legado  a  latere  n"estc 
Reino. 

Os  milagres,  que  nosso  Senhor  obrou  na  fundação  da  Confraria,  e  ou- 
tros muitos,  com  que  despois  quiz  honrar  os  devotos  de  seu  nome,  se  es- 
creverão em  folhas  de  pergaminho,  e  d'ellas  se  fez  livro,  que  pêra  con- 
solação dos  fieis,  e  curiosos  se  pendorou  nas  grades  da  Capella  por  huma 
cadea  de  ferro,  com  conselho  mais  pio,  que  prudente.  Porque  ficou  oc- 
casionado  ao  que  despois  aconteceo,  que  foi  roubal-o  hum  atrevido,  não 
quebrando  ferro,  mas  resgando  pergaminho  com.  magoa  de  todos  os  bons- 
Outro  livro  anda  na  Confraria  vivo,  que  foi  trabalho,  e  composição  do 
mesmo  Bispo  dom  Frei  André.  São  muitas  orações  em  prosa,  e  verso 
vulgar  de  louvores,  e  excellencias  do  nome  de  Jesu,  apropriadas  pêra 
espertar  a  devação  d'elle,  e  todas  íestimunhão  bem  a  de  seu  autor.  Em 
tempos  antigos,  que  havia  mais  singollezn,  e  menos  malícia,  que  nos  pre- 
sentes, era  costume  ás  sestas  feiras,  quando  não  occorria  festa  de  guar- 
da, e  se  cantava  a  Missa  de  Jesu,  que  em  tal  dia  he  ordinária,  sobir-se 
o  Diácono  ao  púlpito,  assim  como  estava  revestido  despois  de  dizer  seu 
Evangelho :  e  abrindo  este  livro  lia  ao  povo  huina  das  orações,  que  dis- 
semos, que  vinha  mais  a  propósito  pêra  o  tempo-  porque  as  havia  n'el!e 
occommodadas  pêra  todo  o  discurso  do  anno.  E  afnrmão  os  antigos,  que 
fazião  fruito,  c  se  edificava  o  auditório  :  porque  ficavão  servindo  de  huma 
breve  pratica  espiritual. 

O  sitio  da  Capella  he  no  corpo  da  Igreja,  no  meio  d'ella,  sobre  o 
presbyterio  alto,  que  se  estende  por  toda  a  nave  direita.  Faz  divisão  das 
Capellas  collaterais  com  grades  de  ferro  torneadas,  o  tecto  he  tão  alto, 
como  a  nave.  o  frontispício  chega  a  pegar  no  frisa  do  emmadeiramento 
do  meio  da  Igreja,  que  he  grande  altura  :  e  assi  o  tecto  por  denti-o,  como 


PARTICULAR  DO  RCINO  DE  PORTLT.AL  389 

O  frontispicio  por  fora,  são  lavrados  de  tarjas,  e  figuras  de  meio  relevo 
de  boa  masseaaria,  e  todas  cozidas  em  ouro  sem  se  ver  outra  cousa.  O 
retabolo  sobe  quanto  a  parede,  c  com  a  largura  toma  toda  a  Capella.  lie 
pouco  aparatoso  em  feitio,  mas  de  boa  pintura  nos  painéis.  No  meio 
abre  bum  grande  nicho  alto,  e  largo,  e  cerrado  com  portas  de  grade 
forte,  cujos  balaustres  são  de  prata  mocissa.  Dentro  fica  hum  Christo 
crucificado  de  grande  devação,  em  vulto,  c  estatura  de  hum  bem  pro- 
porcionado homem.  No  lado  está  sempre  o  Divinississimo  Sacramento  reco- 
lliido  em  hum  relicário,  ou  custodia  redonda,  de  tal  arte  que  de  fora  se 
devisa  toda  a  redondeza  da  Historia  sagrada.  D'estas  Custodias  ha  duas 
no  Convento,  huma  de  prata  dourada,  que  serve  quotidianamente,  guar- 
necida de  pedraria:  ouíra  de  ouro  mocisso,  e  fcilio  igual  á  m.aleria  de 
f{ue  se  usa  nas  festas,  e  tem  mais  de  hum  palmo  em  diâmetro.  Esta  peça 
foi  dadiva  do  infante  dom  Luis,  sendo  por  sua  devação  mordomo  da  Con- 
traria :  as  grades  fez  o  primeiro  Conde  de  Santa  Cruz  dom  Francisco 
Mascarenhas,  que  foi  o  que  defendeo  o  famoso  cerco  de  Chaul  na  índia. 
Ardem  continuas  diante  sete  alampadas  de  prata.  As  três  grandes,  e  cus- 
tosas, as  outras  de  menos  conta.  A  este  ornato  respondem  os  paramen- 
tos que  ha  pêra  o  altar,  e  ministros,  pêra  todo  o  discurso  do  anno,  ri- 
cos, e  mui  perfeitos.  Assi  lie  a  Capella  de  mais  lustre,  e  magestadc  des- 
pois  da  maior,  que  ha  em  todas  as  Igrejas  da  Ordem :  e  no  Reino  pou- 
cas lhe  fazem  ventagem. 

Por  ser  tal  situarão  os  Prelados  nella  a  Confraria  do  Santíssimo  Sa- 
cramento, por  communicação  da  universal  Confraria  do  nosso  Con- 
vento da  Minerva  de  Roma,  pola  qual  todos  os  Conventos  da  Ordem  go- 
zão  do  privilegio  de  poderem  levantar  em  suas  Igrejas  esta  Confraria, 
e  fazer  procissões  nas  terceiras  Domingas  de  cada  mez,  particulares :  e 
duas  publicas,  e  solenes  na  Dominga  infra  Octavas  da  festa  de  Coqius, 
huma  pola  manham,  e  outra  á  tarde.  E  pêra  mais  s<jlenidade  está  pro- 
hibido  por  letras  Apostólicas  a  todas  as  mais  Religiões  Monacaes  fazerem 
em  tal  dia  semelhantes  procissões.  Do  anno,  em  que  começou  a  correr 
esta  Confraria,  não  consta  ao  certo :  mas  certo  he,  que  foi  a  primeira 
d"esta  invocação,  que  em  toda  a  Cidade  houve  :  e  assi  se  julgou  por  sen- 
tença no  anno  de  1548  em  huma  bnga  demanda,  que  por  parte  do  Ca- 
bido da  Sé  correo  contra  os  nossos  Frades.  E  a  grande  antiguidade  lhe 
tem  rendido  muitas,  e  grandes  indulgências,  e  graças :  humas,  que  os 
Sammos  Pontifices  concederão  á  Coíifraria  de  Jesu:  outras,  que  a  Papa 


390  LIVRO  III  DA  MISTOIUA  DK  S.  DOMINGOS 

Paulo  Terceiro  expressa,  o  especialments  concedeo  á  Confraria  do  Santo 
Sacramento  n"ella  encorporada,  e  outras,  com  que  de  novo  a  enriqueceo 
o  Papa  Pio  Quinto  de  gloriosa  memoria  no  anno  de  157 1  com  indulgên- 
cia plenária,  e  i'emis3ão  do  todos  os[)eccados  aos  fieis,  que  presentes  se 
acharem  nas  duas  Prucissíjes  da  Dominga  infra  Odavus. 

Ultimamente  se  annexou  á  Confraria  de  Jesu,  e  á  sua  Capella  outra 
Irmandade,  cujo  titulo  he  do  nome  de  Deos  pêra  evitar  juramentos.  Esta 
levo  principio  em  Castella,  e  foi  instituição  de  ham  Religioso  de  S.  Do- 
mingos, por  nome  Frei  Diogo  de  Vitoria  no  anno  do  Senhor  de  1500. 
E  despois  a  confirmou,  e  dotou  de  grandes  indulgências  o  Papa  Pio 
Quarto,  e  seu  successor  Pio  Quinto,  confirmando-a  de  novo,  lhe  acrecen- 
tou  outras  graças ;  e  por  hum  particular  Molu  próprio  ordenou,  que  em 
nenhum  outro  Convento  ou  Igreja  se  pudesse  situar,  salvo  nas  da  Ordem 
de  S.  Domingos ;  e  onde  faltasse  casa  da  Ordem,  se  houvesse  licença 
dos  Religiosos  d"e}la,  sem  a  qual  nenhuma  indulgência  nem  graça  se  al- 
cançaria. No  anno  de  1580  confirmou  tudo  o  acima  dito  Gregório  Deci- 
mo tareio,  assi  como  estava  concedido,  e  confirmado  por  seus  anteces- 
sores: e  começa  a  Bulia.  Aliás  iier  foiUck  rcconhttionis  Papam  Piíim 
Quartum,  ek.  E  de  novo  ajuntou  outros  favores,  e  mandou  que  a  Pro- 
cissão, que  se  costumava  fazer  por  esta  Confraria  nos  primeiros  Domin- 
gos do  mez  se  passasse  a  outro,  pêra  f-carem  despejados  os  primeiros 
pêra  o  santo  Rosário.  E  por  esta  maneira  ficarão  Ires  Confrarias  unidas 
em  huma. 

CAPITULO  XXV 

Da  êhnfraria  de  Nossa  Senhora  do  Rosário. 

Não  ha  duvida,  que  assi  como  o  primeiro  Pregador,  que  a  Virgem  sa- 
cratíssima escollieo  pêra  communicar  ao  mundo  os  tliezouros  de  seu 
santo  Rosário,  foi  o  Patriarca  S.  Domingos :  da  mesma  maneira  ficou  a 
cargo  aos  filhos  serem  d"e!le  pregoeiros:  e  não  fundarem  casa  nenhuma 
des  do  principio  da  Ordem,  sem  dedicarem  logo  juntamente  particular 
Capella,  ou  Altar  com  titulo  da  Senhora  do  Rosário.  Mas,  como  somos 
homens,  e  de  todas  as  cousas  humanas  he  propriedade  natural  não  per- 
manecerem muito  tempo  em  hum  estado,  foi  descaindo  pouco,  e  pouco 
esta  devação,  porque  erão  homens  os  que  a  mantinhão :  e  chegou  a  ter- 
mos de  estar  quasi  esquecida,  e  apagada.  Mas  aquclla  Senhora,  que  he 


PARTICULAR  DO  RKTNO  DR  PORTUGAL  391 

fonte  de  misericórdia,  e  como  tal  foi  sempre  medianeira  de  manarem  as 
riquezas,  e  bens  do  Ceo  soi)re  a  terra,  vendo  o  muito  que  os  fieis  per- 
dião  neste  descuido  :  ainda  que  os  Frades  de  S.  Domingos,  que  por  tan- 
tos titulos  estamos  obrigados  a  seu  serviço,  éramos  no  esquecimento  os 
mais  culpados,  foi  servida  de  tornar  a  fiar  dos  mesmos  a  bonra  do  seu 
Eo&ario,  (louvem-vos  os  Anjos,  Virgem  bendita,  que  bem  mostrastes  n'isto 
que  sois  verdadeira  mãi),  e  aparecendo  primeiro  ao  nosso  famoso  Pre- 
gador Frei  Alano,  de  nação  Ingres,  e  despois  ao  Prior  de  S.  Domingos 
de  Colónia  cm  Alemanha,  mandou  a  bum,  e  outro,  que  resucitassem,  e 
tornassem  de  novo  ao  mundo  este  santo  género  de  oração  acommodado, 
c  fácil  pêra  os  homens,  agradável  a  Deos,  e  a  ella,  e  pêra  alcansar  mi- 
sericórdias do  Çeo  mui  poderoso.  Era  poios  annos  do  Senhor  de  1475, 
c  passados  já  duzentos  e  sincoenta  e  tantos  despois  de  falecido  nosso 
Santo  Patriarca.  Convinha  muito  pêra  a  empresa  outro  tal  espirito  como 
o  seu.  Mas  suprio  a  Senhora  as  faltas  dos  que  então  havia,  com  tanta 
superabundância  de  graças,  que  fazendo  elles  o  que  de  sua  parte  po- 
dião,-  não  ha  i)alavras  que  possão  bem  declarar  quam  celebre,  e  estima- 
da fizerão  com  seus  Sermões  a  santa  devação,  estendendo-a  por  toda  a 
redondeza  da  terra.  Grandes  forão  as  maravilhas,  infinitos  os  milagres 
(|ue  por  ella  se  virão.  As  Irmandades,  e  Confrarias  sem  numero,  con- 
correndo a  ellas  não  só  a  gente  ordinária,  nem  só  os  Fidalgos,  e  hon- 
rados, mas  Príncipes,  e  Reis,  e  Emperadores,  e  até  os  mesmos  Papas, 
tendo  por  honra  escrever  seus  nomes  nos  livros  da  Senhora.  Assi  o  acha- 
mos apontado  em  memorias  digníssimas  de  fee,  (gloria  grande  pêra  esta 
sagrada  Picligião,  e  que  devemos  procurar  conservar  poios  mesmos  meios 
que  nos  entrou  em  casa.)  A  primeira  Confraria,  que  doeste  tempo  acha- 
mos fundada,  foi  na  mesma  cidade  de  Colónia,  e  no  Convento  de  S.  Do- 
mingos, a  qual  aprovou,  e  confirmou  no  anno  de  1479  o  Papa  Xisto 
Quarto  por  hum  Breve  riquíssimo  de  graças,  e  Indulgências :  e  o  mesmo 
fez  por  outro  semelhante  no  de  148i  Inaocencio  Oitavo.  E  desde  este 
anno  nos  consta,  que  começou  também  esta  Confraria  no  Convento  de  S. 
Domingos  de  Lisboa,  instituída,  e  assentada  na  sua  mesma  Capella,  que 
desde  os  fundamentos  da  Igreja  lhe  foi  logo  dedicada  duzentos  annos 
atrás.  E  d'aqui  se  foi  dilatando  por  todo  o  Reino,  e  crecendo  a  devação, 
c  reverencia  do  santo  Rosário  de  parte  dos  fieis,  foi  também  mostrando 
a  Senhora  d'elle,  que  se  agradava  do  serviço  com  alguns  successos  ma- 
ravilhosos obro.Ios  em  beneficio  d'~  >!^us  devotos.  O  que  deu  ocasião  a 


392  LIVRO  III  DA  lIISTOr.IA  DE  S.  DOMINGOS 

que  levantando-so  na  cidade  novo  incêndio  de  peste  no  anno  de  IWO, 
av:iidio  o  governo  d"eila,  acoaipanliado  dos  melhores  da  nobreza,  e  povo 
a  este  Convento,  e. juntos  em  sua  Capella,  e  com  voto  feito  de  a  servi- 
rem, e  solenizarem  suas  festas,  a  tomarão  por  avogada  do  mal.  Mostra- 
se  dos  livros  da  Confraria,  que  assisíiifío  com  elles  a  esta  santa  determi- 
nação o  Mestre  Frei  Brás  de  Évora  Provincial,  e  o  Piãor  do  Convento 
Erei  Pedro  Faleiro :  e  que  no  mesmo  tempo  se  renovarão  alguns  Capí- 
tulos do  Compromisso,  e  acreccníarão  outros  pêra  melhor  serviço  da 
(loníraria.  O  proveito,  que  d'este  remédio  se  sintio,  foi  tal,  que  cobrou 
novas  forças  nos  ânimos  dos  homens  o  fervor,  e  affeição  do  santo  Pxosa- 
rio :  e  os  mimos,  e  favores,  com  que  a  Senhora  o  acreditava,  crão  tan- 
tos, que  andão  escritos  livros  inteiros  d'elle.  Apoz  a  devação  creceo  a 
riqueza  no  altar,  e  Confraria,  em  ornamentos,  prata,  sedas,  e  brocados, 
e  grande  copia  de  cera:  levantou-se  a  Capella  na  mesma  forma  de  altu- 
ra, lavor,  e  dourados,  que  dissemos  da  de  Jesu,  que  lhe  lie  contigua.  E 
ardem  nella  sinco  alampadas  de  prata.  Introduzio-se  dcspois  benzcrem- 
se  Rosas  polo  mez  de  Maio,  em  nomo  e  á  honra  da  Virgem :  e  como 
cila  lie,  e  tem  por  titulo,  roza  de  pureza,  deu-se  por  bem  servida  d"esta 
cerimonia :  e  forão  grandes  os  benefícios,  que  logo  então  receberão,  e 
inda  hoje  recebem  os  que  com  fee  se  valera  d"ellas  em  suas  necessida- 
des, como  não  haja  descuido  nas  outras  de  suas  Aves  Marias,  que  são 
as  rosas,  que  mais  estima:  e  por  cujo  respeito,  e  em  significação  do 
que  lhe  agradão  se  mostrou  algumas  vezes  coroada  das  que  cria  Abril, 
e  Maio.  Vn'ão-se  os  effeitos  era  alguns  casos  mui  peregrinos,  que  não 
he  rezão  ficarem  fora  d'esta  escritura,  por  terem  todos  em  certo  modo 
sua  origem,  e  dependência  d'esta  Confraria :  brevemente  diremos  alguns 
dos  mais  notáveis. 

Águeda  Lopes  se  chamava  huma  pobre  molher  em  Lisboa,  que  sendo 
acusada  de  seu  marido  por  adultera,  foi  posta  em  prisão,  e  feito  pro- 
cesso judicial  contra  ella.  Correndo  a  causa,  era  grande  a  eíTicacia  com 
(pie  continuava  em  encomendar  sua  innocencia  á  Virgem  por  meio  do 
santo  Rosário,  que  muitas  vezes  passava  cada  dia,  consolando  sua  tribu- 
lação com  as  dores,  que  considerava  da  Senhora,  alegrando-se  nos  passos 
de  seus  gozos,  e  esperando  remédio  nos  de  sua  gloria.  Mas  por  ocultos 
juízos  de  Dejs  sahio  por  sentença  condenada  á  força  pola  culpa,  que  o 
successo  mostrou,  que  não  tinha.  Ouvio  a  sentença,  afferrada  todavia  ao 
seu  Rosário ;  e  com  elle  no  seio,  e  sobre  o  coração  foi  a  padecer.  Fez-se 


PAnTICULAl^  DO  Ri:iXO  DE  PORTUGAL  393 

a  oxcciíção,  e  dizem  que  ao  tempo,  que  o  algoz  a  empuxou  da  escada 
pêra  ficar  pendui-ada,  deu  hum  grande  grilo  chamando  nomeadamente 
pola  Virgem  do  Rosário.  Quando  veio  sobre  tarde,  passadas  muitas  ho- 
ras despois  da  jusíiça  feita,  houve  quem  quiz  tratar  de  a  enterrar:  de- 
cido o  corpo,  notarão  os  autores  da  caridade,  que  parecia  ter  sinais  de 
vida,  e  começarão  a  tratar  d'el!a  mais  que  da  sepultura.  A  primeira  pa- 
lavra, com  que  tornou,  foi  nomeando  a  Senhora  do  Rosário :  e  dizendo 
que  ella  lhe  valera,  pedia  que  a  levassem,  ao  seu  altar.  Deu  se  recado  no 
Convento,  e  levada  com  o  resguardo  necessário,  lançou-se  diante  da  Se- 
nhora regando  a  terra  com  lagrimas  em  lugar  de  graças  pola  restituição, 
que  alcançara  de  duas  vidas  em  huma  só  vida.  Aprovou-se  o  milagre  ju- 
ridicamente com  testimunho  dos  que  o  trouxerão :  e  ella  em  seu  jura- 
mento affirraou  que  na  hora,  em  que  lhe  fora  lançado  o  laço,  que  a  havia 
de  affogar,  vira  a  piadosa  Virgem  por  quem  chamara  junto  consigo,  e 
ella  lhe  sustentara  a  vida  em  aquelle  trance.  Esta  molher  viveo  despois 
muitos  annos,  e  todos  empregou  em  acender,  e  alimpar  as  alampadas  da 
Senhora.  Não  parece  questão  pêra  ventilar,  se  era  innocente,  como  foi 
condenada  em  juízo  de  gente  Ghristã:  ou  como  houve  milagre  pêra  ella, 
se  era  culpada.  Porque  he  fácil  a  reposta.  Podia  haver  erro  no  juízo,  ou 
falsidade  no  processo:  sendo  assi  que,  (como  acontecem  muitos  casos  só 
pêra  manifestação  da  gloria  de  Deos),  podia  ser  cegarem-se  os  Juizes,  e 
sentencearem  mal:  ou  julgarem  bem,  sendo  o  processo,  e  sua  prova 
tudo  falso. 

Mas,  assi  como  acudio  aqui  a  Virgem  Mãi  a  huma  innocencia  aos  olhos 
dos  homens  duvidosa,  em  huma  molher  plebeia :  assi  remedeou  logo 
outra  mui  clara,  e  notória  em  huma  nobre,  livrando-a  de  igual  ou  maior 
perigo.  E  passou  o  caso  d'esta  maneira.  Vivia  esía  molher  junto  do  Con- 
vento, 6  como  virtuosa,  e  honrada  tinha  particular  devação  á  Virgem,  e 
a  seu  santo  Rosário  com  cuidado  de  não  passar  dia  sem  lhe  dar  voltas. 
Era  o  marido  moço,  desconfiado,  e  colérico,  e  devia  trazer  os  olhos  em 
casa  alhea,  que  lhe  fazia  julgar  mal  dobem,  que  tinha  na  sua.  Veio  ace- 
gar-se  de  todo,  e  persuadir-sc,  que  havia  nella  culpas  dignas  de  se  pa- 
garem com  a  vida,  determina  tirar-lha.  Sintia-lhe  a  innocente  no  trato,  e 
no  sembrante  o  desgosto,  com  que  vivia  d'ella :  queria  tentar  justifica- 
ções de  palavra,  mas  porque  danão  mais,  onde  se  julga  mal  das  obras, 
tornava-se  ao  seu  Rosário,  chorava  com  elle.  Hum  Domingo  sobre  tarde 
vio,  que  mandara  criados,  c  criadas  fora  de  casa,  e  notou,  que  hia  cer- 


394  LIVRO  III  if\  iiisToniA  de  s.  do^hngos 

rando  sobre  si  as  portas  por  dentro,  e  julgou  ma!,  e  tcmeo-se:  subio-se 
ao  alto  (la  casa,  toma  em  suas  mãos  o  Rosário,  e  com  os  joelhos  em 
terra,  e  olhos  no  Ceo  pedia  á  Virgem  fosse  escudo,  e  emparo  da  verda- 
de, pois  a  sabia.  No  meio  destes  medos  baterão  rijo  na  porta  da  rua, 
e  repelirão  liumavez,  e  outra  com  tanta  pressa,  que  o  cego,  e  enganado 
mancebo,  que  já  sobia  pêra  pôr  em  eíTeito  a  danada  tenção,  se  houve 
por  obrigado  a  acodir  [irimeiro  abaixo.  Deceo,  e  acha  hum  gentil  moço, 
que  em  trajo,  e  aspeito  representava  calidade  mais  que  ordinária,  o  qual 
llie  disse  com  termo  muito  cortez,  e  brando,  que  hum  Padre  de  S.  Do- 
mingis,  (nomeava  hum  Religioso  seu  conhecido,  e  pessoa  de  importân- 
cia), lhe  pedia,  que  na  mesm.a  hora  quizessc  chegar  ao  Convento,  que 
cumpria  dar-lhe  huma  palavra  em  negocio  de  sustancia.  Começou  o  ce- 
go a  desculpar-se,  e  despedil-o,  dezejando  desembaraçar-se  do  messa- 
■  eiro,  e  acabar  sua  obra.  Mas  elle  replicou  com  tanta  eíficacia,  dizendo 
ijue  o  Padre  lhe  pedira,  que  achando-o  em  casa  o  não  largasse,  porque 
^lavia  perigo  na  tardança,  sem  o  levar  consigo:  que  em  fim  se  deixou 
vencer,  mais  de  sua  presença,  e  boa  arte,  que  do  recado  que  trazia.  Cu- 
brio  a  capa,  e  foi-sc  com  elle.  Chegando  defronte  da  Igreja,  virão  que 
se  cantava  a  Salve,  como  he  costume,  com  assistência  de  toda  a  Com- 
munidade.  Foi  força  entrar,  e  ouvil-a :  e  considerar  hum  pouco  ao  som 
d"aquella  musica  santa  no  desatino,  que  trazia  no  peito.  Sendo  acabada 
quiz  todavia  despachar-se,  e  requerendo  o  companheiro  pêra  irem  em 
busca  do  Frade,  porque  sahirão  do  Coro,  não  o  vio  :  buscou-o  por  toda 
a  Igi'eja,  e  não  no  achando,  íicou  hum  pouco  sobrcsaltado :  com  tudo 
foi-se  ao  Frade  saber  o  que  lhe  queria :  o  qual  o  sobresaltou  de  novo, 
e  confundio  mais,  porque  aíTirmou,  que  nem  lhe  mandara  recado,  nem 
conhecia  o  moço,  que  por  messageiro  d'elle  nomeava.  Então  foi  o  Senhor 
servido  de  lhe  abrir  os  olhos  pêra  acabar  de  entender,  que  os  mãos  pro- 
pósitos d"aque!le  dia  erão  enredo,  traça,  e  traição  de  Satanás :  e  a  vinda 
fora  negoceada  polo  Anjo  do  Senhor,  que  o  trouxera  á  Salve  de  sua  mãi 
sagrada,  pêra  lhe  dar  tempo  de  cair  na  conta  de  seu  erro  com  tantos 
sinais,  e  salvar  a  innocente  molher.  Tornou-se  pêra  casa  todo  trocado,  e 
ficando  com  ella  em  muita  paz,  passados  tempos  lhe  recontou  a  obriga- 
ção, em  que  estava  á  Senhora  do  Rosário:  e  a  forte  conjunção,  em  que 
lhe  valera  com  seu  messageiro.  Mas  não  são  de  menos  gloria  da  Virgem 
outros  casos,  que  diremos  no  Capitulo  seguinte,  huns  menos  antigos  que 
os  referidos,  e  outros  do  mesmo  tempo,  em  que  vamos  Cocrevendo. 


PAUTICrLAR  DO  KEIXO  DE  PORTUGAL  395 

CAPITULO  XXVI 

Pro^eguein  mais  alguns  milagres  do  Santo  Rosário. 

Entrava  em  artigo  de  morte  liiima  pobre  mollier  de  huma  forte  doen- 
ça, que  a  tinha  toda  inchada.  Cercavão-na  muitos  filhinhos,  que  com  pranto, 
que  fazião,  lhe  dobravão  o  mal.  O  marido  andava  por  fora  buscando- 
Ihe  o  remédio  por  seu  trabalho.  Acudirão  as  vizinhas,  pobres  como  el- 
la,  a  por-lhe  na  mão  huma  candea,  ultimo  soccorro  de  Christandade.  Á 
pressa,  e  á  revolta  d'ellas,  e  ao  pranto  dos  mininos  acudio  huma  vizi- 
nha honrada,  que  por  esmola  a  mandava  curar,  e  como  devota,  (que  o 
era  muito),  do  nossa  Senhora  do  Rosário,  levou-lhe  humas  rosas  suas,  e 
fez-lhe  tomar  hum  trago  d'agoa  d^ellas,  mandando-lhe,  que  se  encomen- 
dasse de  todo  coração  á  Virgem.  Foi  cousa  prodigiosa,  o  de  grande  glo- 
ria de  Deos,  que  no  momento,  que  tomou  a  agoa,  de  artigo,  e  dores 
de  morte,  entrou  em  ponto,  e  dores  de  parto,  e  traz  grande  copia  de 
humor,  que  vasou,  e  cm  que  se  resolveo  a  maior  incharão,  lançou  com 
muita  facilidade  huma  criança  morta.  Mas  entrou  em  novo  trabalho,  por- 
que as,  que  lhe  fazião  officio  de  comadre,  dizião,  que  lhe  ficava  outra 
criatura :  e  segundo  a  postura,  em  que  a  natureza  a  queria  despedir,  e 
a  fraqueza  estrema  da  mollier,  tinhão  por  certo,  que  primeiro  se  finaria. 
Morava  a  pobre  em  huma  casinha  ao  pé  dos  degrcáos  da  calçada  do  Carmo : 
forão  correndo  a  S.  Domingos  buscar-lhe  confessor.  Tocou  a  sorte  ao 
Padre  Frei  Luis  Cacegas,  a  quem  se  deve  o  trabalho  original  da  melhor 
parte  d'estes  escritos.  Quando  o  Padre  soube  o  estado  da  enferma,  e  o 
que  era  passado,  empregou-se  lodo  em  a  animar,  aflirmando  de  parte 
de  Nossa  Senhora  do  Rosário,  que,  pois  começara  a  fazer-lhe  mercê,  não 
deixaria  de  a  perfeiçoar :  e  acabando  de  a  confessar,  fez-lhe  tomar  mais 
agoa  das  mesmas  rosas,  que  primeiro  tomara,  e  lançando-lhe  ao  pesco- 
ço o  Rosário,  que  elle  Frei  Luiz  trazia,  deixou-a.  Não  era  bem  despedi- 
do de  casa,  quando  a  enferma  se  sintio  subitamente  tão  esforçada,  que 
sem  ajuda  nem  ministério  de  comadres  deitou  a  segunda  criança,  e  tam- 
bém morta,  e  dentro  de  jjreves  dias  teve  perfeita  saúde,  que  a  dito  das 
vizhihas,  que  lhe  assistirão,  e  de  todos  os  que  soberão  do  caso,  foi  jul- 
gada por  manifestamente  milagrosa :  e  assi  se  justificou  diante  do  Ordi- 
nário á  instancia  do  Padre  Mestre  Frei  Nicolao  Dias.  E  ficou  em  lem^- 


396  LIVHO  III  DA  HlSTOniA  DE  S.  DOMINGOS 

branca,  que  a  vizinha  nobre  se  chamava  Lianor  de  Azevedo,  e  hiima  das 
comadres  Alaria  Domingues,  c  foi  o  successo  polo  mez  de  Julho  anno 
lo74. 

Quasi  do  mesmo  tempo  he  outro,  que  agora  diremos,  o  qual  sobre 
todos,  os  que  ficão  atrás,  nos  confirma  o  muito,  que  a  Virgem  Sacratís- 
sima toma  a  sou  cargo  emparar,  e  remedear  os,  que  a  buscão  polo  meio 
do  seu  Rosário :  e  tem  huma  circunstancia  de  muita  estima,  a  qual  hc 
que  passou  polas  mãos  do  Padre  Mestre  Frei  Liiis  de  Granada,  e  foi 
por  elle  pregado  na  mesma  Igreja  de  S.  Domingos,  onde  aconteceo.  IIu- 
ma  dona  Illustre  d'esfa  cidade  estava  de  joelhos  diante  da  Imagem  de  Nossa 
Senhora  das  Virtudes,  que  tem  seu  altar  no  Cruzeiro,  em  que  agora  vemos 
lambem  S.  Jacinto,  pcdindo-lhe  favor  com  angustiado  espirito  em  hum 
negocio,  que  a  trazia  cm  todo  estremo  desconsolada.  E  no  meio  dos  ro- 
gos, e  das  lagrimas,  com  que  os  acompanhava,  se  ouvio  chamar  da  Se- 
nhora benignissima  por  seu  nome,  e  dizcr-lhe  palavras  formais,  que  lhe 
ficarão  esculpidas  na  alma :  Não  tenhais  pena ;  que  eu  me  encarrego 
desse  negocio,  pois  que  vós  tendes  cuidado  de  mo  rezar  cada  dia  o  meu 
Rosário.  A  pessoa  era  conhecida  do  Mestre,  e  de  tal  virtude,  e  c^lidade 
que  acreditava  o  successo,  e  por  ser  viva,  quando  o  pregou,  não  publi- 
cou o  nome. 

Mas,  porque  não  pareça,  quefaltão  milagres  presentes,  onde  tantos,  e 
tão  illustre  houve  antigos,  ajuntaremos  dous  tão  de  fresco  succedidos, 
que  ambos  nos  vierão  á  mão  em  tempo,  que  hiamos  pondo  em  limpo  es- 
tes escritos,  pêra  se  darem  á  impressão.  E  ambos  são  do  anno  passado, 
de  1C20.  E  ambos  podemos  contar  com  os  d"este  Convento,  porque,  ain- 
da que  hum  d'elles  succedeo  em  terras  tão  remotas,  como  são  as  de  An- 
gola, parte  da  Etyopia  Occidental :  da  mesma  maneira  que  d'esta  cidade 
de  Lisboa  procederão  todas  as  conquistas,  que  os  Portuguezes  fizerão, 
assi  as  Confrarias,  e  devações  do  Rosário,  que  a  elias  levarão,  não  se 
pode  negar  deverem  sua  origem  á  mesma  cidade,  e  ao  lugar  d'eHa  em 
que  tinlião  sua  raiz,  e  fiorecião,  que  era  este  Convento.  Não  falíão  ou- 
tras rezões  pêra  confirmarão  do  que  dizemos,  que  ao  diante  se  verão: 
agora  digamos  os  milagres.  E  seja  primeiro  o  de  mais  longe. 

Era  Governador  do  Reino  de  Angola  Luis  Mendes  de  Vasconccllos. 
Trazia  seu  campo  fora,  Aizendo  guerra  polo  Reino,  onde  entendia,  que  con- 
vinha, Portuguezes  poucos,  Negros  amigos,  e  fieis  muitos,  e  todos  a  car- 
go de  hum  filho  seu.  Chegarão  ás  ribeiras  do  rioGoariza  hum  Domingo  15 


PARTICULAU  DO  REÍNO  DE  POnTlT.AL  307 

dc  Março  de  1020.  lie  o  rio  grande,  e  poderoso  de  agoas,  c  n'esta  parle 
corro  mui  largo,  e  faz  algumas  Ilhas.  Pareceo  aos  nossos,  que  seria  bem 
sojeital-as,  buscou-se  remédio.  Acliarão-se  duas  almadias  sobre  pequenas, 
rotas,  e  velhas.  Não  faltando  animosos,  que  as  abonassem,  saltarão  den- 
tro dous  Capitães  armados  de  pés  a  cabeça,  e  sens  arcabuzes  nas  mãos, 
c  espadas  na  cinta,  e  hum  Alferes  mais  com  elles,  e  negros  remeiros,  e 
frecheiros,  e  forão  remando  contra  a  Ilha,  e  contra  os  enomigos,  que  os 
esperavão  á  borda  da  agoa.  São  as  Alniãdias  embarcações  de  hum  só 
pão,  e  ainda  as  grandes,  e  fortes  são  tão  ciosas,  que  com  qualquer  des- 
composição  logo  çossobrão.  Estas,  que  se  aíllrma  erão  pouco  maijres 
que  gamellas,  e  por  serem  abertas,  liião  já  meio  alagadas,  no  ponto  que 
chegarão  a  tiro,  era  se  começando  os  nossos  a  revolver,  os  brancos  com 
os  arcabuzes,  e  os  negros  com  os  arcos,  virarão  ambas  sem  remédio. 
Francisco  Corrêa,  que  assi  se  chamava  hum  dos  Capitães,  sem  disparar 
mais  que  huma  só  vez,  se  affogou  logo,  e  não  apareceo  mais.  Sebastião 
Dias,  que  era  o  outro,  se  foi  também  a  pique  ao  fundo,  como  se  fora  de 
chumbo.  Sendo  ambos  julgados  por  mortos  com  dor  de  todo  o  campo, 
que  estava  á  vista,  eis  que  parece  om  cima  da  agoa  Sebastião  Dias,  bra- 
cejando com  huma  rodella,  que  trazia  embraçada,  porque  não  sabia  na- 
dar, e  sustentando  na  outra  mão  o  arcabuz,  que  nunca  largou:  até  af- 
ferrar  cm  huma  das  almadias,  á  qual,  tanto  que  chegou,  deu  hum  gran- 
de grito,  chamando  por  nossa  Senhora  do  Rosário,  era  graças  de  se  ver 
salvo  por  ella  com  evidente  milagre.  E  não  o  foi  menos  escapar  dos  ene- 
migos  despois  de  pegado  na  AIraádia,  e  andar  boas  ires  horas  na  agoa 
até  se  poder  recolher  ao  campo.  Parece  que  quiz  a  Senhora  acreditar  pu- 
blicamente sua  devação  com  negros,  e  brancos,  porque  este  homem  era 
em  geral  conhecido  de  todos  por  grande  devoto  do  Rosário,  e  contava, 
que,  quando  caii^a  na  agoa,  fora  marrar  com  a  cabeça  na  área,  e  n'este 
passo  se  lembrara  do  Rosário,  que  levava  ao  pescoço,  e  chamara  era  seu 
coração  pola  Senhora  d"ell3,  e  logo  se  achara  leve,  e  cheio  de  alento,  e 
em  estado  de  poder  chegar  a  lançar  mão  da  Almádia  pêra  se  sustentar, 
e  salvar.  Cousa,  que  sem  milagre  era  impossível  succeder. 

O  outro  temos  mais  perto,  e  quasi  na  vizinhança  do  Convento:  por- 
que succedeo  no  que  os  nossos  Frades  tem  na  cidade  de  Évora.  Orde- 
nava-se^'elle  a  festa  do  milagroso  Santo  de  Amarante  S.  Gonçalo  por 
Janeiro  do  anno  de  G20.  Ile  a  Confraria  pobre,  e  administrada  por  gente 
tão  humilde,  que  pêra  acreccuíarem  solenidade,  e  encurtarem  despeza. 


398  LIVRO  III  DA  IIISTOniA  DF,  S.  DOMINGOS 

pedirão  de  cmpreslimo  parte  da  cera  de  Nossa  Senhora  do  Rosário,  a 
condição  de  pagarem  a,  que  o  fogo,  e  o  tempo  gastasse.  E  por  isso  a  to- 
marão por  peso,  e,  de  conformidade  fizerão  liuns,  e  outros  Mordomos 
seus  assentos  do  que  pesava.  Acabada  a  festa,  e  juntos  pêra  a  entrega, 
e  paga,  fizerão  segundo  peso :  e  onde  esperavão  falta  de  muitos  arra- 
tens,  porque  ardera  ás  Vésperas,  e  Missa,  tudo  com  muita  solenidade. 
e  musica  celebrado,  acharão-se  com  peso  àventejado,  c  não  em  pou- 
ca contia,  ao  que  cada  parle  tinha  posto  em  escrito.  Foi  grande  o  sobre- 
salto,  e  torvação.  Culpão-se  os  de  Nossa  Senhora  de  descuidados,  e  dão- 
se  por  enganados :  tornão  a  ler,  e  reler  suas  lembranças,  pesão  de 
novo,  e  repesão  a  cera,  esmerilhão,  se  lia  erro  na  !)alança,  ou  vicio  nos 
pesos.  Gente  plebea,  e  humilde  não  se  atrevia  a  cuidar  em  milagre,  ten- 
do-o  entre  mãos  evidente.  Referião  o  negocio  a  erro  de  todos  juntos, 
ainda  que  fieis,  e  verdadeiros  em  seu  troto.  Mas  aquclla  Senhora,  que 
lie  emparo  de  humildes,  e  Mãi  de  hum  Beos,  que  tanto  se  humilhou  no 
mundo,  que  d"elle  nos  manda  aprender  humildade,  quiz  honrar  os  hu- 
mildes, confirmando  o  milagre  por  novo  caminho :  e  foi  assi.  Aparlarão- 
se  os  seus  Mordomos,  despois  de  longo  debate,  a  recolher  sua  cera  af- 
firmando  dever-se-lhes  todavia  por  boa  rezão  o,  que  a  balança  negava : 
ao  menos  em  duas  tochas,  que  entro  as  mais  tinhão  dado,  que  erão  no- 
vas, quando  as  derão,  é  agora  vinlião  manifestamente  gastadas.  Começa- 
vão  a  lançal-a  em  sua  caixa.  Eisque  assombra  extraordinária  maravilha. 
As  tochas,  que,  quando  novas,  e inteiras  eníravão Ojlgadamente  na  caixa, 
agora  não  cabião  ardidas :  pasmão,  gritão,  não  crião  hum  milagre,  já 
confessão  dous,  hum  no  crecimenlo  do  peso,  outro  do  corpo  das  duas 
tochas.  Ghamão  por  testemunhas,  quantos  havia  na  Igreja,  correm  aos  Fra- 
des, dão  todos  soberanas  graças  á  Virgem  do  Rosário  tão  benigna  porá 
os  pobres,  que  nãoconsintio,  que  por  sua  conta  se  levasse  preço  aos  hu- 
mildes festejadores  do  seu  servo  S.  Gonçalo,  acudindo  com  tal  prodigio: 
antes  mostrou,  que  não  só  estimava  a  devação,  mas  que  folgava  de  a  aju- 
dar, e  contribuir  n'ella,  como  qualquer  dos  pobres  com  os  arratens  do 
cera,  que  o  fogo  consumio,  e  com  os  que  se  acharão  de  crença.  Em  mi- 
lagre tão  patente  houve  pouco  que  fazer.  Justificou-se  logo,  o  approvou- 
se  polo  Ordinário :  c  com  sua  licença  o  pregou  na  festa  d'este  anno  de 
■1G21  o  Prior  do  Convento,  que  era  o  Padre  Presen!ado  Frei  Ch^istovão 
Carvão. 


t 


PAUTICULAU  DO  UEINO  DE  POIITCG.VL  ^{09 

CAPITULO  XXVII 

De  outras  Confrarias  que  ha  ncsla  Ljreja^  e  de  sua  antiguidade,  e  decação. 

Mcreciãu  primeiro  lugar  por  calidade  as  Confrarias,  de  que  traiamos 
nos  capítulos  precedentes.  Das  que  restão,  iremos  agora  fazendo  relação 
segundo  suas  antiguidades.  A  que  mais  annos  conta  entre  todas,  as  quo 
ha  n'esta  Igreja,  he  a  dos  Santos  Reis  Magos,  que  tem  seu  altar  pegado 
com  o  de  Nossa  Senhora  do  Rosário  contra  a  porta  da  Igreja.  A  capella, 
c  retabolo  foi  mandado  fazer,  c  pintar  por  el  Rei  dom  Dinis,  quando 
despois  de  Rei  mandou  fazer  de  novo  algumas  oíTicinas  n*este  Convento, 
e  reparar  outras.  E  assi  tem  a  pintura  tíais  de  3áO  annos  de  antigui- 
dade, visto  como  dom  Dinis  começou  a  reinar  no  de  1279,  em  qae  dom 
Affonso  III  seu  pai  faleceo:  e  os  mesmos  tem  a  Confraria.  lia  neste  al- 
tar huma  curiosidade  muito  digna  de  ser  sabida.  E  he  que  na  Imagem 
de  Nossa  Sriihora,  que  está  no  meio  do  retabolo  cercada  dos  Reis,  te- 
mos tirada  ao  natural  a  Rainha  Sanla  Dona  Isabel,  mollier  d"el  Rei  dom 
Dinis:  e  na  do  minino  Jesu,  que  tem  nos  braços,  o  Príncipe  seu  filho, 
<]ue  então  se  criava,  e  despois  succedeo  no  Reino  com  nome  de  dom 
AíTonso  Quarto.  Quem  fosse  autor  de  tal  memoria,  não  consta,  mas  bem 
he  de  crer,  que  seria  el  Rei,  pois  o  foi  da  obra  do  retabolo,  e  sem  sua 
ordem  se  não  atreveria  o  pintor.  E  bastante  indicio  he  sabermos,  que 
fazia  el  Rei  n"esta  Capella  a  festa  de  S.  Dionísio  cada  anno,  em  q;i.;,ii-o 
tardou  em  se  acabar  o  edifício  de  S.  Dinis  de  Odivellas,  Mosteiro  ?e.';l 
por  muitas  calidades,  em  que  o  mesmo  Rei  jaz  sepultado.  O  qu<'  '  .1 
causa  de  se  nomear  muitos  annos  por  Capella  de  S.  Dinis,  e  fazer  ^^l 
Rei  mercê  ao  Convento,  por  contra  d'ella,  de  dez  libras  em  cada  hn;,- 
anno,  cm  quanto  viveo:  E  são  as  palavras  formais  da  Provisão,  que  fa- 
sia  esta  esmola  pêra  se  adubar  a  igreja  do  seu  Mosteiro  de  S.  Domin- 
gos da  Villa  de  Lisboa.  Esta  Provisão  lemos  confirmada  por  cl  Rei  dom 
AíTonso  seu  filho  no  anno  de  1326.  E,  porque  se  veja  o  muito,  que  en- 
tão valia  pouco  dinheiro,  pois  com  esta  contia  se  podia  acudir  ao  repa- 
ro de  tamanha  casa,  importavão  dez  libras  da  moeda  de  agora,  sendo  a 
conta  de  Duarte  Nunes  de  Lião,  mil  e  seiscentos  réis  (*). 

Tem  segundo  lugar  de  antiguidade  a  irmandade  dos  Ingrescíj  na 

(•)  Nu  Cruii.  (luí-  lU'!í  f.  loí. 


400  LlVnO  III  DA  HISTORIA  DE  S,  DOMI^'GOS 

Capella  do  seu  padroeiro  S.  Jorge,  que  he  collateral  á  Capclla  mór  i1a 
parte  do  Evangelho.  Deve-se  a  instituição  d'o!la  aos  Reis  d'aquelle  Rei- 
no, que  como  erão  tão  Católicos  nos  tempos  atrás,  c  com  este  Reino 
conservarão  sempre  commercio  de  amisade,  e  algumas  vezes  de  sangue, 
quizerão,  que  seus  vassallos  residentes  contínuos  n'elle  tevessem  particu- 
lar Capella,  onde  se  juntassem  aos  OÍTicios  Divinos  pêra  testimunho  de 
sua  religião :  e  com  ordem  que  houvesse  quem  os  apontasse,  e  também 
quem  tevesse  poder  de  multar  os  descuidados,  e  levar-Ihes  a  pena.  Ajun- 
tarão despois  a  este  bom  costume,  hum  direito  nas  mercadorias,  que 
despachavão  na  Alfandega,  que  valia  dez  réis  por  cada  peça  de  panno; 
e  como  era  o  trato  grosso,  e  grande  numero  de  náos,  vinha  no  cabo 
do  anno  a  montar  muito.  Arrecadava-se  o  direito  poios  livros  da  Alfan- 
dega, e  erão  executores  os"j\Iordomos  com  assistência  do  seu  Cônsul. 
Assi  estava  a  Confraria  rica  de  muita,  o  boa  prata,  e  bons  ornamentos 
do  Altar.  Como  lá  faltou  a  Religião  nos  Reis,  foi  também  faltando  aquel- 
le  primor,  e  gosto  antigo  do  culto  Divino  nos  vassallos,  que  navegavão, 
c  o  grosso  direito  de  dez  réis  por  cada  pano,  trocou-se  em  hum  cruzado 
por  cada  náo,  que  foi  grande  abatimento.  E,  com  tudo,  entre  os  que  erão 
moradores  antigos  doesta  Cidade,  assi  como  se  conservou  a  fé  com  a  pu- 
reza de  seus  maiores,  ajudada  com  o  exemplo,  que  tinlião  nos  Portugue- 
zes :  assi  nunca  se  desemparou  de  todo  o  serviço  da  Capclla  no  meio 
das  calamidades,  e  tormentas,  que  aquella  ilha  padece,  ha  muitos  annos 
em  matéria  de  religião.  E  com  não  cessarem  estas  inda  hoje,  a  paz,  quo 
faz  crecer  todos  os  bens,  como  dura,  ha  já  vinte  annos  com  a  Coroa,  e 
Reinos  de  Espanha,  tem  mostrado,  que  não  está  apagado  nesta  nação  o 
Católico  espirito  de  seus  antepassados.  Porque  em  bom  serviço,  e  em 
numero,  e  frequência  de  homens  está  a  irmandade  de  presente  mui  adian- 
tada, e  começão  a  reformar,  e  illuslrar  a  Capella  de  novo  com  mármo- 
res, e  pinturas,  e  dourados,  que  a  vão  aventajando  ás  mais  estimadas 
do  Convento.  Não  falia  quem  diga,  que  a  instituição  da  Capclla,  c  Con- 
fraria Ingreza  he  Ião  antiga,  como  a  tomada  de  Lisboa,  quando  foi  ganha- 
da aos  Mouros  com  ajuda  d'aque!la  grande  armada  de  varias  nações  do 
Norte,  que  na  conjunção  do  cerco,  que  el  Rei  dom  Afonso  Anriquez  lho 
tinha  posto,  aportou  na  barra,  e  foz  do  Tejo  (*).  Porque  d"ellas  ficou  com 
nosco  muita  gente  nobre,  e  plebeia,  e  mais  da  Ingreza.  E  querem  atri- 
buir este  cuidado  ao  valeroso  Arcebispo,  o  Martyr  de  Cantuaria  Santo 

(')  Duarte  Nunes  de  Lião  na  viJu  dei  Rei  doiu  Afoiíiu  Ani-ii{uei. 


PAUTiCULAR  DO  HEINO  BK  rOnTlT.AL  U)l 

Tliom.is,  dizendo,  que  cHe  procurara  no  tempo,  que  teve  mão  no  gover- 
no de  Inglaterra,  que  seus  naturaes  se  juntassem  cá  em  Capella,  e  com- 
panhia particularmente  sua,  e  que  da  Igreja  das  Martens,  onde  estivera 
primeiro,  se  passara  á  de  S.  Domingos,  tanto  que  fora  ediíicada.  De  qnc 
a  Ermida  das  Martens,  (cujo  verdadeiro  nome  ho  dos  Marivres),  tevesso 
principio  naquelle  tempo,  e  fosse  obra  dos  mesmos  estrangeiros  no  tem- 
po do  cerco  da  Cidade,  ninguém  duvida:  e  de  que  permaneceo  n"ella 
ajuntamento,  e  devação  dos  que  ficarão  no  Reino,  bem  se  deixa  crer  da 
pintura,  que  dura  no  alto  do  retabolo ;  que  nos  faz  representação  dos 
Capitães  estranhos  juntos  á  bandeira  de  S.  Jorge. 

De  certo  sabemos,  que  em  tempo  d'el  Rei  dom  Duarte  estava  já  tão 
autorizada  a  Confraria  n"esta  sua  Capella  de  S.  Domingos,  que  elle  como 
fdho  de  Ingreza  que  era,  ordenou,  que  se  lhe  dissessem  n'ella  em  cada 
hum  anno  no  dia  de  festa  do  S.  Jorge  humas  Yesparas  solemnes,  e  Mis- 
sa cantada,  e  pêra  ella  deixou  de  renda  quinhentos  reaes  brancos,  nos 
quais  se  montava  quasi  ao  dobro  da  moeda,  que  hoje  corre,  a  rezão  de 
dez  seitis,  e  quatro  quintos  de  seitil  por  cada  real  branco  da  antiga  moe- 
da: o  que  ignorando  os  que  tratarão  da  reformação  do  padrão  n'estes 
annos  próximos,  aceitarão  quinhentos  réis  da  moeda  presente,  que  he 
de  seis  seitis  o  real,  e  ficarão  perdendo  o  mais :  como  se  pode  ver  da 
redução  que  el  Rei  dom  Manoel  fez  das  moedas  em  seu  tempo  (*). 

No  anno  de  1414  em  12  de  Abril  achamos,  que  foi  fundada  a  irman- 
dade da  gente  Framenga,  que  n'aqLiel'.e  tempo  era  chamada  irmandíido 
dos  Borgonhoens,  nome  que  comprondia  todas  as  Provindas  sojeiías 
ao  grande  Duque  de  Borgonha,  Conde,  e  Senhor  de  Fraudes.  Deu-se-lhes 
pêra  ella  a  Capella  collateral  da  ]\Iaior  da  banda  da  Epistola,  que  fica 
em  sitio  igual  com  a  dos  Ingrezes.  Foi  o  nome  de  Santa  Cruz,  e  do  Apos- 
tolo Santo  André  antigo  padroeiro  da  Casa  de  Borgonha,  e  de  sua  Or- 
dem de  Tusão  de  ouro,  Ordem  militar,  mas  posta  em  reputação  de  se 
não  communicar  mais  que  a  Príncipes,  e  grandes  Senhores.  Como  gente 
amiga  do  bem  publico,  souberão  começar  polo  principal,  que  foi  enri- 
quecel-a  com  muitas  relíquias  de  Santos,  e  particulares  dos  Apóstolos 
Santo  André,  Santiago,  e  S.  Felipe,  e  logo  com  indulgências,  e  alguns 
Jubileus,  que  impetrarão  de  Roma.  E  ajuntarão  pêra  commodidade  espi- 
ritual terem  no  Convento  hum  Frade  deputado  pêra  seu  Capellão,  o  qual 
por  privilegio  Apostólico  tem  poder  pêra  lhes  administrar  todos  os  Sa- 

(•)  Naí  OrJen.  vclba^  'JlI  [\ú  Jcm  Muirjcl  1.  í.  l.  1. 

VOL.  1.  2G 


402  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DK  S.  DOMINGOS 

cramentos,  como  se  fora  seu  parrochor  e,  como  tal,  lhes  diz  sua  Missa 
nos  Domingos,  c  dias  de  Fesla,  â  qual  acodem  com  cuidado,  e  a  ouvem 
juntos.  lie  estatuto  entre  elles  guardado  com  puntualidade  darem  per» 
a  fabrica  da  Confraria,  e  Capella  hum  por  milhar  de  tudo  o  que  vai  a 
fazenda,  que  lhes  entra  nas  mãos,  e  todas  suas  duos  pagão  por  tonelada 
Imm  vintém,  que,  como  são  muitas,  e  a  terra  de  Fraudes  não  tem  ou- 
tro género  de  vida  nem  trato,  senão  mercadejar,  he  hum,  o  outro  ren- 
dimento tão  importante,  que  huns  annos  passa  de  dous  mil,  e  quinhen- 
tos cruzados,  quando  o  commercío  não  está  cerrado.  Assi  celebrão  suas 
festas  com  grande  despesa,  e  pompa:  e  está  a  Capella  mui  luzida,  e  abas- 
tada de  prata  rica,  e  bem  lavrada,  e  de  muitos  ornamentos  de  frontais, 
e  casulas  de  telas  de  ouro,  e  prata,  e  sedas  de  todas  cores,  pêra  ser- 
virem segundo  os  tempos,  e  as  festas.  Mas  o,  que  mais  lhes  devemos 
louvar,  he  terem  por  costume,  e  ordem  repartir  muitas  esmolas  entre 
os  pobres  de  sua  nação,  e  casarem  orfans,  fdhas  d'estes  com  dotes  com- 
petentes. Ao  que  se  ajunta,  que,  quando  acontece  virem  a  este  llcino 
alguns  naturais  seus  a  negocear,  se  caem  em  doença  ou  em  outra  ne- 
cessidade, são  curados,  e  providos  com  caridade,  o  largueza:  pêra  o  quo 
se  fmtão  todos,  e  acode  cada  hum  de  sua  casa  com  o  que  pôde,  quando 
não  basta  a  renda  commum  da  Confraria.  E  pêra  perfeita  piedade,  to- 
dos os  pobres  são  enterrados  á  custa  da  Irmandade,  e  acompanhados 
com  muita  cera,  que  usão  toda  verde,  e  soccorridos  logo  com  Missas,  e 
sufíragios.  E  tem  pêra  seu  enterramento  lugares  separados,  a  saber 
aquella  parte  do  cruzeiro,  que  íica  adiante  da  sua  Capella,  e  a  Sacristia 
d'ella,  que  he  huma  boa  casa.  Foi  isto  commodidade,  e  graça  que  os 
Religiosos  lhes  fizerão  em  reconhecimento  de  particulares,  e  avenlaja- 
das  esmolas,  com  que  nos  tempos  antigos  dos  tremores  da  terra  acudi- 
rão ao  reparo  da  Igreja,  e  Convento,  c  forão  sempre  os  quo  mais  se  si- 
iielarão  n'este  ponto.  E  o  mesmo  fizerão  polo  tempo  em  diante,  c  ale- 
gora,  nas  obras  que  succederão  de  importância,  c  necessidade. 

CAPÍTULO  XXVIII 

Prosenue  a  relação  das  Confrarias,  e  outras  irmandades  que  ha  na  Iijreja. 

A  Casa,  c  Gorío  da  Suplicação,  tribunal  supremo  da  justiça  d'este 
Ueiuo,  tem  u"csla  Igreja  anliquissimo  assoiíto  de  Confraria,  que  deve  ser 


PAllTICUIiAR  DO  REl.XO  DK  ['OUTLT.AL  kÚ7> 

iííiin!  em  annos  aos  que  ciki  ícni  do  assistência  na  Ciuade,  dcspois  qno. 
0  5  Reis  a  trooxerão  de  Santarém,  como  atrás  tocamos.  Mas  não  no;T 
consta  do  anno,  em  que  começarão,  e  por  isso  lhe  damos  esto  lugar. 
Estes  Padres  fazem  sua  festa  ao  Espirito  Santo  na  primeira  Oitava  da 
mesma  festa,  sem  eleição  de  Gapella  ou  altar  particular,  e  celebrão-n'a 
com  muita  magestade.  No  anno  do  Senhor  de  VÒQQ,  sendo  Regedor  da 
Casa  Lourenço  da  Silva,  se  fez  novo  Compromisso,  no  qual  emendarão 
algumas  cousas  do  estilo  antigo,  que  iisavão,  e  ordenarão  de  novo  ou- 
tras pêra  bom  serviço  da  Confraria:  as  quais  confirmarão  por  cl  Rei 
dom  Sebastião. 

íle  muito  bem  servida,  e  com  grande  cuidado  a  Seráfica  Santa  Gatc- 
rina  de  Sena.  He  Santa  da  Ordem,  e  como  dizem,  de  casa.  Assi  tem 
sumptuosa  Capella,  e  altar  rico  de  perfeita  pintura,  em  que  se  lem  parte 
das  maravilhas  de  sua  santíssima  vida.  Â  huma  parte  recebendo-a  Chris- 
to  Jesu  por  sua  esposa,  e  sendo  medianeira  do  Divino  concerto  a  Vir- 
gem sacratíssima  sua  Mãi.  A  outra  imprimindo-lhe  suas  divinas  chagas. 
Mosíra-se  o  bom  Jesu  pregado  em  huma  Cruz  no  alto  do  Ceo  cercado 
de  celestial  claridade,  e  a  Santa  absorta  toda  n'elle,  recebendo  o  sobe- 
i"ano  favor  por  meio  de  humas  linhas  de  fogo,  e  sangue  que  o  represen- 
tão.  Vè-se  em  outro  painel  o  amorosíssimo  Senhor,  (porque  acabemos 
de  entender  os  estremos,  que  faz  por  quem  o  ama),  tocando  sen  Divino 
coração  com  o  da  Santa.  Esta  Capella,  e  altar  toma  todo  o  topo  do  cru- 
zeiro da  parte  da  Epistola. 

No  topo  fronteiro  tem  Capella  por  estremo  fermosa  a  Virgem  Nossa 
Senhora  com  titulo  das  Virtudes.  He  a  imagem  de  vulto  vestida  de  es- 
tofado: perfeitíssima  em  escultura.  Foi  mandada  fazer  em  Frandes  por 
el  Rei  dom  Manoel,  com  tenção  de  a  dar  ao  Mosteiro  de  S.  Jeronymo 
do  Espinheiro  de  Évora.  Sendo  chegada  a  Lisboa,  e  muito  gabada  a  el 
Rei,  mandou  que  a  posessem  n'este  Convento  pêra  a  ver.  Vendo-a  no 
Altar  mór,  onde  a  poserão,  satisfez-se  tanto  da  fermosura  do  rosto,  ta- 
lho, e  proporção  d'ella,  que  a  gabou  muito  aos  fidalgos,  queoacompanha- 
vão.  Tornando  no  paço  a  falar  nella,  e  repetindo  quão  bem  lhe  parecera, 
hum  valido  seu,  e  da  nossa  Ordem  devoto,  desejando-a  pêra  esta  casa, 
valeo-se  da  occasião,  e  posto  de  joelhos  diante  dei  Rei,  pedio-lhe  de 
mercê,  que,  pois  tão  contente  estava  da  imagem,  fosse  servido  coníentar-se 
também  do  altar,  em  que  a  vira,  c  não  consintir,  que  se  tirasse  d'elle, 
l)orque  ali  a  poderia  ver  mais  vezes,  do  que  faria  estando  em  Évora. 


40Í  UVnO  III  DA  HLSTOniA  DE  S.  DOMINGOS 

Juntou-se  o  gosto  próprio  com  a  aíTeiçSo  do  privado,  concedeo-a  ao  Con- 
vento, e  mandou,  que  se  fizesse  outra  pêra  o  Espinheiro.  Esteve  a  Ima- 
gem no  Altar  mor  até  o  anno  de  1358,  que  foi  o,  em  que  se  aereoentou 
á  mesma  Capella  tudo,  o  que  n'ella  parece  de  obra  moderna,  e  differente 
da  antiga,  que  se  deixa  Ijem  conhecer.  Então  se  passou  pêra  onde  hoje 
está,  e  onde  tem  sua  Confraria,  e  se  lhe  faz  solemne  festa  no  dia  de  seu 
glorioso  Nacimento.  E  esta  he  a  imagem,  de  que  atrás  conl  anos,  que 
falou,  e  consolou  a  huma  devota  do  seu  Rosário. 

Sendo  canonizado  S.  Jacinto,  e  recebido  n'este  Reino  seu  nome  com 
tanta  devação,  que  forão  muitos,  e  notáveis  os  milagres,  que  em  todas 
as  partes  d"elle  tem  obrado,  parece  que  a  Senhora  das  Virtudes  seria 
servida  de  agasalhar  no  seu  altar  quem  de  tantas  foi  dotado.  Assi  se 
poz  n'elle  huma  devota  Imagem  do  Smio  com  sua  custodia  nas  mãos, 
em  lembrança  d"aquella,  com  que  foginlo  dos  Bárbaros  infiéis  passou  o- 
grande  rio  Boristhenes  fazendo  carnií/lii'  sobre  a  corrente  das  agoas  im- 
petuosas, com  a  mesma  confiança,  e  facilidade,  que  pudera  fazer  pob 
lageado  da  sua  Igreja,  Mas  que  maravilha,  se  levava  n"enss  quem  o  le- 
vava, e  guiava  a  elle,  e  lhe  dava  a  vida,  o  ser,  e  o  valor?  Des  do  mes- 
mo dia  ficou  assentada  nova  Irmandade  em  nome  do  Santo:  e  pêra  mais 
lionra  sua  se  annexou  à  da  Virgem:  com  a  qual  se  incorporou  também 
de  novo  a  Irmandade  da  Resurreição,  e  ficarão  unidas  três  em  huma  só. 

E  porque  os  soldados  da  guarda  Tudesca,  que  serve  a  el  Rei  n"este 
Reino,  e  em  sua  ausência  acompanha  os  Yisoreis,  e  Governadores  que 
sua  pessoa  represenlão,  quiserão  também  formar  Confraria  pêra  exer- 
cício de  obras  virtuosas  como  bons,  e  fieis  Catholicos :  escolherão  com 
acertado  conselho  por  padroeiro,  e  protector  este  Santo,  se  não  natural 
de  sua  terra,  ao  menos  mais  vizinho,  que  os  Santos  de  cá.  Ficou  funda- 
da esta  Irmandade  na  mesma  Capella,  e  Altar,  onde  o  S;«ito  está,  e  de- 
baixo de  sua  invocação,  mas  separada  das  outras  três,  e  distinta  em  leis, 
e  estatutos,  como  em  gente,  e  lingoa.  Porém  passados  alguns  annos 
achamos,  que  mudou  sitio  pêra  outra  Igreja. 

Ultimamente  inslituio  n"esta  Igreja  o  gravíssimo  senado  da  santa,  e 
geral  Inquisição  huma  solene  Irmandade  sem  escolha  de  Altar  particu- 
lar: cujo  titulo  he  do  valeroso  Martyr  S.  Pedro  de  Verona,  Frade  de  S. 
Domingos,  por  ser  o  primeiro,  que  por  honra  do  sagrado  Officio  da  In- 
quisição, que  servia,  deu  sua  vida,  e  com  o  próprio  sangue  ennobreceo 
o  cargo.  E  por  esta  rezão  celebra  cm  seu  dia  o  santo  Tribunal  a  festa 


PARTICULAR  DO  RF.INO  DK  PORTUGAL  40a 

<la  Confraria.  Acode  a  ella  o  Inquisidor  Geral,  acompanhado  de  todos  os 
Padres,  que  com  elle  servem :  e  juntos  assistem  ás  Yesparas,  e  despois 
no  dia  á  Missa,  e  pregação.  Acodem  todos  os  Ministros,  e  Familiares 
do  Santo  OlTicio,  trazendo  estes  dous  dias  sobre  os  peitos  suas  cruzes 
quarteadas  de  branco,  e  preto,  divisa  própria  da  Ordem  de  S.  Domin- 
gos, em  memoria  que  n'€lla  teve  principio  este  tão  importante  ministé- 
rio. 

Outras  Irmandades  ha,  quasi  tantas  em  numero  como  são  as  Capei- 
las,  o  Altares,  Em  todas  se  vê  riqueza,  e  devação,  c  bom  serviço,  com 
que  a  Igreja  está  muito  frequentada,  e  ennobrecidj.  Mas  dito  o  princi- 
pal, convém  passar  a  outras  cousas. 

CAPITULO  XXIX 

De  alguns  Religiosos  filhas  iVesia  casa  qnf  falecerão 
tam  opinião  de  santidade. 

Avisando  primeiro  ao  Leitor  da  nossa  ordinária  queixa,  que  he  fal- 
tarem-nos  nossos  antepassados  com  memorias  gerais  dos  Santos,  e  mais 
varões  assinelados,  que  sabemos  certo  houve  n'este  Reino  no  principio  da 
Ordem,  quando  mais  ílorecia,  e  no  processo  a  diante,  quando  se  dilatava 
em  Conventos,  porque  a  santidade  conhecida  era  causa  de  serem  pedi- 
dos, e  dezejados  de  todos  os  lugares  grandes,  que  os  podião  manter, 
como  vivião  sem  próprio :  será  í^jrçado  ficarmos  curtos  em  historia  do 
huma  casa,  que  só  nos  poderá  dar  matéria  de  grandes  volumes,  se  não 
ficara  enterrada  com  os  sogeitos,  que  n"ella  ílorecerão,  sua  memoria. 
Por  onde  passaremos  aos  que  <iuasi  nos  forão  presentes :  advirtindo  pri- 
meiro, que  de  dous  illustres  filhos  d"ella,  que  tinhão  aqui  seu  lugar,  fa- 
zemos particular  relação,  e  com  titulo  próprio  na  segunda,  e  terceira 
parte  d'esta  historia  em  Conventos,  que  com  sua  presença,  e  virtudfs 
illustrarão,  e  fundarão.  Hum  muito  antiguo,  que  foi  o  Mestre  Frei  Vi- 
cente de  Lisboa,  Provincial,  e  Inquisidor  geral  de  toda  Espanha  antes 
da  separação  d'esta  província :  de  quem  tratamos  no  titulo  do  Convento 
de  Benfica,  onde  está  sepultado:  outro  he  o  Mestre  dom  Frei  Bertolameu 
dos  Martyres,  Arcebispo  digníssimo  de  Braga,  primas  das  Espanhas,  mo- 
derno em  tempo,  mas  comparável  em  santidade  aos  primeiros,  e  mais 
antigos  santos  assi  da  Ordem,  como  da  Santa  Igreja.  Daremos  relação 


400  MVllO  III  DA  IIISTOIUA  DE  S.  DOMINGO? 

(le  sua  vida,  quando  chegarmos  aos  annos,  em  que  fundou  com  seu  tra- 
l)allio,  e  despesa  o  Coiivento  que  a  Ordem  tem  em  Alem  Douro  na  insi- 
gne viila  de  Viana,  sem  omíjargo  de  a  termos  escrito,  e  publicado  em 
parlicular  historia  impressa  na  mesma  villa  no  anno  de  1619. 

O  primeiro,  que  agora  se  nos  oííercce,  lie  o  Padre  Frei  Diogo  de  S, 
Dionísio,  cliama(h)  o  maior,  a  dilTcrença  d"ouíro  mais  moço,  e  lambem 
porque  lhe  quadrava  o  nom.e  por  todas  as  vias.  Floreceo  em  grandes,  e 
abalizadas  virtudes  n'este  Convento,  poios  annos  do  Senhor  de  1550,  e 
ei'a  grandemente  estimado  por  sua  pregação.  Porque,  como  pregava  com 
exemplo  de  vida,  e  fazendo  o  que  dizia,  erão  suas  palavras  fogo,  que 
abrazava  coraçíjes,  e  sua  lingoa  espada  de  dous  gumes,  que  afiada  em 
muita  graça,  o  eloquência  natural,  de  que  era  dotado,  penetrava,  obri- 
gava, e  rendia  os  mais  duros,  e  rebeldes  peccadoi'es,  fazendo  tornar 
muitos  á  estrada  do  temor,  e  amor  de  Deos.  Assi  tinha  no  púlpito  luiin 
estranlio  fervor :  e  em  algumas  matérias  pronunciava  o,  que  sintia,  com 
liuns  brados  tão  efficazes,  e  ião  conhecidamente  saidos  da  alma,  e  de 
Imm  aceso  desejo  de  aproveitar,  cjue  feria  as  almas  dos  ouvintes:  mas 
com  esta  vehemencia  fazia  muito  dano  á  sua  saúde,  inda  que  lhe  rendia 
ganho  nos  próximos:  ficava  trabalhado,  e  moido,  como  se  entrara  era 
I)aialha,  e  em  fim  o  aturar  lhe  veio  a  causar  a  morte.  Porque  sendo  ve- 
lho, e  continuando  todavia  o  púlpito  com  constância  de  moço,  nacida  de 
seu  grande  espirito,  e  zelo  das  almas,  hum  dia  se  forçou  tanto,  que  lhe 
rebentou  huma  vea  no  peito,  e  tornou  pêra  a  cella  vasando-se  em  san- 
gue pola  boca.  Fizerão-se-lhe  muitos  remédios:  como  não  ajudava  a  ida- 
de, era  tempo  perdido.  Mostrou  no  trabalho  da  doença  quem  Tora  no 
bom  .iempo  da  saúde :  levava-a  não  só  com  paciência,  mas  com  alegria. 
Porque  entendendo  com  bom  discurso,  que,  posto  que  soldasse  d  vea, 
não  ficava  já  o  peito  capaz  de  tornar  ás  suas  energias,  e  fervores,  com 
que  dava  alma,  e  vida  a  tudo  o  que  dizia:  sintia-se  n'eile,  que  desejava 
acabar  a  carreira,  havendo,  que,  pois  havia  de  ficar  inuíil  pêra  trabalhar, 
não  era  rezão,  que  vivesse  só  pêra  fazer  numero,  e  comer,  e  dar  pejo 
em  casa.  Pteduzido  já  a  grande  fraqueza,  e  suspirando  pola  fiora  que 
o  havia  de  desatar  da  vida,  entrou  o  Medico  huma  manhã,  o  tomando) 
llie  p  pulso  declarou-ilie  sem  rodeos,  (porque  sabia  com  quem  o  havia- 
que  tinha  perío.a  ultima  hora.  Assi  lhe  agradeceo  Frei  Diogo  o  desen- 
gano, como  n-Quiro  tempo  pudera  cslimar  novas  de  saúde:  e  fez  demons- 
tração por  obras,  havendo  que  não  baslavão  palavras.  Deu-lhe  forças  a 


I» ARTICULAR  DO  REINO  DF.  PORTUGAL  U)7 

gosto,  como  aos  franetícos  a  fúria  do  mal.  Assentou-sc  na  cama,  e  lan- 
çando os  braços  no  pescoço  ao  Medico,  pedio-lhe  que  recebesse  aqiiellc 
abraço,  que  era  tudo  o  que  llie  podia  dar,  dezejando  que  fora  huma  ri- 
ca dadiva  pulo  gosto  da  boa  nova,  que  lhe  trouxera :  o  tardou  pouco  em 
a  ir  lograr. 

Com  as  mesmas  ânsias  de  chegar  ao  fim  da  carreira  d'esta  vida  mor- 
tal, se  foi  pêra  a  eterna  Frei  Sebastião  do  Rosário  Irmão  leigo,  e  man- 
cebo, mas  de  grande  serviço,  c  virtude  provada.  Ajudava  na  portaria 
ao  bom  velho  Frei  Jordão  do  Espirito  Santo,  aproveitava-se  do  exem- 
plo, e  lições  de  seu  espirito,  e  linha  alcançado,  que  só  na  boa  morte  con- 
sistia todo  o  bem  da  vida.  Como  tinha  esta  certeza,  e  liava  muito  da 
misericórdia  Divina  dezejava  como  valente,  o  que  os  fracos  por  cá  te- 
memos. Eslava  doente,  e  apertado :  disse-lhe  hum  dia  o  Medico,  que 
de  sua  virtude  tinha  muito  conhecimento :  Boas  novas  irmão  Frei  Se- 
bastião :  cedo  estareis  com  Deos,  este  pulso  me  diz,  que  não  tardareis 
de  hoje.  Alvoroçou-se  o  enfermo  com  o  que  ouvio  de  sorte,  que  como 
muito  são  quizera  saltar  do  leito  a  abraçal-o,  e  com  a  voz  inteira ;  e  ro- 
busta lhe  respondeu :  Pague  Deos  a  vossa  mercê,  senhor  Doutor,  as  al- 
viçaras,  que  lhe  devo  por  tão  boas  novas,  com  lhe  dar  todos  os  bens  que 
deseja.  Faço-lhe  a  saber,  que  nunca  me  falou  tanto  á  vontade,  como  agora. 
Pedio  logo  o  ultimo  Sacramento,  e  recebido  com  devação  dormio  no  Se- 
nhor. 

capítulo  XXX 

Da  gloriosa  morte  de  Padre  Frei  Dinis  de  Metlo,  e  do  Padre 
Frei  Affonso  de  S.  Mathens. 

Quasi  polo  mesmo  tempo  concluio  com  glorioso  fim  huma  vida 
muito  larga  o  bom  velho  Frei  Dinis  de  Mello.  Fora  Prior  de  muitos  Con- 
ventos, e  trabalhara  bem,  em  quanto  o  ajudarão  esforças.  Como  lhe  fal- 
tarão com  a  idade,  e  entrarão  doenças,  certa  companhia  da  velhice,  re- 
colheo-se  a  esta  casa  como  filho  d*ella,  não  a  descançar,  que  já  não  lia- 
via  lugar  polo  mal,  que  descansa  quem  he  doente :  senão  a  morrer.  Assi 
em  nenhuma  cousa  outra  tratava,  nem  cuidava  m.ais  que  na  morte.  E 
como  se  n"ella  tevesse  certas  todas  as  delicias  do  mundo,  assi  dizia 
muitas  vezes,  que  por  acelerada  que  lhe  viesse,  nunca  seria  tanto,  que 
o  achasse  descuidado.  Porque  pêra  toda  hora,  c  lugar,  e  pêra  todo  sue- 


408  LlVnO  IM  DA  líISTORIA  DF,  S.  DOMINGOS 

cesso  andava  prestes,  e  apercebido.  E  por  tanto  advirtia  a  todos,  que,  se 
acertassem  de  o  acliar  morto  em  qualquer  parte,  e  de  qualquer  modo 
que  fosse,  não  dissesse  ninguém,  que  acabara  de  morte  su])ita.  Porque 
linha  por  mais  acertado  viver  cuidando  que  cada  hora  morria,  que  mor- 
rer imaginando,  que  poderia  viver  mais  hum  anno.  Com  este  pretexto 
todos  seus  exercicíos  erão  de  homem,  que  (!stava  com  a  candea  na  mão, 
e  pêra  espirar:  toda  sua  occupação  era  tratar  só  com  Deos,  falar  com 
cllc,  ou  mentalmente  orando,  ou  rezando  psalmos.  E  costumava  rezar 
muitas  vezes  na  semana  o  Psalterio  de  David  inteiro.  Não  podia  faltar  o 
Senhor  com  buma  hora  bem  assombrada  a  (juem  o  esperava  com  tal 
\igia.  Revelou-lhe,  quando  havia  de  chegar:  efoi  tanto  ao  certo,  que  em 
hum  dia,  que  ninguém  cuidou,  o  virão  correr  os  Dormitórios  tangendo 
as  taboas.  He  som  temeroso  em  todo  Convento,  quando  se  ouve  fura  de 
horas,  ou  sem  precederem  sinos :  parece  que  batem  aquellas  aldrabas 
sobre  o  coração,  não  em  taboa.  Não  se  sabia,  que  houvesse  doente  de 
perigo  em  casa:  era  maior  o  terror.  Saliião  os  Frades  ás  portas  das 
cellas,  pasmados  de  o  verem  n"aquelle  oílicio,  pergantavão-lhe  por  quem 
tangia,  respondia  alegre,  e  sossegado,  que  por  si  mesmo,  que  queria 
morrer.  Não  houve  nenhum  a  quem  deixasse  de  parecer  mero  delirio: 
])orque  no  mesmo  dia  dissera  sua  Missa,  e  comera  no  Refeitório  da  en- 
fermaria, onde  estava  recolhido  não  por  enfermo  nem  convalecente,  se 
não  só  por  velho.  Todavia  aporfiou,  que  morria,  epedio,  que  o  não  dei- 
xassem :  e  sendo  chamado  o  Medico,  e  conhecendo  do  pulso,  que  o  de- 
semparava  a  virtude  natural,  conformou  com  cUe  :  e  com  espanto  de  to- 
dos foz  no  mesmo  dia  bemaventurado  fim. 

Como  huma  boa  morte  he  verdadeiro  testemunho  quasi  sempre  de 
"liuma  vida  semelhante,  gastamos  pouco  jtapel  em  escrever  obras  parti- 
culares dos  três  Religiosos,  que  atrás  ficão.  Mas  seguil-os-ha  huma  vida 
de  grande  admiração,  e  grandes  estremes.  Afíirmão  os  antigos  de  Frei 
Afonso  de  S.  Matheus,  filho  d*esta  casa,  que  d'esd'o  dia,  que  tomou  o 
líabito,  nunca  mais  comeo  carne,  nunca  quebrou  jejum  da  Constituição, 
nem  se  soube  d"eile,  que  comesse  fora  do  refeitório  da  Communidade. 
E  sendo  a  comida,  que  de  ordinário  se  dá  na  Ordem,  bastante  pasto, 
mas  não  demasiado  pêra  sustentar  huma  vida:  ellc  fazia,  quo  a  sua  por- 
ção suprisse  a  duas,  cortando-a  sempre  polo  meio,  e  ajudando  a  sus- 
tentar com  a  parte,  que  tirava  hum  pobre  honrado,  com  licença  que  ti- 
nha alcançado  dos  Prelados.  Todos  os  dias  á  prima  noite  cumiiihava  pe- 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  409 

ra  O  Coro,  c  n'ellc  ficava  até  hora  de  matinas.  Então,  se  havia  horas  de 
nossa  Senhora,  assistia  a  ellas  com  a  Communidade,  e,  acabadas  se  re- 
colliia,  porque  tinha  officio,  que  o  obrigava  a  madrugar,  como  logo  di- 
remos. Seu  dormir  era  sempre  vestido,  a  cama  hnma  taboa  nua,  o  cu- 
herlor  huma  manta  áspera,  desabrigada,  e  fria,  de  pelo  de  cabra :  e  com 
este  tratamento  cingia  de  continuo  hum  mui  áspero  cilicio :  e  tinlia  de 
seu  alguns,  cada  hum  de  diferente  género  pêra  lhe  servirem  conforme 
aos  tempos.  Foi  seu  primeiro  oíTicio  ajudar  na  Sacristia:  despois  succe- 
dendo  no  cargo  inteiro  d'ella  sérvio,  e  perseverou  vintoito  annos  contí- 
nuos no  trabalha  de  Sacristão  mór,  e  em  todos  elles,  se  aíTirma,  que 
nunca  teve  amizade  particular  com  pessoa  nenhuma,  havendo  muitas 
que  a  dezejavão  ter  com  elle.  Lembrado  estou,  i\ue  ouvi  contar  a  quem 
o  conheceo,  e  tratou  de  perto,  que  a  Rainha  dona  Caterina,  tendo  rela- 
ção de  sua  vida,  desejara  de  o  ver,  e  tratar,  como  fosse  sem  lhe  fazer 
força;  e  elle  furtara  o  corpo  á  honra,  de  maneira  que  nunca  entrara  no 
Paço.  Vindo  a  falecer,  todo  o  recheio  da  sua  cella  se  resolveo  em  al- 
faias de  penitencia,  cilícios  fortes,  e  cruéis,  e  bem  curtidos  do  uso,  três 
ramais  de  disciplinas,  humas  de  rosetas,  outras  enceradas,  outras  de 
cordéis,  e  todas  com  claros  sinais  de  não  viverem  ociosas.  A  isto  se 
juntou  huma  fronha  de  travisseiro,  que  se  lhe  achou  recheada  de  reta- 
lhos de  varias  sedas,  e  meadas  de  retroz  de  cores,  que  lhe  servião  de 
remendar,  e  cozer  por  sua  mão,  (segundo  género  de  mortificação,  e  pe- 
nitencia), frontais,  e  vestimentas  nas  horas  ociosas  da  sua  cella.  Livros 
não  tinha  mais  que  hum  só,  e  esse  em  vulgar.  E  tal  era  a  riqueza  de 
hum  Sacristão  mór  de  Lisboa.  A  rezão  de  tanta  pobreza  em  quem  tinha 
occasiões  de  lhe  sobejar  cabedal  pêra  boa  livraria,  e  curiosidades,  estava 
entendida,  porque  todos  seus  empregos,  e  grangerias  erão  desentra- 
nhar-se  com  pobres,  e  buscar  pêra  elles :  e  não  lhe  bastando  o  próprio 
pêra  sua  caridade,  havia  Fidalgos,  que  sabendo  jcu  proceder  repartião 
por  sua  mão  copia  de  dinheiro,  que  elle  sabia  empregar  com  segredo,  e 
prudência  entre  pessoas  honradas,  e  pobres,  e  virtuosas.  E  particular- 
mente tinha  commissãc  de  Jorge  da  Silva,  Fidalgo  rico,  e  grande  pai  de 
pobres,  pêra  despender  com  elles  cada  mez  huma  boa  contia.  Faleceo 
no  anno  de  1569  aos  oito  de  Agosto,  na  grande  peste,  que  houve  nesta 
cidade. 


410  LIVRO  III  DA  IIISTOIUA  DE  S.  DOMINGOS 

CAPITULO  XXXI 

Da  vida,  c  martyrio  glorioso  do  Padre  Frei  Jeromjmo  da  Cruz. 

Grande  sallo  nos  obriga  a  dar  hum  illustrc  filho  d'esta  casa  era  seu 
seguimento :  assi  o  pudéramos  seguir  nas  obras.  lie  o  Beato  Frei  Jero- 
nvmo  da  Cruz,  nacido  neste  ultimo  occidente,  e  na  Sé  de  Lisboa  bauli- 
zado :  morto,  e  de  seu  sangue  laureado  além  do  Indo,  e  do  Ganges,  por 
honra  da  fé,  e  de  sua  Religião.  Tomou  o  habito  em  idade  de  trinta  an- 
nos,  sendo  já  Bacharel  formado  em  Cânones  por  Coimbra.  Era  nobre  por 
geração  de  pai,  e  mãi,  o  apellido  d'elle  Paiva,  d'ella  Chamorra.  O  pri- 
meiro anno  despois  de  professo  foi  ordenado  de  Epistola,  e  Evangelho. 
No  outro  seguinte  indo  pêra  a  índia  quatro  Religiosos,  c  estando  já  em- 
barcados, succedeo  caso  forçado,  que  impossibilitou  a  jornada  a  hum 
delles.  E  foi  tanto  em  vésperas  da  partida,  que  no  dia  seguinte  se  fa- 
zião  as  nãos  á  vela.  Era  Provincial  o  grande  Mestre  Frei  Jeronymo  da 
Azambuja :  liouve  que  seria  quebra,  mandando  tão  poucos  pêra  onde 
erão  necessários  muitos,  haver  falta  nelles.  Taes  mostras  dava  o  novo 
Diácono,  que  lhe  pareceo  encheria  dignamente  o  lugar.  Erão  horas,  que 
ajudava  a  cantar  a  Salve  despois  de  Completas.  Chamou-o,  dísse-lhe  sem 
prólogos,  que  se  fosse  embarcar  pêra  a  índia,  que  convinha  assi.  Não 
houve  mais  palavras  de  parte  do  Provincial :  nem  do  súbdito  mais  re- 
posta que  dizendo  Benedictus  Deus  a  uzo  da  Ordem,  fazer  a  vénia,  e 
beijar-lhe  o  escapulário,  caminhar  pêra  a  cella,  cubrir  a  capa,  e  tomar 
o  Breviário,  e  tirar  alegremente  pêra  a  portaria.  Perfeito  sacrifício  de 
obediência,  ir  mandado,  ir  logo,  ir  com  gosto,  e  ir  sem  por  em  consulta 
se  arma  a  ida.  -Mas  outro  sacrifício  fez  maior  Frei  Jeronymo,  que  tendo 
na  cidade  sua  mãi,  offereceo  a  Deos  as  saudades,  que  lhe  merecia,  e  a 
desconsolação,  que  lh3  deixava  :  embarcou-se  a  furto  d'ella,  e  não  foi  na 
mesma  hora,  porque  acudio  o  Prior,  que  era  o  Padre  Frei  Estevão  Lei- 
tão, dizendo  que  seria  bem  tomar  primeiro  Ordens  de  Missa  pcra  o  que 
logo  deu  traça.  Assi  teve  aquella  noite  pêra  se  despedir  dos  Frades  ami- 
gos, acudindo  os  que  souberão  da  ida  a  enriquecel-o  de  livros,  e  do  que 
cada  hum  podia,  porque  fez  aballo  em  todos  o  animo,  e  a  resolução.  Le- 
vantou-se  ante  manham  a  tomar  as  Ordens,  que  lhe  deu  o  Bispo  dom 
Belchior  Belleago.  E  foi  o  tempo  tão  estreito,  que  ia  pola  barra  fora,  e 
no  mar  largo,  c  a  mòr  parto  do  Convento  não  sabia,  que  se  embarcava. 


PARTICULAR   DO   REINO   DE  PORTUGAL  411 

Já  parece  que  podemos  contar  por  principio  do  martyrio  tal  modo  de 
deixar  a  pátria.  Mas  a  jornada  nos  descubrio  muito  maiores  mostras  de 
seu  valor. 

ília  na  náo  lium  mancebo  bem  nobre  no  sangue,  mas  mui  pouco  em 
costumes,  atrevido  de  lingoa,  e  colérico,  e  da  arte  de  liuns  ignorantes, 
que  achão  por  valentia  inventar  novas  formas  de  juramentos,  e  afrontar 
com  ellas  o  Ceo,  e  as  orellias  pias.  ílum  dia  que  Frei  Jeronymo  o  vio 
desmandado  era  muitos,  não  se  atreveo  o  animo  religioso  a  tolerar  as 
injurias  do  Salvador :  inda  que  conhecia  o  risco,  foi-se  a  elle,  e  com  ter- 
mo brando,  e  grave,  cstranliou-llie  os  juramentos,  dizendo-lhe  o  que  mais 
llie  pareceo  obrigação  do  habito.  Não  era  acabada  a  ultima  palavra,  quan- 
do o  desatinado  mancebo  levanta  a  mão,  e  assenta-a  com  toda  a  força 
do  braço  sobre  a  face  venerável  do  Sacerdote.  Tomarão  os  seculares,  que 
erão  presentes,  e  muitos  a  injuria  sobre  si,  como  na  verdade  em  lei  de 
primor  sobre  elles  cahia :  houve  grande  rumor,  grande  revolta :  só  o 
ofíendido  não  se  alterou,  nem  por  si  acudio  com  mais  palavra,  que  as 
do  animo,  com  que  se  tinha  todo  dedicado  a  Deos,  que  forão.  Seja  por 
amor  de  Jesu.  E,  porque  isto  erão  ensaios  com  que  o  Senhor  o  ia  dis- 
pondo pêra  a  batalha  maior  do  martyrio,  grangeou-lhe  novo  merecimen- 
to, e  segundo  interesse  da  affronta  por  sua  honra  varonilmente  aceitada. 
E  foi  assi  que,  começando  a  levantar-se  brigas  sobre  o  successo  entre  os 
passageiros,  pareceo  ao  Capitão,  que  haveria  quietação,  se  fosse  ausente 
quem  fora  origem,  e  causa  d'ellas.  Pedio-Ihe,  que  se  passasse  a  outra 
náo.  Era  isto  o  mesmo  que  lançar  Jonas  ao  mar  pcra  cessar  a  tormenta 
levantada  sem  culpa  sua(*).  Sofrco  o  Santo,  que  já  nos  merece  bem  no- 
mearmol-o  assi,  a  pena,  que  lhe  davão  polo  erro  alheio  com  o  mesmo 
valor,  que  a  bofetada :  e  foi-se  desterrado  da  companhia  dos  Padres  seus 
irmãos,  que  pêra  viagem  Ião  comprida  não  podia  ser  maior  desconsola- 
ção. Mas  pagou-lha  nosso  Senhor,  quando  por  honra  de  seu  nome  se  lhe 
multiplicavão  trabalhos  :  porque  n'aquelle  desemparo,  e  apartamento  dos 
seus,  o  visitou  com  grandes  consolações,  das  quais  naceo  sobir  tão  alto 
nas  matérias  do  espirito,  que  andando  despois  na  índia,  todas  as  vezes 
que  se  recolhia  na  Oração,  em  que  era  mui  continuo,  se  arrebatava  em 
profundas  êxtases  (**). 

Chegado  á  índia,  como  Deos  lhe  queria  abreviar  a  coroa,  pareceo 
que  ainda  em  Goa  seria  sua  presença  ocasião  de  discórdia  aos  mesmos 

(.)  Joan.  I.  {")  M.  Frei  Anlcii.  de  Sena  Cron.  (.'a  Onl.  fal.  "SC. 


412  tlVRO  III  DA  IIIí^TORIA  DE  S.  DOMIXCOS 

que  primeiro  a  tiverão  por  elle.  Despachou-o  o  Vigário  Geral  da  nossa 
Congregação  logo  pêra  Malaca  :  e  com  a  mesma  brevidade  o  dcspidio  de 
Malaca  pêra  o  Reino  de  Syão  o  Prior  d'aqiielle  Convento,  como  Vigário 
dos  Religiosos,  que  por  aquellas  partes  andavão  derramados  na  conversão 
da  Gentilidade,  que  já  então  erão  muitos,  e  agora  tem  sobido  a  grande 
numero,  segundo  veremos  adiante,  quando  chegarmos  com  a  historia  aos 
annos  do  descubrimenlo  da  índia.  Dcu-lhc  o  Vigário  por  companheiro 
em  Malaca  ao  Padre  Frei  Sebastião  do  Canto.  Forão  estes  dous  Padres  os 
primeiros,  que  entrarão  n'aquelle  grande  Reino  a  pregar  o  Evangelho. 
Entendido  poios  naturais  quem  erão,  e  que  vida  fazião,  e  que  fim  os 
levava  á  sua  terra,  pareceo  aos  mais,  que  merecião  honra,  e  gasalhado, 
pois  lhes  hião  dar  novas,  e  conhecimento  do  verdadeiro  Deos,  que  devião 
adorar,  que  era  o  mesmo,  que  dos  Frades  íinhão  publicado  os  Portu- 
gueses, homens  de  negocio,  que  residião  na  primeira  cidade,  em  que  po- 
serão  os  pés.  A  esta  conta  forão  bem  recebidos,  e  aposentados  no  me- 
lhor lugar  d>lla.  Logo  se  juntarão  os  nobres  a  visital-os,  e  até  os  Sa- 
cerdotes dos  ídolos  os  forão  buscar,  mostrando-se  todos  desejosos  de 
ouvir  a  nova  doutrina.  A  primeira  cousa,  em  que  os  Religiosos  entende- 
rão, foi  estudar  a  lingoa  ;  e  não  causou  pouca  admiração  na  terra  a  gran- 
de brevidade,  com  que  a  tomarão,  e  se  começarão  a  dar  a  entender  com 
os  naturais.  Começavão  já  a  publicar  o  santo  Evangelho,  e  ensinar  os 
mininos,  com  esperança  de  tirarem  grande  fruito  de  seu  trabalho :  quan- 
do o  Senhor  por  seus  occultos  juizos  permitio,  que  não  passassem  adiante 
os  bons  princípios,  ou  porque  a  terra  por  seus  peccados  não  merecia 
entrar-lhe  a  luz :  ou  porque  quiz  abreviar  a  gloria,  e  a  palma  ao  seu 
Martyr.  Como  em  todas  as  terras  marítimas  do  Oriente  tem  os  Mouros 
trato,  e  morada  de  muitos  annos  antes  que  os  Portugueses  passassem  a 
cila,  6  tem  certeza,  que  onde  forem  honrados  os  Christãos,  não  podem 
ellcs  deixar  de  ser  perseguidos,  procurarão  os  que  havia  neste  porto 
adiantar-se,  e  apagar  o  fogo  nos  principies  antes  de  levantar  incêndio, 
como  já  se  lhes  trasluzia  na  geral  inclinação,  que  vião  no  povo  pêra  as 
cousas  da  fé,  e  no  muito,  que  o  Padre  Frei  Jeronymo  lhe  tinha  em  par- 
ticular ganhado  as  vontades.  Foi  conselho  armar  briga  com  os  mercado- 
res Portugueses,  que  acudião  a  casa  dos  Padres,  pêra  que  saindo  elles, 
como  era  certo,  a  meter  paz,  fossem  acometidos,  e  mortos,  e  parecesse 
o  negocio  accidental.  Pêra  melhor  effeito  peitarão  alguns  Gentios,  quo 
ouvindo  rumor  saíssem  com  suas  armas,  pcra  que  por  todas  as  vias 


PARTIGULAi;  DO  HEINO  BE  POIITUGAL  413 

fosse  a  traição  mais  dissimulada.  Assi  como  o  trararão,  o  posorão  por 
obra,  e  assi  lhes  succedeo.  Acharão  á  porta  dos  Padres  os  mercadores 
Portugueses,  soltarão-se  cora  elles  em  palavras :  não  sofrerão  os  nossos 
o  atrevimento,  levão  das  espadas,  trava-se  a  briga.  Acodem  os  Gentios 
peitados,  e  conjurados,  com  suas  armas,  como  estava  tratado,  revolvem- 
se  todos,  arde  a  rua  em  grita,  e  confusão.  Chegou  o  rumor  aos  Padres, 
decem  abaixo,  melem-se  por  entre  espadas,  e  lanças,  procurando  apar- 
tar, e  quietar.  Was  como  elles  erão  os  buscados,  então  creceo  mais  o 
niido,  e  carregando  de  propósito  pêra  onde  vinhão  todo  o  peso  da  re- 
volta, e  das  armas,  foi  atravessado  o  Padre  Frei  Jeronymo  com  huma 
lança  poios  peitos,  de  que  logo  cahio  morto ;  e  o  Padre  Frei  Sebastião 
ficou  mal  ferido  na  cabeça,  mas  não  de  morte.  Mostrou  a  cidade  notável 
sintimento  do  caso,  e  vio-se  claro  quão  bons  fundamentos  tinha  lançado, 
pêra  aproveitar  no  principal,  o  Padre  Frei  Jeronymo,  de  bem  quisto,  e 
amado  em  commum.  Porque  ate  os  mininos  clioravão  sobre  elle,  e  com 
vozes,  e  clamores  ao  Cco  repetião  Vapa  beta :  vnpa  beta,  que  quer  dizer, 
meu  pai,  meu  pai.  O  mesmo  sintimento  teve  elUei,  que  estava  ausente 
em  huma  cidade  distante,  quando  foi  informado  do  que  passara  ;  e  man- 
dou fazer  exemplares  justiças  em  Mouros,  e  Gentios.  As  relíquias  do 
Santo  Martyr  se  trouxerão  pêra  Malaca  no  anno  seguinte ;  c  sendo  rece- 
bidas com  procissão,  e  triunfo  por  toda  a  cidade,  forão  postas  no  Con- 
vento, que  alli  tem  a  Ordem.  Succedeo  oMartyrio  no  anno  de  I0G6  pola 
conta  mais  cería. 

CAPITULO  XXXII 

Viãa,  c  trabalhos  do  Padre  Frei  Lopo  Cardoso. 

Com  boa  benção  despedio  o  Convento  de  Lisboa  tal  filho,  como  foi 
o  Martyr  Frei  Jeronymo,  pois  tal  ventura  alcançou.  Mas  não  devemos 
estimar  menos  outros,  que,  se  não  forão  Martyres  de  cutello,  e  sangue 
derramado,  padecerão  tormentos  de  merecimento  igual.  Porque  não  ha 
duvida,  que  os  trabalhos  da  fome,  e  sede,  de  perigos  da  terra,  e  medos 
do  mar  são  hum  género  «b  morte  vagarosa,  e  martyrio  prolongado,  que 
muitas  vezes  mata  com  dubrada  pena.  Pedio  el  Rei  de  Camboja  por  seu 
Embaixador  ao  Capitão  do  Malaca,  que  lho  mandasse  alguns  Religiosos 
pêra  em  seu  Reino  pregarem  a  fé,  e  edificarem  casa.  He  Camboja  gran- 
de, c  dilatada  Provincja,  e  huma  das  que  com  Malaca  tem  ordinário  com- 


414  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.   DOxMlXGQS 

mercio.  Deu  o  Capitão  conta  ao  Vigário  de  S.  Domingos,  o  elle  nos  Fra- 
des. Oíifereceo-se  á  jornada  o  Padre  Frei  Lo[)o  Cardoso,  íilho  do  Con- 
vento de  Lisboa,  e  por  seu  companheiro  o  Podre  Frei  João  Madeira.  Era 
Frei  Lopo  já  neste  tempo  conhecido  por  homem  de  valor,  c  grande  re- 
ligião: fora  Prior  em  Chaul,  Vigário  de  Malaca,  e  da  Ciiristandade  de 
Solor :  e  cm  todas  estas  partes  se  tinha  governado  com  muita  prudên- 
cia, e  bom  exemplo.  Entrarão  os  dous  companheiros  em  Camboja  como 
pedidos,  e  chamados,  e  assi  forão  recebidos  do  Rei  com  todas  as  mos- 
tras de  amor,  que  se  podia  desejar.  Seguirão  obras  conformes,  mandan- 
do-lhes  sinalar  sitio  pêra  Igreja,  e  despachar  suas  licenças  pêra  prega- 
rem. Começava  Frei  Lopo  com  fervor,  animado  de  tão  bons  principios. 
Mas  succedeo-lhe  o  caso  mais  avesso,  que  em  tal  tempo  se  podia  espe- 
rar. Faleceo  el  Rei,  entrou  no  Reino  hum  filho  moço  entregue  todo  aos 
Sacerdotes  dos  ídolos.  Estes,  como  se  virão  com  autoridade,  emprega- 
rão-na  em  fazer  o  dano,  que  podião  aos  Religiosos,  e  foi  o  primeiro  ti- 
rar-lhes  a  licença  de  pregarem  aos  naturais  do  Reino.  Tratou  logo  Frei 
Lopo  de  deixar  a  terra :  e  em  quanto  avisava  ao  Vigário  de  Malaca,  por 
não  largar  o  ministério  a  que  fora  chamado,  entendeo  em  pregar  a  al- 
guma gente  de  secreto,  e  aos  tratantes  forasteiros  em  publico,  porque 
havia  muitos,  e  de  varias  naçijes :  e  converteo  alguns. 

Não  consintio  o  Vigário  de  Malaca,  que  Frei  Lopo  deixasse  Camboja, 
entendendo  que  com  o  tempo,  e  com  sua  prudência  viria  a  vencer  a  op- 
posição  dos  enemigos :  e  pêra  o  obrigar  foi-se  ver  com  elle  a  Camboja, 
levou-lhe  outro  companheiro  eni  lugar  de  Frei  João  Madeira,  que  fora 
com  o  aviso  a  Malaca,  (foi  este  o  Padre  Frei  Silvestre  de  Azevedo.)  E 
visitou  a  el  Rei  a  fim  de  o  reduzir  ao  bom  animo  de  seu  pai.  Quando 
se  quiz  partir  mandou-lhe  el  Rei  entregar  huns  moços  Jaós,  que  cativara 
na  guerra :  com  ordem  que  em  Malaca  lhos  fizesse  vender,  e  do  proce- 
dido lhe  comprasse,  e  inviasse  certas  peças,  que  lhe  apontou.  Foi  a  des- 
graça, que  cliegado  o  Vigário  a  Malaca,  os  escravos,  como  não  anda  vão 
a  ferro,  desaparecerão  logo;  o  que  alli  he  ordinário  pola  vizinhança  da 
terra  firme :  e  não  houve  de  que  dar  cumprimento  á  encomenda.  Sabido 
em  Camboja  o  que  passava,  pagarão  os  que  lá  estavão  o  descuido  do 
encomendeiro,  ou  o  desastre  da  encomenda,  e  forão  logo  despojados  de 
toda  a  pobreza,  que  em  casa  tinhão,  por  mandado  dei  Rei,  até  o  caliz, 
e  vestimenta,  e  Missal  lhe  levarão :  e  não  parando  o  negocio  no  fato,  por 
ser  de  pouca  valia,  forão  os  Padres  postos  em  áspera  prisão.  Aqui  foi 


PAIlTICULAIl  DO  liKINO  DE  PORTUGAL  41 S 

O  merecer  padecendo  estremos  de  fome,  que  sendo  g-enero  de  morte 
desesperado,  so  temperava  com  novas,  que  cada  dia  lhe  davão,  que  el 
Rei  os  mandava  lançar  aos  elefantes  bravos.  E  não  havia  duvida,  que 
fora  execuiado  o  mandado,  se  lhes  não  valera  hum  privado,  que  o  Padre 
Frei  Lopo  tinha  de  secreto  convertido  á  fé,  e  juntamente  a  mãi  dei  Hei 
que  lhe  aCfeava  tratar  mal  homens  entrados  no  Reino  debaixo  da  fé,  e 
seguro  Real  de  seu  pai.  Mas  cm  fim,  por  aqui  teverão  remédio  de  sol- 
tura os  corpos,  ainda  que  nenhum  a  fazenda  roubada. 

Não  he  pêra  licar  em  silencio  pêra  exemplo  do  muito,  que  pode  a  fé 
prantada  em  hum  animo,  ainda  que  bárbaro,  que  lendo  Frei  Lopo  con- 
vertido hum  moço  de  nação  Ganarim,  que  chamou  Domingos  no  bauíis- 
mo,  foi  tanta  sua  piedade  do  que  via  padecer  ao  pai  espiritual,  que  não 
sentindo  outra  via  pêra  o  poder  socorrer,  lhe  pedio  por  vezes  que  o 
quizesse  vender  por  escravo,  e  valer-se  no  aperto,  em  que  vivia  com  o 
preço,  que  achasse  por  elle. 

Yendo-se  Frei  Lopo  livre  do  cárcere,  desejou  livrar-se  também  da 
terra,  em  que  já  não  era  de  tanto  proveito  como  imaginara :  e  andando, 
em  traças  de  fogida,  foi  mexericado,  e  de  novo  preso  com  seu  compa- 
nheiro :  e  tratados  ambos  com  exorbitantes  afrontas  de  palavra,  e  obra. 
Porque  ainda  assi  os  queria  el  Rei  ter  em  arrefens  das  suas  escravas 
com  cobiça,  e  baixeza  do  infiel.  Passados  muitos  dias  acudio-lhes  o  Se- 
nhor, por  quem  padecião,  inclinando  aquelle  animo  avaro  a  hum  parti- 
do, que  foi  largar  a  Frei  Lopo  pêra  que  fosse  a  IMalaca  resucitar-lhe  a 
sua  encomenda :  ficando  todavia  por  prenda,  e  lembrança  o  companhei- 
ro. Chegou  Frei  Lopo  a  Malaca,  tirou  por  esmolas  com  que  satisfazer  a 
el  Rei,  e  também  agradecer  á  Rainha  sua  mãi  os  benefícios,  que  lhe  fi- 
zera. Embarcado  o  retorno  dei  Rei,  e  hum  presente  pêra  a  Rainha,  inda 
aqui  quiz  Deos  dar  occasião  de  merecimento  a  Frei  Lopo,  e  a  seu  com- 
panheiro, permittindo  que  comesse  o  mar  tudo  com  a  embarcação,  que 
o  levava.  Assi  tornou  com  novo  trabalho,  e  afronta  a  mindigar  segundo 
retorno,  não  esperando  ver  de  outra  sorte  seu  companheiro  resgatado, 
e  sua  palavra  desobrigada.  Porque  he  condição  tacita,  que  acompanha 
as  encomendas  dos  poderosos,  não  lhes  prejudicar  nenhum  naufrágio,  e 
haverem-lhe  de  tornar  á  mão  seguras  de  todo  risco.  Era  tão  estimado 
Frei  Lopo  em  Malaca,  que  todavia  juntou  o  que  convinha  pêra  desem- 
penhar a  Frei  Silvestre.  Mas  não  se  atreveo  a  esperar  outro  naufrágio : 
embarcou  a  bom  recado  o  que  tinha  ncgoceado,  dirigido  ao  companhci- 


4f6        '  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

ro,  e  meteo-se  no  primeiro  navio,  que  se  oíTereceo  pêra  Goa.  O  succcsso 
cVesta  fazenda,  que  não  teve  melhor  ventura,  que  a  primeira,  e  as  novas 
fortunas,  que  por  isso  passou  o  Padre  Frei  Silvestre,  veremos  nas  rela- 
ções dos  Conventos  da  índia,  se  Deos  for  servido  chegamos  a  escreve- 
1-as.  Só  he  rezão,  por  não  dilatarmos  paga,  e  agradecimento  de  benefi- 
cio recebido,  ficar  aqui  logo  em  memoria,  que  tendo  noticia  em  Japão  o 
Padre  Alexandre  Valinhano  da  Companhia  de  Jesus,  Visitador  d'aquella 
Província,  do  estado  em  que  estes  Padres  se  achavão  em  Camboja,  lhes 
mandou  hum  Caliz  de  prata  com  vestimenta  aparelhada,  e  frontal,  e  Missal 
Romano ;  e,  porque  não  faltasse  nada,  ajuntou  farinha  de  trigo,  e  vinho 
de  Portugal :  o  que  tudo  buscava  ao  Padre  Frei  Lopo ;  e  não  no  achan- 
do, foi  entregue  em  mãos  de  Frei  Silvestre,  que  o  teve  por  celestial  con- 
solação do  desterro,  e  aíílições  que  n"elle  despois  padeceo. 

O  Padre  Frei  Lopo  seguindo  sua  viagem  chegou  a  Goa,  onde  fizerão 
lastima  de  seus  trabalhos;  e  como  varão  santo  foi  mandado  polo  Vigário 
geral  da  Congregação  descançar  em  casa  santa.  Encomendou-lhe  a  Igreja 
de  Nossa  Senhora  dos  Remédios,  no  termo  de  Baçaim,  onde  esta  Senhora 
quiz,  e  mandou,  que  o  Religiosos  d"esta  Ordem  lha  edificássemos,  e  em 
testimuho  d'isso  a  tem  feito  celebre  por  toda  aquella  costa  com  tantos 
milagres,  que  no  anno  de  1005  se  contavão  cento  e  vinte  juridicamente 
approvados,  como  o  contará  a  historia,  quando  chegarmos  com  ella  ao 
anno,  em  que  teverão  principio.  Despois  de  residir  aqui  alguns  annos, 
nos  quais  com  sua  industria  acreccntou  a  casa,  e  com  sua  santa  vida  edi- 
ficou muito  a  terra,  foi  eleito  cm  Prior  de  Cocliim.  Servindo  neste  cargo 
a  Ordem  acudio  a  Goa  a  hum  Capitulo,  e  n'elle  faleceo  de  sua  doença. 
Foi  enterrado  em  hum  lanço  do  claustro  do  Convento  d'aquella  cidade. 
Puserão-lhe  sobre  a  sepultura,  quando  se  ladrilhou  o  kigar  d'ella,  sinco 
azulejos  em  Cruz.  E  isto  foi,  quanto  se  fez  em  memoria,  e  veneração  de 
tal  pessoa.  Assi  vamos  hoje  seguindo  as  pisadas,  mas  os  defeitos  de  que 
nos  queixamos  em  nossos  maiores. 

C.\PITULO  XXXIII 

Da  vida,  e  morte  do  Padre  Frei  Inácio  da  Purificação.  E  do  irmão 
Frei  Pedro  de  S.  JJomiiujos,  leigo. 

Dous  filhos  deu  o  Convento  de  Lisboa  pêra  perfazerem  o  numero  do 
doze,  (numero  de  boa  estrca),  que  no  anno  de  15  í 8  furão  fundar  aCon- 


PAr.TICLLAn  DO  niílXO  DiC  PORTÍGAL  4Í7 

crregarrio  do  Nossa  sagrada  Ordem,  nas  paríes  da  índia,  em  companhia 
do  primeiro  Vigário  Geral  d'e'ia,  Frei  Diogo  Bermndes,  sendo  Provincial 
n'esta  Província  o  Padre  Meslro  Frei  Francisco  de  Bovadillia,  e  Gover- 
nador da  índia  o  bom  velho  Garcia  de  Sá :  como  largamente  contaremos 
adiante,  quando  com  a  historia  chegarmos  a  estes  annos.  Taes  foriío  em- 
suas  ol.)ras  os  dous  sojeitos,  que  pêra  tal  empresa  dou  Lisboa,  que  hon- 
rarão bem  o  juízo,  de  quem  os  escoUieo.  Foi  hum  o  Padre  Frei  Inácio 
da  Purificação  :  e  outro  Frei  Pedro  de  S.  Domingos,  Irmão  leigo.  *  Frei 
Inácio  era  pregador  de  nome,  e  nomeada  sua  oljsei-vancia,  e  virtude  na 
Ordem,  e  como  tal  fizera  o  officio  de  Mestre  de  Noviços  no  Convento  de 
Lisboa,  com  estremada  diligencia.  Tanto  que  o  Vigário  Geral  poz  os  pés 
na  Índia,  e  tratou  de  receber  gente  ao  habito,  logo  fez  conta  que  não) 
tinha  outrem  pêra  llie  dar  a  ciiação,  que  convinlia,  como  Frei  Inácio :  e 
como  teve  numero  competente  de  noviços,  lhos  entregou  com  inteira 
confiança  de  saírem  de  sua  mão  Mestres.  E  na  verdade  elie  tomou  tanto 
a  peiío  o  cuidado,  vendo  que  criava  homens  pêra  Apostol-os  d'aquellas 
vastíssimas  províncias  do  Oriente,  tão  cegas,  como  vastas,  que  se  adian- 
tou a  si  mesmo,  e  fez  discípulos,  que  derão  de  si  homens  de  muita  con- 
ta. E  por  honra  dos  velhos  he  rezão,  que  fiquem  em  lembrança,  que  en- 
tre os  minínos,  que  pêra  Noviços  lhe  forão  entregues,  entrou  hum  Fi- 
dalgo velho,  e  honrado,  que  aborrecido  do  mundo,  e  engeitando  suas 
promessas  se  determinou  em  seguir  a  Christo  pobre,  e  nú :  chamava-se 
Simão  Botelho  d"Andrade.  Servira  doze  annos  de  Vedor  da  fazenda  da 
índia,  e  três  de  Capitão  de  Malaca.  Estava  rico,  e  era  opinião  geral,  que 
ninguém  entendia  melhor  o  governo  d'aquelle  estado  de  (juantos  Fidal- 
gos tinhão  passado  o  cabo  de  Boa  Esperança.  Assi  foi  grande  espanto 
dos  vãos,  e  cubiçosos,  mas  maior  sua  consolação,  e  com  ella  professou, 
e  acabou  santamente  no  habito.  Com  tal  Mestre,  e  tais  Noviços  começou 
a  Congregação  da  índia.  O  Mestre  Fi'ei  Inácio  passados  alguns  annos 
deixou  o  cargo  pêra  descançar.  Sendo  morador  em  Cocliim,  pregava  com 
muita  continuação,  e  com  hum  zelo  ferventissimo  da  salvação  das  almas. 
E  hum  dia  foi  tanta  a  vehem.encia,  com  que  trabalhou  por  persuadir,  e 
mover  o  auditório,  que  no  cabo  do  Sermão  foi  tirado  do  púlpito  quasi 
pêra  espirar,  e  no  mesmo  dia  acabou  com  grandes  sinais  de  Santo.  E 
por  tal  anda  contado  no  catalogo,  e  Martyrologio  da  Ordem. 

Frei  Pedro,  o  Irmão  leigo,  foi  dotado  de  tão  boas  paiíes  de  virtude, 
e  prudência,  que  o  V'gario  geral  fiou  d'eHe,  e  d'oulro  Irmão  também 
VOL.  1.  ^i7 


4{g  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DK  S.  DOMINGOS 

leigo  irem  ambos  assistir  na  fabrica  da  Igreja  de  Santa  Barbara,  que  foi 
huma  das  quatro  Vigairarias,  que  o  Governador  da  índia,  Jorge  Cabral, 
deu  á  nossa  Ordem  ni  Ilha  de  Goa.  Chamava-se  a  aldeã,  em  que  funda- 
rão, Morumbiin.  Muitos  annos  despois  foi  mandado  pêra  o  Convento,  que 
S3  deu  á  Ordem  em  Damão.  He  a  Cidade  na  costa  de  Cambaya,  e  muito 
importante,  por  ser  perpetua  fronteira  contra  os  Mogores,  gente  belli- 
cosa,  e  fera,  que  ha  muitos  annos  são  senhores  d'aquelle  Reino.  Mas  es- 
tava tão  pouco  defensável,  que  era  mais  pêra  soldados  muito  trabalha- 
dores, e  amigos  de  empresas  perigosas,  que  morada  pêra  Religiosos 
quietos.  Não  o  ignoravão  os  enemigos,  esíavão  cada  dia  sobre  ella  de 
cerco,  e  algumas  vezes  apertavão  com  tanta  fúria,  que  davão  muito  cui- 
dado aos  nossos.  Em  huma  d'estas  accasiões,  como  não  havia  mais  for- 
tificação, que  vallos,  e  trincheiras  de  terra,  e  faxina,  tendo  por  vergonha 
que  com  tão  fraca  defesa  se  sustentassem  poucos  homens  contra  hum 
exercito  vencedor  de  Províncias  inteiras,  acometerão  a  entrada  com  es- 
tranha porfia.  Governava  a  terra  hum  valeroso  Fidalgo,  encheo-se  do 
fo^o,  e  cólera,  (e  por  ventura  que  foi  mais  temeridade,  que  prudência), 
determina  acometel-os  fora  das  trincheiras,  e  pelejando  em  cíimpo  razo 
mostrar  ao  enemigo,  que  havia  dentro  forca,  e  esforço  não  só  pêra  de- 
fender, mas  também  pêra  offender.  Põem  sua  gente  em  ordem,  manda 
abrir  as  portas :  se  não  quando,  havendo  muitos  que  torsião  o  rosto  a 
feito  tão  desesperado,    acha  juntu   consigo  ao  nosso  Frei  Pedro  feito 
alferes  de  hum  devoto  Crucifixo  em  huma  asíe  arvorado.  Seguindo  tal 
bandeira  sac  o  Capitão  animoso,  e  dando  como  hum  raio  sobre  os  cííc- 
raigos,  por  muito  que  trabalharão  em  se  manter,  e  fazer  rosto  vendo-se 
de  acometedores  acometidos,  em  fim  forão  rotos,  e  desbaraUados,  e  dei- 
xarão o  campo  cuberto  de  armas,  e  corpos  sem  vida.  Mas  ficou  entre 
clles  morto  o  bom  alferes  de  Christo :  morto,  porém  não  vencido,  se 
não  antes  vencedor,  e  martyr,  c  verdadeiro  imitador  de  sen  glorioso  pai 
S.  Domingos,  que  a  este  modo  sohia  acompanhar  os  esquadrões  Catho- 
licos  contra  os  hereges  Albigenses  de  França,  como  em  sua  vida  deixa- 
mos contado. 

Não  será  rezão  ficar  em  silencio  á  vista  de  hum  Frade  martyr  em 
f^uerra  santa,  que  andando  o  tempo  obrigou  a  necessidade  d'csta  impor- 
tante praça  aos  Frades  de  S.  Domingos,  sobre  o  ministério  de  sua  vo- 
cação, tomarem  também  á  sua  conta  a  fortificação  delia.  Elles  forão  os 
que  com  sua  diligencia  a  acabarão  de  cercar  de  muralha,  e  baluartes 


PÂimCULAU  DO  !$EI.\0  DE  PORTUGAL  4  10 

firmiíslmos  cm  poucos  aniios,  como  hoje  está :  e  isto  foi  com  duas  cir- 
cunstancias muito  de  estimar :  primeira,  sendo  rogados  dos  Visoreis,  e 
instados  do  governo,  e  moradores  da  cidade  :  segunda,  não  tomando 
nunca  dinheiro  na  mão,  mas  assistindo  só  com  a  vigilância,  e  industria 
em  todas  as  particularidades  da  obra.  E,  ou  fosse  que  os  Capitães,  a 
quem  pertencia  mais  propriamente  o  negocio,  tevessem  occuparâes  maio- 
res: ou  que  os  Visoreis  fiassem  muito  do  cuidado,  e  fidelidade  dos  Fra- 
des :  assi  nos  constou  por  papeis  autênticos,  que  temos  em  nosso  poder, 
dos  quais  faremos  relação  mais  copiosa,  quando  chegarmos  aos  annos,  em 
que  tem  seu  lugar  próprio  as  cousas  da  índia. 

CAPÍTULO  XXXÍV 

Do  naufrágio,  trabalhos,  e  martyrio  do  Padre  Frei  Nicolao  do  Rosário. 

Muitos  annos  adiante  passou  á  índia  outro  filho  de  S.  Domingos  de 
Lisboa,  cuja  vida  até  a  perder  foi  liuma  continuada  tragedia  de  traba- 
lhos, e  desastres,  e  por  isso  pertence  a  este  lugar.  Chamava-se  Frei  Ni- 
colao de  Sá,  ou  do  Rosário.  E  sendo  filho  do  Convento  de  Lisboa,  era 
nacido  na  villa  do  Pedrógão.  Este  Padre  despois  de  ter  cursado  a  índia 
alguns  annos  com  nome  de  grande  pregador,  e  vida  pura,  e  exemplar, 
houve  licença  pêra  se  tornar  pêra  o  Reino.  Embarcou-se  na  náo  S.  Tho- 
mé,  Capitão  Estevão  da  Veiga,  entrada  do  anno  de  1588.  Chegando  ao 
Cabo  de  Boa  esperança,  acharão  as  tempestades  ordinárias,  que  n'outro 
tempo  lhe  derão  nome  de  Cabo  Tormentório,  ou  tormentoso.  E  forão 
ellas  taes,  que  fazendo  força  a  todos  o  desejo  de  passar,  abrio  a  náo 
huma  agoa  pola  roda  da  proa,  a  qual  com  o  muito  trabalhar  dos  mares 
grossos  foi  crecendo,  e  brevemente  chegou  a  estado,  que  não  havia  ven- 
cel-a  com  muitas  bombas.  Acordou-se  em  commum,  que  arribassem  a 
Moçambique  a  buscar  remédio,  antes  que  o  mal  fosse  maior.  Voltarão 
em  poupa,  mas  foi  o  conselho  sem  proveito  por  tarde,  que  tomado  com 
cedo  dera  salvação.  Antes  de  sairem  da  paragem,  que  chamão  da  terra 
do  Natal,  a  náo  se  cubrio  de  agoa  até  quasi  a  cuberta  de  cima.  Era  em 
meio  do  golfo,  e  a  perdição  sem  género  de  remédio,  nem  asperança 
d'eUe.  Mandou  o  Capitão  lançar  o  esquife  ao  mar  com  guarda  pêra  salvar 
sua  pessoa  com  os  que  lhe  parecesse :  que  não  podião  ser  muitos.  E 
posto  debaixo  da  varanda  forão  por  ordem  sua  decendo  a  elle  por  cor- 


4:20  i.ivuo  III  DA  msTuiWA  de  s.  domingos 

(las  as  pessoas  de  mais  conta,  entre  as  quais  foi  o  Padre  Frei  Nicolao, 
Recolhidos  no  esquife  os,  que  couberão,  acabou  de  se  cobrir  dagua  a  mi- 
serável não,  e  começarão  a  ver-se  lastimosos  casos:  mas  entre  lodos 
quebrou  o  coração  alé  aos  que  íicavão  em  stjinelhante  desaventura,  buma 
minina  de  oito  annos,  filha  do  pai  e  mãi  fidalgos,  e  gente  muito  conhe- 
cida, bracejando  piadosamente  nas  ondas,  e  lidando  com  a  morte  até  fi- 
car afogada  entre  suas  escravas,  que  a  cercavão.  E  em  tal  estado  teve 
sua  própria  mãi  olhos  porá  a  ver,  e  animo  pêra  se  salvar  sem  eila.  Mas 
não  he  de  crer  se  não  (jue  a  força  do  medo  da  morte  a  fez  descuidar  do 
l)enhor  da  alma  no  primeiro  assalto ;  e  no  segundo  lhe  persuadio,  que 
por-se  no  esquife  era  íomar  lugar  pêra  si,  e  pêra  a  filha,  e  que  teria  va- 
lia pêra  a  recolher  despois.  Assi  opretendeo  logo  com  gritos,  e  lastimas, 
(juo  quebrantarão  a  lodos,  mas  não  acharão  em  ninguém  piedade  pêra 
lhe  dar  remédio. 

Porém  logo  se  virão  no  esquife  outros  casos,  que  por  mais  desastra- 
dos fizerão  esquecer  os  da  não.  Pareceo  a  gente  demasiada  pêra  tão  pe- 
queno vaso,  tratou-se  de  o  aliviar,  e  não  podia  ser  sem  sentença  de 
morte  contra  alguns.  Forão  logo  condenados,  e  lançados  ao  mar  muitos 
dos  que  pouco  antes  davão  parabéns  á  sua  ventura,  de  se  verem  a  seu 
parecer  em  salvo,  ficando  tantos  bons  companheiros  sepultados  na  pro- 
fundeza das  agoas.  Foi  o  sorver-se  a  não  no  mar,  e  a  passagem  ao  es- 
quife tudo  abreviado,  e  como  por  momentos.  E  todavia  no  lugar,  que  o 
tempo  deu,  mostrou  Frei  Nicoláo  entranhas  de  verdadeira  piedade,  e 
religião,  ouvindo  confissões,  e  animando  a  todos :  e  o  mesmo  fez  mais 
de  assento  nas  fadigas,  e  perigos  da  segunda  navegação :  na  qual  o  medo 
de  soçobrarem  com  qualquer  mar  grosso,  lhes  ti\azia  a  morte  diante  dos 
olhos  a  cada  momento.  A  cabo  de  alguns  dias  foi  Deos  servido,  que  to- 
marão terra  em  buma  paragem,  que  chamão  terra  dos  Fumos,  parte  da 
Etbiopia  Oriental.  Lançarão  fora  dous  companheiros  a  descobrir,  se  havia 
povoações,  ou  gente  tratavel.  Foi  a  ventura,  que  a  menos  de  meia  legoa 
derão  com  buma  aldeã  de  negros  cafres,  de  cabello  revolto,  como  são  os 
mais  d'esta  costa.  Mas  era  a  gente  bem  assombrada,  branda,  e  alegre: 
e  tão  bemaventurada,  que  nunca  tinha  visto  estrangeiros ;  do  que  derão 
sinal  nos  estremos  de  pasmo,  que  fazião  de  os  verem  brancos ;  e,  polo 
que  se  podia  coUigir  dos  geitos,  e  meneios,  que  fazião,  davão-lhes  nome 
de  filhos  do  Sol.  Seguio-se  ao  pasmo  bom  gasalhado,  e  convidarem-nos 
a  comer,  o  beber  do  que  tinhão :  e  sairem  logo  alguns  com  elles  cm 


PARTICri-AU  DO  RF.IXO  DK  POP.TIT.AL  421 

busca  dos  companheiros  á  praia.  Mas  crão  desaparecidos :  que  virão 
vento  em  popa,  e  não  quizerão  perder  viagem  :  do  que  os  descobridores 
levantarão  gritos  ao  Ceo,  como  desesperados.  E  por  não  ficarem  alli  em 
nova,  e  maior  perdição,  tomada  licença  dos  bons  liospedes,  se  lançarão 
á  praia,  a  ver  se  davão  com  esquife.  Os  cafres  os  consolavão  com  mos- 
tras de  compaixão  de  sua  desgraça,  e  misturavão  conselhos  n"aquella 
lingoagem  muda :  em  que  querião  significar,  que  o  mar  era  doudo  fu- 
rioso, e  sempre  irado,  e  mais  doudo  quem  se  fiava  d'elle :  que  andassem 
por  terra  como  fazião  os  moradores  d*aquella  aldea,  e  nunca  terião  do 
que  se  queixar.  Conselho  sisudo,  se  não  viera  tarde :  e  na  verdade  pêra 
os  cobiçosos  nenhum  vem  a  tempo,  como  logo  se  mostrou  nestes.  Hião 
caminhando  com  assaz  malencolia,  arriscados  a  ficarem  pêra  sempre  se- 
pultados entre  aquelles  bárbaros :  acertarão  de  conhecer  âmbar  na  praia, 
e  não  havia  menos  que  montes  (felle  por  toda  a  costa :  assi  se  carrega- 
rão da  mercadoria,  como  se  caminharão  de  Belém  pêra  Lisboa :  e  carre- 
gados chegarão  ao  esquife,  que  acharão  surto  com  força  de  vento  con- 
trario. D"aqui  se  fizerão  á  vela,  e  forão  correndo  a  costa  até  darem  em 
huma  Ilha,  que  conhecerão  ser  das  terras  de  hum  Rei  amigo  dos  Por- 
tuguezes,  chamado  o  Inhacca :  e  sem  fazerem  mais  diligencia,  poserão 
fogo  ao  esquife,  porque  não  houvesse  quem  deixasse  a  companhia,  apro- 
veitando-se  d"elle  fiiríadamente.  Foi  o  conselho  tão  precipitado,  que  es- 
tiverão  por  elle  em  risco  de  hum  novo  naufrágio  de  fome,  e  sede.  Por- 
que a  íllia  era  deshabilada,  e  tal,  que  corrida  toda,  nem  agoa  tinha  do 
beber,  nem  cousa  que  comer.  Neste  estado  moveo  Deos  os  corações  di; 
huns  Cafres  da  terra  firme  a  que  passassem  á  Ilha  a  entender  a  causa 
de  huns  fogos,  que  n"ella  virão,  feitos  poios  nossos  na  mesma  noite,  que 
chegarão.  Levarão  duas  embarcações,  em  que  passarão  os  pobres  nau- 
fragantes  á  terra  firme,  mas  com  novos  medos,  o  tralKílhos,  porque  erão 
Almádias  pequenas  em  demasia,  e  faciles  de  virar  com  pequena  força  de 
tempo,  a  travessa  grande,  e  os  mares  temerosos.  Como  a  terra  era  de 
Rei  amigo,  forão  caminhando  descançadamente  até  onde  tinha  seu  assen- 
to :  e  elle  os  agasalhou  com  amizade,  e  cortezia.  Pareceo,  que  erão  aca- 
badas íodis  as  fadigas  com  tal  gazalhado,  mas  acharão-se  muito  enga- 
nados. Porque  havendo  só  dous  caminhos  pêra  se  tornarem  á  índia,  que 
erão,  ou  ficar  alli  esperando  embarcação  pêra  Moçambique,  ou  caminhar 
por  terra  á  nossa  fortaleza  de  Sofalla :  os  que  ficarão  esperando  pagarão 
a  quietação  com  pestilenciais  doenças,  e  necessidades  sem  remédio,  com 


422  I.IVRU  III  DA  HISTORIA  DF,   S.   DOMINGOS 

que  acabarão  muitos  miseravelmente :  os,  que  se  atreverão  ao  caminho, 
padecerão  fomes,  e  sedes,  e  encontros  de  Cafres  de  guerra  mãos,  e  des- 
Immanos,  a  fora  oitenta  legoas  de  asperissimos  caminhos  tomados  a  pé. 
D'estos  atrevidos  foi  luim  o  Padre  Frei  Nicolao,  e  succedeo-lhe  bem, 
porque  achou  em  Sofalla  Casa  de  S.  Domingos,  e  Frades  da  Ordem.  Era 
alli  Vigário  o  Padre  Frei  João  dos  Santos,  que  despois  escreveo  parte 
deste  naufrágio  ouvido  da  boca  dos  que  o  padecerão,  na  sua  Varia  His- 
toria da  Ethiopia  Oriental  (*), 

CAPITULO  XXXV 

Como  foi  martyrizado  o  Padre  Frei  Nicolao  do  Rosário. 

Como  Frei  Nicolao  descançou,  deixou  a  fortaleza,  e  passou-se  á  Ilha 
de  Moçambique,  terra  sadia,  e  fresca.  Mas,  como  quem  veste  o  habito 
da  Religião,  e  zelo  d'ella,  não  sabe  descançar,  nem  poupar-se :  em  lugar 
de  tornar  pêra  a  pátria,  e  aos  seus  amados  penedos  do  Pedrógão,  ou 
pêra  a  deliciosa  cidade  de  Goa :  se  foi  de  novo  oílerecer  ás  febres,  d 
desaventuras  dos  rios  de  Cuama,  que  são  na  mesma  costa,  e  Cafraria, 
onde  se  perdera.  Era  polo  anno  do  Senhor  de  1592,  quando  emprendeo 
esta  viagem.  Nella  se  fez  bem  conhecer,  e  estimar  por  espirito  Apostó- 
lico de  todos  os  lugares,  por  onde  andou,  até  acabar,  dando  a  vida  por 
Deos,  e  poios  próximos  pola  maneira  seguinte. 

Succedeo  n"este  tempo  aparecer  n"aquellas  partes  hum  exercito  do 
Cafres,  o  nome  Zimbas  ou  Muzimbas,  gente  nova,  e  nunca  nellas  visia, 
que  saindo  de  suas  terras,  correo  grande  parte  d"esta  Ethiopia,  como 
açoute  do  Ceo,  fazendo  destruição  em  toda  cousa  vivente,  que  encontrava, 
com  brutalidade  mais  que  de  feras.  Porque,  como  verdadeiros  Antropó- 
fagos da  antiguidade  celebrados,  comião  carne  humana :  no  lugar  d"onde 
entravão,  não  perdoavão  a  cousa  viva,  nem  homem,  nem  animal :  tudo 
matavão,  e  tudo  comião,  e  até  os  bichos,  como  por  conjuração.  Erão  em 
numero  mais  de  vinte  mil,  gente  solta  sem  molheres,  nem  filhos :  e  co- 
mo erão  tantos,  e  não  vinhão  com  tenção  de  buscar  terras  pêra  morar 
ao  uso  dos  antigos  Hunos,  Godos,  e  Vândalos,  e  outras  nações  do  Norte: 
se  não  só  instigados  de  espirito  diabólico  de  fazer  mal,  corrião  em  breve 
muita  terra,  e  como  achavão  a  gente  descuidada,  e  os  lugares  abertos, 

f-)  P.  2.  1.  3.  c.  o. 


PARTICULAR  DO  RF.INO  DE  PORTUGAL  423 

nenhuma  cousa  lhes  resistia,  assol  avão  tudo.  O  remédio,  que  achavão  os 
u;iturais,  era  largar  as  povoações,  (que  na  verdade  são  pouco  custosas), 
fogir  pêra  o  mato,  c  embrenhar-se  no  mais  espesso :  ou  ajuntar-se  com 
elltís  cm  semelhante  género  de  vida,  porque  só  assi  escapavão  á  morte, 
c  a  seus  dentes.  Tendo  corrido  vicloriosos  mais  de  trezentas  legoas  de 
costa,  e  andando  nas  terras  de  Moiíopotapa :  pêra  com  mais  segurança 
senhorearem  a  província,  forlilicarãj  hum  lugar,  e  n'elle  fazião  assento, 
c  sahião  a  tempos  como  salteadores.  Tem  os  Portugueses  nestas  partes 
duas  casas  fortes,  situadas  sobre  as  ribeiras  do  grande  rio  Zambeze,  em 
disLancia  de  sessenta  legoas  huma  da  outra :  huma  está  na  povoação  de 
Sena,  de  que  era  Capitão  André  de  Santiago,  outra  na  de  Tete,  Capitão 
Pêro  Fernandez  do  Chaves.  Estes  Capitães  são  súbditos  do  nosso  Capi- 
tão, e  Governador  de  Sofala,  e  ordinariamente  são  homens  de  sua  obri- 
gaçãOy  ou  seus  criados :  e  as  casas  lhe  servem  de  feitorias  pêra  o  res- 
gate do  ouro,  que  mandão  fazer,  e  he  o  trato  mais  grosso  de  Sofala. 
Obrigado  André  de  Santiago  dos  males,  que  os  Zimbas  vinhão  fazendo 
nas  terras  vizinhas,  determinou  buscal-os,  pelejar  com  elles,  e  ver  se  os 
podia  desfazer  antes  de  crecerem  mais  em  poder,  e  reputação.  Ajuntou 
tudo  o  que  havia  em  Sena  de  Portugueses,  e  mestiços,  e  negros  confi- 
dentes, e  foi-se  em  demanda  d'ellcs  ao  mesmo  lugar,  de  que  se  dezia 
estavão  senhores.  Mas  chegando,  achou  a  empresa  mais  diíficultosa  do 
que  se  persuadira  ao  sair  de  casa,  porque  o  enemigo  tinha  cercado  a 
povoação  em  rodíi  de  fortes  trincheiras  de  páos  a  pique,  suas  cavas  lar- 
gas, e  fundas,  com  travezes,  e  seteiras,  tudo  em  rezão  militar,  e  não 
como  bárbaros.  Avisou  logo  ao  Capitão  de  Tete,  que  se  viesse  ajudal-o 
cora  o  maior  poder,  que  lhe  fosse  possível.  Não  tardou  Pêro  Fernandez 
de  Chaves  em  acodir,  porque  a  causa  era  commum,  e,  como  fazia  conta 
que  terião  cerco  largo,  pedio  ao  Padre  Frei  Nicolao,  que,  havia  dias,  re- 
sidia em  Tete,  quizesse  ser  companheiro  rw  jornada  pêra  administração 
dos  Sacramentos,  e  consolação  de  todos.  Não  se  soube  elle  negar,  como 
se  tratou  de  serviço  de  Deos,  e  bem  das  almas.  Poz-se  com  elle  em  ca- 
minho. Tiverão  os  Bárbaros  noticia  do  soccorro,  lanção  espias  fora,  pêra 
saberem  a  ordem,  e  caminho,  que  trasião.  Como  estiverão  informados, 
sae  de  noite  caladamente  hum  esquadrão  dos  melhores,  vão-se  deitar  em 
silada  em  hum  passo  de  huma  grande  mata  de  arvoredo  espesso,  e  ce- 
go, por  onde  o  soccorro  tinha  sua  estrada :  que  não  podia  ser  mais  a 
propósito  pêra  o  effeito.  Vinhão  os  nossos  sem  nenhuma  forma  de  gente 


4*2  V  i.ivno  III  DA  HisToniA  df.  s,  domingos 

tle  guerra,  erão  poucos  mais  de  cem  homens  entre  Portugueses,  e  Mes- 
tiços, gente  bem  armada,  mas  iodos  tão  descuidados,  e  sem  cautela,  co- 
mo se  não  houvera  enemigo  em  toda  a  terra.  Os  mais  em  andores  ás 
cosias  ái  seus  escravos  sem  armas  prestes,  nem  mecha  aceza,  nem  ho- 
mem diante,  que  descobrisse  o  campo:  em  fim  como  gente,  que  não  te- 
mia, nem  estimava  o  enemigo :  o  qual,  tanto  que  os  vio  bem  entregues 
110  maio,  levantando  hum  trovão  de  alarida,  que  foi  ferir  nas  nuvens,  deu 
sil)re  elles  com  ianta  fúria,  que  antes  de  terem  tempo  de  arrancar  es- 
pada, forão  degolados  todos  os  Portugueses,  e  mestiços,  sem  escapar 
homem.  Ajudou  a  desa ventura,  que  os  nossos  por  virem  mais  desaba- 
fados, caminhavão  mea  legoa  diante  dos  cafres  amigos,  que  trazião  pêra 
companheiros  do  perigo,  que  erão  hum  grande  numero,  gente  boa  e  de- 
terminada :  e  assi,  quando  chegarão  ao  valle  da  emboscada,  já  os  Bárba- 
ros saliião  d^elle  vitoriosos.  O  Padre  Frei  ?íicolao,  sendo  achado  inda  vivo, 
e  conhecido  por  Religioso,  foi  trazido  por  elles  á  sua  povoação,  assi  co- 
mo eslava  atassalhado  de  feridas  mortais :  alli  o  atarão  de  pés,  e  mãos 
a  hum  madeiro  aUo,  e  ás  frechadas  o  acabarão  de  matar  em  ódio  de 
nossa  santa  Religião,  dizendo,  que  os  Portugueses  não  fazião  aquelki 
guerra  se  não  por  conselho  dos  seus  Gacizes,  (que  assi  chamão  os  Ca- 
fres aos  nossos  Sacei'doíes,  com  lingoagem  dos  Mouros  da  costa,  seus 
vizinhos  antigos.)  AíFirma-se,  que  sofreo  a  morte  com  alegria,  e  olhos  no 
(ieo-:  não  só  com  paciência,  considerando,  como  he  de  crer,  que  puro 
7Ji\o  de  servir  a  seus  próximos,  e  cumprir  com  sua  obrigação  o  chegara 
a  tão  duro  passo.  Assi  acabou  sua  vida,  e  trabalhos  com  mais  este  me- 
itícimenlo,  e  com  outro,  que  logo  seguio  também  assaz  considerável, 
que  foi  ser  pasto  daquellas  feras  em  carne  humana  cozido,  e  assado : 
pêra  podermos  dizer  d"elle  o  que  se  conta  dos  Maríyres  antigos :  Oblu- 
raiwruiU  ora  Lcinnm,  etc.  (*),  seiído  despols  de  asseíeado,  como  são  Se- 
i)aslião,  comido  de  feras,  como  Santo  Inácio. 

:  Mas,  porque  he  certo,  que  fica  dezejando  o  fim  de  tão  carniceiros  al- 
íOz^Sj  quem  isto  iè,  brevemente  o  diremos,  inda  que  não  seja  de  nossa 
obrigação.  Com  a  vitoria  de  Pêro  Fernandes  de  Chaves,  facilitarão  a  ou- 
íya,  que  logo  hcuverão  do  Capitão  de  Sena,  que  os  cercava:  fizerão-lhe 
ver  as  cabeças  dos  amigos,  e  conhecidos,  que  o  vinhão  soccorrer.  Re- 
Sí>lveo-se  em  deixar  o  cerco.  Mas  a  tristeza,  e  horror  do  desastre  fez 
nos  seus  o  mesmo  desmancho,  que  nos  do  Gliaves.  Desordenarão-se  ao 

(•)  Ilcb.  11. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  425 

partir,  e,  (como  toda  a  retirada  tem  partes  de  desconfianra,  e  medo) 
saindo  trás  elles  toda  a  maltidão  dos  cercados,  forão  desbaratados,  e 
mortos,  ainda  que  teverão  a  consolação  de  ser  com  as  armas  nas  mãos, 
e  vendendo  bem  suas  vidas.  Passarão  estes  negros  despois  á  Ilha  de 
Quiloa,  onde  se  aflirma,  que  comerão  mais  de  três  mil  Mouros,  e  Mou- 
ras, e  despois  á  de  Mombaça,  onde  fizerão  o  mesmo  em  todos  os  mo- 
radores, que  não  houve  escapar-lhes  nenhum.  Ultimamente  forão  mor- 
tos, e  acabados  por  el  Rei  de  Melinde,  que  lhes  deu  batalha  acompa- 
nhado de  outros  Cafres,  homens  de  valor  chamados  Mosseguejos  (*).  Assi 
castigou  Deos,  e  acabou  o  instrumento,  com  que  tinha  castigado  a  tan- 
tos. Outro  exercito  semelhante  a  este,  ha  muitos  annos,  que  correo  a 
costa  da  mesma  Ethiopia,  que  chamamos  Occidental,  porque  corre  do 
Cabo  de  Boa  esperança  pêra  o  Norte,  com  os  mesmos  estilos  de  vida, 
e  guorra,  e  com  nome  de  Jagas:  e  andão  já  no  Reino  de  Angola,  e  po- 
ios vizinhos.  São  varas  deDeos,  que  manda  por  toda  a  parte,  quando  lhe 
parece,  pêra  escarmento  do  mundo,  e  exemplo  nosso. 

CAPITULO  XXXYI 

De  alguns  filhos  íVcste  Convento  que  subirão  a  grandes  Frclacias. 

Despois  de  dizermos  dos  filhos,  que  cora  santidade,  e  trabalhos,  e 
em  íim  com  sangue  honrarão  a  mãi,  que  os  gerou  no  Senhor,  e  pêra 
elle  os  criou:  entrão  ouiros,  que  tirarão  da  mesma  criação  poder  illus- 
trar  a  mesma  mãi,  e  toda  a  Ordem  merecendo,  e  alcançando  honras  ou 
nas  Universidades  com  su.ns  leiras ;  ou  nos  tribunais  mais  altos  com 
sua  religião,  e  inteireza,  ou  nas  Prelacias  do  Reino  com  uma  cousa,  e 
outra.  Mas,  porque  fora  leitura  sem  fim  proseguir  com  particularidade  a 
vida,  e  obras  de  cada  hunr:  por  tanto  não  farem.os  mais,  que  ir  apon- 
tando os  nomes  com  algumas  particularidades  forçadas,  e  com  advirtir- 
mos  ao  Leitor,  que  dos  qne  apontarmos,  que  são  quasi  todos  de  nosso 
tempo,  ou  mui  chegados  i  elle,  faça  juizo,  quanto  maior  numero  pode- 
ramos  dar,  se  nossos  antepassados  nos  quizerão  deixar  por  escrito  suas 
vidas,  ou  polo  menos  seis  nomes. 

Por  todos  os  titnlos,  que  temos  proposto  merece  lugar  n"este  cata- 
logo, e  que  seja  ante  talos  nomeado  polo  que  tem  do  mais  antigo,  hum 

{•)  Frei  João  dfs Santos  \a  Elliiopia  p,  i.  I.  2.  c.  21. 


4Í6  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DR  S.  DOMINGOS 

Bispo,  (jue  o  curso  daílisíoria,  que  atrás  fica,  nos  foi  descobrir  no  anno 
de  1432,  piincipiador  da  Confraria  do  Santo  nome  de  Jesu;  digo  dom 
Frei  André  Dias  de  Lisboa,  Bispo  de  Megara,  que.  como  era  de  Lisboa 
natural,  não  temos  duvida  em  ser  filho  deste  Convento. 

Seja  segundo  quem  por  maior  dignidade,  merecia  ser  primeiro,  e 
não  menos  por  lieroicas  virtudes,  e  grandes  letras,  que  forão  as  partes 
qne  o  tirarão  do  canto  de  sua  humildade,  pêra  o  Arcebispado  de  Braga, 
ePrimacia  de  Espanha.  Tomou  o  habito  neste  Convento  no  anno  de  1528. 
E  foi  nascido  em  Lisboa,  seu  nomo  dom  Frei  Bertolameu  dos  Martyres. 
Livros  ha  de  sua  vida,  que  nos  escusão  ser  aqui  mais  largos. 

Também  foi  filho  d"esla  casa  dom  Frei  Jorge  Temudo,  que  sendo 
Pressntado  em  Thsologia  na  Ordem,  foi  delia  tirado  pêra  Bispo  primeiro 
de  Cccliim,  e  tal  valor  mostrou  n"esla  prelacia,  que  foi  delia  passado 
pêra  Arcebispo  de  Goa,  e  Primas  de  toda  a  Índia  Oriental. 

Dom  Frei  Bernardo  da  Cruz,  de  Mestre  de  Noviços  de  seu  Convento 
de  Lisboa,  foi  mandado  a  Roma  por  el  Bei  dom  João  III.  a  negócios  de 
muita  importância:  da  volta  o  nomeou  por  Bispo  da  Ilha  de  S.  Thomé, 
e  achando  n"elle  talenjo  pêra  cousas  maiores,  que  cada  hora  se  ofiere- 
cião  no  Reino,  do  que  oi'dinariamente  erão  as  do  Bispado,  empregou-o 
em  Reitor,  e  reformador  da  Universidade  de  Coimbra,  e  fazendo-o  Co- 
missário do  Santo  Oíficio,  raandou-lhe,  que  desse  principio  ao  tribunal 
deites  que  n'aquella  cidade  se  assentou.  Chamado  despois  a  Lisboa  en- 
trou por  deputado  do  Conselho  da  3Iesa  da  Consciência,  e  Ordens.  Em 
fim  escusou-o  el  Rei  de  ir  experimentar  as  febres,  e  ardores  da  tórrida 
zona  Bo  seu  Bispado,  e  deu-lhe  o  cargo  de  seu  esmoler,  e  boa  renda 
em  melhor  terra  encommendando-lhe  os  Mosteiros  de  Tibaens,  e  Car- 
voeiro da  Ordem  de  S.  Bento  em  Entredouro,  e  Minho,  onde  vivendo 
eom  muito  exemplo,  e  fazendo  largas  esmolss  acabou  em  boa  velhice. 

Dom  Frei  Gaspar  dos  Reis,  e  dom  Frei  Jo:"ge  de  Santiago  forão  dous 
filhos  d"este  Convento,  que  ao  parecer  andaião  a  par,  e  conformes  em 
todos  os  successos  da  vida.  Porque  ambos  ca'Ja  hum  por  sua  via  forão 
estudar  a  Paris.  Ambos  se  doutorarão  em  Theologia  n'aquella  Universi- 
dade. Ambos  lerão  n'ella  a  mesma  faculdade  com  tão  bom  nome,  que  a 
hum,  e  outi'o  chamou  el  Rei  dom  João  juntanente  pêra  se  servir  d'el- 
les,  e  succedendo  dar-se  principio  ao  Santo  Cíjicilio  Tridenlino  no  anno 
de  lo 4o  polo  Papa  Paulo  líl,  ambos  mandou  a  íUe  por  seus  Theologos: 
c  tornando  brevemeníe  a  Portugal,  porque  o  Concilio  se  interrompeo, 


PARTICULAR  DO  T\EI\0  DE  PORTCC.AL  4Sl 

foi  dam  Gaspar  sagrado  em  Bispo  titular  de  Tripoli,  despois  de  servir 
muitos  annos  no  tribunal  da  Santa  Inquisição  de  Lisboa :  em  que  foi  o 
primeiro  revedor  de  livros,  que  houve  em  Portugal.  Dom  Frei  Jorge 
foi  também  Inquisidor  em  Lisboa,  e  ultimamente  eleito  Bispo  de  Angra, 
e  Ilhas  dos  Açores.  Mas  sendo  os  autos  da  vida  tão  conformes  des- 
tes  dous  Prelados  até  chegarem  ao  maior  estado,  foi  maravilhosa  a 
diíTerença,  que  teverão  em  o  lograr:  hum  de  descanço,e  sossego:  outro 
de  trabalho,  e  inquietações.  Dom  Gaspar,  que  se  contentou  de  ir  ser- 
vir ao  Cardeal  Infante  sem  mais  dignidade  que  a  titular,  gozou-a  em 
muita  paz  dentro  de  huma  bem  assombrada,  e  rica  cidade,  qual  he 
Évora,  sem  nunca  sair  mais  dos  limites  do  Reino,  e  da  pátria.  E  he  de 
saber,  que  estavão  tão  conhecidos  seus  merecimentos  na  Corte  de  Roma, 
polo  nome,  que  suas  letras  lhe  ganharão  no  Concilio,  que,  quando  n'ella 
se  presentou  a  suplica  do  Cardeal,  em  que  dizia  íallando  á  Realenga 
que  o  queria  pêra  lhe  fazer  os  Pontificaes  na  Se:  o  Summo  Pontífice, 
que  era  Júlio  III,  lembrado  das  calidades  do  Religioso,  deu  de  mão  ao 
papel,  dizendo  que  a  tal  pessoa  hum  grande  Arcebispado  em  proprie- 
dade, e  não  só  titulo,  era  devido:  e  não  consentio  no  despacho  das  le- 
tras. E  assi  foi  necessário  ao  Cardeal  reformar  a  petição,  e  dizer  que 
polas  grandes  partes,  que  no  liomem  concorrião,  o  buscara  elle,  não 
pêra  súbdito,  senão  pêra  igual,  não  pêra  segundo,  senão  pcra  primeiro 
na  administração  de  sua  Diocesi,  visto  estar  elle  Cardeal  de  ordinário, 
e  forçadamente  ausente  com  negócios  do  governo  do  Reino.  E  então  al- 
cançou despacho. 

Porém  dom  Jorge  des  do  dia,  que  poz  a  mitra  na  cabeça,  inda  que 
o  mondo  houve,  que  ficava  avenlajado  na  prebenda:  começou  a  correr 
tormenta  de  cuidados  da  alma,  e  perigos  da  vida,  como  se  entrara  era 
batalha.  O  primeiro  trabalho  foi  a  passagem  do  mar,  que  nunca  he  sem 
risco.  Posto  em  Angra  achou  aquella  Ilha,  e  as  mais  mui  depravadas 
em  vicios,  e  algumas  almas  tão  vencidas  d"elles,  que  lhe  foi  necessário 
grande  valor  pêra  as  tornar  á  virtude.  Bem  se  diz,  que  não  pôde  ser 
Prelado,  senão  quem  tever  animo  pêra  arrostar,  e  não  temer  desagra» 
dar  a  himi  poderoso.  Era  grande  letrado  pêra  conhecer  suas  obrigaçijes, 
e  grande  animoso  pêra  executar  o,  que  entendia.  Achando  alguns,  que 
não  sintlão  bem  da  fé,  cubrio-os  de  ferros,  e  mandou-os  entregar  no 
cárcere  do  Santo  Officio  cm  Lisboa.  Apertou  com  outros  com  as  armas 
espirituais  em  todo  rigor,  até  os  mettcr  no  caminho  dos  mandamentos 


4Í8  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

Divinos,  Mas  custou-lhe  ver-se  três  vezes  em  fortes  perigos.  Huma  qiie- 
reudo  passar  de  huma  Ilha  pêra  outra,  foi  acometido  de  gente  armada 
na  embarcarão,  e  pêra  se  salvar  não  teve  outro  remédio,  se  não  lançar-se 
ao  mar,  e  valer-se  dos  braços,  e  nadar.  Outra  estando  fazendo  seu  oíTi- 
cio  de  Visitador  lhe  tirarão  com  huma  espingarda,  guardou-o  Deos,  e 
matarão  iuim  sobrinho  seu,  que  o  acompanhava.  Terceira  vez  tentarão 
matal-o  em  certa  casa,  onde  tirava  huma  devaça:  e  acometendo  as  por- 
tas os  culpados  n'ella  com  armas,  e  determinação  danada,  valeo-lhe,  que 
como  andava  acautelado,  acharão-nas  trancadas  por  dentro,  e  seguras. 
E  com  tudo  inda  mostrarão  descortezia,  e  poder  diabólico,  porque  che- 
garão a  entaipar  o  Prelado,  ajuntando  pedra,  e  cal,  e  cerrando-as  de 
parede  por  fura.  Não  faltou  gente  nobre,  e  de  melhor  animo,  que  lhe 
acudio.  Muito  trabalhou,  mas  também  remedeou  muito :  que  este  be  o 
oiTicio  de  Prelado.  Ultimamente  passou  de  novo  o  mar,  e  veio  ao  Reino 
a  negócios  da  Dioccsi:  e  tornando  com  animo  de  edificar  huma  casa  da 
sua  Ordem  em  Angra,  pêra  o  que  levava  consigo  pêra  fundadores  três 
Religiosos  de  boas  letras,  e  bom  púlpito,  e  todas  as  licenças  necessárias, 
desfez  sua  morte  os  bons  desenhos.  Este  Padre,  que  dissemos,  era  filho 
da:Convento  de  Lisboa,  entendemos  adoptivo:  porque  tomou  o  habito, 
e  professou  em  Santo  Estevão  de  Salamanca :  e  despois  foi  perfilhado 
por  este  Convento. 

Dom  Frei  Jorge  de  Lemos  de  Presentado  em  Theologia  veio  a  ser 
Bispo  do  Fiinclial,  e  Ilha  da  Madeira.  Succedendo  vir  ao  Reino  a  nego- 
cií«s,  desejou  descarregar-se  da  dignidade,  porque  o  carregavão  muitos 
anãos:  renunciou  o  Bispado,  e  aceitou  ser  Esmoler  dei  Rei:  e  faleceo 
em  Lisboa,  e  sepultou-se  no  nosso  Convento,  sendo  Prior  o  Padre  Frei 
Jeronymo  Corrêa. 

Dom  Frei  Jeronymo  Pereira  foi  Bispo  titular  de  Salò  á  petição  do 
Cardeal  Infante,  traz  dom  Frei  Gaspar,  e  com  o  mesmo  fim,  e  rezões, 
porque  era  bom  letrado,  e  pregador  de  grande  nome. 

Dom  Frei  Jorge  de  Padilha  Mestre  em  Theologia,  e  Bispo  de  Civita 
Ducale  em  Itália. 

Dom  Frei  António  de  Sousa,  filho  do  famoso  Governador  da  índia 
Martim  Afonso  de  Sousa:  sendo  Mestre  em  Theologia,  veio  a  ser  Vigá- 
rio Geral  de  toda  a  Ordem  dos  Pregadores:  pregador  dos  Reis  dom 
Sebastião,  dom  Anrique,  e  dom  Felipe  I,  c  ultimamente  Bispo  de  Viseu. 

Dom  Frei  Aiítonio  do  Santo  Estevão,  pregador  dos  Reis  dom  Fe- 


PARTICCLAH  DO  UKINO  DE  PORTIGAL  429 

lipc  I,  e  II.  na  peste  de  Lisboa,  que  acabou  no  anno  de  002,  aturou  três 
annos  com  admirável  constância  o  cargo  de  enfermeiro  m()r  da  casa 
da  Saúde,  (nome,  com  que  disfarçamos  o  horror,  que  faz  dizer  hospi- 
tal de  peste),  tendo  á  sua  conta  todo  o  temporal,  e  espiritual  d"ella, 
e  sustentando  a  vida  como  por  milagre  no  meio  de  infinitas  mortes; 
e  foi  despois  Bispo  do  Congo,  e  Angola. 

Dom  Frei  António  Valente  leo  muitos  annos  em  Nossa  Senhora  da 
escada  aos  Clérigos  do  Collegio,  que  a  Rainha  dona  Caterina,  como 
adiante  diremos,  insíituio  neste  Convento:  e  foi  examinador  das  Igrejas 
do  Padroado  real,  e  Mestrados  de  thristo,  e  Santiago,  e  Avis,  e  ul- 
timam.ente  Bispo  da  Ilha  de  S.  Thomé.  Bem  he  não  ficar  em  silencio 
por  honra  d'esía  nossa  cidade,  que  estes  três  Antonios  erão  filhos  d"ella, 
e  nacidos  n"ella,  assi  como  o  erão  d"esíe  Convento. 

Estes  são  os  Prelados,  que  achamos  em  lembrança,  deu  á  Igreja  de 
Deos  o  Couvenío  de  Lisboa.  Apoz  elles  diremos  no  Capitulo  seguinte  õs 
que  servirão  no  gravíssimo  tribunal  do  Santo  Ofílcio,  porque  n'elié  's-é 
caliíicão  os  bons  juizos,  e  se  fazem  dignos  das  Preladas.  '     ^' " 

CAPÍTULO  XXXVIl 

De  outros  filhou  d  este  Convento  qtie  servirão  nos  tribnnacs 
do  Santo  Ofjicio. 

Pudéramos  dar  primeiro  lugar  a  hum  ííiquisidor  Geral  de  toda 
Espanha,  e  juntamente  Proviíicial,  antes  da  separação  d*esta  Província, 
pregador,  e  confessor  dei  Rei  dom  João  o  Primeiro  d'este  Reino,  que 
foi  o  Mestre  Frei  Vicente  de  Lisboa.  3Iasjá  temos  dito,  que  heseii  lu- 
gar próprio  o  Convento  de  Benfica,  onde  faremos  maior  menção  d^elíe. 

O  Mestre  Frei  Manoel  da  Veiga  sobre  grandes  letras  foi  dotado  de 
bmua  singular  excellencia  de  entendimento  natural.  E,  por  ser  tal,  cor- 
reo  por  seus  degráos  os  tribunais  do  Santo  Olficio,  que  ha  n'este  Reino, 
Coimbra,  Évora,  e  Lisboa.  No  de  Évora  lhe  aconteceo  dar  prospero  fim' 
a  hum  negocio  de  tanta  importância,  que  não  hia  menos  n'eHe,  que  a 
honra  de  liuma  cidade  inteira,  e  á  sua  diligencia  devemos  tirar-se  a  lim- 
po, e  sair  á  luz  a  verdade:  e  quando  de  Frei  Manoel  não  soubéramos 
outra  cousa,  esta  bastava  pêra  o  fazer  muito  illustre.  O  caso  foi,  que 
sendo  presos  pola  Inquisição  na  cidade  de  Beja  quatro  homens  da  nação 


430  LIVUO  III  DA  HISTORIA  Dlí  S.  DOMINGOS 

dos  Christâos  novos,  (nome,  com  que  entendemos  os  filhos,  e  netos  d"a- 
quelles,  que  em  tempo  dei  Rei  dom  Manuel  se  oon  verterão  do  Judaísmo 
a  nossa  santa  Fé),  quando  despois  forão  em  particular  examinados,  e  per- 
guntados, como  se  costuma,  poios  compiices,  apontarão  sem  discrepar 
hum  do  outro,  e  falando  todos  quatro  i)or  huma  boca,  dezoito  casas  de 
homens  nobres,  e  honrados  da  mesma  cidade.  Como  era  testimunho 
uniforme,  e  conteste,  forão  logo  presos  homens,  e  mulheres  com  gi-ande 
terror,  e  espanto  de  toda  a  terra,  e  levadas  a  bom  recado  ao  cárcere 
do  Santo  OíTicio  de  Évora.  Negarão  elles,  e  ellas  o  crime  cora  boas  re- 
zões:  favorecia-os  a  quietação  de  animo,  com  que  estavão,  e  respondião; 
ajudava  sua  calidade,  e  o  sangue  limpo,  e  sem  mistura  com  os  accusa- 
dores.  Fazia  também  por  elles  serem  os  quatro  accusadores  todos  da 
nação  sem  parte  nenhuma  de  Christâos  velhos,  salvo  hum,  que  era  or- 
denado de  Diácono,  e  tinha  de  Guiné  o,  que  lhe  faltava  do  sangue  da 
nação,  Iorque  era  mulato.  Assi  parecia  a  quem  de  fora  julgava,  que  pe- 
navão  innocentemcnte.  Todavia   esíava  o  negocio  reduzido  a  perigosos 
termos:  accusação  feita  por  quatro  homens,  ratificada  huma,  c  muitas 
vezes,  e  com  interpolações  de  tempo  em  meio :   sem  fazerem  mudança 
nem  alteração  nos  ditos.  O  tribunal  zeloso,  e  temeroso  de  casos  de  he- 
regia  por  alguns,  que  de  fresco  erão  succedidos  era  algumas  partes  de 
Espanha.  O  Rei,  e  o  Reino  alterado  com  a  suspeita  do  que  nunca  fora 
inficionado  em  corpo  de  gente.   Vio-se  o  Santo  tribunal  em  hum  labe- 
rinto  de  confusão,  e  irresolucões:  e  fez  o  negocio  mais  duvidoso,  quan- 
do ao  parecer  estava  em  favor  dos  accusados,  que  hum  d'elles  sintindo 
mais  o  trabalho  da  reclusão,  que  o  pojito  da  honra,  confessou-se  cham- 
mente  por  culpado,  acreditando  assi  os  accusadores.  Aqui  resplandeceo 
a  prudência,  a  virtude,  e  a  religião  do  nosso  Inquisidor.  Vendo  caso  tão 
cego,  determinou-se  em  o  remeter  ao  autor  da  Luz,  pêra  que  Tha  desse 
no  que  devia  fazer  n'elle:  com  que  não  padecesse  a  innocencia  dos  ho- 
mens, ou  o  credito  do  intemerato,  e  sagrado  ministério  da  Inquisição, 
se  condenassem  gente  sem  culpa,  (como  he  fácil  enganar-se  a  humani- 
dade). Mandou  fazer  muitas  orações  por  gente  virtuosa,  e  por  discursa 
de  tempo:  as  suas  erão  continuas,  e  aífirma-se,  que  juntava  a  ellas  muita 
penitencia,  jejuns,  e  lagrimas,  dando   sempre  voltas  ao  entendimento, 
que  remédio  teria  pêra  descobrir  a  verdade.  Em  fim  poz-lhe  Deos  na 
imaginação  a  traça,  como  a  outro  Daniel.  Erão  passados  quatro  annos: 
entra  hum  dia  no  cárcere,  e  sendo  assi,  que  os  quatro  havia  longo  tem- 


PAllTICUF.AU  D(J  HKINO  DK  I'OUT(T.AL  Í'M 

po  que  estavâo  separados,  e  muito  longe  hnns  dos  outros,  mandou-os 
trazer  juntos,  e  públicos,  de  modo  que  se  virão,  e  reconhecerão:  e  fez 
que  os  posessem  em  hum  corredor,  onde  liavia  (juatro  cubículos  contí- 
guos hum  a  outro,  em  que  íicarão  repartidos,  imaginou  o  santo  Inqui- 
sidor, que  vendo-se  assi  juntos,  falarião  de  noite,  e  procurarião  con> 
municar  sobre  suas  cousas,  e  que  seria  meio  pêra  se  abrir  caminho  a 
se  alcançar  alguma  luz  d'ellas.  Poem-lhes  guardas  com  ordem,  que  cc- 
Ihendo  quaesquer  razões  sospeitosas,  gritassem  logo,  pêra  que  os  presos 
entendessem  serem  ouvidos,  e  descuberlos.  Succedeo  puntualmente,  co- 
mo se  lhe  representou.  Tanto  que  se  virão  juntos,  teverão-no  a  boa  ven- 
tura: quietando  a  noite,  começarão  a  chamar  iiuns  poios  outros,  e  a  fa- 
lar sem  cautella,  e  tão  largamente,  que  as  vigias  aprenderão  mais  do 
que  era  necessário,  e,  como  lhes  pareceo  temjio,  bradarão,  reprenden- 
do-os  do  que  tinhão  ouvido.  Forão  logo  chamados  á  meza  cada  hum  por 
si,  como  se  lhe  proposerão  palavras,  c  rezões  conhecidas,  derão-se  por 
descubertos .  Confessarão  então  cliammente  huma  estranha,  e  nunca 
vista  conjuração,  dizendo,  que  no  tempo  de  sua  prisão  em  Beja  virão 
com  seus  olhos  a  muitos  dos  accusados  fazer  festas,  e  correr  carreiras 
â  lionra  de  seu  trabalho,  (e  na  verdade  assi  contão  os  antigos  que  acon- 
teceo),  por  onde  logo  então  na  m.esma  cadea,em  que  cstavão  presos,  se 
concertarão  elles  quatro  de  fazer  pagar  aos  dezoito  o  gosto, que  mostra- 
vão  de  os  verem  n"ella,  nomeando-os  por  cúmplices  da  heregia,  como 
falsamente  tinhão  feito:  sendo  verdade,  que  nunca  com  nenhum  d'elles 
teverão  tal  communicação.  Custou  esta  confissão  aos  quatro  serem  quei- 
mados com  suas  insígnias  de  carochas  nas  cabeças,  pêra  serem  do  povo 
conhecidos.  Aos  dezoito  foi  i'estituida  sua  honra,  sendo  condenado  em 
degredo  pêra  o  Brasil  o  que,  por  fugir  á  vexação,  póz  sobre  si  a  culpa 
que  não  linha,  com  que  fazia  duvidosa  a  innocencia  dos  companheiros. 
Obriga  este  successo  a  darmos  immorlais  graças  a  Nosso  Senlior  polo 
fim  d'elle  todos  os,  que  somos  catliolicos,  e  mais  em  parlicular  os  que 
fomos  Frades  de  S.  Domingos,  pois  o  mesmo  Senhor  foi  servido,  que 
d'esta  sua  Ordem  sahisse  em  tempos  antigos  tão  salutifero  medicamento 
das  almas,  como  he  o  do  Santo  Officio :  e  nos  modernos  hum  tão  valc- 
roso  espirito,  como  foi  o  d'este  Incjuisidor;  pcra  que  não  houvesse  sen- 
tença errada,  onde  a  tenção  era  pia  e  justa,  e  amiga  de  acertar.  E  cer- 
remos este  elogio  com  dar  os  parabéns  á  nobi-e  Vilta  de  Aveiro  por  ser 
nacido  n"ella,  quanto  â  carne,  hum  tão  insigne  sujeito,  como  o  foi  quanto 


432  LIVHO  III  DA  IHSTOHIA  DE  S.  DOMINGOS 

ao  espirito  no  Convento  de  Lisboa.  Correndo  depois  o  anno  de  1571, 
e  celebraudo-se  capitulo  de  eleição  na  villa  de  Santarém,  foi  eleito 
com  grande  conformidade  de  todos  os  capitulares  em  Provincial:  o  qual 
cargo  não  sérvio,  porque  o  contradisse  o  Cardeal  Infante  Inquisidor 
Geral  n"este  Reino,  aíTirmando  importar  mais  ao  serviço  de  Oeos  a  suf- 
íiciencia  de  tal  pessoa  pêra  assistir  no  tribunal  do  Santo  Officio  de  Lis- 
boa, em  que  o  tinha  occupado,  que  não  governando  a  sua  onlem,  em 
que  havia  muitos  sojeitos  pêra  isso  bastautes :  e  porque  liiilia  poderes 
do  Padre  Geral,  cassou  a  eleição. 

O  Mestre  Frei  António  Pegado  foi  Deputado  do  mesmo  tribunal. 

O  Mestre  Frei  António  de  S.  Domingos  Lente  de  Prima  da  cadeira 
de  Theologia  na  Universidade  de  Coimbi'a,  e  n"ella  jubilado,  foi  famosa 
pregador,  c  revedor  dos  livros,  o  Deputado  do  Santo  Officio  na  mesma 
cidade  de  Coimbra.  D"esle  Padre  sabemos,  que,  sendo  Prior  de  Lisboa 
na  mór  íorça  da  peste  grande  do  anno  de  1508,  não  desemparou  o  Con- 
vento, em  quanto  lhe  durou  o  cargo :  sendo  assi,  que  obrigou  a  muitos 
Religiosos  a  se  sairem  d"elle:  e  mandaiido-lhe  pedir  huni  Irmão  leigo 
qae  do  mesmo  mal  estava  acabando,  que  o  (juizesse  confessar,  com  tal 
teima,  que  parecia  mais  frenesi,  que  conselho,  porque  de  nenhum  ou- 
tro Religioso  se  satisfazia,  animosamente  lhe  acudio,  ouvindo-o,  e  con- 
solando-o  muito  de  vagar.  Faleceo  em  Coimbra  do  anno  de  1596,  em 
idade  de  sessenta  e  cinco. 

O  Mestre  Frei  Rertolameu  Ferreira  revedor  dos  livros,  e  Deputada 
do  Santo  OíTicio  em  Lisboa  f ). 

O  Mestre  Frei  Francisco  Foreiro  foi  mandado  por  el  Rei  dQm  Se- 
bastião ao  Santo  Concilio  Tridentino  entre  os  Theologos,  que  pêra  elle 
sinalou:  onde  o  escolheo  aquella  gravíssima  junta  pêra  Secretario  da 
Congregação  dos  Bispos,  que  forão  deputados  pêra  censurarem  os  li- 
vros, que  se  liavião  de  prohibir,  e  fazer  catalogo  dos  permitíidos,  e  dos 
reprovados.  Despois  que  tornou,  foi  revedor  d'elles  em  Lisboa,  e  junta- 
mente Deputado  da  Mesa  da  Consciência,  e  Ordens,  e  nosso  Provincial. 
O  mais,  que  d'elle  temos,  que  não  he  pouco,  se  verá,  quando  chegarmos 
ao  Convento,  que  edificou,  e  dotou  em  Almada. 

O  Mestre  Frei  Manoel  da  Serra'  Deputado  do  Santo  Officio  da  índia 
no  tribunal  de  Goa. 

O  Padre  Frei  Thomâs  do  Espirito  Santo,  nacido  na  villa  de  Guima- 

(•)  Frei  .\iit.  tie  Semi  na  sua  Bibliol. 


PAr.Tir.rL.vr.  do  reino  de  rnnTur.Ar  433 

rães  de  Ijom,  e  anligo  sangue,  tomou  o  liahito  n"este  Convento  de  Lis- 
boa, e  passando  á  índia  soube  íanibem  ajuntar  as  obrigações  da  religião 
com  as  do  nacimento  (*)  que  dos  Ueligiosos,  que  o  conhecião  de  perto,  i^, 
do  povo,  que  o  tratava  mais  de  longe,  era  havido  por  Santo.  E  por  tal 
foi  muitos  annos  Deputado  do  Santo  Officio :  e  tão  estimado  dos  Yiso- 
reis  de  seu  tempo,  que  não  davão  ponto  era  negocio  de  importância  sem 
seu  conselho.  Sendo  Prior  do  Convento  de  S.  Domingos  de  Goa  empren- 
deo  fazer  huma  casa  emPagim,  que  he  hum  sitio  deleitoso,  pouoo  afas- 
tado da  Cidade.  E  valeo  sua  industria,  e  o  amor,  que  lhe  tinha  a  terra 
pêra  sahir  com  a  obra,  e  a  ver  acabada,  e  moradores  n"ella  trinta  Reli- 
giosos. Este  edifício  mudou  despois  nome,  e  sitio,  sendo  íresladado  pcra 
dentro  da  cidade,  com  nome  de  Collegio  de  Santo  Thomás,  e  confirma!)- 
do-se  n"elle  o  de  seu  autor  primeiro,  e  as  rendas,  e  ordenados  reais 
que  o  mesmo  lhe  tinha  grangeado. 

O  Mestre  Frei  Pedro  martyr,  sendo  lente  da  cadeira  de  vespara  do 
Theologia  na  Universidade  deCoimbra,  foi  revedor  dos  livros  polo  Santo 
Officio  da  mesma  cidade. 

Sendo  Inquisidor  Geral  n"este  Reino  o  Cardeal  Infante  dom  Anrique 
que  despois  succedeu  na  coroa  d"elle,  era  cargo  annexo  ao  do  Priorado 
d"este  Convento,  por  provisão  sua  serem  revedores  dos  livros  os  Padres 
que  n'elle  entrassem. 

CAPITULO  XXXVIII 

Be  outros  Padres,  que  forno  lentes  de  (jrandes  catredns  na  Universidade 
de  Coimbra  sem  entenderem  em  outro  ministério. 

Dos  primeiros  Religiosos,  que  residindo  no  Collegio  de  Santo  Tho- 
más de  Coimbra,  forão  públicos  professores  das  sciencias  na  Universi- 
dade da  mesma  cidade,  foi  hum  o  Doutor  Frei  João  de  Pedrazza,  perfi- 
lhado por  este  Convento  de  Lisboa:  e  leo  a  cadeira  de  vespara  de  Theo- 
logia. Despois  de  iongos  annos  de  idade  deixou  a  continuação  da  Catre- 
da,  mas  não  do  estudo,  e  pouco  antes  de  falecer  sahio  com  huma  sum- 
ma  de  casos  de  consciência,  que  compoz  á  instancia  do  Bispo  dom  Ju- 
lião Dalva:  foi  obra  estimada  em  seu  tempo,  e  impressa  muitas  vezes. 

Ao  Mestre  Frei  António  da  Fonseca,  Doutor  Parisiense  por  ser  filho 
d"este  Convento,  e  natural  de  Lisboa,  mandou  el  Rei  dom  João  Tercei- 

(•]  Frei  João  (lo3  Santos  P.  2    l.  2    c.  1(>.  ile  Var.  lliítoria  OrÍ!'iil. 

voL.  I.  ;>8 


434  LIVHO  III  DA  HISTORIA  DK  S.  DOMlXdOS 

ro  vir  de  Paris,  pêra  lhe  dar  a  cadeira  da  sagrada  Escritura  da  Univer- 
sidade de  Coimbra:  c  foi  lente  de  vespara:  e  juntamente  o  fez  seu  pre- 
gador. Porque  tinha  com  as  letras  admirável  eloquência.  Este  Padre  foi 
o  primeiro  pregador,  que  introduzio  neste  P»eino  pregar  o  sintido  lite- 
ral da  Escritura  apostillando  o  Santo  Evangelho :  modo  fácil,  e  menos 
trabalhoso  pêra  quem  o  segue,  porque  he  totalmente  separado  do  estilo 
oratório  antigo,  que  se  compõem  de  suas  partes,  com  seus  tropos,  e  li- 
guras,  e  flores  Rcthoricas:  e  ha  mister  estudo  particular.  He  pêra  o  povo 
mais  aprazível,  e  mais  claro  o  apostillar,  polo  que  tem  de  menos  cir- 
cuito de  rezões,  e  períodos,  e  pola  mesma  rezão  mais  abreviado  no  re- 
sumir: porem  de  força  se  ha  de  suprir  com  conceitos,  e  sentenças,  e 
lugares  de  sustancia  o,  que  faltar  de  elegância,  e  ornato  de  palavras, 
de  que  os  Gregos,  e  Latinos  fazião  tanto  caso,  que  lhe  chamavão  arreios, 
e  jaezes  da  Oração,  Phalerala  dieta  {*).  Qual  seja  melhor  género  he  longa 
questão,  e  não  doeste  lugar.  Hum  anligo  chamava  Oradores  de  carí.npa- 
cio  aos,  que  com  ditos,  e  sentenças  alheas,  e  historia  antiga  tecião  ioda 
a  Oração:  e  dizia,  que  o  saber  era  fazer  o  homem  alguma  cousa  sua,  sem 
pender  sempre  do  que  outros  disserão.  São  as  palavras :  Aliqnid  et  de 
tuo  profer.  Istos  minqnam  Autores,  semper  interpretes  nihil  puto  hahere 
g^nerosi.  E  mais  baixo:  Scire  est  et  sua  facere  qnceque,  nec  ah  exemplari 
penderei^*).  Mas  doestas  cousas  o  tempo, que  tudo  vai  trocando,  e  o  uzo 
com  quem  vivemos,  são  os  que  hão  de  dar  a  sentença.  Em  Frei  Antó- 
nio havia  eloquência,  e  havia  engenho,  com  que  juntava  huma  cousa,  e 
outra,  e  fazia,  que  tudo  líie  estivesse  bem. 

O  Mestre  Frei  Diogo  de  Morais,  sendo  Prior  de  S.  Domingos  de  Lis- 
boa foi  mandado  absolver  do  oííicio  pola  Rainha  donaCaierina,  que  go- 
vernava na  menoridade  dei  Rei  dom  Sebastião  seu  neto,  pêra  ir  ler  a 
cadeira  de  Theologia  de  vespara  na  mesma  Universidade.  Tinha  lido 
esta  faculdade  cm  Lisboa  muitos  annos.  Não  viveo  mais  que  dois  em 
Coimbra.  Estes  com  raro  exemplo  de  modéstia  nos  actos  públicos,  e 
de  pobreza  consigo,  porque  nunca  se  sérvio,  nem  aproveitou  em  parti- 
cular do  rendimento  da  cadeira :  e  sempre  subio  ás  escollas  a  pé  sem 
querer  usar  de  cavalgadura. 

O  Mestre  Frei  Luis  de  Sotomaior,  vindo  do  Conciho  de  Trento,  em 
que  assistio,  foi  mandado  por  el  Rei  dom  Sebastião  ler  a  cadeira  de  Es- 
critura na  Universidade.  N'ella  jubilou  com  o  nome,  que  de  direito  lhe  pode- 

(•)  Tcrchl  iu  pbur.  {••)  Sciicta  Epiíl.  33. 


PAUTICULAU  DO  RLl.NO  DK  POUTLT.AL  4 '5," 

mos  dar  de  Trismegisto,  quero  dizer,  três  vezes  máximo,  grande  letrado, 
grande  estudante,  e,  (o  que  mais  importa),  grande  Religioso.  E  sobejando- 
llie  idade,  e  forças  pêra  segunda  vez  poder  jubilar,  largou  as  escolas  no  que 
podia  parecer  cobiça,  que  fora  ir  lendo  de  novo:  e  não  no  que  era  tra- 
]íallio.  Porque  ficou  estudando,  e  escrevendo  em  serviço  da  Republica 
literária  aíé  o  ultimo  espirito  com  a  mesma  applicação,  e  continuação 
que  se  estivera  obrigado  ás  lições  da  Universidade :  e  n"ella  faleceo  era 
idade  de  oitenta  e  quatro  annos,  sendo  sua  fama  celebrada  pola  excel- 
lencia  do  que  tinha  escrito,  por  todos  os  bons  espíritos  da  Chrisíanda- 
de,  e  havendo  quarenta  e  sinco  annos,  que  começara  esta  lição  deCoim- 
Jjra.  Do  discurso  de  tão  larga  vida  pudéramos  dizer  muito,  mas  resu- 
mil-a-hemos  nas  mais  breves  palavras,  que  for  possível.  Tomou  o  habito 
muito  moço  em  S.  Domingos  de  Lisboa.  Passou  a  Frandes  á  Universi- 
dade deLovaina.  N"ella  estudou  Theologia,  e  juntamente  se  deu  ás  lin- 
goas  Grega,  e  Ebraica.  Como  tinha  profundo  juizo,  e  huma  memoria 
sobre  tudo  o  que  se  pôde  dizer  tenaz,  e  firme,  consumou-se  na  scien- 
cia,  e  nas  lingoas.  A  Latina  leo  publicamente  em  Londres,  por  mandado 
dei  Rei  dom  Felipe  segundo  deCastella,que  depois  foi  primeiro  de  Por- 
tugal, quando  passou  a  casar  com  a  Rainha  Maria  de  Inglaterra,  pre- 
tendendo aquelles  Reis,  que  fosse  juntamente  aos  discípulos  Ingrescs 
mestres  da  pureza  da  Fé.  Exercitou  despois  todas  em  Frandes,  e  Aic- 
manha:  e  por  rezão  d'ellas  se  foi  aplicando  com  grande  cuidado  a  pe- 
netrar o  sintido,  e  mysterios  do  texto  das  sagradas  letras.  Andou  fora 
da  Pátria  até  á  celebração  do  Santo  Concilio  de  Trento, em  que  assistio: 
o  sendo  acabado,  deceo  a  Veneza  pêra  passar  com  o  Padre  Frei  Boni- 
fácio de  Araguza,  da  Ordem  dos  Menores  a  visitar  a  terra  Santa.  Levava 
este  Padre  a  familia  Franciscana  a  seu  cargo,  e  os  peregrinos  d"aquelle 
anno.  Huma  grave  doença  estorvou  a  santa  jornada  ao  Padre  Frei  Luis. 
Mas  ficou  em  memoria  huma  encomenda,  que  deu  ao  Padre  Frei  Panta- 
lião  de  Aveiro  Franciscano,  e  Portuguez,  quando  se  embarcou,  na  mesma 
jornada:  encomenda,  que  descobre  bem  a  fee,  e  espirito  de  quem  a  fa- 
zia. Pedia-lhe  que,  pois  não  merecera  a  Deos  ser  seu  companheiro,  lho 
trouxesse  de  qualquer  rua  ou  estrada  publica  de  Jerusalém  huma  pouca 
de  terra,  porque,  como  o  bom  Jesu  andara  por  ellas,  tinha  por  certo 
que  até  o  centro  ficara  toda  a  terra  sanctificada. 

Vindo  a  Portugal  começou  a  ler  Escritura  em  S.  Domingos  do  Lis- 
boa. Mas  foi  por  poucos  dias,  porque  logo  o  mandou  el  liei  dom  Se- 


436  LIVRO  III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGnK 

bastião  pera  a  Universidade  de  Coimbra,  onde  escreveu  doulissimos  com- 
mentarios  sobre  o  Testamento  velho,  e  novo,  mostrando  n"elles  as  ri- 
quezas de  erudiçrio,  que  entczourava  sua  mcmctria.  Porque,  como  tinha 
lido  com  attenção,  quasi  tudo,  quanto  ha  escrito  em  todas  as  faculdades 
desde  a  Humanidade  até  a  maior,  e  milhor  sciencia,  tão  presente  estava 
nas  que  tinha  passado,  quando  moço,  como  nas  em  que  de  próximo  se 
empregava.  Ajudava-se  de  artificio  pera  a  conservação  do  que  estudava, 
cotando  os  livros  com  diversidade  de  sinais  de  penna,  e  passando  estes 
a  huma  grande  taboa,que  tinha  na  parede,  com  que  lhe  ficava  fácil  achar 
os  livros,  as  matérias,  e  as  particularidades.  E,  porque  seus  escritos  an- 
tes de  chegarem  á  impressão,  já  cordão  por  toda  a  Christandade  com 
fama,  o  grande  aceitação  de  todos  os  doutos,  o  Papa  Clemente  oitavo 
lhe  mandou  escrever  hum  Breve  cheio  do  honras,  em  que  o  anima,  e 
amoesta  que  imprima.  Foi  passado  o  Breve  em  S.  Pedro  de  Roma  em 
28  de  Março  de  1597,  e,  porque  anda  já  impresso  no  volume,  que  es- 
creveo  sobre  os  Cantares,  deixamos  de  o  lançar  aqui. 

Foi  incansável  no  ler,  e  no  escrever.  Affirma-se  d"el!e,  que  leo  to- 
das as  obras  de  Santo  Agostinho,  a  cuja  doutrina,  e  lição  tinha  par- 
ticular devação,  e  affeição,  duas  vezes,  e  algumas  d"eilas  sinco,  e  mais 
vezes:  sendo  assi  que  ha  poucos  homens,  que  as  lessem  huma  só  vez 
pola  grandeza,  e  numero  dos  volumes,  que  compreiídem.  O  seu  ler  foi 
sempre  com  a  pena  na  mão,  qualquer  que  fosse  o  livro,  pera  se  apro- 
veitar de  tudo,  e  de  todos.  O  seu  escrever  sempre  por  sua  mão,  ató 
que  lhe  deu  a  gota  na  direita.  E,  com  lhe  succederisto,  no  cabo  da  vida. 
fez  logo  trabalhar  a  esquerda,  primeiro  em  fazer  o  seu  sinal,  e  despois 
em  escrever  tudo  o  que  se  lhe  oíTerecia,  de  maneira  que  veio  a  usar 
d'ella  como  da  direita.  O  seu  estudar  era  continuo  sem  tempo  certo 
nem  determinado.  Fura  das  horas,  que  dava  a  Deos,  ou  ás  necessidades 
naturais  de  comer,  e  dormir,  ou  lhe  tomavão  negócios  precisos,  logo 
seu  espirito  corria  ao  estudo,  como  a  pedra  ao  centro.  Polo  comer  cor- 
tava sempre  pera  partir  com  os  pobres,  e  pera  dormir  menos.  E  do 
sono  tirava  tanto,  que  de  ordinário  se  levantava  á  meia  noite,  (pera  o 
que  tinha  sempre  consigo  hum  espertador  de  relógio),  sem  tomar  da 
cama  mais  que  o  necessário  pera  a  vida,  nada  pera  a  recreação.  Contava 
d"elle  o  Padre  Frei  João  da  Silva,  que  indo  ambos  a  hum  Capitulo  ge- 
ral, com  ir  cançado  do  caminho,  todas  as  noites,  passado  o  primeiro 
sono  acendia  candea,(pera  o  que  levava  aparelho  de  fusil,  e  pederneira,.) 


PAUTICILAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  437 

c  entendia  cos  livros,  que  sempre  com  elle  peregrinavão,  como  se  esti- 
vera na  quietação  da  cella.  Ajudava-o  muito  huma  complexão  robusta, 
c  forte,  que  o  acompanliou,  como  dizem  de  Santo  Agostinho,  até  quasi 
os  últimos  annos  da  vida.  Porque  da  gota  não  foi  tentado  senão  então, 
e  ainda  assi  lhe  dava  graças,  chamando-a  ditosa  necessidade,  porque  ren- 
dia mais  tempo  pêra  o  estudo,  livrando-o  de  acudir  a  negócios,  ou  de 
comprimento  de  gentes,  a  quem  se  não  podia  negar,  ou  de  força,  da 
Universidade,  pêra  que  sempre  era  chamado,  como  i  prmeiro,  e  mais 
antigo  voto  d'ella.  Da  regra,  e  constituições  foi  observantismo,  livre,  e 
azedo  reprensor  do  que  era  contra  a  lei  de  Deos,  ou  verdade  politica, 
perpetuo  bemfeitor  em  commum  com  a  esmolla,  com  a  intercessão  pêra 
todos  os,  que  o  buscavão,  e  em  particular  pêra  estrangeiros,  como  quem 
o  foi  muitos  annos  peregrinando  fora  da  pátria.  Em  casa  brando,  fácil, 
e  conversavel.  Na  cella  morador  tão  aturado,  que  quasi  nunca  se  achava 
fora  d.'ella:  e  fora  de  casa  não  hia,  se  não  arrancado  de  grande,  e  for- 
çosa obrigação. 

Chegando  á  idade,  que  temos  dito  no  anno  deGiO,  dia  da  Gloriosa 
Ascensão  do  Redentor,  se  levantou  pola  manliam,  e  se  foi  ao  Orató- 
rio do  GoUegio,  ouvio  Missa,  confessou-se,  e  commungou,  e  recolhendo- 
se  pêra  a  cella,  tratou  de  morrer  tão  determinadamente,  que  foi  con- 
stante opinião  de  todos  os,  que  o  conhecião,  e  notarão  com  attenção  o 
successo  de  sua  morte,  que  lhe  fora  revelada  a  hora  d'ella.  De  sua  hu- 
mildade, e  modéstia  sabemos,  que  nunca  tal  lhe  sahio  da  boca.  Mas  fa- 
larão por  elle  os  eíTeitos,  que  não  pode  reprimir.  Foi  o  primeiro,  do 
qual  se  não  teve  noticia,  se  não  muitos  dias  despois  de  sua  morte,  hum 
papel,  que  se  lhe  achou  em  hum  escritório,  feito  n'este  mesmo  dia,  e  de 
sua  mão  assinado,  ííe  uma  protestação  da  fé,  que  por  sua,  e  de  tal  hora, 
na  qual  estava  com  os  olhos  na  eternidade,  merece  que,  todos  os  que 
somos  seus  irmãos  do  habito,  e  nos  prezamos  de  discípulos  de  sua  dou- 
trina a  imprimamos  nas  almas.  E  por  isto  a  lançamos  aqui,  e  será  no 

setruinte  capitulo. 

CAPÍTULO  XXXIX 

Da  protestnção  da  fé  que  o  Padre  Frei  Luís  do  Souto  Maior  deixou  escrita: 
e  de  sua  bemai^enturada  morte. 

Ecce  iam  morior,  vel  potius  dormia,  et  viuere  incipio  in  Christo  vita 
mea,  cmus  (jratia  vsque   in   hunc  dicni  in  [ide  ciusdem  cathoUca  cixí,  /i- 


488  IIYHO  III  DA  HISTORIA  Dn  S.  DOMINGOS 

cfit  minus  henè,  fnteor  ingenuè  et  doleo.  Quoniam  verá,  vt  inqiiit  Pmihis 
Apostoltis,  corde  credUur  ad  iiistitiam:  ore  autem  confessio  fit  a  d  saltitem. 
Idárcò  neccssarium  potaiii  nunc  temporls,  et  m  hac  hora  [idem  meam  con- 
ceptis  verbls  atquc  elunn  scriptis  breutíer  ad  salutem,  siviitlque  exemphim 
aiiorum  confiteri  in  tnnta  pra'sertim  profanarum  vocuni  iwinlate,  vt  ne 
dicain  licentii  et  mpunilate:  próque  ea  [ide  mmortales  Deo  gralias  agcre^ 
gui  vie  pro  sua  immensa  misericórdia  digna  tus  est  fidelem  Calliolicum  noa 
solum  e/Jicere,  sed  eluim  vsqne  \n  finem  serunre  nullo  quidem  mérito  meoi 
sed  polius  mérito  Christi  Filij  sni,  et  Domini  mei,  qui  dilcxit  me,  et  tra- 
didit  semetipsum  pro  me.  Fins  itaque  mérito  et  iustitia  et  gratin  spero 
me  posse  saluari,  id  est.,  vitam  tilam  immortalem  et  healum  me  adrpturum 
esse  confido.  Qnod  autem  pertinet  ad  quwstionem  illam  de  gralia  Dei, 
seu  gratia  Christi  própria  circumuagatam,  idipsiim  firmíter  teneo,  et  [ide- 
litcr  credo,  quod  seniper  tenui,  id  est.,  qnod  semper  tenuit  Ecclesia  Catho- 
lica  et  Romana,  quodque  tenuit  olim  D.  Augiistinus,  et  post  eum  D.  Tho- 
mas  verlssimus  et  fidelissimus  eius  interpres.  Denique  id  quod  me  docuc- 
runt  prceceptores  mei,  id  est,  Theologi  Lovanienses,  quorum  antoritas  mihi 
grauissima  est  et  quorum  discipuliis  et  alumnus  per  tot  annos  fui,  licet 
indignas.  20  die  Blaij  amo  1610. 

Freg  Luis  de  Souto  mayor. 

Não  será  rezão,  que  defraudemos  do  fruito,  e  significação  de  tão 
santa  escritura  os,  que  não  penetrão  a  Latinidade :  daremos  a  tradução, 
e  diz  assi: 

Eis  que  morro,  mas  antes  durmo,  e  começo  a  viver  em  Christo  vida 
minha :  por  cuja  graça,  e  mercê  vivi  até  lioje  em  sua  fé  Catholica  itida 
que  não  tão  bem  como  devia,  cbammente  o  confesso,  e  peza-me  de  co- 
ração. Mas  porque,  como  diz  o  Apostolo  S.  Paulo:  crer  com  o  coração 
S3rve  pcra  a  graça,  e  justificação;  e  confessar  a  fé  com  a  boca,  con- 
vém pêra  a  salvação.  Portanto  me  pareceo  necessário,  sendo  chegado 
a  este  tempo,  e  iiora,  confessar,  e  declarar  brevemente  a  fé,  em  que 
vivo,  por  palavra,  e  por  escrito,  assi  pêra  salvação  minha,  como  pcra 
exemplo  d"outros,  em  tempo  principalmente  de  tanta  novidade,  por 
não  dizer  atrevimento,  e  licença  mal  castigada  de  profanas  lingua- 
gens. E  lambem  pêra  dar  eternas  graças  a  Deos  pela  mesma  fé.  Pois 
fji  servido  por  sua  immensa  bondade,  não  só  íazer-me  Católico  Chris- 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  439 

tao,  mas  conservar-me  em  sua  santa  fé  até  o  fim  da  vida:  e  isto  sem 
nenhum  merecimento  meu,  senão  só  poios  méritos  de  meu  Senhor  Jesu 
Clu'isto  seu  Filho,  que  me  amou,  e  por  mi  se  entregou  á  morte.  E  assi 
espero,  e  confio  poder-me  salvar  no  que  elle  me  mereceo,  e  por  sua 
justiça,  e  graça,  quero  dizer,  alcançar  a  vida  eterna,  e  bemaventurada. 
E  quanto  a  hurna  questão,  que  anda  mui  ventilada,  acerca  da  graça  pró- 
pria de  Christo:  declaro,  que  cu  tcnlio,  e  creio  firme,  e  firmemente  o 
que  sempre  tive,  e  cri,  que  he  o  mesmo,  que  sempre  teve  a  Igreja  Ca- 
tólica Romana:  e  o  que  antigamente  teve  Santo  Agostinho,  e  depois  d'el- 
ie  seu  mui  verdadeiro,  e  fidelíssimo  interprete  Santo  Thomás:  e  em  fim 
o  mesmo,  que  me  ensinarão  os  Mestres,  quero  dizer,  os  Theologos  da 
Universidade  de  Lovaina,  cuja  autoridade  tem  pêra  comigo  grandíssimo 
peso,  c  poder,  sendo  como  fui  tantos  annos  discípulo,  e  filho,  inda  que 
indigno  de  sua  doutrina.  Em  20  de  Maio  de  1010. 

Frey  Luis  dií  Souto  mayor. 

Após  esta  protestação,  que  foi  como  testamento,  porque  outro  não 
fez,  nem  tinha  de  que  o  fazer  como  verdadeiro  Religioso,  deitou-se  na 
cama:  e  sendo  visitado  de  alguns  médicos,  desassombradamente  lhes 
disse,  que  morria,  e  que  já  era  tempo,  e  que  lhe  não  pesava.  E  repli- 
cando hum,  que  lhe  daria  Deos  muita  vida,  e  saúde,  respondeo:  A  da 
alma,  que  hc  a  que  importa.  A  hum  Monge  de  S.  Bernardo,  que  o  vi- 
sitou, e  lhe  perguntou,  como  se  sintia,  disse:  Como  quem  está  pêra  fa- 
zer huma  jornada  multo  comprida,  e  muito  perigosa. 

Deste  dia  em  diante  foi  entrando  em  fraqueza  muito  conhecida,  e 
sendo  visitado  amiúde  dos  médicos,  recebeu  o  santo  viatico:  e  antes  de 
o  receber  pronunciando  muitas  palavras,  assi  da  sagrada  Escritura, 
Cfiino  dos  sagrados  Concilies,  com  que  reconhecia  estar  debaixo  das  es- 
pécies sacramentais  Nosso  Senhor  Jesu  Christo  verdadeiro  Deos,  c  ho- 
mem. Filho  do  Eterno  Padre;  fez-lhe  uma  devota,  e  eíficaz  petição,  que 
o  confirmasse  em  sua  santa  fé.  E  logo  pedio  ao  Prelado,  que  na  hora, 
que  entendesse  ser  tempo,  lhe  administrasse  a  santa  Unção.  Quando 
veio  á  sesta  feita  antes  do  dia  do  Espirito  Santo  pareceo  ao  Reitor,  que 
convinha  não  lh"a  dilatar,  e  tratando-o  cora  elle,  e  propondo-lhe  o  perigo 
em  que  estava  de  poder  falecer  sem  aquclle  Sacramento:  com  muita 
fonfiança  respondeo,  que  não  permittiria  Deos  tal :  e  que  o  receberia 


440  i.ivr.o  III  DA  iií;vronLV  di?  s.  doming.os 

no  Sábado, c  que  era  vospara  da  Fesla,  sem  embargo,  que,  como  siibdito 
SC  resignava  em  sua  vontade.  Pedio  então  espaço  pêra  se  aparelhar.  Foi 
o  aparellio  coníessar-se,  e  pedir  ao  enferinciro,  que  por  reverencia  dos 
santos  óleos  lhe  lavasse  os  pés.  lie  de  considerar,  que  de  quarenta 
aiinos  atrás  se  sabia,  que  nunca  outras  maons  llfos  lavarão,  se  não  as 
suas  próprias;  e  n"aquella  hora,  sendo  dons  dias  antes  da  morte,  con- 
sintio,  que  lhe  tirassem  as  meãs  calças,  que  segundo  estilo  da  Religião 
ainda  tinha  calçadas,  havendo  tanto  tempo,  que  se  podia  haver  por 
i/.ento  de  todos  os  rigores  d"ella.  Xo  Sabbado  á  noite  pedio,  que  lhe 
lessem  a  paixão  do  Evangelho  de  S.  João:  e  começando  a  meditar  hum 
pouco  no  que  ouvia,  deu-lhe  hum  grande  aballo  de  estremecimento. 
Acudirão  os  Padres  parecendo,  que  acabava,  e  poserão-ihe  na  mão  a 
candea.  Disse  espertando,  que  ainda  não  era  tempo;  que  elle  teria  cui- 
dado de  a  pedir.  E  vendo  que  estavão  juntos  todos  os,  que  havia  no 
CoUegio,  despedio-se  d"elles  com  amor,  e  humildade,  e  forão  as  pala- 
vras: Padres  meus,  como  grande  peccador,  íjue  sou,  não  tenho  nenhum 
bom  exemplo,  que  lhes  deixe  mais,  que  o  de  bom  estudante.  Peço-lhos 
]auito,que  nunca  se  apartem  da  doutrina  de  Santo  Agostinho,  e  de  noses 
Padre  Santo  Tomás  do  Aquino.  Porque  sem  ella  se  não  pode  entender 
u  Apostolo  S.  Paulo:  e  tudo  o,  que  se  lhe  responde  são,  (foi  palavra  sua 
íormal),  esfolagatos.  Quiz  dizer,  agudezas  soíisticas.  Perguntarão-lhe  a 
que  Santos  queria  lhe  dissessem  Missas,  apontou  em  Santo  Agostinho, 
o  com  a  occasião  pedio,  que  lhe  dessem  hum  livrinho  das  suas  confis- 
sões, e  dizendo,  que  aquelle  era  o  seu  thesouro,  tirou  de  dentro  dous 
papeis:  hum  foi  o  registo  da  imagem  do  Santo,  com  que  se  abraçou 
como  eiíi  despedida:  outro  huma  oração  de  sua  mão  escrita,  que  dizia 
fora  composta  polo  mesmo  Santo  pouco  antes  da  morte.  Mandou,  que 
lh'a  lessem,  porque  he  muito  devota,  e  por  ser  tal  encomendou  aos  Re- 
ligiosos, que  tomassem  treslados,  e  a  rezassem.  Ao  dia  de  Pentecoste 
pola  manham  chamou  ao  confessor,  e  reconciliando-se  pedio-lhe,  que  lho 
aplicasse  a  indulgência  concedida  aos  nossos  Frades  no  artigo  da  ncorte 
pola  Sé  Apostólica.  Absolto  por  ella  disse-lhe,  que  se  ficasse  embora, 
porque  elle  se  hia  descançar  com  Deos;  e  pedio  a  candea;  e,  tanto  que  a 
teve  na  mão,  espirou  com  huma  quietação  de  Santo,  na  hora,  que  no 
Coro  se  começava  a  cantar  dospois  da  Epistola  o  verso  da  Allcluya,  Vou 
sancte  Spiriíus. 

Houve  no  transito  doesto  Religioso  dous  estremes  de  considei'ação. 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  441 

Quando  soube  ou  entendeo,  que  morria,  teraoo,  c  tremeo  a  humanidade 
sobro  oitenta,  e  tantos  annos  de  vida  mui  occupada,  mui  trabalhada,  e 
mui  religiosa.  Este  foi  o  primeiro  estremo:  que  se  colligio  de  huma  pro- 
funda tristeza,  em  que  cahio,  tanto  que  adoeceo,  da  qual  sendo  advirtido 
que  llie  agravai-ia  o  mal,  respondeo:  Tristitia  hccc  elfectiis  pwnitenticead 
salulem.  (*)  Como  significando  que  era  effeito  de  dor,  e  arrependimento  pêra 
meio  de  salvarão.  Ao  mesmo  propósito  disse  pouco  depois  com  grande 
elíicacia:  Timendus  est  Deus,  niaximè  cum  iudicot.  Quiz  dizer:  Sempre 
Deos  he  de  temer,  mas  principalmente  quando  julga.  Passou  d'este  es- 
tremo a  outro,  com  que  acabou,  de  huma  grande  paz.  e  sossego  da  alma. 
Porque,  visitando-o  os  Doutores  da  Universidade,  com  tão  boa  sombra 
se  despedia  de  cada  hum,  como  se  tratara  de  passar  pêra  outro  Con- 
vento ;  e  todos  sahião  assombrados,  e  edificados.  E  não  espantou  menos, 
que  dizendo-lhe  o  Reitor  da  Universidade  dom  Francisco  de  Castro,  que 
hoje  he  Bispo  da  Guarda,  que  se  lembrasse  d"elle  diante  de  Deos,  res- 
pondeo, que  quanto  n'elle  era,  prometia  fazel-o.  Assi  o  reconheceo  logo 
toda  a  Universidade  por  Santo  nos  effeitos.  Porque  entre  a  huma,  e  duas 
despois  de  meio  dia  se  juntarão  no  CoUegio  com  o  Reitor  muitos  Dou- 
tores, e  Fidalgos,  e  grande  numero  de  Religiosos,  e  elle  foi  o  primeiro 
que  chegou  a  beijar-Uie  a  mão,  o  que  imitarão  alguns :  mas  os  mais  se 
forão  aos  pés,  entendendo,  que  a  tal  pessoa  não  era  devida  menos  vene- 
ríição.  Foi  á  terra  coroado  de  huma  capella  de  rosas :  e  sobre  o  escapu- 
lário, que  era  hum,  que  pcra  este  dia  tinha  bera  guardado,  porque  fora 
do  Santo  Arcebispo  de  Rraga  dom  Frei  Bertolameu  dos  Martyres  (**),  levava 
huma  Cruz  feita  de  rosas,  e  ao  pescoço  hum  rosário,  que  muito  pezava, 
por  ser  feito  da  madeira  do  caixão,  em  que  o  mesmo  Arcebispo  estivera 
primeiro  sepultado.  Nos  dous  dias  seguintes  teve  solenes  Ofíicios  da  Uni- 
versidade, e  de  todas  as  Religiões,  que  concorrerão  ao  Collegio.  E  o  Rei- 
tor da  Universidade  lhe  mandou  cobrir  a  cova,  que  he  no  meio  do  Ora- 
tório do  mesmo  Collegio,  com  huma  fcrmosa  campa  esculpida  do  seguin- 
te elogio. 

Magnus  Theolorjns  vir  coelo  dignits  Frater  Ludcuicus  Sotto  maior  Do- 
minicanus^  fulei  vehcmens  assertor  in  vlraque  Germânia,  et  Anglia,  Pri- 
marius  Coninibriccc  Biuinorum  librorum  inierpres  longe  ilhistris,  et  eméri- 
tas: moriens  ipsa  die,  et  Lora,  qua  Spirilns  Sundus  corda  repleuerat  Apos- 

{']  *2.  Cor.  7.        («•)  Frei  L.  Caceias  na  vida  de  Santo  Arcebispo  1.  U.  c.  22. 


442  LIVRO  111  DA  HISTORIA  DE  S,  DOMINGOS 

tolorum,  su(P  ?»oí7/.í  diuimis  viuam  sanetitatis  imaginem  expressit,  quam 
vivens  sibi  parauerat  Deum  sequencio.  Tandem  hicsitus  est  anno  IGIO,  sua: 
(Bi  ai  is  84. 

CAPITULO  XL 

Dos  esludos  que  ha  nesle  Convento.  E como  lhe  foi  annexada  a  Igreja, 
e  renda  do  antigo  Mosteiro  de  Ansedc  pola  Sé  Apostólica. 

Floreceo  sempre  n"esta  casa  estudo  geral  de  Filosofia,  e  Theologia, 
e  he  a  primeira  Academia  da  Ordem  n'esía  Provinda.  São  ordinárias  duas 
lições  de  Theologia,  e  huma  de  Artes,  e  Filosofia.  Em  tempos  atrás  or- 
denou n'ella  el  Kei  dom  Manoel  hum  CoUegio  pêra  certo  numero  de  Re- 
ligiosos, o  qual  el  Rei  dom  João  seu  filho  mandou  despois  passar  a  Coim- 
bra com  nome  de  Santo  Thomas,  como  se  dirá  em  seu  lugar,  e  anno 
próprio  conforme  á  ordem,  que  seguimos.  E  agora  o  locamos,  pêra  quo 
se  saiba  que  aqui  teve  sua  origem. 

Além  d'esie  estudo,  que  he  de  portas  a  dentro,  e  mais  próprio  dos 
Religiosos,  dado  que  também  admitta  alguns  seculares :  ha  outro  fora, 
de  duas  lições  publicas  de  casos  de  consciência,  particular  pêra  secula- 
res. Estas  se  iem  na  Ermida  de  Nossa  Senhora  da  Escada :  e  tem  dous 
lentes,  que  nomea  o  Capitulo  Provincial.  Foi  obra,  e  instituição  da  Rai- 
nha dona  Gaterina,  digna  consorte  do  Christianissimo  Rei  dom  João  III, 
e  grande  imiiador  de  suas  virtudes :  e  sinalou  de  esmola  por  ella  ao 
Convento  cem  mil  reis  de  juro.  Mas  vendo,  que  o  beneficio,  com  ser  tão 
geral,  não  abrangia  áquelles  que  por  falta  de  sustentação,  sobejando-lhe 
as  mais  parles,  não  podião  assistir  na  cidade,  ordenou  hum  Collegio  de 
Clérigos  pobres  com  numero  certo,  e  porções  determinadas.  Conselho 
de  alto  entendimento.  Porque,  além  do  mérito  da  esmola,  e  mantença 
que  S8  dá  a  pobres:  a  comida  certa  obriga-os  a  estudar:  e  o  estudo  a 
se  habilitarem  pêra  servirem  de  Curas  das  Igrejas,  e  em  outros  benefi- 
eãos :  com  que  se  vem  a  dilatar  a  esmola  por  todos  os  membros  da  Re- 
publica. São  os  Collegiaes  trinta  e  dous:  dos  quaes  mandou,  qu^s  doze 
fossem  sempre  do  Arcebispo  de  Lisboa,  e  os  vinte  do  restante  do  Rei- 
no. Aos  do  Arcebispado,  como  a  gente,  que  está  em  sua  casa,  ou  perto 
d'ella,  se  dão  de  porção  doze  mil  reis  por  anno ;  aos  de  mais  longe  a 
quinze  mil  réis  pagos  em  dinheiro,  e  aos  quartéis,  e  de  mão  do  Prior 
do  Convento.  Pêra  serem  admitlidos  passão  por  rigoroso  exame  de  La- 


PARTICULAR  DO  REINO  DE  PORTUGAL  443 

tinidade,  despois  de  aprovados  era  vida,  e  costumes,  e  limpeza  de  san- 
gue: e  sempre  lia  consQrso  de  pretendentes,  e  he  preferido  o  mais  há- 
bil, e  mais  digno.  Tem  obrigarão  de  certos  annos  de  assistência,  e  con- 
tinuação quotidiana  de  manhã,  e  tarde :  pêra  o  que  ha  dous  apontado- 
res, cujo  oíTicio  he  tomar  era  lembrança  as  faltas  de  cada  hum ;  e,  quan- 
do chega  ao  quartel,  tanto  recebem  menos,  quanto  montão  as  lições,  que 
perderão  pro  rata  do  qual  vai  a  porção.  O  Prior  he  o  administrador  de 
tudo,  6  o  que  manda  fazer  os  pagamentos,  que  fica  sendo  a  maior  corn- 
modidade  de  todas  pêra  os  pobres,  porque  he  almoxarife  certo,  e  bem 
assombrado.  A  contia,  que  se  monta,  deixou  a  Rainha  em  juro  perpetuo 
assentado  na  alfandega  da  cidade. 

Mas,  porque  falamos  em  juro,  o  rendas,  será  bem  dizermos  alguma 
cousa  das  que  susfentão  a  este  Convento :  as  quais  he  de  saber,  que  pêra 
cem  Frades,  que  de  ordinário  nelle  residem,  além  de  grande  numero  de 
hospedes  quasi  sempre  contínuos,  são  mui  curtas,  como  era  todos  os 
mais  conventos  do  Reino.  E  he  a  rezão  tal,  que  desejo  encubril-a  por 
r.ão  culpar  nossos  maiores,  que  ou  polo  costume  do  bom  tempo,  em  que 
vivíamos  sem  próprios,  ou  por  brio  de  se  mostrarem  izentos  de  cubica, 
forão  muito  faciles  em  largar  legitimas,  e  heranças  grossas,  fazendo  pou- 
co caso  do  dano  das  Communidades  a  troco  da  gloria  de  liberais.  O  que 
sendo  visto,  e  considerado  pola  Rainha  dona  Caterina  no  tempo  que  go- 
vernava este  Reino  na  menoridade  d'el  Rei  dom  Sebastião  seu  neto,  pro- 
curou impetrar  da  Sé  Apostólica  hum  Mosteiro  de  boa  renda  de  alguns 
antigos,  que  por  estarem  quasi  despovoados  de  Religiosos,  se  davão  po- 
ios Reis  a  pessoas  particulaies  pêra  viverem  das  rendas  d'elles,  com  no- 
me de  Commendatarios.  E  vagando  o  de  Ansede  no  anno  de  lo59,  por 
falecimento  do  Commendaíario,  que  o  possuía,  escreveo  ao  Pontífice  em 
nome  dei  Rei,  no  qual  corrião  todos  os  negócios,  e  papeis  públicos.  E 
porque  a  nota  testimunha  bem  as  nacessidades,  que  lemos  dito  da  nossa 
casa,  e  o  estado  da  que  se  pedia,  não  será  fora  de  propósito  tresladar- 
mos  aqui  a  carta:  e  he  a  que  se  segue. 

3íuito  Santo  em  Chríslo  Padre,  e  mui  bemaventurado  Senhor,  eu  de- 
sejo, que  o  Convento  deS.  Domingos  d' esta  cidade  tenha  sufficienfes  alimentos 
jiera  poder  sustentar  o  numero  de  Religiosos,  que  he  necessário  pêra  bom  ser- 
viço de  Nosso  Senhor  n'esta  cidade,  e  Reino,  e  denta  Republica  no  espi- 
ritual, por  ser  casa  de  estudo  de  Artes,  e  Theologia,  donde  saem  vinte  e 


444  LIVRO   III  DA  HISTORIA  DE  S.  DOMINGOS 

tantos  pregadores  por  toda  a  cidade,  e  Reino,  e  onde  ha  continuas  confiS' 
soes,  e  onde  todas  as  principais  duvidas  de  consciência  vão  ter,  fera  que 
com  a  determinação  dos  letrados  da  dita  casa  se  quietem  as  consciências  : 
e  por  haver  muitos  annos,  que  a  terra  está  em  costume  de  achar  na  dita 
casa  aviamento  peva  todas  estas  cousas.  E,  porque  pêra  isto  se  poder  sus- 
tentar, he  necessário  ter  grande  numero  de  Relijiosos,  pêra  os  quais  tem 
a  casa  mui  pouca  renda :  e  minha  fazenda  está  mui  despesa  pêra  poder  a 
isso  acudir,  por  a  mui  continua  guerra,  que  com  os  Mouros  inimigos  de 
nossa  santa  fé  continuamente  trago  nas  partes  de  Africa,  e  índia  :  mandei 
jiedir  a  V.  Santidade  me  qaizesse  fazer  mercê  de  unir  o  Mosteiro  de  An- 
sede  ao  dito  Convento:  por  quanto  mais  serviço  de  Nosso  Senhor  será  dar- 
se  a  dita  casa,  que  estar,  como  otèqui  esteve,  com  cinco  ou  seis  Religiosos 
por  forma,  e  a  mais  renda  comel-a  hum  Commendatario.  Porque  também, 
quando  a  V.  Santidade  lhe  parecesse  povoar-se  o  dito  Mosteiro  de  Ansede 
d'alguns  Padres  da  dita  Ordem  de  S.  Domingos,  que  preguem  na  terra 
onde  o  dito  Mosteiro  está,  que  tem  necessidade  de  doutrina,  o  Padre  Pro- 
vincial, e  Padres  de  S.  Domingos  o  facão.  E,  porque  importa  muito  a 
boa  conclusão  deste  negocio,  no  qual  espero,  que  V.  Santidade  folgue  de  fa- 
zer a  mercê,  que  lhe  pesso :  vai  sobre  elle,  e  outros  negócios,  que  tocão  d 
dita  Ordem,  o  Padre  Frei  Julião,  pessoa  de  muita  confiança:  e  que  porei 
Rei  meu  Senhor,  e  avó,  que  santa  gloria  haja  a  ter  delle,  o  mandou  em 
tempo  da  boa  memoria  dos  Papas  Paulo,  e  Júlio  sobre  outros  negócios  da 
dita  Ordem.  Peço  muito  por  mercê  a  V.  Santidade,  que,  no  que  acerca  dis- 
to lhe  requer  por  porte  da  dita  Ordem,  folgue  de  lhe  fazer  toda  mercê,  que 
houver  lugar,  no  que  a  receberei  mui  grande  de  V.  Santidade.  3íui  santo 
em  Chrislo  Padre,  e  mui  bemaveniurado  senhor.  Nosso  Senhor  por  muitos 
annos  conserve  V.  Santidade  em  seu  serviço.  De  Lisboa  a  10  de  Julho  de 
lo50. 

Concedeo  o  Papa  na  annexação  da  Igreja,  vistas  as  rezões  da  carta. 
E  com  os  rendimentos  delia,  que  impurtão  pouco  mais  de  dous  mil  e 
quinhentos  cruzados  forros  pêra  o  convento,  se  aliviarão  as  nece*ssidades 
que  passava,  e  com  elles,  e  com  a  providencia,  e  bom  governo  dos  Prio- 
res se  tem  reformado  o  edifício  de  quasi  toda  a  casa,  e  enriquecida  a 
Sacristia  de  ornamentos  pêra  o  culto  divino :  de  sorte,  que  faz  ventagem 
a  todas  as  de  Lisboa.  O  Mosteiro  de  Ansede  he  tão  antigo  em  sua  fun- 
darão, que  ha  memorias,  com  que  se  prova,  que  no  anno  de  1107  havia 


PARTICILAU  DO  RFJNO  DE  PORTUGAL  443 

já  n'elle  Religiosos,  e  que  no  de  MOO  foi  dado  aos  Cónegos  regrantes 
de  Santo  Agostinho,  em  cujo  poder  estava,  quando  el  Rei  dom  Sebastião 
o  impetrou  pêra  a  nossa  Ordem.  E  por  boa  conta  parece,  que  os  ante- 
cessores dos  Cónegos  regrantes  devião  ser  Frades  de  S.  Bento.  A  casa 
lie  freguezia  do  lugar,  e  tem  outras  Igrejas,  e  freguezias  annexas  com 
seus  Curas,  e  Abbades  apresentados  polo  Prior  de  S.  Domingos  de  Lis- 
boa. Assi  fica  sendo  Ansede  huma  das  Vigairarias  da  Província  :  e  o  Vigá- 
rio, ou  qualquer  outro  Frade  ali  residente  tem  dispensação  do  Papa  pêra 
administrar  os  Sacramentos,  como  verdadeiro  Parrocho.  O  Bispado,  cm 
que  cae  he  o  do  Porto. 

Não  he  pêra  esquecer,  que  se  guarda  n"este  mosteiro  de  Ansede  de 
tempos  immemoriaes  huma  caveira  de  homem  inteira  de  tal  virtude,  que 
todo  animal  danado,  que  com  ella  toca,  fica  logo  são.  E  de  muitas  le- 
goas  á  roda  acode  o  povo  ao  beneíieio ;  e,  se  não  podem  trazer  o  animal 
infeclonado,  com  levarem  pão  ou  palha  tocada  na  santa  cabeça,  (que  este 
he  o  seu  nome,  e  não  se  lhe  sabe  outro),  como  esteja  em  estado  que  o 
passa  comer,  logo  fica  livre  do  perigo. 

CAPÍTULO  L 

Das  Relíquias  que  ha  no  Cowccnto  :  e  de  algumas  moiwrias  antigas 
que  nclle  se  acltão. 

O  que  falta  de  renda,  e  fazenda  a  este  Convento,  lhe  sobeja  cm  ou- 
tra riqueza  de  mais  estima,  que  he  hum  tezouro  de  grandes,  e  preciosas 
relíquias,  que  se  guardão  na  sacristia,  recolhidas  com  decência  em  hum 
nicho  aberto  na  grossura  da  parede  do  topo  fronteiro  da  porta.  íle  a  pri- 
meira huma  cruz  feita  do  verdadeiro  lenho,  em  que  nosso  Redentor  Jesu 
Christo  padeceo.  Está  engastada  em  outra  grande  de  prata,  que  junta- 
mente faz  custodia  a  muitas  outras  reliquias.  Foi  esta  peça  do  Mestre 
Frei  Nicolao  Dias.  As  reliquias  lhe  dera  em  Roma  o  Papa  Pio  Quinto, 
de  quem  por  suas  grandes  partes  era  muito  amado :  e  elle  as  deu  a  este 
Convento  como  filho,  que  era  seu  de  habito,  e  profissão. 

Tem  mais  dous  espinhos  da  sagrada  Coroa  de  Christo,  em  seus  viris 
de  cristal,  com  suas  guarniçijes  de  prata  douradas. 

Em  huma  caixa  dourada,  e  bem  guarnecida  se  guarda  a  casula  inteira 
com  que  nosso  Padre  S.  Domingos  celebrava  no  tempo,  í}ue  residia  em 


4ÍG  I.lVnO  III  DA  IIISTOHIA  DL  S.  DOMINGOS 

Tolosa  i)régan(lo  aos  hereges  Albigenses.  lie  de  huma  seda  síngella  como 
tafetá :  e  mostra  na  parte,  que  cae  sobre  o  peito,  sinais  bem  vistos,  e 
matizes  santos  das  lagrimas,  que  derramava  n"aquelle  celestial  ministério. 
Foi  dadiva  das  Freiras  do  insigne  Mosteiro  do  Prolliano,  feita  ao  Padre 
Mestre  Frei  António  de  Sousa,  quando  as  visitou  como  Vigário  geral 
que  era  de  toda  a  Ordem,  vindo  de  Roma  pêra  Portugal,  e  elle  de  sua 
mão  a  i»oz  nesta  casa,  porque  pêra  ella  a  pedio. 

Em  hum  engaste  de  prata  está  a  cabeça  do  Protomartyr  Santo  Este- 
vão, que  a  Rainha  dona  Caterina  deu  a  esta  Sacristia  com  a  de  outro 
Tílartyr. 

Outra  semelhante  guarnição  sobre  huma  cabeça  das  onze  mil  Virgens, 
e  hum  pedaço  de  huma  costa  de  Santa  Caterina  de  Sena,  e  outro  osso 
grande  da  Reata  Margarida,  que,  sendo  nacída  em  Lisboa,  quiz  ir  viver, 
e  morrer  á  vista  da  sepultura  do  nosso  glorioso  Patriarca  em  Bolonha, 
com  o  habito,  e  profissão  de  Freira  terceira,  cuja  vida,  se  Deos  no  la 
der,  não  ficará  fora  d'esles  escritos,  quando  chegarmos  aos  annos.  em  que 
íloreceo. 

A  casa  da  Sacristia,  em  que  estas  Reliquias  estão,  be  bem  digna  Cus- 
todia d*ellas,  porque,  sem  grande  encarecimento,  he  amaisfermosa  qua- 
dra em  capacidade,  e  proporção,  que  ha  era  todo  o  Reino,  inda  que  me- 
tamos em  conta  Conventos  Rcíilengos. 

Mas,  porque  nos  não  fique  nada  por  dizer  do  (pio  ha  digno  de  histo- 
ria neste  Convento,  passaremos  a  algumas  antiguidades,  que  n'elle  acha- 
mos. 

Na  Igreja,  entre  os  arcos  da  capella  do  Santo  André,  que  hc  no  Cru- 
zeiro, e  da  que  dá  servintia  pêra  a  Sacristia,  parece  no  alto  imm  pequeno 
tumulo  de  pedra  sumido  na  parede,  que  corre  a  prumo  com  ella :  e  na 
face  de  fora,  que  só  descobre,  tem  huma  letra,  que  declara  jazer  n'elle 
o  Infante  dom  Afonso,  filho  dei  Rei  dom  Afonso,  o  terceiro,  fundador 
que  foi  da  mesma  Igreja.  Este  Príncipe  jouve  até  nossos  tempos,  no 
baixo  do  cruzeiro,  em  huma  caixa  de  mármore  branco,  entalhada  em 
roda  de  arvoredos,  e  apparatos  de  montaria,  a  qual,  por  ser  demasia- 
damente grande,  e  parecer,  que  em  tal  lugar  dava  pejo,  foi  desfeita :  e 
o  corpo  também  desfeito  pêra  ser  agasalhado  em  lugar  mais  estreito,  e 
no  sitio,  em  que  hora  está.  Quando  foi  descuberto,  fez  espanto  por  gran- 
deza de  estatura,  e  grossura  de  carnes,  de  que  ainda  estava  acompa- 
nhado inteiramente,  salvo  nas  pernas,  e  cabeça.  Mas  não  espantou  menos 


PARTICULAR  DO  RIÍINO  DE  POUTLT.AL  417 

O  liabito,  em  que  foi  achado :  estava  envolto  em  hum  pano  de  seda  ama- 
relia,  e  cingido  com  huma  corda  de  linho:  corda,  e  pano  tão  novo,  e 
são,  como  posto  d'aqnella  hora,  em  cabo  de  mais  de  duzentos  e  sincoon- 
ta  annos.  O  cingidouro  pareceo,  que  devia  ser  contrição,  e  humildade  do 
defunto,  ou  devação  do  Padre  S.  Francisco.  ííc  de  saber  que  este  Infanto 
foi  da  Rainha  dona  Breitiz,  e  não  da  Condessa  de  Bolonha,  como  d"aates 
publicava  a  fama  popular  (*). 

Nas  costas  da  capella  de  Jesu,  na  parede,  que  responde  ás  crastas, 
está  sepultado  em  hum  moimento  de  pedra  alto,  e  sumido  dentro  nella 
hum  dom  Pedro  Peres,  Cónego  de  duas  Cathedraes,  cousa  que  na  sin- 
geleza dos  tempos  antigos  não  fazia  dissonância,  sendo  tão  claramente 
incompatível.  Faleceo  poucos  annos  despois  de  fundada  a  Igreja.  Huma 
cousa,  e  outra  consta  de  hum  pequeno  letreiro,  que  sobre  a  sepultura 
parece  á  face  da  parede  em  letras  Góticas,  e  diz  assi. 

Hic  iacel  ãonus  Pctrus  Petri  Cunonicus  Compostellnncc  et  Ulixhonensis^ 
Ecclesioi,  qui  iti  scncclute  bona  plenus  dierum,  diuitijs  et  sapientíd  mor- 
tuus  est  in  kahitn  Prcedicatorum.  Obijt  aulem  in  vigília  Beali  Laurcntij 
sub  .Era  MCCCIIIL 

Em  vulgar  responde. 

Aqui  jaz  dom  Pedro  Peres,  Cónego  das  Igrejas  de  Compostella,  (que 
hc  Santiago),  e  Lisboa,  que  em  boa  veihice  cheio  de  dias,  riquezas,  e 
saber,  faleceo  no  habito  dos  pregadores :  e  acabou  vespara  de  S.  Lou- 
renço na  era  de  Cezar  de  mil  trezentos  e  quatro,  (que  responde  aos  annos 
de  Ckristo  1266.) 

Coslumavão  n'aquelle  tempo  da  primitiva  Ordem  alguns  Ecclesiasii- 
cos  nobres,  e  também  seculares,  se  no  estado  se  achavão  desobrigados, 
quando  nas  enfermidades  erão  desenganados  poios  médicos,  que  não  ha- 
via que  esperar  da  vida,  ou  quando  o  numero  crecido  dos  aimos  dava 
aviso,  que  não  podia  ser  de  muita  dura,  acolher-se,  como  dizem,  á  Igreja; 
Pedião  licença  aos  Prelados,  huns  pêra  tomarem  o  habito,  e  professarem 
logo :  outros  pêra  ficarem  com  nosco,  e  fazerem  profissão  a  sen  tempo: 
e  todos  com  tenção  de  ganharem  as  indulgências,  que  os  Frades  goza- 
mos no  artigo  da  morte,  e  participarem  despois  d'clla  dos  muitos  suíTra^ 

(•)  Fcriifio  Lo|teí  ii;i  Croii.  tiol  Rei  (I'jm  Dinis. 


448  LIVRO  III    DA    íi:STOniA    DE  S.  DOMINGOS 

gios,  que  se  fazem  por  todos,  em  toda  a  Ordem  com  cuidado,  e  conti- 
nuação. E  assi  acontcceo  a  este  Padre,  que,  pouco  antes  de  falecer,  se 
recolheo  com  nosco,  e  tomou  o  liabito.  Santo,  e  salutifero  pensamento 
de  parte  dos  que  tal  remate  procurão  a  seus  dias,  mostrando-se  rfisso 
católicos,  e  conhecidos  da  vida  futura  f  mas  grande,  e  aventajada  beni- 
gnidade, e  misericórdia  a  da  Religião  em  aceitar,  e  adraittir  enli'e  si 
aquelles  que  tendo  dado  o  asso  das  forças,  e  meliior  idade  ao  mundo, 
não  trazemos  aos  claustros  mais  que  o  ferro,  e  ultimo  ferro  da  vida  pêra 
darmos  pejo,  mais  que  proveito.  Porque  sendo  assi  que  os,  que  cavarão 
na  vinha  do  pai  de  familias  do  Evangelho,  não  forão  arguidos  de  mao 
serviço  poios  emulos,  se  não  só  de  acudirem  tarde :  por  onde  se  vc,  que 
todavia  estirarão  os  braços,  e  apertarão  a  enxada,  e  suarão :  não  ha  du- 
vida, que  a  obra  d'este  bom  velho  teve  muito  de  mercantil,  e  uzuraria : 
pois  morrendo  cheio  de  riquezas,  e  de  aanos,  (como  diz  o  epitáfio),  nem 
dia  exprimentou  de  pobre,  que  he  o  essencial  da  religião  :  nem  hora  do 
trabalho :  nem  parece,  que  veo  mais  que  a  lograr  o  suave  do  habito,  e 
não  sintir  o  agro.  Que  na  verdade  os  partidos,  que  não  são  iguais,  e 
como  dizem  de  dar,  e  tomar,  tirania  são,  e  não  partidos.  Sirva  isto  pêra 
vermos,  e  entendermos  o  muito,  que  devemos  estimar  as  Religiões,  que 
se  se  deixão  vencer  de  nossas  desigualdades,  he  a  causa,  porque  são  vi- 
nha de  Deos,  e  os,  que  as  governão,  seguem  sua  condição,  e  bondade 
não  se  buscando  a  si,  se  não  o  bem  dos  próximos,  e  a  maior  gloria  do 
mesmo  Deos,  como  verdadeiros  servos  seus. 

Mas  tornando  ao  nosso  Cónego,  consta-nos  todavia  que,  ainda  que 
tarde,  soube  dispor,  e  assentar  bem  suas  cousas.  Porque  deixou  muita 
fazenda  de  raiz  á  Sé  de  Lisboa,  onde  a  ganhara.  E,  porque  a  Ordem  não 
possuia  próprios,  e  pola  mesma  rezão  não  aceitava  obrigação  de  Missas 
nem  suíTragios  perpetua,  poz  clausula  nos  bens,  que  deixou  á  Sé,  que 
todos  os  annos  lhe  mandasse  o  Cabido  cantar  hum  anniversario  n'este 
Convento.  E  a  hum  criado  deixou  duas  moradas  de  casas,  huma  ao  poço 
de  Borratem,  outra  pouco  adiante,  onde  chamão  a  Porta  Nova,  com  en- 
cargo de  dar  todos  os  annos  na  vespara  de  S.  Lourenço,  que  foi  o  dia 
em  que  faleceo,  huma  pitança  aos  Frades.  Esta  devação,  que  os  homens 
do  bom  tempo  tomavão  tão  em  grosso,  que  se  não  contentavão  com  me- 
nos que  professar  nas  Religiões,  que  todavia  era  obra  de  grande  mere- 
cimento, inda  que  fosse  por  huma  só  hora,  vierão  a  trocar  os  que  suce- 
derão em  se  contentarem  de  levar  á  cova  vestido  o  habito  da  Religião,  a 


PARTICULAU  BO  REINO  DE  PORTUGAL  4Í9 

que  mais  se  inclinão.  O  que,  alem  de  ser  também  indicio  de  animo  chris- 
tão,  e  pio,  grangea  a  quem  o  faz  muitas  graças,  e  indulgências  concedi- 
das poios  Summos  Pontifices,  por  ser  trajo  de  gente  dedicada  a  Dcos, 
e  simbolo  de  virtude. 

Esta  prevenção  da  ultima  hora,  que  tão  digna  he  de  nos  trazer  des- 
velados, fazião  também  no  mesmo  tempo  alguns  Sacerdotes,  regulares 
pessoas  de  authoridade :  mas  por  outro  modo,  e  não  tanto  ao  tardo. 
Despois  que  tinlião  bem  servido  a  Ordem,  e  trabalhado  cada  hum  em 
sua  vocação,  procura  vão  recolher-se  em  algum  Convento,  onde  a  obser- 
vância andasse  mais  em  seu  ponto,  e  esperar  entre  santos,  fim  santo. 
Assi  o  vimos  no  titulo  do  Convento  de  Santarém  em  alguns  Padres,  que 
a  elle  vierão  no  ultimo  quartel  da  idade  (*).  E  achamos  posto  em  lembran- 
ça por  Jeronymo  Blancas,  Cronista  Aragonês,  referido  polo  Mestre  Frei 
Francisco  Diago  (**):  que  Frei  Garcia  de  Vulcos,  de  nação  Biscainho,  e  filho 
do  Convento  de  S.  Domingos  de  Çaragoça,  Mestre  em  Theologia,  e  mui 
douto  em  ambos  os  direitos  Canónico,  e  Civil,  despois  que  sérvio  o  car- 
go de  Provincial  de  toda  Espanha,  antes  da  separação  das  Províncias 
como  por  obrigação  correra,  e  visitara  as  casas  todas :  de  tal  maneira  se 
contentou  da  paz,  e  sossego,  que  achou  Giesta  de  Lisboa,  e  da  pureza  de 
espirito,  que  enxergou  em  todos  os  moradores  d'ella,  que  se  determinou 
acabar  aqui  seus  dias.  E  assi  diz  este  Autor,  que  o  fez :  e  affirma,  que 
sobio  a  tão  alto  gráo  de  santidade,  que  floreceo  em  vida,  e  morte  com 
muitos  milagres :  dos  quais  postos  em  pintura  estava  seu  sepulcro  ro- 
deado. Nas  memorias  do  Convento  não  parece  nenhuma,  que  nos  dè  luz 
de  tal  cousa :  mas  dizer  que  estavão  os  milagres  pintados  polas  paredes 
conforma  com  o  que  era  costume  d'aquella  idade  em  Portugal,  como 
apontamos  nas  vidas  dos  Frades  de  Santarém :  e  o  faltar-nos  cá  noticia 
de  hum  Religioso  Estrangeiro,  não  deve  tirar  fé  ao  historiador  antigo, 
quando  a  cada  passo  vamos  tropessando  em  descuidos  contra  os  nossos 
naturais. 

(.)  L.  2.  c.  38.        (••)  Ka  hist.  da  Ord.  da  Prov.  de  Arag;to  1.  12.  c.  37  e  72. 


FIM  DO   PRIMEIRO  VOLUME. 


VOL.  I.  29 


TABOADA 


DOS  capítulos  dos  três  primeiros  livros  d  esta 

PRIMEIRA  PARTE  DA  HISTORIA  DE  S.   DOiMlNGOS  PARTICULAR  DO  REINO 
E  CONQUISTAS  DE  PORTUGAL 


LIVRO  I 

Pag. 

Capitulo  i.  Do  nascimento  do  Patriarca  S.  Domingos,  sua  criação, 
estudo,  e  virtudes,  até  tomar  o  habito  dos  Cónegos  Regulares 
de  Santo  Agostinho 1 

Cap.  II.  Parte  Frei  Domingos  pêra  França,  passa  a  Paris,  e  a  Roma : 
torna  de  assento  a  Tolosa  pregar  aos  hereges :  funda  hum  reco- 
lhimento de  donzellas :  vence  muitos  hereges  em  disputas :  con- 
verte outros.  Aparece-lhe  a  Virgem  Nossa  Senhora :  insina-lhe  a 
devação  do  santo  Rosário,  e  manda-lhe  que  a  pregue,  pag.  .     .      8 

Cap.  III.  Começa-se  a  guerra  contra  os  hereges  Albigenses.  Dá  S, 
Domingos  principio  "ao  Santo  Oílicio  da  Inquisição :  confirma-o  o 
Summo  Pontífice,  e  dá-llie  titulo  de  Pregadores  a  elle,  e  a  seus 
companheiros 14 

Cap.  IV.  Censura-se  hum  lugar  de  outro  Rehgioso  da  mesma  Or- 
dem, e  opinião 20 

Cap.  v.  Passa  o  campo  Catholico  contra  outros  lugares.  Contão-se 
algumas  maravilhas,  que  Deos  obrou  polo  Santo.  Cercão  os  Ca- 
Iholicos  a  cidade  de  Tolosa :  retirarão-se  com  perda,  c  desfaz-se 
o  campo 26 

Cap.  VI.  Anima  o  Santo  aos  Gatholicos  com  huma  alegre  profecia  de 
fim  da  guerra.  Gontão-se  algumas  maravilhas  obradas  por  meio 
do  santo  Rosário :  e  a  grande  victoria,  que  se  alcançou  dos  here- 
ges     2í) 

Cap.  VII.  Dá  S.  Domingos  principio  á  sagrada  Ordem  dos  Pregado- 
res. Pede  corfirmação  ao  Pontífice:  alcança-a  verbal,  e  condicio- 
nal. Funda  em  Tolosa  o  primeiro  Convento.  Faz  renunciação  de 
rendas,  e  fazenda.  Torna  a  Roma  em  demanda  da  confirmação : 

contão-se  humas  visões,  que  alii  teve 31 

« 


452  TABOADA 

Pag- 

Cap.  viu.  Alcança  S.  Domingos  em  Roma  letras  Apostólicas  de  con- 
firniaçlío  de  sua  Ordem,  com  titulo  de  Ordem  dos  Pregadores. 
Torna  a  França,  faz  eleição  de  Prelado  entre  os  seus,  e  mando-os 
a  pregar  por  varias  partes 38 

Cap.  IX.  Entra  Frei  Gomes  em  Portugal.  Dá-se  conta  de  quem  era 
em  nome,  pátria,  e  calidades 41 

Cap.  X.  Confirma-se  a  verdade  de  Frei  Sueiro  Gomes  ser  Portu- 
guez :  com  algumas  rezões,  com  as  quaes  se  descobre,  que  tam- 
bém era  nobre,  e  letrado 46 

Cap.  XI.  Dá-se  conta  do  estado,  e  governo  do  Reino  de  Portugal  na 
chegada  de  dom  Frei  Sueiro  Gomes:  e  do  que  fez  entrando,  e 
como  deu  principio  ao  primeiro  convento,  que  houve  em  toda  Es- 
panha da  Ordem  dos  Pregadores 40 

Cap.  XII.  Descreve-se  o  sitio  do  primeiro  Convento,  que  a  Ordem  de 
S.  Domingos  teve  em  Portugal,  e  a  fabrica  d^elle 54 

Cap.  xni.  Das  grandes  maravilhas,  que  Deos  IVosso  Senhor  obrou 
em  Roma  por  S.  Domingos.  Conta-se  a  nova  forma  de  habito,  que 
o  Santo  deu  aos  seus  Frades,  e  a  rezão  d'ella,  e  como  poz  em 
clausura  as  Freiras  de  Roma.  Ordena  lição  de  Theologia  no  sa- 
cro Palácio,  e  he  o  primeiro  leitor  d'ella.  Prega  a  devação  do 
santo  Rosário 59 

Cap.  xiv.  Mostra-se  como  S.  Domingos  foi  o  primeiro,  que  insinou 
a  rezar  por  contas  os  mistérios  de  Nossa  Redemção,  que  he  a  de- 
vação do  santo  Rosário,  contra  os  que  a  querem  fazer  mais  anti- 
ga: conta-se  como  resuscitou  ao  sobrinho  do  Cardeal  Estefano 
era  Roma 04 

Cap.  XV.  Contão-se  outros  milagres.  Parte  o  Santo  pêra  Espanha. 
Escreve-se  o  que  lhe  succedeo  no  caminho.  Funda  em  Segóvia 
Convento  de  Frades,  em  Madrid  de  Freiras.  Torna  pêra  Raiia     .     71 

Cap.  XVI.  Parte  o  Santo  de  Madrid  pêra  Itália:  e  dom  Fiei  Sueiro 
pêra  Portugal.  Pedem  os  Prelados  de  Portugal  a  dom  Frei  Suei- 
ro pregadores  pêra  seus  Rispados.  A  Infante  dona  Rranca  offere- 
ce  fundar  casa  em  Coimbra 77 

Cap.  XVII.  Parte  dom  Frei  Sueiro  pêra  o  primeiro  Capitulo  Geral  de 
sua  Ordem  a  Itália.  Conta-se  o  que  succedeo  a  S.  Domingos  des- 
pois  que  sahio  de  Madrid  até  á  celebração  d'elle:  e  o  que  ficou 
ordenado  n'aquella  santa  junta 82 

Cap.  xvih.  Celebra  Nosso  Padre  S.  Domingos  segundo  Capitulo  Ge- 
ral em  Bolonha.  Acode  a  elle  dom  Frei  Sueiro,  e  torna  pêra  Es- 
panha com  nome  de  Provincial,  e  com  letras  Âpostohcas  em  seu 
favor,  e  dos  seus 89 

Cap.  XIX.  Prosegue  o  Provincial  dom  Frei  Sueiro  Gomes  a  visita  de 
sua  Provincia  nos  Reinos  de  Gastella,  e  Portugal.  Conta-se  o  fe- 


DOS  capítulos  d'este  volume  4o3 

Pag. 

lice  transito  de  Nosso  p^lorioso  Patriarcca  S.  Domingos :  e  a  elei- 
ção, que  se  fez  em  seu  lugar  de  Mestre  Geral  da  Ordem  ...    9o 

Cap.  XX.  Vem  a  Portugal  o  Provincial  dom  Frei  Sueiro,  treslada  o 
Convento  de  Montejunto  pêra  Santarém  ao  sitio  de  Monlijrás     .  100 

Cap.  XXI.  Vai  o  Provincial  a  Coimbra  chamado  dei  Rei  dom  Sancho 
Segundo.  Concordão  com  o  Arcebispo  de  Braga,  sendo  por  am- 
bos eleito  juiz  das  contendas,  que  trazião 104 

Cap.  xxu.  Assiste  o  Provincial  a  huma  escritura  de  composição  en- 
tre el  Rei  dom  Sancho  Segundo,  e  as  Infantes  suas  tias.  Averi- 
guão-se  os  annos,  que  reinarão  dom  Afonso  Segundo,  e  dom  San- 
cho seu  filho 108 

Cap.  xxni.  Como  foi  fundado  o  primeiro  Mosteiro  de  Freiras,  que 
houve  em  Portugal  da  Ordem  dos  Pregadores 114 

Cap.  xxiv.  Censura-se  huma  letra  esculpida  de  fresco  em  huma  pe- 
dra do  Mosteiro  de  Chellas:  descobre-se  o  artificio,  e  tenção 
d^ella 121 

Cap.  XXV.  Confirma-se  a  matéria  do  Capitulo  antecedente  com  hum 
Breve  Apostólico,  e  com  outros  documentos 123 

Cap.  XXVI.  De  algumas  particularidades  notáveis  do  mosteiro  de 
Chellas 129 

Cap.  xxvii.  Da  madre  Sór  Filippa  do  Espirito  Santo 133 

Cap.  XXVIII.  Do  grande  augmento,  e  prosperidade  da  Província  de 
Espanha  no  tempo,  que  foi  governada  por  dom  Frei  Sueiro.  Dá- 
se  conta  de  seu  grande  espirito,  e  virtudes,,  e  dos  annos  que  vi- 

veo 141 

LIVRO  II 

Cap.  1.  Do  sitio  da  villa  de  Santarém:  e  do  que  nella  se  deo  de 
novo  ao  Convento  de  S.  Domingos   de  Monlijrás 147 

Cap.  II.  Começa-se  a  obra  da  casa  nova  no  primeiro  sitio,  que  se 
comprou :  suspcnde-se  por  hum  estranho  caso,  e  funda-se  a  casa 
em  outro.  Dá-se  conta  de  quem  foi  o  que  deu  a  traça  da  Igreja, 
e  crasta lo2 

Cap.  ni.  Prosegue  a  relação  do  edifício  da  casa  nova  de  Santarém 
Contão-se  algumas  antiguidades  tocantes  a  ella.  Mostra-se  como 
lhe  pertence  a  precedência  de  todos  os  Conventos  de  Espanha  .  lo6 

Cap.  IV.  Mostra-se  como  pertence  a  este  Convento  a  precedência 
de  todos  os  de  Espanha 139 

Cap.  V.  Da  grande  santidade  que  florecia  no  Convento  de  Santa- 
rém: com  huma  notável  memoria  da  pobreza,  em  que  n"elle  se 
vivia.  Dá-se  conta  de  quem  erão  dous  Religiosos,  que  seguirão  a 
el  Rei  dom  Sancho  fora  do  Reino 163 


454  TABOADA 

Pag. 

Cap.  VI.  Da  santa  vida,  e  morte  do  Padre  Frei  Fernando  Pirez, 
Cliantre  que  foi  da  santa  Se  de  Lisboa ICG 

Cap.  VII.  Da  religiosa  vida,  e  santa  morte  de  Frei  Martinlio  de  Lis- 
boa: e  do  irmão  Frei  Martinlio  leigo IGO 

Cap.  VIII.  Do  Padre  Frei  Pedro  de  Santarém,  e  do  irmão  leigo  Frei 
Martinho  segundo 171 

Cap.  IX.  Do  santo  fim  de  Frei  Domingos,  e  Frei  Gonsalo  irmãos  lei- 
gos     173 

Cap.  X.  Do  Padre  Frei  Domingos  Gomes  Prior  do  Convento  de  San- 
tarém      176 

Cap.  XI.  Do  Padre  Frei  Fernando  de  Jesu,  de  suas  doenças,  e  pa- 
ciência: de  sua  santa  morte,  e  aparecimento  despois  d'ella   .     .  170 

Cap.  XII.  De  quem  foi  o  Padre  Frei  Domingos  do  Cubo,  e  de  sua 
vida,  e  morte,  e  sepultura 181 

Cap.  XIII.  Do  nacimenlo,  geração,  estudos,  e  peregrinação  do  san- 
Frei  Gil,  até  o  dia  de  sua  conversão 18o 

Cap.  XIV.  Da  milagrosa  conversão  do  santo  Frei  Gil,  e  como  tomou 
o  habito  de  S.  Domingos,  e  fez  profissão 189 

Cap.  XV.  Sae  Frei  Gil  de  Palencia,  mudado  pêra  Santarém.  Conti- 
nua suas  penitencias.  Contão-se  as  perseguições,  e  assombramen- 
tos, que  padeceo  do  Demónio,  até  alcançar  o  escrito  que  lhe  ti- 
nha dado 192 

Cap.  XVI.  Parte  Frei  Gil  pêra  França  a  estudar  Theologia.  Conta-se 
a  santa  vida,  que  fazia  em  Paris  estudando,  e  como  recebeo  o 
grão  de  Doutor  pola  Universidade,  e  foi  declarado  pola  Ordem 
por  Mestre,  e  leitor  de  Theologia 196 

Cap.  XVII.  Torna  Frei  Gil  pêra  Espanha.  Conta-se  o  que  lhe  succe- 
deo  no  caminho :  e  como  começou  a  pregar  em  Portugal.  Refere- 
se  bum  estranho  artificio,  com  que  o  Demónio  o  tentou,  e  como 
se  houve  n"elle 200 

Cap.  XVIII.  Como  foi  eleito  em  Provincial  o  Santo  Frei  Gil,  e  do 
cuidado,  e  inteireza,  com  que  procedeo  no  cargo.  Passa  á  ilha  de 
Malhorca  celebrar  Capitulo  Provincial.  Dá-se  conta  da  tempesta- 
de, que  teve  no  mar,  e  das  afrontas  que  por  rezão  d'ella  lhe  fi- 
zerão :  e  como  cessou  por  sua  oração 204 

Cap.  XIX.  Do  estranho  meio  com  que  S.  Frei  Gil  foi  sabedor  do 
naufrágio  de  huns  Capitulares  que  hião  em  outro  navio.  Despa- 
cha Religiosos  pêra  Inquisidores  de  algumas  cidades  de  Catalu- 
nha. Celebra  Capitulo  em  Burgos.  Aceita-se  n'elle  o  Convento  da 
cidade  do  Porto.  Vem  a  Portugal.  Prega  com  liberdade  a  el  Rei 
dom  Sancho.  Recolhe-se  a  Santarém 209 

Cap.  XX.  Dos  grandes  effeitos  que  fazia  no  Santo  a  força  do  amor 
Divino,  com  diversidade  de  enlevamentos,  c  raptos  maravilhosos. 


DOS  capítulos  d'este  volume  45S 

Contâo-sc  alguns.  Dá  principio  ao  Convento  de  Lisboa  ....  213 

Gap.  xxr.  Como  foi  decretada  a  deposição  dei  Rei  dom  Sancho  do  Reino: 
e  como  lh'a  intimou  era  sua  pessoa  o  Santo  Frei  Gil.  Contão-se 
as  afrontas,  que  por  isso  recebeo:  e  a  revelação  que  teve  no  meio 
d'ellas:  e  huma  antiguidade,  em  que  se  mostra  quanto  era  esti- 
mado dei  Rei  dom  Afonso 2IG 

Cap.  XXII.  De  alguns  effeitos  admiráveis  da  oração  de  S.  Frei  Gil, 
em  que  se  vio  por  casos  differentes  o  muito,  que  por  ella  alcan- 
çava de  Deos 220 

Cap.  XXIII.  Vem  a  Santarém  o  novo  Provincial.  Acha-se  presente  a 
huma  extasi  do  Santo.  Dá  el  Rei  dom  Afonso  principio  á  Igreja 
de  S.  Domingos  de  Lisboa.  Refere-se  a  familiaridade,  com  que 
tratava  a  S.  Frei  Gil  em  Santarém:  e  como  convaleceo  da  gota  por 
seu  meio.  Torna  o  Santo  a  servir  o  cargo  de  Provincial    .     ...  223 

Gap.  xxiv.  Manda  o  Santo  Provincial  pregadores  a  terra  de  Mouros. 
Gonta-se  hum  estranho  caso  que  lhe  succedeo  caminhando  por 
Gastella :  e  outros  em  Portugal,  todos  em  matéria  do  espírito. 
Pede  absolvição  do  cargo  em  Capitulo  Geral:  alcança-a.  Conta-se 
huma  penitencia,  que  n'elle  se  deu  a  huns  Frades 228 

Cap.  xxv.  De  algumas  visoens  sobrenaturaes,  que  o  Santo  teve :  e 
milagres  que  por  seu  meio,  e  oração  obrou  o  Senhor  ....  232 

Cap.  XXVI.  De  algumas  cousas  milagrosas,  que  o  Santo  fez  por  sua 
mão 23G 

Cap.  xxvii.  De  outros  casos  milagrosos  obrados  por  intercessão  do 
Santo  ausente:  mas  ainda  vivendo  na  terra 239 

Cap.  xxvin.  Do  grande  nome,  que  o  Santo  tinha  em  toda  a  Ordem, 
e  por  terras  estranhas:  e  de  seu  felice  transito 242 

Cap.  XXIX.  Dos  sinais  que  houve  da  gloria  do  Santo,  por  diversidade 
de  successos,  que  a  confirmarão 24o 

Cap.  XXX.  Como  resuscitarão  por  orações  feitas  ao  Santo  três  mor- 
tos: e  forão  livres  do  Demónio  quatro  pessoas 249 

Cap.  XXXI.  Como  se  converteo  hum  Mouro,  e  forão  curadas  al- 
gumas pessoas  de  grandes  males  por  meio  de  Relíquias  do 
Santo 254 

Cap.  XXXII.  De  muitas,  e  varias  doenças,  que  tiverão  milagrosa  cura 
encomendando-se  os  enfermos  ao  Santo,  ou  usando  de  suas  Re- 
líquias     257 

Cap.  'xxxiii.  De  algumas  molheres  que  alcançarão  remédio  em  partos 
dificultosos,  encommendaiido-se  ao  Santo:  e  como  forão  curados 
surdos,  e  mudos  com  a  terra  de  sua  cova 261 

Cap.  XXXIV.  Como  foi  tresladado  o  Santo  pêra  a  sua  capella    .     .  264 

Cap.  XXXV.  Como  por  intercessão  do  Santo  alcançarão  huns  pobres 
bomen*  remédio  pêra  vinho  danado,  o  perdido :  c  outros  o  te- 


456  TABOADA 

Pag. 

verão  em  graves  doenças,  e  varias  necessidades 266 

Cap.  xxxvi.  Da  santa  vida,  e  glorioso  transito  do  Padre  Frei  Ber- 
nardo de  Morlans:  e  de  dous  mininos  Santos  seus  discipulos  .     .  270 

Cap.  xxxvii.  Como  forão  achados  os  corpos  dos  Santos  Frei  Ber- 
nardo, e  seus  discipulos,  e  coUocados  em  altar  particular   .     .  27o 

Cap.  xxxvhi.  Do  Santo  Frei  Bernardo  segundo,  sua  conversão,  vida, 
e  milagres,  e  sepultura 280 

Cap.  xxxix.  De  alguns  Religiosos,  que  despois  de  servirem  grandes 
cargos  na  Ordem  se  recolherão  n'este  Convento.  E  outras  anti- 
gualtias  d'elle 283 

Cap.  xl.  Das  grandes  maravilhas  que  em  vários  tempos  se  virão  no 
cemitério,  era  confirmação  da  santidade  do  Convento.  Das  pessoas 
Reais  que  n'elle  jazem.  Dos  Religiosos,  que  os  Reis  lhe  tirarão 
pera.differentes  cargos 288 

Cap.  xli.  Da  devação,  e  virtudes  do  Padre  Frei  Manoel  de  Beja,  e 
do  irmão  Frei  Diogo  das  Vinhas.  E  da  jornada  que  fez  á  índia 
o  Padre  Frei  Pedro  Coelho 293 

Cap.  xlh.  Vida,  e  morte  do  irmão  Frei  Diogo  de  Saldanha,  filho 
doeste  Convento 296 

Cap.  xlhi.  Das  santas  Relíquias  que  ha  n'este  Convento   ....  299 

LIVRO  III 

Capitulo  i.  Da  fundanção,  e  princípios  do  Convento  de  Coimbra   .  305 

Cap.  u.  Vida,  e  morte,  e  milagres  do  Santo  Frei  Paio    ....  309 

Cap.  ni.  Prosoguem  outros  milagres  do  S.  Frei  Paio :  com  estra- 
nheza do  sino  fundido  com  a  terra  da  sua  cova 313 

Cap.  IV.  De  algumas  antiguidades  d'este  Convento,  e  como  foi  mu- 
dado pêra  o  sitio,  em  que  hoje  está 316 

Cap.  V.  Do  processo  do  edificio  do  Convento  novo :  e  da  grande 
virtude,  e  partes  do  Mestre  Frei  Martinho  de  Ledesma    .     .     .  320 

Cap.  VI.  Vida,  e  morte  de  dom  Frei  Vicente  da  Fonseca  Arcebispo 
de  Goa,  Primas  da  índia 323 

Cap.  VII.  Do  Padre  Frei  Thomas  Pinto,  Inquisidor 325 

Cap.  VIII.  Do  grande  cuidado,  e  solemnidade  com  que  na  cidade, 
e  Convento  de  S.  Domingos  de  Coimbra,  se  celebrão  as  festas 
do  Santo  Rosário.  Referem-se  dous  milagres  succedidos  de  pró- 
ximo por  intercessão  da  Virgem 330 

Cap.  IX.  Da  origem,  e  principio  do  Convento  da  cidade  do  Porto: 
e  das  causas  que  houve  pêra  se  aceitar  pola  Província     .    .    .  333 

Cap.  X.  Dos  Religiosos  que  forão  mandados  fundar  o  Convento  do 
Porto.  Dá-se  conta  dos  muitos  favores,  que  oPispo  lhes  fazia.  E 
como  despois  mudou  parecer,  e  das  rezões  que  pêra  isso  teve  .  337 


DOS  capítulos  d'este  volume  437 

Pag. 

Cap.  XI.  Biiscão-se  intercessores  poderosos  por  parte  do  Convento : 
não  valendo  nada,  queixão-se  os  Frades  a  Roma.  Comete  o  Sum- 
mo  Pontífice  ao  Arcebispo  Primas  qne  os  desagrave    ....  34i 

Cap.  XII.  Levantão-se  as  censuras,  e  prosegue  a  obra  do  Convento. 
Passa  el  Rei  dom  Sancho  aos  Frades  caria  de  Padroeiro.  Mitiga- 
se  o  Bispo,  e  faz  composição  com  elles 345 

Cap.  XIII.  Faz  a  Rainha  dona  Mafalda  doação  do  Padroado  de  huma 
Igreja  á  Sè  do  Porto,  pêra  de  todo  pacificar  o  Bispo,  e  Cabido 
com  os  Frades.  Procede  o  Bispo  com  elles  em  amizade.  Faz-lhes 
esmola  de  duas  fontes  pêra  o  Convento 348 

Cap.  XIV.  Da  Confraria  do  Santíssimo  nome  de  Jesu  sita  n'este  Con- 
vento :  de  sua  antiguidade,  e  milagres 3o2 

Cap.  XV.  De  outros  milagres  do  Santo  Crucifixo 35o 

Cap.  XVI.  De  alguns  filhos  d"este  Convento:  e  das  Refiquias  que 
n'elle  ha  :  e  outras  particularidades 357 

Cap.  xvu.  Da  fundação  do  Real  Convento  de  Lisboa 3(30 

Cap.  xvui.  Funda  el  Rei  dom  Afonso  Terceiro  a  Igreja  grande  do 
Convento:  faz-lhe  doação  de  muitos  chãos,  e  terras  á  roda.  Con- 
tão-se  alguns  trabalhos  que  houve  na  casa  por  cheias,  e  tremo- 
res de  terra 3G4 

Cap.  XIX.  Da  antiguidade,  e  devação  da  Ermida  de  N.  Senhora  da 
Purificação,  que  conmiummente  se  chama  da  Escada  ....  309 

Cap.  XX.  Da  vida,  e  m.orte  do  Padre  Frei  Fernando  do  Cadaval  Ca- 
pellão  de  Nossa  Senhora  da  Escada     .     .- 374 

Cap.  XXI.  Do  Padre  Frei  Mattheas  de  Ogeda  Capellão  de  Nossa  Se- 
nhora da  Escada 377 

Cap.  XXII.  Do  principio,  e  origem  que  tiverão  na  Ordem  de  S.  Do- 
mingos os  altares,  e  Confrarias  do  Santíssimo  nome  de  Jesu.     .  380 

Cap.  xxni.  Da  occasião,  e  tempo  em  que  foi  insUtuida  a  primeira 
Confraria  do  nome  de  Jesu  no  Convento  de  S.  Domingos  de 
Lisboa 383 

Cai'.  XXIV.  Ordena-se  solemnc  festa  no  altar  de  Jesu  por  graças 
da  saúde,  fazem-se  compromisso,  e  estatutos  da  Confi-aria    .  ^  .  387 

Cai».  XXV.  Da  Confraria  de  Nossa  Senhora  do  Rosário 390 

Cap.  XXVI.   Proseguem  mais  alguns  milagres  do  Santo  Rosário.     .  395 

Cap.  xxvu.  De  outras  Confrarias  que  ha  n"esta  igreja,  e  de  sua  an- 
tiguidade, e  devação 399 

Cap.  xxviii.  Prosegue  a  relação  das  Confrarias,  e  outras  irmandades 
que  ha  na  Igreja 40á 

Cap.  oix.  Do  alguns  Religiosos  filhos  d"esta  casa  que  falecerão  com 
opinião  de  santidade , 405 

Cap.  XXX.  Da  gloriosa  morte  do  Pi; ire  Frei  Dinis  do  Mello,  e  do 

Padre  Fi^i  Aífonso  de  S.  .Maiheus 407 

voL.  I.  30 


4G8  TABOADA 

Pag. 

Cap.  XXXI.  Da  vida,  e  marlyrio  glorioso  do  Padre  Frei  Jerónimo  da 
Cruz 410 

Cap.  xx?ai.  Vida,  e  trabalhos  do  Padre  Frei  Lopo  Cardoso  .     .     .  413 

Cap.  xxxiii.  Da  vida,  e  morte  do  Padre  Frei  Jgnacio  da  Purifica- 
ção. E  do  irmão  Frei  Pedro  de  S.  Domingos  leigo 416 

Cap.  xxxiv.  Do  naufrágio,  e  trabalhos,  e  martyrio  do  Padre  Frei 
Nicoláo  do  Rosário 419 

Cap.  XXXV.  Como  foi  martyrisado  o  Padre  Frei  Nicoláo  do  Rosário.  422 

Cap.  XXXVI.  De  alguns  filhos  deste  Convento  que  sobirão  a  gran- 
des Prelazias 423 

Cap.  xxxvii.  De  outros  filhos  d'este  Convento  que  servirão  nos  tri- 
bunais do  Santo  Officio 429 

Cap.  xxxviii.  De  outros  Padres  que  forão  Lentes  de  grandes  cáte- 
dras na  Universidade  de  Coimbra  sem  entenderem  em  outro  mi- 
nistério   , 433 

Cap.  XXXIX.  Da  protestação  da  fé  que  o  Padre  Mestre  Frei  Luiz  de     . 
Sotto  Maior  deixou  escrita;  e  de  sua  bemaventurada  morte  .     .  437 

Cap.  xl.  Dos  estudos  que  ha  n'este  Convento.  E  como  lhe  foi  an- 
nexada  a  Igreja,  e  renda  do  antigo  Mosteiro  de  Ansede  pola  Sé 
Apostólica 442 

Cap.  xli.  Das  Relíquias  que  ha  no  Convento :  e  de  algumas  me- 
morias antigas  que  n'elle  se  achão 445 


Uma  Lição  de  florete,  c.  d  em  3 
actos.' 

Tl  aba  llio  e  honra,  c.  em  3  actos 

A  Ari.-tocrnciiie  o  dinheiro,  cem 
•')  artos 

CurdíAo  (ie  ferro,  d  phanlaslico 
em  ;j  acto* 

O  (.lialede  (laciíemira,  comeilia 
^i:i  um  acto,  por  Alexandre  Du- 
(1;,!-.  Traduzida  iivreiíieiite  por 

A.  Osar  de  Lacerda 

perigdso  .»er  rico,  comedia  em 
um  acto 

\í  jóias  de    familia  c.  d.  em  3 

actos 

MEM)ES  LEAL  ANTOMO 

Poesias,  I  vol 

Àliel  e  Caim,  c.  em  3  actos 

ma  Viclima,  d.   original  em  3 
aclns 

)òr  e  Amor.  c  d.  em  ;}  actos. . . 
.1.  DAIiOI.M 

1'  farde  entre  a  murta,  comedia 
em  3  actos 

>  líecnmmendado  de  Lisboa,  c. 
em   I  acto 

•   Homem  jioe  e  Deus  dispõe,  c. 

em  doi.s  aclos 

s  nódoas  de  sangue,  d.  em  ."> 
actos 

aiin  louco  com  sua    mania,  c. 

original  cm  um  ado 

I.   M    ITJJOO 
amões  do  hocio.  c.  em  3  aclos. 
Torre  do  Omvo.  d.  em  í  ;!cios 

e  um  |Holo?,'o 

arios  ou  a  Familia  rle  um  Ava- 
rento, c.  cm  í  aclos 

íiJro  Cem,  c.  em  ;>  aclos  .... 
emcchido  ,  o   Guorrilliciro  ,    d. 

em  3  aclos 

E.    I5II-STEU 
m  Quadro  da  vida,  d.    em   o 

actos  

Uedcmpção,  c.  d.  em  3  actos, 
jas   épocas  da  vida,  c.  em  2 

actos 

«a  viagem  peialilteraluracon- 

lem|)oranea 

.  obras  de  Horácio  ,  iraiiacão, 

comedia  em  um  acto '. . . 

n  homem    de  Consciência,  c. 

em  2  actos 

Maestro  Favilla,  drama  em  3 

ictos 

ALFREDO  UOííÁn" 
Brazileiras,  c.  d.  em  3  actos, 
nguem  julgue  pelas  apparen- 
;ias ,  c.  d   em  3  actos 

(  Iiissipadores,  c.  em  4  aclos  . 

Inicllior  não  experimentar,  c. 

Ill  I  acto 

Imorias  do  Cotação 

liiuà  de  Caridíuie  ,  c.  em  2 


!       aclos 160 

180  ^  Duas  mulheres  da  época,  roman- 

300';      ce  contemporâneo 250 

j  O  Marido  no  Prego.   c.  em   um 

300:      acto ..." ICO 

!  .Já   não   ha  tolosi.       c    em   um 

300         acto Sf) 

j  Não  liesprese  sem  saber .  c.  em 

I       um  acio J20 

I  O  Colono,  c.  (1.  em  3  actos !«(> 

220     Segredos  do  Cwração,  c.  d.  em  3 

!      actos ' 2()y 

IGO  I  O    .1017.0  do  Jlundo  c.  d.    em  3 

j      actos fljo 

300  :  A  Mascara  Social,  c.   d.  em  3 

actos 200 

íjOO     A  1'elledo  Leão.  c.  d.  cm  3ac|iis.       2(10 
2Í0  í  A  Hoda  da  fortuna  ,  c.  d.  em  3 

!      actos íco 

ICO  ;  Nem  tudo  que  luz  coiro,  c.  d.  em 

200  ;      3  aclos 2{i() 

!  O  dia  l."de  Dezemiiro  de  KilO, 

c.  heróica,  original  em  3  acius.       200 
250     O  nltiinii  dia  dos  Jesuilas  cm  Por- 
tuga!, drama  original  hisiorico 
80         porlugucz  cm  8  ([uadros   i  ac- 

liis  e  um  en'1'í.'o 2(10 

120  ;      JlLiO    CIvSAlí     3IACI!AIH).    K 

ALI  i:i:!)0  IlOli  \.\ 
lf)0     A  Vida   cm   Lisboa,  c.  d.   em  4 

aclos ;]()(» 

100     Primeiro  o  dever'   c.    d.  cm  3 

I      actos I(,(| 

oOO  j  F.  CVMiiSTO  LKOM 

Génio  da  ljm.';ia  Porhi^iu/n  .  . .     I:,SIH) 

400 !  .1.  c.  DOS  Santos 

,  o  Segredo  d'unia  Familia.  c.  em 

210  i      3  aclos 21í( 

Suo     O    Pae  proiligo.  comedia   em  3 

aclos 12í) 

soo  j  O  Homem  das  Cautelas,  c.  em  2 

I   ^  actos JSít 

I  Gil  Braz  de  Saniilhana,  comedia 

480  I      em  3  aclos 800 

300     Maria,  ou  o  Irmão  e  a  Irmã.  c. 

em  3  actos 20;> 

2i0     Uma  chávena  de  cl;;';,  c.  em  i:;:: 

acto !2í» 

200     Convido  o  coroiic,!!  '..  c   em  nm 

acto iC!» 

120     A  Herança  do  tio  llusso  .  r.  em 

3  actos •">•>(> 

ICO  HENRIQUE  VAN-DEUrERS 

Poesias  ,1  vol 3(;o 

200     Os  moedeiros  falsos,  c  d.  origi- 
nai cm  3  actos |(;() 

300     Dois  cães  a  um  osso.  c.  em  lado      I(i(> 
Não  envenenes  tu,  a  mulher  qui- 

3í»0        proquo  em  I  acto 1 2ii 

400     Scenas  iniimas,  comedia-drama 

em  1  acto ítii» 

200    .1 0  A  Q  U I  .M  A  l  (i  r  ST  O  1 1 E  0 1. 1 V  E  UW 
240     A     Coroa  de  Carlos  Ma;;no   pi-ia 
majjic-1  de  grande  espcclaciiio 


100 
IGU 


3C0 


SOO 


200 


Pm  4artosl  prologo,  c  21  qua- 
riro>.  formada  !^ot)re!ileiula= 
LeMualrelils  Aynion 3.U 

\  f.osiure.ra,  cem  um  aclo. . . 

l-rro*  <la  Mocidade,  c.  en.  .{aclos. 

\  ave  (lo  rarf.i/.o,  comedia-n.a!;i- 
c.i  cm  iO  quadros,   formando 

;{  actos ; 

o  na. ai/o  perdido,  ou  «  crcaçHo 
,.  o  Dciuvio,  jieca  bihlica  em 
1    prologo,  'Á  aclos  e  1  epilotro, 

fnrniando    21  'I '"i'' '"*;,•  V.^v.Wc 
M\MEL01)01UC0  MhM)Eí5 

Omom-uIo    acerca  do  l»almHiiim 
de  Inulalcrra  e  do  seu  aulor  no 
qual  se  prova  haver  !«ido  a  refe- 
rida  obra   composta  original- 
mente em  portusue/.. . . . .  •  •  •  • 

1    DE  ViUlKNA  UAU150b\ 

r^Iades  e  villas  da    Monarchia 
INirtugue/a  que  teem   Brasões 
dArmas:3vol.8.'fr.  comes 
liimpas  ivtographadas  ••••'•••'=""" 
.lULIÕ    (.ESA1\  MACHADO 

A  esposa  deve  acompanhar  seu 
marido,  (.  em  um  acto 

O  Capitão  nilterlin  ,  c.  em  um 

"'^^iíístVdèsaiíranciíès 

Slnmtuil,  c.  em  3  aclos  e  9  qua- 
dros  • : 

A   mãe  dos  escravos,  d.    em  4 

actos... , •  •  •  • 

(, orno  se  descobrem...  mazcllas, 

c.  em  í  acto • ]'-}^ 

Trovoadas  (U  maio,  c.  em  1  acto       Ibu 
Os  dois  pescadores,  c.  em  1  acto.        bU 
Kem  lodo  o  mato  e  oregãos,  cem 
lacto ^^^ 


140 
140 

300 
200 


4^1 

101 

1 

20( 

1S< 


j    R.  COUDEIUO    JUMOU 

Amor  e  arte,  drama  em  3  actos^ 

O  Arrependimento  salva,  dram* 

em  mu  acto..  •  •  •  •  • '  • ;  '. 

Fernando,  comedia-dramu  cm   4 

aclos  ••j-j;-,Veahaijjo  ' 

AprinmadeArrentella,lrage- 
rfiaburle.-.cacm3aclos....j^ 

A  Sombra  do  Si''Cir«.  trcigidi* 
burlesca  em  3  actos----;;  •  ;• 

Um   Bico  em   Verso,  scena  to- 

mica ■trV..Vf<ia 

0   Prinrepe  Escarlate,  ^ra^eo  a 

burlesca  em  2  actos  em  ^'•T'^- 

Um    iiomem  que  tem  cabeça;  c. 

em  um  acto -  - 

Últimos   Toomcnios   d'uni  .Uidaf, 
entre-aclo  tragieo-burlescn..  . 
JOSÉ  UEMO  DA11AU.I0  ASSIS 
O   segredo  d'uma  esmoli,  c  d- 

em  2  actos 

Asdu^xs  paixões,  c.  eui    1  acto.. 
Deus  nos  livre  de  mulheres,  c.  em 
um  acto,  ornada  de  coplas  .  . 
J.A.  DE  MACEDO 
A  Creacao,    poema  pelo   P-   José 

Asostlnho  de  Macedo 

KK.NESTO  MAUECOS 
As  Primeiras  Inspirações,— Poe- 
sias  • 

Jucá,  a  Matnmbolla- Lenda.... 
MANUEL  MAKIAPOllTELLA 

Ensaios  poéticos.— Poesias. „^„^V" 

OUHAS  DE  DIVEUSOS  AUCTOULS 
lleflexòes  sobre  a  língua  por-'-  >> 

gue/.a,2.-  ed <     ^í 

Cirurgia  e  medicina  1  vol  .....       ■^htl 
Camões  e  o  Jáo,scena  dramática.    1 


íM=i^lí 


10 

8 


18 
1 


CO 
IG 


Obras  que  devem  estar  promptas  até  a  fim 
de  Março  próximo. 

Jorge  FERREinA  de  VAScoNCELLOS=Memorial  dos  Cavalleiros 
da  Tavola  Redonda.— Aulegrafiia.—Eufrosina.—Ullysipp 

Rocha  PiTA=Historia  do  Brazil. 

Rr.iTO  FREiRE=NoYa  Lusitana,  Guerra  Brasílica. 

Padre  Antomo  CoRDEiRO=Ilistoria  insulana. 

Padre  CARVALno=Corografia  portugueza. 

.].  Baptista  de  CASTRO=Mappa  de  Portugal,  continuado  até 

presente. 
Pedro  NursES=Esfera. 
ViLLAS  BoAS=Nobliarcliia  portugueza. 


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